Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites
A Saga do Planeta “Duna”
OS HEREGES
Parte I
A maioria das disciplinas não se destina a liberar e sim a limitar: Não pergunte por quê. Seja cauteloso com o como. O por quê conduz inexoravelmente ao paradoxo. O como o aprisiona num universo de causa e efeito. Ambos negam o infinito.
— Os Apócrifos de Arrakis
— Taraza lhe contou que já tivemos 11 desses gholas Duncan Idaho, não? Este é o 12º.
A velha Reverenda Madre Schwangyu falou com premeditada amargura enquanto olhava do parapeito, no terceiro andar, para a criança solitária brincando no jardim fechado. A forte luz do sol do meio-dia no planeta Gammu refletia-se nos muros brancos do pátio, enchendo a área abaixo com um brilho como se um refletor tivesse sido lançado sobre o jovem ghola.
“Acabou-se”, pensou a Reverenda Madre Lucilla. Ela se permitiu um curto aceno de cabeça, pensando em quão friamente impessoais eram as maneiras e a escolha de palavras de Schwangyu. “Nós usamos nosso suprimento; envie-nos mais.”
A criança no pátio aparentava ter uns 12 anos, mas a aparência podia ser enganadora em se tratando de um ghola cujas memórias originais ainda não haviam despertado. A criança aproveitou aquele instante para olhar para as mulheres que a vigiavam do alto. Era uma criatura robusta, com um olhar direto que brilhava intensamente debaixo do capuz negro do cabelo karakul. A luz amarela do sol do início da primavera lançava uma sombra curta a seus pés. A pele parecia muito bronzeada, mas um ligeiro movimento mudou o caimento do traje de uma só peça, revelando a pele pálida no ombro esquerdo.
— Esses gholas não são apenas dispendiosos, são altamente perigosos para nós — disse Schwangyu.
Sua voz saía calma e sem emoção, parecendo ainda mais poderosa por isso. Era a voz de uma Reverenda Madre instrutora falando com sua acólita, e enfatizava para Lucilla que Schwangyu era uma das que protestavam abertamente contra o projeto ghola.
Taraza advertira:
— Ela vai tentar convencê-la.
— Onze fracassos já são o bastante — dissera Schwangyu.
Lucilla olhou para as feições enrugadas de Schwangyu e pensou subitamente: “Algum dia eu também posso me tornar velha como ela. E talvez, como ela, me encontre no poder dentro da Bene Gesserit!”
Schwangyu era uma mulher pequena, com muitas marcas de idade recebidas a serviço da Bene Gesserit. Lucilla sabia, a partir dos estudos que lhe haviam ordenado, que o manto negro convencional de Schwangyu ocultava um corpo magro e ossudo que poucas pessoas tinham visto, e não ser suas criadas e os homens que haviam recebido ordem para procriar com ela. A boca de Schwangyu era larga, o lábio inferior comprimido pelas linhas da idade que se expandiam para o queixo proeminente. Seus modos costumavam ser um tanto bruscos, o que fazia as não-iniciadas julgarem que ela estava com raiva. A Comandante do Castelo Gammu era uma das Reverendas Madres mais reservadas.
Uma vez mais Lucilla desejou ter conhecimento de todo o projeto ghola, mas Taraza estabelecera muito claramente os limites: “Não se deve confiar em Schwangyu no que concerne à segurança do ghola.”
— Nós acreditamos que os próprios Tleilaxu mataram a maioria dos 11 anteriores — disse Schwangyu. — Isso devia revelar-nos alguma coisa.
Imitando os modos de Schwangyu, Lucilla adotou uma calma atitude de espera, totalmente desprovida de emoções. Seus modos pareciam dizer: “Eu posso ser muito mais jovem do que você, mas também sou uma Reverenda Madre plena.” Podia sentir o olhar de Schwangyu.
Schwangyu tinha visto os holos dessa Lucila, mas a mulher em carne e osso era mais desconcertante. Uma Impressora muito bem treinada, sem dúvida alguma Os olhos de azul dentro de azul, sem qualquer lente corretora, conferiam a Lucilla uma expressão penetrante que lhe acompanhava o rosto oval. Com o capuz do manto aba lançado para trás, como estava agora, o cabelo castanho se revelava, puxado para trás e preso a um anel para cascatear ao longo de suas costas, e nem mesmo o manto largo podia ocultar os grandes seios de Lucilla. Ela pertencia a uma linha genética famosa por sua natureza maternal e já tivera três filhos, dois do mesmo pai. Sim — era uma sedutora de cabelos castanhos —, seios grandes e disposição maternal.
— Você fala muito pouco — disse Schwangyu. — Isso revela que Taraza a advertiu contra mim.
— Tem motivos para acreditar que assassinos pretendam matar este 12º ghola? — perguntou Lucila.
— Já tentaram.
Era estranho como a expressão “heresia” lhe vinha à mente quando pensava em Schwangyu, pensou Lucilla. Poderia existir heresia entre as Reverendas Madres? Os significados religiosos da palavra pareciam deslocados no contexto da Bene Gesserit. Como poderia haver movimentos heréticos entre pessoas dotadas de uma atitude profundamente manipuladora com relação aos aspectos religiosos?
Lucila voltou sua atenção para o ghola, o qual escolheu o momento para dar uma série de cambalhotas que o levaram numa volta completa até se encontrar novamente olhando para as duas observadoras no parapeito.
— Como ele representa bem! — resmungou Schwangyu.
A voz dela não parecia inteiramente livre da ameaça de violência.
Lucilla fitou Schwangyu. “Heresia.” Dissidência não era o termo adequado. Oposição também não era uma palavra que abrangesse inteiramente o que ela sentia na velha. Essa era uma coisa que poderia destroçar a Bene Gesserit. Revolta contra Taraza, contra a Reverenda Madre Superiora? Impensável! Madres Superioras eram moldadas como monarcas. Uma vez que Taraza houvesse aceito o conselho e tomado sua decisão, as Irmãs eram obrigadas a obedecer.
— Isto não é hora para criar novos problemas! — disse Schwangyu.
O significado era claro. O pessoal da Dispersão estava retornando e as intenções de alguns desses Perdidos ameaçavam a Irmandade. “Honradas Matres”! Como essas palavras soavam semelhantes a “Reverendas Madres”.
Lucilla arriscou uma conversa exploratória:
— Acha que devíamos concentrar-nos no problema daquelas Honradas Matres da Dispersão?
— Concentrar? Ah, elas não possuem os nossos poderes. Não demonstram bom senso. E não têm o domínio da melange! É isso que elas querem de nós, nosso conhecimento da especiaria.
— Talvez — concordou Lucilla.
Não desejava concordar com isso ante uma evidência tão escassa.
— A Madre Superiora Taraza não anda bem do juízo para brincar com essa questão do ghola num momento como este — disse Schwangyu.
Lucilla permaneceu em silêncio. O projeto do ghola definitivamente atingira um nervo sensível entre as Irmãs. A possibilidade, ainda que remota, de que pudesse fazer surgir um outro Kwisatz Haderach transmitia arrepios de medo misturado ao ódio entre suas fileiras. Mexer com os remanescentes do tirano contidos nos Vermes! Isso era perigoso ao extremo.
— Nunca deveríamos levar aquele ghola para Rakis — murmurou Schwangyu. — Deixe os vermes continuarem dormindo.
Lucila desviou sua atenção uma vez mais para o menino ghola. Ele tinha voltado as costas para o parapeito elevado onde estavam as duas Reverendas Madres, mas alguma coisa em sua postura revelava que sabia estarem falando a seu respeito e esperava uma resposta delas.
— Sem dúvida percebe que foi chamado num momento em que ele ainda é muito jovem — comentou Schwangyu.
— Nunca ouvi falar de impressão profunda numa pessoa tão jovem — concordou Lucila.
Ela deixou transparecer uma leve ironia em seu tom de voz, algo que sabia que Schwangyu iria ouvir e interpretar mal. O controle da procriação e de todas as necessidades relacionadas com isso era a especialidade final das Bene Gesserit. Use o amor mas o evite, Schwangyu devia estar pensando agora. As analistas da Irmandade conheciam as origens do amor. Elas as haviam examinado muito cedo em seu desenvolvimento, mas nunca se tinham atrevido a produzi-las naqueles a quem influenciavam. Tolerem o amor, mas estejam prevenidas contra ele — essa era a regra. Saibam que o amor encontra-se profundamente entranhado na estrutura genética humana, como um sistema de segurança para garantir a preservação da espécie. Você faz uso dele quando é necessário, imprimindo indivíduos selecionados (algumas vezes um sobre o outro) para os propósitos da Irmandade e sabendo que tais indivíduos estarão ligados por laços poderosos, imperceptíveis à consciência comum. Outros podem observar tais laços e traçar suas conseqüências, mas aqueles afetados dançam de acordo com uma música inconsciente.
— Não estou sugerindo que seja um erro imprimi-lo — disse Schwangyu, confundindo o silêncio de Lucilla.
— Faremos o que foi ordenado — provocou Lucilla.
Deixe que Schwangyu interprete como quiser.
— Então não faz objeção quanto a levar esse ghola para Rakis — disse Schwangyu. — Eu me pergunto se você manteria essa obediência sem questionamento se conhecesse a história toda.
Lucilla respirou fundo. Iriam compartilhar com ela, agora, todos os desígnios dos gholas Duncan Idaho?
— Existe em Rakis uma criança do sexo feminino chamada Sheeana Brugh — disse Schwangyu. — E ela é capaz de controlar os vermes gigantes.
Lucilla ocultou seu interesse “Vermes gigantes. Não Shai-hulud ou Shaitan. Vermes gigantes.” O cavaleiro da areia previsto pelo Tirano tinha aparecido afinal!
— Eu não falo sem motivo — disse Schwangyu quando Lucilla continuou em silêncio.
“De fato não fala”, pensou Lucilla. “E você chama uma coisa pelo rótulo descritivo, não pelo nome de importância mística. Vermes gigantes. E você está realmente pensando no Tirano, Leto II, cujo sonho interminável é mantido como uma pérola de consciência em cada um daqueles vermes. Ou assim somos levadas a crer.”
Schwangyu fez sinal com a cabeça na direção da criança brincando no pátio abaixo delas.
— Acha que o ghola será capaz de influenciar a garota que controla os vermes?
“Estamos retirando a casca, afinal”, pensou Lucila e disse:
— Eu não preciso responder tal pergunta.
— Você é muito cautelosa.
Lucilla arqueou o corpo para trás, esticando-se. “Cautelosa? Sim, de fato!” Taraza a advertira quanto a isso. “No que concerne a Schwangyu, você deve agir com extrema cautela, mas rapidamente. Temos uma janela de tempo muito estreita dentro da qual podemos obter sucesso.”
Sucesso no quê?, perguntava-se Lucilla. Ela olhou de lado para Schwangyu.
— Não vejo como os Tleilaxu podem ter conseguido matar li desses gholas. Como eles puderam penetrar em nossas defesas?
— Nós temos o Bashar agora — disse Schwangy. — Talvez ele possa evitar o desastre.
Seu tom de voz revelava que ela não acreditava nessa possibilidade
A Madre Superiora Taraza dissera: “Você é a Impressora, Lucilla. Quando chegar a Gammu reconhecerá parte do padrão. Mas para sua tarefa você não precisa do projeto completo”
— Pense no custo! — exclamou Schwangyu, olhando furiosa para o ghola. que agora se agachara, puxando tufos de capim.
O custo nada tinha a ver, sabia Lucilla. A admissão tácita de fracasso era mais importante. A Irmandade não poderia revelar sua falibilidade. Mas o fato de uma Impressora ter sido convocada tão cedo — isso era vital. Taraza sabia que a Impressora perceberia isso, reconhecendo o padrão.
Schwangyu gesticulou com uma mão ossuda para a criança, que tinha voltado a sua brincadeira solitária de correr e pular no capim.
— Política — exclamou.
Sem dúvida, a política da Irmandade encontrava-se no centro da “heresia” de Schwangyu, pensou Lucilla. O caráter delicado dessa discussão interna podia ser avaliado pelo fato de Schwangyu ter sido encarregada desse castelo em Gammu. Aquelas que se opunham a Taraza recusavam-se a ser colocadas em segundo plano.
Schwangyu virou-se e olhou diretamente para Lucilla. Já fora dito o suficiente O suficiente fora ouvido e filtrado através de mentes treinadas na percepção Bene Gesserit. A Irmandade tinha escolhido essa Lucila com grande cuidado.
Ela sentia a cuidadosa avaliação por parte da velha, mas não permitia que isso afetasse seu mais íntimo sentimento de devei; sobre o qual toda Reverenda Madre podia apoiar-se em tempos de tensão. “Vamos, deixe que ela olhe inteiramente para mim.” Lucilla voltou-se e fez sua boca formar um suave sorriso, deixando que o olhar percorresse o topo do telhado diante delas.
Um homem uniformizado com uma pesada arma laser apareceu, olhou uma vez para as duas Reverendas Madres e depois voltou a atenção para a criança abaixo delas.
— Quem é ele? — perguntou Lucilla.
— Patrin, o auxiliar de maior confiança do Bashar. Diz que é apenas o ordenança do Bashar, mas você teria que ser cega e tola para acreditar nisso.
Lucilla examinou o homem com cuidado. Então esse era Patrin. Um nativo de Gammu, como dissera Taraza, escolhido para sua tarefa pelo próprio Bashar. Magro e louro, muito velho para estar na ativa como soldado, mas convocado de seu retiro. O Bashar insistira em que Patrin partilhasse seus deveres.
Schwangyu notou o modo como Lucilla mudava sua atenção de Patrin para o ghola com verdadeira preocupação. Sim, se o Bashar tinha sido convocado para guardar esse castelo, então o ghola corria extremo perigo.
Lucilla começou a falar, subitamente surpreendida.
— Por que... ele...
— Ordem de Miles Teg — respondeu Schwangyu, citando o nome do Bashar. — Todas as brincadeiras do ghola são treinamentos. Seus músculos devem ser preparados para o dia em que for restaurada a sua personalidade original.
— Mas não é nenhum exercício simples o que ele está fazendo lá — disse Lucilla. Ela sentia seus próprios músculos reagirem por afinidade com o treinamento relembrado.
— Nós ocultamos apenas a gênese da Irmandade a esse ghola — disse Schwangyu. — Quase tudo mais em nossa bagagem de conhecimento pode ser dele.
Seu tom de voz revelava que ela tinha fortes objeções a isso.
— Certamente ninguém acredita que esse ghola possa se tornar outro Kwisatz Haderach — discordou Lucilla.
Schwangyu meramente encolheu os ombros.
Lucilla manteve-se quieta, pensando. Seria possível que o ghola pudesse transformar-se numa versão masculina de uma Reverenda Madre? Poderia esse Duncan Idaho aprender a olhar para dentro, onde nenhuma Reverenda Madre se atrevia a olhar?
Schwangyu começou a falai; a voz quase um murmúrio resmungante.
— A concepção deste projeto... trata-se de um plano perigoso. Elas podem cometer o mesmo erro.
Ela se interrompeu.
“Elas”, pensou Lucilla. “O ghola delas.”
— O que eu não daria para conhecer com certeza a posição de Ix e das Oradoras Peixes com relação a isso — disse Lucilla.
— Oradoras Peixes! — Schwangyu sacudiu a cabeça ante a lembrança das remanescentes do exército feminino que um dia servira apenas ao Tirano. — Elas acreditam na verdade e na justiça.
Lucilla dominou uma súbita compressão na garganta. Schwangyu fizera tudo, menos declarar oposição aberta. E no entanto era ela quem estava no comando. A regra política era simples: aquelas que se opõem ao projeto devem monitorá-lo de modo a poder abortá-lo ao primeiro indício de problemas. Mas aquele lá embaixo era um genuíno ghola Duncan Idaho. Comparações celulares e Reveladoras da Verdade tinham confirmado isso.
Taraza dissera: “Você deve ensinar-lhe o amor em todas as suas formas.”
— Ele é tão jovem — comentou Lucilla, mantendo a atenção no ghola.
— Jovem, sim — respondeu Schwangyu. — Por ora, creio que você vá despertar nele suas respostas infantis à afeição materna. Depois.
Ela encolheu os ombros.
Lucilla não revelava qualquer reação emocional. As Bene Gesserit obedeciam. “Eu sou uma Impressora. Assim...” As ordens de Taraza e o treinamento especializado de uma Impressora definiam o curso particular dos acontecimentos.
Lucilla disse a Schwangyu:
— Existe uma pessoa que se parece comigo e fala com a minha voz. Eu o estou imprimindo para ela. Posso perguntar de quem se trata?
— Não.
Lucilla manteve o silêncio. Ela não esperava uma revelação, mas lhe haviam observado mais de uma vez o fato de ela assemelhar-se extraordinariamente à Chefe da Segurança, Madre Darwi Odrade. “Uma jovem Odrade.” Lucilla ouvira em diversas ocasiões. Ambas, Lucilla e Odrade, eram, é claro, da linhagem Atreides, com um forte nível de procriação entre descendentes de Siona. As Oradoras Peixes não possuíam o monopólio desses genes! Mas as Outras Memórias de uma Reverenda Madre, mesmo com a seletividade linear e o confinamento do lado feminino, forneciam indícios importantes nos aspectos mais amplos do projeto ghola. Lucilla, que viera a depender das experiências da persona de Jessica, sepultadas uns 5 mil anos antes das manipulações genéticas da Irmandade, sentia agora um profundo senso de pavor ante essa fonte. Havia nisso um padrão familiar, e ele transmitia um sentimento de tragédia tão intenso que Lucilla se viu relembrando automaticamente a Litania contra o Medo, a qual lhe fora ensinada em sua primeira introdução aos ritos da Irmandade.
“Não devo temer. O medo é o assassino da mente. O medo é a pequena morte que traz a obliteração total. Eu enfrentarei o meu medo. Permitirei que ele passe sobre mim e através de mim. E, quando ele houver passado, voltarei meu olhar interior para ver o seu caminho. Onde o medo se foi, nada haverá. Somente eu permanecerei.”
A calma retornou a Lucilla.
Schwangyu, sentindo parte disso, permitiu-se baixar ligeiramente a gourela. Lucilla não era tola, não era uma Reverenda Madre especial com um título vazio e o mínimo conhecimento para agir sem embaraçar a Irmandade. Era muito experiente, e algumas reações não lhe poderiam ser ocultas, nem mesmo as reações de outras Reverendas Madres. Muito bem, deixe que ela conheça a extensão da oposição a este projeto tolo e perigoso.
— Não creio que o ghola delas sobreviva para ver Rakis — disse Schwangyu.
Lucilla deixou passar.
— Fale-me a respeito dos amigos dele — pediu.
— Ele não tem amigos, somente professores.
— Quando vou conhecê-los?
Manteve o olhar voltado para o parapeito oposto, onde Patrin se recostava ociosamente contra uma pilastra baixa, a pesada arma laser pronta a abrir fogo se necessário. Lucilla percebeu, com um súbito choque, que Patrin estava a observá-la. Patrin era uma mensagem do Bashar que Schwangyu obviamente via e entendia. “Nós o protegemos!”
— Eu presumo que esteja ansiosa por conhecer Miles Teg — comentou Schwangyu.
— Entre outros.
— Não deseja fazer contato com o ghola, primeiro?
— Já diz contato com ele. — Com a cabeça, Lucila indicou o pátio fechado onde a criança uma vez mais se encontrava imóvel, olhando para ela. — Ele é bem atento e pensativo.
— Eu disponho apenas dos relatórios a respeito dos outros — respondeu Schwangyu. — Mas suspeito de que ele seja o mais pensativo da série.
Lucilla controlou um tremor involuntário ante a disposição para a oposição violenta demonstrada nas atitudes e nas palavras de Schwangyu. Não havia sugestão de que a criança abaixo delas compartilhasse de uma humanidade comum.
Enquanto Lucilla assim pensava, nuvens cobriram o sol, como freqüentemente acontecia a essa hora. Um vento frio soprou sobre os muros do Castelo, rodopiando no jardim. A criança voltou-se e acelerou os exercícios, recebendo calor com o aumento de atividade.
— Aonde ele vai para ficar sozinho? — perguntou Lucilla.
— Geralmente para o quarto. Ele tentou algumas escapadas perigosas, mas nós as desencorajamos.
— Ele deve nos odiar muito.
— Tenho certeza disso.
— Terei que enfrentar isso diretamente.
— Certamente uma Impressora não tem dúvidas quanto à sua habilidade de superar o ódio.
— Eu estava pensando em Geasa. — Lucila olhou para Schwangyu de modo avaliador. — Acho extraordinário que permitissem a Geasa cometer tal erro.
— Eu não interfiro no progresso normal das instruções do ghola. Se uma de suas professoras desenvolve uma verdadeira afeição por ele, isso não é problema meu.
— E uma criança atraente — reconheceu Lucilla.
Ambas ficaram um pouco mais, observando o ghola Duncan Idaho em sua brincadeira-treino. As duas Reverendas Madres pensaram por algum tempo em Geasa, uma das primeiras professoras trazidas até ali para o projeto ghola. A atitude de Schwangyu era evidente: “Geasa foi um fracasso providencial.” Lucilla pensava apenas: “Schwangyu e Geasa complicaram minha tarefa.” Nenhuma das duas mulheres pensou sequer por um momento no modo como tais pensamentos reafirmavam suas lealdades.
Enquanto observava a criança no jardim, Lucilla começou a ver sob novo ângulo o que o Tirano Imperador-Deus tinha realmente conquistado. Leto II fizera uso desse tipo de ghola durante incontáveis gerações — durante uns 3.500 anos, um depois do outro. E o Imperador-Deus não fora nenhuma força comum da natureza, fora o maior jaganatha da história humana, rolando por cima de tudo: sistemas sociais, ódios naturais e não-naturais, formas de governo, rituais (tanto os que eram tabu quanto os que eram obrigatórios), religiões passageiras e duradouras. O peso esmagador da passagem do Tirano não deixara coisa alguma sem marcas, nem mesmo a Bene Gesserit.
Leto II chamara aquilo de “Caminho Dourado”, e esse tipo de ghola Duncan Idaho tinha figurado com proeminência naquela paisagem. Lucilla estudara os relatos da Bene Gesserit, provavelmente os melhores do universo. Mesmo hoje, na maioria dos planetas Imperiais, após o matrimônio os casais espargiam gotas de água, lançando-as para o leste e o oeste, e murmurando a versão local de: “Que tuas bênçãos refluam para nós desta oferenda, ó Deus de Infinito Poder e Infinita Misericórdia”
Em outro tempo, fora trabalho das Oradoras Peixes e de seu submisso sacerdócio reforçar tal obediência. Mas a coisa desenvolvera seu próprio momentum, tornando-se uma compulsão penetrante. Mesmo entre os mais incrédulos, havia quem dissesse: “Bom, não pode fazer mal algum.” Era uma realização que as melhores engenheiras religiosas da Missionaria Protectiva Bene Gesserit admiravam com frustrado espanto. O Tirano superara o melhor que a Bene Gesserit pudera produzir. E nos 1.500 anos desde a morte do Tirano a Irmande permanecera impotente para desfazer o nó central daquela terrível realização.
— Quem está encarregada do treinamento religioso desta criança? — perguntou Lucilla.
— Ninguém. Por que se incomodar? Se ele despertar suas memórias originais, terá suas próprias idéias. Cuidaremos disso se surgir a ocasião.
Lá embaixo a criança completara seu tempo de treinamento permitido. Com outra olhada às observadoras no parapeito, deixou o jardim e penetrou num amplo portal à esquerda. Patrin também abandonou sua posição de guarda sem olhar para as duas Reverendas Madres.
— Não se deixe enganar pelos homens de Teg — disse Schwangyu.
— Eles têm olhos atrás das cabeças. A mãe de Teg, você sabe, foi uma de nós. Ele está ensinando àquele ghola coisas que não deviam ser partilhadas!
Explosões são também compressões de tempo. As mudanças observáveis no universo natural são todas explosivas em algum grau e sob algum ponto de vista; de outro modo, não se poderia nota-las. A uniforme continuidade da mudança, se retardada suficientemente, passa despercebida aos observadores cujo tempo de percepção é muito curto. Assim, eu lhes digo, vi mudanças que vocês nunca teriam percebido.
— Leto II
A mulher, iluminada pela luz da aurora no Planeta da Irmandade, mantinha-se ereta diante da mesa da Reverenda Madre Superiora Alma Mavis Taraza. Era alta e bem-proporcionada, com o longo manto aba a envolvê-la em negro brilhante, dos ombros até o chão, incapaz de ocultar a graça com que seu corpo expressava cada movimento.
Taraza inclinou-se na cadeira e observou o Transmissor de Registros projetar seus caracteres Bene Gesserit sobre o topo da mesa, de modo a serem vistos apenas pelos olhos dela.
“Darwi Odrade”, era como os registros identificavam a mulher de pé; depois vinha a biografia básica, que Taraza já conhecia com detalhes. A exposição servia a vários propósitos — fornecer uma lembrança segura à Madre Superiora e proporcionar-lhe um tempo extra para pensar, enquanto fingia ler os registros, constituindo um argumento final caso algo de negativo emergisse dessa entrevista.
Odrade dera à luz 19 crianças para a Bene Gesserit. A informação passou diante dos olhos de Taraza. Cada criança de um pai diferente. Nada havia de extraordinário com relação a isso, mas mesmo o olhar mais penetrante podia perceber que esse dever essencial à Irmandade não a havia engordado. Suas feições transmitiam altivez no nariz longo e no complemento do rosto anguloso, cada traço apontando em direção ao queixo estreito. A boca, entretanto, era plenamente formada, transmitindo uma promessa de paixões que ela cuidadosamente continha.
“Sempre podemos confiar nos genes Atreides”, pensou Taraza.
A cortina de uma janela tremulou às costas de Odrade e ela olhou para trás. Ambas encontravam-se na sala matinal de Taraza, um espaço pequeno, elegantemente mobiliado, decorado em tons de verde. Somente a cadeira branca de Taraza a separava do fundo formado pelo ambiente. As janelas exibiam um panorama de jardim e gramados, com as distantes montanhas nevadas do planeta da Irmandade servindo de fundo.
Sem erguer os olhos, Taraza disse:
— Fiquei satisfeita quando você e Lucilla aceitaram a missão. Isso torna o meu trabalho muito mais fácil.
— Gostaria de ter conhecido essa Lucilla — disse Odrade, olhando para o alto da cabeça de Taraza.
A voz de Odrade saia como um suave contralto.
Taraza pigarreou.
— Não é preciso. Lucilla é uma de nossas melhores Impressoras. Cada uma de vocês, é claro, recebeu um idêntico condicionamento liberal que as preparou para isso.
Havia algo quase insultante no tom de voz informal usado por Taraza, e somente o hábito provindo de um longo conhecimento controlou o ressentimento imediato sentido por Odrade. Isso se devia, em parte, à palavra “liberal”, ela percebia. Seus ancestrais Atreides erguiam-se em rebelião ante essa palavra. Era como se suas memórias femininas acumuladas saltassem diante dos julgamentos inconscientes e dos preconceitos não-examinados subjacentes a tal noção.
“Somente os liberais são inteligentes. Somente os liberais são intelectuais. Somente os liberais compreendem as necessidades de seus semelhantes.”
Quanta maldade estava escondida nessas palavras, pensou Odrade! Quanto da necessidade de um ego de se sentir superior.
Odrade lembrou-se de que, apesar do tom informalmente insultante usado por Taraza, ela usara o termo apenas num sentido genérico: a educação geral de Lucilla fora cuidadosamente semelhante à de Odrade.
Taraza inclinou-se para trás numa posição mais confortável, mas ainda mantendo sua atenção na exposição holográfica diante de si. A luz das janelas de leste caía diretamente sobre seu rosto, deixando sombras sob o nariz e o queixo. Mulher pequena, só um pouquinho mais velha que Odrade, Taraza mantinha muito da beleza que a tornara uma procriadora muito confiável com homens difíceis. Seu rosto era um longo oval com as maçãs formando curvas suaves. Usava o cabelo negro preso para trás, a partir da testa alta, num pico pronunciado. A boca de Taraza abria-se o mínimo necessário quando ela falava, demonstrando um soberbo controle de movimentos. A atenção de um observador tendia a se focalizar nos olhos dela: aquele constrangedor azul dentro de azul. O efeito final era de uma suave máscara facial, da qual pouco escapava para revelar suas verdadeiras emoções.
Odrade reconheceu a pose da Madre Superiora. Daí a pouco Taraza iria murmurar algo para si mesma. De fato, bem na hora, Taraza murmurou alguma coisa para si mesma.
A Madre Superiora estava pensando enquanto seguia a exposição biográfica com grande atenção. Muitos assuntos ocupavam essa atenção.
Esse era um pensamento tranqüilizador para Odrade. Taraza não acreditava que existisse algo como um poder benévolo guardando a humanidade A Missionaria Protectiva e as intenções da Irmandade eram tudo que contava no universo de Taraza. E tudo que servisse a esses fins, mesmo as maquinações do Tirano há muito tempo morto, poderia ser julgado bom. Tudo mais era o mal. As Intrusões alienígenas dos Dispersados — especialmente a volta daquelas descendentes que se chamavam Honradas Madres — não mereciam confiança. A gente de Taraza, mesmo as Reverendas Madres que se opunham a ela no Conselho, eram o derradeiro recurso da Bene Gesserit, a única coisa em que se poderia confiar.
Ainda sem olhar para cima, Taraza disse:
— Você sabe que, quando comparamos os milênios anteriores ao Tirano com aqueles depois de sua morte, o decréscimo do número de conflitos é fenomenal. Desde a época do Tirano que o número de grandes guerras se reduziu a dois por cento do que era antes.
— Até onde sabemos — comentou Odrade.
Os olhos de Taraza voltaram-se para cima e depois para baixo.
— O quê?
— Não temos meios de avaliar quantas guerras se travaram fora de nossa percepção. Tem estatísticas referentes ao povo da dispersão?
— E claro que não!
— Leto nos domesticou. É isso que está dizendo? — perguntou Odrade.
— Se prefere colocar desse modo.
Taraza inseriu um marco em alguma coisa que viu na exposição de dados.
— Não acha que parte do crédito deve ir para nosso amado Bashar Miles Teg? — perguntou Odrade. — Ou seus talentosos predecessores?
Nós escolhemos aquela gente.
— Não percebo a pertinência desta discussão marcial — observou Odrade. — Que tem isso a ver com nosso problema atual?
— Existem aqueles que acreditam poder reverter às condições anteriores ao Tirano com um perverso golpe armado.
— Oh?
Odrade comprimiu os lábios.
— Vários grupos entre os Perdidos que retornam estão vendendo armas a qualquer um que queira ou possa comprar.
— Especificamente?
— Armas sofisticadas estão sendo derramadas em Gammu, e há poucas dúvidas de que os Tleilaxu estão armazenando as mais perigosas.
Taraza inclinou-se para trás, massageando as têmporas. Ela falou em voz baixa, quase meditativa.
— Nós julgamos tomar decisões importantes partindo dos princípios mais elevados.
Odrade também já vira isso antes, e disse:
— Será que a Madre Superiora tem dúvidas quanto à integridade e ao caráter justo da Bene Gesserit?
— Dúvidas? Oh, não. Mas tenho sentido frustrações. Nós trabalhamos durante toda a vida por esses objetivos altamente sofisticados e, no fim, que é que descobrimos? Descobrimos que muitas das coisas às quais dedicamos nossas vidas surgiram de decisões mesquinhas. Suas origens podem ser traçadas até uma necessidade de conforto e conveniência pessoal, e nada têm a ver com nossos ideais mais elevados. O que realmente estava em jogo era algum acordo funcional para satisfazer as necessidades daquelas capazes de tomar decisões.
— Já a ouvi chamar isso de necessidade política — disse Odrade. Taraza falou com um rígido controle, enquanto voltava sua atenção para a exposição de dados diante dela.
— Se nos tornarmos institucionalizadas em nossos julgamentos, com certeza vamos extinguir a Bene Gesserit.
— Não vai encontrar decisões mesquinhas em minha biografia — disse Odrade.
— Busco fontes de fraquezas, falhas.
— Também não vai encontrá-las.
Taraza ocultou o sorriso. Reconhecia a observação egocêntrica como um meio pelo qual Odrade provocava a Madre Superiora. Odrade era muito eficiente em simular impaciência quando na verdade se encontrava suspensa no fluxo da paciência, imune ao tempo.
Como Taraza não engoliu a isca, Odrade reassumiu sua calma expectativa — respiração tranqüilamente firme. A paciência vinha quando não se pensava muito nela. Há muito tempo a Irmandade lhe ensinara a dividir passado e presente em fluxos simultâneos. Enquanto observava as cercanias imediatas, podia captar fragmentos, trechos de seu passado e viver através deles como se estivessem se movendo numa tela sobreposta ao presente.
“Trabalho de memória”, pensou Odrade. Coisas necessárias para se revigorar a mente e repousar, removendo as barreiras. E quando tudo mais parecesse desanimador, ainda lhe restaria sua infância complexa.
Houvera um tempo em que Odrade tinha vivido como vivia a maioria das crianças. Em uma casa, na companhia de um homem e de uma mulher que, se não eram seus pais, pelo menos agiam como tal. Todas as outras crianças que conhecia viviam em situações similares. Elas tinham mães e pais. As vezes apenas o pai trabalhava longe de casa. Outras vezes era apenas a mãe que ia trabalhar. No caso de Odrade, somente a mulher permanecia em casa, e nenhuma babá de creche cuidava da criança nas horas de trabalho. Muito tempo depois Odrade descobriu que sua verdadeira mãe tinha pago uma grande soma em dinheiro para que a menina fosse oculta desse modo.
— Ela a escondeu conosco porque a amava muito — explicou a mulher quando Odrade ficou suficientemente crescida para entender. — É por isso que nunca deve revelar que não somos seus verdadeiros pais.
O amor nada tinha ver com isso, Odrade descobriu depois. As Reverendas Madres não agiam por motivos tão mundanos. E a mãe de Odrade fora uma Bene Gesserit.
Tudo isso foi revelado a Odrade de acordo com o plano original: seu nome era Odrade. Darwi era o nome pelo qual ela sempre fora chamada quando a pessoa que chamava não estava sendo afetuosa ou zangada. Os jovens amigos sempre encurtavam para Dar.
Nem tudo, entretanto, correra de acordo com o plano original. Odrade lembrava-se de um leito estreito, num quarto colorido por pinturas de animais e de paisagens imaginárias nas paredes de um azul suave. Cortinas brancas tremulavam nas janelas ante a brisa suave da primavera ou do verão. Odrade lembrava-se de pular na cama estreita — uma brincadeira maravilhosamente feliz: para cima e para baixo, para cima e para baixo. Muito riso. Braços agarrando-a no meio de um pulo e a abraçando. Havia os braços de um homem: rosto redondo com um pequeno bigode que lhe fazia cócegas e ela ria. A cama batia na parede quando ela saltava e a parede já mostrava marcas desse movimento.
Odrade pensava nessas memórias agora, relutante em abandoná-las no poço da racionalidade. Marcas em uma parede. Marcas de alegria e de risos. Como podiam ser tão pequenas e representar tanto...
Estranho como se via pensando cada vez mais em seu pai nesses dias. Nem todas as memórias eram felizes. Havia ocasiões em que ele estivera triste e furioso, advertindo a mãe para “não se envolver demais”. Tinha um rosto que refletia muitas frustrações. Sua voz era alta quando ele estava furioso, e a mãe se movia suavemente, os olhos cheios de preocupação. Odrade sentia o medo e a preocupação e ficava com raiva do homem. A mulher sabia muito bem como lidar com ele. Beijava-lhe a nuca, acariciava-lhe a face e sussurrava em seu ouvido.
Essas emoções “naturais” tinham exigido os cuidados de uma analista-inspetora Bene Gesserit trabalhando muito com Odrade até que tais lembranças fossem exorcizadas. Ainda assim, restavam detritos para serem apanhados e jogados fora. Mesmo agora Odrade sabia que nem tudo se fora.
Percebendo o modo como Taraza estudava o registro biográfico com muito cuidado, Odrade perguntou-se se essa era a falha que a Madre Superiora estaria vendo.
“Certamente elas já sabem que posso enfrentar as emoções daqueles tempos.”
Tudo acontecera muito tempo atrás. E ainda assim ela admitia que as lembranças do homem e da mulher se encontravam dentro dela, unidas por uma força que nunca poderia ser apagada inteiramente. Especialmente a mãe.
A Reverenda Madre em apuros, que dera à luz Odrade, colocara-a em tal refúgio por motivos que ela agora compreendia demasiado bem. Odrade não tinha ressentimentos, sabia que isso fora necessário para a sobrevivência de ambas. Os problemas tinham surgido pelo fato de a mãe adotiva ter-lhe dado algo que a maioria das mães dá a seus filhos, algo de que a Irmandade tanto desconfiava — amor.
Quando chegaram as Reverendas Madres, a mãe adotiva não se opusera à retirada de sua filha. Duas Reverendas Madres apareceram com um contingente de inspetores masculinos e femininos. Depois Odrade levou um longo tempo tentando entender o significado daquele momento de separação. A mulher sabia que o dia da partida iria chegar, era apenas questão de tempo. Ainda assim, enquanto os dias se tornavam anos — quase seis anos padrão —, a mulher se atreveu a ter esperanças.
E então as Reverendas Madres chegaram com seus corpulentos ajudantes. Elas só haviam esperado até que fosse seguro, até estarem certas de que nenhum caçador soubesse que essa era uma Bene Gesserit preparada para ser herdeira dos Atreides.
Odrade viu um bocado de dinheiro ser entregue à mãe adotiva. A mulher jogou o dinheiro no chão, mas não verbalizou nenhum protesto. Os adultos em cena sabiam onde se encontrava o poder.
Relembrando essas emoções comprimidas, Odrade ainda podia ver a mulher caminhar para uma cadeira de balanço que ficava junto a uma janela voltada para a rua e ficar se balançando para a frente e para trás, para a frente e para trás. Nenhum som partiu dela.
As Reverendas Madres usaram a Voz e seus muitos truques, mais a fumaça de ervas atordoantes e sua presença dominadora, a fim de atrair Odrade para o carro de solo que esperava.
— Vai ser só por pouco tempo. Sua verdadeira mãe nos enviou.
Odrade percebia as mentiras, mas a curiosidade a compelia. “Minha verdadeira mãe!”
Sua última visão da mulher que para ela representara a mãe foi aquela figura na janela, oscilando para a frente e para trás, um olhar de tristeza no rosto e os braços envolvendo o corpo.
Mais tarde, sempre que Odrade falava em retornar para aquela mulher, essa visão-memória incorporava-se a uma lição essencial das Bene Gesserit.
“O amor leva ao sofrimento. O amor é uma força muito antiga, que já serviu ao seu propósito em sua época, mas hoje não é mais essencial à sobrevivência da espécie. Lembre-se do erro daquela mulher, da dor que ela sofreu.”
Até bem depois de sua adolescência, Odrade se ajustava sonhando acordada. Ela voltaria “realmente” depois que fosse uma Reverenda Madre plena. Voltaria e reencontraria aquela mulher adorável, descobriria seu paradeiro, muito embora não lhe conhecesse outro nome que não “mamãe” ou “Sibia”. Odrade lembrava-se do riso de amigos adultos quando chamavam a mulher de “Sibia”.
“Mamãe Sibia.”
As Irmãs, contudo, detectaram os devaneios e encontraram sua fonte. E isto também foi incorporado a uma lição.
“O devaneio é a primeira manifestação daquilo que chamamos de simulfluxo. Trata-se de uma ferramenta essencial ao pensamento racional. Com ele você pode clarear a mente para pensar melhor.”
“Simulfluxo”
Odrade focalizou sua atenção em Taraza, diante da mesa na sala matinal. Os traumas de infância devem ser colocados cuidadosamente dentro de um lugar-memória reconstruído. Tudo isso estava bem distante de Gammu, o planeta que o povo de Dan tinha reconstruído após os Tempos da Fome e da Dispersão. O povo de Dan — Caladan em outras épocas. Odrade apegou-se firmemente ao pensamento racional, usando a visão das Outras Memórias que haviam fluído em sua consciência durante a agonia da especiaria. Quando ela se tornara uma Reverenda Madre plena.
“Simulfluxo... o filtro da consciência... Outras memórias”
Que ferramentas poderosas a Irmandade lhe dera. E que ferramentas perigosas. Todas aquelas outras vidas encontravam-se logo além da cortina da consciência. Ferramentas de sobrevivência; não meios de satisfazer uma curiosidade casual.
Taraza falou, traduzindo o material escrito que fluía de baixo para cima diante de seus olhos:
— Você pesquisou muito suas Outras Memórias. Isso consome energias que deviam ser conservadas. — Os olhos de azul total da Madre Superiora fitaram Odrade de baixo para cima de modo penetrante. — Você algumas vezes atinge os limites da tolerância carnal. Isso pode levar à morte prematura.
— Sou cuidadosa com a especiaria, Madre.
— E deve ser mesmo! O corpo só pode suportar certa quantidade de melange. Somente um certo limite de sondagem sobre o seu passado!
— Encontrou minha falha? — perguntou Odrade.
— Gammu! Uma única palavra contendo todo um discurso.
Odrade sabia. O inevitável trauma de todos aqueles anos perdidos em Gammu. Eles eram uma distração que devia ser arrancada e tornada racionalmente aceitável.
— Mas estou sendo enviada para Rakis — disse Odrade
— Percebo que lembra os aforismos da moderação. Lembre-se de quem você é!
Uma vez mais Taraza curvou-se sobre sua exposição de dados.
“Eu sou Odrade”, pensou Odrade.
Nas escolas Bene Gesserit, onde os primeiros nomes tendiam a ser esquecidos, as listas de chamadas eram feitas sempre com o último nome. Amigas e conhecidas adquiriam o hábito de usar o nome da lista de chamada. E aprendiam cedo que compartilhar segredos ou nomes pessoais era um antigo instrumento para se conquistar a afeição de uma pessoa.
Taraza, três classes à frente de Odrade, recebera a incumbência de “conduzir a menina”, uma associação deliberada da parte das mestras vigilantes.
“Conduzir” significava ter certo domínio sobre a mais jovem, mas também incorporava princípios essenciais que seriam mais bem ensinados por uma pessoa de relacionamento mais íntimo. Taraza, tendo acesso aos relatórios pessoais sobre sua recruta, começou a chamar a jovem de “Dar”. Odrade respondia chamando Taraza de “Tar”. Os dois nomes adquiriram certa permanência — Dar e Tar. Mesmo depois que as Reverendas Madres os tinham ouvido e censurado, elas ocasionalmente recaíam no erro, às vezes apenas pelo divertimento.
