Pompeu correu a casa para tomar banho e mudar de roupa; enquanto isso, os seus criados puseram-se em acção para descobrir onde moraria agora Múcia Tércia. Conhecida a morada, Pompeu dirigiu-se imediatamente a casa de Júlia, deslumbrando toda a gente com a brancura da sua toga e espalhando à sua volta um intenso odor a perfume de rosas. A filha de Cévola! A sobrinha de Crasso Orador! Parente dos mais importantes Cecílios Metelos! Isso significava que os filhos que ela lhe havia de dar seriam parentes de algumas das mais importantes famílias de Roma! Ah, que lhe interessava a ele que ela fosse viúva do jovem Mário! Nem que ela fosse tão feia como a Sibila de Cumas, havia de ser sua esposa!
Feia? Mas ela não era nada feia! Era uma mulher muito estranha e muito bela. Cabelo ruivo-escuro, olhos verdes-escuros, uma pele muito branca, impecável. Ah, e aqueles olhos? Não havia outros iguais em todo o mundo! Ah, mas que delícia de mulher! Pompeu apaixonou-se loucamente por ela ao primeiro olhar, ainda antes de terem trocado uma única palavra.
Não admira, pois, que quase não tivesse reparado nas outras pessoas que estavam na sala, mesmo depois de as ter cumprimentado. Foi buscar uma cadeira, sentou-se ao lado de Múcia Tércia e, muito nervoso, pegou-lhe na mão.
— Sila diz que vais casar comigo — disse Pompeu, sorrindo para ela com os seus dentes brancos e uns olhos azuis muito brilhantes.
— Eu não sabia de nada — disse ela, sentindo, inesperadamente, que a sua antipatia começava a dissipar-se, e isso porque aquele homem exultava de felicidade, além de ser, de facto, muito atraente.
— Pois foi o que Sila decidiu — retorquiu Pompeu, ofegante de excitação. — Mas tens de admitir que ele se preocupa em fazer o melhor para todos nós.
— É natural que penses assim — interveio Júlia, num tom gélido.
— Não creio que tenhas razões de queixa! Afinal, tratou-te melhor do que a todas as outras viúvas de prescritos — replicou, com muito pouco tacto, o apaixonado, de olhos postos na futura esposa.
Júlia quase lhe respondia que Sila fora o responsável pela morte do seu único filho. Mas reflectiu um pouco e calou-se: aquele parvo, pensou, estava demasiado ligado a Sila para poder ver o outro lado da questão.
Quanto a César, sentado a um canto da sala, examinava atentamente Cneu Pompeu Magno, que nunca antes vira. Pelo aspecto, não era um verdadeiro Romano: as marcas gaulesas, comuns aos Picentinos, eram demasiado óbvias no nariz arrebicado, no rosto largo, na covinha do queixo. Quanto ao que dizia, não tinha nada de romano, isso era mais que certo; era espantosa a sua total ausência de subtileza. Miúdo Carniceiro. A alcunha assentava-lhe bem.
— Que achas dele? — perguntou Aurélia a César, a caminho de Subura, sob o sol do meio-dia.
— Seria mais adequado perguntar: que acha Múcia dele?
— Ah, gostou imenso dele. Muito mais do que alguma vez gostou do jovem Mário.
— Também não era difícil, Mater.
— Não.
— A tia Júlia vai sentir-se muito só, sem ela.
— É verdade. Mas Júlia tem sempre muito que fazer. Acabará por encontrar novas ocupações.
— É pena ela não ter netos.
— A culpa é toda do jovem Mário! — retorquiu acerbamente Aurélia.
Estavam quase a chegar à Vicus Patricius quando César voltou a falar.
— Mãe,vou ter de voltar à Bitínia — disse ele.
— À Bitínial Mas isso não é sensato, meu filho!
— Eu sei. Mas dei a minha palavra ao rei.
— Uma das novas regras de Sila não obriga todos os senadores a pedir autorização sempre que queiram deixar a Itália?
— Obriga, sim.
— Então, ainda bem — retorquiu Aurélia, satisfeita. — Deves mostrar a maior franqueza quanto ao destino da tua viagem. E, para além de Burgundo, deves levar Eutico.
— Eutico? — César parou para olhar para ela. — Mas Eutico é o teu chefe dos criados! Como é que te vais arranjar sem ele? E por que raio é que ele há-de ir comigo?
— Eu cá me arranjarei sem ele. E acho que ele deve ir contigo porque Eutico é natural da Bitínia. Deves dizer ao Senado que o teu liberto, que, para além do mais, é o teu chefe dos criados, tem de se deslocar à Bitínia para tratar dos seus negócios e que tu tens de acompanhá-lo, como é dever de qualquer patrão que se preze.
César desatou a rir.
— Sila tem toda a razão! Tu de vias ter sido um homem. E és tão romana! Tão subtil! Atiro-lhes à cara com o verdadeiro destino da minha viagem, em vez de fingir quevou à Grécia, o que seria errado, pois acabaria por ser descoberto na Bitínia. Sim, porque as mentiras são sempre descobertas. — Nesse instante, ocorreu-lhe um outro pensamento. — A propósito de subtileza. Aquele Pompeu é tudo menos subtil, não achas? Quando ele disse aquilo à tia Júlia, só me apeteceu dar-lhe um murro em cheio naquela cara! E, por todos os deuses, que fanfarrão que ele é!
— Um fanfarrão em tudo, suspeito — disse Aurélia.
— Ainda bem que o conheci — disse César, com um ar grave. — Ele mostrou-me que a nódoa que afecta a minha reputação pode vir a revelar-se uma boa coisa.
— Que queres dizer com isso?
— Até agora, nada nem ninguém conseguiu pôr Pompeu no lugar que lhe compete. Ele tem um lugar nesta sociedade — mas um lugar que não é tão elevado nem tão digno como ele pensa.
As circunstâncias ajudaram-no a construir uma imagem de si mesmo que tem pouco a ver com a realidade. Até agora, foi-lhe dado tudo o que ele quis. Até mesmo uma noiva muito acima dos seus méritos. Por isso, ele habituou-se a pensar que as coisas hão-de ser sempre assim. Mas é evidente que não serão. Um dia, as coisas hão-de correr-lhe terrivelmente mal. E ele achará a lição intolerável. Eu, pelo menos, já aprendi a lição.
— Achas mesmo que Múcia está acima dos méritos dele?
— Porquê? Tu não achas? — perguntou César, surpreendido.
— Não, não acho. O nascimento dela é irrelevante para o caso. O que é importante é que Múcia foi a esposa do jovem Mário, e foi-o porque o pai, por conveniência, a deu em casamento a um filho de um Homem Novo. Ora, Sila não esquece esse género de coisas. Não esquece, nem perdoa. Ele deslumbrou aquele simplório com o nascimento dela. Mas não lhe explicou todas as razões que o levavam a dar Múcia em casamento a um homem que lhe é inferior.
— Astucioso!
— Sila é uma raposa, como todos os homens ruivos desde Ulisses.
— Então é uma boa ideia eu afastar-me de Roma.
— Até que Sila deixe o poder?
— Até que Sila deixe o poder. Ele diz que isso acontecerá depois de organizar as eleições para os cônsules de daqui a dois anos. Ou seja, talvez dentro de onze meses, se ele realmente realizar as suas pretensas eleições em Quinctilis. Os cônsules do próximo ano serão Servílio Vátia e Ápio Cláudio. Mas não sei em quem é que ele está a pensar para daqui a dois anos. Catulo, provavelmente.
— E Sila ficará em segurança, depois de deixar o poder? — perguntou Aurélia.
— Absolutamente — asseverou César.
— Terás de ir para Hispânia — disse Sila a Metelo Pio. — Quinto Sertório está a apossar-se rapidamente de todo o território.
Metelo Pio fitou o seu chefe com um ar algo reprovador.
— Não contes comigo! — disse ele, num tom razoável. — Quinto Sertório tem a-a-amigos entre os Lusitanos e é muito forte a oeste de Bétis, ma-ma-mas tu tens bons governadores em ambas as províncias hispânicas.
— Terei mesmo? — retorquiu Sila, agastado. — Pois já não tenho! Acabo de receber a notícia de que Sertório derrotou Lúcio Fufídio. E porquê? Porque esse louco que dá pelo nome de Fufídio foi estúpido ao ponto de lhe oferecer batalha. Quatro legiões! Apesar de ter quatro legiões, Fufídio não conseguiu vencer Sertório, que só tinha sete mil homens, sendo apenas um terço deles Romanos!
— Sim, claro, ele trou-trou-trouxe Romanos da Mauritânia, na Primavera passada — disse Metelo Pio. — Os outros, são Lusitanos?
— Selvagens, meu caro Bacorinho! Não valem um caracol debaixo da sola de uma coliga romana! Mas, pelos vistos, são capazes de derrotar Fufídio!
— Oh... Edepol!
Por uma razão que o Bacorinho nunca enxergara, aquela imprecação moderada produzia sempre em Sila um efeito hilariante: ria até mais não. Só ao fim de algum tempo é que o Ditador conseguiu controlar-se o suficiente para abordar de forma mais desenvolvida o melindroso assunto das Hispânias.
— Repara, Bacorinho, que eu conheço Quinto Sertório há muito tempo. Tal como tu, aliás! Se Carbão tivesse conseguido mantê-lo em Itália, talvez eu não tivesse obtido a vitória da Porta Colina porque, provavelmente, era derrotado muito antes disso. Sertório tem pelo menos tanto valor como Caio Mário e a Hispânia é, desde há muito tempo, a sua terra de eleição. O ano passado, quando Lusco conseguiu expulsá-lo de Hispânia, pensei que o miserável se transformasse num mercenário mauritano e nunca mais voltasse a causar-nos problemas. Pensei mal. E pensei mal, porque Sertório começou por conquistar Tíngis ao rei Ascális e acabou por matar Pacciano, ficando com as suas tropas romanas. Agora, está de volta à Hispânia Ulterior, e já conseguiu transformar os Lusitanos em militares tão bons como os Romanos. Por tudo isto, terei de te nomear governador da Hispânia Ulterior — e deveras partir logo no Ano Novo e não na Primavera. — Sila pegou numa folha e estendeu-a a Metelo Pio com um ar exultante. — Terás oito legiões! Pelo menos para essas oito legiões não terei de arranjar terras... E, se partires em fins de Dezembro, poderás embarcar directamente para Gades.
— Um grande cargo — comentou o Pontifex Maximus com genuína satisfação, pois não lhe desagradava nada afastar-se de Roma durante uns bons anos — mesmo que isso significasse que tinha de enfrentar Sertório. Não teria cerimónias religiosas para realizar, não perderia mais noites de sono por causa da sua gaguez. De facto, bastava-lhe sair de Roma para que o seu problema desaparecesse imediatamente — sempre fora assim. Entretanto, lembrou-se de outra coisa. — E quem vais nomear para o governo da Hispânia Citerior?
— Marco Domício Calvino, acho eu.
— E Curió? É um bo-bo-bo-bom general.
— Para Curió estou a pensar em África. Calvino é o homem ideal para te apoiar numa campanha difícil e demorada. Curió era capaz de se revelar demasiado independente — disse Sila.
— Sim, sim, estou a perceber.
— Calvino poderá levar seis legiões. O que dá um total de catorze legiões. com certeza que chegam e sobram para domar Sertório!
— Num abrir e fechar de olhos — disse o Bacorinho, entusiasmado. — Nã-nã-não temas, Lúcio Cornélio! A Hispânia está se-se-segura!
Sila desatou a rir, de novo.
— Mas por que hei-de eu temer, Bacorinho? Por que hei-de eu preocupar-me? Quando tu voltares, meu caro Bacorinho, já eu estarei morto!
Chocado, Metelo Pio estendeu as mãos abertas num gesto de protesto.
— Francamente, Lúcio Cornélio! Que disparate! Tu és um homem relativamente jovem!
— De acordo com uma profecia, eu morrerei no auge da fama e do poder — disse Sila, sem demonstrar medo nem pesar. — Deixarei o poder no próximo Quinctilis, Pio, e retirar-me-ei para Miseno para uma última e gloriosa aventura, recheada de todas as folganças possíveis e imagináveis. Não será uma longa aventura, masvou gozar todos os seus momentos!
— Os profetas são algo de anti-romano — replicou Metelo Pio com um ar austero. — Ambos sabemos que as suas profecias erram mais do que acertam.
— Não é o caso deste profeta — disse firmemente Sila. — Era um profeta caldeu e adivinho do rei dos Partos.
Metelo Pio achou mais sensato deixar-se de contestações; em vez disso, lançou-se numa longa discussão sobre a campanha hispânica.
Para dizer a verdade, o trabalho de Sila era agora praticamente nulo. A enxurrada legislativa terminara e a nova constituição parecia em condições de resistir a todos os afrontamentos, mesmo depois de Sila deixar o poder; a distribuição de terras pelos seus veteranos, um dos principais escolhos da sua governação, parecia ter chegado a uma fase de absoluta acalmia; e até Volaterras tinha finalmente caído em poder dos Romanos. Apenas Nola — o mais antigo e encarniçado inimigo de Roma, entre todas as cidades de Itália — continuava a resistir ao ímpeto romano.
Sila fizera o que pudera, e descuidara muito pouco. O Senado era agora um corpo dócil, as Assembleias estavam praticamente impotentes, os tribunos da plebe não passavam de figuras decorativas, os seus tribunais eram um êxito popular porque eram muito mais práticos que os antigos tribunais, e os futuros governadores das províncias estavam rigorosamente controlados. O Tesouro estava cheio e os seus burocratas eram implacavelmente obrigados a seguir uma conduta honesta. Se a Ordo Equester pensava que a perda de mil e seiscentos cavaleiros, vítimas das proscrições, não era lição que chegasse, Sila tratou de a esclarecer, retirando aos cavaleiros do Cavalo Público todos os seus privilégios sociais e permitindo o regresso a Roma a todos os homens exilados por tribunais com júris constituídos por cavaleiros.
Como seria de esperar, havia peculiaridades nas suas leis. As mulheres não deixaram de ser penalizadas uma vez mais, quando ele proibiu qualquer mulher culpada de adultério de se voltar a casar. O jogo (que Sila detestava) estava proibido, excepto nos torneios de pugilismo ou atletismo, torneios que, como ele muito bem sabia, não atraíam multidões. Mas a principal peculiaridade era o tratamento reservado aos funcionários públicos, que Sila desprezava, pois considerava-os desorganizados, desleixados, preguiçosos e corruptos. Por isso, regulou todos os aspectos do trabalho dos funcionários públicos de Roma: secretários, escriturários, escribas, contabilistas, arautos, lictores, mensageiros, os assistentes sacerdotais chamados calatores, os homens que lembravam aos outros homens os nomes de terceiros — nomenclatores — e todos aqueles que não tinham funções precisas e que, por isso, se chamavam apparitores. De futuro, nenhum destes homens poderia saber em que serviço ficaria quando os novos magistrados assumissem funções; nenhum magistrado poderia requisitar um funcionário específico. Os sorteios seriam feitos com três anos de antecedência e nenhum grupo serviria em princípio o mesmo tipo de magistrado.
Sila encontrou novas formas de importunar o Senado, depois de ter banido todas as demonstrações ruidosas de aprovação ou reprovação e de ter alterado a ordem pela qual os senadores falavam; promulgou uma lei que afectava severamente os rendimentos de certos senadores mais necessitados, limitando o total de dinheiro que as delegações provinciais podiam gastar quando vinham a Roma entoar os cânticos de louvor a um ex-governador, o que implicava que estas delegações, ao contrário do que sucedera noutros tempos, não poderiam dar dinheiro a certos senadores mais necessitados dele.
Era todo um programa de leis que cobria todos os aspectos da vida pública romana, tal como muita da vida romana até então privada. Toda a gente sabia dentro de que parâmetros se podia mover — quanto podia gastar, quanto podia receber, quanto pagava para o Tesouro, com quem podia casar, onde seria julgado e por que acusação seria julgado. Um empreendimento gigantesco e que parecia ter sido realizado por um único homem, sem ajuda de mais ninguém. Se os cavaleiros tinham caído em desgraça, os heróis militares tinham subido a alturas raramente vistas. A Assembleia da Plebe e os seus tribunos tinham perdido todo o poder, mas o Senado acumulara poderes. Os parentes próximos dos proscritos estavam na mó de baixo, mas homens como Pompeu, o Grande, estavam claramente na mó de cima. Os advogados que se tinham distinguido nas Assembleias (como Hortênsio) não eram mais que uma sombra de si mesmos; ao passo que os advogados que se distinguiam na atmosfera mais íntima dos tribunais (como Cícero) atingiam os cumes da glória.
— Não admira que Roma ainda esteja com a cabeça à roda, apesar de eu não ouvir uma única voz contestando Sila — disse o novo cônsul, Ápio Cláudio Fulcro, ao seu colega no consulado, Públio Servílio Vátia.
— E uma das razões para essa ausência de contestação é que muitas das leis foram ditadas pelo bom senso — retorquiu Vátia. — Até nisso Sila é espantoso!
Ápio Cláudio aquiesceu sem entusiasmo, mas Vátia não interpretou mal aquela apatia; o seu colega não estava bem desde que regressara do inevitável cerco de Nola — pelo seu aspecto, dir-se-ia que tinha estado em Nola um ror de tempo. Além disso, Fulcro estava viúvo e tinha seis filhos famosos pela sua indisciplina e pela desagradável tendência de travarem verdadeiras batalhas campais em público.
Compacedendo-se dele, Vátia deu-lhe umas ternas palmadinhas nas costas.
— Ora, Ápio Cláudio, olha para o teu futuro com mais esperança! Tem sido um caminho longo e árduo, mas finalmente chegaste ao teu destino!
— Só chegarei ao meu destino quando tiver restaurado a fortuna da minha família — retorquiu Ápio Cláudio, com um ar taciturno.
— Aquele miserável do Filipe tirou-me tudo o que eu tinha para dar a Cina e a Carbão. E Sila não me devolveu nada.
— Devias ter-lhe falado disso — disse Vátia. — Não te esqueças que ele tinha muito que fazer. Porque é que não compraste propriedades durante as prescrições?
— Não te esqueças que eu estava em Nola nessa altura — retorquiu o infeliz Ápio Cláudio.
— No próximo ano irás governar uma província. Isso resolverá todos os problemas.
— Se a minha saúde agüentar.
— Oh, Ápio Cláudio! Deixa-te de tristezas! Por todos os deuses, ainda hás-de viver muitos anos!
— Não sei — replicou Fulcro, pessimista. — com a sorte que eu tenho, ainda me mandam para a Hispânia Ulterior, para substituir Pio.
— Prometo-te que isso não acontecerá — disse Vátia, tentando consolá-lo. — Se tu não defenderes os teus interesses junto de Sila, fá-lo-ei por ti! Pedir-lhe-ei que te dê a Macedónia. A Macedónia sempre foi um bom sítio para juntar umas sacas de ouro e para arranjar importantes contratos locais. Isto para não falar da possibilidade de vender a cidadania a gregos ricos.
— Pensava que já não havia disso — disse Ápio Cláudio.
— Há sempre homens ricos, mesmo nos países mais pobres do mundo. Fazer dinheiro é algo que faz parte da natureza de alguns homens. Nem mesmo os Gregos, com todo o seu idealismo político, conseguiram erradicar os ricos! Nem mesmo a República de Platão conseguiria extingui-los!
— É o caso de Crasso, não é?
— Ora aí está um exemplo magnífico! Qualquer homem teria mergulhado na total obscuridade depois de Sila lhe ter virado as costas. Mas não o nosso Crasso!
Pulcro e Vátia encontravam-se na Cúria Hostília, onde decorria a reunião inaugural do Senado do Dia de Ano Novo, porque o templo de Júpiter Optimus Maximus não fora ainda reconstruído e os templos de Júpiter Stator e Castor eram demasiado pequenos para abrigar tantos senadores.
— Xiu! — fez Ápio Cláudio. — Sila vai falar.
— Pais Conscritos — começou o Ditador, com uma voz jovial —, posso dizer que, basicamente, está tudo feito. Era minha intenção confessa pôr Roma de pé e promulgar novas leis que cumprissem as normas da mos maiorum. Foi isso que fiz. Mas continuarei a ser o Ditador até Quinctilis, altura em que organizarei as eleições para os magistrados do próximo ano. Isto, já vocês sabem. Contudo, acredito que alguns de vós são capazes de pensar que um homem com tanto poder dificilmente se submeteria à ideia de demitir-se. Repito, por isso, que deixarei o cargo de Ditador depois das eleições de Quinctilis. Isto significa que os magistrados do próximo ano serão os últimos escolhidos pessoalmente por mim. Nos anos futuros, todas as eleições serão livres, abertas a tantos candidatos quantos os que pretenderem disputá-las. Há quem tenha reprovado o facto de o Ditador escolher os seus magistrados, apresentando tantos nomes quanto os cargos que é preciso preencher. Porém — como sempre defendi! — o Ditador tem de trabalhar com homens preparados para o apoiarem de alma e coração. Não podemos confiar que o eleitorado escolha os melhores homens, pois, muitas vezes, nem sequer escolhe os homens que merecem os cargos devido à sua posição ou experiência. Por isso, na qualidade de Ditador, tenho escolhido os homens com quem desejo trabalhar e que, de um ponto de vista moral e ético, mereciam os cargos. É o caso do meu querido Pontifex Maximus, Quinto Cecílio Metelo Pio. Ele continua a ser digno do meu apreço, pois, neste momento, está já a caminho da Hispânia Ulterior, onde irá combater aquele criminoso que dá pelo nome de Quinto Sertório.
— Está a divagar — disse Catulo, cinicamente.
— Porque não tem nada para dizer — disse Hortênsio.
— A não ser que se demite em Quinctilis.
— E olha que eu começo a acreditar nele.
Mas esse primeiro dia do ano, que começara tão auspiciosamente, iria acabar com más notícias, chegadas, com bastante atraso, de Alexandria.
Ptolemeu Alexandre, o Novo, vira finalmente chegar a sua hora no início do ano anterior, o segundo ano do reinado de Sila. De facto, recebera nessa altura a notícia de que o rei Ptolemeu Soter Grão-de-Bico tinha morrido e que a sua filha, a rainha Berenice, reinava agora sozinha. No entanto, de acordo com a lei egípcia, Berenice não podia ocupar o trono sem ter um rei a seu lado. Os emissários de Alexandria pediram então a Lúcio Cornélio Sila que concedesse ao Egipto um novo rei, na pessoa de Ptolemeu Alexandre, o Novo.
— Que acontece, se eu recusar? — perguntou Sila.
— Se tu recusares, o rei Mitridates e o rei Tigranes conquistarão o Egipto — respondeu o chefe da delegação. — O trono tem de ser ocupado por um membro da dinastia ptolemaica. Se Ptolemeu Alexandre não for coroado rei e faraó, teremos de pedir a Mitridates e a Tigranes que nos entreguem o mais velho dos dois bastardos, Ptolemeu Filadelfo, a quem puseram o apelido de Auleta por causa da sua voz aflautada.
— Percebo perfeitamente que um bastardo possa assumir o título de rei. Mas quanto ao título de faraó: poderá assumi-lo legalmente? — perguntou Sila, revelando assim que estudara a história da monarquia egípcia.
— Se ele fosse filho de uma mulher vulgar, por certo que não — foi a resposta. — Contudo, Auleta e o irmão são filhos de Ptolemeu Soter e da princesa Arsínoe, a concubina real, que era a mais velha das filhas legítimas do rei da Nabateia. Tem sido um costume de todos os pequenos reis da Arábia e da Palestina enviar as filhas mais velhas para o Egipto, onde se tornam concubinas do faraó, pois esse é um destino mais augusto e respeitável do que casar com outros pequenos reis — e, por outro lado, esse contrato proporciona uma maior segurança aos seus pais, os quais precisam da cooperação egípcia para realizarem as suas actividades comerciais no Sinus Arabicus e nos diversos desertos.
— Estás portanto a dizer-me que Alexandria e o Egipto aceitariam um dos bastardos ptolemaicos por a sua mãe ser de estirpe regia?
— Se não podermos dispor de Ptolemeu Alexandre, isso será inevitável, Lúcio Cornélio.
— Marionetas de Mitridates e de Tigranes — disse Sila, com um ar pensativo.
— Como as esposas deles são filhas de Mitridates, também isso será inevitável. Tigranes encontra-se demasiado perto da fronteira egípcia para que nós possamos exigir que os bastardos de Ptolemeu se divorciem dessas jovens. Tigranes invadir-nos-ia em nome de Mitridates. E o Egipto cairia. Nós não somos suficientemente fortes, do ponto de vista militar, para enfrentar uma guerra de tal magnitude. Além disso, as jovens têm suficiente sangue ptolemaico para poderem aceder ao trono. Isto no caso — disse o chefe da delegação, com um ar melífluo — da filha de Ptolemeu Soter e de uma outra concubina, a filha do rei de Idumeia, não chegar à idade adulta; é que Auleta poderia ainda casar-se com essa jovem, pois metade do seu sangue é ptolemaico, tal e qual como acontece com Auleta.
Sila, de repente, pareceu animado, e pronto a resolver o caso.
— Deixem as coisas comigo. Euvou tratar do assunto. Não podemos permitir que a Armênia e o Ponto controlem o Egipto!
Sila tomara as suas deliberações há já muito tempo; por isso, partiu sem demora para a villa do monte Piciano onde residia Ptolemeu Alexandre.
— Chegou o grande dia — disse o Ditador ao seu refém, agora com trinta e cinco anos.
— Grão-de-Bico está morto? — perguntou logo Ptolemeu Alexandre.
— Morto e enterrado. A rainha Berenice reina sozinha.
— Então, tenho de partir já! — exclamou Ptolemeu Alexandre, muito agitado. — Tenho de partir já! Não há tempo a perder!
— Podes partir quando eu te der autorização, nem antes, nem depois — disse Sila, secamente. — Senta-te e ouve-me com atenção.
O rei sentou-se e todos os seus drapejamentos deslizaram com ele, moldando-se à cadeira, cobrindo-a por completo; os olhos tinham um estranho aspecto, rodeados pelos traços de stibium que aplicara nas pálpebras inferiores e superiores, traços alongados na direcção das têmporas, ao jeito do antigo Olho do Egipto, o wadjet; como também tinha pintado de preto as espessas sobrancelhas e embranquecido a área entre as sobrancelhas e a linha negra das pálpebras superiores, Sila concluiu que era absolutamente impossível saber o que os régios olhos de Ptolemeu Alexandre realmente expressavam. O efeito geral, decidiu, era claramente sinistro — mas, provavelmente, essa era a intenção do rei.
— Não podes falar a um rei como falas a um inferior — disse Sua Majestade, com um ar superior.
— Todos os reis do mundo são meus inferiores. — respondeu Sila num tom desdenhoso. — Eu governo Roma! Isso torna-me o homem mais poderoso entre os rios do Oceano e do Índico. Por isso, vais ouvir-me — e sem interrupções! Podes ir para Alexandria e assumir o trono. Mas mediante certas condições. Entendido?
— Que condições?
— Que faças o teu testamento e o deixes no templo das Virgens Vestais, aqui em Roma. Um testamento simples. Caso morras sem filhos legítimos, legarás o reino do Egipto a Roma.
Ptolemeu Alexandre fitou-o boquiaberto.
— Mas eu não posso fazer uma coisa dessas!
— Podes fazer tudo o que eu mandar! Se quiseres reinar em Alexandria, é claro. Esse é o meu preço. O Egipto passará a ser romano se morreres sem filhos legítimos.
Os olhos do rei, realçados por aquela moldura impressionante, agitavam-se numa dança nervosa, e os lábios pintados de carmim — carnudos e provocantes — mexiam-se num jeito que trouxe à memória de Sila a boca de Filipe. — Muito bem, concordo com o teu preço — disse Ptolemeu Alexandre, encolhendo os ombros. — Não aceito os preceitos da velha religião egípcia. Portanto, que importância terá isso para mim depois de morto?
— Muito bem dito! Excelente raciocínio! — disse Sila, entusiasmado. — Trouxe o meu secretário comigo. Vamos tratar do documento imediatamente. com todos os selos reais e o teu sinete pessoal, evidentemente. Não quero contestações dos Alexandrinos depois da tua morte. — Sila bateu as palmas para chamar um criado do rei e ordenou-lhe que trouxesse o secretário. Enquanto esperavam, Sila virou-se para o rei e disse-lhe, no tom mais descontraído deste mundo: — Ah, falta falar de outra condição.
— Que condição? — perguntou Ptolemeu Alexandre, entediado.
— Pelo que sei, tens num banco de Tiro uma soma de dois mil talentos de ouro, que foram depositados pela tua avó, a rainha Cleópatra III. Mitridates levou o dinheiro que ela depositou em Cos, mas não tocou no de Tiro. E o rei Tigranes ainda não conseguiu subjugar as cidades da Fenícia. Está demasiado ocupado com os Judeus. Deixarás esses dois mil talentos de ouro a Roma.
Bastou ao rei olhar de relance para Sila, para perceber que não valia a pena discutir; uma vez mais, com um encolher de ombros, anuiu ao que o Ditador de Roma pretendia.
Flósculo, o secretário de Sila, entrou nesse momento, e Ptolemeu Alexandre mandou um dos seus escravos buscar os selos régios e o seu sinete pessoal. Instantes depois, o testamento estava pronto.
— Terei de ser eu a deixar o testamento no templo das Virgens Vestais, porque tu não podes entrar no pomerium — disse Sila, levantando-se.
Dois dias depois, Ptolemeu Alexandre, o Novo, deixou Roma com a delegação que viera buscá-lo, e embarcou para África em Putéolos; era mais fácil atravessar o mar Mediterrâneo nesse local e, depois, seguir perto da costa africana, desde a província romana até Cirenaica e de Cirenaica até Alexandria. Além do mais, o novo rei dos Egípcios queria manter-se o mais longe possível de Mitridates e Tigranes e tinha muito pouca confiança na sua sorte.
Na Primavera seguinte, chegou a Roma uma mensagem urgente de Alexandria; um agente romano (disfarçado de comerciante) informava que o rei Ptolemeu Alexandre II sofrera um desastre. Chegara em segurança após uma longa viagem e casara-se imediatamente com a sua meia-irmã e prima direita, a rainha Berenice. Durante exactamente dezanove dias, fora rei do Egipto, dezanove dias durante os quais, ao que parecia, desenvolvera um ódio cada vez maior pela esposa. Um ódio tão poderoso que, ao décimo nono dia do seu reinado, Ptolemeu Alexandre assassinara a esposa, irmã e prima. Mas ela reinara durante muito tempo com o pai e os cidadãos de Alexandria adoravam-na. Nesse mesmo dia, os Alexandrinos invadiram o palácio, prenderam o rei e desfizeram-no literalmente em bocados — uma espécie de festa e celebração para todo o povo, encenada na praça principal de Alexandria. O Egipto encontrava-se agora sem rei nem rainha e num estado de absoluto caos.
— Magnífico! — exclamou Sila, ao ler a carta do agente. Enviou imediatamente a Alexandria uma delegação de senadores romanos, chefiada pelo consular e ex-censor Marco Perperna, que apresentaria aos Egípcios o testamento do rei Ptolemeu Alexandre II. No regresso, os seus enviados deveriam passar por Tiro e levantar o ouro.
Desde esse dia e até ao Dia de Ano Novo do terceiro ano do reinado de Sila, nada mais se soube, nem sobre a delegação, nem sobre os destinos do Egipto.
— Toda a nossa viagem foi perseguida pela má sorte — disse Marco Perperna. — Naufragámos em Creta e fomos aprisionados por piratas. Depois, tivemos de esperar dois meses até que as cidades da Grécia Peloponésia pagassem os resgates. Finalmente, tivemos de concluir a viagem rumando a Cirene e seguindo depois a costa líbia até Alexandria.
— Num navio pirata? — perguntou Sila, consciente da gravidade das notícias, mas com uma imensa vontade de rir; Perperna parecia ter envelhecido de repente e tinha um ar verdadeiramente aterrado!
— Adivinhaste. Num navio pirata.
— E que aconteceu quando chegaste a Alexandria?
— Nada de bon, Lúcio Cornélio. Nada de bom! — retorquiu Perperna, com um suspiro. — Verificámos que os Alexandrinos tinham agido com celeridade e eficiência. Eles sabiam muito bem quem haviam de chamar, depois de terem executado o rei Ptolemeu Alexandre.
— Quem é que eles chamaram?
— Os dois filhos bastardos de Ptolemeu Soter Grão-de-Bico. Pediram ao rei Tigranes da Síria que lhes devolvesse os dois jovens
— o mais velho para governar o Egipto, o mais novo para reinar em Chipre.
— Uma decisão inteligente, mas não propriamente inesperada
— disse Sila. — Continua.
— Quando chegámos a Alexandria, o rei Ptolemeu Auleta estava já no trono e a sua esposa, filha do rei Mitridates, fora já coroada como rainha Cleópatra Trifena. O outro irmão, a quem os Alexandrinos decidiram chamar Ptolemeu, o Cipriota, foi nomeado regente de Chipre. A mulher, outra filha de Mitridates, foi com ele.
— Como se chama ela?
— Mitridatidis Nisa.
— Tudo isso é ilegal — comentou Sila, com um ar preocupado.
— Segundo os Alexandrinos, é totalmente legal!
— Continua, Perperna, continua! Conta-me o pior.
— bon, como é evidente, mostramos-lhes o testamento. E informámos os Alexandrinos de que estávamos ali para anexar formalmente o reino do Egipto, o qual passaria a ser mais uma província do Império Romano.
— E que disseram eles, Perperna?
— Riram-se na nossa cara, Lúcio Cornélio. Recorrendo a diversos métodos, os seus peritos em leis trataram de demonstrar que o testamento era inválido. Depois, apontaram para o rei e para a rainha sentados nos seus tronos e disseram-nos que já tinham encontrado herdeiros legítimos.
— Mas eles não são legítimos!
— Foi o que eu lhes disse. Mas eles responderam-me que os reis não eram legítimos unicamente segundo a lei romana. Segundo a lei egípcia, que parece consistir de normas fabricadas consoante o impulso do momento, apenas para fundamentar o que os Alexandrinos têm em mente, o rei e a rainha são legítimos.
— Perante isso, que fizeste, Perperna?
— Que podia eu fazer, Lúcio Cornélio? Alexandria estava a abarrotar de soldados! Demos graças aos nossos deuses romanos por conseguirmos sair sãos e salvos do Egipto.
— Tens toda a razão — disse Sila, serenamente, pois achava que aqueles acontecimentos não eram dignos da sua irritação. — No entanto, a verdade é que o testamento é válido. O Egipto, agora, pertence a Roma. — Tamborilou com os dedos na secretária. — Infelizmente, no momento presente Roma pouco poderá fazer. Mandei catorze legiões para Hispânia e não quero aumentar as despesas do Tesouro, lançando outra campanha. E sobretudo agora que Tigranes assola a maior parte da Síria e não depara com qualquer obstáculo na vizinhança, pois os herdeiros do trono parto andam envolvidos numa guerra civil. Ainda tens o testamento?
— Claro, Lúcio Cornélio.
— Então amanhã informarei o Senado do que aconteceu e devolverei o testamento às Vestais, onde ficará até ao dia em que Roma puder anexar o Egipto pela força — pois creio que só pela força conseguiremos chegar à posse da nossa herança.
— O Egipto é fabulosamente rico.
— Isso não é novidade para mim, Perperna! Os Ptolemeus possuem o maior tesouro do mundo e governam um dos países mais ricos do mundo. — A expressão de Sila indicava que a reunião estava acabada, mas ainda disse, como se de repente se tivesse lembrado de outra coisa: — Pelo que me contaste, devo concluir que não trouxeste os dois mil talentos de ouro, não é verdade?
— Ah, não, Lúcio Cornélio, claro que trouxe! — retorquiu Perperna, chocado. — Os banqueiros entregaram-me o ouro mal lhes mostrei o testamento. Passámos por Tiro no regresso, como ordenaste.
Sila desatou a rir a bandeiras despregadas.
— Muito bem, Perperna! Assim, quase que posso perdoar-te o teu fracasso em Alexandria! — Levantou-se, esfregando as mãos de contentamento. — É uma boa contribuição para os dinheiros do Tesouro. E o Senado vai dar-se conta disso. Pelo menos, a pobre Roma não teve de pagar uma embaixada sem receber uma compensação financeira adequada.
Todos os reis orientais estavam a criar problemas — essa era uma das conseqüências que Roma tinha de suportar depois das suas guerras intestinas, que tinham impossibilitado Sila de permanecer no Oriente o tempo suficiente para reduzir Mitridates e Tigranes à absoluta impotência. Assim, mal Sila embarcou para Roma, Mitridates tentou anexar a Capadócia e Lúcio Licínio Murena (então governador da Província da Ásia e da Cilícia) declarou-lhe guerra imediatamente — sem o conhecimento ou a permissão de Sila, e em contravenção do Tratado de Dárdano. Durante algum tempo, Murena teve um êxito notável na condução da guerra, mas uma excessiva autoconfiança levou-o a uma série de desastrosos confrontos com Mitridates, nas terras do Ponto. Sila viu-se então obrigado a enviar o velho Aulo Gabínio para o Oriente, a fim de convencer Murena a regressar às províncias romanas. Sila tencionava punir Murena pelo seu comportamento aventureiro, mas entretanto surgiram os problemas com Pompeu e acabou por não o fazer; por isso, o Ditador autorizou Murena a regressar e a celebrar um triunfo, porque queria pôr Pompeu no seu devido lugar.
Nos seis anos entretanto transcorridos, Tigranes expandira o seu reino da Armênia para sul e para oeste, chegando a terras pertencentes ao rei dos Partos e desintegrando rapidamente o reino da Síria. Tigranes teve noção das suas possibilidades quando soube que o velho rei Mitridates dos Partos estava demasiado doente para invadir a Síria (conforme fora seu projecto) — e demasiado doente para impedir os bárbaros denominados Masságetas de conquistarem todas as suas terras a norte e a leste da Partia, e para impedir um dos seus filhos, Gotarzes, de ocupar Babilônia.
Como Tigranes pré vira em tempos, a morte do rei Mitridates dos Partos provocou uma guerra de sucessão complicada pelo facto de o velho ter três rainhas oficiais — duas meias-irmãs pelo lado paterno, e a terceira, nada mais nada menos do que uma filha de Tigrane chamada Automa. Enquanto diversos filhos de diversas mães lutavam pelo que restava da Partia, uma outra satrapia vital para o reino declarou a sua independência — a riquíssima Elimaide, banhada pelos afluentes orientais do Tigre, os rios Coaspes e Pasítigre; os portos desassoreados do delta do Tigres-Eufrates estavam assim perdidos, tal como a cidade de Susa, uma das residências reais dos Partos. Mas os filhos de Mitridates pouco se preocuparam com isso e continuaram a sua guerra.
O mesmo fez Tigranes. A sua primeira acção (no ano em que Caio Mário morreu) consistiu em invadir sucessivamente os pequenos reinos de Sofena, Gordiena, Adiabena e, finalmente, Osdroena. Conquistados estes quatro pequenos estados, Tigranes ficava a ser o senhor de todas as terras da margem oriental do Eufrates, desde Tomisa até Europo; possuía ainda as importantes cidades de Amida, Edessa e Nisibis, e eram seus todos os tributos cobrados ao longo do grande rio. Porém, em vez de entregar empreendimentos comerciais tão interessantes como a colecta de impostos ao seu próprio povo, os Armênios, Tigranes tratou de subjugar os Árabes Esquenitas, que controlavam as regiões áridas entre o Eufrates e o Tigre a sul de Osdroena, e impôs tributos a todas as caravanas que passassem por esse território. Embora os Esquenitas fossem nômadas, Tigranes levou-os para Edessa e Garras e nomeou-os colectores dos impostos do Eufrates em Samosata e Zeugma. O rei dos Esquenitas, Abgar, era agora cliente de Tigranes, e as populações de língua grega de todas as cidades que o rei da Armênia subjugara foram obrigadas a emigrar para as zonas da Armênia onde, até então, a língua grega nunca fora falada. Tigranes queria desesperadamente ser o rei civilizado de um reino helenizado — e que melhor forma de helenizar um reino do que implantar colônias falantes do grego dentro das suas fronteiras?
Em criança, Tigranes fora refém do rei dos Partos e vivera em Seleucia-no-Tigre, muito longe da Armênia. Por altura da morte do pai, Tigranes era o único filho vivo, mas o rei dos Partos exigira um preço muito alto para libertar o jovem Tigranes — 70 vales na zona mais rica da Armênia, a chamada Atropatene Média. Agora, porém, Tigranes já podia marchar sobre a Atropatene Média e recuperar os 70 vales, abundantes em ouro, lápis-lazúli, turquesa e pastos férteis.
No entanto, depois de tantas terras conquistadas, Tigranes confeluiu que não tinha suficientes cavalos de Neso para os seus catafractos, que eram cada vez em maior número. Os catafractos eram estranhos soldados de cavalaria, vestidos da cabeça aos pés com cota de malha — tal como os cavalos, que precisavam de ser corpulentos para agüentar com tanto peso. Por isso, nos anos seguintes, Tigranes invadiu a própria Média, a região onde ficava Neso, e anexou-a. Ecbatana, a residência real de Verão dos reis dos Partos — e, antes deles, dos reis da Média e Pérsia, incluindo Alexandre, o Grande —, foi incendiada, e o seu magnífico palácio saqueado.
Três anos tinham entretanto transcorrido. Enquanto Sila avançava lentamente pela península italiana, Tigranes virou as suas atenções para o Ocidente e atravessou o Eufrates na direcção de Comagena. Não encontrando qualquer oposição, ocupou todas as terras do Norte da Síria entre os montes Amanos e os montes Líbanos, incluindo a poderosa Antioquia e a metade inferior do vale do rio Oronte. Conseguiu mesmo conquistar uma parte da Cilícia Pedia, a zona à volta da costa oriental do Sinus Issicus.
A Síria era um território fortemente helenizado e os seus habitantes, para além de terem o grego como língua dominante, haviam sofrido uma poderosa influência dos costumes gregos. Logo que estabeleceu a sua autoridade na Síria, Tigranes levou algumas das comunidades da região para Triganocerta, a nova capital dos seus domínios, recentemente construída. Os mais favorecidos eram os artífices — o rei levou-os a todos para Triganocerta. Contudo, Tigranes compreendeu a necessidade de proteger estes deslocados gregos da sanha das populações nativas, de origem e língua média; por isso, ameaçou com a pena de morte todos aqueles que discriminassem os novos cidadãos.
E enquanto Sila legislava para que Roma o nomeasse Ditador de Roma, Tigranes adoptava formalmente o título por que ansiava desde há muito tempo — rei dos reis. A rainha da Síria, Cleópatra Selene — irmã mais nova de Ptolemeu Soter Grão-de-Bico e, a certa altura da sua vida, sua esposa —, que conseguira ocupar o trono sírio graças a vários casamentos com Selêucidas, foi levada de Antioquia e obrigada a viver nas mais humildes condições, numa pequena aldeia junto ao Eufrates; o seu lugar no palácio de Antioquia foi ocupado pelo sátrapa Magadates, que passaria a governar a Síria em nome de Tigranes, o rei dos reis.
Rei dos reis, pensou Sila, com um sorriso cínico; todos aqueles dirigentes orientais se julgavam reis dos reis. Até mesmo — assim parecia — os dois filhos bastardos de Ptolemeu Soter Grão-de-Bico, que agora reinavam no Egipto e em Chipre com as suas esposas, filhas de Mitridates. Porém, o testamento de Ptolemeu Alexandre II era genuíno; ninguém o sabia melhor do que ele, porque testemunhara o acto. Mais tarde ou mais cedo, o Egipto pertenceria a Roma. Para já, pensava Sila, devia permitir que Ptolemeu Auleta reinasse em Alexandria; mas, jurava ele, aquele fantoche de Mitridates e Tigranes não teria um momento de paz! O Senado de Roma enviaria regularmente delegações a Alexandria, as quais exigiriam a Ptolemeu Auleta que se demitisse e entregasse o Egipto a Roma.
Quanto ao rei Mitridates do Ponto — facto indubitavelmente curioso: o rei do Ponto perdera duzentos mil homens devido ao horrendo frio do Cáucaso! —, teria de ser desencorajado uma vez mais de qualquer ideia de anexação da Capadócia. Depois de se ter queixado, numa carta a Sila, de que Murena saqueara e incendiara quatrocentas aldeias ao longo do rio Hális, Mitridates planeava conquistar a bacia capadócia do Hális; para que esta conquista parecesse legítima, deu ao rei Ariobarzanes da Capadócia uma nova noiva, precisamente uma das suas filhas. Quando Sila descobriu que a noiva tinha apenas quatro anos, enviou um mensageiro à corte de Mitridates, ordenando-lhe, em nome de Roma, que abandonasse imediatamente a Capadócia, com ou sem noiva. O mensageiro regressara há pouco tempo, com uma carta em que Mitridates se comprometia a fazer o que lhe era ordenado — e informado Sila de que ia mandar uma embaixada a Roma para ratificar o Tratado de Dárdano.
— Ele que diga à embaixada para não se demorar pelo caminho! — disse Sila para si mesmo, enquanto esperava pela esposa. Quando Valéria entrou, ainda o ouviu comentar: — Se a embaixada demora, é muito capaz de não me encontrar aqui — ainda vai ter de negociar com o Senado!
— O quê, meu querido? — perguntou Valéria, surpreendida.
— Nada. Dá-me um beijo.
Os beijos de Valéria eram como ela: agradáveis. Até esse momento, Sila achara aquele quarto casamento uma experiência agradável. Mas não estimulante. Em parte, como sabia, isso devia-se à sua idade e também à doença que o afectava; mas a principal causa era a escassa sensualidade de Valéria, a qual, tal como a generalidade das aristocratas romanas, era demasiado inibida na cama para se entregar ao tipo de jogos sexuais que agradavam ao Ditador. Sila sentia que o seu fogo estava a apagar-se: mais uma razão para precisar de ser estimulado! Por que razão uma mulher que amava loucamente um homem não se entregava sem restrições aos apetites sexuais desse homem?
— Creio — disse Varrão, que era o infortunado interlocutor a quem Sila pusera essa questão — que as mulheres são recipientes passivos, Lúcio Cornélio. As mulheres foram feitas para receber, desde o pénis do homem ao bebê. E aquele que recebe é passivo. Tem de ser passivo! De outra forma, o acto de receber não poderia ser estável. Acontece o mesmo com os animais. O macho é o participante activo e a única maneira de se libertar dos seus desejos excessivos é fornicar com muitas fêmeas.
Varrão pretendia informar Sila de que Pompeu vinha a Roma para uma curta visita e perguntar-lhe se desejaria encontrar-se com o seu jovem amigo. Porém, em vez de ser Sila a dar a audiência, parecia que era o contrário que se passava. De tal modo que Varrão não conseguira ainda expor os motivos da sua visita.
As sobrancelhas pintadas de negro mexeram-se expressivamente.
— Queres dizer com isso, meu caro Varrão, que um marido decente deve fornicar com metade das fêmeas de Roma?
— Não, não, claro que não! — retorquiu Varrão, surpreendido. — Todas as mulheres são passivas e, por isso, mesmo fornicando com tantas mulheres, um homem nunca poderia ficar satisfeito!
— Devo concluir, portanto, que para um homem satisfazer inteiramente os seus desejos carnais, terá de procurar os seus parceiros sexuais entre outros homens. É isso? — perguntou Sila, com uma expressão séria.
— Oh! Ah! Hmmm! — fez Varrão, retorcendo-se como uma centopeia a quem tivessem espetado um alfinete no meio. — Não, Lúcio Cornélio, claro que não! De modo nenhum!
— Nesse caso, que há-de um marido decente fazer?
— Como sabes, eu sou um estudioso dos fenômenos naturais, mas devo dizer-te que não tenho a preparação necessária para responder a tais questões — balbuciou Varrão, já arrependido por ter ido visitar aquela incômoda criatura. O problema é que Sila ficara a adorá-lo desde que ele lhe tratara da doença de pele e mostrava-se ofendido se ele não o visitasse.
— Acalma-te, Varrão, eu estava só espicaçar-te — disse Sila, rindo-se.
— Contigo, nunca se sabe, Lúcio Cornélio. — Varrão molhou os lábios e começou a pensar nas palavras que deveria usar para anunciar a visita de Pompeu da forma mais favorável; Varrão, a quem não faltava inteligência, sabia perfeitamente que os sentimentos do Ditador em relação a Pompeu eram ambivalentes.
— Ouvi dizer — referiu Sila, sem fazer a mínima ideia de que o seu interlocutor se debatia com a escolha das palavras mais adequadas para formular uma única frase — que Varrão Lúculo conseguiu ver-se livre da sua irmã adoptiva — e tua prima, ao que creio.
— Estás a falar de Terência? — perguntou Varrão, e o seu rosto iluminou-se. — Ah, sim! Foi um verdadeiro golpe de sorte!
— Há muito tempo que não via uma mulher rica como Terência ter tantos problemas para encontrar um marido — disse Sila, com um sorriso largo, pois adorava todo o tipo de mexericos.
— bon, o problema não é bem esse — retorquiu Varrão, contemporizando com aquela inclinação do Ditador. — É sempre possível encontrar um homem desejoso de se casar com uma mulher rica. O problema de Terência — que é a maior megera de Roma, disso não há dúvida!— é que ela recusou sempre os homens que a família lhe propôs.
O sorriso de Sila transformara-se num esgar.
— Ou seja: preferiu ficar em casa e transformar a vida de Varrão Lúculo num verdadeiro tormento.
— Talvez. Embora eu creia que ela gosta bastante dele. O problema de Terência está na sua natureza — e se Terência nasceu assim, que há-de ela fazer?
— Mas então o que é que aconteceu? Amor à primeira vista?
— Não, de modo nenhum. O casamento foi proposto pelo conhecido vigarista Tito Pompónio, que agora usa o cognome de Ático por causa da sua afeição por Atenas. Pelos vistos, ele e Marc6 Túlio Cícero conhecem-se há muitos anos. Desde que tu promulgaste as tuas normas, Ático visita Roma pelo menos uma vez por ano.
— Eu sei disso — disse Sila, que não perseguia as manobras financeiras de Ático, tal como não perseguia as de Crasso. Na realidade, Crasso caíra em desgraça perante o Ditador unicamente por causa da forma como manipulara as prescrições.
— Seja como for, a reputação de Cícero no mundo das leis firmou-se indiscutivelmente. Ao mesmo tempo, porém, as suas ambições cresceram. O problema é que a sua bolsa estava vazia. Precisava, portanto, de casar com uma herdeira. Só que, muito provavelmente, teria de casar-se com uma criatura sem qualquer distinção nem beleza, enfim, com uma das muitas horrendas filhas dos menos saudáveis dos nossos plutocratas. Foi então que Ático sugeriu Terência. — Varrão deteve-se para olhar inquisitivamente para Sila. — Conheces bem Marco Túlio Cícero?
— perguntou.
— Conheci-o muito bem quando ele era ainda um rapaz. O meu falecido filho — que teria, se fosse vivo, a idade de Cícero
— era amigo dele. Nessa altura, Cícero era considerado um prodígio. Porém, entre a morte do meu filho e o caso de Sexto Róscio de Améria, contactei com ele apenas durante a Guerra Italiana, pois ele era um contubernalis do meu comando na Campânia. A maturidade não mudou nada nele. A única diferença é que ele encontrou o seu meio natural. Continua tão pedante, tagarela e vaidoso como sempre foi. Mas essas são grandes qualidades para um advogado! No entanto, admito de bom grado que, no que toca à retórica, Cícero é magnífico. E tem uma cabeça extraordinária! O seu maior problema é um distante parentesco com Caio Mário. São ambos de Arpino.
Varrão anuiu.
— Ático foi então falar com Varrão Lúculo, que se mostrou de acordo para interceder junto de Terência. E para sua grande surpresa, Terência anuiu em encontrar-se com Cícero! Ouvira falar das suas proezas nos tribunais e disse a Varrão Lúculo que estava decidida a casar-se com um homem que se revelasse capaz de aceder à fama. E Cícero, em sua opinião, tinha tudo para se tornar famoso.
— Que tal é o dote dela?
— Impressionante! Duzentos talentos.
— Os pretendentes deviam fazer bicha! E é natural que alguns deles fossem atraentes. Começo a sentir respeito por Terência, pois deve ter conseguido escapar a alguns dos mais hábeis caçadores de fortunas de Roma — disse Sila.
— Terência — disse o primo dela, sem qualquer inibição — é feia, azeda, impertinente e avara. Tem vinte e um anos e continua solteira. Eu sei que as raparigas devem obedecer ao seu pater famílias e casar com quem lhes mandam casar, mas, francamente, não há nenhum homem — vivo ou morto! — capaz de vergar Terência!
— E Varrão Lúculo, coitado, é tão bom homem! — comentou Sila, extremamente divertido.
— Precisamente.
— Mas ias no encontro de Terência com Cícero...
— Sim. Eles encontraram-se e — espanto dos espantos! — ela concordou em casar com ele.
— Afortunado Cícero! Não há dúvida: ele é um dos favoritos de Fortuna. O dinheiro da mulher vai fazer-lhe muito jeito.
— Isso é o que tu pensas, Lúcio Cornélio — retorquiu Varrão. — Na realidade, Terência não deixou que ninguém fizesse o contrato de casamento por ela. E, assim, conseguiu manter o controlo absoluto sobre a sua riqueza, embora concordando em providenciar o dote de todas as filhas que venha a ter e em contribuir para o financiamento das carreiras dos filhos. Mas quanto a Cícero... bon, Cícero nunca será capaz de levar a melhor sobre Terência!
— Que tal é o nosso Cícero, hoje em dia?
— Simpático. Creio que está mais satisfeito interiormente. Mas continua vaidoso. Insuportavelmente presunçoso no que toca à excelência do seu intelecto. Está convencido de que não tem um único rival à sua altura. bon, e, por outro lado, deseja avidamente subir na escala social... Odeia que lhe lembrem que Caio Mário era seu parente, ainda que distante! Se Terência fosse uma dessas filhas sem distinção dos nossos plutocratas, creio que ele não teria posto a hipótese de se casar com ela. Nem para ela teria olhado. Mas a mãe dela era uma patrícia e foi casada em tempos com Quinto Fábio Máximo, o que significa que Fábia, a Virgem Vestal, é meia-irmã de Terência. Portanto, Terência servia-lhe às mil maravilhas. — Varrão estava com um ar enojado, ao falar de tudo aquilo. — Cícero é um ícaro, Lúcio Cornélio. Quer voar até ao reino do sol — o que é uma pretensão perigosa quando se é um Homem Novo e não se tem um sestércio na bolsa.
— Não sei o que é que os ares de Arpino têm, mas a verdade é que os homens de Arpino são todos assim — comentou Sila. — Ainda bem para Roma que esse Homem Novo de Arpino não tem capacidades militares!
— Bem pelo contrário, ao que sei.
— Ah, sim, sem dúvida! Quando Cícero foi meu contubernalis, dei-lhe as funções de secretário. Ficava branco só de ver uma espada! Mas nunca tive um secretário tão eficiente! Quando é o casamento?
— Só depois de Varrão Lúculo e o irmão celebrarem os ludi Romani, em Setembro. — Varrão riu-se. — Andam tão ocupados com os jogos que não têm tempo nem cabeça para mais nada! Já andam para aí a dizer que vão ser os melhores jogos dos últimos cem anos, pelo menos!
— Pena que eu não esteja em Roma para assistir aos jogos
— disse Sila, sem qualquer demonstração de tristeza.
Por um momento, os dois homens calaram-se e Varrão aproveitou para falar do assunto que o levara a visitar Sila.
— Lúcio Cornélio, já sabes que Cneu Pompeu Magno vem a Roma dentro de pouco tempo? — perguntou ele, hesitante. — Ele gostaria de visitar-te, mas sabe que estás muito ocupado.
— Mas, para Magno, arranjo sempre tempo — disse Sila, jovialmente. Lançando um olhar penetrante a Varrão, perguntou-lhe:
— Ainda andas atrás dele, com uma pena e uma folha, a tomar nota de todas os peidos que ele dá?
Varrão ficou vermelho; mesmo as coisas mais inocentes podiam suscitar a Sila comentários daqueles — Sila era absolutamente imprevisível. Acharia ele que seria mais proveitoso se Varrão gastasse o seu tempo a tomar nota dos feitos (ou dos peidos) de Lúcio Cornélio Sila? Humildemente, respondeu-lhe:
— Sim, de quando em quando. Isso começou de forma acidental, porque estávamos juntos quando a guerra rebentou e eu não fiquei imune ao entusiasmo de Pompeu. Ele disse que eu devia escrever história e não história natural. E eu aceitei o conselho. Escrevo história. Mas não sou o biógrafo de Pompeu!
— Uma boa resposta, sim senhor!
Não admira que Varrão, ao deixar a casa do Ditador, tivesse de parar para limpar o suor que lhe escorria pela cara. Falava-se muito do leão e da raposa que existiam em Sila; mas, pessoalmente, Varrão achava que o pior animal que Sila albergava em si era um gato vulgar.
No entanto, Varrão tinha-se saído bem. Quando Pompeu chegou a Roma com a sua esposa e se hospedou na casa da sua família, nas Carinas, Varrão pôde dizer-lhe que Sila gostaria muito de o ver e que lhe concederia tempo suficiente para terem uma demorada e agradável conversa. Fora isso mesmo o que Sila dissera — ainda que com alguma ironia pelo meio. Uma demorada e agradável conversa com Sila poderia transformar-se num passeio de funâmbulo sobre um fosso cheio de carvões em brasa.
Ah, mas a presunção e a vaidade da juventude! Pompeu, ainda com 26 anos, correu a visitar Sila sem apreensões nem dúvidas.
— Então que tal vai a vida de casado? — perguntou o Ditador, com modos suaves.
Pompeu mostrou um sorriso radiante.
— Maravilhosa! Gloriosa! Que bela mulher que tu me arranjaste, Lúcio Cornélio! Bela, educada, doce. Está grávida. Deve dar-me o meu primeiro filho no final deste ano.
— Um filho, ha? Tens a certeza que vai ser um rapaz, Magno?
— Absoluta.
Sila deu um risinho.
— bon, Magno, como tu és um dos favoritos de Fortuna, tenho de concluir que será mesmo um rapaz. Cneu Júnior... O Carniceiro, o Miúdo Carniceiro e o Bebê Carniceiro.
— Essa é boa! — exclamou Pompeu, nada ofendido.
— Vocês estão a estabelecer uma tradição — disse Sila com um ar grave.
— Isso não há dúvida! Três gerações!
Pompeu recostou-se, satisfeito. Depois, conforme Sila reparou, os seus grandes olhos azuis tingiram-se de uma expressão diversa; a felicidade desapareceu, para dar lugar à concentração, como se Pompeu matutasse em algo. Sila não disse nada. Limitou-se a esperar que Pompeu desabafasse.
— Lúcio Cornélio...
— Sim?
— Aquela lei que tu promulgaste — aquela lei que permite ao Senado procurar um comandante militar fora das suas hostes, caso não encontre nenhum entre os senadores...
— A comissão especial?
— Essa.
— O que é que tem?
— Essa lei aplica-se a mim?
— Poderá aplicar-se.
— Mas só se não houver voluntários no Senado.
— Não é isso que a lei diz, Magno. A lei diz: ”se não houver nenhum comandante capaz e experimentado entre os voluntários do Senado”.
— E quem é que decide isso?
— O Senado.
Seguiu-se um breve silêncio. Até que Pompeu comentou, aparentemente sem qualquer intenção especial:
— Seria bom ter muitos clientes dentro do Senado.
— É sempre bom ter muitos clientes, Magno.
Mas nesse momento, e de forma transparente, Pompeu decidiu mudar de assunto.
— Quem serão os cônsules para o próximo ano? — perguntou.
— Catulo será de certeza. Mas ainda não decidi se vai ser o cônsul sénior ou o cônsul júnior. Há um ano atrás, julgava que já tinha decidido. Mas agora já não tenho a certeza.
— Catulo é como Metelo Pio — um rigorista.
— Talvez. Mas não tão velho nem tão inteligente, infelizmente. — Achas que Metelo Pio vai conseguir derrotar Sertório?
— De início é capaz de ter dificuldades — disse Sila, sorrindo. — Mas não tenhas o Bacorinho em tão pouco apreço, Magno. Ele demora algum tempo a funcionar. Mas quando começa a funcionar não há quem o agarre.
— Pah! Não passa de uma velha! — retorquiu Pompeu, com desdém.
— Olha que, no meu tempo, conheci muitas velhas valentes, Magno!
Mas Pompeu não desistia.
— E quem será o outro cônsul? — perguntou.
— Lépido.
— Lépido! — perguntou Pompeu, boquiaberto de espanto.
— Não aprovas?
— Não digo que não aprove, Lúcio Cornélio. Aliás, acho mesmo que aprovo! Só que não pensava que estivesses para aí virado. É que ele não tem sido muito obsequioso contigo...
— E é isso que tu pensas? Pensas que eu só dou grandes cargos aos homens que me lambem as botas?
Tenho de lhe fazer justiça: este rapaz nunca tem medo, pensou Sila. E tanto não tinha que continuou, para grande divertimento de Sila.
— Não, não é isso que penso. Mas a verdade é que nunca deste grandes cargos a homens que reprovaram claramente a tua conduta. Como é o caso de Lépido.
— E por que raio havia de fazê-lo? — perguntou Sila, aparentemente surpreso. — Não sou idiota ao ponto de dar grandes cargos a homens que desejem prejudicar-me!
— Nesse caso, porquê Lépido?
— Euvou retirar-me antes de ele assumir o seu cargo. E Lépido — disse Sila, intencionalmente — quer subir, quer subir muito alto. Ocorreu-me que talvez fosse melhor torná-lo cônsul enquanto estou vivo.
— É um bom homem.
— Porque me pôs em causa publicamente? Ou apesar disso? Mas Pompeu não estava preparado para aprofundar a questão.
Por isso, não passou do seu ”é um bom homem”. Na verdade, embora achasse que a nomeação de Lépido era uma decisão algo excêntrica, Pompeu não estava especialmente interessado no assunto. Interessava-o muito mais a lei de Sila sobre as comissões especiais. Quando soube da lei, pensou que talvez ela tivesse alguma coisa a ver consigo; porém, nessa altura, não lhe passou pela cabeça fazer qualquer pergunta nesse sentido a Sila. Agora, quase dois anos depois de a lei ter sido promulgada, achava mais apropriado averiguar do que perguntar. Era evidente que o Ditador tinha feito bem. Já era difícil a um senador alcançar os seus objectivos, quanto mais a um não senador.
Durante o caminho de regresso a casa, Pompeu não parou de pensar no assunto. Em primeiro lugar, teria de estabelecer uma facção Centro do Senado. Depois, teria de criar um grupo mais pequeno, capaz de — em troca de alguma coisa, evidentemente — manobrar a seu favor, de uma forma activa e constante. E mesmo capaz de se entregar a actividades ilícitas. O problema era: por onde começar?
A meio das Escadas das Arenas, Pompeu parou, virou-se e voltou para trás na direcção da Clivus Victoriae, subindo os degraus dois a dois, o que era sem dúvida uma proeza para quem vestia uma toga. Filipe! Começaria por Filipe!
