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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


OS GALILEUS / Frank G. Slaughter
OS GALILEUS / Frank G. Slaughter

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

OS GALILEUS

Primeira Parte

 

De todas as mulheres que aparecem nas páginas da Bíblia, poucas suscitaram tanto interesse como Maria de Magdala, geralmente chamada Maria Madalena. Que Maria amava profundamente Jesus é absolutamente evidente, visto que Lucas nos diz, logo de princípio, que ela se encontrava entre as mulheres que O serviam, a Ele e aos Doze. O que parece igualmente evidente é que o próprio Mestre sentia um afecto especial por aquela mulher, da qual Ele tinha "expulsado sete demónios", pois que a escolheu, entre todos os seus seguidores, como a primeira testemunha da sua ressurreição dos mortos.

Quando, nos últimos capítulos de Estrada para Bithania, apresentei, acidentalmente, Maria de Magdala, como personagem de somenos importância, sucedeu-me uma coisa estranha. Foi como se aquela magnífica cristã dos tempos de Jesus me aparecesse em carne e osso, a exigir que contasse a sua história. Esta é a história. Esta é a história de Maria de Magdala e os seus companheiros galileus, que abandonaram as suas casas, o seu trabalho, a segurança e os amigos para seguirem um Homem que ensinava algo de novo e maravilhoso, que cada indivíduo é importante à face de Deus, seja ele preto, branco ou vermelho, rico ou pobre, ladrão ou santo. É também a história de como esses galileus, com excepção de Maria, que parece ter sabido desde o início quem Jesus realmente era, vieram a reconhecer n'Ele o Cristo.

Muitas lendas se formaram, ao longo dos tempos, sobre a mulher de Magdala. De uma delas, diz a Enciclopédia Britânica: "Maria de Magdala tem sido confundida com a mulher perdida, de nome desconhecido, que, em casa de Simão, ungiu os pés de Cristo (Lucas VII: 37); com Maria de Betânia, irmã de Lázaro e Marta". Existe uma série das chamadas "biografias" de Maria Madalena, na sua maioria baseadas na falsa identificação com Maria de Betânia. Não passam de ficção, efectivamente, pois nada se sabe sobre esta mulher que amou Jesus, para além das poucas referências que a ela se fazem no Novo Testamento.

Sempre que Jesus fala, neste romance, as Suas palavras são retiradas directamente do texto da Versão Revista do Novo Testamento. Estou profundamente grato ao Departamento de Educação Cristã do Conselho Nacional das Igrejas por me ter permitido o uso desse texto. Os extractos do Cântico dos Cânticos e do Livro de Rute que aparecem no decorrer do romance foram utilizados com a amável permissão dos editores de A Bíblia para ser lida como literatura viva, a firma Simon Schuster. Soube da lenda de Pila, o filho aleijado de Pilatus, ao ler o delicioso livrinho de Catherine Van Dyke, Uma carta da Mulher de Pontius Pilatos, editado pela Bobbs-Merrill Company. Segundo a autora, veio-lhe "deum velho manuscrito tradicional descoberto num mosteiro de Bruges, onde repousara durante séculos."

A descrição de Jesus, dada por Nicodemus no III Livro, foi retirada de um antigo manuscrito latino em forma de carta, escrita por um certo Publius Sentulus, possivelmente contemporâneo de Pontius Pilatus, ao Senado Romano, durante o reinado de Tiberius César. Estou grato ao Reverendo Cari Dobbins, de Hígh Sprinhgs, Florida, por mo ter apresentado.

Estudos comparativos entre o Evangelho segundo S. João e os três Evangelhos Sinópticos, demonstraram que Jesus visitou Jerusalém diversas vezes durante o seu mandato, e não apenas uma vez, como faz parecer uma leitura superficial de S. Marcos, por exemplo. Pela sequência cronológica desses últimos meses de Nosso Senhor, estou profundamente grato ao artigo "Vida e Ministério de Jesus", de Vicent Taylor, da colecção Intérpretes da Bíblia, recentemente publicada pela Abingdon Cokesbury Press, Volume 7, pág. 114-44.

Apresento também os meus melhores agradecimentos à Biblioteca Pública de Jacksonville, pelo seu precioso auxílio. A maioria das informações sobre a fascinante cultura e civilização da Alexandria do século I foram colocadas ao meu dispor por amabilidade do Dr. Lawrence S. Thompson, encarregado da Biblioteca Margaret I. King, da Universidade de Kentucky, e muitos problemas difíceis foram-me deslindados por ele, pelo que desejo expressar-lhe os meus mais calorosos agradecimentos. O meu último recurso era o pessoal do Serviço de Investigação da Enciclopédia Britânica.

Para todos aqueles que lerem este livro vai o meu voto sincero de que possam fazer reviver a época, os locais e as pessoas que rodearam Jesus, tal como sucedeu comigo. E que eles também possam reconhecer Jesus, o Senhor Ressuscitado, como os meus amigos galileus, na estrada para Emaús.

 

 

                   MAGDALA

O rapaz que fazia trotar a sua mula ao longo das ruas de Tiberíades, ao fim da tarde, achou tão impressionantemente bela a voz que a brisa transportava através da cidade, vinda dos lados do lago, que obrigou o animal a parar para a ouvir. Era a voz de uma rapariga que cantava no mais puro grego, macia, gentil, suave e transparente, como o tilintar de uma campainha que enfeitiçava quem a ouvia.

José da Galileia tinha estudado grego na Universidade de Tiberíades, recém-construída por Herodes Antipas, nas margens do Mar da Galileia, a que os pescadores chamavam o Lago de Genesaré, pelo que compreendia facilmente as palavras do poema de amor composto pelo poeta grego Meleagro para a sua amada, Heliodora de Tiro:

 

"Hei-de entrelaçar violetas e folhas de mirto;

Hei-de entrelaçar narcisos com brilhantes lírios;

Hei-de entrelaçar o doce açafrão com o jacinto azul;

E finalmente a rosa, símbolo verdadeiro do amor:

Para que todos formem uma bela grinalda,

Para enfeitar as doces tranças d'Heliodora".

 

José tinha apenas vinte e um anos, mas era alto e esbelto, com olhos escuros e um rosto móvel e expressivo, já marcado por uma seriedade superior à natural na sua idade. O nariz recurvado e as maçãs do rosto salientes revelavam a pureza de uma casta que remontava ininterruptamente a os tempos de David ou mesmo antes. Vivendo com sua mãe na cidade de Magdala, a poucas milhas de distância, nas colinas que davam para o lago, encontrava-se suficientemente perto para poder frequentar a nova universidade em Tiberíades. Aí, professores gregos ensinavam a estudantes de todas as nacionalidades conhecimentos de medicina e das ciências criadas por Hipócrates, Thales e outros grandes espíritos, quando a Grécia era o centro do mundo da cultura.

Para ganhar o pão para si e sua mãe, José trabalhava como aprendiz do famoso físico judeu de Magdala, Alexandre Lysímaco, e, embora isso constituísse uma ocupação mais humilde, aplicava sanguessugas, com o fim de drenar tumores venenosos dos corpos dos romanos ébrios, cujas casas marginavam as águas do lago, ali em Tiberíades. Sendo judeu devoto, não podia viver na nova cidade, considerada impura e amaldiçoada, quando os construtores de Herodes perturbaram o descanso dos mortos do cemitério que agora se encontrava sob as ruas, mas nada havia que o impedisse de receber bom dinheiro romano pela aplicação das suas sanguessugas. Naquele momento, duas das doze, mais ou menos, que continha a garrafa suspensa do dorso da mula estavam repletas de sangue pletórico de Pontius Pilatus, pois o governador romano da Judeia passava tanto tempo na sua casa de campo em Tiberíades como na capital, Cesareia, na costa marítima, ostensivamente por causa do clima, mas também para não perder de vista Herodes Antipas, o Tetrarca judeu da Galileia.

Atraído pela voz da rapariga como o ferro pela pedra negra a que se chamava magnes, José aproximou-se do local donde a música provinha, ao longo de uma das ruas pavimentadas a granito de Tiberíades. A cidade de Herodes Antipas era tão nova que ainda não se tinha concentrado poeira entre as pedras do pavimento e os pedestres tinham que caminhar cuidadosamente para não tropeçarem nas arestas ainda vivas das pedras desiguais. Voltando uma esquina, José chegou a uma praça aberta, em frente do novo e magnífico Fórum. Tinha-se reunido aí uma multidão que aplaudia a cantora, e as moedas choviam aos seus pés, como manifestação de apreço.

José subiu para o pedestal que suportava uma das águias romanas de granito que adornavam o Fórum. O seu pai, um judeu muito piedoso, se ainda estivesse vivo, teria protestado perante tal blasfémia, pois era ilegal para um judeu fazer qualquer imagem esculpida no género das que os romanos utilizavam para adornar os seus edifícios, ou sequer aproximar-se para a observar. Herodes o Grande, avô de Antipas, alcançara o nítido desagrado do seu povo com essa exibição dos emblemas dos seus senhores romanos, para lhes agradar. Apenas expiara o seu crime ao construir o belo templo novo de Jerusalém. Agora este Herodes posterior, mais romano do que judeu, herdara a arrogância do seu avô, mas não a sua inteligência. Do ponto onde se encontrava, José podia ver a grande cidadela que era o palácio do rei, por cima da acrópole, erguendo-se dos rochedos de basalto negro, no sopé da montanha, dominando toda a linha da costa, como um símbolo sombrio da força militar e do poder real.

A cantora estava sentada na beira do passeio, segurando uma Ufa contra um seio, tão tranquilamente como se estivesse em sua própria casa. A multidão, constituída principalmente por gregos e romanos, formara um círculo em volta dela. Era jovem, tinha talvez dezoito anos, segundo José pensou, e era alta para judia. Embora o seu corpo fosse esbelto, já prometia uma beleza feminil que se tornava inegável. Tinha o cabelo coberto com um manto, como era próprio as mulheres judias usarem na rua, mas pano algum conseguia encobrir a sua beleza resplandecente. Tão vermelho como o cobre extraído das minas de Chipre e polido nas forjas de Pafos, brilhava ao sol da tarde, emoldurando-lhe o rosto como um halo pleno de colorido.

As feições da rapariga constituiam uma curiosa mistura de linhas gregas e hebraicas, que dava ao seu rosto uma perfeição e uma beleza de gravura clássica. As maçãs do rosto eram moderadamente proeminentes, o queixo ligeiramente ponteagudo e a testa alta demonstrava uma inteligência que também brilhava na luz calma dos seus olhos de um escuro tom de violeta. Esses olhos percorriam a multidão como se estivesse a avaliar quantas moedas poderia extrair dos homens que tão vigorosamente a aplaudiam. Tinha uma pele clara, quase translúcida na sua suavidade e na sua beleza, que se tingiu ligeiramente de cor quando a jovem correspondeu, com um sorriso, aos aplausos da multidão.

Para o olhar observador de José, a palidez da pele da jovem era mais uma prova da mistura de sangue grego com hebreu, tal como a sua ousadia ao cantar uma canção de amor, apesar de bela, perante uma multidão como aquela, numa cidade que os judeus consideravam amaldiçoada. O seu vestido era de bom tecido e estava bem feito, mas, embora limpo e impecável, via-se que estava gasto e puído, tal como o cabedal das sandálias que calçava nos seus encantadores pés.

Os quatro músicos que a acompanhavam pareciam nabateus1, visto que a sua pele era escura e os seus perfis aguçados se assemelhavam aos dos falcões, O seu vestuário, além

 

1 Povo da Antiga Arábia. (N. do T.)

 

disso, era a longa túnica flutuante usada pelos filhos do deserto que percorriam as vastas areias a sul e oriente do Jordão e do Mar Morto, onde ficava a grande cidade de Petra. O seu chefe, mais alto do que os outros, com um rosto impressionante e barba grisalha, segurava nas mãos uma grande cítara. Um dos outros músicos de rosto escuro tinha um longo tubo de bambu egípcio e o outro uma trombeta de latão. Um quarto erguia os címbalos, presos às mãos com correias, e tinha sob os pés as ressonantes tábuas chamadas scabella, sobre as quais batia o ritmo da melodia. Era um grupo estranho, mais parecendo um daqueles bandos de músicos itinerantes que por vezes se viam a acompanhar bailarinas, do que o que seria de esperar para acompanhar cantores. Esse género de conjuntos não era invulgar nas cidades prósperas e populosas que rodeavam o lago, mas José não se recordava de ter visto algum com uma cantora, especialmente a acompanhar uma rapariga cuja voz, só por si, era um instrumento mais perfeito do que os dos músicos e cuja beleza a fazia sobressair como um lírio entre cardos.

- Quem é ela? perguntou José a um romano que estava perto, um homem gordo, com uma toga manchada de gordura que parecia prestes a rebentar por todas as costuras.

O romano olhou-o severamente, como se fosse um sacrilégio um jovem judeu, vestindo roupas baratas, falar com alguém superior a ele. - Chama-lhe Maria de Magdala, respondeu de má vontade. - Uma meretriz, sem dúvida.

José conhecia a palavra romana. A meretriz ou prostituta era vulgar nos locais onde os romanos se reuniam e as cantoras geralmente provinham dessa classe. Um grupo de posição consideravelmente mais elevada, na escala social, embora não se pudesse considerar moral, eram a versão romana das afamadas cortesãs gregas, as hetairai, que exerciam poderosa influência sobre os seus admiradores e eram altamente consideradas na sociedade romana. Os judeus religiosos aplicavam a palavra "Jezebel" indiscriminadamente às mulheres dos seus conquistadores romanos, quer fossem esposas, filhas ou amantes.

Mas, para José, a rapariga de Magdala não parecia uma dessas mulheres das ruas que pululavam na linda cidade nova. A palidez translúcida do seu rosto não era provocada por pinturas ou compostos de antimónio, Nem a hena do Egipto de Cleópatra teria podido aumentar o brilho natural dos seus cabelos. Era suficientemente bela para ser uma cortesã, era certo, mas havia algo nas suas maneiras, especialmente a calma dignidade com que estava sentada, a segurar a lira e a aceitar os aplausos da multidão, que dava uma ideia muito diferente dela.

- Mais! Mais! começava agora a entoar a multidão, e alguns exigiam-no aos gritos.

Maria de Magdala sorriu e passou os dedos sobre a lira, extraindo das cordas uma melodia que se assemelhava ao murmúrio da água a correr sobre rochas num local belo e recôndito. Depois começou a cantar o melancólico lamento do poeta Filodemus à sua amada Xanto. José perguntou a si próprio como é que a rapariga conheceria um poema tão clássico e onde aprendera a sua maestria com a lira, mas, disso estava certo, nunca o poema fora cantado por voz tão bela, nem sequer no palácio de um rei.

 

"Faces brancas de cera, seios de suave odor

Olhos profundos onde as Musas se acoitam.

Doces lábios de um prazer perfeito

Cantai-me a vossa canção, cantai, pálida Xanto...

A música termina cedo demais. Outra vez,

Cantai outra vez a melodia doce e triste,

Tangei as cordas com os dedos perfumados;

Oh, encanto do Amor, cantai, pálida Xanto."

 

Enquanto ela cantava, José olhou para a multidão. Havia poucos Judeus, pois a maioria evitava Tiberíades. Na verdade, Herodes tinha sido forçado a importar a escumalha de outras cidades para popular esta nova e brilhante cidade. Esta tinha vindo, evidentemente, contudo, pois havia muito oiro a ganhar e a roubar, ao serviço dos romanos, cujas habitações de prazer se alinhavam junto ao lago de um verde ametista. Donde se encontrava, José podia ver diversas dessas requintadas villas, com relvados verdes em terraços, cercados

 

1 Hena, planta originária da Arábia. As mulheres do Oriente usam as suas folhas secas e pulverizadas para pintar os cabelos, os lábios, etc. (N. do T.)

 

por altos muros de alvenaria, e graciosas escadarias de mármore até ao nível da água, onde barcos enfeitados aguardavam os caprichos dos seus donos. A maior das casas, exceptuando o palácio de Herodes sobre a acrópole, pertencia a Pontius Pilatus, o Procurador da Judeia.

Todas as emoções dos homens se revelavam nos olhos daqueles que observavam a rapariga. Alguns estavam perdidos na beleza da sua voz, das notas líquidas da lira e do contacto com o sublime que a bela música pode trazer àqueles que a amam. Outros haviam esquecido a música, para admirar a juventude e o encanto da cantora. Mas em alguns ardia apenas um fogo de desejo pelo corpo esbelto da jovem, e aquele em que tal desejo se tornava mais notável era um oficial romano que se encontrava perto. Usava o uniforme cor de púrpura de um tribuno, e José reconheceu nele Gaius Flaccus, o sobrinho e favorito de Pontius Pilatus, comandante da guarda pessoal do Procurador. Por toda a região da Galileia fervilhavam já histórias sobre a crueldade deste romano odiado por todos aqueles que tinham a infelicidade de cair nas suas mãos, sobre o seu apreço pelo vinho e pelas mulheres, e sobre as saturninas bacanais que frequentemente tinham lugar no palácio do seu tio.

Gaius Flaccus era alto, com um corpo soberbamente proporcionado e possuía uma beleza clássica, quase feminina na sua perfeição. Poderia ser uma incarnação de Apoio ou de Dionisos, pensou José, que se apressou a afastar a ideia do seu espírito, pois era um sacrilégio, para um judeu devoto, pensar sequer nas odiadas deidades pagãs, ainda adoradas em Alexandria, Roma, Antióquia, Efeso, e em muitas outras cidades do Império, com orgias e bacanais, que se dizia tornarem-se escandalosas, de tal modo o vício nelas se exibia.

A canção terminou e os músicos ergueram os seus instrumentos. Depois, com um acorde penetrante da cítara do seu chefe, iniciaram uma dança bárbara e selvagem originária das montanhas e dos desertos para além do Jordão e do Mar Morto. A flauta gemia a estranha melopeia das gentes do deserto, enquanto os instrumentos de corda e os címbalos tomavam o ritmo marcado pelo bater palpitante da scabella. Batidas pelo tocador de címbalo contra as pedras do pavimento, as pranchas ressonantes produziam um som semelhante ao do troar de tambores a distância. Sobrepondo-se ao ritmo principal, ressoou o grito límpido e impulsionador da comprida trombeta.

Maria de Magdala pousou a lira e ficou, erecta, na ponta dos pés, com os braços erguidos, como que a adorar algo que não podia ver. A música parecia acariciar-lhe o corpo, criando na sua beleza flexível um ritmo fluído em cadência com o trovejar dos címbalos, o bater palpitante da scabella e os instrumentos de cordas, e o gemido da flauta e da trombeta. Lentamente, a princípio, depois mais depressa à medida que o ritmo ganhava velocidade, a jovem começou a mover-se numa dança que, embora não fosse conscientemente provocante, acelerou a respiração dos espectadores, dominados pelos seus movimentos. Como se fosse também um instrumento musical, o seu corpo, esbelto e adolescente, mas já sedutor, parecia vibrar numa melodia selvagem que era apenas dele.

Enquanto dançava, o manto que lhe envolvia a cabeça soltou-se e caiu, deixando que a massa gloriosa dos cabelos lhe caísse sobre os ombros, envolvendo-os em cascatas de oiro cobreado. Parecia um archote a girar, um autêntico pilar de chamas, e da audiência elevou-se um clamor de apreço. Com um esforço de vontade, José afastou os olhos da rapariga e observou Gaius Flaccus. Nos olhos do romano viu um desejo despudorado e um brilho calculista, e José perguntou a si próprio se a rapariga teria a noção do que a sua dança provocava na alma dos homens, de todos os perigos que daí lhe poderiam advir.

Maria de Magdala ria-se exultante no meio da sua dança e, deliberadamente provocante agora, pôs-se a girar perante o alto tribuno, troçando dele com o olhar. O ritmo acelerou-se enquanto ela se movia dentro do círculo aberto na multidão, escapando-se àqueles que tentavam tocar-lhe. As moedas começaram a chover sobre as pedras quando a música atingiu o seu climax e terminou, com um batimento de címbalos. Nas pontas dos pés, com os seus encantadores seios jovens a subir e a descer rapidamente devido à excitação do triunfo e ao esforço da dança, Maria de Magdala ficou parada, como a própria estátua de Afrodite, com os olhos a brilhar e as faces coradas, enquanto da multidão se elevava um espontâneo ribombar de aplausos.

José foi o primeiro a ver o colorido vivo das suas faces desaparecer de súbito, deixando-as de uma palidez de mármore.

Durante um momento, a rapariga ficou rígida, como se realmente se tivesse transformado na estátua da Deusa do Amor, depois cambaleou e deu um rápido passo para recuperar o equilíbrio. Pressentindo o que se estava a passar, avan-Çou para ela, abrindo caminho entre os diversos homens que se encontravam entre ele e o espaço onde ela dançara. Mas estava longe demais e foi o tribuno Gaius Flaccus que amparou o corpo esbelto da bailarina nos seus braços, quando ela desmaiou.

 

Durante um momento, enquanto o oficial romano pousava no chão a rapariga inconsciente, a multidão ficou paralisada. Depois, alguém gritou: - Fujam! Ela está possessa do demónio! - Os que estavam à frente começaram a recuar, pois toda a gente sabia que, às vezes, os demónios abandonavam aqueles que os possuíam, especialmente durante um período de inconsciência, e penetravam no corpo de uma pessoa de bem. Apenas José continuou a avançar para junto da rapariga e do tribuno ajoelhado.

Gaius Flaccus reconheceu-o, porque José tinha tratado muitas vezes do seu tio, Pontius Pilatus. - Tu aí, sanguessuga, vociferou. - Ajuda-me a tratar desta rapariga.

José ajoelhou junto da bailarina inconsciente. Quando lhe tomou o pulso para contar as pulsações, o corpo dela começou a agitar-se convulsivamente, e ele levou imediatamente a mão à bolsa do cinto, pensando meter-lhe entre os dentes uma das moedas que ela continha, envolta em cabedal. Alexandre Lysímaco ensinara-lhe que a única coisa a fazer por um epiléptico em convulsão é colocar algo entre os dentes da vítima, para evitar que morda a língua. Mas os maxilares da rapariga não estavam rígidos; em vez disso, jorrou dos seus lábios uma torrente de palavras. Parecia um confuso amontoado de frases infantis e canções, depois gritos de protesto, como se alguém a estivesse a castigar, e finalmente gritos de agonia, acompanhados de contorções como se estivesse a ser chicoteada. Toda esta cena durou apenas um momento, e depois, como se a torrente de palavras tivesse esgotado toda a energia que existia dentro do seu corpo esbelto, a jovem ficou quieta.

- É a Doença Sagrada? perguntou Gaius Flaccus. A epilepsia, que diversas pessoas julgavam resultar de o paciente estar possesso dos demónios ou de uma visita divina, era frequentemente chamada a "Doença Sagrada", mesmo agora, embora Hipócrates tivesse afirmado, quase quinhentos anos antes, que não era diferente das outras doenças, pois tinha uma causa natural, a diminuição ou perda de tumores do cérebro e dos nervos, o que os deixava num estado invulgarmente seco. Ao observar a rapariga, José pensou que parecia haver razão no ponto de vista dos gregos, pois estava a transpirar e, quando começara a cair, tornara-se subitamente muito pálida, o que demonstrava que os tumores sanguíneos tinham abandonado a cabeça, onde se situava o cérebro. Por outro lado, contudo, não tinha mordido a língua, não tinha espuma na boca, nem se agitava em convulsões, tal como Hipócrates descrevera, para aquela a que ele preferira chamar a "Grande Doença".

- Responde-me, sanguessuga, vociferou Gaius Flaccus, em tom irritado. - Tem que ser a Doença Sagrada!

José hesitava em discordar do romano, porque o seu temperamento violento era bem conhecido. Mas, por outro lado, não estava muito certo do diagnóstico. Nesse momento, porém, a rapariga espirrou violentamente.

- tíayim tobim umarpbei, repetiu José automaticamente, pois dizia-se que os espirros estavam relacionados com a morte, que podia ser evitada desejando à pessoa que espirrava uma "vida boa e saudável". Outros pensavam, contudo, que o ittush, o acto de espirrar, pressagiava boa fortuna. De qualquer modo, ajudara-o a fazer o seu diagnóstico, pois nunca tinha visto um ataque de epilepsia terminar com um espirro. - Não creio que seja a Doença Sagrada, disse ele ao romano, com segurança.

- O que é, então? - Não notaram que a rapariga tinha aberto os olhos e os escutava.

- Um desmaio, talvez, admitiu José, devido ao esforço da dança. Ou talvez esteja possessa, acrescentou, por deferência para com as crenças judias convencionais.

Maria de Magdala sentou-se rapidamente, com as faces a arder de indignação. - Serei cheres (surda), perguntou furiosa, para que falem mal de mim na minha frente?

Gaius Flaccus sorriu. - Ninguém fala mal de ti. O médico e eu...

- Médico! Ora, ora! José da Galileia só põe sanguessugas!

José contorceu-se, como uma das suas sanguessugas, sob a intensidade da indignação dela por ser considerada possessa dos demónios. - Eu não afirmei que era médico, protestou. - Tu estavas a dançar e desmaiaste. O nobre tribuno amparou-te e eu ofereci-me para o ajudar.

A fúria da rapariga pareceu desaparecer tão intensamente como surgira, como no rápido jogo de emoções de uma criança. Sorriu, mas para o elegante romano, não para o judeu, com as suas roupas mal feitas. - Peço desculpa por te ter incomodado, nobre senhor, disse graciosamente num grego impecável, e José voltou a maravilhar-se com o à-vontade das suas maneiras. A maioria das raparigas da sua idade teria ficado muda perante a magnificência do sobrinho do Procurador.

Gaius Flaccus fez-lhe uma vénia, com igual graça. - Se ainda te sentes fraca, a casa de meu tio fica a pouca distância.

Mas algo mais distraíra os pensamentos da rapariga. - Hadja! gritou, para o chefe dos músicos, que esperava perto dela. - E as moedas? Devia haver muitas.

O nabateu sorriu e estendeu-lhe as mãos em concha. Estavam quase cheias de oiro e prata. - Apanhámo-las, ó Chama Viva, enquanto tiveste o teu ataque.

Maria bateu o pé. - Quantas vezes tenho que dizer-te que não tenho ataques? gritou furiosa.

- Então já tiveste o mesmo antes? perguntou José.

- Por vezes desmaio, quando danço. Não é nada. - Levantou-se mas cambaleou e José agarrou-a para que não caísse. O seu corpo era macio sob os dedos dele em volta da sua cintura, e o rapaz não podia negar que o seu pulso se acelerara devido ao contacto.

- Deixa-me levar-te para casa do meu tio, para te recuperares, sugeriu ansiosamente Gaius Flaccus.

- Já estou bem. - A rapariga repeliu a mão de José. - Muito obrigada pela tua bondade, senhor, disse graciosamente a Gaius Flaccus. - Tenho que regressar a Magdala com os meus músicos.

- Podes montar a minha mula, sugeriu José. - Eu vou para lá. Não pensou sequer que os seus doentes em Magdala se irritariam por chegar tarde. Naquele momento, estar com Maria de Magdala era mais importante para ele.

 

A estrada que subia através dos rochedos de basalto da montanha que se erguia junto de Tiberíades era íngreme, e José tinha que conduzir a mula cuidadosamente, por causa do peso da rapariga. Quando chegaram a um local plano, no declive da montanha, pararam para deixar descansar o animal, mas os nabateus continuaram, pois as suas longas passadas cobriam terreno mais rapidamente do que a marcha penosa da mula. Maria sentou-se numa rocha, à beira do lago, voltada para os edifícios de mármore branco de Tiberíades, lá em baixo. - Que fresco está aqui, exclamou, afastando o cabelo do rosto. - Tiberíades é quente demais.

- Os locais quentes atraiem febres para os médicos tratarem, disse-lhe José. - Eu devia gostar, mas, na verdade, sinto-me sempre satisfeito por me afastar de Tiberíades. - Herodes esquecera-se de tomar em consideração a natureza dos ventos prevalecentes, ao construir aquela nova cidade. Embora o fluxo de ar através do desfiladeiro da montanha em que o lago se situava conservasse frescos, no verão, o centro do mar interior e as cidades em redor da sua curvatura norte, não agitava o ar quente e sufocante próximo da margem ocidental onde Tiberíades ficava situada. Por isso, apesar de toda a sua beleza, dos magníficos palácios romanos e da própria residência luxuosa de Herodes, na parte superior da acrópole, era uma cidade insalubre.

- Quem estiveste a tratar hoje? perguntou ela.

José pegou na garrafa que continha as sanguessugas e segurou-a contra a luz. Três dos animaizinhos pretos e lustrosos que se agitavam lá dentro estavam gordos e túrgidos. - As minhas sanguessugas estão cheias do sangue de Pontius Pilatus, disse orgulhosamente.

Ela não mostrou qualquer receio das sanguessugas, o que não era vulgar numa rapariga tão jovem. - Dizem em Mag-dala que corre nas tuas veias sangue de David, José. Porque trabalhas a aplicar sanguessugas?

- Os meus pacientes pagam-se bem. Entretanto, vou aprendendo o que me ensina Alexandre Lysímaco.

Ela franziu o nariz, impudentemente. - E não afecta o teu trabalho, julgo eu, que as pessoas saibam que o mais rico mercador de Jerusalém, José de Arimateia, é teu tio e tu és o seu homónimo?

José corou perante a zombaria. Efectivamente, a recomendação do tio proporcionara-lhe o Procurador como paciente. - Quando tiver juntado dinheiro suficiente, disse-lhe, irei para Alexandria estudar medicina.

- Porque não para Pérgamo ou Epidauro?

José olhou-a, admirado. Como conheces esse locais?

- Conheço muita coisa, disse ela, com um ar arrogante. - Talvez mais do que tu, que nada mais vês além da tua medicina. Vi-te muitas vezes em Magdala, mas estavas demasiado ocupado para dares por mim.

- Devia estar cego, disse ele imediatamente.

Maria sorriu, perante o cumprimento. - Demetrius tem-me ensinado, desde os doze anos. Já esteve em toda a parte e, além disso, eu leio tudo o que consigo encontrar.

- Demetrius? Quem é?

- O fabricante de liras. Vive na Rua dos Gregos, onde passa a Via Maris. Eu vivo com ele, acrescentou com um ar casual.

José ficou chocado pelo modo como ela confessava que vivia com um homem. Para ocultar a sua perturbação, fez voltar a conversa a Alexandria, mas, com grande surpresa sua, verificou que ela sabia mais sobre aquela cidade do que ele. Quando lhe falou da universidade e da escola médica, reconhecida como uma das melhores do mundo, que atraía estudantes mesmo de além fronteiras do Império Romano, ela contrapôs-lhe uma descrição dos seus magníficos teatros e circos, do Serapeum, dedicado à adoração de Serapis, que aliava os antigos ritos de Isis e Osiris, e do grande farol de Pharos, que dominava o porto e que se dizia ter quatrocentas varas, ou quinhentos e noventa pés de altura.

- Quando estiveste em Alexandria? perguntou José.

- Nunca lá estive. Mas hei-de lá ir um dia, acrescentou, cheia de segurança.

- Então como sabes essas coisas? Li muito sobre a cidade, mas tu sabes mais sobre ela do que eu.

- Demetrius viveu lá muito tempo, explicou ela. - E ainda adora Alexandria. Vai significar muito para ti, José, dizeres que estudaste no Museum1. Poucos podem fazer tal afirmação, mesmo em Jerusalém ou Antióquia.

José sabia que era verdade o que ela dizia. Havia poucos médicos realmente conhecedores, tanto na Galileia como na Judeia. Os que iam para Alexandria estudar geralmente ficavam por lá, pois a comunidade judaica naquela cidade era superior a toda a população de Jerusalém. Mas as colinas e os vales da Judeia e da Galileia tinham sido a pátria da família de José desde os tempos dos reis de quem ele descendia. Amava a bela região em volta do lago e sabia que sempre a ela regressaria, pois, na sua maior parte, os curandeiros da Galileia eram aplicadores de sanguessugas como ele, ou simples essénios que confiavam nas orações e em algumas ervas secas para tratar os seus doentes. Sequioso de conhecimentos, absorvera tudo o que o seu preceptor lhe podia ensinar, mas um jovem médico podia ainda aprender muito mais em Alexandria onde se utilizavam constantemente novos remédios e alguns médicos ousavam mesmo cortar o corpo humano para curar as doenças.

- Hei-de ir a Alexandria um dia. - A voz de Maria obrigou-o a regressar ao presente. - Hei-de dançar e cantar no teatro e ficar muito rica. - Era uma simples declaração de um facto, não uma manifestação de esperança.

- Sentes-te muito segura de ti mesma.

- Sou bonita. Tenho uma boa voz e danço bem. Porque não hei-de vir a ser uma grande actriz? Sei declamar de cor os versos da maioria das comédias gregas.

- Mas és judia, protestou José. - Uma mulher judia não deve mostrar-se no teatro.

 

1 Museum, nome da escola de Alexandria fundada por Ptolomeu I. (N. do T.)

 

- Uma parte de mim é grega, disse Maria, com vivacidade. - E nunca me senti feliz até Demetrius me levar para sua casa, onde vivemos como os gregos.

- Isso é lá contigo. - Depois sorriu. - Não se escreveu de uma mulher "Ela abre a sua boca com sabedoria".

Maria abanou a cabeça perante a ironia da voz dele e o modo inteligente por que voltara as suas palavras contra ela. Ergueu-se. - Temos que continuar o caminho. Deves ter trabalho a fazer e eu tenho que comprar o jantar para Demetrius no mercado.

- E eu tenho que ir visitar Eleazar, o vendedor de tecidos, concordou José, ajudando-a a montar na mula. - Está de cama, com um inchaço doloroso no joelho. - Para si próprio José suspeitava que o inchaço não fosse de um género que a aplicação de sanguessugas pudesse aliviar, mas nada mais conhecia para lhe oferecer, além dos apetites vorazes das suas sanguessugas. E, pelo menos, os animais constituíam uma prova visível de que algo estava a ser extraído do inchaço, ao sugarem avidamente o sangue e ao engordarem perante o olhar espantado dos pacientes.

Com Maria de novo sentada na mula, começaram a subir o caminho que levava às alturas, onde se situava a cidade de Magdala. Enquanto caminhava ao lado do animal, ultrapassando o aqueduto que trazia água da fonte ao cimo dos rochedos negros e íngremes que ali formavam a vertente da montanha, José ia contando, para si próprio, o número de moedas que guardava em casa, dentro do pote de cerâmica. O conteúdo da bolsa que levava suspensa do cinto tilintaria maravilhosamente ao cair no pote. E, com mais alguns pacientes tão liberais na sua gratidão como Pontius Pilatus tinha sido, iria para Alexandria mais cedo do que previra.

Maria de Magdala parecia perdida a contemplar a beleza do lago que se assemelhava a uma jóia verde e transparente, dentro de uma taça, rodeado de montanhas, com o pico branco de neve do monte Hermon brilhando como mármore, ao longe.

Contra as vertentes íngremes das montanhas, ao fundo do lago, para lá das Cidades da Planície e da bela Planície de Genesaré propriamente dita, via-se a fita da estrada pavimentada a rocha que levava ao Egipto, para o sul, e a Damasco e Babilónia, para norte e oriente. José tinha um dia seguido até ao vau, a que chamavam a Ponte das Filhas de Jacob, que atravessava as águas rápidas do Jordão no local onde mergulhava no lago, lá em baixo. Tinha sido ocasionalmente chamado a tratar doentes nas cidades de Bethsaida e Cafarnaum, na margem norte do lago, mas, em geral, evitava-as, como a maioria dos judeus devotos, por serem locais turbulentos onde muitos se tinham afastado dos antigos costumes, adoptando os novos e mais livres favorecidos pelos gregos e romanos. Era um dito vulgar em Jerusalém que "nada de bom vinha de Nazaré", que ficava na direcção do sul e ocidente, para os lados do mar, mas havia iguais motivos para se afirmar o mesmo de Cafarnaum.

A voz de Maria interrompeu-lhe os pensamentos: - Quem era o romano que me agarrou quando caí, José?

- Julguei que o conhecias. Era Gaius Flaccus, sobrinho de Pontius Pilatus.

- É muito belo.

- E muito mau, disse José abruptamente. - Oiço dizer muito mal dele.

- Como sabes que é verdade?

- Já estive muitas vezes no palácio de Pontius Pilatus, gabou-se José.

- E verdade que o Procurador tem escravas do Oriente que dançam nuas para ele? perguntou ela, com a respiração opressa.

José corou. - Uma rapariga não devia nem sequer pensar tais coisas, censurou, chocado com a sua ousadia. - Não está escrito: Que as suas obras sejam o seu próprio louvor?

- Tenho dezoito anos, disse Maria vivamente. - Faço o que me apetece.

- Ainda te metes em sarilhos. Lembra-te da lei de Moisés: Honra teu pai e tua mãe, para que teus dias sejam longos sobre a areia que o Senhor teu Deus te concedeu!

Um ar estranho invadiu o rosto da rapariga e os seus lábios apertaram-se até a sua boca suave e encantadora se transformar numa linha sombria. - Não me fales de pais e de mães, José, disse abruptamente, se queres ser meu amigo. Depois todo o seu aspecto mudou, numa daquelas voláteis transformações no género daquela a que ele assistira, na rua de Tiberíades. - E não sejas tão recto, também. Não deves ter muito mais de vinte e um ou vinte e dois anos. Se não te acautelas, acabas por ficar velho antes de dares por ter sido novo. E franziu os lábios numa imitação tão típica de um velho rabujento, que José não conseguiu impedir-se de rir. Em tal disposição chegaram a Magdala.

 

José tinha sentido curiosidade em ver onde Maria vivia e, se possível, o homem com quem ela confessava viver, mas ficou desapontado. Mesmo à entrada da cidade, ela saltou da mula e agradeceu-lhe de maneira adorável a sua ajuda, mas recusou a sua oferta de a levar a casa. Ficou a vê-la caminhar graciosamente pela Rua dos Vendedores de Pombas, parecendo-lhe pequena e frágil, mas simultaneamente cheia de confiança e auto-segurança. Só quando a perdeu de vista é que voltou a mula, para se dirigir a casa do seu paciente.

As ruas estavam apinhadas de viajantes, provenientes tanto do norte como do sul, que procuravam alojamento para aquela noite nas inúmeras estalagens da cidade. A norte, a Vía Maris passava perto de Cafarnaum, uma pequena cidadezinha barulhenta onde um viajante podia facilmente perder a sua bolsa e ficar com a cabeça partida, ainda por cima. E para oriente, onde a estrada romana atravessava o Vale das Pombas, o estreito desfiladeiro estava cheio de cavernas onde se acoitavam não apenas as aves, que todos os dias aí eram encurraladas pelos vendilhões do Templo de Jerusalém, mas também ladrões e assaltantes, que esperavam por um viandante com pouca sorte, apanhado pela noite na estrada. Os caminhantes vindos de ambos os sentidos preferiam geralmente passar a noite em Magdala, a serem apanhados fora da cidade durante a noite, mas tinham de disputar o direito de passagem aos caçadores de pombos, que se ocupavam de um dos principais comércios da cidade, e que regressavam a casa à noite, com as suas mulas carregadas de gaiolas cheias de pássaros arrulhantes.

Eleazar, o mercador de tecidos, sentia dores. - Vens tarde, aplicador de sanguessugas, queixou-se. - O que te deteve?

José estava ocupado a retirar as sanguessugas da garrafa, separando as magras das gordas, cujo apetite já fora satisfeito. - Estive a tratar de uma rapariga que desmaiou nas ruas de Tiberíades, explicou. - Uma bailarina.

- Maria de Magdala! - a mulher do mercador praticamente cuspiu estas palavras, da sombra donde observava tudo, com um lúgubre interesse.

- Conhece-la? José baixou-se para apanhar uma sanguessuga que deixara cair, devido à explosiva exclamação da mulher.

- Quem em toda a cidade de Magdala não conhece essa desavergonhada da Maria de Magdala? A voz da mulher tinha um tom agudo, cheio da indignação dos que são absolutamente justos - ou pelo menos julgam sê-lo.

- Então, Raquel, protestou o mercador. - Não sabes se é verdade o que dizes.

- Ela é culpada de abodah zarah! Fala-se disso em toda a cidade de Magdala! - Abodah zarah, um dos três pecados mortais dos judeus, podia ser traduzido à letra como dedicar-se ao paganismo. Para os judeus devotos, aplicava-se a quem quer que vivesse segundo os costumes gregos e romanos, que eram "pagãos" aos seus olhos. José compreendia que tal termo fosse aplicado a Maria de Magdala pelas pessoas pouco caridosas. Também ele podia ser acusado de abodah zarah por frequentar a universidade "pagã" de Tiberíades, onde os filósofos e cientistas gregos ensinavam coisas que um judeu devoto consideraria heréticas.

Preocupado com o que a mulher de Eleazar dissera de Maria, José não foi tão hábil como de costume a manejar o joelho inchado. - Pelos profetas, guinchou o mercador. - Tens que tratar a minha perna como se fosse um pau, para ser quebrado pelo joelho? das sombras, a mulher gritou, na sua voz aguda: - O mais provável é ele ter sido enfeitiçado. Não é o primeiro a perder o juízo por causa de Maria de Magdala e dos malditos demónios de que está possuída.

Na verdade, José, quando se esforçava por adormecer, nessa noite, acreditou que estivesse enfeitiçado. Ou talvez, pensou, um dos demónios que se dizia possuírem a rapariga, se tivesse escapado do corpo dela e penetrado no seu. Fosse qual fosse a causa, não conseguia afastá-la do seu espírito e, até em sonhos, continuava a ouvir a sua voz e a ver o seu corpo a girar como um archote vivo, durante a dança. Mas, quando ia tomá-la nos seus braços, foi-lhe arrebatada por um grego chamado Demetrius que usava o uniforme de um tribuno romano.

De manhã, José decidiu ir a casa de Demetrius e descobrir quais as relações existentes entre Maria de Magdala e o fabricante de liras, mesmo que tivesse de fingir-se interessado em comprar um daqueles instrumentos, para o qual não teria uso possível. Contudo, foi-lhe poupado o incómodo de fingir, porque, por estranho acaso, um dos músicos nabateus veio à sua procura, enquanto tomava a refeição matinal, pedindo-lhe que fosse a casa de Demetrius, na Rua dos Gregos.

Enquanto o mensageiro esperava lá fora, José apressou-se, retirando um novo fornecimento de sanguessugas magras do tanque onde as conservava, e renovando o seu fornecimento de remédios. Quando se deteve a escovar cuidadosamente a túnica e a pentear a barba curta, a mãe perguntou-lhe, cheia de curiosidade: - Que se passa, José? Porque estás a arranjar-te tão bem?

- Vou a casa de um grego chamado Demetrius.

- Não te preocupaste tanto quando foste chamado pela primeira vez a casa do Procurador. Existe uma rapariga nessa casa?

José corou, o que confirmou as suspeitas da mãe. - Quem é ela? perguntou maliciosamente. - E quando posso contar com a visita do casamenteiro?

A pergunta trouxe José à terra. Não podia pensar em casamento antes de realizar o sonho tão acarinhado de completar os seus estudos em Alexandria, mesmo que pensasse em Maria de Magdala sob esse aspecto. O que não sucedia, apressou-se a afirmar a si próprio.

- Na verdade, estás a fazer grandes progressos como aprendiz de médico, prosseguiu a mãe, com pretensa inocência. - Ainda ontem Alexandre Lysímaco me garantiu que já sabes mais de curar pessoas do que a maioria dos médicos da Galileia.