Odrade, agora olhando para Taraza, disse:
— Dar e Tar.
Um sorriso tocou as extremidades da boca de Taraza.
— Que é que existe em meus registros que você já não conhece de sobra? — perguntou Odrade.
Taraza apoiou-se no recosto do assento e esperou que a cadeira se ajustasse na nova posição. Repousou as mãos unidas sobre o topo da mesa e olhou para a mulher mais jovem.
“Não muito mais jovem, realmente”, pensou Taraza.
Desde a escola que Taraza achava Odrade completamente afastada num grupo etário mais jovem, criando uma brecha que a passagem dos anos não poderia fechar.
— Cuidado com o começo, Dar — disse Taraza.
— Este projeto já passou do inicio há muito tempo — respondeu Odrade.
— Mas sua participação nele começa agora. E nós estamos nos lançando num princípio que nunca antes foi tentado.
— Devo conhecer agora todos os planos para o ghola?
— Não.
Era assim. Toda evidência de uma disputa nos altos escalões e do princípio da “necessidade de conhecer” resumidos numa única palavra. Mas Odrade entendia. Havia uma rubrica organizacional, estabelecida pela Irmandade original da Bene Gesserit, que tinha permanecido, com apenas algumas pequenas mudanças, durante milênios. As divisões dentro da Bene Gesserit eram marcadas por barreiras verticais e horizontais muito bem definidas, dividindo grupos isolados que convergiam para um único comando somente, no topo. Deveres (também chamados “tarefas consignadas”) eram realizados dentro de células distintas. As participantes ativas dentro de uma célula não conheciam suas equivalentes dentro de células paralelas.
“Mas eu sei que a Reverenda Madre Lucilla se encontra numa célula paralela”, pensou Odrade. “Essa é uma resposta lógica.”
Ela conhecia a necessidade disso. Era um modelo muito antigo, copiado de sociedades secretas revolucionárias. E a Bene Gesserit sempre vira a si mesma como revolucionária permanente, envolvida numa revolução que fora sufocada apenas na época do Tirano, Leto II.
“Sufocada, mas não extinta ou desviada”, Odrade lembrou a si mesma.
Diga-me se, naquilo que está a ponto de fazer — disse Taraza —, você sente algum perigo imediato para a Irmandade.
Essa era uma das demandas peculiares de Taraza, algo que Odrade aprendera a responder a partir de um instinto não-verbalizável que comandava a formação das palavras. Rapidamente ela disse:
— Pior será se deixarmos de agir.
— Nós deduzimos que haveria perigo — disse Taraza, falando numa voz seca e distante.
Taraza não gostava de invocar esse talento de Odrade A mulher mais jovem possuía um instinto presciente para detectar ameaças à Irmandade. Algo que vinha de uma influência descontrolada em sua linha genética, é claro — dos Atreides com seus perigosos talentos. Havia uma observação especial no arquivo de procriação de Odrade: “Exame cuidadoso de toda a prole.” E dois elementos dessa prole já tinham sido secretamente condenados à morte,
“Eu não devia ter despertado o talento de Odrade agora, nem mesmo por um momento”, pensou Taraza. Mas às vezes a tentação era demasiado grande.
Taraza fechou o projetor no tampo da mesa e olhou para a superfície vazia enquanto falava:
— Mesmo que você encontre um companheiro perfeito, não deve procriar sem nossa permissão quando estiver afastada da Irmandade.
— O erro de minha mãe natural — disse Odrade.
— O erro de sua mãe natural foi ser reconhecida enquanto estava procriando!
Odrade já ouvira isso antes. Havia aquele detalhe quanto à linhagem Atreides que exigia a mais cuidadosa atenção pelas mulheres no ato de procriação. O talento selvagem, é claro. Ela sabia tudo a respeito desse talento, a força genética que tinha produzido o Kwisatz Haderach e o Tirano. Que é que as encarregadas da procriação estariam vendo agora? Seria a abordagem delas, na maior parte, negativa? Nada de nascimentos perigosos! Ela nunca vira seus bebês depois de nascidos, algo que não era necessariamente extraordinário no caso da Irmandade. E nunca pudera examinar os registros genéticos em seu próprio arquivo. Nisso também a Irmandade operava com uma separação cuidadosa dos elementos e dos poderes.
“E aquelas proibições anteriores em minhas Outras Memórias!”
Encontrara os espaços em suas memórias e os abrira à observação. Era provável que apenas Taraza e talvez duas outras conselheiras (Bellonda era a mais provável, além de outra Reverenda Madre, ainda mais velha) compartilhassem do acesso mais sensível a tal informação sobre nascimentos.
Teriam Taraza e as outras feito o juramento de que morreriam antes de revelar informações privilegiadas a um estranho? Havia, afinal de contas, um preciso ritual de sucessão caso uma Reverenda Madre num posto-chave morresse longe de suas Irmãs e sem qualquer chance de passar as vidas guardadas dentro de si. O ritual fora usado muitas vezes durante o reinado do Tirano. Um período terrível! Saber que as células revolucionárias da Irmandade lhe eram transparentes a ele! Ao monstro! Ela sabia que suas irmãs nunca se haviam iludido em relação ao fato de que a única coisa que impedira Leto II de destruir a Bene Gesserit fora algum tipo de profunda lealdade à sua avó, Lady Jessica.
“Você está ai, Jessica?”
Odrade sentiu uma comoção bem longe dentro de si. O fracasso de uma Reverenda Madre: “Ela se deixou apaixonar!” Uma coisa tão pequena, mas que conseqüências imensas! Três mil e quinhentos anos de tirania!
O Caminho Dourado Infinito? E quanto aos megatrilhões perdidos na Dispersão? Que ameaça representaria agora o retorno desses perdidos?
Como se lesse a mente de Odrade, algo que às vezes parecia fazer, Taraza disse:
— Os Perdidos estão lá fora, só esperando para atacar. Odrade já tinha ouvido a argumentação: perigo de um lado e do outro, algo magneticamente atraente. Tantos desconhecidos magníficos. A Irmandade, com seus talentos aperfeiçoados por milênios de uso da melange — que não poderia fazer com tamanho potencial humano ainda intocado? Pense nos incontáveis genes flutuando lá fora! Pense nos talentos em potencial, derivando livres em universos onde poderiam perder-se para sempre.
— E o desconhecido que conjura os maiores terrores — disse Odrade.
— E as maiores ambições — replicou Taraza.
— Então deverei seguir para Rakis?
— Na devida ocasião. Eu a considero adequada para a tarefa.
— Do contrário não me teria escolhido.
Era uma antiga discussão entre elas, que recuava no passado até o tempo da escola. Taraza percebia, entretanto, que não fora levada a essa troca de palavras conscientemente. Muitas memórias as uniam: Dar e Tar. Teria de ter cuidado com isso!
— Lembre-se de onde estão as suas lealdades — disse Taraza.
A existência das não-naves traz consigo a possibilidade de destruir planetas inteiros sem medo de retaliação. Um grande objeto, um asteróide ou equivalente, pode ser lançado de encontro ao planeta. Ou as pessoas podem ser atiradas umas contra as outras por meio de subversão sexual, e então armadas de modo a que se destruam. Essas Honradas Madres parecem inclinadas a empregar essa última técnica.
— Análise da Bene Gesserit
De sua posição no pátio, e mesmo quando não aparentava fazê-lo, Duncan Idaho mantinha a atenção voltada para os observadores acima dele. Lá estava Patrin, é claro, mas Patrin não contava. Eram as Reverendas Madres que mereciam sua atenção. Vendo Lucilla, pensou: “Essa aí é nova.” O pensamento fez uma onda de excitação percorrer-lhe o corpo, algo que ele aproveitou em novos exercícios.
Completou os três primeiros padrões do jogo de treinamento que Miles Teg tinha ordenado, vagamente consciente de que Patrin relataria quão bem ele se saíra. Duncan gostava de Teg e do velho Patrin, percebendo que o sentimento era recíproco. Essa nova Reverenda Madre, entretanto... sua presença sugeria mudanças interessantes. De um lado, ela era mais jovem que as outras. E a recém-chegada não tentava ocultar os olhos, que constituíam o primeiro indício de sua adesão à Bene Gesserit. Seu primeiro vislumbre de Schwangyu confrontara-o com olhos ocultos atrás de lentes de contato que simulavam as pupilas e as vistas levemente avermelhadas de uma não-adepta da especiaria. Também ouvira uma das acólitas do Castelo dizer que as lentes de Schwangyu corrigiam igualmente uma “fraqueza astigmática” que fora aceita em sua linhagem como um preço razoável em troca de outras qualidades que ela transmitia à sua prole.
Na ocasião, a maior parte dessa observação fora ininteligível para o Duncan, mas ele procurara as referências na biblioteca do Castelo, referências escassas e altamente limitadas em conteúdo. Schwangyu em pessoa esquivara-se de todas as suas perguntas a respeito, e o comportamento subsequente de suas professoras lhe dissera que ela ficara furiosa. Tipicamente, descarregara a raiva nas outras.
O que realmente a perturbara fora sua indagação quanto a se ela era sua mãe.
Há muito tempo que Duncan sabia ser uma pessoa especial. Havia lugares, nas rebuscadas dependências desse Castelo Bene Gesserit, onde sua entrada não era permitida. Ele encontrara meios particulares de superar tais proibições. Muitas vezes olhara através de janelas abertas para os guardas e as extensões de campo desflorestado que podiam ser cobertas pelo fogo de torretas estrategicamente posicionadas. O próprio Miles Teg lhe ensinara a importância do fogo de cobertura.
Gammu, era como agora chamavam o planeta. Já fora conhecido como Giedi Prime, mas alguém chamado Gurney Halleck havia mudado isso. Era tudo história antiga. Coisa chata. Ainda permanecia um leve cheiro de óleo, da sujeira que cobrira o planeta em seus dias pré-danianos. Milênios de plantações especiais estavam mudando isso, tinham-lhe explicado seus professores. Do Castelo podia ver parte disso. Florestas de coníferas e outras árvores os envolviam ali.
Ainda vigiando secretamente as duas Reverendas Madres, Duncan deu uma série de cambalhotas, flexionando os músculos enquanto se movia exatamente do modo como Teg lhe havia ensinado.
Teg também o instruíra quanto às defesas planetárias. Gammu era cercado por monitores orbitais, cujos tripulantes não podiam levar suas famílias a bordo. As famílias permaneciam em Gammu, reféns para garantir a vigilância dos guardiães orbitais. Em algum ponto entre as naves no espaço, haveria “não-naves” indetectáveis cujas tripulações eram compostas inteiramente por gente dos Bashar e Irmãs Bene Gesserit.
Eu não assumiria esta incumbência sem completo controle de todas as posições defensivas — explicara Teg.
Duncan percebia que ele era a “incumbência”. O Castelo existia para protegê-lo. Os monitores orbitais de Teg, inclusive as não-naves, protegiam o Castelo.
Era tudo parte de uma educação militar cujos elementos Duncan agora achava familiares. Aprendendo a defender um planeta, aparentemente vulnerável, de ataques vindos do espaço, ele sabia quando essas defesas estavam corretamente posicionadas. O todo era extremamente complexo, mas os elementos podiam ser identificados e entendidos. Havia por exemplo a monitoração constante da atmosfera e do soro sangüíneo dos habitantes de Gammu. Médicos Suk, pagos pela Bene Gesserit, estavam em toda parta.
— Doenças são armas — dissera Teg. — Nossas defesas contra doenças devem ser bem preparadas.
Freqüentemente Teg chamava a atenção contra defesas passivas. Ele as chamava de “produtos de uma mentalidade de cerco capaz de criar fraquezas mortais”.
Quando chegava a hora das instruções militares de Teg, Duncan ouvia com atenção. Patrin e os registros da biblioteca confirmavam que o Bashar Mentat Miles Teg fora um famoso líder militar da Bene Gesserit. Patrin freqüentemente fazia referências ao tempo em que serviam juntos, e Teg sempre aparecia como herói nos relatos.
— A mobilidade é a chave do êxito militar — dissera Teg. — Se você está preso num forte, mesmo que seja um forte do tamanho de um planeta, você está sempre vulnerável, em última análise.
Teg não se importava muito com Gammu.
— Percebo que você já sabe que este lugar foi um dia chamado de Giedi Prime. Os Harkonnen, que governavam o planeta, ensinaram-nos algumas coisas. Nós temos uma idéia melhor, graças a eles, de como os homens podem ser terrivelmente brutais.
Lembrando-se disso, Duncan percebeu que as duas Reverendas Madres a observá-lo do parapeito obviamente estavam falando a seu respeito.
“Serei a incumbência dessa que chegou?”
Duncan não gostava de ser observado e esperava que a recém-chegada lhe desse algum tempo. Ela não parecia ser rígida. Não era como Schwangyu.
Enquanto continuava a fazer seus exercícios, Duncan os ritmava de acordo com sua litania particular. “Maldita Schwangyu! Maldita Schwangyu!”
Ele odiava Schwangyu desde os nove anos de idade — fazia quatro anos agora. Ela não conhecia o seu ódio, pensou. Provavelmente já tinha esquecido tudo sobre o incidente que incendiara aquele ódio dentro dele.
Ele mal completara nove anos no dia em que conseguira esgueirar-se pela guarda interna e atingir um túnel que conduzia a uma das casamatas de defesa. O túnel cheirava a mofo, tinha luzes baças e muita umidade. Ele olhou através das fendas para pontaria de armas antes de ser descoberto e mandado de volta ao Castelo.
A escapada provocou um severo sermão da parte de Schwangyu, uma figura distante e ameaçadora cujas ordens deviam ser obedecidas. Era assim que ele ainda pensava nela, embora tivesse aprendido desde então a respeito da Voz de Comando da Bene Gesserit, aquela sutileza vocal que podia dobrar a vontade de um ouvinte destreinado.
“Ela deve ser obedecida”
— Você fez com que toda a guarda seja punida — disse Schwangyu.
— E eles o serão severamente.
Essa fora a parte mais terrível do sermão. Duncan gostava de determinados guardas e ocasionalmente atraía alguns deles para uma brincadeira de verdade, com muitos risos e quedas. Dessa vez sua brincadeira de escapar até a casamata tinha magoado seus amigos.
Duncan sabia quem devia ser punido.
“Maldita Schwangyu! Maldita Schwangyu!”
Depois do sermão de Schwangyu, Duncan correu para junto de sua instrutora-chefe, naquela ocasião a Reverenda Madre Tamalane, outra das velhas sábias com modos frios e distantes, cabelo cor de neve sobre uma face estreita, de pele coriácea. Ele exigiu que Tamalane lhe dissesse como os guardas iam ser punidos. Tamalane ficou surpreendentemente pensativa, a voz como areia raspando em madeira.
— Punições? Bem, bem...
Os dois encontravam-se na pequena sala de aulas junto à grande área de exercícios de solo aonde Tamalane ia todas as noites a fim de preparar as lições do dia seguinte. Era um lugar cheio de leitores de bolha e de carretel, além de outros meios igualmente sofisticados de armazenagem e recuperação de informações. Duncan gostava mais dali do que da biblioteca, mas não tinha permissão de entrar na sala de aulas sem estar acompanhado. Era um lugar brilhante, inundado pela luz de muitos globos luminosos flutuando em suspensores. Ante sua intrusão, Tamalane voltou-se de onde colocara sua lições.
— Existe sempre algo análogo a um banquete de sacrifício em nossas grandes punições — ela disse. — Os guardas, é claro, receberão uma grande punição.
— Banquete?
Duncan estava intrigado.
Tamalane virou-se completamente em sua cadeira giratória, olhando diretamente nos olhos dele. Seus dentes de aço brilharam como luzes brilhantes.
— A história raramente tem sido misericordiosa com aqueles que devem ser punidos — disse ela.
Duncan estremeceu ante a palavra “história”. Esse era um dos sinais de Tamalane. Ela ia ensinar-lhe uma lição, outra lição aborrecida.
— As punições da Bene Gesserit não podem ser esquecidas.
Duncan prestou atenção na boca murcha de Tamalane, sentindo imediatamente que ela falava a partir de uma dolorosa experiência pessoal. Ia aprender alguma coisa interessante.
— Nossas punições carregam consigo uma lição inescapável — disse Tamalane — É algo pior do que a dor.
Duncan sentou-se no piso diante dos pés dela. Do seu ângulo de visão, Tamalane era uma figura sinistra, envolta em panos negros.
— Nós não punimos com a agonia final. Esta fica reservada para a Reverenda Madre em sua passagem no ritual da especiaria.
Duncan assentiu com a cabeça. Os registros da biblioteca referiam-se à “agonia da especiaria”, misteriosa provação que criava uma Reverenda Madre.
— As grandes punições são dolorosas, não obstante — ela disse — São também emocionalmente dolorosas. A emoção despertada pela punição é sempre aquela que julgamos ser a maior fraqueza do punido. Desse modo, nós tornamos mais forte o penitente.
As palavras enchiam Duncan de um temor não compreendido. Que estariam fazendo com seus guardas? Ele não conseguia perguntar nada mas isso não era necessário. Tamalane ainda não terminara.
— A punição sempre termina com uma sobremesa — disse ela. e bateu com as mãos sobre os joelhos.
Duncan franziu a testa. Uma sobremesa? Isso era parte de um banquete. Como é que um banquete podia ser uma punição?
— Não é realmente um banquete e sim a idéia de banquete explicou Tamalane, enquanto uma mão semelhante a uma garra descrevia um círculo no ar. — Então vem a sobremesa, alguma coisa inteiramente inesperada. E o punido pensa: Ah, fui perdoado afinal! Está compreendendo?
Duncan sacudiu a cabeça de um lado para o outro. Não, ele não compreendia.
— E a suavidade do momento — ela disse. — Você passou por cada um dos pratos desse doloroso banquete e afinal chegou a uma coisa que é possível de ser saboreada. Mas quando você a saboreia... aí é que vem o momento mais doloroso de todos, o reconhecimento, a compreensão de que não existe prazer no final. Não, realmente não. E essa é a dor maior da grande punição. Ela grava a lição da Bene Gesserit.
— Mas que é que ela vai fazer com aqueles guardas?
As palavras foram arrancadas do Duncan.
— Não posso dizer quais serão os elementos específicos de cada punição. Não preciso conhecê-los. Só posso dizer-lhe que serão diferentes para cada um deles.
Tamalane não diria mais nada. Voltou à elaboração das lições do dia seguinte.
— Nós nos veremos amanhã — ela disse. — Estarei lhe ensinando a identificar as fontes dos vários sotaques do Galach falado.
Ninguém mais, nem mesmo Teg ou Patrin, responderia suas perguntas a respeito das punições. Mesmo os guardas, quando os viu posteriormente, recusavam-se a falar de suas provações. Alguns reagiam bruscamente a suas indagações e nenhum voltaria a brincar com ele. Não havia esquecimento entre os punidos. Isso era bem claro.
“Maldita Schwangyu! Maldita Schwangyu”
Então começara seu profundo ódio por ela. E todas as bruxas velhas eram objeto desse ódio. Será que aquela jovem recém chegada seria igual às outras?
“Maldita Schwangyu!”
Quando ele exigiu que Schwangyu lhe dissesse o que fizera para puni-los, ela levou algum tempo para responder e então disse:
— É perigoso para você aqui em Gammu. Existem pessoas que desejam feri-lo.
Duncan não perguntou por quê. Essa era outra área do conhecimento em que suas perguntas nunca recebiam respostas. Nem mesmo Teg responderia, embora a presença de Teg enfatizasse a realidade desse perigo.
E Miles Teg era um Mentat que devia conhecer muitas respostas. Duncan freqüentemente notava como os olhos do homem brilhavam enquanto seus pensamentos se perdiam em lugares distantes. Mas não havia uma resposta Mentat a perguntas como.
— Por que estamos aqui em Gammu?
— Contra quem você me guarda? Quem deseja me ferir?
— Quem são meus pais?
O silêncio era a resposta a essas perguntas, ou algumas vezes Teg resmungaria:
— Eu não lhe posso responder.
A biblioteca era inútil. Ele descobrira isso quando tinha apenas oito anos e seu instrutor era uma Reverenda Madre que fracassara, chamada Luran Geasa — não tão velha quanto Schwangyu, mas bem adiantada nos anos, com mais de 100 de idade, de qualquer modo.
A seu pedido, a biblioteca lhe forneceria informações sobre Gammu, Giedi Prime, os Harkonnen e sua queda, e vários conflitos em que Teg atuara como comandante. Nenhuma dessas batalhas se revelara muito sangrenta; vários comentaristas referiam-se à “soberba diplomacia” de Teg. Apesar disso, uma informação levando a outra, Duncan aprendeu sobre a era do Imperador Deus e de como sua gente fora pacificada. Esse período atraiu a atenção de Duncan durante semanas. Ele encontrou um velho mapa em meio aos registros e o projetou na parede focalizadora. As superimposições do comentarista disseram-lhe que o Castelo fora um Posto de Comando das Oradoras Peixes abandonado durante a Dispersão.
“Oradoras Peixes!”
Duncan desejava ter vivido na época delas, servindo como um dos raros assessores masculinos no exército de mulheres que adoravam o grande Imperador-Deus.
“Ah, ter vivido em Rakis naqueles dias!”
Teg era surpreendentemente solícito no que se referia ao Imperador-Deus, chamando-o sempre de “o Tirano”. Um cofre da biblioteca foi aberto e informações sobre Rakis derramaram-se em cima de Duncan.
— Será que verei Rakis algum dia? — perguntou ele a Geasa.
— Você está sendo preparado para viver lá.
A resposta o surpreendeu. Tudo que lhe haviam ensinado a respeito daquele planeta distante assumiu novo significado em sua mente.
— Por que devo viver lá?
— Não posso responder.
Com renovado interesse, ele voltou aos seus estudos sobre aquele misterioso planeta e sua miserável Igreja do Shai-hulud, o Deus Dividido. “Vermes.” O Imperador-Deus transformara-se em um daqueles vermes! A idéia enchia Duncan de espanto. Talvez ali estivesse alguma coisa que valesse a pena adorar. O pensamento o sensibilizava. Que teria levado um homem a aceitar tão terrível metamorfose?
Duncan sabia o que seus guardas e os outros no Castelo pensavam a respeito de Rakis e do núcleo do clero que lá vivia. O riso e as zombarias diziam tudo. Teg disse:
— Provavelmente, nunca saberemos toda a verdade a esse respeito, mas eu lhe digo uma coisa, garoto, aquilo não é religião para um soldado.
Schwangyu acrescentou:
— Você vai aprender a respeito do Tirano, mas não deve acreditar em sua religião. Ela é inferior a você, é desprezível.
Em cada momento de folga dos estudos, Duncan curvava-se sobre o que a biblioteca lhe fornecia: o Livro Sagrado do Deus Dividido, a Bíblia da Guarda, a Bíblia Universal Laranja e mesmo os Apócrifos. Aprendeu a respeito do Bureau da Fé, há muito extinto, e sobre a “Pérola Que é o Sol da Compreensão”.
A própria idéia dos vermes o fascinava. Seu tamanho! Um dos maiores se estenderia de uma extremidade a outra do Castelo. Os homens haviam cavalgado os vermes pré-Tirano, mas agora o clero rakiano proibia isso.
Encontrou-se absorvido pelos relatos da equipe de arqueólogos que encontrara a primitiva não-câmara do Tirano. O lugar chamava-se Dar-es-Balat. O relatório do arqueólogo Hadi Benotto estava marcado: “Suprimido por ordem do clero rakiano”. O número de arquivos da Bene Gesserit a respeito era bem grande e o que Benotto revelava era fascinante.
— Uma partícula da consciência do Imperador-Deus em cada verme? — perguntara ele a Geasa.
— Assim se costuma dizer. E, se for verdade, não se trata de uma consciência. O próprio Tirano disse que entraria num sonho interminável.
Cada sessão de estudo gerava uma palestra especial e explicações da Bene Gesserit a respeito de religião até que finalmente ele encontrou os relatos batizados “As Nove Filhas de Siona” e “Os Mil Filhos de Idaho”.
Confrontando Geasa, ele quis saber:
— Meu nome é Duncan Idaho. Que significa isso?
Geasa sempre se movia como se estivesse se abrigando à sombra do seu fracasso, a cabeça comprida inclinada para a frente, os olhos lacrimejantes apontados para o chão. A confrontação ocorreu perto do anoitecer, no longo salão ao lado da área de exercícios. Ela empalideceu ante a pergunta.
E, quando não respondeu, ele acrescentou:
— Sou descendente de Duncan Idaho?
— Você deve perguntar a Schwangyu.
Geasa falava como se as palavras lhe fossem dolorosas.
Era uma resposta familiar; e o enfureceu. Ela queria dizer que lhe contariam alguma coisa que o fizesse calar a boca, mas que em verdade nada lhe seria revelado. Schwangyu, entretanto, revelou-se mais aberta do que ele teria julgado possível.
— Você carrega o autêntico sangue de Duncan Idaho.
— Quem são meus pais?
— Já morreram há muito tempo.
— Como foi que morreram?
— Não sei. Nós o recebemos como órfão.
— Então por que existem pessoas que me querem fazer mal?
— Elas temem o que você pode fazer.
— E que é que eu posso fazer?
— Estude suas lições. Vai lhe parecer claro com o tempo.
“Cale a boca e estude!” Outra resposta familiar.
Obedeceu porque tinha aprendido a reconhecer quando as portas se fechavam para ele. Mas agora sua inteligência indagadora encontrava outros registros do Tempo da Fome e da Dispersão, as não-câmaras e não-naves que não poderiam ser rastreadas, nem mesmo pelas mais poderosas mentes prescientes deste universo. E ali encontrou o fato de que os descendentes de Duncan Idaho e de Siona, aqueles antigos que tinham servido ao Tirano Imperador Deus, também eram invisíveis aos profetas e prescientes. Nem mesmo um Navegador da Corporação em profundo transe de melange podia detectar essa gente. Siona, os registros revelaram-lhe, fora uma Atreides de puro sangue e Duncan Idaho, um ghola.
“Ghola?”
Buscou na biblioteca significados para essa palavra peculiar. E a biblioteca não lhe deu mais do que definições simples: “Gholas: seres humanos produzidos a partir das células de um cadáver em tanques axlotl dos Tleilaxu.”
“Tanques axlotl?”
“Engenho Tleilaxu destinado a reproduzir seres humanos vivos a partir das células de um cadáver”
— Descreva um ghola — pediu ele.
“Carne inocente, desprovida das memórias do original. Ver tanques axlotl.”
Duncan aprendera a entender os silêncios, os espaços em branco naquilo que as pessoas do Castelo lhe revelavam. A compreensão propagou-se em sua mente. Ele sabia! Tinha só 10 anos e já sabia!
“Eu sou um ghola.”
Num fim de tarde na biblioteca, toda aquela maquinaria esotérica em torno dele se apagou num fundo sensorial, e um menino de 10 anos se sentou, silencioso, agarrado ao conhecimento de si mesmo.
“Eu sou um ghola!”
Não podia lembrar-se dos tanques axlotl onde suas células se haviam transformado em uma criança. Suas primeiras memórias eram de Geasa a erguê-lo do berço, um interesse alerta naqueles olhos de adulto que logo se transformou em cautela.
Era como se a informação a seu respeito, fornecida de modo tão relutante pela gente do Castelo e pelos registros, tivesse afinal definido uma forma central para si mesmo.
— Fale-me a respeito dos Bene Tleilax — pediu ele à biblioteca.
— Eles são um povo dividido entre Dançarinos Faciais e Mestres. Os Dançarinos Faciais são híbridos, estéreis e submissos aos Mestres.
“Por que eles fizeram isso comigo?”
A informação fornecida pelas máquinas da biblioteca era subitamente estranha e perigosa. Ele estava com medo, não de que suas perguntas pudessem encontrar mais espaços vazios, mas das respostas que poderia obter.
“Por que sou tão importante para Schwangyu e para os outros?” Sentia ter sido enganado, trapaceado até mesmo por Patrin e Miles Teg. Por que seria considerado justo tirar células de um ser humano e produzir um ghola?
Ele fez a pergunta seguinte com grande hesitação. Um ghola pode lembrar-se de quem foi? Isso pode ser conseguido.
— Como?
— A identidade psicológica de um ghola em relação ao original preestabelece certas respostas que podem ser ativadas mediante um trauma.
Isso não era resposta!
— Mas como?
Schwangyu interferiu nesse ponto, entrando na biblioteca sem se fazer anunciar. Então, alguma coisa em suas perguntas tinha disparado um alerta para preveni-la!
— Tudo vai ficar claro para você no devido tempo — ela disse.
Tentou acalmá-lo, mas ele sentia a injustiça, a ausência de sinceridade. Alguma coisa em seu interior dizia-lhe que possuía mais sabedoria em sua identidade adormecida do que aqueles que se presumiam tão superiores. Seu ódio por Schwangyu atingiu novo cume de intensidade. Ela era a personificação de tudo aquilo que o incitava e depois lhe frustrava a curiosidade.
Agora, entretanto, sua imaginação estava em fogo. Iria recapturar suas memórias originais! Sentia a verdade dessa afirmativa. Lembrar-se-ia de seus pais, de sua família, de seus amigos... e de seus inimigos.
Provocou Schwangyu com isso:
— Vocês me criaram por causa de meus inimigos?
— Você já aprendeu a ficar em silêncio, criança. Use esse aprendizado.
“Muito bem. E assim que vou combater você, maldita Schwangyu. Vou ficar calado, mas vou continuar aprendendo. E vou mostrar como me sinto realmente.”
— Você sabe — acrescentou ela —, acho que estamos criando um estóico.
Ela ficava a dominá-lo com superioridade, e ele não aceitaria esse tipo de paternalismo. Combateria tudo isso com o silêncio e a vigilância. Saiu correndo da biblioteca e se refugiou em seu quarto.
Nos meses que se seguiram, muitas coisas confirmaram que ele era um ghola. Mesmo uma criança sabia quando as coisas ao seu redor eram extraordinárias. Ocasionalmente, podia observar outras crianças além dos muros, caminhando pela estrada do perímetro, rindo e gritando. Em sua biblioteca. encontrara descrições a respeito de crianças. Os adultos não se aproximavam das outras crianças para obrigá-las a se engajar num treinamento rigoroso do tipo que lhe era imposto. Outras crianças não tinham uma Reverenda Madre Schwangyu para ordenar cada pequeno aspecto de suas vidas.
Sua descoberta precipitou outra mudança na vida de Duncan. Luran Geasa foi afastada e não retornou.
“Ela não devia ter permitido que eu soubesse a respeito dos gholas.” A verdade era, de algum modo, mais complexa, como Schwangyu explicou a Lucilla no parapeito de observação, no mesmo dia de sua chegada.
— Nós sabíamos que chegaria o momento inevitável. Ele aprendera a respeito dos gholas e faria perguntas incisivas.
— Estava mais do que na hora de uma Reverenda Madre cuidar de sua educação no dia-a-dia. Geasa pode ter sido uma má escolha.
— Está questionando meu julgamento? — retrucou Schwangyu.
— Será que o seu julgamento é tão perfeito que nunca pode ser questionado?
Na voz de contralto de Lucilla, a pergunta tinha o impacto de uma bofetada.
Schwangyu ficou em silêncio por quase um minuto. Depois disse:
— Geasa achava que o ghola era uma criança cativante. Ela chorou e disse que ia ter saudade dele.
— Será que não foi prevenida quanto a isso?
— Geasa não possui nosso treinamento.
— Por isso você a substituiu por Tamalane. Não conheço Tamalane, mas presumo que seja muito velha.
— Bastante.
— Qual foi a reação dele ante a retirada de Geasa?
— Perguntou para onde ela iria. Não respondemos.
— Como Tamalane se saiu?
— Em seu terceiro dia com ela, ele lhe disse muito calmamente: “Eu a odeio. E isso que esperam de mim?”
— Tão depressa!
— Agora mesmo ele está observando você e pensando: “Eu odeio Schwangyu. Será que vou ter que odiar essa aí?” Mas ele também deve estar pensando que você não é como as velhas bruxas. Você é jovem. E ele vai calcular que isso deve ser importante.
Os seres humanos vivem melhor quando cada um tem seu lugar para ficar, quando cada um conhece a sua posição num esquema de coisas e percebe os limites daquilo que pode conquistar. Destrua esse lugar e você destruirá a pessoa.
— Ensinamentos da Bene Gesserit
Miles Teg não queria essa missão em Gammu. Ser mestre de armas de uma criança ghola? Mesmo uma criança ghola como essa, com toda a história tecida em torno dela. Tratava-se de uma intrusão indesejável na bem-ordenada aposentadoria de Teg.
Mas ele tinha vivido toda a vida como um Mentat Militar sob as ordens da Bene Gesserit e não conseguiria computar um ato de desobediência.
Quis custodiet ipsos custodiet?
Quem deve guardar os guardiães? Quem cuida para que os guardiães não falhem?
Essa era uma pergunta que Teg tinha considerado cuidadosamente em muitas ocasiões. Ela formava um dos princípios básicos de sua lealdade à Bene Gesserit. Não importava o que se pudesse dizer a respeito da Irmandade, elas exibiam uma admirável constância de propósitos.
“Propósitos morais”, como Teg os rotulava.
O propósito moral da Bene Gesserit coincidia totalmente com os princípios de Teg. E o fato de tais princípios terem sido condicionados em sua mente pela própria Bene Gesserit não entrava em sua consideração. O pensamento racional, principalmente a racionalidade Mentat, não seria capaz de fazer outro julgamento.
Teg reduzia tudo à sua essência: se apenas uma pessoa seguisse tais princípios de orientação, esse seria um universo melhor. Não era jamais uma questão de justiça. A justiça exigia o recurso da lei, e esta podia ser uma amante volúvel, sempre sujeita aos caprichos e preconceitos de quem a administrasse. Não, era uma questão que envolvia o conceito de merecimento, algo que atingia um nível muito mais profundo. As pessoas que eram objeto de um julgamento deviam considerá-lo merecido.
Para Teg, declarações como “a letra da lei deve ser obedecida” eram perigosas para seus princípios de orientação. Ser justo exigia um tipo de acordo, uma constância previsível e, acima de tudo, uma lealdade sendo exercida para cima e para baixo ao longo da hierarquia. Uma liderança guiada por tais princípios não exigia controles externos. A pessoa cumpria seu dever porque essa era a coisa certa. E não obedecia por ser esse o comportamento “previsivelmente” correto, mas porque a certeza de estar fazendo uma coisa certa pertencia ao momento em que agia. Previsão e presciência nada tinham a ver com isso.
Teg conhecia a reputação dos Atreides no que se referia à presciência confiáveis, mas declarações proféticas não tinham lugar em seu universo. A pessoa aceitava o universo como o havia encontrado e aplicava os seus princípios onde podia. Ordens absolutas dentro da hierarquia eram sempre obedecidas. Não que Taraza tivesse feito da coisa uma ordem absoluta, mas as implicações estavam lá.
— Você é a pessoa perfeita para esta tarefa.
Ele tinha vivido uma vida muito longa, com muitos pontos altos, e se aposentara com honra. Teg sabia que estava velho, velho e lento, com todos os defeitos da idade esperando para traí-lo ali, bem nas fronteiras de sua consciência. Não obstante, o chamado do dever o animou mesmo enquanto ele dominava o desejo de dizer não.
O pedido viera da própria Taraza. A poderosa líder de todas (inclusive a Missionaria Protectiva) o tinha escolhido. Não apenas uma Reverenda Madre, mas a Reverenda Madre Superiora.
Taraza viera até seu retiro em Lernaeus. Era para ele uma honra que ela fizesse isso, e ela sabia. Apareceu em seu portão sem ser anunciada, acompanhada apenas por duas servas acólitas e uma pequena força de guardas, dos quais alguns rostos ele reconhecia. Teg em pessoa os tinha treinado. E a hora da chegada também fora interessante. De manhã cedo, logo depois do café. Ela conhecia o seus hábitos e certamente devia saber que ele estaria ainda mais alerta a essa hora. Queria que ele estivesse acordado e na plenitude de seu potencial.
Patrin, antigo ajudante-de-ordens de Teg, trouxe Taraza para o aposento da ala leste, lugar pequeno e elegante, somente com mobílias sólidas. Teg não gostava de cadeiras-cão nem de qualquer outro tipo de mobília viva. Patrin tinha uma aparência de aborrecimento estampada no rosto enquanto fazia a Madre Superiora, vestida de preto, entrar na sala. Teg reconheceu aquela expressão imediatamente. Para outras pessoas, a face longa e pálida de Patrin poderia, com as muitas rugas da idade, parecer uma máscara imutável. Mas ao olhar alerta de Teg, o aprofundamento das rugas em torno da boca do homem e a expressão de seus velhos olhos só poderiam significar uma coisa: no caminho até aquela sala, Taraza lhe dissera algo que o tinha perturbado.
Portas de correr, bem altas e feitas de plaz pesado, emolduravam o cenário no lado ocidental da sala, um longo gramado em declive que descia até as árvores junto do rio. Taraza parou, dentro do aposento, para admirar a vista.
Sem que lhe pedissem, Teg apertou um botão. Cortinas deslizaram, tapando a paisagem, e globos luminosos se acenderam. A ação de Teg revelou a Taraza que ele tinha computado a necessidade de privacidade. Ele ainda enfatizou isso ao ordenar a Patrin:
— Por favor, cuide para que não sejamos perturbados.
— As ordens para a Fazenda do Sul, senhor — arriscou Patrin.
— Por favor, cuide delas você mesmo. Você e Firus sabem o que eu desejo.
Patrin fechou a porta um tanto bruscamente ao sair, pequeno sinal que revelava muito para Teg.
Taraza deu um passo para dentro do aposento e o examinou.
— Verde-limão — ela disse. — Uma de minhas cores favoritas. Sua mãe tinha um gosto excelente.
Teg animou-se com a observação. Tinha profunda afeição por esse prédio e por essa terra. Sua família vivera ali durante apenas três gerações, mas tinha deixado sua marca no lugar. E o toque de sua mãe não fora realmente alterado em muitos dos aposentos.
— E seguro amar a terra e os lugares — disse ele.
— Gostei particularmente dos tapetes laranja-escuros no salão e do vitral colorido acima da porta de entrada — disse Taraza. — Aquele vitral é uma verdadeira antigüidade, tenho certeza.
A senhora não veio até aqui para conversar sobre a decoração de interiores — disse Teg.
Taraza riu.
Ela tinha uma voz aguda que seu treinamento na Irmandade lhe ensinara a usar com eficácia devastadora. Não era uma voz fácil de ser ignorada, mesmo quando parecia cuidadosamente informal, como agora. Teg já tivera oportunidade de ver Taraza no Conselho da Bene Gesserit. Suas maneiras eram poderosas e persuasivas, cada palavra uma indicação da mente aguda que lhe guiava as decisões. Agora ele podia sentir uma decisão importante por baixo de suas maneiras.
Teg indicou uma cadeira verde, estofada, à sua esquerda. Ela olhou para o móvel, percorreu uma vez mais o aposento com o olhar e suprimiu um sorriso.
Nem uma cadeira-cão na casa, podia apostar. Teg era uma antigüidade cercada de antigüidades. Sentou-se e alisou o manto enquanto esperava que ele sentasse em outra cadeira igual diante dela.
— Lamento a necessidade de lhe pedir para abandonar sua aposentadoria, Bashar — disse ela. — Infelizmente as circunstâncias me deixam pouca escolha.
Teg deixou os longos braços repousarem informalmente nos braços da cadeira, um Mentat em repouso, à espera. Sua postura dizia: encha minha mente de dados.
Taraza sentiu-se momentaneamente desconcertada. Isso era uma imposição. Teg ainda era uma figura imponente, alto e com uma cabeça volumosa, coroada por cabelos grisalhos. Ela bem sabia que lhe faltavam quatro AP para completar 300 anos. Levando-se em conta que o Ano-Padrão tinha 20 horas a menos que o chamado ano primitivo, essa ainda era uma idade impressionante, revelando experiências a serviço da Bene Gesserit que exigiam que ele fosse respeitado. Notou que Teg usava um uniforme cinza-claro sem qualquer insígnia: calças e jaqueta feitas sob medida, camisa branca aberta na gola para revelar um pescoço profundamente enrugado. Havia um brilho dourado em sua cintura e ela reconheceu o asterisco de Bashar que ele recebera na aposentadoria. Como Teg era utilitarista! Transformara aquela bugiganga dourada num fecho de cinto. Isso a tranqüilizava. Teg entenderia seu problema.
— Posso beber um copo de água? — pediu Taraza. — Foi uma viagem longa e cansativa. Nós percorremos o último trecho em um de nossos próprios transportes, que já devia ter sido aposentado há 500 anos.
Teg levantou-se da cadeira, foi até um painel na parede e retirou uma garrafa de água gelada e um copo de dentro de um compartimento atrás do painel. Colocou os dois na mesa baixa, ao alcance da mão direita de Taraza.
— Eu tenho melange — disse ele.
— Não, obrigada, Miles. Tenho meu próprio suprimento.
Teg voltou para a cadeira e notou os sinais de rigidez. Mas ela ainda estava em boa forma, considerando-se a idade que tinha.
Taraza encheu meio copo de água e bebeu em um gole. Recolocou o copo na mesinha com muito cuidado. Como abordar o assunto? Os modos de Teg não a enganavam. Ele não queria deixar sua aposentadoria. Suas analistas lhe haviam advertido a respeito disso. Desde que se aposentara, ele desenvolvera um grande interesse por sua fazenda. Suas extensas terras em Lernaeus eram essencialmente um jardim de pesquisa.
Ela ergueu os olhos e o estudou abertamente. Os ombros quadrados acentuavam a cintura estreita de Teg. Então ele ainda se mantinha ativo. Aquele rosto longo com feições bem definidas pelos ossos fortes: isso era tipicamente Atreides. Teg devolveu-lhe o olhar, como sempre fazia, exigindo atenção, mas aberto ao que a Madre Superiora pudesse dizer. O boca fina exibia um sorriso irônico, expondo dentes brilhantes e muito perfeitos.
“Ele sabe que me sinto pouco à vontade”, pensou ela. “Maldição! Ele é apenas um servo da Irmandade, tanto quanto eu!”
Teg não a enchia de perguntas. Seus modos permaneciam impecáveis, a curiosidade contida. Ela lembrou a si mesma que essa era apenas uma característica dos Mentats.
De repente, Teg levantou-se e caminhou para um aparador à esquerda de Taraza. Voltou-se, cruzou os braços sobre o peito e ficou recostado, olhando para ela.
