Translate to English Translate to Spanish Translate to French Translate to German Translate to Italian Translate to Russian Translate to Chinese Translate to Japanese

  

 

Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


OS FILHOS DO FLAGELO / Filipe Faria
OS FILHOS DO FLAGELO / Filipe Faria

 

 

                                                                                                                                                

  

 

 

 

 

 

No anterior volume das Crónicas, acompanhei Aewyre Thoryn, filho do desaparecido herói Aezrel Thoryn, enquanto este tomava, por fim, a decisão de descobrir a manta de mistério que oculta o destino do seu pai. O jovem abandonou Ul-Thoryn, fazendo-se acompanhar pelo mago Allumno e portando consigo Ancalach, a lendária Espada dos Reis. Pelo caminho encontrou outros que se juntaram à sua demanda: Lhiannah, a princesa arinnir de Syrith; Worick, um thuragar veterano, protector desta; Quenestil, um shura eahan; Babaki, um antroleo exilado; Taislin, um burrik rebelde e Slayra, uma assassina eahanoir.

Juntos passaram por várias provações, entre as quais lutas contra seres hostis do ermo, o tirano de uma cidade, os perigos do terrível pântano de Moorenglade, seres da Sombra há muito julgados desaparecidos, um senhor da guerra latvoniano e um exército de guerreiros das estepes. Através dos esforços conjuntos, os companheiros prevaleceram perante todas as adversidades, aprenderam a compreender-se uns aos outros e a respeitarem-se mutuamente, mas o destino não quis que continuassem a demanda juntos.

O desaparecimento de Slayra levou Quenestil e Babaki a separarem-se do grupo para resgatar a eahanoir dos seus captores. Por sua vez, Aewyre e os restantes companheiros penetraram nas inóspitas Estepes de Karatai atrás de Kror, um misterioso drahreg que partilha com o filho de Aezrel a Essência da Lâmina, um segredo milenar dos guerreiros de Allaryia. Enquanto isso, o grupo é acossado por dois terríveis servos da Sombra: Baodegoth, um misterioso moorul sobrevivente da Guerra da Hecatombe, e Hazabel, uma harahan sob o jugo de um obscuro mestre, fecundada com a semente do jovem Tboryn. Ambos querem Ancalach; porquê, ninguém o sabe, nem Aewyre, que até agora se viu incapaz de desvendar o segredo da Espada dos Reis, nem mesmo eu, que o conheço. O destino é caprichoso, e revelará o que bem entender quando bem entender...

                           Pearnon, o Escriba Crónicas de Allaryia

 

 

 

 

Os dois caçadores haviam perdido a conta aos dias que haviam passado a correr pelos bosques escuros de tuias em forma de pirâmide, espruces estreitos e altos abetos. O cheiro a pinho e a resina já se lhes alojara nos narizes, o tapete castanho de caruma fora o único solo que haviam pisado desde a separação. Haviam descoberto marcas de cascos e isso incitara-os a correr mais depressa. Montados, os seus perseguidos podiam cobrir uma distância considerável e os caçadores corriam o risco de lhes perder o rasto se as nuvens cinzentas no céu levassem a cabo a sua ameaça. Os dois corriam ininterruptamente, capas cinzentas esvoaçando atrás deles como asas.

 

As pernas do eahan ruivo ardiam, os seus pulmões pareciam secos de inalar o ar frio e cada golfada de ar magoava-lhe a garganta. O antroleo deixava atrás de si um contínuo rasto de baforadas condensadas e a língua pendia-lhe, mas não parecia cansado. Babaki decidira acompanhá-lo para pagar a sua dívida, pois fora Quenestil quem o salvara da fossa armadilhada na qual o antroleo tentara acabar com a sua vida. Era bom estar acompanhado, mas a ideia de ser responsável pelo que pudesse acontecer não agradava ao solitário shura. Esta luta era sua e deveria travá-la sozinho, mas não pudera contrariar a vontade de Babaki, não quando teria feito exactamente a mesma coisa.

 

Um breve sorriso afectado surgiu-lhe na face. Aqui estava ele, a correr que nem um carcaju desvairado atrás de uma eahanoir, uma eahanna negra que teria morto e que o poderia ter morto a ele na primeira vez que se encontraram. Mas as coisas não se passaram assim e, na noite em que Slayra desapareceu, Quenestil descobrira que a amava e que o sentimento era recíproco.

 

”A vida é tão segura como uma montanha e tão agitada como um seixo de rio Não sejas rijo como o carvalho, mas flexível como o teixo Adapta-te como puderes e serás feliz”, sempre lhe dissera o seu pai

 

Apesar de Quenestil ter sido um carvalho toda a sua vida, as palavras do seu pai, Lunce Anthalos, soavam-lhe agora mais sábias que nunca

 

Quenestil! disse Babaki de repente, correndo ao seu lado. O eahan despertou dos seus pensamentos e deu a sua atenção ao antroleo, sem parar de correr

 

Sim?

 

Não achas que devíamos descansar um pouco?

 

Quenestil olhou para o seu amigo de relance Forte como um urso, rápido como um corço, Babaki era uma das mais dóceis criaturas que o eahan alguma vez encontrara. Sabia muito bem que o antroleo seria capaz de continuar a marcha durante muito mais tempo, mais do que o eahan alguma vez poderia aguentar, mas pedia-lhe que parasse Não por ele, Quenestil sabia-o, mas para que o eahan tivesse um pretexto para descansar E assim fez

 

Muito bem, meu amigo acedeu, ofegante, dando uma leve palmada no musculoso braço peludo de Babaki. Vamos repousar um pouco e comer qualquer coisa

 

Os dois sentaram-se no chão e mordiscaram umas lascas sensaboronas de carne seca, empurrando-as com goles de água dos cantis de couro

 

Cheiras alguma coisa? perguntou o eahan, limpando o queixo com as costas da mão

 

O odor a cavalos ainda é claro Estamos no caminho certo

 

Óptimo Quenestil deu-se ao luxo de comer uns frutos secos, que Babaki imediatamente recusou. Vamos então disse, de boca ainda cheia

 

Os dois levantaram-se e retomaram a apressada marcha Os montes ondulantes das terras latvonianas iam-lhes revelando algumas aldeias espalhadas pelos campos. Pareciam todas desertas e aqui e ali viam-se filas de pessoas a avançarem lentamente pelas estradas, homens e mulheres que queriam fugir à vindoura guerra. Quenestil abanou a cabeça e suspirou enquanto corria.

 

Os humanos nem precisavam de drahregs ou eahanoir, matavam-se uns aos outros. Eahanoir Slayra.

 

”Aguenta-te, meu amor Eu vou buscar-te Juro”.

 

O rasto dos cavalos conduziu os dois caçadores a uma aldeia abandonada. Nas ruas de terra batida abundavam galinhas que correram desajeitadamente para fora do alcance dos dois, cacarejando. Babaki lambeu os beiços, mas conteve-se. Portinholas eram agitadas ao sabor do vento, batendo ruidosamente contra as janelas. Uma insígnia onde se lia algo em Urial com um urso em pose de dança indicava a estalagem e as marcas de cascos dirigiam-se aos estábulos e para fora deles, estas mais recentes. Mesmo assim, Quenestil abriu a porta com cuidado, empurrando-a com o ombro e de arco pronto. Um rápido vislumbre não revelou nada a não ser uma sala abandonada e desarrumada e o eahan relaxou o fio. O shura entrou cuidadosamente, ouvindo com atenção. Uma galinha cacarejou mais violentamente lá fora, mas Quenestil não fez caso do ruído. Não se ouvia nada. Reinava um silêncio sepulcral.

 

Espirros de sangue e mobília escancarada traçavam um caminho que ia dar à cozinha da estalagem e Quenestil encaminhou-se para lá. Havia migalhas e restos de comida recentes nas mesas que ainda estavam em pé, mas o eahan ignorou-as. Quando entrou na cozinha, deparou com uma cena de violência. Um humano jazia sentado no chão, cabeça inclinada para o lado e mãos sangrentas estendidas aos seus lados. Viam-se duas manchas vermelhas na parede com dois rastos que se prolongavam até às mãos do homem, o que sugeria que ele as tivera cravadas contra a parede. O seu comprido bigode estava encrostado de sangue e o seu avental branco tinha borrões vermelhos de facadas. O arco curvo de Quenestil tremeu quando nele crispou os dedos de raiva.

 

Babaki...? Onde estava ele?

 

Virou-se de repente, apercebendo-se de que se esquecera do antroleo. Estava tão habituado a agir sozinho que nem mesmo todo este tempo com os companheiros o havia ajudado a ganhar o hábito de trabalhar em equipa. Ouviu o ruído de passos e saiu da cozinha para deparar com Babaki. O antroleo virou-se para ele, uma expressão envergonhada na sua face cheia de penas e manchada de sangue. Quenestil relaxou e, apesar da situação, permitiu-se um meio sorriso.

 

Babaki lutava todos os dias contra o animal dentro de si, o legado shakarex da sua família que o podia transformar num monstro assassino se perdesse o controlo. As galinhas lá fora haviam obviamente sido demasiado tentadoras...

 

O que aconteceu aqui? perguntou, esfregando penas da sua boca.

 

Está um homem morto na cozinha. Os malditos eahanoir não perderam tempo.

 

O antroleo acenou com a cabeça, agitando a juba, e ergueu-se, mexendo as orelhas nervosamente.

 

Vamos enterrar aquele pobre homem e ver se sobrou alguma comida por aqui disse o eahan.

 

Não havia comida, mas enterraram o estalajadeiro com pedras. Quenestil ter-lhe-ia escavado algo mais apropriado, mas não se achava com tempo suficiente para tal. Slayra afastava-se mais a cada instante que passava. O Sol já alcançara o seu zénite por detrás das nuvens quando os dois findaram o trabalho e deixaram a aldeia abandonada.

 

Caminharam durante vários dias, comendo pouco e dormindo ainda menos, somente o necessário para não tombarem de exaustão. Babaki fazia sempre a primeira vigia. O antroleo parecia incansável, mas fingia estar tão exausto como Quenestil, caso contrário o eahan continuaria a correr. Iniciavam a caminhada antes da alvorada e apenas paravam ao anoitecer de modo a não perder os rastos, com alguns intervalos breves pelo meio para comer e descansar. O frio aumentava e chegou a chover num dia, um prolongado chuvisco que angustiou Quenestil, mas que não conseguiu despistar os dois caçadores, que continuaram a seguir o rasto durante sete dias após a partida da aldeia abandonada. Ao fim do oitavo, chegaram por fim ao seu destino.

 

O Inverno ainda reinava nas vastas estepes de Karatai. Um cobertor níveo cobria a imensidão de terra plana que se prolongava até onde a vista alcançava e que se parecia unir com o céu no horizonte. Massas de nuvens cinzentas e revoltosas agitavam-se no firmamento, aglomerando-se em cúmulos e ameaçando desencadear uma furiosa tempestade a qualquer momento. O vento varria a estepe gelada, uivando como uma alcateia de lobos celestiais e fustigando com fúria as únicas coisas que pareciam mexer-se na vastidão: duas figuras que se arrastavam a passos morosos pelo chão. Encobertas com peles que as resguardavam parcialmente do frio, caminhavam cabisbaixas de modo a abrigar as faces do vento. Uma delas era uma mulher, cujos cabelos negros teimavam em lhe escapar do capuz em fios esvoaçantes, originando resmungos que se dissolviam na imensidão da estepe. A seu lado caminhava um humanóide de pele negra como piche e cabelos entrançados que o vento também tentava levar consigo. Os seus olhos pretos de pupilas vermelhas estavam fixos num ponto indeterminado do chão, erguendo-se por vezes para perscrutar o horizonte, como se estivesse à espera de algo, tornando a baixá-los de seguida.

 

”Que o Flagelo te leve, drahreg!”, pensou a mulher. ”Trazes-me para este ermo desolado para arranjar ajuda e nem sabes onde a encontrar?”

 

Hazabel estava deveras irritada. Kror dissera-lhe que tinha amigos em Karatai, amigos que a poderiam ajudar contra ”o grupo de homens malvados” que a perseguia, mas já quatro dias haviam passado quatro dias a errar por terreno plano coberto de neve até perder de vista e não haviam avistado vivalma, nem sequer um pássaro! Kror não dissera nada desde manhã e Hazabel temia exprimir coisas que não devia se abrisse a boca. Além do mais, o vento gelado poderia lacerar-lhe a garganta se falasse, pelo que a marcha decorreu em silêncio, com a excepção dos ruídos originados pelo furioso pisar da harahan na crosta de neve.

 

Subitamente, Kror estacou e os seus olhos dardejaram para o céu, fixando-se lá. Hazabel seguiu-lhe o olhar e viu uma ave a planar nas alturas, circundando os dois.

 

O que foi? perguntou, apesar de aquele ser o primeiro animal que haviam avistado.

 

Kror contemplou a ave durante mais alguns instantes, baixando a cabeça de seguida e retomando a marcha.

 

Um falcão. Anda, vamos disse sem qualquer outro tipo de explicação.

 

Os dentes de Hazabel rilharam, ou talvez estivessem só a tiritar” de frio. As peles que haviam apressadamente despojado dos cadáveres ocarr no Vale dos Ventos providenciavam uma parca protecção. Expelindo a raiva numa longa exalação condensada que o vento dissolveu, a harahan foi em frente. Arrastaram-se por mais algum tempo, medido apenas pelas passadas que davam, até que avistaram pontos negros à distância. Kror deteve-se e Hazabel cerrou os olhos para tentar ver melhor. Fossem o que fossem, aproximavam-se depressa.

 

Quem são? indagou.

 

Ocarr respondeu o drahreg, flectindo os dedos quase entorpecidos pelo frio.

 

São... amigos?

 

Vamos ver.

 

Os pontos negros haviam-se tornado figuras montadas e as figuras eram agora cavaleiros cujas montadas pareciam deslizar pela neve até eles, uns vinte no seu número. Carregavam lanças e tinham arcos em estojos ao lado das selas.

 

Não faças nada e deixa-me falar disse Kror.

 

Hazabel acenou com a cabeça e pôs-se docilmente atrás do drahreg. O chão começou a tremer com o bater dos cascos. Os cavaleiros não proferiram qualquer som, mas tiraram os arcos dos estojos e prepararam setas. Quando estavam suficientemente próximos, Kror desembainhou os dois alfanges, brandindo-os com destreza e cruzando-os por cima da cabeça, gritando algo numa língua que a harahan desconhecia.

 

Os cavaleiros pararam e o líder do grupo puxou as rédeas da sua montada tão repentinamente que o animal se empinou, orneando. Estavam agora perto o suficiente para que Hazabel lhes visse as caras: redondas, de pele queimada pelo sol reflectido na neve, olhos ovais e faces inexpressivas. Tinham gorros de couro forrados a pele com palas para as orelhas, escudos de vime às costas e envergavam túnicas de couro com peles curtidas por cima. Todos a ignoravam, fitando Kror, e alguns deram toques com os calcanhares nos flancos dos animais para que estes começassem a andar e circundar o estranho par que se lhes deparava. O líder nada disse, mas inclinou-se, apoiando o cotovelo na sela e estudou Kror, que o encarava com um olhar confiante. Outro ocarr carregava um falcão no braço. A ave olhava alternadamente para Kror e para o seu dono, como se estivesse a confirmar algo.

 

Sem qualquer aviso, o líder tirou o seu arco do estojo, preparou uma flecha e apontou-a ao drahreg. Hazabel encolheu-se, mas Kror não mexeu um músculo. Após quatro batidas de coração, o arco vibrou e a flecha singrou para o alvo. Com um guincho, Hazabel caiu de nádegas no chão, mas Kror nem piscou.

 

A flecha estava espetada na neve no meio das suas pernas.

 

O capitão ocarr grunhiu aprovadoramente e desmontou, entregando as rédeas a um dos seus homens. Enquanto Hazabel tentava recuperar a dignidade, esfregando a neve do seu traseiro, o ocarr dirigiu-se a Kror com os passos decididos e a postura recta de um líder. O drahreg era mais alto que o ocarr, mas ambos se fitaram olho a olho sem nada dizer.

 

Por fim, os dois ergueram o braço direito de lado, executando um movimento rápido para a frente e os seus antebraços colidiram, braços cruzados. Abriram os dedos e apertaram a mão um ao outro, prendendo o cumprimento com as mãos esquerdas. O ocarr sorriu, exibindo dentes amarelados, os seus olhos ovais pouco mais que duas alegres frestas e Kror fez o mesmo. Os restantes cavaleiros desmontaram para o cumprimentarem, passando por Hazabel como se não a vissem.

 

A todos Kror retribuiu a saudação com o calor do reencontro de velhos amigos, finalizando com o acto de partir a seta que estivera cravada no chão debaixo das suas pernas.

 

Kror? sibilou Hazabel, passando por vários ocarr esquecidos dela. Quem são estes?

 

Os meus amigos, os Cho Tirr respondeu, proferindo algumas palavras que levaram os ocarr a saudar a harahan com reticentes acenos de cabeça. Vem disse Kror, montando uma das curiosas montadas, parecidas com burros com pêlo de tom alaranjado e estendendo a mão a Hazabel, vão levar-nos ao acampamento.

 

Sem saber como responder, a harahan agarrou-lhe a mão e deixou-se içar para cima dela.

 

Agarra-te bem. Os ocarr galopam com o vento acrescentou o drahreg antes de a cavalgada começar.

 

A enorme sala do trono de Ul-Thoryn fora durante muito tempo o centro do poder de Nolwyn. A luz das janelas estreitas iluminava as inúmeras figuras de reis e heróis retratados nos frescos das paredes, que contavam gestas ouvidas por ninguém, mas que ecoavam pelas abóbadas em cúpula, sustentadas por colunas de mármore com capitéis folheados a ouro. Histórias menores eram relatadas pelos ladrilhos trabalhados que se estendiam no chão desde a entrada até ao estrado, sob o qual Aereth Thoryn ponderava naquele que já fora o trono do rei de todo o Nolwyn. O enorme sólio dourado tinha a forma de uma possante e esplendorosa águia de asas abertas que resguardavam o regente sentado entre as suas patas. Enquanto Aewyre herdara o sangue siruliano da mãe, Aereth era baixo e robusto como o pai, Aezrel, com os cabelos pretos e encrespados dos homens do Sul e a permanente mancha de uma barba que lâmina alguma conseguia lavar. Não envergava trajes sumptuosos, apenas uma capa vermelha presa por um broche com a forma de um sol, uma toga de fino linho roxo ornamentado com bordados negros e uns sapatos de camurça. A única peça que ostentava era a coroa de Thoryn: uma tiara de ouro com duas asas nas têmporas e o semblante de uma águia na fronte com rubis no lugar de olhos.

 

Aereth estava desassossegado e não parava de se mexer, ora afundando-se no encosto estofado do trono, ora apoiando os cotovelos nos joelhos e o queixo nos punhos. O seu estúpido irmão mais novo decididamente cometera o Terceiro Pecado desta vez: enganar os guardas, roubar Ancalach, levar Allumno (ainda não acreditava que o sensato mago tivesse ido), fazer o maior alarido por onde passara e arrastar a princesa de Syrith para a balbúrdia! Essa última ainda podia causar graves problemas, visto que só o viera a saber através de um mensageiro de Vaul-Syrith, Jestiban Kilune. As palavras que trouxera do seu senhor não haviam sido nada agradáveis, e muitos dos seus conselheiros haviam-nas interpretado como ameaças veladas e sugerido uma resposta à altura. Sunlar Syndar revelara-se ”desapontado” e considerara o comportamento do irmão do senhor de Thoryn ”inaceitável”. Kilune anunciara ainda que o seu soberano tencionava suspender as relações comerciais entre as duas cidades por tempo ”indeterminado” e exigia um pedido de desculpas pessoal de Aereth Thoryn. Como se isso não bastasse, houvera um vazamento de informação e nos últimos dias haviam circulado os mais diversos rumores na cidade e pela província fora: Aereth incumbira o seu irmão de raptar a princesa Lhiannah para servir de moeda de troca na anexação de Syrith. Não, os dois sempre se haviam amado secretamente e tinham fugido para as terras altas da Latvonia para viverem felizes e em paz. Qual quê, tudo não passava de uma trama do misterioso mago da gema vermelha para se tornar ele o senhor de Thoryn, não, de todo o Nolwyn. Disparate, a guerra entre Syrith e Thoryn havia começado, era mas é preciso empacotar os pertences e ir embora antes que fosse tarde! Como se esses boatos não bastassem, relatos do ataque de um ser das trevas em Sardin haviam causado o maior alvoroço por todo o Nolwyn, Ul-Thoryn incluída. Um sem-número de disparates que mereciam a atenção de Lorde Thoryn, não fossem eles causar mais problemas que os que já tinha entre mãos. Se ao menos o estúpido do Aewyre não tivesse levado o Allumno... o mago sempre fora bom conselheiro, e Aereth já se havia afeiçoado a ele de certa forma, já que o mago fora quase como um pai para si e para o seu irmão...

 

Um inesperado tilintar acordou de sobressalto o regente dos seus pensamentos. Olhou em frente, mas as grandes portas entalhadas permaneciam fechadas. Os seus olhos percorreram as redondezas, mas não viu ninguém.

 

Quem está aí? perguntou às paredes, apreensivo.

 

Como resposta veio uma leve risada que ecoou pelos quatro cantos da vasta sala. Antes que Aereth abrisse a boca para chamar os guardas, uma figura multicolorida surgiu detrás de uma das colunas marmóreas. Envergava um traje de jogral com listras amarelas, violetas e alaranjadas cravadas de pequenos sinos. Os seus compridos sapatos violeta obrigavam-no a um andar trôpego e da sua touca laranja pendiam frouxamente duas orelhas de coelho. Era Dilet, o bobo.

 

Bobo, que fazes aqui? Como entraste? perguntou Aereth, permitindo-se respirar uma vez mais.

 

Hu, hu, hu! Dilet fingiu estar a chorar. Um regente macambúzio é coisa triste de ver, até para um bobo! Tão depressa como aparecera, a falsa tristeza esvaneceu-se. Permita-me animar vossa senhoria com histórias de rir e chorar, malabarismos e saltos a voar, disparates e asneiras sem-fim, por favor, alteza, ria-se de mim! Assim que acabou de falar, Dilet tropeçou desajeitadamente e estatelou-se no chão de coloridas lajes.

 

O regente conseguiu erguer um canto da boca, mas não estava com grande disposição para piadas.

 

Agora não, bobo. Faz-me rir ao jantar quando o vinho me devolver a boa disposição...

 

A cabeça de Dilet ergueu-se espasmodicamente.

 

Beber? o bobo pulou para os seus pés. Nãonãonão. Beber é bom, faz rir e rir faz sempre bem, mas beber, beber faz mal também! Permita-me inebriar vossa alteza e fazê-la rir, vinho inebria mas não faz sorrir!

 

Aereth abanou a cabeça e dispensou o jogral com um gesto da mão.

 

Retira-te, bobo. Agora não é a altura para rir. Executando cambalhotas e piruetas no ar, Dilet prostrou-se nos degraus do estrado do trono.

 

Permita-me discordar, se não pode rir, bem pode deixar de sonhar. Mas se a minha rima incessante vos enfastia, como vos posso alegrar nesta sala fria?

 

Não preciso de ser alegrado, bobo. Preciso de pensar...

 

Pensar? Problemas para resolver? Nisso não posso ajudar, mas um ouvido amigo posso dar. Fale, vossa alteza, deite tudo cá para fora. O bobo estúpido ouvirá e de seguida se irá embora.

 

Aereth suspirou e recostou-se no trono. Pensou que talvez até lhe fizesse bem falar um pouco com alguém que não os intriguistas da corte e acedeu à persistência do bobo, até porque o que o atormentava não era segredo algum. Além disso, absurda como a situação era, talvez o ideal fosse mesmo discuti-la com um bobo...

 

Complicado óbice, grave problema... comentou Dilet no fim do relato, a sua voz mais calma e o ritmo menos frenético. Fugiu-lhes a corça e culpam o nosso bezerro.

 

Aereth riu por fim, divertido com a comparação.

 

Vossa alteza se acautele e ouça as palavras deste estúpido bobo que há muito anda nas andanças da corte. O senhor de Syrith é sabido e calejado, astuto e para intrigas dotado. Ouvi agora o que tenho para vos dizer...

 

Inicialmente surpreso, Aereth viu-se aos poucos e poucos embrenhado no discurso do bobo e a ouvir as suas palavras atentamente. À medida que ia escutando, as sugestões cada vez lhe pareciam mais sensatas, os argumentos mais lógicos. Os olhos cómicos de carúnculas bem visíveis de Dilet já não o faziam rir, cativavam-no com uma argúcia que não sabia existir neles. Já o Sol ia adiantado quando as portas se abriram e o regente de Thoryn saiu de peito estufado e porte confiante com o bobo a seu lado. Os dois guardas que flanqueavam a entrada saudaram o seu senhor com punhos ao peito e nenhum estranhou o sorriso de Dilet.

 

Já disse e volto a dizer reiterou Worick, encolhido a um canto da tenda, não acredito que tenham posto esta besta cá dentro.

 

Então dorme e pode ser que quando acordares descubras que não passou de um pesadelo sugeriu Taislin, envolto em dois cobertores.

 

Ponho-te é a ti a dormir, meu...

 

Calem-se vocês os dois ordenou Aewyre, cansado de ouvir a mesma conversa. Pelo menos assim estamos quentes e o animal não morre.

 

Ai não? Se torna a zurrar de manhã, cravo-lhe uma martelada tão forte no focinho que ela desejaria morrer de frio.

 

Não dá para dizer quando é de manhã neste lugar... lamentou-se Taislin.

 

Pois não. Se calhar devíamos deixar-te lá fora para cacarejares quando o Sol nascer. Se é que ele ainda nasce neste ermo, arre! Pedras me partam!

 

Worick, se enchesses a barriga como enches a boca de asneiras, não teríamos de racionar a comida desabafou Lhiannah, também ela farta do eterno resmungar do thuragar.

 

Pois, e dormíamos melhor sem ter de ouvir esta léria acrescentou Taislin em voz baixa.

 

Eu ouvi isso, seu mafarrico.

 

Foi a Alfarna a ornear.

 

Eu é que te faço ornear, meu...

 

Como se soubesse que era o tema da conversa, a burra zurrou como para mostrar que também tinha voto na matéria.

 

Estás a ver?

 

Estou-te a ver com o meu martelo enfiado nessa cabeça oca e...

 

Querem calar-se? gritou Aewyre.

 

O silêncio que se seguiu teve os resmoneios de Worick como ruído de fundo e foi interrompido por alguém a começar a desatar os cordéis para abrir a tenda por fora. Allumno entrou, acompanhado por uma rajada de vento que originou protestos e praguejos, curvou-se, esquivou-se do focinho da Alfarna e sentou-se.

 

O mago proferiu algo com a Palavra e um globo de luz surgiu na palma da sua mão, iluminando as suas feições. Tal como Aewyre, Allumno ainda não reunira coragem nem paciência para fazer a barba com o frio das estepes, e esta crescera-lhe sarapintada de branco. O globo luminoso flutuou para cima até bater no tendal e o mago pousou um caldeirão fumegante por baixo da mula.

 

Olha que a bicha ainda mija aí dentro!

 

Worick, vamos comer isto! reclamou Lhiannah, enojada.

 

Por isso mesmo, ora! insistiu o thuragar, inclinando-se para cima do caldeirão Bom, deixa-me lá ver o que isso é antes que dê vontade à bicha...

 

Vinho quente com mel explicou Allumno. Sim, já sei que não gostas, Worick, mas lembra-te de que nem todos são tão resistentes como tu e gostariam de beber algo que os aqueça também.

 

O thuragar encostou-se a um canto, resmungando resignadamente e esperando que os outros se servissem.

 

Finalmente algo quentinho! alegrou-se Taislin. A carne seca já começava a saber a sola de sapato.

 

É bom que não te habitues advertiu Aewyre, estendendo uma tigela de madeira a Allumno. Fazer fogo aqui é um suplício e o fumo pode atrair atenções. Lembra-te de quem vive cá...

 

Allumno despejou uma concha na tigela e devolveu-a a Aewyre. Este agarrou-a com as duas mãos e levou-a perto do queixo para se aquecer com o vapor, mas olhou para Lhiannah e hesitou. Os dois ainda não haviam trocado palavra desde o Vale dos Ventos e evitavam cruzar olhares. Lhiannah chegara ao ponto de falar com Aewyre através de Allumno, pedindo-lhe para perguntar coisas como quando cessavam a marcha, onde fariam acampamento, e isto à frente dele! Ainda assim, o jovem estendeu-lhe a tigela, olhando para os olhos da princesa que pareciam estar estranhamente interessados em qualquer ponto da tenda menos nele. Após Aewyre ter ficado alguns momentos de braço estendido, os olhos da arinnir relancearam os do guerreiro e acabou por aceitar a tigela, murmurando algo que poderia eventualmente ser um agradecimento.

 

Não tens de quê retorquiu Aewyre em todo o caso, esperando por outra dose. ”Isto tudo por causa da noite em Vau do Caar? Até parece que te obriguei a beber!...” alguma coisa. Aewyre? perguntou Allumno.

 

Como?

 

Sentes alguma coisa? repetiu o mago calmamente, enchendo outra tigela.

 

Sim, eu... sinto-o. Parece que não se mexeu explanou Aewyre, coçando a restolhada de barba que lhe crescera.

 

Isso só pode querer dizer uma coisa...

 

Três grunhiu Worick. Ou morreu, ou está a morrer ou chegou a casa.

 

Bem visto reconheceu Allumno, sorvendo delicadamente o vinho quente e doce.

 

Ele sabe que estou atrás dele. Sabe que o persigo.

 

Será que também sabe o chato que és, sempre a repetir a mesma coisa? barafustou o thuragar.

 

Olha quem fala... lembrou Taislin.

 

Eu acho que estamos todos cansados e que precisamos de repousar disse Allumno. Vamos saborear esta bebida e deitamo-nos de seguida.

 

Os protestos de Worick reduziram-se a resmungos indistintos e os companheiros trincaram tiras de carne seca com queijo sem grande apetite, empurrando-as com vinho quente. Taislin encheu a cevadeira da Alfarna e pendurou-a no focinho da burra, que comeu com apetite.

 

Podíamos fazer papas de aveia com o que o animal está a comer... murmurou ainda o thuragar antes de se refastelar.

 

Worick, por favor... solicitou Lhiannah.

 

O pedido da princesa foi o último antes de os companheiros por fim se aconchegarem aos cobertores e Allumno diminuir gradualmente o brilho da esfera. Um por um, adormeceram ao som do mastigar da burra. Passado algum tempo, Worick ressonava e Lhiannah alternava entre o sono e o despertar sonarento para endireitar o pescoço do thuragar, o que o silenciava momentaneamente. Aewyre permanecia sentado, de pernas cruzadas, fitando a escuridão e brincando com o seu incisivo. Kror nunca abandonava os seus pensamentos, mesmo quando não pensava no drahreg. Dois confrontos não haviam bastado para resolver a disputa que nenhum dos dois provocara, a disputa que fora estabelecida pela Essência da Lâmina, que parecia ansiar por mais um portador. Tal era a força da atracção fatal entre Aewyre e Kror que esta só seria mitigada quando um deles morresse.

 

Aewyre? perguntou a voz sussurrante de Allumno.

 

Hmm?

 

Estás acordado?

 

Acho que sim...

 

Ouviram-se ruídos de movimento e o mago ajeitou-se ao lado do seu protegido.

 

Estás ciente de que podemos morrer aqui ciciou, mais uma afirmação que uma pergunta.

 

Não, imagina. Um lugar tão agradável...

 

Não é só o lugar continuou o mago, indiferente ao sarcasmo. Somos intrusos aqui, mais ainda que em Moorenglade. Não temos onde nos esconder, estamos a penetrar numa extensão de terreno aberto povoada por milhares de bárbaros agressivos com montadas velozes, sem saber ao certo quanto tempo aqui passaremos. E depois há a comida, a madeira para o fogo e, como referiste, o próprio lugar, só por si perigoso para estranhos como nós.

 

E que sugeres? Que vamos embora?

 

Não. Queria só certificar-me de que estavas inteirado acerca de tudo. Boa noite.

 

O mago fez tenção de se deitar, mas Aewyre agarrou-lhe o ombro.

 

Espera aí, Allumno. O mago tornou a sentar-se. A ti nunca perguntei: por que continuas? Esfolaste a perna, partiste o joelho, foste atacado, ferido, feito prisioneiro e provavelmente já perdeste conta das vezes em que ias morrendo. Já não és nenhum jovem, Allumno, o teu lugar deveria ser numa sala cómoda num castelo seguro, com um copo de leite quente com mel na mesa e uns bons livros para ler à lareira. Porquê? Por que continuas com um grupo de crianças irresponsáveis que se atiram de cabeça ao fogo? Sou o teu protegido, bem sei, mas a partir do momento em que fugi do castelo foste aliviado de toda e qualquer responsabilidade. Não gostas do Worick, aturas a Lhiannah e ignoras o Taislin. Pergunto, porquê?

 

Seguiu-se silêncio, durante o qual Allumno pareceu ruminar o invulgarmente longo discurso de Aewyre.

 

Em primeiro lugar, e isto é algo que nunca deveria ser dito por um protector explicou por fim o mago, há uma coisa que já deverias saber e cuja enfatização devia ser desnecessária: o que nos une é bem mais que o laço tutor-protegido. Se não sabes por que te acompanho, então também deverias ter perguntado ao Quenestil por que é que ele te seguiu. Aewyre ia falar, mas Allumno não parou.

 

Em segundo, a responsabilidade e o juramento do protector não são aliviados se o protegido fugir. Muito pelo contrário, constitui uma agravante para o tutor desleixado que permitiu que o seu tutelado lhe escapasse à alçada. Agora, se me dás licença...

 

Allumno?

 

Sim...? retrucou o mago sem grande paciência.

 

Por que me deixaste fugir? O mago fez mais uma pausa.

 

Para todos os efeitos, tu fugiste e eu fui atrás de ti, sendo o meu dever agora proteger-te. E agora... O mago fez tenções de se deitar.

 

Allumno?

 

Sim?

 

Eu... considero-te um amigo, Allumno. Mais que um amigo, és como um segundo pai; sempre o foste para mim e para o Aereth. É muito importante para mim que estejas comigo. Preciso... preciso do teu apoio.

 

O mago sorriu no escuro, um raro sorriso que o jovem não podia ver.

 

Folgo em ouvi-lo disse, agarrando o ombro de Aewyre. Agora deitemo-nos.

 

Allumno?

 

Siiim...?

 

Ainda não respondeste à minha pergunta. Por que não me impediste de fugir? Um pouco de palavreado e zás!, ficava parado que nem uma pedra e tu ias-me pôr no quarto com a porta trancada.

 

Bem, a verdade é que prefiro ver-te pelo mundo fora a aprender coisas que a andar ao laré com as damas da corte e...

 

Antes que Allumno se pudesse corrigir, Aewyre falou de imediato.

 

Ao laré? Allumno, ao laré? Isso é palavra que um mago use?

 

Eu... não queria dizer ao lar... não queria dizer isso... eu...

 

Tu disseste que eu ouvi muito bem! gracejou o guerreiro, incapaz de manter a voz baixa. Ao laré?

 

Pouco barulho ou vou-te à boca! ameaçou Worick.

 

Ó Allumno, bem sei que não podemos esquecer as nossas raízes, mas ao laré?

 

Com licença. Vou dormir... escapuliu-se o mago, enrolando-se num cobertor.

 

A voz trocista de Aewyre ainda se fez ouvir durante algum tempo, mas após um arremesso de algo duro contra a cabeça do jovem e vários protestos por parte de todos os que partilhavam a tenda, este enroscou-se e adormeceu com uma risadinha infantil.

 

”Pelos vistos, não esquecemos mesmo as nossas raízes”, reflectiu Allumno, lembrando-se de uma infância despreocupada como filho de uns camponeses, gente simples e humilde ”Andar ao laré...”

 

Allumno! berrava uma voz algures por detrás das árvores.

 

S-sim pai? respondeu o rapaz aflito, saltando de cima de uma rapariga da sua idade, estendida no chão.

 

As folhas outonais queixavam-se com os passos apressados que se dirigiam ao prado onde os dois se encontravam. A rapariga atava os cordões da blusa apressadamente, trocando um olhar cúmplice com o rapaz como para disfarçar o nervosismo. O que estiveram prestes a fazer não era decoroso...

 

O pai do rapaz surgiu de detrás de uns arbustos, olhando para ambos com uma expressão algo surpresa na cara. O jovem preparou-se para o pior. O pai principiou a rir, abanando a cabeça.

 

Allumno, vem já para casa antes que eu te açoite ordenou entre risotas enquanto o rapaz se erguia, apertando as calças. Só me faltava esta. Agora em vez de ajudares o teu pai, pões-te a andar ao laré com as moças...

 

A rapariga corou e puxou o vestido para baixo quando se levantou.

 

Vai lá para casa, cachopa. Eu não vi nada disse o pai, e a rapariga esboçou um tímido sorriso, compondo o cabelo escuro. E tu, Allumno, hoje puxas a charrua. Olha que esta... vá, anda daí.

 

Sim, pai. O rapaz acatou de imediato a ordem, mas não sem antes olhar para trás. A rapariga enviou-lhe um beijo e Allumno tirou um dos cordões da blusa dela do seu bolso, mostrando-lho e piscando-lhe o olho.

 

... ou levas com o martelo grunhiu uma voz que não a do pai de Allumno.

 

O mago despertou, piscando os olhos em vão, pois a escuridão mantinha-se.

 

Perdão?

 

Pára de falar sozinho, mago. E deves estar pouco bêbedo para me chamares pai, deves, pedras me partam... resmungou o thuragar antes de se enroscar uma vez mais no cobertor.

 

Allumno ficou algum tempo a fitar a escuridão, sem esboçar qualquer gesto, ouvindo os ruídos do sono tranquilo dos seus companheiros. Taislin estalava os lábios por vezes, Worick roncava, Lhiannah não parava de se mexer e só Aewyre permanecia quieto. Sempre tivera o sono pesado...

 

Andar ao laré... murmurou, remexendo na sua sacola.

 

Quando encontrou o que procurava, acariciou-o por breves instantes e, após alguns momentos de reflexão, concentrou-se o suficiente para que a gema na sua testa brilhasse. Estava a canalizar pura Essência, sem a moldar com a Palavra, mas numa quantidade tão ínfima que só lhe poderia dar quando muito uma pequena dor de cabeça. O brilho vermelho iluminou o objecto que Allumno segurava, um singelo cordão cinzento de linho já gasto e lasso. Myla era o nome da rapariga. A gema de Zoryan escolhera-o como hospedeiro antes que Allumno a pudesse pedir em casamento. Anos mais tarde, o mago fora visitar o local onde os seus pais haviam sido enterrados, um monte perto da aldeia onde nascera. Myla casara-se, entretanto, com o oleiro. Cinco crianças saltavam em redor do seu corpo cansado quando Allumno espreitou pela janela da sua nova casa. Parecia mais velha do que seria de esperar, já com fios grisalhos no seu cabelo negro, manchas cinzentas debaixo dos olhos e mãos gastas de preparar o material do ofício do seu esposo. Uma das crianças apontou para a janela, mas Allumno desviou-se e fugiu dali, penetrando profundamente no bosque que ladeava a aldeia. Sem saber como, acabou por chegar ao prado onde tantos anos antes fora apanhado pelo seu pai com Myla. Sentou-se numa pedra e chorou, um pranto amargo que se prolongou durante várias horas, volvidas as quais regressou aos seus novos deveres em Ul-Thoryn, para nunca mais voltar.

 

Andar ao laré... repetiu, acabando por adormecer com o cordão enrolado nos dedos de uma mão.

 

Altas muralhas de escura pedra granítica cercavam uma cidade que os dois caçadores avistaram do topo do monte. Por detrás delas viam-se edifícios igualmente escuros e cinzentos perfeitamente alinhados em blocos com ornados topos protuberantes e cónicos. Mesmo à distância, Quenestil pôde sentir o ar soturno e lúgubre da sombria cidade.

 

Um ninho de víboras, meu amigo disse a Babaki.

 

Como?

 

Uma cidade eahanoir. Não esperava outra coisa. O eahan ouviu Babaki gemer.

 

Como entramos?

 

Quenestil acocorou-se no topo da elevação onde se encontravam, levou uma mão pensativa ao queixo e fitou a cidade, absorto. Os eahanoir não odiavam os restantes eahan quanto estes detestavam os seus primos negros, mas também não nutriam por eles grande afecto. Sabia também que os eahan negros incentivavam viagens de recreio nas suas cidades, autênticos antros de lascívia e devassidão e outros prazeres proibidos e depravados. Entre eles a luta em arenas...

 

Tive uma ideia disse a Babaki. Cobre-te bem com a capa. O antroleo fitou Quenestil sem compreender quando este tirou a fita da sua testa, começou a desalinhar o seu cabelo e a tapar as orelhas. Quando já parecia um doido varrido, tapou a cabeça com o capuz e puxou tufos de cabelo para fora. Por fim, curvou as costas e deu alguns passos como se estivesse coxo de uma perna.

 

Que tal? Achas que passo por um mestre de escravos? perguntou, franzindo o sobrolho.

 

Babaki foi incapaz de conter uma gargalhada.

 

Pronto, pronto... mas estou convincente?

 

Penso... penso que sim admitiu o antroleo, esfregando uma lágrima do olho.

 

Muito bem. Agora puxa o capuz bem para a frente, tapa-te com a capa e deixa as shwafwif à mostra.

 

Está bem, mas... o antroleo fez como lhe fora pedido, mas pareceu preocupado o que vamos fazer?

 

Deixa isso comigo. Limita-te a manter uma pose altiva e intimidante. Para quem o conhecia, Babaki era tão assustador como um passarinho, mas o simples tamanho e a largura dos ombros do antroleo deveriam ser suficientes.

 

Os dois desceram pelo caminho bravio até à estrada calcetada que se dirigia para a cidade e por ela seguiram. Enquanto se encaminhavam para os portões negros foram três vezes afastados por condutores humanos de carruagens que, sem dúvida, transportavam alguém importante que gostaria de usufruir dos prazeres proibidos da cidade dos eahanoir. Também foram abordados duas vezes por indivíduos encapuzados que se ofereceram como guias para a cidade. Quenestil teria recusado mesmo sem ouvir as suas vozes ásperas e ver o brilho perigoso dos seus olhos. Provavelmente tê-los-iam arrastado para um beco escuro, esfaqueado e despido de todas as suas posses. Ou pior. Continuaram a andar, Quenestil curvado e Babaki alto e de peito entufado, obviamente desconfortável com a atenção que sobre si recaía. Por fim, chegaram às portas, que na realidade eram duas pontes levadiças sobre uma fossa com estacas, uma maior para as carruagens com pessoas e mercadorias e outra mais pequena onde os peões transitavam. Um dos muitos guardas eahanoir que envergavam uma cota de malha tingida a preto com uma túnica negra por cima e empunhavam esguias lanças mandou-os parar. Tinha uma tatuagem vermelha na testa pálida, um estranho padrão que lembrava um símbolo bélico. Os seus olhos azul-claros perscrutaram os companheiros dos pés à cabeça, olhando para o homem ruivo e curvado com desprezo e com uma medida de respeito para a enorme figura.

 

Saudações. Quem sois e qual o vosso negócio em Jazurrieh? perguntou em Glottik numa voz suave e fria como uma folha de gelo.

 

Saudações... A palavra saiu a custo da garganta de Quenestil e com um tom mais azedo do que seria aconselhável. Sou um mercador de lutadores e trago este belo espécime para o combate nas arenas.

 

Virou-lhe as costas curvadas, coxeou até Babaki e deu-lhe pancadas reveladoras nos membros musculosos e no peito.

 

Muito bem acedeu o guarda. Queiram passar e aguardem pelo respectivo guia na praça.

 

Quenestil curvou-se em agradecimento e puxou Babaki consigo.

 

Um bom dia desejou. ”E que ardas nos infernos.”

 

Os dois passaram a arcada da porta dos peões e entraram na cidade, deparando com uma larga praça quadrada, o único espaço aberto em Jazurrieh. Tinha oito caminhos de ladrilhos pretos e oito brancos que se projectavam em redor do centro, um círculo de uma pedra preta com veios cristalinos coberto por um dossel preto. Sob ele aguardava uma multidão de visitantes, na sua maioria latvonianos de cabelos castanhos e escuros com as suas roupas de finas peles mas também alguns homens do Sul, morenos, de roupas de linho gasto, provavelmente mercenários. Havia outros, mas esses o eahan não soube identificar. Quenestil e Babaki encaminharam-se nessa direcção nos ladrilhos brancos, após serem afastados dos pretos por eahanoir encarregados da organização. Dos cinco caminhos que se projectavam para as portas da cidade, os dois brancos aparentavam destinar-se para quem entrava, para peões comuns e visitantes importantes, respectivamente, e os três pretos serviam para a saída. Quando chegaram ao círculo, acomodaram-se na multidão e aguardaram. Babaki olhava nervosamente em redor, consciente de todos os olhares em cima de si, mas Quenestil estava atento como um carcaju em território de lobos, apesar de manter a sua postura de mercador marreco. Uma eahanoir descalça, pouco mais vestida que no dia em que nascera e com um ponto vermelho na testa encaminhou-se com desenvoltura pelos ladrilhos pretos para o círculo, cruzando as pernas alvas e chamando com voz lúbrica em Glottik e Urial aqueles que pretendiam visitar as ”casas de prazer”. Vários homens riram depravadamente, esfregando as mãos, e foram conduzidos pela eahanna para fora do círculo, onde carruagens os aguardavam, e que rapidamente desapareceram nas ruas apertadas de Jazurrieh. Quenestil reparou que também havia mulheres presentes, cujas caras estavam cobertas com lenços e véus e lembrou-se de que Allumno uma vez dissera que o adultério era punido com a morte em Latvonia quando um elegante e bem-parecido eahanoir as encaminhou por outros ladrilhos pretos até outras carruagens. O círculo ficou bastante diminuído, mas mais homens e mulheres vinham pelos ladrilhos brancos.

 

Então aonde vai, companheiro? perguntou alguém ao lado do eahan com voz fanhosa.

 

Quenestil virou-se e viu um homem moreno com chapéu verde de copa alta e aba curta. Vestia um gibão azul de mangas folhadas e chumaços redondos nos ombros, umas apertadas calças vermelhas e sapatos pretos de bico alongado.

 

Para as arenas respondeu, lacónico.

 

Pfff... ó amigo, com tanta coisa boa nesta cidade, vai para um cubículo cheio de homens suados e malcheirosos a tentarem matar-se uns aos outros? perguntou, enquanto tirava um lenço da manga para se assoar.

 

O eahan assentiu com a cabeça e continuou a olhar em redor.

 

Para quê isto tudo? perguntou, cobrindo a praça e as carruagens com um gesto largo da mão.

 

Isto? Ora, companheiro, se quiser ir à procura de uma menina por aí sozinho e sem indicações, encontra-a de certeza, mas o mais certo é encontrar uma faca nas suas costas antes ou depois de a ver. Assim não há problemas. Bastante eficientes estes eahanoir, não?

 

Muito... Por que falava o homem com ele? Quenestil queria chamar tão pouca atenção quanto possível naquela cidade.

 

Arenas! Combates de morte! Arenas aqui gritou alguém em Glotik, repetindo de seguida em Urial.

 

Quenestil olhou na direcção da voz e viu um grupo de eahanoir com cotas de malha enegrecidas e espadas curtas embainhadas. Os presentes mais encorpados do círculo dirigiram-se a eles.

 

Anda Babaki disse, puxando o antroleo.

 

Adeus então, companheiro. Divirta-se e aproveite tudo o que Jazurrieh tem para oferecer!

 

Sim, sim... respondeu o eahan fugazmente. Aguardavam-no cinco eahanoir armados e com ar de quem sabia lutar. Eram todos esbeltos e elegantes, cada um com a mesma tatuagem vermelha de padrão bélico na testa, e os seus frios olhos azuis pareciam capazes de gelar um homem, mesmo quando olharam aprovadoramente para Babaki.

 

E o dono? perguntaram a Quenestil, indicando o antroleo.

 

Sou sim. Ele... ele não sabe falar. Babaki olhou para o eahan sem compreender, mas nada disse. Se lhe quiserem dizer alguma coisa, falem comigo.

 

Muito bem assentiu o guarda, começando a questionar os restantes.

 

Não digas nada sussurrou o eahan a Babaki. Se alguém falar contigo, olha para mim.

 

Está bem... concordou o antroleo, visivelmente nervoso.

 

Arenas! Combates de morte! Arenas aqui! gritou o guarda uma última vez, indicando umas carruagens pretas laçadas com reposteiros vermelhos nas janelas e conduzidas por belos garanhões negros.

 

Quenestil e Babaki entraram na primeira, acompanhados por um enorme humano careca e um outro mais pequeno mas não menos largo. Com um grito e uma chicotada do cocheiro, os garanhões iniciaram o trote e a carruagem abanou com o puxão. As estradas de Jazurrieh eram bem pavimentadas na entrada, mas a carruagem começou a oscilar com as irregularidades que foram aparecendo à medida que penetravam na sombria cidade. Quenestil estava perdido nos seus pensamentos, mas Babaki observou os seus acompanhantes, que o fitavam com cara de poucos amigos. O enorme homem careca era todo ele cicatrizes na cara, vestia uma camisa de couro de mangas curtas, que revelavam os seus possantes antebraços tatuados. O seu nariz fora partido demasiadas vezes e encarquilhava-se-lhe para o lábio superior rasgado numa eterna expressão de escárnio. Trazia às costas algo embrulhado em peles, provavelmente uma arma. O outro, mais pequeno mas não menos entroncado, olhava atentamente com olhos marcados por manchas de várias pancadas tanto para Quenestil como para Babaki, apoiando o seu queixo num punho achatado e largo. Babaki desviou o olhar e puxou uma cortina para ver as ruas, deparando com uma parede escura com traços de humidade a escorrer. Vislumbrou um beco, no qual umas formas ocultas pela sombra dos edifícios se agitavam como numa luta, mas tão depressa quanto fora revelado, o beco foi obstruído por outra parede escura. Um solavanco da carruagem convenceu Babaki a fechar a cortina.

 

Quenestil forçava-se a pensar. Conseguira com que entrassem, agora como saber onde Slayra estava? Cidades não eram o domínio do shura, a aglomeração de edifícios fazia com que se sentisse sufocado, as multidões asfixiavam-no, e não fazia a mínima ideia de como as coisas funcionavam. Bom, certamente encontraria alguém que soubesse... Uma súbita paragem despertou-o dos seus pensamentos quando o cocheiro puxou as rédeas dos garanhões. Uma moca apareceu na mão do homem careca e duas adagas deslizaram dos braçais do outro. Ambos olharam para fora, desconfiados.

 

Saída para a arena gritou um eahanoir em Glottik e depois em Urial.

 

Vamos disse Quenestil a Babaki, gesticulando.

 

O antroleo ergueu-se, curvado, mas o homem careca pôs-se à sua frente com um grunhido e saiu antes dele. O outro procedeu da mesma forma, olhando perigosamente para Babaki.

 

Ignora-os aconselhou-lhe Quenestil ao ouvido e saltou para fora da carruagem, esquecendo-se de que supostamente deveria coxear.

 

Assim que saiu da carruagem, em vez de se sentir menos constrangido que naquele espaço apertado, o eahan experimentou uma sensação de esmagadora opressão. Os edifícios negros de Jazurrieh eram, na sua maioria, tão espaçados quanto o intervalo entre unha e carne. O ar era pesado, carregado, trazendo consigo um húmido odor que nem mesmo o apurado nariz do shura conseguia identificar, pois desconhecia as fragrâncias da cidade. Uma coisa era certa, porém: cheirava a corrupção. Três eahanoir mexeram-se, escondidos na densa penumbra com os anéis das cotas de malha a tilintarem suavemente.

 

Por aqui disse um deles, alternando como sempre entre Glottik e Urial.

 

Um pequeno grupo de grandes homens seguiam-nos e os dois caçadores fizeram o mesmo, Quenestil a coxear e Babaki a manter uma pose altiva como o seu amigo lhe pedira.

 

”Bem, e agora?”, pensou o eahan ”Como perguntar pela Slayra?”

 

Entrem indicou um eahanoir, parando ao lado de um edifício tão escuro e soturno quanto os outros.

 

Uma porta abriu-se e um facho de luz irrompeu pela escuridão do beco, cortando-a como uma faca amarela e trazendo consigo o ruído de várias vozes demasiado barulhentas para eahanoir. Quenestil e Babaki foram os últimos a entrar no que parecia ser um átrio, uma sala ladeada por colunas de mármore negro nos cantos que sustentavam um tecto abobadado com frescos de sangrentas lutas na cúpula. Tochas penduradas nas colunas iluminavam o átrio, repleto de humanos e vigiado por eahanoir, que calcorreavam o chão decorado com mosaicos de tons sóbrios. Acordos ocultos eram efectuados atrás da protecção das sombras trémulas e o tilintar de moedas secundava os sussurros e murmúrios dos humanos que negociavam.

 

Lutadores. Lutadores aqui chamou um eahan negro, acompanhado por outros dois que se dirigiram aos combatentes, separando Babaki de Quenestil antes que este se apercebesse do que estava a acontecer.

 

Esperem, ele não sabe...!

 

Faça o favor de falar com o capataz das apostas dispensou-o um eahanoir.

 

Vocês não entendem...! exclamou Quenestil em desespero ao ver Babaki a ser arrastado pelo grupo, olhando em redor nervosamente sem compreender. O antroleo confiara nele, confiara nele!

 

Há algum problema? perguntou o mesmo eahanoir e outro apareceu ao seu lado, mão no cabo da espada curta. Não pareciam dispostos a aturar alguém que saísse das normas...

 

O meu homem, ele não sabe...

 

Onde está o capataz? perguntou um indivíduo, surgindo atrás do eahan; um mercador abastado, a julgar pela sua indumentária rica e bordada e a pele de arminho que tinha aos ombros.

 

O homem de capa vermelha indicou o eahanoir. Vamos, façam o favor de circular para a arena.

 

Mas o meu homem... O shura viu com desespero Babaki a desaparecer atrás de uma porta, cercado por homens corpulentos e guardas eahanoir.

 

Babaki olhava em redor freneticamente. O seu capuz ainda lhe ocultava a face, mas a sua imponente figura e os pêlos das partes do seu corpo que não conseguia esconder estavam a atrair muitos olhares. Isso não impediu que o grupo o arrastasse como uma maré pelo corredor escuro no qual caminhavam, orientados por guardas eahanoir de capas pretas e cotas de malha opaca.

 

Em frente repetiam constantemente, originando vários resmungos de protesto por parte dos homens.

 

Onde estava o Quenestil? Isto não deveria ter acontecido... o que faria agora? Um empurrão impediu-o de parar e a pressão que um cotovelo mantinha nos seus rins forçava-o a andar.

 

-Esperem... pediu, mas a sua voz perdeu-se no meio dos grunhidos e resmungos. Esperem...

 

Um eahanoir abriu uma porta e o grupo entrou numa grande sala, com uma outra porta ao fundo à direita e vários painéis de pedra que percorriam a parede em frente ao longo da sala como estalas de cavalos. Em cada uma estava um eahanoir sentado numa mesa e munido de uma pena. Um guarda indicou uma dessas ”estalas” a Babaki e o antroleo para lá se dirigiu, olhando nervosamente em redor.

 

Glottik? perguntou um eahanoir sentado, inquirindo sobre outros dialectos nas próprias versões. Tinha tatuado na testa um símbolo vermelho mais intrincado que o dos guardas.

 

G-Glottik respondeu Babaki, fitando o seu inquiridor. Como todos os eahan negros era lugubremente bem-parecido, belo como as sombras projectadas pela Lua numa floresta despida pelo Inverno. Os seus frios olhos claros e ligeiramente oblíquos perscrutavam-no atentamente dos pés à cabeça, franzindo um sobrolho perante os pêlos dos membros do antroleo e arregalando-se quase imperceptivelmente ao chegar à cara do observado. A pena escrevinhava rapidamente.

 

Nome? perguntou, interessado.

 

B-Babaki respondeu, nervosamente e sem pensar.

 

As sobrancelhas do eahanoir arquearam-se perante o estranho nome, mas a pena não parou.

 

Tem mestre?

 

Ha... per-perdão?

 

Tem mestre? reiterou o eahanoir sem grande paciência. Vendo a expressão perplexa de Babaki, escreveu qualquer coisa e prosseguiu.

 

Armas?

 

Ah... as minhas shwafwif? Por que lhe perguntava ele estas coisas?

 

Como? Aparecia cada um...

 

Shwafwif... repetiu o antroleo, abrindo a capa e exibindo as tradicionais armas do seu povo, uma lâmina em contracurva com duas pontas empunhada por um cabo com uma guarda com espinhos para proteger a mão e esmurrar o adversário.

 

Interessante. Nunca vi... murmurou o eahanoir, escrevinhando incessantemente. Tem armas escondidas?

 

Não... O antroleo estava cada vez mais confuso.

 

Tire a capa, por favor pediu, levantando-se.

 

Mesmo sem perceber o porquê daquilo tudo, o antroleo assim fez. O homem deu um passo involuntário para trás quando Babaki revelou a sua raça, mas avançou de seguida, visivelmente mais cuidadoso, e revistou-o. Tirou-lhe as shwafwif, prendeu-as com um fio vermelho e escrevinhou mais um pouco no papel.

 

Vá pela porta à esquerda disse por fim, esfregando os pêlos de Babaki das suas mãos e pousando as exóticas armas na mesa.

 

Mas eu...

 

Vamos. Há outros à espera dispensou-o o eahanoir, dando a entender que não gastaria mais tempo com ele.

 

Involuntariamente, o antroleo viu-se mais uma vez arrastado por guardas e por um novo grupo de homens assim que saiu da ”estala”. Onde estava o Quenestil? Um eahanoir abriu a porta e de imediato Babaki sentiu um bafo fedorento de suor e dejectos humanos que saiu com o ímpeto de um animal enjaulado finalmente liberto. Foram conduzidos por mais um corredor escuro até uma enorme sala desprovida de qualquer decoração mas com postes horizontais afixados na parede aos quais estavam presos grilhões e correntes espaçados o suficiente entre si de modo a que um homem acorrentado não pudesse tocar nos dois ao seu lado. Havia também cadeiras debaixo do poste, aparentemente pregadas ao chão. Delicadamente, os eahanoir começaram a acorrentar o grupo e nenhum homem protestou, aceitando os grilhões com uma cara determinada.

 

Mas por que...? tentou Babaki perguntar.

 

Se precisar de fazer alguma coisa, chame um guarda explicou o eahan negro que lhe prendeu os grilhões aos pulsos, indicando as sentinelas que andavam de um lado para o outro no meio da sala.

 

Mas eu não...

 

Espere pela sua vez. Um guarda virá chamá-lo continuou o eahanoir, seguindo para outro homem.

 

Babaki começava a ficar preocupado. As coisas não se deviam ter passado assim. Quase todos os humanos o fitavam, numa mistura de olhares de espanto, nervosismo ou desafio. Uns falavam, uns poucos riam, mas a maior parte estava absorta em pensamentos ou em concentração, alheios aos eahanoir que patrulhavam a sala. O antroleo tentava ignorá-los, mas para onde quer que se virasse havia uma cara a fitá-lo. Decidiu olhar para o chão e viu sangue. Olhou antes para o tecto. O Quenestil iria aparecer...

 

As suas apostas, senhor? perguntou um eahanoir vestido de preto e com uma capa escarlate às costas. O símbolo vermelho estampado na sua testa era mais intrincado que o dos guardas.

 

Quenestil virou-se para ele, sem saber o que dizer. O que queria mesmo fazer era partir-lhe o pescoço, a ele e aos outros eahanoir da sala.

 

Eu... vou esperar disse, puxando o capuz para a frente e orando à Mãe para que o estojo de couro do seu arco não atraísse muita atenção.

 

Muito bem assentiu o eahan negro. Goze o espectáculo. ”Gozá-lo-ia se te atirasse para a arena”, fantasiou o shura, olhando em redor e para baixo. Encontrava-se num anfiteatro, numa série de anéis descendentes que rodeavam uma arena com areia e grades em locais opostos por onde os lutadores deveriam sair. O sítio estava cheio, cheio de humanos, principalmente. Os únicos eahanoir eram as sentinelas de cota de malha escurecida e os que recolhiam as apostas. O edifício não tinha tecto aberto e o ar estava carregado e abafado. A única iluminação era providenciada por tochas que ponteavam as escadarias, presas a colunas que sustentavam o tecto, e pelos quatro grandes fogos que ardiam furiosamente dentro da arena, alimentados por algo debaixo do solo do próprio anfiteatro. Havia uma jaula com chão gradeado suspensa por cima do local de combate, movida por guinchos e correntes, na qual se encontrava um eahan negro vestido de toga. Este tocou um sino cujo repique agudo silenciou a multidão e atraiu todos os olhares para a jaula.

 

Honrado público, Jazurrieh saúda-vos cumprimentou em Urial, repetindo em Glottik. Era estranho ouvir um eahanoir a levantar a voz, mas as paredes do anfiteatro pareciam levar o que dizia a todos os cantos da sala. Damo-vos as boas-vindas à arena e anunciamos o início dos combates. Fazei as vossas apostas e que a luta comece! O repique agudo fez-se ouvir uma vez mais e as grades da arena subiram com um rangido férreo.