José compreendeu facilmente a estratégia dela. Se se interessasse por uma rapariga, podia vir a desistir da ideia de partir para Alexandria. Por isso não duvidava de que a mãe acolhesse favoravelmente a visita da casamenteira, desde que isso significasse que ele se fixaria na Galileia, ou mesmo em Jerusalém. - Para que havia eu de querer uma esposa quando tu tratas tão bem de mim? disse afectuosamente, beijando-a na testa. Pegou nas suas sanguessugas e saiu antes que ela pudesse fazer mais perguntas.

A casa do fabricante de liras era razoavelmente grande, embora não fosse pretenciosa. A maioria dos gregos daquela rua era constituída por artífices, ourives ou alfaiates e todos viviam bem, mas os sons que provinham da casa de Demetrius eram alheios a ocupações tão sérias. Das traseiras vinha o tanger incerto de uma lira, como se um estudante estivesse a praticar, e, por trás dos sons musicais, ouvia-se o acompanhamento constante de martelos a bater na madeira, manejados por artífices que ligavam entre si as estruturas e as madeiras ressonantes sobre as quais as cordas eram esticadas.

Maria não estava à vista enquanto o nabateu escoltou José através da casa, até ao jardim. Este era fechado por três lados pelas paredes interiores da casa, enquanto que, do lado restante, terminava na extremidade de um penhasco. E, dado que o telhado da casa, mais abaixo, na vertente, ficava em posição muito inferior ao nível do terraço que formava o jardim, tinha-se a impressão súbita de estar num local suspenso entre o azul do céu e o verde ametista do lago, lá no fundo. Era fácil imaginar que Maria de Magdala ali vivia, pois as flores tinham cores alegres e explosivas, tal como ela.

- Vem cá, meu rapaz. - Quem falava era um grego anafado, com cerca de sessenta anos de idade, sentado num banco perto do extremo do penhasco. Segurava nas mãos uma grande cítara que, aparentemente, tinha estado a afinar, porque, sobre o banco ao seu lado, havia um jogo de tubos de marfim delicadamente trabalhados. Os olhos do grego estavam profundamente afundados no seu rosto redondo e brilhavam de inteligência e alegria, como se o seu dono apenas visse coisas divertidas neste mundo. José sentiu uma simpatia instintiva por aquele homem gordo, apesar da sua túnica suja e do cheiro a vinho aromático que ele exalava. - Disseram-me que Demetrius queria ver-me, disse, delicadamente.

- Eu sou Demetrius.

- Mas Maria disse-me que vivia com... José deteve-se e corou, embaraçado.

- Há alguma coisa de mal em ela viver comigo? perguntou Demetrius.

- Claro que não, disse José. - Fiz figura de parvo.

- Não mais do que a de qualquer outra pessoa nas mesmas circunstâncias, disse o grego com equanimidade. - Quando uma rapariga bonita diz que vive com um homem, pensamos naturalmente o pior, porque somos humanos. Olha para mim, jovem. Pareço-te um corruptor da juventude? Demetrius, de súbito, começou a rir, agarrado à sua barriga enorme, como se receasse que ela caísse, de tal modo estremecia. Finalmente parou de rir e enxugou os olhos cheios de lágrimas, com a manga. - Infelizmente, acrescentou com fingida tristeza, mesmo que eu desejasse consolação feminina, quem poderia amar um velho gordo, a não ser por dinheiro, que, aliás, não possuo?

- Eu não queria dizer que houvesse algo de errado em ela viver contigo, garantiu José, sinceramente.

- Claro que não. Mas deves ter ouvido outras pessoas insinuarem coisas sobre ela que não são verdadeiras. As mulheres invejam Maria pela sua beleza, porque ela atrai os olhares dos homens quando passa na rua. E os homens, apercebendo-se de como as suas mulheres são pálidas e insípidas ao lado dela, rotulam-na de meretriz, para não se sentirem tão culpadas por a desejarem.

- És um filósofo, exclamou José, admirativamente.

- Ná. Sou apenas um apreciador de vinho que conheceu muita gente, na sua maioria má. Como não reconheço a existência de qualquer Deus que pudesse proibir-mo, faço o que me apetece, mas não faço mal a ninguém, excepto a mim mesmo, e estou no meu direito. Como gosto de ver as pessoas felizes e alegres, deixo a Maria cantar e dançar para que os outros possam partilhar da sua beleza e do seu talento. Mas para vós, os judeus, isso é shafikat damin. Suspirou. - Se se tenta agradar a toda a gente, não se agrada a ninguém. Mas senta-te aqui a meu lado, rapaz. A Maria foi a Cafarnaum vender algumas liras por mim e trazer um peixe para o nosso jantar da loja de Simão e dos filhos de Zebedeu. Que pensas do ataque que ela teve ontem?

- Não creio que se trate da Doença Sagrada, disse José imediatamente.

- Nem eu. Estudaste Hipócrates, pelo que vejo.

- Li todos os seus escritos que consegui encontrar, senhor, disse José avidamente. - E os de Marcus Terentius Varro e de Lucretius Carus, igualmente.

Demetrius ergueu os sobrolhos. - A tua sede de conhecimento é digna da dos antigos gregos, meu jovem. Há um homem em Roma, um amigo meu, chamado Aulus Cornelius Celsus, com o qual podias aprender muito, embora ele seja mais um philiatros, um amigo dos médicos, do que um médico propriamente dito. Mas voltemos a Maria. Que pensas realmente que sejam aqueles ataques dela?

- Já os vi antes em rapariguinhas, disse José. - O meu preceptor, Alexandre Lysímaco, acredita que elas são possuídas por um demónio durante um curto período, mas eu duvido que seja esse o motivo. A maioria delas deixa de os ter ao atingir a maturidade.

- Ela disse alguma coisa ontem, durante o ataque?

- Apenas uma algaraviada infantil. Parecia estar a recordar-se de uma cena em que alguém a espancava.

- Tinha esperanças de que ela tivesse esquecido tudo isso, suspirou Demetrius. - O pai dela era um caçador de pombos e um ladrãozeco. Batia-lhe muitas vezes e estava decidido a vendê-la a um romano, mas eu fiz-lhe uma oferta superior. Adoptei-a legalmente e ensinei-lhe tudo o que sei sobre música, filosofia e arte. Hoje em dia a lira já não é tão popular e eu ando a ver se aperfeiçoo as minhas cítaras, de modo que não vivemos muito bem. Maria adora cantar e dançar e, uma vez que as pessoas pagam para a ouvir, deixo-a actuar por vezes nas ruas.

- E é seguro?

- Os nabateus vão sempre com ela. E Hadja daria a vida por ela.

- Treinaste-a bem, disse José. - Nunca ouvi uma voz mais encantadora nem vi bailarina mais graciosa.

Demetrius acenou afirmativamente. - Poucas a podem igualar, embora pouco mais seja do que uma criança. Apresentando-se como bailarina e cantora nas grandes cidades do Império, estou certo de que daria volta à cabeça de reis, se o quisesse. Mas acima de tudo coloco a felicidade dela e hesito em afastá-la de Magdala... Que farias tu, José? perguntou de súbito.

O primeiro pensamento de José foi que as cidades são perversas e cheias de pecado. Por isso Maria estaria muito melhor longe delas, talvez casada com um homem bom e justo, que a amasse pela sua beleza e pelo seu encanto, que a sustentasse e a tornasse feliz. Um homem, por exemplo, pensou ele, enquanto o seu pulso se acelerava, como um médico jovem e bem sucedido. Mas a sua própria ambição tinha pressentido um espírito semelhante em Maria de Magdala, a mesma determinação de obter êxito no mundo da música e do teatro que ele sentia em relação ao conhecimento, no campo da medicina.

- Um dos provérbios do meu povo diz: Um homem é aquilo que tem dentro do seu coração, disse ao grego. - Duvido que Maria se sinta verdadeiramente feliz até ter feito as coisas em que pôs o seu coração.

- Tens uma cabeça sensata sobre esses ombros jovens, disse Demetrius, com ar de aprovação. - Há muitos meses que tento evitar essa mesma conclusão. Mas, uma vez que não temos dinheiro para viajar, teremos que nos conservar aqui, pelo menos por agora. - Pegou na cítara que colocara sobre o banco ao seu lado. - Ouve com atenção os sons deste instrumento. - Quando tangeu as cordas, pulsou no ar uma melodia tão suave como o linho antigo.

José reconheceu o toque de um mestre, apesar de os dedos do fabricante de liras serem gordos e curtos. Maria aprendera bem as suas lições, pensou, pois ela também possuía o dom de arrancar acordes daqueles à cordas. - Não sou músico, confessou. Mas os sons têm uma riqueza e uma ressonância que nunca tinha ouvido antes.

- Exactamente. E sabes porquê?

- Não. Não sei nada de música.

- Platão avisou-nos de que não deveríamos tentar separar a alma do corpo, disse Demetrius. - A música é o alimento da alma e quando a alma está sã, geralmente o corpo também o está.

- Tenho notado que o desgosto e a tristeza podem provocar doenças, confessou José. - Há quem acredite que são os demónios...

- Demónios! Bah! - Demetrius cuspiu eloquentemente para a relva aos seus pés. - Os demónios que possuem o homem nascem dentro dele próprio, são filhos dos seus próprios desejos. Eu, bebo vinho demais, quando o arranjo, o que não acontece muitas vezes. E como demais quando posso, ou seja, praticamente nunca. Mas sou feliz, e, assim, este meu corpo inchado funciona tão bem como um relógio de água. Podes dizer o mesmo?

José sorriu e abanou a cabeça. - Acha que eu devia trocar o iztnel, como os judeus chamam ao escalpelo, pela lira e pela trombeta?

- Fazia-te bem, reconheceu Demetrius. - Mas estávamos a falar de cítaras. - Voltou a tanger as cordas e uma profusão de melodia encheu o jardim. - A resposta para a riqueza dos sons deste instrumento encontra-se no seu corpo, explicou. - Repara que belamente arqueados estão os suportes ressonantes e na perícia das finas peças que formam a caixa de som. Os estúpidos músicos de Roma não pensam senão no tamanho do instrumento e na extensão do barulho que ele faz. Têm cítaras tão grandes como carros - e provavelmente soam como as rodas dos carros. - Pousou o instrumento. - Mas estou a fatigar-te com esta conversa sobre música. É um dos males de quem envelhece. Em breve estarei como Aristo-xene de Taras que disse, há trezentos ou quatrocentos anos: Uma vez que os teatros se tornaram absolutamente bárbaros, e visto que a música se encontra inteiramente estragada e vulgar - nós, que somos muito poucos, recordemos nos nossos espíritos, só para nós, o que era a música dantes.

- Contudo, nós, os que olhamos para o passado, não estamos totalmente desactualizados, disse Demetrius, prosseguindo a sua prelecção. - O mesmo Aristoxene deu-nos o nosso conhecimento de harmonia. - Tangeu uma corda, fez parar a vibração colocando os dedos sobre as cordas, e depois tocou outra exactamente uma oitava mais abaixo. - Escuta bem, jovem. A resposta para o mistério do universo pode muito bem estar nas vibrações destas cordas de humilde tripa...

Ouviu-se barulho na rua, lá fora, e Maria entrou a correr, arrancando o manto da cabeça, de modo que o cabelo se soltou numa cascata gloriosa de cobre vivo, sobre os seus ombros. Na sua excitação, nem viu José. - Demetrius! exclamou. Trouxe Simão comigo; está ferido.

Diversas pessoas seguiam Maria até ao jardim. O músico alto, Hadja, amparava um autêntico gigante, vestido como um pescador, cuja profissão, de qualquer modo, teria sido revelado pelo forte odor a peixe que o rodeava. O rosto do homem estava branco e trazia o braço direito metido numa tala grosseira. Atrás dele vinha um outro homem, esbelto e moreno, também vestido como um pescador.

Quando José correu a segurar o braço de Simão e enquanto o faziam sentar no banco ao lado de Demetrius, Maria viu-o pela primeira vez. - Vim agora mesmo de tua casa, José, exclamou surpreendida. - A tua mãe disse-me que só voltavas à tarde.

- Mandei chamá-lo, explicou Demetrius, para lhe agradecer por te ter trazido a casa sã e salva, na noite passada.

Maria sacudiu a cabeça. - Já não sou uma criança. Podia ter voltado sozinha. - Depois sorriu. - Mas foste muito amável, José, e gostei de voltar na tua mula.

- Que se passou desta vez, Simão? perguntou Demetrius. - Os galileus são sempre os primeiros na luta. E suponho que João, o filho de Zebedeu, que ali está, participou também.

- Havia uns gregos que afirmavam que os judeus não governarão o mundo quando o Messias chegar, explicou Simão. - Partimos algumas cabeças, mas um deles tinha um varapau. Tu és o único grego sensato que conheço, Demetrius.

- Porque sei que não posso discutir contigo, meu amigo, disse complacentemente o fabricante de liras. - Agora senta-te e deixa José examinar-te o braço.

 

O jovem médico ajoelhou-se ao lado do ferido e apalpou-lhe suavemente o antebraço, onde parecia localizar-se o problema. Simão estremeceu à ligeira pressão dos dedos hábeis no seu braço, mas não antes de José ter detectado um ligeiro ranger de ossos estilhaçados a roçar uns pelos outros. - Podes pôr-mo bom? perguntou Simão ansiosamente, - Um pescador precisa de braços fortes. - A peixaria de Zebedeu e seus filhos em Cafarnaum era grande e bem conhecida em toda a populosa margem do lago. Simão, segundo José pensou, devia ser sócio deles, pois parecia ser mais do que um simples pescador.

- A cura vem do que está acima de todos disse José tranquilamente. - Vou fazer o possível para endireitar o osso, mas o resto fica nas mãos do Senhor.

- Simào é um homem muito bom, disse Maria com confiança. - O Senhor decerto o ajudará.

José tirou da sua bolsa uma dose de folhas de papoila secas e misturou-as com vinho. Simão bebeu a mistura com uma careta. Enquanto esperava que a droga fizesse efeito, José começou a preparar as ligaduras. Mandou Maria rasgar longas tiras de pano de um lençol, enquanto ele preparava ripas das finas madeiras ressonantes utilizadas para fabricar os instrumentos musicais, a fim de servirem de talas. Ferveu-se água numa panela colocada sobre um braseiro e José misturou-lhe farinha para produzir uma espessa pasta.

Demetrius observava as preparações com interesse e, quando José pediu uma cadeira de espaldar alto e colocou no seu topo um guardanapo dobrado, o velho músico não pôde conter por mais tempo a sua curiosidade: - Para que precisas da cadeira, José? perguntou.

- A barra superior fixará o ombro e o antebraço, explicou José, ao fazer sentar Simão de lado, com o braço ferido por cima das costas e a almofada sob a axila. - Assim pode-se esticar o braço, aplicando-lhe pesos, quando os ossos estão na devida posição e são ligados no seu devido lugar.

- E a farinha?

- As ligaduras molhadas na massa endurecem quando secam, ajudando a conservar os fragmentos quebrados no seu lugar e protegendo o braço de novos ferimentos.

- Por Diana! exclamou o fabricante de liras. - Isso é muito engenhoso. Inventaste-o tu?

- Devias estudar a medicina dos gregos tal como estudas a sua música, recordou-lhe José, com um sorriso. - Hipócrates e outros médicos usavam métodos semelhantes a este há cerca de quinhentos anos. Sem dúvida te lembras do que Idomeneu disse a Nestor nos poemas homéricos?

- Podes ganhar-me no teu terreno, jovem, disse Demetrius triunfante. - Mas isso pelo menos sei eu. - E declarou sonoramente:

"A habilidade de um cirurgião para curar as nossas feridas Vale mais do que os exércitos, para o bem-estar do povo".

Entretanto a papoila tinha exercido o seu efeito, com o auxílio do vinho com que José a misturara e o ricto de dor quase desaparecera do rosto de Simão. Apenas estremeceu um pouco quando José retirou cuidadosamente a funda e mostrou a Maria como devia segurar o braço para que o cotovelo se dobrasse no ângulo exacto. Em seguida, enrolou um lenço em volta do ombro e do braço, deixando as pontas soltas, e prendeu a estas uma pequena panela vinda da cozinha. Deixou-a pender de modo que o seu peso esticasse a parte inferior do braço, portanto a extremidade do osso partido.

Em seguida, José foi deitando areia lentamente dentro da panela, aumentando gradualmente o seu peso. De vez em quando, à medida que a tensão aumentava, apalpava suavemente o antebraço na região da fractura, procurando, com os seus dedos sensíveis de médico, as posições das extremidades partidas. Quando finalmente deixou de detectar qualquer sobreposição dos fragmentos - a tensão dos músculos era agora superada pelo peso da panela e da areia - ajeitou suavemente as partes quebradas até se ajustarem. Com grande espanto dos espectadores, Simão quase não sentiu dores durante toda esta manipulação, porque a tensão firme sobre o braço mantinha os ossos separados e alinhados um com o outro, de modo que as pontas quebradas não cortavam a carne.

Então José começou a aplicar a ligadura que teria de desempenhar a importante missão de conservar o osso no seu lugar até estar curado. Primeiramente, o antebraço foi envolvido em lã macia e, sobre ela, colocou as tiras de madeira fina, como talas, paralelamente ao osso. Sobre estas, enrolou, volta após volta, a ligadura molhada na água com farinha, assentando cada volta cuidadosamente para não ficar torcida, enrolada ou dobrada. No ombro deu várias voltas em redor do corpo de Simão e por baixo da axila oposta, para conservar a ligadura no lugar, antes de prosseguir em volta do cotovelo e pelo braço abaixo, até ao pulso. Assim, toda a articulação do cotovelo ficou coberta, com excepção da parte inferior, onde as pontas do lenço estavam atadas à panela que servia de peso.

Quando acabou, Demetrius aproximou-se, bamboleante, e tocou na massa branca. - Por Diana! exclamou. - Já está a ficar rígida. Ser capaz de aliviar o sofrimento desta maneira é melhor do que saber filosofia ou música, José. Sinto-me humilde perante ti.

Mas foi João, o filho de Zebedeu, quem fez ao jovem médico um verdadeiro louvor, ao dizer-lhe tranquilamente: - Bem disse Jesus, o filho de Syrac:

Honrai devidamente o médico, pois necessitais dele;

As suas obras nunca têm fim.

E dele vem a paz que se espalha sobre a face da terra.

 

José parou na entrada da porta que dava para o jardim de Demetrius, quando lá voltou, na manhã seguinte, para visitar o seu doente, não desejando interromper, com a sua presença, a cena bela e pacífica que presenciava. Simão estava sentado no banco voltado para o espelho suave do lago lá em baixo, onde os barcos dos pescadores, com as suas velas multicolores, navegavam já. Maria sentava-se na relva, aos seus pés, com o sol da manhã a transformar-lhe os cabelos soltos numa cascata acobreada. Tangia a lira com os seus dedos hábeis e a sua voz enchia o jardim com um hino de louvor do poeta que tinha amado aquela bela região em redor do lago, uma parte do Cântico dos Cânticos!

A voz do meu amado! Vede, ele vem.

Saltando pelas montanhas, ultrapassando as colinas.

O meu amado é como um cervo ou um veado jovem:

Vede, está junto à nossa casa,

Espreita pelas janelas,

Deixa-se ver através da esteira.

O meu amado falou e disse-me:

"Ergue-te, meu amor, minha bela, e vem.

Pois, repara, o inverno terminou,

A chuva caiu e já se foi;

Aparecem as flores sobre a terra;

Chegou o tempo de os pássaros cantarem,

E ouve-se sobre a nossa terra a voz da rola;

Na figueira amadurecem figos verdes,

E as vinhas estão em flor,

Espalhando a sua fragância.

Ergue-te, meu amor, ó minha bela, e vem comigo.

Ó minha pomba, que te abrigas nas fendas das rochas, nas tocas dos locais íngremes

Deixa-me ver o teu semblante, deixa-me ouvir a tua voz;

Porque a tua voz é suave e o teu semblante é belo!"

- Maravilhoso! gritou José da porta, incapaz de se conservar em silêncio.

Maria pôs-se de pé, de um salto. - José da Galileia, exclamou indignada. - Que significa isso de entrares furtivamente em nossa casa?

- A canção era demasiado bela para que eu a interrompesse, exclamou José.

- O aplicador de sanguessugas tem razão, Maria. - Simão sorriu-lhe, com afecto. - Foi o meu dia de sorte, aquele em que te encontrei a chorar nas ruas de Cafarnaum.

O rosto da rapariga tornou-se sóbrio. - A sorte foi minha. - Estremeceu um pouco, apesar de não estar frio. - Eu só tinha doze anos de idade, José, mas já sabia o que era ser espancada sem motivo e desnudada perante homens para que me apreçassem. Simào foi a primeira pessoa a tratar-me com bondade em toda a minha vida, acrescentou impetuosamente. - Admiras-te de que eu o ame a ele e a Demetrius mais do que qualquer outra coisa no mundo?

José inclinou-se para observar o braço de Simão. Verificou que a ligadura tinha secado e fixava o braço rigidamente e com firmeza, enquanto que o inchaço tinha diminuído de maneira notável.

- Na verdade, disse o pescador, se ontem alguém me tivesse dito que hoje teria tão poucas dores, ter-lhe-ia chamado mentiroso. Está escrito no Livro do Ecclesiastes: "Se adoeceres eleva orações a Deus e coloca-te nas mãos de um médico".

- Nem todos os médicos te tratariam tão bem como José o fez, interrompeu Maria. - Há muito quem diga que ele é melhor que o seu mestre, Alexandre Lysímaco.

- Como sabes tanta coisa? perguntou José com um sorriso.

_ Vou a todo o lado e conservo os olhos bem abertos. - Maria sacudiu a cabeça. - Além disso, os homens não têm segredos para uma mulher.

- Já te chamas mulher, então. Demetrius chegara ao jardim, enquanto conversavam. - Em breve estarás a olhar para os rapazes e deixará de haver canções na casa de Demetrius.

Maria correu para ele e encostou a sua face macia à barba grisalha dele. - Sabes que eu nunca te deixaria, exclamou, e José ficou admirado ao ver lágrimas nos seus olhos, tão rapidamente haviam mudado as suas voláteis emoções.

Demetrius apertou-lhe os ombros. - Estava apenas a brincar, tranquilizou-a. - Um dia hás-de casar-te com um homem rico, que fará o velho Demetrius conservador da sua adega. Então poderei morrer feliz. - Voltou-se para José. - Na Rua dos Gregos só se fala do milagre que tu executaste com o braço de Simão, meu rapaz. Em breve toda a cidade saberá dele, Maria tem os seus sistemas.

- Eu estava precisamente a dizer-lhe que ele é melhor do que Alexandre Lysímaco, disse Maria. - Mas é modesto demais para o admitir.

José não podia ficar mais tempo, mas, enquanto andava pela cidade a tratar dos seus doentes, os seus pensamentos giravam em volta da alegria de Maria, da sua beleza, do modo como a sua disposição passava num instante da felicidade para a tristeza e de novo para a felicidade, como se fosse uma criança. Não tinha encontrado indícios de prosperidade na casa de Demetrius, mas encontrara lá algo de mais importante, uma característica que faltava frequentemente nas casas dos ricos onde ia com as suas sanguessugas, a felicidade das pessoas que se amam sem reserva.

Quando José chegou a casa, nessa tarde, foi saudado pelo aroma fragrante de um peixe a assar sobre as brasas do fogão. E, ao chegar à cozinha, viu que sua mãe não se encontrava só. Maria estava sentada num banco baixo, a observar os preparativos da refeição nocturna e a conversar ininterruptamente.

- Benvinda a nossa casa, Maria de Magdala. Fez a saudação formal. - Que a paz esteja contigo.

Os olhos de Maria cintilaram. - Sou em parte grega e trago um presente. Não tens medo de mim?

José conhecia-a demasiado bem para não se surpreender com a sua cultura. "Timeo Danãos et dona ferentes", temo os gregos, mesmo quando trazem presentes, repetiu, sorrindo. - Não, não tenho medo de ti.

- Vê que belo peixe Maria nos trouxe, disse a mãe, orgulhosa. - Convenci-a a ficar e a ajudar-nos a comê-lo.

- Depois danças para nós? perguntou José.

Maria ergueu as mãos fingindo-se horrorizada. - Queres que os teus vizinhos digam que recebes uma Jezebel? Além disso, Hipócrates não avisa os médicos de que devem ser cuidadosos com a sua dignidade?

- Se bem me lembro do aforismo, disse-lhe José, reza assim: "A dignidade de um médico exige que ele tenha um aspecto tão saudável e gordo quanto a natureza lho determinar; pois as multidões acham que aqueles que não se encontram em tão excelente condição física não são capazes de tratar dos outros."

Enquanto a mãe preparava o jantar, José levou Maria até ao pequeno consultório onde tratava os pobres da cidade. Era pouco mais do que um terraço coberto, com um armário para os seus remédios e instrumentos. Magdala não era suficientemente grande para ter um medicamentarius, como se chamava a uma farmácia, que compunha e preparava os remédios apenas segundo as ordens de um médico, pelo que José colhia as suas próprias ervas e moía os seus próprios remédios, além dos do seu preceptor. Felizmente as colinas de Gilead ficavam próximas e eram famosas pelas suas plantas curativas, e os bálsamos lá produzidos eram largamente utilizados pelos médicos de toda a parte.

Maria escutou-o num silêncio inteligente, enquanto José lhe mostrava os instrumentos e lhe demonstrava os seus usos. O saco que usava à cintura chamava-se nartik. Continha o izmel, ou escalpelo, para incisão de abcessos; o trépano, um cravo para fazer sair sangue; o makdeijach, uma sonda afiada que auxiliava a explorar feridas e outras áreas; o misporayim, a tesoura para cortar pensos ou as suturas de pelo de cavalo por vezes utilizadas para fechar feridas; o tarrad, um espelho de metal, para explorar cavidades; e o kalbo, um par de fórceps, com inúmeras utilizações.

Numa prateleira estava a kulcha, para esvaziar o estômago em caso de envenenamento ou para aqueles que comiam demais; a gubtha, uma sonda oca para casos de pedras ou obstruções nas vias urinárias; e o shel harophe, o avental de couro que quase constituía o uniforme dos médicos judeus. A um canto encontrava-se a kisei tani, uma caixa de ferro que servia de secretária e de cofre para guardar os remédios preciosos.

No gabinete que servia de farmácia e de sala de tratamentos, estavam os remédios: o borit, um sabão forte para lavar peles inflamadas, assim como as mãos do médico; o neter que era simultaneamente um agente de limpeza exterior e um poderoso estimulante dos rins quando absorvido internamente; o tsri, um bálsamo curativo; a nehoth, a goma alcan-tira; e o lott, um poderoso sedativo feito de ópio. Junto destes, havia diversas pomadas com o indicativo unguentia: collyria para lavar os olhos infectados; e pilulae de diversas drogas, enroladas em grãos de diversos tamanhos.

Por baixo desta havia outra prateleira cheia de recipientes para folhas de papoila secas, destinadas a fazer dormir e a aliviar as dores; sementes de jusquiamus; a pasta de diachy-lon que recomendava Menecrates, médico pessoal do Imperador Tiberius; a droga chamada "sangue de dragão" porque se dizia provir do sangue de um dragão morto em combate com um elefante (embora, na realidade, se tratasse apenas da goma de uma planta oriental); preparado a que se chamava mitkridaticum, o favorito do Imperador Pompeus, e muitos outros. No fundo da prateleira havia um monte de raízes estranhas. José pegou numa e mostrou-a a Maria.

- Parece mesmo um homem, exclamou ela. - Vês? Olha os braços, as pernas, o corpo. O que é?

- Esta raiz chama-se "mandrágora". Há quem diga que é realmente humana e que grita quando é arrancada do chão. - José pegou numa garrafa cheia de um fluído escuro. - Isto é vinho de mandrágora, feito pela imersão da raiz em pó dentro de vinho, para se extrair a droga activa. Há quem lhe chame "a bebida da paixão".

- Porquê?

- Dizem que fortalece o amor. Ou talvez o nome lhe fosse dado por amantes desiludidos que o usaram para obter o sono do esquecimento. Mas, o vinho da mandrágora é especialmente usado para aliviar as dores durante as operações cirúrgicas e em perturbações nervosas.

- Quando se utiliza a droga para fazer dormir, perguntou ela, as pessoas voltam a acordar?

- Nem sempre, mas é preciso uma grande dose para causar a morte.

Maria estremeceu. - Disseste que a mandrágora era usada para perturbações nervosas. Eu apenas desmaio quando estou excitada. Isso ajudar-me-ia a evitar os ataques?

- Talvez, concordou José imediatamente. - Vou dar-te uma garrafinha de vinho de mandrágora para levares para casa esta noite. Podes experimentar tomar umas doses pequenas quando fores dançar. Talvez te livre dos ataques.

O peixe estava deliciosamente preparado e a refeição foi alegre, porque Maria era tão inteligente e espirituosa como bela. José esquecia-se de comer para olhar para ela. Mais tarde, acompanhou-a a pé, através da cidade, até à Rua dos Gregos. - Adoro a tua mãe, José, disse-lhe ela, já em frente da sua casa. - E tu também és muito simpático. - Pôs-se nos bicos dos pés, deu-lhe um beijo na cara e desapareceu.

A mãe de José não deixou de notar a luz quente dos seus olhos quando ele regressou, ainda um pouco entontecido por aquele beijo alado. - A Maria é muito bonita, José, observou. - E o pai dela era judeu. Embora tenha sido adoptada por um grego, foi criada na religião do nosso povo.

- Que diferença faz que seja judia ou grega? perguntou ele, mas a mãe mudou de assunto.

- Ela contou-me o milagre que fizeste, ao curar Simão, o pescador.

- Só lhe tratei do braço. O Todo Poderoso o curará.

- Mas sem o teu tratamento, o Todo Poderoso deixá-lo-ia ficar torto, observou ela, com uma lógica incontestável. - O peixe veio da loja de Zebedeu, pelo que se vê que Maria tem amigos importantes. É o mais rico mercador de peixe do lago.

José começava a compreender o alcance daquela conversa incoerente. - Mas ela canta e dança nas ruas, recordou-lhe, fingindo desaprovação.

- O Rei David, cujo sangue corre nas tuas veias, também não cantava e dançava em honra do Todo Poderoso ? perguntou ela, acaloradamente.

- Há quem lhe chame Jezebel e a acuse deabodah zarah.

- Há mulheres que invejam as raparigas belas e falam mal delas, disse a mãe, torcendo o nariz. - Maria tem espírito e daria uma boa esposa para um jovem brilhante. Ela gosta de ti, José; devias cortejá-la.

- Há muito tempo para se falar de casamento, disse ele, mais sobriamente. Hoje, Alexandre Lysímaco prometeu levar-me, dentro de dois meses, perante os juizes a Jerusalém. Pensa que estou pronto para ser classificado como roppe uman.

- Ai! gritou a mãe, encantada. - O meu filho vai ser "médico habilitado". - O título era conferido por juizes devidamente nomeados apenas aos aprendizes que tivessem terminado o período prescrito e que os preceptores afirmavam serem capazes de tratar de pacientes por si sós. - Agora já te podes deixar daquela louca ideia de ir para Alexandria, acrescentou.

José não queria discutir esse ponto. Sabia que tinha aprendido tudo o que Alexandre Lysímaco lhe podia ensinar e era, provavelmente, um médico tão bom como qualquer outro da Judeia ou da Galileia, talvez mesmo de toda a província da Síria. Mas os seus estudos, das obras dos filósofos e médicos gregos tinham servido para lhe mostrar como eram insignificantes os conhecimentos de médicos tão eminentes entre os judeus como era o seu preceptor. O grande Hipócrates, Diocles de Carystos, os famosos alexandrinos Heróphilo e Erasistrato - todos eles tinham ultrapassado os simples conceitos de a doença ser um castigo de Deus ou efeito de posse por parte de demónios. E Asclepíades de Bitínia ousara mesmo declarar categoricamente que, uma vez que o corpo era composto por átomos desligados em constante movimento, a saúde dependia do movimento ordenado dessas minúsculas partículas, enquanto que a doença resultava de uma paragem desses átomos ou de violentos embates entre eles. O seu princípio do contrario contrariis nos tratamentos tinha-lhe ganho o favor dos reis. Mais do que uma vez, nas suas próprias experiências, José tinha sentido que o conselho trocista "Medice, cura te ipsum" (Médico, cura-te a ti mesmo) continha mais verdade do que crítica.

Simão, o pescador, melhorou tão rapidamente que em breve José não tinha desculpas para o conservar em Magdala.

Quando saía da casa, certa manhã, tendo prometido a Simão que poderia voltar a Cafarnaum após o tratamento do dia seguinte, Maria apareceu, transportando uma lira. - Vou entregar isto à Rua dos Vendedores de Pombos. Posso ir contigo?

Ele cedeu-lhe lugar ao seu lado, e a mula que transportava o equipamento seguiu-os. - Terei pena de ver Simão partir amanhã, disse-lhe. - Porque depois não terei uma desculpa para vir a casa de Demetrius.

- Mas podes vir visitar-nos sempre que quiseres.

- Se eu vier sem ser chamado, as pessoas dirão que te faço a corte.

- Nunca ninguém me fez a corte, José, disse ela suavemente, e depois a sua voz tomou um tom amargo. - Os rapazes têm medo de o fazer porque as mães deles me chamam Jezebel. Porque será um pecado querer ser feliz? perguntou impetuosamente.

- A minha mãe não te considera uma Jezebel.

- Eu sei. - Colocou a mão sobre a dele e os seus dedos estavam quentes e cheios de vida, ao rodearem os dele. - Ela é simpática como tu, José, e eu amo-a.

- Vou comparecer perante os juizes dentro de dois meses para me tornar roppe uman, disse-lhe ele.

- José! exclamou ela, com os olhos a brilhar. - Isso é maravilhoso! - Depois, o seu rosto ficou triste, - Mas depois irás para Jerusalém; Magdala será pequena demais para ti.

- A minha mãe acha que eu devo casar-me e começar a exercer medicina. Até já escolheu a rapariga.

Maria não o olhou, mas ele viu os seus lábios suavizarem-se num sorriso.

- É uma rapariga encantadora chamada Maria de Magdala, acrescentou.

- E tu nada tens a dizer a esse respeito? perguntou ela com um ar sério e os olhos cintilantes.

Atravessavam nessa altura um pequeno parque e encontravam-se ocultos das vistas dos outros por um grupo de árvores. José fê-la voltar-se e ficar de frente para ele. - Sabes que te amo muito, Maria, disse.

- Tanto como Filodemus amava Xanto, na sua canção?

- Tanto e mais ainda, disse ele rapidamente.

- A música acaba depressa demais, cantou ela suavemente, com os olhos a brilhar. - Outra vez, repete de novo a melodia triste e doce. Mas tu não me conheces, José. Sou vaidosa e descuidada.

- E muito bela...

- Ambiciosa e imprudente...

- E adorável...

Ela bateu o pé, fingindo zangar-se. - Não me deixas acabar? Estou a dizer-te que não sou o género de mulher que tu mereces. Iria embaraçar-te e as pessoas haviam de falar de mim.

- Que importa tudo isso se nos amarmos? Puxou-a para ele. - É por não me amares que apresentas esses argumentos todos, Maria?

- Oh, eu amo-te, José, disse ela, então, apressadamente. - Amo-te. Amo-te. Mas também amo Demetrius, e ele está em primeiro lugar.

- O próprio Demetrius me disse que achava que serias mais feliz casada com um homem como deve ser.

- Estava apenas a tentar proteger-me. - De súbito agarrou-se a ele e ele apertou-a contra o peito, não pedindo mais, satisfeito pelo doce prazer de a ter nos seus braços. Quando ela levantou a cabeça que escondera no seu peito, beijou-a e descobriu que à doçura dos seus lábios se misturava o sal das lágrimas. Finalmente ela afastou-se dele e enxugou os olhos à mangado vestido. - Temos que ter juízo, José, disse firmemente. - Eu não posso casar-me contigo. Não posso fazê-lo tão cedo.

- Mas porquê?

- É uma longa história, mas tu mereces ouvi-la. Há muitos anos, Demetrius foi director do Teatro de Alexandria e o mais famoso músico do Império. Apaixonou-se por uma rapariga chamada Althea e treinou-a para ser a primeira actriz do seu teatro. Ela era sua amante e ele adorava-a, de tal modo que não podia acreditar que ela lhe fosse infiel. Mas ela ligou-se a um rico romano e tentou livrar-se de Demetrius dizendo ao seu amante que ele era o chefe de uma conspiração contra os romanos. Demetrius mal conseguiu salvar a vida e um pouco de dinheiro, juntando-se a uma caravana que partia para Damasco, mas os ladrões roubaram-no em Cafarnaum e deixaram-no como morto junto do lago. Simão encontrou-o e tratou-o até recuperar a saúde. Como estava sem dinheiro, Demetrius abriu uma loja para fazer liras aqui em Magdala, mas só vive para regressar a Alexandria.

- Será seguro para ele voltar lá?

- Sim. O amante de Althea conspirava para se tornar governador da cidade e foram ambos executados, mas era tarde demais para ajudar Demetrius. Pelo que Simão conta, estava prestes a matar-se quando eu lhe apareci. Desde então, tenho sido toda a sua vida. Ensinou-me tudo o que sei, José, e vive apenas para o dia em que possa fazer de mim a mais famosa actriz e bailarina de Alexandria. Será a sua vingança sobre Althea.

- Mas Demetrius ama-te suficientemente para desejar a tua felicidade, Maria.

- Não compreendes? suplicou ela. Tenho que fazer isso por Demetrius, mas é também o que quero. Há reis que têm abandonado as suas rainhas por mulheres de teatro. Que rapariga não desejaria ser tão importante como uma rainha?

- Mas supõe que não tens um êxito imediato, objectou ele. - De que viveriam todos em Alexandria?

- Demetrius diz que eu tenho mais talento do que Althea tinha e que me bastará cantar e dançar perante o director do teatro para ser aceite imediatamente. - Recordando a chama viva do seu corpo quando a vira dançar na rua de Tiberíades, José compreendeu a confiança do fabricante de liras.

- Esta nova cítara que Demetrius fez é muito superior às outras antigas, prosseguiu Maria. - Vai ter grande procura numa cidade como Alexandria, onde há muitos músicos. Podemos viver do que ele ganhar a vender as cítaras, se for preciso, mas eu seria capaz de cantar e dançar nas ruas, para o fazer feliz. Só eu posso compreender quanto lhe devo, José.

Amando-a como a amava, José não conseguia encontrar forças no seu coração para a dissuadir. Como tinha importantes planos para si próprio, compreendia o íntimo fogo da ambição que ardia dentro dela. - Quanto tempo levarás para ir para Alexandria? perguntou.

Maria riu e voltou a ser a mesma, alegre e ávida. - Quem sabe? Mal temos dinheiro para comer, agora. Mas naquele dia em que dancei em Tiberíades, a multidão atirou-me mais moedas do que as que ganho numa semana em Magdala ou Cafarnaum, ou mesmo em Bethsaida.

- Gostava que não fosses a Tiberíades, disse ele, rapidamente.

- Tu vais lá quase todos os dias, protestou ela. - Se não te torna a ti impuro, porque havia de tornar-me a mim?

- Não estou a falar de impureza. Tu és muito bonita e viste bem o modo como te olhou o sobrinho do Procurador, Gaius Flaccus.

- Os homens olham para mim todos os dias. Julgas que não sei ler o que há nos seus olhares? - Franziu o nariz e olhou para ele. - O tribuno era um homem muito belo e generoso com o seu dinheiro. Deu vinte denarios a Hadja.

- Mas sabes como são esses romanos. Uma rapariga nunca está segura ...

- José! exclamou ela, encantada. - Tens ciúmes!

- Claro que tenho ciúmes, confessou ele. - Não acabo de dizer que te amo e quero casar contigo? Mas os romanos são efectivamente maus e não se pode confiar neles.

O rosto dela ficou sério. - Conheço bem os romanos; o meu pai ia vender-me a um deles. Mas pagam bem e precisamos do seu oiro. Além disso, eu nunca Hadja e os seus homens, e qualquer deles era capaz de matar um homem só com as mãos. Não te aflijas, José, estarei segura mesmo em Teberíades.

 

Maria estava no jardim que dava para o lago, alguns dias mais tarde, quando vieram trazer junto dela o mensageiro do Procurador. Estava a aprender uma nova canção e pousou a lira quando o visitante se inclinou diante dela. Era alto e de aparência imponente, mas, observando-o mais de perto, notou que tinha orelhas fendidas, o que demonstrava que era um escravo.

- Sou o nomenclator1 de Pontius Pilatus, Procurador da Judeia, disse o homem altivamente. - Onde está aquela a que chamam Maria de Magdala?

O coração de Maria deu um salto. - Eu sou Maria de Magdala, disse. Que poderia Pontius Pilatus desejar dela? pensou.

 

1 Nomenclator era um escravo romano que acompanhava, na rua, os magistrados ou candidatos à magistratura, para lhes indicar os nomes dos cidadãos que encontravam e que era de interesse cumprimentar. (N. do T.)

 

- O Procurador pede-te que assistas a um jantar que vai dar na sua casa em Tiberíades esta noite, para cantares e dançares para os seus convidados.

- Tens a certeza de que ele me quer? perguntou incrédula.

- Absoluta. Ouviu falar das tuas danças nas ruas de Tiberíades.

A excitação de ser convocada para o palácio do Procurador varreu do seu espírito toda a recordação dos avisos de José, dias antes, e das coisas desagradáveis que ouvira contar sobre as orgias realizadas nas villas romanas de Tiberíades. Pensou que aquilo constituía uma oportunidade de ganhar algum do dinheiro, talvez grande parte dele, de que Deme-trius necessitava para irem para Alexandria.

- Vens? perguntou delicadamente o escravo, embora o seu tom determinasse que nem se podia pensar que um judeu recusasse o convite do governador romano da Judeia.

Maria já recuperara a tranquilidade. - Podes dizer ao teu amo que terei muita honra em dançar para ele e para os seus convidados esta noite, disse com considerável dignidade. - Eu e os meus músicos lá estaremos ao anoitecer.

O nomenclator ergueu os sobrolhos. - O governador tem os seus próprios músicos.

Maria recordou-se então do conselho de José. - Eu só danço a música tocada pelo meu grupo, disse com firmeza. - Eles acompanham-me para onde quer que eu vá.

O escravo encolheu os ombros. - Leva-os então. Talvez Gai... o Procurador se tenha esquecido de falar neles.

Maria não reparou no deslize. Estava muito preocupada a pensar se devia perguntar pelo pagamento ou esperar até ter dançado. Quando o escravo começava a afastar-se, disse rapidamente: - Podes dizer-me quanto me pagarão?

- Os artistas geralmente não exigem dinheiro pelo prazer de satisfazer o Procurador, explicou o nomenclator. - Basta dizer que receberam um convite para comparecer diante dele. - Mas, notando o desapontamento no rosto dela, acrescentou, com bondade: - No entanto, é habitual ele atirar uma bolsa àqueles que aprecia.

- Uma bolsa? De quanto?

- Não há importância fixa. Uns mil sestércios, talvez, se lhe agradares especialmente.

- Mil sestércios! Maria ficou arquejante, mas recuperou rapidamente a compostura. - Claro que terei muita honra em dançar para o teu amo, seja qual for o valor da bolsa, disse graciosamente.

O nomenclator fez nova vénia, como se estivesse a gostar daquela pequena farsa. - Podes indicar-me o caminho para casa do aplicador de sanguessugas, José de Galileia, aqui em Magdala? perguntou.

- Que fez José? perguntou Maria rapidamente.

- A esposa do Procurador deseja os serviços do aplicador de sanguessugas imediatamente.