Taraza viu-se forçada a girar a cadeira a fim de olhar para ele. Maldito! Teg não ia tornar a coisa mais fácil para ela. Todas as Reverendas Madres Examinadoras tinham mencionado a dificuldade em se conseguir que Teg se sentasse para uma conversa. Ele preferia ficar de pé, os ombros mantidos numa rigidez militar, o olhar voltado para baixo. Poucas Reverendas Madres igualavam sua altura — mais de dois metros. Essa tendência, concordavam as analistas, era a maneira com que Teg (provavelmente de modo inconsciente) protestava contra a autoridade da Irmandade sobre ele. Nada disso, entretanto, transpirava em outras facetas de seu comportamento. Teg sempre fora o mais confiável de todos os comandantes militares que a Irmandade já empregara.
Num universo multi-societário cujas maiores forças unificadoras interagiam de modo complexo, a despeito da simplicidade dos rótulos, comandantes militares confiáveis valiam muitas vezes o seu peso em melange. As religiões e a memória comum das tiranias imperiais sempre figuravam nas negociações, mas eram as forças econômicas que prevaleciam, e a moeda militar sempre podia ser somada na contabilidade de todos. Ela estava em todas as negociações e assim continuaria por muito tempo, enquanto a necessidade impulsionasse o sistema de comércio — a necessidade de algo em especial (como a especiaria ou os tecnoprodutos de Ix), a necessidade de especialistas (Mentats ou médicos Suk), e todas as outras coisas mundanas para as quais existiam mercados: força de trabalho, construtores, desenhistas, vida planiformizada, artistas, prazeres exóticos...
Nenhum sistema legal poderia unir tamanha complexidade num todo, e esse fato, muito obviamente, acarretava outra necessidade — a necessidade de árbitros influentes. As Reverendas Madres, naturalmente, haviam assumido esse papel dentro da teia econômica, e Miles Teg sabia disso. E também sabia que uma vez mais estava sendo colocado em seu papel de elemento de negociação. O fato de ele gostar ou não desse papel não figurava nas negociações.
— Não é como se você tivesse uma família para mantê-lo aqui — disse Taraza.
Teg aceitou isso em silêncio. Sim, sua esposa estava morta há 38 anos. Os filhos estavam todos crescidos e, com exceção de uma filha, haviam partido. Tinha muitos interesses pessoais, mas nenhuma obrigação familiar. Era verdade.
Taraza recordou-lhe seu longo e fiel serviço à Irmandade, citando várias de suas conquistas mais memoráveis. Sabia que os elogios não teriam muito efeito sobre ele, mas isso lhe dava a abertura necessária para o que devia seguir-se.
— Você tem sido elogiado por sua semelhança familiar — ela disse.
Teg inclinou a cabeça não mais que um milímetro.
— Sua semelhança com o primeiro Leto Atreides, avô do Tirano, é realmente extraordinária — observou ela.
Teg não deu qualquer sinal de que tivesse ouvido ou concordado. Isso era meramente um dado, alguma coisa a mais armazenada em sua copiosa memória. Ele sabia ter o gene dos Atreides. Tinha visto a imagem de Leto I na sede da Irmandade. Fora algo estranho, como se olhar num espelho.
— Você é um pouco mais alto — disse Taraza.
Teg continuava a olhar para ela de cima para baixo.
— Maldição, Bashar — explodiu Taraza. — Quer pelo menos me ajudar?
— Isso é uma ordem, Madre Superiora?
— Não, não é uma ordem!
Teg sorriu lentamente. O fato de Taraza permitir-se tal demonstração emocional diante dele revelava muitas coisas. Ela não faria isso com gente que não julgasse digna de confiança. E certamente não se permitiria tal explosão emocional diante de alguém que considerasse apenas um subordinado.
Taraza recostou-se na cadeira e sorriu para ele.
— Tudo bem — ela disse. — Você já se divertiu. Patrin disse que ficaria muito aborrecido comigo se eu o chamasse de volta ao dever. E lhe asseguro que é fundamental para os nossos planos.
— Que planos, Madre Superiora?
— Estamos criando um ghola Duncan Idaho em Gammu. Ele já tem quase seis anos de idade e está pronto para a educação militar.
Teg permitiu que seus olhos se abrisssem ligeiramente.
— Vai ser uma tarefa aborrecida para você — disse Taraza. — Mas quero que se encarregue de seu treinamento e de sua proteção assim que for possível.
— Minha semelhança com o Duque Atreides — disse Teg. — Vai usar-me para lhe restaurar as memórias originais.
— Dentro de oito ou dez anos, sim.
— Esse tempo todo! — Teg sacudiu a cabeça. — Por que Gammu?
— Sua herança prana-bindu foi alterada pelos Bene Tleilax. sob nossas ordens. Seus reflexos igualarão, em velocidade, os de qualquer pessoa nascida em nossa época. Gammu... O Duncan Idaho original nasceu e foi criado lá. Devido às mudanças em sua herança celular, devemos manter tudo o mais próximo possível das condições originais.
— Por que está fazendo isso?
A pergunta foi feita no tom de um Mentat reunindo dados.
— Uma criança de sexo feminino com a habilidade de controlar os vermes foi descoberta em Rakis. Teremos um uso para o nosso ghola.
— Vai fazê-lo procriar?
— Não estou convocando-o como Mentat. É de sua habilidade militar e de sua semelhança ao Leto original que nós precisamos. Você saberá como lhe restaurar as memórias originais quando chegar a ocasião.
— Assim, está me convocando a voltar à minha função como Mestre de Armas.
— Acha que isso é um retrocesso para o homem que foi o Supremo Comandante Bashar de todas as nossas forças?
— Madre Superiora, a senhora ordena e eu obedeço. Mas não aceitarei esse posto sem o comando geral de todas as defesas de Gammu.
— Isso já foi arranjado, Miles.
— A senhora sempre adivinha como funciona a minha mente.
— E estamos sempre confiantes em sua lealdade.
Teg afastou-se do aparador e parou por um momento, pensando. Depois disse:
— Quem irá me instruir?
— Bellonda, dos Registros, a mesma de antes. Ela vai fornecer-lhe um código seguro para a troca de mensagens entre nos.
— Eu darei à senhora uma lista de pessoas — disse Teg. — Velhos camaradas e os filhos de alguns deles. Quero todos me esperando em Gammu quando eu chegar.
— Não acha que algum deles pode recusar?
O olhar dele dizia: “Não seja tola!”
Taraza riu, pensando: “Existe algo que aprendemos muito bem com os Atreides originais — como produzir pessoas que obtêm a maior devoção e lealdade”
— Patrin cuidará do recrutamento — disse Teg. — Ele não aceitará nenhum posto, eu sei, mas deve receber um pagamento à altura e as cortesias de um auxiliar de coronel.
— Você, é claro, receberá de volta o seu posto de Supremo Bashar — acrescentou ela. — Nós vamos.
— Não, vocês têm Burzmali. Não vamos enfraquecê-lo colocando seu velho comandante acima dele uma vez mais.
Ela o observou por um momento:
— Ainda não demos a Burzmali o posto de...
— Sei disso. Meus antigos camaradas me mantém inteiramente a par da política da Irmandade. Mas a senhora e eu, Madre Superiora, sabemos que é apenas questão de tempo. Burzmali é o melhor.
Ela só pôde aceitar. Era mais que uma avaliação Mentat. Era uma avaliação de Teg. Outro pensamento lhe ocorreu.
— Então você já sabia a respeito de nossa disputa no Conselho! — acusou ela. — E me deixou.
— Madre Superiora, se achasse que iriam produzir outro monstro em Rakis, eu lhe teria dito. A senhora confia nas minhas decisões, eu confio nas suas.
— Maldito seja, Miles, você esteve afastado por muito tempo. — Taraza levantou-se. — Eu me sinto mais calma só de saber que você está de volta ao seu trabalho.
— O trabalho — repetiu ele — Sim. Reinstale-me como Bashar em missão especial. Desse modo, quando a notícia chegar a Burzmali, não haverá perguntas tolas.
Taraza entregou-lhe um maço de papéis ridulianos tirados de debaixo de seu manto.
— Eu já assinei estes. Preencha seu termo de volta ao serviço. As outras autorizações estão todas aí, transporte e tudo mais. Eu lhe dou essas ordens pessoalmente. Deve obedecer a mim. Você é o meu Bashar; compreende?
— Não foi sempre assim?
— Agora é mais importante do que nunca. Mantenha o ghola em segurança e o treine bem. E sua responsabilidade. Eu o apoiarei nisso contra tudo e contra todos.
— Ouvi dizer que Schwangyu está no comando em Gammu.
— Eu disse contra todos, Miles. Não confie em Schwangyu.
— Percebo. Vai almoçar conosco? Minha filha tem. .
— Perdoe-me, Miles, mas devo voltar o mais cedo possível. Vou enviar Bellonda imediatamente.
Teg levou-a até a porta, trocou alguns cumprimentos e trivialidades com seus velhos alunos que faziam parte da escolta e observou enquanto partiam. Havia um carro de solo blindado esperando na estrada, um dos novos modelos que obviamente tinham trazido. A visão causou em Teg um sentimento de desagrado.
“Urgência!”
Taraza viera em pessoa, a própria Madre Superiora fazendo serviço de mensageira, sabendo o que isso lhe revelaria. Conhecendo tão intimamente o modo como a Irmandade agia, ele percebeu as implicações do que estava acontecendo. A disputa no Conselho da Bene Gesserit era mais profunda do que seus informantes tinham sugerido.
“Você é o meu Bashar.”
Olhou para o maço de autorizações e ordens de pagamento de passagens que Taraza lhe deixara. Todas já tinham seu selo e sua assinatura. A confiança que isso implicava aumentava seu desconforto.
“Não confie em Schwangyu.”
Colocou os papéis no bolso e saiu em busca de Patrin. Este teria que ser adulado e colocado a par do que estava acontecendo. Teriam que discutir sobre quem chamar para essa missão. Começou a enumerar alguns nomes em sua mente. Trabalho perigoso pela frente. Somente os melhores serviriam. Maldição! Tudo na propriedade teria que ser passado para Firus e Dimela. Tantos detalhes! Sentiu o pulso acelerar-se enquanto caminhava pela casa.
Ao passar por um segurança da casa, um de seus antigos soldados, Teg fez uma pausa:
— Martin, cancele todos os meus compromissos para hoje. Encontre minha filha e lhe diga para se reunir a mim no estúdio.
A notícia se espalharia pela casa e, de lá, para toda a propriedade. Os servos e a família, sabendo que a Reverenda Madre Superiora tinha conversado com ele em particular, iriam automaticamente estabelecer uma cortina protetora para afastá-lo de qualquer problema sem importância. Sua filha mais velha, Dimela, interrompeu-o quando começou a enumerar o que era necessário para manter em andamento seus projetos na fazenda experimental.
— Pai, não sou uma criança!
Ambos estavam na pequena estufa ligada ao estúdio. Restos do almoço de Teg tinham ficado sobre um banco, a um canto, e o bloco de notas de Patrin estava encostado à parede ao lado da bandeja de lanche.
Teg olhou sério para a filha. Dimela parecia-se com ele nas feições, mas não na altura. Muito angulosa para ser bela, conseguira, não obstante, um ótimo casamento. Dimela e Firus tinham três crianças adoráveis.
— Onde está Firus? — perguntou Teg.
— Cuidando da replantagem na Fazenda do Sul.
— Oh, sim. Patrin mencionou isso.
Teg sorriu. Sempre lhe agradara que Dimela tivesse recusado a oferta da Irmandade, preferindo casar-se com Firus, nativo de Lernaeus, e permanecer na companhia do pai.
— Tudo que sei é que o estão chamando de volta ao trabalho — comentou Dimela. — É uma missão perigosa?
— Você fala exatamente como sua mãe, sabia?
— Então é perigoso! Malditas, você já não fez o suficiente por elas?
— Aparentemente não.
Ela afastou-se enquanto Patrin entrava pelo outro lado da estufa. Ouviu a filha falar com Patrin enquanto um passava pelo outro.
— Quanto mais velho ele fica, mais se parece com uma Reverenda Madre!
Que mais podia ela esperar? Teg ficou imaginando. Filho de uma Reverenda Madre, tendo por pai um funcionário subalterno da CHOAM, ele crescera em uma casa que funcionava ao ritmo da Irmandade. Sempre lhe fora evidente, desde a mais tenra idade, que a lealdade de seu pai para com a rede de comércio interplanetário da CHOAM desaparecera quando sua mãe lhe fizera objeção.
Essa fora a casa de sua mãe até a morte dela, menos de um ano depois que seu pai morrera. A marca dos gostos dela estava à volta dele, em toda parte.
Patrin parou diante dele.
— Vim buscar meu bloco de anotações. Acrescentou algum nome novo?
— Alguns. É melhor você cuidar disso logo.
— Sim, senhor!
Patrin fez uma careta e voltou por onde tinha vindo, batendo na perna com o bloco de notas.
“Ele sente também”, pensou Teg.
Uma vez mais, Teg olhou à sua volta. Essa ainda era a casa de sua mãe. Depois de todos os anos em que ele tinha vivido lá, criado uma família! Ainda era o lugar dela. Oh, ele tinha construído essa estufa, mas o estúdio ao lado fora o aposento particular da mãe.
Janet Roxbrough dos Lernaeus Roxbrough. A mobília, a decoração, tudo repetia que o lugar ainda pertencia a ela. Taraza percebera isso. Ele e a esposa tinham mudado alguns objetos superficiais, mas o núcleo ainda era um reflexo da personalidade de Janet Roxbrough. E não havia dúvida quanto ao sangue das Oradoras Peixes naquela linhagem. Que prêmio fora ela para a Irmandade! Que ela tivesse se casado com Loschy Teg e passado a vida ali, isso era o mais estranho. Um fato indigerível até que se soubesse como o programa de procriação da Bene Gesserit funcionava através das gerações.
“Elas o fizeram de novo”, pensou Teg. “Mantiveram-me esperando todo esse tempo, na reserva, só para este momento.”
A religião não afirmou deter a patente da criação durante todos estes milênios?
— Indagação Tleilaxu,
de O Muad'Dib Fala
O ar de Tleilax estava cristalino, tomado por uma quietude causada, em parte, pelo frio da manhã e, em parte, por um sentimento de temerosa antecipação, como se a vida estivesse em compasso de espera na cidade de Bandalong. Vida voraz e frustrada, que não se mexeria até receber seu sinal pessoal. O Mahai, Tylwyth Waff, Mestre dos Mestres, gostava mais dessa hora do que de qualquer outra do dia. A cidade agora era sua, enquanto ele olhava através da janela aberta. Bandalong só viveria ao seu comando. Isso era o que ele dizia a si mesmo. O medo que podia sentir lá fora era o seu controle sobre qualquer realidade que pudesse brotar daquele reservatório de vida incubada: a civilização Tleilaxu, que se havia originado ali e depois espalhara seus poderes para longe.
Seu povo tinha aguardado milênios por essa época, e agora Waff saboreava esse momento. Durante todos os tempos terríveis do Profeta Leto II (não o Imperador Deus, mas o Mensageiro de Deus), durante toda a era da Fome e da Dispersão, através de cada derrota dolorosa nas mãos de criaturas inferiores, durante todas essas agonias os Tleilaxu tinham acumulado sua paciência para esse momento.
“Chegamos ao nosso momento, ó Profeta!”
A cidade que jazia debaixo da janela elevada parecia aos seus olhos como um símbolo, um marco forte na história dos projetos dos Tleilaxu. Outros planetas dos Tleilaxu, outras grandes cidades, interligadas e interdependentes, todas fiéis ao seu Deus e a essa cidade, aguardavam o sinal que, todos sabiam, logo viria. As forças gêmeas dos Dançarinos Faciais e dos Masheikh tinham unido seus poderes em preparação para uma salto cósmico. Os milênios de espera estavam a ponto de terminar.
Waff pensava naquilo como “o longo começo”.
Sim. Assentiu para si mesmo enquanto olhava para a cidade à espera. Desde a sua concepção, desde a mais infinitesimal partícula de idéia, os líderes da Bene Tleilax tinham compreendido os perigos de um plano tão amplo, tão prolongado, tão sutil e tão complexo. Sabiam desde o início que precisavam superar um período de quase desastre e novamente aceitar perdas, submissão e humilhações terríveis. Tudo isso e muito mais fora empregado na construção dessa imagem particular da Bene Tleilax. Através de milênios de fingimento, eles tinham criado um mito.
“Os vis, destestáveis e sujos Tleilaxu! Os estúpidos Tleilaxu! Os previsíveis Tleilaxu! Os impetuosos Tleilaxu!”
Mesmo os seguidores do Profeta tinham caído presa desse mito. Uma Oradora Peixe aprisionada colocara-se nessa sala mesmo e gritado para um Mestre Tleilaxu:
— O fingimento muito prolongado cria uma realidade! Vocês são verdadeiramente vis!
Por isso eles a mataram e o Profeta não fez coisa alguma.
Quão pouco todos aqueles povos e mundos alienígenas entendiam o domínio dos Tleilaxu sobre si mesmos. Impetuosidade? Deixe que eles reconsiderem isso depois que a Bene Tleilax tiver demonstrado quantos milênios foi capaz de aguardar por sua ascendência.
— Spannungsbogen!
Waff enrolou o antigo termo em sua língua:
“A amplitude do arco!” Até onde você pode curvar o arco antes de liberar a flecha. Essa flecha iria ferir fundo!
— O Masheikh esperou mais tempo do que qualquer outro — sussurrou Waff. Ele se atrevia a pronunciar a palavra para si mesmo no espaço de sua torre: — Masheikh.
Os telhados abaixo dele cintilavam enquanto o sol se erguia. Podia ouvir o movimento da vida da cidade. O suave amargor dos aromas Tleilaxu flutuava no ar até sua janela. Waff inalou profundamente e fechou a janela.
Sentia-se recuperado nesse momento de solitária observação. Afastando-se da janela, envergou o manto branco Khilat de honra, diante do qual todos os Domei estavam condicionados a se curvar. O manto cobria-lhe totalmente o corpo curto, dando-lhe a distinta sensação de ser realmente uma armadura.
“A armadura de Deus!”
— Nós somos o povo do Yaghist — relembrara ele aos seus conselheiros na noite passada. — Tudo mais é fronteira. Nós estimulamos o mito de nossa fraqueza e de nossas práticas perversas durante todos esses milênios com apenas um único propósito. Até mesmo a Bene Gesserit acredita!
Sentados na profunda sagra sem janelas, com o campo de não-câmara ligado, os nove conselheiros tinham sorrido em apoio a suas palavras. No julgamento do ghufran, eles sabiam. O palco em cima do qual os Tleilaxu determinavam seu destino sempre fora o kehl com seu direito ao ghufran.
Era adequado que até mesmo Waff, o mais poderoso dos Tleilaxu, não pudesse deixar o seu mundo e nele ser readmitido sem se submeter ao ghufran, pedindo perdão pelo contato com os inimagináveis pecados dos estrangeiros. Sair para o meio dos powindah podia corromper até mesmo o mais poderoso. Os khasadars, que policiavam todas as fronteiras dos Tleilaxu e guardavam os selamliks das mulheres, tinham o direito de suspeitar até mesmo de Waff. Ele pertencia ao povo e ao kehl, era verdade, mas precisava provar isso a cada vez que deixava a terra pátria e retornava. E, certamente, também a cada vez que entrava no selamlik para distribuir seu esperma.
Waff andou até o espelho e inspecionou a si mesmo com seu manto. Sabia que, aos powindahs, ele pareceria uma figura de gnomo, com pouco mais de um metro e meio de altura. Olhos, cabelo e pele tinham tonalidades de cinza, acessórios para um rosto oval com uma boca pequena e uma linha de dentes agudos. Um dançarino facial poderia imitar suas feições e sua pose, simulando-o ante uma ordem de um Masheikh. Mas nenhum Masheikh ou khasadar se confundiria. Somente os powindahs seriam tapeados.
“Exceto pela Bene Gesserit”.
Esse pensamento trouxe ao seu rosto uma expressão mal-humorada. Bem, as bruxas ainda não tinham encontrado um dos novos Dançarinos Faciais.
“Nenhum outro povo dominou a linguagem dos genes tão bem quanto os Bene Tleilax”, tranqüilizou a si mesmo. “Nós temos o direito de chamá-la de 'linguagem de Deus', pois o Próprio Deus nos deu esse grande poder”
Waff caminhou até a porta e esperou pelo sino da manhã. Não havia maneira de descrever a riqueza de emoções que sentia agora. O tempo desdobrava-se diante dele. Não indagava por que a verdadeira mensagem do Profeta tinha sido ouvida apenas pelos Bene Tleilax. Tinha visto a obra de Deus e, nesse aspecto, o Profeta fora o Braço de Deus, devendo ser respeitado como Mensageiro Divino.
“Você os preparou para nós, ó Profeta.”
E o ghola em Gammu, esse ghola nessa ocasião especifica, valia toda a espera.
O sino da manhã tocou e Waff dirigiu-se ao salão, misturando-se com outras figuras de mantos brancos a caminho da sacada ocidental para saudar o sol da manhã. Como o Mahai e Abdl de seu povo, podia agora identificar-se com os Tleilaxu.
“Nós somos os legalistas do Shariat, os últimos de nosso tipo no universo.”
Em parte alguma fora das câmaras fechadas de seus irmãos-malik poderia ele revelar um pensamento tão secreto, mas sabia que esse pensamento seria compartilhado por todas as mentes agora à sua volta, e o trabalho desse pensamento era visível em Masheikhs, Domeis e Dançarinos Faciais. O paradoxo dos laços de parentesco e o senso de identidade social que permeavam o kehl, desde os Masheikh até o Domel mais inferior, não era um paradoxo para Waff.
“Nós trabalhamos para o mesmo Deus.”
Um Dançarino Facial disfarçado de Domei se curvara, abrindo as portas para a sacada. Waff, emergindo para a luz do sol com seus muitos companheiros bem próximos, sorriu ao reconhecer o Dançarino Facial. “Um Domei de fato!” Era uma piada entre parentes, embora os Dançarmos Faciais não fossem de sua espécie. Eles eram criações, ferramentas, do mesmo modo como o ghola em Gammu era uma ferramenta, uma ferramenta projetada com a linguagem de Deus falada apenas pelos Masheikhs.
Junto com os outros, que se pressionavam à sua volta, Waff fez sua reverência ao sol. Pronunciou o grito do Abdl e o ouviu ecoar nas incontáveis vozes estendendo-se até os pontos mais distantes da cidade.
— O sol não é Deus! — gritou ele.
Não, o sol era apenas um símbolo dos infinitos poderes e da misericórdia divina — uma criação, outra ferramenta. Sentindo-se purificado pela passagem através do ghufran na noite anterior, e renovado por esse ritual matinal, Waff podia pensar agora a respeito da viagem que fizera até as terras dos powindah e de seu retorno recente, que tornara necessário o ghufran. Outros adoradores abriram caminho para ele, enquanto retornava através dos corredores internos, entrando na passagem deslizante que o levou até o jardim central. Lá pediu aos seus conselheiros que se reunissem a ele.
“Foi uma investida bem-sucedida entre os powindah”, pensou.
A cada vez que deixava os mundos internos dos Bene Tleilax, Waff sentia-se como se estivesse num lashkar, um grupo guerreiro buscando a vingança final que o povo secretamente chamava de Bodal (sempre com maiúscula e sempre a primeira coisa a ser reafirmada no ghufran ou no kehl). Esse lashkar mais recente fora curiosamente bem-sucedido.
Waff saiu do deslizador para um jardim totalmente iluminado pela luz do sol, irradiada por refletores prismáticos nos telhados em volta.
Uma pequena fonte tocava sua fuga visual no coração de um circulo de pedras. Uma cerca baixa feita com paus brancos envolvia um gramado muito bem-aparado. Tratava-se de um lugar suficientemente próximo da fonte para que o ar fosse úmido, mas não tão próximo que a água caindo perturbasse a conversa em voz baixa. Em torno da área gramada havia 10 bancos estreitos feitos de plástico antigo — nove deles dispostos num semicírculo voltado para o 10? banco, ligeiramente afastado.
Parando na beira do gramado, Waff olhou à sua volta, imaginando por que nunca antes sentira um prazer tão intenso com a visão desse lugar. O azul-escuro dos bancos era intrínseco ao material. Os séculos de uso tinham gasto os bancos, produzindo curvas suaves ao longo dos apoios para os braços e onde incontáveis traseiros se haviam sentado. Ainda assim a cor era tão forte nos lugares gastos quanto nas outras partes.
Waff sentou-se voltado para os nove conselheiros, reunindo as palavras que sabia que devia usar. O documento que tinha trazido de volta em seu último lashkar, que de fato fora a própria razão para essa excursão, não podia ter chegado em ocasião mais adequada. O rótulo e as palavras tinham uma mensagem poderosa para os Tleilaxu.
De um bolso interno, Waff removeu uma fina folha de cristal riduliano. Notou o acelerado interesse dos conselheiros: nove rostos muito semelhantes ao dele. Masheikhs do kehl mais interior. Todos refletiam expectativa. Tinham lido este documento em kehl: “O Manifesto Atreides”. Tinham passado uma noite inteira refletindo sobre a mensagem do manifesto. Agora as palavras tinham que ser confrontadas. Waff colocou o documento no colo.
— Eu me proponho divulgar amplamente este documento — disse ele.
— Sem mudança?
Era Mirlat, o conselheiro mais próximo da transformação-ghola entre todos eles. Mirlat sem dúvida aspirava a atingir o Abdl e o Mahai. Waff focalizou sua atenção no queixo largo do conselheiro, no ponto onde uma cartilagem crescera ao longo dos séculos como marca visível da grande idade de seu corpo.
— Exatamente como chegou às nossas mãos — disse Waff.
— Isso é perigoso — comentou Mirlat.
Waff virou a cabeça para a direita, seu perfil infantil delineado contra a fonte para que seus conselheiros o observassem. “A mão de Deus esta à minha direita!” O céu acima dele era de uma cornalina polida, como se Bandalong, a mais antiga entre as metrópoles Tleilaxu, tivesse sido construída sob uma daquelas gigantescas coberturas erguidas para proteger os pioneiros nos planetas mais inóspitos. Quando voltou sua atenção para seus conselheiros, as feições de Waff continuavam tranqüilas.
— Não é perigoso para nós — disse ele.
— Uma questão de opinião — retrucou Mirlat.
— Então vamos considerar as opiniões — disse Waff. — Temos necessidade de temer Ix ou as Oradoras Peixes? De fato, não. Eles nos pertencem, embora não saibam disso.
Waff deixou que a afirmação fosse absorvida. Todos sabiam que elementos dos novos Dançarmos Faciais encontravam-se agora infiltrados nos altos conselhos de Ix e das Oradoras Peixes. A troca não fora detectada.
— A Corporação não se colocará contra nós nem se vai opor a nós porque somos sua única fonte segura de melange — acrescentou Waff.
— E quanto a essas Honradas Madres que voltam da Dispersão? — indagou Mirlat.
— Cuidaremos delas quando for preciso — respondeu Waff. — E nisso seremos ajudados pelos descendentes dos de nosso povo que voluntariamente tomaram parte na Dispersão.
— A ocasião de fato parece oportuna — murmurou um dos conselheiros.
Fora Torg, o Jovem, quem falara, observou Waff. Ótimo, ali estava um voto seguro.
— A Bene Gesserit! — retrucou Mirlat.
— Creio que as Honradas Madres vão tirar as bruxas do nosso caminho — disse Waff. — Elas já rosnam umas para as outras como animais num fosso.
— E se o autor do manifesto for identificado? — perguntou Mirlat.
— Que faremos então?
Várias cabeças balançaram afirmativamente entre os conselheiros. Waff marcou as pessoas que deviam ser conquistadas.
— É perigoso ser chamado de Atreides nesta era — disse ele.
— Exceto talvez em Gammu — disse Mirlat. — E o nome Atreides foi assinado naquele documento!
“Que estranho”, pensou Waff. O representante da CHOAM na conferência dos powindah que afastara Waff dos planetas interiores de Tleilax tinha enfatizado esse ponto. Mas a maioria do pessoal da CHOAM era constituída por ateístas secretos que viam como suspeitas todas as religiões. Certamente que os Atreides tinham sido uma potente força religiosa. As preocupações da CHOAM eram quase palpáveis.
Waff relembrou agora essa reação da CHOAM.
— Esse empregado da CHOAM, maldita seja sua alma sem Deus — disse Mirlat. — Mas ele está certo, este documento é insidioso.
“Vamos ter que cuidar de Mirlat”, pensou Waff. Erguendo do colo o manifesto, leu em voz alta a primeira linha:
— “No início havia a palavra, e a palavra era Deus.”
— Diretamente da Bíblia Universal Laranja — lembrou Mirlat.
Uma vez mais as cabeças se moveram em preocupada concordância.
Waff mostrou as pontas dos caninos num breve sorriso.
— Vocês estão sugerindo que há entre os powindah quem suspeite da existência do Shariat ou dos Masheikhs?
Fazia bem pronunciar essas palavras abertamente, lembrando aos seus ouvintes que somente entre os membros dos círculos mais secretos dos Tleilaxu é que as velhas palavras e as antigas linguagens ainda eram preservadas sem alteração. Será que Mirlat ou algum outro temia que as palavras dos Atreides pudessem subverter o Shariat?
Waff colocou também essa pergunta e viu as expressões preocupadas.
— Existe entre vocês — perguntou — quem acredite que um único powindah sabe como usamos a linguagem de Deus?
“Isso, deixe que eles pensem nisso!” Cada um deles já fora despertado muitas vezes na carne de ghola. Havia nesse Conselho uma continuidade carnal que nenhum outro povo tinha conquistado antes. O próprio Mirlat tinha visto de perto o profeta. Scytale tinha falado com o Muad'Dib! Aprendendo como as memórias podiam ser restauradas e a carne renovada, eles haviam condensado esse poder num único governo cuja potência era confinada de modo a não ser exigida em toda parte. Somente as bruxas possuíam semelhante reserva de experiências, e ainda assim agiam com temerosa cautela por medo de produzirem outro Kwisatz Haderach!
Waff disse essas coisas a seus conselheiros, acrescentando:
— A hora de agirmos chegou.
Como ninguém discordou, ele disse:
— Este manifesto tem um único autor. Todos os analistas concordam. Mirlat?
— Escrito por uma única pessoa, e essa pessoa, sem dúvida alguma, é um Atreides — concordou Mirlat.
— Todos na conferência dos powindah afirmaram isso. Mesmo um navegador de terceiro estágio concordou — disse Waff.
Mas essa pessoa produziu algo que excita reações muito violentas entre povos diversos — argumentou Mirlat.
Algum dia já questionamos o talento dos Atreides para a discórdia? — perguntou Waff. — Quando os powindah me mostraram esse documento, eu soube que Deus nos tinha enviado um sinal.
As bruxas ainda negam sua autoria? — perguntou Torg, o Jovem. “Como ele é atento”, pensou Waff.
— Cada religião dos powindah é questionada por este manifesto — lembrou Waff. — Cada fé, exceto a nossa, é deixada suspensa no limbo.
— E exatamente esse o problema! — retrucou Mirlat.
— Mas somente nós sabemos disso. Quem mais sabe da existência do Shariat? — perguntou Waff.
— A Corporação — disse Mirlat.
— Eles nunca falaram dele, nem o farão. Sabem qual seria a nossa resposta.
Waff ergueu do colo o maço de papéis e novamente leu em voz alta:
— “Forças que não podemos ver permeiam nosso universo. Vemos apenas as sombras dessas forças quando projetadas sobre uma tela acessível aos nossos sentidos, mas não as compreendemos.”
— O Atreides que escreveu isso sabe a respeito do Shariat — murmurou Mirlat.
Waff continuou lendo como se não tivesse havido interrupção.
— “O entendimento exige palavras, e algumas coisas não podem ser reduzidas a palavras. Há coisas que só podem ser experimentadas num nível não-verbal.”
Como se estivesse lidando com uma relíquia sagrada, Waff repôs o documento no colo. Baixinho, de modo que para ouvi-lo os outros tiveram que se curvar em sua direção, um deles levando a mão ao ouvido, Waff disse:
— Isso diz que nosso universo é mágico. Diz que todas as formas arbitrárias são transitórias e sujeitas a alterações mágicas. A ciência conduziu-nos a essa interpretação como se nos colocasse num caminho do qual não nos podemos desviar.
Por um momento ele aguardou que essas palavras fizessem efeito e então acrescentou:
Nenhum sacerdote rakiano do Deus Dividido nem outro charlatão qualquer entre os powindah pode aceitar isso. Somente nós sabemos por que nosso Deus é um Deus mágico cuja linguagem falamos.
Seremos acusados da autoria — disse Mirlat. Sacudindo a cabeça de um lado para o outro, acrescentou: — Não! Agora percebo. Percebo o que quer dizer.
Waff manteve o silêncio. Podia ver que todos eles estavam refletindo sobre suas origens Sufi, relembrando a Grande Crença e o ecumenismo Zensunni que gerara a Bene Tleilax. As pessoas de seu kehl conheciam os fatos divinamente revelados em suas origens, mas gerações de sigilo asseguravam que nenhum powindah compartilhasse desse segredo.
As palavras fluíram silenciosamente na mente de Waff: “Pressuposições baseadas na compreensão contêm a crença num absoluto do qual todas as coisas brotam como plantas crescendo de suas sementes.”
Sabendo que seus conselheiros também teriam lembrado esse ensinamento da Grande Crença, Waff lembrou-lhes a advertência Zensunni.
— Debaixo de tais raciocínios está a fé nas palavras que os powindah não questionam. Somente o Shariat questiona e nós ficamos calados.
Seus conselheiros assentiram com as cabeças em uníssono.
Waff inclinou ligeiramente a cabeça e continuou:
— O ato de dizer que existem coisas que não podem ser descritas por palavras abala um universo onde as palavras são a crença suprema.
— Veneno powindah! — gritaram seus conselheiros.
Ele os tinha a todos agora, e assegurou sua vitória perguntando:
— Qual é o credo Sufi-Zensunni?
Eles não podiam falar, mas todos refletiam: “Para conquistar o s'tori, nenhum conhecimento é necessário. O s'tori existe sem palavras, sem sequer um nome”
Num momento, todos se voltaram para cima e trocaram olhares significativos. Mirlat resolveu recitar o voto Tleilaxu:
— “Eu posso dizer Deus, mas este não é o meu Deus. É apenas um som, não mais potente que qualquer outro som”
— Percebo agora — disse Waff — que todos vocês sentem o poder que caiu em nossas mãos através deste documento. Milhões de milhões de cópias já estão circulando entre os powindah.
— E quem se importa com isso? — indagou Mirlat.
— Quem se importa? — retrucou Waff. — Deixem os powindah correr atrás deles, procurar sua origem, tentar suprimi-los, falar contra eles. Com cada uma dessas ações, os powindah injetarão mais poder nessas palavras.
— Não nos devemos pronunciar também contra esse documento? — perguntou Mirlat.
— Somente se a ocasião exigir — respondeu Waff. — Prestem atenção! — Ele bateu com os papéis sobre os joelhos. — Os powindah restringiram sua consciência ao propósito mais mesquinho, e essa é sua fraqueza. Devemos garantir que esse manifesto tenha a maior circulação possível.
— A magia de nosso Deus é apenas uma ponte — entoaram os conselheiros.
Todos eles, observou Waff, refugiavam-se na segurança central de sua fé. Fora fácil de controlá-los. Nenhum Masheikh compartilhava da estupidez do powindah que gemia: “Em tua infinita graça, Oh Deus, por que eu?” Em uma única frase o powindah invocava o infinito e o negava, nunca percebendo sua própria tolice.
— Scytale — chamou Waff.
O mais jovem dos conselheiros, com cara de bebê, sentado mais à esquerda, como era adequado, inclinou-se para a frente avidamente.
— Arme os fiéis disse Waff.
— Admira-me que um Atreides nos tenha fornecido essa arma — comentou Mirlat. — Como é possível que os Atreides sempre se agarrem a um ideal que capta a admiração dos bilhões que irão segui-los?
— Não são os Atreides, é Deus — disse Waff. Ele ergueu os braços e citou as palavras que encerravam o ritual: — Os Masheikh encontraram-se no kehl e sentiram a presença do seu Deus.
Waff fechou os olhos e esperou que os outros saíssem. “Masheikh!” Como era bom reunir-se num kehl, falando a linguagem do Islamiyat, que nenhum Tleilaxu falaria fora de seus conselhos secretos, nem mesmo quando se dirigiam aos Dançarmos Faciais. Em parte alguma do Wekht de Jandola, nem mesmo nas extensões mais distantes do Yaghist Tleilaxu, haveria um powindah vivo que conhecesse esse segredo.
“Yaghist”, pensou Waff, levantando-se do banco. “Yaghist, a terra dos que não se deixam governar.”
Achou que podia sentir o documento vibrando em sua mão. Esse Manifesto Atreides era o tipo de coisa que as massas de powindah seguiriam até sua ruína.
Em alguns dias é a melange; em outros é sujeira.
— Aforismo de Rakis
Em seu terceiro ano com os sacerdotes de Rakis, a garota Sheeana deitou-se no topo de uma duna alta e curva. Sob a luz do sol da manhã, fitou o horizonte, onde se podia ouvir o rumor de algo se arrastando. A luz era de uma cor prateada, fantasmagórica, que gelava a névoa do horizonte. Ainda se podia sentir na areia o frio da noite.
Ela sabia que os sacerdotes a observavam da segurança de sua torre cercada de água, uns dois quilômetros além, mas isso quase não a preocupava. O tremor da areia debaixo de seu corpo exigia toda a sua atenção.
“Este é grande”, pensou. “Setenta metros no mínimo. Um lindo grandão.”
O traje-destilador cinzento parecia-lhe lustroso e escorregadio em sua pele. Não tinha nenhum dos remendos irritantes do velho traje que usara antes que os sacerdotes passassem a cuidar dela. Sentia-se grata a eles pelo excelente traje-destilador e pelo espesso manto roxo e branco que o cobria. Mas, acima de tudo, sentia a excitação de estar ali. Uma coisa rica e perigosa tomava conta dela em momentos como este.
Os sacerdotes não sabiam o que estava acontecendo ali. Ela tinha certeza disso. Eles eram covardes. Olhou por sobre o ombro para a torre distante e viu a luz do sol refletir-se nas lentes.
Uma criança precoce de 11 anos, esguia, pele escura, cabelo castanho riscado de dourado, ela podia visualizar claramente o que os sacerdotes estariam vendo através de suas lentes de observação.
“Eles me vêem fazer aquilo que não se atrevem a fazer. Eles me vêem na trilha de Shaitan. Eu pareço muito pequena na areia e Shaitan parece muito grande. Eles já podem vê-lo.”
Pelo som da fricção na areia, ela sabia que logo veria também o gigantesco verme. Sheeana não pensava no monstro se aproximando como o Shai-hulud, o Deus das areias, algo que os sacerdotes cantavam todas as manhãs em homenagem as pérolas de consciência de Leto II que jaziam aprisionadas em cada um dos senhores do deserto. Pensava nos vermes, geralmente, como “aqueles que me pouparam” ou como Shaitan.
Eles agora lhe pertenciam.
Era um relacionamento que começara há pouco mais de três anos, durante o mês de seu oitavo aniversário, o Mês de Igat pelo velho calendário. O vilarejo era bem pobre, uma aventura de pioneiros, construída bem além das barreiras mais seguras, como os qanats e os canais anelares de Keen. Somente um fosso de areia molhada defendia esses empreendimentos pioneiros. Shaitan evitava a água, mas seus vetores formados pelas trutas da areia logo retiravam toda a umidade. Uma umidade preciosa, capturada nas armadilhas de vento, tinha que ser gasta a cada dia para renovar essa barreira. Sua vila era um miserável aglomerado de tendas e barracas com duas pequenas armadilhas de vento, adequadas para fornecer água para o consumo humano, mas com apenas um acréscimo esporádico que poderia ser usado na barreira contra os vermes.
Naquela manhã — muito parecida com esta manhã, o frio da noite cortando-lhe o nariz e os pulmões, o horizonte coberto por uma névoa fantasmagórica —, a maioria das crianças da vila tinha se afastado para o deserto, buscando os restos de melange que Shaitan às vezes deixava em sua passagem. Dois dos grandes tinham sido ouvidos por perto na noite passada, e a melange, mesmo aos preços atuais, desinflacionados, podia comprar os tijolos vitrificados que ergueriam uma terceira armadilha de vento.
As crianças não procuravam apenas a melange, mas também os sinais que revelariam uma das velhas fortalezas dos Fremen, os sietch. Havia apenas vestígios de tais lugares agora, mas as barreiras de rocha forneciam maior segurança contra o Shaitan. E alguns restos de sietch podiam conter depósitos esquecidos de melange. Cada vilarejo sonhava com tal descoberta.
Sheeana, usando seu traje-destilador remendado e um manto fino, saíra sozinha na direção nordeste, rumo ao distante monte de ar fumacento que revelava a direção da grande cidade de Keen, com sua riqueza de umidade sendo erguida pelas brisas aquecidas pelo sol.
Caçar restos de melange nas areias era principalmente uma questão de focalizar a atenção nas narinas. Era uma forma de concentração que deixava apenas um vestígio de consciência, atenta à fricção na areia que denunciaria a aproximação de Shaitan. Os músculos da perna moviam-se automaticamente no modo de caminhar não-rítmico que se fundia aos sons naturais do deserto.
A princípio Sheeana não ouviu os gritos. Aquilo misturava-se com o som da areia soprada pelo vento, friccionando-se nas dunas barracan que ocultavam de seus olhos o vilarejo. lentamente o som penetrou em sua consciência até lhe exigir a atenção.
“Muitas vozes gritando!”
Sheeana esqueceu a precaução dos passos ao acaso. Andando tão depressa quanto lhe permitia sua musculatura infantil, ela subiu pela face escorregadia da barracan e olhou em direção ao som aterrorizante. Teve tempo de ver aquilo que terminou com os últimos gritos.
O vento e as trutas da areia tinham ressecado um amplo arco da barreira no outro lado da vila. Ela podia ver a abertura pela diferença de cor. Um verme selvagem tinha penetrado pela abertura. Ele circulava agora dentro do espaço fechado pela umidade restante, sua boca gigantesca iluminada pelas chamas interiores, engolindo gente e cabanas num circulo que rapidamente se fechava.
Sheeana viu os últimos sobreviventes aglomerados no centro dessa destruição, um espaço já livre das rudes cabanas e cheio dos restos das armadilhas de vento. Enquanto ela observava, algumas pessoas tentavam fugir para o deserto. Sheeana reconheceu seu pai entre os corredores frenéticos. Nenhum escapou. A grande boca tragou a todos antes de se voltar para nivelar o resto do vilarejo.