 

O público aplaudiu os dois homens que entraram na arena, dois brutos cheios de cicatrizes armados de luvas com horríveis espigões contundentes. Sem esperarem por qualquer palavra, lançaram-se um contra o outro como dois cães acirrados e o primeiro sangue foi vertido. O público rejubilou e o clamor de vozes excitadas encheu o anfiteatro fechado, reverberando pelas paredes e fazendo a escadaria tremer. Só os eahanoir permaneciam frios e impassíveis, embora vigilantes. As moedas começaram a tilintar para as mãos dos eahan negros responsáveis pelas apostas. Um dos homens grunhiu de dor quando o punho espinhoso do seu adversário colidiu contra o seu estômago, perfurando-lhe a barriga com vários espigões. O público adorou e mais moedas escorreram para o saco à direita de cada eahanoir, que representava o homem que desferira o murro. A tudo isto Quenestil assistiu, horrorizado. Foi acometido de náuseas, não devido ao espectáculo grotesco, ou talvez em parte devido ao mesmo, mas sobretudo por causa do abafado ambiente, do ar pesado, do calor emanado por uma centena de corpos, as vibrações no ar, o barulho, os gritos, o calor... ar, precisava de ar.

 

O eahan empurrou o seu caminho através da multidão, suando em bica, arfando por ar e passou por dois eahanoir de olhares frios, que lhe abriram a porta. Não havia ar fresco no corredor, mas pelo menos já não tinha a sensação de ter duas mãos a pressionarem-lhe a cabeça e conseguia respirar. O shura apoiou-se nos joelhos e respirou lenta e ruidosamente, esfregando o suor da testa e por cima do lábio superior. A capa não ajudava nada... Encostou-se à parede e tentou ordenar os seus pensamentos. A culpa era dele, mas o Babaki era quem corria perigo agora. Certamente iriam pô-lo a lutar contra um daqueles energúmenos. Tinha de pensar, mas o barulho, os ruídos retumbantes e os berros...

 

Quenestil perdeu a conta do tempo que ficara no corredor, até que ouviu um rugido.

 

Mãe, não... oh não! e correu para a multidão.

 

Babaki? perguntou um eahanoir ao antroleo, parecendo forçar o nome através dos lábios.

 

Sou eu.

 

Muito bem. As suas armas... shwafwif? inquiriu, olhando sem compreender para as lâminas curvas nas suas mãos.

 

São essas disse o antroleo, ainda sem perceber o que se estava a passar.

 

Muito bem. É a sua vez disse, abrindo-lhe os grilhões com uma pequena chave. Babaki esfregou os pulsos, pensando em perguntar se tal tratamento fora necessário, mas o eahan negro enfiou-lhe as armas nas mãos e puxou-lhe o braço.

 

Venha. O público espera-o.

 

Babaki percorreu a sala, olhando em redor para os homens agrilhoados e sentados, mas o eahanoir abriu-lhe outra porta e empurrou-o através dela, fechando-a de seguida. Encontrava-se agora num corredor íngreme ao fundo do qual estavam dois guardas a ladear uma grade que vedava o acesso a um local bem iluminado e do qual provinha todo o barulho que ouvira indistintamente na sala onde estivera à espera. Os guardas gesticularam-lhe para que se aproximasse e o antroleo acedeu ao pedido, preparando-se para fazer perguntas, mas os eahan negros fizeram-lhe sinal que esperasse. Ao repique agudo de uns sinos, os eahanoir puxaram alavancas e a grade começou a subir.

 

Vá. É a sua vez. Bom combate... desejou o da direita, convidando-o a entrar.

 

Mais uma vez, Babaki assim fez e a grade fechou-se atrás dele. Encontrava-se numa espécie de poço largo coberto de areia no qual ardiam quatro enormes fogueiras. À sua volta estava uma imensa multidão que gritava a plenos pulmões, apontando para o antroleo e entregando algo que brilhava como moedas a eahanoir. Então outra grade foi aberta e dela saiu o enorme homem careca que estivera com ele na carruagem. Carregava uma enorme maça de armas, que prontamente brandiu para grande entusiasmo do público. O homem fitou Babaki ameaçadoramente e avançou na sua direcção, empunhando a maça com as duas mãos e andando quase de lado numa postura defensiva, apesar de o antroleo se preparar para lhe perguntar o que estava a acontecer. Tê-lo-ia feito, mas o homem rugiu e a sólida cabeça da maça de armas voou na direcção da sua cara. Baixar a cabeça e recuar foi tudo o que Babaki conseguiu fazer antes de o seu adversário retomar a ofensiva. O público rejubilou.

 

Quenestil empurrou, esmurrou e agrediu o seu caminho novamente através da multidão, os seus músculos alimentados pelo desespero. O rugido fora de Babaki. O público entrara em histeria. Assim que o eahan conseguiu vislumbrar a arena, viu o antroleo a combater o humano com a enorme maça de armas. As shwafwif cortavam o ar, lascando o grosso cabo de madeira da arma do seu adversário, que grunhia e oscilava a maça em poderosas varredelas que poderiam arrancar a cabeça de Babaki caso se conectassem.

 

Foi com alívio que o shura constatou que o seu amigo não se enfurecera ao ponto de se tornar shakarex, mas isso em nada diminuiu a sua aflição. Babaki não devia estar ali, a culpa era toda sua.

 

Babaki! gritou a plenos pulmões, mas a sua voz foi engolida pelo fragor da multidão. Babaki!

 

Quenestil gritou até ficar rouco, mas a luta na arena tornava-se cada vez mais feroz. Babaki levou uma pancada no ombro e uma shwafwif extraiu sangue do flanco do humano. O antroleo rosnava e o humano grunhia. O público exultava.

 

Babaki...!

 

Finalmente, o antroleo largou uma shwafwif e agarrou o cabo da maça com a mão. O seu pé enganchou-se no tornozelo do homem e puxou-o, desequilibrando-o. A outra shwafwif desceu e mergulhou no abdómen do homem. A multidão rugiu. Babaki levou a arma acima e preparou-se para desferir o golpe mortal no homem que estava ajoelhado aos seus pés, agarrando a barriga com uma mão e tentando manter um aperto firme na maça sem grande sucesso, mas reteve-se e pareceu cair em si. A multidão julgou perceber o sinal e principiou a gritar ”morte!” em mais que um idioma, muitos já a esfregar as mãos em antecipação ao dinheiro que iriam receber. Mas Babaki baixou a shwafwif.

 

Vai. Por favor pediu ao humano, que ergueu a cara surpresa para fitar o antroleo. Vai-te embora e virou-lhe as costas, começando a andar em direcção à grade. O público gritou em antecipação.

 

Babaki, cuidado! berrou Quenestil.

 

O máximo que o antroleo conseguiu fazer foi baixar a cabeça antes de algo duro trovejar nela, enviando reverberações pelo seu corpo inteiro e abafando todo o som da arena com um zumbido denso. A sua espessa juba salvou-o de pior, mas as suas pernas oscilaram e os seus joelhos encontraram o chão. O mundo estava escuro, trémulo e cintilava com pequenos pontos brancos. Um rugido repercutiu-se pela sala, outro veio das profundezas mais recônditas da sua alma.

 

E então tudo ficou vermelho.

 

Babaki não pensou, limitou-se a agir. O mundo estava escarlate e tornou-se num borrão. O seu corpo ardeu com o afluxo de sangue. Algo quente e molhado o respingou.

 

Não! Rugido.

 

Não! Rugido.

 

NÃO!

 

Com um rosno de protesto, o animal afundou-se na consciência de Babaki. O antroleo piscou, olhou em redor e deu-se conta dos ensurdecedores urros de aprovação do público. A sua mão estava molhada.

 

”Oh não...”, principiou a desesperar mesmo antes de ver o corpo do homem a contorcer-se em espasmos de morte no chão com uma sangrenta abertura desde o umbigo até ao queixo. ”Não...”

 

O ranger agudo de guinchos e o arrastar de correntes chamaram a atenção da multidão para o eahanoir em cima da plataforma que agora ensombrava a arena. O eahan negro tocou o sino e anunciou o vencedor.

 

Babaki!

 

Babaki! respondeu a multidão, ovacionando o antroleo, que contemplava o seu horrendo feito. Babaki! Babaki! Babaki!

 

Quenestil esmaeceu e enterrou a cara nas mãos.

 

As nádegas de Hazabel ressentiam-se das longas horas de cavalgada em cima de uma sela para uma só pessoa, mas em breve avistou o que parecia ser um acampamento. Kror virou a cabeça para o lado e gritou qualquer coisa, mas a harahan não ouviu e pôs o queixo por cima do ombro do drahreg, abraçada a ele.

 

O quê?

 

Estamos a chegar. Os Cho Tirr têm tendas quentes e comida.

 

Ainda bem... respondeu Hazabel sem grande emoção.

 

A chegada dos cavaleiros ao acampamento não foi recebida pelos habitantes, isto porque pareciam estar todos recolhidos nas tendas, menos dois guardas que saudaram os recém-chegados. A harahan olhou em redor e calculou que não devia haver muito mais de cem pessoas no acampamento, composto por umas quinze habitações, tendas redondas de feltro. Havia ainda um curral excessivamente grande para as cinco cabras lazarentas que lá dentro se aconchegavam contra o gélido vento, mas nada mais. Kror desmontou habilmente e ajudou Hazabel a fazer o mesmo enquanto os cavaleiros exibiam orgulhosamente uma carcaça de antílope escanzelada aos seus companheiros.

 

Vem, Hazabel. Kror aprendera a pronunciar o nome da que julgava ser uma humana. Vamos ao yugr.

 

Ao quê?

 

A casa do ayan. Vem.

 

A casa do quê? Apesar do frio, os dias passados na estepe haviam acalorado o temperamento da harahan.

 

O... líder.

 

Hazabel aquiesceu com um aceno de cabeça e Kror conduziu-a ao maior dos yugr, acompanhado pelos cavaleiros. Dois sentinelas estavam postados à entrada e um deles puxou o pesado reposteiro de feltro que servia de porta. Lá dentro, cheirava a estrume e havia uma névoa de fumo no ar causado pela fogueira, mas pelo menos estava quente. A tenda era grande; Hazabel viu dez pessoas e calculou que talvez coubessem mais. Era de uma construção simples, uma armação de ripas atadas com tiras de couro coberta com mantas de feltro. O tecto era constituído por varas presas a arcos no topo, que formavam um domo coberto por mais mantas de feltro, uma das quais pendia de forma a criar um buraco para o fumo sair. Deviam fazer um maior, pensou Hazabel, tossicando. No chão estavam tapetes e almofadas coloridos, mas não havia móveis de tipo algum, nem sequer uma mesa. A única coisa que chamava a atenção era um biombo de vime que ocultava qualquer coisa dos presentes. Dentro do yugr estavam sobretudo mulheres e crianças, mas também alguns homens, sentados à volta da fogueira a beber e a falar. As mulheres estavam a curtir peles com um pau e o que parecia ser a queixada de um burro, a coser com agulhas de osso e a descascar uns bolbos castanhos. Vestiam as mesmas túnicas que os homens, e apenas o cabelo as distinguia. Enquanto os cabelos deles emulavam crinas de burros, com os lados da cabeça rapados, elas usavam-no comprido e decorado com ossículos pintados. Ninguém sequer ergueu a cara para olhar para quem chegara e se por acaso olhavam na direcção destes, era como se não os vissem.

 

Então. Entrámos na tenda certa? perguntou Hazabel com alguma aspereza.

 

Não podem olhar para nós. Podemos ser udagai que entraram na tenda disfarçados como amigos. Se falarem connosco antes de nos anunciarmos, podíamos levar-lhes as almas para a estepe.

 

UãagaiP...

 

Eh... gritam na noite? Roubam... almas?

 

Espíritos?

 

Sim, maus.

 

Estou a ver... então que fazemos?

 

Espera.

 

Um dos cavaleiros anunciou-se numa frase curta e enfática, após a qual foi calorosamente recebido pelos presentes. Os seguintes fizeram o mesmo e foram todos igualmente acolhidos. Quando chegou a vez de Kror, o drahreg desembainhou os alfanges, cruzou-os de pontas viradas para baixo e proferiu algo parecido com o que os cavaleiros haviam dito. Os presentes não se levantaram, mas ergueram as mãos de alegria e sorrisos rasgaram as suas faces. Uma criança saltou do colo da mãe e correu a abraçar o drahreg com uma alegria que lhe foi retribuída.

 

Potro Negro! Voltaste!

 

Kror riu e afagou os cabelos eriçados do rapaz. A criança tinha uma cara de lua cheia com grandes olhos ovais e uma boca sempre pronta a sorrir.

 

Sim, Gulan. Voltei.

 

Trazes histórias? Viste as bestas com pernas compridas como serpentes? São mesmo tão compridas? Como andam em cima delas? Como...

 

Kror interrompeu a enfiada de perguntas, pegando no rapaz ao colo e atirando-o ao ar.

 

Vou contar-te tudo. Mas agora tenho outras coisas a tratar... e virou a sua atenção para os outros presentes na tenda, que o receberam com sorrisos quando o rapaz caiu nos seus braços, guinchando de alegria.

 

Proferidas algumas palavras de boas-vindas, todos regressaram aos seus afazeres. Quando Hazabel olhou em redor e viu que era a única que não se havia anunciado, ficou sem saber o que fazer e olhou para, Kror. Este, com a criança ao colo, apontou para a harahan e disse algo parecido com uma apresentação em voz alta. Quando terminou, toda a actividade na sala pareceu cessar e uma dezena de olhos ovais fitaram Hazabel. A harahan encolheu-se reflexamente perante a atenção repentina e olhou para Kror, pedindo ajuda, mas o drahreg continuava a falar. A única coisa que Hazabel percebeu foi o seu nome...

 

... Hazabel é como se chama. Salvou-me a vida e por isso devo-lha. Pelos ancestrais, coloco-a sob a minha protecção e responsabilidade aqui, debaixo do lar do ayan.

 

Após a declaração de Kror, o silêncio tornou a reinar no yugr. Hazabel sentia-se como uma gota de sangue caída no meio da neve, vermelho contra branco, quente contra frio. O seu lugar não era ali; a própria tenda parecia querer repeli-la, e aqueles olhos ovais davam a impressão de que a sondavam até ao âmago do seu ser. A harahan não proferiu uma única palavra, permaneceu em pé, hirta e de punhos fechados, olhando em frente para um remendo na lona da tenda. O yugr parecia estar a ficar mais quente e gotículas de suor formaram-se no seu lábio superior. Subitamente, um estranho chocalhar rasgou o silêncio da tenda e a harahan foi aliviada da pressão dos olhares quando estes se dirigiram ao recém-chegado. Na semiescuridão do yugr, a única coisa que Hazabel viu foi um vulto corcovado, cujos passos faziam com que os seus inúmeros penduricalhos chocalhassem. Todas as cabeças se inclinavam em deferência à sua passagem, mas o vulto não lhes prestava atenção, parecendo estar mais interessado na harahan. Quando se aproximou o suficiente para que as brasas mortiças do estrume ardente o iluminassem, Hazabel só não arregalou os olhos porque estava habituada a coisas piores. À sua frente, uma mulher anciã tentava suster-se nas pernas finas como canas com a ajuda de um cajado nodoso e retorcido como os seus dedos. A única roupa que envergava era uma volumosa toga que lhe cobria o corpo mirrado, acentuando uma prodigiosa corcunda; nem sequer usava qualquer tipo de calçado. A pele da sua cara era engelhada, murcha, seca e ostentava várias chagas, duas das quais nos olhos, que eram completamente brancos, cercados por manchas escuras. O cabelo, se é que tinha algum, estava coberto por um alto gorro vermelho de topo chato, com duas abas que lhe cobriam as orelhas. A sua boca desdentada moveu-se, proferindo palavras que Hazabel duvidou de que os próprios ocarr entendessem, e uma mão enfezada dirigiu-se à pele macia da cara de Hazabel. Já tendo suportado bem pior, a harahan não se mexeu e permitiu que a horrenda megera lhe tocasse. Quando os dedos calosos lhe roçaram a maçã do rosto, a mulher sibilou e os seus olhos vazios arregalaram-se. Principiou a gritar e a saltar à volta de Hazabel. O resto dos presentes permaneceu imperturbável, embora devotando toda a sua atenção ao estranho ritual que a megera executava. Hazabel fitou Kror, ignorando a mulher, e este, pousando a criança no chão, pareceu querer dizer-lhe que permanecesse quieta. Sem qualquer aviso, a harahan ouviu um ruído ríspido e algo quente, molhado e peganhento atingiu-lhe a face. Quando encarou a mulher, esta agitava os braços e um corrimento amarelado pendia-lhe da boca: a maldita velha havia-lhe escarrado na cara! O primeiro impulso de Hazabel foi o de rasgar a garganta enrugada da mulher, esventrá-la, eviscerá-la, arrancar-lhe os olhos... mas por sorte, Kror abanou a cabeça e a harahan captou o movimento ainda a tempo de se conter, se bem que a custo. Sem sequer parar ou abrandar o ritmo, a megera retomou a sua dança frenética, pulando e ululando à volta de Hazabel como uma possessa. Após inúmeros giros, parou atrás da harahan e o silêncio caiu como uma manta no yugr. Hazabel resistiu ao impulso de se virar para ver o que a megera estava a fazer e permaneceu na mesma posição, recebendo um aceno afirmativo de Kror. Ouviu ruídos de movimento e o roçar de roupa atrás de si, que a fez pensar no pior. Foi só quando sentiu algo molhado e quente no tornozelo que percebeu que a megera estava acocorada numa postura grotesca a urinar-lhe para cima da perna! Só com um grande e repentino acesso de determinação é que a harahan se refreou de despedaçar a desgraçada. Sem saber como, conseguiu permanecer imóvel até a megera acabar o que estava a fazer e se levantar, após o que pareceu fitar Hazabel com interesse. Então retirou-se e coxeou até Kror, que se curvou respeitosamente perante a megera, apesar de saber que esta não via o gesto.

 

Há mal na mulher declarou numa voz trémula a anciã. Dizes tu que te salvou a vida, Potro Negro?

 

Assim foi, venerável.

 

Respondes então por ela?

 

Responderei.

 

Os olhos vazios da anciã pareceram fitar Kror por momentos.

 

Nunca te esqueças, Potro Negro, que tu, o poldro tresmalhado, foste acolhido nesta manada.

 

Não o esqueço, venerável... há mal em mim também, mas a manada acolheu-me. Peço-vos agora que acolham também aquela que me salvou, e que a ajudem como a mim ajudaram.

 

Não compreendes, mas há verdade nas tuas palavras. Pois seja, Potro Negro. Responderás por ela enquanto ela aqui permanecer.

 

Sim, venerável.

 

Chamarei agora o ayan.

 

Obrigado, venerável.

 

A anciã afastou-se de Kror e dirigiu-se ao biombo. Hazabel tentou chamar a atenção do drahreg, mas este olhava em frente, como se esperasse algo. A anciã espalhou um pó no ar, proferiu algumas palavras e bateu com o cajado no chão. Logo de seguida, o biombo foi puxado, revelando o que parecia ser um cubículo privado. Lá dentro estava a silhueta dum ocarr invulgarmente alto, delineado pelo rubro das brasas. A megera disse-lhe algo e o homem avançou para a fogueira com a anciã a seguir-lhe os passos. Perto da luz, Hazabel pôde ver o que o distinguia dos restantes ocarr além do grande porte. Tinha a cabeça rapada e marcada por uma comprida cicatriz que lhe percorria o topo do crânio, o que decerto fora um horrendo ferimento. Uma cauda de burro estava entrançada a uma mancha de cabelo na nuca e envergava tal como os outros uma túnica de couro por cima de outra, feita de lã, mas as suas eram decoradas com peles e tecidos cuja cor Hazabel ainda não havia visto na estepe. A sua cara era igual às dos outros ocarr, inexpressiva e redonda, mas tinha uma porção de barba entrançada na parte inferior do queixo e um olho coberto por uma pala. O outro fixava Kror, que retribuía o olhar. Finalmente, a cara do ocarr rachou-se num sorriso fechado e os dois abraçaram-se e trocaram palavras, mãos em cima dos ombros. Então todos os presentes no yugr se levantaram e gerou-se uma alegre comoção. Homens e mulheres dirigiam-se ao drahreg e puxavam-lhe os cabelos entrançados, como se de um cumprimento se tratasse. Kror sorria de volta e deixava que todos lhe puxassem as tranças. No meio da repentina agitação, Hazabel sentiu-se ignorada por todos, mas em breve as atenções se voltaram todas para a harahan quando Kror apontou para ela, dizendo qualquer coisa ao ayan. Este fitou Hazabel longamente com o seu único olho, mas pareceu assentir o que fosse que Kror lhe havia pedido com um aceno de cabeça. O drahreg agradeceu e encaminhou-se para Hazabel, seguido por todos os olhares da sala.

 

Podes dormir aqui disse.

 

Eu... agradece a esse... ayan.

 

Sim, e os Cho Tirr vão ajudar-te. Eles também não gostam daqueles que montam animais com pernas compridas como serpentes.

 

Ajudarão? perguntou Hazabel, falsamente radiante.

 

Sim, vão ajudar-te. Mas... o ayan...

 

Sim?...

 

O ayan quer... não, todas as... pessoas que não são da tribo que dormem no yugr do ayan têm de... pagar.

 

Pagar? Não tenho dinheiro retorquiu Hazabel, dúbia.

 

Sim... não, não tens chifre, nem peles, nem ferro... tens de...

 

O quê? Desembucha! exortou-o a harahan, quase agarrando os ombros do drahreg.

 

... dormir com o ayan...

 

Hazabel ficou em silêncio. Claro, de que é que estava à espera? Na verdade, sabia que teria de usar o seu corpo a dada altura, e não teria quaisquer problemas em fazê-lo.

 

Muito bem concordou. Diz a esse ayan que abrirei as pernas para ele se ele abrir as gargantas dos que me perseguem.

 

O quê?

 

Nada... A falta de compreensão de Glottik do drahreg era outro problema que teria de acabar por ser resolvido. Diz ao ayan que vou dormir com ele.

 

Está bem acedeu Kror, pegando gentilmente no braço da harahan e conduzindo-a ao ocarr alto.

 

Hazabel olhou-o nos olhos, aliás, no olho e o ayan acenou aprovadoramente com a cabeça. Kror largou-a e o ocarr pegou-lhe no braço com alguma sofreguidão, praticamente arrastando-a para trás do biombo, que reposicionou de forma a garantir a sua privacidade. Hazabel sentou-se na cama, que pouco mais era que uma manta almofadada no chão, e o ayan despiu a sua túnica de cabedal, grunhindo qualquer coisa que soava a uma ordem para que fizesse o mesmo com o seu vestido. Hazabel fê-lo maquinalmente e o ocarr tomou-a ali mesmo. Enquanto o ayan grunhia e suava nas suas costas, os pensamentos da harahan iam para Aewyre Thoryn e para o seu mestre. Ambos iriam pagar, iriam sofrer por tudo.

 

”E tu, bárbaro zarolho, não perdes pela demora... tu e aquela velha decrépita.”

 

Involuntariamente, Quenestil viu-se arrastado pela multidão para fora da arena. Era só o que fazia desde que entrara em Jazurrieh: deixar-se arrastar. Uma tempestade de pensamentos e culpa trovejava na sua cabeça, incapacitando-o de reagir, impossibilitando raciocínios coerentes. Foi encaminhado pelos já habituais corredores mal iluminados por tochas cuja luz incidia na cota de malha escura dos eahan negros. O ar abafado e mofado da arena e dos seus arredores fora substituído por uma fragrância mais delicada que pairava discretamente no ar e que aumentava de intensidade à medida que avançavam. Compelido a andar pelos acompanhantes eahanoir, que pareciam murmurar qualquer coisa dirigida a ele, Quenestil percorreu um longo corredor que conduzia a umas escadas de mármore negro. As coisas não deviam estar a correr assim... Começou a subir os degraus. Não fazia parte do seu plano, não deveria ter sido separado de Babaki, o antroleo não devia ter combatido e não devia estar cercado por guardas eahanoir. Queria apenas... O quê? Qual fora o seu plano? Não o tinha, havia arriscado e agora pagava por isso. Tais pensamentos não afectariam tanto o eahan se estivesse a pagar sozinho pelo seu erro, mas arrastara Babaki consigo para aquele ninho de víboras...

 

Trar-lhe-emos o seu lutador em breve disse um eahanoir ao lado de Quenestil. Entretanto, esteja à vontade e escolha uma mesa e cobriu a sala com um gesto largo da mão.

 

Encontravam-se num grande recinto escuro como todos os restantes, porém este era coberto por uma escuridão que Quenestil apesar de tudo só conseguia descrever como confortável. A sala era iluminada por bruxuleantes velas de castiçais de prata resplandecente e lustres de cristal que pendiam do tecto abobadado em cúpulas, sustentadas por colunas de mármore negro que se projectavam do chão decorado com mosaicos e ladrilhos coloridos que retratavam cenas orgíacas. Lá dentro estavam dispostas várias mesas redondas de madeira laçada, todas generosamente decoradas com toalhas bordadas e acepipes coloridos. Estavam quase todas ocupadas por humanos sentados em cadeiras com recosto que se deliciavam com os prazeres da comida e das eahannas negras, que dançavam em cima das mesas e se entregavam ao colo deles.

 

”Porcos eahanoir!”

 

Quenestil conseguiu reunir suficiente presença de espírito para agradecer à sua escolta e afastou-se deles como se soubesse muito bem para onde ir. A sala tinha uma temperatura amena, quase fresca, e Quenestil apercebeu-se de que estava encharcado em suor quando a diferença de temperatura o fez espirrar. Fungou ruidosamente e esfregou o nariz, mantendo a cabeça baixa e tentando não chamar a atenção. Tinha de tirar o Babaki dali...

 

Está sozinho, senhor...? ronronou alguém à sua frente. Quenestil ergueu a cabeça e engasgou com a mulher que se lhe deparava. O fino corpete de cassa preta cobria o corpo da eahanna negra por acaso, e revelava mais do que o shura queria ver. A sua testa estava marcada com um ponto vermelho.

 

Está com calor? Venha beber um bom copo de vinho fresco... convidou a mulher, pegando no braço do shura com delicados dedos.

 

Quenestil afastou-se da eahanna negra como se o seu toque queimasse.

 

Não desejo a tua companhia afirmou. Deixa-me.

 

Ao princípio, a eahanoir ficou tão chocada que se limitou a fitar Quenestil de olhos ligeiramente oblíquos bem abertos. Depois a sua expressão escureceu e o eahan pensou mesmo que teria uma luta nas suas mãos. Se todas fossem treinadas como a Slayra... mas a eahanna negra limitou-se a fungar de desprezo e a afastar-se, nunca perdendo a graciosidade. Quenestil suspirou e esfregou o suor da testa. A última coisa que queria era chamar a atenção. Ajustou a correia do estojo de couro do seu arco ao ombro e puxou a cadeira da mesa mais próxima. Os nervos haviam-lhe tirado a fome, mas tinha sede e despejou o vinho de um jarro de barro esmaltado num copo de peltre com altos-relevos. Bebeu o conteúdo de um só trago e exalou em azedo desagrado. Odiava vinho. Mas ao menos estava fresco, pelo que o eahan se serviu mais uma vez, pousando de seguida o copo na mesa com pouca delicadeza e esfregando mais um pouco de suor da sua testa. O vinho dissipara-lhe a sede, mas o sangue subira-lhe à cabeça e Quenestil teve a sensação de que a temperatura aumentara. A capa e as peles eram quentes, também... Onde estava o Babaki? Tinham de sair dali e teria de descobrir o paradeiro da Slayra noutro lugar.

 

Senhor? disse alguém atrás de si.

 

Com um sobressalto, o eahan levou a mão ao cabo do facalhão, virou-se e viu Babaki acompanhado por um eahanoir com uma singela tatuagem vermelha na testa.

 

Babaki! exclamou com alívio.

 

O antroleo não respondeu e limitou-se a sentar-se, olhando para o vazio. Parecia não se ter apercebido da presença do seu amigo.

 

O seu... homem lutou muito bem observou o eahanoir.

 

Não sabia que havia antroleos na Latvonia.

 

Não há respondeu-lhe Quenestil. Não somos de cá.

 

Bebeu mais um trago sem sequer olhar para o seu interlocutor, dando a entender que nada mais diria sobre o assunto.

 

Estou a ver... o senhor não tem calor? Tentamos providenciar um ambiente fresco aos nossos fregueses, mas essa capa parece deveras quente. Permita-me...

 

Não! Quenestil afastou-se, por pouco não caindo da cadeira

 

Estou muito bem assim.

 

Como queira... disse o eahanoir de mãos erguidas, recuando com uma curta vénia.

 

”Estúpido! Estúpido!”, censurou-se o shura. ”Para quem não queria chamar a atenção, estás a conseguir pôr muito bem todos os olhos em cima de ti...”

 

Virou-se para Babaki e agarrou-lhe uma das grandes mãos estendidas na mesa.

 

Babaki, eu... eu sinto muito. A culpa disto é toda minha. Eu nunca te deveria ter trazido comigo.

 

Os olhos tristes do antroleo fitaram-no, mas este não esboçou mais nenhuma reacção. A sua mão estava frouxa como um saco de grão vazio.

 

A culpa é toda minha... reiterou Quenestil, abanando a cabeça, mas fixando o antroleo de seguida com um olhar decidido.

 

Vamos sair daqui. Encontraremos a Slayra de outra maneira.

 

Saudações... cumprimentou alguém atrás do eahan, que se sobressaltou uma vez mais e por pouco não desembainhou a faca.

 

Com a vossa licença... continuou um eahanoir despreocupado, parecido com todos os outros com a excepção de uma cicatriz esbranquiçada da têmpora esquerda até ao queixo. Vestia de preto como os seus restantes congéneres e tinha brilhantes cabelos afilados que lhe pendiam como patas de aranha da testa, marcada por uma tatuagem igual à do capataz das apostas. Pegou num copo descontraidamente e serviu-se perante o olhar cauteloso de Quenestil, sem sequer se apresentar. Os Eahanoir nunca se apresentavam.

 

Ahhh... exclamou, deliciado. Excelente vinho. Não deseja mais um gole? ofereceu ao eahan, que ergueu a mão em recusa. Como queira, estou ao vosso dispor. O que deseja? Dinheiro? Mulheres? Informação?

 

A palavra ”informação” badalou como um sino na cabeça do shura. Estivera pronto para mandar o eahan negro embora, mas apercebeu-se de que fora esta a situação pela qual esperara, alguém capaz de o informar.

 

O seu... homem lutou muito bem. Soube levar a multidão ao rubro. Os meus empregadores estão dispostos a oferecer-lhe...

 

Informação interrompeu Quenestil. Quero informações. O eahanoir olhou-o com uma medida de desconfiança. O shura

 

esquecera-se por completo de manter a postura marreca e os seus olhos cintilavam com um brilho animalesco. A sua capa aberta revelava as peles que envergava e os seus cabelos ruivos atraíram mais que um olhar do eahan negro, mas Quenestil ou não reparava ou já não se importava.

 

Com certeza... o que deseja saber, senhor?

 

Estou à procura de uma mulher. Slayra é o seu nome. Deve ter chegado a Jazurrieh há poucos dias. Onde a poderei encontrar? deixou o eahan escapar. Nem se apercebeu da força com que agarrava a mesa, enrugando a toalha.

 

Os claros olhos do eahanoir arregalaram-se e mesmo Babaki fitou o seu amigo, não pelo que dissera mas por que se levantara e olhava o eahan negro de cima.

 

Eu... dê-me uns momentos. Voltarei com uma resposta afirmou o eahanoir por fim, empurrando a cadeira ruidosamente para trás e desaparecendo atrás de uma coluna antes que Quenestil se apercebesse do seu erro.

 

Teve vontade de gritar.

 

Anda, Babaki! vociferou, tentando manter a voz baixa e puxando o seu amigo pelo braço com urgência.

 

O antroleo levantou-se, piscando os olhos em surpresa, e deixou-se puxar, apressando o passo.

 

”Imbecil! Não passo de um imbecil!”, vituperou-se o eahan.

 

Os olhares seguiam-nos e os copos paravam a meio caminho dos lábios conforme avançavam, mas Quenestil já não se importava, era demasiado tarde. O melhor que poderia fazer era fugir antes que a ratoeira se fechasse em seu redor. Um guarda eahanoir ergueu a mão como para os deter, mas o shura empurrou-a para o lado, rosnando a sua vontade de sair. Babaki olhou para trás e viu que o guarda estava a chamar outros. Acelerou o passo e Quenestil fez o mesmo.

 

Assim que chegaram ao átrio, os dois guardas postados à porta empunharam as lanças e bloquearam-lhes o caminho. Estava na altura de largar o disfarce. Quenestil desenvencilhou-se da capa com destreza e agitou-a como se estivesse a incitar um touro, mas Babaki estacou.

 

Ataca! gritou o eahan ao seu amigo, rosnando de seguida quando os eahanoir investiram.

 

Girou a capa à sua frente e esta foi atravessada pela lança de um adversário. O outro visava a sua cabeça com uma pancada, mas Quenestil enrolou o braço na capa até agarrar o cabo da lança que a furara e usou-a para aparar o golpe. O eahanoir não contestou o controlo da arma e largou-a para desembainhar uma espada curta. Rápido como um carcaju acirrado, Quenestil agarrou o cabo da lança com uma mão e soltou a outra para se libertar da capa. A ponta da espada do eahanoir veio veloz, mas Quenestil era exímio no uso de varas e, rodopiando a lança em rápida sucessão, desviou o golpe, desarmou o eahanoir com uma pancada no antebraço, agarrou a lança com as duas mãos e investiu com a ponta do cabo contra a barriga do eahanoir. Este contorceu-se violentamente, arquejando e madeira entrechocou quando Quenestil aparou um golpe de lança do outro adversário vindo de cima. A posição era ideal e o eahan prendeu a arma do eahanoir com um hábil movimento de alavanca com braço e lança. De seguida, levantou a ponta do cabo com força e o eahanoir gritou engasgado quando a sua virilha explodiu em dor. Com um pontapé para trás, Quenestil atingiu a cara do que ainda se contorcia por ar e despachou o outro com um golpe de tal forma violento que madeira e crânio estalaram. Estava a descarregar a sua fúria nestes dois eahanoir e provavelmente teria continuado a surrar os corpos inertes se não ouvisse passos. Girou sobre si e arremessou a lança para o grupo de guardas que se aproximavam. Nem se incomodou a ver se atingira alguém, pois teve de agarrar o braço de Babaki, que ainda não se mexera e cujos olhos estavam grandes e brancos como os de um cavalo assustado.

 

Babaki, anda! gritou com premência, puxando o antroleo até à porta e abrindo-a.

 

Não entrou qualquer lufada de ar, mas a mera visão da rua pareceu acordar Babaki e este saltou para fora do edifício antes de Quenestil, que o seguiu e fechou a porta atrás de si. As sombras das ruas de Jazurrieh abateram-se sobre o eahan assim que o fez. Todos os odores alienígenas da cidade o envolveram como tentáculos fedorentos, forçando o seu caminho pelo nariz do eahan acima, cheirando a ruindade preta e cinzenta. O ar bafiento e opressivo era quase como uma barreira que o rodeava, fedorenta e asfixiante. Sem sequer parar para analisar a situação, Quenestil correu atrás de Babaki, praticamente saltando para dentro de uma esquina quando ouviu a porta da arena a ser aberta. Escorregou em algo viscoso e caiu desastradamente de costas no chão. Amaldiçoou a cidade e ergueu-se, sujando as mãos no chão imundo e tropeçando em lixo, quando viu que o antroleo não estava com ele.

 

Não... Babaki! gritou, cambaleando para fora da viela e vislumbrando a silhueta do seu amigo a desaparecer noutra esquina.

 

Os passos dos eahanoir ressoaram-lhe na cabeça como tambores e estes afiguraram-se a Quenestil como sombras a planarem na sua direcção. Estava tonto, a cidade era como uma lâmina serrada, suja e cruel a cortar-lhe as raízes, privando-o do contacto com a terra e embebendo-o em veneno escuro.

 

Atacou com desenfreio. Ouviu o afundar molhado da ponta da sua lâmina em carne e largou-a, usando os punhos, unhas e dentes como um animal ferido. Os seus olhos estavam fechados, estava rodeado por um monte de carne e o carcaju sabia que só tinha de arranhar e morder até ela parar de se mexer. Mas de repente veio uma pancada, depois outra, e outra, e outra. Algo duro se afundou nos seus rins e uma bordoada violenta na perna pô-lo de joelhos. Depois deixou de sentir onde lhe batiam, todo o seu corpo latejava com estouros de dor. Mãos fortes agarraram-lhe os braços e dois pés chutaram-lhe o ar para fora. Alguém lhe agarrou os cabelos e puxou-lhe a cara violentamente para cima de encontro a um punho que lhe trovejou no rosto, seguido de outro e outro e outro e outro... até que o misericordioso pano da escuridão caiu.

 

Os companheiros haviam-se posto em marcha antes do nascer do Sol e ainda caminhavam quando este já alcançara o seu zénite. As estepes estendiam-se até ao infinito à sua frente, sempre a mesma paisagem, sempre o monótono e encandeante branco manchado de castanho. Duas semanas, e o cenário não se alterara no mínimo, cada elevação parecia igual, cada nuvem aparentava estar imobilizada, as nódoas de restolho castanho de ervas em nada diferiam de área para área. A única variável era o frio; esse parecia piorar conforme o tempo passava. As peles, roupas, capas e capuzes de lã que os companheiros vestiam resguardavam-nos do pior, mas havia sempre dedos frígidos que encontravam o seu caminho até à pele.

 

Taislin tentava a custo respirar pelo nariz, pois o ar seco das estepes gelava-lhe a garganta, mas os seus pequenos e apressados passos obrigavam-no a inalar mais ar que as suas diminutas narinas permitiam, e isto só para acompanhar o passo dos seus companheiros pernilongos. As suas pernas estavam cansadas e o seu estômago já gorgolejava há algum tempo. Quando fora a refeição matinal? Quando fora a última refeição decente, na verdade? Estava com dificuldades em acompanhar o apressado passo do grupo e até a pachorrenta Alfarna começava a deixá-lo para trás. As costas dos seus amigos afiguravam-se-lhe indistintas, opacas, bem como o resto do terreno, que parecia reluzir com os raios do Sol.

 

”Maldita neve...”, pensou, esfregando e piscando os olhos.

 

Os companheiros continuavam indistintos, mas o terreno parecia brilhar mais. As veias das suas têmporas deviam estar a bater muito alto, pois Lhiannah virou-se e disse qualquer coisa em voz alta. O resto do grupo parou e Worick resmungou, mas Taislin só ouvia o bater do seu coração a retumbar-lhe nos ouvidos. O mundo pareceu ficar inclinado e de repente sentiu algo gelado na cara. Tudo ficou escuro de repente, até que duas mãos o levantaram e o burrik teve a sensação de estar a flutuar. A luz voltou e Taislin viu a bela cara de Lhiannah vincada com preocupação.

 

Taislin, fala comigo! disse a princesa, exasperada.

 

Calma Lhiannah aconselhou a voz de Allumno. É óbvio que ele se exauriu. Anda, põe-no aqui. A burra leva-nos aos dois...

 

Querem continuar? Então não vêem que o coitado está exausto? indagou a arinnir, quase irritada. Desde madrugada que não paramos de andar!

 

Ninguém disse nada e todos olharam para Aewyre menos Lhiannah, que segurava Taislin como um bebé. O jovem guerreiro olhava em frente, cabelo a abanar ao vento, o seu olhar perdido não no horizonte mas num reino para além da percepção dos comuns mortais. Kror... a Essência da Lâmina era como um tendão que o prendia ao drahreg: quanto mais se distanciavam, mais a sua tensão se fazia sentir, de tal modo que a aproximação quase lhe dava uma sensação de alívio. Quase. Assim que se encontrassem, seria a morte de um deles; só um podia sobreviver. As suas espadas já se haviam cruzado, dois céleres alfanges contra Ancalach, mas nessa ocasião a luta fora impedida por outros. Na verdade, Aewyre estava incerto quanto à sua vontade de lutar contra o drahreg. Poupara a vida de Lhiannah e Taislin quando os podia ter morto, enterrara os clérigos de Gilgethan, e a verdade é que parecia de algum modo ser diferente dos outros drahregs... Mas levara a Manopla de Karasthan, ele e a estranha mulher de negro que Taislin vira. Havia algo de muito confuso no meio daquilo tudo, mas a todo o resto se sobrepunha a ardente vontade de cruzar lâminas com o drahreg uma vez mais...

 

... aquilo, Aewyre?

 

O guerreiro despertou, piscou os olhos e viu que todos olhavam para algo atrás dele. Aewyre também olhou nessa direcção e distinguiu algo no meio da neve, umas estranhas protuberâncias rochosas dispostas no que parecia ser um círculo.

 

É sempre bom ver pedras... comentou Worick, principalmente numa terra nua como esta, mas que me caiam elas em cima se eu souber o que são...

 

Um cromeleque esclareceu Allumno, fungando. Decerto um local de culto para os ocarr.

 

Boa zombou o thuragar. Achas que se nos sentarmos lá e estendermos a mão têm pena de nós e nos dão esmola?

 

Já que estão a discutir, por que não descansamos aqui? interveio Lhiannah, ainda com Taislin ao colo.

 

Os olhares viraram-se para Aewyre uma vez mais.

 

Vamos até ao... cromeleque? respondeu o guerreiro, olhando para Allumno a pedir confirmação. Podemos descansar lá.

 

Seria o equivalente a ir dormir no altar do templo de Gilgethan... comparou Allumno.

 

Pedimos desculpa depois. Tudo o que possa ficar entre nós e este maldito vento é uma bênção replicou Aewyre, estugando o passo em direcção ao cromeleque.

 

Allumno encolheu os ombros e produziu estalos com a língua de modo a incitar Alfarna. Worick sugeriu pegar ele em Taislin, mas Lhiannah agarrou-o ainda com mais força e seguiu Aewyre com o burrik ao colo. Worick resmungou e foi atrás dos companheiros, abanando a cabeça.

 

Já se começa a sentir mãe... Estou bem arranjado, só me faltava mesmo esta. Rebelde, a fugir do pai, na companhia de mentecaptos e a adoptar um burrik! Pedras me partam e a todos vocês...

 

O cromeleque consistia de doze pedras em torno de um buraco no chão, cada uma talhada com estranhos e toscos símbolos. A intempérie parecia ter sido complacente com a pequena área de terreno rodeada pelas rochas; o restolho castanho de erva crescera com um certo vigor ali e lutava para se manter à superfície da neve. Aewyre entrou no círculo, olhando em redor, e dirigiu-se ao estranho buraco. A erva crescera especialmente viçosa naquele ponto, ladeado pelo que sobrava de duas estacas. Um poço, presumiu, ajoelhando-se e mexendo na erva rica e dura.

 

Temos aqui um festim para a Alfarna constatou.

 

Boa, se algum de nós pode comer bem, que seja a burra comentou Worick.

 

Bem merece... retorquiu Allumno, dando palmadinhas no cachaço da montada.

 

Aewyre ajudou o mago a descer e atou a burra a uma das sobras de estacas perto do poço, deixando-a a pastar regaladamente. Lhiannah envolveu Taislin num cobertor e encostou-o a uma das pedras para o proteger do vento.

 

Eu estou bem, a sério insistia o burrik. Fiquei só um bocadinho tonto do cansaço.

 

Então, se estavas tão cansado, o melhor é descansares.

 

Mas Lhiannah...

 

Mas nada. Agora fica aí que eu vou preparar o almoço.

 

Ah, para ele já prepara o almoço reparou Worick. Bonito...

 

Taislin suspirou, resignado, e aconchegou-se ao cobertor enquanto o vento parecia tentar contornar a pedra à qual o burrik se encostara. A Lhiannah tinha razão, claro. Tinha de se manter forte, tinha de aproveitar para descansar. Não podia ser um fardo para o grupo. E a Lhiannah preocupava-se tanto com ele... Observando a princesa a preparar as tiras de carne seca e pão, Taislin não pôde conter um sorriso, lembrando-se da sua atarefada mãe. Os burriks dividiam a vida em três fases: a Amamentação, que compreendia o nascimento e o tempo que um jovem burrik passava com os pais, aprendendo com eles o que podia; o Fechar da Porta, na qual um burrik, ainda adolescente, devia sair de casa e aventurar-se pelo mundo fora; e o Assentar, no qual o burrik adulto deveria integrar-se numa aldeia e constituir família, cuidando da próxima geração de jovens aventureiros e daqueles de idade avançada, passando o resto da vida na companhia dos seus. Taislin guardava boas recordações da sua mãe, do seu pai também, mas Lhiannah recordava-lhe a sua mãe: firme, decidida, atarefada quando se havia proposto a algo e sempre com muito carinho e amor para dar. Burriks não conheciam a saudade, mas Taislin esperava ainda poder ver a sua mãe uma vez mais. Sempre fora saudável, poderia ainda estar viva quando regressasse. Se regressasse, corrigiu mentalmente, rindo ao de leve e agasalhando-se um pouco mais.

 

Sabes quem havia de gostar de ver isto, Allumno? perguntou Aewyre, passando a mão pelos toscos desenhos talhados numa pedra. O Quenestil.

 

Tenho a certeza de que iria achar interessante respondeu o mago enquanto vasculhava a mochila dos mantimentos.

 

Ele sempre gostou de ver as diferentes demonstrações de respeito pela Natureza. O que achas que estes símbolos significam? Animais, talvez?

 

Hm-hm concordou Allumno distraidamente.

 

A mim parecem-me cavalos... sim, acho que são cavalos continuou o guerreiro, apoiando a mão contra a pedra.

 

Assomou-se-lhe à mente a imagem de Quenestil, montado num corcel de guerra, a conduzir um grupo de cavalos contra a Guarda Marcial em Alyun.

 

”Meu amigo... espero que estejas bem. E o Babaki... a Slayra também. Espero que todos estejam bem.”

 

Aewyre não nutria muitas esperanças de tornar a ver o shura dos cabelos de fogo, pois seguira para Norte enquanto o eahan fora para Leste à procura de Slayra, e as estepes agora separavam-nos. Talvez se encontrassem em Tanarch, se o destino assim o quisesse... O jovem descartou esses pensamentos negativos e deu uma volta em redor do cromeleque, inspeccionando as pedras uma a uma. Os símbolos representavam cavalos, todos eles. Ou então as estranhas montadas dos ocarr, os hemíonos, mais parecidos com burros.

 

Estás interessado nas pedras, tu, comentou Worick, sentado de costas para uma e talhando o seu bloco de pedra, cuja forma ainda era indefinida.

 

Depois de passar duas semanas a ver estepe e mais estepe, isto chama-me a atenção, sim admitiu Aewyre, observando mais uns símbolos com a mão no queixo. Como as terão trazido para este lugar?

 

Sei lá respondeu o thuragar, arrancando uma lasca do bloco. Duvido de que essas bestas dos ocarr usem rodas sequer. Devem tê-las arrastado das montanhas, puxaram-nas com os seus burricos em cima de toros, qualquer coisa assim.

 

Aewyre acenou com a cabeça, mas parecia absorto nos seus pensamentos e alheio ao que o thuragar dizia, um estado denunciado pelos sinais de movimento da sua língua a mexer no incisivo saliente do maxilar inferior. Worick olhou para o jovem, deu duas marteladas leves e tornou a fixar os olhos no bloco.

 

Eu já te disse para não te preocupares asseverou. Ele volta. Nada vai parar aquele eahan.

 

Aewyre despertou e fitou Worick com olhos bem abertos.

 

Sim, eu ouvi a tua conversa de chacha com o Allumno. Eu disse-to no dia em que nos separámos: nada vai parar aquele eahan. Ele vai arrasar tudo pelo caminho, vai recuperar a sua moça e vem ter connosco depois. Confia em mim.

 

Mas... Aewyre estava surpreendido pela franqueza, como podes ter tanta certeza?

 

És um rapazola, não percebes nada destas coisas... insultou o thuragar, pousando martelo e cinzel. Eu vi fogo naqueles olhos afirmou, apontando para os seus. Daquele fogo que arde, daquele fogo que queima. Ele vai voltar.

 

Aewyre deixou-se estar perplexo enquanto o veterano thuragar retomava o seu trabalho.

 

Quem quiser almoçar, venha, ouviram ambos Allumno dizer.

 

Bom, vamos lá para o repasto disse Worick, enfiando o bloco e os instrumentos na sua mochila enquanto se levantava desajeitadamente. E pára de olhar com essa cara de parvo.

 

Aewyre seguiu o thuragar, abanando a cabeça. Não era de todo avesso a surpresas, mas o facto de cada um dos companheiros ainda o conseguir surpreender após tanto tempo de íntima convivência dava a ideia de que ainda não os conhecia.

 

Então o que é que temos hoje? perguntou Worick a Allumno e Lhiannah.

 

Carne seca com mostarda. Temos vinho para nos aquecer respondeu a princesa, esfregando umas últimas tiras de carne no espesso condimento.

 

Bebemos o vinho frio acrescentou Allumno, olhando para a extensão das estepes. Prefiro não fazer nenhuma fogueira.

 

O sonoro gemido de Taislin fez-se ouvir do outro lado do cromeleque, mas o mago manteve-se firme na decisão, mesmo após os protestos da arinnir.

 

Lhiannah... admoestou Aewyre. Sabes bem que o Allumno tem razão. É demasiado arriscado em céu aberto.

 

Se a princesa ouvira o que o jovem dissera, não o deu a entender, limitando-se a deixar umas tiras de carne sem mostarda e levando a Taislin a sua porção. Aewyre suspirou e foi tratar do seu prato.

 

Não há paciência... murmurou, tirando as luvas de couro forradas a pêlo de coelho e espalhando um pouco do tempero amarelado na sua tigela, enfiando a carne lá dentro.

 

Allumno nada disse enquanto servia vinho na taça do seu protegido e os companheiros comeram em silêncio, cada um encostado a uma pedra para se proteger do vento. A mostarda dava algum sabor e acidez às insípidas tiras e o vinho sempre aquecia por dentro, mas tudo sabia sempre a pouco. Lhiannah tentara caçar um dos escanzelados antílopes que raras vezes se avistavam, mas em campo aberto e sem um cavalo era praticamente impossível apanhar um dos animais desprevenido. Taislin procurara coelhos obstinadamente, apesar da insistência dos restantes companheiros de que não havia nenhum nas estepes.

 

”Se o Quenestil cá estivesse arranjava logo umas raízes e tubérculos...”, pensou o burrik, roendo a sua carne. ”Não que fossem saber muito melhor... E como estarão a Slayra e o Babaki? Se calhar encontraram a malandra à gandaia com um amigo eahanoir e agora estão todos juntos a comer à mesa. Uma boa mesa com galo estufado, cerveja, queijinho com pão e umas maçãs bem rijinhas,,.”

 

Alheio aos pensamentos famintos do burrik, Aewyre rapou o fundo da sua tigela com um naco de pão duro e encostou a nuca à pedra rugosa enquanto mastigava laboriosamente.

 

”Onde é que eu os vim trazer?”, perguntou-se uma vez mais, pensando em Kror e nas estepes. ”Não aprendi a lição em Moorenglade? Este lugar é um pesadelo. Por que é que não esperei que ele viesse ter comigo? Olha para nós agora, separados, cansados, sem paciência uns para os outros...” O céu cinzento foi rasgado pela silhueta dardejante de um falcão. ”Olha, sempre há animais que vivem aqui...”

 

Aewyre! chamou Allumno.

 

Sim?

 

”Agora anda sempre distraído, este rapaz...”, pensou o mago Retomamos a marcha?

 

Lhiannah preparou-se para objectar, mas o jovem antecipou-se-lhe.

 

Não, vamos descansar mais um pouco, digerir bem a comida...

 

Como se houvesse muito para digerir... resmungou Worick, sem que ninguém lhe prestasse atenção.

 

Ficamos a descansar até as sombras das pedras apontarem para ali acrescentou Aewyre em voz alta, apontando para Noroeste. Depois marchamos até à noite.

 

Taislin gemeu e Lhiannah dirigiu um olhar fulminante ao guerreiro, que este acabou por receber com um meio sorriso (pelo menos olhara para ele). A princesa depressa desviou o olhar e foi ter com o burrik, mas nesse instante apeteceu a Aewyre ser insistente e o guerreiro levantou-se e avançou também de encontro a Taislin. Como previra, a princesa viu a sua aproximação, afagou o barrete do burrik e afastou-se. Aewyre abanou a cabeça e acocorou-se perto do seu pequeno amigo.

 

Então, campeão? Essas pernas?

 

Parecem ficar mais pequenas a cada dia que passa... lamentou-se o burrik e ambos riram.

 

Vais ficar bom?

 

Claro... é só descansar mais um bocadito e estou pronto para calcorrear esta maldita terra estéril até ao fim do horizonte afirmou, olhando para a linha entre o céu e a terra com ar confiante.

 

Aewyre sorriu e seguiu o olhar de Taislin. Lá estava o mesmo falcão, a descrever círculos sobre o cromeleque.

 

Já sabes, da próxima vez que te sentires cansado, monta a Alfarna. A burra aguenta-te a ti e ao Allumno sem problemas.

 

Ora essa, não é preciso! repisou o burrik, quase ofendido.

 

Muito bem, mas lembras-te disso? insistiu Aewyre.

 

Está bem... acedeu Taislin.

 

O guerreiro afagou-lhe o barrete e ergueu-se, enfiando as luvas nas mãos, que haviam ficado quase entorpecidas durante a refeição. Vendo os companheiros a descansar e na falta de algo melhor para fazer, Aewyre concentrou-se uma vez mais em Kror. Começava a ser uma sensação viciante, a tensão que a distância entre ambos provocava, como a corda de um arco rangedor puxada até ao limite.

 

O ruído do entrechocar de espadas na sua cabeça surpreendeu-o, principalmente por não o sentir há muito tempo, forçando-o a levar as mãos à cabeça involuntariamente. Nunca o sentira com tal força...

 

Está tudo bem, Aewyre? perguntou Allumno, sentado de costas para uma pedra.

 

Eu... há quanto tempo é que isto não...?

 

O quê? O que é que se passa? O mago levantou-se, apoiando o peso no cajado.

 

Worick ouvira a voz algo exaltada de Allumno e também se inclinou para ver o que se passava.

 

O que é que foi agora? Aewyre agarrava as têmporas e olhava para cima, de olhos semicerrados. O falcão afastava-se do cromeleque.

 

O falcão! gritou, e todos se sobressaltaram.

 

Faíscas da Bigorna, mas o que é que se passa? praguejou Worick, levantando-se. Lhiannah e Taislin juntaram-se-lhe.

 

O jovem guerreiro olhava em redor, obviamente agitado, observando a extensão da estepe em redor.

 

Fala, que raio! praguejou o thuragar.

 

Aewyre levou instintivamente a mão ao punho de Ancalach.

 

Ele vem aí declarou.

 

O silêncio abateu-se no meio do grupo e apenas o vento se fez ouvir, até que Worick grunhiu.

 

Ele que venha, então. Ele e a harahan. Faço-os aos dois em pedaços...

 

Ele é meu! gritou Aewyre, os seus olhos subitamente arregalados, fazendo com que cada um dos companheiros desse um passo atrás. Ele é meu... repetiu, mais baixo, fechando os olhos e baixando a cabeça.

 

Ninguém disse nada. O vento pareceu começar a uivar mais alto. Worick resmungou e empunhou o seu martelo, girando-o na mão e virando as costas.

 

Se fazes tanta questão, então fico com a harahan... anda Lhiannah, prepara-te para a traulitada. E tu, caganito, larga-me esse cobertor e saca dos teus palitos de ferro. Mago, tu...

 

Não te preocupes, Worick interrompeu Aewyre. Acho que vais ficar de mãos cheias... todos vamos.

 

Todos olharam para onde o guerreiro apontava e sentiram um acalorar nas tripas. Vários pontos negros no horizonte aproximavam-se a alta velocidade, precedidos por um falcão.

 

...e que Gilgethan esteja connosco...

 

Escuridão... humidade... frio nas costas... dor nos pulsos, dor em todo o lado... Quenestil abriu os olhos, mas não viu nada. Estaria cego? O assomo de pânico trouxe-lhe calor de volta ao peito e às faces, mas o eahan controlou-se. Estava preso, numa sala escura, não estava cego. Mal conseguia abrir o olho esquerdo, mas não estava cego. Não sentia o lábio superior e algo estava inchado dentro da sua boca, mas não estava cego. Tentou mover-se e ouviu o tilintar das grilhetas que lhe aferrolhavam os antebraços esfolados. Estava em pé, por isso lhe doíam tanto os pulsos, e as costas estavam molhadas da humidade na parede. De repente, ouviu metal a deslizar e um facho de luz abateu-se-lhe sobre a cara, fazendo com que o olho bom se fechasse reflexamente e a sua cara se desviasse. O metal voltou a deslizar e a luz foi cortada, mas então Quenestil ouviu o que lhe pareceu ser o chocalhar de chaves e a porta abriu-se pouco depois, irradiando a sala de luz e obrigando o eahan a fechar o olho uma vez mais. Ouviu vozes, mas não percebeu o que diziam, o único ruído familiar era o crepitar do fogo: traziam tochas. Quando por fim conseguiu abrir uma fresta do seu olho são distinguiu quatro vultos, dois dos quais caminhavam com tochas pelo cubículo, acendendo outras. A porta então fechou-se e o olho de Quenestil habituou-se gradualmente às novas condições de luz. Eram eahanoir, todos eles, de cabelos compridos e curtos, lisos e espigados, corpos delgados e olhos azuis e frios. Havia uma eahanna negra entre eles, parcamente vestida de cabedal, com o comprido cabelo sedoso à frente do ombro, cujos olhos pareciam saborear Quenestil como um acepipe e cuja pequena boca em forma de coração se franzia em antecipação. A raiva trouxe algum sangue aos membros dormentes do eahan.

 

Então foi este o eahan da montanha que causou a comoção naquele antro de frouxos? perguntou um dos eahanoir.

 

Quenestil fitou-o e notou algo de diferente nele, mesmo só com um olho. Os seus cabelos eram compridos, finos como teia de aranha, negros como o coração d’O Flagelo. Envergava uma capa preta por cima das suas vestes negras, com luvas e botas de cabedal brilhante. A sua face era um semblante de mármore branco esculpido, quase angular, e era de longe o mais bem-parecido que o eahan alguma vez vira num homem. Os seus olhos... Quenestil cerrou o olho bom para se certificar: um era azul como gelo, o outro cinzento como um penedo, e esse era acentuado por uma tatuagem vermelha com a forma de um elaborado crescente que o rodeava. Ambos eram amendoados e pérfidos, os olhos de um predador.

 

Sim, Tannath respondeu um dos eahanoir que empunhavam tochas.

 

Mal empregado, aqui nesta cela fedorenta... comentou a eahanna, apoiando as mãos nos joelhos de forma a baixar-se para melhor ver a face cabisbaixa de Quenestil. Posso levá-lo, Tannath?

 

Talvez a seu devido tempo, Vinxenia... respondeu o eahanoir do olho cinzento, agarrando o braço da mulher e puxando-a para si. Mas agora faz aquilo que vieste para fazer, sim?

 

A eahanoir esboçou um sorriso prometedor.

 

Está bem. Mas depois vou colher os dividendos... Quenestil sabia falar eahan negro, mas não precisava de ter percebido as palavras para se retesar perante a aproximação da eahanoir.

 

Tem calma, eahan. Não te vou fazer mal, não agora... asseverou a eahanna negra em Glottik, rindo e tirando um cantil que carregava a tiracolo. Agora fica quieto que vamos tratar dessas feridas.

 

Os outros dois eahan negros postaram-se ao lado da sua homóloga feminina e o de olho cinzento cruzou os braços.

 

Não me toques com as tuas mãos sujas, eahanoir ameaçou Quenestil com ódio e asco a assomarem ao olho bom.

 

A eahanna negra suspirou e molhou um pano com o cantil.

 

Fica lá quieto, senão vou ter de te castigar repreendeu, aproximando o pano de um corte que Quenestil tinha na têmpora.

 

O shura rosnou, abriu a boca e só não mordeu a mão da eahanna devido aos reflexos desta. O punho de um dos eahanoir encontrou de imediato as suas costelas e o outro colidiu contra o seu queixo. O seu corpo encolheu-se e retesou-se, mas o outro eahanoir, o que se chamava Tannath, surgiu de repente, agarrando o pulso do seu agressor.

 

Antes que este pudesse dizer algo, os braços do tal Tannath transformaram-se em borrões à vista já turva de Quenestil e o eahanoir caiu por terra. Antes que este pensasse sequer em se levantar, levou três pontapés em rápida sucessão nas costelas e a sua cabeça foi pontapeada contra a parede, estalando. Todos os olhos da sala, exceptuando dois, estiveram arregalados durante os momentos de atónito silêncio que se seguiram.

 

Eu já disse vezes demais... soletrou Tannath não me interessa o que fazem para se divertirem, mas à minha frente ninguém toca num homem amarrado e indefeso. Fui claro desta vez? perguntou, fitando os dois eahanoir, que acenaram nervosamente com a cabeça. Ainda bem. Agora, Vinxenia, por favor, trata do nosso convidado. Salann, leva o teu companheiro a alguém que trate dele.

 

O eahanoir acenou com a cabeça, levantou o seu companheiro e carregou-o aos ombros para fora do cubículo.

 

Eahan, esta linda senhora não te vai fazer mal. Deixa que ela trate as tuas feridas.

 

Quenestil nada disse nem fez, mas deixou que a eahanoir esfregasse o pano molhado pela sua face, semicerrando o olho são com o ardor. Ainda estava demasiado surpreso para esboçar qualquer espécie de reacção.

 

Eu bem sei o que os restantes eahan pensam de nós, e percebo-o até certo ponto.

