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OS GAROTOS CORVOS / Parte I
Series & Trilogias Literarias
Blue Sargent havia esquecido quantas vezes lhe disseram que ela mataria o seu verdadeiro amor.
Sua família vendia previsões. Previsões que tendiam, no entanto, para o lado das generalidades. Coisas como: "Algo terrível acontecerá com você hoje. Pode envolver o número seis". Ou: "Está vindo dinheiro. Abra a mão para recebê-lo". Ou: "Você tem uma grande decisão a tomar e ela não vai se resolver sozinha".
As pessoas que iam à pequena casa azul-clara na Rua Fox, 300, não se importavam com a natureza imprecisa das leituras. Tornava-se um jogo, um desafio, perceber o momento exato em que as previsões se realizavam. Quando uma caminhonete com seis pessoas bateu no carro de um cliente duas horas após sua leitura paranormal, ele pôde assentir para si mesmo com um sentimento de realização e libertação. Quando um vizinho se ofereceu para comprar o velho cortador de grama de outra cliente, caso ela estivesse precisando de uma grana extra, ela pôde se lembrar da promessa do dinheiro que viria e vendeu o cortador com o sentimento de que a transação havia sido prevista. Ou quando um terceiro cliente ouviu sua esposa dizer: "É uma decisão que precisa ser tomada", ele pôde se lembrar das mesmas palavras sendo ditas por Maura Sargent diante das cartas de tarô sobre a mesa e então partir, decidido, para a ação.
Mas a imprecisão das leituras roubava parte de seu poder. As previsões podiam ser julgadas como coincidências ou palpites. Eram uma risadinha no estacionamento do Walmart quando você encontrava acidentalmente um velho amigo, como havia sido previsto. Um arrepio quando o número dezessete aparecia em uma conta de luz. Uma compreensão de que, ainda que você tivesse descoberto o futuro, seu modo de viver o presente não mudaria em nada. Elas eram verdadeiras, mas não eram toda a verdade.
- Devo avisar - Maura sempre dizia aos novos clientes - que essa leitura será precisa, mas não específica.
Era mais fácil assim.
Mas não era isso o que diziam a Blue. Em todas as ocasiões, abriam-lhe bem os dedos e examinavam-lhe a palma da mão, tiravam cartas de baralhos aveludados e as espalhavam sobre o tapete da sala de um amigo da família. Pressionavam-lhe o polegar contra o terceiro olho, místico e invisível, que dizem se encontrar entre as sobrancelhas de todos. Lançavam-se runas e interpretavam-se sonhos. Analisavam-se minuciosamente folhas de chá e conduziam-se sessões.
Todas as mulheres chegavam à mesma conclusão, direta e inexplicavelmente precisa. Todas elas concordavam num ponto, entre as muitas linguagens de clarividência diferentes:
Se Blue beijasse seu verdadeiro amor, ele morreria.
Por muito tempo, isso a incomodou. O aviso era específico, por certo, mas saído de um conto de fadas. Não dizia como seu verdadeiro amor morreria. Não dizia por quanto tempo após o beijo ele sobreviveria. Teria de ser um beijo nos lábios? Um beijinho ingênuo no dorso da mão seria igualmente mortal?
Até os onze anos, Blue esteve convencida de que contrairia sem saber uma doença infecciosa. Uma pressão nos lábios de sua hipotética alma gêmea e ele também morreria
em uma batalha devastadora, intratável pela medicina moderna. Quando fez treze anos, achou que, em vez disso, o ciúme o mataria - um ex-namorado surgiria no momento
daquele primeiro beijo, portando uma arma e um coração cheio de dor.
Aos quinze anos, Blue concluiu que as cartas de tarô de sua mãe eram apenas cartas de jogar e que os sonhos dela e das outras mulheres clarividentes eram movidos
por coquetéis e não por visões de outro mundo. Assim, a previsão não importava.
Mas ela sabia que não era assim. As previsões que saíam da Rua Fox, 300, eram pouco específicas, mas inegavelmente verdadeiras. A mãe de Blue havia sonhado com o
pulso quebrado da filha no primeiro dia na escola. Sua tia Jimi previra a devolução de impostos de Maura com uma margem de erro de dez dólares. Sua prima mais velha,
Orla, sempre começava a cantarolar sua canção favorita alguns minutos antes de ela tocar no rádio.
Ninguém na casa jamais chegara a duvidar de que Blue estava destinada a matar seu verdadeiro amor com um beijo. Era uma ameaça, entretanto, que estivera à sua volta
por tanto tempo que perdera a força. Pensar em Blue, aos seis anos, apaixonada era uma coisa tão distante a ponto de ser imaginária.
E, aos dezesseis anos, ela decidira que nunca se apaixonaria, então não havia por que se importar.
Mas essa crença mudou quando a meia-irmã de sua mãe, Neeve, chegou à cidadezinha de Henrietta, onde elas moravam. Neeve ficara famosa fazendo com estardalhaço o
que a mãe de Blue fazia em silêncio. As leituras de Maura eram feitas na sala de estar, quase sempre para moradores de Henrietta e do vale que contornava a cidade.
Neeve, por sua vez, fazia leituras na televisão, às cinco horas da manhã. Tinha um site que trazia antigas fotografias dela em foco suave, encarando diretamente
o visitante. Quatro livros a respeito do sobrenatural traziam seu nome na capa.
Blue nunca havia encontrado Neeve, portanto sabia mais sobre sua meia-tia por pesquisas na rede do que por experiência pessoal. Também não tinha certeza do motivo
pelo qual Neeve vinha visitá-las, mas sabia que sua chegada iminente incitara uma legião de conversas sussurradas entre Maura e suas duas melhores amigas, Persephone
e Calla - o tipo de conversa que se extinguia em goles de café e batidas de caneta na mesa quando Blue entrava na sala. Mas a garota não estava muito preocupada
com a chegada da tia; o que era uma mulher a mais em uma casa cheia delas?
Neeve finalmente apareceu em uma noite de primavera, quando as longas sombras das montanhas a oeste pareciam ainda mais extensas que de costume. Quando Blue abriu
a porta para Neeve, pensou por um momento que se tratava de uma senhora desconhecida, mas então seus olhos se acostumaram à luz escarlate que se alastrava vinda
do meio das árvores e ela percebeu que Neeve era apenas um pouco mais velha que Maura, o que não era ser muito velha, afinal.
Na rua, ao longe, os cães de caça latiam. Blue já estava acostumada com suas vozes; a cada outono, o Clube de Caça de Aglionby saía com seus cavalos e cães para
a caça à raposa, quase todos os fins de semana. Blue sabia o que aqueles uivos frenéticos significavam naquele momento. Eles estavam em perseguição.
- Você é a filha de Maura - disse Neeve e, antes que Blue pudesse responder, acrescentou: - Este é o ano em que você se apaixonará.
O tempo estava congelante no adro da igreja, mesmo antes de os mortos chegarem.
Todos os anos, Blue e sua mãe, Maura, iam ao mesmo lugar, e todos os anos fazia frio. Mas aquele ano, sem Maura ali com ela, parecia pior.
Era 24 de abril, véspera do Dia de São Marcos. Para a maioria das pessoas, o Dia de São Marcos ia e vinha sem que o notassem. Não era feriado escolar. Não se trocavam
presentes. Não havia fantasias ou festivais. Não havia promoções do Dia de São Marcos, não havia cartões do Dia de São Marcos nas prateleiras das lojas, nenhum programa
de televisão especial que fosse ao ar apenas uma vez no ano. Ninguém marcava o dia 25 de abril no calendário. Na realidade, a maioria das pessoas vivas nem sabia
que são Marcos tinha um dia em sua homenagem.
Mas os mortos se lembravam.
Enquanto Blue tremia, sentada sobre o muro de pedra, pensou que pelo menos não estava chovendo naquele ano.
Era para aquele lugar que Maura e Blue iam em todas as vésperas do Dia de São Marcos: uma igreja isolada tão velha que seu nome havia sido esquecido. A ruína estava
envolta pela densa vegetação das colinas, nas cercanias de Henrietta, distante ainda vários quilômetros das montanhas propriamente ditas. Apenas as paredes exteriores
permaneciam; o teto e o piso haviam desabado há muito tempo. O que não havia apodrecido estava escondido debaixo de trepadeiras ávidas e árvores jovens de cheiro
rançoso. A igreja era cercada por um muro de pedra, interrompido apenas por um portão coberto, largo o suficiente para um caixão e seus condutores. Um caminho teimoso
que parecia impermeável a ervas daninhas levava até a velha porta da igreja.
- Ah - sibilou Neeve, gorducha, mas estranhamente elegante, ao se sentar ao lado de Blue sobre o muro. Blue se impressionou outra vez, como no momento em que a conhecera,
com suas mãos peculiarmente atraentes. Punhos roliços levavam a palmas suaves como as de uma criança e a dedos delgados com unhas ovais.
- Ah - murmurou Neeve novamente. - Esta é uma daquelas noites.
Foi assim que ela disse: "Esta é uma daquelas noites", e nesse momento Blue sentiu a pele se arrepiar um pouco. Ela havia ficado de vigília com a mãe pelas últimas
dez vésperas de são Marcos, mas aquela noite parecia diferente.
Era uma daquelas noites.
Naquele ano, pela primeira vez, e por razões que Blue não compreendia, Maura havia mandado Neeve para fazer a vigília na igreja em seu lugar. Havia perguntado a
Blue se ela iria, como de costume, mas não foi bem uma pergunta. Blue sempre fora; iria dessa vez também. Não era como se tivesse feito planos para a véspera de
são Marcos. Mas tinha de ser consultada. Maura havia decidido em algum momento, antes do nascimento de Blue, que era desumano dar ordens às crianças, e assim a garota
havia crescido cercada por pontos de interrogação imperativos.
Blue abriu e fechou as mãos geladas. As bordas das luvas sem dedos estavam puídas. Ela as havia tricotado, muito mal, no ano passado, mas mesmo assim elas mantinham
certa elegância ordinária. Se Blue não fosse tão vaidosa, poderia usar as luvas sem graça, mas funcionais, que ganhara no Natal. Mas ela era vaidosa, por isso usava
as luvas sem dedos e puídas, infinitamente mais legais, embora não tão quentes, e não havia ninguém para vê-las, a não ser Neeve e os mortos.
Os dias de abril em Henrietta eram com frequência belos e suaves, induzindo árvores preguiçosas a florescer e joaninhas apaixonadas a bater contra as vidraças. Mas
não naquela noite. Parecia inverno.
Blue consultou o relógio. Faltavam poucos minutos para as onze horas. As lendas antigas recomendavam que a vigília na igreja fosse feita à meia-noite, mas os mortos
não eram pontuais, em especial quando não havia lua.
Diferentemente de Blue, que não tendia à paciência, Neeve era uma estátua majestosa sobre o muro da velha igreja: mãos sobrepostas, tornozelos cruzados por baixo
da longa saia de lã. Blue, encolhida, mais baixa e mais magra, era uma gárgula agitada e cega. Não era uma noite para seus olhos comuns. Era uma noite para videntes
e paranormais, bruxas e médiuns.
Em outras palavras, o resto de sua família.
Em meio ao silêncio, Neeve perguntou:
- Está ouvindo algo? - Seus olhos brilhavam na escuridão.
- Não - respondeu Blue, pois não ouvia nada. Então ela se perguntou se Neeve perguntara isso porque ela sim ouvira algo.
Neeve a encarava com o mesmo olhar que usava em todas as suas fotos no site - um olhar fixo e sobrenatural, deliberadamente enervante, que durava vários segundos
a mais do que seria confortável. Alguns dias após a chegada de Neeve, Blue ficara perturbada o suficiente para mencionar isso para Maura. As duas estavam apinhadas
no único banheiro, Blue se aprontando para a escola e Maura para o trabalho.
Enquanto tentava prender todas as partes do cabelo escuro em um rabo de cavalo rudimentar, a garota perguntou:
- Ela precisa encarar as pessoas daquele jeito?
No chuveiro, sua mãe desenhava formas no boxe de vidro coberto de vapor. Ela parou para rir, um lampejo da pele visível através das linhas longas e cruzadas que
ela havia desenhado.
- É a marca registrada dela.
Blue pensou que talvez houvesse coisas melhores pelas quais ser conhecida.
No adro, Neeve disse enigmaticamente:
- Há muito para ouvir.
A questão era que não havia. No verão, os contrafortes estavam vivos com insetos zunindo, tordos assobiando para lá e para cá, corvos ralhando com os carros. Mas
aquela noite estava fria demais para qualquer coisa ainda estar acordada.
- Eu não ouço coisas assim - disse Blue, um pouco surpresa de que Neeve ainda não soubesse disso. Na família acentuadamente clarividente de Blue, ela era uma casualidade,
uma estranha às conversas vibrantes que sua mãe, tias e primas mantinham com o mundo escondido para a maioria das pessoas. A única coisa especial sobre ela era algo
que ela mesma não conseguia experimentar. - Eu ouço tanto dessas conversas quanto o telefone. Eu só torno as coisas mais intensas para os outros.
Neeve ainda a encarava.
- Então é por isso que a Maura estava tão ansiosa para que você viesse comigo. Ela chama você para todas as leituras também?
O pensamento fez Blue estremecer. Um número considerável de clientes que entravam na casa da Rua Fox, 300, era de mulheres infelizes, esperando que Maura visse amor
e dinheiro em seu futuro. A ideia de se ver presa em casa com isso o dia inteiro era torturante. Blue sabia que com certeza era tentador para sua mãe tê-la presente,
para tornar seus poderes paranormais mais fortes. Quando era mais jovem, a garota nunca havia entendido que Maura a chamasse tão poucas vezes para se juntar a ela
em uma leitura, mas, agora que compreendia quanto aprimorava o talento das outras pessoas, ela ficava impressionada com a moderação de Maura.
- Não, a não ser que seja uma leitura muito importante - ela respondeu.
O olhar de Neeve havia passado da linha sutil entre o desconcertante e o horripilante. Então ela disse:
- Isso é algo de que você devia se orgulhar, sabia? Tornar mais forte o dom paranormal de outra pessoa é algo raro e valioso.
- Pfff - exclamou Blue, não de forma cruel, mas tentando ser engraçada. Ela tivera dezesseis anos para se acostumar à ideia de que não tinha intimidade com o sobrenatural
e não queria que Neeve pensasse que ela estava experimentando uma crise de identidade a respeito. Blue puxou um fio da luva.
- E você tem muito tempo para desenvolver seus próprios talentos intuitivos - acrescentou Neeve, com um olhar parecendo faminto.
Blue não respondeu. Ela não estava interessada em ler o futuro de outras pessoas. Estava interessada em correr atrás do próprio futuro.
Neeve finalmente baixou o olhar. Traçando um dedo preguiçoso pela terra sobre as pedras entre elas, disse:
- Eu passei por uma escola a caminho da cidade. Academia Aglionby. É lá que você estuda?
Os olhos de Blue se abriram com humor. Mas é claro que a tia, uma pessoa de fora, não poderia saber. Mesmo assim, ela podia ter deduzido, pelo saguão enorme de pedra
e o estacionamento cheio de carros que falavam alemão, que aquele não era o tipo de escola que ela e a mãe podiam pagar.
- É uma escola só para garotos. Para filhos de políticos, de barões do petróleo e... - Blue se esforçou para pensar em quem mais seria rico o suficiente para mandar
seus filhos para Aglionby - para os filhos de amantes que vivem de suborno.
Neeve elevou uma sobrancelha sem voltar os olhos.
- Não, sério, eles são horríveis - disse Blue.
Abril era uma época difícil para os garotos da Aglionby; à medida que esquentava, os conversíveis apareciam, trazendo garotos em bermudas tão ridículas que só os
ricos teriam coragem de usar. Durante a semana escolar, todos vestiam o uniforme da Aglionby: calça cáqui e um blusão com gola em V com o emblema de um corvo. Era
uma maneira fácil de identificar o exército que avançava. Garotos corvos.
Blue continuou:
- Eles acham que são melhores que a gente e que todas nós somos malucas por eles. E bebem até cair todos os fins de semana e picham as placas de saída de Henrietta.
A Academia Aglionby era a razão número um pela qual Blue havia desenvolvido suas duas regras: primeira, fique longe dos garotos, porque eles trazem problemas. E
segunda, fique longe dos garotos da Aglionby, porque eles são uns canalhas.
- Você parece ser uma adolescente muito sensata - disse Neeve, o que incomodou Blue, pois ela já sabia que era uma adolescente muito sensata. Quando você tinha tão
pouco dinheiro como os Sargent, a sensatez em relação a todas as questões era entranhada desde cedo.
Na luz ambiente da lua quase cheia, Blue percebeu o que Neeve havia desenhado na terra. E perguntou:
- O que é isso? Minha mãe já fez esse desenho.
- É mesmo? - perguntou Neeve. Elas estudaram as formas. Eram três linhas curvas que se cruzavam, formando uma espécie de triângulo longo. - Ela disse o que era?
- Ela estava desenhando isso no boxe do chuveiro, mas não perguntei.
- Eu sonhei com isso - disse Neeve, em um tom de voz baixo que enviou um arrepio desagradável pela nuca de Blue. - Eu queria ver como ficava desenhado.
Ela esfregou a palma sobre o desenho, então abruptamente ergueu uma bela mão e disse:
- Acho que eles estão vindo.
Era por isso que Blue e Neeve estavam ali. Todos os anos, Maura se sentava no muro, com os joelhos puxados até o queixo, olhava para o vazio e recitava nomes para
Blue. Para ela, o adro seguia vazio, mas, para Maura, ele estava cheio de mortos. Não de pessoas que já estavam mortas, mas dos espíritos daqueles que morreriam
nos próximos doze meses. Para Blue, aquilo sempre fora como ouvir metade de uma conversa. Às vezes sua mãe reconhecia os espíritos, mas frequentemente tinha de se
inclinar para frente para perguntar o nome deles. Maura lhe explicara certa vez que, se a filha não estivesse ali, ela não poderia convencê-los a lhe responder -
os mortos não conseguiriam ver Maura sem a presença de Blue.
Blue nunca se cansava de se sentir particularmente necessária, mas às vezes ela gostaria que necessária parecesse menos com um sinônimo de útil.
A vigília na igreja era crucial para um dos serviços mais incomuns de Maura. Contanto que os clientes vivessem na região, ela garantia que os avisaria se eles ou
um ente querido estivessem prestes a morrer nos próximos doze meses. Quem não pagaria por isso? Bem, a resposta na verdade era: a maior parte do mundo, já que a
maioria das pessoas não acreditava em fenômenos paranormais.
- Você está vendo alguma coisa? - perguntou Blue, esfregando bem as mãos dormentes antes de pegar um caderno e uma caneta no muro.
Neeve estava absolutamente imóvel.
- Algo tocou meu cabelo agora há pouco.
Mais uma vez, um arrepio subiu pelos braços de Blue.
- Um deles?
Em um tom de voz rouco, Neeve disse:
- Os futuros mortos têm de seguir o caminho dos corpos pelo portão. Esse provavelmente é outro... espírito chamado pela sua energia. Eu não percebi o efeito que
você teria.
Maura nunca havia mencionado outras pessoas mortas sendo atraídas por Blue. Talvez ela não quisesse assustá-la. Ou talvez Maura simplesmente não as tivesse visto
- talvez ela fosse tão cega para esses outros espíritos quanto Blue.
Blue se sentiu desconfortável com uma brisa mais rápida que lhe tocou o rosto, fazendo levantar o cabelo encrespado de Neeve. Uma coisa eram espíritos invisíveis
e ordeiros de pessoas ainda não verdadeiramente mortas. Outra eram fantasmas que não estavam a fim de permanecer no caminho.
- Eles estão... - Blue começou a falar.
- Quem é você? Robert Neuhmann - interrompeu-a Neeve. - Qual é o seu nome? Ruth Vert. Qual é o seu nome? Frances Powell.
Rabiscando rapidamente para acompanhá-la, Blue escrevia os nomes foneticamente, conforme Neeve perguntava. De tempos em tempos, erguia o olhar para o caminho, tentando
ver... algo. Mas, como sempre, só via o capim crescido, os carvalhos quase imperceptíveis e a boca negra da igreja, aceitando espíritos invisíveis.
Nada para ouvir, nada para ver. Nenhuma evidência dos mortos, exceto pelos nomes escritos no caderno que tinha na mão.
Talvez Neeve estivesse certa. Talvez Blue estivesse tendo uma espécie de crise de identidade. Em alguns dias, parecia um pouco injusto que toda a maravilha e o poder
que cercavam sua família tivessem passado para Blue na forma de papelada.
Pelo menos eu ainda posso fazer parte disso, pensou Blue de um jeito sério, apesar de se sentir tão incluída quanto um cão-guia para cegos. Segurou o caderno bem
próximo do rosto, a fim de ler no escuro. Era uma lista de nomes comuns setenta ou oitenta anos atrás: Dorothy, Ralph, Clarence, Esther, Herbert, Melvin. Um monte
dos mesmos sobrenomes, também. O vale estava dominado por várias famílias antigas e numerosas, talvez influentes.
Em algum lugar fora dos pensamentos de Blue, o tom de Neeve ficou mais enfático.
- Qual é o seu nome? - ela perguntou. - Com licença. Qual é o seu nome?
A expressão consternada parecia errada em seu rosto. Por hábito, Blue seguiu o olhar de Neeve até o centro do adro.
E ela viu alguém.
O coração de Blue martelava no peito. Do outro lado do batimento cardíaco, ele ainda estava ali. Onde não deveria haver nada, havia uma pessoa.
- Eu estou vendo - disse Blue. - Neeve, eu estou vendo.
Blue sempre imaginara a procissão de espíritos como algo ordenado, mas aquele ali perambulava, hesitante. Era um jovem de calça e blusão, com o cabelo despenteado.
Não era exatamente transparente, tampouco estava ali de verdade. Sua figura era escura como água suja, e seu rosto, indistinto. Não havia um traço que o identificasse,
exceto sua juventude.
Ele era tão jovem - essa era a parte mais difícil de se acostumar.
Enquanto Blue o observava, ele fez uma pausa e colocou os dedos do lado do nariz e na têmpora. Era um gesto tão estranhamente vivo que Blue se sentiu um pouco enjoada.
Então ele tropeçou para frente, como se tivesse sido empurrado por trás.
- Pegue o nome dele - sussurrou Neeve. - Ele não me responde e eu preciso pegar os outros.
- Eu? - Blue respondeu, escorregando do muro. O coração ainda batia forte dentro do peito. Então ela perguntou, sentindo-se um pouco boba. - Qual é o seu nome?
Ele não parecia ouvi-la. Sem um traço de reconhecimento, ele começou a se mover novamente, lento e confuso, na direção da porta da igreja.
É assim que encontramos o caminho para a morte?, perguntou-se Blue. Um desaparecer trôpego em vez de um final consciente?
Enquanto Neeve começava a fazer perguntas para os outros, Blue abriu caminho na direção do sujeito que perambulava.
- Quem é você? - chamou de uma distância segura, enquanto ele segurava a testa com as mãos. Sua forma não seguia nenhuma linha, ela via agora, e seu rosto era verdadeiramente
desprovido de traços. Não havia nada a respeito dele, realmente, que lhe desse uma forma humana, mas mesmo assim ela via um garoto. Havia algo contando para sua
mente o que ele era, mesmo que não estivesse contando para seus olhos.
Não havia emoção em vê-lo, como ela achou que teria. Tudo que ela conseguia pensar era: Ele estará morto em um ano. Como Maura aguentava isso?
Blue se aproximou furtivamente. Quando estava próxima o suficiente para tocá-lo, ele começou a caminhar novamente, ainda sem dar sinal de que a via.
Suas mãos estavam congelando por causa daquela proximidade. Seu coração também. Espíritos invisíveis sem calor próprio lhe sugavam a energia, deixando-a arrepiada
nos braços.
O jovem parou na soleira da igreja, e Blue sabia, simplesmente sabia, que se ele entrasse ali ela perderia a chance de pegar seu nome.
- Por favor - disse ela, de maneira mais suave do que antes. E estendeu uma mão, tocando a ponta do blusão ausente. Um frio aterrorizante percorreu seu corpo. Ela
tentou se firmar com o que sempre ouvira dizer: espíritos tiravam sua energia das cercanias. Tudo que ela sentia era que ele a usava para ficar visível.
Mas ainda assim aquilo parecia aterrorizante.
Ela perguntou:
- Você vai me dizer o seu nome?
Ele a encarou, e Blue ficou chocada ao perceber que ele usava um blusão da escola Aglionby.
- Gansey - ele disse.
Apesar de seu tom de voz ser baixo, não era um sussurro. Era uma voz real, falada de algum lugar quase distante demais para ser ouvido.
Blue não conseguia parar de olhar para seu cabelo despenteado, a sugestão de olhos que a encaravam, o corvo estampado no blusão. Ela viu os ombros dele encharcados,
e o resto da roupa salpicado de chuva, de uma tempestade que ainda não havia acontecido. Estava tão próxima dele que podia perceber uma fragrância de hortelã, que
não sabia ao certo se era específica dele ou específica dos espíritos.
Ele era tão real. Quando finalmente aconteceu, quando ela finalmente o viu, não pareceu nenhum truque de mágica. Era como se ela estivesse olhando para o túmulo
e vendo-o olhar de volta para ela.
- Isso é tudo? - ela sussurrou.
Gansey fechou os olhos.
- É só isso.
Ele caiu de joelhos - um gesto silencioso para um garoto sem um corpo real. Uma mão se abriu na terra, os dedos pressionando o chão. Blue viu a escuridão da igreja
mais claramente do que a forma curva do ombro dele.
- Neeve - disse Blue. - Neeve, ele está... morrendo.
Neeve se postou logo atrás dela e respondeu:
- Ainda não.
Gansey havia praticamente sumido, desvanecendo igreja adentro, ou a igreja desvanecendo nele.
A voz de Blue saiu mais sussurrada do que ela gostaria.
- Por quê? Por que eu consigo vê-lo?
Neeve olhou por cima do ombro, porque havia mais espíritos entrando ou porque não havia mais nenhum - Blue não sabia dizer. Quando olhou de volta, Gansey havia desaparecido
completamente. Blue começou a sentir o calor voltando para o corpo, mas havia algo gelado atrás de seus pulmões. Uma tristeza perigosa, sugadora, parecia estar se
abrindo dentro dela: luto ou arrependimento.
- Existem apenas duas razões para uma não vidente ver um espírito na véspera do Dia de São Marcos, Blue. Ou você é o verdadeiro amor dele - disse Neeve -, ou você
o matou.
- Sou eu - disse Gansey.
Ele se virou de frente para o carro. O capô laranja-vivo do Camaro estava levantado, mais como um símbolo de derrota do que para servir a algum uso prático. Adam,
amigo de todos os carros, talvez conseguisse determinar o que havia de errado dessa vez, mas Gansey certamente não. Ele havia conseguido rolar até o acostamento,
a pouco mais de um metro da interestadual, e agora os pneus largos jaziam sobre tufos altos de capim. Um caminhão passou zunindo, e o Camaro estremeceu em seu rastro.
Do outro lado do telefone, Ronan Lynch, seu colega de quarto, respondeu:
- Você perdeu a aula de história geral. Achei que você estivesse morto em uma vala.
Gansey girou o pulso para examinar o relógio. Ele havia perdido bem mais do que a aula de história geral. Eram onze horas, e o frio da noite passada parecia improvável.
Um mosquito estava grudado na pele, próximo da pulseira do relógio. Ele se livrou do inseto com um piparote. Certa vez, quando era mais jovem, ele e o pai haviam
acampado. Havia barracas, sacos de dormir e uma Range Rover ociosa estacionada próxima para quando ele e o pai perdessem o interesse. Como experiência, não havia
sido nada como a noite passada.
Ele perguntou:
- Você anotou a matéria para mim?
- Não - respondeu Ronan. - Achei que você estivesse morto em uma vala.
Gansey cuspiu fora a areia da boca e recolocou o telefone no ouvido. Ele teria anotado a matéria para Ronan.
- O Pig parou. Vem me buscar.
Um sedã diminuiu a velocidade quando passou por ele, com os ocupantes olhando para fora da janela. Gansey não era um garoto de aparência desagradável e o Camaro
não era uma visão tão dura assim também, mas aquela atenção tinha menos a ver com beleza e mais com a surpresa de ver um garoto da Aglionby em um carro descaradamente
laranja quebrado na beira da estrada. Gansey sabia que não havia nada que a pequena Henrietta, Virgínia, gostasse mais do que ver coisas humilhantes acontecerem
com garotos da Aglionby, a não ser que fossem coisas humilhantes acontecerem com suas famílias.
Ronan disse:
- Tá zoando, cara.
- Até parece que você vai para a aula. E depois é hora do almoço de qualquer jeito. - Então ele acrescentou, como quem cumpre uma obrigação: - Por favor.
Ronan ficou em silêncio por um longo tempo. Ele era bom nisso; sabia que deixava as pessoas desconfortáveis. Mas Gansey era imune, pois já conhecia aquela tática.
Inclinou-se para dentro do carro para ver se havia comida no porta-luvas, enquanto esperava que Ronan falasse. Ao lado de um autoinjetor de adrenalina, havia um
pacote de carne desidratada, mas o prazo de validade havia expirado dois anos atrás. Talvez já estivesse ali quando ele comprara o carro.
- Onde você está? - perguntou Ronan finalmente.
- Perto da placa de Henrietta, na 64. Traga um hambúrguer. E alguns litros de gasolina. - O carro não ficara sem gasolina, mas mal não podia fazer.
A voz de Ronan era ácida.
- Gansey.
- Traga o Adam também.
Ronan desligou. Gansey tirou o blusão e o jogou na parte traseira do Camaro. O espaço ínfimo ali atrás era um casamento desordenado de objetos cotidianos - um livro
de química, um caderno manchado de frappuccino, um porta-CDs meio aberto, com discos soltos se espalhando pelo banco - e as provisões que ele adquirira durante seus
dezoito meses em Henrietta. Mapas amarrotados, folhas impressas, o diário sempre presente, uma lanterna e a vara de radiestesia. Quando Gansey tirou um gravador
digital da bagunça, um recibo de pizza (grande, meia calabresa, meia abacate) esvoaçou até o banco, juntando-se a meia dúzia de recibos idênticos, exceto pela data.
Durante toda a noite, ele ficara sentado do lado de fora da monstruosamente moderna Igreja do Sagrado Redentor, com o gravador rodando e os ouvidos atentos, esperando
por... algo. A atmosfera não era nada mágica. Possivelmente não era o melhor lugar para tentar fazer contato com os futuros mortos, mas Gansey alimentava grande
esperança no poder da véspera do Dia de São Marcos. Não era que ele esperasse ver os mortos. Todas as fontes diziam que os observadores de igrejas tinham de possuir
"a segunda visão", e Gansey mal possuía a primeira antes de colocar suas lentes de contato. Ele apenas esperava por...
Algo. E foi isso que conseguiu. Ele só não estava absolutamente certo do que seria aquele algo.
Com o gravador digital nas mãos, ele se sentou encostado contra o pneu traseiro para esperar, deixando que o carro o protegesse do deslocamento de vento dos veículos
que passavam. Do outro lado da barreira de proteção, um campo verde se estendia em declive até as árvores. Mais adiante, elevava-se o cimo azul misterioso das montanhas.
Na ponta empoeirada do sapato, Gansey desenhou a forma em arco da suposta linha de energia sobrenatural que o levara até ali. À medida que a brisa da montanha corria
em seus ouvidos, ela soava como um grito abafado - não um sussurro, mas um grito alto de um lugar quase distante demais para ser ouvido.
A questão era que Henrietta parecia um lugar onde a magia podia acontecer. O vale parecia sussurrar segredos. Era mais fácil acreditar que eles não se revelariam
para Gansey do que que não existiam.
Por favor, apenas me digam onde vocês estão.
Seu coração doía de anseio por eles, um anseio não menos doloroso por ser difícil de explicar.
O BMW "nariz de tubarão" de Ronan Lynch parou atrás do Camaro, a pintura, normalmente de um carvão lustroso, empoeirada do verde do pólen. Gansey sentiu o baixo
do estéreo nos pés um momento antes de reconhecer qual era a música. No banco do passageiro estava Adam Parrish, o terceiro membro do quarteto que constituía os
amigos mais próximos de Gansey. O nó da gravata de Adam estava arrumado acima da gola do blusão. A mão delgada pressionava firmemente o celular fino de Ronan contra
o ouvido.
Pela porta aberta do carro, Adam e Gansey trocaram um breve olhar. As sobrancelhas franzidas de Adam perguntaram: Encontrou algo?, e os olhos arregalados de Gansey
responderam: Você que me diz.
Com a expressão fechada, Adam baixou o volume no estéreo e disse algo ao telefone.
Ronan bateu a porta do carro - ele batia tudo - antes de se dirigir para o porta-malas. Então disse:
- O idiota do meu irmão quer que a gente encontre com ele no Nino's hoje à noite. E com a Ashley.
- É ele no telefone? - perguntou Gansey. - O que é Ashley?
Ronan retirou uma lata de gasolina do porta-malas, fazendo pouco esforço para evitar que o recipiente oleoso encostasse em sua roupa. Assim como Gansey, ele usava
o uniforme da Aglionby, mas, como sempre, conseguia fazê-lo parecer o mais reles possível. A gravata fora amarrada segundo um método mais bem descrito como desdém,
e a barra da camisa aparecia, amarfanhada, por baixo do blusão. O sorriso era fino e incisivo. Se seu BMW lembrava um tubarão, havia aprendido com o dono.
- A nova do Declan. A gente tem que ficar bonitinho para ela.
Gansey se incomodava com ter de agradar o irmão mais velho de Ronan, aluno do último ano da Aglionby, mas ele compreendia por que eles precisavam fazer isso. A liberdade
na família Lynch era uma coisa complicada e, no momento, Declan tinha as chaves dela.
Ronan trocou a lata de combustível pelo gravador.
- Ele quer fazer isso hoje à noite porque sabe que eu tenho aula.
A tampa do tanque de combustível do Camaro estava localizada atrás da placa do carro, acionada por uma mola, e Ronan observou em silêncio enquanto Gansey lutava,
ao mesmo tempo, com a tampa, a lata de gasolina e a placa.
- Você devia ter feito isso - Gansey lhe disse. - Já que não se importa de sujar a camisa.
Indiferente, Ronan coçou uma casca de ferida antiga, amarronzada, por baixo das cinco pulseiras de couro entrelaçadas em torno do punho. Na semana anterior, ele
e Adam haviam se revezado arrastando um ao outro em um carrinho atrás do BMW, e ambos ainda tinham as marcas para provar.
- Me pergunte se eu achei alguma coisa - disse Gansey.
Suspirando, Ronan virou o gravador na direção dele.
- Você achou alguma coisa?
Ele não parecia muito interessado, mas isso fazia parte da marca registrada de Ronan Lynch. Era impossível dizer quão profundo seu desinteresse realmente era.
O combustível estava vazando lentamente sobre a calça cara de algodão de Gansey, a segunda que ele arruinara em um mês. Não é que ele fizesse questão de ser descuidado
- como Adam havia lhe dito repetidas vezes: "As coisas custam dinheiro, Gansey" -, apenas nunca parecia se dar conta das consequências de seus atos até que fosse
tarde demais.
- Eu gravei mais ou menos quatro horas de áudio e achei... algo. Mas não sei o que quer dizer. - Ele gesticulou na direção do gravador. - Toca aí.
Ronan se virou para contemplar a interestadual e apertou o play. Por um momento houve um mero silêncio, quebrado apenas pelo ruído agudo e indiferente de grilos.
Então a voz de Gansey: "Gansey".
Uma longa pausa. Gansey passou um dedo lentamente pelo cromo marcado do para-choque do Camaro. Ainda era estranho ouvir a si mesmo na gravação, sem se lembrar de
ter dito aquelas palavras.
Então, como se de uma grande distância, uma voz feminina, as palavras difíceis de compreender: "Isso é tudo?"
Ronan disparou um olhar desconfiado na direção de Gansey, que levantou o dedo: Espere. Vozes murmuradas, mais baixas que antes, sibilaram do gravador, nada claro
a respeito delas, exceto a cadência: perguntas e respostas. E então sua voz desencarnada falou do gravador novamente: "É só isso".
Ronan lançou um olhar de volta para Gansey ao lado do carro, fazendo o que este chamava de respiração de fumante: longa inspiração pelas narinas distendidas, lenta
expiração por lábios separados.
Mas Ronan não fumava. Seu hábito era com ressacas.
Ele parou o gravador e disse:
- Ô esperto, você está deixando pingar gasolina na calça.
- Você não vai me perguntar o que estava acontecendo quando eu gravei isso?
Ronan não perguntou. Apenas continuou olhando para Gansey, o que era a mesma coisa.
- Não estava acontecendo nada. É isso. Eu estava olhando para um estacionamento cheio de insetos que não deveriam estar vivos quando está frio desse jeito à noite,
e não havia nada.
Gansey não tinha certeza se captaria alguma coisa no estacionamento, mesmo se estivesse no lugar certo. De acordo com os caçadores de linhas ley com quem ele havia
conversado, a linha às vezes transmitia vozes ao longo de seu comprimento, lançando sons a centenas de quilômetros e dezenas de anos de quando eles haviam sido ouvidos
pela primeira vez. Uma espécie de assombração de áudio, uma transmissão de rádio imprevisível em que quase qualquer coisa na linha ley poderia ser um receptor: um
gravador, um estéreo, um par de ouvidos humanos bem sintonizados. Carecendo de qualquer habilidade paranormal, Gansey havia levado o gravador, uma vez que os ruídos
frequentemente eram audíveis apenas quando reproduzidos depois. O estranho em tudo isso não eram as outras vozes no gravador. O estranho era a voz de Gansey, pois
ele estava bastante convencido de que não era um espírito.
- Eu não disse nada, Ronan. Durante a noite inteira, eu não disse nada. Então o que a minha voz está fazendo nessa gravação?
- Como você sabia que ela tinha sido gravada?
- Eu estava ouvindo o que gravei enquanto dirigia de volta. Nada, nada, nada, e de repente: minha voz. Daí o Pig parou.
- Coincidência? - perguntou Ronan. - Acho que não.
A intenção era que isso soasse sarcástico. Gansey havia dito tantas vezes "Eu não acredito em coincidências" que ele não precisava mais repetir.
Gansey perguntou:
- Bem, o que você acha?
- O Santo Graal, finalmente - respondeu Ronan, irônico demais para que fosse levado a sério.
Mas o fato era que Gansey havia passado os últimos quatro anos trabalhando com os fragmentos de evidências mais ínfimos possíveis, e a voz que mal se ouvia era todo
o incentivo de que ele precisava. Seus dezoito meses em Henrietta lhe renderam alguns vestígios imprecisos em busca de uma linha ley - um caminho de energia sobrenatural,
perfeitamente reto, que conecta lugares espirituais - e da tumba furtiva que ele esperava que existisse ao longo desse caminho. Esse era apenas um risco de procurar
por uma linha de energia invisível. Ela era... bem, invisível.
E possivelmente hipotética, mas Gansey se recusou a levar essa ideia em consideração. Em dezessete anos de vida, ele já achara dezenas de coisas que as pessoas não
sabiam que podiam ser achadas, e realmente tencionava acrescentar a linha ley, a tumba e o ocupante real da tumba a essa lista de itens.
O curador de um museu no Novo México certa vez dissera a Gansey: "Filho, você tem um jeito extraordinário para descobrir esquisitices". Um historiador romano impressionado
comentara: "Você é esperto, olha debaixo de pedras que ninguém mais pensa em levantar". E um professor inglês muito velho declarara: "Garoto, o mundo mostra para
você o que tem nos bolsos". Gansey descobrira que a chave era acreditar que essas coisas existiam; você tinha de se dar conta de que elas eram parte de algo maior.
Alguns segredos se mostravam apenas para aqueles que se provavam merecedores.
A maneira como Gansey via a questão era a seguinte: se você tinha uma habilidade especial para encontrar coisas, isso significava que você devia ao mundo procurá-las.
- Olha, não é o Whelk? - perguntou Ronan.
Um carro diminuiu bastante a velocidade quando passou por eles, permitindo que vissem de relance o motorista excessivamente curioso. Gansey tinha de concordar que
o motorista parecia bastante com seu ressentido professor de latim, um ex-aluno de Aglionby com o infeliz nome de Barrington Whelk. Gansey, graças a seu título oficial
de Richard "Dick" Campbell Gansey III, era ligeiramente imune a nomes pomposos, mas mesmo ele tinha de admitir que não havia muito a perdoar a respeito de Barrington
Whelk.
- Não precisa parar para ajudar nem nada - disparou Ronan, após o carro passar. - Ei, nanico. O que rolou com o Declan?
Essa última parte era dirigida a Adam quando ele saiu do BMW com o celular de Ronan ainda nas mãos. Ele tentou devolver, mas Ronan balançou a cabeça com desdém.
Ronan desprezava todos os telefones, inclusive o seu.
Adam disse:
- Ele vai aparecer às cinco horas hoje à tarde.
Diferentemente de Ronan, o blusão da Aglionby de Adam era de segunda mão, mas ele zelava para mantê-lo impecável. O rapaz era alto e magro, tinha o cabelo acinzentado
mal aparado e o rosto bem formado e bronzeado. Adam era uma fotografia em sépia.
- Que bom - respondeu Gansey. - Você vai, né?
- Eu fui convidado? - Adam às vezes era peculiarmente educado. Quando ele não tinha certeza a respeito de algo, seu sotaque sulista sempre aparecia, e agora estava
em evidência.
Adam nunca precisou de convite. Ele e Ronan deviam ter brigado. Como sempre. Ronan brigava com qualquer um, bastava ter carteira de identidade.
- Não seja burro - respondeu Gansey, e gentilmente aceitou o saco manchado de gordura do lanche que Adam lhe oferecia. - Obrigado.