Areia fumegante foi tudo que restou da frágil vila que se atrevera a reclamar uma fagulha dos domínios de Shaitan. O lugar onde se erguera o vilarejo não tinha mais qualquer marca da passagem de seres humanos.
Sheeana respirou fundo, inalando através do nariz para preservar a umidade de seu corpo, como faria qualquer boa filha do deserto. Esquadrinhou o horizonte em busca de um indicio das outra crianças, mas o rastro de Shaitan revolvera o terreno, deixando grandes curvas por todo o outro lado do vilarejo. Nem um único humano permanecia em seu campo de visão. Ela deu um grito agudo que seria ouvido muito longe através do ar seco. Não houve resposta.
“Sozinha”
Caminhou, como se estivesse em transe, ao longo da crista da duna, em direção ao lugar onde estivera o vilarejo. Enquanto se aproximava do lugar, uma grande onda de cheiro de canela penetrou em suas narinas, transportada pelo vento que ainda soprava o topo das dunas. Sheeana percebeu então o que tinha acontecido. Desastrosamente, o vilarejo se erguera no topo de uma erupção de pré-especiaria. Enquanto o grande tesouro, bem debaixo da areia, amadurecia, expandindo-se numa explosão de melange, Shaitan viera. Toda criança sabia que Shaitan não resistiria a um estouro de especiaria.
O ódio e o desespero começaram a tomar conta de Sheeana. Agindo loucamente, ela correu duna abaixo, em direção a Shaitan, aproximando-se do verme por trás, enquanto ele se virava para voltar pelo trecho de areia seca por onde penetrara no vilarejo. Sem pensar, ela correu ao lado da cauda, pulou nela e subiu ao longo do grande dorso formado por anéis sucessivos. No calombo, atrás da boca, agachou-se e bateu com os punhos contra a superfície dura.
O verme parou.
O ódio subitamente convertido em terror, Sheeana parou de golpear a criatura. Só então percebeu que estivera gritando. Um terrível sentimento de estar exposta e solitária tomou conta dela. Não sabia como fora parar ali em cima. Sabia apenas onde estava, e isso a dominou com a agonia de um pavor imenso.
O verme continuava imóvel na areia.
Sheeana não sabia o que fazer. A qualquer momento a criatura poderia rolar e esmagá-la. Ou poderia mergulhar, deixando-a na superfície para ser engolida facilmente.
De repente, um tremor propagou-se ao longo do verme, da cauda até o ponto onde Sheeana se encontrava, logo atrás da boca. A criatura começou a avançar em linha reta, depois fez uma curva ampla e ganhou velocidade rumando para nordeste.
Sheeana inclinou-se para a frente e agarrou a beirada dianteira de um dos anéis do verme. Temia que a qualquer momento ele pudesse mergulhar na areia. Que faria então? Mas Shaitan não se enterrou. E enquanto os minutos passavam sem que houvesse qualquer mudança no curso retilíneo ou na rápida passagem da criatura através das dunas, Sheeana encontrou sua mente funcionando uma vez mais. Sabia o que estava fazendo. Os sacerdotes do Deus Dividido proibiam que os vermes fossem cavalgados, mas as histórias, tanto a escrita quanto a oral, afirmavam que os Fremen tinham feito coisa semelhante nos tempos antigos. Os Fremen colocavam-se então no alto das costas de Shaitan, seguros por varas delgadas com ganchos nas extremidades. Os sacerdotes diziam que isso fora feito antes que Leto II compartilhasse de sua consciência com o Deus do deserto. Agora, não se permitiria coisa alguma que pudesse aviltar os fragmentos dispersos de Leto II.
Com uma velocidade que a deixou atônita, o verme a transportou em direção à forma enevoada de Keen. A grande cidade aparecia como miragem no horizonte distorcido. O fino manto de Sheeana chicoteava na fina espessura de seu traje-destilador remendado. Seus dedos doíam no ponto onde ela se agarrava a borda dianteira do grande anel. O cheiro de canela, pedra queimada e ozônio produzido pela troca de calor do verme a atingia a cada mudança de vento
A cidade de Keen começou a se tornar mais definida à frente dela. “Os sacerdotes vão me ver e ficarão furiosos”, pensou.
Já podia identificar as estruturas baixas, feitas de tijolos, que marcavam a primeira linha de qanats e, além delas, a superfície curva dos aquedutos. Acima dessas estruturas erguiam-se os patamares sucessivos de jardins suspensos e os perfis elevados das enormes armadilhas de vento. Depois, o complexo do templo com suas próprias barreiras.
Um dia de marcha através da areia reduzido a pouco mais de uma hora!
Seus pais e os vizinhos do vilarejo tinham feito essa jornada muitas vezes para comerciar e comparecer às danças, mas Sheeana os acompanhara somente duas vezes. Lembrava-se das danças e da violência que geralmente se seguia. O tamanho de Keen a enchia de espanto. Tantos prédios! Tanta gente! Shaitan não poderia causar danos a um lugar assim.
Mas o verme continuava avançando como se fosse passar por cima do qanat e do aqueduto. Sheeana olhava para a cidade, erguendo-se cada vez mais diante dela. O fascínio que sentia dominou-lhe o terror. Shaitan não ia parar!
Mas o verme parou.
As aberturas tubulares de ventilação do qanat encontravam-se a não mais que 50 metros diante da imensa boca aberta. Ela sentiu o cheiro do hálito quente de canela e ouviu o rumor surdo no interior da fornalha de Shaitan.
Tornou-se evidente, afinal, que sua jornada tinha terminado. Lentamente, Sheeana soltou a borda do anel. Ficou de pé esperando que a qualquer momento o verme recomeçasse o seu movimento. Shaitan permaneceu quieto. Movendo-se com cautela, ela saiu de seu posto e pulou na areia. Parou ali por momento. Será que ele ia se mover? Um vago desejo de correr para o qanat passou por sua cabeça, mas o verme a fascinava. Tropeçando e escorregando na areia revolta, Sheeana caminhou até a parte dianteira do verme. Dentro da moldura circular de dentes de cristal, chamas avançavam e recuavam. Um sopro quente de odores de especiaria passou sobre ela.
A loucura da primeira corrida, descendo a duna até o verme, voltou à sua memória.
— Maldito seja Shaitan! — gritou ela, sacudindo um punho em direção àquela boca assombrosa. — Que foi que algum dia lhe fizemos de mal?
Eram palavras que ela tinha ouvido sua mãe dizer ante a destruição de uma horta de trufa. Nenhuma parte de sua consciência jamais questionou aquele nome, Shaitan, nem a fúria de sua mãe. Ela viera da gente mais pobre, da classe inferior de Rakis, e sabia muito bem disso. Sua gente acreditava primeiro em Shaitan e depois no Shai-hulud. Vermes eram vermes e freqüentemente coisa ainda pior. Não havia justiça no deserto. Somente o perigo rondava por lá. A pobreza e o temor aos sacerdotes podiam empurrar sua gente para perigosas dunas, mas eles se moviam com a mesma persistência irada que impulsionara os Fremen.
Dessa vez, entretanto, Shaitan tinha vencido.
Finalmente chegou à consciência de Sheeana afato de que se encontrava bem no meio da trilha mortal. Seus pensamentos, ainda não inteiramente formados, reconheceram que tinha feito uma coisa maluca. Muito tempo depois, quando os ensinamentos da Irmandade já lhe moldavam a consciência, ela percebia ter sido dominada pelo horror à solidão. Quisera que Shaitan a levasse para a companhia de seus mortos.
Um som rapante partiu de debaixo do verme.
Sheeana sufocou um grito.
Lentamente a princípio, depois cada vez mais rápido, o verme recuou vários metros, virou-se e ganhou velocidade ao lado da trilha que escavara ao sair do deserto. O ruído de sua passagem diminuiu na distância e Sheeana se tornou consciente de outro som. Ergueu os olhos para o céu. O tuoc-tuoc de um ornitóptero dos sacerdotes passou sobre ela, roçando-a com sua sombra. A aeronave brilhava ao sol da manhã enquanto seguia o verme para o deserto.
Sheeana sentiu então um medo mais familiar.
“Os sacerdotes!”
Manteve os olhos no tóptero, que pairou ao longe e depois retornou para pousar suavemente sobre um trecho de areia aplainado pelo ver-me. Sheeana podia sentir o odor de lubrificantes e a doentia acridez de combustível do tóptero. A coisa era como um gigantesco inseto aninhado na areia, esperando para saltar sobre ela.
Uma comporta se abriu.
Sheeana encolheu os ombros e se manteve no mesmo lugar. Muito bem, eles a tinham apanhado e ela sabia o que esperar agora. Não ganharia nada fugindo. Somente os sacerdotes usavam tópteros, eles podiam ir a qualquer lugar e ver tudo.
Dois sacerdotes envoltos em ricos mantos, vestes de cor branca e dourada com bainhas roxas, saíram correndo pela areia em sua direção. Ambos ajoelharam-se diante de Sheeana, tão perto que ela podia sentir o odor da transpiração de ambos e o incenso de melange que permeava suas roupas. Eles eram jovens, mas muito semelhantes a todos os sacerdotes de que podia lembrar-se: feições suaves, mãos desprovidas de calos, descuidados quanto à perda de umidade. Nenhum deles usava um traje-destilador por baixo daqueles mantos.
O que estava à esquerda, os olhos no mesmo nível dos de Sheeana, falou.
— Filha do Shai-hulud, nós vimos seu Pai trazê-la de suas terras. As palavras não faziam sentido para Sheeana. Sacerdotes eram homens que deviam ser temidos. Seus pais e todos os adultos a quem conhecera lhe haviam transmitido essa idéia com palavras e ações. Os sacerdotes possuíam ornitópteros. Os sacerdotes jogavam você para Shaitan pela menor infração, ou as vezes sem qualquer motivo, apenas por capricho. Sua gente conhecia muitos casos.
Sheeana recuou ante os homens que se ajoelhavam e olhou à sua volta. Para onde poderia correr?
Aquele que tinha falado ergueu uma mão suplicante.
— Fique conosco.
— Vocês são maus.
A voz de Sheeana estava cheia de emoção.
Ambos os sacerdotes prostraram-se na areia.
Bem longe, nas torres da cidade, a luz do sol brilhou em lentes. Sheeana viu o reflexo. Conhecia bem esse tipo de brilho. Nas cidades, os sacerdotes sempre observavam as pessoas. Quando se via o reflexo das lentes, era hora de ser inconspícuo, de ser “bonzinho”.
Sheeana bateu com as mãos diante de si para que parassem de tremer. Olhou para a esquerda e para a direita, depois para os dois sacerdotes prostrados. Alguma coisa estava errada.
Com as cabeças na areia, os dois sacerdotes tremiam de medo e esperavam. Nenhum dos dois falava.
Sheeana não sabia como responder. O impacto de suas experiências recentes não podia ser absorvido pela mente de uma criança de oito anos. Ela só sabia que seus pais e todos os seus vizinhos tinham sido engolidos pôr Shaitan. Seus próprios olhos tinham testemunhado isso. E Shaitan a trouxera para cá, recusando-se a lançá-la em seus terríveis fogos. Fora poupada.
Essa era uma palavra que podia entender. “Poupada”. Fora-lhe explicado quando ela aprendera a dançar ao som daquela canção.
“Poupe-nos Shai-hulud!
Lave Shaitan para longe...”
Lentamente, não querendo perturbar os dois sacerdotes prostrados, Sheeana começou os movimentos não-rítimicos da dança. À medida que a música era lembrada com mais força, abriu os braços e começou a erguer os pés em movimentos imponentes. Seu corpo girou, lentamente a princípio, depois cada vez mais rápido, na medida em que o êxtase da música aumentava. Seu longo cabelo castanho chicoteava em torno de seu rosto.
Os dois sacerdotes atreveram-se a erguer as cabeças. A estranha criança estava dançando. A Dança! Ambos reconheceram os movimentos:
A Dança da Conciliação. Ela pedia ao Shai-hulud que perdoasse o seu povo. Pedia a Deus para perdoá-los!
Eles voltaram as cabeças a fim de olhar um para o outro e juntos começaram a oscilar sobre os joelhos. Depois bateram palmas no antigo ritmo para distrair a dançarina. As mãos batiam ritmicamente e eles cantavam os antigos versos:
“Nossos pais bebiam o maná do deserto, Nos lugares flamejantes de onde vinham os redemoinhos.”
Os sacerdotes excluíram tudo de sua percepção, exceto a criança. Era uma criatura esguia, percebiam eles, com pernas e braços finos e musculatura elástica. O manto e o traje-destilador estavam gastos e remendados, como os usados pela gente mais pobre. As maçãs do rosto eram proeminentes, lançando sombras sobre a pele cor de oliva. Olhos castanhos, notaram. Fios de sol avermelhado escorrendo pelos cabelos. Havia em sua compleição a magreza daqueles que poupavam a água — nariz e queixo finos, testa larga, boca ampla e fina, pescoço longo. Ela se parecia com os retratos feitos pelos Fremen dos mais sagrado entre os sagrados em Dar-es-Balat. É claro! A filha do Shai-hulud devia ter esse aspecto.
Ela dançava bem. Não havia um ritmo facilmente copiável em seus movimentos. Havia ritmo, sim, mas uma cadência admiravelmente longa, pelo menos com 100 passos de separação. Ela a manteve enquanto o sol se erguia cada vez mais alto. Era quase meio-dia quando a menina caiu exausta na areia.
Os sacerdotes levantaram-se, olhando para o deserto de onde viera o Shai-hulud. Os pés batendo no chão ao som da dança não o tinham invocado a voltar. Eles estavam perdoados.
E assim a nova vida de Sheeana começou.
Falando alto em seus alojamentos, durante muitos dias, os sacerdotes mais graduados discutiram a respeito dela. Por fim levaram seus relatórios e pontos de vista para o Alto Sacerdote Hedley Tuek. O encontro aconteceu no meio da tarde, dentro do Salão de Pequenas Assembléias, Tuek e seis sacerdotes conselheiros estavam lá. Murais representavam Leto II, um rosto humano numa grande forma de verme a olhar para eles com benevolência.
Tuek sentou-se num banco de pedra que fora encontrado no Sietch do Passo dos Ventos. Uma das pernas ainda trazia esculpida a marca de um falcão Atreides.
Seus conselheiros ocupavam bancos mais modernos, voltados para ele.
O Alto Sacerdote era uma figura imponente, com cabelos grisalhos muito bem penteados que chegavam até os ombros, moldura adequada para o rosto quadrado com boca larga e espessa, e queixo grosso. Os olhos de Tuek retinham o branco original, cercando pupilas azuis-escuras. Sobrancelhas espessas e emaranhadas, de cor castanho acizentado, sombreavam-lhe os olhos.
Os conselheiros formavam um grupo variado. Descendentes de antigas famílias de sacerdotes, cada qual tinha no coração a crença de que tudo sairia melhor se ele estivesse sentado no banco de Tuek.
O magro Stiros, de rosto enrugado, colocou-se como porta-voz da oposição:
— Ela não passa de uma órfã do deserto. Cavalgou o Shai-hulud. Isso é proibido e a punição, obrigatória!
Outros falaram imediatamente.
— Não! Não, Stiros. Você não entendeu! Ela não montou nas costas do Shai-hulud como faziam os Fremen. Ela não tinha ganchos produtor nem...
Stiros tentou calá-los.
Era um empate, percebeu Tuek: três a três, com Umphrud, um gordo hedonista, como advogado da “cautelosa aceitação”.
— Ela não tinha meios de guiar o curso do Shai-hulud — argumentou Umphrud. — E todos nós vimos como ela desceu para a areia sem medo e falou com ele.
Sim, todos tinham visto isso, ou na ocasião em que ocorrera ou na holofoto que um observador atento tivera o cuidado de tirar. Órfã do deserto ou não, ela havia confrontado o Shai-hulud e conversado com Ele. E o Shai-hulud não a engolfara. Não, realmente. O Verme-de-Deus tinha recuado ao comando da criança e retornado para o deserto.
— Nós vamos testá-la — disse Tuek.
No início da manhã seguinte, um ornitóptero pilotado pelos dois sacerdotes que a tinham trazido do deserto levou Sheeana para bem longe, fora do alcance das vistas da população de Keen. Os sacerdotes deixaram-na no topo de uma duna e plantaram sobre a areia a cópia meticulosa de um batedor Fremen. Quando o pino de segurança do batedor foi retirado, uma batida forte reverberou através do deserto — o ancestral chamado do Shai-hulud. Os sacerdotes fugiram para o ornitóptero e esperaram bem no alto, enquanto uma aterrorizada Sheeana, seus piores temores concretizando-se, esperou sozinha a uns 20 metros de distância do engenho percussor.
Dois vermes vieram. Não eram os maiores que os sacerdotes já tinham visto, cada qual com não mais que 30 metros de comprimento. Um deles engoliu o batedor e o silenciou. Juntos eles circularam em trilhas paralelas e pararam lado a lado, a não mais de seis metros de Sheeana.
Ela esperava submissa, os punhos fechados na extremidade dos braços unidos ao lado do corpo. Era isso que os sacerdotes faziam: jogavam as pessoas como comida para Shaitan.
Em seu tóptero, pairando no ar, os dois sacerdotes observavam fascinados. Suas lentes transmitiam a cena até os observadores, igualmente fascinados, nos alojamentos do Alto Sacerdote, em Keen. Todos eles já tinham visto algo similar anteriormente. Era uma punição-padrão, um modo conveniente de eliminar oposicionistas em meio à população ou entre os sacerdotes, ou de abrir caminho para a aquisição de uma nova concubina. Mas nunca antes eles tinham visto uma criança solitária como vitima. E uma criança como aquela!
Os Vermes de Deus arrastaram-se lentamente para a frente depois de sua primeira parada. E mais uma vez ficaram imóveis a apenas três metros de Sheeana.
Resignada ante seu destino, ela não correu. Logo, pensou, estaria junto com seus pais e amigos. E, enquanto os vermes permaneciam imóveis, a raiva substituiu seu terror. Os sacerdotes perversos a tinham deixado ali! Podia ouvir o tóptero deles lá em cima. O quente perfume da especiaria vindo dos vermes preenchia o ar à sua volta. De súbito, ela ergueu a mão direita e apontou para o tóptero.
— Andem! Me devorem! E isso que eles querem!
Os sacerdotes lá em cima não podiam ouvir suas palavras, mas seu gesto era visível e eles podiam perceber que a menina falava com os dois Vermes de Deus, o dedo apontado para eles não devia significar boa coisa.
Os vermes não se mexiam.
Sheeana abaixou a mão.
— Vocês mataram minha mãe, meu pai e todos os meus amigos! — acusou ela, dando um passo à frente e sacudindo o punho para eles.
Os vermes recuaram, mantendo a distância.
— Se não me querem, voltem para o lugar de onde vieram!
Ela gesticulou para o deserto.
Obedientemente, as duas criaturas recuaram, virando-se num movimento único.
Os dois sacerdotes no tóptero rastrearam os dois vermes até que eles mergulharam na areia, a mais de um quilômetro de distância. Só então voltaram, cheios de medo e ansiedade. Apanharam das areias a filha do Shai-hulud e a levaram de volta para Keen.
A embaixada da Bene Gesserit em Keen já recebera um relatório completo ao cair da noite. E a noticia já estava a caminho do planeta da Irmandade na manhã seguinte.
Tinha acontecido, afinal!
O problema com determinadas espécies de guerra (e podem estar certos de que o Tirano sabia disso devido à sua lição implícita) é que elas destrõem toda a decência moral em certos tipos suscetíveis. Uma guerra dessa modalidade lançará os sobreviventes destroçados no meio de uma população inocente que será incapaz sequer de imaginar o que esses soldados, voltando da guerra, poderão fazer.
— Ensinamentos do Caminho Dourado, Arquivos da Bene Gesserit
Uma das memórias mais recuadas no tempo que Miles Teg possuía era a de estar sentado para jantar com seus pais e um irmão mais jovem, Sabine. Teg tinha apenas sete anos na ocasião, mas os acontecimentos ficaram marcados indelevelmente em sua memória: a sala de jantar em Lernaeus, colorida com flores recentemente cortadas, a luz baixa de um sol amarelo no horizonte sendo difundida por antigas venezianas. Louça azul brilhante e pratarias adornavam a mesa. Servas acólitas, atentas, esperavam por perto, pois sua mãe podia ser permanentemente afastada, em missão especial para a Irmandade, mas sua função como professora Bene Gesserit não devia ser desperdiçada.
Janet Roxbrough-Teg, mulher que parecia ideal para o papel de grande dama, olhou de uma extremidade a outra da mesa, observando os preparativos para o jantar e verificando a disposição dos talheres. Loschy Teg, pai de Miles, sempre observava tudo com um ligeiro ar de divertimento. Era um homem alto e magro, com testa ampla e rosto tão estreito que seus olhos escuros pareciam projetar-se lateralmente. O cabelo preto era um contraponto perfeito para o louro da esposa.
Acima dos sons abafados do jantar e do rico perfume da sopa de especiaria, a mãe instruía o pai quanto à maneira de enfrentar um inoportuno Comerciante Livre. Ao mencionar a palavra “Tleilaxu”, ela captou toda a atenção de Miles. Sua educação havia recentemente abordado os Bene Tleilax.
Mesmo Sabine, que sucumbiria muitos anos depois a um envenenador em Romo, ouvia com toda a atenção que sua idade de quatro anos podia permitir. Sabine adorava o irmão como a um herói. Qualquer coisa que captasse a atenção de Miles seria de interesse para Sabine. Os dois meninos ouviam em silêncio.
— O homem é testa-de-ferro dos Tleilaxu — dizia Lady Janet. — Posso notar isso em sua voz.
— Eu não duvido de sua capacidade de perceber essas coisas, querida — disse Loschy Teg. — Mas que devo fazer? Ele tem os créditos adequados e deseja comprar o...
— O pedido de arroz não tem muita importância por enquanto. Mas nunca presuma que aquilo que um Dançarino Facial parece buscar é o que ele realmente quer.
— Tenho certeza de que ele não é um Dançarino Facial. Ele...
— Loschy! Sei que você aprendeu muito bem o que lhe ensinei e pode detectar um Dançarino Facial. Concordo em que o Comerciante Livre não é um deles. Os Dançarmos Faciais ficaram em sua nave. Sabem que estou aqui.
— E sabem que não poderiam enganá-la. Sim, mas...
— A estratégia dos Tleilaxu é sempre uma teia de estratégias, qualquer uma das quais pode ser a verdadeira. Eles aprenderam isso conosco.
— Minha querida, se estamos lidando com os Tleilaxu, e neste ponto eu não questiono o seu julgamento, então passamos a tratar de uma questão de melange.
Lady Janet assentiu levemente com a cabeça De tato, até mesmo Miles já sabia da ligação dos Tleilaxu com a especiaria. Era uma das coisas que o fascinavam a respeito deles. Para cada miligrama de melange produzido em Rakis, os tanques dos Bene Tlailax produziam toneladas. O uso da melange ampliara-se de acordo com o novo suprimento, e mesmo a Corporação Espacial se ajoelhava ante os novos poderosos.
— Mas o arroz... — arriscou Loschy Teg.
— Meu querido marido, os Bene Tleilax não têm utilidade para tanto arroz pongi em nosso setor. Eles o querem para comerciar. E nós precisamos descobrir quem realmente precisa do arroz.
— Você quer que eu atrase a venda?
— Precisamente. Você é soberbo no tipo de sagacidade de que necessitamos agora. Não dê àquele Comerciante Livre a chance de dizer sim ou não. Uma pessoa treinada pelos Dançarmos Faciais apreciará tal sutileza.
— Nós atrairemos os Dançarmos Faciais para fora da nave enquanto você inicia as investigações em outro lugar.
Lady Janet sorriu.
— Você é adorável quando salta na minha frente desse modo.
Um olhar de compreensão passou entre os dois.
— Ele não conseguirá outro fornecedor neste setor — comentou Loschy Teg.
— E evitará uma confrontação, uma escolha do tipo insista ou desista — disse Lady Janet batendo na mesa. — Atrasos, atrasos e mais atrasos. Você deve atrair os Dançarmos Faciais para fora da nave.
— Eles vão perceber, é claro.
— Sim, meu querido, e isso é perigoso. Você deve sempre confrontá-los em nosso próprio campo e com nossos guardas em volta.
Miles Teg lembrava que seu pai de fato conseguira atrair os Dançarinos Faciais para fora da nave. A mãe levara Miles para junto da tela de observação, pela qual puderam observar a sala de paredes revestidas de cobre onde seu pai fez o negócio que lhe granjeou os mais altos elogios da CHOAM, além de um rico bônus.
Os primeiros Dançarmos Faciais que Miles já vira: dois homenzinhos que pareciam gêmeos. Rostos redondos, quase sem queixo, narizes chatos, bocas pequeninas, olhos negros e redondos como botões, cabelos brancos, cortados curtos, que se erguiam em pé na cabeça como as cerdas de uma escova. Os dois estavam vestidos da mesma maneira que o Comerciante Livre: calças e túnicas negras.
— Ilusão, Miles — disse-lhe a mãe. — A ilusão é o modo de vida deles. Criar ilusões para conquistar objetivos reais, é assim que trabalham os Tleilaxu.
— Como o mágico no Festival de Inverno? — indagou Miles, o olhar atento à tela de visão e sua imagem em miniatura.
— Bem parecido — concordou a mãe.
Ela também observava a tela de visão, mas um de seus braços se colocou protetoramente em torno do filho.
— Você está olhando para o mal, Miles. Estude-o cuidadosamente. Os rostos que você vê podem modificar-se instantaneamente. Eles podem ficar mais altos ou mais gordos. Podem imitar a aparência do seu pai de tal modo que só eu reconheceria a substituição.
A boca de Miles Teg formou um “Oh” mudo. Ele olhou para a tela, ouvindo seu pai explicar que o preço do arroz pongi na CHOAM tinha subido novamente, e de forma alarmante.
— E a coisa mais terrível de todas — disse a mãe — é que alguns dos novos Dançarinos Faciais podem absorver algumas memórias da vítima simplesmente tocando-lhe a pele.
— Eles lêem as mentes?
Miles olhou para a mãe.
— Não exatamente. Achamos que eles tiram uma impressão das memórias, quase como num processo de holofotografia. Ainda não sabem que temos conhecimento disso.
Miles entendia. Não deveria falar sobre isso com ninguém, nem mesmo com seu pai ou sua mãe. Ela lhe ensinara o costume Bene Gesserit de guardar segredo, e ele observou as figuras na tela com cuidado.
Ante as palavras de seu pai, os Dançarmos Faciais não demonstravam qualquer emoção, mas seus olhos pareciam cintilar com maior brilho.
— Como eles se tornam tão maus? — perguntou Miles.
— Eles são seres comunais, criados para não se identificarem com nenhum rosto nem forma. A aparência que apresentam agora é para que eu os veja. Sabem que os estou observando. Por isso relaxaram, adotando sua forma comunal natural. Guarde-a com atenção.
Miles inclinou a cabeça para um lado e examinou os Dançarmos Faciais. Eles pareciam meigos e tolos.
— Eles não possuem senso de identidade própria — explicou a mãe.
— Possuem apenas o instinto de preservar suas próprias vidas, a menos que recebam a ordem de morrer por seus senhores.
— E eles fazem isso?
— Já fizeram muitas vezes.
— E quem são os seus senhores?
— Homens que raramente deixam os planetas dos Bene Tleilax.
— Eles têm filhos?
— Não os Dançarmos Faciais. Estes são híbridos, estéreis. Mas seus senhores procriam. Nós já nos unimos a alguns deles, mas a prole é sempre muito estranha. Nascem poucas meninas, e mesmo com essas somos incapazes de sondar as Memórias Anteriores.
Miles franziu a testa. Sabia que sua mãe era uma Bene Gesserit. E tinha o conhecimento de que as Reverendas Madres guardavam consigo um maravilhoso reservatório de Memórias Anteriores que recuavam através de todos os milênios de existência da Irmandade. Conhecia até mesmo alguns detalhes do projeto de procriação da Bene Gesserit. As Reverendas Madres escolhiam certos homens em especial e tinham filhos com esses homens.
— Como são as mulheres Tleilaxu?
Era uma pergunta inteligente que produziu uma onda de orgulho em Lady Janet. Sim, era quase certo que ela tivesse ali um Mentat em potencial. As encarregadas da procriação estavam certas quanto ao potencial genético de Loschy Teg.
— Ninguém, fora de seus planetas, jamais relatou ter visto uma fêmea Tleilaxu — explicou Lady Janet.
— E elas existem ou são apenas os tanques?
— Elas existem.
— Serão mulheres alguns dos Dançarmos Faciais?
— Mediante sua própria vontade, eles podem converter-se em machos ou fêmeas. Observe-os cuidadosamente. Eles sabem o que seu pai está fazendo e isso os deixa furiosos.
— Tentarão ferir meu pai?
— Não se atreveriam. Nós tomamos precauções e eles sabem disso. Observe como o da esquerda fica mexendo com o queixo. É um de seus sinais de raiva.
— Disse que eles eram... seres comunais.
— Como os insetos de uma colmeia, Miles. Não possuem identidade individual. E, não possuindo noção do “eu”, podem colocar-se além da moralidade. Não se pode confiar em nada do que dizem ou fazem.
Miles estremeceu.
— Nunca fomos capazes de detectar um código de ética neles — explicou Lady Janet. — Eles são carne transformada em autômatos. Sem a noção do “eu”, não possuem nada para duvidar ou estimar. São criados apenas para obedecer a seus senhores.
— E receberam ordens de vir aqui e comprar o arroz?
— Exato. Disseram-lhes que o obtivessem e não há outro lugar neste setor onde possam fazê-lo.
— Devem comprá-lo de meu pai?
— É a única fonte de que dispõem. Neste exato momento, filho, eles estão pagando com melange. Está vendo?
Miles viu as marcas marrom-alaranjadas de especiaria trocarem de mãos, uma pilha alta que um dos Dançarmos Faciais removeu de uma caixa no chão.
— O preço é muito mais elevado do que eles tinham previsto — disse Lady Janet. — Vai ser uma trilha fácil de ser seguida.
— Por quê?
— Alguém irá á falência adquirindo esse carregamento. Nós achamos que sabemos quem é o comprador. Mas, seja quem for, vamos descobrir logo. E então saberemos o que realmente está sendo comercializado aqui.
Lady Janet começou então a apontar as incongruências identificáveis que revelavam um Dançarino Facial ante olhos e ouvidos treinados. Eram sinais muito sutis, mas Miles os percebia imediatamente. Sua mãe então lhe disse que julgava que ele poderia tornar-se um Mentat... talvez até mais do que isso.
Pouco antes de seu 13º aniversário, Miles Teg foi enviado para a escola avançada na fortaleza da Bene Gesserit em Lampadas, onde o julgamento de sua mãe se confirmou. Ela recebeu a notícia de que sua avaliação tinha sido correta:
“Você nos deu o Mentat Guerreiro de que precisávamos.”
Teg não viu a nota até encontrá-la no dia em que remexia as coisas da mãe, escolhendo o que devia ser guardado depois da morte dela. As palavras, escritas numa pequena folha de cristal roduliano, com a marca da Irmandade embaixo, deram-lhe um estranho senso de deslocamento no tempo. Sua memória o colocou subitamente de volta em lampadas, onde o amor-admiração que sentia pela mãe fora habilmente transferido para a Irmandade, tal como originalmente planejado. Só viera a entender isso mais tarde, durante seu treinamento final como Mentat, mas a compreensão mudou muito pouco. Se muito, acabou por ligá-lo ainda mais à Bene Gesserit, confirmando que a Irmandade devia ser uma de suas forças. Ele já sabia que a Bene Gesserit era uma das forças mais poderosas de seu universo — no mínimo igual à Corporação Espacial, superior ao Conselho das Oradoras Peixes, que herdara o núcleo do antigo Império Atreides, muito superior, de longe, à CHOAM, e em igualdade de condições com a Bene Tleilax e os fabricantes de máquinas de Ix. Uma pequena amostra do poder da Bene Gesserit era o fato de elas manterem sua autoridade a despeito de a melange cultivada em tanques dos Tleilaxu ter destruído o monopólio rakiano da especiaria, exatamente como as máquinas de navegação ixianas tinham destruído o monopólio da Corporação em relação as viagens espaciais.
Então Miles já conhecia sua história muito bem. Os Navegadores da Corporação não eram mais os únicos que podiam passar uma nave através das dobras do espaço — nesta galáxia num instante, numa galáxia longínqua no espaço de uma batida de coração.
Suas professoras da Escola de Irmãs ocultaram-lhe muito pouco, revelando inclusive sua descendência dos Atreides. Essa revelação fora necessária devido aos testes a que o tinham submetido. Obviamente o estavam testando para verificar se tinha poderes de presciência. Será que poderia, como um Navegador, detectar obstruções fatais? Ele fracassou. Depois o testaram em não-câmaras e não-naves. Revelou-se tão cego a tais engenhos como o restante da humanidade. Para esse teste, entretanto, elas o alimentaram com doses crescentes de especiaria, e Miles sentiu o despertar de seu Verdadeiro Eu.
“A Mente no seu Princípio”, foi como o chamou uma Irmã professora quando ele lhe perguntou sobre as curiosas sensações que sentia.
Durante algum tempo o universo parecia mágico e ele o olhava através de sua nova capacidade de percepção. Sua consciência tornou-se um círculo, depois um globo. Formas arbitrárias tornaram-se transitórias. Ele caía sem aviso num estado de transe até que as Irmãs lhe ensinaram o modo de controlar esse poder. Forneceram-lhe relatos de santos e de místicos, e o forçaram a traçar um círculo com ambas as mãos, seguindo a linha com a sua consciência.
No final desse período, sua consciência reassumiu o contato com os rótulos convencionais, mas a memória desse tempo mágico nunca mais o abandonou. Ele passou a usar essa lembrança como uma fonte de força e resistência nas ocasiões mais difíceis.
Depois de aceitar o trabalho como Mestre de Armas para o ghola, Teg sentiu que essa mágica lembrança se tornava mais forte dentro de si. Ela foi especialmente útil durante sua primeira entrevista com Schwangyu no Castelo de Gammu. Os dois encontraram-se no estúdio da Reverenda Madre, um lugar de paredes de metal brilhante e numerosos instrumentos, a maioria com o rótulo de Ix. Até mesmo a cadeira onde ela se sentava, com o sol da manhã brilhando por trás, pela janela, e tornando seu rosto difícil de ser visto, essa cadeira era um modelo ixiano automoldável. Ele foi forçado a se sentar em uma cadeira-cão, muito embora tivesse certeza de que ela conhecia sua aversão ao uso de uma forma de vida para função tão humilhante.
— Você foi escolhido porque tem uma imagem de avô — disse Schwangyu. A luz brilhante do sol formando um halo em torno de sua cabeça envolta no capuz. “Deliberado!” — Sua sabedoria conquistará o amor e o respeito da criança.
— Não há modo de eu me tornar um figura paterna?
— De acordo com Taraza, você tem as características exatas de que ela precisa. E sei de suas honoráveis cicatrizes e do valor que possui para nós.
Isso só confirmava sua conclusão Mentat anterior. “Elas estavam planejando isso há muito tempo. Procriaram-me com esse objetivo. Nasci para isso. Sou parte do grande plano delas.”
Tudo que ele disse foi:
— Taraza espera que essa criança se torne um guerreiro formidável quando recuperar sua verdadeira identidade.
Schwangyu apenas olhou para ele por um momento, depois disse:
— Você não deve responder nenhuma das perguntas dele a respeito de gholas, caso ele toque no assunto. Nem mesmo use essa palavra na presença dele até que eu lhe dê permissão para isso. Vamos fornecer-lhe todos os dados a respeito de gholas que seu trabalho exigirá.
Calculando friamente suas palavras no sentido de obter o efeito máximo, Teg disse:
— Talvez a Reverenda Madre desconheça que sou bem versado em todos os fatos a respeito de gholas Tleilaxu. Já enfrentei os Tleilaxu em batalha.
— E acha que conhece o suficiente a respeito da série Idaho?
— Os Idaho têm a fama de ser brilhantes estrategistas militares.
— Então talvez o grande Bashar não esteja informado quanto as demais características do nosso ghola.
Não havia dúvida quanto ao tom zombeteiro na voz. E havia mais alguma coisa: ciúme e muita raiva mal dissimulados. A mãe de Teg lhe havia ensinado os modos de ver as emoções além dos disfarces, ensinamento proibido que ele sempre escondera. Fingiu desapontamento e encolheu os ombros.
Era óbvio, entretanto, que Schwangyu sabia que ele era o Bashar de Taraza. Uma linha de separação fora traçada.
— Por ordem da Bene Gesserit — disse Schwangyu os Tleilaxu fizeram uma pequena alteração, embora significativa, na atual série Idaho. Seu sistema neuromuscular foi modernizado.
— Sem mudar a persona original?
Teg dirigiu-lhe a pergunta imaginando como ela se revelaria.
— Ele é um ghola, não um clone!
— Percebo.
— Percebe realmente? Ele precisa do mais cuidadoso treinamento prana-bindu em todos os estágios.
— Foram as ordens de Taraza — disse Teg. — E nós todos obedeceremos.
Schwangyu inclinou-se para a frente, não escondendo seu ódio.
— Pedem-lhe que treine um ghola cujo papel, em certos planos, será extremamente perigoso para todos nós. Não creio que compreenda mesmo remotamente o que vai treinar!
O que vai treinar. Não quem vai treinar. Essa criança-ghola nunca seria alguém para Schwangyu ou para qualquer uma das outras que se opunham a Taraza. Talvez o ghola não fosse realmente alguém até ter restaurada sua identidade original. Até assumir firmemente a identidade do Duncan Idaho original.
Teg percebia agora que Schwangyu tinha mais do que reservas ocultas ao projeto ghola. Ela exercia uma oposição ativa, exatamente como Taraza tinha avisado. Schwangyu era o inimigo e as ordens de Taraza tinham sido explícitas.
— Você deve proteger essa criança de qualquer ameaça.
Dez mil anos já se passaram desde que Leto II iniciou sua metamorfose de ser humano para verme de areia de Rakis, e os historiadores ainda debatem quais teriam sido seus motivos. Teria sido ele motivado pelo desejo de uma longa vida? Ele viveu mais de 10 vezes o tempo de vida padrão de 300 AP, mas consideremos o preço que pagou. Teria sido atraído pelo poder? Ele foi chamado de Tirano por bons motivos, mas que foi que o poder lhe trouxe que um ser humano pudesse desejar? Teria sido impulsionado pelo desejo de salvar a humanidade de si própria? Nós temos apenas seus próprios registros a respeito de seu Caminho Dourado para responder essa pergunta, e não posso aceitar as palavras de Dar-es-Balat, que só serviram como justificativa para ele mesmo. Haveria outras gratificações que somente a experiência que ele tinha poderia ter esclarecido? Sem uma evidência maior, essa pergunta é discutível. Ficamos reduzidos apenas à constatação de que ele o “fez”. Só o fato físico é inegável.
— A Metamorfose de Leto II, Conclusão do Discurso do 10.000º. Aniversário, por Gaus Andaud
Uma vez mais Waff se via em Lashkar, e dessa vez havia muito em jogo. Uma Honrada Madre da Dispersão exigira sua presença. Uma powindah dos powindah! Descendentes dos Tleilaxu da Dispersão lhe haviam contado tudo que sabiam sobre essas mulheres terríveis.
— São muito mais terríveis do que as Reverendas Madres da Bene Gesserit — disseram-lhe.
“E muito mais numerosas”, lembrou-se Waff.
Ele não confiava inteiramente nos descendentes de Tleilaxu que agora retornavam. Seus sotaques eram estranhos, suas maneiras, ainda mais estranhas, e o modo como realizavam os rituais, deveras questionável. Como poderiam ser readmitidos no Grande Kehl? Que possível ritual de ghufran seria capaz de purificá-los após todos esses séculos? Era inacreditável que tivessem mantido o segredo dos Tleilaxu ao longo das gerações.
Eles não eram mais irmãos-malik, e no entanto constituíam a única fonte de informação que os Tleilaxu possuíam a respeito dos Perdidos que agora retornavam. E as revelações que tinham trazido! Revelações que tinham sido incorporadas aos gholas Duncan Idaho — isso valia todo o risco de contaminação pela maldade dos powindah.
O lugar de encontro com as Honradas Madres seria na presumida neutralidade de uma não-nave ixiana, colocada em órbita bem próxima em torno de um planeta gigante gasoso, mutuamente selecionado, num sistema solar já minerado pelo antigo Império. O próprio Profeta tinha esgotado toda a riqueza desse sistema solar. Novos Dançarinos Faciais faziam-se passar por ixianos entre a tripulação da não-nave, mas ainda assim Waff suava frio ante esse encontro. Se as Honradas Madres eram realmente mais terríveis do que as bruxas Bene Gesserit, será que a troca dos tripulantes ixianos por Dançarinos Faciais não seria detectada?
A escolha desse lugar de encontro e os preparativos necessários tinham colocado os Tleilaxu sob tensão. Seria seguro? Ele procurou tranqüilizar-se carregando consigo duas armas seladas que nunca tinham sido vistas fora dos planetas do núcleo Tleilaxu. As armas eram o resultado de um longo e doloroso esforço da parte dos artífices: dois minúsculos lançadores de dardos escondidos em suas mangas. Ele treinara com eles durante anos, até o ato de sacudir as mangas e disparar os dardos envenenados constituir um reflexo quase instintivo.
As paredes da sala de reunião tinham a cor de cobre adequada, indicando que estavam defendidas contra engenhos de espionagem ixianos. Mas que instrumentos o povo da Dispersão não poderia ter desenvolvido além do conhecimento ixiano?
Waff entrou na sala com um passo hesitante. A Honrada Madre já estava lá, sentada em uma cadeira de couro amarrado.
— Você vai me chamar como todo o mundo me chama — disse ela quando ele entrou. — Honrada Madre.
Ele se curvou como tinham lhe dito que fizesse.
— Honrada Madre.
Não havia indício de poderes ocultos na voz dela, um contralto baixo com subtonalidades que revelavam desdém em relação a ele. Ela parecia uma atleta ou acrobata envelhecida, aposentada mas ainda mantendo o tônus muscular e algumas de suas habilidades. A face tinha a pele esticada sobre um crânio com ossos proeminentes nas maçãs do rosto. A boca, de lábios finos, produzia uma aparência de arrogância quando ela falava, como se cada palavra fosse projetada para baixo, em direção a pessoas inferiores.