 

O sobrolho de Quenestil ergueu-se.

 

Afinal, eu próprio fui fruto de algo que os eahanoir fizeram aos da tua raça... continuou Tannath, apontando para o seu olho cinzento. O meu pai, dizem, foi feito prisioneiro numa incursão eahanoir a um acampamento de eahan da montanha. Mataram-lhe a mulher e os filhos à frente dos próprios olhos, queimaram-nos dentro da cabana e venderam-no aqui em Jazurrieh. Lutou um pouco nas arenas e provou o seu valor, recebeu a aprovação de uma matrona, por sinal a minha mãe. Da arena até às casas de prazer foram poucos dias, e aí subiu à sua montanha, incapaz de satisfazer os apetites selvagens das mestras do deleite por muito tempo...

 

Quenestil projectou-se para a frente, mas as grilhetas travaram-lhe o movimento. A eahanna que o tratava recuou involuntariamente, e Tannath ergueu as mãos.

 

Isso é desnecessário. É uma história terrível, mas não foi a Vinxenia quem o matou e eu não estou a dizer isto como provocação. Quero apenas que saibas que eu compreendo.

 

Eu posso acalmá-lo... afirmou a eahanna, mas um olhar de Tannath foi o suficiente para que procedesse a cobrir de unguento os cortes na cara de Quenestil.

 

Agora que já tratámos das apresentações, podemos falar de homem para homem. O que vem um eahan da montanha fazer a Jazurrieh, que não procurar a própria morte?

 

Vim matar-vos a todos... murmurou o shura. Tannath suspirou.

 

Não foi isso que me constou...

 

Mas é o que eu vim fazer insistiu Quenestil, tentando matar a eahanna negra com o olhar, mas esta limitou-se a piscar-lhe o olho.

 

Muito bem, presumamos que vieste matar todos. A... Slayra seria uma excepção?

 

A mudança na expressão de Quenestil traiu-o.

 

Ah, esse nome tocou numa corda... então por que não me elucidas?

 

Quenestil praguejou mentalmente e manteve-se silencioso.

 

Vamos lá, Quenestil, estou a tentar facilitar-te as coisas.

 

A cabeça do shura ergueu-se em surpresa e Vinxenia disse-lhe que ficasse quieto, tentando esfregar-lhe a maçã do rosto com um pano.

 

É verdade, que falta de educação da minha parte. Sou Tannath. Pronto, agora estamos apresentados.

 

Como... sabe o meu nome? perguntou Quenestil, lembrando-se repentinamente de Babaki.

 

Ah, isso é outra coisa...

 

Onde está o meu amigo? continuou o eahan, originando protestos por parte das grilhetas que o prendiam.

 

O teu amigo voltou para a arena. Houve pessoas que gostaram muito dele. Mas não foi o antroleo quem me disse o teu nome... Tannath virou a cara a Quenestil, sem lhe tirar os olhos de cima. Podes entrar agora.

 

A porta do cubículo abriu-se e Quenestil distinguiu mais um vulto contra a luz do exterior. O recém-chegado fechou a porta e caminhou para a luz das tochas, passos frios a ressoarem contra as lajes.

 

Slayra.

 

A sua roupa não era a mesma, envergava agora um apertado e revelador fato de cabedal, pernas cobertas com botas até às coxas e o negro cabelo sedoso preso num rabo-de-cavalo. Fitou Quenestil e nada disse, chegando-se a Tannath, que lhe cingiu a anca com o braço. Acto contínuo, as bocas dos eahanoir encontraram-se e os dois lamberam-se sofregamente perante um atónito Quenestil. Tannath agarrou os braços de Slayra e afastou-a como se de uma rémora se tratasse, exalando.

 

Estive... a falar com o teu amigo Quenestil disse, apontando para o eahan, que não tirava os olhos arregalados de Slayra, mas ele não foi muito esclarecedor. Talvez tu me queiras elucidar!

 

Slayra anuiu com a cabeça, sorrindo, e aproximou-se de Quenestil. Vinxenia lançou-lhe um olhar invejosamente contrariado, mas retirou-se perante um gesto de Tannath. Quenestil abriu a boca numa tentativa de falar, mas foi esbofeteado por Slayra antes que o conseguisse fazer. A eahanoir preparou-se para desferir outra bofetada no shura, mas Tannath agarrou-lhe o pulso com a mão, rápido como uma cobra.

 

Então, Slayra? Já sabes o que eu penso disso...

 

A eahanna ainda tentou libertar o braço para bater em Quenestil uma vez mais, mas o delgado Tannath tinha um aperto firme como um torno. Slayra relaxou o braço e o eahan negro soltou-lho.

 

Agradece que ele esteja presente, eahan disse a eahanoir. Caso contrário, irias passar longas horas dolorosas.

 

Tannath produziu estalos negativos com a língua.

 

Slayra, estás aqui para me explicar por que é que este eahan da montanha veio a Jazurrieh.

 

A eahanoir fitou-o com olhos gelados.

 

Isto é pessoal, Tannath.

 

Agora já não é. Diz-me.

 

Slayra levou o rabo-de-cavalo atrás e pôs as mãos nas ancas, tirando o olhar de Tannath e contemplando Quenestil, que lhe retribuía com olhos esbugalhados. Tannath riu guturalmente e, com uma graça felina, agarrou o braço de Slayra, puxou-a para si e forçou-a a olhar para ele, puxando-lhe o rabo-de-cavalo.

 

Slayra... estás a esconder-me alguma coisa?

 

A eahanoir debateu-se em vão, e acabou por sorrir. O sorriso foi retribuído por Tannath e os dois beijaram-se lascivamente. Quenestil viu-se incapaz de proferir qualquer palavra. Os lábios dos dois eahanoir estalaram quando se separaram, e Slayra puxou uma mecha de cabelo para trás da curva orelha pontuda.

 

Este... eahan veio atrás de mim.

 

Isso já eu percebi replicou Tannath. Quero saber porquê; parece-me que não me contaste a história toda.

 

Slayra pousou as delicadas mãos no colarinho do eahan negro.

 

Se eu te contasse tudo... a voz da eahanoir reduziu-se a um sussurro à medida que se aproximava da orelha de Tannath ainda me quererias mais que às outras?

 

O eahan negro inalou um silvo de dor através dos dentes quando Slayra lhe mordeu o lóbulo. Agarrou-lhe os braços e afastou-a de si, mas as suas feições rapidamente se suavizaram num sorriso sardónico e confiante.

 

Não me contes tudo, então. Diz-me apenas por que é que o nosso amigo Quenestil te perseguiu.

 

Slayra nada disse por breves momentos, findos os quais se libertou do abraço de Tannath e caminhou ponderadamente até Quenestil, agarrando-lhe o queixo com dois dedos.

 

Aposto que já nem te lembras por que é que eu saí de Jazurrieh... afirmou.

 

Tannath cruzou os braços.

 

Slayra, se não paras de andar às voltas, eu vou começar a pensar que estás a tentar ganhar tempo para inventar uma história.

 

Vês, não te lembras. Tannath suspirou.

 

Foste destacada para uma missão de reconhecimento na fronteira... ... e fui capturada pelo Quenestil e o seu bando nas montanhas.

 

Mataram os dois idiotas que iam comigo e fizeram-me prisioneira. Slayra ergueu a cara do eahan. Se os outros não fossem tão virtuosos, este ter-me-ia morto ali mesmo.

 

Estou a ver... e depois?

 

Deambulámos pela região, era um grupo errante numa demanda qualquer...

 

E por que não te entregaram à justiça?

 

Não sei... eram todos uns virtuosos; achavam que se me entregassem a um bailio ou ao xerife de uma aldeia, não teria um julgamento justo...

 

Tannath fungou, aparentemente divertido.

 

Então e depois?

 

Um deles, o líder, queria ir para Asmodeon. As sobrancelhas do eahanoir ergueram-se. O que lá queriam fazer, não sei. Por fim, atravessaram a fronteira e os teus assassinos encontraram-nos...

 

Asmodeon... um grupo assaz invulgar. E por que os impediste de matarem todos durante o sono, fazendo uso do meu nome para os ameaçar?

 

Slayra olhou de relance para o eahanoir e piscou-lhe o olho. Como Tannath não esboçou qualquer reacção, a eahanna negra largou a cabeça de Quenestil e saracoteou libidinosamente até ele.

 

Tu não irias querer que aqueles idiotas me fossem privar da minha vingança, pois não?

 

Tannath continuou de braços cruzados, esperando. Slayra descruzou-lhos e beijou-o uma vez mais. Os ruídos que os lábios de ambos faziam davam volta ao estômago de Quenestil, que permanecia inerte.

 

Sabes o que ele me disse? perguntou Slayra, olhando Tannath nos olhos. Finne aefeil tuo nomenc atha. A menção destas palavras fez com que o eahan negro olhasse para Quenestil. Fui marcada. Humilhada. Escapei e ele perseguiu-me, como soube que faria, e agora ele está nas minhas mãos. Percebes agora por que veio ele atrás de mim, e porque usei o teu nome para que não lhe tocassem?

 

Tannath pareceu desligar-se do mundo, ponderando. Aquele era o mais terrível juramento que um eahan poderia fazer a alguém, ”a minha flecha tem o teu nome”... Ergueu os olhos e fitou Slayra e Quenestil alternadamente.

 

Que vais fazer com ele? perguntou por fim.

 

Slayra virou-se e os dois eahanoir observaram o shura, que continuava sem mexer um músculo.

 

Ainda não sei... matei-o das formas mais horríveis nos meus sonhos. O melhor é ele ficar a sufocar aqui enquanto eu penso num castigo adequado.

 

Está bem. Vamos então?

 

Slayra sorriu e tornou a beijar Tannath e as duas tochas protestaram com chios quando o eahanoir as apagou nos baldes de água adjacentes. Sem mais palavras, os dois retiraram-se e a escuridão desceu na sala, engolindo Quenestil.

 

Um guarda abriu a porta das masmorras aos dois eahanoir, inclinando respeitosamente a cabeça a Tannath. Uma carruagem aguardava o casal e o cocheiro, um eahanoir circunspecto com uma tatuagem parecida com uma longínqua gaivota na testa, abriu-lhes a porta. Era um venirr, uma das mais baixas castas dos eahanoir, destinada a servir pessoalmente os seus superiores. Tannath dispensou-o, ajudando Slayra a subir e pegando na porta.

 

Não vens? perguntou a eahanna negra, vendo que o seu companheiro não fazia tenções de subir.

 

Tenho... de tratar de umas coisas. Hoje à noite? perguntou, com a porta a meio caminho.

 

Por mim era já... disse Slayra, passando a mão pela perna com um olhar comprometedor.

 

Tenho assuntos prementes. Virei com o manto da noite, então prometeu, fechando a porta delicadamente e sinalizando ao cocheiro que partisse. Slayra puxou a cortina negra e despediu-se com um aceno, mas o eahanoir já se pusera a caminho.

 

Jazurrieh era uma cidade de noite eterna, com os seus grotescos edifícios a ensombrarem as ruas dia e noite. O acesso aos topos das habitações era vedado e estes eram sempre inclinados e decorados com afiadas protuberâncias de pedra, de modo a desencorajar assassinatos com bestas dos telhados, mas era nas ruas que o verdadeiro perigo residia, nas labirínticas vielas de imprevisíveis becos sem saída. Tannath conhecia bem a cidade e caminhava confiante, mas a sua reputação era uma faca de dois gumes: desencorajava aqueles de bom senso a atacá-lo e incentivava jovens impetuosos a tentarem ganhar fama com o seu sangue. Tinha de estar sempre alerta, mas isso também se aplicava ao mais baixo servo. Jazurrieh devorava os incautos. Apesar disso, não era a cidade que lhe ocupava os pensamentos, mas Slayra. Sempre reservara especial atenção para aquela eahanoir em particular, sem saber ao certo porquê e isso obrigara-o a um sem-número de inconclusivas reflexões. Eahanoir eram eahan aviltados por Seltor, mas quereria isso dizer que haviam sido despojados de tudo o que era íntimo aos eahan? Ou seria a corrupção do Flagelo meramente superficial, incapaz de perverter as emoções; essas salvaguardadas pela pureza de Sirul? Ou estaria o sangue do seu pai eahan de alguma forma relacionado com os seus sentimentos para com Slayra? Sentimentos... tal palavra não existia na língua dos eahanoir, mas Tannath julgava conhecer o seu significado.

 

Contudo, Slayra mentira-lhe. Ainda não sabia como, mas a eahanna tentara enganá-lo e tencionava descobrir porquê. Perdido nos seus pensamentos, quase passou pelo seu destino, uma porta ladeada por duas tochas. Olhou em redor, ficou por uns momentos atento a quaisquer ruídos suspeitos e bateu suavemente na madeira reforçada com barras de ferro. Acto contínuo, uma fresta abriu-se.

 

Quem vem aí? sibilou uma voz.

 

Sou eu, Tannath.

 

A fresta fechou-se e o trinco estalou, concedendo-lhe entrada. Tannath esgueirou-se pela abertura adentro e a porta foi fechada.

 

Encontrava-se numa pequena e espartana sala de recepção, cujo único ocupante era um sajellir, um eahanoir soldado com a tatuagem bélica na testa.

 

Que as sombras te ocultem, Tannath saudou o guarda, levando um pé para trás do outro numa pose defensiva de pernas flectidas.

 

E a ti, Kyam. Preciso de falar com a Shanaya.

 

Ela está a meio de um serviço, mas claro que te recebe.

 

Obrigado agradeceu, e Kyam caminhou lado a lado com ele até às escadas sem que tal lhe fosse solicitado.

 

Os Eahanoir nunca deixavam ninguém caminhar atrás.

 

Chegado aos degraus, Tannath virou-se bruscamente para o guarda, deu três passos de costas e despediu-se com uma vénia. Os Eahanoir nunca viravam as costas. O eahan negro desceu as escadas, começou a ouvir música de harpa e chegou a um reposteiro de fina cassa preta, a entrada para a casa de prazeres. Tannath entrou e contemplou a sala que já tão bem conhecia. As paredes de mármore vermelho latvoniano estavam sumptuosamente decoradas com tecidos de cores berrantes e altos-relevos de humanos em poses eroticamente sugestivas, e em cada canto havia um incensário dourado a exalar uma fragrância afrodisíaca. O chão estava coberto de almofadas das mais diversas cores e formatos e no centro da sala havia uma fonte com a estátua dourada de uma eahanoir numa sugestiva pose com dois homens a seus pés e entregues a actos lascivos. As eshuranwe, prostitutas com um ponto vermelho a marcar-lhes as testas, satisfaziam os desejos da mais variada clientela, incluindo mercenários de Nolwyn e Thyr, soldados latvonianos e oficiais de senhores da guerra. Tannath caminhou indiferente pelo acervo de braços e pernas com passos cuidadosos, indiferente aos gemidos de prazer e gritos orgiásticos. Passou por outro reposteiro, que dava para um corredor de quartos privados, dos quais saíam os mais variados ruídos de dor e deleite, e continuou até chegar a outro par de cortinas que ocultavam uma pequena sala escura guardada por dois sajellir, que prontamente saudaram Tannath.

 

Quero ver a Shanaya.

 

Os dois guardas prontamente lhe deram passagem, colocando-se lado a lado e encostando as costas à parede. Um eahanoir nunca ficava no meio de outros dois que não conhecesse. Tannath agradeceu com um aceno de cabeça e desceu as escadas, respirando fundo e acerando a sua mente para o que estava para vir. Abriu uma porta e entrou de rompante numa sala escura, iluminada por quatro braseiros nos cantos. Espalhadas pelo compartimento estavam dúzias de camas acolchoadas, em cima das quais se prostravam homens estuporados de olhares lânguidos. No centro encontrava-se uma mulher vestida de cabedal à moda eahanoir, ou seja, com o menor número de peças possível. Corpete decotado, luvas até ao cotovelo com dedos cortados, botas até às coxas e uma oleosa capa que parecia ondular com vida própria. Tinha longos cabelos sombrios e uma cara de uma beleza atordoante, mas os seus olhos estavam fechados e os braços erguidos como em êxtase. A sua pele era de um estranho tom arroxeado, como uma pétala de violeta descolorada ao sol. No entanto, a entrada de Tannath não lhe passou despercebida, e a mulher abriu um olho. Seguiu-se-lhe o outro e um sorriso, e baixou os braços. Quando o fez, todos os presentes na sala que estavam deitados exalaram repentinamente, parecendo afundar-se na cama e deixando-se lá estar como mortos.

 

Olá Tannath... ronronou a mulher lubricamente. Os seus olhos eram amarelos e desprovidos de pupilas.

 

Linda como sempre, Shanaya respondeu o eahanoir sem qualquer emoção na voz.

 

A mulher à sua frente era uma shionna, uma da prole d’O Flagelo. Não contente em aviltar os eahan de modo a conceber eahanoir, a Sombra deturpara ainda mais alguns eahan corrompidos, criando agentes à semelhança das harahan mas com um propósito totalmente diferente. Enquanto as harahan espiavam e seduziam e assassinavam, as shionnas tinham um propósito muito mais insidioso: o de roubar emoções e paixões, criando apatia no seio daqueles que se opunham ao Flagelo. Uma shionna escondida numa cidade era o suficiente para roubar os seus defensores de toda a vontade de a defender, e várias vitórias haviam sido alcançadas durante a Guerra da Hecatombe à custa destas parasitas. Através desta absorção das emoções, ganhavam total mestria emocional, podendo induzir nas mentes das suas incautas vítimas qualquer perturbação que lhes conviesse.

 

A mente de Tannath era um mar de acalmia naquele momento, quaisquer emoções ou desejos controlados com uma disciplina férrea. Conhecia Shanaya e sabia que esta sugava emoções com a voracidade de uma lampreia.

 

Sempre o mesmo bloco de granito... comentou a shionna, saracoteando para perto de Tannath, que a fitou com um olhar passivo. Então, diz-me o que posso fazer por ti?

 

Shanaya pôs um braço à volta do ombro de Tannath e o seu indicador começou a desenhar linhas sem nexo no peito do eahanoir, cujo semblante não se alterou.

 

Se fosse outra, já a tinhas tomado nos teus braços... afirmou, levantando os lábios e olhando Tannath de baixo.

 

Até o faria, se não soubesse que me sugarias até ao tutano comentou o eahanoir sarcasticamente. Preciso de que me faças um favor.

 

A sério? Mas sabes bem... o indicador continuou a desenhar algo invisível no peito de Tannath ... que eu nunca faço nada por favor. A última palavra foi acentuada com súbita pressão da unha do indicador no esterno do eahanoir.

 

Tannath grunhiu e, com reflexos relampejantes, torceu o braço da shionna e colocou-lhe os dedos polegar, indicador e médio na garganta.

 

Mmmm... pareceu Shanaya saborear, fechando os olhos e aparentemente alheia aos mortais dedos na sua laringe ... raiva contida é a mais saborosa. É o medo que te está a forçar agora a abafar as emoções?

 

Tannath largou-a bruscamente, mas os seus punhos continuaram cerrados.

 

Não queremos que elas fiquem descontroladas, pois não? afirmou Shanaya, afagando o braço.

 

Não, admitiu Tannath, ajeitando a gola da capa. Não queremos. Mas tenho algo para te oferecer em troca do serviço que me prestarás.

 

Sim? O quê? E de que espécie de serviço estamos nós a falar? perguntou a shionna, chegando-se uma vez mais a Tannath.

 

Um eahan da montanha foi hoje capturado. Suspeito de que ele tenha uma ligação com a Slayra, mas ela mente com todos os dentes que tem quando lhe faço perguntas a esse respeito. Preciso de que vás averiguar, ver que emoções esconde o eahan.

 

Mas que temos nós aqui? Ciúmes? E como sabes que ela está a mentir? Julgas que conheces aquela víbora? perguntou Shanaya, quase deliciada.

 

Tannath agarrou-lhe os braços e puxou-a para si.

 

Eu sei. Faz o que te peço. Em troca, dar-te-ei mais emoção que tu alguma vez imaginaste absorver. Uma torrente tal que ficarás inchada como uma lampreia empolada.

 

A oferta de Tannath acendeu um brilho nos olhos da shionna, que fitou os orbes cinzento e azul do eahan negro em silêncio.

 

Dou-te um antroleo, uma besta selvagem de raiva crua e desmesurada. É isso que te ofereço em troca. Farás o que te peço?

 

Shanaya libertou-se das mãos de Tannath, virou-lhe as costas e principiou a andar pela sala, olhando para os homens estuporados que se refastelavam apaticamente nas camas, toda a emoção roubada e com o doce néctar da indiferença a alheá-los do mundo.

 

Está bem concordou, momentos depois. Onde posso encontrar esse eahan? perguntou, contemplando os dedos e lambendo os lábios como em antecipação.

 

Nas masmorras. É o único, não deve ser difícil de encontrar.

 

Irei lá um destes dias. E quero que me mostres esse... antroleo.

 

Assim farei, logo que souber as emoções do eahan.

 

Shanaya olhou para Tannath uma vez mais, e um sorriso voltou-lhe à cara.

 

Por que não torturar a Slayra? Não seria uma forma mais simples e directa de obter respostas?

 

Tannath vacilou como se tivesse recebido um golpe. Recompôs-se atempadamente e deu um passo atrás.

 

Limita-te a fazer o que te peço. Das tuas sugestões não preciso eu, e virou as costas à shionna, subindo os degraus com passos indignados.

 

Shanaya riu, saboreando os rastos de emoções escondidas que o eahanoir deixava para trás.

 

As opressivas sombras de Jazurrieh abateram-se uma vez mais sobre Tannath quando este saiu da casa de prazeres. O eahanoir recebeu-as de braços abertos, deixando-se envolver pela sua escuridão protectora. Por mais que disciplinasse a mente, um mortal estaria sempre exposto perante uma maldita shionna. Especialmente Tannath, com os seus conflitos emocionais internos em relação a Slayra. Inspirou fundo e pôs-se a caminho da sua casa uma vez mais, certo de que iria esquecer estas dúvidas enquanto usufruía de Slayra. Pelo menos temporariamente.

 

O ayan montado soergueu o braço enluvado e o falcão pousou nele. O ocarr murmurou palavras afectuosas ao seu animal preferido e tirou um pequeno rato morto de uma bolsa, que a ave de rapina prontamente engoliu.

 

Muito bem, Asa da Tormenta louvou. São eles, Potro Negro? perguntou ao drahreg a seu lado.

 

Os olhos vermelhos de Kror mal distinguiam as formas que se movimentavam apressadamente dentro do cromeleque, mas sabia serem eles o grupo daquele que o procurava. A humana atrás de si apertou-lhe o tronco com mais força e sussurrou-lhe ao ouvido.

 

São eles! Os que mataram a minha família e que nos perseguiram como animais!

 

Sim... concordou Kror. São eles, ayan.

 

Eles conspurcam o Poço de Songul! vociferou um jovem guerreiro perto do drahreg e do ayan. Tal afronta deve ser punida com severidade!

 

Assim será, meu filho assegurou o líder ocarr. Com o vento, Cho Tirr! gritou, e a cavalgada começou.

 

Ninguém viu o sorriso de Hazabel, e o ruído das intensas rajadas impediu Kror de ouvir o riso maldoso da harahan.

 

Depressa, pedras me partam! praguejou Worick, brandindo o martelo.

 

O thuragar havia delineado um simples plano de batalha em instantes. Não havia grandes opções: estavam em campo aberto contra arqueiros montados; fora do cromeleque não teriam qualquer hipótese.

 

Os únicos com ataques de alcance eram a Lhiannah e o Allumno, setas e feitiços respectivamente. Aewyre e o thuragar aguentavam-se bem a lutar num espaço apertado, mas Taislin era um problema.

 

Fica escondido à espera. Se vires algum, salta-lhe em cima e dá-lhe cabo do canastro berrou, empurrando o burrik contra uma pedra.

 

O thuragar e a sua protegida tinham escudos, mas Aewyre nunca mais comprara nenhum depois de Alyun, e Allumno e Taislin não tinham armadura que os protegesse de setas.

 

Tomem disse Worick, atirando a cada um dos desprotegidos companheiros a sua respectiva mochila, é melhor do que nada. Tu, mago, põe-me um cobertor por cima desse corpo escanifrado. Vais ficar exposto, e isso pode evitar que uma seta te mate.

 

Todos acataram as ordens do experiente thuragar sem hesitar e sem fazer perguntas. O grupo havia ficado paralisado perante a visão de um grande grupo de cavaleiros das estepes a cavalgar a toda a brida na sua direcção, mas os instintos de sobrevivência levaram-nos a agir. Os seus corações retumbavam, as suas mãos tremiam, o calor do medo aflorava-se-lhes dos estômagos até ao peito, mas nenhum ficara parado. Worick praguejava na própria língua, o que denotava o seu nervosismo, perfeitamente justificável dadas as condições de combate e o número do inimigo. Lhiannah havia-se ajoelhado atrás de uma pedra, empunhando o arco curto, e espetava setas no chão. Allumno encostava-se a outra e fechava os olhos em concentração, ou talvez estivesse apenas a orar. Taislin parecia querer fundir-se à pedra à qual se encostara, os seus punhais trémulos. Aewyre encontrava-se no meio de duas, empunhando Ancalach com ambas as mãos, fitando o grupo que se aproximava. Pareciam tantos...

 

”Deuses, o que é que eu fiz? Onde os vim trazer?”

 

Worick continuava a berrar ordens enquanto partia os paus da armação da tenda dos companheiros, cravando-os de seguida no chão entre as pedras como estacas provisórias.

 

Allumno envolveu-se num cobertor, usando-o como uma capa, e colocou uma mochila no chão, pronta para ser usada como escudo improvisado. Lhiannah, agachada no chão atrás de uma pedra, já tinha uma seta no arco. Taislin correu para perto dela, carregando a sua mochila como um pavês. Worick, segurando o martelo debaixo do braço, desfraldou a lona da tenda, furou-a com o espeto da sua arma, rasgou-a ao meio e agitou dois pedaços no ar.

 

Mago, queima isto! berrou. Allumno olhou para trás sem compreender.

 

Queima-me esta porra! Faz isto arder!

 

Ainda sem perceber, o mago recitou palavras ígneas e a lona pegou fogo nas mãos do thuragar, que se apressou a atear as chamas aos restantes pedaços e a pendurá-los nas estacas com a assistência de Aewyre. Os olhos de Alfarna arregalaram-se, brancos como a neve, e esta começou a ornear de medo.

 

Tirem a mula do centro! Vamos precisar dela! bramou Worick.

 

Aewyre apressou-se a ir cortar a corda que prendia a mula, sossegando-a com festas e puxando-a até uma pedra.

 

Quem fica com ela? gritou, desapertando um alforge e atirando-o a Worick.

 

Quem quiser! respondeu o thuragar Não, não lhe tires os alforges! Pronto, fico eu com ela, dá cá as rédeas! Apre, foge daqui! Vai para trás de uma pedra!

 

O berro de Worick anunciou o início do ataque. Uma flecha singrou

 

pelo cromeleque adentro e cada um dos companheiros agachou-se. Os pedaços de lona da tenda ardiam, criando um círculo de fumo irregular em redor do local. A mula orneou quando duas setas se cravaram no chão perto das suas patas. Aewyre e os outros estavam sentados de costas para uma pedra, segurando as mochilas como escudos. Lhiannah espreitou de lado e viu um grupo de ocarr a cavalgarem com a intenção de cercar o cromeleque. O fio do seu arco vibrou, anunciando a morte de um cavaleiro das estepes. Uma seta voou de imediato na sua direcção e Lhiannah ouviu o quebrar de osso contra pedra, pelo que se escondeu, preparando outra flecha. Allumno arriscou um olhar e, avistando um grande número de cavaleiros, recitou a Palavra de forma a que raios de energia saltassem dos seus dedos e fossem estoirar em dois ocarr. Um caiu, gritando, mas o outro não pareceu afectado. O mago amaldiçoou os resíduos da Entropia que permeavam Allaryia desde a Criação e escondeu-se antes mesmo de ouvir o zunir de várias flechas. Aewyre, Worick e Taislin esperavam pelo momento certo, pois não serviriam de nada enquanto os ocarr os regassem com setas. O burrik estava atrás de Lhiannah, protegendo-a com uma mochila, e retesou-se quando sentiu uma flecha a perfurá-la. Lhiannah atirou outra seta. Allumno pronunciou algo que fez com que a neve debaixo dos cascos de vários hemíonos entrasse em erupção, assustando os animais e fazendo com que estes deitassem os donos por terra. Uma flecha de osso atravessou o lado da mochila de Aewyre, batendo-lhe na espaldeira com um ruído seco. Worick resmungava, apelando ao avanço dos ocarr. O fumo em redor do cromeleque era repetidamente furado por setas voadoras, mas nenhuma encontrou o seu alvo. Por essa altura já os ocarr tinham o sítio cercado e mostravam-se determinados a semeá-lo de flechas. Os feitiços de Allumno e as setas de Lhiannah falhavam e acertavam, feriam e matavam, mas o número de inimigos não parecia diminuir. Taislin arriscou um olhar e viu o interior do cromeleque forrado de hastes, com os seus amigos encolhidos e a protegerem-se com as respectivas mochilas. Estranhas luzes vinham do lado do Allumno e o vibrar do arco de Lhiannah era uma constante atrás de si. O ar cheirava a lona queimada e o céu parecia ainda mais cinzento com o fumo furado por uma saraivada constante de setas. Worick praguejou quando uma lhe resvalou no elmo.

 

De repente, o zunir cessou e fez-se ouvir no exterior do cromeleque um grito saído de várias bocas ao mesmo tempo. A terra tremeu, calcada por inúmeros cascos. Os ocarr investiam.

 

”Finalmente...”, pensou Aewyre, pondo uma mão no punho de Ancalach.

 

Lhiannah continuou com uma seta no arco e Taislin pulou para se encostar a uma pedra de adagas na mão. Allumno manteve-se concentrado. Alfarna tinha duas setas cravadas no alforge e orneava, tentando libertar-se de Worick. O relinchar de um hemíono ouviu-se muito perto.

 

Worick urrou enquanto se levantava, empunhando o martelo com uma mão enquanto segurava as rédeas da mula com a outra. Aewyre gritou também e Lhiannah virou-se e lançou uma última seta, cravando-a no peito de um hemíono, que caiu. Os espaços entre as pedras sem estacas ardentes então despejaram uma corrente de ocarr.

 

Worick girou a arma e partiu as pernas a uma besta, derrubando o seu cavaleiro, que rebolou pela neve. Soltou também Alfarna, que galopou orneante de um lado para o outro, evitando o fogo e os hemíonos galopantes, interrompendo o fluxo de cavaleiros. Ancalach, certeira, atingiu um ocarr, desmontando-o. Allumno vociferou a plenos pulmões e um relâmpago saiu-lhe das mãos, estalando pelo ar e faiscando ruidosamente contra um cavaleiro e a sua montada. Passado este primeiro assalto, os ocarr atacaram com os seus longos sabres de cima dos hemíonos, contornando as estacas flamejantes, que assustavam os animais e cujo fumo lhes humedecia os olhos. Dois cavaleiros montados golpeavam Aewyre, que se defendia com a espada e não via um terceiro que se aproximava de lança em riste. Taislin gritou, saltando contra as patas da montada deste e cortando-lhes os tendões com as adagas. O hemíono relinchou em agonia e tombou violentamente, projectando o seu cavaleiro para perto do poço. Lhiannah apressou-se a vará-lo contra o chão com a espada. Worick urrava desmesuradamente, esmagando e abatendo bestas e homens com o seu possante martelo. Aewyre aparou um golpe de sabre, baixando a cabeça para evitar outro e passando a espada pelos jarretes de um hemíono como continuação do movimento. Ouviu o baque da queda do ocarr, mas teve de bloquear o golpe do que ainda estava montado, cuja montada se empinou. Um cavaleiro das estepes ainda conservava o seu arco e procurou um alvo no meio da furiosa escaramuça. Uma figura de cabelos amarelos chamou-lhe a atenção e visou-a com a ponta de osso da sua seta. Lhiannah espetou a espada no estômago de um ocarr montado e acompanhou o movimento da sua queda de modo a não perder a arma. Assim que a ia extrair das entranhas do moribundo, a princesa gritou quando algo lhe lacerou a perna. O seu nome berrado por Worick sobrepôs-se ao tinir de metal, baque de cascos e relinchar de hemíonos. O thuragar correu em direcção à sua protegida, partindo os ossos daqueles que se metiam no seu caminho. Taislin, desesperado, arrancara uma estaca ardente e com ela investira contra um ocarr, cravando a ponta em brasa nos rins do homem, cuja roupa começou a arder e cuja montada entrou em pânico. Aewyre desenhou um arco no ar com Ancalach e pintou-o de vermelho, deixando mais um hemíono sem cavaleiro. Allumno viu o ocarr que se dirigia a Lhiannah, ajoelhada no chão a agarrar a perna ferida e atirou as mãos para a frente, vociferando um aríete de ar contra o inimigo, que pareceu colidir contra algo invisível que o projectou violentamente contra uma das pedras. Worick aparou uma lança com o escudo da manopla, rachou o crânio de um hemíono e deixou a cabeça do martelo cair com abandono entre as omoplatas do cavaleiro desmontado. Dois ocarr carregaram contra Allumno, berrando e brandindo os longos sabres. Ancalach roubou as patas da frente da montada de um, e uma bola de fogo da palma do mago explodiu contra o peito de outro. Taislin saltou para cima do ocarr desmontado e deslizou as adagas pela sua garganta. Worick e Lhiannah estavam cercados por três. Um dirigia-se a Taislin. Quatro tentavam cercar Aewyre e Allumno, e pareciam estar a vir mais. Os companheiros agarraram as armas com força e murmuraram as suas preces.

 

Kror deixara Hazabel para trás e cavalgara até perto do cromeleque fumegante, onde se desenrolava a furiosa peleja. Ocarr entravam e saíam, aço entrechocava, hemíonos orneavam de dor e medo, o fumo obstruía partes da luta. Kror contornou as pedras, procurando uma boa abertura para entrar. Ouviu o urro do thuragar, que parecia estar a defender a humana caída de cabelos amarelos, e viu como este rebentou a cabeça de um ocarr com o martelo. Por detrás do fumo, luzes brilhavam e faiscavam e logo mais Cho Tirr gritavam de dor. Kror arreganhou os dentes. Eram os da sua tribo que estavam a ser mortos, os seus irmãos! Desembainhou os dois alfanges detrás das costas e incitou o seu hemíono aplicando pressão com os joelhos. A besta mostrou-se relutante em se aproximar do fogo e do calor, mas o drahreg gritou e aumentou a pressão. Dois cavaleiros entraram por uma abertura ao seu lado, gritando e brandindo sabres. Kror urrou e o hemíono avançou, empinando-se assim que se aproximara das estacas ardentes. O drahreg optou por outra aproximação e permitiu à besta afastar-se, dando meia volta à distância certa e sussurrando-lhe palavras de encorajamento enquanto embainhava o alfange de punho azul.

 

Sim, embainha-a a ela. Vais precisar de mim para os matar a todos... ciciou-lhe Kerhex.

 

Com renovado alento, o hemíono cavalgou até perto do fogo e, a uma palavra de Kror, saltou por cima das chamas. A dramática entrada do drahreg surpreendeu todos, principalmente Worick e Lhiannah, quando estes viram um guerreiro negro a aterrar perto das suas posições. O hemíono girou em si e a lâmina de Kror embateu contra o elmo de um surpreso Worick, deitando-o por terra. Lhiannah gritou e encostou-se a uma pedra, tentando erguer-se apoiando-se ao chão com a mão livre. O hemíono de Kror empinou-se uma vez mais e os Cho Tirr uivaram, triunfantes.

 

Não! gritou Aewyre, cortando de seguida dois cavaleiros para fora das selas.

 

O drahreg ouviu a voz do humano e os olhos vermelhos e escuros encontraram-se uma vez mais. Um ocarr explodiu em fogo ao seu lado, mas Kror não reparou. Um golpe de sabre quase decapitou Taislin, que guinchou para fora do seu alcance, mas Aewyre não notou. Ambos estavam fora daquele lugar, fora de Karatai, fora de Allaryia. As suas lâminas estavam famintas e iriam ser saciadas.

 

O ranger de arcos estilhaçou a percepção de Kror como pedras arremessadas a vidro. O drahreg viu dois ocarr atrás de Aewyre, setas nos arcos, cujas cordas vibraram.

 

NÃÃÃO! urrou o drahreg desalmadamente.

 

Aewyre nada mais via senão Kror, mas ouviu o mesmo ranger de arcos e reparou que o drahreg olhava para trás de si com olhos esbugalhados. Assim que se virou, tudo pareceu ficar mais lento. As cordas de dois ocarr montados tremiam languidamente e dois projécteis negros voavam na sua direcção.

 

Ia morrer.

 

Uma catadupa de pensamentos assaltou-lhe a mente. O seu pai. Os seus amigos. Nabella. A sua mãe. O seu irmão. Os seus amigos. Sangue. Morte. Os seus amigos. Ia morrer e os seus amigos também. Só lhe apetecia gritar e chorar, mas os projécteis tardavam em chegar. Nesse momento, o guerreiro sentiu um afluxo de energia nos seus membros. As duas setas deixavam um rasto ondulante no ar, como se estivessem a derrapar à superfície de água. Cada movimento à sua volta tinha uma clareza cristalina e Aewyre podia ouvir a respiração de cada um dos combatentes, podendo isolá-los mesmo sem os ver...

 

As setas!

 

Ancalach traçou um arco e as duas flechas partiram-se como galhos secos. A cinética do movimento propagou-se pelo ar, reverberando para a frente, e os dois arqueiros ocarr foram atingidos por uma lâmina invisível que lhes abriu amplos cortes a espirrar sangue.

 

Então o tempo retomou o seu passo normal e o estrupido da batalha voltou, bem como os movimentos rápidos e bruscos dos combatentes.

 

Aewyre ficou imóvel.

 

Kror ficou imóvel.

 

Um ocarr estava prestes a empalar o pequeno e corredio Taislin quando viu dois dos seus amigos a irromperem em sangue sem que nada sólido os tivesse atingido e estacou atónito, puxando as rédeas da montada e dando tempo para que o burrik escapasse.

 

Alheia ao que se passara, Lhiannah gritou enquanto investia contra um ocarr armado com uma lança que se aproximava do imóvel Worick. O cavaleiro cerrou os olhos ovais e gritou também, erguendo a ponta contra o peito da mulher. A lâmina da arinnir decepou a haste e esta virou-se de lado para o atacante, empurrando a espada com as duas mãos para cima e gritando quando a sentiu a afundar-se na barriga do adversário. Caiu de joelhos de seguida, cerrando os dentes devido ao ardor na perna.

 

Aewyre e Kror despertaram ao mesmo tempo. O guerreiro virou-se para o drahreg uma vez mais e este desembainhou o outro alfange.

 

Sê misericordioso com os teus inimigos sussurrou-lhe Sassiras’s.

 

Aewyre brandiu Ancalach, caminhando a seu encontro, e o drahreg preparou-se para desmontar. Ambos estavam ainda zonzos e desnorteados, sem fazerem ideia do que se havia passado, mas a vontade de combater era superior.

 

Foi então que um grito esganiçado se fez ouvir, seguido de um chorrilho de palavras estridentes que fizeram com que os ocarr se detivessem. Os companheiros não perceberam, mas mantiveram-se em guarda e de armas em punho. Houve um breve interregno, durante o qual apenas se ouviu o ofegar de todos os combatentes, o gemido dos feridos, o lamber do fogo e os nervosos ruídos dos hemíonos. Então veio outra série de estranhas palavras pronunciadas por uma voz rouca e esganiçada e os ocarr entreolharam-se. Os companheiros mantinham-se nas mesmas posições. Perante a histérica premência da voz, alguns cavaleiros deram meia volta com as montadas e trotaram para fora do cromeleque, principiando a galopar depois. Outros dirigiram olhares aos seus camaradas caídos, fitando os companheiros com ódio de seguida mas acabando por retirar. Kror parecia dividido. O desejo de combater o humano era quase insustentável, mas ouvira as palavras da xamã e sabia que o melhor seria retirar. Rosnou em desafio a Aewyre e aos companheiros e assentou uma vez mais na sela, incitando o hemíono a cavalgar para fora dali.

 

Aewyre empunhava Ancalach, ofegante. Aquele surto de energia fora... indescritível. Os dois ocarr que atingira jaziam no chão, os seus corpos exangues quase cortados em dois, as duas setas que o haviam visado feitas em lascas na neve pisoteada. Fosse o que fosse, Kror também o sentira... Algo o levou a avançar e ver o que acontecia fora do cromeleque, mas fê-lo com cautela, postando-se atrás de uma pedra para espreitar. Os ocarr agrupavam-se longe do local da escaramuça e pareciam estar a falar. Iriam planear um novo ataque?

 

Aewyre! chamou Allumno.

 

O guerreiro virou-se e viu o mago, Lhiannah e Taislin ajoelhados perante o corpo inerte de Worick. Sem que fossem necessárias mais palavras, correu para lá, temendo o pior.

 

Ajuda-me a tirar-lhe o capacete! pediu o mago com urgência, enfiando já os dedos debaixo das abas do elmo. Com cuidado!

 

O capacete de Worick estava amolgado e tinha uma fenda da qual escorria um fio de sangue. Os olhos do thuragar estavam fechados, as rugas da sua cara acentuadas por fuligem negra. Lhiannah segurava-lhe a mão com força, já com lágrimas a aflorarem-se-lhe aos olhos. Taislin tirara o barrete e amarrotava-o com as mãos enquanto mordia a preocupação do lábio inferior.

 

Com jeito, agora disse o mago e os dois puxaram o elmo com tanta delicadeza quanto possível. O amolgar havia apertado o capacete contra a cabeça do thuragar, pelo que foi necessária alguma força, mas por fim a peça metálica acabou por sair. Aewyre atirou-a para o lado e Allumno agarrou a cabeça de Worick com as duas mãos, inclinando-a ora para um lado ora para o outro num diligente escrutínio.

 

Ele vai ficar bom? perguntou Lhiannah com uma cara quase aflita. O que é que ele tem?

 

O mago suspirou de alívio.

 

Aewyre, faz um encosto com esse cobertor.

 

O jovem assim fez e Allumno pousou a cabeça de Worick suavemente contra a almofada improvisada.

 

Bendita seja a perícia dos ferreiros thuragar disse o mago. E louvado seja Tharobar, seu patrono. O elmo levou o pior do golpe, a lâmina só lhe cortou o escalpe.

 

Todos imitaram o suspiro do mago, principalmente Lhiannah, que ainda agarrava a mão sapuda do thuragar com força.

 

Deixem estar que agora eu trato dele. Vão ver o que se passa, o que se pode fazer. Aqueles selvagens podem voltar.

 

Taislin saltitou de imediato para uma pedra, postando-se e espreitando por detrás dela. Lhiannah mostrou alguma relutância, mas acabou por se levantar para avaliar a situação. Aewyre notou que coxeava.

 

Lhiannah, o que tens na perna? perguntou.

 

A princesa parou, olhou para baixo para o rasgo vermelho nas calças e para o guerreiro.

 

Não é nada... e continuou a coxear.

 

Aewyre avançou, agarrou o braço da princesa e virou-a para si.

 

Nada? duvidou. Anda cá disse, levando-a pelo braço.

 

Deixa estar, preocupa-te com o Worick esquivou-se Lhiannah, tentando afastar-se.

 

Aewyre agarrou-lhe o pulso. Os dois olharam-se nos olhos, mas não houve resposta. Aewyre exalou em irritação.

 

Não temos tempo para isto. Isso pode infectar, anda.

 

O guerreiro puxou Lhiannah para perto de uma mochila, da qual tirou dois cantis, que prontamente abriu. Pediu-lhe que se sentasse sobre a mochila e ajoelhou-se diante da arinnir, desapertando o lenço que tinha à volta do pescoço e rasgando-o de seguida. Começou a enrolar a calça da perna ferida para cima até ao joelho, expondo a ferida. Lhiannah ia reclamar, mas cerrou os olhos e inspirou através dos dentes quando Aewyre despejou o vinho do cantil sobre a ferida, esfregando-a com o lenço rasgado. Lavou-a com água do outro cantil e atou a outra metade do lenço como uma ligadura em volta da perna.

 

Vê lá onde pões as mãos advertiu Lhiannah. Aewyre limitou-se a olhá-la de baixo e acabou o serviço.

 

Pronto, deve chegar concluiu o guerreiro, puxando a calça para baixo. Depois pede ao Allumno que veja isso, quando pudermos aquecer o vinho.

 

Está bem acordou a princesa, levantando-se sem demoras. Pareceu lembrar-se de algo três coxeios depois. Obrigada... murmurou, e afastou-se.

 

De nada... disse Aewyre em surdina, levantando-se também, pensando ainda no surto de energia. Afinal o que fora aquilo?

 

Mas... tentou um jovem ocarr objectar.

 

Não ouviste o que te disse, jovem tolo? berrou a velha xamã, apoiando-se em dois homens que a seguravam. És um homem ou uma criança teimosa?

 

O guerreiro calou-se, humilhado, e ficou em silêncio como o resto do grupo de guerra. A xamã galopara ao encontro deles, anunciando que tivera um ”terrível presságio”. Quando vira o combate que se desenrolava no Poço de Songul, guinchara em desespero, chamando para si a atenção do ayan, que observava a luta de longe. A este dissera que ordenasse aos seus homens que retirassem, cavalgando de seguida em redor do cromeleque e gritando com todas as forças do seu corpo franzino para que parassem de lutar. Conseguira por fim, mas estava agora exausta e ofegante e dois ocarr tinham de a segurar pelos braços. Os Cho Tirr estavam com o orgulho ferido e a sua vontade era a de massacrar os intrusos que haviam conspurcado um dos seus mais sagrados santuários e morto tantos dos seus irmãos, mas a autoridade da xamã mantinha-os ali.

 

Com todo o respeito, venerável... disse o ayan por fim, o combate aos homens cabe. Por que interferis? Mataram os nossos irmãos, molharam o Poço com o nosso sangue...!

 

Alguns ocarr manifestaram a sua concordância, mas a xamã guinchou e todos se assustaram.

 

Sangue! Tolos! Idiotas! O sangue! uivou, deixando-se cair de joelhos no chão e obrigando os dois homens que a seguravam a erguê-la. O sangue do povo dos hemíonos alimenta a estepe, faz as suas ervas crescerem fortes, mas o sangue dos ímpios! O seu sangue sujo no Poço de Songul fará com que o parco pasto das nossas montadas mirre e morra! A água que espalha pelas estepes será inquinada, ficará negra como a noite, venenosa como a bile de um homem traído!

 

Os nossos irmãos de quatro pernas ficarão de línguas negras e inchadas, os ossos das suas céleres patas ficarão quebradiços como a erva seca do tempo do Sol! É isto que os homens causarão se combaterem no Poço, é isto que vai acontecer se não ouvirem as minhas palavras! Hazabel não percebera uma única, mas via a reacção que o histérico discurso da megera causara. Os Cho Tirr estavam agora assustados, olhando uns para os outros e para o cromeleque com o branco dos olhos bem à vista. Os hemíonos sentiam o nervosismo dos donos e batiam com os cascos no chão.

 

O que disse ela? perguntou a Kror, que permanecia montado.

 

Nós... o drahreg estava quase tão abalado como os outros não podemos atacar.

 

O quê? Mas porquê? A que propósito?

 

O sangue dos... deles não pode cair no Poço de Songul. A venerável diz que aconteceria uma grande desgraça se isso... acontecesse.

 

Mas... mas... Hazabel não queria acreditar: Ancalach estava ali ao seu alcance e aqueles bárbaros estúpidos não iam fazer nada por causa de umas superstições ridículas?

 

Kror indicou-lhe que se calasse, pois o ayan ia falar.

 

Terríveis foram as palavras que proferiste, ó venerável, mas que devemos nós então fazer?

 

Ouvir o que digo, é o que devem fazer! respondeu a anciã asperamente. Deixai que os espíritos da estepe purifiquem o Poço! Aguardem pelo repouso do fogo celeste e os guardiães do Poço irão arrancar a pele destes intrusos e com ela fazer uma tenda para queimar os corpos dos nossos valentes guerreiros caídos! Aguardai, é o que vos digo, aguardai...

 

Kror traduziu a Hazabel o que a xamã acabara de dizer e a harahan ficou lívida de raiva, virando as costas ao drahreg e deixando os ocarr e os seus medos de crianças para trás. Kror quis segui-la, mas achou melhor ficar com os seus para ajudar a decidir o curso de acção a tomar.

 

”Idiotas, todos eles!?” barafustou a harahan, sem parar de andar a passos largos.

 

Continuou a caminhar até estar bem longe do grupo. Parou e pôs-se a fitar a vasta extensão das estepes, agasalhando-se e sacudindo a cabeça para o lado de modo a que os cabelos negros abanados pelo vento não se lhe colassem à cara.

 

”Muito bem, tudo está perdido. Terei de tomar este assunto nas minhas mãos...”

 

Babaki estava encolhido a um canto da escura e húmida sala. Era agora considerado perigoso e por essa razão mantido longe dos outros combatentes, cujas vozes indistintas conseguia ouvir na total mudez do cubículo.

 

Fizera-o outra vez... tornara a falhar para com um amigo. A sua cobarde renitência em lutar fizera com que fosse uma vez mais capturado, e nem sabia o que acontecera a Quenestil. O tilintar das suas correntes quebrou o silêncio na alcova quando o antroleo coçou o pescoço. Parecia que não fazia mais nada na vida senão fugir, fugir da família, fugir do seu povo, fugir dos amigos, fugir de si mesmo. Como o prurido teimava em desaparecer, Babaki coçou-se com mais força, as suas unhas a roçarem com força na sua pele suja. Roçagou, roçagou e roçagou até fazer sangue, mas a comichão não desaparecia; era como se estivesse dentro da sua pele, imersa na sua carne, agarrada aos seus ossos. A cobardia era a sua companheira, e mesmo dela o antroleo tinha medo. Não... não era medo da cobardia, era medo de si mesmo, medo do que podia fazer e de como inevitavelmente reagia perante o perigo. Os seus dedos estavam tintos de sangue, mas Babaki não parava de se coçar. Nojo; tinha nojo, nojo de si mesmo! Sentia-se imundo, não merecia amigos, não merecia sequer viver!

 

O antroleo rosnou e as suas unhas trincharam-lhe a carne. Ergueu-se de rompante e rugiu com potestade. As correntes esticaram-se ao limite e os elos vibraram. O antroleo rugiu outra vez e esmurrou as pedras frias da parede, arranhou a sua superfície musgosa e desferiu pontapés no ar até as correias lhe esfolarem os tornozelos. Impulsionou-se para a frente e fez rachas nas frestas com argamassa das pedras às quais as correntes estavam presas. Saltou e sacudiu-se um pouco mais, sempre a rugir, mas, perante a futilidade do esforço, rugiu uma última vez, impotente, e deixou-se cair para o canto. Lágrimas de frustração rebentaram dos seus olhos e o antroleo cobriu a cara com as mãos sujas, gemendo e soluçando.

 

Foi assim que ficou, encolhido ao canto, de cara tapada e com o tinir das correntes a acompanharem o seu choro. Não soube dizer quanto tempo havia passado quando ouviu passos do outro lado da sua porta. O antroleo ergueu a cabeça, farejando o ar instintivamente, e os seus olhos húmidos abriram-se, dois pontos brilhantes na escuridão. Três eahanoir, um dos quais com uma tocha. Estavam a falar entre si, olhando e apontando para Babaki, que se mantinha quieto. Ouviu-se o tilintar de metal e o antroleo reparou que um dos eahan negros estava a pôr moedas na mão do portador da tocha, que acendeu um archote na parede e se retirou com uma vénia. O terceiro eahanoir, mais alto e delgado que os outros dois, ficou a observar Babaki em silêncio. Envergava uma toga negra parecida com a do juiz do combate em que participara e mantinha as mãos dentro das mangas. O seu cabelo negro tinha mechas brancas, mas mesmo à luz da tocha, era evidente que se tratava de um homem atraente, com pálidas feições angulares e um sorriso que poderia ser reconfortante, não fosse pelo olhar assassino dos seus olhos oblíquos. Tinha na testa uma tatuagem que, sem ser particularmente distinta, era diferente das que Babaki vira até agora.

 

Babaki, sim? perguntou numa voz calma como uma poça de gelo. O antroleo não respondeu. É raro um combatente chamar tanta atenção, principalmente no primeiro dia, principalmente quando foge, pois costumam ser mortos os que o fazem. De forma bastante desagradável, sim?

 

O outro eahanoir limitou-se a ficar encostado à parede de braços cruzados, se bem que parecesse pronto a saltar ao mínimo sinal de perigo. Babaki continuou sem esboçar resposta.

 

Um par invulgar, você e o seu amigo... um eahan das montanhas e um antroleo numa cidade de eahanoir à procura de uma assassina... dava uma bela história, não achas, Acerai? O outro eahanoir acenou a sua concordância em silêncio. Uma história curiosa, no mínimo... mas não é o que interessa, estamos aqui para discutir assuntos que lhe dizem respeito, sim? Tenho a sua atenção?

 

Perante a passividade de Babaki e a sua relutância em olhar para o seu interlocutor, o eahanoir levou as mãos atrás das costas e começou a percorrer a cela de uma ponta à outra em passos ponderados.

 

Não posso dizer que conheça a sua raça... admitiu. Já tivemos muitos antroleos nas arenas, todos eles bestas selváticas sedentas de sangue. Contudo, uma coisa sei: não são estúpidos... Um discreto tinir de correntes denunciou Babaki quando ergueu a cara.

 

Não, eu vi a sagacidade nos olhos de cada um, a argúcia animal que ganhava os combates tantas vezes como a força bruta. Não são estúpidos, e é por isso que eu lhe vou fazer uma proposta, sim?

 

Com um passo rápido, o eahanoir virou-se para Babaki e sorriu quando viu que tinha de facto a sua atenção.

 

Onde... o antroleo limpou a garganta onde está o meu amigo?

 

Tanto quanto sei, está vivo. Mas ele faz parte da proposta, por isso ouça...

 

Onde está o meu amigo? repetiu, apoiando as mãos no chão. O eahanoir suspirou.

 

Assim não está a cooperar. Tínhamos começado tão bem...

 

O que fizeram ao meu amigo? continuou Babaki, as suas garras a rilharem discretamente na pedra.

 

Então? Se não me ouve, não poderei...

 

Com um rugido, Babaki saltou de uma posição sentada para uma projecção de boca escancarada e braços e garras estendidos. O eahanoir de toga recuou involuntariamente antes de as correntes travarem o ímpeto do antroleo, que arrastou ligeiramente as pedras da parede e fez com que pedaços e migalhas de argamassa caíssem ao chão. O outro eahanoir saltara numa posição defensiva à frente do seu mestre, com um estilete e uma adaga de gume denteado, um quebra-espadas, desembainhados. O eahan de toga negra ergueu a mão e o outro, apesar de estar de olhos azuis fixos em Babaki, pareceu tomar nota do movimento e recuou cuidadosamente.

 

Isso foi extremamente violento e completamente desnecessário

 

comentou. Eu estou aqui para o ajudar, sim?

 

Um rosnar gutural na glote de Babaki deixava bem claro que não estava disposto a dar confiança, e as correntes continuavam esticadas até ao limite.

 

Eu posso ajudá-lo a salvar o seu amigo; ele corre perigo disse o eahanoir por fim.

 

Essas palavras tiveram efeito no antroleo, cujos músculos relaxaram visivelmente e cujos olhos brilhantes pareceram dilatar-se no escuro. Os seus braços baixaram-se e as correntes que os prendiam penderam como serpentes de aço.

 

Muito bem. Agora podemos falar, sim? afirmou o eahanoir, batendo com as mãos.

 

O que quer? perguntou Babaki de voz cansada.

 

O que eu quero? Ajudá-lo. O que ganho com isso...? continuou, antecipando-se à pergunta que sabia que se iria seguir. A morte de um homem que a merece. O que ganha você com a morte desse homem? A liberdade do seu amigo. Parece-lhe bem?

 

Babaki permaneceu em silêncio sem mexer um músculo. O eahanoir aguardou, mas cedo perdeu a paciência.

 

A alternativa? Combater na arena, matar para sobreviver, alcançar fama e glória, talvez, ou acabar com a garganta cortada por apostadores insatisfeitos. Ou morto por outro, há muitos outros bons combatentes, sim? Se preferir essa via, nada mais posso fazer a não ser desejar-lhe felicidades.

 

Babaki continuava sem responder, mas não se mantinha silencioso de propósito: estava a digerir a proposta. Era cândido, ou pelo menos sabia que os outros o consideravam como tal, e talvez com razão, mas não era idiota. Não precisava de ter ouvido as diatribes de Quenestil acerca dos eahanoir para saber que eram uma raça traiçoeira e ardilosa, egoísta e totalmente desprovida de escrúpulos. Parecidos com muitos humanos, no fundo, mas com a diferença de serem todos assim, sem excepção. Este eahanoir podia ter uma língua melosa, mas a maldade sujava-a como uma mancha de tinta. No entanto, era a única alternativa. Sabia que tinha de ajudar o seu amigo, e não o podia fazer se estivesse preso. Conseguiria escapar agora, ceder à fera, despedaçar os dois eahanoir e lutar para fora daquelas masmorras? Não; lembrou-se do que acontecera na fortaleza de Coilen, onde quase morrera assim. Os eahan negros eram muitos, e além disso não havia garantias de que encontrasse Quenestil se o procurasse pelos próprios meios. Decidiu então ouvir melhor a proposta do eahanoir, rezando para que não se arrependesse da sua resolução.

 

O que... devo fazer?

 

Dentes brancos brilharam no sorriso cruel do eahan negro e este esfregou as mãos distraidamente.

 

Muito bem. Sabia que era inteligente. Ouça-me então... Babaki acenou languidamente com a cabeça.

 

Está numa masmorra bem guardada, destinada aos lutadores... problemáticos. Vai ser reservado para os combates mais violentos, onde a hipótese de sobreviver diminui drasticamente, sim? Eu tenho uma certa... influência com os proprietários; posso providenciar-lhe uma saída. Está a ouvir-me?

 

Babaki acenou uma vez mais.

 

Pois bem, quando for combater, será com lutadores pagos por mim. Consegue saltar?

 

Outro aceno.

 

Muito? Outro aceno.

 

Perfeito. Eles ajudá-lo-ão a saltar, para fora da arena, sim? Acha que consegue?

 

Outro aceno.

 

Excelente. Agora ouça com atenção: quando estiver nas bancadas, deve procurar a saída. Será a parte mais difícil, visto que terá muita gente pelo caminho, mas só há uma saída, de portas duplas, sim?

 

O outro eahanoir fungou de desdém perante o incessante acenar do antroleo.

 

Depois disso, é fácil. Os guardas estarão também ao meu serviço e não serão problema. Tanto quanto sei, já sabe o caminho para a saída, sim?

 

Babaki acenou uma vez mais.

 

Se hesitar tão pouco quanto fala, não terá problemas... comentou o eahanoir aguerrido.

 

Silêncio, Acerai. Pago-te pelas lâminas, não pela língua, e essa pode ser cortada sem prejudicar o teu trabalho, sim? O outro eahanoir levou as mãos ao peito e baixou a cabeça. Peço desculpa pelo meu homem, tem o tacto de uma pedra de amolar. Quando sair do edifício, e preste atenção agora, terá uma carruagem à sua espera, mas estará escondida. Vai ter de virar à sua esquerda e entrar no terceiro beco à direita, ouviu? Repita.

 

Virar à minha esquerda, entrar no terceiro beco à direita... repetiu o antroleo monocordicamente.

 

Bravo. Alguma pergunta?

 

O que devo fazer depois?

 

Ah, isso discutiremos quando estiver fora daqui e em segurança, sim? Se não tiver mais dúvidas, retirar-me-ei.

 

Quando lutarei?

 

Não lhe sei dizer. Será no seu próximo combate; mantenha-se pronto, sim? Foi um prazer, Babaki. Que as sombras o ocultem.

 

Com uma vénia, o eahan negro virou as costas ao antroleo e caminhou lado a lado com o seu guarda para fora do cubículo.

 

Ah, e mais uma coisa lembrou-se. Não tente escapar após a fuga. Jazurrieh é uma cidade que vive, e assaz perigosa para aqueles que não conhecem os seus meandros, sim?

 

Babaki sentou-se, sem responder. O eahanoir fechou a porta e a escuridão desceu uma vez mais no cubículo, envolvendo-o nos seus negros lençóis. O antroleo acocorou-se, abraçou os joelhos e matutou longamente. Foi-lhe servida uma refeição em silêncio por um guarda eahanoir, que pousou uma tigela, um naco de pão duro e um jarro de água no chão. O conteúdo da tigela fumegava e Babaki sentiu o cheiro de carne, pelo que a arrastou para mais perto, farejando. Um estudo mais atento revelou que se tratava de uma sopa com galinha e vegetais, e o antroleo torceu o nariz, fungando de desagrado. Reconsiderou, no entanto, lembrando-se de que Quenestil precisava dele e que tinha de se manter forte para quando fosse preciso agir. Com algum esforço, levou a tigela à boca e sorveu o conteúdo espesso, forçando-se a engolir. Exalou de desagrado e bebeu avidamente da jarra, prosseguindo a empurrar o resto do caldo pelas goelas abaixo com pão e água.

 

”Não te falharei outra vez, Quenestil”, prometeu. ”Nunca mais falharei para convosco...”

 

Slayra goelou de prazer, arqueando as costas e agarrando os lençóis com força, deixando-se cair na cama de seguida. Tannath limpou a boca e deitou-se a seu lado, suspirando e encostando a cara à face afogueada da eahanoir.

