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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


OS FILHOS / Frank Herbert
OS FILHOS / Frank Herbert

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

A Saga do Planeta “Duna”

OS FILHOS  

 

A saga do planeta “Duna” continua. O imperador-messias, não aceita mais ser escravo da presciência e radicaliza sua situação fugindo para o deserto. Deixando, assim, para seus filhos a gigantesca tarefa de perpetuar a raça-humana através dos tempos e para sempre.

Só mesmo a ameaça, vista através da presciência, pode impelir a um “Atreides”, a tomar uma atitude tão inumana...

Que futuro aguarda os gêmeos de Paul Atreides, o “Muad'Dib”?

Intrigas e armadilhas continuam sendo as principais armas do poder...

 

 

Parte I 

Os ensinamentos do Muad'Dib tornaram-se terreno para os pedantes, os supersticiosos e os corruptos. Ele ensinou um modo de vida equilibrado, uma filosofia com a qual os seres humanos poderiam enfrentar os problemas que surgissem de um universo em constante mutação. Ele disse que a humanidade ainda se encontrava evoluindo, num processo que não terá fim.

E disse que a evolução se processa através de princípios mutáveis, conhecidos pela eternidade. Como pode um raciocínio corrompido funcionar com essa essência?

 

- palavras do Mentat Duncan Idaho.

 

Um oval de luz surgiu sobre o espesso tapete que cobria a rocha nua do piso da caverna. A luz brilhava sem uma fonte aparente, tendo existência apenas sobre a superfície de tecido vermelho, trançada com fibra de especiaria. Um círculo indagador, com aproximadamente dois centímetros de diâmetro, movia-se aleatoriamente ora mais alongado, ora oval.

Encontrando o lado de uma cama, ele saltou para o alto e se dobrou através da superfície do leito.

Debaixo do cobertor verde havia uma criança de cabelos ruivos, o rosto ainda gordinho de bebê, a boca generosa uma figura que carecia dos traços esguios, da magreza tradicional dos Fremen, mas que não era tão gorda de água como um estrangeiro. Quando a luz passou sobre as pálpebras cerradas, o pequeno estremeceu. A luz apagou-se.

Agora havia apenas o som regular da respiração, e mais fraco, atrás dele, o gotejar tranquilizador da água sendo coletada numa bacia de recolhimento a partir da armadilha de vento, bem acima da caverna.

Novamente a luz apareceu no aposento um pouquinho maior, alguns lúmens mais brilhante. Dessa vez, trazia uma sugestão de fonte e movimento: uma figura coberta por um manto preenchia o portal abobadado na extremidade da câmara e de lá se originava a luz. Uma vez mais ela fluiu através do aposento, sondando, testando. Tinha uma aparência ameaçadora, uma inquieta insatisfação. Evitou a criança que dormia, parou sobre a grade do renovador de ar, no canto superior, investigou uma saliência nas cortinas verdes e douradas, que suavizavam a rocha ao redor.

Daí a pouco, a luz se apagou. A figura encapuçada moveu-se com um rumor revelador, produzido pelo agitar de seus mantos, e assumiu posição a um dos lados do portal. Qualquer pessoa consciente da rotina no Sietch Tabr teria deduzido imediatamente que se tratava de Stilgar, Naib do Sietch, guardião dos gêmeos órfãos que um dia receberiam o manto de seu pai, Paul Muad'Dib. Stilgar frequentemente realizava tais inspeções noturnas nos aposentos dos gêmeos, sempre dirigindo-se em primeiro lugar à câmara onde Ghanima dormia e terminando aqui, no quarto adjacente, onde se podia assegurar de que Leto não sofria ameaças.

“Sou um velho tolo”, pensou Stilgar.

Alisou a fria superfície do projetor de luz antes de recolocá-lo na argola do cinturão. O projetor o irritava, embora dependesse dele. Essa coisa era um sutil instrumento do Império, um engenho destinado a detectar a presença de grandes corpos vivos. Revelara apenas as crianças dormindo nos aposentos reais.

Stilgar sabia que seus pensamentos e emoções eram como a luz. Não conseguia imobilizar uma inquieta projeção interior. Algum poder maior controlava esse movimento, projetando-o nesse momento em que sentia o perigo acumulado. Aqui estava o magneto para os sonhos de grandeza através do universo conhecido. Aqui estavam as riquezas transitórias, a autoridade profana e o mais poderoso de todos os talismãs místicos: a autenticidade divina do legado religioso do Muad'Dib. Nesses gêmeos, em Leto e sua irmã Ghanima, focalizava-se um poder espantoso. Enquanto eles vivessem, o Muad'Dib, embora morto, viveria neles.

Não eram apenas duas crianças de nove anos de idade, eram forças naturais, objetos de veneração e temor. Eram os filhos de Paul Atreides, que se tornara Muad'Dib, o Mahdi de todos os Fremen. O Muad'Dib acendera uma explosão da humanidade, os Fremen se haviam espalhado num jihad, a partir de seu planeta, levando consigo seu fervor através do universo humano, numa onda de governos religiosos cuja amplitude e autoridade onipresente haviam deixado sua marca em cada planeta.

“E no entanto estas crianças são de carne e osso”, pensou Stilgar. “Com dois únicos golpes de minha faca, eu imobilizaria seus corações. E a água deles retornaria à tribo.”

Sua mente agitou-se com tal pensamento.

“Matar os filhos do Muad'Dib!”

Entretanto, os anos o haviam tornado introspectivamente sábio. Stilgar conhecia a origem desse pensamento terrível. Ele vinha da mão esquerda dos amaldiçoados, não da mão direita dos abençoados. O ayat e o burhan da Vida guardavam poucos mistérios para ele. Em certa época, sentira-se orgulhoso por se julgar um Fremen, por pensar no deserto como um amigo e Chaniar seu planeta de Duna, e não Arrakis como estava escrito em todos os mapas imperiais.

“Como as coisas são simples quando nossos messias não passam de sonhos”, pensou. “Ao encontrar nosso Mahdi, soltamos sobre o universo incontáveis sonhos messiânicos. E cada pessoa subjugada pelo jihad sonha agora com um líder que um dia virá.”

Stilgar olhou para a escuridão dos aposentos.

“Se minha faca libertasse todas essas pessoas, será que elas fariam de mim um messias?”

Leto podia ser ouvido, agitando-se em sua cama.

Stilgar suspirou. Jamais conhecera o avô Atreides, cujo nome essa criança tomara. Mas muitos afirmavam que a força moral do Muad'Dib nele se originara. Iria aquela tremenda capacidade para a justiça saltar uma geração agora? Stilgar sentiu-se incapaz de responder tal pergunta.

E pensou: “O Sietch Tabr é meu. Eu governo este lugar. Sou um Naib dos Fremen. Sem mim, não teria havido Muad'Dib. Estes gêmeos agora... através de Chani, mãe deles e minha parenta, meu sangue pulsa em suas veias. Eu estava lá. Com o Muad'Dib, com Chani e todos os outros. Que foi que fizemos ao nosso universo?”

Stilgar era incapaz de explicar por que tais pensamentos vinham a seu encontro, no meio da noite, e por que faziam com que se sentisse tão culpado. Agachou-se dentro de seu manto. A realidade não era nem um pouco como o sonho. O Deserto Amistoso, que um dia se estendera de um pólo a outro, estava reduzido à metade de seu tamanho. O paraíso mítico das extensões verdes que se ampliavam o enchia de angústia. Não era como o sonho. Enquanto seu planeta mudava, ele também mudava. Tornara-se uma pessoa mais sutil do que o chefe de sietch que um dia fora. Agora estava consciente de muitas coisas dos negócios de Estado e das profundas consequências das menores decisões. E no entanto sentia todo esse conhecimento e sutileza como uma fina camada recobrindo um núcleo férreo de consciência mais simples e determinística. E esse núcleo mais antigo o Chamava, suplicando para que retornasse aos valores mais puros.

Os sons do amanhecer no sietch começaram a interferir com seus pensamentos. Pessoas movimentavam-se na caverna. Sentiu a brisa em sua face: elas estavam saindo pelos selos das aberturas, ao encontro da escuridão que precede a aurora. A brisa revelava descuido do mesmo modo como indicava o tempo. Os moradores não mais obedeciam à rígida disciplina da água dos velhos dias. Por que deveriam, quando já se registrará chuva no planeta, quando já se viam nuvens, quando oito Fremen haviam sido cobertos de água e mortos por uma súbita enxurrada num wadi?

Até então a palavra afogado não existira na linguagem de Duna. Mas este não era mais Duna, este era Arrakis... e esta era a manhã de um dia importante.

Ele pensou: “Jessica, a mãe do Muad'Dib e avó destes gêmeos reais, retorna hoje ao nosso planeta. Por que ela termina seu exílio auto-imposto justamente nesta ocasião? Por que deixa a suavidade e a segurança de Caladan em troca dos perigos de Arrakis?”

E existiam outras preocupações: sentiria ela as dúvidas de Stilgar? Ela era uma bruxa Bene Gesserit, graduada nos profundos conhecimentos da Irmandade, e uma Reverenda Madre por seus próprios méritos. Tais mulheres eram perspicazes e muito perigosas.

Iria ela ordenar-lhe que caísse sobre a própria faca, como fora ordenado ao Umma protetor de Liet-Kynes?

“Devo obedecer a ela?”, perguntou-se.

Sentiu-se incapaz de responder a pergunta, mas começou a pensar em Liet- Kynes, o planetólogo que fora o primeiro a sonhar com a transformação do deserto planetário de Duna no planeta verde, propício à vida humana, que agora se tornava. Liet-Kynes fora o pai de Chani. Sem ele não teria havido o sonho, não teria havido Chani nem os gêmeos reais. As consequências dessa frágil corrente assombravam Stilgar.

“Como nos encontramos neste lugar?”, ele se perguntava. “Como nos combinamos? Para que propósito? Será meu dever terminar com tudo isto? Desarmar esta grande combinação?”

Stilgar reconhecia esse terrível desejo agindo agora sobre si. Ele podia fazer uma escolha, negando o amor e a família para realizar o que se esperava de um Naib nessa ocasião: tomar uma decisão mortífera pelo bem da tribo. Por um lado, tal assassinato representava o máximo em traição e atrocidade. “Matar simples crianças!” E no entanto elas não eram simples crianças. Haviam consumido a melange, compartilhado da orgia no sietch, vasculhado o deserto em busca da truta da areia e participado de outros jogos das crianças Fremen... E se haviam sentado ante o Conselho Real.

Crianças tão novas e no entanto suficientemente sábias para participarem do Conselho. Podiam ser crianças fisicamente, mas eram ancestrais em suas experiências, nascidas com a totalidade da memória genética, a terrível consciência que os separava, junto com sua tia Alia, de todos os outros seres humanos vivos.

Muitas vezes, em muitas noites, Stilgar encontrara sua mente circulando em torno da crença compartilhada pelos gêmeos e sua tia, muitas vezes despertara em razão desses tormentos, vindo até o quarto dos gêmeos com seus sonhos interrompidos. Agora suas dúvidas focalizavam-se. A ausência de decisão já era em si uma decisão. Ele sabia disso. Esses gêmeos, assim como sua tia, haviam despertado no ventre materno, adquirindo todas as memórias legadas por seus ancestrais. O vício da especiaria fizera isso, o vício de suas mães: Lady Jessica e Chani. Lady Jessica tivera um filho, o Muad'Dib, antes de se viciar. Alia viera depois do vício. Isso era claro, em retrospecto. As incontáveis gerações da procriação seletiva dirigida pelas Bene Gesserit tinham resultado no Muad'Dib, mas em parte alguma nos planos da Irmandade elas haviam considerado a melange. Oh, elas conheciam essa possibilidade, mas a temiam, Chamando-a de Abominação. Esse era o detalhe mais angustiante. Abominação. Elas deviam ter motivos para tal julgamento. E se diziam que Alia era uma Abominação, então isso devia aplicar-se igualmente aos gêmeos, já que Chani também fora viciada, seu corpo saturado de especiaria, e seus genes de algum modo haviam complementado os do Muad'Dib.

Os pensamentos de Stilgar agitavam-se. Não havia dúvida de que esses gêmeos tinham ido além de seu pai. Mas em que direção? O menino falava na habilidade de poder ser o pai e o provara. Ainda muito pequeno, Leto revelara possuir memórias que só poderiam pertencer ao Muad'Dib. Haveria outros ancestrais aguardando nesse vasto espectro de memórias ancestrais cujas crenças e hábitos criavam perigos terríveis para os seres humanos?

Abominações, diziam as sagradas bruxas da Bene Gesserit. E no entanto a Irmandade ambicionava a genofase dessas crianças. As bruxas queriam o esperma e o óvulo sem a perturbadora carne que os carregava. Seria esse o motivo por trás do retorno de Lady Jessica? Ela havia rompido com a Irmandade para apoiar o Duque, seu marido, mas havia rumores de que retornara aos hábitos das Bene Gesserit.

“Eu poderia terminar com todos esses sonhos”, pensava Stilgar. “Como seria simples.”

E no entanto novamente se admirava de que pudesse contemplar tal escolha.

Seriam os gêmeos do Muad'Dib os responsáveis por uma realidade que destruía os sonhos dos outros? Não, eles eram meramente a lente através da qual a luz fluía para revelar as novas formas do universo.

Atormentada, sua mente refugiava-se nas velhas crenças Fremen, pensando:

“A ordem de Deus vem, assim, procure não apressá-la. Deus mostra o caminho e alguns se desviam dele.”

Era a religião do Muad'Dib que mais perturbava Stilgar. Por que haviam transformado o Muad'Dib num deus? Por que endeusar um homem que se sabia ter sido de carne e osso? O Elixir Dourado da Vida, do Muad'Dib, criara um monstro burocrático que cavalgava todos os negócios humanos. Com o Governo unido à religião, qualquer infração da lei tornava-se pecado. Um cheiro de blasfémia erguia-se como fumaça ante qualquer questionamento dos decretos governamentais. A acusação de rebelião invocava o fogo do inferno e os julgamentos farisaicos.

E no entanto eram os homens que criavam esses decretos.

Stilgar sacudiu a cabeça, amargurado, sem dar atenção aos criados que haviam penetrado na antecâmara real para os afazeres matinais.

Tocou a faca cristalina no cinturão, pensando no passado que ela simbolizava, lembrando como mais de uma vez simpatizara com os rebeldes cujos levantes haviam sido esmagados por suas próprias ordens. A confusão propagava-se em sua mente e ele desejava ter meios de controlá-la, retornando à vida simples representada pela faca. Mas o universo nunca volta atrás. Era uma grande máquina projetando-se sobre o vácuo cinzento da não-existência. Sua faca, caso provocasse a morte dos gêmeos, apenas reverberaria contra esse vazio, tecendo novas complexidades que ecoariam pela história humana, criando novas ondas de caos, desafiando a humanidade a tentar novas formas de ordem e desordem.

Stilgar suspirou, percebendo os movimentos a seu redor. Sim, esses criados representavam um tipo de ordem construída ao redor dos gêmeos do Muad'Dib. Eles se moviam sem cessar, cuidando do que fosse necessário. “É melhor acompanhá-los”, pensou Stilgar. “É melhor enfrentar o que vem por aí quando chegar a hora.”

“Também sou um criado”, disse para si mesmo. “E meu senhor é Deus, o Piedoso, o Clemente.” E lembrou-se de uma frase: “Certamente, Nós colocamos grilhões sobre seus pescoços, cobrindo-os até o queixo, de modo que suas cabeças se erguessem. E Nós colocamos uma barreira diante deles, e outra atrás. E Nós os cobrimos para que não pudessem ver.”

Assim estava escrito na velha religião Fremen.

Assentiu para si mesmo.

A capacidade de ver, de antecipar o momento seguinte, como o Muad'Dib fizera em suas espantosas visões do futuro, acrescentava um contrapeso às atividades humanas. Criava novos lugares para decisão. Estar livre dos grilhões poderia muito bem ser o resultado de uma vontade divina. Essa era outra complexidade além da percepção humana normal.

Stilgar afastou a mão da faca, os dedos comichando com a lembrança. Mas a lâmina que uma vez brilhara na boca escancarada de um verme da areia continuava na bainha. Sabia que não puxaria a faca nesse momento para matar os gêmeos. Chegara a uma decisão. Era melhor manter aquela velha virtude que ainda nutria: a lealdade. É preferível a complexidade do que se pensa conhecer do que aquela que desafia a compreensão. Melhor o agora do que o sonho futuro. Um gosto amargo na boca dizia a Stilgar o quanto podem ser vazios e revoltantes certos sonhos.

“Não! Chega de sonhos!”

 

DESAFIO: “Viste o Pregador?”

RESPOSTA: “Vi um verme da areia.”

DESAFIO: “Que me dizes desse verme?”

RESPOSTA: “Ele nos dá o ar que respiramos.”

DESAFIO: “Então porque destruímos sua terra?”

RESPOSTA: “Porque o Shai-Hulud (Verme da areia endeusado) assim ordena.”

 

- Enigmas de Arrakis por Harq al-Ada

 

Como era costume dos Fremen, os gêmeos Atreides levantavam-se uma hora antes do nascer do sol. Em suas câmaras adjacentes, eles bocejaram e se espreguiçaram em secreta harmonia, sentindo a atividade na caverna-alojamento ao redor. Podiam ouvir os criados, na antecâmara, preparando o desjejum. Uma sopa simples com tâmaras e nozes misturadas num liquido obtido a partir da especiaria parcialmente fermentada. Havia globos luminosos na antecâmara e uma suave luz amarelada penetrava através das arcadas. Os gêmeos vestiram-se rapidamente a essa luz suave, um ouvindo o outro nas imediações. Como tinham combinado, ambos envergaram trajes-destiladores para se protegerem dos ventos quentes do deserto.

Dentro em pouco, o par real encontrou-se na antecâmara, notando a súbita imobilidade dos criados. Leto, como se observou, usava uma capa cor de bronze, de bordo negro, sobre o cinza lustroso do traje-desolador. Sua irmã usava uma capa verde. A gola de cada uma das capas era presa por uma fivela com a forma do falcão dos Atreides, dourado com jóias vermelhas formando os olhos.

Vendo todo esse requinte, Harah, uma das esposas de Stilgar, comentou:

— Vejo que se vestiram em honra de sua avó.

Leto apanhou sua terrina com o desjejum antes de olhar para o rosto de Harah, escuro e vincado pelo vento. Sacudiu a cabeça e perguntou:

— Como sabe que não é a nós mesmos que honramos?

Harah enfrentou seu olhar atrevido sem estremecer e disse:

— Meus olhos são tão azuis quanto os seus.

Ghanima riu alto. Harah sempre fora uma adepta do jogo de desafio dos Fremen. Em uma única frase ela dissera: “Não brinque comigo, garoto. Você pode ser da realeza, mas ambos trazemos o estigma do vício da melange, olhos sem partes brancas. Que Fremen necessita de mais elegância ou maior honra do que essa?”

Leto sorriu sacudindo a cabeça, arrependido.

— Harah, meu amor, se você fosse mais jovem e não pertencesse a Stilgar, eu a tomaria como esposa.

Harah aceitou essa pequena vitória com tranquilidade, acenando para que os outros criados continuassem a preparar os aposentos para as importantes atividades do dia.

— Comam seu desjejum  — disse. — Vão precisar de energia hoje.

— Então concorda em que não estamos suficientemente arrumados para encontrar nossa avó? — perguntou Ghanima, falando com a boca cheia.

— Não tenha medo dela, Gham — respondeu Harah.

Leto engoliu uma porção de sopa e enviou um olhar indagador para Harah. A mulher era infernalmente sábia, percebendo o jogo da elegância com tanta rapidez.

— Será que ela pensa que a tememos? — perguntou ele.

— Provavelmente não — disse Harah. — Lembre-se de que ela era nossa Reverenda Madre. Conheço seus hábitos.

— Como foi que Alia se vestiu? — perguntou Ghanima.

— Ainda não a vi — respondeu Harah de modo seco, afastando-se.

Leto e Ghanima trocaram um olhar de compreensão e se curvaram sobre sua refeição. Daí a pouco saíam para a grande passagem central.

Ghanima falou então, usando um dos antigos idiomas que ambos compartilhavam através da memória genética.

— Então, hoje temos uma avó.

— Isso deixa Alia muito incomodada — disse Leto.

— Quem gosta de conceder tal autoridade? — perguntou Ghanima.

Leto riu baixinho, um som adulto saindo curiosamente de uma carne tão jovem.

— É mais do que isso.

— Será que os olhos da mãe dela observarão o que já observamos?

— E por que não?

— Sim... deve ser disso que Alia tem medo.

— Quem conhece a Abominação melhor do que uma Abominação? — indagou Leto.

— Nós podemos estar errados, você sabe — comentou Ghanima.

— Mas não estamos. — E citou o Livro de Azhar das Bene Gesserit: — “É com razão e terrível experiência que nós Chaniamos de Abominação aos pré-nascidos. Pois quem sabe que esquecida e amaldiçoada personalidade de nosso passado mais maligno poderia se apoderar da carne viva?”

— Conheço a história — disse Ghanima. — Mas se isso fosse verdade, por que então não sofremos esse assalto interior?

— Talvez porque nossos pais montem guarda dentro de nós — respondeu Leto.

— Então, por que Alia não teve guardiães?

— Não sei. Pode ser pelo fato de um dos pais ainda permanecer entre os vivos. Ou simplesmente porque ainda somos jovens e fortes. Talvez quando formos mais velhos e cínicos.

— Devemos ter muito cuidado com essa avó — disse Ghanima.

— E não discutir esse Pregador que anda pelo planeta propagando a heresia?

— Não acredita realmente que ele seja o nosso pai!

— Eu não faço julgamentos a respeito, mas Alia o teme.

Ghanima sacudiu a cabeça bruscamente:

— Eu não acredito nessa besteira de Abominação!

— Você tem tantas memórias quanto eu. Pode acreditar no que desejar.

— Você acha que é porque ainda não nos atrevemos a experimentar o transe da especiaria, enquanto Alia já o fez.

— É exatamente o que penso.

Ficaram em silêncio ao penetrarem no fluxo de pessoas que usavam a passagem central. Fazia frio no Sietch Tabr, mas os trajes-destiladores estavam quentes e os gêmeos mantiveram os capuzes condensadores por sobre os cabelos ruivos. Seus rostos denunciavam a marca dos genes compartilhados: a boca ampla e os olhos bem separados, na tonalidade inteiramente azul dos viciados na especiaria.

Leto foi o primeiro a notar a aproximação de sua tia Alia.

— Aí vem ela — disse ele, usando a linguagem de batalha dos Atreides como advertência.

Ghanima acenou com a cabeça para a tia, quando esta parou diante deles, e disse:

— Uma presa de guerra saúda sua parenta ilustre.

Usando a mesma linguagem Chakobsa, Ghanima enfatizou o significado de seu próprio nome Presa de Guerra.

— Como vê, adorada tia — disse Leto, — nos preparamos para nosso encontro com sua mãe.

Alia, a única pessoa no apinhado lar real que não nutria a menor surpresa ante o comportamento adulto dessas crianças, olhou furiosa de uma para a outra. E disse:

— Cuidado com a língua, vocês dois!

O cabelo cor de bronze de Alia estava preso atrás com dois anéis de água dourados. Seu rosto oval apresentava-se carrancudo e a boca ampla, com seu traço de auto-indulgência, comprimia-se em linha reta. Vincos de preocupação expandiam-se nos cantos dos olhos de cor azul sobre azul.

— Já lhes avisei para que se comportassem hoje — disse ela. — Conhecem as razões tão bem quanto eu.

— Nós conhecemos as suas razões, mas talvez a senhora não conheça as nossas — disse Ghanima.

— Gham! — censurou Alia.

Leto olhou para a tia com raiva e disse:

— Hoje, dentre todos os dias, não fingiremos ser crianças idiotas!

— Ninguém quer que finjam — respondeu Alia. — Mas acreditamos que não seja prudente provocar pensamentos perigosos em minha mãe. Irulan também concorda comigo. Quem sabe que papel Lady Jessica escolherá desempenhar?

Apesar de tudo, ela é uma Bene Gesserit.

Leto sacudiu a cabeça, imaginando: “Por que Alia não nota o que nós suspeitamos? Será que está ficando velha?” Observou a sutileza dos traços genéticos no rosto de Alia que traíam seu avô materno. O Barão Vladimir Harkonnen não fora uma pessoa agradável. Ante essa observação, Leto sentiu sua própria inquietação, pensando: “Ele é meu ancestral também.”

— Lady Jessica foi treinada para governar — disse ele. Ghanima assentiu com a cabeça. — Por que ela escolheu esta ocasião para retornar?

Alia franziu a testa e respondeu:

— É possível que apenas deseje ver os netos?

Ghanima pensou: “É isso que a senhora espera, querida tia. Mas sabe que não é provável.”

— Ela não pode governar este lugar — explicou Alia. — Ela tem Caladan. Isso devia ser suficiente.

Ghanima falou de modo conciliador:

— Quando nosso pai partiu para morrer no deserto, ele deixou a senhora como Regente. Ele...

— Tem alguma queixa? — perguntou Alia.

— Foi uma escolha justa — disse Leto, aproveitando a deixa de sua irmã. — Era a única pessoa que sabia como é nascer do modo como nascemos.

— Há rumores de que minha mãe retornou à Irmandade — disse Alia.

— E vocês dois sabem o que as Bene Gesserit pensam a respeito de Abominações — disse Leto.

— Sim!

— Uma vez bruxa, sempre bruxa assim dizem — completou Ghanima.

“Mana, você joga um jogo perigoso”, pensou Leto. Ainda assim, acompanhou a irmã, dizendo:

— Nossa avó era uma mulher muito simples, mais simples que as outras de seu gênero. A senhora compartilha das memórias dela, tia Alia. Certamente devia saber o que esperar.

— Simples! — disse Alia, sacudindo a cabeça. Olhou para a passagem cheia de gente antes de voltar sua atenção para os gêmeos. — Se minha mãe fosse menos complexa, nenhum de vocês estaria aqui. Nem eu. Eu teria sido sua primogênita e nada disto... — Ela estremeceu, dando de ombros. — Eu os aviso para que sejam muito cuidadosos com o que disserem hoje. — Alia olhou para cima. — Aí vem a minha guarda.

— Ainda não considera seguro que a acompanhemos até o espaçoporto? — indagou Leto.

— Esperem aqui — respondeu Alia. — Eu a trarei.

Leto trocou olhares com a irmã e disse:

— Já nos disse muitas vezes que as memórias que guardamos daqueles que viveram antes de nós carecem de certa utilidade até que tenhamos experimentado o suficiente, em nossa própria carne, para lhes emprestar a realidade. Minha irmã e eu acreditamos nisso. E previmos mudanças perigosas com a chegada de nossa avó.

— Não deixem de acreditar nisso — disse Alia, e se virou, sendo envolvida por sua guarda e caminhando rapidamente para a entrada, onde os omitópteros os aguardavam.

Ghanima enxugou uma lágrima do olho direito.

— Água para os mortos? — sussurrou Leto, tomando-lhe o braço.

Ghanima suspirou fundo, pensando em como observara sua tia usando os modos que conhecia a partir de sua própria acumulação de experiências ancestrais.

— O transe da especiaria causou isto? — indagou, sabendo de antemão o que Leto lhe diria.

— Tem alguma sugestão melhor?

— Só para argumentar, por que o nosso pai... ou mesmo a nossa avó não sucumbiu a isso?

Ele a observou por um momento. Então acrescentou:

— Sabe a resposta tão bem quanto eu. Eles tinham personalidades formadas quando vieram para Arrakis. O transe da especiaria... — deu de ombros. — Eles não nasceram neste mundo já possuídos por seus ancestrais.

— Já Alia...

— Por que ela não acreditou nos avisos das Bene Gesserit? — Ghanima mordeu o lábio inferior. — Alia tinha a mesma informação que nós para tomar por base.

— Elas já a estavam Chamando de Abominação — disse Leto. — Não acharia tentador tentar descobrir se você é mais forte que todos aqueles?

— Não, eu não!

Ghanima fugiu ao olhar questionador de seu irmão, estremecendo. Era só consultar suas memórias genéticas e os avisos da Irmandade tomavam forma nítida. “Os pré-nascidos possuem uma tendência observável a se tornarem adultos de hábitos perversos. E a causa provável...” Novamente estremeceu.

— É uma pena que não tivéssemos alguns pré-nascidos em nossa ancestralidade — disse Leto.

— Talvez tenhamos.

— Mas nós... Ah, sim, a velha pergunta sem resposta: teremos realmente acesso aberto ao arquivo total de experiências de cada um de nossos ancestrais?

A partir de sua própria inquietação interior, Leto sabia como essa conversa devia ser perturbadora para a irmã. Eles já haviam discutido muitas vezes essa questão, sem nunca chegar a conclusão alguma. Ele acrescentou:

— Devemos retardar e retardar sempre, cada vez que ela nos pressionar para o transe da especiaria. Devemos ter um cuidado extremo com superdoses de especiaria. Esse é o nosso melhor curso de ação.

— Uma superdose teria que ser muito grande — comentou Ghanima.

— Nossa tolerância é provavelmente muito alta — concordou Leto. — Veja de quanto Alia precisa.

— Tenho pena dela — disse Ghanima. — A atração deve ter sido sutil e insidiosa, rastejando em seu subconsciente até que...

— Ela é uma vítima, sim — disse Leto. — Abominação.

— Nós podemos estar errados.

— Certo.

— Eu sempre me pergunto — meditou Ghanima — se a próxima memória ancestral que buscarmos não será aquela que o passado não se encontra mais distante do que seu travesseiro.

— Devemos buscar uma oportunidade para discutir isso com nossa avó. Assim me incita a memória dentro de mim. — disse Leto.

Ghanima olhou para ele.

— O conhecimento demasiado não torna fáceis as decisões.

 

O sietch era na orla do deserto

Era de La'et, era de Kyne,

Era de Stilgar, era do MuadVib.

E, uma vez mais, era de Stilgar.

Os Naibs, um por um, dormem na areia.

Mas o sietch continua.

 

- de uma canção Fremen

 

Alia sentia o coração batendo forte enquanto caminhava para longe dos gêmeos.

Durante alguns segundos pulsantes, sentira-se compulsivamente próxima de ceder ao desejo de ficar com eles e pedir-lhes ajuda. Que tola fraqueza.

A memória transmitiu uma calma advertência através de seu corpo. Será que os gêmeos se atreveriam a praticara presciência? O caminho que lhes engolfara o pai devia atraí-los, o transe da especiaria, com suas visões ondulantes do futuro, como gaze soprada por um vento inconstante.

“Por que não posso ver o futuro?”, perguntou-se Alia. “Por mais que eu tente, por que ele me escapa?”

Os gêmeos devem ser levados a tentar, disse ela a si mesma. Eles podem ser atraídos para isso. Afinal, possuem a curiosidade das crianças aliada a memórias que abrangem milênios.

“Exatamente como eu”, pensou Alia.

Sua guarda abriu os selos de umidade da Entrada Oficial do sietch e formou de lado, enquanto ela emergia para a plataforma de pouso onde os ornitópteros aguardavam. Havia um vento do deserto soprando poeira através do céu, entretanto, o dia era radioso. Emergir da luminosidade dos brilho-globos do sietch para a luz do dia lançou adiante seus pensamentos.

Por que Lady Jessica retornava nesse momento? Alguém teria contado histórias em Caladan, histórias sobre como a Regência era...

— Devemos apressar-nos, minha senhora — disse um dos guardas, erguendo sua voz acima dos sons do vento.

Alia deixou que a ajudassem a subir no ornitóptero e prendeu o arreio de segurança, mas seus pensamentos continuavam saltando adiante.

“Por que logo agora?”

Enquanto as asas do ornitóptero batiam e a aeronave deslizava no ar, Alia sentiu a pompa e o poder de sua posição como se fossem coisas físicas...

Mas eram tão frágeis, oh, como eram frágeis!

“Por que logo agora, quando seus planos ainda não estavam concluídos?”

As névoas poeirentas se ergueram, levadas pelo vento, e ela pôde ver a luz do sol brilhando sobre a nova paisagem do planeta: amplas extensões de vegetação verde onde um dia predominara a terra ressequida.

“Sem uma visão do futuro, eu posso falhar. Oh, que mágica eu poderia realizar se ao menos pudesse ver como Paul via! Não é amargura o que me trazem as visões prescientes.”

Uma fome atroz estremeceu através dela e Alia desejou poder abdicar de tal poder. Oh, ser como os outros eram, cegos na mais segura de todas as cegueiras, vivendo apenas a hipnótica meia vida na qual o choque do nascimento precipita a maioria dos humanos. Mas não! Nascera uma Atreides, vítima de uma consciência com a profundidade de eras que lhe fora imposta pelo vício de sua mãe.

“Por que minha mãe está de volta hoje?”

Gurney Halleck estaria com ela sempre o servo dedicado, o assassino de aluguel de modos feios, leal e direto, um músico que executava um assassinato ou alegrava o ambiente com igual tranquilidade, tocando seu baliset de nove cordas. Alguns diziam que ele se tornara o amante de sua mãe. Isso era algo que devia descobrir. Podia revelar-se uma informação valiosa.

O desejo de ser como os outros a abandonou.

“Leto deve ser levado ao transe da especiaria.”

Lembrava-se de ter perguntado ao garoto como ele se portaria com relação a Gurney Halleck. E Leto, sentindo os significados subjacentes à pergunta, dissera que Halleck era leal, mas “com uma falha”. E acrescentara:

— Ele adorava... meu pai.

Notara a pequena hesitação. Leto quase dissera “me adorava” em vez de “adorava meu pai”... Sim, às vezes era difícil distinguir a memória genética da pessoa. E Gurney Halleck só tornaria essa distinção mais difícil para Leto.

Um sorriso cruel tocou os lábios de Alia.

Gurney preferira retornar a Caladan com Lady Jessica após a morte de Paul. Sua volta deixaria muitas coisas emaranhadas. Voltando a Arrakis, ele adicionaria suas próprias complexidades às linhas já existentes. Ele servira ao pai de Paul, e desse modo prosseguia na sucessão: de Leto I para Paul, de Paul para Leto II. E, saindo do programa de procriação Bene Gesserit, de Jessica para Alia, de Alia para Ghanima uma ramificação.

Gurney, aumentando a confusão de identidades, poderia revelar-se valioso.

“Que faria ele se descobrisse que carregamos o sangue dos Harkonnen que ele odeia tanto?”

O sorriso nos lábios de Alia tornou-se introspectivo. Os gêmeos eram, apesar de tudo, crianças. Eram como crianças com incontáveis ancestrais, cujas memórias pertenciam a outros e a elas próprias. Iriam ficar de pé, na saliência da entrada do Sietch Tabr, e observar o rastro deixado pela nave de sua avó ao pousar na Bacia de Arrakeen. Aquela marca flamejante da passagem da nave, bem visível no céu... isso tornaria a chegada de Jessica mais real para seus netos?

“Minha mãe vai me indagar quanto ao treinamento deles”, pensou Alia.

“Terei misturado as disciplinas prana bindu com a ponderação adequada? E eu lhe direi que eles treinam a si mesmos, exatamente como eu fiz. E lhe citarei as palavras de seu próprio neto: “Entre as responsabilidades do comando está a necessidade de punir... mas somente quando a vítima assim o exige.”

Alia concluiu então que, se ao menos conseguisse manter a atenção de Lady Jessica suficientemente voltada para os gêmeos, outros poderiam escapar de sua inspeção minuciosa.

Tal coisa poderia ser feita. Leto era muito parecido com Paul. E por que não seria? Ele poderia ser Paul quando quisesse. Até mesmo Ghanima possuía essa perturbadora habilidade.

“Exatamente como eu posso ser minha mãe, ou qualquer uma das outras que partilharam suas vidas conosco.”

Desviou-se desse pensamento e olhou para a paisagem da Muralha Escudo, que passava. E então: “Como terá sido deixar a morna segurança de Caladan, com sua riqueza de água, e retornar a Arrakis, este planeta desértico onde seu Duque foi assassinado e seu filho morreu como um mártir?”

Por que Lady Jessica estaria voltando agora?

Alia não encontrou resposta, nenhuma resposta certa. Ela podia compartilhar a consciência do ego de outras, mas, onde as experiências seguiam seus diferentes caminhos, seus motivos igualmente divergiam. A matéria-prima para as decisões jazia em ações particulares executadas por indivíduos. Para os pré-nascidos, para os muito-nascidos Atreides, esta permanecia como uma realidade suprema. Em si mesma, outro tipo de nascimento: fora a separação absoluta da carne que vivia e respirava ao deixar o ventre materno que a afligira com a consciência múltipla.

Alia não achava estranho que ao mesmo tempo amasse e odiasse sua mãe. Era uma necessidade, um equilíbrio necessário que não deixava espaço para culpa ou remorso. Onde poderia acabar o amor ou o ódio? Seria possível culpar as Bene Gesserit por terem colocado Lady Jessica em determinado caminho? A culpa torna-se difusa quando a memória abrange milênios.

A Irmandade buscara apenas gerar um Kwisatz Haderach: o equivalente masculino de uma Reverenda Madre plenamente desenvolvida... e mais um ser humano de sensibilidade e consciência superiores, o Kwisatz Haderach, que poderia estar em muitos lugares simultaneamente. Lady Jessica fora meramente um peão nesse programa de procriação e tivera o mau gosto de se apaixonar pelo parceiro a que fora destinada. Respondendo aos desejos de seu Duque, ela gerara um filho em vez da filha que a Irmandade desejava como primogênita.

“Deixando-me para nascer somente depois que já se viciara na especiaria. E agora elas não me querem. Agora elas me temem! Com boas razões...”

Elas conseguiram Paul, seu Kwisatz Haderach, uma geração mais cedo um pequeno erro de cálculo num plano muito amplo. E agora tinham outro problema: a Abominação, que carregava consigo os preciosos genes que elas buscaram por tantas gerações.

Alia sentiu uma sombra passar sobre si e olhou para o alto. Sua escolta estava assumindo uma posição de guarda mais elevada, preparatória para o pouso. Sacudiu a cabeça, admirada com o modo como seus pensamentos tinham vagueado. Qual era a vantagem de recuperar a memória de antigas vidas só para misturar seus erros? Essa era uma vida nova.

Duncan Idaho voltara sua consciência mentat sobre a questão do motivo pelo qual Lady Jessica escolhera essa ocasião para retornar. Avaliara o problema no estilo de computador humano que era sua habilidade , dissera que ela voltava para entregar os gêmeos à Irmandade. Os gêmeos também tinham os preciosos genes, e Duncan podia estar certo. Isso poderia ser o suficiente para ter retirado Lady Jessica de sua auto-imposta reclusão em Caladan. Se a Irmandade ordenasse... Bem, por que mais ela voltaria ao cenário de tanta coisa que lhe devia ser tão dolorosa?

Veremos murmurou Alia.

Sentiu o ornitóptero tocar o teto de seu Castelo, uma pontuação positiva e incisiva que a enchia de sombrias expectativas.

 

“melange (mé-lange também malanj) origem incerta (embora se acredite que derive do antigo fran. Zh terrano): o comporto de es b. especiaria de Arrakis (Duna) com propriedades getiátricas percebidas pela primeira vez por Yanrhuph Arhkoko, químico real do reino de Shakkad, o Sábio, melange de Arrakeen, encontrada apenas nas areias mais profundas do deserto de Arakeen, ligada às visões proféticas de Paul Muad' Dib (Atreide) primeiro Mahdi dos Premera, também empregada pelos Navegadores da Corporação e pelas Bene Gesserit. “

 

- Dicionário Real quinta edição

 

Os dois grandes felinos aproximaram-se do penhasco à primeira luz da aurora, andando com facilidade. Ainda não se encontravam em plena caçada, apenas patrulhavam seu território. Eram conhecidos como tigres Laza, uma raça especial trazida para o planeta Salusa Secundus quase 8 mil anos atrás. A manipulação genética da antiga espécie terrana apagara algumas características desses tigres, ao mesmo tempo em que aperfeiçoara outros elementos. As presas permaneciam longas. As faces eram largas, com olhos alertas e inteligentes. As patas haviam sido aumentadas para lhes dar suporte em terreno acidentado, e suas unhas embainhadas podiam estender-se por mais de 10 centímetros, as pontas afiadas como navalhas pela compressão abrasiva das bainhas. A pelagem era de uma tonalidade bronze uniforme para torná-los quase invisíveis sobre o terreno arenoso.

Ainda de outro modo diferiam de seus ancestrais: servo-estimuladores haviam sido implantados em seus cérebros enquanto eram filhotes. Esses estimuladores os transformavam em marionetes de qualquer um que possuísse um transmissor.

Estava frio e quando os felinos pararam, examinando o terreno, sua respiração condensou-se em vapor sobre o ar. Em torno deles se estendia uma árida e estorricada região de Salusa Secundus, lugar que abrigava umas poucas trutas da areia contrabandeadas de Arrakis e mantidas precariamente vivas no sonho de que um dia o monopólio da melange pudesse ser quebrado. No lugar onde os felinos se encontravam, a paisagem era marcada por rochas cor de cobre e alguns arbustos esparsos, de um verde prateado às longas sombras do sol nascente.

Com o mais leve dos movimentos, os grandes gatos ficaram subitamente alertas. Seus olhos voltaram-se lentamente para a esquerda e então suas cabeças se viraram. Lá embaixo, no terreno desolado, duas crianças subiam de mãos dadas por um leito seco de aluvião. Pareciam ter uma idade em torno de nove ou 10 anos-padrão. Ambas tinham cabelos ruivos e usavam trajes-destiladores parcialmente cobertos por ricos mantos bourka de cor branca, que exibiam em torno da bainha e no capuz a crista do falcão da Casa Atreides, delineada com fio de gema flamejante. Enquanto caminhavam, as crianças conversavam alegremente e suas vozes eram levadas com clareza até os felinos. Os tigres Laza conheciam esse jogo, já o haviam jogado antes, mas permaneciam imóveis, aguardando o disparo do sinal de perseguição em seus servo-estimuladores.

Agora, um homem surgiu no topo do penhasco, acima dos felinos. Ele parou e observou a cena: tigres, crianças. Usava o uniforme de trabalho dos Sardaukar, cinza e negro, com a insígnia de um Levenbrech, ajudante de um Bashar. Um arreio passado por trás do pescoço e sob os braços prendia a seu peito o servo-transmissor, uma embalagem de pouca espessura em que as chaves de controle podiam ser alcançadas facilmente com ambas as mãos.

Os felinos não se voltaram com sua aproximação. Conheciam esse homem pelo cheiro e pelo som. Ele desceu até se colocar a dois passos dos tigres e limpou o suor da testa. O ar estava frio, mas o trabalho era quente.

Novamente seus olhos pálidos esquadrinharam a cena: tigres, crianças.

Endireitou um fio de cabelo úmido e louro sob o negro capacete de trabalho e tocou o microfone implantado em sua garganta.

— Os gatos já os avistaram.

A resposta chegou através de receptores implantados atrás de cada orelha.

— Podemos vê-los.

— Agora? — indagou o Levenbrech.

— Será que eles o farão sem o comando de perseguição? — retrucou a voz.

— Eles estão prontos — disse o Levenbrech.

— Muito bem, vejamos se quatro sessões de condicionamento já são suficientes. Diga-me quando estiver pronto.

— Quando quiser.

— Agora, então — disse o Levenbrech.

Tocou o botão vermelho do lado direito de seu servo-transmissor, primeiro soltando a barra que protegia a chave. Agora, os felinos encontravam-se livres de qualquer impulso inibidor transmitido. Manteve a mão sobre um botão preto, abaixo do vermelho, pronto a deter os animais, caso se voltassem contra ele. Mas eles nem o notaram, agachando-se e começando a descer a encosta em direção às crianças. Suas grandes patas resvalavam em movimentos suaves.

O Levenbrech agachou-se para observar, sabendo que em algum lugar perto dele um trans-olho oculto transmitia toda a cena para um monitor secreto dentro do castelo onde vivia o Príncipe.

Dentro em pouco os felinos começaram a trotar e depois a correr.

As crianças, sua atenção voltada para a subida através do terreno rochoso, ainda não haviam percebido o perigo. Uma delas riu, um som alto e agudo no ar límpido. A outra tropeçou e, ao recuperar o equilíbrio, viu os tigres. Apontou, dizendo:

— Olhe!

Ambas pararam, olhando para essa interessante intrusão em suas vidas. E ainda estavam de pé, imóveis, quando os tigres as atingiram, um sobre cada criança. As crianças morreram abruptamente, com os pescoços quebrados. Então, os felinos começaram a devorá-las.

— Devo Chaniá-los de volta? — indagou o Levenbrech.

— Deixe que terminem. Eles agiram bem. Sabia que o fariam. Esse par é soberbo.

— Os melhores que já vi — concordou o Levenbrech.

— Então está bem. Já estamos enviando o transporte para buscá-lo.

— Desligando agora.

O Levenbrech levantou-se e se espreguiçou. Conteve o impulso de olhar diretamente para a elevação à sua esquerda, onde uma cintilação reveladora indicaria a localização do trans-olho que transmitira essa esplêndida performance ao seu Bashar, lá longe, nas terras verdejantes do Capitólio. O Levenbrech sorriu. Esse dia de trabalho ia valer-lhe uma promoção. Já podia sentir a insígnia de Bator em seu colarinho e um dia.

Burseg... Talvez mesmo Bashar. As pessoas que serviam bem no exército de Faradin, neto do falecido Shaddam IV, recebiam belas promoções. E um dia, quando o Príncipe estivesse sentado no trono que lhe pertencia por direito, haveria promoções ainda maiores. O posto de Bashar não seria o ponto final. Ainda havia baronatos e condados para serem exercidos nos muitos mundos desse reino... quando os gêmeos Atreides tivessem sido eliminados.

Os Fremen devem retornar à sua fé original, ao seu gênio em formar comunidades humanas. Eles devem retornar ao deserto, onde sua lição de sobrevivência foi a prendida na luta contra Arrakis. O único negócio dos Fremen devia ser a tarefa de abrir sua alma aos ensinamentos interiores. Os mundos do Império, a Landsraad e a Confederação CHOAM não lhes trazem nenhuma mensagem. Apenas roubam suas almas.

 

- O Pregador de Arrakeen

 

Por todas as direções à volta de Lady Jessica, estendendo-se pela monótona uniformidade da planície de pouso, sobre a qual seu transporte repousava, chiando e estalando após o mergulho desde o espaço, se erguia um oceano de humanidade. Ela estimava que meio milhão de pessoas ali se encontrassem e apenas um terço delas fosse de peregrinos. Mantinham-se em espantoso silêncio, a atenção fixa na plataforma de descarga do transporte, onde as sombras da comporta escondiam Jessica e seu séquito.

Faltavam duas horas para o meio-dia, mas o ar acima da multidão já refletia uma ondulação poeirenta, prenunciando o calor que viria.

Jessica levou a mão aos cabelos cor de cobre, riscados de prata no ponto em que emolduravam seu rosto oval, abaixo do capuz aba de Reverenda Madre. Sabia não estar com sua melhor aparência após uma viagem tão longa, e o negro do manto não era sua cor favorita. Entretanto, já havia usado esse traje antes e a significação do manto aba não seria despercebida pelos Fremen. Suspirou. As viagens espaciais não eram coisa que se harmonizasse com ela, e havia ainda a carga extra de suas memórias aquela outra viagem de Caladan para Arrakis, quando seu Duque fora forçado a aceitar esse feudo contra sua vontade.

Lentamente, sondando com suas habilidades de Bene Gesserit para detectar minúcias significativas, ela esquadrinhou o mar de gente. Havia capuzes de trajes-destiladores cinzentos, vestimentas dos Fremen do deserto profundo, havia peregrinos em mantos brancos, com as marcas da penitência sobre seus ombros, e bolsões dispersos de ricos mercadores, com roupas leves e sem os capuzes para exibirem seu desdém pela perda da umidade no ar ressequido de Arrakeen... e lá estava a delegação da Sociedade dos Fiéis, com mantos verdes e cabeças cobertas por capuzes pesados, destacados na santidade de seu próprio grupo.

Somente quando ela erguia o olhar acima da multidão é que a cena adquiria alguma similaridade com aquela que a recebera em sua chegada, junto de seu amado Duque. Há quanto tempo isso ocorrera? “Mais de 20 anos.” Não gostava de pensar no tempo transcorrido entre essas duas ocasiões. O tempo era como um peso morto dentro dela, como se os anos longe desse planeta nunca houvessem existido.

“Uma vez mais na boca do dragão”, pensou.

Aqui, sobre essa mesma planície, seu filho havia arrebatado o Império das mãos do falecido Shaddam IV. Uma convulsão na história que imprimira esse lugar nas mentes e nas crenças dos homens.

Ouviu os movimentos inquietos de seu séquito lá atrás, e novamente suspirou. Eles deviam esperar por Alia, que se atrasara. O grupo de Alia já podia ser visto aproximando-se pela extremidade mais distante da multidão, criando uma onda humana enquanto a cunha de Guardas Reais abria passagem.

Jessica esquadrinhou a paisagem mais uma vez. Muitas diferenças submetiam-se a seu olhar inquiridor. Uma sacada para preces fora acrescentada à torre de controle do campo. E bem distante, à esquerda, do outro lado da planície, erguia-se a assombrosa pilha de plasteel que Paul construíra como sua fortaleza seu “sietch acima da areia”. Era a maior construção integrada individual que já se erguera pela mão do homem.

Cidades inteiras poderiam ter sido alojadas entre suas paredes, e ainda teria sobrado espaço.

Agora, abrigava a mais poderosa força de governo em todo o Império, a “Sociedade dos Fiéis” de Alia, que esta erguera sobre o corpo do irmão.

“Esse lugar deve desaparecer”, pensou Jessica.

A delegação de Alia alcançara o pé da rampa de desembarque e lá permanecia na expectativa. Jessica reconheceu as feições vincadas de Stilgar. E Deus nos livre! Lá estava a Princesa Irulan, escondendo sua selvageria naquele corpo sedutor, com sua touca de cabelos dourados revelando-se ao capricho de uma brisa. Irulan parecia não ter envelhecido um dia sequer. Isso era uma afronta. E lá, na ponta da cunha, encontrava-se Alia, com as feições imprudentemente juvenis, os olhos voltados para cima, na direção das sombras da comporta. A boca de Jessica comprimiu-se numa linha reta enquanto ela observava o rosto da filha. Uma sensação desagradável pulsou através de seu corpo e ela ouviu o bater de ondas de sua própria vida soando em seus ouvidos. Os rumores eram verdadeiros.

Horrível! Horrível! Alia mergulhara no caminho proibido. A evidência lá estava para que qualquer iniciada pudesse ler. Abominação!

Nos poucos momentos que levou para se recobrar, Jessica percebeu o quanto desejara concluir que os rumores eram infundados.

“E quanto aos gêmeos?”, perguntou-se. “Estarão perdidos também?”

Lentamente, como convinha à mãe de um deus, Jessica caminhou para fora das sombras, chegando à borda da rampa. Seu séquito permaneceu atrás, conforme as instruções recebidas. Os momentos seguintes seriam cruciais.

Jessica encontrava-se sozinha, plenamente visível pela multidão. Ouviu Gurney Halleck tossir nervosamente lá atrás. Gurney fizera objeções:

— Não vai usar nem mesmo um escudo? Por deus, mulher! Está louca!

Entretanto, entre as características mais valiosas de Gurney estava um núcleo de obediência. Ele daria sua opinião, mas depois obedeceria. Como agora obedecia.

Quando Jessica surgiu, o mar humano emitiu um som semelhante ao assovio de um gigantesco verme da areia. Ela ergueu os braços no gesto de bênção com que o clero condicionara o Império. Com perceptíveis bolsões de retardatários, mas ainda assim como um único e gigantesco organismo, as pessoas caíram de joelhos. Até mesmo o cortejo oficial acompanhou esse movimento.

Jessica marcara bem os grupos que se haviam atrasado na genuflexão e sabia que outros olhos além dos seus, atrás dela e entre seus agentes disseminados na multidão, haviam memorizado um mapa temporário, marcando as posições dos retardatários.

E enquanto Jessica caminhava com os braços erguidos, Gurney e seus homens saíram. Eles se moveram com rapidez, passando por ela rampa abaixo e ignorando os olhares de espanto do cortejo oficial. Uniram-se aos agentes, que se identificaram por meio de sinais manuais. Rapidamente, dispersaram-se por entre o mar humano, saltando por sobre grupos de figuras ajoelhadas, correndo através de passagens estreitas entre os fiéis. Alguns de seus alvos perceberam o perigo e tentaram fugir. Esses foram os mais fáceis: uma faca atirada ou o laço de um garrote e os fugitivos tombaram. Os outros foram levados para fora da aglomeração, mãos amarradas, pés acorrentados.

Enquanto tudo isso acontecia, Jessica permanecia com os braços estendidos, abençoando a multidão com sua presença e mantendo-a submissa.

Ela percebia o indício dos rumores se espalhando e sabia qual seria o boato predominante, pois este fora plantado: “A Reverenda Madre volta para estirpar os negligentes. Abençoada seja a mãe de nosso Senhor!”

Quando tudo terminou alguns corpos sem vida estendidos na areia, prisioneiros conduzidos para as celas debaixo da torre de controle , Jessica abaixou os braços. Apenas três minutos haviam transcorrido. Sabia ser pouco provável que Gurney e seus homens houvessem atingido alguns dos lideres da oposição, aqueles que representavam a ameaça maior. Estes seriam alertas e perspicazes. Mas os cativos poderiam revelar alguns peixes interessantes, ao lado da quota normal de inúteis e simplórios.

Jessica abaixou os braços e as pessoas avançaram, aclamando-a a seus pés.