— Bem, venha e sente-se! — ordenou ela, acenando para a outra cadeira diante de si.
Waff ouviu o assovio da porta pressurizada fechando-se atrás deles. Estava sozinho com ela! Ela estava usando um detetor. Podia ver o fio do aparelho dirigindo-se para o seu ouvido esquerdo. Os lança-dardos de Waff tinham sido bem selados e “lavados” contra detetores. Tinham sido mantidos a uma temperatura de menos 340° Kelvin em banho de radiação durante cinco AP para se tornarem à prova de detetores. Será que isso tinha sido suficiente?
Devagar, ele se sentou na cadeira indicada.
Lentes de contato de cor laranja cobriam os olhos da Honrada Madre, dando-lhes a aparência de olhos de fera. Sem as lentes ela já era impressionante. Sem falar nas roupas que usava! Malha colante vermelha embaixo de um manto azul-escuro. A superfície do manto fora enfeitada com um estranho material nacarado que produzia arabescos curiosos e desenhos de dragão. Ela se sentava na cadeira como se esta fosse um trono, as mãos em garra repousando sobre os braços do móvel.
Waff olhou para a sala em torno. Sua gente tinha inspecionado esse aposento em companhia dos trabalhadores de manutenção ixianos e das representantes da Honrada Madre,
“Fizemos o melhor que podíamos”, pensou, e tentou relaxar. A Honrada Madre riu.
Waff olhou para ela aparentando tanta calma quanto conseguia simular.
— A senhora está me avaliando agora — acusou ele. — Está dizendo a si mesma que possui enormes recursos para empregar contra mim, instrumentos brutos e instrumentos sutis para realizar suas vontades.
— Não use esse tom de voz comigo.
As palavras saíram baixas e sem emoção, mas carregavam um peso de tamanho veneno que Waff quase recuou.
Ele olhou para a musculatura da perna da mulher, aquele tecido de malha vermelha fluindo sobre ela como se fosse parte orgânica de seu próprio corpo.
A hora do encontro fora ajustada para colocá-los juntos no que seria o meio-dia mútuo, o tempo em que haviam estado despertos tendo sido equilibrado durante a viagem. Ainda assim Waff se sentia deslocado e em desvantagem. Seriam verdadeiras as histórias de seus informantes? Ela devia ter algum tipo de arma consigo.
Sorriu para ele sem qualquer humor.
— Está tentando intimidar-me — disse Waff.
— E estou conseguindo.
A raiva percorreu o corpo do Waff. Ele a manteve fora de sua voz.
— Eu vim aqui a seu convite.
— Espero que não tenha vindo para se colocar num confronto que certamente iria perder — ela disse.
— Vim para estabelecer uma união entre nós — disse ele, enquanto se perguntava: “Que elas podem precisar de nós? Certamente devem precisar de alguma coisa.”
— Que união pode haver entre nós? — perguntou ela. — Você poderia erguer um prédio em cima de uma jangada em desintegração? Ah, acordos podem ser rompidos, e freqüentemente o são.
— Que estamos barganhando? — perguntou ele.
— Barganhando? Eu não estou barganhando. Estou interessada nesse ghola que você fez para as bruxas.
O tom de voz dela não revelava coisa alguma, mas as batidas do coração de Waff se aceleraram ante a pergunta.
Em uma de suas vidas como ghola, Waff havia treinado sob a orientação de um Mentat renegado. As capacidades de um Mentat encontravam-se além do seu alcance e além disso o raciocínio exigia palavras. Eles acabaram forçados a matar o Mentat powindah, mas aprenderam algumas coisas de valor com a experiência.
“Ataque e absorva os dados que o ataque produz!”
— A senhora não me oferece nada em troca — disse ele em voz alta.
— A recompensa está a meu critério.
Waff a olhou com zombaria.
— Está brincando comigo?
Ela mostrou os dentes brancos num sorriso feroz.
— Você não sobreviveria à brincadeira, nem eu desejaria brincar.
— Assim, dependo inteiramente de sua boa vontade!
— Dependência! — A palavra escapou-lhe da boca como se produzisse uma sensação desagradável. — Por que enviam esses gholas para as bruxas e então os matam?
Waff comprimiu os lábios e permaneceu em silêncio.
— Vocês mudaram esse ghola de algum modo, deixando-o ainda capaz de recuperar as memórias originais — disse ela.
— Vocês sabem um bocado! — admitiu Waff.
Não era zombaria e ele esperava não ter deixado transparecer coisa alguma. “Espiões!” Ela tinha espiãs entre as bruxas! Haveria também um traidor no coração dos Tleilaxu?
— Existe uma menina em Rakis que figura nos planos das bruxas — disse a Honrada Madre.
— Como sabe disso?
— As bruxas não fazem um movimento sem que fiquemos sabendo! Você pensa em espiãs, mas não imagina até onde vai o nosso braço!
Waff estava impressionado. Como ela poderia ler sua mente? Teria sido alguma coisa que surgira da Dispersão? Um talento desenvolvido lá fora, onde a semente humana original não pudera observar?
— De que modo modificou esse ghola? — indagou ela.
“A voz!”
Waff, prevenido contra tais habilidades por seu professor Mentat, quase balbuciou uma resposta. Essas Honradas Madres possuíam alguns poderes das bruxas! Era algo inesperado vindo da parte dela. Esperava-se tais coisas de uma Reverenda Madre, e se ficava preparado. Waff levou um momento para recuperar o equilíbrio, depois levou as mãos ao queixo.
— A senhora possui recursos interessantes — disse ele.
Uma expressão de moleque surgiu no rosto de Waff. Sabia como podia parecer desarmante.
“Ataque!”
— Sabemos o quanto já aprenderam da Bene Gesserit — ele disse.
Uma expressão de raiva passou pelo rosto dela e se foi.
— Elas não nos ensinaram nada!
Waff modulou a voz para um tom bem-humorado, lisonjeador.
— Certamente isto não é negociar.
— Não?
Ela parecia genuinamente surpresa.
Waff abaixou as mãos.
— Vamos, Honrada Madre, admita que está interessada nesse ghola. Fala em coisas de Rakis. Por que nos toma?
— Por muito pouco. Vocês se tornam menos úteis a cada instante.
Waff sentiu uma fria e mecânica lógica na resposta dela. Nada havia de Mentat ali, mas alguma coisa mais terrível. “Ela é capaz de me matar aqui mesmo!”
Onde estariam as armas dela? Será que ela precisaria de armas? Ele não gostava da aparência daqueles músculos, dos calos nas mãos dela, do brilho predador em seus olhos alaranjados. Será que ela poderia prever (ou mesmo saber) dos lança-dardos que ele trazia?
— Somos confrontadas por um problema que não pode ser resolvido com a lógica — disse ela.
Waff olhou para ela chocado. Um Mestre Zensunni teria dito isso! Ele próprio o dissera em mais de uma ocasião.
— Você provavelmente nunca considerou tal possibilidade — ela disse.
Foi como se as palavras tivessem arrancado uma máscara do rosto dela. Waff subitamente pôde enxergar além, até a pessoa fria e calculista por trás daquelas posturas. Será que ela o tomava por algum ser inferior, adequado apenas para colher lixo nas ruas?
Tentando transparecer tanta admiração hesitante quanto podia, ele perguntou:
Como tal problema poderia ser resolvido?
— O curso natural dos acontecimentos vai fazê-lo desaparecer.
Waff continuou a olhar para ela em fingida incompreensão. As palavras dela não tinham qualquer tom de revelação. Ainda assim havia tanta coisa implícita! Ele disse:
— Suas palavras me deixam flutuando.
— A humanidade tornou-se infinita. Essa foi a verdadeira dádiva da Dispersão.
Waff lutou para esconder o torvelinho que tais palavras criavam.
— Infinitos universos, tempo infinito. Qualquer coisa pode acontecer — disse ele.
— Ah, você é um manikin muito brilhante — ela disse. — Como alguém pode levar em consideração possibilidades infinitas? Isso não é lógico.
Ela parecia, pensou ele, um daqueles antigos líderes do Jihad Butleriano que tinham tentado livrar a humanidade das mentes mecânicas. Essa Honrada Madre estava curiosamente obsoleta.
— Nossos ancestrais buscaram uma resposta nos computadores — provocou ele.
“Vamos ver como ela reage a isso!”
— Você já sabe que os computadores carecem de uma capacidade infinita de armazenagem.
Novamente as palavras dela o desconcertaram. Será que ela podia realmente ler a mente? Seria uma forma de impressão cerebral? O que os Tleilaxu faziam com seus gholas e Dançarinos Faciais, outros poderiam fazer igualmente. Ele focalizou sua percepção e se concentrou nos ixianos e suas máquinas malignas. Máquinas powindah!
A Honrada Madre percorreu o aposento com o olhar.
— Estaremos enganadas em confiar nos ixianos? — perguntou ela. Waff prendeu a respiração.
— Não creio que confie neles verdadeiramente — ela comentou. — Vamos, homenzinho. Eu lhe ofereço minha boa vontade.
Tardiamente, Waff começou a suspeitar de que ela estava tentando ser sincera e amistosa com ele. Decerto já tinha colocado de lado toda aquela pose anterior de superioridade furiosa. Os informantes de Waff entre os Perdidos diziam que as Honradas Madres tomavam suas decisões de ordem sexual à maneira das Bene Gesserit. Será que ela estava tentando ser sedutora? Não obstante ela tinha “compreendido” claramente e apresentado as fraquezas da lógica.
Era tudo muito confuso!
— Nossa conversa está seguindo em círculos — ele disse.
— Muito pelo contrário. Círculos se fecham, abrangem, limitam. A humanidade não tem mais o seu crescimento limitado por questões de espaço.
Lá ia ela de novo! Ele falou com a língua seca:
— Costuma-se dizer que aquilo que não se pode controlar deve-se aceitar.
Ela inclinou-se para a frente, os olhos alaranjados atentos ao rosto dele.
— Você aceita a possibilidade de um desastre final para a Bene Tleilax?
— Se fosse esse o caso, não estaria aqui.
— Quando a lógica falha, outro instrumento deve ser usado.
Waff sorriu.
— Isso parece lógico.
— Não zombe de mim! Como se atreve!
Waff ergueu as mãos de modo defensivo e assumiu um tom de voz tranqüilizador.
— Que ferramenta sugere a Honrada Madre?
— Energia!
A resposta dela o surpreendeu.
— Energia? De que forma e quanta?
— Você pede respostas lógicas.
Com um sentimento de desapontamento e tristeza, Waff compreendeu que ela não era, afinal de contas, uma Zensunni. A Honrada Madre só fazia jogos com palavras nas fronteiras da ilogicidade, circundando-a. Sua ferramenta ainda era a lógica.
— A podridão do centro espalha-se para fora — disse ele.
Era como se ela não tivesse ouvido sua declaração de teste.
— Existe energia não-utilizada nas profundezas de qualquer ser humano que nos dignanos a tocar — ela disse, estendendo um dedo magro até a distância de alguns milímetros do nariz dele.
Waff recuou em sua cadeira até ela abaixar o braço e comentou:
— Não foi o que as Bene Gesserit disseram antes de criar seu Kwisatz Haderach?
— Elas perderam o controle sobre si mesmas e, desse modo, sobre ele — zombou a Honrada Madre.
Novamente Waff achou que ela usava lógica ao analisar o não-lógico. O quanto lhe tinha revelado nesses pequenos lapsos... Ele já podia vislumbrar a provável história dessas Honradas Madres. Uma das Reverendas Madres verdadeiras, dos Fremen do Rakis, participara da Dispersão. Diversas pessoas tinham fugido nas não-naves durante e imediatamente após os Tempos da Fome. Uma não-nave havia semeado algum lugar, deixando lá a bruxa selvagem e seus conceitos. Essa semente agora retornava na forma dessa caçadora de olhos cor de laranja.
Uma vez mais ela o golpeou com a Voz, exigindo:
— Que foi que fizeram naquele ghola?
Dessa vez Waff estava preparado e repeliu o golpe sem dificuldades. Essa Honrada Madre teria que ser desviada ou, se possível, exterminada. Ele tinha aprendido muito com ela, mas não haveria maneira de se avaliar o quanto ela aprendera com ele a partir de suas habilidades insondáveis.
“Elas são monstros sexuais”, seus informantes lhe tinham dito. “Escravizam os homens pelos poderes do sexo.”
— Quão pouco você sabe a respeito dos prazeres que eu lhe poderia proporcionar — disse ela, a voz golpeando como um chicote em torno de si.
Quão tentadora! Quão sedutora!
Waff respondeu na defensiva:
— Diga-me por que.
— Eu não preciso lhe dizer nada!
— Então não veio aqui para fazer um acordo — disse ele, tristonho.
As não-naves tinham de fato semeado outros universos com a podridão. Waff sentia o peso da necessidade sobre seus ombros. E se não pudesse matá-la?
— Como se atreve a sugerir um acordo com uma Honrada Madre? Saiba que nós fazemos o preço!”
— Não conheço seus costumes, Honrada Madre. Mas sinto em suas palavras que a ofendi.
— Desculpa aceita.
“Eu não pensei em me desculpar!” Olhou para ela sem emoção. Muitas coisas podiam ser deduzidas a partir do seu comportamento. À luz de suas experiências milenares, Waff examinou o que tinha aprendido ali. Essa mulher da Dispersão viera em busca de uma informação essencial. Portanto, não tinha outra fonte de informação. Sentia o desespero da parte dela, bem disfarçado mas inconfundível. Ela precisava confirmar ou desmentir alguma coisa que temia.
Como se parecia com uma ave de rapina, pousada ali com as garras assentadas levemente sobre os braços da cadeira! “A podridão do centro se espalha para fora.” Tinha dito isso e ela não ouvira. Era evidente que a humanidade atomizada continuava a se expandir em sua Dispersão das Dispersões. As pessoas representadas por essa Honrada Madre não tinham encontrado nenhum modo de rastrear as não-naves. Era isso sem dúvida. Ela caçava as não-naves do mesmo modo como as bruxas da Bene Gesserit o faziam.
— A senhora busca um modo de anular a invisibilidade das não-naves — ele disse.
A declaração obviamente a deixou abalada. Não tinha esperado isso desse “manikin” com jeito de duende, sentado ali diante dela. Waff viu o medo, depois a raiva e então uma decisão passar pelas feições dela antes de a máscara predadora assentar-se de novo. Ela sabia, entretanto, que ele tinha percebido.
— Então é isso que faz com o seu ghola?
— É o que as bruxas da Bene Gesserit buscam com ele — mentiu Waff.
— Eu o subestimei — ela disse. — Está cometendo o mesmo erro comigo?
— Eu não penso assim, Honrada Madre. O programa de procriação que a produziu é obviamente formidável. Acho que poderia me matar com um chute antes que eu piscasse um olho. As bruxas não se igualam à senhora.
Um sorriso de prazer suavizou-lhe as feições.
— Os Tleilaxu desejam ser nossos servos ou preferem ser forçados a isso?
Ele não tentou ocultar a indignação:
— Está nos oferecendo a escravidão?
— Essa é uma de suas opções.
Ele a tinha nas mãos agora! A arrogância era a fraqueza dela. De modo submisso, perguntou:
— Que me ordenaria fazer?
— Você vai levar como suas convidadas duas jovens Honradas Madres. Elas devem procriar com você e... lhe ensinar nossos métodos de êxtase.
Waff inspirou fundo e soltou lentamente a respiração.
— Você é estéril? — perguntou ela.
— Somente nossos Dançarinos Faciais o são.
Ela já devia saber disso, era conhecimento corrente.
— Você chama a si mesmo de Mestre e no entanto ainda não dominou a si próprio — disse ela.
“Mais do que você, cadela! E eu me chamo Masheikh, fato que ainda pode destruí-la.”
— As duas Honradas Madres que enviarei com você vão fazer uma inspeção de tudo o que for Tleilaxu e voltar para mim com um relatório.
Ele suspirou como se estivesse resignado.
— E são atraentes essas duas mulheres?
— Honradas Madres! — corrigiu ela.
— É esse o único nome que usam?
— Se elas lhe quiserem dar seus nomes, esse é um privilégio delas, não seu.
Ela se inclinou de lado e raspou no piso um nó de seus dedos ossudos. Um metal brilhou na mão dela. A mulher tinha um meio de penetrar no escudo do aposento!
A comporta de entrada se abriu e surgiram duas mulheres vestidas exatamente como essa Honrada Madre. Suas capas negras tinham menos enfeites e ambas eram bem jovens. Waff olhou para elas. Seriam ambas... Ele tentou não demonstrar satisfação, mas sabia que tinha fracassado. Não importava. A velha pensaria que ele admirava a beleza dessas duas, mas, por sinais evidentes somente a um Mestre Waff percebeu que uma das recém-chegadas era um Dançarino Facial do novo tipo. Fizera-se uma troca bem-sucedida e essa gente da Dispersão não pudera detectá-la! Os Tleilaxu tinham superado com sucesso um obstáculo! Seria a Bene Gesserit igualmente cega ante esses novos gholas?
— Você está sendo sensivelmente cooperativo neste aspecto, pelo que será bem recompensado — disse a velha Honrada Madre.
— Eu reconheço seus poderes, Honrada Madre — ele disse.
Era verdade, e Waff curvou a cabeça para ocultar a decisão que tinha tomado e que sabia iria transparecer em seus olhos.
Ela gesticulou para as recém-chegadas.
— Estas duas irão acompanhá-lo. O menor capricho da parte delas será uma ordem para você. Elas devem ser tratadas com todo o respeito e toda a honra.
— É claro, Honrada Madre.
Mantendo a cabeça baixa, ele ergueu ambos os braços como se fizesse uma saudação submissa. Os dardos sibilaram, partindo de cada uma das mangas. Enquanto soltava os dardos, Waff jogou-se de lado. O movimento quase não foi suficientemente rápido. O pé direito da velha Honrada Madre projetou-se para a frente, atingindo-o na coxa esquerda e o jogando para trás com a cadeira.
Foi o último ato da vida da Honrada Madre. O dardo da manga esquerda de Waff entrou pela boca aberta da mulher e se cravou no fundo de sua garganta. Ela morreu de boca aberta num paralisado espanto, o veneno narcótico cortando-lhe qualquer exclamação. O outro dardo atingiu a recém-chegada que não era Dançarino Facial, entrando em seu olho direito. Com um golpe na garganta, o Dançarino Facial evitou que ela emitisse qualquer grito de aviso.
Dois corpos tombaram sem vida.
Dolorosamente, Waff desembaraçou-se da cadeira e a colocou em pé enquanto se levantava. Sua coxa pulsava de dor. Uma fração de metro a mais e ela lhe teria partido o fêmur! Waff percebia que a reação dela não tinha sido controlada pelo sistema nervoso central. Como no caso de certos insetos, o ataque podia ser iniciado pelo sistema muscular necessário sem que a mente precisasse tomar uma decisão. Esse desenvolvimento teria que ser investigado.
O Dançarino Facial estava escutando o silêncio além da comporta aberta. Saiu de lado, permitindo que entrasse outro Dançarino Facial, este disfarçado de guarda ixiano.
Waff massageou a coxa ferida enquanto os Dançarmos Faciais despiam as duas mulheres mortas. O que tinha copiado o ixiano colocou a cabeça junto à da velha Honrada Madre. Tudo aconteceu muito rapidamente, e daí a pouco não havia mais guarda ixiano, apenas cópias fiéis da velha Honrada Madre e de sua jovem auxiliar. Mais um Dançarino Facial entrou e tomou a forma da segunda moça, morta no chão, e logo restavam apenas cinzas no lugar dos corpos. Uma nova Honrada Madre apanhou as cinzas com uma sacola e as escondeu embaixo do manto.
Waff fez um exame cuidadoso do aposento. As conseqüências de sua descoberta o deixavam trêmulo. Uma arrogância como a que fora vista ali só podia ser o resultado de poderes espantosos. Tais poderes deviam ser sondados. Ele deteve o Dançarino que copiara a velha.
— Você tomou a impressão dela?
— Sim, Mestre. Suas memórias despertas ainda estavam vivas quando eu a copiei.
— Transfira para ela.
Ele fez um gesto em direção à que tinha sido guarda ixiano. Ambas tocaram as testas por alguns segundos e se separaram.
— Está feito — disse a velha.
— Quantas cópias dessas Honradas Madres nós já fizemos?
— Quatro, Mestre.
— Nenhuma foi detectada?
— Nenhuma, Mestre.
— Estas quatro devem então retornar à pátria das Honradas Madres e aprender tudo que puderem a respeito delas. Uma das quatro deve retornar para nós com o conhecimento.
— Isso é impossível, Mestre.
— Impossível?
— Elas cortaram todas as ligações com suas origens. Esse é seu modo de ação, Mestre. Formaram uma nova célula, tendo se estabelecido em Gammu.
— Mas certamente poderíamos..
— Perdoe-me, Mestre, mas as coordenados da origem delas na Dispersão estavam contidas apenas nos instrumentos de uma não-nave, e foram apagadas.
— Seus rastros estão completamente apagados?
Havia desapontamento na voz dele.
— Completamente, Mestre.
“Desastre!” Ele foi forçado a dominar um pânico súbito.
— Elas não devem tomar conhecimento do que fizemos aqui — murmurou.
— Não saberão de nós, Mestre.
— Que talentos elas desenvolveram? Quais os seus poderes? Rápido!
— São os que se poderia esperar de uma Reverenda Madre da Bene Gesserit, mas sem as memórias da melange.
— Tem certeza?
— Não há sinal disso. Como sabe, Mestre, nós...
— Sim, sim, eu sei. — Fez sinal para que ela se calasse. — Mas a velha era tão arrogante, tão...
— Com seu perdão, Mestre, mas o tempo passa. Essas Honradas Madres aperfeiçoaram os prazeres do sexo muito além do que foi desenvolvido em qualquer outro grupo.
— Então é verdade o que disseram nossos informantes.
— Elas retornaram ao tântrico primitivo e desenvolveram seus próprios tipos de estimulação sexual, Mestre. Através disso elas obtêm a adoração de seus seguidores.
— Adoração. — Ele suspirou ante a palavra. — E elas são superiores às Reprodutoras da Bene Gesserit?
— As Honradas Madres acham que são, Mestre. Devemos demonstrar-lhe as...
— Não!
Waff abandonou sua máscara de duende ante essa descoberta e assumiu a expressão de um Mestre dominador. Os Dançarinos Faciais em forma feminina curvaram as cabeças em submissão. Uma expressão de júbilo tomou conta do rosto de Waff. Os Tleilaxu retornados da Dispersão lhe tinham feito um retrato fiel! Com uma simples impressão mental, ele tinha confirmado qual era a nova arma de sua gente!
— Quais são suas ordens, Mestre? — perguntou a velha.
Waff reassumiu a aparência de elfo.
— Nós vamos examinar essas questões somente depois de retornarmos ao núcleo Tleilaxu em Bandalong. Enquanto isso, até mesmo um Mestre não dá ordens a uma Honrada Madre. Vocês serão meus mestres até que estejamos longe de observadores.
— É claro, Mestre. Devemos agora transmitir suas ordens aos outros lá fora?
— Sim, e minhas ordens são as seguintes: esta não-nave jamais deverá retornar a Gammu. Deve desaparecer sem deixar traço, sem sobreviventes.
— Será feito, Mestre.
Como muitas outras atividades, a tecnologia faz com que os investidores procurem evitar os riscos. A incerteza é eliminada sempre que possível. O investimento de capital segue essa regra, já que as pessoas geralmente preferem aquilo que é previsível. Mas poucos reconhecem o quanto isso pode ser destrutivo, como impõe limites severos à variabilidade, tornando assim populações inteiras fatalmente vulneráveis aos modos chocantes com que o universo é capaz de atirar os dados.
— Julgamento de Ix, Arquivos da Bene Gesserit
Na manhã após o teste inicial no deserto, Sheeana acordou no complexo de instalações dos sacerdotes e encontrou sua cama cercada de gente vestida em mantos brancos.
“Sacerdotes e sacerdotisas!”
— Ela está acordada — disse uma sacerdotisa.
O medo atingiu Sheeana. Ela agarrou as roupas de cama, puxando-as para junto do queixo, enquanto olhava para aqueles rostos atentos. Será que iam abandoná-la novamente no deserto? Ela tinha dormido o sono da exaustão na cama mais macia, com os lençóis mais limpos que já experimentara em seus oito anos de vida, mas sabia também que tudo que os sacerdotes faziam podia ter duplo sentido. Não se podia confiar neles!
— Você dormiu bem?
Foi a sacerdotisa quem falou primeiro. Era uma mulher velha, de cabelos grisalhos, com o rosto emoldurado por um capuz branco com bordas roxas. Os velhos olhos eram úmidos mas alertas, de uma cor azul pálida. O nariz era um toco arrebitado, acima de uma boca estreita e um queixo pontudo.
— Você vai falar conosco? — insistiu a mulher. — Eu sou Cania, que a serviu durante a noite. Lembra-se? Eu a ajudei a se deitar.
Pelo menos o tom de voz era tranqüilizador. Sheeana sentou-se na cama e olhou melhor para essas pessoas. Elas estavam com medo! Uma criança do deserto tinha o olfato capaz de detectar os feromônios indicadores. Para Sheeana era uma observação simples e direta: aquele cheiro equivalia ao medo.
— Vocês pensaram em me ferir — ela disse. — Por que fizeram isso?
As pessoas em torno dela trocaram olhares de consternação.
O medo de Sheeana dissipou-se. Tinha sentido uma nova ordem das coisas e a prova por que passara no deserto, no dia anterior significava outras mudanças. lembrou-se de como fora subserviente a velha... Cania? Fora quase bajuladora na noite anterior. Com o tempo Sheeana aprenderia que qualquer pessoa que sobrevivesse à um teste de morte desenvolvia um novo equilíbrio emocional. O medo era transitório. A nova condição era interessante.
A voz de Cania tremeu quando ela respondeu:
— Na verdade, Filha de Deus, nós não pretendemos magoá-la.
Sheeana colocou as cobertas em seu colo.
— Meu nome é Sheeana. — Essas eram as boas maneiras do deserto. Cania já tinha dado o seu nome. — Quem são os outros?
— Eles serão mandados embora se não os quiser... Sheeana. — Cania indicou uma mulher de rosto alegre à sua esquerda, vestida num manto similar ao seu. — Todas exceto Alhosa, é claro. Ela é a sua serva do dia.
Alhosa fez uma mesura ante a apresentação.
Sheeana olhou para um rosto gordo com a abundância de água, feições envoltas numa nuvem de cabelo louro e fofo. Mudando sua atenção abruptamente, ela olhou para os homens do grupo. Eles a observavam atentos, alguns com expressões de trêmula suspeita. O cheiro do medo era muito forte.
“Sacerdotes!”
— Mande-os embora — indicou Sheeana, apontando para os sacerdotes. — Eles são haram!
Esse era um palavrão, o pior termo para tudo que fosse ruim.
Os sacerdotes recuaram, chocados.
— Vão embora! — ordenou Cania.
A expressão cruel no rosto dela não deixava dúvidas. Cania não fora incluída entre os vis, enquanto esses sacerdotes se destacavam claramente entre os abrangidos pelo rótulo de haram! Certamente eles haviam feito alguma coisa terrível para que Deus enviasse essa sacerdotisa-menina a fim de castigá-los. Cania acreditava nisso com facilidade, já que os sacerdotes raramente a tinham tratado do modo que ela julgava merecer.
Como cães enxotados, os sacerdotes curvaram-se e saíram da câmara de Sheeana. Entre os que saíram para o corredor estava um locutor-historiador chamado Dromind, homem moreno com uma mente ativa que tinha a tendência a agarrar idéias do medo como o bico de um pássaro carniceiro apanha um pedaço de carne. Quando a porta do quarto se fechou atrás deles, Dromind revelou aos trêmulos companheiros que Sheeana era a forma moderna de um nome ancestral: Siona.
— Vocês conhecem o lugar de Siona nas histórias — ele disse. — Ela serviu o Shai-hulud em Sua transformação da forma humana para a de Deus dividido.
Stiros, o velho sacerdote enrugado, com lábios escuros e olhos pálidos e brilhantes, olhou admirado para Dromind:
— Isso é extremamente curioso — disse Stiros. — As Histórias Orais afirmam que Siona foi fundamental em Sua translação do Um para o Muitos. Sheeana. Você não acha que..
— Não nos esqueçamos da tradução de Hadi Benotto das sagradas palavras de Deus — interrompeu outro sacerdote — O Shai-hulud referiu-se muitas vezes a Siona.
— Nem sempre favoravelmente — lembrou Stiros. — lembre-se do nome completo dela: Siona Ibn Fuad al-Seyefa Atreides.
— Atreides — sussurrou outro sacerdote.
— Devemos estudá-la cuidadosamente — recomendou Dromind.
Um jovem mensageiro-acólito entrou correndo pelo corredor até encontrar o grupo e localizar Stiros.
— Stiros — disse o mensageiro —, deve desimpedir esta passagem imediatamente.
— Por quê? — foi a indagação indignada do grupo de sacerdotes rejeitados.
— Ela vai ser transferida para os alojamentos do Alto Sacerdote — revelou o mensageiro.
— Por ordem de quem? — quis saber Stiros.
— Do Alto Sacerdote Tuek em pessoa. Eles estiveram ouvindo.
O mensageiro indicou vagamente com a mão a direção de onde viera.
O grupo inteiro entendeu. Aposentos podiam ser construídos de modo a que as vozes soando em seu interior fossem transmitidas para outros lugares. E sempre havia alguém escutando.
— Que foi que eles ouviram? — quis saber Stiros.
Sua voz de ancião tremia.
— Ela perguntou se seus alojamentos eram os melhores. Eles estão a ponto de transferi-la e ela não deve encontrar nenhum de vocês aqui.
— Mas que devemos fazer? — perguntou Stiros?
— Estudá-la — disse Dromind.
O corredor foi esvaziado imediatamente e todos iniciaram o processo de estudar Sheeana. O padrão de trabalho nascido ali seria impresso em todas as suas vidas durante os anos subseqüentes. A rotina que tomou forma em torno de Sheeana produziu mudanças observadas nos lugares mais distantes da área sob a influência do credo do Deus Dividido. E apenas um verbo iniciara a mudança: estudem-na!
Como ela era ingênua, pensaram os sacerdotes. Como era curiosamente ingênua. Entretanto era capaz de ler e demonstrou um interesse intenso pelos Livros Sagrados que encontrou nos alojamentos de Tuek. Seus alojamentos agora.
Tudo uma questão de sacrifício sendo transmitido dos mais altos escalões para os mais baixos. Tuek mudou-se para o quarto de seu assistente-chefe e o processo de acomodação continuou para baixo. Os alfaiates esperaram a chegada de Sheeana e tomaram suas medidas cuidadosamente. O melhor traje-destilador foi produzido para ela pelos fabricantes. Ela recebeu roupas novas, nas cores sacerdotais branca e dourada, com bainhas roxas.
E as pessoas passaram a evitar o locutor-historiador Dromind. Ele assumira o hábito de expor aos seus companheiros a história da Siona original, como se isso revelasse alguma coisa importante a respeito da atual dona do antigo nome.
— Siona foi a mulher do Sagrado Duncan Idaho — lembrava Dromind a qualquer um que se mostrasse disposto a ouvir. — Os descendentes dela estão por toda parte.
— De fato? Perdoe-me, mas estou realmente com pressa.
A princípio Tuek era mais paciente com Dromind. A história era interessante e, suas lições, muito óbvias.
— Deus nos enviou uma nova Siona — disse Tuek. — Tudo isso deve estar claro.
Dromind foi embora e logo voltou com mais detalhes sobre o passado.
— Os registros de Dar-es-Balat assumem agora novo significado — disse Dromind para o Alto Sacerdote. — Não devemos fazer mais testes ou comparações com essa criança?
Dromind agarrara o Alto Sacerdote logo depois do café da manhã, os restos da refeição de Tuek ainda ocupavam a mesa junto da sacada. Através de uma janela aberta, podiam ouvir os preparativos no quarto de Sheeana.
Tuek colocou um dedo diante dos lábios num gesto de cautela e falou em voz baixa:
— A Sagrada Criança vai partir para o deserto por sua própria escolha. — Foi até o mapa na parede e indicou uma área a sudoeste de Keen. — Aparentemente, esta é a região que lhe interessa... ou, talvez eu deva dizer, que a chama.
— Disseram-me que ela usa os dicionários com freqüência — disse Dromind. — Certamente isso não pode ser uma...
— Ela está nos testando — respondeu Tuek. — Não se deixe enganar.
— Mas Lorde Tuek, ela faz as perguntas mais infantis a Cania e Alhosa.
— Está questionando meu julgamento, Dromind?
Um tanto tardiamente, Dromind percebeu que havia ultrapassado os limites. Resolveu ficar calado, mas sua expressão revelava que ainda havia muito por dizer.
— Deus enviou essa menina para ceifar o mal que penetrou nas fileiras dos consagrados — disse Tuek. — Vá embora! Reze e pergunte a si mesmo se o mal não se alojou dentro de você.
Quando Dromind saiu, Tuek chamou um auxiliar de confiança e perguntou:
— Onde está a Sagrada Criança?
— Ela foi para o deserto, Senhor, a fim de comungar com o seu Pai.
— Para sudoeste?
— Sim, Senhor.
— Dromind deve ser levado para o leste, para bem longe, e abandonado na areia. Plante vários batedores para ter certeza de que ele nunca mais volte.
— Dromind, Senhor?
— Dromind.
Muito depois de Dromind ter sido entregue à Boca de Deus, os sacerdotes continuaram a seguir sua sugestão original. Eles estudavam Sheeana.
E Sheeana também estudava.
Gradualmente, tão gradualmente que ela não seria capaz de identificar o ponto de transição, ela veio a reconhecer o poder que possuía sobre as pessoas à sua volta. No início parecia um jogo, um continuo Dia da Criança, com os adultos pulando para satisfazer cada desejo infantil. Agora parecia que nenhum desejo era impossível de contentar.
Ela pedia uma fruta rara para o lanche?
A fruta lhe era servida numa bandeja de ouro.
Ela via uma criança lá embaixo, nas ruas fervilhantes de gente, e queria brincar com ela?
A criança era trazida aos alojamentos de Sheeana no templo. Depois que passavam o choque e o medo, a criança podia até juntar-se a ela em alguma brincadeira, que sacerdotes e sacerdotisas observavam com toda a atenção. Brincar de correr no jardim do terraço, risinhos e cochichos, tudo era motivo de análise intensa. E Sheeana sentia como uma carga a admiração de tais crianças. Ela raramente chamava de volta a mesma criança, preferindo aprender coisas novas com novos amigos.
Os sacerdotes não chegaram a consenso quanto à inocência de tais encontros. As crianças que brincavam com Sheeana eram submetidas a um interrogatório assustador, até que Sheeana descobriu e ameaçou seus guardiães.
Inevitavelmente, os comentários a respeito dela transpiraram pelo planeta e para fora dele. Os relatórios acumularam-se na Irmandade. Os anos se passavam numa espécie de rotina autocrática subliminar — e a curiosidade de Sheeana era alimentada. Era uma curiosidade que parecia não ter limites. Nenhum de seus servidores mais próximos chegou a pensar nisso como uma educação: Sheeana ensinando o clero de Rakis e este a ensinando. A Bene Gesserit percebeu de imediato esse aspecto da vida de Sheeana e o observou com atenção.
— Ela está em boas mãos. Deixem que fique lá até estar pronta para nós — ordenou Taraza. — Mantenham uma força de defesa em alerta constante e cuidem para que eu receba relatórios regulares.
Nem uma só vez Sheeana revelou suas verdadeiras origens e o que Shaitan tinha feito a sua família e aos seus vizinhos. Essa era uma coisa particular entre ela e Shaitan. Ela pensava em seu silêncio como uma forma de pagamento por ter sido poupada.
Algumas coisas perderam o interesse para Sheeana. Ela passou a fazer poucas viagens ao deserto. A curiosidade continuava, mas se tornava óbvio que uma explicação para o comportamento de Shaitan com relação a ela não seria encontrada nas areias. E, embora ela tivesse conhecimento da existência de embaixadas representando outros poderes em Rakis, as espiãs Bene Gesserit entre suas criadas cuidavam para que Sheeana não expressasse muito interesse pela Irmandade. Respostas tranqüilizadoras, destinadas a abafar qualquer curiosidade, lhe eram fornecidas sempre que necessário.
A mensagem de Taraza a suas observadoras em Rakis foi simples e direta:
— As gerações de preparativos tornaram-se os anos de refinamento. Nós agiremos apenas no momento que for mais adequado. Não há mais qualquer dúvida de que essa criança é a que desejamos.
Em minha estimativa, mais miséria humana foi provocada pelos reformadores do que por qualquer outra força na história da humanidade. Mostrem-me alguém que diga “Alguma coisa tem que ser feita!” e eu lhes mostrarei uma cabeça cheia de intenções malignas que não possuem outra válvula de escape. O que devemos buscar sempre é encontrar o fluxo natural e seguir com ele.
— Reverenda Madre Taraza
Registro de conversação,
Arquivo BG GSXXMAT9
O céu encoberto foi clareando na medida em que o sol de Gammu subia no céu. Com a névoa se ergueram os perfumes do capim e da floresta ao redor, extraídos e condensados na umidade matutina.
Duncan Idaho encontrava-se na Janela Proibida, inalando esses perfumes. Nessa manhã, Patrin lhe dissera:
— Você tem 15 anos de idade agora. Pode considerar-se um homem jovem e não mais uma criança.
— É meu aniversário?
Os dois estavam no quarto de Duncan, onde Patrin o despertara com um copo de suco cítrico.
— Não sei quando é seu aniversário.
— Será que os gholas fazem aniversário?
Patrin ficou em silêncio. Era proibido falar de gholas com o ghola.
— Schwangyu diz que você não pode responder essa pergunta — comentou Duncan.
Patrin falou com embaraço evidente.
— O Bashar deseja que eu lhe diga que o seu treinamento será atrasado esta manhã. Ele espera que você faça os exercícios para as pernas e os joelhos até ser chamado.
— Eu fiz esses exercícios ontem!
— Apenas transmito as ordens do Bashar.
Patrin pegou o copo vazio e saiu, deixando Duncan sozinho.
Ele se vestiu rapidamente. Estariam esperando por ele para o café da manhã no refeitório. “Malditos!” Não precisava do café da manhã deles. Que estaria fazendo esse Bashar? Por que não podia começar as aulas em tempo? “Exercícios para as pernas e os joelhos!” Isso era só para preencher o tempo porque Teg tinha algum outro trabalho inesperado para fazer. Com raiva, Duncan percorreu o Caminho Proibido até a Janela Proibida. “Deixe que os malditos guardas sejam punidos!”
Achou que os odores vindos da janela aberta eram evocativos, mas não conseguia identificar as memórias que vagavam nas fronteiras da sua consciência. Sabia que haveria memórias. Achava isso assustador e ao mesmo tempo atraente — como caminhar ao longo da borda de um penhasco ou confrontar Schwangyu em desafio. Ele nunca tinha caminhado na beira de um abismo nem confrontado Schwangyu abertamente, mas podia imaginar tais coisas. Ver uma holofoto num livro-filme mostrando um caminho na beira de um abismo era suficiente para fazer o seu estômago contrair-se. E quanto a Schwangyu, ele freqüentemente imaginava uma desobediência malcriada e sofria da mesma reação física.
“Alguém mais está em minha mente”, pensou.
Não era só em sua mente — em seu corpo. Podia sentir outras experiências como aquelas de que acabara de despertar, sabendo que tinha sonhado com elas, mas incapaz de relembrar os sonhos. Esse material de sonhos evocava conhecimentos que sabia não poder possuir.
E no entanto possuía.
Podia pensar nos nomes de algumas árvores cujo perfume sentia lá fora, mas esses nomes não se encontravam nos registros da biblioteca.
Essa Janela Proibida era proibida porque perfurava a muralha externa do Castelo e podia ser aberta. Era aberta com freqüência, tal como acontecia agora, para ventilação. Podia alcançar a janela desde o seu quarto subindo o gradil da sacada e escorregando através de um duto de ar num depósito. Tinha aprendido a fazer isso sem causar a menor perturbação no gradil, no depósito ou no duto. Aprendera muito cedo que aqueles que tinham sido treinados pela Bene Gesserit podiam detectar sinais e indícios muito pequenos. Podia interpretar alguns desses sinais graças aos ensinamentos de Teg e de Lucila.
Oculto nas sombras da passagem superior, Duncan podia voltar seus olhos para o tapete verde da floresta ondulando sobre as colinas e subindo em direção aos picos rochosos. Achava a floresta muito atraente, e os picos mais distantes possuíam uma qualidade mágica. Era fácil imaginar que nenhum ser humano ainda pisara naquelas terras. Como seria bom perder-se ali, ser apenas ele mesmo, sem ter que se preocupar com aquela outra pessoa habitando dentro dele. Ser um estranho lá longe.
Com um suspiro, Duncan virou as costas para o panorama e voltou para o quarto percorrendo sua rota secreta. Somente quando se encontrava de volta, na segurança de seu quarto, pôde dizer a si mesmo que tinha conseguido uma vez mais. Ninguém seria punido por sua aventura.
As punições e a dor permaneciam como uma aura desagradável em torno dos lugares que lhe eram proibidos. Isso só fazia com que Duncan usasse de extrema cautela quando quebrava as regras.
Não gostava de pensar na dor que Schwangyu poderia causar-lhe se o descobrisse na Janela Proibida. Mesmo a pior dor não faria com que ele gritasse, pensava consigo mesmo. Nunca gritara, nem durante os piores castigos a que ela o submetera. Apenas olhava para ela, odiando-a mas absorvendo sua lição. Para ele a lição de Schwangyu era muito direta: refine sua habilidade de se mover sem ser visto nem ouvido, sem deixar a menor marca que traia a sua passagem.
Em seu quarto, Duncan sentou-se na beira do catre e contemplou a parede vazia diante dele. Uma vez, quando olhava para aquela parede, uma imagem se formara — a imagem de uma mulher jovem com cabelos cor de âmbar claro e suaves feições arredondadas. Ela olhou para ele da parede e sorriu. Seus lábios moveram-se sem produzir um som. Duncan já tinha aprendido a leitura labial, de modo que pôde entender as palavras claramente.
— Duncan, meu doce Duncan.
Seria aquela a sua mãe?, perguntou a si mesmo. Sua verdadeira mãe?
Até mesmo os gholas tinham mães verdadeiras em algum ponto do passado remoto. Perdida no tempo, além dos tanques axlotl, existira uma mulher viva que o dera à luz... e que o amara. Sim, amara, pois ele fora o seu filho. Se o rosto na parede era o de sua mãe, como é que a imagem tinha chegado até ali? Não conseguia identificar o rosto, mas queria que fosse o de sua mãe.