Maria deu-lhe logo as indicações necessárias para ir a casa de José. - Se o vires, acrescentou, diz-lhe, por favor, que eu vou dançar esta noite. - Corou. - Tenho motivos para te fazer este pedido.

Depois de o escravo partir, Maria precipitou-se para o quarto onde Demetrius se encontrava de cama, com uma constipação, que aliviava com a garrafa de vinho que ela trouxera de Cafarnaum, nessa manhã. - Demetrius! gritou, excitada. - Demetrius! Sucedeu uma coisa maravilhosa!

- Simão mandou mais peixe, resmungou ele.- Já começo a parecer um peixe também.

Maria riu-se e lançou-lhe os braços em volta do pescoço. - Melhor do que isso. Mil sestércios chegam para irmos para Alexandria?

Demetrius estava habituado à sua viva imaginação e às suas explosões de entusiasmo. - Mil sestércios levavam-nos até metade do caminho - se os tivéssemos.

- Oh, mas temo-los! Ou antes, vamos tê-los, depois de logo à noite.

- O rei Herodes traz-nos os seus cofres?

- Uma coisa ainda melhor. Vou dançar para o Procurador, Pontius Pilatus.

- Para o Procurador! - Demetrius sentou-se na cama, agarrado à garrafa de vinho. - Onde foste buscar essa louca ideia, pequena?

- Não é louca! A jovem bateu o pé. - O nomenclator de Pilatus esteve aqui agora e pediu-me que fosse dançar num jantar, esta noite. E falou-me de uma bolsa de mil sestércios se eu agradasse ao Procurador e aos seus convidados.

- Mil sestércios! - Demetrius deixou-se cair para trás. - Não vejo tanto dinheiro desde que vim para a Galileia. Ou vamos a ver: duzentos compram uma mula forte para aguentar esta minha gorda carcaça pela Via Maris até Joppa. Mais trezentos para as mulas, para a bagagem, para os nossos móveis e as cítaras a vender em Alexandria. Podíamos vender os animais no porto, para pagar a nossa passagem no barco.

- Então chegavam?

Ele abanou a cabeça. - Não totalmente. Mas, se Pontius Pilatus gostar de ti, outros ricos romanos e sírios que têm villas em Tiberíades quererão também que dances para eles, talvez até o próprio Herodes Antipas. E não será nada mau para ti dizeres que dançaste para o Procurador da Judeia, quando falares com o director do teatro de Alexandria. - Depois, o seu rosto tornou-se sério: - Mas será seguro ires a Tiberíades?

- Tu e José não passam de duas velhas! exclamou Maria aborrecida. - Eu já não sou uma criança, Demetrius. E, além disso, Hadja e os outros estarão lá para me guardar. - Deixou-se cair de joelhos junto do leito e os seus olhos encheram-se de lágrimas. - Tens que deixar-me ir, querido, suplicou. - Representa tanto para nós todos.

- Precisamos realmente muito de dinheiro, confessou Demetrius, alisando as belas ondas do cabelo dela com os seus dedos gordos. - Mas promete-me que Hadja e os seus homens estarão sempre junto de ti.

- Prometo. - Maria pôs-se de pé de um salto. - Que hei-de vestir? Já sei, a túnica de seda branca que me deste quando fiz dezoito anos. E a palia por cima, a amarela. Estava a guardá-las para as usar em Alexandria. E o Hadja tem que alugar um carro e uma mula para me levarem, para não estar muito cansada e dançar bem. E o meu cabelo! Oh, tenho mil coisas a fazer. - Partiu, num restolhar de saias.

Anoitecia quando Maria e o seu grupo chegaram à villa de Pontius Pilatus em Tiberíades e prenderam a mula e o carro a uma árvore do pomar, no exterior da villa. Maria levava consigo o embrulho que continha a túnica de seda e a palia amarela, além de umas frágeis sandálias de couro enfeitadas com um fino fio de ouro. Uma muralha de cerca de dez pés de altura cercava o palácio, pequeno mas requintado. A maior parte das villas de Tiberíades tinham daqueles muros altos que chegavam até à água. *

 

1 Palia, capa nu manto comprido que usavam as marronas romanas. (N. do T.)

 

O governador romano da Judeia passava mais tempo ali, na Galileia, junto das águas protegidas do lago, onde o clima de inverno era suave, que no castelo na costa de Cesareia, que era batida pelos ventos frios e tempestades do Mediterrâneo, o Maré Nostrum dos romanos. Era do conhecimento comum que a mulher de Pilatus, Claudia Procula, sofria muito de asma em Cesareia e se sentia muito melhor no clima mais quente de Tiberíades e no mar da Galileia.

Um guarda armado fê-los passar pelo portão e o nomen-clator veio ao encontro deles no atrium, como se chamava a sala central da casa. Mesmo na escuridão, podiam detectar a beleza dos jardins em forma de terraços que desciam pela colina até à água, e a fragrância das flores invadia tudo. Moviam-se escravos vestidos de branco pelos terraços abertos, transportando travessas para o triclinium, a sala dos banquetes, onde já se estava a efectuar o jantar.

O nomenclator ergueu os sobrolhos ao ver o vestido grosseiro de Maria. - E este o teu fato para dançar? perguntou, mas logo um sorriso de experiência se lhe espalhou pelo rosto. A rapariga era esperta, pensou, em ter decidido dançar nua perante os convivas da bacanal. A sua encantadora esbelteza seria uma variante das raparigas que geralmente distraíam Pontius Pilatus e os seus convidados.

Maria ergueu o embrulho que transportava. Não reparara no sorriso dele, por isso não ficou irritada. - Tenho aqui a roupa para dançar, explicou. - Há algum sítio onde possa mudar-me?

- Os artistas vestem-se numa sala junto da dos banquetes, explicou o escravo. - Eu levo-te lá e mostro aos teus músicos a alcova onde tocarão. Através das portas cobertas de pesados reposteiros, na parte lateral do longo átrio, pelo qual ele os conduziu, ouvia-se o som de vozes e de risos, o suave tanger da lira e da cítara, o tinir de vidros e talheres. Tratava-se, evidentemente, do triclinium, e Maria calculou que as portas do outro lado do corredor davam acesso aos quartos.

A sala onde foi conduzida era pequena mas arranjada com bom gosto, com uma porta, num dos lados, que dava para o triclinium. Uma das paredes estava ocupada por uma mesa de toilette cheia de perfumes e cosméticos, antimónio para empalidecer as faces, carvão para as pestanas, hena para as unhas das mãos e dos pés, e tudo aquilo de que uma mulher bela pode necessitar para se arranjar. Num armário aberto estavam pendurados diversos fatos, alguns tão diáfanos que ate pareciam não existir. Tinha ouvido dizer que algumas mulheres dançavam com tais roupas nos banquetes dos romanos, e até constava que as havia que dançavam sem nada vestido. Agora os seus olhos espantados constatavam a veracidade das histórias que ouvira contar.

Maria não tinha querido confessar nem a Demetrius nem a si mesma que sentia certa apreensão por dançar para Pilatus e seus convidados. Mas agora que se encontrava só, escutando os gritos dos bêbados na bacanal que se realizava na sala ao lado, custava-lhe a engolir o nó que sentia formar-se-lhe na garganta.

Rapidamente, antes que a coragem a abandonasse, tirou o vestido e a roupa interior e pendurou-os numa cadeira. Numa súbita explosão de exuberância, espreguiçou-se luxu-riosamente e deu uma reviravolta, num leve passo de dança. De súbito, porém, soltou uma exclamação e inclinou-se rapidamente, agarrando o vestido em frente do corpo. Só depois reparou que a bela jovem nua que se encontrava do outro lado da saia era o seu próprio reflexo.

Timidamente, atravessou a sala e tocou no enorme espelho fixado na parede, porque nunca tinha visto tal coisa. Todo o seu corpo se reflectia nele, a coluna esguia da cabeça e do pescoço, as adoráveis linhas inclinadas dos seus ombros e o início dos seios cheios, pequenos mas firmes, que começavam a formar-se na promessa de uma gloriosa feminilidade, a curva suave de uma cintura esbelta. Defeito algum se notava na perfeita simetria que tinha na sua frente. Possuía a graça flexível da caçadora Diana, mas era inefavelmente feminina, não obstante, e, quando soltou o cabelo e o deixou cair sobre os ombros, toda a branca extensão do seu corpo pareceu começar a arder e adquirir um brilho e calor próprios.

Relutantemente, Maria afastou-se da adoração da sua própria beleza para abrir o embrulho que trouxera. Gostaria de ter um pedaço de seda para envolver as ancas, à maneira de roupa interior, como se dizia que usavam as mulheres em Roma e nas outras cidades do Império. Mas a seda era cara, e, assim, apenas podia usar as finas calças de malha que vestiam as pessoas vulgares, quando usavam roupa interior. Por cima das calças vestiu um saiote de linho e depois a túnica de seda, um vestido sem mangas, de linhas clássicas, preso por baixo dos seios com uma fita prateada.

Algumas mulheres usavam cintos largos de rede metálica ou de fino cabedal, enfeitado com um desenho em filigrana de oiro ou prata, mas a elegância de Maria não necessitava de tais disfarces. O tecido da túnica junto ao corpo acariciava-lhe os seios maravilhosamente e descia em pregas direitas desde a cintura até aos tornozelos. Sobre a túnica, vestiu a palia, um manto geralmente usado na rua, que deixaria cair quando começasse a dançar.

Restava-lhe apenas calçar as sandálias leves e fixar as tiras em volta dos tornozelos finos, para ficar pronta. Não lhe interessavam os cosméticos com que as jovens haviam começado a pintar as faces, pois o seu encanto virginal não precisava de tais artifícios. Pegando na escova de marfim que estava sobre a mesa, escovou o cabelo até brilhar como cobre fundido. em seguida, atou sobre o cabelo um lenço de seda branca que tencionava usar enquanto dançasse.

De súbito, a porta do corredor abriu-se e entrou uma rapariga na sala. Ao ver Maria, parou subitamente e franziu o sobrolho. - Quem és tu? perguntou abruptamente.

A rapariga era mais velha e a sua figura tinha curvas mais generosas, mas foi o seu vestuário que impressionou Maria, porque usava uma túnica solta, cingida ao corpo com descuidada graça, feita do mesmo tecido ténue dos que Maria vira pendurados dos varões. Por baixo daquele vestuário revelador, a recém-chegada parecia usar apenas uma pequena cinta de oiro mantida no lugar apenas por meio de delicadas correntes fixadas em volta das ancas.

- És surda? perguntou a recém-chegada. - Ou não compreendes grego?

- Assustaste-me, disse Maria delicadamente, recuperando a voz. - Sou Maria de Magdala.

- A rapariga que vai dançar esta noite? O nomenclator disse-me que estava cá uma camponesa, mas não és nada como cu esperava. - Aproximou-se e tocou-lhe na palia. - Porque não te despiste? Logo que eu acabe, chamar-te-ão. - Sem esperar resposta, sentou-se à mesa de toilette, empurrando Maria para o lado, sem cerimónia.

- Lu já estou pronta, protestou Maria, quando a recém-chegada começou a pintar os lábios com carmim de um dos recipientes, aplicando a tinta escarlate com um pequeno pincel.

- Assim? - a outra pousou o pincel. - Vão rir-se de ti cm toda a sala. Ou talvez não. - Ergueu-se e, peremptoriamente, desatou a fita em volta da cintura de Maria. Habilmente, ajustou as estreitas tiras por baixos dos seios da jovem e voltou a atá-las. Quando Maria olhou de novo para o espelho, notou, com espanto, que o tecido de seda agora cingia intimamente a parte superior do seu corpo, acentuando nitidamente o contraste entre a esbelteza da sua cintura ea plenitude adolescente dos seus seios. Inclinando-se, a outra rapariga arranjou também, com arte, as pregas da túnica, vincando o tecido de modo a cair em inúmeras pregas, a partir da cintura, à frente, ficando justo sobre a curva das ancas. - Para alguma coisa fui vestiplica - pregueadora de togas, caso não conheças o termo romano, disse com certo orgulho. - Assim está muito melhor.

- Deves ser bailarina também, disse Maria.

- Sou uma escrava, lançou a rapariga sobre o seu ombro. - Chamam-me Thetis.

- Tu danças com ... com isso, Thetis?

A escrava endireitou-se e alisou o tecido transparente sobre as ancas. - Durante algum tempo. Quando os homens já estão suficientemente bêbados, gostam de nos arrancar o vestido enquanto dançamos. Ora vê - Aproximou-se de modo que Maria pudesse ver que o tecido estava preso ao ombro e à cintura com pequenos grampos de prata, frágeis e fáceis de abrir. - Com um bom puxão, os grampos abrem-se, explicou ela. - O vestido cai sem se rasgar. Este bômbice1 é caro; apenas os especialistas sabem tecê-lo.

- E danças nua? Em frente de homens?

Thetis riu-se. - Nunca nenhum homem te viu assim?

- Nunca, exclamou Maria horrorizada. - Nem sequer Demetrius, o meu pai adoptivo.

- Então deves ser virgem.

Um tom avermelhado tingiu as faces de Maria. - Evidentemente! Só tenho dezoito anos.

Thetis riu-se, grosseiramente. - Fui vendida como escrava aos doze anos e fui mãe aos catorze. Ouve, pequena, disse com ar sério. - Isto é um local perverso. Volta para Magdala

 

Seda. ('N. do T.)

 

e casa-te com um bom judeu e dá-lhe belos filhos. Acredita, os judeus são as únicas pessoas decentes que conheço.

_ Mas nem todos os romanos são maus, protestou Maria.

- Todos os que conheço são, disse Thetis num tom natural. - Espera até saberes o que é ser agarrada por um homem gordo a cheirar a vinho. Como o Rei Herodes Antipas. - Inclinou a cabeça e escutou. - Estão a tocar a minha música. - E, ajustando as correntes de oiro em volta das ancas, num movimento flexível, abriu a porta do tríclínium e passou através dela já a contorcer o corpo nos movimentos sinuosos da dança. Uma súbita explosão de sons a saudou, gritos de ébrios, o estrépito de uma taça a cair, e depois a porta fechou-se de novo, deixando a pequena sala mergulhada num silêncio pouco natural.

Maria sentiu um desejo súbito, quase subjugante de se afastar daquele local o mais rapidamente possível. As histórias que se contavam sobre as orgias romanas, ouvidas em segunda ou terceira mão, não passavam de saborosas descrições que a escandalizavam. Mas agora encontrava-se perante a realidade; dentro de poucos momentos, entraria na sala ao lado e dançaria para bêbados ululantes. Apenas a lembrança dos mil sestércios que praticamente lhe tinham sido prometidos a impedia de começar a fugir. Não podia privar Demetrius, recordou-se a si própria, das coisas que a bolsa daquela noite, e as outras que inevitavelmente se lhe seguiriam, se tivesse êxito, significariam para ele. Mas, concluiu, não podia nem queria competir em sensualidade com as escravas nuas. A sua dança teria que recair apenas na beleza pura.

Maria avançou até à porta que dava para o triclinium e abriu-a cautelosamente para poder ver a sala. O seu tamanho impressionou-a; nunca tinha visto uma sala de refeições tão grande. Numa das extremidades ficavam as otomanas sobre as quais se reclinavam os convivas, dispostos em volta de uma mesa, como os raios de uma meia roda. A outra extremidade da sala estava livre para o espectáculo, e aí dançava Thetis, ao som da melodia tocada pelos músicos escondidos numa alcova.

O triclinium era muito belo, com o tecto embutido em mármore colorido, as paredes pintadas com cenas de uma bacanal cuja rudeza fez Maria corar e afastar o olhar. Havia cinco otomanas dispostas em volta da mesa de mármore, da qual tinha sido retirada a comida, ficando apenas as taças de vinho. Dois rapazes esguios, de aspecto efeminado, circulavam com os jarros de vinho, enchendo as taças mal se esvaziavam. Eram louros, nitidamente gregos, com as faces pintadas e gestos afectados.

O sobrinho do Procurador, Gaius Flaccus, estava estendido numa das otomanas. Ao seu lado, estava um homem forte, com um rosto sensual e sem força, que ela calculou ser Pontius Pilatus. Os outros três homens eram mais velhos e estavam todos obviamente mais embriagados do que o seu anfitrião. Num deles, um homem gordo de olhos pequenos, Maria reconheceu Herodes Antipas, o Tetrarca da Galileia.

Gaius Flaccus, estranhamente, não parecia tão embriagado como os outros. Observava a bailarina com um olhar aborrecido, absorvendo ocasionalmente pequenos goles da taça que tinha na mão. Maria sentiu-se uma vez mais impressionada com a sua beleza. Ali reclinado, parecia Apoio descido do Monte Olimpo para se revelar aos mortais. Mas havia algo repulsivo nele, também, pensou ela, ou talvez fosse apenas uma parte da repulsa natural que ela sentia perante os seus companheiros, as cenas reproduzidas na parede e os rapazinhos gregos pintados.

Thetis dançava ao ritmo palpitante da música, e, enquanto girava sobre o chão de mármore, o tecido diáfano do vestido separava-se do seu corpo, como as pétalas de uma flor. Curvando-se e agitando-se ao ritmo voluptuoso, foi-se aproximando dos convivas, e depois, enquanto eles riam e se esforçavam avidamente por lhe arrancar o vestido, afastava-se graciosamente, provocando-os de modo deliberado, uma vez e outra. A certa altura aproximou-se de Gaius Flaccus, escapando-se quando ele estendeu negligentemente a mão para a bainha giratória do seu vestido, e depois voltou a aproximar-se dele cada vez mais, com deliberada intenção, pensou Maria, como se estivesse a cortejá-lo, desafiando-o a agarrar o seu vestido. ele sorria-lhe impudentemente, mas esperou até que o tecido quase lhe roçasse as mãos. Então, com um movimento rápido, como o ataque de uma víbora, agarrou a seda e deu-lhe um esticão. Tal como Thetis explicara a Maria, os grampos soltaram-se, mas a força do puxão rasgou o vestido igualmente. Thetis fugiu, com fingida surpresa, e o bômbice caiu-lhe do corpo. Ficou parada a meio da sala, mas os dedos sobre os olhos, fingindo-se envergonhada, exibindo o corpo nu, com excepção da cinta em volta das ancas.

Ressoaram as gargalhadas dos homens reclinados e ouviram-se aplausos. Depois, enquanto a música tomava um ritmo mais lento, Thetis baixou os braços e recomeçou a dançar. Agora mal movia os pés. Os movimentos expressivos da dança limitavam-se quase inteiramente ao tronco e aos braços e mãos. Era a dança oriental do amor, um poema voluptuoso da aventura amorosa, graficamente representado pelo corpo e pelos braços, simultaneamente repulsivo e fascinantemente belo na representação da paixão animal, da história milenar da procura, da conquista e da fertilidade. Assim poderia ter dançado a Rainha de Sabá perante o Rei Salomão ou uma concubina favorita no harém de um potentado oriental. Ao vê-la, Maria sentiu que o seu próprio corpo estremecia, as suas faces coravam e o pulso palpitava ao ritmo da música.

Os convivas ébrios começaram a bater na mesa, quando o bailado atingiu o climax inevitável. - A cinta! A cinta! - gritavam eles.

Era um rouquejar de paixão cuja pura animalidade assustou Maria, dando-lhe a tentação de fugir. Contudo, ao mesmo tempo, não conseguia afastar os olhos da cena. O seu coração latejava como o tambor que ressoava na alcova, fazendo com que o sangue lhe subisse ao rosto, a ponto de sentir que as faces lhe ardiam.

A cinta! A cinta!- os gritos tornaram-se mais insistentes à medida que as contorções do corpo de Thetis aumentavam até ao climax inevitável. Os instrumentos de cordas e de sopro gemiam num ritmo sensual com o latejar do tambor invisível em fundo. Com uma explosão de som, as mãos da bailarina aproximaram-se das ancas e afastaram-se com a frágil cinta entre os dedos. Deteve-se um momento e depois atirou o ornamento dourado directamente para Gaius Flac-eus que era o único dos homens que não se encontrava embriagado.

O belo tribuno foi forçado a afastar-se para evitar que a cinta dourada lhe atingisse o rosto. Mas não fez qualquer tentativa para a apanhar, e foi Herodes quem se precipitou para o chão e se ergueu, apresentando-a triunfante. - Apa-nheia a cinta! berrou satisfeito. - A rapariga é minha por esta noite. - Então Thetis voltou-se e saiu da sala a correr.

Maria afastou-se da porta, de um "alto, para evitar ser empurrada, quando a escrava entrou, furiosa. - Estavas a olhar, gritou ela, arquejante de raiva e do esforço da dança, com os olhos chamejantes. - Gaius Flaccus tentou apanhar a cinta?

Maria abanou a cabeça. - Tê-lo-ia atingido, se não se tivesse afastado.

- A culpa é tua! - A bailarina voltou-se rapidamente para Maria, com os pés afastados e as mãos sobre as ancas cheias. - Ele recusou-me por tua causa. Maria pensou que a rapariga, na sua fúria, quisesse bater-lhe. - Tu, com as tuas roupas justas e a tua conversa de seres virgem.

- Estás enganada! protestou Maria. - Eu só cá vim para dançar.

Antes que Thetis pudesse prosseguir na sua tirada, um forte acorde soou, vindo do triclinium. Maria reconheceu o som da grande cítara de Hadja, como introdução para o seu bailado. Agora que a realidade de entrar na sala do banquete chegara, sentiu-se enfraquecer de medo e excitação e cambaleou, momentaneamente, incapaz de se forçar a entrar na outra sala. Se não fosse o vinho de mandrágora que José lhe dera, sabia que teria um dos seus ataques. E, naquele momento, teria aceite de bom grado tudo o que viesse livrá-la da necessitar de entrar. Depois, com um forte esforço de vontade, obrigou-se a ficar calma e levou a mão à porta.

- Mil sestércios! Mil sestércios! - As palavras chegavam até ela sobrepondo-se ao ritmo da cítara, acalmando os seus medos e dando-lhe forças.

- Tenho que fazer isto por Demetrius, disse a si própria. - Tenho que o fazer. - E, cheia de orgulhosa segurança, abriu a porta e avançou pelo chão de mármore da sala de banquetes, enfrentando Pontius Pilatus e os seus convidados.

 

Quando Maria deixou cair a palia, um dos romanos riu-se. Lembrando-se do que Thetis lhe dissera ficou rígida e corou de furor, mas quando a música se apoderou do seu corpo, ergueu a cabeça num desafio e lançou-se no bailado.

Não era uma dança provocante, para inflamar a bestialidade dos homens. Com o subtil instinto de uma artista, Maria compreendera que não devia tentar competir com as atitudes menos subtis destinadas a agitar emoções básicas, que constituíam o repertório das bailarinas profissionais. Em vez disso, o seu corpo era um poema vibrante em louvor da beleza das terras da Galileia.

Transformou-se no vento que percorre os desfiladeiros da montanha para turvar as águas do lago e forçar os pescadores a abrigar-se em casa, no ribombar da trovoada veranil, e no majestoso relâmpago que prenuncia a tempestade. Depois foi chuva em Marheshvan, fazendo inchar a pele esticada dos bagos de uva e refrescando o solo recém-arado, preparando-o para receber a semente das mãos do semeador, reverdecendo a erva e emprestando vida nova às oliveiras e à rica colheita de frutos e melões na Planície de Genesaré.

Em seguida o cenário mudou, sob a cadência alegre dos instrumentos de sopro e a canção alegre dos de corda, cujos sons se adaptavam melhor ao sopro impressionante da trombeta. O seu corpo esbelto, frágil e encantador, dentro das roupas de seda, começou então a contar a felicidade das crianças que brincam sobre a relva molhada pela chuva, em orgias de frescura depois de um aguaceiro, com os pés quase alados de alegria, e abandonando-se às carícias do sol, liberto uma vez mais da prisão das nuvens. Os assistentes podiam ver c sentir, simultaneamente, as coisas que o seu corpo e a música contavam, e, mesmo na sua embriaguez, não podiam deixar de compartilhar da emoção que ela retratava. Apenas Gaius Flaccus parecia aborrecido, porque se movia inquieto na sua otomana, como se estivesse ansioso por ver a dança terminar. Herodes Antipas erguera-se sobre um cotovelo e observava Maria atentamente, com o olhar suavizado por qualquer recordação da sua juventude, e mesmo Pontius Pilatus perdera, por momentos, o ar de aborrecido desdém que parecia ser a sua expressão habitual.

Então, tão suavemente que mal se conseguia notar, o tom da dança mudou de novo. O sol punha-se sobre o lago e, sob a benigna protecção das sombras, encontravam-se um rapaz e uma rapariga, apaixonados. Tímidos a princípio, depois com ousadia crescente, à medida que as mãos tocavam as mãos e um coração outro coração, contavam um ao outro a história do seu amor, relatado com inefável beleza através dos movimentos da figura esbelta que dançava no chão. O palpitar das suas pulsações aumentava com a consciência que acordava em cada um deles da presença do outro; a exaltação dos seus espíritos mostrava-se em cada passo gracioso, em cada encantadora posição que os fazia deter a respiração. Maria tinha a cabeça inclinada para trás e os lábios entreabertos, a sua boca era tenra e suave como se contasse sem palavras a história daquele amor jovem, a sua procura de afecto, os seus receios, o doce encorajamento, a ternura e, finalmente, a suave rendição quando o rapaz tomou a rapariga nos seus braços e encontrou uns lábios ansiosos que aguardavam os seus. Tão suavemente como principiara, a música terminou naquele primeiro beijo cheio de doçura e Maria deteve-se, perdida na situação que criara, como uma flor delicada alimentada pelo amor que a acabasse de florescer.

Um trovejar de aplausos eclodiu espantosamente da audiência, quando ela deslizou graciosamente para o chão, numa reverência perante a otomana do Procurador. Das pregas da túnica, Pontius Pilatus extraiu uma pequena bolsa e atirou-a para o chão, para os pés dela. Pelo seu tilintar metálico, Maria concluiu que estava cheia de moedas, talvez mais do que os mil sestércios pelos quais ousara ir dançar. Com um movimento rápido e gracioso, apanhou a bolsa e, correndo graciosamente até ao fundo da sala onde via os músicos na alcova, atirou-a a Hadja, que habilmente a apanhou.

Então os nabateus ergueram de novo os seus instrumentos e Hadja tangeu a grande cítara num acorde largo que pôs todas as cordas em vibração. Encheu a sala uma palpitante explosão de som, reverberando pelas paredes e determinando o ritmo dos outros instrumentos, enquanto o homem dos címbalos fazia os seus discos de metal polido chocarem um contra o outro e ascabella bater no chão, juntando o seu ritmo ribombante ao ímpeto súbito dos sons.

Era a música da dança do deserto selvagem que Maria executara nas ruas de Tiberíades e, com um movimento rápido, soltou o lenço que lhe cobria os cabelos. Estes derramaram-se sobre os seus ombros numa cascata de beleza fundida, contra a palidez da sua pele e apura seda branca da sua túnica pregueada. Ali, de pé, era, como Hadja lhe chamava, a "Chama Viva", um pilar de fogo capaz de inflamar o coração de um homem e um hino de beleza selvagem que conseguia ser tão terno como o primeiro impulso de amor de uma donzela.

Depois, com o corpo agitado pelo ritmo palpitante da música, Maria iniciou a dança turbilhonante e sincopada das gentes do deserto, dos nómadas selvagens que cavalgavam os ventos rápidos das tempestades de areia e dormiam sob as palmeiras quando uma mancha de verde revelava um oásis na vastidão tumultuosa. A dança era demasiado fatigante para durar muito tempo, em breve os seus movimentos eram tão rápidos que o olhar confuso dos romanos já não conseguia distingui-los. No final, ela deteve-se um momento para receber os aplausos dos convivas, e depois desapareceu pela porta da salinha.

Arquejante, aureolada pela excitação do triunfo, Maria encostou-se à porta. Thetis tinha partido e a sala estava vazia. Nem ela queria que assim não fosse, porque aquele momento tinha que ser apreciado a sós, aquele capitoso frémito de triunfo que uma actriz experimenta após uma excelente representação. Avançando para o alto espelho, deteve-se um longo momento diante dele, saboreando de novo a beleza do seu corpo flexível. O seu cabelo estava todo despenteado devido aos vigorosos movimentos da dança, e ela sentou-se diante da mesa, começando a escová-lo com uma bela escova de marfim que lá se encontrava.

Concentrada no que estava a fazer, Maria não reparou que a porta que dava para o átrio se abrira, até que os seus olhos assustados viram reflectir-se o rosto belo e a alta figura de Gaius Flaccus.

- Não tenhas medo, pequena. - O tribuno sorriu, de modo tranquilizador. - Só vim dizer-te que dançaste muito bem e trazer-te isto. - Estendeu-lhe outra bolsa de couro, também inchada de moedas. Sem tirar os olhos dele, Maria pegou na bolsa e enfiou-a no bolso do seu vestido que estava pendurado na cadeira.

Gaius Flaccus puxou de uma banqueta almofadada e sentou-se aos seus pés. - A tua dança foi realmente bela, disse._ - És muito amável. - O sorriso dela era desconfiado.

- Falo a sério, protestou ele. - Fizeste com que Thetis parecesse uma vaca.

- Thetis é muito bonita. - Os olhos de Maria cintilaram. - Ficou irritada por tu não apanhares a cinta.

Gaius Flaccus encolheu os ombros. - Como olhar para ela depois de ver uma beleza verdadeira? Thetis tem um bom corpo, mas falta-lhe a alma. Tu tens ambas as coisas e, por isso, és a própria perfeição. - Depois sorriu. - Basta de cumprimentos. Deves estar a morrer de fome.

Com a excitação de se preparar para ir a Tiberíades, Maria esquecera-se de comer. Agora compreendia que estava esfomeada, mas a ideia de ir para a sala comer com os romanos ébrios repugnava-a, e afastou-se da porta.

Gaius Flaccus reparou no seu movimento involuntário. - Ali, não, tranquilizou-a. - Mandei preparar uma mesa numa sala do lado.

- Mas os meus músicos? Devem estar prontos para voltar para Magdala.

- Estão a comer agora. Eu disse-lhes que tu ceavas aqui. Maria hesitou, mas não parecia haver mal em ficar ali alguns minutos, e estava cheia de fome.

- Ainda tens medo de mim? perguntou Gaius com um sorriso. - Não sou um ogre comedor de meninas.

Ela não conseguiu deixar de rir perante a incongruidade de comparar um homem tão belo com um ogre, e apertou a mão que ele lhe estendia. - Tenho de apressar-me, no entanto, insistiu. - Demetrius fica preocupado até eu regressar.

- As duas bolsas que levas acalmarão os seus receios. Além disso, tens quatro guarda-costas, e dos fortes. Os homens do deserto são fortes.

Maria dizia a si própria que o seu medo era idiota, enquanto Gaius Flaccus a conduzia pelo corredor. E era emocionante ter às suas ordens um homem tão elegante. Não conseguia evitar que o pulso se lhe acelerasse ao sentir a sua mão forte no seu braço e o toque do corpo dele, vestido de seda, contra o seu corpo, no corredor estreito. Que furioso ficaria José, pensou travessamente, quando, no dia seguinte, lhe relatasse as suas experiências no palácio do Procurador. O quarto para o qual Gaius Flaccus a levou não era grande, mas estava luxuosamente mobilado. Pesados cortinados tapavam as janelas, corridos para impedir a entrada do ar nocturno, receado com boas razões na insalubre cidade de Herodes, tanto pelos romanos como pelos galileus. Uma otomana larga, almofadada, quase enchia o quarto e, através da porta aberta de um grande armário, Maria viu filas dos ricos uniformes cor de púrpura e brancos, que usavam os oficiais abastados do exército romano.

- Isto é o teu quarto? exclamou, subitamente alarmada.

- Sim, mas não precisas de ter medo, tranquilizou-a ele. - Repara, a tua ceia já aqui está. - Tirou uma vela acesa de um suporte na parede e deu a volta ao quarto acendendo outras velas, até o quarto estar todo iluminado. - Pronto, disse, sorrindo. - Isto deve tranquilizar-te quanto às minhas intenções.

Maria levantou a tampa de prata de um dos pratos colocados sobre uma mesa baixa e aspirou o seu delicado aroma. - Cheira bem, confessou relutantemente.

- Vamos, come, insistiu Gaius Flaccus. - Se me tivesse esforçado tanto como tu esta noite, estaria morto de fome.

Maria resolveu não hesitar mais. Havia ali de tudo o que uma rapariga gosta, incluindo muitas iguarias de que ela ouvira já falar, mas que nunca tinha provado. Num dos pratos havia o antecena ou gustus, tiras de peixe salgado e fumado, tenros rabanetes ou minúsculas folhas centrais de suculentas alfaces, e outros acepipes para acentuar o apetite. Enquanto ela comia, Gaius Flaccus despejou numa esguia taça de cristal uma mistura de vinho suave e mel chamada mulsum.

Seguia-se uma grande travessa que continha a cena, a parte mais importante da refeição. Macias fatias de carne assada, com especiarias, guarnecidas com os ricos e saboroso vegetais que cresciam na fértil planície de Genesaré. Maria recusou o vinho da segunda garrafa, pois já sentia a cabeça a andar à roda do mulsum. Mas não pôde recusar o folhado de nozes que constituía a última parte da refeição, a mensa secunda, como os romanos lhe chamavam.

Enquanto comia, Gaius Flaccus sentou-se numa almofada aos seus pés, levantando as tampas dos pratos à medida que ela os ia provando, e afastando-os depois de ela acabar. Finalmente, quando já não podia comer mais, Maria limpou os lábios e os dedos a um guardanapo do linho mais fino que jamais vira, e respirou fundo, de pura satisfação. Talvez fosse o vinho ou o capitoso efeito da admiração dele que lhe punham a cabeça a andar à roda. Não lhe ocorreu que a causa pudesse ser outra, e mais perigosa.

- Gostaste do teu jantar? perguntou Gaíus Flaccus.

- Oh, sim. Foi maravilhoso.

- eu ofendi-te de alguma maneira?

Sorriu. - Claro que não. Mas agora tenho que ir. Deme-tríus deve estar preocupado comigo.

Pegou-lhe nas mãos para a ajudar a pôr-se de pé. Ela ficou muito perto dele, mais perto, sabia bem, do que deveria ficar. Mas uma sensação de exaltação, de aventura, impedia-a de se afastar. Quando ele lhe sorriu, o seu peito largo encostou-se ao corpo dela, que sentiu a carne macia ceder à pressão. Pareceu-lhe então que a respiração lhe parava na garganta, e sentiu um impulso quase incontrolável de se apertar contra ele. - Eu ... eu tenho que ir-me embora, gaguejou, mas não conseguia afastar-se.

- Não mereço ao menos um beijo de recompensa? Continuava a apertar a mão dela. - Afinal fui eu quem te ajudou a dançar para o Procurador. Tanto Pontius como Herodes ficaram encantados contigo, e o seu favor pode significar muito.

Ela sempre soubera, no fundo, que Gaius Flaccus persuadira Pilatus a chamá-la para dançar naquela noite. Além disso, a bolsa que ele lhe trouxera, mais a que tinha atirado a Hadja, constituíam mais dinheiro do que todo o que existira em casa de Demetrius durante muitos anos. E, sendo generosa por natureza, Maria não podia deixar de sentir um calor de apreço por aquele belo homem que tornara tal coisa possível. No fundo, disse a si própria, para acalmar o seu coração agitado, não podia haver mal em dar-lhe um beijo quando - e era suficientemente honesta para o confessar a si mesma - ela própria desejava beijá-lo.

Gaius Flaccus notou que ela estava tentada a ceder e puxou-a suavemente para si. Mas, quando ela lhe estendeu a face macia, ele exigiu-lhe rudemente a boca e os seus braços apertaram-na com força. Maria tinha visto o desejo nos olhos dos homens enquanto dançava, mas nunca se tinha aproximado tanto dele. Alarmada pelo choque da boca de Gaius Flaccus contra a sua, das mãos dele sobre o seu corpo, por cima da seda fina da túnica, e, sobretudo pela repentina resposta do seu próprio corpo à atracção puramente animal do abraço do romano, ficou paralisada, por momentos.

Fira uma sensação estranhamente nova, aquele palpitar do sangue nas têmporas e na garganta, aquele aperto no peito que era apenas parcialmente consequência do braço poderoso que a apertava com firmeza, aquele súbito turbilhão dos seus sentimentos que não resultava apenas dos efeitos do vinho. sem se aperceber do que estava a fazer, os seus braços envolveram o pescoço dele e apertaram-no, enquanto a sua boca se tornava suave e macia por baixo da dele, sob o ímpeto caloroso que latejava dentro dela.

Gaius Flaccus planeara tudo com subtileza, mas agora a vaga de desejo que a momentânea cedência dela desencadeara varria todas as suas restrições. A própria Maria, lutando contra o desejo forte de ceder e sabendo que não devia fazê-lo, não compreendeu bem, a princípio, o que se estava a passar. Depois, toda a reacção que momentaneamente resultara do ardor dele foi varrida por uma vaga de repulsa e de medo.

Arrancou-se, à força, às caricias exigentes da boca dele e libertou-se por instantes do seu abraço, mas o homem que agora a agarrava já nãu era o mesmo que tão galantemente a servira enquanto comia. O rosto dele, belo momentos antes, estava inchado e distorcido pelo desejo e os seus olhos enlouquecidos estavam raiados de sangue, como que subitamente invadidos pela demência.

Enquanto lutava, numa súbita vaga de terror, para se libertar dele, Maria começou a gritar, mas os pesados cortinados do quarto abafavam o som. As suas forças esgotavam-se rapidamente, e compreendeu, com súbito terror, porque se tinha sentido um pouco entontecida. Os efeitos do vinho de mandrágora que tinha bebido antes de sair de casa tinham passado. Invadia-a agora a sensação que costumava preceder os seus desmaios.

Maria apenas conseguiu resistir debilmente quando sentiu Gaius Flaccus erguê-la nos braços, porque já estava dominada pela estranha paralisia que acompanhava os ataques. Não conseguia mover os membros e, quando tentou de novo gritar, não emitiu qualquer som, porque os seus sentidos tinham já começado a perder o contacto com a realidade. Misericordiosamente, Maria de Magdala perdeu a consciência.

 

José estava fora quando o nomendator de Pontius Pilatus foi a sua casa pedir-lhe que fosse ver Claudia Procula. Era já tarde-quando a mãe o encontrou em casa de Eleazar e lhe deu a mensagem, e a noite caía na altura em que ele prendeu a mula à árvore que ficava defronte da villa do Procurador. Enquanto retirava o nartik que continha os seus instrumentos, os remédios e as sanguessugas das costas da mula, reparou noutra mula presa a um carro, ali perto, mas não lhe prestou grande atenção, porque estava preocupado, com receio que o procurador se zangasse pela lentidão com que o seu fornecedor de sanguessugas favorito respondera à sua convocação.

O quarto aonde conduziam José era pequeno e requintado, tal como a sua dona. A mulher de Pilatus assemelhava-se a uma das delicadas figurinhas dos países para lá do mar oriental que por vezes se viam nos mercados de Tiberíades. Cada um dos traços das suas feições encantadoras revelava a sua graça pois tinha em si o sangue da linha Julio-Claudiana de imperadores romanos. Mas havia também um calor e uma compreensão nos seus olhos que nem sempre tinham caracterizado aquela linha frequentemente odiada. Quando José viu que ela não estava zangada pelo seu atraso, soltou um suspiro de alívio.

- Estava a tratar dos doentes e só há uma hora recebi a mensagem do Procurador, explicou ele.

Claudia Procula sorriu. - Eu é que devia pedir-te desculpa por te fazer vir a Tiberíades depois do anoitecer. Sei o que sentem os judeus devotos em relação à cidade.

- O chazan da minha sinagoga talvez não compreendesse, confessou José. - Mas estou certo que o bem-estar dos doentes é mais importante do que o exacto cumprimento da lei.

Procula observou-o atentamente. Não era vulgar que um judeu permitisse que alguma coisa se metesse entre ele e as suas preciosas leis. Aquele jovem de maneiras graves estava certamente muito acima da média dos judeus com quem ela costumava contactar, concluiu. A linha pura da sua raça estava bem visível no recorte nítido das suas feições.

- O mal está aqui, no meu braço esquerdo. - Ergueu uma manga transparente e mostrou-lhe um forte inchaço na parte superior do braço. José reconheceu logo a natureza do mal, porque não era invulgar encontrá-lo. A picadela de um insecto, uma pequena borbulha, poucos dias depois um inchaço doloroso e uma febre que durava alguns dias, a menos que houvesse rutura da pele esticada e avermelhada e expulsão do veneno que provocara uma violenta reacção da carne.

- Podes fazer alguma coisa para aliviar a dor? perguntou Procula hesitante.

José passou os dedos suavemente por cima do inchaço. Tal como suspeitara ao olhar para ele, a pele estava flutuante, revelando a supuração venenosa por baixo dela. - Hipócra-tes disse um dia: "Aquelas doenças que os remédios não curam, o ferro (a faca) as curará", disse-lhe.

- A faca! disse ela alarmada. - Mas fica uma cicatriz.

- Não tão grande como se o inchaço se romper e drenar por si próprio. E cura-se muito mais depressa se eu fizer uma incisão.

- Fá-la, então, apressou-o ela. - E rapidamente. Há duas noites que não durmo.

- Dormirás esta noite, prometeu-lhe José, abrindo a caixa dos instrumentos.

Experimentando o bisturi no polegar, José concluiu que ele se conservava afiado como só o fino aço de Damasco conseguia, porque o afiava todas as manhãs antes de sair de casa. Do nartik retirou também um pedaço de lã lavada e estendeu uma toalha limpa por baixo do braço inflamado. Depois fez sinal a Procula de que estava pronto. Ela cerrou os dentes firmemente sobre o macio lábio vermelho e ele mergulhou a faca rapidamente na pele vermelha e brilhante. O grito dela resultou mais de ver a erupção de matérias purulentas e manchadas de sangue que saiu do abcesso, do que da dor propriamente, porque a pele esticada tinha pouca sensibilidade. Antes de José retirar o escalpelo, abriu bem a pele por cima do inchaço, deixando-a aberta para que não fechasse de novo antes de toda a matéria venenosa ter sido extraída.

- Custou assim tanto? perguntou, enquanto ligava o pedaço de lã sobre a ferida, com mãos hábeis.

- Oh, não. Nunca pensei poder sentir alívio tão rapidamente.

- Se mandares a tua criada trazer um pouco de vinho, sugeriu ele, misturarei nele uma poção para te fazer dormir. Podes estar certa de passar uma noite tranquila.

Claudia Procula mandou viro vinho. - traz uma travessa com comida para o médico, Letha, acrescentou. - Estou certa que correste para Tiberíades sem comer.

José confessou que assim fora, e, enquanto esperava que a poção fizesse efeito, dedicou-se à excelente comida. Em resposta às simpáticas perguntas de Claudia Procula, encontrou-se a falar-lhe das suas ambições de estudar medicina em Alexandria e regressar à Judeia para trazer um esclarecido conhecimento de medicina ao seu povo.

- Recordo-me de quando tinha a tua idade, disse ela com um suspiro. - Os meus sonhos pareciam fáceis de realizar nessa altura.

- Mas à mulher do Procurador nada falta, protestou José. - Não é segredo que todos os que a conhecem a amam.

- Não podes saber o que é sentir saudades de Roma e das coisas que deseja uma mulher que lá passou a maior parte da vida, José. Além disso, o clima de Cesareia dificulta-me a respiração. Tiberíades é melhor para mim, mas mesmo aqui não me livro do mal.

O interesse de José despertou imediatamente. - Sentes o mesmo nas montanhas?