- Foi o Ronan que comprou - disse Adam. Em questões de dinheiro, ele era rápido em designar o crédito ou a culpa.
Gansey olhou para Ronan, que se recostara no Camaro, mordendo de maneira ausente uma das pulseiras de couro no punho. Gansey disse:
- Não vai me dizer que tem molho nesse hambúrguer.
Largando a pulseira dos dentes, Ronan zombou:
- Por favor.
- E nem picles - disse Adam, agachando-se atrás do carro. Ele levara não só dois pequenos vidros de aditivo para combustível, como também um pano para colocar entre
a lata de gasolina e a calça, fazendo o processo inteiro parecer banal. Adam tentava esconder suas raízes com tamanho esforço, mas elas apareciam nos menores gestos.
Gansey abriu um largo sorriso, o calor da descoberta começando a se espalhar por seu corpo.
- Então, vamos ao teste, sr. Parrish. Três coisas que aparecem nas proximidades de linhas ley.
- Cães pretos - disse Adam indulgentemente. - Presenças demoníacas.
- Camaros - acrescentou Ronan.
Gansey continuou como se ele não tivesse falado.
- E fantasmas. Ronan, volte à prova, por favor.
Os três continuaram ali, no sol do fim da manhã, enquanto Adam fechava a tampa do tanque de combustível e Ronan acessava a gravação. Longe dali, sobre as montanhas,
um gavião de cauda vermelha guinchava fracamente. Ronan apertou o play novamente e eles ouviram Gansey dizer seu nome para o nada. Adam franziu o cenho ao escutar
aquilo, o dia quente lhe avermelhando a face.
Aquela poderia ser qualquer manhã do último ano e meio. Ronan e Adam fariam as pazes no fim do dia, os professores perdoariam Gansey por faltar à aula, e então ele,
Adam, Ronan e Noah sairiam para comer pizza, quatro contra Declan.
Adam disse:
- Tente ligar o carro, Gansey.
Gansey deixou a porta do carro aberta e desabou no banco do motorista. Ao fundo, Ronan tocava a gravação novamente. Por alguma razão, daquela distância, o som das
vozes fez os pelos de seus braços se arrepiarem lentamente. Algo dentro dele dizia que aquele seu discurso inconsciente significava o começo de algo diferente, embora
ele não soubesse ainda o quê.
- Vamos lá, Pig! - rosnou Ronan.
Alguém buzinou ao passar em alta velocidade pela autoestrada.
Gansey girou a chave. O motor fez um barulho, parou por um instante e então rugiu ensurdecedor de volta à vida. O Camaro vivia para lutar mais um dia. Até o rádio
estava funcionando, tocando a canção de Stevie Nicks que sempre soava para Gansey como se fosse sobre uma pomba com apenas uma asa. Ele experimentou as batatas fritas
que os amigos lhe haviam trazido. Estavam frias.
Adam colocou a cabeça para dentro do carro e disse:
- Vamos seguir você até a escola. O carro funcionou, mas ainda tem algo errado com ele.
- Ótimo - respondeu Gansey, gritando para ser ouvido com todo aquele barulho do motor.
Ao fundo, o BMW pulsava numa linha de graves, quase inaudível, enquanto Ronan dissolvia o que sobrara de seu coração em loops eletrônicos.
- E aí, sugestões?
Adam colocou a mão no bolso e lhe estendeu um pedaço de papel.
- O que é isso? - perguntou Gansey, estudando a caligrafia errática de Adam. Suas letras pareciam fugir de algo. - O número de uma médium?
- Se você não tivesse encontrado nada na noite passada, esse seria o próximo passo. Agora você tem algo para perguntar a elas.
Gansey considerou o assunto. Paranormais tendiam a lhe dizer que havia dinheiro vindo ao seu encontro e que ele estava destinado a grandes coisas. A primeira previsão
ele sabia que era sempre verdadeira, e a segunda, temia que pudesse vir a ser. Mas talvez com aquela nova pista, com uma nova médium, ela teria algo diferente a
dizer.
- Tudo bem - ele concordou. - Então, o que eu vou perguntar?
Adam lhe passou o gravador digital. Bateu no teto do Camaro uma, duas vezes, pensativo.
- O óbvio - ele respondeu. - Vamos descobrir com quem você estava falando.
As manhãs na Rua Fox, 300, eram eventos temíveis e confusos. Atropelos, filas para o banheiro e discussões abruptas sobre saquinhos de chá colocados em xícaras que
já tinham saquinhos de chá. Havia a escola para Blue e o trabalho para algumas das tias mais produtivas (ou menos intuitivas). As torradas queimavam, o cereal amolecia,
a porta da geladeira ficava constantemente aberta. Chaves tilintavam enquanto se decidiam caronas apressadamente.
Durante o café, o telefone começava a tocar e Maura dizia:
- É o universo ligando para você na linha dois, Orla - ou algo assim, e Jimi ou Orla ou uma das outras tias ou meias-tias ou amigas brigavam para decidir quem deveria
atender o telefone no andar de cima. Dois anos antes, a prima de Blue, Orla, havia decidido que um número de atendimento paranormal seria uma aquisição lucrativa
e, após algumas breves discussões com Maura sobre imagem pública, Orla venceu. "Vencer" significa que Orla esperou até que Maura fosse a uma conferência em um fim
de semana para então instalar a linha em segredo, e isso era mais a lembrança de um fato desagradável do que um fato desagradável em si. As chamadas começavam a
chegar aproximadamente às sete da manhã, e em alguns dias um dólar por minuto parecia valer mais a pena do que em outros.
As manhãs eram um esporte. Um esporte que Blue gostava de pensar que estava jogando melhor.
No dia seguinte à vigília na igreja, contudo, ela não teve de se preocupar em disputar um lugar no banheiro ou tentar preparar um lanche para o almoço enquanto Orla
deixava cair uma torrada com a manteiga para baixo. Quando ela acordou, seu quarto, normalmente iluminado pela luz da manhã, tinha a luz suave da tarde. No quarto
ao lado, Orla estava falando com o namorado ou com um dos clientes da linha de atendimento paranormal. Com Orla, era difícil dizer a diferença entre os dois tipos
de chamada. Ambas deixavam Blue pensando que ela devia tomar uma ducha depois.
Blue assumiu o banheiro tranquilamente, dando atenção especial para o cabelo, escuro e cortado em estilo chanel, longo o suficiente para ser preso de modo plausível,
mas curto o suficiente para precisar de uma série de grampos para fazer isso com sucesso. O resultado era um rabo de cavalo espetado, irregular e cheio de mechas
fugitivas e grampos desiguais, de aparência excêntrica e revolta. Blue tinha trabalhado duro para conseguir aquele resultado.
- Mãe - disse ela, enquanto descia apressadamente a escada gasta. Maura estava no balcão da cozinha fazendo uma bagunça com folhas de algum tipo de chá. O cheiro
era terrível.
Sua mãe não se virou. No balcão, por todos os lados, havia correntes oceânicas e verdes de ervas soltas.
- Você não precisa estar sempre correndo.
- Você precisa - replicou Blue. - Por que você não me chamou para a escola?
- Eu chamei - disse Maura. - Duas vezes. - Então resmungou para si: - Droga.
Da mesa, a voz suave de Neeve ecoou:
- Precisa da minha ajuda com isso, Maura?
Ela estava sentada à mesa com uma xícara de chá, gorducha e angelical como sempre, sem apresentar nenhum sinal de ter perdido o sono na noite anterior. Neeve encarou
Blue, que tentou evitar o contato visual.
- Sou perfeitamente capaz de fazer um maldito chá de meditação, obrigada - disse Maura. Para Blue, acrescentou: - Eu disse para a escola que você estava gripada.
Enfatizei que estava vomitando. Lembre-se de parecer cansada amanhã.
Blue pressionou a palma das mãos sobre os olhos. Ela nunca faltara às aulas no dia seguinte à vigília na igreja. Talvez se sentisse sonolenta, mas nunca debilitada
como na noite passada.
- Foi porque eu vi aquele garoto? - ela perguntou a Neeve, baixando as mãos. Ela gostaria de não se lembrar do garoto tão claramente. Ou melhor, da ideia dele, sua
mão aberta sobre o chão. Ela gostaria de poder desvê-lo. - É por isso que eu dormi por tanto tempo?
- É porque você deixou quinze espíritos passarem através do seu corpo enquanto você conversava com um menino morto - respondeu Maura concisamente, antes que Neeve
pudesse falar. - Pelo menos foi isso que eu ouvi. Meu Deus, esse é o cheiro que essas folhas deveriam ter?
Blue se virou para Neeve, que continuou a bebericar o chá com um ar confiante.
- É verdade? É porque os espíritos passaram através de mim?
- Você deixou que eles tirassem energia de você - respondeu Neeve. - Você tem bastante energia, mas não tanto.
Blue teve dois pensamentos imediatos sobre isso. Um foi: Eu tenho bastante energia? E o outro: Acho que essa história está me irritando. Não era que ela tivesse
intencionalmente permitido que os espíritos extraíssem energia dela.
- Você devia ensiná-la a se proteger - disse Neeve para Maura.
- Eu ensinei algumas coisas a ela. Eu não sou uma mãe tão incapaz assim - disse Maura, passando à filha uma xícara de chá.
Blue disse:
- Não vou beber isso. O cheiro é horrível. - E retirou um pote de iogurte da geladeira. Então, em solidariedade à mãe, disse a Neeve: - Eu nunca precisei me proteger
na vigília da igreja antes.
Neeve refletiu.
- É espantoso. Você amplifica tanto os campos de energia que estou surpresa que eles não a encontrem mesmo aqui.
- Ah, pare - disse Maura, soando irritada. - Não há nada de aterrorizante em relação a pessoas mortas.
Blue ainda estava vendo a imagem fantasmagórica de Gansey, derrotado e confuso. E disse:
- Mãe, os espíritos da vigília da igreja... Você consegue evitar a morte deles? Avisando-os?
Nesse instante, o telefone tocou. Estrilou duas vezes e continuou tocando, o que significava que Orla ainda estava na linha com a outra pessoa que ligara.
- Que droga, Orla! - disse Maura, apesar de ela não estar perto para ouvi-la.
- Eu atendo - disse Neeve.
- Mas... - Maura não terminou o que iria dizer, e Blue se perguntou se ela estava pensando que Neeve normalmente trabalhava por muito mais do que um dólar por minuto.
- Eu sei o que você está pensando - disse-lhe a mãe, após Neeve ter deixado a cozinha. - A maioria morre de ataque cardíaco, câncer ou outras coisas inevitáveis.
Aquele garoto vai morrer.
Blue estava começando a sentir um fantasma da sensação que tivera antes, aquele estranho pesar.
- Não acho que um garoto da Aglionby vai morrer de ataque cardíaco. Por que você faz questão de contar para os seus clientes?
- Para que eles possam colocar as coisas em ordem e fazer tudo que precisam fazer antes de morrer.
Então sua mãe se virou, fixando em Blue um olhar de quem sabe de algo. Ela parecia tão impressionante quanto poderia parecer uma pessoa parada, descalça e de calça
jeans, segurando uma xícara de chá exalando um cheiro de terra em decomposição.
- Eu não vou tentar evitar que você o avise, Blue. Mas você precisa saber que ele não vai acreditar, mesmo se você encontrá-lo, e isso provavelmente não vai salvá-lo,
mesmo se ele ficar sabendo. Talvez você evite que ele faça algo estúpido. Ou talvez você simplesmente estrague os últimos meses de vida dele.
- Você é uma Poliana - disparou Blue. Mas ela sabia que Maura estava certa, pelo menos sobre a primeira parte. A maioria das pessoas que ela conhecia achava que
sua mãe fazia truques de salão para sobreviver. O que Blue achava que ia fazer: rastrear um estudante da Aglionby, bater na janela de seu Land Rover ou de seu Lexus
e avisá-lo para checar os freios e atualizar o seguro de vida?
- Eu provavelmente não posso evitar que você o encontre de qualquer maneira - disse Maura. - Quer dizer, se a Neeve estiver certa sobre o motivo de você ter visto
esse garoto. Seu destino é encontrá-lo.
- Destino - respondeu Blue, olhando furiosa para a mãe - é uma palavra muito pesada para se dizer antes do café da manhã.
- O resto do pessoal já tomou café há muito tempo - disse Maura.
A escada rangeu enquanto Neeve retornava.
- Número errado - disse do seu jeito sem afetação. - Você recebe muitas ligações por engano?
- Nosso número parece o de uma empresa de acompanhantes para cavalheiros - respondeu Maura.
- Ah - disse Neeve. - Isso explica a ligação. Blue - ela acrescentou, enquanto se ajeitava na mesa novamente -, se você quiser, posso tentar ver o que o matou.
Isso chamou imediatamente a atenção tanto de Maura quanto de Blue.
- Sim - disse Blue.
Maura ia responder, então pressionou os lábios.
Neeve perguntou:
- Temos suco de uva?
Confusa, Blue foi até a geladeira e ergueu uma jarra interrogativamente.
- Uva e cranberry?
- Está ótimo.
Com o semblante ainda fechado, Maura abriu o armário, tirou uma tigela escura e a colocou na frente de Neeve de maneira pouco delicada.
- Não vou me responsabilizar por nada que você vir - disse Maura.
Blue perguntou:
- O quê? O que isso quer dizer?
Nenhuma delas respondeu.
Com um sorriso fofo no rosto fofo, Neeve derramou o suco na tigela até a borda. Maura apagou a luz. O lado de fora subitamente parecia vívido em comparação à cozinha
sombria. As árvores claras de abril pressionavam as janelas da copa, folha sobre folha sobre vidro, e Blue subitamente estava muito consciente de estar cercada por
árvores, com a sensação de estar no meio de uma mata fechada.
- Se vocês forem observar, por favor fiquem em silêncio - disse Neeve, sem olhar para ninguém em particular. Blue puxou uma cadeira e se sentou. Maura se recostou
no balcão e cruzou os braços. Era raro ver Maura incomodada sem fazer nada a respeito.
Neeve perguntou:
- Como era mesmo o nome dele?
- Ele só disse Gansey. - E Blue se sentiu envergonhada dizendo seu nome. De alguma maneira, a ideia de que ela teria alguma influência em sua vida ou em sua morte
tornava sua existência nominal naquela cozinha responsabilidade dela.
- Já é o suficiente.
Neeve se inclinou sobre a tigela, com os lábios se mexendo e o reflexo escuro se movendo lentamente sobre o líquido. Blue seguia pensando no que sua mãe havia dito:
Não vou me responsabilizar por nada que você vir.
Aquela declaração fazia aquilo parecer maior do que sempre parecera. Mais distante de um truque da natureza e mais próximo de uma religião.
Finalmente, Neeve murmurou. Apesar de Blue não poder ouvir nenhum significado em particular no som sem palavras, Maura pareceu abruptamente triunfante.
- Bem - disse Neeve. - Isso é algo.
Com aquela frase, Blue já sabia como a coisa terminaria.
- O que você viu? - ela perguntou. - Como ele morreu?
Neeve não tirou os olhos de Maura. Ela estava fazendo uma pergunta ao mesmo tempo em que respondia.
- Eu o vi. E então ele desapareceu. Entrou no nada absoluto.
Maura ergueu a palma das mãos em um gesto de trégua. Blue conhecia bem o gesto. Sua mãe o havia usado para terminar muitas discussões após ter dito uma frase arrebatadora.
Só que dessa vez a frase arrebatadora havia sido dita por uma tigela cheia de suco de uva e cranberry, e Blue não fazia ideia do que ela queria dizer.
Neeve disse:
- Num instante ele estava aqui, no seguinte não existia.
- Isso acontece - disse Maura. - Aqui em Henrietta. Às vezes tem um lugar, ou lugares, que eu não consigo ver. Outras vezes eu vejo - e nesse momento ela deixou
de olhar para Blue, de um jeito que a filha notou que a mãe se esforçava para evitar o contato visual - coisas que eu não esperaria.
Agora Blue estava se lembrando das incontáveis vezes em que sua mãe havia insistido que ficassem em Henrietta, mesmo quando se tornou mais caro viver ali, mesmo
quando as oportunidades para ir para outras cidades se abriram. Blue interceptara uma vez uma série de e-mails no computador de sua mãe; um dos clientes de Maura
havia suplicado ardentemente que ela levasse Blue "e o que mais você não consiga viver sem" para o casarão dele em Baltimore. Na resposta, Maura o havia informado
duramente que aquilo não era possível por muitas razões; primeiro, porque ela não deixaria Henrietta e, segundo, porque ela não sabia se ele era um assassino psicopata.
Ele respondera apenas com o desenho de uma carinha triste. Blue sempre se perguntava o que havia acontecido com ele.
- Eu gostaria de saber o que você viu - disse Blue. - O que é "nada"?
Neeve disse:
- Eu estava seguindo o garoto que vimos na noite passada até a morte dele. Eu senti que estava próxima cronologicamente, mas então ele desapareceu para dentro de
algum lugar que eu não podia ver. Não sei como explicar. Achei que o problema fosse comigo.
- Não é - disse Maura. E, quando viu que Blue ainda estava curiosa, ela explicou: - É como quando não há uma imagem na televisão, mas você pode dizer que ela está
ligada. É assim que parece. Mas eu nunca vi alguém entrar nesse lugar antes.
- Bem, ele entrou - disse Neeve, afastando a tigela. - Você disse que isso não é tudo. O que mais daria para ver?
Maura respondeu:
- Canais que não aparecem na conexão básica.
Neeve bateu os belos dedos na madeira, apenas uma vez, e então disse:
- Você não me contou sobre isso antes.
- Não parecia relevante - respondeu Maura.
- Um lugar onde rapazes podem desaparecer parece algo bastante relevante. A habilidade da sua filha também parece relevante - disse Neeve, nivelando um olhar eterno
em Maura, que se afastou do balcão e se virou.
- Tenho que trabalhar hoje à tarde - disse Blue por fim, quando se deu conta de que a conversa tinha morrido. O reflexo das folhas lá fora ondulou lentamente na
tigela, uma floresta tranquila, porém obscura.
- Você vai trabalhar desse jeito? - perguntou Maura.
Blue olhou para suas roupas. Elas envolviam algumas camadas finas de camisas, incluindo uma que ela havia customizado usando um método chamado retalhamento.
- O que tem de errado com as minhas roupas?
Maura deu de ombros.
- Nada. Eu sempre quis uma filha excêntrica, só não tinha percebido como meus planos diabólicos estavam funcionando bem. Até que horas você trabalha?
- Até as sete. Quer dizer, provavelmente até mais tarde. A Cialina tem que trabalhar até as sete e meia, mas ela falou a semana inteira que o irmão dela conseguiu
ingressos para ver Evening e se pelo menos alguém desse uma força e assumisse a última meia hora...
- Você pode dizer não. O que é Evening? É aquele filme em que todas as garotas morrem a machadadas?
- Esse mesmo.
Enquanto Blue tomava seu iogurte ruidosamente, dispensou um rápido olhar para Neeve, que ainda franzia o cenho para a tigela com suco afastada um pouco além de seu
alcance.
- Ok, fui.
Ela empurrou a cadeira para trás. Maura estava calada daquele jeito pesado que era mais alto que uma conversa. Blue se demorou jogando a embalagem do iogurte no
lixo e largando a colher na pia ao lado da mãe, então se virou para subir a escada e calçar os sapatos.
- Blue - disse Maura finalmente -, não preciso dizer para você não beijar ninguém, não é?
Adam Parrish era amigo de Gansey havia dezoito meses, e ele sabia que determinadas coisas vinham com aquela amizade. A saber: acreditar no sobrenatural, tolerar
a relação conturbada de Gansey com o dinheiro e conviver com os outros amigos dele. Os dois primeiros pontos eram problemáticos apenas quando eles estavam longe
de Aglionby, e o último apenas quando se tratava de Ronan Lynch.
Gansey uma vez havia dito para Adam que temia que a maioria das pessoas não soubesse lidar com Ronan. O que ele queria dizer com isso era que estava preocupado que
um dia alguém caísse sobre Ronan e se cortasse.
Às vezes Adam se perguntava se Ronan havia sido Ronan antes de o pai dos irmãos Lynch morrer, mas apenas Gansey o conhecia naquela época. Bem, Gansey e Declan, mas
Declan parecia incapaz de lidar com o irmão agora - razão pela qual ele havia tomado a precaução de programar sua visita enquanto Ronan estivesse em aula.
Do lado de fora da Monmouth, 1136, Adam esperava no patamar da escada do segundo andar com Declan e a namorada dele. A namorada, em um vestido de seda branca tremulante,
parecia muito com Brianna, ou Kayleigh, ou quem quer que tenha sido a última namorada de Declan. Todas elas tinham o cabelo loiro na altura dos ombros e sobrancelhas
que casavam com os sapatos de couro escuros de Declan. Ele, trajando o terno que seu estágio político de último ano exigia, parecia ter trinta anos. Adam se perguntou
se transmitiria tamanha autoridade em um terno, ou se sua infância o trairia e o deixaria ridículo.
- Obrigado por nos encontrar - disse Declan.
Adam respondeu:
- Sem problemas.
Na verdade, a razão pela qual ele havia concordado em acompanhar Declan e a Namorada de Aglionby até ali não tinha nada a ver com gentileza, mas com um palpite que
o importunava. Ultimamente, Adam sentia como se alguém estivesse... espionando a busca deles pela linha ley. Ele não tinha certeza de como colocar aquele sentimento
em termos concretos. Era um olhar pego com o canto do olho, marcas de pegadas na escada que não pareciam pertencer a nenhum dos garotos, uma bibliotecária dizendo
para ele que um texto arcano havia sido retirado por outra pessoa logo depois de ele ter devolvido. Mas ele não queria incomodar Gansey com isso até que tivesse
certeza. As coisas já pareciam estar sobrecarregando demais o amigo.
Não que Adam estivesse em dúvida se Declan os estava espionando. Ele sabia que estava, mas acreditava que isso tinha a ver com Ronan, e não com a linha ley. Ainda
assim, não faria mal nenhum ter cautela.
Nesse instante, a Namorada olhava em volta daquela maneira furtiva que é tanto mais perceptível por sua furtividade. O número 1136 da Monmouth era um prédio de tijolos
de aparência faminta, eviscerado e de olhos negros, assomando em meio ao matagal sobre um terreno que ocupava quase uma quadra inteira. Uma pista para a identidade
original do prédio estava pintada do lado leste: INDÚSTRIA MONMOUTH. Mas, apesar de toda pesquisa feita, nem Gansey nem Adam haviam sido capazes de descobrir precisamente
o que a Monmouth fabricava. Algo que exigia um teto de oito metros e espaços amplos e abertos; algo que havia deixado manchas de umidade no piso e sulcos nas paredes
de tijolos. Algo de que o mundo não precisava mais.
No topo da escada do segundo andar, Declan sussurrou todo esse conhecimento no ouvido da Namorada, e ela deu uma risadinha nervosa, como se fosse um segredo. Adam
observou a maneira como o lábio de Declan mal tocou a parte de baixo do lóbulo da orelha da Namorada enquanto ele falava com ela. Então desviou o olhar assim que
Declan olhou em sua direção.
Adam era muito bom em observar sem ser observado. Apenas Gansey parecia capaz de pegá-lo em flagrante.
A Namorada chamou a atenção para a janela quebrada na direção do estacionamento abaixo; Declan seguiu o olhar dela até as curvas escuras e iradas que Gansey e Ronan
haviam deixado dando cavalos de pau com o carro. A expressão de Declan endureceu; mesmo se Gansey tivesse feito todas elas, ele presumiria que fora Ronan.
Adam já havia batido à porta, mas bateu mais uma vez - uma batida longa e duas curtas, seu sinal.
- Vai estar bagunçado - ele se desculpou, mais para a garota do que para Declan, que sabia muito bem em que estado estaria o apartamento.
Adam suspeitava de que Declan, de certa forma, achava a bagunça cativante para as pessoas de fora; Declan era, na verdade, calculista. Sua meta era a castidade de
Ashley, e cada passo daquela noite teria sido planejado com isso em mente, mesmo a breve parada na Indústria Monmouth.
Ainda sem resposta.
- Será que eu ligo? - perguntou Declan.
Adam tentou o trinco, que estava trancado, então o forçou com o joelho, levantando a porta um pouco nas dobradiças. Ela se escancarou. A Namorada fez um ruído de
aprovação, mas o sucesso do arrombamento tinha mais a ver com os problemas da porta do que com a força de Adam.
Eles entraram no apartamento e a Namorada foi inclinando a cabeça cada vez mais para trás. O teto alto pairava acima deles, e vigas de ferro expostas sustentavam
o telhado. O apartamento inventado de Gansey era o laboratório de um sonhador. Todo o segundo andar, milhares de metros quadrados, estendia-se diante deles. Duas
paredes eram constituídas de janelas antigas - dezenas de pequenas vidraças empenadas, exceto por algumas novas que Gansey havia substituído -, e as outras duas
estavam cobertas de mapas: as montanhas da Virgínia, do País de Gales, da Europa. Linhas de caneta marca-texto formavam arcos ao longo de cada um deles. Sobre o
chão, um telescópio perscrutava o céu ocidental; perto de seus pés encontravam-se pilhas de dispositivos eletrônicos esquisitos, para medir a atividade magnética.
E para onde quer que se olhasse, havia muitos livros. Não pilhas arrumadas de um intelectual que tenta impressionar, mas pilhas espalhadas de um estudioso obsessivo.
Alguns livros não eram em inglês. Alguns eram dicionários para traduzir livros em outro idioma. E outros eram, na realidade, edições da Sports Illustrated com modelos
de biquíni.
Adam sentiu a angústia de sempre. Não era inveja, apenas desejo. Um dia ele teria dinheiro suficiente para ter um lugar como aquele. Um lugar que fosse do lado de
fora como Adam era do lado de dentro.
Uma voz pequena dentro dele perguntou se ele chegaria algum dia a ser tão incrível por dentro, ou se era algo que tinha de vir com você desde o nascimento. Gansey
era do jeito que era por ter vivido com dinheiro desde pequeno, como um músico virtuoso colocado no banco de um piano tão logo conseguisse ficar sentado. Adam, um
recém-chegado, um usurpador, ainda tropeçava em seu sotaque desajeitado de Henrietta e guardava suas moedas em uma caixa de cereal embaixo da cama.
Ao lado de Declan, a Namorada tapou os peitos com as mãos, em uma reação instintiva à nudez masculina. Nesse caso, a nudez não era de uma pessoa, mas de uma coisa:
a cama de Gansey, apenas dois colchões sobre uma armação de metal, malposicionada no meio do quarto, ainda por fazer. Era de certa maneira íntima em sua completa
falta de privacidade.
O próprio Gansey estava sentado a uma mesa antiga, de costas para eles, olhando por uma janela voltada para o leste e tamborilando com uma caneta. Seu volumoso diário
estava aberto próximo dele, as páginas esvoaçando com trechos de livros colados e escuras de anotações. Adam ficou impressionado, como acontecia ocasionalmente,
com a ausência de idade em Gansey: um velho em um corpo jovem, ou um jovem na vida de um velho.
- Somos nós - disse Adam.
Como Gansey não respondeu, Adam abriu caminho até o amigo desatento. A Namorada emitiu uma série de ruídos que começavam todos com a letra O. Com uma variedade de
caixas de cereal, embalagens e tinta de parede, Gansey havia construído no centro do quarto uma réplica da cidade de Henrietta que batia na altura do joelho, e assim
os três visitantes foram forçados a passar pela Rua Principal a fim de alcançar a mesa. Adam conhecia a verdade: aqueles prédios eram um sintoma da insônia de Gansey.
Uma nova parede a cada noite acordado.
Adam parou ao lado de Gansey. A área à sua volta tinha um cheiro forte de hortelã, da folha que ele mascava de maneira ausente.
Adam deu um toque no fone que Gansey usava na orelha direita, e o amigo levou um susto e se levantou de um salto.
- Vejam só, olá!
Como sempre, ele parecia o típico herói de guerra americano, o que ficava evidente no cabelo castanho desgrenhado, nos olhos cor de avelã, estreitos como se estivessem
sob o sol de verão, no nariz reto que os antigos anglo-saxões lhe haviam legado com tanta gentileza. Tudo nele sugeria coragem, poder e um firme aperto de mão.
A Namorada o olhava fixamente.
Adam se lembrou de achá-lo intimidante quando o conheceu. Havia dois Ganseys: o que vivia dentro dele e o que ele vestia pela manhã, quando enfiava a carteira no
bolso de trás da calça de algodão. O primeiro era perturbado e apaixonado, sem um sotaque discernível aos ouvidos de Adam. O segundo emanava um poder latente ao
cumprimentar as pessoas, com o sotaque escorregadio e nobre das antigas famílias ricas da Virgínia. Era um mistério para Adam como ele parecia não ver ambas as versões
de Gansey ao mesmo tempo.
- Eu não ouvi vocês baterem - disse Gansey desnecessariamente, cumprimentando Adam com um toque de punhos. Vindo de Gansey, o gesto era ao mesmo tempo encantador
e tímido, uma frase tomada emprestada de outra língua.
- Ashley, esse é o Gansey - disse Declan, em sua voz agradável e neutra. Era uma voz que relatava os danos causados por tornados e frentes frias. Narrava os efeitos
colaterais de pequenas pílulas azuis. Explicava os procedimentos de segurança do 747. Ele acrescentou: - Dick Gansey.
Se Gansey estava pensando que a namorada de Declan era descartável, um recurso renovável, não o demonstrou. Em vez disso, corrigiu com o tom de voz ligeiramente
frio:
- Como o Declan sabe, meu pai é que se chama Dick. Eu sou apenas Gansey.
Ashley parecia mais chocada do que divertida.
- Dick?*
- Nome de família - disse Gansey, com o ar cansado de alguém que conta uma piada velha. - Faço o possível para ignorar.
- Você é da Aglionby, certo? Este lugar é bem louco. Por que você não mora no dormitório da escola? - perguntou Ashley.
- Porque eu sou dono deste prédio - disse Gansey. - Melhor morar aqui do que pagar pela moradia no dormitório. Você não pode vender o dormitório depois de terminar
a escola. E para onde foi aquele dinheiro? Para lugar nenhum.
Dick Gansey III odiava que dissessem que ele soava como Dick Gansey II, mas, naquele momento precisamente, ele soava. Ambos conseguiam desfilar sua lógica em uma
bela coleirinha, trajando uma capa xadrez vistosa, quando queriam.
- Meu Deus - observou Ashley, olhando de relance para Adam. Seus olhos não se demoraram nele, mas, mesmo assim, ele se lembrou do ombro puído de seu blusão.
Esqueça. Ela não está olhando para ele. Ninguém mais nota isso.
Com esforço, Adam endireitou os ombros e tentou habitar o uniforme com a mesma facilidade que Gansey ou Ronan.
- Ash, você não vai acreditar por que o Gansey veio para cá, entre todos os lugares possíveis - disse Declan. - Conte para ela, Gansey.
Gansey não conseguia resistir a falar sobre Glendower. Ele nunca conseguia. Então perguntou:
- O que você sabe sobre os reis galeses?
Ashley apertou os lábios, os dedos beliscando a pele na base da garganta.
- Hummm. Llewellyn? Glendower? Lordes Marcher ingleses?
O sorriso no rosto de Gansey poderia ter iluminado uma mina de carvão. Adam não sabia nada sobre Llewellyn ou Glendower quando conheceu Gansey. O amigo precisara
descrever como Owain Glyndwr - Owen Glendower para não falantes de galês -, um nobre galês medieval, havia lutado contra os ingleses pela liberdade do país e então,
quando sua captura parecia inevitável, desaparecera da ilha e da história completamente.
Mas Gansey nunca se importava de recontar a história. Ele relatava os eventos como se eles tivessem acabado de acontecer, emocionado novamente pelos sinais mágicos
que haviam acompanhado o nascimento de Glendower, os rumores sobre seu poder de invisibilidade, as vitórias impossíveis contra exércitos maiores e, finalmente, sua
fuga misteriosa. Quando Gansey falava, Adam via a ondulação verde dos contrafortes galeses, a ampla superfície resplandecente do rio Dee, as montanhas impiedosas
ao norte, onde Glendower desaparecera. Nas histórias de Gansey, Owain Glyndwr nunca podia morrer.
Ouvindo-o contar a história agora, ficou claro para Adam que Glendower era mais do que uma figura histórica para Gansey. Ele era tudo que Gansey gostaria de ser:
sábio e corajoso, convicto de seu caminho, tocado pelo sobrenatural, respeitado por todos, e havia deixado um legado.
Completamente animado com a história e encantado novamente pelo mistério dela, Gansey perguntou a Ashley:
- Você já ouviu falar das lendas dos reis adormecidos? As lendas de que heróis como Llewellyn, Glendower e Artur não estão realmente mortos, mas dormindo em tumbas,
esperando para ser acordados?
Ashley piscou rapidamente, então disse:
- Parece uma metáfora.
Talvez ela não fosse tão burra quanto eles haviam pensado.
- Pode ser - disse Gansey, fazendo um gesto grandioso para os mapas na parede, cobertos com as linhas ley que ele acreditava que Glendower havia percorrido. Tomando
com ímpeto o diário atrás dele, estudou página por página de mapas e notas explicativas. - Acho que o corpo de Glendower foi trazido para o Novo Mundo. Especificamente
aqui, na Virgínia. E quero encontrar onde ele está enterrado.
Para alívio de Adam, Gansey deixou de fora a parte sobre como ele acreditava nas lendas que diziam que Glendower ainda estava vivo, séculos mais tarde. Sobre como
acreditava que o eternamente adormecido Glendower concederia um favor à pessoa que viesse a acordá-lo. Sobre como isso o assombrava, a necessidade de encontrar aquele
rei há tanto tempo perdido. Deixou de fora os telefonemas à meia-noite para Adam, quando ele não conseguia dormir, obcecado com sua busca. Os microfilmes e os museus,
as reportagens de jornais e os detectores de metal, as milhas de companhias aéreas e os dicionários gastos de línguas estrangeiras.
Também deixou de fora todas as partes sobre magia e a linha ley.
- Isso é loucura - disse Ashley, com os olhos fixos no diário. - Por que você acha que ele está aqui?
Havia duas versões possíveis para a resposta. Uma era baseada meramente em história e infinitamente adequada para o consumo geral. A outra acrescentava magia e varinhas
de radiestesia à equação. Em alguns dias, alguns malditos dias, Adam acreditava na primeira, e apenas um pouco. Mas ser amigo de Gansey significava que, na maioria
das vezes, ele torcia pela segunda. Era aí que Ronan, muito para o descontentamento de Adam, se sobressaía: sua crença na explicação sobrenatural era inabalável.
A fé de Adam era imperfeita.
Seja porque Ashley estava só de passagem ou porque foi considerada cética, ela recebeu a versão histórica. Em sua melhor voz de professor, Gansey explicou um pouco
sobre nomes de lugares em galês na área, artefatos do século XV encontrados enterrados na Virgínia e o embasamento histórico para um desembarque galês, pré-Colombo,
na América.
Em meio à aula, Noah - o recluso terceiro residente da Indústria Monmouth - emergiu do aposento estreito ao lado do escritório que Ronan havia reivindicado como
seu quarto. A cama de Noah compartilhava o espaço minúsculo com um equipamento misterioso que Adam acreditava ser uma espécie de impressora.
Ao entrar no quarto, Noah encarou Ashley fixamente. Ele não era muito bom com pessoas novas.
- Esse é o Noah - disse Declan, de uma maneira que confirmou a desconfiança de Adam: a Indústria Monmouth e os garotos que viviam ali eram um ponto turístico para
Declan e Ashley, um assunto a ser conversado mais tarde no jantar.
Noah estendeu a mão.
- Ah! A sua mão está fria - exclamou Ashley, estreitando os dedos contra a camisa para aquecê-los.
- Eu estou morto há sete anos - disse Noah. - Isso é o mais quente que elas chegam.
Noah, diferentemente de seu quarto imaculado, parecia sempre um pouco sujo. Havia algo fora de lugar a respeito de suas roupas, de seu cabelo loiro geralmente penteado
para trás. Seu uniforme desarrumado sempre fazia Adam sentir que chamava um pouco menos de atenção. Era difícil se sentir parte da turma da Aglionby quando se estava
perto de Gansey, cuja camisa de colarinho branco impecável custava mais que a bicicleta de Adam (qualquer um que dissesse que não havia diferença entre uma camisa
do shopping e uma camisa feita por um italiano talentoso nunca tinha visto a segunda), ou mesmo de Ronan, que havia gasto novecentos dólares em uma tatuagem só para
irritar o irmão.
O risinho condescendente de Ashley foi cortado quando a porta do quarto de Ronan se abriu. Uma nuvem tão escura que fazia parecer que o sol nunca mais sairia cruzou
o rosto de Declan.
Ronan e Declan Lynch eram inegavelmente irmãos, com o mesmo cabelo castanho-escuro e o mesmo nariz aquilino, mas Declan era sólido onde Ronan era frágil. O queixo
largo e o sorriso de Declan diziam Votem em mim, enquanto a cabeça raspada e a boca fina de Ronan avisavam que aquela espécie era venenosa.
- Ronan - disse Declan. No telefone com Adam anteriormente, ele havia perguntado: "Quando o Ronan não vai estar aí?" - Achei que você tinha aula de tênis.
- Eu tinha - Ronan respondeu.
Houve um momento de silêncio, em que Declan considerou o que ele queria dizer na frente de Ashley, e Ronan desfrutou o efeito que aquele silêncio constrangedor tinha
sobre o irmão. Os dois irmãos Lynch mais velhos - eram três em Aglionby - viviam brigados desde que Adam os conhecia. Diferentemente da maioria do mundo, Gansey
preferia Ronan ao irmão mais velho, Declan, e assim as linhas haviam sido traçadas. Adam suspeitava que a preferência de Gansey se devia ao fato de que Ronan era
sincero, mesmo que para isso precisasse ser detestável. E, para Gansey, honestidade valia ouro.
Declan esperou um segundo longo demais para falar, e Ronan cruzou os braços sobre o peito.
- Esse é realmente o cara, Ashley. Você vai passar uma noite fantástica com ele, e aí alguma outra garota vai ter a chance de passar uma noite fantástica com ele
amanhã.
Uma mosca zumbiu contra uma vidraça bem acima da cabeça deles. Atrás de Ronan, a porta de seu quarto, coberta com fotocópias de suas multas por excesso de velocidade,
fechou-se sozinha.
A boca de Ashley fez mais um D de lado do que um O. Um segundo depois, Gansey socou o braço de Ronan.
- Ele pede desculpas por isso - disse Gansey.
A boca de Ashley estava lentamente se fechando. Ela piscou para o mapa do País de Gales e de volta para Ronan. Ele havia escolhido bem sua arma: apenas a verdade,
sem a têmpera da bondade.
- Meu irmão é... - disse Declan, mas não terminou. Não havia nada que ele pudesse dizer que Ronan ainda não tivesse provado. E continuou: - Nós estamos indo agora.
Ronan, acho que você precisa reconsiderar a sua... - Mas, novamente, ele não tinha palavras para terminar a frase. Seu irmão havia tomado todas as de efeito.
Declan puxou a mão de Ashley, sacudindo sua atenção para longe dali e na direção da porta do apartamento.
- Declan - começou Gansey.
- Não tente consertar a situação - avisou Declan.
Enquanto ele arrastava Ashley até a minúscula plataforma da escada, Adam ouviu o começo do controle de danos: "Ele tem problemas, eu te disse, eu tentei garantir
que ele não estaria aqui, foi ele que achou o meu pai, isso acabou com ele, vamos comer frutos do mar em vez disso, você não acha que uma lagosta seria uma boa?
Acho que sim".
Quando a porta do apartamento se fechou, Gansey disse:
- Porra, Ronan.
A expressão de Ronan ainda era incendiária. Seu código de honra não abria espaço para infidelidade, para relacionamentos casuais. Não era que ele não os tolerasse;
ele não conseguia compreendê-los.
- E daí que ele é galinha? Não é da sua conta - disse Gansey. Ronan também não era realmente da conta de Gansey, na opinião de Adam, mas eles já haviam tido aquela
discussão antes.
Ronan tinha uma das sobrancelhas elevada, afiada como uma lâmina.
Gansey fechou e amarrou seu diário com uma fita.
- Comigo isso não cola. Ela não tem nada a ver com você e o Declan. - Ele disse você e o Declan como se fossem um objeto físico, algo que você pudesse pegar do chão
e olhar embaixo. - Você destratou a garota. Pegou mal para a gente.
Ronan parecia arrependido, mas Adam o conhecia. Ele não lamentava o próprio comportamento; lamentava apenas que Gansey estivesse ali para vê-lo. O que acontecia
entre os irmãos Lynch era sombrio o suficiente para ocultar os sentimentos de qualquer outra pessoa.
Mas certamente Gansey sabia disso tão bem quanto Adam. Ele passou o polegar de um lado para o outro do lábio inferior, um hábito que passava despercebido para ele
e que Adam nunca se dava ao trabalho de apontar. Surpreendendo o olhar de Adam, ele disse:
- Nossa, agora eu me sinto culpado. Vamos ao Nino's. Vamos pedir uma pizza, vou ligar para aquela médium e todo o maldito mundo vai entrar nos eixos.
Essa era a razão por que Adam podia perdoar a versão rasa e polida de Gansey que ele encontrara pela primeira vez. Graças ao seu dinheiro, ao seu bom nome de família,
ao seu belo sorriso, à sua risada fácil, ao fato de que ele gostava das pessoas e (apesar de seus temores em contrário) elas também gostavam dele, Gansey poderia
ter todos os amigos que quisesse. Em vez disso, havia escolhido três deles, três sujeitos que deveriam ser, por três razões diferentes, destituídos de amigos.
- Eu não vou - disse Noah.