 

Continuas a fazê-lo como ninguém, Tannath... sussurrou-lhe a eahanna ao ouvido, roçando-lhe os lábios na curva orelha pontuda.

 

E só o faço a ti, sua endemoninhada...

 

Mentiroso... acusou Slayra, mordiscando-lhe o lóbulo. Tannath rolou então para cima dela e agarrou-lhe os pulsos com força, olhando-a nos olhos. Slayra debateu-se, mas acabou por se submeter com um risinho, olhando Tannath de baixo com olhos provocadores. Maravilhosa. O eahanoir não se conteve e entregou-se com um prolongado beijo voraz e voluptuoso. Slayra envolveu-lhe o pescoço com os braços e começou a pôr-se em posição.

 

”Tão bela... tão intensa...”, pensou Tannath. ”Mas será só isto? O que a faz diferente das outras? O que...”

 

Tannath? O eahanoir despertou e viu Slayra a puxar o cabelo para trás e de sobrolho erguido em dúvida. Por que paraste?

 

Eu... O eahanoir saiu de cima da parceira e ficou a olhar para o tecto, sem dar resposta.

 

Slayra delineou um sorriso travesso e tentou pôr-se de gatas em cima de Tannath, mas este surpreendeu-a e a ele mesmo, levantando-se da cama e caminhando nu para a janela. A eahanna ficou a olhar, estupefacta, enquanto o eahanoir abria as portinholas de madeira da janela gradeada e o vento negro e frio de Jazurrieh penetrava pelo quarto adentro, fazendo com que as cortinas vermelhas suspirassem. O eahan negro apoiou-se no peitoril e postou-se à janela, olhando para o céu tinto de roxo. Nuvens acinzentadas passeavam-se pela abóbada celeste, realçadas pela Lua de tal forma brilhante que parecia cercada por um halo, rachado por alguns cirros perdidos. Slayra cobriu-se com um lençol e saiu graciosamente da cama, aproximando-se dubiamente de Tannath. O eahanoir estava quieto como uma estátua, o seu corpo delgado graciosamente musculado como o de um leão da montanha, os seus negros cabelos igualmente disputados pelas sombras e pelo luar.

 

Esta cidade é como um animal sombrio disse. De aço, de pedra e faminta. Ela caça... Slayra parou, ouviu, não percebeu e continuou a avançar de dia e de noite. O que ela caça, ela aprisiona. O que ela aprisiona, ela digere. E o que digere é devorado... pelos vermes.

 

Quando chegou perto de Tannath, Slayra pousou o queixo em cima do seu ombro e, com a mão livre, procurou a sua virilidade.

 

Dizem que eu também sou um... agarrou a mão de Slayra e virou-se para ela com tal rapidez que esta se sobressaltou ... mas não é verdade.

 

Tannath... desabafou a eahanoir por fim. O que estás a balbuciar?

 

Os olhos do eahanoir pareceram faiscar, principalmente o cinzento, sempre acentuado pela tatuagem, mas a sua expressão manteve-se inalterada.

 

Não percebes... constatou, levando a mão da eahanoir aos seus lábios. Na verdade, eu também não. Acho que os eahanoir estão fadados a nunca compreender.

 

Tannath, do que é que estás a falar?...

 

O eahan negro pôs-lhe o indicador delicadamente sobre os lábios.

 

Quando souber, dir-te-ei. Vai dormir. Eu... vou dar uma volta. -Mas... agora?

 

Sim... Tannath foi buscar as suas calças. Tenho de pensar. Normalmente Slayra ficaria ultrajada, mas naquela situação nada lhe saiu da boca, pois nem sabia o que dizer. Limitou-se a observar o eahanoir enquanto este se vestia em silêncio.

 

Já disse, vai dormir insistiu, abotoando a capa e começando a colocar as suas luvas. Sou capaz de demorar.

 

Vendo que a eahanoir continuava em pé, fitando-o de olhos bem abertos, cobrindo o corpo com um lençol, Tannath suspirou e saiu porta fora sem mais nenhuma palavra.

 

”Mas que estúpido que eu sou...”, pensou, caminhando a passos largos pelos corredores frios da sua casa e pelas sombras dos seus guardas. ”Não lhe posso pedir que compreenda. Nem sequer eu entendo...”

 

Senhor? indagou uma voz à sua frente.

 

Um aguçado estilete e um quebra-espadas apareceram nas mãos de Tannath, prontos a matar. O guarda recuou, erguendo as mãos e o eahanoir relaxou.

 

Perdoa-me, Saffan. Vou sair explicou, embainhando as lâminas.

 

Devo chamar a escolta?

 

Tannath não pareceu ouvir e continuou a andar.

 

Senhor?

 

O eahanoir fechou a porta atrás de si e entrou numa viela sombria, a partir da qual começou a sua caminhada. No entanto, nem a escuridão o podia ocultar dos seus pensamentos. Se isto continuasse assim, teria de pedir à Shanaya para... não! em que estava a pensar? O que era preciso era pôr a cabeça em ordem...

 

Gostava de Slayra? Sim. Gostava de centenas de outras eahanoir? Sim. Fornicara com Slayra? Com ela e centenas de outras. Essa era a perspectiva eahanoir e ninguém parecia ter problemas com ela, mas então por que lhe causava esta mulher em especial tantas dúvidas? Nutriria mesmo sentimentos por ela? Algo o fez parar para coçar o olho esquerdo e, acto contínuo, Tannath pensou no pai que nunca conhecera. O sangue eahan? Estugou o passo. Seria porventura capaz de sentir? De amar...? O que era o amor?

 

Impossível... disse para si mesmo, acelerando ainda mais o passo.

 

Mas o quê, então? O que era isto que o atormentava? Era quase ridículo: ele, um dos mais temidos assassinos de Jazurrieh a penar desta maneira por causa de uma mulher, a recusar-se em tomá-la por julgar que havia mais por detrás da mera atracção que por ela sentia...

 

Tannath virou numa viela adjacente e deparou com um vulto sentado de pernas estendidas no chão, segurando um miserável trapo com algumas moedas. Olhando para Tannath, o desgraçado remexeu no dinheiro com dedos sujos e falou numa voz rouca.

 

A vossa atenção por breves momentos, senhor...

 

O eahanoir parou para estudar o indivíduo. Tinha a marca de um sajellir na testa.

 

Já fui um guarda obediente. Peço-vos que me aceitais em vosso serviço...

 

Tannath inclinou a cabeça e ergueu o sobrolho.

 

Servir-vos-ei sem remuneração até achardes que os meus préstimos sejam dignos de tal.

 

O assassino não pôde evitar um sorriso. Muitos eram os sajellir que por qualquer razão desagradavam aos seus mestres, e estes não se coibiam de dar largas ao seu desagrado, sendo essa a maior causa de baixas dessa casta, maior que a de mortes no cumprimento do dever. Os que viviam estavam normalmente condenados a uma vida de párias, a menos que mudassem de cidade, e não havia muitas outras cidades eahanoir e menos comunidades ainda que os aceitassem.

 

Este, porém, não era um deles. Tannath ouvira os passos atrás de si no início da conversa, bem como o retesar da corda de uma besta.

 

De momento não preciso de mais homens... explicou, colocando todo o seu peso na perna esquerda.

 

O eahanoir baixou a cabeça e ouviu o estender de roupa quando um braço se esticou com a intenção de agarrar os seus cabelos e cortar-lhe a garganta. Com o peso no pé esquerdo, a perna direita de Tannath escoiceou para cima e partiu o queixo do seu agressor, que tombou. Girando em si, virou as costas ao mendigo e viu que outro eahan negro lhe apontava uma besta. Os seus joelhos projectaram-se para a frente e Tannath deixou-se cair de costas no chão, ouvindo o silvo do virote a passar-lhe por cima e o seu embate na parede. As pernas do eahanoir chicotearam para cima e o eahanoir pulou para uma posição flectida, já de adagas nas mãos. As duas lâminas voaram como seguimento do movimento e alojaram-se acima das clavículas do besteiro, que deixou cair a arma e tombou de joelhos, asfixiando. Os olhos de Tannath então dardejaram para o ”mendigo”, que estava atónito e de queixo trémulo na mesma posição. O assassino permitiu-se relaxar e aproximou-se do amedrontado eahanoir. O seu primeiro atacante contorcia-se no chão, mugindo de dor e agarrado ao queixo.

 

Quem vos enviou? perguntou, glacialmente calmo.

 

O eahan negro pouco mais conseguiu que gaguejar. Tannath pegou nele pelos colarinhos e levantou-o, batendo com a cabeça dele duas vezes contra a parede.

 

Quem vos enviou?

 

Nin-ninguém... tartamudeou o ”mendigo”.

 

O joelho de Tannath colidiu contra o estômago do eahan e, de seguida, contra a sua cara, deitando-o por terra.

 

Quem vos enviou? repetiu calmamente.

 

Eu... juro implorou o eahanoir com uma mão na cara e a outra estendida e bem aberta a pedir clemência.

 

Tannath agarrou-a e partiu-lhe o dedo mínimo bruscamente. O eahanoir gritou de dor, mas o assassino não lhe largou o pulso.

 

Eu juro! Juro! Somos apenas uns miseráveis sem mestre! Queríamos apenas dinheiro, só dinheiro! O homem começava a soluçar e Tannath mediu-lhe as palavras. Juro por tudo...

 

Bom, parecia que se tinha enganado. Sempre era um sajellir desempregado, não um assassino contratado.

 

Eu acredito em ti disse, como se falasse com uma criança, e largou-lhe o braço.

 

O eahanoir agarrou a mão ferida e levou-a perto da cara, olhando para o dedo mínimo completamente hirto para trás. Foi a última coisa que viu antes de ouvir um silvo e Tannath lhe cravar o estilete na nuca, atravessando-lhe a cervical. Limpou o sangue nas vestes sujas do moribundo e dirigiu-se calmamente ao seu segundo atacante, que ainda mugia de dor, incapaz de articular palavras com o queixo partido. Tannath ajoelhou-se perante ele e agarrou-lhe os cabelos, obrigando-o a olhá-lo nos olhos.

 

Hoje vives. Amanhã podes morrer. Se eu te vir outra vez, morres de certeza. Geme duas vezes se percebeste. O eahanoir fê-lo solicitamente. Espalha a palavra... e largou-o, deixando-o entregue às suas dores. Convinha sempre deixar alguns vivos para dispersar o medo, no qual a sua reputação tinha fortes bases.

 

Depois do incidente, Tannath caminhou um pouco mais por Jazurrieh até decidir que já era altura de voltar. Ainda não ordenara os pensamentos, mas sentia-se desanuviado, e não só pelo combate. Era bom reflectir de vez em quando, se bem que todos lhe dissessem que pensava de mais. As coisas eram como eram e não havia nada a fazer a respeito. Pois eles que ficassem os idiotas conformados que eram, Tannath sabia que havia algo mais para além de traição e assassinato.

 

E iria descobrir, assim que soubesse por que razão Slayra lhe mentira...

 

Hazabel afastara-se do acampamento que os ocarr haviam feito em redor do cromeleque, homens a dormirem debaixo dos seus hemíonos cobertos com mantas. Cada cavaleiro trouxera a sua própria comida e jantava sozinho, apenas o ayan estava acompanhado de dois homens e a xamã. A megera proibira os ocarr de cercarem o poço de tochas, e a harahan não se interessara em perguntar porquê a Kror, que comia sentado a seu lado. Estava farta das superstições ridículas desta gente, iria dar-lhes verdadeiras razões para terem medo muito em breve... Tomara uma decisão e iria levá-la a cabo nessa noite, sem falta.

 

Assim que o Sol se pôs, Hazabel saiu debaixo da montada de Kror.

 

Onde vais? inquiriu o drahreg.

 

A harahan murmurou algo ininteligível e afastou-se. Kror servira os seus propósitos; ajudara-a a encontrar Aewyre Thoryn e os seus amigos. Cabia-lhe a ela agora suprimi-los, e desta vez não iria falhar. Preocupar-se-ia depois em como levar Ancalach...

 

Aproveitando a escuridão, dirigiu-se sorrateiramente aos dois guardas que faziam vigília sobre os corpos dos ocarr caídos em combate, deitados lado a lado no exterior do acampamento. Cada um dos cadáveres tinha duas flechas dispostas numa cruz sobre o peito, com as pontas a tocarem nos ombros. Provavelmente outra superstição ridícula... Os sentinelas estavam de costas um para o outro, empunhando as suas lanças em posições acocoradas e atentos aos perigos ocultos das estepes. Mas não estavam preparados para combater a morte vinda das sombras. Hazabel abraçou o manto da noite e o seu vulto de penumbra deslizou até aos dois incautos guardas, postando-se a seu lado. Saiu da sombra e, antes que os dois homens pudessem reagir, as mãos da harahan voaram para as suas gargantas e as suas unhas afundaram-se-lhes na carne mole. Ambos emitiram ruídos expectorantes, largaram as lanças e levaram as mãos ao pescoço, mas Hazabel arrancou-lhes as traqueias com um violento puxão. Incapazes de emitir qualquer som e com sangue a jorrar-lhes dos horríveis ferimentos, ambos os sentinelas caíram na neve, tingindo-a de escarlate e vasquejando no chão em agonia. A harahan olhou em redor enquanto os ocarr morriam a seus pés, certificando-se de não fora vista. Os ventos da estepe abanavam-lhe os cabelos negros e faziam com que o sangue nas suas mãos esfriasse depressa. Sem perder tempo, pegou nos dois moribundos e pô-los aos ombros como dois sacos de nabos. Com o macabro fardo às costas, afastou-se ainda mais do acampamento, olhando frequentemente para o rasto vermelho que deixava para se certificar de que não era seguida. Quando pensou estar suficientemente longe, atirou os dois cadáveres ao chão e olhou para trás. Estava demasiado escuro para ver, mas não parecia haver agitação alguma no acampamento dos ocarr.

 

”Pois bem, já vos dou motivos para ficarem agitados...”, pensou a harahan.

 

Começou então a eviscerar os dois homens com as mãos, tirando-lhes primeiro os fígados, guardando-os dentro de uma bolsa de couro e preparou as restantes vísceras; o ritual sujo e sangrento que estava a preparar implicava desenhar um círculo em redor das vítimas com os intestinos destes. Assim que o fez, e sem se incomodar a limpar o visco das mãos, Hazabel vasculhou uma das suas bolsas e tirou uma pedra negra, um pedaço de rocha da própria Asmodeon, um bocado de pedra rugosa e áspera parecida com uma crosta. As protuberâncias do seixo eram afiadas o suficiente para que Hazabel rasgasse a ponta da língua, molhando a superfície irregular com o seu sangue escuro. Engoliu o resto até a ferida parar de sangrar e ergueu a mão com a pedra ensanguentada ao céu nocturno, proferindo palavras negras de chamamento em Olgur, o idioma negro de Asmodeon.

 

A mim, ó prole d’O Flagelo; a mim, filhos da noite. A vós esta oferenda, que a palavra negra vos afoite.

 

O vento das estepes uivou com força, colando a roupa de Hazabel ao seu corpo e agitando os seus cabelos como um estandarte negro. A harahan repetiu a invocação, desta vez mais alto e com um tom de voz mais grosso, e o vento respondeu com redobrada força, acompanhado por sussurros de vozes maldosas que lhe segredavam palavras de dor e medo. Rajadas fortes começaram a erguer um pó de neve do chão, que cedo se espalhou pelo terreno, originando uma pequena nevasca. A harahan ergueu os braços e o queixo numa paródia de um gesto de boas-vindas. Dois vultos aproximavam-se, meras silhuetas, as suas formas ocultas pela neve. Hazabel baixou os braços e o queixo e olhou em frente, aguardando a chegada dos udagai. Sabia agora o que eram: servos d’O Flagelo que Este castigara por maus serviços ou desobediência, condenando-os a uma vida de depredação na estéril Karatai, que a maior parte dos seus seguidores evitava.

 

Após mais alguns passos, foi possível a Hazabel discernir melhor as criaturas que até então nunca vira: eram de porte atarracado, corpulentos e de membros grossos e fortes. Vestiam uma mistura de trapos rasgados e peles humanas, que em certas partes deixavam visível a sua pele cinzenta como cinzas, completando a indumentária com ossos criativamente arranjados: um tinha duas omoplatas cosidas por cima do peito, o outro um par de colunas vertebrais como cinto; ambos tinham espalhados pela roupa maxilares, falanges e clavículas. As suas cabeças eram achatadas, calvas e orladas por esparsos fios de cabelo branco, os pequenos olhos amarelos fundos, os narizes puxados para cima e as bocas largas com dois grandes e cruéis caninos brancos. Ambos fitaram Hazabel durante alguns instantes, dividindo a atenção entre a harahan e os dois cadáveres a seus pés.

 

A minha oferenda para vós, caçadores disse, apontando para os corpos. Regozijai-vos e ouvi a minha proposta depois.

 

Os udagai nada disseram, mas acenaram com a cabeça e desembainharam duas facas de osso polido, com as quais esfolaram destramente os mortos, deixando-os duas massas de carne morta na neve em pouco tempo. Com os sangrentos e gordurosos trofeus nas mãos, voltaram as suas atenções para Hazabel e um deles falou, numa voz rouca e áspera.

 

A oferenda é satisfatória, filha d’O Flagelo. proclamou o udagai. O que queres de nós?

 

A questão não é o que de vós quero... respondeu Hazabel, levantando a voz para se fazer ouvir no meio da ventania ... mas o que vos posso oferecer.

 

Fala. As vozes das criaturas pareciam ser carregadas pelo vento.

 

Receberam duas oferendas. Mais cinco estão à vossa disposição. Muitas mais podem ser tomadas disse, apontando para trás dos udagai.

 

As criaturas olharam nessa direcção, apesar de o acampamento estar oculto pela nevasca àquela distância.

 

Uma zagaia de espíritos está presente. Ela tem poder sobre nós. ”Zagaia de espíritos?”, pensou a harahan Aquela megera, a xamã? Os udagai acenaram com a cabeça em perfeita sincronia. Ela não será problema...

 

As duas criaturas não pareciam piscar e não se mexeram, mas um acabou por falar.

 

Ofereces-nos um banho de sangue e um festim de morte. Que desejas em troca?

 

A voz de Hazabel tomou um tom acerado.

 

Matem todos. Menos o filho da Sombra.

 

Aewyre tiritava de frio, acocorado vigilantemente atrás de uma pedra. A vontade de todos era aconchegarem-se uns aos outros numa fogueira, principalmente desde que a estranha nevasca começara, mas não o podiam fazer, não com um pequeno exército de ocarr fora do círculo de pedras, que só os deuses sabiam por que não haviam atacado outra vez. O vento dava a volta à pedra e embatia violentamente contra o cobertor que o guerreiro pusera aos ombros, bafejando-lhe os cabelos e gelando-lhe a ponta do nariz. Os ocarr pareciam calmos, mas era difícil ver sem as tochas que normalmente se colocavam num cerco. A nevasca não ajudava, mas a Lua estava brilhante nessa noite e garantia uma certa visibilidade. Taislin já se havia voluntariado para infiltrar as linhas do inimigo, mas Lhiannah proibira-o expressamente. Worick, já recuperado e apenas com uma ligadura na cabeça, tivera uma violenta altercação com a princesa a respeito do assunto e Aewyre tivera de os mandar calar. Taislin viera ter com o guerreiro para se oferecer uma vez mais, mas Aewyre dispensara-o, dizendo que iria pensar no assunto.

 

O ranger de metal anunciou a chegada de Worick, que se ajoelhou atrás do jovem guerreiro.

 

Porra de tempo... praguejou de barba a abanar ao vento. O thuragar ficara muito irritado ao ver a fenda no seu elmo, que consertara como pudera com o pequeno martelo de artesão. Mas a verdade é que até nos facilitaria um pouco as coisas...

 

Já sei onde queres chegar, Worick. Mas e depois? Fugimos para onde? Somos mais rápidos que aquelas montadas deles, que galopam horas a fio?

 

Não é isso, estúpido. Chama-se contra-ataque; deixar o inimigo com dúvidas, causar baixas e fugir para a posição defensiva, obrigá-los a atacar em vez de nos deixarem aqui à espera.

 

E iríamos aguentar um novo assalto?

 

Não sei como é contigo, mas eu prefiro que nos ataquem agora do que daqui a algumas semanas. Achas grande diferença?

 

Olha, Worick, não faço a mínima ideia. Trouxe-vos aqui, fiz-vos correr perigo de morte e não sei como raio vos hei-de tirar daqui, percebeste? Não sei! Não-sei! Não faço ponta de ideia e agora vamos todos morrer aqui por minha causa e...!

 

Antes que Aewyre pudesse continuar com a sua tirada, Worick deu-lhe um tabefe na nuca.

 

Au! Quê?...

 

E não resfolegues. Estás parvo ou quê? Que espécie de conversa é essa?

 

Aewyre nada disse, esfregando a cabeça e desviando o olhar do thuragar como uma criança amuada.

 

E olha para mim quando falo contigo. Aewyre fê-lo relutantemente. Ainda não meteste nesses chifres que está toda a gente aqui por vontade própria? Achavas o quê, que nós julgávamos que isto ia ser sol e boa comida em Karatai? É verdade que eu queria ver a Lhiannah em todo o lado menos aqui; bem, menos Asmodeon, claro; mas ela é que quis vir, vá lá saber-se o que se passa naquela cabeça dura. Eu estou aqui para a proteger, o mago acompanha-te porque quer e o burrik tem tanto esterco na cabeça que se lhe fores perguntar o que acha desta situação, ele responde que está a ser divertido. Ah, e há outra coisa que normalmente são os thuragar que não percebem: somos todos companheiros aqui... amigos. Os olhos de Aewyre arregalaram-se. Sim, foi o que eu disse. Amigos. Amigos. Queres que soletre? A-mi-gos. Do peito, do coração e essas fantochadas todas. Depois de tudo o que passámos não iria ser por causa dum drahreg maricas nas estepes que te deixaríamos sozinho, e não vão ser aqueles amantes de burros lá fora, que todas as chuvas do Inverno lhes afrouxem os fios dos arcos, que vão acabar connosco. Entendido?

 

Os dois olharam-se durante longos momentos de olhos semicerrados devido ao vento que lhes batia na cara. Os pequenos olhos pretos do thuragar eram dois focos de reprimenda, mas também de franqueza e experiência. Aewyre deu por si a reparar que a linha do cabelo cinzento de Worick estava a recuar, já que Lhiannah lho puxara para trás de modo a colocar a ligadura no ferimento que Kror lhe infligira na cabeça. Quando o thuragar abanou a cabeça e se preparou para voltar ao seu posto, Aewyre abraçou-o com força.

 

Ei, ei! Deixa-te lá de mariquices! estrebuchou Worick.

 

Obrigado... meu amigo disse Aewyre, emocionado e de voz abafada pelo ombro do thuragar.

 

Ah não! Choros é que não! Para isso vai para o colo do Allumno, comigo não!

 

O abraço do jovem era forte, mas Worick acabou por conseguir contorcer-se para fora do amplexo. Estava escuro demais para ver o brilho molhado nos olhos de Aewyre, que nesse momento ria alegremente.

 

Irra! Um homem abre um pouco a boca e chove-lhe logo baba e ranho em cima! Pedras me partam... e retirou-se, resmungando.

 

Aewyre riu. A franqueza brutal e violenta do thuragar tirara-lhe um peso enorme dos ombros. Sentia-se aliviado, esperançoso. Nada pararia o Quenestil, dissera Worick. Pois bem, nada tão-pouco os pararia a eles!

 

Então ouviram-se os primeiros gritos.

 

A venerável xamã levantou-se e caminhou para longe do acampamento provisório do ayan para satisfazer as suas necessidades. Os homens ficaram logo nervosos aquando da sua partida, principalmente devido à súbita nevasca, mas a anciã dançou à volta de cada medroso, benzendo-o com as ladainhas que lhe vinham à cabeça. Gostava de ser requisitada (tão mundanos que os jovens eram hoje em dia!), mas estava aflita e queria despachar-se. Quando o último rapazola se sentiu seguro, a xamã praticamente saltitou para longe dos ocarr apoiada no seu cajado nodoso com os seus penduricalhos a chocalharem. Quando julgou que estava longe o suficiente, olhou em redor como se pudesse ver, fungando e chupando os lábios, ajeitou o gorro vermelho e cravou o cajado no chão. Os seus joelhos rangeram quando se acocorou ligeiramente para fazer o que tinha a fazer, mas algo repentino lhe tirou os pés debaixo do corpo e a xamã caiu desajeitadamente, enfiando a cara na neve gelada. O seu primeiro impulso foi tentar levantar-se, mas algo lhe agarrou a cabeça descoberta e enfiou-a ainda mais na brancura das estepes. Os braços da anciã estavam velhos e frágeis, não tinha força para se levantar; as suas pernas finas estrebucharam, mas pouco mais fizeram que remexer a neve.

 

Dedos fortes fincaram-se-lhe no pescoço e puxaram-lhe a cabeça para o ar, que inalou rouca e sofregamente. Outra mão agarrou-lhe o ombro e virou-a para confrontar o seu agressor.

 

Urinaste na minha perna há dias, bruxa disse Hazabel com um sorriso sádico. Agora quero ver-te a urinar de medo.

 

A xamã não percebeu nenhuma palavra, mas percebeu de quem se tratava e das suas intenções. Debateu-se violentamente, desferindo pontapés e bofetadas, mas Hazabel agarrou-lhe a cara com força, colocando os polegares de unhas negras um pouco abaixo dos olhos da mulher.

 

Já lhes perdeste o uso, cabra velha... lembrou-lhe a harahan, mantendo-a firmemente em posição. Será que te farão muita falta?

 

A resposta da xamã veio na forma de um escarro gosmento que acertou em cheio a cara de Hazabel.

 

Puta maldita! gritou, fazendo força com os polegares. Sangue esguichou a cara da harahan e a xamã uivou de agonia.

 

Ayan, o que foi isso? perguntou um guarda de olhos bem abertos, agarrando a haste da lança com força.

 

O ocarr alto e zarolho ergueu-se, sabendo que era chegada a hora de comandar os seus homens, mas, tal como todos os cavaleiros das estepes, era muito supersticioso e também se sentia assustado.

 

Fiquem juntos! Chamem os outros! Peguem nas armas! gritou.

 

Ayan, aproximam-se dois irmãos! avisou o outro guarda, apontando para dois ocarr que corriam na sua direcção.

 

Um grupo reuniu-se em redor do ayan e houve um rebuliço geral no acampamento enquanto aguardavam a aproximação dos dois guardas.

 

O que se passa, meus filhos? Que grito foi aquele? quis o ayan saber.

 

Os recém-chegados, porém, permaneceram em silêncio, perscrutando os homens do grupo um por um com olhos inexpressivos.

 

Ouviram o ayan! disse um jovem exaltado. Respondam! Os dois ocarr então levaram as mãos à cara, como se a quisessem cobrir de vergonha, e arrancaram-na.

 

Todos ficaram estarrecidos quando as diabólicas criaturas chiaram, pingando sede dos colmilhos e descartando as peles ocarr que haviam usado como máscaras. Um udagai sacou de um fémur e com ele rachou o crânio do ocarr mais próximo, que caiu por terra de olhos bem abertos e fios de sangue a pingarem das narinas. O seu parceiro rasgou a cara de outro com uma chicotada de uma coluna vertebral.

 

Do chão saltaram outros udagai que haviam rastejado até lá, gritando desvairadamente e abatendo-se sobre os desprevenidos e apavorados ocarr. Depois disso, o pânico foi geral. Os cavaleiros das estepes eram combatentes valentes e destemidos, mas a superstição era muito forte no seio do povo das estepes, e a xamã não estava lá para os ajudar. Não se tratava, no entanto, de um ataque ao acampamento, mas sim um antepasto antes do assalto ao cromeleque.

 

Mas que raio se está a passar? berrou Worick de mãos crispadas no cabo do martelo.

 

Agora! Vamos agora! guinchou Taislin, excitado. Aewyre estava no centro do círculo e olhava em redor, Ancalach na mão. O que estava a acontecer? Gritos de luta e morte emanavam do cerco ocarr, transportados e distorcidos pelos aulidos do vento.

 

Ali! gritou Lhiannah, puxando o fio do arco.

 

Todos olharam na direcção para a qual a arinnir apontava e distinguiram um vulto armado a correr a passos largos para o círculo. A princesa soltou a seta e atingiu o alvo, que oscilou bruscamente para trás, mas se manteve de pé.

 

Outro! avisou Allumno, apontando com o cajado para trás dos companheiros.

 

Às posições! bradou Worick, correndo para um espaço entre duas pedras.

 

Lhiannah preparou outra seta e apontou-a ao vulto que atingira, mas distinguiu outros dois que já o haviam ultrapassado e atirou antes a um deles, acertando-lhe no ombro. Taislin encostou-se a uma pedra, girando os punhais nervosamente nas mãos. Allumno concentrava-se e Aewyre preparou-se.

 

Um urro vindo de cima estilhaçou a tensão como pedra sobre vidro. Um monstro horrendo de enormes colmilhos, cabelos brancos esvoaçantes e armado de dois fémures saltara de cima de uma rocha, parecendo planar com o vento, e ia abater-se sobre Lhiannah, que gritou e soltou a seta que preparara, atingindo-o no peito. A criatura urrou e caiu em cima da princesa com todo o seu peso.

 

Algo estalou.

 

Worick urrou desmesuradamente, precipitando-se sobre os dois de martelo ao alto. Aewyre e Allumno preparavam-se para ajudar, mas urros nas suas costas obrigaram-nos a lutar pelas próprias vidas.

 

Aparentemente do nada haviam surgido várias das criaturas, correndo e saltando e uivando como cães selvagens. Ancalach cortou um que pulara para cima de Aewyre, molhando o guerreiro com o sangue escuro, mas três outros estavam a caminho. Allumno não tinha tempo de recitar e usou a Essência para fulminar uma criatura com uma rajada do rubi do seu cajado.

 

Taislin acocorou-se ao ver os monstros a passarem pela sua pedra a correr, esperando por uma boa oportunidade para atacar, mas algo lhe pingou no barrete. O burrik olhou para cima e viu um vulto de olhos brilhantes agachado no cimo da rocha, gotejando dos colmilhos.

 

Worick agarrou os esparsos cabelos brancos da criatura que estava em cima de Lhiannah, pegando no martelo perto da cabeça, e a princesa gritou quando o thuragar lhe espetou o bico recurvo da arma numa têmpora.

 

Cachopa, estás bem? perguntou o thuragar aflito, ignorando os gritos de mais monstros que se aproximavam.

 

Não! protestou a arinnir ao tirar a pesada criatura de cima de si com a ajuda do thuragar e constatar que esta lhe partira o arco. Raios, o meu arco!

 

Pega-me mas é nessa espada disse-lhe Worick não sem algum alívio, levantando-a pelo braço, e vamos limpar o sebo a estas animalárias! Uma forte martelada descendente na testa de um monstro acentuou a determinação do thuragar.

 

Mas o que são estes bichos! gritou Lhiannah, desembainhando a espada e a adaga e colocando-se de costas com o seu mentor.

 

Coisas feias com sangue nojento que morrem como qualquer um! explicou o thuragar, rachando mais uma cabeça de modo a atestar o que afirmara.

 

Aewyre cortou uma espada de osso que o tentara golpear, passando de seguida a sua lâmina pelo flanco de quem a empunhara.

 

De onde vêm eles? Não se vê nada! gritou a Allumno, despedaçando uma moca feita de uma tíbia e uma bacia atadas com tendões.

 

O mago aparou dois compridos ossos com o cajado e desferiu uma bordoada no seu atacante, proferindo algo de seguida que fez com que a sua voz ressoasse com um eco ensurdecedor, obrigando as criaturas à sua frente a taparem os ouvidos, guinchando de dor.

 

Temos de ir para perto deles! disse o mago, recuando e indicando Worick e Lhiannah.

 

Um guincho.

 

Taislin! alarmou-se Aewyre, podando uma cabeça cujo corpo tombou, jorrando sangue escuro às golfadas do pescoço.

 

O burrik dera uma cambalhota para trás ao ver o monstro a saltar-lhe para cima, mas algo lhe rasgara a roupa e a carne no flanco, e um peso enorme enterrou-o de barriga para o chão. Os gritos de Taislin foram emudecidos pela neve e começou a espetar com as adagas às cegas, afundando-as várias vezes no que esperava ser carne. Dedos grosseiros agarraram-lhe o cabelo e puxaram-lhe a cabeça para cima, expondo-lhe a pequena garganta. Ambos gritaram, Taislin de medo e o monstro de triunfo, mas foi uma adaga arremessada por Lhiannah que teve a última palavra, encaixando-se na junção das clavículas do monstro, que fitou o punho da arma sangrenta e a princesa antes de tombar.

 

Alternar! gritou a arinnir, baixando os joelhos segundo as directivas de combate que Worick lhe ensinara.

 

O thuragar reagiu de imediato, brandindo o martelo por cima da cabeça para afastar atacantes e ambos deram a volta de costas um para o outro, trocando de posição. Quando a assumiram, Lhiannah estava pronta uma vez mais e prosseguiram o combate. O júbilo de batalha havia-se apoderado de Aewyre e este gritava em uníssono com os monstros, deixando Ancalach dar largas à sua silenciosa fúria, ceifando os monstros numa colheita mortal. Allumno decidiu fazer algo a respeito da fraca visibilidade e canalizou Essência directamente para os seus olhos, que brilharam com uma flamância escarlate e cuja visão ficou mais apurada que a de uma águia. Os atacantes estavam agora visíveis como corpos refulgentes no meio da neve e do vento e um deles foi abatido por um relâmpago do mago.

 

Outro saltou na sua direcção.

 

Apenas dois dos Cho Tirr que estavam perto do ayan reuniram coragem suficiente para defender o seu líder, atacando os udagai com sabres. Um deles levou a espada atrás para cortar o monstro ao meio, mas este investiu, cravando as duas costelas que empunhava na barriga do ocarr e esventrando-o de seguida. O outro ainda conseguiu desferir um corte no braço do seu atacante antes de este lhe abrir a garganta com as vértebras afiadas da coluna vertebral que usava como chicote.

 

O ayan estava apavorado, mas empunhou o seu sabre com as duas mãos e preparou-se para morrer como um guerreiro. Havia gritos a toda a sua volta e os dois udagai aproximavam-se com as toscas armas sangrentas. De repente, pararam.

 

Kror urrou ao saltar detrás do seu líder para o meio dos monstros das estepes, rodopiando os alfanges com destreza letal. Os udagai recuaram, sem saber o que fazer devido ao pedido da harahan. O drahreg não tinha esse problema. Dois passos e as suas lâminas partiram as armas dos udagai e esboçaram linhas sangrentas nos seus corpos, deitando-os por terra.

 

Ayan, encontro-te ferido? perguntou Kror, ainda em pose flectida e olhando em redor. Os homens corriam, mas não via mais udagai.

 

Estou... bem, Potro Negro disse o ocarr, ainda trémulo. Os sons de luta provinham agora todos do cromeleque, e foi para lá que os dois dirigiram os seus olhares. Dentro das pedras desenrolava-se uma raivosa refrega, com udagai a saltarem das pedras, a correr, a uivar e a morrer.

 

Os ímpios são atacados? Mas que querem os udagai do seu sangue impuro? questionou-se o ayan. Tu! gritou, agarrando um ocarr que correra para junto do seu líder. Organiza os homens, os Cho Tirr não fogem! O inimigo entrou no poço!

 

O guerreiro acenou com a cabeça e fez como o seu líder lhe ordenou, correndo a avisar os outros.

 

E procura a venerável! Precisamos dela! acrescentou, tornando a olhar para o cromeleque de seguida. Os esfoladores insurgem-se contra os ímpios. Não percebo... O lobo ataca os seus irmãos quando o rebanho está à mão?

 

Kror não respondeu, limitou-se a olhar fixamente para o círculo de pedras, vislumbrando por vezes uma espada. Ele estava lá dentro. Kror esperava que sobrevivesse.

 

Se o drahreg não estivesse de olhos fixos no cromeleque, teria talvez visto um vulto tenebroso a deslizar velozmente na direcção da luta, cortando um caminho através do vento níveo.

 

Taislin já se recuperara do choque e agora distribuía punhais de arremesso pelos monstros que ziguezagueavam em redor dos seus amigos. Nenhum matou, mas pelo menos distraía os atacantes e dava algum fôlego aos restantes companheiros. O grupo havia sido incapaz de formar um círculo defensivo, já que os monstros se atravessavam constantemente no seu caminho, uns já feridos, com setas cravadas ou cortes de lâmina ou mesmo braços partidos, mas continuavam a lutar obstinadamente. Os companheiros já estavam sujos de sangue, ofegantes e cansados pelos ataques desnorteantes das criaturas, mas ainda lhes ardia vigor nos corpos e não iriam desistir.

 

Lhiannah aparou uma espada de osso, passou a lâmina pelo braço que a empunhava e cravou a ponta na barriga do seu atacante. Este levou a cara à frente, ficando a escassa distância da face da princesa, e abriu a boca de dentes assustadores. A arinnir grunhiu e torceu-lhe a lâmina no ventre, puxando-a para fora e acutilou-lhe o pescoço, derrubando-o.

 

Atrás da princesa, Worick recebeu uma pancada no elmo e bloqueou outra com o escudo, ripostando com uma investida do espeto do martelo, que se cravou em cheio na boca do seu agressor.

 

Allumno imbuiu o seu cajado com palavras de força e vergastou um monstro, que se defendeu com o braço, que se partiu como um galho seco. A criatura uivou e uma bordoada do mago no seu queixo fê-lo voar para trás. Quando se preparou para agredir outro, os seus olhos refulgentes captaram algo que estava praticamente invisível ao resto dos companheiros: um vulto que planava na direcção do seu protegido.

 

Cuidado Allumno! E a harahan! gritou a voz de Zoryan dentro da sua cabeça.

 

Aewyre, à tua direita! avisou o mago.

 

O jovem teve apenas tempo para decepar o braço de um monstro e colocar-se em posição de defesa para receber o ataque.

 

Esperava ver tudo menos uma mulher gritante lançada na sua direcção.

 

Hazabel colidiu violentamente contra Aewyre, embatendo contra a sua couraça com um ruído metálico e deslizando com o jovem pela neve para longe da peleja. A harahan gritava desvairadamente, fincando as unhas da mão esquerda no braço do jovem e tentando agredi-lo com a outra. Quando esbarraram contra uma pedra, Hazabel tentou agarrar a garganta de Aewyre, cujo instinto já lhe levantara os braços para se proteger. Os murros da harahan eram fortes, batendo violentamente contra os braçais do guerreiro, e um conseguiu passar, explodindo na sua cara. A visão de Aewyre ficou preta e com pontos cintilantes, e o seu mundo troou outra vez quando recebeu um segundo golpe. As suas mãos enluvadas prescindiram do controlo da mente e moviam-se por sua própria iniciativa, tentando preservar o corpo do perigo, fincando-se onde se conseguiam agarrar. A mulher gritou mais alto quando o polegar de Aewyre se enfiou em algo mole e a sua mão teve a sorte de agarrar um pulso. As unhas que estavam cravadas no seu ombro largaram-no e a mão que magoara a harahan dirigiu-se às cegas para as agarrar. Os olhos de Aewyre estavam abertos, mas a sua visão estava turva e pouco conseguia ver. Hazabel gritou e tentou libertar os braços, sacudindo-se como um animal. A força da mulher era impressionante e os membros de Aewyre começaram a tremer de esforço, cada músculo tenso e de veias palpitantes. A harahan já praticamente rugia em antecipação da matança, de eviscerar o maldito rapaz, rasgar a sua carne, mas Aewyre aproveitou a própria força de Hazabel para enfiar uma das mãos que agarrava na neve ao lado da sua cara. Com uma mão livre, esmurrou-a com as costas do punho e com a mesma mão esmurraçou-lhe o nariz em cheio, partindo-o. O berro da harahan foi abafado pelas mãos que levou à cara e o guerreiro tirou-a de cima de si, rebolando para longe e remexendo a neve à procura de Ancalach, pois a sua visão ainda estava fosca. Hazabel ficou curvada de joelhos no chão, apoiando-se com uma mão e molhando a outra com sangue escuro.

 

Allumno tentara ir em socorro do seu protegido, mas sem a ajuda de Aewyre ele próprio estava de mãos cheias. Não fosse pela atempada intervenção de Taislin, que surgira na luta armado com uma estaca para abrir caminho a Allumno para que este se pudesse juntar a Lhiannah e Worick, o mago poderia ter sido isolado e morto. Combatia agora a lado do thuragar e da princesa, dando-lhes novo alento. Os monstros que ainda atacavam estavam todos maltratados e os companheiros reconheciam ocasionalmente um ou outro que haviam derrubado ou ferido momentos atrás. Os ataques das criaturas começavam a vacilar e os gritos perdiam a intensidade; nunca haviam esperado encontrar tão feroz resistência de tão poucos! O interior do cromeleque já tinha um tapete de corpos de ocarr, hemíonos e udagai, a sua neve pisoteada e molhada com sangue de homens, animais e monstros, coberta de ossos e armas e exalando suspiros de vidas perdidas, arrastados pelos ventos até aos confins da estepe. O número das criaturas parecia estar a diminuir, bem como a intensidade dos ataques, o próprio vendaval esmorecia e os companheiros não tiveram mãos a medir e atacaram com redobrado alento.

 

Os dedos da mão direita de Aewyre crisparam-se por fim no punho de Ancalach, justamente quando a sua visão começava a voltar. O guerreiro levantou-se e vacilou, ainda tonto, empunhando a espada com as duas mãos, ponta ao nível da garganta. Começavam a formar-se inchaços no canto da sua boca e maçã do rosto. Hazabel ergueu-se, a sua cara uma máscara de sangue escuro e ódio, as suas mãos pouco mais que garras, os seus olhos duas brasas negras atiçadas. Teve todavia o bom senso de avaliar a situação, olhando em redor enquanto Aewyre se mantinha na defensiva. Os udagai estavam a ser escorraçados, mortos, postos em fuga!

 

Idiotas! urrou Hazabel, cerrando os punhos em protesto. Cobardes! Fracos!

 

Aewyre deu um passo em frente.

 

Quem és tu? perguntou em voz alta, pois o vento lançava os seus derradeiros uivos.

 

A harahan fitou-o com raiva e rancor.

 

Venceste hoje, Aewyre Thoryn. O nosso próximo encontro será diferente.

 

Mas quem és tu, mulher? exigiu o guerreiro saber, dando mais um passo em frente.

 

A TUA PERDIÇãO, uivou, fundindo-se à sombra de uma pedra e voando para longe do local do combate.

 

Pela espada cruenta de Gilgethan! praguejou o guerreiro de olhos bem abertos.

 

Kror e o ayan viram os udagai a fugirem com o desalentado vento, correndo desvairadamente para longe do cromeleque.

 

Eles triunfaram constatou o ocarr. O drahreg concordou.

 

Que fazemos agora, ayan?

 

Boa pergunta, Potro Negro... onde se meteu aquela velha desgraçada?

 

Ayan! gritou um ocarr.

 

Kror virou-se e o seu coração começou a bater mais depressa quando viu dois Cho Tirr a carregarem a xamã aos ombros. Ambos foram ter com os salvadores a correr, e os seus olhos arregalaram-se ao ver o estado da anciã: os poucos filamentos de cabelo que lhe sobravam pendiam-lhe erraticamente da cabeça descoberta, tinha uma ligadura sangrenta em volta dos olhos e os seus lábios tremiam, enquanto murmurava palavras incoerentes e chupava os fios de sangue que lhe escorriam pelas maçãs do rosto até à boca desdentada.

 

Encontrámos a venerável a enfiar neve nos olhos! Ayan, ela foi mutilada!

 

Espíritos da estepe... quem foi, venerável? Quem foi?

 

Castigo... errámos... errámos... os espíritos castigam...

 

O quê?

 

Não percebemos o que diz, ayan. Encontrámo-la assim.

 

Kror pegou gentilmente na cabeça da xamã, e esta calou-se, erguendo as sobrancelhas perante o familiar toque áspero das mãos do drahreg.

 

Venerável, quem te fez isto?

 

Os espíritos castigam... repetiu a mulher, chupando os lábios Errámos, não nos queriam mal. Não deveríamos ter atacado. Os espíritos castigam, e o castigo foi merecido.

 

Venerável, estás a dizer que os ímpios deveriam ter sido deixados em paz?

 

A anciã acenou com a cabeça, retomando a sua ladainha. Kror e o ayan olharam um para o outro.

 

A lei da contrapartida vigora, então concluiu o chefe ocarr, e o drahreg teve de concordar.

 

Eu... eu mesmo os avisarei. Sei falar a língua deles declarou. O ayan acedeu.

 

Muitos filhos meus morreram aqui, Potro Negro, mas diz aos ímpios que não correrão perigo de vida e que... partilharemos leite com eles. O ayan parecia contrariado, mas não iria desobedecer a uma das mais fundamentais leis das estepes.

 

Assim farei, ayan disse Kror, pondo-se a caminho.

 

O ocarr começaram então a funesta tarefa de contar os mortos e entoar as elegias de batalha. Os uivos do vento pareciam tomar parte nas lamentações dos perecidos filhos da estepe, julgou Kror enquanto caminhava na direcção do cromeleque, afundando os pés languidamente na neve a cada passo. Havia perdido muitos irmãos naquela batalha, e não poucos haviam sido mortos por ele... O drahreg ouviu o retesar de um arco e vislumbrou os cabelos dourados da humana, parando e levantando as mãos num gesto de paz. Ele apareceu, seguido do thuragar e um humano que vira na batalha mas que não conhecia. O pequeno saltitou à vista com a mão numa ferida no flanco acabada de tratar.

 

Quero falar gritou, mantendo as mãos no ar.

 

Ele pôs a mão no ombro da humana e esta baixou o arco de má vontade. Kror retomou o passo, sem tirar os olhos do guerreiro humano, parando quando se encontrava a poucos passos do grupo.

 

O ayan decidiu não vos matar. Oferece comida e abrigo...

 

Ai é? interrompeu Worick. Pois diz a esse ayan que eu lhe ofereço o meu martelo! Na cabeça!

 

Aewyre nada disse, fitando o drahreg em silêncio. Lhiannah mal se continha; a sua vontade era atravessar a garganta do drahreg com uma seta, pela sua humilhante derrota e pelo que fizera a Worick. A voz da razão veio da boca de Allumno.

 

Acreditem ou não, o povo das estepes tem uma rigorosa tradição de hospitalidade, e levam-na muito a sério.

 

Hospitalidade? Então isto foi o quê, a comissão de boas-vindas? perguntou Worick, crispando os dedos no cabo do martelo.

 

Kror não percebeu, mas sentiu a hostilidade.

 

Não serão magoados... a xamã disse que não devíamos ter atacado.

 

Ah pois não deviam. Levaram uma tosa...

 

Worick... advertiu Allumno. O melhor é aceitarmos. Sempre será mais fácil atravessar as estepes se estivermos acompanhados.

 

Eu cá não dou confiança... tentaram matar-nos e agora dizem que nos dão cama e comida na boca? Olha que essa...

 

Eles não nos vão fazer mal declarou Aewyre de repente. Todos olharam para o guerreiro, que não mexera um músculo e cujos olhos estavam presos nos do drahreg. Havia uma tensão quase palpável entre os dois, e as mãos de ambos comichavam.

 

Não... concordou Kror, não vos vamos fazer mal. O ayan vai partilhar leite convosco.

 

Nós aceitamos.

 

O quê? vociferou o thuragar.

 

Worick... por uma vez, confia em mim pediu Allumno. Não nos vai acontecer nada.

 

Aewyre acenou com a cabeça.

 

Vamos buscar as nossas coisas disse, dando um passo atrás e virando as costas ao drahreg a custo.

 

Kror ficou a olhar para os outros companheiros, recebendo olhares de ódio do thuragar e da humana quando foi avisar os Cho Tirr de que podiam vir buscar os corpos dos seus irmãos. A noite avançava enlutada nas estepes.

 

O sajellir de Tannath que acompanhava Slayra na carruagem observava-a atentamente. A eahanoir parecia distante mesmo dentro daquele baloiçante veículo, confortavelmente sentada nos assentos acolchoados, dedos a revolverem o rabo-de-cavalo e olhar longínquo. O seu senhor incumbira-o de a vigiar enquanto tratava dos seus assuntos, mas não falara em sair de casa, e fora precisamente isso que a mulher fizera pouco após a saída de Tannath. Estava literalmente vestida para matar, com o seu apertado corpete de cabedal, longas botas e mitenes que lhe chegavam ao cotovelo. O sajellir dera várias vezes consigo a apreciar-lhe as formas do corpo, mas sabia que aquela não era flor que se cheirasse. Pior, era a flor de Tannath...

 

A carruagem parou de repente e ouviu-se o resfolego dos cavalos no exterior. Slayra acordou do seu sonho desperto e o eahanoir saiu pela porta, oferecendo a mão para a ajudar a sair. A eahanna agradeceu com um curto aceno de cabeça e baixou-a para sair pela porta. Quando avançou para a entrada em frente e reparou que o sajellir a seguia, pôs as mãos nas ancas e olhou-o nos olhos.

 

Ordens do senhor Tannath explicou o eahanoir sem grande convicção.

 

Como te chamas?

 

O guarda ergueu o sobrolho, mas não viu razão nenhuma para não responder.

 

Thasan.

 

Pois bem, Thasan, o que eu vou fazer é privado. Fica aqui. Isso não pareceu dissuadir o eahanoir. Slayra suspirou, mas a sua voz saiu mais firme.

 

Lá dentro não me vai acontecer nada, e ninguém vai saber que tu tiraste o olho de cima de mim, o que aliás até é mentira comentou a eahanoir com um sorriso maroto. Agora ou ficas aqui ou eu digo ao Tannath que tu me fizeste propostas indecorosas. Que tal?

 

Thasan hesitou. Eahanoir eram promíscuos, mas o seu senhor era extremamente possessivo e certamente não iria gostar da mentira de Slayra. Mentira; mas seria a palavra dela contra a sua, e Thasan não podia abrir as pernas ao temido eahanoir...

 

”Vaca...”, pensou. Aguardo na carruagem. Tente não demorar.

 

Slayra riu e virou-lhe as costas, batendo na porta de ferro. Abriu-se uma fresta gradeada e a eahanna anunciou-se, o que lhe abriu o caminho.

 

A chave da cela do eahan. Vou fazer uma visita disse, recebendo-a com uma mão e erguendo a outra. - E sei o caminho. Não se incomode.

 

O carcereiro eahanoir, que tinha cabelo comprido atrás e cortado à frente, parou a meio caminho e encolheu os ombros, sentando-se outra vez na cadeira. Slayra percorreu então o corredor de celas, ignorando os gemidos e súplicas e desceu as escadas escorregadias com cuidado. Dava voltas com a chave no seu aro enquanto os seus passos ressoavam nas passagens molhadas e infestadas de ratos. Destrancou a porta assim que a encontrou e pegou numa tocha antes de entrar, usando-a para acender a que estava no interior da cela, iluminando-a.

 

Quenestil estava com um ar miserável, sujo e de cabelos húmidos à frente da cara. As suas peles de carcaju estavam manchadas e havia sangue seco proveniente dos pulsos esfolados nos seus antebraços. A sua cabeça pareceu mexer-se ligeiramente, mas não a levantou. Slayra pendurou o archote que empunhava e dirigiu-se lentamente ao eahan, cujos braços se começaram a mexer, fazendo as correntes tilintar. A eahanoir pegou-lhe na cabeça com as duas mãos, passando-lhe os dedos pelos cabelos húmidos e levantando-lhe a cara.

 

Estava num estado lastimoso. O olho negro pouco melhorara e os inchaços na cara estavam acastanhados. O olho bom entreabriu-se, não mais o cinzento forte como uma rocha, mas baço e pardacento. A eahanna ergueu sobrancelhas franzidas ao vê-lo assim, mas Quenestil nem parecia respirar. Aparentava estar em estado de choque.

 

Oh, Quenestil...

 

Ao ouvir estas palavras, o olho do eahan abriu-se mais e fitou Slayra. Ficou decididamente aberto quando a eahanoir o beijou com força nos lábios inchados.

 

Oh, Quenestil! O que te fizeram? O que é que eu fiz? exalava Slayra exasperadamente entre os beijos com os quais estava a

cobrir a face do eahan, passando-lhe as mãos suave e carinhosamente pelo cabelo. Oh, meu amor! Meu pobre amor!

 

Quenestil só podia estar a sonhar. Só podia... Mas os lábios de Slayra estavam quentes demais à sua boca quase insensível para ser um sonho. Slayra não o largou até que por fim os seus lábios se soltaram e a eahanoir pousou o queixo no ombro do shura, abraçando-lhe o pescoço com força e soluçando de olhos fechados.

 

Vais dizer-me que estavas de mau humor no outro dia...? perguntou o eahan com voz rouca.

 

Slayra riu e soluçou ao mesmo tempo.

 

Estúpido insultou, afagando-lhe a nuca e libertando-o do abraço. Quenestil viu lágrimas nos seus olhos azuis. Ouve, tenho muito para contar. E explicar...

 

Não saio daqui...

 

Pára com isso! exclamou, batendo-lhe no peito mas beijando-o de seguida. Desde aquela noite, eu...

 

Como te levaram? interrompeu o eahan.

 

Apareceram assassinos enquanto estávamos a dormir, enviados pelo Tannath começou, assentando as mãos nos flancos do eahan, ainda incapaz de o olhar nos olhos. Se eles não me tivessem reconhecido, por esta altura estávamos todos mortos. E agradece a esses teus lindos cabelos ruivos por eles só te terem drogado. Iriam torturar-te depois por seres eahan, mas decidiram acordar-me antes e...

 

Como já deves ter percebido, estavam à minha procura, e prontificaram-se para vos degolar a todos. Tive de inventar uma história...

 

Sempre foste muito boa a fazê-lo... comentou o eahan. Slayra levantou a cabeça. O gelo dos seus olhos derretia-se em lágrimas.

 

Quenestil, não, por favor! Tens de acreditar em mim! Agarrou-lhe os braços. Não te estou a mentir! Tive de os enganar, senão eles tinham-vos morto a todos! Não estou a mentir agora, só lhes menti a eles! A eahanoir abraçou-o uma vez mais, mas o eahan parecia rígido.

 

Slayra largou-o, olhou-o no olho e viu nele frieza pétrea. A postura do eahan mantivera-se apática desde o beijo, tornava-se agora evidente que estava a organizar os seus pensamentos. A eahanoir baixou a cabeça e largou-o.

 

Acho... acho que não te posso culpar. Não te deixei muitas razões para acreditares em mim. Afinal, sou uma eahanoir, não é? Sorriu fracamente, olhando para o chão e abanando a cabeça.

 

Ainda sem fitar Quenestil, mas sentindo o peso do seu olho em cima de si, a eahanoir deu um passo atrás e preparou-se para sair.

 

Slayra ouviu atrás de si.

 

Virou-se e viu que Quenestil continuava cabisbaixo.

 

Anda cá.

 

A eahanna hesitou, afagou os braços e dirigiu-se ao cativo agarrada a eles. Começava a sentir o frio da cela.

 

Mais perto pediu Quenestil, e Slayra deu mais um passo em frente.

 

O eahan ergueu a cara outra vez e o seu olho bom parecia vivo, atento, selvagem, tal como se lembrava dele. A eahanoir baixou a cabeça.

 

Olha para mim, Slayra.

 

Suspirando e secando os olhos, a eahanna levantou o queixo, fungando. O orbe cinzento de Quenestil então mergulhou neles, submergindo-se nas suas profundezas álgidas. O olhar de Slayra manteve-se fixo à medida que Quenestil perscrutava os glaciares nos olhos da eahanoir, penetrando nas fissuras do que julgara ser gelo e vendo a água amarga que delas brotava em abundantes jorros de arrependimento. A face de Quenestil assumiu uma expressão consternada e este fechou o olho, deixando a cabeça cair. Slayra fez o mesmo, resignada, e preparou-se para sair outra vez, mas o eahan não deixou.

 

Desculpa... pediu o shura, quase em surdina.

 

A inesperada palavra avivou a eahanoir, que ergueu a cabeça subitamente de olhos bem abertos. Os dentes de Quenestil estavam cerrados, bem como o seu olho.

 

Desculpa, Slayra... desculpa. Eu... a sua voz então aumentou de volume eu vou matá-los pelo que nos fizeram. Vou matá-los a todos! Malditos desgraçados, EU VOU DAR CABO DE VOCÊS! gritou, ferindo os pulsos ao fazer força com as correntes.

 

Slayra agarrou-lhe os braços, passando-lhe as mãos pela cara e murmurando palavras aquietadoras, sossegando-o. Quando sentiu a tensão no corpo do eahan a diminuir, continuou:

 

Calma, meu amor... eu tiro-nos daqui... mas ouve, há mais coisas que deves saber.

 

O quê?

 

Assim que sairmos daqui, temos de encontrar os outros o quanto antes. Eles correm grave perigo.

 

Porquê? Que tipo de perigo? perguntou Quenestil, alarmado.

 

Os eahanoir que nos encontraram; eles disseram-me que haviam sido... atraídos até nós.

 

O eahan piscou o olho e franziu a testa.

 

Não me souberam dizer como, mas a verdade é que alguma coisa os chamou. Era muita sorte eles encontrarem-nos entre Jazurrieh e o local para o qual eu fui destacada.

 

Temos de os encontrar depressa então... e o Babaki? lembrou-se.

 

Slayra mordeu o lábio inferior e olhou para baixo.

 

Não sei como o tirar dali. Tem paciência, amor. Hei-de pensar nalguma coisa.

 

Não saímos daqui sem ele... advertiu o eahan.

 

Eu sei, eu sei! exclamou a eahanoir. Por favor, pára de me tratar como uma inimiga!

 

Quenestil arrependeu-se e teve vontade de a abraçar, de a consolar, mas estava preso.

 

Desculpa...

 

Slayra agarrou-lhe a cara e beijou-o. Toda a frieza havia desaparecido. Com os narizes a tocarem-se, a eahanoir sussurrou.

 

Vou ter de te pedir que aguentes mais um pouco. Tenho de pensar numa maneira de te tirar daqui e ao Babaki. Slayra viu o esmorecer do olho de Quenestil e agarrou-lhe a cara, quase aflita.

 

Eu sei que é difícil, mas tens de aguentar!

 

Não é só isso... explicou Quenestil. Sinto falta do ar, falta do sol, falta do verde. Esta cidade está a envenenar-me lentamente, tudo nela são sombras, é como uma enorme peçonha para mim...

 

Slayra não pensara nisso. Quenestil era um shura, e o enclausuramento afectá-lo-ia mais que a uma pessoa normal, pois o elo que o unia à Natureza era a sua maior vulnerabilidade naquela situação, privado de tudo o que lhe dava energia e vigor.

 

Eu vou arranjar uma maneira depressa, prometo-te! jurou.

 

Mas por favor, aguenta-te.

 

Vou fazer os possíveis... meu amor.

 

Contente por ouvir novamente aquelas palavras da boca do eahan, Slayra beijou-lha apaixonadamente.

 

Como te têm tratado? perguntou, acariciando-lhe a maçã do rosto com os lábios.

 

Dão-me comida e água. E tu? O que tem feito esse... Tannath?

 

A menção do nome do eahanoir fez com que Slayra recuasse momentaneamente, mas investiu de seguida, agarrando a cabeça de Quenestil com força.

 

Quenestil, eu juro-te e tu vais acreditar: o meu corpo pode ser dele neste momento, mas ele nunca me terá. Eu sou tua e de mais ninguém, percebeste? Percebeste?

 

O shura permaneceu em silêncio, mas não parecia estar a condená-la. Slayra conhecia bem os preceitos dos outros eahan, e sabia que Quenestil não iria aceitar bem o facto de estar com Tannath, mas era preciso.

 

Diz-me que compreendes, Quenestil. Não saio daqui enquanto não o ouvir.

 

A ideia... repugna-me confessou o eahan, mas... confio em ti e esboçou um fraco sorriso.

 

Slayra beijou-o uma vez mais e ficou abraçada ao seu pescoço, apertando-o com força. Alguém abriu a porta.

 

A reacção de Slayra foi automática. Afastou-se do shura e deu-lhe um pontapé na virilha. A eahanoir fê-lo com o máximo de cuidado, mas Quenestil ainda grunhiu de dor, arregalando o olho.

 

Vais sofrer, eahan! ameaçou Slayra, pegando-lhe pelos cabelos, não com o carinho de momentos atrás mas com força. Vou ver-te a chorar no chão de ceroulas molhadas e a implorar por piedade!

 

O riso feminino que Slayra ouviu congelou-a. Foi a custo que olhou para trás e viu Shanaya de mão na anca e com a outra pegar no carcereiro eahanoir pelo colarinho, que sorria estuporado. A shionna largou-o e o eahanoir caiu, drogado de letargia.

 

Slayra, mas que agradável surpresa disse a mulher, dirigindo-se à eahanoir com a elegância de um gato, a sua capa penumbrenta a ondular pelo chão.

 

Que fazes aqui, Shanaya? perguntou Slayra, recomposta mas com um tom de cautela na voz.

 

Eu? Pensei em visitar este nosso interessante cativo. Gosto sempre de ver caras novas.

 

Ele é meu, Shanaya. Não lhe toques com essas tuas garras.

 

Ai é o teu novo brinquedo? Pois é, constou-me que ele veio atrás de ti. Mais um a quem tu deste a volta, hum?

 

Como disseste, é o meu brinquedo. Agora sai daqui. Quenestil respirava fundo para controlar a dor na virilha.

 

Sim... tenho a certeza de que te irás divertir muito com ele. Mas porquê tanto egoísmo? Por que não... partilhar? perguntou a shionna, estendendo a mão para tocar no eahan.