- Não tanto. Certa vez fizemos uma viagem ao deserto e senti-me totalmente livre dele, mas o Procurador da Ju-deía não pode viver no deserto. Há alturas em que mal consigo respirar.

José tinha visto muitos casos daqueles. Algumas pessoas queimavam ervas aromáticas e inalavam o fumo; outras lançavam óleos preciosos e fragrantes, com mirra e nardo, para dentro de água a ferver e aspiravam o vapor. Não havia cura conhecida para aquela doença por vezes fatal, e, contudo, sucedia às vezes as pessoas melhorarem sem qualquer motivo.

A criada de Procula foi buscar uma bolsa para José, e, enquanto arrumava de novo o nartik, ouviu o choro de uma criança no quarto ao lado. Já tinha ouvido falar do filho de Pontius Pilatus, que o povo nunca via, e corriam boatos de que era um ser deformado, mas nunca tinha tido provas reais de que esses boatos fossem verdadeiros. Agora pressentia que havia ali qualquer mistério efectivamente, a confirmar o boato, porque viu medo nos olhos de Procula. Antes que ela falasse, a porta abriu-se e Pontius Pilatus entrou. Não viu José antes de perguntar: - O médico das sanguessugas já veio, querida? - Depois reparou na ligadura. Oh, vejo que sim. Sentes-te melhor?

Ela esboçou um sorriso. - Muito melhor. José ainda cá está; ia sair agora mesmo.

Pilatus voltou-se e viu o jovem médico. - Levaste muito tempo a cá chegar, disse asperamente.

- Estava a tratar doentes, explicou José. - Logo que recebi a tua mensagem, vim imediatamente.

Voltou-se a ouvir o choro da criança na sala ao lado e o Procurador pareceu ficar paralisado. Observando o seu rosto, José viu uma máscara de derrota, quase desespero aparecer sobre ele e compreendeu que havia ali qualquer tragédia, talvez algo que lhe poderia dar a chave do comportamento daquele homem estranho e caprichoso que governava a Judeia em nome de Roma. O olhar de Pilatus caiu sobre José. - Já morreram homens por saberem menos do que aquilo que acabas de saber, disse lentamente.

- Não, Pontius, exclamou Procula. - José é um bom homem...

- Diz-me, interrompeu Pilatus bruscamente. Que dizem em Jerusalém e na Galileia de Pontius Pilatus? Conta-se que tem um filho que é um monstro?

- Não dou ouvidos a boatos, respondeu José tranquilamente. - A vida vem-nos do Todo Poderoso; não ponho em questão o modo como Ele no-la dá.

Pilatus olhou-o durante um longo momento. - Talvez tenhas razão, disse pesadamente. - Vem ver por ti próprio.

A sala do lado era um quarto infantil, e, a um canto, dormia um rapazinho, num leito com grades baixas. Parecia ter cerca de três anos de idade e o rosto era belo, uma miniatura da sua mãe, com as suas feições delicadas e cabelo louro. A mão de Pilatus era suave ao afastar a colcha leve que cobria o corpo da criança, mas José viu imediatamente o motivo por que o Procurador se sentia tão desgostoso em relação ao filho. O pé direito do menino estava deformado, com os dedos voltados para baixo, um caso típico de pé boto. - Tens certa reputação como endireitador de ossos, disse Pilatus. - Podes endireitar-lhe o pé?

Relutantemente, José abanou a cabeça. - Já me disseram, no entanto, que um pé desse género pode ser equipado com uma sola grossa, sugeriu, para que as crianças assim possam aprender a andar.

- O filho de um soldado, explodiu Pilatus. - O meu pequeno Pila! A coxear como um vulgar mendigo. - Abria e apertava os punhos. - O teu Deus será capaz de curar uma coisa destas? - Agarrou José pela túnica e abanou-o. - Tu és judeu. Diz-me, és capaz?

- O Senhor é misericordioso e cheio de compaixão... tão grande como a distância entre o céu e a terra é a Sua misericórdia para com aqueles que o O temem", gaguejou José.

Pilatus deixou cair as mãos. Regressando para junto do berço, voltou a colocar a colcha sobre a criança, escondendo o pé tão lamentavelmente deformado. José viu que havia ternura nos seus gestos e que ele amava a bela criança apesar do seu terrível desapontamento. - Não receio os deuses, disse lentamente o Procurador. - Porque não há deuses para temer. A verdade é o único Deus do homem. Mas o que é a verdade? O teu Jeová tem a resposta, José?

- Diz-se do Todo Poderoso, respondeu José: - "Ele é a Rocha, a Sua obra é perfeita: pois todos os Seus caminhos são um julgamento: um Deus de verdade, sem iniquidade, justo e perfeito Ele é".

Pilatus encolheu os ombros. - A verdade está dentro da alma do homem, não nos deuses que ele adora. Sei que os judeus afirmam que isto me sucedeu por eu ter crucificado alguns deles que não cumpriram as leis de Roma. - A sua voz ergueu-se, irada. - Mas eu desprezo-os, tal como desprezo os vossos sacerdotes que conspiram para me afastar da Judeia e fazer Antipas rei no meu lugar. Eu lhes mostrarei quem governa a Judeia.

- Meu senhor, disse Procula suavemente. - José tem ainda um longo caminho a percorrer. Deu-me uma poção para dormir.

- Claro, minha querida, disse o Procurador rapidamente. - Vamos deixar-te. Pegou na bolsa que a criada tinha trazido e entregou-a a José. - Mas não te esqueças de não contar a ninguém aquilo que viste esta noite, médico das sanguessugas. Sou generoso para aqueles que me servem bem, mas quem me trair, morre.

- "Seja o que for que eu veja ou oiça da vida dos homens que não deva ser divulgado no exterior, não o divulgarei" disse José lentamente, "pois considero que tudo deve ser conservado em segredo".

- O voto de Hipócrates, disse Pilatus, acenando com a cabeça. - Não deixes de o cumprir. Só terás a ganhar com isso.

O coração de José estava leve quando desatou a mula da árvore no exterior da villa. Tinha sido realmente bem pago pelo seu trabalho daquela noite e, o que era mais importante, Pilatus prometera-lhe o seu favor em troca de manter segredo sobre aquela criança chamada Pila e o seu pé deformado. A história da permanência de Pontius Pilatus como Procurador da Judeia demonstrava que o seu favor podia ser importante, tal como a sua ira podia significar a morte súbita e a agonia da crucificação, o método favorito de execução dos romanos. Mas José não tinha qualquer intenção de irritar o caprichoso Procurador. Com pacientes tão generosos como Pilatus e sua mulher, poderia conseguir dinheiro suficiente para ir para Alexandria muito mais cedo do que previra.

Ao ver a outra mula e o carro ainda atados a uma árvore, enquanto desatava o seu animal, voltou a pensar quem poderia ter ído à villa do Procurador em tal transporte àquela hora, mas não se preocupou mais com o assunto.

Depois, enquanto percorria, montado na mula, o pomar que rodeava a villa, chegou-lhe aos ouvidos um som estranho. Era um ruído curioso, como se um homem gemesse com dores. Quando parou para escutar, ouviu-o de novo, e, aparentemente, vinha dos arbustos que ladeavam a estrada.

Desmontando, José começou a procurar até encontrar um ramo partido até onde os seus braços alcançavam e, agarrando-o com ambas as mãos, aproximou-se do local de onde vinham os gemidos.

Sabia que, por vezes, os ladrões esperavam nas estradas pelo viandante mais atrasado, e que um dos seus estratagemas favoritos era fingir que estavam feridos, enganando o caminhante piedoso, que assim ficava ao alcance de uma longa faca ou de uma espada. Teria sido mais sensato não | parar, dado o valor da bolsa que transportava, mas José nunca passava por quem necessitasse de auxílio sem investigar do que se tratava.

Descobriu então uma forma branca caída num fosso. Movia-se e uma voz de homem implorou: - Em nome de Ahura-Mazda1, ajuda-me senão morro.

A voz parecia-lhe conhecida e, quando se aproximou, José reconheceu o rosto trigueiro com o seu perfil de falcão, a harba grisalha e as roupas brancas todas manchadas de lama. Era Hadja, o chefe dos músicos que tocavam para Maria de Magdala. O nabateu parecia semi-inconsciente.

Rapidamente, José ajoelhou e passou os dedos sobre o crâneo de Hadja, notando com alívio que não havia qualquer depressão no osso. Um golpe na testa do ferido revelava que tinha sido atingido com uma moca, uma ferida grave se o osso tivesse atingido o cérebro. O sangue ainda não secara, embora estivesse viscoso, pelo que o ferimento não podia ter sido feito havia muito tempo. A pulsação, segundo José verificou, era lenta e forte, pelo que concluiu que o ferimento não era mortal.

José tirou do cinto um pequeno frasco de vinho que trazia sempre consigo para emergências destas. O nabateu engoliu automaticamente quando o frasco lhe tocou os lábios e depois bebeu-o mesmo, ao compreender o que lhe estava a ser oferecido. - Que te sucedeu, Hadja? perguntou José.

- És o aplicador das sanguessugas, José da Galileia?

- Sim.

- Louvado seja Ahura-Mazda! Aquela que amas está prisioneira na villa.

- Maria? exclamou José. - Mas como?

Hadja contou-lhe do convite para ir à villa, da dança de Maria perante o Procurador e os seus convidados, e do seu grande êxito. - Depois, prosseguiu, o tribuno disse-nos que a Chama Viva jantava lá e que nós devíamos esperar, mas serviram-nos comida e os guardas levaram-nos para fora do palácio.

 

1 Ahura-Mazíhi, Orniazii nu Ornuizil, deus supremo dos persas, na religião mazdeísta. (N do T.)

 

Gaius Flaccus! Aquilo só podia ser obra dele. As histórias que ouvira contar sobre os hábitos libertinos do sobrinho do Procurador acorriam ao cérebro de José. - Porque a deixaste? perguntou irritado.

- Ao lado de cada um de nós vinham dois soldados com as espadas desembainhadas. Tentei escapar-lhes, mas um deles abateu-me com o punho da espada.

Não podia culpar o nabateu. Só por rara sorte o soldado tinha usado o punho da espada em vez da lâmina, deixando Hadja vivo. José forçou-se a acalmar, também, a raiva ardente que crescia dentro dele contra Gaius Flaccus, porque precisava de pensar com clareza. Não tinha passado muito tempo desde que Hadja tinha sido abatido; talvez ainda houvesse tempo de salvar Maria, se conseguisse entrar no palácio. Mas, visto que os altos muros impediam qualquer entrada que não fosse a da estrada, só havia uma maneira de lá penetrar, através do portão por que acabara de sair. O guarda devia lembrar-se de que ele tinha acabado de sair e decerto o deixaria entrar.

- Vou lá buscá-la, disse a Hadja.

- Eles matam-te. - O músico conseguiu pôr-se de pé com dificuldade, mas cambaleou e teve que se agarrar a uma pequena árvore para não cair. Apenas conseguia praguejar fluentemente, desejando que a ira do supremo deus do sol Ahura caísse sobre todos os romanos e especialmente sobre o tribuno Gaius Flaccus. - Eu não passo de um cego que precisa de ser conduzido, lamentou-se. - Toma esta faca, José. Talvez consigas enfiá-la entre as costelas de um romano.

José pegou na longa arma, cheio de gratidão, e meteu-a debaixo da túnica. Quando se aproximou, o guarda fê-lo parar com a sua espada. - Que queres, médico? perguntou. - Não foste bem pago? Lembro-me de ver uma bolsa suspensa do teu cinto.

- Deixei alguns remédios nos aposentos de Procula, disse José, que acrescentou a estas palavras uma prece silenciosa para que o Todo Poderoso lhe perdoasse a mentira. - A criada dela conhece-me, pelo que não será preciso incomodar mais ninguém. Os remédios são muito valiosos.

O guarda encolheu os ombros. - Se valem assim tanto, com certeza não te importas de dar uma das moedas de oiro dessa pesada bolsa que ela te ofereceu a alguém menos afortunado.

José ter-lhe-ia dado, de bom grado, a bolsa inteira, se necessário, para conseguir acesso à casa, sem ser observado. - Vê se te despachas, resmungou o guarda, embolsando o suborno. - Sou castigado a chicote se sabem que te deixei entrar outra vez.

Dois corredores partiam do átrio que, naquele momento, estava vazio Um sabia José que levava aos aposentos de Procula e Pilatus, pois tinha passado por ele, e, por isso, escolheu o outro. Ouviu música, e, entreabrindo uma porta, pôde observar o triclínio. O curso da orgia nocturna tivera o seu inevitável desfecho. Pontius Pilatus e um gordo romano declamavam animadamente, com as coroas de esguelha. Nas outras otomanas, Herodes Antipas e o outro convidado estavam abraçados a um par de escravas. Não via Maria em parte alguma, mas uma das otomanas encontrava-se vazia e Gaius Flaccus estava ausente, o que confirmou os seus piores receios.

Fechando a porta que dava para o triclínio, José correu pelo corredor até chegar a uma porta fechada, que abriu. A sala estava vazia, mas viu pendurado numa cadeira um vestido que reconheceu ser de Maria. Colocando o vestido num braço, regressou ao corredor, mas, ao ouvir abrir-se outra porta, escondeu-se mesmo a tempo.

Sob o olhar de José, Gaius Flaccus emergiu de um dos quartos, atravessou o átrio a cambalear e desapareceu. Rapidamente, José abriu a porta da qual o tribuno sairá e entrou. Um rápido olhar revelou-lhe que estava no quarto de dormir do romano, porque a sua espada e as suas insígnias estavam sobre uma cadeira. Depois olhou para o leito e recuou horrorizado porque um simples olhar lhe revelara o que ali se tinha passado. Maria estava ainda inconsciente, mas a palidez marmórea da sua pele, os sinais de luta no quarto, os lamentáveis rasgões da sua roupa caída no chão, para onde Gaius Flaccus a atirara, apenas podiam significar que ela fora violentada, apesar dos seus esforços para se defender.

Olhando para o outro lado, José cobriu o corpo de Maria com o vestido que trazia no braço. Um exame rápido demonstrou-lhe que ela não estava gravemente ferida, embora já se notassem grandes nódoas negras sob a sua pele sensível. Sabia que tinha que actuar rapidamente porque o tribuno podia voltar de um momento para o outro, mas primeiro arrancou um pesado cortinado de uma das janelas e envolveu nele o corpo de Maria para a proteger do frio da noite, se tivessem a sorte de conseguir escapar da villa. Entretanto, os pensamentos percorriam-lhe o cérebro a uma velocidade vertiginosa, enquanto tratava de decidir o que havia de fazer.

Passar por cima dos muros estava fora de questão - eram demasiado elevados - e não podia sair por onde entrara com uma mulher inconsciente nos braços. Só lhe restava uma saída, portanto, o lago. Não tinha maneira de saber qual a profundidade da água na extremidade do muro, onde este penetrava no lago, mas tinha que tentar contorná-lo. E, se fosse profundo demais, teria que nadar, com a rapariga inconsciente nos braços.

Tomada a sua decisão, José levantou Maria do leito. Depois, transportando-a nos braços, dirigiu-se para o relvado verde, bem aparado, no exterior. Em seguida, avançou lentamente, encostado ao muro da villa, sob a protecção das sombras, até chegar à esquina. O caminho parecia livre agora e, caminhando rapidamente, atravessou o espaço aberto até atingir a protecção do muro de dez pés de altura que avançava até ao lago. Não ouvira grito algum que demonstrasse que tinha sido descoberto, por isso continuou a seguir o muro, sempre encostado a ele, até que os seus pés penetraram na água e sentiu o frio envolver-lhe os tornozelos.

A água estava gelada, alimentada pela forte corrente do Jordão, que provocava inundações durante os meses da Primavera, devido à fusão das neves do monte e das cordilheiras do norte. O frio da água ameaçava paralisá-lo, à medida que ia nela penetrando, sempre com o corpo encostado ao muro à sua esquerda, para não o perder, na escuridão, dado o caso de perder o pé e de precisar de algo a que se agarrar.

Tornava-se difícil caminhar dentro de água porque tinha que conservar Maria a uma altura suficiente para não ficar encharcada pela água gelada, acidente que poderia trazer complicações indesejáveis a um corpo em choque e exausto, tal como o dela se encontrava. A água chegava-lhe à cintura, depois às axilas. Uns passos mais e teria que nadar, De súbito, deixou de sentir o muro à sua esquerda e, com um arrepio de satisfação, compreendeu que chegara ao fim.

Voltando rapidamente para a esquerda e dando a volta ao extremo do muro, José sentiu o fundo começar a subir, à medida que avançava pela praia dentro. Mais umas jardas e conseguiu sair da água, cambaleando pela areia, até chegar ao caminho onde tinha deixado Hadja, com Maria ainda inconsciente nos braços.

Enquanto José estivera longe, o nabateu recuperara as forças suficientes para trazer a mula e o carro em que tinham vindo de Magdala, para o pé da mula de José. Maria não mostrava ainda sinais de consciência quando a transportaram pela praia acima e a deitaram no fundo áspero do carro de madeira, mas, embora ambos cambaleassem devido à exaustão, não perderam tempo a afastar-se da villa, sabendo que, a qualquer momento, poderia ser dado o alarme.

Enquanto avançavam pelo atalho, José apenas explicou a Hadja que Maria sofrera um dos seus ataques e a encontrara num dos quartos do palácio. Cerca de meia milha depois da villa, o caminho dividia-se. A estrada da esquerda subia as colinas, ultrapassando o grande aqueduto que levava a água a Tiberíades e dirigia-se a Magdala, que se debruçava sobre o lago a uma altura considerável. A estrada da direita, contudo, seguia a costa até Cafarnaum e daí para Bethsaida e as cidades do norte que rodeavam o lago. Iam tomar a estrada da esquerda que levava a Magdala, quando Hadja disse, de súbito: - Espera, José! Oiço qualquer coisa atrás de nós.

José parou imediatamente. Por momentos nada ouviu, excepto o bater das ondas na costa próxima e o vento nas árvores. Depois, detectou o som débil que chegara primeiro aos ouvidos aguçados do homem do deserto, o agudo tinir de metal sobre metal. Um tal som poderia ter muitas causas, mas só uma era provável naquela noite, o tinir de uma espada sobre um escudo.

Apressadamente, tiraram o carro e os animais da estrada, colocando-os fora de visão, entre as árvores. O terreno era irregular, mas crescia um grupo de árvores logo a seguir à linha da costa de modo que não tiveram de ir longe para ficarem totalmente escondidos. Conservaram-se dobrados, cada um deles com uma mão tranquilizadora na brida da sua mula, para que os animais não se movessem e revelassem a sua presença. Quando tinham acabado de esconder as mulas e o carro, já era claramente audível o tilintar das armaduras e o passo rítmico dos pés calçados de couro. Em breve surgia um grupo de soldados com archotes, que, sem parar no cruzamento, se dirigiu para a esquerda, subindo a estrada que levava a Magdala.

Conservaram-se os dois no meio da escuridão, junto do carro no qual jazia o corpo de Maria, até os romanos desaparecerem de vista e deixarem de os ouvir, nas alturas, e só então trouxeram de novo o carro para a estrada. José enxugou o rosto e sentiu-se encharcado em suor frio. Se os ouvidos aguçados de Hadja não tivessem detectado os soldados a tempo, teriam tomado a estrada de Magdala. Nada os teria podido salvar da captura porque a estrada era estreita e não havia meio de esconderem os animais e o carro.

- Para onde vamos agora? Hadja respirou fundo. - Não podemos segui-los.

- Devem ter ido a casa de Demetrius em Magdala, concordou José. Depois assaltou-o uma ideia: - Sabes onde fica a casa de Simão em Cafarnaum?

- Sim. Já lá fui muitas vezes.

- Óptimo! Esconderemos Maria em casa de Simão até ser seguro para ela voltar a Magdala.

- O pescador é bom homem, concordou Hadja. - Ficará satisfeito por nos abrigar.

Com Hadja montado numa mula e José a guiar a que puxava o carro, meteram-se à estrada que ladeava a costa até Cafarnaum.

 

José moveu-se e sentou-se, esfregando os olhos. O sol brilhava já sobre o soalho da casa de Simão, mas Maria estava ainda estendida no leito onde ele a deitara, quando tinha chegado, por volta da meia noite. Ele tínha passado a noite estendido sobre um cobertor no chão, donde poderia ouvi-la, se ela se movesse e saísse do seu torpor.

Simão e sua mulher tinham aceite, sem fazer perguntas, a história de José de que Maria tinha ido dançar para Pontius Pilatus e tivera um dos seus ataques habituais, tanto mais que tinha tido a precaução de enfiar o vestido grosseiro em Maria, enquanto Hadja seguia mais à frente montado na. mula. O cortinado do quarto de Gaius Flaccus tinha sido atirado para uns arbustos ao lado da estrada. José verificou, ao tratá-la, que a ferida de Hadja era superficial, e enviou-o, com a mula e o carro, para Magdala, durante a noite, para tranquilizar Demetrius quanto a Maria.

O sol brilhava fortemente sobre a areia lá fora. O suave bater da água contra as pranchas do barco de pesca de Simão, arrastado para terra, com as suas velas brilhantes enroladas ao mastro, o chilrear das gaivotas em volta do armazém de peixe de Zebedeu, ali perto, e as miríades de pequenos sons íntimos que acompanham o despertar de uma casa, faziam com que a noite passada lhe parecesse apenas um pesadelo. Mas quando José olhou para a rapariga que dormia no leito e voltou a ver as nódoas negras no seu pescoço e nos seus braços, resultantes da luta com Gaius Flaccus, compreendeu, com um súbito despertar de apreensão, que a tragédia dela era bem real. O cabelo de Maria caía, emaranhado, sobre o seu rosto e os ombros, e voltara-lhe um pouco de cor às faces, mas o seu ar desamparado fez perpassar através dele uma onda de terna preocupação. Desejou tomá-la nos seus braços e confortá-la, para que acordasse num porto seguro que seria sempre seu, se o desejasse. Mas ela não quereria ouvir aquelas palavras, mesmo que ele conseguisse dizer-lhas, pelo que se limitou a inclinar-se sobre ela e a dar-lhe um beijo na testa.

Quando ergueu a cabeça, viu que os olhos dela estavam abertos e o fixavam com espanto. - Esta é a casa de Simão, murmurou. - Como vim aqui parar?

José fez-lhe um breve relato de como encontrara Hadja perto da villa e como a tinha retirado do quarto de Gaius Flaccus.

- Então sabes o que sucedeu? A sua voz era um débil murmúrio.

- Sim. Mas mais ninguém sabe.

- Porque não me deixaste lá para morrer? disse ela, num tom lamentoso. - Havia uma adaga no armário. - De súbito, começou a chorar. Grandes lágrimas lhe brotavam dos olhos e corriam pelas suas faces, mas o seu rosto continuava parado numa máscara de sofrimento e vergonha.

José afastou o olhar, pois, de certo modo, parecia-lhe indecente vê-la chorar por uma rapariga que tinha desaparecido na noite anterior e nunca mais voltaria. Sentia que nada do que pudesse dizer diminuiria agora a sua agonia. Não servia de nada dizer-lhe que outras tinham sobrevivido a igual profanação e tinham continuado a viver. Não podia avaliar, por muito bondoso e compreensivo que fosse, o que aquela terrível experiência tinha significado para ela. Apenas uma mulher que tivesse passado por aquilo poderia compreender. Mas podia ver que, durante aquela noite, a rapariga alegre e descuidada que dançava e cantava pelo prazer de o fazer se transformara numa mulher.

A mudança não residia apenas no facto puramente físico do desfloramento; ia mais fundo do que a carne, penetrava na alma, era uma ferida que nunca sararia totalmente. Não que ela estivesse mudada exteriormente, com excepção das equimoses do seu corpo e das marcas de sofrimento do seu rosto. Conservava a mesma beleza pálida, o mesmo brilho forte dos cabelos, o mesmo corpo encantador que a profanação que sofrera não alterara exteriormente. e, contudo, a rapariga que ali estava a chorar era uma pessoa inteiramente diferente da alegre e feliz Maria de Magdala que gostava de visitar Simão e sua mulher, na casa ao pé do lago, a "Chama Viva", como lhe chamava Hadja, aquela que dançava nas ruas de Magdala.

finalmente as lágrimas cessaram de brotar. - Ninguém sabe do que sucedeu na noite passada além de nós, Maria, disse José, tentando consolá-la. - Nada disse a Hadja, nem a Simão, nem à sua mulher. Tens que tentar esquecê-lo; a recordação só pode trazer-te sofrimento.

- Então deixa-a ficar, disse ela, com súbita raiva. - Deixa que o sofrimento me impeça de me esquecer que tenho de ser vingada.

- "A mim pertence a vingança e a recompensa", recordou-lhe ele. - São estas as palavras do Todo Poderoso.

- Onde estava Ele quando lhe gritei que viesse salvar-me? exclamou ela, furiosa. - Porque é que Ele não me respondeu então?

José não respondeu. A mulher de Eleazar e a maioria dos judeus devotos de Magdala teriam dito que Deus a abandonara para castigo dos seus pecados. Mas que havia de pecaminoso na vivacidade e na coragem, na impaciência da juventude perante o conservadorismo dos mais velhos, ou no desejo de se ser feliz e compartilhar a felicidade com os outros? Se aquilo era pecado, Deus era, de facto, um capataz injusto.

- Tu também achas que eu o mereci, tu, porque me disseste que não devia ir a Tiberíades, acusou Maria, atacando ou trem, como uma criança que sofre está desorientada, tentando instintivamente atenuar a dor e a culpa que sentia fazendo sofrer os outros.

- Ninguém de entre os que te amam poderia pensar ou dizer tal coisa, Maria, disse-lhe suavemente. - Está escrito: "O ódio gera a guerra, mas o amor cobre todos os pecados".

- Pára de me citar provérbios! exclamou ela, irada, voltando o rosto para o outro lado.-Porque não te vais embora e me deixas só?

- Pensei ir a Magdala esta manhã...

- Pois então vai. Deixa de me maçar.

- Queres mandar dizer alguma coisa a Demetrius?

- Diz-lhe que quero morrer. - A voz falhou-lhe então e as lágrimas recomeçaram a correr, mas o seu rosto conservava afivelada a máscara do sofrimento. - Diz-lhe que esqueça que tem uma filha, murmurou, e, voltando-se de súbito, enterrou a cara na almofada.

José foi ter com a mulher de Simãoe avisou-a de que devia tomar bem conta de Maria, sob o pretexto de que ela poderia sofrer outro ataque. Depois, com o coração cheio de apreensão pela jovem que amava, montou a sua mula e começou a subir a colina para Magdala. Aí soube que os soldados tinham visitado Demetrius durante a noite, em busca de Maria, mas tinham partido sem o incomodar, quando verificaram que ela não tinha ido para lá. Os restantes músicos tinham aparecido às primeiras horas da manhã, mas o gordo fabricante de liras tinha estado preocupado até Hadja chegar com a notícia de que Maria estava bem.

- Que sucedeu realmente na villa de Pilatus, José? perguntou Demetrius seriamente. - Tenho a certeza de que Hadja não conhece a história toda.

José não tinha outra alternativa além de lhe contar a verdade. Quando acabou, o rosto de Demetrius estava alterado pelo desgosto e auto-acusação. - A culpa é minha, disse, com um ar infeliz. - Devia tê-la proibido de ir.

- Estavas doente, de cama, recordou-lhe José. - E sabes como ela é; teria ido, de qualquer modo.

- Nenhum de nós teria conseguido impedi-la de ir, depois de decidir que tinha de ir à villa dançar para me arranjar dinheiro, concordou Demetrius. - Suponho que exagerei a minha própria importância no teatro de Alexandria, para a impressionar favoravelmente, só por gostar tanto dela. E depois, quando menos seguro me sentia de querer regressar, prosseguiu, mais Maria se convencia de que eu nunca poderia ser feliz noutro local. E, evidentemente, ela própria também tem grande vontade de ir. - Colocou a mão sobre o ombro de José. - Gostava que ela casasse contigo, José. És um bom rapaz e ela ama-te.

- Mas não o suficiente para desistir de ir para Alexandria.

- O suficiente, talvez - depois de a ter visto e de ter compreendido o que o teatro pode fazer sofrer. Mas até lá ... Como está ela agora, José?

- Parece outra pessoa, fria e endurecida. Creio que a única coisa que a fará ultrapassar tudo isto, é a sua determinação de ser vingada.

Demetrius suspirou. - Uma mulher nunca mais é a mesma depois de ter recebido um homem pela primeira vez, mesmo nas melhores circunstâncias. Que terrível experiência deve ter sido, para uma rapariga sensível como Maria. Talvez eu a possa ajudar a atravessar esta provação.

José abanou a cabeça. - Não creio que qualquer de nós a possa ajudar, Demetrius, por muito que a amemos. Deve ficar com Simão e a mulher até sabermos se Gaius Flaccus tenciona ou não procurá-la. Vou hoje à villa do Procurador para tratar do braço da sua esposa. Talvez consiga descobrir algo dos seus planos.

José aproximou-se da vila de Pontius Pilatus com certa inquietação, pois não sabia até que ponto era conhecida a parte que tomara nos acontecimentos da noite anterior. O nomendator, porém, tratou-o com deferência e conduziu-o aos aposentos da mulher de Pilatus. Claudia Procula estava muito bem disposta, porque as dores tinham desaparecido como que por magia. - Conta-me novidades da Galileía, José, pediu. - Há tanto tempo que estou fechada, por causa do braço, que perdi o contacto com toda a gente.

- Fala-se de uma bailarina que foi cruelmente tratada nesta casa, na noite passada, disse José, enquanto lhe aplicava nova ligadura.

- Que queres dizer?

- Foi convidada a dançar para os convidados do Procurador. Depois, os seus músicos foram afastados do palácio por soldados, enquanto a rapariga ficava retida contra sua vontade.

- Fizeram-lhe mal? A sua voz era um sussurro e a cor desaparecera das suas faces.

- A rapariga chegou aqui virgem. Mas já não o é.

- Foi o Procurador?... perguntou, anelante.

- Não. Mas foi aqui chamada em seu nome.

- Foi então Gaicus Flaccus?... Fle prometeu-nos que isso não voltaria a suceder, exclamou ela, e depois dominou-se, com esforço. - O sobrinho de meu marido é um excelente soldado e um favorito do Imperador. Mas, quando bebe vinho demais, por vezes transforma-se num... num animal, pelo menos no que se refere a rapariguinhas. O meu marido decerto pagará bem à rapariga e à família, José. Conhece-la?

- Tinha-lhe pedido que fosse minha mulher, disse ele simplesmente.

Claudia Procula teve um sobressalto. - José! É terrível! - Colocou uma mão suavemente sobre o braço dele. - Há alguma coisa que possamos fazer?

- Gaicus Flaccus mandou os soldados perseguirem-na, quando fugiu, na noite passada, explicou José, mas ela encontra-se num local seguro. Naturalmente, agora odeia todos os romanos.

Procula acenou afirmativamente. - Compreendo que ela nos odeie. Tudo isto te deve ter feito sofrer horrivelmente, José.

- Tento recordar os ensinamentos do Todo Poderoso, disse ele. - Mas é difícil não desejar a vingança.

- Não poderia culpar-te por quereres matá-lo, concordou ela. - Mas apenas perderias a tua própria vida. Roma nem sempre envia os seus melhores representantes para o estrangeiro, José, e coisas deste género só servem para nos tornar mais odiados, mas Pontius Pilatus nunca teria sancionado isto. É um bom homem, no fundo, embora... - Não terminou a frase, mas José sabia que ela se referia à fraqueza e à indecisão que tinham impedido o seu marido de ser um dos

grandes administradores coloniais de Roma.

- Uma coisa te posso garantir, prosseguiu Procula. - Gaius Flaccus não voltará a incomodar a rapariga. Parte dentro de dias para Roma; o Imperador chamou-o de novo para a sua casa real.

Era uma boa notícia, efectivamente, visto que Maria poderia voltar para Magdala e não teria que esconder-se do seu sedutor. José apressou-se a deixar a villa para levar a boa nova a Cafarnaum, mas, à saída, deparou-se-lhe Gaius Flaccus. O tribuno vestia o seu uniforme, pois acabava de dar instrução à guarda do palácio, da qual era comandante. José afastou-se, mas o romano chamou-o, peremptoriamente. - Ei, tu aí, sanguessuga. Quero falar contigo.

José parou e aguardou. Estava razoavelmente seguro de que Gaius Flaccus não tinha a menor ideia de que ele tivesse levado Maria, na noite anterior, pois o guarda não poderia traí-lo sem se trair a si próprio.

- Que sabes de Maria de Magdala? perguntou o tribuno. A rapariga que desmaiou quando estava a dançar na rua.

- Levei-a a casa de Demetrius naquele dia, porque ela me pediu que o fizesse.

- E desde então não a tens visto?

- Vejo-a frequentemente, confessou José.

- Então sabes onde posso encontrá-la? perguntou o romano ansiosamente.

- Já experimentaste a casa de Demetrius em Magdala?

- Evidentemente. - O tribuno fez um movimento de impaciência. - Não me quer dizer nada.

- Talvez por não estar seguro das tuas intenções quanto a ela.

- Estou louco por ela! exclamou Gaius Flaccus. - Perturba-me o sangue como o vinho.

- Então queres casar com ela?

- Casar! Achas que um romano de categoria pode casar com uma judia? Sabes bem que não, médico. É proibido pela vossa lei.

- A nossa lei proíbe uma judia de casar com um pagão, corrigiu-o José, com ar grave. - Porque assim a judia torna-se impura aos olhos do Todo Poderoso.

Num segundo Gaius Flaccus compreendeu que seria a judia que ficaria desonrada se casasse com um romano, não o romano pelo casamento com a judia. Corou, e José viu-o apertar os punhos, mas, nesse momento, Claudia Procula surgiu no pátio. Ao vê-los, parou para observar umas flores, e José compreendeu que ela notara a raiva de Gaius Flaccus e estava a protegê-lo com a sua presença, - Continuas a dizer que nada sabes da rapariga? perguntou o tribuno, em voz mais baixa.

- Sei que ela é filha adoptiva de Demetrius, que é um cidadão romano, disse José deliberadamente. - Ele teria direito a exigir protecção para ela, até ao próprio Imperador.

Gaius Flaccus deteve-se perante a ameaça. Um acto de libertinagem com uma filha do povo conquistado poderia não trazer qualquer castigo a um oficial romano. Mas uma cidadã de Roma tinha o direito de acusar qualquer pessoa abaixo do Imperador e de receber reparação se a causa fosse justa. E Tiberius rinha fama de ser muito justiceiro em casos desse género. - Tu és um cidadão de Roma, sanguessuga? ripostou, com os lábios brancos de fúria.

- Não, não sou, confessou José.

- Então vê se falas como deve ser aos que te são superiores. Talvez na próxima oportunidade não tenhas uma mulher a proteger-te. - Voltando-lhe as costas, Gaius Flaccus entrou em casa.

 

Maria regressou a sua casa em Magdala poucos dias depois de Gaius Flaccus ter partido para Roma, mas pouca mudança houve na sua disposição. Conservava-se no seu quarto durante a maior parte do dia ou sentava-se no jardim, agarrada à sua amada lira, mas nunca tocava nas cordas. Nada do que Demetrius ou José pudessem fazer parecia animá-la. A máscara afivelada no seu rosto traía o seu sofrimento e a sua vergonha, mas nada dizia que revelasse o que sentia. Só falava quando se lhe dirigiam e fazia-o numa voz monótona, tão vazia de sentimentos como de tom.

E assim passaram as semanas e se aproximou a altura em que o preceptor de José, Alexandre Lysímaco, o deveria levar perante os juizes e doutores da lei, em Jerusalém, para ser examinado quanto à sua competência para receber o título de rophe uman e adquirir o direito de exercer medicina.

Poucos dias antes de José partir, Maria surgiu em sua casa ao princípio da manhã. Ele estava só porque a mãe tinha ido ao mercado. Os olhos de Maria tinham um brilho estranho e parecia excitada com qualquer coisa. A sua primeira reacção foi pensar que ela tivesse febre, mas, quando a interrogou ela negou sentir-se mal. - Vim buscar mais vinho de mandrágo-ra, explicou. - A minha garrafa está vazia.

Enquanto enchia cuidadosamente a garrafa, a partir do grande recipiente em que conservava a sua reserva daquele poderoso e útil preparado, reparou que Maria olhava para um grande pote no extremo da prateleira.-A minha fortuna, explicou ele com um sorriso. As moedas já o enchem até meio. - As bolsas que Claudia Procula lhe dera tinham aumentado muito a reserva, e Pontius Pilatus necessitara de sanguessugas diversas vezes, ultimamente.

Maria ergueu a mão cheia de oiro e deixou-o escorrer por entre os dedos. - Em breve terás o suficiente para ir para Alexandria, disse em tom neutro.

José abanou a cabeça. - Quando voltar de Jerusalém, começarei a praticar medicina aqui em Magdala.

- Mas tinhas tanto desejo de ir para Alexandria.

- Será novidade para ti, Maria, perguntou ele suavemente, que eu prefiro aqui ficar na Galileia contigo ao meu lado?

- Não faças isso, José, murmurou ela. - Peço-te que não o faças. - Deixou-se cair num banco e escondeu o rosto entre as mãos, mas não antes de ele antever o terrível inferno que havia nos seus olhos. Contudo, quando tentou confortá-la, limitou-se a afastá-lo. - Vai ter com os teus doentes, murmurou finalmente, sem erguer o olhar. - Eu espero aqui e conversarei com tua mãe, quando ela voltar do mercado.

Relutantemente, José pegou no nartik que continha os seus instrumentos e remédios e saiu de casa. A sua primeira visita levou-lhe quase uma hora, a aplicar sanguessugas no olho inchado de um tintureiro. Logo que acabou, voltou à pressa a casa, porque a mãe por vezes se demorava no mercado de manhã, a conversar com as outras mulheres que lá se reuniam, e não lhe agradava a ideia de Maria ficar sozinha, perturbada como estava.

A casa parecia vazia e José pensou que a mãe tivesse voltado e tivesse ido passear com Maria pela cidade ou até ao pequeno parque próximo. Consideravelmente aliviado por verificar que os seus receios eram infundados, dirigiu-se ao consultório para guardar no tanque as sanguessugas que tinham engordado com o sangue do tintureiro, e tirar outras novas antes de ir fazer as visitas seguintes. E aí encontrou Maria, jazendo inconsciente no chão, tendo a seu lado a garrafa vazia que contivera o vinho de mandrágora.

Por momentos, José não conseguiu acreditar no que via. Parecia-lhe incrível que Maria tentasse destruir a própria vida quando nessa mesma manhã se tinha mostrado mais animada do que parecera durante longo tempo. Mas depois recordou-se da conversa que tinham tido diversas semanas antes, quando lhe falara da capacidade da raiz de mandrágora para produzir o sono e a morte.

Porque o fizera ela? perguntava a si próprio, enquanto erguia o corpo flácido e o colocava sobre o seu próprio leito. Ainda estava viva, mas pela frouxidão dos seus músculos e pela sua respiração lenta e fraca, estava certo de que a droga penetrara já no seu corpo. Podia compreender que ela tentasse matar-se na agonia da vergonha que se seguira à experiência às mãos de Gaius Flaccus. Mas já tinham passado mais de dois meses, tempo suficiente para que o choque se desvanecesse e lhe permitisse adaptar-se às circunstâncias.

José não perdeu tempo com fúteis interrogações, no entanto. Pouco mais de uma hora havia passado desde que ele a deixara, pelo que calculava que, mesmo que ela tivesse tomado a droga imediatamente, havia grandes possibilidades de que restasse ainda uma boa parte no seu estômago. Se a conseguisse extrair, não chegaria a fazer-lhe mal.

Felizmente trazia no seu saco uma kulcha, ou tubo estomacal. O que se seguiu não foi agradável mas, quando terminou, teve a satisfação de saber que tinha conseguido extrair pelo menos uma parte da droga que ela engolira. Em seguida, utilizou o tubo para fazer penetrar no estômago de Maria uma dose generosa da mistura chamada mithridaticum, que se dizia ter sido preparada pela primeira vez por Mitrídates V, Rei do Ponto, para se proteger de ser envenenado. Afirmava-se ser "um antídoto para todos os répteis venenosos e todos os venenos de qualquer substância" e, em diversas formas, a mistura era utilizada no mundo inteiro.

Quando a mãe de José chegou, pouco tempo depois, já ele tinha envolvido Maria em cobertores e estava a aquecer pedras no fogão, para lhe proporcionar maior calor. Tinha feito todo o possível para lhe tirar o veneno ou contrariar os seus efeitos. A partir de agora apenas podia lutar para conservar as forças dela de todas as maneiras.

Durante esse dia e essa noite, José permaneceu junto do leito onde Maria jazia. A máscara rígida de sofrimento que afivelara nas últimas semanas descontraíra-se, agora que estava inconsciente, e voltava a parecer a rapariga feliz que ele amara ao vê-la dançar nas ruas de Tiberíades. Vendo-a ali deitada,a dormir tranquilamente, custava-lhe ainda mais a compreender o que lhe tornara a vida, de súbito, tão insuportável ao ponto de tentar suicidar-se.

Por momentos, quando o dia recuou para as sombras da noite, pareceu-lhe que o espírito de Maria ia abandonar o seu corpo. Desesperadamente, José lutou para a salvar aplicando todos os recursos dos seus conhecimentos e das suas reservas de drogas estimulantes. Finalmente caiu de joelhos ao lado do leito e rezou, pedindo a Deus que a deixasse viver, e, quando a noite se instalou sobre o lago e sobre a cidade, sentiu que o pulso dela sob os seus dedos se tornava mais forte. Com um crescente sentimento de alegria, compreendeu que ganhara a sua batalha contra a morte.

Já passara da meia-noite e José tinha mandado a mãe para a cama havia muito quando Maria mostrou sinais de recuperar a consciência. De súbito, começou a contorcer-se, parecendo sofrer, flectindo os joelhos como se procurasse descobrir uma posição confortável, como se sentisse cólicas. E, quando José lhe colocou a mão sobre o corpo através dos cobertores, no local onde a dor parecia centrar-se, sentiu a tensão terrível dos músculos abdominais. Segundos depois, estes descontraíram-se e ela estendeu os membros, mas o espasmo voltou quase imediatamente. Desta vez gemeu e ele pensou, por momentos, que tinha recuperado a consciência, mas o espasmo terminou e os traços de dor desapareceram durante um curto período no rosto da jovem, até novo espasmo surgir. Contudo, agora, José já podia fazer um diagnóstico e finalmente compreendia o motivo por que Maria tentara suicidar-se.

Não podia saber havia quanto tempo teria ela percebido que trazia dentro de si um filho de Gaíus Flaccus. Mas devia ter sido mais do que alguns dias, talvez uma semana, calculava ele, visto que tinha sido concebido dois meses antes. Agora compreendia que a consciência da sua gravidez durante os últimos dias, aliada ao choque de ter sido violentada por um romano embriagado, tivesse sido superior às suas forças. Se sentira vontade de a censurar por ter tentado destruir a sua própria vida, agora só podia sentir piedade por ela. Para alguém com o espírito orgulhoso de Maria aquele último golpe ter-se-ía tornado insuportável.

As forças inexoráveis da natureza trabalhavam rapidamente, agora que se tinham desencadeado, mas felizmente Maria encontrava-se ainda muito profundamente sob os efeitos da droga para ter consciência da dor ou do que se estava a passar. Quando tudo terminou, José fez desaparecer todos os vestígios do feto sem forma e enterrou-o no jardim.