- Você precisa dar um tempo sozinho? - perguntou Ronan.
- Ronan - interferiu Gansey -, guarde as armas, ok? Noah, nós não vamos forçar você a comer. Adam?
Adam ergueu o olhar, distraído. Sua mente havia divagado do mau comportamento de Ronan para o interesse de Ashley no diário, e ele estava se perguntando se não era
mais do que a curiosidade comum que as pessoas sentiam diante de Gansey e seus acessórios obsessivos. Ele sabia que Gansey o acharia desconfiado demais, desnecessariamente
possessivo em relação a uma busca que o próprio Gansey estava mais do que disposto a compartilhar com as pessoas.
Mas Gansey e Adam buscavam Glendower por razões diferentes. Gansey o desejava como Artur desejava o Graal, atraído por uma necessidade desesperada mas nebulosa de
ser útil para o mundo, para ter certeza de que sua vida significava algo além de festas com champanhe e colarinhos brancos, por algum desejo complicado de resolver
uma discussão que ele travava no íntimo de seu ser.
Adam, em contrapartida, precisava da graça real.
E isso significava que eles precisavam ser as pessoas que acordariam Glendower. Eles precisavam ser os primeiros a encontrá-lo.
- Parrish - repetiu Gansey. - Vamos.
Adam fez uma careta. Ele achava que seria necessário mais do que uma pizza para melhorar o caráter de Ronan.
Mas Gansey já estava pegando as chaves do Pig e dando a volta sobre a sua Henrietta em miniatura. Ainda que Ronan estivesse rosnando, Noah suspirando e Adam hesitando,
ele não se virou para ver se estavam vindo. Ele sabia que estavam. De três maneiras diferentes, ele havia conquistado os amigos, dias, semanas ou meses antes, para
que, quando chegasse a hora, todos o seguissem aonde quer que ele fosse.
- Excelsior - disse Gansey, fechando a porta atrás deles.
Nota
* Além de nome próprio, é também gíria para "babaca" ou vulgarmente para "pênis". (N. do T.)
Barrington Whelk se sentia menos animado à medida que se arrastava pelo corredor da Whitman House, o prédio administrativo da Aglionby. Eram cinco horas da tarde,
o dia na escola havia terminado fazia tempo, e ele deixara sua residência na cidade somente para pegar algumas tarefas que precisavam ser corrigidas até o dia seguinte.
À esquerda, a luz da tarde se derramava nas janelas altas de várias vidraças; à direita havia o murmúrio das vozes dos funcionários da escola. Os prédios antigos
lembravam museus àquela hora do dia.
- Barrington, achei que você estivesse de folga hoje. Você está com uma aparência péssima. Está doente?
Whelk não formulou imediatamente uma resposta. Para todos os fins e propósitos, ele ainda estava de folga. Quem fez a pergunta foi Jonah Milo, o professor de inglês
almofadinha do segundo e terceiro anos do ensino médio. Apesar do gosto por calças de veludo cotelê xadrez afuniladas, Milo não era insuportável, mas Whelk não fazia
questão de discutir com ele sua ausência da aula naquela manhã. A véspera do Dia de São Marcos estava começando a ter um brilho de tradição para ele, uma tradição
que envolvia passar a maior parte da noite enchendo a cara antes de cair no sono no chão de sua quitinete um pouco antes do amanhecer. Naquele ano ele havia tomado
a precaução de pedir folga no Dia de São Marcos. Ensinar latim para os garotos da Aglionby já era uma dura punição, mas ensiná-los de ressaca era torturante.
Por fim, Whelk ergueu a pilha amarfanhada de lições de casa escritas à mão como resposta. Milo arregalou os olhos ao ver o nome escrito no papel de cima.
- Ronan Lynch! Essa lição é dele?
Virando a pilha para ler o nome na frente, Whelk concordou. Assim que o fez, alguns garotos a caminho do treino de remo esbarraram nele, empurrando-o em cima de
Milo. Os estudantes provavelmente nem se deram conta de que estavam sendo desrespeitosos; Whelk era só um pouco mais velho que eles, e suas feições dramaticamente
grandes o faziam parecer mais jovem. Ainda era fácil confundi-lo com um dos estudantes.
Milo se livrou de Whelk.
- Como você faz para ele ir à aula?
A mera menção do nome de Ronan Lynch mexia em algum ponto sensível dentro de Whelk. Porque nunca era ele sozinho, era ele como parte do inseparável trio: Ronan Lynch,
Richard Gansey e Adam Parrish. Todos os garotos na classe eram ricos, confiantes, arrogantes, mas esses três, mais do que ninguém, o faziam lembrar o que ele perdera.
Whelk fez um esforço para lembrar se Ronan já faltara a alguma aula sua. Os dias de escola começavam com Whelk estacionando sua porcaria de carro ao lado dos belos
carros de Aglionby, abrindo caminho por entre garotos sorridentes e de cabeça oca e então se apresentando diante de uma sala cheia de estudantes de olhar vazio,
na melhor das hipóteses, ou sarcástico, na pior. E ao fim do dia Whelk, sozinho e assombrado, nunca, jamais capaz de esquecer que já fora um deles.
Quando isso se tornou a minha vida?
Whelk deu de ombros.
- Não me lembro de ele ter faltado.
- Mas você dá aula para ele e o Gansey, não é? - perguntou Milo. - Isso explica. Os dois andam grudados como carrapatos.
Era uma expressão estranha e antiga, uma expressão que Whelk não ouvia desde seus dias em Aglionby, quando ele também andava grudado como um carrapato com seu companheiro
de quarto, Czerny. Ele sentiu um vazio dentro de si, como se estivesse com fome, como se devesse ter ficado em casa e bebido mais para comemorar aquele dia miserável.
Whelk derivou de volta para o presente, olhando para a lista de chamada que o professor substituto havia deixado.
- O Ronan estava na aula hoje, mas o Gansey não. Não na minha, pelo menos.
- Ah, deve ser por causa daquele papo de Dia de São Marcos que ele estava falando - disse Milo.
Isso chamou a atenção de Whelk. Ninguém sabia que aquele era o Dia de São Marcos. Ninguém celebrava aquele dia, nem mesmo a mãe de são Marcos. Apenas Whelk e Czerny,
caçadores de tesouros e encrenqueiros, se importavam com a sua existência.
Whelk disse:
- Como?
- Eu não sei de tudo - respondeu Milo.
Outro professor disse "olá" para ele a caminho da sala dos professores, e Milo olhou sobre o ombro para responder. Whelk imaginou agarrar o braço de Milo, forçando
sua atenção de volta para si. Foi preciso se esforçar para esperar em vez disso. Voltando-se, Milo pareceu perceber o interesse de Whelk, pois acrescentou:
- Ele não tocou no assunto com você? Ele não parava de falar nisso ontem. É aquela história da linha ley que ele está sempre remexendo.
Linha ley.
Se ninguém sabia sobre o Dia de São Marcos, verdadeiramente ninguém sabia sobre linhas ley. Certamente ninguém em Henrietta, Virgínia. Certamente não um dos pupilos
mais ricos de Aglionby. Definitivamente, não em conjunção com o Dia de São Marcos. Essa era a busca de Whelk, o tesouro de Whelk, os anos adolescentes de Whelk.
Do que Richard Gansey III estava falando?
Com as palavras linha ley pronunciadas em voz alta, uma memória foi evocada: Whelk em uma mata densa, com o suor acumulado no lábio superior. Ele tinha dezessete
anos e tremia. Toda vez que seu coração batia, linhas vermelhas raiavam nos cantos de sua visão, as árvores escurecendo com sua pulsação. Parecia que as folhas estavam
todas se movendo, mesmo sem vento. Czerny estava no chão. Não estava morto, mas estava morrendo. Suas pernas ainda pedalavam sobre a superfície irregular ao lado
de seu carro vermelho, formando montes de folhas caídas atrás de si. Seu rosto estava simplesmente... entregue. Na cabeça de Whelk, vozes espectrais sibilavam e
sussurravam palavras indistintas e encadeadas.
- Uma espécie de fonte de energia ou algo assim - disse Milo.
Whelk ficou subitamente com medo de que Milo pudesse ver a memória dele, pudesse ouvir as vozes inexplicáveis em sua cabeça, incompreensíveis, mas presentes desde
aquele dia fatídico.
Whelk compôs suas feições, apesar de estar pensando: Se alguém mais está procurando aqui, eu devia estar certo. Ela deve estar aqui.
- O que ele disse que estava fazendo com a linha ley? - ele perguntou com uma calma estudada.
- Não sei. Pergunte a ele. Tenho certeza de que ele adoraria encher os seus ouvidos com essa história. - Milo olhou sobre o ombro enquanto a secretária se juntava
a eles no corredor, com a bolsa no braço e a jaqueta na mão. O delineador estava borrado após um longo dia no escritório.
- Estamos falando sobre Gansey, o terceiro, e sua obsessão com a Nova Era? - perguntou a secretária. Ela tinha um lápis enfiado no cabelo para segurá-lo e Whelk
olhou fixamente os fios soltos que se enrolavam em torno do lápis. Estava claro para ele, pela postura da secretária, que ela secretamente achava Milo atraente,
apesar do veludo cotelê xadrez e da barba.
Ela perguntou:
- Você sabe o tamanho da fortuna do velho Gansey? Eu me pergunto se ele tem ideia de como o filho dele passa o tempo. Olha, às vezes esses filhinhos de papai me
dão vontade de cortar os pulsos. Jonah, me acompanha em um intervalo para o cigarro?
- Eu parei de fumar - disse Milo. E lançou um olhar rápido e apreensivo da secretária para Whelk, e Whelk sabia que ele estava pensando sobre o tamanho que fora
a fortuna do pai de Whelk um dia, em outra época, e como ela era pequena agora, muito tempo depois de os julgamentos terem deixado as capas dos jornais. Todos os
professores mais novos e o pessoal da administração odiavam os garotos de Aglionby, odiavam-nos pelo que tinham e pelo que representavam, e Whelk sabia que, em segredo,
lhes agradava que ele tivesse sido rebaixado.
- E você, Barry? - perguntou a secretária. Então ela respondeu à sua própria pergunta: - Não, você não fuma, você é bonitinho demais para isso. Bem, vou sozinha.
Milo se virou para ir embora também.
- Melhoras - disse gentilmente, embora Whelk nunca tivesse dito que estava doente.
As vozes na cabeça de Whelk eram um rugido, mas dessa vez os próprios pensamentos as abafaram.
- Acho que já estou melhor - disse Whelk.
Talvez a morte de Czerny não tivesse sido à toa no fim das contas.
Blue não se descreveria realmente como uma garçonete. Afinal, ela também ensinava caligrafia para crianças do terceiro ano, fazia coroas para as Filhas de Nossa
Senhora do Perpétuo Socorro, levava os cães dos moradores do condomínio mais chique de Henrietta para passear e plantava flores de canteiro para as senhoras idosas
do bairro. Realmente, ser garçonete no Nino's era a menor de suas atividades. Mas os horários eram flexíveis, era o registro mais legítimo em seu já bizarro currículo
e certamente era o serviço que melhor pagava.
Só havia um problema com o Nino's: para todos os fins práticos, ele pertencia à Aglionby. O restaurante ficava a seis quadras do portão de ferro do campus da escola,
no limite do centro histórico.
Não era o lugar mais chique de Henrietta. Havia outros com televisões maiores e música mais alta, mas nenhum deles conseguiu dominar o imaginário da escola como
o Nino's. Apenas saber que o Nino's era o lugar para estar já era um rito de passagem; se você fosse seduzido pelo Morton's Sports Bar, na Rua Três, não merecia
estar na turma.
Então, no Nino's, os garotos de Aglionby não eram apenas alunos da escola, eram o que havia de mais Aglionby por ali. Barulhentos, arrogantes, filhinhos de papai.
Blue tinha visto uma infinidade de garotos corvos, para uma vida inteira.
A música naquela noite já estava alta o suficiente para paralisar as partes mais sutis de sua personalidade. Ela amarrou o avental, fez o melhor que pôde para se
desligar dos Beastie Boys e armou seu sorriso ganhador de gorjetas.
Próximo do início de seu turno, quatro garotos entraram pela porta da frente, deixando um silvo frio de ar fresco no aposento que cheirava a orégano e cerveja. Na
janela ao lado dos garotos, uma luz neon que dizia "Desde 1976" iluminava o rosto deles de verde-limão. O garoto da frente falava ao celular enquanto mostrava quatro
dedos para Cialina para indicar o tamanho do grupo. Os garotos corvos eram bons em desempenhar múltiplas tarefas ao mesmo tempo, desde que todas elas beneficiassem
exclusivamente a eles mesmos.
Enquanto Cialina passava apressada com o bolso do avental cheio de comandas para entregar, Blue lhe deu quatro cardápios engordurados. O cabelo de Cialina flutuava
acima da cabeça com eletricidade estática e estresse servil.
Blue perguntou displicentemente:
- Você quer que eu atenda aquela mesa?
- Está brincando? - respondeu Cialina, olhando os quatro garotos. Tendo finalmente terminado sua ligação, o primeiro escorregou em um dos bancos de vinil laranja.
O mais alto deles bateu a cabeça na luminária de cristal lapidado pendurada sobre a mesa, e os outros riram generosamente dele, que xingou:
- Merda.
Uma tatuagem serpenteou para fora do colarinho quando ele se virou para sentar. Todos os garotos tinham algo de faminto.
De qualquer forma, Blue não queria saber deles.
O que ela queria era um trabalho que não sugasse todos os pensamentos de sua cabeça e os substituísse pelo chamado sedutor de um sintetizador. Às vezes, ela saía
furtivamente para a rua para um intervalo infinitesimal e, enquanto recostava a cabeça contra a parede de tijolos do beco atrás do restaurante, sonhava preguiçosamente
que estudava anéis de árvores, que nadava com raias-jamanta e explorava a Costa Rica para descobrir mais sobre o passarinho conhecido como pigmeu tirano.
Blue não sabia se realmente queria descobrir mais sobre o pigmeu tirano. Ela simplesmente gostava do nome, afinal de contas, para uma garota de um metro e cinquenta
e dois, pigmeu tirano soava como uma carreira.
Todas essas vidas imaginadas pareciam bem distantes do Nino's.
Alguns minutos após o turno de Blue ter começado, o gerente sinalizou para ela da cozinha. Aquela noite era Donny. O Nino's tinha em torno de quinze gerentes, todos
eles parentes do dono e nenhum formado no ensino médio.
Donny conseguiu se espreguiçar e oferecer o telefone ao mesmo tempo.
- Seus pais. Hum, sua mãe.
Mas não havia necessidade de esclarecer, pois Blue não sabia quem era seu pai. Na realidade, ela havia tentado importunar Maura sobre o pai antes, mas a mãe havia
elegantemente se desviado dessa linha de questionamento.
Tirando o telefone da mão de Donny, Blue se enfiou de volta no canto da cozinha, próxima de uma frigideira terminalmente gordurosa e uma pia de cuba grande. Apesar
do cuidado, ela ainda era acotovelada de tempos em tempos.
- Mãe, eu estou trabalhando.
- Não entre em pânico. Você está sentada? Você provavelmente não precisa se sentar. Bem, acho que não. Pelo menos se apoie em algo. Ele ligou. Para marcar uma leitura.
- Quem, mãe? Fale mais alto. Está barulhento aqui.
- Gansey.
Por um instante, Blue não entendeu nada. Aí se deu conta e sentiu todo o peso da realidade sobre si. Sua voz ficou um pouco fraca.
- Para quando... você marcou a leitura?
- Amanhã à tarde. Foi o mais cedo que consegui. Eu tentei marcar mais cedo, mas ele disse que tinha escola. Você trabalha amanhã?
- Vou mudar meu turno - respondeu Blue imediatamente. Mas era outra pessoa dizendo aquelas palavras. A Blue de verdade estava de volta ao adro da igreja, ouvindo
a voz dizer Gansey.
- Está bem. Vá trabalhar agora.
Quando desligou, Blue conseguia sentir o coração palpitando. Era real. Ele era real.
Era tudo verdade e terrivelmente específico.
Parecia uma bobagem estar ali, naquele momento, atendendo mesas, servindo drinques e sorrindo para estranhos. Ela queria estar em casa, recostada na casca fria da
faia que crescia no quintal dos fundos, tentando decidir o que isso mudara em sua vida. Neeve havia dito que aquele era o ano em que ela se apaixonaria. Maura havia
dito que ela mataria seu verdadeiro amor se o beijasse. Gansey deveria morrer naquele ano. Quais eram as chances? Gansey tinha de ser seu verdadeiro amor. Ele tinha
de ser. Porque não havia a possibilidade de ela matar alguém.
Então é assim que a vida deve ser? Talvez seja melhor não saber.
Algo tocou seu ombro.
Tocá-la era estritamente contra a política de Blue. Ninguém deveria tocá-la enquanto ela estivesse no Nino's, e especialmente ninguém deveria tocá-la naquele momento,
quando ela estava tendo uma crise. Ela deu um rodopio.
- Posso. Ajudar?
Diante dela estava o garoto de Aglionby, o polivalente do celular, parecendo arrumado e presidencial. Seu relógio parecia ser mais caro que o carro da mãe dela,
e ele tinha um tom de pele bronzeado encantador. Blue nunca descobrira como os garotos de Aglionby conseguiam se bronzear antes que os locais. Provavelmente tinha
algo a ver com férias de primavera e lugares como a Costa Rica e a costa espanhola. O Presidente Celular provavelmente já estivera mais próximo de um pigmeu tirano
do que ela jamais estaria.
- Espero que sim - disse ele, de maneira que indicava menos esperança e mais certeza. Ele tinha de falar alto para ser ouvido e inclinar a cabeça para mirar seus
olhos. Havia algo irritantemente impressionante nele, uma impressão de que ele era muito alto, apesar de não ser mais alto que a maioria dos garotos. - Meu amigo
Adam é socialmente inibido e achou você bonita, mas não quer tomar uma atitude. Ali. Não o sujo. Não o mal-humorado.
A contragosto, Blue olhou para a mesa que ele tinha apontado. Três garotos estavam sentados: um era sujo, como ele havia dito, com uma aparência amarfanhada e puída,
como se seu corpo tivesse sido lavado vezes demais. O que tinha batido na luminária era bonito e tinha o cabelo raspado, um soldado em uma guerra em que o inimigo
eram todas as outras pessoas. E o terceiro era... elegante. Não era a palavra certa para ele, mas era próxima. Ele tinha uma constituição delicada e uma aparência
um tanto frágil, com olhos azuis belos o bastante para uma garota.
Apesar de seus instintos, Blue sentiu uma vibração de interesse.
- E? - ela perguntou.
- E você me faria um favor e iria falar com ele?
Blue usou um milésimo de segundo de seu tempo para imaginar como seria se jogar em uma mesa de garotos corvos e se arrastar por uma conversa incômoda e vagamente
machista. Apesar da boa aparência do garoto na mesa, não foi um milésimo de segundo agradável.
- Sobre o que exatamente você acha que eu vou conversar com ele?
O Presidente Celular parecia despreocupado.
- Vamos pensar em algo. Somos pessoas interessantes.
Blue duvidou. Mas o garoto elegante era bem elegante. E parecia genuinamente horrorizado que seu amigo estivesse falando com ela, o que era ligeiramente cativante.
Por um momento breve, brevíssimo, que mais tarde a envergonhou e desconcertou, Blue considerou contar ao Presidente Celular quando terminava seu turno. Mas então
Donny a chamou da cozinha e ela se lembrou das regras número um e dois.
E disse:
- Está vendo que estou usando avental? Isso significa que estou trabalhando. Para pagar minhas contas.
A expressão despreocupada não desapareceu, e ele continuou:
- Eu cuido disso.
Ela ecoou:
- Cuida disso?
- É. Quanto você ganha por hora? Eu cuido disso. E falo com o seu chefe.
Por um momento, Blue ficou realmente sem saber o que dizer. Ela nunca acreditara em pessoas que se diziam sem palavras, mas era assim que ela estava. Abriu a boca
e, em um primeiro momento, tudo que saiu foi ar. Então algo como o início de uma risada. Finalmente, ela conseguiu cuspir:
- Eu não sou uma prostituta.
O garoto de Aglionby pareceu confuso por um longo momento, e então caiu a ficha.
- Ah, não foi isso que eu quis dizer. Não foi isso que eu disse.
- Foi isso que você disse! Você acha que pode simplesmente me pagar para conversar com o seu amigo? Obviamente você paga a maioria das suas companhias femininas
por hora e não sabe como funciona no mundo real, mas... mas... - Blue lembrou que estava construindo um argumento, mas não sabia qual era. A indignação havia eliminado
todas as funções mais elevadas e tudo que restava era o desejo de dar um tapa naquele cara. Ele abriu a boca para protestar, e o pensamento de Blue voltou de súbito.
- A maioria das garotas, quando está interessada em um cara, conversa com ele de graça.
Para seu crédito, o garoto de Aglionby não respondeu em seguida. Em vez disso, pensou por um instante e então disse, sobriamente:
- Você disse que estava trabalhando para pagar suas contas. Achei que seria mal-educado não levar isso em consideração. Desculpe se ofendi você. Eu compreendo a
sua posição, mas acho um pouco injusto você não fazer o mesmo por mim.
- E eu acho que você está sendo arrogante - disse Blue.
Ao fundo, ela viu de relance o Garoto Soldado fazendo um avião com a mão. Ele caía descontrolado em direção à mesa enquanto o Garoto Sujo reprimia o riso. O Garoto
Elegante cobriu o rosto com a palma da mão, em horror exagerado, com os dedos abertos apenas o suficiente para que ela visse o traço de sarcasmo.
- Meu Deus - observou o garoto do celular. - Não sei mais o que dizer.
- Desculpa seria uma boa - ela recomendou.
- Eu já disse isso.
Blue considerou.
- Então tchau.
Ele fez um gesto ligeiro junto ao peito, que ela achou querer dizer que ele estava fazendo uma reverência, uma mesura ou algo sarcasticamente cavalheiresco. Calla
o teria mandado para o inferno, mas Blue apenas meteu as mãos nos bolsos do avental.
Quando o Presidente Celular voltou para a mesa e pegou um diário de couro volumoso que parecia incompatível com o resto dele, o Garoto Soldado soltou uma risada
zombeteira e ela o ouviu imitá-la: "... não sou uma prostituta". Ao seu lado, o Garoto Elegante baixou a cabeça. Suas orelhas tinham um tom rosa-claro.
Nem por cem dólares, pensou Blue. Nem por duzentos.
Mas ela tinha de confessar que estava um pouco desconcertada pelas orelhas coradas. Isso não parecia muito... Aglionby. Garotos corvos ficavam envergonhados?
Ela o encarou por um momento longo demais. O Garoto Elegante ergueu o olhar, que cruzou com o dela. Ele tinha o cenho franzido, arrependido em vez de cruel, fazendo
com que Blue duvidasse de si mesma.
Mas então ela corou, ouvindo novamente a voz do Presidente Celular dizendo: Eu cuido disso. Ela lhe lançou um olhar maldoso, bem de Calla, e girou de volta para
a cozinha.
Neeve tinha de estar errada. Ela nunca se apaixonaria por um deles.
- Me fala de novo - Gansey pediu a Adam - por que você acha que uma médium é uma boa ideia.
As pizzas haviam sido devoradas (sem nenhuma ajuda de Noah), o que fez Gansey se sentir melhor e Ronan pior. Ao fim da refeição, Ronan havia tirado todas as cascas
de ferida provocadas pelo carrinho e teria tirado as de Adam também se ele deixasse. Gansey mandou que ele saísse lá fora para se acalmar e que Noah o acompanhasse
para cuidar dele.
Gansey e Adam estavam parados na fila, enquanto uma mulher discutia com a moça do caixa a respeito da cobertura de cogumelo.
- Elas lidam com energia - disse Adam, alto o suficiente para ser ouvido, apesar da música alta. Ele estudou o braço em que havia se livrado das próprias cascas.
A pele por baixo parecia irritada. Erguendo o olhar, espiou sobre o ombro, provavelmente procurando a garçonete má, não-uma-prostituta. Um lado de Gansey se sentia
culpado por estragar as chances de Adam com ela, mas o outro lado sentia que ele possivelmente havia salvado o amigo de ter a medula arrancada e devorada.
Era possível, pensou Gansey, que ele mais uma vez tivesse sido sem noção a respeito de dinheiro. Ele não quisera ser ofensivo, mas, analisando melhor, talvez tivesse
sido. Isso o incomodaria a noite inteira. Ele jurou, como havia feito uma centena de vezes antes, considerar melhor suas palavras.
Adam continuou:
- As linhas ley são energia. Energia pura.
- Pode dar certo - respondeu Gansey. - Se a médium não for uma charlatã.
Adam retrucou:
- A cavalo dado não se olham os dentes.
Gansey olhou para a comanda da pizza escrita à mão que ele segurava. De acordo com a caligrafia redonda, o nome da garçonete era Cialina. Ela havia incluído seu
número de telefone, mas era difícil dizer qual dos garotos ela estava tentando atrair. Algumas partes na mesa eram menos perigosas de se associar do que outras.
Ela claramente não o tinha achado arrogante.
Provavelmente porque não o ouvira falar.
A noite toda. Isso iria incomodá-lo a noite toda. Ele disse:
- Eu queria ter uma ideia da largura das linhas. Não sei se estamos procurando por um fio ou uma avenida, mesmo depois de todo esse tempo. A gente pode estar a meio
metro delas e nem perceber.
O pescoço de Adam poderia ter quebrado de tanto que ele olhava em volta. Não havia nem sinal da garçonete. Ele parecia cansado de tantas noites maldormidas, pelo
acúmulo de trabalho e estudo. Gansey odiava vê-lo assim, mas nada que ele pensou soava como algo que pudesse realmente lhe dizer. Adam não toleraria pena.
- Nós sabemos que elas podem ser encontradas através de radiestesia, então não devem ser tão estreitas - disse Adam, esfregando o dorso da mão contra a têmpora.
Fora isso que trouxera Gansey para Henrietta em primeiro lugar: meses de radiestesia e pesquisa. Mais tarde, ele tentara encontrar a linha de maneira mais precisa
com Adam. Eles tinham dado a volta na cidade com uma varinha de radiestesia e um leitor de frequência eletromagnética, trocando os instrumentos entre os dois. A
máquina havia indicado picos estranhos algumas vezes, e Gansey achou que sentira a varinha vibrar em sua mão em sincronia com os picos, mas podia ter sido apenas
ilusão.
Eu poderia dizer que as notas dele vão cair se ele não diminuir o ritmo, pensou Gansey, observando as olheiras de Adam. Se Gansey soasse preocupado consigo mesmo,
Adam não interpretaria aquilo como pena. Então considerou colocar a questão de modo egoísta: Você não vai ser útil para mim se pegar mononucleose ou algo parecido.
Mas Adam perceberia em um segundo que estava sendo enganado.
Em vez disso, Gansey disse:
- Precisamos de um ponto A sólido antes de começar a pensar em um ponto B.
Mas eles tinham o ponto A. Tinham até o ponto B. O problema era que os pontos eram grandes demais. Gansey tinha um mapa arrancado de um livro que mostrava a Virgínia
com a linha ley passando por cima. Assim como os entusiastas da linha ley no Reino Unido, os caçadores de linha ley americanos determinaram lugares-chave espirituais
e traçaram linhas entre eles até que o arco da linha ley se tornou óbvio. Parecia que todo o trabalho já tinha sido feito para eles.
Mas os criadores desses mapas nunca pensaram que eles fossem ser usados como mapas rodoviários; eles eram aproximados demais. Um dos mapas listava somente Nova York,
Washington, D.C. e Pilot Mountain, na Carolina do Norte, como possíveis pontos de referência. Cada um desses pontos tinha quilômetros de largura, e mesmo a mais
fina linha traçada a lápis sobre o mapa não correspondia a menos que dez metros - mesmo eliminando as possibilidades, isso os deixava com milhares de hectares onde
a linha ley poderia estar. Milhares de hectares onde Glendower poderia estar, se estivesse realmente ao longo da linha ley.
- Eu me pergunto - refletiu Adam em voz alta - se daria para eletrificar as varinhas ou a linha. Ligar uma bateria de carro a elas ou algo do gênero.
Se você conseguisse um financiamento, poderia parar de trabalhar até terminar a faculdade. Não, isso começaria imediatamente uma discussão. Gansey balançou a cabeça
um pouco, mais por causa dos próprios pensamentos do que do comentário de Adam. E disse:
- Parece o início de uma sessão de tortura ou um videoclipe.
O rosto onde-está-a-garçonete-má de Adam havia dado lugar ao seu rosto ideia-brilhante. A fadiga havia se dissolvido.
- Bem, amplificação. Era só isso que eu estava pensando. Algo para tornar a linha mais ruidosa e mais fácil de seguir.
Não era uma ideia ruim. No ano passado, em Montana, Gansey havia entrevistado uma vítima de raio. O garoto estava sentado em seu quadriciclo na entrada de um estábulo
quando foi atingido, e o incidente havia lhe deixado com um temor inexplicável de recintos fechados e com uma capacidade extraordinária de seguir uma das linhas
ley usando apenas uma ponta curvada de antena de rádio. Por dois dias eles avançaram juntos através de campos entalhados por geleiras e marcados por fardos de feno
redondos e altos, encontrando fontes ocultas de água, pequenas cavernas, cepos queimados por raios e pedras estranhamente marcadas. Gansey havia tentado convencer
o garoto a voltar para a Costa Leste para realizar o mesmo milagre na linha ley de lá, mas seu medo patológico de lugares fechados recentemente adquirido excluía
qualquer viagem de avião ou carro. E era uma longa caminhada.
Mesmo assim, não foi um exercício inteiramente inútil. Foi uma prova a mais da teoria amorfa que Adam descrevera havia pouco: linhas ley e eletricidade podiam andar
juntas. Energia e energia.
Tudo combinando.
Enquanto ia até o balcão, Gansey percebeu que Noah o seguia, tentando lhe chamar a atenção e parecendo tenso e urgente. Ambos os traços eram típicos de Noah, de
maneira que Gansey não se sentiu imediatamente incomodado. Passou um maço de notas dobradas para a moça do caixa, enquanto Noah continuava a pairar do lado dele.
- O que foi, Noah? - perguntou Gansey.
Noah parecia prestes a colocar as mãos nos bolsos, mas não o fez. As mãos dele pareciam pertencer a menos lugares do que as de outras pessoas. Simplesmente as deixou
ao longo do corpo enquanto olhava para Gansey, depois disse:
- O Declan está aqui.
Um exame imediato do restaurante não ofereceu nada. Gansey perguntou:
- Onde?
- No estacionamento - disse Noah. - Ele e o Ronan...
Sem esperar o fim da frase, Gansey saiu apressadamente em direção ao estacionamento, bem a tempo de ver Ronan desferir um soco no irmão.
O golpe foi infinito.
Pelo jeito, era só o primeiro ato. Sob a luminosidade fraca e o zunido do poste de luz, Ronan mantinha uma postura firme e uma expressão dura como granito. Não houve
hesitação no golpe; ele tinha aceitado as consequências de onde quer que acertasse a pancada muito antes de disparar o soco.
Do pai, Gansey recebera a mente lógica, o gosto pela pesquisa e uma herança do tamanho da maioria das loterias estaduais.
Do pai, os irmãos Lynch haviam herdado o ego incansável, uma década de aulas de instrumentos musicais irlandeses desconhecidos e a capacidade de lutar boxe de verdade.
Niall Lynch não estivera por perto por muito tempo, mas, enquanto estivera, fora um excelente professor.
- Ronan! - gritou Gansey, tarde demais.
Declan foi ao chão, mas, antes mesmo que Gansey tivesse tempo de traçar um plano de ação, já estava de pé de novo, acertando o punho no rosto do irmão. Ronan soltou
uma série de impropérios tão variados e afiados que Gansey ficou impressionado que somente aquelas palavras não tivessem acabado com Declan. Braços giravam como
moinhos. Joelhos encontravam peitos. Cotovelos socavam rostos. Então Ronan agarrou o casaco de Declan e o usou para jogá-lo contra o capô lustroso de seu Volvo.
- O carro não! - rosnou Declan, com o lábio sangrando.
A história da família Lynch era a seguinte: era uma vez um homem chamado Niall Lynch. Ele teve três filhos, um dos quais amava o pai mais do que os outros. Niall
Lynch era um sujeito bonito, carismático, rico e misterioso, e um dia ele foi arrastado de seu BMW cinza-carvão e espancado até a morte com uma chave de roda. Isso
foi numa quarta-feira. Na quinta-feira, seu filho Ronan achou o corpo na entrada da garagem. Na sexta-feira, a mãe deles parou de falar e nunca mais proferiu uma
palavra.
No sábado, os irmãos Lynch descobriram que a morte do pai os deixara ricos, mas sem ter onde morar. O testamento os proibia de tocar em qualquer coisa na casa -
roupas, móveis. A mãe continuava muda. O testamento fez com que eles se mudassem imediatamente para o dormitório em Aglionby. Declan, o mais velho, deveria gerir
as finanças e a vida dos irmãos até que eles completassem dezoito anos.
No domingo, Ronan roubou o carro do pai.
Na segunda-feira, os irmãos Lynch deixaram de ser amigos.
Arrancando Ronan do Volvo, Declan acertou o irmão tão duro que até Gansey sentiu o golpe. Ashley, com o cabelo claro mais visível que o resto, cruzou o olhar com
o dele de dentro do carro.
Gansey avançou vários passos no estacionamento.
- Ronan!
Ronan nem virou a cabeça. Um sorriso sinistro, mais de esqueleto que de gente, estava gravado em sua boca enquanto os irmãos rodopiavam em volta um do outro. Aquela
era uma luta de verdade, e não um espetáculo, e se desenrolava rapidamente. Alguém estaria inconsciente antes que Gansey pudesse interceder, e ele simplesmente não
tinha tempo para levar ninguém ao pronto-socorro naquela noite.
Gansey deu um salto e segurou o braço de Ronan em meio a um golpe. Mas Ronan ainda tinha os dedos enfiados como um gancho dentro da boca de Declan, e este já tinha
um punho voando por trás, como um abraço violento. Então foi Gansey quem recebeu o golpe de Declan. Algo molhado lhe cobriu o braço. Ele pensou que fosse saliva,
mas era sangue. Gansey gritou uma palavra que aprendera com sua irmã, Helen.
Ronan agarrou Declan pela gravata cor de vinho, e Declan prendeu firmemente a parte de trás da cabeça do irmão. Não faria diferença se Gansey não estivesse ali.
Com um giro de punho ligeiro, Ronan bateu a cabeça de Declan contra a porta do motorista do Volvo. A batida fez um ruído horrível, e a mão de Declan se soltou.
Gansey aproveitou a oportunidade para lançar Ronan a um metro e meio de distância, mas ele se pôs de pé com um movimento súbito. Ele era incrivelmente forte.
- Pare - disse Gansey, ofegante. - Você está destruindo o seu rosto.
Ronan girou, todo músculos e adrenalina. Declan, com o terno mais sujo do que qualquer terno deveria parecer, partiu de volta na direção deles. Ele tinha um machucado
terrível na têmpora, mas parecia pronto para começar tudo de novo. Não havia como dizer o que provocara a briga dessa vez - uma nova enfermeira em casa para a mãe
deles, uma nota ruim na escola, uma conta de cartão de crédito não explicada. Talvez apenas Ashley.
Do outro lado do estacionamento, o gerente do Nino's surgiu na entrada do restaurante. Não levaria muito tempo até chamarem a polícia. Onde está o Adam?
- Declan - disse Gansey, com a voz cheia de aviso -, se você vier até aqui, eu juro...
Com um movimento brusco do queixo, Declan cuspiu sangue no chão. Seu lábio estava sangrando, mas seus dentes ainda estavam inteiros.
- Tudo bem. Ele é o seu cachorro, Gansey. Ponha uma coleira nele. E tome conta para que ele não seja expulso de Aglionby. Eu lavo minhas mãos.
- Bem que eu gostaria - rosnou Ronan, com o corpo inteiro rígido por baixo da mão de Gansey. Ele vestia o ódio como uma cruel segunda pele.
Declan retrucou:
- Você é um merda, Ronan. Se o nosso pai te visse... - e isso fez Ronan se lançar para frente novamente. Gansey apertou os braços em torno do peito do amigo e o
arrastou de volta.
- E o que você está fazendo aqui? - Gansey perguntou a Declan.
- A Ashley precisava usar o banheiro - respondeu Declan secamente. - Eu devia ter o direito de parar onde eu quiser, você não acha?
A última vez que Gansey estivera no banheiro do Nino's, ele cheirava a vômito e cerveja. Em uma das paredes, uma caneta vermelha havia rabiscado a palavra "BELZEBU"
e o número de Ronan embaixo. Era difícil imaginar Declan escolhendo as instalações do Nino's para a namorada. A voz de Gansey soou ríspida.
- O que eu acho é que você devia ir embora. Isso não vai se resolver hoje.
Declan riu, só uma vez. Uma grande risada descuidada, cheia de vogais redondas. Ele claramente não achava graça nenhuma em nada que dizia respeito a Ronan.
- Pergunte ao Ronan se ele vai passar com um B esse ano - ele disse a Gansey. - Você chega a ir às aulas, Ronan?
Atrás de Declan, Ashley espiava pela janela do motorista. Ela havia baixado o vidro para ouvir, e não parecia tão idiota quando acreditava que ninguém estava lhe
dando atenção. Parecia justo que, talvez dessa vez, Declan fosse o manipulado.
- Não estou dizendo que você está errado, Declan - disse Gansey. A orelha latejava onde ele havia sido acertado, e ele podia sentir a pulsação de Ronan batendo em
seu braço. A promessa que ele havia feito de considerar suas palavras com mais cuidado lhe voltou à lembrança, então ele estruturou o resto da frase na cabeça antes
de dizer em voz alta: - Mas você não é Niall Lynch e nunca será. E você cresceria muito mais rápido na vida se parasse de tentar ser.
Gansey soltou Ronan.
Ronan não se moveu, nem Declan, como se, ao dizer o nome do pai deles, Gansey tivesse lançado um feitiço. Eles traziam a mesma expressão dura no rosto. Ferimentos
diferentes infligidos pela mesma arma.
- Só estou tentando ajudar - disse Declan finalmente, soando derrotado. Houve uma época, alguns meses atrás, em que Gansey teria acreditado nele.
Ao lado de Gansey, as mãos de Ronan pendiam abertas ao longo do corpo. Às vezes, quando alguém batia em Adam, havia algo remoto e ausente em seus olhos, como se
seu corpo pertencesse a outra pessoa. Mas, quando Ronan apanhava, acontecia o contrário; ele se tornava tão presente que era como se estivesse dormindo antes.
Ronan disse para o irmão:
- Eu nunca vou te perdoar.
A janela do Volvo sibilou ao fechar, como se Ashley tivesse se dado conta naquele momento de que aquela era uma conversa que ela não deveria ouvir.
Sugando o lábio que sangrava, Declan olhou para o chão por um momento. Então se endireitou e ajustou a gravata.
- Não significa muito vindo de você - ele disse e escancarou a porta do Volvo.
Enquanto escorregava para o banco do motorista, Declan disse a Ashley:
- Não quero falar sobre isso - e bateu a porta.
Os pneus do Volvo guincharam no pavimento, e então Gansey e Ronan se viram parados um ao lado do outro na estranha luz difusa do estacionamento. A uma quadra de
distância, um cão latiu funestamente três vezes. Ronan tocou a sobrancelha com o dedo mindinho para verificar se havia sangue, mas só havia um grande calombo.
- Conserte isso - disse Gansey. Ele não estava inteiramente certo de que qualquer coisa que Ronan tivesse feito, ou deixado de fazer, pudesse ser corrigida com facilidade,
mas tinha certeza de que precisava ser corrigida. A única exigência para que Ronan pudesse ficar na Indústria Monmouth era que suas notas fossem aceitáveis. - O
que quer que seja. Não deixe que ele tenha razão.
Ronan disse baixo, apenas para Gansey ouvir:
- Eu quero largar tudo.
- Falta só um ano.
- Não quero seguir com isso por mais um ano. - Ele chutou uma pedra de cascalho para baixo do Camaro. Então sua voz se elevou, mas apenas em ferocidade, não em volume.
- Mais um ano e aí eu acabo estrangulado numa gravata como o Declan? Não sou um maldito político, Gansey. Nem um banqueiro.
Gansey também não era, mas isso não significava que quisesse abandonar a escola. Ele percebeu, pela dor na voz de Ronan, que sua própria voz não deveria demonstrar
nenhuma tristeza quando disse:
- Apenas se forme e depois faça o que quiser.
A herança de seus pais havia assegurado aos dois que nenhum deles tivesse de trabalhar para ganhar a vida, se escolhessem não fazê-lo. Eles eram peças soltas na
máquina da sociedade, um fato que recaía de maneira diferente sobre os ombros de Ronan e os de Gansey.
Ronan parecia irado, mas ele estava com um humor em que sempre pareceria irado, não importava o que estivesse acontecendo.
- Eu não sei o que eu quero. Eu não sei nem que merda eu sou.
E entrou no Camaro.
- Você me prometeu - disse Gansey pela porta aberta do carro.
Ronan não olhou para ele.
- Eu sei o que eu fiz, Gansey.
- Não esqueça.
Quando Ronan bateu a porta, ela ecoou pelo estacionamento como ecoam os sons na escuridão. Gansey se juntou a Adam em seu posto de observação favorável, seguramente
distante. Comparado a Ronan, Adam parecia limpo, comedido e absolutamente controlado. Em algum lugar, ele havia conseguido uma bola de borracha com o logotipo do
Bob Esponja impresso e a quicava com uma expressão pensativa.
- Eu convenci o pessoal do restaurante a não chamar a polícia - disse Adam. Ele era bom em conter as coisas.