Lúcio Márcio Filipe percorrera já um longo caminho desde o dia em que visitara Caio Mário e lhe dissera que ele, Filipe, acabara de ser eleito tribuno da plebe e estaria disposto a fazer alguma coisa em seu favor, por um determinado preço, naturalmente. Só Filipe sabia quantas vezes havia já mudado de partido. O que os outros sabiam era que Filipe conseguira sempre sobreviver, e mesmo melhorar a sua reputação. Na altura em que Pompeu decidiu visitá-lo, Filipe era simultaneamente consular e ex-censor, e um dos anciãos do Senado. Muitos eram os homens que o detestavam, poucos o que gostavam dele sinceramente, mas a verdade é que continuava a ser um indivíduo poderoso; fosse de que maneira fosse, a verdade é que conseguira persuadir a maioria de que era um homem não só com uma reputação firmada, mas também com uma influência política decisiva.
Filipe achou a sua entrevista com Pompeu divertida e, ao mesmo tempo, merecedora de atenção e reflexão; embora, até então, nunca tivesse tido nenhum relacionamento particular com o protegido de Sila, Filipe estava perfeitamente consciente de que aquele jovem exigia de Roma uma apurada vigilância. Além disso, Filipe encontrava-se uma vez mais com sérios problemas financeiros, ainda que, desta feita, estes tivessem nascido de circunstâncias totalmente novas. As proscrições de Sila tinham-se revelado extremamente frutíferas para quem quisesse comprar propriedades a preços baratos: foi isso o que sucedeu com Filipe, pois, com alguns milhares, comprou terrenos que valiam milhões. Porém, como muitos homens da sua classe, Filipe não era um administrador eficiente; o dinheiro parecia fugir-lhe das mãos e faltava-lhe habilidade para dirigir convenientemente os seus empreendimentos rurais — bem como a habilidade para escolher subordinados dignos de confiança.
— Em suma, Cneu Pompeu, eu sou o oposto de homens como Marco Licínio Crasso, o qual, não só não perdeu um único sestércio, como continua a acumular milhões. Os funcionários dele tremem só de o ver. Os meus, quando me vêem, põem um sorriso matreiro.
— Precisas de um Crisógono — disse o jovem com o seu sincero olhar azul e a sua expressão franca, aberta, atraente.
Filipe, que sempre fora atreito a engordar, ficara ainda mais flácido e cheio com a idade, e os seus olhos castanhos estavam quase enterrados entre as pálpebras inchadas. Esses olhos fixavam-se agora naquele jovem conselheiro com espanto e aborrecimento: Filipe não estava habituado a que lhe dessem conselhos com aquele ar de quem sabia tudo.
— Crisógono acabou empalado nos rochedos aguçados sob a Rocha Tarpeia!
— Apesar do destino que teve, a verdade é que Crisógono foi, para Sila, um elemento extremamente valioso — disse Pompeu. — Ele morreu porque enriquecera à custa das proscrições — e não por ter roubado directamente o seu patrono. Durante os muitos anos em que trabalhou para Sila, foi verdadeiramente infatigável. Acredita no que te digo, Lúcio Márcio, precisas de um Crisógono.
— Pode ser que precise de um Crisógono, mas não faço a mínima ideia de como o encontrar.
— Se assim desejares, tentarei encontrar-te um bom administrador.
Os olhos submersos pela gordura pareciam saltar.
— Ah sim? E por que razão te dispões a isso, Cneu Pompeu?
— Trata-me por Magno — disse Pompeu, impaciente.
— Magno.
— Porque preciso dos teus serviços, Lúcio Márcio.
— Trata-me por Filipe.
— Filipe.
— E como poderei eu servir-te, Magno? Tu és muito mais rico que a maior parte dos ricaços de Roma — até mesmo mais rico que Crasso, aposto! Tens... vinte e poucos anos, e já és famoso como comandante militar, isto para não falar do facto de teres caído, e de que maneira, nas graças de Sila — o que não é nada fácil. Eu, por exemplo, bem tentei, mas nunca consegui.
— Sila vai deixar o poder — disse Pompeu, sem subterfúgios. — E quando ele deixar o poder, eu voltarei à obscuridade. Especialmente se tivermos homens como Catulo e os Dolabelas nos cargos mais altos. Eu não sou membro do Senado. Nem tenciono ser.
— Isso é curioso — disse Filipe, pensativo. — Tiveste uma boa oportunidade. Sila pôs o teu nome no topo da sua primeira lista. Mas tu desperdiçaste essa oportunidade única.
— Cá tenho as minhas razões.
— Imagino que sim! Imagino que sim!
Pompeu levantou-se da sua cadeira e encaminhou-se até à janela aberta do gabinete de Filipe, o qual, por causa da peculiar situação da casa de Filipe (empoleirada, por assim dizer, perto da curva da Clivus Victorae) dava, não para um jardim de peristilo, mas para uma vasta zona, desde o baixo Fórum Romano até ao penhasco do Capitólio. E aí, um pouco acima da arcada onde se encontravam as magnificentes efígies dos Doze Deuses, começava a erguerse um edifício majestoso; era o Tabulário de Sila, um gigantesco arquivo onde ficariam depositadas todas as tábuas das leis de Roma, bem como os registos contabilísticos e administrativos. Outros homens, pensou Pompeu com desdém, prefeririam construir uma basílica, ou um templo, ou um pórtico, mas Sila optava por um monumento à burocracia de Roma! Sim, Sila não permitia que a sua imaginação tivesse sequer um esboço de asas. O seu espírito prático, comum a todos os patrícios, era a sua grande fraqueza.
— Ficaria muito contente se conseguisses arranjar-me um Crisógono — disse Filipe, para quebrar o longo silêncio. — O único problema é que eu não sou um Sila! Portanto, duvido muito que consiga controlar uma tal criatura.
— Filipe, tu não és um homem brando e indulgente, a não ser na aparência — disse o Mestre do Tacto. — Se eu te arranjar o homem certo, estou certo de que conseguirás controlá-lo. O teu único problema é não saberes escolher as pessoas certas.
— E porque hás-de tu prestar-me esse favor, Magno?
— Ah, esse não é o único favor que tenciono prestar-te — disse Pompeu, virando as costas à janela com um sorriso que lhe iluminava todo o rosto.
— Não é?
— Pelo que vejo, o teu principal problema consiste na manutenção de um fluxo monetário decente. Tens muitas propriedades, bem como várias escolas para gladiadores. Mas nada disso é administrado eficientemente e, por isso mesmo, não tens tanto rendimento como seria de esperar. Um Crisógono alcançaria rapidamente esse objectivo! No entanto, como tu és um homem famoso pelos teus hábitos requintados e dispendiosos, é muito provável que, mesmo extraindo um maior rendimento de todas as propriedades e escolas, nem sempre consigas satisfazer as tuas necessidades.
— Ora aí está uma maneira admirável de pôr o problema — comentou Filipe, que se apercebia agora de que estava a gostar imenso daquela conversa.
— Por isso mesmo, eu estaria disposto a aumentar os teus rendimentos, oferecendo-te um milhão de sestércios por ano — disse Pompeu de uma maneira perfeitamente neutral.
Filipe não podia deixar de reagir com o maior espanto.
— Disseste um milhão!
— Desde que o mereças.
— E que teria eu de fazer para o merecer?
— Terias de criar uma facção favorável a Cneu Pompeu Magno dentro do Senado. Uma facção com suficiente poder para me dar aquilo que eu quisesse e quando o quisesse. — Pompeu, que nunca sofrera de timidez, culpabilidade ou qualquer tipo de autocensura, não teve, naquele momento, a mínima dificuldade em enfrentar o olhar de Filipe.
— E porque é que não entras para o Senado e crias tu a tua própria facção? Sai muito mais barato!
— Eu recuso-me a pertencer ao Senado. Por isso, essa via está posta de parte. Além disso, se fosse eu a criar a minha facção, teria de partir do nada. Por isso, é muito melhor fazê-lo nos bastidores. Nunca ocorrerá aos senadores que eu possa ter outros interesses relativamente ao que se passa no Senado, para além do interesse específico de um genuíno patriota romano.
— Não há dúvida que és muito perspicaz! — exclamou Filipe, num tom apreciativo. — Será que Sila conhece todos os lados da tua personalidade?
— Creio bem que sim. Creio mesmo que foi por minha causa que ele incluiu a comissão especial nas suas leis sobre comandos e governos de províncias.
— Achas que ele criou a comissão especial porque tu te recusaste a integrar o Senado?
— Sim, é isso que eu acho.
— E é por isso que me queres pagar uma óptima maquia para eu criar uma facção pró-Magno dentro do Senado. Quanto a isso, não tenho nada a apontar. O problema é que criar uma facção dentro do Senado custar-te-á muito mais dinheiro do que aquele que me vais pagar. Por uma razão muito simples: eu não tenciono pagar da minha bolsa aos outros homens eventualmente necessários. O dinheiro que me vais pagar só sairá da minha bolsa para as minhas despesas pessoais.
— Isso parece-me perfeitamente justo — retorquiu Pompeu serenamente.
— Há muitos senadores necessitados entre os pedarii. Não te custarão muito dinheiro, porque só precisarás deles para as votações. Mas será necessário comprar alguns bons oradores dos bancos da frente, e também mais uns quantos dos bancos do meio. — Filipe fez uma pausa e, com um ar pensativo, acrescentou: — Caio Escribónio Curió é relativamente pobre. Tal como o Cornélio Lêntulo que foi adoptado — Cneu Cornélio Lêntulo Clodiano. Ambos desejariam ser cônsules, mas nenhum deles tem o dinheiro necessário. Há uma série de Lêntulos no Senado, mas Lêntulo Clodiano é o mais velho do ramo. É ele que controla os votos dos senadores dos últimos bancos que pertencem à clientela dos Lêntulos. Curió é uma verdadeira potência — um homem muito interessante. Mas, para os comprares, terás de gastar muito dinheiro. Provavelmente um milhão para cada. Isto se Curió se vender. Acredito que se venda por um preço muito alto, mas não de uma forma cega e total. No entanto, Lúcio Gélio Poplicola era capaz de vender a mulher, os pais e os filhos por um milhão.
— Preferia pagar-lhes uma soma anual, como farei contigo — disse Pompeu. — Um milhão podia comprá-los agora, mas creio que ficariam mais contentes se soubessem que, todos os anos, receberiam um quarto de milhão. Em quatro anos, teriam um milhão. Mas euvou precisar deles por mais tempo.
— És generoso, Magno. Insensatamente generoso, diriam alguns.
— Insensato é coisa que não sou — atirou-lhe Pompeu. — Os serviços que me vão prestar terão de compensar o dinheiro gasto!
Durante algum tempo discutiram os problemas práticos levantados pelos pagamentos e, nomeadamente, as somas necessárias para levar os senadores dos bancos de trás a votar em Pompeu. Porém, a certa altura, Filipe recostou-se na cadeira, pensativo e silencioso.
— Que se passa? — perguntou Pompeu, algo ansioso.
— Há um homem que não podes dispensar. O problema é que ele já granjeou tanta riqueza que nem sabe o que fazer ao dinheiro. É praticamente impossível comprá-lo e ele não deixa de se aproveitar desse facto.
— Estás a pensar em Cetego.
— Precisamente.
— Que hei-de fazer para o conquistar?
— Não faço a mínima ideia.
Pompeu levantou-se com um ar enérgico e decidido.
— Então acho melhor ir vê-lo.
— Não! — exclamou Filipe, alarmado. — Cetego é um patrício da família Cornélio e um indivíduo tão susceptível e melindroso que ficaria a odiar-te. Não, com ele não se pode lidar directamente. Deixa o caso comigo. Euvou sondá-lo.
Dois dias depois, Pompeu recebeu uma mensagem de Filipe. Continha uma única frase: ”Dá-lhe Précia, que ele será teu.”
Pompeu segurou na nota junto à chama de uma vela até que o papel começou a arder. Tremia de raiva. Ah sim, aquilo era mesmo de Cetego! O pagamento que exigia era a humilhação do futuro benfeitor! Sim, porque no fundo aquilo que Cetego exigia era que Pompeu se tornasse um proxeneta ao seu serviço.
O relacionamento de Pompeu com Múcia Tércia diferia em muito da forma como lidava com Emília Escaura — ou com a sua primeira esposa, Antístia. Esta terceira esposa estava muito acima das anteriores. Primeiro que tudo, era inteligente. Em segundo lugar, era enigmática; Pompeu nunca conseguia saber o que ela realmente pensava. Em terceiro lugar, era absolutamente maravilhosa na cama — uma verdadeira surpresa! Afortunadamente, Pompeu nunca cometera a asneira de lhe chamar pudinzinho ou pote de mel; não que isso não lhe tivesse passado pela cabeça — só que havia algo na expressão dela que o impedira de pronunciar tais expressões. Ainda que Pompeu não gostasse do jovem Mário, não podia esquecer que ela fora esposa dele e que essa experiência tivera sem dívida uma influência decisiva na personalidade de Múcia Tércia. Além disso, era filha de Cévola e sobrinha de Crasso Orador. Os seis anos que vivera com Júlia também contavam muito. Por isso, instintivamente, Pompeu chegara à conclusão de que Múcia Tércia devia ser tratada, não como uma escrava, mas como uma pessoa igual a ele.
Por isso, nesse dia, quando foi ter com Múcia Tércia, procedeu como de costume: deu-lhe um demorado beijo, procurando com a sua língua a língua dela, e afagou-lhe suavemente e apaixonadamente os mamilos. Depois, correu a sentar-se num sítio onde pudesse apreciar o rosto dela, com um sorriso de quem estava subjugado pelo amor e pela devoção. E, depois desses preliminares, foi direito ao assunto.
— Sabias que eu em tempos tive uma amante em Roma? — perguntou.
— Qual delas? — foi a resposta de Múcia Tércia, solene e desprendida; a esposa de Pompeu raramente sorria.
— Então conhece-las a todas — disse ele, sem qualquer problema.
— Só conheço as duas mais famosas: Flora e Précia.
Era evidente que Pompeu já se tinha esquecido de que Flora alguma vez existira; por um momento ficou com um ar de total espanto, mas depois desatou a rir.
— Flora? Oh, isso já foi há uma eternidade!
— Précia — disse Múcia Tércia, numa voz perfeitamente neutra — também foi amante do meu primeiro marido.
— Sim, eu sabia.
— Soubeste antes ou depois de a teres feito tua amante?
— Antes.
— E não te importaste?
Pompeu queria mostrar que também era capaz de dar respostas rápidas. Por isso, retorquiu:
— Se não me importei de casar com a viúva dele, porque haveria de me importar de dormir com a sua ex-amante?
— Sim, tens razão — respondeu Múcia Tércia, aproximando várias meadas de lã da luz para as inspeccionar melhor. O seu trabalho, um bordado, permaneceu no ventre grávido. Finalmente, escolheu o mais pálido dos tons, cortou uma porção de fio e, depois de molhar a ponta e de a enrolar entre os dedos, fez entrar o fio com facilidade pelo largo buraco de uma agulha. Só depois de terminada esta tarefa é que voltou a dar atenção ao marido. — Que me queres dizer acerca de Précia? —vou criar uma facção no Senado.
— É uma decisão sensata — comentou ela, enfiando a agulha no tecido grosseiro em que se notava já um colorido e complicado desenho. — Por quem começaste, Magno? Filipe?
— Absolutamente correcto! És espantosa, Múcia!
— Espantosa, não. Experiente — disse ela. — Cresci rodeada de conversas sobre política.
— Filipe comprometeu-se a criar essa facção — prosseguiu Pompeu. — Mas há uma pessoa difícil de comprar.
— Cetego — disse ela, começando agora a preencher um arabesco previamente desenhado.
— Correcto uma vez mais. Cetego.
— É um elemento necessário.
— Foi o que Filipe me disse.
— E qual é o preço de Cetego?
— Précia.
— Ah, estou a ver. — O arabesco ia sendo preenchido a bom ritmo. — Filipe encarregou-te da missão de comprar Précia para o Rei dos Senadores das Últimas Bancadas. É isso, não é?
— É mesmo — disse Pompeu, encolhendo os ombros. — Ela deve ter falado bem de mim, pois caso contrário Filipe teria dado esse trabalho a outra pessoa.
— Fala melhor de ti do que de Caio Mário Júnior.
— A sério? — perguntou Pompeu, com uma expressão radiante. — Óptimo!
Múcia Tércia parou com o seu trabalho; os olhos verdes, muito fundos, tão separados, tão semelhantes aos de uma corça, fixaram-se, inescrutáveis, no seu amo e senhor.
— Continuas a visitá-la, Magno?
— Não, claro que não! — retorquiu Pompeu, indignado. Uma indignação que depressa se esbateu. Depois, com um olhar interrogativo, perguntou-lhe: — Importavas-te se eu a visitasse?
— Não, claro que não — disse ela, retomando o trabalho. Pompeu ficou vermelho de raiva.
— O quê? Então não tinhas ciúmes?
— Claro que não.
— tntão não me amas! — exclamou ele, levantando-se num ápice e caminhando apressadamente pela sala.
— Por favor, Magno, senta-te.
— Tu não me amas! — exclamou ele, de novo. com um suspiro, Múcia Tércia largou o bordado.
— Senta-te, Cneu Pompeu! É claro que te amo!
— Se me amasses, terias ciúmes! — atirou-lhe ele, enfiando-se de novo na cadeira.
— Eu não sou uma pessoa ciumenta. No que toca ao ciúme, as coisas são assim: ou se é ciumento, ou não se é. E por que razão havias de querer que eu fosse ciumenta?
— Porque isso seria um sinal de que gostavas de mim.
— Não, seria apenas um sinal de que era ciumenta — replicou ela, com uma lógica magnífica. — Não te esqueças de que eu cresci num ambiente familiar extremamente perturbado. O meu pai amava loucamente a minha mãe e ela também o amava. Mas ele nunca deixou de ter ciúmes dela. E ela sofria com isso. De tal forma que o ciúme do meu pai acabou por empurrá-la para os braços de Metelo Nepo, que não é um homem ciumento. E ela agora é feliz.
— Isso é uma advertência para que eu não tenha ciúmes de ti?
— De modo nenhum — disse ela, placidamente. — Eu não sou a minha mãe.
— Gostas de mim?
— Sim, muito.
— Gostavas do jovem Mário?
— Não, nunca gostei. — Múcia Tércia já tinha usado o primeiro fio; precisava agora de cortar outro. — Caio Mário não era carinhoso. Tu és carinhoso, deliciosamente carinhoso. E essa é uma qualidade que vale bem o meu amor.
Pompeu ficou tão satisfeito com a resposta que voltou imediatamente ao assunto inicial.
— O meu problema, Múcia, é saber como hei-de fazer este trabalho! Trabalho de procurador... De procurador? Ora, deixemo-nos de eufemismos! Trabalho de proxeneta!
Ela soltou um risinho. Maravilha das maravilhas, ela ria-se!
— Não há dúvida que este caso te deixa numa posição difícil, Magno.
— Que devo fazer?
— Segue a tua natureza. Toma conta do caso e faz o que tens a fazer. Tu só perdes o controlo dos acontecimentos quando paras para pensar ou quando te preocupas com o teu aspecto. Por isso, não pares para pensar — e deixa de te preocupar com o teu aspecto. De outro modo, vais estragar tudo.
— Achas então que devo ir ter com ela e pedir-lhe, sem rodeios, que seja amante de Cetego.
— Precisamente. — Múcia Tércia, depois de enfiar de novo a agulha, ergueu os olhos para o marido, com um vago sorriso. — Mas os meus conselhos têm um preço, meu querido Magno.
— Ai têm?
— Têm, sim. Quero que me contes, com todos os pormenores, o teu encontro com Précia.
Como se veio a verificar, as negociações com Précia surgiram no momento certo. Agora que já não tinha amantes como o jovem Mário ou Pompeu, Précia caíra num marasmo de que dificilmente sairia, já que à sua vida faltavam estímulos ou interesses poderosos. Confortavelmente instalada e decidida a manter a sua independência, era agora demasiado velha para se entregar a uma paixão física avassaladora. Como acontecia com muitas das suas confrades (menos famosas todas) na arte do amor, Précia tornara-se uma especialista na simulação. Era também uma astuta juíza de carácteres, para além de extremamente inteligente. Daí que encarasse todos os seus encontros sexuais a partir de uma posição superior de poder, segura da sua capacidade para agradar, e segura do domínio que exercia sobre a sua presa. Do que mais gostava era de imiscuir-se em assuntos de homens, naqueles assuntos que pouco ou nada tinham a ver com o mundo das mulheres. E sobretudo gostava de se intrometer em questões políticas. Era um bálsamo para o intelecto e para o humor.
Quando lhe foram anunciar a presença de Pompeu, não cometeu o erro de concluir que ele pretendia reatar a ligação, embora por momentos isso lhe tivesse passado pela cabeça, já que a mulher dele estava grávida.
— Meu querido Magno! — disse ela, extremamente afável, mal viu Pompeu.
O jovem beijou-lhe as mãos antes de se sentar numa cadeira, a alguma distância do divã onde ela estava reclinada. Enquanto se sentava, suspirou de uma forma tão artificial que Précia não se pôde impedir de sorrir.
— Como tens passado, Magno? — perguntou ela.
— E tu, Précia? — disse ele. — A mesma perfeição de sempre, pelo que vejo! Mas será que já houve alguém capaz de te considerar a ti e ao teu ambiente menos do que perfeito? Mesmo quando a visita é inesperada?
O tablinum de Précia — ela dava-lhe o nome que um homem teria dado — era um espectáculo deslumbrante de azul muito claro, creme e a quantidade exacta de dourado. Quanto a ela — todos os dias se levantava para uma toilette tão completa como demorada e, quando terminava, bem podia dizer que se transformara numa obra de arte. Naquele dia, usava uma quantidade de drapejados de um verde-salva muito suave e penteara a sua cabeleira ouro-pálida ao jeito de Diana, a Caçadora, dispondo-a em camadas disciplinadamente sobrepostas e ornando-a de anéis que pareciam absolutamente naturais, apesar de terem resultado de um apurado trabalho em frente do espelho. A sua face, de traços belos e suaves, não exibia qualquer maquilhagem; Précia era demasiado inteligente para cobrir com pinturas os dotes naturais que Fortuna lhe proporcionara e que ainda eram bem visíveis apesar dos seus 40 anos.
— Tens estado bem? — perguntou Pompeu.
— Bem de saúde. Muito mal de humor.
— Porquê?
Ela encolheu os ombros, amuada.
— Achas que tenho motivos para me sentir feliz? Tu já não apareces! Nem tu nem ninguém com interesse.
— Voltei a casar.
— com uma mulher muito estranha.
— Múcia, estranha? Sim, creio que sim. Mas gosto dela.
— Era de crer.
Pompeu procurava uma maneira de dizer o que tinha a dizer, mas era incapaz de encontrar um jeito que lhe agradasse. Daí que se tivesse calado. Précia fitava-o com um ar trocista, meio-sentada, meio-deitada no divã. Os olhos dela — considerados o seu mais belo traço, pois eram muito grandes e de um azul deslumbrante — pareciam dançar ao ritmo desse escárnio.
— Já estou farto disto! — exclamou Pompeu de repente. — Eu sou um emissário, Précia! Não te vim ver por minha causa, mas por causa de outra pessoa.
— Ah! Que intrigante!
— Tens um admirador.
— Tenho muitos admiradores.
— Mas nenhum como este.
— E o que é que o torna assim tão diferente? bom, para já há uma coisa que o torna diferente: conseguiu convencer-te a servir de intermediário!
Pompeu corou.
— Eu fui apanhado no meio disto tudo, e, francamente, odeio o que estou a fazer! Mas preciso dele e ele não precisa de mim. Foi por isso que vim. Por causa dele.
— Já disseste isso.
— Deixa-te de ironias, mulher! Já basta o que basta! O homem em causa é Cetego.
— Cetego! Olá! — disse Précia, com um ar satisfeito.
— É um homem muito rico e mimado e um verdadeiro malandro — disse Pompeu. — Ele podia perfeitamente ter tratado do assunto, mas diverte-o usar-me como intermediário.
— O preço dele é esse — disse ela. — Obrigar-te a fazer o papel de proxeneta.
— Não há dúvida.
— Deves odiá-lo.
— Responde-me! Sim ou não?
— Já não me queres, Magno?
— Não, já não te quero.
— Então a minha resposta a Cetego é sim. Pompeu levantou-se.
— Pensei que ias responder que não.
— Noutras circunstâncias, teria adorado. Mas a verdade é que me sinto mortalmente entediada, Magno. Cetego é uma potência no Senado e eu gosto de me dar com homens poderosos. Além disso, prevejo que ele pode proporcionar-me uma nova fonte de poder. Farei com que todos aqueles que procuram favores junto de Cetego, só os alcancem se me cortejarem. Uma bela perspectiva!
— Grr! — fez Pompeu, e virou-lhe as costas.
No estado em que estava, Pompeu achou preferível não ir anunciar o desfecho do caso directamente a Cetego; em vez disso, optou por visitar Lúcio Márcio Filipe.
— Précia está de acordo — disse ele, sem mais comentários.
— Excelente, Magno! Mas porquê esse ar tão infeliz?
— Porque ele fez de mim um proxeneta.
— Oh, tenho a certeza de que não foi intencional!
— Pois tenho a certeza que foi!
Na Primavera desse ano, Nola caiu em poder dos Romanos. Durante quase doze anos, essa cidade da Campânia, de origem e tradições samnitas, resistira a Roma e a Sila, suportando sucessivos cercos, a maior parte dos quais comandados pelo cônsul júnior desse ano, Ápio Cláudio Pulcro. Foi, por isso, lógico que Sila tivesse mandado Ápio Cláudio aceitar formalmente a submissão de Nola, tal como foi lógico que Ápio Cláudio sentisse grande prazer em anunciar aos magistrados da cidade os pormenores das condições invulgarmente duras impostas por Sila. Tal como Cápua, Fésulas e Volaterras, Nola deixaria de ter territórios; estes seriam todos integrados no ager publicus romano. Por outro lado, a cidadania romana seria recusada aos homens de Nola. O sobrinho do Ditador, Públio Sila, passava a ter inteira autoridade sobre a área, o que constituía uma nova humilhação para a cidade, já que, no ano anterior, Públio Sila revelara uma crueldade sem par ao tratar dos complexos problemas de Pompeios, crueldade que só contribuíra para piorar esses problemas.
Para Sila, porém, a submissão de Nola era um sinal. Podia afastar-se com a sua sorte intacta, depois de Nola, a cidade onde obtivera a sua Coroa de Erva, ter sido reduzida à mais total impotência. Por isso, durante os meses de Maio e Junho, tudo o que Sila possuía na sua casa de Roma foi sendo transportado para Miseno; entretanto, em Miseno, os operários andavam numa grande azáfama, pois era preciso concluir rapidamente algumas obras adjacentes à villa de Sila: um pequeno teatro, um parque belíssimo, onde nem sequer faltavam pequenos vales cheios de flores silvestres, bem como quedas-d’água e muitas fontes, uma piscina enorme e várias salas adicionais, aparentemente destinadas a festas e banquetes. Isto para não falar dos seis aposentos reservados para convidados, de uma tal opulência que toda a cidade não falava de outra coisa: quem é que Sila iria convidar? O rei dos Partos?
Chegou então o mês de Quinctilis e a última das eleições de Sila, que de eleições não tinham nada. Para grande pesar de Catulo, seria ele o cônsul júnior; o cônsul sénior era Marco Emílio Lépido, um nome que ninguém esperava, já que Lépido mantivera uma postura de total independência desde que Sila se tornara Ditador.
No início desse mês, Valéria Messala e os gémeos partiram para a Campânia; a villa estava já preparada para os receber. Em Roma, ninguém previa surpresas. Sila partiria tal como tinha chegado: com uma aura de absoluta respeitabilidade e rodeado da maior solenidade. Roma estava prestes a perder o seu primeiro ditador em cento e vinte anos e o primeiro ditador que se mantivera no cargo por mais de seis meses.
Os ludi Apollinares, jogos que haviam sido organizados pela primeira vez pelo remoto antepassado de Sila, decorreram entretanto; as pretensas eleições foram também realizadas. E, um dia depois das eleições curuis, uma imensa multidão concentrou-se no baixo Fórum Romano para assistir à cerimónia em que Sila abandonaria a missão que a si próprio impusera. Sila preferia que a cerimónia fosse pública, em vez de decorrer no espaço fechado do Senado. Despedir-se-ia de Roma nos rostra, uma hora depois do alvorecer.
E fê-lo com uma dignidade e uma majestade impressionantes; despediu-se em primeiro lugar dos seus vinte e quatro lictores com extrema cortesia e com presentes muito dispendiosos (para Sila); depois, dos rostra, falou para a multidão; finalmente, acompanhado pelos eleitores, encaminhou-se para o Campo de Marte, onde assistiu à revogação da lei de Flaco Princeps Senatus que o nomeava Ditador. Concluídas todas as cerimónias, regressou a casa como um cidadão privado, destituído de imperium e de auctoritas oficial.
— Mas gostaria que alguns de vós assistissem à minha partida de Roma — disse ele aos cônsules Vátia e Ápio Cláudio, a Catulo, Lépido, Cetego, Filipe. — Estejam na Porta Capena amanhã, uma hora depois do alvorecer. Venham assistir à minha despedida de Roma.
Os outros obedeceram-lhe à letra — e outra coisa não seria de esperar. Sila era agora um privatus destituído de todo o poder magisterial, mas fora Ditador durante tanto tempo que os homens de Roma dificilmente conseguiam imaginá-lo sem poder. Sila seria sempre perigoso enquanto fosse vivo.
Assim, todos os magistrados que Sila convocara apareceram à hora certa na Porta Capena; faltavam os três protegidos de Sila que ele mais favorecera — Lúculo, Mamerco e Pompeu — mas unicamente porque não se encontravam em Roma. Lúculo fora em viagem para tratar dos seus jogos, previstos para Setembro, Mamerco encontrava-se em Cumas e Pompeu regressara ao Piceno para assistir ao nascimento do seu primeiro filho. Mais tarde, quando soube dos acontecimentos ocorridos na Porta Capena, Pompeu deu-se por feliz por ter estado ausente de Roma na altura; Lúculo e Mamerco sentiram precisamente o oposto.
O mercado situado à entrada da Porta Capena estava cheio de gente que se entregava às mais diversas actividades — vender, comprar, traficar, ensinar, passear, namoriscar, comer. Claro que o grupo vestido com togas debruadas a púrpura suscitou a curiosidade de toda aquela gente; ouviram-se os habituais insultos aos membros da classe dominante, mas os senadores curuis já tinham ouvido insultos desses muitas vezes e, por isso, não lhes deram a mínima importância. Reuniram-se sob o imponente arco da Porta Capena e aí esperaram, conversando para matar o tempo.
Pouco tempo depois, começaram a ouvir os acordes de uma estranha música — gaitas, pequenos tambores, flautas, executando uma inconfundível toada em honra de aço. A multidão que enchia o mercado ficou imediatamente possuída de uma excitação incontrolável. Estupefactas, as pessoas abriram alas para que o cortejo passasse. À frente vinham prostitutas, cobertas de flores e vestidas com togas de um vermelho muito vivo, agitando festivas pandeiretas, enquanto retiravam das cavidades das togas as pétalas de rosas com que juncavam o chão. A seguir, vinham anões e criaturas monstruosas, alguns com os rostos cobertos de argila ou pintados, outros usando máscaras enfeitadas com chifres e sinos, pulando e saltando sobre as pernas deformadas, vestidos com centuculi, capas de cores muito vivas que faziam lembrar fragmentos de arco-íris. A seguir vinham os músicos: alguns pouco mais vestiam do que flores, outros apresentavam-se como sátiros fogosos ou como excêntricos eunucos. No meio do cortejo, rodeado por crianças que não paravam de rir e de dançar, encontrava-se um burro muito gordo, embriagado, com os cascos pintados de dourado, uma coroa de flores no pescoço e as orelhas espetadas espreitando pelos buracos de um chapéu de aba larga, enfeitado com uma grinalda. Em cima do burro, que tinha por sela uma manta púrpura, vinha Sila, tão bêbedo como o animal, segurando na mão uma taça de ouro que a todo o momento derramava vinho, vestido com uma túnica de púrpura de Tiro bordada a ouro, e adornado com flores à volta do pescoço e em cima da cabeça. Ao lado do burro, vinha uma mulher muito bela — ou melhor, um homem travestido; o seu espesso cabelo negro tinha alguns salpicos grisalhos e o seu físico pouco feminino fora vestido com uma túnica de mulher semitransparente, cor de açafrão; segurava uma enorme garrafa dourada e sempre que Sila lhe apresentava a taça, ele corria a enchê-la, derramando mais algum vinho pelo chão.
O caminho que conduzia à Porta Capena terminava por uma descida: por isso, ao aproximar-se da Porta, o cortejo ganhou alguma velocidade. Sila desatou então a gritar que parassem e todos os foliões assim fizeram e de tal maneira que se atiraram para o chão berrando e guinchando, as mulheres esperneando e exibindo os seus órgãos sexuais pintados de vermelho. O burro, atordoado com o vinho, tropeçou e foi chocar contra o muro de uma fonte; Sila vacilou e só não caiu porque o homem travestido o agarrou e ajudou a descer; Sila deixou-se envolver por aqueles braços fortes e, lentamente, deslizou pelo corpo do outro até sentir os pés no chão. O antigo Ditador encaminhou-se então na direcção do estupefacto grupo de senadores curuis, mas ainda parou a meio para apreciar as belas pernas de uma das mulheres que esperneavam no chão; depois de as apreciar demoradamente, baixou-se e meteu um dedo no cunnus da mulher, deixando-a ainda mais hilare e, pelo menos aparentemente, num paroxismo orgástico.
Enquanto a escolta recuperava a calma e se reunia de novo, cantando, tocando e dançando — para grande alegria da multidão —, Sila abeirou-se dos cônsules, abraçado ao seu belo acompanhante e erguendo a taça de vinho numa efusiva saudação.
— Tacete! — gritou Sila para os bailarinos e os músicos. Estes calaram-se imediatamente. Mas nenhuma outra voz quebrou o silêncio.
— Ora bem! Finalmente chegou! — exclamou ele para ninguém em particular: talvez para o céu. — O meu primeiro dia de liberdade!
A taça dourada descrevia círculos no ar e a boca pintada exibia as gengivas no mais largo e feliz dos sorrisos. Coroado pela absurda peruca arruivada, o seu rosto estava inteiramente pintado de branco, de tal forma que as cicatrizes não se notavam. Mas o efeito não era talvez o que ele previra, pois o contorno vermelho da boca espalhara-se pelas muitas rugas que a rodeavam; assim, aquela boca mais parecia uma ferida ainda sangrando e as rugas assemelhavam-se a costuras vermelhas, aplicadas sem grande cuidado. No entanto, isso não impedia que Sila sorrisse, sorrisse, sorrisse sempre. Estava completamente embriagado e estava-se marimbando para isso.
— Durante mais de trinta anos — disse ele para os espantados Vátia e Ápio Cláudio — neguei a minha natureza. Neguei a mim mesmo o amor e o prazer: de início por causa do meu nome e da minha ambição e, mais tarde, quando o meu nome estava firmado e a minha ambição satisfeita, por causa de Roma. Mas tudo isso acabou. Acabou para sempre! Para sempre! Aqui e agora vos devolvo Roma — a vocês, míseras e presunçosas criaturas, a vocês, que na cabeça só têm vermes! Podem voltar a descarregar as vossas raivas contra o nosso pobre país — podem eleger os homens errados, podem esbanjar os dinheiros públicos, podem pensar apenas nos vossos egos gigantescos e não levar em conta o dia de amanhã! Daqui a trinta anos, vocês e aqueles que vos hão-de suceder terão transformado Roma numa ruína sem redenção possível!
A sua mão afagou o rosto do homem que o apoiava: um afago terno e íntimo.
— Sabem com certeza quem é este homem, porque freqüentam o teatro. É Metróbio. O meu rapaz. Sempre e para sempre o meu rapaz! — E virou-se para ele, puxou para si a cabeça escura e beijou-o na boca.
Depois, com soluços e risinhos, deixou que Metróbio o ajudasse a montar de novo o burro. O aparatoso cortejo voltou a formar-se e, lentamente, foi-se afastando; muita da gente do mercado viera até à Porta Capena despedir-se com efusivas saudações.
Nenhum dos senadores sabia para onde olhar, especialmente depois de Vátia ter rompido num choro convulsivo. Entregues a si mesmos, foram dispersando, sozinhos ou aos pares. Ápio Cláudio não deixou Vátia, tentando confortá-lo.
— Não acredito no que vi — disse Cetego a Filipe.
— Acho que devemos acreditar — retorquiu Filipe. — Foi por isso que ele nos convidou para este cortejo de travestis. De que outro modo poderia ele libertar-nos das amarras com que nos prendeu?
— Libertar-nos? Que queres dizer?
— Não ouviste o que ele disse? Durante mais de trinta anos, negou a sua natureza. Enganou-me. Enganou todos os homens importantes de Roma. E que vingança requintada para alguém que foi pobre na infância! Roma foi controlada, dirigida e restaurada por um doente. Fomos trapaceados por um palhaço. Ah, o que ele se deve ter rido!
E riu-se, de facto. Riu-se durante todo o caminho até Miseno, transportado numa liteira ornada de flores, com Metróbio ao seu lado e acompanhado pelos seus adoradores de Baco, todos eles convidados a permanecer na sua villa o tempo que quisessem.
Entretanto, o desfile tinha sido engrossado por Róscio, o comediante, Sorex, o mimo, e por muitas outras estrelas menos famosas do mundo do teatro.
Os foliões invadiram a villa recentemente renovada, a mesma que outrora fora a digna residência de Cornélia, a mãe dos Gracos, e espalharam-se irreverentemente pelos portais consagrados, com Sila no meio deles, montando ainda o seu burro bêbedo.
— Liber Pater! — chamavam-lhe os adoradores de Baco, mandando-lhe beijos e executando langorosos trinados com as gaitas e as flautas; e ele, semiconsciente do muito vinho que bebera, cacarejava de riso, relinchava de riso, berrava de júbilo.
A festa prolongou-se por uma semana. Uma festa invulgar pelas enormes quantidades de comida e bebida que foram consumidas e pelo número de intrusos que se juntaram aos convivas, vindos de todas as aglomerações próximas. O anfitrião, sempre folgando e bebendo, recebeu com o maior prazer todos os intrusos, guiando-os por entre a bacanal, mostrando-lhes orgias sexuais de que a maior parte deles nem sequer ouvira falar.
Apenas Valéria ficara à margem daquilo tudo, por opção própria; mal vira o marido naquela figura, fugira para os seus aposentos e fechara-se à chave para dar largas a um infindável pranto. Metróbio, porém, conseguiu convencê-la a abrir a porta.
— As coisas nem sempre serão tão insuportáveis como agora — disse-lhe ele. — Há muito que ele ansiava por isto. Deves desculpá-lo. Dentro de dias, estará a pagar por todos estes excessos, ficará horrivelmente doente e sem a mínima vontade de dar festas.
— Tu és o amante dele — disse Valéria, que nada mais sentia senão uma sombria e desesperada confusão.
— Sou amante dele há mais anos do que aqueles que tens — retorquiu afavelmente Metróbio. — Pertenço-lhe. Sempre pertenci. Mas tu também lhe pertences.
— O amor entre homens é nojento!
— De modo nenhum! Quando dizes isso, estás a repetir aquilo que ouviste ao teu pai, ao teu irmão, aos teus primos. Como podes saber se o amor entre homens é ou não nojento? Que sabes tu da vida, tu que, como todas as mulheres aristocratas, foste obrigada a viver confinada a um triste isolamento? A minha presença não significa que ele não precise de ti, tal como a tua presença não significa que ele não precise de mim. Se quiseres ficar aqui, terás de aceitar o facto de que, na vida de Sila, sempre houve — e continua a haver — muitos amores!
— De facto, não tenho muito por onde escolher — disse ela, quase que para si mesma. — Ou volto para casa do meu irmão ou fico aqui e aprendo a suportar estas desenfreadas festividades.
— É isso mesmo — disse ele, sorrindo para ela com compreensão e afecto. Depois, Metróbio debruçou-se sobre ela e acariciou-lhe a nuca; ele sabia que aquela carícia ia acalmar a tensão que invadira a orgulhosa patrícia.
— És demasiado bom para ele — disse Valéria, surpreendida consigo mesma.
— Tudo o que eu sou a ele o devo — retorquiu gravemente Metróbio. — Se não fosse ele, eu não seria mais do que um vulgar actor.
— bom, parece que não tenho outra alternativa senão juntar-me a este circo! Afastar-me-ei no auge das orgias, pois não estou preparada, nem tenho as forças necessárias, para participar em tais festanças! Quando achares que ele precisa de mim, chama-me.
E assim deixaram o caso. Como Metróbio previa, oito dias depois do início da farra, Sila começou a sentir-se doente e os foliões foram mandados para casa. O mimo Sorex e o comediante Róscio escapuliram-se para os seus aposentos e aí ficaram por mais algum tempo, enquanto Valéria, Metróbio e Lúcio Túcio procuravam minorar os danos que aquela explosão de vinho e sexo provocara em Sila. Este mostrava-se por vezes grato e simpático; outras vezes, porém, era muito difícil ajudá-lo.
Contudo, ao fim de algum tempo, o ex-Ditador acabou por recuperar alguma tranqüilidade e saúde; entregou-se então à tarefa de escrever as suas memórias; seria um canto de triunfo, segundo disse, a Roma e a homens como Catulo César e ele próprio, e um assassínio metafórico de gente como Caio Mário, Cina, Carbão e todos aqueles que os tinham apoiado.
No final desse ano e dos consulados de Vátia e Ápio Cláudio, o regime de Sila em Miseno estava já tão bem definido e instalado que toda a villa cumpria os seus ciclos sem qualquer espécie de sobressalto. Durante uns dias, escrevia as suas memórias, desatando numa gargalhada pegada sempre que a sua pena produzia uma frase mais cáustica sobre Caio Mário; ao escrever sobre a guerra contra Jugurta, quase delirava de prazer — o que não admira, pois podia agora deixar escrito, preto no branco, que a guerra fora ganha porque ele cometera o feito de capturar Jugurta e que Mário abafara deliberadamente esse facto. Depois, Sila arrumava a pena e o papel e, durante alguns dias, lançava-se numa orgia de comédias e mimos ou dava uma festa gigantesca que se prolongava por vários dias. Entre a escrita, o teatro e os bacanais, entregava-se a outras actividades, todas elas ditadas pela sua sempre fértil imaginação, incluindo caçadas simuladas em que as presas eram rapazes e raparigas nus, concursos que premiavam as mais bizarras posições nas relações sexuais, elaboradas charadas em que os convidados podiam usar todo o tipo de figurinos e adornos. Dava festas com jogos e concursos, festas nuas à luz do luar, festas durante o dia, na enorme piscina de mármore, onde os foliões podiam assistir, deliciados, às evoluções aquáticas de jovens nus. Parecia não haver fim para a sua imaginação ou para a sua paixão pelas novidades sexuais de todo o tipo; só não permitia práticas que envolvessem crueldade ou animais — ao descobrir, certa vez, que um dos seus convidados tinha inclinações desse tipo, mandou-o expulsar imediatamente.
No entanto, era evidente que o seu bem-estar físico estava a deteriorar-se. Após o Ano Novo, os seus desejos sexuais pareciam ter esfriado por completo; em fins de Fevereiro, já não havia nada que o estimulasse. E desde então, o seu humor e disposição levaram uma reviravolta total.
Apenas um dos seus amigos nobres procurou a companhia de Sila, após a sua mudança para Miseno: Lúculo. Lúculo estivera em África, com o irmão, no mês de Quinctilis, dirigindo pessoalmente a captura de animais para os jogos que ambos organizavam. Quando regressou a Roma, em meados de Sextilis, encontrou a cidade em grande alvoroço, por causa das notícias que vinham de Miseno. Como amigo de Sila, Lúculo viu-se obrigado a ouvir uma sucessão interminável de críticas ao comportamento do antigo Ditador.
— Vocês que o julgam, olhem primeiro para vocês mesmos — respondia-lhes Lúculo, furioso. — Sila tem direito a fazer tudo o que quiser!
Porém, só alguns dias depois da conclusão dos ludi Romani, em Setembro, é que Lúculo conseguiu ter algum tempo livre para visitar Sila; encontrou-o num dos seus mais lúcidos intervalos, trabalhando nas memórias e todo contente com o que estava a fazer à reputação e aos feitos de Caio Mário.
— Tu és o único que me visita, Lúculo — disse ele, com uma breve chama do velho Sila brilhando-lhe nos olhos chorosos e assolados pelo sofrimento.
— Ninguém tem o direito de te criticar — disse Lúculo, com as narinas muito abertas. — Tu deixaste tudo por causa de Roma.
— Sim, é verdade. E não nego que foi duro. Mas, meu querido amigo, se eu não tivesse negado a minha natureza durante tanto tempo, agora não estaria a gozar tanto com todos estes excessos!
— E, pelo que vejo, não faltam os atractivos — comentou Lúculo, seguindo atentamente os movimentos de uma rapariguinha que dançava nua em honra de Sila; era ainda uma menina em que despontavam os primeiros sinais da puberdade.
— Ah, pois, tu gostas delas novinhas, não é? — disse Sila, com uma risadinha. Depois, agarrando-o pelo braço, aconselhou-o: — Não te vás já embora. Depois da dança, podes levá-la a dar um passeio.
— E que fizeste às mães delas?
— Nada. Comprei-as às mães. Lúculo ficou. E voltaria muitas vezes.
Porém, em Março, adormecidos os desejos da carne, dir-se-ia que para sempre, Sila tornou-se um verdadeiro martírio para aqueles que o rodeavam: até mesmo para Metróbio e Valéria, que já tinham aprendido a trabalhar em equipa. Sem saber como, Valéria estava grávida. Grávida de Sila, assim esperava. Mas não podia dizer-lho e temia que chegasse o dia em que a gravidez se tornasse visível. Ficara grávida, com toda a certeza, na passagem do ano, quando Lúculo trouxera uns estranhos cogumelos que, segundo ele, encontrara em África. Todos os amigos mais chegados de Sila os tinham comido. Tal como Valéria. Do que se passara depois, Valéria tinha uma recordação muito vaga, como se tivesse vivido um pesadelo: mas lembrava-se de que houvera uma orgia e de que fora possuída por todos os homens presentes, desde Sila a Sorex e mesmo Metróbio. Valéria sabia que a sua gravidez só podia ter tido origem nessa noite; desde que se descobrira grávida que o medo era o seu companheiro certo de todos os momentos.
Os acessos de fúria de Sila eram algo de horrendo: durante horas gritava e vociferava e tinha de ser rigorosamente vigiado para que não fizesse mal a qualquer pessoa que se atravessasse no seu caminho, desde as crianças que usava como brinquedos sexuais para os seus amigos até às velhas que faziam todo o trabalho de limpeza da casa; como mantinha a seu lado alguns membros da sua antiga guarda, aqueles que o impediam de dar largas à sua fúria assassina sabiam perfeitamente que estavam a pôr em risco a sua própria vida.
— Não podemos permitir que ele mate pessoas! — exclamou Metróbio.
— Ah, daria tudo para que Sila conseguisse aceitar o que se está a passar com ele! — disse Valéria, que não parava de chorar.
— Mas tu também não estás bem, Valéria.
Era imprudente fazer tal comentário com uma voz meiga; tão imprudente que Valéria não se conteve e, pela primeira vez, contou a história que tanto a atormentava. Metróbio lembrava-se também da noite da orgia.
— Sabe-se lá! Se calhar, aindavou ser pai — comentou ele, rindo-se deliciado. — As hipóteses são de um para quatro.
— Cinco.
— Quatro, Valéria. A criança não pode ser de Sila.
— Ele mata-me!
— Não te atormentes, Valéria — disse o actor. — Vive a tua vida normalmente. Não digas nada a Sila. O futuro é impenetrável.
Alguns dias depois, Sila começou a sentir dores constantes na região do fígado. Andava de um lado para o outro do átrio, incapaz de se sentar, incapaz de se deitar, incapaz de descansar. O seu único consolo era a pequena piscina de mármore branco perto do seu quarto, na qual se banhava; mas, depois, tudo voltava ao mesmo, e era vê-lo de novo arrastando-se pelo átrio, incessantemente, lamentando-se e chorando. Tão grande era o seu tormento que, por vezes, queria bater com a cabeça nas paredes do átrio; era preciso agarrá-lo para não o fazer.
— O imbecil que despeja o bacio dele começou a espalhar a história de que Lúcio Cornélio está a ser comido por vermes — disse Túcio, o médico, a Metróbio e Valéria, mostrando o maior desdém por tais boatos. — Francamente! É tão grande a ignorância desta gente acerca da forma como o corpo funciona e de como evolui uma doença que, quando oiço uma destas, quase me apetece embebedar-me! Antes das dores, Lúcio Cornélio urinava na latrina.
Mas agora é obrigado a usar o bacio. Ora sucede que a urina vem cheia de vermes. Acham que consigo convencer os criados de que os vermes são uma coisa natural, de que toda a gente os tem, de que eles vivem nas nossas entranhas, de que eles nos acompanham durante toda a vida? Não, claro que não!
— Os vermes não comem? — murmurou Valéria, lívida como cal.
— Só comem aquilo que nós já comemos — retorquiu Túcio. — É mais que certo que, quando chegar a Roma,vou ouvir a mesma história outra vez. Os criados são os mexeriqueiros mais eficientes que há no mundo.
— bom, pelo menos parece que podemos ficar mais sossegados — disse Metróbio.
— Não é caso para isso — disse Lúcio Túcio. — As histórias que os criados contam são completamente falsas. No entanto, a realidade é muito, muito séria. A urina de Sila é mais doce que mel e a pele dele cheira a maçãs maduras.
Metróbio fez uma careta.
— Mais doce que mel? Como é que sabes? Provaste a urina dele?
— Na realidade provei, mas só depois de recorrer a um velho truque que me foi ensinado por uma feiticeira quando eu era criança. Pus uma porção de urina num prato lá fora e, num instante, o prato encheu-se de insectos de todo o tipo. Lúcio Cornélio está a urinar mel concentrado.
— E a perder peso a olhos vistos — disse Metróbio. Valéria já não agüentava estar calada por mais tempo: tinha de fazer a pergunta que a atormentava.
— Lúcio Túcio, ele está a morrer?
— Está, sim — retorquiu Lúcio Túcio. — Para além do mel — não sei o que isso significa, mas sei que é mortal —, o fígado está muito afectado. Demasiado vinho.
Os olhos negros encheram-se de um brilho causado pelas lágrimas; Metróbio apressou-se a limpá-los. Os seus lábios tremiam. com um suspiro, comentou:
— Sim, era de esperar.
— Que havemos de fazer? — perguntou a esposa.
— Esperar pelo fim. Apenas isso. — Valéria e Metróbio ficaram calados, vendo Lúcio Túcio afastar-se a caminho do quarto do doente. Depois, Metróbio, com uma voz em que não havia sombra de tristeza, disse algo de muito triste. — Amei-o durante muitos, muitos anos. Há muito tempo atrás, pedi-lhe que ficasse comigo, apesar de isso significar que eu trocaria uma vida confortável por uma vida dura. Ele declinou a minha proposta.
— Ele amava-te demasiado para aceitar que tu passasses a levar uma vida dura — disse Valéria, que tinha uma visão da vida muito sentimental.
— Não! Ele estava apaixonado pela ideia do seu nascimento patrício. Sabia para onde ia e isso era muito mais importante do que a minha pessoa. — Metróbio virou-se para ela, olhou-a bem de frente e perguntou-lhe: — Ainda não compreendeste que o amor significa coisas diferentes para as pessoas e que o amor que se dá nem sempre é retribuído da mesma maneira? Eu nunca o censurei. Como podia censurá-lo se nunca estive na sua pele? E, por fim, depois de me ter rejeitado tantas vezes, reconheceu a nossa ligação perante os seus colegas. ”O meu rapaz!”, disse ele. Não me importava de voltar a passar o que passei, só para o ouvir dizer de novo tais palavras, perante homens como Vátia e Lépido!
— Ele não chegará a conhecer o meu filho.
— Duvido mesmo que chegue a dar-se conta da tua gravidez. As terríveis dores que atormentavam Sila esbateram-se passado algum tempo. Porém, logo que se sentiu melhor, teve de resolver um caso inesperado: a difícil situação financeira em que se encontrava a cidade de Putéolos. Situada não muito longe de Miseno, Putéolos era dominada pela família Grânio; durante muitas gerações, os Grânios haviam sido os banqueiros e os magnatas da marinha de Putéolos e sempre se tinham considerado os senhores da cidade. Desconhecendo a magnitude dos excessos (e das doenças) de Sila, um dos magistrados da cidade pediu-lhe uma audiência. Queixava-se o magistrado de que um tal Quinto Grânio devia ao tesouro da cidade uma avultada maquia, mas que se recusava a pagar. O magistrado pedia por isso a Sila que intercedesse junto de Grânio.
Se o nome de Caio Mário era aquele que, entre todos os nomes do mundo, deixava Sila mais enfurecido, poderia perfeitamente dizer-se que o nome de Grânio vinha logo a seguir. De facto, havia laços de sangue e casamento entre os Mários e os Gratídios e os Túlios de Arpino e os Grânios de Putéolos; a primeira mulher de Caio Mário fora uma Grania. Por esta razão, vários Grânios foram proscritos e aqueles que não foram proscritos mantinham-se muito quietos e sossegados, não fosse Sila lembrar-se da sua existência. Entre os felizes Grânios que tinham escapado à sanha de Sila, contava-se este Quinto Crânio. Sila ordenou imediatamente aos seus guardas que fossem buscá-lo a Putéolos e o trouxessem à sua presença.
— Eu não devo tais somas! — exclamou Quinto Grânio, com o ar e a postura de quem não seria demovido.
Sentado numa cadeira curul, vestido com a toga praetexta, fitou o outro com o mais feroz dos olhares.
— Farás o que os magistrados de Putéolos te ordenarem! Pagarás! — atirou-lhe.
— Não, não pagarei! Putéolos que me ponha em tribunal, para que o caso seja devidamente julgado! — ripostou Grânio.
— Pagarás, sim, Grânio!
— Não pago!
O génio imprevisível de Sila, tão molestado ultimamente, desintegrou-se por completo. Ergueu-se tremendo de raiva, com as mãos cerradas.
— Paga, Grânio, ou mandarei estrangular-te aqui e agora!
— Tu podes ter sido o Ditador de Roma — retorquiu Quinto Grânio com o maior desdém. — Mas agora não tens mais autoridade sobre mim do que eu tenho sobre ti! Por isso, volta para as tuas farras e deixa que Putéolos resolva sozinha os seus problemas!
A boca de Sila abriu-se para gritar aos seus guardas que estrangulassem Grânio, mas da boca nenhum som saiu; sentiu uma onda de fraqueza percorrer-lhe o corpo todo e, depois, uma náusea horrível que o fez vacilar. Fazendo um grande esforço para se manter de pé, lá acabou por murmurar:
— Estrangulem este indivíduo!
Mas antes que o capitão dos guardas pudesse mexer-se, a boca de Sila abriu-se de novo, mas desta feita para que dela jorrasse uma enorme gota de sangue que se desfez em salpicos pelo chão à sua volta; Sila limitava-se a emitir uma estranha cacofonia enquanto dos seus lábios escorria um fio de sangue. Segundos depois, uma nova onda de fraqueza e náuseas apossou-se dele; e, com ela, veio um novo jorro de sangue, que, desta feita, deslizou na direcção dos seus joelhos; ao verem aquilo, todos os homens presentes desataram a gritar e a fugir em todas as direcções — em todas as direcções, excepto na direcção de Sila, pois também os soldados estavam convencidos de que o antigo Ditador estava a ser lentamente comido por vermes.
Instantes depois, chegava Lúcio Túcio, acompanhado de Metróbio e de Valéria, lívida de terror. Sila jazia no chão, vomitando sangue. O seu amante segurou-lhe na cabeça e a esposa, sem saber o que fazer, agachou-se junto a ele, tremendo, febril. Túcio gritou para os criados, pedindo que lhe trouxessem todas as toalhas que houvesse na casa; os criados entraram com as toalhas e ficaram de olhos esbugalhados ao dar com aquela cena: salpicos de sangue espalhavam-se pelo chão da sala e o seu amo era violentamente convulsionado pelos vómitos, ao mesmo tempo que tentava falar, e as suas mãos enclavinhavam-se no braço sujo de sangue de Metróbio.
Esquecido por todos, Quinto Grânio não ficou naquela casa por muito mais tempo. Enquanto os guardas de Sila dispersavam aterrados e o seu capitão tentava encorajá-los a acudir ao amo, o banqueiro de Putéolos abandonou a villa e regressou à sua cidade.
O sangue jorrou ainda da boca de Sila por muito tempo; finalmente, foi possível erguê-lo do chão e levá-lo para a sua cama. Metróbio, que o levou nos seus braços, apercebeu-se de como era leve aquele peso. Os guardas de Sila fugiram entretanto, deixando aos criados aterrorizados a tarefa de pôr alguma ordem no caos em que se tornara aquela casa.
O pior de tudo, pensava Sila, que continuava inteiramente consciente e se dava conta de tudo o que estava a acontecer, era que o sangue se acumulava na sua garganta e quase o sufocava; mesmo quando não sentia ânsias de vomitar, sabia que o sangue estava lá, à espera, enchendo-lhe o esófago, roçando-lhe a garganta. Um pavor tremendo apossou-se dele; num frenesim de medo e impotência, agarrou-se a Metróbio como um náufrago se agarra a um pedaço de cortiça no meio do oceano, os olhos postos naquele rosto amado, olhos desesperados, angustiados, aflitos; só com os olhos podia agora falar, pois o sangue ameaçava voltar a jorrar. Pelos cantos dos olhos, Sila conseguia ver o lívido rosto de Valéria, tão lívido que os olhos muito azuis sobressaíam de uma forma assustadora, bem como a expressão férrea do médico.
É isto a morte?, perguntou a si mesmo, sabendo que era. Mas eu não quero morrer assim! Não quero morrer a vomitar sangue e sufocar no meu próprio sangue, não quero morrer sujo e incapaz de disciplinar o meu corpo; quero ter uma morte admirável, em tudo controlada, uma morte que seja um exemplo de dignidade romana. Eu fui o rei de Roma, embora sem coroa. Eu fui coroado com a erva de Nola. Eu fui o maior homem entre os rios Oceano e Índico. Quero que a minha morte esteja à altura de todos esses feitos! Que a minha morte não seja um pesadelo de sangue, de silêncio, de medo!
Pensou em Julila, que morrera sozinha num mar de sangue. E em Nicrópole, que morrera com menos sangue mas numa maior agonia. E em Clitumna, que morrera com o pescoço e os ossos partidos. Em Metelo Numídico, com o rosto escarlate, sufocando, sufocando — ah, eu não sabia como isso era horrível! Em Dalmática, gritando por ele no templo de Juno Sospita. No seu filho, a luz da sua vida, o filho de Julila, que significara para ele mais do que qualquer outra pessoa, mais do que tudo... Também ele morrera sufocado.
Tenho medo. Tanto medo! Nunca pensei que viesse a ter medo. É inevitável, não há fuga possível, em breve tudo estará acabado, e eu nunca mais voltarei a ver, a ouvir, a sentir, a pensar. Serei ninguém. Nada. Não há sofrimento nesse mundo futuro. É o mundo da total ignorância. Do sono eterno. Eu, Lúcio Cornélio Sila, que fui o rei sem coroa de Roma, mas que fui coroado com a erva de Nola, deixarei de existir, excepto na memória dos homens. Pois essa é a única imortalidade que existe: ser lembrado pelo mundo dos vivos. Por pouco não acabava as minhas memórias. Só me faltava um livro, um pequeno livro. Mas o que escrevi chegará para que os futuros historiadores me julguem. Chegará para matar Caio Mário para toda a eternidade. Ele não conseguiu escrever as suas memórias. Eu consegui. Portanto, venci. Eu venci! E, de todas as minhas vitórias, a vitória sobre Caio Mário é a mais importante.
Durante cerca de uma hora, a hemorragia prosseguiu imparável, fazendo-o sofrer horrivelmente; mas depois voltou a passar e Sila pôde descansar. Lutando denodadamente para não perder a consciência, podia agora olhar para Metróbio, Valéria e Lúcio Túcio com uma clareza de visão que não sentia há muitas luas, como se tivesse recuperado o mais valioso dos sentidos para testemunhar a sua própria morte nas expressões daqueles que melhor conhecia. Finalmente, conseguiu falar.
— O meu testamento. Manda chamar Lúculo, ele deve lê-lo depois da minha morte. Ele é o meu executor e o tutor dos meus filhos.
— Já o mandei chamar, Lúcio Cornélio — retorquiu meigamente o actor grego.
— Dei-te o que merecias, Metróbio?
— Sempre me deste o que eu merecia, Lúcio Cornélio.
— Eu não sei o que é o amor. Aurélia dizia que eu sabia, mas que não tinha consciência desse saber. Não estou certo de que ela tivesse razão. Há algumas noites atrás, sonhei com Julila e com o nosso filho. Ele veio ter comigo e pediu-me que fosse fazer companhia à mãe. Eu não me apercebi do que esse sonho significava. Chorei, chorei apenas. A ele, sim, a ele amei-o. Amava-o mais do que a mim próprio. Ah, o que eu chorei a sua perda! A dor que a sua morte me deixou!
— Essa dor vai acabar, meu querido Lúcio Cornélio.
— Mais uma razão para desejar a morte.
— Há alguma coisa que desejes?
— Paz, apenas paz. Uma sensação de... realização.
— Tu és um homem realizado, Lúcio Cornélio.
— O meu corpo.
— O teu corpo, Lúcio Cornélio?
— Os Cornélios são enterrados. Mas eu não quero ser enterrado, Metróbio. Está escrito no testamento, mas deves dizer a Lúculo que é isso mesmo que eu quero. Se o meu corpo for parar a um túmulo, quem sabe se as cinzas de Caio Mário não virão cobri-lo, ao meu túmulo? Eu deitei-as fora, deitei fora as cinzas de Caio Mário. Não devia ter feito isso. Quem sabe se elas não estão à minha espera, à espera que eu morra para me irem sujar o túmulo? Atirei-as para o Ânio, vi-as desfazerem-se nos redemoinhos como se fossem teias de aranha reduzidas a pó. Mas então começou a soprar um vento muito forte, e algumas cinzas, que o rio ainda não tragara, voaram, voaram, espalharam-se pelas margens. Nem todas as cinzas foram levadas pelo rio. Quem me diz que elas não estão à minha espera? Tenho de ser cremado. Tens de dizer a Lúculo que é isso que eu quero, que quero ser cremado. Quero que as minhas cinzas sejam reunidas num abrigo onde não entre o ar, e que sejam metidas dentro de um vaso selado com cera, pois assim Caio Mário não conseguirá tocar-lhes. Eu serei o único Cornélio a ser cremado.
— Assim será feito, prometo-te.
— Cremado, Metróbio! Faz com que Lúculo cumpra a minha vontade!
— Assim farei, Lúcio Cornélio. Assim farei.