Amanheceu antes de Maria acordar. Estava pálida e apresentava grandes olheiras negras sob os olhos, mas José podia verificar que não se tinham produzido outros efeitos resultantes da provação por que o seu corpo passara. Tinha ficado toda a noite junto do leito e estava ao lado dela quando acordou. - Está tudo bem, minha querida, tranquilizou-a. Encontrei-te a tempo.

Lentamente, o rosto dela retomou a sua máscara severa. - Eu queria morrer, disse amargamente. - Porque mo impediste?

- Ninguém tem o direito de destruir a sua própria vida, Maria. Tens que viver para Demetrius e para aqueles que te amam.

- Para me classificarem de prostituta quando der à luz o filho de Gaius Flaccus?

- E isso que estou a tentar dizer-te, disse ele suavemente. - A concepção foi expulsa; o teu pesadelo terminou e ninguém sabe do caso, excepto tu e eu.

Durante um longo momento, ela não falou. Se ficou aliviada com a notícia, isso não veio alterar a máscara severa da sua face. E, quando falou, foi apenas para perguntar: - Que vais dizer à tua mãe?

- Ela pensa que tu estás a sofrer de um dos teus desmaios. Não estava cá quando eu descobri o que se passava nem quando aquilo sucedeu.

Maria voltou então o rosto para a parede e José não tentou dizer-lhe coisa alguma mais. Pedindo à mãe que lhe desse um caldo quente, mais tarde, quando ela se sentisse capaz de o comer, saiu para visitar os seus doentes. Quando voltou, nessa tarde, Maria tinha a cabeça encostada às almofadas e havia um pouco de cor no seu rosto. ele pegou-lhe na mão que estava caída sobre a coberta. - Em breve irei a Jerusalém, Maria, disse. Talvez lá fique uma semana. Promete-me que não tentarás de novo o que hoje tentaste.

Os olhos dela enfrentaram os seus e havia neles uma tão grande determinação que ele se sentiu assustado. - Não tentarei suicidar-me de novo, disse lenta e claramente. - Agora tenho algo para que viver.

Por momentos, José ousou alimentar a esperança de que ela se referia àquilo que ele tanto desejava ouvi-la dizer. Mas as suas palavras seguintes mataram-lhe todas as esperanças.

- Hoje fiz um juramento solene ao Todo Poderoso, disse ela. - Um voto que só terá fim quando eu matar Gaius Flaccus e me sentir vingada.

Nada do que José pudesse dizer fez qualquer efeito sobre a sua decisão. em vão ele lhe fez ver que um membro da raça conquistada não teria qualquer possibilidade contra os conquistadores, e que aquela decisão apenas podia terminar na sua infelicidade, talvez na sua morte. Mas o feroz sangue judeu de Maria triunfara sobre a parte grega, mais lógica, da sua herança, fazendo-a remontar às leis implacáveis do tempo de Moisés, quando Deus disse: "Terás direito a vida por vida, olho por olho, mão por mão, pé por pé, queimadura por queimadura, ferimento por ferimento, vergastada por vergastada".

Maria melhorou rapidamente nos dias seguintes. Quando chegou a altura de José partir para Jerusalém, já andava a pé. Tinha mandado pedir a Denietrius a sua lira e passava todo o dia a tangê-la, cantando por vezes canções que |osé nunca lhe tinha ouvido, como se estivesse a trabalhar para aumentar o seu repertório. Mas ele não se iludia ao ponto de crer que aquela era a mesma Maria de Magdala que amara. Um espírito perverso tinha-se apoderado dela, o demónio do ódio que não a deixav a descansar antes de ter cumprido o seu propósito, a morte do homem que tinha profanado o seu corpo.

 

Como sempre, nas raras ocasiões em que visitava Jerusalém, José ficou em casa do seu tio, o mercador José de Arimateia. Respeitado na cidade pela sua piedade e pela sua bondade, mais do que pela sua riqueza, o velho José, cujo nome o jovem médico tomara, era um homem influente no conselho governativo, o Sinédrio. José jantou com o seu tio no dia da sua chegada, e, mais tarde, o velho interrogou-o cautelosamente sobre as suas relações com Pontius Pilatus e sua mulher. Quando José acabou, o mercador acenou apro-vativamente: - Fizeste bem em ganhar a amizade do Procurador e de sua mulher, disse. - Vejo que fiz bem em recomendar-te. - Cofiou a barba. - Já pensaste em vir para Jerusalém trabalhar como médico?

José sorriu. - Suponho que todos os aplicadores de sanguessugas ou aprendizes sonham com serem médicos de sucesso aqui, confessou. - Mas há muito quem trate dos doentes. Eu não passaria de uma pedrinha na montanha.

- Talvez não, talvez não, disse o tio enigmaticamente. Agora é melhor ires para a cama. Os juízes não te vão facilitar a vida, por isso tens que estar em boa forma amanhã.

Na verdade, José teve pouca dificuldade em convencer os juízes de Jerusalém dos seus conhecimentos de medicina e as suas habilitações cirúrgicas deram-lhe direito ao título de rophe uman, médico habilitado. A sua competência já era superior à da maioria dos médicos, mesmo ali na cidade do templo.

O exame foi efectuado perante um conselho de juízes e durou um dia. Na manhã seguinte foram concluídas as formalidades de emissão dos certificados necessários, mas, quando José ia a sair da sala, o chefe dos juízes, um venerável doutor de leis chamado Elias, que era também membro do Sinédrio, chamou-o de novo. - Quais são os teus planos, José da Galileia, agora que és rophe uman} perguntou.

- Trabalharei em Magdala durante algum tempo, disse-lhe José. - Pelo menos até o Procurador regressar a Cesareia.

- É bom que Pontius Pilatus tenha tanta confiança em ti, disse Elias. - E depois disso?

- Quando tiver poupado dinheiro suficiente, espero continuar os estudos em Alexandria.

- Para quê estudar mais? Tens mais sabedoria, presentemente, que a maioria dos nossos médicos de Jerusalém.

- Parece-me que a sabedoria nunca tem fim, disse José, com um sorriso.

- Dizes a verdade, concordou Elias. - Está escrito: "Dá instrução a um homem sensato e ele se tornará mais sensato ainda; ensina um justo e ele aumentará a sua sabedoria!" Sorriu então. - Mas também está escrito: " Um homem sensato ouve e aumenta a sua sabedoria; um homem compreensivo escuta o conselho dos sensatos!". Podias aprender muito, aqui em Jerusalém.

- Estou certo disso, concordou José, perguntando a si próprio aonde o levaria aquela conversa em círculos.

- Nós, os membros do conselho, já te conhecemos há algum tempo, prosseguiu Elias, através do excelente médico de Magdala que é teu preceptor, e através do teu tio, que é meu amigo. Também ouvimos falar do teu sucesso em tratar o Procurador Pontius Pilatus e Claudia Procula. E, uma vez que corre nas tuas veias o sangue de David, é próprio que sirvas no templo do Todo Poderoso. Se vieres para Jerusalém, José, serás nomeado medicus viscerus do Templo.

José ficou tão espantado que mal podia acreditar ter ouvido bem. A honra de servir como médico do templo era geralmente concedida a homens de idade e posição dentro da sua profissão, e mesmo assim não era facilmente concedida. Não duvidou, nem por um momento, que a sua ligação com Pontius Pilatus e sua mulher tinha influenciado a oferta. O Procurador da Judeia passava períodos variáveis em Jerusalém, por causa do seu cargo, e era bem sabido que se tornava difícil quando a gota o fazia sofrer. Por isso, era perfeitamente lógico que o Sinédrio desejasse que se encontrasse em Jerusalém, durante essas visitas, um médico que tivesse tido êxito no tratamento do Procurador.

Fosse qual fosse o motivo que se ocultava por trás daquela lisonjeira oferta, José sabia que tinha conveniência em aceitar. Como medicus viscerus teria assegurada a protecção das pessoas mais ricas e mais importantes de Jerusalém e da Judeia, e a sua fortuna estaria garantida. Era uma hipótese que não podia recusar de ânimo leve e, contudo, embora estivesse disposto a desistir de Alexandria, hesitava em pôr de parte a ideia, desde que ela o tinha recusado.

- Tencionava ir estudar em Alexandria pelo menos durante um ano, disse.

- Sem dúvida que isso seria possível, em qualquer altura, no futuro, concordou Elias cordialmente. - Não se pode culpar um homem por querer melhorar a sua competência na ocupação que escolheu. Chegar-te-á um mês para tratares dos teus assuntos em Magdala?

- Deve chegar perfeitamente.

- Vou apresentar a tua candidatura ao Sumo Sacerdote, então. Serás notificado na devida altura.

Tinha passado mais de uma semana quando José finalmente regressou a Magdala, mas vinha cheio de boas notícias, no caminho para casa. Agora que tinha alcançado tão grande sorte e obtivera um cargo tão importante, tinha esperanças de que Maria considerasse mais favoravelmente o seu pedido de casamento. Mas, mal chegou a casa, soube que ela tinha voltado para a sua no mesmo dia em que ele partira para Jerusalém, e, desde então, a sua mãe não mais a vira.

Hnquanto corria para casa do fabricante de liras, José passou em revista os argumentos com que confundiria Maria e a convenceria a casar com ele. Já imaginara até como tomar conta de Demetrius, pois Jerusalém constituiria um bom mercado para os instrumentos que o grego fazia, visto que centenas de milhar de judeus invadiam a cidade, em peregrinação, rodos os anos. K, na sua posição, José poderia até conseguir que Demetrius fosse nomeado fabricante de instrumentos do templo.

A princípio não conseguiu compreender o que mudara na casa do fabricante de liras, quando dela se aproximou, do outro lado da Rua dos Gregos. Depois apercebeu-se que não se ouvia qualquer dos sons que geralmente provinham da casa, o bater dos martelos sobre as tábuas ressonantes, o tinir das cordas, as notas inseguras de um aluno a praticar e, acima de tudo, uma voz feminina de incomparável beleza que se erguia no ;if da montanha. Com o espírito subitamente penetrado por uma estranha premonição, José atravessou a rua e chegou junto da casa. Só então viu as tábuas pregadas por cima das portas e das janelas.

Um velho que passava na rua parou. - Se procuras o fabricante de liras, disse, com voz trémula, foi-se embora. Ele e toda a sua gente.

- Quando partiram? gritou José. - Para onde foram? O homem encolheu os ombros. - Há uma semana, mais ou menos. Só sei que seguiram para sul pela Via Maris.

- A rapariga ia com eles? A rapariga a que chamam Maria de Magdala?

- A dos cabelos vermelhos? Sim. Seguia a pé ao lado da mula que transportava Demetrius. Depois começou a rir. - Ou seriam duas mulas? O fabricante de liras é grande demais para uma só.

José não conseguiu saber mais, nem do velho nem dos vizinhos, mas todos concordaram em que Demetrius tinha partido para o sul, pelo que podia estar certo de que o seu destino era Alexandria. O braço sul do Caminho do Mar partia de Magdala através da região montanhosa para oeste, até Joppa e as cidades ricas da costa. Dali, um viajante poderia tomar barcos quase diariamente para Alexandria, que atingiria ao fim de poucos dias de navegação. Ou então uma caravana podia seguir por terra, pelo caminho mais longo, até ao mesmo destino. Era indubitável que Maria tinha conseguido persuadir Demetrius a partir imediatamente para Alexandria, e José estava certo de que a decisão estava ligada ao seu juramento de vingança.

Mas porque partira sem lho dizer? E donde tinha vindo o dinheiro para a viagem? Mesmo com as bolsas que recebera por dançar para Pontius Pilatus, não tinha dinheiro suficiente para se transportar a ela, Demetrius e os músicos, além dos artífices da loja do fabricante de liras, até ao Egipto.

José sentiu um terrível impulso de seguir Maria. Comprando ou alugando um cavalo rápido ou um camelo, sabia que poderia segui-los ao longo da Via Maris e provavelmente chegar a Joppa antes de apanharem o barco. Não porque tivesse esperanças de convencê-la a voltar; conhecia Maria demasiado bem para o pensar. Mas ela não sabia das suas excelentes possibilidades uma vez que fora nomeado medi-cus viscerus do Templo de Jerusalém. Sabendo disso, talvez ela prometesse, pelo menos, esperar por ele em Alexandria. E, tal como Demetrius sugerira, depois de viver uns tempos no Egipto, poderia sentir maior vontade de regressar à Judeia e a Jerusalém como sua noiva.

José decidiu segui-los, portanto, e correu de novo para sua casa. Ia buscar dinheiro para alugar um camelo ou um cavalo - eram muito mais caros do que as mulas, mais lentas - mas o pote onde guardava as suas moedas continha mais do que o suficiente. Gritando à mãe que partia para Joppa dentro de minutos, correu à prateleira onde guardava o pote que continha as suas economias. Quando lhe pegou, pareceu-lhe mais leve do que habitualmente. Mas só quando o voltou ao contrário e viu que moeda alguma dele caía compreendeu a verdade.

José sabia agora onde arranjara Maria o dinheiro que a levaria a ela e aos outros até Alexandria.

 

                       ALEXANDRIA

Os escravos que seguravam os varais baixaram a sumptuosa liteira, pousando-a sobre o cais calcetado. José afastou os cortinados e saiu, mergulhando na fervilhante actividade do local. A liteira pessoal do Procurador tinha-o trazido até ao porto, através da cidade de Cesareia. De pé, ao lado da liteira, via o sol a brilhar sobre as águias doiradas que encimavam os estandartes a cada um dos seus cantos, enquanto o vento fustigava a bandeira do Procurador, transportada por um vigoroso soldado da própria guarda de Pilatus. Ninguém podia ter dúvidas sobre quem mandava ali - a marca de Roma estava em toda a parte - e, por momentos, José sentiu-se um pouco envergonhado por ter dado, pelo menos, uma tácita aprovação aos conquistadores, deixando-se transportar com toda a pompa, tal como fora até aos cais.

A liteira tinha deixado José mesmo junto à prancha que levava ao convés do grande navio mercante - a que chamavam "redondo", para o distinguir dos navios de guerra, a que chamavam "longos". Protegido pelo grande cais em forma de meia lua, feito de pedra maciça, com que Herodes o Grande tinha transformado uma enseada aberta num porto protegido, o enorme navio mal balouçava, tranquilamente encostado ao cais. Os escravos subiam e desciam a prancha, em longas filas, mas não havia qualquer confusão, pois quase todos os dias acostava a Cesareia um navio de Roma ou de qualquer das grandes cidades do Império, para carregar e descarregar ou para entregar mensagens e documentos de estado ao Procurador da Judeia, Pontius Pilatus.

José tinha vindo de Jerusalém diversos dias antes, para uma última visita ao Procurador e à sua mulher, antes de partir para Alexandria, para levar a cabo o ano de estudos que lhe tinha sido prometido cinco anos antes, quando aceitara a posição de medicus viscerus no templo de Jerusalém. Muita coisa tinha sucedido naqueles cinco anos. Era agora um homem rico, cuja fama como médico se espalhara por toda a Judeia e Galileia, e chegara mesmo à capital de toda a província da Síria, Antióquia, onde tinha sido chamado para tratar o legado Vitellus.

Grande parte do seu êxito, compreendia José, provinha do seu parentesco com o rico mercador de Jerusalém, José de Arimateia, e da protecção de Pontius Pilatus e de Claudia Procula. Sentia-se devidamente grato, mas, embora as suas relações com Procula tivessem sido sempre agradáveis, nunca tinha podido aproximar-se verdadeiramente do Procurador, excepto fisicamente, para lhe tratar da gota e dos outros males que constantemente afligiam o governador romano da Judeia.

Pilatus, acabara José por concluir, era um homem estranho, sujeito a crises de abjecta autocompaixão por o seu filho ser aleijado e por se ver condenado a servir naquilo que ele considerava um país bárbaro, por cujos habitantes apenas sentia desprezo. Como sucede tão frequentemente com os emocionalmente instáveis, atingia por vezes os extremos. Podia então ser inacreditavelmente cruel, arrogante, altivo, atropelando os direitos dos outros, sem olhar às liberdades que Roma garantia àqueles que governava. Certa vez tinha feito entrar as águias doiradas de Roma em Jerusalém, de noite, e, de manhã, as pessoas depararam com o espectáculo blasfemo dos ídolos mesmo aos portões do templo. E, de outra vez, os seus soldados, de armas escondidas sob as roupas civis, tinham-se infiltrado entre a multidão, que se tinha concentrado para protestar contra outra das suas ignomínias, e depois atacaram as pessoas e mataram-nas sem piedade. Sabendo que alguns judeus conspiravam contra ele, na esperança de fazer Herodes Antipas rei de Jerusalém, Pilatus não confiava em pessoa alguma.

Os judeus tinham poucos motivos para amar Pontius Pilatus, mas ele tinha sido sempre bom para José e, nomeando-o médico pessoal da corte de Cesareia e da guarnição de Jerusalém, tinha feito aumentar desmedidamente a fortuna de José. Se havia um lado bom na natureza de Pilatus, sabia-o bem José, era o amor ardente pelo seu filho e pela requintada e pequena patrícia que era sua mulher. Apenas a influência dela sobre o Procurador o impedia de se tornar um tirano completo.

A asma de Claudia Procula trouxera José a Cesareia frequentemente, nos anos que passara em Jerusalém, embora pouco a pudesse ajudar. Mas, pelo menos, os seus ataques forneciam-lhe uma desculpa sempre benvinda para se afastar, de vez em quando, da cidade do templo e da tensão que ali era palpável. Por muito que os judeus odiassem os romanos e o homem que constituía o símbolo do poder romano no seu país, havia sempre quem imitasse os seus conquistadores romanos. Em Jerusalém, um pequeno grupo, os Herodianos, desenvolvia um considerável poder político, aliando-se aos Saduceus1, de cujas fileiras provinham os sacerdotes do templo. Os Fariseus2, contudo, agarrando-se teimosamente aos antigos costumes e leis de Israel, apenas sentiam desprezo, tanto pelos Herodianos como pelos Saduceus. Assim, enquanto os Fariseus controlavam as massas que, naturalmente, se agarravam às antigas tradições e às glórias passadas de Israel, os Herodianos e os Saduceus eram suficientemente espertos para ver que, de momento, o melhor futuro era com os romanos, que detinham o poder, embora, de preferência, com um rei judeu no trono da Judeia.

Agora, olhando em volta para o fervilhar da actividade no enorme cais, José sentiu-se aliviado por, pelo menos durante um ano, ficar livre das disputas constantes e da tensão política do templo. Levava consigo uma carta do sumo sacerdote Caifás para Philon o Judeu, o chefe reconhecido dos judeus de Alexandria, cujo número era superior ao da população de Jerusalém. E Claudia Procula também lhe dera uma carta de apresentação para Cestus, governador romano de Alexandria, seu parente distante. Com aquelas credenciais, José sabia que teria imediato acesso tanto à sociedade romana como à sociedade judaica de Alexandria, mas não tencionava usá-las logo de entrada. Era um estudante em busca de conhecimentos que partira para Alexandria, o maior centro de cultura do mundo desses dias. De conhecimentos e de algo mais: de uma rapariga de cabelos de fogo. E, ao pensar nela, o seu pulso voltava a acelerar-se, ao antigo ritmo familiar e emocionante. O capitão do navio não deixara de notar a chegada daquele passageiro na liteira particular do Procurador. Apressou-se a correr até à prancha, e fez uma vénia de saudação: - Sou Marcus Quintus, capitão deste navio, disse formalmente.

 

1 Saduceus, seita judaica, oposta ao fariseus, favorável ao Helenismo e cujos membros pertenciam em geral à classe rica. (N. do T.)

2 Fariseus, seita Judaica, que ostentava grande santidade exterior na sua vida. Sob um rigorismo aparente, os fariseus escondiam os hábitos mais depravados. (N. do T.)

 

José fez igualmente uma vénia. - A paz seja contigo, capitão Quintus, disse. - Sou José da Galileia, médico.

O capitão era um homem forte, com uma barba de um cinzento de aço e os olhos vivos de um marinheiro experimentado. - A tua modéstia só te dá valor, disse, enquanto subiam juntos a prancha. - Nos portos da Judeia e até mesmo em Antióquia, há homens cujas vidas foram salvas pela sabedoria de um médico chamado José da Galileia. Diz-se que, apesar de rico, não afastas homem algum da tua porta. - Abriu a porta da cabine do convés e afastou-se para deixar passar José. - Não te sentirás solitário nesta viagem. Um médico da costa do Malabar regressa a Alexandria vindo de Roma. Um dos meus marinheiros teve a estupidez de partir um braço. Ele está a tratá-lo, neste momento.

José ansiava pela solidão e completa libertação dos problemas da medicina durante a curta viagem até Alexandria. Quando chegara a Jerusalém, proveniente de Magdala, cinco anos antes, tudo o que possuía coubera facilmente sobre o dorso de uma mula. Contudo, levara muito mais tempo a regular os seus assuntos para fazer esta estada de um ano, porque agora era um homem rico, com muitos interesses e uma propriedade no extremo da cidade, com vinhedos, campos e jardins, como convinha ao principal médico da capital judaica. Tinham sido uns anos atarefados, prósperos e agradáveis, durante os quais ganhara grande maturidade, e, por algum tempo, quase esquecera o seu anterior desejo de estudar em Alexandria.

E então, havia três meses, tinha vindo ao seu encontro um homem de uma das casas bancárias de Jerusalém que se especializara em moedas estrangeiras. Trazia consigo uma bolsa de oiro que continha exactamente a quantia que Maria tinha levado do pote da sua casa de Magdala, mais o juro à taxa anual. José nada conseguiu saber de Maria, através do banqueiro, excepto que aquele dinheiro tinha sido enviado de Alexandria, mas, desde então, ela povoava constante-mente os seus sonhos e os seus pensamentos. Finalmente, confessou a si próprio que tinha de voltar a vê-la, nem que fosse só para ter a certeza de que ela cessara de amá-lo e tinha desistido totalmente das suas intenções de voltar para partilhar com ele a boa vida que ele levava em Jerusalém. E, com essa decisão, regressara o seu desejo de estudar em Alexandria.

 

O médico Bana Jivaka era um homem pequeno e magro, todo vestido de branco, com um turbante justo em volta do cabelo escuro. A sua pele era castanha clara, as suas feições regulares e agradáveis e os seus olhos escuros vivos e inteligentes. Fez uma vénia profunda quando o capitão Quintus lhe apresentou José e retribuiu a apresentação num excelente grego.

O paciente era um marinheiro musculoso, despido até à cintura. Tinha tatuagens com estranhos desenhos cabalísticos, como era habitual entre os marinheiros que gostavam de se gabar de terem navegado para lá das Colunas de Hércules, para Oeste, onde o Maré Nostrum dos Romanos se encontrava com o grande mar que banhava as costas da distante Brkânia. A fractura já estava ajustada e ligada de maneira muito semelhante àquela por que José tratara Simão, o pescador. O que mais espantou José foi o modo como o ferido se encontrava sentado na cadeira, erecto, aparentemente inconsciente de tudo o que o rodeava. - Que remédio lhe deste para produzir um tal estado? perguntou, cheio de curiosidade.

- Está num transe, explicou o médico de pele escura, produzido por um método conhecido por gente de muitas partes do mundo. Usamo-lo no meu país há pelo menos um milhar de anos, e no Egipto ainda é conhecido há mais tempo.

- Nem sequer sentiria um toque num olho? - Este era o último teste da inconsciência, pois a parte frontal da pupila é a última área do corpo a tornar-se insensível antes da morte.

Jivaka pegou numa toalha de linho e tocou ao de leve na pupila do homem inconsciente. Não houve qualquer reacção, ele nem pestanejou.

- Espantoso! exclamou José. - Como consegues esta rigidez?

- Através do mesmo transe, explicou o outro médico. - Se eu quisesse podia mergulhá-lo numa letargia tão profunda que não conseguirias sentir o bater do pulso ou ver os movimentos do seu peito. Só com um espelho em frente da boca poderias detectar uma névoa ou a humidade da respiração. Na índia, há homens sagrados que têm estado enterrados vivos durante horas, nesse estado, acrescentou.

José abanou a cabeça. - Se não tivesse visto com os meus próprios olhos, confessou, não acreditaria que tal coisa pudesse acontecer.

- Posso ensinar-te mais tarde, se o desejas, disse Jivaka amavelmente. Depois sorriu: - Há um ditado no meu país. O carroceiro quer madeira, o médico doenças e os sacerdotes libações. Se te juntares a mim para emularmos os sacerdotes, poderemos falar disto. - Inclinou-se sobre o marinheiro e emitiu um assobio agudo ao seu ouvido. O homem acordou imediatamente, olhando em volta entontecido.

- Já tratei o teu braço, disse Bana Jivaka ao marinheiro, mas tem cuidado com ele até a ligadura estar seca. E amanhã quero vê-lo.

Diante de um copo de vinho, o médico indiano perguntou: - Vais para Alexandria?

- Sim. Prometi a mim mesmo um período de estudo lá, há muitos anos. Agora vou reclamá-lo.

- Óptimo! Podemos ser colegas. Eu vou passar outro ano em Alexandria antes de voltar para Malabar.

- Malabar? José franziu o sobrolho. - As armadas do nosso Rei Salomão chegaram a um porto chamado Ophir, há séculos.

- Pensa-se que Ophir tenha sido ou a nossa cidade de Suppara ou Muziris, explicou Jivaka. - Na realidade, nós, os indianos, conhecemos os judeus há muitos anos. Creio que algumas das madeiras preciosas usadas na construção do vosso Templo de Jerusalém tenham vindo da costa do Malabar e havia judeus entre os sábios que acompanharam o general grego Alexandre, pelo oriente, até à nossa cidade interior de Taxile, em cuja Universidade estudei.

- Os marinheiros não receiam navegar até tão longe?

- Porque haviam de recear? Um dia os homens navegarão à volta da terra inteira.

- Mas a terra é plana! protestou José. - Nos escritos antigos do nosso povo Deus disse claramente quando criou a terra: Que as águas debaixo do céu se reunam num só lugar e que apareça a terra seca."

- Talvez haja outro significado para essas palavras, sugeriu Jivaka. - Em Alexandria verás o local onde um grego chamado Eratóstenes não só provou que o mundo era redondo, há algumas centenas de anos, como até mediu a sua circunferência.

Espantado, José perguntou: - Ele conseguiu caminhar sobre o mar?

- O método de Eratóstenes era simples, explicou Jivaka com um sorriso. - Soube através de um viajante que na cidade de Syena1, na costa de África, o sol brilha directamente sobre a água de um poço profundo na altura do solstício de verão, demonstrando que se encontra exactamente sobre o local. Em Alexandria, Eratóstenes ergueu então um poste vertical e mediu o ângulo da sua sombra exactamente ao meio dia do dia do solstício de verão, e verificou que era a quinquagésima parte de um círculo. Então, de acordo com as proposições de Euclides, deduziu que, se se traçassem linhas perpendiculares no prolongamento do poço de Syena e do poste de Alexandria, até ao centro da terra, formariam o mesmo ângulo que a sombra do poste de Alexandria, ou seja um quinquagésímo da circunferência. Portanto, a distância entre Syena e Alexandria é também a quinquagésima parte da circunferência da terra. E, como sabemos que vão cinco mil stadia2 de Syena a Alexandria, a circunferência do mundo é, portanto, cinquenta vezes essa distância, ou seja, duzentos e cinquenta mil stadia, mais ou menos vinte e seis mil milhas.

- Ele fez tudo isso sem se mover de Alexandria?

- Eratóstenes realizou todo este cálculo no pátio do Mu-seum, confirmou Jivaka.

- Tenho que pensar nisso, disse José, confuso. - É demasiado simples para se compreender facilmente.

Bana Jivaka riu-se. - Suspeito que assim suceda com a maioria das descobertas realmente importantes. Afinal, Ar-quimedes estava no banho quando descobriu que um corpo imerso desloca um volume de água igual ao seu próprio peso. O espírito grego procura sempre a resposta mais simples e assim chega às maiores verdades.

- Ias explicar-me o transe que utilizaste há pouco, recordou-lhe José.

 

1 Syena, hoje Assuao. (N. do T.)

2 Stadia, estádios. Medida itinerária grega equivalente a cerca de 185 metros. (N. do T.)

 

- É uma simples questão do controle exercido pelo espírito sobre o corpo. Quando o espírito fica insensível, o corpo fica insensível também.

- Mas não receias que os mazikkin - os demónios do ar - voem com a sua alma?

Jivaka abanou a cabeça. - Os nossos filósofos deixaram há muito de acreditar nos demónios. Mas sabem como é forte o controle do espírito sobre o corpo, pois viste um exemplo disse há pouco, com o marinheiro.

- Como conseguiste o transe? perguntou José.

Bana Jivaka tirou uma grande esmeralda do bolso e segurou-a em frente da lamparina que ardia nos seus aposentos. A jóia parecia absorver a luz, pois brilhava como uma bola de fogo verde. - Isto serve apenas para atrair a atenção, explicou. - Qualquer objecto brilhante faz o mesmo efeito. O resto é apenas questão de se impor a nossa vontade sobre outra.

- Com essa explicação, tudo parece muito simples, confessou José. - Mas não sei se serei capaz de aprender a fazê-lo eu próprio.

- Claro que és, garantiu Jivaka, porque tens vontade de aprender. Há séculos, um médico sábio e erudito, da índia,, chamado Susruta, disse: "Aquele que é versado apenas nos livros sentir-se-á assustado e confuso, como um cobarde no campo de batalha, ao enfrentar uma doença activa; aquele que imprudentemente se dedica à prática sem um estudo prévio da ciência escrita não merece o respeito da humanidade, mas sim o castigo do rei; mas aquele que alia a leitura à experiência avança com segurança e firmeza como um carro sobre duas rodas!

 

A viagem até Alexandria durou apenas alguns dias, mas foram dias agradáveis para José. A sua natural avidez por aprender tinha estado submersa pela sua intensa actividade como médico, durante os cinco anos que passara em Jerusalém, mas agora a curiosidade voltava com toda a força. Estava espantado por verificar que os médicos na índia estavam muito mais avançados, tanto em medicina como em cirurgia, do que os gregos ou os romanos, e que Susruta tinha efectuado, muitos séculos antes, difíceis operações cirúrgicas de que ele jamais ouvira falar.

Acima de tudo, no entanto, José gostava de ouvir Bana Jivaka falar das grandes terras desconhecidas, a oriente, das quais ele tinha vindo, e das regiões ainda mais misteriosas para lá da costa do Malabar, onde homens amarelos, de olhos amendoados, tinham avançado ainda mais na ciência, medicina e filosofia do que os gregos.

- Vem comigo até à índia, quando eu voltar, pediu-lhe Jivaka. - Podemos partir quando a monção soprar para oriente, de novo, no próximo ano, e poderás regressar por terra directamente a Jerusalém, passando por Babilónia e Damasco, se o desejares.

- Que é uma monção? perguntou José com curiosidade.

- Um vento forte que sopra sobre o grande oceano entre a embocadura do Mar Vermelho em Adana e a Costa do Malabar, e que muda de direcção de seis em seis meses, explicou Jivaka. - Quando sopra do oriente, os navios fazem a viagem de Muziris ou Suppara para Adana e prosseguem para o Mar Egípcio ou Mar Vermelho até Arsinoé, em cerca de oito semanas. Daí, seguem pelo canal, pelo rio Nilo fora, e descem até Alexandria. Quando o vento muda de direcção, a viagem de regresso pode ser feita com a mesma rapidez.

Noutra ocasião, Jivaka mostrou a José um maço de desenhos que fizera durante os seus estudos em Alexandria e antes deles. Tinha grande talento para mostrar em desenho os diversos aspectos da doença. Havia desenhos de operações com a agulha, para cataratas, um processo de que José tinha ouvido falar, mas que nunca vira executar, a extracção de excrescências do olho, a remoção de tumores do pescoço e muitas outras coisas.

Um conjunto de desenhos intrigou especialmente José. Mostravam uma operação para reconstituir um nariz cortado, que Jivaka garantia ter sido usada na índia havia muitos séculos. Segundo ela, um pedaço de pele em forma de folha era cortado da face, ficando a extremidade ainda agarrada, e esse pedaço era transportado para o local do nariz perdido. Inseriam-se canas ocas nas narinas e a pele tomava forma em volta delas e crescia durante algum tempo até aderir firmemente à base do nariz. Então cortava-se a ligação à face e ficava formado um excelente substituto para o nariz perdido. As orelhas também podiam ser substituídas do mesmo modo.

Outros desenhos mostravam as convulsões da epilepsia, a que Hipócrates chamara a Doença Sagrada, uma paralisia resultante do coice de um cavalo no crâneo, os tornozelos distendidos e o ventre inchado devido à pletora, e um desenho que José vira diversas vezes. Representava uma rapariga com os olhos proeminentes e fixos, um ligeiro inchaço do pescoço, e grande magreza. Tendo visto tais casos, José sabia que o rosto estava avermelhado e coberto de transpiração, o pulso acelerado, e as mãos tremiam incontrolavelmente.

- Falei a Celso1 da doença que estás a ver, disse Jivaka. - Ele pensa que seja uma forma de inchaço do pescoço chamada "bócio". Ficou surpreendido ao saber que na índia a tratavam com algas marinhas secas.

- Algas marinhas? Como actuam?

Javaka encolheu os ombros. - Quem sabe? Mas, quando se dão as algas secas ao paciente, surge por vezes uma cura miraculosa.

José sorriu. - Graças a ti, terei muita coisa nova para usar nos meus doentes quando voltar a Jerusalém. Nunca esperei,.. Parou, deixando a frase incompleta.

Bana Jivaka olhou-o zombeteiramente. - Ias dizer que nunca pensaste aprender qualquer coisa com alguém a quem te ensinaram a considerar como um bárbaro, não é assim?

- Falei sem pensar. - José corou de embaraço. - Perdoa-me.

- Claro. - Jivaka sorriu. - Nunca se deve ter vergonha de aprender, seja qual for o modo como se aprendeu. - Olhou através da janela. - Está escuro e este é o terceiro dia desde que saímos de Cesareia, pelo que devemos estar a ver a luz de

 

1 Auln Celso, médico do século de Augusto, autor do célebre livro "De Arte Médica, " Seguia a doutrina de Hipócrates e recebeu pela pureza do seu estilo o nome de "O Cícero da Medicina". (N. do T.)

 

Pharos. Os alexandrinos gabam-se de que é visível desde o Helesponto1.

O navio avançava suavemente sobre as águas quando eles chegaram ao convés. As grandes velas estavam inchadas com o vento forte e os escravos das galés descansavam junto dos remos ou dormiam acorrentados aos bancos em que se sentavam. Por cima o céu estava salpicado de estrelas e, a sudoeste, o horizonte era iluminado por um brilho quente.

- Lá está a luz de Pharos, disse Jivaka, apontando para o céu brilhante. - Guia os marinheiros até Alexandria. Jamais se construiu coisa igual.

- Eu colocaria o Templo de Jerusalém acima dele, disse José.

Jivaka olhou-o surpreendido. - O vosso templo é belo mas não é uma maravilha arquitectónica como o Pharos.

- O Templo foi construído unicamente para glória do Todo Poderoso, explicou José, enquanto que um farol serve apenas o homem.

- Sinto-me devidamente humilde em espírito, meu amigo, disse Jivaka suavemente. - Os judeus têm adorado um único Deus há milhares de anos, enquanto nós ainda andamos futilmente às apalpadelas, à procura d'Ele entre uma horda de impostores.

- Mas até os judeus não concordam inteiramente com os propósitos do Todo Poderoso, confessou José. - Os Fariseus exaltam a lei até ela se transformar quase num ídolo. Mas os Saduceus que constituem os sacerdotes que governam o Templo desejam liberalizar as práticas religiosas e centrar todo o poder no templo propriamente dito e no sumo sacerdote.

- A que grupo pertences?

- Como medicus viscerus do Templo, tenho, naturalmente, que estar a favor dos sacerdotes, explicou José. - Mas os Saduceus não acreditam numa vida depois da morte, como os Fariseus. E eu detestaria pensar que tudo acaba com a morte.

- Não tens o monopólio de tal desejo, receio bem, José. Todas as religiões o têm. Ouve uma oração feita num poema muito antigo do povo indiano.

 

Helesponto, nome antigo do Estreito de Dardanelos. (N. do T.)

 

Do Irreal conduz-me para o Real,

Da Escuridão para a Luz,

Da Morte para a Imortalidade!

- Mas o Todo Poderoso escolheu os filhos de Israel para serem o seu povo, protestou José. - Favorece-os acima de todos os outros, na terra.

- Pela história do teu povo que ouvi contar aos amigos que tenho entre os judeus de Alexandria, os favores do vosso Deus parecem ser um pesado fardo, observou Jivaka secamente. - Falaram-me de derramamentos de sangue, perseguições e escravidão!

- Mas não será sempre assim, insistiu José. - Foi-nos prometido um Messias, com o sangue de David, que é a minha própria linha sanguínea.

- Um Messias? Jivaka franziu o sobrolho. - Não compreendo essa palavra.

- Será um grande chefe que estabelecerá o Reino de Deus na terra, disse José, cheio de confiança, e que elevará os judeus à hegemonia sobre todos os povos do mundo.

- Mas isso significaria lutarem contra o poderio de Roma, objectou Jivaka. - Os judeus são poucos em número e estão espalhados por todos os cantos da terra. Como poderiam opor-se a Roma?

- Quando o Messias chegar, a Sua glória será tal que todo o mundo O reconhecerá, garantiu José.

Bana Jivaka encolheu os ombros. - Eu poderia acreditar no teu Deus, José, porque me disseram que Ele se debruça sobre os homens para lhes dar sabedoria e os ajudar nos momentos difíceis da vida, perdoando-lhes os seus erros se eles Lhe pedirem o perdão. Mas não consigo perceber porque complicam a vossa relação com Deus falando de Messias.

Vagamente, José achava que aquilo devia ser uma blasfémia, embora não conseguisse descobrir exactamente porquê. Depois recordou-se das palavras do profeta Micheas: "Que mais pede o Senhor a um homem, além de actuar como um justo, de amar a clemência e de ser humilde perante Deus?" - Quando as repetiu a Jivaka, o indiano limitou-se a sorrir.

- Vês? disse. - Tal como as medições de Eratóstenes, a resposta mais simples é sempre a melhor, mesmo entre um homem e o seu Deus.

 

José foi acordado de madrugada pelos brados dos oficiais do barco e pelos gritos dos escravos chicoteados pelos vigilantes. Os longos remos rangiam agora constantemente nas suas alças de couro, fazendo o navio avançar. E quando chegou ao convés, José verificou que o mar estava brilhantemente iluminado, embora o dia ainda não tivesse nascido. O capitão Quintus disse-lhe que estavam ainda a cerca de dez milhas de Alexandria.

A linha de costa do Egipto era tão baixa naquela região que a grande cidade ainda nem estava visível, mas o farol de Pharos via-se muito bem, erguendo-se abruptamente do mar. Desde a ilha baixa na qual se erguia, até ao topo do espelho gigante em frente do qual se conservavam acesas grandes fogueiras, do pôr ao nascer do sol, a torre media perto de seiscentos pés de altura, um pilar de pedra de um branco de alabastro que conduzia todos os marinheiros até Alexandria. E, embora as fogueiras estivessem agora a apagar-se, os raios do grande espelho polido ainda cegavam momentaneamente quem olhava para ele.

Construído segundo o estilo arquitectónico da Babilónia, a mais alta das maravilhas do mundo consistia em quatro torres ou andares, umas sobre as outras, as mais baixas quadradas e as superiores circulares. Dizia-se que os blocos de pedra com os quais Sostrates de Cnido1 tinha construído o maciço farol estavam ligados entre si com chumbo fundido, visto que nada mais teria podido permanecer impermeável à espuma salgada que o salpicava até grande altura, durante as tempestades de Inverno.

- Invejo-te por veres o Pharos pela primeira vez, disse Bana Jivaka. - Não era tão impressionante visto do Nilo e do Lago Mareótis, quando cheguei, vindo do Malabar. - Estavam de pé na proa do navio que enfrentava as vagas que batiam incessantemente na praia, como se estivessem ansiosas por se precipitar sobre ela e engolfar aquela cidade que

 

1 Sostrates de Cnido, arquitecto grego, séc. III a. C. (N. do T.)

 

ficava no Egipto embora não fizesse parte dele. Por trás deles, os vigilantes andavam de um lado para o outro nos corredores entre os bancos onde se sentavam os escravos das galés, acorrentados aos grandes remos que manejavam. Se um dos remos não se movesse exactamente à mesma cadência dos outros, o chicote estalava e soava um grito de dor. A sua aparente crueldade não deixava de ter um motivo, contudo, pois um movimento em falso podia fazer com que os remos chocassem e atirar o navio, girando subitamente sob a força imparável das grandes vagas, para o outro lado, lançando-os para a morte contra as rochas, na base da enorme torre.

Os soldados que guardavam as galerias dos blocos inferiores viam-se nitidamente, assim como as janelas das cerca de trezentas salas que a elevada estrutura continha. Depois, quando parecia que mais um impulso dos enormes remos os lançaria contra as rochas, o capitão Quintus gritou uma ordem. Os escravos do lado oriental recolheram os seus remos e o grande navio girou rapidamente, enfiando a proa por uma estreita passagem entre rochedos perigosamente escarpados que emergiam do mar e a extremidade do grande quebra-mar de pedra à esquerda. Com uma seta apontada para o alvo, o enorme navio precipitou-se pela abertura em direcção à vasta extensão do porto.

A transição do mar agitado para a calmaria do grande porto, semelhante a um espelho, era extraordinária. Na tranquilidade protectora dos quebra-mar, a água era tão lisa como num lago. José via a areia branca do fundo e rochas, aqui e além, guarnecidas de algas de diversos matizes. Flutuavam anémonas arrastadas pelas correntes suaves das profundezas, movendo-se tão graciosamente como os golfinhos lustrosos que brincavam em cardumes à superfície. Peixes brilhantemente coloridos, cujas tonalidades rivalizavam com as do arco-íris, moviam-se nas profundidades, sem se incomodarem com o enorme navio que flutuava por cima deles.

Da alta proa do barco, todo o cais de Alexandria se abria perante os seus olhos. Nem sequer em Jerusalém, com toda a sua glória, vira José algo que se aproximasse daquele espectáculo de magnificência e pura grandeza das obras humanas. À esquerda, para oriente, estando ele voltado para o porto, ficava o quebra-mar em curva a que se chamava a Diabathra, continuação do promontório de Lochias, que formava um dos extremos do porto. Aí se erguia o Palácio Real e, mesmo ao lado dele, brilhando ao sol da manhã, ficava o templo de ísis. No Porto Real, mais pequeno e protegido, estavam ancoradas grandes barcas, cujas finas amuradas douradas e canópias coloridas brilhavam ao sol matinal.

As velas foram baixadas c o navio avançou lentamente pela vasta extensão a que chamavam o Grande Porto, para o distinguir do Prto do Feliz Regresso, que ficava a oeste de uma enorme passagem, a que se chamava o Heptastadium, que ligava a ilha de Pharos, em cuja extremidade oriental ficava o farol, com a cidade propriamente dita. Do Porto do Feliz Regresso, partia o Canal Agathadaemon, para sul, através da fervifhante zona grega da cidade, até ao lago Mareótis e ao Nilo. Os navios vindos do Nilo e dos mares orientais podiam passar através dele directamente para o Mediterrâneo, fazendo daquela estreita passagem a ligação marítima entre as famosas terras do Oriente, o Grande Mar dos Romanos e os mistérios inexplorados do Mar Ocidental para lã das Colunas de Hércules. Canais atravessados por pontes, de ambos os lados do Heptastadium, de cem pés de largura, ligavam os dois portos de Alexandria.