Gansey suspirou. Naquela noite ele não teria energia para falar com a polícia em favor de Ronan.
Diga que estou fazendo a coisa certa com o Ronan. Diga que é assim que vamos reencontrar o velho Ronan. Diga que eu não estou arruinando a vida dele ao mantê-lo
longe do Declan.
Mas Adam já havia dito para Gansey que achava que Ronan precisava aprender a limpar a própria sujeira. Era apenas Gansey que parecia temer que Ronan aprendesse a
viver na sujeira.
Então ele simplesmente perguntou:
- Onde está o Noah?
- Está vindo. Acho que ele estava deixando uma gorjeta. - Adam deixou a bola cair e a pegou de novo. Ele tinha um jeito quase mecânico de agarrar a bola enquanto
ela quicava de volta em sua direção; num momento sua mão estava aberta e vazia, no seguinte bem fechada em torno dela.
Quica. Pega.
Gansey disse:
- E a Ashley, hein?
- É - disse Adam, como se estivesse esperando que ele tocasse no assunto.
- Ela tem uns olhos e tanto. - Era uma expressão que seu pai usava muito, uma frase de efeito da família para se refirir a uma pessoa enxerida.
Adam perguntou:
- Você realmente acha que ela está aqui pelo Declan?
- Por que outra razão ela estaria?
- Glendower - respondeu Adam imediatamente.
Gansey riu, mas Adam não.
- Sério, que outra razão haveria?
Em vez de responder, Adam girou a mão e lançou a bola de borracha. Ele havia escolhido a trajetória cuidadosamente: a bola quicou no asfalto sujo uma vez, acertou
um dos pneus do Camaro e desenhou um arco alto no ar, desaparecendo no escuro. Ele deu um passo à frente, a tempo de ela bater na palma da sua mão. Gansey fez um
ruído de aprovação e Adam emendou:
- Acho que você não devia mais falar sobre isso com as pessoas.
- Não é segredo.
- Talvez devesse ser.
A apreensão de Adam era contagiosa, mas, logicamente, não havia nada que apoiasse a suspeita. Por quatro anos, Gansey estivera procurando por Glendower, admitindo
livremente esse fato para qualquer um que demonstrasse interesse, e ele nunca vira a menor evidência de qualquer outra pessoa compartilhando precisamente sua busca.
No entanto, ele tinha de admitir que essa possibilidade lhe provocava um sentimento peculiarmente desagradável.
Gansey disse:
- Não há segredos, Adam. Praticamente tudo que eu fiz é de conhecimento público. É tarde demais para ser um segredo. Já era tarde demais anos atrás.
- Fala sério, Gansey - Adam disse um pouco irritado. - Você não sente nada? Você não se sente...?
- Me sinto o quê? - Gansey detestava brigar com Adam, e aquilo parecia uma briga de certa maneira.
Adam lutou sem sucesso para colocar os pensamentos em palavras. Por fim, respondeu:
- Observado.
Do outro lado do estacionamento, Noah tinha finalmente saído do Nino's e se arrastava na direção deles. Dentro do Camaro, era possível ver o perfil de Ronan recostado
no banco, a cabeça virada como se dormisse. Perto dali, Gansey conseguia sentir cheiro de rosas e de grama cortada pela primeira vez aquele ano e, mais distante,
a terra úmida retornando à vida por baixo das folhas caídas, assim como água correndo sobre pedras em curvas montanhosas onde seres humanos nunca caminharam. Talvez
Adam estivesse certo. Havia algo sugestivo naquela noite, ele pensou, algo fora de vista que parecia abrir os olhos.
Dessa vez, quando Adam deixou cair a bola, foi a mão de Gansey que se estendeu e a pegou.
- Você acha que faria algum sentido para alguém nos espionar - disse Gansey - se não estivéssemos no caminho certo?
Quando Blue saiu lentamente para a rua, o cansaço havia extinguido sua ansiedade. Ela encheu os pulmões com o ar frio da noite. Não parecia possível que fosse a
mesma substância que filtrava pelas ventilações de ar-condicionado do Nino's.
Ela inclinou a cabeça para trás para observar as estrelas. Ali, no limite do centro da cidade, não havia muitos postes de luz para obliterar completamente as estrelas.
Ursa Maior, Leão, Cefeu. Sua respiração se tornava mais fácil e calma a cada constelação familiar que encontrava.
A corrente estava fria quando ela destrancou a bicicleta. Do outro lado do estacionamento, conversas abafadas chegavam aos seus ouvidos e desapareciam. Atrás dela,
passos se arrastavam sobre o asfalto em algum lugar próximo. Mesmo quando silenciosas, as pessoas eram realmente os animais mais barulhentos.
Um dia ela viveria em algum lugar onde poderia sair de casa e ver apenas estrelas, e não postes de luz, e então poderia se sentir mais próxima do que jamais estivera
de compartilhar o dom de sua mãe. Quando Blue olhava para as estrelas, algo a atraía, algo que a incitava a ver mais do que estrelas, a decifrar o firmamento caótico,
para obter uma imagem dele. Mas isso nunca fazia sentido. Blue sempre via somente Leão e Cefeu, Escorpião e Dragão. Talvez ela simplesmente precisasse de mais horizonte
e menos cidade. Acontece que ela não queria mesmo ver o futuro. O que ela queria era ver algo que ninguém mais pudesse ver, e talvez isso fosse pedir por mais magia
do que havia no mundo.
- Com licença, hum... senhorita. Olá.
A voz era suave, masculina e local; as vogais tinham todas as beiradas polidas. Blue se virou com uma expressão desinteressada.
Para sua surpresa, era o Garoto Elegante, o rosto mais magro e velho à luz distante da rua. Ele estava sozinho. Nenhum sinal do Presidente Celular, do Garoto Sujo
ou de seu amigo hostil. Uma mão firmava a bicicleta. A outra estava enfiada no bolso. A postura insegura não acompanhava muito bem o blusão com o corvo no peito,
e ela viu de relance uma parte gasta na costura do ombro antes que ele a escondesse sob as orelhas, encolhendo os ombros como se estivesse com frio.
- Oi - disse Blue, em um tom mais suave do que teria usado se não tivesse notado o puído no blusão. Ela não sabia que tipo de garoto de Aglionby usava blusões de
segunda mão. - Adam, não é?
Ele anuiu, brusco e envergonhado, e Blue olhou para a bicicleta. Ela também não sabia que tipo de garoto de Aglionby dirigia uma bicicleta em vez de um carro.
- Eu estava indo para casa - disse Adam - e achei que tinha reconhecido você aqui. Eu queria pedir desculpa. Pelo que aconteceu antes. Eu não pedi para ele fazer
aquilo e queria que você soubesse.
Não escapou a Blue que sua voz com um ligeiro sotaque era tão bonita quanto sua aparência. Era como o pôr do sol de Henrietta: balanços quentes em varandas e copos
de chá gelado, cigarras mais altas que os pensamentos. Ele olhou por sobre o ombro, então, ao som de um carro em uma rua lateral. Quando olhou de volta para ela,
ainda trazia uma expressão cansada, e Blue viu que aquela feição - o cenho franzido, a boca tensa - era sua expressão normal. Combinava com seus traços, acompanhando
cada linha em torno da boca e dos olhos. Esse garoto de Aglionby muitas vezes não se sente feliz, ela pensou.
- Que legal de sua parte - disse ela. - Mas não é você que precisa se desculpar.
Adam disse:
- Não posso deixar que ele fique com toda a culpa. Quer dizer, ele estava certo. Eu queria falar com você. Mas não queria simplesmente... tentar ficar com você.
Aquele era o momento em que ela deveria ter se livrado dele. Mas ela estava imobilizada pelo instante em que ele corara na mesa - sua expressão honesta, seu sorriso
incerto, recém-cunhado. Seu rosto era simplesmente estranho o bastante para que ela quisesse continuar olhando.
O fato era que Blue nunca havia sido paquerada por alguém que ela desejasse que tivesse sucesso em sua iniciativa.
Não faça isso!, avisou a voz dentro dela.
Mas ela perguntou:
- E o que você queria fazer?
- Conversar - ele disse. Em seu sotaque local, era uma palavra longa e parecia menos um sinônimo para falar e mais para confessar. Blue não podia deixar de olhar
para a linha fina e agradável de sua boca. Ele acrescentou: - Acho que eu podia ter evitado um belo incômodo se tivesse simplesmente ido falar com você. As ideias
de outras pessoas sempre parecem me causar mais problemas.
Blue estava quase contando a ele como as ideias de Orla causavam problemas para todos em sua casa também, mas então se deu conta de que ele diria algo mais, e daí
ela responderia, e isso poderia seguir noite adentro. Algo a respeito de Adam lhe dizia que aquele era um cara com quem ela podia ter uma conversa. Do nada, a voz
de Maura surgiu em sua mente: Não preciso dizer para você não beijar ninguém, não é?
E, simples assim, Blue pôs um ponto-final naquilo. Ela era, como Neeve havia dito, uma garota sensata. Na melhor das hipóteses, aquilo só poderia terminar em tormento.
Ela expirou forte.
- De qualquer maneira, a questão não era o que ele estava dizendo sobre você. Foi que ele me ofereceu dinheiro - disse ela, colocando o pé no pedal da bicicleta.
O segredo era não imaginar como teria sido ficar e conversar. Quando Blue não tinha dinheiro suficiente para algo, a pior coisa no mundo era imaginar como seria
ter esse algo.
Adam suspirou, como se reconhecesse o recuo dela.
- Ele não tem noção. É um idiota com dinheiro.
- E você não é?
Ele apenas a encarou com um olhar muito firme. Não era uma expressão que deixasse espaço para brincadeiras.
Blue inclinou a cabeça para trás, mirando as estrelas. Era estranho imaginar quão rapidamente elas giravam no céu: um vasto movimento distante demais para detectar.
Leão, Leão Menor, Cinturão de Órion. Se ela fosse sua mãe ou suas tias e lesse o destino nos céus, veria o que deveria dizer a Adam?
Então perguntou:
- Você vai voltar ao Nino's?
- Isso é um convite?
Ela sorriu em resposta. Parecia algo muito perigoso, aquele sorriso, algo com que Maura não ficaria satisfeita.
Blue tinha duas regras: ficar longe dos garotos, porque eles trazem problemas, e ficar longe de garotos corvos, porque eles são uns canalhas.
Mas essas regras não pareciam se aplicar a Adam. Atrapalhada, ela tirou do bolso um lenço de papel e escreveu nele seu nome e seu número de telefone. Com o coração
aos pulos, ela o dobrou e o passou para ele.
Adam se limitou a dizer:
- Que bom que eu voltei.
Então sua figura esbelta deu meia-volta, e ele começou a empurrar a bicicleta, que guinchava pesarosa, de volta pelo caminho de onde viera.
Blue pressionou os dedos contra o rosto.
Eu dei meu telefone para um garoto.
Eu dei meu telefone para um garoto corvo.
Abraçando o corpo com os braços, ela imaginou uma discussão com sua mãe. Dar o telefone para alguém não quer dizer que você vai beijá-lo.
Blue deu um salto quando a porta de trás do restaurante se abriu. Mas era apenas Donny, sua expressão desanuviando quando a viu. Ele segurava o tentador livro volumoso
encadernado em couro que Blue reconheceu de imediato. Ela o vira nas mãos do Presidente Celular.
Donny perguntou:
- Você sabe quem esqueceu isso aqui? É seu?
Ela foi ao seu encontro e, a meio caminho do estacionamento, pegou o diário e o abriu. Ele não escolheu uma página para abrir; estava tão usado e tão cheio que todas
as páginas reivindicavam precedência. Ele finalmente se abriu ao meio, obedecendo à gravidade em vez de ao uso.
A página era uma confusão de recortes amarelados de livros e jornais. Uma caneta vermelha sublinhava algumas frases, acrescentava comentários nas margens ("Cavernas
Luray contam como lugar espiritual? gralhas = corvos?") e marcava quadradinhos cuidadosamente dispostos diante de cada item de uma lista intitulada: "Nomes de lugares
influenciados pelo galês próximos de Henrietta". Blue reconheceu a maioria das cidades listadas. Welsh Hills, Glen Bower, Harlech, Machinleth.
- Não cheguei realmente a ler - disse Donny. - Eu só queria ver se tinha um nome nele para devolver. Mas então vi que era... bem, o tipo de coisa que você costuma
ler.
Com isso, ele queria dizer que o diário era o que ele esperava da filha de uma médium.
- Acho que eu sei de quem é - disse Blue. Ela não tinha outro pensamento imediato que o desejo de passar mais tempo virando as páginas. - Eu fico com ele.
Quando Donny entrou no restaurante, Blue abriu o diário novamente. Agora ela tinha tempo para se maravilhar com a absoluta densidade dele. Mesmo se o conteúdo não
a tivesse surpreendido imediatamente, o sentimento que tudo aquilo provocava o faria. Havia tantos recortes que o diário não mantinha a forma de livro se não estivesse
bem atado com laços de couro. Páginas e mais páginas eram dedicadas a trechos rasgados e cortados, e havia um inegável prazer tátil em folheá-lo. Blue correu os
dedos sobre as variadas superfícies. Papel de desenho, espesso e untuoso, com uma fonte esguia e elegante. Papel fino, amarronzado, com serifas longas e delicadas.
Papel de escritório, utilitário e liso, com uma letra moderna e despojada. Recortes de jornal com bordas esfarrapadas, em um tom quebradiço de amarelo.
Então havia as anotações, feitas com uma meia dúzia de canetas e marcadores diferentes, mas todas na mesma caligrafia profissional. Elas circulavam, apontavam e
sublinhavam "muito urgente". Faziam listas e pontos de exclamação ansiosos nas margens. Contradiziam umas às outras e se referiam umas às outras na terceira pessoa.
Linhas se tornavam hachuras, que se tornavam rabiscos de montanhas, que se tornavam marcas de pneus inquietas deixadas por carros velozes.
Blue levou um tempo para entender do que o diário realmente tratava. Ele era organizado em partes pouco precisas, mas estava claro que quem quer que o tivesse criado
havia ficado sem espaço em algumas partes e começado de novo mais adiante. Havia uma parte sobre linhas ley, linhas de energia invisíveis que conectavam lugares
espirituais; outra sobre Owain Glyndwr, o rei Corvo; outra sobre lendas de reis adormecidos que esperavam debaixo de montanhas para ser descobertos para uma nova
vida. Havia ainda uma parte de histórias estranhas sobre reis sacrificados e antigas deusas da água e todas as coisas velhas que os corvos representavam.
Mais do que qualquer coisa, o diário desejava. Desejava mais do que podia conter, mais do que palavras podiam descrever, mais do que diagramas podiam ilustrar. O
anseio transbordava das páginas, em cada linha frenética, em cada desenho apaixonado, em cada definição em negrito. Havia algo de doloroso e melancólico a respeito
dele.
Uma forma familiar se destacava do resto dos rabiscos. Três linhas se cruzavam: um triângulo longo, pontiagudo. Era a mesma forma que Neeve havia desenhado na terra
no adro da igreja. A mesma forma que sua mãe havia desenhado no boxe do chuveiro coberto de vapor.
Blue aplanou a página para examiná-la melhor. Essa parte era sobre linhas ley: "caminhos de energia mística que conectam lugares espirituais". Ao longo do diário,
o autor havia rabiscado as três linhas repetidas vezes e, junto delas, um Stonehenge de aparência débil, estranhos cavalos alongados e um desenho descritivo de um
túmulo. Não havia explicação do símbolo.
Não podia ser coincidência.
Não havia como aquele diário pertencer àquele garoto corvo presidencial. Alguém devia ter dado para ele.
Talvez tenha sido Adam, pensou.
Ele tinha passado para ela a mesma sensação que o diário: o sentimento de algo mágico, de possibilidade, de perigo ansioso. Aquele mesmo sentimento que ela experimentara
quando Neeve havia dito que um espírito tocara seu cabelo.
Blue pensou: Eu gostaria que você fosse Gansey. Mas, tão logo pensou isso, ela sabia que não era verdade. Porque, quem quer que fosse Gansey, ele não tinha mais
muita vida pela frente.
Gansey acordou no meio da noite apenas para sentir a lua cheia no rosto e ouvir o telefone tocar.
Procurou atrapalhado no meio dos cobertores, onde se escondia o aparelho. Cego sem os óculos ou as lentes de contato, Gansey teve de segurar o telefone a centímetros
dos olhos para ler o nome de quem o ligava: R. MALORY. Agora Gansey compreendia a hora bizarra da chamada. O dr. Roger Malory vivia em Sussex, um fuso horário de
cinco horas de Henrietta. Meia-noite na Virgínia eram cinco da manhã para o madrugador Malory. Ele era uma das principais autoridades britânicas em linhas ley. Tinha
oitenta, cem ou duzentos anos, e havia escrito três livros sobre o assunto, todos clássicos no (muito limitado) campo. Eles haviam se conhecido no verão em que Gansey
dividira seu tempo entre o País de Gales e Londres. Malory havia sido o primeiro a levar o adolescente de quinze anos a sério, um favor pelo qual Gansey lhe seria
eternamente grato.
- Gansey - disse Malory carinhosamente, sabendo que era melhor chamá-lo assim do que pelo nome de batismo. Sem mais delongas, Malory partiu para um monólogo sobre
o tempo, os últimos quatro encontros da sociedade histórica e como era frustrante seu vizinho com o collie. Gansey compreendeu aproximadamente três quartos do monólogo.
Após viver no Reino Unido por quase um ano, ele era bom com sotaques, mas o de Malory era muitas vezes difícil, graças a uma combinação de fala arrastada, ruminação,
idade extrema e conexão telefônica ruim.
Agachado ao lado da maquete de Henrietta, Gansey prestou pouca atenção por educados doze minutos antes de interrompê-lo polidamente.
- Que bom que você ligou.
- Achei uma fonte textual muito interessante - disse Malory. Havia um ruído, como se ele estivesse mastigando ou embrulhando algo em celofane. Gansey conhecera o
apartamento dele e era bem possível que Malory estivesse fazendo os dois. - Que sugeriu que as linhas ley estão dormentes. Dormindo. Isso te lembra alguma coisa?
- Como Glendower! Então o que isso quer dizer?
- Isso pode explicar por que elas são tão difíceis de encontrar por radiestesia. Se elas ainda estiverem presentes, mas não ativas, a energia seria muito fraca e
irregular. Em Surrey, eu estava seguindo uma linha com um sujeito... vinte e dois quilômetros, um tempo horroroso, gotas de chuva que mais pareciam nabos... e então
ela simplesmente desapareceu.
Buscando um tubo de cola e algumas telhas de papelão, Gansey usou a forte luz do luar para trabalhar em um telhado enquanto Malory seguia discorrendo sobre a chuva.
Então ele perguntou:
- A sua fonte diz alguma coisa sobre despertar as linhas ley? Se Glendower pode ser acordado, as linhas ley também podem, não é?
- Essa é a ideia.
- Mas basta descobrir Glendower para acordá-lo. As pessoas caminham sobre as linhas ley.
- Ah, não, sr. Gansey, é aí que está o erro. Os caminhos espirituais são subterrâneos. Mesmo que eles não tenham sido sempre assim, agora estão cobertos por metros
de terra acumulada através dos séculos - disse Malory. - Ninguém as toca há centenas de anos. Você e eu, nós não caminhamos sobre as linhas. Nós simplesmente seguimos
os ecos.
Gansey lembrou como o rastro parecia ir e vir sem nenhuma razão enquanto ele e Adam procuravam as linhas por radiestesia. A teoria de Malory tinha um mínimo de plausibilidade,
e isso era tudo de que ele precisava. Ele não desejava mais nada a não ser começar a explorar seus livros para fundamentar ainda mais essa nova ideia, a escola que
se danasse. Gansey sentiu uma rara pontada de ressentimento por ser um adolescente, por estar amarrado a Aglionby; talvez fosse assim que Ronan se sentisse o tempo
inteiro.
- Ok. Então nós acessamos as linhas por baixo da terra. Cavernas, quem sabe?
- Ah, cavernas são coisas pavorosas - respondeu Malory. - Sabe quantas pessoas morrem em cavernas todos os anos?
Gansey respondeu que não.
- Milhares - assegurou-o Malory. - Elas são como cemitérios de elefantes. Muito melhor ficar acima da terra. A espeleologia é mais perigosa que corrida de motocicleta.
Não, minha fonte diz respeito somente a uma maneira ritual de despertar os caminhos espirituais da superfície, deixando que a linha ley saiba de sua presença. Você
faria uma imposição de mãos simbólica na energia aí em Marianna.
- Henrietta.
- Texas?
Sempre que Gansey falava com britânicos sobre os Estados Unidos, eles pareciam achar que ele se referia ao Texas. Então ele corrigiu:
- Virgínia.
- Certo - concordou Malory afetuosamente. - Pense como seria fácil seguir o caminho espiritual para Glendower se ele gritasse em vez de sussurrar. Você o encontra,
realiza o ritual e segue o caminho até o seu rei.
Nas palavras de Malory, isso parecia inevitável.
Segue o caminho até o seu rei.
Gansey fechou os olhos para se acalmar. Viu uma imagem vagamente cinza de um rei em repouso, as mãos cruzadas sobre o peito, uma espada do lado direito, um copo
à esquerda. Essa figura adormecida era tão estonteantemente importante para Gansey que ele não conseguia começar a compreender ou lhe dar forma. Era algo mais, algo
maior, algo que importava. Algo sem uma etiqueta de preço. Algo conquistado.
- Mas o texto não é muito claro sobre como desempenhar o ritual - admitiu Malory, divagando sobre as esquisitices dos documentos históricos. Gansey já não prestava
muita atenção, e então Malory concluiu: - Vou tentar o ritual no caminho de Lockyer. Depois eu conto como foi.
- Ótimo - disse Gansey. - Nem sei como agradecer.
- Mande lembranças à sua mãe.
- Eu mand...
- Você tem sorte de ainda ter mãe. Quando eu tinha mais ou menos a sua idade, minha mãe foi assassinada pelo sistema de saúde britânico. Ela estava perfeitamente
bem até ser admitida com uma tossinha...
Gansey ouviu com pouca atenção a história sempre repetida de Malory sobre o fracasso do governo em curar o câncer de garganta de sua mãe. Ele soava bastante animado
quando o telefone caiu em silêncio.
Agora Gansey se sentia movido pela caçada; ele precisava falar com alguém antes que o sentimento inconcluso da busca o devorasse. Seria melhor falar com Adam, mas
as chances eram maiores de que Ronan, que variava loucamente entre a insônia e a hiperinsônia, estivesse acordado.
No meio do caminho até o quarto de Ronan, lhe ocorreu que o cômodo estava vazio. Parado no vão escuro da porta, Gansey sussurrou o nome do amigo. Como não obteve
resposta, chamou alto.
O quarto de Ronan não deveria ser aberto, mas Gansey o abriu de qualquer maneira. Colocando a mão sobre a cama, ele a encontrou desfeita e fria, os cobertores jogados
para o lado. Gansey bateu com força na porta de Noah enquanto discava apressadamente o número de Ronan com a outra mão. O telefone tocou duas vezes antes de o correio
de voz dizer simplesmente: "Ronan Lynch".
Gansey cortou a voz gravada no meio, com o coração disparado. Por um longo momento considerou a questão, e então discou outro número. Dessa vez, foi a voz de Adam
que respondeu, em um tom baixo de sono e precaução.
- Gansey?
- O Ronan se mandou.
Adam ficou em silêncio. O fato não era somente que Ronan havia desaparecido, era que ele havia desaparecido após uma briga com Declan. Mas não era fácil deixar o
lar dos Parrish no meio da noite. As consequências de ser apanhado poderiam deixar evidências físicas, e estava ficando quente demais para usar mangas longas. Gansey
se sentiu miserável por pedir isso a Adam.
Na rua, um pássaro noturno deu um silvo alto e penetrante. A pequena réplica de Henrietta parecia sinistra à meia-luz, os carros de metal injetado estacionados nas
ruas como se tivessem parado há pouco. Gansey sempre achara que, à noite, qualquer coisa podia acontecer. À noite, Henrietta era como magia, e a magia parecia ser
algo terrível.
- Vou dar uma olhada no parque - suspirou Adam finalmente. - E, hum... na ponte, eu acho.
Adam desligou tão suavemente que levou um momento para Gansey perceber que a conexão havia terminado. Ele pressionou a ponta dos dedos nos olhos e foi assim que
Noah o encontrou.
- Você vai procurar o Ronan? - perguntou. Ele parecia pálido e frágil na luz amarela que vinha do quarto atrás dele, a pele embaixo dos olhos mais escura que qualquer
coisa. Ele parecia menos Noah do que a sugestão de Noah. - Procure na igreja.
Noah não disse que iria junto, e Gansey não pediu que ele fosse. Seis meses antes, Noah encontrara Ronan em uma poça de sangue, e assim ele estava dispensado de
ter de ver aquilo de novo. Noah não fora com Gansey até o hospital depois, e Adam havia sido pego tentando escapar, de maneira que Gansey fora o único a acompanhar
Ronan quando este recebera os pontos. Isso fora há muito tempo, mas não parecia tempo algum.
Às vezes, Gansey sentia como se sua vida fosse feita de uma dúzia de horas que ele nunca conseguiria esquecer.
Ele colocou o casaco e saiu para a luz esverdeada do estacionamento gelado. O capô do BMW de Ronan estava frio, o que significava que o motor não havia sido ligado
recentemente. Para onde quer que ele tivesse ido, tinha ido a pé. A igreja, com a agulha iluminada por uma luz amarela sombria, ficava próxima. Assim como o Nino's.
Assim como a velha ponte com a correnteza que passava veloz por baixo.
Ele começou a caminhar. Sua mente era lógica, mas seu coração traiçoeiro gaguejava entre uma batida e outra. Gansey não era ingênuo; não tinha ilusões que um dia
recuperaria o Ronan Lynch que conhecera antes de Niall morrer. Mas ele não queria perder o Ronan Lynch que tinha agora.
Apesar da forte luz do luar, a entrada para a Santa Inês se encontrava na completa escuridão. Tremendo um pouco, Gansey colocou a mão sobre o grande anel de ferro
que abria a porta da igreja, inseguro se ela estaria destrancada. Ele estivera apenas uma vez na Santa Inês, na Páscoa, porque o irmão mais novo de Ronan, Matthew,
havia pedido que todos fossem. Ele não imaginaria que a igreja era um lugar onde se encontrasse alguém como Ronan no meio da noite. Pensando bem, não teria identificado
Ronan como um fiel de forma alguma. E, no entanto, todos os irmãos Lynch iam à Igreja de Santa Inês todos os domingos. Por uma hora, eles conseguiam se sentar um
ao lado do outro em um banco de igreja, mesmo que não conseguissem se encarar na mesa de um restaurante.
No arco escuro da entrada, Gansey pensou: O Noah é bom em encontrar coisas, e esperou que o amigo estivesse certo a respeito de Ronan.
A igreja envolveu Gansey em um bolsão de ar cheirando a incenso, um cheiro raro o bastante para instantaneamente evocar meia dúzia de memórias de casamentos, funerais
e batismos familiares, todos eles no verão. Como era estranho que uma estação do ano pudesse ser mantida presa em uma inspiração de ar enclausurado.
- Ronan? - A palavra foi sugada no espaço vazio, ecoando pelo teto, de maneira que apenas a própria voz lhe respondeu.
A luz baixa da nave lateral formava arcos com as sombras alongadas até o alto. A escuridão e a incerteza apertaram as costelas de Gansey, e ele ficou sem ar, lembrando
de um remoto dia de verão, mais precisamente da tarde em que, pela primeira vez, ele se dera conta da existência de uma coisa chamada magia.
E lá estava Ronan, estendido sobre um dos bancos na sombra, um braço pendurado para fora, o outro enviesado sobre a cabeça. Seu corpo era uma porção mais escura
de negro em um mundo já negro. Ele não se movia.
Gansey pensou: Não hoje. Por favor, não deixe que seja hoje.
Ele se aproximou do banco em que Ronan estava, colocou a mão sobre o ombro do amigo, como se pudesse acordá-lo, rezando para que, ao fazer isso, ele acordasse de
verdade. O ombro estava quente debaixo de sua mão, e ele cheirava a álcool.
- Acorda, cara - disse ele. As palavras não soaram brandas, embora sua intenção fosse essa.
O ombro de Ronan se mexeu, e ele virou o rosto. Por um breve momento, Gansey teve o pensamento súbito de que era tarde demais, de que Ronan estava realmente morto
e o corpo dele acordara somente porque Gansey lhe havia comandado. Mas então os olhos brilhantes e azuis de Ronan se abriram, e o momento se dissipou.
Gansey soltou um suspiro.
- Seu sacana.
Ronan disse simplesmente:
- Eu não conseguia sonhar. - Então, percebendo a expressão chocada de Gansey, acrescentou: - Eu prometi que não ia acontecer de novo.
Gansey tentou novamente manter a voz branda, mas fracassou:
- Mas você é um mentiroso.
- Acho que você está me confundindo com meu irmão - respondeu Ronan.
A igreja estava repleta da presença divina à volta deles. Parecia mais iluminada agora que os olhos de Ronan estavam abertos, como se o prédio estivera dormindo
também.
- Quando eu disse que não queria ver você bêbado em Monmouth, eu não quis dizer que queria ver você bêbado em outro lugar.
Ronan, com a língua apenas ligeiramente enrolada, respondeu:
- O sujo rindo do mal lavado.
Com dignidade, Gansey disse:
- Eu bebo, não fico bêbado.
Os olhos de Ronan baixaram para algo que ele segurava próximo do peito.
- O que é isso? - perguntou Gansey.
Os dedos de Ronan se fecharam em torno de um objeto negro. Quando Gansey estendeu a mão para soltar o aperto do amigo, sentiu algo quente e vivo, um pulso rápido
na ponta dos dedos. Então abriu a mão de Ronan à força.
- Meu Deus - exclamou Gansey, tentando entender o que sentira. - Isso é um pássaro?
Ronan se sentou lentamente, ainda segurando a ave junto a si. Outra lufada de bafo cheirando a álcool derivou na direção de Gansey.
- Um corvo. - Houve uma longa pausa enquanto Ronan observava a própria mão. - Talvez uma gralha. Mas duvido. Eu... é, duvido muito. Corvus corax.
Mesmo bêbado, Ronan sabia o nome em latim para o corvo comum.
E não era apenas um corvo, percebeu Gansey. Era um pequeno órfão, o bico sem penas ainda com o sorriso de bebê, as asas dias e noites distantes do voo. Ele não tinha
certeza se gostaria de tocar algo que parecia tão facilmente exterminável.
O corvo era o pássaro de Glendower. O rei Corvo, como era chamado, vinha de uma longa linhagem de reis associados ao pássaro. Rezava a lenda que Glendower podia
falar com corvos e vice-versa. Era apenas uma das razões por que Gansey estava em Henrietta, uma cidade conhecida por seus corvos. Ele sentiu alfinetadas na pele.
- De onde ele veio?
Os dedos de Ronan eram uma gaiola compassiva em torno do peito do pássaro. Ele não parecia real em suas mãos.
- Eu encontrei.
- As pessoas encontram moedas - respondeu Gansey. - Ou chaves de carros. Ou trevos de quatro folhas.
- E corvos - disse Ronan. - Você está com inveja só porque - nesse ponto ele teve de parar para concatenar os pensamentos, que se arrastavam por causa da bebida
- não encontrou um também.
O pássaro tinha defecado por entre os dedos de Ronan e sobre o banco ao lado dele. Segurando o filhotinho em uma mão, ele usou o periódico da igreja para limpar
a maior parte da sujeira da madeira. Depois, ofereceu o papel sujo para Gansey. Os pedidos de rezas semanais estavam salpicados de branco.
Gansey só pegou o papel porque não confiava que Ronan se importaria em procurar um lugar para jogá-lo fora. Com algum desgosto, perguntou:
- E se eu implementar uma política proibindo bichos de estimação no apartamento?
- Olha, cara - respondeu Ronan, com um sorriso selvagem -, você não pode simplesmente expulsar o Noah assim.
Gansey levou um momento para perceber que Ronan tinha contado uma piada, e, quando isso aconteceu, era tarde demais para rir. De qualquer maneira, ele sabia que
deixaria o pássaro voltar com eles para a Indústria Monmouth, pois tinha visto a maneira possessiva como Ronan o segurava. O corvo já o olhava obediente, o bico
aberto cheio de esperança, dependente.
Gansey cedeu:
- Vamos. Vamos pra casa. Levanta.
Enquanto Ronan se colocava de pé desequilibradamente, o corvo se encolheu em suas mãos, tornando-se todo bico e corpo. Ele disse:
- Acostume-se com a turbulência, sacaninha.
- Você não pode dar esse nome para ele.
- O nome dela é Motosserra - respondeu Ronan, sem olhar para o amigo. Então: - Noah. Você está sinistro parado aí no fundo.
Na entrada obscurecida e profunda da igreja, Noah parou silenciosamente. Por um segundo, só se via seu rosto pálido; a roupa escura estava invisível e seus olhos
eram abismos em cujo fundo havia algo incompreensível. Então ele deu um passo na direção da luz, amarrotado e familiar como sempre.
- Achei que você não vinha - disse Gansey.
O olhar de Noah passou ao largo deles na direção do altar, então para o teto escuro. Ele disse com sua bravura típica:
- O apartamento estava sinistro.
- Esquisito - observou Ronan, mas Noah não pareceu se importar.
Gansey abriu a porta para a calçada. Nenhum sinal de Adam. A culpa por tê-lo chamado por um falso alarme estava começando a tomar conta dele. No entanto... Gansey
não estava inteiramente certo de que se tratava de um falso alarme. Algo tinha acontecido, mesmo que ele não soubesse ainda o quê.
- Onde você disse que encontrou o pássaro mesmo?
- Na minha cabeça. - O riso de Ronan era a voz aguda de um chacal.
- Lugar perigoso - comentou Noah.
Ronan tropeçou, com o corpo embotado pelo álcool. O corvo soltou um ruído débil, mais percussor do que vocal. Ele respondeu:
- Não para uma Motosserra.
De volta à rua na noite dura primaveril, Gansey inclinou a cabeça para trás. Agora que ele sabia que Ronan estava bem, podia ver que Henrietta à noite era um belo
lugar, uma colcha de retalhos bordada com galhos de árvores escuros.
Entre todos os pássaros, Ronan apareceu com um corvo.
Gansey não acreditava em coincidências.
Whelk não estava dormindo.
No passado, quando ele fora um estudante em Aglionby, o sono vinha fácil - e por que não viria? Assim como Czerny e o resto de seus colegas, ele dormia duas, quatro
ou seis horas em dias da semana, vivia acordado até tarde e levantava cedo, e então realizava maratonas de sono no fim de semana. E, quando dormia, eram horas de
sono fácil, sem sonhos. Não, ele sabia que isso era falso. Todo mundo sonhava, só que alguns esqueciam.
Agora, no entanto, Whelk raramente fechava os olhos por mais que algumas horas seguidas. Ele rolava nos lençóis. De uma hora para outra, sentava-se ereto, acordado
por sussurros. Whelk cochilava no sofá de couro, o único móvel que o governo não havia lhe tomado. Seus padrões de sono e energia pareciam ditados por algo maior
e mais poderoso que ele mesmo, indo e vindo como uma maré incerta. Tentativas de mapeá-lo o deixavam frustrado: ele parecia mais acordado na lua cheia e após tempestades,
mas, fora isso, era difícil prever. Em sua mente, Whelk imaginava que era o pulso magnético da própria linha ley, de certa maneira convidada para o seu corpo pela
morte de Czerny.
A carência de sono tornava sua vida algo imaginário, seus dias, uma fita flutuando sem destino na água.
A lua estava quase cheia e não fazia muito que chovera, então Whelk estava acordado.
Ele estava sentado de camiseta e cueca samba-canção na frente da tela do computador, operando o mouse com a produtividade desorganizada e incerta dos fatigados.
Subitamente, vozes incontáveis lhe invadiram a mente, sussurrando e sibilando. Soavam como a estática que zunia sobre as linhas telefônicas nas proximidades da linha
ley. Como o vento antes de uma tempestade, como as próprias árvores conspirando. Como sempre, Whelk não conseguia distinguir nenhuma palavra e não conseguia entender
a conversa. Mas compreendeu uma coisa: algo estranho tinha acontecido havia pouco em Henrietta, e as vozes não conseguiam parar de falar sobre o assunto.
Pela primeira vez em anos, Whelk buscou os velhos mapas do condado, guardados no pequeno armário embutido no corredor. Ele não tinha mesa, e o balcão estava cheio
de embalagens abertas de lasanha congelada e pratos com cascas de pão dormido, de maneira que ele abriu os mapas no banheiro. Uma aranha deslizou quando ele aplanou
um mapa contra a superfície da banheira.
Czerny, acho que você está em um lugar melhor do que eu.
Mas ele não acreditava realmente nisso. Whelk não fazia ideia do que havia acontecido com a alma ou com o espírito de Czerny, ou como quer que se queira chamar o
que Czerny fora. Contudo, se Whelk havia sido amaldiçoado com vozes sussurrantes por sua parte no ritual, o destino de Czerny devia ter sido pior.
Whelk se afastou e cruzou os braços, estudando as dezenas de marcas e anotações que havia feito nos mapas ao longo de sua pesquisa. A caligrafia impossível de Czerny,
sempre em vermelho, apontava níveis de energia ao longo do caminho possível da linha ley. Na época, havia sido um jogo, uma caça ao tesouro. Um jogo pela glória.
Fora verdade? Não importava. Era um exercício caro em estratégia, com a costa leste como o campo de jogo. Procurando por padrões, Whelk havia meticulosamente traçado
círculos em torno de áreas de interesse em um dos mapas topográficos. Um círculo em torno de um antigo capão de freixos onde os níveis de energia eram sempre altos.
Um círculo em torno de uma igreja arruinada que a vida selvagem parecia evitar. Um círculo em torno do lugar em que Czerny havia morrido.
É claro, ele havia desenhado o círculo antes de Czerny morrer. O lugar, um grupo sinistro de carvalhos, havia sido notado graças a palavras antigas gravadas em um
dos troncos. Latim. A mensagem parecia incompleta e difícil de traduzir, e o melhor palpite de Whelk foi "o segundo caminho". Os níveis de energia pareciam promissores
ali, embora inconsistentes. Então, certamente aquilo estava na linha ley.
Czerny e Whelk tinham retornado uma meia dúzia de vezes, fazendo leituras (próximos do círculo, havia seis números diferentes anotados por Czerny), cavando a terra
em busca de artefatos e fazendo vigílias durante a noite por sinais de atividades sobrenaturais. Whelk havia construído sua varinha de radiestesia mais complicada
e sensível até então: dois cabos de metal curvados em um ângulo de noventa graus e inseridos em tubo de metal, de maneira que pudessem oscilar livremente.
Mas ela seguia irregular, entrando e saindo de sintonia como uma estação de rádio distante. As linhas precisavam ser despertas, ter as frequências aprimoradas, o
volume aumentado. Czerny e Whelk fizeram planos para tentar o ritual no bosque de carvalhos. No entanto, não tinham muita certeza do processo. Tudo que Whelk pôde
descobrir foi que a linha adorava reciprocidade e sacrifício, mas isso era frustrantemente vago. Como nenhuma outra informação se apresentou, eles seguiram protelando.
Durante as férias de inverno. Nas férias de primavera. No fim do ano letivo.
Então a mãe de Whelk ligou e disse a ele que seu pai havia sido preso por práticas ilegais nos negócios e sonegação de impostos. O que se descobriu foi que a empresa
estivera negociando com criminosos de guerra, um fato que sua mãe conhecia, que Whelk havia presumido e que o FBI vinha investigando havia anos. Da noite para o
dia, a família perdeu tudo.
A história estava nos jornais no dia seguinte, a quebra catastrófica da fortuna da família Whelk. As duas namoradas de Whelk o deixaram. Bem, a segunda era tecnicamente
de Czerny, então talvez não contasse. O caso se tornou absolutamente público. O playboy da Virgínia, herdeiro da fortuna Whelk, subitamente expulso do dormitório
em Aglionby, excluído da vida social, liberto de qualquer esperança de futuro em uma universidade tradicional, observando seu carro ser guinchado e seu quarto ser
esvaziado das caixas de som e dos móveis.
A última vez em que Whelk olhara para aquele mapa fora parado em seu dormitório, percebendo que a única coisa que sobrara era uma nota de dez dólares no bolso. Nenhum
dos cartões de crédito servia para mais nada.
Czerny havia chegado em seu Mustang vermelho. Ele não saíra do carro.
- Agora você é um pobretão? - perguntara. Czerny não tinha realmente senso de humor. Às vezes ele simplesmente dizia coisas que por acaso eram engraçadas. Whelk,
parado em meio às ruínas de sua vida, não riu dessa vez.
A linha ley não era mais um jogo.
- Abra a porta - Whelk havia dito para ele. - Vamos fazer o ritual.
Uma hora e vinte e três minutos antes de o despertador de Blue tocar, ela foi acordada pelo barulho da porta da frente batendo. A luz cinza do amanhecer era filtrada
pela janela do quarto, formando sombras difusas das folhas pressionadas contra o vidro. Ela tentou não se ressentir daquela uma hora e vinte e três minutos de sono
perdidos.
Passos começaram a subir a escada. Blue ouviu a voz de sua mãe.
- ... estava acordada esperando você.
- Algumas coisas são mais bem feitas à noite. - Aquela era Neeve. Apesar de sua voz ser mais baixa que a de Maura, era mais clara, de certa maneira, e se projetava
bem. - Henrietta é um lugar e tanto, não é?
- Eu não pedi para você olhar para Henrietta - respondeu Maura, em um sussurro exagerado, que soou... protetor.
- É difícil não olhar. A cidade clama por isso - disse Neeve. Suas palavras seguintes ficaram perdidas em meio ao ruído da escada rangendo.