Como se nada de extraordinário houvesse acontecido, ela desceu a rampa sozinha, evitando a filha e concentrando sua atenção em Stilgar. A barba negra, que se espalhava sobre o colarinho do capuz do traje-desolador num turbulento delta, já mostrava algumas marcas cinzentas. Seus olhos, entretanto, mantinham aquela mesma intensidade com que se haviam apresentado em seu primeiro encontro no deserto. Stilgar sabia o que acabara de acontecer, e o aprovara. Ali estava um verdadeiro Naib Fremen, um líder de homens capaz de tomar decisões sangrentas. Suas primeiras palavras foram inteiramente adequadas.

— Bem-vinda ao lar, Minha Senhora. É sempre um prazer testemunhar uma ação direta e efetiva.

Jessica se permitiu um pequeno sorriso.

— Feche o porto, Stil. Ninguém sai até termos interrogado aqueles que apanhamos.

— Já está feito, Senhora. Planejei tudo isso com o homem de Gurney.

— Aqueles que ajudaram, então, eram seus homens.

— Alguns deles, Minha Senhora.

Ela notou a reserva oculta e assentiu com a cabeça.

— Você me observou muito bem naqueles dias, Stil.

— Como um dia se esforçou para me ensinar, Minha Senhora, a gente observa os sobreviventes e aprende com eles.

Alia deu um passo à frente e Stilgar se colocou de lado, enquanto Jessica confrontava sua filha.

Sabendo que não havia modo de esconder o que descobrira, Jessica nem mesmo tentou disfarçar. Alia podia ler minúcias quando era preciso, como qualquer adepta da Irmandade. Ela já saberia, pelo comportamento de Jessica, o que fora visto e interpretado. Elas eram inimigas para as quais o termo mortal seria apenas superficial.

Alia preferiu a raiva como reação mais fácil e adequada.

— Como se atreve a planejar uma ação como essa sem me consultar? — quis saber, levando o rosto para perto do de Jessica.

Jessica falou com brandura:

— Como acaba de ouvir, Gurney nem ao menos me participou o plano todo. Era como se...

— E você, Stilgar? — disse Alia, voltando-se para ele. — A quem você dedica sua lealdade?

— Meu juramento é para com os filhos do Muad'Dib — respondeu Stilgar rapidamente. — Ainda não eliminamos a ameaça que paira sobre eles.

— E por que a ação não a encheu de alegria... filha?

Alia piscou os olhos, olhou para a mãe, contendo a tempestade interior, e até mesmo conseguiu abrir um sorriso direto.

— Eu estou cheia de alegria... mãe.

Para sua própria surpresa, Alia descobriu-se feliz, experimentando um terrível prazer que se derramava, afinal, entre ela e sua mãe. O momento temido se passara e a balança do poder não se alterara.

— Discutiremos isso com maiores detalhes em ocasião mais conveniente — acrescentou Alia, falando para a mãe e para Stilgar.

— Mas é claro — respondeu Jessica, voltando-se para Irulan com um movimento que indicava o encerramento da entrevista.

Durante umas breves batidas do coração, Jessica e a Princesa ficaram em silêncio, uma diante da outra duas Bene Gesserit que haviam rompido com a Irmandade pela mesma razão: o amor... Ambas pelo amor de homens que agora estavam mortos. A Princesa amara Paul em vão, tornando-se sua esposa, mas não sua mulher. E agora vivia unicamente para as crianças que Paul ganhara de sua concubina Fremen, Chani.

Jessica foi a primeira a falar:

— Onde estão meus netos?

— No Sietch Tabr.

— É muito perigoso para eles aqui. Eu compreendo.

Irulan permitiu-se um fraco aceno com a cabeça. Observara o diálogo entre Jessica e Alia, mas o interpretara da maneira pela qual Alia a havia preparado: “Jessica retornou à Irmandade e ambas sabemos que elas têm planos para os filhos de Paul.” Irulan nunca fora a adepta mais dedicada da Bene Gesserit, sendo mais valiosa pelo fato de ser filha de Shaddam IV do que por qualquer outra razão. Frequentemente orgulhosa demais para se esforçar, aperfeiçoando suas capacidades, agora tomava partido com uma rapidez que lhe desmerecia o treinamento.

— Realmente, Jessica — disse Irulan. — O Conselho Real devia ter sido consultado. Foi errado de sua parte trabalhar somente através de...

— Devo acreditar que nenhuma de vocês confia em Stilgar? — indagou Jessica.

Irulan tinha suficiente sagacidade para saber que não podia haver resposta a essa pergunta. Ficou feliz quando os delegados do clero, incapazes de conter sua impaciência, abriram caminho, aproximando-se.

Trocou um breve olhar com Alia, pensando: “Jessica continua arrogante e confiante como sempre.” Entretanto, um axioma Bene Gesserit brotou em sua mente: “Os que são arrogantes erguem muralhas atrás das quais tentam ocultar seus medos e suas dúvidas.” Seria esse o caso de Jessica?

Certamente que não. Então, devia ser pose. Mas com que propósito? Essa questão perturbava Irulan.

Os sacerdotes foram ruidosos ao tomarem conta da mãe do Muad'Dib. Alguns limitaram-se a lhe tocar os braços, outros curvaram-se e lhe dirigiram saudações. Afinal, os lideres da delegação tiveram sua vez com a Mais Sagrada Reverenda Madre, aceitando os papéis preestabelecidos “Os últimos serão os primeiros” com sorrisos ensaiados e dizendo-lhe que a cerimônia oficial de Purificação a aguardava no Castelo, a velha fortaleza de Paul.

Jessica observou o par, achando-o repelente. Um deles Chamava-se Javid, jovem de feições carrancudas e face arredondada, com olhos sombrios que não ocultavam as suspeitas que habitavam suas profundezas. O outro era Zebataleph, o segundo filho de um Naib que ela conhecera durante seus dias como Fremen, como ele não demorou a lhe lembrar. Este era fácil de classificar: a jovialidade unida à crueldade, rosto magro com barba loura e um ar de secreta excitação e profundo conhecimento. Considerou Javid o mais perigoso dos dois, um conselheiro particular, simultaneamente magnético e não conseguia encontrar palavra melhor, repelente. Achou seu sotaque estranho, cheio de velhas pronúncias Fremen, como se originário de algum bolsão isolado.

— Diga-me, Javid — perguntou. — De onde você vem?

— Não sou mais que um simples Fremen do deserto — respondeu, cada sílaba desmentindo sua declaração.

Zebataleph introduziu-se na conversa com uma deferência agressiva, quase zombeteira.

— Temos muito a discutir sobre os velhos dias, Minha Senhora. Fui um dos primeiros, como sabe, a reconhecerem a sagrada natureza da missão de seu filho.

— Mas você não era um dos Fedavkin — disse ela.

— Não, Minha Senhora. Eu tinha uma inclinação mais filosófica, de modo que estudei para o sacerdócio.

“E assim assegurou a preservação de sua pele”, pensou ela. Javid lembrou:

— Eles esperam por nós no Castelo, Minha Senhora.

Novamente ela considerou o estranho sotaque como questão em aberto, a exigir resposta.

— Quem aguarda por nós? — indagou.

— A Assembleia da Fé. Todos aqueles que mantêm brilhantes o nome e os feitos de seu sagrado filho — respondeu Javid.

Jessica olhou à sua volta, viu Alia sorrindo para Javid e perguntou:

— Esse homem é um dos que você nomeou, filha?

Alia assentiu com a cabeça.

— Um homem destinado a grandes feitos.

Mas Jessica notou que Javid não sentia prazer por receber essa atenção, e marcou-o para um estudo especial a ser feito por Gurney. E lá vinha Gurney, com cinco homens de confiança, assinalando que tinham varios suspeitos sob interrogatório. Caminhava com o passo gingado de um homem poderoso, o olhar relampejando à esquerda e à direita, cada músculo fluindo na tranquila vigilância que ela lhe ensinara a partir do manual prana-bindu das Bene Gesserit. Gurney era uma feia montanha de reflexos treinados, um matador aterrorizante para alguns, mas Jessica o amava e valorizava acima de qualquer outro homem vivo. A cicatriz de um chicote inkvine ondulava em sua mandíbula, dando-lhe uma aparência sinistra, mas um sorriso suavizou-lhe a face quando ele viu Stilgar.

— Muito bem feito, Stil — disse. E seguraram os braços um do outro à maneira Fremen.

— A Purificação — disse Javid, tocando o braço de Jessica.

Jessica recuou, escolhendo as palavras cuidadosamente através do poder controlador da Voz, o tom e a pronúncia calculados para obter um preciso efeito emocional sobre Javid e Zebataleph.

— Eu voltei a Duna para ver meus netos. Devemos perder tempo com essa tolice sacerdotal?

Zebataleph reagiu com um choque, o queixo caído, os olhos arregalados olhando para ver quem tinha pronunciado essas palavras. E marcando cada uma delas. “Tolice sacerdotal!” Que efeito isso teria, vindo da mãe do messias?

Javid, contudo, confirmou a avaliação de Jessica. Sua boca assumiu uma expressão cruel, e ele sorriu. Os olhos não corresponderam ao sorriso nem se desviaram para marcar os outros ouvintes.

Javid conhecia cada membro desse grupo. Tinha um mapa mental assinalando todos aqueles que, de agora em diante, deviam ser vigiados com cuidado especial. Somente segundos depois Javid parou de sorrir com uma brusquidão que já revelava ter percebido que se traíra.

Ele não falhara no trabalho de casa: conhecia os poderes de observação de Lady Jessica. Com um breve aceno da cabeça, reconheceu-os.

Num lampejo de avaliação, Jessica pesou as necessidades. Bastaria um sutil sinal com a mão para Gurney, e Javid seria morto. Isso poderia ser feito ali mesmo, para causar impacto, ou mais tarde, de modo a parecer um acidente.

Pensou: “Quando tentamos ocultar nossos impulsos mais internos, todo o ser grita, revelando-nos.” Seu treinamento Bene Gesserit voltou-se para essa revelação, que elevava as adeptas acima dessa fraqueza e lhes ensinava a ler a carne aberta dos outros. Ela via a inteligência de Javid como valiosa, um peso temporário na balança. Se ele pudesse ser conquistado, seria o elo de que necessitava, a brecha dentro do clero de Arrakeen. E era um dos homens de Alia.

Então, Jessica disse:

— Minha delegação oficial deve permanecer pequena. No entanto, temos espaço para mais um. Javid, você se unirá a nós. Sinto muito, Zebataleph. E Javid... eu comparecerei a essa... cerimônia, se assim insistir.

Javid tomou fôlego e disse em voz baixa:

— Se a mãe do Muad'Dib assim ordena. — Olhou para Alia, para Zebataleph e de volta para Jessica. — É doloroso para mim atrasar seu encontro com seus netos, mas existem, ahh, razões de Estado...

Jessica pensou: “Bom. Ele é, acima de tudo, um homem de negócios. Uma vez determinado o seu preço, poderemos comprá-lo.”

Encontrou-se apreciando o fato de ele insistir em sua preciosa cerimônia.

Essa pequena vitória lhe daria poder entre os companheiros, e ambos sabiam disso. Aceitar sua Purificação podia ser um preço baixo a pagar por serviços posteriores.

— Presumo que já tenha providenciado o transporte — disse ela.

 

Eu lhes dou o camaleão do deserto, cuja habilidade em se confundir com o terreno lhes revela tudo que precisam saber a respeito das raízes da ecologia e dos alicerces de uma identidade pessoal.

 

- Livro de Diatribes, das Crônicas de Havt

 

Leto estava sentado, tocando um pequeno baliset que lhe fora enviado, em seu quinto aniversário, por um artista consumado naquele instrumento:

Gurney Halleck. Em quatro anos de prática, Leto conseguira certa fluência, embora as duas cordas graves laterais ainda lhe causassem problema. Ele achava o baliset tranquilizador, contudo, quando seus sentimentos o perturbavam, fato que não passara despercebido a Ghanima.

Ele estava sentado, à luz do poente, numa saliência rochosa situada na extremidade sul de um afloramento de rochas escarpadas que protegiam dos ventos o Sietch Tabr. Suavemente, dedilhava o baliset.

Ghanima encontrava-se atrás dele, sua pequena figura irradiando protesto.

Ela não quisera ir até ali, um espaço aberto, depois de saber, através de Stilgar, que a avó se atrasara em Arrakeen. Em particular, fazia objeções ao fato de ir àquele lugar perto do cair da noite. Tentando apressar o irmão, indagou.

— Bem, como é?

Como resposta, ele começou outra melodia.

Pela primeira vez, desde que aceitara o presente, Leto, sentia-se intensamente cônscio do fato de que esse baliset era obra de um mestre artesão de Caladan. Leto tinha memórias herdadas capazes de afligi-lo com uma profunda nostalgia pelo lindo planeta onde governara a Casa Atreides.

Bastava relaxar suas barreiras interiores na presença dessa música para ouvir as memórias daqueles tempos, quando Gurney empregara o baliset para divertir seu amigo e aluno Paul Atreides. Com o baliset soando em suas mãos, Leto sentia-se uma vez mais dominado pela presença psíquica do pai.

Ainda assim, continuou tocando, relaxando cada vez mais ao som do instrumento, a cada segundo que passava. Sentia a absoluta e idealizada união dentro de seu ser, que sabia como tocar esse baliset, embora seus músculos de nove anos de idade ainda não estivessem condicionados a essa consciência interior.

Ghanima bateu o pé, impaciente, sem perceber que acompanhava o ritmo da música tocada pelo irmão.

Fazendo uma careta de concentração, Leto interrompeu a música conhecida e tentou uma canção mais antiga que qualquer outra jamais tocada por Gurney. Uma canção que já era velha quando os Fremen emigraram para seu quinto planeta. As palavras ecoavam um tema Zensunni, e ele as ouvia em sua memória, enquanto seus dedos produziam uma vacilante versão da melodia.

 

A bela forma da Natureza

Contém uma essência adorável

Chaniadapor alguns de... decomposição.

Por essa adorável presença

A nova vida encontra seu caminho.

Lágrimas derramadas silenciosamente

São apenas água para a alma

Elas trazem nova vida.

Para a dor dos seres...

Uma reparação daquela cena

Que a morte torna completa.

 

Ghanima falou por trás dele, enquanto ele tocava a nota final.

— Eis uma música velha e sórdida. Por que logo essa?

— Porque é adequada.

— Vai tocá-la para o Gurney?

— Talvez.

— Ele vai Chamá-la de tolice melancólica.

— Eu sei.

Leto olhou para Ghanima por sobre o ombro. Não lhe surpreendia que ela conhecesse a canção e a letra, mas sentiu súbita admiração pela singularidade de suas vidas gêmeas. Um deles podia morrer e no entanto permanecer vivo na consciência do outro, cada memória compartilhada permanecendo intacta, tão próximos estavam um do outro. Sentiu-se assustado pela teia atemporal daquela proximidade, e afastou o olhar da irmã. A teia continha fendas, disso ele sabia, e seu medo surgia das fendas mais recentes. Sentia suas vidas começando a se separar e se admirava: “Como posso contar-lhe a respeito dessa coisa que aconteceu somente comigo?”

Olhou para longe no deserto, vendo as sombras profundas atrás das barachans: aquelas dunas móveis, altas, em forma de crescente, que ondulavam ao redor de Arrakis. Era o Kedem, o deserto interior, e suas dunas raramente eram marcadas, nesses dias, pelas irregularidades provocadas com o avanço de um verme gigante. O poente desenhou traços sangrentos sobre as dunas, emprestando uma luz belicosa às bordas de sombra. Mergulhando do céu carmesim, um falcão capturou sua consciência, assim como um perdiz-das-rochas em pleno voo.

Diretamente abaixo dele, no leito do deserto, plantas cresciam numa profusão de verdes, irrigadas por um qanat que fluía parcialmente a céu aberto, parcialmente em túneis por sob o solo. A água provinha de gigantescas armadilhas de vento situadas atrás dele, no ponto mais elevado das rochas. A bandeira verde dos Atreides ondulava abertamente ali.

“Água e verde.”

Os novos símbolos de Arrakis: a água e o verde.

Um oásis de dunas plantadas na forma de um diamante estendia-se abaixo de seu elevado posto de observação, fazendo-o focalizar sua atenção na aguda consciência dos Fremen. O som de sino de um pássaro noturno ressoou no penhasco abaixo, ampliando a sensação de estar vivendo momentos de um passado selvagem.

“Nous avons chanué tout cela', pensou, usando com facilidade um dos antigos idiomas que ele e Ghanima empregavam em particular. “Nós alteramos tudo isto.” Suspirou. “Oublier je ne puir.” “Não posso esquecer.

Por trás do oásis, podia ver, sob a luz que diminuía, aquela terra que os Fremen Chamavam “O Vazio”. A terra onde nada cresce, a terra que nunca foi fértil. A água e o grande plano ecológico estavam mudando isso. Agora havia lugares em Arrakis onde se podia enxergar o verde tapete de pelúcia das colinas cobertas de florestas. Florestas em Arrakis! Alguns, dentre os membros da nova geração, achavam difícil imaginar que houvesse dunas debaixo daquelas verdes colinas ondulantes. Para esses olhos jovens, não havia choque algum em ver a folhagem plana das árvores de climas chuvosos. Mas Leto se encontrava agora pensando à velha maneira dos Fremen, cauteloso com as mudanças, temeroso ante a presença do novo.

Ele disse:

— As crianças me contaram que raramente encontram a truta da areia aqui, próximo à superfície.

— Que se supõe que isso indique? — perguntou Ghanima com petulância em sua voz.

— As coisas estão começando a mudar muito rapidamente — respondeu ele.

Novamente, o pássaro cantou nos penhascos e a noite caiu sobre o deserto, tal como o falcão caíra sobre a perdiz. A noite frequentemente o submetia a um assalto de memórias. Todas aquelas vidas interiores clamando por seu próprio momento. Ghanima não fazia objeção a esse fenómeno do modo como ele fazia. Sabia de sua inquietação, e ele sentiu sua mão sobre o ombro num gesto de simpatia.

Fez soar uma corda raivosa no baliset.

— Como lhe poderia contar o que lhe estava acontecendo?

Dentro de sua cabeça havia guerras e vidas incontáveis parcelando memórias ancestrais: acidentes violentos, langores de amor, as cores de muitos lugares e de muitos rostos... as mágoas enterradas e a saltitante alegria das multidões. Ele ouviu elegias à primavera em planetas que não mais existiam, danças ao verde e à luz de fogueiras, gritos, saudações e uma quantidade inumerável de conversas.

— Esse ataque era mais duro de suportar ao cair da noite, ao ar livre.

— Não devíamos entrar? — perguntou ela.

Ele sacudiu a cabeça e ela sentiu o movimento, percebendo, afinal, que seus problemas eram mais profundos do que havia suspeitado.

“Por que é tão frequente que eu assista ao cair da noite aqui fora?”, indagou a si próprio. Não sentira Ghanima retirar a mão.

— Você sabe por que se atormenta desse modo — ela disse.

Ele ouviu a leve repreensão na voz da irmã. Sim, sabia. A resposta estava lá, óbvia em sua consciência: “Porque aquele grande conhecido-desconhecido dentro de mim me movimenta como uma onda.” Sentia o ondular de seu passado como se cavalgasse uma prancha de surfe. Tinha as memórias da presciência de seu pai espalhando-se através do tempo, sobrepostas sobre tudo mais, e ainda assim queria todos aqueles passados. Ele os queria! E eles eram tão perigosos. Agora tinha total consciência disso, com essa nova coisa que teria que contar a Ghanima.

O deserto começava a brilhar sob a luz da Primeira Lua que surgia. Ele observou a falsa imobilidade das dobras de areia, a se estenderem para o infinito. À sua esquerda, a curta distância, encontrava-se o Criado, um afloramento de rocha que o impacto dos ventos carregados de areia reduzira a uma forma baixa e sinuosa, como um verme negro golpeando através das dunas. Algum dia, a rocha embaixo dele estaria aplainada de forma semelhante e o Sietch Tabr não mais existiria, exceto nas memórias de alguém como ele. Não duvidava de que nessa época haveria alguém como ele.

— Por que está olhando para o Criado? — perguntou Ghanima.

Ele deu de ombros. Em desafio às ordens de seus guardiães, ele e Ghanima iam com frequência até o Criado. Haviam descoberto ali um esconderijo secreto, e Leto agora sabia por que o lugar os atraía.

Embaixo dele, a uma distância reduzida pela escuridão, a extensão aberta de um qanat brilhava ao luar, sua superfície ondulava com os movimentos dos peixes predadores, que os Fremen sempre colocavam em suas reservas de água para evitar a truta da areia.

— Eu me coloco entre o peixe e o verme — murmurou ele.

— O quê?

Ele repetiu mais alto.

Ghanima levou a mão à boca, começando a suspeitar daquilo que o impulsionava. Seu pai havia agido assim, ela só tinha que consultar sua memória e comparar.

Leto estremeceu. Memórias que o prendiam a lugares que sua carne nunca conhecera apresentavam-lhe respostas a perguntas que nunca fizera. Via relacionamentos e acontecimentos desdobrando-se numa gigantesca tela interior. O verme da areia de Duna não atravessaria a água, um veneno para ele. E no entanto a água existira ali em tempos pré-históricos. Depressões de gipsita natural atestavam a existência de mares e lagos que haviam desaparecido. Poços, perfurados profundamente, encontravam água, mas eram logo selados pela truta da areia. Tão claramente como se houvesse testemunhado os acontecimentos, ele viu o que acontecera a esse planeta, e isso o encheu de um terrível presságio com relação às mudanças cataclísmicas que a intervenção humana estava trazendo.

Com a voz quase transformada num sussurro, ele disse:

— Eu sei o que aconteceu, Ghanima.

Ela inclinou-se para junto dele.

— Sim?

— A truta da areia...

Ele ficou em silêncio e ela se perguntou por que Leto continuava se referindo à fase embrionária do gigantesco verme da areia desse planeta, mas não se atreveu a perguntar.

— A truta da areia — repetiu ele. — Foi introduzida aqui a partir de algum outro lugar. Este era um planeta úmido, então. Elas proliferaram além da capacidade dos ecossistemas existentes. Enquistaram toda a água livre disponível, transformando este planeta num deserto... e fizeram isso para sobreviver. Num planeta suficientemente seco, elas poderiam passar à fase de vermes da areia.

— As trutas da areia? — Ghanima sacudiu a cabeça, não porque duvidasse dele, mas porque não desejava sondar as profundezas onde ele colhera tais informações. E pensou: “Trutas da areia?” Muitas vezes, na encarnação atual ou nas outras, ela participara daquele jogo infantil de espetar paus em busca da truta da areia, estimulando-as a entrar numa fina membrana de luva antes de levá-las ao alambique da morte, para tirar-lhes a água.

Era difícil pensar nessas pequenas criaturas irracionais como agentes de importantes eventos.

Leto assentiu para si mesmo. Os Fremen sempre haviam tido o conhecimento da necessidade de colocar peixes predadores em suas cisternas. A truta resistia ativamente às grandes acumulações de água junto à superfície do planeta. Peixes predadores nadavam naquele qanat lá embaixo. Os vetores do verme da areia podiam encarregar-se de pequenas quantidades de água, como aquela existente nas células da carne humana, por exemplo.

Confrontadas com grandes corpos de água, porém, suas fábricas químicas enlouqueciam, explodindo na transformação mortal que produzia a perigosa melange concentrada, a droga final para a ampliação da consciência, empregada em frações diluídas durante as orgias dos sietch. O concentrado puro que levara Paul Muad'Dib através das muralhas do Tempo, rumo às profundezas do poço de dissolução em que nenhum outro ser humano do sexo masculino se atrevera a mergulhar.

Ghanima sentiu o irmão tremendo no lugar onde se sentava, diante dela.

— O que você fez? — ela quis saber.

Mas ele não estava disposto a abandonar sua própria cadeia de revelações.

— Poucas trutas da areia, a transformação ecológica do planeta...

— Elas resistem a isso, é claro — disse Ghanima, agora começando a entender o medo na voz dele, atraída para aquela coisa contra a própria vontade.

— Quando as trutas da areia acabarem, com elas acabarão todos os vermes — ele concluiu. — As tribos precisam ser advertidas.

— Não haverá mais especiaria — disse ela.

As palavras meramente tocavam os pontos mais elevados de um perigo sistémico que ambos viam suspenso acima da intrusão humana nas antigas cadeias de relacionamento de Duna.

— É isso que Alia sabe — ele disse. — É por isso que ela se regozija.

— Como pode ter certeza disso?

— Eu tenho.

Agora ela sabia com certeza o que o perturbava, e sentia que esse conhecimento a deixava arrepiada.

— As tribos não acreditarão em nós se ela nos desmentir — ele disse.

Essa declaração tocava no problema principal de suas existências: que Fremen esperaria sabedoria da parte de uma criança de nove anos? E Alia, adquirindo cada vez mais experiência a partir de sua própria quota de memórias, jogava com isso.

— Devemos convencer Stilgar — disse Ghanima.

Como se fossem apenas uma, suas cabeças se voltaram e ambos fitaram o deserto iluminado pelo luar. Era um lugar diferente agora, transmutado por aqueles poucos instantes de compreensão. A interferência humana sobre o ambiente nunca lhes fora mais evidente. Sentiam-se partes integrantes de um sistema dinâmico, mantido numa ordem delicadamente equilibrada. A nova perspectiva envolvia uma mudança real de consciência que lhes inundava de observações. Como Liet-Kynes dissera, o universo era o local de conversação constante entre populações animais. E a truta da areia falara a eles, como animais humanos.

— As tribos entenderiam uma ameaça à água — observou Leto.

— Mas é uma ameaça a mais do que a água. É uma... — e ela ficou em silêncio, compreendendo a profunda significação de suas palavras.

A água era o derradeiro símbolo do poder em Arrakis. Em suas raízes, os Fremen permaneciam como animais extremamente aplicados, sobreviventes do deserto, especialistas em manter o controle em condições de tensão. E ha medida em que a água se tornava abundante, uma estranha transferência simbólica lhes ocorria, mesmo ao perceberem as antigas necessidades.

— Quer dizer uma ameaça ao poder — ela corrigiu.

— É claro.

— Mas será que vão acreditar em nós?

— Se o virem acontecendo, compreenderão o desequilíbrio.

— Equilíbrio — disse Ghanima, repetindo as palavras do pai, muito tempo atrás. — É isso que distingue um povo de uma turba.

Essas palavras fizeram com que as memórias do pai fluíssem sobre ele.

— Fatores econômicos versus beleza, uma história mais velha do que a Rainha de Sabá. — Suspirou, olhando para ela por sobre o ombro. — Estou começando a ter sonhos prescientes, Gham.

Um soluço de espanto escapou da boca da irmã. Ele acrescentou:

— Quando Stilgar nos disse que nossa avó se atrasaria, eu já sabia disso. Agora, meus outros sonhos são duvidosos.

— Leto... — ela sacudiu a cabeça, os olhos úmidos. — Para nosso pai, eles vieram bem mais tarde. Não acha que pode ser...

— Em sonho me vi usando uma armadura e correndo através das dunas. E já estive em Jacurutu.

— Jacurutu... — ela limpou a garganta. — Aquele velho mito!

— Um lugar real, Gham! Devo encontrar esse homem que chamam o Pregador. Devo encontrá-lo e interrogá-lo.

— Acha que ele é... nosso pai?

— Faça a si mesma essa pergunta.

— Seria bem típico dele — concordou ela. — Mas...

— Não gosto das coisas que sei que terei de fazer. Pela primeira vez em minha vida, eu entendo meu pai.

Ela se sentiu excluída de seus pensamentos, e disse:

— O Pregador é, mais provavelmente, apenas um velho místico.

— Rezo para que seja — sussurrou ele. — Oh, como rezo por isso!

Inclinou o corpo para a frente e se levantou, o baliset soando em sua mão enquanto se movimentava. Será que ele era apenas um Gabriel sem a trombeta? Olhou em silêncio para o deserto iluminado pelo luar.

Ela voltou-se para olhar na mesma direção e viu o brilho fluorescente da vegetação que apodrecia na extremidade das plantações do sietch. Depois, a suave transição para as linhas das dunas. Lá estava um lugar cheio de vida. Mesmo enquanto o deserto dormia, alguma coisa nele permanecia desperta. Ela podia sentir isso, ouvindo animais bebendo no qanat abaixo.

A revelação de Leto havia transformado a noite: esse era um momento vivo, um tempo para descobrir regularidades na perpétua mudança, um instante para sentir aquele longo movimento de seu passado terrânico, todo ele embrulhado em suas memórias.

— Por que jacurutu? — ela indagou, e a uniformidade de seu tom de voz perturbou aquela atmosfera.

— Por quê?... Não sei. Da primeira vez que Stilgar nos contou como eles mataram as pessoas que havia por lá e tornaram o lugar tabu, eu pensei... o mesmo que você. Mas agora o perigo vem de lá... E do Pregador.

Ghanima não replicou nem exigiu que ele compartilhasse mais de seus sonhos prescientes. Sabia o quanto isso revelava a ele o terror que ela sentia. Aquele caminho levava à Abominação, ambos sabiam. A palavra pairou impronunciada entre eles, enquanto ele se virava e liderava a caminhada de volta, sobre as rochas da entrada do sietch. “Abominação.”

 

O Universo pertence a Deus. É uma coisa só, um todo sobre o qual todas as divisões podem ser identificadas. A vida transitória, mesmo aquela vida racional e autoconsciente a que Chaniamos sensitiva, mantém apenas frágil domínio sobre qualquerporção do todo.

 

- Comentários da CET (Comissão de Tradutores Ecumênicos)

 

Halleck usava sinais manuais para transmitir a verdadeira mensagem enquanto falava sobre outros assuntos. Não gostara da pequena ante-sala que os sacerdotes haviam destinado para seu relatório, sabendo que devia estar pululando de aparelhos de espionagem. Deixem que eles tentem decifrar o código dos pequenos sinais manuais, pensou. Os Atreides usavam esse meio de comunicação há séculos sem que ninguém conseguisse ser mais esperto.

A noite caíra lá fora, mas a sala não tinha janelas. Sua iluminação ficava a cargo de globos luminosos situados nos cantos.

Muitos daqueles que pegamos eram gente de Alia sinalizou Halleck, observando o rosto de Jessica enquanto falava alto, dizendo-lhe que os interrogatórios ainda continuavam.

Foi como previu respondeu Jessica com movimentos de seus dedos. Ela acenou com a cabeça e respondeu verbalmente:

— Aguardarei um relatório completo assim que estiver satisfeito, Gurney.

— É claro, Minha Senhora — ele disse, e seus dedos acrescentaram: Há outra coisa muito perturbadora. Sob a ação de drogas profundas, alguns de nossos prisioneiros falaram em jacurutu e, ao pronunciarem esse nome, morreram.

Paralisação cardíaca condicionada? indagaram os dedos de Jessica. E ela disse:

— Já libertou algum dos cativos?

— Uns poucos, Minha Senhora. Os simplórios mais óbvios. E seus dedos relampejaram.

Suspeitamos de compulsão cardíaca, mas ainda não temos certeza. As autópsias não foram concluídas. Mas, como devia saber sobre essa coisa de Jacurutu, vim imediatamente.

Meu Duque e eu sempre pensamos em jacurutu como uma lenda interessante, provavelmente baseada num fato real disseram os dedos de Jessica, e ela ignorou a mágoa que normalmente a acometia quando falava de seu amor há muito falecido.

— Tem alguma ordem? — perguntou Halleck em voz alta.

Jessica respondeu do mesmo modo, dizendo-lhe que retornasse ao campo de pouso e relatasse qualquer informação positiva que surgisse.

Mas com os dedos ela transmitiu outra mensagem:

Restabeleça contato com nossos amigos entre os contrabandistas. Se jacurutu existe, eles terão que se manter à custa da venda de especiaria.E não haverá outro mercado para eles, exceto os contrabandistas.

Halleck inclinou a cabeça levemente e disse com os dedos:

Já coloquei em movimento esse curso de ação, Minha Senhora. E como não pudesse ignorar o treinamento de uma vida inteira, acrescentou: Tenha muito cuidado neste lugar. Alia é sua inimiga e a maior parte do clero está com ela.

Javid não está, responderam os dedos de Jessica. Ele odeia os Atreides. Duvido que outra pessoa que não uma adepta pudesse detectar isso, mas sou positiva a esse respeito. Ele conspira e Alia não sabe.

— Estou colocando guardas extras para protegê-la disse Halleck, falando novamente e evitando a centelha de desprazer nos olhos de Jessica. — Há riscos, disso estou certo. Vai passar a noite aqui?

— Mais tarde iremos para o Sietch Tabr — disse ela, e hesitou, a ponto de lhe dizer que não mandasse mais guardas, mas manteve o silêncio. Os instintos de Gurney mereciam confiança. Mais de um Atreides aprendera isso, para seu prazer ou mágoa. — Tenho mais uma reunião... com o Mestre dos Noviços, — desta vez ela disse. — Esse é o último encontro e eu partirei deste lugar com alegria.

 

E eu vi outra besta saindo das areias, e ela tinha dois chifres, como um carneiro, mas sua boca era cheia de presas e quente como a de um dragão, e seu corpo tremulava e queimava com grande calor enquanto ela silvava como uma serpente.

- Bíblia Católica Laranja Revisada

 

Ele chamava a si mesmo “o Pregador” e provocava grande temor entre muitos em Arrakis de que pudesse ser o Muad'Dib voltando do deserto, vivo, afinal. O Muad'Dib ainda podia estar vivo, já que ninguém vira seu corpo, levado pelo deserto. Ainda assim, seria o Muad'Dib? Era possível estabelecer pontos de comparação, embora ninguém que tivesse vivido nos velhos tempos se apresentasse para dizer:

— Sim, percebo que esse é o Muad'Dib. Eu o conheço.

E no entanto... tal como o Muad'Dib, o Pregador era cego, suas órbitas negras e marcadas com cicatrizes de um modo que só poderia ter sido provocado por um queima-pedra. E sua voz transmitia aquele caráter elétrico, penetrante, a mesma força compulsiva que exigia uma resposta de algum lugar profundo dentro de você. Muitos notaram isso. Era magro, esse Pregador, a face coriácea cheia de vincos, os cabelos grisalhos. Mas o deserto profundo fazia isso a muitas pessoas. Você só tinha que olhar para si próprio e ver a comprovação disso. E havia outro fator de controvérsia. O Pregador era conduzido por um jovem Fremen, um rapaz cujo sietch não se conhecia, e que dizia, quando lhe indagavam, que trabalhava sob pagamento. Argumentava-se então que o Muad'Dib, conhecendo o futuro, não necessitara de guias, exceto perto do fim, quando a dor o dominara.

Mas então ele precisara de um guia, todos sabiam disso.

O Pregador aparecera nas ruas de Arrakeen durante uma manhã de inverno, com a mão bronzeada e marcada de veias sobre o ombro de seu jovem guia. O rapaz, que dizia chamar-se Assan Tariq, caminhou através da poeira cheirando a pedra da manhã turbulenta, levando seu protegido com a agilidade prática dos que nasceram num sietch e nunca perderam o contato.

Observou-se que o cego usava um manto bourka tradicional sobre um traje-destilador que trazia a marca daqueles que haviam sido confeccionados, um dia, nas cavernas dos sietches do deserto mais profundo. Não era como os trajes ordinários, feitos atualmente. O tubo do nariz, que capturava a umidade da respiração para as camadas recicladoras embaixo do bourka, estava amarrado com fio trançado, feito da trepadeira negra, tão raramente vista hoje em dia. A máscara do traje, sobre a metade inferior do rosto, tinha manchas esverdeadas produzidas pela areia soprada com o vento. Em tudo e por tudo, esse Pregador era uma figura saída do passado de Duna.

Muitos entre as multidões madrugadoras daquele dia de inverno notaram sua passagem. Afinal, um Fremen cego permanecia uma raridade. A Lei Fremen ainda remetia os cegos para o Shai-Hulud. As palavras da Lei, embora menos respeitadas nesses tempos modernos, amortecidos pela água, permaneciam imutáveis desde os primeiros dias. Os cegos eram uma dádiva para o Shai-Hulud. Eram expostos ao bled aberto para que os grandes vermes os devorassem. Quando isso ocorria e havia histórias conhecidas nas cidades , sempre era feito no lugar em que dominavam os vermes maiores, chamados os Velhos do Deserto. Um Fremen cego, portanto, era uma curiosidade, e as pessoas paravam para ver a passagem desse par estranho.

O garoto aparentava 14 anos-padrão, um membro da nova geração que usava trajes-destiladores modificados, deixando o rosto exposto ao ar que roubava a umidade. Tinha feições esguias, os olhos totalmente tingidos de azul pela especiaria, nariz protuberante e aquela aparência de inocência inócua que tão frequentemente mascara, entre os jovens, um conhecimento cínico. Em contraste com ele, o cego era uma lembrança de tempos quase esquecidos. Com as passadas longas e aquela magreza rija que falava de muitos anos sobre a areia, tendo apenas os pés ou um verme capturado para carregá-lo. Mantinha a cabeça erguida naquela rigidez de pescoço que alguns cegos não podem evitar, movendo-a apenas ao inclinar o ouvido na direção de algum som interessante.

O estranho par atravessou as multidões que se reuniam no início do dia, chegando afinal aos degraus que levavam para cima, por hectares de terraços, até a escarpa que constituía o Templo de Alia, companhia adequada ao Castelo de Paul. O Pregador subiu os degraus até que seu jovem guia chegou à terceira plataforma, onde os peregrinos do Hajj esperavam pela abertura matinal das gigantescas portas acima deles. Eram portas suficientemente grandes para deixarem passar toda uma catedral de uma das antigas religiões. Passar através delas, costumava-se dizer, reduzia a alma do peregrino a uma partícula suficientemente pequena de modo a poder penetrar através do fundo de uma agulha e assim entrar no céu.

Na extremidade da terceira plataforma, o Pregador se voltou e foi como se olhasse à sua volta, vendo, com as órbitas vazias, os afetados residentes da cidade, alguns deles Fremen com roupas que simulavam trajes-destiladores, mas não passavam de tecidos decorativos, ao lado dos ávidos peregrinos, recém-desembarcados dos transportes espaciais da Corporação, esperando pelo primeiro passo na devoção que lhes asseguraria um lugar no paraíso.

A plataforma era um lugar barulhento: havia os Cultores do Espírito do Mahdi, vestindo mantos verdes e carregando falcões vivos treinados para gritarem o “Chamado do céu”. Vendedores apregoavam sua comida. Muitas coisas eram postas à venda, com vozes gritando em competitiva evidência. Ali estava um dos impressos em estilo de Duna, com seus folhetos de comentários I shigawire.

Um vendedor tinha pedaços de roupa exótica, que ele “garantia terem sido tocados pelo próprio Muad'Dib!”. Outro trazia frascos de água com o “certificado de terem vindo do Sietch Tabr, onde viveu o Muad'Dib”. E, através de tudo isso, conversas em mais de 100 dialetos de Galach entremeavam-se com sons guturais e guinchos de linguagens estranhas reunidas sob o “Sagrado Império”. Dançarinos Faciais e gente pequena, oriundos dos suspeitos planetas de artesãos dos Tleilaxu, saltavam e giravam através da multidão em trajes berrantes. Havia rostos magros e rostos gordos, ricos em água. Um sussurro de passadas nervosas chegava do plasteel áspero que formava os amplos degraus. E ocasionalmente uma voz aguda se elevaria da cacofonia de preces: “Muaa-a-aad'Dib! Mua-a-a-ad'Dib! Receba as súplicas de minha alma! Tu, que és o ungido de Deus, receba minha alma! Mua-a-a-ad'Dib!”

Próximos, entre os peregrinos, atores mascarados recitavam, em troca de algumas moedas, os versos da atualmente popular Controvérsia entre Armistead e Leandgra.

O Pregador inclinou a cabeça para ouvir.

Os atores eram homens da cidade, de meia-idade, com vozes entediadas. Sob o comando de uma palavra, o guia os descreveu para o Pregador. Estavam vestidos com mantos folgados, nem mesmo se dignando a simular trajes-destiladores para seus corpos ricos em água. Assan Tariq achou isso divertido, mas o Pregador o repreendeu.

O ator que fazia o papel de Leandgraph estava terminando uma fala:

— Bah! O Universo só pode ser apreendido pela mão de um ser sensível. Essa mão é que move seu precioso cérebro, e que impulsiona tudo mais que dele deriva. Você vê aquilo que criou, tornando-se consciente, só depois que a mão fez o seu trabalho!

Aplausos saudaram o desempenho.

O Pregador cheirou, inalando os ricos odores desse lugar: ésteres escapando de trajes-destiladores mal-ajustados, almíscares de origens diversas, a onipresente poeira de pedra, hálitos de incontáveis dietas exóticas, e os aromas de raros incensos que já começavam a ser queimados dentro do Templo de Alia e agora flutuavam sobre os degraus, numa corrente de ar habilmente dirigida. Os pensamentos do Pregador refletiam- se em seu rosto enquanto ele terminava de perceber tudo à sua volta: “Nós chegamos a isto, nós, os Fremen!”

Uma súbita distração ondulou pela multidão na plataforma. Dançarinos da Areia tinham chegado à praça ao pé dos degraus, meia centena deles, amarrados uns aos outros por cordas de elacca. Obviamente, haviam dançado assim durante dias, buscando um estado de êxtase. Suas bocas espumavam enquanto eles se moviam em espasmos, batendo os pés em sua música secreta. Um terço deles pendia das cordas, inconsciente, puxado para a frente e para trás pelos outros, como marionetes em arames. Um desses bonecos despertara, entretanto, e a multidão aparentemente sabia o que esperar.

— Eu viii! — gritou o dançarino recém-desperto. — Eu úú! — Ele resistiu aos puxões dos outros dançarinos, seu olhar esgazeado lançando-se para a direita e a esquerda. — Onde se ergue esta cidade, restará apenas areia! Eu úú!

Uma grande gargalhada elevou-se da platéia. Até mesmo os novos peregrinos uniram-se a ela.

Isso era demais para o Pregador. Ele ergueu ambos os braços e rugiu numa voz que certamente comandara cavalgadas sobre grandes vermes:

— Silêncio! — E toda a multidão na praça ficou imóvel ante aquele grito de batalha.

O Pregador apontou a mão magra em direção aos dançarinos, e a ilusão de que realmente os via era sinistra.

— Não estão ouvindo aquele homem? Idólatras e blasfemos! Todos vocês! A religião do Muad'Dib não é o Muad'Dib. Ele a rejeitou, tal como rejeitou a vocês! A areia vai cobrir este lugar. A areia vai cobrir vocês!

Dizendo isso, abaixou os braços, colocou a mão sobre o ombro de seu guia e ordenou:

— Leve-me para longe deste lugar.

Talvez houvesse sido a escolha das palavras pelo Pregador. “Ele a rejeitou, tal como rejeitou a vocês!” Talvez fosse o tom de sua voz, certamente algo mais que humano, uma vocalização treinada, com certeza, nas artes da Voz das Bene Gesserit, que comandavam por meras nuanças de sutil inflexão. Ou talvez tivesse sido apenas o misticismo inerente a esse lugar, onde o Muad'Dib vivera, caminhara e governara. Alguém gritou do alto da plataforma, chamando pelo Pregador com uma voz que tremia de assombro religioso:

— É o Muad'Dib que volta para nós?

O Pregador parou, enfiou a mão na sacola embaixo de seu bourka e retirou um objeto que só os que estavam mais próximos reconheceram. Era uma mão humana mumificada pelo deserto, uma das ironias do planeta em relação à mortalidade que apareciam por vezes na areia e eram consideradas universalmente como mensagens do Shai-Hulud.

A mão fora dissecada até se converter num punho fechado que terminava em ossos brancos, marcados por rajadas de areia levadas pelo vento.

— Eu trago a Mão de Deus, e isso é tudo que eu trago! — gritou o Pregador. — Eu falo pela Mão de Deus. Eu sou o Pregador.

Alguns entenderam com isso que aquela mão era do Muad'Dib, mas outros se fixaram naquela presença de líder e em sua voz terrível e foi assim que Arrakis veio a conhecer o seu nome. Mas não foi a última vez que ouviram sua voz.

 

Relata-se comumente, meu caro Georad que existe uma grande e natural virtude na experiência da melange.

Talvez isso seja verdade. Contudo, permanecem dentro de mim dúvidas quanto ao fato de o uso da melange trazer consigo a virtude. Parece-me que certas pessoas corromperam o uso da melange em desafio a Deus. Nas palavras do Ecúmeno, elas desfiguraram a alma. Elas roem a supercie da melange e acreditam com isso terem obtido o grau. Elas ridicularizam seus companheiros, fazem grande mal à religiosidade e distorcem maliciosamente o significado dessa dádiva abundante, o que é decerto uma mutilação que ultrapassa a capacidade humana de restauração. Para estar em verdadeira sintonia com a virtude da especiaria, sem ser corrompido de modo algum, para ser cheio de honra divina, o homem deve permitir que suas palavras correspondam a suas ações. E quando suas ações representam um sistema de consequências malignas, você deve ser julgado por essas consequências, não por suas explicações. É desse modo que devemos julgar o Muad'Dib.

 

- A Heresia Formalista

 

Era uma sala pequena, marcada pelo odor de ozônio, reduzida a uma iluminação crepuscular, acinzentada, pelos globos luminosos enfraquecidos e pela luz azul-metálica de um único monitor trans-olho. A tela tinha aproximadamente um metro de largura e apenas dois terços disso de altura.

Revelava com detalhes o panorama de um vale rochoso e inóspito onde dois tigres Laza se alimentavam com os restos sangrentos de uma presa recentemente abatida. No penhasco acima dos tigres, podia-se ver um homem magro, usando um uniforme Sardaukar de trabalho, com a insígnia de Levenbrech no colarinho. Usava um quadro de servo-controle preso ao peito.

Uma cadeira suspensora veriforme fora colocada de frente para a tela, sendo ocupada por uma mulher de cabelos louros e idade indeterminada. Ela tinha a face em forma de coração e mãos delgadas que agarravam os braços da cadeira enquanto observava. Seu manto branco debruado de dourado ocultava-lhe a figura. Um passo à sua direita encontrava-se um homem corpulento, vestido com o uniforme cor de ouro e bronze de um auxiliar Bashar dos antigos Sardaukar imperiais. Seu cabelo grisalho fora aparado sobre feições quadrangulares e destituídas de emoção.

A mulher tossiu e disse:

— Foi como havia previsto, Tyekanik.

— Certamente, Princesa — respondeu o Auxiliar Bashar com sua voz rouca.

Ela sorriu ante a tensão em sua voz e indagou:

— Diga-me, Tyekanik, como meu filho irá receber o som do título de Imperador Faradin I?

— O título lhe é bem adequado, Princesa.

— Não foi isso que perguntei.

— Ele pode não aprovar algumas das coisas feitas para lhe conceder esse, ah, título.

— Então, novamente... — Ela voltou-se, olhando através da sombra em direção a ele. — Você serviu bem ao meu pai. Não foi sua a culpa de ele perder o trono para os Atreides. Mas por certo a picada daquela perda deve ter sido sentida tão agudamente por você quanto por qualquer...

— Será que a Princesa Wensicia tem alguma tarefa especial para mim? — indagou Tyekanik. Sua voz permanecia rouca, mas agora havia uma tonalidade aguda.

— Você tem o mau hábito de me interromper — ela disse. Agora ele sorria, exibindo dentes espessos que brilhavam à luz emanada da tela.

— Às vezes me lembra seu pai — disse ele. — Sempre esses circunlóquios antes da solicitação de alguma delicada... ah, missão.

Ela virou o rosto para lhe ocultar sua fúria e indagou:

— Acredita realmente que aqueles tigres Laza colocarão meu filho no trono?

— É uma verdadeira possibilidade, Princesa. Deve admitir que os filhos bastardos de Paul Atreides não serão mais do que bocados suculentos para aqueles dois. E uma vez eliminados os gêmeos...

Encolheu os ombros.

— O neto de Shaddam IV torna-se o sucessor lógico — disse ela. — Isso se pudermos eliminar as objeções dos Fremen, da Landsraad e da CHOAM, para não mencionar qualquer Atreides sobrevivente que...

— Javid me assegurou que sua gente pode se encarregar de Alia com facilidade. Não conto Lady Jessica como Atreides. Portanto, quem mais permanece?

— A Landsraad e a CHOAM ficarão onde estiver o lucro respondeu ela. Mas e quanto aos Fremen?

— Nós os afogaremos em sua religião do Muad'Dib.

— Mais fácil dizer do que fazer, meu querido Tyekanik.

— Vejo que voltamos à velha discussão.

— A Casa Corrino fez coisas piores para obter o poder — disse ela.

— Mas aderir a essa... religião do Mahdi!

— Meu filho o respeita.

— Princesa, eu anseio pelo dia em que Casa de Corrino retornará ao trono que lhe é de direito. Assim pensa cada Sardaukar remanescente aqui em Salusa. Mas se...

— Tyekanik! Este é o planeta Salusa Secundu. Não caia nas maneiras indulgentes que se espalham pelo nosso Império. Nome completo, título completo, atenção a cada detalhe. Esses atributos mandarão o sangue dos Atreides para as areias de Arrakis. Todos os detalhes, Tyekanik!

Ele sabia a razão desse ataque. Era parte dos truques astutos que ela aprendera com sua irmã, Irulan. Mas ele se sentia perdendo terreno.

— Você me ouviu, Tyekanik?

— Eu a ouço, Princesa.

— Quero que você se converta à religião do Muad'Dib.

— Princesa, eu caminharia no fogo pela senhora, mas isso...

— Essa é uma ordem, Tyekanik!

Ele engoliu em seco e olhou para a tela. Os tigres Laza haviam acabado de se alimentar e agora estavam deitados na areia, terminando de se limpar, as línguas compridas movendo-se sobre as patas dianteiras.

— Uma ordem, Tyekanik. Você me entende?

— Eu ouço e obedeço, Princesa.

Sua voz não mudara de tom. Ela suspirou.

— Oh, se meu pai ao menos estivesse vivo...

— Sim, Princesa.

— Não zombe de mim, Tyekanik. Sei como isso é desagradável para você. Mas se der um exemplo a ser seguido...

— Ele pode não seguir, Princesa.

— Ele seguirá. — Apontou para a tela. — Mas me ocorre que aquele Levenbrech pode ser um problema.

— Um problema? Como?

— Quantas pessoas sabem desse negócio dos tigres?

— Aquele Levenbrech, que foi o treinador... um piloto de transporte, a senhora e, é claro... — Ele bateu no próprio peito.

— E quanto aos fornecedores?

— Eles não sabem de nada. O que teme, Princesa?

— Meu filho é, bem, muito sensível.

— Os Sardaukar não revelam seus segredos — disse ele.

— Nem os mortos o fazem. — Ela se inclinou para a frente e acionou um botão vermelho embaixo da tela iluminada.

Imediatamente os tigres Laza ergueram as cabeças. Levantaram-se, olhando colina acima para o Levenbrech. Movendo-se como se fossem apenas um, voltaram-se e começaram a subir o penhasco.

Aparentando calma a princípio, o Levenbrech apertou a chave em seu console. Seus movimentos eram seguros, mas, como os felinos continuassem a avançar sobre ele, o homem tornou-se mais agitado, apertando a chave seguidas vezes e com mais firmeza. Uma expressão de surpresa surgiu em suas feições, sua mão moveu-se num movimento brusco em direção à faca de trabalho sobre a cintura. Mas esse movimento chegou muito tarde. Uma garra atingiu-lhe o peito e o atirou para trás. Quando ele caía, o outro tigre o pegou pelo pescoço de uma única bocada e o sacudiu. A coluna vertebral partiu-se.

— Atenção aos detalhes — repetiu a Princesa. Ela se voltou e ficou rija quando Tvekanik sacou de sua faca. Mas ele a ofereceu a ela, com a lâmina voltada para si mesmo.

— Talvez queira usar a minha faca para cuidar do outro detalhe — disse ele.

— Coloque essa faca de volta na bainha e não aja como um tolo! — disse ela, furiosa. — Algumas vezes, Tyekanik, você me tenta a...

— Aquele era um bom homem, Princesa. Um dos meus melhores.

— Um dos meus melhores — ela corrigiu.

Ele inspirou profundamente, trémulo, e embainhou a faca.

— E quanto ao meu piloto de transporte?

— Será considerado um acidente — respondeu ela. — Você irá instruí-lo para que tenha o maior cuidado quando trouxer aqueles tigres de volta para nós. E, é claro, depois que ele houver entregue nossos bichanos ao pessoal de Javid no transporte... — ela olhou para a faca.

— Isso é uma ordem, Princesa?

— É.

— Devo então cair sobre minha faca na ocasião, ou também vai cuidar desse, ahhh, detalhe?

Ela falou com uma calma forçada, a voz pesada:

— Tvekanik, se eu não estivesse absolutamente convencida de que cairia sobre sua faca ao meu comando, você não estaria aqui, ao meu lado, armado.

Ele engoliu em seco novamente e olhou para a tela. Os tigres estavam se alimentando uma vez mais. Ela se recusava a olhar para a cena, continuando a fitar Tvekanik enquanto dizia:

— Você também dirá aos nossos fornecedores que não tragam mais qualquer par combinado de crianças que se encaixem na descrição necessária.

— Às suas ordens, Princesa.

— Não use esse tom de voz comigo, Tvekanik.

— Sim, Princesa.

Com os lábios comprimindo-se em linha reta, ela acrescentou:

— Quantos pares daqueles trajes nos restam?

— Seis conjuntos de mantos completos com trajes-destiladores e sapatos para areia, todos com a insígnia dos Atreides trabalhada sobre eles.

— Tecidos tão ricos quanto os que estavam naquele par? — ela acenou em direção à tela.

— Adequados à realeza, Princesa.

— Atenção aos detalhes. Os trajes serão enviados para Arrakis como presente aos nossos primos reais. Serão presentes de meu filho, está me entendendo, Tvekanik?

— Plenamente, Princesa.

— Faça com que ele escreva uma nota adequada. Deve dizer que ele envia aqueles pobres trajes como prova de sua devoção à Casa Atreides. Alguma coisa dessa ordem.