 

Slayra agarrou-lhe o pulso e torceu-lho, forçando-a a levar o joelho ao chão numa posição submissa. Shanaya emitiu uma exclamação de dor, mas pareceu deleitar-se com algo quando a eahanoir manteve a luxação.

 

Hummm... medo e raiva. Duas das minhas preferidas. Olhou para Slayra por baixo. Algo mais. Desejo...?

 

A eahanoir largou a shionna, recuando. Podia sentir os tentáculos a perfurarem a sua mente, vasculhando o seu tumulto emocional. Shanaya levantou-se, esfregando o pulso e avançando na direcção de Slayra conforme esta ia recuando.

 

Sim... ardor carnal, fome lasciva. Desejas o eahan, os seus cabelos de fogo, o seu espírito indomável, o seu vigor animal... Slayra bateu com as costas na parede e Shanaya encostou-se a ela, pousando a mão na pedra. Ânsia de prazer, deleite sensual. Hmmm, tanta voracidade... a cara da shionna estava tão perto da de Slayra que esta lhe podia sentir o calor do hálito ... tanto desejo.

 

Quando a ponta da língua de Shanaya lhe tocou nos lábios, Slayra gritou e esmurrou-a no estômago. A shionna recuou, vacilante, levando a mão à barriga.

 

Se voltas a fazer isso, cabra, corto-te a garganta ameaçou, puxando uma madeixa de cabelo solto para trás.

 

Shanaya riu, sufocada.

 

Deuses, tenho pena do eahan. Vais primeiro devorá-lo e depois malhar-lhe a resistência para fora do corpo? Ou esvaziá-lo primeiro e quebrá-lo depois?

 

Não te diz respeito. É a última vez que te peço para saíres avisou Slayra, cerrando os punhos.

 

A shionna riu uma vez mais e enviou um beijo a Quenestil.

 

Talvez noutra ocasião. A shionna endireitou-se. Arranjaste uma mestra muito possessiva... tenta deixar um pouco para as outras, sim Slayra?

 

Sai.

 

Com uma última gargalhada, Shanaya saiu da cela, passando pelo carcereiro ainda num estado de estupor.

 

Sê prestável e acorda este depois, sim? Não queremos que os prisioneiros morram de fome, já que tu te recusas a partilhar os novos...

 

Slayra aguardou até deixar de ouvir os passos das botas da shionna e fechou a porta, correndo para Quenestil.

 

Acho que sei por que o fizeste... antecipou-se-lhe o eahan mas não podia ter sido noutro sítio?

 

Desculpa... foi espontâneo. Tinha de ser convincente.

 

Bem, convenceste-me a mim; só não sei é de quê...

 

Quenestil... Slayra sorriu, apesar da situação, tu nunca foste de dizer piadas estúpidas. O Aewyre é que... e calou-se.

 

Os dois ficaram silenciosos, principalmente Quenestil, assaltado por uma torrente de memórias dos seus amigos. Até o Worick gostaria de ver outra vez, até o Worick.

 

Eu vou tirar-nos daqui e vamos encontrá-los logo a seguir garantiu Slayra e Quenestil conseguiu sorrir.

 

Quem era aquela?

 

Uma cabra perigosa. Conhece o Tannath e lê emoções. É uma shionna.

 

Quenestil mexeu-se, alarmado.

 

Não te preocupes, com ela sei eu lidar. Mas o melhor é esconder a chave para que não recebas nenhuma visita... inesperada.

 

Uma... shionna?

 

Sim, é normal elas conviverem com eahanoir. São uma espécie de primas afastadas. Não te preocupes, não é nenhuma harahan que te vai comer os fígados...

 

Mas...

 

Preocupas-te demais, amor tranquilizou-o Slayra, afagando-lhe a cara. Eu agora vou-me embora, tenho de pensar em como te tirar a ti e ao Babaki desta cidade. Há-de ocorrer-me alguma coisa...

 

Amo-te declarou Quenestil sucintamente. Slayra sorriu e beijou-o.

 

Não te preocupes comigo que eu fico bem. Sou a favorita do Tannath e ninguém se atreve a tocar-me.

 

Acerca desse Tannath...

 

Agora não. Tenho um guarda à minha espera e já demorei muito tempo. Com um último ósculo, Slayra retirou-se.

 

Deixou as tochas propositadamente acesas para deixar um mínimo de luz ao eahan e enviou-lhe um beijo de despedida.

 

Vou fazer com que te tragam boa comida. E água limpa. Adeus, meu amor.

 

Conseguiu reunir forças suficientes para fechar a porta e dirigiu-se ao carcereiro espojado no chão. Deu-lhe duas palmadas na cara e o eahanoir abriu os olhos repentinamente, erguendo-se atabalhoadamente enquanto se apoiava na parede.

 

A meio do dever? perguntou Slayra em tom de desprezo. O homem olhou para ela como quem havia acabado de despertar.

 

Deixar-se dormir durante o trabalho é grave explicou.

 

Mas... o homem começava a aperceber-se eu não estava a dormir, foi só uma... quer dizer... não...

 

Os seus superiores haviam de gostar de saber. Como reagiriam? Os olhos do homem arregalaram-se de medo. Tartamudeou algumas palavras, mas nada de coerente.

 

Não sabe? Na verdade, eu também não. Agora estou curiosa... Talvez fale com eles...

 

Não... não pode! O carcereiro parecia genuinamente alarmado pela possibilidade. Por favor! O que quer?

 

Antes de mais nada, quero que me dê essa faca. A menos que queira ver como Tannath reagiria se eu fosse molestada...

 

Praguejando silenciosamente de frustração pelo falhanço do seu ardil, o eahanoir atirou para o chão a navalha que tinha escondida atrás das costas e empurrou-a com o pé.

 

O que quer...? Desta vez parecia sincero e Slayra sorriu, pegando na navalha.

 

Vai esconder a chave desta cela. Mas ninguém deve entrar, e espero que se encarregue pessoalmente disso. Só eu. Quero que o prisioneiro receba a melhor comida e água que arranjar, fruta e legumes de preferência. Também quero que alargue as correntes mais vezes para ele se poder sentar. Acho bem que ele esteja em bom estado da próxima vez que eu vier; ainda me vou divertir muito com ele... Fui clara?

 

Como a água...

 

Muito bem. Até a próxima então. E mais brio no trabalho...

 

Slayra deu três passos atrás e virou as costas ao carcereiro, subindo as escadas. Agora só tinha de tecer um plano brilhante para tirar Quenestil das masmorras, Babaki da arena e fugir com eles da cidade. Isso, e arranjar maneira de distrair Tannath... A eahanoir deu por si a questionar-se se não gostaria tanto do shura por este a meter nas situações mais bicudas...

 

Shanaya fechou a porta das masmorras atrás de si, piscando o olho a um sajellir que estava postado perto de uma carruagem. O eahanoir desviou o olhar e a shionna sorriu, incapaz de conter uma risada. Não só devido ao medo do guarda, que esta quase conseguia cheirar, mas devido a Slayra. A temperamental eahanoir era quase um livro aberto... O seu plano original apenas envolvia sondar o eahan, mas a presença de Slayra facilitara tudo; as suas emoções eram como explosões de cor para Shanaya e fora delicioso senti-las: desejo, raiva, medo... e amor. Essa fora a surpresa. Se não tivesse vitimado humanos antes, a shionna provavelmente nem conseguiria ter identificado essa estranha emoção, mas ela estivera latente na eahanoir, pulsante como um coração palpitante, intenso como o contacto de ferro em brasa com pele. Muito interessante, e o Tannath certamente iria adorar saber. Slayra nutria sentimentos pelo eahan... Muito interessante mesmo.

 

Era noite de festa no salão de Allahn Anroth, o palácio real de Ul-Thoryn. Aereth organizara um jantar para dialogar com Sunlar Syndar, regente de Vaul-Syrith, que comparecera acompanhado pela sua esposa, Alnara, o seu séquito e Jestiban Kilune, capitão da guarda de Syrith. Os convivas estavam sentados numa mesa em forma de U a apontar para as portas duplas de madeira com a águia de Thoryn nelas esculpida que davam entrada à sala. As paredes contavam histórias na forma de vivos frescos de amantes e heróis, reis e cavaleiros, florestas e montanhas, campos de cultivo e batalha, sobranceados por gravuras que retratavam os brasões das províncias de Nolwyn: a águia vermelha sobre o Sol de Thoryn, o corcel amarelo sobre as duas rosas brancas de Syrith e vários outros. O tecto marmóreo e abobadado estava pintado com as figuras dos nove deuses de Allaryia, e do seu topo pendia um enorme e esplendoroso candelabro dourado com centenas de velas. Havia três fogueiras a aquecerem a grande sala e as costas dos comensais, uma de cada um dos lados da mesa. Umas escadas de madeira na parede conduziam a um varandim marchetado por cima da entrada e em cima do qual tocava um quinteto de músicos: três violinos e duas flautas, enquanto um menestrel se passeava em redor da mesa, trinando suavemente o seu mandolim e cantando uma ária.

 

A mesa em questão estava coberta por uma toalha vermelha com renda amarela sobre a qual haviam sido espalhadas cheirosas pétalas de rosa enceradas em honra do brasão de Syrith. Os comensais, esses vestidos com a melhor roupa do ano, muita comprada ou feita à medida especialmente para a ocasião, regalavam-se com o banquete: capão enfaixado com tiras de toucinho e decorado com penas de faisão, quadril de javali polvilhado com tomilho e luzente de gordura e suco de limão, pombos cozidos em barro servidos com rodelas de cebola, salmão banhado em molho de manteiga, enguias frescas enroladas à volta de pirâmides de sal adornadas com langostins, variadas e coloridas frutas, desde uvas e figos a maçãs vermelhas e verdes...

 

Aereth exibia a corte de Thoryn em todo o seu esplendor, com castiçais de ouro na mesa, rescaldeiros de bronze embutidos a prata que conservavam os molhos quentes, gemas e pedras preciosas cosidas aos vestidos das damas, que exibiam jóias mais brilhantes ainda nos dedos e pescoços. O próprio regente de Thoryn estava um modelo a seguir: a coroa que ostentava na fronte fora polida e vestia um pesado manto vermelho brocado a ouro por cima de uma toga amarela bordada com pele de arminho nas orlas das mangas. Cada um dos seus dedos tinha um anel com uma gema de cor diferente, o seu cabelo fora perfumado com lavanda e a barba que entretanto deixara crescer fora oleada. Em torno do pescoço usava um colar de ouro cravejado de rubis-estrela lapidados. Toda a sala irradiava decadência, luxo, pompa e sumptuosidade, e era precisamente essa a intenção de Aereth Thoryn.

 

Sunlar Syndar, no entanto, não dava impressão de se sentir ofuscado. Era vinte anos mais velho que o regente de Thoryn e conhecera o seu pai, o que lhe causava mais desagrado ainda ao constatar o quão patético era o filho do homem a que havia fielmente servido. Vestia um despretensioso gibão branco com uma clâmide azul presa sobre o ombro direito por um broche de ouro na forma de um corcel empinado. Usava o cabelo escuro comprido como todos os cavaleiros de Syrith, e entrançara os fios brancos que a idade lhe fizera crescer nas têmporas. Tinha olhos castanhos debaixo de sobrancelhas quase angulares, uma barba meticulosamente aparada e um proeminente maxilar inferior que lhe conferia um ar nobre e não deixava dúvidas de que em tempos fora fonte de suspiros na corte de Syrith. A sua esposa, a segunda, era discreta e educada, e sem dúvida uns dez anos mais nova. Viera com um elegante vestido amarelo e puxara o cabelo castanho entrançado para trás com um diadema na forma de dois cavalos prateados empinados. Jestiban mantinha-se sentado numa posição recta, com os curtos cabelos castanhos impecavelmente penteados e olhando em redor com angular semblante indiferente, vestido com um sóbrio gibão verde com as suas medalhas de peltre esmaltado nele cravadas. Ao lado de Aereth sentava-se Daveanorn, o seu paladino e mestre-de-armas. O veterano parecia pouco à vontade e ajustava constantemente o seu talabarte vermelho com medalhas douradas sobre o seu gibão alaranjado.

 

Espero que esteja tudo do vosso agrado, milorde, senhora? perguntou Aereth ao casal de Syrith.

 

Está uma festa esplêndida, lorde Thoryn disse a esposa de Sunlar educadamente.

 

Sunlar limitou-se a acenar com a cabeça, sorrindo a uma serviçal que lhe estendeu uma bacia de bronze de água quente ensaboada para que lavasse as mãos. Não estava a gostar do exibicionismo do jovem regente, que o recebera com uma pomposa parada militar e fizera questão de passar pelos campos de treino durante o passeio guiado por Ul-Thoryn. A sua esposa ficara encantada com a riqueza da cidade, mas Sunlar sabia bem os motivos por detrás de tanto alarde e ostentação.

 

Não me perdoaria se desse a tão ilustres convidados menos do que aquilo que lhes é devido bajulou Aereth, levantando-se. Um brinde a Nolwyn, senhoras e senhores!

 

A corte de Thoryn ergueu as taças, copos e cálices mecanicamente, como se de um gesto combinado se tratasse, mas o séquito de Syrith olhou de forma incerta para o seu senhor, que fitava Aereth de olhos bem abertos. Alguns brindaram, hesitantes e com receio de parecerem descorteses, mas nem Sunlar nem Jestiban tocaram nos seus cálices. Daveanorn parecia incerto e murmurou algo a Aereth.

 

Tal brinde parece-me pouco... apropriado... lorde Thoryn disse o capitão da guarda de Syrith.

 

A sala ficou em silêncio. Mesmo os serviçais ficaram quietos de pratos e bandejas na mão. Aereth riu, exibindo dentes fortes.

 

A sobriedade syrithiana vem à tona... comentou, originando risos forçados pela parte dos convivas. Por favor, continuai a comer e beber, hoje é uma noite de paz e amizade.

 

A um gesto seu, os comensais continuaram a sua refeição e a conversa ressurgiu pouco depois, primeiro hesitante mas cedo de ânimo reavivado. Aereth sentou-se, sorrindo para Jestiban, que lhe retribuía com um olhar tão expressivo como granito. Daveanorn resmungava quase inaudivelmente, coçando a barba grisalha.

 

Esse brinde foi desnecessário e inoportuno, lorde Thoryn insistiu Sunlar.

 

Perdoai-me, lorde Syndar. Exaltei-me. Falemos de assuntos mais prementes enquanto nos deliciamos com este magnífico veado, sim? sugeriu Aereth, indicando dois criados que carregavam numa bandeja de prata um suculento pernil decorado com raminhos de salsa e guarnecido com castanhas. Fruto de uma soberba tarde de caça.

 

Sim... comentou Jestiban a perícia de lorde Thoryn com a lança é... sobejamente conhecida.

 

Jestiban... admoestou-o Sunlar, que era acima de tudo um homem prudente.

 

Aereth parecia imperturbável, no entanto, riu.

 

Desconhecia o sentido de humor do capitão da guarda de Syrith! Não deixais de me surpreender, Jestiban Kilune!

 

Alnara Syndar sorriu perante a boa disposição do jovem regente e lançou um olhar reprovador ao capitão da sua guarda enquanto os criados lhe trinchavam uma fatia do pernil. Um serviçal de cabelos louros encaracolados a ferro surgiu detrás de Sunlar, solícito.

 

Milorde deseja vinho?

 

Com água exigiu o regente de Syrith.

 

Enquanto servia Sunlar, o servente chamou outro, que prontamente trouxe uma jarra de prata cuja boca estreita representava a cabeça de uma águia de bico aberto, que verteu água perfumada com folhas de menta no cálice. Sunlar ergueu a mão quando julgou que era o suficiente e mexeu o copo para diluir o vinho, mas os seus olhos estavam em Aereth, que enclavinhava os dedos resplandecentes, retribuindo o olhar.

 

Em relação aos assuntos prementes... principiou Sunlar.

 

Ah, sim. A questão da princesa e o meu desnaturado irmão... um incidente no mínimo pitoresco.

 

A atitude do regente de Thoryn começava a bordejar a impertinência e Daveanorn deu-lhe um discreto toque na perna com o pé, que Aereth ignorou.

 

Não seria essa a palavra que eu usaria para a descrever asseverou o lorde de Syrith, bebendo um trago do vinho diluído sem tirar os olhos dos do jovem.

 

Não achais? O irresponsável filho mais novo do antigo regente de Nolwyn a fugir com a linda princesa rebelde de Syrith? É caso para dizer que fugiu a corça e o bezerro foi o culpado!

 

A voz de Sunlar tornou-se álgida.

 

A minha filha não é nenhuma corça, jovem Thoryn. E se ela fugiu, foi por culpa do vosso irmão que, segundo me foi relatado, levou consigo a mais preciosa relíquia de Allaryia. Também achais isso pitoresco?

 

Aereth parou de sorrir pela primeira vez. Daveanorn abanou a cabeça, lembrando-se de Aewyre, o seu melhor aluno, e das bofetadas que lhe devia ter dado.

 

Eu sabia que devia ter impedido aquele rapaz,,. censurou-se o veterano.

 

Pitoresco talvez não... mas será motivo para o cortar de uma amigável relação de tão longa tradição? respondeu Aereth.

 

Quero ver algo feito a respeito, lorde Thoryn esclareceu Sunlar, menos exaltado. E exijo compensações.

 

O menestrel terminou a sua canção e os dois regentes aplaudiram com o resto dos convivas, sem deixarem de se fitar mutuamente. Aereth esperou que os músicos recomeçassem a tocar para continuar a conversa.

 

Pelo que me foi dito, a guarda de Syrith já interpelou o meu irmão e a princesa vossa filha, debaixo do comando de Jestiban Kilune, se não estou em erro...

 

A minha filha recusou-se a vir. Disse que estava a assegurar ”uma maior proximidade entre as casas de Syrith e Thoryn...”

 

Um nobre fim... declarou Aereth.

 

Sunlar bateu com a mão na mesa e o silêncio abateu-se sobre a sala. Todos os presentes olharam para onde os dois regentes estavam sentados.

 

Nobre fim? Ou conveniente, jovem Thoryn? Não me tenteis enganar com os vossos jogos e falinhas mansas; estrume escondido ainda fede! Alnara agarrou o braço do seu esposo, mas este ergueu-se, deitando a sua cadeira ao chão. Não sei qual o vosso objectivo, mas não sois metade do homem que o vosso pai era, e se Nolwyn se vier alguma vez a unir, não será debaixo da vossa égide! Aereth permaneceu em silêncio. Podia tolerar as vossas pretensões a rei de Nolwyn, mas haveis metido a minha filha no jogo, através dela quisestes atingir-me a mim e isso não vos perdoo! O lorde de Syrith fez uma breve pausa e inspirou, mas a sua voz acidificou-se. Estais muito enganado se julgais que poderíeis ludibriar o povo de Syrith e a mim com tão conveniente matrimónio. Mesmo que a minha filha se deixe seduzir pelas promessas de poder que o vosso irmão decerto lhe está a segredar ao ouvido, o povo de Syrith não se deixará enganar. Vaul-Syrith jamais permitirá que os pés de um Thoryn conspurquem o seu nobre solo!

 

Aereth ergueu-se e a sua corte seguiu-lhe o exemplo, alguns chegaram a abandonar os seus lugares e a postarem-se atrás do seu soberano. Daveanorn assumiu o seu papel de protector do regente e colocou-se a seu lado.

 

Insultais-me, lorde Syndar...

 

Vós haveis insultado o meu senhor contrapôs Jestiban, colocando-se ao lado de Sunlar e revelando o punho de uma adaga que tinha embainhada ao cinto.

 

Perante essa visão, vários homens de Thoryn empunharam as suas facas pessoais, serrilhadas, de lâmina larga e fina, de trinchar e de cortar. O séquito de Syrith ergueu-se também e fez o mesmo, empurrando as suas mulheres para trás. Estas começaram a gritar e não tardaram a entrar guardas armados de lanças na sala. Jestiban puxou o seu soberano para trás de si e outros homens formaram um círculo protector à sua volta.

 

Era esta então a vossa intenção, jovem Thoryn? Assassinato? perguntou Sunlar. É assim que pretendeis unir as províncias, através de traição?

 

Aereth revirou os olhos e atirou as mãos ao ar.

 

Sois paranóico, lorde Syndar! Daveanorn sussurrou-lhe ao ouvido.

 

Meu senhor, assim não!...

 

Quando os ânimos se estavam prestes a exaltar, uma risada acompanhada por um leve tinir fez-se ouvir pela sala. Caiu o silêncio uma vez mais e todos olharam para uma das colunas que ladeavam a entrada. Após outra risada, projectou-se uma cabeça enfeitada com um colorido chapéu detrás da coluna, olhando em redor e escondendo-se outra vez. Com uma cambalhota, Dilet revelou-se aos presentes, cuja atenção era totalmente sua. O bobo levantou-se, sempre a rir levemente, e dirigiu-se à mesa com pulos, saltos e cambalhotas.

 

Voaram os insultos, vararam as ameaças, não de homens incultos, mas dos senhores das massas. Aço silvou, traição!, o visitante gritou; disparate, disparate! Cessai antes que alguém se mate.

 

Ninguém percebia ao certo o que se estava a passar. Os homens começaram a olhar para as suas facas, para as suas mulheres abraçadas umas às outras e para os seus soberanos de olhos fixos um no outro como dois galos na mesma capoeira. Dilet saltou para cima da mesa e começou a fazer malabarismos com maçãs.

 

Acalmai-vos, bebei, comei, tendes outra visita, isso o sei; aprontai-vos e tirai as caras de mau, menestrel, toca, prepara um solau terminou, atirando três peças de fruta para dentro de cálices, entornando os seus conteúdos, e pulando de cima da mesa com um salto mortal lateral enquanto trincava uma maçã. Assim que os seus pés tocaram o chão, entrou um anunciador, que se postou ao lado da porta, tirando um pergaminho do bolso, limpando a garganta e dando largas à sua possante voz.

 

Lorde Tylon Nehin, regente de Lennhau, defensor do Teixo de Bahabel, protector da Floresta de Lyr; sua esposa senhora Lethia Nehin; sua filha a princesa lollina Nehin; seu paladino Cortun Allark, o Urso Castanho, campeão dos bosques e sua mui ilustre corte de bom nome e nobre descendência...

 

O homem continuou a sua litania enquanto os anunciados entravam. As cortes de Thoryn e Syrith recompuseram-se o suficiente para levar os joelhos ao chão e Aereth virou a cara a Sunlar.

 

À frente da procissão que agora entrava na sala estavam dois porta-estandartes vestidos de verde que exibiam o brasão de Lennhau: um teixo sobre um fundo branco com quatro bagas vermelhas a descrever um arco por cima da árvore. Lorde Tylon era um homem alto e tinha os ombros e as costas de um lenhador. Disfarçava a sua iminente calvície rapando o cabelo, mas a barba castanha sarapintada de branco que lhe crescia debaixo do queixo era espessa como as raízes de uma árvore. Vestia uma túnica verde-escura com mangas de pele de esquilo e um capelo castanho cortado e cosido em forma de folhas aos ombros. A sua mulher trazia um vestido azul com um bordado de flores nos braços e uma saia pregueada que se arrastava pelo chão. lollina, a princesa de Lennhau, destacava-se entre o recém-chegado séquito.

 

Não era uma jovem particularmente bonita, tinha formas arredondadas, uma boca pequena, uma bossa de queixo e uma expressão pouco inteligente, mas o seu pequeno peito fora realçado com um apertado corpete amarelo-claro, as maçãs do seu rosto tinham um rubor ainda pueril, os seus estreitos e tristes olhos azuis tinham uma sombra de fuligem nas pálpebras, os lábios estavam pintados da cor de morangos e o seu espesso cabelo negro fora apartado por meio de risca em duas porções enroladas, ornadas com brilhantes pendentes prateados e assentes sobre as têmporas. O vestido era de linho branco com raspas de ouro coladas com goma, os seus pés caminhavam modestamente sobre sapatilhas de camurça e tinha suaves luvas de pelica nas mãos. Atrás de si caminhava Cortun, o paladino do senhor de Lennhau e protector da princesa. Era um homem enorme, vestido com uma túnica castanha com o brasão de um urso negro e botas de topo revirado. Tinha barba e bigode fartos mas bem aparados e o seu bravio cabelo castanho fora domado para trás com uma generosa porção de óleo, erguendo-se em espetos.

 

Jestiban olhou para o seu senhor e viu a indignação nos olhos deste. Daveanorn abanou a cabeça, sem querer acreditar no que se estava a passar.

 

A corte de Lennhau parou e lollina avançou sozinha para a mesa, olhando timidamente para o chão. Aereth curvou-se educadamente perante Sunlar e sua esposa e deu a volta à mesa, aguardando a princesa no seu centro. Quando esta chegou, ergueu a cara acanhada e falou quase em surdina.

 

Meu pai e minha mãe agradecem o convite e sentem-se honrados por comparecer, milorde.

 

Poucos ouviram o que lollina dissera, mas Aereth pegou-lhe nos dedos e beijou-lhos, virando-se para os recém-chegados de mão dada com a princesa.

 

Estais radiante, princesa, linda como a manhã. lolinna corou.

 

Muito me honram os senhores e as senhoras com a vossa presença declarou, e a corte de Lennhau acenou graciosamente com as cabeças. Aereth virou-se então para os convivas. Hoje estamos aqui para cimentar uma aliança de amizade com a excelsa província de Lennhau. Estendo o meu convite a Vaul-Syrith...

 

Impudência! exclamou Jestiban ao seu senhor.

 

Sunlar Syndar tremia visivelmente de emoções refreadas. A sua esposa agarrava-lhe o braço, tentando acalmá-lo.

 

Lorde Thoryn... disse numa voz que ecoou pela sala, haveis transmitido a vossa mensagem com a clareza da água. Retiro-me então, com a promessa de reflectir... profundamente sobre a noite de hoje. E assim fez, atirando o guardanapo de pano para cima da mesa.

 

Obrigada pela maravilhosa festa, lorde Thoryn. Tenho a certeza de que o meu esposo... tentou Alnara dizer, puxada pelo braço de seguida.

 

Jestiban lançou um olhar glacialmente ameaçador a Aereth, inclinou a cabeça em sinal de respeito guerreiro a Daveanorn e retirou-se com um porte digno, seguido pelo séquito de Syrith, que abandonou a sala numa organizada fila, escoltada pelos guardas de Thoryn a um aceno de Aereth. O anunciador fez uma vénia e retirou-se, fechando as portas.

 

Lorde Syndar não me pareceu muito animado com a ideia, lorde Thoryn comentou Tylon numa profunda voz de barítono.

 

Aereth encolheu os braços e bateu com as mãos.

 

Por favor, não permitis que este incidente vos estrague o apetite. Dirigiu o olhar aos serviçais, que ainda estavam parados.

 

Vocês, arrumem a mesa, arranjem um lugar digno destes ilustres visitantes, meus convidados de honra e nossos amigos.

 

Indicou ao séquito de Lennhau que se sentassem nos lugares vagos e conduziu o regente e a sua família à mesa principal, levando a princesa pela mão.

 

Vossa filha está um encanto, lorde Nehin disse Aereth.

 

Envergonhais as senhoras da minha corte com a sua presença, lolinna corou e baixou a cabeça, erguendo-a de seguida quando o seu pai grunhiu. A sua mãe Lethia não proferiu uma única palavra.

 

Falemos de coisas sérias, lorde Thoryn disse o regente, cofiando a barba enquanto aguardava que os serviçais pusessem pratos limpos no seu lugar. Olhava para a filha como se fosse um bem negociável.

 

Certamente, certamente... mas nunca de pé. A noite mal começou e afigura-se proveitosa... respondeu Aereth.

 

Longe dos olhares, longe da conversa, Dilet cruzava os braços à sombra de uma coluna. O sorriso na sua cara nada tinha de cómico ou idiota, e os seus olhos quase brilhavam na penumbra que tremulava como uma labareda negra à sua volta.

 

Chovia a bátegas na Latvonia, perto do Vale dos Ventos. Um grupo de soldados com capas e capuzes de lã encharcados labutavam na muralha destruída, colocando as pedras arrastadas por uma carreta de bois no lugar para que os verdadeiros trabalhadores pudessem retomar a sua função assim que a chuva parasse. Uns estavam ali por insubordinação, mas a maior parte dos homens fora demasiado gananciosa a pilhar as aldeias que alegadamente deveriam defender, e mesmo os senhores da guerra latvonianos sabiam que em tempo de batalhas a disciplina tinha de ser mantida. Um mínimo aceitável, pelo menos. O castigo era o trabalho que agora desempenhavam, enquanto os servos e trabalhadores descansavam num acampamento nas redondezas.

 

Então? Isso anda ou não? gritou um homem de longos bigodes castanhos à frente da carreta de bois.

 

Encalhou! respondeu outro que agarrava uma roda pelos raios.

 

A subida era algo íngreme, e os bois estavam a ficar cansados de se arrastarem e à sua carga pelo chão lamacento.

 

Tragam-me essas pedras ou ponho-vos debaixo delas! berrou um oficial encostado à muralha. Também ele fora castigado e os seus bigodes pendiam, molhados.

 

Ajudem-me aqui! pediu o soldado que empurrava a roda e cujos pés deslizavam na lama a cada vez que os tentava fincar no chão.

 

O latvoniano que estava à frente agarrou os chifres molhados dos bois.

 

Dêem lá uma ajuda àquele mandrião. E vocês, suas bestas cornudas, toca a puxar!

 

Dois outros soldados foram assistir o seu colega e, ao contar de três do que ia à frente, empurraram com toda a força. A carruagem rangeu, mas a roda não saiu do buraco.

 

Empurrem, seus lingrinhas! praguejou o que segurava os bois.

 

Os três assim fizeram, grunhindo em uníssono de esforço, e a roda cedeu perante o peso e a tracção, estalando ruidosamente. A carruagem inclinou-se para a esquerda e os latvonianos tiveram de correr pelas suas vidas para evitar serem esmagados pelas pedras que caíram, despedaçando o veículo e enterrando-se no solo húmido.

 

Idiotas! Imbecis! praguejou o oficial, correndo para o local do acidente e escorregando na lama. Eu capo-vos! continuou enquanto se tentava levantar.

 

O soldado que puxara os bois olhava incrédulo para o desastre. Como iriam agora levar os pedregulhos, à mão? Só ficou verdadeiramente preocupado quando viu alguém a aproximar-se ao longe.

 

Meu capitão? Vem aí alguém disse ao homem que continuava estendido na lama.

 

O indivíduo aproximava-se a longos passos firmes, com o porte de alguém que comandava, não parecendo muito incomodado com a chuva. Nem sequer trazia capuz, apenas uma capa negra ensopada.

 

Os três soldados ajudaram o capitão a levantar-se e este pareceu também ficar apreensivo. Afinal, aqueles quatro estarolas haviam ficado à sua responsabilidade, e ele também teria contas a prestar pelo que sucedera. Limpou a garganta e avançou de encontro ao indivíduo, fazendo sinal aos soldados que o acompanhassem. O vulto caminhava sem parar na sua direcção, sempre a olhar para baixo como para proteger a cara da chuva. Os bois deixaram-se ficar a pastar a erva molhada descansados.

 

Quem vem aí? perguntou o capitão, orando para que fosse um conhecido seu.

 

O vulto não respondeu mas continuou a andar, sempre a olhar para o chão. O grupo parou então, incerto. Havia algo de estranho naquele indivíduo, que envergava uma esplêndida armadura negra, ostentava um elmo com quatro chifres e se cobria com a capa preta.

 

Quem sois? quis o capitão saber, ouvindo os murmúrios incertos atrás de si e levando a mão para perto do punho da sua falchion, uma espada de ponta curva.

 

Soube que ela de nada lhe serviria no instante em que o vulto ergueu a cara e revelou uma caveira sem maxilar inferior com um brilho vermelho nas órbitas vazias.

 

O homem gritou, mas a criatura desembainhou uma porosa espada de aço negro e decepou-lhe a cabeça num único possante movimento. Os outros ficaram a olhar, paralisados pelo horror, para o corpo do seu capitão, cujas mãos se ergueram e cujo pescoço se tornou uma fonte de sangue antes de cair de joelhos. Com um silvo, a criatura deu um passo em frente e rachou o crânio de outro latvoniano ao meio e, antes que os dois sobreviventes conseguissem fugir, trespassou a barriga de um deles. O último virou as costas ao monstro e tentou correr, mas escorregou e estatelou-se de cara no chão molhado. Os bois mugiam, assustados, e o homem tentou desesperadamente levantar-se, escorregando e arrastando-se pela lama. Então sentiu um pesado pé metálico a assentar nos seus rins e a mantê-lo no lugar. Lançou um fútil grito de socorro antes de o cruel aço o espetar ao chão, atravessando coluna, carne e terra. O corpo do latvoniano entrou em choque e naquele momento pareceu-lhe que todos os seus ossos haviam estalado. A sua cara afundou-se de lado na lama castanha, sobre a qual em breve se formou uma poça escarlate, e a vida não tardou a abandoná-lo. Os bois tentavam libertar-se do seu jugo, aterrorizados, mas a criatura ignorava-os, admirando o seu trabalho. Há muito que estava saciado e não havia necessidade de absorver o néctar vermelho destas vítimas. Então pareceu acordar para o seu propósito e olhou na direcção do vale.

 

Ancalach... proferiu Baodegoth, retomando o seu incessante avanço.

 

A noite ia já adiantada quando se vislumbraram os tímidos lumes do acampamento ocarr à distância. O que sobrava da força de ataque dos guerreiros das estepes pouco mais era que uma procissão fúnebre a arrastar os seus mortos pela neve em esquifes improvisados de selas, arreios e mantas. Os companheiros sentiam-se como intrusos no meio dos silenciosos guerreiros, não só por terem lutado contra estes mas também devido ao conhecimento de que muitas viúvas iriam maldizer os seus nomes naquela noite. Montavam hemíonos que haviam perdido o dono, menos Allumno, que encontrara Alfarna na brincadeira com as montadas dos ocarr. Cavalgavam lado a lado numa linha, cercados por cavaleiros taciturnos e liderados por Kror, uma velha marreca de olhos vendados com um pano sangrento e pelo que parecia ser o líder. Nenhuma palavra fora proferida no silêncio nocturno da vasta estepe, apenas o esmagar de cascos contra a neve seca se fazia ouvir. O frio estalava no ar, mas pelo menos não havia vento para o fazer incidir contra o corpo e penetrar pelo vestuário adentro, apenas o rosto ficava vulnerável às suas álgidas carícias.

 

De cara exposta ao frio, Aewyre arrependia-se de ter usado o seu lenço para tratar da ferida de Lhiannah. Pelo menos o frio adormecia a pele da sua cara e os inchaços roxos na maçã do rosto e no canto da boca não o incomodavam tanto. A proximidade de Kror perturbava-o, e tinha a certeza de que o drahreg sentia o mesmo. Ambos evitavam cruzar olhares, pois de cada vez que o faziam era como se duas lâminas deslizassem uma pela outra, silvando agudamente nas suas cabeças. Worick olhava em redor, resmoneando, e Lhiannah permanecia em silêncio, olhando em frente. Os únicos que mantinham uma postura descontraída eram Allumno e Taislin, e o burrik parecia mesmo excitado com a perspectiva de entrar num acampamento dos temidos guerreiros das estepes, tecendo fantasias mirabolantes sobre aquilo que iria ver. O mago estava simplesmente curioso. O seu saber acerca do povo de Karatai era quando muito superficial e influenciado pelos dizeres populares, e esta era uma oportunidade única para o aprofundar pessoalmente. Certo de que nenhum dos espécimes saberia falar Glottik, dirigiu Alfarna à montaria do curioso drahreg.

 

Kror, se não estou em erro? indagou.

 

O referido limitou-se a olhar para o mago. A gema na testa de Allumno chamou a atenção das suas pupilas vermelhas, que depressa se tornaram a fixar nos olhos do humano.

 

Kror... é o meu nome.

 

Este drahreg é... estranho achou a voz de Zoryan.

 

Deveras, mestre concordou o mago. Folgo em ver que a memória não me falha. Diga-me, por que nos cedem hospitalidade após um ataque que claramente visava eliminar-nos?

 

Se falas com floreios ele não percebe, Allumno comentou Aewyre, olhando em frente.

 

Kror dirigiu-lhe o olhar, passando por cima do outro humano.

 

Mata-o! Agora, ataca com celeridade quando o inimigo está cercado! -sussurrou-lhe Kerhex.

 

Não, não o deves fazer! Eles estão debaixo da protecção que o teu líder lhes concedeu! objectou Sassiras’s.

 

Kror devolveu a sua atenção ao humano da pedra na testa.

 

As minhas desculpas. Por que nos oferecem comida se nos atacaram antes?

 

As... leis das estepes...

 

Leis? Não me diga. Por favor, continue.

 

Kror franziu o cenho, sem perceber o entusiasmo do humano, o único do grupo que não conhecia.

 

Deve oferecer-se... abrigo. Lembrou-se da palavra que Hazabel lhe ensinara. E onde estava a mulher? A xamã parecia saber algo, mas recusava-se a falar sobre ela, dizendo que fora com os udagai.

 

Deve oferecer-se abrigo a quem se fez mal... sem querer.

 

Deves ter querido pouco, deves... resmungou Worick.

 

Ah, entendo. Um pedido de desculpas formal, então?

 

Kror começava a arrepender-se de ter respondido. Este humano era estranho.

 

Desculpas? Não... amigos recebem comida e calor, desconhecidos são mortos se forem... maus. Se desconhecidos forem atacados sem razão, devem ser... recompensados? perguntou, incerto quanto à escolha da palavra.

 

Compensados, talvez? sugeriu Allumno.

 

Sim, compensados.

 

Deveras interessante; uma ética das estepes. Têm o seu próprio código de conduta.

 

Aewyre abanou a cabeça. Toda a situação era ridícula. A sua vontade era desembainhar Ancalach e fazê-la faiscar contra os alfanges de Kror, medir forças com ele, fazê-lo provar o sabor acerado da sua lâmina na carne, acabar com aquilo de uma vez por todas. Mas não podia; seria desonroso, pois, pelo que lhe fora dado a entender, eram agora hóspedes da tribo, e Kror fazia parte dela. Tinha de se controlar, mas desde aquele surto de energia que o puxar do ”tendão”, como o guerreiro viera a chamar à estranha força que o arrastava para junto de Kror, se tornara quase insustentável, como se o equilíbrio tivesse sido de alguma forma destabilizado. Controlo, concentração,,,

 

... e durante quanto tempo seremos hóspedes? continuou Allumno, francamente interessado.

 

Até se irem embora respondeu o drahreg secamente.

 

Quer dizer que podemos ficar... quanto tempo quisermos?

 

Enquanto houver leite.

 

Evidentemente. E se partirmos antes de o leite acabar? Seremos atacados?

 

Kror fitou o mago, parecendo indignado.

 

Não, e virou-lhe a cara, ignorando as perguntas seguintes. O mago resignou-se com o silêncio do drahreg, certo de que o ofendera, e afastou-se. Mais nenhuma palavra foi proferida até chegarem ao acampamento. A chegada da procissão foi solene, e os dois ocarr que estavam de sentinela baixaram as cabeças ao verem o número de mortos. Mulheres começaram a sair das tendas, acompanhadas por crianças e tanto umas como as outras correram de imediato de encontro ao ayan, agarrando-lhe as selas, apalpando as suas pernas e botas, como se todos quisessem um bocado dele. Os companheiros não puderam deixar de notar o comparativamente pequeno número de mulheres que acorreram aos cadáveres para chorar ruidosamente as suas mortes.

 

Das duas uma... comentou Worick ou gostam muito do líder ou odeiam os maridos.

 

Era de facto estranho: menos de dez mulheres para mais de vinte mortos, mas ninguém se atreveu a perguntar a que se devia esse comportamento. A atmosfera era de pesar e todas foram prestar as condolências às viúvas e lamentar os mortos, mas esse era apenas um gesto de solidariedade; aparentemente o facto de o ayan estar vivo é que importava.

 

A xamã cega grasnou algo e apontou para onde julgava que os companheiros estavam. O seu dedo indicava na verdade o curral das cabras, mas as mulheres e crianças perceberam e olharam para o grupo de estranhos. Continuou a falar e todos a escutaram em silêncio, mesmo as viúvas, que interromperam o seu pranto para ouvir as palavras da anciã. Kror não se incomodou a traduzir; olhava tristemente para as famílias sem pai, partilhando a sua dor. O ayan falou então, apontando também ele para os companheiros e batendo no coração como se estivesse a jurar algo.

 

Parece que nos estão a declarar a sentença de morte... achou Worick, roçando o cabo do seu martelo com os dedos.

 

Não, Worick discordou Aewyre. Eles não nos vão fazer nada.

 

Ainda não confio neles. Muito menos na palavra de um drahreg teimou o thuragar.

 

Vá lá, Worick interveio Taislin. Vai ser giro.

 

Giro era que eles atassem cada um dos teus membros a burros e... Kror virou o seu hemíono para os companheiros.

 

São agora... hóspedes dos Cho Tirr. Devem entregar as armas ao nosso líder, o ayan.

 

Oh sim, e ele escusa de se incomodar: nós atamos as mãos e os pés sozinhos.

 

Worick, se nos quisessem mortos, já poderiam ter atacado há muito tempo lembrou Allumno.

 

O thuragar e o mago começaram a discutir, alheios aos seus anfitriões. Aewyre dirigiu-se a Kror, agarrando as rédeas com força.

 

Eu não posso dar a minha espada ao... ayan.

 

Kror olhou para o guerreiro e foi como se desembainhasse duas lâminas vermelhas. Ficaram de olhos fixos um no outro em silêncio, e os próprios Cho Tirr sentiram a tensão. Worick e Allumno também repararam e acabaram por se calar também.

 

Porquê? perguntou Kror por fim.

 

Pode ser perigoso para ele foi a única coisa que Aewyre soube dizer. Desconhecia o verdadeiro carácter do líder da tribo. Podia ser honrado, mas se correspondesse às descrições que as gentes faziam dos ocarr, seria fulminado por Ancalach se lhe tocasse. O jovem torcia as rédeas para evitar levar a mão à espada e enfrentar o drahreg.

 

Kror, no entanto, olhou para Ancalach e pareceu entender o que o humano queria dizer. Comunicou algo ao ayan, que olhou dubiamente para a magnífica espada do guerreiro e para o seu portador. Kror acrescentou algo, indicando os seus próprios alfanges, e aí o líder dos cavaleiros aparentemente percebeu.

 

Os outros devem entregar as armas disse Kror, virando-se outra vez para Aewyre, que olhou para os seus companheiros.

 

Allumno olhou para cima como se não fosse nada consigo, pois duvidava de que quisessem tirar um cajado a um homem coxo. Os outros desmontaram para entregarem as suas armas, menos Lhiannah que permaneceu em cima do hemíono.

 

Então? perguntou Worick.

 

A arinnir parecia atrapalhada, transferindo o seu peso ora para um lado ora para outro em cima da sela, como se estivesse indecisa.

 

Passa-se alguma coisa? quis Taislin saber, reparando nos olhares dos ocarr.

 

Aewyre cofiou a barba do queixo, ergueu-o de seguida em sinal de entendimento e avançou, estendendo os braços à arinnir.

 

Estás habituada a desmontar com a perna ferida, não é? praticamente afirmou.

 

A princesa olhou-o imperiosamente de cima, escondendo mal a indignação e inclinando-se para o lado oposto ao do guerreiro, que suspirou.

 

O Worick e o Taislin não chegam aí, o Allumno não pode contigo e duvido de que queiras que o Kror ou qualquer outro ocarr te toque. Vá fez-lhe sinal com os dedos, posso?

 

Lhiannah ainda ponderou uma última vez a hipótese de desmontar com a outra perna, mas seria mais indignante ainda precisar do apoio de um burro para se manter em pé que do Aewyre, pelo que acabou por assentir com a cabeça. O jovem pegou em Lhiannah pela cintura com as suas mãos fortes e tirou-a da sela, grunhindo pelo nariz, pois a princesa não era de todo leve e tinha a armadura vestida. Quando a pousou, a arinnir afastou-se dele rapidamente, coxeando para perto de Worick enquanto escondia o rubor nas suas faces esfregando o nariz. O jovem suspirou e cruzou os braços enquanto Lhiannah desembainhava a espada e tirava o arco do ombro para os entregar a um ocarr. Taislin teve o cuidado de manter uns punhais escondidos nas suas mangas e botas antes de fazer o mesmo. Worick resmungou, mas deu o seu martelo a um jovem guerreiro.

 

Trata-me bem disso, ou parto-te os chifres.

 

O ayan desmontou então e Kror seguiu-o, indicando aos companheiros que fizessem o mesmo. O drahreg coçava o pescoço frequentemente, quase como uma desculpa para ter as mãos perto dos punhos dos alfanges embainhados nas costas. Os Cho Tirr observavam os estranhos com uma mistura de curiosidade e medo; os homens punham os braços por cima dos ombros das mulheres e as crianças agarravam-se às saias das mães, e isso em nada contribuía para o conforto dos companheiros.

 

Vamos para o yugr do ayan. Há comida lá informou Kror, tomando a dianteira com o seu líder.

 

O a.yan pareceu então dispensar a tribo, pois a maior parte dos ocarr voltou a entrar nas suas habitações redondas de feltro, mas um pequeno grupo seguiu-os até à maior tenda do acampamento.

 

Pelo covil do lobo adentro... resmoneou Worick, mantendo-se perto de Lhiannah.

 

Karatai era uma terra estéril e seca, isolada dos ventos do mar pela Cinta, que a rodeava. Os seus poucos lagos secavam no Verão e gelavam no Inverno, mas eram focos de vida em qualquer altura, uns dos poucos locais nos quais se podia encontrar aglomerados de antílopes e hemíonos selvagens. O lago Aigun era um deles, mas nessa noite encontrava-se excepcionalmente tácito, embalado pelos sussurros do vento. A sua margem tinha uma crosta branca de gelo e a superfície estava traiçoeiramente dura como um espelho baço. Um ponto negro caminhava tropegamente para uma das bordas do lago. Era Hazabel, e estava exausta. O seu cabelo encontrava-se em total desalinho, a sua cara estava suja de sangue escuro gelado, tinha manchas arroxeadas debaixo dos olhos e o nariz inchado. Deixou-se cair de joelhos na margem do lago e esmurrou a crosta de gelo, rachando-a e enfiando o punho na água frígida, que lhe queimou a mão. A harahan não ligou e limpou algum do sangue, regelando a cara, e inspirou fundo para o que ia fazer a seguir. Levou os dedos indicador e médio das duas mãos ao nariz ferido e, antecipando a dor com um grito prematuro, alinhou a cana, sentindo a cartilagem a raspar no osso. Atirou outra mão cheia de água à cara e esmigalhou a neve dura que tinha à mão, enfaixando-a com um pedaço da sua roupa rasgada para a colocar no nariz. Os seus dedos molhados ficaram entorpecidos ao frio, mas a dor no nariz diminuiu após algum tempo, quando o gelo o dessensibilizou. A harahan exalou de olhos fechados, tremendo de frio, e permaneceu de joelhos, deixando que o toque álgido do gelo lhe aliviasse a dor e colocando a dormente mão direita debaixo da axila para a aquecer.

 

Quando se levantou, doíam-lhe as pernas, quase não sentia a mão esquerda, estava com os joelhos molhados e tiritava de frio. Arrependia-se agora de ter tirado as suas luvas antes da luta, pois apesar de saber que não ficaria doente, era incómodo e desconfortável, e o nariz em nada ajudava. Hazabel era vaidosa, e a ideia de ficar com aquela deformação na cara horrorizava-a, pelo que começou a sentir o estado do seu nariz cuidadosamente. Quando tacteou um edema entre as narinas, inspirou fundo uma vez mais e fez uma pequena incisão com a unha para impedir que o sangue coagulasse. Assim que o sangramento parou, rasgou pequenos pedaços da sua saia, enrolando-os e enfiando-os dentro das narinas para tentar manter a cana no lugar.

 

Sentiu-se fraca e extenuada, pelo que tirou um dos fígados que trazia na bolsa e saciou-se com o seu amargo fel. Algo restabelecida, levou o trapo com gelo ao nariz outra vez e olhou para o imenso céu escuro, no qual deslizavam nuvens cinzentas.

 

”Mais uma pela qual pagarás, Aewyre Thoryn...”, pensou, lembrando-se do seu mestre. ”E o maldito não perde pela demora; juro que será sangue por sangue. Cada gota...”

 

O interior do yugr era pardo e fumarento, apesar do buraco no topo da tenda. Os montes de estrume seco que ardiam em braseiros de osso exalavam a sua distintiva fragrância e os companheiros levaram algum tempo para se habituarem ao odor. Estavam sentados em silêncio num círculo em redor da fogueira com Kror, o à.yan e outros ocarr, todos eles homens. Worick não estava a gostar de todos os olhares que Lhiannah recebia, mas a arinnir mantinha-se alheia a tudo com uma postura digna de princesa. Allumno observava tudo atentamente, e os olhos felinos de Taislin estavam escuros e bem abertos. Apenas Aewyre e Kror tinham os olhos presos ao estrume em brasa, erguendo-os apenas para receber as tigelas que umas mulheres distribuíram pelo grupo.

 

Fala com ele, Aewyre recomendou Allumno. Só temos a ganhar se soubermos mais sobre os nossos anfitriões.

 

O jovem olhou para o mago, sabendo que ele tinha razão, mas parecia-lhe tão estranho trocar palavras com Kror; era como se

estivessem a esgrimir com as línguas, a desferirem estocadas hesitantes para se testarem mutuamente. Mas Allumno estava certo, como sempre...

 

As mulheres começaram a servir uma estranha papa vermelha e pastosa; Aewyre não resistiu e teve de perguntar ao drahreg:

 

O que é isto?

 

Lazag. Leite coalhado outra palavra que aprendera com Hazabel das nossas irmãs para dar amor e sangue dos nossos irmãos para dar força.

 

Quando viu os olhos do humano arregalados, apressou-se a clarificar.

 

Não dos nossos irmãos de duas pernas...

 

O que é isto, Aewyre? quis Allumno saber também.

 

Leite de égua coalhado e sangue de hemíono... respondeu o jovem.

 

Deveras invulgar... comentou o mago, provando uma colherada Hmm, não é mau.

 

O guerreiro levou uma amostra à boca, fazendo de conta que eram papas de aveia. A mistela até era tolerável, mas talvez isso se devesse à sua fome e à dos seus companheiros, que estavam a comer com apetite. Seguiu-se um prato com o que Aewyre veio a saber serem ratos cozidos com rodelas de cebola selvagem, mas também isso os companheiros comeram sem grande cerimónia, bebendo leite de égua fermentado, que os ocarr chamavam boozlan, servido de uma vasilha.

 

A tribo está com problemas em arranjar comida? perguntou a Kror, fazendo uma careta ao ingerir a bebida forte e acre.

 

O drahreg conseguiu olhar o humano nos olhos com o devido esforço.

 

O céu tem sido cruel. A seca que houve antes do Inverno matou a nossa erva, e os ratos que comemos agora comeram quase tudo o que sobrou. As neves vieram cedo, enterraram o resto e ainda não desapareceram. O frio começou a matar o nosso gado fraco. O céu está zangado e não há comida para as nossas crianças e para os nossos irmãos.

 

O guerreiro ficou a meditar na invulgarmente longa resposta e Allumno meteu-se na conversa.

 

É por isso que estão a atacar a Latvonia? Kror não contestou, mas a resposta era evidente.

 

Pedras me partam, uma alcateia de milhares de lobos da estepe famintos!

 

Se o nosso amigo diz a verdade, parece-me que sim, Worick concordou o mago, trincando um lombinho de rato. A fome pode bem instigar uma invasão.

 

Por que não comem os cavalos? sugeriu Taislin.

 

Os companheiros cerraram os olhos em sincronia, insultando o burrik mentalmente. Kror fulminou-o com os seus orbes vermelhos.

 

Comerias o teu irmão? perguntou o drahreg com veemência.

 

Bem, não sei. Não faço ideia a que é que ele saberia... seria uma questão de...

 

Lhiannah enfiou uma colherada de cebola na boca de Taislin antes que este dissesse mais disparates. Mesmo estrangeiros podiam ver o evidente amor e devoção que o povo das estepes tinha pelas suas montadas, e haviam visto os desenhos quase religiosos no cromeleque.

 

Os ocarr gostam mesmo dos... seus irmãos disse Aewyre, tentando mudar de conversa.

 

São nossos irmãos. Os primeiros ocarr feitos da terra das estepes, um homem e uma mulher, sofreram no primeiro Inverno. A mulher teve uma criança e morreu. O drahreg pareceu esquecer a hostilidade por momentos, como se fosse uma história que gostasse de ouvir e contar. A criança precisava do leite da mãe, mas ela estava morta. O pai pensava que a primeira filha ocarr ia morrer, mas apareceu uma égua que lhe deu leite. Com o leite, a criança ficou forte e sobreviveu ao Inverno. Quando cresceu, a criança teve filhos do pai

 

Lhiannah tirou os olhos do estrume em brasa e nasceram um menino e um potro. Assim começou a primeira tribo das estepes.

 

Lhiannah olhou para a sua taça com leite fermentado e pensou em crianças a mamarem tetas de égua e em incesto e viu-se forçada a pousá-la no chão.

 

Uma história deveras interessante... comentou Allumno, ignorado por Kror.

 

Os restantes ocarr comeram durante a conversa toda, mas nunca haviam parado de observar cada movimento dos companheiros, como se estivessem a tentar deduzir a conversa através dos gestos. Lhiannah e os seus cabelos atraíam a maior parte dos olhares, bem como a gema na testa de Allumno, os olhos de Taislin, o punho de Ancalach, o aspecto de Worick. Nunca haviam visto nada como aquele grupo, e a curiosidade havia-se aparentemente sobreposto ao medo ou ao rancor.

 

Outra coisa... quis Aewyre saber. As mortes dos vossos homens foram choradas por poucas mulheres. Porquê?

 

Kror estranhava o facto de o humano falar com ele, mas à medida que respondia ia descobrindo que interagir com o guerreiro de alguma forma aliviava a tensão, como se ambos fossem dois galos que já não necessitavam de influências exteriores para se debicarem até à morte.

 

Muitos dos que morreram... eram filhos do ayan. As suas mães pertencem-lhe. Lhiannah tirou os olhos do estrume uma vez mais.

 

Pedras me partam, eles fazem como os cavalos!

 

Se bem me lembro, os thuragar... tentou Allumno objectar.

 

Connosco é diferente! Cada um apanha aquela que pode, mas este fica com todas!

 

O drahreg olhava para um e para outro alternadamente, sem perceber a conversa.

 

Costumes diferentes... constatou o mago, bebendo mais um trago do leite fermentado, que agora lhe sabia a cultura. Hum, é verdade Aewyre: pergunta-lhe acerca da harahan.

 

O jovem esquecera-se completamente da mulher. Teria sido ela a atacá-lo no cromeleque? Os inchaços na cara pareceram latejar com a memória dos seus golpes.

 

Então, não te lembras? Daquela vez em que eu...

 

Lembro-me muito bem, Allumno interrompeu, dirigindo-se a Kror. Havia uma mulher contigo. Onde está ela? interrogou, directo.

 

O drahreg estivera a ouvir a conversa dos humanos, e percebera algumas coisas. Deviam estar a falar de Hazabel.

 

Não sei. O que é que vocês queriam fazer com ela?

 

Aewyre não esperara uma pergunta desse tipo. Allumno pousou o copo, interessado.

 

O que nós...? Ela atacou-me, quer dizer, toda a tribo nos atacou, mas ela... onde está a harahan?

 

A quê? arquejou Kror, como se tivesse ouvido um terrível agravo.

 

A harahan. Onde está a maldita harahan?

 

Aewyre, tem calma... recomendou Allumno. O próprio mago sentia que o mínimo de fricção entre os dois poderia desencadear um combate de morte.

 

Por sorte, Kror não ouvira o resto. Apenas a palavra ”harahan” lhe ecoava nos ouvidos. Isso explicava tudo, a estranha empatia que sentira para com Hazabel, o sentimento quase fraternal que a mulher lhe inspirara...

 

Ela enganou-te. Eu sempre te avisei... admoestou Sassiras’s.

 

Eu... não sei onde ela está... admitiu Kror por fim, apoiando a cabeça nas mãos para pensar e dando a entender que desejava ser deixado em paz.

 

Allumno encolheu os ombros e Aewyre fez a vontade ao drahreg, prometendo a sim mesmo confrontá-lo com a questão mais tarde.

 

Quando a refeição terminou, o ayan ergueu-se e os companheiros prepararam-se para fazer o mesmo, seguindo as regras de cortesia que vigoravam fora das estepes, mas os olhares que receberam dos ocarr foram suficientes para perceberem que em Karatai as normas de conduta eram bem diferentes. Tornaram a sentar-se no chão e aguardaram. O ayan então deu a volta à fogueira, parando junto a cada hóspede e proferindo algumas palavras. Aewyre olhou para Kror para pedir uma tradução, mas o drahreg manteve-se em silêncio, acenando com a cabeça de cada vez que o seu líder acabava uma frase. Quando o ayan acabou, ficou parado em pé como se esperasse uma resposta, e foi aí que Kror falou.

 

O ayan deu-vos as... boas-vindas ao seu acampamento e disse que o leite dele é vosso.

 

Diz ao ayan que nós agradecemos a hospitalidade respondeu Aewyre.

 

E não te esqueças de agradecer o terem tentado matar-nos... resmungou Worick.

 

Aewyre ignorou o thuragar e foi por sua vez ignorado pelo drahreg.

 

As leis das estepes dizem que os... hóspedes devem oferecer algo em agradecimento.

 

Oh sim, muito obrigado por ter tentado fazer ouriços de nós... rabujou Worick.

 

O que é que o... ayan quer? perguntou Aewyre.

 

O que vocês puderem dar.

 

As respostas lacónicas do drahreg começavam a irritar o jovem guerreiro... ou talvez fosse só o ”tendão”... Controlo, concentração...

 

Vendo que o olho famélico do líder ocarr recaía sobre si, Lhiannah apressou-se a vasculhar a sua mochila e dela tirou um embrulho de linho, que ofereceu ao ayan. Este abriu-o e franziu o nariz ao sentir o odor que emanava da estranha pasta amarelada que continha.

 

Chama-se mostarda... explicou Lhiannah, tirando uma lasca de carne da sua mochila.

 

Em frente do ocarr, enfiou-a na mostarda e deu uma trincadela, acenando com a cabeça como para indicar que sabia bem. O ayan imitou o gesto e cuspiu o naco de carne que trincara, surpreso pela acidez da pasta amarela. Proferiu o que pareceu ser um praguejo, mas calou-se de repente e olhou para cima com o seu olho, estalando os lábios com o sabor colateral. Experimentou outra vez e pareceu tomar-lhe o gosto, pelo que aceitou a oferenda com um grunhido de aprovação, se bem que desse a entender que havia preferido provar outra coisa amarela que não a mostarda.

 

A oferta é boa traduziu Kror de seguida.

 

A arinnir sorriu, satisfeita, e sentou-se. O ayan disse algo parecido com uma frase de boas-vindas, cobrindo os companheiros com um gesto largo da sua mão, e os presentes murmuraram algo em conjunto.

 

A tribo vai chorar os mortos agora. Podem descansar, se quiserem disse o drahreg, indicando umas mantas no chão.

 

Worick ainda não estava convencido, mas Taislin foi o primeiro a gatinhar para as peles e a enrolar-se numa delas. Lhiannah seguiu-se-lhe inevitavelmente e Allumno encolheu os ombros, imitando-os.

 

Vais dizer-me que agora queres dormir para que estes selvagens te cortem a garganta durante o sono? perguntou o thuragar a Aewyre, que vasculhava a sua mochila.

 

Worick, eles não nos vão fazer nada de mal insistiu o guerreiro, tirando um chifre e um cantil.

 

Ei, aonde vais? perguntou, vendo que o jovem se dirigia à entrada da grande tenda.

 

Lavar a boca. Sabe a rato... explicou, abrindo o reposteiro de pele e saudando o frio da noite.

 

O acampamento estava silencioso, exceptuando os gemidos abafados e irregulares de mulheres que provinham de dentro dos vários yugr. Não havia vivalma fora do calor das tendas e a estepe estava respeitosamente calada. Aewyre abriu o cantil, bebeu um trago e bochechou, cuspindo para o lado. De seguida, sacudiu uma porção do conteúdo do chifre, um pó alaranjado constituído por sal com conchas e casca de choco triturados para um pedaço de pano e fê-lo numa pasta com umas gotas de água. Esfregou os dentes vigorosamente com o pano e limpou a boca com água para aliviar a sensação abrasiva do composto, mastigando ainda umas sementes de funcho para suavizar o hálito. Enquanto mascava, observou o céu das estepes, que se encontrava limpo com a excepção de alguns cirros. A abóbada celeste nunca lhe parecera tão vasta, tão ampla, e o guerreiro acabou por se perder na sua imensidão estrelada, navegando pelos pontos luminosos do céu.

 

Aewyre estava de tal maneira absorto que nem ouviu o arrastar do reposteiro a poucos passos de distância. Foi o formigueiro nos pêlos do seu pescoço que o fez virar-se. Kror estava a olhar, meramente a olhar, mas os seus olhos vermelhos pareciam sangrar na escuridão e os seus caninos brilhavam ao luar. Ambos estavam desarmados, mas o primeiro impulso foi o de saltarem para as gargantas um do outro, enfiarem a cara do adversário na neve, partir-lhe o pescoço... As pernas do humano e do drahreg flectiram-se discretamente e o sangue correu-lhes livremente pelas veias, aquecendo os seus corpos e acalorando-lhes o temperamento. Os sentidos de ambos estavam no limite e centrados um no outro, nada mais existia, nada mais importava...