A osta do Grande Porto estava coberta de vastos cais de pedra, aos quais se encontravam presos navios de todas as partes do mundo. Constituíam um departamento chamado Exhairesis, para o qual a mercadoria podia ser levada livre de direitos, para transbordo para outras terras. Assim, Alexandria constituía um foco importantíssimo na distribuição de mercadorias e materiais para todo o Império Romano.

José nunca tinha visto tantos barcos. Biremes, triremes e quadriremes - conforme o número dos seus convezes - navios mercantes e navios de guerra, galés costeiras e faluchos, chatas, barcaças, barcos de remos, nos quais os homens pareciam carregar tudo o que existia sob o sol - os mastros formavam uma floresta, as velas de cores berrantes e as flâmulas eram uma orgia de cor.

Em parte alguma do mundo havia algo que se assemelhasse àquela cidade colorida e extremamente interessante, e o pulso de José acelerou-se perante a ideia de que finalmente chegara. Os cais estavam apinhados de gentes. Marinheiros, mercadores, vendedores ambulantes com cestos de fruta e vegetais, vendedores de vinho com os seus estranhos odres às costas, mendigos de todas as nacionalidades, sacerdotes de longas túnicas com estranhos hieróglifos na testa, soldados de todas as cortes romanas, rostos, vozes e trajos de todos os países do mundo - todos enchiam as docas, movimentando-se, ao que parecia, sem qualquer propósito.

O mais espantoso para José, porém, eram as mulheres. Habituado aos costumes de Jerusalém, onde as mulheres ficavam, na sua maioria, em casa, ficou surpreendido por as ver em toda a parte, atravessando por entre grupos de homens ou dirigindo-se aos marinheiros, num franco convite, pairando como pegas, com vestidos de todas as cores do arco-íris, rosto por vezes desavergonhadamente pintados, e o cabelo à mostra. O que existia de calma e dignidade naquele cenário não provinha dos seres humanos, mas de bandos de íbis, brancos, pretos e rosa, e de todos os tons intermédios, que caminhavam majestosamente pela praia, sem se incomodarem com as pessoas, parecendo reflectir filosoficamente nas fraquezas da humanidade.

- Vamos acostar na Brucheion ou Régia, explicou Bana Jivaka. - Chama-se-lhe, por vezes, a Área Real e é uma das zonas mais activas da cidade.

- Nunca vi armazéns como estes, confessou José. Nem tanta gente junta. Nem sequer durante a Páscoa, Jerusalém se enche desta maneira.

- Ainda são maiores do outro lado, nas margens do Lago Mareótis. Os transportes do Nilo e da Pérsia e da Costa do Malabar são lá negociados. Espera até veres as barcas de cereais, prosseguiu. - A vida de Roma passa por esta estreita língua de terra entre o lago Mareótis e o mar sobre o qual se encontra Alexandria.

A acostagem de um navio do calado dos grandes navios mercantes redondos de Roma era um processo lento e já tinha passado metade da manha quando José e Bana Jivaka desceram pela prancha de desembarque. A sua bagagem estava já empilhada no cais e foram rodeados por uma horda de carregadores, todos a falar ao mesmo tempo, mas Jivaka escolheu dois rapidamente e deu-lhes instruções sobre o local para onde deviam levar a bagagem. Uma dúzia de liteiras aguardava os viajantes para os levar à cidade, mas, por sugestão do indiano, eles preferiram percorrer a pé a curta distância até ao quarto dele, no bairro grego, ou Rhakotis, onde José ficaria a viver, de momento.

Abandonando o cais, atravessaram as frescas arcadas do Fórum e encontraram-se na grande avenida central chamada Meson Pedion, ou, mais familiarmente, a Rua de Canope. Ladeada por filas de colunas, aquela artéria principal de oriente para ocidente de Alexandria atravessava a cidade ao longo de mais de três milhas e tinha mais de trinta passos de largura. Começando no Portão da Necrópole, que dava acesso, na extremidade ocidental das muralhas da cidade, a uma área cheia de túmulos, mausoléus e uma rede de catacumbas subterrâneas, a longa fita calcetada levava até ao Portão de Canope, no lado oriental, onde um canal conduzia à cidade do mesmo nome noutra das muitas embocaduras do delta do Nilo. Junto ao Portão de Canope, o bairro judeu ocupava quase um terço da cidade, constituindo o maior grupo populacional da grande metrópole, com os seus próprios funcionários e tribunais, assim como liberdade de culto nas sinagogas.

O Rhakotis não se destinava unicamente aos gregos, pois, na realidade, abrigava uma mistura de gente de todas as nacionalidades. Nas ruas estreitas, os altos macedónios acotovelavam os loiros descendentes do exército de ocupação de Gabínio1, constituído principalmente por soldados da Gália que se tinham casado com mulheres alexandrinas e assim aumentado a mixórdia da população da mais cosmopolita das cidades. Pelas ruas calcetadas caminhavam egípcios, italianos, cretenses, fenícios, cilicianos, cipriotas, persas, sírios, arménios, árabes, judeus, indianos, e, ocasionalmente, um cidadão de olhos amendoados do império dos homens amarelos que ficava no extremo oriente, contribuindo para a confusão dos sons. Entre toda a mistura de vozes, apenas havia uma língua comum, o grego diário das pessoas vulgares que quase toda a gente falava, com pronúncias diversas.

Encontrar Maria naquela grande metrópole não ia ser nada fácil, compreendeu José, enquanto atravessavam as ruas fervilhantes de Alexandria, pois cerca de meio milhão de pessoas vivia dentro dos limites da cidade. O seu primeiro desapontamento surgiu no dia seguinte ao da sua chegada, quando se dirigiu ao famoso teatro do Brucheion, mesmo em frente ao porto, e perguntou por ela. Recusaram-lhe bruscamente a admissão à presença do director, e as suas perguntas

 

Auto Gabínto, tribuno romano. (N. do T.)

 

tiveram como única resposta que ninguém com o nome de Maria de Magdala estava ou estivera jamais a trabalhar no Teatro de Alexandria. E era evidente, mesmo sem que lho dissessem, que ela não conseguira realizar a sua ambição de se tornar a principal bailarina do Teatro de Alexandria. Enormes cartazes, dispostos por toda a parte pela cidade, anunciavam que a favorita dos alexandrinos, uma bailarina de nome Flamen, iria trabalhar no teatro todas as noites, a partir da semana seguinte, com um novo repertório de danças jamais visto em palco algum.

Esperando saber algo de Maria no Bairro Judeu, José foi entregar a sua carta de apresentação a Philon, o Judeu, o famoso advogado e chefe dos judeus de Alexandria. Foi recebido cortesmente, com bolos de especiarias e vinho, pelo patriarca de barbas brancas que era considerado o judeu mais influente fora de Jerusalém, e talvez em todo o mundo. Mas nem Philon lhe sabia dizer alguma coisa, para além de que ninguém com o nome de Maria de Magdala vivia no populoso Bairro Judeu da cidade. A conversa voltou-se então para Jerusalém. - Que pensam, na Judeia, de João, o Baptista, que prega a vinda de Cristo? perguntou Philon.

José encolheu os ombros. - Já houve muitos como ele. Alguns afirmam mesmo serem o próprio Messias.

- Mas nenhum com a veemência desse João. Falei recentemente com viajantes do baixo Jordão que o escutaram. Dizem que tem muitos seguidores e que se preocupa muito com o baptismo, afirmando que os homens se devem arrepender dos seus pecados e banhar-se nas águas para se purificar.

- Os essénios1 pregaram uma doutrina semelhante durante muitos anos, observou José.

- João é algo mais do que um essénio, disse Philon. - Alguns dos seus discípulos vieram recentemente a Alexandria e estão a viver entre os Terapeutas. - José tinha ouvido falar dessa seita, um ramo dos essénios da Judeia e da Gali-leia, que viviam nas margens do Lago Mareótis. Tal como todos os essénios, esses homens piedosos observavam a lei oral e escrita em todos os detalhes. Viviam juntos em casas de

 

1 Sectários judeus, cujas doutrinas, austeras e puras, tinham grande analogia com as dos primeiros cristãos. (N. do T.)

 

propriedade comum e obedeciam sob todos os aspectos ao princípio do Chasidim: "O que é meu e o que é teu pertencem-te".

- Como médico, devias estudar, com vantagem, os métodos dos esséníos e dos terapeutas, aconselhou Philon. - Vi curas maravilhosas feitas por eles através da oração. - Colocou a mão sobre o ombro de José. - Vem visitar-me de novo, meu rapaz. Enquanto estás nesta zona da cidade, poderás procurar a rapariga no Eleusis, embora me custe muito pensar que uma judia tivesse alguma coisa a ver com os bêbados e prostitutas que vivem nesse antro do pecado.

Era ainda cedo quando José saiu de casa de Phiíon, pelo que decidiu adoptar a sugestão do jurista e visitar a aldeia de Eleusis. Ficava na orla marítima, mesmo à saída da cidade, com o verde fresco do Pomar de Nemesis entre ela e as muralhas. Para chegar à aldeia José teve que sair da cidade pelo Portão de Canope, pela estrada que levava ao grande Hipódromo, onde se realizavam corridas de cavalos durante os meses de verão e na primavera. AH acorriam os alexandrinos amantes do prazer, aos milhares, na época das corridas, mas, naquele momento, o grande anfiteatro estava vazio.

Para lá do Hipódromo, nas margens do Lago Mareótis, onde cresciam papiros e canaviais, ficava uma aldeia de cabanas baixas e brancas. Quando José se aproximou, reconheceu tratar-se da colónia dos Terapeutas de que Philon lhe falara. Tinha visto muitas daquelas colónias entre os essé-nios, fora de Jerusalém, e esta, apesar do seu nome impressionante, não lhe parecia diferente. As cabanas em que viviam os santos homens eram de vime, feito das canas e das hastes do papiro que crescia à beira da água e cobertas com uma argamassa feita de conchas moídas, colhidas na praia próxima. Vestindo imaculados trajos brancos, os terapeutas faziam o seu trabalho, falando apenas quando falavam com eles. Alguns lavavam-se interminavelmente no lago, porque todos os essénios se preocupavam muito com a limpeza.

Era obviamente inútil procurar Maria entre os terapeutas, por isso prosseguiu até Eleusis. Dedicada ao prazer, e tendo recebido o nome da cidade grega onde nasceram os grandes festivais de Diónisos1 e de outros deuses da história, aquela

 

1 Nome grego de Baco, o deus do vinho. (N. do T.)

 

pequena aldeia era composta especialmente por estabelecimentos de bebidas e jogos, além de algumas casas que abrigavam mulheres de pouca virtude. José não tinha grandes esperanças de encontrar Maria ali e por isso não ficou nem muito surpreendido nem desapontado quando verificou que ninguém a conhecia.

Tinha-se juntado uma pequena multidão no extremo da vila, a escutar um pregador Ítinerante, um homem com olhar de louco, envolto numa toga no género das que usavam os terapeutas. Como bloqueavam a estrada, José foi forçado a parar.

- Arrependei-vos! gritava o pregador. - Porque o reino dos céus está ao vosso alcance. - Era uma exortação bem conhecida, que ele ouvira muitas vezes aos fanáticos que enchiam Jerusalém nos Dias Festivos.

Um homenzinho gordo que estava entre a multidão tocou-lhe no braço. - Tu não és o médico, José da Galíleia? perguntou delicadamente.

- Sim, sou, confessou José. - Como me conheces?

- Foste-me apontado em Jerusalém, quando lá fui no ano passado, explicou o homem, mas nunca esperei ver-te em Alexandria.

- Vim para cá recentemente, para estudar medicina, explicou José.

- Pelo que ouvi dizer em Jerusalém, os alexandrinos pouco podem ensinar-te da tua profissão, observou o outro homem. - O meu nome é Matthat.

- Shalom, Matthat, disse José delicadamente. - Que a tua vida seja longa.

- E a tua também, replicou Matthat, com uma vénia.

- Quem é o pregador? perguntou José.

- Chama-se Eliakim, mas é um discípulo de João a quem chamam o Baptista, porque prega o baptismo pela água.

Os olhos de José brilharam. - Falei com Philon o Judeu sobre João o Baptista há pouco mais de uma hora.

- Homens como estes não servem nem para lavar os pés de judeus como Philon, disse Matthat, com desprezo. - É tudo aquilo que um judeu deve ser. Estes pregadores não passam de fanáticos.

- Eu venho de João, o Baptista, gritava o pregador, agitando os braços. - A sua mensagem para vós encontra-se nas palavras do profeta Isaías:

"A voz daquele que clama no deserto:

Preparai os caminhos do Senhor.

Alisai as suas veredas.

Enchei todos os vales,

Todas as montanhas e colinas deverão ser aplanadas,

O que está torto deverá ser endireitado,

Os caminhos difíceis deverão ser suavizados

E toda a carne verá a salvação de Deus."

- Como podemos escapar à cólera do Todo Poderoso que está para vir? perguntou alguém, de entre a multidão.

O profeta agitou um dedo ossudo na direcção deles. - produzei frutos que gerem o arrependimento. O machado está apontado à raiz das árvores; por isso, cada árvore que não produz bons frutos é cortada e lançada ao fogo. Aquele que tem dois mantos que os partilhe com aquele que não tem nenhum. E aquele que tem comida que faça o mesmo.

- Estes pregadores itinerantes estão sempre prontos a partilhar das recompensas daqueles que trabalham, enquanto eles andam por aí a pregar o inferno e a condenação eterna. - Matthat cuspiu para o chão eloquentemente. - Enojam-me.

- João é o Cristo? perguntou uma voz da audiência.

O pregador ergueu a mão, a pedir silêncio. - Respondo-te com as palavras do próprio João: "Eu baptizo-vos com água; mas está para vir aquele que pode mais do que eu, aquele a quem nem sou digno de desatar as sandálias. Ele vos baptizará com o Espírito Santo e com o fogo. Trará a peneira na mão para limpar a sua eira e juntar o trigo no seu celeiro. Mas queimará o joio num fogo impossível de apagar!"

O pregador terminara e a multidão começou a dispersar. - Pelo menos João tem o bom senso de não se afirmar o Cristo, disse Matthat. - Senão, teria que ser destruído, como os outros impostores que surgiram em Israel.

- Mas supõe que ele é realmente o Precursor de que fala Isaías, sugeriu José. - Isso significaria que a vinda do Messias está muito próxima.

- Os judeus que vivem fora da Judeia e da Galileia cada vez falam menos de um Messias. Talvez um dia governemos o mundo, como os nossos profetas prometeram, mas será pelo controle do comércio e do dinheiro. Com eles, os políticos podem ser comprados e vendidos, e adquirido o poder para governar as nações.

- Podes ter razão, admitiu José. - Muitos se apresentaram como profetas e alguns até afirmaram ser o Cristo.

- Mas nenhum conseguiu provar que tinha sido enviado por Deus, terminou Matthat, triunfante. - Anda, acompanha-me ao meu negócio na cidade. Refrescar-nos-emos com um copo de vinho e falaremos de Jerusalém.

A loja de Matthat ficava situada na Rua do Portão do Sol, em frente da Meson Pedion, mesmo no centro da cidade. No apartamento luxuosamente mobilado adjacente à loja, um escravo expedito serviu-lhes vinho. - Estás talvez a pensar o que fazia em Eleusis um homem que dirige um estabelecimento como este, disse Matthat com um sorriso. - Garanto-te que não andava à procura de uma rapariga.

José sorriu. - Se me fizesses a mesma pergunta, teria que confessar que eu andava à procura de uma rapariga.

O mercador ergueu os sobrolhos. - As mulheres são a mais barata de todas as mercadorias em Alexandria, e também a mais cara. Se quiseres uma mulher, basta-te gritar de uma janela na Rhakotis e serás atropelado por elas.

- Não me compreendeste, disse José.-Ando à procura de uma amiga que vive aqui, ou viveu em certa altura. É cantora e bailarina, uma rapariga muito bela, chamada Maria.

- Judia?

- Parte judia e parte grega. Vem de Magdala.

- Não há qualquer judia chamada Maria de Magdala no teatro, nem aqui nem no Bairro Judeu. Conheço bem a zona. Mas se quiseres ver dançar - o seu olhar iluminou-se - tens que deixar-me levar-te a ver Flamen, quando ela começar a actuar, na próxima semana. Até mesmo um judeu devoto não deve deixar de visitar Alexandria sem ver a mais famosa bailarina do Império Romano.

- O meu propósito ao vir para Alexandria era estudar coisas que não podia estudar em Jerusalém, confessou José.

Matthat sorriu. - Então faremos uma visita ao teatro para estudar as belas mulheres. Acredita-me, haverá pouca coisa a ocultar-te a visão. - Pousou o copo. - Fui ao Eleusis esta tarde para me encontrar com um homem que tem de ter cuidado em não se mostrar na cidade.

- Que queres dizer?

- Aqueles que lidam com oiro e pedras preciosas, explicou Matthat, compram a todos que têm tais coisas para vender. Por vezes é melhor não estarmos muito seguros da identidade dos nossos clientes.

- Ladrões!

Matthat encolheu os ombros. - Se fores tão pouco caritativo que queiras chamar-lhes assim. Eu prefiro lembrar-me que os ricos exploram os pobres obrigando-os a trabalhar com baixos salários, por isso é natural que os pobres roubem os ricos. Se eu ficar entre eles e obtiver lucros por vender coisas roubadas por um rico a outro, quem pode dizer que eu sou ladrão ou explorador?

José riu. - O teu raciocínio confundiria um filósofo grego. Suponho que haja muitos ladrões numa cidade como esta.

- Há mais vivos do que mortos na Necrópole, disse Matthat em tom enigmático. - A polícia afasta-se prudentemente das catacumbas, pois sabem que um homem pode levar uma facada nas costas sem ver quem o atacou. Mas é bom saber-se que se pode sempre encontrar um refúgio contra os romanos na Necrópole, mesmo entre ladrões. Nós, os judeus, temos tido que nos ocultar mais de uma vez.

- "Os homens não desprezam um ladrão, se ele roubar para satisfazer a alma quando tem fome", recordou-lhe José.

Matthat acenou afirmativamente. - Diz o mesmo profeta: "Quem se cala, conserva a alma longe de sarilhos". Lembra-te, José, que podes vir a descobrir que os ladrões podem ser amigos preciosos.

 

Alguns dias depois da sua visita a Matthat, foi um escravo à casa onde José vivia com Bana Jivaka, no Rhakotis, pedindo-lhe que fosse à loja de Matthat imediatamente e levasse os seus instrumentos e remédios. O mercador apenas revelou a José que tinha um amigo doente e que queria que ele recebesse cuidados médicos.

Enquanto esperavam por uma liteira vazia à esquina da Meson Pedion e da Rua do Portão do Sol, na Praça chamada de Omphale1, José teve oportunidade de ver um pouco mais da actividade daquela grande cidade, no seu local mais concorrido. A um dos lados ficava o Bairro Judeu e do outro o Regia, que dava acesso ao Acampamento Real, o Sema, como se chamava ao túmulo-templo onde jazia o corpo de Alexandre num caixão de oiro, e ao palácio, no Promontório de Lochias, com o Templo de Isis ao pé. Era perto do pôr do sol e as ruas fervilhavam de gente, numa constante corrente de carros, carruagens e liteiras, que atravessava a mais movimentada artéria de toda a cidade.

Era ainda cedo para as cortesãs, que raramente mostravam a cara e apenas deixavam ver a parte do corpo que ousavam mostrar antes de chegar a escuridão, mas havia homens por toda a parte. Romanos de rosto avermelhado, a caminho das suas casas, vindos dos banhos, onde passavam a maior parte do dia, acotovelavam arrogantemente gregos e egípcios de pele escura. Um príncipe, togado de branco, das tribos do deserto que viviam para lá do Mar Egípcio, também chamado o Mar Vermelho, avançava por entre a multidão, com um ar altivo, até ser arrogantemente empurrado por um oficial romano que envergava uma armadura magnificamente polida, seguido de dois soldados de espadas desembainhadas, para o caso de o seu chefe se ver envolvido numa das súbitas e confusas brigas que estalavam frequentemente entre as diversas nacionalidades que compunham aquela cidade poliglota. Dizia-se, com verdade, que, numa hora, se podiam ver ali rostos de todas as nações do mundo. E, evidentemente, havia judeus por toda a parte, porque aquela era a mais rica de todas as cidades judias.

Matthat teve de gritar por diversas liteiras antes de conseguir que uma dupla parasse junto deles. Tinha quatro escravos acorrentados aos varais para que não deixassem cair a cadeira e fugissem depois de receber o pagamento. Um pequeno número de homens controlava quase toda a concessão de liteiras públicas da cidade e assim podiam fixar os preços por que alugavam os seus transportes àqueles que deles necessitavam. Os alexandrinos mais ricos tinham, evidentemente,

 

1 Omphale, rainha da Lydia, que desposou Hércules depois de o ter obrigado a fiar a seus pés como uma mulher. (N. do T.)

 

as suas liteiras particulares, transportadas pelos seus próprios escravos, mas qualquer homem podia ser transportado pela cidade, num estilo equivalente à sua fortuna, bastando para tal chamar um transporte de aluguel.

Foram rapidamente transportados ao longo da Rua de Canope até ao Brucheion. Movimentavam-se enxames de pessoas em direcção ao caís e aos seus edifícios, onde tomava lugar, à noite, a maior parte da vida social das massas. Já no Fórum se encontrava uma centena de grupos separados de cidadãos gesticulantes a discutir outros tantos assuntos. E havia viajantes de terras distantes que, rodeados de círculos de ouvintes admirados, relatavam as suas histórias impressionantes. Quando a escuridão caiu, as cortesãs saíram dos seus aposentos nos altos edifícios das ruas que abrigavam os milhares de habitantes do Bairro Grego, e começaram a passear ao longo do Heptastadium, enquanto a brisa marítima moldava os tecidos transparentes contra os seus corpos voluptuosos, pregueados com calculada intenção. Aí, os interessados escreviam nos parapeitos de pedra, com pedaços de carvão, a sua escolha para uma entrevista, não se esquecendo de acrescentar o preço a pagar. E, vendo-o, a mulher escolhida apressava-se a ir ao encontro ou apagava a oferta com desprezo por achar o preço muito baixo.

Através do Rhakotis, a liteira avançou lentamente em direcção ao Portão da Necrópole, perto da qual se situava a biblioteca menor do Museum, perto do Serapeum, o templo dedicado ao deus artificial criado por Ptolomeu, para juntar os cultos a Isis e Osíris. As ruas do Rhakotis eram estreitas, e eles foram frequentemente impedidos de passar por filas de mulas que carregavam grandes odres de vinho e cestos de fruta para serem vendidos nessa noite aos ociosos que enchiam o cais.

No centro do Bairro Grego ficava uma praça aberta onde se situava o mercado, agora quase vazio de provisões, pois já era tarde. As bancadas eram carregadas durante a noite, para ficarem prontas para a multidão que vinha fazer compras de manhã. Mas, ao fim da tarde, não passava de um local confuso cheio de fardos virados e cestos destroçados, onde as frutas e os vegetais esmagados tornavam escorregadias as pedras do pavimento. Nas barracas, os vendedores apregoavam as mercadorias que ainda lhes restavam, um pouco de feijão verde já murcho por ter estado todo o dia ao ar livre, cerejas demasiado maduras, não compradas por clientes experientes quando o produto estava ainda fresco, raízes de lótus, alfaces murchas, cestos de azeitonas, e todos os mil e um produtos alimentícios necessários para satisfazer os variados gostos de tantas nacionalidades.

Perto do mercado havia muitos locais abertos onde se podia comer, e os criados tinham já começado a dispor os seus petiscos para tentar as multidões que enchiam as ruas. Canecas de cerveja, figos e tâmaras secos, bolos chatos, alguns condimentados, outros simples, enguias conservadas, peixe fumado, algo capaz de tentar qualquer apetite - tudo tentadoramente disposto em frente da multidão que tagarelava.

Soavam vozes agudas de mulheres, de andar para andar, nos edifícios elevados, de um lado para o outro das ruas estreitas, rindo, cantando, gritando piadas obscenas ou um franco convite para os homens que passavam em baixo. Eram como os diversos instrumentos de uma poderosa orquestra, a tocar uma sinfonia cujas notas eram as mais terrenas experiências e necessidades da vida humana. Mas, por mais atentamente que escutasse as vozes da cidade, José não ouvia em parte alguma o som de uma voz jovem tão clara como a campainha e cujos sons se assemelhava, ou como o tanger de uma cítara gigantesca, nas danças bárbaras e selvagens do deserto.

Voltando para sul, os escravos transportaram a liteira em direcção ao Portão da Necrópole, que dava acesso à Cidade dos Mortos. Atravessaram o Canal de Agathadaemon, que ia desde o Lago Mareótis até ao Porto do Feliz Regresso, um canal estreito que parecia demasiado pequeno para desempenhar as suas funções na ligação do Oriente com o Ocidente. Contudo, através dele passavam os navios do Alto Egipto, e o canal, terminado por Dario I, entre o Nilo e o Mar Vermelho, ligava os extremos orientais do mundo aos extremos ocidentais para lá das Colunas de Hércules, onde o Mar Ocidental banhava as costas da Britânia, Hibérnia e Caledónia1.

Junto do Portão da Necrópole, Matthat mandou embora

 

1 Britânia - Inglaterra. Hibérnia - Irlanda. Caledónia - Escócia. (N. Do T.)

 

os carregadores e saíram a pé das muralhas da cidade. A sul ficava o Stadium, cenário de alguns dos mais magnificentes festivais religiosos de Alexandria. A Grande Dionisíaca1 anual tinha ali lugar na primavera, celebrando a ressurreição da vida nas sementes depois da sua morte na terra quente, e o início da nova vida no solo, que garantiria uma boa colheita. E também era ali que se realizavam os jogos que os gregos tanto amavam.

Matthat seguiu na direcção oposta, para o local de repouso dos mortos, perto da margem do lago. Para sul do lago Mareótís ficava um subúrbio de víllas apalaçadas que pertenciam aos muito ricos, mas na Necrópole propriamente dita reinava a paz tranquila da noite por entre os túmulos. Custava a crer que ali vivessem ladrões entre os mortos, mas Matthat parecia saber o que fazia, pois conduziu-o ao longo de um caminho calcetado que atravessava o vasto cemitério.

Como todas as cidades da antiguidade, Alexandria enterrava havia muito os seus mortos no exterior das muralhas. Ali, consoante as riquezas terrenas do morto e dos seus parentes, os túmulos variavam grandemente em magnificência. Tinha sido erigida quase uma sólida muralha de mausoléus de mármore ao longo da estrada central pavimentada, cada um deles com a sua tabuleta com a lista daqueles que ocupavam os túmulos. Por trás das ricas fachadas de mármore havia outra fila de túmulos menos dispendiosos, entre os quais se erguiam as altas espiras dos ciprestes e os verdes pinheiros, mais largos. À medida que se afastavam da estrada central, as criptas tornavam-se cada vez menos imponentes e perto das margens do lago havia um vasto campo pontilhado de túmulos, o local de repouso daqueles que eram demasiado pobres para construir um túmulo ou pertenciam a uma das muitas sociedades funerárias. Estas últimas tinham cavado longas catacumbas, por baixo da colina, por trás do lago, de modo que podiam enterrar muitos mortos a diferentes níveis, utilizando assim mais eficientemente o espaço rapidamente decrescente que restava na Necrópole. Qualquer alexandrino que tivesse uma moeda livre por mês podia assim ter assegurado um local de repouso para o seu corpo.

- Confio em que, sendo médico, José, não sintas a aversão

 

Festa em honra de Baco. (N. do T.)

 

que a maioria dos judeus sente pelos mortos, disse Matthat com um sorriso.

-"A morte deverá ser desejada, se levar o espírito para onde este seja eterno", citou José.

Matthat franziu a testa. - Conheci em jovem os livros da Lei e os dos Profetas, mas não me recordo dessas palavras.

- Disse-as um filósofo romano. Chamava-se Cícero. - Bana Jivaka tinha apresentado a José os escritos daquele grande orador, assim como as opiniões de Sócrates e de outros gregos. Tinha ficado admirado ao descobrir que as impressões daqueles filósofos pagãos sobre a vida e a religião eram notavelmente semelhantes às que lhe tinham sido ensinadas.

Matthat parou em frente de uma entrada de mármore com o nome de uma sociedade funerária. Quando se certificou de que ninguém os observava, abriu a pesada porta e fez sinal a José para que o seguisse. Entraram por uma estreita passagem que se curvava para o interior. Ao lado da porta ardia um círio e por cima dele uma fila de archotes por acender. Matthat escolheu um e acendeu-o no círio; depois, erguendo a chama acima da cabeça, começou a descer a passagem com José logo atrás. Fazia frio, ali, debaixo da terra, e o chão estava húmido e escorregadio. - Não estamos muito acima do nível do mar, explicou Matthat, de modo que repassa a água através das paredes.

- Este lugar é mesmo apropriado para os mortos. - José estremeceu. - Os vivos morreriam de tísica.

- Vale mais arriscarem-se à consumação do que serem crucificados pelos soldados romanos, observou Matthat. - Já viste algum homem pregado na cruz, José?

- Uma vez, em Cesareia. Pontius Pilatus executou um fanático que tentou matá-lo.

- Pelo que ouvi dizer, Pilatus é muito rápido a crucificar, disse Matthat. - Não admira que o nosso povo o odeie. Neste clima, os homens podem ficar suspensos durante dias na cruz, antes de morrerem, com as moscas a torturá-los e os ratos a roerem-lhes o corpo de noite. Os ladrões são mais misericordiosos que os romanos. Geralmente conseguem acabar com a desgraça do infeliz, quando os guardas não estão a olhar.

A grande profundidade, chegaram junto de uma porta trancada. Matthat bateu por duas vezes, parou e voltou a bater duas vezes. Alguns segundos depois abriu-se um postigo na porta e espreitou por ele um rosto carrancudo. - Quem é? perguntou uma voz áspera.

- Matthat, anunciou o mercador. - Abre, Manetho, hoje não podemos perder tempo.

A porta abriu-se, mas, quando começaram a entrar, uma espada barrou-lhes a passagem. Matthat disse a José em aramaico: - Este é sempre desconfiado. Eu trato dele.

- Vieste enganar-nos de novo? gritou o homem chamado Manetho. - Que patife trazes contigo desta vez?

- Um médico para tratar o teu pai, disse Matthat severamente. - Afasta-te, palhaço.

- Não precisamos de médicos, rosnou o ladrão. - Hoje fiz um sacrifício a Serapis. Em breve estará bom.

- Achillas pediu-me que trouxesse um médico. Basta de histórias! Quero que José da Galileia o veja.

- Judeus exploradores! - Manetho afastou-se mas cuspiu para o chão, com eloquente desprezo. - Nós corremos os riscos e vós ficais com os lucros.

- E onde estarias se eu não vendesse o que roubas? perguntou Matthat cortesmente. - Outros bandos de ladrões teriam muito prazer em que eu transformasse os seus saques em oiro.

Entraram numa sala razoavelmente larga, aberta na terra e iluminada com lamparinas. Embora fizesse frio, o ar não estava viciado, pelo que José calculou que houvesse uma abertura até à superfície, talvez escondida por um túmulo. Num dos cantos ardia um braseiro, com uma panela por cima, da qual se evolava um odor apetitoso a guisado em efervescência. Estavam reunidos diversos homens em volta do braseiro e, ao canto da sala, estava um velho de cabelos brancos, estendido num leito. Ao seu lado, uma bela rapariga de pele escura, vestida de branco.

- Shalom, Matthat, disse cortesmente o velho. - Dou-te as boas vindas à maneira do teu povo.

- Shalom, Achillas, respondeu Matthat. - Trouxe comigo um bom médico, José da Galileia.

O rosto da rapariga animou-se. Era muito bonita, reparou José, com umas feições finalmente cinzeladas, cabelos escuros que lhe caíam até aos ombros, e uma figura adorável. - Esta é Albina, José, disse Matthat. - Dança no Teatro de Alexandria.

- Bem-vindo sejas, José da Galileia, disse a rapariga numa voz baixa e musical, fazendo uma vénia profunda. - Cura o meu pai desta grave doença e podes pedir-nos tudo o que desejes, até as nossas vidas.

Por trás deles, Manetho troçou: - Judeus! Mas Achillas falou-lhe severamente, e, ainda furioso, ele foi juntar-se aos homens em volta do braseiro. - Perdoa a rudeza do meu filho, peço-te, disse o velho tranquilamente. - É muito grosseiro e envergonha o sangue grego que temos nos nossos corpos misturado com o do Egipto. Tenho estado gravemente doente e a febre não me abandona. Se tivesses um remédio poderoso...

- Deixa-me observar-te primeiro, sugeriu José delicadamente. - Talvez possa fazer qualquer coisa por ti, depois.

Teve pouco dificuldade em fazer o diagnóstico; a doença tinha sido graficamente descrita por Hípócrates cerca de quinhentos anos antes. Primeiro surgia uma inflamação dos pulmões facilmente compreensível num velho que vivia na humidade e no frio. Depois seguia-se a exudação de fluído no interior do peito e a sua transformação numa acumulação purulenta, que envenenava lentamente a vítima. A maioria dos médicos defendia que se devia esperar que o empiema1 atingisse o pulmão, coisa que ocorria em menos de metade dos casos.

Mas Hipócrates e alguns cirurgiões mais ousados depois dele tinham defendido um tratamento mais directo, drenando o derramamento purulento através de uma abertura feita entre as costelas através do peito. José perguntou a si próprio se ousaria defender a aplicação daquele processo ali, na pessoa do chefe de um bando de ladrões, com um filho desconfiado à espera, por trás dele, de um pretexto para intervir.

Hesitou apenas um momento, contudo, porque, fiel à sua profissão, apenas podia recomendar o tratamento que lhe parecesse prometer a esperança de uma cura, fossem quais fossem as consequências para si próprio. Observando-o atentamente do outro lado da cama, a filha do velho, Albina, disse: - Há esperanças; vejo-o na tua cara.

 

1 Empiema, acumulação serosa, sanguínea ou purulenta na cavidade da pleura. (N. do T.)

 

- Sim, concordou ele. - Acredito que teu pai se possa curar. Mas é preciso operá-lo.

Ela disse arquejante: - A faca!

- A faca é para os embalsamadores, rosnou Manetho. - O meu pai não está morto.

- Há uma acumulação dentro do peito dele, explicou José. - Tem que ser drenada ou envenená-lo-á.

- Tenho sentido um peso no peito há muitos dias, concordou Achillas. Faz o que for preciso, José. Mas fá-lo depressa. O veneno já está a roubar-me as forças.

José tinha trazido a pequena caixa em que transportava os seus instrumentos e remédios, de modo que pouca preparação era necessária. De acordo com a descrição de Hipócrates, os espaços entre as costelas do lado direito do peito de Achillas estavam cheios, como que distendidos pela acumulação purulenta dentro da cavidade. Com o velho deitado sobre o lado esquerdo, José esticou a pele entre duas das costelas inferiores por baixo da axila e fez uma rápida incisão através da pele e tecidos gordos até ao músculo, de um só golpe, abrindo uma ferida do tamanho de um palmo.

O sangue jorrou dos minúsculos vasos e Achillas arquejou sob a punhalada súbita da dor. Se Jana Jivaka estivesse ali poderia ter provocado o estranho transe, evitando assim que o velho sentisse a dor, mas José ainda não era perito em fazer surgir aquele estado. Além disso, parecia-lhe aconselhável nada fazer de assustador em face das óbvias suspeitas de Manetho.

Matthat sentira-se mal à vista do sangue e foi a rapariga, Albina, quem ajudou José, entregando-lhe o penso de lã lavada que ele introduziu na ferida para fazer parar o sangue segurando uma lamparina para ele poder ver. Enquanto esperava que os minúsculos vasos se fechassem por coagulação, não pôde deixar de admirar a maneira graciosa de Albina se mover e depois recordou-se de que ela também era bailarina como Maria e tomou nota mentalmente de perguntar a Albina se sabia dela.

Conservando a ferida aberta com os dedos da mão esquerda, José cortou o tecido duro e esbranquiçado por cima dos músculos, a todo o comprimento da incisão, separando as fibras rosadas dos músculos com o punho do escalpelo. Podia ver uma segunda camada de músculos noutra direcção e cortou-os cuidadosamente, para que o efeito cruzado dos tendões não fechasse a abertura através da qual esperava drenar a matéria venenosa.

No fundo da ferida, José sentia agora uma camada tensa que parecia uma pele de tambor. Lentamente, fez deslizar o escalpelo por ela, juntamente com o indicador, até o comprimir sobre o tecido semelhante a pele de tambor. A ponta mergulhou na camada dura e, enquanto ele lentamente aumentava a pressão no punho do escalpelo, sentiu a lâmina cortar a parede quase cartilaginosa do empiema acumulado. Então, um súbito odor nauseabundo revelou-lhe que encontrara o que procurava.

- Santa Mãe de Horus! exclamou Albina. - Como podia ele viver com isso dentro do corpo?

José começou a trabalhar rapidamente, fazendo com que o espesso e malcheiroso aglomerado escorresse para fora da cavidade onde tinha ficado retido. Quando esta ficou vazia, enrolou um quadrado de lã num tubo e enfiou-o na abertura onde actuaria como mecha para impedir as paredes da ferida de fechar demasiado cedo. Toda a operação tinha levado menos de meia hora.

Achillas respirou fundo, apesar da dor.-Ahhh! exclamou. - Já tiraste um grande peso de cima de mim. Fizeste um milagre, José.

- Um milagre não, corrigiu José, uma vulgar operação cirúrgica.

- Mas não uma operação que muitos médicos tentassem fazer, mesmo em Alexandria, disse Albina calorosamente. - Devemos-te as nossas vidas por salvares o meu pai.

- Não quero pagamento, disse-lhe José. - São amigos de Matthat, que é também meu amigo. Isso basta-me.

- Não, disse Achillas com firmeza. - Sei que está escrito nos antigos livros dos judeus que em todo o trabalho há um lucro. Traz-me a bolsa pequena da arca aí do canto, Albina.

José estava a lavar as mãos quando a rapariga voltou. Enquanto as secava, Achillas lutou com os atilhos da bolsa e colocou qualquer coisa na palma da mão. - Toma, disse ele, entregando-a a José. - Seria o dote de Albina.

- Não tens que hesitar, acrescentou. - Foi comprada, não roubada.

José não tinha outra alternativa além de aceitar a oferta, para não ofender o velho. Era uma grande pérola, quase do tamanho de um ovo pequeno. - Não queres aceitá-la outra vez como presente meu? perguntou à rapariga. - Não desejo ser pago por ter ajudado o teu pai.

Mas a bela bailarina de pele escura abanou a cabeça. - A vida do meu pai vale mais para nim do que as jóias. Fica com ela, peço-te, como oferta de ambos. Ganhaste-a dez vezes.

José colocou a pérola na sua bolsa. - Vou vendê-la, então, disse-lhes, e dar o dinheiro aos pobres. - Enquanto guardava os seus instrumentos e remédios, Viu que o rosto do ladrão jovem, Manetho, estava negro de raiva. E, quando deixavam Necrópole, Matthat avisou-o: - julgo que subestimei Manetho, José. Seria capaz de te enterrar uma faca nas costelas para apanhar aquela pérola. Dá-ma para a vender e eu farei com que ele saiba que já não a tens. O dinheiro estará seguro num agiota e ganharás juros, até voltares a Jerusalém.

José entregou a jóia de boa vontade a Matthat, pois não tinha desejo algum de que o seu corpo fosse encontrado a flutuar no Canal de Agathadaemon, na manhã seguinte.

No canal, Matthat chamou um dos barcos de aluguer que faziam carreira, de um lado para o outro, entre o Lago Mareótis, o Porto do Feliz Regresso e a parte principal da cidade. José deixou-o aí e voltou ao Rhakotis sozinho. Dizia-se que os alexandrinos dormiam de dia e se divertiam durante toda a noite; olhando em volta de si, nessa noite, José bem podia acreditá-lo. O tempo estava ainda quente embora o inverno se estivesse a aproximar e o tagarelar de vozes em todas as línguas do mundo enchia o ar. Marinheiros musculosos e pescadores de cais caminhavam de braço dado pelas ruas estreitas. Aqueles que vinham em sentido contrário eram forçados a enfiar-se em portais para se protegerem ou então sujeitavam-se a ficar estendidos no chão calcetado da rua. Em quase todas as esquinas havia lojas de bebidas das quais vinham gritos e risos grosseiros, misturados com os guinchos agudos e felizes das mulheres que se aglomeravam no interior com os homens.

Tinha sido numa noite quente como aquela, recordou-se José, que tinha acompanhado Maria, pelas ruas de Magdala, até à casa de Demetrius, e ela o tinha beijado antes de entrar. Conseguiria encontrá-la naquela cidade fervilhante de gente? perguntava a si próprio. A busca parecia-lhe sem esperanças, uma vez que ela, aparentemente, tinha falhado na sua ambição de se tornar figura importante no Teatro de Alexandria, e ele não sabia em que outros locais procurá-la.

Podia mesmo ter abandonado a cidade, desapontada talvez ido para Efeso, Antióquia ou até Roma, todas cidades com grandes teatros.

Obedecendo a um impulso, para ir ver se conseguia saber algo de Maria no cais, José tomou por uma rua que levava ao Grande Porto. Os mastros de centenas de navios eram sempre visíveis das ruas que levavam ao porto, e, se Maria tinha partido para Roma ou outra cidade, teria tido que fazê-lo a partir do grande cais.

Quando chegou ao molhe perto do Heptastadium, José parou, admirado. Era a primeira vez que ali vinha à noite, e não esperava ver um tal espectáculo. Um espelho reflectia, para o lado do mar, a luz das grandes fogueiras acesas todas as noites na plataforma superior do Pharos, mas as chamas eram suficientemente brilhantes pra iluminar o porto e a grande e larga passagem que conduzia à ilha na qual o farol se erguia. Pelas ruas que levavam ao cais e na referida passagem movia-se uma enorme multidão - a maior que José jamais vira - no passeio nocturno dos alexandrinos, um espectáculo impossível de ver em qualquer outra parte do mundo.

Na Judeia, as mulheres não saíam à noite, excepto acompanhadas pelos parentes masculinos. Naquela multidão, porém, misturavam-se mulheres sós de todas as nacionalidades, de todas as cores, de todos os níveis sociais, porque o Heptastadium era, na realidade, o ponto de encontro de todos os alexandrinos. Uma altiva matrona romana avançava indolentemente, toda enfeitada, talvez ao encontro de um amante, acompanhada por uma escrava cor de carvão, nua a partir do pano branco de neve que lhe envolvia o corpo como uma saia. Quase tocando na respeitável matrona, passou uma cortesã, com o andar peculiar e ondulante da sua tribo, de faces pintadas com antimónio, pálpebras a escorrer de pó negro, lábios avivados a carmim, olhando ousadamente para os homens que encontrava e sorrindo, em convite, a todos os que lhe pareciam prósperos. Egípcios de pele escura acompanhavam loiros descendentes dos soldados para ali levados por Alexandre e, muito mais recentemente, pelas legiões de César. Na realidade parecia a José que havia mais cortesãs do que mulheres respeitáveis em Alexandria, o que não estava longe de ser verdade.

Numa comunidade judaica, aquelas mulheres pintadas seriam apedrejadas por uma populaça indignada, mas, embora José instintivamente voltasse a cabeça ao vê-las, não conseguia deixar de sentir o pulso acelerar-se ao ver aqueles corpos encantadores meio revelados pelas gazes diáfanas, ou as pregas dispostas habilmente de modo a deixarem inteiramente nu um belo seio. Para que a tentação não viesse a tornar-se superior à sua vontade, José voltou para os cais propriamente ditos, onde o trabalho da carga e descarga de navios prosseguia de dia e de noite. Se Maria tivesse deixado Alexandria, talvez alguém, de entre os marinheiros que navegavam regularmente para todos os portos do Império, se recordasse dela e de Demetrius, ou, pelo menos, da altura e do perfil de falcão do nabateu, Hadja.