— Quem me dera saber o que é o amor!
— Mas tu sabes o que é o amor, claro que sabes! O amor levou-te a negar a tua natureza e a dedicar toda a tua vida a Roma.
— Isso é amor? Não, não pode ser. Esse amor é tão seco como o pó. Tão seco como as minhas cinzas. O único Cornélio a ser cremado, não enterrado.
As veias ingurgitadas e rompidas não tinham ainda acalmado; momentos depois, um novo vómito assolou-lhe a garganta: era o primeiro de uma longa série de vómitos que durou horas. Sila perdera grande parte da sua força vital e os intervalos de lucidez começaram a rarear. Sempre que conseguia falar, pedia a Metróbio que não permitisse que nenhuma partícula das odiadas cinzas de Mário o viessem manchar; depois, perguntava o que era o amor e por que razão nunca o conhecera.
Lúculo chegou a tempo de assistir à sua morte, embora Sila não estivesse já em condições de lhe dizer fosse o que fosse, pois perdera a consciência há algum tempo. Os estranhos olhos de Sila, agora já sem cor, rodeados por um círculo escuro, e as pupilas muito negras, tinham perdido o ar ameaçador que sempre os caracterizara: agora, não eram mais que uns olhos sem vida, esmagados pela dor e pela exaustão. A respiração, não se ouvia já; só com um espelho colocado frente aos lábios era possível detectá-la. A pele branca não podia estar mais branca, depois de tanto sangue perdido. Mas as cicatrizes vermelhas brilhavam, o crânio calvo perdera toda a tensão e estava todo encarquilhado, como se fosse um mar varrido pelo vento, e a boca caía desolada sobre os maxilares e o queixo. Depois, uma mudança trespassou-lhe os olhos; as pupilas começaram a expandir-se, alastrando pelas íris e confundindo-se por fim com o negro do fundo das órbitas. A luz de Sila evolava-se nesse instante; todos os que estavam por perto se deram conta do fatal momento e, incrédulos, viram um brilho dourado espalhar-se pelos olhos esbugalhados do antigo Ditador.
Lúcio Túcio debruçou-se sobre Sila e fechou-lhe os olhos. Metróbio pôs as moedas em cima dos olhos, para que estes permanecessem fechados, enquanto Lúculo metia na boca do morto uma moeda de um denário, o dinheiro com que pagaria a viagem na barca de Caronte.
— Teve uma dura morte — disse Lúculo, fazendo o impossível por controlar-se.
Metróbio chorava.
— Foi dura toda a sua vida. Como poderia a morte não o ser?
— Escoltarei o seu corpo até Roma, onde terá um funeral de Estado.
— Ele estaria de acordo com isso. Mas é preciso que seja cremado.
— Será cremado.
Depois de falar com Lúculo, Metróbio, atoleimado pela dor, foi à procura de Valéria, que não encontrara coragem para assistir aos últimos momentos do marido.
— Acabou — disse ele.
— Eu amava-o — disse ela, com uma voz quase inaudível. — Sei que toda a cidade de Roma pensa que eu casei com ele por conveniência, para que a minha família fosse cumulada de honras. Mas ele era um grande homem e foi muito bom para mim. Eu amava-o, Metróbio! Eu amava-o com verdadeiro amor!
— Acredito no que dizes, Valéria — retorquiu Metróbio, sentando-se ao pé dela e acariciando-lhe a mão, com um ar ausente.
— Que vais fazer agora, Metróbio? — perguntou ela. Despertando do estupor em que se encontrava, Metróbio olhou
para a mão dela, uma mão fina, branca, com dedos longos. Muito parecida com a mão de Sila. Não admirava: ambos eram patrícios romanos.
— Vou-me embora — respondeu ele.
— Depois do funeral?
— Não, não posso assistir ao funeral. Imagina só a cara de Lúculo se me visse no meio dos acompanhantes!
— Mas Lúculo sabe quão importante tu eras para Sila! Ele sabe! Sabe melhor que ninguém!
— Trata-se de um funeral de Estado, Valéria. Não será permitida nenhuma manifestação susceptível de diminuir a sua dignidade. Portanto, não será tolerada a presença de um vulgar actor grego que é mais conhecido pelo seu rabo. — Metróbio apercebeu-se de toda a amargura que esse comentário continha; depois, encolhendo os ombros, acrescentou: — Francamente, não creio que Lúcio Cornélio gostasse de me ver lá. Quanto a Lúculo, bom, Lúculo é um grande aristocrata. Miseno permitiu-lhe satisfazer alguns dos seus impulsos menos admiráveis. Ele gosta de desflorar meninas. — O rosto moreno pareceu de súbito enojado. — Pelo menos os vícios de Sila eram, por assim dizer, normais! Ele suportava o vício de Lúculo, mas seria incapaz de imitá-lo!
— Para onde vais?
— Para Cirenaica. Para longe do mundo. Para a magnífica solidão de Cirenaica.
— Quando?
— Esta noite. Depois de Lúculo ter partido com o féretro de Sila. Quando toda a gente estiver a dormir nesta casa.
— E como vais para Cirenaica?
— Apanharei um barco em Putéolos. Estamos na Primavera. No porto de Putéolos, há muitos barcos que vão para África, para Hadrumeto. Em Hadrumeto, alugarei o meu próprio transporte.
— Tens dinheiro para isso?
— Tenho. Sila não podia deixar-me nada no testamento, mas deu-me mais do que o suficiente. Era um homem estranho. Extremamente sovina, excepto com as pessoas que amava. com essas, era o oposto. O mais triste de tudo é que, mesmo no fim, tenha duvidado da sua capacidade de amar. — Metróbio ergueu uns olhos tristes para o rosto de Valéria. — E tu, Valéria? Que vais fazer?
— Tenho de voltar para Roma. Depois do funeral, terei de ir viver para casa do meu irmão.
— Essa é capaz de não ser uma boa ideia. Tenho uma melhor. Nos olhos azuis dela, afogados em lágrimas, não poderia haver
o mínimo vestígio de malícia; Valéria fitou-o com genuína perplexidade.
— O quê?
— Vem comigo para Cirenaica. Lá poderás ter o teu filho. Eu assumirei a paternidade. Não me interessa quem te engravidou. Lúculo foi um dos cinco homens que teve relações contigo e sabe tão bem como eu que Sila não podia ser o pai da criança. Creio que Roma, para ti, significará desgraça. Lúculo denunciar-te-á. Será uma forma de te desacreditar. Não te esqueças que, entre os seus iguais, só tu poderás acusá-lo de práticas que os seus colegas condenariam.
— Por todos os deuses, nunca tinha pensado nisso!
— Tens de vir comigo.
— Não me deixarão ir!
— Não é preciso que Lúculo e os outros saibam. Direi a Lúculo que estás demasiado doente para poderes acompanhá-lo, mas que te mandarei para Roma antes do funeral. Lúculo está demasiado ocupado para se lembrar das suas fraquezas e, por outro lado, não sabe que tu estás grávida. Por isso, Valéria, se tens de fugir, o melhor é fugir já.
— Tens razão. É evidente que ele acabaria por denunciar-me.
— Podia mesmo contratar alguém para te matar.
— Oh, Metróbio!
— Vem comigo, Valéria. Logo que ele parta, abandonaremos esta casa. Ninguém nos verá partir. E ninguém descobrirá o que te sucedeu. — Metróbio pôs um sorriso irônico. — No fim de contas, eu não passava do rapaz de Sila. Ao passo que tu, uma Valéria Messala, eras a esposa dele. Estavas muito acima de mim!
Mas ela não achava que estivesse acima dele. Há meses que o amava secretamente, ainda que compreendesse que ele nunca poderia retribuir esse amor.
— Euvou contigo — respondeu-lhe.
Metróbio afagou-lhe a mão, radiante; depois, deixando-a, disse-lhe:
— Óptimo! Por ora, deixa-te estar aqui. É preciso que Lúculo não te veja. Junta algumas coisas, mas não de mais: apenas aquilo que uma mula possa levar. Leva unicamente vestidos vulgares. Ah, e apenas capas que tenham capuz! Quem te vir, tem de pensar que és minha mulher e não a viúva de Lúcio Cornélio Sila.
Valéria Messala ficou sozinha no seu quarto, pensando num futuro que seria muito diferente de tudo o que esperara. Embora não tivesse compreendido bem a ameaça que poderia representar para Lúculo, sabia que tinha razões para estar grata ao actor. Partir com Metróbio poderia significar a dor de o ver amar homens, quando ela ansiava pelo seu amor; mas Metróbio educaria o seu filho como se fosse dele e ela poderia oferecer-lhe um lar; quem sabe se ele não acabaria por apreciar mais a vida familiar do que frágeis aventuras com outros homens? Sim, não havia dúvida, antes partir com ele do que sofrer a agonia de nunca mais o ver!
Ou do que ser morta! Valéria sempre temera o frio e altivo Lúculo: verificava agora que, afinal, tinha razões para isso.
Levantou-se e começou a procurar, nos seus muitos baús cheios de ricos trajes, os vestidos mais vulgares. Não tinha nenhum dinheiro, mas as suas jóias eram magníficas. Metróbio, pelos vistos, tinha muito dinheiro; por isso, as jóias seriam o dote dela. Uma garantia contra as dificuldades que o futuro pudesse trazer. Cirenaica! Longe do mundo. A magnífica solidão de Cirenaica. Se assim fosse, que maravilha!
O funeral de Sila reduziu o seu triunfo à mais total insignificância. Duzentas e dez liteiras, carregadas de murta, olíbano, caneleira, balsamina, nardo e outras plantas aromáticas — oferta das mulheres de Roma — eram transportadas por carregadores trajando de negro. E como o cadáver de Sila, devido à perda de sangue, ficara tão encolhido e mumificado que não podia ser exposto, um grupo de escultores tratou de construir, com caneleira e olíbano, uma efígie de Sila, a qual foi colocada sobre o esquife, precedida por um lictor feito com as mesmas plantas. Havia carros alegóricos representando todos os aspectos da sua vida, excepto os primeiros trinta e três anos, pouco recomendáveis, e os últimos meses, ainda menos recomendáveis. Num desses carros alegóricos, via-se Sila diante das muralhas de Nola, recebendo a Coroa de Erva das mãos de um centurião; noutro, obrigava o cobarde rei Mitridates a assinar o Tratado de Dárdano; noutros, vencia batalhas, promulgava leis, capturava Jugurta, executava os prisioneiros depois da batalha da Porta Colina. Um carro especial exibia os mais de dois mil diademas e coroas, feitos de ouro puro, que lhe haviam sido dados por cidades, tribos, reis e países de todo o Mundo. Noutros carros, decorados a preto e dourado e puxados por magníficos cavalos pretos, vinham os seus antepassados; e os seus dois gémeos, Fausto e Fausta, vinham nas primeiras filas do séquito.
O dia estava sufocante, e o céu, coberto de nuvens, era um presságio de chuva. Mas o maior cortejo fúnebre que Roma jamais vira deixou a casa que dava para o Circus Maximus e encaminhou-se pelo Velabrum até parar no Fórum Romano, onde Lúculo — um magnífico e famoso orador — fez o panegírico do falecido do alto dos rostra, ao lado do engenhoso esquife, onde o cadáver horrendamente murado jazia num compartimento especial, e sobre cuja tampa se via o Sila de olíbano e caneleira precedido do lictor. Pela segunda vez em três anos, Roma chorava a sorte dos dois gémeos; daí que a multidão tivesse rompido em aplausos quando Lúculo anunciou que seria o tutor das crianças e que, nessa qualidade, nunca permitiria que lhes faltasse nada. A tristeza enchia de lágrimas todos os olhos; se assim não fosse, Roma teria reparado que Fausto e Fausta revelavam já, tanto no físico como no rosto, uma grande parecença com o tio-avô materno, o imponente mas feio Quinto Cecílio Metelo Numídico. A quem o pai deles pusera a alcunha de Suíno. E que o pai deles assassinara, num acesso de raiva depois de Aurélia ter rejeitado as suas propostas amorosas.
Como que por encanto, as nuvens negras não derramavam chuva; e o desfile pôde prosseguir o seu caminho, desta feita pela Clivus Argentarius, através da Porta Fontinalis, atrás da qual ficava a mansão que outrora pertencera a Caio Mário, até chegar ao Campo de Marte. O túmulo de Sila aguardava, em sumptuoso isolamento, na Via Lata, adjacente ao campo onde se reunia a Assembleia das Centúrias. À nona hora desse dia, o esquife foi depositado no alto da enorme pira, constituída por gravetos e achas e pelo conteúdo das duzentas e dez liteiras de plantas aromáticas. Ao transfomar-se em cinzas, o cadáver de Sila espalharia pela cidade o mais fragrante dos aromas.
No preciso instante em que as tochas começavam a incendiar os gravetos da base da pira, levantou-se um vento portentoso; a pequena montanha desfez-se com um estrondo e o incêndio deflagrou com tal violência que os acompanhantes tiveram de afastar-se, protegendo os rostos com as mãos. Então, quando o fogo se extinguiu, os céus libertaram a chuva, um aguaceiro fortíssimo que fez esfriar rapidamente a madeira calcinada; por isso, as cinzas de Sila foram recolhidas instantes depois do holocausto. Tudo o que restava de Sila coube num requintado vaso de alabastro, ornamentado com ouro e pedras preciosas; Lúculo prescindiu do abrigo que Sila pedira, a fim de que os seus restos nunca pudessem ser contaminados por uma partícula que fosse das cinzas de Caio Mário; de facto, com aquela chuva incessante, nem uma única partícula de pó flutuava no ar.
O vaso contendo as cinzas foi cuidadosamente depositado dentro do túmulo, construído e esculpido com mármores multicoloridos, redondo na forma e suportado por colunas estriadas, coroadas com o novo tipo de capitel que Sila trouxera de Corinto e popularizara — decorado com delicadas folhas de acanto. O seu nome, os títulos e os feitos foram inscritos num painel que dava para a estrada; e, debaixo dessa inscrição, lia-se um epitáfio muito simples, que o próprio Sila formulara:
O MELHOR DOS AMIGOS • O PIOR DOS INIMIGOS
— Ainda bem que tudo isto acabou — disse Lúculo para o irmão enquanto se encaminhavam para casa, sob a violenta tempestade, encharcados até aos ossos e tremendo de frio.
Lúculo estava preocupado: Valéria Messala não aparecera em Roma. O irmão dela, Rufo, bem como os primos, Nigro e Metelo Nepos, e a tia-avó, a antiga Vestal, começavam a ficar agitados; Lúculo fora obrigado a informá-los de que mandara um mensageiro a Miseno; mas o mensageiro voltou sem Valéria — mas com a notícia de que Valéria desaparecera.
Quase um mês depois, Lúculo ordenou uma busca; todo o litoral próximo da villa foi passado a pente fino, bem como todos os bosques e pomares entre Nápoles e Sinuessa. A última esposa de Sila tinha desaparecido. Tal como as suas jóias.
— Foi roubada e assassinada — decidiu Varrão Lúculo. Lúculo, que, apesar de amar o irmão, não lhe contava tudo
sobre a sua vida íntima, respondeu-lhe com o silêncio. A sua sorte parecia ser tão grande como a de Sila. De facto, não tinha demorado muito tempo a aperceber-se de que Valéria Messala poderia tornar-se perigosa para a sua pessoa e, em particular, para a sua carreira. Valéria sabia demasiado acerca dele, ao passo que ele, afinal, não sabia praticamente nada acerca dela. Por isso, teria de matá-la. Providencialmente, alguém o tinha feito por ele! A deusa Fortuna favorecia-o, disso não tinha dúvidas.
O desaparecimento de Metróbio não o preocupou rigorosamente nada — se é que alguma vez se deu ao trabalho de pensar nisso. Abundavam em Roma os actores homossexuais — por isso, quem daria pela falta de Metróbio? Lúculo estava muito mais preocupado com o facto de já não ter acesso ao abastecimento ilimitado de rapariguinhas vendidas pelas mães. Ah, as saudades que teria de Miseno!
— Um patife não, um monstro! — lamentou-se Eutico. — Sessenta quilômetros por dia!
— E estás com sorte, Eutico. Isto é só o princípio. Ele até tem facilitado as coisas. Principalmente por tua causa.
— Quero ir para casa!
Burgundo abeirou-se do chefe dos criados e, com os modos desajeitados que o caracterizavam, deu-lhe uma palmadinha nas costas.
— Eutico, tu sabes perfeitamente que não podes voltar para casa! — O chefe dos criados, ao ouvir isto, estremeceu, e o seu rosto transformou-se num esgar em que sobressaíam os olhos, enormes e algo ausentes, dominados por verdadeiro horror. — Vá lá, limpa essas lágrimas e tenta andar um pouco. É melhor sofrer com ele do que voltar para casa e enfrentar a ira da mãe — brrr! Além disso, ele não é tão insensível como tu pensas. Precisamente neste momento, está a ver se arranja um belo banho quente para o teu belo e dolorido rabo.
Eutico sobreviveu, embora não tivesse a certeza de que sobreviveria à viagem por mar. César e a sua pequena comitiva levaram nove dias a percorrer os quase seiscentos quilômetros entre Roma e Brindísio, onde o imparável jovem conduziu os seus infortunados companheiros para um navio antes mesmo que eles tivessem tempo para lhe pedir alguns dias de descanso. De Brindísio seguiram para a aprazível ilha de Corcira e aí tomaram outro navio para Butroto, no Epiro; depois, seguiram por terra até Atenas, atravessando Acarnânia e Delfos. Mas o caminho até Atenas era um caminho de cabras grego e não uma estrada romana; um caminho que subia e descia pelas altas montanhas, e que se tornava especialmente difícil quando atravessava as florestas húmidas da região.
— É evidente que nem mesmo nós, os Romanos, conduzimos exércitos por caminhos destes — comentou César quando entraram no impressionante vale de Delfos, que era mais um colo cheio de cultivos no meio de um imponente maciço. Mas César teve de concluir a sua ideia antes de se entregar à contemplação daquela paisagem magnífica. — Mas não mevou esquecer deste caminho. Um exército poderia usá-lo, se fosse constituído por homens intrépidos. E ninguém descobriria que vinha aí um exército, porque ninguém acreditaria! Hmmm!
César gostava de Atenas e Atenas gostava dele. Ao contrário da maior parte dos nobres seus contemporâneos, César não solicitava a hospitalidade dos proprietários de mansões ou quintas; contentava-se com estalagens e, quando não as havia, com um acampamento junto à estrada. Em Atenas, encontrara uma estalagem razoável, sob a encosta leste da Acrópole. Porém, mal se tinha acomodado, recebeu um recado para que se apresentasse imediatamente em casa de Tito Pompónio Ático. César não conhecia o homem, embora (como toda a gente em Roma) conhecesse a história do famoso desastre financeiro que Ático e Crasso tinham sofrido no ano seguinte à morte de Caio Mário.
— Insisto que fiques em minha casa — disse-lhe o cortês Ático, um verdadeiro homem de sociedade que, apesar dos erros da juventude, era um perspicaz juiz dos seus pares. Bastou-lhe olhar para César para entender as informações que lhe tinham chegado — sim, não havia dúvida, aquele rapaz viria a ter muita importância em Roma.
— É demasiada generosidade da tua parte, Tito Pompónio — retorquiu César, com um sorriso franco. — No entanto, prefiro manter a minha independência.
— Independência, em Atenas, pode significar comida envenenada e camas sujas — respondeu Ático.
O fanático da limpeza mudou logo de ideias.
— Obrigado, Ático, euvou mudar-me para a tua casa. O meu séquito é pequeno — dois libertos e quatro criados.
— Tenho espaço que chega e sobra para a tua comitiva.
E assim ficou decidido. Tal como ficaram decididos alguns jantares sociais e umas quantas expedições turísticas; César pôde descobrir uma Atenas que pedia uma estada mais demorada do que a prevista. Apesar de ser conhecido como um epicurista e um amante do luxo, Ático não fora ainda amolecido por esse tipo de vida. Por isso, não se coibiu de acompanhar César em difíceis escaladas de penhascos e montanhas de interesse histórico e em velozes cavalgadas nas planícies de Maratona. Juntos foram a Corinto e a Tebas, juntos apreciaram as margens pantanosas do lago Orcómeno, onde Sila vencera duas batalhas decisivas contra os exércitos de Mitridates, juntos exploraram os caminhos que permitiram a Catão, o Censor, cercar o inimigo em Termópilas — e que permitiram ao inimigo cercar a última posição de Leónidas.
— Forasteiro, vai dizer aos Espartanos que aqui morremos, obedientes ao seu comando — leu César, na pedra que celebrava a coragem de Leónidas. Virou-se depois para Ático e afirmou: — Toda a gente pode citar esta inscrição, mas a verdade é que aqui, no local onde a batalha foi travada, a frase tem uma ressonância completamente diferente da que tem quando a lemos numa folha de papel.
— Ficarias contente se fosses lembrado por idênticos feitos, César?
O belo e alongado rosto ganhou uma dureza repentina.
— Nunca! Foi um gesto estúpido e fútil, um desperdício de homens corajosos. Eu serei lembrado, Ático, mas não por gestos estúpidos ou fúteis. Leónidas era um rei espartano. Eu sou um patrício romano da República. O único significado que a vida dele teve reside na forma como a desperdiçou, ou seja, na sua morte. O significado da minha vida residirá naquilo que eu hei-de fazer em vida. Não interessa comovou morrer, desde que morra como um Romano.
— Acredito em ti.
Porque era naturalmente um erudito e possuía uma educação notável, César verificou que tinha muito em comum com Ático, cujos gostos eram intelectuais e ecléticos. Verificaram, aliás, que tinham gostos similares em literatura e arte, e passavam horas a discutir uma peça de Menandro ou uma estátua de Fídias.
— -”No entanto, não ficaram muitas pinturas de qualidade na Grécia — disse Ático, abanando com tristeza a cabeça. — Aquilo que Múmio não levou para Roma depois de ter saqueado Corinto — isto para já não falar do que Emílio Paulo fez em Pidna! —, acabou por desaparecer nas décadas que se seguiram. Se quiseres ver as melhores pinturas do mundo, terás de ir à casa de Marco Lívio Druso, em Roma.
— Suponho que Crasso é o seu actual proprietário.
Ático fez um esgar de reprovação; detestava Crasso, apesar de terem sido colegas nas actividades especulativas.
— Aposto que empilhou os quadros nalguma cave, onde ficarão até que alguém lhe diga que valem mais do que a venda de escravos no mercado ou que umas quantas ínsulas compradas por um pechincha.
César pôs um sorriso largo.
— Pois é, meu caro Ático, nem todos podemos ser homens de cultura e gostos refinados! Há espaço no mundo para os Crassos.
— No mundo haverá, mas não em minha casa!
— Tu não és casado — disse-lhe César no final da sua estada em Atenas. César tinha as suas próprias ideias quanto às razões que haviam levado Ático a evitar a prisão do matrimónio, mas uma tal afirmação não tinha nada de ofensivo, pois a resposta não precisava de ser explícita.
No rosto alongado, ascético e austero de Ático, notou-se um ligeiro beicinho.
— Não, César, não sou casado. Nem tenciono casar-me.
— Ao passo que eu sou casado desde os treze anos. E com uma rapariga que ainda não tem idade suficiente para partilhar a minha cama. Estranho destino!
— Mais estranho do que é costume! Eu sei que casaste com a filha mais nova de Cina. E sei que não te divorciarias dela, nem mesmo que Júpiter Optimus Maximus to pedisse.
— Nem mesmo que Sila mo pedisse, queres tu dizer! — retorquiu César, rindo a bom rir. — Foi um episódio muito feliz. Escapei à rede de Caio Mário — com a conivência activa de Sila! — e deixei de ser o flamen Dialis.
— A propósito de casamentos... dás-te com Marco Túlio Cícero? — perguntou Ático.
— Não. É claro que ouvi falar dele, mas não privo com ele.
— Vocês tem muitas coisas em comum, mas suspeito que não se dariam bem um com o outro — disse Ático, com um ar pensativo. — Cícero é muito susceptível no que toca às suas capacidades intelectuais e, por isso, odeia rivais. E o problema é que tu, do ponto de vista intelectual, és muito capaz de ser superior a ele.
— Que tem isso a ver com o casamento?
— É que acabei de lhe arranjar uma esposa.
— Magnífico — disse César, sem grande interesse.
— É Terência. A irmã adoptiva de Varrão Lúculo.
— Uma mulher terrível, segundo ouvi dizer.
— Sem dúvida. Porém, do ponto de vista social, é muito melhor do que ele alguma vez poderia esperar.
César tomou uma decisão; era tempo de partir, agora que as conversas do anfitrião pareciam ter perdido qualquer objectivo. Mas o convidado sabia por que razão isso acontecera. César sabia que as preferências sexuais daquele plutocrata romano que se auto-exilara iam para rapazes novos; daí que tenha convivido com ele com uma reserva que não se coadunava com a sua natureza aberta. Era pena. De outro modo, aquele primeiro encontro teria sido o princípio de uma longa e profunda amizade.
À saída de Atenas, César tomou a estrada militar, construída pelos Romanos, que atravessava a Beócia e a Tessália e o desfiladeiro de Tempe; mantendo sempre um ritmo desenfreado, César e a comitiva fizeram uma rápida e informal saudação a Zeus, ao verem ao longe o pico do monte Olimpo. Em Dio, embarcaram novamente e seguiram de ilha em ilha, até chegarem ao Helesponto. Daí a Nicomédia era uma viagem de três dias.
Quando chegaram ao palácio de Nicomédia, tiveram uma recepção apoteótica. O rei e a rainha já tinham perdido todas as esperanças de o voltar a ver, especialmente depois de terem sabido que César, mal terminara a campanha de Mitilene, partira para Roma com o exército de Termo e Lúculo. Mas foi Sila, o cão, quem melhor exprimiu toda a alegria que a chegada de César provocou no palácio. O animal não parava de correr pelo palácio, ladrando e ganindo; saltava para o colo de César, depois corria de novo para os reis, como que a dizer-lhes quem tinha chegado, e finalmente voltava para o colo de César; as cabriolas do cão quase remetiam para um segundo plano os abraços e beijos reais.
— Só lhe falta falar — disse César quando, por fim, o cão o deixou afundar-se numa cadeira; o animal já estava tão cansado que se contentou em deitar-se aos seus pés, produzindo uma série de ruídos estrangulados. César baixou-se para fazer festas na barriga do cão. — Sila, meu velho, nunca pensei que pudesse ficar tão feliz por ver essa cara tão feia!
Nessa noite, depois de se ter instalado no seu quarto e de se ter deitado nu na sua cama, César deu consigo a reflectir nos seus pais e no relacionamento que tinha tido com eles. Sim, os seus pais tinham sido para ele figuras particularmente distantes. Um pai que raramente estava em casa — e, quando estava, parecia mais interessado em manter uma espécie de guerra não declarada contra a esposa do que em estabelecer algum tipo de relação com os filhos; e uma mãe que era rigorosamente justa, impiedosamente crítica e incapaz de qualquer manifestação física de afecto. Talvez fosse por isso que o seu pai — concluía César, agora que estava longe de Roma e, por isso, numa posição mais favorável para proceder a essa análise — se mostrava tão insatisfeito com o comportamento da mãe — talvez fosse por causa da frieza da mãe, da distância que ela impunha. O que César não conseguia ver era que a verdadeira razão para a insatisfação do pai residia na dedicação que a mãe votava ao seu trabalho — um trabalho que ele considerava indigno de uma mulher da sua classe. Porque nunca tinham conhecido verdadeiramente Aurélia, a senhoria de uma ínsula, César e as suas irmãs não faziam ideia de que esse aspecto da vida da mãe tinha sido uma causa determinante na insatisfação do pai. Em vez disso, consideravam que a atitude do pai era perfeitamente compreensível, pois também eles tinham sentido a falta dos abraços e beijos da mãe; na realidade, nenhum deles poderia saber até que ponto as noites de amor dos pais tinham sido gratificantes para ambos. Quando recebeu a notícia da morte do pai (comunicada pelo homem que transportava as suas cinzas), a primeira reacção de César foi correr para a mãe, desejoso de a abraçar e consolar. Mas Aurélia afastou-se dele, dizendo-lhe, num tom severo, que se lembrasse de quem era e se deixasse de tais manifestações. César sentira-se magoado até ao momento em que percebeu, de forma muito clara, que herdara da mãe aquela distância em relação às coisas e às pessoas, e que não poderia esperar dela outro tipo de comportamento.
E talvez isso — pensava César agora — não fosse mais do que um sinal de algo em que já tinha reparado — o facto de as crianças quererem sempre dos seus pais coisas que os pais não desejavam dar-lhes ou que eram incapazes de lhes dar. Ele sabia que a mãe era uma pérola inestimável. Tal como sabia que a amava muito. E que lhe devia muito pelo facto de ela denunciar todos os seus pontos fracos — isto para não falar dos conselhos, muito pouco maternais porque revelavam um conhecimento ímpar das coisas do mundo, que ela lhe dera ao longo da vida.
E no entanto — e no entanto... Que bom que era ser recebido com abraços e beijos e uma afeição sem limites, como Nicomedes e Oradaltis tinham feito com ele naquele dia! César não chegava ao ponto de desejar conscientemente que os seus pais fossem parecidos com aquele casal; limitava-se a sentir o desejo de que aqueles tivessem sido os seus pais.
Mas esta ideia só durou até ao pequeno-almoço da manhã seguinte, quando a luz do dia revelou tudo o que ela tinha de absurdo. Fitando o rei Nicomedes, César sobrepôs a cara do seu pai à do rei (por deferência em relação a César, Nicomedes não se tinha pintado) e sentiu uma enorme vontade de rir. Quanto a Oradaltis, bom, Oradaltis podia ser rainha, mas não tinha um décimo da realeza de Aurélia. Não, não era uns pais assim que ele queria. O que ele queria era uns avós assim.
César chegara a Nicomédia em Outubro e não tencionava partir tão cedo, para grande prazer do rei e da rainha, que acediam a todos os seus pedidos, desde visitar Górdio e Pessinunte até passar uns dias nas ilhas de Proconeso, onde César queria ver as pedreiras de mármore. Porém, ao fim de dois meses, precisamente em Dezembro, César recebeu um pedido para que fizesse algo de muito difícil e extremamente estranho.
Em Março desse ano, o novo governador da Cilícia, o jovem Dolabela, deixara Roma com destino à sua província, na companhia de dois outros nobres romanos e uma comitiva de funcionários públicos. O mais importante dos seus dois companheiros era o seu legado sénior, Caio Verres; o menos importante era o seu questor, Caio Publício Maléolo, escolhido por sorteio para tais funções.
Tendo-se tornado um dos novos senadores de Sila, em conseqüência da sua eleição como questor, Maléolo não era de modo nenhum Homem Novo; houvera cônsules na sua família, havia imagines no seu átrio. No entanto, a sua família tinha pouco dinheiro; só depois de algumas boas compras decorrentes das proscrições é que a família pôde depositar algumas esperanças na carreira de Caio, então com 30 anos; esperava-se que Caio conquistasse o consulado, restaurando assim o velho estatuto da família. Sabendo que o salário de Caio seria baixo e que este precisaria de bastante dinheiro para manter um estilo de vida idêntico ao de Dolabela, a mãe e as irmãs venderam as suas jóias e entregaram todo o produto da venda a Maléolo; a bolsa deste já ia meio cheia, mas ele tencionava enchê-la até acima mal chegasse à sua província. Finalmente, a mãe e as irmãs deram-lhe o maior dos tesouros da família, uma magnífica baixela de ouro e prata. Segundo elas, a sua posição só poderia sair reforçada se, ao oferecer um banquete ao governador, usasse a baixela da família.
Infortunadamente, Caio Publício Maléolo não era tão desenvolto ou esperto como os seus antepassados; a sua excessiva ingenuidade não augurava nada de bom para quem ia ocupar um dos primeiros cargos da comitiva de Dolabela. O legado sénior, Caio Verres, a quem não faltava esperteza, tratou de conhecer bem Maléolo e, uma vez vencida essa etapa, rodeou-o de tanta simpatia e tais amabilidades que Maléolo acabou por considerá-lo como a melhor das pessoas ao cimo da terra.
Viajavam juntamente com outro governador, Caio Cláudio Nero, que seguia para a Província da Ásia; patrício da família Cláudio, Nero tinha mais riqueza, mas muito menos inteligência, do que o prolífico ramo da família que recebera o cognome de Fulcro.
A cobiça voltava a dominar Caio Verres. Embora (graças ao conhecimento que tinha da zona) se tivesse saído muito bem dos negócios com os bens e propriedades dos prescritos da região de Benevento, havia nele uma genuína paixão por obras de arte que os dinheiros de Benevento não tinham saciado. Os prescritos de Benevento eram magnatas incultos, gente que dava tanta importância a uma insípida cópia, das que se faziam em Nápoles, de um qualquer conjunto de ninfas, como a um Praxíteles ou a um Mirão. De início, Verres esperara com ansiedade pela prescrição do neto de Sexto Perquitieno, cuja reputação como apreciador de obras de arte não tinha paralelo entre os cavaleiros, e cuja colecção, graças às suas actividades como colector de impostos na Ásia, era talvez ainda melhor que a de Marco Lívio Druso. Só que, conforme veio a saber-se, o neto de Perquitieno era sobrinho de Sila — e a colecção de obras de arte do avô permaneceu em seu poder.
Apesar de não pertencer a uma família distinta — o pai era um pedarius dos bancos de trás do Senado, o primeiro Verres a pertencer a esse corpo —, Caio Verres subira na vida graças a um apurado faro para questões de dinheiro e uma grande habilidade para convencer alguns homens importantes do seu presumível valor. Enganara facilmente Carbão, mas nunca conseguira enganar Sila, ainda que este não tivesse qualquer escrúpulo em usá-lo para arrasar o Sâmnio. Infelizmente para Verres, o Sâmnio tinha tão poucas obras de arte como Benevento; esse lado do carácter insaciavelmente avaro de Verres continuava a não encontrar satisfação alguma.
Decidiu então que teria mesmo de ir para o Oriente, um mundo helenizado onde não faltavam as estátuas e as pinturas, desde Alexandria a Olímpia, desde o Ponto a Bizâncio. Por isso, quando Sila procedeu ao sorteio para os governadores do ano seguinte, Verres pesou bem as suas possibilidades e optou por cultivar a amizade do jovem Dolabela. O primo deste, o velho Dolabela, encontrava-se na Macedónia — uma província muito interessante, no que respeitava às obras de arte —, mas o velho Dolabela era um homem duro e tinha os seus próprios interesses. Caio Cláudio Nero, que ia para a Província da Ásia, era demasiado legalista — logo, era um homem que não lhe convinha. Desse modo, a única hipótese de Verres era acompanhar o governador da Cilícia, o jovem Dolabela. O homem certo para Caio Verres, pois este Dolabela era um indivíduo ganancioso, sem qualquer espécie de ética e um adepto secreto de viciosas festas, que envolviam as rameiras mais ordinárias e sujas que fosse possível encontrar e certas substâncias susceptíveis de ampliar a sensualidade e o prazer sexual. Muito antes de partirem para o Oriente, já Verres se tinha transformado no grande fornecedor de que Dolabela precisava para satisfazer os seus vícios secretos.
Que sorte!, pensou Verres, triunfante: ele tinha os favores de Fortuna! Homens como o jovem Dolabela havia poucos e eram ainda menos aqueles que subiam a postos tão altos. Se o velho Dolabela não tivesse sido tão útil a Sila, do ponto de vista militar, o mais novo dos Dolabelas dificilmente teria chegado a pretor e a governador de uma província. E o facto de ter chegado ao pretorado e ao governo de uma província não obstavam a que Dolabela vivesse num medo constante; por isso, quando encontrou um homem como Verres, tão simpático, compreensivo e disposto a alimentar-lhe os vícios, Dolabela suspirou de alívio.
Enquanto o grupo viajou com Cláudio Nero, Verres controlou-se implacavelmente — pôde assim resistir ao impulso de furtar algumas obras de arte que viu em santuários ou ágoras da Grécia. Em Atenas, sobretudo, passou por uma difícil provação, já que toda a cidade estava cheia de tesouros; em Atenas, o problema chamava-se Tito Pompónio Ático, essa gigantesca aranha que dominava o centro da teia romana que envolvia Atenas. Graças à sua elevada posição financeira, aos seus laços de sangue com os Cecílios Metelos e às muitas ofertas que fizera a Atenas, Ático era verdadeiramente um intocável; por outro lado, era bem conhecida a sua inflexível posição de condenação daquela espécie de Romanos que se dedicava ao roubo de obras de arte.
Porém, a partida de Atenas significava a separação dos dois grupos e Cláudio Nero, que, por natureza, não tinha qualquer simpatia pela Grécia, estava ansioso por chegar a Pérgamo. Assim, o navio de Cláudio Nero rumou tão depressa quanto pôde à Província da Ásia, ao passo que o navio de Dolabela seguiu na direcção da pequena ilha de Delos.
Antes de Mitridates ter invadido a Província da Ásia e a Grécia, nove anos antes, Delos fora o epicentro mundial do negócio da escravatura. Todos os grandes negociantes de escravos tinham uma representação em Delos; era também por Delos que passavam os piratas que forneciam a maior parte dos escravos à ponta oriental do mar Mediterrâneo. Na antiga Delos, chegara-se ao ponto de negociar a compra e venda de vinte mil escravos por dia, embora isso não implicasse um cortejo infindável de navios carregados de escravos, capaz de transformar o espaçoso e cômodo porto Mercantil no mais ruidoso e frenético dos mercados. Os negócios eram feitos com papéis — assim se transferia a propriedade dos escravos em troca de dinheiro. Só escravos muito especiais eram transportados até Delos; a ilha era unicamente um centro de intermediários.
Houvera em tempos uma vasta população ítalo-romana em Delos, bem como muitos alexandrinos e um número considerável de judeus; a maior edificação da ilha era a ágora romana, onde os negociantes romanos e italianos tinham instalado os seus escritórios. Quando Verres lá chegou, a ágora estava absolutamente desfigurada e deserta, tal como a parte ocidental da ilha, onde se concentrava a maior parte das casas. Nas encostas do monte Cinto, encontravam-se os templos dos deuses importados por Delos durante o tempo em que estivera submetida aos Ptolemeus do Egipto e aos Selêucidas da Síria. Um santuário de Artemisa, irmão de Apolo, ficava muito perto do mais pequeno dos dois portos, o porto Sagrado, a que ancoravam apenas os navios de peregrinos. Para norte, situava-se o imponente e maravilhoso templo de Apolo — enorme, muito belo, e contendo algumas das maiores obras de arte conhecidas. E, entre o templo de Apolo e o lago Sagrado, encontravam-se os leões de mármore branco de Naxos, postados ao longo do Caminho Processional que unia o templo ao lago.
Verres ficou louco de prazer mal chegou a Delos: ninguém conseguiria impedi-lo de proceder às suas explorações. Andou de templo em templo, maravilhando-se com a imagem de Artemisa de Éfeso, cujos seios descaídos e estéreis tinham a configuração de testículos de touro; ficou estupefacto a olhar para a deusa Ma de Comona, ou para Hécate Sidonina, ou ainda para Serápis Alexandrina; ficou literalmente babado a apreciar as imagens em ouro e marfim, os tronos orientais carregados de pedras preciosas, cujos ocupantes, assim pareciam, deviam sentar-se de pernas cruzadas. Mas foi no templo de Apolo que encontrou as duas estátuas a que não conseguiu resistir — um grupo em que o sátiro Mársias tocava flauta para um extasiado Midas e um furibundo Apolo, e uma imagem em ouro e marfim de Letona, com os seus divinos bebés ao colo, a qual, ao que se cria, era obra de Fídias, mestre da escultura criselefantina. Como se tratava de duas obras pequenas, Verres e quatros dos seus criados penetraram furtivamente no templo a meio da noite, tiraram-nas dos plintos, envolveram-nas ternamente em mantas e esconderam-nas na zona do porão do navio destinada às bagagens de Caio Verres.
— Ainda bem que Arquelau e, muitos anos depois, Sila, saquearam esta ilha — comentou, muito satisfeito, Verres, para Maléolo, ao romper do dia. — Se o comércio de escravos tivesse continuado florescente em Delos, seria muito mais difícil passear por ela sem ser detectado a fazer umas pequenas aquisições, mesmo nos mercados nocturnos.
Um tanto espantado, Maléolo ficou a perguntar para si mesmo o que quereria Verres dizer com aquilo; olhou para o rosto perversamente belo do suposto amigo, mas isso não o encorajou, bem pelo contrário, a fazer qualquer pergunta. Menos de meio dia depois, ficou a saber. De facto, levantara-se de súbito um vento muito forte que impedira a partida do navio; ainda antes que o vento começasse a soprar, já os sacerdotes de Apolo se dirigiam a Dolabela, queixando-se de que dois dos maiores tesouros do templo haviam sido roubados. E como tinham visto Verres a apreciá-los demoradamente, a afagá-los, a medi-los com os olhos, a empurrá-los ligeiramente das bases, acusaram Verres do roubo. Como gostava de Verres, Maléolo não se sentia muito à vontade para ir contar a Dolabela o que Verres lhe dissera; apesar disso, porém, cumpriu o seu dever. E Dolabela insistiu para que Verres devolvesse as obras.
— Foi aqui que Apolo nasceu, Verres! — disse ele, tremendo. — Não podes roubar nada aqui. Caso contrário, seremos todos mortos por uma epidemia.
Frustrado e dominado por uma raiva imensa, Verres ”devolveu” as imagens, arremessando-as do alto do navio para as lajes do porto. Aí jurou que Maléolo pagaria pelo que tinha feito. Mas ninguém ouviu a sua jura. De facto, para grande surpresa de Maléolo, Verres foi ter com ele para lhe agradecer o que tinha feito.
— Eu sou louco por obras de arte! É um problema terrível para mim. Não consigo controlar-me — disse-lhe Verres, conseguindo mostrar uns olhos chorosos e afeiçoados. — Obrigado, Maléolo! Muito obrigado!
No entanto, a sua loucura por obras de arte não voltaria a deparar com obstáculos. Em Ténedo (que Dolabela quis visitar por causa do papel desempenhado por essa ilha na guerra contra Tróia), Verres apropriou-se da estátua do próprio fundador da ilha, Tenos, uma bela estátua de madeira, tão antiga que a sua configuração só muito remotamente podia ser considerada humana. A sua nova técnica era tão cândida como imperativa: ”Eu quero esta imagem, portanto ela tem de ser minha!”, dizia ele, e corria para o porão do navio, enquanto Dolabela e Maléolo abanavam a cabeça e nada respondiam, pois não queriam provocar rupturas numa equipa que deveria manter-se unida e que ainda tinha uma longa missão à sua frente. Em Quios e Éritras, voltou a haver saque; por outro lado, Verres continuava a mostrar-se extremamente prestimoso para com Dolabela e Maléolo; a este último, fizera-o já mergulhar no mesmo tipo de corrupção a que Dolabela não conseguira resistir. Por isso, quando Verres decidiu roubar todas as obras de arte do templo de Hera em Samos, não lhe foi muito difícil convencer Dolabela a alugar mais um navio — e a ordenar ao almirante Caridemo, de Quios, que, à frente de um quinquerreme, escoltasse a frota do novo governador da Cilícia durante o resto da viagem. Era preciso defender todos aqueles tesouros da cobiça dos piratas! Halicarnasso perdeu algumas estátuas de Praxíteles — e essa foi a última incursão de Verres na Província da Ásia, nessa altura já tão furiosa como o mais furioso dos ninhos de vespas. Mas a Panfília perdeu o belíssimo Harper de Aspendo e a maior parte do conteúdo do templo de Artemisa, em Perga — aí, considerando a estátua da deusa uma obra de fraca execução, Verres contentou-se em surripiar a capa de ouro de Artemisa, que depois fundiu, transformando-a em lingotes, que eram muito mais fáceis de transportar.
E assim chegaram finalmente a Tarso, onde Dolabela tratou de se instalar no seu palácio e Verres tratou de requisitar uma vila para sua habitação pessoal, onde poderia deleitar-se com todos os tesouros que pilhara. Verres era um apreciador de arte genuíno: não tinha a mínima intenção de vender uma que fosse daquelas obras. O problema era que, em Caio Verres, as obsessões e a amoralidade do coleccionador fanático atingiam um nível nunca visto.
Caio Publício Maléolo também tratou de arranjar uma bela casa, situada nas margens do rio Cidno; retirou das bagagens a baixela de ouro e prata e os seus sacos de dinheiro, pois tencionava aumentar a sua fortuna emprestando dinheiro a juros exorbitantes àqueles que não pudessem pedir empréstimos a fontes mais legítimas. Verres mostrou-se extremamente compreensivo, quando Maléolo lhe revelou as suas intenções. E, além de compreensivo, incrivelmente prestimoso.
Ao fim de pouco tempo, já Dolabela mergulhara num estado de permanente torpor sensual; dificilmente poderia dedicar-se aos assuntos de Estado com os pensamentos constantemente toldados pelas cantáridas e outras drogas afrodisíacas que Verres lhe fornecia; daí que, na prática, o governo da província fosse exercido pelo legado sénior e pelo questor. Mostrando suficiente bom senso para não tocar nas obras de arte de Tarso, Verres concentrou-se na sua vingança. Era tempo de dar cabo de Maléolo.
A primeira etapa nesse sentido consistiu em abordar um tema que calava fundo nos corações de todos os Romanos — a elaboração de um testamento.
— Eu deixei o meu testamento nas Vestais, antes de partir — disse Verres, particularmente atraente à luz das velas, que dava ao seu cabelo suavemente encaracolado um tom de ouro velho. — Também fizeste isso, não fizeste, Maléolo?
— Eu? Não, não fiz — retorquiu Maléolo, perturbado. — Confesso que nunca tal coisa me passou pela cabeça.
— Mas isso é uma loucura, meu caro! — exclamou Verres. — Quando um homem está longe de casa, tudo lhe pode acontecer! Piratas, doenças, naufrágios! Lembra-te de Servílio Cepião, que naufragou quando regressava a Roma, há vinte e cinco anos — ele era um questor, tal e qual como tu! — Verres deitou mais vinho na bela taça de prata dourada de Maléolo. — Tens de fazer testamento, Maléolo!
E de tal modo Verres conduziu as coisas que Maléolo já estava, momentos depois, completamente embriagado — enquanto que Verres fazia na perfeição o papel de bêbedo. Quando o legado sénior decidiu que o pobre questor já estava suficientemente toldado para conseguir ler o que lhe desse a assinar, Verres pediu papel e uma pena, escreveu as disposições que Caio Publício Maléolo lhe ditou e, por fim, ajudou-o a assinar e a selar. O testamento foi guardado num escaninho da secretária de Maléolo e rapidamente esquecido pelo seu autor. O qual, quatro dias depois, morreu de uma obscura doença a que os físicos de Tarso, após muitas conferências, decidiram chamar envenenamento por comida. E Caio Verres, encontrando o testamento, ficou surpreso e encantado ao descobrir que o seu amigo questor lhe deixara tudo o que possuía, incluindo a baixela da família.
— Mas que história mais triste! — disse ele a Dolabela, com o ar mais triste deste mundo. — É um belo legado, mas preferia que o pobre Maléolo continuasse entre nós.
Apesar da névoa afrodisíaca em que mergulhara, Dolabela detectou alguma hipocrisia naquelas palavras, mas limitou-se a falar do problema que era arranjar rapidamente um outro questor.
— Mas não precisas de fazer isso — retorquiu Verres, jovialmente. — Eu fui questor de Carbão e portei-me tão bem que consegui ser seu proquestor quando ele foi governar a Gália Italiana. Nomeia-me proquestor.
E, deste modo, os assuntos da Cilícia — e os dinheiros públicos da Cilícia — passaram para as mãos de Caio Verres.
Durante todo o Verão, Verres trabalhou industriosamente, mas não para o bem da Cilícia; os benefícios iam todos para as suas actividades, em particular o empréstimo de dinheiro, que herdara de Maléolo. No entanto, a sua colecção de arte não acolhera nenhum novo tesouro. Nem mesmo Verres, apesar do cargo que ocupava e do poder que tinha, sentia confiança suficiente para se lançar numa série de roubos nas cidades e nos templos da própria região que controlava. Por outro lado — pelo menos enquanto Cláudio Nero fosse governador —, também não podia reatar o saque da Província da Ásia; a ilha de Samos enviara uma irada embaixada a Pérgamo, queixando-se a Cláudio Nero da pilhagem do santuário de Hera; mas Nero respondeu-lhes, com evidente pesar, que não estava no seu poder castigar ou disciplinar o legado de outro governador; por isso, os Samianos teriam de apresentar a sua queixa ao Senado de Roma.
Foi em fins de Setembro que Verres teve uma inspiração; e não perdeu tempo em transformar a fantasia em realidade. Tanto a Bitínia como a Trácia abundavam em tesouros; assim sendo, porque não alargar a sua colecção de arte à custa da Bitína e da Trácia? O primeiro passo consistiu em convencer Dolabela a nomeá-lo seu embaixador em missão especial e a dar-lhe cartas de apresentação para o rei Nicomedes da Bitínia e para o rei Sadala da Odrísia Trácia. No princípio de Outubro, Verres deu início à sua viagem, partindo de Ataleia, no Helesponto. Esta estrada evitava a Província da Ásia e, por outro lado, possuía alguns templos, de onde Verres podia roubar algum ouro, já que não abundavam neles grandes obras de arte.
Aquela era uma embaixada de vilões; Verres não queria gente honesta e vertical ao seu lado. Tratou por isso de escolher com todo o cuidado os seus homens, incluindo os seis lictores a que, na sua qualidade de embaixador com estatuto de propretor, tinha direito; era preciso que toda a comitiva colaborasse com ele nas suas nefastas empresas. O seu principal assistente era um funcionário sénior da eqmpa de Dolabela, um tal Marco Rúbrio; Verres e Rúbrio tinham já tratado de muitos negócios em conjunto, designadamente quando era preciso fornecer a Dolabela as prostitutas ordinárias e sujas de que ele tanto gostava. Quanto aos escravos, eram uma mistura de homens corpulentos e enormes, encarregados de surripiarem as estátuas mais pesadas, e de homens minúsculos, capazes de se introduzirem em qualquer casa ou templo sem que ninguém desse por eles. Quanto aos escribas, o seu trabalho consistiria unicamente em catalogar tudo o que ele roubasse.
A viagem por terra foi decepcionante, pois Pisídia e a zona da Frígia que Verres atravessou fora já completamente saqueada pelos generais de Mitridates, nove anos antes. Chegou a pensar em dirigir-se a Pessinunte (o que implicaria uma volta maior), onde talvez conseguisse surripiar alguma coisa, mas, por fim, resolveu dirigir-se directamente para Lampsaco, no Helesponto. Aí, poderia requisitar um dos navios de guerra da Província da Ásia para o escoltar; depois, poderia seguir ao longo da costa da Bitínia, pilhando o que muito bem entendesse, para o que precisaria de um bom navio de carga.
O Helesponto era terra-de-ninguém. Tecnicamente pertencia à Província da Ásia, mas as montanhas da Mísia constituíam uma barreira importante, de tal modo que o estreito tinha mais a ver com a Bitínia do que com Pérgamo. Lampsaco era o principal porto do lado asiático do estreito, praticamente em frente da Calípolis Trácia; era em Lampsaco que acampavam os diversos exércitos que atravessavam o Helesponto. Por tudo isso, Lampsaco era um vasto e movimentado porto, ainda que muita da sua prosperidade econômica dependesse da abundância e excelência do vinho produzido na região vizinha.
Nominalmente sob a autoridade do governador da Província da Ásia, a cidade há muito que gozava de independência, já que Roma se contentava com um tributo. Tal como sucedia em todos os portos prósperos do mar Mediterrâneo, também em Lampsaco havia uma colônia de mercadores romanos. No entanto, era entre os nativos, os Gregos Focenses, que se encontravam os homens mais ricos da cidade. Nenhum dos nativos de Lampsaco possuía a cidadania romana; eram, todos eles, socii, aliados.
Antes de partir, Verres estudara diligentemente todas as cidades por onde esperava passar; por isso, quando chegou a Lampsaco, sabia muito bem qual era o estatuto da sua embaixada e qual o dos cidadãos mais proeminentes. A cavalgada romana que começou nas colinas que rodeavam a cidade e só terminou no porto causou tal agitação que muitos populares desataram a fugir em pânico; seis lictores precediam a importante personagem romana, acompanhada também por vinte criados e por cem soldados da cavalaria ciliciana. No entanto, ninguém fora avisado na cidade da chegada de Verres e ninguém sabia quais poderiam ser as suas intenções.
Um tal lanitor era o etnarca-chefe desse ano; ao saber que uma embaixada romana estava à sua espera na ágora, lanitor correu para lá, acompanhado de alguns dos outros anciãos da cidade.
— Não sei ainda quanto tempovou ficar — disse Caio Verres, com um ar simpático, superior mas nada arrogante. — Mas gostaria que me arranjasses acomodações adequadas para mim e para a minha comitiva.
Era impossível, explicou lanitor, algo hesitante, encontrar uma casa suficientemente grande para albergar tanta gente, mas era evidente que ele próprio poderia hospedar o embaixador, os seus lictores e criados pessoais, enquanto que os soldados e os outros criados seriam instalados noutras casas. lanitor apresentou então os seus colegas do governo da cidade, incluindo um tal Filodamo, que fora etnarca-chefe de Lampsaco quando Sila lá estivera.
— Ouvi dizer — segredou Marco Rúbrio a Verres, enquanto eram conduzidos à casa de lanitor — que Filodamo tem uma filha que é tão bela e virtuosa que o velho resolveu fechá-la à chave. Chama-se Estratonice.
Verres não era nenhum Dolabela no que toca a apetites carnais. Gostava que as suas mulheres fossem verdadeiras Galateias, tão puras e perfeitas como as estátuas e pinturas que admirava. Por isso, quando se encontrava fora de Roma, tendia a passar longos períodos de abstinência sexual, pois não se contentava com mulheres inferiores, nem mesmo com cortesãs tão famosas como Précia. Daí que só pensasse casar-se quando encontrasse uma noiva de imaculada beleza e esplêndida linhagem — uma nova Aurélia. Aquela viagem ao Oriente serviria para que cimentasse a sua fortuna e para que, desse modo, pudesse negociar uma aliança matrimonial proveitosa com alguma Cecília Metela ou Cláudia Pulcra. Uma Júlia teria sido melhor, mas não havia Júlias solteiras.
Não admira, pois, que Verres estivesse há meses sem qualquer envolvimento sexual, nem que esperasse envolver-se com alguma mulher em Lampsaco. Rúbrio, contudo, estava decidido a descobrir as fraquezas de Verres — para além do seu gosto exacerbado por obras inanimadas — e, por isso, mal chegara à cidade, tratara de conhecer alguns dos mexericos locais. E assim descobriu que Filodamo tinha uma filha, Estratonice, que, pelos vistos, era a reincarnação de Afrodite.
— Investiga um pouco mais — retorquiu Verres, sem mais comentários; depois, com o mais encantador (e falso) dos seus sorrisos, encaminhou-se para a porta de lanitor, onde o etnarca-chefe o esperava em pessoa para lhe dar as boas-vindas.
Rúbrio aquiesceu e dirigiu-se imediatamente para a casa que lhe fora destinada, muito menos imponente que a do amo; o que não admirava, pois Rúbrio não passava de um pequeno oficial, sem qualquer possibilidade de aceder a um estatuto de embaixador.
Depois do almoço, Rúbrio voltou a casa de lanitor e pediu um encontro privado a Verres.
— Estás confortável aqui? — perguntou Rúbrio.
— Mais ou menos. Claro que não é uma villa romana. É pena que os cidadãos mais ricos de Lampsaco não sejam romanos. Odeio ter de recorrer a gregos! É gente demasiado simples para o meu gosto. Este lanitor só come peixe — ao almoço, não vi nem um ovo! E quanto a aves, bom, nem sei se as há por cá! Mas o vinho era esplêndido. Então, já sabes mais alguma coisa quanto a Estratonice?
— Não foi nada fácil, Caio Verres. Ao que parece, a rapariga é o supra-sumo da virtude, mas talvez porque o pai e o irmão a guardam como Tigranes guarda as mulheres do seu harém.
— Nesse caso, terei de ir jantar com Filodamo, Rúbrio abanou a cabeça.
— Não acredito que ele te apresente a filha, Caio Verres. Lampsaco é a mais greco-focense das cidades. Os gregos focenses não mostram as mulheres da família aos convidados.
As duas cabeças aproximaram-se, uma, loura-acastanhada, a outra, negra-agrisalhada, e o volume da conversa desceu ao nível do segredo.
— O meu assistente Marco Rúbrio — disse Verres a lanitor depois da saída do outro — está muito mal alojado. Quero que ele seja melhor instalado. Ouvi dizer que, depois de ti, o cidadão mais importante de Lampsaco é um tal Filodamo. Agradecia-te, por isso, que pedisses a Filodamo que recebesse Marco Rúbrio na sua casa.
— Na minha casa não entram vermes! — disparou Filodamo, quando lanitor lhe contou o que Verres queria. — Quem é esse Marco Rúbrio? Um miserável funcionário romano! Eu, que já hospedei cônsules e pretores romanos, incluindo o grande Lúcio Cornélio Sila?! De facto, todos os romanos que recebi em minha casa eram mais importantes que o próprio Caio Verres! Porque, afinal, quem é esse homem, lanitor? Um mero assistente do governador da Cilícia!
— Por favor, Filodamo! — suplicou lanitor. — Faz isto por mim! Pela nossa cidade! Este Caio Verres é um indivíduo mau e cruel, disso não tenho dúvidas! E tem cem soldados de cavalaria. Em Lampsaco, nem metade desses soldados conseguiríamos juntar!
Filodamo acabou por ceder e Rúbrio transferiu-se para casa dele. Mas o velho depressa percebeu que fizera mal. Mal se instalou, Rúbrio pediu que lhe fosse apresentada a bela e famosa filha de Filodamo; como lhe fosse negado esse privilégio, tratou imediatamente de revolver a casa de alto a baixo, à procura da jovem. Dado que as buscas se revelaram infrutíferas, Rúbrio chamou Filodamo à sua presença, como se este fosse seu criado.
— Vais dar um banquete em honra de Caio Verres esta mesma tarde — e podes servir tudo menos peixe! O peixe pode ser um bom alimento, mas ninguém agüenta comer só peixe toda a vida! Sendo assim, quero cabrito, galinha, outras aves, muitos ovos e o melhor dos vinhos.
Filodamo conseguiu controlar-se.
— Mas não foi nada fácil — disse ele ao filho, Artemidoro.
— É Estratonice que eles querem — retorquiu Artemidoro, furibundo.
— Também me parece. Mas este Rúbrio apareceu-me tão depressa cá em casa que não tive tempo para a fazer sair. E agora não posso tirá-la de cá. Há romanos por todo o lado.
Artemidoro queria estar presente no banquete em honra de Verres, mas o pai, atentando na expressão transtornada do filho, percebeu que a presença dele só serviria para piorar a situação; e tanto insistiu com ele que o filho acedeu ir comer a outro lado. Quanto a Estratonice, o melhor que o pai e o irmão poderiam fazer seria fechá-la no seu próprio quarto, acompanhada de dois corpulentos criados.
Caio Verres chegou com os seus lictores, que ficaram de guarda na porta da frente, ao passo que um grupo de soldados foi mandado para a porta das traseiras. E logo que se instalou confortavelmente no seu divã, o embaixador romano pediu a Filodamo que fosse buscar a filha.
— Não posso fazer isso, Caio Verres — retorquiu firmemente o velho. — Esta é uma cidade focense, o que significa que as nossas mulheres não podem ser apresentadas a forasteiros.
— Mas eu não quero que ela venha comer connosco, Filodamo — disse Verres, pacientemente. — Eu só quero ver esse exemplo de perfeição de que toda a tua cidade focense fala.
— Não sei o que poderão dizer, pois nunca ninguém a viu — retorquiu Filodamo.
— Então é porque os teus criados falam... Vai buscá-la, velho!
— Não posso fazer isso, Caio Verres.
Estavam presentes mais cinco convidados: Rúbrio e quatro colegas seus; mal Filodamo deu aquela resposta, desataram todos a gritar que a queriam ver. E, a cada recusa de Filodamo, voltavam a gritar, cada vez mais alto.
Quando veio o primeiro prato, Filodamo aproveitou a oportunidade para sair da sala e pedir a um criado que fosse buscar Artemidoro. Depois, regressou imediatamente à sala de jantar, onde se viu obrigado a reafirmar obstinadamente a sua recusa. Rúbrio e dois dos seus colegas levantaram-se então para ir procurar a jovem, mas Filodamo meteu-se à frente deles. Havia uma ânfora de água quente sobre um braseiro perto da porta; essa água quente era depois deitada em bacias, onde se punham tigelas com comida, a fim de que esta não esfriasse. Rúbrio pegou na ânfora e despejou água a ferver por cima da cabeça de Filodamo. Enquanto os criados, horrorizados, fugiam em todas as direcções, os gritos de sofrimento do velho misturaram-se com os gritos de alegria dos romanos, que logo se lançaram em busca de Estratonice.
No meio desta confusão de gritos, outros gritos se ouviram. Artemidoro e vinte dos seus amigos tinham chegado à porta da casa, onde depararam com os lictores de Verres. O chefe da decúria, um tal Cornélio, tinha toda a confiança de um lictor na sua própria inviolabilidade; nunca lhe passou pela cabeça que Artemidoro e o seu grupo pudessem recorrer à força para os tirar dali. E talvez não o houvessem feito, se Artemidoro não tivesse ouvido os horripilantes gritos do pai. Os lampsacanos avançaram em massa. Vários lictores sofreram pequenos ferimentos, mas Cornélio morreu com o pescoço partido.
Os participantes no banquete dispersaram quando Artemidoro e os seus amigos irromperam pela sala de jantar, com varapaus nas mãos e um ódio de morte nos rostos. Mas Caio Verres não era nenhum cobarde. Ordenando desdenhosamente aos invasores que se afastassem, deixou a casa na companhia de Rúbrio e dos outros funcionários, para encontrar, logo à saída, um lictor morto e cinco outros muito assustados. Imediatamente se fizeram à estrada, levando o cadáver de Cornélio.
Nessa altura já toda a cidade começava a agitar-se. lanitor esperava Verres e os outros romanos à porta da sua casa. Ficou aterrado quando viu o que os romanos traziam, mas nem por isso deixou de os admitir em sua casa — e, prudentemente, trancou a porta. Artemidoro ficara em casa para tratar das queimaduras do pai, mas dois dos seus amigos conduziram o resto do grupo para a praça da cidade, convocando toda a gente para a luta. Todos os gregos estavam fartos de Caio Verres e nem mesmo um fervoroso discurso de Públio Técio (o mais importante romano da cidade) conseguiu demovê-los da decisão de retaliarem. A multidão que, entretanto, se formara, quase levava atrás de si Técio e o seu convidado Caio Terêncio Varrão, quando se pôs em marcha na direcção da casa de lanitor.