A resposta de Maura ficou obscurecida à medida que ela também começou a subir a escada, mas soou como:
- Eu prefiro que você deixe a Blue fora disso.
Blue ficou imóvel.
Neeve disse:
- Eu só estou te contando o que estou descobrindo. Se ele desapareceu na mesma época que... É possível que eles tenham alguma conexão. Você não quer que ela saiba
quem ele é?
Mais um degrau chiou. Blue pensou: Por que elas não conseguem conversar sem fazer a escada ranger toda hora?
Maura disparou:
- Não vejo como isso facilitaria as coisas.
Neeve murmurou uma resposta.
- Essa história está saindo do nosso controle - disse sua mãe. - Foi só digitar o nome dele em um site de busca, e agora...
Blue forçou os ouvidos. Ela tinha a impressão de que não ouvia a mãe usar um pronome masculino há bastante tempo, exceto para se referir a Gansey.
Era possível, Blue pensou após um bom tempo, que Maura se referisse ao pai dela. Nenhuma das conversas que a filha tentara ter com ela havia lhe rendido qualquer
informação sobre ele, apenas respostas bem-humoradas e sem sentido ("Ele é o Papai Noel. Ele foi um ladrão de bancos. Ele está em órbita"), que mudavam toda vez
que ela perguntava. Na cabeça de Blue, ele era uma figura heroica que tivera de desaparecer por causa de um passado trágico. Ela gostava de imaginá-lo olhando furtivamente
sobre a cerca do quintal, observando orgulhosamente a filha estranha sonhando acordada debaixo da faia.
Blue tinha um carinho enorme pelo pai, levando-se em consideração que nunca o conhecera.
Em algum lugar nas profundezas da casa, uma porta se fechou, e então houve mais uma vez aquele tipo de silêncio da noite que é difícil de perturbar. Após um longo
momento, Blue estendeu o braço para a caixa de plástico que servia como mesinha de cabeceira, pegou o diário e descansou uma mão sobre a capa de couro fria. A superfície
lembrava a casca fria e suave da faia atrás da casa. Como quando a tocava, Blue se sentia ao mesmo tempo confortada e ansiosa, serena e motivada a agir.
"Henrietta é um lugar e tanto", havia dito Neeve. O diário parecia concordar. Um lugar para o quê, ela não tinha certeza.
Blue não queria dormir, mas dormiu, por mais uma hora e doze minutos. Não foi o despertador que a acordou dessa vez também. Foi um único pensamento gritado no cérebro:
Hoje é o dia em que Gansey vem para a leitura.
Envolvida na rotina diária de se aprontar para a escola, a conversa entre Maura e Neeve pareceu mais habitual do que antes. Mas o diário continuava igualmente mágico.
Sentada na beirada da cama, Blue tocou uma das anotações.
O rei ainda dorme sob uma montanha, e em torno dele estão reunidos seus guerreiros e seus rebanhos e suas riquezas. Ao lado da mão direita está o seu copo, cheio
de possibilidades. No peito aninha-se a espada, esperando, também, para despertar. Afortunada é a alma que encontrar o rei e for brava o suficiente para acordá-lo,
pois o rei conceder-lhe-á um favor, tão maravilhoso quanto possa ser imaginado por um mortal.
Ela fechou as páginas. Parecia que dentro dela havia uma Blue maior, terrivelmente curiosa, prestes a rebentar para fora da Blue menor, mais sensata, que a continha.
Por um longo momento, ela deixou o diário repousar nas pernas, a capa fria contra as palmas.
Um favor.
Se ela tivesse direito a um favor, o que pediria? Não precisar se preocupar com dinheiro? Saber quem foi seu pai? Viajar pelo mundo? Ver o que sua mãe via?
O pensamento correu por seu cérebro novamente:
Hoje é o dia em que Gansey vem para a leitura.
Como será ele?
Talvez, se ela estivesse diante do rei adormecido, pediria para o rei salvar a vida de Gansey.
- Blue, espero que você esteja acordada! - gritou Orla do andar de baixo. Blue precisava sair logo se quisesse fazer o caminho de bicicleta até a escola a tempo.
Em poucas semanas, seria um deslocamento desconfortavelmente quente.
Quem sabe ela pediria um carro ao rei adormecido.
Pena que eu não possa simplesmente faltar à aula hoje.
Não que Blue temesse a escola; era apenas como... um padrão que a conduzia. E não que ela sofresse bullying; ela não levara muito tempo para descobrir que, quanto
mais esquisita fosse por fora - deixando que os outros alunos percebessem que ela não era como eles, logo de saída -, menor a probabilidade de que implicassem com
ela ou a ignorassem. O fato era que, ao chegar ao ensino médio, ser estranha e ter orgulho disso era uma vantagem. Subitamente descolada, ela poderia ter quantos
amigos quisesse. E ela tentara. Mas o problema de ser estranha era que o resto do mundo era normal.
Assim, as mulheres de sua família seguiam sendo suas amigas mais próximas, a escola seguia como um dever e Blue seguia secretamente esperançosa de que, em algum
lugar no mundo, houvesse outras pessoas esquisitas como ela. Mesmo que pelo visto não estivessem em Henrietta.
Era possível, ela pensou, que Adam também fosse esquisito.
- Blue! - berrou Orla novamente. - Escola!
Com o diário seguro firmemente contra o peito, Blue se dirigiu para a porta pintada de vermelho no fim do corredor. No caminho, teve de passar pelo frenesi de atividades
no Quarto do Telefone/Costura/Gato e travar a furiosa batalha pelo banheiro. O quarto da porta vermelha pertencia a Persephone, uma das duas melhores amigas de Maura.
A porta estava entreaberta, mas mesmo assim Blue bateu suavemente. Persephone dormia pouco, mas com energia; seus gritos e chutes no meio da noite eram a garantia
de que ela jamais teria de dividir o quarto com alguém. Isso também significava que ela procurava dormir quando podia; Blue não queria acordá-la.
A voz pequena e suspirada de Persephone disse:
- Está desocupada. Quer dizer, aberta.
Blue abriu a porta e encontrou Persephone sentada na mesa de cartas ao lado da janela. Ao serem questionadas, as pessoas costumavam se lembrar do cabelo de Persephone:
uma juba longa e ondulada, quase branca, que lhe chegava à parte de trás das coxas. Se conseguissem passar do cabelo, às vezes se lembravam de seus vestidos - criações
elaboradas e frívolas - ou blusas excêntricas. E, se conseguissem passar disso, sentiam-se perturbadas pelos olhos dela, verdadeiros espelhos negros, as pupilas
escondidas na escuridão.
Persephone segurava um lápis com um aperto estranhamente infantil. Quando viu Blue, franziu o cenho de maneira questionadora.
- Bom dia - disse Blue.
- Bom dia - ecoou Persephone. - É cedo demais. Minhas palavras não começaram a trabalhar ainda, por isso só vou usar aquelas que eu sei que funcionam com você.
Ela girou uma mão de um modo vago. Blue tomou isso como um sinal para encontrar um lugar para se sentar. A maior parte da cama estava coberta por estranhas polainas
bordadas e meias-calças quadriculadas disputando lugar, mas ela encontrou um espaço para recostar o traseiro na beirada. O quarto inteiro cheirava a algo familiar,
como laranjas, ou talco de bebê, ou talvez um livro didático novo.
- Dormiu mal? - perguntou Blue.
- Mal - ecoou Persephone novamente. E depois: - Ah, hum... não é bem verdade. Terei de usar minhas próprias palavras no fim das contas.
- No que você está trabalhando?
Frequentemente, Persephone estava trabalhando em sua eterna tese de doutorado, mas como era um processo que parecia exigir músicas irritantes e lanches frequentes,
ela raramente o fazia na correria da manhã.
- Apenas uma coisinha - disse Persephone tristemente. Ou talvez pensativamente. Era difícil dizer a diferença, e Blue não gostava de perguntar. Persephone tinha
um amante ou um marido que estava morto ou no exterior (era difícil saber detalhes quando se referia a Persephone), e ela parecia sentir saudades dele, ou pelo menos
perceber que ele tivesse partido, o que era notável para ela. E, de novo, Blue não gostava de perguntar a respeito. De Maura, Blue havia herdado uma aversão em ver
pessoas chorarem, de modo que nunca gostava de conduzir uma conversa que pudesse resultar em lágrimas.
Persephone virou o papel para cima para que Blue pudesse vê-lo. Ela tinha acabado de escrever a palavra "três" três vezes, em três caligrafias diferentes, e poucos
centímetros abaixo havia copiado uma receita de torta de banana com creme.
- Coisas importantes acontecem em trios? - sugeriu Blue. Era um dos ditos favoritos de Maura.
Persephone sublinhou "colher de sopa" próximo da palavra "baunilha" na receita. Sua voz era distante e vaga.
- Ou em septetos. É muita baunilha. Talvez seja um erro de digitação.
- Talvez - repetiu Blue.
- Blue! - gritou Maura. - Você não foi ainda?
Ela não respondeu, pois Persephone não gostava de ruídos agudos, e gritar de volta parecia se qualificar como tal. Em vez disso, disse:
- Eu encontrei uma coisa. Se eu lhe mostrar, promete que não conta para ninguém?
Mas era uma pergunta boba. Persephone era reservada, mesmo quando não se tratava de um segredo.
Quando Blue lhe passou o diário, Persephone perguntou:
- Devo abrir?
Blue agitou uma mão. Sim, e rapidamente. Ela ficou irrequieta na cama enquanto Persephone o folheava, sem nenhuma expressão.
Por fim, Blue perguntou:
- E aí?
- É muito bacana - disse Persephone educadamente.
- Não é meu.
- Bem, isso eu sei.
- Alguém esqueceu no Ni... Espere. Por que você disse isso?
Persephone folheava o diário para frente e para trás. Sua voz infantil e delicada era tão suave que Blue tinha de segurar a respiração para ouvi-la.
- É claramente o diário de um garoto. Além disso, ele está levando uma eternidade para encontrar essa coisa. Você já teria encontrado.
- Blue! - vociferou Maura. - Não vou gritar de novo!
- O que você acha que eu devo fazer? - perguntou a garota.
Como Blue havia feito, Persephone correu os dedos sobre as diferentes texturas dos papéis. Ela percebeu que Persephone estava certa; se o diário tivesse sido seu,
ela teria simplesmente copiado as informações de que precisava, em vez de todos aqueles recortes e colagens. Os fragmentos eram intrigantes, mas desnecessários;
quem quer que tivesse produzido o diário devia amar a caçada em si, o processo de pesquisa. As propriedades estéticas do diário não podiam ser acidentais; era uma
obra de arte acadêmica.
- Bem - disse Persephone. - Primeiro você precisa descobrir de quem é esse diário.
Os ombros de Blue desabaram. Era uma resposta incansavelmente apropriada, que ela teria esperado de Maura ou Calla. É claro, ela sabia que tinha de devolvê-lo para
o dono. Mas então para onde iria a graça daquilo tudo?
Persephone acrescentou:
- Depois, acho bom você descobrir se isso é verdade, não é?
Adam não estava esperando na fila de caixas de correio naquela manhã.
A primeira vez que Gansey fora buscar Adam, havia passado da entrada do bairro. Melhor dizendo, havia usado aquele trecho como retorno ao caminho por onde viera.
A estrada não passava de dois sulcos ao longo de um campo - mesmo acesso era uma palavra muito grandiosa para ela -, e era impossível acreditar, à primeira vista,
que levasse a uma única casa, ainda menos a um aglomerado delas. Assim que Gansey encontrara a casa, as coisas pioraram ainda mais. Ao enxergar o blusão da Aglionby
de Gansey, o pai de Adam abrira fogo, disparando todos os cilindros. Por semanas após o incidente, Ronan chamara Gansey de "R.F. de M.", R de riquinho, F de frouxo
e M de outra coisa.
Agora Adam encontrava Gansey onde o asfalto terminava.
Mas não havia ninguém esperando perto do aglomerado de caixas de correio. Só havia um grande espaço vazio. Aquela parte do vale era interminavelmente plana em comparação
ao outro lado de Henrietta, e, de certa maneira, aquele campo estava sempre mais seco e incolor que o resto do vale, como se tanto as principais estradas quanto
a chuva o evitassem. Mesmo às oito da manhã, não havia uma sombra à vista.
Gansey olhou ao longo do acesso ressecado e tentou o telefone da casa, mas ele só tocou. Seu relógio dizia que ele tinha dezoito minutos para percorrer os quinze
minutos de viagem até a escola.
Ele esperou. O motor balançava o carro com o Pig em ponto morto. Gansey observou a alavanca da marcha chacoalhar. Seus pés estavam assando em virtude da proximidade
do V8. A cabine toda estava começando a feder a gasolina.
Ele ligou para a Indústria Monmouth. Noah atendeu, soando como se tivesse sido acordado.
- Noah - disse Gansey alto, para ser ouvido sobre o motor. Noah o havia deixado esquecer o diário no Nino's, e a ausência daquele objeto era surpreendentemente perturbadora.
- Você lembra do Adam dizer que tinha de trabalhar depois da escola hoje?
Nos dias em que Adam tinha de trabalhar, ele muitas vezes ia de bicicleta para a escola.
Noah resmungou negativamente.
Dezesseis minutos até a aula.
- Me liga se ele ligar - disse Gansey.
- Eu não vou estar aqui - respondeu Noah. - Já estou quase saindo.
Gansey desligou e tentou a casa novamente sem sucesso. A mãe de Adam talvez estivesse ali, mas não atendia, e ele não tinha realmente tempo para voltar para o bairro
e investigar.
Ele podia faltar à aula.
Gansey jogou o telefone no banco do passageiro.
- Vamos lá, Adam.
De todos os lugares que Gansey havia estudado em regime de internato - e ele havia estudado em muitos em seus quatro anos de perambulação como menor de idade -,
a Academia Aglionby era a favorita de seu pai, o que significava que era a que tinha a maior probabilidade de encaminhar os estudantes para uma universidade de prestígio.
Ou para o Senado. Isso significava também, entretanto, que era a escola mais difícil em que Gansey já estudara. Antes de Henrietta, ele havia feito da busca por
Glendower sua principal atividade, e a escola estivera em um distante segundo lugar. Gansey era inteligente e bom aluno, então não fora problema faltar às aulas
ou empurrar as tarefas de casa para o fim da lista. Mas, em Aglionby, não havia como ter notas baixas. Se elas caíssem abaixo de B, você estava na rua. E Dick Gansey
II havia deixado claro para o filho que, se ele não conseguisse se virar em uma escola particular, estaria fora do testamento.
Ele havia dito isso de forma amigável, diante de um prato de fettucine.
Gansey não podia faltar à aula. Não após ter deixado de ir à escola no dia anterior. Esse era o cerne da questão. Catorze minutos para fazer a viagem de quinze minutos
para a escola, e Adam não o estava esperando.
Ele sentiu o velho temor como um calafrio nos pulmões.
Não entre em pânico. Você estava errado sobre o Ronan na noite passada. Você precisa parar com isso. A morte não está tão próxima quanto você pensa.
Desanimado, Gansey tentou o telefone de casa uma vez mais. Nada. Ele precisava ir. Adam devia ter saído de bicicleta, devia ter de trabalhar, tinha seus afazeres
e se esqueceu de avisá-lo. O acesso sulcado para o bairro ainda estava vazio.
Vamos lá, Adam.
Ele secou as mãos na calça, colocou-as de volta no volante e partiu para a escola.
Gansey não teve como ver se Adam tinha chegado a Aglionby até o terceiro período, quando ambos tinham latim. Essa era, inexplicavelmente, a única aula que Ronan
nunca perdia. Ronan era o líder da turma em latim. Ele estudava de maneira pouco entusiasmada, mas incansavelmente, como se sua vida dependesse dessa matéria. Depois
dele vinha Adam, o pupilo mais destacado de Aglionby, o primeiro em todas as outras matérias. Assim como Ronan, Adam estudava incansavelmente, porque seu futuro
realmente dependia disso.
Gansey preferia francês. Ele dissera a Helen que havia muito pouco proveito em uma língua que não podia ser usada para traduzir um cardápio, mas, realmente, o francês
era mais fácil para ele; sua mãe falava um pouco. Ele havia se resignado originalmente a estudar latim a fim de traduzir textos históricos para a pesquisa sobre
Glendower, mas a proficiência de Ronan na língua lhe permitiu relaxar de qualquer urgência no estudo da disciplina.
As aulas de latim aconteciam na Borden House, uma construção de madeira pequena do outro lado do Welch Hall, o principal prédio acadêmico. Gansey caminhava apressado
pelo gramado central quando Ronan apareceu, batendo em seu braço. Os olhos denunciavam noites e mais noites de insônia.
Ronan sussurrou:
- Onde está o Parrish?
- Ele não veio comigo hoje - disse Gansey, cada vez mais desanimado. Ronan e Adam tinham o segundo período juntos. - Você não o viu ainda?
- Ele não estava na aula.
Atrás de Gansey, alguém bateu em suas costas e disse:
- E aí, Gansey! - seguindo em frente. Ele ergueu três dedos sem muito entusiasmo, o sinal da equipe de remo.
- Eu tentei ligar para ele em casa - disse.
Ronan respondeu:
- Bem, o Garoto Pobre precisa de um celular.
Alguns meses antes, Gansey havia se oferecido para comprar um celular para Adam, e, ao fazer isso, começara a briga mais longa que eles já tiveram, uma semana de
silêncio que se resolvera somente quando Ronan fez algo mais ofensivo do que qualquer um dos dois conseguiria fazer.
- Lynch!
Gansey olhou na direção da voz; Ronan não o fez. O dono da voz estava a meio caminho no gramado, difícil identificá-lo naquela profusão homogênea de uniformes.
- Lynch! - a chamada veio de novo. - Vou acabar com você.
Ainda assim Ronan não olhou. Ajustou a alça da mochila no ombro e continuou andando a passos largos pela grama.
- O que foi isso? - demandou Gansey.
- Algumas pessoas não sabem perder - respondeu Ronan.
- Era o Kavinsky? Não me diga que você andou tirando racha de novo.
- Não pergunte, então.
Gansey pensou se podia obrigar Ronan a seguir um toque de recolher. Ou se deveria largar o remo para passar mais tempo com ele às sextas-feiras - ele sabia que era
quando Ronan se metia em confusões com o BMW. Talvez ele pudesse convencer Ronan a...
Ronan ajustou a alça no ombro de novo, e dessa vez Gansey a examinou mais atentamente. Aquela mochila era visivelmente maior que a que ele costumava usar, e Ronan
a carregava com cuidado, como se pudesse escapar algo de dentro dela.
Gansey perguntou:
- Por que você está carregando essa mochila? Meu Deus, você está com aquele pássaro aí dentro, não é?
- Ele precisa ser alimentado de duas em duas horas.
- Como é que você sabe?
- Internet, Gansey. - Ronan abriu a porta para a Borden House; tão logo eles transpuseram a soleira, tudo em seu campo de visão estava coberto por um tapete azul-marinho.
- Se você for pego com essa coisa... - Mas Gansey não conseguiu pensar em uma boa ameaça. Qual era a punição por trazer escondido um pássaro vivo para as aulas?
Ele não estava certo se havia um precedente, e concluiu: - Se ele morrer na sua mochila, eu proíbo você de jogar o corpo fora na sala de aula.
- Se ela morrer - corrigiu Ronan. - É fêmea.
- Eu acreditaria nisso se ele tivesse qualquer característica sexual definida. Espero que não tenha gripe aviária ou algo do gênero. - Mas ele não estava pensando
no corvo de Ronan. Estava pensando em por que Adam não estava na aula.
Ronan e Gansey assumiram as carteiras de sempre, no fundo da sala de carpete azul-marinho. Na frente, Whelk escrevia verbos no quadro.
Quando Gansey e Ronan entraram, Whelk parara de escrever no meio de uma palavra: internac... Apesar de não haver razão para pensar que Whelk se preocupasse com a
conversa deles, Gansey teve a estranha impressão de que o pedaço de giz levantado na mão de Whelk era por isso e que o professor de latim havia parado de escrever
só para ouvi-los. A desconfiança de Adam estava começando a passar para ele.
Ronan percebeu o olhar de Whelk e o sustentou de maneira um tanto hostil. Apesar de seu interesse por latim, Ronan havia declarado seu professor um trapalhão socialmente
desastrado no começo do ano, deixando claro que não gostava dele. Como desprezava todo mundo, Ronan não era um bom juiz de caráter, mas Gansey teve de concordar
que havia algo desconcertante a respeito de Whelk. Algumas vezes, Gansey havia tentado conversar com ele sobre história romana, sabendo muito bem o efeito que uma
conversa acadêmica entusiasmada podia ter sobre uma turma apática. Mas Whelk era jovem demais para ser um mentor e velho demais para ser um colega, e Gansey não
conseguiu encontrar um ponto de vista.
Ronan seguiu encarando Whelk. Ele era bom em encarar pessoas. Havia alguma coisa em seu olhar fixo que tirava algo dos outros.
O professor de latim desviou o olhar rapidamente, embaraçado. Tendo lidado com a curiosidade de Whelk, Ronan perguntou:
- O que você vai fazer sobre o Parrish?
- Acho que vou passar lá depois da aula.
- Ele deve estar doente.
Eles olharam um para o outro. Já estamos inventando desculpas para ele, pensou Gansey.
Ronan espiou dentro da mochila de novo. No escuro, Gansey viu o bico do corvo apenas de relance. Normalmente, ele teria se deliciado mais uma vez com a improbabilidade
de Ronan ter encontrado um corvo, mas, com Adam desaparecido, sua busca não parecia mágica - parecia mais anos passados juntando coincidências, e tudo que ele tinha
feito com elas era um manto estranho, pesado demais para carregar, leve demais para oferecer proteção.
- Sr. Gansey, sr. Lynch?
Whelk havia conseguido se manifestar subitamente ao lado da carteira deles. Os dois garotos olharam para o professor. Gansey, educado. Ronan, hostil.
- Você parece ter uma mochila extremamente grande hoje, sr. Lynch - disse Whelk.
- Você sabe o que dizem sobre homens com mochilas grandes - respondeu Ronan. - Ostendes tuum et ostendam meus.*
Gansey não fazia ideia do que o amigo tinha dito, mas ele estava certo, pelo sorriso afetado de Ronan, que não fora algo muito educado.
A expressão de Whelk confirmou a suspeita de Gansey, mas ele simplesmente deu uma batidinha na carteira de Ronan com os nós dos dedos e se afastou.
- Ser um merda em latim não é o caminho para um A - disse Gansey.
O sorriso de Ronan era dourado.
- No ano passado foi.
Na frente da sala, Whelk começou a aula.
Adam não apareceu.
Nota
* Em tradução livre: "Mostre o seu que eu mostro o meu". (N. do T.)
- Mãe, por que a Neeve está aqui? - Blue perguntou.
Assim como a mãe, ela estava de pé sobre a mesa da cozinha. Quando Blue chegara da escola, Maura convocara sua ajuda para trocar as lâmpadas do problemático lustre
de vitral pendurado sobre a mesa. O complicado processo exigia pelo menos três pessoas e tendia a ser protelado até a maioria das lâmpadas se queimar. Blue não se
importava em ajudar. Precisava de algo para distrair a mente da hora da consulta de Gansey. E de Adam não ter ligado. Quando pensou que lhe dera seu telefone na
noite anterior, Blue se sentiu leve e insegura.
- Ela é da família - respondeu Maura com gravidade, pegando energicamente a corrente da instalação enquanto lutava com uma lâmpada teimosa.
- Família que volta para casa no meio da noite?
Maura lançou um olhar carregado para Blue.
- Você nasceu com orelhas maiores do que devia. Ela só está me ajudando a procurar algo enquanto está aqui.
A porta da frente se abriu. Nenhuma delas deu atenção, pois tanto Calla quanto Persephone estavam pela casa em algum lugar. Calla era a menos provável, pois era
uma criatura de hábitos, irascível e sedentária, mas Persephone tendia a ser pega em correntezas esquisitas e a vagar por aí.
Ajustando a maneira de segurar o lustre, Blue perguntou:
- Que tipo de algo?
- Blue.
- Que tipo de algo?
- Um alguém - disse Maura finalmente.
- Que tipo de alguém?
Mas, antes que a mãe tivesse tempo de responder, elas ouviram a voz de um homem:
- Que jeito estranho de se tocar um negócio.
As duas se viraram lentamente. Os braços de Blue ficaram levantados por tanto tempo que pareceram meio elásticos quando ela os baixou. O dono da voz estava parado
na entrada da casa, com as mãos nos bolsos. Não era velho, tinha uns vinte e cinco anos e um cabelo negro emaranhado. Era bonito de uma maneira que exigia um pouco
de trabalho por parte do observador. Todos os traços faciais pareciam um pouquinho grandes demais para o rosto.
Maura olhou de relance para Blue, com uma sobrancelha erguida, e ela ergueu um ombro em resposta. Não parecia que ele estava ali para assassiná-las ou para roubar
algum eletrônico portátil.
- E esse - disse a mãe, largando o lustre - é um jeito muito estranho de entrar na casa de alguém.
- Desculpe - disse o jovem. - Há um aviso ali na frente dizendo que aqui é um ponto comercial.
Havia realmente um aviso na frente, pintado à mão - apesar de Blue não saber pela mão de quem -, em que se lia MÉDIUM. E abaixo: "Apenas com hora marcada".
- Apenas com hora marcada - disse Maura para o homem. Ela fez uma careta em direção à cozinha, onde Blue havia deixado um cesto de roupa limpa com um dos sutiãs
rendados no topo, à vista de todos. Mas Blue se recusou a se sentir culpada. Não era de esperar que homens passassem ao acaso pela cozinha.
O homem disse:
- Bem, então eu gostaria de marcar uma hora.
Uma voz da escada para o vão da porta fez com que os três se voltassem.
- Nós poderíamos fazer uma leitura tripla para você - disse Persephone.
Ela estava parada na base da escada, pequena e pálida, feita em grande parte de cabelo. O homem a encarou, e Blue não sabia se era porque ele estava considerando
a proposta ou porque Persephone era informação demais para assimilar em um primeiro olhar.
- O que é isso? - o homem perguntou finalmente.
Blue levou um momento para perceber que ele se referia a "leitura tripla" e não a Persephone. Maura saltou da mesa, pousando no chão com tamanha força que os copos
no armário tilintaram. Blue desceu mais respeitosamente. Afinal de contas, ela estava segurando uma caixa de lâmpadas.
Maura explicou:
- É quando nós três, Persephone, Calla e eu, lemos as cartas ao mesmo tempo e comparamos nossas interpretações. Ela não oferece isso para qualquer um, viu?
- É mais caro?
- Não se você trocar aquela lâmpada teimosa - disse Maura, secando as mãos no jeans.
- Tudo bem - disse o homem, parecendo irritado com a oferta.
Maura gesticulou para Blue dar uma lâmpada para o homem, então disse:
- Persephone, você chama a Calla?
- Ai, meu Deus - disse Persephone com uma voz pequena, e a voz de Persephone já era bem pequena, de maneira que sua voz pequena era mesmo minúscula, mas ela se virou
e subiu as escadas. Os pés descalços não fizeram ruído algum enquanto ela subia.
Maura olhou para Blue, fazendo uma pergunta com sua expressão. Blue deu de ombros, concordando.
- Minha filha, Blue, vai ficar na sala, se você não se importar. Ela torna a leitura mais clara.
Com um olhar de relance desinteressado para a garota, o homem subiu na mesa, que rangeu um pouco sob seu peso. Ele gemeu enquanto tentava girar a lâmpada teimosa.
- Agora você vê o problema - disse Maura. - Qual é o seu nome?
- Ah - ele disse, dando um puxão na lâmpada. - Podemos deixar essa história anônima?
Maura respondeu:
- Nós somos médiuns, não strippers.
Blue riu, mas o homem não. Ela achou aquilo um tanto injusto da parte dele; talvez a piada fosse ligeiramente de mau gosto, mas era engraçada.
A cozinha subitamente se iluminou quando a lâmpada nova foi atarraxada no lugar. Sem comentários, ele pisou em uma cadeira e então no chão.
- Seremos discretas - prometeu Maura, gesticulando para que ele a seguisse.
Na sala de leitura, o homem olhou em volta com interesse clínico. Seu olhar passou pelas velas, as plantas nos potes, os queimadores de incenso, o candelabro elaborado
da sala de jantar, a mesa rústica que dominava a sala, as cortinas rendadas e, por fim, uma fotografia emoldurada de Steve Martin.
- Assinada - disse Maura com algum orgulho, observando sua atenção. Então: - Ah, Calla.
Calla marchou sala adentro, com as sobrancelhas em fúria por ter sido perturbada. O batom que usava tinha um tom perigoso de ameixa, que fazia de sua boca um diamante
pequeno e franzido sob o nariz pontudo. Calla lançou um olhar cortante para o homem, sondando as profundezas da sua alma e encontrando-a carente. Então apanhou seu
baralho de cartas de uma prateleira ao lado da cabeça de Maura e se deixou cair pesadamente em uma cadeira na ponta da mesa. Atrás dela, Persephone estava parada
no vão da porta, contraindo e abrindo as mãos. Blue se esgueirou apressadamente para uma cadeira na cabeceira da mesa. A sala parecia muito menor do que alguns minutos
antes. Mais por culpa de Calla.
Persephone disse, em um tom de voz afável:
- Sente-se.
E Calla completou, de maneira nem um pouco afável:
- O que você quer saber?
O homem se deixou cair em uma cadeira. Maura pegou outra do lado oposto a ele na mesa, com Calla e Persephone (e o cabelo de Persephone) de cada lado dela. Blue,
como sempre, estava só um pouco distante.
- Eu prefiro não dizer - disse o homem. - Talvez vocês me digam.
O sorriso ameixa de Calla era positivamente diabólico.
- Talvez.
Maura escorregou o baralho de cartas sobre a mesa para o homem e disse para ele embaralhá-lo. Ele o fez com proficiência e pouca inibição. Quando terminou, Persephone
e Calla fizeram o mesmo.
- Você já esteve em uma leitura antes - observou Maura.
Ele fez um ruído vagamente inarticulado de assentimento. Blue podia ver que ele achava que qualquer informação poderia fazer com que elas falseassem a leitura. Ainda
assim, ela não achava que ele era cético. Ele só era cético em relação a elas.
Maura escorregou o baralho na frente do homem. Ela tinha aquele baralho desde que Blue conseguia se lembrar, e as bordas estavam gastas pelo manuseio. Era um baralho
comum de tarô, tão impressionante quanto ela o fazia parecer. Maura escolheu dez cartas e as abriu. Calla fez o mesmo com seu baralho ligeiramente mais inteiro -
ela passara a usá-lo alguns anos atrás após um incidente infeliz que a fizera perder o gosto pelo baralho anterior. A sala estava quieta o suficiente para se ouvir
o ruído das cartas contra a superfície desigual e marcada da mesa de leitura.
Persephone segurou as cartas nas mãos muito longas, encarando o homem durante um momento sugestivo. Por fim, contribuiu com apenas duas cartas, uma no começo e outra
no fim do arranjo. Blue adorava observar Persephone abrir as cartas; o giro límpido do punho e o estalo da carta sempre faziam com que o gesto parecesse um movimento
de prestidigitação ou balé. Até as cartas pareciam de outro mundo. As cartas de Persephone eram ligeiramente maiores do que as de Maura e Calla, e a arte nelas era
curiosa. Linhas compridas e finas e fundos difusos sugeriam as figuras em cada carta; Blue nunca vira um baralho como aquele. Maura uma vez havia dito a Blue que
era difícil fazer perguntas a Persephone cuja resposta você não precisasse absolutamente, de maneira que Blue nunca descobrira de onde viera aquele baralho.
Agora que as cartas estavam dispostas, Maura, Calla e Persephone estudaram a forma delas. Blue lutou para enxergar sobre as cabeças agrupadas. Tentou ignorar que,
muito de perto, o homem tinha o aroma químico opressivo de um gel de banho bastante masculino. Do tipo que costuma vir em frascos pretos e com nomes como Shock,
Excite ou Hit.
Calla foi a primeira a falar. Virou o três de espadas para o homem ver. Na carta dela, as três espadas perfuravam um coração escuro, sangrando, da cor de seus lábios.
- Você perdeu uma pessoa próxima.
O homem olhou para as mãos.
- Eu perdi... - começou, mas considerou antes de terminar - ... muitas coisas.
Maura apertou os lábios. Uma das sobrancelhas de Calla se aproximou do cabelo. Elas lançaram olhares uma para a outra. Blue conhecia as duas bem o suficiente para
interpretar as expressões. A de Maura perguntou: O que você acha? Calla disse: Isso é ruim. Persephone não disse nada.
Maura tocou a ponta do cinco de ouros.
- O dinheiro é uma preocupação - ela observou. Na carta, um homem com uma muleta capengava pela neve sob uma janela de vitral enquanto uma mulher segurava um xale
abaixo do queixo.
Ela acrescentou:
- Por causa de uma mulher.
O olhar do homem era resoluto.
- Meus pais tinham recursos consideráveis. Meu pai se envolveu em um escândalo financeiro. Agora eles estão divorciados e não há mais dinheiro. Não para mim.
Era um jeito estranhamente desagradável de colocar as coisas. Implacavelmente factual.
Maura secou as mãos na calça e gesticulou para outra carta.
- E agora você tem um trabalho tedioso. Você é bom no que faz, mas está cansado disso.
Ele apertou os lábios com a verdade do que fora dito.
Persephone tocou a primeira carta que havia tirado. O cavaleiro de ouros. Um homem de armadura com olhos frios observa um campo no lombo de um cavalo, com uma moeda
na mão. Blue achou que, se olhasse a moeda de perto, poderia ver uma forma nela. Três linhas curvas, um triângulo longo e pontiagudo. A forma do adro da igreja,
do desenho despretensioso de Maura, do diário.
Mas não - quando olhou com mais atenção, era apenas uma estrela de cinco pontas fracamente desenhada. Um pentáculo.
Persephone finalmente falou. Com uma voz fina e precisa, disse para o homem:
- Você está procurando algo.
A cabeça do homem se virou subitamente para ela.
A carta de Calla, ao lado da de Persephone, também era o cavaleiro de ouros. Era incomum que dois baralhos concordassem exatamente. Mais estranho ainda era ver que
a carta de Maura também era o cavaleiro de ouros. Três cavaleiros de olhos frios observavam o campo diante deles.
Três novamente.
Calla disse amargamente:
- Você está disposto a fazer o que for preciso para encontrá-lo. Você está trabalhando nisso há anos.
- Sim - retrucou o homem, surpreendendo a todas com a ferocidade de sua resposta. - Mas quanto tempo mais? Eu vou encontrá-lo?
As três mulheres examinaram as cartas novamente, procurando por uma resposta. Blue olhou também. Talvez ela não tivesse a visão, mas sabia o que as cartas deveriam
significar. Sua atenção foi da Torre, que significava que a vida dele estava prestes a mudar dramaticamente, para a última carta na leitura, o pajem de copas. Blue
olhou de relance para a mãe, que franzia o cenho. Não é que o pajem de copas fosse uma carta ruim; na verdade, era a carta que Maura sempre disse que representava
Blue quando ela estava fazendo uma leitura para si mesma.
"Você é o pajem de copas", Maura havia dito para ela certa vez. "Olhe todo o potencial que ele segura naquela taça. Veja, a figura até se parece com você."
E não havia apenas um pajem de copas naquela leitura. Como o cavaleiro de ouros, ele viera triplicado. Três jovens segurando uma taça cheia de potencial, todos trazendo
o rosto de Blue. A expressão de Maura era extremamente sombria.
Blue sentiu a pele formigando. Subitamente sentiu como se não houvesse fim para os destinos aos quais ela estava vinculada. Gansey, Adam, aquele lugar impossível
de ser visto na tigela de adivinhação de Neeve, aquele homem estranho sentado ao lado dela. Seu coração disparou.
Maura se levantou tão rápido que a cadeira emborcou contra a parede.
- A leitura terminou - disse bruscamente.
O olhar de Persephone se desviou até o rosto de Maura, perplexo, e Calla parecia confusa, mas contente com os indícios de um conflito. Blue não reconheceu o rosto
da mãe.
- Perdão? - disse o homem. - As outras cartas...
- Você a ouviu - disse Calla, ácida. Blue não sabia dizer se Calla também se sentia desconfortável ou se estava só apoiando Maura. - A leitura terminou.
- Saia da minha casa - disse Maura. Então, fazendo um esforço evidente de solicitude: - Agora. Obrigada. Tchau.
Calla abriu caminho para Maura passar como um furacão até a porta da frente. Maura apontou para a entrada.
Levantando-se, o homem disse:
- Estou incrivelmente insultado.
Maura não respondeu. Tão logo ele passou pelo vão da porta, ela a bateu atrás dele. As louças nos armários tilintaram mais uma vez.
Calla foi até a janela, abriu as cortinas e inclinou a testa contra o vidro para vê-lo partir.
Maura andava de um lado para o outro ao longo da mesa. Blue pensou em fazer uma pergunta, mas ficou hesitante. Parecia errado fazer uma pergunta se ninguém mais
estava fazendo.
Persephone disse:
- Que rapaz desagradável.
Calla deixou que as cortinas se fechassem e observou:
- Peguei o número da placa dele.
- Espero que ele nunca encontre o que está procurando - disse Maura.
Recuperando as cartas da mesa, Persephone disse, um tanto pesarosa:
- Ele está fazendo um esforço enorme. Acho que vai encontrar algo.
Maura avançou sobre Blue:
- Blue, se você vir este homem outra vez, mude de direção.
- Não - corrigiu Calla. - Dê-lhe um chute no saco. Depois corra em outra direção.
Helen, a irmã mais velha de Gansey, ligou bem quando ele entrou na estrada de terra que levava à casa dos Parrish. Atender chamadas no Pig era sempre complicado.
O Camaro tinha câmbio manual, para começar, e era tão barulhento quanto uma picape, para terminar. E, entre as duas coisas, havia uma série de problemas de direção,
interferências elétricas e comandos encardidos. O resultado foi que ele mal conseguiu ouvir Helen e quase caiu em uma vala.
- Quando é o aniversário da mamãe? - ela perguntou. Gansey se sentiu ao mesmo tempo contente em ouvir a voz dela e irritado por ser incomodado por algo tão trivial.
Na maior parte do tempo, ele e a irmã se davam bem; os irmãos Gansey eram uma espécie rara e complicada, e não fingiam ser algo que não eram quando estavam juntos.
- Você é a cerimonialista - disse Gansey enquanto um cão irrompia do nada. Ele latia furiosamente, tentando morder os pneus do Camaro. - Datas não deviam estar no
seu campo de conhecimento?
- Isso quer dizer que você não lembra - respondeu Helen. - E eu não sou mais cerimonialista. Bem, meio período. Bem, período integral, mas não todos os dias.
Helen não precisava ser nada. Ela não tinha uma profissão, tinha passatempos que envolviam a vida de outras pessoas.
- Eu lembro - ele disse, tenso. - É 10 de maio.
Um cão mestiço de labrador amarrado na frente da primeira casa uivou tristemente quando ele passou. O outro continuou a se ocupar dos pneus, rosnando no mesmo tom
do motor. Três garotos de camiseta sem manga estavam em um dos pátios atirando em garrafas de leite com armas de chumbinho; eles gritaram: "Ei, Hollywood!" e amavelmente
miraram as armas nos pneus do Pig. Eles fingiam segurar um telefone no ouvido. Gansey sentiu uma pontada peculiar ao ver os três, a amizade entre eles, o pertencimento
a algo, mas não tinha certeza se era pena ou inveja. Por toda parte havia poeira.
Helen perguntou:
- Onde você está? Parece que está no set de um filme do Guy Ritchie.
- Estou indo ver um amigo.
- O malvado ou o caipira pobre?
- Helen.
Ela respondeu:
- Desculpe. Quero dizer o Capitão Frieza ou o Garoto do Trailer?
- Helen.
Adam não vivia em um estacionamento de trailers, tecnicamente, tendo em vista que todas as casas eram pré-fabricadas e de largura dupla. Adam lhe havia contado que
o último dos trailers tinha sido removido alguns anos atrás, mas o dissera ironicamente, dando a entender que dobrar a largura dos trailers não mudava muita coisa.
- O papai os chama de coisas piores - disse Helen. - A mamãe disse que um dos seus livros esquisitos da Nova Era foi entregue lá em casa ontem. Você vai dar uma
passada lá?
- Talvez - disse Gansey. De alguma maneira, ver os pais sempre o lembrava de quão pouco ele havia conquistado, quão parecidos ele e Helen eram, quantas gravatas
vermelhas ele tinha, como ele estava lentamente amadurecendo para ser tudo que Ronan tinha medo de se tornar. Ele parou na frente da casa pré-fabricada azul-clara,
onde a família Parrish morava. - Talvez para o aniversário da mamãe. Preciso desligar. A coisa pode ficar preta.
O viva-voz do celular fez a risada de Helen soar sibilante, sem tom.
- Olha só você, bancando o mauzão. Aposto que está ouvindo um CD chamado Os sons do crime enquanto caça garotas em volta do campus no seu Camaro.
- Tchau, Helen - disse Gansey, desligando o celular e saindo do carro.
Abelhas carpinteiras gordas e brilhantes se precipitaram sobre sua cabeça, distraídas do trabalho de destruir as escadas. Após bater à porta, Gansey olhou para a
extensão, plana e feia, de grama morta. A ideia de que se tinha de pagar pela beleza em Henrietta deveria ter-lhe ocorrido antes. Não importava quantas vezes Adam
lhe dissesse que ele era sem noção em relação a dinheiro, ele não parecia ficar nem um pouco mais sábio quanto a isso.
Não tem primavera aqui, percebeu Gansey, e o pensamento foi inesperadamente sombrio.