A experiência o assustou, mas o medo não o impediu de querer repeti-la. Quem quer que fosse a jovem, sua presença passageira o tinha fascinado. O estranho dentro dele conhecia aquela jovem. Tinha certeza disso. Algumas vezes queria ser aquele estranho, ainda que por um instante — um instante suficientemente longo para aprisionar todas aquelas memórias ocultas — e no entanto temia esse desejo. Iria perder sua verdadeira identidade se o estranho penetrasse em sua consciência, pensava.
Isso seria como a morte?, perguntava a si mesmo.
Duncan tivera contato com a morte antes dos seis anos. Sua guarda tinha repelido intrusos e um dos guardas fora morto. Quatro intrusos tinham morrido também, e Duncan observara os cinco corpos serem trazidos para dentro do Castelo — músculos flácidos, braços pendendo. Alguma coisa essencial escapara deles. Nada permanecia para convocar memórias — próprias ou de um estranho.
Os cinco tinham sido levados para algum lugar bem dentro do Castelo. Ele ouviu um guarda dizer que os intrusos estavam cheios de “shere”. E esse foi seu primeiro contato com a idéia de uma Sonda Ixiana.
— Uma Sonda Ixiana pode vasculhar a mente até mesmo de uma pessoa morta — explicara Geasa. — Shere é uma droga que o protege da sonda. Suas células estarão totalmente mortas antes que passe o efeito da droga.
Ouvindo conversas, Duncan descobriu que os quatro intrusos estavam sendo sondados também de outros modos. Tais métodos não lhe foram explicados, mas Duncan suspeitava de que isso devia ser algum segredo da Bene Gesserit. Pensou nisso como algum truque diabólico das Reverendas Madres. Elas deviam ser capazes de animar os mortos e extrair informações da carne relutante. Duncan visualizou músculos despersonalizados agindo sob o comando de um observador diabólico.
E esse observador era sempre Schwangyu.
Tais imagens preenchiam a mente de Duncan, a despeito de todos os esforços de suas mestras para afastar “as tolices inventadas pelos ignorantes”. As professoras diziam que tais histórias extravagantes eram úteis apenas para espalhar o medo da Bene Gesserit entre os não iniciados. Duncan recusava-se a acreditar que fazia parte dos iniciados. Olhando para a Reverenda Madre, sempre pensava: “Eu não pertenço a elas!”
Lucilla foi muito persistente mais tarde:
— A religião é uma fonte de energia — ela disse. — Você deve reconhecer essa energia. Ela pode ser dirigida para nossos próprios objetivos.
“Os objetivos delas, não os meus”, pensou ele.
Imaginava seus próprios objetivos e projetava imagens de si mesmo triunfando sobre a Irmandade, especialmente sobre Schwangyu. Duncan sentia que suas projeções imaginativas eram uma realidade subterrânea que agia sobre ele a partir daquele lugar habitado pelo estranho. Mas aprendeu a assentir e dar a aparência de que também achava divertida tal credulidade religiosa.
Lucila reconheceu essa dicotomia nele. Ela contou a Schwangyu!
— Ele crê que as forças místicas devem ser temidas e, se possível, evitadas. E enquanto persistir com essa crença não será capaz aprender a usar nosso conhecimento mais essencial.
As duas se haviam encontrado para aquilo que Schwangyu chamava de “sessão regular de avaliação”. A hora era pouco depois de seu leve jantar. Os sons do Castelo ao redor delas eram sons de transição — as patrulhas noturnas começando, o pessoal que não estava de serviço gozando um de seus breves períodos de tempo livre. O estúdio de Schwangyu não fora completamente isolado de tais coisas, uma disposição deliberada da parte das restauradoras da Irmandade. Os sentidos treinados de uma Reverenda Madre podiam detectar muitas coisas nos sons que a rodeavam.
Schwangyu sentia-se cada vez mais derrotada nessas “sessões de avaliação”. Era sempre mais óbvio que Lucilla não poderia ser conquistada por aquelas que se opunham a Taraza. Lucila também era imune aos subterfúgios manipulatórios de uma Reverenda Madre. E, o que era pior que tudo, Lucilla e Teg estavam ensinando habilidades voláteis ao ghola. Habilidades perigosas ao extremo. E, somando-se a todos os seus outros problemas, Schwangyu estava adquirindo um respeito crescente por Lucilla.
— Ele acredita que usamos poderes ocultos na prática de nossas artes — disse Lucilla. — Como foi que ele chegou a essa idéia peculiar?
Schwangyu sentiu a desvantagem imposta por tal pergunta. Lucilla já sabia que isso fora feito para enfraquecer o ghola. Ela estava dizendo implicitamente: “A desobediência é um crime contra a nossa Irmandade!”
— Se ele deseja o nosso conhecimento, certamente vai obtê-lo de você — respondeu Schwangyu.
Não importava o quão perigoso isso fosse na visão de Schwangyu, certamente era verdade.
— Seu desejo de conhecimento é a minha alavanca — explicou Lucilla. — Ambas sabemos que isso não é o bastante.
Não havia censura no tom de voz de Lucilla, mas Schwangyu sentiu isso.
“Maldita! Está tentando conquistar-me!”, pensou Schwangyu.
Várias respostas entraram na mente de Schwangyu: “Não desobedeci minhas ordens. Droga!” Uma resposta desprezível! “O ghola tem sido tratado de acordo com as práticas de treinamento-padrão da Bene Gesserit.” Inadequado e falso. Esse ghola não era um objeto-padrão de treinamento. Havia profundidades nele que só poderiam ser igualadas por uma Reverenda Madre em potencial. E esse era o problema!
— Cometi erros — admitiu Schwangyu.
“Aí está!” Uma resposta de duplo sentido que outra Reverenda Madre poderia apreciar.
— Não cometeu erro algum quando o danificou — disse Lucilla.
— Mas errei ao não prever que outra Reverenda Madre pudesse expor as falhas nele existentes — disse Schwangyu.
— Ele deseja os nossos poderes apenas para escapar de nós — comentou Lucilla. — Ele está pensando: “Algum dia vou saber tanto quanto elas e nesse dia fugirei.”
Como Schwangyu não respondesse, Lucilla acrescentou:
— Isso foi muito hábil. Se ele fugir, teremos que caçá-lo e destruí-lo nós mesmas.
Schwangyu sorriu.
— Não cometerei o seu erro — continuou Lucilla. — Digo-lhe abertamente aquilo que sei que vai perceber de qualquer modo. Agora entendo por que Taraza enviou uma Impressora para alguém tão jovem.
O sorriso de Schwangyu desapareceu.
— Que está fazendo?
— Eu o estou prendendo a mim do modo como prendemos todas as nossas acólitas às suas mestras. Eu o estou tratando com candura e lealdade, como se fosse uma de nós.
— Mas ele é homem!
— Assim a agonia da especiaria lhe será negada, mas nada além disso. Acho que ele está respondendo.
— E quando chegar a ocasião para o estágio final da impressão? — perguntou Schwangyu.
— Sim, isso também será delicado. Você pensa que vai destruí-lo. Este, é claro, era o seu plano.
— Lucilla, a Irmandade não é unânime em apoiar o projeto de Taraza para esse ghola. Certamente sabe disso.
Era o argumento mais poderoso de Schwangyu, e o fato de ter ficado reservado para esse momento revelava muito. Os temores de que pudessem produzir outro Kwisatz Haderach eram profundos e a dissensão na Bene Gesserit, comparavelmente poderosa.
— Ele é de um estoque genético primitivo e não foi criado para ser um Kwisatz Haderach — argumentou Lucilla.
— Mas os Tleilaxu interferiram em sua herança genética!
— Sim, por ordem nossa. Eles aceleraram suas respostas musculares e nervosas.
— Será que foi só isso? — perguntou Schwangyu.
— Você viu os estudos celulares — disse Lucilla.
— Se pudéssemos fazer o que fazem os Tleilaxu, não precisaríamos deles. Teríamos nossos tanques axlotl.
— Acha que eles esconderam alguma coisa de nós?
— Eles o tiveram fora de nossa observação durante nove meses!
— Já ouvi todos esses argumentos — concluiu Lucilla.
Schwangyu ergueu as mãos num gesto de capitulação.
— Ele é todo seu, então, Reverenda Madre. E as conseqüências são do seu conhecimento. Mas não me vai retirar este posto, não importa o que relate à Irmandade.
— Retirar? Certamente que não. Não quero a sua facção enviando alguém que desconhecemos.
— Existe um limite aos insultos que aceitarei de você — advertiu Schwangyu.
— E existe um limite ao volume de traição que Taraza pode aceitar — respondeu Lucilla.
— Se criarmos outro Paul Atreides, ou, que os Deuses nos livrem, outro Tirano, será culpa de Taraza. Diga-lhe que eu disse isso.
Lucilla levantou-se.
— Deve saber que Taraza deixou inteiramente por minha conta a quantidade de melange que entregamos a esse ghola. Já começei a aumentar sua ração de especiaria.
Schwangyu golpeou o tampo da mesa com ambos os punhos.
— Malditas sejam todas vocês! Ainda vão nos destruir!
O segredo dos Tleilaxu deve encontrar-se no esperma. Nossos testes provam que o esperma dos Tleilaxu não transporta informação de modo puramente genético. Ocorrem brechas. Cada Tleilaxu que examinamos escondeu de nós o seu eu interior. Eles são naturalmente imunes a uma Sonda Ixiana! O segredo nos níveis mais profundos — essa é sua derradeira armadura e sua arma final.
— Análise Bene Gesserit
Código de Arquivo:
BTXX44I WOR
Em uma manhã durante o quarto ano de permanência de Sheeana no santuário dos sacerdotes, os relatórios da espionagem Bene Gesserit despertaram um interesse especial na embaixada da Irmandade em Rakis.
— Ela estava no teto, você diz? — indagou a Madre Comandante do Castelo Rakiano.
Tamalane, a comandante, servira previamente em Gammu e sabia, mais do que ninguém, o que a Irmandade esperava produzir ali. O relatório de espionagem tinha interrompido seu lanche matinal, um composto de cifruta e melange. A mensageira ficou à vontade, ao lado da mesa, enquanto Tamalane voltava a se alimentar, relendo o relatório.
— Ela estava no teto, é verdade, Reverenda Madre — disse a mensageira.
Tamalane olhou para a mensageira, Kipuna, uma acólita nativa rakiana que estava sendo preparada para tarefas locais. Engolindo um bocado do composto, Tamalane disse:
“Traga-os de volta.” Foram exatamente essas as palavras dela?
Kipuna confirmou com um gesto de cabeça. Ela entendera a pergunta: Sheeana tinha dado uma ordem direta?
Tamalane voltou a esquadrinhar o relatório, buscando indícios reveladores. Estava feliz por ter enviado Kipuna para essa missão. Respeitava as habilidades dessa mulher rakiana. Kipuna tinha feições suaves e arredondadas e o cabelo crespo comum à classe de sacerdotes rakianos. O cérebro sob aquele cabelo era extremamente alerta.
— Sheeana ficou aborrecida — explicou Kipuna. — O tóptero passou perto do teto e ela viu os dois prisioneiros algemados lá dentro de modo muito claro. Sabia que estavam sendo levados para a morte no deserto.
Tamalane colocou o relatório sobre a mesa e sorriu.
— Então ordenou que os prisioneiros lhe fossem trazidos de volta? Acho fascinante a escolha das palavras que ela fez.
— Traga-os de volta? — perguntou Kipuna. — Isso me parece uma ordem bem simples. Por que é fascinante?
Tamalane admirou o modo direto do interesse da acólita. Kipuna não queria deixar passar uma chance de aprender como funcionava a mente de uma verdadeira Reverenda Madre.
— Não foi essa parte do desempenho dela que me interessou — explicou Tamalane. Ela se curvou sobre o relatório, lendo em voz alta: — “Vocês são servos de Shaitan, não servos dos servos.” — Tamalane olhou para Kipuna. — Você mesma viu e ouviu tudo isso?
— Sim, Reverenda Madre. E foi julgado importante que eu lhe relatasse isso pessoalmente para o caso de ter outras perguntas.
— Ela ainda o chama de Shaitan — comentou Tamalane. — Como isso deve irritá-los! É claro que o próprio Tirano disse: “Eles me chamarão de Shaitan.”
— Vi os relatórios sobe o tesouro encontrado em Dar-es-Balat — disse Kipuna.
— Não demoraram em trazer de volta os prisioneiros? — perguntou Tamalane.
— Demoraram o tempo necessário para a mensagem ser transmitida ao tóptero, Reverenda Madre. Eles foram trazidos de volta em coisa de minutos.
— Isso quer dizer que eles a estão observando e ouvindo o tempo todo. Ótimo. E Sheeana demonstrou algum sinal de conhecer os dois prisioneiros? Houve alguma mensagem entre eles?
— Tenho certeza de que eram perfeitos estranhos, Reverenda Madre. Duas pessoas comuns, das classes inferiores, um tanto sujas e mal vestidas. Tinham o cheiro da gente suja das choupanas do perímetro.
— E Sheeana ordenou que as algemas fossem removidas e falou com essa gente suja? Diga-me agora suas palavras exatas: que foi que ela falou?
— Vocês são do meu povo.
— Adorável, adorável — comentou Tamalane. — E Sheeana então mandou que banhassem os dois e lhes dessem roupas novas antes de serem soltos. Diga-me em suas próprias palavras o que aconteceu em seguida.
— Ela chamou Tuek, que veio com três de seus conselheiros. Foi... quase uma discussão.
— Transe de memória, por favor — pediu Tamalane — Repita a discussão inteira para mim.
Kipuna fechou os olhos, respirou fundo e entrou no transe de memória:
— Sheeana diz: “Não gosto quando alimentam Shaitan com o meu povo.” O Conselheiro Stiros diz: “Eles são sacrificados ao Shai-hulud!” Sheeana diz: “A Shaitan!” E bate com o pê no chão, furiosa. Tuek diz: “Basta, Stiros. Não vou continuar ouvindo esta discórdia.” Sheeana diz: “Quando vão aprender?” Stiros faz menção de dizer alguma coisa, mas Tuek o silencia com um olhar de fúria e diz: “Nós aprendemos, Sagrada Criança.” Então Sheeana diz: “Eu quero...”
— É o bastante — interrompeu Tamalane.
A acólita abriu os olhos e esperou em silêncio.
Daí a pouco Tamalane disse:
— Volte para o seu posto, Kipuna. Você agiu realmente muito bem.
— Obrigada, Reverenda Madre.
— Vai haver preocupação entre os sacerdotes — explicou Tamalane.
— O desejo de Sheeana é uma ordem porque Tuek acredita nela. Eles vão parar de usar os vermes como instrumentos de punição.
— E os dois prisioneiros... — observou Kipuna.
— Sim, você é muito observadora. Os dois prisioneiros vão contar o que lhes aconteceu. A história será distorcida. As pessoas vão dizer que Sheeana as protege dos sacerdotes.
— E não é exatamente isso que ela está fazendo, Reverenda Madre?
— Sim, mas considere as opções que ficam abertas aos sacerdotes. Eles irão aumentar suas formas alternativas de punição — açoites e certas privações. E enquanto o medo de Shaitan diminui por causa de Sheeana, o medo dos sacerdotes vai aumentar.
Em questão de dois meses os relatórios de Tamalane à Irmandade continham a confirmação de suas palavras.
— O racionamento de rações, principalmente o racionamento de água, tornou-se a principal forma de punição — relatou Tamalane. — Rumores extravagantes penetraram nos lugares mais remotos de Rakis e logo encontrarão abrigo em muitos outros planetas também.
Tamalane considerou com cuidado as implicações de seu relatório. Muitos olhos iriam vê-lo, inclusive aqueles que não simpatizavam com Taraza. E qualquer Reverenda Madre seria capaz de visualizar o que deveria estar acontecendo em Rakis. Muitos naquele planeta tinham visto a chegada de Sheeana montada num verme selvagem do deserto. E a tentativa dos sacerdotes de guardar segredo fora errada desde o começo. A curiosidade insatisfeita tende a criar suas próprias respostas. As suposições são freqüentemente mais perigosas que os fatos.
Relatórios anteriores tinham falado a respeito das crianças que eram trazidas para brincar com Sheeana. Histórias confusas sobre tais crianças eram repetidas com distorções crescentes, e tais versões tinham sido enviadas diligentemente para a Irmandade. Os dois prisioneiros, voltando às ruas com suas roupas finas, somente reforçaram a mitologia nascente. A Irmandade, artista em mitologia, possuía em Rakis uma energia pronta para ser sutilmente ampliada e dirigida.
— Nós alimentamos o povo com a crença na satisfação de um desejo — relatou Tamalane.
Pensou nas frases criadas pela Bene Gesserit enquanto relia seus últimos relatórios.
“Sheeana é aquela que esperávamos há tanto tempo.”
Era uma declaração suficientemente simples, de modo que seu significado pudesse ser espalhado sem distorções inaceitáveis.
“A Filha de Shai-hulud veio para castigar os sacerdotes!”
Essa fora um pouco mais complicada. Alguns sacerdotes morreram em vielas escuras como resultado da efervescência popular. Isso deixou alerta a guarda dos sacerdotes, fazendo com que injustiças previsíveis atingissem a população.
Tamalane pensou na delegação de sacerdotes que tinha esperado por Sheeana como resultado da agitação entre os conselheiros de Tuek. Sete deles, liderados por Stiros, tinham interrompido o almoço de Sheeana com uma criança da rua. Sabendo que isso ia acontecer, Tamalane estivera preparada e uma gravação secreta do incidente lhe fora trazida, as palavras audíveis, cada expressão visível, os pensamentos bem evidentes para o olho treinado de uma Reverenda Madre.
— Nós estávamos fazendo um sacrifício ao Shai-hulud! — protestou Stiros.
— Tuek já lhe disse para não discutir comigo a esse respeito — disse se Sheeana.
Como as sacerdotisas sorriram ante o embaraço de Stiros e dos outros sacerdotes!
— Mas o Shai-hulud... — começou Stiros.
— Shaitan! — corrigiu Sheeana, e sua expressão era facilmente interpretável: “Será que esses sacerdotes estúpidos não sabem nada?”
— Mas nós sempre pensamos...
— Vocês estavam errados.
Sheeana bateu com o pé.
Stiros fingiu que precisava de explicação.
— Devemos acreditar que o Shai-hulud, o Deus Dividido, também é Shaitan ?
Que tolo completo ele era, pensou Tamalane. Até uma adolescente podia confundi-lo, como Sheeana fez em seguida.
— Qualquer criança das ruas sabe disso assim que começa a andar! — disse Sheeana.
Stiros falou de modo matreiro:
— Como sabe o que se passa na cabeça das crianças da rua?
— Você faz mal duvidando de mim! — acusou Sheeana.
Era uma resposta que ela havia aprendido a usar com freqüência, sabendo que isso traria Tuek e causaria problemas.
Stiros sabia disso muito bem. Esperou com os olhos voltados para o chão, enquanto Sheeana, falando com grande paciência, como alguém que contasse uma velha fábula a uma criança, explicava que deus, o diabo ou ambos habitavam o verme do deserto. Os seres humanos tinham que aceitar isso. Não cabia aos mortais decidir tais coisas.
Stiros tinha mandado abandonar pessoas no deserto por semelhante heresia. Sua expressão (tão cuidadosamente registrada para análise pela Bene Gesserit) dizia que tais idéias loucas estavam sempre brotando do lixo no fundo das regiões inferiores de Rakis. Mas agora ele tinha que agüentar a insistência de Tuek de que esta Sheeana falava a verdade divina!
Enquanto observava a gravação, Tamalane pensou que o caldo estava fervendo lindamente. Relatou isso à Irmandade. Dúvidas fustigavam Stiros; dúvidas por toda parte, exceto na devoção crescente do povo por Sheeana. Os espiões mais próximos de Tuek revelavam que ele estava começando a duvidar de sua sabedoria ao executar o locutor-historiador Dromind.
— Dromind estaria certo em duvidar dela? — Tuek perguntava àqueles que o cercavam.
— Impossível! — respondiam os bajuladores. Que mais poderiam dizer? O Alto Sacerdote era incapaz de cometer erros. Deus não permitiria tal coisa. E no entanto Sheeana claramente o confundia. Ela colocava as decisões de muitos Altos Sacerdotes anteriores a ele num limbo terrível. Reinterpretações eram exigidas de todos os lados.
Stiros continuava perguntando a Tuek:
— Que é que sabemos realmente a respeito dela? — Tamalane tinha uma transcrição completa do mais recente desses confrontos. Stiros e Tuek sozinhos, debatendo noite adentro, julgando-se a sós nos alojamentos de Tuek, confortavelmente instalados nas raras cadeiras-cães azuis, alimentos com melange ao alcance da mão. A holofoto que Tamalane recebera de tal encontro mostrava um único globo luminoso flutuando em seus suspensores logo acima da dupla, a luz reduzida para não cansar os olhos fatigados.
— Talvez aquela primeira vez que a deixamos no deserto com um batedor não tenha sido um bom teste — dizia Stiros.
Era uma declaração astuta. Tuek era notado por não possuir uma mente complexa.
— Não foi um bom teste? Que está querendo dizer?
— Que Deus pode desejar que façamos outros testes.
— Você a viu, com os próprios olhos, muitas vezes no deserto, falando com Deus!
— Sim! — Stiros quase saltou. Evidentemente, essa era a resposta que estava esperando. Se ela pode permanecer ilesa na presença de Deus, talvez possa ensinar outros a fazerem o mesmo.
— Sabe que ela fica zangada sempre que sugerimos tal coisa.
— Talvez não tenhamos abordado o problema do modo certo.
— Stiros! E se a criança estiver certa? Nós servimos o Deus Dividido. Tenho pensado muito a respeito. Por que Deus se dividiria? Não é esse o seu teste final?
A expressão na face de Stiros revelava que esse era o tipo de ginástica mental que sua facção temia. Tentou desviar Tuek desse pensamento, mas Tuek não podia ser arrastado para fora de um mergulho unidirecional no oceano da metafísica.
— O teste derradeiro — insistiu Tuek. — Ver o bem no mal e o mal no bem.
A expressão de Stiros só podia ser descrita como consternada. Tuek era o Supremo Consagrado por Deus. Nenhum sacerdote podia duvidar do que ele dizia. E o resultado de Tuek, tornando público tal pensamento, causaria um abalo profundo nas fundações da autoridade sacerdotal! Obviamente, Stiros estava perguntando a si mesmo se não chegara a hora de mandar para o deserto esse Alto Sacerdote.
— Eu nunca pensaria poder debater idéias tão profundas com meu Alto Sacerdote — disse Stiros. — Mas talvez eu possa sugerir algo que resolveria muitas dúvidas.
— Sugira então — disse Tuek.
— Instrumentos sutis poderiam ser introduzidos nas roupas dela. Com eles poderíamos ouvir enquanto ela fala com.
— Acha que Deus não teria conhecimento do que fizéssemos?
— Tal pensamento nunca atravessou minha mente!
— Não vou ordenar que ela seja levada para o deserto.
— Mas e se for idéia dela ir? — Stiros assumiu sua expressão mais cativante. — Ela fez isso muitas vezes.
— Mas não recentemente. Parece ter perdido sua necessidade de consultar Deus.
— Não poderíamos sugerir isso a ela? — indagou Stiros.
— De que modo?
— Sheeana, quando vai falar novamente com seu Pai? Você não se coloca mais em Sua presença.
— Isso parece mais uma provocação do que uma sugestão.
— Estou apenas propondo que..
— Essa Sagrada Criança não é tola! Ela fala com Deus, Stiros. Deus poderia punir-nos apenas por tal presunção.
— Deus não a colocou aqui para que a estudássemos? — indagou Stiros.
Para o gosto de Tuek, isso estava muito próximo da heresia de Dromind. Olhou furioso para Stiros.
— O que eu quero dizer — continuou Stiros — é que certamente Deus deseja que aprendamos com ela.
O próprio Tuek dissera isso muitas vezes, nunca ouvindo em suas próprias palavras um curioso eco das palavras de Dromind.
— Ela não deve ser provocada nem testada — insistiu Tuek.
— Os céus o proíbem! — disse Stiros. — Eu serei a fonte da sagrada cautela. E tudo que eu aprender a respeito da Sagrada Criança lhe será relatado imediatamente.
Tuek meramente acenou com a cabeça. Ele tinha seus próprios modos de se certificar de que Stiros falava a verdade.
Os testes subseqüentes foram imediatamente relatados à Irmandade por Tamalane e suas subordinadas.
— Sheeana tem um olhar pensativo — relatou Tamalane. Entre as Reverendas Madres em Rakis e entre aquelas a quem elas informavam, esse olhar pensativo tinha uma interpretação muito óbvia. Os antecedentes de Sheeana tinham sido deduzidos muito tempo atrás e as intromissões de Stiros faziam a menina ficar com saudades de casa. Sheeana mantinha o silêncio com muita sabedoria, mas era evidente que estimava muito a vida que levara numa vila de pioneiros. A despeito do perigo e de todos os temores, aqueles tinham sido tempos felizes para ela. Lembrava-se do riso, de colocar bastões na areia para prever o tempo, caçar escorpiões nas fendas das cabanas ou farejar especiaria nas dunas. Pelas viagens seguidas que Sheeana fazia naquela área, a Irmandade fizera uma suposição razoavelmente precisa quanto à localização do vilarejo perdido e ao que lhe acontecera. Sheeana olhava com freqüência para um velho mapa de Tuek na parede de seu quarto.
E, como Tamalane esperava, certa manhã Sheeana apontou o dedo para uma posição no mapa da parede, o mesmo lugar aonde fora muitas vezes.
— Leve-me até este lugar — ordenou a suas criadas.
Um tóptero foi solicitado.
Enquanto os sacerdotes escutavam avidamente, num tóptero pairando muito alto, Sheeana confrontou uma vez mais seu inimigo na areia. Tamalane e suas assessoras, sintonizadas nos circuitos dos sacerdotes, observavam com igual interesse.
Nada que sugerisse mesmo remotamente um vilarejo permanecia na vastidão varrida pelas dunas onde Sheeana pediu para ser deixada. Dessa vez, entretanto, ela usou um batedor para chamar o verme. Outra das matreiras sugestões de Stiros, acompanhada de instruções cuidadosas sobre o modo antigo de convocar o Deus Dividido.
O verme veio.
Tamalane, que observava em seu próprio projetor, considerou o verme um monstro mediano. Seu comprimento foi estimado em aproximadamente 50 metros e Sheeana ficou a apenas três metros da boca aberta. O bafejar dos fogos interiores do verme era claramente audível aos observadores.
— Vai me contar por que fez aquilo? — perguntou Sheeana.
Ela nem estremecia diante do bafo quente do verme. A areia estalava embaixo do monstro, mas ela não dava qualquer sinal de estar ouvindo.
— Responda-me! — ordenou.
Nenhuma voz partiu do verme, mas Sheeana parecia estar ouvindo alguma coisa, a cabeça inclinada para um lado.
— Então volte para o lugar de onde veio — ela disse.
E acenou para que o verme fosse embora.
Obedientemente, o verme recuou e mergulhou na areia.
Durante dias, enquanto a Irmandade observava com satisfação, os sacerdotes debateram esse breve encontro. Sheeana não podia ser questionada a respeito, ou saberia ter sido espionada. E, como de hábito, ela se recusava a comentar suas visitas ao deserto.
Stiros continuou com suas astutas sondagens. O resultado foi exatamente aquele que a Irmandade esperava. Sem qualquer aviso, Sheeana acordava num determinado dia e dizia:
— Hoje eu irei ao deserto.
Algumas vezes ela usava um batedor, outras vezes dançava para chamar a criatura. De bem longe na areia, além do alcance da visão a partir de Keen ou qualquer outro lugar habitado, os vermes atendiam ao seu chamado. E Sheeana, sozinha diante de um verme, falava com ele enquanto outros ouviam. Tamalane achou fascinantes os registros acumulados, na medida em que passavam por suas mãos a caminho da sede da Irmandade.
— Eu devia odiá-lo!
Que rebuliço isso não causou entre os sacerdotes! Tuek queria um debate aberto: devemos odiar o Deus Dividido ao mesmo tempo em que O amamos?
Stiros mal conseguiu calar essa sugestão com o argumento de que os desejos de Deus ainda não estavam claros.
E Sheeana indagou a um de seus gigantescos visitantes:
— Vai me deixar cavalgá-lo novamente?
Quando ela se aproximou, o verme recuou e não permitiu que o montasse.
Em outra ocasião ela perguntou:
— Devo permanecer entre os sacerdotes?
Esse verme em particular mostrou-se o alvo de muitas perguntas, entre elas:
— Para onde vão as pessoas que você come?
— Por que as pessoas são falsas comigo?
— Devo punir os maus sacerdotes?
Tamalane riu diante dessa última pergunta, sabendo a agitação que ela causaria no meio do pessoal de Tuek. Suas espiãs relataram obedientemente o temor entre os sacerdotes.
— Como Ele responde a ela? — perguntou Tuek. — Alguém já ouviu Deus responder?
— Talvez ele fale diretamente à alma dela — arriscou um conselheiro.
Tuek aceitou de imediato a sugestão:
— É isso! Devemos perguntar a ela o que Deus lhe diz.
Sheeana recusou-se a participar de tais debates.
— Ela tem razoável consciência de seus poderes — relatou Tamalane. — Não está incursionando no deserto com muita freqüência agora, a despeito das sugestões de Stiros. Como era de se esperar, a atração diminuiu. O medo e o entusiasmo não podem levá-la muito além. Ela aprendeu, entretanto, a dar uma ordem efetiva:
— Vá embora!
A Irmandade marcou isso como um progresso importante. E quando até mesmo o Deus Dividido passou a obedecer, nenhum sacerdote ou sacerdotisa era mais capaz de questionar a autoridade de Sheeana nesse aspecto.
— Os sacerdotes estão construindo torres no deserto — relatou Tamalane. — Eles querem ter um número maior de locais de onde possam observar Sheeana em suas saídas para o deserto.
A Irmandade tinha antecipado isso e até fizera algumas sugestões veladas para acelerar o projeto. Cada torre tinha a própria armadilha de vento, a própria equipe de manutenção, jardins, barreira de água e outros elementos da civilização. Cada uma representava uma pequena comunidade expandindo-se além das áreas povoadas de Rakis, bem dentro do domínio dos vermes.
As vilas de pioneiros não eram mais necessárias e Sheeana recebeu o crédito por esse desenvolvimento.
— Ela é nossa sacerdotisa — dizia a população.
Tuek e seus conselheiros continuavam presos ao paradoxo: Shaitan e Shai-hulud em um só corpo? Stiros vivia sob o constante temor de que Tuek anunciasse esse fato. Os assessores de Stiros rejeitaram categoricamente a sugestão de que Tuek fosse entregue aos vermes. Outra sugestão, de que Sacerdotisa Sheeana devia sofrer um acidente fatal, foi recebida por todos com horror, e até mesmo Stiros achou muito grande a ousadia.
— Mesmo que removêssemos esse espinho, Deus poderia enviar-nos algo mais terrível — ele disse. E advertiu: — Os livros mais antigos dizem que uma criança vai nos guiar.
Stiros era o mais recente acréscimo ao grupo que olhava para Sheeana como alguém não inteiramente mortal. Era visível que aqueles que a cercavam, inclusive Cania, tinham aprendido a amar Sheeana. Ela era brilhante, sagaz, compreensiva.
E muitos repararam que esse afeto crescente com relação a Sheeana dominava até mesmo Tuek.
Para as pessoas tocadas por esse poder, a Irmandade tinha uma classificação imediata. A Bene Gesserit tinha um rótulo para este efeito ancestral: adoração crescente. Tamalane relatou mudanças profundas acontecendo em Rakis na medida em que as pessoas, por todo o planeta, começavam a orar a Sheeana em vez de ao Shai-hulud ou a Shaitan.
— Eles percebem que Sheeana intercede pelas pessoas mais humildes — relatou Tamalane. — É um padrão familiar. Tudo acontece como foi ordenado. Quando vai enviar o ghola?
A superfície externa de um balão é sempre maior que o centro da maldita coisa! Esse é todo o motivo por trás da Dispersão!
— Resposta da Bene Gesserit ante uma sugestão ixiana de que novas sondas investigadoras fossem enviadas para o meio dos Perdidos
Uma naveta rápida da Irmandade levou Miles Teg até o transporte da Corporação circulando acima de Gammu. Miles não gostava da idéia de ter que deixar o Castelo num momento como esse, mas as prioridades eram óbvias. Ele também tinha uma reação instintiva a essa aventura. Em seus três séculos de experiência, aprendera a confiar em suas reações instintivas. As coisas não andavam bem em Gammu. Cada patrulha, cada informação dos sensores remotos, os relatórios dos espiões de Patrin nas cidades — tudo alimentava a inquietação de Teg.
À maneira Mentat, ele sentia o movimento das forças em torno do Castelo e dentro de si. O ghola pelo qual era responsável estava ameaçado. A ordem para que fosse a bordo do Transporte da Corporação sugeria que se preparasse para violência. E no entanto vinha da parte da própria Taraza, com um inconfundível cripto-identificador.
Enquanto a naveta o levava para o alto, Teg se condicionava para a batalha. Os preparativos que poderia fazer tinham sido feitos. Lucilla fora avisada. Tinha confiança em relação a ela. Já Schwangyu era diferente. Pretendia discutir com Taraza algumas mudanças que se faziam necessárias no Castelo Gammu. Antes tinha que vencer outra batalha. Não tinha a menor dúvida de que fosse entrar em combate.
Enquanto a naveta se posicionava para o acoplamento, Teg olhou por uma vigia e viu o gigantesco símbolo ixiano dentro do emblema da Corporação sobre o lado escurecido do Transporte. Essa era uma nave da Corporação convertida para navegar com um mecanismo ixiano substituindo o navegador tradicional. Haveria técnicos ixianos a bordo para a manutenção do equipamento. E um navegador genuíno estaria lá também. A Corporação nunca aprendera a confiar numa máquina, mesmo quando exibia esses transportes convertidos como um aviso aos Tleilaxu e aos Rakianos.
“Estão vendo? Não dependemos inteiramente da sua melange!”
Este era o aviso implícito no gigantesco símbolo de Ix no costado da nave.
Teg sentiu uma leve sacudidela quando as garras de atracação seguraram a naveta, e se acalmou respirando fundo. Sentia-se sempre do mesmo modo antes do combate: vazio de todos os falsos sonhos. Isso era uma falha. As conversações tinham fracassado e agora vinha a disputa de sangue... a menos que pudesse prevalecer de algum outro modo. Naquela época, o combate era raramente de grande porte, mas isso não impedia que a morte se fizesse presente. Isso representava um modo mais permanente de fracasso. “Se não somos capazes de acertar nossas diferenças pacificamente, somos menos humanos.”
Um comissário, com o sotaque inconfundível de Ix em sua voz, guiou Teg até o compartimento onde Taraza esperava por ele. E ao longo de todos os corredores e pneumotubos que o conduziam ao encontro de Taraza, Teg buscou os indícios que confirmassem a advertência secreta contida na mensagem da Madre Superiora. Tudo parecia calmo e costumeiro — inclusive a cortesia do comissário para com o Bashar.
— Fui um comandante Tireg em Andioyu — ele disse, citando o nome de uma das quase-batalhas que Teg vencera.
Chegaram diante de uma comporta oval na parede de um corredor comum. A comporta se abriu e Teg entrou numa sala confortável de paredes brancas, com cadeiras-fundas, mesas baixas e globos luminosos ajustados na faixa do amarelo. A comporta deslizou para dentro de seu selo de ar com uma pancada abafada atrás dele, deixando seu guia lá fora, no corredor.
Uma acólita Bene Gesserit abriu as rendas que ocultavam uma passagem à direita de Teg. Acenou com a cabeça para ele. Tinha sido visto e Taraza seria notificada.
Teg controlou um tremor nos músculos da barriga da perna.
“Violência?”
Não interpretara erroneamente o aviso secreto de Taraza. Teriam sido adequados seus preparativos? Havia uma cadeira à sua esquerda, uma mesa baixa diante dela e outra cadeira no lado oposto da mesa. Teg caminhou até esse lado do aposento e esperou com as costas voltadas para a parede. A poeira marrom de Gammu ainda aderia às suas botas, notou.
Havia um cheiro peculiar nessa sala. Ele avaliou e percebeu: shere!
Taraza e sua gente se teriam prevenido contra uma Sonda Ixiana? Teg tomara sua cápsula habitual de shere antes de embarcar na naveta. Havia em sua cabeça muito conhecimento que poderia ser útil a um inimigo. E o fato de Taraza ter deixado o cheiro de shere em seus alojamentos tinha outras implicações: era uma declaração para algum observador cuja presença ela não pudesse evitar.
Taraza entrou passando pelo rendado de cortinas. Teg achou que ela parecia cansada. Considerou isso extraordinário, pois as irmãs eram capazes de ocultar a fadiga até estarem quase no ponto de caírem. Estaria ela realmente esgotada ou seria esse outro gesto em beneficio de observadores ocultos?
Parando na entrada, Taraza observou Teg. O Bashar parecia muito mais velho do que na última vez em que o vira, pensou ela. Seu trabalho em Gammu estava tendo um efeito sobre ele, mas Taraza achou essa observação tranqüilizadora. Era sinal de que Teg estava fazendo bem o seu trabalho.
— Sua resposta rápida é muito apreciada, Miles — ela disse.
“Apreciada!” Essa era a palavra-código para: “Estamos sendo observados secretamente por um adversário perigoso.”
Teg fez sinal com a cabeça enquanto seu olhar se voltava para o cortinado por onde Taraza tinha entrado.
Ela sorriu e caminhou mais para dentro da sala. Não havia sinal do ciclo da melange em Teg, observou ela. A idade avançada de Teg sempre levantava a suspeita de que ele pudesse recorrer ao efeito da especiaria. Mas nada nele indicava o menor sinal do vício em que caíam até os mais fortes quando sentiam o fim se aproximando. Teg usava sua velha jaqueta do uniforme de Supremo Bashar, mas sem os asteriscos dourados nos ombros e no colarinho. Esse era um sinal que ela reconhecia. Dizia: “lembre-se de como conquistei isto a seu serviço. E desta vez também não falharei.”
Os olhos que a observavam estavam nivelados com os seus e nenhum indício de julgamento aparecia neles. Toda a aparência de Teg transmitia uma calma interior, tudo de acordo com o que ela sabia dever estar lhe ocorrendo nesse momento. Esperava seu sinal.
— Nosso ghola deve ser despertado na primeira oportunidade — ela disse. Ergueu a mão para silenciá-lo quando tentou responder. — Vi os relatórios de Lucilla e sei que ele ainda é muito jovem. Mas é preciso que entremos em ação.
Taraza falava para aqueles que estavam observando, ele percebeu. Devia acreditar em suas palavras?
— Agora lhe dou a ordem para despertá-lo — disse ela, enquanto flexionava o punho esquerdo num sinal confirmador de sua linguagem secreta.
Era verdade! Teg olhou para as cortinas que ocultavam as passagens por onde Taraza tinha entrado. Quem estaria ouvindo lá?
Colocou seus talentos de Mentat voltados para o problema. Faltavam alguns elementos, mas isso não o detinha. Um Mentat era capaz de trabalhar sem determinados dados, desde que possuísse o suficiente para criar um padrão. Era raro os Mentats possuírem todos os dados de que necessitavam, e algumas vezes bastava o mais leve esboço. Isso fornecia o padrão oculto a partir do qual eles poderiam encaixar as peças que faltavam para completar o todo. Teg fora treinado para sentir padrões, reconhecer unidades e sistemas. Lembrava-se agora de que fora treinado no derradeiro sentido militar: treina-se um recruta para treinar uma arma, para apontar a arma corretamente.
Taraza o estava apontando. E seu julgamento da situação foi confirmado.
— Serão feitas tentativas desesperadas de matar ou capturar o ghola antes que você possa despertá-lo — ela disse.
Teg reconheceu-lhe o tom de voz: a fria e analítica oferta de dados a um Mentat. Ela percebia que ele estava pensando como Mentat.
O padrão de busca Mentat desenrolou-se em sua mente. Em primeiro lugar havia o projeto da Irmandade para o ghola, o que lhe era na maior parte desconhecido, mas que girava de algum modo em torno da presença em Rakis de uma jovem que (assim diziam) podia controlar os vermes. Os gholas Idaho possuíam uma personalidade envolvente e algo mais que fizera com que o Tirano e os Tleilaxu os tivessem produzido incontáveis vezes. Duncans aos montes! Que serviços esse ghola podia realizar para que o Tirano não o deixasse ficar esquecido entre os mortos? E quanto aos Tleilaxu? Eles tinham decantado gholas Duncan Idaho a partir de seus tanques axlotl durante milênios, mesmo depois da morte do Tirano. Tinham vendido esse ghola para a Irmandade 12 vezes, e a Irmandade pagara na moeda mais valiosa: melange de suas preciosas reservas. Por que os Tleilaxu aceitariam como pagamento coisa que eles produziam com fartura? Era óbvio: para esgotar as reservas da Irmandade. Havia nisso uma forma especial de cobiça. Os Tleilaxu estavam comprando a supremacia — um jogo de poder!
Teg voltou sua atenção para a Madre Superiora, que aguardava calmamente.
— Os Tleilaxu têm matado nossos gholas para controlar nosso cronograma — disse ele.
Taraza fez sinal com a cabeça, mas não falou. Então ainda havia mais. Tornou a mergulhar no modo de pensamento Mentat.
A Bene Gesserit era um mercado valioso para a melange dos Tleilaxu. Não a única fonte, pois havia sempre um fio escorrendo de Rakis, mas era um mercado valioso, sim, muito valioso. Não era lógico que os Tleilaxu alienassem um mercado valioso, a menos que possuíssem outro ainda mais lucrativo em vista.
Quem mais se interessava pelas atividades da Bene Gesserit? Os ixianos, sem dúvida. Mas os ixianos não eram um bom mercado para melange. A própria presença ixiana nessa nave revelava sua independência. Desde que os ixianos e as Oradoras Peixes se tinham unido, aderindo a uma causa comum, as Oradoras podiam ser deixadas de fora desse padrão de busca.
Que maior poder ou união de poderes nesse universo possuía...
Teg gelou ante esse pensamento como se tivesse aplicado os freios de mergulho num tóptero. Deixou que sua mente flutuasse livre enquanto examinava as outras considerações.