Parou para falar com comerciantes fenícios, homens altos de cabelos compridos e narizes protuberantes, que guardavam os fardos empilhados dos ricos tecidos de púrpura usados para os uniformes romanos, mas nada conseguiu saber. Depois foi interrogar marinheiros que tinham ultrapassado as Colunas de Hércules até à terra chamada Britânia, regressando com grandes carregamentos de âmbar e estanho, mas nada conseguiu saber.

Todos os produtos que os homens negociavam em todo o mundo se encontravam nos cais maciços daquele grande porto livre, onde não se pagavam taxas sobre as mercadorias em transbordo para outros destinos. Tecidos de seda e panos mais baratos de algodão, do longínquo domínio dos imperadores Han; macacos, pavões e jóias preciosas dos portos do Malabar; especiarias e incenso precioso das cidades da Arábia; marfim e oiro da terra dos negros chamada Núbia - estas e centenas de outras mercadorias enchiam os cais e os grandes armazéns. Longas filas de escravos subiam e desciam as pranchas sob o chicote dos vigilantes, transportando cargas mesmo durante a noite. Porque as rotas marítimas de todo o mundo partiam deste porto fervilhante e do celeiro sem fundo do Vale do Nilo, brotava uma torrente infindável de grãos para Roma e para os seus soldados. Mas nenhum dos comandantes dos navios se recordava de ter transportado como passageiros uma rapariga cujo cabelo era vermelho como o pôr do sol no lago Mareótis, um gordo músico grego e um homem dos desertos.

 

Embora José se sentisse desapontado em relação à procura de Maria, não se sentia infeliz quanto ao outro propósito da sua vinda para Alexandria, ou seja, aprender mais sobre a sua profissão. Sob a tutela de Bana jivaka, conseguiu alcançar directamente a nascente daquela rica fonte de conhecimentos, o Museum, que se situava entre a Rua de Canope e o cais. Na realidade, o Museum fazia parte de um edifício maior ou palácio das ciências e de outras matérias. Os professores tomavam as suas refeições num vasto átrio para o qual abria uma série de arcadas onde os estudantes passeavam e conversavam com os professores entre as palestras. Perto ficavam as salas onde os conferencistas discursavam.

Num terreno mais elevado entre o Museum e o Promontório de Lochios ficava o famoso Teatro de Alexandria. Dos lugares superiores, os patronos podiam observar a paisagem do vasto panorama do porto, uma floresta de mastros de navios, e o grande farol na ilha que formava a fronteira marítima. Ao lado do Teatro erguia-se o Templo de Pan, e, a ocidente, o grande ginásio, cujos pórticos tinham mais do que um estádio de comprimento. Para lá do ginásio ficavam os Tribunais da justiça.

José passava os seus dias no Museum, vendo os médicos-professores tratarem os doentes que ali se juntavam, vindos de todas as áreas da cidade. Enquanto os professores diagnosticavam e tratavam cada caso, iam falando para um semi-círculo de estudantes, de pé, em volta do paciente. Menos frequentemente faziam-se operações cirúrgicas, mas, nesse campo, nenhum dos professores era capaz de igualar a perícia e a ousadia de Bana Jivaka ou os ensinamentos do grande Susruta, cujos preceitos ele escrupulosamente seguia.

As tardes eram dedicadas a conferências sobre a ciência e astronomia, nas quais a escola de Alexandria levava a palma a todo o mundo. Ali Euclides tinha demonstrado os seus famosos teoremas de geometria. Também ali Eratóstenes tinha levado a cabo o espantoso feito de medir a terra. E, sob as mesmas arcadas frescas, Aristarco de Samos estudara as estrelas à noite e desenvolvera a sua espantosa teoria de que a terra e os planetas giravam em volta do Sol.

À medida que os dias passavam, José descobria que aprendia mais com Bana Jivaka que com os professores da Universidade. Sob a tutela do seu amigo tornou-se adepto da aplicação do estranho transe no qual o cirurgião era capaz se executar graves operações sem dor. O paciente limitava-se a olhar para um objecto brilhante, como a jóia usada por jivaka, enquanto a vontade do médico gradualmente vencia a sua, através da sugestão repetida de que ele ia adormecer. Por intermédio de um estudante egípcio, soube que aquele sistema não se limitava à índia, sendo conhecido havia milhares de anos pelos sacerdotes do Nilo.

Trabalhando em conjunto, José e Bana Jivaka levaram a cabo muitos feitos de cirurgia, de tal modo que a sua reputação em breve se espalhou por toda a cidade e vieram procurá-los pessoas de todos os bairros. Deste modo José fez amigos e ganhou a gratidão de pessoas de posição elevada entre aqueles que governavam a grande metrópole, mercadores que dirigiam os bazares, negociantes de moedas estrangeiras, cujos escritórios ficavam nos grandes entrepostos, gente da sua própria raça do Bairro Judeu, e, depois do seu êxito com Achillas, até dos ladrões e dos pequenos delinquentes que havia por toda a parte.

A cura de Achillas foi perfeita e sem complicações. José visitava-o todos os dias, durante a primeira semana, e, na segunda, ele estava já tão bem que apenas necessitava de um exame ocasional da ferida em vias de sarar.

Fiel à sua promessa, Matthat veio algumas semanas mais tarde buscar José para o levar ao teatro, onde as sessões começavam a meio da tarde e prosseguiam até já ter caído a escuridão. O drama e a dança eram as diversões favoritas dos alexandrinos, amantes do prazer, e aglomerava-se uma grande multidão nas ruas, dirigindo-se para as maciças paredes de pedra do grande teatro perto do cais.

- É sempre assim quando a Flamen dança, explicou Matthat, enquanto eram empurrados pela multidão. - Os frequentadores do teatro adoram-na. Nunca houve outra como ela em Alexandria.

- É uma cortesã? José tinha sabido que as actrizes de Alexandria, como no resto do mundo, pertenciam geralmente a essa classe.

Matthat encolheu os ombros. - Há quem diga que não. Os homens que procuraram os seus favores e foram repelidos afirmam que é virgem. Seja ela o que for, o seu poder sobre os homens é superior ao de qualquer outra mulher de Alexandria. Já é rica devido aos presentes dos ricos que procuram obter os seus favores.

- Porque a procuram, se ela os recusa?

Matthat sorriu. - És médico. Deves conhecer suficientemente bem a natureza humana para compreenderes que um homem é capaz de se arruinar por uma bela mulher que o repele, quando em breve se cansaria dela, se cedesse. Cortesã ou não, essa Flamen é esperta e tem sangue frio. No ano passado, o cobrador de impostos Flavius perdeu a sua posição por roubar dinheiro dos impostos para lhe comprar presentes. No dia em que ele foi descoberto, ela voltou-se para outro homem mais rico.

Matthat tinha comprado bilhetes que lhes davam direito a um lugar na grande cavea, ou auditório. Entraram pelas passagens, chamadas paradoi, que separavam os actores da audiência, e avançaram por outra passagem que delas irradiava, até uma fila de lugares a curta distância do palco. As primeiras filas estavam reservadas à nobreza e aos muito ricos. Por cima das aberturas por onde entrava a multidão, encontravam-se dois camarotes enfeitados, chamados tribu-nalia, destinados a dignitários ainda mais importantes.

- Um dos tribunalia está sempre reservado pelo actual pretendente de Flamen, explicou Matthat. - Como podes ver ela só se interessa por homens muito ricos. Ninguém se pode permitir pagar um tal lugar noite após noite.

José olhou em volta, com curiosidade, porque era a primeira vez que entrava num teatro. Em frente da scaena, ou palco, havia uma vasta plataforma semicircular, a orquestra, onde o coro cantava e dançava e em frente do qual se sentavam os músicos. Estes estavam a afinar os seus instrumentos quando José e Matthat entraram.

Uma grande divisória separava a audiência do palco, mas, pouco depois de eles se terem sentado, desceu por uma abertura no chão, na extremidade da scaena, revelando o palco com o seu cenário pintado, ou skene. Quanto a maquinaria de palco havia pouca, com excepção da eccyclema, uma plataforma com rodas que era empurrada pelo palco, quando necessário, apresentando cenários especiais.

O auditório enchia-se rapidamente e o troar das conversas enchia o ar. Era realmente um belo espectáculo, porque o vasto teatro semi-circular era uma parada de cores, desde as túnicas dos homens até aos trajos berrantes das mulheres que os acompanhavam. Os vendedores ambulantes circulavam nelas coxias, vendendo doces e pequenos odres de vinho com que um espectador sedento se poderia refrescar. As pessoas gritavam alegremente umas para as outras, dos seus lugares, relatando a última bisbilhotice ou o último escândalo mais saboroso.

Pouco depois, os músicos começaram a tocar os coros de abertura, mas o ruído das conversas pouco diminuiu. Felizmente José e Matthat estavam perto da orquestra, de modo que conseguiam ouvir a música, além de terem uma boa visão do palco propriamente dito. Apareceu, em seguida, um grupo de pelotiqueiros, lançando destramente espadas uns aos outros e apanhando-as pelos punhos com espantosa habilidade. Depois deles, uma rapariga com um peitoral coberto de jóias e uma cinta doirada, fixou uma série de espadas no chão e dançou entre elas agilmente, não se espetando nelas, ao que parecia, por escassos milímetros.

Veio então a primeira peça. Era um mimo, um daqueles curtos dramas escandalosos, cheios de duplos sentidos e apartes francos para a assistência. Os personagens básicos destes dramas mundanos eram a mulher infiel, o amante elegante e efeminado, o marido cornudo e a alegre coquette. O papel desta última era desempenhado por uma jovem que conseguiu grande sucesso entre a assistência levantando as saias sempre que possível. A audiência gostava imenso de tudo aquilo, gritava a sua aprovação e entretanto não parava de conversar.

Seguiu-se um grupo de raparigas vestindo túnicas transparentes que sairam a correr da orquestra com grinaldas de flores na cabeça e liras doiradas na mão. Cantaram uma terna canção de amor e depois, depondo as liras na beira do palco mais alto, começaram a dançar. Todas eram muito graciosas e constituíam um espectáculo encantador, com os seus vestidos vaporosos e reveladores.

Após o bailado veio outro mimo, desta vez a Farsa de Atelian com os seus personagens altamente cómicos, o palhaço chamado Bucco, o bobo Pappus, um simplório chamado Maccus, e o sábio Dossemus. Depois de os músicos iniciarem uma estranha e fantasmagórica melodia que José nunca tinha ouvido e que Matthat lhe disse ser uma canção do antigo Egipto, uma rapariga de pele escura correu para o centro do palco e fez uma vénia, tocando no chão com as pontas dos dedos. Quando ergueu os braços ondulantes e ficou erecta, José viu, com espanto, que se tratava de Albina, a filha de Achillas.

- Depois de Flamen, Albina é a melhor bailarina que temos, observou Matthat. - E uma linda rapariga, além disso.

A rapariga de pele escura usava apenas um pano de seda branca em volta das ancas, mas ficava tão encantadora com aquele trajo que José não achou imoralidade na exposição do corpo. A dança dela era-lhe desconhecida e composta por posições estilizadas com os dedos juntos e as mãos estendidas em inúmeras posições exóticas, mas a audiência gostava imenso, especialmente os egípcios, e José calculou que fosse a favorita do povo dela. Quando terminou, os aplausos encheram o teatro e ela voltou a fazer uma vénia à assistência.

O espectáculo prosseguiu, porque um programa normal no Teatro de Alexandria durava quatro horas. Finalmente, um bando de negras africanas dançou estranhas e sensuais danças tribais do seu povo, com os corpos nus a brilhar de suor à luz de uma fogueira realmente acesa num grande vaso de cobre no meio do palco.

- A Flamen deve estar a aparecer, disse Matthat. - O seu actual pretendente já está no camarote.

José olhou para o lugar na tribunalia que até então estivera vazio, e viu que um homem alto com um rosto frio e duro ali se instalara. O romano tinha as têmporas grisalhas mas era um homem muito elegante, um patrício em todas as linhas altivas do seu rosto.

- E o gymnasiarchus Plotinus, explicou Matthat. - Ouvi dizer que já gastou milhares de denáríos com Flamen. - José tinha estado em Alexandria o tempo suficiente para saber que um gymnasiarchus, como chefe do grande gymnasium que constituía o centro das actividades sociais da cidade, assim como de grande parte da sua vida política, era um dos homens mais importantes de Alexandria.

- Que faz essa Flamen para se tornar tão popular no teatro? perguntou José com curiosidade. - Dificilmente poderá usar menos roupa que as bailarinas que actuaram antes dela.

- Usa mais. Dizem que quando veio para Alexandria o director queria que ela dançasse nua como as outras, mas ela recusou-se. Espera até a veres e compreenderás a magia que exerce sobre a multidão, embora mais vestida do que muitas das mulheres da assistência.

A última das bailarinas negras deixou o palco e o "pano" maciço ergueu-se, gemendo, das profundidades. Já estava a anoitecer e os criados começaram a acender archotes de ambos os lados do palco, enquanto se ouvia um murmúrio da multidão, ansiosa pela atracção principal. Depois, tão lenta e pesadamente como subira, o "pano " desceu de novo e surgiu um cenário de feérica beleza.

Um jardim de flores montado sobre oeccyclema tinha sido empurrado para o palco, enquanto o "pano" estava descido. Havia um banco no jardim ao lado da pequena fonte que corria tão naturalmente como se fosse verdadeira, e as flores estavam habilmente dispostas por forma a parecer que cresciam em volta dela. A simples beleza do cenário provocou espontâneos aplausos da audiência.

Quando os aplausos morreram, surgiu, de trás da árvore engalanada de flores ao lado do banco, uma mulher com uma lira entre as mãos. Vestia uma túnica justa ao corpo de um branco ofuscante, presa em volta da cintura e por baixo dos seios com fitas prateadas, e, nos seus cabelos de um vermelho chamejante, havia um diadema de jóias que brilhavam à luz dos archotes ao lado do palco. Os aplausos trovejaram por todo o teatro, de novo, e ela esperou pacientemente que acabassem, antes de tanger as cordas da lira e começar a cantar. A canção que chegou aos ouvidos de José era sua conhecida, tão conhecida como quando a ouvira pela primeira vez nas ruas de Tiberíades:

"Hei-de entrelaçar violetas e folhas de mirto; Hei-de entrelaçar narcisos com brilhantes lírios; Hei-de entrelaçar o doce açafrão com o jacinto azul; E finalmente, a rosa, símbolo verdadeiro do amor: Fará que todas formem uma bela grinalda, Para enfeitar as doces tranças d'Heliodora".

 

Ouvindo-a cantar, bebendo a sua beleza com os olhos e os ouvidos, José notou que Maria tinha mudado, durante os anos que haviam passado desde que deixara Magdala. Não só o seu corpo se tornara mais o de uma mulher, perdendo as suas formas de rapariguinha, como também a sua voz amadurecera. Dantes era bela, com notas tão cristalinas como a campainha da mais fina prata já produzida pelos soberbos artesãos do Efeso, que não tinham par em todo o mundo, mas agora os seus tons eram mais ricos e mais profundos, a sua voz era capaz de acelerar o pulso dos homens e fazer o sangue pulsar nas suas têmporas.

Era fácil ver por que motivo captava a admiração das multidões fatigadas de Alexandria, pois, olhando em volta, por todo o teatro, José não conseguia ver uma mulher que se lhe aproximasse em beleza e em encanto pessoal, embora ali estivessem, naquela noite, as mais famosas cortesãs de todo o Egipto. O gymnasiarchus Plotinus estava inclinado para a frente, no seu camarote, e, quando ela terminou a canção, José viu Maria olhar para a tribunalia onde ele se encontrava e sorrir-lhe, antes mesmo de fazer uma vénia perante os aplausos troveja'ntes da audiência.

- Não é encantadora? perguntou Matthat.

- Ainda mais do que há cinco anos, disse José, sem tirar os olhos da figura branca no palco.

- Cinco anos? - Os olhos de Matthat abriram-se de espanto. - Queres dizer que ...

- A mulher a quem chamam Flamen em Alexandria é Maria de Magdala, a rapariga que eu tenho andado a procurar.

Os olhos do mercador pareciam saltar-lhe das órbitas. - Então porque não conseguias encontrá-la?

- Já não usa o seu nome. E parece não ter dito a ninguém que era judia.

Matthat acenou prudentemente com a cabeça. - Foi esperta. Os judeus não são amados, nem sequer em Alexandria, onde somos superiores em número a todos os outros povos. E romano algum se casaria com ela se soubesse que era judia.

- É apenas meio judia, explicou José. - E foi criada como grega. - Mas não conseguia reprimir totalmente o desapontamento que sentia por Maria ter preferido negar a ancestralidade hebraica de que ele sentia tanto orgulho.

- Flamen, disse Matthat, pensativo. - O archote. Dificilmente poderia ter escolhido um nome mais adequado para dançar. Por vezes, parece realmente um archote a arder.

- Foi um músico nabateu chamado Hadja quem lhe deu esse nome, explicou José. - Chamava-lhe a Chama Viva. Era natural que ela tomasse o nome de Flamen para entrar para o teatro. Foi estupidez da minha parte não pensar nisso.

Os aplausos tinham esmorecido e, quando os instrumentos de corda da orquestra atacaram uma melodia suave e saltitante, Maria começou a dançar. Era o mesmo bailado que tinha apresentado perante Pontius Pilatus e os seus convidados, mas José nunca o tinha visto. Enquanto ela se movia pelo palco, ia imaginando a cena que estava a pintar com a arte consumada do seu corpo, tão claramente como se ele voltasse às margens do lago de Genesaré, e visse o relâmpago através dos cumes escuros e tempestuosos e ouvisse o tamborilar da chuva de Marheshvan varrendo as águas e acariciando as margens com a sua promessa de uma colheita fértil. O rapaz e a rapariga poderiam ter sido ele próprio e Maria, de novo em Magdala, eras antes, parecia-lhe agora.

Matthat respirou fundo. - Nunca a vi dançar isto antes. Quase se pode sentir de novo o cheiro da chuva nas colinas da Galileia.

Finalmente a música morreu e a adorável figura de cabelos cor de fogo deixou-se cair lentamente no chão do palco, com os braços estendidos para a frente, enquanto a multidão irrompia uma tempestade de aplausos. Os homens puseram-se de pé e atiravam ao ar com os odres vazios e as folhas secas em que tinham sido embrulhados os doces, gritando a sua aprovação. Maria permanecia no centro do palco, curvada numa vénia, aguardando pacientemente que o tumulto esmorecesse. Não havia qualquer dúvida no espírito de José de que, com o nome de Flamen, ela alcançara o êxito que tanto desejara. Transformada em ídolo pela populaça de Alexandria, tendo a seus pés um dos seus mais importantes cidadãos, o gymnasiarchus Plotinus, nada lhe devia faltar.

Quando o tumulto acalmou, a música iniciou outra melodia, um ritmo gemente e sensual. Agora o corpo de Maria era uma promessa da eterna atracção feminina para o homem. Sob o feitiço, até o som da respiração da vasta assistência pareceu tornar-se mais profundo e invadido pelo desejo, porque havia no seu corpo a promessa de todas as delícias de um paraíso pagão.

- Dizem que Salomé, a filha de Herodes, dança assim para os seus amantes, disse Matthat com voz rouca. - E já vi isto dançado por muitas mulheres nuas do oriente. Mas as roupas que Flamen usa tornam-na dez vezes mais desejável.

José ergueu o olhar para a tribunalia. Plotinus estava inclinado para a frente, com os olhos fixos na sedutora e ondulante figura que dançava no palco. O rosto do romano estava pálido e tinha a testa coberta de suor. Num súbito momento de penetração nos pensamentos do homem, José compreeendeu que Plotinus ainda não tinha possuído Maria de Magdala. Um homem não podia desejar com tão impressionante intensidade um fruto que já tivesse provado. Contudo, a ideia pouca alegria lhe trouxe.

- Como podes estar tão calmo, José? perguntou Matthat com voz rouca. - Tu amas aquela rapariga. Não estás consumido pelo mesmo desejo que Plotinus, lá em cima?

Lentamente, José abanou a cabeça. - Flamen é mais bela do que era Maria de Magdala, confessou. - Mas a mulher que ali está a dançar não é a mesma. Um espírito perverso apoderou-se dela.

- Um espírito perverso que todos os homens que aqui estão, excepto tu, dariam a alma para possuir. Não admira que ela consiga fazer o que quer dos homens.

A dança chegou ao seu climax inevitável e Maria saiu a correr do palco. Mas a multidão gritou por ela, uma vez e outra, e foi forçada a voltar diversas vezes antes de a deixarem partir. Quando, finalmente, o grande "pano" começou a subir lentamente da sua abertura no chão, José ergueu-se. - Quero falar com ela, disse. - Sabes como se vai para os bastidores?

- Claro. Albina por vezes janta comigo, depois do espectáculo.

Por trás do grande palco tudo parecia confusão, enquanto eles procuravam o camarim de Flamen. Passavam a correr mulheres escassamente vestidas, os cenários eram mudados, pois no dia seguinte haveria outro espectáculo, e os músicos saíam do teatro com os instrumentos debaixo do braço. À entrada de um curto corredor que levava ao camarim da principal bailarina tinha sido pintado um archote na parede. Por baixo dele estava um soldado romano, de armadura polida, com o timbre pessoal do gymnasiarcbus sobre o elmo, por baixo das águias romanas. Tinha na mão a espada desembainhada e, quando Matthat e José se aproximaram, atravessou a lâmina na passagem, impedindo-os de se aproximarem.

- Eu queria falar com a bailarina Flamen, disse José delicadamente. - Somos velhos amigos da Galileia.

- Ninguém visita Flamen sem permissão do gymnasiar-chus, disse o soldado com um ar maçado, como se aquilo estivesse sempre a suceder. - Desapareçam.

- M ... mas ...

- Não ouviste o guarda, judeu? perguntou uma voz áspera por trás dele. José voítou-se e viu Plotinus, à distância de uma jarda. De perto, o rosto do gymnasiarchus era ainda mais frio e mais severo do que visto no camarote.

- Ouvi, disse José, no mesmo tom delicado. Poderia mandar dizer a Flamen que está aqui José da Galileia para a ver? Tenho a certeza de que me receberá. Somos velhos amigos.

- Flamen nunca teria por amigo um judeu, disse Plotinus com desprezo. - Conheço o Matthat e sei que é um vendedor desonesto de jóias roubadas. Pensas vender-lhe alguma coisa com esse truque?

- Nada temos para vender, protestou Matthat, e José acrescentou: - Já te disse que a conheço da Galileia.

- Silêncio, cães judeus! exclamou Plotinus, cujo rosto se avermelhou de cólera. - Ousas insultar Flamen insinuando que ela já ouviu sequer falar do teu maldito país? - Trazia uma luva de metal e uma súbita luz assassina brilhou no seu olhar. Nem por um momento ocorrera a José que Plotinus o atacasse, de modo que foi apanhado totalmente desprevenido pelo impacto do punho protegido de metal contra a sua têmpora. Sentiu uma dor súbita e aguda quando o metal cortou a pele, e depois mergulhou na escuridão.

A princípio, José pensou que estava de novo nos aposentos onde vivia com Bana Jivaka no bairro Rhakotis de Alexandria. Era noite, porque brilhava uma lamparina num suporte de parede e a sala era igual àquela onde eles viviam, um dos milhares de quartos dos prédios de muitos andares que constituíam o Bairro Grego. Contudo, havia algo de diferente naquele quarto, um toque diferente nos cortinados das janelas, as almofadas coloridas do leito onde jazia, e um suave perfume no ar.

Algo se movia no canto oposto e ele conseguiu distinguir uma graciosa figura vestida de branco. Por um perturbante momento, pensou que fosse Maria, mas, quando a rapariga penetrou no círculo de luz da lamparina, reconheceu a pele escura e as feições finamente cinzeladas de Albina, a bailarina egípcia, que era filha de Achillas, o ladrão.

- Decidiste acordar? - Os dedos de Albina tocaram-lhe na testa, e ele apercebeu-se de que tinha a cabeça ligada. Começou então a recordar-se do que sucedera até Plotinus o ter abatido.

- Estive muito tempo inconsciente? perguntou a Albina.

- Quase seis horas, pelo relógio de água. Vi Plotinus bater-te no corredor que levava ao camarim de Flamen e Matthat e eu trouxemos-te para aqui inconsciente.

- Quem me ligou?

- O teu amigo, o médico do Malabar. Matthat foi buscá-lo. Ele garantiu-nos que estavas apenas atordoado e acordarias mais tarde, pelo que achámos melhor que ficasse aqui.

- Mas já é noite. - Tentou sentar-se com a ajuda dos cotovelos, mas o quarto começou a girar. Albina inclinou-se rapidamente e passou-lhe o braço em volta dos ombros, fazendo-o reclinar-se suavemente sobre as almofadas. - É quase manhã, disse ela, mas que importância tem isso?

- Passámos aqui toda a noite sós?

- A maior parte dela. - Sorriu. - Eu não me importo. Porque havias tu de importar-te?

- E a tua reputação?

Ela encolheu os ombros. - Sou bailarina do teatro. Toda a gente pensa que nós somos cortesãs, quer o sejamos quer não, por isso começamos em breve a deixar de nos interessar pelo que pensam de nós. Agora é ficares quieto.

- Ma... Flamen soube que eu ia procurá-la? perguntou.

Albina abanou a cabeça. - Plotinus é loucamente ciumento. Posta um guarda em frente do camarim dela quando ela vai ao teatro, e ninguém pode entrar, nem sequer o director. Não devias ter tentado vê-la no teatro, José. Piotinus podia ter-te morto se Matthat e eu não te tivéssemos levado dali.

Pode fazer quase tudo o que lhe apetece em Alexandria. Dizem que até o governador obedece às suas ordens.

- Mas eu andava à procura dela há semanas protestou José.

- Então é verdade o que disseste sobre a Galileia? Talvez, pensou José, já tivesse falado demais. Se Maria não queria que se soubesse em Alexandria que era parcialmente judia, era seu dever, como amigo, não revelar o seu segredo. - Talvez eu esteja enganado, disse desajeitadamente, mas era demasiado honesto para mentir.

- Eu sou uma das poucas pessoas que sabem que Flamen tem sangue judeu, explicou Albina. - Éramos muito amigas quando ela chegou. Eu era a primeira bailarina, então, e ela fazia parte dos coros, mas em breve me ultrapassou.

- A maioria das pessoas odiá-la-ia por isso.

A bailarina abanou a cabeça. - Flamen é uma grande artista, a maior que já conheci. Ninguém poderia odiá-la pelo dom que os deuses lhe deram. Mas não tem alma; isso é que não posso perdoar-lhe.

- Porque dizes isso?

- A mulher foi destinada a preencher uma grande necessidade do homem, José. Nos seus braços, ele pode encontrar o alívio dos cuidados do dia, e ela pode dar-lhe filhos fortes, para que a sua linha não morra. Mas uma mulher que agita as paixões dos homens para não os satisfazer e para delibe-radamente as usar para seu próprio lucro, é desonesta.

- Então é verdade que ela não se entrega aos homens que a perseguem?

Um olhar de dor e desapontamento surgiu nos seus belos olhos escuros. - Tu ama-la, também, não é verdade, José? disse suavemente.

- Amei-a durante muitos anos, explicou ele, mas não à mulher que dançou esta noite. Era uma - rapariga, então, encantadora e pura. Agora...-Não terminou a frase. A ideia daquilo em que Maria se tornara fazia-o sofrer.

- Custa a crer que Flamen tenha sido assim alguma vez, disse Albina. - Mas tu ama-la, José, por isso digo-te que acredito... que Flamen não foi amante de nada mais para além da sua cupidez pelo oiro e pelo poder.

- Não é a cupidez que a move, disse José, mas sim o desejo de vingança.

- Que desejo de vingança poderia ser assim tão forte?

- Foi cruelmente violentada há anos por um homem, um romano, explicou.

- E odeia todos os romanos por isso? Sim, posso compreender isso. Qualquer mulher compreenderia. E tu continuaste a amá-la apesar de tudo isso, José? Deves ser um santo.

José abanou a cabeça. - Um sábio judeu disse um dia: " Um amigo ama-nos sempre e na adversidade nascem os irmãos!"

Albina alisou com dedos suaves a ligadura da sua cabeça. - Conheci muitos judeus, José. E nenhum como tu. SeFlamen te tratar como trata os outros? - Respirou fundo. - Porque me custa tanto dizer-te que eu me sentiria feliz se pudesse dar-te filhos fortes? E confortar-te nos meus braços de todos os problemas do mundo? Sou bailarina e as pessoas julgam-me uma prostituta, mas nunca dormi com um homem por dinheiro, nem nunca o farei. Contudo, nenhum homem bom casa comigo, por causa disso.

- Penso que estás enganada, Albina. - Colocou as mãos sobre as dela. - Muitos homens te quereriam pelo que és, não pelo que as pessoas pensam que tu és.

- Homens como tu, talvez, José, concordou ela. - Mas nunca vi nenhum assim. Poderia poupar-te os desgostos que sei que Flamen te dará, mas, se queres vê-la, dir-te-ei onde podes encontrá-la. Mora na margem do Lago Mareótis, fora das muralhas da cidade, para lá do Serapeum, onde muitas pessoas ricas têm as suas villas. Disseram-me que os soldados de Plotinus guardam a casa, mas se seguires pela margem poderás entrar pelo jardim entre a água e as paredes.

- Como sabes isso? perguntou.

Albina sorriu. - Esqueces-te de que o meu pai é um ladrão. Mas tem cuidado para não seres tomado por um, quando tentares ver Flamen. Os guardas dariam cabo de ti.

 

José não sofreu quaisquer efeitos da ferida feita com a luva metálica de Plotinus. Poucos dias depois, a ligeira dor de cabeça que se seguiu tinha desaparecido e o golpe sarara, de modo que já não precisava da ligadura. Ao fim de certa tarde, dirigiu-se à villa na qual Albina lhe afirmara viver Maria, mas ainda não conhecia bem o caminho através do fervilhante bairro de Rhakotis, de modo que já caía a noite quando chegou à série de villas requintadas nas margens do Lago Mareótis, a sul da cidade.

As margens da grande extensão interior de água formada pela embocadura do Nilo eram muito férteis e as luxuosas casas dos romanos e das ricas ketairais que apreciavam aquele lado da cidade mais soalheiro estavam escondidas por árvores e vinhas. Os pomares e os vinhedos floresciam, e cresciam flores por toda a parte, embora se estivesse no princípio do inverno, pois não havia um só dia do ano em que não nascesse uma florem Alexandria. Algumas ruas levavam mesmo até à água, onde havia embarcadouros destinados a facilitar o tráfego de um lado para o outro, entre a cidade e os luxuosos jardins das oito ilhas delineadas, ao crepúsculo, contra o tom avermelhado do céu, pintado pelo pôr do sol.

Vinda do Canal de Agathadaemon, uma linha regular de barcos de transporte atravessava o lago até às ilhas e prosseguia até ao continente. A água, semelhante a um espelho, estava ponteada pelos mastros e velas berrantes das barcas do Nilo que percorriam o grande rio e descarregavam comida para Alexandria e mercadorias para serem expedidas para outras partes do Império, no cais do Mareótis. Pela água movia-se uma interminável procissão de barcas que carregavam cereais para Roma e Alexandria, provenientes do fértil delta do interior. Pequenas galés, graciosos barcos de prazer com velas triangulares e leves barcos a remos passavam apressados, procurando alcançar os seus

 

1 Hecaira ou Hctcra - Cortezã elegante e instruída da antiga Grécia. (N. do T.)

 

embarcadouros antes que a escuridão caísse por completo.

Nos dias de inverno, sopravam frequentemente ventos do Grande Mar, trazendo consigo, para a cidade, miasmas frios e húmidos que não eram nada favoráveis à saúde dos seus habitantes, mas naquela noite, aquele era o local dedicado ao prazer de que os alexandrinos tanto gostavam. Uma brisa suave e quente soprava do Vale do Nilo no sentido da foz, banhando a cidade num calor agradável e lançando sobre ela um aroma fragrante das flores e especiarias que cresciam nas margens do lago. Naquela noite grande multidão iria passear-se pelo cais, e um pequeno exército de pessoas marcharia de um lado para o outro do Heptastadium. E, nos apinhados bairros nativos, as pessoas dormiriam no exterior das casas, sobre colchões e almofadas, enquanto os amantes se misturariam nas sombras. Mas ali, na margem do lago, havia paz e tranquilidade.

Tal como Albina lhe dissera, dois soldados romanos guardavam a porta da villa de Flamen, identificável pela pintura do archote igual à que marcava o seu camarim. José sabia que não devia aproximar-se deles, depois da sua dolorosa experiência no teatro. Em vez disso, seguiu ao longo da rua para onde davam as casas próximas do lago, e contou as villas, até chegar a um caminho que levava directamente à água. Regressando então pela beira do lago, ao longo da margem, no escuro, não teve dificuldades em localizar a casa de Maria.

Cresciam pinheiros, bordos e árvores de especiarias pela margem, na qual passeavam imponentes íbis brancos, num silêncio altivo. Um bando de patos, perturbado pela sua passagem, ergueu-se no ar com um murmúrio de asas e, quando José voltou para trás, por um caminha que passava através do luxuriante jardim que crescia entre a villa identificada pelo archote e o lago propriamente dito, um grupo de flamingos olhou-o, altivamente, antes de decidir afastar-se para o deixar passar.

José pensou se deveria anunciar a sua presença de algum modo, mas decidiu não o fazer, na esperança de surpreender Maria e Demetrius. Quando se aproximava da casa, avançando por um sinuoso caminho de cascalho, uma sombra saltou subitamente de trás de uma árvore e um braço musculoso rodeou-lhe o pescoço, fazendo-o içar-se, sufocado, na ponta dos pés. - Que procuras no jardim de Flamen, para além da morte, intruso? perguntou uma voz profunda. Reconhecia-a bem, mesmo cinco anos depois. - - Hadja! crocitou José, porque o braço forte do nabateu lhe comprimia a laringe. - Sou eu, José da Galileia.

A pressão desapareceu subitamente. - Louvado seja Ahura Mazda! exclamou Hadja, abraçando José e ameaçando esmagar-lhe os ossos, de novo. - Porque vens pelo jardim, como um ladrão?

- Fui atacado por um romano quando tentei falar com Maria no teatro há dias, explicou José.

- Foi o Plotinus? resmungou Hadja. - Um dia enfio uma faca entre as costelas do gymnasiarchusl. Viste a Chama Viva?

- Só no teatro.

- Que te pareceu?

- Está mudada, Hadja, mas mais bela do que nunca.

- É a beleza do demónio. Às vezes penso que pelo menos sete demónios a possuíram, resmungou o nabateu.

- E feliz, Hadja? Se o é, talvez fosse melhor eu ir-me embora.

O músico abanou a cabeça. - Vive apenas para destruir os romanos. Mas entra para veres Demetrius. Ele vai gostar de te receber, José.

Hadja levou José para uma sala nas traseiras da casa. A villa estava sumptuosamente mobilada, com belas pinturas e dispendiosas estátuas por toda a parte, e o chão estava coberto de grossos tapetes. - A Chama Viva não está cá, explicou Hadja, mas em breve voltará do teatro.

Apenas uma pequena lamparina brilhava no quarto onde Demetrius se encontrava reclinado numa otomana, e os cortinados estavam corridos, de modo que o quarto estava quase às escuras. Hadja empurrou José para dentro e fechou a porta, deixando os dois homens sós. A princípio, José pensou que o velho fabricante de liras estava a dormir, mas, quando se aproximou, compreendeu por que motivo o músico não o saudara. As pupilas de ambos os seus olhos estavam cobertas por um disco branco e morto, a película opaca das cataratas. Demetrius estava cego!

- Entrou alguém? murmurou o velho. - Quem está aí?

- Um velho amigo da Galileia, disse José suavemente.

- Da Galileia? José! exclamou. - José da Galileia! Reconheço a voz.

José abraçou o seu velho amigo. - Sabia que havias de vir, exclamou o fabricante de liras. - Há quanto tempo estás em Alexandria, meu rapaz?

- Há alguns meses.

- E não tentaste encontrar-nos? Como é possível, José?

- Eu procurava Maria de Magdala. Como havia de saber que em Alexandria ela se chamava Flamen?

- Ou que ela não quer que se saiba que tem sangue judeu, como se isso a envergonhasse, disse Demetrius amargamente. - Encontras-nos num triste estado, meu amigo. Esse maldito desejo de vingança fez de Maria outra pessoa. Só pensa em dinheiro e em alcançar poder sobre os romanos. Foi um dia maligno, aquele em que saímos de Magdala.

- Fala-me de ti, pediu José.

- Que há para dizer? - Demetrius suspirou. - Tenho tudo o que quero para comer e todo o vinho que desejo para beber, mas para que serve isso quando a luz se foi?

- Consegues ver alguma coisa?

- Consigo distinguir a noite do dia, mas qualquer luz brilhante me fere os olhos, de modo que tenho que viver na escuridão. Nem sequer posso ver Maria, embora me digam que está mais bela do que em rapariga.

- E está. Muito mais bela, e diferentemente.

- Então viste-a?

- No teatro. Mas quando tentei falar com ela, um romano impediu-mo.

- Plotinus! - Demetrius cuspiu a palavra, com a mesma entoação de Hadja. - Gostava que ela se despachasse a arrancar-lhe o dinheiro e a arruiná-lo. Os outros eram estúpidos, mas Plotinus é perigoso.

- Então houve outros? - Até ali, tinha tido esperanças de que as coisas que ouvira não fossem verdadeiras.

- Uma procissão de idiotas que se empobreceram, na esperança de que ela dormisse com eles. Se eu pudesse ver, talvez apreciasse a ironia da coisa, mas não posso deixar de recear por Maria. Por quanto tempo se pode odiar, José, sem que o ódio nos consuma?

- Não sei. Nunca odiei ninguém por muito tempo.

- Eu sei, concordou Demetrius. - És um bom homem. Deus sabe que há bem poucos assim em Alexandria.

Entrou um escravo trazendo duas travessas com comida. Enquanto José comia, o escravo alimentou Demetrius, mas o idoso fabricante de liras tinha perdido o seu apetite, algo que nunca lhe teria acontecido nos velhos tempos! O seu apreço pela comida e pelo vinho só era limitado pela falta de ambos. Agora a pele caía-lhe, solta e flácida, sobre o corpo maciço, e até a sua sede de vinho parecia tê-lo abandonado, porque afastou a taça de prata ainda meio cheia. - Leva a comida, rapaz, disse, ao escravo, não me apetece mais.

- Fala-me da tua vista, disse José, depois de levadas as travessas. - Quando é que as cataratas começaram a crescer?

- Pouco depois de sairmos de Alexandria; talvez tivessem começado antes.

- É há quanto tempo te desapareceu a visão?

- Há três anos, pelo menos. Porque perguntas? Que importância tem isso?

- Talvez tenha, insistiu José. Bana Javaka ensinara-o a tratar casos de cataratas por meio da operação que era usada na índia havia quase mil anos, e que restituía a visão em muitos casos como aquele. Também Hipócrates a tinha referido, mas os gregos nunca tinham sido tão hábeis em mecanismos delicados como os indianos. Nos últimos meses, José tinha-se tornado tão eficiente como o seu professor.

- Não troces, José, disse Demetríus, em tom fatigado. - Sei que não há esperanças.

- Mas há; aprendi uma maneira de tratar as cataratas. Se resultar, poderás recuperar a vista.

- E se não resultar?

- Que tens a perder?

- Como dizes, que tenho eu a perder? concordou Deme-trius. - Mas, se eu pudesse ver, talvez conseguisse convencer Maria a afastar-se do caminho insano que percorre. Quando podes fazê-lo, José? suplicou.

- Dentro de alguns dias, penso eu, prometeu José, erguendo-se. - Acho melhor ir-me embora, agora. Maria deve estar a chegar.

- Mas tu és um velho amigo, protestou Demetrius. - Porque não hás-de ser recebido nesta casa?

- Não te relatei toda a minha experiência com Plotinus, no outro dia, explicou José. Ele bateu-me e deixou-me inconsciente. Não tenho vontade nenhuma de repetir a dose.

Demetrius praguejou raivosamente. Nenhum dos dois ouviu a porta abrir-se, nem compreenderam que não se encontravam sós, para ouvirem Maria gritar da soleira: - Porque estás a praguejar, Demetrius? Pareces-me tu de novo, como há muitos meses não te via. - Na escuridão, não notara que o fabricante de liras tinha uma visita. A noite estava quente e, de regresso do teatro, ela vestira um daqueles roupões diáfanos de gaze que as mulheres romanas frequentemente usavam na intimidade. Sabendo que Demetrius não podia vê-la, não hesitara em entrar no quarto tão pouco vestida, com as suaves linhas do seu corpo quase totalmente reveladas pelo tecido fino, quando se postou junto da porta. De súbito, Maria compreendeu quem se encontrava com Demetrius. - José! gritou, e o seu rosto corou, enquanto tentava compor o roupão em volta do corpo. - Des... desculpa-me, gaguejou, saindo.

- Que se passa com ela? perguntou Demetrius.

- Não estava propriamente vestida.

- E o único hábito sensato que ela ganhou com os romanos, riu-se Demetrius. - As mulheres deles andam praticamente nuas no tempo quente, e isso torna a vida mais interessante, mesmo para um velho destroço como eu.

Maria chegou momentos depois, envolta numa longa túnica, e estendeu as mãos a José. - Porque não me disseste que estavas em Alexandria? disse.

- Já cá está há diversos meses, resmungou Demetrius, mas não conseguia encontrar-nos por tu usares outro nome. E, quando te descobriu, os guardas não o deixaram ver-te. Por quanto tempo mais tencionas levar esta vida insana, Maria?

- Tínhamos combinado não falar disso, Demetrius, disse ela severamente. - Lembras-te?

- A vida é tua, resmungou ele. - Estraga-a, se queres. Maria tirou o círio do suporte na parede e aproximou-o de José para o ver. - Tu não mudaste, disse suavemente. - Serás sempre o mesmo.

- Gostava de poder dizer o mesmo de ti, Maria.

Por momentos, houve dor nos seus olhos, mas depois ela riu, um som frágil que se assemelhava a um soluço. Num instante, deixou de ser a Maria que ele amava. - Claro que mudei, disse um tanto asperamente. - Quando saí de Mag-dala era uma rapariga. Agora sou uma mulher.

- Uma mulher muito bela, Maria, concordou ele. - Mesmo mais do que em Magdala. Percorreste um longo caminho.

- Eu disse-te que havia de ser a maior bailarina de Alexandria.

- Vi-te dançar há dias, disse ele. - E mereces ter Alexandria aos teus pés. Sentes-te feliz com o que conseguiste, Maria?

Novamente o olhar de dor surgiu momentaneamente nos seus olhos, antes de soltar o mesmo riso frágil. - Sou rica. Tenho os homens mais importantes de Alexandria aos meus pés e o povo adora-me, exclamou aereamente. - Que mais pode desejar uma mulher?

- O amor de um bom homem em vez do desejo desses malditos romanos, resmungou Demetrius. - Foi um dia maligno, aquele em que deixámos Magdala.

- Não foi maligno para ti, José, disse Maria. - Ouvi dizer que és rico e o mais famoso médico de Jerusalém.

- José aprendeu a curar as cataratas, interrompeu Demetrius ansiosamente. - Vai devolver-me a vista.

- Isso é verdade? perguntou Maria rapidamente.