A mãe de Adam respondeu à sua batida. Ela era uma sombra do filho - os mesmos traços alongados, os mesmos olhos arregalados. Comparada à mãe de Gansey, parecia velha
e sofrida.
- O Adam está nos fundos - ela disse, antes que ele pudesse perguntar qualquer coisa. Ela o olhou de relance e desviou o olhar, sem encará-lo. Gansey nunca deixava
de ficar impressionado com como os pais de Adam reagiam ao blusão da Aglionby. Eles sabiam tudo que precisavam saber sobre ele antes mesmo que Gansey abrisse a boca.
- Obrigado - disse Gansey, mas a palavra parecia serragem na boca, e, de qualquer maneira, ela já estava fechando a porta.
Na velha garagem atrás da casa, ele encontrou Adam deitado debaixo de um velho Bonneville erguido sobre rampas, inicialmente invisível em sombras azuladas e frias.
Uma lata de óleo vazia se projetava debaixo do carro. Não havia ruído algum, e Gansey suspeitou que Adam estivesse ali para evitar ficar dentro de casa.
- E aí, campeão - disse Gansey.
Os joelhos de Adam dobraram como se ele fosse se impulsionar para sair de debaixo do carro, mas ele não saiu.
- E aí? - ele disse sem emoção.
Gansey sabia o que aquilo significava, aquele não sair imediatamente de debaixo do carro, e a ira e a culpa lhe apertaram o peito. A coisa mais frustrante em relação
à situação de Adam era que Gansey não conseguia controlá-la. Nem uma única parcela dela. Ele largou um caderno sobre o balcão.
- Aqui está a matéria de hoje. Eu não podia dizer que você estava doente. Você perdeu muitas aulas no mês passado.
A voz de Adam não denotava emoção.
- E o que você disse?
Uma das ferramentas embaixo do carro fez um ruído de raspadura sem entusiasmo.
- Vamos lá, Parrish, sai daí - disse Gansey. - Desencana.
Gansey deu um salto quando o focinho frio de um cão se enfiou em sua palma pendente - era o vira-lata que havia atacado de maneira tão selvagem os pneus de seu carro.
Ele acariciou relutantemente uma das orelhas roídas e então puxou a mão de volta quando o cão pulou no carro, latindo para os pés de Adam quando eles começaram a
se mexer. Os joelhos rasgados da calça cargo camuflada de Adam apareceram primeiro, depois a camiseta gasta da Coca-Cola e, por fim, o rosto.
Um hematoma se estendia sobre a maçã do rosto, vermelho e inchado como uma galáxia. Outro mais escuro serpenteava sobre a ponte do nariz.
Gansey disse imediatamente:
- Você vai embora comigo.
- Isso só vai piorar as coisas quando eu voltar - Adam respondeu.
- Quero dizer para sempre. Você vai se mudar para Monmouth. Chega.
Adam se levantou. O cão saracoteava alegremente em torno de seus pés, como se ele tivesse ido para outro planeta em vez de simplesmente entrado embaixo do carro.
Cansado, ele perguntou:
- E quando Glendower levar você para longe de Henrietta?
Gansey não podia dizer que isso não aconteceria.
- Você vem junto.
- Eu vou junto? Me diz como isso ia funcionar. Eu ia perder todo o trabalho que fiz em Aglionby. Eu teria que fazer a mesma coisa de novo em outra escola.
Adam dissera uma vez para Gansey: "Histórias de superação só são interessantes depois do final feliz, não antes". Mas aquela era uma história difícil de terminar
quando Adam havia faltado à escola mais uma vez. Não havia final feliz sem notas de aprovação.
Gansey disse:
- Você não precisaria ir para uma escola como a Aglionby. Não precisa ser uma escola tradicional. Existem maneiras diferentes de ter sucesso.
Imediatamente, Adam disse:
- Eu não te julgo pelo que você faz, Gansey.
E aquele era um lugar incômodo para estar, pois Gansey sabia que Adam precisara realizar um esforço considerável para aceitar suas razões para ir atrás de Glendower.
Adam tinha motivos mais que suficientes para se sentir indiferente quanto à ansiedade obscura de Gansey, seu questionamento sobre por que o universo o havia escolhido
para nascer filho de pais ricos, perguntando-se se havia um propósito maior para ele estar vivo. Gansey sabia que tinha de fazer a diferença, tinha de deixar uma
marca maior no mundo por causa da vantagem que tivera na largada, ou ele seria o pior tipo de pessoa que havia.
Os pobres são tristes porque são pobres, Adam refletira certa vez, e, no fim das contas, os ricos são tristes porque são ricos.
E Ronan havia dito: Ei, eu sou rico e isso não me incomoda.
Com um tom incisivo, Gansey acrescentou:
- Está bem, então. Vamos encontrar outra escola boa. Vamos fazer tudo de novo e criar uma vida nova para você.
Adam passou por ele para pegar um trapo e limpar os dedos cheios de graxa.
- Eu teria que encontrar um emprego também. Isso não acontece da noite para o dia. Você sabe quanto tempo levei para encontrar esses?
Ele não se referia a trabalhar na garagem atrás da casa pré-fabricada do pai. Aquilo era só uma tarefa. Adam tinha três empregos, o mais importante deles na fábrica
de trailers nos arredores de Henrietta.
- Eu posso cobrir suas contas até você encontrar algo.
Houve um longo silêncio enquanto Adam continuava a esfregar os dedos. Ele não olhou para Gansey. Aquela era uma conversa que eles já haviam tido antes, e dias inteiros
de discussões eram repassados nos poucos momentos de sossego. As palavras haviam sido ditas tantas vezes que não precisavam mais ser ditas novamente.
O sucesso não significava nada para Adam se ele não o tivesse alcançado sozinho.
Gansey fez o possível para manter a voz calma, mas um traço de irritação se esgueirou nela.
- Então você não vai cair fora por causa do seu orgulho? Ele vai acabar te matando.
- Você vê programas policiais demais.
- Eu vejo o jornal da noite, Adam - disparou Gansey. - Por que você não deixa o Ronan te ensinar a lutar? Ele já ofereceu duas vezes. Ele está falando sério.
Com grande cuidado, Adam dobrou o trapo engraxado e o jogou de volta em uma caixa de ferramentas. Havia um amontoado de coisas na garagem. Estantes de ferramentas
e calendários de mulheres de topless, assim como compressores de ar para trabalhos pesados e outros equipamentos que o sr. Parrish havia decidido que eram mais valiosos
que o uniforme escolar de Parrish.
- Porque aí sim ele vai me matar.
- Não entendo.
Adam disse:
- Ele tem uma arma.
- Meu Deus.
Adam colocou a mão sobre a cabeça da vira-lata - o que a deixou maluca de alegria - e se inclinou para fora da garagem para espiar a estrada de terra. Ele não precisava
dizer a Gansey o que estava procurando.
- Vamos, Adam - disse Gansey. Por favor. - A gente vai fazer dar certo.
Uma ruga se formou entre as sobrancelhas de Adam quando ele desviou o olhar. Não para as casas pré-fabricadas em primeiro plano, mas para além delas, para o campo
plano e sem fim, com seus tufos de relva envelhecida. Tantas coisas sobreviviam ali sem estar realmente vivas. Ele disse:
- Eu nunca seria eu mesmo. Se eu deixar você pagar minhas contas, vou ser seu. Eu sou dele agora, e aí seria seu.
Isso foi mais duro de aceitar do que Gansey havia imaginado. Em certos dias, a única coisa em que ele podia se apoiar era saber que sua amizade com Adam era imune
à influência do dinheiro. Qualquer coisa dita em contrário o magoava mais do que ele podia admitir.
Com precisão, ele perguntou:
- É isso que você pensa de mim?
- Você não sabe, Gansey - disse Adam. - Você não sabe nada sobre dinheiro, apesar de ter um monte. Você não sabe como isso faria as pessoas olharem para mim e para
você. Seria tudo que elas precisariam saber sobre a gente. Elas pensariam que eu sou seu macaco.
Eu sou apenas o meu dinheiro. É tudo que as pessoas veem, até o Adam.
Gansey disparou de volta:
- Você acha que seus planos vão continuar dando certo se você faltar às aulas e ao trabalho porque deixa seu pai quebrar sua cara? Você está tão mal quanto ela.
Você acha que merece isso.
Sem aviso, Adam arremessou no chão uma caixa pequena de pregos que estava na prateleira ao lado dele. O barulho que ela fez no concreto assustou os dois.
Adam voltou as costas para Gansey, com os braços cruzados.
- Não finja que você sabe - disse ele. - Não venha até aqui fingir que sabe alguma coisa.
Gansey disse a si mesmo para cair fora, para não dizer mais nada. Mas acrescentou:
- Então não finja que você tem alguma coisa de que se orgulhar.
Tão logo disse isso, ele soube que não era justo, ou, mesmo se tivesse sido, que não era certo. Mas não estava arrependido.
Gansey voltou para o Camaro e pegou o telefone para ligar para Ronan, mas o sinal do celular tinha desaparecido completamente, como acontecia com frequência em Henrietta.
Normalmente, Gansey tomava isso como um indício de que algo sobrenatural estava afetando a energia em torno da cidade, derrubando o sinal do celular e às vezes até
a eletricidade.
Mas, naquele momento, ele achou que significava tão somente que não conseguiria telefonar para ninguém.
Fechando os olhos, Gansey pensou no hematoma no rosto de Adam, com as bordas tênues e dispersas, e na marca intensa e vermelha sobre o nariz. Imaginou aparecer naquele
lugar um dia e não encontrar Adam ali, mas no hospital, ou, pior, encontrá-lo ali, mas descobrir que algo importante havia sido arrancado dele a socos e pontapés.
Imaginar aquilo o deixava doente.
Então o carro deu uma sacudida, e os olhos de Gansey se abriram quando a porta do passageiro rangeu.
- Espere, Gansey - disse Adam, sem fôlego. Ele estava curvado para poder ver dentro do carro. O hematoma era horrível. Fazia sua pele parecer transparente. - Não
vá embora assim...
Deslizando as mãos do volante em direção ao colo, Gansey o observou. Aquela era a parte em que Adam falaria para não levar para o lado pessoal o que ele havia dito.
Mas Gansey sentia como algo pessoal.
- Eu só estou tentando ajudar.
- Eu sei - Adam disse. - Eu sei. Mas eu não posso fazer desse jeito. Não conseguiria viver comigo mesmo assim.
Gansey não compreendia, mas anuiu com a cabeça. Ele queria que aquilo acabasse; ele queria que fosse ontem, quando ele, Ronan e Adam estavam ouvindo o gravador e
o rosto de Adam ainda não trazia aquelas marcas. Atrás do amigo, ele viu a figura da sra. Parrish observando da varanda.
Adam fechou os olhos por um minuto. Gansey podia ver suas íris se movendo por baixo da pele fina das pálpebras, um sonhador acordado.
E então, com um movimento ágil, ele deslizou para o banco do passageiro. A boca de Gansey se abriu para formar uma pergunta que ele não fez.
- Vamos embora - disse Adam, sem olhar para Gansey. Sua mãe o encarava da varanda, mas ele tampouco a olhou. - A médium era o plano, certo? Vamos seguir o plano.
- Sim, mas...
- Eu preciso estar de volta às dez.
Adam olhou para Gansey. Havia algo de ameaçador e frio em seus olhos, uma coisa indefinível que Gansey sempre temeu que, no fim, tomasse conta dele completamente.
Ele sabia que era um compromisso, um presente arriscado que ele podia escolher rejeitar.
Após um momento de hesitação, Gansey cumprimentou Adam sobre o câmbio do carro com uma batida de punhos. Adam abriu a janela e se agarrou ao teto do carro, como
se precisasse se segurar.
O Camaro avançou lentamente pela estradinha de uma pista quando o caminho foi bloqueado por uma picape Toyota azul vindo na direção contrária. A respiração de Adam
parou. Através do para-brisa, Gansey deu de cara com os olhos do pai de Adam. Robert Parrish era uma coisa grande, desprovida de cor como o mês de agosto, crescida
da poeira que cercava os trailers. Seus olhos eram escuros e pequenos, e Gansey não conseguia ver nada de Adam neles.
Robert Parrish cuspiu para fora da janela. Ele não encostou para deixá-los passar. O rosto de Adam estava voltado para o campo de milho, mas Gansey não desviou o
olhar.
- Você não precisa vir - disse Gansey, porque tinha de dizê-lo.
A voz de Adam soou distante:
- Mas eu vou.
Virando subitamente a direção do carro, Gansey acelerou com toda a potência. O Pig saiu da estrada em meio a uma nuvem de terra que explodira, vinda de debaixo dos
pneus, e bateu na vala rasa. O coração golpeava o peito com a expectativa, o perigo e o desejo de gritar tudo que ele achava sobre o pai de Adam para o pai de Adam.
Quando eles aceleraram de volta para a pista do outro lado da Toyota, Gansey sentiu o olhar de Robert Parrish os seguindo.
O peso daquele olhar parecia com uma promessa mais substancial do futuro do que qualquer coisa que uma médium pudesse lhe dizer.
É claro que Gansey estava atrasado para a leitura. A hora marcada tinha chegado e passado. Nada de Gansey. E, talvez mais decepcionante ainda, nenhum telefonema
de Adam. Blue abriu as cortinas e deu uma espiada para um lado e para o outro na rua, mas não havia nada, a não ser o tráfego normal após um dia de trabalho. Maura
inventou desculpas.
- Talvez ele tenha escrito a hora errada - disse ela.
Blue não achava que ele havia escrito a hora errada.
Dez minutos mais se arrastaram. Maura disse:
- Talvez ele tenha tido problemas com o carro.
Blue não achava que ele havia tido problemas com o carro.
Calla pegou o romance que estava lendo e subiu a escada. Sua voz chegou até elas:
- Falando nisso, você precisa ver a correia do seu Ford. Vejo uma quebra no seu futuro. Ao lado daquela loja de móveis. Um homem muito feio com um celular vai parar
e ser extremamente gentil.
Era possível que ela realmente tivesse visto uma quebra no futuro de Maura, mas também era possível que estivesse sendo hiperbólica. De qualquer maneira, Maura anotou
no calendário.
- Talvez eu tenha me enganado e dito para ele amanhã à tarde em vez de hoje - disse Maura.
Persephone murmurou:
- Isso sempre é possível - então disse: - Talvez eu faça uma torta.
Blue olhou ansiosamente para Persephone. O preparo de uma torta era um processo demorado e carinhoso, e Persephone não gostava de ser interrompida enquanto estivesse
cozinhando. Ela não começaria uma torta se realmente achasse que a chegada de Gansey a interromperia.
Maura também olhou para Persephone antes de tirar um saco de abóbora amarela e uma barra de manteiga da geladeira. Agora Blue sabia precisamente como o resto do
dia se desenrolaria. Persephone faria algo doce. Maura faria algo com manteiga. Mais tarde, Calla reapareceria e faria algo com salsicha ou bacon. Era como prosseguiam
todos os entardeceres se uma refeição não tivesse sido planejada antecipadamente.
Blue não achava que Maura tivesse dito para Gansey "amanhã à tarde" em vez de "hoje". O que ela achava era que Gansey havia olhado para o relógio no painel de seu
Mercedes-Benz ou no rádio de seu Aston Martin e decidido que a leitura interferia com sua escalada ou seu jogo de tênis. E então ele lhe dera o fora, como Adam lhe
dera ao não ligar para ela. Blue não podia estar realmente surpresa. Eles haviam feito exatamente o que ela esperava de garotos corvos.
Bem na hora em que Blue estava se preparando para se amuar no andar de cima, com suas agulhas e sua lição de casa, Orla deu um berro do Quarto do Telefone, um grito
mudo finalmente se esclarecendo em palavras:
- Tem um Camaro 1973 na frente da casa! Ele combina com as minhas unhas!
Da última vez que Blue vira as unhas de Orla, elas traziam uma complicada estampa paisley. Ela não tinha certeza de como era um Camaro 1973, mas tinha certeza de
que, se ele trazia um desenho persa, devia ser impressionante. Também tinha certeza de que Orla estava no telefone, ou ela estaria lá embaixo, espiando.
- Bem, lá vamos nós - disse Maura, abandonando a abóbora na pia. Calla reapareceu na cozinha, trocando um olhar rápido com Persephone.
O estômago de Blue se contorceu.
Gansey. É só isso.
A campainha tocou.
- Você está pronta? - Calla perguntou a Blue.
Gansey era o garoto que ela mataria ou por quem se apaixonaria. Ou ambos. Não havia como estar pronta. Havia apenas isto: Maura abrindo a porta.
Havia três garotos ali, contra a luz do sol da tarde, como Neeve estivera tantas semanas atrás. Três pares de ombros: um quadrado, um musculoso, um magro e rijo.
- Desculpe pelo atraso - disse o garoto da frente, com os ombros quadrados. O aroma de hortelã entrou naturalmente com ele, como naquele dia, no adro da igreja.
- Tem algum problema?
Blue conhecia aquela voz.
Ela estendeu a mão para o corrimão da escada para manter o equilíbrio, enquanto o Presidente Celular entrava.
Ah, não. Ele não. Todo aquele tempo ela estivera se perguntando como Gansey morreria e no fim das contas ela iria estrangulá-lo. No Nino's, o ruído da música havia
abafado os pontos mais refinados de sua voz e o cheiro de alho havia se sobrepujado ao aroma de hortelã.
Mas, agora que ela tinha somado dois mais dois, a questão parecia óbvia.
Quando entrou, ele parecia ligeiramente menos presidencial, mas apenas porque o calor havia feito com que arregaçasse desajeitadamente as mangas da camisa e tirasse
a gravata. O cabelo castanho desgrenhado estava empoeirado também, como só o calor da Virgínia consegue fazer. Mas o relógio ainda estava ali, grande o suficiente
para nocautear ladrões de banco, e ele ainda trazia aquele brilho de beleza. O brilho que significava não apenas que ele nunca fora pobre, mas que seu pai não o
fora, nem seu avô e tampouco seu bisavô. Blue não conseguia dizer se ele era realmente muito bonito ou apenas muito rico. Talvez fossem a mesma coisa.
Gansey. Aquele era Gansey.
E isso significava que o diário pertencia a ele.
Isso significava que Adam pertencia a ele.
- Bem - disse Maura. Estava claro que sua curiosidade suplantava todas as regras sobre horários. - Não é tarde demais. Vamos para a sala de leitura. Posso saber
alguns nomes?
Porque é claro que o Presidente Celular havia levado a maior parte do seu pelotão do Nino's, com exceção do garoto sujo. Eles ocupavam todo o espaço da entrada,
apenas os três, viris e barulhentos, tão à vontade uns com os outros que não permitiam a mais ninguém que se sentisse confortável junto deles. Eram uma matilha de
animais elegantes, blindados com seus relógios e mocassins e o corte caro de seus uniformes. Até mesmo a tatuagem do garoto ríspido, que lhe cortava a junta do pescoço
acima do colarinho, era uma arma que de algum modo penetrava Blue.
- Gansey - disse o Presidente Celular novamente, apontando para si mesmo. - Adam, Ronan. Para onde vamos? Ali?
Ele apontou uma mão para a sala de leitura, a palma aberta, como se estivesse dirigindo o tráfego.
- Ali mesmo - concordou Maura. - Aliás, esta é minha filha. Ela vai estar presente para a leitura, se você não se importar.
Os olhos de Gansey encontraram os de Blue. Ele estivera sorrindo educadamente, mas então seu rosto congelou no meio do sorriso.
- Oi de novo - disse ele. - Isso é estranho.
- Vocês já se conhecem? - Maura lançou um olhar venenoso para Blue, que se sentiu injustamente perseguida.
- Já - respondeu Gansey, altivamente. - Tivemos uma discussão sobre profissões alternativas para mulheres. Eu não sabia que ela era sua filha. Adam?
Ele lançou um olhar quase tão venenoso para Adam, cujos olhos estavam bem abertos. Adam era o único que não estava de uniforme, e sua mão estava aberta sobre o peito,
como se os dedos pudessem cobrir a camiseta puída da Coca-Cola.
- Eu também não sabia! - disse Adam. Se Blue soubesse que ele viria, talvez não vestisse a blusa azul-bebê com penas costuradas na gola. Adam olhava fixamente para
a roupa dela. Para Blue, ele disse novamente: - Eu não sabia, juro.
- O que aconteceu com seu rosto? - perguntou Blue.
Adam deu de ombros pesarosamente. Ou ele ou Ronan tinham um cheiro de oficina. Sua voz era autodepreciativa.
- Você acha que me faz parecer mais durão?
Na verdade, aquilo o fazia parecer mais frágil e sujo, como uma xícara de chá desenterrada, mas Blue não disse nada.
Ronan disse:
- Faz você parecer um perdedor.
- Ronan - disse Gansey.
- Eu preciso que todos se sentem! - gritou Maura.
Foi uma coisa tão alarmante ouvir Maura gritar que quase todo mundo obedeceu, afundando ou se jogando nos móveis descombinados da sala de leitura. Adam esfregou
a mão sobre a maçã do rosto, como se pudesse remover o hematoma. Gansey se sentou em uma cadeira de braços na ponta da mesa, com as mãos estendidas sobre cada um,
como o presidente de um conselho, uma sobrancelha erguida enquanto olhava para o rosto emoldurado de Steve Martin.
Apenas Calla e Ronan permaneceram em pé, trocando olhares cautelosos.
Parecia que a casa nunca estivera tão cheia, o que era uma inverdade. Era possivelmente verdade que nunca houvera tantos homens ali antes. Certamente nunca tantos
garotos corvos.
Blue sentiu como se a própria presença deles roubasse algo dela. Eles haviam feito a família dela parecer sombria.
- Está terrivelmente barulhento aqui - disse Maura. A maneira como ela o disse, no entanto, pressionando um dedo na pulsação logo abaixo do maxilar, dizia a Blue
que não eram as vozes que estavam altas demais. Era algo que ela estava ouvindo dentro de sua cabeça. Persephone também estava se contraindo.
- Preciso sair? - perguntou Blue, apesar de ser a última coisa que ela quisesse fazer.
Não entendendo do que se tratava, Gansey imediatamente perguntou:
- Por que você teria de sair?
- Ela torna as coisas mais discerníveis para nós - disse Maura, franzindo o cenho para todos, como se estivesse tentando entender a situação. - E vocês três já são...
muito ruidosos.
A pele de Blue estava quente. Ela podia imaginar a si mesma esquentando como um condutor elétrico, com faíscas de todas as partes viajando através dela. O que estaria
acontecendo àqueles garotos corvos a ponto de ensurdecer sua mãe? Seria a conjunção de todos eles ou simplesmente Gansey, sua energia gritando a contagem regressiva
para sua morte?
- O que você quer dizer com muito ruidosos? - perguntou Gansey. Estava claro que ele era o líder daquele pequeno bando, pensou Blue. Todos seguiam olhando para ele,
para suas pistas de como interpretar a situação.
- O que quero dizer é que tem algo na energia de vocês que é muito... - disse Maura, deixando a frase morrer e perdendo o interesse em sua própria explicação. Ela
se virou para Persephone, e Blue reconheceu a troca de olhares entre elas. Era um: O que está acontecendo? - Como vamos fazer isso?
A maneira como ela o perguntou, distraída e vaga, fez o estômago de Blue se apertar de nervosismo. Sua mãe estava derrotada. Pela segunda vez, uma leitura parecia
empurrá-la para um lugar onde ela não se sentia confortável.
- Um de cada vez? - sugeriu Persephone, com a voz quase inaudível.
Calla disse:
- Carta única. Você precisa fazer assim, ou alguns deles terão de sair. Eles são ruidosos demais.
Adam e Gansey olharam de relance um para o outro. Ronan brincou com as pulseiras de couro em torno do punho.
- Carta única? - perguntou Gansey. - Como isso é diferente de uma leitura comum?
Calla falou com Maura, como se ele não tivesse dito nada:
- Não importa o que eles queiram. É assim que é. É pegar ou largar.
O dedo de Maura ainda estava pressionado sob o maxilar. Então ela disse para Gansey:
- Carta única quer dizer que cada um tira apenas uma carta do baralho de tarô, e nós fazemos a interpretação.
Gansey e Adam compartilharam uma espécie de conversa privada com os olhos. Era o tipo de coisa que Blue estava acostumada a ver surgir entre sua mãe e Persephone
ou Calla, e não achava que ninguém mais era capaz disso. O fato a fez se sentir estranhamente invejosa; ela queria algo assim, um laço forte o suficiente para transcender
palavras. A cabeça de Adam anuiu rapidamente em resposta a qualquer coisa não dita por Gansey, que falou:
- Como você achar melhor.
Persephone e Maura deliberaram por um instante, apesar de não parecer que se sentiriam confortáveis com qualquer coisa no momento.
- Espere - disse Persephone quando Maura apresentou seu baralho. - Deixe que a Blue dê as cartas.
Não era a primeira vez que pediam para Blue dar as cartas. Às vezes, em leituras importantes ou difíceis, as mulheres queriam que ela tocasse o baralho primeiro,
para tornar claras quaisquer que fossem as mensagens que as cartas pudessem conter. Dessa vez, ela estava excessivamente ciente da atenção dos garotos quando tomou
o baralho de sua mãe. Aproveitando a situação, embaralhou as cartas de maneira ligeiramente teatral, movendo-as de uma mão à outra. Ela era muito boa com truques
de cartas que não envolviam um dom paranormal. Enquanto os garotos, impressionados, observavam as cartas voarem de um lado para o outro, Blue refletiu que ela daria
uma excelente falsa médium.
Como ninguém quis ser voluntário para começar, ela ofereceu o baralho a Adam. Ele a encarou e sustentou seu olhar por um momento. Havia algo de vigoroso e intencional
a respeito do gesto, mais agressivo do que ele havia sido na noite em que a abordara.
Adam escolheu uma carta e a apresentou para Maura.
- Dois de espadas - disse ela. Blue estava demasiadamente consciente do sotaque de sua mãe, soando subitamente rural e ignorante para seus ouvidos. Era assim que
Blue soava?
Maura continuou:
- Você está evitando uma escolha difícil. Agindo ao não agir. Você é ambicioso, mas sente como se alguém estivesse lhe pedindo algo que você não está disposto a
dar. Pedindo que comprometa seus princípios. Creio que alguém próximo de você. Seu pai?
- Irmão, eu acho - disse Persephone.
- Eu não tenho irmão, senhora - respondeu Adam. Mas Blue viu seus olhos se lançarem para Gansey.
- Você quer fazer uma pergunta? - perguntou Maura.
Adam considerou:
- Qual é a escolha certa?
Maura e Persephone conferenciaram entre si. Maura respondeu:
- Não há uma escolha certa. Apenas uma com a qual você consiga conviver. Pode haver uma terceira opção que vai lhe cair melhor, mas, neste momento, você não a está
vendo porque está muito envolvido com as outras duas. Pelo que estou vendo, eu diria que qualquer outro caminho requereria que você deixasse de lado essas duas opções
e criasse a sua própria opção. Também estou sentindo que você é um pensador muito analítico. Você passou muito tempo aprendendo a ignorar suas emoções, mas não creio
que seja a hora para isso.
- Obrigado - disse Adam. Não era exatamente a coisa certa a ser dita, mas não era inteiramente errada, também. Blue gostava do modo como ele era educado. Parecia
diferente da educação de Gansey. Quando Gansey era educado, isso o tornava poderoso. Quando Adam era educado, ele estava concedendo poder.
Parecia certo deixar Gansey por último. Então Blue seguiu com Ronan, apesar de estar um pouco temerosa em relação a ele. Algo nele gotejava veneno, apesar de ele
não ter aberto a boca. Pior de tudo, na opinião de Blue, era que havia algo a respeito de seu antagonismo que a fazia querer conquistar sua estima, para obter sua
aprovação. A aprovação de alguém como ele, que claramente não se importava com ninguém, parecia que valeria mais.
Para oferecer o baralho a Ronan, Blue teve de se levantar, pois ele ainda estava de pé perto do vão da porta, próximo de Calla. Eles pareciam prontos para boxear.
Quando Blue abriu em leque as cartas, ele examinou as mulheres na sala e disse:
- Não vou pegar uma carta. Me digam algo verdadeiro primeiro.
- Como é? - disse Calla severamente, respondendo por Maura.
A voz de Ronan era de vidro, fria e quebradiça.
- Tudo que vocês disseram a ele poderia se aplicar a qualquer pessoa. Qualquer pessoa viva tem dúvidas. Qualquer um já discutiu com o irmão ou com o pai. Me digam
algo que ninguém mais pode me dizer. Não me venham com uma carta de jogo e uma besteira junguiana para me enfiar goela abaixo. Me digam algo específico.
Os olhos de Blue se estreitaram. Persephone colocou ligeiramente a língua para fora, um hábito surgido da incerteza, não da insolência. Maura se mexeu na cadeira,
incomodada.
- Nós não fazemos uma leitura especí...
Calla a interrompeu.
- Um segredo matou o seu pai e você sabe qual era.
A sala caiu em um silêncio mortal. Tanto Persephone quanto Maura olhavam fixamente para Calla. Gansey e Adam encaravam Ronan, e Blue olhava fixamente para a mão
de Calla.
Maura muitas vezes chamava Calla para fazer leituras de tarô conjuntas, e Persephone às vezes a chamava para interpretar seus sonhos, mas muito raramente alguém
pedia a Calla para usar um de seus dons mais estranhos: a psicometria. Calla tinha uma capacidade excepcional de segurar um objeto e sentir sua origem, sentir os
pensamentos do dono e ver os lugares onde o objeto havia estado.
Nesse instante, Calla afastou a mão; ela a havia estendido para tocar a tatuagem de Ronan, bem onde ela encontrava o colarinho. O rosto dele estava voltado ligeiramente,
olhando para onde os dedos dela haviam estado.
Poderia haver apenas Ronan e Calla na sala. Ele era uma cabeça mais alto que ela, mas parecia jovem ao seu lado, como um gato selvagem magricelo que ainda não ganhara
peso. Ela era uma leoa.
Calla sibilou:
- O que você é?
O sorriso de Ronan gelou Blue. Havia algo de vazio nele.
- Ronan? - perguntou Gansey, com um tom preocupado na voz.
- Vou esperar no carro.
Sem mais um comentário sequer, Ronan partiu, batendo a porta com tanta força que as louças na cozinha tilintaram.
Gansey voltou um olhar acusador para Calla.
- O pai dele morreu.
- Eu sei - disse Calla, com os olhos estreitos.
O tom de voz de Gansey era cordial o suficiente para seguir direto do educado ao rude.
- Eu não sei como você descobriu isso, mas que coisa desprezível para jogar em um garoto.
- Em uma cobra, você quis dizer - Calla rosnou de volta. - E para que vocês vieram aqui, se não acreditam que podemos fazer o trabalho pelo qual estamos cobrando?
Ele pediu algo específico, eu dei algo específico. Sinto muito se não eram filhotinhos.
- Calla - advertiu Maura, ao mesmo tempo em que Adam disse:
- Gansey.
Adam murmurou algo no ouvido do amigo e então se recostou. Um osso se moveu no maxilar de Gansey. Blue o observou voltando a ser o Presidente Celular; ela não havia
se dado conta antes de que ele podia ser outra coisa. Agora ela gostaria que tivesse prestado mais atenção, para que pudesse ter visto o que havia de diferente nele.
Gansey disse:
- Desculpem. O Ronan é curto e grosso e, para começo de conversa, ele não estava se sentindo bem em vir aqui. Eu não estava tentando insinuar que vocês não são verdadeiras.
Podemos continuar?
Ele soava tão velho, pensou Blue. Tão formal comparado aos garotos que o acompanhavam. Havia algo intensamente desconcertante nele, comparável a como ela se sentiu
compelida a impressionar Ronan. Algo a respeito de Gansey a fazia se sentir tão fortemente outra que era como se ela tivesse de proteger suas emoções. Ela não conseguia
gostar dele, ou do que quer que houvesse naqueles garotos que suprimia as habilidades paranormais de sua mãe e tomava conta da sala, a ponto de esmagá-la.
- Não tem problema - disse Maura, embora estivesse olhando para o rosto irado de Calla ao dizê-lo.
Quando Blue se deslocou para onde Gansey estava sentado, ela viu de relance seu carro na calçada: um brilho laranja impossível, o tipo de laranja com o qual Orla
definitivamente pintaria suas unhas. Não era exatamente o que ela esperaria que um garoto de Aglionby dirigisse - eles gostavam de coisas novas e brilhantes, e aquela
era uma coisa velha e brilhante -, mas, mesmo assim, era claramente o carro de um garoto corvo. E só então Blue teve uma sensação de queda, como se as coisas estivessem
acontecendo rápido demais para absorvê-las apropriadamente. Havia algo esquisito e complicado a respeito de todos aqueles garotos, pensou Blue - esquisito e complicado
assim como o diário era esquisito e complicado. Suas vidas estavam de certa forma interligadas, e de algum modo ela havia conseguido fazer algo para se manter presa
naquela teia. Se esse algo fora feito no passado ou seria feito no futuro, parecia irrelevante. Naquela sala, com Maura, Calla e Persephone, o tempo parecia circular.
Ela parou na frente de Gansey. Tão próxima dele, sentiu mais uma vez o aroma de hortelã, e isso fez seu coração saltar incerto.
Gansey baixou o olhar para o baralho aberto em leque nas mãos dela. Quando Blue o viu assim, notou a curva de seus ombros e a parte de trás de sua cabeça, e então
se lembrou agudamente de seu espírito, do garoto por quem ela temia se apaixonar. Aquela sombra não tinha nada da confiança jovial e desembaraçada daquele garoto
corvo à sua frente.
O que acontece com você, Gansey?, ela se perguntou. Quando você se torna aquela pessoa?
Gansey ergueu o olhar para ela, com um vinco entre as sobrancelhas.
- Não sei como escolher. Você pode escolher uma carta para mim? Funcionaria assim?
De canto de olho, Blue viu Adam se mexendo na cadeira, franzindo o cenho.
Persephone respondeu por trás de Blue:
- Se você assim quiser.
- O que vale é a intenção - acrescentou Maura.
- Eu quero que você escolha - disse ele. - Por favor.
Blue colocou as cartas em leque sobre a mesa, que deslizaram soltas sobre a superfície. Deixou os dedos flutuarem acima delas. Uma vez Maura havia lhe dito que as
cartas corretas às vezes davam uma sensação de calor ou formigamento quando os dedos estavam próximos a elas. Para Blue, é claro, todas as cartas pareciam idênticas.
Uma, no entanto, havia escorregado mais longe que as outras, e foi essa que ela escolheu.
Quando a abriu, Blue não conteve uma risadinha impotente.
O pajem de copas olhava de volta para Blue com o rosto dela. Parecia que alguém estava rindo dela, mas ela não tinha ninguém para culpar pela escolha da carta, a
não ser ela mesma.
Quando Maura viu a carta, sua voz assumiu um tom sereno e distante.
- Essa não. Faça com que ele escolha outra.
- Maura - disse Persephone suavemente, mas Maura apenas gesticulou com a mão, desautorizando-a.
- Outra - ela insistiu.
- O que há de errado com essa carta? - perguntou Gansey.
- Ela tem a energia de Blue - disse Maura. - Não era para ser sua. Você mesmo terá de escolher uma carta.
Persephone mexeu a boca, mas não disse nada. Blue recolocou a carta e misturou o baralho com menos drama do que antes.
Quando ofereceu as cartas para Gansey, ele virou o rosto para o lado, como se estivesse tirando o número vencedor de uma rifa. Seus dedos tocaram de leve a ponta
das cartas, contemplativos. Ele escolheu uma e a virou para mostrar para a sala.
Era um pajem de copas.
Ele olhou para o rosto da carta e então para o rosto de Blue, e ela sabia que ele tinha visto a similaridade.
Maura se inclinou para frente e tirou a carta de seus dedos.
- Escolha outra.
- Mas por quê? - disse Gansey. - O que há de errado com essa carta? O que ela quer dizer?
- Não há nada de errado com ela - respondeu Maura. - Ela só não é sua.
Pela primeira vez, Blue viu uma ponta de exasperação verdadeira na expressão de Gansey, e isso a fez gostar um pouco mais dele. Então talvez houvesse algo por baixo
do exterior de garoto corvo. Petulante, Gansey puxou outra carta, evidentemente cheio daquele exercício. Com um floreio, ele virou a carta e a bateu na mesa.
Blue engoliu em seco.
Maura disse:
- Esta é a sua carta.
Na mesa havia um cavaleiro negro montado um cavalo branco. O capacete do cavaleiro estava levantado, e seu rosto era uma caveira dominada por órbitas sem olhos.
O sol se punha atrás dele, e embaixo dos cascos do cavalo jazia um corpo.
Do lado de fora das janelas atrás deles, uma brisa sibilava audivelmente pelas árvores.
- Morte - Gansey leu a parte de baixo da carta. Ele não parecia surpreso ou alarmado. Apenas leu a palavra como leria "ovos" ou "Cincinnati".
- Muito bem, Maura - disse Calla, com os braços cruzados firmemente sobre o peito. - Você vai interpretar isso para o garoto?
- Nós poderíamos devolver o dinheiro dele - sugeriu Persephone, embora Gansey não tivesse pago ainda.
- Achei que médiuns não previam a morte - disse Adam calmamente. - Li que a carta da Morte era apenas simbólica.
Maura, Calla e Persephone emitiram ruídos vagos. Blue, absolutamente ciente da verdade do destino de Gansey, sentiu-se enjoada. De Aglionby ou não, ele tinha a idade
dela, obviamente tinha amigos que gostavam dele e uma vida que envolvia um carro muito laranja, e era terrível saber que ele estaria morto em menos de doze meses.
- Na verdade - disse Gansey -, não me importo com isso.
Todos na sala olharam para ele enquanto ele parava a carta de pé para estudá-la.
- Quer dizer, as cartas são muito interessantes. - Ele disse "as cartas são muito interessantes" como alguém diria "isso é muito interessante" para um tipo muito
estranho de torta que a pessoa não gostaria realmente de terminar. - Não quero desprezar o que vocês fazem, mas eu não vim aqui para saber o meu futuro. Estou bastante
satisfeito em descobri-lo por mim mesmo.
Ele lançou um rápido olhar para Calla ao dizê-lo, obviamente percebendo que estava caminhando em uma tênue linha entre "educado" e "Ronan".
- Na verdade, eu vim porque queria fazer uma pergunta sobre energia - continuou. - Eu sei que vocês lidam com um trabalho que envolve energia, e venho tentando encontrar
uma linha ley que acredito estar próxima de Henrietta. Vocês sabem alguma coisa sobre isso?
O diário!
- Linha ley? - repetiu Maura. - Talvez. Mas não sei se conheço por esse nome. O que é isso?
Blue estava um pouco atordoada. Ela sempre achara que sua mãe era a pessoa mais confiável à sua volta.
- São linhas de energia diretas que cruzam o globo - explicou Gansey. - Elas supostamente conectam locais espirituais importantes. O Adam achou que talvez vocês
soubessem alguma coisa sobre elas, porque vocês lidam com energia.
Era óbvio que ele se referia ao caminho dos corpos, mas Maura não ofereceu nenhuma informação. Apenas apertou os lábios e olhou para Persephone e Calla.
- Isso lembra alguma coisa a vocês duas?
Persephone apontou um dedo reto para cima e então disse:
- Esqueci a cobertura da minha torta.
E se retirou da sala. Calla continuou:
- Eu preciso pensar. Não sou boa em questões específicas.
Havia um ligeiro sorriso divertido no rosto de Gansey, que significava que ele sabia que elas estavam mentindo. Era uma expressão estranhamente sábia, e mais uma
vez Blue percebeu que ele parecia mais velho que os garotos que havia levado consigo.
- Vou procurar me informar sobre isso - disse Maura. - Se você deixar o seu telefone, posso ligar para você se descobrir alguma coisa.
Gansey respondeu, friamente educado:
- Ah, isso seria ótimo. Quanto eu devo pela leitura?
De pé, Maura disse:
- Ah, só vinte.
Blue pensou que aquilo era um crime. Gansey claramente gastara mais de vinte dólares só nos cadarços de seus mocassins.
Ele franziu o cenho para Maura enquanto abria a carteira. Havia um monte de notas ali. Elas podiam ser de um, mas Blue duvidava que fossem. Ela também podia ver
sua carteira de motorista com bastante clareza; não próxima o suficiente para perceber detalhes, mas bem o bastante para ver que o nome impresso parecia bem mais
longo do que apenas Gansey.
- Vinte?
- Cada uma - acrescentou Blue.
Calla tossiu.
O rosto de Gansey se desanuviou e ele passou sessenta dólares para Maura. Obviamente aquilo era mais perto do que ele estivera esperando pagar, e agora o mundo estava
certo de novo.
Foi Adam, no entanto, que Blue observou então. Ele estava olhando para ela atentamente, e ela se sentiu transparente e culpada. Não apenas por cobrar a mais, mas
em relação à mentira de Maura. Blue tinha visto o espírito de Gansey trilhar o caminho dos corpos e tinha conhecimento de seu nome antes de ele entrar pela porta.
Como a mãe, ela não dissera nada. Então, era cúmplice.
- Vou levar vocês até a porta - disse Maura, claramente ansiosa em vê-los sair. Por um momento, pareceu que Gansey sentia o mesmo, mas então ele parou e deu atenção
excessiva para sua carteira enquanto a dobrava e a guardava no bolso. Depois ergueu o olhar para Maura e fez uma linha firme com a boca.
- Olhe, somos todos adultos aqui - ele começou.
Calla fez uma cara, como se discordasse.
Gansey endireitou os ombros e continuou:
- Então eu acho que merecemos a verdade. Me diga que você sabe de algo mas não quer me ajudar, se é isso que está acontecendo, mas não minta para mim.
Era uma coisa corajosa de dizer, ou arrogante, ou talvez não houvesse diferença suficiente entre as duas coisas. Todas as cabeças na sala se viraram para Maura.