Aí chegados, os revoltosos exigiram que os deixassem entrar, lanitor recusou. Então, tentaram arrombar a porta com um aríete improvisado; como isso não resultasse, decidiram incendiar a casa. Num instante, juntaram achas e gravetos e deitaram-lhes fogo. Só a chegada de Públio Técio, Caio Terêncio Varrão e outros residentes romanos de Lampsaco impediu o desastre; os seus discursos veementes esfriaram as cabeças dos revoltosos, levando-os a entender que a imolação de um embaixador romano teria conseqüências muito mais graves que a violação de Estratonice. Por isso, o fogo (que já chamuscara boa parte da fachada da casa de lanitor) foi apagado e os homens de Lampsaco regressaram às suas casas.
Um homem menos arrogante que Caio Verres teria fugido da cidade à primeira oportunidade; mas Caio Verres não tinha a mínima intenção de fugir — em vez disso, sentou-se calmamente à secretária de lanitor e escreveu a Caio Cláudio Nero, governador da Província da Ásia, determinado a não se deixar intimidar por uns quantos gregos miseráveis.
”Quero que venhas a Lampsaco e que julgues dois socii, Filodamo e Artemidoro, pelo assassínio de um lictor-chefe de um embaixador romano”, dizia a sua carta.
No entanto, a carta de Verres só chegou às mãos do governador depois de este ter recebido um relatório pormenorizado que Públio Técio e Caio Terêncio Varrão se tinham apressado a elaborar.
”Não irei de modo nenhum a Lampsaco”, respondeu Cláudio Nero. ”O meu legado sénior, Caio Terêncio Varrão, que está muito acima de ti, contou-me a verdadeira história dos factos. É pena que não tenhas sido imolado. Tu és o que o teu nome, Verres, diz — um porco.”
A raiva com que Verres escreveu uma segunda missiva acrescentou veneno e poder à sua pena; esta carta era para Dolabela — e chegou a Tarso em apenas sete dias, levada por um dos seus soldados, o qual tinha tanto medo das eventuais represálias de Verres, que, para obter vários cavalos frescos ao longo do caminho, não se coibiu de matar.
— Vai imediatamente a Pérgamo. E rápido — ordenou Verres ao seu superior, sem manifestar o mínimo respeito por ele. — Obriga Cláudio Nero a vir a Lampsaco, a fim de julgar e executar os socii que assassinaram o meu lictor-chefe. Se não o fizeres, terei muito que contar em Roma sobre certas orgias e drogas. Estou a falar a sério, Dolabela. E podes dizer a Cláudio Nero que, se ele não vier a Lampsaco para condenar estes fellatores gregos, acusá-lo-ei também de práticas sórdidas. E convence-te de uma coisa, Dolabela: tudo farei para que as minhas acusações se traduzam por uma condenação formal. Nem que tenha de morrer por isso!
Quando as notícias de Lampsaco chegaram à corte do rei Nicomedes, a situação tinha chegado a um impasse; Caio Verres continuava a viver em casa de lanitor e a deslocar-se livremente pela cidade. Por outro lado, Verres ordenara a lanitor que informasse os anciãos de Lampsaco de que permaneceria na cidade enquanto o caso não fosse resolvido; finalmente, toda a gente sabia que Cláudio Nero viria de Pérgamo para julgar o pai e o filho.
— Quem me dera poder fazer qualquer coisa! — exclamou o rei, falando com César sobre o caso.
— Lampsaco está sob a alçada da Província da Ásia e não da Bitínia — retorquiu César. — Só podes actuar por via diplomática e não creio que isso possa ser grande ajuda para os dois infortunados socii.
— Caio Verres é um rapinante de primeira, César. No princípio do ano, assaltou santuários por toda a Província da Ásia. Depois, roubou o Harper de Aspendo e a capa de ouro de Artemísia, em Perga.
— Pois é. com homens assim, como é que as províncias podem manter boas relações com Roma? — comentou César.
— com aquele homem, nada está seguro; incluindo, pelos vistos, as filhas virtuosas de importantes socii gregos.
— Mas afinal o que é que Verres está a fazer em Lampsaco?
Nicomedes estremeceu.
— Lampsaco é apenas uma etapa, César! Porque a intenção dele é viajar até à Bitínia! Traz cartas de apresentação para mim e para o rei Sadala da Trácia. O governador Dolabela concedeu-lhe o estatuto de embaixador. Imagino que o verdadeiro objectivo de Verres é roubar as nossas estátuas e pinturas.
— Não ousará tal, enquanto eu estiver aqui — retorquiu César, para acalmar o rei.
O rosto do velho rei iluminou-se.
— Era isso que eu ia dizer. Queria propor-te uma coisa, César: concordarias em ir a Lampsaco como meu embaixador, a fim de que Cláudio Nero compreenda que a Bitínia está a seguir o caso com toda a atenção? Eu não me atrevo a fazer isso — a minha presença poderia ser interpretada como uma ameaça de guerra, mesmo que eu não levasse escolta militar. É que as minhas tropas encontram-se muito mais perto de Lampsaco do que as tropas da Província da Ásia.
Antes que Nicomedes terminasse, já César se tinha apercebido dos problemas por que passaria se acedesse ao pedido do rei. Se fosse a Lampsaco observar os acontecimentos em nome do rei da Bitínia, toda a Roma concluiria que, afinal, ele sempre tinha um relacionamento muito íntimo com Nicomedes. No entanto, dificilmente poderia deixar de ir a Lampsaco.
— Euvou a Lampsaco, mas não devo dar a impressão de que estou a actuar em teu nome — disse ele, gravemente. — O destino dos dois socii está inteiramente nas mãos do governador da Província da Ásia, o qual não apreciaria a presença de um privatus romano de vinte e um anos, afirmando ser o representante do rei da Bitínia.
— Mas eu preciso de saber o que acontece em Lampsaco, através de alguém com a distância suficiente para não exagerar! Por outro lado, como tu és romano, é evidente que não alinharás automaticamente ao lado dos gregos! — protestou Nicomedes.
— Eu não disse que não ia. Eu vou. Irei, porém, como um privatus romano, nada mais — como alguém que, por acaso, estava perto e que é unicamente movido pela curiosidade. Dessa forma, ninguém se aperceberá de que a Bitínia está metida no caso e eu poderei dar-te um relatório pormenorizado dos acontecimentos. Depois, se achares necessário, poderás apresentar uma queixa formal ao Senado de Roma e, como é evidente, contarás com o meu testemunho.
César partiu no dia seguinte, levando apenas por companhia Burgundo e quatro criados; com tão pouca companhia, poderia dar a impressão de que não ia com um objectivo definido, mas que, muito simplesmente, andava a viajar. Embora envergasse um conjunto de couraça e saiote de couro, o seu traje favorito para montar, levava na bagagem a toga, a túnica e os sapatos senatoriais; por outro lado, tivera o cuidado de levar consigo o escravo encarregado de fazer novas Coroas Cívicas com folhas de carvalho. Apresentar-se-ia em Lampsaco em toda a majestade que lhe fora conferida pelos seus feitos — mas apenas em seu nome pessoal e não em nome do rei da Bitínia.
Foi no final de Dezembro que César partiu para Lampsaco, usando a mesma estrada que Verres percorrera. Quando lá chegou, ninguém deu por ele; a cidade estava toda no porto, assistindo à chegada da imponente frota de Cláudio Nero e Dolabela. Nenhum dos governadores estava satisfeito, bem pelo contrário: Dolabela, porque estava nas mãos de Verres, e Cláudio Nero porque as actividades clandestinas de Dolabela ameaçavam comprometê-lo. Os seus rostos soturnos não se alegraram quando souberam que não teriam alojamentos condignos, pois lanitor continuava a hospedar Verres e, em Lampsaco, para além de lanitor, só Filodamo, o réu, possuía uma mansão adequada para chefes romanos. Públio Técio resolvera o problema, mandando embora de sua casa um colega e oferecendo-a a Cláudio Nero e Dolabela.
Quando Cláudio Nero recebeu Verres (que já estava à sua espera na casa de Técio), ficou a saber que deveria presidir ao tribunal — e aceitar que Verres fosse advogado de acusação, testemunha, membro do júri e um embaixador cujo estatuto oficial, propretoriano, não fora minimamente afectado pelos acontecimentos de Lampsaco.
— Isso é ridículo! — exclamou Cláudio Nero, na presença de Dolabela, Públio Técio e do legado Caio Terêncio Varrão.
— Que queres dizer? — perguntou Verres.
— A justiça romana é famosa. Aquilo que tu propões é uma fraude. Eu saí-me muito bem das minhas funções de governador! Como as coisas estão neste momento, é muito provável que seja substituído já na Primavera. O mesmo pode ser dito do teu superior, Cneu Dolabela. Eu não posso falar em nome de Dolabela — Cláudio Nero olhou de relance para o silencioso Dolabela, que evitou o seu olhar —, mas, quanto a mim, tenciono deixar a minha província com a reputação de ter sido um dos seus melhores governadores. Este caso será provavelmente o último que terei de resolver e essa é mais uma razão para que eu não permita uma fraude!
O atraente rosto de Verres pareceu incendiar-se de raiva.
— Quero uma condenação rápida! — exclamou. — Quero que aqueles dois gregos sejam açoitados e degolados! Eles assassinaram um lictor romano no cumprimento do dever! Se permanecerem sem castigo, a autoridade de Roma ficará ainda mais minada, numa província que continua a desejar ser governada pelo rei Mitridates!
Aquele era sem dúvida um bom argumento; no entanto, não foi por isso que Cláudio Nero acabou por ceder. O problema de Cláudio Nero era que não tinha a força de carácter suficiente para resistir a Verres num confronto daqueles. com excepção de Públio Técio e do seu convidado Caio Terêncio Varrão, Verres conseguira atrair as simpatias de toda a colônia romana de Lampsaco, levando-a mesmo a assumir uma posição exacerbada, o que constituía um mau prenúncio para a futura paz da cidade. O quadro transformara-se: tratava-se agora de um confronto entre Romanos e Gregos, com uma vingança pelo meio. Cláudio Nero era pura e simplesmente incapaz de resistir às pressões que exerciam sobre ele.
Entretanto, César conseguira encontrar hospedagem numa pequena estalagem perto do porto. Esta estalagem, que deixava muito a desejar, albergava sobretudo marinheiros: fora a única que o aceitara, pois ele era romano e, como tal, uma criatura odiosa aos olhos dos gregos. Se não estivesse tanto frio, teria de bom grado acampado; se não estivesse determinado a manter a sua independência, teria sem dúvida procurado abrigo na casa de um romano. Portanto, não tinha outra alternativa senão ficar na estalagem do porto. Quando ele e Burgundo foram dar um passeio, fazendo horas para uma ceia que se anunciava horrível, já os arautos da cidade andavam pelas ruas, anunciando que o julgamento de Filodamo e Artemidoro decorreria no dia seguinte, na praça do mercado.
No dia seguinte, César preparou-se para assistir ao julgamento sem qualquer pressa; queria fazer uma entrada em cena absolutamente grandiosa e, por isso, teria de esperar que todas as pessoas se reunissem para o julgamento. E, de facto, quando apareceu na praça do mercado, não deixou de criar alguma sensação — sim, porque ele era um nobre romano, um senador, um herói de guerra, que, além do mais, não estava ligado por qualquer laço de lealdade a nenhum dos participantes romanos. Estes não o reconheceram, tanto mais que César não envergava agora a laena e o apex, mas sim uma toga branca com a larga faixa púrpura de senador no ombro direito da túnica e os sapatos de couro castanhos de senador. Além disso, tinha uma coroa de folhas de carvalho na cabeça, o que obrigou todos os romanos, incluindo os governadores, a levantar-se e a aplaudir a chegada de César.
— Sou Caio Júlio César, sobrinho de Lúcio Cornélia Sila, o Ditador — disse ele, com um ar perfeitamente ingênuo, estendendo a mão direita. — Estou em viagem e acabei de saber do que se passava! Pensei que era melhor aparecer, para o caso de precisares de mim no júri.
Como seria de esperar, o nome suscitou o reconhecimento imediato, mais por causa do cargo de flamen Dialis do que pelo cerco de Mitilene; aqueles homens não estavam em Roma quando Lúculo regressou e por isso não conheciam em pormenor a rendição de Mitilene. Os préstimos de César como eventual membro do júri foram recusados, mas arranjaram-lhe rapidamente uma cadeira para se sentar, pois, para além de ser herói de guerra, era sobrinho do Ditador.
O julgamento começou. Não havia falta de cidadãos romanos para integrarem o júri, pois Dolabela e Cláudio Nero haviam trazido um grande número de oficiais subalternos, para além de toda uma corte de soldados romanos aquartelados em Pérgamo — estes soldados eram fimbrianos, os quais reconheceram imediatamente César, saudando-o com o maior júbilo. Mais uma razão para que nenhum dos governadores ficasse satisfeito com a presença de César.
Embora Verres tivesse organizado a acusação, o papel de advogado de acusação era desempenhado por um residente romano, um usurário que precisava dos lictores de Cláudio Nero para realizar cobranças difíceis — e que sabia que se não aceitasse tal papel os lictores deixavam de apoiá-lo. Todos os lampsacanos gregos se concentraram à volta do perímetro do tribunal, murmurando, lançando olhares furiosos, erguendo de quando em quando um punho cerrado. Apesar disso, nenhum deles se propôs defender Filodamo e Artemidoro que, por isso mesmo, se viram obrigados a ser os seus próprios advogados de defesa num julgamento que obedecia a leis estranhas aos seu povo.
Tudo aquilo era uma fraude, do princípio ao fim, pensou César, com uma expressão que não denunciava os seus pensamentos. Cláudio Nero, o presidente do tribunal, não fez qualquer esforço para dirigir o julgamento; ficou calado todo o tempo e deixou que Verres e Rúbrio presidissem de facto. Dolabela e Verres faziam parte do júri e, a todo o momento, faziam comentários em voz alta favoráveis ao último. Quando os assistentes gregos se aperceberam de que o tribunal não iria dar a Filodamo e Artemidoro o tempo suficiente para se defenderem, começaram a gritar insultos aos romanos; mas havia quinhentos fimbrianos armados na praça, mais do que o suficiente para abafar qualquer tentativa de revolta.
O veredicto, pronunciado ao fim de pouco tempo, não era veredicto nenhum: o júri ordenou a realização de novo julgamento, porque essa era a única forma de a maior parte dos jurados reprovar as arbitrariedades, sem sofrerem as conseqüências da fúria de Verres.
Quando ouviu o veredicto, Verres ficou em pânico. Subitamente, apercebeu-se de que, se Filodamo e Artemidoro não morressem rapidamente, poderiam muito bem levar o caso a Roma, com toda uma cidade revoltada a apoiá-los — e, possivelmente, com um senador romano e herói de guerra testemunhando a seu favor; Verres tinha ficado com a clara impressão de que Caio Júlio César não estava do seu lado. O jovem não revelara os seus pensamentos, fosse por comentários ou por esta ou aquela expressão, mas isso, por si só, já prenunciava oposição. E César era parente de Sila, o Ditador de Roma! Também era possível que Caio Cláudio Nero recuperasse a sua coragem, caso Verres fosse julgado num tribunal romano dentro de Roma; as alegações que Verres pudesse apresentar então sobre o comportamento pessoal de Cláudio Nero seriam entendidas com uma mera campanha para denegrir uma importante testemunha.
Os pensamentos de Cláudio Nero não andavam muito longe dos de Verres — isso tornou-se notório quando ele anunciou que o novo julgamento decorreria no Verão seguinte, ou seja, numa altura em que haveria já um novo governador na Província da Ásia — e um novo governador na Cilícia. Apesar da morte de um lictor romano, Filodamo e Artemidoro tinham, de repente, uma excelente oportunidade para permanecerem livres. E se permanecessem livres, iriam a Roma e acusariam Caio Verres. Isso tornou-se claro quando Filodamo se dirigiu ao júri.
— Nós, os socii — disse ele —, sabemos que nos encontramos sob a custódia de Roma e que temos de responder pelos nossos actos perante o governador, os seus legados e oficiais, e, através dele, perante o Senado e o Povo de Roma. Compreendemos que, se não nos sujeitarmos às normas romanas, haverá certamente represálias e muitos de nós sofrerão. Mas que havemos nós, súbditos estrangeiros de Roma, de fazer, quando Roma permite que um homem que não é mais do que um assistente de um governador cobice as nossas filhas e tente seqüestrá-las para satisfazer os seus perversos desígnios? Eu e o meu filho não fizemos mais do que defender a minha filha e a sua irmã de um indivíduo grosseiro e cruel! Nenhum de nós tencionava matar fosse quem fosse e não foram mãos gregas que desferiram o primeiro golpe. Eu fui queimado com água a ferver na minha própria casa, quando tentava impedir os companheiros de Caio Verres de me arrancarem a minha filha para a violentarem e desonrarem. Se o meu filho e os seus amigos não tivessem chegado entretanto, podem ter a certeza de que a minha filha teria sido violentada e desonrada. Caio Verres não se comportou como um elemento civilizado de um povo civilizado. Comportou-se como o bárbaro que realmente é.
O veredicto prevendo um novo julgamento, pronunciado por um júri totalmente romano, o qual, para mais, fora pressionado por Dolabela e Verres para que optasse pela condenação, encorajou a multidão grega a manifestar-se: e foi sob vaias, assobios e gestos irados, que Cláudio Nero e o seu tribunal abandonaram, a toda a pressa, a praça do mercado.
— Vais marcar o novo julgamento para amanhã — disse Verres a Cláudio Nero.
— Para o próximo Verão — retorquiu Cláudio Nero sem muito vigor.
— Não se quiseres ser cônsul, meu amigo — disse Verres. — Deitar-te-ei abaixo com o maior prazer: não duvides disso! A sorte que te espera é a mesma de Dolabela. Faz o que te digo ou então prepara-te para enfrentar as conseqüências. Se Filodamo e Artemidoro me acusarem em Roma, ver-me-ei obrigado a acusar-vos, a ti e a Dolabela, muito antes de os gregos lá chegarem. Farei com que ambos sejam condenados por extorsão. O que significa que nenhum de vós poderá testemunhar contra mim.
O novo julgamento realizou-se no dia seguinte. Verres não dormiu: acompanhado de Dolabela, passou essa noite a subornar os membros do júri mais facilmente subornáveis e a ameaçar os mais resistentes ao dinheiro.
E foi o trabalho realizado nessa noite que fez pender a balança. Por uma pequena maioria, o júri considerou Filodamo e Artemidoro culpados do assassínio de um lictor romano. Cláudio Nero ordenou a sua imediata execução. Mantida à distância pela corte de fimbrianos, a multidão grega assistiu impotente à execução da pena. Os condenados foram despidos e açoitados. O velho estava já inconsciente quando lhe cortaram a cabeça. Mas Artemidoro manteve todas as suas faculdades até ao fim; chorava, não pela sua triste sorte ou pela do pai, mas pelo destino que aguardava a sua pobre irmã.
Terminada a execução, César embrenhou-se sem medo pela densa multidão de lampsacanos, todos eles em pranto e mais do que revoltados. Nenhum outro romano se aproximou deles; escoltados por fimbrianos, Cláudio Nero e Dolabela encaminhavam-se já para o porto. Mas César tinha uma ideia em mente. Não demorou muito tempo a perceber quais eram os homens verdadeiramente influentes no meio daquela multidão. E foi com esses homens que ele falou.
— Lampsaco não é suficientemente grande para lançar um motim — disse-lhes ele. — No entanto, a vingança é possível. Não julguem todos os Romanos por esta lamentável amostra e contenham a vossa revolta. Dou-vos a minha palavra de honra de que, logo que regresse a Roma, levarei o governador Dolabela a tribunal e farei com que Verres nunca seja eleito pretor. Não o farei para acumular prendas ou honras, mas unicamente para minha satisfação pessoal.
Depois, dirigiu-se à casa de lanitor, pois queria falar com Caio Verres antes que ele deixasse Lampsaco.
— Ora aqui está ele, o herói de guerra! — exclamou alegremente Verres quando César entrou.
Verres estava já a preparar as coisas para se ir embora.
— Estás a pensar ficar com a rapariga? — perguntou César, sentando-se confortavelmente numa cadeira.
— Naturalmente — disse Verres, anuindo para um escravo que lhe mostrava uma estatueta. — Sim, essa é boa. Podes encaixotá-la. — A sua atenção concentrou-se em César. — Estás ansioso por conhecer a causa de toda esta confusão, não é verdade?
— Estou cheio de curiosidade. Ela deve ser mais bela que Helena.
— É o que parece.
— Será loura? Sempre achei que Helena deve ter sido loura.
O cabelo louro é o melhor.
Verres olhou para a cabeleira loura de César com um ar apreciativo e passou com a mão pelo cabelo.
— E nós que o digamos!
— Para onde tencionas ir, depois de Lampsaco, Caio Verres? As sobrancelhas fulvas ergueram-se.
— Para Nicomédia, é claro.
— Não te aconselho — disse César, mantendo um tom afável.
— Ah sim? Porquê? — perguntou Verres, falsamente despreocupado.
César baixou por um momento os olhos, pondo-se a examinar as unhas.
— Dolabela vai sofrer um rude golpe logo que eu regresse a Roma, o que acontecerá na Primavera deste ano ou do próximo. Eu próprio o acusarei. E também te acusarei a ti. A menos que regresses à Cilícia imediatamente.
Os olhos azuis de César ergueram-se; os olhos cor de mel de Verres fixaram-nos. Por um longo momento, nenhum dos homens
se mexeu.
— Já sei quem é que tu me fazes lembrar: Sila! — disse por fim Verres.
— Ah sim?
— É por causa dos olhos. Não são tão aguados como os de Sila, mas vocês têm o mesmo olhar. Será que vais tão longe como Sila?
— Isso está nas mãos dos deuses. Mas espero que ninguém me force a ir tão longe como Sila.
Verres encolheu os ombros.
— Pois muito bem, César, eu não sou nenhum Caio Mário, por isso não sou eu quem te vai forçar.
— É evidente que não és nenhum Caio Mário — concordou César, calmamente. — Caio Mário foi um grande homem, antes de a sua mente ceder. Mas... já decidiste para onde vais, depois de Lampsaco?
—vou para a Cilícia, com Dolabela — retorquiu Verres, encolhendo uma vez mais os ombros.
— Ora aí está uma decisão inteligente! Queres que mande alguém ao porto para informar Dolabela? Detestaria vê-lo embarcar, deixando-te para trás.
— Se é esse o teu desejo — disse Verres, num tom indiferente. César foi então dizer a Burgundo que fosse ter com Dolabela
e lhe comunicasse a novidade. Ao regressar à sala, deu de caras com lanitor; ao lado do etnarca-chefe da cidade, encontrava-se uma mulher, ou melhor, uma forma vaga de mulher, já que a cobriam pesadas vestes.
— Então esta é que é Estratonice? — perguntou Verres, impaciente.
lanitor limpou as lágrimas e respondeu.
— Sim, é ela.
— Deixa-nos a sós com ela, grego, lanitor desapareceu nesse mesmo instante.
— Queres que a dispa, enquanto tu ficas a uma distância razoável para te aperceberes de todos os seus atributos de um só relance? — perguntou César.
— Prefiro ser eu a fazê-lo — retorquiu Verres, aproximando-se da rapariga; ela não emitira até então o mínimo som, nem esboçara qualquer tentativa de fuga.
O capuz da pesada capa da jovem caía-lhe sobre o rosto, tapando-o quase por completo. Como um Mirão ansioso por ver os resultados da moldagem de um bronze, Verres fez cair a capa com uma mão trêmula. E ficou a olhar, a olhar, a olhar.
Foi César que quebrou o silêncio; desatou a rir, e riu tanto que até chorou.
— Eu estava a adivinhar! — disse ele quando pôde, procurando um lenço.
O corpo da pobre Estratonice era rigorosamente disforme. Os seus olhos eram estreitas fendas, o nariz arrebitado parecia dominar o rosto, o crânio, achatado atrás, era semicalvo, povoado de uma esparsa cabeleira arruivada, as orelhas eram minúsculas e, para cúmulo, tinha um lábio leporino.
Vermelho de raiva, Verres deu meia-volta e desapareceu.
— Não percas o teu navio — gritou-lhe César. — Não quero ser eu a espalhar este desfecho por toda a cidade de Roma!
Logo que Verres abandonou a casa, César adoptou uma atitude mais sóbria. Aproximou-se da muda e imóvel criatura, pegou na capa e, ternamente, vestiu-lha.
— Não te preocupes, minha pobre menina — disse ele, sem saber ao certo se ela não seria, por acaso, surda. — Estás em segurança. — Chamou então por lanitor, que não tardou. — Sabias disto, não é verdade, etnarca?
— Sabia, sim.
— Nesse caso, porque é que não contaste a verdade, se sabias que o pai e o irmão nunca o fariam? Afinal, morreram para nada!
— Eles morreram porque acharam que a morte era a única alternativa — retorquiu lanitor.
— E que vai acontecer a esta pobre criatura?
— Alguém há-de tratar dela.
— Em Lampsaco, quantas pessoas sabiam disto?
— Apenas os anciãos.
Incapaz de encontrar argumentos para contestar uma posição tão inflexível, César deixou a casa de lanitor e partiu para Nicomédia.
Caio Verres seguiu a toda a pressa para o porto, abalado ainda por tão tremendo choque. Como é que aqueles gregos estúpidos tinham ousado pregar-lhe uma partida daquelas? Tinham escondido a rapariga como se ela fosse uma Helena de Tróia, quando afinal não passava de uma Górgona.
Dolabela não ficou nada contente quando percebeu que teria de demorar a sua partida por causa dos muitos caixotes e baús que Verres trazia; Cláudio Nero já tinha partido e, com ele, os fimbrianos.
— Quin taces! — rosnou Verres, quando o seu superior lhe perguntou onde estava a bela Estratonice. — Deixei-a em Lampsaco. Ela e a cidade estão bem uma para a outra.
Dolabela sentia já os efeitos de um longo período sem as estimulantes orgias em que se viciara; Verres não teve dificuldade em voltar às boas graças do seu superior e passou a viagem de Lampsaco a Pérgamo a fazer planos. Faria com que Dolabela regressasse ao seu estado habitual e passaria o resto da sua comissão em Tarso gastando o estipêndio que lhe fora concedido em Roma. com que então César pensava que ia pôr o governador da Cilícia em tribunal! Pois estava muito enganado! Verres chegaria primeiro! Logo que Dolabela regressasse a Roma, Verres contrataria um advogado de acusação prestigiado e, graças ao seu testemunho, Dolabela seria condenado ao exílio para toda a vida. E não haveria ninguém para contestar os livros de contabilidade que Verres tencionava apresentar ao Tesouro. Pena que não tivesse conseguido chegar à Bitínia e à Trácia, mas, de qualquer modo, não se tinha saído nada mal.
— Ao que parece — disse ele para Dolabela, mal deixaram Pérgamo —, Mileto possui a melhor lã do mundo, para além de tapetes e tapeçarias de uma qualidade rara. Paremos em Mileto, Dolabela. Pode ser que leve alguma coisa.
— O que me custa a perceber é o facto de aqueles dois socii terem morrido rigorosamente para nada — disse César a Nicomedes e Oradaltis. — Porquê? Por que razão não mostraram a rapariga a Verres? Se o tivessem feito, não haveria problemas! Por que raio é que transformaram aquilo que poderia ter sido uma comédia, para mais com Verres no papel de bufão, numa tragédia digna de um Socles?
— Foi o orgulho que os moveu — retorquiu Oradaltis, com lágrimas nos olhos. — E talvez também a honra.
— Ainda seria compreensível se a rapariga tivesse nascido perfeita. Mas eles sabiam que ela era assim de nascença. Por que não a mostraram? Ninguém os teria condenado por isso.
— César, a única pessoa que podia ter-te esclarecido morreu na praça do mercado de Lampsaco — disse Nicomedes. — Deve ter havido uma boa razão, pelo menos na mente de Filodamo. Um voto feito a algum deus, uma esposa e mãe decidida a guardar para si a filha, um sofrimento auto-infligido... sabe-se lá! Se soubéssemos todas as respostas, a vida não teria mistérios. Nem tragédias.
— Eu podia ter chorado quando a vi. Em vez disso, desatei a rir que nem um louco. Ela não perceberia o meu riso, mas Verres percebia. Por isso ri. Ele há-de ouvir o meu riso na sua cabeça durante anos e, sempre que o ouvir, há-de ter medo de mim.
— Estou surpreendido por ele não nos ter visitado — disse o rei.
— Não vos visitará — disse César, com alguma satisfação. — Caio Verres pegou nas suas coisas e voltou a correr para a Cilícia.
— Porquê?
— Pedi-lhe que o fizesse.
O rei resolveu não esmiuçar esta questão. Em vez disso, comentou:
— Gostavas de ter impedido a tragédia, não é verdade?
— Claro. É desesperante vermos uns quantos idiotas cometendo crimes em nome de Roma e não podermos fazer nada. Mas uma coisa te juro, Nicomedes: quando tiver a idade e a autoridade necessárias, não permitirei que tais coisas aconteçam!
— Não precisas de jurar. Eu acredito.
Esta conversa sobre os acontecimentos de Lampsaco decorreu antes que César pudesse subir aos seus aposentos, para se refazer dos estragos da jornada, invulgarmente penosos. Nas três noites que passara na estalagem do porto, acordara com uma prostituta nua ao seu lado; e o traidor que vivia dentro do seu corpo mostrara tão pouco discernimento que, libertando-se, por via do sono, do controlo da mente, acabara por desfrutar intensamente aqueles momentos. O resultado final desse descontrolo fora uma infestação de piolhos púbicos. A descoberta do enxame dessas minúsculas criaturas provocara em César tão grande horror e nojo que, desde então, deixara de ingerir comida; e só um grande melindre quanto aos efeitos que certas substâncias poderiam ter nas suas partes genitais o impedira de usar tudo o que lhe ofereceram para matar os bichos. E tão resistentes eram os piolhos que tinham sobrevivido a vários mergulhos em todos os cursos de água que César encontrara entre Lampsaco e Nicomédia. Enquanto conversava com o rei, César não conseguia estar quieto um segundo, pois sentia as horrendas criaturas em todas as partes do corpo onde tinha pêlos.
Até que, já desesperado, César levantou-se de um ápice.
— Desculpa, Nicomedes, mas tenho de me ver livre de uns visitantes indesejáveis — disse ele, tentando um tom ligeiro.
— Chatos? — perguntou o rei, a quem não escapava nada, e que agora podia falar à vontade pois a rainha já se tinha retirado.
— Estou fora de mim! Malditos bichos! Nicomedes acompanhou-o aos seus aposentos.
— Só há realmente um processo para evitar essa bicharada quando viajamos — disse o rei. — É doloroso, especialmente da primeira vez, mas garanto-te que resulta.
— Que processo é esse? Farei tudo o que for preciso! Nem que tenha de andar em cima de brasas! — exclamou César.
— Aviso-te, porém, de que certos homens da tua muito peculiar sociedade te acusarão de efeminado — comentou Nicomedes, com alguma maldade.
— Tudo é preferível a ter de suportar estas pestes. Diz-me que processo é esse!
— O processo é arrancar-te todos os pêlos do corpo. Debaixo dos braços e nas virilhas e também no peito, se tiveres pêlos no peito. Se quiseres, mando-te o homem que trata de mim e de Oradaltis.
— Manda-o imediatamente! — César passou com a mão pelo cabelo. — E o meu cabelo, também tem de ser rapado?
— Também tens bichos desses no cabelo?
— Não me parece, mas sinto comichão por todo o lado.
— Os visitantes do cabelo são diferentes dos outros. Nunca pensei que os pudesses apanhar, pela simples razão de que és muito alto. Os piolhos do cabelo não conseguem subir, por isso as pessoas que os apanham têm sempre a mesma altura ou menos altura que o anfitrião original dos mesmos. — Nicomedes desatou a rir. — Podias apanhá-los se dormisses com o Burgundo, por exemplo! A menos que tu e as tuas rameiras de Lampsaco tenham dormido com as cabeças coladas.
— As rameiras de Lampsaco atacaram-me enquanto dormia, mas garanto-te que não tiveram sossego desde o momento em que acordei!
Uma conversa extraordinária, sem dúvida, mas César ainda viria a agradecer aos deuses muitas vezes por ter tido essa conversa. Se arrancar os pêlos era a medida necessária para afastar as horrendas criaturas, então arrancá-los-ia sempre que necessário!
O escravo que Nicomedes lhe mandou era um especialista na matéria; em circunstâncias diferentes, César ter-lhe-ia proibido tão íntima tarefa, pois o homem não podia ser mais efeminado.
Porém, era tão grande o seu sofrimento que estava ansioso por se submeter às sábias mãos do escravo.
— Hoje, tiro apenas uns quantos. É melhor repartir a depilação por vários dias — ceceou Demétrio.
— Não, não! Vais tirá-los todos hoje! — retorquiu César. — Afoguei todos os que pude no banho, mas suponho que deixaram ovos. Deve ser por isso que não consegui libertar-me desta bicharada toda!
Estupefacto, Demétrio protestou:
— Mas isso não é possível! É extremamente doloroso!
— Os pêlos todos! — replicou César.
E Demétrio obedeceu. César, aparentemente, não sofria. Para além de ser muito corajoso, tinha uma forte autodisciplina; preferia morrer a mostrar o mínimo sinal que fosse de sofrimento. E quando a provação acabou e as dores se esbateram, sentiu-se extremamente bem. E gostava de ver o seu corpo sem pêlos no enorme espelho de prata que Nicomedes tinha colocado nos seus aposentos. Um corpo macio, suave, livre. Incrivelmente nu. E, fosse lá pelo que fosse, ainda mais masculino. Que estranho!
Sentindo-se como um escravo que acabava de ser liberto, dirigiu-se nessa noite para a sala de jantar desfrutando do seu novo prazer, um prazer tão intenso que lhe iluminava ainda mais o rosto e os olhos; o rei Nicomedes olhou para ele deslumbrado. César respondeu-lhe com uma piscadela de olho.
Durante dezasseis meses, César permaneceu na Bitínia ou viajou pelos territórios próximos, num idílio que recordaria como o mais belo período da sua vida, pelo menos até aos seus 53 anos, altura em que viveu um período ainda mais maravilhoso. Visitou Tróia, a fim de prestar homenagem ao seu antepassado Eneias, deslocou-se a Pessinunte várias vezes, tal como a Bizâncio e a muitos outros sítios; só não foi a Pérgamo e a Tarso, onde Cláudio Nero e Dolabela permaneciam, afinal, por mais um ano.
Para além do seu relacionamento com Nicomedes e Oradaltis, que sempre se revelou extremamente gratificante para ele, a principal alegria desse período decorreu da visita que fez a um homem de que mal se lembrava: Públio Rutílio Rufo, seu tio-avô do lado materno.
Nascido no mesmo ano que Caio Mário, Rutílio Rufo tinha agora 79 anos e há muito tempo que vivia, em honroso exílio, na cidade de Esmirna. Continuava tão activo como um homem de 50 anos e tão jovial como um rapaz, perspicaz e acutilante como sempre e com um sentido de humor tão desenvolvido como o do seu amigo e colega Marco Emílio Escauro Princeps Senatus.
— Sobrevivi a toda essa gente — disse Rutílio Rufo com genuína satisfação, depois de os seus olhos e a sua mente terem aprovado o aspecto do seu belo sobrinho-neto.
— Isso não te deprime, tio?
— Porque haveria de deprimir-me? Bem pelo contrário: alegra-me! Sila continua a escrever-me, pedindo-me que regresse a Roma. E todos os governadores e oficiais que ele manda para estas paragens aparecem-me cá em casa a transmitir-me esse mesmo pedido.
— Mas o tio não vai.
— Não, nãovou. Gosto da minha chlamys e das minhas sandálias gregas como nunca gostei da minha toga. Além disso, sou muito mais considerado em Esmirna do que alguma vez fui em Roma. Roma é uma cidade ingrata e selvagem, meu jovem César — ah, és tão parecido com Aurélia! Como está ela? A minha pérola do oceano encontrada nos lodaçais de Óstia... Era assim que eu lhe chamava! Está viúva, não é? Que pena! Sabes, fui eu que arranjei o casamento dos teus futuros pais. E embora tu provavelmente não saibas, fui eu quem se lembrou de Marco António Gnifão para ser teu pedagogo. Tu ainda eras um bebê, mal tinhas deixado os cueiros. Já nessa altura te consideravam um prodígio. E agora eis-te aqui, com vinte e um anos, senador por duas vezes e o mais afamado herói de guerra de Sila! Muito bem!
— Faltaria à verdade, se aceitasse o epíteto do mais afamado herói de guerra de Sila — retorquiu César, sorridente.
— Mas és! Eu sei que és! Eu posso estar em Esmirna, mas sei de tudo. Sila escreve-me. Sempre me escreveu. E quando estava a tratar dos problemas da Província da Ásia, visitava-me freqüentemente — fui eu que lhe dei o modelo para a reorganização que ele lançou. Baseado no programa que Escauro e eu aplicámos já lá vão muitos anos. É triste que Sila esteja doente. Mas, pelos vistos, a doença não o impediu de tratar da saúde a Roma!
Rutílio Rufo manteve aquela mesma veia durante muitos dias, saltando de assunto em assunto, com a leveza de um coração bondoso e o interesse de um mexeriqueiro nato, tal e qual um velho mas ágil pássaro a quem os anos não tinham retirado a plumagem nem a capacidade de voar a grande altura. Se tinha um tema favorito, esse era Aurélia; César contou-lhe peripécias da vida da mãe que ele não conhecia, com um amor que era notório e um estilo gracioso; em contrapartida, ficou a saber muitas coisas que desconhecia acerca da mãe. Contudo, Rutílio Rufo pouco falou da relação de Aurélia com Sila, sobretudo porque recusava toda e qualquer especulação; mas provocou as gargalhadas de César, quando lhe contou a confusão que nascera a propósito de qual das suas sobrinhas daria à luz um bebê ruivo de um pai ruivo.
— Caio Mário e Júlia estavam convencidos de que seriam Aurélia e Sila, mas afinal foram Lívia Drusa e Marco Catão.
— Ah, sim, agora me lembro, a tua mulher era uma Lívia!
— E a mais velha das minhas duas filhas casou com Cepião, o Cônsul, aquele que roubou o ouro de Tolosa. Portanto, meu jovem, tu ainda és parente dos Servílios Cepiões.
— Francamente! Não sei nada sobre a minha família!
— Por muito sangue dos Rutílios que tenha, olha que é uma gente muito, muito chata! Ah, mas agora conta-me a história do flaminato que Caio Mário te impôs.
César, que tencionava ficar em Esmirna apenas uns dias, acabou por ficar dois meses; eram tantas as coisas que Rutílio Rufo queria saber e tantas as coisas que queria contar, que não haveria tempo que chegasse para todas as suas conversas. Foi com lágrimas nos olhos que César se despediu do velho tio-avô.
— Nunca te esquecerei, tio Públio.
— Volta cá um dia, César! E escreve-me, não te esqueças. De todos os prazeres que a vida ainda me pode dar, nenhum poderá igualar uma correspondência frutuosa e agradável com um homem tão letrado como tu.
Mas todos os idílios têm um fim e o idílio de César encontrou o seu fim quando recebeu uma carta de Tarso, em Abril do ano em que Sila morreu; encontrava-se então em Nicomédia.
— Públio Servílio Vátia, que foi cônsul o ano passado, é o novo governador da Cilícia — disse César ao rei e à rainha. — E quer que eu seja o seu legado júnior. Parece que Sila recomendou pessoalmente o meu nome.
— Isso não significa que tenhas de ir — disse Oradaltis sem perder tempo.
César sorriu
— Nenhum romano tem de fazer seja o que for, e isso aplica-se desde os pontos mais altos aos pontos mais baixos da pirâmide social. O serviço é voluntário, seja em que instituição for. Mas há certos argumentos que tendem a influenciar as nossas decisões, ainda que o serviço seja sempre voluntário, pelo menos teoricamente. Se eu quiser seguir uma carreira pública, teria de servir em dez campanhas ou então durante seis anos seguidos. E eu não quero que me acusem de tentar escapar àquelas leis que não estão escritas!
— Mas tu já és senador!
— Sou senador unicamente por causa da minha carreira militar. E isto, por sua vez, significa que terei de continuar a minha carreira militar.
— Então tens mesmo de ir-te embora — disse o rei.
— Imediatamente.
—vou arranjar-te um navio.
— Não. Euvou por terra, pelas Portas Cilicianas.
— Nesse caso, vais levar uma carta de apresentação minha dirigida, ao rei Ariobarzanes da Capadócia.
Um rebuliço tomou conta do palácio, por causa dos preparativos da viagem de César; entretanto, o cão não fazia outra coisa senão chorar — o pobre Sila sabia o que aquela azáfama significava.
E, uma vez mais, César teve de prometer que voltava. Os seus dois velhos amigos não o largaram enquanto não o ouviram formular tal promessa; e, por fim, deixaram-no completamente desarmado, oferecendo-lhe Demétrio, o depilador.
Contudo, antes de partir, César tentou de novo convencer o rei Nicomedes de que, depois da sua morte, o melhor destino para a Bitínia seria tornar-se uma província romana.
—vou pensar nisso — retorquiu Nicomedes, e não passou disso.
César nutria poucas esperanças de que o velho rei decidisse a favor de Roma; os acontecimentos de Lampsaco estavam ainda demasiado frescos nas mentes não romanas — e quem poderia censurar o rei por ele não querer deixar o seu reino a gente como Caio Verres?
Eutico regressou entretanto para Roma e para Aurélia; César viajava com cinco criados (incluindo Demétrio, o depilador) e com Burgundo, e, como sempre, raramente parava para descansar. Atravessou o rio Sangário e seguiu na direcção de Ancira, a maior cidade da Galácia. Conheceu aí um homem muito interessante, um tal Deiotaro, chefe dos Tolistobógios, um dos povos da Galácia.
— Nós agora somos um povo muito jovem — disse Deiotaro. — Há vinte anos, o rei Mitridates assassinou toda a nobreza galaciana. O nosso povo ficou sem chefes. Na maior parte dos países, isso teria provocado a desintegração do povo, mas nós, os Galacianos, sempre preferimos uma confederação informal a uma união rigorosa. Por isso sobrevivemos até que os filhos dos antigos chefes cresceram.
— Mitridates não voltará a apanhar-vos — disse César, que achava aquele gaulês tão manhoso quanto inteligente.
— Pelo menos enquanto eu for chefe do meu povo — disse Deiotaro, com um ar grave. — Eu, pelo menos, tive a vantagem de passar três anos em Roma. Por isso sou mais sofisticado que o meu pai — que morreu no massacre.
— Mitridates voltará a tentar.
— Não duvido.
— E não te sentirás tentado a atacá-lo?
— Nunca! Ele ainda é um homem vigoroso, com muitos anos à sua frente! O seu problema é que parece incapaz de perceber aquilo que eu já percebi há muito tempo — que Roma acabará sempre por vencer. Eu prefiro manter uma posição de amigo e aliado de Roma.
— Aí está uma decisão sensata, Deiotaro.
César seguiu então na direcção do rio Hális, avançando junto ao seu preguiçoso curso até que o monte Argeo dominou os céus; daí a Eusebeia Mazaca eram apenas sessenta e poucos quilômetros, ao longo da bacia do Hális.
É claro que César se lembrava das muitas histórias que Caio Mário lhe contara acerca daquele país, da cidade de cores muito vivas situada no sopé do gigantesco vulcão extinto, do palácio muito azul onde ele se encontrara com Mitridates. Mas, agora, Mitridates não saía de Sinope e o rei Ariobarzanes encontrava-se razoavelmente instalado no trono da Capadócia.
Razoavelmente ou nem tanto, pensou César depois de se ter encontrado com o rei. Por uma razão que desconhecia, os reis da Capadócia tinham sido sempre fracos, ao contrário do que sucedia com os reis do Ponto. E Ariobarzanes não era excepção à regra. Era evidente que estava ainda aterrado com Mitridates e não deixou de salientar que o Ponto tinha levado todos os tesouros do palácio e da capital. Nem os pregos de ouro das portas do palácio tinham escapado à voracidade de Mitridates.
— Mas é evidente — disse César ao tímido rei, um homem de baixa estatura e com um ar vagamente sírio — que a perda de duzentos mil soldados no Cáucaso obrigará Mitridates a manter-se quieto durante muitos anos. Não há general que resista a uma perda tão grande — tanto mais que se tratava de veteranos de uma boa campanha.
— Sim, eram bons veteranos. Tinham lutado pela conquista da Ciméria e das terras a norte do mar Euxino, no Verão anterior.
— E com êxito, segundo me disseram.
— Sem dúvida. O filho de Mitridates, Macares, ficou em Panticapeo, como sátrapa. Uma boa escolha. Creio que a sua principal Tarefa consiste em recrutar um novo exército para o pai.
— Que prefere soldados cítios e roxolanianos.
— São muito melhores que mercenários. O Ponto e a Capadócia têm um problema: os seus povos nativos não são bons militares. Eu continuo a ter de recorrer a mercenários sírios e judeus, mas Mitridates tem, desde há trinta anos, hordas de guerreiros bárbaros à sua disposição.
— Não tens nenhum exército actualmente, rei Ariobarzanes?
— Actualmente não preciso de um exército.
— E se Mitridates avança sem avisar?
— Nesse caso, terei de deixar uma vez mais o meu trono. A Capadócia, Caio Júlio, é muito pobre. Demasiado pobre para se dar ao luxo de manter um exército regular.
— Tens um outro inimigo. O rei Tigranes. Ariobarzanes fez um esgar de infelicidade.
— Nem me lembres desse nome! Os seus êxitos na Síria roubaram-me os meus melhores soldados. Os judeus voltaram todos para o seu país a fim de o defenderem.
— Nesse caso, não achas que seria melhor vigiar pelo menos o Eufrates e o Hális?
— Não temos dinheiro — retorquiu o rei, obstinado. Quando se fez à estrada, César ainda ia a abanar a cabeça.
Que podia ele fazer quando um soberano se considerava derrotado antes mesmo de a guerra começar? Depressa se apercebeu de que o país possuía muitas vantagens naturais, que permitiriam ao rei Ariobarzanes precipitar-se de surpresa sobre eventuais invasores: de facto, aquela era uma região que parecia ser constituída unicamente por picos altíssimos ou bizarros desfiladeiros, tal como Caio Mário lhe contara. Eram locais maravilhosos, tanto do ponto de vista militar como do ponto de vista estético; no entanto, para o rei, o interesse daquelas montanhas residia apenas no facto de fornecerem casas baratas e prontas a habitar aos seus trogloditas.
— Quais são as tuas impressões, agora que já viste tanto mundo? — perguntou César a Burgundo, enquanto se embrenhavam nas profundezas das Portas Cilicianas, entre pinheiros imensos e ruidosas cascatas.
— O que eu penso é que Roma e Bovilas, Cardixa e os meus filhos, são mais grandiosos do que todas as cascatas ou montanhas — retorquiu Burgundo.
— Preferias ir para casa, meu velho amigo? Se quiseres, mando-te para casa — disse César.
Mas Burgundo abanou a cabeleira loura.
— Não, César, eu quero ficar — pôs um sorriso largo, e acrescentou: — Cardixa matava-me se te acontecesse alguma coisa.
— Mas não me vai acontecer nada, Burgundo!
— Então experimenta dizer-lhe isso a ela.
Quando César chegou a Tarso, antes de fins de Abril, Públio Servílio Vátia estava já tão confortavelmente instalado no palácio que parecia ter vivido ali toda a sua vida.
— Estamos muito contentes por ter sido ele o escolhido — disse Morsimo, capitão da guarda do governador da Cilícia e um dos etnarcas de Tarso.
com o cabelo já grisalho (tinham passado vinte anos desde que acompanhara Caio Mário à Capadócia), Morsimo fora apresentar as boas vindas a César. Sentia mais lealdade em relação àquele jovem do que em relação a qualquer governador romano; é que César era sobrinho dos seus dois heróis, Caio Mário e Lúcio Cornélio Sila: faria tudo o que fosse possível para ajudar o jovem.
— Parece que a Cilícia sofreu imenso sob o governo de Dolabela e Verres — disse César.
— Foi um horror. Dolabela estava quase sempre drogado e Verres fazia o que muito bem lhe apetecia.
— Não fizeram nada para expulsar Tigranes da Pedia Oriental?
— Nada de nada. Verres estava demasiado ocupado com as suas actividades de usura e extorsão. Isto para não falar das pilhagens de que os templos foram alvo.
— Processarei Dolabela e Verres logo que regresse a Roma. Por isso, precisarei da tua ajuda para reunir provas.
— Dolabela, quando tu regressares a Roma, já deverá estar no exílio — disse Morsimo. — Chegaram notícias de Roma segundo as quais o filho de Marco Emílio Escauro e de Dalmática já processou Dolabela e que Caio Verres está a cobrir-se de glória, fornecendo ao jovem Escauro todas as provas de que este precisa. Mas soubemos mais: o próprio Verres vai testemunhar no tribunal!
— Manhoso fellator! Isso significa que eu não conseguirei fazer nada contra ele. No fundo, pouco importa quem processa Dolabela — o que é preciso é que ele apanhe o justo castigo. Se lamento não ser eu a processá-lo, é porque o meu cargo de sacerdote atrasou a minha vida e fez-me chegar demasiado tarde aos tribunais e porque uma vitória contra Dolabela e Verres tornar-me-ia famoso. — Fez uma pausa, e acrescentou: — Vátia vai combater o rei Tigranes?
— Duvido, César. Ele está cá especificamente para eliminar os piratas.
Uma informação que o próprio Vátia se encarregou de confirmar quando César conseguiu uma entrevista com ele. Contemporâneo exacto de Metelo Pio, o Bacorinho (o qual, além do mais, era seu primo direito), Vátia tinha agora 50 anos. Nove anos antes, Sila quisera que Vátia fosse cônsul com Cneu Octávio Rusão, mas Cina derrotara-o nessa eleição, e Vátia, tal como Metelo Pio, tivera de esperar vários anos pelo consulado a que, por nascimento, tinha direita. O prêmio para a sua total lealdade a Sila fora o governo da Cilícia; preferira essa província à outra província consular, a Macedónia, a qual, por conseguinte, fora entregue ao seu colega no consulado, Ápio Cláudio Fulcro.
— Mas Fulcro não chegou a pisar solo macedónio — disse Vátia a César. — Adoeceu em Tarento e regressou a Roma. Felizmente que isto aconteceu antes de o velho Dolabela ter deixado a Macedónia, onde permanecerá até que Ápio Cláudio melhore.
— Que se passa com Ápio Cláudio?
— Tudo o que sei é que os problemas dele não são de agora. Já não estava bem durante o nosso consulado — por muito que eu tentasse, nunca conseguia pô-lo bem disposto! Mas ficou tão pobre que tinha de aceitar o governo de uma província. Se não chegar a governar a Macedónia, não conseguirá recuperar a sua fortuna.
César pôs um ar intrigado, mas guardou os seus pensamentos para si mesmo. Pensamentos que tinham a ver com as limitações inerentes a um sistema que, na prática, levava um governador de uma província a enveredar pelo crime administrativo: com efeito, a tradição permitia ao governador vender cidadanias, realizar contratos que lhe fossem favoráveis, desviar dinheiros dos tributos e não pagar impostos nem taxas. O Senado e o Tesouro transigiam, oficiosamente, com estas actividades, pois essa era, apesar de tudo, uma maneira de manter os custos pagos por Roma a um nível decente — por isso era tão difícil formar um júri de senadores capaz de condenar um governador por extorsão. O problema é que, se uma província era explorada, o ódio em relação a Roma aumentava e, com esse ódio, vinham promessas de ajustes de contas para um futuro mais ou menos próximo.
— É verdade que vamos combater os piratas, Públio Servílio? — perguntou César.
— É verdade, sim — retorquiu o governador, rodeado por pilhas de papéis; era notório que ele gostava das suas tarefas de escritório, embora não fosse um homem especialmente ganancioso, nem precisasse de aumentar a sua fortuna através da exploração de uma província. Tanto mais que a guerra contra os piratas seria um bom meio de arrecadar legitimamente tesouros que haviam sido conquistados ilegalmente.
— Infelizmente — prosseguiu Vátia — terei de atrasar a minha campanha, por causa dos estragos que as actividades do meu antecessor causaram nesta província. Terei de consagrar este ano todo aos problemas internos.
— Nesse caso, não precisas de mim, pois não? — perguntou César, demasiado jovem para gostar da perspectiva de uma carreira militar passada à secretária.
— Ai isso é que preciso! — retorquiu, enfaticamente, Vátia. — Preciso de ti para me arranjares uma frota.
César sentiu como que um sobressalto.
— bom, já tenho alguma experiência na matéria.
— Eu sei. Foi por isso que pensei em ti. Vai ter de ser uma grande frota, suficientemente grande para poder ser dividida em várias flotilhas, se necessário. Já lá vai o tempo em que os piratas usavam navios pequenos e abertos como os hemioliai, ou os myoparones. Actualmente, possuem trirremes e birremes — até mesmo quinquerremes! — e agrupam-se em frotas, sob o comando de almirantes — strategoi, como lhes chamam. Os seus navios cruzam os mares como quaisquer outros navios, com as bandeiras ornadas a ouro e púrpura. Vivem nos seus esconderijos como reis, servindo-se de bandos de libertos para alcançarem os seus objectivos. Têm arsenais inteiros de armas e dinheiro suficiente para desfrutar de todos os luxos a que um homem rico tem acesso em Roma. Lúcio Cornélio explicou claramente ao Senado por que razão me mandava para uma região tão remota e tão pouco importante como a Cilícia. É aqui que os piratas têm as suas principais bases: portanto, é por aqui que temos de começar.
— Eu poderia descobrir os esconderijos dos piratas. Tenho a certeza de que não seria difícil. Tal como a obtenção de uma frota, aliás.
— Não será necessário, César. Nós já conhecemos a localização das principais bases. Coracésio é famosa — mas tão bem fortificada, graças à natureza e ao número de soldados, que duvido que alguém possa conquistá-la. Por isso, tenciono começar pelas regiões mais remotas do meu território — ou seja, pela Panfília e pela Lícia. Há um pirata chamado Zenicetes que controla todo o golfo da Panfília, incluindo Ataleia. Ele será o primeiro a sentir a ira de Roma.
— No próximo ano? — perguntou César.
— Provavelmente — respondeu Vátia. — Mas nunca antes de fins do Verão, creio. Não posso começar uma guerra contra os piratas, enquanto a Cilícia não voltar ao normal e enquanto eu não tiver a certeza de que possuo uma força naval e militar capaz de derrotar o inimigo.
— Prevês portanto que ocuparás este cargo ainda por vários anos.
— Sim. O Ditador e o Senado garantiram-me que ninguém me pressionará. Terei tantos anos quantos os que se revelarem necessários. Lúcio Cornélio retirou-se já, é claro, mas não acredito que o Senado vá contra os seus desejos.
César lançou-se ao trabalho de reunir uma frota sem grande entusiasmo; teria de esperar mais de um ano pelas acções militares propriamente ditas e, pelo que vira do carácter de Vátia, tinha a certeza de que, quando a guerra viesse, Vátia não mostraria a iniciativa nem a rapidez que a campanha exigia. Apesar de não sentir qualquer simpatia por Lúculo, César não tinha a mínima dúvida de que Vátia era muito inferior ao seu primeiro comandante, tanto em inteligência como em habilidade.
No entanto, aquela era uma oportunidade de fazer mais viagens, e isso sempre constituía uma compensação. A potência naval da ponta oriental do mar Mediterrâneo era Rodes; por isso, seguiu para Rodes em Maio. Era de crer que Rodes, que sempre fora leal a Roma (nove anos antes, desafiara com êxito o rei Mitridates), contribuísse com navios, comandantes e tripulações, mas não com soldados; os Rodenses não abordavam navios inimigos e transformavam sempre os confrontos navais em batalhas idênticas às travadas em terra.
Felizmente, Caio Verres não tivera tempo para visitar Rodes; daí que César tivesse sido muito bem recebido e que os dirigentes da ilha estivessem dispostos a manter conversações. O grande problema destas conversações tinha a ver com o eventual pagamento de Roma. Vátia achava que nenhuma das cidades, ilhas e comunidades aliadas a quem fossem pedidos navios, tinha direito a um pagamento em dinheiro; considerava ele que todos os contribuintes beneficiariam directamente da extinção dos piratas e que, por isso, deveriam associar-se à campanha sem qualquer contrapartida. César, naturalmente, via-se obrigado a negociar dentro dos parâmetros definidos pelo seu superior.
— Experimentem ver as coisas da seguinte maneira — disse ele, tentando convencer os chefes de Rodes. — Um êxito nesta guerra significa despojes riquíssimos, bem como a possibilidade de se verem livres dos ataques dos piratas. Roma não pode pagar-lhes, mas vocês receberão uma parte dos despojes e essa será, sem dúvida, uma boa compensação. Rodes é amiga e aliada do povo romano. Para quê pôr em perigo esse estatuto? Na realidade, só há duas alternativas — participação ou não participação. E vocês têm de decidir entre essas duas alternativas.
Rodes cedeu. César conseguiu os seus navios, que ficaram prometidos para o Verão do ano seguinte.
De Rodes seguiu para Chipre, sem se dar conta de que o navio por que passou e que rumava ao porto de Rodes, transportava uma preciosa carga romana: nem mais nem menos do que Marco Túlio Cícero, farto de um ano de casamento com Terência e das delicadas negociações, que conduziu com êxito em Atenas, quando o seu irmão mais novo, Quinto, se casou com a irmã de Tito Pompónio Ático. Da sua união com Terência acabara de nascer uma menina, Túlia, e por isso Cícero pudera partir de Roma com a certeza de que a mulher estava totalmente ocupada com a criança. Em Rodes, vivia o mais famoso professor de retórica de todo o mundo, Apolónio Mólon, e Cícero pretendia visitar a sua escola. Precisava de férias, precisava de estar longe de Roma, dos tribunais, de Terência e da vida que levava. Tinha problemas de afonia e sabia que Apolónio Mólon defendia que o aparelho vocal e físico de um orador devia ser tão bom como as suas capacidades mentais. Embora odiasse viajar e temesse que a sua ausência de Roma perturbasse a sua carreira jurídica, Cícero ansiava por aquele exílio auto-imposto, longe de amigos e família. Era tempo de descansar.
César é que não podia descansar — e uma pessoa com o seu temperamento dificilmente se sentia atraída pelo repouso. Desembarcou em Pafos, onde residia o regente de Chipre, Ptolemeu, o Cipriota, o irmão mais novo do rei do Egipto, Ptolemeu Auleta. Grande esbanjador de fortunas, o regente passara muito tempo nas cortes de Mitridates e Tigranes; este facto tornou-se particularmente visível na primeira entrevista que César teve com ele. Não só não compreendia nada, como não estava interessado em nada. A sua educação parecia ter sido totalmente negligenciada e, por outro lado, as suas preferências sexuais latentes tinham encontrado total liberdade desde o instante em que terminara a custódia daqueles dois reis — daí que o seu palácio não fosse muito diverso do de Nicomedes. com a diferença de que Ptolemeu, o Cipriota, era um homem de quem dificilmente se podia gostar. Os Alexandrinos tinham-se apercebido claramente de todos os seus defeitos; por isso, embora concordando com a sua nomeação, fizeram-no acompanhar de uma dúzia de eficientes burocratas. Como César descobriu, eram estes homens que realmente governavam Chipre, em nome da potência colonizadora, o Egipto.
Depois de ter evitado engenhosamente as propostas amorosas de Ptolemeu, o Cipriota, César canalizou as suas energias para os burocratas de Alexandria. Não era fácil negociar com tais homens (que, além do mais, detestavam Roma). Não encontravam nada na campanha de Vátia que pudesse interessar a Chipre; e, por outro lado, tinham ficado muito ofendidos por Vátia ter mandado um legado júnior com apenas 21 anos.
— A minha juventude — retorquiu César, altivamente — não vem ao caso. Eu sou um herói de guerra condecorado. Sou senador numa idade em que, pela via normal, não se entra para o Senado. E, finalmente, sou o primeiro assistente militar de Vátia. Devem dar-se por felizes pelo facto de eu ter aceite vir a Chipre!
Os burocratas tomaram nota desta resposta, mas nem por isso se mostraram mais flexíveis. Não era argumentando como um político que César conseguiria convencê-los.
— Chipre também é afectada pela pirataria. Ora, se todos os países que são vítimas das depredações dos piratas se unirem, será fácil eliminar de uma vez por todas essa ameaça! A frota de Públio Servílio Vátia tem de ser suficientemente grande; só assim poderá actuar como uma rede, arrastando os piratas para um local de onde não possam sair vivos. Os despojes serão extremamente significativos e, por outro lado, Chipre poderá finalmente negociar livremente com os outros mercados do mar Mediterrâneo. Como sabem, os piratas da Cilícia e da Panfília impedem actualmente Chipre de fazer comércio com esses mercados.
— Chipre não precisa de fazer comércio com os outros mercados do mar Mediterrâneo — disse o chefe dos Alexandrinos. — Tudo o que Chipre produz pertence ao Egipto e vai para o Egipto. Não toleramos piratas nos mares entre Chipre e Egipto.
César voltou então ao palácio, para uma segunda entrevista com o regente Ptolemeu. Desta feita, porém, a sorte acompanhou-o; o regente estava acompanhado pela mulher, Mitridatidis Nisa. Se César conhecesse o aspecto físico das mulheres da corte do Ponto, teria concluído que aquela jovem era um membro típico da sua casa — alta e larga, cabelo louro, olhos verdes com traços dourados. Era encantadora, mas os seus encantos tinham mais a ver com a voluptuosidade e o colorido de feições e carácter do que com a beleza propriamente dita; fosse como fosse, César sentiu-se imediatamente atraído por ela. Nisa, por seu turno, ficou fascinada com o romano — e não o escondeu. E quando a infrutífera e estúpida entrevista com Ptolemeu, o Cipriota, terminou, Nisa deu o braço ao convidado do marido e acompanhou-o até ao local onde a deusa Afrodite nascera da espuma do mar, para se lançar numa divina sucessão de estragos terrenos.
— Ela é minha antepassada. Uma bisavó é avó duas vezes. Ela é minha bisavó trinta e nove vezes — disse César, encostado à balaustrada de mármore branco que rodeava o local onde a deusa teria nascido.
— Ela, quem? Afrodite? Não pode ser!
— Mas é. Eu descendo dela através do filho, Eneias.
— A sério? — Os olhos ligeiramente protuberantes estudavam o rosto dele, como se procurassem algum sinal daquela impressionante linhagem.
— O mais possível, princesa.
— Nesse caso, pertences ao Amor... — ronronou a filha de Mitridates, tocando com um dedo no braço bronzeado de César.
César foi sensível ao toque, embora não o demonstrasse.
— É a primeira vez que mo dizem, princesa, mas tens toda a razão — disse ele, sorridente, fitando a jóia do horizonte, onde a safira do mar se encontrava com a água-marinha do céu.
— com tal linhagem, só podes pertencer ao Amor!
César virou a cabeça para olhar para ela e os seus olhos ficaram praticamente ao mesmo nível dos dela, pois Nisa era quase tão alta como ele.
— É incrível — disse ele, numa voz terna — que o mar produza muito mais espuma aqui do que em qualquer outro sítio. — Apontou para norte e depois para sul, e acrescentou: — Estás a ver? Para lá dos limites da balaustrada, não há espuma nenhuma!