“Não neste universo”
O padrão tomou forma. “Riqueza.” Gammu assumiu novo papel em suas computações Mentat. Gammu fora esgotado pelos Harkonnen, abandonado como um carcaça apodrecendo, até que os Danianos o haviam restaurado. Mas tinha havido um tempo em que até as esperanças em Gammu se tinham esgotado. E sem esperanças não havia nem mesmo sonhos. Erguendo-se desse abismo, a população aderira ao pragmatismo mais elementar. “Se funcionar, é bom.”
“Riqueza”
Em sua primeira avaliação de Gammu, ele tinha notado o número de bancos. Alguns eram mesmo marcados como cofres Bene Gesserit. Gammu servia de eixo para a manipulação de uma enorme riqueza. O banco que tinha visitado para estudar seu uso como contato de emergência entrou em sua consciência Mentat. Soubera de imediato que aquele estabelecimento não se restringia puramente aos negócios planetários. Era um banco para banqueiros.
“Não se tratava meramente de riqueza, mas de RIQUEZA.”
Um padrão primário de desenvolvimento não se formou na mente de Teg, mas ele já possuía o suficiente para uma projeção de teste. Riqueza de fora desse universo. Gente da Dispersão.
Todo esse exame Mentat levara apenas alguns segundos. Tendo alcançado uma proposição de teste, Teg relaxou os músculos e os nervos, uma só vez para Taraza e caminhou até a entrada oculta. Notou que Taraza não dera o menor sinal de ficar alarmada com seus movimentos. Abrindo bruscamente as cortinas, Teg confrontou um homem tão alto quanto ele mesmo: um homem vestido em estilo militar, com lanças cruzadas no emblema do colarinho. O rosto era pesado, os maxilares largos, os olhos verdes. Havia uma expressão de vigília surpreendida, uma das mãos acima de um bolso obviamente estufado com uma arma.
Teg sorriu para o homem e deixou as cortinas caírem em sua posição normal, voltando para junto de Taraza.
— Estamos sendo observados por gente da Dispersão — ele disse.
Taraza relaxou. O desempenho de Teg fora memorável.
As cortinas fizeram ruído, abrindo-se. O estranho alto entrou e parou a dois passos de Teg. Havia uma expressão de ódio frio fixa em suas feições.
— Eu lhe avisei para não dizer nada a ele!
A voz era um barítono áspero com um sotaque novo para Teg.
— E eu lhe avisei a respeito dos poderes deste Bashar Mentat — respondeu Taraza.
Uma expressão de desprezo passou rapidamente em suas feições.
O homem acalmou-se e uma sutil expressão de temor surgiu em seu rosto.
— Honrada Madre, eu...
— Não se atreva a me chamar disso!
O corpo de Taraza ficou tenso numa postura de combate que Teg nunca a tinha visto exibir.
O homem inclinou a cabeça levemente.
— Cara senhora, não está no controle da situação aqui. Devo lembrá-la de que minhas ordens.
Teg já tinha ouvido o bastante.
— Através de mim ela está no controle aqui — disse ele. — Antes de vir para cá, coloquei em ação certos procedimentos de proteção. Esta... — olhou em torno e voltou a atenção para o intruso, cujo rosto agora tinha uma expressão circunspecta — não é uma não-nave. E duas de nossas não-naves monitoras têm vocês na mira neste exato momento.
— Vocês não sobreviveriam — retrucou o homem.
Teg sorriu amigavelmente.
— Ninguém nesta nave sobreviveria. — Ele comprimiu o maxilar para disparar a minúscula chave de sinal nervoso, que ativou o cronômetro de pulsos dentro de seu crânio. Os sinais gráficos foram projetados em seus centros de visão. — E vocês não têm muito tempo para tomar uma decisão.
— Diga-lhe como tomou conhecimento disso — pediu Taraza.
— A Madre Superiora e eu temos nossos próprios meios particulares de comunicação — explicou Teg. — Além disso, não havia necessidade de ela me avisar. Seu chamado era o bastante. A Madre Superiora num Transporte da Corporação numa época como esta? Impossível!
— Impasse — rosnou o homem.
— Talvez — disse Teg. — Acho que nem Ix nem a Corporação se arriscariam a um ataque total por forças da Bene Gesserit sob o comando de um líder treinado por mim. Refiro-me ao Bashar Burzmali. Seu apoio acaba de se dissolver e desaparecer.
— Eu não lhe contei nada disso — explicou Taraza. — Acaba de testemunhar o desempenho de um Bashar Mentat que eu duvido possa ser igualado em seu universo. Pense nisso antes de considerar a possibilidade de enfrentar Burzmali, homem treinado por este Mentat.
O intruso olhou de Taraza para Teg e então de volta para Taraza.
— Esta é a saída do seu aparente impasse — disse Teg. — A Madre Superiora Taraza e seu séquito partem comigo. Você deve decidir rapidamente. O tempo está correndo.
— Está blefando — disse o homem, mas não havia força em suas palavras.
Teg voltou-se para Taraza e curvou a cabeça.
— Foi uma grande honra servi-la, Reverenda Madre Superiora. Eu lhe dou o meu adeus.
— Talvez a morte não nos separe — disse Taraza.
Era o tradicional adeus de uma Reverenda Madre a uma Irmã.
— Vão embora! — disse o homem de feições carregadas, enquanto corria para a comporta do corredor e a escancarava. O movimento revelou dois guardas ixianos com olhares de surpresa em seus rostos. Numa voz rouca, o homem ordenou: — levem-nos para a naveta.
Ainda calmo e relaxado, Teg disse:
— Chame sua gente, Reverenda Madre. — Para o homem de pé junto a porta ele disse: — Você dá muito valor à própria pele para ser um bom soldado. Ninguém entre minha gente teria cometido tal erro.
— Existem autênticas Honradas Madres a bordo desta nave — respondeu o homem. — Eu jurei protegê-las.
Teg sorriu e se voltou para o ponto onde Taraza reunira seu pessoal da sala adjacente: havia duas Reverendas Madres e quatro acólitas. Teg reconheceu uma das Reverendas Madres: Darwi Odrade. Ele a vira antes, mas apenas de longe. Mas o rosto oval e aqueles olhos adoráveis prendiam a atenção: tão parecida com Lucila.
— Temos tempo para apresentações? — perguntou Taraza.
— É claro, Madre Superiora.
Teg fez uma mesura e segurou a mão de cada uma das mulheres, enquanto Taraza fazia as apresentações.
Depois, enquanto saíam, Teg se voltou mais uma vez para o estranho uniformizado e disse:
— Devemos sempre manter a educação e as regras de polidez. Do contrário nos tornamos subumanos.
Somente quando já se encontravam dentro da naveta, com Taraza sentada ao lado dele e as acompanhantes por perto, foi que Teg fez a pergunta principal:
— Como foi que eles a capturaram?
A naveta mergulhava em direção ao planeta. A tela de visão diante de Teg mostrava a nave da Corporação, com a marca ixiana, obedecendo sua ordem de permanecer em órbita até que o grupo se encontrasse seguramente atrás das defesas planetárias.
Antes que Taraza respondesse, Odrade inclinou-se sobre o corredor que os separava e disse:
— Eu anulei as ordens do Bashar para que a nave da Corporação fosse destruída, Madre.
Teg virou a cabeça bruscamente e olhou furioso para Odrade.
— Mas eles mantiveram vocês cativas e... — Seu rosto ficou carregado. — Como sabia que eu..
— Miles!
A voz de Taraza carregava uma total reprovação. Ele sorriu magoado. Sim, ela o conhecia quase tanto quanto ele próprio... até melhor em certos aspectos.
— Eles não nos capturaram, Miles — explicou Taraza. — Nós nos deixamos capturar. Ostensivamente, eu estava escoltando Dar até Rakis. Nós deixamos nossa não-nave em uma Junção e pedimos pelo transporte mais rápido da Corporação. Todo o meu Conselho, inclusive Burzmali, concordou em que esses intrusos da Dispersão iriam tomar o Transporte e nos levar até você, tentando reunir todos os elementos do projeto ghola.
Teg estava abismado. O risco que tinham corrido!
— Nós sabíamos que você nos resgataria — disse Taraza. — Burzmali estava de prontidão para o caso de você falhar.
— Aquela nave da Corporação que a senhora poupou — disse Teg — vai pedir reforços e atacar nosso...
— Eles não vão atacar Gammu — respondeu Taraza. — Há muitas forças diferentes da Dispersão reunidas em Gammu. Eles não se atreveriam a eliminar tantos.
— Gostaria que estivesse tão certa disso quanto tenta aparentar.
— Pode ter certeza, Miles. Além disso, havia outras razões para não destruir a nave da Corporação. Ix e a Corporação foram apanhados tomando partido. Isso é mal para os negócios, e eles vão precisar de todos os negócios que puderem conseguir.
— A menos que possuam clientes mais importantes oferecendo lucros ainda maiores!
— Ah, Miles — disse ela numa voz pensativa. — O que nós, as Bene Gesserit de hoje em dia, fazemos é tentar conseguir um equilíbrio em todas essas questões, uma condição mais calma. Você sabe disso.
Teg achou a afirmação verdadeira, mas sua atenção ficou presa a um termo... de hoje em dia. As palavras tinham um sentido de resumo final. Antes que ele pudesse questionar, Taraza continuou:
— Gostaríamos de resolver as situações mais acaloradas longe do campo de batalha. Tenho que admitir que devemos agradecer ao Tirano por essa mudança de atitude. Não creio que algum dia tenha pensado em si próprio como um produto do condicionamento do Tirano, Miles, mas vocês é.
Teg aceitou isso sem comentários. Era um fator comum em todo o vasto panorama da sociedade humana. Nenhum Mentat podia escapar a esse dado.
— Foi essa qualidade sua que nos atraiu em primeiro lugar — continuou Taraza — Você pode ser terrivelmente frustrante às vezes, mas não o desejaríamos de outro modo.
Através de uma revelação sutil, contida nas maneiras e no tom de voz, Teg percebia que Taraza não estava falando unicamente para ele, mas também dirigia as palavras às suas acompanhantes.
— Tem idéia de o quanto é frustrante, Miles, ouvir você apresentar os dois lados de uma questão discutindo com igual força de argumentos? No entanto sua personalidade é uma arma poderosa. Como alguns de nossos inimigos ficaram aterrorizados ao descobrir você a enfrentá-los onde não tinham a menor suspeita de que fosse aparecer!
Teg permitiu-se um sorriso. Olhou para a mulher sentada no outro lado do corredor, separando as filas de poltronas. Por que Taraza estaria falando assim com o seu grupo? Darwi Odrade parecia estar repousando, a cabeça para trás, os olhos fechados. Algumas das outras conversavam entre si. Nada disso era conclusivo para Teg. Mesmo acólitas Bene Gesserit podiam acompanhar várias linhas de raciocínio ao mesmo tempo. Voltou a atenção para Taraza.
— Você realmente tem um tipo de empatia, sente as coisas do modo como o inimigo sente — disse Taraza. — É isso que eu quero dizer. E é claro que, quando assume essa postura mental, não existe inimigo para você.
— Sim, aí está!
— Não confunda minhas palavras, Miles. Nunca duvidamos da sua lealdade. Mas é estranha a maneira como nos faz ver coisas que não temos outra maneira de enxergar. Há ocasiões em que você é os nossos olhos.
Darwi Odrade, Teg percebia, tinha aberto os olhos e estava olhando para ele. Era uma mulher encantadora. Havia algo perturbador em sua aparência adorável. Como Lucilla, ela lhe recordava alguém de seu passado. Mas antes que Teg pudesse seguir esse pensamento Taraza disse:
— O ghola possui essa habilidade de equilíbrio entre forças opostas?
— Ele poderia ser um Mentat — disse Teg.
— Ele foi um Mentat em uma de suas encarnações, Miles.
— Realmente deseja que ele seja despertado ainda tão jovem?
— É necessário, Miles. Mortalmente necessário.
O fracasso da CHOAM? Muito simples: Eles ignoram o fato de que forças comerciais muito maiores aguardam na fronteira de suas atividades. Forças que poderiam engoli-los como uma caçamba engole o lixo. Essa é a verdadeira ameaça da Dispersão — para eles e para todos nós.
— Notas do Conselho da Bene Gesserit, Arquivos SXX9OCH
Odrade voltara apenas uma parte de sua consciência para a conversa entre Teg e Taraza. Essa naveta era das pequenas, a cabine de passageiros apertada. Ela usaria a resistência atmosférica para frear sua descida e Odrade se preparou para a turbulência. O piloto economizaria os Suspensores numa nave assim, poupando a energia.
Ela usava esse momentos, como usava todo o tempo que tinha agora, preparando-se para as necessidades prementes. O tempo se esgotava e um calendário especial lhe dirigia a vida. Tinha olhado para esse calendário antes de deixar a sede da Irmandade, impressionada, como sempre lhe acontecia, pela persistência do tempo e da linguagem a ele relacionada: segundos, minutos, horas, dias, semanas, meses, anos... Anos-Padrão, para ser mais precisa. Persistência era um termo inadequado para o fenômeno. Inviolabilidade seria melhor. Tradição. Nunca perturbe a tradição. Mantinha as comparações firmes em sua mente, o fluxo de tempo ancestral imposto a planetas que não se ajustavam ao primitivo relógio humano. Uma semana tem sete dias. Sete! Como esse número permanecia poderoso, místico. Estava lá, na Bíblia Universal Laranja: “O Senhor fez o mundo em seis dias e no sétimo dia descansou.”
“Ótimo para ele!”, pensou Odrade. “Todos nós devíamos descansar depois de grandes tarefas.”
Odrade virou a cabeça levemente e olhou para Teg do outro lado do corredor. Ele não tinha idéia de quantas memórias provocava em Odrade, o quanto ela se lembrava dele. Podia notar facilmente a maneira como os anos tinham marcado aquele rosto forte. Ensinar o ghola lhe esgotava as energias, ela podia notar. Aquela criança no Castelo Gammu devia ser como uma esponja, absorvendo tudo à sua volta.
“Miles Teg, será que você tem consciência de como nós o usamos?”, ela se perguntou.
Era um pensamento que a enfraquecia mas que ela permitiu permanecesse em sua consciência quase num sentimento de desafio. Como seria fácil amar aquele velho! Não como um parceiro de procriação, é claro... mas amá-lo, apesar disso. Podia sentir os laços que a puxavam para ele, reconhecendo-os com a agudeza de suas capacidades de Bene Gesserit. Amor, maldito amor, amor que enfraquece.
Odrade sentira a mesma coisa com relação ao primeiro homem que fora mandada seduzir. Uma sensação curiosa. Seus anos de condicionamento como Bene Gesserit a tinham tornado cautelosa a esse respeito. Nenhuma das inspetoras Bene Gesserit lhe havia permitido o luxo de uma paixão sem questionamentos, e com o tempo Odrade aprendera as razões desse cuidado. Não obstante, ali estava ela, enviada pelas Madres Procriadoras, com ordens para se aproximar de um indivíduo e deixar que ele a penetrasse. Todos os dados clínicos estavam lá, em sua consciência, e ela poderia medir a excitação sexual em seu parceiro ao mesmo tempo em que a permitia em si mesma. Afinal, tinha sido cuidadosamente preparada para esse papel pelos homens a serviço das Madres Procriadoras. Homens que elas selecionavam e condicionavam com primoroso cuidado para isso.
Odrade suspirou e olhou na direção oposta a Teg, fechando os olhos em recordações. Os Homens do Treinamento nunca deixavam que suas emoções refletissem uma união arrebatada com as alunas. Era uma lacuna necessária da educação sexual.
Pensou na primeira sedução que fora mandada realizar: estava totalmente despreparada para o êxtase mútuo de um orgasmo simultâneo, aquela fusão, aquele compartilhar tão velho quanto a própria humanidade... mais antigo ainda! E com poderes que poderiam facilmente sobrepujar a razão. O olhar no rosto do companheiro, o beijo suave, seu total abandono de toda a reserva autoprotetora, desguardado e supremamente vulnerável. Nenhum Homem do Treinamento jamais tinha feito isso! Desesperada, ela se agarrou às suas lições de Bene Gesserit. Através dessas lições pôde ver a essência daquele homem em seu rosto, sentindo aquela essência em suas fibras mais profundas. E por apenas um único instante se permitiu uma resposta equivalente, experimentando um novo ápice de êxtase que nenhum treinamento jamais sugerira que pudesse ser atingido. Naquele instante compreendeu o que tinha acontecido com Lady Jessica e com todas as outras Bene Gesserit que tinham fracassado.
Esse sentimento era o amor!
Sua força a assustou (como as Madres Procriadoras sabiam que assustaria) e ela se refugiou no cuidadoso condicionamento da Bene Gesserit, permitindo que uma máscara de prazer cobrisse a breve expressão natural que surgira em seu rosto, empregando carícias calculadas onde carícias espontâneas teriam sido mais fáceis (porém menos eficientes).
O homem respondeu como esperado, de modo estúpido. Isso a ajudou a pensar nele como uma pessoa estúpida.
Sua segunda sedução fora mais fácil. Mas ela ainda podia relembrar as feições do primeiro, fazendo isso às vezes com um calejado senso de admiração. Algumas vezes aquele rosto surgia em sua mente sem ser invocado, sem qualquer razão imediatamente identificável.
Com os outros homens com quem ela fora mandada procriar as marcas da memória eram diferentes. Ela tinha que sondar o passado para lembrar a aparência deles. O registro sensorial de tais experiências não tinha sido tão profundo. Não como no primeiro!
Era assim o poder perigoso do amor.
Vejam-se os problemas que essa força oculta tinha causado à Bene Gesserit através dos milênios. O amor de Lady Jessica pelo seu Duque fora apenas um exemplo entre incontáveis outros. O amor turvava a razão. Afastava as irmãs de seus deveres. Só poderia ser tolerado quando não causasse qualquer transtorno imediato ou evidente, ou onde pudesse servir aos propósitos maiores da Bene Gesserit. De outro modo, devia ser evitado.
E no entanto permanecia sempre como objeto de inquieta vigilância. Odrade abriu os olhos e tornou a olhar para Teg e Taraza. A Madre Superiora abordava um novo assunto. Como a voz de Taraza podia ser irritante às vezes! Odrade fechou novamente os olhos e ficou ouvindo a conversa, presa àquelas duas vozes por algum elo em sua consciência que não podia ser evitado.
— Muito poucas pessoas percebem o quanto a infra-estrutura de uma civilização consiste numa infra-estrutura de dependência — dizia Taraza. — Fizemos um bom estudo disso.
“O amor é uma infra-estrutura de dependência”, pensou Odrade. Por que Taraza tinha resolvido abordar esse assunto numa ocasião dessas? A Madre Superiora raramente fazia alguma coisa sem motivos muito profundos.
— Infra-estrutura de dependência é um termo que inclui todas as coisas necessárias para que uma população humana sobreviva em número fixo ou crescente — explicou Taraza.
— Melange? — perguntou Teg.
— É claro, mas a maioria das pessoas olha a especiaria e diz: “Como é formidável que possamos ter isto aqui para nos dar vidas mais longas do que as vividas por nossos ancestrais”
— Desde que possam pagar o preço.
A voz de Teg tinha uma ponta de sarcasmo, notou Odrade.
— Desde que não se permita que um único poder controle todo o mercado, existirá o bastante para a maioria das pessoas.
— Eu aprendi economia sentado no joelho de minha mãe — disse Teg. — Comida, água, ar respirável, espaço para se morar que não esteja contaminado por venenos... Existem muitos tipos de moedas, e o valor varia de acordo com a dependência.
Enquanto ouvia, Odrade quase acenou com a cabeça em concordância. A resposta dele seria a sua. “Não insista no óbvio, Taraza! Vá direto ao ponto”
— Quero que lembre muito claramente os ensinamentos de sua mãe — disse Taraza.
E como a sua voz se tornou gentil! A voz de Taraza mudou de tom abruptamente e de repente ela disse:
— Despotismo hidráulico!
“Ela faz a mudança de ênfase muito bem”, pensou Odrade. A memória derramou informações como uma torneira subitamente aberta a plena força. “Despotismo hidráulico: controle central de uma energia essencial, como por exemplo água, eletricidade, combustível, remédios, melange... Obedeça a esse poder controlador central ou a energia será desligada e você morrerá!”
Taraza estava falando novamente:
— Existe outro conceito útil que tenho certeza que a sua mãe lhe ensinou... o tronco-chave.
Odrade estava muito curiosa agora. Taraza estava se dirigindo a alguma revelação importante com essa conversa. “Tronco-chave”. Era um conceito verdadeiramente antigo, dos dias anteriores aos suspensores, quando os madeireiros lançavam a madeira cortada rio baixo até as serrarias centrais. Algumas vezes os troncos se prendiam uns sobre os outros num ponto estreito do rio e um especialista era chamado para descobrir qual tronco, o tronco-chave, soltaria o encalhe quando liberado. Teg, sabia ela, teria uma compreensão intelectual do termo, mas Odrade e Taraza podiam invocar memórias ancestrais de testemunhas e ver a explosão de lascas de madeira e água quando o encalhe era liberado.
— O Tirano era um tronco-chave — explicou Taraza. — Ele criou o encalhe, o engarrafamento, e ele o desfez.
A nave começou a estremecer em seu mergulho inicial na atmosfera de Gammu. Odrade sentiu o aperto de seu arnês de segurança por alguns segundos e então o vôo retornou à calma. A conversa se havia interrompido nesse momento. Taraza continuou:
— Além das chamadas dependências naturais, existem as psicológicas, criadas por algumas religiões. Até mesmo as necessidades físicas podem possuir um componente psicológico subjacente.
— Um fato que a Missionaria Protectiva entende muito bem — disse Teg.
Novamente Odrade notou um toque de profundo ressentimento na voz dele. Taraza certamente devia perceber também. Que estaria ela fazendo? Podia enfraquecer Teg!
— Aahh, sim — concordou Taraza. — Nossa Missionaria Protectiva. Os seres humanos possuem uma necessidade muito grande de que a sua estrutura de crenças seja a “verdadeira crença”. Se uma coisa lhes dá satisfação ou um sentimento de segurança e se pode ser incorporada à sua estrutura de crenças, que dependência poderosa isso não cria!
Novamente Taraza ficou em silêncio, enquanto a naveta passava através de outra turbulência atmosférica.
— Gostaria de que ele usasse os suspensores! — queixou-se Taraza.
— Está economizando combustível — lembrou Teg. — Menos dependência.
Taraza riu baixinho.
— Oh sim, Miles. Você sabe muito bem a lição. Percebo nisso a mão de sua mãe. Se a criança faz algo errado, a culpa é da mãe.
— A senhora me vê como criança?
— Vejo você como alguém que acaba de ter seu primeiro encontro com as maquinações das chamadas Honradas Madres.
“Então é isso”, pensou Odrade. Com um sentimento de choque, ela percebeu que Taraza dirigia suas palavras a um alvo muito mais amplo do que simplesmente Teg.
“Ela está falando para mim!”
— Essas Honradas Madres, como chamam a si mesmas, combinaram o êxtase sexual com a adoração. Duvido de que tenham calculado os perigos que isso implica.
Odrade abriu os olhos e fitou Taraza no outro lado do corredor, entre as poltronas. A atenção de Taraza estava fixa em Teg, uma expressão inescrutável em seu rosto, exceto pelos olhos que flamejavam a necessidade de que ele entendesse.
— Perigos — repetiu Taraza. — Uma grande massa da humanidade possui uma inconfundível identidade unitária. Ela pode ser uma coisa única. Pode agir como um único organismo.
— Assim falou o Tirano — retrucou Teg.
— Assim demonstrou o Tirano! A Alma Grupal foi sua para que a manipulasse. Existem ocasiões, Miles, em que as necessidades da sobrevivência exigem que comunguemos com essa alma. Almas, você sabe, estão sempre buscando uma válvula de escape.
— Será que a comunhão com as almas não saiu de moda em nossa época? — perguntou Teg.
Odrade não gostou do tom provocador em sua voz e notou que despertava uma irritação equivalente em Taraza.
— Você pensa que estou falando de modismos religiosos? — perguntou Taraza, sua voz aguda insistentemente ríspida. — Ambos sabemos que as religiões podem ser criadas! Estou falando dessas Honradas Madres, que imitam alguns de nossos costumes, mas não possuem a nossa percepção profunda. Elas se atrevem a se colocar no centro de uma adoração!
— Algo que a Bene Gesserit sempre evitou — reconheceu Teg. — Minha mãe dizia que adorados e adoradores estão unidos pela fé.
— E pela fé podem ser divididos!
Odrade notou que Teg mergulhara no modo Mentat de pensamento. Havia uma aparência desfocada nos olhos dele, mas as feições estavam tranqüilas. Agora percebia parte do que Taraza estava tentando fazer. “O Mentat cavalga à maneira romana, um pé em cada cavalo, cada pé apoiado em uma realidade diferente, enquanto o padrão de busca o lança para a frente. Ele deve cavalgar diferentes realidades com um único objetivo.”
Teg falou na voz meditativa de um Mentat, a voz sem qualquer sotaque:
— Forças divididas vão lutar pela supremacia.
Taraza soltou um suspiro de prazer quase sensual, no seu modo natural de expirar.
— Infra-estrutura de dependência — disse ela. — Essas mulheres da Dispersão são capazes de controlar forças divididas, todas as forças engajadas na busca da supremacia. Aquele oficial na nave da Corporação, quando falou em suas Honradas Madres, havia admiração e ódio em sua voz. Tenho certeza de que percebeu isso na voz dele, Miles. Sei como sua mãe o ensinou bem.
— Eu percebi.
Teg voltara sua atenção uma vez mais para Taraza, ouvindo cada palavra que ela dizia, exatamente como Odrade.
— Dependências — continuou Taraza. — Como elas podem ser simples e, ao mesmo tempo, complexas. Tome por exemplo a perda dos dentes.
— Perda dos dentes?
Teg foi sacudido para fora de sua trilha Mentat e Odrade, observando isso, percebeu que Taraza conseguira exatamente a reação que desejava. Ela estava conduzindo o seu Bashar Mentat com mão extremamente hábil.
“E eu devo ver isso e aprender”, pensou Odrade.
— Perda dos dentes — repetiu Taraza. — Um simples implante ao nascer evita esse problema para a maioria da humanidade. E ainda assim precisamos escovar os dentes e cuidar deles. E tão natural para nós que raramente pensamos a respeito. Os acessórios que usamos para isso são considerados elementos totalmente naturais de nosso ambiente. E no entanto esses utensílios, os materiais existentes neles, os instrutores na área de cuidados com os dentes, os monitores Suk, todos possuem relacionamentos interligados.
— Um Mentat não necessita que lhe expliquem sobre interdependências — disse Teg. Ainda havia curiosidade em sua voz, mas com um tom subjacente de ressentimento.
— Certo. Esse é o ambiente natural dos processos de pensamento Mentat.
— Então por que insiste nisso?
— Mentat, examine o que sabe a respeito dessas Honradas Madres e me diga: qual a fraqueza delas?
Teg falou sem hesitação:
— Elas só poderão sobreviver se continuarem a aumentar a dependência daqueles que as apoiam. É o beco sem saída do viciado.
— Precisamente. E qual é o perigo?
— Podem levar consigo boa parte da humanidade quando caírem.
— Esse foi o problema do Tirano, Miles. E tenho certeza de que ele tinha consciência disso. Agora preste atenção com muito cuidado. E você também, Dar. — Taraza olhou para o outro lado do corredor e encontrou o olhar de Odrade atento a ela. — Vocês dois me escutem. Nós da Bene Gesserit estamos liberando... elementos muito poderosos na corrente humana. Eles podem encalhar. Certamente vão causar danos. E nós...
Uma vez mais a naveta enfrentou uma área de forte turbulência. A conversa tornou-se impossível enquanto eles se agarravam aos assentos e ouviam o rugir e estalar à sua volta. Quando cessou essa interrupção, Taraza ergueu a voz:
— Se sobrevivermos a esta maldita máquina e descermos em Gammu, Miles, você deve reunir-se com Dar. Você viu o Manifesto Atreides. Ela vai lhe falar a respeito e prepará-lo. Isso é tudo.
Teg voltou-se e olhou para Odrade. Uma vez mais as feições dela estimulavam-lhe as memórias: uma semelhança extraordinária com Lucilla, mas havia algo mais. Ele colocou isso de lado. “O Manifesto Atreides?” Tinha lido, pois viera de Taraza com instruções para que o fizesse. “Preparar-me? Para quê?”
Odrade notou o olhar questionador no rosto de Teg. Agora entendia os motivos de Taraza. E as ordens da Madre Superiora assumiam novo significado, assim como as palavras do próprio Manifesto.
“Assim como o universo é criado pela participação da consciência, o ser humano presciente carrega essa faculdade criativa até seu extremo absoluto. Esse foi o poder profundamente mal-entendido do bastardo Atreides. O poder que ele transmitiu a seu filho, o Tirano.”
Odrade conhecia tais palavras com a intimidade do autor, mas agora elas voltavam em sua memória como se nunca as tivesse encontrado antes.
“Maldita seja, Tar!'; pensou Odrade. “E se você estiver errada?”
No nível do quantum nosso universo pode ser visualizado como um lugar indeterminado, estatisticamente previsível somente quando se empregam números suficientemente elevados. Entre este universo e um outro, relativamente previsível, onde a passagem de um único planeta pode ser cronometrada em picossegundos, outras forças entram em ação. E no universo intermediário, onde se passam nossas vidas diárias, aquilo em que você acredita torna-se a força dominante. Suas crenças dirigem o desdobramento dos eventos diários. Se um número suficiente de pessoas acredita em alguma coisa, essa coisa passa a existir. A estrutura da crença cria um filtro através do qual o caos se transforma em ordem.
— Análise do Tirano. O Arquivo de Taraza: Arquivos BG
Os pensamentos de Teg encontravam-se em agitação quando ele retornou a Gammu, vindo da nave da Corporação. Saltou da naveta na extremidade carbonizada do campo de pouso particular do Castelo e olhou à sua volta como se estivesse chegando àquele lugar pela primeira vez. Era quase meio-dia. Tão pouco tempo se passara e quanta coisa tinha mudado.
Até que ponto a Bene Gesserit iria ao transmitir sua lição essencial?, ele se perguntou. Taraza o arrancara de seus processos Mentat familiares. Sentia que todo o incidente a bordo da nave da Corporação fora encenado para seu beneficio. Ele tinha sido sacudido para fora de um curso previsível. Como Gammu lhe pareceu estranho enquanto ele atravessava a pista guardada em direção aos fossos de entrada.
Teg tinha estado em muitos planetas, aprendido seus costumes e a maneira como eles influenciavam seus habitantes. Alguns planetas possuíam um grande sol amarelo, que se mantinha próximo e conservava quentes todas as coisas vivas, evoluindo e crescendo. Já outros planetas tinha sóis pequenos, mortiços, que pareciam muito distantes num céu escurecido e cuja luz realizava muito pouco. É claro que existiam variações dentro e fora dessa faixa. Gammu era uma variante com sol amarelo-esverdeado, dia de 31:27 horas-padrão e Ano-Padrão de 2,6. Teg pensara já conhecer Gammu.
Quando os Harkonnen foram forçados a abandoná-lo, colonizadores deixados pela Dispersão vieram do grupo Daniano e deram ao planeta o nome de Halleck, o qual fora conservado no grande remapeamento. Os colonizadores eram conhecidos naqueles dias como Caladanianos, mas os milênios tendem a encurtar certos rótulos.
Teg parou na entrada dos revestimentos que conduziam dos subterrâneos do campo até embaixo do Castelo. Taraza e seu grupo ficaram atrás dele. Ele viu que Taraza estava falando com Odrade.
“O Manifesto Atreides”, pensou.
Mesmo em Gammu, poucos admitiam ter ancestrais Atreides ou Harkonnen, embora os genótipos fossem visíveis — especialmente o Atreides dominante: narizes longos e pontudos, testas elevadas, bocas sensuais. Freqüentemente os elementos se encontravam dispersos — a boca em um rosto, os olhos penetrantes em outro, além das incontáveis misturas. Algumas vezes, entretanto, uma pessoa trazia todos os elementos, e então se podia perceber o orgulho, a certeza interior:
“Eu sou um deles!”
Os nativos de Gammu reconheciam isso e abriam caminho para a pessoa, mas poucos chegavam a rotular essa característica.
Por baixo estava aquilo que os Harkonnen tinham deixado para trás linhas de parentesco que recuavam até os tempos ancestrais dos gregos, patames e mamelucos, sombras de uma história antiga da qual poucos, fora do círculo dos historiadores profissionais e daqueles treinados pela Bene Gesserit, poderiam até mesmo citar os nomes.
Taraza e seu grupo alcançaram Teg. Ele a ouviu dizer para Odrade:
— Você deve contar tudo a Miles.
Muito bem, ela lhe iria contar, pensou. Virou-se e liderou a caminhada, passando pela guarda interna e o longo corredor sob as casamatas que levava ao Castelo propriamente dito.
“Maldita Bene Gesserit!”, pensou. “Que estiveram realmente fazendo aqui em Gammu?”
Podia ver um bocado de sinais da Bene Gesserit nesse planeta, resultados do estímulo a uma reprodução humana controlada para fixar certas características desejáveis, evidentes, aqui e ali, nos olhos sedutores das mulheres.
Teg respondeu à saudação da capitã da guarda sem mudar de foco sua atenção. “Olhos sedutores, sim, isso mesmo.” Tinha notado isso desde sua chegada ao Castelo do ghola e especialmente durante sua primeira viagem de inspeção pelo planeta. Tinha visto a si mesmo em muitos rostos também, e se lembrara de uma coisa que Patrin havia mencionado muitas vezes.
— Você tem o olhar de Gammu, Bashar.
Olhos sedutores! Aquela capitã da guarda, lá atrás, os tinha também. Ela e Odrade e Lucilla eram semelhantes nesse pormenor. Poucas pessoas prestavam atenção à importância dos olhos em matéria de sedução, pensou. Fora preciso o controle genético da Bene Gesserit para chamar a atenção para esse aspecto. Seios grandes em uma mulher e quadris fortes em um homem (aquela aparência musculosa nas nádegas) eram elementos naturalmente importantes em relações sexuais. Mas sem os olhos o resto nada poderia fazer. Os olhos eram essenciais. A pessoa podia perder-se no tipo certo de olhar, tinha aprendido, sendo atraído por ele e ficando totalmente inconsciente do que lhe estava sendo feito até que o pênis estivesse firmemente encaixado na vagina.
Ele notara os olhos de Lucilla imediatamente após sua chegada a Gammu, e passara a ter cuidado. Não havia dúvidas quanto ao modo pelo qual a Irmandade usava os talentos dela!
E lá estava Lucilla, esperando por eles na câmara central de inspeção e descontaminação. Ela lhe deu o sinal com a mão de que tudo estava bem com o ghola. Teg relaxou e observou enquanto Lucilla e Odrade se confrontavam. As duas mulheres tinham feições extraordinariamente similares, a despeito da diferença de idade. Seus corpos eram diferentes, no entanto, Lucilla mais robusta em relação à forma delgada de Odrade.
A capitã da guarda de olhar sedutor chegou por trás de Teg e se curvou junto dele.
— Schwangyu acaba de saber quem o senhor trouxe — ela disse, indicando Taraza com a cabeça. — Ah, aí vem ela.
Schwangyu saiu do tubo-elevador e caminhou ao encontro de Taraza, concedendo apenas um olhar furioso a Teg.
“Taraza queria surpreendê-la”, pensou ele. “Todos sabemos porquê”
— Você não parece feliz em me ver — disse Taraza, falando com Schwangyu.
— Estou surpresa, Madre Superiora — respondeu Schwangyu. — Não tinha idéia de sua vinda.
Olhou uma vez mais para Teg, uma aparência de ódio em seus olhos.
Odrade e Lucilla interromperam o exame mútuo.
— Eu tinha ouvido a respeito, é claro — disse Odrade. — Mas é uma experiência ver a si própria no rosto de outra pessoa.
— Eu a avisei — disse Taraza.
— Quais são suas ordens, Madre Superiora? — perguntou Schwangyu.
Era o mais perto que ela podia chegar de indagar o motivo da vinda de Taraza.
— Gostaria de falar com Lucilla em particular — disse Taraza.
— Eu tenho alojamentos preparados para todas — disse Schwangyu.
— Não se incomode — disse Taraza. — Não vou ficar aqui. Miles já providenciou o meu transporte. O dever exige a minha presença no planeta da Irmandade. Lucilla e eu vamos conversar lá fora, no pátio. — Taraza tocou o rosto com um dedo. — Oh, e eu gostaria de observar o ghola sem ser vista durante alguns minutos. Tenho certeza de que Lucilla pode conseguir isso.
— Ele está recebendo muito bem o treinamento mais intenso — disse Lucilla, enquanto as duas caminhavam em direção ao tubo-elevador.
Teg voltou sua atenção para Odrade, notando, enquanto seu olhar passava pelo rosto de Schwangyu, a intensidade do ódio desta. Schwangyu não estava tentando esconder suas emoções.
Seria Lucilla uma irmã ou filha de Odrade?, perguntou-se Teg. Ocorreu-lhe subitamente que deveria haver um propósito da Bene Gesserit por trás da semelhança. Sim, é claro — Lucilla era uma Impressora!
Schwangyu dominou a raiva que sentia e olhou com curiosidade para Odrade.
— Eu estava a ponto de ir almoçar, Irmã — disse Schwangyu. — Gostaria de ir comigo?
— Preciso falar em particular com o Bashar — respondeu Odrade. — Se não há objeção, talvez pudéssemos permanecer aqui para a nossa conversa. Não devo ser vista pelo ghola.
Schwangyu olhou furiosa, sem tentar ocultar sua irritação com Odrade. Elas sabiam, lá no planeta da Irmandade, onde estavam as lealdades! Mas ninguém... ninguém iria removê-la desse posto de comando e observação. A oposição tinha seus direitos!
Seus pensamentos foram transparentes até para Teg. Ele notou a rigidez das costas de Schwangyu quando ela os deixou.
— É muito ruim quando Irmã se volta contra outra Irmã — comentou Odrade.
Teg fez um sinal com a mão para sua capitã da guarda, ordenando que ela evacuasse a área. “Sozinhos”, dissera Odrade. “É como vai ser.”
Para Odrade ele disse;
— Esta é uma de minhas áreas. Não há espiões ou outros meios de nos observarem aqui.
— Eu achei que não — disse Odrade.
— Nós possuímos um escritório ali. — Teg fez um sinal para a sua esquerda. — Há móveis e até cadeiras-cães, se preferir.
— Detesto quando elas tentam me acariciar — disse ela. — Podemos conversar aqui? — Colocou uma das mãos sob o braço de Teg. — Talvez pudéssemos caminhar um pouco. Fiquei tanto tempo sentada naquela naveta que sinto o corpo rígido;
— Que é que você deve me contar? — perguntou ele enquanto os dois caminhavam.
— Minhas memórias não são mais filtradas seletivamente — ela disse. — Eu as tenho todas... somente por meu lado feminino, é claro..
— Assim? — perguntou Teg, comprimindo os lábios.
Essa não era a abordagem que ele tinha esperado. Odrade parecia mais uma pessoa que escolheria uma abordagem direta.
— Taraza diz que você leu o Manifesto Atreides. Ótimo. Você sabe que ele vai provocar inquietação em muitos lugares.
— Schwangyu já fez dele o objeto de uma critica a vocês Atreides.
Odrade olhou para ele solenemente. Como diziam todos os relatórios, Teg permanecia uma figura imponente, mas ela sabia disso sem precisar de relatórios.
— Somos ambos Atreides, você e eu — disse Odrade.
Teg ficou inteiramente alerta.
— Sua mãe lhe explicou isso em detalhes — disse Odrade. — Quando você voltou a Lernaeus em suas primeiras férias escolares.
Teg parou e olhou para ela. Como poderia saber disso? Pelo que sabia, nunca tinha encontrado ou conversado com essa Darwi Odrade. Seria ele motivo de debates na sede da Irmandade? Manteve o silêncio, forçando-a a continuar a conversa.
— Vou contar-lhe uma conversa entre um homem e minha mãe verdadeira — disse Odrade. — Eles estão na cama e o homem diz: “Fui pai de algumas crianças na primeira vez que escapei do controle da Bene Gesserit, na época em que me julguei um agente independente, livre para me alistar e lutar onde quisesse.”
Teg não tentou ocultar sua surpresa. Essas eram suas palavras! A memória Mentat revelou-lhe que Odrade as tinhas repetido com precisão.
— Quer ouvir mais? — perguntou ela quando ele continuou a fitá-la — Muito bem. O homem diz: “Isso foi antes que elas me enviassem para ser treinado como Mentat, é claro. Como aquilo foi revelador! Eu nunca estivera fora da vigilância da Irmandade, nem por um instante! Eu nunca fui um agente livre.”
— Nem mesmo quando eu pronunciava essas palavras — disse Teg.
— Verdade. — Ela o impeliu pela pressão em seu braço, enquanto os dois continuavam a caminhada dentro da câmara. — As crianças de que foi pai pertenciam todas à Bene Gesserit. A Irmandade não corre risco de que nossos genótipos possam cair num reservatório genético selvagem.
— Que meu corpo vá para Shaitan... seus preciosos genótipos permanecem sob os cuidados da Irmandade — disse ele.
— Meus cuidados — disse Odrade. — Sou uma de suas filhas.
Novamente ele a forçou a parar.
— Eu creio que sabe quem foi minha mãe — ela disse, e ergueu a mão para silenciá-lo quando ele tentou pronunciar um nome. — Nomes não são necessários.
Teg observou as feições de Odrade, notando sinais identificáveis. Mãe e filha eram equivalentes. Mas, e quanto a Lucilla?
Como se tivesse ouvido a pergunta, Odrade respondeu:
— Lucilla é de uma linha paralela de procriação. Bem extraordinário, não? O que a cuidadosa procriação paralela pode conseguir.
Teg pigarreou. Não sentia nenhum elo emocional em relação a essa filha recém-revelada. As palavras dela e outros sinais importantes de seu desempenho exigiam sua atenção primária.
— Esta não é uma conversa casual — ele disse. — Isso é tudo que me devia contar? Pensei que a Madre Superiora tinha dito.
— Há mais — concordou Odrade. — Quanto ao Manifesto, eu sou sua autora. Eu o escrevi, mediante ordem de Taraza e seguindo suas instruções detalhadas:
Teg olhou à volta na ampla câmara, como se quisesse certificar-se de que ninguém tinha ouvido. Disse em voz baixa:
— Os Tleilaxu o estão divulgando amplamente!
— Exatamente como esperávamos.
— Por que está me dizendo isso? Taraza disse que estava aqui para me preparar para...