Ela disse:
- Eu sei de algo, mas não quero te ajudar.
Pela segunda vez naquele dia, Calla parecia encantada. A boca de Blue estava aberta, mas ela logo a fechou.
Gansey apenas anuiu, não mais nem menos angustiado do que quando Blue lhe respondera de volta no restaurante.
- Tudo bem, então. Não, não, fique onde está. Nós encontramos a saída.
E, sem mais nem menos, eles foram embora, Adam lançando para Blue um último olhar que ela não pôde interpretar. Um segundo depois, a rotação do motor do Camaro subiu
alta e os pneus cantaram os verdadeiros sentimentos de Gansey. Então a casa ficou em silêncio. Um silêncio forçado, como se os garotos corvos tivessem levado todo
o ruído do bairro com eles.
Blue se lançou sobre a mãe.
- Mãe. - Ela ia dizer algo mais, mas tudo que conseguiu dizer novamente foi: - Mãe! - mais alto.
- Maura - disse Calla -, isso foi muito rude. - Então acrescentou: - Gostei.
Maura se virou para Blue, como se Calla não tivesse falado nada.
- Não quero que você veja esse garoto nunca mais.
Indignada, Blue protestou:
- E o que aconteceu com "crianças não devem receber ordens"?
- Isso foi antes de Gansey. - Maura virou a carta da Morte, dando a Blue um longo tempo para examinar o crânio dentro do capacete. - É o mesmo que dizer para você
não atravessar a rua na frente de um ônibus.
Várias contestações se passaram rapidamente pela cabeça de Blue antes de encontrar a que ela queria.
- Por quê? A Neeve não me viu no caminho dos corpos. Eu não vou morrer no ano que vem.
- Em primeiro lugar, o caminho dos corpos é uma promessa, não uma garantia - respondeu Maura. - Em segundo lugar, existem outros destinos terríveis além da morte.
Vamos falar de desmembramento? Paralisia? Trauma psicológico interminável? Tem alguma coisa muito errada com esses rapazes. Quando sua mãe diz "não atravesse a rua
na frente de um ônibus", ela tem uma boa razão para isso.
Da cozinha, a voz suave de Persephone soou:
- Se alguém tivesse evitado que você atravessasse a rua na frente de um ônibus, Maura, a Blue não estaria aqui.
Maura lançou uma careta em sua direção, então varreu com a mão a mesa de leitura, como se a estivesse limpando de migalhas de pão.
- O melhor cenário aqui é o de que você se tornará amiga de um garoto que vai morrer.
- Ah - disse Blue, de modo muito, muito astuto. - Agora entendi.
- Não venha me analisar - disse a mãe.
- Já fiz isso. E repito: "Ah".
Maura sorriu com um sarcasmo que não lhe era costumeiro e então perguntou a Calla:
- O que você viu quando tocou aquele outro garoto? O garoto corvo?
- Todos eles são garotos corvos - disse Blue.
A mãe balançou a cabeça.
- Não, ele é mais corvo do que os outros.
Calla esfregou a ponta dos dedos, como se estivesse limpando deles a memória da tatuagem de Ronan.
- É como a leitura daquele espaço estranho. Tem tanta coisa saindo dele que não deveria ser possível. Lembra daquela mulher que apareceu grávida de quádruplos? É
assim, só que pior.
- Ele está grávido? - perguntou Blue.
- Ele está criando - disse Calla. - Aquele espaço está criando também. Não sei como colocar melhor do que isso.
Blue se perguntou a que tipo de criação ela se referia. Ela estava sempre criando coisas - pegando coisas velhas, cortando-as e tornando-as melhores. Pegando coisas
que já existiam e transformando-as em algo mais. Ela achava que isso era o que a maioria das pessoas queria dizer quando chamavam alguém de criativo.
Mas ela suspeitava que não era isso que Calla queria dizer. Ela achava que o que Calla queria dizer era o verdadeiro significado de criativo: fazer uma coisa onde
antes não havia nada.
Maura percebeu a expressão de Blue e disse:
- Eu nunca mandei você fazer algo antes, Blue. Mas estou mandando agora. Fique longe deles.
Na noite após a leitura, Gansey acordou com um ruído nada familiar e tateou em busca dos óculos. Soava um pouco como se um de seus companheiros de apartamento estivesse
sendo morto por um gambá, ou possivelmente como os momentos finais de uma briga fatal entre gatos. Ele não estava certo quanto aos detalhes, mas tinha certeza de
que havia morte envolvida.
Noah estava parado na porta do quarto, com uma expressão patética e muito sofrida.
- Faça parar - disse ele.
O quarto de Ronan era sagrado e, no entanto, ali estava Gansey, duas vezes na mesma semana, abrindo a porta com um empurrão. Ele encontrou a luz acesa e Ronan curvado
sobre a cama, usando apenas uma cueca samba-canção. Seis meses antes, Ronan havia feito a tatuagem negra intricada que cobria a maior parte de suas costas e subia
serpenteando o pescoço, e agora as linhas monocromáticas se sobressaíam na luz claustrofóbica da lâmpada, mais reais que qualquer outra coisa no quarto. Era uma
tatuagem peculiar, ao mesmo tempo violenta e adorável, e toda vez que Gansey a via, descobria algo diferente no desenho. Naquela noite, aninhado em uma ravina de
flores belas e perversas, havia um bico onde antes ele vira uma foice.
O som áspero ressoou pelo apartamento novamente.
- Mas que diabos é isso? - perguntou Gansey de maneira bem-humorada. Como sempre, Ronan estava com fones de ouvido, então Gansey teve de se estender para puxá-los
para baixo. A música subiu fracamente como um lamento no ar.
Ronan levantou a cabeça. Quando o fez, as flores perversas nas costas se deslocaram e se esconderam atrás das omoplatas bem definidas. Em seu colo estava o corvo
ainda em formação, com a cabeça inclinada para trás e o bico aberto.
- Achei que tínhamos deixado claro o que significa uma porta fechada - disse Ronan. Ele segurava uma pinça.
- Achei que tínhamos deixado claro que a noite é para dormir.
Ronan deu de ombros.
- Talvez para você.
- Não hoje à noite. O seu pterodátilo me acordou. Por que ele está fazendo esse barulho?
Em resposta, Ronan enfiou a pinça em um saco plástico sobre o cobertor na frente dele. Gansey não tinha certeza se queria saber qual era a substância cinza na ponta
da pinça. Tão logo o corvo ouviu o ruído do saco, fez aquele som sinistro novamente - um guincho irritante que se tornava um gorgolejar enquanto ele devorava a oferta.
A cena inspirou ao mesmo tempo compaixão e o reflexo de vômito em Gansey.
- Assim não dá - disse ele. - Você precisa fazer ele parar.
- Ela precisa comer - respondeu Ronan. O corvo devorou mais uma porção. Dessa vez soou bastante como um aspirador de pó sobre uma salada de batata. - É só a cada
duas horas nas primeiras seis semanas.
- Não dá para você deixar o pássaro no andar de baixo?
Em resposta, Ronan levantou um pouco o pequeno pássaro na direção dele.
- Você me diz.
Gansey não gostava que apelassem para sua bondade, especialmente quando ela tinha de enfrentar seu desejo de dormir. De jeito nenhum, é claro, ele forçaria o corvo
escada abaixo. O bichinho era pequeno e improvável. Gansey não tinha certeza se ele era extremamente fofo ou terrivelmente feio, e se sentia incomodado que o pássaro
conseguisse ser as duas coisas.
Por detrás dele, Noah disse, soando lamurioso:
- Eu não gosto dessa coisa aqui. Ela me faz lembrar...
Noah deixou a frase inacabada, como frequentemente fazia, e Ronan apontou a pinça para ele.
- Ei, cara, fique longe do meu quarto.
- Cala a boca - Gansey disse para os dois. - Isso inclui você, pássaro.
- Motosserra.
Noah se retirou, mas Gansey ficou. Por vários minutos observou o corvo engolir um lodo cinza enquanto Ronan arrulhava para o pássaro. Ele não era o Ronan com quem
Gansey havia se acostumado a conviver, tampouco era o Ronan que Gansey havia encontrado pela primeira vez. Estava claro agora que os lamúrios que vinham dos fones
de ouvido eram gaitas de fole irlandesas. Gansey não conseguia lembrar quando fora a última vez que Ronan havia escutado música celta. A música de Niall Lynch. De
uma hora para outra, ele também sentiu saudades do pai carismático de Ronan. Mas, mais do que isso, sentiu saudades do Ronan que existia quando Niall Lynch ainda
estava vivo. Aquele garoto à sua frente, com um pássaro frágil nas mãos, parecia um meio-termo.
Após um tempo, Gansey perguntou:
- O que a médium quis dizer, Ronan? Sobre o seu pai.
Ronan não levantou a cabeça, mas Gansey observou os músculos das suas costas se enrijecerem, tensionados, como se subitamente estivessem carregando peso.
- Essa é uma pergunta muito Declan.
Gansey considerou a questão.
- Não. Não creio que seja.
- Ela estava falando merda.
Gansey considerou isso, também.
- Não. Não acho que ela estava.
Ronan encontrou o aparelho de som ao lado dele na cama e apertou o botão de pausa. Quando respondeu, sua voz soou fria e desarmada.
- Ela é uma daquelas pessoas que entram na sua cabeça e saem bagunçando tudo. Ela disse aquilo porque sabia que ia causar problemas.
- De que tipo?
- Tipo você me fazendo perguntas como o Declan faria - disse Ronan, oferecendo ao corvo outra massa cinzenta, mas o pássaro apenas olhou para ele, paralisado. -
Fazendo com que eu pense em coisas que não quero pensar. Esse tipo de problema. Entre outros. Aliás, o que houve com seu rosto?
Gansey coçou o queixo, pesaroso. Ele sentia a pele mal barbeada e irritada. Sabia que estava sendo distraído, mas não protestou.
- Está crescendo?
- Cara, você não vai entrar nessa de barba, vai? Achei que você estivesse brincando. Você sabe que isso deixou de ser bacana no século xiv ou sei lá quando Paul
Bunyan viveu. - Ronan olhou para ele sobre o ombro. Gansey exibia aquela barba de fim de tarde que lhe crescia a qualquer hora do dia. - Pare com isso. Você parece
sujo.
- Não tem importância. Ela não está crescendo. Estou fadado a ser um homem-criança.
- Se você for continuar dizendo coisas como "homem-criança", pode ir embora - disse Ronan. - Cara, não deixe isso te desanimar. Assim que você entrar na puberdade,
essa barba vai crescer lindamente. Como um maldito tapete. Quando você comer sopa, ela vai filtrar as batatas. Que nem um terrier. Você tem pelo nas pernas? Nunca
notei.
Gansey não dignificou nada disso com uma resposta. Com um suspiro, ele se afastou da parede e apontou para o corvo.
- Vou voltar para a cama. Mantenha essa coisa em silêncio. Você me deve essa, Lynch.
- Como quiser - disse Ronan.
Gansey voltou para a cama, mas não se deitou. Estendeu o braço para pegar o diário, mas ele não estava ali; ele o havia deixado no Nino's na noite da briga. Pensou
em ligar para Malory, mas não sabia o que perguntar. Algo dentro dele parecia a noite, faminta, carente e negra. Ele pensou nas órbitas escuras dos olhos do cavaleiro
esquelético na carta da Morte.
Um inseto zuniu na janela, o tipo de zunido que vinha de um inseto com algum tamanho. Gansey pensou em seu autoinjetor de adrenalina, longe dali, no porta-luvas
do carro, distante demais para ser um antídoto útil se necessário. O inseto era provavelmente uma mosca ou uma maria-fedida ou ainda outra típula, mas, quanto mais
ela ficava ali, mais Gansey considerava a ideia de que poderia ser uma vespa ou uma abelha.
Provavelmente não era.
Gansey abriu os olhos e desceu suavemente da cama, inclinando-se para pegar um sapato ao seu lado. Caminhou cuidadosamente até a janela e procurou pelo ruído do
inseto. A sombra do telescópio era um monstro elegante no chão.
Apesar de o zunido ter desaparecido, ele precisou de apenas um momento para encontrar o inseto na janela: uma vespa subia rastejando pela esquadria de madeira, girando
para frente e para trás. Gansey não se mexeu. Ele a observou escalar e parar, escalar e parar. As luzes da rua formavam a sombra ligeira de suas pernas, de seu corpo
curvo, o ponto fino e frágil do ferrão.
Duas narrativas coexistiam na cabeça de Gansey. Uma era a imagem real: a vespa subindo a madeira, alheia à sua presença. A outra era uma imagem falsa, uma possibilidade:
a vespa zunindo no ar, encontrando sua pele, inserindo-lhe o ferrão, e sua alergia tornando-o uma arma mortal.
Muito tempo atrás, sua pele fora tomada por marimbondos, as asas batendo mesmo quando seu coração não batia mais.
Agora, ele sentia a garganta apertada e obstruída.
- Gansey?
A voz de Ronan soou logo atrás dele, com um timbre estranho e inicialmente irreconhecível. Gansey não se virou. A vespa acabara de mover as asas, quase levantando
voo.
- Cara, que merda! - disse Ronan. Ouviram-se três passos bem próximos, o chão estalando como um tiro, e então o sapato foi arrancado da mão de Gansey. Ronan o empurrou
para o lado e bateu com o sapato tão forte na janela que o vidro quase quebrou. Após o corpo seco da vespa cair sobre a madeira do chão, Ronan o procurou na escuridão
e o esmagou mais uma vez. - Merda - disse ele de novo. - Você é idiota?
Gansey não sabia dizer como se sentia, vendo a morte rastejando a centímetros dele, sabendo que em poucos segundos ele poderia ter passado de "um estudante promissor"
para "além da salvação". Ele se virou para Ronan, que pegara cuidadosamente a vespa por uma asa quebrada, para que Gansey não pisasse nela.
- O que você queria? - ele perguntou.
- O quê? - demandou Ronan.
- Você veio aqui por algum motivo.
Com um piparote, Ronan lançou o corpo pequeno da vespa no cesto de lixo ao lado da escrivaninha. O lixo estava transbordando de papéis amassados, então o corpo repicou
para fora e o forçou a encontrar uma fenda melhor para ele.
- Não consigo nem lembrar.
Gansey ficou ali parado e esperou que Ronan dissesse mais alguma coisa. Ronan mexeu um pouco mais na vespa antes de dizer algo, e, quando finalmente disse, não olhou
para Gansey.
- Que papo é esse de você e o Parrish caírem fora?
Não era o que Gansey esperara. Ele não tinha certeza de como falar sem machucar Ronan. Ele não podia mentir para ele.
- Você me conta o que ouviu, e eu te conto o que é verdade.
- O Noah me contou - disse Ronan - que, se você fosse embora, o Parrish iria com você.
Ele havia deixado que o ciúme se infiltrasse em sua voz, e isso tornou a resposta de Gansey mais fria do que poderia ter sido. Gansey tentava não favorecer ninguém.
- E o que mais o Noah te disse?
Com um esforço visível, Ronan deu um passo atrás e se recompôs. Nenhum dos irmãos Lynch gostava de parecer qualquer outra coisa que não deliberado, mesmo que fosse
deliberadamente cruel.
Em vez de responder, ele perguntou:
- Você quer que eu vá junto?
Algo atingiu o peito de Gansey.
- Eu levaria todos vocês a qualquer lugar comigo.
A luz do luar fez uma estranha escultura no rosto de Ronan, um retrato duro moldado de forma incompleta por um escultor que se esquecera de trabalhar com compaixão.
Ele inspirou pesadamente e soltou o ar de leve, sua respiração de fumante.
Após uma pausa, Ronan disse:
- Aquela noite. Tem alguma coisa...
Mas então parou e não disse mais nada. Era uma parada completa, do tipo que Gansey associava com segredos e culpa. Era uma parada que acontecia quando uma pessoa
se decidia a confessar, mas a boca a traía no fim.
- Tem o quê?
Ronan murmurou algo e sacudiu o cesto de lixo.
- Tem o quê, Ronan?
Ele disse:
- Uma coisa com a Motosserra e a médium, e também com o Noah. Eu acho que tem algo estranho acontecendo.
Gansey não conseguia esconder a exasperação da voz.
- Estranho não me ajuda. Eu não sei o que você quer dizer com isso.
- Eu não sei, cara, é maluco. Eu não sei o que te dizer. Estranho como a sua voz no gravador - respondeu Ronan. - Estranho como a filha da médium. As coisas parecem
maiores. Eu não sei bem o que estou dizendo. Achei que, de todas as pessoas, você acreditaria em mim.
- Eu não faço nem ideia do que você está me pedindo para acreditar.
Ronan disse:
- Está começando, cara.
Gansey cruzou os braços. Ele podia ver a asa negra da vespa morta, esmagada contra a trama do cesto de lixo. Então esperou que Ronan elaborasse a questão, mas tudo
que o garoto disse foi:
- Se eu pegar você encarando uma vespa de novo, vou deixar que ela te mate. Que se dane.
Sem esperar por uma resposta, ele se virou e voltou para o quarto.
Lentamente, Gansey pegou o sapato de onde Ronan o havia deixado. Quando se endireitou, percebeu que Noah tinha saído de seu quarto e estava ali, ao lado dele. Seu
olhar ansioso adejava de Gansey para o cesto de lixo. O corpo da vespa havia escorregado vários centímetros para baixo, mas ainda era visível.
- Que foi? - perguntou Gansey.
Alguma coisa no rosto apreensivo de Noah o fez lembrar dos rostos assustados que o cercavam, marimbondos em sua pele, o céu azul como a morte acima dele. Há muito,
muito tempo, ele havia recebido outra chance, e, ultimamente, o fardo de corresponder a ela parecia mais pesado.
Ele desviou o olhar de Noah, na direção da parede de vidraças. Mesmo agora, parecia que Gansey podia sentir a presença dolorosa das montanhas próximas, como se o
espaço entre ele e os picos fosse algo tangível. Era tão penoso quanto o semblante adormecido de Glendower.
Ronan estava certo. As coisas pareciam maiores. Talvez ele não tivesse encontrado a linha, ou o centro da linha, mas algo estava acontecendo, algo estava começando.
Noah disse:
- Não jogue fora.
Vários dias depois, Blue acordou bem antes do amanhecer. Sombras irregulares se amontoavam em seu quarto, vindas da luz noturna do corredor. Como todas as noites
desde a leitura, pensamentos sobre os traços elegantes de Adam e a memória da cabeça inclinada de Gansey lhe enchiam a mente tão logo o sono a soltava de seu domínio.
Blue não conseguia deixar de reproduzir repetidas vezes aquele episódio caótico em sua mente. A resposta volátil de Calla para Ronan, a linguagem íntima de Adam
e Gansey, o fato de Gansey não ser apenas um espírito no caminho dos corpos. Mas não era apenas com os garotos que ela estava preocupada, embora, tristemente, não
parecesse provável que Adam ligaria para ela um dia. Não, a coisa que mais a incomodava era a ideia de que sua mãe a havia proibido de fazer algo. Isso a atormentava
como uma coleira.
Blue empurrou as cobertas para se levantar.
Ela tinha certo carinho pela arquitetura esquisita do número 300 da Rua Fox; era um tipo de afeição meio a contragosto, nascida mais da nostalgia que de qualquer
afeto de verdade. Mas, sobre o que sentia pelo pátio nos fundos da casa, ela não tinha nenhuma dúvida. Uma faia enorme e frondosa abrigava todo o quintal. Sua bela
copa, perfeitamente simétrica, estendia-se de uma linha da cerca até a outra, tão densa que tingia de um verde exuberante mesmo o dia mais quente de verão. Apenas
a chuva mais pesada podia penetrar as folhas. Blue tinha um punhado de memórias de quando parava junto ao tronco imponente e liso em dias chuvosos, ouvindo as gotas
sibilarem, baterem e se dispersarem ao longo da copa, sem jamais alcançar o chão. Parada embaixo da faia, ela se sentia como se fosse a árvore, como se a chuva escorresse
por suas folhas e por sua casca, macia como outra pele roçando contra a dela.
Com um breve suspiro, Blue foi até a cozinha. Empurrou a porta dos fundos para abri-la, usando as duas mãos para fechá-la silenciosamente atrás de si. Após o anoitecer,
o quintal era seu mundo particular, privado e obscurecido. A cerca alta de madeira, coberta por uma madressilva bagunçada, bloqueava as luzes das varandas da vizinhança,
e a copa inescrutável da faia impedia a passagem da luz do luar. Normalmente, ela teria de esperar vários longos minutos para seus olhos se ajustarem à escuridão
relativa, mas não naquela noite.
Naquela noite, uma luz estranha, incerta, bruxuleava no tronco da árvore. Blue hesitou junto à porta, tentando entender a luz crepitante à medida que ela se deslocava
sobre a casca pálida e cinza. Colocando uma mão contra a parede lateral da casa - ainda quente do calor do dia -, ela se inclinou para frente. Dali, viu uma vela
do outro lado da árvore, aninhada nas raízes enroladas e expostas da faia. Uma chama trêmula sumia, aumentava e sumia de novo.
Blue deu um passo no pátio de tijolos rachados, então outro, olhando atrás de si de relance, para ver se alguém a observava da casa. De quem era aquele projeto?
A alguns metros da vela havia outro emaranhado de raízes lisas, e uma poça de água escura havia se juntado nelas. A água refletia a luz bruxuleante, como outra vela
por baixo da superfície escura.
Blue segurou a respiração tensa dentro de si enquanto dava outro passo.
De blusão solto e saia longa e rodada, Neeve estava ajoelhada próxima da vela e da pequena poça nas raízes. Com as belas mãos entrelaçadas no colo, estava tão imóvel
quanto a própria árvore e tão escura quanto o céu acima de sua cabeça.
Blue perdeu o fôlego de repente ao ver Neeve pela primeira vez, e então, ao erguer os olhos para seu rosto indistinto, o fôlego faltou-lhe novamente, como se a surpresa
se renovasse.
- Oh - ela sussurrou. - Desculpe. Eu não sabia que você estava aqui.
Mas Neeve não respondeu. Quando Blue olhou mais de perto, viu que os olhos da tia estavam fora de foco. Mas o que Blue não suportou ver foram as sobrancelhas; de
um modo estranho, elas não tinham nenhuma expressão. Ainda mais vazias que os olhos de Neeve eram aquelas sobrancelhas sem forma, esperando por informações, duas
linhas neutras e retas.
O primeiro pensamento de Blue foi de certa maneira clínico - não havia convulsões em que o sintoma era simplesmente ficar sentado, imóvel? Como elas eram chamadas?
Mas então ela pensou na tigela cheia de suco de uva e cranberry na mesa da cozinha. Era muito mais provável que ela tivesse interrompido algum tipo de meditação.
Mas não parecia uma meditação. Parecia... um ritual. Sua mãe não fazia rituais. Maura certa vez dissera irritada para um cliente: "Eu não sou uma bruxa". E certa
vez dissera triste para Persephone: "Eu não sou uma bruxa". Mas talvez Neeve fosse. Blue não estava certa de quais eram as regras nessa situação.
- Quem está aí? - perguntou Neeve.
Mas não era a voz dela. Era algo mais profundo e distante.
Um pequeno calafrio desagradável subiu pelos braços de Blue. Em algum lugar na árvore, um pássaro silvou. Pelo menos ela achou que era um pássaro.
- Venha para a luz - disse Neeve.
A água se moveu nas raízes, ou talvez tenha sido meramente o reflexo em movimento da vela solitária. Quando Blue abriu seu campo de visão, viu uma estrela de cinco
pontas marcada em torno da faia. Uma ponta era a vela, e outra, a poça de água escura. Uma vela apagada marcava a terceira ponta, e uma tigela vazia, a quarta. Por
um momento, Blue achou que estava equivocada, que não se tratava de uma estrela de cinco pontas. Mas então ela se deu conta: Neeve era a última ponta.
- Eu sei que você está aí - disse a não Neeve na voz que soava como lugares sombrios, distantes do sol. - Eu posso sentir o seu cheiro.
Algo subiu rastejando muito lentamente pela nuca de Blue, por dentro de sua pele. Era um rastejar tão horrivelmente real que ela sentiu uma vontade enorme de lhe
dar um tapa ou arranhá-lo.
Blue queria entrar e fingir que não tinha saído da casa, mas não queria deixar Neeve para trás se algo...
Blue não queria pensar sobre isso, mas pensou.
Ela não queria deixar Neeve para trás se algo a tivesse possuído.
- Estou aqui - disse Blue.
A chama da vela se estendeu longa, muito longa.
A não Neeve perguntou:
- Qual é o seu nome?
Ocorreu a Blue que ela não tinha exatamente certeza se a boca de Neeve havia se movido quando ela falou. Era difícil olhar para seu rosto.
- Neeve - mentiu Blue.
- Venha onde eu possa vê-la.
Havia definitivamente algo se movendo na pequena poça escura. A água refletia cores que não estavam na vela. Elas se deslocavam e se moviam em um padrão completamente
diferente do movimento da chama.
Blue sentiu um arrepio.
- Eu sou invisível.
- Ahhhhhhh - suspirou a não Neeve.
- Quem é você? - perguntou Blue.
A chama da vela ficou muito alta e fina, a ponto de se romper. Ela não se estendia para o céu, mas para Blue.
- Neeve - disse a não Neeve.
Havia um tom matreiro na voz sombria agora. Algo sagaz e malicioso, algo que fazia Blue querer olhar para trás. Mas ela não desviou o olhar da vela, pois temia que
a chama a tocasse se ela lhe desse as costas.
- Onde você está? - perguntou Blue.
- No caminho dos corpos - rosnou a não Neeve.
Blue percebeu que sua respiração formava uma nuvem à sua frente. Arrepios lhe alfinetavam os braços, rápidos e dolorosos. Na meia-luz da vela, Blue notou que a respiração
de Neeve também era visível.
A nuvem da respiração de Neeve se partia sobre a poça, como se algo físico estivesse subindo da água para romper seu caminho.
Avançando com ímpeto, Blue deu um pontapé na tigela vazia, derrubou a vela apagada e chutou terra na direção da poça escura.
A vela se apagou.
Houve um minuto de completa escuridão. Não havia nenhum ruído, como se a árvore e o jardim à sua volta não estivessem mais em Henrietta. Apesar do silêncio, Blue
não se sentia sozinha, e era um sentimento terrível.
Eu estou dentro de uma bolha, ela pensou furiosamente. Sou uma fortaleza. Há um vidro em toda minha volta. Posso olhar para fora, mas nada consegue entrar. Sou intocável.
Todos os exercícios visuais que Maura havia passado a ela para se proteger de um ataque paranormal não pareciam nada em comparação à voz que saíra de Neeve.
Mas então não havia mais nada. Seus arrepios desapareceram tão rapidamente quanto tinham aparecido. Lentamente, seus olhos se ajustaram à escuridão - embora parecesse
que a luz havia escorrido de volta para o mundo -, e ela encontrou Neeve, ainda ajoelhada ao lado da poça de água.
- Neeve - sussurrou Blue.
Por um momento, nada aconteceu, então Neeve ergueu o queixo e as mãos.
Por favor, seja Neeve. Por favor, seja Neeve.
O corpo inteiro de Blue estava pronto para correr.
Foi quando ela viu que as sobrancelhas de Neeve estavam alinhadas e firmes sobre os olhos, apesar de as mãos tremerem. Blue soltou um suspiro de alívio.
- Blue? - perguntou Neeve, com a voz soando normal. E, em seguida, com uma súbita compreensão: - Ah. Você não vai contar para a sua mãe sobre isso, vai?
Blue a encarou.
- É claro que vou! O que era isso? O que você estava fazendo?
Seu coração ainda batia rápido, e ela percebeu que estava aterrorizada, agora que podia pensar no que havia acontecido.
Neeve contemplou o pentagrama interrompido, a vela e a tigela derrubadas.
- Eu estava fazendo uma leitura.
A voz meiga apenas enfureceu Blue.
- Leitura é o que você fez antes. Isso não era a mesma coisa!
- Eu estava buscando aquele espaço que vi da outra vez. Eu esperava fazer contato com alguém que estivesse nele para descobrir o que era.
A voz de Blue não soou nem de perto tão firme quanto ela gostaria.
- Alguém falou. Não era você quando eu cheguei aqui.
- Bem - disse Neeve, parecendo um pouco aborrecida -, isso foi culpa sua. Você deixa tudo mais intenso. Eu não estava esperando que você aparecesse aqui, ou teria...
Ela deixou a frase inacabada, olhando para o toco da vela e inclinando a cabeça para o lado. Não era um gesto particularmente humano, e fez Blue se lembrar do calafrio
desagradável que sentira antes.
- Teria o quê? - demandou Blue. Ela também estava um pouco contrariada, por a tia lhe atribuir, de algum modo, a culpa pelo que quer que acontecera há pouco. - O
que foi aquilo? A coisa disse que estava no caminho dos corpos. Isso é o mesmo que uma linha ley?
- É claro - disse Neeve. - Henrietta está sobre uma linha ley.
Isso significava que Gansey estava certo. Também significava que Blue sabia exatamente onde corria a linha ley, pois vira o espírito de Gansey caminhar ao longo
dela alguns dias antes.
- É por isso que é fácil ser médium aqui - disse Neeve. - A energia é forte.
- Energia, como a minha energia? - perguntou Blue.
Neeve fez um gesto complicado com a mão antes de pegar a vela. Ela a segurou de cabeça para baixo à sua frente e apertou o pavio para ter certeza de que ele estava
inteiramente apagado.
- Energia como a sua. Ela alimenta coisas. Como vocês colocaram a questão? Torna a conversa mais alta. A lâmpada mais brilhante. Tudo que precisa de energia para
viver anseia por ela, da mesma maneira que anseiam por sua energia.
- O que você viu? - perguntou Blue. - Quando você estava...
- Fazendo a leitura - Neeve terminou por ela, embora Blue não tivesse certeza de que seria assim que ela terminaria a frase. - Existe uma pessoa lá que sabe o seu
nome. E existe outra pessoa que está procurando por essa coisa que você está procurando.
- Que eu estou procurando?! - ecoou Blue, assombrada.
Não havia nada que ela estivesse procurando. A não ser que Neeve estivesse falando do misterioso Glendower. Ela se lembrou daquele sentimento de conexão, de se sentir
envolvida naquela rede de garotos corvos, reis adormecidos e linhas ley. De sua mãe lhe dizendo para ficar longe deles.
- Sim, você sabe o que é - respondeu Neeve. - Ah! Tudo parece tão mais claro agora...
Blue pensou na chama da vela, estendida e faminta, nas luzes inconstantes dentro da poça de água. Sentiu frio em algum lugar muito profundo dentro de si.
- Você ainda não disse o que era aquilo. Na água.
Então Neeve olhou para ela, com todas as provisões reunidas nos braços. Seu olhar era inquebrantável e poderia durar uma eternidade.
- Porque eu não faço ideia - disse ela.
Whelk tomou a liberdade de mexer no armário de Gansey antes das aulas no dia seguinte.
O armário de Gansey, um dos poucos em uso, estava apenas algumas portas de distância do velho armário de Whelk, e o sentimento de abri-lo trouxe de volta uma torrente
de memórias e nostalgia. Em outra época, ele havia sido isto: um dos garotos mais ricos de Aglionby, andando com os amigos que quisesse, com as garotas de Henrietta
que lhe chamassem atenção, comparecendo às aulas que tivesse vontade. Seu pai não sentia arrependimento algum em fazer uma doação extra para ajudar Whelk a passar
em uma disciplina que ele havia deixado de frequentar por algumas semanas. Whelk ansiava por seu velho carro. Os policiais dali conheciam bem o seu pai, eles nem
se davam ao trabalho de parar Whelk.
E agora Gansey era o rei ali, e não sabia nem como usar sua condição.
Graças ao código de honra de Aglionby, não havia trancas em nenhum dos armários, o que permitia que Whelk abrisse o de Gansey sem problemas. Dentro, encontrou vários
cadernos de espiral empoeirados com apenas algumas páginas usadas. Whelk deixou uma nota no armário ("Pertences removidos para aplicação de inseticida contra baratas"),
caso Gansey decidisse ir para a escola duas horas mais cedo, e então se retirou para um dos banheiros desativados dos funcionários para examinar seu achado.
Sentou de pernas cruzadas no azulejo intacto, mas empoeirado, ao lado da pia, e descobriu que Richard Gansey III era mais obcecado com a linha ley do que ele havia
sido um dia. Algo a respeito de todo o processo de pesquisa parecia... frenético.
O que há de errado com esse garoto?, perguntou-se Whelk, e então imediatamente se sentiu estranho por ter ficado tão velho a ponto de pensar em Gansey como um garoto.
Ouviu saltos de sapato no corredor do lado de fora do banheiro. O aroma de café veio por baixo do vão da porta; Aglionby estava começando a acordar. Whelk passou
para o caderno seguinte.
Aquele não era sobre a linha ley. Só trazia questões históricas sobre o rei galês Owen Glendower, e Whelk não se interessou. Ele folheou, folheou, folheou, pensando
que o assunto não estava relacionado, até perceber a tese que Gansey estava defendendo para vincular os dois elementos: Glendower e a linha ley. Comparsa ou não,
Gansey sabia como vender uma história.
Whelk se concentrou em uma anotação.
"Quem quer que venha a acordar Glendower receberá um favor (ilimitado?) (sobrenatural?) (algumas fontes dizem recíproco, o que isso quer dizer?)."
Czerny nunca havia se preocupado com o resultado final da busca da linha ley. A princípio, Whelk também não se preocupara. O apelo havia sido meramente o enigma
dela. Então, uma tarde, Czerny e Whelk estavam parados no meio do que parecia ser um círculo naturalmente formado de pedras magneticamente carregadas, empurrando
experimentalmente uma das pedras fora de lugar. A onda de energia resultante havia lançado os dois ao chão e criado uma tênue aparição do que parecia ser uma mulher.
A linha ley era uma energia inexplicável, incontrolável, bruta. Algo lendário.
Quem quer que viesse a controlar as linhas ley seria mais do que rico. Quem quer que viesse a controlar as linhas ley seria algo que os outros garotos de Aglionby
só poderiam começar a aspirar.
Mesmo assim Czerny não havia se importado, não de verdade. Ele fora a criatura mais sem ambição e doce que Whelk já vira na vida, razão pela qual provavelmente Whelk
gostasse tanto de andar com ele. Czerny não se importava em não ser melhor que os outros estudantes de Aglionby. Ele estava contente em acompanhar Whelk. Ultimamente,
quando Whelk tentava se confortar, dizia para si mesmo que Czerny era um cordeirinho, mas às vezes ele se distraía e se lembrava dele como um sujeito leal.
As duas coisas não precisavam ser diferentes, não é?
- Glendower - disse Whelk em voz alta, testando a palavra, que ecoou pelas paredes do banheiro, vazia e metálica. Ele se perguntou o que Gansey, o estranho e desesperado
Gansey, estava pensando em pedir como favor.
Whelk se levantou do chão do banheiro e recolheu todos os cadernos. Levaria apenas alguns minutos para copiá-los na sala dos professores, e, se alguém perguntasse,
ele diria que Gansey havia pedido para ele fazê-lo.
Glendower.
Se Whelk o encontrasse, pediria o que sempre desejara: controlar as linhas ley.
Na tarde seguinte, Blue saiu descalça na frente do número 300 da Rua Fox e se sentou no meio-fio para esperar por Calla debaixo das árvores azul-esverdeadas. Durante
a tarde inteira, Neeve ficara trancada em seu quarto e Maura estivera fazendo leituras de tarô dos anjos para um grupo de pessoas de fora que participava de um retiro
de escritores. Então Blue havia tirado a tarde inteira para pensar no que fazer a respeito de ter encontrado Neeve no quintal. E o que fazer envolvia Calla.
Ela estava começando a ficar agitada quando a carona de Calla a deixou na calçada.
- Você está se colocando na rua com o lixo? - Calla perguntou enquanto descia do veículo, azul-esverdeado como todo o resto no dia. Ela usava um vestido estranhamente
respeitável com sandálias de strass duvidosamente chiques. Com um aceno lânguido para o motorista, ela se virou para Blue quando o carro se afastou.
- Eu preciso te fazer uma pergunta - disse Blue.
- E é uma pergunta que fica melhor ao lado de uma lata de lixo? Segure isso - disse Calla, passando com esforço uma das sacolas que tinha no braço para o de Blue.
Ela cheirava a jasmim e pimentão, o que queria dizer que tivera um dia ruim no trabalho. Blue não estava inteiramente certa a respeito do que Calla fazia para ganhar
a vida, mas sabia que tinha algo a ver com Aglionby, com lidar com papeladas e praguejar com estudantes, muitas vezes nos fins de semana. Qualquer que fosse sua
descrição de trabalho, envolvia recompensar a si mesma com burritos em dias ruins.
Calla começou a subir a passos largos o acesso até a porta da frente.
Blue a seguiu desamparada, arrastando a sacola, que parecia conter livros ou corpos.
- A casa está cheia.
Apenas uma das sobrancelhas de Calla estava prestando atenção.
- Sempre está cheia.
Elas estavam quase na porta da frente. Dentro, todos os quartos estavam ocupados com tias, primos e mães. O som raivoso da música de doutorado de Persephone já era
audível. A única chance de ter privacidade era na rua.
Blue disse:
- Eu quero saber por que a Neeve está aqui.
Calla parou e olhou para ela por sobre o ombro.
- Ah, que graça - respondeu de maneira pouco agradável. - Eu também gostaria de saber a causa da mudança climática, mas ninguém vai me contar.
Agarrando a sacola de Calla como refém, Blue insistiu:
- Eu não tenho mais seis anos. Talvez todo mundo possa ver o que quiser em um baralho de cartas, mas estou cansada de me esconderem as coisas.
Agora ela tinha o interesse de ambas as sobrancelhas de Calla.
- Você está certa - concordou Calla. - Eu me perguntava quando você se rebelaria contra nós. Por que não pergunta isso à sua mãe?
- Porque estou brava com ela por me dizer o que fazer.
Calla trocou o peso de lado.
- Pegue outra sacola. Qual é a sua ideia?
Blue aceitou a sacola marrom-escura e com cantos. Parecia haver uma caixa dentro.
- Que você simplesmente me conte.
Com uma das mãos recém-liberadas, Calla tocou o lábio de leve com um dedo. A boca e as unhas tinham um tom profundamente índigo, a cor da tinta de um polvo, a cor
das sombras mais profundas no jardim rochoso da frente.
- A única coisa é que não tenho certeza se o que nos foi dito é verdade.
Blue cambaleou um pouco. A ideia de mentir para Calla, Maura ou Persephone parecia ridícula. Mesmo se elas não soubessem a verdade, perceberiam a mentira. Mas parecia
haver algo dissimulado a respeito de Neeve, sobre o fato de ela fazer uma leitura tarde da noite, onde achava provável que ninguém a veria.
Calla disse:
- Ela deveria estar aqui procurando por alguém.
- Meu pai - tentou adivinhar Blue.
Calla não disse sim, mas também não disse não. Em vez disso, respondeu:
- Mas acho que a visita se tornou algo mais para ela, agora que ela está aqui em Henrietta já faz um tempo.
Elas olharam fixamente uma para outra por um momento, como se conspirassem um plano.
- Minha ideia é diferente, então - disse Blue, finalmente. Tentou arquear a sobrancelha para combinar com a de Calla, mas faltou um pouco. - Nós procuramos nas coisas
da Neeve. Você segura algum objeto e eu fico ao seu lado.
A boca de Calla ficou muito pequena. Suas meditações psicométricas eram muitas vezes vagas, mas, com Blue ao seu lado, seu dom ficava mais agudo. Certamente fora
um momento dramático quando ela tocara a tatuagem de Ronan. Se ela segurasse as coisas de Neeve, elas poderiam ter algumas respostas concretas.
- Pegue esta sacola - disse Calla, passando a Blue a última delas. Era a menor de todas, feita de couro vermelho-sangue e incrivelmente pesada. Enquanto Blue dava
um jeito de segurá-la com as outras, Calla cruzou os braços e tamborilou os dedos de unhas índigo um pouco abaixo dos ombros.
- Ela teria que ficar fora do quarto por pelo menos uma hora - disse. - E a Maura também teria que estar ocupada.
Calla havia observado certa vez que Maura não tinha animais de estimação porque cuidar de seus princípios já consumia tempo demais. Maura se dedicava a muitas coisas,
e uma delas dizia respeito à sua privacidade.
- Mas você faria isso?
- Vou ficar sabendo de mais coisas hoje - disse Calla. - Sobre a agenda dela. O que é isso? - perguntou, com a atenção se desviando para um carro estacionado no
fim da calçada. Tanto Calla quanto Blue se viraram para ler o adesivo na porta do passageiro: FLORES DA ANDI! A motorista remexeu no banco de trás do carro por dois
minutos antes de subir a calçada com o menor arranjo de flores do mundo. Sua franja fofa era maior do que as flores.
- É difícil encontrar este lugar! - exclamou a mulher.
Calla apertou os lábios. Ela nutria um ódio puro e irascível por qualquer coisa que pudesse ser classificada como conversa fiada.
- O que é tudo isso? - perguntou, fazendo a pergunta soar como se as flores fossem filhotinhos indesejados.
- Isto é para... - respondeu a mulher, atrapalhada, à procura do cartão.
- Orla? - tentou adivinhar Blue.
Orla sempre recebia flores de homens apaixonados, de Henrietta e de outros lugares. Não eram só flores que eles mandavam. Alguns mandavam pacotes de spas. Outros,
cestas de frutas. Um, memoravelmente, mandou um retrato a óleo de Orla. Ele a havia pintado de perfil, de maneira que o observador só conseguia ver completamente
seu pescoço longo e elegante, as maçãs do rosto clássicas, os olhos românticos, de pálpebras pesadas, e o nariz enorme - o traço de que ela menos gostava. Orla rompera
com ele imediatamente.