— Segundo se diz, foi ela que fez com que a espuma ficasse toda aqui.
— Nesse caso, a espuma é a essência de Afrodite — deixou cair a toga e baixou-se para desapertar as sandálias senatoriais. — Logo, tenho de tomar banho na essência dela, princesa.
— Se não fosses um bisneto, ainda que remoto, da deusa, dir-te-ia para teres cuidado — disse a princesa, observando-o.
— Porquê? Há alguma proibição religiosa?
— Não, tomar banho aqui não é propriamente proibido. Digamos antes que é imprudente. A tua longínqua bisavó tem afogado muita gente aqui.
César regressou incólume do seu mergulho para descobrir que Nisa estava deitada, com os olhos fechados, sobre um lençol que improvisara com as suas vestes. Na mão, trazia ainda uma bolha de espuma; baixou-se então para depositar a espuma no suave mamilo de Nisa e desatou a rir quando ela se ergueu, sobressaltada e cheia de frio.
— Foste tocada por Vénus — disse ele, deitando-se ao lado dela, molhado e revigorado pelas carícias daquela misteriosa espuma. Tinha acabado de ser ungido por Vénus, a qual, aliás, tratara de arranjar tudo como convinha, pondo a seu lado aquela mulher soberba, que se oferecia ao seu prazer e que, ainda por cima (para além de ser filha de um grande rei), e como ele pôde verificar quando a penetrou, era virgem. O amor e o poder combinavam-se, naquele amplexo sem par.
— Fui tocada por Vénus — disse ela, espreguiçando-se como um gato.
— Conheces o nome romano de Afrodite — disse o descendente da deusa, radiante de felicidade.
— Roma tem um braço muito longo...
A felicidade de César esbateu-se nesse momento, mas não por causa do que ela dissera — unicamente porque a magia tinha acabado.
César levantou-se, ele que não gostava de ficar deitado a conversar depois de fazer amor.
— Então, Mitridatidis Nisa, poderei contar com a tua influência para me ajudares a arranjar a frota? — perguntou ele, com um risinho cuja causa não iria explicar à princesa.
— És tão bonito! — disse ela, deitada sobre o cotovelo, a cabeça inclinada sobre a mão. — Sem pêlos, como um deus.
— Tal como tu.
— Todas as mulheres da corte se depilam, César.
— E os homens?
— Não! Porque dói!
Ele desatou a rir. com a túnica já vestida, tratou de calçar os sapatos e depois deu início à difícil tarefa de dispor a toga sem ajuda.
— Vamos, mulher, levanta-te! — disse ele, jovialmente. — Precisamos de arranjar uma frota e de convencer o teu marido de que só estivemos a olhar para a espuma do mar.
— Oh, que marido! — disse ela, começando a vestir-se. — Ele liga lá ao que nós fizemos ou deixámos de fazer! Reparaste, com certeza, que eu era virgem!
— Impossível não reparar.
Os olhos verdes dela brilharam muito.
— Se eu não estivesse em condições de te ajudar, nem para mim terias olhado!
— Isso é falso, princesa — retorquiu ele, tranqüilamente. — Em tempos, fui acusado de ter recorrido a um estratagema sexual para obter uma frota, e o que disse nessa altura continua a ser verdade — preferia matar-me com a minha espada a ter de usar truques de mulheres para alcançar os meus fins. Mas tu, minha querida e encantadora princesa, tu és uma prenda da deusa. O que torna tudo muito diferente.
— Não te irritei?
— De modo nenhum. Acho que foi uma reacção sensata da tua parte. Donde te veio essa sensatez? Do teu pai?
— Talvez. É um homem inteligente. Mas também é muito parvo.
— Porquê?
— Porque é incapaz de escutar os conselhos dos outros — retorquiu Nisa, virando-se para o acompanhar até ao palácio. — Estou muito contente por teres vindo a Pafos, César. Já estava farta de ser virgem.
— E por que me escolheste a mim?
— Porque tu descendes de Afrodite. Portanto, és mais do que um mero mortal. Eu sou filha de um rei! Portanto, não posso entregar-me a um homem qualquer, mas apenas a um homem de sangue real e divino.
— Sinto-me muito honrado com a distinção, princesa.
As negociações tendo em vista a obtenção da frota demoraram ainda algum tempo, mas César pouco se importou com isso. Todos os dias ia com Nisa em peregrinação ao local onde Afrodite nascera e todos os dias se banhava na essência da deusa antes de oferecer alguma da sua própria essência à esposa de Ptolemeu, o Cipriota, que assim trocava a tristeza da sua ligação marital pelo prazer do amor com César. Era evidente que os burocratas de Alexandria tinham muito mais respeito por Mitridatidis Nisa do que pelo marido dela — o que talvez tivesse a ver com o facto de o rei Tigranes não se encontrar muito longe dali, precisamente na Síria, do outro lado do mar. O Egipto estava suficientemente longe para se considerar em segurança, mas Chipre era um caso completamente diferente.
César despediu-se da filha de Mitridates com muito afecto e também com muita tristeza, uma tristeza que o perseguiria ainda por muito tempo. Para além do prazer físico que sentira com ela, descobriu que gostava da segurança que ela inconscientemente demonstrava, que apreciava o facto de ela considerar que estava ao mesmo nível de qualquer homem importante, precisamente por ser filha de um grande rei. César sabia que as mulheres romanas não tinham uma imagem tão elevada de si mesmas; as mulheres romanas estavam longe de se imaginar com o mesmo poder que os homens. Por tudo isso, ao deixar Pafos, ofereceu a Mitridatidis Nisa um camafeu representando a deusa, requintadamente executado a partir de uma pedra rara e muito cara. O dinheiro era pouco, mas César não podia deixar de lhe dar uma recordação do seu amor.
Compreendendo tudo isto, Nisa sentia-se extremamente feliz, como confidenciou numa carta à irmã mais velha, Cleópatra Trifena, que se encontrava em Alexandria:
Creio que nunca mais voltarei a vê-lo. Ele é o tipo de homem que só vai a algum lado ou faz alguma coisa por uma excelente razão, e, quando digo razão, quero dizer uma razão masculina. Creio que ele é capaz de me ter amado um pouquinho. Mas isso nunca o faria regressar a Chipre. Nenhuma mulher conseguirá interpor-se entre ele e os seus objectivos.
Nunca tinha conhecido um romano, mas sei que em Alexandria há muitos; por isso, é provável que conheças alguns. Será que ele é diferente por ser romano? Ou apenas por ser ele mesmo? Talvez tu me possas dizer. Embora adivinhe desde já a tua resposta.
Do que mais gostei nele foi do seu carácter extremamente firme; e da sua calma, absolutamente invulgar. Foi claramente graças à minha ajuda que conseguiu a sua frota. Eu sei, eu sei que ele me usou! Mas há momentos, minha querida Trifena, em que uma pessoa não se importa de ser usada. Ele gostou de mim um pouquinho. Deu o devido valor à minha linhagem. E não há mulher ao cimo da terra capaz de resistir ao seu riso.
Foi um interlúdio muito agradável. Ah, as saudades que eu já tenho daquele malandro! Mas não te preocupes comigo. Por uma questão de segurança, tomei o remédio mal ele partiu. Se eu estivesse verdadeiramente casada, talvez me sentisse tentada a não tomar nada — o sangue dos Césares é melhor do que o dos Ptolemeus. Mas tomei — e por isso não terei um filho dele. Provavelmente, nunca terei filhos de ninguém.
Custa-me que estejas a passar por problemas, custa-me que não nos tenham dado a instrução necessária para entendermos a situação no Egipto. Claro que o nosso pai, Mitridates, e o nosso tio, Tiçranes, não se preocuparam com as dificuldades por que nós pudéssemos passar. Nós somos apenas um meio para eles firmarem os seus interesses no Egipto, pois temos suficiente sangue ptolemaico para reivindicar o trono. Mas o que ninguém conhecia era o poder que os sacerdotes do Egipto têm sobre o povo, ou melhor, sobre o povo de origem integralmente egípcia e não macedónia. É como se houvesse duas nações chamadas Egipto: as terras de Alexandria Macedónia e o Delta, por um lado, e as terras do Nilo Egípcio, por outro.
Minha querida Trifena: penso que devias tentar encetar as tuas próprias negociações com os sacerdotes egípcios. O teu marido, Auleta, não é homem capaz de gostar de outros homens, pelo que é mais que certo que virás a ter filhos. Tens de ter filhos! Mas, segundo a lei egípcia, só poderás tê-los depois de teres sido coroada e ungida, e só poderás ser coroada e ungida depois de os sacerdotes egípcios se disporem a oficiar. Eu sei que os Alexandrinos, perante a embaixada de Roma, fingiram que tu já estavas coroada e ungida — porque sabiam que Marco Perperna e os outros embaixadores eram uns ignorantes no que toca às leis e aos costumes egípcios. Mas o povo do Egipto sabe que tu ainda não foste confirmada como rainha. Auleta é idiota, falta-lhe capacidade intelectual e, politicamente, é um desastre. Mas tu e eu saímos ao nosso pai — não nos faltam os dotes.
Vai ter com os sacerdotes e enceta as negociações. No teu próprio nome. Estou convencida de que não conseguirás nada — nem mesmo ter filhos — enquanto os sacerdotes não forem dominados. Auleta prefere acreditar que é mais importante do que eles e que os Alexandrinos têm poder que chegue para derrotarem os sacerdotes quando for preciso. Está errado. Ou talvez eu deva dizer que Auleta acredita que é mais importante ser rei macedónio do que ser faraó egípcio — acredita que, sendo rei, acabará forçosamente por ser faraó. Pela leitura das tuas cartas, pude concluir que tu não caíste nessa armadilha. Mas isso não chega. Tens também de negociar. Os sacerdotes sabem que os nossos maridos são os últimos da linhagem e que entronizar soberanos rivais de sangue egípcio, ao fim de quase mil anos de invasões estrangeiras e de governantes estrangeiros, seria mais perigoso que sancionar o último dos Ptolemeus. Creio, por isso, que o que eles realmente pretendem é que vocês se mostrem deferentes, que aceitem as suas posições. É isso mesmo que deves fazer, minha querida Trifena. E obriga o teu marido a seguir o teu exemplo. No fim de contas, são eles quem tem a custódia dos labirintos do tesouro do faraó, dos rendimentos do Nilo e do povo egípcio. O facto de o Grão-de-bico ter conseguido saquear Tebas, já lá vão sete anos, não tem o mínimo interesse para o caso. Ele foi coroado e ungido, ele foi faraó. E Tebas não é o Nilo todo!
Entretanto, continua a tomar o remédio e não entres em conflito, nem com o teu marido, nem com os Alexandrinos. Enquanto eles permanecerem teus aliados, terás uma base para negociares com os sacerdotes de Mênfis.
Em fins de Sextilis, Caio Júlio César regressou a Tarso, entregando a Vátia os acordos para o fornecimento de navios e tripulações, assinados com todos os territórios e cidades navais importantes da região. Vátia ficou visivelmente contente, em especial com o acordo firmado com Chipre. Mas ele não tinha mais missões militares para o seu jovem subordinado e, por outro lado, acabara de receber a notícia da morte de Sila.
— Nesse caso, Públio Servílio — disse César —, gostaria de regressar a Roma, com a tua autorização.
Vátia franziu o sobrolho.
— Porquê?
— Por várias razões — retorquiu César, sem qualquer inibição. — A primeira, e mais importante, é que não te sirvo para muito — a menos que tenciones lançar uma expedição para expulsar Tigranes da Pedia Oriental e da Capadócia Eufrática.
— Não recebi ordens nesse sentido, Caio Júlio — replicou Vátia. — Eu estou aqui para governar esta província e para eliminar a ameaça dos piratas. A Capadócia e a Pedia Oriental vão ter de esperar.
— Compreendo. Nesse caso, não tens missões militares para mim num futuro próximo. As outras razões para o meu regresso a Roma são pessoais. Tenho um casamento para consumar e uma carreira nos tribunais à minha espera. Por causa do flaminato, serei obrigado a iniciar tardiamente a minha carreira de advogado. Tenciono ser cônsul quando chegar a hora. Tenho direito a isso, por nascimento. O meu pai foi pretor, o meu tio foi cônsul, o meu primo Lúcio também foi cônsul. Os Júlios estão uma vez mais em primeiro plano.
— Muito bem, Caio Júlio, podes regressar a Roma — disse Vátia, que era sensível a tais argumentos. — Terei todo o prazer em louvar-te perante o Senado e em classificar a tua missão de obtenção da frota como serviço de campanha.
A morte de Sila marcou o fim das relações amistosas entre os cônsules Lépido e Catulo. Homens de naturezas muito diversas, entraram em conflito mal Sila morreu; Catulo queria que Sila tivesse um funeral de Estado, ao passo que Lépido recusava o gasto de fundos públicos para enterrar alguém que tinha muito mais do que era preciso para pagar o funeral. Foi Catulo que venceu a batalha que se travou então no Senado; Sila foi inumado com dinheiros do Tesouro, desse mesmo Tesouro que ele afinal enchera.
Mas Lépido não deixou de contar com apoios e Roma começava já a assistir ao regresso daqueles que Sila obrigara a fugir.
Marco Perperna Variento e o filho de Cina, Lúcio, chegaram a Roma pouco depois do funeral de Sila. Perperna Variento conseguira furtar-se às proscrições, apesar de ser ele quem ocupava a Sicília quando Pompeu lá chegou — provavelmente porque não se tinha oposto a Pompeu e porque não tinha dinheiro suficiente para se tornar um proscrito interessante. O jovem Cina, como seria de esperar, estava sem dinheiro. Mas agora que o Ditador morrera, os dois homens formavam o núcleo das facções secretamente opostas à política e às leis do Ditador e, muito naturalmente, preferiam Lépido a Catulo. Sendo o cônsul sénior e famoso por ter enfrentado Sila no Senado, Lépido considerava-se numa excelente posição para abrandar a severidade de algumas das leis de Sila, tanto mais que os seus adeptos senatoriais eram agora em maior número do que os de Catulo.
— Quero — disse Lépido ao seu grande amigo Marco Júnio Bruto — ficar na História como o homem que tornou as leis de Sila mais aceitáveis para todos — inclusivamente para os seus inimigos.
A deusa Fortuna favorecera-os a ambos. A última lista de magistrados de Sila incluía Bruto como pretor, e, quando os cônsules e pretores assumiram funções no primeiro dia do ano anterior, o sorteio para determinar os executivos das províncias tinha sido favorável a Lépido e a Bruto; Lépido ficara com a Gália Transalpina e Bruto com a Gália Italiana, e deveriam iniciar as suas funções de governadores depois de terminado o prazo dos seus cargos actuais — ou seja, no primeiro dia do ano seguinte. A Gália Transalpina já não era há algum tempo governada por um cônsul, mas duas coisas contribuíram para alterar essa situação: a guerra na Hispânia contra Quinto Sertório (que não estava a correr bem) e o estado em que se encontravam as tribos gaulesas, muito próximas da revolta e que, por isso, constituíam uma ameaça para as vias terrestres que conduziam à Hispânia.
— Vamos poder governar as nossas duas províncias como uma equipa — dissera Lépido a Bruto mal o sorteio acabara. — Euvou declarar guerra às tribos rebeldes, enquanto tu organizas a Gália Italiana, de forma a poderes abastecer-me de víveres ou fornecer-me qualquer outro apoio que eu precise.
Assim, tanto Lépido como Bruto esperavam que os governos das respectivas províncias lhes trouxessem muita actividade e não menores compensações. Logo que Sila morreu, Lépido avançou com o seu programa de abrandamento das leis mais duras de Sila, enquanto Bruto, presidente do tribunal que estudava os casos de violência, aprofundou as emendas às leis de Sila para esse tribunal, introduzidas no ano anterior pelo pretor de Sila, Cneu Octávio. Aparentemente com o consentimento de Sila, Cneu Octávio obrigara alguns dos homens que tinham feito grandes lucros com as proscrições a devolver todas as propriedades obtidas pela violência, força ou intimidação — o que, evidentemente, significava também a retirada dos nomes dos proprietários originais das listas de proscritos. Aprovando as medidas de Cneu Octávio, Bruto continuou o seu trabalho com entusiasmo.
Em Junho, já depois de as cinzas de Sila terem sido encerradas no túmulo do Campo de Marte, Lépido anunciou ao Senado que pediria a sua aprovação para uma lex Aemilia Lépida que devolvia algumas das terras que Sila retirara a várias cidades da Etrúria e da Úmbria para distribuir pelos seus veteranos.
— Como todos sabem, Pais Conscritos — disse Lépido a um Senado particularmente atento —, regista-se uma considerável agitação a norte de Roma. Em minha opinião — e na opinião de muitas outras pessoas! —, essa agitação deriva basicamente das medidas do nosso falecido Ditador, tendo em vista a punição das comunidades da Etrúria e da Úmbria, punição que se traduziu pela retirada a essas comunidades de quase todas as terras pertencentes às suas cidades. O Senado mostrou de forma muito clara que nem sempre apoiava as medidas do Ditador, quando se opôs à pretensão dele de proscrever todos os cidadãos das cidades de Arrécio e Volaterras. E devemos sentir-nos honrados pelo facto de termos conseguido dissuadir o Ditador de tomar tal medida, tanto mais que o incidente ocorreu quando ele tinha chegado ao auge do seu poder. Mas não pensem que a minha nova lei tem algo de bom para oferecer a Arrécio e a Volaterras! Essas duas cidades apoiaram activamente Carbão, o que significava que, de mim, não poderão esperar rigorosamente nada. Não, as comunidades com que estou preocupado são aquelas que, quando muito, se viram obrigadas a albergar as legiões de Carbão. Estou a falar de cidades como Espolécio e Clúsio, que estão ressentidas contra Roma por terem perdido as suas terras, quando afinal nunca deram provas de traição! Elas foram muito simplesmente as vítimas impotentes de uma guerra civil, cidades que, involuntariamente, se viram envolvidas nela por acção de um dos contendores.
Lépido fez uma pausa para estudar as bancadas da Cúria Hostília e ficou satisfeito com o que viu. Prosseguiu então, agora com um pouco mais de sentimento na voz.
— Não estamos a discutir aqui os casos das comunidades que apoiaram activamente Carbão. Ora, devo salientar que as terras dessas cidades traidoras chegam e sobram para instalar os soldados de Sila. com muito poucas excepções, a Itália é agora profundamente romana, os seus cidadãos têm agora os direitos e os deveres de todos os romanos e encontram-se distribuídos pelas trinta e cinco tribos. No entanto, há muitas zonas da Etrúria e da Úmbria que continuam a ser tratadas como se fossem aliados rebeldes de outros tempos, daqueles tempos em que era costume confiscar as terras públicas de determinadas regiões. Mas como pode Roma usurpar as terras de Romanos que cumprem a lei e os seus deveres? É uma contradição! E nós, Pais Conscritos, não podemos continuar a permitir tais práticas. Se o fizermos, teremos de enfrentar novas rebeliões na Etrúria e na Úmbria — e Roma não se pode dar ao luxo de manter mais uma guerra civil, quando depara com tantas ameaças exteriores! Actualmente, temos de reunir dinheiro para apoiar as catorze legiões que lutam contra Quinto Sertório. E, obviamente, o nosso precioso dinheiro tem de ir quase todo para aí. A minha lei, devolvendo terras a cidades como Clúsio e Tuder, acalmará o povo da Etrúria e da Úmbria antes que seja demasiado tarde.
Catulo levantou-se então para contestar vigorosamente aquela medida, no que foi seguido pelos elementos mais conservadores e pró-Sila, tal como Lépido esperara.
— Este é apenas um primeiro passo para futuras acções! — exclamou Catulo, furioso. — Marco Emílio Lépido tenciona ir destruindo aos poucos a nossa recente constituição! E, para tal, começa precisamente com medidas que sabe que agradarão ao Senado! Mas eu afirmo que não podemos permitir que tal aconteça! Todas as medidas que ele consiga mandar para o Povo, acompanhadas de um senatus consultum, serão mais um passo para ele concretizar o seu objectivo final!
Porém, nem Cetego, nem Filipe, se levantaram para apoiar Catulo e Lépido sentiu que ia vencer. Estranho, talvez, que não tivessem apoiado Catulo; no entanto, por que razão haviam de pôr em causa uma tal oferta? Por isso, ainda antes de ter conseguido obter um senatus consultum de aprovação para esta lei sobre as terras seqüestradas, avançou com mais uma medida.
— É dever do Senado acabar com o embargo, decretado pelo nosso falecido Ditador, à venda pública de cereais a um preço inferior ao cobrado pelos mercadores privados — disse ele firmemente, e com as portas da Cúria Hostília bem abertas, para que aqueles que estavam no exterior o pudessem ouvir. — Pais Conscritos, eu sou um homem são e decente! Não sou um demagogo. Como cônsul sénior, não tenho a mínima necessidade de cortejar os nossos cidadãos mais pobres. A minha carreira política atingiu o seu zénite — ou seja, não sou alguém que está a subir. Posso perfeitamente pagar o preço que os mercadores privados me pedirem, seja ele qual for. Por outro lado, não pretendo com isto dizer que o nosso falecido Ditador estava errado quando fixou o preço dos cereais públicos ao mesmo nível que o preço pedido pelos mercadores privados. Creio que o nosso falecido Ditador não se apercebeu das conseqüências, nada mais. Porque, na realidade, o que é que aconteceu? Os mercadores privados subiram os seus preços, precisamente por não haver uma política governamental capaz de os obrigar a manter preços baixos! Porque afinal, Pais Conscritos, quem é o homem de negócios que consegue resistir à perspectiva de obter maiores lucros? Será que a humanidade e a generosidade ditam as suas acções? É claro que não! Um homem dedica-se aos negócios para obter um lucro para si mesmo e para os seus sócios, e, a maior parte das vezes, é demasiado míope para poder ver que, quando sobe o preço do seu produto mais do que o mercado pode agüentar, já está a minar a sua base de lucro.
”Peço-lhes, portanto, membros desta Casa, que dêem à minha lex Aemilia Lépida frumentaria a vossa aprovação oficial, permitindo-me assim apresentá-la ao Povo para ratificação. Pretendo que regressemos ao nosso velho método, testado e comprovado, e que consiste no seguinte: o Estado venderá cereais à população mais pobre pelo preço fixo de dez sestércios o modius. Em anos de abundância, esse preço permitirá mesmo ao Estado a obtenção de um lucro razoável, e, como os anos de abundância são mais do que os de escassez, o Estado, a longo prazo, não sofrerá financeiramente por causa disso.
O cônsul júnior Catulo voltou a levantar-se para manifestar a sua oposição. Desta feita, porém, dispôs de um apoio mínimo; tanto Cetego como Filipe estavam inequivocamente a favor da medida de Lépido. Dessa forma, o senatus consultum foi dado na mesma sessão em que Lépido o pediu. Lépido podia agora promulgar a sua lei na Assembleia do Povo. A sua reputação subia entretanto a novas alturas e, sempre que aparecia em público, era premiado com calorosas saudações.
No entanto, com a sua lex agraria relativa às terras seqüestradas, as coisas passaram-se de maneira diferente; a lei parecia estar condenada a não sair do Senado e, apesar de Lépido a pôr à votação em todas as sessões, continuava a não dispor dos votos suficientes para obter um senatus consultum — o que, de acordo com a constituição de Sila, implicava que não poderia apresentar a lei a uma Assembleia.
— Mas eu nãovou desistir — disse ele a Bruto, num jantar em casa deste.
Lépido comia em casa de Bruto regularmente, pois achava a sua casa insuportavelmente vazia. Quando as proscrições começaram, Lépido, como a maior parte dos romanos da classe alta, teve fortes receios de ser uma das suas vítimas; permanecera em Roma durante os anos de Mário, Cina e Carbão — e estava casado com a filha de Saturnino, aquele que, em tempos, tentara coroar-se rei de Roma. Fora a própria Apuleia que lhe sugerira que se divorciasse. Tinham três filhos, e era de extrema importância que a fortuna da família permanecesse intacta para os dois filhos mais novos; o mais velho fora adoptado pelos Cornélios Cipiões e tinha tudo a seu favor, pois essa família era muito próxima de Sila e sempre estivera do seu lado. Cipião Emiliano (assim chamado em honra do seu famoso antepassado) era já um adulto na altura em que Apuleia sugeriu o divórcio, e o segundo filho, Lúcio, tinha dezoito anos. O mais novo, Marco, tinha apenas nove anos. Embora adorasse Apuleia, Lépido divorciou-se dela para defender os filhos, prevendo, no entanto, que voltaria a casar-se com ela quando a situação melhorasse. Mas Apuleia tinha nas veias o sangue do pai, Saturnino; convencida de que a sua presença nas vidas do ex-marido e dos filhos deixá-los-ia sempre em perigo, suicidou-se. A sua morte foi um golpe terrível para Lépido, que, na realidade, nunca recuperou emocionalmente dessa perda. Por isso, sempre que podia, passava as suas horas de lazer na casa de outro homem e, em particular, na casa do seu melhor amigo, Bruto.
— Tens toda a razão! Não devemos nunca desistir! — disse Bruto. — A nossa perseverança acabará por desgastar o Senado.
— Seria preferível que a resistência do Senado se desgastasse rapidamente — comentou o terceiro comensal, sentado numa cadeira diante do lectus medius.
Os dois homens olharam para a mulher de Bruto, Servília, com um interesse temperado por um considerável respeito; valia sempre a pena ouvir o que ela tinha para dizer.
— Que queres dizer com isso, exactamente? — perguntou Lépido.
— Quero dizer que Catulo está a preparar-se para a guerra.
— Como é que descobriste uma coisa dessas? — perguntou Bruto.
— Mantendo os meus ouvidos bem atentos — retorquiu ela, sem qualquer expressão no rosto. Depois, sorriu, no seu jeito secreto e fechado. — Fui visitar Hortênsia esta manhã. Por alguma razão ela é irmã do nosso maior advogado — tal como ele, adora falar. Catulo gosta muito dela e por isso conta-lhe muitas coisas — coisas que ela revela facilmente, desde que se tenha habilidade para lhas arrancar.
— E tu, evidentemente, tens essa habilidade — comentou Lépido.
— É um facto. Mas, mais importante que a minha habilidade, é o meu interesse. A maior parte das amigas dela prefere mexericos, enfim, coisas de mulheres, mas Hortênsia gosta muito mais de falar de política. Por isso faço o possível por visitá-la freqüentemente.
— Conta-nos mais, Servília — disse Lépido, confuso com o que ela dissera. — Catulo está a preparar-se para que guerra? Para a guerra na Hispânia Citerior? Ele será o governador dessa região no ano que vem e por isso disporá de um novo exército. De modo que não me parece ilógico que ele esteja a preparar-se para a guerra, como tu dizes.
— Esta guerra não tem nada a ver com a Hispânia, nem com Sertório — retorquiu a mulher de Bruto. — Catulo tem falado da guerra na Etrúria. Segundo Hortênsia, ele vai tentar convencer o Senado a armar mais legiões para enfrentar a agitação que se vive na Etrúria.
Lépido sentou-se, muito direito, no lectus medius.
— Mas isso é uma loucura! Só há uma maneira de manter a paz na Etrúria: devolver às comunidades locais uma boa parte do que Sila lhes tirou!
— Têm-se mantido em contacto com os chefes da Etrúria? — perguntou Servília.
— Naturalmente.
— com os duros ou com os moderados?
— com os moderados, suponho eu, se entendermos que os duros são os chefes de cidades como Volaterras e Fésulas.
— Sim, era nesses termos que eu estava a pensar.
— Agradeço-te muito esta informação, Servília. Podes estar certa de que redobrarei os meus esforços para manter a estabilidade na Etrúria.
Lépido redobrou de facto os seus esforços, mas não conseguiu impedir Catulo de exortar o Senado a que lançasse um plano de recrutamento, tendo em vista a obtenção das legiões que considerava necessárias para abafar a revolta nascente na Etrúria. No entanto, a atempada advertência de Servília permitiu a Lépido conquistar apoios entre os pedarii e entre senadores séniores dos últimos bancos, como Cetego; daí que o Senado se mostrasse algo indiferente ao apaixonado discurso de Catulo.
— Na realidade, Quinto Lutácio — disse Cetego a Catulo—, estamos mais preocupados com a ausência de amizade entre ti e o teu cônsul sénior do que com as hipotéticas revoltas na Etrúria. Parece-nos que adoptaste uma política inflexível de oposição a tudo o que
o nosso cônsul sénior defende. Acho isso muito triste, depois de todo o trabalho que Lúcio Cornélio Sila teve para forjar novos laços de cooperação entre os vários membros e facções do Senado.
Esmagado, Catulo desistiu. Mas não por muito tempo. As circunstâncias vieram a provar que ele tinha razão, destruindo todas as possibilidades de Lépido obter o senatus consultum para a sua lei que devolvia muitas das terras seqüestradas. De facto, no final de Junho, os cidadãos de Fésulas atacaram os aquartelamentos militares que rodeavam a cidade, expulsaram os veteranos das suas terras, e mataram todos aqueles que ofereceram resistência.
As mortes de várias centenas de legionários leais a Sila não podiam ser ignoradas; e Fésulas não podia sair impune daquela rebelião. Numa altura em que devia virar as suas atenções para a preparação das eleições de Quintcilis, o Senado, preocupado com questões inteiramente diversas, esqueceu-se por completo das eleições. Como a constituição de Sila previa, tinha já sido feito o sorteio para determinar que cônsul conduziria as votações curuis (Lépido fora o escolhido); mas nada mais foi feito. Em vez disso, o Senado instruiu os dois cônsules para que recrutassem quatro novas legiões e avançassem sobre Fésulas.
A sessão estava prestes a terminar quando Lúcio Márcio Filipe se levantou e pediu para falar. Lépido, que era o detentor dos fasces durante o mês de Quinctilis, fez o seu primeiro grande erro: decidiu permitir que Filipe falasse.
— Meus caros colegas senadores — disse Filipe, com a sua voz estentórea —, rogo-vos que não ponham um exército que seja nas mãos de Marco Emílio Lépido! Eu não peço. Rogo! Porque não tenho a mínima dúvida de que o nosso cônsul sénior está a preparar uma revolução — tem estado a preparar uma revolução desde que tomou posse! Antes de o nosso querido Ditador morrer, ele não disse nem fez nada. Mas mal o nosso querido Ditador morreu, Lépido avançou. Recusou-se a apoiar a concessão de fundos do Estado para o funeral de Sila! É claro que perdeu — mas eu nunca acreditei que pudesse vencer! Usou o debate em torno do funeral como um sinal para todos os seus apoiantes de que estava disposto a lançar uma política de traição. E tratou de aplicar essa política! Propôs que devolvêssemos as terras seqüestradas a gente que merecera esse castigo! E quando viu que o Senado estava a protelar a sua proposta, procurou adular todas as classes abaixo da segunda, usando um truque a que todos os demagogos recorreram, desde Caio Graco ao sogro de Lépido, Saturnino — legislou no sentido de o Estado vender cereais baratos! Roma não devia, segundo ele, gastar um único sestércio com o funeral do seu maior cidadão! Mas Roma deveria gastar rios de dinheiro para que os seus inúteis proletarii tivessem cereais baratos!
Lépido não era o único homem estupefacto com este ataque; todo o Senado estava quieto e calado, tal era o choque. Mas Filipe prosseguiu no mesmo tom violento.
— Pois bem, colegas senadores, é a este homem que querem dar quatro legiões? É este homem que querem mandar para a Etrúria? Pois bem, eu recuso-me a deixar-vos fazer uma coisa dessas!
Primeiro que tudo, porque as eleições curais têm de ser disputadas em breve e, de acordo com o sorteio, é ele quem tem de as organizar. Portanto, Lépido deve permanecer em Roma para cumprir o seu dever, e não andar por aí a recrutar soldados! Lembro que vamos ter as nossas primeiras eleições livres ao fim de vários anos, e que é imperativo que as realizemos a tempo e na mais estrita legalidade. Quinto Lutácio Catulo é perfeitamente capaz de recrutar um exército e de conduzir a guerra contra Fésulas ou quaisquer outras comunidades etruscas que possam aliar-se a Fésulas. É contra as leis de Sila que os dois cônsules se ausentem de Roma para travarem uma guerra. Como é evidente, foi para impedir que isso acontecesse que o nosso querido Ditador introduziu a sua cláusula da comissão especial! Desse modo, ficámos com os meios constitucionais necessários para darmos o comando da guerra ao homem mais competente num determinado momento, mesmo que esse homem não seja um membro do Senado. E afinal, vejo o Senado concedendo um comando que é vital a um homem que não tem um passado militar satisfatório! Quinto Lutácio é um homem experiente, sabemos que ele é competente em questões militares. Mas Marco Emílio Lépido? Que experiência tem ele? Que provas deu ele da sua excelência militar? Além disso, repito, é um revolucionário em potência. Não podem dar-lhe legiões e mandá-lo travar uma guerra contra uma região que ele quis favorecer, em detrimento de Roma! Lembrem-se das palavras de Lépido a favor dessa região, pois essas palavras indiciavam já uma intenção traiçoeira!
Lépido escutara com espanto o início daquele discurso; porém, passado um momento, e movido por súbita determinação, virou-se para o seu escriba e tirou-lhe a tábua de cera e o estilete; o escriba limitou-se a tomar notas durante o resto do discurso de Filipe. Lépido levantou-se por fim para responder, segurando na tábua.
— Que motivo te leva a dizer tais coisas, Filipe? — perguntou, não concedendo a Filipe a cortesia de o tratar pelo nome todo. — Confesso que não faço a mínima ideia de que motivo é esse, mas não tenho a mínima dúvida de que tens um motivo! Quando o Grande Tergiversador desta casa se levanta, para pronunciar um dos seus magnificentes discursos, podem ter a certeza de que, por detrás do seu belo estilo, existe sempre um motivo muito concreto! Aposto que alguém lhe pagou para mudar, uma vez mais, de partido!
E vejam quão rico ele se tornou! — quão gordo! — quão satisfeito! — quão atolado num lodaçal de voluptuosidade! — e sempre à custa de alguém que precisa de um porta-voz no Senado!
Lépido ergueu um pouco a tábua de cera e lançou um olhar grave aos senadores silenciosos. Pôde ver então que até mesmo Catulo estava espantado com o discurso de Filipe. Não, quem estava por detrás de Filipe não era Catulo, nem nenhum membro da sua facção.
— Abordarei as questões segundo a ordem por que foram levantadas. Primeiro: a minha passividade antes de o Ditador morrer. Isso não é verdade! Como todos os que aqui estão sabem muito bem! Façam um pequeno esforço de memória!
”Segundo: a votação dos fundos públicos para pagar o funeral do Ditador. Sim, é verdade, opus-me. Tal como muitos outros homens. E porque não? Será que não podemos discordar?
”Terceiro: Filipe disse que a minha oposição teria sido um sinal lançado aos meus adeptos — mas será que eu os tenho? — de que alteraria tudo o que Lúcio Cornélio Sila fez: nunca ouvi tamanho disparate! Tentei promulgar duas leis, consegui promulgar apenas uma. Mas será que dei alguma indicação de que tenciono alterar todo o corpo de leis aprovado por Sila? Ouviram-me criticar o novo sistema de tribunais? Ou os novos regulamentos sobre os funcionários públicos? Os novos regulamentos do Senado? O processo eleitoral? As novas leis sobre a traição, que limitam as acções dos governadores provinciais? Ou as que restringem as funções das Assembleias? Ou as que afectaram severamente o tribunado da plebe? Não, Pais Conscritos, ninguém me ouviu criticar essas leis! Porque eu não tenciono alterá-las!”
Esta última frase foi berrada a plenos pulmões, de tal modo que muitos dos senadores se assustaram. Lépido fez uma pausa para que todos pudessem recuperar, e prosseguiu.
— Quatro: a alegação de que a minha lei, que devolve algumas das terras seqüestradas — algumas, não todas! — aos seus proprietários originais, constitui uma traição. Também isso é um disparate pegado. A minha lex Aemilia Lépida não prevê a devolução de terras a cidades ou regiões culpadas de traição. Prevê apenas a devolução de terras a cidades ou regiões cuja participação na guerra foi inocente ou involuntária.
Lépido baixou a voz, dando-lhe mais vibração.
— Meus colegas senadores, reflictam um momento, por favor! Se queremos uma Itália verdadeiramente unida e adequadamente romana, temos de deixar de infligir os velhos castigos que impusemos aos Aliados Italianos, a homens que, de acordo com a lei, são agora tão romanos como nós! Se Lúcio Cornélio Sila errou nalguma coisa, podem crer que foi aí. Num homem da sua idade era talvez compreensível. Mas é imperdoável para a maior parte de nós, que somos pelo menos 20 anos mais novo, que pensemos da mesma maneira que ele. Lembro-lhes que Filipe é também um homem idoso, com os preconceitos ultrapassados dos homens da sua idade. Quando foi censor, mostrou bem os seus preconceitos, ao recusar-se a fazer aquilo que Sila, afinal, acabou por fazer — distribuir equitativamente os novos cidadãos romanos pelas trinta e cinco tribos.
Lépido começava a dominá-los: o argumento da idade fora bem usado, porque aquele Senado era agora muito mais jovem do que há dez anos atrás. Sentindo que conseguira controlar a sua ansiedade, Lépido prosseguiu.
— Quinto: a lei dos cereais. Esta lei também veio pôr as coisas no seu devido lugar. A lei anterior estava manifestamente errada. Acredito que, se tivesse sido Ditador por um período mais longo, Lúcio Cornélio Sila acabaria por ter compreendido o que eu compreendi e por ter feito o que eu fiz — vender cereais mais baratos às classes mais baixas. Os mercadores de cereais estavam dominados pela ganância. Ninguém pode negar isso! E o Senado mostrou-se sensato ao entender que por detrás da minha lei havia apenas uma coisa chamada bom senso. A minha lei foi aprovada e, dessa forma, prevenimos revoltas e cenas de violência, que poderiam muito bem acontecer já na próxima colheita. Porque a questão é esta: nós não podemos retirar ao povo miúdo um privilégio que existe há tanto e tanto tempo que acabou por ser visto como um direito!
”Sexto: a minha função enquanto cônsul escolhido para supervisionar as eleições curuis. Sim, é verdade que, por sorteio, fui eu o designado, e que, de acordo com a nossa nova constituição, só eu poderei organizar as eleições curuis. Mas, Pais Conscritos, não fui eu que pedi que me investissem das funções de recrutamento de um novo exército, não fui eu que pedi o comando da guerra contra Fésulas! Foram vocês que mo ordenaram! Por vossa livre e espontânea vontade! Eu não lhes solicitei rigorosamente nada! Não vos ocorreu — tal como não me ocorreu a mim! — que deveríamos tratar primeiro das eleições e depois da revolta de Fésulas. Confesso que pensei que deveria tratar primeiro de dominar a revolta e só depois realizar as eleições curais. Temos ainda muito tempo até ao final do ano para organizar eleições. Afinal, estamos ainda no princípio de Quinctilis.
”Sétimo: o facto de os dois cônsules se ausentarem de Roma por razões militares não vai expressamente contra as leis de Sila. Mesmo que a guerra seja travada fora de Itália. Segundo Lúcio Cornélio Sila, o primeiro dever dos cônsules é cuidar de Roma e de Itália. Nem eu, nem Quinto Lutácio Catulo, excederemos a nossa autoridade. A cláusula que prevê a comissão especial e um comandante não senatorial só poderá ser invocada se nenhum dos magistrados legalmente eleitos e nenhum dos outros senadores competentes estiver disponível para conduzir uma guerra.
”E, finalmente, ponto número oito: por que razão serei eu menos qualificado do que Quinto Lutácio Catulo para comandar uma guerra? Ambos servimos no exército durante a Guerra Italiana, como legados. Nenhum de nós deixou Roma durante os anos de Cina e Carbão. Ambos mantivemos uma honesta e intransigente neutralidade, que Lúcio Cornélio, muito claramente, não penalizou — e, de facto, reparem que nós fomos os últimos cônsules escolhidos pessoalmente por ele! A nossa experiência militar é grande. Não haverá maneira de adivinhar qual dos dois poderá brilhar mais na guerra contra Fésulas. Mas o que interessa a Roma é que ambos alcancemos o mesmo brilho, não é verdade? A prática normal entre os Romanos diz que, se os cônsules desejarem assumir o comando militar por directiva do Senado, então os cônsules deverão fazê-lo. Os cônsules receberam do Senado directivas nesse sentido. E obedeceram. Não há mais nada a dizer.”
Mas Filipe não se deu por vencido. Sem demonstrar frustração nem raiva, conduziu o debate, com sábio engenho, para um lamento contra a óbvia inimizade que se manifestava entre os cônsules, sustentando as suas afirmações com um número infindável de exemplos concretos, desde meros apartes a confrontos importantes. O Sol já se tinha posto (o que significava que, tecnicamente, o Senado teria de pôr termo às suas deliberações), mas nem Catulo, nem Lépido, desejavam adiar a decisão para o dia seguinte; por isso, os funcionários do Senado acenderam torchas e Filipe continuou o seu discurso. A sua intervenção fora muito bem pensada. Quando Filipe chegou ao momento das propostas, os senadores já estavam dispostos a concordar com o que quer que fosse, desde que os deixassem ir para a casa comer e dormir.
— O que eu proponho — disse ele, por fim — é que cada um dos cônsules preste um juramento no sentido de que nenhum deles fará do seu exército um instrumento de vingança contra o outro. Não peço grande coisa! Mas ficarei muito mais tranqüilo se souber que os cônsules estão dispostos a fazer tal juramento.
Lépido levantou-se, exausto.
— O que eu penso da tua proposta, Filipe, é que se trata, sem a mínima dúvida, da coisa mais idiota que já ouvi! No entanto, se isso deixar o Senado mais satisfeito e se contribuir para que eu e Quinto Lutácio realizemos as nossas tarefas de forma mais expedita, então serei o primeiro a concordar com tal juramento.
— Estou inteiramente de acordo contigo, Marco Emílio — disse Catulo. — E agora, podemos ir todos para casa?
— Qual era a ideia de Filipe? — perguntou Lépido a Bruto, no dia seguinte, ao jantar.
— Francamente, não sei — retorquiu Bruto, abanando a cabeça.
— Tens alguma ideia, Servília? — perguntou o cônsul sénior.
— Não, de facto não tenho — respondeu ela, com um ar intrigado. — O meu marido contou-me em traços gerais o que sucedeu a noite passada, mas creio que ficaria com uma ideia mais concreta se me fornecessem uma cópia da acta da sessão.
Lépido tinha em tão boa conta as opiniões políticas de Servília que não se opôs minimamente a tal pedido. Comprometeu-se, assim, a dar-lhe uma cópia do documento na manhã seguinte, antes de deixar Roma para recrutar as suas quatro legiões.
— Começo a achar — disse Bruto — que não tens qualquer hipótese de melhorar a sorte das cidades etruscas e úmbrias que não estiveram directamente envolvidas na guerra de Carbão. Há demasiados Filipes no Senado e esses homens não querem ouvir o que tu tens a dizer.
A pacificação de pelo menos uma parte da Úmbria era algo que interessava sobremaneira a Bruto, pois ele era o maior proprietário de terras da região, a seguir a Pompeu; Bruto não queria colônias de soldados perto das suas terras. Terras que se situavam, na sua maior parte, nas redondezas de Espolécio e Igúvio, duas áreas que haviam sido seqüestradas. O facto de as terras pertencentes a estas duas cidades não terem recebido colônias de veteranos devia-se a dois factores: a lentidão das comissões nomeadas para tratar da distribuição de terras aos veteranos, e a partida de catorze das velhas legiões de Sila para Hispânia, vinte meses antes. Fora este segundo factor que permitira a Lépido avançar com a sua legislação; se todas as vinte e três legiões de Sila tivessem permanecido em Itália, a fim de serem desmobilizadas de acordo com o plano inicial, Espolécio e Igúvio teriam já muitas terras ocupadas por veteranos.
— O que Filipe disse ontem constituiu para mim um verdadeiro choque! — disse Lépido, vermelho de raiva, só de pensar na intervenção de Filipe. — Francamente, não consigo entender aqueles idiotas! Eu pensava que, depois da minha resposta a Filipe, ficariam todos convencidos — eu limitei-me a recorrer ao bom senso, Servília, nada mais que bom senso! E, no entanto, deixaram que Filipe os enrolasse, levando-os a aprovar aquele juramento ridículo. E lá tivemos nós de ir jurar, esta manhã, no Semo Sancus Dius Fidius!
— O que significa que eles estão prontos a deixar-se enrolar uma vez mais — disse ela. — O que me preocupa é que tu não estarás no Senado para contrariar o velho tergiversador, da próxima vez que ele falar — e falará! Ele está a tramar alguma.
— Não sei por que razão lhe chamamos velho — disse Bruto, que tinha tendência para se afastar dos problemas em discussão. — O homem não é assim tão velho: tem cinqüenta e oito anos. E embora tenha um ar de quem pode ir desta para melhor de um momento para o outro, aposto que isso não acontecerá tão cedo. Seria demasiado bom para ser verdade!
Mas Lépido estava farto deste tipo de digressões e especulações, e, de súbito, resolveu abordar coisas mais sérias.
— Euvou para a Etrúria recrutar o exército — disse ele. — E gostaria que fosses ter comigo o mais depressa possível, Bruto. Planeámos trabalhar como uma equipa no próximo ano, mas penso que será melhor começarmos já. Não há nada no teu tribunal que não possa esperar pelo próximo ano e por um novo juiz e, por isso, proporei que assumas as funções de meu legado sénior imediatamente.
Servília fitou-o com um olhar preocupado.
— Será sensato recrutar os teus homens na Etrúria? — perguntou. — Porque não os recrutas na Campânia?
— Porque Catulo foi mais rápido do que eu e ficou com a Campânia. Seja como for, as minhas terras e os meus contactos estão na Etrúria e não a sul de Roma. Eu sinto-me bem na Etrúria, conheço muito mais gente.
— Mas é isso que me perturba, Lépido. Suspeito que Filipe é capaz de se aproveitar desse facto e continuar a lançar dúvidas sobre as tuas verdadeiras intenções. Repara que tu vais recrutar homens precisamente numa região em que a revolta fervilha.
— Filipe que faça o que quiser! — retorquiu Lépido, com o maior desdém.
O Senado deixou Filipe fazer o que queria. Nos primeiros dias de Sextilis, já o recrutamento avançava a bom ritmo e Filipe achou que era seu dever manter uma vigilância apurada sobre Lépido, recorrendo, ao que parecia, a uma rede muito larga e eficiente de agentes. Não perdeu tempo a vigiar Catulo na Campânia; as suas quatro legiões estavam a engrossar rapidamente com veteranos de Sila, fartos da vida civil e da agricultura, desejosos de uma nova campanha não muito longe de casa. O grande problema era a Etrúria: os homens aí recrutados não eram veteranos de Sila. Pelo contrário: eram jovens inexperientes da região ou então veteranos que tinham combatido por Carbão e pelos seus generais e conseguido escapar quando se dera a rendição. A maior parte dos homens de Sila instalados na Etrúria preferiram manter-se nas suas colônias, a fim de as protegerem; outros tinham entretanto seguido para a Campânia, a fim de se alistarem nas legiões de Catulo.
Durante todo o mês de Setembro, Filipe perorou no Senado, enquanto Catulo e Lépido, com os recrutamentos concluídos, canalizavam todas as suas energias para o treino dos soldados. Então, nos primeiros dias de Outubro, Filipe conseguiu convencer o Senado a exigir a Lépido que regressasse a Roma para organizar as eleições curuis. A ordem do Senado foi enviada para o acampamento de Lépido, nos arredores de Saturnia, e a resposta de Lépido foi para Roma pelo mesmo mensageiro.
”Não posso sair daqui na conjuntura actual. Ou esperam por mim ou nomeiam Quinto Lutácio para me substituir”, dizia apenas a mensagem de Lépido.
O Senado ordenou então a Quinto Lutácio Catulo que regressasse a Roma — mas não para organizar as eleições; não fazia parte dos planos de Filipe conceder tal graça a Lépido, e Cetego tinha-se aliado tão firmemente a Filipe que tudo o que este queria era aprovado por três quartos do Senado.
Entretanto, nada fora feito para submeter Fésulas; a cidade fechara as suas portas e esperava, satisfeita com o facto de Roma não conseguir chegar a acordo quanto ao que devia fazer.
Uma segunda ordem foi enviada a Lépido, indicando-lhe que devia regressar a Roma imediatamente para organizar as eleições; Lépido voltou a recusar. Filipe e Cetego informaram então os senadores de que deveriam considerar que Lépido estava a fomentar uma revolta, tanto mais que tinham provas dos seus acordos com os elementos refractários da Etrúria e da Úmbria — além do que o seu legado sénior, o pretor Marco Júnio Bruto, estava também envolvido.
Servília enviou imediatamente uma carta a Lépido:
Creio que consegui finalmente descobrir os verdadeiros motivos da actuação de Filipe, embora não tenha conseguido encontrar nenhuma prova capaz de fundamentar as minhas suspeitas. No entanto, uma coisa é certa: esses motivos a que me refiro estão a unir duas pessoas — Filipe e Cetego.
estudei exaustivamente a cópia do primeiro discurso de Filipe e conversei com todas as mulheres que pudessem saber alguma coisa. Excepto com aquela detestável Précia, a qual, pelos vistos, é agora a rainha da alcova de Cetego, e, ao que parece, em situação de exclusividade. Hortênsia não sabe de nada porque, segundo creio, o marido dela, Catulo, de nada sabe. No entanto, acabei por obter uma pista absolutamente vital, numa conversa com Júlia, a viúva de Caio Mário — por aqui podes ver até onde levei o meu inquérito!
Múcia Tércia, em tempos nora de Júlia, está agora casada com aquele jovem de Piceno, Cneu Pompeu, que teve a ousadia de se cognominar de Magno. Não é membro do Senado, mas é muito rico e arrogante e está ansioso por dar nas vistas. Tive de ter o máximo cuidado, para não dar a Júlia a impressão de que andava à cata de informações, mas Júlia é uma pessoa franca e aberta, desde que confie no seu interlocutor; por outro lado, como o pai do meu marido sempre foi leal a Caio Mário (acompanhando-o mesmo no exílio durante o primeiro consulado de Sila), ela acolheu-me com a maior simpatia e, por isso, não foi difícil obter informações.
Júlia detesta Filipe desde o momento em que este se vendeu a Caio Mário, já lá vão muitos anos; pelos vistos, Caio Mário mostrava o maior desprezo por Filipe, ainda que se servisse dele. Por isso, na minha terceira visita (achei melhor obter a total confiança de Júlia, antes de me referir de forma mais explícita a Filipe), conduzi a conversa para a actual situação e para os motivos que Filipe poderia ter para te perseguir. Júlia disse-me então que, pelo que ouvira a Múcia Tércia, parecia que Filipe era agora um empregado de Pompeu! Tal e qual como Cetego!
Detive aí o meu inquérito. Não era necessário continuar. Desde o seu primeiro discurso que Filipe não pára de falar da cláusula especial que autoriza o Senado a procurar um comandante militar ou um governador fora das suas hostes. Confesso que fiquei confusa com a possível relação entre esta insistência de Filipe e a actual situação! Até que, calmamente, passei em revista o comportamento de Filipe durante os últimos trinta anos. E comecei a ver mais claro.
Concluí que Filipe não tem feito outra coisa senão trabalhar para patrões; e Pompeu é mais um patrão. Filipe não é um Caio Graco, nem um Sila; não tem em mente uma estratégia grandiosa para manipular o Senado e levá-lo a afastar-vos a todos desta campanha contra Fésulas e a nomear Pompeu. Ele deve saber muito bem que o Senado não fará isso em nenhuma circunstância — o Senado possui actualmente um número suficiente de militares capazes. Se os dois cônsules falhassem — e, nesta altura, é difícil ver por que razão tu ou Catulo poderiam falhar —, Lúculo estaria pronto a tomar conta da campanha: é pretor este ano e, portanto, já tem o império.
Não, Filipe está apenas a lançar a confusão para ter uma oportunidade de lembrar ao Senado que a cláusula da comissão especial existe. E, muito possivelmente, Cetego apoia-o porque também está preso na rede de Pompeu. Não por falta de dinheiro, obviamente! Mas o dinheiro não é a única razão para um homem se comportar dessa maneira e as razões de Cetego podem ser todas.
Portanto, meu caro Lépido, parece-me que, até certo ponto, tu és uma vítima meramente incidental, que a tua coragem em defender aquilo em que acreditas, mesmo que vás contra a corrente, forneceu a Filipe um alvo que ele pode usar para justificar as maquias certamente colossais que Pompeu lhe está a pagar. Filipe está muito simplesmente a constituir um grupo de pressão favorável a um homem que não é senador, mas que considera útil e proveitoso ter uma facção forte dentro do Senado, porque pode vir um dia em que o Senado precise dos seus serviços.
Para ser justa e sincera, devo dizer que posso estar completamente enganada. Mas, francamente, não creio que esteja.
— O que a tua mulher diz faz muito mais sentido do que tudo o que já ouvi — disse Lépido ao marido da sua correspondente, depois de ter lido a carta em voz alta.
— E eu concordo com Servília — disse Bruto, espantado. — Duvido que esteja enganada. Raramente se engana.
— Sendo assim, que hei-de fazer? Regressar a Roma como um menino bem comportado, realizar as eleições curuis e passar depois à obscuridade — ou fazer o que os chefes etruscos pretendem de mim e conduzi-los contra Roma numa rebelião aberta?
Esta era uma questão que Lépido já se tinha posto muitas vezes desde que aceitara o facto de que Roma nunca lhe permitiria devolver à Etrúria e à Úmbria a normalidade e a prosperidade. O orgulho era um factor importante neste seu dilema, tal como uma certa compulsão para se salientar no meio da multidão, ainda que essa multidão fosse composta por consulares romanos. Desde a morte da sua mulher que deixara de dar grande valor à vida; já não pensava sequer na verdadeira razão do suicídio da mulher — o seu desejo de que os filhos nunca viessem a sofrer represálias políticas. Cipião Emiliano e Lúcio estavam com ele de alma e coração e o jovem Marco era ainda uma criança; Marco cumprira a tradição da família Lépido, pois fora o único dos rapazes que nascera com o âmnio cobrindo-lhe o rosto e toda a gente sabia que tal fenómeno significava que ele seria um dos favoritos de Fortuna ddurante uma longa vida. Portanto, por que razão haveria Lépido de se preocupar com o destino dos seus filhos?
Para Bruto, o dilema era outro, embora não temesse a derrota. Não, o que atraíra Bruto à conspiração etrusca era o culminar de oito anos de casamento com a patrícia Servília: oito anos em que ela o considerara um indivíduo sem nada de interessante ou especial, incapaz de a empolgar, uma criatura sem espinha dorsal, um homem desprezível. Bruto não a amava, mas, vendo que os seus amigos e colegas mostravam um apreço cada vez maior pelas opiniões políticas dela, apercebeu-se de que, sob a sua capa de mulher, vivia uma personagem única, uma criatura cuja aprovação era importante para ele. Na actual situação, por exemplo, Servília escrevera, não para ele, mas para o cônsul, Lépido. Ignorara-o. Não lhe dera qualquer importância. E isso humilhava-o. Tal como a humilhava a ela, como Bruto agora percebia. E, para que ela sentisse apreço por ele, teria de fazer algo de corajoso, algo que se tornasse notado, algo que se baseasse em princípios elevados.
Daí que Bruto tenha respondido à questão de Lépido, em vez de a evitar.
— Creio que deves fazer o que os chefes etruscos pretendem e conduzir a Etrúria e a Úmbria contra Roma.
— Muito bem — retorquiu Lépido. — Farei isso. Mas não antes do Ano Novo, altura em que ficarei livre daquele estúpido juramento.
Quando chegaram as Calendas de Janeiro, Roma não tinha magistrados curuis; as eleições não se tinham realizado. No último dia do ano velho, Catulo reunira o Senado para o informar de que, no dia seguinte, teria de mandar os fasces para o templo de Vénus Libitina e nomear o primeiro interrex. Este magistrado supremo provisório denominado interrex mantinha-se em funções durante apenas cinco dias, como guardião e zelador de Roma; tinha de ser patrício, chefe da sua decúria de senadores e, no caso do primeiro interrex, o patrício mais velho do Senado. Ao sexto dia, sucedia-lhe nas funções de interrex o segundo mais velho patrício do Senado que fosse também chefe da sua decúria; o segundo interrex tinha autoridade para organizar eleições.
Assim, às primeiras horas do dia de Ano Novo, o Senado nomeou formalmente Lúcio Valério Flaco Princeps Senatus primeiro interrex e os homens que tencionavam disputar as eleições para cônsules e pretores trataram de angariar rapidamente apoios. O interrex enviou uma breve mensagem a Lépido, ordenando-lhe que abandonasse o seu exército e regressasse a Roma, e lembrando-lhe o juramento segundo o qual nunca viraria as suas legiões contra o seu colega.
Ao meio-dia do terceiro dia do mandato de Flaco Princeps Senatus, Lépido enviou-lhe a resposta.
Gostaria de te lembrar, Princeps Senatus, de que agora sou procônsul, não cônsul. E de que cumpri o meu juramento, ao qual já não estou vinculado, pois sou procônsul, e não cônsul. Abandono de bom grado o meu exército consular, mas lembro-te de que agora sou procônsul e que me foi concedido um exército proconsular; logo, não abandonarei o meu exército proconsular. Como o meu exército consular consistia de quatro legiões e o meu exército proconsular consiste também de quatro legiões, é óbvio que não tenho de abandonar nada.
Contudo, estou disposto a regressar a Roma desde que:
seja reeleito cônsul;
todo e qualquer iugerum das terras seqüestradas de toda a Itália seja devolvido ao seu proprietário original;
os direitos e as propriedades dos filhos e netos dos proscritos lhes sejam devolvidos;
os poderes dos tribunos da plebe sejam inteiramente restaurados.
— Depois de ler esta carta — disse Filipe aos membros do Senado —, até o membro mais estúpido deste Senado pode perceber quais são as intenções de Lépido! Para lhe darmos o que ele quer, teríamos de destroçar toda a constituição que Lúcio Cornélio Sila com tanto afinco elaborou; e Lépido sabe muito bem que não faremos uma coisa dessas. Esta sua resposta equivale a uma declaração de guerra. Peço portanto ao Senado que aprove um senatus consultum de ré publica defendendo.
Mas uma tal proposta implicava um debate apaixonado; por isso, o Senado só aprovou o senatus consultum no último dia do mandato de Flaco como primeiro interrex. Terminado este mandato, a autoridade para defender Roma contra Lépido foi formalmente conferida a Catulo, a quem foi ordenado que regressasse ao seu exército e se preparasse para a guerra.
No sexto dia de Janeiro, Flaco Princeps Senatus terminou as suas funções e o Senado nomeou o segundo interrex: Ápio Cláudio Fulcro, que continuava em Roma a recuperar da sua longa doença. E como se sentia já muito melhor, apressou-se a reunir a Assembleia das Centúrias e a organizar as eleições curuis. Estas, conforme anunciou, decorreriam dentro das Muralhas Sérvias, mais precisamente no Aventino, num prazo de dois dias; o local ficava fora do pomerium, mas encontrava-se adequadamente protegido contra qualquer eventual acção militar de Lépido.
— É estranho — disse Catulo a Hortênsio, antes de partir para a Campânia — que, ao fim de tantos anos sem o privilégio das eleições livres, deparemos agora com tantas dificuldades para realizar eleições. É como se estivéssemos a acostumar-nos a que tomem todas as decisões por nós, com uma mãe faz com o seu bebê.
— Isso que estás a dizer não faz o mínimo sentido — retorquiu Hortênsio, indignado. — Quando muito, poderei conceder que se trata de uma coincidência extraordinária que, no nosso primeiro ano de eleições livres, tenhamos apanhado com um cônsul que desrespeitou os princípios que deveriam presidir ao seu comportamento. Não te esqueças que estamos agora a realizar as eleições e que a governação de Roma voltará a ser o que sempre foi!
— Nesse caso, façamos votos para que os eleitores façam uma escolha pelo menos tão sensata como as de Sila! — replicou Catulo, ofendido.
Mas coube a Hortênsio a última palavra.
— Estás a esquecer-te, meu caro Quinto, de que foi Sila quem escolheu Lépido!
De uma maneira geral, os chefes do Senado (incluindo Catulo e Hortênsio) ficaram satisfeitos com a sensatez demonstrada pelos eleitores. O cônsul sénior era um homem idoso, de hábitos sedentários mas reconhecida capacidade, Décimo Júnio Bruto, e o cônsul júnior era precisamente Mamerco. Tornou-se claro que os eleitores tinham a mesma elevada opinião que Sila em relação aos Cotas, pois, no ano anterior, Sila escolhera Caio Aurélio Cota para um dos lugares de pretor, e, neste ano, os eleitores voltaram a incluir um Cota, Marco Aurélio, entre os pretores; por sorteio, ficou com o cargo de praetor peregrinus.
Tendo permanecido em Roma para ver quem vencia as eleições, Catulo ofereceu imediatamente o supremo comando da guerra contra Lépido aos novos cônsules. Como previra, Décimo Bruto recusou, invocando a idade e a falta de uma experiência militar adequada; Mamerco viu-se obrigado a aceitar. com 44 anos, Mamerco possuía uma bela folha de serviços militares e servira sob as ordens de Sila em todas as suas campanhas. No entanto, acontecimentos imprevistos e a acção de Filipe conspiraram contra Mamerco. Lúcio Valério Flaco, o Princeps Senatus, colega de Caio Mário no seu penúltimo consulado, morreu subitamente um dia depois de ter terminado o mandato de interrex, e Filipe propôs que Mamerco fosse nomeado Princeps Senatus provisório.
— Não podemos passar sem um Chefe do Senado no momento actual — disse Filipe —, apesar de caber aos censores elegê-lo. Por tradição, é o patrício sénior do Senado, mas, legalmente, os censores têm o direito de nomear o senador patrício que consideram mais apto para o cargo. O nosso senador patrício sénior é agora Ápio Cláudio Pulcro, que não goza de boa saúde e que, de qualquer modo, está a caminho da Macedónia. Precisamos de um Chefe do Senado que seja jovem e robusto — e que esteja em Roma! Enquanto não elegermos os censores, sugiro que nomeemos Mamerco Emílio Lépido Liviano como Princeps Senatus provisório. Sugiro também que permaneça em Roma até que a normalidade seja restabelecida. Logo, Quinto Lutácio Catulo deverá manter o seu comando contra Lépido.
— Mas euvou governar a Hispânia Citerior! — retorquiu Catulo.
— Impossível — replicou Filipe. — Proponho que ordenemos ao nosso bom Pontifex Maximus Metelo Pio que assuma as funções de governador da Hispânia Citerior até que a situação em Roma se normalize. Só então poderemos mandar um novo governador para a Hispânia Citerior.
Como toda a gente era favorável a que o Pontifex Maximus continuasse longe de Roma e das cerimónias religiosas, Filipe conseguiu o que queria. O Senado autorizou Metelo Pio a governar a Hispânia Citerior, tal como a sua própria província, nomeou Mamerco Princeps Senatus provisório e confirmou Catulo no comando da guerra contra Lépido. Decepcionado, Catulo seguiu para a Campânia a fim de comandar as suas legiões, enquanto Mamerco, tão decepcionado quanto ele, permaneceu em Roma.