— E a ocasião?

Deve ser um aniversário, dia santificado ou alguma coisa do gênero, Tvekanik. Deixo isso por sua conta. E confio em você, meu amigo.

Ele olhou para ela em silêncio. O rosto dela endureceu.

— Certamente deve saber disso. Em quem mais posso confiar, desde a morte de meu marido?

Ele encolheu os ombros, pensando no quanto ela se parecia com uma aranha. Não seria bom tornar-se muito íntimo dela, como ele agora suspeitava de que tivesse ocorrido com seu Levenbrech.

— E, Tvekanik — ela disse , — mais um detalhe.

— Sim, Princesa?

— Meu filho está sendo treinado para governar. Tempo virá em que ele deverá tomar a espada em suas próprias mãos. Você saberá quando chegar esse momento. Desejo ser informada imediatamente.

— Ao seu comando, Princesa.

Ela se inclinou para trás, olhando para Tvekanik com perspicácia.

— Você não aprova minhas ações, sei disso muito bem. Não tem importância, desde que se lembre sempre da lição do Levenbrech.

— Ele era muito bom com animais, mas dispensável, sim, Princesa.

— Não foi isso que eu quis dizer.

— Não? Então... não entendo.

— Um exército — ela explicou — é composto de partes dispensáveis, totalmente substituíveis. Essa é a lição do Levenbrech.

— Partes substituíveis — repetiu ele. — Incluindo o comandante supremo?

— Sem um comando supremo dificilmente haverá razão para um exército, Tvekanik. É por isso que você irá aderir imediatamente a essa religião do Mahdi e ao mesmo tempo começar a campanha para converter o meu filho.

— Imediatamente, Princesa. Presumo que não deseja que eu limite a educação dele nas outras artes marciais à custa dessa, ahh, religião?

Ela ergueu-se da cadeira, caminhou à volta dele e parou na porta, falando sem olhar para trás.

— Um dia você vai tentar a minha paciência em demasia, Tvekanik.

E com isso saiu.

 

Ou nós abandonamos a Teoria da Relatividade, há tanto tempo aceita, ou paramos de acreditar que possamos nos envolver numa contínua e precisa previsão do futuro. De fato, conhecer o futuro levanta um conjunto de questões que não podem ser respondidas sob os parâmetros normais, a não ser que alguém, à princípio, projete um observador para fora do Tempo, e em segundo lugar anule todo o movimento. Se você aceita a Teoria da Relatividade, pode então demonstrar que o Tempo e o Observador devem permanecer imóveis, um em relação ao outro, do contrário surgirão imperfeições. Isso parece indicar ser impossível realizar uma previsão precisa do futuro.

Como então podemos explicar a contínua busca desse objetivo visionário por parte de cientistas respeitados? E como então explicar o Muad'Dib?

 

- Palestras sobre a Presciência por Harq al-Ada

 

— Devo lhe dizer uma coisa — disse Jessica, — embora saiba que, ao lhe dizer isso, farei com que se lembre de muitas experiências de nosso passado mútuo, o que a colocará em perigo.

Fez uma pausa para notar como Ghanima recebia suas palavras.

As duas estavam sentadas sozinhas, sobre almofadas baixas, numa câmara do Sietch Tabr. Fora necessário um talento considerável para conseguir esse encontro e Jessica não estava certa de que estivera sozinha em suas manobras. Ghanima parecera antecipar-lhe cada passo, colaborando com ela.

Já se passavam quase duas horas desde o raiar do dia e toda a excitação dos cumprimentos e reconhecimentos. Jessica forçou o pulso de volta a um ritmo uniforme e focalizou sua atenção na sala de paredes de rocha, com suas cortinas escuras e almofadas amarelas. Para controlar as tensões acumuladas, encontrou-se, pela primeira vez em anos, relembrando a Litania contra o Medo do ritual Bene Gesserit.

“Eu não temerei. O medo é o assassino da mente. O medo é a pequena morte que traz a total obliteração. Eu enfrentarei meu medo, permitirei que ele passe sobre mim e através de mim. E quando houver passado, voltarei meu olhar interior para ver sua trilha. Para onde o medo se foi, não haverá nada. Só eu restarei.”

Fez isso em silêncio e respirou fundo para se acalmar.

— Ela ajuda, às vezes — disse Ghanima. — A Litania, quero dizer.

Jessica fechou os olhos para ocultar o choque dessa percepção. Fazia muito tempo que alguém fora capaz de registrá-la tão intimamente. A conscientização era desconcertante, principalmente quando acionada por seu intelecto oculto por trás de uma máscara de infância.

Tendo enfrentado seu medo, entretanto, Jessica abriu os olhos e conheceu a fonte de sua inquietação: “Eu temo por meus netos.” Nenhuma dessas crianças apresentava os estigmas da Abominação que Alia ostentava, embora Leto demonstrasse todos os sinais de estar ocultando alguma coisa terrível. Por essa razão, ele fora habilmente excluído desse encontro.

Agindo num impulso, Jessica colocou de lado suas máscaras emocionais mais enrustidas, sabendo que seriam de pouca utilidade aqui, apenas barreiras à comunicação. Desde aqueles momentos adoráveis com seu Duque que ela não abaixava essas barreiras, e por isso achou o ato ao mesmo tempo doloroso e aliviador. Ali permaneciam fatos que nenhuma maldição, prece ou litania poderia lavar da existência. A fuga não deixaria tais fatos para trás, eles não poderiam ser ignorados. Elementos da visão de Paul haviam sido realinhados e os tempos haviam alcançado seus filhos. Eles eram um imã no vazio, o mal e todos os usos daninhos do poder acumulavam-se em torno deles.

Observando o efeito das emoções no rosto da avó, Ghanima admirou-se de que Jessica tivesse abandonado seu autocontrole.

Movendo suas cabeças de modo extraordinariamente sincronizado, ambas se voltaram, seus olhos se encontrando enquanto se fitavam profundamente. Os pensamentos passaram entre elas sem a necessidade de palavras.

Jessica: “Queria que você visse meu medo.”

Ghanima: “Agora sei que me ama.”

Foi um rápido momento de total confiança.

E Jessica disse:

— Quando seu pai era apenas um garoto, eu trouxe uma Reverenda Madre a Caladan para testá-lo.

Ghanima acenou afirmativamente com a cabeça. A memória era extremamente nítida.

— Nós Bene Gesserits sempre fomos cautelosas em nos certificarmos de que as crianças que criamos sejam humanas e não animais. Nem sempre se pode verificar isso pela aparência externa.

— É por causa do modo como foi treinada — disse Ghanima, e a memória inundou- lhe a mente.

Aquela velha Bene Gesserit, Gaius Helen Mohian. Ela viera ao Castelo Caladan com seu gom jabbar envenenado e a caixa de dor cauterizante. A mão de Paul (que se tornava a de Ghanima na memória compartilhada) gritava na agonia daquela caixa, enquanto a velha falava calmamente a respeito de morte imediata se a mão fosse aliviada daquela dor. E não havia dúvida alguma quanto à morte na agulha mantida de encontro ao pescoço da criança, enquanto a voz da anciã recitava monotonamente seu raciocínio:

“Você já ounu falar em animais roendo uma perna para escaparem de uma armadilha? Esse é um truque animal. Um ser humano permaneceria na armadilha, suportando a dor, fingindo-se de morto, de modo a poder matar aquele que colocara a armadilha e assim eliminar a ameaça à sua vida.

Ghanima sacudiu a cabeça ante a recordação da dor. A sensação de queimadura! A queimadura! Paul imaginara que sua pele se soltava, negra, sobre aquela mão em agonia dentro da caixa. A carne torrando e se desprendendo até que só restavam ossos queimados. E tudo fora apenas um truque, a mão permanecia ilesa. Mas o suor escorreu da testa de Ghanima ante essa lembrança.

— É claro que se lembra disso de um modo que eu não posso — concluiu Jessica.

Por um momento, Ghanima, influenciada pela memória, viu a avó sob ótica diferente: o que essa mulher poderia fazer impulsionada pelas necessidades impostas naqueles condicionamentos iniciais das escolas Bene Gesserit! Isso obrigava a novas perguntas quanto ao retorno de Jessica a Arrakis.

— Seria estúpido repetir tal teste em você ou em seu irmão — disse Jessica. — Vocês já conhecem o modo como ele transcorre. Devo presumir que são humanos e que não usarão de maneira errada os poderes que herdaram.

— Mas a senhora não faz realmente essa suposição — disse Ghanima.

Jessica piscou os olhos, percebendo que as barreiras haviam deslizado de volta, e baixou-as uma vez mais. Então indagou:

— Vai acreditar em meu amor por você?

— Sim. — Ghanima ergueu a mão quando Jessica ia começar a falar. — Mas esse amor não a impediria de nos destruir. Oh, eu conheço o raciocínio: melhor que o animal-humano morra do que recrie a si mesmo. E isso é especialmente verdadeiro se o animal-humano traz o nome Atreides.

— Você pelo menos é humana — deixou escapar Jessica. — Confio em meus instintos quanto a isso.

Ghanima percebeu a sinceridade e disse:

— Mas não está certa quanto a Leto.

— Não, não estou.

— Abominação?

Jessica conseguiu apenas acenar. Ghanima esclareceu:

— Não ainda, pelo menos. Ambos conhecemos o perigo. Pudemos ver isso progredindo em Alia.

Jessica colocou as mãos sobre os olhos e pensou: “Nem mesmo o amor pode nos proteger de fatos indesejáveis.” E sabia que ainda amava a filha, chorando silenciosamente ante seu destino: “Alia, ó Alia! Sinto pela minha parte em sua destruição.”

Ghanima pigarreou alto.

Jessica abaixou as mãos, pensando: “Posso lamentar minha pobre filha, mas existem outras necessidades agora.” Depois, disse:

— Assim, você reconhece o que aconteceu com Alia.

— Leto e eu observamos acontecer. Não tínhamos poder para evitá-lo, embora tivéssemos discutido muitas possibilidades.

— Tem certeza de que seu irmão está livre dessa maldição?

— Tenho.

A calma segurança dessa declaração não podia ser negada e Jessica se viu aceitando-a. Depois, perguntou:

— Como foi que escaparam?

Ghanima explicou a teoria que ela e Leto tinham desenvolvido, de que evitar o transe da especiaria, no qual Alia entrava com tanta frequência, fazia toda a diferença. Chegou mesmo a revelar seus sonhos e os planos que haviam discutido... Até mesmo Jacurutu.

Jessica assentiu:

— Alia é, contudo, uma Atreides, e isso coloca problemas enormes.

Ghanima ficou em silêncio ante a súbita percepção de que Jessica ainda chorava a morte de seu Duque como se ela tivesse ocorrido ontem, encontrando-se com isso disposta a guardar seu nome e sua memória contra qualquer ameaça. Memórias pessoais da época do Duque passaram pela consciência de Ghanima, reforçando essa avaliação e suavizando-a com a compreensão.

— Agora — disse Jessica com a voz mais alegre, — e quanto a esse Pregador? Ouvi alguns relatórios alarmantes, ontem, depois daquela maldita Purificação.

Ghanima encolheu os ombros.

— Ele poderia ser...

— Paul?

— Sim, mas ainda não o vimos para examiná-lo.

— Javid ri anti esses rumores — disse Jessica. Ghanima hesitou, depois fez a pergunta:

— Você confia nesse Javid?

Um sorriso amargo tocou os lábios de Jessica.

— Não mais que você.

— Leto diz que Javid ri das coisas erradas.

— Chega de falar do riso de Javid. Mas vocês têm realmente a idéia de que meu filho ainda está vivo, tendo retornado sob esse disfarce?

— Nós dizemos que é possível. E Leto... — Ghanima sentiu a boca subitamente seca, e relembrou temores segurando o peito. Forçou-se a dominá-los, narrando as outras revelações de Leto em seus sonhos prescientes.

Jessica moveu a cabeça de um lado para o outro, como que ferida.

Ghanima concluiu:

— Leto diz que precisa encontrar esse Pregador e se certificar.

— Sim... é claro. Eu nunca devia ter saído daqui. Foi covardia de minha parte.

— Por que se culpar? A senhora atingira um limite. Sei disso. Leto sabe, e até mesmo Alia sabe.

Jessica colocou a mão na garganta e a esfregou brevemente. Depois acrescentou:

— Sim, o problema é Alia.

— Ela exerce estranha atração sobre Leto — disse Ghanima. — Foi por isso que eu a ajudei a conseguir este encontro a sós comigo. Ele concorda em que ela se encontra perdida, sem qualquer esperança de recuperação, mas ainda assim arranja maneiras para estar com ela... e estudá-la... é muito perturbador. Quando tento falar contra isso, ele cai no sono. Ele...

— Ela o está drogando?

— Não. — Ghanima sacudiu a cabeça. — Mas ele tem essa estranha empatia com ela. E... em seu sono, ele frequentemente murmura Jucurutu.

— Novamente isso! — Jessica logo se achou relatando o depoimento de Gurney sobre os conspiradores revelados no campo de pouso.

— Às vezes tenho medo de que Alia deseje que Leto procure jacurutu — disse Ghanima. — Sempre pensei nisso apenas como uma lenda. A senhora a conhece, é claro.

Jessica estremeceu.

— História terrível. Terrível.

— Que devemos fazer? — indagou Ghanima. — Tenho medo de pesquisar todas as minhas memórias. Todas as minhas vidas...

— Gham! Eu a previno de que não faça isso. Não deve se arriscar a...

— Pode acontecer, mesmo que eu não me arrisque. Como podemos saber o que realmente aconteceu com Alia?

— Não! Você pode ser poupada dessa... dessa possessão. — E se conteve. — Bem... Jacurutu, não é? Já mandei Gurney encontrar o lugar... se é que ele existe.

— Mas como ele pode... Oh! É claro! Os contrabandistas.

Jessica sentiu-se silenciada ante mais esse exemplo de como a mente de Ghanima funcionava de acordo com o que devia ser a consciência interior de outras pessoas.

“A minha!” Como isso era verdadeiramente estranho. Jessica percebia que essa carne jovem podia carregar consigo todas as memórias de Paul, pelo menos até o momento da separação espermal de Paul em seu próprio passado.

Era uma invasão da privacidade contra a qual alguma coisa primal em Jessica se revoltava. Momentaneamente, encontrou-se mergulhando naquele absoluto e inabalável julgamento Bene Gesserit: Abominação! Mas havia nessa criança uma suavidade, um desejo de se sacrificar pelo irmão que não podiam ser contestados.

“Nós somos uma só vida se estendendo para um futuro negro”, pensou Jessica. “Somos um só sangue.” Procurou criar coragem para aceitar os acontecimentos que ela e Gurney haviam iniciado. Leto precisava ser separado de sua irmã, devia ser treinado do modo como a Irmandade insistia para que fosse.

 

Ouço o vento soprando através do deserto e vejo as luas de uma noite de inverno, erguendo-se como grandes naves no vazio. A elas faço o juramento: serei resoluto e farei do governo uma arte. Vou equilibrar o passado que herdei e me tornar um perfeito repositório para os restos das minhas memórias. E serei conhecido por minha bondade, mais que por minha sabedoria. Minha face brilhará ao longo dos corredores do Tempo, enquanto existirem os seres humanos.

 

- O Juramento de Leto, de acordo com Harq al-Ada

 

Quando ainda muito jovem, Alia Atreides praticava durante horas o transe prana-bindu, tentando reforçar sua própria personalidade pessoal contra o assalto de “todas aquelas outras”. Ela conhecia o problema num sietch, era impossível escapar à melange. Ela infestava tudo: a comida, a água, o ar, até mesmo os tecidos de encontro aos quais Alia chorava durante as noites. Muito cedo ela reconheceu a utilidade das orgias do sietch, quando a tribo bebia a água da morte de um verme. Na orgia, os Fremen liberavam as tensões acumuladas por suas próprias memórias genéticas, e negavam essas memórias. Ela vira companheiros serem temporariamente possuídos durante uma orgia.

Para ela, não havia tal liberação, nenhuma negação. Já possuía consciência total bem antes do nascimento. Com essa consciência, viera uma percepção cataclísmica de suas condições: presa dentro de um ventre em contato intenso e inescapável com todas as personas de todos os seus ancestrais, mais as identidades transmitidas pela morte, no transe da especiaria, a Lady Jessica. Antes de nascer, Alia já possuía cada bit de saber necessário a uma Reverenda Madre Bene Gesserit e mais, muito mais de “todas aquelas outras”.

Nesse saber se encontrava o reconhecimento de uma terrível realidade a Abominação. A totalidade daquele conhecimento a enfraquecia. Os pré-nascidos não podiam escapar. E ainda assim ela lutara contra seus ancestrais mais terríveis, conquistando uma temporária vitória de Pirro que durara o período de sua infância. Conhecera então uma personalidade privada, mas esta não tinha imunidade contra intrusões ocasionais daqueles que viviam vidas refletidas através dela.

“Assim serei um dia”, pensou. Esse pensamento a arrepiava. Caminhar e dissimular-se através da vida de uma criança, a partir de suas próprias entranhas, introduzindo-se, agarrando-se à consciência para acrescentar um quantuna de sua experiência.

O medo a perseguiu na infância. E persistiu através da puberdade. Ela o combatera, sem nunca pedir ajuda. Quem entenderia a ajuda de que ela precisava? Não sua mãe, que jamais se poderia livrar do espectro daquela sentença da Bene Gesserit: os pré-nascidos eram Abominações.

E viera aquela noite em que seu irmão caminhara sozinho para o deserto em busca da morte, entregando-se ao Shai-Hulud, tal como se esperava de um Fremen cego. Em questão de um mês, Alia estava casada com o mestre espadachim de Paul, Duncan Idaho, um mentat trazido da morte pelas artes dos Tleilaxu. Sua mãe fugira para Caladan e os gêmeos de Paul eram um encargo jurídico seu.

Assim controlara a Regência.

As pressões da responsabilidade afastaram os antigos medos e Alia se encontrara aberta às suas vidas interiores, pedindo-lhes conselhos, mergulhando no transe da especiaria em busca de visões orientadoras.

A crise chegou num dia como muitos outros, durante o mês da primavera de Laab, numa clara manhã no Castelo do Muad'Dib, quando um vento frio soprava do pólo. Alia ainda usava a cor amarela do luto, a cor do sol estéril. Mais e mais, durante as últimas semanas, estivera negando a voz interior de sua mãe, que tendia a zombar dos preparativos para os Dias Santos que seriam celebrados no Templo.

Sua consciência interna de Jessica foi se apagando, se apagando... para afinal afundar-se na exigência anónima de que Alia se ocupasse com a Lei dos Atreides. Novas vidas começaram a clamar por seu instante de consciência. Alia sentia que acabara de abrir um fosso sem fundo, e rostos se elevavam para fora dele como uma nuvem de gafanhotos, até que ela conseguiu afinal focalizar um deles, que era como o de um animal: o velho Barão Harkonnen. Em aterrorizada indignação, ela gritara contra todo aquele clamor interno, conquistando um temporário silêncio.

Nessa manhã, Alia dera sua caminhada pré-desjejum através do jardim no teto do Castelo. Em nova tentativa de vencer a luta interior, tentara conter toda a sua consciência dentro da advertência de Choda aos Zensunni:

“Abandonando a escada, pode-se cairpara czmal”

Entretanto, o brilho da manhã por sobre os penhascos da Muralha Escudo continuava a distraí-la. Plantações do flexível capim-espalhado enchiam as trilhas do jardim. Quando olhava na direção oposta à Muralha Escudo, viu no capim o orvalho, o aprisionamento da umidade que passara ah durante a noite, refletindo sua própria passagem como se fosse uma multidão.

Essa multidão causou-lhe vertigem. Cada reflexo trazia impressa a face da multidão interior.

Tentou focalizar a mente naquilo que o capim implicava. A presença de orvalho em grande quantidade revelando-lhe o quanto a transformação ecológica progredira em Arrakis. O clima das latitudes setentrionais estava se tornando mais quente, o dióxido de carbono da atmosfera encontrava-se em elevação. Lembrou a si mesma quantos novos hectares seriam colocados debaixo do cobertor de plantas verdes no próximo ano e eram necessários 37 mil pés cúbicos de água para irrigar apenas um hectare.

A despeito de todas as tentativas de pensar em coisas mundanas, era incapaz de afastar a presença de todos os outros, circulando como tubarões em torno de sua mente.

Colocou as mãos sobre a testa e as apertou.

Os guardas de seu Templo haviam trazido um prisioneiro para ser julgado durante o poente do dia anterior: um tal de Essas Pavmon, homem moreno e pequeno, aparentemente trabalhando para uma das casas menores, a dos Nebiros, que comerciava com artefatos sagrados e pequenos objetos para decoração. Na realidade, Pavmon era conhecido como espião da CHOAM, com a tarefa de avaliar a colheita anual de especiaria. Alia estivera a ponto de mandá-lo para as masmorras quando ele protestara em voz alta contra “a injustiça dos Atreides”. Aquilo podia acarretar-lhe uma imediata sentença de morte no trípode de enforcamento, mas Alia sentira-se cativada pelo atrevimento do homem. De seu Trono do julgamento, falara com severidade, tentando assustá-lo para que revelasse mais do que já dissera aos inquisidores.

— Por que nossas colheitas de especiaria interessam tanto ao Combine Honnete? — exigira saber. — Diga-nos e poderemos poupá-lo.

— Eu apenas colho alguma coisa para a qual existe um mercado — respondera Pavmon. — Não sei nada do que é feito da minha colheita.

— E por esse lucro mesquinho você interfere nos planos da realeza? —perguntara Alia.

— A realeza nunca leva em conta que nós também podemos ter planos — retrucara o homem.

Alia, impressionada com essa audácia desesperada, indagara:

— Essas Pavmon, você trabalharia para mim?

Diante dessa pergunta, um sorriso clareou-lhe a face escura e ele disse:

— A senhora estava a ponto de me eliminar sem hesitação. Qual é meu novo valor para que se crie subitamente um novo mercado?

— Você tem um valor simples e prático. É audacioso e está disposto a trabalhar pela maior oferta. Posso oferecer-lhe mais do que qualquer outra pessoa no Império.

Diante disso, ele citou uma soma extraordinária, mas Alia riu e retrucou com um número que considerava mais razoável, sem dúvida muito mais do que ele jamais recebera. E acrescentou:

— E, é claro, incluo a dádiva de sua vida, à qual presumo que atribua um valor ainda menos ordinário.

— Uma barganha! — gritara Pavmon e, ante um sinal de Alia, fora levado pelo sacerdote Mestre de Entrevistas, Ziarenko Javid.

Menos de uma hora depois, quando Alia se preparava para deixar o Salão de julgamentos, Javid veio correndo relatar que Pavmon murmurara aqueles versos fatídicos da Bíblia Universal Laranja: “Maléficos non patieres úvem “

— Não permitirás que a bruxa viva — traduziu Alia.

Era assim que ele agradecia! Era um daqueles que tramavam contra sua própria vida! Num ímpeto de fúria como nunca antes experimentara, ordenou a execução imediata de Pavmon, mandando seu corpo para o alambique da Morte do Templo, onde sua água, pelo menos, teria algum valor nos açudes dos sacerdotes.

Mas durante toda aquela noite o rosto de Pavmon a assombrara.

Ela tentara todos os truques contra sua imagem persistente e acusadora, recitando o Buji do Livro Fremen de Kreos: “De nada me lembro! De nada me lembro!” Mas Pavmon a acompanhara através de uma noite insone, até esse novo e atordoante dia em que ela percebia que o rosto dele se juntara àqueles outros nos reluzentes reflexos do orvalho.

Uma guarda feminina chamou-a para o desjejum, da porta do terraço que ficava atrás de uma cerca viva de mimosas. Alia suspirou. Sentia ter pouca opção entre os dois infernos: o chamado de dentro de sua mente e o chamado dos criados todas eram vozes inúteis mas persistentes em suas exigências, ruídos diários que ela gostaria de poder silenciar com o gume de uma faca.

Ignorando a guarda, Alia olhou através do jardim do teto, em direção à Muralha Escudo. Um bahada deixara seu amplo rastro, como um leque de atritos sobre o solo coberto de seus domínios. O delta de areia espalhava-se diante de seus olhos, delineado pelo sol da manhã. Ocorreu- lhe que, para os olhos de um não-indiciado, aquele leque poderia parecer a evidência do fluxo de um rio, mas não era nada mais que o lugar onde seu irmão partira a Muralha Escudo, usando os atômicos da Família Atreides para abrir uma trilha no deserto pela qual os vermes da areia haviam transportado as tropas Fremen em direção à sua acachapante vitória sobre seu antecessor imperial, Shaddam IV. Agora, um amplo qanat fluía sobre o lado oposto da Muralha Escudo, de modo a bloquear as incursões dos vermes da areia, que não passavam sobre a água, um veneno para eles.

“Será que tenho uma barreira dessas dentro de minha mente?”, pensou ela.

O pensamento aumentou a sensação de tonteira, de estar sendo separada da realidade.

“Vermes da areia! Vermes da areia.”

Sua memória apresentou-lhe uma coleção de imagens de vermes da areia: o poderoso ShaiHulud, o demiurgo dos Fremen, besta mortal das profundezas do deserto, cujas efusões incluíam a inestimável especiaria. Como era estranho que o verme da areia crescesse a partir de um animalzinho chato e coriácio, a truta da areia, pensou. Elas eram como as multidões agregadas dentro de sua consciência. A truta da areia, unindo-se a outras trutas, bem juntinhas, sobre o leito rochoso do planeta, formava cisternas vivas: elas aprisionavam a água para que seu vetor, o verme da areia, pudesse viver. Alia podia sentir a analogia: alguns daqueles outros dentro de sua mente aprisionavam forças perigosas que poderiam destruí-la.

Novamente a guarda Chamou-a para o desjejum, um tom de impaciência transparecendo em sua voz.

Com raiva, Alia se voltou, acenando para que a guarda entendesse que estava dispensada.

A mulher obedeceu, mas a porta bateu com força.

E com o som da porta batendo Alia sentiu-se capturada por tudo que tentara negar. As outras vidas transbordaram dentro dela como uma horrenda maré. Cada vida exigindo, pressionando sua face de encontro aos seus centros de visão: uma nuvem de rostos. Alguns apresentavam peles com manchas sarnentas, outros eram cruéis e cheios de sombras fuliginosas, e havia bocas semelhantes a losangos úmidos. A pressão desse enxame fluiu sobre ela como uma correnteza que a obrigava a flutuar livremente e mergulhar nela.

— Não — sussurrou Alia. — ‘Não... não... não...

Teria caído no jardim, não fosse o banco ao lado, que recebeu seu corpo alquebrado. Tentou apenas sentar-se, não conseguiu e acabou se estendendo sobre o frio plasteel, ainda a sussurrar sua recusa.

A maré continuava a subir dentro dela.

Sentia-se sensível a cada pedido de atenção, consciente do risco, mas alerta a cada exclamação daquelas bocas circunspectas que clamavam dentro dela. Elas formavam uma cacofonia de pedidos de atenção: “Eu! Eu!” “Não, eu!” E ela sabia que, se lhes concedesse atenção, se ouvisse, cedendo totalmente uma única vez, estaria perdida. Encarar um daqueles rostos dentro da multidão e seguir sua voz significaria ser dominada pelo egocentrismo dos que compartilhavam sua existência.

— A presciência faz isso com você — sussurrou uma voz. Ela tapou os ouvidos com ambas as mãos, pensando: “Eu não sou presciente! O transe não funciona comigo!” Mas a voz persistiu: — Poderia funcionar, se tivesse ajuda.

— Não... não — sussurrou Alia. Outras vozes ondularam em sua mente:

— Eu, Agamenon, seu ancestral, exijo uma audiência!

— Não... não! — Ela apertou as mãos contra os ouvidos até que a dor foi a resposta da carne.

Um tagarelar insano dentro de sua cabeça indagava:

— Que restou de Ovídio? Simples. Ele está no lugar de John Bartlett!

Os nomes careciam de significado para ela. Queria gritar contra todos eles, e contra todas as outras vozes, mas não conseguia encontrar a sua própria.

A guarda, enviada para o terraço por seus superiores, olhou uma vez mais pela porta, por trás das mimosas, viu Alia no banco e disse a uma colega:

— Ahh, ela está repousando. Você notou como ela não dormiu bem a última noite. É bom para ela fazer o Zaha, a sesta matutina.

Alia não ouviu a mulher. Sua consciência fora dominada por cânticos entoados aos gritos:

— Velhos pássaros alegres é o que nós somos, viva! — As vozes ecoavam no interior de seu crânio e ela pensou: “Estou enlouquecendo. Estou perdendo a razão.”

Seus pés fizeram débeis movimentos de encontro ao banco. Sentia que, se ao menos pudesse controlar o corpo para correr, poderia escapar.

Precisava escapar, evitar que alguma parte dessa maré interior a afogasse no silêncio, contaminando para sempre sua alma. Mas o corpo não obedecia.

As forças mais poderosas do universo imperial obedeciam ao seu menor capricho, mas isso não acontecia com seu corpo.

Uma voz interior riu. E então disse:

— De certo ponto de vista, criança, cada incidente da criação representa uma catástrofe.

Era uma voz profunda, que trovejava ante seus olhos, e novamente o riso, como que escarnecendo do próprio tom pomposo: Minha querida criança, vou ajudá-la, mas você deve me ajudar também.

Contra o clamor crescente soando ao fundo, por trás daquela voz grave, Alia disse, entre dentes que batiam:

— Quem... quem...

Um rosto formou-se em sua consciência. Um rosto sorridente, tão gordo que só poderia ter pertencido a um bebê, exceto pela avidez e pela cobiça brilhando em seus olhos. Ela tentou recuar, mas só conseguiu uma visão mais ampla incluindo o corpo preso àquele rosto. Um corpo imenso, incrivelmente gordo, envolto num manto que revelava, através de protuberâncias sutis, que toda aquela gordura exigia o apoio de suspensórios portáteis.

— Como vê — roncou a voz, — é apenas seu avô materno. Você me conhece. Eu era o Barão Vladimir Harkonnen.

— Você... você está morto! — disse ela ofegante.

— Mas é claro, querida! Quase todos nós, dentro de você, estamos mortos.

— Mas nenhum desses outros deseja realmente ajudá-la. Eles não a compreendem.

— Vá embora — suplicou Alia. — Oh, por favor, vá embora.

— Mas você precisa de ajuda, minha neta — argumentou a voz do Barão.

“Quão singular ele parece”, pensou ela, observando a projeção do Barão sobre suas pálpebras fechadas.

— Eu desejo ajudá-la — adulou o Barão. — Os outros aqui só lutariam para dominar toda a sua consciência. Qualquer um tentaria apagá-la. Mas eu... eu só peço um pequeno caminho para mim.

Novamente as outras vidas dentro dela ergueram seu clamor. A onda ameaçou engolfá-la uma vez mais, e Alia ouviu a voz de sua mãe gritando. Pensou:

“Ela não está morta.”

— Cale-se! — ordenou o Barão.

Alia sentiu seus próprios desejos reforçando aquela ordem, fazendo com que fosse sentida através de sua consciência.

Um silêncio interior fluiu através dela como um banho frio e Alia sentiu que seu coração começava a retornar ao ritmo normal. Tranquilizadora, a voz do Barão penetrou:

— Está vendo? Juntos, somos invencíveis. Você me ajuda e eu a ajudo.

— O que... o que você quer? — sussurrou ela.

Um olhar melancólico surgiu naquele rosto gordo, sobre as pálpebras fechadas de Alia.

— Ahh, minha querida neta, só desejo alguns prazeres simples. Dê-me apenas um momento ocasional de contato com os seus sentidos. Ninguém mais precisa saber. Deixe-me sentir apenas uma pequena faceta de sua vida, quando, por exemplo, estiver nos braços de seu amante. Não é um preço pequeno o que eu peço?

— Ssssim.

— Bom, muito bom. — O Barão riu. — Em troca, querida neta, posso servi-la de muitos modos. Posso lhe dar conselhos. Você será invencível interna e externamente. Afastaremos toda a oposição. E a história esquecerá seu irmão para lembrá-la com carinho. O futuro será seu.

— Você... não vai deixar... os outros... tomarem conta?

— Eles nada podem contra nós dois! Sozinhos podemos ser dominados, mas juntos comandamos. Eu lhe darei uma demonstração. Ouça.

E o Barão ficou em silêncio, retirando sua imagem e sua presença interior. Nenhuma outra memória, rosto ou voz das outras vidas se introduziu.

Alia permitiu-se um trémulo suspiro.

Acompanhando esse suspiro, veio um pensamento. Forçava-se em sua consciência como se fosse um de seus próprios pensamentos, mas ela sentia vozes mudas por trás dele.

“O velho Barão era mau. Ele assassinou seu pai. Teria assassinado você e Paul. Tentou, mas falhou.”

A voz do Barão regressou, sem o rosto.

—Claro que eu a teria morto. Você não se colocou em meu caminho? Mas esse problema acabou. Você ganhou, criança! Você é a nova verdade.

Ela sentiu-se confirmando as palavras do Barão e seu rosto deslizou asperamente sobre a superfície dura do banco.

As palavras dele eram razoáveis, pensou. Um preceito Bene Gesserit reforçava a ponderação do que ele dissera. “O propósito do debate é mudar a natureza da verdade.”

“Sim... seria dessa maneira que as Bene Gesserits teriam julgado este assunto.”

— Precisamente! — disse o Barão. — Eu estou morto, enquanto você está viva. E só disponho de uma frágil existência. Sou apenas um eu-memória dentro de você. Sou seu, para que me controle. E quão pouco lhe peço em troca dos profundos conselhos que lhe posso dar.

— Que me aconselha a fazer agora? — perguntou ela, sondando.

— Está preocupada com o julgamento da noite passada — ele disse. — Você se pergunta se as palavras de Pavmon foram relatadas com sinceridade. Talvez Javid tenha percebido nesse Pavmon uma ameaça à posição que ele próprio ocupa. Não é essa a dúvida que a perturba?

— — S... sim.

E sua dúvida se baseia numa observação precisa, não é? Javid se porta com crescente intimidade com relação à sua pessoa. Mesmo o Duncan já notou isso, não?

— Você sabe que sim.

— Muito bem, então. Aceite Javid como seu amante e...

— Não!

— Está preocupada com o Duncan? Mas seu marido é um místico mentat. Não pode ser tocado nem ferido por preocupações carnais. Já não sentiu várias vezes o quanto ele se distancia de você?

— Mas ele...

— A parte mentat de Duncan compreenderá, se algum dia precisar conhecer a trama que você vai empregar para destruir Javid.

— Destruir?

— Certamente! Ferramentas perigosas podem ser usadas, mas devem ser colocadas de lado quando se tornam perigosas demais.

— Então... por que eu deveria... Quero dizer...

— Ahh, sua preciosa tola! Por causa do valor contido na lição.

— Não entendo.

— Os valores, minha querida, dependem do sucesso para serem aceitos. A obediência de Javid deve ser incondicional, sua aceitação de sua autoridade, absoluta, e sua...

— A moral dessa lição me escapa...

— Não seja estúpida, minha neta! A moral deve basear-se sempre na necessidade prática. Dai a César e toda aquela tolice. Uma vitória será inútil se não refletir seus mais profundos desejos. Não é verdade que admira a masculinidade de Javid?

Alia engoliu em seco, odiando ter de admitir, mas forçada por sua completa nudez ante um observador interno:

— S... sim.

— Bom! — Como essa palavra parecia soar alegre dentro de sua cabeça. — Agora começamos a entender um ao outro. Quando o tiver indefeso em sua cama, convencido de que a dominou, você lhe perguntará a respeito de Pavmon. Faça-o em tom de brincadeira: com um riso de felicidade. E quando ele admitir que a enganou, você mergulhará uma faca cristalina entre as costelas dele. Ahh, o fluir do sangue pode acrescentar tanto à sua satis...

— Não — ela sussurrou, a boca seca ante o horror. — Não... não... não...

— Então eu o farei por você — argumentou o Barão. — Mas deve ser feito, tem de admitir isso. Se ao menos preparar as condições, eu assumirei temporariamente...

— Não!

— Seu medo é tão evidente, minha neta. Meu controle sobre seus sentidos só pode ser temporário. Existem outros, agora, que poderiam imitá-la com uma perfeição que... Mas você sabe disso. Comigo, ahh, as pessoas perceberiam minha presença imediatamente. E você conhece a Lei Fremen em relação aos possuídos. Eles são mortos imediatamente. Sim... até mesmo você. E você sabe que eu não quero que isso aconteça. Tomarei conta de Javid por você e, uma vez que esteja feito, me afastarei. Só precisa...

— Qual a vantagem desse conselho?

— Livrá-la de um instrumento perigoso. E, criança, com isto se estabelece uma relação de trabalho entre nós, um relacionamento que só poderá prepará-la da melhor maneira com respeito a julgamentos futuros que...

— Preparar-me?

Naturalmente.

Alia colocou as mãos sobre os olhos, tentando pensar, sabendo que qualquer pensamento seria do conhecimento dessa presença dentro dela, e que um pensamento poderia ter origem nessa presença e ser confundido com suas próprias idéias.

— Você se preocupa desnecessariamente — disse o Barão, muito persuasivo. — Esse sujeito, Pavmon, era...

— O que eu fiz foi errado! Eu estava cansada e agi apressadamente. Devia ter buscado confirmação do...

— Você agiu da maneira certa! Seus julgamentos não podem basear-se em tolices abstratas, tais como a noção de igualdade dos Atreides. Foi isso que a manteve insone, não a morte de Pavmon. Você tomou uma boa decisão! Ele era outro instrumento perigoso. Você agiu para manter a ordem em sua sociedade. Essa é uma boa razão para julgamentos, não essa tolice de justiça. Não existe algo como uma justiça igual em toda a parte. Tentar atingir esse falso equilíbrio causa agitação na sociedade.

Alia sentiu prazer nessa defesa de seu julgamento no caso de Pavmon, mas ficou chocada com o conceito amoral por trás da argumentação.

— A igualdade perante a justiça era para os Atreides... era... — Tirou as mãos dos olhos, mas continuou mantendo-os fechados.

— Todos os seus juizes sacerdotes deviam ser advertidos contra esse erro — sugeriu o Barão. — As decisões devem ser medidas apenas com relação ao seu mérito de manter a sociedade em ordem. Um sem-número de civilizações passadas ergueu suas bases sobre os alicerces da igualdade perante a justiça. Semelhante tolice destrói as hierarquias naturais, que são muito mais importantes. Um indivíduo só é importante em seu relacionamento com a sociedade como um todo. E a menos que uma sociedade seja ordenada em degraus lógicos, ninguém encontrará seu lugar nela. Nem os inferiores, nem os superiores. Vamos, vamos minha neta! Você deve ser uma mãe severa para o seu povo. É seu dever manter a ordem.

— Tudo o que Paul fez foi...

— Seu irmão está morto, ele foi um fracasso!

— Assim como você!

— Verdade... Mas comigo ocorreu um acidente que estava além do meu projeto. Agora vamos, permita que cuidemos desse Javid da maneira como delineei.

Ela sentiu seu corpo tornar-se mais quente ante esse pensamento, e disse rapidamente.

— Preciso pensar a respeito.

E pensou: “Se for feito, será apenas para colocar Javid em seu lugar. E não é preciso matá-lo para isso. O tolo pode se trair... em minha cama.”

— Com quem está falando, Minha Senhora? — indagou uma voz.

Durante um confuso momento, Alia pensou que fosse outra intrusão daquela ruidosa multidão dentro dela, mas, ao reconhecer a voz, abriu os olhos.

Ziarenka Valefor, chefe das amazonas guardiãs de Alia, encontrava-se ao lado do banco, a preocupação visível em suas curtidas feições Fremen.

— Falo com minhas vozes interiores — disse Alia, sentando-se. Sentia um frescor, uma sensação flutuante trazida pelo silêncio daquele desesperado clamor interno.

— Suas vozes internas. Sim, Minha Senhora. — Os olhos de Ziarenka brilharam quando ela ouviu essa informação. Todos sabiam que a sagrada Alia recorria a forças interiores que não eram disponíveis a outras pessoas.

— Traga Javid aos meus aposentos — ordenou Alia. — Há um assunto muito sério que desejo discutir com ele.

— Aos seus aposentos, Minha Senhora?

— Sim! À minha câmara pessoal.

— Como Minha Senhora ordena. A guarda voltou-se para obedecer.

— Um momento — disse Alia. — Mestre Idaho já partiu para o Sietch Tabr?

— Sim, Minha Senhora. Partiu antes da aurora, como o instruiu. Deseja que eu mande buscá-lo para...

— Não. Eu mesma cuidarei de tudo. E, Zia, ninguém deve saber que esse Javid está sendo trazido ao meu quarto. Faça-o você mesma. É um assunto muito sério.

A guarda tocou a faca cristalina em sua cintura:

— Minha Senhora, se há alguma ameaça a...

— Sim, existe uma ameaça, e Javid pode estar no centro dela.

— Oh! Minha Senhora! Talvez eu não devesse trazê-lo...

— Zia! Você me julga incapaz de cuidar desse caso?

Um sorriso matreiro surgiu na boca da guarda.

— Perdoe-me, Minha Senhora. Eu o levarei à sua câmara pessoal imediatamente, mas... com a permissão de Minha Senhora, montarei guarda do lado de fora da porta.

— Apenas você — disse Alia.

— Sim, Minha Senhora. Irei imediatamente.

Alia assentiu para si mesma, observando as costas de Ziarenka que se afastava. Então, Javid não era muito estimado entre sua guarda. Outro ponto contra ele. Mas ainda era valioso... muito valioso. Ele era a chave para Jacurutu, e com aquele lugar, bem...

— Talvez você estivesse certo, Barão — ela sussurrou.

— Está vendo? — riu a voz dentro dela. — Ahh, esse será um serviço agradável para você, criança, e é apenas o começo...

 

Estas são ilusões da cultura popular que toda religião bem-sucedida deve promover, os maus nunca prosperam, somente os bravos merecem o melhor, a honestidade é a melhor política, as ações falam mais alto que as palavras, a virtude sempre triunfa, uma boa ação já é uma recompensa, todo homem mau pode ser recuperado, os talismãs religiosos protegem contra possessões demoníacas, só as mulheres podem compreender os mistérios ancestrais, os ricos estão condenados à infelicidade...

 

- Do Manual de Instruções: A Missionária Protetora

 

— Eu me Chanio Muriz — disse o Fremen coriáceo.

Encontrava-se sentado no interior de uma caverna rochosa, iluminado pelo brilho de uma lâmpada de especiaria, cuja luz tremulante revelava paredes úmidas e as aberturas negras que serviam de passagem para esse lugar.

Sons de água gotejando podiam ser ouvidos do fundo de uma dessas passagens e, embora tais sons fossem essenciais ao paraíso dos Fremen, os seis homens diante de Muriz não sentiam prazer em ouvir esse rítmico gotejar. Nessa câmara, havia o odor bolorento de um alambique da morte.

Um jovem de talvez 14 anos-padrão saiu da passagem e se colocou à esquerda de Muriz. Uma faca cristalina desembainhada refletiu o brilho amarelo da lâmpada de especiaria quando o jovem a ergueu, apontando-a brevemente para cada um dos homens amarrados.

Com um gesto em direção ao jovem, Muriz disse:

— Este é meu filho Assan Tariq, que está prestes a passar pelo teste da masculinidade.

Muriz pigarreou, olhando para cada um dos seis cativos. Eles encontravam- se sentados diante dele num semicírculo não muito preciso, bem presos com cordas de fibra de especiaria, que mantinham suas pernas cruzadas, as mãos presas atrás. As cordas terminavam em um nó corrediço apertado sobre a garganta de cada um dos homens. Seus trajes-destiladores haviam sido cortados na altura do pescoço.

Os homens amarrados olharam para Muriz sem vacilar. Dois deles usavam vestimentas folgadas, vindas de fora do planeta, que os marcavam como residentes em uma cidade de Arrakis. Esses dois tinham peles mais lisas, de tonalidade mais clara que seus companheiros, cujas feições ressequidas e compleição ossuda os marcavam como nascidos no deserto.

Muriz assemelhava-se aos habitantes do deserto, mas seus olhos eram mais fundos, poços sem branco que nem mesmo o brilho da lâmpada de especiaria conseguia tocar. Seu filho parecia uma cópia ainda não terminada de si mesmo, com um rosto vulgar que não ocultava a agitação interior.

— Entre os Banidos, temos um teste especial para os jovens que se tornam homens — explicou Muriz. — Um dia meu filho será juiz em um Shuloch. Precisamos saber se ele agirá como deve. Nossos juizes não podem se esquecer de jacurutu e de nosso dia de desespero. Kralizec, a Luta do Tufão, vive em nossos corações. Tudo isso foi dito com monótona entonação ritualística.

Um dos habitantes da cidade, de feições mais suaves, mexeu-se diante de Muriz e disse:

— Vocês agem errado, nos ameaçando e nos amarrando deste jeito. Nós viemos em paz, em umma.

Muriz assentiu:

— Veio em busca de um despertar religioso pessoal? Ótimo. Vai ter esse despertar.

O homem tentou dizer:

— Se nós...

Ao lado dele, um escuro Fremen do deserto retrucou:

— Cale-se, seu tolo! Estes são os ladrões de água. São aqueles que pensávamos ter exterminado.

— A velha história — disse o cativo de feições suaves.

— Jacurutu é mais que uma história — respondeu Muriz. E uma vez mais indicou o filho. — Eu já apresentei Assan Tariq. Sou o arzfa deste lugar, seu único juiz. Meu filho também será treinado para detectar demônios. As velhas maneiras são as melhores.

— Foi por isso que viemos ao deserto profundo — protestou o homem da cidade. Escolhemos o antigo caminho, vagueando em...

— Com guias pagos — disse Muriz, apontando para os cativos de pele mais escura. — Vocês comprariam seu caminho para o céu? — Olhou para o filho. — Assan, está preparado?

— Eu refleti muito sobre a noite em que os homens vieram e chacinaram nosso povo — respondeu Assan, sua voz projetando uma incômoda tensão. — Eles nos devem a água.

— Seu pai lhe dá seis deles — disse Muriz. — Sua água é nossa. Suas sombras são suas, suas guardiãs eternas. Elas o alertarão quanto aos demônios. Serão suas escravas quando você partir para o alam al-mythal. Que tem a dizer, filho?

— Eu lhe agradeço, meu pai — disse Assan. Deu um curto passo adiante. — Eu aceito ser um homem adulto entre os Banidos. Esta água é a nossa água.

Quando acabou de falar, o jovem se aproximou dos prisioneiros. Começando da esquerda, agarrou cada um dos homens pelo cabelo e enterrou a faca cristalina sob o queixo até o cérebro. Tudo feito de modo habilidoso, para derramar o mínimo de sangue. Somente os Fremen da cidade, de feições delicadas, protestaram, gritando, quando o jovem os agarrava pelo cabelo.

Os outros cuspiram em Assan Tariq, ao velho modo, dizendo com isso: “Veja quão pouco eu valorizo a minha água quando ela é tomada por animais!”

Quando tudo estava terminado, Muriz bateu com as mãos uma única vez. Ajudantes vieram e começaram a remover os corpos, levando-os para o alambique da morte, onde seriam derretidos para a recuperação da água que continham.

Muriz levantou-se e olhou para o filho que respirava profundamente, observando os auxiliares a remover os corpos.

— Agora você é um homem. A água de nossos inimigos alimentará os escravos. E, meu filho..

Assan Tariq voltou-se, lançando sobre o pai um olhar alerta e predador. Os lábios do jovem formavam um leve sorriso.

— O Pregador não deve saber disso — disse Muriz.

— Compreendo, pai.

— Você se portou bem — disse Muriz. — Aqueles que hesitam no Shuloch não devem sobreviver.

— Como diz, pai.

— Tarefas importantes lhe serão confiadas. Estou orgulhoso de você.

 

Um homem sofisticado pode tornar-se primitivo. O que isso significa realmente é que o modo de vida de um homem muda. Velhos valores mudam, tornam-se ligados à pai, ragem, com ruas, plantar e animais. Essa nova existência exige um conhecimento funcional de todos os eventos enraizados e múltiplos a que normalmente nos referimos como natureza.

Ela exige uma medida de respeito pela falta de inércia em tais sistemas naturais. Quando um homem adquire esse conhecimento funcional a esse respeito, isso se Chania “serprimitivo”. O inverso, é claro, é igualmente possível.o primitivo pode tornar-se sofisticado, mas não sem com isso aceitar terríveis danos psicológicos.

 

- Comentários de Leto, segundo Harq Al-Ada

 

— Como podemos ter certeza? — perguntou Ghanima. — Isso é muito perigoso.

— Nós já testamos anteriormente — respondeu Leto.

— Mas pode não ser a mesma coisa desta vez. Que tal se...

— É o único caminho aberto para nós — explicou Leto. — Você concorda em que não podemos usar a opção da especiaria.

Ghanima suspirou. Não apreciava esse duelo de palavras, mas conhecia a premente necessidade do irmão. E também conhecia a terrível fonte de sua relutância. Eles só precisavam olhar para Alia e ver os perigos daquele mundo interior.

— Então? — indagou Leto. Novamente ela suspirou.

Ambos sentavam-se com as pernas cruzadas em um de seus lugares secretos: uma estreita abertura da caverna sobre o penhasco, de onde sua mãe e seu pai costumavam observar o sol se pondo sobre o bled.

Passavam-se duas horas da refeição vespertina, momento em que os gêmeos deviam estar exercitando os corpos e as mentes. Haviam preferido flexionar as mentes.

— Eu tentarei sozinho, se você se recusar a me ajudar — disse Leto.

Ghanima olhou na direção oposta ao irmão, para as cortinas negras dos selos de umidade que guardavam essa abertura na rocha. Leto continuou olhando para o deserto.

Estavam falando há algum tempo em um idioma tão antigo que mesmo seu nome permanecia desconhecido nessa época. A linguagem dava a seus pensamentos uma privacidade que nenhum outro ser humano poderia penetrar. Até mesmo Alia, que evitava as complexidades de seu mundo interior, carecia dos elos mentais que lhe permitiriam apreender mais que uma palavra ocasional.

Leto inalou profundamente, aspirando o odor característico de uma caverna-sietch dos Fremen, que persistia nessa alcova pouco ventilada. A algazarra do sietch e seu calor úmido estavam ausentes ali, e ambos sentiam alivio por isso.

— Concordo em que precisamos de orientação — disse Ghanima. — Mas se nós...

— Gham! Precisamos mais que de orientação. Precisamos de proteção.

— Talvez não haja proteção. — Olhou diretamente para o irmão, fitando aquele seu olhar que lembrava um predador vigilante. Olhos que contradiziam a placidez de suas feições.

— Precisamos escapar à possessão — disse Leto. Ele usou um infinitivo especial do antigo idioma, uma forma estritamente neutra na voz, mas tensa e profundamente ativa em suas implicações.

Ghanima interpretou corretamente o argumento.

— Mohw pzvium d'mi hirh parh moh'm ka — entoou ela. “A captura de minha alma é a captura de mil almas.”

— Muito mais que isso — retrucou ele.

— Conhecendo o perigo, você persiste. — Ela fez disso uma declaração, não uma pergunta.

— Yabun 'k wabunat — disse ele. “Erguendo-te, resistes!” Sentia sua escolha como a resposta a uma necessidade óbvia. A melhor maneira era agir ativamente. Deviam enrolar o passado sobre o presente e permitir-lhe desenrolar-se em seu futuro.

— Muráyatela — concedeu em voz baixa. “Deve ser feito com amor.”

— É claro. — Ele acenou com a mão num gesto de total aceitação. — Então, vamos consultar, como fizeram nossos pais.

Ghanima permaneceu silenciosa, tentando engolir e sentindo um aperto na garganta. Instintivamente, olhou para o sul, em direção ao grande erg aberto, a revelar um fraco padrão de dunas cinzentas, sob a derradeira luz do dia. Naquela direção, seu pai se fora em sua última caminhada pelo deserto.

Leto olhou para baixo, por sobre a borda do penhasco, em direção ao verde oásis do sietch. Estava tudo escuro por lá, mas ele conhecia as formas e cores: flores nas cores do cobre e do ouro, vermelhas, amarelas e cor de ferrugem, espalhando-se até os marcos de rocha que delineavam a região ocupada pelas plantações irrigadas através do qanat. Além dos marcos de rocha, estendia-se uma fedorenta faixa composta por formas de vida nativas, mortas pelas plantas alienígenas e pelo excesso de água, agora formando uma barreira contra o deserto.

Dentro em pouco, Ghanima disse:

— Estou pronta. Vamos começar.

— Sim, dane-se o resto! — Ele estendeu a mão e tocou-a no braço, de modo a aliviar a exclamação, acrescentando: — Por favor, Gham... Cante aquela canção. Ela torna as coisas mais fáceis para mim.

Ghanima aproximou-se dele, envolvendo-lhe a cintura com o braço esquerdo.

Respirou fundo duas vezes, limpou a garganta e começou a cantar, numa voz clara e aguda, a mesma letra que sua mãe tantas vezes entoara para seu pai:

 

Aqui eu resgato o penhor que me deste

E derramo a água suave sobre ti.

A vida prevalecerá neste lugar abafado:

Meu amor, tu viverás num palado, e teus inimigos cairão no vazio.

Nós percorremos este caminho . juntos

O caminho que o amor tracou para ti.

Certamente que eu mostro o caminho

Pois o meu amor é o teu palado...

 

A voz dela mergulhava no silêncio do deserto, que até mesmo um sussurro poderia agitar, e Leto se sentiu mergulhando, afundando... tornando-se o pai cujas memórias se abriam diante dele numa sobrecamada dos genes de seu passado imediato.

“Por este breve espaço de tempo, devo ser Paul”, disse para si mesmo.

“Esta ao meu lado não é Gham, é minha amada Chani, cujos sábios conselhos nos salvaram muitas vezes.”