 

Mas a voz de uma criança fez-se ouvir e o encantamento foi quebrado. Os dois oponentes olharam para o lado e viram uma criança ocarr com o branco dos olhos avolumado pelo medo e com os dedos nervosamente enfiados na boca. Kror olhou para Aewyre e, vendo-o de postura relaxada, afastou-se e foi ter com a criança. O humano exalou a tensão para fora do corpo, não sem algum desapontamento, e sentiu o ”tendão” a puxá-los teimosamente aos dois. Kror pareceu ignorá-lo e ajoelhou-se diante da criança, pondo-lhe as mãos nos pequenos ombros e murmurando-lhe palavras aquietadoras. Aewyre virou-lhes as costas e entrou no yugr, sentindo o ritmo do corpo a desacelerar. Os seus amigos já estavam enrolados nas peles e de olhos fechados, mesmo Worick, que acabara por adormecer com o elmo fendido por cima da cara. Os ocarr estavam de pernas cruzadas, baloiçando as cabeças para a frente e para trás, orando em silencioso uníssono na sua estranha língua. O guerreiro dirigiu-se em bicos de pés para o amontoado de peles, deitou-se nelas e aconchegou-se com os braços atrás da cabeça. As orações dos ocarr em breve se tornaram num indistinto zunir, e o calor da tenda fazia com que as pálpebras do guerreiro parecessem pesadas. Lhiannah mexia-se, Worick ressonava e Taislin emitia ruídos durante o sono. Esta estranha sinfonia embalou Aewyre que, esforçando-se por tirar Kror dos seus pensamentos, acabou por adormecer. Sonhou com alfanges durante o que sobrou da noite.

 

Tannath estivera estranhamente distante desde manhã. Adormecera cedo na noite anterior e cedo se havia erguido, tão silencioso que nem sequer acordara Slayra. Havia recebido cada um dos avanços da eahanoir com um balde de água fria, e falara pouco quando esta tentara conversar, emitindo pouco mais que grunhidos. A refeição matinal de ovos com pão servida na sala de jantar pareceu-lhe fria e insulsa como Tannath, e a janela exibia um dia cinzento. O único som era o leve tinir dos talheres de prata contra os pratos e o ocasional fluir de vinho para um dos cálices.

 

Tratamos hoje do eahan então? perguntou, tentando iniciar uma conversa. Havia sugerido ontem a Tannath obrigar Quenestil a assistir a um combate de Babaki e o eahanoir dissera que iria pensar no assunto.

 

Não houve resposta.

 

Slayra observou os venirr que serviam a refeição, mas estes pareceram-lhe ainda mais resolvidos a manter os olhos no chão do que era habitual. Havia qualquer coisa no ar, e os criados também a sentiam. O silêncio era a sua melhor defesa.

 

Tannath... disse a eahanoir por fim quando os venirr se retiraram com a louça o que tens? Passa-se alguma coisa?

 

O eahanoir limpou calmamente a boca com um pano e olhou Slayra nos olhos pela primeira vez desde manhã. O azul pouco mais era que um pingente gelado, mas o cinzento faiscava como uma pederneira a embater contra aço e a tatuagem que o rodeava parecia arder, rubra. Era um olhar ao qual poucos haviam sobrevivido para o descrever e a eahanoir deu por si a torcer nervosamente a toalha branca nas mãos por baixo da mesa. Tannath manteve-a assim paralisada durante três batidas de coração, mas a sua boca acabou por se esticar num sorriso oblíquo e o eahanoir soergueu-se, ligeiramente inclinado sobre a mesa. Slayra olhou para a mão que se dirigia lentamente à sua cara como se de uma víbora se tratasse. Os dedos de Tannath roçaram-lhe a orelha e a maçã do rosto, suaves e amenos como um último suspiro.

 

Perdoa-me. Hoje é o teu dia e acordei algo indisposto. Os dedos deslizaram até aos lábios da eahanoir e esta semicerrou os olhos.

 

Deves ter imaginado os mais horrendos tormentos para o Quenestil, não é... Slayra arquejou quando os dedos do eahan se cerraram no seu cabelo e lhe puxaram a cabeça para trás, fazendo com que derrubasse um copo num gesto involuntário sua endemoninhada?

 

Tannath agarrava-lhe o cabelo com força, apoiando uma mão na mesa, sobre a qual estava inclinado, e ainda sorria. Slayra forçou-se a fazer o mesmo.

 

Espero que tenhas estômago para tudo o que lhe vou fazer... desafiou, mordendo o canto da mão de Tannath com a força necessária para não quebrar pele.

 

O eahanoir largou-lhe o cabelo e pôs os dedos debaixo do queixo de Slayra, levantando-lho e forçando-a a fitá-lo.

 

Sempre levas as coisas dele? perguntou.

 

Sim... respondeu a eahanoir, levantando-se. Vou queimá-las à sua frente. Ele nutre mais amor por aquele equipamento que pela maior parte das pessoas.

 

Mais do que por ti?

 

A pergunta de Tannath atingiu Slayra com a força de um projéctil de catapulta. A eahanoir ficou aturdida por momentos, sem saber o que dizer, sem saber o que fazer, esquecendo-se mesmo de respirar.

 

Tannath riu.

 

Sim, porque aquilo parece um ódio verdadeiramente passional. Deste-lhe a volta à cabeça, não foi? gozou o eahanoir, pegando em Slayra pela cintura e puxando-a para si por cima da estreita mesa.

 

Dás mesmo a volta à cabeça a todos...

 

A eahanna ficou algum tempo de boca aberta, emudecida, sem que nada lhe ocorresse para dizer, mas Tannath nunca deixou de sorrir. Por fim, Slayra conseguiu rir e beijá-lo, mas não havia fome nos lábios do eahanoir, e este afastou-a.

 

Vai lá buscar as coisas; o combate não tarda. Estou à tua espera lá fora disse, virando-lhe as costas e saindo da sala.

 

A eahanna ficou na mesma posição por algum tempo, olhando estupidamente para a porta pela qual Tannath saíra como se esta lhe pudesse dar respostas. ”Mais do que por ti?” Saberia Tannath alguma coisa? Só de pensar nessa possibilidade, as pernas de Slayra fraquejavam e o seu estômago inflamava-se. Não podia...

 

”Estou a ser paranóica. Que razões pode ter ele para suspeitar seja do que for?,.. A Shanaya, talvez?” Teria de falar com Tannath a caminho da arena. Sabia muito bem como derreter o gelo do eahanoir, mesmo dentro de uma carruagem. Não se podia dar ao luxo de estar sob suspeita, não agora. Conseguira elaborar um plano para juntar Quenestil e Babaki, sob o pretexto de torturar o amigo do eahan à frente deste. Nem tivera de mentir para convencer Tannath a levar os objectos pessoais de Quenestil; era verdade que o shura prezava muito o seu equipamento. Queimá-lo à sua frente seria outro cruel castigo, Tannath concordara. O eahanoir mandara guardar as coisas de Quenestil num baú num quarto desocupado da sua casa, que se encontrava cheio de tralha e cheirava a pó. A eahanna acendeu um lampião de óleo e entrou no cubículo, interrogando-se acerca da origem daquele acervo de mobília e objectos, pois Tannath era algo espartano nas suas posses. Recordações de amantes falecidas, porventura? Talvez falecidas não fosse a palavra certa, não com Tannath... mas por que pensava ela agora nestas coisas?

 

”Põe a cabeça no lugar, mulher. O Quenestil e o Babaki precisam de ti”, repreendeu-se.

 

Slayra inspirou fundo e tossiu devido ao pó inalado, que lhe começava a irritar os olhos. Felizmente, o baú não foi difícil de encontrar, pois era uma ilha de asseio no meio daquele mar de poeira. Tapou o nariz e a boca com a mão, pousou o lampião no chão, ajoelhou-se perante o contentor e abriu-o, começando a retirar lá de dentro as peças do equipamento de Quenestil. A pequena mochila do eahan não estava lá, mas de resto não faltava nada. A faca cuja lâmina o próprio shura forjara num forno de barro, embutindo-a num ramo de ponta cortada e deixando que este crescesse com o metal embebido no seu cerne; a aljava de camurça com setas de pontas sem rebarbas; a tosca bainha de pele e couro com fivelas para o cinto; a escabrosa pedra de amolar num saco de pele; o arco do qual Quenestil tanto se orgulhava, feito de madeira, osso e tendão, e o seu estojo de couro com um dedal de osso para proteger os dedos, três fios sobressalentes e um frasco de chifre com cera de abelha para o fio. Slayra lembrou-se de todas as precauções que Quenestil tomava para resguardar o arco da humidade e olhou com alguma consternação para o mofo que se formava nos cantos poeirentos. Com sorte, o interior do baú fora suficientemente seco...

 

A eahanoir ficou a olhar para as armas durante algum tempo. Eram parte do seu amado, haviam sido feitas por ele com esforço e dedicação, e era evidente que para ele eram muito mais que meros objectos. Desembainhou o facalhão e limpou os olhos lacrimejantes para o ver melhor. O gume ainda estava afiado da última amolação, e limpo. Havia algum sangue seco no rebordo onde a lâmina penetrava a madeira do punho, que Slayra limpou com a unha. O metal era baço, fruto de um trabalho com meios toscos, e não espelhava a sua imagem, mas a eahanoir não precisava de ver para se recordar da ocasião na qual fora testada no rio, reflectindo as suas acções no estilete. A folha castanha arrastada pela corrente do Caar havia encalhado na lâmina, e Quenestil revelara-lhe que isso significava que a Mãe reconhecera nela um potencial. Não adiantara mais detalhes, mas a partir desse momento as coisas haviam mudado muito entre ambos...

 

”Os caminhos das nossas montanhas cruzaram-se na montanha...”, pensou, lembrando-se das palavras de Quenestil e do quão atabalhoado o eahan parecera então, principalmente após ouvir o que a nayana dissera.

 

Mas não era a altura para reflexões. Embainhou a faca, colocou a aljava e o estojo do arco ao ombro e saiu do quarto, esquecendo-se de fechar a porta na sua pressa. Tannath já devia estar à espera, e não era aconselhável dar-lhe mais motivos para suspeitas. Se é que o eahanoir estava desconfiado, podia ser apenas paranóia sua... Desceu as escadas apressadamente, passando por humildes venirr que limpavam o chão, e tirou a sua capa de um gancho na parede, cobrindo os ombros com ela e abotoando-a ao pescoço. Agradeceu com um aceno ao sajellir que lhe abriu a porta para a rua, olhando-o de soslaio. A morte podia vir rápida e inesperada em Jazurrieh, e normalmente vinha mesmo.

 

Uma carruagem de porta aberta aguardava-a, e o cocheiro de capa e capuz acenou-lhe que se aproximasse. Talvez fosse só a sua imaginação, mas a carruagem nunca fora tão parecida com um carro fúnebre e o cocheiro encapuzado afigurava-se-lhe como o vulto de um cangalheiro. Slayra parou e esfregou os olhos, que ainda estavam irritantemente vermelhos por causa do pó. Só disparates... De onde estava, pôde distinguir sombras nos becos e vielas: a escolta oculta de Tannath, pronta a intervir caso alguém atacasse o veículo do seu senhor.

 

Seguindo as regras de conduta eahanoir, bateu uma vez na porta, de modo a anunciar que estava só. Recebeu duas batidas em resposta. Apoiou o pé num pedal para subir, mas parou repentinamente. Duas?

 

Entra, Slayra disse a voz de Tannath, e esta acabou por cumprir com o pedido, hesitante.

 

Dentro da carruagem estavam o eahanoir e Shanaya, ambos sentados no mesmo banco.

 

Slayra ficou paralisada à entrada, observada pela shionna, cujos olhos amarelos desprovidos de pupilas incidiam nela. Os lábios encarnados de Shanaya formaram um sorriso.

 

Slayra, entra. O combate...

 

O que é que ela está aqui a fazer? quis a eahanoir saber, sem se sentar.

 

Senta-te. A voz de Tannath não deixava espaço para discussão. Slayra assim fez, sem tirar os olhos da shionna.

 

O que é que ela faz aqui? repetiu, pousando o equipamento no seu colo e nutrindo pensamentos de fazer bom uso da faca de Quenestil naquele momento.

 

O silêncio do eahanoir era um indício de que começava a ficar irritado, mas Shanaya interveio, jovial.

 

O Tannath tem uma dívida a pagar, querida. Virou-se para o eahanoir, apoiando o cotovelo no seu ombro. E ele paga sempre as suas dívidas, não é?

 

O eahan negro continuou sem responder e limitou-se a fechar a porta, gritando ao cocheiro que se pusesse a caminho. O seu olhar azul e cinzento parecia perdido em contemplações, tal como na noite passada.

 

Então por que não pagas a esta cabra o que lhe deves e a mandas sair? insistiu Slayra. Detestava a shionna, e ela sabia-o, mas isso apenas parecia diverti-la.

 

Tannath não reagiu de forma alguma; oscilava ao ritmo dos abanos da carruagem.

 

Shanaya riu, espreguiçando-se com a graça de um gato. O seu revelador justilho estava voluptuosamente apertado, realçando as abundantes curvas do seu corpo de pele arroxeada, e prendera o longo cabelo negro a meio caminho. Pôs o braço por cima dos ombros de Tannath e roçou o seu nariz na orelha do eahanoir, sem que este parecesse tomar nota. Os lábios de Slayra estreitaram-se. A shionna começou a percorrer a orla da orelha curva de Tannath com a ponta da língua, mas nada parecia excitar o eahan negro. Foi só quando a serpente húmida se aproximou da sua boca que Tannath empurrou a cabeça de Shanaya para longe de si. Esta riu e dedicou então a sua atenção a Slayra, examinando a sua indumentária com fingido interesse.

 

Estás linda, Slayra. Esse decote no corpete fica-te a matar. Era esse o tipo de tortura que tinhas em mente para o pobre eahan?

 

Não, mas já imaginei vários para ti replicou a eahanoir acidamente. Só então começou a considerar as implicações da presença da shionna. Ela esteve na cela. Será que sentiu alguma coisa?... Será que disse algo ao Tannath?

 

Shanaya semicerrou os olhos e emitiu um gutural gemido quando começou a sentir o medo de Slayra. Tannath não pareceu reparar, mas ainda assim, um nervoso jorro quente irrigou a barriga da eahanoir. A shionna lambeu os lábios.

 

”Controla-te, mulher. A cabra sente tudo”, admoestou-se. Fica já sabendo que o eahan é meu. Se te atreveres a tocar-lhe num só cabelo... arrependeu-se assim que as palavras lhe saíram da boca. ”Cala-te estúpida! Não lhe dês mais razões para desconfiar!”

 

Eu sei que ele é teu, querida. A forma como Shanaya o confirmara não agradou a Slayra. O Tannath tem outras formas de me pagar...

 

Depois disso, Slayra não disse mais nada, preferindo manter-se em silêncio. Essa também foi a opção de Tannath, que continuou sem dizer uma única palavra. Shanaya olhava para ambos como uma lampreia sedenta.

 

”Ele não sabe de nada. Eu já estaria morta se ele soubesse...”, tentava a eahanoir convencer-se ”Quando muito suspeita, mas com suspeitas posso eu. Por favor, dêem-me só tempo suficiente para juntar o Quenestil e o Babaki...”

 

Quenestil estava livre. Corria soltamente pelo sopé da montanha, calcorreando bosques e bosquetes sobre quatro fortes patas, esmagando a caruma seca e pulando sobre rochas e penedos. O vento soprava forte e frio, mas o seu pêlo era quente e o seu sangue jorrava-lhe cálido pelas veias, avivando-lhe os sentidos. A língua pendia-lhe de lado e arfava do cansaço, mas era um bom cansaço, sentia-se vivo.

 

Vivo e livre.

 

Chegou a um ribeiro espumante e interrompeu a corrida para beber do frescor da água pura. Após umas revigorantes lambidelas, olhou em redor, farejando. Predominava o odor a pedras húmidas, terra molhada e frescura, a doce fragrância dos regatos da montanha, o cheiro da despreocupada liberdade. Os seus apurados ouvidos deixaram-se relaxar pela suave constância do fluir do ribeiro, mas algo destoou. Quenestil olhou em redor e viu vários chapinhares na água. Salmões lutavam contra a corrente, saltando inexoráveis para alcançarem o seu berço de nascença. Antecipando uma suculenta refeição, entrou lentamente na água, uma pata de cada vez, cabeça esticada para a frente e focinho atento. Os salmões continuavam a saltar, alheios ao perigo, e Quenestil retesou-se, pronto para a caça. Os peixes pulavam incessantemente, brilhantes dardos reluzentes a perfurarem as águas. Quenestil fixou o seu olhar num ponto particularmente activo do riacho, um amontoado de seixos sobre o qual os salmões teriam inevitavelmente de saltar. Tenso e pronto a pular, aguardou que um peixe rompesse a superfície escumosa da água. Assim que viu uma ferida ser aberta no ribeiro, saltou de boca aberta, mas falhou o seu alvo e caiu na água.

 

As suas garras não se conseguiram fincar nas pedras escorregadias e a força da corrente fê-lo deslizar e cair de lado na água. Tentou erguer-se, mas estava a ser arrastado, arrebatado pelo furioso ribeiro. Debateu-se, mas havia água por todo o lado, a escorrer, a jorrar, a encharcar, a afogar...

 

Quenestil acordou com a cara molhada. Olhou em redor e viu a cela iluminada pela tocha que ardia na parede, as correntes que ainda lhe prendiam os membros, as quatro paredes que ainda o enclausuravam. Algo lhe pingou na cara e o eahan olhou para cima, mas o tecto estava escuro. Limitou-se a mudar de posição, pois desde a visita de Slayra as correntes haviam sido alargadas durante mais tempo, permitindo-lhe permanecer sentado e descansar as pernas e os pulsos esfolados. O gotejar continuou, formando o início de uma poça a seu lado, mas o shura ignorou-o, nem sequer considerou abrir a boca seca para beber. A água de Jazurrieh estava inquinada, tal como o resto da maldita cidade. Quando viria Slayra buscá-lo?

 

O eahan espreguiçou-se tanto quanto as correntes lho permitiram. Continuava sem ver do olho esquerdo, as contusões na sua cara estavam rígidas, os seus músculos estavam hirtos, e sentia-se sujo, só que o seu tormento não era do corpo, mas sim do espírito. Jazurrieh era uma enorme úlcera negra, era veneno, e Quenestil estava imerso nele há demasiados dias. Iria morrer por dentro se permanecesse naquela cela por muito mais tempo, mas tinha de aguentar; se não por si, então por Slayra e pelo Babaki. Tinha de ser forte para os ajudar a sair de Jazurrieh quando essa oportunidade se lhes apresentasse. Encostou-se resignadamente à parede húmida, exalando um longo suspiro e apoiando os braços acorrentados por cima dos joelhos.

 

Uma ratazana curiosa observava-o, farejando o ar com o focinho de trémulos bigodes. Era um grande roedor de pêlo cinzento molhado, mas para com animais Quenestil não tinha preconceitos de qualquer espécie e ratazanas nunca o haviam enojado como o faziam a tanta gente. Pelo contrário, o shura via os pequenos animais como sobreviventes, animais de grande astúcia e tenacidade, que prevaleciam em qualquer ambiente. Pôs a mão no chão e agitou os dedos, chamando a ratazana com leves estalidos da língua, e o roedor aproximou-se cautelosamente. Quenestil viu os afiados incisivos alaranjados do roedor quando este ergueu o focinho para lhe cheirar os dedos, dentes que causariam uma ferida feia e infecta, mas acariciou-lhe o pêlo debaixo do focinho com o indicador na mesma. A ratazana pareceu gostar do gesto e esfregou o focinho no dedo do eahan, que lhe pegou gentilmente. O pequeno animal deixou-se levar e Quenestil fez-lhe festas na cabeça, um gesto que o aquietou a si e ao roedor. Nem tudo era corrompido por Jazurrieh... Naquele momento desejou ser uma ratazana, tão pequeno que nenhuma grilheta o poderia prender, nenhuma porta lhe poderia barrar o caminho, nenhum eahanoir o poderia impedir de escapar.

 

Passos no exterior da sua cela despertaram o shura para a realidade e largou o animal, que correu a esconder-se num recôndito escuro da cela. O ferrolho da porta deslizou e esta abriu-se, revelando Tannath, Slayra e a shionna que aparecera no cubículo sem ser convidada no dia anterior (ou dois, era difícil dizer, confinado na cela).

 

”Já? E por que não veio sozinha?”

 

Boas tardes, Quenestil saudou-o o eahanoir. Hoje vamos dar um passeio.

 

Não, obrigado. Estou muito bem aqui.

 

Tannath não esperara uma resposta, muito menos com teor irónico, e isso notou-se na sua expressão. Havia algo diferente no eahanoir hoje, as suas feições e a sua postura evidenciavam-no, mas Quenestil não soube dizer o quê ao certo.

 

Encontramos-te loquaz... reparou. Folgo em ver que recuperaste a língua.

 

O shura ignorou o comentário e olhou para Slayra, tentando descobrir o que se passava, mas a eahanoir envergava uma máscara de ódio frio e nada deu a entender. Fitou a shionna e viu que esta o saboreava com os olhos amarelos, lambendo os lábios ao reparar que o eahan lhe retribuía o olhar.

 

Virás pacificamente? quis Tannath saber. Quenestil deu-lhe a sua atenção.

 

Não.

 

Slayra avançou de punhos fechados.

 

Amansamo-lo um pouco... sugeriu, mas o eahanoir bloqueou-lhe a passagem com o braço.

 

Slayra... quantas vezes tenho de...

 

Mas quem pensas tu que és? perguntou Quenestil, para grande surpresa de todos. Algum paladino? Quem queres enganar com essas exibições de honra quando és escumalha traiçoeira igual aos outros?

 

Tannath pareceu ficar lívido. A shionna olhou para o eahanoir e entreabriu a boca, aparentando saborear algo. As finas sobrancelhas de Slayra arregalaram-se.

 

Sim, um verme do esgoto que não hesita em apunhalar os seus pelas costas; não passas de escória manhosa como todos os eahanoir. Achas que impressionas alguém com esse teatro?

 

Por longos momentos, não houve resposta. Slayra mal respirava e a shionna já semicerrava os olhos de prazer. Os olhos de Tannath não largaram o de Quenestil durante esse tempo todo, duas gemas azul e cinzenta incrustadas num bloco esculpido de mármore que parecia prestes a ruir de fúria. Quando o shura se preparou para acrescentar mais sal à ferida que sabia ter aberto, o eahanoir avançou, desembainhou o estilete e encostou a ponta à narina de Quenestil. Slayra teve de se refrear.

 

Quando eu era jovem... começou Tannath, exalando para retirar o tremor da sua voz quando eu era jovem, era o orgulho da minha mãe, o seu pequeno assassino de berço, que humedeceu o estilete aos doze. A vontade do eahanoir parecia ser humedecer este também em Quenestil. Mas certo dia portei-me mal e parti o pulso a uma das meninas da minha mãe, uma cabra chata que não me largava. Era jovem, e impulsivo, e a minha mãe achou por bem corrigir esse defeito na idade em que o barro ainda pode ser moldado. Nessa mesma noite, entrou um grupo de mestras do deleite pelo meu quarto adentro, estava eu na cama. Com os números, imobilizaram-me, uma cabra para cada membro meu, e depois ensinaram-me um pouco acerca da dor através dos seus métodos subtis. Acredita, aquelas cabras conhecem o corpo melhor que qualquer um, e não precisam de punhos ou lâminas para causar as dores mais atrozes. Foi uma lição que até hoje não esqueci... não só a dor; a sensação de estar indefeso... e ser torturado...

 

Tannath calou-se então, respirando pelo nariz, e baixou a ponta do estilete sem tirar os olhos dos de Quenestil. Por fim, virou-lhe as costas e dirigiu a palavra à shionna.

 

Amansa-o, Shanaya.

 

Não! disse Slayra, um pouco mais alto do que pretendera. Toca-lhe, e eu...

 

Chega, Slayra interrompeu-a o ehanoir. Ele não virá pacificamente.

 

Ele é meu! Esta cabra não lhe toca!

 

O eahanoir não parecia estar com disposição para discussões, e o seu olhar transmitiu-o muito bem, silenciando Slayra.

 

Não te preocupes, querida sossegou-a Shanaya. Eu não sou sôfrega como tu. Vai sobrar que chegue para ti.

 

Limita-te a amansá-lo enfatizou Tannath.

 

Havia algo na sua voz que fez com que a shionna achasse melhor fazer como o eahanoir pedira, mas não pôde deixar de sentir o turbilhão emocional dele. Suspirando, foi ter com Quenestil, cada gesto seu vigiado por Slayra. O eahan nunca vira uma shionna antes, mas conhecia bem as histórias. Lampreias de emoções. Rameiras roxas. Meretrizes da Sombra. Tannath e a sua estranha confissão abandonaram rapidamente os pensamentos do shura, que se concentrou naquela que o eahanoir chamava Shanaya, que se aproximava com passos bamboleantes. Quenestil emitiu um rosno gutural.

 

Ooh, o carcaju encarcerado acirra-se. Pareces mais... extrovertido desde o nosso primeiro encontro.

 

O shura não respondeu, mas havia um brilho animal no seu olho bom que atraía Shanaya como uma abelha para o mel.

 

Não te preocupes, lindo. Não te vou magoar, muito pelo contrário. Deixa-me aliviar as tuas dores, aplacar os teus ardores... sugeriu a shionna, postando-se em frente do eahan e curvando-se de mãos apoiadas nos joelhos de modo a dar-lhe um belo panorama do seu peito.

 

As emoções do shura começaram a descontrolar-se. Não podia evitar o desejo que o seu corpo principiava a sentir, não conseguia refrear a sua raiva por estar preso, era incapaz de ignorar o ódio que sentia por eahanoir. Shanaya cheirava e bebia todas estas emoções e degustava-as, deliciada. Levou as mãos à cara de Quenestil, passando os dedos pelo inchaço escuro no seu olho esquerdo, agarrando-o suavemente pelos lados da cabeça e prendendo-lhe o olhar. Os olhos amarelos da shionna eram duas covas nas quais o eahan poderia vazar todas as suas mágoas, todas as suas tristezas e amarguras, todas... O shura entreabriu a boca e avançou a cara até esticar o seu pescoço ao máximo, parecendo querer chegar aos lábios de Shanaya. Esta sorriu e Slayra disse qualquer coisa com um tom de voz premente, mas Quenestil não ouviu, estava tudo difuso menos a shionna, as suas mãos quentes e suaves e os seus lábios prometedores. O eahan apoiou as mãos no chão, mas não encontrava a força para se levantar e beijá-la. Shanaya sorriu e fez-lhe a vontade, achegando a sua cara à do shura, humedecendo os lábios com a ponta da língua e passando-a provocantemente pela orla dos do eahan. Quando as bocas se encontraram, a língua de Quenestil abriu caminho avidamente e a shionna permitiu-lho, acompanhando suavemente os seus movimentos, bebendo das agruras do eahan e vazando-o de emoção, vazando-o de sensação...

 

A dor foi repentina e lancinante. Os olhos de Shanaya abriram-se, fogo amarelo ateado pelos dentes que se lhe cravavam na língua. A shionna agora sentia as vibrações do rosnido gutural de Quenestil na própria boca e urrou de dor com o seu órgão falador preso, molhando o queixo do shura de vermelho. As suas unhas fincaram-se na face e no couro cabeludo do eahan, que levou a cabeça atrás, obrigando Shanaya a deixar-se ir para evitar arrancar a língua. A shionna estava então perto o suficiente, e os dentes de Quenestil largaram-lhe a língua e os seus braços agrilhoados agarraram-na, virando-a de costas e envolvendo o seu pescoço com as correntes que os prendiam.

 

Tudo acontecera em segundos, e Tannath e Slayra estavam imobilizados no mesmo sítio, ambos de olhos esbugalhados. O shura fitava-os de dentes avermelhados, reforçando o aperto na garganta de Shanaya, que grunhia enquanto o sangue lhe escorria dos cantos da boca.

 

Soltem-me. Agora, ou parto-lhe o pescoço.

 

A shionna fincara os dedos nos elos das correntes, em vão. Como nenhum dos eahanoir esboçou qualquer tipo de reacção, Quenestil apertou um pouco mais.

 

Eu juro que a mato. Nada tenho a perder.

 

Slayra continuava atónita, mas Tannath conseguiu por fim falar, a sua voz firme como aço.

 

Não te vai servir de nada. Julgas que ela significa algo para nós, ou para qualquer um em Jazurrieh? Larga-a, ou nunca mais verás o teu amigo.

 

Shanaya emitia ruídos sufocados. Quenestil sabia que o eahanoir estava a dizer a verdade, uma refém não lhe serviria de nada, não com... malditos eahanoir, que não se preocupavam minimamente uns com os outros. Com um rápido sacão, libertou o pescoço da shionna e empurrou-a para a frente, fazendo com que se estatelasse no chão. Tannath ajoelhou-se para a ajudar a levantar-se, mas Slayra não saiu do lugar.

 

”Quenestil, em que é que estavas a pensar, meu adorável selvagem?” A eahanoir foi incapaz de refrear um sorriso de satisfação ao ver a cabra estendida no chão a sangrar da sua língua viperina.

 

A shionna tossiu, deixando manchas vermelhas no chão e Tannath ajudou-a a pôr-se de pé, de costas para Quenestil. Shanaya teve de se apoiar no ombro do eahanoir com um braço enquanto a sua mão livre lhe aplacava a garganta.

 

Slayra, vai chamar o carcereiro disse Tannath. A eahanoir olhou desconfiada para ambos.

 

Não lhe vamos fazer nada. Vai ordenou, a sua paciência esgotada.

 

Contrariada e preocupada com a segurança de Quenestil, Slayra teve de ir, correndo pelas escadas a chamar o carcereiro. Tannath ficou a segurar Shanaya enquanto esta tossia, ainda incapaz de falar, e tirou um lenço branco do seu bolso, pondo-o debaixo do queixo da mulher, que o agarrou. O tecido foi tingido de escarlate quando a shionna tapou a boca com ele.

 

Vai pagar-mas... declarou Shanaya de voz abafada pelo lenço molhado.

 

Talvez... mas não agora asseverou Tannath, olhando para o eahan, que estava acocorado como um carcaju pronto a saltar. Talvez depois da tua recompensa.

 

O grande yugr estava enevoado de vapor, quente e abafado. Suor escorria copiosamente pelos corpos nus de Aewyre, Allumno, Worick e Taislin, as suas faces estavam em fogo, os seus cabelos colados às suas cabeças, e nenhum se lembrava de alguma vez se ter sentido assim tão bem. Com eles estavam uns trinta ocarr, homens, mulheres e crianças, todos despreocupadamente desnudos. O povo das estepes não se banhava, limitavam-se a aquecer pedras no fogo, empilhá-las num buraco no chão dentro de um yugr sem abertura no tecto e verter água sobre elas. Depois disso despiam-se e deixavam que o vapor quente lhes limpasse a pele enquanto permaneciam sentados de pernas cruzadas no chão coberto por tapetes. Ninguém falava naquela atmosfera pesada e poucos tinham vontade de o fazer, principalmente os companheiros, sujos e mal habituados ao frio das estepes. Ainda assim, Aewyre tinha assuntos prementes a tratar com Allumno, e forçou-se a abrir os olhos. O mago estava a seu lado, as suas pálpebras relaxadamente fechadas, os dedos suavemente enclavinhados, farripas do seu cabelo fixadas à testa alta, a gema húmida como um morango orvalhoso a reflectir a luz dos mortiços braseiros.

 

Allumno! sussurrou o guerreiro.

 

Como o mago não reagiu, Aewyre chamou-o outra vez, tocando-lhe na perna.

 

Allumno!

 

Desta vez, Allumno abriu um olho, fitando Aewyre languidamente.

 

Que foi? perguntou com voz desperta.

 

Tenho de falar contigo.

 

O mago suspirou, fechou o olho, apoiou as mãos no chão, movendo-se para perto do seu protegido, e lá se deixou ficar.

 

Diz...

 

Não posso lutar com ele.

 

Allumno permaneceu de olhos fechados e não respondeu de imediato, e por momentos o silêncio voltou, mas cedo a voz baixa do mago o tornou a contar.

 

Também não me parece aconselhável. Somos hóspedes agora.

 

Eu sei, mas... a única razão pela qual não seguimos por Thyr foi o Kror...

 

Um infeliz percalço...

 

Agora tenho-o à mão, mas...

 

É verdade, lembraste-te de lhe perguntar acerca da rota a seguir?

 

Aewyre suspirou, irritado com a interrupção.

 

Sim, e ele disse-me que os Tcho Dir...

 

Os Cho Tirr.

 

O seu tutor conseguia ser enervante por vezes.

 

... que os Cho Tirr vão migrar agora. A comida que sobrou nesta área já foi desbastada pelos ratos, e o gado e os burros comeram as sobras. Vão seguir para Norte...

 

Até às montanhas?

 

Não, vão virar para Oeste depois. Ele não me disse até onde iam, mas deixou claro que não iam para as montanhas. Parece que as tribos se reúnem uma vez por ano durante uma fase lunar qualquer numa espécie de conclave, onde traçam as rotas que cada tribo deverá seguir nessa época. É assim que evitam conflitos internos.

 

Interessante. Quer dizer que teremos de nos separar. O silêncio de Aewyre confirmou-o.

 

Sobrevivemos ao ataque dos Cho Tirr porque estávamos protegidos pelo cromeleque. Se outra tribo nos encontrar e atacar, não teremos qualquer hipótese.

 

Eu sei, eu sei... disse o jovem. Mas não podemos voltar atrás, o caminho mais curto fica a Norte. Acompanhá-los-emos enquanto pudermos e depois confiamos na sorte até chegar às montanhas. Aí estaremos a salvo.

 

Ai sim?

 

Pronto, não estaremos completamente seguros, mas pelo menos já não é esta maldita extensão em campo aberto. Desenrascamo-nos em qualquer sítio, desde que tenha árvores.

 

O que é uma árvore? perguntou Worick. Mas que péssimo hábito era este que todos tinham de ouvir as suas conversas? Já não me lembro. Come-se? Ou também sabe a rato e a leite de égua? Pedras me partam e a este lugar...

 

Ambos ignoraram o thuragar.

 

Muito bem... mais alguma coisa?

 

Só aquilo que eu te ia perguntar antes de me interromperes...

 

Diz lá... O mago parecia imune a sarcasmo.

 

O Kror foi a única coisa que me impediu de seguir para Asmodeon logo a seguir a encontrar a manopla sussurrou. Agora não posso lutar com ele. O que faço, vou para Asmodeon, deixo-o vivo para trás? Conseguiria viver com isso?

 

Allumno reflectiu, puxando para trás uma madeixa de cabelo que se descolara da testa.

 

Vou ser franco contigo, Aewyre. Não sou nenhum estudioso no assunto, o vosso é o primeiro caso que eu presencio relacionado com a Essência da Lâmina. Pelo que vimos, aguentaste-te bem enquanto não o encontravas...

 

Sonhava com o desgraçado todas as noites. E havia sempre alguma coisa a zumbir na minha cabeça disse o jovem, coçando os espinhos escuros que lhe cresciam na face que não rapava há semanas.

 

Está bem, mas eu também tenho dores todos os dias por causa do meu joelho e é-me custoso andar sem o cajado. Aquele crocodilo feriu-me a perna, mas ainda vivo. Dói, irrita, é desconfortável dia após dia após dia, mas vivo. Achas que também consegues?

 

Aewyre nunca considerara esse aspecto. Sempre tivera a impressão de que era obrigado a matar Kror, caso contrário nunca conheceria a paz. Talvez até fosse verdade, mas então seria uma questão de força de vontade, de aguentar o chamamento, de suportar a pressão do ”tendão”...

 

Duas mulheres ocarr entraram no yugr, baixando as cabeças e atando o reposteiro seguidamente, de modo a não deixar o vapor sair. Uma carregava um grande jarro de água e a outra, mais encorpada, uma selha de vime forrada a pele cheia de pedras fumegantes, que despejou dentro do buraco no centro da tenda. A outra verteu de seguida a água do jarro sobre as pedras quentes, que sibilaram e fumegaram em fúria, enevoando ainda mais o yugr. Feito isto, retiraram-se.

 

És capaz de ter razão, Allumno. Separar-nos-emos então. E se o Kror quiser lutar, ele que venha ter comigo.

 

Seria a solução ideal para ti e para nós. Mas será que aguentas? Estava a falar do joelho, mas reconheço que não deve ser a mesma coisa...

 

Este Allumno... apresentava argumentos irrefutáveis para o convencer e depois contradizia-se deliberadamente. Ainda estava para perceber se o mago se divertia a fazê-lo...

 

Não há-de ser pior que o que já enfrentei até agora... Allumno nem precisava de ver a expressão do guerreiro para se aperceber da forçada confiança.

 

Ainda bem. Quanto tempo até nos separarmos?

 

Devemos andar mais umas semanas com a tribo. Depois disso...

 

Ficamos nas mãos dos deuses. Parece-me bem...

 

Os deuses andam um bocado frouxos das mãos comentou Taislin, com tudo o que nos tem acontecido ultimamente...

 

Aewyre suspirou uma vez mais. Ninguém tinha nada melhor para fazer que ouvir as suas conversas? Uma vaga de calor fez-se sentir devido ao novo vapor, e os companheiros calaram-se, deixando-se envolver pela relaxante quentura. O reposteiro do yugr foi aberto por alguém vindo de fora, mas só Aewyre se deu ao trabalho de abrir os olhos para ver de quem se tratava. Estes arregalaram-se apesar do calor que os abrasava, pois quem entrara fora Lhiannah, nua como no dia em que nascera.

 

A princesa olhou em redor, procurando os companheiros e semicerrando os olhos devido ao vapor. Aewyre já lhe vira as formas desnudas uma vez, mas fora durante a noite no seu quarto escuro em Vau do Caar e estivera tão bêbedo que mal se lembrava; certamente que não se recordava de ter visto o que agora se lhe deparava. Lhiannah era... magnífica... o seu corpo era de uma beleza estatuária, e os seus cabelos fulguravam na névoa como labaredas douradas. O guerreiro nunca reparara no quão longas as suas pernas eram, e como os contornos atléticos não precisavam de calças para serem realçados. Admirou-lhe os restantes atributos enquanto a arinnir olhava em redor, até que ambos cruzaram olhares. O gesto instintivo de Lhiannah foi cobrir a sua intimidade e o seu peito com os braços, mas refreou-se dignamente de o fazer. Aewyre nunca louvou tanto a dignidade como naquele momento. Ainda assim, as faces da arinnir ruborizaram-se, mas talvez isso apenas se devesse ao calor. Certamente seria essa a explicação que a princesa daria. Havia raiva nos seus olhos, mas naquele momento tinha apenas duas opções: virar as costas e sair ou sentar-se perto dos companheiros. Podia tomar o seu lugar longe do guerreiro, mas isso também seria admitir a sua vergonha, pelo que se dirigiu ao grupo, sempre com os olhos de Aewyre em cima de si.

 

O jovem não pôde deixar de extrair algum gozo da situação; era como uma pequena vingança contra Lhiannah pela sua atitude ao longo da viagem pelas estepes. A princesa sentou-se ao lado de Worick, cruzando as pernas e vendo-se forçada a pôr as mãos no meio delas para salvaguardar um mínimo de decoro. Aewyre contentou-se perfeitamente em ver o resto.

 

Pouco depois, as duas mulheres ocarr entraram outra vez no yugr e começaram a distribuir taças, servindo água com conchas. Os companheiros abriram os olhos para beber, mas todos menos Aewyre baixaram educadamente os olhos ao ver que Lhiannah estava presente. A princesa bebeu, começando a suar, e tentou fingir-se alheia ao atento estudo do guerreiro, mas parecia sentir os olhos de Aewyre a rolarem indecorosamente pelo seu corpo. O jovem sorriu um sorriso maroto, que há muito não encontrava o seu caminho na sua cara, e dirigiu a palavra a Allumno, sem tirar Lhiannah da vista.

 

Há outra coisa, Allumno...

 

O mago suspirou, lambendo gotas salgadas no seu lábio superior sem abrir os olhos.

 

Durante o combate no cromeleque, não sei se reparaste, aconteceu uma coisa esquisita...

 

Só uma?

 

Os comentários estúpidos são comigo, Allumno rosnou o jovem, farto de interrupções. Estava a tentar ter uma conversa séria, raios! Foi quando o Kror apareceu, depois de ter atingido o Worick. Dois ocarr dispararam setas nas minhas costas quando eu estava a olhar para ele. O jovem engoliu a humidade que se lhe acumulara na boca. Nessa altura... deu-me a impressão de que o tempo parou, ficou tudo mais lento, eu... eu conseguia ver tudo, sentir tudo...

 

Allumno agora parecia silenciosamente interessado.

 

Depois, quando virei as costas e vi as setas a voarem contra mim, usei a Ancalach... quase por instinto... mas só cortei ar com ela. Só que esse ar... eu não percebo, Allumno, parecia um dos teus feitiços: o ar cortou os dois ocarr ao meio!

 

O mago abriu os olhos e olhou para Aewyre, que ainda fitava Lhiannah e os contornos luzentes do seu corpo. O seu protegido parecia ter exaurido a sua reserva de palavras e limitava-se a olhar para a princesa, movendo por vezes os lábios em aparentes tentativas de formar sons.

 

Como já disse, não sou especialista no que diz respeito à Essência da Lâmina lembrou o mago, mas a descrição que fazes condiz com os relatos dos mestres-de-armas, dos espadeiros que por ela foram eleitos. Mas isso é impossível, não o venceste ainda...

 

Quando ele viu as setas, gritou... ele também sabe o que aconteceu... disse Aewyre, mais para si que para o seu tutor. Ele também sabe...

 

Bom, sendo assim sugiro que vás falar com ele. Temo que tenhamos alcançado o limite dos meus conhecimentos acerca da matéria...

 

O guerreiro limitou-se a anuir com a cabeça, e Allumno não insistiu. Decididamente, o assunto da Essência da Lâmina tornava-se mais complicado a cada dia que passava...

 

Os momentos que se seguiram foram passados em vaporoso sossego. Worick cofiava bigode e barba molhados, Taislin deliciava-se em silêncio, Allumno emulava o burrik e Lhiannah fechara os olhos, inclinando a cabeça para trás, mas o músculo do seu maxilar estava tenso devido ao estudo que sabia que Aewyre estava a efectuar.

 

”Dama de ferro...”, gracejou o jovem para tirar Kror por momentos da cabeça. ”Linda e com o feitio de uma javalina prenha... quem te mandou beber? Eu é que não fui...”

 

Como se tivesse ouvido, Lhiannah abriu os olhos e fitou Aewyre com um ar de desafio. O guerreiro pensou em fazer-lhe a vontade, mas os olhos da princesa, por muito bonitos que fossem, podia vê-los todos os dias, quando Lhiannah se dignava a dirigir-lhe palavra olhando-o de frente. Em vez disso, baixou o olhar e acenou aprovadoramente com a cabeça, franzindo os lábios. Por essa altura, Aewyre já tinha a certeza de que verter água em cima de Lhiannah faria mais vapor que as pedras quentes no buraco. Muito mais.

 

Quando as mulheres tornaram a entrar, Lhiannah fervia em raiva fria, mas o ar danado, a pele luzente e os cabelos molhados escorridos apenas faziam com que parecesse mais bela aos olhos de Aewyre. As ocarr entraram e saíram umas sete vezes, carregando uma grande selha de madeira e vários jarros de água. Uma delas, a mais encorpada, bateu palmas e os homens, mulheres e crianças do yugr levantaram-se quase mecanicamente, colocando-se em fila à entrada. Os companheiros despertaram do seu torpor e ergueram-se sonolentos, postando-se no fim da fila, que aparentemente se destinava à ablução. Uma mulher entrou na selha e foi-lhe lentamente esvaziado um jarro na cabeça, cuja água a ocarr aproveitou para esfregar o suor e a sujidade para fora da pele. A fila foi avançando e quando chegou a vez de Aewyre teve de ser o próprio a verter a água do seu jarro, pois nem de bicos de pés e braços esticados a encorpada mulher lhe chegava à cabeça. Estava fria, mas a sensação que causava na sua pele afogueada era estimulante. Esfregou-se vigorosamente, usando também a água que se acumulara dentro da selha para lavar as axilas, e abriu o reposteiro para entrar numa tenda mais pequena, iluminada por braseiros de estrume, onde os presentes haviam deixado as roupas espalhadas por cima dos tapetes. Pingando, procurou as suas vestes no meio do amontoado de túnicas, grato por os ocarr usarem roupas tão diferentes das suas. Pensou se não seria possível que homens e mulheres acabassem por vestir roupas que não as suas no meio daquela confusão, mas sendo todas elas praticamente iguais, não deveria fazer grande diferença. Encontrou as suas peles debaixo dos pés de uma mulher cujos cabelos chocalhavam devido aos ossículos que deles pendiam enquanto enfiava as pernas em calças. Ninguém olhava para os corpos dos seus vizinhos, mas mesmo assim o jovem enxugou-se rapidamente com um pano e vestiu as suas ceroulas e meias de lã. Quando estava a apertar as calças, ouviu a voz de Worick a resmungar enquanto abria caminho pela confusão de corpos que reinava na pequena tenda.

 

Então estes javardos tomam banho e depois juntam-se numa tenda a cheirar a estrume?

 

Os ocarr vestiam-se em silêncio.

 

Andas muito fino para um thuragar... comentou Aewyre.

 

Fino? Worick pensou, e apercebeu-se de algo. É verdade... sempre vivi com humanos, e parece que assimilei alguns dos vossos hábitos maricas.

 

Deixa estar que continuas tão resmungão e de maus fígados como qualquer thuragar que se preze consolou-o o jovem.

 

Vou aceitar isso como um elogio. Mas o melhor é ficares calado...

 

Aewyre riu e enfiou-se na sua camisa de linho. Worick procurou as suas roupas, mas só as encontrou quando o guerreiro já estava a calçar as botas, e por essa altura já os restantes companheiros se haviam limpado e também cavavam pelas suas vestimentas. Lhiannah era toda ela fúria silenciosa e não dirigiu palavra a ninguém, coisa que Taislin não pôde evitar.

 

Que bom! Era capaz de ficar ali durante horas! exclamou o burrik, deliciado e de faces rubicundas.

 

Então por que não ficas? quis Worick saber.

 

Ora, assim nunca veria o lindo que ficas com...

 

Aqui não, Taislin... interrompeu-o Aewyre, pressentindo a provocação. Se o queres picar, fá-lo lá fora ao frio e sem toda esta gente.

 

Isso pareceu silenciar o burrik, que acabou de se vestir em silêncio, sempre com os olhos de Worick em cima de si, como se o thuragar pensasse no que é que o burrik estivera para dizer.

 

Já vestidos, os companheiros saíram da pequena tenda e saudaram o vento frio do exterior com espirros. Apressaram-se a entrar no yugr do ayan, onde os aguardava uma aconchegante fogueira de estrume e um grupo de músicos. Usavam uma espécie de alaúde com três cordas, uns violinos pontudos, pares de cascos que embatiam uns contra os outros e uma tábua com cordas estendidas sobre a sua superfície. Três mulheres sentadas e de mãos cruzadas cantavam em coro enquanto um homem de olhos fechados emitia um estranho ruído parecido com um ornear contínuo. Os ocarr já haviam começado a beber boozlan, pelo que os companheiros se foram sentar perto da fogueira e esperaram para serem servidos. Para além do odor a estrume, pairava um outro cheiro no ar.

 

Estão a assar carne a sério? inquiriu Worick, cheirando o ar ruidosamente. Lombinhos de rato não têm este cheiro.

 

O thuragar havia-se tornado um autêntico perito nas vicissitudes culinárias de roedores nos últimos dias, e os companheiros acreditaram nele, procurando em redor alguma pista que lhes pudesse indicar o que o prato seria. Aewyre espreitou atrás de si, e viu Kror a conduzir a que parecia ser a xamã para perto da fogueira. As pessoas pelas quais a anciã passava vergavam-lhe a cabeça, pelo que o jovem achou educado proceder da mesma maneira, tentando ignorar Kror. No entanto, quando ergueu a cabeça viu que o drahreg a ajudava a sentar-se a seu lado. A xamã sofrera um horrível ferimento nos olhos e andava agora vendada, chupando os encarquilhados lábios para dentro da boca desdentada.

 

A venerável quer... falar contigo informou Kror, sentando-se ao lado da xamã, usando-a como uma barreira entre si e o humano.

 

Aewyre não esperara esta. A velha não lhes havia dirigido palavra uma única vez e evitara-os desde o primeiro dia em que foram acolhidos debaixo do tecto do ayan. Agora queria falar com ele?

 

Bem, claro... o que quer a... venerável saber?

 

Kror disse algo à anciã, mas esta não virava a cara para nenhum dos dois, limitava-se a ”fitar” o estrume em brasa. As palavras que proferiu eram incompreensíveis para os ouvidos de Aewyre, e este pensou se não o seriam também para o drahreg, tão desdentada era a sua fala.

 

A venerável quer saber o que vocês fizeram à mulher.

 

Foram servidos pratos com nacos de carne cobertos por bolbos esventrados aos companheiros, e as suas bocas aguaram perante o que se assemelhava a uma refeição decente.

 

Carne verdadeira... constatou Taislin, pegando no seu prato com reverência.

 

Qual mulher? perguntou Aewyre.

 

A humana que vocês perseguiam. A... Hazabel.

 

Carne verdadeira, dizes tu? perguntou Worick, trincando um naco rijo e nervoso. Este animal pouco mais tinha que pele por cima do osso.

 

A harahan?

 

Algo latejou na cabeça de Kror ao ouvir essa palavra.

 

A venerável quer saber...

 

Espera aí, já te perguntei uma vez, desta não foges interrompeu Aewyre. O que é que a harahan fazia contigo?

 

Worick e Taislin suspenderam a sua conversa acerca do prato. Mesmo eles sentiam que a menor faísca entre Kror e o seu amigo atearia um fogo roaz.

 

A venerável é que...

 

Para a fossa com a venerável, porra! Aewyre começava a soar exaltado. Aquela cabra roubou-nos a manopla, fartou-se de nos causar problemas, por causa dela íamos morrendo! Allumno agarrou o braço do seu protegido, mas o jovem sacudiu-o. E ela estava contigo! O que planearam os dois, maldito drahreg? Diz-me, ou juro que dou cabo de ti!

 

Seguiu-se o silêncio, no qual os dois guerreiros mediram olhares que prometiam a morte um do outro. No meio de ambos, a xamã ergueu a cabeça, sentindo a crescente tensão. Todos os presentes olhavam para Aewyre e Kror, mas tanto um como o outro estavam alheios aos olhares.

 

Aewyre, não te exaltes... aconselhou Allumno, quase ciciante.

 

O jovem parecia pronto a isso mesmo. Por sorte, Kror ergueu-se, lentamente, e caminhou para a entrada, olhando ainda de relance para o guerreiro antes de sair. A atenção dos ocarr concentrou-se então toda no guerreiro, que deu por si quase a corar de vergonha. Francamente, pareciam os seus companheiros dizer quando olhou para eles, e sabia que tinham razão. Lhiannah teria dito outras palavras menos educadas, chamá-lo-ia de boi, idiota, cretino, diria que pensava com uma cabeça abaixo e que a outra não prestava nem para deixar crescer cabelo, e provavelmente também teria razão.

 

Eu... peço desculpa escusou-se o jovem, esfregando uma envergonhada nuca.

 

Nenhum dos ocarr percebeu, mas retomaram a sua refeição de qualquer maneira. Aewyre pareceu subitamente muito interessado no conteúdo do seu prato e não tirou os olhos dele. Os companheiros entreolharam-se, preocupados.

 

Agarrando a corrente de um braço com uma mão, Babaki remexeu na sua tanga com a outra e tirou algo lá de dentro. Não pôde deixar de se sentir envergonhado, imaginando o que Lhiannah teria pensado se visse onde o antroleo colocara a nesga de cabelo que a princesa lhe dera na sua despedida... Mas essa era uma tradição do seu povo, uma das poucas que Babaki fazia questão de manter: colocar um bocado de pêlo (ou cabelo) da pessoa amada nas partes íntimas era uma declaração de afecto, praticada por prometidos e apaixonados. Não havia um único dia em que Babaki não se maldissesse por não ter professado o seu amor a Lhiannah quando o grupo se separara, sabendo que aquela podia ser a última vez que a veria. Observou a mecha de cabelo que entrançara durante um dos períodos de descanso que Quenestil lhes havia permitido durante a sua perseguição dos captores de Slayra. Não perdera o seu tom dourado nem o seu toque macio, embora o cheiro já não fosse o de Lhiannah. Mesmo assim, Babaki levou-o à cara, maldizendo-se uma vez mais.

 

”Devias ter-lhe dito... tu devias ter-lhe dito.”

 

Mas estava feito, agora tinha era de se concentrar em sair daquela situação e ajudar os seus amigos. Segundo o que o eahanoir de toga lhe dissera, ser-lhe-ia concedida uma oportunidade para escapar no seu próximo combate, mas já haviam passado dois dias (medidos pela regularidade da entrega de refeições) e nada mais lhe fora adiantado acerca da vindoura luta. Não lhe agradava a ideia de combater, muito menos sob o comando de um eahan negro, mas já prometera a si mesmo que iria fazer o que fosse necessário...

 

Babaki despertou com o já familiar ruído de passos no exterior e enfiou a mecha de cabelo dentro da sua tanga. A porta abriu-se e entraram cinco eahanoir munidos de tochas e lanças, que foram baixadas na sua direcção. As pupilas dos olhos do antroleo brilharam com a luz do fogo e um dos guardas aproximou-lhe a tocha da cara.

 

Vais combater, antroleo anunciou numa voz ciciante. Causarás problemas?

 

Perante o abanar negativo da cabeça de Babaki, o eahanoir que falara puxou de um molhe de chaves e estendeu a mão para o antroleo colocar o seu pulso. Babaki assim fez e a grilheta que lhe esfolara a pele foi aberta e atirada ao chão sem cerimónia. Seguiram-se as que lhe agrilhoavam os tornozelos e a da mão direita, essas removidas com mais cautela e com mais que um olhar indiscreto dirigido aos eahanoir que empunhavam lanças. Babaki ergueu-se lentamente, espreguiçando-se com languidez enquanto o seu ”salvador” recuava, relaxando a mão no pomo de um estilete. As suas articulações estalaram, perras, e os seus membros pareciam pesados, mas a mente estava focada e o espírito determinado.

 

Estou pronto declarou.

 

Os eahanoir permitiram-se relaxar um pouco. Quatro lanceiros recuaram para lados opostos da parede, deixando o quinto no meio, que fez moção ao antroleo que avançasse. Babaki assim fez, postando-se no meio de quatro pontas de aço, e saiu da cela com a sua escolta. Podia cheirar-lhes o nervosismo; não se sentiam à vontade perto dele, como se estivessem próximos a um animal selvagem, mas isso estava longe de o incomodar naquele momento. As paredes eram frias e das suas frestas escorriam pequenos fios de água que formavam poças no chão de lajes igualmente frias. Compridas sombras precediam o grupo, aproximando-se e dando lugar a outras conforme eram estendidas pelas tochas penduradas num padrão regular pelas paredes. A viagem pelos túneis das masmorras foi curta, e cedo as vozes e apupos do público se fizeram ouvir, bem como as sonoras reverberações das batidas de pés. Babaki respirava fundo, inalando o ar húmido e abafado calmamente quando sentiu que o seu coração começava a acelerar. Tinha de se manter sereno, esperar pelo momento certo. Encheu a sua mente com a imagem das vastas planícies de Anathol, um mar fulvo a ondular ao sabor dos frescos zéfiros estivais, um oceano viçoso aspergido pelas chuvas invernosas. Essas memórias, no entanto, vinham acompanhadas por um sentimento de nostalgia que o antroleo poucas vezes experimentava, pelo que tentou pensar noutra coisa... Lhiannah veio-lhe facilmente à cabeça, mas a princesa suscitava-lhe outro tipo de emoções... não se podia distrair, tinha de se manter focado no que teria de fazer mal entrasse na arena. Na verdade, o eahanoir fora bastante vago: os lutadores ajudá-lo-iam a saltar para fora da arena? Devia ter feito mais perguntas, devia ter interrogado mais o eahanoir acerca de Quenestil, devia... devia ter feito muita coisa que não fez. E agora tinha a hipótese de se redimir. Não iria falhar. Nunca mais.

 

O chão começou a subir gradualmente e os ruídos da arena iam aumentando de intensidade. Os eahanoir estugaram o passo, como se tivessem pressa de se verem livres de Babaki, e o antroleo viu-se forçado a acompanhá-los. Chegaram à grade de ferro enferrujado que vedava o acesso à arena, guarnecida por dois vigilantes eahanoir de lanças cruzadas. Detrás das sentinelas vinha luz, calor, um odor a sangue e o intenso bulício de uma multidão excitada e sedenta de violência. Babaki retesou-se. Os guardas trocaram rápidas palavras e os dois que vigiavam a grade apressaram-se a fazer rodar o mecanismo que a abria. Com um prolongado grito áspero e ferruginoso, a grade ergueu-se e o público rejubilou com um sonoro clamor.

 

Babaki ficou parado a olhar em frente, para a areia sangrenta, para a parede de pedra coberta de cicatrizes, desde buracos de armas contundentes a sulcos de golpes de lâmina falhados. Os eahanoir que estavam atrás bateram-lhe nos rins com as pontas dos cabos das lanças, incitando-o a avançar. O antroleo inspirou fundo, rodou a cabeça para relaxar o pescoço e deu o primeiro passo.

 

Uma das sentinelas barrou-lhe o caminho com uma lança.

 

Babaki ficou confuso com tal gesto, mas o eahanoir fez-lhe sinal para que se baixasse, como se quisesse dizer-lhe algo. Quando o antroleo assim fez, o eahan negro entregou-lhe as shwafwif e segredou-lhe:

 

Mudança de planos. O Tannath vai estar presente no combate, disseram-nos agora. Tannath? Quem era Tannath? Vais lutar contra dois. Finge que combates um pouco, depois quando estiveres pronto, recua depressa. Eles vão perceber o sinal e ficarão prontos para te ajudar a saltar. Quando estiveres fora da arena, ninguém te vai impedir. Procura o eahanoir com uma tatuagem no olho esquerdo. E esse que tens de matar. De resto, prossegue com o plano original. Entendido?

 

O eahanoir viu-se forçado a repetir perante um Babaki atrapalhado, e foi necessária uma terceira vez para se fazer entender. O antroleo fora tomado de surpresa; nunca esperara que a sua fuga fosse fácil, mas agora haviam-na complicado ainda mais.

 

Entendido? Consegues fazê-lo? insistiu o eahanoir.

 

Ignorando todas as suas dúvidas, o antroleo acenou convictamente com a cabeça e enfiou as shwafwif no cinto. A sentinela abriu-lhe o caminho para a arena.

 

Não iria falhar... nunca mais.

 

O público da arena abriu caminho para os recém-chegados, afastando-se respeitosamente. Quem não percebia, era empurrado pelos guardas, que saudavam de seguida o estranho grupo com acenos de cabeça. O eahanoir com uma tatuagem no olho esquerdo vinha acompanhado pela sua escolta de seis hasslir desprovidos de qualquer marca na testa, o distintivo dos assassinos que dessa forma proclamavam a sua individualidade numa sociedade rigidamente estruturada como a dos eahan negros. Acompanhavam-no uma shionna com pele cor de inchaço, uma bela eahanoir com um olhar átono e um eahan ruivo com mãos e pés acorrentados, praticamente empurrado por um dos hasslir. Tannath ignorava as saudações, descendo com passos serenos os degraus de pedra que descendiam pelos anéis do anfiteatro. Slayra alheava-se do público que os observava, mas a sua calma exterior escondia o tumulto interior da tempestade de pensamentos que lhe assolava a mente. O que ia Tannath fazer após o combate? O que queria a Shanaya do Babaki? Quanto sabia ela acerca do Quenestil? A eahanoir evitava olhar para o shura, mas podia sentir o seu olhar preocupado nas suas costas esbeltas. Respirou fundo. O ar da arena era pesado e quente, mas com a sua parca roupagem a temperatura não a incomodava. Ainda assim, começou a transpirar das mãos que seguravam o equipamento de Quenestil, mas isso talvez não se devesse apenas ao ambiente. E os odores e calores de todos aqueles corpos ajuntados eram opressivos...

 

”Acalma-te, mulher...”

 

Quenestil não guardava boas memórias da arena, e ela parecia-lhe tão ou mais opressiva que da primeira vez, com a única diferença que desta vez era o centro das atenções: um eahan ruivo acorrentado e com um aspecto miserável. Mas era sobretudo Babaki quem ocupava os seus pensamentos. Que espécie de jogo estaria o Tannath a jogar? Iria forçá-lo a assistir a quê, mais um combate? Um eahanoir falava por cima das cabeças de todos os presentes, suspenso dentro de uma jaula pendurada com correntes por cima da arena, mas Quenestil não prestou atenção às suas palavras.

 

Quando chegaram aos primeiros lugares no parapeito do anfiteatro, dois hasslir sentaram-se, um deles puxando Quenestil consigo.

 

Tannath, Shanaya e Slayra ficaram no meio, com dois assassinos de cada lado e um na fila de trás a vigiar as costas do seu senhor. Quenestil olhava em redor como um animal enjaulado e cercado de inimigos. Slayra alternava regularmente o seu aperto molhado nas peças do equipamento do eahan. Shanaya engolia a custo devido à língua ferida, presenteando Quenestil por vezes com um odioso olhar de esguelha. Tannath aguardava.