Três dias depois, chegou a notícia de que Lépido estava a mobilizar as suas quatro legiões e que o seu legado Bruto seguira para a Gália Italiana a fim de instalar as suas duas legiões em Bonónia, no cruzamento entre a Via Emília e a Via Ânia, de onde partiriam para ir reforçar o exército de Lépido. Revoltadas por terem perdido todas as suas terras públicas, era de prever que Clúsio e Arécio oferecessem a Bruto toda a assistência de que precisava na sua marcha para se juntar a Lépido — e que bloqueassem todas as tentativas de Catulo para prevenir a marcha de Bruto. Entretanto, Filipe desferia o seu ataque.
— O nosso comandante supremo no campo de batalha, Quinto Lutácio Catulo, continua a sul de Roma — na realidade, ainda não deixou a Campânia. Lépido deixou já Saturnia e avança para sul — disse Filipe. — E estará em condições de impedir o nosso comandante-chefe de enfrentar Bruto na Gália Italiana. Além disso, imagino que o nosso comandante-chefe precisará das suas quatro legiões para conter Lépido. Nesse caso, que podemos fazer contra Bruto, que mantém nas suas mãos a chave do êxito de Lépido? Temos de enfrentar Bruto — mas temos de enfrentá-lo de uma maneira inteligente! Mas como? De momento, não temos outras legiões mobilizadas em Itália, e as duas legiões da Gália Italiana pertencem a Bruto. Nem sequer temos um Lúculo para mobilizar rapidamente pelo menos duas legiões, pois Lúculo seguiu para a Província da África, de que é o actual governador.
Os senadores escutaram estas palavras com um ar sombrio; compreendiam agora que o tempo da guerra civil não tinha acabado só porque Sila se tornara Ditador e lutara, com as suas leis, para impedir que outro homem marchasse sobre Roma. Sila estava morto há menos de um ano e eis que surgia já outro homem disposto a impor a sua vontade àquele infortunado país, e eis que surgiam regiões inteiras da Itália pegando em armas contra a cidade a que os Italianos tinham querido pertencer integralmente. Talvez houvesse, entre aqueles que não se pronunciavam, alguns senadores suficientemente honestos para reconhecerem que era, em grande parte, por sua culpa que Roma se encontrava no actual impasse; mas se os havia, nenhum deles revelou os seus pensamentos. Em vez disso, todos olhavam fixamente para Filipe, como se ele fosse um salvador, e todos esperavam que ele encontrasse uma saída.
— Há um homem capaz de conter Bruto imediatamente — disse Filipe, com um ar de superioridade. — Esse homem dispõe das tropas do pai — e, evidentemente, das suas próprias tropas! Esses soldados trabalham para ele nas suas propriedades do Norte do Piceno Décimo Bruto ia a abrir a boca para dar o seu consentimento, mas Mamerco, pondo a mão no braço do velho cônsul, impediu-o de fazê-lo.
— Concordarei com a apresentação dessa moção ao Senado, Décimo Júnior — disse ele. — Mas só depois de Lúcio Márcio Filipe ter clarificado uma frase do seu discurso! Filipe disse, ”reunir as suas antigas legiões”, mas não especificou quantas são as legiões! Por muito brilhante que seja a carreira militar de Pompeu, a verdade é que ele não é um membro do Senado! Não podemos autorizá-lo a reunir, em nome de Roma, todas as legiões que ache necessárias. Penso, por isso, que a moção deve especificar o número exacto de legiões que esta casa autoriza Cneu Pompeu a reunir. E que essas legiões não deverão ser mais do que duas. Bruto, o governador da Gália Italiana, tem duas legiões de soldados relativamente inexperientes, que constituem a guarnição permanente dessa província. Pompeu não precisará de mais do que duas legiões de experientes veteranos para derrotar Bruto.
Esta inteligente oposição de Mamerco não agradou a Filipe — mas a sensatez impunha-lhe que concordasse; Mamerco era um daqueles indivíduos lentos, mas persistentes, que acabavam sempre por ganhar uma forte influência sobre os senadores — e, além do mais, estava casado com a filha de Sila.
— Peço mil desculpas ao Senado! — exclamou Filipe. — Admito que a minha proposta pecou por desleixo. E agradeço ao nosso estimado Princeps Senatus e cônsul júnior a sua atempada intervenção. É evidente que eu estava a pensar em duas legiões. Peço-te, por isso, Décimo Júnior, que apresentes a moção à votação do Senado, incluindo nela o número de legiões — duas.
A moção foi posta à votação — e ninguém votou contra. Cetego esticara os braços e bocejara — esse era o sinal para que todos os seus adeptos dos bancos de trás votassem a favor da moção. E como a moção estava directamente relacionada com assuntos de guerra, a resolução senatorial tinha força de lei — em matéria de guerra e assuntos exteriores, as diversas Assembleias do Povo Romano não tinham de se pronunciar.
Depois de tantas e tão apuradas manobras políticas, aquela foi uma guerra tão breve quanto patética — se é que mereceu sequer o nome de guerra. Apesar de Lépido ter começado a marchar na direcção de Roma muito antes de Catulo ter deixado a Campânia, Catulo conseguiu chegar primeiro que ele a Roma, tendo ocupado imediatamente o Campo de Marte. Quando Lépido quis atravessar o rio em Transtiberim (pois descera a Via Aurélia), Catulo já tinha bloqueado todas as pontes, forçando assim Lépido a seguir para norte, na direcção da Ponte Mulviana. Por isso, os dois exércitos acabaram por encontrar-se no lado nordeste da Via Lata, sob as Muralhas Sérvias do Quirinal; foi nesse local que decorreu a maior parte da batalha. Graças a alguns confrontos mais ferozes, aquilo que mais parecia um tumulto desordenado pôde aceder ao estatuto de batalha; Lépido, porém, revelou-se um péssimo táctico, incapaz de conduzir os seus homens de uma forma lógica e, naturalmente, incapaz de vencer.
Ao fim de uma hora de combates, Lépido retirou para a Ponte Mulviana, com Catulo atrás dele. A norte de Fregenas, parou e ofereceu de novo combate, mas apenas para assegurar a sua fuga para Cosa. De Cosa, conseguiu fugir para a Sardenha, acompanhado por vinte mil soldados de infantaria e mil e quinhentos soldados de cavalaria. Lépido tencionava reestruturar o seu exército na Sardenha e regressar depois a Itália para tentar impor os seus objectivos. com ele seguiram o seu filho do meio, Lúcio, o ex-governador (fiel a Carbão) Marco Perperna Veiento, e o filho de Cina. No entanto, o filho mais velho de Lépido, Cipião Emiliano, recusou-se a deixar a Itália. Barricou-se, com uma legião, dentro da velha e formidável fortaleza do monte Albano, a norte de Bovilas, e preparou-se para o cerco.
Mas o muito falado regresso de Lépido a Itália não veio nunca a dar-se. O governador da Sardenha era um velho aliado de Lúculo, um tal Lúcio Valério Triário, e resistiu ferozmente à invasão de Lépido. Em Abril desse infortunado ano, Lépido morria na Sardenha; afirmavam os seus soldados que morrera de desgosto — um desgosto que com ele vivia desde a morte da esposa. Perperna Veiento e o filho de Cina embarcaram então para a Ligúria e daí seguiram, com os seus vinte mil soldados de infantaria e os mil e quinhentos cavaleiros, para a Hispânia e Quinto Sertório. com eles seguiu Lúcio, filho de Lépido.
O filho mais velho de Lépido, Cipião Emiliano, revelou-se o mais competente dos rebeldes em termos militares, suportando o cerco em Alba Longa durante bastante tempo. Até que se viu obrigado a render-se; cumprindo ordens do Senado, Catulo executou-o.
Se a ignomínia dominara até então todos os acontecimentos, os que estavam para vir — e que envolveram Bruto — seriam ainda muito piores. Sem ter notícias de Lépido, Bruto manteve as suas duas legiões da Gália Italiana no importante cruzamento de Bonónia; dessa forma, permitiu que Pompeu o apanhasse facilmente. O jovem Pompeu, agora com 28 anos, já tinha as suas tropas mobilizadas quando Filipe lhe garantiu a comissão especial. Porém, em vez de conduzir as suas duas legiões de Piceno até Arimino e, posteriormente, ao longo da Via Emília, Pompeu preferiu descer a Via Flamínia na direcção de Roma. No cruzamento desta estrada com a Via Cássia, a norte de Arécio, tomou a Via Cássia. Dessa forma, impediria Bruto de se juntar a Lépido — se é que alguma vez Bruto pensou que poderia fazer tal coisa.
Quando soube que Pompeu avançava pela Via Cássia e estava já próximo, Bruto retirou-se para Mutina. Esta grande cidade, dispondo de magníficas fortificações, tinha um sem-número de clientes dos Emílios (tanto dos Emílios Lépidos como dos Emílios Escauros). Daí que tenha recebido Bruto de braços abertos. Pompeu não demorou a atacar Mutina. A cidade suportou o ataque até que Bruto soube da derrota e fuga de Lépido, bem como da sua morte na Sardenha. Quando percebeu que as tropas de Lépido se iam pôr ao serviço de Quinto Sertório, Bruto caiu no mais profundo desespero — e, em vez de obrigar Mutina a novas provações, rendeu-se.
— Foi uma decisão sensata — disse-lhe Pompeu logo que entrou na cidade.
— Sensata e oportuna — disse Bruto, cansado. — Não creio, Cneu Pompeu, que seja, por natureza, um militar.
— E não és, de facto.
— Mas aceitarei com dignidade a minha morte.
Os belos olhos azuis de Pompeu abriram-se mais do que o costume.
— A tua morte? — retorquiu o jovem, espantado. — Isso não faz sentido, Marco Júnio Bruto! Tens toda a liberdade para te ires embora!
Agora era a vez de Bruto abrir muito os olhos.
— Estás a falar a sério, Cneu Pompeu?
— Claro! — retorquiu Pompeu, jovialmente. — Mas isso não quer dizer que tenhas liberdade para reorganizar a resistência. Podes, muito e simplesmente, regressar a casa.
— Nesse caso, e com a tua autorização, Cneu Pompeu,vou para as minhas terras da Úmbria Ocidental. O meu povo precisa de calma.
— Inteiramente de acordo! A Úmbria também é a minha terra. Porém, mal Bruto atravessou a porta ocidental de Mutina,
Pompeu chamou um dos seus legados, um homem chamado Gemínio, um picentino de humilde condição e baixo estatuto militar; Pompeu detestava ter por subordinados homens que, de algum modo, pudessem estar ao seu nível social e militar.
— Surpreende-me que o tenhas deixado partir — comentou Gemínio.
— Eu tinha de o deixar partir! A minha posição perante o Senado ainda não é tão alta que me permita ordenar a execução de um Júnio Bruto, sem que disponha, para tal, de provas esmagadoras. Isto apesar de eu ter um império propretoriano. Logo, cabe-te a ti descobrir essas provas esmagadoras.
— Diz-me o que pretendes, Magno, e será feito.
— Bruto disse que ia para as suas propriedades da Úmbria. No entanto, seguiu para norte, mais precisamente pela Via Emília! Parece que se enganou no caminho, não é verdade? bom, pode ser que tenha pensado em seguir por algum atalho. Ou então vai à procura de mais tropas. Quero que o sigas imediatamente, com um bom destacamento de cavalaria. Cinco esquadrões devem chegar — disse Pompeu, palitando os dentes com uma fina lasca de madeira. — Suspeito que ele foi à procura de mais soldados, provavelmente em Régio Lépido. A tua tarefa consiste em prendê-lo e executá-lo caso detectes algum movimento traiçoeiro. Dessa forma, não poderá haver dúvidas de que ele é duplamente traidor e ninguém em Roma levantará objecções à sua morte. Entendido, Gemínio?
— Perfeitamente.
Mas Pompeu não explicou a Gemínio o principal motivo que o levara a dar aquela segunda oportunidade a Bruto. O Miúdo Carniceiro ansiava pelo comando da guerra contra Sertório e as suas hipóteses seriam muito maiores se conseguisse encontrar um pretexto para não desmobilizar as suas tropas. Se conseguisse mostrar que a Gália Italiana era um território potencialmente rebelde, ser-lhe-ia fácil manter-se nessa província com o seu exército, depois de terminada a guerra. Estaria longe o suficiente para não significar uma ameaça para Roma e, no entanto, continuaria com os seus soldados mobilizados. Pronto para seguir para Hispânia.
Gemínio fez exactamente o que lhe mandaram. Quando Bruto chegou à cidade de Régio Lépido, a norte de Mutina, os habitantes receberam-no calorosamente. Como o nome indicava, a cidade abundava em clientes dos Emílios Lépidos; e, como seria de esperar, ofereceu-se para lutar ao lado de Bruto, caso este o desejasse. Mas antes que Bruto tivesse oportunidade de responder, já Gemínio e os seus cinco esquadrões irrompiam pela cidade. Pouco depois, no fórum de Régio Lépido, Gemínio declarou Marco Júnio Bruto inimigo de Roma e cortou-lhe a cabeça.
Depois, enviou a cabeça para Pompeu, juntamente com uma lacónica mensagem, em que Gemínio afirmava ter surpreendido Bruto a organizar uma nova insurreição, acrescentando que, em sua opinião, a Gália Italiana se encontrava extremamente instável.
Pompeu redigiu num instante o seu relatório para o Senado:
Nas actuais circunstâncias, considero ser meu dever instalar na Gália Italiana as minhas duas legiões de veteranos. Fiz dispersar os soldados comandados por Bruto; embora considerando-os desleais, o único castigo que lhes infligi foi retirar-lhes as armas e armaduras. E as suas duas águias, como é evidente. Considero que o comportamento de Régio Lépido é um sintoma da agitação geral que reina a norte da fronteira e espero que isto seja fundamento suficiente para a minha decisão de permanecer aqui.
Não vos enviei a cabeça do traidor Bruto porque, na altura da sua morte, ele era um governador com um império propretoriano, e não creio que o Senado desejasse expô-la nos rostra. Em vez disso, enviei as cinzas do seu corpo e da sua cabeça para a viúva, a fim de que esta proceda a um funeral adequado. Espero não ter errado neste ponto. Não era minha intenção executar Bruto. Foi ele próprio que se condenou a tal sorte.
Poderei respeitosamente pedir que o meu império seja prolongado? Posso desempenhar uma função útil, aqui na Gália Italiana, defendendo a estabilidade da província em nome do Senado e do Povo de Roma.
O Senado, sob a hábil direcção de Filipe, considerou os homens que tinham participado na rebelião de Lépido como sacer; porém, como os horrores das prescrições ainda se faziam sentir, não ordenou represálias contra as suas famílias. A viúva de Marco Júnio Bruto, que já recebera o tosco vaso de barro contendo as cinzas do marido, podia dormir descansada. A fortuna do seu filho, então com seis anos, estava segura, embora tivesse ainda de lutar muito para que ele não fosse alvo de ódios políticos quando crescesse.
Servília descreveu ao filho a morte do pai, de forma a que a criança entendesse que não deveria nunca sentir a mínima admiração pelo assassino, Cneu Pompeu Magno, e que em caso algum deveria apoiá-lo. O rapaz escutou atentamente todas as palavras da mãe, aquiescendo com um ar solene. É possível que a notícia da morte do pai tivesse produzido nele algum choque: mas, se assim foi, ninguém deu por tal.
A criança não dava ainda mostras do crescimento próprio da sua idade: continuava magrinho e enfezado, com uma estatura inferior ao normal, e uma expressão de perpétuo amuo. com cabelos e olhos muito escuros e um tom de pele oliváceo, ganhara um certo encanto próprio da idade que a mãe, com os seus olhos superlativamente parciais, confundia com uma beleza imorredoira. Quanto ao tutor, dizia que a criança demonstrava grandes capacidades na leitura, na escrita e na matemática (embora calasse que o menino não possuía sinal de originalidade ou imaginação). Servília, naturalmente, não tinha a mínima intenção de mandar Bruto para a escola, com os outros rapazes; Bruto era demasiado sensível, demasiado inteligente, demasiado precioso — sabe-se lá o que lhe poderia acontecer no meio daqueles rapazes todos!
Apenas três familiares tinham ido apresentar condolências a Servília, embora dois deles, para sermos exactos, não passassem de parentes afastados.
Depois de mortos os pais, os avós e outros familiares chegados, o tio Mamerco, a única pessoa viva a elas ligada por vínculos de sangue, tinha deixado os seis órfãos do seu irmão e da sua irmã a cargo de uma prima de Servílio Cepião e da mãe desta. Estas duas mulheres, Cnéia e Pórcia Liciniana, não podiam deixar de apresentar condolências à viúva — uma cortesia que Servília teria perfeitamente dispensado. Cnéia continuava a ser a triste e apagada criadita de uma mãe dominadora; agora que estava quase a chegar aos trinta, mostrava-se ainda mais seca de carnes do que quando era adolescente. Pórcia Liciniana, naturalmente, dominou toda a conversa. Tal como sempre fizera ao longo da sua vida.
— Pois é verdade, Servília, nunca pensei que ficasses viúva tão cedo. Que pena! — disse a megera. — Achei espantoso que Sila tivesse poupado o teu marido e o teu sogro, não os incluindo nas listas dos prescritos, mas sempre pensei que Sila fez isso por causa de ti. Teria sido horrível — mesmo para Sila! — proscrever o sogro da sobrinha do seu próprio genro, ainda que ele tivesse razões para o fazer. O velho Bruto esteve sempre ao lado de Caio Mário e de Carbão; ao lado, não, agarrado a eles, como uma lapa. O teu casamento com Bruto salvou-vos aos dois. Pois era de crer que o filho tivesse aprendido a lição! Mas não, não aprendeu. Lançou-se numa aventura, com aquele idiota do Lépido! Qualquer pessoa com um mínimo de bom senso teria percebido que aquilo não dava nada!
— Tem toda a razão — disse Servília, lívida.
— Lamento imenso também o que aconteceu — disse Cnéia, sem mais nem menos, unicamente porque achava que tinha de dizer qualquer coisa.
Mas o olhar que Servília lançou àquela pobre criatura não continha nenhum sinal de amor ou de compaixão; Servília desprezava-a, embora odiasse muito mais a mãe.
— Que vais fazer agora? — perguntou Pórcia Liciniana.
— Casar-me de novo o mais depressa possível.
— Casar de novo! Mas isso não é adequado a uma pessoa da tua posição! Eu nunca mais voltei a casar, depois de enviuvar.
— Provavelmente porque ninguém a pediu em casamento — retorquiu Servília, afavelmente.
Apesar de ser uma criatura insensível, Pórcia Liciniana não deixou de sentir o ferrão venenoso que havia naquela observação; ergueu-se majestaticamente e, com igual majestade, declarou:
— Cumpri o meu dever: apresentei as minhas condolências. Vamos, Cnéia, são horas de irmos andando. Não devemos atrapalhar Servília, Ela precisa de estar à vontade para procurar um novo marido.
”Pois bons ventos te levem, velha verpa!”, disse Servília para si mesma mal as duas saíram.
A terceira visita de Servília era tão pouco desejada como as outras: tratava-se do mais jovem dos seis órfãos, Marco Pórcio Catão, meio-irmão de Servília, pois eram filhos da mesma mãe, a irmã de Druso e Mamerco.
— O meu irmão Cepião teria vindo, se pudesse — disse o jovem Catão, com a sua voz áspera. — Mas está fora de Roma, com o exército de Catulo: ele é contubernalis, não sei se conheces
o termo.
— Conheço — retorquiu Servília com um ar gentil, demasiado gentil para não conter uma boa dose de troça.
Mas Marco Pórcio Catão era muito menos susceptível que Pórcia Liciniana: daí que tivesse ignorado a troça. Era já um homem, aos 16 anos, mas, tal como a sua irmã Pórcia, continuava a viver com Cnéia e Pórcia Liciniana. Mamerco vendera a casa de Druso há alguns anos, por ser demasiado grande; agora viviam todos na casa do pai de Catão.
Embora o nariz muito saliente e aquilino constituísse um óbice segundo os padrões de beleza romanos, a verdade é que Catão era um jovem muito atraente, de pele clara e ombros largos. Os seus olhos, grandes e expressivos, eram de um cinzento muito suave; o cabelo, cortado muito rente, era de um ruivo com tons acastanhados; a boca, por fim, era belíssima. No entanto, Servília achava-o o maior dos monstros — espalhafatoso, lento a aprender, insensível, e a mais quezilenta das criaturas desde que começara a andar e a falar; enfim, um verdadeiro tormento para os irmãos mais velhos.
Separavam-nos dez anos de idade e pais diferentes, mas não só; Servília era uma patrícia cuja família remontava aos tempos dos reis de Roma, ao passo que o ramo familiar de Catão remontava a uma escrava celtibera, Salónia, que fora a segunda mulher de Catão, o Censor. Para Servília, esta mancha que a mãe introduzira na sua própria família e na família do marido era absolutamente intolerável; daí que a mera visão dos seus três irmãos mais novos a deixasse furiosa e envergonhada. Perante Catão, não disfarçava tais sentimentos; no entanto, perante Cepião, suspostamente seu irmão inteiro (embora ela soubesse que não o era), tinha de reprimi-los. Por uma questão de decência. Uma decência podre!
Não que Catão sentisse qualquer estigma social; mostrava-se extremamente orgulhoso do seu avô, o Censor, e considerava a sua linhagem impecável. Como a Roma nobre perdoara a Catão, o Censor, este segundo casamento (motivado por uma vingança contra o seu enfatuado e pretensioso filho do primeiro casamento, com uma Licínia), o jovem Catão podia ter esperanças quanto a uma carreira no Senado e, muito provavelmente, quanto ao consulado.
— O tio Mamerco, pelos vistos, escolheu-te o marido errado — comentou Catão.
— Isso é falso — retorquiu Servília, sem levantar a voz. — O meu marido estava perfeitamente bem para mim. No fim de contas, sempre era um Júnio Bruto. Plebeu, talvez, mas rigorosamente nobre de ambos os lados.
— Porque será que tu não consegues ver que a linhagem de uma pessoa é muito menos importante que os seus feitos? — perguntou Catão.
— Não é menos importante, bem pelo contrário.
— Não passas de uma insuportável pretensiosa!
— Pois é isso mesmo que eu sou. E dou graças aos deuses por ser assim.
— Hás-de arruinar o teu filho.
— Isso é o que vamos ver.
— Deixa-o crescer um pouco mais, que eu passo-o para debaixo da minha asa. Vais ver como lhe arranco todas as pretensões sociais!
— Só por cima do meu cadáver.
— Não tens qualquer hipótese de me impedir. O rapaz não pode ficar agarrado às saias da mãe para toda a vida! Como ele não tem pai, sou eu que estou in loco parentis.
— Não será por muito tempo. Euvou voltar a casar.
— Uma nobre romana não deve voltar a casar! Sempre pensei que tu gostarias de imitar Cornélia, a mãe dos Gracos!
— Sou demasiado sensata para isso. Uma nobre romana, de linhagem patrícia, deve ter um marido capaz de garantir a sua proeminência na sociedade. Um marido tão nobre quanto ela, é claro.
Ele deu um riso relinchado.
— Não me digas que vais casar com um pateta como o Druso Nero!
— A minha irmã Lila é que está casada com Druso Nero.
— Detestam-se um ao outro.
— Choro lágrimas de sangue pelos dois.
— Pois euvou casar com a filha do tio Mamerco — disse Catão, com um ar todo inchado.
Servília olhou muito fixamente para o meio-irmão e depois desatou a rir com um ar trocista.
— Ai isso é que não vais! Emília Lépida está prometida em casamento a Metelo Cipião. O contrato foi feito há vários anos, quando o tio Mamerco estava com o pai de Metelo, Metelo Pio, no exército de Sila. E comparado com Metelo Cipião, tu não és nada!
— Não faz diferença. Pode ser que Emília Lépida esteja prometida a Metelo Cipião. Só que ela não gosta dele. Têm disputas a todo o momento. E para quem é que ela se vira quando ele a magoa? Para mim, evidentemente! Casarei com ela: disso podes estar certa!
— Não haverá nada debaixo do sol capaz de abater a tua inacreditável prosápia? — perguntou ela.
— Se há, nunca dei por isso — retorquiu ele, imperturbável.
— Não te preocupes, um dia hás-de dar.
Catão deu mais um dos seus risinhos relinchados.
— Isso era o que tu querias!
— Não é uma questão de querer, mas de saber. Eu sei que essa tua prosápia há-de evaporar-se, um dia.
— A minha irmã Pórcia já está arrumada — disse Catão, não porque quisesse mudar de assunto, mas simplesmente porque queria dar aquela informação.
— com um Aenobarbo, não é? O jovem Lúcio?
— Correcto. Vai casar com o jovem Lúcio. Gosto dele! É um tipo com as ideias certas!
— Uma nulidade como tu!
— Vou-me embora — disse Catão, levantando-se.
— Bons ventos te levem! — disse Servília, mas desta feita em voz alta.
E foi assim que Servília se foi deitar essa noite na sua cama vazia, mergulhada numa mistura de tristeza e determinação. com que então não aprovavam a sua intenção de se voltar a casar! com que então achavam que ela estava acabada!
— Pois estão enganados! — disse ela em voz alta, e adormeceu. Na manhã seguinte, foi visitar o tio Mamerco, com quem
mantivera sempre uma boa relação.
— És o executor do testamento do meu marido — disse ela. — Quero saber o que vai acontecer ao meu dote.
— O dote continua a ser teu, Servília. Mas agora que és viúva, não vais precisar dele. Marco Júnio Bruto deixou-te dinheiro suficiente para viveres confortavelmente e o filho dele é agora um jovem abastado.
— Tio, eu não gostaria de viver sozinha o resto da vida. Quero voltar a casar. Isto é, se por acaso me arranjares um marido adequado.
Mamerco pestanejou.
— Uma decisão rápida, Servília!
— Não tenho tempo a perder.
— Não podes voltar a casar-te nos próximos nove meses, Servília.
— Isso dá-te tempo para me encontrares um bom marido — disse a viúva. — Terá de ser um homem pelo menos tão bem nascido e tão rico como Marco Júnio, mas de preferência mais novo.
— Que idade tens?
— Vinte e sete.
— Um homem de trinta anos era o que te convinha, não?
— Era o ideal, tio Mamerco.
— Mas não um caçador de fortunas, é claro. Ela ergueu muito as sobrancelhas.
— Nem pensar, tio! Mamerco sorriu.
— Está bem, Servília.vou começar a fazer as minhas sondagens. Não deve ser difícil. Tens uma linhagem superlativa e um dote de duzentos talentos e, além disso, és fértil. Nem tu nem o teu filho serão uma carga financeira para o teu novo marido. Sim, creio que conseguiremos arranjar-te uma boa situação!
— A propósito, tio — disse ela, ao levantar-se para sair. — Sabes que o jovem Catão anda de olho na tua filha?
— O quê?
— O jovem Catão anda de olho em Emília Lépida.
— Mas ela já está comprometida — com Metelo Cipião!
— Foi o que eu disse a Catão, mas, pelos vistos, ele não considera esse compromisso como um impedimento. Claro que eu não acredito que Emília Lépida tenha alguma vez pensado em trocar Metelo Cipião por Catão. Mas faltaria aos meus deveres se não te informasse do que o jovem Catão anda por aí a dizer.
— bom, é verdade que eles são bons amigos — disse Mamerco, algo perturbado. — Mas ele tem a mesma idade que Emília Lépida! Normalmente, as raparigas não se interessam por rapazes da mesma idade.
— Repito, tio: não sei se ela está interessada em Catão. Tudo o que eu digo é que Catão está interessado nela. Corta o mal pela raiz, tio, corta o mal pela raiz!
Pois isto pôr-te-á no teu lugar, Marco Pórcio Catão!, disse Servília para si mesma, ao sair para a sossegada rua do Palatino onde viviam Mamerco e Cornélia Sila. Como te atreves a olhar para tão alto? Sim, porque a filha de Mamerco é uma patrícia, tanto do lado paterno como do lado materno!
E lá foi ela para casa, toda contente consigo mesma. Em certos aspectos, Servília não lamentava a reviravolta que a sua vida sofrera, por causa da viuvez; embora, na altura do casamento, não tivesse achado Marco Júnio Bruto demasiado velho, ao fim de oito anos de casada já o considerava um homem velho para ela; e isso deixava-a desesperada, pois poderia significar que não voltaria a ter filhos. Um filho já era bastante, mas não havia dúvida de que várias raparigas constituiriam um bom contributo; se tivessem bons dotes, encontrariam maridos interessantes, os quais podiam ser muito úteis, politicamente, para o seu filho. Sim, a morte de Bruto fora um choque para ela. Mas não sofria por isso.
Foi o próprio chefe dos criados que lhe abriu a porta.
— Que se passa, Dito?
— Tens uma visita, domina.
— Ao fim de tantos anos, grego imbecil, já devias saber anunciar melhor as visitas! — atirou-lhe ela, desfrutando do involuntário estremecimento de medo do criado. — Que visita é essa?
— Ele disse que se chamava Décimo Júnio Silano.
— Ele disse que se chamava Décimo Júnio Silano. Portanto: ou ele é quem diz que é, ou então não é! Em que ficamos, Epafrodito?
— É Décimo Júnio Silano.
— Levaste-o para o meu gabinete?
— Sim.
Servília encaminhou-se para o seu gabinete, ainda vestida com a sua palia preta, esforçando-se por se lembrar do homem que teria aquele nome. Era da mesma Família Famosa que o seu falecido marido, mas do ramo que fora cognominado Silano, porque o primeiro homem a usar essa alcunha, ao contrário do malicioso e feio Silano, de cuja boca saía água em todas as fontes de Roma, era, aparentemente, muito bonito. Possuindo a mesma reputação que os Mémios, os Júnios Silanos continuavam a ser particularmente bonitos.
Estendendo a sua mão à viúva, Silano disse-lhe que viera visitá-la para lhe apresentar as condolências e para lhe oferecer toda a assistência de que ela precisasse.
— Imagino que deve ser uma situação muito difícil para ti — concluiu ele, um tanto constrangido e corado.
Aquele rosto só podia ser de um Júnio Silano: cabelo louro, olhos azuis e muito, muito atraente. Servília gostava de homens bonitos e louros. Deixou que a mão dele envolvesse a sua não mais do que a decência recomendava e depois virou-se e colocou a sua palia nas costas da cadeira do falecido marido, revelando as vestes negras que usava por baixo. Aquela cor ficava-lhe bem pois tinha uma tez muito clara, embora os olhos e o cabelo fossem de um negro tão azeviche como as suas roupas de viúva. Por outro lado, sabia vestir-se bem, com requinte mas sem exageros; daí que o espantado Silano encontrasse uma Servília tão elegante como a que conhecera muito tempo antes.
— Não sei se te conheço, Décimo Júnio... — disse ela, fazendo um gesto para que ele se sentasse no divã, enquanto ela própria se sentava numa cadeira.
— Conheces, de facto, Servília. Mas já foi há tanto tempo... Conhecemo-nos num jantar em casa de Quinto Lutácio Catulo, pouco tempo antes de Sila se ter tornado Ditador. Não falámos muito, mas lembro-me de que tinhas dado à luz um filho pouco tempo antes.
O rosto dela iluminou-se.
— Ah, sim, claro! Desculpa a minha indelicadeza! — Levou a mão à cabeça, com um ar triste. — Mas já me aconteceu tanta coisa desde então...!
— Não penses nisso — disse ele, afectuosamente; depois, calou-se, de olhos postos no rosto dela.
Servília pigarreou delicadamente.
— Posso oferecer-te vinho?
— Não, obrigado.
— Vejo que não trouxeste a tua mulher, Décimo Júnio. Como está ela?
— Eu não tenho mulher, Servília.
— Ah!
Sob a capa de um rosto sedutoramente secreto, Servília não parava de pensar. Ele gostava dela! Não havia dúvida: ele gostava dela! E, pelos vistos, já há algum tempo! Além do mais, era um homem honrado. Sabendo que ela era casada, não se aventurara a desenvolver o seu relacionamento com ela ou com o marido. Mas agora que ela enviuvara, queria ser o primeiro, queria afastar desde já todos os outros concorrentes. Era um homem bem nascido, mas... seria rico? Era o filho mais velho, já que tinha o primeiro nome da família, Décimo: Décimo era o primeiro nome do filho mais velho, entre os Júnios Silanos. Parecia ter 30 anos, e assim era de facto. Mas seria rico? O melhor era investigar.
— Estás no Senado, Décimo Júnio?
— Entrei este ano. Sou questor urbano.
Óptimo, óptimo! Pelo menos tinha um censo senatorial.
— Onde ficam as tuas terras, Décimo Júnio?
— Ah, por todo o lado. As minhas principais propriedades ficam na Campânia — vinte mil iugera junto ao Volturno, entre Telésia e Cápua. Mas também tenho terras junto ao Tibre, uma grande propriedade no golfo de Tarento, uma villa em Cumas e outra em Larino — disse ele, desejoso de a impressionar.
Servília encostou-se um nada na sua cadeira e suspirou muito baixinho. Aquele homem era muito rico. Extremamente rico.
— Como está o teu filho? — perguntou.
Essa era uma obsessão que ela não conseguia esconder — mal lhe falavam no filho, os seus olhos ganhavam um estranho brilho e o seu rosto enchia-se de uma paixão que não se coadunava com os traços naturalmente enigmáticos
— Sente a falta do pai, mas creio que compreende. Décimo Júnio Silano levantou-se.
— É tempo de eu ir andando, Servília. Posso voltar?
Os olhos dela semicerraram-se e um tremor agitou-lhe as fartas pestanas negras. As faces coloriram-se de um tênue rosa e um ligeiro sorriso alegrou-lhe a boca.
— Claro, Décimo Júnio. Ficaria muito contente.
Ora aqui tens, Pórcia Liciniana!, disse ela para si mesma, exultante, enquanto conduzia Silano até à porta. Encontrei já um marido e ainda não sou viúva há um mês! Ah, a surpresa que o tio Mamerco vai ter!
Um mês depois da morte de Marco Júnio Bruto, Lúcio Márcio Filipe escreveu a seguinte carta a Cneu Pompeu Magno:
É verdade que ainda estamos na segunda metade do ano, mas, fazendo um balanço, podemos dizer que as coisas estão a correr extremamente bem. Esperava manter Mamerco permanentemente em Roma, mas, após a notícia das mortes de Bruto e Lépido, recusou-se a acreditar que o seu cargo de Princeps Senatus o obrigava a ficar em Roma por mais tempo e pediu ao Senado que o autorizasse a preparar-se para a guerra contra Sertório. Os nossos bodes senatoriais depressa se transformaram em ovelhas, dando a Mamerco as quatro legiões pertencentes a Catulo, que se encontravam em Cápua à espera de desmobilização. Catulo, apresso-me a acrescentar, está muito satisfeito com os resultados da sua pequena campanha contra Lépido; imerecidamente, ganhou uma notável reputação militar, sem precisar de ir mais longe que o Campo de Marte; com tal reputação, não lhe foi difícil convencer o Senado a dar a Mamerco o governo da Hispânia Citerior e o comando da guerra contra Sertório.
É possível que Mamerco seja o homem de que a Hispânia precisa. Portanto, tenho de fazer com que ele não chegue lá nunca. Porque pretendo conseguir para ti uma comissão especial na Hispânia, antes que Lúculo tenha tempo de voltar de África. Afortunadamente, creio que acaba de me chegar às mãos o instrumento necessário para frustrar as ambições de Mamerco. Ele — claro que se trata de um homem! — é um dos vinte questores deste ano, e chama-se Caio Élio Estaieno. Além disso, foi integrado, por sorteio, no exército do cônsul! Por outras palavras: tem estado em Cápua a trabalhar para Catulo desde o início do seu mandato, e, de futuro, trabalhará para Mamerco.
Olha que é difícil encontrar maior vilão, meu caro Magno! Até agora, só encontrei um igual a ele — Caio Verres, o qual, depois de ter assegurado a condenação e o exílio do jovem Dolabela, testemunhando contra ele no processo movido pelo jovem Escauro, se pavoneia agora por Roma ao lado da mulher com quem recentemente se casou, uma Cecília Metela, nem mais nem menos! A filha de Metelo Caprário, o Bode, e irmã daqueles três promissores jovens que são, infelizmente, o melhor que os Cecílios Metelos produziram nesta geração. Uma verdadeira proeza.
Mas voltando ao que interessa. Abordei o nosso vilão, Caio Élio Estaieno, e garanti os seus serviços. Não chegámos a falar de uma maquia específica, mas é certo e sabido que ele não vai sair barato. Fará, no entanto, o que lhe for ordenado. Disso estou certo. A ideia dele é fomentar um motim entre as tropas algum tempo depois de Mamerco se ter instalado em Cápua — o tempo suficiente para se perceber que Mamerco é o motivo do motim. Ousei referir que aqueles soldados eram veteranos de Sila e que, por isso, dificilmente se virariam contra o genro do seu amado Sila, mas Estaieno desatou a rir das minhas dúvidas. Um riso tão confiante e sincero que logo as minhas apreensões se evaporaram. De qualquer modo, só podemos esperar grandes coisas de um homem que conseguiu ser adaptado pelos Élios e que tudo faz para que as pessoas o tratem por Peto, em vez de Estaieno! Impressiona todo o género de homens, mas em especial os das classes baixas, que aprovam o seu estilo oratório e se deixam inflamar facilmente por ele.
Como conto agora com a oposição de Estaieno ao comando de Mamerco, tive de mudar de estratégia — sempre que encontro Mamerco, pergunto-lhe por que razão continua ele em Roma, em vez de seguir para Cápua, onde já deveria estar a preparar as tropas. Creio que, o mais tardar em Setembro, Mamerco será vítima de uma gigantesca revolta. E logo que me cheguem notícias desse motim, tratarei de insistir junto do Senado para que opte pela cláusula da comissão especial.
Felizmente, as coisas nas Hispânias vão de mal a pior, o que só me facilita o meu trabalho. Portanto, sê paciente e mantém-te animado, meu caro Magno! A coisa acabará por acontecer. E acontecerá mais cedo do que poderíamos esperar. Tão cedo que poderás atravessar os Alpes antes que as neves cubram e bloqueiem os desfiladeiros.
O motim, que ocorreu no início do mês de Sextilis, foi preparado de uma forma muito inteligente por Caio Élio Estaieno — não houve sangue derramado, nem confrontos amargos, e impregnava-o uma tal sinceridade que a sua vítima, Mamerco, se viu sem vontade de disciplinar os soldados. Uma delegação fora ter com ele e anunciara, com inquebrantável firmeza, que as legiões só iriam para Hispânia se fossem comandadas por Cneu Pompeu Magno, porque acreditavam que só Cneu Pompeu Magno conseguiria vencer Quinto Sertório.
— E talvez — disse Mamerco, no Senado, onde apresentou o seu relatório, tão abalado pelo choque que só podia estar a ser sincero — eles tenham razão! Confesso que não os censuro. Deram provas do maior respeito. Soldados com uma tal experiência de guerra têm normalmente um faro muito apurado para este tipo de questões. E, por outro lado, eles conhecem-me bem. Se eles pensam que eu não posso vencer Quinto Sertório, então devo perguntar a mim mesmo se realmente terei possibilidades de o vencer. Se eles acham que Cneu Pompeu Magno é o único homem à altura para tal missão, então devo perguntar a mim mesmo se por acaso não terão razão.
Estas palavras calmas e sinceras produziram um profundo efeito nos senadores, os quais — mesmo os das bancadas da frente — se sentiam, não indignados, mas inclinados ao debate. O que tornou tudo muito mais fácil para Filipe.
— Pais Conscritos, — começou ele, com amor na voz —, é tempo de enfrentarmos a situação na Hispânia sem paixão, nem preconceitos. Confesso que foi para mim uma experiência notável escutar o nosso inteligente cônsul júnior, o nosso Princeps Senatus, Mamerco Emílio Lépido Liviano! Permitam-me, pois, que prossiga no mesmo tom comedido e ponderado.
Filipe virou-se, olhando para todos os rostos que conseguia ver da sua posição no lado esquerdo da primeira fila.
— Foi fácil entender os primeiros êxitos de Quinto Sertório, depois de ter regressado a Hispânia para se juntar aos Lusitanos, já lá vão três anos e meio. Homens como Lúcio Fufídio tinham-no em pouca conta e, por isso, avançaram precipitadamente para as batalhas. Quando o nosso Pontifex Maximus, Quinto Cecílio Metelo Pio, chegou à Hispânia Ulterior, e o seu colega Marco Domício Calvino chegou à Hispânia Citerior, todos nós sabíamos que ia ser difícil bater Quinto Sertório. Na primeira campanha, o legado de Sertório, Lúcio Hirtuleio, atacou as seis legiões de Calvino apenas com quatro mil homens! — e esmagou Hirtuleio. Calvino morreu no campo de batalha. Tal como a maior parte dos seus soldados. Sertório movimentou-se então contra Pio, embora preferisse concentrar-se no melhor legado de Pio, Tório. Tório morreu no campo de batalha e as suas três legiões sofreram grandes baixas. O nosso querido Pio viu-se obrigado a retirar para Olisipo, junto ao rio Tejo, com Sertório no seu encalço. Era sua intenção passar o Inverno em Olisipo.
”No ano seguinte, ou seja, o ano passado, não se registaram grandes batalhas. Mas também não houve grandes êxitos! Pio passou o tempo a tentar escapar às garras de Sertório, enquanto Hirtuleio devastou a Hispânia Central, estabelecendo a ascendência de Sertório entre as tribos celtiberas. Sertório já tem os Lusitanos na palma da mão e são muitas as possibilidades de que conquiste toda a Hispânia — exceptuando as terras entre o rio Bétis e as montanhas Orospeda, onde Pio concentrou tantas forças que Sertório dificilmente se sentirá tentado a atacá-lo.
”Mas o governador da Gália Transalpina do ano passado, Lúcio Mânlio, pensou que conseguiria desferir um rude golpe em Sertório. Por isso, atravessou os Pirenéus e avançou pela Hispânia Citerior com quatro legiões. Hirtuleio enfrentou-o junto ao rio Ebro e infligiu-lhe uma tal derrota que Lúcio Mânio foi obrigado a retirar imediatamente para a sua província. Onde, como depressa descobriu, já não podia considerar-se em segurança! Hirtuleio seguiu-o e infligiu-lhe uma segunda derrota.
”Este ano não tem sido melhor para nós, Pais Conscritos. A Hispânia Citerior ainda não recebeu o seu governador e a Hispânia Ulterior continua sob o governo de Pio, o qual não conseguiu mover-se para oeste do Bétis, nem para norte das Orospeda. Sem oposição, Quinto Sertório atravessou o desfiladeiro de Consabura, penetrou na Hispânia Citerior e instalou a sua capital em Osca — reparem que ele teve a audácia de organizar a sua ocupação dos territórios de Roma ao longo das posições romanas! Possui uma capital oficial e um senado — e até mesmo uma escola, onde tenciona ensinar Latim e Grego aos filhos dos chefes bárbaros, para que eles possam vir a ser os chefes da Hispânia Sertoriana!
Os seus magistrados possuem títulos romanos, o seu senado é composto por trezentos homens. E agora, conta com o apoio de Marco Perperna Veiento e das forças de Lépido que conseguiram fugir da Sardenha.”
Nada disto era novo; toda a gente conhecia bem aqueles factos. Mas nunca ninguém os condensara num discurso breve, desapaixonado e firme. O Senado soltou um suspiro colectivo e deixou-se afundar nos bancos, acometido de total impotência.
— Pais Conscritos, nós temos de enviar um governador para a Hispânia Citerior! Nós bem tentámos, mas Lépido impediu que Quinto Lutácio seguisse para esse território; por outro lado, um motim impediu o nosso Princeps Senatus de o fazer. Não tenho a mínima dúvida de que este governador terá de ser um homem muito especial. O seu primeiro dever será fazer a guerra; só depois governará! De facto, podemos dizer que o seu primeiro dever será o seu único dever! Das catorze legiões que acompanharam Pio e Calvino, há dois anos e meio, parece que só existem sete, e todas elas se encontram com Pio, na Hispânia Ulterior. Na Hispânia Citerior há soldados — mas pertencem a Quinto Sertório. Não há ninguém nessa província capaz de se lhe opor.
”O homem que mandarmos para a Hispânia Citerior terá de levar um exército consigo — não podemos retirar tropas a Pio. E nós temos o núcleo desse exército instalado em Cápua — quatro boas legiões, compostas, na sua maior parte, por veteranos de Sila. Os quais afirmaram, de forma muito clara, que só iriam para Hispânia se fossem comandados por Cneu Pompeu Magno. Que não é senador, mas cavaleiro.”
Filipe fez uma longa pausa para que estas últimas palavras penetrassem bem no espírito dos senadores. Quando recomeçou, o seu tom de voz era mais vivo e prático.
— Portanto, meus colegas senadores, temos uma sugestão, graças ao exército de Cápua — Cneu Pompeu Magno. No entanto, a lei de Lúcio Cornélio Sila estipula que, antes de aceitarmos tal sugestão, devemos ver se existe no Senado alguém que queira assumir o comando e que possua as qualificações militares necessárias para o assumir. Gostaria, pois, de saber se existe tal homem neste Senado.
Virou-se para o pódio curul e olhou para o cônsul sénior.
— Décimo Júnio Bruto, queres o comando?
— Não, Lúcio Márcio, não quero. Sou demasiado velho e demasiado fraco em questões de guerra.
— Mamerco?
— Não, Lúcio Márcio, não quero. O meu exército recusou-me.
— Pretor urbano?
— Mesmo que o meu cargo me permitisse deixar Roma durante mais de dez dias, a minha resposta seria negativa — retorquiu Cneu Aufídio Orestes.
— Pretor externo?
— Não, Lúcio Márcio, não quero — disse Marco Aurélio Cota. Após o qual, mais seis pretores declinaram a proposta. Filipe virou-se então para as filas da frente e começou a
perguntar aos consulares.
— Marco Túlio Decula?
— Não.
— Quinto Lutácio Catulo?
— Não.
E assim continuou — todas as respostas eram negativas, Filipe fez de conta que perguntava a si mesmo, e respondeu:
— Não, não quero! Sou demasiado velho, demasiado gordo — e um desastre, do ponto de vista militar.
Virou-se então para todo o Senado.
— Há alguém nesta casa que se sinta qualificado para assumir este alto comando? Caio Escribónio Curió, por exemplo?
Curió teria adorado responder que sim: mas Curió fora comprado e a honra ditava a sua resposta.
— Não.
Havia, entre os presentes, um senador muito jovem que teve de agarrar as pernas e morder na língua para permanecer quieto e silencioso; mas não foi difícil conter-se, porque sabia que Filipe nunca concordaria com a sua nomeação. Caio Júlio César só chamaria as atenções para a sua pessoa se tivesse algumas garantias de que a sua nomeação poderia ser aceite.
— Nesse caso — disse Filipe —, temos de recorrer à comissão especial e a Cneu Pompeu Magno. Todos nós ouvimos estas respostas negativas dos nossos colegas senadores. É possível que, entre os senadores e promagistrados que se encontram actualmente no estrangeiro, haja homens adequados para este comando. Mas nós não podemos esperar mais tempo! A situação tem de ser enfrentada agora, pois, caso contrário, perderemos as Hispânias! E parece-me evidente que o único homem disponível e adequado a tais funções é Cneu Pompeu Magno! Que é cavaleiro, e não senador. Mas tem experiência militar desde os dezasseis anos, e desde os vinte e um anos que conduz as suas próprias legiões em sucessivas batalhas! O nosso falecido Ditador preferia-o a todos os outros homens. E com razão! O jovem Pompeu Magno tem experiência, talento, um número infindo de soldados veteranos e os interesses de Roma no coração.
”Dispomos dos meios constitucionais para nomear este jovem governador da Hispânia Citerior com um império proconsular, para o autorizar a comandar as legiões que acharmos adequadas e para tolerar o seu estatuto de cavaleiro. No entanto, gostaria de pedir que, ao entregarmos a Pompeu Magno esta comissão especial, não sugeríssemos que o consideramos como alguém que já assumiu as funções de cônsul. Non pró consule, sed pró consulibus — que ele não seja visto como um cônsul depois do seu ano em funções, mas sim como alguém que actua em nome dos cônsules do ano. Dessa forma, ele não poderá esquecer-se de que a sua comissão é efectivamente especial.”
Filipe sentou-se; Décimo Júnio Bruto, o cônsul sénior, levantou-se.
— Membros desta casa, proponho uma divisão. Aqueles que são a favor da concessão de uma comissão especial com um império proconsular e seis legiões a Cneu Pompeu Magno, cavaleiro, deverão colocar-se à minha direita. Aqueles que se opõem, deverão colocar-se à minha esquerda.
Ninguém se colocou à esquerda de Décimo Bruto. Nem mesmo o muito jovem senador Caio Júlio César.
Pompeu não tinha ninguém com quem partilhar as novidades quando a carta de Filipe chegou a Mutina; e o mesmo sucedeu quando, nos Idos de Sextilis, recebeu as directivas do Senado. Continuava a tentar convencer Varrão de que a expedição a Hispânia seria interessante e benéfica para um promissor estudioso dos fenômenos naturais e artificiais, mas as respostas de Varrão às suas muitas missivas revelavam pouco entusiasmo. Os filhos de Varrão estavam numa idade que ele achava deliciosa e, por isso, não tinha o mínimo desejo de se ausentar de Roma por um período de tempo que, com toda a certeza, seria longo.
O novo procônsul que nunca fora cônsul estava muito bem preparado e sabia perfeitamente como haveria de proceder. Em primeiro lugar, escreveu ao Senado para o informar de que levaria três das quatro legiões que tinham pertencido a Catulo e depois a Mamerco, e três legiões constituídas pelos seus próprios veteranos. No entanto — acrescentava —, a guerra que Metelo Pio estava a travar na Hispânia Citerior não parecia privilegiar o ataque e, por outro lado, desde que Metelo Pio fora para essa região, a tónica mudara da Hispânia Ulterior para a Hispânia Citerior; por isso, pedia ao Senado que ordenasse a Metelo Pio que desse uma das suas sete legiões a Pompeu. Finalmente, o seu valoroso cunhado, Caio Mémio, era agora tribuno dos soldados com Metelo Pio, mas, no ano seguinte, seria já demasiado velho para disputar o cargo de questor; seria possível autorizar Caio Mémio a disputar o cargo de questor in absentia e a integrar depois a equipa de Pompeu como questor para a Hispânia Citerior?
O assentimento do Senado (que Filipe dominava agora a seu belprazer) chegou antes de Pompeu deixar Mutina, fortalecendo a sua convicção de que o Senado lhe daria tudo o que quisesse. Pai de um rapaz com quase dois anos de idade e de uma menina que nascera naquele ano, Pompeu deixara Múcia Tércia na sua fortaleza de Piceno depois de ter comunicado à esposa e aos criados que ela não deveria visitar Roma durante a sua ausência. A campanha seria longa e Pompeu não via qualquer interesse em expor a bela e enigmática esposa a certas tentações.
Embora tivesse já reunido mil cavaleiros das suas antigas unidades de cavalaria, Pompeu tencionava recrutar mais cavaleiros na Gália Transalpina, e essa era uma das razões que o levava a ir para a Hispânia por terra. Além disso, era um péssimo marinheiro, tinha medo do mar e não confiava nos transportes marítimos para chegar a tempo e em boas condições à sua nova província, apesar de os ventos de Inverno favorecerem a viagem.
Todos os mapas haviam já sido estudados, todos os mercadores e viajantes que costumavam usar a estrada para a Hispânia haviam sido inquiridos. A Via Domícia, no entanto, apresentava um sem-número de dificuldades, como Pompeu teve oportunidade de verificar. Marco Perperna Veiento, acompanhado pelo que restava do exército de Lépido, passara, meses antes, por essa mesma estrada a caminho da Hispânia, e fizera o possível por fomentar a inimizade contra Roma na região. Daí resultou que todas as principais tribos da Gália Transalpina se tivessem revoltado — os Hélvios, os Vocôncios, os Salúvios, os Volcas Arecomicos.
Para Pompeu, esta agitação tribal significaria uma série de atrasos na sua marcha para a Hispânia, pois a Gália Transalpina estava cheia de povos hostis a Roma e que eram temíveis guerreiros. Não tinha dúvidas quanto ao seu êxito no confronto com esses povos, mas queria desesperadamente chegar a Hispânia antes do Inverno; se queria ser ele, e não Metelo Pio, a ganhar a guerra, não poderia demorar um ano a chegar a Hispânia — e essa era uma perspectiva muito provável, dada a agitação na Gália Transalpina. Todos os desfiladeiros ao longo dos Alpes se encontravam guardados por alguma das tribos revoltosas; os Salúvios, caçadores de cabeças, controlavam a cordilheira dos Alpes Marítimos, os Vocôncios ocupavam o vale do rio Druência e o desfiladeiro do monte Genebra, os Hélvios guardavam as regiões médias do vale do Ródano, e os Volcas Arecomicos controlavam a Via Domícia, sob o maciço central de Cebena.
Claro que juntaria louros à sua coroa, se acabasse com todas estas insurreições bárbaras — mas louros de pouca qualidade. Aquelas tribos estavam entre ele e Sertório. Logo, a questão era esta: como evitar uma demorada e dispendiosa viagem pela Gália Transalpina?
A resposta ocorreu-lhe antes de deixar Mutina, na primeira metade de Setembro: evitaria as estradas habituais, abrindo uma nova estrada. O maior dos afluentes do rio Pó era o Dúria Maior, que descia com rapidez e violência extremas desde os picos mais elevados, os picos situados entre as planícies da Gália Italiana Ocidental e os lagos e rios que corriam na Gália Comata Oriental — o lago Lemano, o alto Ródano e o poderoso rio Reno, que separava as terras dos Gauleses das terras dos Germanos. A belíssima fenda esculpida nas montanhas pelo Dúria Maior fora desde sempre conhecida como o vale dos Salássios, por ser habitada pela tribo gaulesa com esse nome; uma geração antes, fora encontrado ouro no leito desse rio e os prospectores romanos não perderam tempo — no entanto, os Salássios resistiram tão fortemente a esta intrusão romana que, desde então, as tentativas para explorar o ouro da região não tinham passado da cidade de Eporédia, que ficava praticamente no princípio do vale.
Porém, segundo se dizia, do ponto mais alto do vale dos Salássios partiam dois caminhos que atravessavam os Alpes Peninos. Um deles era um caminho de cabras que conduzia às montanhas mais altas e a uma cidade da tribo dos Veragros denominada Octoduro e que, depois, acompanhava o curso do Ródano até este entrar na ponta oriental do lago Lemano; devido à sua altitude (mais de três mil metros), este caminho só era praticável durante o Verão e o princípio do Outono, além de que era demasiado traiçoeiro para permitir a passagem de um exército. O segundo caminho ficava a uma altitude de cerca de dois mil metros e era suficientemente largo para receber carroças e outros transportes, embora não dispusesse de pavimento, nem contasse com qualquer vigilância romana; conduzia às nascentes do rio Isara e às terras dos Alóbroges e depois ao Ródano, sensivelmente a meio do seu curso em direcção ao mar Mediterrâneo. Os Germanos Címbrios tinham fugido por esse caminho depois de terem sido derrotados por Caio Mário e Catulo César em Vercelas, embora os seus progressos tivessem sido lentos e muitos dos seus soldados tivessem sido mortos pelos Alóbroges, e também pelos Ambarros, mais a oeste.
Durante a primeira entrevista que teve com um grupo de Salássios pró-Romanos, Pompeu desistiu da hipótese do caminho mais elevado; mas o outro caminho interessou-o fortemente. Era um caminho suficientemente largo para os transportes — logo, também o seria para as suas legiões e, assim esperava, para a sua cavalaria. O tempo real estava atrasado cerca de um mês em relação ao calendário: por isso, poderia atravessar os Alpes Graias no pino do Verão se por acaso se pusesse a caminho no início de Setembro, e, por outro lado, as hipóteses de haver neve a dois mil metros de altitude eram mínimas. Decidiu não usar carroças para o transporte de bagagens, confiando que conseguiria provisões e equipamento na zona de Narbona, na ponta mais extrema das províncias gaulesas; por isso, requisitou todas as mulas que houvesse — os animais transportariam as cargas que fosse necessário transportar.
— Vamos marchar a um ritmo rápido, por muito difícil que seja o terreno — disse ele ao seu exército, ao alvorecer do dia em que partiram. — Quanto menos notícias tiverem os Alóbroges sobre a nossa marcha, tanto maiores serão as nossas possibilidades de não nos vermos envolvidos numa guerra que eu preferia não travar. Teremos de chegar aos Pirenéus antes que esteja fechado o caminho menos elevado que conduz à Hispânia! A Gália Transalpina pertence moralmente aos Domícios Aenobarbos — e, no que me diz respeito, podem perfeitamente ficar com ela! O que eu quero é estar na Hispânia Citerior no Inverno. E estaremos na Hispânia Citerior no Inverno!
Ao chegar ao ponto mais alto do vale dos Salássios, em fins de Setembro, o exército meteu pelo menos elevado dos dois caminhos possíveis — e, surpreendentemente, deparou com muito pouca oposição tanto a nível do terrreno, como a nível dos povos que viviam na zona. Pompeu desceu depois ao vale do Isara e às terras dos ferozes Alóbroges — apanhados de surpresa, os Alóbroges nem tiveram tempo de brandir as lanças. Só quando chegou ao Ródano é que Pompeu deparou com uma oposição organizada. Eram os Hélvios, que viviam na margem ocidental do grande rio e em parte do maciço de Cebena. No entanto, Pompeu não teve a mínima dificuldade em vencê-los — acabando mesmo por ficar com reféns, o que era uma boa maneira de garantir o bom comportamento da tribo, no futuro. Os Vocôncios e Salúvios que tiveram a coragem de se aventurar pelas planícies do Ródano acabaram por ter a mesma sorte — tal como, aliás, os Volcas Arecomicos, depois de o exército de Pompeu ter atravessado os pântanos entre Arelate e Nemauso. Vencido o último perigo, Pompeu juntou as várias centenas de reféns e mandou-os para Massília, onde ficariam sob a custódia romana.
Antes do Inverno, tinha já atravessado os Pirenéus e instalara-se num magnífico acampamento entre os civilizados Indígenas, perto da cidade de Empórias. Pompeu estava já na Hispânia Citerior, mas apenas a poucos quilômetros da fronteira. O procônsul que nunca fora senador — e muito menos cônsul — decidiu então escrever ao Senado, contando as suas aventuras desde que deixara a Gália Italiana, e dando um realce especial à sua coragem e ousadia — como se via pelo facto de ter aberto um novo caminho através dos Alpes — e à facilidade com que derrotara a oposição gaulesa.
Sem dispor da ajuda de Varrão, que dava sempre um retoque final à sua prosa chã e muito limitada, Pompeu escreveu depois ao outro procônsul, Metelo Pio, o Bacorinho, que se encontrava na Hispânia Ulterior.
Cheguei a Empórias e instalei o meu acampamento de Inverno. Tenciono passar o Inverno a preparar os meus soldados para as campanhas do próximo ano. Julgo que o Senado te enviou já instruções no sentido de me dares uma das tuas legiões. O meu cunhado Caio Mémio já deve ter sido eleito questor. Ele deverá ser o meu questor e poderá chefiar a legião que me vais dar.
É claro que a melhor maneira de derrotar Quinto Sertório será através de um esforço conjunto. Foi por isso que o Senado não nomeou nenhum de nós sénior. Nós seremos co-comandantes e trabalharemos em conjunto.
Passei muito tempo a falar com homens que conhecem a Hispânia e elaborei uma grande estratégia para o próximo ano. Sertório não pretende penetrar na Hispânia Ulterior a leste do Bétis, porque essa região está já muito romanizada, para além de ser muito habitada. Ou seja, é uma região com poucos selvagens, e só os selvagens gostam de Sertório.
Cabe-te a ti, Quinto Cecília, controlar a Hispânia Ulterior — e será bom que não faças nada capaz de levar Sertório a invadir as tuas terras a leste do Bétis. Euvou expulsá-lo do litoral da Hispânia Citerior este ano. Não será uma campanha difícil do ponto de vista dos abastecimentos, pois o litoral possui bons terrenos agrícolas e cereais de muito boa qualidade. Marcharei para sul na Primavera, atravessarei o rio Ebro e seguirei na direcção de Nova Cartago, onde deverei chegar sem problemas a meio do Verão. Caio Mémio levará a sua legião e marchará a partir do Bétis, passará por Ad Fraxino e Eliocroca e seguirá para Nova Cartago, a qual, como é evidente, continua a ser nossa. Embora isolada do resto da Hispânia Citerior pelas forças de Sertório. Depois de as forças de Caio Mémio e as minhas se terem reunido em Nova Cartago, regressaremos a Empórias, a fim de passarmos o Inverno; no regresso, trataremos de reforçar as diversas cidades costeiras por onde passarmos.
No ano seguinte, expulsarei Sertório do interior da Hispânia Citerior e obrigá-lo-ei a ir para sul e oeste, para as terras dos Lusitanos. No terceiro ano, Quinto Cecília, juntaremos os nossos dois exércitos e esmagá-lo-emos junto ao rio Tejo.
Quando Metelo Pio recebeu esta comunicação, em meados de Janeiro, retirou-se para o seu gabinete, na casa que ocupava na cidade de Hispális, a fim de a estudar atentamente e no maior recolhimento. Não se riu; o conteúdo da carta era demasiado sério. Mas não deixou de pôr um sorriso amarelo, sem saber que Sila recebera, em tempos, uma carta que não era muito diferente daquela, cheia de informações sobre uma região que Sila conhecia muito melhor que Pompeu. Por todos os deuses, o miúdo carniceiro tinha uma confiança ilimitada em si mesmo! Ah, e o ar superior dele!
Tinham passado já três anos desde que Metelo Pio e as suas oito legiões haviam chegado à Hispânia Ulterior, três anos em que Sertório conseguira superá-lo a todos os níveis. Ninguém tinha mais respeito por Quinto Sertório e pelo seu legado Lúcio Hirtuleio do que Metelo Pio, o Bacorinho. E ninguém sabia melhor do que ele como seria difícil — mesmo para um Pompeu — vencer Sertório e Hirtuleio. No que lhe dizia respeito, a tragédia residia no facto de que Roma não lhe tinha dado tempo suficiente. Segundo a fábula de Esopo, o vencedor da corrida era aquele que seguia a um ritmo lento, mas firme; e Metelo Pio era a personificação desse ritmo lento e firme. Curara as suas feridas e reorganizara as suas forças de modo a absorver as perdas de uma legião, e instalara-se depois na sua província sem lançar qualquer provocação contra Sertório. Fizera-o de forma perfeitamente deliberada. É que, enquanto esperava e reunia as informações da espionagem sobre os movimentos de Sertório, ia pensando na melhor estratégia. Não acreditava que fosse impossível derrotar Sertório; mas acreditava que Sertório não poderia ser vencido por métodos ortodoxos. E estava cada vez mais convencido de que a solução para aquela guerra residia, pelo menos parcialmente, na instauração de uma rede de espionagem mais astuciosa e sinuosa — uma rede de espionagem capaz de impedir Sertório de antecipar os movimentos das suas tropas. Seria uma missão difícil, já que os nativos eram a chave para a espionagem — tanto para a sua, como para a de Sertório. Mas não era uma missão impossível! E Metelo Pio estava a tentar encontrar a melhor maneira de conduzir essa missão a bom porto.