De sua parte, Ghanima deslizara na memória-persona de sua mãe com uma facilidade assustadora, como sabia que faria. Como isso era mais fácil nas mulheres... e como era mais perigoso.

Com uma voz que se tornara subitamente rouca, Ghanima disse:

— Olhe lá, meu amado!

A Primeira Lua se erguera e, sobre sua fria luz, eles viram um arco de fogo alaranjado subindo para o espaço. O transporte que trouxera Lady Jessica, agora carregado de especiaria, estava retornando para se encontrar com a nave-mãe, em forma de cacho, esperando em órbita.

A intensidade das lembranças fluiu através de Leto, trazendo memórias nítidas como o bater de sinos. Por um instante, ele era outro Leto, o Duque de Jessica. A necessidade colocou de lado tais memórias, mas não antes que ele sentisse o amor e a dor penetrantes.

“Eu devo ser Paul”, lembrou a si mesmo.

A transformação caiu sobre ele com uma dualidade assustadora, como se Leto fosse uma tela negra sobre a qual seu pai era projetado. Ele sentiu ambas as carnes, a sua e a de seu pai, e as tremulantes diferenças ameaçaram dominá-lo.

— Ajude-me, pai — sussurrou ele.

A tremulante perturbação passou, e agora havia outra impressão em sua consciência, enquanto sua própria identidade como Leto se colocava de lado, como simples observadora.

— Minha última visão ainda não passou — ele disse, e a voz era a de Paul. Voltou-se para Ghanima. — Você sabe o que eu vi.

Ela tocou-lhe o rosto com a mão direita.

— Você caminhou para morrer no deserto, meu amado? Foi isso que fez?

— Pode ter sido o que fiz, mas aquela visão... Não teria sido razão suficiente para continuar vivo?

— Mas cego? — ela indagou.

— Mesmo assim.

— Para onde poderia ir?

Ele inspirou fundo, tremulo.

— Jacurutu.

— Meu amado! — Lágrimas escorreram pelo rosto dela.

— Muad'Dib, o herói, deve ser destruído inteiramente — ele disse. — De outro modo, essa criança não poderá resgatar-nos do caos.

— O Caminho Dourado — ela disse. — Não é uma boa visão.

— É a única visão possível.

— Alia falhou, então...

— Completamente. Viu o registro disso.

— Sua mãe voltou muito tarde — ela assentiu, com a sábia expressão de Chani no rosto infantil de Ghanima. — Não poderia haver outra visão? Talvez se...

— Não, minha amada. Ainda não. Essa criança ainda não pode fitar o futuro e retornar em segurança.

Novamente, uma inspiração trêmula perturbou-lhe o corpo e o Leto observador sentiu a profunda saudade de seu pai, o desejo de viver uma vez mais em carne viva, de tomar decisões vitais e... — Que ânsia desesperada por desfazer os erros do passado!

— Pai! — Chamou Leto, e foi como se o grito ecoasse dentro de seu próprio crânio.

Foi um profundo ato de vontade o que Leto sentiu naquele momento: a lenta retirada da presença interna de seu pai, a libertação de músculos e sentidos.

— Meu amado — sussurrou a voz de Chani ao seu lado, e a retirada retardou-se. — Que está acontecendo?

— Não se vá ainda — disse Leto, e era sua própria voz, rouca e incerta, mas ainda assim sua própria voz. — Chani, você deve nos dizer. Como evitaremos... o que aconteceu com Alia?

Foi o Paul dentro dele que respondeu, entretanto, com palavras que lhe chegavam ao ouvido interno hesitantes e com longas pausas.

— Não há certeza. Você... viu... o que quase... aconteceu ... comigo...

— Mas Alia...

— O maldito Barão a possui!

Leto sentiu a garganta queimando de tão seca.

— É ele... Tem... Eu...

— Ele também está em você... mas... Eu... nós não podemos ... às vezes sentimos... um ao outro, mas você...

— Não pode ler meus pensamentos? — perguntou — Leto. Não saberia então se... ele...

— Às vezes posso sentir seus pensamentos... mas eu... nós vivemos apenas através... do... reflexo de... sua consciência. Sua memória nos cria. O perigo... jaz numa memória definida. E... aqueles de nós... aqueles de nós que amam o poder... e tentaram obtê-lo... a qualquer preço... estes podem sermais definidos.

— Mais fortes? — sussurrou Leto.

— Mais fortes.

— Eu conheço sua visão — disse Leto. — Em vez de deixar que ele me possua, prefiro me tornar você.

— Isso não!

Leto acenou com a cabeça afirmativamente, sentindo a enorme força de vontade que seu pai reunira para se retirar, reconhecendo com isso as consequências do fracasso. Qualquer possessão reduzia o possuído à Abominação. O reconhecimento disso deu-lhe uma renovada sensação de força e Leto sentiu seu próprio corpo com uma intensidade anormal e uma profunda consciência dos erros passados: seus erros e os de seus ancestrais. Eram as incertezas que enfraqueciam, percebia isso agora. Por um momento, a tentação e o medo lutaram dentro dele. Essa carne possuía a habilidade de converter a melange em visões do futuro. Com a especiaria, ele poderia respirar o futuro, rasgar os véus do Tempo. Achou a tentação difícil de abandonar, uniu as mãos e mergulhou na consciência pranabindu.

Sua carne negou a tentação. Sua carne usava o profundo conhecimento conquistado no sangue de Paul.

Aqueles que buscavam visões do futuro esperavam vencer apostas na corrida do amanhã. Mas em vez disso se encontravam presos a uma vida em que cada batida de coração, cada gemido angustiado eram conhecidos com antecedência. A última visão de Paul mostrara uma saída precária dessa armadilha, e Leto sabia agora que não tinha outra escolha senão seguir naquele caminho.

A alegria de viver, sua beleza, está ligada ao fato de que a vida nos pode surpreender ele disse:

Uma voz suave sussurrou em seu ouvido:

— Eu sempre conheci essa beleza.

Leto voltou a cabeça e fitou os olhos de Ghanima, que cintilavam à luz brilhante do luar. Viu Chani olhando para ele e disse:

— Mãe, você deve ir embora.

— Ahh, a tentação! — disse ela, e o beijou. Ele a afastou.

— Você tomaria a vida de sua filha?

— É tão fácil... tão tolamente fácil — ela disse.

Leto, sentindo o pânico começar a dominá-lo, lembrou-se do esforço de vontade que fora necessário à persona interior de seu pai para lhe abandonar a carne. Estaria Ghanima perdida naquele mundo-de-observação de onde ele vira e ouvira, aprendendo o que era necessário com seu pai?

— Eu a desprezarei, mãe — ele disse.

— Outros não me desprezarão. Seja meu amado.

— Se eu o fizer... sabe o que nós dois nos tornaremos. E meu pai vai desprezá-la.

— Nunca!

— Vou!

O som lhe fora arrancado da garganta sem sua vontade e carregara com ele as tonalidades antigas e sutis da Voz, que Paul aprendera com sua mãe bruxa.

— Não diga isso — ela gemeu.

— Vou desprezá-la!

— Por favor... por favor, não diga isso.

Leto esfregou a garganta, sentindo que os músculos se tornavam seus uma vez mais.

— Ele vai desprezá-la. Voltará as costas para você e partirá para o deserto novamente.

— Não... não...

Ela sacudia a cabeça de um lado para o outro.

— Você deve partir, mãe.

— Não... não... — Mas a voz já não tinha a força original.

Leto observou o rosto de sua irmã. Como os músculos se contraíam! Emoções correndo através da carne ante o torvelinho interior.

— Parta — sussurrou ele. — Parta.

— Nããão...

Ele a agarrou pelo braço, sentindo os tremores que lhe pulsavam através dos músculos, os nervos se contraindo. Ela se debateu, tentando se afastar, mas ele a segurou com força, sussurrando:

— Parta... parta...

E todo o tempo Leto censurava a si mesmo por ter colocado Ghani nesse jogo dos pais, que eles já haviam jogado tantas vezes, mas ao qual ela resistia ultimamente. Era verdade que as mulheres eram mais fracas ante esse assalto interior, ele percebia. Ali se encontrava a origem do medo das Bene Gesserits.

Horas se passaram e o corpo de Ghanima ainda tremia e se contorcia em sua batalha interior, mas agora a voz de sua irmã se juntava à discussão. Ele a ouvia falando com aquele imago dentro dela, suplicando.

— Mãe... por favor... — E uma vez: — Você viu Alia! Quer se tornar outra?

Afinal, Ghanima inclinou-se de encontro a ele e sussurrou:

— Ela aceitou e se foi. — Ele acariciou-lhe a cabeça.

— Gham, sinto muito, sinto muito. Nunca mais lhe pedirei que faça isso. Fui egoísta. Me perdoe.

— Não há nada a ser perdoado — ela disse, e sua voz saía ofegante, como se após um grande esforço físico. — Nós aprendemos muito do que precisávamos saber.

— Ela lhe falou de muitas coisas —  ele concordou. — Partilharemos isso depois, quando...

— Não! Nós o faremos agora. Você estava certo.

— Meu Caminho Dourado?

— Seu maldito Caminho Dourado!

— A lógica é inútil, a menos que venha armada com os dados essenciais — ele disse. — Mas eu...

— Nossa avó voltou para orientar nossa educação e verificar se fomos... contaminados.

— Isso é o que Duncan diz. Não há nada novo em...

— Computação primária — concordou ela, sua voz ganhando força.

Afastou-se dele, olhando para o deserto que se encontrava imerso na quietude anterior à alvorada. Essa batalha... e esse conhecimento lhes tinham custado uma noite. A Guarda Real, posicionada além do selo de umidade, provavelmente tivera muito que explicar. Leto ordenara que nada os perturbasse.

— As pessoas frequentemente ganham sutileza com a idade — disse Leto. — Que é que estamos aprendendo com todas essas vidas para consultar?

— O que vemos do universo nunca corresponde à sua exata natureza física — ela respondeu.

— Não devemos olhar essa avó apenas como a uma avó.

— Isso seria perigoso — ele concordou. — Mas minha per...

— Existe algo além da sutileza. Precisamos ter um lugar em nossa consciência para perceber aquilo que não podemos preconceber. É por isso... que minha mãe me falou tantas vezes de Jessica. Pelo menos, quando estávamos unidas naquela discussão interior, ela disse muitas coisas. — Ghanima suspirou.

— Nós sabemos que ela é nossa avó. Você esteve com ela durante horas, ontem. É por isso que...

— Se permitirmos isso, nosso conhecimento irá determinar a maneira como reagiremos a ela —  disse Ghanima. — Foi por isso que minha mãe ficou me avisando. Ela citou as palavras de nossa avó uma vez e... — Ghanima tocou- lhe o braço — eu ouvi o eco dentro de mim, na voz de nossa avó.

— Avisamos você — disse Leto.  Ele achava esse pensamento perturbador. — Não haveria nada neste mundo em que se pudesse confiar?

— Os erros mais mortais derivam de pressupostos obsoletos — disse Ghanima.

— Foi isso que minha mãe ficou repetindo.

— Isso é puro Bene Gesserit.

— Se... se Jessica retornou totalmente à Irmandade...

— Isso seria muito perigoso para nós — disse ele, completando o pensamento.

— Nós carregamos o sangue do Kwisatz Haderach delas, de seu Bene Gesserit macho.

— Elas não vão abandonar a busca, mas podem nos abandonar. Nossa avó poderia ser o instrumento.

— Há um outro modo — ele lembrou.

— Sim, nós dois... gerando um filho. Mas elas sabem que os recessivos poderiam complicar esse casamento.

— É um risco que devem ter discutido.

— E com nossa avó participando. Não gosto disso.

— Nem eu.

— Ainda assim, não é a primeira vez que uma linhagem real tenta...

— Isso me repugna — disse ele estremecendo. Ela sentiu o movimento e ficou em silêncio. — Poder.

E naquela estranha alquimia de similaridade ela soube onde seus pensamentos estavam.

— O poder do Kwisatz Haderach deve fracassar - ela concordou.

- Usado ao modo delas — disse ele.

Naquele instante, o dia raiou sobre o deserto, além de seu ponto de vista. Eles sentiram o início do calor. Cores saltaram das plantações abaixo do penhasco. Folhas verde-acinzentadas lançavam sombras pontudas sobre o solo. A tangente luz matinal do sol prateado de Duna revelava o oásis verdejante, cheio de sombras roxas e douradas, dentro do poço formado pelos penhascos protetores.

Leto levantou-se, esticando o corpo.

— O Caminho Dourado, então —  disse Ghanima. Falava tanto para si mesma quanto para ele, sabendo como a última visão de seu pai se fundia aos sonhos de Leto.

Alguma coisa roçou nos selos de umidade atrás deles, e foi possível ouvir vozes murmurando.

Leto retornou à antiga linguagem que ambos usavam para garantira privacidade:

— Lü ani hozvr samis sm'kavi ozvr ramit rut.

Foi quando a decisão se encaixou em suas consciências. Literalmente:

- “Acompanharemos um ao outro no perigo mortal, muito embora apenas um possa retornar para contar a história.”

Ghanima se levantou, então, e juntos atravessaram os selos de umidade, entrando no sietch, onde os guardas se levantaram e passaram a segui-los, enquanto os gêmeos se dirigiam a seus próprios alojamentos. Os grupos de pessoas abriam caminho para eles com deferência nessa manhã, trocando olhares com os guardas. Passar a noite sozinho sobre o deserto era um velho costume Fremen, reservado aos sábios sagrados. Todos os Uma haviam praticado essa forma de vigília. Paul Muad'Dib o fizera-o e Alia. Agora os gêmeos reais tinham começado.

Leto notou a diferença e a mencionou para Ghanima.

— Eles não sabem o que decidimos por eles — ela disse. Realmente não sabem.

Ainda na linguagem particular, ele disse:

— Isso exige o início mais casual.

Ghanima hesitou por um momento, dando forma a seus pensamentos. E então disse:

— Nessa ocasião, o luto por uma das crianças deve ser perfeitamente real... Até mesmo a construção de uma tumba. O coração deverá seguir o sono, para que não haja despertar.

Na antiga linguagem, essa era uma declaração extremamente complexa, empregando um objeto pronominal separado do infinitivo. Era uma sintaxe que permitia que cada conjunto interno de frases se voltasse para si mesmo, assumindo vários significados diferentes, todos definidos e distintos, mas sutilmente interrelacionados. Em parte, o que ela dissera era que arriscavam a vida com o plano de Leto morte real ou simulada, não fazia diferença. A mudança resultante seria como a morte, literalmente um “homicídio funeral”. E havia um significado adicional no todo que apontava acusadoramente a quem quer que sobrevivesse para relatar, ou seja: “fora com a parte viva”. Qualquer passo em falso negaria todo o plano, e o Caminho Dourado de Leto se tornaria um beco sem saída.

— Extremamente delicado —  concordou Leto, abrindo as cortinas enquanto entravam na antecâmara.

A atividade entre os criados parou apenas pelo espaço de uma batida de coração, enquanto os gêmeos passavam pelo corredor de teto em arco que levava aos alojamentos destinados a Lady Jessica.

— Você não é Osíris — relembrou-lhe Ghanima.

— Nem tentarei ser.

Ghanima o segurou pelo braço para detê-lo.

— Alia darratay haunus M'smow — avisou ela.

Leto olhou nos olhos da irmã. De fato, as ações de Alia deixavam um mau cheiro que sua avó devia ter notado. Reconhecido, ele sorriu para Ghanima. Ela misturara a antiga linguagem com as superstições Fremen para invocar um presságio tribal básico. M'smow, o odor fétido de uma noite de verão, era prenúncio de morte nas mãos dos demônios. E ísis fora a deusa-demônio da morte para as pessoas cujo idioma eles agora falavam.

— Nós, Atreides, temos uma reputação de audácia a manter —  disse ele.

— Assim, tomaremos o que precisarmos — replicou ela.

— Isso ou nos tornarmos requerentes ante nossa própria Regência. Alia gostaria disso.

— Mas nosso plano... — Ghanima deixou em suspenso. “Nosso plano”, ele pensou. Ela o compartilhava plenamente agora. Ele disse:

— Penso em nosso plano como um trabalho de shaduf. — Ghanima olhou para a ante-sala por onde haviam passado, sentindo os odores matinais com seu sentido de eterno começo. Apreciara o modo como Leto empregara sua linguagem particular. Trabalho de shaduf.

Era um voto de confiança. Ele dera ao plano o nome de um trabalho agrícola do gênero mais servil: fertilizar, irrigar, semear, transplantar, podar. E no entanto havia a implicação Fremen de que esses trabalhos ocorriam simultaneamente em Outro Mundo, onde simbolizavam o cultivo das riquezas da alma.

Ghanima observou o irmão, enquanto hesitavam na passagem da rocha.

Tornava-se cada vez mais óbvio para ela que ele estava pedindo em dois níveis:

1) pelo Caminho Dourado de sua visão e da de seu pai,

2) que ela o deixasse com liberdade para realizar a criação do mito, extremamente perigosa, que o plano gerava.

Isso a assustava. Haveria mais alguma coisa em sua visão pessoal que ele não compartilhara? Poderia ele se ver como uma figura com potencial para ser endeusada e liderar a humanidade em seu renascimento tal pai, tal filho? O culto do Muad'Dib tornara-se rançoso, fermentando na má administração de Alia e nos abusos desenfreados de um clero militar que reunia o poder dos Fremen. Leto desejava a regeneração.

“Ele está escondendo alguma coisa de mim”, percebeu ela.

Recapitulou o que ele lhe contara a respeito de seu sonho. Aquilo era de um realismo tão contundente que ele podia ficar caminhando durante horas, estonteado. E o sonho nunca variava, dissera.

— Eu estou sobre a areia, à luz amarela e brilhante do dia, e no entanto não há sol. De repente, percebo que eu sou o sol. Minha luz brilha como um Caminho Dourado. Ao perceber isso, saio de dentro de mim mesmo e me volto, esperando me ver como sol. Mas não sou o sol: sou um boneco de palitos, um desenho de criança com relâmpagos em ziguezague, representando os olhos, pernas e braços feitos de palitos. Há um cetro em minha mão, e é um cetro real: muito mais detalhado, em verdade, que a figura de palitos que o segura. O cetro se move e isso me assusta. Enquanto ele se move, eu me sinto desperto, e no entanto sei que estou sonhando. Então, percebo que minha pele está envolvida por alguma coisa... uma armadura que caminha junto com minha pele. Não posso ver essa armadura, mas eu a sinto. O terror me abandona então, pois essa armadura me dá a força de 10 mil homens.

Enquanto Ghanima olhava para ele, Leto tentou desvencilhar-se dela para continuar seu caminho em direção aos aposentos de Jessica. Ghanima resistiu.

— Esse Caminho Dourado pode não ser melhor que qualquer outro — ela disse.

Leto olhou para o piso de rocha entre eles, sentindo o forte retorno das dúvidas da irmã.

— Eu devo fazê-lo — disse ele.

— Alia está possuída — explicou ela. — E o mesmo poderia acontecer conosco. Já pode ter acontecido sem que nós sequer saibamos.

— Não — ele sacudiu a cabeça e a encarou. — Alia resistiu. Isso transmitiu força aos poderes que tem dentro de si. Por sua própria força, ela foi derrotada.

— Nós nos atrevemos a pesquisar lá dentro, procurando as antigas linguagens e os velhos conhecimentos. Já somos amálgamas das vidas que se encontram dentro de nós. Não resistimos, avançamos junto com elas. Foi isso que aprendi com nosso pai a noite passada. Era o que tinha a aprender.

— Ele não falou nada disso dentro de mim.

— Você escutou nossa mãe. Era o que nós...

— E quase perdi.

— Ela ainda é forte dentro de você? — O medo contraiu-lhe a face.

— Sim... mas agora penso que ela me protege com o seu amor. Você agiu muito bem quando discutiu com ela. — E Ghanima pensou no reflexo de sua mãe dentro dela, e disse: — Nossa mãe existe agora para mim no alam al-mythal, junto com os outros, mas provou do fruto do inferno. Agora posso ouvi-la sem medo. Como aos outros...

— Sim — concordou ele. — E eu ouvi meu pai, mas penso que estou realmente seguindo o conselho do avô cujo nome recebi. Talvez o nome torne tudo fácil.

— Você foi aconselhado no sentido de falar com nossa avó a respeito do Caminho Dourado?

Leto esperou que um criado passasse por eles com uma bandeja-cesto carregando o desjejum de Lady Jessica. Um forte aroma de especiaria espalhou-se no ar enquanto o criado passava.

— Ela vive em nós, assim como em sua própria carne — disse Leto. — Seus conselhos permitem uma segunda consulta.

— Não por mim — disse Ghanima. — Não vou correr aquele risco de novo.

— Então, por mim.

— Pensei que havíamos concordado em que ela retornara à Irmandade.

— De fato. Bene Gesserit em suas origens, ela própria no meio, e Bene Gesserit no final. Mas lembre-se que ela também carrega o sangue dos Harkonnen e está mais próxima deles do que nós. Ela tem experimentado uma forma dessa união interior que nós possuímos.

— Uma forma muito superficial — discordou Ghanima. — E você não respondeu minha pergunta.

— Não creio que eu vá mencionar o Caminho Dourado.

— Eu posso.

— Ghani!

— Não precisamos mais de um deus Atreides! Precisamos é de espaço para um pouco de humanidade!

— Alguma vez neguei isso?

— Não. — Ela respirou fundo e olhou na direção oposta à dele. Os criados olhavam para eles da antecâmara, ouvindo a discussão pelo tom de voz, mas incapazes de entender as antigas palavras.

— Nós temos de fazê-lo — ele disse. Se falharmos nisso, podemos muito bem cair sobre nossas facas. — Ele usou o termo Fremen que continha o sentido de “derramar nossa água na cisterna tribal”.

Uma vez mais, Ghanima olhou para ele. Foi forçada a concordar, mas se sentia aprisionada dentro de uma construção de muitas paredes. Ambos sabiam que o dia do ajuste de contas os esperava ao longo do caminho, não obstante o que fizessem. Ghanima sabia disso com uma certeza reforçada pelos dados reunidos a partir de todas aquelas vidas-memórias, mas agora temia a força que dera a todas aquelas psiques ao usar os dados de suas experiências de vida. Elas rondavam como harpias dentro dela, demônios sombrios aguardando para emboscá-la.

Exceto sua mãe, que tivera o poder sobre a carne e renunciara a ele.

Ghanima ainda se sentia abalada por aquela luta interior, sabendo que teria perdido, não fosse a capacidade persuasiva de Leto. Este dizia que seu Caminho Dourado conduzia para fora dessa armadilha.

Exceto pela incômoda percepção de que ele escondia alguma coisa de sua visão, ela só podia aceitar sua sinceridade.

Ele precisava da fértil criatividade dela para enriquecer seu plano.

— Seremos testados — ela disse, sabendo aonde levavam suas dúvidas.

— Não coma especiaria.

— Talvez até isso. Certamente no deserto e no julgamento de Possessão.

— Você nunca mencionou o julgamento de Possessão! — disse ela, acusadora. — Era parte de seu sonho?

Ele tentou engolir com a garganta seca, amaldiçoando o descuido que o fizera revelar-se.

— Sim.

— Então nós seremos... possuídos?

— Não.

Ela pensou a respeito do julgamento aquela prova ancestral dos Fremen cujo término quase sempre trazia a morte horrenda. Então, o plano de Leto tinha outras complexidades. Iria conduzi-los a um pico onde uma queda para qualquer um dos lados não poderia ser tolerada pela mente humana, de modo que esta permaneceria sã.

Sabendo para onde fluíam os pensamentos de Ghanima, Leto disse:

— O poder atrai os psicóticos. Sempre. Isso é o que temos de evitar dentro de nós mesmos.

— Tem certeza de que não vamos ser... possuídos?

— Não se criarmos o Caminho Dourado.

Ainda em dúvida, ela disse:

— Não vou gerar os seus filhos, Leto.

Ele sacudiu a cabeça, suprimindo os indícios que pudessem traí-lo uma vez mais, e mergulhou na forma real do antigo idioma.

— Irmã minha, eu a amo mais que a mim mesmo, mas esse não é meu desejo.

— Muito bem, vamos voltar então à outra questão antes de nos reunirmos à nossa avó. Uma faca enterrada em Alia poderia resolver a maioria dos nossos problemas.

— Se acredita nisso, então acredita que podemos caminhar no lodo sem deixar rastros. Além do mais, quando foi que Alia deu a alguém essa oportunidade?

— Há uma conversa a respeito de Javid.

— Duncan mostra algum sinal de estar criando chifres? — Ghanima deu de ombros.

Um veneno, dois venenos. Era o rótulo comumente aplicado ao hábito da realeza de catalogar os companheiros pela ameaça que representavam à sua pessoa, marca dos governantes em toda parte.

— Devemos fazê-lo ao meu modo — disse ele.

— Do outro jeito podia ser mais limpo.

Pela resposta, ele sabia que ela finalmente eliminara suas dúvidas e acabara concordando com o plano. Essa percepção não lhe trouxe satisfação alguma e ele se encontrou olhando para as próprias mãos e imaginando se a sujeira iria grudar.

 

Esta foi a conquista do Muad'Dib: Ele percebeu o reservatório subliminar de cada indivíduo como um banco inconsciente de memórias recuando até a célula prima de nossa gênese comum. Cada um de nós, ele disse, pode medir sua distância em relação a essa origem comum. Vendo isso, e com isso falando, ele chegou a uma audaciosa decisão. O Muad' Dib assumiu a tarefa de integrar a memória genética à contínua avaliação.

Assim ele penetrou nos véus do Tempo, tornando o futuro e o passado uma coisa única. Essa foi a criação do Muad'Dib, incorporada ao seu filho e à sua filha.

 

- O Testamento de Arrakis por Harq al-Ada

 

Faradin caminhava pelos jardins do palácio real de seu avô, observando as sombras se encurtarem enquanto o sol de Salusa Secundus subia em direção ao zênite. Precisava se esforçar um pouco para manter o passo com o alto Bashar que o acompanhava.

— Tenho dúvidas, Tvekanik — ele disse. — Oh, não há como negar a atração do trono, mas... — respirou fundo. — Tenho tantos interesses.

Tvekanik, recém-saído de violenta discussão com a mãe de Faradin, olhou de lado para o Príncipe, notando como a carne do rapaz estava se firmando agora que ele se aproximava de seu 18.° aniversário. Havia cada vez menos de Wensicia nele, a cada dia que se passava, e mais e mais do velho Shaddam, que preferira as ocupações pessoais às responsabilidades da realeza. Fora isso que lhe custara o trono no final, é claro. Ele se tornara brando na maneira de comandar.

— Terá que fazer uma escolha — disse Tvekanik. — Oh, sem dúvida haverá tempo para alguns de seus interesses, mas...

Faradin mordeu o lábio inferior. O dever o mantinha ali, mas se sentia frustrado. Teria preferido ir para o território rochoso onde se realizavam as experiências com a truta da areia. Aquele era um projeto com enorme potencial: tire o monopólio da especiaria das mãos dos Atreides e tudo poderá acontecer.

— Tem certeza de que esses gêmeos serão... eliminados?

— Nada é absolutamente certo, Meu Príncipe, mas as perspectivas são boas.

Faradin encolheu os ombros. O assassinato permanecia um dos fatos comuns na vida da realeza. O idioma estava cheio de sutis permutações no que se referia a modos de eliminar personalidades importantes. Com uma única palavra, era possível distinguir entre veneno na comida e veneno na bebida. Ele presumiu que a eliminação dos gêmeos Atreides seria realizada através de veneno. Não era um pensamento agradável. De acordo com todos os testemunhos, os gêmeos formavam um par muito interessante.

— Teríamos que nos mudar para Arrakis? — indagou Faradin.

— Seria a melhor opção, colocando-nos no ponto de maior pressão.

Faradin parecia estar evitando alguma pergunta e Tvekanik tentava imaginar qual poderia ser.

— Sinto-me perturbado, Tvekanik — disse Faradin, enquanto contornavam a extremidade de uma sebe e se aproximavam de uma fonte cercada por enormes rosas negras. Jardineiros podiam ser ouvidos podando além das sebes.

— Sim? — instigou Tvekanik.

— Essa, ah, religião que você professa...

— Nada de estranho quanto a ela, Meu Príncipe — respondeu Tvekanik, esperando que sua própria voz se mantivesse firme. — Esta religião fala ao guerreiro que existe em mim. É uma religião adequada a um Sardaukar. Isso, pelo menos, era verdadeiro.

— Ssim... mas minha mãe parece tão satisfeita com isso.

“Maldita Wensicia!”, pensou Tvekanik. “Deixou o filho desconfiado.”

— Eu não me importo com o que sua mãe pensa. A religião de um homem é assunto seu. Talvez ela perceba nisso alguma coisa que possa ajudá-la a colocá-lo no trono.

— Foi o que pensei — disse Faradin.

“Ahh, esse é um rapaz esperto!”, pensou Tvekanik, e disse:

— Olhe para esta religião por si mesmo, e verá imediatamente por que a escolhi.

— Ainda assim... orar ao Muad'Dib? Afinal de contas, ele era um Atreides.

— Só posso dizer que os caminhos divinos são misteriosos — respondeu Tvekanik.

— Percebo. Diga-me, Tvek, por que me convidou para caminhar com você justamente agora? É quase meio-dia e geralmente, a esta hora, você está em algum lugar, cumprindo ordens de minha mãe.

Tvekanik parou num banco de pedra que se voltava para a fonte e as rosas gigantes, além. A água caindo tinha um efeito tranquilizador e ele manteve a atenção sobre ela enquanto falava:

— Meu Príncipe, fiz uma coisa de que sua mãe pode não gostar. — E pensou: “Se ele acreditar nisso, o maldito esquema dela funcionará.” Tvekanik quase desejava o fracasso dos planos de Wensicia. “Trazer aquele maldito Pregador até aqui. Ela estava louca. E o custo!”

Como Tvekanik permanecesse em silêncio, esperando, Faradin indagou:

— Tudo bem, Tvek, que foi que você fez?

— Eu trouxe um praticante dá oniromancia.

Faradin olhou de modo penetrante para seu companheiro. Alguns dos Sardaukar mais velhos praticavam o jogo de interpretação dos sonhos, fazendo isso cada vez mais, desde sua derrota ante aquele “Supremo Sonhador”, o Muad'Dib. Em algum lugar dentro de seus próprios sonhos, eles raciocinavam, poderia haver um caminho de volta ao poder e à glória.

Entretanto, Tvekanik sempre se abstivera de tal prática.

— Isso não parece típico de você, Tyek — disse Faradin.

— Então, só posso falar por minha nova religião — ele disse, voltando-se para a fonte. Falar de religião era, evidentemente, o motivo pelo qual se tinham arriscado a trazer o Pregador.

— Então, fale dessa religião.

— Como Meu Príncipe ordena. — Ele voltou-se, olhando para aquele jovem que levava consigo todos os sonhos agora destilados no caminho que a Casa Corrino deveria seguir. — Igreja e Estado, Meu Príncipe, até mesmo fé e raciocínio científico, e mais ainda: progresso e tradição tudo isso está unido nos ensinamentos do Muad'Dib. Ele ensinou que não existem opostos irreconciliáveis, exceto nas crenças dos homens e, algumas vezes, em seus sonhos. Alguém pode descobrir o futuro no passado, ambos são partes de um todo.

A despeito das dúvidas, que não podia evitar, Faradin se sentiu impressionado por essas palavras. Percebeu uma nota de sinceridade relutante na voz de Tvekanik, como se o homem, ao falar, enfrentasse compulsões interiores.

— E foi por isso que me trouxe esse... esse intérprete de sonhos?

— Sim, Meu Príncipe. Talvez seu sonho tenha penetrado no Tempo. O senhor conquista a consciência de seu ser interior quando reconhece o universo como um todo coerente. Seus sonhos... bem...

— Mas eu falei casualmente dos meus sonhos — protestou Faradin. — São uma curiosidade, nada mais. Nem sequer uma vez suspeitei que fossem...

— Meu Príncipe, nada do que faz deixa de ter importância.

— Isso é muito lisonjeiro, Tvek. Acredita realmente que esse sujeito possa enxergar o coração dos grandes mistérios?

— Sim, Meu Príncipe.

— Então, deixe que minha mãe se aborreça.

— Irá vê-lo?

— É claro... já que o trouxe para desagradar minha mãe.

“Será que ele está zombando de mira?”, perguntou-se Tvekanik, e disse:

— Devo adverti-lo de que esse velho usa uma máscara. É um engenho ixiano que habilita os cegos a enxergarem através da própria pele.

— Ele é cego?

— Sim, Meu Príncipe.

— E sabe quem sou?

— Eu lhe contei, Meu Príncipe.

— Muito bem, vamos vê-lo.

— Se Meu Príncipe aguardar aqui por um momento, eu lhe trarei o homem.

Faradin olhou o jardim ao redor e sorriu. Um lugar tão bom quanto qualquer outro para essa tolice.

— Já lhe contou o que sonhei?

— Somente em termos gerais, Meu Príncipe. Ele vai lhe pedir um relato pessoal.

— Muito bem. Eu espero aqui. Traga o sujeito.

Faradin virou-lhe as costas e ouviu Tvekanik sair apressadamente. Um jardineiro podia ser visto trabalhando logo além da sebe, o topo de sua cabeça com o capuz marrom, o lampejo da tesoura cortando acima do verde.

O movimento era hipnótico.

“Esse negócio de sonhos é tolice”, pensou Faradin. “Foi errado da parte de Tvek fazer isso sem me consultar. Estranho que Tvek se tornasse religioso com essa idade. E agora são os sonhos.”

Daí a pouco ele ouviu passos atrás de si. As passadas decididas e familiares de Tvekanik e um andar mais arrastado. Faradin voltou-se, observando o intérprete de sonhos que se aproximava. A máscara ixiana era negra e parecia feita de gaze, ocultando o rosto desde a testa até embaixo do queixo. Não havia fendas para os olhos, já que, a se acreditar nas gabolices dos ixianos, a máscara toda era um olho.

Tvekanik parou a dois passos de Faradin, mas o velho mascarado aproximou-se a menos de um passo.

— O intérprete de sonhos — apresentou Tvekanik. Faradin assentiu com a cabeça.

O velho mascarado tossiu, quase um grunhido remoto, como se tentasse fazer alguma coisa subir-lhe do estômago.

Faradin encontrava-se agudamente consciente do cheiro acre de especiaria que o velho desprendia. Parecia emanar do longo manto cinza que lhe cobria o corpo.

— Essa máscara é verdadeiramente parte de sua carne? — indagou Faradin, percebendo que na verdade tentava atrasar a questão dos sonhos.

— Enquanto a uso — disse o velho, sua voz carregando um tom amargo e apenas uma sugestão de sotaque Fremen. — Seu sonho. Conte-me.

Faradin encolheu os ombros: “Por que não?” Para isso é que Tvek trouxera o velho, ou não? Dúvidas dominaram Faradin e ele perguntou:

— Você é realmente um praticante da oniromancia?

— Vim para interpretar seu sonho, Poderoso Senhor.

Novamente, Faradin encolheu os ombros. Essa figura mascarada o deixava nervoso, e ele olhou para Tvekanik, que continuava no lugar onde havia parado, braços cruzados, olhando para a fonte.

— Seu sonho, então — insistiu o velho.

Faradin respirou fundo e começou a contar o sonho. Tornava-se mais fácil falar à medida que ele se envolvia inteiramente na narrativa. E falou a respeito de um poço em que a água fluía para cima, de mundos que eram átomos dançando em sua cabeça, da cobra que se transformava num verme de areia e depois explodia numa nuvem de pó. Falando sobre a cobra, ficou surpreso ao descobrir que isso lhe exigia um esforço maior. Uma terrível relutância o inibia, deixando-o mais furioso enquanto falava.

O velho permaneceu impassível quando Faradin, afinal, ficou em silêncio.

A máscara de gaze negra movia-se ligeiramente com sua respiração. Faradin esperou. O silêncio continuava.

Daí a pouco, Faradin perguntou:

— Não vai interpretar o meu sonho?

— Já o interpretei — disse ele, a voz parecendo vir de longa distância.

— Então? — Faradin ouviu a própria voz, aguda, revelando-lhe a tensão que o sonho produzira.

Ainda assim, o velho permaneceu impassivelmente silencioso.

— Diga-me, então? — A raiva era óbvia em seu tom de voz.

— Eu disse que interpretaria. Não concordei em contar a interpretação.

Até mesmo Tvekanik se surpreendeu com isso, deixando cair os braços, os punhos contraídos.

— O quê? — perguntou ele com a voz rouca.

— Eu não disse que revelaria minha interpretação.

— Deseja mais dinheiro? — indagou Faradin.

— Não pedi pagamento quando fui trazido até aqui.

Um orgulho frio na resposta suavizou a ira de Faradin. Esse era um velho corajoso, em todo caso. Devia saber que a morte poderia seguir-se à desobediência.

— Deixe comigo, Meu Príncipe — pediu Tvekanik quando Faradin começava a falar. — Então, pode nos dizer por que não revelará sua interpretação?

— Sim, Meus Senhores. O sonho me diz que não haveria propósito em explicar essas coisas.

Faradin não pôde conter-se.

— Quer dizer que eu já sei o significado?

— Talvez saiba, Meu Senhor, mas essa não é minha preocupação.

Tvekanik colocou-se ao lado de Faradin, ambos olhando para o velho com fúria.

— Explique-se! — exigiu Tvekanik.

— Isso mesmo — acrescentou Faradin.

— Se eu falasse desse sonho, explorando esses assuntos de água e pó, cobras e vermes, analisando os átomos que dançam em sua cabeça, assim como na minha... Ah, Poderoso Senhor, minhas palavras só iriam confundi-lo e fazer com que insistisse no mal-entendido.

— Teme que suas palavras possam me enfurecer? — perguntou Faradin.

— Meu Senhor! Já está furioso.

— E porque não confia em nós? indagou Tvekanik.

— Chegou muito perto, Meu Senhor. Não confio em nenhum dos senhores e pela simples razão de que não confiam em si próprios.

— Você está perigosamente perto do limite — advertiu Tvekanik. — Homens já foram mortos por comportamentos menos atrevidos que o seu.

Faradin assentiu, dizendo:

— Não desafie a nossa ira.

— As consequências fatais da ira dos Corrino são bem conhecidas, Meu Senhor de Salusa Secundus.

Tvekanik colocou a mão no braço de Faradin para contê-lo e indagou:

— Está nos tentando a matá-lo?

Faradin havia pensado nisso e sentiu um arrepio ao imaginar o que tal comportamento poderia implicar. Seria esse velho, que Chamava a si mesmo de Pregador... seria ele mais do que aparentava? Quais seriam as consequências de sua morte? Criar um mártir podia ser perigoso.

— Eu duvido que me matem, não importa o que eu diga — afirmou o Pregador. — Creio que conhece meu valor, Bashar, e seu Príncipe agora dele suspeita.

— Você se recusa terminantemente a interpretar esse sonho? — perguntou Tvekanik.

— Já o interpretei.

— E não revelará o que viu?

— Culpa-me por isso, Meu Senhor?

— Como nos pode ser valioso? — perguntou Faradin.

O Pregador ergueu a mão direita.

— Se eu acenar com esta mão, Duncan Idaho virá a meu encontro e me obedecerá.

— Que tolice é essa? — admirou-se Faradin.

Mas Tvekanik sacudiu a cabeça, relembrando sua discussão com Wensicia, e disse:

— Pode ser verdade, Meu Príncipe. Este Pregador tem muitos seguidores em Duna.

— Por que não me disse que ele era desse lugar?

Antes que Tvekanik pudesse responder, o Pregador dirigiu-se a Faradin:

— Meu Senhor, não deve sentir-se culpado com relação a Arrakis. O Senhor é apenas um produto de sua época. Essa é uma justificativa especial a que qualquer homem pode recorrer quando suas culpas o perturbam.

— Culpas! — Faradin estava indignado. O Pregador apenas encolheu os ombros.

Curiosamente, isso fez com que a ira de Faradin se transformasse em divertimento. Ele riu, lançando a cabeça para trás e fazendo com que Tvekanik o olhasse, espantado.

— Gosto de você, Pregador.

— Isso muito me gratifica, Príncipe — respondeu o velho. Sufocando o riso, Faradin disse:

— Vamos conseguir-lhe um apartamento aqui no palácio. Será meu intérprete de sonhos oficial, mesmo que nunca me dê uma palavra da interpretação. E poderá ser meu conselheiro a respeito de Duna. Tenho grande curiosidade em relação àquele lugar.

— Isso eu não posso fazer, Príncipe.

Um pouco da raiva retornou e Faradin olhou, irado, para a máscara negra.

— E por que não, rezador?

— Meu Príncipe — Tvekanik falou novamente, tocando o braço de Faradin.

— O que é, Tvek?

— Nós o trouxemos aqui sob um acordo de compromisso com a Corporação. Ele deve ser levado de volta para Duna.

— Sou convidado a voltar para Arrakis — disse o Pregador.

— E quem o convoca? — quis saber Faradin.

— Um poder maior que o seu, Príncipe.

Faradin lançou um olhar indagador para Tvekanik.

— Será ele um espião dos Atreides?

— Não é provável, Meu Príncipe. Alia estabeleceu um preço por sua cabeça.

— Se não são os Atreides, então quem o chama? — perguntou Faradin, enquanto voltava sua atenção para o Pregador.

— Um poder maior que o dos Atreides.

Faradin deixou escapar uma risada. Isso era apenas tolice mística. Como Tvek pudera ser enganado por tal coisa? Esse Pregador fora convocado provavelmente por um sonho. E que importância tinham os sonhos?

— Isto é perda de tempo, Tvek. Por que me sujeitou a esta... farsa?

— Há uma dupla vantagem nisto, Meu Príncipe — explicou Tvekanik. — Este intérprete de sonhos prometeu entregar-nos Duncan Idaho, como agente da Casa Corrino. E tudo que pediu em troca foi encontrá-lo e interpretar seu sonho.

E Tvekanik acrescentou para si mesmo: “Ou assim ele disse a Wensicia!” Novas dúvidas acometiam o Bashar.

— Por que meu sonho lhe é tão importante, velho? — perguntou Faradin.

— Seu sonho me diz que grandes eventos se encaminham para a sua conclusão lógica. Devo apressar minha volta.

Zombando, Faradin perguntou:

— E assim permanecerá inescrutável, sem me conceder nenhum conselho.

— Os conselhos, Meu Príncipe, são uma comodidade perigosa. Mas vou arriscar algumas palavras que pode tomar como conselho ou então de qualquer outro modo que lhe agrade.

— Certamente — respondeu Faradin.

O Pregador manteve seu rosto mascarado confrontando rigidamente a face de Faradin.

— Governos podem erguer-se e cair devido a razões que parecem insignificantes, Meu Príncipe. Coisinhas pequenas! Uma discussão entre duas mulheres... para que lado o vento sopra em determinado dia... um espirro, uma tosse, o comprimento de um traje ou o choque casual de uma partícula de areia com o olho de um cortesão. Nem sempre são as preocupações majestosas dos ministros imperiais que ditam o curso da história, como não são necessariamente as afirmações dos sacerdotes que movem as mãos de Deus.

Faradin ficou profundamente excitado com essas palavras, sem que pudesse explicar suas emoções.

Tvekanik, entretanto, voltara sua atenção para uma frase. Por que esse Pregador falara em vestuário? A mente de Tvekanik focalizou-se nos trajes imperiais enviados aos gêmeos Atreides, nos tigres treinados para atacar. Estaria esse velho enunciando algum aviso sutil? O quanto ele saberia?

— Qual o conselho contido nisso? — perguntou Faradin.

— Para ter sucesso — disse o Pregador, — deve reduzir sua estratégia ao ponto de aplicação. Aonde se aplica a estratégia? A um lugar em particular, e tendo em mente uma pessoa em particular. Mas, mesmo com a maior consideração às minúcias, alguns pequenos detalhes, aos quais não se deu qualquer significação, podem escapar. Pode sua estratégia, Príncipe, ser reduzida às ambições da esposa de um governador regional?

Com a voz fria, Tvekanik interrompeu:

— Por que fica insistindo em estratégia, Pregador? Qual está pensando que será a de meu Príncipe?

— Ele está sendo levado a desejar o trono — respondeu o Pregador. — Eu lhe desejo boa sorte, mas ele vai precisar de muito mais que sorte.

— Essas são palavras perigosas — advertiu Faradin. — Como se atreve a dizer tal coisa?

— As ambições têm a tendência de permanecerem imperturbadas pela realidade.

— Eu me atrevo a dizer essas palavras porque o Senhor está em uma encruzilhada. Pode tornar-se admirável. Mas se encontra cercado por aqueles que não buscam justificativas morais, por assessores que se orientam unicamente pela estratégia. É jovem e forte, mas lhe falta certo treino avançado através do qual sua personalidade possa desenvolver-se. Isso é triste, pois o Senhor tem fraquezas cujas dimensões já descrevi.

— Que quer dizer com isso? — exigiu Tvekanik.

— Tenha cuidado quando fala — advertiu Faradin. — Que fraquezas são essas?

— O Senhor não pensou no tipo de sociedade que poderia preferir. Nem leva em consideração as esperanças de seus súditos. Até mesmo a forma do Império que busca não se cristalizou em sua imaginação. — O Pregador voltou seu rosto mascarado para Tvekanik. — Seus olhos voltam-se para o poder, mas não para a sutileza de seus usos e perigos. Assim, seu futuro se enche de coisas desconhecidas: mulheres discutindo, tosses e dias de vento. Como pode criar uma época sendo incapaz de enxergar todos os detalhes? Sua mente rija não lhe serve. Nesse ponto, ambos são fracos.

Faradin observou o velho por longo espaço de tempo, admirado com os profundos problemas implícitos em tais pensamentos e com a persistência de conceitos desacreditados. Moral! Objetivos sociais! Esses eram mitos que deviam ser colocados ao lado da crença no movimento ascendente da evolução.

Tvekanik disse:

— Já tivemos o suficiente em matéria de palavras. E quanto ao preço em que concordamos, Pregador?

— Duncan Idaho é seu respondeu o Pregador. Tenha cuidado no modo como vai usá lo. Ele é uma jóia inestimável.

— Oh, nós temos uma missão adequada para ele — disse Tve kanik, e olhou para Faradin.

— Com sua permissão, Meu Príncipe?

— Mande-o fazer as malas antes que eu mude de idéia — respondeu Faradin, e então olhou com raiva para Tvekanik. — Não gostei do modo como me usou, Tvek!

— Perdoe-o, Príncipe — disse o Pregador. Seu fiel Bashar executa a vontade de Deus mesmo sem conhecê-la.

Curvando-se, o Pregador partiu e Tvekanik correu para acompanhá-lo.

Faradin observou os dois se afastando e pensou: “Devo estudar essa religião que Tvek abraçou.” Depois sorriu amargamente. “Que intérprete de sonhos! Mas que importa? Meu sonho não era importante.”

 

E ele teve a visão de uma armadura. A armadura não era a sua própria pele, era mais forte que plasteel. Nada penetrava sua armadura: nem faca, veneno ou areia, nem a poeira do deserto ou seu calor ressecante. Em sua mão direita, ele carregava o poder de azar a tempestade Coriolis, sacudindo a terra e desgastando-a até o nada. Seus olhos estavam fixos sobre o Caminho Dourado e na mão esquerda ele tinha o cetro do domínio absoluto. E, além do Caminho Dourado, seus olhos penetravam na eternidade, que ele sabia ser o alimento de sua alma e de sua eterna carne.

 

- “Heighia, o Sonho de Meu Irmão” do Lavro de Chanima

 

— Seria melhor para mim que nunca me tornasse o Imperador — disse Leto. — Não quero dizer com isso que cometi o erro de meu pai e observei meu futuro num copo de especiaria. Não digo isso por egoísmo. Minha irmã e eu precisamos desesperadamente de um tempo de liberdade para aprendermos a viver com o que somos.

Ele ficou em silêncio, olhando indagadoramente para Lady Jessica. Falara sua parte, como havia combinado com Ghanima. E agora, qual seria a resposta de sua avó?

Jessica observou o neto à luz mortiça dos globos que iluminavam seus alojamentos no Sietch Tabr. Ainda era manhã cedo em seu segundo dia ali e ela já recebera relatórios perturbadores de que os gêmeos haviam passado a noite em vigília fora do sietch. Que estariam fazendo? Ela não dormira bem e sentia a fadiga cobrando que abandonasse o nível de hiperatividade que a sustentara através de todas as prementes necessidades e exigências, desde aquele desempenho crucial no espaçoporto. Esse era o sietch de seus pesadelos, mas lá fora não era o deserto que ela lembrava. “De onde vieram todas essas flores?” E o ar a seu redor parecia muito úmido. Os jovens estavam relaxando na disciplina do traje-destilador.

— Quem é você, criança, que precisa de tempo para aprender sobre si mesmo? — perguntou.

Ele sacudiu a cabeça suavemente, sabendo que esse seria um gesto estranhamente adulto num corpo de criança. Lembrou-se de que devia manter essa mulher desnorteada.

— Primeiro, não sou uma criança. Oh... — Levou a mão ao peito. — Este é um corpo de criança, sem dúvida alguma. Mas eu não sou uma criança.

Jessica mordeu o lábio superior, sem se importar com o que isso revelava.

Seu Duque, morto há tantos anos nesse maldito planeta, rira dela quando fizera isso, certa vez. “Sua única resposta descontrolada”, fora como chamara aquele morder de lábio. “Isso me diz que você está perturbada e que eu devo beijar esses lábios para lhes deter o tremor.”

Agora o neto, que tinha o mesmo nome de seu Duque, a deixava imóvel, com o coração batendo, ao meramente sorrir e dizer:

— A senhora está perturbada. Vejo pelo tremor de seus lábios. — Foi necessária a mais profunda disciplina Bene Gesserit para lhe restaurar uma aparência de calma. Conseguiu dizer:

— Está zombando de mim?

— Zombar? Nunca. Mas devo deixar claro o quanto somos diferentes. Permita-me lembrar-lhe daquela orgia no sietch, tanto tempo atrás, quando a Velha Reverenda Madre passou-lhe suas vidas e sua memória. Ela sintonizou-se com a senhora e lhe deu aquela... aquela longa tira de salsichas. Cada qual uma pessoa. A senhora ainda as tem. Assim, conhece um pouco do que eu e Ghanima sentimos.

— E Alia? — indagou Jessica, testando-o.

— Não discutiu isso com Gham?

— Desejo discutir com você.

— Muito bem. Alia negou o que era e acabou tornando-se aquilo que mais temia. O passado-interior não pode ser relegado ao inconsciente. Esse é um caminho perigoso para qualquer ser humano, mas para nós, que somos pré-nascidos, é pior que a morte. E isso é tudo que vou dizer a respeito de Alia.

— De modo que você não é uma criança.

— Tenho milhões de anos de idade. Isso exige ajustamentos que outros seres nunca tiveram de fazer antes.

Jessica assentiu, mais calma agora, e muito mais cautelosa do que fora com relação a Ghanima. E onde estava Ghanima? Por que Leto viera sozinho?

— Bem, minha avó. Somos Abominações ou somos a esperança dos Atreides?

Jessica ignorou a pergunta.

— Onde está sua irmã?

— Está distraindo Alia para evitar que sejamos perturbados. Isso é necessário. Mas Gham nada lhe diria além do que eu já disse. Não a observou ontem?

— O que observei ontem é problema meu. Por que você fica tagarelando a respeito de Abominação?

— Tagarelar? Não me venha com o seu jargão Bene Gesserit, vovó. Eu o devolverei à senhora, palavra por palavra, direto de suas próprias memórias. Quero mais do que um tremor em seus lábios.

Jessica sacudiu a cabeça, sentindo toda a frieza dessa... pessoa que tinha seu sangue. Os recursos de que ele dispunha a intimidavam. Tentou igualar-lhe o tom de voz, indagando:

— Que sabe de minhas intenções?

Ele fungou:

— Não precisa me perguntar se cometi o erro de meu pai. Não olhei para fora de nosso jardim do tempo... pelo menos não intencionalmente. Deixo o absoluto conhecimento do futuro para aqueles momentos de dejavu que todo ser humano pode experimentar. Eu conheço a armadilha da presciência. A vida de meu pai me revela tudo que eu preciso conhecer a respeito. Não, vovó: conhecer totalmente o futuro significa estar totalmente preso a esse futuro. Ele desmorona o Tempo. O Presente transforma-se no Futuro. Eu preciso de mais liberdade que isso.

Jessica sentiu sua língua contorcer-se com palavras pronunciadas. Como poderia responder-lhe com algo que ele já não conhecesse? Isso era monstruoso! “Ele sou eu! Ele é o meu amado Leto!” Esse pensamento deixou-a chocada. Momentaneamente, imaginou se esse rosto infantil não poderia amoldar-se àquelas adoráveis feições, fazendo renascer... “Não!”

Leto abaixou a cabeça e olhou para cima a fim de observá-la. Se era possível manobrá-la, apesar de tudo. E disse:

— Quando a senhora pensa em presciência, o que espero seja coisa rara, provavelmente não age diferentemente de outras pessoas. A maior parte das pessoas apenas imagina como seria ótimo saber a cotação de amanhã da pele de baleia. Ou se um Harkonnen voltará a governar seu mundo pátrio de Giedi Prime. Mas é claro que nós conhecemos os Harkonnen sem precisar de presciência, não conhecemos, vovó?

Ela recusou-se a morder-lhe a isca. É claro que ela sabia a respeito do amaldiçoado sangue Harkonnen em sua ascendência.

— Quem é um Harkonnen? — perguntou ele, provocando. — Quem é Rabban, a Besta? Qualquer um de nós, ah? Mas estou divagando. Quero falar do mito popular da presciência: conhecer totalmente o futuro! Todo ele! Que fortunas não poderiam ser construídas... e perdidas... com tal conhecimento absoluto, ah? A plebe acredita nisso. Acredita que, se um pouquinho é bom, mais deve ser melhor. Que maravilha! E se a senhora entregasse a um deles o cenário completo de sua vida, com cada diálogo imutável até o momento de sua morte... que presente infernal isso seria. Que tédio absoluto! A cada instante da vida, ele estaria encenando o que já conhecia de todo. Sem poder desviar-se. Poderia antecipar cada resposta, cada palavra... sempre, sempre, sempre... — Leto sacudiu a cabeça. — A ignorância tem suas vantagens. Um universo de surpresas é tudo que peço!