 

Foi então que o eahanoir gritou os nomes dos combatentes.

 

A luz das quatro fogueiras espalhadas pela arena era fulgurante para os olhos de Babaki, e o calor quase palpável. O gáudio da multidão manifestou-se num sonoro clamor que reverberou por todo o anfiteatro e o antroleo viu dois combatentes a saírem da grade oposta à sua. Ambos eram homens altos e corpulentos, mas um empunhava um chuço de guerra capaz de varar um javali e o outro brandia uma espada de lâmina larga e um broquel. Um tinha a cara enfaixada com tiras de feltro, cujas falhas revelavam pele desfigurada, o outro era barbudo e faltava-lhe uma orelha. Um envergava uma camisa de couro com rebites metálicos, o outro uma túnica de cota de malha. Ambos eram matadores natos, e cada um caminhou para seu lado com passos experientes, empunhando as armas com firmeza. O público ovacionou-os. Babaki olhou em redor, perscrutando a multidão por um eahanoir com uma tatuagem no olho esquerdo. A luz das fogueiras dourava as caras que o antroleo podia ver, e todas as que não estavam borradas pelo calor do fogo pareciam-lhe iguais de onde se encontrava. Roupas de todas as cores e feitios, homens gordos e magros, grandes e pequenos, barbudos e de cara rapada, morenos e louros, ruivos e... Ruivo!

 

Os olhos de Babaki prenderam-se nos cabelos que refulgiam como labaredas com o brilho do fogo. Quenestil!

 

Quenestil... disse o antroleo para si mesmo em voz baixa, mal querendo acreditar.

 

O eahan também o viu e inclinou-se no parapeito, mas um eahanoir puxou-o bruscamente para trás. O público gritava, batia com os pés na pedra, mas as únicas batidas que Babaki ouvia eram as do seu coração a retumbarem nos seus ouvidos. As suas pernas flectiram-se, as suas veias abrasaram-se, o seu peito entrou em fogo e as suas orelhas encolheram-se para trás. O antroleo estava tenso como um fio de aço esticado ao limite, e os seus adversários separaram-se mais para o flanquear.

 

Babaki investiu contra o maior, o que empunhava o chuço.

 

Correndo aos ziguezagues, cobriu metade da distância que o separava do seu oponente com incrível rapidez, mas o da espada tinha um curto tempo de reacção e a meio da trajectória lá estava ele, varrendo o ar com um golpe lateral baixo. O público bradou. Babaki limitou-se a pular por cima da lâmina, sem reparar que ela visara os seus joelhos com o lado plano. O do chuço fincou o pé de trás no chão e flectiu a perna da frente, colocando a sua arma em posição para receber a carga do antroleo. Babaki fintou-o a escassa distância, saltando para o lado e investindo de través. O homem mal teve tempo para pôr o chuço entre si e o seu oponente, mas Babaki limitou-se a agarrar o cabo da arma com força e a empurrar, transferindo todo o seu peso para a frente e para cima do humano com a intenção de o impelir contra a parede. A única coisa que o homem conseguiu fazer foi desferir um pontapé na canela do antroleo, o que fez com que se desequilibrasse e caísse ao chão. O chuço estava nas mãos de Babaki. Virou-se rapidamente e viu que o da espada arremetia na sua direcção. A multidão berrou em furor. O antroleo girou a lança, varrendo o ar à sua frente para manter distância, mas o humano aceitou o desafio e quis apresentar o aço da sua lâmina à madeira do cabo do chuço. Babaki declinou sabiamente e recuou perante as varredelas da espada, permitindo ao seu adversário avançar. Este não se fez de rogado e insistiu. O antroleo não estava habituado a lutar com lanças, não sabia como compensar a fragilidade da madeira contra uma espada e aproveitar o alcance maior, nem como estocar sem deixar que o adversário penetrasse na sua fraca defesa. E o outro oponente já estava em pé de adaga desembainhada.

 

Decidiu improvisar.

 

O humano olhou estupefacto por instantes quando o antroleo atirou a lança desajeitadamente ao ar na sua direcção. Os seus reflexos impulsionaram-lhe o braço do broquel a bloquear a haste e Babaki aproveitou esse único momento para lhe saltar em cima, desferindo-lhe um pontapé na barriga. Alguma coisa lhe cortou o flanco, mas o antroleo ignorou-a. Com o humano a rebolar pelo chão, apressou-se a pegar no chuço uma vez mais e olhou em redor. O chão arenoso era demasiado macio para aquilo que ia fazer. O que... as fogueiras! Olhou para um dos pontos ardentes e constatou que o chão era mais duro, possivelmente de pedra. O humano da cara enfaixada aproximava-se cuidadosamente e o outro já se estava a levantar, mas Babaki ignorou ambos. Sim, sabia o que fazer.

 

Correu na direcção da fogueira, chuço em riste.

 

O público gritava em entusiasmo. Quenestil gritava em desespero. Os adversários olhavam, atónitos.

 

A ponta do chuço encalhou no chão duro da fogueira e o antroleo usou a arma para se impulsionar por cima dela. Babaki deixou a arena para trás, aproximou-se do tecto. Por momentos voou.

 

No seguinte estatelou-se contra a parede e braço e perna direitos agarraram-se com força ao parapeito.

 

O caos foi então entornado no anfiteatro.

 

Os gritos de histeria tornaram-se autênticos, agravados pelo medo. A primeira fila desbaratou-se, correndo por cima dos que estavam sentados nos lugares anteriores. Babaki içou-se, rosnando, e de seguida estava de pé e fora da arena, olhando em redor, um lobo à solta no meio de carneiros apavorados em fuga. O pânico foi geral, e muitos guardas eahanoir foram derrubados antes de sequer tentarem impor a ordem. O antroleo perscrutou a amálgama de corpos e membros agitados, cheirando o medo, e avistou a cabeleira ruiva do outro lado do círculo. Empunhou as shwafwif e correu nessa direcção.

 

Cinco hasslir desembainharam os estiletes e quebra-espadas e posicionaram-se entre o seu senhor e a fera enquanto o sexto se afastou, puxando Quenestil. Shanaya estava atordoada pelo turbilhão de emoções extremas que fora criado no anfiteatro. Tannath levantou-se, já com as armas nas mãos, olhando para Slayra com incerteza. A eahanoir estava paralisada, e antes que pudesse recuperar a compostura, Babaki já estava em cima dos hasslir, descrevendo curvas e contracurvas com as rutilantes shwafwif.

 

Com um rosnido, Quenestil projectou a cabeça para trás e sentiu o despedaçar molhado do nariz do eahanoir na sua nuca. Quase ao mesmo tempo, levou o braço à frente e de seguida para trás, espetando uma barriga mole com o cotovelo. Girou em si e envolveu o pescoço do hasslir com as correntes que o prendiam, mas desta vez não hesitou. Assentou a cabeça do eahanoir para cima do seu ombro e deixou um joelho cair, puxando com toda a força. As vértebras estalaram-lhe ao ouvido e o shura deixou o morto cair, procedendo a procurar as chaves para as grilhetas no seu cinto.

 

Slayra já se havia levantado e desembainhara um punhal para o espetar nas costas de Tannath, mas alguém lhe agarrou o pulso. Antes que se pudesse virar, um punho embateu dolorosamente contra os seus rins e a mão que lhe agarrara o pulso torceu-lho, forçando Slayra a largar o punhal. Um pé bateu-lhe no jarrete, duas mãos puxaram-lhe o braço para baixo e a cabeça da eahanoir bateu contra um joelho, fazendo com que o mundo de Slayra vacilasse. Antes que o abalo terminasse, Shanaya estava em cima de si e pouco depois o seu punho.

 

Babaki rugia como o animal selvagem que queria que todos acreditassem que fosse. As shwafwif dançavam com ar, aço e carne. Os estiletes dos eahanoir já o haviam furado várias vezes, mas naquele momento eram para ele pouco mais que picadas de abelhas. A única coisa que importava era tirar o Quenestil e a Slayra dali, nem que para isso tivesse de cortar todos os eahanoir que se lhe metessem no caminho. Os hasslir eram lutadores notáveis, mas nada os podia ter preparado contra um adversário tão feroz e tão desapegado à própria vida. Um havia caído ante a arremetida do antroleo, os outros quatro saltavam, esquivavam-se e investiam à volta de Babaki como zangões furiosos. Tannath circundou a peleja, procurando uma oportunidade para uma estocada mortal, mas então viu o que se passava para além da refrega com o antroleo: Slayra e Shanaya engalfinhadas e Quenestil a soltar-se!

 

A shionna preparava-se para esmurrar Slayra outra vez quando o joelho desta colidiu contra a sua ilharga e uma dor lancinante fez com que arqueasse as costas. A eahanoir pegou-lhe na gola da capa e despediu-lhe um soco em cheio na cara, tirando-a de cima de si e contra o assento de pedra da primeira fila.

 

Quenestil não conteve um grito de liberdade quando as grilhetas estalaram com a última volta da chave, caindo no chão com um ruído metálico. Viu Slayra zonza no chão e a shionna caída perto dela, mas a recuperar. Para além das duas, viu o seu equipamento e, para além do equipamento, Babaki, que lutava contra quatro hasslir. Levantou-se de seguida, correndo a ajudar Slayra e Babaki, mas viu uma sombra com um ferrão brilhante a pular de um assento e a planar na sua direcção. O shura atirou-se ao chão e a lâmina arrancou-lhe parte da camisa de pele de carcaju ao ombro. Dois pés pousaram graciosamente no solo de pedra, mas antes que Quenestil pudesse sequer pensar em os agarrar, um deles voou contra o seu tronco. O ângulo do golpe foi mau, mas magoou-lhe as costelas na mesma. Quase por instinto, os seus braços envolveram a perna e puxaram-na, levando o seu agressor ao chão. Tannath então estocou em frente com o estilete, visando o coração de Quenestil, mas o shura conseguiu desviá-lo com a mão, ferindo os dedos no processo. Então veio o joelho do eahanoir contra as suas costelas, seguido de um golpe com o pomo do estilete na cara, que tirou o shura de cima de Tannath.

 

Slayra ergueu-se, apoiada no parapeito e limpando o canto da boca com as costas da mão. Shanaya também se levantou, mas ao ver que a eahanna estava disposta a levar a luta até ao fim e observar a furiosa refrega que se estava a desenrolar, pareceu chegar à conclusão de que não pertencia ali e recuou. Slayra fez tenções de a seguir, mas ouviu sons de luta atrás de si e viu Tannath e Quenestil. O eahanoir e o shura lutavam à beira do parapeito, e Tannath estava por cima do eahan, que tentava evitar que a ponta do estilete lhe chegasse à garganta enquanto fazia os possíveis para não ser atirado para dentro da arena. Tannath estava em vantagem. Esquecendo a shionna, Slayra pegou no seu punhal caído e foi na direcção dos dois, mas antes que estivesse à distância certa para o cravar nas costas do eahanoir, o pé de Tannath subiu bruscamente, apanhando Slayra em cheio no estômago. A sua perna chicoteou-lhe a cara de seguida e a eahanoir foi derrubada pelo golpe, estatelando-se no chão. Esse movimento deu a Quenestil o tempo e o equilíbrio para enganchar o tornozelo do seu adversário com o pé e tirá-lo de cima de si, mas o corpo delgado de Tannath torceu-se como o de um gato e o eahanoir ficou lado a lado com o shura, ambos à beira do parapeito. Quenestil levou a cabeça para a frente com ímpeto, mas atingiu a testa do eahanoir e o impacto magoou-o tanto quanto ao seu adversário, que não perdeu tempo e puxou o eahan contra o seu joelho. O shura expeliu o ar ruidosamente para fora, mas agarrou a coxa de Tannath teimosamente com o braço livre, gritando de dor quando a mão que agarrava o pulso da arma de Tannath perdeu a força e o estilete lhe furou o trapézio. Com um rosnado, levantou o eahanoir pela perna e atirou-o por cima de si. Tannath tentou absorver o impacto da queda, mas o tombo no chão foi desajeitado e os ossos receberam grande parte do embate.

 

Uma das shwafwif de Babaki foi apanhada entre os dentes de um quebra-espadas, que o seu empunhador torceu bruscamente, quebrando a lâmina. O antroleo rugiu, esmurrando o sítio onde a cabeça do eahanoir devia estar antes de este se baixar e rugindo uma vez mais quando algo lhe fez uma profunda incisão atrás da coxa. Deu um passo atrás, girando em si, e enfrentou um assassino que investia de estilete em riste. Viu-o tarde demais para evitar que a ponta aguçada lhe furasse o ventre, mas teve tempo de oscilar selvaticamente os compridos braços, degolando o seu agressor com a lâmina de uma shwafwif e perfurando-lhe a cara com os espinhos da guarda da mão da outra. Um tombou, três atacaram ao mesmo tempo e o corpo de Babaki tremeu com o frio do aço que o perfurou.

 

Tannath ergueu-se, a dor da queda apaziguada pela adrenalina, e confrontou Quenestil e Slayra, ambos lado a lado. O eahan pegara a sua faca caída no chão e Slayra desembainhara estilete e quebra-espadas. O eahanoir não teve tempo sequer para esmaecer com a crueza da verdade, pois eahan e eahanna atacaram com determinação nos olhos. Então o ódio jorrou do seu fígado e Tannath rilhou os dentes de raiva, enfrentando os dois de pernas flectidas. Quenestil investia de frente como um carcaju selvagem enquanto Slayra saltava para cima de um assento de modo a ganhar altura e flanquear Tannath, mas o eahanoir fez o mesmo e desviou-se da estocada da eahanna com um golpe de ancas. Agarrou-lhe o pulso, puxando-a para a frente, e levou o joelho à barriga de Slayra. Com a mesma perna desferiu um pontapé na cara de Quenestil ao mesmo tempo que batia com o cotovelo na base da coluna da eahanoir, lançando-lhe um paralisante choque pelo corpo inteiro. Descartou-a como um manequim de treino e saltou de encontro a Quenestil, que se encontrava uma vez mais à beira do parapeito. O shura aparou um murro de Tannath com o braço, tentando abrir caminho para uma estocada com a faca, mas a mão do eahanoir num momento estava afastada da sua cara e no outro já lhe rebentava o inchaço do olho ferido enquanto a outra abruptamente lhe esvaziava os pulmões. Em rápida sucessão, Quenestil foi atingido no queixo, barriga, rim, e queixo outra vez, traçando uma linha de sangue no ar enquanto dava uma volta e caía de peito no peitoril. O mundo era para o eahan um imenso negrume pontilhado de branco como um céu nocturno, e só conseguia ouvir um zumbido que abafava os ruídos da luta. Tannath considerou Quenestil incapacitado e virou a sua atenção para Slayra a tempo de ver a eahanoir atacar com um grito.

 

O primeiro murro foi fácil de evitar. O segundo veio com uma rapidez que Tannath nunca vira na eahanna, atingindo-o no epigastro, e mal foi capaz de fluir com o impacto do terceiro na sua cara. O eahanoir apoiou-se com os braços num assento, convidando um pontapé no seu estômago exposto, que o virou de costas. Slayra estava agora em cima de si, agarrando-o pelo colarinho e dispensando-lhe repetidos socos. No entanto, não eram os golpes que magoavam Tannath, mas sim a chama viva nos olhos da eahanoir, raiva gerada por dor, dor partilhada com Quenestil.

 

Todas as dúvidas, todas as incertezas, todas as indecisões, tudo isso escorreu do seu coração, chapejando venenosamente na sua bile, quente e fumegante, que entrou em ebulição. O punho de Slayra achatou-se na palma da mão de Tannath, e a eahanoir teve apenas um breve instante para captar a álgida fúria nos olhos do assassino antes de estes explodirem de cólera e de esta lhe transbordar em cima.

 

O aço frio dos eahan negros mordera a carne de Babaki demasiadas vezes, incontáveis pequenas punções que vertiam profusas lágrimas vermelhas. A visão turvava-se-lhe, os movimentos tornavam-se progressivamente lerdos, a dor de tantos ferimentos cada vez mais aguda. Os hasslir eram dardejantes borrões negros munidos de cruéis espinhos cruentos e luzentes. A sua shwafwif incólume ainda dançava, mas há muito que os eahanoir lhe haviam lido o padrão e evitavam-na facilmente. Começava a sentir-se cansado, como um urso fustigado por infatigáveis cobras...

 

O zumbido nos ouvidos de Quenestil amainou e o eahan conseguia mais uma vez distinguir os sons da refrega, os rugidos de Babaki, os beijos afiados das lâminas, os grunhidos e arfares dos combatentes, mas sobretudo os baques surdos de golpes. Apoiando as mãos no peitoril, ergueu-se o suficiente para poder virar a cara e ver Slayra a ser castigada pelos punhos de Tannath. O afluxo de sangue à cabeça pareceu clarear-lhe a visão fosca e o shura impulsionou-se com os braços, mas as trémulas pernas traíram o concutido eahan e este caiu de joelhos.

 

A velocidade de Tannath era incrível. A única coisa que Slayra podia fazer era manter os cotovelos junto às costelas e os braços cerrados, resguardando a cara, mas os punhos do eahanoir conectavam com o seu alvo demasiadas vezes, originando estouros de dor alimentados pela sua fúria. A defesa da eahanna baixou com um golpe no estômago e a sua cabeça bamboleou para um lado e para o outro com dois murros na cara. Mais por instinto que qualquer outra coisa, o seu braço saltou, visando qualquer ponto no corpo de Tannath, mas este deflectiu o golpe e retribuiu com dois em rápida sucessão nas costelas de Slayra. A mente do assassino era uma conflagração de emoções, amor não retribuído, ódio por sentir amor, a certeza da traição, a traição da convicção, tudo brasas incandescentes implacavelmente vergastadas pelo atiçador da fúria. Um pontapé lateral no joelho de Slayra fez com que este a levasse ao chão, ajudado por mais um soco na cabeça, mas reunindo um último resquício das suas forças, a eahanna ergueu-se de súbito e projectou o punho na direcção da cara de Tannath. Este agarrou-lhe facilmente o pulso, colocou-lhe a mão no ombro e impeliu-a para baixo, empurrando o braço para o lado. Estalo.

 

O grito de dor de Slayra ecoou pelo anfiteatro e pelos ouvidos de todos os presentes, principalmente Babaki, cujas orelhas se arrebitaram.

 

E então tudo ficou vermelho.

 

Ao grito de Slayra sobrepôs-se um possante rugido. Os hasslir estacaram momentaneamente, aterrados, recuperando o controlo sobre os seus corpos apenas quando um dos seus foi literalmente rasgado ao meio pelo antroleo. Ignorando os dois sobreviventes, Babaki cobriu a distância que o separava de Slayra e o seu agressor com um único pulo.

 

Tannath ficou paralisado pela visão de um enorme humanóide de olhos vermelhos, presas e garras cruentas e pêlo manchado de sangue que lhe saltava em cima com fúria animal. Ainda teve a presença de espírito para se baixar e saltar para o lado, mas as garras da besta rasgaram-lhe capa, roupa e costas, dilacerando-lhe a carne até ao osso e atirando-o ao ar, rodopiando como uma ave ferida. Um grito de dor saiu dos lábios do eahanoir, que não parou de gritar enquanto caía para dentro da arena. Foi silenciado pelo baque arenoso da sua queda.

 

Babaki devolveu a sua atenção aos dois hasslir que pareciam querer fugir, preparando-se para lhes saltar em cima, mas algo ou alguém lhe pulou para as costas, envolvendo-lhe a cabeça com os braços. O primeiro reflexo do antroleo foi o de se contorcer selvaticamente, atirar-se de costas ao chão, partir os ossos de quem lhe saltara em cima, rasgá-lo em pedaços...

 

Mas algo de inesperado aconteceu.

 

O animal fugia-lhe.

 

Agarrada ao pescoço e cabeça do antroleo, Shanaya emitiu um sonoro gemido, quase um grito de prazer. Nunca sentira nada igual: ódio, raiva, medo, desespero, um jorro em dilúvio de uma alma atormentada. Era indescritível, inconcebível. Os seus olhos amarelos fecharam-se. Queria mais.

 

Babaki rugiu, mas mal conseguiu levantar os braços. O animal estava a escapulir-se-lhe literalmente por entre os dedos: podia sentir a sua presença, mas esta minguava, como se estivesse a cair num escuro abismo, o seu rosnado cada vez mais indistinto, a sua até há pouco palpável presença desvanecia-se lentamente. A primeira reacção do antroleo foi o pânico, mas também este foi engolido, sugado pela mancha escura que sentia mas que não podia ver. Foi então que Babaki se começou a aperceber do efeito tranquilizador do abismo, a placidez da apatia, a serenidade do vazio deixado pelo animal... Nunca se sentira tão bem... Quenestil... tão em paz... Slayra... a acalmia... Quenestil... livre do animal... Slayra... pura ataraxia... Quenestil... Slayra... Quenestil!

 

Babaki teve um vislumbre da realidade da qual a mancha o estava a puxar, e viu o seu amigo, pronto a enfrentar dois eahanoir, e Slayra, caída. Prometera, jurara, vez após vez após vez. Não mais falharia para com os seus companheiros. Nunca mais.

 

NUNCA-MAIS.

 

Babaki levou os seus braços bruscamente ao ar, cerrando os punhos com tal força que alojou as garras na palma da mão, vertendo sangue. A sua boca escancarou-se, exibindo as temíveis e vermelhas presas. Das profundezas da sua garganta, do âmago do seu ser, veio um rugido como tal nunca fora ouvido na arena, um urro de tal roaz furor que as próprias paredes pareceram estremecer e que fez com que os corpos dos presentes vibrassem. Shanaya sofreu uma enorme pressão na cabeça, e sentiu que tinha de fechar os olhos para os impedir de saltarem das órbitas. Algo quente começou a escorrer pelo seu nariz abaixo, mas a shionna estava absolutamente extasiada com o afluxo de emoções provenientes do antroleo e abraçou-o com mais força, abrindo-se a toda aquela cólera. O rugido aumentou de intensidade, e Quenestil e os hasslir viram-se forçados a tapar os ouvidos. Shanaya não o fez; tal era o arroubo que nem sentia o calor do sangue que lhe vertia das narinas nem a incrível pressão na cabeça, que parecia pronta a explodir. Abria-se cada vez mais às emoções do antroleo, absorvendo-as como uma esponja, mas tarde demais a shionna apercebeu-se de que era apenas isso, uma esponja, enquanto a raiva de Babaki era uma torrente. Quando o antroleo fez um último apelo ao animal, lançando o seu derradeiro rugido, os olhos de Shanaya arregalaram-se, vidrados, e algo quente jorrou também dos seus ouvidos, abafando todo o ruído menos o do seu palpitante coração, que se contraiu com tal força que lhe pareceu explodir no peito.

 

Antroleo e shionna tombaram.

 

Quenestil gritou. Mal conseguia ouvir, pois fora ensurdecido pelo possante rugido, mas viu o seu amigo a cair de frente com Shanaya por cima, o que o incitou a atacar os dois eahanoir sobreviventes. Um deles, ainda atordoado pelo poderoso rugido, foi prontamente estocado no peito pela comprida faca do shura, que se enterrou profundamente na sua carne. Tão profundo foi o golpe que Quenestil não conseguiu libertar a lâmina a tempo de se defender da investida do último hasslir, que atacou com o estilete. Saltou para trás para o evitar, mas o eahanoir dardejou em frente com um brilho assassino na lâmina. O shura tropeçou em algo e caiu de costas no chão, convidando o assassino a atacar. As suas mãos procuraram algo freneticamente atrás das suas costas e os dedos de uma crisparam-se num objecto frio e duro. Quenestil varreu o ar à sua frente e a corrente das grilhetas que agarrara enrolou-se violentamente no pulso do eahanoir, desarmando-o. O eahan puxou o hasslir de seguida para o chão e pôs-se em cima dele, enrolando a corrente à volta do punho. Com os olhos e dentes cerrados de raiva, começou a esmurrar o eahanoir com abandono, batendo e batendo e batendo e continuando a bater até nada mais sobrar da cara do assassino que uma deformada ruína vermelha. Salpicado de sangue, Quenestil livrou-se da corrente e apoiou-se com as mãos no chão, sentindo tudo a andar à roda e o seu corpo a pulsar com jorros estimulantes. Permitiu-se uns breves instantes de descanso para relaxar o latejante corpo, mas cedo se lembrou de Babaki... e Slayra! Levantou a cabeça e viu a eahanoir, que se estava a mexer, caída perto do antroleo. Levantou-se sem mais demoras, o seu coração a acelerar cada vez mais, e correu na direcção da eahanna, passando por Babaki, o chamamento do coração mais forte que o da amizade.

 

Slayra sentia frio. Arrepios percorriam-lhe o corpo, fazendo-a tremer de convulsões involuntárias. A dor no seu ombro era cruciante e o seu braço estava paralisado, morto. Lágrimas afloravam-lhe aos olhos, borrando a figura que lhe apareceu por cima e lhe agarrou os braços. Só mexer no seu membro ferido foi o suficiente para que a eahanna arfasse de dor, mas essa mesma dor clareou-lhe a visão e pôde distinguir as feições do seu amado.

 

Quenestil... sussurrou a custo.

 

Não fales, não fales... pediu-lhe o eahan, a sua testa respingada de sangue enrugada de preocupação.

 

O meu ombro... deuses, o meu ombro... soluçou Slayra.

 

O shura observou-lhe o braço, tocando-lhe tão gentilmente quanto possível, mas cada toque seu parecia fazer com que o osso deslocado roçasse contra a clavícula e Slayra gemia de dor. Quenestil percebeu e desabotoou-lhe a capa, cerrando o maxilar com força ao ver a saliência debaixo da pele inchada do ombro da eahanoir. Sabendo o que fazer, olhou em redor, procurando algo que Slayra pudesse morder, mas não encontrou nada que servisse.

 

Coragem, meu amor acabou por lhe pedir, afagando-lhe a testa e agarrando-lhe o pulso com delicadeza. Coragem... repetiu, pondo-lhe a outra mão por cima do ombro. Isto vai doer.

 

O eahan repôs o osso na sua articulação bruscamente, e o grito de Slayra quase lhe dilacerou o coração. A eahanoir bateu violentamente no chão com a mão fechada e as suas costas arquearam-se, cada membro do seu corpo esticado até ao limite.

 

E então a inconsciência envolveu-a no seu tranquilizador abraço.

 

Quenestil suspirou, grato por não ter de ouvir os gritos de agonia de Slayra. Uma sombra abateu-se repentinamente sobre os dois eahan e o shura virou-se, cerrando os punhos e determinado a morrer antes de permitir que mais algum eahanoir tocasse na sua amada.

 

Babaki estava à sua frente, sustido sobre duas pernas trémulas. Empunhava apenas uma shwafwif inteira, a outra pouco mais era que uma sequeira com espinhos. O seu pêlo tinha a cor da pelagem de uma raposa, amarelo tinto de sangue, rasgado por lacrimejantes feridas abertas, mas eram os olhos do antroleo que mais impressão causavam a Quenestil; estavam vazios, desprovidos de vida, bem podiam ser os olhos de um morto.

 

Deuses, Babaki! Precisas de ajuda! vociferou o eahan, erguendo-se e agarrando os braços sangrentos do seu amigo.

 

Não... recusou Babaki. Temos... de sair daqui. A voz do antroleo era oca, como o som dentro de uma casca seca e vazia.

 

A shionna, ela...

 

Não há tempo... Quenestil. Temos de sair... interrompeu o antroleo, curvando-se e levantando Slayra a custo nos seus braços. Leva... as tuas coisas...

 

O eahan queria dizer alguma coisa, qualquer coisa, mas nada lhe ocorreu. Babaki parecia decidido e olhava para o shura com Slayra nos seus braços como se esperasse por ele, pelo que Quenestil pouco mais pôde fazer que ir recolher o seu equipamento. Desconhecia as intenções do seu amigo, mas sabia que teriam de passar por muitos eahanoir antes que pudessem sair da cidade. Nem sabia como o fazer, o mais certo era morrerem antes de chegarem sequer aos portões...

 

Mas não importava. Iria tirar Slayra e Babaki de Jazurrieh, ou morrer a tentar. Enfiou o arco ao ombro, atou a aljava ao cinto, atirou o estojo para trás das costas e embainhou o facalhão, mas manteve a bainha na mão esquerda. Foi aí que reparou pela primeira vez o quão feridos os seus dedos estavam de terem deflectido a estocada do estilete, mas ignorou a dor, bem como a quente humidade no seu trapézio direito.

 

Vamos então disse, tocando no dente de carcaju do seu colar.

 

”Ajuda-me, Mãe, pois não sei se as minhas forças me falharão agora que mais preciso delas...”

 

Aewyre mordeu a língua involuntariamente quando os seus dentes tiritaram de frio enquanto remexia no seu incisivo. Praguejou, mas os impropérios foram arrastados pelo vento gelado que os céus da estepe bafejavam. O jovem puxou o capuz mais para a frente, apesar de as suas orelhas já estarem frias ao toque, e cruzou os braços para melhor se agasalhar.

 

”Será que a ideia dele era deixar-me morrer de frio enquanto o procurava?”, considerou por breves instantes.

 

As suas botas de couro robusto esmagavam a neve seca e dura em largos passos regulares desde que a noite caíra sobre o acampamento e a luzente Lua cheia ascendera. Kror dera-lhe indicações para seguir na direcção na qual o Sol se pusera. Acabaria por o encontrar, também dissera o drahreg, mas o problema era que Aewyre já não sabia se estava a ir para Leste ou Oeste, ou mesmo se já descrevera círculos em redor do acampamento. Cada vez que olhava para trás via os pontos brilhantes das fogueiras das sentinelas do acampamento, mas esse era um incerto indicador do rumo a tomar, pelo que o jovem continuava teimosamente em frente, em direcção a Kror, em direcção àquela que decerto seria a morte de um deles.

 

O dia fora um autêntico pesadelo. A presença do drahreg, física ou na sua cabeça, fora uma constante. Comera com ele, tentara falar com ele, cheirara o seu odor, parecia-lhe ouvir a sua voz de cada vez que alguém lhe dirigia palavra, e sempre que se viam, os seus músculos retesavam-se instintivamente, como dois animais em território neutro. O ”tendão” havia-se tornado insuportável, sempre a puxar, sempre tenso, atraindo fatalmente os dois guerreiros para um combate do qual só um poderia sair vivo. A última vez que vira Kror fora ao jantar, enquanto comia uma pratada de ratos estufados. O drahreg estivera ao seu lado, como sempre o fazia, como não podia deixar de o fazer, e comera em silêncio durante toda a refeição. O dia podia ter acabado ali pacificamente, mas o próprio ”tendão” parecia ter interferido, literalmente. Fora um incidente bastante ridículo até, agora que pensava nele, mas acontecera e provocara as suas reacções. Kror estivera a comer um rato e ferrara o dente nele, puxando-o para arrancar a carne. Calhou que no processo de dilacerar o pitéu um pedaço de molho voasse contra o olho de Aewyre. A partir desse momento fora a loucura. O jovem saltara para cima de Kror, fazendo com que este entornasse a taça de boozlan em cima do ayan, e os dois haviam começado a lutar como dois cães engalfinhados. Aewyre esfregou a parte do seu antebraço que fora mordida pelo drahreg quando o jovem lhe havia prendido o pescoço numa chave. Fora incrível, a maneira como uma gota de molho despoletara uma reacção totalmente instintiva e animalesca em si, fazendo-o esquecer onde estava e com quem estava, vendo apenas Kror à sua frente, nada mais querendo que matar o drahreg. Após uma breve troca de socos e já de mãos nas gargantas um do outro, ambos foram separados, mas foram necessários vários homens fortes para os manter afastados. A única coisa que Aewyre recordava desses momentos era a expressão chocada de Lhiannah, a consternação na cara de Allumno e a voz berrante de Worick ao seu ouvido. Lamentou uma vez mais ter envolvido os seus amigos nesta confusão, mas agora nada havia a fazer. Quando os ânimos se haviam acalmado, e após uma breve conversa entre o ayan e Kror, Aewyre e o drahreg foram forçados a apertar as mãos e abraçarem-se como irmãos. Ao fazê-lo, Kror sussurrara ao ouvido do guerreiro que se encontrasse com ele no exterior, e saiu de seguida do yugr.

 

Aewyre fez como lhe fora indicado e encontrara o drahreg a urinar perto do curral das escanzeladas cabras. Dirigiu-se a ele e Kror explicou-lhe o seu plano, parecendo desafiar Aewyre com o olhar a urinar naquele local também. Coisa de loucos... O drahreg explicara-lhe que, enquanto hóspedes do ayan, Aewyre e os seus amigos não podiam ser molestados. O olhar de Kror, porém, irradiava o desejo de fazer precisamente isso naquele preciso momento. Mas o seu autocontrole não era inferior ao do humano e refreou-se de o fazer, se bem que as suas mãos não parassem quietas. Dera-lhe então as indicações para o que dizia ser ”um sítio onde podemos lutar” e desaparecera.

 

Aewyre não tivera muito tempo para reflectir, apenas o suficiente até o Sol se pôr. Nunca reparara no quão cedo a noite caía na estepe invernal até então, ou talvez o tempo tivesse passado mais depressa por ter estado a pensar. Allumno perguntara se estava tudo bem, e Taislin também quisera saber o que se passava, mas o jovem desculpou-se com o incidente do jantar, o que não era de todo mentira. Por fim, quando viu o globo flamejante a enterrar-se na estepe, colorindo a neve de laranja, tomou a sua decisão. Saíra sorrateiramente do acampamento, sem sequer vestir a armadura para não chamar atenção, e agora aqui estava ele, tendo como único inimigo o frio, tentando encontrar o seu rumo naquela desolada vastidão de neve parcamente iluminada pelo brilho selénico.

 

”Raios partam o tendão... Hoje isto acaba.”

 

Avistou Kror pouco depois. O drahreg esperava-o de braços cruzados dentro de um círculo que criara com as próprias pegadas. Mesmo àquela distância o guerreiro viu a vermelhidão das pupilas do seu adversário, dois juramentos de morte. A sua morte, ou a dele. Kror aguardava, observando cada passo do humano atentamente, procurando fraquezas mesmo àquela distância.

 

Foste esperto em afastá-lo dos seus amigos elogiou Kerhex.

- Agora toma a iniciativa, apanha-o desprevenido...

 

Tenta pelo menos falar recomendou Sassiras’s. Talvez isto não seja necessário...

 

Calem-se vocês os dois! Ele é meu e não preciso dos vossos conselhos! declarou o drahreg, sentindo a ira fervente de Kerhex e a gelada indignação de Sassiras’s quando ambos se retiraram da sua mente.

 

Kror piscou os olhos para aclarar a cabeça e quando os abriu, Aewyre já tinha a sua espada desembainhada, empunhando-a com uma mão apenas e mantendo a ponta baixa. Os passos do guerreiro eram agora cuidadosos, quase lentos, fazendo com que a sua aproximação parecesse durar uma eternidade. O vento uivava em antecipação.

 

Inesperadamente, veio à memória de Aewyre a noite após a incursão em Moorenglade, quando estivera deitado naquela clareira da qual se podia ver o céu estrelado. O que havia prometido a si mesmo? ”Não serei uma peça no jogo de ninguém.” Bem, este jogo era o da Essência da Lâmina, e se não estava a agir como uma peça... Resignado, o guerreiro deu um último passo e parou à distância de uma estocada, puxando o capuz para trás. Prendera o cabelo num ridiculamente pequeno rabo-de-cavalo, já que este havia crescido ao ponto de se tornar incómodo numa luta, mas mesmo assim as lufadas frias arrancaram-lhe umas madeixas e deixaram-nas a abanar ao vento. Kror levou calmamente as mãos por cima dos ombros e tirou os alfanges, cujas lâminas lamberam as bainhas, sibilantes. As suas pesadas tranças dançavam com as rajadas, oscilando como serpentes negras, e o drahreg cruzou os alfanges numa espécie de saudação. A tensão entre os dois guerreiros era palpável, a aparente calma um fio prestes a estalar, as suas espadas duas cobras prontas a arremeter. Aewyre ainda pensou em tirar as luvas, mas viu que o drahreg ainda tinha as suas postas e achou que era melhor ter mãos pouco maleáveis que dedos entorpecidos.

 

Antes de começarmos... uma coisa pediu. Kror aguardou.

 

Se eu... se tu ganhares, o que vai acontecer aos meus amigos? O drahreg não tirou os olhos dos do humano enquanto parecia

 

pensar numa resposta, ou talvez estivesse apenas à procura das palavras certas. Quando por fim falou, a sua voz foi franca, quase compreensiva.

 

Não lhes vai acontecer nada. Os Cho Tirr fizeram-lhes mal sem querer. A lei das estepes exige compensação.

 

Obrigado agradeceu Aewyre num meio suspiro. Ainda quis perguntar o que aconteceria se ganhasse, mas notou que as pernas de Kror já estavam flectidas e os seus alfanges em posição de combate. O ”tendão” puxava, rangia como os fios de uma corda esticada até ao limite.

 

”Para os infernos com o paleio, então...”

 

Ancalach empinou-se e desceu com ímpeto, saudando os alfanges cruzados com um tinir como uma troca de cumprimentos entre velhos companheiros.

 

Gulan, o rapaz ocarr, vira Aewyre a sair sorrateiramente do acampamento quando se fora aliviar fora da tenda. Achara o guerreiro circunspecto demais, e a memória do incidente durante o jantar ainda estava bem viva. Com a curiosidade espicaçada e devidamente agasalhado graças às insistências da sua mãe, Gulan seguira o hóspede sorrateiramente para longe dos yugr. Olhara duas vezes para trás, apreensivo, mas a curiosidade fora mais forte que a prudência e continuara a sua perseguição. O que ia o estranho fazer tão tarde? As primeiras coisas que lhe haviam vindo à cabeça deveram-se às histórias de cama da sua mãe, contos dos esfoladores que vinham a coberto da noite para arrancar a pele às crianças desobedientes, mas Gulan sempre se julgara capaz de enfiar uma seta no olho de um udagai. Pelo menos o seu pai sempre lho dissera, orgulhoso, durante os treinos de arco. Claro que agora não tinha um... bem, podia sempre fugir e correr a avisar a tribo. Sim, era isso mesmo que iria fazer caso o estranho estivesse em conluio com os esfoladores que haviam atacado os guerreiros da sua tribo no Poço de Songul.

 

Mas assim que vira Potro Negro as coisas haviam-se tornado bem mais interessantes. Iriam continuar o combate fora do acampamento? Teria Potro Negro ido à caça sem ninguém saber e o estranho agora apanhara-o longe dos seus? Tinha de ir avisar alguém, mas estava tão longe... Todavia, apesar de todos os preocupantes pensamentos que lhe vieram à cabeça, Gulan ficou hipnotizado assim que a luta começou. Já vira Potro Negro a lutar antes, durante as sessões de treino com os guerreiros da tribo, e sempre admirara a sua fluidez e graciosidade, os movimentos dos seus alfanges suaves como brisas, rápidos como rajadas e mortais como relâmpagos. Mas o estranho era diferente, rápido à sua maneira, com uma comprida lâmina que dardejava impetuosamente em frente e que descrevia rutilantes arcos no ar que mantinham Potro Negro à distância. As lâminas de ambos acasalavam estridulamente enquanto efectuavam a sua mortal dança, silvando e rilhando numa desconforme sinfonia. Os chofres que as espadas produziam no ar acompanhavam os arquejos dos lutadores, o vento ora vaiava ambos ora ululava em admiração, agitando-lhes os cabelos enquanto o fazia. Fascinado com o combate, Gulan deixou-se ficar acocorado onde estava, observando a cativante luta.

 

As lâminas curvas rodopiaram em resposta numa mortal sincronia, lambendo Ancalach, avançando de modo a impedir o adversário de usufruir do alcance superior da espada longa, mas algumas rápidas passadas para trás foram suficientes para que Aewyre afastasse Kror com uma larga varredela. O jogo de pés dos dois oponentes era estonteante para quem os observasse; tanto a dança do drahreg como os passos marciais do humano. Ambos os combatentes estavam agora alheios ao frio, os seus músculos bombeados por corações retumbantes. A sensação era estimulante: o ardor do combate, os reflexos aguçados como lâminas, os instintos primitivos da sobrevivência do mais forte a virem ao de cima. Nenhum dos dois se odiava, nenhum precisava de matar o outro para sobreviver, e, no entanto, aqui estavam eles, dois galos numa capoeira sem galinhas. O tempo da razão e do pensamento acabara.

 

Aewyre deu um longo e rápido passo em frente, visando a garganta de Kror com a ponta, mas quando esta foi desviada transferiu o seu peso para trás e recuou, flectindo as pernas. Perante o avanço do drahreg, girou Ancalach à sua frente e desferiu um corte transversal para baixo, que Kror bloqueou, mergulhando de seguida a ponta do outro alfange por cima. De modo a evitá-la, o humano levou a perna direita para trás, executando uma larga parada para a desviar, mas Kror seguiu o movimento e penetrou na defesa de Aewyre, alfanges em riste. Ou pelo menos assim julgava, pois o humano executou uma súbita troca de pés e levou Ancalach num movimento em arco ascendente. Graças aos seus reflexos, o drahreg sofreu apenas um golpe no ombro em vez de perder o braço quando a lâmina reforjada por Tharobar lhe cortou roupagem, couro e pele. O primeiro golpe fora de Aewyre, mas ambos sabiam bem que o último era mais importante.

 

Kror afastou-se depressa para reavaliar a situação, rodopiando os alfanges desvairadamente, mas Aewyre não lhe permitiu esse momento de descanso e insistiu com o seu ataque, determinado a aproveitar a vantagem. Ancalach arremetia, as lâminas gémeas zuniam, Kror sangrava do ombro e Aewyre mostrava os dentes como um predador, investindo e estocando para penetrar a defesa do drahreg.

 

Gulan guinchou quando viu Potro Negro a ser ferido e subsequentemente afastado com uma saraivada de golpes do estranho. Fora a primeira vez que o vira ser atingido, nunca nenhum dos Cho Tirr alguma vez lhe havia conseguido tocar, e isso causou-lhe uma certa aflição. Se pelo menos tivesse trazido o seu arco... Tão absorto estava o pequeno ocarr no combate que nem reparou no vulto que se aproximava dele pelas costas.

 

Perante o implacável avanço do humano, Kror girou os alfanges nas mãos, de modo a que as pontas apontassem uma à outra como um par de pinças. Encaixou a seguinte estocada entre as lâminas e cerrou-as como uma tenaz, prendendo Ancalach. Aewyre deu umas passadas laterais para libertar a arma, mas o drahreg acompanhou-as, forçando o humano a agarrar a espada com as duas mãos de modo a conseguir soltá-la à força. Enquanto Aewyre recuperava a sua posição, Kror teve tempo de recobrar o fôlego e colocar-se numa postura defensiva. Quando o guerreiro humano retomou a ofensiva, já o drahreg estava pronto e a canção das lâminas retomou o seu frenético e descompassado ritmo: estocada, parada, riposte, rodopio, oscilação, corte reverso.

 

Eram dois adversários de grande perícia, cada qual compensando aquilo em que era inferior em relação ao outro com uma vantagem que esse mesmo não tinha, numa batalha de incessantes contrabalances. Aewyre mantinha a sua distância daquele remoinho de lâminas curvas e Kror evitava as longas espadadas e largas varredelas da comprida Ancalach. As rápidas passadas dos combatentes abriam sulcos na neve, quebrando a crosta, e os seus ofegos condensavam-se em vaporosos jorros.

 

Os dois adversários pararam para recuperar o fôlego, sem nunca tirarem os olhos um do outro nem baixarem as espadas. O ombro de Kror sangrava, mas era apenas um ferimento superficial, pouco incómodo. No entanto, podia fazer toda a diferença num combate entre dois adversários de tão equiparável perícia, e Aewyre estava determinado a aproveitá-la ao máximo.

 

Uma súbita lufada de vento empurrou uma madeixa de cabelo solta para os olhos do humano, fazendo-o piscar.

 

Quando os abriu, Kror saltava para cima dele, alfanges a meio de um devastador golpe que o partiria em dois. O seu reflexo foi baixar o joelho esquerdo e flectir a perna direita, levando Ancalach acima na ”horizontal, apoiando a ponta na mão livre. As lâminas embateram sonoramente na espada devido à dura parada, e antes que o drahreg conseguisse afastar-se demasiado, Aewyre levou a perna dobrada para o lado, ajudando o corte baixo em arco que desferiu. Mais uma vez, Kror foi salvo pelos seus reflexos, que lhe levantaram a coxa, evitando que o membro fosse decepado pelo joelho, mas não foram rápidos o suficiente para impedir Ancalach de deslizar pela perna do drahreg até lhe rasurar o osso. Kror grunhiu de dor e, desequilibrado pelo impetuoso movimento e pelo ferimento, caiu de costas na neve. A exultação de Aewyre foi arrebatadora ao ver o seu oponente caído, e o instinto predador apoderou-se das suas acções. Virou a ponta da espada para baixo, agarrando o punho com as duas mãos, e executou um movimento para empalar o drahreg, mas este rebolou para o lado e, a meio do movimento, o seu pé atingiu a cara do humano. O nariz de Aewyre molhou-lhe a maçã do rosto e o guerreiro grunhiu ruidosamente, cambaleando para trás. Kror estava sobre os seus pés uma vez mais, mas a sua perna estava inflamada pelo sangue que escorria da dolorosa ferida. Aewyre estava de pernas flectidas, levando uma mão enluvada cheia de neve à cara, tingindo-a de vermelho, e os seus olhos lacrimejavam, borrando-lhe a visão. O desempenho de ambos estaria seriamente prejudicado, mas nenhum pensou sequer em desistir. Antes pelo contrário, cada um estava motivado a explorar a desvantagem da qual o adversário agora padecia, e avançaram de armas em riste, dispostos a levar o combate até ao seu mortal fim.

 

Chegou a altura... vociferou Aewyre, esfregando os olhos lacrimejantes.

 

Sim... concordou Kror, levando a perna ferida atrás e flectindo a da frente. Chegou a altura...

 

Potro Negro! ouviu-se uma esganiçada voz.

 

Ambos os guerreiros feridos olharam na direcção do som e viram uma criança a espernear nos braços de uma mulher, cujos longos cabelos negros esvoaçavam ao vento. Kror arfou, reconhecendo Gulan, e deu uma passada em frente.

 

Mais um passo e a criança morre avisou Hazabel, fincando unhas negras na garganta desta. Kror estacou de imediato.

 

Apesar do brilho selénico, estava escuro demais para distinguir algo mais que uma silhueta, mas Aewyre reconheceu a mulher pelo seu porte e voz.

 

Tu outra vez?

 

A mulher pareceu olhar na direcção do guerreiro.

 

Sim, Aewyre Thoryn. Eu outra vez.

 

Mas quem és tu, maldita harahan? Como sabes o meu...

 

Chega! Não tenho tempo para isto. Aewyre Thoryn, mata-o ordenou a harahan, apontando para Kror.

 

Humano e drahreg ficaram aturdidos. O segundo não proferiu uma palavra, mas da boca de Aewyre saíram várias atabalhoadas.

 

O quê...? Mas que...?

 

Mata o drahreg, empala-o com a tua espada. Fá-lo ou arranco a garganta da criança.

 

Aewyre olhou para Kror, mas o drahreg não tirava os olhos dos do rapaz, tenso como um arame e de mãos bem crispadas nos punhos dos alfanges.

 

Fá-lo! gritou a mulher, enfatizando a sua premência com uma ligeira pressão na garganta da criança, que gritou quando as unhas verteram sangue.

 

Kror fez tenções de avançar, mas o seu bom senso impediu-o de dar um passo. Nunca conseguiria chegar perto o suficiente para atacar antes que a mulher matasse Gulan, ainda mais com uma perna ferida. Olhou então para Aewyre, e viu a dúvida e a confusão nos olhos do humano.

 

Faz... o que ela diz disse.

 

O quê? Mas... Tinha de matar Kror, sim, mas em combate, não desta maneira, não como se o seu adversário fosse um bezerro para a matança. Eu não posso...

 

Empala o drahreg e deixa a tua espada no seu corpo! Mata-o, já! tornou a mulher a gritar.

 

Kror baixou os braços e as pontas dos alfanges tocaram o chão.

 

Faz o que ela diz repetiu o drahreg.

 

Não, cobarde! Não o faças! Mata a cabra! gritava-lhe Kerhex na cabeça.

 

Kror, não podes deixar a criança morrer! afligia-se Sassiras’s.

 

Faz o que ela diz reiterou, resoluto.

 

Aewyre não queria acreditar no que estava a acontecer. Matar o drahreg desta maneira? O que queria a harahan? Empalar Kror e deixar Ancalach nele cravada? E a Essência da Lâmina? E...?

 

Só vou dizer isto mais uma vez avisou Hazabel. Atravessa o maldito drahreg com a tua espada e deixa-a ficar. Outro gemido da criança ocarr enfatizou a premência do cumprimento da ordem.

 

Aewyre continuava a olhar para Kror, como se lhe perguntasse o que fazer, e o drahreg acenou com a cabeça, expondo-se de braços abertos. O humano ainda abanou a cabeça negativamente, mas Kror fechou os olhos e levantou o queixo. O vento estava silencioso e o gemido da criança tornara-se num emudecido lamento. A ponta de Ancalach subiu para o campo de visão de Aewyre.

 

Fá-lo! gritou a harahan.

 

O jovem empunhou Ancalach dubiamente com as duas mãos. Então era assim que iria acabar aquela curta e intensa rivalidade? Pouco ou nada sabia acerca do drahreg, mas sentia-se como se já o conhecesse há muitos anos, como se ambos tivessem partilhado a Essência da Lâmina desde sempre, e desde sempre tivessem querido matar-se um ao outro. Tudo iria acabar agora, tão cedo... mal tivera tempo de perceber o que o ”tendão” era, o que a maldita Essência representava ao certo, o que o próprio Kror era: um drahreg armado de dois estranhos alfanges que se comportava de uma maneira tão avessa ao temperamento da sua raça. O gemido da criança acordou-o dos seus pensamentos, e Aewyre sabia que teria de o fazer.

 

Não era assim que eu queria que isto acabasse... confessou. Hazabel sorriu ao ver Aewyre fincar os pés no chão. Finalmente,

 

Ancalach estava ao seu alcance! O jovem Thoryn iria empalar o drahreg com a espada e, desarmado, seria morto por Hazabel. Depois, teria apenas de despedaçar o corpo de Kror, arrancando tudo o que não fosse necessário, e usaria o cadáver para transportar a Espada dos Reis. Era um plano brilhante, e estava perto da fruição. Nem sequer vira o lacaio do seu mestre, e iria adorar a cara do desgraçado ao vê-la a regressar triunfante com Ancalach. Sim, e assim que estivesse livre do seu serviço, tendo cumprido aquilo que lhe fora requisitado, iria partir-lhe cada osso do corpo e fazê-lo pagar bem caro por tudo aquilo que a fizera passar...

 

Uma dor aguda explodiu-lhe no flanco pelas costas. Hazabel gritou e largou o rapaz, caindo de joelhos e levando a mão à haste da seta que lhe perfurara a ilharga. A criança fugiu aos guinchos, e Kror abriu os olhos vermelhos, saltando para a acção com uma velocidade fulminante, como se tivesse esperado pelo momento. Aewyre ficou parado, sentindo-se como um espectador numa cena que se estava a desenrolar demasiado depressa para que nela pudesse participar. Kror percorreu a distância que o separava da mulher, da traidora, da maldita cabra traiçoeira.

 

- Fá-la em pedaços! incitou Kerhex.

 

Mata-a! concordou Sassiras’s.

 

Os seus irmãos, mortos por causa dela. A venerável, cega por causa dela. Gulan, quase degolado por ela. Os alfanges brilhavam à luz do luar como os dentes de um predador faminto. Hazabel ainda estava abalada, mas viu a morte aproximar-se com coléricos olhos vermelhos”, e de imediato soube que tinha de fugir. As sombras da noite receberam-na quando nelas mergulhou, tornando-se uma indistinta forma negra a deslizar pela penumbra nocturna. Kror parou de olhos arregalados. Aewyre havia-lhe dito que Hazabel era uma harahan, mas ainda assim o assombro não foi menor.

 

A estepe permaneceu silenciosa por instantes, como se a própria estivesse surpresa, mas cedo os ventos tornaram a uivar. Gulan atirou-se de encontro a Kror, abraçando-lhe a cintura com força e chorando convulsivamente com a cara encostada à barriga do drahreg, que lentamente se recuperou do espanto, embainhou os alfanges e pôs as mãos sobre a cabeça do rapaz. Aewyre recuperou por fim e olhou para além do sítio onde a harahan antes estivera. Uma silhueta delineada pelo brilho da lua caminhava coxeante na direcção dos dois combatentes, empunhando um arco recurvo ocarr, mas Kror não parecia prestar-lhe a mínima atenção, apesar de a estar a ver. Curioso e com o corpo ainda a tremer com o afluxo de adrenalina, embainhou Ancalach e avançou ao encontro de Kror. Grande foi a sua surpresa ao ver os inconfundíveis cabelos louros a reluzirem ao prateado luar.

 

Lhiannah...?

 

A arinnir fitou-o com um olhar impossível de decifrar. Tanto podia traduzir raiva como desprezo, ou até mesmo indiferença, tudo menos alegria por o ver. Olhou para Kror e o drahreg retribuiu-lhe o olhar, afagando o cabelo da criança.

 

Obrigado agradeceu com nada para além de sinceridade nos seus orbes vermelhos.

 

Lhiannah anuiu com a cabeça, lançou outro daqueles estranhos olhares a Aewyre e virou-lhes as costas, começando a caminhar na direcção do acampamento e conseguindo manter um porte digno mesmo a coxear. O guerreiro coçou a cabeça, ainda sem perceber ao certo o que havia acontecido.

 

Então o ”tendão” puxou.

 

Kror perscrutava-o intensamente, sem no entanto largar a criança. Todos os instintos dos dois combatentes queriam que continuassem a lutar, mas depois do que sucedera... ambos relaxaram. ”Hoje não”, pareciam os atenuados ombros do drahreg e do humano dizer. Kror murmurou palavras aquietadoras à criança e esta levantou a cara marejada de lágrimas, fungando e soluçando. Pegou-lhe ao colo e lançou um último olhar ao humano antes de também ele se pôr a caminho, manquejando da perna ferida.

 

Aewyre olhou para o céu, lançando um longo suspiro. A Lua iluminava as bordas de nuvens cinzentas que mareavam pela abóbada como ondas num oceano negro. A dor no nariz fê-lo esquecer as nuvens e levou mais uma mão-cheia de neve ao apêndice ferido, sossegando-se com o facto de não parecer estar partido. Uma vez mais o combate fora interrompido.

 

”Será que isto nunca mais vai acabar?”, perguntou-se a si mesmo. Será? repetiu em voz alta para quem ou o que quer que pudesse estar a ouvir.

 

Resignado, foi atrás de Kror.

 

O pequeno yugr para o qual Aewyre fora conduzido estava vazio, com a excepção do tapete sobre o qual se sentava, um braseiro e uma tigela de madeira com água. Duvidava de que fosse costume dos ocarr terem duas tendas medicinais; o facto de apenas terem querido mantê-lo longe de Kror parecia-lhe bem mais plausível. Os seus amigos haviam-no recebido com surpresa, sem perceberem ao certo o que havia acontecido, e Lhiannah não mostrara vontade nenhuma de lhes explicar. O seu nariz fora tratado por uma assistente da xamã, que se ocupara de Kror, e agora estava sozinho a inalar os fumos de umas ervas que haviam sido deixadas a arder no braseiro de estrume do yugr. Seria alguma espécie de acto de expiação ocarr? A única coisa que sentia vontade de expiar era o maldito esterco, que misturava o seu odor ao das plantas, criando uma atmosfera enjoativa. Fechou os olhos e suspirou, sentindo que já havia alcançado o seu pico nesse dia e sem vontade de se irritar com mais nada. Ensopava regularmente um pano na tigela de água gelada ao seu lado para aliviar as dores no nariz, que entretanto enrubescera como um morango maduro. O pontapé de Kror não partira a cana, mas nem por isso deixava de ser doloroso, forçando o jovem a inclinar a cabeça para trás e deixar que o frio da água lhe aliviasse o nariz. Foi durante esse tratamento que ouviu o reposteiro da tenda a ser aberto e baixou os olhos para ver quem entrara.

 

Lhiannah estava de braços cruzados à porta. Ainda vestia as mesmas roupas de Inverno com as quais a vira fora do acampamento, mas aparentemente deixara o arco na tenda.

 

Aewyre endireitou a cabeça e pôs o pano dentro da tigela, levantando-se.

 

Lhiannah... disse por falta de algo mais. O olhar da princesa continuava enigmático quando esta avançou. Vieste para... O guerreiro nem viu a mão enluvada da arinnir que rebentou numa sonora bofetada na sua cara, apagando todas as luzes do mundo por um instante. O seu nariz parecia um ferrão espetado na face quando Aewyre levou as mãos ao rosto.

 

És atrasado mental?! quis Lhiannah saber, dissipando quaisquer dúvidas em relação ao que o seu olhar significara. Que raio de ideia foi essa? Esperavas o quê, matar o Kror e receber elogios da tribo depois? Estás parvo, completamente estúpido? Por que é que ele não te cortou a cabeça, já que não a usas? O que achas que eles nos iriam fazer se o matasses? Pensaste nisso sequer, seu idiota? O que teria acontecido se eu não te tivesse por acaso visto e seguido e por acaso não tivesse surripiado um arco, sabes dizer-me? E que história é essa de te pores a olhar para mim daquela maneira no banho de vapor, seu tratante, seu... a minha vontade era...

 

Lhiannah continuou a fustigar Aewyre com insultos, mas o guerreiro mal ouvia devido ao zumbido nos seus ouvidos. Quando abriu os olhos e viu o sangue do nariz nas mãos, rosnou e agarrou a princesa pelos braços. Ao ver as rugas de raiva na cara do jovem, o reflexo de Lhiannah foi desferir-lhe um pontapé na canela, mas Aewyre mexeu o pé rapidamente e enganchou o tornozelo de Lhiannah, derrubando-a com um empurrão e caindo em cima dela. A arinnir estrebuchou, mas as mãos do guerreiro agarraram-lhe os pulsos com força e o seu peso imobilizou-lhe o resto do corpo.

 

Porra, Lhiannah! Não sou o teu saco de pancada! barafustou Aewyre com dois fios de sangue a escorrerem-lhe das narinas para o queixo. O Kror já me ia partindo o nariz e tu ainda vens...!

 

Larga-me! ordenou a princesa, debatendo-se.

 

Não, não, isto não é bater e fugir! Agora tu vais ouvir-me! Os últimos resquícios de paciência do jovem haviam-se esgotado. Tu...

 

Larga-me ou eu grito! ameaçou Lhiannah, tremendo com a força que fazia, tentando libertar-se do pesado guerreiro.

 

O quê, vais começar a gritar como uma rapariguinha assustada, é? Foi remédio santo. As feições da princesa congelaram após ouvir essas palavras e os seus músculos relaxaram de imediato.

 

Agora ouve-me bem: se me tentares bater mais uma vez, mais uma vez, eu pego-te pelo cachaço e dou-te a tareia que o teu pai te devia ter dado mas nunca o fez, percebeste?

 

Lhiannah abriu uma boca indignada, mas nenhuma palavra dela saiu. Os dois já não se fitavam nos olhos há tanto tempo que Aewyre já se havia esquecido das pepitas douradas que a princesa tinha nos orbes azuis. Ambos ficaram assim a olharem-se mutuamente, com os corpos tão achegados que podiam sentir os corações a baterem com a força colateral do momento de tensão. Nunca haviam estado assim tão próximos... pelo menos não enquanto sóbrios... houve algo naquilo que acalmou Aewyre, dissipando-lhe toda a raiva, e o guerreiro sentiu necessidade de dizer alguma coisa.

 

Eu... Umas gotas de sangue pingaram do seu queixo para o peito de Lhiannah. Oh, porra... exclamou, saindo de cima da princesa e sentando-se de cotovelos apoiados nos joelhos a seu lado. Não és capaz de falar como uma pessoa civilizada, raios? perguntou ainda, esfregando o sangue da áspera barba do queixo, pinçando o nariz e inclinando a cabeça para trás.

 

Lhiannah apoiou as mãos no chão e ergueu-se lentamente, fitando o guerreiro em silêncio. Aewyre reparou no olhar de relance que a arinnir dispensou às manchas vermelhas na sua roupa e atirou-lhe o pano molhado.

 

Limpa isso disse, numa voz nasalada.

 

A princesa atirou-lho de volta num gesto de recusa. Aewyre suspirou exasperadamente, rasgou o pano em dois e lançou a metade limpa a Lhiannah com força, tapando o nariz com a ensanguentada.

 

Casmurra... murmurou de voz abafada.

 

Se Lhiannah ouvira, não o deu a entender, limitando-se a esfregar o sangue no seu peito com o pano molhado, reparando ainda nas marcas no ombro quando o guerreiro lho agarrara com a mão molhada e limpando-as também. Aewyre endireitou a cabeça e espremeu o pano dentro da tigela de água.

 

Lhiannah eu... eu sei que ia cometendo o Terceiro Pecado... outra vez. A arinnir parou de esfregar. Não pensei, fui simplesmente ter com ele e... desculpa, vocês também estão metidos nisto e também corriam perigo, mas eu... O guerreiro provou o sabor férreo do sangue outra vez quando fios quentes lhe escorreram pelo lábio superior, e inclinou a cabeça, limpando a boca e tapando o nariz. É só que... raios, não dá para explicar! Vocês não fazem ideia do que é estar sempre com o desgraçado do drahreg na cabeça; quer ele esteja longe ou perto. Eu sei que não é desculpa, mas ajudava... era bom ter um bocadinho de compreensão da tua parte, sabes?