Mas agora tinha de contar com Pompeu — Pompeu, que entrara na cena espanhola, dotado de um império idêntico ao dele, conferido pelo Senado (ou melhor, por Filipe), e convencido de que os seus talentos eram muito superiores aos de Sertório, Hirtuleio e Metelo Pio todos juntos. Pois bem, disse Metelo Pio para si mesmo, o tempo ensinaria a Pompeu aquilo que ele não queria, por ora, aprender; o tempo e algumas derrotas. Ah, não havia dúvida de que o jovem era corajoso como um leão — mas o Bacorinho conhecia Sertório desde os 18 anos e sabia que também Sertório era corajoso como um leão. E, mais importante ainda, Sertório era o herdeiro militar de Caio Mário; Sertório sabia da arte da guerra como poucos homens em toda a história de Roma. No entanto, Metelo Pio começava a ter noção das fraquezas de Sertório e estava quase certo de que a sua principal fraqueza residia na imagem que fazia de si mesmo. Se conseguisse minar essa auto-imagem mítica, teria por certo Sertório nas suas mãos.
Mas Metelo Pio estava convencido de que não seria através da oposição militar de um Cneu Pompeu Magno que Sertório conheceria a derrota.
O seu filho entrou nesse momento, depois de ter batido à porta e pedido para entrar; Metelo Pio era um firme defensor das regras de etiqueta. Conhecido por toda a gente como Metelo Cipião (embora em privado o pai o tratasse por Quinto), o seu nome inteiro era, no entanto, majestático: Quinto Cecílio Metelo Pio Corneliano Cipião Nasica. Agora com 19 anos, juntara-se no ano anterior à equipa do pai, com as funções de contubernalis; estava extremamente satisfeito pelo facto de (tal como o pai fizera com o avô) poder fazer o seu treino militar sob as ordens do pai. Este laço paternal não era, porém, um laço de sangue, já que Metelo Pio adoptara o filho mais velho da irmã da sua esposa Licínia, casada com Cipião Nasica. O facto de a mais velha das Licínias ter um ror de filhos e de a mais nova ser estéril era, para o Bacorinho, um verdadeiro mistério. Mas eram coisas que aconteciam e, quando aconteciam, um homem podia divorciar-se, ou então, caso amasse a esposa estéril (como acontecia com o Bacorinho), podia ter filhos adoptivos.
De um modo geral, o Bacorinho estava satisfeito com o resultado desta adopção, embora preferisse que o rapaz fosse um pouco mais inteligente e muito menos arrogante. Mas era de esperar que fosse arrogante — Cipião Nasica, o verdadeiro pai, também o era. Alto e bem constituído, Metelo Cipião possuía uma certa altivez de expressão que usava como substituto para a beleza que não tinha. Os seus olhos eram de um tom cinzento-azulado e o cabelo revelava-se muito fraco — logo, não era nada parecido com o pai adoptivo. E se alguns dos seus contemporâneos (como o jovem Catão) achavam que Metelo Cipião andava sempre com um ar importante, a verdade é que ele tinha algumas razões para se sentir importante. Uma dessas razões era o casamento que fora combinado entre os seus pais e os pais de Emília Lépida, Mamerco e a sua primeira esposa, uma Cláudia Pulcra. Apesar de os dois jovens terem zangas constantes, a verdade é que ambos gostavam muito um do outro.
— Uma carta de Cneu Pompeu Magno, que está em Empórias — disse Metelo Pio ao filho, mostrando-lhe a carta, mas sem qualquer intenção de lha dar a ler.
A expressão de superioridade de Metelo Cipião pareceu afirmar-se ainda mais; com um ar desdenhoso, retorquiu:
— É um verdadeiro ultraje.
— Num certo aspecto, é um ultraje. Mas o conteúdo desta carta animou-me muito. O nosso brilhante prodígio militar pensa que Sertório, em termos militares, não passa de um burro — enfim, alguém que está muito abaixo dele!
— Ah, estou a ver — disse Metelo Cipião, sentando-se. — Pompeu pensa que vai dar cabo de Sertório numa única campanha! É isso, não é?
— Não, não, meu filho! Em três campanhas! — retorquiu o Bacorinho, afavelmente.
Sertório passou o Inverno na sua nova capital, Osca, juntamente com o seu principal legado, Lúcio Hirtuleio, com outro legado extremamente capaz, Caio Herénio, e com Marco Perperna Veiento, que chegara a Hispânia há relativamente pouco tempo.
Quando Perperna chegou, as coisas não correram bem, pois Perperna pensava que os seus vinte mil homens de infantaria e os mil e quinhentos soldados de cavalaria permaneceriam sob o seu comando.
— Não posso permitir uma coisa dessas — foi a resposta que ouviu de Sertório.
Perperna sentiu-se ultrajado.
— Mas estes são os meus homens, Quinto Sertório! É uma prerrogativa minha dizer o que lhes vai acontecer e como devem ser usados! E o que eu digo é que eles ainda me pertencem!
— Porque estás a tentar imitar Cepião, o Cônsul, antes da batalha de Arausio? — perguntou Sertório. — Nem penses nisso, Veiento! Na Hispânia, só há um comandante-chefe e cônsul — eu!
Mas esta conversa não pôs um termo ao conflito. Perperna continuou a afirmar alto e bom som que Sertório não tinha o direito de lhe recusar um estatuto idêntico ao dele, nem de ficar com o seu exército.
Sertório decidiu então levar o caso ao seu senado.
— Marco Perperna Veiento pretende combater a presença romana na Hispânia como uma entidade separada e com um estatuto idêntico ao meu — disse ele. — Não acatará as minhas ordens, nem seguirá as minhas estratégias. Peço-lhes, Pais Conscritos, que informem este homem de que, se não quiser ser meu subordinado, deverá deixar a Hispânia.
O senado de Sertório informou Perperna, mas nem por isso este se submeteu. Certo de que o direito e os costumes estavam do seu lado, convocou uma assembleia do seu exército. E os seus homens disseram-lhe, de forma muito clara, que era Sertório quem tinha razão. Serviriam Quinto Sertório, e não Perperna.
E foi assim que Perperna se viu obrigado a ceder. Toda a gente (incluindo Sertório) ficou com a impressão de que cedera de bom grado e de que não guardava qualquer ressentimento. Porém, sob uma máscara de placidez, Perperna continuava a arder de raiva, mantendo bem acesas as chamas do seu ultraje. É que, em termos romanos, estava exactamente ao mesmo nível de Quinto Sertório: ambos tinham sido pretores e nenhum deles fora cônsul.
Ignorando que, interiormente, Perperna se mantinha hostil ao seu comandante, Sertório avançou, nesse Inverno, com a sua estratégia para a campanha do ano seguinte.
— Não faço a mínima ideia de quem seja este Pompeu — disse o comandante-chefe, sem excessivas preocupações. — No entanto, depois de ter estudado a sua carreira, cheguei à conclusão de que não será difícil vencê-lo. Se eu tivesse achado que Carbão era capaz de vencer Sila, teria obviamente permanecido em Itália. Carbão tinha alguns homens valorosos — Carrinas, Censorino, Bruto Damasipo. Porém, quando desertou, deixou um comando e um exército profundamente desmoralizados — e foi contra esses homens que Pompeu combateu. E se formos a ver as primeiras batalhas de Pompeu, torna-se óbvio que ele nunca enfrentou um general verdadeiramente capaz ou um exército animado de um espírito indestrutível.
— Tudo isso vai mudar — disse Hirtuleio, com um sorriso arreganhado.
— Claro que vai. Como é que lhe chamam? Miúdo Carniceiro, não é? Pois comigo não terá direito a tal epíteto!vou chamar-lhe apenas ”Miúdo”! É um indivíduo presunçoso e inconsciente e não tem o mínimo respeito pelas instituições romanas. Se tivesse, não estaria aqui com um império idêntico ao da velha da Hispânia Ulterior. Pompeu manipulou de tal forma o Senado que conseguiu um comando a que não tinha direito, seja qual for a cláusula especial que Sila possa ter introduzido nas suas leis. Portanto, cabe-me a mim pô-lo no seu lugar. Um lugar que não é tão elevado como ele pensa.
— Tens alguma ideia do que ele poderá fazer? — perguntou Herénio.
— Ah, deve fazer o que é lógico — retorquiu Sertório, com um ar jovial. — Tentará conquistar-nos a costa leste.
— E a velha? — perguntou Perperna, que adoptara de bom grado a alcunha que Sertório inventara para Metelo Pio.
— bom, por enquanto ainda não deu sinais de si, pois não? Mas se a chegada de Pompeu o encorajar, a solução é simples: prendemo-lo na sua própria província. Espalhamos os Lusitanos pelas suas fronteiras ocidentais. Isso obrigá-lo-á a deixar o Bétis e a instalar a sua residência junto ao Anas; então, se se sentir tentado a ajudar Pompeu, terá pela frente uma marcha de mais de cento e cinqüenta quilômetros. Mas não creio que ele venha a sentir tal tentação. A velha é muito cautelosa, detesta aventuras. E por que raio haveria ele de cansar-se a ajudar um miúdo que conseguiu arrancar ao Senado um império idêntico ao dele? A velha é uma rigorosa defensora das tradições e das normas, Perperna. Cumprirá sempre o seu dever perante Roma, seja qual for o homem que Roma lhe mande. Mas não fará mais do que isso. E, quando vir uma multidão de Lusitanos do outro lado do Ánas, o seu primeiro dever consistirá precisamente em conter esses intrusos. E ele cumprirá o seu dever. Mas não fará mais do que isso.
Terminada a reunião, Sertório foi dar de comer à sua corça branca. Este animal, mágico por causa da raridade da cor, tinha ganho uma importância inusitada aos olhos dos seus soldados espanhóis, que o consideravam uma prova dos poderes mágicos de Sertório, concedidos por intervenção divina. Sertório não perdera com a idade a facilidade de trato com os animais selvagens e, da segunda vez que se instalara na Hispânia, tinha já consciência do profundo efeito que esse seu jeito provocava nos povos nativos. A corça branca, ao que parece órfã, aparecera-lhe dois anos antes nas montanhas da Hispânia Central, ainda muito pequena e medrosa; deslumbrado pela sua beleza, fora ter com ela de joelhos, sem parar para pensar no que estava a fazer, preocupado apenas em envolvê-la com os seus braços e confortá-la. Mas os seus soldados hispânicos murmuraram de espanto uns para os outros e, a partir desse dia, passaram a vê-lo com outros olhos. Estavam convencidos de que a corça branca era nem mais nem menos do que uma encarnação da mais importante das suas deusas, Diana, a qual mostrara assim a Sertório a consideração que tinha por ele, erguendo-o acima de todos os outros homens. E ele percebera quem era a corça branca! De outro modo, não teria ido ter com ela de joelhos, em humilde adoração.
A corça branca estava com ele desde esse dia. Seguia-o como um cão. Não permitia que mais nenhum outro homem ou mulher se aproximasse dela — só Sertório o podia fazer. Por outro lado — mais mágico ainda! — a corça nunca crescera: continuava pequenina, muito bonita, com olhos cor de rubi, fazendo cabriolas à volta de Sertório, para que este a abraçasse e beijasse. Dormia sempre ao seu lado, coberta por uma pele de ovelha. Estava sempre com ele, até mesmo nas campanhas. Durante as batalhas, Sertório atava-a a uma estaca, num lugar seguro, pois, se a deixasse em liberdade, ela tentaria pela certa ir ter com ele ao campo de batalha; e Sertório não queria pôr em perigo a vida da corça — se ela morresse, os seus soldados espanhóis concluiriam que a deusa o tinha abandonado.
Na verdade, também ele acabara por admitir que a corça branca era um sinal de uma qualquer bênção divina; cada vez acreditava mais nisso — como seria de esperar, chamava-lhe Diana, e, sempre que falava com ela, referia-se a si mesmo como ”o papá”.
— Vem cá ao papá, Diana! — chamava ele.
E Diana vinha a correr ao seu encontro, pedindo-lhe afagos e beijos. Ele ajoelhava-se, abraçava aquele corpo trêmulo, beijava a cabecita macia e, com uma mão, acariciava-lhe a orelha — uma carícia que ela adorava. Sertório punha-a sempre na rua quando tinha conferências com os seus legados; a corça ficava muito triste, sem perceber por que razão o papá a castigara. Terminadas as reuniões, Sertório ia buscá-la: e ao frenesim de culpa e contrição com que ela o saudava, respondia ele com mais e mais abraços e muitos sussurros amorosos; só depois de completamente acalmada é que ela acedia a comer. Porventura compreensivelmente, Sertório pensa mais na sua Diana do que na sua mulher germana e no filho de ambos — a corça fora-lhe enviada pelos deuses; a mulher e o filho, não. Havia só um ser que ele amava mais do que Diana: a sua mãe, a quem não via há sete anos.
Enquanto a corça branca afocinhava, toda contente, na sua ração de erva seca (em Osca, no Inverno, os pastos ficavam cobertos de neve e gelo), Sertório sentou-se num penedo e procurou descobrir o que se passaria na mente de Pompeu. Um miúdo! Acreditaria Roma sinceramente que um miúdo de Piceno conseguiria derrotá-lo? Quando se levantou, tinha já concluído que Roma e o Senado haviam sido ludibriados pelas artimanhas de Filipe. É que Sertório continuava a manter contactos com certas figuras de Roma — e não se tratava de personalidades obscuras ou apagadas. Mesmo sob o regime de Sila, havia muitos descontentes que, secretamente, conseguiam manter viva a sua luta; eram alguns desses homens que mantinham Sertório informado. Desde a nomeação de Pompeu que o teor dessas informações se alterara um pouco; alguns homens importantes começavam a sugerir que se Quinto Sertório vencesse o novo campeão do Senado, Roma talvez o aceitasse de bom grado como Ditador.
Mas Sertório pensara entretanto noutro aspecto do problema; por isso chamou Lúcio Hirtuleio à sua presença.
— É absolutamente necessário que consigamos manter a velha na Hispânia Ulterior — disse ele a Hirtuleio. — Receio que os Lusitanos não constituam uma força capaz de desencorajar Metelo Pio. Quero que, na Primavera, tu e o teu irmão levem o exército hispânico para Lamínio. É em Lamínio que vão montar o vosso acampamento. Então, se a velha decidir ajudar o miúdo, tu farás com que ela fique quietinha. Se Metelo Pio tentar sair da sua província atravessando o Anas ou o Bétis, terás de lhe cortar o caminho.
O exército hispânico era constituído por quarenta mil lusitanos e celtiberos, a quem Sertório e Hirtuleio, não sem grande esforço, tinham ensinado a combater como legiões romanas. Sertório possuía outras forças Hispânicas, mas mantivera as suas características nativas — eram guerrilheiros magníficos, grandes especialistas em emboscadas; sabia, porém, desde o princípio, que se quisesse derrotar Roma, teria de ter também legiões romanas convenientemente treinadas. Muitos romanos e italianos tinham-se alistado nas suas hostes após a derrota de Carbão, mas esses homens não chegavam. Daí que Sertório tivesse sido obrigado a criar um exército espanhol.
— E estarás em condições de enfrentar Pompeu sem a nossa ajuda? — perguntou Hirtuleio.
— Será fácil, com os homens de Perperna.
— Então não te preocupes com a velha. Eu e o meu irmão não a deixaremos sair da Hispânia Ulterior.
— Não te esqueças disto — disse Metelo Pio a Caio Mémio, antes que este iniciasse a sua marcha para Nova Cartago. — As tuas tropas são mais preciosas do que a tua própria pele. Se as coisas correrem mal — ou seja, se Pompeu tiver menos êxito do que aquele que espera —, leva os teus homens para um abrigo suficientemente forte, para uma fortaleza capaz de impedir qualquer ataque inimigo. Tu és um militar em quem se pode confiar e lamento ter de te perder. Mas o mais importante é que tenhas sempre em mente os teus homens.
com uma expressão solene no seu belo rosto, o novo questor de Pompeu, que também era seu cunhado, conduziu a sua legião para leste, atravessando a região que era considerada como a mais rica e fértil do mundo — mais rica do que a Campânia, do que o Egipto, do que a Província da Ásia. Dotada de um clima moderado, sem os excessos de calor ou frio de outras paragens, de rios com cursos abundantes, alimentados por neves perpétuas e profundos solos aluviais, a Hispânia Ulterior era um verdadeiro celeiro, verde na Primavera e no princípio do Verão, dourado durante as fartas colheitas. O gado era gordo e produtivo, as águas abundavam em peixe.
Caio Mémio era acompanhado por dois homens que não tinham nada a ver com Romanos ou Ibéricos: um tio e um sobrinho com pouca diferença de idade, e ambos com o mesmo nome — Kinahu Hadasht Byblos. O seu sangue era fenício, mas, oficialmente, eram cidadãos da grande cidade portuária de Gades, a qual fora fundada por uma colônia fenícia, cerca de mil anos antes, e que mantinha ainda os costumes e as raízes púnicas. O domínio dos Cartagineses não fora difícil de aceitar, já que os Cartagineses eram também de origem púnica. Depois tinham chegado os Romanos, e o povo de Gades afeiçou-se a eles; Gades prosperou e, gradualmente, os nobres da cidade foram compreendendo que o destino da sua cidade estava indissociavelmente ligado ao destino de Roma. Qualquer povo civilizado do mar Mediterrâneo era preferível ao domínio das tribos bárbaras da Hispânia Oriental e Central, e, agora, o principal receio dos Gaditanos era que Roma abandonasse a Hispânia. Essa era a razão por que o tio e o sobrinho tinham decidido acompanhar Caio Mémio — fariam tudo o que estivesse ao seu alcance para o ajudar. Mémio confiara-lhes de bom grado todas as tarefas relacionadas com o abastecimento das tropas, além de os usar como intérpretes e fontes de informação. Como não conseguia pronunciar correctamente o seu nome púnico, e porque eles falavam muito bem latim, ainda que com o ceceio característico da sua língua materna, o novo questor de Pompeu tinha-lhes posto a alcunha de Balbo, que apontava precisamente para os seus problemas de pronúncia; embora Mémio não percebesse bem porquê, a verdade é que o tio e o sobrinho ficaram extremamente satisfeitos com o facto de lhes ter sido atribuído um cognome latino.
— Cneu Pompeu disse-me que deveria passar por Ad Fraxino e Eliocroca — disse Mémio ao mais velho dos Balbos. — Crês que é esse o caminho correcto?
— Creio que sim, Caio Mémio — retorquiu Balbo, cujos maxilares salientes e nariz aquilino proclamavam a sua origem semítica, tal como os olhos escuros e muito grandes. — Seguiremos o curso do Bétis praticamente até às suas nascentes orientais, depois atravessaremos as montanhas Orospeda, na sua zona mais baixa. É uma zona de nascentes de rios, mas se marcharmos de Ad Fraxino para Basti, poderemos meter por uma estrada que contorna as nascentes e conduz directamente a Eliocroca. De Eliocroca, desceremos rapidamente até ao Campo Espartário. É esse o nome que os Romanos dão às planícies dos Contestanos, à volta de Nova Cartago. As outras alternativas possíveis não apresentam qualquer vantagem.
— Encontraremos alguma oposição importante, durante a nossa marcha?
— Não haverá nenhuma oposição até atravessarmos as montanhas Orospeda. Mas depois... sabe-se lá!
— Os Contestanos estão connosco ou contra nós? Balbo encolheu os ombros.
— com as tribos ibéricas, não pode haver certezas! Os Contestanos sempre viveram perto de homens civilizados, e isso é capaz de contar. Mas Sertório também é civilizado e, no entanto, há muitos hispânicos que o admiram!
— Então o melhor é não nos preocuparmos: logo se verá o que acontece — disse Mémio, e não mais se preocupou com o caso; o que interessava, para já, era que chegassem a Eliocroca.
Antes de Caio Mário ter aberto as minas nas cordilheiras entre o Bétis e o Anas (que vieram a chamar-se montanhas Marianas, em sua homenagem), as montanhas Orospeda haviam sido a principal fonte do chumbo e da prata explorados por Roma. Em conseqüência disso, a parte sul das montanhas escasseava em florestas — e por essa zona Mémio teria de passar. Mémio tinha de percorrer uma distância de quase quinhentos quilômetros, menos trezentos que Pompeu; porém, como o seu terreno era mais difícil, Mémio iniciara a sua marcha algum tempo antes de Pompeu, mais precisamente em meados de Março. Em fins de Abril, e sem grandes pressas, desceu as montanhas Orospeda e atingiu a pequena cidade de Eliocroca, na margem sul do rio Tader; o Campo Espartário espraiava-se diante dele.
Encontrando-se na Hispânia há já demasiado tempo para poder confiar nos povos nativos, Mémio juntou as suas tropas o mais que pôde e marchou com intenções fortemente defensivas na direcção de Nova Cartago, que ficava cerca de cinqüenta quilômetros a sudoeste. Depressa verificou que fizera bem em optar por uma postura defensiva. Não muito longe da estrada que partia de Eliocroca, os Contestanos estavam à sua espera; prometeu então a Júpiter Optimus Maximus o sacrifício de um bezerro, caso conseguisse manter a sua legião intacta até chegar a um local seguro. Este local seguro era obviamente Nova Cartago; Caio Mémio não punha sequer a hipótese de se instalar noutro sítio qualquer. Teria de ser mesmo na península de Nova Cartago.
Aqueles cinqüenta quilômetros mais pareceram cem. Mémio mandou a sua cavalaria gaulesa à frente, a fim de guardar a estrada que ligava o continente à península, considerando que dificilmente poderia vencer se por acaso os Contestanos o interceptassem nesse estreito ponto. Saíra de Eliocroca a boa velocidade, deparara com as tribos contestanas alguns quilômetros depois, avançara em seguida cuidadosamente, com as suas cortes formando um quadrado na estrada. Sendo soldados de infantaria e não estando habituados a batalhas campais, os Contestanos não conseguiriam vencer uma tal formação. Quando chegou ao estreito, verificou que não havia soldados inimigos por perto e atravessou-o calmamente e em segurança, e com a sua legião intacta.
Enviou então o mais velho dos Balbos a Gades, num barco particularmente precário e que tresandava a garum, a salmoura em que eram conservados os peixes; a carta que Balbo levava para Metelo Pio, apesar de ficar impregnada daquele cheiro, era extremamente importante. Explicava a situação, pedia ajuda e avisava Metelo Pio de que Nova Cartago não agüentaria até ao Inverno se entretanto não recebesse alimentos. Finalmente, confiou ao mais novo dos Balbos uma missão muito mais perigosa: penetrar as agitadas tribos instaladas a norte de Nova Cartago e tentar chegar a Pompeu.
Pompeu deixou os arredores de Empórias no início de Abril, pois os seus conselheiros locais informaram-no de que o volume do Ebro estaria já muito reduzido em finais desse mês, o que lhe permitiria atravessá-lo a pé sem problemas.
Resolvera satisfatoriamente o problema dos seus legados, nomeando apenas picentinos ou italianos e escolhendo como legados séniores Lúcio Afrânio e Marco Petreio, ambos viri militares de Piceno que há já vários anos estavam sob o comando de Pompeu. O colega de César em Mitilene, Aulo Gabínio, descendia de uma família picentina; Caio Cornélio não pertencia aos Cornélios patrícios; e Décimo Lélio não tinha qualquer parentesco com os Lélios que se tinham notabilizado sob os comandos de Cipião Africano e Cipião Emiliano. Militarmente, todos eles tinham já dado provas do seu valor ou então prometiam seriamente dá-las; socialmente, porém, apenas Aulo Gabínio (cujos pai e tio eram senadores) podia nutrir esperanças de subir em Roma sem um forte apoio de Pompeu.
A marcha começou muito bem. Descendo rapidamente pela costa, Pompeu e as suas seis legiões e os mil e quinhentos cavaleiros atingiram Dertosa, na margem norte do Ebro, sem encontrarem oposição. Quando começaram a atravessar o Ebro, duas legiões comandadas por Herénio tentaram interceptá-los, mas depressa bateram em retirada; Pompeu, mais confiante e seguro do que nunca, avançou para sul com o maior dos optimismos. Porém, não muito tempo depois, Herénio reapareceu, desta feita reforçado por duas legiões de Perperna. Contudo, quando viram os soldados da frente destroçados pelas tropas de Pompeu, Herénio e Perperna ordenaram uma retirada rápida.
Os batedores de Pompeu eram excelentes. Enquanto Pompeu continuava a avançar a bom ritmo, trouxeram-lhe a notícia de que Herénio e Perperna se tinham refugiado na grande cidade inimiga de Valência, a mais de cento e cinqüenta quilômetros a sul da posição de Pompeu. Como Valência ficava nas margens do rio Túris e as vastas planícies do Túris eram muito ricas e intensamente cultivadas, Pompeu aumentou ainda mais o seu ritmo. Quando chegou a Sagunto — perto da embocadura de um pequeno rio que ficava no meio de uma região muito pobre —, ficou a saber, através dos seus batedores, que Sertório estava demasiado longe para poder ajudar Herénio e Perperna. Receando aparentemente que Metelo Pio invadisse o Norte da Hispânia a partir da nascente do Tejo, Sertório colocara o seu exército um pouco mais a norte, nas margens do rio Saio, em Segôncia, onde poderia interceptar o Bacorinho. Uma decisão muito engenhosa, pensou Pompeu, mas devias estar mais perto de Herénio e Perperna, meu caro Sertório!
Estava-se já em meados de Maio, e Pompeu começava a aperceber-se de que o longo Verão das terras baixas ibéricas era terrivelmente quente. Apercebia-se também de que os seus homens bebiam imensa água e devoravam num instante as suas rações. Faltavam ainda muitos meses para as colheitas e os celeiros das cidades por onde tinha passado poucos cereais tinham fornecido às suas tropas. Aquela costa, que, pelo que vira nos mapas e pelo que os seus conselheiros lhe tinham dito, deveria ser extremamente rica, nada tinha a ver com a Itália; Pompeu sempre achara a costa do Adriático pobre e subpovoada: pois o litoral leste da Hispânia era muito pior.
Embora leal a Roma, Sagunto não tinha cereais para lhe dar. Os piratas tinham assaltado os seus celeiros e o povo da cidade tinha os alimentos racionados até às próximas colheitas. Valência e as planícies do Túris chamavam-no; Pompeu desfez o acampamento e reatou a marcha.
Se a visão dos formidáveis penhascos das terras do interior dava apenas uma pálida imagem das dificuldades por que passaria qualquer exército para atravessar a Hispânia Central, então Sertório, acampado em Segôncia no princípio de Maio, não poderia nutrir qualquer esperança de chegar a Valência antes de fins de Junho — e isso, conforme os batedores garantiram a Pompeu, só se Sertório aprendesse a voar! Incapaz de admitir que outro general fosse capaz de conduzir mais depressa os seus homens, Pompeu acreditou nos seus batedores, que podiam de facto ter essa opinião — mas que, provavelmente, trabalhavam secretamente para Sertório. Fosse como fosse, menos de um dia depois de ter deixado Sagunto, Pompeu ficou a saber que Sertório e o seu exército se encontravam já entre ele e Valência — e que, nesse preciso momento, estavam a atacar a cidade de Lauro, leal a Roma!
Pompeu dificilmente poderia ter entendido que Sertório conhecia todas as voltas, todos os vales, todos os desfiladeiros e todos os caminhos entre o mar Mediterrâneo e as montanhas da Hispânia Ocidental — e que Sertório conseguia avançar por essas regiões com uma velocidade incrível, porque todas as aldeias por onde passava lhe davam todos os seus alimentos e incentivavam-no com um amor que se confundia com a adulação. Nenhum Celtibero ou Lusitano aceitava a presença romana na Hispânia; todos os Celtiberos e Lusitanos sabiam que Roma estava na Hispânia unicamente para explorar as riquezas da região. O facto de Sertório, o homem que reavivara as suas esperanças, ser um romano, era considerado, pelos povos nativos, como uma dádiva dos seus deuses. De facto, quem melhor poderia combater os Romanos, senão um Romano?
Quando os batedores lhe disseram que Sertório tinha apenas duas pequenas legiões, Pompeu ficou estupefacto. A desfaçatez! O desplante! Cercar uma cidade romana apenas com duas legiões, e com seis óptimas legiões romanas e mil e quinhentos cavaleiros a pouca distância! Só visto: contado, ninguém acreditaria! Pompeu avançou então para Lauro, febril e exultante porque a deusa Fortuna não esperara muito para pôr um inimigo como Sertório no seu caminho.
Um olhar frio e desapaixonado para Lauro e para as tropas de Sertório, do alto de uma boa posição a norte da pequena planície, foi mais do que suficiente para fortalecer a confiança de Pompeu. Cerca de quilômetro e meio a leste das muralhas de Lauro ficava o mar, ao passo que, para oeste, ficava um monte bastante alto mas com um cimo plano. Para alguém que estudasse a situação do ponto onde estava Pompeu, a conclusão era fácil: o monte a oeste da cidade era a base ideal para conduzir as operações. E, no entanto, Sertório tinha pura e simplesmente ignorado esse monte! Tomando rapidamente uma decisão, Pompeu conduziu a bom ritmo o seu exército na direcção do monte, seguro de que aquela posição magnífica já não lhe escapava. Montando o seu enorme Cavalo Público branco, o general de 29 anos postou-se à frente das suas tropas, a fim de que os sitiados de Lauro pudessem vê-lo.
Embora perscrutasse atentamente o monte até chegar ao sopé, só no derradeiro momento é que Pompeu reparou que o cimo plano do mesmo estava a abarrotar de lanças. E, de repente, o ar foi fendido por vaias, apupos e gritos de escárnio: Sertório e os seus homens gritavam-lhe que tinha de ser mais rápido se quisesse conquistar um monte a Quinto Sertório!
— Ó miúdo, com que então nem te passou pela cabeça que eu sabia o que tu querias! — atroou uma voz vinda do cimo. — És demasiado lento! Pensas que és tão esperto como Africano e tão corajoso como Horácio Cocles, não é, miúdo? Pois bem, fica sabendo que Quinto Sertório te acha um amador! Não sabes o que é ser soldado! Mas não te vás embora, miúdo, e deixa que um profissional te ensine!
Pompeu, que não era estúpido ao ponto de atacar Sertório numa posição inexpugnável, não teve outra hipótese senão retirar-se. Olhando sempre em frente, consciente de que a sua face ardia, ordenou aos seus homens que recuassem com ele e só parou quando chegou ao ponto de onde partira. O sol já tinha passado o zénite, mas ainda havia muito tempo para tentar uma outra manobra. E mandava o orgulho que Pompeu ensaiasse uma outra manobra.
Lutando por controlar as suas emoções, arquejante, Pompeu voltou a estudar a cena. Um pouco mais abaixo, os seus soldados sorviam as últimas pingas de água dos odres que os burros carregavam; conversavam uns com os outros, enquanto expunham as cabeças suadas aos fortes raios solares e se inclinavam, cansados, sobre as lanças ou os escudos. Conversavam sobre o seu belo e jovem general e a humilhação que sofrera, perguntando-se se aquela seria a primeira campanha que o seu belo e jovem general iria perder. E arrependidos por não terem feito testamento, antes de partirem para a guerra.
Pompeu não quisera Afrânio ou Petreio ao seu lado; e os mais novos, como Aulo Gabínio, ainda menos. Mas agora pedia a Afrânio e Petreio que fossem ter com ele. Quando os dois legados lá chegaram, postando-se ao lado de Pompeu, este apontou com um pau para o distante monte.
— Estão a ver onde está Sertório? — perguntou Pompeu, ainda que retoricamente apenas; não estava à espera de uma resposta. — Está ocupado com as muralhas. Creio que está a tentar sapá-las. O acampamento dele é ali. Ah, estou a ver que ele já desceu o monte! Ele não quer o monte, o que ele realmente quer é a cidade. Mas eu nãovou cair na armadilha outra vez! — disse ele, de dentes cerrados. — A distância que temos de marchar antes de entrarmos em combate com ele é de cerca de quilômetro e meio, e o seu exército ocupa mais ou menos metade dessa distância — muito pouco espaço, o que é vantajoso para nós. Se quiser ter alguma hipótese, terá de apertar ainda mais o seu exército quando nos vir avançar — e temos de partir do princípio que ele pensa que tem alguma hipótese, pois, caso contrário, não estaria ali. Pode dispersar para oeste ou leste, ou em ambas as direcções ao mesmo tempo. Imagino que dispersará nas duas direcções: era o que eu faria. — Esta última observação saiu-lhe sem querer; Pompeu corou muito, mas prosseguiu o seu discurso despreocupadamente. — Avançaremos sobre ele com as nossas alas projectando-se à frente do nosso centro, com a cavalaria distribuída equitativãmente pelas pontas das alas, e a infantaria — uma legião para cada ala — formando a parte mais densa das alas, junto ao centro, onde colocarei as outras quatro legiões. Quando um exército avança por um terreno plano, o inimigo dificilmente se apercebe da distância entre as alas e o centro, e nós alargaremos essa distância à medida que nos formos aproximando. Se Sertório, como parece, me tem em pouca conta, não acreditará que eu seja capaz de possuir alguma astúcia militar. Até ao momento em que as minhas alas o envolverem, impedindo a sua fuga para oeste ou para leste. Encostá-lo-emos às muralhas. Não terá saída possível.
Afrânio ousou fazer uma observação.
— Acho que vai resultar — disse. Petreio aquiesceu.
— Também acho — disse.
Pompeu não precisava de mais confirmações. Mandou que os corneteiros tocassem para formar e alinhar e deixou que Afrânio e Petreio fossem comunicar as suas ordens aos outros legados e aos centuriões-chefes. Entretanto, tratou de chamar seis arautos montados.
Quando Afrânio e Petreio voltaram para ao pé dele, já era demasiado tarde (além do que daria demasiado nas vistas) para dissuadi-lo do que fizera; estupefactos, Afrânio e Petreio viram os arautos afastar-se e pediram a todos os deuses que a nova manobra de Pompeu resultasse.
Enquanto o exército dava início à sua marcha, os arautos, sob a bandeira da paz, aproximaram-se dos limites do acampamento de Sertório. Aí chegados, berraram a sua mensagem para os habitantes de Lauro, que se espalhavam pelas muralhas.
— Povo de Lauro! — gritavam. — Juntem-se todos nas vossas muralhas e vejam como Cneu Pompeu Magno vai ensinar a este renegado que se intitula romano que espécie de homem é um verdadeiro romano! Venham ver a derrota fragorosa que Cneu Pompeu Magno vai infligir a Quinto Sertório!
Ah, sim, aquilo ia resultar!, pensava Pompeu, cavalgando de novo à frente do seu exército. As suas alas iam-se alargando cada vez mais à medida que as legiões avançavam — e, no entanto, Sertório continuava parado. Os seus homens iam ficar cercados! Sertório e todos os seus soldados morreriam, morreriam! Ah sim, Sertório ficaria a conhecer, da forma mais dolorosa e definitiva, a raiva de Cneu Pompeu Magno!
Os seis mil homens que Sertório mantivera em reserva, completamente escondidos dos batedores de Pompeu, bem como dos seus olhos, tinham entretanto caído sobre a retaguarda desprotegida de Pompeu e estavam já a destroçá-la sem que a vanguarda desse por isso. Quando deu por isso, Pompeu nada pôde fazer para impedir o desastre. As suas alas estavam agora tão longe que já não podia fazê-las voltar para trás; por outro lado, começavam já a lutar contra os homens de Sertório sob as muralhas de Lauro — muralhas apinhadas de gente, devido às proclamações dos arautos. Depois de terem falhado várias tentativas para voltar para trás, o máximo que Pompeu e os seus legados podiam fazer era lutar freneticamente para que as quatro legiões do centro formassem em quadrado. Para piorar ainda mais a situação, esquadrões da cavalaria sertoriana, vindos das traseiras da cidade, atacavam agora as pontas das alas de Pompeu, ameaçando o próprio comandante. Os desastres sucediam-se uns aos outros.
,Mas as legiões veteranas que Pompeu chefiava eram constituídas por homens corajosos e possuíam centuriões experientes; combateram com denodo, apesar de terem as bocas secas devido à falta de água e os corações apertados porque alguém conseguira superar o seu belo e jovem general, coisa que eles nunca tinham julgado possível. Graças àqueles homens, Pompeu e os seus legados conseguiram por fim formar o quadrado e mesmo instalar um acampamento.
Pelo crepúsculo, Sertório retirou, deixando Pompeu a ultimar o seu acampamento no meio de pilhas de cadáveres. E no meio de vaias e apupos, que agora vinham não só dos soldados de Sertório, mas também dos cidadãos de Lauro. Pompeu nem podia refugiar-se para chorar sozinho; sentia-se demasiado mortificado para tapar a cabeça com a sua capa escarlate de general e chorar debaixo dela. Em vez disso, obrigou-se a distribuir sorrisos e palavras de encorajamento pelos seus soldados, animando os homens que se queixavam da sede e do calor, pensando como e onde poderia arranjar água, incapaz de imaginar uma maneira de se libertar da vergonha que sentia.
À primeira luz do alvorecer, mandou um mensageiro a Sertório, pedindo-lhe tempo para tratar dos mortos. Sertório acedeu a tal pedido, e com tanta generosidade que Pompeu teve tempo de mudar o acampamento para um local bem abastecido de água potável. No entanto, acometido de profunda depressão, deixou aos seus legados a tarefa de contar e enterrar os mortos em profundas valas; não havia madeira para queimar os cadáveres, nem tão pouco qualquer tipo de combustível. Enquanto os legados executavam esse trabalho, Pompeu retirou-se para a sua tenda de comando; entretanto, os soldados que não estavam feridos — poucos, muito poucos — construíram uma boa fortaleza à volta do seu campo, para manter Sertório à distância após o termo do armistício. Só ao pôr do Sol é que Afrânio ousou pedir uma audiência. Vinha só.
— Ainda vamos demorar muito tempo a enterrar todos os mortos — disse o legado sénior, num tom perfeitamente normal.
O general falou, também no mesmo tom.
— Quantos mortos temos, Afrânio?
— Dez mil soldados de infantaria, sete mil cavaleiros.
— E feridos?
— Cinco mil feridos graves e quase todos os outros com cortes, arranhões, nódoas negras. Os cavaleiros que sobreviveram estão bem, mas faltam-lhes montadas. Sertório preferiu matar-lhes os cavalos.
— Isso significa que agora disponho apenas de quatro legiões de infantaria — uma das quais seriamente ferida — e oitocentos cavaleiros sem cavalos.
— Sim, é isso.
— Ele abateu-me como se abate um cão.
Afrânio nada disse; limitou-se a fitar a parede de couro da tenda com olhos inexpressivos.
— Ele é primo de Caio Mário, não é? -É.
— Suponho que isso explica tudo.
— Suponho que sim.
Durante um longo momento, os dois homens não disseram mais nada. Foi Pompeu que, finalmente, quebrou o silêncio.
— Como hei-de explicar isto ao Senado? — perguntou ele, num murmúrio, numa queixa.
Afrânio olhou para o rosto do comandante e viu um homem com cem anos de idade. Sentiu por Pompeu uma compaixão profunda, pois gostava dele sinceramente, como amigo e como comandante. Mas havia algo que o alarmava mais do que a tristeza que sentia pelo amigo e comandante, e que era a sua súbita convicção de que se Pompeu não fosse apoiado, se não lhe fosse devolvida a confiança e a arrogância que o caracterizavam, tudo nele desabaria. Aquele velho de rosto abúlico era alguém que Afrânio nunca tinha visto.
— Se fosse a ti — retorquiu Afrânio —, deitaria as culpas para Metelo Pio. Diria que ele se recusou a sair da sua província para te apoiar. E triplicaria o número de soldados de Sertório.
Pompeu recuou horrorizado.
— Não, Afrânio! Não! Eu não poderia fazer uma coisa dessas!
— Porquê? — perguntou Afrânio, surpreendido; um Cneu Pompeu Magno atormentado por dilemas morais ou éticos era alguém que também desconhecia.
— Porque — disse Pompeu com uma voz paciente —vou precisar de Metelo Pio, se quiser salvar alguma coisa nesta comissão hispânica. Perdi quase um terço das minhas forças e não posso pedir ao Senado mais soldados enquanto não obtiver pelo menos uma vitória. E também porque é possível que algum habitante de Lauro visite Roma. Se contar a história do que aqui se passou, toda a gente acreditará nele. E finalmente porque, embora eu não seja um sábio, nem um adivinho, acredito firmemente que essa verdade surgirá precisamente no pior momento.
— Compreendo! — exclamou Afrânio, profundamente aliviado; Pompeu não estava a sentir escrúpulos morais ou éticos, estava muito simplesmente a ver os factos tal e qual como eram. — Nesse caso, já sabes o que tens de explicar ao Senado — acrescentou, confuso.
— Sim, sim, eu sei! — atirou-lhe Pompeu, irritado. — Só não sei como explicar! Não sei que palavras usar! Varrão não está cá e só ele sabe usar as palavras exactas!
— Creio — disse Afrânio, delicadamente — que as tuas próprias palavras são provavelmente as palavras adequadas para notícias deste tipo. Os especialistas de literatura do Senado concluirão que escolheste um estilo simples para narrar a verdade nua e crua — e, se queres saber, é assim mesmo que aquelas cabeças funcionam. Quanto aos outros — bom, os outros não são especialistas de nada, e por isso não encontrarão nada de errado nas tuas palavras.
Esta análise lógica e pragmática foi o bastante para animar Pompeu, pelo menos superficialmente. As camadas mais profundas do seu ego, as mais cruelmente laceradas, pois englobavam o orgulho, a dignitas, a confiança, e muitas e complexas auto-imagens, demorariam mais tempo a cicatrizar; algumas camadas, provavelmente, ficariam feridas para sempre.
Pompeu sentou-se para escrever o seu relatório ao Senado, enquanto o fedor a carne putrefacta continuava a penetrar-lhe as narinas. Não se furtou sequer a reconhecer que tinha cometido um acto irreflectido ao mandar os arautos comunicar as suas proclamações aos cidadãos de Lauro. Não omitiu que tinha usado uma táctica errada no campo de batalha. Enviou então o rascunho, cheio de emendas, ao seu secretário, que o copiaria com uma caligrafia incomparavelmente melhor e sem erros de ortografia ou gramaticais. Mas Pompeu não tinha ainda concluído a sua missiva, pois a batalha de Lauro não acabara ainda.
Passaram 16 dias. Sertório continuou a atacar Lauro, enquanto Pompeu permaneceu quieto no seu acampamento. Ele sabia que esta inércia não podia durar para sempre; a comida estava a acabar e os seus cavalos e mulas estavam a ficar cada vez mais magros. No entanto, não podia retirar — não com Lauro cercada e Sertório fazendo o que muito bem lhe apetecia. Não tinha outra hipótese senão procurar alimentos. Depois de terem sido ameaçados com sevícias, os seus batedores juraram-lhe que os campos a norte estavam completamente livres de patrulhas sertorianas; e assim, Pompeu mandou uma vasta e bem armada expedição de cavalaria procurar alimentos na direcção de Sagunto.
Os homens tinham saído há menos de duas horas quando Pompeu recebeu um desesperado pedido de ajuda: os homens de Sertório estavam a surgir de todos os lados, matando os cavaleiros um a um. Pompeu enviou uma legião inteira para salvar os cavaleiros e, as horas seguintes, passou-as a andar de um lado para o outro no alto da sua fortaleza, olhando insistentemente para norte.
Os arautos de Sertório trouxeram-lhe o veredicto ao pôr do Sol.
— Vai para casa, miúdo! Volta para Piceno, miúdo! Não vês que agora estás a combater homens a sério! Não passas de um amador! Estás a gostar de combater contra um profissional? Queres saber como estão os teus exploradores de alimentos, miúdo? Estão mortos, miúdo! Todos mortos! Mas desta vez não precisas de te preocupar com o seu enterro! Quinto Sertório trata disso e não te leva nada! Ficou com as armas e as armaduras deles, em troca do serviço! Vai para casa, miúdo! Vai para casa!
Aquilo só podia ser um pesadelo. Aquilo não podia estar a acontecer! De onde podiam ter surgido as forças sertorianas, se nenhum dos soldados que combatera no campo de batalha (nem mesmo a cavalaria que se ocultara atrás das muralhas) abandonara o cerco a Lauro?
— Não eram legionários, nem cavaleiros, Cneu Pompeu — disse o chefe dos batedores, tremendo ainda de pavor. — Eram os guerrilheiros de Sertório. Aparecem sem ninguém esperar, montam emboscadas, matam. E depois de matarem, desaparecem de novo.
Completamente desencantado com os seus batedores hispânicos, Pompeu mandou executá-los e jurou que, de futuro, usaria apenas batedores picentinos; seria preferível recorrer a homens em quem tinha confiança, ainda que não conhecessem a região. Essa era a primeira lição que a guerra da Hispânia lhe tinha ensinado; a primeira, mas não a última — é que ele não ia voltar para Piceno! Ia ficar na Hispânia e havia de vencer Sertório, nem que isso lhe custasse a morte! Combateria o fogo com o fogo, a pedra com a pedra, o gelo com o gelo. Por muitos erros que fizesse, por muitas armadilhas tácticas em que aquela brilhante personificação do mal o fizesse cair, não desistiria. Dezasseis mil dos seus soldados estavam mortos, tal como quase toda a cavalaria. Mas ele manter-se-ia firme até ao último homem, até ao último cavalo.
O Cneu Pompeu Magno que retirou lentamente de Lauro, no final de Sextilis, com os gritos da cidade devastada ecoando-lhe nos ouvidos, era um homem muito diferente daquele que marchara para sul, na Primavera, tão convencido da sua importância, tão confiante e tão descuidado. O novo Cneu Pompeu era mesmo capaz de escutar, com um ar interessado, as vozes estentórias dos arautos sertorianos que comunicavam aos seus soldados o hediondo destino que aguardava as mulheres de Lauro quando chegassem aos seus novos proprietários, na longínqua Lusitânia. Depois de Sagunto, nenhum representante de Sertório se preocupou sequer em seguir os passos de Pompeu; rumando a norte, Pompeu passou por Sebelácio, por Intibílio, atravessou o Ebro. Em menos de 30 dias, Pompeu conduziu os seus homens, exaustos e esfomeados, para o acampamento de Inverno em Empórias, e não mais deu um passo naquele horrendo ano. Especialmente depois de ter sabido que Metelo Pio vencera precisamente a batalha que ele deveria ter travado — e que a vencera brilhantemente.
Foi depois de ter falado com Balbo Sénior e de ter lido a carta de Mémio que Metelo Pio começou a pensar na melhor maneira de libertar Mémio da prisão de Nova Cartago. Também tinha havido mudanças no homem a quem Sertório tratava desdenhosamente por velha: mudanças provocadas pelo duro golpe que o Senado lhe infligira, ao conceder ao Miúdo Carniceiro um império idêntico ao seu. Talvez só um insulto tão monumental como este fosse capaz de despir a armadura defensiva do Bacorinho, pondo a nu um interior que era tão frio como o mais frio metal. Não admirava que Metelo Pio, no mais fundo de si mesmo, fosse um homem assim — bastaria pensar no exemplo do seu pai, um homem dotado de uma coragem extraordinária, de uma altivez incrível e de uma teimosia que, por vezes, era confundida com imbecilidade. Metelo Numídico fora ilegalmente afastado da guerra contra Jugurta por Caio Mário, o qual voltaria, por várias vezes, a adoptar medidas ilegais para o rebaixar (pelo menos era assim que Metelo Pio via o caso). Caio Mário conseguira ainda que Metelo Pio ficasse unicamente com uma reputação de devoção filial, já que tivera de lutar duramente para que o seu pai regressasse do exílio infligido por Caio Mário. E precisamente no momento em que Metelo Pio se podia congratular por ser um dos homens mais estimados por Sila, eis que aparecia aquele Pompeu, aquele miúdo de 22 anos com um exército muito maior e melhor que o seu.
O seu escrúpulo em seguir as mais elevadas normas de decência de um nobre romano impedia-o de recorrer a meios baixos para fazer ressaltar a insignificância de Pompeu. E por isso, e sem que ele se apercebesse, um novo e melhor general começava a libertar-se da velha armadura que o Bacorinho impusera a si mesmo. Fazer ressaltar a insignificância de Pompeu, vencendo mais batalhas e batalhas mais decisivas, era algo de irrepreensível, era uma vingança decente e correcta, porque era o que um nobre romano podia e devia fazer quando era espicaçado por um novo-rico de Piceno. Ou por um novo-rico de Arpino, tanto fazia!
Tendo aprendido há muito tempo a lição que Pompeu só agora aprendera, Metelo Pio escolheu os seus batedores entre os seus próprios soldados romanos e também entre os homens de Gades, que temiam os bárbaros ibéricos muito mais do que os Romanos. E foi graças a esses batedores que Metelo Pio ficou a saber onde se encontravam Lúcio Hirtuleio e o seu irmão mais novo, pouco tempo depois de eles se terem instalado com o exército hispânico nas proximidades de Lamínio, na região centro-sul da Hispânia. com um dos seus novos e corrosivos sorrisos, o Bacorinho encostou-se na sua cadeira e apreciou cuidadosamente a sua estratégia, antes de fazer — mentalmente, como seria de esperar de um nobre romano — um gesto obsceno na direcção de Lamínio e de jurar que, nos dez anos seguintes, não cometeria nunca a estupidez de se aventurar até às nascentes do Anas ou do Bétis. Hirtuleio que apodrecesse de total inactividade!
Metelo Pio tinha-se instalado junto ao Anas, muito perto da sua embocadura, pensando que seria mais sensato deixar que os Lusitanos percebessem que ele estava em óptimas condições para os enfrentar, do que permanecer numa confortável residência, junto ao Bétis, mais de cento e cinqüenta quilômetros a leste. No entanto, tinha ”trabalhado tanto nesse sentido que sentia agora que as defesas da sua província estavam em óptimo estado para resistir à muralha lusitana, sem que a sua presença junto ao Anas se tornasse necessária. Por outro lado, acreditava que bastariam duas das suas seis legiões para guarnecer as suas fortificações.
A velha da Hispânia Ulterior sabia já perfeitamente quem eram os informadores de Sertório; por isso, tratou de pôr em prática a sua nova política de espionagem — informando esses homens, com o ar mais inocente deste mundo, de que ia abandonar a sua posição no Baixo Anas. Não, não ia para as nascentes do Anas ou do Bétis — ou seja, para os braços de Lúcio Hirtuleio, em Lamínio —, mas sim para Nova Cartago, a fim de libertar Caio Mémio. Iria atravessar o Bétis, de Itálica para Hispális, depois seguiria pelas margens do rio Singílis na direcção do maciço do Solório; atravessaria o flanco noroeste deste maciço e, depois de passar por Basti e Eliocroco, avançaria finalmente para o Campo Espartário.
Poucos dias depois, os informadores comunicavam estas notícias a Hirtuleio.
Na realidade, Metelo Pio poderia perfeitamente ter seguido esse trajecto; mas o importante era que Hirtuleio acreditasse piamente naquilo. O Bacorinho sabia que Herénio, Perperna e Sertório estavam inteiramente concentrados em dar uma lição a Pompeu e que Sertório tinha absoluta confiança na capacidade de Hirtuleio para impedir que o Bacorinho saísse da sua pocilga provincial. Mas Nova Cartago ficava muito longe dessa pocilga e poderia ser o ponto de partida para uma marcha para norte e para uma tentativa para libertar Pompeu das terras de Lauro; as cinco legiões de que o Bacorinho disporia fariam, muito possivelmente, pender a balança para o lado de Pompeu. Portanto, as forças de Hirtuleio teriam de interceptar a marcha de Metelo Pio.
Pio esperava que Hirtuleio decidisse deixar Lamínio e entrasse pelas planícies entre o Anas e o Bétis. Longe dos penhascos que dariam sempre a vitória ao general sertoriano, Hirtuleio seria facilmente derrotado. Nenhum general sertoriano confiava nas populações da Hispânia Ulterior a leste do Bétis e por isso Sertório nunca tentara invadir essa área. Por isso, quando soube das notícias sobre a eventual marcha de Metelo Pio, Hirtuleio percebeu que tinha de interceptá-lo antes que Metelo Pio atravessasse o Bétis e entrasse em território seguro. Claro que o movimento mais prudente, por parte de Hirtuleio, teria sido seguir para o Norte da Hispânia Ulterior e interceptar Metelo Pio no Campo Espartário, pois essa era uma zona fiel a Sertório. Mas Hirtuleio era demasiado matreiro para fazer o que seria lógico; se deixasse a Hispânia Central e se deslocasse para um local tão distante, o Bacorinho não tinha mais que dobrar o ritmo da marcha, atravessar o desfiladeiro de Lamínio e escolher o caminho mais rápido para se juntar a Pompeu em Lauro.
Hirtuleio só podia fazer uma coisa: descer até às planícies entre o Anas e o Bétis e deter Metelo Pio antes que ele atravessasse o Bétis. Mas Metelo Pio marchava mais rapidamente do que Hirtuleio pensava e encontrava-se já perto de Itálica e do Bétis quando Hirtuleio e o seu exército se encontravam ainda a um dia de marcha. E por isso Hirtuleio tratou de apressar-se, pois não queria que a sua presa se escapulisse para o outro lado do rio.
Era o mês de Quinctilis e o Sul da Hispânia era assolado pela primeira grande vaga de calor desse Verão; o Sol, ao nascer por detrás das montanhas Solório, queimava já as terras que ainda não tinham recuperado da mortandade do dia anterior, tanto mais que a humidade da noite não era muita. Mostrando uma extrema solicitude para com os seus soldados, Metelo Pio deu-lhes tendas espaçosas, arejadas e umbrosas, encorajou-os a usar panos embebidos em água fria das nascentes para refrescar as frontes e as nucas, obrigou-os a beber bastante água e, por fim, forneceu a todos eles um novo equipamento, que deveriam usar em todas as batalhas — um odre cheio de água fria, atado ao cinto.
Enquanto o sol impiedoso fazia cintilar a floresta de lanças de Hirtuleio, que se aproximava rapidamente, vindo pela estrada do norte, Metelo Pio mantinha os seus homens à sombra das tendas e certificava-se de que havia suficientes tinas de água fria para manter os panos sempre molhados. Só se moveu no último momento — mas os seus soldados estavam frescos e bem dispostos, e enquanto ocupavam as suas posições discutiam a melhor maneira de se ajudarem, a meio da batalha, se por acaso precisassem de beber.
O exército ibérico tinha já percorrido quinze duros quilômetros sob aquele sol impiedoso. Embora bem abastecido de burros transportando água, não tivera tempo para parar e beber antes da batalha. com aqueles homens exaustos e sequiosos, Hirtuleio não tinha qualquer hipótese de vencer. A certa altura, ele e Metelo Pio chegaram mesmo a combater um contra o outro — uma ocorrência rara em batalhas, desde os tempos de Homero — e embora Hirtuleio fosse mais novo e mais forte, o seu adversário, fresco e sem sede, conseguiu desfeiteá-lo. A batalha acabou por separá-los, mas Hirtuleio ficou com uma ferida na coxa e Metelo Pio com a glória. Ao fim de uma hora, a batalha estava acabada. O exército ibérico dispersou e fugiu para oeste, deixando no campo muitos soldados mortos ou exaustos; Hirtuleio teve de atravessar o Anas e seguir para a Lusitânia antes de conseguir deter os seus homens.
— Não é uma maravilha? — perguntou Metelo Pio ao filho, enquanto observavam a poeira levantada pelas patas dos cavalos, a oeste de Itálica.
— Tata, tu é que és uma maravilha! — exclamou o jovem, esquecendo-se de que já era demasiado crescido para usar um diminutivo próprio de crianças.
O Bacorinho sentiu-se inchar.
— E agora vamos a um bom banho no rio e a um belo sono, antes de marcharmos para Gades — disse ele, todo contente, enquanto imaginava as cartas que havia de mandar para o Senado e para Pompeu.
Metelo Cipião fitou-o, espantado.
— Gades? Porquê Gades?
— Claro que vamos para Gades! — retorquiu Metelo Pio. — Vamos embora, rapaz, já para a sombra! Não quero que ninguém apanhe uma insolação! Preciso de todos os meus homens. Que me dizes a uma longa viagem por mar, para fugir a este calor?
— Uma longa viagem por mar? Para onde?
— Para Nova Cartago, evidentemente. Para libertarmos Caio Mémio.
— Pai, não há dúvida que és mesmo brilhante!
E um comentário daqueles, pensou o Bacorinho enquanto conduzia o filho para a sombra da tenda do comando, era tão excitante como as efusivas saudações e os gritos de ”Imperator!” com que o seu exército o premiara depois da batalha ter terminado. Ele tinha conseguido! Tinha infligido uma derrota decisiva ao melhor general de Quinto Sertório.
A frota que partiu do porto de Gades era enorme e dispunha de uma escolta magnífica, já que o governador requisitara todos os navios de guerra existentes na província. Os navios de carga iam a abarrotar de cereais, azeite, peixe conservado em sal, carne seca, grão-de-bico, vinho, até mesmo sal — era preciso que Nova Cartago não morresse de fome por causa dos dois cercos que lhe eram movidos: o dos Contestanos, por terra, e o dos piratas, por mar.
Depois de reabastecer Nova Cartago, Metelo Pio distribuiu os legionários de Caio Mémio pelos navios vazios e subiu calmamente pela costa oriental da Hispânia Citerior, divertido com o facto de a frota pirata ter dispersado mal vira os seus navios. Naquelas mesmas águas, vários anos antes, os piratas tinham derrotado Caio Cota. Mas, pelos vistos, os piratas de agora não sentiam apetite nenhum por este Bacorinho almirante.
Como seria de esperar de um exemplar nobre romano, o Bacorinho ia entregar Caio Mémio e a sua legião a Pompeu. Claro que poderia aproveitar a oportunidade para cantar de galo discretamente e mostrar alguma compaixão perante a ignominiosa campanha de Pompeu... O Bacorinho considerava que Pompeu merecia isso — pois não tentara ele deslustrar o seu nome?
Logo após ter passado pela grande fortaleza pirata de Diânio, a frota ancorou numa enseada deserta a fim de passar a noite; a certa altura, viram um bote vindo de Diânio encaminhar-se na sua direcção: era o mais novo dos Balbos que vinha no bote, cheio de novidades.
— Ah, que bom que é estar de novo entre amigos! — exclamou ele, no seu latim ceceado, para Metelo Pio, Metelo Cipião e Caio Mémio (já para não falar do tio, felicíssimo por vê-lo são e salvo).
— Estou a ver que não conseguiste entrar em contacto com o meu colega Cneu Pompeu — disse Metelo Pio.
— Pois não, Quinto Cecílio. Não consegui ir mais longe que Diânio. Toda a costa, desde a foz do Sucro até ao Táder, está cheia de homens de Sertório, e o meu aspecto não engana ninguém — vê-se logo que sou de Gades. Teria sido capturado e torturado. Em Diânio há muita gente de aspecto púnico e, por isso, achei que era mais sensato permanecer na cidade e escutar atentamente todas as conversas.
— E que ouviste tu, Balbo Minor?
— Ah, não ouvi apenas! Também vi! Uma coisa extremamente interessante — disse o sobrinho Balbo, com um brilho nos olhos. — Há dois intervalos entre mercados, uma frota aportou a Diânio. Uma frota que viera do Ponto e que pertencia ao rei Mitridates.
Ao ouvirem aquilo, o interesse dos romanos redobrou.
— Continua — disse Metelo Pio, numa voz baixa.
— A bordo do navio-almirante vinham dois enviados do rei, ambos desertores romanos — creio que foram legados das tropas de Fímbria. Lúcio Mágio e Lúcio Fânio.
— Vi esses nomes nas listas dos proscritos de Sila — disse Metelo Pio.
— Vieram oferecer a Quinto Sertório três mil talentos de ouro e quarenta grandes navios de guerra. Sertório veio ter com eles, quatro dias depois da chegada da frota.
— E qual era o preço? — rosnou Caio Mémio.
— Quando se tornar Ditador de Roma, Quinto Sertório deverá confirmar a autoridade de Mitridates em relação a todas as possessões que já conquistou e permitir-lhe expandir ainda mais o seu reino.
— Quando Sertório se tornar Ditador de Roma? — disse Metelo Cipião, estupefacto. — Isso nunca acontecerá!
— Calma, meu filho! Deixa Balbo Minor continuar — disse o pai, que guardava para si mesmo o ultraje que sentia.
— Quinto Sertório concordou com a proposta do rei, mas com uma condição — que a Província da Ásia e a Cilícia permanecessem territórios romanos.
— E Mágio e Fânio aceitaram isso?
— Segundo a minha fonte, aceitaram. Suponho que já estavam à espera de uma tal condição, pois Roma não quer perder nenhuma das suas províncias. Aceitaram em nome do rei, embora acrescentando que o rei teria de ouvir os termos do acordo das suas bocas antes de dar a sua confirmação oficial.
— A frota pôntica ainda está em Diânio?
— Não, Quinto Cecílio. Ficou apenas nove dias.
— Houve algum ouro ou alguns navios que tivessem mudado de mãos?
— Ainda não. Só na Primavera. Mas Quinto Sertório mandou ao rei provas da sua boa fé.
— Sob que forma?
— Ofereceu ao rei uma centúria de guerrilheiros hispânicos, sob o comando de Marco Mário, um jovem por quem tem grande estima.
O Bacorinho franziu o sobrolho.
— Marco Mário? Quem é?
— Um filho ilegítimo de Caio Mário. Caio Mário fez esse filho a uma mulher da Betúria, quando foi governador propraetore da Hispânia Ulterior. Já lá vão 48 anos.
— Então esse Marco Mário já não é nenhum jovem — disse Caio Mémio.
— Ah, sim, claro! Desculpem, enganei-me! — disse Balbo, muito atrapalhado.
— Por todos os deuses, homem! Um engano é um engano, não é nenhum crime! — disse o Bacorinho, divertido. — Continua!
— Marco Mário nunca saiu da Hispânia. Embora fale bem latim e tenha tido uma boa educação — Caio Mário sabia da sua existência e tratou de o ajudar —, a verdade é que sempre se mostrou favorável à causa dos bárbaros hispânicos. Tornou-se, aliás, o melhor dos comandantes da guerrilha de Sertório — especializou-se nesse tipo de guerra.
— E Sertório mandou-o ensinar a Mitridates a arte das emboscadas e dos ataques súbitos — comentou Metelo Cipião. — Obrigado, Quinto Sertório!
— E o dinheiro e os navios serão entregues em Diânio? — perguntou Metelo Pio.
— Precisamente. Na Primavera, como disse.
Esta extraordinária notícia constituiu um bom manancial para as reflexões e para a caneta de Metelo Pio, enquanto se dirigia para Empórias. Nunca pensara que as ambições de Sertório pudessem ir além da sua entronização como rei romanizado de todas as Hispânias; a sua causa sempre lhe parecera absolutamente inseparável da causa dos nativos.