Fora uma longa declaração e Jessica se admirara, enquanto ouvia, de como suas entonações e maneirismos ecoavam seu pai, o filho que ela perdera. Até mesmo as idéias eram coisas que Paul poderia ter dito.

— Você me lembra seu pai — ela disse.

— Isso lhe é doloroso?

— De certo modo, mas é tranquilizador saber que ele ainda vive em você.

— Quão pouco compreende o modo como ele vive em mim. — Jessica sentiu-lhe o tom de voz calmo, mas carregado de amargura. Ela ergueu o queixo, olhando diretamente para ele. — Ou como o seu Duque vive em mim — acrescentou Leto.

— Vovó, Ghanima é a senhora! E o é de tal maneira que sua vida não lhe guarda um único segredo, até o instante em que deu à luz nosso pai. E quanto a mim! Que catálogo de recordações carnais eu sou. Há momentos em que parece demais para suportar. Veio aqui para nos julgar? Veio para julgar Alia? Melhor seria se nós a julgássemos!

Jessica tentou buscar uma resposta e não encontrou. Que ele estava fazendo? Por que essa ênfase em sua diferença? Será que ele buscava a rejeição? Teria chegado à mesma condição de Alia? A Abominação?

— Isto a perturba — disse ele.

— Sim, me perturba. — Ela se permitiu um fútil encolher de ombros. — Realmente me perturba, e por motivos que conhece muito bem. Tenho certeza de que reviu meu treinamento Bene Gesserit. Ghanima admite isso. Eu sei que Alia... o fez. Você tem consciência das consequências de sua diferença.

Ele a encarou com perturbadora intensidade.

— Por pouco não tomamos esse rumo com a senhora — disse ele, e havia um sentimento de fadiga que ela sentia a refletir-se na voz de Leto. — Conhecemos o tremular de seus lábios da maneira como seu amante o conhecia. Qualquer elogio que seu Duque lhe sussurrou na cama é parte de nossas lembranças. E nós aceitamos isso, intelectualmente, sem dúvida. Mas eu a previno de que a aceitação intelectual não é o bastante. Se um de nós se tornar uma Abominação, poderá ser obra sua dentro de nós! Ou de meu pai... ou de minha mãe! Do seu Duque! Qualquer um de vocês poderia possuir-nos... e o resultado seria o mesmo.

Jessica sentiu algo a lhe queimar o peito, uma umidade nos olhos.

— Leto... — Conseguiu usar-lhe o nome, afinal. E descobriu que a dor era menor do que imaginara, forçando-se a continuar. — Que você quer de mim?

— Eu poderia ensinar à minha avó.

— Ensinar-me o quê?

— Noite passada, eu e Gham desempenhamos o papel de mãe e pai até quase nos destruirmos, mas aprendemos muito. Existem coisas que uma pessoa pode conhecer, se tiver consciência de sua condição. Ações podem ser previstas. Alia, bem... é certo que ela trama raptá-la.

Jessica piscou, chocada com a rápida acusação. Conhecia bem o truque, tendo-o empregado muitas vezes: coloque uma pessoa seguindo uma linha de raciocínio e então introduza o choque a partir de outra linha. Ela se recobrou respirando fundo.

— Sei o que Alia tem feito... o que ela é, mas...

— Vovó, tenha pena dela. Use seu coração assim como sua inteligência. Já fez isso antes. A senhora representa uma ameaça e Alia quer o Império só para ela... pelo menos a coisa em que ela se tornou deseja isso.

— Como vou saber que isso não é outra Abominação falando?

Ele encolheu os ombros.

— É aí que entra o seu coração. Gham e eu sabemos como ela caiu. Não é fácil ajustar-se ao clamor daquela multidão interior. Suprima-lhes os egos e eles virão se aglomerando cada vez que invocar uma memória. Um dia... — ele engoliu em seco — um membro mais forte daquela matilha interior decide que é hora de partilhar a carne.

— E não há nada que se possa fazer? — perguntou ela, embora temesse ouvir a resposta.

— Nós acreditamos que existe alguma coisa... sim. Não podemos sucumbir ante a especiaria. Isso é o mais importante. E não devemos suprimir inteiramente o passado. Devemos usá-lo, transformá-lo num amálgama. Para finalmente fundirmos todos eles em nós mesmos. Não seremos mais aqueles que éramos originalmente... mas não estaremos possuídos.

— Você fala de um plano para me sequestrar.

— Isso é óbvio. Wensicia tem ambições em relação a seu filho. Alia é ambiciosa por si mesma, e...

— Alia e Faradin?

— Isso não é indicado — ele disse. — Mas Alia e Wensicia seguem cursos paralelos agora mesmo. Wensicia tem uma irmã na casa de Alia. Que coisa mais simples que uma mensagem para..

— Tem conhecimento de tal mensagem?

— Como se tivesse visto e lido cada palavra.

— Mas não viu a mensagem?

— Não era preciso. Só preciso saber que todos os Atreides estão reunidos em Arrakis. Toda a água em uma única cisterna. — Fez um gesto abrangendo todo o planeta.

— A Casa Corrino não se atreveria a nos atacar aqui!

— Alia lucraria com isso se eles o fizessem. — Um tom de desprezo na voz dele a provocou.

— Não permitirei que meu próprio neto me trate desse modo! — disse ela.

— Então, dane-se, mulher! Pare de pensar em mim como seu neto! Pense em mim como seu Duque Leto! — O tom de voz e a expressão facial, até mesmo o gesto brusco com a mão, foram tão exatos que ela se calou, confusa.

Com voz seca e distante, Leto disse:

— Eu tentei prepará-la. Reconheça isso, pelo menos.

— Por que Alia me sequestraria?

— Para pôr a culpa na Casa Corrino, sem dúvida.

— Não acredito nisso. Mesmo para ela, seria... monstruoso! Muito perigoso! Como ela poderia fazê-lo sem... Não posso crer nisso!

— Quando acontecer, vai acreditar. Ahh, vovó, Gham e eu só temos que escutar dentro de nós mesmos para saber. É um simples caso de auto-preservação. De que outro modo poderíamos perceber os erros que são cometidos à nossa volta?

— Nem por um minuto aceito que o rapto seja parte dos planos de Alia para...

— Deus do céu! Como uma Bene Gesserit pode ser tão estúpida? O Império inteiro suspeita dos motivos pelos quais está aqui. Os propagandistas de Wensicia estão preparados para desacreditá-la. Alia nem pode esperar que isso aconteça. Se você cair, a Casa Atreides sofrerá um golpe mortal.

— E de que o Império suspeita?

Ela mediu suas palavras tão friamente quanto possível, sabendo que não poderia dobrar essa não-criança com algum truque da Voz.

— De que Lady Jessica planeja unir os gêmeos para a procriação! — disse ele em voz estridente. — Isso é o que a Irmandade deseja. Incesto!

Jessica piscou os olhos.

— Tolo rumor. — Engoliu em seco. — As Bene Gesserits não permitirão que tal boato se espalhe descontroladamente pelo Império. Ainda temos alguma influência. Lembre-se disso.

— Boato? Que boato? Vocês certamente mantiveram aberta a opção de nos unir para a procriação. — Ele sacudiu a cabeça quando ela começou a falar. — Não negue isso. Deixe-nos passar a puberdade vivendo na mesma casa, e a senhora naquela casa, e sua influência sobre os boatos não será mais que um trapo sacudido na frente de um verme da areia.

— Acredita que sejamos completas idiotas? — perguntou Jessica.

— De fato acredito. Sua Irmandade não é mais que um punhado de mulheres velhas e tolas que não pensaram em nada além de seu precioso projeto de procriação! Gham e eu sabemos do trunfo que elas possuem. Vocês pensam que nós somos tolos?

— Trunfo?

— Elas sabem que a senhora é uma Harkonnen! Está escrito em seus registros de procriação: Jessica gerada em Tanidia Nerus pelo Barão Vladimir Harkonnen. Esse registro, tornado público acidentalmente, arrancaria suas garras...

— Você pensa que a Irmandade iria rebaixar-se à chantagem?

— Eu sei o que ela faria. Oh, elas souberam como dourar a pílula. Disseram-lhe que investigasse os rumores a respeito de sua filha. Alimentaram sua curiosidade e seus temores. E invocaram seu senso de responsabilidade, fazendo com que se sentisse culpada por ter fugido para Caladan. E lhe ofereceram a perspectiva de poder salvar seus netos.

Jessica só podia fitá-lo em silêncio. Era como se ele houvesse presenciado aquele encontro emocional com as procuradoras da Irmandade.

Sentiu-se completamente vencida por suas palavras e agora começava a aceitar a possibilidade de que ele estivesse falando a verdade quando dizia que Alia planejava o rapto.

— Como vê, vovó, tenho uma decisão difícil a tomar — ele disse. — Devo seguir a mística dos Atreides? Viver para meus súditos... ou morrer por eles? Ou devo escolher outro caminho. Um caminho que me permitiria viver milhares de anos?

Jessica estremeceu involuntariamente. Essas palavras, ditas com tal tranquilidade, tocavam num assunto que as Bene Gesserits tornavam quase impensável. Muitas Reverendas Madres poderiam escolher aquele caminho... ou tentá-lo. A manipulação da química interna do corpo era disponível às iniciadas na Irmandade. Mas se uma o fizesse, cedo ou tarde todas iriam tentar. E não haveria meio de ocultar tal acumulação de mulheres imunes à velhice. Elas sabiam com certeza que tal caminho as conduziria à destruição. A humanidade de vida curta se voltaria contra elas. Não... era impensável.

— Não gosto do curso dos seus pensamentos — disse ela.

— A senhora não entende meus pensamentos. Gham e eu... — Ele sacudiu a cabeça. — Alia teve isso ao seu alcance e jogou fora.

— Tem certeza disso? Já enviei mensagem à Irmandade avisando que Alia pratica o impensável. Olhe para ela! Ela não envelheceu um dia desde que eu...

— Oh, isso! — ele rejeitou a possibilidade do equilíbrio corporal Bene Gesserit com um aceno de sua mão. — Estou falando de alguma coisa a mais: uma perfeição de ser muito além de qualquer coisa que os seres humanos jamais conseguiram.

Jessica permaneceu em silêncio, horrorizada com a maneira fácil com que ele lhe arrancara sua descoberta. Ele saberia, com certeza, que tal mensagem representava uma sentença de morte para Alia. E não importava o modo como ele mudasse o fraseado, só podia estar falando em cometer a mesma ofensa. Será que não conhecia o perigo contido em suas palavras?

— Deve explicar-se — conseguiu ela dizer finalmente.

— Como? — ele indagou. — A menos que entenda que o Tempo não é o que parece, não poderei nem começar a explicar. Meu pai suspeitava disso. Ele chegou à beira da compreensão, mas recuou. Agora é tarefa minha e de Gham.

— Insisto em que explique — exigiu Jessica enquanto segurava a agulha envenenada guardada em uma dobra de seu manto. Tratava-se do gom jabbar, tão mortal que a menor picada mataria em questão de segundos. E ela pensou: “Elas me avisaram que eu poderia ser obrigada a usá-lo.” O pensamento enviava ondas de tremores através dos músculos de seu braço, e Jessica sentia-se grata pelo manto a ocultar-lhe o corpo.

— Muito bem — ele suspirou. — Primeiro quanto ao Tempo. Não há diferença entre 10 mil anos e um ano, nenhuma diferença entre 100 mil anos e o espaço da batida de um coração. Nenhuma diferença. Esse é o primeiro fato a respeito do Tempo. E o segundo fato: o universo inteiro, com todo o seu Tempo, encontra-se dentro de mim.

— Que tolice é essa?

— Está vendo? A senhora não compreende. Vou tentar explicar de outro modo, então. — Ergueu a mão direita para ilustrar, movendo-a enquanto falava. — Nós avançamos, nós recuamos.

— Essas palavras não explicam nada!

— Isso é correto — ele disse. — Há coisas que as palavras não podem explicar. Deve-se experimentá-las sem palavras. Mas não está preparada para tal aventura, exatamente como quando olha para mim e não me vê.

— Mas... Eu estou olhando diretamente para você. É claro que eu o vejo!

Olhou furiosa para o menino. Suas palavras refletiam o conhecimento do Codex Zenzunni, tal como lhe havia sido ensinado nas escolas Bene Gesserit: um jogo de palavras para confundir o conhecimento filosófico de alguém.

— Algumas coisas acontecem além de seu controle — ele disse.

— E como isso explica essa... essa perfeição tão além das demais experiências humanas?

Ele acenou com a cabeça.

— Se alguém retarda a velhice ou a morte pelo uso da melange ou pelo ajustamento do equilíbrio corporal aprendido, que vocês Bene Gesserits temem com razão, tal retardo apenas invoca uma ilusão de controle. Se alguém caminha rapidamente ou lentamente através de um sietch, atravessa do mesmo modo. E essa passagem do tempo é vivenciada internamente.

— Por que você joga com as palavras dessa maneira? Eu afiava minha sabedoria com essas tolices antes mesmo que seu pai houvesse nascido.

— E terá a sabedoria aumentado?

— Palavras, palavras!

— Ah, está chegando perto!

— Hein?

— Vovó?

— Sim?

Ele permaneceu em silêncio por longo momento. Depois disse:

— Está vendo? Ainda pode responder por si mesma. — Sorriu para ela. — Mas não é capaz de ver além das sombras. Eu estou aqui. — Novamente ele sorriu. — Meu pai chegou muito perto disso. Quando viveu, ele viveu, mas quando morreu fracassou na morte.

— Que está dizendo?

— Mostre-me seu corpo!

— Acredita que esse Pregador É possível, mas, ainda assim, aquele não é o seu corpo.

— Não está explicando nada — ela acusou.

— Exatamente como adverti.

— Então por que...

— Porque perguntou. Eu tinha de lhe mostrar. Agora vamos voltar a Alia e seus planos de sequestro...

— Está planejando o impensável? — ela exigiu saber, segurando o venenoso gom jabbar pronto para uso embaixo de seu manto.

— Seria o carrasco dela? — perguntou ele por sua vez, a voz falsamente branda. E apontou o dedo para a mão que ela ocultava sob o manto. — Pensa que ela lhe daria a chance de usar isso? Ou que eu permitirei que o use?

Jessica descobriu-se incapaz de engolir.

— Em resposta à sua pergunta, não planejo o impensável — ele disse. — Não sou tão estúpido. Mas fiquei chocado com a senhora. Atreve-se a julgar Alia. É claro que ela quebrou o precioso mandamento Bene Gesserit! Que esperava dela? Você fugiu dela, deixando-a como rainha em tudo menos no nome. Todo aquele poder! Enquanto fugia para Caladan, para curar seus ferimentos nos braços de Gurney. Muito bem. Mas quem é a senhora para julgar Alia?

— Eu lhe avisei. Não vou per...

— Ora, cale-se!

Ele voltou o rosto na direção oposta a ela, enfastiado. Entretanto, suas palavras haviam sido pronunciadas naquele modo especial das Bene Gesserits a Voz controladora. Aquilo a silenciou como se lhe houvessem tapado a boca. E ela pensou: “Quem saberia como me atingir com a Voz melhor do que ele?” Era um argumento consolador que aliviava seus sentimentos feridos. Como muitas vezes ela usara a Voz com outras pessoas, jamais esperara ser-lhe suscetível... não de novo... não desde seus dias de escola, quando...

Ele voltou-se novamente para ela.

— Sinto muito. É só que sei o quão cegamente se espera que reaja a...

— Cegamente? Eu? — Mostrou-se mais indignada com isso do que ficara por seu excelente uso da Voz contra si.

— Sim — ele disse. — Cegamente. Se ainda lhe resta alguma honestidade, vai reconhecer suas próprias reações. Eu chamo seu nome e a senhora diz “Sim?”. Eu silencio a sua língua. Invoco todos os seus mitos Bene Gesserit. Olhe seu interior do modo como lhe foi ensinado. Isso, pelo menos, é algo que pode fazer por sua...

— Como se atreve! O que sabe do... — Sua voz calou-se. É claro que ele sabia!

— Olhe o seu interior, eu digo! — Sua voz era imperiosa.

Novamente, a voz dele a dominou. Jessica sentiu os sentidos paralisados, a respiração acelerada.

Muito além de sua consciência espreitava um coração batendo, a respiração cansada de um...

De repente, percebeu que a respiração acelerada, o coração batendo não eram latentes, não eram controláveis por seu domínio Bene Gesserit. Com os olhos se dilatando no choque da descoberta, sentiu a própria carne sendo controlada por outros. Lentamente, recuperou a pose, mas a consciência permaneceu. Durante toda a entrevista, essa não-criança tocara suas reações como se ela fosse um instrumento afinado.

— Agora sabe o quão profundamente foi condicionada por suas preciosas Bene Gesserits — disse ele.

Ela só podia assentir afirmativamente. Sua crença nas palavras fora destroçada. Leto a forçara a olhar seu próprio universo físico bem de cara, e ela ficara abalada, a mente fugindo com uma nova consciência das coisas. “Mostre-me seu corpo!” Ele lhe mostrara o próprio corpo como se ela fosse uma recém-nascida. Isso não lhe acontecia desde seus primeiros dias de escola em Wallach, desde aqueles dias aterrorizantes antes que os compradores do Duque a viessem buscar. Desde então, não sentia tal incerteza assustadora quanto a seus próximos instantes de vida.

— Vai permitir que a sequestrem — disse Leto.

— Mas...

— Não estou pedindo para discutir isso. Vai permitir o sequestro. Pense nisso como uma ordem do seu Duque e verá seus motivos quando estiver feito. Vai confrontar um estudante muito interessante.

Leto levantou-se e acenou. Depois disse:

— Alguns atos têm um fim, mas não um começo, outros começam e não terminam. Tudo depende de onde se coloca o observador. — Voltando-se, deixou os aposentos.

Na segunda antecâmara, Leto encontrou Ghanima, correndo para seus aposentos particulares. Ela parou quando o viu e disse:

— Alia está ocupada com a Assembléia da Fé. — Depois olhou indagadoramente para a passagem que conduzia aos aposentos de Jessica.

 

A Atrocidade é reconhecida como tal igualmente por aquele que a sofre como por aquele que a comete, e por todos que dela tomam conhecimento em qualquer lugar. Não existem desculpas para a atrocidade, nenhum argumento que a alivie. A atrocidade nunca equilibra ou corrige o passado. Meramente prepara o futuro para mais atrocidades. Ela é auto-perpetuadora... uma forma bárbara de incesto. Quem quer que cometa atrocidades torna-se também responsável pelas futuras atrocidades assim geradas.

 

- Os Apócrifos do Muad'Dib

 

Pouco depois do meio-dia, quando a maioria dos peregrinos se afastara para se refrescar em uma sombra ou fonte de bebida que pudesse encontrar, o Pregador entrou no grande quadrado abaixo do Templo de Alia, guiado pela mão de seus olhos alugados, o jovem Assan Tariq. Num bolso debaixo de seu manto fluido, o Pregador levava a máscara de gaze negra que usara em Salusa Secundus. Divertia-lhe o pensamento de que a máscara e o rapaz serviam ao mesmo propósito: disfarce. Enquanto precisasse de olhos alugados, as dúvidas permaneceriam.

“Deixe que o mito cresça, mas mantenha as dúvidas bem vivas”, pensava.

Ninguém devia saber que a máscara era apenas pano, e não um artefato ixiano. Sua mão não devia deixar o ombro ossudo de Assan Tariq. Permita que o Pregador caminhe apenas uma vez como os dotados de visão, a despeito de suas órbitas vazias, e todas as dúvidas se dissolverão. A pequena esperança que ele nutria estaria morta. A cada dia ele orava por uma mudança, alguma coisa diferente na qual pudesse tropeçar, mas até mesmo Salusa Secundus fora um seixo, cada aspecto conhecido. Nada mudara, nada podia ser modificado... ainda.

Muitas pessoas notaram sua passagem pelas lojas e arcadas, observando a maneira como ele voltava a cabeça para um lado e para o outro, mantendo-a centrada sobre um portal ou uma pessoa. Os movimentos de sua cabeça nem sempre eram os que se esperariam de um cego, e isso alimentava o mito crescente.

Alia observava de uma abertura em forma de fenda na elevada ameia de seu templo. Examinava aquela face cheia de cicatrizes lá embaixo buscando um sinal... um indício preciso de sua identidade. Todos os rumores lhe eram relatados. E cada um chegava com a emoção do medo.

Pensara que suas ordens para aprisionar o Pregador permaneceriam secretas, mas estas também lhe retornavam agora como boatos. Mesmo entre seus guardas, alguém não conseguia ficar calado. Esperava agora que a guarda seguisse suas novas ordens e não capturasse esse mistério envolto em mantos num lugar público, onde tudo pudesse ser visto e relatado.

A praça estava quente e poeirenta. O jovem guia do Pregador puxara o véu de seu manto sobre o nariz, deixando apenas os olhos escuros e um estreito trecho da testa descobertos. O véu inchava com os contornos do tubo de recolhimento do traje-desolador. Isso revelava a Alia que eles tinham vindo do deserto. Onde será que se escondiam por lá?

O Pregador não usava um véu protetor contra o ar ressecante. Chegara mesmo a abaixar a dobra do tubo recolhedor de seu traje, sua face encontrando-se descoberta para a luz do sol e o calor tremeluzente que se erguia em ondas visíveis dos blocos da pavimentação.

Nos degraus do Templo, encontrava-se um grupo de nove peregrinos fazendo sua mesura de despedida. O lado da praça abrigado pelas sombras devia conter mais umas 50 pessoas, a maioria peregrinos devotando-se às várias penitências impostas pelo clero. Entre as testemunhas encontrar-se-iam mensageiros e alguns mercadores que ainda não haviam vendido o suficiente para fecharem durante a parte mais quente do dia.

Observando da fenda, Alia sentia o calor suarento e encontrava-se presa entre o pensamento e a sensação, do modo como frequentemente vira acontecer com seu irmão. A tentação de consultar seu interior ressoava como um zumbido funesto em sua cabeça. O Barão estava lá: ocupado, mas sempre pronto a jogar com seus temores quando o julgamento racional falhava e as coisas ao redor perdiam o senso de passado, presente e futuro.

“E se aquele lá for Paul?”, perguntou-se.

— Tolice — respondeu a voz dentro dela.

Mas não se podia duvidar dos relatos sobre as palavras do Pregador.

“Heresia!”

Pensar que o próprio Paul pudesse derrubar a estrutura erguida sobre seu nome era algo que a aterrorizava.

“Por que não?”

E pensou no que dissera durante o Conselho daquela manhã, quando se voltara raivosamente contra Irulan, insistindo em apressar a aceitação das roupas enviadas como presente pela Casa Corrino.

— Todos os presentes para os gêmeos serão examinados minuciosamente, como de costume — argumentara Irulan.

— E quando considerarmos o presente inofensivo? — gritara Alia.

De algum modo, aquela fora a coisa mais assustadora de todas: descobrir que o presente não acarretava qualquer ameaça.

No final, eles haviam aceito os finos tecidos e passado para a outra questão em debate: seria concedida a Lady Jessica uma posição no Conselho? Alia conseguira adiar a votação.

Pensava nisso enquanto olhava para o Pregador, lá embaixo.

As coisas que aconteciam com sua Regência eram agora como a outra face das transformações que haviam sido impostas ao planeta. Duna já simbolizara o poder do derradeiro deserto. Esse poder encolhera fisicamente, mas seu mito crescera, tomando corpo. Somente o deserto- oceano permanecia, o grande Deserto-Mãe do interior do planeta, com sua orla de espinheiros, que os Fremen ainda Chamavam de Rainha da Noite. Por trás dos arbustos espinhentos, erguiam-se suaves colinas verdes ondulando para a areia. Todas as colinas tinham sido feitas pelo homem. Cada uma delas fora plantada por homens que haviam trabalhado como insetos rastejantes. O verde daquelas colinas era quase acabrunhante para alguém criado, como Alia o fora, na tradição das areias sombreadas de castanho.

Em sua mente, assim como na de todos os Fremen, o deserto-oceano ainda prendia Duna com garras que nunca relaxariam. Ela só tinha de fechar os olhos para tornar a ver esse deserto.

Quem agora abrisse os olhos na orla do deserto veria as colinas verdejantes, o limo do pântano estendendo verdes pseudópodes em direção às areias mas o outro deserto permanecia poderoso como sempre.

Alia sacudiu a cabeça e olhou para o Pregador.

Ele alcançara o primeiro dos terraços-degraus abaixo do Templo e voltara o rosto para a praça quase deserta. Alia tocou no botão abaixo de sua janela, que amplificava as vozes lá de baixo. Sentia uma onda de autopiedade, vendo-se presa ali, em sua solidão. Em quem poderia confiar?

Pensara que Stilgar permaneceria digno de sua confiança, mas também ele fora afetado por esse cego.

— Você sabe como ele conta? — perguntara-lhe Stilgar. — Eu o ouvi contando moedas enquanto pagava seu guia. Foi muito estranho para meus ouvidos de Fremen, e isso é uma coisa terrível. Ele conta: “shuc, ishcai, qimsa, chuascu, picha, sucta” e assim por diante. Não ouço alguém contando desse modo desde os velhos dias no deserto.

Com isso, Alia percebera que Stilgar não poderia ser enviado para realizar o trabalho que precisava ser feito. E teria de ser cautelosa com sua guarda, onde a mais leve ênfase da Regência tendia a ser recebida como uma ordem absoluta.

O que esse Pregador estaria fazendo ali?

O mercado circundante, debaixo de suas galerias e arcadas protetoras, ainda apresentava um aspecto vistoso: mercadorias deixadas em exposição sob a guarda de alguns meninos. Uns poucos mercadores permaneciam despertos, farejando biscoitos de especiaria, dinheiro do interior ou o tilintar da bolsa de um peregrino.

Alia observou as costas do Pregador. Ele parecia pronto a falar, mas alguma coisa ainda continha sua voz.

“Por que me coloco aqui, olhando aquela ruína de carne ancestral?”, perguntou-se ela. “Aquele destroço ambulante lá embaixo não pode ser o “vaso de magnificência” que um dia foi. Um sentimento fronteiriço entre a frustração e a raiva a dominou. Como ela poderia descobrir o que precisava a respeito do Pregador, descobrir com certeza, sem verificar? Encontrava-se tolhida. Não se atrevia a revelar mais que uma curiosidade passageira a respeito desse herege.

Irulan percebia isso. Ela perdera sua famosa pose de Bene Gesserit e gritara em Conselho:

— Nós perdemos a capacidade de pensar bem de nós mesmos! — Até mesmo Stilgar ficara chocado.

Javid lhes restituíra a calma, dizendo:

— Não temos tempo para essa tolice!

Javid estava certo. Que importava o que eles pensavam de si mesmos? O importante era manter o poder imperial. Mas Irulan, recuperando sua pose, fora ainda mais devastadora:

— Nós perdemos alguma coisa vital, eu lhes digo. E quando a perdemos, perdemos também a capacidade de tomar boas decisões. Tomamos nossas decisões hoje em dia tal como tomamos uma posição inimiga. Ou então esperamos e esperamos, o que é uma forma de desistência, e permitimos que as decisões dos outros ditem nosso comportamento. Será que nos esquecemos de que fomos nós que fizemos fluir essa corrente?

E tudo isso em torno da aceitação do presente da Casa Corrino.

Irulan teria de ser eliminada, decidiu Alia.

O que aquele homem lá embaixo estava esperando? Chamava a si mesmo de Pregador. Então, por que não pregava?

Irulan estava errada quanto à nossa capacidade de tomar decisões, disse Alia a si mesma. “Eu ainda posso tomar as decisões necessárias!” Uma pessoa com decisões de vida ou morte a serem tomadas deve tomá-las ou permanecer presa a um pêndulo. Paul sempre dissera que a êxtase era a mais perigosa das coisas não-naturais. A única permanência era a fluidez.

A mudança era tudo o que importava.

“Eu lhes mostrarei o que é mudança!”, pensou Alia.

O Pregador ergueu os braços numa bênção.

Alguns dos que permaneciam na praça aproximaram-se dele e Alia notou a lentidão com que se moviam. Sim, corriam boatos de que o Pregador desagradava a Alia. Ela curvou-se próximo do fone ixiano, ao lado da abertura de espionagem. O alto-falante trouxe-lhe os murmúrios das pessoas na praça, o som do vento, o arranhar de pés na areia.

— Eu lhes trago quatro mensagens! — disse o Pregador. Sua voz gritou no alto-falante e ela abaixou o volume.

— Cada mensagem destina-se a determinada pessoa — disse o Pregador. — A primeira mensagem é para Alia, suserana deste lugar. — E ele apontou para trás, na direção da fenda de onde ela espionava. — Eu lhe trago uma advertência: você, que tem no ventre o segredo da permanência, vendeu seu futuro por uma bolsa vazia!

“Como ele se atreve?”, pensou ela, mas as palavras a imobilizaram.

— Minha segunda mensagem — disse o Pregador — é para Stilgar, o Naib Fremen que acredita poder traduzir o poder das tribos em poder imperial. Meu aviso a você, Stilgar: a mais perigosa de todas as criações é um rígido código de ética. Ele se voltará contra você e o levará ao exílio!

“Ele já foi longe demais”, pensou Alia. “Devo mandar os guardas, não importa quais sejam as consequências.” Mas suas mãos permaneceram abaixadas.

O Pregador voltou-se para encarar o Templo, subiu o segundo degrau e uma vez mais se voltou para a praça, o tempo todo mantendo a mão esquerda sobre o ombro de seu guia. E gritou novamente:

— Minha terceira mensagem é para a Princesa Irulan. Princesa! A humilhação é algo que ninguém pode esquecer. Eu a aviso para que fuja!

“O que ele está dizendo?”, indagou-se Alia. “Nós humilhamos Irulan, mas... Por que ele a avisa para fugir? Minha decisão acabou de ser tomada!” Um arrepio de medo propagou-se através de Alia. “Como esse Pregador poderia saber?”

— Minha quarta mensagem é para Duncan Idaho — gritou ele. — Duncan, você aprendeu a acreditar que lealdade compra lealdade. Oh, Duncan, não creia na história pois a história é impelida por qualquer coisa que sirva como dinheiro. Duncan! Pegue seus chifres e faça aquilo que sabe fazer melhor.

Alia mordeu as costas da mão direita. “Chifres!” Queria estender a mão e apertar o botão que chamaria os guardas, mas a mão se recusava a se mexer.

— Agora eu pregarei para vocês — disse o Pregador. — Este é um sermão do deserto. Eu o dirijo aos ouvidos do clero do Muad'Dib, àqueles que praticam o ecumenismo da espada. Ó crentes no destino manifesto! Não sabem que o destino manifesto tem seu lado demoníaco? Vocês gritam que se sentem enaltecidos meramente por terem vivido nas abençoadas gerações do Muad'Dib. Eu lhes digo que vocês abandonaram o Muad'Dib. A santidade substituiu o amor em sua religião! Vocês procuram a vingança do deserto.

E o Pregador abaixou a cabeça como que em prece.

Alia sentia-se trêmula ante o que ouvira. Deus do céu, que voz! Uma voz ferida por anos nas areias cauterizantes, mas que poderia ser um resquício da voz de Paul.

Uma vez mais o Pregador ergueu a cabeça. Sua voz trovejou sobre a praça, onde mais pessoas haviam começado a se reunir, atraídas por essa curiosidade vinda do passado.

— Assim está escrito — gritou o Pregador. — Aquele que ora por orvalho na orla do deserto trará inundação! Eles não escaparão de seu destino através dos poderes da razão! A razão vem do orgulho que um homem pode não reconhecer dessa forma quando já fez o mal. — Ele abaixou a voz. — Diz-se do Muad'Dib que ele morreu de presciência, que o conhecimento do futuro o matou e que ele passou deste universo da realidade para o alam al-mythal. Eu lhes digo que isso é uma ilusão de Mava. Tais pensamentos não possuem realidade independente. Eles não podem deixar vocês e realizar coisas reais. O Muad'Dib disse de si mesmo que não era dotado da magia Riham com a qual poderia codificar o universo. Não duvidem dele.

Novamente o Pregador ergueu os braços e elevou a voz num brado estentóreo.

— Eu advirto o clero do Muad'Dib! O fogo do penhasco os queimará! Aqueles que aprendem a lição da auto-ilusão deverão perecer vitimados pela própria ilusão. O sangue de um irmão não pode ser esquecido!

Ele abaixara os braços, encontrara seu guia e estava deixando a praça antes que Alia pudesse superar a trêmula imobilidade que a dominara.

Tamanha heresia exposta sem medo! Tinha de ser Paul. Precisava avisar os guardas. Eles não se atreviam a agir contra esse Predador em campo aberto. O que ocorrera lá embaixo na praça confirmava isso.

A despeito da heresia, ninguém procurara deter o Pregador. Nenhum guarda do Templo saltara para persegui-lo. Nenhum peregrino tentara interrompê-lo.

Aquele cego carismático! Todos que o viam ou ouviam sentiam seu poder, o reflexo de seu talento divino.

A despeito do calor do dia, Alia subitamente sentiu frio. Sentiu a fragilidade de seu domínio sobre o Império como uma coisa física.

Segurava a beirada de sua fenda de vigilância como se segurasse o poder, sentindo como lhe podia escapar. O equilíbrio entre o Landsraad, a CHOAM e o poder dos Fremen mantinha o núcleo desse poder, enquanto a Corporação Espacial e a Bene Gesserit agiam silenciosamente, nas sombras.

A proibição da importação de desenvolvimentos tecnológicos provenientes das fronteiras mais distantes da humanidade corroía esse poder central.

Os produtos permitidos às fábricas dos ixianos e dos Tleilaxu não conseguiam aliviar a pressão. E sempre ao fundo se erguia Faradin, da Casa Corrino, herdeiro dos títulos e reivindicações de Shaddam IV.

Sem os Fremen, sem o monopólio da Casa Atreides sobre a especiaria geriátrica, esse domínio seria perdido. Todo o poder se dissolveria. Ela podia senti-lo escorregando de suas mãos nesse momento. As pessoas davam atenção a esse Pregador. Seria perigoso silenciá-lo, assim como seria perigoso deixá-lo continuar pregando palavras como as que gritara na praça. Ela podia sentir os primeiros prenúncios de sua própria derrota, e o padrão do problema se delineava claramente em sua mente. As Bene Gesserits haviam codificado esse problema:

“Uma grande população pode ser dominada por uma força pequena, mas poderosa, essa é uma situação muito comum em nosso universo. E nós conhecemos as principais condições pelas quais essa grande população pode voltar-se contra seus dominadores.

“1) Quando ela encontra um líder. Essa é a vais volátil ameaça aos poderosos, eles devem manter controle sobre os líderes.

“2) Quando a população reconhece a opressão. Mantenha a população cega e sem questionar.

“3) Quando a população percebe a esperança de fugir ao domínio. Ela não deve nem mesmo acreditar que a libertação é possível!”

Alia sacudiu a cabeça, sentindo as bochechas tremerem com a força do movimento. Os sinais estavam ali em seu povo. Cada relatório que recebia de seus espiões espalhados pelo Império reforçava a certeza de seu conhecimento. A guerra incessante do Jihad Fremen deixara sua marca em toda parte. Em qualquer lugar tocado pelo “ecumenismo da espada” a população mantinha uma atitude de povo dominado: defensiva, oculta, evasiva. Todas as manifestações de autoridade e isso significava essencialmente a autoridade religiosa, tornavam-se capazes de suscitar ressentimento. Ah, os peregrinos ainda vinham aos milhões, e alguns deles provavelmente eram devotos. Mas para a maioria a peregrinação tinha outros motivos que não a devoção. Mais frequentemente, era um modo astuto de garantir o futuro. Ela enfatizava a obediência e produzia uma forma verdadeira de poder que se traduzia facilmente em riqueza. O Hajji que retornava de Arrakis voltava para casa com nova autoridade, novo status social. O Hajji podia tomar decisões lucrativas que os que haviam ficado em seu mundo não se atreveriam a desafiar.

Alia conhecia a popular charada: “Que se enxerga dentro da bolsa vazia daqueles que voltaram de Duna?” E a resposta: “Os olhos do Muad'Dib (diamantes de fogo).”

Os métodos tradicionais para dominar a crescente agitação popular enfileiraram-se diante de Alia: as pessoas deviam aprender que a oposição era sempre punida e a ajuda ao governante, sempre recompensada. As forças imperiais devem ser transferidas ao acaso. Os principais acessórios do poder imperial devem permanecer ocultos. E cada movimento com que a Regência se opõe a um ataque em potencial requer delicada sincronia para manter a oposição em desequilibrio.

“Será que perdi meu senso de oportunidade?”, ela se indagou.

— Que tola especulação é essa? — perguntou uma voz dentro dela. Sentiu que ficava mais calma. Sim, o plano do Barão era bom. Nós eliminamos a ameaça de Lady Jessica e ao mesmo tempo desacreditamos a Casa Corrino. Sim.

Depois cuidaria do Pregador. Entendia sua postura. O simbolismo era claro. Ele era o espírito ancestral da especulação desenfreada, o espírito da heresia, vivo e funcionando em seu deserto de ortodoxia. Essa era sua força. Não importava se ele era ou não Paul... desde que essa dúvida pudesse ser mantida. Entretanto, o conhecimento Bene Gesserit de Alia lhe dizia que a força do Pregador poderia conter a chave de suas fraquezas.

“O Pregador deve ter uma falha que possamos encontrar. Farei com que o espionem, o observem a cada momento. E, se a oportunidade surgir, ele será desacreditado.”

 

Não vou questionar ar afirmações dos Fremen no sentido de que são divinamente inspirados a transmitir a revelação religiosa. Sua simultânea reivindicação de possuírem a revelação ideológica é que me inspira, a menos é claro que eles fazem essa dupla reivindicação na esperança de que tal crença fortaleça seu mandato e os ajude a permanecer num universo que os julga cada vez mais opressivos. E é em nome de todos esses povos oprimidos que eu advirto os Fremen: expedientes úteis a curto prazo sempre fracassam a longo prado.

 

- O Pregador de Arrakeen

 

Durante a noite, Leto subira com Stilgar até uma estreita saliência na crista do afloramento de rochas pouco elevadas a que os habitantes do Sietch Tabr deram o nome de o Criado. Sob a luz minguante da Segunda Lua, a saliência oferecia-lhes uma visão panorâmica: a Muralha Escudo com o monte Idaho ao norte, a Grande Planície ao sul, com dunas ondulando para leste, em direção à cordilheira Habbanya. A poeira no ar, resultante de uma tempestade recente, ocultava o horizonte ao sul, enquanto a luz do luar dava uma aparência de geada à borda da Muralha Escudo.

Stilgar fora até ali contra a sua vontade, entrando nessa aventura secreta porque Leto despertara sua curiosidade. Por que motivo era necessário arriscar-se a uma travessia pela areia durante a noite? O garoto ameaçara fugir e fazer a caminhada sozinho se Stilgar se recusasse a acompanhá-lo. Isso o perturbara profundamente. Dois alvos tão importantes sozinhos no meio da noite!

Leto agachou-se na saliência, olhando para o sul, em direção à planície.

Ocasionalmente, batia no joelho como se estivesse frustrado.

Stilgar aguardou. Ele era bom em esperas silenciosas, e estava a dois passos de seu protegido, braços cruzados, o manto ondulando suavemente à brisa noturna.

Para Leto, a travessia na areia representava uma resposta ao desespero interior, uma necessidade de buscar um novo alinhamento para sua vida no conflito silencioso ao qual Ghanima não mais poderia arriscar-se. Ele conduzira Stilgar no sentido de compartilhar essa jornada porque essas eram coisas que Stilgar devia saber a fim de se preparar para o que vinha pela frente.

Novamente Leto bateu no joelho. Era difícil conhecer um início! Às vezes se sentia como extensão de todas aquelas incontáveis vidas, todas tão próximas e reais como a sua própria. No fluir daquelas vidas não havia fim nem realização apenas o eterno começar. Elas podiam ser uma turba também, todas gritando-lhe como se ele fosse uma única janela através da qual cada um desejasse observar. E aí se encontrava o perigo que destruíra Alia.

Leto olhou para longe, vendo a luz do luar pratear os restos da tormenta.

Dobras e sobredobras de dunas estendiam-se sobre a planície: areia de sílica carregada pelo vento, moldada em ondas areiaervilha, areia pulverizada e cascalhos. Sentia-se apanhado num daqueles momentos de imobilidade que antecediam a aurora. O tempo se comprimia sobre ele. Já era o mês de Akkad e para trás se estendia um interminável tempo de espera: dias longos e quentes, ventos quentes e secos, noites como essa, atormentadas por rajadas e sopros intermináveis vindos da fornalha que eram as terras do bled do Falcão. Olhou por sobre o ombro na direção da Muralha Escudo, uma linha recortada contra a luz das estrelas. Além daquela Muralha, na Depressão ao Norte, se encontrava o foco de seus problemas.

Uma vez mais, contemplou o deserto. E, enquanto olhava no calor da escuridão, o dia raiou, o sol elevando-se das bandas de poeira e dando um toque de amarelo aos fiapos vermelhos da tempestade. Ele fechou os olhos, desejando imaginar como esse dia apareceria visto de Arrakeen, e a cidade se estendeu em sua consciência, captada como um conjunto de caixas espalhadas entre a luz e as novas sombras. Deserto... caixas... deserto... caixas...

Quando abriu os olhos, o deserto permanecia lá: uma ampla extensão marrom de areias sopradas pelos ventos. Sombras oleosas, ao longo da base de cada duna, estendiam-se como os raios da noite que acabara de passar.

Elas ligavam um tempo ao outro. Leto pensou na noite passada ali com Stilgar inquieto ao seu lado, preocupado com o silêncio e as razões não-explicadas de ter ido a esse lugar. Stilgar devia ter muitas memórias de noites assim passadas com o seu adorado Muad'Dib. Mesmo agora, Stilgar estava em movimento, observando tudo à sua volta, alerta aos perigos. Ele não gostava de ficar ao ar livre durante o dia. E nisso era um puro Fremen dos velhos tempos.

A mente de Leto relutava em abandonar a noite e o esforço limpo de uma travessia da areia. Uma vez ali, nas rochas, a noite assumira sua negra imobilidade. Ele entendia os temores de Stilgar em relação à luz do dia.

O negro era uma coisa só, mesmo quando continha fervilhantes terrores. A luz podia ser muitas coisas. A noite continha os odores do medo e suas criaturas que chegavam com sons resvalantes. As dimensões se distinguiam na noite, tudo se ampliava espinhos mais agudos, lâminas mais cortantes. Mas os terrores do dia podiam ser piores.

Stilgar pigarreou.

Leto falou sem se voltar:

— Tenho um problema muito sério, Stil.

— Assim suspeitei.

A voz ao lado de Leto chegava baixa e cautelosa. A criança pronunciara as palavras de modo perturbadoramente semelhante ao pai. Isso era algo de uma magia proibida que fazia vibrar uma corda de repulsa em Stilgar. Os Fremen conheciam os terrores da possessão. Aqueles encontrados possuídos eram legitimamente mortos e sua água era derramada sobre a areia para que não contaminasse a cisterna tribal. Os mortos deviam permanecer mortos.

Era correto alguém se imortalizar em uma criança, mas as crianças não tinham o direito de assumir uma forma muito precisa de seu passado.

— Meu problema é que meu pai deixou muitas coisas por terminar — disse Leto. — Principalmente o foco de nossas vidas. O Império não pode prosseguir desta maneira, Stil, sem um foco adequado sobre a vida humana. Estou falando de vida, você entende? Vida, não morte.

— Certa vez, quando estava perturbado por uma visão, seu pai me falou desse modo — disse Stilgar.

Leto sentiu-se tentado a eliminar aquele questionamento temeroso com uma resposta banal, talvez uma sugestão para que quebrassem o jejum. Percebia estar com muita fome. Haviam se alimentado ao meio-dia do dia anterior e ele insistira para que jejuassem durante a noite. Mas outra fome crescia nele agora.

“O problema de minha vida é o problema deste lugar”, pensou. “Nenhuma criação preliminar. Só posso recuar, recuar, até que as distâncias se desfocam. Não consigo ver o horizonte, não posso ver a cordilheira Habbanya. Não consigo encontrar o lugar original do teste.”

— Não existe realmente um substitutivo para a presciência — disse Leto.

— Talvez eu devesse me arriscar com a especiaria E ser destruído como seu pai?

— Um dilema — reconheceu Leto.

— Uma vez seu pai me confidenciou que conhecer muito bem o futuro era estar preso a esse futuro, sem qualquer liberdade para alterá-lo.

— Esse paradoxo é o nosso problema. A presciência é uma coisa sutil e poderosa. O futuro se torna o agora. E ter visão em terra de cegos acarreta perigos específicos. Se tenta interpretar o que vê para os cegos, você tende a se esquecer que os cegos possuem um modo inerente de movimento, condicionado por sua cegueira. Eles são como uma máquina monstruosa movendo-se ao longo de seus próprios trilhos. Possuem um ímpeto próprio, suas próprias fixações. Eu temo os cegos, Stil. Porque eles podem facilmente esmagar qualquer coisa em seu caminho.

Stilgar olhou para o deserto. A aurora amarelada tornara-se um dia cor de aço. Ele perguntou:

— Por que viemos a este lugar?

— Porque eu queria que você visse o lugar onde posso morrer.

Stilgar ficou tenso.

— Então, teve uma visão?

— Talvez fosse apenas um sonho.

— Por que viemos a um lugar tão perigoso? — Stilgar olhou furioso para seu protegido. — Vamos voltar imediatamente.

— Eu não vou morrer hoje, Stil.

— Não? Como foi essa visão?

— Vi três caminhos — disse Leto. Sua voz saía com um tom sonolento de recordação. — Um desses futuros exige que eu mate minha avó.

Stilgar olhou rapidamente na direção do Sietch Tabr, como se temesse que Lady Jessica pudesse ouvi-los a essa distância.

— Por quê?

— Para evitar que percamos o monopólio da especiaria.

— Eu não compreendo.

— Nem eu. Mas esse é meu pensamento no sonho quando eu uso a faca.

— Oh! — Stilgar compreendia o uso da faca. Respirou fundo. — Qual é o segundo caminho?

— Gham e eu nos casamos para selar a linha de sangue dos Atreides.

— Ghaa! — Stilgar expeliu o fôlego numa violenta expressão de desgosto.

— Em tempos muito antigos, era normal que reis e rainhas fizessem isso — explicou Leto. — Mas Gham e eu já decidimos que não o faremos.

— Eu os aconselho a manterem essa decisão! — Havia morte no tom de voz de Stilgar. — Pela lei dos Fremen, o incesto era punido com a morte no tripé de enforcamento. — Ele pigarreou e indagou. — E o terceiro caminho?

— Exige que eu reduza meu pai à estatura humana.

— O Muad'Dib era meu amigo — murmurou Stilgar.

— Ele era seu deus! Devo retirar-lhe a divindade.

Stilgar voltou as costas para o deserto, olhando através do oásis para seu amado Sietch Tabr. Conversas desse tipo sempre o perturbavam.

Leto sentiu um odor suarento no movimento de Stilgar. Era tão tentador evitar as coisas importantes que precisavam ser ditas ali. Eles podiam falar durante metade do dia, afastando-se do específico em direção ao abstrato, como que se arrastando para longe das verdadeiras decisões, fugindo das necessidades imediatas que os confrontavam. E não havia dúvida de que a Casa Corrino representava uma ameaça real para vidas reais, a sua e a de Gham. Mas tudo que fazia agora precisava ser medido e testado com relação às necessidades secretas. Certa vez, Stilgar votara a favor de que Faradin fosse assassinado, sugerindo a sutil aplicação do chaumurky: veneno administrado numa bebida. Sabia-se que Faradin era apaixonado por certos licores suaves. Isso não pudera ser permitido.

— Se eu morrer aqui — disse Leto, — você deve ter cuidado com Alia. Ela não é mais sua amiga.

— Que conversa é essa sobre a morte e sua tia? — Agora Stilgar estava verdadeiramente indignado: — “Matar Lady Jessica! Cuidado com Alia! Morrer neste lugar!”

— Homens insignificantes transformam-se sob o comando dela — explicou Leto. — Um governante não precisa ser um profeta. Ou um deus. Um governante só precisa ser sensível. Eu o trouxe aqui comigo para deixar claro do que o Império precisa. Ele precisa de um bom governo. E isso não depende de leis nem precedentes, mas das qualidades pessoais daquele que governa.

— A Regência cuida de seus deveres imperiais muito bem — disse Stilgar. — Quando você chegar à idade...

— Eu já tenho idade! Sou a pessoa mais velha daqui! Ao meu lado, você não passa de uma criança manhosa. Posso lembrar-me de épocas há mais de 50 séculos. Ahh! Até posso me lembrar de quando nós Fremen estávamos em Thurgrod.

— Por que brinca com tais fantasias? — censurou Stilgar num tom de voz categórico.

Leto assentiu para si mesmo. Por que, de fato? Por que reavivar as memórias daqueles outros séculos? Os Fremen de hoje eram seu problema imediato, a maioria deles apenas selvagens semidomados, inclinados a rir da inocência desventurada.

— A faca cristalina dissolve-se na morte de seu dono — disse Leto. — O Muad'Dib se dissolveu. Por que então os Fremen continuam vivos?

Era uma daquelas bruscas mudanças de pensamento que confundiam Stilgar.

Ele se encontrou temporariamente confuso. Tais palavras continham um significado, mas seu objetivo lhe escapava.

— Espera-se que eu seja o Imperador, mas sou obrigado a ser um servo — queixou-se Leto. Olhou por sobre o ombro para Stilgar. — Meu avô, cujo nome recebi, acrescentou novas palavras ao seu brasão quando veio para Duna: “Aqui estou, aqui permanecerei.”

— Ele não tinha escolha — disse Stilgar.

— Muito bem, Stil. Nem eu tenho qualquer escolha. Devo ser o Imperador por direito de berço, pela adequação de meu entendimento, por tudo que foi investido em mim. Até mesmo sei de que o Império precisa: um bom governo.

— A palavra Naib tem um antigo significado — disse Stilgar. — Significa servo do Sietch.

— Eu me lembro de seu treinamento, Stil — disse Leto. — Para um governo adequado, a tribo deve ter meios de escolher homens cujas vidas reflitam o comportamento ideal de governo.

Das profundezas de sua alma Fremen, Stilgar disse:

— Você colocará o manto imperial se lhe for adequado. Mas primeiro deve provar que pode comportar-se da maneira adequada a um governante!

Inesperadamente, Leto riu. Depois disse:

— Duvida de minha sinceridade, Stil?

— Claro que não.

— De meu direito hereditário?

— Você é aquilo que é.

— E se eu fizer aquilo que todos esperam de mim, essa será a medida da minha sinceridade, não?

— É o costume Fremen.

— Então, não devo ter opiniões próprias para guiar meu comportamento?

— Não entendo o que...

— Se eu sempre me comportar adequadamente, não importando o que me custe a supressão de meus próprios desejos, então essa é que será a medida do meu valor.

— Essa é a essência do autocontrole, jovem.

— Jovem! — Leto sacudiu a cabeça. — Ah, Stil, você me dá a chave para a ética racionalista de governo. Devo ser firme, cada uma de minhas ações enraizada nas tradições do passado.

— Isso é adequado.

— Mas o meu passado se alonga mais profundamente que o seu!

— Qual a diferença...

— Eu não tenho a primeira pessoa do singular, Stil. Sou uma pessoa múltipla, com memórias e tradições mais antigas do que você pode imaginar. Essa é minha carga, Stil. Sou governado pelo passado. Estou repleto de um conhecimento inato que resiste ao novo, à mudança. No entanto, o Muad'Dib mudou tudo isso. — Leto fez um gesto em direção ao deserto, seu braço estendendo-se para abranger a Muralha Escudo atrás de si.

Stilgar voltou-se para fitar a Muralha Escudo. Um vilarejo fora construído abaixo da Muralha desde o tempo do Muad'Dib. Casas destinadas a abrigar uma equipe de planetólogos que ajudava a expandir a vida vegetal sobre o deserto. Stilgar olhou para aquela intromissão do homem na paisagem. Mudança? Sim. Havia um alinhamento naquela vila, uma exatidão que o ofendia. Ficou em silêncio, ignorando a coceira causada por partículas de pedra pulverizada sob seu traje-desolador. Esse vilarejo era uma ofensa a tudo aquilo que esse planeta já fora.

Subitamente, Stilgar desejou que um vento circular saltasse uivando sobre as dunas e destruísse aquele lugar. A sensação deixou-o tremendo.

Leto disse:

— Já reparou, Stil, que os novos trajes-destiladores são de péssima qualidade? Nossa perda de água é muito grande.

Stilgar conteve-se a ponto de dizer: “Não fui eu que disse isso?” Em vez disso, falou:

— Nosso povo torna-se cada vez mais dependente das pílulas. — Leto acenou com a cabeça. As pílulas mudavam a temperatura do corpo, reduzindo a transpiração. Eram mais baratas e práticas que os trajes-destiladores. Mas causavam outros problemas ao usuário, entre eles uma tendência a retardar o tempo de reação e uma visão ocasionalmente turva.

— Foi por isso que viemos até aqui? — perguntou Stilgar. — Para discutir a fabricação de trajes-destiladores?

— Por que não? Desde que você não deseja encarar o que preciso discutir.

— Por que devo ter cuidado com a sua tia? — Havia um indício de raiva na voz de Stilgar.

— Porque ela joga com o velho desejo Fremen de resistir às mudanças e no entanto vai provocar uma mudança mais terrível do que você pode imaginar.