- Existe uma operação que restitui a vista a muitas pessoas que sofrem de cataratas, disse ele. - Espero que faça ver Demetrius.

Maria correu para o velho fabricante de liras e abraçou-o. Era um gesto impulsivo, como os que tinha frequentemente quando rapariga em Magdala, e José viu que ela chorava, porque os seus ombros se agitavam convulsivãmente e escondia o rosto contra o peito do velho músico. Conhecendo-a como a conhecia, José sabia que as suas lágrimas corriam por algo mais do que a simples alegria por Demetrius poder recuperar a vista, e por isso não a interrompeu.

Demetrius deixou-a soluçar contra o seu peito, até ela finalmente erguer a cabeça e enxugar os olhos na manga da túnica dele. - Será um dia feliz, aquele em que os teus olhos voltarem a ser o que eram, meu querido, disse ela então. Tenho um bailado que tu ainda não viste. José terá que te levar ao teatro e dançá-lo-ei para ti, apenas.

Demetrius assoou-se ruidosamente. - Vão-se embora os dois, agora, e deixem o velhote descansar. Vem visitar-me depressa, José.

- Amanhã, prometeu José. - Poderemos então combinar quando virei tratar dos teus olhos.

- Como conseguiste entrar na villa? perguntou Maria, enquanto levava José para o jardim.

- Pela praia. Depois da minha experiência com Plotinus no outro dia, não queria arriscar-me com os guardas.

- Ele disse-me que tinha abatido um vendedor que tentava ver-me. Claro que eu não podia saber que eras tu.

- Ter-me-ias reconhecido, se soubesses? perguntou ele deliberadamente.

- José! exclamou ela. - Como podes dizer isso?

- Negaste o teu sangue judeu ... - Não fiz tal. Apenas o conservei em segredo.

- Mas porquê, se não te envergonhas dele?

Ela colocou-lhe a mão sobre o braço. - Tens que tentar compreender, José. Como judia, poucas possibilidades teria de ter êxito no teatro. Sabes como os romanos odeiam os judeus. E, afinal, também sou grega.

- Então esqueceste o Deus da tua gente?

Ela riu de novo, com o mesmo tom frágil. - Porque havia eu de me preocupar com o Todo Poderoso? Ele deixar-me-ia ser vendida como escrava, se Simão e Demetrius não me tivessem salvado, e abandonou-me quando precisei de ajuda, naquela noite em Tiberíades.

- Está escrito: "Não digas que eu recompenso o mal", recordou-lhe ele, "confia no Senhor e Ele te salvará".

Maria deu um irado pontapé no tronco de uma palmeira ao lado do caminho. - Não me cites provérbios, exclamou. - Esperar! Esperar! Onde teria eu chegado, se esperasse, ou se tivesse ficado em Magdala?

- E onde chegaste, Maria? perguntou ele suavemente. - És rica e famosa, mas ninguém se sente feliz com o que fazes, nem sequer tu mesma.

- Faço o que quero fazer, disse ela asperamente. - O que jurei fazer.

- E se o que juraste fazer for mau?

- Então o mal está na minha alma. Porque te preocupas com isso? - Pousou a mão no braço dele, suplicante. - Por favor, não discutamos, José, quando não nos vemos há cinco anos. Porque vieste para Alexandria?

- Vim porque te amo, Maria, para saber se ainda me amas.

Por momentos, ela não falou, e ele pensou ver lágrimas nos seus olhos. - E agora que sabes, perguntou quase num murmúrio, porque não partes?

- Mas eu não sei. Tu não mo disseste.

- Não deves amar-me, José, disse ela rapidamente, em tom de súplica. Eu só te posso trazer infelicidade. Volta para Jerusalém e esquece que conheceste Maria de Magdala.

Ele tomou-anos braços, voltando-a até ficar de frente para ele, na escuridão do jardim. - Quando tu jurares pelo Todo Poderoso que já não me amas, Maria, ir-me-ei embora, disse lhe. - É a única coisa que me faria ir embora.

Ouviu o soluço na garganta dela, e depois sentiu os seus braços envolverem-no e ela apertou-se contra ele, com o rosto enterrado no seu peito, a soluçar irreprímivelmente. Sensatamente, manteve-a abraçada a cie até se acalmar, e depois ergueu-lhe o queixo com a mão e, segurando-o, beijou-a suavemente nos lábios. Sabiam ao sal das suas lágrimas e a sua boca suave e submissa comprimiu a dele por um longo momento, antes de se afastar. Então enxugou os olhos com a manga larga da túnica*e afastou do rosto o cabelo sedoso. - Já há muito tempo que não chorava assim, José, disse com um tom estranhamente desprendido na voz. - Nada ajuda mais uma mulher quando está preocupada.

- Não precisas de continuar a preocupar-te, sugeriu ele. - Queres voltar comigo para Jerusalém como minha mulher?

- Já devias saber que eu não sou como as outras mulheres, José. Eu não poderia ser tua mulher quando uma parte de mim apenas vive para odiar Gaius Flaccus.

- Eu poderia demonstrar-te a inutilidade do ódio. Maria abanou a cabeça. - Nunca poderia ser desonesta contigo, José. Amo-te demasiado. - Mas, quando ele tentou de novo tomá-la nos braços, colocou as mãos contra o peito dele, num gesto impeditivo. - Julgas que é fácil para mim ser o que sou? Julgas que gosto de ver Hadja eDemetrius - sim, e tu também - infelizes?! Mas, até levar a cabo o meu juramento de matar Gaius Flaccus, nunca poderei ser a rapariga que amaste em Magdala. É como uma doença na minha alma, este ódio por ele e por todos os romanos. Nada o pode expulsar, excepto matá-lo com as minhas próprias mãos.

- Hadja tem razão, então. Foste possuída por um demónio.

- Hadja diz que são sete. - Sorriu. - Talvez ele tenha razão. Mas o demónio do ódio possuirá a minha alma até eu matar o homem que lá o meteu.

- Viste Gaius Flaccus desde que saíste de Magdala?

- Não. - Hesitou e depois prosseguiu: - Plotinus é amigo do Imperador, no entanto. Prometeu que conseguiria fazer vir Gaius Flaccus a Alexandria, muito em breve, dentro dos próximos meses, pelo menos.

- Disseste a Plotinus porque queres voltar a vê-lo?

- Apenas lhe disse que odeio Gaius Flaccus e que quero humilhá-lo. Plotinus é um homem cruel, de modo que compreende um motivo desse género e apoia-o.

- Então o uso que estás a fazer de Plotinus faz apenas parte do teu plano de vingança.

- Evidentemente, exclamou ela. - Pensas que eu podia amar um romano depois do que Gaius Flaccus me fez? Eles dão-me oiro porque pensam que eu me entregarei em troca. Mas eu guardo o dinheiro e corro com eles.

- Quando corres com Plotinus?

- Quando ele trouxer Gaius Flaccus a Alexandria.

- Desiste dessa loucura, Maria, suplicou ele. - Não podes assassinar.um homem tão facilmente.

- Vai ser difícil, confessou ela, friamente, mas fá-lo-ei. Até iria para a cama com ele, se assim pudesse enterrar-lhe uma adaga no coração.

- Valeria a pena aviltar o teu corpo para satisfazer o teu ódio? - O meu corpo? Ela riu, num tom agreste. Gaius Flaccus transformou o meu corpo em algo impuro. Que diferença faz o modo como o usar agora? Nada pode aviltar-me mais do que fui aviltada. E além disso, acrescentou, eu não deixei de pecar também. Vi uma rapariga dançar na villa de Pilatus, nessa noite, uma escrava. Ela arrancou as roupas e dançou nua perante os homens, e eu tive vontade de fazer o mesmo, José. Tive que me conter para não arrancar a túnica e dançar assim para eles. Não sou culpada também?

- O Maligno tentava-te.

- E quando Gaius Flaccus me tomou nos braços, depois, eu gostei. Talvez ele não tivesse feito ... o que fez, se eu não o deixasse beijar-me. Talvez eu quisesse que ele o fizesse, não me recordo. Não sei.

Por momentos ele pôde ver o interior da alma dela e as forças que aí lutavam, torturando-a. Sabia que, por mais que tentasse, Maria não conseguia pôr de parte, no seu íntimo, os ensinamentos de Deus que todas as crianças judias aprendem muito cedo, sem sofrer as implacáveis exigências da sua consciência. Desapiedadamente, esta exigia um sacrifício em retribuição do pecado de luxúria que a tentara na villa de Pontius Pilatus, tal como tenta, em qualquer altura, todos os homens e mulheres. Maria podia matar Gaius Flaccus, pois o demónio do ódio levava-a a fazê-lo, mas aquele acto não lhe traria paz depois, nem a sua vingança qualquer satisfação, porque a sua implacável consciência continuaria a existir. Estava apenas a enganar-se a si própria e ela sabia-o. Contudo, não encontrava uma maneira de lho explicar, uma maneira de a convencer que o único caminho para a paz era admitir o seu próprio pecado e rezar a Deus para que exorcisasse da sua alma o demónio do ódio.

Subitamente ouviu-se um grito áspero do guarda que se encontrava em frente da casa. - Vai-te embora, sussurrou Maria. - E segue pela margem. Plotinus vem buscar-me para um jantar esta noite. Dir-lhe-ei que és o médico que vem tratar Demetrius, para poderes entrar quando quiseres. - Pôs-se nas pontas dos pés e beijou-o rapidamente. - Cura Demetrius, José, e depois sai de Alexandria. Acredita, é o melhor para ambos.

Desapareceu, num murmúrio de sedas, deixando José sozinho na escuridão. Enquanto atravessava o jardim até à margem e ultrapassava o muro que chegava mesmo à beira da água, viu acenderem-se luzes na villa e ouviu o riso alegre da mulher chamada Flamen, ao saudar o seu admirador romano.

Tendo visto Maria de novo, José compreendeu que o seu amor por ela era agora ainda mais ardente do que em Magdala. E, uma vez que ela confessara que ainda o amava, sabia que tinha de a impedir, fosse como fosse, de levar a cabo o seu louco plano para matar Gaius Flaccus. Não tanto porque matá-lo era um crime, mas porque, ao fazê-lo, Maria se privaria de qualquer possibilidade de encontrar a paz de que necessitava para poder vir ao encontro dele como ele queria que viesse, amando-o sem reservas como sabia que ela podia amá-lo. O seu ódio, o seu desejo de vingança, tinha-se transformado numa doença. E, mesmo que não a amasse, era seu dever, como médico, curá-la.

Tinha-se imposto uma tarefa árdua mas excitante. E o prémio? Poderia algum homem imaginar maior?

 

José e Bana Jivaka operaram o olho direito de Demetrius alguns dias depois e, duas semanas mais tarde, retiraram as ligaduras que haviam coberto os dois olhos durante esse período, evitando todas as luzes e estímulos a ambos os olhos, de modo que o movimento da pupila fosse reduzido a um mínimo e esta sarasse rapidamente. Houve certa dificuldade em provocar o transe para afastar toda a consciência da dor, e, o que era mais importante, para permitir que o olho se conservasse quieto durante a parte mais delicada da operação, porque Demetrius estava praticamente cego e mal podia ver a esmeralda. Finalmente Jivaka foi forçado a usar uma chama brilhante para a qual o músico se pôs a olhar, enquanto, num tom calmo e imperioso, o médico indiano gradualmente o forçava a dormir.

Os instrumentos que estavam sobre a mesa poderiam parecer um lamentavelmente curto potencial para restituir a vista a um homem: uma fina vareta de metal com um minúsculo gancho na ponta e, junto dela, uma larga agulha afiada com uma das extremidades introduzida num pequeno cabo de madeira. Maria e Hadja tinham-nos observado enquanto trabalhavam.

- A operação que estou a executar, explicou José quando pegou no pequeno gancho, é muito simples. Dado que o crescimento opaco da catarata se limita ao pequeno corpo esférico do olho, basta deslocar esse corpo da sua posição normal e fazê-lo cair dentro do globo ocular, fora da vista. Assim a luz pode penetrar no olho. Utiliza-se o gancho para segurar o olho enquanto se insere a agulha. - Cuidadosamente, inseriu a ponta do gancho na parte exterior da zona branca do globo ocular, para que, segurando-o firmemente, o olho permanecesse parado.

- Ele não sente dores? perguntou Maria.

- A dor está apenas no espírito, explicou Jivaka. - Podemos controlá-la.

Em seguida, José pegou na agulha pelo cabo de madeira e enfiou cuidadosamente a ponta no globo ocular, mesmo no extremo da íris. A ponta apareceu na frente da iris e ele puxou-a um pouco, de modo que ela deslizou para fora da cortina pigmentada em cujo centro ficava a abertura da pupila- - E possível procurar cataratas tanto à frente como atrás da iris, disse ele. - Mas a operação de Susruta é feita por trás, e assim faremos.

Os movimentos de José eram firmes e seguros, porque já tinha feito aquela operação muitas vezes nos meses anteriores- Controlava a agulha como se fizesse parte de si mesmo, até sentir o aumento de resistência do corpo esférico da catarata, quando a ponta da agulha o penetrou. Em seguida, moveu-a de trás para diante, perfurando a camada exterior da lente. À medida que prosseguia, a ponta tornou-se visível através da pequena abertura da pupila e os assistentes puderam ver o rasgão que ele fazia na parte exterior da catarata. Finalmente surgiu uma esfera redonda, de um branco baço, do tamanho de uma pequena ervilha, mesmo por baixo da ponta da agulha. - É a catarata, explicou ele. - Vou empurrá-la para o globo ocular, onde ficará por baixo da pupila e fora da linha de visão.

Lentamente, cuidadosamente, José empurrou a catarata redonda e dura através da substância gelatinosa que enchia a parte de trás do globo ocular. Jivaka tinha examinado olhos de doentes que haviam morrido por qualquer outro motivo, e que tinham sido submetidos tempos antes àquela operação, e garantira-lhe que a esfera branca era geralmente absorvida e desaparecia algum tempo depois. Quando retirou a agulha, o rebordo superior do corpo branco era apenas visível na área inferior da pupila e aguardou um pouco, na expectativa, para o caso de ele voltar a postar-se à frente da pupila, como sucedia por vezes. Se o fizesse, teria que o deslocar de novo, , ou talvez cortá-lo em pedaços com a ponta da agulha, o que exigia muito tempo, havendo o grande perigo de ferir o interior do olho e provocar uma inflamação que frequentemente destruía os bons resultados da operação.

Mas a catarata conservara-se fora de vista e não tinha sido preciso continuar a operação. Tinha feito as ligaduras rapidamente, e agora, duas semanas mais tarde, estava a retirá-las. Se a primeira operação tivesse êxito, o olho esquerdo poderia ser tratado em breve.

Lentamente, José desenrolou as ligaduras e retirou a última camada de linho que cobria os olhos de Demetrius. O quarto estava numa semi-obscuridade e, enquanto trabalhava, sentia Maria junto dele, com o corpo encostado ao dele, na sua ansiedade de verificar se a operação tinha resultado. Por momentos sentiu-se relutante em retirar a última ligadura e quebrar o encanto. Depois retirou-a suavemente e notou, com um estremecimento de alegria, que a pupila do olho operado estava limpa.

- Por Diana! exclamou Demetrius. - Vejo luz! Vejo! Vejo!

Maria lançou os braços em volta do pescoço de José e beijou-o na boca. - Conseguiste, José, exclamou. - Devolveste-lhe a vista. - Depois, embaraçada pelo seu ímpeto, disse a Bana Jivaka: - Perdoa-me a minha emoção? Nós, os judeus, comovemo-nos facilmente.

- Era preciso que uma pessoa fosse de pedra para não se comover com tal felicidade, confessou Jivaka. - O médico não conhece maior alegria do que a de devolver a luz aos cegos.

- Temos que festejar, exclamou Maria. - Vai ser como nos velhos tempos em Magdala.

Veio vinho e comida e todos se sentaram em volta da otomana onde Demetrius estava estendido, com o olho ligado de novo, pois ainda não lhe convinha demasiada luz. O fabricante de liras parecia ter voltado ao que fora, agora que sabia que poderia voltar a ver.

Maria encheu os copos e ergueu o seu. - Ao desejo mais íntimo de cada um de nós, brindou. - Que os deuses lho realizem.

Os outros ergueram os copos, mas José conservou o seu pousado. - Não posso beber com um tal brinde, Maria, disse tranquilamente. - Esqueceste-te de que existe apenas um Deus?

A cor desapareceu das faces de Maria como se ele lhe tivesse batido. - É um brinde que os romanos usam, José, disse Demetrius. - Ela disse as palavras sem pensar.

- Digamos antes que bebemos à sabedoria divina que guia o universo, sugeriu Bana Jivaka. - A sabedoria que está acima de nós e para além de quaisquer deuses concebidos pelo homem.

- Bebo por isso. - José ergueu o copo. - Porque David disse: "Daigraças ao Senhor que com a sua sabedoria fez os céus; pois a sua misericórdia é eterna."

- Não deves pensar mal de Maria por ela falar casualmente de deuses como faz a maioria dos alexandrinos, José, disse Demetrius. - Afinal, Sócrates disse: - " É difícil encontrar o Criador e o Pai de tudo, e, tendo-o encontrado, é impossível nomeá-lo."

- Para os judeus há apenas um Deus, disse José com simplicidade. - O Deus de Israel e nenhum outro.

- Fala um judeu intratável, zombou o grego. - Mas eu acredito mais no deus de Sócrates - seja ele quem for - que permitia a um homem dizer: " Um homem bom, na sua dura luta, está de certo modo consciente do caminho recto". De facto, penso que todos andamos à procura, como Sócrates, "daquele que, existindo entre os homens, tem a forma e a semelhança de Deus".

"A forma e a semelhança de Deus", repetiu Maria suavemente. - Nunca tinha pensado antes nessa forma e semelhança. Nós, os judeus, pensamos sempre em Deus como um ser como nós.

- É-nos dito que fomos criados à Sua imagem, concordou José.

- Talvez se enganem, no entanto, sugeriu Demetrius. Sócrates ensinou que a bondade e o amor do homem pelo homem têm uma existência real e verdadeira. Pode ser que aquilo que procuramos como Deus seja, na realidade, não um ser mas uma qualidade, uma força que não conseguimos compreender, excepto quando a vemos actuar nas nossas próprias vidas.

Banas Jivaka escutava em silêncio a discussão mas ainda não tinha falado. José voltou-se para ele, então. - Que pensas deste problema de Deus? perguntou.

O indiano sorriu.

~ Sócrates também disse das suas próprias crenças: " isto pode ser verdade mas é também muito provável que o não seja, e portanto não desejo persuadir-vos muito facilmente. Reflecti bem e, quando tiverdes descoberto a verdade, vinde dizer-mo." Gostava de saber se vós, os judeus, permitiríeis que uma tal medida de comparação fosse aplicada à vossa divindade.

- Porque havia de sê-lo? perguntou José. - Há apenas um Deus, o Todo Poderoso dos judeus. Não se pode duvidar dele, pois fazê-lo é blasfémia. E Ele prometeu enviar-nos o Messias e criar o reino de Deus na Terra, do qual os judeus governarão o mundo.

- Não quero ofender-te, José, disse Jivaka. - Mas essa conversa de Messias e reinos parece-me desnecessariamente complicada. Sócrates ensinou que as recompensas de uma vida justa são suficientes só por si. Não são precisos nem deuses nem promessas de imortalidade para justificar uma vida justa.

- Não posso conceber uma vida suficiente só por si, objectou José.

- Sócrates foi suficiente, argumentou Demetrius.

- Mas foi executado pelos seus compatriotas, salientou José. - Portanto, não lhes deve ter parecido suficiente. O judeu apenas tem de acreditar no Todo Poderoso e obedecer aos seus mandamentos. Não necessita de altas filosofias.

- Mas pensa a que alturas a filosofia eleva o homem, exclamou Demetrius. - E quão próximo do próprio Deus. Ainda ontem o escravo me leu o discurso de Sócrates aos juizes que o condenaram. Fi-lo repetira leitura diversas vezes para o poder decorar: "Não vos preocupeis", disse ele aos juizes, e ficai seguros de que mal algum pode suceder a um bom homem, quer na vida quer na morte... eu... vejo claramente que chegou o momento de morrer, pelo que os meus acusadores não me fizeram mal algum ... E agora seguimos os nossos caminhos, vós para a vida e eu para a morte. Só Deus sabe qual será melhor!" Sócrates não só não receava a morte, como todos nós, como até dizia: "A nossa aventura é gloriosa. A alma, com as suas jóias próprias, que são a justiça e a coragem e a nobreza e a verdade, assim paramentada, está pronta para seguir a sua origem quando o momento chegar."

"Existe uma vida que é mais elevada do que as medidas da humanidade", citou Jivaka. "Os homens vivem-na não por virtude da sua humanidade, mas por virtude de algo, dentro deles, que é divino". Como vêem, meus amigos, Aris-tóteles chegou às mesmas conclusões que Sócrates.

- Mas esse algo é o facto de eles serem feitos à imagem de Deus, insistiu José. - Assim, homem algum é realmente suficiente por si próprio. Necessita sempre da presença do Todo Poderoso dentro dele.

- Talvez tenhas razão, admitiu Jivaka. - Embora não permitam qualquer imagem do vosso Deus, os judeus parecem mais capazes de acreditar numa divindade invisível do que aqueles que precisam de ter algo que vejam. Essa pode ser uma das razões dos eternos conflitos entre judeus e os seus conquistadores. Sendo incapazes de acreditar em deuses que não possam ver nem tocar, as pessoas odeiam os judeus pelo Deus que vive dentro das suas almas. Naturalmente, tais pessoas acusariam Sócrates como "um homem indigno e corruptor da juventude, porque não aceita os deuses que o estado aceita, introduzindo novas divindades". Quem sabe, talvez um dia alguém adore Sócrates como Deus, como alguns fazem com o Buda.

- O Buda? Que queres dizer, Jivaka?

- Um homem chamado Siddhartha Gautama que viveu na índia há uns seiscentos anos, explicou Jivaka. - Ensinou mais ou menos as mesmas coisas que Sócrates ensinou mais tarde, e muita gente do meu povo crê que ele era o Buda.

- Mas o que é o Buda? perguntou Maria com curiosidade. - Nunca ouvi essa palavra antes.

- Uma lenda antiga dos indianos diz que a Sabedoria regressa à terra, de tempos a tempos, sob uma forma humana, chamada Buda.

- Então o vosso povo também acredita num deus que envia a sabedoria à terra, disse José, triunfante.

- Talvez a nossa religião seja a mesma que a vossa, em princípio, concordou Jivaka. - Nós acreditamos no Buda, vós aguardais o Messias. O nosso Buda pode ter sido o vosso Messias em forma diferente.

- Mas o Messias será judeu! insistiu José. - Será enviado apenas aos judeus e virá em toda a sua glória, não através de um nascimento vulgar.

- Siddhartha Gautama não afirmava ser divino, disse Jivaka. - Viveu e morreu como qualquer outro homem. Mas alguns, recusando-se a acreditar que alguém tão sábio e tão compreensivo perante as fraquezas humanas pudesse ter nascido de um pai terreno, teceram lendas fabulosas em volta do seu nascimento. Disseram que ele tinha sido miraculosamente concebido quando sua mãe sonhava com um elefante branco, que também é sagrado para o meu povo. Alguns insistiam mesmo em que Gautama era um Deus, mas nunca encontrei registo algum em que ele afirmasse ser o Buda.

- Que ensinava ele? perguntou Maria.

Jivaka sorriu. - Nada que até mesmo José não pudesse crer, como médico, como, por exemplo, que as infelicidades e descontentamentos da vida frequentemente provêm do nosso próprio egoísmo. Vemos isso muitas vezes ao tratar dos doentes.

- Recordo-me de que Demetrius disse um dia algo nesse género em Magdala, confessou José.

- As tagarelices de um velho não merecem ser recordadas, objectou Demetrius. - Diz uma coisa hoje e amanhã outra.

- Falávamos do mazzakim, recordou-lhe José, e tu disseste: Os demónios que possuem o homem nascem dentro dele próprio, filhos dos seus próprios desejos.

- Creio que jamais se disseram palavras mais verdadeiras, concordou jivaka. - Os pensadores de toda a parte parecem procurar as mesmas verdades e frequentemente chegam às mesmas conclusões por vias diferentes. Gautama também ensinou que o sofrimento é um castigo inevitável para a ganância e para a necessidade dominadora de ser superior aos outros, prosseguiu. - Eis as ânsias que ele indicou: a sensualidade, o desejo de imortalidade pessoal e o desejo da propriedade e das coisas terrenas.

- Mas ninguém quer que tudo termine com a morte, protestou José.

- Para vencer os mais baixos desejos do homem, Gautama ensinou que ele deve deixar de viver para si próprio. O desejo da vida eterna não é apenas o desejo da autoconservação?

José ficou em silêncio. Ninguém podia negar uma verdade tão simples e fundamental. - Poderá um homem negar-se a si próprio de tal modo que mereça a vida eterna? perguntou Maria.

- Os ensinamentos de Gautama aproximam-se muito disso, admitiu Jivaka. - Disse que, quando o homem tiver abolido o Eu dos seus pensamentos, atinge uma sabedoria a que se chama Nirvana.

- Mas isso não é diferente da nossa ideia do céu, salientou José. - Os Fariseus crêem que quem amar Deus e as leis viverá com Ele para sempre.

- O Nirvana de Buda alcança-se na terra, explicou Jivaka. - Através dele, a vida é tão completa e cheia que deixa de existir a necessidade de vida após a morte. O bem que um homem faz vive, assim, depois dele, para sempre imortal.

José abanou a cabeça. - é difícil pôr de parte as coisas que se aprenderam desde a infância, Jivaka. Receio que nunca possa ser um filósofo.

O indiano sorriu. - Pensas assim agora, mas apenas por que vós, os judeus da Judeia, tendes cuidadosamente evitado contactos com aqueles a que chamais "pagãos". Philon e eu discutimos o assunto muitas vezes. Ele pensa que os judeus de outras cidades do Império, sem ser Jerusalém, estão a perder a estreiteza de pensamento que impediu a vossa religião de se espalhar mais. Ambos pensamos que o vosso povo melhorará com essa emancipação. E o mundo também, se lhe for dada a oportunidade de adorar o Deus dos judeus.

José sorriu. - eu vivo no centro daquilo a que tu chamas "estreiteza". E posso afirmar-te que não haverá revolução dos nossos pensamentos sem uma considerável desordem.

- Quando não houve desordem entre os judeus? perguntou Demetrius. - Por vezes penso que estão destinados a destruir-se a si próprios.

As faces de Maria coraram e José percebeu que ela compreendera que a farpa na observação de Demetrius lhe era dirigida em parte. A discussão terminou pouco depois, porque Maria tinha que preparar-se para ir para o teatro. Mas, quando José se dispunha a partir, ela dísse-lhe: - Vem comigo ao jardim por um momento, José. Tenho algo a dizer-te.

Tinha chovido nessa manhã e as árvores e as flores brilhavam de humidade. Havia um banco de pedra ao lado de um pequeno lago e o sol já o tinha secado.-Senta-te aqui comigo por um momento, disse ela. - Quase nunca te vejo agora.

- Pediste-me que voltasse para Jerusalém, recordas-te?

- Continuaria a ser melhor para ambos que o fizesses. Sou como o teu amigo disse dos judeus. Onde quer que eu esteja, há desordem.

- Eu também sou judeu, recordou-lhe ele.

- Mas tu és sensato e tolerante, enquanto que as minhas emoções são tão ardentes como o meu cabelo.

- A rapariga que conheci em Magdala era amada por todos os que a conheciam, e as suas emoções também eram ardentes.

Maria riu-se, com o mesmo tom cínico que ele lhe ouvira mais do que uma vez em Alexandria. - Esqueces-te facilmente, José. As mulheres de Magdala odiavam-me porque os seus maridos paravam para olhar para mim na rua. Sabiam o que havia no pensamento dos homens, tal como eu.

- Dá-te o direito de odiar, saberes que os homens desejam possuir-te?

- Não, admitiu ela. - Creio que não. Mas eu odeio apenas Gaius Flaccus e os romanos.

- Lembras-te do que Demetrius disse sobre Sócrates? recordou-lhe ele. - A bondade é um fim em si própria. Os nossos antigos profetas ensinavam a mesma coisa há milhares de anos. Tens que afastar o ódio do teu espírito.

- Como posso fazê-lo enquanto ele viver?

- Matar Gaius Flaccus e forçar os romanos a arruinarem-se por causa dos seus desejos por ti, nunca te trará paz, Maria, argumentou ele, seriamente. - Eu conheço a verdadeira Maria de Magdala, e ela não é assim. Se fizeres isso, lamentá-lo-ás sempre, se não perderes a tua vida ao fazê-lo.

- Que farias no meu lugar, então?

- Só poderás encontrar paz perdoando a Gaius Flaccus.

- Perdoar-lhe! - As suas faces tingiram-se de rubor. - Como podes sugerir tal coisa, tu que afirmas ser meu amigo?

- Porque sou teu amigo, sei que é essa a única maneira. Desistes desse louco plano, Maria, suplicou ele. - Gaius Flaccus é um dos favoritos do ImperadorTiberius e sobrinho de Pontius Pilatus. Não poderias matar um romano importante como ele e continuar a viver.

- Nem mesmo quando tenho esse direito, segundo a lei?

- Que lei te dá o direito de matar?

- Está escrito nas leis dos judeus: "5 um homem encontrar uma donzela prometida nos campos e o homem a forçar e se deitar com ela: o homem que se deitar com ela deverá morrer".

De momento, José não teve resposta, porque aquilo que ela dissera fazia parte da rígida lei dos judeus. - Mas não diz que tu própria tenhas o direito de o matar, protestou desajeitadamente. - A execução da lei pertence ao conselho dos juizes.

- A lei diz que a vida do homem culpado pertence àquele a quem a donzela estava prometida. Tu não tiraste a vida a Gaius Flaccus, José, por isso tenho eu que o fazer.

Teria sido um assassínio, protestou ele.

Maria bateu o pé, irada. - Eu era tua noiva, exclamou. - Mas nem tu nem as autoridades judias ousariam matar Gaius Flaccus, porque ele é romano e tendes medo. A lei do nosso povo diz que ele deve morrer, e eu não tenho medo, por isso executarei eu a sentença.

Estava magnífica na sua ira e determinação, e contudo ele sabia que o que ela se propunha era loucura, um acto temerário que apenas poderia terminar com a morte, fosse qual fosse a justificação que ela lhe desse. E então pensou numa maneira de a impedir. Se conseguisse que ela lhe revelasse os seus planos, poderia frustrá-los e salvar-lhe a vida, embora isso significasse que o seu ódio se voltaria contra ele. Mesmo isso, contudo, não era um preço demasiado alto para salvar a vida da mulher que amava.

- Como te propões fazê-lo? perguntou.

Ela abanou a cabeça. - Pensas que eu ia dizer-to agora? Mas os meus planos estão feitos e toda a Alexandria saberá da hora da minha vingança.

- Alexandria? julguei queGaius Flaccus estava em Roma.

- Que pensas que eu tenho andado a fazer nos últimos meses? perguntou ela asperamente. - Recordas-te de que te disse que Plotinus ia fazer transferir Gaius Flaccus para Alexandria? Deve chegar aqui dentro de poucas semanas, para tomar o posto de praefectus vigitum, o comando de todas as tropas romanas da cidade.

 

Sabendo que nada podia fazer para afastar Maria da sua firme resolução de se vingar de Gaius Flaccus, José sentiu-se tentado a fazer o que ela lhe aconselhara, sair de Alexandria e voltar a Jerusalém. Mas primeiro tinha que tratar da catarata do outro olho de Demetrius e, quando à operação se seguiu uma inflamação que ameaçava destruir o olho, foi forçado a fazer visitas diárias à luxuosa casa de Maria nas margens do Lago Mareótis até a inflamação desaparecer. Só passado um mês Demetrius pôde sair de casa, mas movia-se com dificuldade por causa de uma pletora e da hidropisia que lhe faziam inchar o corpo.

Quando o velho músico grego conseguiu aguentar-se suficientemente bem de pé, José levou-o ao teatro para ver Maria dançar. De um lugar atrás dos tribunalia, Demetrius via bastante bem, pois a sua visão era muito melhor à distância do que ao pé. Maria parecia inspirada nessa noite; José nunca a vira dançar mais espiritualmente e com maior graça. E, observando a sua beleza, o esbelto encanto do seu corpo enquanto se movimentava pelo palco, ao ritmo expressivo da dança, sentiu uma profunda sensação de depressão e premonição invadir-lhe a alma. Ela iniciara uma corrida que ele sabia ser louca, mas nada podia fazer para a impedir. Estava realmente possuída por um demónio, mas ele não conhecia o meío de o exorcizar. E a sua depressão aumentou quando olhou para o camarote geralmente reservado ao governador romano da cidade e nele viu Gaius Flaccus, belo como um deus grego.

Quando o espectáculo terminou, dirigiram-se ao camarim de Maria, pelos corredores por baixo do grande teatro. Ela vestia ainda o trajo com que tinha dançado e estava sentada em frente do toucador quando eles entraram, enquanto a sua criada, uma escrava de pele escura, de Cyrene, lhe escovava o cabelo. Maria ergueu-se e correu a beijar o velho músico. - Dancei para ti, Demetrius, exclamou. - Gostaste?

- Jamais alguém foi como tu, minha filha. - A voz de Demetrius estava repassada pela emoção. - Foi o momento culminante da minha vida.

- Teremos outros momentos, prometeu ela alegremente, muitos momentos. O director concordou em apresentar as Bacchae, de Eurípedes, na Grande Díonisíaca, e eu serei a principal bailarina.

- Sei que triunfarás, disse-lhe Demetrius. - Agora tens tudo o que desejas.

- Tudo não, disse Maria, subitamente séria, mas estou muito perto disso. - Voltou-se para José: - Viste-o?

- Sim. Há quanto tempo está em Alexandria?

- Só há uns dias. Plotinus vai dar um jantar em sua honra amanha à noite.

- Que mistérios são esses? perguntou Demetrius.

- Gaius Flaccus está em Alexandria, explicou Maria. - Estava num dos tribunalia esta noite.

- Como vais impedir que eles se matem um ao outro?perguntou José. - Plotinus decerto sentirá ciúmes de mostrares muito interesse por Gaius Flaccus.

Maria riu com segurança. - Aprendi muita coisa sobre o modo de manejar os homens, nos últimos cinco anos, José. Basta dizer a cada um deles que está a roubar o meu afecto ao outro.

- Mas supõe que eles comparam as tuas declarações.

- Quando cada um deles tem ciúmes do outro e desconfia dele? E difícil.

José encolheu os ombros. - E melhor irmo-nos embora, Demetrius, disse. - Sem dúvida a dama chamada Flamen terá admiradores que querem visitá-la.

Maria corou com o tom das palavras dele, mas, antes que pudesse dizer alguma coisa, ouviu-se um grito do guarda que estava no exterior. Momentos depois, os cortinados foram arrogantemente corridos, deixando ver um homem alto que vestia o uniforme de tribuno romano. Era Gaius Flaccus.

Por momentos, Maria assemelhou-se a uma estátua de mármore, mas depois, quando o jovem romano avançou e levou a sua mão aos lábios,-a cor voltou-lhe às faces e descontraiu-se. - Não pude esperar até ao jantar de amanhã para te ver, disse Gaius Flaccus beijando-lhe a mão. - Tal beleza e talento merecem um tributo mais espontâneo. - E então, quando os seus olhos encontraram os dela, surgiu no seu rosto um ar confuso. - A tua cara parece-me conhecida.

- Parece-te? perguntou Maria, ainda a sorrir, embora os seus olhos estivessem duros e frios.

Gaius Flaccus pareceu notar pela primeira vez que havia outras pessoas no camarim. Voltou-se para eles e os seus olhos abriram-se de surpresa. - Tu não és o aplicador de sanguessugas, José da Galileia, que conheci em Tiberíades e Magdala? perguntou.

- Sou José da Galileia, disse tranquilamente o jovem médico.

- E o meu nome é Demetrius, acrescentou o velho músico, fabricante de liras em Magdala, ultimamente vindo para Alexandria.

O olhar de Gaius Flaccus passou deles para Maria e os seus olhos abriram-se de espanto. - E impossível que sejas aquela pequena bailarina, exclamou. - Aquela que conheci em Tiberíades.

A voz de Maria interrompeu-o. - Em Alexandria chamam-se Flamen, disse orgulhosamente.

- Maria de Magdala, disse Gaius Flaccus suavemente. – E as ruas de Tiberíades. Subiste muito, minha querida. E estás mais bela do que nunca. Não admira que me digam que tens todos os homens de Alexandria aos teus pés.

- E tu? perguntou Maria. A sua voz era suave, quase lisonjeadora. Ao ouvi-la, José compreendeu o seu poder sobre os homens.

O tribuno sorriu com vaidade e levou a mão dela lentamente aos lábios uma vez mais. - Sem dúvida também lá estarei, disse suavemente. - Posso esperar ser um dia o primeiro entre os teus admiradores?

José não pôde aguentar mais. - Vem, Demetrius, disse. - Vou levar-te a casa.

- Fica, sanguessuga, disse Gaius Flaccus. - Tens notícias do meu tio Pontius Pilatus e de sua mulher?

Antes que José pudesse falar, Demetrius disse asperamente: - José da Galileia já não é aplicador de sanguessugas, romano. E medicus viscerus do Templo de Jerusalém e médico pessoal do Procurador Pontius Pilatus.

Gaius Flaccus encolheu os ombros. - Em Roma, os médicos têm pouca importância pois são na maioria gregos. - Não se desculpou pelo título desprezível e Demetrius fungou, irritado.

- Passei diversos dias no palácio do teu tio em Cesareia antes de vir para Alexandria, disse-lhe José. - Estavam bem mas Claudia Procula tem problemas respiratórios.

- Devia ficar em Tiberíades, concordou Gaius. - Está melhor lá. Seja como for, vè-la-ei muito em breve.

- Julgava que ficavas em Alexandria, disse Maria rapidamente, mordendo logo os lábios, furiosa por ter revelado o que sabia.

Mas Gaius Flaccus estava demasiado impressionado com a sua beleza para notar o erro e, aparentemente, tomou a sua súbita preocupação por interesse por ele. - Fico talvez seis meses em Alexandria e depois volto para a Judeia e Galileia, explicou. - Pontius Pilatus tem sido demasiado brando com os judeus, o que é sempre um erro. E precisa de alguém em quem possa confiar, em Séforis1 e Tiberíades, para vigiar Herodes Antipas.

 

1 Scforis, Sephoris ou Sepphoris, hoje Sefurieh. Antiga capital da Galileia. (N. do T.)

 

- Não devias ir mais depressa, perguntou José, se receias Herodes?

- Um procurador romano não receia um mesquinho te-trarca de província. - Gaius Flaccus riu-se, com desprezo. - Mas tem sido boa prática política vigiar Herodes. Além disso, há problemas na Judeia e na Galileia. Ouvi dizer que os judeus se levantaram em armas por causa de um homem chamado João o Baptista.

- Fala-se de João em Roma? - perguntou José, incrédulo.

- Roma sabe de tudo o que sucede, mesmo nas províncias. O Imperador manteve sempre Herodes Antipas sob apertada vigilância. Ou eu me engano muito, ou a paciência de Herodes está prestes a esgotar-se e esse João ficará sem cabeça.

- Com que fundamento?

- De que fundamento precisamos para decapitar um fanático que agita o povo? perguntou Gaius Flaccus. - Herodes informa que João o Baptista pregou a vinda de outro rei. Tens idade suficiente, José, para te lembrares de que dois mil judeus foram crucificados na Galileia, por apoiarem outro desses levantamentos que estão sempre a surgir para libertar o teu país dos romanos e dos governantes por eles nomeados.

- Mas João o Baptista é simplesmente pregador, protestou José.

- Pareces saber muito sobre ele, disse o romano asperamente. - Também és um rebelde?

José abanou a cabeça. - Só sei que é um essénio que prega a vinda do Messias.

- Deve ter pregado um bocado alto demais, então. Herodes pode ocupar-se de João, visto que é judeu. Se Pontius Pilatus o tiver que fazer, toda a tua nação começará a protestar de novo contra os romanos.

- Quando vais para a Galileia? perguntou Maria.

- No princípio do verão, creio eu, disse-lhe Gaius Flaccus. - O meu tio pediu mais tropas para acalmar os motins que têm surgido desde que ele usou o tributo do templo para construir um aqueduto. Pela maneira com que os judeus protestavam, dir-se-ia que preferiam morrer de sede a perder um pouco de dinheiro. Quando forem enviadas novas tropas de Roma,, na primavera, tomarei o seu comando. Então os teus compatriotas saberão o que é uma mão forte, José.

O jovem médico esforçava-se por controlar a sua ira perante o dom de desprezo do romano. Não serviria de nada discutir com ele.

- Confidencialmente, prosseguiu Gaius Flaccus, Pilatus crê que parte da agitação é provocada por agentes de Hero-des. Se és médico do templo, José, sabes que Antípas ambiciona governar a Judeia e a Galileia, assim como a tetrarquia do seu primo Filipe. Herodes é uma raposa, de modo que não fará mal haver tropas frescas e um bom caçador em Séforis, a capital do seu reino.

O que Gaius Flaccus dizia de Herodes era verdade, como José bem sabia. Havia um grupo em Jerusalém, os Herodia-nos chefiados por Jónatas, filho do velho sumo-sacerdote Anás, que conspirava constantemente para fazer com que a Judeia fosse governada por um tetrarca judeu em vez de directamente por Roma através de um procurador. Jónatas, um homem vaidoso e mundano, tinha sido ultrapassado na sucessão do cargo de sumo-sacerdote pelo genro de Anás, Caifás. Se Herodes Antípas conseguisse convencer o Imperador Tiberius de que a Judeia estaria mais tranquila com um rei judeu de que com um procurador, Jónatas seria sumo-sacerdote - daí a junção de forças.

José voltou-se para Demetrius. - Deves estar cansado, sugeriu de novo. - Vou levar-te a casa.

- Vens connosco, minha querida? perguntou o velho, pondo-se lentamente de pé, porque o seu corpo estava pesado devido à pletora e as forças começavam a faltar-lhe cada vez mais.

Antes que Maria pudesse responder, Gaius Flaccus disse rapidamennte: - Sentir-me-ia honrado em levar-te a casa na minha liteira particular, Flamen. Deves estar cansada depois do espectáculo, e poderíamos parar para tomar qualquer coisa.

Maria sorriu e abanou a cabeça. - Tenho que descansar esta noite para estar fresca para o jantar de Plotinus, em tua honra, amanhã. - Estendeu-lhe a mão. - Até amanhã, então?

Gaius Flaccus fez uma vénia galante e levou os dedos dela aos lábios. - Até amanhã.

- Falarei de ti ao governador, sanguessuga, disse a José. - Sofre da gota e recordo-me que trataste Pontius Pilatus dessa doença com êxito. Os favores do governador de Alexandria devem ser muito úteis a um médico.

Mal o romano saíra da sala, Demetrius explodiu: - Que porco arrogante! Lá porque dá volta às cabeças das mulheres, julga que pode insultar os homens também? E tu! - Voltou-se para Maria, furioso. - Toda cheia de risinhos, a tentar seduzi-lo como uma vulgar prostituta. Esqueceste-te do que ele te fez?

A cor abandonou lentamente as faces de Maria e enterrou os dedos na palma da mão até o sangue se afastar da pele, deixando-a branca. - Não me esqueci, disse lentamente, como se estivesse a rezar. - Juro perante o Todo Poderoso que não me esqueci.

 

                                                                                CONTINUA  

 

                      

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