 

Lhiannah nada disse, mas fitava o guerreiro sentado de braços cruzados.

 

Sim, não precisas de dizer nada. Já estou habituado. Mas se é preciso levar chapadas para te ouvir falar, então dispenso confessou. Queria apenas que soubesses...

 

Seguiram-se mais uns momentos de silêncio, durante os quais o guerreiro permaneceu com a cabeça inclinada e a olhar para o tecto do yugr, sentindo os olhos julgadores de Lhiannah sobre si. Por fim, a princesa quebrou o silêncio.

 

Vou... pedir ao Allumno que traga qualquer coisa... disse, para o nariz.

 

Sim, já agora...

 

A princesa dirigiu-se à entrada e abriu o reposteiro.

 

Lhiannah? A arinnir virou-se. Desculpa. A sério. Outro momento silencioso.

 

Está bem aceitou Lhiannah, virando as costas a Aewyre e saindo apressadamente do yugr.

 

O guerreiro tornou a suspirar, olhando para o sangue no pano molhado.

 

Melhor do que nada... ou que outra chapada... conformou-se, tapando o nariz.

 

Na margem do lago Aigun, encostada a um penedo, Hazabel grunhia de dor, empurrando a haste da flecha de modo a que a ponta de osso lhe saísse pela frente numa agonizante e aparentemente interminável operação. Quando a seta estava a meio caminho, pegou na haste pela frente com uma mão e puxou, continuando a empurrar com a outra. Com um último puxão, o volante de couro da seta saiu-lhe dolorosamente da carne e a harahan atirou o projéctil ensanguentado para longe de si, deixando-se cair de costas. Os seus dentes estavam cerrados de dor e a sua cabeça latejava, mas sabia que era só uma questão de tempo até tudo passar. O ferimento seria grave para uma mulher normal, mas muita gente ficaria surpresa com os abusos que uma harahan podia aguentar, e este era dos menores. Ainda assim, exigia um mínimo de tratamento, mas Hazabel dispunha de parcos meios para o efectuar. Remexeu nas suas bolsas e tirou uma mão-cheia de folhas de arruda, que enfiou na boca e mastigou pausadamente, pois tinha o nariz entupido e não conseguia respirar por ele. Por fim, cuspiu a pasta acre para a mão. Em doses excessivas a planta podia ser venenosa, mas veneno era a menor das preocupações da harahan naquele momento, pelo que arregaçou as suas vestes e enfiou uma porção do unguento nas duas aberturas da ferida, que ardeu. Como precisava urgentemente de recobrar as forças, tirou o seu último Fígado da bolsa de couro e espremeu o fel coagulado para dentro da boca até o líquido amarelo-esverdeado lhe começar a escorrer pelos cantos. Saciada, Hazabel limpou a boca com a manga, lambendo o que podia, e encolheu-se debaixo do penedo, fechando os olhos para repousar.

 

”Mais uma, pela qual o jovem Tboryn e o maldito pagarão... sangue por sangue...”

 

Os seus sonhos foram de ódio.

 

Babaki ainda conseguia andar com os próprios pés e carregava Slayra nos seus braços, mas aos olhos de Quenestil parecia mais morto que vivo, e não só devido aos seus profusos ferimentos. A maldita shionna era responsável de certeza; o antroleo parecia vazio por dentro. Os guardas eahanoir que se lhes depararam na sala de entrada do edifício da arena pareciam pensar o mesmo, mas por alguma razão afastavam-se dos dois foragidos, olhando dubiamente uns para os outros. Quenestil estava tenso, de faca em punho e pronto para lutar. mas o antroleo caminhava confiante, alheio às sentinelas como se não existissem.

 

Babaki, o que se passa? sussurrou-lhe o eahan, sem obter resposta.

 

”... virar à minha esquerda, entrar no terceiro beco à direita... virar à minha esquerda, entrar no terceiro beco à direita.,.”, repetia o antroleo mentalmente, olhando sempre em frente, fixando os olhos na porta da saída.

 

Um eahanoir deu um passo em frente, mas um dos seus colegas vociferou-lhe algo tão bruscamente que Quenestil não percebeu o que dissera, mas fosse o que fosse fez com que o atrevido recuasse. O shura não estava a perceber nada. O que se estava a passar? Por que ignorava Babaki os guardas, como se estes não fossem ameaça, e por que não atacavam eles? A meio dos seus pensamentos, o eahan deu consigo defronte da porta pela qual tão apressadamente saíra na sua primeira tentativa de fuga do edifício da arena. Virou-lhe as costas, tacteando a madeira à procura da aldrava enquanto mantinha os eahanoir debaixo de olho, apesar de estes continuarem sem manifestar quaisquer intenções de interferir. Babaki esperava, segurando Slayra como um bebé, e Quenestil reparou pela primeira vez no rasto de sangue que o seu amigo deixara para trás.

 

”Mãe, ele está a morrer em pé! Tenho de o tirar daqui!”

 

Os seus dedos cerraram-se na aldrava assim que sentiram o seu ferro frio e giraram-na, abrindo a porta.

 

Sai, Babaki disse, e o antroleo acatou sem hesitar, quase mecanicamente.

 

Com um último olhar desafiador, Quenestil retirou-se também, fechando a porta com força. A opressiva atmosfera abateu-se sobre o shura com a mesma força e impacto da primeira vez, despoletando uma reacção instintiva no eahan que fez com que iniciasse uma corrida desenfreada com um salto.

 

Espera! parou-o a voz de Babaki.

 

Quenestil virou-se e viu o seu amigo parado, obviamente incapaz de correr. Os vitupérios que lhe vieram à cabeça e lhe pareceram aplicáveis a si mesmo foram imensos.

 

Desculpa, Babaki, eu...

 

Não é isso. Segue-me. Eu sei como podemos sair da cidade.

 

Essa o eahan nunca esperara. Babaki a assumir o comando da situação? Mas o que sabia ele? Em que estava a pensar? Para onde queria ir? O que ia fazer? Quenestil deu por si a fazer essas mesmas perguntas ao antroleo, constatando que não se ouvira a si mesmo falar, mas Babaki parecia ignorar as interrogações e dava curtos mas apressados passos para trás, como se desejasse pôr-se a caminho. Sem saber como agir, lembrando-se do que acontecera na última fuga e de alguma forma aplacado pela aparente calma e serenidade do antroleo, o eahan acabou por seguir o seu amigo, por muita confusão que isso lhe fizesse.

 

”... virar à minha esquerda, entrar no terceiro beco à direita... virar à minha esquerda, entrar no terceiro beco à direita...”, repisava Babaki incessantemente na sua cabeça.

 

Virara à direita? Sim, confirmou. Na verdade, nem sabia se os eahanoir lá estariam. O plano original não correspondia com o que se acabara de passar na arena, não era suposto ter morto o eahanoir ali, não era presumido ter combatido antes de fugir. Não sabia, não podia saber, mas era a última esperança, e a de Quenestil e Slayra. Um, dois, três, contou os becos.

 

”... entrar no terceiro beco à direita...”

 

Quase o fez, mas o seu instinto impediu-o, o instinto da autopreservação e protecção dos seus amigos. Deteve-se.

 

Que se passa? perguntou Quenestil, cada vez mais confuso e nervoso.

 

O antroleo pousou Slayra no chão, encostando-a de costas à parede, e pôs as grandes e sangrentas mãos nos ombros do eahan, sentindo a tensão dos seus músculos e o calor húmido da ferida no seu trapézio.

 

Neste beco estão eahanoir com uma carruagem. Se os deuses fossem clementes, estariam mesmo lá. Com ela podemos fugir da cidade.

 

Eahanoir...? Mas...

 

Tem de ser. Temos de...

 

Babaki, como sabes? E tu mal te aguentas em pé... nós temos de...

 

Fugir. E só o conseguimos com a carruagem. Agora fica aqui... O antroleo curvou-se para pegar em Slayra uma vez mais, e grunhiu com a dor que lhe percorreu todo o tronco.

 

Babaki...

 

Espera aqui, meu amigo.

 

É a nossa única hipótese sossegou-o o antroleo, levantando a eahanoir nos seus braços e tapando-lhe a cara com o capuz. Cada músculo seu, mesmo os que não haviam sido lacerados, gritava de dor. Espera aqui...

 

Babaki estava calmo quando entrou no beco e viu as silhuetas negras de eahanoir à sua espera e uma carruagem. Impossivelmente calmo, como se estivesse apenas a observar a situação. Concebera um plano assim que saíra do anfiteatro, e sabia ser esta a única oportunidade que poderiam ter de conseguir escapar da maldita Jazurrieh. Os cinco eahan negros não pareceram surpresos com a sua chegada, nem tão-pouco reparar nos inúmeros ferimentos do antroleo, mas Babaki já aprendera a esperar reacções pouco emotivas da raça. Porém, deram a impressão de estranhar o corpo que carregava, pois isso não fazia parte do plano.

 

Pára, antroleo ordenou um deles. Que trazes?

 

O corpo do... como lhe chamara o guarda? Tannath. Os eahanoir entreolharam-se.

 

Não era necessário... disse o que parecia estar a comandar, e os outros cercaram Babaki discretamente enquanto um se dirigiu à carruagem e o cocheiro os observava, apreensivo.

 

O antroleo baixou-se devagar e pousou Slayra no chão, tendo o cuidado de não lhe descobrir a face. Um fugaz manto de escuridão cobriu-lhe os olhos, desaparecendo de seguida. Estava a ficar mais fraco a cada instante com a perda de sangue... conseguira que não o atacassem de imediato, agora tinha de agir depressa.

 

Podem ver convidou, mantendo as mãos afastadas das shwafwif de modo a evitar suspeitas.

 

Os eahanoir trocaram outra série de olhares dúbios, alguns olhando para o guarda que falava com o ocupante da carruagem pela janela, e nesse momento Babaki atacou, rugindo, apelando ao resquício das suas forças. As garras de uma mão dilaceraram a face de um sentinela e as da outra trincharam o ombro de um segundo. O seu rugido foi abafado quando abocanhou de lado o pescoço do eahanoir à sua frente, cuja mão se encontrara a caminho do punho de um estilete antes de parte da sua garganta ser arrancada. De todos, o cocheiro foi quem teve os reflexos mais rápidos, gritando aos cavalos e vergastando-lhes as garupas à chicotada. Os dois eahanoir vivos desembainharam as armas e atacaram assim que a carruagem arrancou, mas a atenção de Babaki estava no cocheiro e no veículo no qual depositava as suas esperanças de fuga, pelo que correu atrás dele e agarrou-o pela traseira. A força do antroleo, no entanto, começava a falhar-lhe, e cedo percebeu que não iria conseguir suster o ímpeto dos cavalos.

 

Quenestil observou até achar que deveria intervir, o que sucedeu assim que o ataque começou. De faca em punho, o shura saltou pelo beco adentro, onde de imediato deparou com dois assustados quadrúpedes negros a cavalgarem na sua direcção. Sem hesitar, ergueu os braços, agitando-os e ugou um grito refreador, que fez com que os garanhões negros se empinassem, parando a sua cavalgada.

 

Babaki bateu com o focinho na carruagem quando esta parou bruscamente e largou-a, vacilando para trás. O bater das solas dos eahanoir nas pedras da calçada fez com que o antroleo desembainhasse a sua shwafwif incólume e se virasse para defrontar os seus adversários, rosnando e exibindo os dentes. Um dos eahan negros continuou a correr em frente e o outro separou-se, fazendo tenções de avançar para o flanco de Babaki.

 

A função do cocheiro não era combater, mas sabia bem que se não saltasse em defesa do seu mestre a paga seria a morte, pelo que usou o seu chicote para vergastar o eahan de cabelos ruivos que fazia tenções de lhe saltar em cima. O chicote enrolou-se em volta do braçal de pele de Quenestil, que o agarrou com as duas mãos e puxou com toda a força, deixando-se cair para trás, arrancando o cocheiro do seu assento. O eahanoir estatelou-se no chão, partindo alguma coisa na queda, mas Quenestil não quis saber o quê e assim que se levantou desferiu-lhe um pontapé na cabeça, aniquilando-o.

 

Babaki aparou a investida de um aguçado estilete no seu flanco, mas deixou-se exposto ao do segundo adversário, que lho deslizou por entre duas costelas. Rugindo, o antroleo oscilou cegamente a shwafwif, afastando ambos os eahanoir, mas deu um inesperado seguimento ao golpe com um salto em frente, que o tornou num alvo fácil para o eahanoir em cima do qual caiu. Uma lâmina afundou-se na sua barriga, mas Babaki mal a sentiu, tapando a cara do adversário com uma mão e empurrando-a enquanto caía com ímpeto contra o chão, contra o qual o crânio do eahanoir se rachou audivelmente. Ainda com a lâmina enterrada no seu abdómen, saiu de cima do moribundo, rebolando para o lado e erguendo-se, e viu o seu adversário e um novo eahanoir, que lhe arremessou dois punhais que se lhe cravaram no braço e ombro esquerdos que o antroleo ergueu para se proteger. Babaki rugiu e o outro eahan negro investiu.

 

Quenestil viu a porta da carruagem aberta e o seu amigo a lutar pela vida contra dois algozes, um dos quais preparava punhais de arremesso enquanto o outro atacava. Com fúria nos olhos, o shura avançou pelas costas do maldito eahanoir, agarrou-lhe o queixo, levantou-lho e passou-lhe bruscamente o gume da faca pela garganta.

 

Babaki não conseguiu impedir a investida do estilete, que lhe puncionou a coxa, falhando a artéria por pouco. A adrenalina já não bastava, os músculos do antroleo cediam, os ossos fraquejavam... sem saber como, deu de si ajoelhado, incapaz de aguentar o insustentável peso do seu corpo, o mundo um grande borrão negro... o frio do aço nas suas entranhas... o brilho do estilete pronto a desferir o golpe de misericórdia...

 

Quenestil abateu-se sobre o eahanoir antes que este desferisse a estocada mortal, espetando-lhe a comprida faca nas costas, e depois mais uma vez, e outra e outra, grunhindo a cada golpe como um animal selvagem. Só parou quando ouviu passos atrás de si e viu um vulto a escapulir-se. Pôs o eahanoir imediatamente de lado e correu atrás do que fugia, alcançando-o rapidamente devido à toga que este vestia e agarrando-lhe as pernas ao saltar para o chão. O eahanoir debateu-se, mas Quenestil imobilizara-lhe as pernas e posicionava-se-lhe em cima das costas com intenções de morte.

 

Quenestil, não! Precisamos dele vivo! gritou Babaki a custo.

 

Só então o eahan se lembrou do antroleo, e nesse momento viu o seu amigo caído de costas, ofegante. Hesitou por instantes, mas encontrou uma solução e o eahanoir gritou de dor quando os tendões dos seus jarretes foram cortados. Deixando o eahan negro a chorar de dor para trás, Quenestil foi a correr ter com o seu amigo e ajoelhou-se perante o antroleo caído, que tremia e sangrava do canto da boca, duas facas de arremesso espetadas no braço, um quebra-espadas enfiado no abdómen e demasiados ferimentos abertos.

 

Mãe, não... por favor, não... Babaki...

 

O antroleo olhou para o eahan e tentou falar, mas apenas conseguiu tossir sangue. A mão do shura crispou-se instintivamente no punho do quebra-espadas e puxou, mas um grunhido agonizado de Babaki fê-lo parar e retirar a mão.

 

Farpas... não puxes... arrancas... tripas... tartamudeou, agarrando uma das facas espetadas no braço e removendo-a.

 

Quenestil ajudou-o a tirar a segunda.

 

Não te mexas, Babaki, não te mexas. Eu...

 

Não interrompeu o antroleo, a sua mente clareada pelo surto de dor. Ajuda-me a levantar.

 

Babaki, não podes. Temos de...

 

Ajuda-me, Quenestil... temos de tirar a Slayra daqui. Como o antroleo prevera, o nome da eahanoir despertou o shura. Põe-na dentro da carruagem... leva o eahanoir contigo... para os portões da cidade... foge... tossiu.

 

Não. Não te vou deixar aqui declarou o eahan, olhando para o eahanoir que deixara ferido, constatando que não se mexera, e agarrando o braço menos dilacerado do antroleo. Agora levanta-te.

 

Resignado e incapaz de discutir, Babaki dobrou uma perna, apoiando o pé e uma mão no chão, e deixou-se puxar por Quenestil, que grunhiu com o peso. O antroleo foi levantado a custo, e o shura colocou o braço dele por cima dos seus ombros, amparando-o enquanto o dirigia à carruagem.

 

Não mates o eahanoir... precisamos dele...

 

Não fales, Babaki, não fales... eu tiro-nos daqui... sossegou-o o shura, ajudando-o a subir para dentro do veículo. O antroleo quase lhe caiu em cima, mas agarrou um apoio e conseguiu içar-se lá para dentro.

 

Quenestil olhou uma vez mais para o eahanoir ferido, que continuava no mesmo sítio, e foi buscar Slayra rapidamente, trazendo-a nos braços para a carruagem, dentro da qual a enfiou com a ajuda de Babaki, que a abraçou como a um bebé. Sem parar por um momento para pensar, fechou a porta e foi ter de faca desembainhada com o eahanoir que aleijara. Pegou-lhe pelo capuz e virou-o de frente colocando a ponta dentro de uma narina, a tatuagem vermelha na sua testa coberta por amedrontadas bagas de suor.

 

Percebes o que eu digo? O eahan negro acenou afirmativa e tremulamente, o branco dos seus olhos azuis fixos na lâmina bem visível. Vais ficar à frente da carruagem e eu ao teu lado. Vais tirar-nos daqui. Levas-nos até aos portões. Percebeste?

 

Perante outro aceno afirmativo, Quenestil pegou o eahanoir pelo colarinho e levantou-o, envolvendo-lhe o tronco com o braço e arrastando-o até à carruagem, murmurando palavras aquietadoras aos nervosos cavalos pelo caminho. Ajudou-o a subir para o assento e foi buscar a capa negra dum eahanoir morto antes de subir ele também, entregando as rédeas ao novo cocheiro.

 

Leva-nos aos portões. Se chamares os guardas ou nos levares para outro sítio qualquer, mato-te ameaçou, mostrando a faca uma última vez antes de a esconder na capa. O eahanoir acenou com veemência e deu ordem de partida aos cavalos.

 

O início de movimento fez com que a carruagem vacilasse antes de começar a andar. Babaki inalou por entre os dentes quando o ombro de Slayra tocou no punho do quebra-espadas que tinha espetado na barriga. Não o podia remover, pois os dentes da lâmina certamente lhe trariam os intestinos atrás. Sentia um calor no seu pulmão direito, que se estava lentamente a encher de sangue, o que lhe dificultava a respiração. A punção nas costelas fora profunda... as restantes feridas também ardiam e sangravam, mas o que Babaki sentia acima de tudo era o vazio que aquela mulher lhe deixara, o buraco no seu peito pelo qual a fera caíra... tossiu mais um pouco e encostou a nuca, observando Slayra, cuja cabeça apoiava na coxa ferida. A eahanoir tinha o princípio de alguns inchaços na cara, um corte um pouco acima da sobrancelha e uma ferida no lábio inferior, mas o pior era sem dúvida o ombro, que o antroleo manuseava com um cuidado quase maternal. Sem saber por que o fazia, afagou o cabelo da eahanoir, descobrindo-lhe uma curva orelha pontuda, e começou a falar. Talvez ela pudesse ouvir.

 

Slayra... falámos poucas vezes, nós os dois constatou. Estavas sempre a chatear o Quenestil... mas ele também te chateava, é verdade... as únicas alturas em que falávamos eram as noites em que dormíamos ao relento, quando eu, tu, a Lhiannah e o Allumno partilhávamos a tenda, lembras-te? Também estavam sempre a discutir, vocês as duas, e eu e o Allumno tínhamos de vos ouvir... Babaki riu e tossiu, esfregando o sangue do canto da boca com a mão. Se eu estivesse shakarex, isto não me tinha feito grande coisa... mas aquela mulher roubou-ma, Slayra, ela roubou-me a fera. É quase ridículo... todos estes anos a lutar para me livrar da desgraçada e agora que já não a sinto dentro de mim... um vazio. Sinto-me vazio, Slayra. Pensei que iria ficar contente, mas a única coisa que sinto é este frio, insuportável, vazio... vazio. Como se parte de mim tivesse sido arrancada à força... Tossiu um pouco mais e recostou a cabeça, observando o tecto enquanto remexia na sua tanga, tirando dela a nesga de cabelo louro entrançado. Este cabelo foi a Lhiannah que me deu no dia a seguir a tu desapareceres. É verdade, o que te aconteceu? Nem cheguei a saber, eu e o Quenestil fomos separados... mas não importa, estamos juntos agora e vai correr tudo bem. Tudo... O antroleo passou a nesga de cabelo pelos seus dedos enquanto afagava a cabeça de Slayra e ficou em silêncio durante alguns momentos, alheio ao abanar da carruagem. Eu amava-a, Slayra, e nunca lho cheguei a dizer. Conseguiria ela alguma vez amar-me? Duvido, eu acho que ela gosta do Aewyre, embora pareça que não. Ou talvez esteja enganado, como a respeito de tantas outras coisas... em relação a ti, por exemplo, também me enganei. Achava-te má, e na verdade és uma boa mulher. Descobriste isso com o Quenestil naquela noite, não foi? De outra maneira, ele nunca teria vindo atrás de ti com tanta fúria e desespero. Espero que ambos sejam felizes... como eu e a Lhiannah talvez pudéssemos ter sido, noutra altura, noutro lugar... Babaki procurou um bolso ou algo parecido nas roupas de Slayra, mas a indumentária da eahanoir era demasiado justa e apertada, pelo que lhe enfiou a nesga despudoradamente no decote. Leva isso. Devolve-o à Lhiannah. Se te lembrares, diz-lhe que eu a amei... ou talvez seja melhor não o dizer, pobre rapariga, para quê causar-lhe mais aflição...? Olha, faz como achares melhor.

 

Depois disso o antroleo permaneceu calado durante algum tempo, abanando ao sabor dos solavancos da carruagem, aproveitando aqueles que sabia serem os seus últimos momentos na silenciosa companhia de Slayra.

 

Pede... recomeçou. Pede desculpas ao Quenestil por mim. Eu sei que isto lhe causará muita dor, mas diz-lhe que era a única maneira, diz-lhe que eu não posso continuar a viver assim, com parte de mim arrancada. Nasci com a fera, sem ela vou morrer... devia ter percebido isto há muito tempo. Ter-me-ia poupado muita dor e sofrimento, a mim, a vocês, à minha família, à minha tribo, e a tantos outros... especialmente a vocês. Tentaram ajudar-me, fizeram o vosso melhor, e por isso estou-vos mais grato do que alguma vez poderão imaginar... Tossiu mais um pouco e sentiu uma picada de dor nas entranhas. Não vos teria pedido nada, mas ainda assim vocês tentaram, mesmo quando correram perigo de vida, mesmo quando eu vos podia ter magoado ou mesmo morto, nunca me rejeitaram. Acto algum da minha parte poderá mostrar o quão agradecido vos estou a todos por isso...

 

A carruagem parou bruscamente e Babaki calou-se. Não ouviu nada no exterior, mas soube que a hora estava cada vez mais próxima ao puxar a cortina negra e ver a praça de Jazurrieh lá fora. Lágrimas mornas brotaram-lhe dos olhos, abrilhantando-os.

 

Quero... quero que lhes digas, Slayra. Digo-to a ti mas quero que lhos digas a eles também. Quenestil, Aewyre, Lhiannah, Taislin, Allumno, Worick... estou feliz por ter passado estes meus últimos tempos convosco. Dedos de angústia apertaram a garganta do antroleo. Foram os melhores e mais queridos amigos que alguém poderia desejar...

 

Quando a apertada ruela entre dois edifícios se abriu no amplo espaço da praça da entrada de Jazurrieh, Quenestil ordenou ao cocheiro que não o era, que parasse. Pela primeira vez desde há muito tempo, o shura viu o céu. Mesmo cinzento e nublado, nunca lhe pareceu tão belo como naquele momento, mas não se podia distrair com contemplações. Havia uma certa actividade na praça, pois ainda era cedo, e Quenestil estudou atentamente as rotas que pessoas e veículos tomavam nos caminhos de ladrilhos brancos e pretos que se projectavam do centro. Lembrou-se de que os brancos eram para entrar, os pretos para sair.

 

A... a praça é aqui... disse o eahanoir a seu lado, agarrado aos jarretes feridos.

 

Já vi... respondeu Quenestil, desferindo-lhe uma bordoada com o pomo da faca na têmpora, atirando-o inconsciente para fora da carroça.

 

E agora? Conseguiria passar sem mais nem menos pelos guardas do portão? Duvidoso... mas teria de o tentar. Era a única coisa a fazer, não tinha tempo para planos ou cautelas, não com a Slayra ferida e o Babaki quase a morrer. Cobriu a cabeça com o capuz da capa negra, deu um golpe de rédeas e os cavalos retomaram o passo, dirigindo-se a um caminho de ladrilhos pretos. As pessoas afastavam-se das bestas e davam-lhes passagem, permitindo a Quenestil um rápido avanço. O círculo do meio da praça tinha duas linhas cruzadas obviamente destinadas à circulação de veículos, e depois delas o último caminho negro para fora da cidade. O eahan seguiu o seu rumo de forma ordeira e cumpridora, querendo fundir-se à carroça, tão circunspecto quanto humanamente possível para quem conduzia dois resfolegantes garanhões, que pareciam perceber que algo estava errado. Apesar da sua determinação, as tripas de Quenestil deram um nó quando este se aproximou dos guardas postados ao portão dos veículos. O eahan atreveu-se a ter esperanças ao constatar que nenhum deles esboçou qualquer tipo de reacção ao ver a carroça, mas estas foram deitadas por terra quando uma mão enluvada se ergueu, duas lanças se cruzaram à frente dos cavalos e um guarda avançou na sua direcção. O shura inspirou fundo e encolheu-se para melhor ocultar as suas feições. A sentinela perguntou-lhe algo que julgou ser pertinente a quem levava dentro da carroça.

 

”E agora, o que lhe digo?, pensou.

 

Tannath foi o que lhe ocorreu.

 

Os guardas trocaram olhares dúbios e o que falara com o eahan ”dirigiu-se à porta da carruagem. Outros estavam a dirigir-se ao local também, estranhando algo. Quenestil praguejou e crispou os dedos no cabo da faca, pronto para tudo.

 

A porta rebentou e colidiu contra o eahanoir que a queria abrir, projectando-o a uma considerável distância. Ouviu-se um possante rugido e todos os guardas assumiram posições de combate. Com Slayra ao ombro, Babaki saltara para fora do veículo, rugindo como uma fera desvairada e semeando o pânico na multidão. Quenestil praguejou audivelmente e saltou para fora do assento, colocando-se entre os guardas e o seu amigo, mas antes que pudesse fazer fosse o que fosse, uma poderosa mão agarrou-o pelo colarinho e puxou-o para trás e contra o chão.

 

Babaki, não! gritou Quenestil em desespero ao cair.

 

O eahan só viu o antroleo a saltar por cima de si e, perante o avanço dos guardas, arrancar da barriga o quebra-espadas que nela tinha espetado e que trouxe consigo uma viscosa serpente escarlate. A grotesca visão e o rugido do antroleo paralisaram os eahanoir por momentos, que Babaki aproveitou para pôr Slayra de barriga em cima de um dos cavalos e partir com um golpe o jugo que o prendia à carruagem. Aterrado, o animal iniciou o galope com um salto que obrigou os guardas a darem-lhe caminho enquanto o seu companheiro se empinava em pânico. Dois virotes vindos de buracos sobre o portão da entrada atingiram Babaki no peito.

 

”Nunca mais falharei para convosco...”, repetia o antroleo na cabeça, embotando a cruciante dor.

 

Não! tornou o shura a gritar.

 

Foge Quenestil! rugiu Babaki, atirando-se contra os guardas munidos de lanças, que nele se cravaram. Não deixes a Slayra sozinha!

 

Não! repetiu o eahan, levantando-se, vendo o seu amigo ser ferido e Slayra a ser transportada para fora da cidade por um cavalo em pânico.

 

Um eahanoir investiu contra ele de lança em riste, mas Quenestil desviou-se dela e penetrou na defesa do adversário, cortando-lhe a garganta num brusco movimento. O antroleo rugia.

 

Babaki não! berrou, correndo a ajudar o seu amigo.

 

FOGE QUENESTIL! A voz e o derradeiro vigor de Babaki vinham do desespero, que lhe deu forças para despedaçar os eahanoir que o haviam ferido, agarrar Quenestil e atirá-lo contra o aterrorizado cavalo preso. Três virotes perfuraram o seu já martirizado corpo, fazendo-o cambalear.

 

O eahan ficou ocupado no chão a tentar evitar ser esmagado pelos apavorados cascos do garanhão, que relinchava em pânico enquanto Babaki rugia e se abatia sobre mais eahanoir munidos de lanças. Quando o shura rebolou para longe do alcance das patas da besta, ergueu-se e preparou-se para investir outra vez, mas algo o fez olhar para fora dos portões e viu a selvagem galopada do garanhão que transportava Slayra. A sua amada corria perigo. Babaki ia morrer.

 

Quenestil, por favor, vai! Vai! VAI! suplicou-lhe o antroleo ao agarrar a haste de uma lança que lhe atravessara o abdómen para alcançar quem a empunhava.

 

Algo rasgou o shura por dentro quando fez a mais agonizante escolha da sua vida, que lhe dilacerou o coração. Saltou para cima do aterrado cavalo, cortou as faixas de cabedal que o prendiam ao jugo e deixou-o lançar-se na sua cavalgada. O eahan uivou ao sair dos portões da cidade, o mundo que tanto ansiara tornar a ver borrado por amargas lágrimas de dor.

 

O antroleo rugiu ao cravar a shwafwif no peito de um eahanoir, quebrando-lhe os elos da cota de malha, mas dois virotes perfuraram as suas costas ao mesmo tempo que lâminas cruéis lhe cortavam as pernas, ajoelhando-o.

 

”Nunca mais falharei para convosco...”

 

De olhos fechados, Babaki agarrou uma perna com as duas mãos e partiu-a como a um graveto. Uma ponta de aço encaixou-se-lhe entre a clavícula e o pescoço. As suas garras fincaram-se em carne mole e trincharam-na ao mesmo tempo que o gume de uma lâmina lhe cortava a pele entre os maxilares da sua boca escancarada e duas lanças o varavam de barriga ao chão.

 

”Nunca mais falharei para convosco...”

 

Esperneando, ainda cravou as garras num pé e mordeu a haste de uma lança que agarrou, mas muitas outras quase o espetaram contra o chão. Ia morrer, mas o último resquício de orgulho antroleo impediu-o de se deixar matar no chão como a um animal. Sem perceber como, violentas convulsões acompanhadas de selvagens oscilações das suas garras puseram-no de cócoras sobre uma poça do seu sangue e isolado no meio de um círculo de eahanoir. Com um prodigioso rugido, o último shakarex levou os braços aos céus, olhando pela última vez o Sol, que rompia num luminoso facho que atravessava as nuvens cinzentas.

 

”Adeus, meus amigos. Amo-te Lhiannah...”

 

E os inimigos abateram-se sobre ele, tombando-o.

 

Quenestil perdera a noção do tempo. A dada altura, conseguira tirar Slayra de cima do assustado cavalo e cavalgara com a inconsciente eahanoir à sua frente até o Sol se pôr. Perdera a conta das ribeiras atravessadas, ladeiras subidas, troncos saltados, penedos evitados; incitava a besta sem qualquer prudência, alheio ao perigo de lhe partir uma perna, alheado do ofegar da sua boca espumosa, indiferente à dor de montar sem sela. As lágrimas dos seus olhos haviam há muito secado devido às batidas do vento frio na sua cara, bem como a sua boca e garganta.

 

Por fim, decidiu parar por causa do constante bater da cabeça de Slayra contra o seu ombro e a forma como os cabelos negros da eahanoir lhe esvoaçavam na cara. O shura puxou a crina do cavalo e o garanhão desacelerou de boa vontade, o galope gradualmente reduzido a um trote, que em breve se tornou num passo regular e arquejante. Quenestil deixou a besta andar até perto de um regato, onde desmontou e deixou Slayra cair nos seus braços, encostando-a ao tronco de uma triste bétula desnuda de casca quase tão cinzenta como o céu pardacento e nublado. O cavalo foi beber do regato enquanto o eahan averiguava o ombro de Slayra, que se tornara a desarticular com a violência da cavalgada. Como ainda estava inconsciente, Quenestil aproveitou para lhe reposicionar o osso, o que originou um quase inaudível gemido da eahanoir. O shura não ouviu e levantou-se, flectindo os joelhos involuntariamente com a dor nas pernas e dirigindo-se ao regato enquanto fazia um inventário do seu corpo, apesar de pouco sentir naquele momento. Os seus membros e a sua mente estavam embotados com o choque. Mesmo assim, apercebeu-se da ferida no trapézio e do corte nos dedos, que estavam vermelhos e inchados, e tirou a sua camisa. Ajoelhou-se à beira do regato ao lado do cavalo e passou a mão ferida pela água fria enquanto limpava o sangue no seu ombro e a perfuração no trapézio. Remexeu um pouco no saco da sua pedra de amolar e encontrou duas das caixinhas de latão que Allumno lhe dera antes de seguirem caminhos separados. Abriu-as e espalhou o unguento que continham, nos seus ferimentos, enfaixando a mão magoada com a fita da sua cabeça e deixando a ferida no trapézio estar por enquanto, pois não conseguiria ligá-la só com uma mão. Ergueu-se de pernas trémulas de dor e olhou em redor, procurando algo para fazer. Não podia ficar parado, tinha de fazer alguma coisa, manter-se em movimento, ou o mais provável era atirar-se de cabeça contra o tronco de uma árvore e arrancar as unhas a arranhar-lhe a casca. Se não se mexesse, iria enlouquecer. Viu os gravetos caídos em redor da bétula e decidiu começar a reuni-los para fazer uma fogueira. Estavam moles e húmidos, mas o shura não se importou, tinha era de se mexer. Ajoelhou-se e foi pegando nos paus e pequenos ramos um por um, sem qualquer pressa, escolhendo cada um judiciosamente, embora nenhum servisse sequer para atear o mais pequeno dos fogos.

 

Quenestil...? ouviu-se uma voz fraca.

 

O eahan virou-se e viu Slayra a piscar os olhos e fazer uma careta de dor ao levar a mão ao ombro.

 

Não te mexas. Fica quieta recomendou-lhe, continuando o seu absurdo trabalho.

 

Quenestil... o que aconteceu? A eahanoir olhou em redor.

 

Onde... onde está o Babaki? O eahan não respondeu, mas se Slayra lhe pudesse ver a cara, notaria o músculo cerrado do maxilar.

 

Quenestil...? Como não houve resposta, Slayra levantou-se a custo, empurrando o corpo para cima com as pernas.

 

Deixa-te estar onde estás. O teu ombro não está bom. A voz do shura soava contraída. Vou fazer um fogo para nós. Vai estar frio hoje à noite...

 

Slayra começou a pressentir a horrível verdade e as suas pernas fraquejaram ao mesmo tempo que algo se lhe parecia revolver na barriga. Palavras ternas de despedida ecoavam-lhe na cabeça, despertas pela recusa de Quenestil em falar, acompanhadas pela iminência da inegável e esmagadora realidade, mas algo dentro de si recusou-a de imediato. Não. Não podia ser. Não podia. Não...

 

Quenestil...? tornou a eahanoir a perguntar, recompondo-se o suficiente para se aproximar a passos lentos. Onde está... o Babaki? O eahan não tinha a camisa vestida e os músculos das suas costas estavam tensos e contraídos como uma grande cãibra. Quenestil...?

 

Está morto, porra! gritou, virando-se repentinamente para Slayra, que caiu com o susto, resguardando-se dos gravetos que o eahan espalhou pelo ar. Morto, ouviste? Morreu, está morto! Morto! A eahanoir tivera a sorte de não aparar o tombo com o braço ferido, mas os seus olhos estavam grandes e assustados. Ele morreu por nós, morreu por minha culpa, que o levei! Os eahanoir mataram-no e a culpa é toda minha! Minha porque o levei, e ele matou-se para que eu pudesse fugir! Porquê? Eu é que devia ter morrido, eu é que tinha de vir atrás de ti! Eu, e não ele! Porquê?

 

PORQUÊ? bradou aos céus, fitando a eahanoir com olhos coléricos como pedras em brasa, veias do pescoço latejantes e cara enrubescida.

 

Slayra começou a soluçar e os seus olhos azuis abrilhantaram-se.

 

Por favor, Quenestil, não me culpes. Não faças isso, por favor... As suas palavras atingiram o shura com a força de um virote. As feições do eahan suavizaram-se e a tensão dos seus músculos desapareceu, deixando como rasto uns ligeiros tremores.

 

Slayra... não... culpar-te, eu nunca... Ajoelhou-se perante a eahanoir e agarrou-lhe a cara com a delicadeza que usaria para pegar um floco de neve, ajudando-a a deitar-se. Eu não queria... eu... eu... A eahanoir afagou-lhe a nuca, abanando a cabeça enquanto os seus lábios se mexiam, proferindo palavras mudas. Sentindo os tremores do shura, puxou-lhe a cabeça para si e encostou-a ao peito, acariciando-lhe os cabelos.

 

E então Quenestil cedeu e desfez-se num pranto, libertando gemidos abafados no peito de Slayra, também ela lacrimosa e soluçante. Ambos os eahan ficaram ali, a lamentarem a morte do seu amigo debaixo do melancólico céu invernal da Latvonia.

 

Aereth Thoryn avançou com o cavaleiro e eliminou o barão de Tylon Nehin.

 

Regicídio em quatro jogadas afirmou, permitindo-se um meio sorriso enquanto bebia um trago de vinho aromatizado com pétalas vermelhas de craveiro.

 

Os dois regentes, ambos vestidos com simples togas forradas a pele, estavam perante um par de tabuleiros quadriculados, um mais elevado que o outro, ambos o campo de batalha para a partida de Demanda pelo Trono que jogavam. Aereth tinha olheiras e a sua postura denotava algum cansaço: dormira pouco e passara quase todo o dia anterior no seu trono, recebendo enviados de várias províncias, tratando do acolhimento da corte de Lennhau e de algumas disputas que haviam estourado entre os recém-chegados e a corte de Thoryn, mas sobretudo discutindo violentamente com os seus conselheiros e representantes. Todos se pareciam opor à união entre Ul-Thoryn e Lennhau que fora a única região de Nolwyn que se rendera ao Flagelo durante a Guerra da Hecatombe mas principalmente por temerem a reacção das outras províncias ao verem violado o nunca escrito acordo de segregação de Nolwyn. O jovem regente ergueu o seu cálice dourado, fazendo sinal ao pajem postado à porta que lhe servisse mais. O rapaz de cabelos pretos encaracolados a ferro quente viu o gesto e dirigiu-se à mesa ornamentada sobre a qual se encontravam as bebidas. A partida estava a desenrolar-se numa das salas de convívio de Allahn Anroth, um recinto sumptuosamente decorado com tapeçarias de caça e iluminado por um candelabro e castiçais com motivos aquilinos. Defumadores de prata em dois nichos côncavos nas

paredes exalavam um relaxante odor a narciso e um acolhedor fogo ardia na lareira orlada por asas de pedra minuciosamente esculpida. O hálito do Norte há muito perdera o fôlego, e a janela de vidro ladeada por reposteiros vermelhos apanhados com cordões amarelos mostrava um céu que lentamente ia purgando as nuvens em antecipação da Primavera.

 

Lorde Nehin ponderava, observando o jogo em silêncio com o queixo apoiado no punho e o cotovelo no joelho. As disposições das peças de mármore branco e vermelho em ambos os tabuleiros indicavam que o jogo estava a ser fortemente contestado. Muitas encontravam-se do lado de Aereth, mas as mais importantes haviam sido eliminadas por Tylon. O regente de Lennhau pareceu tomar uma decisão pouco depois e cofiou a raizada da sua espessa barba com os dedos grossos e peludos.

 

A vossa perícia é considerável, lorde Thoryn, mas jogais como um comandante drahreg, enviando as vossas ensandecidas tropas para a morte em massa afirmou, mexendo o seu ginete vermelho no tabuleiro mais baixo, no qual a ralé se debatia, eliminando o general branco e colocando o clérigo numa situação perigosa. Haveis ouvido as últimas acerca de lorde Syndar?

 

Aereth admoestou-se silenciosamente por ter negligenciado a situação no tabuleiro de baixo. O regicídio teria de esperar...

 

Sim, o homem está paranóico. E não é que ele foi destituir as confrarias de Thoryn em Vaul-Syrith dos seus bens? Sem tirar os olhos cansados do jogo, ergueu o cálice para que o pajem o servisse. O rapaz surdo fê-lo mudamente, focando o seu olhar átono apenas no copo e retirando-se para o seu lugar à porta com uma respeitosamente curta vénia.

 

Antes fosse apenas isso... desejou Tylon, decidindo que chegara a altura de fazer uso da sua peça traidora. Pegou no escudeiro branco de Aereth, virou-o para mostrar a sua base marcada a vermelho no início do jogo, e avançou com ele para o fim do tabuleiro. Investidura anunciou, tirando o escudeiro do jogo e devolvendo o seu cavaleiro vermelho ao tabuleiro de cima.

 

Os olhos de Aereth arregalaram-se involuntariamente. Uma jogada brilhante, que estragara por completo os seus planos. Por detrás daquela fachada de lenhador tosco, lorde Nehin era um astuto adversário.

 

Então... e que mais? perguntou, dobrando-se sobre o tabuleiro como um abutre despojado de carniça.

 

Tylon sabia muito bem que os conselheiros de Aereth já lhe haviam relatado os factos, mas acedeu ao desejo não formulado do jovem regente de lhe conceder tempo para repensar a sua estratégia.

 

Foi declarado o boicote geral ao peixe de Thoryn e ao carvão e madeira de Lennhau informou, recostando-se na cadeira de costas acolchoadas. Argil já manifestou o seu desagrado para com a situação. Lorde Piergan diz que este entrave na circulação compromete as suas relações comerciais com Syrith.

 

Esses bebedores de barro... maldisse Aereth, coçando o queixo enquanto os seus olhos seguiam possíveis movimentos das peças.

 

Mineram também não está particularmente satisfeita. Não viram com bons olhos o incremento da minha guarnição na ponte do lalven.

 

Ambos sabíamos das consequências desta nossa... aliança...

 

lembrou Tylon, enclavinhando os dedos e apoiando o queixo sobre eles. A propósito, ficou pendente o assunto da mobilização de alguns homens de Thoryn. Devido às exaltadas reacções de lorde Syndar as minhas gentes não se sentem seguras com a proximidade de Vaul Syrith...

 

Sim, claro... Aereth estava agora de sobremodo concentrado no jogo e optou por mover o seu cavaleiro para trás, provocando Tylon a movimentar a rainha para o eliminar e esperando apanhá-la entre os seus dois barões. Devo dizer que há muito que não era tão desafiado na Demanda pelo Trono.

 

Fostes bem treinado admitiu lorde Nehin, movimentando o seu recém-chegado cavaleiro e jogais com uma mestria para além da vossa idade... Aereth reflectiu e contra-atacou com o seu, eliminando mais um peão de Tylon mas falta-vos presciência, e essa vem apenas com os anos afirmou, movendo a sua balista em arco sobre o tabuleiro, pousando-a sobre o beligerante cavaleiro e eliminando-o.

 

Aereth sufocou um gemido. A reviravolta fora estonteante, estava a agir depressa demais, sem pensar, sem reflectir. A face daquele que em breve seria o seu sogro nem sequer denotava marcas de satisfação: estava a ser um massacre frio cuidadosamente orquestrado e desprovido de paixão. Uma gota de suor escorreu-lhe por entre as omoplatas abaixo e o crepitar da fogueira mais parecia os seus dentes a estalarem quando os rangia. Odiava perder, e a derrota afigurava-se-lhe inevitável. Apesar de o seu cálice ainda estar pela metade, Aereth ergueu-o para chamar o pajem surdo, que prontamente avançou de gomil em punho.

 

Evito beber demasiado durante uma partida... o vinho entorpece os sentidos e o juízo aconselhou Tylon, erguendo uma espessa sobrancelha perante o cálice levantado.

 

Mas apenas durante as partidas, não?... comentou Aereth nervosamente enquanto era servido, conhecendo a reputação de prodigioso bebedor do seu adversário.

 

Tylon aceitou a tentativa de humor com um ligeiro erguer do canto da boca, mas não mais, e Aereth não insistiu. O pajem levou o gomil ao peito e deu um passo atrás, pronto para se retirar, mas lorde Thoryn achou que o jovem servira pouco e gesticulou com o cálice, pedindo mais. Perante a hesitação do seu serviçal, Aereth dirigiu-lhe o olhar, desviando um pouco a atenção do jogo.

 

Então? Quantas gotas puseste? perguntou, sabendo bem que as suas palavras só seriam ouvidas por Tylon. Vendo que o jovem continuava a hesitar, insistiu de forma mais veemente: Mas enche-me isto, miúdo!

 

O pajem pareceu entender e verteu o vinho cuidadosamente, tentando com delicadeza agarrar o cálice para evitar que este entornasse, mas Aereth gesticulou impacientemente e o líquido escarlate escorreu pela manga do regente adentro.

 

Moço dum raio! praguejou Aereth, erguendo-se e deixando o cálice cair no chão. O pajem deu um passo atrás, agarrando o gomil ao peito com as duas mãos e proferindo palavras mudas de perdão com os lábios. Eu vou...!

 

O vosso cálice estava quase cheio, lorde Thoryn lembrou-lhe Tylon, que permanecia calmamente sentado. Não castigueis o rapaz com tanta severidade.

 

Aereth fitou ambos alternadamente, ainda eriçado, mas a calma do regente de Lennhau era quase contagiante e os seus nervos amainaram.

 

Eu... ah, para quê, ele nem sequer ouve concluiu, dispensando o pajem com um gesto da sua mão e retomando o seu assento.

 

Pareceis cansado, lorde Thoryn. Poderemos retomar a partida noutra altura...

 

Não, ora essa... tu, limpa isto... lembrou-se de ordenar ao rapaz, indicando a mancha de vinho no tapete com o dedo.

 

O pajem percebeu e foi apressadamente buscar uma tigela de água e uma decocção de folhas de hera para tirar a nódoa, ajoelhando-se de seguida e procedendo a esfregar.

 

Um rapaz muito diligente... comentou Tylon.

 

Nem sei o nome dele reconheceu Aereth, coçando a barba enquanto esperava que lhe ocorresse uma nova estratégia. Acho que foi um bailio qualquer que mo enviou. É surdo, é mudo e, de facto, bastante aplicado.

 

Em suma, o servo ideal...

 

Sim, sim... concordou distraidamente enquanto perscrutava os tabuleiros. ”Desgraçado, apanhou-me bem. Como é que eu me safo desta?”

 

Um leve tinir ergueu a atenção de ambos os regentes do tabuleiro para a entrada, encostada à qual se encontrava uma figura multicolorida com os braços cruzados e uma vara com uma bexiga cheia entre eles. Alheio ao recém-chegado, o pajem surdo continuou a esfregar a nódoa escura no tapete.

 

Bobo? Como entraste? inquiriu Aereth. Dei ordens para não sermos interrompidos excepto em caso de novidades urgentes.

 

As palavras vinham sem grande indignação, no entanto, pois a interrupção até fora oportuna.

 

A boca de Dilet rasgou-se num sorriso de grandes dentes alvos e o jogral avançou em passos largos e desajeitados.

 

Muito prezo eu a privacidade de vossas altezas, tudo relativo a vossas altezas é estimado por mim, mas tempos difíceis são estes, desprovidos de certezas, pelo que é necessário interromper-vos assim.

 

Tylon ergueu o sobrolho e Aereth franziu a testa. Que vejo eu, o que vejo? questionou Dilet, olhando para os tabuleiros. Vossa alteza salta de um trono para outro? E que é feito do ócio, do repouso, das forças que tão urgentemente necessitais de recuperar? Para enfatizar, o bobo bateu com a bexiga cheia na cabeça do pajem, que se virou abruptamente e que, ao ver Dilet, se assustou e caiu de traseiro, entornando o jarro de água em cima da mancha de vinho e respingando os sapatos de camurça de Aereth.

 

Desta vez, o regente de Thoryn reagiu com mais calma.

 

Lorde Tylon, que fazeis aos servos desastrados em Lennhau? Dilet fitou o pajem, fazendo os sinos do seu barrete tinir ao inclinar a cabeça para o lado. O jovem retribuía-lhe o olhar com orbes arregalados.

 

Eu tento ser indulgente, mas a minha mulher já ordenou ao Cortun que fizesse um serviçal sangrar tanto quanto o vinho que entornara...

 

Aereth riu fracamente, mas ao ver a sinceridade na expressão de Tylon, a alegria esforçada depressa se lhe desvaneceu.

 

Bom, duvido de que haja necessidade para tanta inclemência, mas... O jovem regente foi interrompido pelas mãos do bobo a assentarem nos seus ombros, seguidas do seu queixo.

 

Uuh, nada bom, nada bom, não. Quando soberanos se digladiam, a terra treme, mas afigura-se-me que a águia pousou no teixo e comeu bagas envenenadas... comentou, saltitando então para trás do regente de Lennhau e espreitando com os seus olhos assimétricos por cima dos consideravelmente maiores ombros deste. Lógica fria e estratégia são os trunfos do rei vermelho, mas muita batalha foi ganha com uma seta errante, uma morte inesperada, uma mudança imprevista. O peso da balança pode reverter através de acções que não podeis prever...

 

Dito isto, Dilet fez uma roda para o lado e estatelou-se no chão, onde ficou estendido. A sobrancelha de Tylon continuava erguida, mas a expressão de Aereth alterou-se assim que devolveu o seu olhar ao tabuleiro superior e o fixou numa das suas peças. O bobo... a mais imprevisível do conjunto, que tanto podia levar um jogador à inesperada vitória como à humilhante derrota.

 

Tendes uma estranha criatura entre vós... afirmou Tylon, franzindo o cenho perante o prostrado jogral.

 

Aereth não pareceu ouvir. O bobo, claro... nada tinha a perder. De uma reentrância num dos cantos do tabuleiro, tirou um dado de oito faces e um de seis. Tylon apercebeu-se do movimento e devolveu a sua atenção ao jogo, mas o seu cenho franziu-se ainda mais.

 

O bobo? pronunciou a palavra com óbvio desagrado.

 

O bobo... confirmou Aereth, rolando o primeiro dado, cuja segunda face apontou para cima. Para a esquerda e para cima... explicou o jovem regente, indicando a direcção na qual a peça se iria mexer enquanto rolava o segundo dado. Quatro casas adiantou, mexendo o bobo esse mesmo número e sendo incapaz de conter um sorriso ao eliminar o renascido cavaleiro de Tylon.

 

Uma rápida expressão consternada marcou a face de lorde tylon por instantes, mas depressa desapareceu. O grande homem ponderou as suas opções e reviu as suas estratégias enquanto Aereth exultava.

 

O jogo é vosso acabou por declarar, erguendo-se da cadeira. Uma boa partida...

 

Sem dúvida admitiu Aereth, levantando-se também, mas confesso que tive sorte. Quer parecer-me que o bobo... O lorde de Thoryn calou-se ao constatar a ausência de Dilet. Não havia vestígios da presença do jogral na sala. Mas... onde se meteu ele?

 

Tylon pareceu reparar em algo no tapete e os seus joelhos rangeram quando este se acocorou, pegando num pequeno objecto reluzente com os dedos: um guizo.

 

Dais muita liberdade àquela criatura julgou, examinando o objecto atentamente.

 

Não tendes bobos na vossa corte?

 

Não, a minha mulher é muito... susceptível explicou Tylon, erguendo-se. Não leva a bem piadas a seu respeito. Que tem o vosso pajem? perguntou, apontando para trás de Aereth, que se virou.

 

O rapaz continuava sentado no chão, os seus olhos grandes e assustados e fixos num ponto indeterminado da sala.

 

Mas o que é que deu a este moço? quis Aereth saber. Levanta-te, rapaz. Estás em cima da nódoa acrescentou, tocando ao de leve na coxa do pajem com o pé.

 

O rapaz despertou com um tremor que lhe percorreu o corpo todo e retomou a respiração, lenta e profundamente.

 

Ele não parece sentir-se bem... constatou Aereth, sem que Tylon lhe respondesse. Que tens tu, rapaz? Alguém bateu à porta. Entrai.

 

A porta foi aberta e lolinna entrou, acompanhada por duas aias com cones velados nas cabeças. A princesa de Lennhau trazia um vestido bege com um bordado floral rosado entrelaçado nos braços e, compridas mangas que quase roçavam o chão. Preso ao peito tinha um broche anelar dourado incrustado de ametistas e o seu cabelo estava atado numa elaborada trança em forma de aro em redor da nuca e cingido com um cintilante diadema. Com uma pinça, havia arranjado as sobrancelhas, que agora pouco mais eram que dois arcos sobre os olhos azuis de pálpebras pintadas de índigo que olhavam para o chão.

 

Princesa... exclamou Aereth, dirigindo-se a ela de imediato para lhe beijar a mão, gesto que lolinna graciosamente aceitou. Sois a luz que nos ilumina neste pardacento dia. Senhoras... As aias executaram uma vénia.

 

Agraciais-me, milorde... corou a filha de Tylon.

 

Olha em frente, rapariga disse-lhe o seu pai, e a sua voz fez com que erguesse a cabeça de imediato. E tenta não ficar vermelha de cada vez que alguém te dirige palavra.

 

Sim, meu p... meu senhor. Perdoai a minha falta de cortesia.

 

Linda lolinna, a que devo esta inesperada e tão agradável visita? quis Aereth saber, algo desagradado pela relação que pai e filha tinham.

 

Gostaríeis... gostaríeis de dar um passeio, milorde? perguntou a princesa, como se recitasse um discurso decorado.

 

Muito me agradaria, mas não estará a temperatura um tanto desagradável para vós? Preocupo-me com a vossa saúde...

 

Ide passear com a vossa prometida, lorde Thoryn recomendou Tylon imperativamente, ainda a revolver o guizo nos seus dedos. Far-lhe-á bem apanhar um pouco do ar salgado da vossa cidade. E vocês, aias, tratem deste rapaz disse, apontando para o pajem com a mão livre.

 

Aereth hesitou um pouco, questionando-se acerca da autoridade na voz de lorde Tylon, mas acabou por aceder quando as aias pegaram no pajem e o levantaram cuidadosamente pelos braços.

 

Se é esse o desejo do senhor vosso pai... aquiesceu, estendendo-lhe o braço, no qual lolinna pegou como se de uma cobra se tratasse. Ver-nos-emos ao jantar, lorde Tylon?

 

Certamente... O regente de Lennhau parecia distraído, pelo que Aereth saiu com a filha deste.

 

Parou ainda à entrada para admoestar os guardas que haviam deixado Dilet entrar, mas as suas palavras foram abafadas quando uma das aias fechou a porta. Tylon não saiu do seu lugar, olhando para o vazio, mexendo no guizo com os dedos, e por breves instantes uma sombra pareceu cobrir-lhe os olhos quando as pequenas labaredas dos castiçais encolheram.

 

Por fim, um sinal...

 

 

 

                                                                  CONTINUA

 

 

 

Aduz e Urit, dois batedores ocarr da tribo dos Gal Shamul, cavalgavam pelas estepes varridas por um vento pontilhado com flocos brancos. Envergavam peles e vestimentas de couro e as suas cabeças estavam resguardadas por barretes forrados, mas ainda assim sentiam o toque frio da estepe. Os seus hemíonos estavam cansados, os seus bafos arquejantes já se sobrepunham aos ventosos uivos, mas havia que chegar ao acampamento o quanto antes. O ayan tinha de ser informado acerca da profanação do Poço de Songul, tal acto não podia passar impune! Estivera estabelecido no Conclave Lunar que os Cho Tirr iriam passar pelo local nas passadas sete luas, pelo que só podiam ter sido eles. Teriam perguntas a responder, e muito lhes convinha que as respostas fossem satisfatórias, pois caso contrário seriam todos passados a fio de sabre, homens, mulheres e crianças. Tal heresia seria também, por acréscimo, a perfeita desculpa para os Gal Shamul se apossarem do gado dos Cho Tirr, e nenhuma outra tribo poderia dizer algo contra. Sim, pensavam ambos, seria algo que o ayan quereria ouvir com a maior brevidade possível.

Os dois jovens ocarr haviam acordado em cavalgar todos os dias tanto quanto os hemíonos aguentassem, mas foram-se lentamente apercebendo de que o vento estava a secar as gargantas das suas montadas, que já tossiam e que corriam ainda o risco que se lhes formassem cristais de gelo dentro dos pulmões. Para além disso, sete dias de uma quase incessante cavalgada era potencialmente mortal, mesmo para os reputadamente incansáveis burros da estepe, pelo que Aduz e Urit decidiram parar. Nuvens de vapor saíam das narinas e bocas dos hemíonos enquanto estes abrandavam o passo gradualmente até pararem, lançando aliviados ofegos. Os dois ocarr desmontaram, cambaleando nos primeiros passos devido às coxas doridas, e apressaram-se a remover as selas e a carga dos hemíonos e a desenrolar cobertores para com eles cobrir os animais, que estavam quentes ao ponto de transpirar. Com a celeridade gerada por treino intensivo, trituraram partes da crosta da neve com os pés para os hemíonos beberem e acariciaram-lhes os pescoços com afecto fraternal, agradecendo-lhes o esforço.

 

 

 

 

Com os hemíonos fora de perigo e à procura de erva seca debaixo da crosta de neve, os jovens ocarr começaram a preparar a sua tenda, atando de cócoras a armação de madeira e osso com tendões. Os seus rostos de rotundos malares estavam mais secos e curtidos que os do típico ocarr, devido à prolongada exposição ao vento, e estavam vincados por rugas que não deveriam surgir senão numa idade mais avançada. Ainda assim, de cada vez que os seus olhares se cruzavam, os seus olhos estreitavam-se em frestas com pés-de-corvo e os seus dentes amarelados mostravam-se num sorriso. Era uma vida livre, a que levavam e partilhavam com os seus irmãos de quatro patas, e quando os Gal Shamul eliminassem os Cho Tirr, ambos cairiam sem dúvida nas boas graças do ayan e seriam louvados por terem sido os portadores da justificação do ataque. Enquanto Urit fazia os arranjos finais à tenda dentro desta, Aduz foi buscar o equipamento que haviam deixado numa pilha em cima das selas. Pôs a mochila das provisões e os estojos dos arcos ao ombro e agarrou numa das aljavas pela faixa de couro, que estalou, despejando o conteúdo da aljava na neve. Aduz praguejou, ajustou o seu gorro forrado e acocorou-se para recolher as setas, mas nesse momento ouviu resfôlegos nervosos. Olhou para os hemíonos e viu como estes batiam com os cascos no chão e erguiam os focinhos nervosamente. O jovem ocarr baixou o ombro e deixou o equipamento cair, pegando o seu arco recurvo e alojando uma flecha entre os seus dedos, apontando-a para várias direcções. Chamou por Urit enquanto se dirigia a passos lentos para perto dos hemíonos, que estavam a ficar cada vez mais nervosos, como se uma aproximação invisível os estivesse a assustar. O vento ululava parecendo ele próprio estar a fugir de algo, e os flocos de neve tornavam-se mais intensos, fustigando-lhe a cara. Aduz chamou por Urit uma vez mais, mas dentro da tenda e com a ventania o mais certo era o seu amigo não o ouvir, pelo que começou a recuar. Foi então que distinguiu dois pontos escarlates no meio do vento nevoso e retesou o fio do arco, perguntando quem se aproximava com um certo tremor na voz. Um hemíono empinou-se, orneando, e pareceu a Aduz ouvir uma abafada pergunta de Urit do interior da tenda. Assim que o vulto da... coisa que se aproximava tomou forma, o jovem ocarr largou o fio e a seta singrou na sua direcção, mas atirara contra o vento e o projéctil falhou o alvo por um dedo. Antes que Aduz pegasse noutra flecha, o rubor dos olhos do vulto intensificou-se, alumiando uma caveira desprovida de maxilar inferior. A sua capa negra sarapintada de branco contorcia-se violentamente ao vento e os dedos metálicos da sua manopla crispavam-se numa espada umbrosa e famélica. O batedor quis gritar, quis atirar o arco ao chão, quis fugir, quis fazer qualquer coisa que o tirasse dali, para longe daquele terrível olhar, mas o seu corpo não lhe obedecia e a única resposta que dele obteve foi o soltar da sua bexiga. Vapor formou-se nos seus pés quando urina quente derreteu a neve, mas nem o calor molhado nas suas trémulas pernas fez com que estas se mexessem. Os dois hemíonos ornearam em aterrado uníssono, empinando-se, e Urit gritou algo da tenda, tentando sair apressadamente mas conseguindo apenas que lona e armações quebradas pelo súbito movimento caíssem em cima de si. Aduz via cada passo lento do vulto com maravilhado temor à medida que este se aproximava, as suas órbitas vazias duas estrelas escarlates, duas promessas de morte.

Urit gritava pelo nome do seu amigo, debatendo-se com a lona e rebolando pelo chão, mas as únicas respostas eram os ornejos espavoridos dos hemíonos. Não foi senão quando algo caiu na neve ao seu lado e lhe tocou no ombro que...

  

                                                                                             

 

 

              Voltar à “SÉRIE"

 

 

 

                                         

O melhor da literatura para todos os gostos e idades