— Está exagerando! Ela é uma Fremen respeitável.

— Ahhh, então os Fremen respeitáveis se mantêm firmes nos modos do passado e eu tenho um passado ancestral. Stil, se eu me entregasse a essa inclinação, iria exigir uma sociedade fechada, completamente dependente dos sagrados costumes do passado. Eu controlaria as migrações, explicando que elas fomentam novas idéias, e as novas idéias são uma ameaça a toda a estrutura da vida. Cada pequena sociedade planetária seguiria seus próprios caminhos, cumprindo seu destino. Até que finalmente o Império se fragmentaria sob o peso das diferenças.

Stilgar tentou engolir com a garganta subitamente seca. Essas eram palavras que o Muad'Dib poderia ter pronunciado. Elas tinham a sua marca.

Eram paradoxais, assustadoras. Mas se alguém permitisse qualquer mudança... Ele sacudiu a cabeça.

— O passado pode lhe indicar a maneira certa de se comportar se você vive no passado, Stil. Mas as circunstâncias mudam.

Stilgar só podia concordar em que as circunstâncias mudavam. Como alguém deveria comportar-se, então? Olhou para além de Leto, vendo o deserto e ao mesmo tempo não o vendo. O Muad'Dib caminhara lá. A planície era um lugar de sombras douradas enquanto o sol se erguia, sombras arroxeadas com arroios secos e arenosos cobertos de vapores poeirentos. A névoa de poeira que geralmente se mantinha sobre a cordilheira Habbanya era visível a grande distância agora, e o deserto, estendendo-se de lá até aqui, apresentava um panorama de dunas que iam diminuindo, uma curva atrás da outra. Através do calor tremulante, ele viu as plantas que cresciam na orla do deserto. O Muad'Dib fizera com que a vida brotasse naquele lugar desolado. Flores cor de cobre, ouro e vermelho, folhas verde-acinzentadas, avermelhadas e da cor da ferrugem, pontas e sombras profundas debaixo de arbustos. O movimento no calor do dia fazia as sombras tremularem, vibrando no ar. Daí a pouco Stilgar disse:

— Eu sou apenas um líder dos Fremen, você é o filho de um Duque.

— Não sabendo o que dizia, você o disse — replicou Leto.

Stilgar franziu a testa. Certa vez, muito tempo atrás, o Muad'Dib o repreendera dessa maneira.

— Você se lembra disso, não se lembra, Stil? — perguntou Leto. — Nós estávamos embaixo da cordilheira Habbanya, e aquele capitão Sardaukar, lembra-se dele? Aramsham? Ele matou seu companheiro para se salvar. E você advertiu várias vezes naquele dia quanto ao risco de poupar as vidas dos Sardaukar que haviam visto nossos métodos secretos. E finalmente você disse que eles, com certeza, iam revelar o que tinham visto e que deviam ser mortos. E meu pai disse: “Não sabendo o que dizia, você o disse.” Você ficou magoado e lhe disse que era um simples líder dos Fremen e que os Duques deviam conhecer coisas mais importantes.

Stilgar olhou surpreso para Leto. “Nós estávamos embaixo da cordilheira Habbanya! Nós!” Essa... essa criança que não havia nem mesmo sido concebida naquele dia sabia o que acontecera com todos os detalhes.

Detalhes que só podiam ser do conhecimento de alguém que estivera lá. Era apenas outra prova de que essas crianças Atreides não podiam ser julgadas pelos padrões normais.

— Agora você me ouvirá — continuou Leto. — Se eu morrer ou desaparecer no deserto, você deverá fugir do Sietch Tabr. Eu o ordeno. Você deve levar Gham e...

— Você ainda não é o meu Duque! Você é... uma criança!

— Sou um adulto em corpo de criança. — Leto apontou para uma estreita fenda nas rochas abaixo deles. — Se eu morrer aqui, será naquele lugar. Você verá o sangue e então saberá. Pegue minha irmã e...

— Vou dobrar a sua guarda — respondeu Stilgar. — Não virá aqui novamente. Vamos embora agora e você...

— Stil! Você não pode me proteger. Volte sua mente uma vez mais para aquela ocasião, na cordilheira Habbanya, Lembra-se? O trator-fábrica estava lá na areia e um grande Produtor se aproximava. Não havia modo de salvar aquele trator de esteiras do verme. E meu pai ficou aborrecido com isso. Mas Gurney pensava apenas nos homens que perdera nas areias. Lembre-se do que ele disse: “Seu pai teria ficado mais preocupado com os homens que não pudesse ter salvo.” Stil, eu o encarrego de salvar as pessoas. Elas são mais importantes que as coisas. E Gham é a mais preciosa de todas, porque sem mim ela é a única esperança dos Atreides...

— Não ouvirei mais nada — disse Stilgar.

Voltou-se e começou a descer pelas rochas em direção ao oásis do outro lado da extensão de areia. Ouviu Leto seguindo-o e daí a pouco este o ultrapassou, olhando para trás e dizendo:

— Já reparou, Stil, como as moças estão bonitas este ano?

 

A vida de um único ser humano, assim como a vida de uma família ou de todo um povo, persiste na memória. Meu povo deve passar a ver nisso uma parte de seu processo de maturação. Trata-se de um povo semelhante a um organismo, e nessa memória persistente seus membros armazenam mais e mais experiências num reservatório subliminar. A humanidade deve poder recorrer a esse material se ele for necessário para mudar o universo. Mas muito do que está guardado pode ser perdido naquele jogo casual de acidentes que nós chamamos de “destino”. Muito pode não ser integrado em relações evolutivas, e assim não ser avaliado e colocado em ação pelas contínuas mudanças ambientais que agem, cobre a carne. Uma especie pode esquecer Eis aí um valor do Kwisat Haderach de que nunca suspeitaram: o Kawisat. Haderach não pode esquecer.

 

- O Livro de Leto segundo Harq al-Ada

 

Stilgar não sabia como explicar, mas achara a observação casual de Leto profundamente inquietante. Aquilo permaneceu em sua consciência durante toda a caminhada através da areia até o Sietch Tabr, tomando precedência sobre tudo mais que Leto dissera lá no Criado.

De fato, as jovens de Arrakis estavam muito bonitas nesse ano. E os rapazes também. Seus rostos brilhavam serenamente com a abundância de água, seus olhos olhavam adiante, para muito longe. Eles expunham suas feições com frequência, sem a exigência das máscaras ou tubos de recolhimento dos trajes-destiladores. Freqüentemente, nem mesmo usavam o traje-desolador ao ar livre, preferindo as novas indumentárias que, com os movimentos, ofereciam rápidos vislumbres de seus corpos ágeis e jovens.

Tal beleza humana apresentava-se diante da nova beleza da paisagem. Em contraste com o velho Arrakis, o olhar podia encantar-se agora com a visão ocasional de um conjunto de ramos verdes crescendo entre rochas marrom-avermelhadas. E os velhos alojamentos da cultura das cavernas, com seus minuciosos selos e armadilhas de umidade em cada entrada, estavam sendo substituídos por vilas em campo aberto, frequentemente construídas com tijolos de lama seca. Lama!

“Por que desejei que aquela vila fosse destruída?”, perguntou-se Stilgar, e tropeçou enquanto caminhava.

Sabia pertencer a uma raça em extinção. Os velhos Fremen assombravam-se com a abundância e o esbanjamento em seu planeta. Água desperdiçada no ar por nada mais que sua capacidade de moldar tijolos de construção, A água usada em uma única habitação, de uma só família, poderia manter vivo um sietch inteiro durante um ano.

As novas construções possuíam até mesmo janelas transparentes para deixar entrar o calor do sol e aliviar a umidade no interior. Tais janelas abriam-se para o exterior.

Os novos Fremen, com suas casas de lama, podiam olhar a paisagem ao redor, não se encontravam mais fechados e acotovelados dentro de um sietch. E para onde a nova visão se voltava também viajava a imaginação.

Stilgar podia sentir isso. A nova visão unia os Fremen ao resto do universo imperial, condicionando-os ao espaço ilimitado. Eles, que um dia haviam estado presos ao seco planeta Arrakis, escravos das mínimas necessidades, sem compartilhar da mente aberta dos habitantes da maioria dos planetas do Império.

Stilgar podia ver as mudanças contrastando com suas próprias dúvidas e temores. Nos velhos dias, raro era o Fremen que até mesmo considerava a possibilidade de deixar Arrakis e começar vida nova num dos mundos ricos em água. A eles não se permitia nem mesmo sonhar com a fuga.

Olhou para as costas de Leto enquanto o jovem caminhava à sua frente.

Leto falara em proibições com relação a sair do planeta. Bem, isso sempre fora realidade na maioria dos outros mundos, mesmo naqueles onde o sonho era permitido como válvula de escape. Mas a escravidão planetária chegara ao auge em Arrakis. E os Fremen se haviam voltado para o interior, fechando-se em suas mentes, tal como estavam fechados em suas cavernas.

O próprio significado da palavra sietch um refúgio em épocas turbulentas se havia pervertido num monstruoso confinamento para uma população inteira.

Leto falara a verdade: o Muad'Dib mudara tudo isso.

Stilgar sentia-se perdido. Podia sentir suas velhas crenças desmoronando.

A nova visão do exterior produzia uma vida que desejava escapar a qualquer confinamento.

“Como as moças estão bonitas este ano.”

Os velhos costumes (“Meus costumes!”, ele admitiu) haviam forçado seu povo a ignorar toda a história, exceto aquela que se refletia internamente em suas próprias labutas. Os velhos Fremen haviam estudado a história de suas próprias e terríveis migrações, seus voos de perseguição em perseguição. O velho governo planetário seguira a política declarada do velho Império. Eles haviam suprimido a criatividade e todo o sentido de progresso, de evolução. A prosperidade era uma coisa perigosa para o velho Império e os seus donos do poder.

Com um abrupto choque, Stilgar percebeu que essas também eram coisas perigosas no caminho que Alia estava seguindo.

Novamente, tropeçou e ficou ainda mais atrás de Leto.

Nos velhos costumes e religiões, não existia futuro, apenas um interminável agora. Stilgar percebia que antes do Muad'Dib os Fremen haviam sido condicionados a acreditar no fracasso, nunca na possibilidade de realização. Bem... eles haviam acreditado em Liet-Kynes, mas ele trabalhara com uma escala de tempo de 40 gerações. Tal coisa não constituía uma conquista, era apenas um sonho que, ele agora percebia, também se voltara para dentro.

“O Muad'Dib mudara tudo isso!”

Durante o Jihad, os Fremen haviam aprendido muito a respeito do velho imperador Padishah, Shaddam IV. O 81.° Padishah da Casa Corrino a ocupar o Trono do Leão Dourado e reinar sobre esse império de incontáveis mundos usara Arrakis como campo de testes para as políticas que esperava implementar no resto de seu império. Seus governadores planetários em Arrakis haviam cultivado um pessimismo persistente para reforçar suas bases de poder. Eles se haviam certificado de que todas as pessoas em Arrakis, até mesmo os Fremen, que vagueavam livremente, se familiarizassem com numerosos casos de injustiça e problemas insolúveis, elas haviam aprendido a pensar em si mesmas como pessoas desamparadas, para as quais não haveria auxílio.

“Como as moças estão bonitas este ano!”

Enquanto observava as costas de Leto, que se afastava, Stilgar começou a se admirar com o modo como o jovem havia feito todos esses pensamentos fluírem em sua mente apenas com aquele comentário banal. Por causa daquele comentário, Stilgar surpreendera-se encarando Alia e seu próprio papel no Conselho de maneira inteiramente diferente.

Alia gostava de dizer que os velhos costumes cediam terreno lentamente. E Stilgar admitia que sempre achara essa declaração vagamente tranquilizadora. A mudança era algo perigoso. As invenções deviam ser proibidas. A capacidade do indivíduo tinha de ser negada. Para que outra função servia o clero senão para negar a vontade individual?

Alia ficava dizendo que as oportunidades de competição aberta deviam ser reduzidas aos limites controláveis. Mas isso significava que a ameaça periódica da tecnologia só poderia ser usada para confinar as populações exatamente como servira aos seus antigos senhores. Qualquer tecnologia permitida devia ser incorporada aos rituais. De outro modo... de outro modo...

Novamente Stilgar tropeçou. Estava no qanat agora e viu Leto esperando embaixo de um pomar de damascos que crescia ao longo do curso dágua.

Stilgar ouviu seus pés caminharem através do capim alto.

“Capim alto!”

“Em que posso acreditar?”, perguntou-se Stilgar.

Era próprio dos Fremen de sua geração acreditar que os indivíduos necessitavam de um profundo senso de suas próprias limitações. As tradições eram certamente o principal elemento de controle em uma sociedade segura. As pessoas deviam conhecer as fronteiras de seu tempo, de sua sociedade, de seu território. Que havia de errado com o sietch como modelo de todo esse modo de pensar? Um senso de clausura penetrando cada escolha individual cercando a família, a comunidade e cada medida tomada por um governo correto.

Stilgar parou e olhou, através do pomar, para Leto. O jovem estava lá, olhando-o com um sorriso.

“Será que ele sabe da agitação em minha cabeça?”

E o velho Naib Fremen tentou refugiar-se no catecismo tradicional de seu povo. Cada aspecto da vida exigia uma única forma, sua circularidade inerente baseada num secreto conhecimento interior do que dará certo e do que não dará. O modelo para a vida, para a comunidade, para cada elemento de uma sociedade maior, até e além dos cumes do governo esse modelo deve ser o sietch e seu equivalente na areia: o Shai-Hulud. O gigantesco verme da areia era certamente a mais formidável das criaturas, mas quando ameaçado ele se escondia em profundezas impenetráveis.

“A mudança é perigosa!”, repetiu para si mesmo. Uniformidade e estabilidade eram os objetivos adequados para um governo.

Mas os rapazes e as moças estavam belos.

E eles se lembravam das palavras do Muad'Dib ao depor Shaddam IV: “O que eu busco não é vida longa para o Imperador, é vida longa para o Império.”

“Não foi isso que estive dizendo a mim mesmo?”, perguntou-se Stilgar.

Voltou a caminhar, dirigindo-se para a entrada do sietch ligeiramente à direita de Leto. O jovem procurou interceptá-lo.

O Muad'Dib dissera outra coisa, lembrou-se Stilgar: “Exatamente como os indivíduos nascem, amadurecem, procriam e morrem, assim também o fazem as sociedades, as civilizações e os governos.”

Perigosa ou não, haveria mudança. Os jovens e belos Fremen sabiam disso.

Eles podiam olhar em frente e vê-la, e preparar-se para quando ela viesse.

Stilgar foi obrigado a parar. Era isso ou caminhar diretamente para cima de Leto.

O jovem olhou para ele com astúcia e disse:

Está vendo, Stil? A tradição não é o guia absoluto que você pensou que fosse.

 

Um Fremen morre quando está muito longe do deserto, nós chamamos isso de “doença da água”.

 

- Comentários de Stilgar

 

— Para mim, é difícil pedir-lhe para fazer isso — disse Alia. — Mas... devo me certificar de que haverá um Império para os filhos de Paul herdarem. Não existe outro motivo para a Regência.

Alia voltou-se de onde estava sentada, diante do espelho, completando sua arrumação matinal. Olhou para o marido, observando como ele recebia essas palavras. Duncan Idaho merecia um estudo cuidadoso nesses momentos, não havia dúvida de que ele se tornara algo muito mais sutil e perigoso do que o espadachim da Casa Atreides que um dia fora. A aparência externa permanecia similar: o cabelo negro sobre feições severas e escuras mas nos longos anos desde que despertara do estado de ghola ele sofrera uma metamorfose interior.

Ela se perguntava agora, como se perguntara muitas vezes, o que o renascimento ghola poderia ter ocultado em seu secreto isolamento. Antes que os Tleilaxu houvessem exercido sobre ele suas técnicas sutis, as reações de Duncan haviam ostentado rótulos claros para os Atreides lealdade, adesão fanática ao código de moral de seus antepassados mercenários, rapidez em se enfurecer e rapidez em se recuperar. Fora implacável em sua decisão de se vingar da Casa Harkonnen, e morrera salvando Paul. Mas os Tleilaxu compraram seu corpo aos Sardaukar e em seus tanques de regeneração haviam criado um zumbi-katrundo: a carne de Duncan Idaho sem qualquer de suas memórias conscientes. Ele fora treinado como mentat e enviado como presente, um computador humano para ser usado por Paul, excelente ferramenta equipada com a compulsão hipnótica de matar seu dono. Mas a carne de Duncan Idaho resistiria a essa compulsão e, na intolerável tensão assim resultante, seu passado celular retornara a ele.

Muito tempo atrás, Alia concluíra que era perigoso pensar nele como Duncan na privacidade de seus pensamentos. Melhor pensar nele com o nome de ghola: Hait. Muito melhor. E era essencial que ele não tivesse o menor vislumbre do velho Barão Harkonnen sentado ali, na mente dela.

Duncan percebeu que Alia o observava e virou-lhe as costas. O amor não podia ocultar as mudanças que se haviam processado nela, nem lhe esconder a transparência de seus motivos. Os facetados olhos de metal com que os Tleilaxu o haviam equipado eram cruéis em sua capacidade de penetrar através da dissimulação. Eles a pintavam agora como uma figura maligna, quase masculina, e ele não podia suportar vê-la desse modo.

— Por que me volta as costas? — perguntou Alia.

— Eu devo pensar nisso — respondeu ele. — Lady Jessica é... uma Atreides.

— E sua lealdade é para com a Casa Atreides, não para comigo — reclamou Alia, fazendo beicinho.

— Não me considere uma pessoa volúvel — ele respondeu.

Alia comprimiu os lábios. Teria sido muito intempestiva em sua abordagem?

Duncan caminhou para a sacada coberta que se abria sobre um canto da praça do Templo. Podia ver os peregrinos começando a se reunir lá embaixo e os comerciantes de Arrakeen avançando para se nutrirem nas extremidades do grupo como uma matilha de predadores atacando uma manada de bestas.

Sua atenção voltou-se para um grupo especial de comerciantes, com cestos de fibra trançada sobre os braços, mercenários Fremen andando um passo atrás deles. Caminhavam com uma força impassível através da multidão que ganhava corpo.

— Eles vendem peças de mármore gravada — disse, apontando. — Sabia disso? Colocam as peças no deserto para serem esculpidas pelas areias das tormentas. Por vezes surgem desenhos interessantes. Chamam isso de uma nova forma de arte, muito popular: genuíno mármore gravado pelas tempestades de Duna. Comprei uma peça semana passada: uma árvore dourada com cinco pingentes. Linda, mas muito frágil.

— Não mude de assunto — disse Alia.

— Não mudei de assunto. É bonito, mas não é arte. Os seres humanos é que criam arte, com sua própria impetuosidade, com sua própria força de vontade. Colocou a mão direita sobre o peitoril da janela. Os gêmeos detestam esta cidade, e eu temo começar a perceber seus motivos.

— Não consigo ver a relação — disse Alia. — O sequestro de minha mãe não será um sequestro verdadeiro. Ela estará segura como sua prisioneira.

— Esta cidade foi construída pelos cegos. Você sabia que Leto e Stilgar saíram do Sietch Tabr para entrarem no deserto na semana passada? Ficaram ausentes uma noite inteira.

— Foi-me relatado. Essas bugigangas do deserto... Deseja que eu proíba sua venda?

— Isso seria ruim para os negócios — disse ele, voltando-se. — Sabe o que Stilgar me disse quando lhe perguntei por que saíra para andar na areia daquele jeito? Disse que Leto desejava comungar com o espírito do Muad'Dib.

Alia sentiu o súbito frio do pânico e olhou para o espelho por um momento para se recuperar. Leto não se aventuraria para fora do sietch, à noite, para tamanha tolice. Seria uma conspiração?

Idaho colocou uma das mãos sobre os olhos para tapar a visão de Alia e disse:

— Stilgar me disse que foi com Leto porque ainda acredita no Muad'Dib.

— É claro que ele acredita!

Idaho riu, um som oco.

— Ele disse que ainda acredita porque o Muad'Dib sempre foi a favor dos pequenos.

— E o que você lhe respondeu? — perguntou Alia, sua voz revelando o medo.

Idaho tirou a mão dos olhos.

— Eu disse: isso deve fazer de você um dos pequenos.

— Duncan! Isso foi um jogo perigoso. Provoque aquele Naib Fremen e poderá despertar uma fera que nos destruirá a todos.

— Ele ainda acredita no Muad'Dib. Essa é nossa proteção.

— Qual foi a resposta dele?

— Ele disse que conhecia seus próprios motivos.

— Percebo.

— Não... não creio que perceba. As coisas que mordem têm dentes mais longos que os de Stilgar.

— Não estou entendendo você hoje, Duncan. Estou lhe pedindo para fazer uma coisa muito importante, uma coisa vital para... Por que toda essa divagação incoerente?

Como ela soava petulante. Ele voltou-se novamente para a janela.

— Quando fui treinado como mentat... É muito difícil, Alia, aprender a usar sua própria mente. Você aprende primeiro que deve permitir à mente funcionar sozinha. Isso é muito estranho. Você pode exercitar seus próprios músculos, torná-los fortes, mas a mente age sozinha. Às vezes, depois que aprendeu a respeito de sua própria mente, ela lhe mostra coisas que você não quer ver.

— E foi por isso que tentou insultar Stilgar?

— Stilgar não conhece sua própria mente: não permite que ela funcione livremente.

— Exceto numa orgia de especiaria.

— Nem mesmo assim. Isso é que o torna um Naib. Para ser um líder de homens, ele controla e limita suas reações. Faz aquilo que se espera dele. Uma vez sabendo disso, você passa a conhecer Stilgar e pode medir o comprimento de seus dentes.

— Esse é o modo Fremen — disse ela. — Bem, Duncan, você vai fazê-lo ou não vai?

— Ela deve ser apanhada, a coisa toda deve parecer um trabalho da Casa Corrino.

Ele permaneceu em silêncio, julgando-lhe os argumentos e o tom de voz à sua maneira mentat. Esse plano de rapto revelava uma frieza e uma crueldade cujas dimensões, assim expostas, o haviam chocado. Arriscar a vida de sua própria mãe pelas razões até então apresentadas? Alia estava mentindo. Talvez os boatos a respeito dela e Javid fossem verdadeiros.

Esse pensamento produziu uma rigidez gelada no estômago de Idaho.

— Você é o único em quem posso confiar para isso — disse Alia.

— Sei disso.

Ela tomou estas palavras como sinal de aceitação e sorriu para si mesma no espelho.

— Você sabe que um mentat aprende a ver cada ser humano como uma série de relacionamentos?

Alia não respondeu. Continuou sentada, tomada por uma lembrança pessoal que produziu uma expressão vazia em seu rosto. Idaho, olhando por sobre o ombro, viu aquela expressão e estremeceu. Era como se ela escutasse vozes que somente ela pudesse ouvir.

— Relacionamentos — Alia sussurrou.

E ele pensou: “Devemos lançar fora velhos sofrimentos como a cobra abandona sua pele apenas para criar um novo conjunto e aceitar todas as nossas limitações. É o mesmo com os governos até com a Regência. Velhos governos podem ser acompanhados como mudas de penas. Devo realizar esse plano, mas não do modo como Alia ordena.”

Daí a pouco ela sacudiu os ombros e disse:

— Leto não devia ficar saindo por aí daquele jeito numa época como esta. Vou repreendê-lo.

— Nem mesmo com Stilgar?

— Nem mesmo com ele.

Ela ergueu-se do espelho e caminhou até onde Idaho se encontrava, diante da janela, colocando uma das mãos em seu braço.

Ele reprimiu um estremecimento, reduzindo sua reação a uma computação mentat. Alguma coisa nela o revoltava. Alguma coisa nela.

Não conseguia forçar-se a olhá-la. Ela rescendia à melange de seus cosméticos. Ele pigarreou.

Alia disse:

— Estarei ocupada hoje, examinando os presentes de Faradin.

— As roupas?

— Sim. Nada do que ele faz é o que parece. E devemos nos lembrar que o seu Bashar, Tvekanik, é um adepto do chaumurky, dos chaumas e de toda a parafernália ligada a assassinatos de nobres.

— O preço do poder — disse ele, afastando-se dela. — Mas ainda temos mobilidade e Faradin não tem.

Ela observou-lhe o perfil bem-delineado. Algumas vezes, o funcionamento daquela mente era muito difícil de perceber. Estaria ele apenas pensando que a liberdade de ação é a vida do poder militar? Bem, a vida em Arrakis havia sido muito segura por muito tempo. Sentidos aguçados por perigos onipresentes podiam atrofiar-se por falta de uso.

— Sim — ela concordou. — Ainda temos os Fremen.

— Mobilidade — repetiu ele. — Não podemos degenerar para uma infantaria. Isso seria tolice.

Seu tom de voz a aborreceu e ela disse:

— Faradin usará qualquer meio a seu alcance para nos destruir.

— Ah, é isso — ele disse. — Essa é uma forma de iniciativa, uma mobilidade que não tínhamos nos velhos dias. Tínhamos um código, o código da Casa Atreides. Sempre ganhávamos apenas o suficiente e deixávamos que os inimigos fossem os saqueadores. Essa restrição não mais se mantém, é claro. Temos igual mobilidade, a Casa Atreides e a Casa Corrino.

— Nós vamos raptar minha mãe para salvá-la do perigo, tanto quanto por qualquer outro motivo — protestou Alia. — Ainda vivemos pelo código.

Ele olhou para ela. Ela conhecia os riscos de incitar um mentat a computar. Será que não perceberia o que ele havia computado? Entretanto... ele ainda a amava. Passou uma das mãos sobre os olhos. Como ela parecia jovem. Lady Jessica estava certa. Alia aparentava não ter envelhecido um dia em todos esses anos. Ainda tinha as feições suaves de sua mãe Bene Gesserit, mas os olhos eram tipicamente Atreides. Exigentes, calculistas, como os de um falcão. E agora alguma coisa capaz de uma frieza cruel rondava por trás daqueles olhos.

Idaho servira a Casa Atreides por muitos anos para não entender as forças da família, assim como suas fraquezas. Mas essa coisa dentro de Alia era nova. Os Atreides podiam jogar um jogo tortuoso contra seus inimigos, mas nunca contra amigos e aliados, e de modo algum contra a Família. Isso era básico no modo de agir dos Atreides: apoiar sua própria população ao máximo de sua capacidade, mostrar-lhe como vivia melhor sob o governo dos Atreides. Demonstrar seu amor para com seus amigos pela candura de seu comportamento em relação a eles. O que Alia lhe pedia agora não era típico dos Atreides. Ele sentia isso em toda a carne, em toda a estrutura nervosa de seu corpo. Ele era uma unidade, indivisível, sentindo essa atitude alienígena em Alia.

De repente sua percepção mentat entrou em consciência total e sua mente saltou no transe congelado onde não existia o Tempo, apenas a computação. Alia perceberia o que lhe acontecera, mas não poderia evitar.

Entregara-se à computação.

Computação: uma Lady Jessica refletida vivia uma pseudovida na consciência de Alia. Ele percebia isso, assim como percebia o reflexo do Duncan Idaho pré-ghola que permanecia como uma constante em sua própria consciência. Alia tinha essa percepção por ser um dos pré-nascidos. Ele recebera essa consciência nos tanques de regeneração dos Tleilaxu.

Entretanto, Alia negava esse reflexo arriscando a vida de sua mãe.

Portanto, Alia não estava em contato com aquela pseudo Jessica dentro dela. Daí resultava que Alia se encontrava totalmente possuída por outra pseudovida que excluíra as demais.

“Possuída!”

“Alienígena!”

“Abominação!”

À maneira mentat, ele aceitou isso e voltou-se para as outras facetas do problema. Todos os Atreides encontravam-se naquele único planeta. A Casa Corrino arriscaria um ataque a partir do espaço? Sua mente relampejou através de uma retrospectiva daquelas convenções que haviam terminado com as formas primitivas de guerra:

1) Todos os planetas são vulneráveis a ataques do espaço, logo, as instalações para vingança/ retaliação são construídas fora dos planetas por cada uma das Grandes Casas. Faradin deveria saber que os Atreides não teriam negligenciado essa precaução elementar.

2) Os campos de força eram uma defesa absoluta contra projéteis e explosivos de tipo não-atômico, a principal razão pela qual a luta individual, com as mãos, se re-introduzira nos combates humanos. Mas a infantaria tinha suas limitações. A Casa Corrino poderia ter treinado seus Sardaukar para que recuperassem a eficiência pré-Arrakeen, mas eles ainda não seriam páreo para a ferocidade dos Fremen.

3) O feudalismo planetário permanecia em constante ameaça ante uma grande classe composta por técnicos, mas os efeitos do Jihad Butleriano continuavam a amortecer os excessos tecnológicos. Os ixianos, os Tleilaxu e alguns planetas externos, espalhados pelo espaço, constituíam a única ameaça possível desse gênero, mas eram planetariamente vulneráveis à ira combinada do restante do Império. O Jihad Butleriano não poderia ser desfeito. A guerra mecanizada exigiria uma grande classe de técnicos e o Império dos Atreides canalizara tal força na busca de outros objetivos.

Não havia uma grande classe de técnicos que não fosse vigiada. E o Império permanecia seguramente feudal, como era natural, de vez que essa era a melhor forma de sociedade tendo em vista a expansão sobre fronteiras selvagens amplamente dispersas: os novos planetas.

Duncan sentia sua consciência mentat coruscando enquanto disparava através de seus próprios dados de memória, completamente imune à passagem do Tempo. Chegando à convicção de que a Casa Corrino não iria arriscar-se a um ataque atômico ilegal, ele o fez numa computação instantânea, a trilha principal de decisão, mas perfeitamente consciente dos elementos que compunham essa convicção: o Império dispunha de tantas armas nucleares e afins quanto todas as Grandes Casas combinadas. Pelo menos metade das Grandes Casas reagiria sem pensar se a Casa Corrino quebrasse a Convenção. E o sistema de retaliação dos Atreides, fora do planeta, receberia a adesão de uma força esmagadora, sem haver sequer necessidade de convocá-la. O medo faria a chamada. Salusa Secundus e seus aliados desapareceriam em nuvens escaldantes. A Casa Corrino não se arriscaria a tal holocausto. Seus membros eram indubitavelmente sinceros em subscreverem o argumento de que as armas nucleares deviam ser reservadas para um único propósito: a defesa da humanidade caso “outra inteligência” ameaçadora algum dia fosse encontrada.

Os pensamentos por computação tinham limites distintos, nítido relevo.

Não havia espaços intermediários indistintos. Alia escolhia o terror e o sequestro porque se tornara uma coisa estranha, não-Atreides. A Casa Corrino era uma ameaça, mas não da maneira apresentada por Alia em Conselho. Alia queria que Lady Jessica fosse afastada porque aquela flamejante inteligência Bene Gesserit havia percebido o que apenas agora se tornava evidente para Idaho.

Saiu do transe mentat e viu Alia diante de si com uma fria expressão avaliadora no rosto.

— Não seria melhor que Lady Jessica fosse morta? — perguntou ele.

O estranho brilho da satisfação de Alia ficou exposto diante de seus olhos no breve instante que ela levou para cobri-lo de falsa indignação.

— Duncan!

Sim, essa Alia-alienígena preferia o matricídio.

— Você não teme por sua mãe, teme a ela, — ele disse. Ela falou sem qualquer alteração em seu olhar avaliador.

— É claro que a temo. Ela tem enviado relatórios a meu respeito para a Irmandade.

— Que quer dizer com isso?

— Não sabe qual é a maior tentação para uma Bene Gesserit? — Aproximou-se dele sedutoramente, olhando-o de baixo para cima através das pálpebras semicerradas. — Eu só desejava me manter forte e alerta para o bem dos gêmeos.

— Você falou em tentação — disse ele com a voz sem emoção de um mentat.

— Aquilo que a Irmandade oculta mais profundamente, a coisa que elas mais temem. É por isso que me chamam de Abominação. Elas sabem que suas inibições não vão me deter. Tentação elas sempre falam com grande ênfase:” A Grande Tentação. Não percebe? Nós, que empregamos os ensinamentos Bene Gesserit, podemos influenciar coisas tais como o ajustamento interno do equilíbrio enzimático de nossos corpos. Ele pode prolongar a juventude muito além da capacidade da melange. Percebe as consequências que adviriam se muitas Bene Gesserits fizessem isso? Seria notado. Tenho certeza que está computando a precisão do que digo. A melange é que nos torna alvo de tantas tramas. Nós controlamos uma substância que prolonga a vida. E se for conhecido que as Bene Gesserits controlam um segredo ainda mais poderoso? Percebe? Nenhuma Reverenda Madre estaria segura. O sequestro e a tortura de Bene Gesserits se tornariam prática comum.

— E você obteve esse equilíbrio de enzimas. — Era uma constatação, não uma pergunta.

— Eu desafiei a Irmandade! Os relatórios de minha mãe para a Irmandade tornarão as Bene Gesserits firmes aliadas da Casa Corrino.

“Como é plausível”, pensou ele, e disse, sondando:

— Mas certamente sua própria mãe não se voltaria contra você!

— Ela era Bene Gesserit muito antes de ser minha mãe, Duncan. Ela permitiu que seu próprio filho, meu irmão, fosse submetido ao teste do gom jabbar. Ela arranjou isso! Sabendo que talvez ele não sobrevivesse ao teste! As Bene Gesserits sempre foram fracas na fé e fortes no pragmatismo. Ela se voltará contra mim se acreditar que é o melhor para os interesses da Irmandade.

Ele assentiu com a cabeça. Como ela era convincente. Era um pensamento tão triste.

— Devemos manter a iniciativa — continuou Alia. — Essa é nossa melhor arma.

— Há o problema do Gurney Halleck — ele disse. — Terei de matar meu velho amigo?

— Gurney está fora em alguma missão de espionagem no deserto — respondeu ela, consciente de que Idaho já sabia disso. — Está seguramente fora do caminho.

— Muito estranho. O Governador Regente de Caladan em missões aqui em Arrakis.

— Por que não? Ele é o amante dela, em seus sonhos, senão de fato.

— Sim, é claro. — E se admirou de que ela não tivesse percebido a insinceridade em sua voz.

— Quando vai raptá-la? — quis saber Alia.

— É melhor que não saiba.

— Sim... sim, percebo. Aonde vai levá-la?

— Aonde ela não possa ser encontrada. Confie nisso. Ela não vai ser deixada aqui para ameaçá-la.

O brilho nos olhos de Alia era evidente:

— Mas onde irá...

— Se não souber, poderá responder ante uma Reveladora da Verdade, se for necessário, que não sabe onde ela está.

— Ah, como é esperto, Duncan.

“Agora ela acredita que vou matar Lady Jessica”, pensou ele. E disse:

— Adeus, minha amada.

Ela não percebeu a determinação em sua voz e até mesmo o beijou levemente enquanto ele saía.

E por todo o caminho, através dos labirintos do Templo, que lembravam os corredores de um sietch, Idaho esfregava os olhos. Os olhos dos Tleilaxu não eram imunes às lágrimas.

 

Você amou Caladan E chorou seu anfitrião perdido...

Mas a dor logo descobre

Que novos amores não podem apagar

Aqueles eternos”.

 

- Refrão do Lamento de Habbanya

 

Stilgar quadruplicou a guarda do sietch em torno dos gêmeos, mas sabia que isso era inútil. O garoto era como seu homônimo Atreides, o avô Leto.

Todos que haviam conhecido o Duque original reparavam nisso. Leto tinha aquela aparência equilibrada, e uma cautela, sim, mas tudo isso devia ser avaliado em relação àquela impetuosidade latente, uma suscetibilidade para tomar decisões perigosas.

Ghanima era mais como a mãe. Lá estava o cabelo vermelho de Chani, os olhos dela e um modo calculado na maneira como se ajustava às dificuldades. Dizia com frequência que só fazia o que era preciso fazer, mas aonde Leto a conduzisse, ela o seguiria.

E Leto iria levá-los ao perigo.

Nenhuma vez Stilgar pensou em levar seus problemas a Alia. Isso também eliminava Irulan, que em tudo acompanhava Alia. Ao chegar a sua decisão, Stilgar percebia que aceitara a possibilidade de Leto ter julgado Alia corretamente.

“Ela usa as pessoas de modo cruel e descuidado”, pensou. “Usa até mesmo o Duncan desse modo. Não seria preciso muito para que ela se voltasse contra mim e me matasse. Ela me descartaria.”

Enquanto isso, a guarda era reforçada e Stilgar rondava seu sietch como um espectro envolto em mantos, espionando tudo. Todo o tempo, sua mente fervilhava com as dúvidas que Leto plantara. Se não devemos depender da tradição, onde estará então a rocha sobre a qual poderemos ancorar nossas vidas?

Na tarde da Convocação de Boas-Vindas para Lady Jessica, Stilgar espionou Ghanima, que aguardava ao lado da avó à entrada da grande câmara de assembléias do sietch. Ainda era cedo e Alia não chegara, mas as pessoas já entravam em grande número, lançando olhares disfarçados para a criança e a adulta enquanto passavam.

Stilgar parou em um nicho sombreado, fora do fluxo da multidão, e observou a dupla, incapaz de ouvir suas palavras acima do murmurante palpitar do público que se reunia. Gente de muitas tribos estaria ali para dar as boas-vindas à sua velha Reverenda Madre que retornava.

Stilgar olhava para Ghanima. Os olhos dela, o modo como se moviam enquanto ela falava! Esse movimento o fascinava. Aqueles olhos azuis profundos, exigentes, avaliadores. E o modo como lançava os cabelos ruivos para fora dos ombros com um giro da cabeça, era igual a Chani. Uma ressurreição fantasmagórica, uma semelhança misteriosa.

Lentamente, Stilgar se aproximou, tomando posição em outro nicho.

Era incapaz de associar o modo observador de Ghanima com o de qualquer outra criança de seu conhecimento. Exceto o irmão dela. Onde estaria Leto? Stilgar olhou para trás, em direção à passagem apinhada. Seus guardas teriam dado o alarme se alguma coisa estivesse errada. Sacudiu a cabeça. Esses gêmeos eram um perigo para a sua saúde mental, um atrito constante contra sua paz interior. Quase podia odiá-los. Os parentes não eram imunes ao ódio de uma pessoa, mas o sangue (e sua preciosa água) levava consigo exigências de tolerância que transcendiam a maioria das outras preocupações. Esses gêmeos constituíam sua maior responsabilidade.

A luz parda, filtrando-se através da poeira, saía da cavernosa câmara da assembléia, além de Jessica e Ghanima. Tocava o ombro da criança e o novo manto branco que ela usava, iluminando-lhe o cabelo por trás, enquanto ela se virava para olhar as pessoas que passavam.

“Por que Leto me afligiu com essas questões?”, perguntou-se. Não havia dúvida de que o fizera deliberadamente. “Talvez quisesse que eu vivenciasse uma pequena parte de sua própria experiência mental.” Stilgar sabia que esses gêmeos eram diferentes, mas seus processos de raciocínio sempre se mostraram incapazes de aceitar o que sabia. Nunca havia experimentado o ventre como uma prisão para a consciência desperta. Uma consciência viva a partir do segundo mês de gestação, como se dizia.

Certa vez, Leto dissera que sua memória era como uma holografia interna, expandindo-se em tamanho e detalhes desde aquele chocante despertar original, embora sem nunca modificar a forma ou os contornos.

Pela primeira vez, enquanto observava Ghanima e Lady Jessica, Stilgar começou a compreender o que seria viver em tal teia de memórias convulsionadas, incapaz de recuar ou encontrar um refúgio seguro na mente. Enfrentando tal condição, alguém teria de integrar a loucura, selecionando e rejeitando uma multidão de ofertas num sistema onde as respostas mudavam tão rapidamente quanto as perguntas.

Não poderia haver tradição fixa aí. Nem respostas absolutas a perguntas de significado dúbio. O que funciona? Aquilo que não funciona. O que não funciona? Aquilo que funciona. Ele reconhecia o padrão. Era o velho jogo de adivinhação dos Fremen. Pergunta: “Que é que traz a morte e a vida?”

Resposta: “O vento Coriolis.”

“Por que Leto quis que eu entendesse isso?” A partir de suas cautelosas sondagens, Stilgar sabia que os gêmeos compartilhavam uma visão mútua de sua diferença: pensavam nela como uma aflição. “O canal de nascimento seria um lugar arrasador para alguém assim”, pensou. A ignorância reduz o choque de certas experiências, mas eles não teriam tido ignorância alguma a respeito do parto. Como seria viver uma vida onde se conhecessem todas as coisas que poderiam sair erradas? Você enfrentaria uma constante guerra de dúvidas. E se ressentiria por ser diferente de seus companheiros. Ser-lhe-ia agradável infligir aos outros até mesmo um toque dessa diferença. “Por que eu?” seria a primeira pergunta sem resposta.

“E o que estive indagando a mim mesmo”, pensou ele. Um sorriso amargo tocou-lhe os lábios. “Por que eu?”

Vendo os gêmeos sob essa nova ótica, entendia os perigosos riscos que eles assumiam com seus corpos ainda não desenvolvidos. Certa vez, Ghanima lhe colocara a situação de modo sucinto, depois que ele a repreendera por ter escalado a íngreme face oeste até a plataforma acima do Sietch Tabr.

— Por que devo temer a morte? Já estive lá antes... muitas vezes.

“Como posso pensar em ensinar alguma coisa a essas crianças?”, perguntou-se. “Como alguém o pode?”

Curiosamente, os pensamentos de Jessica seguiam caminho semelhante enquanto ela conversava com a neta. Estivera pensando em como seria dificil transportar mentes maduras em corpos imaturos. O corpo teria de aprender tudo que a mente já sabia que ele poderia fazer, alinhando respostas e reflexos. O velho regime prana-bindu da Bene Gesserit lhes seria disponível, mas até mesmo lá a mente correria para onde a carne não ia poder acompanhá-la. Gurney tivera uma tarefa muito dificil em cumprir suas ordens.

— Stilgar está nos observando de um nicho lá atrás — disse Ghanima.

Jessica não se virou. Mas se sentiu confortada pelo que percebera na voz de Ghanima. Ghanima amava o velho Fremen como se ama um parente. Mesmo quando falava dele de modo jocoso e o provocava, ela o amava. Essa compreensão forçou Jessica a ver o velho Naib sob nova luz, compreendendo numa revelação gestáltica o que os gêmeos e Stilgar compartilhavam. Esse novo Arrakis não se ajustava muito bem a Stilgar, percebia Jessica. Não mais do que esse novo universo se ajustava aos seus netos.

Sem ser invocado ou desejado, um velho ditado Bene Gesserit fluiu através da mente de Jessica: “Suspeitar de tua própria mortalidade é conhecer o princípio do terror, aprender irrefutavelmente que és mortal é conhecer o fim do terror.”

Sim, a morte não seria um peso difícil de suportar, mas a vida seria um fogo lento para Stilgar e os gêmeos. Eles achavam seu mundo inadequado e ansiavam por outros caminhos onde as variações poderiam ser conhecidas sem ameaças. Eram filhos de Abrahão, aprendendo mais com o vôo de um falcão sobre o deserto do que com qualquer livro já escrito.

Leto confundira Jessica apenas aquela manhã, quando haviam parado junto do qanat que fluía abaixo do sietch. Ele dissera:

— A água nos aprisiona, vovó. Estaríamos melhor vivendo como o pó, pois então o vento nos poderia carregar mais alto que os mais elevados penhascos da Muralha Escudo.

Embora estivesse familiarizada com tal maturidade tortuosa saindo das bocas dessas crianças, Jessica fora surpreendida por essas palavras, mas conseguira responder:

— Seu pai poderia ter dito isso.

Leto lançou um punhado de areia no ar para vê-lo cair.

— Sim, ele poderia. Mas meu pai não considerava, então, com que rapidez a água faz tudo cair de volta ao solo de onde veio.

Agora, de pé ao lado de Ghanima, dentro do sietch, Jessica sentiu novamente o choque daquelas palavras. Voltou-se, olhando para a multidão que ainda fluía, e deixou seu olhar vaguear sobre a silhueta sombreada de Stilgar dentro do nicho. Stilgar não era nenhum Fremen domado, treinado apenas para levar gravetos para o ninho. Ainda era um falcão e, quando pensava na cor vermelha, não estava pensando em flores, mas em sangue.

— Ficou tão quieta repentinamente — disse Ghanima. — Há algo errado?

Jessica sacudiu a cabeça.

— Foi algo que Leto disse esta manhã. Só isso.

Quando foram às plantações? Que foi que ele disse? Jessica pensou na curiosa aparência de sabedoria adulta que surgira no rosto de Leto, lá fora, naquela manhã. Era a mesma que agora surgia no rosto de Ghanima.

— Ele estava relembrando a ocasião em que Gurney retornou do meio dos contrabandistas para aderir novamente à bandeira dos Atreides — disse Jessica.

— Então vocês estavam falando a respeito de Stilgar.

Jessica não perguntou como viera essa percepção. Os gêmeos pareciam capazes de reproduzir as linhas de pensamento um do outro à vontade.

— Sim, estávamos — disse Jessica. — Stilgar não gostava de ouvir o Gurney lhamando... Paul de seu Duque, mas a presença de Gurney forçou a isso todos os Fremen. Gurney continuava dizendo “Meu Duque”.

— Percebo — disse Ghanima. — E é claro que Leto observou que ele ainda não era o Duque de Stilgar.

— Correto.

— Sabe o que ele estava fazendo com a senhora, é claro.

— Não estou certa — admitiu Jessica, e achou isso particularmente perturbador, pois nunca lhe ocorrera que Leto lhe estivesse fazendo alguma coisa.

— Ele estava tentando ativar suas memórias de nosso pai — explicou Ghanima. — Leto está sempre ansioso por conhecer nosso pai a partir dos pontos de vista de outros que o conheceram.

— Mas... Leto não tem...

— Oh, ele pode ouvir a sua vida interior. Certamente. Mas não é a mesma coisa. A senhora falou a respeito dele, é claro. Nosso pai, quero dizer. Falou nele como seu filho.

— Sim — admitiu Jessica. Não gostava da idéia de que esses gêmeos pudessem ligá-la e desligá-la à vontade, abrir suas memórias para observação, tocando qualquer emoção que lhes atraísse o interesse. Ghanima podia estar fazendo isso agora mesmo!

— Leto disse alguma coisa que a perturbou — disse Ghanima. Jessica ficou chocada ante a necessidade de suprimir a raiva.

— Sim... ele fez isso.

— Não gosta do fato de que ele conheça nosso pai tal como nossa mãe o conhecia, e conheça nossa mãe tal como nosso pai a conheceu — comentou Ghanima. — Não gosta do que isso implica... do que possamos conhecer a seu respeito.

— Realmente, nunca pensei nisso desse modo antes — disse Jessica, sentindo a voz excessivamente formal.

— É o conhecimento de detalhes sensuais que geralmente a perturba — continuou Ghanima. — É o seu condicionamento. Acha extremamente difícil pensar em nós como outra coisa que não crianças. Mas não existe nada que nossos pais tenham feito juntos, em público ou na intimidade, que não saibamos.

Por breve instante, Jessica sentiu voltar-lhe a mesma reação que tivera lá, junto ao qanat, mas agora essa reação voltava-se para Ghanima.

— Ele provavelmente lhe falou a respeito da “sensualidade animal” de seu Duque — disse Ghanima. — Algumas vezes Leto precisa de um freio naquela boca.

“Não existirá nada que esses gêmeos não possam profanar?”, perguntou-se Jessica, passando do choque à repulsa indignada. Como se atreviam a comentar a sensualidade de seu Leto? É claro que um homem e uma mulher que se amam compartilham o prazer de seus corpos. É uma coisa bonita e íntima, não algo para ser pavoneado numa conversa casual entre uma criança e um adulto.

“Criança e adulto!”

De repente, Jessica percebia que nem Leto nem Ghanima haviam feito aquilo por acaso.

Como Jessica permanecesse em silêncio, Ghanima disse:

— Nós a deixamos chocada. Peço desculpas por nós dois. Conhecendo Leto, sei que ele nem pensaria em se desculpar. Algumas vezes, quando está seguindo determinada pista, ele se esquece de o quanto somos diferentes... de você, por exemplo.

Jessica pensou: “E foi por esse motivo que os dois fizeram isso. É claro, estão me ensinando! E a quem mais estarão ensinando? Stilgar? Duncan?”

— Leto tenta ver as coisas tal como a senhora as vê — explicou Ghanima. — As memórias não são o bastante. Quando se tenta o mais difícil, justamente aí se fracassa com maior frequência.

Jessica suspirou.

Ghanima tocou no braço da avó.

— Seu filho deixou por dizer muitas coisas que, no entanto, devem ser ditas, até mesmo a você. Perdoe-nos, mas ele a amava. Não sabia disso?

Jessica se virou para esconder as lágrimas brilhando em seus olhos.

— Ele conhecia seus temores — continuou Ghanima. — Exatamente como conhecia os de Stilgar. Querido Stil. Nosso pai era seu “Médico de Feras” e Stil não era mais que um caracol verde escondido em sua concha. — Cantarolou então a canção da qual tirara essas palavras. A música lançava os versos na consciência de Jessica sem qualquer concessão:

 

Ó Médico das Feras,

Para um caracol verde em sua concha

Escondido, esperando a morte

Tu chegas como uma divindade!

E até mesmo os caracóis sabem

Que os deuses destroem

E que as curas traem a dor,

Que o céu é visto

Através de um portal fiam jante.

Ó Médico das Feras,

Sou um homem-caracol

Que vê teu único olho

Olhando para dentro de minha concha

Por que, MuadVib? Por quê?

 

E Ghanima concluiu:

— Infelizmente, nosso pai deixou muitos homens-caracóis em nosso universo.

 

O pressuposto de que os seres humanos existem dentro de um universo essencialmente inpermanente, tomado como regra operacional, exige que o intelecto se torne um instrumento consciente totalmente equilibrado. Mas o intelecto não pode reagir desse modo sem envolver o organismo inteiro.

Tal organismo pode ser notado por seu comportamento inflamado, impulsionador. E assim também ocorre na sociedade considerada como um organismo. Mas aqui encontramos uma velha inércia. As sociedades caminham, segundo o estímulo de impulsos e reações ancestrais. Elas exigem permanência. E qualquer tentativa de mostrar o universo como inpermanente ocasiona reações de rejeição, medo, raiva e desespero. Então, como explicamos a aceitação da presciência? Simples: aquele que fornece as visões prescientes fala de uma realização absoluta (permanente) e portanto pode ser saudado com alegria pela humanidade, mesmo ao predizer os mais terríveis acontecimentos.

 

- O Livro de Leto segundo Harq al-Ada

 

— É como lutar no escuro — disse Alia.

Ela caminhava de um lado para outro da Câmara do Conselho, pisando com força, desde as altas cortinas prateadas, que suavizavam a luz do sol da manhã entrando pelas janelas do leste, até os divãs agrupados embaixo de uma parede decorada com painéis, na extremidade oposta. Suas sandálias pisavam tapetes de fibra de especiaria trançada, ladrilhos de granada gigante e mais tapetes. Afinal, encontrou-se de pé, acima de Irulan e Duncan Idaho, que estavam sentados, de frente um para o outro, nos divãs de pele de baleia cinzenta.

Idaho resistira à ordem para que voltasse de Tabr, mas Alia enviara novas ordens, mais categóricas. O rapto de Jessica era agora mais importante do que nunca, mas tinha de esperar. As percepções mentat de Idaho eram exigidas nesse momento.

— Essas coisas revelam um mesmo padrão — disse Alia. — Cheiram a uma grande trama.

— Talvez não — arriscou Irulan, mas lançou para Idaho um olhar indagador.

O rosto de Alia assumiu uma inconfundível expressão de escárnio. Como Irulan podia ser tão inocente? A menos... Alia deu uma olhada rápida e questionadora na princesa. Irulan usava um manto aba simples, todo negro, que igualava as sombras em seus olhos de um azul profundo, provocado pela especiaria. Seu cabelo louro estava preso numa trança, enrolada em apertada espiral sobre a nuca, acentuando um rosto emagrecido e endurecido pelos anos vividos em Arrakis. Ainda conservava a arrogância que aprendera na corte do pai, Shaddam IV, e Alia frequentemente sentia que essa atitude orgulhosa poderia mascarar os pensamentos de uma conspiradora.

Idaho recostava-se usando o uniforme verde e negro da Guarda da Casa Atreides, sem qualquer insígnia. Era uma afetação que produzia secretos ressentimentos entre muitos dos verdadeiros guardas de Alia, especialmente entre suas amazonas, que glorificavam a insígnia de oficial. Elas não gostavam da presença desse ghola-espadachim-mentat, mais ainda por ser ele o marido de sua senhora.

— Assim, as tribos querem Lady Jessica reconduzida ao Conselho da Regência — comentou Idaho. — Como isso pode...

— Eles fazem uma exigência unânime! — exclamou Alia, apontando para uma folha de papel de especiaria, adornada com relevos, colocada no divã ao lado de Irulan. — Faradin é uma coisa, mas isso... isso tem o cheiro de outros alinhamentos!

— Que pensa Stilgar? — perguntou Irulan.

— A assinatura dele está no papel! — respondeu Alia.

— Mas se ele...

— Como poderia negar a mãe de seu deus? — zombou Alia. Idaho ergueu os olhos para ela. Aquilo foi espantosamente próximo de uma provocação a Irulan!

Novamente, perguntou-se por que Alia o trouxera de volta quando ela sabia que ele era necessário no Sietch Tabr para a realização do plano de sequestro. Seria possível que ela tivesse ouvido alguma coisa a respeito da mensagem a ele enviada pelo Pregador? Esse pensamento encheu-lhe o peito de agitação. Como poderia aquele místico mendicante conhecer o sinal secreto pelo qual Paul Atreides sempre convocara seu mestre-espadachim? Idaho ansiava por deixar essa reunião sem sentido e retornar à busca da resposta a essa pergunta.