— Mas — disse ele a Pompeu, mal chegou a Empórias — creio que chegou a hora de olharmos para Quinto Sertório com muito mais atenção. A conquista da Hispânia é apenas o seu primeiro passo. Se tu e eu não conseguirmos detê-lo, ele chegará às portas de Roma com o seu belo diadema branco nas mãos, preparado para a coroação. Rei de Roma! E aliado de Mitridates e Tigranes.
Dada a gravidade de tais notícias, Metelo Pio não pudera espetar a sua faca venenosa nas feridas claramente abertas de Pompeu. Olhara de relance para o rosto vazio e os olhos vazios do Miúdo Carniceiro e percebera logo que, em vez de lhe recordar os desastres, teria de o submeter a um exaustivo tratamento espiritual e mental. Numídico, o pai, teria dito que a sua própria honra lhe impunha que espetasse a faca, mas Pio, o filho, vivera demasiado tempo à sombra do pai para ter uma ideia tão refinada da sua honra.
com o objectivo de restaurar a periclitante auto-imagem de Pompeu, o Bacorinho tomou a engenhosa decisão de mandar o filho, criatura sem tacto e demasiado arrogante, à Gália Narbonense, acompanhado de Aulo Gabínio — os dois recrutariam cavaleiros e cavalos nesse território; conversou com Caio Médio e pediu-lhe que o ajudasse naquela missão; por fim, mandou Afrânio e Petreio reorganizar o esquelético exército de Pompeu. Durante alguns dias, evitou falar ou pensar nas últimas campanhas; as notícias de Diânio ajudaram-no muito, pois não se falava noutra coisa.
Finalmente, com Dezembro à porta e a necessidade de regressar rapidamente à sua província, a velha da Hispânia Ulterior foi direita ao assunto.
— Não acho que seja proveitoso fixarmo-nos em acontecimentos que pertencem ao passado — disse ele, vivamente. — O que nos deve preocupar são as campanhas do próximo ano.
Pompeu sempre gostara de Metelo Pio, mas teria preferido que ele o deixasse em carne viva, que ele cantasse de galo, que ele exultasse; poderia então contestar as suas opiniões e odiar a sua pessoa. Mas a genuína bondade e a sincera consideração de Pio só contribuíam para o deixar ainda mais embaraçado e triste. Era evidente que o Bacorinho não o considerava suficientemente importante para merecer o seu desprezo. Aos olhos do Bacorinho, pensava Pompeu, ele não passava de mais um tribuno militar júnior que levara um bom tombo da primeira vez que conduzira sozinho uma campanha, e que agora tinha de ser levantado do chão, limpo e ajudado a subir de novo para o cavalo.
Contudo, esta atitude significava, pelo menos, que podiam conferenciar amistosamente. Antes da derrota infligida por Sertório, Pompeu teria conduzido aquela que, muito obviamente, ia ser uma conferência de guerra; agora, porém, limitava-se a esperar que Metelo Pio apresentasse um plano.
— Desta vez — disse o Bacorinho — marcharemos os dois na direcção do Sucrão e de Sertório. Nenhum de nós tem um exército suficientemente grande para conduzirmos sozinhos uma tal operação. Contudo, eu não posso atravessar Lamínio porque Hirtuleio e o seu exército estarão lá à minha espera. Portanto, terei de seguir por caminhos muito secundários e o mais furtivamente possível. Claro que a notícia da minha marcha acabará por chegar a Sertório e, obviamente, a Hirtuleio. Mas Hirtuleio terá de deixar Lamínio para me deter e só o fará quando Sertório lho ordenar. Sertório é o maior dos autocratas em questões militares.
— Nesse caso, que caminho tomarás? — perguntou Pompeu.
— Seguirei para oeste, através da Lusitânia — retorquiu jovialmente o Bacorinho. — E acabarei por me fixar em Segóvia.
— Segóvia! Mas isso fica no fim do mundo!
— É verdade. Mas, dessa forma, estarei a lançar areia para os olhos de Sertório e a evitar Hirtuleio. Sertório pensará que euvou para o Alto Ebro e que tentarei conquistar a região enquanto ele estiver ocupado contigo. Então, mandará Hirtuleio para me deter, porque Hirtuleio, encontrando-se em Lamínio, estará muito mais perto de Segóvia do que ele.
— Que queres que eu faça, exactamente? — perguntou o novo e muito mais humilde Pompeu.
— Quero que fiques neste acampamento até Maio. Eu demorarei dois meses a chegar a Segóvia; por isso, terei de me fazer ao caminho muito antes de ti. Quando iniciares a tua marcha, avança com a maior cautela. O ponto mais vital de toda a estratégia consiste no seguinte: é preciso que eles pensem que tu estás a avançar com um objectivo definido e em total independência em relação a mim. E que não chegues ao Túris e a Valência antes do fim de Junho.
— Sertório não tentará deter-me em Sagunto ou Lauro?
— Duvido. Ele não faz o mesmo território duas vezes. E tu agora já conheces bem Sagunto e Lauro.
Pompeu ficou vermelho, mas nada disse. O Bacorinho prosseguiu como se não tivesse notado nenhuma mudança no rosto de Pompeu.
— Não, desta feita ele deixar-te-á chegar ao Túris e a Valência, porque, para ti, são regiões desconhecidas. Herénio e o traidor Perperna continuam a ocupar Valência, mas não creio que eles fiquem na cidade e que te deixem cercá-la. Sertório não gosta de parar nas cidades costeiras; prefere as suas inexpugnáveis fortalezas da montanha.
Metelo Pio fez uma pausa para estudar o rosto de Pompeu, agora branco de novo, e ficou profundamente contente ao ver que havia nos olhos dele um manifesto interesse. Óptimo! Pompeu estava a reagir bem!
— De Segóvia, marcharei até ao Sucrão, onde espero que Sertório tentará levar-te ao confronto.
com um ar intrigado, Pompeu matutou naquelas palavras. O Bacorinho apercebia-se de que a cabeça de Pompeu continuava a funcionar na perfeição — o único problema dele era que já não possuía a confiança de outros tempos, o que o impedia de fazer os seus próprios planos. Pois bem: umas quantas vitórias e essa confiança voltaria! A natureza de Pompeu era o que era — não podia ser outra. Mas podia levar uns bons golpes.
— Mas uma marcha de Segóvia até ao Sucrão conduzir-te-á à região mais seca de toda a Hispânia! — protestou Pompeu. — É um deserto! E até que chegues ao Sucrão, terás pela frente apenas montanhas, nunca vales! É uma marcha horrenda!
— É por isso que euvou fazê-la — retorquiu Metelo Pio. — Até agora, nunca houve ninguém que escolhesse voluntariamente essa rota. E Sertório não estará por certo à espera de que eu tome uma opção dessas. O que eu espero é que consiga chegar ao Sucrão antes de os seus batedores darem pela minha presença. — Os seus olhos castanhos vigiavam Pompeu com prazer. — Tu estudaste exaustivamente os teus mapas e relatórios, Pompeu. Caso contrário, não conhecerias tão bem a geografia.
— É verdade, Quinto Cecílio. Fiz um estudo exaustivo. Não que o estudo possa substituir a experiência, mas é o melhor que uma pessoa pode fazer enquanto não tem experiência — retorquiu Pompeu, satisfeito com o elogio do outro.
— Mas tu já vais tendo alguma experiência, Pompeu! Não te preocupes com isso — disse Metelo Pio, afectuosamente.
— Experiência negativa — murmurou Pompeu.
— Cneu Pompeu, nenhuma experiência é negativa, se conduzir a um êxito final.
Pompeu suspirou e encolheu os ombros.
— Suponho que sim. — Olhou para as mãos, e acrescentou: — Onde queres que eu esteja quando chegares ao Sucrão? E quando achas que vais chegar a esse rio?
— Sertório não se deslocará para norte do Sucrão, na direcção do Túris — disse Metelo Pio. — É possível que Herénio e Perperna tentem deter-te em Valência ou algures na região do Túris, mas creio que as suas ordens serão no sentido de irem apoiar Sertório, na zona do Sucrão. Procurarei estar nas proximidades de Sertório em fins de Quinctilis. Isso significa que, se tu chegares ao Túris em fins de Junho, terás de arranjar uma boa desculpa para permanecer na zona sem fazer nada durante um mês. Aconteça o que acontecer, não continues a marchar para sul para combater Sertório antes do final de Quinctilis! Se o fizeres, eu não estarei lá para te apoiar. O objectivo de Sertório é afastar-te por completo da guerra — assim, ficaria com muito mais soldados para me enfrentar. Eu não resistiria.
— Mas, o ano passado, resististe e venceste, Quinto Cecílio.
— Provavelmente devido a circunstâncias extraordinárias. Aliás, espero que Sertório veja o caso assim. De qualquer modo, se por acaso eu tiver de combater contra Hirtuleio e voltar a vencê-lo, farei o possível para que Sertório não saiba de nada, até que possa juntar as minhas forças às tuas.
— Parece que na Hispânia é difícil ocultar seja o que for a Sertório. Diz-se que ele ouve tudo.
— Sim, é isso que se diz. Mas eu também já estou na Hispânia há alguns anos e posso garantir-te que Sertório está a perder algumas das suas vantagens. Portanto, Cneu Pompeu, anima-te! Anima-te porque nós venceremos!
Talvez houvesse algum exagero se se dissesse que o estado de espírito de Pompeu melhorara consideravelmente depois de a velha da Hispânia Ulterior o ter deixado; mas não havia a mínima dúvida de que melhorara alguma coisa e de que a sua confiança aumentara. Tratou logo de se juntar a Afrânio e Petreio, a fim de dar os últimos toques na reestruturação do seu exército. Ainda bem, pensou, que tinha insistido em ficar com uma das legiões do Bacorinho! Sem essa legião, não poderia lançar a sua campanha. O número exacto dos seus soldados oferecia-lhe duas alternativas: cinco legiões com um número de soldados inferior ao normal, ou quatro legiões com um número de soldados normal. Pompeu, que estava longe de ser um ignorante em matérias militares, preferiu as cinco legiões, pois eram mais fáceis de manobrar do que quatro. Era-lhe difícil olhar os seus soldados nos olhos — era a primeira vez que o fazia, desde a sua derrota! Porém, para sua grande surpresa, verificou que nenhum deles o recriminava pela morte de tantos e tantos camaradas. (Em vez disso, pareciam firmemente determinados a cortar as pernas a Sertório e mostravam-se tão receptivos como sempre às ordens do seu belo e jovem general.
Como o Inverno nas terras baixas era suave e invulgarmente seco, Pompeu consolidou as suas novas unidades, conduzindo-as numa breve marcha pelo Ebro e levando-as a conquistar algumas das cidades de Sertório — Biscárgis e Celsa foram duas vitórias retumbantes. Então, e como o mês de Março se aproximava do fim, Pompeu retirou de novo para Empórias e deu início aos preparativos para a sua expedição junto ao litoral.
Uma carta de Metelo Pio informou-o, entretanto, de que Sertório, depois de ter recebido os seus quarenta navios de guerra e os três mil talentos de ouro em Diânio, partira para a Lusitânia com Perperna, a fim de ajudar Hirtuleio a treinar mais homens, pois era preciso que o exército ibérico recuperasse a sua antiga força. Por isso, deixara Herénio à frente da cidade de Osca.
A rede de espionagem de Pompeu melhorara consideravelmente, graças aos esforços dos Balbos (agora ao seu serviço). Por outro lado, os seus batedores picentinos estavam a portar-se melhor do que ele alguma vez esperara.
Pompeu só deu início à sua marcha nos primeiros dias de Maio, avançando com extrema cautela. Ele, que era um homem do campo, não deixou de reparar, quando atravessou o Ebro em Dertosa, que aquele vale muito rico e cultivado tinha um aspecto demasiado seco para aquela época do ano, e que o trigo, para além de mais esparso do que seria de esperar, ainda não espigara.
Do inimigo não havia sinal, mas esse facto não deixou Pompeu propriamente exultante. Pelo contrário, levou-o a ter ainda mais cuidado, a manter uma atitude defensiva. Passou por Sagunto e Lauro a toda a pressa; Sagunto continuava a aguentar-se, mas Lauro era uma ruína de que a vida se ausentara. Em fins de Junho, depois de ter enviado uma mensagem para Metelo Pio em Segóvia, chegou ao vale mais vasto e fértil do rio Túris; na margem sul deste rio, ficava a cidade de Valência, enorme e muito bem fortificada.
Aí, depois de parar nas estreitas planícies entre o rio e a cidade, Pompeu descobriu que Herénio e Perperna estavam à sua espera. Segundo as informações dos batedores picentinos, tinham mais homens do que ele, embora o número de legiões fosse o mesmo: trinta mil homens contra os vinte mil de Pompeu. A maior vantagem de Herénio e Perperna residia na cavalaria; segundo os seus batedores, deveriam ser uns mil cavaleiros gauleses. Apesar de Metelo Cipião e Aulo Gabínio terem feito os possíveis e os impossíveis para recrutar cavaleiros na Gália Narbonense, Pompeu não tinha mais do que quatrocentos cavaleiros.
Pelo menos podia ter a certeza de que as informações dos seus batedores eram verdadeiras. E quando os batedores lhe garantiram que o seu trabalho na Hispânia pouco diferia do que faziam em Itália, Pompeu acreditou neles. Assim, seguro de que não haveria cortes sertorianas preparadas para flanquearem a sua formação ou para caírem sobre a sua retaguarda, Pompeu ordenou ao seu exército que atravessasse o Túris. E que se preparasse para a batalha no outro lado do rio.
O rio era mais um declive do que um fosso abrupto e por isso a sua travessia não apresentava quaisquer dificuldades — o seu leito era duro como pedra e a água dava pelo tornozelo. Não havia qualquer vantagem táctica em atacar por um lado ou por outro — daí que a batalha tivesse ganho a forma de uma colisão convencional e que a vitória pendesse certamente para o lado mais destemido e confiante. A única inovação que Pompeu usou foi motivada pela sua deficiência ao nível da cavalaria; pensando, e bem, que Perperna e Herénio usariam a sua superioridade em cavalos e cavaleiros para atacar os seus flancos, Pompeu colocara soldados dispondo das antiquadas lanças usadas pelas falanges no exterior das suas alas, e ordenara a esses homens que espetassem essas temíveis armas (tinham quatro metros e meio de comprido) não nos cavaleiros, mas sim nos cavalos.
Foi uma batalha rijamente travada e particularmente longa. Herénio, que, como general, estava muito longe de Sertório ou Hirtuleio, só demasiado tarde se apercebeu de que as coisas lhe estavam a correr mal; Perperna, postado a oeste de Herénio, ignorava todas as suas ordens. Na realidade, antes de a batalha começar, os dois homens não tinham chegado a acordo quanto à forma de a conduzir; acabaram por lutar como duas entidades distintas, embora Pompeu só se tivesse apercebido disso depois da batalha.
A batalha terminou com uma pesada derrota para Herénio, mas não para Perperna. Decidindo que era preferível morrer, já que Sertório insistia em associá-lo àquele traiçoeiro e odioso Perperna, Herénio suicidou-se em pleno campo de batalha; as três legiões e a cavalaria sob o seu comando, ao verem o general morto, perderam todo o ânimo de que precisavam. Vinte mil homens morreram. Entretanto, Perperna e dezoito mil sobreviventes retiraram para o Sucrão, onde se encontrava Sertório.
Lembrando-se dos avisos de Pio de que não deveria atingir o Sucrão antes do fim de Quinctilis, Pompeu não se lançou em perseguição de Perperna. Aquela vitória, tão decisiva e clara, curara o seu ego ferido. Que maravilha, ouvir de novo os seus homens saudando-o efusivamente! E vê-los fazendo merecidas coroas com as águias e os estandartes!
Valência, evidentemente, encontrava-se agora praticamente sem defesas — entre os seus habitantes e a vingança romana, havia apenas as suas muralhas. Assim sendo, Pompeu tratou de examiná-las minuciosamente, chegando à conclusão de que eram tantas as fragilidades daqueles muros que facilmente alcançaria os seus objectivos. Algum trabalho de sapa, um incêndio propagado a uma secção dos muros que era de madeira, a intercepção do abastecimento de água — isso bastou para que Valência se rendesse. com alguma da cautela que recentemente aprendera, Pompeu retirou todos os alimentos da cidade e escondeu-os numa pedreira abandonada, sob uma camada de turfa; depois, enviou todos os cidadãos de Valência para o mercado de escravos de Nova Cartago — e por mar, já que a frota romana da Hispânia Ulterior (graças à presciência de um certo Bacorinho romano) vinha a passar por aquelas águas e ninguém dera ainda pelos quarenta trirremes de Sertório. E seis dias antes do fim de Quinctilis, Pompeu marchou na direcção do Sucrão, onde encontrou Sertório e Perperna instalados em dois acampamentos separados, na margem mais próxima do rio.
Pompeu tinha agora de enfrentar um perturbante dilema. Não tivera notícias de Metelo Pio e, por isso, não podia concluir que os reforços estavam por perto. Tal como acontecera nas margens do Túris, também aqui a configuração física da paisagem não reservava nenhuma vantagem táctica a Sertório; não havia montes por perto, nem florestas, nem bosques, nem ravinas, o que significava que Sertório não tinha onde esconder a sua cavalaria ou os guerrilheiros. A cidade mais próxima era a pequena Sétabe, nove quilômetros a sul do rio, o qual era mais largo que o Túris e conhecido pelas suas areias movediças.
Se esperasse por Metelo Pio para travar a batalha — e faltava saber se Metelo Pio viria a caminho —, Sertório poderia retirar para uma zona que lhe fosse mais propícia ou adivinhar que Pompeu estava à espera de reforços. Por outro lado, Sertório tinha muito mais soldados que ele — cerca de quarenta mil contra vinte mil. Devido às perdas de Herénio, nenhum dos lados tinha agora muitos cavaleiros.
Foi o medo de que Metelo Pio não viesse que levou Pompeu a lançar a batalha — pelo menos foi isso que ele disse para si mesmo, recusando-se a admitir que o seu velho e cobiçoso ego lhe estava a segredar que, se combatesse agora, não teria de partilhar os louros com um Bacorinho. A batalha contra Herénio e Perperna fora apenas um prelúdio a este confronto com Sertório e Pompeu ansiava por apagar na memória as feridas causadas por Sertório. Sim, a sua confiança voltava a ser o que sempre fora! Assim, ao alvorecer do penúltimo dia de Quinctilis, depois de ter construído um formidável acampamento na sua retaguarda, Cneu Pompeu Magno avançou com as suas cinco legiões e os seus 400 cavaleiros para a planície onde estavam instalados Sertório e Perperna e ordenou-lhes que formassem para travar mais uma batalha decisiva.
Nas Calendas de Abril, Quinto Cecílio Metelo Pio, o Bacorinho, deixara a sua confortável residência dos arredores de Itálica, na margem ocidental do Bétis, e iniciara a sua marcha na direcção do rio Anas. com ele, iam as suas seis legiões — um total de trinta e cinco mil homens — e mil cavaleiros numídios. Como o aristocrata fluido que lhe corria nas veias não apresentava qualquer contaminação de sangue campesino, Pio não reparou que as terras cultivadas por onde passou não tinham um aspecto tão verdejante como noutros anos. A sua coluna de abastecimentos levava uma abundante quantidade de cereais e todos os outros alimentos indispensáveis para variar a dieta dos seus homens e mantê-los de boa saúde.
Quando chegou ao Anas, a uma zona situada a mais de 200 quilômetros da foz, não tinha nenhuma muralha de lusitanos à sua espera; ficou muito satisfeito com esse facto, pois significava que os lusitanos não sabiam onde ele parava e continuavam à sua espera no litoral. Naquelas margens remotas do rio não havia localidades importantes, mas apenas pequenas aldeias que cultivavam os solos do vale do Anas. A notícia da sua presença acabaria por descer o rio e chegar aos ouvidos dos lusitanos; porém, quando estes chegassem àquela zona do Anas, já ele estaria muito longe do rio. Podiam persegui-lo, mas não o apanhariam!
A longa coluna romana serpenteou depois pelas suaves montanhas mais a norte, seguindo a bom ritmo na direcção de Turmúlio, nas margens do Tejo. Registaram-se entretanto algumas escaramuças de carácter puramente local, mas esses frágeis adversários foram rechaçados pelos romanos como moscas chicoteadas pela cauda de um cavalo. Como Segóvia era o seu penúltimo destino, o Bacorinho não seguiu o curso do Tejo, continuando, em vez disso, a marchar para norte, através de campos e matagais.
A estrada que seguia não passava de um caminho de terra batida, absolutamente primitivo — no entanto, entre todos os caminhos disponíveis, era sem dúvida o mais fácil, pois a sua altitude pouco variava e não chegava nunca aos mil metros. Como não conhecia aquela região, o Bacorinho estava positivamente fascinado com a paisagem e exortava a sua equipa de cartógrafos e geógrafos a fazer mapas e descrições minuciosas de tudo o que vissem. Habitantes havia poucos; e aqueles com que os romanos se cruzavam eram mortos imediatamente.
Seguiram depois por magníficas florestas de carvalhos, faias, olmos e bétulas, abrigando-se assim do tórrido calor. A vitória contra Hirtuleio, no ano anterior, tinha dado um novo ânimo aos soldados e levado o general a tomar uma nova atitude em relação ao conforto dos seus homens. Decidido a que eles não sofressem mais do que o necessário — e consciente de que dispunha de muito tempo —, a velha da Hispânia Ulterior impôs um ritmo de marcha que dificilmente os deixaria cansados — uma boa refeição e uma noite bem dormida bastavam para lhes restaurar as forças.
Após ter passado por duas elevadas cordilheiras, a coluna romana deparou com as terras que conduziam ao Douro, o qual, entre os principais rios das Hispânias, era o menos conhecido dos Romanos. Se tivesse seguido esse caminho, Pio teria ido parar à grande e próspera Salamântica; no entanto, virou para nordeste e contornou as colinas das montanhas à sua direita, pois não queria provocar a tribo dos Vetónios, cujas jazidas de ouro tinham levado o grande Aníbal a saquear Salamântica 145 anos antes. E, nas Calendas de Junho, Quinto Cecílio Metelo Pio montou o seu acampamento nas proximidades de Segóvia.
Apesar de tudo, Hirtuleio tinha-o seguido até Segóvia. O que não era muito surpreendente, pois Lamínio ficava a apenas trezentos quilômetros de Segóvia, ao passo que Metelo Pio precisara de cobrir uma distância de novecentos quilômetros. Era possível que algum habitante de Turmúlio, junto ao Tejo, tivesse enviado uma mensagem a Sertório, dizendo-lhe que os romanos tinham passado — mas que não iam seguir o curso do Tejo. Sertório (como a velha previra) concluíra que o objectivo romano era o Alto Ebro, um estratagema para afastar Sertório da costa leste e de Pompeu, ou então uma tentativa genuína para atacar as regiões mais leais a Sertório. Hirtuleio recebera ordens para interceptar a velha antes que ela conseguisse chegar ao reino de Sertório. De uma coisa estava Pio certo: eles não tinham adivinhado para onde ele realmente ia. Para conseguir adivinhar isso, Sertório teria de ter uma opinião muito melhor acerca das capacidades — e da subtileza! — da velha.
A primeira coisa a fazer era instalar o exército num acampamento superiormente fortificado. Prudente como sempre, Metelo Pio ordenou aos seus homens que escavassem e construíssem muros com as armaduras postas — uma carga extra de que nenhum legionário gostava, só que Hirtuleio estava por perto. Como se fossem uma vasta colônia de insectos, os seus homens lançaram-se ao trabalho a um ritmo frenético. Os carros, os bois, as mulas e os cavalos foram trazidos para dentro do campo, enquanto as bandeiras vermelhas eram colocadas e a vigilância prosseguia; depois, os animais ficaram a cargo de um número muito reduzido de homens, pois os não combatentes também eram precisos para o trabalho. Trinta e cinco mil homens labutaram com tal lógica e organização que o acampamento ficou pronto num dia; cada lado media quilômetro e meio de comprimento, as fortalezas reforçadas com madeira tinham uma altura de oito metros, havia torres em cada duzentos passos e o fosso diante das muralhas tinha mais de seis metros de profundidade. Só quando os quatro portões feitos com sólidos toros foram fechados e as sentinelas se postaram nos seus lugares é que o general se permitiu suspirar de alívio; o seu exército estava seguro contra qualquer ataque.
No entanto, aquele dia não deixou de registar incidentes. Lúcio Hirtuleio não agüentou a ideia de ver a velha confortavelmente protegida por trincheiras, muralhas e paliçadas, e lançou uma incursão de cavalaria a partir do seu próprio acampamento, com o objectivo de obrigar a velha a desistir das suas construções. Mas Metelo Pio tinha aprendido muito ao longo daqueles três anos e meio na Hispânia; tinha aprendido, nomeadamente, a pensar como o inimigo. Daí que, antes de chegar a Segóvia, tivesse mandado à frente seiscentos dos seus cavaleiros numídios, ordenando-lhes que se posicionassem num local onde um possível agressor não os pudesse ver. A incursão mal tinha começado e logo os cavaleiros numídios saíram do seu esconderijo, obrigando Hirtuleio a recuar a toda a pressa para o seu acampamento.
Durante os oito dias de um nundinum, nada mais aconteceu. Os homens puderam descansar, dormir sossegadamente, passar os dias numa mescla de exercícios e divertimentos — enfim, sentiam que nenhuma força inimiga ousaria perturbar a sua tranqüilidade.
Saindo da sua tenda de comando, situada na junção da via praetoria com a via principalis, num pequeno monte de onde o general podia ver para além das muralhas, Metelo Pio passeava pelas duas ruas principais, metia por caminhos ladeados por tendas de couro de vaca ou cabanas de colmo, e falava com todos os seus homens, explicando-lhes cuidadosamente o que ia fazer a seguir, dando-lhes uma imagem de extrema confiança.
Pio não era um homem caloroso e não se sentia muito à vontade a dialogar com os seus subordinados ou inferiores; no entanto, não era frio ao ponto de recalcar por completo os seus afectos. Desde a batalha do Bétis, em que ele cuidara dos seus soldados com tanto escrúpulo, que estes olhavam para ele com outros olhos: de início timidamente, mas agora de uma forma cada vez mais aberta. E olhavam para ele com amor, e diziam-lhe quão gratos se sentiam por ele lhes ter dado a oportunidade de obterem aquela vitória — uma vitória alcançada graças aos seus cuidados, graças à sua capacidade de previsão. Pouco lhes importava que as razões para tantos cuidados fossem eminentemente práticas, baseadas não no eventual afecto que Pio sentia por eles, mas no desejo de derrotar Hirtuleio. Eles acreditavam no afecto de Pio. Porque afinal tinham-no visto andar na maior azáfama, emocionado, atarantado, cuidando deles como uma galinha cuida dos filhos, como uma velha avó, como a velha, que era a alcunha que Sertório lhe tinha posto, por troça; porque afinal o general tinha deixado transparecer um interesse pessoal pelo bem-estar dos seus soldados.
Desde então, tinham viajado com ele de Gades a Empórias e voltado a Gades; depois, tinham marchado com ele novecentos quilômetros, por uma região desconhecida, infestada de bárbaros; e, em todas as circunstâncias, o general fizera tudo o que lhe era possível para que eles estivessem em segurança. Por isso, quando chegaram a Segóvia, Pio tinha perdido já toda a sua antiga frieza, e compreendido que a época, a sua própria mente e uma atitude adequadamente romana, atenta a todos os pormenores, lhe tinham permitido construir um exército do qual se separaria com lágrimas nos olhos. Aqueles homens pertenciam-lhe. Aquilo com que tinha dificuldade em lidar era o facto de que ele também lhes pertencia. Isso era algo que o seu filho não conseguia aceitar — daí que tivesse a maior dificuldade em acompanhar o pai naqueles passeios pelo acampamento. Metelo Cipião era sobretudo uma criatura pretensiosa e afectada e não um defensor das tradições e das distâncias. Por isso não conseguia aceitar o afecto daqueles que não eram seus pares — no fundo, só aceitava o afecto daqueles a quem o ligasse o sangue ou a adopção.
Quando o general conduziu os seus homens para o combate contra Lúcio Hirtuleio, os soldados já tinham percebido por que razão ele tinha apinhado seis legiões e mil cavaleiros num acampamento pequeno para tanta gente. Pio queria que Hirtuleio pensasse que ele só dispunha de cinco pequenas legiões e que construíra um acampamento tão bem fortificado porque o seu exército fora obrigado a viajar sem todos os adjuntos de que precisava; Pio pedira mesmo aos seus cavaleiros numídios que fizessem comentários a esse respeito enquanto expulsavam a cavalaria de Hirtuleio.
Seguindo deliberadamente o exemplo de Cipião Africano, Pio, quando procedeu à formação, escolheu o tipo de terreno que qualquer general escolheria se por acaso estivesse à frente de tropas mal equipadas e absolutamente desanimadas — um terreno semeado de pequenos cursos de água, com algumas irregularidades, recheado de arbustos e pequenas árvores. E era evidente, aos olhos de Hirtuleio, que, para enfrentar o poderoso exército inimigo, constituído por quarenta mil soldados soberbamente armados, Metelo Pio fora obrigado a estreitar o seu centro. Para compensar isto, alargara muito as suas alas; nas pontas das alas, a cavalaria numídia parecia comportaj-se como se não tivesse ninguém a controlá-la. Quando os seus batedores o informaram de que o exército da velha tinha deixado o acampamento, Hirtuleio não sabia ainda se aquele seria de facto o melhor momento para travar a batalha. No entanto, ao ver o inimigo e o terreno em que formara, fez um grunhido de desprezo e de imediato ordenou aos seus soldados que se preparassem para a batalha.
As alas da velha atacaram desde logo o exército de Hirtuleio, e isso era exactamente o que ele queria. Avançou então contra aquele desprotegido centro, decidido a abrir um rombo nele e a fazer entrar rapidamente três legiões que, posteriormente, atacariam a retaguarda inimiga. Mas no momento em que o exército ibérico se meteu entre as duas estranhas alas, Metelo Pio lançou a sua armadilha. Os seus melhores homens estavam escondidos dentro das alas; alguns deles, de súbito, foram reforçar o centro; outros foram para os flancos. Antes que tivesse tempo para tentar libertar-se, Lúcio Hirtuleio deu consigo no meio de um turbilhão de homens confusos e perdeu a batalha. Ele e o irmão mais novo morreram no campo de batalha, e os soldados de Metelo Pio, cantando cânticos de triunfo, reduziram a pó o exército que Sertório tanto amava. Poucos foram os soldados que sobreviveram; e esses fugiram para a Lusitânia, levando as horrendas notícias da derrota, e não mais combateram por Quinto Sertório. Os lusitanos que em vão tinham esperado por Pio na foz do Anas, depois de o terem seguido durante algum tempo, acabaram por decidir invadir a Hispânia Ulterior, chegando mesmo a atravessar o Bétis. Porém, quando se espalhou a notícia da sorte do exército ibérico, disseram adeus à sua grande oportunidade de se libertarem dos Romanos e dispersaram pelas florestas.
Segóvia, que era pouco mais do que uma aldeia empoleirada num penhasco, não agüentou as investidas de Pio mais do que um dia. Todo o seu povo foi morto e os seus edifícios foram incendiados. Metelo Pio não queria nenhum habitante vivo — porque alguém poderia avisar Sertório de que o exército ibérico fora dizimado.
Logo que os seus centuriões acharam os soldados em condições de partir, Metelo Pio deu início à marcha na direcção do rio Sucrão. Mandava o tempo que atravessasse o formidável maciço que ficava para lá de Segóvia, sem que pensasse sequer em contorná-lo: o Juga Carpetana (como era chamado) era difícil mas não impossível de atravessar, nem mesmo para os carros puxados pelos bois, e, por outro lado, não se tratava de um caminho muito longo — menos de 40 quilômetros. Depois de Segóvia, surgiram as cidades de Miaco e Sertóbriga; Metelo Pio e o seu exército passaram muito ao largo, para que os seus habitantes fossem levados a confundi-los com o exército ibérico que, se por acaso tivesse saído vitorioso, estaria nesse momento a regressar a Lamínio.
Depois, foi uma cansativa jornada por uma região tão árida que até os rebanhos de ovelhas pareciam evitá-la. No entanto, viam-se de quando em quando leitos quase secos de rios, e era possível explorar as suas águas subterrâneas. Por outro lado, a distância até ao alto Sucrão não era demasiada — não seria por isso que o exército da Hispânia Ulterior correria riscos. O calor, evidentemente, era colossal e, quanto a sombras, nem sinal. Mas Metelo Pio marchava apenas de noite, pois estava lua cheia, e, de dia, obrigava os seus homens a dormir à sombra das tendas.
Pio nunca chegou a entender que instinto o levou a passar para a margem norte logo que viu o Sucrão; é que, a pouca distância dali, numa zona inferior do curso, o leito do rio era um verdadeiro atoleiro de cascalho arenoso — se o exército tivesse passado aí, teria demorado muito mais tempo a chegar à outra margem. Assim sendo, as suas legiões estavam já na margem norte quando, pouco antes do ocaso, ele e os seus homens ouviram, a alguma distância, o ruído inconfundível de uma batalha. Era o penúltimo dia de Quinctilis.
Desde o alvorecer até uma hora antes do pôr do Sol, Quinto Sertório observou as legiões de Pompeu formadas para a batalha, perguntando-se, à medida que o dia ia passando, se Pompeu manteria a sua decisão de combater ou marcharia dali para fora. Era esta última alternativa que Sertório almejava; logo que virasse costas, Pompeu perceberia que tinha cometido um erro terrível. Mas o miúdo não saía dali — ou era demasiado esperto e sabia muito bem o que estava a fazer, ou então tinha alguma divindade a seu lado, convencendo-o a esperar durante horas sob aquele sol escaldante.
As coisas não estavam a correr bem a Sertório, apesar das muitas vantagens que possuía — a facilidade com que as suas tropas suportavam o calor, muita água para beber e tomar banhos, um conhecimento profundo da região circundante. No entanto, não tinha recebido nenhuma notícia de Lúcio Hirtuleio, para além de uma nota muito breve dizendo que Metelo Pio não estava em Segóvia, mas que esperaria 30 dias para ver se a velha aparecia e que, passados esses 30 dias, iria ter com Sertório. Por outro lado, os seus batedores, colocados nos montes mais elevados da região, não tinham visto nenhuma coluna de poeira avançando pelo vale ressequido do Sucrão. Logo, não havia nenhum sinal de que Hirtuleio viesse a caminho. Mas o pior de tudo é que Diana tinha desaparecido.
A pequena corça branca tinha viajado com ele desde Osca, sem que a desordem e o caos da marcha a perturbassem, sem que o sol quente a fizesse sofrer (um sol que deveria ter deixado as suas marcas nela, pois era albina, mas que, afinal, não lhe causara nenhum mal — e esse era mais um sinal das suas origens divinas). Só que, quando Sertório se instalou junto ao Sucrão, deixando Herénio e Perperna numa boa posição perto de Valência para amortecerem o avanço de Pompeu, Diana desapareceu. Certa manhã, ao acordar, não encontrou Diana ao seu lado, enroscada sob a pele de ovelha.
Nesses primeiros instantes da manhã, Sertório não se preocupou com a ausência da corça. O animal tinha recebido um apurado treino e, por isso, nunca sujava o interior das tendas ou das residências com a urina ou os excrementos — daí que Sertório tivesse pensado que ela saíra para fazer as suas necessidades fisiológicas. Porém, quando ele ia tomar o pequeno-almoço, ela aparecia sempre, para comer com ele. Só que, desta feita, a corça não apareceu.
E há 33 dias que não aparecia. Cada vez mais alarmado, Sertório desatou a procurá-la nas redondezas, sem dizer nada a ninguém. Até que se viu obrigado a perguntar a alguns membros do seu exército se a tinham visto. A notícia espalhou-se como fogo por mato seco — e, a certa altura, já todo o acampamento, acometido de verdadeiro pânico, andava à procura de Diana; Sertório vira-se obrigado a fazer uma severa comunicação aos seus soldados, indicando que a disciplina tinha de ser mantida mesmo que ela tivesse desaparecido.
O pequeno animal tinha um significado portentoso para aquele exército e em especial para os soldados ibéricos. À medida que os dias foram passando sem que houvesse da corça o mínimo sinal, o moral dos homens foi decaindo; um tal desânimo foi ainda ampliado pelo estúpido desastre de Valência, motivado pela recusa de Perperna em associar-se aos esforços do leal Herénio. Sertório sabia perfeitamente que o erro fora de Perperna, mas os seus homens estavam convencidos de que fora o desaparecimento de Diana que provocara aquela derrota. A corça branca era a sorte de Sertório — e a sua sorte tinha desaparecido.
Estava quase o Sol no ocaso quando Sertório deu ordem de batalha ao exército, seguro de que as suas tropas estavam em muito melhores condições para combater do que as tropas de Pompeu, as quais se encontravam sob um sol impiedoso há já longas horas. O próprio Pompeu comandava a ala direita e Lúcio Afrânio a esquerda; quanto ao centro, era comandado por um legado que Sertório pensava ser novo na Hispânia, pois nenhum dos seus batedores conseguira identificá-lo. A batalha de Lauro, no ano anterior, confirmara o desdém que Sertório sentia em relação às capacidades de comando de Pompeu; por isso, optou por combater contra a ala de Pompeu, deixando a Perperna a tarefa de enfrentar Afrânio; o centro pertencia também a Sertório.
De início, a batalha correu magnificamente para Sertório — sobretudo quando Pompeu foi levado para fora do campo de batalha, com a carne da coxa desfeita por uma lança farpada. No campo, deixou o seu Cavalo Público, morto pela mesma lança. Apesar das valorosas tentativas do jovem Aulo Gabínio para reconstruir a ala direita, a verdade é que esta, vendo-se sem chefe, começou a recuar.
Infortunadamente, Perperna estava a sair-se muito mal com Afrânio, que conseguira abrir um buraco nas suas linhas e atingido mesmo o acampamento inimigo. Sertório viu-se obrigado a ir salvar Perperna e só conseguiu expulsar Afrânio do acampamento depois de ter sofrido pesadas baixas. A noite caíra entretanto, mas a batalha continuava à luz da lua cheia e dos archotes; Sertório estava decidido a só parar o confronto quando conseguisse assegurar uma boa posição para vencer na manhã seguinte.
Assim, quando as hostilidades finalmente foram interrompidas, Sertório tinha boas razões para estar confiante em relação ao dia seguinte.
—vou pendurar a carcaça do miúdo numa árvore para que os pássaros venham comê-la — disse ele, com um sorriso perverso. Depois, com um ar ansioso, desesperado, perguntou: — E Diana? Diana ainda não apareceu, pois não?
Não, Diana ainda não tinha aparecido.
À primeira luz do dia, a batalha recomeçou. Pompeu continuava no seu posto de comando, deitado numa maca, suportada, à altura dos ombros, por alguns dos seus homens mais altos. Restaurado durante a noite, o seu exército juntou-se numa formação cerrada; era óbvio que Pompeu tinha dado ordens para que os seus homens corressem riscos mínimos — precisamente o género de inimigo que Sertório mais detestava.
Até que, pouco depois do alvorecer, um novo rosto e um novo exército penetraram no campo de batalha: Quinto Cecílio Metelo Pio, vindo de oeste e atravessando as hostes de Perperna como se elas não existissem. Pela segunda vez em menos de vinte e quatro horas, o acampamento de Perperna caía. Metelo Pio avançou então na direcção do acampamento de Sertório. E, para este, era tempo de fugir.
Enquanto ele e Perperna retiravam apressadamente, Sertório teria sido ouvido a lamentar-se:
— Se aquela velha maldita não tem aparecido, o miúdo não me escapava! — teria ele dito.
A retirada terminou nos contrafortes a oeste de Sétabe. Aí, extraindo alguma ordem daquele caos, Sertório, procurando ignorar Perperna, contou as suas perdas — talvez quatro mil homens ao todo — e integrou os homens das cortes mais afectadas (sobretudo as pertencentes a Perperna) em cortes com falta de efectivos. Perperna, quando soube disto, pensou apresentar um protesto formal, mas bastou-lhe olhar para o rosto severo e o olho estropiado de Sertório para desistir das suas intenções. Ficaria para mais tarde.
E foi nos contrafortes onde se refugiou que Sertório recebeu finalmente a notícia de que Lúcio e Caio Hirtuleio tinham sido mortos em Segóvia e de que o exército ibérico havia sido dizimado. Um golpe terrível, e um golpe que Sertório nunca esperara. E sobretudo quando o inimigo era a velha da Hispânia Ulterior! Não, Sertório nunca contara com a esperteza da velha, que dera tantas e tão estranhas voltas que nunca ninguém suspeitara das suas intenções, que passara ao largo de Miaco e Sertóbriga para dar a impressão de que era Hirtuleio, que depois marchara à luz da lua e sem levantar poeira para não denunciar a sua presença!
Os meus soldados ibéricos têm razão, pensou. Quando Diana desapareceu, a minha sorte evaporou-se. A deusa Fortuna já não me favorece. Se é que alguma vez me favoreceu.
O miúdo e a velha, segundo o informaram, tinham decidido evidentemente que não valia a pena continuar a marchar para sul; depois de terem limpo o campo de batalha e pilhado todos os alimentos da infeliz Sétabe, os seus exércitos tinham seguido para norte. Pois bem, essa era uma decisão acertada. Sextilis não tardava e tinham ainda um longo caminho a percorrer até ao acampamento de Inverno do miúdo. Mas que tencionaria a velha fazer? Voltaria à Hispânia Ulterior, ou acompanharia o miúdo até ao acampamento? Consciente de uma horrível lassidão que não sabia como combater, Quinto Sertório decidiu que lambera já as suas feridas o suficiente para que elas sarassem; iria atrás da velha e do miúdo e provocaria todos os danos que pudesse sem incorrer numa confrontação directa.
O seu acampamento estava já desfeito e o exército preparado para partir, quando duas crianças da região se aproximaram dele timidamente, com os pés nus ainda mais sujos de terra e lama que os corpos igualmente nus e os narizes e as orelhas perfurados por reluzentes brincos de ouro em forma de bola. Entre as duas crianças, com uma corda ao pescoço, encontrava-se uma corça com a pelagem muito suja, tão suja de terra e lama que parecia castanha. As lágrimas brotaram irreprimíveis do único olho são de Quinto Sertório — que acto tão nobre, tão bondoso! A gente da região, sabendo da perda da sua bela corça branca, viera oferecer-lhe uma outra corça, o animal de estimação daquelas crianças.
Sertório agachou-se, virando para as crianças apenas a parte do seu rosto que não fora desfigurada. Para sua grande surpresa, o animal que as crianças traziam começou a saltar e a tentar libertar-se; os animais nunca tinham medo de Quinto Sertório, bem pelo contrário!
— Trouxeram-me o vosso animal de estimação? — perguntou ele, afavelmente. — Obrigado, obrigado! Mas eu não posso ficar com ele.vou lutar contra os Romanos, portanto ele ficará muito melhor convosco.
— Mas esta é a tua corça! — retorquiu uma das crianças.
— A minha corça?! Não! A minha corça era branca!
— E esta também é branca — disse a criança, raspando um pouco da lama que cobria a pelagem do bicho. — Estás a ver?
Nesse momento, a corça conseguiu libertar-se da corda e correu para Sertório. com a face direita molhada pelas lágrimas, Sertório abraçou-se ao animal e encheu-o de beijos. Não conseguia separar-se dele. — Diana! A minha Diana! Diana, Diana!
Quando as crianças se foram embora, acompanhadas por um escravo que levava um grande saco de ouro para os pais delas, Quinto Sertório deu um banho à corça na nascente mais próxima e inspeccionou-a de alto a baixo, com um desvelo maternal. Fosse qual fosse a razão do seu desaparecimento, a verdade é que a vida selvagem não lhe tinha trazido nada de bom. Um felino atacara-a, pois ela trazia ainda as marcas profundas e semicuradas das garras de ambos os lados da rabadela, como se tivesse sido atacada por trás e atirada ao chão. Só a deusa sabia como é que ela conseguira escapar. As suas pequenas patas estavam gastas e ensangüentadas, as orelhas estavam rasgadas nas pontas, e havia sinais de feridas no focinho. As crianças tinham-na encontrado quando conduziam o rebanho da família para o pasto. A corça correra para as crianças e descansara o focinho nas mãos de uma delas, suspirando de alívio, tremendo muito.
— Pois bem, Diana — disse Sertório, instalando-a numa caixa, numa das carroças do exército. — Espero que tenhas aprendido a lição! O mundo selvagem é para os selvagens! Estavas com o cio quando fugiste? Ou foram os cães do campo que te assustaram? De futuro, minha menina, vais viajar assim. Não suporto a ideia de te voltar a perder.
A notícia espalhara-se mais depressa que um bando de pássaros levantando vôo; Diana voltara! E, com ela, voltara a sorte de Quinto Sertório.
Pompeu e Metelo Pio deixaram Valência, seguindo para norte, na direcção de Sagunto. Os alimentos que tinham pilhado em Sétabe (não havia mais nada para pilhar) foram um acrescento bem-vindo aos seus então reduzidos abastecimentos, tal como a comida que Pompeu escondera na pedreira perto de Valência. Tinham acordado marchar juntos ao longo da costa leste, até Empórias; por outro lado, Metelo Pio passaria esse Inverno na Gália Narbonense — embora os seus homens não se tivessem queixado do desvio de mil e quinhentos quilômetros, o Bacorinho pensou que outra marcha de setecentos e cinqüenta quilômetros seria demasiado para um ano só. Além disso, queria estar no auge da acção na Primavera e sabia que o aniquilamento do exército hispânico manteria a sua província a salvo de quaisquer ataques dos Lusitanos.
Sagunto enviara uma delegação para os informar de que faria o possível por ajudá-los e que permanecia entranhadamente romana. O que não surpreendia ninguém — fora a dedicação de Sagunto (e também de Massiliote) a Roma que desencadeara a segunda guerra púnica contra Cartago, um século e meio antes. Mas a cidade tinha poucos alimentos para lhes dar — e os dois generais não tiveram dificuldade em acreditar nisso. A colheita fora pobre porque as chuvas de Inverno e da Primavera não tinham ajudado as espigas a encher-se de grãos.
Era portanto imperioso que os dois exércitos seguissem tão depressa quanto possível para o Ebro, onde as colheitas eram mais tardias e mais ricas. Se conseguissem lá chegar em fins de Sextilis, a colheita seria deles e não de Sertório. Por isso, agradeceram à embaixada de Sagunto e mandaram-na para a sua cidade; Metelo Pio e Pompeu não ficariam nem um dia em Sagunto.
A coxa de Pompeu estava a sarar, mas lentamente; as farpas da lança tinham rasgado tendões e músculos, e Pompeu teria ainda de esperar algum tempo até que os novos tecidos se consolidassem. O Bacorinho não deixou de reparar que a perda do Cavalo Público parecia afectá-lo muito mais do que a ferida da perna ou o feio aspecto que a sua bela perna tinha agora. O que não admirava, pensou ele, pois um cavalo era muito mais belo que a perna de um homem. Pompeu não encontraria ali um cavalo igual àquele: os cavalos hispânicos eram pequenos, mal alimentados e mal tratados.
O moral do miúdo estava uma vez mais muito por baixo. E com razão. Metelo Pio não só fora a razão determinante para a vitória no Sucrão, como também aniquilara o melhor general e o melhor exército de Sertório. Até mesmo Lúcio Afrânio, Marco Petreio e o novo legado de Pompeu, Lúcio Titúrio Sabino, tinham tido melhor sorte que Pompeu. Claro que era verdade que todo o veneno de Sertório se abatera sobre Pompeu; mas ele sabia que não tinha estado à altura de tamanho desafio. E agora, conforme lhe disseram os batedores, o renegado vinha atrás deles, espreitando sem dúvida uma próxima oportunidade. As suas unidades de guerrilha tinham já entrado em acção, perseguindo todas as unidades inimigas enviadas em missões de exploração de alimentos; mas a sabedoria de Pompeu, nestas questões, igualara já a de Metelo Pio, e, por isso, os dois exércitos pouco sofreram. Em contrapartida, poucos víveres conseguiram arrecadar nessas surtidas.
Então — aparentemente, por um mero acidente — deram com o exército de Quinto Sertório nas planícies costeiras, logo após terem passado Sagunto. E Sertório decidiu oferecer-lhes batalha, certificando-se antes de que ele e as suas próprias legiões combateriam Pompeu. Pompeu é que era o elo fraco do inimigo, e não Metelo Pio.
A estratégia revelou-se errada. Sertório teria feito melhor se tentasse conter Metelo Pio e deixasse Pompeu a cargo de Perperna; Pompeu apareceu no campo de batalha deitado na sua maca, pois não queria que dissessem dele o mesmo que haviam dito de Aquiles: que se enfiara na tenda enquanto os seus aliados combatiam.
As hostilidades começaram às primeiras horas da tarde e, quando terminaram, já a noite tinha caído. Apesar de ligeiramente ferido no braço, Metelo Pio tinha ganho o dia. Provocara a perda de cinco mil homens do lado de Perperna, mas sofrera muito poucas baixas. O azar de Pompeu continuava a persegui-lo: toda a sua cavalaria foi morta e as suas baixas elevavam-se a seis mil — legião e meia. Pompeu e Pio podiam clamar vitória unicamente por causa das baixas de Perperna e dos três mil homens que morreram nas hostes de Sertório.
— Ele vai Voltar ao alvorecer — disse o Bacorinho, muito jovial, quando foi ver como estava Pompeu.
— Não, estou convencido de que vai retirar — retorquiu Pompeu. — As coisas não lhe correram bem e, quanto a Perperna, foi um desastre.
— Ele vai voltar, Cneu Pompeu. Eu conheço-o bem.
Ah, que tormento, que ódio! Aquele maldito Bacorinho conhecia-o bem!
E, como seria de esperar, o Bacorinho tinha razão. Sertório voltou de manhã, decidido a vencer. Desta feita rectificou os seus erros, concentrando as suas energias em Metelo Pio, cujo campo atacou aos primeiros alvores. Mas a velha já estava à espera dele. Tinha colocado Pompeu e os seus homens no seu próprio campo e foi assim que, sem grande dificuldade, desfeiteou Sertório. Metelo Pio, que parecia ter rejuvenescido nos últimos tempos, perseguiu então Sertório até Sagunto, onde este se refugiou com o exército; enquanto isso, Pompeu era levado de maca para a sua tenda.
Apesar da vitória, a batalha provocara em Pompeu uma dor pessoal. Caio Mémio, seu cunhado, amigo e questor, fora morto — era o primeiro dos seus legados a perecer numa batalha.
Enquanto Pompeu chorava, escondido a um canto de uma carroça, Metelo Pio comandava a marcha para norte, deixando que Sertório e Perperna fizessem o que muito bem entendessem — provavelmente exerceriam represálias sobre os habitantes de Sagunto. Mas não ficariam lá muito tempo, disso estava ele certo: Sagunto não tinha comida para os seus habitantes, quanto mais para um exército.
No final de Sextilis, os dois exércitos romanos chegaram ao Ebro; mas a colheita já se encontrava nos celeiros das imponentes fortalezas sertorianas, nas montanhas, enquanto que as planícies tinham sido incendiadas, não passando agora de um deserto negro. Sertório não se demorara em Sagunto. Fora mais rápido que Pompeu e Pio e, antes que o inimigo viesse, devastara as suas possíveis fontes de alimentos.
Empórias e as terras dos Indigentes também não estavam melhor; dois Invernos de ocupação pelo exército de Pompeu tinham feito engordar as bolsas do povo, mas as colheitas eram escassas.
—vou mandar o meu questor Caio Urbínio à Hispânia Ulterior, a fim de recrutar tropas bastantes para que as minhas terras possam ficar em segurança — disse o Bacorinho. — Mas se quisermos acabar com Sertório, terei de estar perto de ti na Primavera. Por isso, e como pensámos, o melhor será eu ir para a Gália Narbonense.
— Mas as colheitas aí também não são boas.
— É verdade. Mas há muitos anos que não têm lá nenhum exército instalado e por isso creio que hão-de ter o suficiente para os meus homens — retorquiu o Bacorinho. Franzindo o sobrolho, prosseguiu: — O que mais me preocupa é o que tu vais fazer. Não creio que haja aqui alimentos suficientes para os teus soldados — e se eles não se alimentarem bem durante o Inverno, chegarão à Primavera magros e sem forças.
— Euvou partir para o Alto Douro — replicou Pompeu calmamente.
— Por todos os deuses!
— É uma região que fica demasiado longe das cidades de Sertório. Por isso, deverá ser mais fácil dominar as fortalezas locais do que conquistar cidades como Calagorre ou Yareia. O Ebro pertence a Sertório de uma ponta a outra. Mas o Douro não. Os poucos nativos em que confio disseram-me que a região não é tão alta como os Pirenéus, longe disso. E, por outro lado, o frio é muito menor.
— Nessa região vivem os Vaceus, que é um povo guerreiro.
— Mas todos os povos das Hispânias o são, Metelo Pio! — retorquiu, fatigado, Pompeu, mudando a posição da perna.
O Bacorinho aquiesceu, com um ar pensativo.
— Sabes uma coisa, Pompeu: quanto mais penso na tua ideia, mais gosto dela! Vai! Mas parte depressa, pois o Inverno poderá dificultar a travessia do Alto Ebro.
— Não te preocupes, eu escaparei ao Inverno. Mas primeiro — disse ele, com um ar triste — tenho de escrever uma carta.
— Para Roma e para o Senado.
— Isso mesmo, Pio. Para Roma e para o Senado. — Os olhos azuis, mais velhos e circunspectos nos últimos tempos, fixaram os olhos castanhos do Bacorinho. — Só quero perguntar-te uma coisa: deixar-me-ás escrever e falar em teu nome?
— Absolutamente! — retorquiu Metelo Pio.
— Tens a certeza de que não preferes escrever a tua carta?
— Tenho. É melhor que sejas tu a escrever. Foi a ti que aqueles especialistas de divã deram a comissão especial. Eu não passo de um velho e vulgar governador que teve de enfrentar uma guerra terrível. Eles não me ligam nenhuma, sabem perfeitamente que eu sou um dos seus velhos criados. É a ti que eles não conhecem, Magno. É em ti que eles provavelmente não confiam. Porque tu não és um deles. Escreve-lhes! E mete-lhes um bom susto, Magno!
— Não te preocupes, é isso que euvou fazer. O Bacorinho levantou-se.
— Pois bem,vou partir amanhã de manhã para Narbona. Quanto mais depressa partirmos, menos comeremos da tua comida.
— Não queres pelo menos retocar a minha prosa? Varrão costumava fazer-me isso.
— Não, eu não! — retorquiu o Bacorinho, rindo. — Eles conhecem muito bem o meu estilo literário. Dá-lhes algo que eles nunca tenham visto antes.
E foi isso mesmo que Pompeu fez.
Para o Senado e o Povo de Roma:
Escrevo esta carta em Empórios, nos Nonos de Outubro do ano do consulado de Lúcio Octávio e Caio Aurélio Cota. Nos Idos de Outubro, inicio a minha marcha até ao rio Douro e à sua confluência com o rio Pisoraca, onde existe uma cidade chamada Septimanca, no meio de férteis montanhas. Espero passar aí o Inverno, dando aos meus homens o conforto e os alimentos de que precisam. Felizmente, já não tenho tantos homens como tinha há dois anos, quando cheguei a Empórios. Disponha apenas de quatro legiões, cada uma das quais com menos de quatro mil homens, e já não tenho cavalaria.
Porque é que tenho de levar os meus catorze mil homens a atravessar um território hostil e a marchar setecentos e cinqüenta quilômetros para lhes proporcionar um bom acampamento de Inverno? Porque não há nada que comer na Hispânia Oriental. É essa a razão. Nesse caso, porque é que não compro comida à Gália ou à Gália Italiana, tanto mais que os ventos, nesta época do ano, favorecem as viagens dos navios dessas regiões até à Hispânia? Porque não tenho dinheiro. Não tenho dinheiro para comprar comida, nem para pagar aos navios. É essa a razão. Não tenho outra hipótese senão roubar comida às tribos nativas, as quais, assim espero, não deverão resistir ao assalto de catorze mil romanos esfomeados. É por isso que tenho de me deslocar para tão longe — porque nessas regiões as tribos devem ser tão fracas que não resistirão aos nossos ataques. Para obter comida no Ebro, teria de conquistar uma das fortalezas de Sertório — e não tenho condições para tal. Quanto tempo demorou Roma a submeter a Numância? E a Numância é um galinheiro, se comparada com Calagorre ou Clúnia. Além disso, a Numância não era comandada por um general romano.
Sabem, através das minhas cartas, que não tive boas campanhas nestes dois últimos anos, embora o meu colega Quinto Cecília Metelo Pio Pontifex Maximus tenha registado êxitos notáveis. É preciso algum tempo para nos habituarmos a Quinto Sertório. Este é o país dele. Ele conhece-o e conhece o seu povo. Eu não. Fiz o melhor que podia. Não creio que outra pessoa no meu lugar pudesse ter feito melhor. O meu colega Pio teve de esperar três anos para arrancar a sua primeira vitória. Eu, pelo menos, colaborei em duas vitórias neste segundo ano, quando as minhas forças e as de Pio se juntaram para derrotar Sertório junto ao rio Sucrão e, depois, perto de Sagunto.
Eu e o meu colega Pio acreditamos que venceremos. Não tenho a mínima dúvida de que venceremos. Mas, para vencermos, precisamos de alguma ajuda de Roma. Precisamos de mais legiões. Precisamos de dinheiro. Não digo ”mais dinheiro” porque, até agora, não recebi dinheiro nenhum. E creio que o meu colega Pio também não recebeu nenhum, para além do estipêndio que lhe foi concedido para o seu primeiro ano como governador. Parece que vos estou já a ouvir: alcança umas quantas vitórias, saqueia umas quantas cidades e logo terás dinheiro. Pois bem, isso não é possível na Hispânia. Não há dinheiro na Hispânia. Quando conquistamos uma cidade, o saque resume-se a alguns víveres. Não há dinheiro. Caso estejam confusos com a minha escrita,vou repetir: NÃO HÁ DINHEIRO. Quando me mandaram para aqui, deram-me seis legiões e mil e quinhentos cavaleiros e dinheiro suficiente para pagar a toda a gente e para pagar abastecimentos durante meio ano. Isso foi há dois anos. O meu tesouro de guerra ficou vazio ao fim de meio ano. Isso foi há ano e meio. E o dinheiro acabou-se. E não vieram mais tropas.
Sabem — eu sei que sabem, porque eu e o meu colega Pio os informámos nas nossas cartas — que Quinto Sertório fez um pacto com o rei Mitridates do Ponto. Sertório concordou em aceitar todas as conquistas do rei Mitridates e em permitir mais conquistas ao reino do Ponto a partir do momento em que se torne Ditador de Roma. Devem entender, portanto, que Quinto Sertório não vai parar quando se tornar rei da Hispânia. Ele tenciona ser também rei de Roma — seja qual for o título que atribua a si mesmo. Há apenas duas pessoas em condições de detê-lo. Eu e o meu colega Pio. Digo isto porque somos nós que estamos aqui e porque temos hipóteses de o deter. Mas não podemos detê-lo com aquilo que temos. Sertório possui todo o potencial humano que a Hispânia pode oferecer e tem a capacidade de transformar os bárbaros hispânicos em bons soldados romanos. Eu e o meu colega Pio não podemos recrutar soldados na Hispânia. Ninguém no seu juízo perfeito se juntaria aos nossos exércitos. Não temos dinheiro para pagar aos nossos homens. Nem sequer temos comida para lhes dar. E — os deuses são minhas testemunhas!— não há despojos para partilhar.
Eu posso derrotar Sertório. Se não o puder fazer de outra maneira, então serei como a gota de água que desgasta a mais dura das pedras, até ao momento em que esta se transforma numa concha vazia, que uma criança pode partir com um martelo de brinquedo. O meu colega Pio sente exactamente o mesmo que eu. Mas eu só poderei vencer Sertório, se Roma me enviar mais soldados e mais cavalaria. E ALGUM DINHEIRO. Os meus homens não recebem há ano e meio e eu estou a dever tanto aos mortos como aos vivos. Trouxe muito do meu dinheiro comigo, mas gastei-o todo em abastecimentos.
Não apresento desculpas pelas minhas baixas. Elas são o resultado de erros de previsão e da deficiente informação que recebi em Roma. Disseram-me, entre outras coisas, que seis legiões e mil e quinhentos cavaleiros chegariam perfeitamente para abater Sertório. Pois eu devia ter trazido dez legiões e três mil cavaleiros. Então, tê-lo-ia vencido no primeiro ano e Roma estaria agora mais rica em homens e em dinheiro. É nisto que vocês, cambada de sovinas, devem reflectir.
E aqui vai mais uma coisa para que vocês reflictam um pouco. Se eu não puder permanecer na Hispânia e se o meu colega Pio, por isso mesmo, ficar reduzido ao seu cantinho da Hispânia, que acham que vai acontecer? O que vai acontecer é que eu voltarei para Itália. E arrastarei Quinto Sertório e os seus homens atrás de mim, como se fossem a cauda de um cometa. Portanto, pensem maduramente no que acabei de lhes dizer. E mandem-me algumas legiões e cavalaria. E ALGUM DINHEIRO.
A propósito: Roma está a dever-me um Cavalo Público.
A carta chegou a Roma em fins de Novembro, um tempo de mudanças no Senado reorganizado de Sila. Os cônsules do ano estavam a chegar ao fim do seu mandato e os cônsules eleitos para o ano seguinte esperavam já ansiosos pelas transmissão do poder. Por causa da doença crónica de Lúcio Octávio, apenas um cônsulj Caio Aurélio Cota, ocupava a cadeira curul. Mamerco Princeps Senatus leu a carta de Pompeu aos senadores silenciosos — a leitura de cartas fora um dos privilégios que Sila não retirara ao chefe do Senado.
Foi Lúcio Licínio Lúculo, cônsul sénior eleito para o ano seguinte, que se levantou para responder; o seu colega júnior era o irmão do meio do actual cônsul, Marco Aurélio Cota, e nenhum dos Cotas queria responder àquela carta tão crua e perturbante.
— Pais Conscritos, a carta que acabam de ouvir é um relatório de um soldado e não uma insidiosa missiva de um qualquer político!
— Um relatório de soldado? O que eu acho é que o seu autor é tão incompetente a escrever como a comandar um exército — replicou Quinto Hortênsio, apertando o nariz como que para evitar algum fedor.
— Ora, Hortênsio, cala-me essa boca! — atirou-lhe Lúculo, farto de ouvir tais comentários. — Francamente! Não estou nada interessado em ser interrompido pelas observações elegantes de um general de trazer por casa! Quando conseguires deixar o teu divã e abandonar os teus belos peixinhos e fores, em vez disso, lutar contra Quinto Sertório, não só abrirei alas para que tu passes, como deixarei o chão juncado de pétalas de rosa! Mas enquanto a tua espada não for tão acerada como a tua língua, deixa ficar a língua onde ela deve ficar — atrás dos teus dentinhos gulosos!
Hortênsio cedeu, ainda que com um ar muito azedo.
— Como eu estava a dizer, não se trata de uma insidiosa missiva de um qualquer político. E não nos poupa a nós, os políticos. Por outro lado, também não poupa o seu próprio autor. Não apresenta desculpas para os seus fracassos e...
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