- Blue? - a mulher perguntou. - Blue Sargent?
Em um primeiro momento, Blue não compreendeu que ela queria dizer que as flores eram para ela. A mulher teve de empurrá-las em sua direção, e então Calla teve de
pegar de volta uma das sacolas para que a garota fosse capaz de aceitá-las. Quando a mulher voltou para o carro, Blue virou o arranjo na mão. Era apenas um pequeno
ramo de cravos-de-amor em torno de um cravo branco; as flores eram mais cheirosas que bonitas.
Calla comentou:
- A entrega deve ter custado mais do que as flores.
Tateando em torno dos caules rijos, Blue encontrou um pequeno cartão. Dentro, um garrancho feminino havia transcrito a mensagem:
Espero que você ainda queira que eu ligue. - Adam
Agora o pequeno ramo de flores fazia sentido. Elas combinavam com o blusão puído de Adam.
- E você está corando - disse Calla desaprovadoramente. Ela estendeu uma mão para as flores, a qual Blue afastou com uma palmada. Com sarcasmo, Calla acrescentou:
- Quem quer que tenha sido, ele realmente se esforçou, não é?
Blue tocou a ponta do cravo branco no queixo. Era tão leve que não parecia mesmo que ela estivesse tocando algo. Não era um retrato ou uma cesta de frutas, mas ela
não conseguia imaginar Adam enviando nada mais dramático. Aquelas pequenas flores eram tranquilas e frugais, assim como ele.
- Acho que são bonitas.
Blue teve de morder o lábio para evitar um sorriso bobo. O que ela queria fazer era abraçar as flores e dançar, mas ambas as coisas pareciam insensatas.
- Quem é ele? - perguntou Calla.
- Prefiro não dizer. Tome suas sacolas - Blue estendeu um braço de maneira que a sacola marrom e a outra, de lona, escorregaram para as mãos abertas de Calla.
Esta balançou a cabeça, sem parecer incomodada. No fundo, Blue suspeitava que ela era uma romântica.
- Calla? - perguntou Blue. - Você acha que eu devia contar para os garotos onde fica o caminho dos corpos?
Ela fitou Blue por tanto tempo quanto um olhar de Neeve. Então disse:
- O que faz você pensar que eu posso responder a essa pergunta?
- Porque você é adulta - respondeu Blue. - E imagino que tenha aprendido coisas até chegar à idade adulta.
- O que eu acho - disse Calla - é que você já se decidiu.
Blue baixou os olhos. Era verdade que ela ficava acordada à noite por causa do diário de Gansey e pela sugestão de algo a mais quanto ao mundo. Também era verdade
que era assediada pela ideia de que talvez, apenas talvez, houvesse um rei adormecido e que ela seria capaz de colocar a mão sobre seu rosto e sentir um coração
secular dentro do peito dele.
Mas, mais importante que qualquer uma dessas coisas, era o rosto dela naquela carta do pajem de copas, os ombros de um garoto salpicados pela chuva no adro da igreja
e uma voz dizendo: "Gansey. É só isso".
Assim que ela vira a morte diante dele, e vira que ele era real e que ela estava destinada a ter uma parte nisso, não havia a menor possibilidade de que ficasse
simplesmente parada e deixasse tudo acontecer.
- Não conte para a minha mãe - disse Blue.
Com um resmungo evasivo, Calla abriu a porta subitamente, deixando Blue com o buquê no degrau. As flores não pesavam nada, mas, para Blue, tinham a sensação de mudança.
Hoje, pensou Blue, é o dia em que eu paro de ouvir o futuro e passo a vivê-lo.
- Blue, se você conhecê-lo... - começou Calla, parada a meio passo da entrada. - É melhor proteger seu coração. Não esqueça que ele vai morrer.
Ao mesmo tempo em que as flores estavam sendo entregues para o número 300 na Rua Fox, Adam chegava à Indústria Monmouth com sua bicicleta de certa maneira patética.
Ronan e Noah já estavam na rua no terreno coberto de vegetação, construindo rampas de madeira para algum propósito pouco recomendável.
Ele tentou duas vezes persuadir o descanso enferrujado a segurar a bicicleta de pé antes de largá-la de lado. O capim se enfiava pelos raios das rodas. Ele perguntou:
- Quando você acha que o Gansey vai chegar aqui?
Ronan não respondeu imediatamente. Ele estava deitado debaixo do BMW, medindo a largura dos pneus com uma trena amarela.
- Vinte e cinco centímetros, Noah.
Parado ao lado de uma pilha de madeira compensada, Noah perguntou:
- Só isso? Não parece muito.
- Eu mentiria para você? Vinte e cinco centímetros - disse Ronan, empurrando-se para sair debaixo do carro e levantando os olhos para Adam. Ele havia deixado a sombra
de barba malfeita se tornar uma barba de vários dias, provavelmente para alfinetar a incapacidade de Gansey de deixar crescer pelos na cara. Agora parecia o tipo
de pessoa da qual as mulheres esconderiam as bolsas e os bebês.
- Vai saber. Que horas ele disse?
- Três.
Ronan se pôs de pé e os dois se viraram para observar Noah trabalhando com os compensados para as rampas. Trabalhando com na verdade queria dizer olhando para. Noah
mantinha os indicadores a vinte e cinco centímetros um do outro e, através do espaço entre eles, olhava perplexo para a madeira abaixo. Não havia ferramentas à vista.
- O que você vai fazer com essas coisas? - perguntou Adam.
Ronan abriu seu sorriso de lagarto.
- Uma rampa. BMW. A maldita lua.
Isso era tão típico de Ronan. Seu quarto dentro da Monmouth estava cheio de brinquedos caros, mas, como uma criança mimada, ele terminava brincando na rua com galhos.
- A trajetória que você está construindo não sugere uma lua - respondeu Adam. - Sugere o fim da sua suspensão.
- Não preciso da sua opinião, cientista.
E ele provavelmente não precisava. Ronan não precisava de física. Ele podia intimidar até um pedaço de compensado a fazer o que ele queria. Agachando-se ao lado
da bicicleta, Adam mexia de novo no descanso, tentando ver se ele conseguiria soltá-lo sem quebrá-lo inteiramente.
- Qual é o seu problema, mesmo? - perguntou Ronan.
- Estou tentando decidir quando eu devo ligar para Blue.
Dizer isso em voz alta era como um convite à gozação de Ronan, mas tratava-se de um daqueles fatos que precisavam ser reconhecidos.
Noah disse:
- Ele mandou flores para ela.
- Como você sabe? - demandou Adam, mais mortificado que curioso.
Noah sorriu distante e soltou com um chute uma das placas do compensado, parecendo vitorioso.
- Para a médium? Você sabe o que era aquele lugar? - perguntou Ronan.- Um palácio de castração. Se você sair com essa garota, é melhor mandar suas bolas em vez de
flores.
- Você é um neandertal.
- Às vezes você parece o Gansey falando - disse Ronan.
- Às vezes você não.
Noah deu sua risada suspirada, quase sem som. Ronan cuspiu no chão ao lado do BMW.
- Eu não tinha me dado conta de que o tipo favorito de Adam Parrish eram "anãs" - disse ele.
Ele não estava falando sério, mas Adam se sentiu, de uma hora para outra, cansado de Ronan e de sua inutilidade. Desde o dia da briga no Nino's, Ronan já havia recebido
diversas advertências em sua caixa de estudante em Aglionby, avisando-o sobre as coisas terríveis que aconteceriam se ele não começasse a melhorar suas notas. Se
ele não começasse a tentar tirar notas. Em vez disso, Ronan estava ali, construindo rampas.
Algumas pessoas invejavam o dinheiro de Ronan. Adam invejava seu tempo. Ser tão rico quanto Ronan significava ser capaz de ir à escola e não fazer mais nada, ter
intervalos preciosos de tempo nos quais ele podia estudar, escrever ensaios e dormir. Adam não admitiria para ninguém, muito menos para Gansey, mas ele estava cansado.
Cansado de ter de encontrar tempo para fazer a tarefa de casa entre seus empregos de meio período, de encontrar tempo para dormir, encontrar tempo para a caçada
a Glendower. Os empregos pareciam um tamanho desperdício de tempo: em cinco anos, ninguém se importaria se ele havia trabalhado em uma fábrica de trailers. As pessoas
só se importariam em saber se ele havia se formado em Aglionby com notas perfeitas, ou se havia encontrado Glendower, ou se ainda estava vivo. E Ronan não tinha
de se preocupar com nada disso.
Dois anos antes, Adam havia decidido ir para Aglionby, e, na sua cabeça, Ronan tinha algo a ver com isso. Sua mãe o mandara para o supermercado com o cartão bancário
dela - tudo que havia na esteira era um tubo de pasta de dentes e quatro latas de ravióli de micro-ondas -, e a caixa dissera naquele instante que não havia fundos
na conta bancária para pagar a compra. Embora não fosse sua culpa, havia algo peculiarmente humilhante e íntimo a respeito do momento, curvado numa fila de supermercado,
revirando os bolsos para fingir que talvez tivesse dinheiro para pagar a conta. Enquanto ele procurava, um garoto de cabelo raspado na fila da outra caixa seguiu
rapidamente, passou o cartão de crédito e ensacou suas coisas em poucos segundos.
Até a maneira como o garoto havia se deslocado, lembrou Adam, havia chamado sua atenção: confiante e despreocupado, com os ombros jogados para trás, o queixo empinado,
o filho de um imperador. Enquanto a caixa passava o cartão mais uma vez, ambos fingindo que a máquina poderia ter lido errado a fita magnética, Adam observava o
garoto sair para a calçada onde um carro preto brilhante o esperava. Quando ele abriu a porta, Adam viu que havia outros dois garotos usando gravatas e blusões com
um corvo no peito. Pareciam desprezivelmente despreocupados enquanto dividiam as bebidas.
Ele tivera de deixar as latas e a pasta de dentes na esteira, os olhos queimando com lágrimas de vergonha que não caíam.
Desde então, ele nunca quisera tanto ser outra pessoa.
Na sua cabeça, aquele garoto era Ronan, mas, em retrospectiva, Adam pensou que aquilo seria impossível. Ele não teria idade suficiente para ter carteira de motorista.
Era apenas outro estudante de Aglionby com um cartão de crédito ilimitado e um carro bacana. Aquele dia não fora a única razão pela qual ele decidira lutar para
entrar na Aglionby, mas fora um catalisador. A memória imaginada de Ronan, despreocupado e superficial, mas com o orgulho absolutamente intacto, e Adam, acovardado
e humilhado, enquanto uma fila de senhoras esperava atrás dele.
Ele ainda não era aquele outro garoto na caixa registradora, mas estava mais próximo.
Adam olhou para o relógio velho e castigado, para ver o tamanho do atraso de Gansey, e disse para Ronan:
- Me passe seu telefone.
Com uma sobrancelha erguida, Ronan pegou o telefone do teto do BMW.
Adam digitou o número da médium. Tocou apenas duas vezes, e então uma voz suspirada disse:
- Adam?
Sobressaltado com o som do seu nome, ele respondeu:
- Blue?
- Não - disse a voz. - Persephone. - Em seguida, disse para alguém ao fundo: - Dez dólares, Orla. Essa foi a aposta. Não, a identidade de quem está fazendo a chamada
não está aparecendo. Está vendo? - Então, de volta para Adam: - Desculpe, viu? Eu sou terrível quando há uma disputa envolvida. Você é o garoto da camiseta da Coca-Cola,
certo?
Adam levou um momento para se dar conta de que ela se referia à camiseta que ele usara no dia da leitura.
- Ah, hum... Sou.
- Que bom. Vou chamar a Blue.
Houve um instante breve e desconfortável enquanto vozes murmuravam ao fundo. Adam se defendia dos mosquitos aos tapas; era preciso cortar a grama do estacionamento
de novo. Estava difícil ver o asfalto em alguns lugares.
- Não achei que você fosse ligar - disse Blue.
Adam não devia estar esperando realmente ouvir Blue ao telefone, pois a surpresa que ele sentiu quando ouviu a voz dela fez seu estômago parecer vazio. Ronan dava
risadinhas de um jeito que o fez pensar em lhe dar um soco no braço.
- Eu disse que ia ligar.
- Obrigada pelas flores. São bonitas. - Então sussurrou: - Orla, sai daqui!
- Parece agitado por aí.
- Está sempre agitado por aqui. Tem trezentas e quarenta e duas pessoas morando aqui, e todas elas querem estar nesse quarto. O que você vai fazer hoje? - Blue perguntou
muito naturalmente, como se fosse a coisa mais lógica no mundo para eles terem uma conversa ao telefone, como se já fossem amigos.
Ficou mais fácil para Adam dizer:
- Explorar. Quer vir junto?
Ronan arregalou os olhos. Não importava o que ela dissesse agora, o telefonema havia valido a pena pela expressão de choque genuína no rosto de Ronan.
- Que tipo de exploração?
Protegendo os olhos, Adam ergueu a cabeça para o céu. Ele achou que estava ouvindo Gansey chegar.
- Montanhas. Qual a sua opinião a respeito de helicópteros?
Houve uma longa pausa.
- O que você quer dizer? Eticamente falando?
- Como um meio de transporte.
- Mais rápidos que camelos, mas menos sustentáveis. Tem um helicóptero no seu futuro hoje?
- Tem. O Gansey quer procurar a linha ley, e normalmente elas são mais fáceis de ser vistas do ar.
- E, é claro, ele simplesmente... arrumou um helicóptero.
- Ele é o Gansey.
Houve outra longa pausa. Uma pausa para refletir, pensou Adam, de maneira que não a interrompeu. Por fim, Blue disse:
- Ok, eu vou junto. Isso é um... O que é isso?
Adam respondeu com sinceridade:
- Não faço ideia.
Era extraordinariamente fácil desobedecer a Maura.
Maura Sargent tinha muito pouca experiência em disciplinar filhos, e Blue tinha muito pouca experiência em ser disciplinada, de maneira que não havia nada que a
impedisse de ir com Adam quando ele a encontrou na frente da casa. Ela nem sentiu culpa, já que nem nisso tinha experiência ainda. Realmente, a coisa mais extraordinária
sobre toda a situação era como ela se sentia esperançosa, apesar de todas as probabilidades. Ela estava indo contra a vontade de sua mãe, saindo com um garoto, saindo
com um garoto corvo. Ela deveria temer a situação.
Mas era muito difícil imaginar Adam como um garoto corvo quando ele a cumprimentou, com as mãos elegantemente nos bolsos, fragrante com o odor empoeirado de grama
cortada. O machucado que ele tinha estava antigo e por isso mesmo mais desagradável de olhar.
- Você está ótima - disse ele, caminhando com ela pela calçada.
Ela não tinha certeza se ele estava falando sério. Blue usava botas pesadas que encontrara em uma loja de artigos de segunda mão (ela as atacara com linha de bordado
e uma agulha robusta) e um vestido que fizera alguns meses antes, com vários pedaços diferentes de tecidos verdes. Alguns deles listrados, outros de crochê e outros
transparentes. O vestido fazia Adam parecer bastante conservador, como se ela o estivesse raptando. Eles não pareciam nem um pouco um casal, refletiu Blue um pouco
inquieta.
- Obrigada - ela respondeu. E então, antes que perdesse a coragem, perguntou: - Por que você queria o meu telefone?
Adam seguiu caminhando, mas não desviou o olhar. Ele parecia tímido até não parecer mais.
- Por que eu não iria querer?
- Não me entenda errado - respondeu Blue, sentindo as bochechas um pouco quentes, mas, como a conversa seguia bem avançada, não houve como voltar atrás. - Porque
eu sei que você vai achar que eu me sinto mal quanto a isso, e não é verdade.
- Tudo bem.
- Porque eu não sou bonita. Não da maneira que os garotos da Aglionby parecem gostar.
- Eu estudo na Aglionby - disse Adam.
Ele não parecia estudar na Aglionby como os outros garotos estudavam lá.
- Eu acho você bonita - disse ele.
Quando Adam disse isso, ela ouviu seu sotaque de Henrietta pela primeira vez naquele dia. Em uma árvore próxima, um cardeal chamou: uik, uik, uik. Os tênis de Adam
se arrastavam na calçada. Blue considerou o que ele havia dito, e então um pouco mais.
- Blé - exclamou por fim. Blue se sentia como quando lera pela primeira vez o cartão com as flores. Estranhamente desconcertada. Era como se as palavras dele tivessem
fiado uma espécie de linha entre eles, e ela sentia que devia aliviar a tensão de algum modo. - Mas obrigada. Eu também acho você bonito.
Ele deu sua risada surpresa.
- Eu tenho outra pergunta - disse Blue. - Lembra da última coisa que minha mãe disse para o Gansey?
A expressão pesarosa do rosto deixou claro que ele se lembrava.
- Então - disse Blue, respirando fundo. - Ela disse que não ia ajudar. Mas eu não.
Após Adam ter ligado, Blue havia rabiscado apressadamente um mapa impreciso para a igreja sem nome onde ela havia se sentado com Neeve na véspera do Dia de São Marcos.
Eram apenas umas poucas linhas paralelas para indicar o caminho principal, algumas ruas laterais de nomes complicados e, por fim, um quadrado rotulado apenas de
IGREJA.
Ela passou para Adam o mapa, pouco chamativo em um pedaço de papel amassado de caderno. Então, tirou o diário de Gansey da sacola e o entregou para o garoto.
Adam parou de caminhar. Blue, alguns metros à frente, esperou enquanto ele franzia o cenho diante das coisas em suas mãos. Ele segurava o diário com muito cuidado,
como se fosse importante para ele, ou talvez para alguém que era importante para ele. Blue queria desesperadamente que Adam confiasse nela e a respeitasse, e ela
podia dizer, pela expressão no rosto dele, que não tinha muito tempo para conseguir isso também.
- O Gansey deixou isso no Nino's - ela disse rapidamente. - O diário. Eu sei que eu devia ter devolvido no dia da leitura, mas minha mãe... bem, você a viu. Normalmente
ela não faz... ela não é normalmente daquele jeito. Eu não sabia o que pensar. A questão é a seguinte: eu quero estar nessa busca que vocês estão fazendo. Tipo,
se tem realmente algo sobrenatural acontecendo, eu quero ver. Só isso.
Adam perguntou:
- Por quê?
Com ele não havia opção a não ser a verdade, dita da maneira mais simples possível. Blue não acreditava que Adam aceitaria qualquer outra coisa.
- Eu sou a única pessoa na minha família que não é médium. Você ouviu minha mãe; eu apenas torno as coisas mais fáceis para as pessoas que são. Se a mágica existe,
eu quero ver. Só uma vez.
- Você é um caso tão sério quanto Gansey - disse Adam, mas sem dar a impressão de que achava aquilo tão mau assim. - Ele não precisa de nada, a não ser saber que
a história é real - completou, virando a folha de papel para lá e para cá.
Blue se sentiu instantaneamente aliviada; ela não havia se dado conta de como Adam estivera imóvel até ele começar a se mover novamente, e agora era como se a tensão
tivesse sido retirada do ar.
- É assim que se chega ao caminho dos cor... à linha ley - ela explicou, apontando para o mapa rabiscado. - A igreja está sobre a linha ley.
- Tem certeza?
Blue lhe lançou um olhar absolutamente fulminante.
- Olha, ou você acredita em mim, ou não. Foi você quem me convidou para vir junto. "Explorar!"
O rosto de Adam se fundiu em um largo sorriso, uma expressão tão diferente do usual que seus traços precisaram mudar completamente para acomodá-la.
- Então você não faz nada sem estardalhaço, não é?
Do jeito que Adam disse isso, ela podia dizer que ele estava impressionado com ela da maneira que os homens normalmente ficavam impressionados com Orla. Blue gostou
bastante disso, especialmente tendo em vista que ela não tivera de fazer nada além de ser ela mesma para conquistá-lo.
- Nada que valha a pena.
- Bom - ele disse -, acho que você vai descobrir que eu faço quase tudo sem chamar atenção. Se você não se importar com isso, acho que vamos nos dar bem.
No fim das contas, Blue percebeu que tinha passado a pé ou de bicicleta pelo apartamento de Gansey todos os dias do ano, a caminho da escola e do Nino's. À medida
que eles caminhavam na direção do armazém enorme, ela percebeu o brilho diabolicamente laranja do Camaro no estacionamento tomado pela vegetação e, a apenas cem
metros de distância, um helicóptero azul-marinho cintilante.
Blue não tinha acreditado realmente na parte do helicóptero. Não de uma maneira que a preparasse para ver um helicóptero de verdade, em tamanho real, parado ali
no estacionamento, parecendo algo normal, como alguém estacionava uma camionete.
Blue parou no acesso e suspirou:
- Uau.
- Eu sei - disse Adam.
E ali, mais uma vez, estava Gansey, e mais uma vez Blue sentiu um choque estranho ao reconciliar a imagem dele como o espírito e a realidade dele ao lado de um helicóptero.
- Finalmente! - ele gritou, trotando na direção deles. Gansey ainda estava usando os mocassins ridículos que ela observara na leitura, dessa vez com uma bermuda
cargo e uma camisa polo amarela que o fazia parecer preparado para qualquer tipo de emergência, desde que a emergência envolvesse um iate. Na mão, ele segurava uma
garrafa de suco de maçã orgânico.
Ele apontou seu suco sem pesticidas para Blue:
- Você vem com a gente?
Assim como na leitura, Blue se sentiu barata, pequena e estúpida apenas por estar na presença dele. Podando suas vogais de Henrietta da melhor forma que pôde, ela
respondeu:
- No helicóptero que está aí à sua disposição, é isso?
Gansey jogou uma mochila de couro polido sobre os ombros de algodão polido. Seu sorriso era cortês e generoso, como se a mãe de Blue não tivesse recentemente se
recusado a ajudá-lo, como se ela não tivesse sido praticamente rude.
- Você fala como se fosse algo ruim.
Atrás dele, o helicóptero começou a troar. Adam estendeu o diário para Gansey, que pareceu surpreso. Apenas um pouquinho de sua compostura cedeu, o suficiente para
Blue ver uma vez mais que aquilo era parte de sua máscara de Presidente Celular.
- Onde ele estava? - berrou Gansey.
Ele tinha de gritar. Agora que estavam girando, as hélices do helicóptero praticamente vociferavam. O ar batia contra os ouvidos de Blue, mais como um sentimento
do que como um som.
Adam apontou para Blue.
- Obrigado - Gansey gritou de volta. Foi uma resposta vazia, ela percebeu; ele retomava sua formalidade poderosa quando era tomado de surpresa. Ele ainda estava
observando Adam também, seguindo suas deixas de como deveria reagir a ela. Adam anuiu uma vez, brevemente, e a máscara escorregou um pouco mais. Blue se perguntou
se a conduta de Presidente Celular chegava a sumir completamente quando ele estava com os amigos. Talvez o Gansey que ela vira no adro da igreja era o que se encontrava
em seu íntimo.
Era um pensamento desalentador.
O ar rugia à volta deles. Blue achou que o vestido dela voaria longe. Então perguntou:
- Essa coisa é segura?
- Segura como a vida - respondeu Gansey. - Adam, estamos atrasados! Blue, se você vem com a gente, prepare-se e vamos nessa.
Enquanto ele se abaixava para se aproximar do helicóptero, sua camisa tremulou.
Subitamente, Blue se sentiu um pouco nervosa. Não era que ela estivesse assustada, exatamente. Era só que não havia se preparado psicologicamente para deixar o chão
com um monte de garotos corvos quando acordara de manhã. O helicóptero, apesar de todo seu tamanho e ruído, parecia algo bastante frágil para confiar sua vida, e
os garotos pareciam estranhos. Agora, parecia que ela estava verdadeiramente desobedecendo a Maura.
- Eu nunca voei antes - ela confessou para Adam, um grito alto o suficiente para sobrepujar o lamento do helicóptero.
- Nunca? - ele gritou de volta.
Ela balançou a cabeça, e ele colocou a boca contra o ouvido dela, de maneira que ela pudesse ouvi-lo. Adam cheirava a verão e xampu barato. Ela sentiu cócegas do
umbigo aos pés.
- Eu voei uma vez - ele respondeu. Sua respiração era quente na pele dela. Blue estava paralisada; tudo que podia pensar era: Isso é tão próximo quanto um beijo
deve ser. Parecia tão perigoso quanto ela imaginara. Ele acrescentou: - E odiei.
Um momento se passou com ambos imóveis. Ela precisava lhe dizer que ele não podia beijá-la - para o caso de ser seu verdadeiro amor. Mas como ela poderia? Como ela
poderia dizer isso para um garoto sem nem saber se ele queria realmente beijá-la?
Blue o sentiu pegar sua mão. A palma dele estava suada. Ele realmente odiava voar.
Na porta do helicóptero, Gansey olhou sobre o ombro para eles, com um sorriso confuso quando os viu de mãos dadas.
- Eu odeio isso - Adam gritou para ele, com as bochechas vermelhas.
- Eu sei - Gansey berrou de volta.
Dentro do helicóptero, havia espaço para três passageiros em um banco nos fundos, e um assento utilitário ao lado do piloto. O interior teria lembrado o banco de
trás de um carro enorme se os cintos de segurança não tivessem fechos de cinco pontos que pareciam pertencer a um caça de Guerra nas estrelas. Blue não gostava de
pensar por que os passageiros tinham de ser amarrados de maneira tão segura; possivelmente estavam esperando que as pessoas fossem jogadas contra as paredes.
Ronan, o garoto corvo mais corvo que os outros, já estava instalado em um assento de janela. Ele não sorriu quando olhou para ela. Adam, dando um soco no braço de
Ronan, assumiu o assento do meio, enquanto Blue pegou o da janela restante. Enquanto ela brincava com as faixas do cinto de segurança, Gansey se inclinou para dentro
da cabine para cumprimentar Adam com um toque de mãos.
Alguns minutos mais tarde, quando Gansey subiu no assento da frente ao lado do piloto, ela viu que ele sorria largamente, efusivo e sincero, incrivelmente animado
de estar indo para onde quer que eles estivessem indo. Não era nada como sua compostura refinada de momentos atrás. Era uma alegria íntima que ela conseguia sentir
em virtude de estar no helicóptero e, de uma hora para outra, ela se sentiu animada também.
Adam se inclinou para ela como se estivesse prestes a dizer algo, mas, no fim, apenas balançou a cabeça, sorrindo, como se Gansey fosse uma piada complicada demais
para explicar.
Na frente, Gansey se virou para o piloto, que surpreendeu um pouco Blue - uma jovem com o nariz incrivelmente reto, o cabelo castanho preso em um belo coque, fones
de ouvido segurando alguns fios soltos. Ela parecia achar a proximidade de Blue e Adam bem mais interessante que Gansey.
A piloto gritou para Gansey:
- Não vai nos apresentar, Dick?
Ele fez uma careta.
- Blue - disse -, gostaria de lhe apresentar minha irmã, Helen.
Não havia muito que Gansey não gostasse a respeito de voar. Ele gostava de aeroportos, com suas massas de pessoas todas fazendo coisas, e gostava de aviões, com
suas janelas de vidro grosso e suas bandejas dobráveis. A maneira como um jato acelerava na pista de decolagem o fazia lembrar de como o Camaro o pressionava contra
o banco do motorista quando ele pisava fundo. O lamento de um helicóptero soava como produtividade. Ele gostava dos pequenos botões, das alavancas e dos indicadores
dos cockpits. Gostava do atraso tecnológico dos cintos de segurança de trancas simples. Grande parte do prazer de Gansey vinha de alcançar metas, mais especificamente
de alcançar metas de maneira eficiente. Não havia nada mais eficiente do que visar ao destino de chegada, como faziam os corvos ao voar.
E, é claro, de mil pés de altura, Henrietta deixou Gansey sem ar.
Abaixo deles, a superfície do mundo era profundamente verde, cortada por um rio estreito, brilhante, um espelho para o céu. Ele poderia seguir com os olhos todo
o seu curso até as montanhas.
Agora que estavam no ar, Gansey se sentia um pouco ansioso. Com Blue ali, ele estava começando a achar que talvez tivesse exagerado com o helicóptero. Ele se perguntou
se Blue se sentiria melhor ou pior ao saber que o helicóptero era de Helen, que ele não havia pagado para usá-lo. Provavelmente pior. Lembrando-se da promessa de
pelo menos não machucar com suas palavras, ele manteve a boca fechada.
- Lá está ela - disse Helen, dirigindo-se diretamente a Gansey; no helicóptero, todos usavam fones de ouvido para permitir que conversassem mediante o ruído incessante
das hélices e do motor. - A namorada de Gansey.
O riso desdenhoso de Ronan mal se fez notar pelo fone de ouvido, mas Gansey o ouvira bem o bastante para saber que ele estava ali.
Blue disse:
- Ela deve ser bem grande para ser vista daqui de cima.
- Henrietta - respondeu Helen, e espiou para a esquerda do helicóptero enquanto inclinava lateralmente o aparelho, fazendo uma curva. - Eles vão se casar. Só falta
marcar a data.
- Se você vai me fazer passar vergonha, vou te jogar para fora e voar eu mesmo - disse Gansey no assento ao lado. Aquela não era uma ameaça de verdade. Ele não só
não empurraria Helen daquela altura como não tinha permissão legal para voar sem ela. Também, verdade seja dita, ele não era muito bom em pilotar helicópteros, mesmo
tendo feito várias aulas. Gansey parecia não ter a importante capacidade de se orientar verticalmente nem horizontalmente, o que levava a discussões envolvendo árvores.
Ele se contentava em pelo menos saber pousar em paralelo muito bem.
- Você vai dar um presente de aniversário para a mamãe? - perguntou Helen.
- Sim - respondeu Gansey. - Eu mesmo.
- O presente de sempre.
- Não acho que menores de idade sejam obrigados a dar presentes para os pais. Eu sou dependente. Essa é a definição de dependente, não é?
- Você, dependente! - a irmã disse e riu. Helen tinha uma risada como a de um personagem de quadrinhos: Ha ha ha ha! Era uma risada intimidadora, que fazia os homens
suspeitarem que talvez fossem o motivo dela. - Você não é dependente desde os quatro anos. De uma criança no jardim de infância, você se transformou direto em um
velho com uma quitinete.
Gansey fez um gesto com a mão dispensando o comentário. Sua irmã era conhecida por exagerar as coisas.
- O que você comprou para ela?
- É surpresa - respondeu Helen arrogantemente, tocando de leve uma espécie de interruptor com um dedo de unha rosa. O tom rosa era a única coisa fantasiosa nela.
Helen era bela como um supercomputador: com um estilo elegante, mas utilitário, cheio de know-how de ponta, caro demais para a maioria das pessoas possuírem.
- Isso quer dizer vidrarias.
A mãe de Gansey colecionava pratos decorativos raros com o mesmo fervor obsessivo que Gansey colecionava fatos a respeito de Glendower. Ele tinha dificuldade em
ver a atração de um prato roubado de sua finalidade original, mas a coleção de sua mãe havia aparecido em revistas e tinha um seguro maior que o de seu pai, então
claramente ela não estava sozinha em sua paixão.
Helen estava séria.
- Não quero ouvir. Você nem comprou um presente.
- Eu não disse nada!
- Você chamou de vidrarias.
Ele perguntou:
- O que eu devia ter dito?
- Nem todos são de vidro. Esse que eu comprei não é de vidro.
- Então ela não vai gostar.
O rosto de Helen passou de duro a muito duro. Ela olhou carrancuda para o GPS. Gansey não queria pensar quanto tempo ela havia investido no prato que não era de
vidro. Ele não gostaria de ver nenhuma das duas mulheres da família desapontadas; isso arruinava refeições perfeitamente saborosas.
Helen ainda estava em silêncio, então Gansey começou a pensar sobre Blue. Algo a respeito dela o desconcertava, embora ele não pudesse dizer o quê. Tirou uma folha
de hortelã do bolso, colocou-a na boca e observou as estradas familiares de Henrietta serpentearem abaixo deles. Do ar, as curvas pareciam menos perigosas do que
eles as sentiam no Camaro. Qual era o problema com Blue? Adam não suspeitava dela, e ele suspeitava de todos. Mas ele estava claramente apaixonado. Isso também era
um terreno estranho para Gansey.
- Adam - disse ele. Não houve resposta, e Gansey olhou para trás. Os fones de ouvido de Adam estavam soltos em torno do pescoço, e ele estava inclinado na direção
de Blue, apontando para algo no chão. Como ela tinha se movimentado, seu vestido havia subido e Gansey pôde ver o longo e delgado triângulo de sua coxa. A mão de
Adam estava retesada sobre o assento a alguns centímetros, os nós dos dedos pálidos com seu pavor de voar. Não havia nada particularmente íntimo a respeito da maneira
como eles estavam sentados, mas algo na cena fez Gansey se sentir estranho, como se ele tivesse ouvido uma declaração desagradável e depois esquecido tudo sobre
as palavras, exceto o modo como elas o haviam feito se sentir.
- Adam! - gritou Gansey.
A cabeça do amigo se virou de súbito, o rosto sobressaltado. Ele se apressou para colocar os fones de ouvido de volta. Sua voz seguiu pelo aparelho:
- Vocês já encerraram a conversa sobre os pratos da sua mãe?
- Totalmente. Aonde vamos dessa vez? Eu estava pensando em talvez voltar à igreja onde gravei a voz.
Adam passou a Gansey uma folha de papel amassado.
Gansey alisou o papel e encontrou um mapa tosco.
- O que é isso?
- Blue.
Gansey olhou para ela atentamente, tentando decidir se Blue tinha algo a ganhar ao desorientá-los. Ela não se esquivou do olhar. Voltando à posição original, ele
estendeu o papel liso sobre os controles à sua frente.
- Para lá, Helen.
Helen inclinou o aparelho para seguir na nova direção. A igreja a que Blue os havia direcionado estava provavelmente a quarenta minutos de carro de Henrietta, mas,
de helicóptero, eram apenas quinze minutos. Sem uma discreta intervenção de Blue, Gansey não a teria visto. Era uma ruína, vazia e tomada pela vegetação. A linha
estreita de um muro de pedra muito antigo era visível em torno dela, assim como uma impressão no chão onde um muro adicional devia estar originalmente.
- É isso?
- É só isso que sobrou.
Algo dentro de Gansey ficou imóvel e muito quieto.
Ele perguntou:
- O que você disse?
- É uma ruína, mas...
- Não - disse ele. - Repita exatamente o que você disse. Por favor.
Blue lançou um olhar na direção de Adam, que deu de ombros.
- Eu não lembro o que eu disse. Será... É só isso?
Isso é tudo.
Tudo?
Era isso que o vinha incomodando esse tempo todo. Ele sabia que havia reconhecido a voz dela. Ele conhecia aquele sotaque de Henrietta, aquela cadência.
Era a voz de Blue no gravador.
Gansey.
Isso é tudo?
É só isso.
- Eu não sou feita de combustível - disparou Helen, como se já não tivesse dito isso antes e Gansey não tivesse prestado atenção. Talvez ele tivesse. - Me diga para
onde ir agora.
O que isso quer dizer? Mais uma vez, ele começou a sentir a pressão da responsabilidade, da veneração, algo maior que ele. Gansey se sentia ao mesmo tempo temeroso
e esperançoso.
- Qual é a orientação da linha, Blue? - perguntou Adam.
Blue, que tinha o polegar e o dedo indicador pressionados contra o vidro como se estivesse mensurando algo, respondeu:
- Ali. Na direção das montanhas. Está vendo aqueles dois carvalhos? A igreja é um ponto, e outro ponto é bem entre eles. Se traçarmos uma linha reta entre esses
dois pontos, esse é o caminho.
Se era com Blue que ele estivera conversando na véspera do Dia de São Marcos, o que isso queria dizer?
- Tem certeza? - perguntou Helen, na sua voz enérgica de supercomputador. - Eu só tenho uma hora e meia de combustível.
Blue parecia um pouco indignada.
- Eu não teria dito isso se não tivesse certeza.
Helen sorriu ligeiramente e levou o helicóptero na direção que Blue havia indicado.
- Blue.
Era a voz de Ronan, pela primeira vez, e todos, até Helen, se viraram para ele. Sua cabeça estava aprumada de um jeito que Gansey reconhecia como perigosa. Algo
em seus olhos estava afiado quando ele encarou Blue. Então perguntou:
- Você já conhecia o Gansey?
Gansey se lembrou de Ronan encostado contra o Pig, rodando várias vezes a gravação.
Blue pareceu defensiva diante do olhar dos outros e disse relutantemente:
- Só o nome dele.
Com os dedos entrelaçados frouxamente e os cotovelos sobre os joelhos, Ronan se inclinou, intrometendo-se na frente de Adam para ficar mais próximo de Blue. Ele
podia ser incrivelmente ameaçador.
- E como foi que você ficou sabendo do nome dele? - perguntou.
Para seu crédito, Blue não recuou. Suas orelhas estavam rosadas, mas ela disse:
- Em primeiro lugar, saia de perto de mim.
- E se eu não sair?
- Ronan - disse Gansey.
Ronan se recostou.
- Mas eu gostaria de saber - disse Gansey, com o coração parecendo não pesar nada.
Blue olhou para baixo e segurou algumas camadas do vestido nas mãos. Por fim, disse:
- Acho que é justo. - Ela apontou para Ronan. Parecia brava. - Mas essa não é a maneira de fazer com que eu responda nada. Da próxima vez que ele falar comigo desse
jeito, vou deixar que você encontre essa coisa sozinho. Eu vou... Olha. Eu conto como eu sabia o seu nome se você me explicar o que é aquele desenho que tem no seu
diário.
- Por que estamos negociando com terroristas? - perguntou Ronan.
- Desde quando eu sou uma terrorista? - demandou Blue. - Me parece que eu dei algo que vocês queriam e vocês estão sendo uns idiotas.
- Nem todos nós - disse Adam.
- Eu não estou sendo um idiota - disse Gansey, sentindo-se desconfortável com a ideia de que ela talvez não gostasse dele. - Agora, de que desenho você quer saber?
Blue estendeu a mão.
- Espere, vou te mostrar qual é.
Gansey deixou que ela tomasse o diário de novo. Folheando as páginas, ela o virou para ele de maneira que pudesse ver o desenho em questão. A página detalhava um
artefato que ele havia achado na Pensilvânia. Ele também havia feito outros rabiscos em vários lugares da folha.
- Acho que isso é um homem correndo atrás de um carro - disse Gansey.
- Não esse. Este aqui - e apontou para um dos outros rabiscos:
- São linhas ley - ele respondeu, estendendo a mão para o diário. Por um momento estranho, hiperconsciente, Gansey percebeu quão atentamente ela o observava enquanto
ele pegava o diário. Ele não achou que passara despercebido a Blue como sua mão esquerda se curvava familiarmente em torno da encadernação de couro, como o polegar
e o dedo da mão direita sabiam exatamente quanta pressão aplicar para induzir as páginas a se abrirem onde ele queria. O diário e Gansey claramente se conheciam
há muito tempo, e ele queria que ela soubesse disso.
Este sou eu. Quem sou de verdade.
Gansey não queria analisar a fundo a fonte daquele impulso. Em vez disso, ele se concentrou em folhear o diário e encontrou rapidamente a página desejada - um mapa
dos Estados Unidos, marcado por toda parte com linhas curvas.
Gansey passou o dedo sobre uma linha que se estendia da cidade de Nova York até Washington, D.C. Outra se estendia de Boston a St. Louis. Uma terceira cortava horizontalmente
as duas primeiras, estendendo-se da Virgínia até o Kentucky e seguindo para oeste. Havia, como sempre, algo satisfatório em rastrear as linhas, algo que fazia lembrar
as brincadeiras de caça ao tesouro e os desenhos infantis.
- Estas são as três principais linhas - disse Gansey. - As que parecem importar.
- Importar como?
- Quanto você leu do diário?
- Humm... um pouco. Um monte. Quase tudo.
Ele continuou:
- As que parecem importar quanto a achar Glendower. Aquela linha que passa pela Virgínia é a que nos conecta com a Grã-Bretanha. Com o Reino Unido.
Ela revirou os olhos de maneira tão dramática que ele captou o gesto sem virar a cabeça.
- Eu sei o que é Grã-Bretanha, obrigada. O sistema de ensino público não é tão ruim assim.
Ele havia conseguido ofendê-la de novo, sem esforço algum. E concordou:
- Certamente não. Aquelas duas outras linhas têm um monte de relatos de visões extraordinárias nas proximidades delas. De... coisas paranormais. Poltergeists, homens-mariposa
e cães negros.
Mas sua hesitação foi desnecessária; Blue não zombou dele.
- Minha mãe traçou esse desenho - ela disse. - As linhas ley. E também a Nee... uma das outras mulheres. Elas não sabiam o que era, mas sabiam que era importante.
É por isso que eu queria saber.
- Agora você - disse Ronan para Blue.
- Eu... vi o espírito do Gansey - disse ela. - Eu nunca tinha visto um antes. Eu não vejo coisas assim, mas dessa vez vi. Eu perguntei o seu nome, e você me disse:
"Gansey. É só isso". Honestamente, isso é parte da razão por que eu quis vir com vocês hoje.
Essa resposta satisfez Gansey relativamente bem - afinal de contas, Blue era filha de uma médium, e a história casava com o relato de seu gravador -, embora lhe
soasse como uma resposta parcial. Ronan demandou:
- Viu onde?
- Enquanto eu estava sentada ao ar livre com uma das minhas meias-tias.
Isso pareceu satisfazer Ronan também, pois ele perguntou:
- Qual a outra metade dela?
- Meu Deus, Ronan - disse Adam. - Chega.
Houve um momento de silêncio tenso, ocupado apenas pelo lamento contínuo e monótono do helicóptero. Gansey sabia que eles estavam esperando pelo seu veredicto. Ele
acreditava na resposta dela? Achava que eles deviam seguir as orientações dela? Ele confiava nela?