— Não há dúvida de que o Pregador esteve fora do planeta — disse Alia. — A Corporação Espacial não se atreveria a nos iludir em tal assunto. Farei com que ele seja...

— Vá com calma! — advertiu Irulan.

— De fato, tenha cuidado — disse Idaho. — Metade do planeta acredita que ele seja... — encolheu os ombros — seu irmão.

Idaho achou ter dito isso com uma atitude adequadamente displicente. Como o homem poderia conhecer aquele sinal?

— Mas e se ele é um correio ou um espião de...

— Ele não fez contato com ninguém da CHOAM ou da Casa Corrino — afirmou Irulan. — Podemos ter certeza.

— Não podemos ter certeza de coisa alguma!

Alia não tentou ocultar seu desdém. Voltou as costas a Irulan e encarou Idaho. Ele sabia por que estava ali! Por que não agia como era de se esperar? Ele estava no Conselho porque Irulan estava ali. A história que trouxera uma princesa da Casa Corrino para dentro das fileiras dos Atreides nunca poderia ser esquecida. A lealdade, uma vez trocada, poderia mudar novamente. Os poderes mentat de Duncan deviam estar procurando por falhas, por indícios sutis no comportamento de Irulan.

Idaho remexeu-se, agitado, e olhou para Irulan. Havia ocasiões em que ele se ressentia das necessidades diretas impostas ao desempenho de um mentat. Sabia o que Alia estava pensando. E Irulan também devia saber.

Mas essa Princesa-esposa de Paul Muad'Dib tinha superado as decisões que a haviam tornado inferior à concubina real, Chani. Não havia dúvidas quanto a devoção de Irulan para com os gêmeos reais. Ela havia renunciado à sua família e à Bene Gesserit para se dedicar aos Atreides.

— Minha mãe é parte da trama! — insistiu Alia. — Por que outro motivo a Irmandade a enviaria de volta para cá numa ocasião como esta?

— A histeria não vai nos ajudar em nada — disse Idaho. Alia girou, afastando-se dele, como ele sabia que ela faria.

Isso o ajudava por não obrigá-lo a ter que encarar aquele rosto que um dia amara e que agora se encontrava tão desfigurado por uma estranha possessão.

— Bem, — começou Irulan, — não podemos confiar totalmente na Corporação.

— A Corporação! — resmungou Alia.

— Não podemos deixar de levar em conta a inimizade da Corporação ou da Bene Gesserit — explicou Idaho. — Mas devemos colocá-las na categoria especial de combatentes passivos. A Corporação se manterá presa à sua regra básica: jamais governar. Seu crescimento é parasitário, e eles sabem disso. Não farão nada que mate o organismo que os mantém vivos.

— A idéia deles sobre qual é o organismo que os mantém vivos pode ser diferente da nossa — disse Irulan de modo arrastado. Isso fora o mais próximo que ela já chegara do sarcasmo, aquele tom preguiçoso de voz que dizia: “Você deixou escapar um aspecto, mentat.”

Alia parecia intrigada. Não esperava que Irulan tomasse essa linha de raciocínio. Não era o tipo de ponto de vista que um conspirador desejaria que fosse examinado.

— Sem dúvida — concordou Idaho. — Mas a Corporação não agiria abertamente contra a Casa Atreides. A Irmandade, por outro lado, poderia arriscar certo tipo de ruptura política que...

— Se o fizerem, será através de uma fachada. Alguém ou um grupo que elas possam repudiar — explicou Irulan. — A Bene Gesserit não se manteve viva todos esses séculos sem conhecer o valor de permanecer oculta. Elas preferem estar por trás do trono, não sobre ele.

“Permanecer oculta?”, admirou-se Alia. Seria isso que Irulan estaria fazendo?

— Precisamente o que penso da Corporação — disse Idaho. Para ele, eram úteis a argumentação e as explicações. Mantinham sua mente longe dos outros problemas.

Alia reaproximou-se das janelas iluminadas pelo sol. Conhecia o ponto cego de Idaho, cada mentat tinha o seu. Eles tinham de fazer declarações, e isso provocava uma tendência a depender de quantidades exatas, perceber limites finitos. Eles sabiam disso a respeito de si mesmo. Era parte de seu treinamento. E no entanto continuavam agindo além de seus parâmetros auto-limitadores. “Devia tê-lo deixado no Sietch Tabr”, pensou Alia. “Teria sido melhor entregar Irulan a Javid para ser interrogada.”

Dentro de seu crânio, Alia ouviu uma voz ribombante:

— Exatamente!

“Cale-se! Cale-se! Cale-se!”, pensou ela. Um erro perigoso a atraía nesses momentos e ela era incapaz de lhe reconhecer os contornos. Tudo que podia sentir era o perigo. Idaho tinha que ajudá-la a escapar a essa limitação. Ele era um mentat. Os mentats eram necessários. Os computadores humanos substituíam os engenhos mecânicos destruídos pelo Jihad Butleriano. “Tu não farás a máquina à semelhança da mente humana!”

Mas agora Alia desejava ler uma máquina submissa. Elas não leriam as limitações de Idaho. Nunca se desconfiaria de uma máquina.

Alia ouviu a voz arrastada de Irulan.

— Um truque dentro de um truque dentro de um truque — disse Irulan. — Nós todos conhecemos o padrão de ataque aceito para atingir o poder. Eu não censuro Alia por suas suspeitas. É claro que ela suspeita de todos, até mesmo de nós. Ignore isso por um momento, entretanto. O que permanece como a principal área de conflitos, a fonte mais fértil de perigo para a Regência?

— A CHOAM — respondeu Idaho com sua voz monótona de mentat.

Alia permitiu-se um sorriso amargo. A Combine Honorette Ober Advancer Mercantiles! Mas a Casa Atreides dominava a CHOAM, com 51 por cento de suas ações. O clero do Muad'Dib detinha outros cinco por cento, o que significava a aceitação pragmática, pelas Grandes Casas, de que Duna controlava a inestimável melange. Não era sem motivo que a especiaria era frequentemente chamada de “moeda secreta”. Sem a melange, os heighliners da Corporação Espacial não poderiam sair do chão. A melange precipitava o “transe de navegação”, pelo qual uma rota transluz podia ser vista antes de ser percorrida. Sem a melange e sua ampliação do sistema imunológico humano, a expectativa de vida dos muito ricos degeneraria por um fator de pelo menos quatro. Até mesmo a vasta classe média do Império ingeria a melange, diluída em pequenos borrifadores, pelo menos uma vez por dia.

Mas Alia percebera a sinceridade mentat na voz de Idaho, um som que ela estivera esperando com terrível expectativa.

CHOAM. A Combine Honorette abrangia muito mais que a Casa Atreides, muito mais que Duna, muito mais que o clero ou a melange. Eram fibras inkvine, pele de baleia, shigafios, artefatos e artistas ixianos, o comércio de pessoas e lugares, o Hajj, os produtos da tecnologia Tleilaxu, situados nos limites da legalidade. Eram drogas causadoras de dependência ao lado de técnicas médicas, eram o transporte (a Corporação) e todo o comércio supercomplexo de um Império que abrangia milhares de planetas conhecidos, mais alguns que se nutriam secretamente em suas fronteiras, devido aos serviços que prestavam. Quando Idaho dissera CHOAM, falara de uma fermentação constante, intriga dentro de intriga, um jogo de poder em que a mudança de um duodécimo nos pagamentos de quotas de comércio poderia mudar o governo de um planeta inteiro.

Alia voltou a se colocar diante das duas pessoas sentadas nos divãs.

— Alguma coisa específica a respeito da CHOAM incomoda vocês?

— Existe sempre grande especulação a respeito da armazenagem de especiaria por parte de certas Casas — disse Irulan.

Alia bateu com as mãos sobre as próprias coxas e então apontou para o papel de especiaria gravado ao lado de Irulan.

— Essa exigência não a intriga, vindo como vem de...

— Muito bem! — exclamou Idaho. — Ponha as cartas na mesa! Que está ocultando? Sabe muito bem que não pode me negar informações e ainda esperar que eu funcione como um...

— Tem havido um aumento recente e muito significativo no comércio de pessoas com quatro habilidades específicas — revelou Alia, enquanto imaginava se essa seria realmente uma nova informação para essa dupla.

— Que habilidades? — indagou Irulan.

— Mestres espadachins, mentats pervertidos de Tleilax, médicos condicionados da escola Suk e contadores corruptos, principalmente estes últimos. Por que guarda-livros suspeitos estariam em demanda exatamente agora? — Ela dirigiu a pergunta a Idaho.

“Funcione como mentat”, pensou ele. Bem, isso era melhor do que se alongar na observação daquilo em que Alia se transformara. Focalizou suas palavras, repetindo-as na mente à maneira mentat. “Mestres espadachins?”

Esse fora o seu título, um dia. Mas os mestres espadachins representavam muito mais do que simples combatentes individuais. Podiam consertar escudos de força defensivos, planejar campanhas militares, projetar instalações de apoio militar, improvisar armas. “Mentats pervertidos?” Os Tleilaxu insistiam nessa fraude, obviamente. Como mentat, Idaho conhecia a frágil insegurança da perversão Tleilaxu. As Grandes Casas que adquiriam tais mentats esperavam controlá-los de modo absoluto. Isso era impossível! Até mesmo Piter de Vries, que servira aos Harkonnen em seu assalto à Casa Atreides, mantivera sua própria dignidade essencial, aceitando a morte em vez de entregar seu núcleo interior de personalidade autônoma, no final. “Médicos Suk?” Seu condicionamento supostamente os garantia contra a deslealdade para com seus senhores-pacientes. Os médicos Suk eram muito dispendiosos. Uma compra crescente de médicos Suk envolveria uma troca substancial de fundos.

Idaho pesou esses fatos contra o aumento dos contadores corruptos.

— Primeira computação — disse ele, indicando com forte segurança que falava de um fato induzido. — Houve um recente aumento na riqueza das Casas Menores. Algumas delas têm caminhado silenciosamente na direção do status de Grande Casa. Tal riqueza só pode provir de algumas mudanças específicas em alinhamentos políticos.

— Chegamos, afinal, à Landsraad — disse Alia, verbalizando sua própria crença.

— A próxima reunião da Landsraad será daqui a quase dois anos-padrão — lembrou Irulan.

— Mas as barganhas políticas nunca cessam — continuou Alia.

— E eu asseguro que entre aqueles signatários tribais — gesticulou para o papel ao lado de Irulan — se encontram alguns que pertencem às Casas Menores que mudaram seus alinhamentos.

— Talvez — respondeu Irulan.

— A Landsraad... — disse Alia. — Que melhor fachada para as Bene Gesserits? E que melhor agente para a Irmandade do que minha própria mãe? — Alia plantou-se na frente de Duncan Idaho. — Então, Duncan?

“Por que não funcionar como um mentat?”, indagou-se Idaho. Agora percebia o curso das suspeitas de Alia. Afinal, fora o guarda pessoal de Lady Jessica durante muitos anos.

— Duncan? — insistiu Alia.

— Você deve pesquisar em busca de qualquer consultoria legislativa que possa estar sendo preparada para a próxima sessão da Landsraad — respondeu Idaho. — Eles podem assumira posição legal de que a Regência não tem poderes para vetar certos tipos de leis especificamente, os ajustes das taxas e o policiamento dos cartéis.

— Existem outras, mas esse não seria um palpite muito pragmático da sua parte — comentou Irulan.

— Concordo — disse Alia. — Os Sardaukar não têm suas garras e nós ainda temos nossas legiões Fremen.

— Cuidado, Alia — avisou Idaho. — Nossos inimigos não se sentiriam mais satisfeitos se nos fizessem parecer monstruosos. Não importa quantas legiões você comande, num Império tão disperso quanto este, o poder, em última análise, tem por base o apoio popular.

— Apoio popular? — perguntou Irulan.

— Você quer dizer apoio das Grandes Casas — disse Alia.

— E quantas Grandes Casas nós enfrentaremos sob essa nova aliança? — perguntou Idaho.

— O dinheiro está sendo coletado em lugares estranhos!

— As fronteiras? — indagou Irulan.

Idaho encolheu os ombros. Essa era uma pergunta sem resposta. Todos eles suspeitavam de que um dia os Tleilaxu, ou então os artífices tecnológicos nas fronteiras imperiais, anulariam o Efeito Holtzman. Nesse dia, os escudos seriam inúteis. E todo o precário equilíbrio que mantinha os feudos planetários desabaria. Alia recusava-se a considerar essa possibilidade.

— Prosseguiremos com o que temos — disse ela. — E o que temos é o conhecimento, por toda a diretoria da CHOAM, de que nós podemos destruir a especiaria, se eles nos forçarem. Não vão correr esse risco.

— De volta à CHOAM — disse Irulan.

— A menos que alguém tenha conseguido duplicar o ciclo da truta em verme da areia num outro planeta — disse Idaho. Olhou de modo indagador para Irulan, excitado por essa possibilidade.

— Salusa Secundus?

— Meus contatos lá permanecem dignos de confiança — respondeu Irulan. — Não em Salusa.

— Então, minha resposta permanece — disse Alia, fitando Idaho. — Continuamos com o que temos.

“Meu movimento”, pensou Idaho, e disse:

— Por que me arrastou para longe de um trabalho importante? Podia ter chegado a esse resultado sozinha.

— Não use esse tom comigo! — retrucou Alia.

Os olhos de Idaho se arregalaram. Por um instante, ele vira o estranho no rosto de Alia, e fora uma visão desconcertante. Voltou sua atenção para Irulan, mas esta não vira... ou dava a impressão de não ter visto.

— Não preciso de educação elementar — disse Alia, a voz ainda marcada pela estranha raiva.

Idaho conseguiu dar um sorriso triste, mas seu peito doía.

— Nunca estamos longe da riqueza e de todas as suas máscaras quando lidamos com o poder — disse Irulan em sua voz arrastada. — Paul era uma mutação social e como tal nos devemos lembrar que ele mudou o velho equilíbrio das riquezas.

— Tais mutações não são irreversíveis — disse Alia, dando as costas para eles como se não houvesse exposto sua terrível diferença. — Onde quer que haja riqueza neste Império, eles sabem disso.

— Eles também sabem — disse Irulan — que há três pessoas que poderiam perpetuar a mutação: os gêmeos e... apontou para Alia.

“Estarão loucas, essas duas?”, perguntou-se Idaho.

— Eles vão tentar me assassinar! — exclamou Alia de modo estridente.

Idaho continuou sentado em silêncio, chocado, sua consciência mental girando. Assassinar Alia? Para quê? Eles poderiam desacreditá-la muito facilmente. Poderiam separá-la de sua matilha Fremen e caçá-la à vontade.

Mas o gêmeos eram diferentes... Ele sabia que não se encontrava na calma mentat adequada para tal avaliação, mas precisava tentar. Tinha de ser tão preciso quanto possível. Ao mesmo tempo, sabia que o pensamento preciso continha alguns valores absolutos não-digeríveis. A natureza não era precisa. O universo não era preciso quando reduzido à sua escala, era vago e nebuloso, cheio de mudanças e movimentos inesperados. A humanidade como um todo devia ser colocada nessa computação como um fenómeno natural. E todo o processo de análise precisa representava um corte, uma remoção da corrente de fluxo do universo. Ele tinha de entrar naquela corrente, vê-la em movimento.

— Tínhamos razão em focalizar a CHOAM e a Landsraad — dizia Irulan em seu modo pausado. — E a sugestão de Duncan oferece uma primeira linha de investigação para...

— O dinheiro como expressão da energia não pode ser separado da energia que ele expressa — disse Alia. — Todos sabemos disso. Mas temos de responder a três perguntas específicas: Quando? Usando que armas? Onde?...

“Os gêmeos... os gêmeos”, pensava Idaho. “São os gêmeos que estão em perigo, não Alia.”

— Você não está interessada em quem ou como? — perguntou Irulan.

— Se a Casa Corrino, a CHOAM ou qualquer outro grupo emprega instrumentos humanos neste planeta — disse Alia, — temos uma probabilidade superior a 60 por centro de encontrá-los antes que tenham tempo de agir. Saber quando e onde vão agir nos propiciaria um aumento dessas chances. Como? Isso é apenas indagar com que armas.

“Por que elas não conseguem ver a coisa como eu a vejo?”, admirou-se Idaho.

— Certo — disse Irulan. — Quando?

— Quando toda a atenção estiver voltada para outra pessoa.

— A atenção estava voltada para sua mãe na Convocação — lembrou Irulan. — E não houve atentado.

— Lugar errado — disse Alia.

“Que é que ela está fazendo?”, perguntou-se Idaho.

— Onde então? indagou Irulan.

— Aqui mesmo, no Castelo. É o lugar onde me sinto mais segura e menos em guarda.

— Com que armas? — perguntou Irulan.

— Convencionais. Alguma coisa que um Fremen poderia carregar consigo: uma faca cristalina envenenada, uma pistola maula, um...

— Eles não tentam um caçador-rastreador há muito tempo — disse Irulan.

— Não funcionaria em uma multidão. E terá de haver multidão.

— Uma arma biológica? — sugeriu Irulan.

— Um agente infeccioso? — perguntou Alia, sem ocultar sua incredulidade. Como Irulan podia pensar que um agente infeccioso teria sucesso contra as barreiras imunológicas que protegiam um Atreides?

— Eu estava pensando mais na linha de algum animal — explicou Irulan. — Um pequeno bicho treinado para morder uma vítima específica, aplicando o veneno com a mordida.

— Os furões da Casa preveniriam isso.

— Um deles, então? — indagou Irulan.

— Não poderia ser feito. Os furões da Casa rejeitariam um animal estranho e o matariam. Você sabe disso.

— Estava apenas explorando as possibilidades na esperança de que...

— Eu alertarei minha guarda — concluiu Alia.

Quando Alia disse guarda, Idaho colocou a mão sobre seus olhos Tleilaxu tentando evitar o envolvimento arrebatador que deslizou sobre ele. Era o Rhajia, o movimento do Infinito, tal como expresso pela Vida. A dose latente de total imersão em consciência mentat que estava reservada a qualquer mentat. Aquilo lançava sua consciência sobre o universo como uma rede, caindo, definindo as formas dentro dela. Ele viu os gêmeos agachados na escuridão, enquanto garras gigantescas rasgavam o ar em torno deles.

— Não — sussurrou ele.

— O quê? — Alia olhou para ele como se estivesse surpresa por ainda encontrá-lo ali.

Ele abaixou as mãos da frente dos olhos.

— As vestes que a Casa Corrino enviou — disse ele. — Foram entregues aos gêmeos?

— É claro — respondeu Irulan. — São perfeitamente seguras.

— Ninguém vai tentar algo contra os gêmeos no Sietch Tabr — disse Alia. — Não tendo em volta aqueles guardas treinados por Stilgar.

Idaho olhou para ela. Não tinha nenhum dado em particular para reforçar um argumento baseado na computação mentat. Mas sabia. Ele sabia. Essa coisa que experimentara chegara muito perto do poder visionário que Paul conhecera. Nem Irulan nem Alia acreditariam naquilo partindo dele.

— Gostaria de alertar as autoridades portuárias contra a permissão de importação de quaisquer animais do exterior — disse ele.

— Você não está levando a sério a sugestão de Irulan—  protestou Alia.

— Porque arriscar? — perguntou ele.

— Diga isso aos contrabandistas — disse Alia. — Eu confiarei nos furões da Casa.

Idaho sacudiu a cabeça. Que poderiam fazer os furões da Casa contra garras do tamanho daquelas que visualizara? Mas Alia estava certa.

Subornos nos lugares certos, um complacente navegador da Corporação e qualquer lugar do Território Vazio poderia tornar-se um local de pouso. A Corporação resistiria a uma posição frontal em qualquer ataque à Casa Atreides, mas se o preço fosse suficientemente alto... Bem, podia-se pensar na Corporação como se fosse alguma coisa como uma barreira geológica que apenas tornava os ataques difíceis, mas não impossíveis.

Eles sempre poderiam protestar que eram apenas uma “agência de transportes”. Como poderiam saber que uso se daria a uma carga determinada?

Alia quebrou o silêncio com um gesto puramente Fremen, o punho erguido com o polegar na horizontal. Acompanhou o gesto com uma exclamação tradicional que significava “Eu dou o Conflito do Tufão”. Obviamente, ela se via como o único alvo lógico para os assassinos, e o gesto era a afirmação de um universo cheio de ameaças não-eliminadas. Alia estava dizendo que lançaria o vento da morte sobre qualquer um que a atacasse.

Idaho sentiu a inutilidade de qualquer protesto. Percebia que ela não mais suspeitava dele.

Voltaria ao Sietch Tabr, onde ela esperava que executasse com perfeição o rapto de Lady Jessica. Idaho ergueu-se do divã com um súbito fluxo de adrenalina a lhe impulsionar a raiva. Pensava: “Se ao menos Alia fosse o alvo! Se ao menos os assassinos pudessem pegá-la!” Por um instante, levou a mão à própria faca, mas não lhe cabia fazer isso. Muito melhor para ela, entretanto, morrer como mártir do que viver para ser desacreditada e perseguida até um túmulo na areia.

— Sim — disse Alia, interpretando erroneamente sua expressão como de preocupação por ela. — É melhor voltar depressa ao Tabr. — E pensou: “Como fui tola em suspeitar de Duncan! Ele é meu, não de Jessica!” Fora a exigência das tribos que a perturbara, concluiu. Acenou-lhe um alegre adeus quando ele saiu.

Idaho deixou a Câmara do Conselho sentindo-se sem esperanças. Alia não estava apenas cega com sua estranha possessão, mas se tornava mais insana a cada crise. Já ultrapassara o ponto de perigo e estava condenada. Mas que poderia ser feito pelos gêmeos? A quem ele poderia convencer?

Stilgar? E o que Stilgar poderia fazer que já não estivesse sendo feito?

“Lady Jessica, então?”

Sim, ele exploraria essa possibilidade. Mas ela também poderia estar muito envolvida em tramas com sua Irmandade. Tinha poucas ilusões a respeito da concubina Atreides. Ela poderia fazer qualquer coisa sob as ordens das suas Bene Gesserits. Até mesmo voltar-se contra os próprios netos.

 

Os bons governos nunca dependem das leis e sim das qualidades pessoais daqueles que governam. A máquina do governo encontra-se sempre subordinada à vontade daqueles que a administram. O elemento mais importante de um governo, portanto, é o método de escolha de seus líderes.

 

- “Lei e Governo” - Manual da Corporação Espacial

 

“Por que Alia deseja que eu compareça a essa audiência matinal?”, perguntava-se Jessica. “Eles ainda não votaram minha volta ao Conselho.”

Jessica encontrava-se na ante-sala do Grande Salão do Castelo. Em si mesma, a ante-sala teria sido um grande salão em qualquer outro lugar que não Arrakis. Seguindo a liderança Atreides, os prédios de Arrakeen se haviam tornado ainda mais gigantescos, à medida que a riqueza e o poder se concentravam, e essa sala resumia suas apreensões. Ela não gostava do aposento, com seu piso de azulejos representando a vitória de seu filho contra Shaddam IV.

Percebeu o reflexo do próprio rosto na porta de plasteel polido que levava ao Grande Salão. Voltar a Duna forçava-a a tais comparações, e Jessica notava apenas os sinais do envelhecimento em suas próprias feições: o rosto oval desenvolvera pequenas linhas e os olhos estavam mais instáveis em seus reflexos azulados. Podia lembrar-se do tempo em que existira um branco em torno do azul de seus olhos. Somente as cuidadosas aplicações de um cabeleireiro profissional mantinham o bronze polido de seus cabelos. O nariz permanecia pequeno, a boca, generosa, e o corpo ainda era esguio, mas mesmo os músculos treinados à maneira Bene Gesserit mostravam uma tendência à lentidão, com o passar do tempo.

Alguns podiam não notar isso e dizer: “Você não mudou nem um pouco!” Mas o treinamento da Irmandade era uma faca de dois gumes: pequenas mudanças raramente deixam de ser notadas por pessoas treinadas dessa maneira.

E a ausência das pequenas mudanças em Alia não escapara à percepção de Jessica.

Javid, o encarregado dos compromissos de Alia, encontrava-se diante da grande porta, parecendo muito cerimonioso essa manhã. Era um gênio metido em mantos, com um sorriso cínico no rosto redondo. Jessica via em Javid um paradoxo: um Fremen bem-alimentado. Notando a atenção dela sobre ele, Javid sorriu, compreensivo, e encolheu os ombros. Seu serviço no séquito de Jessica fora breve, como ele sabia que o seria. Odiava os Atreides, mas era o homem de Alia em mais de um sentido, se os rumores estavam certos.

Jessica viu o encolher de ombros e pensou: “Esse gesto caracteriza esta era. Ele sabe que eu ouvi todas as histórias a seu respeito e não se importa. Nossa civilização poderia morrer de indiferença interna bem antes de sucumbir a qualquer ataque externo.”

Os guardas que Gurney lhe havia destinado, antes de partir para o deserto a fim de confrontar os contrabandistas, não haviam gostado de ela ter ido até ali sem a sua companhia. Mas Jessica sentia-se curiosamente segura.

Deixe que alguém faça de mim uma mártir neste lugar, Alia não sobreviverá a isso. Ela o sabe.

Quando Jessica não respondeu ao encolher de ombros e ao sorriso, Javid tossiu, um ruído de eruptação em sua laringe que só poderia ter sido conseguido com a prática. Era como uma linguagem secreta. Aquilo dizia:

“Entendemos a tolice de toda esta pompa, Minha Senhora. Não é maravilhoso aquilo em que os seres humanos podem ser levados a acreditar?”

“Maravilhoso!”, concordou Jessica, mas seu rosto não deu qualquer indicação desse pensamento.

A ante-sala estava bem cheia agora. Todos os suplicantes que teriam seu ingresso permitido essa manhã haviam recebido seu passe do pessoal de Javid. As portas externas haviam sido fechadas.

Suplicantes e criados mantinham uma distância cerimoniosa em relação a Jessica, mas observavam que ela usava o manto aba negro, formal, de uma Reverenda Madre Fremen. Isso causaria muitas perguntas. Nenhuma marca do clero do Muad'Dib podia ser vista em sua pessoa. As conversas corriam em tom de murmúrio, enquanto as pessoas dividiam sua atenção entre Jessica e a pequena porta lateral através da qual Alia chegaria para conduzi-los ao Grande Salão. Era óbvio para Jessica que o velho padrão que definia onde se encontravam os poderes da Regência fora abalado.

“Eu causei isso apenas vindo aqui”, pensou. “Mas eu vim porque Alia me convidou.”

Notando os sinais de perturbação, Jessica percebia que Alia estava prolongando deliberadamente esse momento, permitindo que correntes sutis seguissem seu curso. Alia devia estar observando de uma vigia, é claro.

Poucas sutilezas em seu comportamento escapavam a Jessica, e a cada minuto que passava esta percebia como estivera certa em aceitar a missão que a Irmandade praticamente lhe impusera.

— Não se pode permitir que as coisas continuem deste modo — argumentara a líder da delegação Bene Gesserit. — Certamente, os sinais de corrupção não escaparam à sua percepção... ou à de todas as pessoas! Sabemos por que nos deixou, mas também sabemos como foi treinada. Nada foi poupado em sua educação. Você é uma adepta da Panóplia Profética e deve reconhecer quando a fermentação de uma religião poderosa nos ameaça a todos.

Jessica comprimira os lábios enquanto pensava, olhando através da janela para os suaves indícios de primavera no Castelo Caladan. Não gostava de dirigir os pensamentos dessa maneira lógica. Uma das primeiras lições da Irmandade fora reservar uma atitude de questionadora desconfiança ante qualquer coisa que aparecesse sob o rótulo de lógica. Mas as integrantes da delegação também sabiam disso.

Como o ar estivera úmido naquela manhã, pensou Jessica, olhando para a ante-sala de Alia. Fresco e úmido. Aqui, havia no ar um sentimento de umidade suarenta que evocava a intranquilidade, e Jessica pensou:

“Reverti ao modo de pensar dos Fremen.” O ar era demasiado úmido nesse sietch acima do solo. Que estaria acontecendo de errado com o Mestre dos Alambiques? Paul nunca teria permitido tal descuido.

Percebia que Javid, o rosto brilhante e alerta, mas tranquilo, parecia não ter notado a falha na umidade do ar dessa ante-sala. Uma falha de treinamento para alguém nascido em Arrakis.

As integrantes da delegação Bene Gesserit queriam saber se ela exigia provas de suas alegações. Ela lhes dera uma resposta irritada, tirada de um de seus próprios manuais:

Todas as provas conduzem inevitavelmente a proposições que não podem ser provadas! Todas as coisas são conhecidas porque desejamos acreditar nelas.

— Mas nós submetemos essas questões aos mentats — protestara a líder da delegação.

Jessica olhou atónita para a mulher:

— Me admira que tenha chegado à sua presente posição e ainda não tenha consciência das limitações de todos os mentats.

Com isso a delegação ficou tranquila. Aparentemente, tudo fora um teste e Jessica passara. Elas temiam, é claro, que ela houvesse perdido o contato com todas aquelas habilidades equilibradas que constituíam o núcleo do treinamento Bene Gesserit.

Agora, Jessica ficou ligeiramente alerta enquanto Javid deixava sua posição na porta e se aproximava. Ele se curvou numa mesura.

— Minha Senhora, ocorreu-me que pode não ter ouvido ainda a respeito da última proeza do Pregador.

— Recebo relatórios diários de tudo o que acontece aqui — respondeu Jessica, pensando: “Deixe-o contar isso a Alia.”

Javid sorriu.

— Então sabe que ele insulta sua família. Na noite passada, ele pregou nos subúrbios do sul e ninguém se atreveu a tocá-lo. Sabe por quê, é claro.

— Porque pensam que ele é o meu filho que retorna — respondeu Jessica com voz entediada.

— Essa questão ainda não foi colocada ao mentat Idaho — lembrou Javid. — Talvez isso devesse ser feito, resolvendo-se a questão.

Jessica pensou: “Esse é um que não conhece verdadeiramente as limitações de um mentat, embora se atreva a colocar chifres num deles... pelo menos em seus sonhos, senão na vida real.”

— Os mentats compartilham as falibilidades daqueles que os empregam — ela disse. — A mente humana, assim como a mente de qualquer animal, é um ressonador. Ela responde às ressonâncias do ambiente. Um mentat aprende a estender sua consciência através de muitos laços paralelos de casualidade, e a prosseguir, de acordo com esses laços, em busca das longas correntes de consequências. — “Deixe-o digerir isso.”

— Esse Pregador não a perturba, então? — indagou Javid, a voz subitamente formal e solene.

— Eu o vejo como um sinal saudável — respondeu Jessica. — Não quero que seja incomodado.

Evidentemente, Javid não esperava essa resposta brusca. Tentou sorrir, não conseguiu, então disse:

— O Conselho governante da Igreja que endeusa o seu filho se curvará aos seus desejos, é claro, se assim insistir. Mas certamente alguma explicação...

— Talvez preferisse que eu explicasse como eu me encaixo em seus esquemas — ela disse.

Javid olhou para ela de modo crítico.

— Madame, não vejo razão lógica para sua recusa em denunciar esse Pregador.

— Ele não pode ser seu filho.

— Eu faço um pedido razoável: denuncie-o!

“Isso foi arranjado”, pensou Jessica. “Alia o mandou fazer isso.” E disse:

— Não!

— Mas ele desonra o nome de seu filho! Prega coisas abomináveis, grita contra sua sagrada filha, incita a população contra nós. Quando lhe perguntaram, ele disse que até mesmo a senhora possuía a natureza da maldade e que seu...

— Chega dessa tolice! — disse Jessica. — Diga a Alia que eu me recuso. Não ouvi outra coisa senão estórias sobre esse Pregador desde que voltei. Ele me deixa entediada.

— Será que a deixa entediada, Madame, saber que em seus últimos insultos ele disse que a senhora não se voltará contra ele? E agora, evidentemente...

— Má como sou, ainda assim não o denuncio.

— Isso não é assunto para brincadeiras, Madame!

Jessica acenou para que ele fosse embora.

— Fora! — Falou com tal veemência que outros ouviram, o que o forçou a obedecer.

Seus olhos brilharam de raiva, mas ele conseguiu fazer uma rígida mesura e retornou à sua posição junto da porta.

Essa discussão encaixava-se perfeitamente nas observações que Jessica já fizera. Quando falava em Alia, a voz de Javid traía os meios tons roucos de um amante. Não havia engano nisso. Os boatos, sem dúvida, eram verdadeiros. Alia permitira que sua vida degenerasse de modo terrível e, ao observar isso, Jessica começou a nutrir a suspeita de que a moça era uma participante voluntária no processo da Abominação. Seria isso o resultado de uma vontade perversa de autodestruição? Pois decerto Alia estava trabalhando para destruir a si mesma, juntamente com a base de poder que se nutria dos ensinamentos de seu irmão.

Débeis indícios de inquietação começaram a se tornar evidentes na ante-sala. Os aficionados desse lugar percebiam quando Alia se demorava e agora todos tinham ouvido a respeito do veemente repúdio de Jessica ao favorito de Alia.

Jessica suspirou. Sentia que seu corpo havia caminhado para o interior desse lugar com a alma se arrastando atrás. Os movimentos entre os cortesãos eram tão transparentes! A busca de pessoas importantes era uma dança que lembrava o vento batendo num campo de talos de cereais. Os refinados habitantes do lugar franziam as sobrancelhas e concediam enigmáticos números de importância a cada um de seus companheiros.

Obviamente, sua repulsa a Javid o ferira, poucos falavam com ele agora. Mas os outros! Seus olhos treinados podiam ler os números de classificação nos satélites que serviam os poderosos.

“Eles não me cercam porque sou perigosa”, pensou. “Tenho o cheiro de alguém que Alia teme.”

Jessica olhou à sua volta, vendo os olhares desviarem-se. Era uma gente tão fútil que ela se surpreendeu desejando gritar contra suas justificativas já prontas para suas vidas sem sentido. Oh, se ao menos o Pregador pudesse ver essa sala tal como ela aparecia agora!

Fragmentos de uma conversa próxima chamaram-lhe a atenção. Um sacerdote alto e esguio dirigia-se à sua rodinha de acompanhantes, obviamente suplicantes que haviam ido ali sob seus auspícios.

— Frequentemente devo dizer o oposto daquilo que penso — ele dizia. — Isso se chama diplomacia.

A risada resultante foi muito alta, e muito rapidamente silenciada.

Pessoas do grupo perceberam que Jessica tinha ouvido.

“Meu Duque teria enviado esse sujeito para o buraco mais distante que houvesse!”, pensou Jessica. “Eu voltei bem na hora.”

Sabia agora que tinha vivido na distante Caladan numa cápsula de isolamento que só permitira a penetração dos mais gritantes excessos de Alia. “Contribuí para minha própria existência sonhadora”, pensou.

Caladan lhe oferecera algo como o isolamento proporcionado por uma verdadeira fragata de primeira classe, viajando segura dentro do porão de um heighliner da Corporação. Somente as manobras mais violentas podiam ser sentidas, e assim mesmo como meros movimentos suavizados.

“Como seduz viver em paz”, pensou.

Quanto mais via a corte de Alia, mais afinidade sentia pelas palavras relatadas como tendo partido do Pregador cego. Sim, Paul teria dito tais palavras se visse em que se tornara seu reino. E Jessica se perguntava o que Gurney teria descoberto entre os contrabandistas.

Percebeu que sua primeira reação a Arrakeen fora correta. Naquele primeiro passeio pela cidade, em companhia de Javid, sua atenção fora despertada pelas cercas blindadas em torno das residências, os caminhos e passagens fortemente guardados, os vigias pacientes em cada esquina, os muros altos e os subterrâneos profundos revelados pelas amplas fundações.

Arrakeen deixara de ser um lugar generoso para se tornar fechado, desmedido e farisaico em seus duros contornos.

De repente, a pequena porta lateral da ante-sala se abriu. Uma vanguarda de sacerdotisas amazonas espalhou-se pela sala, com Alia atrás delas, arrogante e com uma consciência restrita pelo poder real e terrível. O rosto de Alia estava tranquilo, sem qualquer emoção a se revelar quando seu olhar encontrou o da mãe. Mas ambas sabiam que a batalha havia começado.

A uma ordem de Javid, as gigantescas portas que davam para o grande Salão começaram a se abrir, movendo-se com a silenciosa e inevitável impressão de energias ocultas.

Alia veio para junto da mãe enquanto os guardas as envolviam.

— Devemos entrar agora, mamãe?

— Não há tempo a perder — respondeu Jessica. E pensou, vendo a satisfação maligna nos olhos de Alia: “Ela acha que pode me destruir e permanecer incólume! Está louca!”

Jessica se perguntava se não fora isso que Idaho quisera dizer. Ele enviara uma mensagem, mas ela fora incapaz de responder. Era muito enigmática: “Perigo. Preciso vê-la. Fora escrita numa variante do velho idioma Chakobsa, onde uma palavra em especial, escolhida para denotar perigo, significava conspiração.

“Irei vê-lo imediatamente, assim que retornar a Tabr”, pensou ela.

 

Esta é a falácia do poder, no final das contas, ele só é efetivo num universo absoluto e limitado. Mas a lição básica de nosso universo relativística é que as coisas mudam. Qualquer poder deve sempre encontrar no final um poder maior. Paul Muad'Dib ensinou essa lição aos Sardaukar nas planícies de Arrakeen. Seus descendentes ainda deverão aprender essa lição por si mesmos.

 

- O Pregador em Arrakeen

 

O primeiro suplicante na audiência matinal era um trovador kadeshiano, um peregrino do Hajj cuja bolsa fora esvaziada por mercenários de Arrakeen.

Ficou de pé sobre o piso de pedras verde aquáticas da câmara, sem aparentar um ar de súplica.

Jessica admirou seu atrevimento da posição onde se sentava com Alia, no topo da plataforma de sete degraus. Tronos idênticos haviam sido colocados ali para a mãe e a filha, e Jessica tomou nota do fato de que Alia se sentava à direita, na posição masculina.

Quanto ao trovador kadeshiano, era óbvio que o pessoal de Javid lhe havia permitido entrar exatamente por esta qualidade que ele agora exibia: o atrevimento. Esperava-se que o trovador proporcionasse algum divertimento aos cortesãos do Grande Salão, era o pagamento que ele daria em troca do dinheiro que não mais possuía.

De acordo com o relatório do Sacerdote-Advogado, agora defendendo a causa do trovador, o kadeshiano ficara somente com a roupa do corpo e o baliset preso sobre o ombro por um cordão de couro.

— Ele diz que lhe deram uma bebida escura — disse o Advogado, quase sem ocultar o sorriso que tentava torcer-lhe os lábios. — Se esse detalhe agrada à sua Santidade, a bebida o deixou indefeso mas desperto, enquanto sua bolsa era cortada.

Jessica estudou o trovador enquanto o Advogado continuava sua cantilena em tom de falsa subserviência, a voz cheia de sórdido moralismo. O kadeshiano era alto, chegando facilmente a dois metros. Tinha os olhos inquietos, que mostravam uma vigília inteligente, além de humor. Seu cabelo louro caía até os ombros, como era o estilo em seu planeta, e havia uma aparência de força viril em seu peito largo e no corpo, que logo se adelgaçava para baixo sem que o manto cinzento do Hajj pudesse ocultá-lo. Seu nome fora dado como sendo Tagir Mohandis, um descendente de engenheiros mercantes, orgulhoso de seus ancestrais e de si mesmo.

Alia finalmente interrompeu a súplica com um aceno da mão e falou sem se voltar:

— Lady Jessica fará o primeiro julgamento, em honra de sua volta ao nosso convívio.

— Obrigada, filha — respondeu Jessica, declarando a ordem de ascendência para que todos ouvissem. “Filha!” Seria esse Tagir Mohandis parte do plano? Ou seria um crente inocente? Esse julgamento fora preparado para abrir o ataque sobre ela, percebeu Jessica. Isso era óbvio na atitude de Alia.

— Você toca bem esse instrumento? — perguntou Jessica, indicando com a mão o baliset de nove cordas sobre o ombro do trovador.

— Tão bem quanto o Grande Gurney Halleck em pessoa! — respondeu Tagir, falando alto para que todos no salão ouvissem. Suas palavras provocaram uma interessante agitação entre os cortesãos.

— Você busca a dádiva do dinheiro para o transporte — disse Jessica. — Aonde o conduziria esse dinheiro?

— A Salusa Secundus e à corte de Faradin — disse Mohandis. — Ouvi dizer que ele procura trovadores e menestréis, que apoia as artes e está se cercando de cultura, preparando uma renascença.

Jessica forçou-se a não olhar para Alia. Eles sabiam, é claro, o que Mohandis ia pedir.

Surpreendeu-se apreciando esse jogo. Será que eles achavam que ela era incapaz de reagir adequadamente a essa pressão?

— Você tocaria em troca de sua passagem? — perguntou Jessica. — Meus termos são termos Fremen. Se eu gostar de sua música, posso mantê-lo aqui para aliviar minhas preocupações, se sua música me ofender, posso mandá-lo realizar trabalho pesado no deserto, em troca do dinheiro de sua passagem. E se considerar que sua maneira de tocar só é adequada para Faradin, que dizem ser inimigo dos Atreides, então o enviarei a ele com as minhas bênçãos. Aceita esses termos, Tagir Mohandis?

Ele lançou a cabeça para trás numa estrondosa gargalhada. Seu cabelo longo dançou enquanto pegava o baliset e o afinava cuidadosamente para indicar que aceitara o desafio.

A multidão no salão começou a se aproximar, mas foi contida pelos cortesãos e pelos guardas.

Daí a pouco, Mohandis feriu uma nota, mantendo o zumbido grave das cordas laterais com cuidadosa atenção para com sua vibração arrebatadora. Então, erguendo a voz num suave tenor, ele cantou, obviamente improvisando, mas tocando de modo tão hábil que Jessica se sentiu cativada, antes de prestar atenção à letra:

 

Vocês dizem-se saudosos dos mares de Caladan, onde certo da governaram, Atreides

Sem parar...

Mas os exilados se demoram em terras de estranhos!

Vocês dizem que eles eram homens amargos, tão rudes

Que venderam seus sonhos do Shai-Hulud em troca de um alimento sem sabor...

Pois os exilados se demoram em terras de estranhos.

Vocês fazem Arrakis tornar-se fraco

Silenciando a passagem do verme

E terminando seu período...

Como exilados, vivendo em terras de estranhos Alia!

Eles a chamam de Coan-Teen Aquele espírito que nunca é visto Até..

 

— Basta — gritou Alia. Ergueu-se meio caminho para fora do trono. — Vou mandar que o...

— Alia! — Jessica falou com a intensidade apenas necessária, sua voz ajustada no tom certo para evitar o confronto mas, ao mesmo tempo, obter toda a atenção. Era um esplêndido uso da Voz, e todos que a ouviram reconheceram os poderes treinados nessa demonstração. Alia caiu de volta no trono e Jessica notou que ela não mostrava o menor indício de frustração.

“Isso também foi previsto”, pensou Jessica. “Que interessante.”

— O julgamento deste primeiro é meu — lembrou Jessica.

— Muito bem. — As palavras de Alia eram quase inaudíveis.

— Acho que este aqui é um presente adequado para Faradin — disse Jessica. — Ele tem uma língua que corta como uma faca cristalina. A sangria que essa língua pode causar seria saudável para nossa corte, mas prefiro que seja causada à Casa Corrino.

Um leve murmúrio de risos propagou-se pelo salão. Alia permitiu-se um som resfolegante:

— Sabe do que ele me chamou?

— Ele não a chamou de nada, filha. Apenas relatou o que ele ou qualquer outro pode ouvir nas ruas. Lá eles a chamam de Coan-Teen...

— O espírito da morte feminino que caminha sem os pés — resmungou Alia.

— Se matar aqueles que relatam o que ouvem com sinceridade, manterá ao seu redor apenas aqueles que dizem o que você quer ouvir — disse Jessica com a voz suave. — Não posso pensar em nada mais venenoso do que apodrecer no fedor das próprias reflexões.

Audíveis exclamações de espanto partiram daqueles imediatamente abaixo do trono.

Jessica voltou sua atenção para Mohandis, que permanecia em silêncio, sem se intimidar. Ele aguardava qualquer sentença que lhe fosse passada como se não se importasse. Mohandis era exatamente o tipo de homem que seu Duque teria escolhido para ter ao seu lado em tempos difíceis: alguém que agia com confiança em seu próprio julgamento, mas aceitava o que quer que lhe pudesse acontecer, mesmo a morte, sem lamentar o destino. Então, por que escolhera esse curso de ação?

— Por que cantou exatamente aquela letra? — perguntou-lhe Jessica.

Ele ergueu a cabeça para falar claramente:

— Ouvi dizer que os Atreides eram honrados e de mente aberta. Pensei em testar isso e talvez ficar aqui a seu serviço, de modo a dispor de tempo para procurar aqueles que me roubaram e cuidar deles à minha própria maneira.

— Ele se atreve a nos testar! — murmurou Alia.

— Porque não? — perguntou Jessica.

Ela sorriu para o trovador em sinal de benevolência. Ele viera a esse salão apenas porque lhe oferecia outra oportunidade de aventura, outra passagem através de seu universo. Jessica sentia-se tentada a ligá-lo ao seu próprio séquito, mas a reação de Alia pressagiava o mal para o bravo Mohandis. Havia também indícios que diziam ser esse o comportamento que esperavam de Lady Jessica: colocar um valente e belo trovador a seu serviço, como já fizera com o bravo Gurney Halleck. Era melhor que Mohandis seguisse seu caminho, embora a irritasse perder tão esplêndido espécime para Faradin.

— Ele deve ir para a corte de Faradin — pronunciou Jessica. — Cuidem para que receba o dinheiro de sua passagem. Deixem que sua língua tire o sangue da Casa Corrino e vejamos como ele sobrevive a isso.

Alia olhou furiosa para o chão, depois deu um sorriso atrasado.

— A sabedoria de Lady Jessica deve prevalecer — ela disse, acenando para que Mohandis fosse embora.

“Esta não saiu do jeito que ela esperava”, pensou Jessica, mas havia indicações nos modos de Alia de que um teste maior ainda estava por vir.

Outro suplicante foi trazido à frente.

Jessica, notando a reação de sua filha, sentiu a inquietação de suas dúvidas. A lição que aprendera com os gêmeos era necessária ali. Mesmo sendo Alia uma Abominação, ainda assim era um dos pré-nascidos. Podia conhecer sua mãe como conhecia a si mesma. Não fazia sentido que Alia fosse enganar-se quanto às reações de sua mãe na questão do trovador.

“Por que ela encenou aquela discussão? Para me distrair?”

Não havia mais tempo para reflexão. O segundo suplicante assumira sua posição abaixo dos tronos gêmeos, seu Advogado a seu lado.

Dessa vez o suplicante era um Fremen, um velho que tinha no rosto as marcas da areia dos nascidos no deserto. Não era alto, mas tinha o corpo rijo, e o longo dradasha normalmente usado sobre um traje-desolador lhe conferia uma aparência imponente. O manto estava de acordo com o rosto magro e o nariz adunco, com o brilho dos olhos de azul dentro de azul. Não usava um traje-desolador e parecia desconfortável sem ele. O gigantesco espaço do Salão de Audiências devia parecer-lhe uma perigosa área aberta que roubava à sua carne a inestimável umidade. Sob o capuz, que jogara parcialmente para trás, usava um kffya amarrado em nós, o ornato adequado para a cabeça de um Naib.

— Sou Ghadhean al-Fali — disse ele, colocando um pé nos degraus para o trono, indicando seu status superior ao das pessoas na multidão. — Eu era um dos comandos da morte do Muad'Dib e estou aqui para tratar de um assunto do deserto.

Alia enrijeceu-se apenas ligeiramente, um pequeno indício. O nome de al-Fali estivera na petição de que colocassem Jessica no Conselho.

“Um assunto do deserto!”, pensou Jessica.

Ghadhean al-Fali falara antes que seu Advogado pudesse iniciar o pedido.

Com aquela frase Fremen formal, avisara que trazia alguma coisa que seria da preocupação de todos em Duna. E que falava com a autoridade de um Fedaykin que oferecera sua vida ao lado da de Paul Muad'Dib. Jessica duvidava que isso tivesse sido o que Ghadhean al-Fali havia dito a Javid ou ao Advogado Geral, ao solicitar audiência. Sua suposição foi confirmada quando um funcionário do clero avançou correndo dos fundos da câmara, acenando com um lenço negro de intercessão.

— Minhas Senhoras! — gritou ele. — Não escutem esse homem! Ele vem sob falsa...

Jessica, vendo o sacerdote avançar em direção a elas, captou um movimento no canto dos olhos e percebeu quando Alia sinalizou com a mão na velha linguagem de batalha dos Atreides: “Agora!”

Não pôde determinar para onde o sinal era dirigido, mas agiu instintivamente com um impulso no corpo para a esquerda, arrastando o trono e tudo mais. Ao cair, rolou para longe do trono, que desabava com um estrondo, e ficou de pé no momento em que ouvia o som do disparo de uma pistola maula... o qual se repetiu. Mas já estava movimentando-se com o primeiro som e sentiu alguma coisa dar um puxão em sua manga direita. Mergulhou na multidão de cortesãos e suplicantes reunidos abaixo da plataforma. Alia, percebia ela, não se movera.

Cercada de gente, Jessica parou.

Ghadhean al-Fali, notou ela, havia buscado refúgio no outro lado da plataforma, mas o Advogado permanecia na posição original.

Tudo acontecera com a rapidez de uma emboscada, mas todos no Salão sabiam a que lugar os reflexos treinados deveriam ter levado qualquer um apanhado de surpresa. Alia e o Advogado continuavam imóveis em seu comprometimento.

Uma agitação no meio do salão atraiu a atenção de Jessica e ela abriu caminho através da multidão, vendo quatro suplicantes segurarem o funcionário do clero. Seu pano negro de intercessão estava caído a seus pés com uma pistola maula exposta entre suas dobras.

Al-Fali passou por Jessica, olhou para a pistola e o sacerdote. O Fremen deixou escapar um grito de fúria e ergueu a mão do cinturão com um golpe achag, os dedos da mão esquerda rígidos. Atingiu o sacerdote na garganta, fazendo-o tombar inerte. Sem ao menos um olhar para o homem que matara, o velho Naib voltou um rosto furioso para a plataforma.

— Dalal-Han-nubuwwa! — gritou al-Fali, colocando as palmas das mãos sobre a testa e depois abaixando-as. — O Quadisas-Salaf não permitirá que eu seja silenciado! Se eu não matar aqueles que interferirem, outros o farão!

“Ele pensa que era o alvo”, percebeu Jessica. Olhou para sua manga e colocou o dedo no buraco circular deixado pela bolinha da pistola maula.

Envenenada, sem dúvida.

Os suplicantes haviam colocado o sacerdote no chão. Ele se retorcia, morrendo com a laringe esmagada. Jessica acenou para um par de chocados cortesãos à sua esquerda e disse:

— Quero que esse homem seja salvo para ser interrogado. Se ele morrer, vocês morrem! — Como eles hesitassem, olhando para a plataforma, ela usou a Voz: — Mexam-se!

A dupla obedeceu.

Jessica colocou-se ao lado de al-Fali e o cutucou com o braço.

— Você é um tolo, Naib! Eles estavam atrás de mim, não de você.

Várias pessoas ao redor ouviram. No silêncio do choque que se seguiu, al-Fali olhou para a plataforma, onde um dos tronos estava tombado e no outro Alia permanecia sentada. A aparência de compreensão que lhe surgiu no rosto teria sido percebida por uma noviça.

— Fedaykin — disse Jessica, lembrando-lhe de seus antigos serviços à sua família, — nós que fomos queimados sabemos como nos colocar de costas um para o outro.

— Confie em mim, Minha Senhora — disse ele, percebendo o significado imediatamente.

Um ruído resfolegante atrás de Jessica fez com que ela se voltasse rapidamente, sentindo que al Fali tomava posição para cobrir suas costas.

Uma mulher no traje pomposo de uma Fremen da cidade estava se levantando da posição que ocupara ao lado do sacerdote caído no chão. Os dois cortesãos haviam desaparecido. A mulher nem mesmo olhou para Jessica, mas ergueu a voz no antigo lamento de seu povo o Chamado por aqueles que serviam nos alambiques da morte, pedindo-lhes que viessem recolher a água do corpo para a cisterna tribal. Era um ruído curiosamente incongruente partindo de alguém vestido como essa mulher. Jessica sentiu a persistência dos velhos costumes ao mesmo tempo em que notava a falsidade nessa mulher da cidade. Essa criatura de vestido vistoso obviamente matara o sacerdote para se certificar de que ele seria silenciado.

“Por que ela se incomodou?”, perguntou-se Jessica. “Só precisava esperar que o homem morresse por asfixia.” Fora um ato desesperado, um sinal de medo profundo.

Alia estava inclinada para a frente, na borda de seu trono, os olhos brilhantes em alerta. Uma mulher esguia, usando as tranças presas em nós que caracterizavam a guarda de Alia, passou por Jessica, inclinou-se junto ao sacerdote, levantou-se e olhou de volta para a plataforma.

— Ele está morto.

— Faça com que seja removido — disse Alia. Depois gesticulou para os guardas abaixo da plataforma. — Endireitem o trono de Lady Jessica.

“Então ela vai tentar sustentar tudo isso descaradamente!”, pensou Jessica. Será que acreditava que poderia enganar alguém? Al-Fali falara no Quadis as-Salaf, invocando os pais sagrados da mitologia Fremen como seus protetores. Mas nenhum agente sobrenatural trouxera uma pistola maula para dentro desse salão onde não se permitiam armas. Uma conspiração envolvendo o pessoal de Javid era a única resposta, e a despreocupação de Alia quanto à sua própria segurança revelava a todos que ela fazia parte da conspiração.

O velho Naib falou para Jessica por sobre o ombro:

— Aceite minhas desculpas, Minha Senhora. Nós do deserto viemos à sua presença como nossa última e desalentada esperança, e agora percebemos que ainda necessita de nós.

— O matricídio não se ajusta bem com minha filha — disse Jessica.

— As tribos vão saber disso — prometeu al-Fali.

— Se necessitavam tanto de mim, por que não se aproximaram na Convocação no Sietch Tabr? — perguntou Jessica.

— Stilgar não permitiria.

“Ahh”, pensou Jessica, “a lei dos Naibs!” Em Tabr, a palavra de Stilgar era a lei.

O trono derrubado fora recolocado no lugar. Alia gesticulou para que sua mãe retornasse, dizendo:

— Todos vocês observem, por favor, a morte desse sacerdote traidor. Aqueles que me ameaçam morrem. — Olhou para al-Fali. — Meus agradecimentos, Naib.

— Grato pelo engano — murmurou al-Fali. Olhou para Jessica.

— Estava certa. Minha ira eliminou aquele que devia ser interrogado.

Jessica sussurrou-lhe:

— Marque aqueles dois cortesãos e a mulher de vestido colorido, Fedaykin. Quero que eles sejam capturados e interrogados.

— Será feito — respondeu ele.

— Se sairmos daqui vivos — disse Jessica. — Vamos, vamos voltar e representar nossos papéis.

— Como quiser, Minha Senhora.

Juntos, retornaram à plataforma, Jessica subindo os degraus e reassumindo sua posição ao lado de Alia, al-Fali permanecendo embaixo, na posição de suplicante.

— Agora... — começou a dizer Alia.

— Um momento, filha — interrompeu Jessica. Ergueu a manga, mostrando o buraco com um dos dedos através dele. — O ataque foi dirigido contra mim. A bolinha quase me atingiu, apesar de eu estar me esquivando. Vocês todos notarão que a pistola maula não se encontra mais lá embaixo apontou. Com quem está ela?

Não houve resposta.

— Talvez pudesse ser encontrada.

— Que tolice! — exclamou Alia. — Eu era o...

Jessica voltou-se na direção de sua filha, apontando com a mão esquerda.

— Alguém lá embaixo está com aquela pistola. Não teme que...

— Uma de minhas guardas está com ela! — retrucou Alia.

— Então, que essa guarda me traga a arma — pediu Jessica.

— Ela já foi levada embora.

— Que conveniente.

— Que está dizendo?

Jessica permitiu-se um sorriso amargo.

— Estou dizendo que duas pessoas de sua gente foram encarregadas de salvar aquele sacerdote-traidor. Eu lhes avisei que morreriam se ele morresse. Elas vão morrer.

— Eu o proíbo!

Jessica meramente encolheu os ombros.

— Temos aqui um bravo Fedaykin — disse Alia, indicando al-Fali. — Esta discussão pode esperar.

— Pode esperar para sempre — disse Jessica no idioma Chakobsa, suas palavras incisivas para indicar a Alia que nenhuma discussão deteria o comando da morte.

— Veremos! — retrucou Alia. Olhou para al-Fali. — Por que está aqui, Ghadhean al-Fali?

— Para ver a mãe do Muad'Dib — respondeu o Naib. — Os remanescentes dos Fedaykin, o bando de irmãos que serviu ao seu filho, juntaram seus pobres recursos para comprar minha passagem através dos guardas cobiçosos que protegem os Atreides das realidades de Arrakis.

Alia disse:

— Qualquer coisa de que os Fedaykin necessitassem, eles só teriam que...

— Ele veio aqui para me ver — interrompeu Jessica. — Qual é a sua necessidade desesperada, Fedaykin?

Alia ainda disse:

— Eu falo pelos Atreides aqui! O que é essa...

— Cale-se, sua Abominação assassina! — retrucou Jessica. — Você tentou me matar, filha. Digo isso para todos aqui ouvirem. Você não pode mandar matar todos que estão neste salão para silenciá-los. Como aquele sacerdote o foi. Sim, o golpe do Naib teria morto o homem, mas ele podia ter sido salvo. Podia ter sido interrogado! Você não se preocupa com o fato de ele ter sido silenciado. Jogue seus protestos sobre nós como quiser, sua culpa está escrita em seus atos!

Alia ficou sentada, gelada em silêncio. E Jessica, observando o jogo de emoções no rosto da filha, percebeu um movimento aterradoramente familiar nas mãos dela. Uma resposta inconsciente que um dia identificara um inimigo mortal dos Atreides. Os dedos de Alia tamborilavam o dedo mindinho duas vezes, o indicador três vezes, o dedo médio duas vezes, o mindinho uma vez, o dedo médio duas... e uma vez mais nessa mesma ordem.

O velho Barão!

O foco dos olhos de Jessica Chamou a atenção de Alia e ela olhou para a própria mão, imobilizou-a e olhou de volta para a mãe, para perceber o terrível reconhecimento. Um sorriso de zombaria espalhou-se pela boca de Alia.

— Assim você conseguiu sua vingança contra nós — sussurrou-lhe Jessica.

— Ficou louca, mamãe?

— Gostaria de estar — respondeu Jessica. E pensou: “Ela sabe que eu vou confirmar isso perante a Irmandade. Ela sabe. Pode até suspeitar que vou contar aos Fremen e submetê-la a um julgamento de Possessão. Não pode permitir que eu saia daqui viva.”

— Nosso bravo Fedaykin espera enquanto discutimos — disse Alia.

Jessica forçou sua atenção de volta ao velho Naib. Colocou os sentimentos sob controle e disse:

— Você veio para me ver, Ghadhean.

— Sim, Minha Senhora. Nós do deserto vemos coisas terríveis acontecendo. Os Pequenos Produtores saem da areia, como foi previsto nas mais antigas profecias. O Shai-Hulud não pode mais ser encontrado, exceto nas profundezas da Região Vazia. Nós abandonamos nosso amigo, o deserto!

Jessica olhou para Alia, que meramente lhe gesticulou para que continuasse. Jessica observou a multidão na câmara, notando a aparência de chocada atenção em cada rosto. A importância da luta entre mãe e filha não passara despercebida a essas pessoas, e elas se admiravam em que a audiência continuasse. Voltou sua atenção para al-Fali.

— Ghadhean, que história é essa de Pequenos Produtores e escassez de vermes da areia?

— Mãe da Umidade — disse ele, usando-lhe o velho título Fremen ., — fomos avisados a respeito de tudo isso no Kitab al-Ibar. Nós lhe suplicamos. Não se esqueça de que, no dia em que o Muad'Dib morreu, Arrakis voltou-se sobre si mesmo! Não podemos abandonar o deserto.

— Hah! — resmungou Alia. — A ralé supersticiosa do Deserto Interno teme a transformação ecológica. Eles...

— Eu o ouço, Ghadhean — respondeu Jessica. — Se os vermes se forem, perderemos a especiaria. E, sem a especiaria, que moeda teríamos para comprar nosso caminho?

Sons de surpresa: exclamações de espanto e cochichos podiam ser ouvidos, propagando-se através do Grande Salão. A câmara ecoava com o som.

Alia encolheu os ombros.

— Tolice supersticiosa!

Al-Fali ergueu a mão direita, apontando-a para Alia.

— Eu falo com a Mãe da Umidade, não com a Coan-Teen!

As mãos de Alia agarraram-se aos braços do trono, mas ela permaneceu sentada.

Al-Fali olhou para Jessica.

— Um dia houve a terra onde nada crescia. Agora existem plantas. Elas se propagam como piolhos sobre uma ferida. Tem havido nuvens e chuva ao longo do cinturão de Duna! Chuva, Minha Senhora! Ó preciosa mãe do Muad'Dib, tal como o sono é o irmão da morte, assim também é a chuva no cinturão de Duna. É a morte para todos nós.

— Fizemos apenas o que Liet-Kynes e o próprio Muad'Dib planejaram — protestou Alia. Por que toda essa tagarelice supersticiosa? Nós reverenciamos as palavras de Liet-Kynes, que nos disse: “Eu desejo ver este planeta inteiro apanhado numa rede de plantas verdes.” E assim será.

— E que será dos vermes e da especiaria? — perguntou-lhe Jessica.

— Sempre haverá algum deserto. Os vermes sobreviverão — respondeu Alia.

“Ela está mentindo”, pensou Jessica. “Por que ela mente?”

— Ajude-nos, Mãe da Umidade — suplicou al-Fali.

Com uma súbita sensação de visão dupla, Jessica sentiu um empurrão em sua consciência, um salto propelido pelas palavras do Naib. Era o inconfundível adab, a memória exigente que brotava por si mesma. Veio sem restrições e manteve seus sentidos imóveis enquanto a lição do passado era imprimida sobre sua consciência. Jessica sentia-se totalmente envolvida, como um peixe numa rede. E no entanto percebia a exigência daquilo como um momento mais-que-humano, cada pequena parte uma lembrança da criação. Cada elemento da lição-memória era real e no entanto insubstancial em sua constante mutação. Ela sabia que isso era o mais próximo que jamais chegaria de experimentar o regime de captação presciente que se abatera sobre seu filho.

“Alia mentiu por estar possuída por alguém que deseja destruir os Atreides. Ela foi, em si mesma, a primeira destruição. Então, al-Fali falou a verdade: os vermes da areia estão condenados, a menos que o curso da transformação ecológica seja modificado.” Sob a pressão da revelação, Jessica via as pessoas na audiência movendo-se em câmara lenta, seus papéis identificados para ela. Podia perceber aqueles que estavam encarregados de cuidar para que não saísse viva dali! E o caminho através deles delineava-se em sua consciência como que marcado em luz brilhante. Confusão entre eles, um deles confundido para tropeçar sobre o outro, grupos inteiros atrapalhando-se. Percebia também que só poderia deixar esse Grande Salão para cair nas mãos de outros. Alia não se importava de criar uma mártir. Não a coisa que a possuía não se importava.

Agora, no tempo congelado, Jessica escolhia um caminho que lhe permitiria salvar o velho Naib e enviá-lo como mensageiro. O caminho através da audiência permanecia indelevelmente claro. Como era simples!

Eles eram bufões com olhos tapados, seus ombros contidos em imóveis posições de defesa. Cada posição sobre o grande piso podia ser vista como uma colisão atrópica na qual a carne morta poderia descolar-se revelando os esqueletos. Os corpos deles, suas roupas e seus rostos descreviam infernos individuais: o seio não-sugado dos terrores escondidos, o brilho das jóias tornando-se um substituto das armaduras. Suas bocas emitiam julgamentos cheios de certezas aterrorizadas. Uma catedral de prismas revelando-se em sobrancelhas que demonstravam elevados sentimentos religiosos. Sentimentos negados pelas entranhas.

Jessica sentia a dissolução nas forças modeladoras soltas sobre Arrakis.

A voz de al-Fali fora como um distrans em sua alma, despertando uma fera das profundezas de seu ser.

Num piscar de olhos, Jessica caminhou do adab para o universo do movimento, mas era um universo diferente daquele que comandara sua atenção apenas um segundo atrás.

Alia estava começando a falar, mas Jessica a deteve, dizendo:

— Silêncio! — E acrescentou: — Existem aqueles que temem que eu tenha retornado sem reservas para a Irmandade. Mas desde aquele dia no deserto, quando os Fremen concederam a dádiva da vida para mim e para meu filho, eu tenho sido Fremen! — E voltou a falar no antigo idioma que apenas aqueles no salão a quem suas palavras seriam úteis poderiam entender: — Onsar akhaka Reliman azv maslumem! “Apoie teu irmão nesta hora de necessidade, tenha sido ele justo ou injusto!”

Suas palavras produziram o efeito desejado, uma sutil mudança de posições dentro da câmara.

Mas Jessica continuou:

— Este Ghadhean al-Fali, um Fremen honesto, vem aqui me dizer o que outros já deviam ter me revelado. Que ninguém negue isso! A transformação ecológica tornou-se uma tempestade fora de controle!

Um mudo assentimento podia ser visto através do salão.

— E minha filha sente prazer nisso! Mektub al-mellab! Você abre ferimentos em minha carne e neles escreve com sal! Por que os Atreides encontraram um lar neste lugar? Porque a Mohalata era natural para nós. Para os Atreides, o governo sempre foi uma aliança protetora: a Mohalata, como os Fremen sempre a conheceram. Agora, olhem para ela! — Jessica apontou para Alia. Ela ri sozinha durante a noite, contemplando sua própria maldade! — A produção de especiaria cairá até zero, ou, na melhor das hipóteses, a uma fração de seu nível anterior! E quando essa notícia se espalhar...

— Teremos um quinhão do produto mais inestimável em todo o universo! — gritou Alia.

— Teremos um quinhão do inferno! — retrucou Jessica, furiosa.

Alia começou a falar no Chakobsa mais antigo, a linguagem particular dos Atreides, com seus difíceis cuques e paradas glotais:

— Agora você sabe, mamãe! Acha que uma neta do Barão Harkonnen não aproveitaria todas aquelas vidas que a senhora espremeu em minha consciência antes mesmo que eu nascesse? Quando me enfureci contra o que fizera comigo, só tive que me perguntar o que o Barão teria feito. E ele respondeu! Está entendendo, cadela Atreides? — Ele me respondeu!

Jessica escutou todo aquele rancor e confirmou sua suposição:

“Abominação!” Alia fora dominada interiormente, possuída por aquele poço de maldade, o Barão Vladimir Harkonnen. Era o próprio Barão que falava por sua boca agora, sem se incomodar com o que fosse revelado. Ele queria que ela notasse sua vingança, queria que ela soubesse que ele não poderia ser expulso.

“Devo permanecer aqui, indefesa em meu conhecimento”, pensou Jessica. Com esse pensamento, lançou-se no caminho que o adab lhe revelara, gritando:

— Fedaykin, sigam-me!

Havia seis Fedaykin no salão, e cinco deles seguiram atrás dela.

 

Quando sou mais fraco que você, peço-lhe liberdade, pois isso está de acordo com os seus princípios, Quando sou mais forte que você, tiro-lhe a liberdade, pois isso está de acordo com os Meus princípios.

 

- Palavras de um antigo filósofo (Atribuídas por Harq al-Ada a um certo Louis Veuillot)

 

Leto inclinou-se para fora da saída secreta do sietch e viu a curva do penhasco erguendo-se por cima de sua visão limitada. A luz do fim da tarde lançava longas sombras a partir das estrias verticais do penhasco.

Uma borboleta-esqueleto voou, entrando e saindo das sombras, suas asas membranosas formando uma renda contra a luz. Como essa borboleta era delicada para existir ali, pensou ele.

Diretamente à frente encontrava-se o bosque de damascos, com as crianças trabalhando para juntar as frutas caídas. Além do pomar estava o qanat.

Ele e Ghanima haviam iludido seus guardas, misturando-se à multidão de trabalhadores que chegavam. Fora relativamente simples se arrastarem para baixo, ao longo de uma passagem de ar, até sua conexão com os degraus que conduziam à saída secreta. Agora, só tinham que se misturar com as crianças, abrir caminho até o qanat e mergulhar no túnel. Lá eles poderiam prosseguir ao lado dos peixes predadores que evitavam que a truta da areia bloqueasse a água de irrigação da tribo. Nenhum Fremen podia ainda imaginar que um ser humano se arriscaria a uma imersão acidental na água.

Ele caminhou para fora das passagens protetoras. O penhasco estendeu-se ao seu redor, tornando-se horizontal pela perspectiva de seus próprios movimentos.

Ghanima caminhava logo atrás. Ambos carregavam pequenos cestos de frutas, trançadas com fibra de especiaria, mas cada cesto levava um pacote selado: estojo Fremen, pistola maula, faca cristalina... e os novos trajes enviados por Faradin.

Ghanima seguiu o irmão para dentro do pomar e misturou-se com as crianças trabalhando. Máscaras de traje-destilador ocultavam cada rosto. Eles eram apenas mais dois trabalhadores ali, mas ela sentia essa ação arrastando sua vida para longe das fronteiras protetoras e dos costumes conhecidos.

Como era simples esse passo, o que conduzia de um perigo para o outro.

Em seus cestos, aqueles trajes enviados por Faradin comunicavam um propósito bem compreendido por ambos. Ghanima reforçava esse conhecimento ao bordar o próprio lema pessoal dos dois, “Nós compartilhamos”, em Chakobsa, acima da crista do falcão em cada peito.

Logo seria a hora do crepúsculo, e além do qanat, que delimitava a área cultivada do sietch, ocorreria aquele tipo especial de noite que poucos lugares no universo poderiam igualar. Seria aquele deserto suavemente iluminado com seu mundo de persistente solidão, seu sentimento saturado de que cada criatura se encontrava sozinha num novo universo.

— Nós fomos vistos — sussurrou Ghanima, curvando-se para trabalhar ao lado do irmão.

— Guardas?

— Não, outros.

— Bom.

— Devemos agir rapidamente — ela disse.

Leto reconheceu isso, caminhando para longe do penhasco através do pomar.

Pensou com os pensamentos de seu pai: “Tudo permanece em movimento no deserto, ou então perece.” Lá longe na areia, podia ver o afloramento rochoso do Criado, lembrando-lhe a necessidade da mobilidade. As rochas permaneciam estáticas e agidas em seu vigilante enigma, apagando-se a cada ano sob o assalto da areia impulsionada pelo vento. Um dia o Criado seria apenas areia.

Enquanto se aproximavam do qanat, ouviram música proveniente de uma entrada elevada do sietch. Era um grupo Fremen ao estilo antigo: flautas de dois furos, pandeiros e tímbales feitos sobre tambores de plástico de especiaria com peles esticadas de uma extremidade à outra. Ninguém perguntava que animal desse planeta fornecia tanta pele.

“Stilgar ainda se lembrará do que eu lhe falei a respeito da fenda no Criado”, pensou Leto. “Ele virá no escuro quando for muito tarde... e então saberá.”

Daí a pouco, estavam no qanat. Escorregaram para dentro do tubo aberto, descendo pela escada de inspeção até a plataforma de serviço. Era escuro, frio e úmido no qanat, e ambos podiam ouvir os peixes predadores pulando.

Qualquer truta da areia que tentasse roubar essa água encontraria sua superfície interior, amolecida pela água, atacada pelos peixes. Os seres humanos também deviam ter cuidado com eles.

— Tenha cuidado — disse Leto, enquanto caminhavam ao longo da saliência escorregadia. Ele voltava sua memória para ocasiões e lugares que sua carne nunca conhecera. Ghanima o seguia.

No final do qanat, despiram-se até ficarem apenas com os trajes-destiladores e colocaram os novos mantos. Deixaram para trás os velhos mantos Fremen, enquanto subiam para fora, em outro tubo de inspeção, e escorregavam sobre uma duna que descia pelo lado oposto. Lá se sentaram, ocultos do sietch, prenderam as pistolas maula e as facas cristalinas nos cinturões, colocando os estojos Fremen sobre os ombros. Não mais podiam ouvir a música.

Leto levantou-se e avançou pelo vale entre as dunas, caminhando de modo silencioso, não ritmado, sobre a areia aberta.

Abaixo da crista de cada duna eles se curvavam e se arrastavam pelo oculto sotavento, parando a fim de olhar para trás e verificar se não eram perseguidos. Nenhum caçador ainda se erguera do deserto quando eles chegaram nas primeiras rochas.

Nas sombras das rochas, abriram caminho em torno do Criado, subiram até uma saliência e olharam para o deserto. Cores piscavam bem longe no bled.

O ar que escurecia mantinha a fragilidade de um fino cristal. A paisagem que se descortinava ante seus olhos encontrava-se além da compaixão em parte alguma ela se interrompia, não havia hesitações. O olhar não se detinha em lugar algum, em seu movimento de varredura sobre aquela imensidão.

“É o horizonte da eternidade”, pensou Leto.

Agachada ao lado do irmão, Ghanima pensava: “O ataque virá logo.”

Escutava em busca dos menores sons, seu corpo inteiro convertido num único sentido agudo de sondagem.

Leto sentara-se, igualmente alerta. Sabia que a culminação de todo o treinamento aplicado nas vidas que compartilhava tão intimamente acontecia agora. Nessa vastidão selvagem, as pessoas desenvolviam uma inescapável dependência em relação a seus sentidos, a todos os sentidos.

A vida transformava-se numa acumulação de percepções armazenadas, cada qual ligada apenas à sobrevivência momentânea.

Daí a pouco, Ghanima subiu nas rochas e olhou através de uma fenda estreita em direção ao caminho por onde tinham vindo. A segurança do sietch parecia afastada por uma vida inteira, uma massa de penhascos silenciosos erguendo-se na distância marrom-arroxeada, com bordas enevoadas pela poeira nos picos, aonde os últimos raios do sol lançavam suas riscas prateadas. Ninguém podia ser visto a persegui-los na distância intermediária. Ghanima voltou para junto de Leto.

— Será um animal predador — disse ele. — Essa é minha computação terciária.

— Acho que você parou de computar muito cedo — disse Ghanima. — Será mais que um animal. A Casa Corrino aprendeu a não colocar todas as suas esperanças num único cesto.

Leto acenou, concordando.

Sua mente parecia subitamente pesada com a multidão de vidas que sua diferença lhe proporcionava: todas aquelas vidas, a sua mesmo antes do nascimento. Estava saturado de viver e queria fugir à própria consciência. O mundo interior era uma fera pesada que poderia devorá-lo.

Inquieto, levantou-se e subiu até a fenda que Ghanima tinha usado, olhando para os penhascos do sietch. Lá, abaixo dos penhascos, podia ver como o qanat traçava uma linha entre a vida e a morte. Na extremidade do oásis, estavam a salva-camelo, o capim-cebola, o capim-pluma de gobi, a alfafa selvagem. Aos últimos raios de luz, podia notar os pássaros saltitando na alfafa. Os distantes pendões de cereais oscilaram num vento que traçou sombras a se moverem para a direita, subindo o pomar. O movimento captou sua consciência e ele viu que as sombras ocultavam, dentro de suas formas fluidas, uma mudança maior, e que essa mudança maior ocorria sob os reflexos coloridos de um céu prateado pela poeira.

“Que vai acontecer aqui?”, perguntou-se.

Sabia que seria ou a morte ou um jogo mortal, tendo ele mesmo como objetivo. Ghanima seria aquela que retornaria, acreditando na morte que havia visto, ou relatando com a sinceridade partida da profunda compulsão hipnótica que seu irmão estava de fato morto.

As coisas desconhecidas desse lugar o assombravam. Pensou em como seria fácil sucumbir às exigências da presciência, arriscando-se a lançar sua consciência num futuro absoluto e imutável. A restrita visão de seus sonhos já era suficientemente ruim. Sabia que não se atreveria a arriscar a visão maior.

Daí a pouco, retornou para junto de Ghanima e disse:

— Nenhuma perseguição ainda.

— As feras que vão mandar atrás de nós serão grandes — disse Ghanima.

— Poderemos ter tempo para vê-las se aproximando.

— Não se vierem no meio da noite.

— Logo estará escuro.

— Sim, é hora de descermos para o nosso lugar.

Ele indicou as rochas à sua esquerda e abaixo, onde a areia trazida pelo vento roera uma pequena fissura no basalto. Era suficientemente grande para admiti-los, mas suficientemente pequena para deixar de fora criaturas maiores. Leto sentia-se relutante em ir até lá, mas sabia que isso devia ser feito. Aquele era o lugar que ele apontara para Stilgar.

— Eles podem realmente nos matar — disse ele.

— É um risco que temos de correr — ela respondeu. — Devemos isso ao nosso pai.

— Não estou discutindo.

E ele pensou: “Este é o caminho correto, estamos fazendo a coisa certa.”

Mas sabia quão perigoso era estar certo nesse universo. Sua sobrevivência agora exigia vigor, preparo e um entendimento das limitações de cada momento. Os hábitos Fremen eram sua melhor armadura, e o conhecimento Bene Gesserit, uma força mantida em reserva. Ambos pensavam agora como veteranos de batalha treinados pelos Atreides, sem qualquer outra defesa senão a dureza Fremen que nem mesmo era sugerida por seus corpos infantis e suas roupas formais.

Leto passou o dedo pelo punho da faca cristalina, com a ponta envenenada, presa à sua cintura. Inconscientemente, Ghanima repetiu o gesto.

— Devemos descer agora? — perguntou ela.

Ao falar, percebeu o movimento bem abaixo deles, um movimento ligeiro que a distância tornava menos ameaçador. Sua imobilidade alertou Leto antes mesmo que ela pudesse pronunciar um aviso.

— Tigres — ele disse.

— Tigres Laza — corrigiu ela.

— Podem nos ver.

— É melhor nos apressarmos — ela disse. — Uma maula nunca deteria aquelas criaturas. Devem ter sido muito bem treinadas para isto.

— Devem ter um controlador humano em algum ponto à volta — indicou Leto, liderando a descida pelas rochas para a esquerda.

Ghanima concordou, mas guardou a concordância para si mesma, poupando suas forças. Haveria um ser humano em algum lugar das imediações. Aqueles tigres não podiam ser soltos senão no momento adequado.

Os tigres moveram-se rapidamente à luz do crepúsculo, saltando de uma rocha para outra. Eram criaturas guiadas pelos olhos, e logo seria noite, hora das criaturas que se servem dos ouvidos. O Chamado de um pássaro noturno, como um toque de sino, partiu das rochas do Criado para enfatizar a mudança. Criaturas da escuridão já se movimentavam nas sombras das fendas delineadas.

Os tigres ainda permaneciam visíveis para os gêmeos que corriam. Os animais fluíam com energia, um senso ondulante de certeza em cada movimento.

Leto sentiu que tropeçara nesse lugar para se livrar de sua alma. Corria com a certeza de que ele e Ghanima poderiam alcançar em tempo sua fenda estreita, mas seu olhar continuava a se voltar, fascinado, para as feras que se aproximavam.

“Um tropeção e estamos perdidos”, pensou.

Esse pensamento reduziu a confiança de seu conhecimento e ele correu mais depressa.

 

Vocês Bene Gerrerit chamam sua atividade na Panóplia Profética de “Ciência da Religião”. Muito bem. Eu, um investigador em busca de outro tipo de cientista, acho essa definição adequada. Vocês de fato constroem seus próprios mitos, mas assim o fazem todas as sociedades. Devo adverti-las, no entanto, de que estão se comportando do mesmo modo que tantos outros cientistas mal-orientados. Suas ações revelam que desejam tirar alguma coisa [para fora] da vida. É hora de lembrar-lhes de algo que tão frequentemente professam: não se pode ter uma única coisa sem o seu oposto.

 

- O Pregador de Arrakeen: Mensagem à Irmandade

 

Naquelas horas que antecediam a alvorada, Jessica estava sentada, imóvel, sobre um tapete gasto de tecido de especiaria. À sua volta se encontravam as rochas nuas de um sietch velho e pobre, um dos povoados originais.

Situava-se abaixo da borda do Abismo Vermelho, abrigado do vento oeste do deserto. Al-Fali e seus irmãos a tinham levado até lá, agora, esperavam notícias de Stilgar. Os Fedaykin, contudo, haviam agido com muita cautela na questão das comunicações. Stilgar não devia conhecer-lhes a localização.

Os Fedaykin já sabiam estar inclusos num processo-verbal, um relatório oficial de crimes contra o Império. Alia alegava que sua mãe fora subornada por inimigos do reino, embora a Irmandade ainda não tivesse sido acusada. No entanto, a natureza tirânica e arbitrária dos poderes de Alia estava evidente e sua crença de que controlava os Fremen por controlar o clero encontrava-se a ponto de ser testada.

A mensagem de Jessica a Stilgar fora direta e simples: “Minha filha encontra-se possuída e deve ser submetida ao julgamento.”

Mas o medo minava os valores, e já se sabia que alguns Fremen prefeririam não acreditar nessa acusação. Suas tentativas de usar a acusação como passaporte provocaram duas batalhas durante a noite, mas os ornitópteros que o pessoal de al-Fali havia roubado conseguiram levar os fugitivos até esse local de segurança precária: o Sietch do Abismo Vermelho. Mensagens haviam sido enviadas para os Fedaykin, mas pouco mais de 200 deles permaneciam em Arrakis. Os outros ocupavam postos espalhados pelo Império.

Refletindo sobre esses fatos, Jessica se perguntava se havia ido para o lugar de sua morte. Alguns dos Fedaykin acreditavam nisso, mas os comandos da morte aceitavam tal perspectiva com muita facilidade. Al-Fali meramente sorrira para ela quando alguns de seus homens mais jovens tinham verbalizado seus temores.

— Quando Deus ordena que uma criatura morra em determinado lugar, Ele faz com que os desejos de tal criatura a levem a esse lugar.

As cortinas manchadas do portal se mexeram e al-Fali entrou. O rosto do velho, estreito e queimado pelo vento, parecia carrancudo, seus olhos, febris. Obviamente, ainda não havia repousado.

— Alguém está chegando — disse ele.

— Da parte de Stilgar?

— Talvez. — Ele abaixou o olhar, virando-o para a esquerda, à maneira dos antigos Fremen quando traziam más notícias.

— Que foi? — quis saber Jessica.

— Recebemos notícias de Tabr de que seus netos não se encontram lá — disse ele, sem olhar diretamente para ela.

— Alia ordenou que os gêmeos fiquem sob sua custódia, mas o Sietch Tabr relata que eles não se encontram lá. Isso é tudo que sabemos.

— Stilgar mandou-os para o deserto — sugeriu Jessica.

— É possível, mas sabe-se que ele passou a noite procurando por eles.

— Talvez fosse um truque dele...

— Isso não é típico de Stilgar — ela disse, e pensou: “A menos que os gêmeos o tenham levado a fazer isso.” Mas isso tampouco parecia muito provável.

Admirava-se consigo mesma: nenhuma sensação de pânico a eliminar, seus temores pelos gêmeos eram temperados por aquilo que Ghanima lhe revelara.

Ergueu o rosto para fitar al-Fali, encontrando-o a observá-la com compaixão nos olhos. Ela disse:

— Eles se foram para o deserto sozinhos.

— Sozinhos? Aquelas duas crianças!

Ela não se incomodou em explicar que “aquelas duas crianças” provavelmente sabiam mais a respeito de sobrevivência no deserto do que a maioria dos Fremen vivos. Seus pensamentos estavam fixos no curioso comportamento de Leto, quando insistira em que permitisse que a sequestrassem. Colocara essa memória de lado, mas o momento a exigia.

Leto lhe dissera que ela saberia quando chegasse o momento de lhe obedecer.

— O mensageiro deve estar chegando no sietch — disse al-Fali. — Vou trazê-lo à sua presença.

E saiu através das cortinas remendadas.

Jessica olhou para a cortina. Tratava-se de um pano vermelho, feito com fibra de especiaria, mas as manchas eram azuis. Dizia-se que esse sietch se recusara a lucrar com a religião do Muad'Dib, conquistando com isso a inimizade do clero de Alia. As pessoas dali, contava-se, haviam empregado seu capital num plano para criar cães tão grandes quanto pôneis, com inteligência apurada, para servirem de guardiães para as crianças. Mas os cães haviam morrido, todos. Alguns diziam que fora veneno, e os sacerdotes eram culpados por isso.

Jessica sacudiu a cabeça para afastar essas reflexões, reconhecendo-as pelo que eram: ghafla, a distração vagueante.

Para onde teriam ido aquelas crianças? Para jacurutu? Elas tinham um plano. “Tentaram me esclarecer até o ponto em que pensavam que eu poderia aceitar”, lembrou-se. E quando alcançaram os limites, do modo como os viam, Leto lhe ordenara que obedecesse.

Ele ordenara a ela.

Leto percebera o que Alia estava fazendo, isso era óbvio. Ambos os gêmeos haviam falado da “aflição” de sua tia, mesmo quando a defendiam. Alia estava pondo em jogo a retidão de sua posição na Regência. Sua exigência quanto à custódia dos gêmeos o confirmava. E Jessica surpreendeu-se com uma risada cruel sacudindo-lhe o próprio peito. A Reverenda Madre Gaius Helen Mohian gostava de explicar esse erro específico a sua aluna Jessica: “Se você focalizar sua consciência unicamente sobre a própria retidão, convidará as forças da oposição a que a dominem. Esse é um erro comum. Mesmo eu, sua mestra, já o cometi.”

— E mesmo eu, sua aluna, — o cometi sussurrou Jessica para si mesma.

Ouviu os tecidos sussurrarem à passagem de alguém além das cortinas. Dois jovens Fremen entraram, parte do grupo que se havia reunido durante a noite. Os dois mostraram-se obviamente admirados por estarem na presença da mãe do Muad'Dib. Jessica fez deles uma análise completa: não se tratava de pensadores, eram pessoas que se ligariam a qualquer poder visionário em busca da identidade que isso lhes pudesse proporcionar. Sem um reflexo da parte dela, eram vazios. E, por isso, perigosos.

— Fomos mandados na frente por al-Fali para prepará-la — disse um dos jovens Fremen.

Jessica sentiu um súbito aperto no peito, mas sua voz permaneceu calma.

— Preparar-me para quê?

Stilgar enviou Duncan Idaho como seu mensageiro. Jessica puxou o capuz aba sobre os cabelos, num gesto inconsciente. “Duncan?” Mas ele era um instrumento de Alia.

O Fremen que falara deu meio passo adiante,

— Idaho diz que veio para conduzi-la a um lugar seguro, mas al-Fali não vê como isso possa acontecer.

— Parece muito estranho mesmo — concordou Jessica. — Mas existem coisas mais estranhas em nosso universo. Tragam-no.

Eles se entreolharam, mas obedeceram, saindo juntos com tanta pressa que causaram outro rasgo na cortina gasta.

Daí a pouco Idaho passava pela cortina, seguido pelos dois Fremen e com al-Fali à retaguarda, a mão na faca cristalina, Idaho parecia calmo.

Usava as vestes comuns de um Guarda da Casa Atreides, uniforme que pouco mudara em mais de 14 séculos. Arrakis havia substituído a lâmina de plasteel com punho de ouro por uma faca cristalina, mas esse era um detalhe menor.

— Disseram-me que deseja me ajudar.

— Embora possa parecer curioso — ele disse.

— Mas Alia não o enviou para me raptar? — perguntou Jessica.

Um leve soerguimento das sobrancelhas negras foi o único indício de sua surpresa. Os facetados olhos Tleilaxu continuaram a fitá-la com reluzente intensidade.

— Essas foram as ordens — dela confirmou ele.

Os nós dos dedos de al-Fali ficaram brancos sobre o punho da faca cristalina, mas ele não a desembainhou.

— Passei boa parte desta noite revendo os erros que cometi com minha filha — ela disse.

— Foram muitos — concordou Idaho. — E eu compartilhei da maioria deles.

Jessica percebia agora que os músculos do queixo de Idaho estavam tremendo.

— É fácil ouvir os argumentos que nos desviam de nosso caminho — comentou Jessica. — Eu queria deixar este lugar... Você... você... desejava uma garota a quem via como uma versão mais jovem de mim mesma.

Ele aceitou essas palavras em silêncio.

— Onde estão meus netos? — ela quis saber, sua voz tornando-se dura.

Ele piscou e então disse:

— Stilgar acredita que rumaram para o deserto, a fim de se esconderem.

— Talvez tenham percebido a crise se aproximando.

Jessica olhou para al-Fali, que assentiu, reconhecendo que ela tinha previsto isso.

— O que Alia está fazendo? — indagou ela.

— Arrisca-se a uma guerra civil — ele respondeu.

— Acredita que vai chegar a esse ponto? — Idaho encolheu os ombros.

— Provavelmente não. Estes são tempos mais brandos. Há mais pessoas desejando ouvir argumentos agradáveis.

— Concordo. Bem, e quanto aos meus netos?

— Stilgar os encontrará... se...

— Sim, percebo. — Estava por conta de Gurney Halleck, então. Virou-se para olhar para a parede de rocha à sua esquerda. Agora, Alia agarra o poder com força.Olhou de novo para Idaho. — Você compreende? O poder deve ser seguro levemente e desse modo usado. Segurá-lo com muita força é ser dominado por ele e, assim, tornar-se sua vítima.

— Como o meu Duque sempre me disse — lembrou Idaho. De algum modo, Jessica sabia que ele se referia ao velho Leto e não a Paul. E perguntou.

— Para onde devo ser levada neste... sequestro?

Idaho olhou-a como se tentasse enxergar através das sombras criadas pelo capuz.

Al-Fali deu um passo adiante:

— Minha Senhora, não pensa seriamente em...

— Não é meu direito decidir meu próprio destino? — perguntou-lhe Jessica.

— Mas este... — A cabeça de al-Fali indicou Idaho.

— Este era meu leal guardião antes mesmo de Alia nascer. Antes de morrer, salvando a vida de meu filho e a minha. Nós Atreides sempre honramos certas obrigações.

— Então virá comigo? — perguntou Idaho.

— Para onde a levará? — quis saber al-Fali.

— É melhor que você não saiba — disse Jessica.

Al-Fali olhou zangado, mas permaneceu em silêncio. Sua face revelava indecisão, a compreensão da sabedoria implícita nas palavras dela, mas uma dúvida ainda não resolvida quanto à confiança em Idaho.

— Que será dos Fedaikin que me ajudaram? — perguntou Jessica.

— Terão a proteção de Stilgar se puderem chegar a Tabr — respondeu Idaho.

Jessica encarou al-Fali.

— Eu lhe ordeno que vá para lá, meu amigo. Stilgar pode usar os Fedaykin na busca de meus netos.

O velho Naib abaixou os olhos.

— Como ordena a mãe do Duaud'Dib.

“Ele ainda obedece a Paul”, ela pensou.

— Devemos sair daqui rapidamente — aconselhou Idaho. — A busca decerto incluirá este lugar, e bem cedo.

Jessica inclinou-se para a frente e se levantou com aquela graça fluida que nunca abandonava inteiramente uma Bene Gesserit, mesmo quando sentia as dores da idade. E Jessica se sentia velha agora, após uma noite de vôo. Mesmo enquanto caminhava, sua mente permanecia voltada para aquela determinada conversa com seu neto. Que estaria ele realmente fazendo?

Sacudiu a cabeça, ocultando o movimento ao ajustar o capuz. Era tão fácil cair na armadilha de subestimar Leto. A vida com crianças comuns condicionava a uma falsa visão da herança de que os dois gêmeos desfrutavam.

Sua atenção foi captada pela pose de Idaho. Ele se encontrava naquele relaxamento que serve de preparação para a violência, um pé adiante do outro, posição que ela mesma lhe ensinara. Jessica olhou rapidamente para os dois jovens Fremen e para al-Fali. Dúvidas ainda incomodavam o velho Fremen, e os jovens sabiam disso.

— Eu confio minha vida a este homem — disse ela, dirigindo-se a al-Fali. — E não é a primeira vez.

— Minha Senhora — protestou al-Fali. — É que... — olhou furioso para Idaho. — Ele é o marido da Coan-Teen!

— E foi treinado pelo meu Duque e por mim.

— Mas ele é um ghola. — As palavras foram arrancadas de al-Fali.

— O ghola de meu filho — lembrou Jessica.

Era demasiado para um antigo Fedaykin que um dia jurara apoiar o Muad'Dib até a morte. Ele suspirou, andou para o lado e gesticulou para os dois jovens abrirem as cortinas.

Jessica passou, com Idaho atrás dela. Voltou-se e, do portal, falou com al-Fali:

— Você deve ir ao encontro de Stilgar. Deve confiar nele.

— Sim... — Ela ainda percebia dúvidas na voz do homem. Idaho tocou-lhe o braço.

— Devemos seguir imediatamente. Há alguma coisa que deseje levar?

— Somente meu senso comum.

— Por quê? Teme estar cometendo um erro? — Ela ergueu o olhar para ele.

— Você sempre foi o melhor piloto de tópteros a nosso serviço, Duncan. Isso não o divertiu.

Colocou-se à frente dela, caminhando rapidamente, percorrendo o mesmo caminho por onde viera. Al-Fali manteve-se um passo atrás de Jessica:

— Como sabia que ele veio num tóptero?

— Ele não está usando um traje-destilador — respondeu Jessica.

Al-Fali pareceu envergonhado ante essa óbvia percepção. Mas não se calou.

— Nosso mensageiro o trouxe aqui diretamente, desde o lugar onde está Stilgar. Eles podem ter sido vistos.

— Você foi visto, Duncan? — indagou Jessica, olhando para as costas de Idaho.

— Sabe muito bem que não. Voamos mais baixo que os topos das dunas.

Viraram por uma passagem lateral que descia em degraus espirais para finalmente desembocar numa vasta câmara, bem-iluminada por globos colocados no alto da rocha marrom. Um único ornitóptero voltava-se para a parede oposta, agachado como um inseto que espera o momento para saltar.

A parede podia ser rocha falsa: uma porta abrindo-se para o deserto.

Pobre como era esse sietch, ainda mantinha seus instrumentos de mobilidade e segredo.

Idaho abriu a porta do ornitóptero para ela, ajudando-a a subir para o assento do lado direito. Ao passar por ele, Jessica notou a transpiração em sua testa, onde caíra uma mecha de cabelo negro. Espontaneamente, Jessica se viu relembrando aquela cabeça a verter sangue numa caverna ruidosa. As bolinhas metálicas dos olhos Tleilaxu trouxeram-na de volta dessa recordação. Nada mais era aquilo que parecia. Ela se ocupou em prender o cinto de segurança.

— Faz um longo tempo desde que voou comigo, Duncan.

— Um tempo longo e distante — disse ele enquanto já verificava os controles.

Al-Fali e os dois jovens Fremen já aguardavam junto aos controles da rocha falsa, preparando-se para abri-la.

— Acha que ainda guardo dúvidas a seu respeito? — perguntou Jessica, falando suavemente com Idaho.

Ele mantinha sua atenção presa ao instrumental do motor, acionando os rotores e observando as agulhas movimentarem-se nos mostradores. Um sorriso surgiu em sua boca, um gesto rápido e duro de suas feições severas que se foi tão rapidamente quanto aparecera.

— Ainda sou uma Atreides — disse Jessica. — Alia não é mais.

— Não tema, eu ainda sirvo aos Atreides.

— Alia não é mais uma Atreides — repetiu Jessica.

— Não precisa me lembrar! — retrucou ele, furioso. — Agora, cale-se e deixe-me pilotar esta coisa.

O desespero em sua voz era totalmente inesperado, em desacordo com o Idaho que ela conhecera. Dominando um renovado sentimento de medo, Jessica indagou:

— Para onde estamos indo, Duncan? Você pode me dizer agora.

Mas ele acenou para al-Fali e a falsa rocha se abriu para a brilhante luz prateada do sol. O ornitóptero saltou para diante e para cima, suas asas pulsando com o esforço, os jatos rugindo, e eles galgaram um céu vazio.

Idaho tomou o curso sudoeste, em direção à cordilheira Sahava, que podia ser vista como uma linha negra sobre a areia.

Daí a pouco ele disse:

— Não pense em mim com severidade, Minha Senhora.

— Não penso em você com severidade desde aquela noite em que entrou em nosso grande salão de Arrakeen, rugindo, bêbado com a cerveja de especiaria, — ela disse, mas as palavras dele haviam renovado suas dúvidas, e Jessica assumiu a postura de relaxada preparação de uma completa defesa prana-bindu.

— Eu me lembro daquela noite muito bem — ele disse. — Eu era muito jovem e inexperiente.

— Mas o melhor mestre espadachim da comitiva do meu Duque.

— Não exatamente, Minha Senhora. Gurney podia superar-me seis vezes em cada 10. — Voltou-se para ela. — Onde está o Gurney?

— Cuidando de algo para mim. — Ele sacudiu a cabeça. — Sabe para onde nos dirigimos?

— Sim, Minha Senhora.

— Então me diga.

— Muito bem. Prometi que criaria uma trama possível contra a Casa Atreides. E só existe realmente um modo de se fazer tal coisa. — Apertou um botão no volante de controle e um casulo contentor saltou do assento de Jessica, envolvendo-a num invólucro macio, porém inquebrável, que deixava somente sua cabeça de fora. — Eu estou levando-a para Salusa Secundus, — ele disse. — Para Faradin.

Num raro espasmo incontrolado, Jessica lançou-se contra as placas que a envolviam e sentiu-as apertarem-se contra seu corpo, aliviando a pressão somente quando ela relaxou, mas não antes que sentisse o mortífero shigafio escondido nas bainhas protetoras.

— A liberação de shigafio foi desligada — disse Idaho sem olhar para ela. — Oh, sim, não tente usar a Voz contra mim. Faz longo tempo desde aqueles dias em que a senhora podia movimentar-me desse modo. — Olhou para ela. — Os Tleilaxu me protegeram contra esses ardis.

— Você esta obedecendo a Alia — disse Jessica. — E ela...

— Não, Alia não, — respondeu ele. — Obedeço às ordens do Pregador. Ele quer que a senhora ensine a Faradin como um dia ensinou a... Paul.

Jessica ficou gelada em silêncio, lembrando-se das palavras de Leto dizendo que ela iria encontrar um aluno interessante. Daí a pouco, perguntou:

— Esse Pregador... é o meu filho?

A voz de Idaho pareceu vir de uma grande distância:

— Eu desejaria saber.

 

O universo está apenas lá, só há um meio pelo qual um Fedaykin pode observá-lo e permanecer senhor de seus sentidos. O universo nem promete nem ameaça.

Ele contém coisas além do nosso controle: a queda de um meteoro, a erupção de um estouro de esedaria, o envelhecimento e a morte. Essas são as realidades do universo e elas devem ser encaradas, a despeito de como você se sinta em relação a elas. Não se podem afastar tais realidades com palavras. Elas lhe dão a visão do seu próprio modo não-verbal, e então, então você entenderá o que significa “vida e morte”. E ao entender isso se encherá de alegria.

 

- Muad'Dib aos seus Fedaykin

 

— E essas são as coisas que colocamos em movimento — disse Wensicia. — Essas coisas foram feitas por você.

Faradin permaneceu imóvel, sentado diante da mãe em sua sala matinal. A luz dourada do sol vinha de trás dele, lançando sua sombra sobre o chão atapetado de branco. A luz refletida pela parede atrás de sua mãe lançava um halo em torno de seu cabelo. Ela usava o manto branco habitual, debruado em ouro, lembrança dos dias da realeza. Seu rosto em forma de coração parecia calmo, mas ele sabia que ela estava observando cada uma de suas reações. Sentia o estômago vazio, embora tivesse acabado de vir do desjejum.

— Você não aprova? — perguntou Wensicia.

— Que existe para ser desaprovado? — respondeu ele.

— Bem... que nós mantivemos isso oculto a você até agora.

— Oh, isso. — Ele observou a mãe, tentando refletir sobre sua posição complexa nessa questão. Só conseguia pensar em algo que percebera recentemente: Tvekanik não mais a tratava como “Minha Princesa”. Do que ele a chamava agora? Rainha-Mãe?

“Por que tenho um sentimento de perda?”, perguntou-se. “Que estou perdendo?” A resposta era óbvia: estava perdendo os dias despreocupados, o tempo para aquelas atividades intelectuais que tanto o atraíam. Se essa trama revelada por sua mãe surtisse efeito, tais coisas estariam perdidas para sempre. Novas responsabilidades exigiriam sua atenção. Descobriu que se ressentia disso profundamente. Como eles se atreviam a tomar tais liberdades com o seu tempo? E sem ao menos consultá-lo!

— Ponha para fora — disse sua mãe. — Alguma coisa errada?

— E se esse plano falhar? — indagou ele, dizendo a primeira coisa que lhe viera à mente.

— Como pode falhar?

— Eu não sei... Qualquer plano pode falhar. Como vocês estão usando Idaho nisso?

— Idaho? Qual o seu interesse em... Oh, sim, aquele místico que Tvek trouxe aqui sem me consultar. Ele agiu errado. O místico falou em Idaho, não falou?

Era uma mentira desajeitada da parte dela, e Faradin percebeu-se a olhar para a mãe admirado. Ela sabia a respeito do Pregador o tempo todo!

— É apenas que eu nunca tinha visto um ghola — ele disse. Ela aceitou essa explicação, dizendo:

— Estamos poupando Idaho para alguma coisa importante. — Faradin mordeu silenciosamente o lábio superior.

Wensicia surpreendeu-se lembrando-se de seu falecido pai. Dalak agia assim às vezes, muito introvertido e complexo, difícil de se compreender.

Dalak, lembrou a si mesma, fora amigo do Conde Hasimir Fenring e houvera alguma coisa de afetado e fanático em ambos. Faradin seguiria nessa linha? Começava a lamentar ter feito Tvek introduziu o rapaz na religião de Arrakeen. Quem sabia aonde aquilo poderia levá-lo?

— Como é que Tvek a chama agora? — perguntou Faradin.

— O que? — Ela Ficou surpresa com sua mudança de pensamento.

— Reparei que ele não mais a Chama de “Minha Princesa”.

“Como ele é observador”, pensou ela, perguntando-se por que isso a enchia de inquietação. “Será que ele pensa que eu tomei Tvek como amante? Tolice, isso não importaria de um modo ou de outro. Então, por que essa pergunta?”

— Ele me Chama de “Minha Senhora” — ela disse.

— Por quê?

— Porque esse é o costume em todas as Grandes Casas.

“Inclusive a Atreides”, ele pensou.

— É menos sugestivo se por acaso ouvirem — explicou ela. — Poderiam pensar que havíamos desistido de nossas legítimas aspirações.

— Quem seria tão estúpido?

Ela comprimiu os lábios, resolvendo deixar aquilo passar. Uma coisa pequena, mas grandes campanhas se erguiam sobre muitos detalhes pequenos.

— Lady Jessica não devia ter deixado Caladan — ele disse. Ela sacudiu a cabeça abruptamente. Que era isso? Sua mente estava lançando-se a esmo como alguma coisa enlouquecida! Perguntou-lhe:

— Que quer dizer com isso?

— Que ela não devia ter retornado a Arrakis. Essa foi uma péssima estratégia. Faz pensar. Teria sido melhor se ela tivesse arranjado que seus netos a visitassem em Caladan.

“Ele está certo”, pensou ela, angustiada pelo fato de tal coisa nunca lhe haver ocorrido. Teria teria de examinar isso imediatamente. Uma vez mais, ela sacudiu a cabeça. “Não!” O que Faradin estava fazendo? Ele devia saber que o clero jamais se arriscaria a enviar ambos os gêmeos ao espaço.

Ela disse isso.

— É o clero ou Lady Alia? — perguntou ele, notando que os pensamentos da mãe haviam sido dirigidos para onde ele queria. Achava divertida sua nova importância, os jogos mentais disponíveis nas tramas políticas. Fazia muito tempo que a mente de sua mãe não o interessava desse modo. Ela era muito fácil de ser manobrada.

— Você acha que Alia deseja o poder para si mesma — perguntou Wensicia.

Faradin olhou para o outro lado. E claro que Alia queria o poder para si mesma! Todos os relatórios daquele amaldiçoado planeta concordavam nesse ponto. Seus pensamentos partiram em novo rumo.

— Estive lendo sobre o Planetologista deles — disse Faradin. — Há de haver uma chave para os vermes da areia e os haplóides lá em algum lugar, se ao menos...

— Deixe isso para os outros, agora! — disse ela, começando a perder a paciência com ele. — Isso é tudo que tem a dizer a respeito das coisas que fizemos por você?

— A senhora não as fez por mim.

— O quê??

— Fez pela Casa Corrino, agora mesmo a Senhora é a Casa Corrino. Não fui investido.

— Você tem responsabilidades! — ela disse. — E quanto a todas as pessoas que dependem de você?

Como se as palavras dela colocassem uma carga sobre si, Faradin sentiu o peso de todas aquelas esperanças e sonhos que seguiam a Casa Corrino.

— Sim — concordou. — Compreendo isso, mas acho desagradáveis algumas das coisas feitas em meu nome.

— Des... Como pode dizer tal coisa? Fazemos o que qualquer Grande Casa faria para promover sua própria prosperidade!

— É mesmo? Acho que foi um pouco brutal. Não! Não me interrompa. Se vou ser Imperador, então é melhor que aprenda a me ouvir. Pensa que não posso ler nas entrelinhas? Como aqueles tigres foram treinados?

Ela permaneceu muda ante essa cortante demonstração de suas habilidades perceptivas.

— Muito bem — ele disse. — Vou conservar Tvek porque sei que foi a senhora que o levou a isso. Ele é um bom oficial na maioria das circunstâncias, mas só lutará por seus princípios numa arena favorável.

— Seus... princípios?

— A diferença entre um bom oficial e um medíocre reside na força de sua personalidade. Ele tem de ser fiel a seus princípios quando quer que estes sejam desafiados.

— Os tigres eram necessários — disse ela.

— Acreditarei nisso se obtiverem sucesso — ele disse. — Mas não perdoarei o que teve de ser feito para treiná-los. Não proteste. É óbvio. Eles foram condicionados. A senhora mesma disse isso.

— Que vai fazer?

— Vou esperar para ver. Talvez me torne Imperador.

Ela levou a mão ao peito e suspirou. Por alguns momentos, ele a aterrorizara. Quase acreditara que ia denunciá-la. Princípios! Mas agora ele estava comprometido, podia perceber isso.

Faradin levantou-se, foi até a porta e tocou a sineta, chamando os criados de sua mãe. Olhou para trás.

— Acabamos, não?

— Sim. — Ela ergueu a mão quando ele ia saindo. — Aonde vai?

— À biblioteca. Tornei-me fascinado ultimamente pela história de Corrino. — E a deixou, sentindo agora como carregava consigo aquele comprometimento.

“Maldita!”

Mas sabia que estava comprometido. Reconhecia haver uma profunda diferença emocional entre a história, tal como registrada num shigafio e lida calmamente, uma profunda diferença entre esse tipo de história e aquela que era realmente vivida pelas pessoas. Essa nova história vivida, que sentia ganhando forças a seu redor, transmitia-lhe um sentimento de mergulho num futuro irreversível. Faradin sentia-se agora impulsionado pelos desejos de todos aqueles cuja sorte cavalgava com ele. Achou estranho que não pudesse fixar seus próprios desejos sobre isso.

 

                                                                                 CONTINUA 

 

                      

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