— Vai chegar a ocasião em que deverá conhecer o nosso propósito. É desejo de Taraza que tome suas próprias decisões então, que se torne realmente um agente livre.
Enquanto falava, Odrade viu os olhos dele vidrarem ao modo Mentat.
Teg respirou fundo. “Dependências e troncos-chave!” Teve a sensação Mentat de vislumbrar um imenso padrão, bem além do alcance de seus dados acumulados. Nem por um instante considerou que algum tipo de devoção de filha para pai tivesse provocado essas revelações. Havia uma essência fundamentalista, dogmática e mesmo ritualística evidente em todo o treinamento da Bene Gesserit, a despeito de todo o esforço para evitá-lo. Odrade, essa sua filha saída do passado, era uma Reverenda Madre dotada de poderes extraordinários de controle muscular e nervoso — e com memórias integrais pelo lado feminino! Era uma das especiais! Conhecia truques de violência de que poucos humanos suspeitavam. Ainda assim, a semelhança daquela essência permanecia, sempre notada por um Mentat.
“Que será que ela deseja?”
“A confirmação da minha paternidade?” Ela já tinha toda a confirmação de que pudesse necessitar.
Observando-a agora, o modo como ela esperava tão pacientemente que seus pensamentos se concatenassem, Teg refletiu sobre com que freqüência se comentava, e com boas razões, o fato de as Reverendas Madres não mais pertencerem totalmente à raça humana. De algum modo, elas se moviam fora do fluxo principal, talvez paralelamente a ele, talvez nele mergulhando ocasionalmente por algum motivo próprio, mas sempre afastadas da humanidade. Destacavam-se por si mesmas. Era um sinal identificador das Reverendas Madres, um senso de identidade extra que as tornava mais próximas do Tirano há tanto tempo morto do que da raça humana da qual tinham brotado.
Manipulação. Essa era a sua especialidade. Elas manipulavam a tudo e a todos.
— Eu deverei ser os olhos da Bene Gesserit — disse Teg. — Taraza quer que eu tome uma decisão humana por todas vocês.
Obviamente satisfeita, Odrade apertou-lhe o braço.
— Que pai eu tenho!
— Será que você tem realmente um pai? — perguntou ele, e lhe contou aquilo que estivera pensando a respeito da Bene Gesserit se afastando da humanidade.
— Fora da humanidade — repetiu ela. — Que idéia interessante. Os navegadores da Corporação também estariam separados de sua humanidade original?
Ele pensou a respeito. Os navegadores da Corporação divergiam amplamente da forma humana mais comum. Nascidos no espaço e vivendo suas vidas em tanques de gás de melange, eles distorciam a forma original, alongando e reposicionando membros e órgãos. Mas um jovem navegador em estrus e antes de entrar no tanque era capaz de procriar com um ser humano normal. Isso já fora demonstrado. Eles se tornavam não-humanos, mas não ao modo da Bene Gesserit.
— Mentalmente os navegadores não são como vocês — disse ele; — Eles pensam do modo humano. Guiar uma nave através do espaço, mesmo usando a presciência para encontrar o caminho mais seguro, possui um padrão que um ser humano pode aceitar.
— Você não aceita o nosso padrão?
— Até onde posso, mas em algum lugar de seu desenvolvimento vocês se afastaram do padrão original. Acho que podem realizar um ato consciente para parecerem humanas. O modo como segura o meu braço neste momento, como se fosse realmente minha filha.
— Eu sou sua filha, mas me surpreende o modo como nos despreza.
— Muito pelo contrário, eu fico admirado com vocês.
— Admirado com sua própria filha?
— Com qualquer Reverenda Madre.
— Você acha que eu existo apenas para manipular criaturas inferiores?
— Creio que vocês não sentem mais como humanas. Existe uma falha em você. Alguma coisa está faltando, algo que removeu. Você não é mais uma de nós.
— Obrigada — disse Odrade; — Taraza disse-me que você não hesitaria em responder com fraqueza, mas eu já sabia disso.
— Para o que me preparou?
— Vai saber quando acontecer, e isto é tudo que posso dizer... tudo que me permitem dizer.
“Manipulando de novo!”, pensou ele. “Malditas!”
Odrade pigarreou. Parecia a ponto de dizer alguma coisa, mas permaneceu em silêncio enquanto guiava Teg na caminhada através da câmara.
Mesmo sabendo o que Teg iria dizer, suas palavras a magoavam. Queria dizer-lhe que era uma daquelas que ainda se sentiam humanas, mas o julgamento que ele fizera da Irmandade não podia ser contestado
“Somos ensinadas a rejeitar o amor. Podemos simulá-lo, mas cada uma de nós é capaz de anulá-lo num momento.”
Houve sons atrás deles. Ambos pararam e se voltaram. Lucilla e Taraza saíam do tubo-elevador falando sobre suas observações do ghola.
— Você estava absolutamente certa em tratá-lo como a uma de nós — dizia Taraza.
Teg ouviu, mas não fez comentários, enquanto esperava a aproximação das duas mulheres.
“Ele sabe”, pensou Odrade; “Não vai me perguntar a respeito de minha mãe; Não havia nenhuma ligação, nenhuma impressão real. E no entanto ele sabe.”
Odrade fechou os olhos e a memória a surpreendeu por produzir a imagem de uma pintura. A coisa ocupava um espaço na parede da sala matinal de Taraza. Um artificio Ixiano tinha preservado a pintura na melhor moldura hermeticamente selada, por trás de uma cobertura de plaz invisível. Freqüentemente Odrade parava diante daquela pintura, sentindo a cada ocasião que sua mão poderia estender-se e de fato tocar a tela ancestral, tão habilmente preservada pelos Ixianos.
“Cottages de Cordeville;”
O nome que o artista dera ao trabalho e seu próprio nome tinham sido preservados numa placa forjada, colocada embaixo da pintura: Vincent Van Gogh.
A coisa era de uma época tão longínqua que apenas raras relíquias, como essa pintura, permaneciam para enviar uma impressão física através das eras. Ela tentara imaginar as jornadas que aquela pintura tinha realizado, o acaso sucessivo que a conduzira até a sala de Taraza.
Os Ixianos tinham sido excelentes na arte da preservação e restauração. Um observador podia tocar um ponto escuro na extremidade inferior esquerda da moldura. Imediatamente seria engolfado no gênio verdadeiro, não apenas do artista, mas do Ixiano que tinha restaurado e preservado seu trabalho. Seu nome estava na moldura: Martin Buro. Quando tocado pelo dedo humano, o ponto se tornava um projetor de sensação, benigno subproduto da tecnologia que tinha produzido a sonda Ixiana. Buro havia restaurado não apenas a pintura, mas o pintor — os sentimentos de Van Gogh que tinham acompanhado cada pincelada. Tudo fora capturado nas pinceladas e gravado ali por movimentos humanos.
Odrade se havia colocado ali, tão e tantas vezes envolvida pela performance que se sentia capaz de recriar a pintura independentemente.
Relembrando essa experiência, logo após a acusação de Teg, ela percebeu imediatamente por que sua memória tinha reproduzido a imagem para ela e por que a pintura a fascinava tanto. Pelo breve período daquela reprodução, sempre se sentia totalmente humana, consciente dos cottages como lugares onde viviam pessoas reais, completamente consciente da corrente humana que fizera uma pausa naquele lugar na pessoa do louco Vincent Van Gogh, parando para registrar a si mesmo.
Taraza e Lucilla detiveram-se a dois passos de Teg e Odrade. Havia um cheiro de alho na respiração de Taraza.
— Nós paramos para uma pequena refeição — explicou Taraza. — Vocês gostariam de comer alguma coisa?
Era exatamente a pergunta errada. Odrade soltou a mão do braço de Teg, virou-se rapidamente e enxugou os olhos com a manga. Olhando novamente para Teg, viu a surpresa no rosto dele. “Sim”, pensou ela, “estas são lágrimas verdadeiras!”
— Creio que fizemos aqui tudo que poderíamos fazer — disse Taraza. — E hora de você seguir para Rakis, Dar.
— Já passou a hora — disse Odrade.
A vida não encontrará razões para se manter, não será uma fonte de respeito mútuo, a não ser que cada um de nós resolva emprestar-lhe tais qualidades.
— Chenoeh: “Conversas com Leto II”
Hedley Tuek, Alto Sacerdote do Deus Dividido, estava ficando cada vez mais irritado com Stiros. Embora muito velho para ambicionar o trono de Alto Sacerdote, Stiros tinha filhos, netos e numerosos sobrinhos. Ele transferira para a família as suas ambições pessoais. Stiros era um homem cínico, representante de uma facção poderosa do clero, a auto-denominada “comunidade científica”, cuja influência era insidiosa e penetrante. Eles se aproximavam perigosamente da heresia.
Tuek lembrou-se de como mais de um Alto Sacerdote se havia perdido no deserto. Acidentes lamentáveis... Stiros e sua facção eram capazes de arranjar tais acidentes.
Era uma tarde em Keen e Stiros acabara de sair, obviamente frustrado. Queria que Tuek fosse até o deserto para observar pessoalmente a nova incursão de Sheeana por lá. Suspeitando do convite, Tuek declinara.
Seguira-se uma estranha discussão, cheia de indiretas e vagas referências ao comportamento de Sheeana, mais ataques verbais à Bene Gesserit. Stiros, sempre desconfiado da Irmandade, antipatizara imediatamente com a nova comandante do Castelo de Bene Gesserit em Rakis, aquela... como era mesmo o nome? Oh, sim, Odrade. Nome engraçado, mas as Irmãs freqüentemente tinham nomes estranhos. Era um privilégio delas. O próprio Deus nunca se pronunciara contra a bondade básica da Bene Gesserit. Contra esta ou aquela Irmã, sim, mas a Irmandade como um todo tinha compartilhado da Sagrada Visão de Deus.
Tuek não gostava do modo como Stiros falava de Sheeana. Com cinismo. Finalmente havia conseguido silenciar Stiros com pronunciamentos feitos ali, no local sagrado, com seu altar e suas imagens do Deus Dividido. Retransmissores de feixes prismáticos lançavam finas cunhas de iluminação através do incenso que partia da melange que era queimada entre as duplas fileiras de altas pilastras conduzindo ao altar. Tuek tinha certeza de que nesse cenário suas palavras chegariam diretamente a Deus.
— Deus age através de nossa Siona — Tuek dissera a Stiros, notando a confusão em seu rosto. — Sheeana é a lembrança viva de Siona, aquele instrumento humano que o transformou em Suas atuais Divisões.
Stiros ficou furioso, dizendo coisas que não se atreveria a repetir diante de um Conselho. Confiava demais em sua longa ligação com Tuek.
— Eu lhe digo que ela permanece aqui, cercada por adultos que buscam justificar-se diante dela, e ela...
— Justificar-se diante dela e de Deus!
— Tuek não poderia permitir tais palavras.
Inclinando-se para mais perto do Alto Sacerdote, Stiros resmungou:
— Ela encontra-se no centro de um sistema educacional preparado para lhe dar qualquer coisa que sua imaginação desejar. Nós não lhe negamos nada!
— Nem deveríamos.
Como se Tuek não tivesse falado, Stiros disse:
— Cania tem lhe fornecido os registros de Dar-es-Balat.
— Eu sou o Livro do Destino — entoou Tuek, repetindo as próprias palavras de Deus tiradas do tesouro em Dar-es-Balat.
— Exatamente! E ela ouve com atenção cada palavra!
— Por que isso o perturba? — perguntou Tuek em seu tom de voz mais calmo.
— Nós não testamos o conhecimento dela. Ela testa o nosso!
— Deus deve querer assim.
Não deixando de perceber o amargo ressentimento no rosto de Stiros, Tuek observou seu conselheiro enquanto ele reunia novos argumentos. Os recursos para tais argumentos eram, é claro, enormes. Tuek não negava isso. Eram as interpretações que importavam. Era por isso que o Alto Sacerdote tinha a função de derradeiro intérprete. A despeito do seu modo de visualizar a história (ou talvez devido a ele), o clero sabia muita coisa sobre as circunstâncias que haviam conduzido Deus a residir em Rakis. Ele tinha Dar-es-Balat e todo o seu conteúdo — a mais antiga não-câmara conhecida no universo. Durante milênios, enquanto o Shai-hulud transformava o verdejante planeta Arrakis no deserto Rakis, Dar-es-Balat aguardara debaixo das areias. Do Sagrado Tesouro, o clero obtivera a própria voz de Deus. Suas palavras impressas e até mesmo holofotos. Tudo estava explicado e eles sabiam que a superfície deserta de Rakis reproduzia a forma original do planeta, o modo como ele era no princípio, quando constituía a única fonte conhecida da Sagrada Especiaria.
— Ela faz perguntas a respeito da Família de Deus — disse Stiros.
— Por que precisaria perguntar-nos tal coisa?
— Ela está nos testando. Será que os colocamos em seus devidos lugares? A Reverenda Madre Jessica e seu filho, o Muad'Dib, e seu filho, Leto II, o Sagrado Triunvirato Celeste;
— Leto III — murmurou Stiros. — E quanto ao outro Leto que morreu nas mãos dos Sardaukar? E quanto a ele?
— Cuidado, Stiros — advertiu Tuek. — Você sabe que meu bisavô se pronunciou a respeito dessa questão sentado nesse mesmo assento. Nosso Deus Dividido foi reencarnado, uma parte dele permanecendo no céu para mediar sobre sua Ascendência. Essa parte dele tornou-se então desprovida de nome, como a Verdadeira Essência de Deus sempre deve ser!
— É?
Tuek notou o terrível cinismo na voz do velho. As palavras de Stiros pareciam tremer no ar carregado de incenso, num convite a uma terrível resposta.
— Então por que ela pergunta como nosso Leto se transformou no Deus Dividido? — quis saber Stiros.
Estaria Stiros questionando a Sagrada Metamorfose? Tuek estava horrorizado. Disse simplesmente:
— No devido tempo, ela nos iluminará.
— Nossas frágeis explicações devem deixá-la desapontada — retrucou Stiros.
— Você está indo longe demais, Stiros!
— É mesmo? Não acha esclarecedor que ela pergunte como a truta da areia captura a maior parte de água de Rakis, recriando o deserto?
Tuek tentou esconder sua raiva crescente, Stiros realmente representava uma poderosa facção do clero, mas seu tom de voz e suas palavras levantavam questões que tinham sido respondidas pelos Altos Sacerdotes muito tempo atrás. A Metamorfose de Leto II dera origem a um número incontável de trutas da areia, cada qual carregando um fragmento Dele, Da Truta da Areia ao Deus Dividido: essa relação era conhecida e venerada. Questioná-la era negar a Deus.
— Você se senta ai e não faz nada — acusou Stiros. — Nós somos peões de...
— Basta! — Tuek tinha ouvido tudo que queria ouvir desse velho cínico. Reunindo sua dignidade, pronunciou as palavras de Deus: — Seu Senhor conhece muito bem o que vai no seu coração. Sua alma é o suficiente para acusá-lo. Eu não preciso de testemunhas. Você não escuta a sua alma, mas ouve o seu ódio e a sua ira.
Stiros retirou-se, frustrado.
Depois de pensar muito, Tuek vestiu seu melhor manto, em branco, púrpura e dourado, e foi visitar Sheeana.
Ela encontrava-se nos jardins do terraço no topo do complexo, junto com Cania e mais duas pessoas: um jovem sacerdote chamado Baldik, que estava a serviço particular de Tuek, e uma sacerdotisa-acólita chamada Kipuna, que se comportava demais à semelhança de uma Reverenda Madre para o gosto de Tuek. A Irmandade possuía suas espiãs por lá, é claro, mas Tuek não gostava de tomar conhecimento disso. Kipuna encarregara-se da maior parte do treinamento físico de Sheeana, e surgira uma espécie de identificação entre pupila e sacerdotisa-acólita que motivava os ciúmes de Cania. Mesmo Cania, entretanto, não poderia colocar-se no caminho das ordens de Sheeana.
Os quatro encontravam-se ao lado de um banco de pedra, quase à sombra de uma torre de ventilação. Kipuna segurava a mão direita de Sheeana, manipulando os dedos da criança. Sheeana estava ficando alta, notou Tuek. Há seis anos que estava sob proteção. Podia notar as primeiras insinuações de seios começando a se projetar no tecido do manto. Não havia o menor sopro de vento no terraço e o ar parecia pesar nos pulmões de Tuek.
Tuek olhou no jardim à sua volta para se certificar de que suas precauções de segurança não estavam sendo ignoradas. Nunca se sabia de que lado o perigo poderia aparecer. Quatro dos guardas pessoais de Tuek, bem-armados mas ocultando esse fato, compartilhavam do terraço mantendo-se a distância — um em cada canto. O parapeito que envolvia o terraço era alto, e apenas as cabeças dos guardas apareciam acima da borda. O único prédio mais alto do que essa torre dos sacerdotes era a principal armadilha de vento de Keen, uns mil metros a oeste.
A despeito da evidência visível de que suas ordens estavam sendo cumpridas, Tuek sentia o perigo. Seria um aviso de Deus? Ele ainda se sentia perturbado pelo cinismo de Stiros. Estaria errado em permitir que Stiros tomasse esse tipo de atitude?
Sheeana viu Tuek se aproximando e interrompeu os curiosos exercícios de flexionamento dos dedos que fazia, mediante as instruções de Kipuna. Aparentando sábia paciência, a criança ficou em silêncio, o olhar lixo no Alto Sacerdote, forçando seus companheiros a se virarem e olhar junto com ela.
Sheeana não achava assustadora a figura de Tuek. Gostava um pouco do velho, embora algumas perguntas dele fossem muito presunçosas. E suas respostas! Muito por acaso ela descobrira a pergunta que mais perturbava Tuek.
Por quê?
Alguns sacerdotes que serviam de criados interpretaram a pergunta como sendo: Por que você acredita nisso? Sheeana imediatamente adotou a sugestão e daí por diante suas sondagens com Tuek e os outros tomaram invariavelmente a forma de:
— Por que você acredita nisso?
Tuek parou a dois passos de Sheeana e se curvou.
— Boa tarde, Sheeana.
Ele mexeu o pescoço com nervosismo dentro do colarinho de seu manto. O sol estava quente em seus ombros e ele se perguntava por que a criança gostava tanto de sair para o terraço.
Sheeana manteve o olhar indagador para Tuek. Sabia que esse olhar o perturbava.
Tuek pigarreou. Quando Sheeana olhava para ele daquele modo, ele sempre se perguntava: “Será que Deus está olhando para mim através dos olhos dela?”
Cania disse:
— Sheeana perguntou hoje a respeito das Oradoras Peixes.
Em seu tom mais persuasivo, Tuek disse:
— O Exército Sagrado de Deus?
— Composto só por mulheres? — perguntou Sheeana.
Ela falou como se não pudesse acreditar em tal coisa. Para aqueles situados na base da sociedade Rakiana, as Oradoras Peixes eram um nome da história antiga, pessoas perdidas nos Tempos da Fome.
Ela está me testando, pensou Tuek. Oradoras Peixes. As atuais portadoras dessa denominação possuíam apenas uma pequena delegação de comércio-espionagem em Rakis, composta de homens e mulheres. Suas antigas origens não significam mais nada em suas atuais atividades, onde funcionavam principalmente como um braço de Ix.
— Os homens sempre serviram às Oradoras Peixes como assessores — respondeu Tuek.
Ele observou cuidadosamente, esperando para ver como Sheeana responderia.
— E sempre houve os Duncan Idahos — comentou Cania.
— Sim, sim, é claro, os Duncans.
Tuek tentou não demonstrar aborrecimento. Aquela mulher está sempre interrompendo! Tuek não gostava de ser lembrado desse aspecto da presença histórica de Deus em Rakis. O ghola sempre recriado e sua posição no Exército Sagrado tinham um toque de indulgência para com a Bene Tleilax. Mas não havia como fugir ao fato de que as Oradoras Peixes tinham protegido os Duncans de todo o mal, agindo, é claro, sob as ordens de Deus. Os Duncans eram sagrados, não havia dúvida a esse respeito, mas sagrados de uma categoria especial. Das próprias palavras de Deus, sabia-se que Ele em pessoa tinha matado alguns Duncans, obviamente transportando-os imediatamente para o céu.
— Kipuna esteve me contando sobre a Bene Gesserit — comentou Sheeana.
“Como a mente dessa criança salta de um assunto para outro!” Tuek pigarreou, reconhecendo sua própria atitude ambivalente com relação às Reverendas Madres. Exigia-se reverência àquelas que tinham sido “Queridas por Deus”, como a Santa Chenoeh. E o primeiro Alto Sacerdote criara um relato lógico de como a Sagrada Hwi Noree, Noiva de Deus, tinha sido secretamente uma Reverenda Madre. Honrando essas circunstâncias especiais, o clero sentia uma irritante responsabilidade para com a Bene Gesserit, obrigação que era cumprida principalmente pela venda de melange à Irmandade a um preço ridiculamente inferior ao que se cobrava dos Tleilaxu.
Em seu tom mais ingênuo, Sheeana disse:
— Conte-me tudo sobre a Bene Gesserit, Hedley.
Tuek olhou rapidamente para os adultos à volta de Sheeana, tentando surpreender um sorriso em seus rostos. Não sabia como reagir ao fato de Sheeana chamá-lo pelo primeiro nome. De certo modo, era humilhante. Mas, por outro lado, ela o honrava com tal intimidade.
“Deus está me testando duramente”, pensou ele.
— As Reverendas Madres são boas pessoas? — perguntou Sheeana. Tuek suspirou. Todos os registros confirmavam que Deus tinha certas reservas com relação à Irmandade. As palavras de Deus tinham sido examinadas cuidadosamente e por fim submetidas à interpretação de um Alto Sacerdote. Deus não permitiria que a Irmandade ameaçasse o seu Caminho Dourado. Isso era claro.
— Muitas delas são boas — respondeu Tuek.
— Onde se encontra a Reverenda Madre mais próxima?
— Na Embaixada da Irmandade, no seu Castelo em Keen — disse Tuek.
— Você a conhece?
— Existem muitas Reverendas Madres no Castelo da Bene Gesserit.
— Que é um castelo?
— É como elas chamam seu lar aqui.
— Uma Reverenda Madre deve ser a responsável. Você a conhece?
— Eu conhecia sua antecessora, Tamalane, mas esta agora é nova. Acabou, de chegar. Seu nome é Odrade.
— E um nome engraçado.
Era o que Tuek pensava, mas ele disse:
— Um dos nossos historiadores me disse que é uma forma do nome Atreides.
Sheeana refletiu a respeito disso. “Atreides.” Era a família que tinha criado Shaitan. Antes dos Atreides, tinham existido apenas os Fremen e o Shai-hulud. A História Oral, que seu povo preservava contra todas as proibições dos sacerdotes, cantava as origens da gente mais. importante de Rakis. Sheeana ouvira seus nomes muitas noites no vilarejo.
— Muad'Dib gerou o Tirano.
— E o Tirano gerou Shaitan.
Sheeana não sentia vontade de discutir a verdade com Tuek. De qualquer modo, ele parecia cansado hoje. Ela disse apenas:
— Tragam-me essa Reverenda Madre Odrade.
Kipuna escondeu por trás da mão seu sorriso de satisfação maldosa. Tuek recuou, consternado. Como poderia satisfazer semelhante exigência? Mesmo o clero Rakiano não comandava a Bene Gesserit! E se a Irmandade recusasse? Será que ele poderia oferecer uma dádiva de melange em troca? Isso poderia ser tomado como sinal de fraqueza. As Reverendas Madres poderiam barganhar! E não havia comerciantes mais duros do que aquelas Reverendas Madres de olhar frio. Essa nova, Odrade, parecia ser uma das piores.
Todos esses pensamentos fluíram pela mente de Tuek num instante.
Cania opinou, dando a Tuek a opção tão necessitada.
— Talvez Kipuna possa transmitir o convite de Sheeana — ela disse.
Tuek olhou rapidamente para a jovem sacerdotisa-acólita. Sim! Muitas suspeitavam (Cania inclusive, obviamente) de Kipuna como espiã da Bene Gesserit. É claro que todo o mundo em Rakis espionava para alguém. Tuek usou seu sorriso mais encantador enquanto olhava para Kipuna.
— Você conhece alguma das Reverendas Madres, Kipuna?
— Algumas delas eu conheço, Meu Senhor Alto Sacerdote — respondeu Kipuna.
“Pelo menos ela ainda demonstra o devido respeito.”
— Excelente — disse Tuek. — Teria a bondade de transmitir O gracioso convite de Sheeana à embaixada da Irmandade?
— Farei o melhor que puder, Meu Senhor Alto Sacerdote.
— Eu tenho certeza de que fará!
Kipuna começou a se voltar para Sheeana, cheia de orgulho, a certeza do êxito crescendo dentro de si. O pedido de Sheeana fora muito fácil de ser provocado a partir das técnicas fornecidas pela Irmandade. Kipuna sorriu e abriu a boca para falar. Um movimento no parapeito, uns 40 metros atrás de Sheeana, captou a atenção de Kipuna. Alguma coisa brilhava à luz do sol por lá. Algo pequeno e...
Com um grito estrangulado, Kipuna agarrou Sheeana e a lançou para o espantado Tuek, gritando:
— Corra!
Depois Kipuna avançou ao encontro do brilho que se aproximava — um pequeno dardo caçador puxando um longo shigafio.
Em sua época de jovem, Tuek tinha jogado bola. Ele agarrou Sheeana instintivamente, hesitou por um instante e então reconheceu o perigo. Girando com a garota que se debatia protestando em seus braços, Tuek correu através da porta aberta para a torre das escadarias. Ouviu a porta fechar-se às suas costas, os passos de Cania que o seguia.
— Que foi? Que foi?
Sheeana golpeava o peito de Tuek com seus punhos enquanto gritava.
— Quieta, Sheeana! Quieta!
Tuek parou na primeira plataforma, entre dois lances de escada. Havia uma calha deslizadora e uma queda amparada por suspensores, conduzindo desse lance de escada para dentro do núcleo do prédio. Cania parou ao lado de Tuek, sua respiração ofegante ressoando alto nesse espaço estreito.
— Aquilo matou Kipuna e dois guardas — disse Cania sem fôlego.
— Cortou-os em pedaços! Eu vi. Deus nos proteja!
A mente de Tuek era um redemoinho. Tanto a calha deslizadora quanto a queda em suspensores eram pequenos orifícios feitos na torre. Ambos podiam ser sabotados. O ataque pelo teto podia ser apenas um elemento de uma trama mais complexa.
— Coloque-me no chão! — insistia Sheeana. — Que está acontecendo?
Tuek depositou-a no chão, mas a manteve segura por uma das mãos. Curvou-se sobre ela.
— Sheeana, minha querida, alguém está tentando ferir-nos.
A boca de Sheeana formou um silencioso “oh” e então a pergunta:
— Eles feriram Kipuna?
Tuek olhou para a porta que dava para o terraço. Estaria ouvindo o ruído de um ornitóptero lá em cima? Stiros! Conspiradores podiam levar três pessoas vulneráveis para o deserto com muita facilidade!
Cania recuperara o fôlego.
— Estou ouvindo um tóptero — disse ela. — Não devíamos sair daqui?
— Vamos descer pelas escadas — disse Tuek.
— Mas...
— Faça como eu digo!
Segurando firmemente a mão de Sheeana, Tuek liderou a corrida até o próximo patamar. Além da calha e do acesso ao poço suspensor, esse lance tinha uma porta na parede curva. Somente alguns passos além daquela porta ficava a entrada para os aposentos de Sheeana, outrora o quarto de Tuek. Novamente ele hesitou.
— Alguma coisa está acontecendo no teto — sussurrou Cania.
Tuek olhou para a criança temerosa e quieta ao seu lado. A mão dela estava escorregadia de suor.
Sim, havia algum tipo de tumulto no terraço — gritos, o assovio de queimadores, muita correria. A porta para o terraço, agora fora do alcance de visão, foi arrebentada. Isso fez Tuek decidir-se. Ele abriu a porta para o corredor e caiu nos braços de um grupo de mulheres de mantos negros agrupadas numa formação de cunha. Com um sentimento vazio de derrota, Tuek reconheceu a mulher na ponta da cunha: “Odrade!”
Alguém arrancou Sheeana de suas mãos e ela sumiu no meio do aglomerado de mantos. Antes que Tuek ou Cania pudesse protestar, mãos foram colocadas sobre suas bocas. Outras mãos imobilizaram-nos de encontro à parede do corredor. Algumas das figuras cobertas por mantos saíram pela porta, subindo as escadarias.
— A criança está segura, e isso é o que importa no momento — sussurrou Odrade. Ela olhou nos olhos de Tuek. — Não grite. — A mão foi removida de sua boca. Usando a Voz, ela disse: — Conte-me tudo que aconteceu no terraço!
Tuek obedeceu sem reservas:
— Um dardo caçador puxando um longo shigafio. Veio por cima do parapeito. Kipuna viu e...
— Onde está Kipuna?
— Morta. Cania viu. — Tuek descreveu a intrépida corrida de Kipuna ao encontro da ameaça.
“Kipuna morta!”, pensou Odrade; Ela escondeu uma raiva furiosa, um sentimento de perda. Que desperdício. Devia haver admiração ante uma morte tão corajosa, mas a perda... A Irmandade necessitava muito de tamanha coragem e devoção, mas também precisava da riqueza genética que Kipuna representara. “Tudo perdido por causa daqueles idiotas!''
Ante um gesto de Odrade, a mão foi removida da boca da Cania.
— Diga-me o que você viu — ordenou Odrade;
— O dardo enrolou o shigafio em volta do pescoço de Kipuna e...
Cania estremeceu.
A pancada seca de uma explosão reverberou acima deles, depois o silêncio. Odrade fez outro sinal com uma das mãos. Mulheres cobertas por mantos espalharam-se ao longo do corredor, movendo-se silenciosamente para fora do alcance da vista, além da curva na passagem. Somente Odrade e outras duas, ambas jovens de olhos frios, com expressões enérgicas, permaneceram ao lado de Tuek e de Cania. Sheeana tinha sumido.
— Os Ixianos têm algo a ver com isso — disse Odrade;
Tuek concordou.
— Aquela quantidade de shigafio... Para onde levaram a criança? — perguntou ele.
— Nós a estamos protegendo — disse Odrade. — Fique quieto.
Ela inclinou a cabeça, ouvindo.
Uma mulher vestida num manto negro veio correndo pela curva do corredor e sussurrou alguma coisa no ouvido de Odrade. Ela sorriu.
— Está acabado — disse ela. — Vamos ao encontro de Sheeana.
Sheeana ocupava uma cadeira estofada azul no aposento principal de seus alojamentos. Mulheres de mantos negros formavam um arco protetor por trás dela. A Tuek, a criança pareceu bem recuperada do choque do ataque e da fuga, mas seus olhos cintilavam com excitação e perguntas não-respondidas. A atenção de Sheeana estava dirigida para alguma coisa à direita de Tuek. Ele parou, olhou e ficou boquiaberto com o que viu.
O corpo nu de um homem estava tombado de encontro a uma parede em posição curiosamente dobrada, a cabeça torcida até o queixo ficar sobre o ombro esquerdo. Olhos abertos fitavam o vazio da morte.
''Stiros!''
Os trapos rasgados a que tinha sido reduzido o manto de Stiros, obviamente arrancado dele com violência, formavam agora uma pilha desarrumada ao pé do corpo.
Tuek olhou para Odrade.
— Ele estava envolvido no ataque — ela disse. — Havia Dançarinos Faciais com os Ixianos.
Tuek tentou engolir com a garganta seca.
Cania passou por ele em direção ao corpo. Tuek não podia ver o rosto dela, mas a presença de Cania o fez lembrar-se de que tinha havido algum tipo de relacionamento entre ela e Stiros na juventude. Tuek moveu-se instintivamente para se colocar entre Cania e a criança sentada.
Cania parou junto do corpo e o cutucou com o pé. Voltou-se para Tuek com uma expressão satisfeita.
— Tinha que me certificar de que ele estava realmente morto.
Odrade olhou para uma colega.
— Livre-se do corpo — ordenou.
Depois olhou para Sheeana. Era a primeira oportunidade que Odrade tinha para estudar a criança desde que liderara a força de assalto até esse lugar a fim de enfrentar o ataque ao complexo do templo.
Tuek falou por trás de Odrade.
— Reverenda Madre, por favor pode explicar o que...
Odrade o interrompeu sem se voltar.
— Depois.
A expressão de Sheeana animou-se ao ouvir as palavras de Tuek.
— Eu sabia que era uma Reverenda Madre!
Odrade meramente assentiu com a cabeça. Que criança fascinante. Odrade tinha agora a mesma sensação que sentira diante da pintura nos aposentos de Taraza. Algo do fogo, do calor presente naquele trabalho de arte a inspirava agora. Uma inspiração louca! Essa era a mensagem deixada por um Van Gogh demente. O caos transformando-se em magnífica ordem. Isso não era uma parte do código da Irmandade?
“Esta criança é minha tela”, pensou Odrade. Sentia a mão tremer sentindo aquele antigo pincel, as narinas dilatando-se para sorver o perfume de óleos e tintas.
— Deixem-me sozinha com Sheeana — ordenou ela. — Saiam todos.
Tuek começou a protestar, mas se calou quando uma das companheiras de Odrade o segurou pelo braço. Odrade olhou furiosa para ele.
— A Bene Gesserit já o serviu anteriormente — lembrou ela. — Desta vez nós salvamos sua vida.
A mulher que segurava o braço de Tuek puxou-o.
— Respondam as perguntas dele — ordenou Odrade. — Mas façam isso em outro lugar.
Cania deu um passo em direção a Sheeana.
— Esta criança é minha.
— Saia! — gritou Odrade, reunindo nessa ordem todos os poderes da Voz.
Cania gelou.
— Você quase a perdeu para um bando de conspiradores presunçosos! — acrescentou Odrade, olhando furiosa para Cania. — Vamos estudar se você merece outra oportunidade de se ligar a Sheeana.
Lágrimas surgiram nos olhos de Cania, mas a condenação de Odrade não podia ser negada. Virando-se, Cania saiu com os outros.
Odrade voltou sua atenção para a criança vigilante.
— Estivemos esperando por você por longo tempo — disse ela. — Não vamos dar outra oportunidade àqueles tolos.
A lei sempre busca manter o poder constituído.
Questões de moral e legalidade pouco têm a ver quando a verdadeira pergunta é: quem detém o poder?
— Atas do Conselho da Bene Gesserit: Arquivos X0X232
Imediatamente depois de Taraza e seu grupo deixarem Gammu, Teg lançou-se de volta ao trabalho. Novos procedimentos de guarda tinham que ser estabelecidos de modo a manter Schwangyu a distância do ghola. Ordens de Taraza.
— Ela pode observar tudo que quiser. Mas não deve tocá-lo.
A despeito das pressões do trabalho, Teg se encontrou a fitar o vazio em momentos ocasionais, presa de uma estranha ansiedade. A experiência de resgatar o grupo de Taraza de dentro da nave da Corporação e as curiosas revelações de Odrade não se encaixavam em qualquer padrão de classificação de dados que pudesse criar.
“Dependências... troncos-chaves...”
Teg estava sentado em seu gabinete de trabalho com um quadro de serviço para o pessoal projetado diante de si, contendo mudanças de turno para serem aprovadas, e por um instante não teve idéia do tempo ou da data. Levou um momento para se relocalizar.
Era o meio da manhã. Taraza e seu grupo tinham partido fazia dois dias. Ele estava sozinho. Patrin encarregara-se de seu programa diário de treinamento com o Duncan, deixando Teg livre para tomar decisões de comando.
A sala de trabalho à sua volta parecia estranha. E no entanto, quando olhava para cada objeto, sentia que era familiar. Ali estava o seu próprio consolo pessoal de dados. A jaqueta de seu uniforme fora deixada sobre as costas da cadeira a seu lado. Tentou mergulhar numa análise Mentat e sentiu a própria mente resistindo. Tal fenômeno não acontecia desde seus dias de treinamento.
“Dias de treinamento.”
Taraza e Odrade o tinham colocado em alguma forma de treinamento.
“Autotreinamento.”
Num modo distante, ele sentiu a memória oferecer-lhe uma conversa que tivera muito tempo atrás com Taraza. Como lhe parecia familiar agora. Sentiu-se deslocado para aquele momento, capturado pela própria capacidade de memória.
Taraza e ele estavam muito cansados depois de tomarem as decisões e agirem para evitar um confronto sangrento — o incidente Barandiko. Nada senão um mero soluço na história, assim parecia agora, mas naquela ocasião tinha exigido todas as suas energias combinadas.
Taraza convidara-o para uma saleta em seus alojamentos na não-nave depois que se assinara o acordo. Ela falava de modo informal, admirando sua sagacidade, o modo como ele tinha percebido e explorado as fraquezas que forçariam o acordo.
Os dois estavam acordados e ativos havia quase 36 horas e Teg estava feliz pela oportunidade de se sentar com Taraza, enquanto ela discava, fazendo um pedido ao aparelho produtor de drinques e refeições. A coisa produziu dois copos grandes de um líquido marrom cremoso.
Teg reconheceu o cheiro quando ela lhe passou o copo. Era uma fonte de energia rápida que a Bene Gesserit raramente compartilhava com gente de fora. Mas Taraza não mais o considerava gente de fora.
Com a cabeça inclinada para trás, Teg tomou um longo gole da bebida, enquanto seu olhar se perdia no teto decorado do pequeno aposento. Essa não-nave era de um modelo antigo, construída na época em que se dedicava maior cuidado à decoração — cornijas cuidadosamente esculpidas, figuras barrocas talhadas em cada superfície.
O gosto da bebida lançou sua memória de volta à infância, a espessa infusão de melange.
— Minha mãe me preparava isso sempre que eu estava muito fatigado — disse ele, olhando para o copo na mão.
Já podia sentir o tranqüilizador fluxo de energia percorrendo o seu corpo.
Taraza levou seu drinque para uma cadeira-cão oposta a ele. A peça fofa de mobília animada, de cor branca, ajustou-se a ela com a facilidade de uma longa familiaridade. Para Teg ela providenciara uma poltrona tradicional, com estofado verde, mas percebeu o olhar dele voltar-se para a cadeira-cão e sorriu.
— Os gostos diferem, Miles. — Tomou um gole da bebida e suspirou. — Foi um trabalho árduo, mas foi um bom trabalho. Houve momentos em que me senti à beira de me tornar muito malcriada.
Teg sentiu-se tocado pela tranqüilidade dela. Não havia mais pose, nenhuma expressão para separá-los e definir seus papéis na hierarquia da Bene Gesserit. Ela estava sendo obviamente amistosa, sem qualquer indício de sedução. Isso era exatamente o que parecia ser — até onde se pudesse pensar tal coisa num encontro com uma Reverenda Madre.
Sentindo-se rapidamente descontraído, Teg percebeu que se tornara muito hábil em perceber as intenções de Alma Mavis Taraza, mesmo quando ela adotava uma de suas máscaras faciais.
— Sua mãe lhe ensinou muito mais do que lhe dissemos para ensinar — comentou Taraza. — Uma mulher sábia, mas outra herege. É tudo o que parecemos criar hoje em dia.
— Herege?
Teg sentiu certo ressentimento.
— É uma piada que corre na Irmandade — explicou Taraza. — Nós devemos seguir as ordens da Madre Superiora com devoção absoluta. E é o que fazemos, exceto quando discordamos dela.
Teg sorriu e tomou outro gole da bebida.
— É curioso — continuou Taraza —, mas quando estávamos envolvidos naquele confronto eu me vi reagindo a você como reagiria a uma de minhas Irmãs.
Teg sentiu a bebida aquecendo-lhe o estômago. Sentiu um formigar nas narinas. Colocou o copo vazio numa mesa ao lado da cadeira e disse enquanto olhava para ela:
— Minha filha mais velha...
— Dimela. Devia tê-la deixado vir para a Irmandade, Miles.
— A decisão não foi minha.
— Mas uma palavra sua... — Taraza encolheu os ombros. — Bem, isso é passado. Que tem Dimela?
— Ela pensa que eu freqüentemente me pareço muito com uma de vocês.
— Se parece muito?
— Ela é muito leal a mim, Madre Superiora. Realmente não entende o nosso relacionamento e...
— Qual é o nosso relacionamento?
— Vocês ordenam e eu obedeço.
Taraza olhou para ele por cima da borda do copo. Quando colocou o copo sobre a mesinha. disse:
— Sim, você nunca foi verdadeiramente herético, Miles... Talvez um dia...
Ele falou rapidamente, tentando afastar o pensamento de Taraza de tais idéias:
— Dimela acha que o uso da melange faz muitas pessoas se parecerem com vocês.
— É mesmo? Não é curioso, Miles, que a poção geriátrica tenha tantos efeitos colaterais?
— Eu não acho isso estranho.
— Não, é claro que não acha. — Ela acabou de esvaziar o copo e o colocou de lado. — Eu estava me referindo ao modo como um significativo prolongamento da vida produz em algumas pessoas, especialmente em você, um profundo conhecimento da natureza humana.
— Nós vivemos mais tempo, observamos mais.
— Não creio que seja assim tão simples. Existem pessoas que nunca observam coisa alguma. Para elas, a vida apenas acontece. Elas sobrevivem com pouco mais que uma teimosa persistência, e resistem com raiva e ressentimento a qualquer coisa que possa erguê-los acima dessa falsa serenidade.
— Nunca fui capaz de desenvolver uma folha de equilíbrio aceitável para a especiaria — comentou Teg, referindo-se a um processo de organização de dados comum aos Mentat.
Taraza assentiu com a cabeça. Obviamente, ela encontrava a mesma dificuldade.
— Nós da Irmandade tendemos a ser mais direcionadas num único caminho do que os Mentats — admitiu. — Temos procedimentos para nos sacudir para fora dessa rotina, mas a condição persiste.
— Nossos ancestrais tiveram esse problema por longo tempo.
— Era diferente antes da especiaria — ela disse.
— Mas eles viviam vidas muito curtas.
— Cinqüenta, 100 anos, isso não parece muito para nós, mas ainda assim...
— Eles comprimiam mais experiências em seu tempo disponível?
— Ah, a época deles era frenética.
Ela estava lhe fornecendo observações de suas Outras Memórias, percebeu ele. Não era a primeira vez que compartilhava desse conhecimento antigo. Sua mãe tinha produzido tais memórias em certas ocasiões, mas sempre para servir a alguma lição. Estaria Taraza fazendo a mesma coisa agora? Ensinando-lhe algo?
— A melange é um monstro de muitas mãos — comentou ela.
— Algumas vezes deseja que nós nunca a tivéssemos encontrado?
— A Bene Gesserit não existiria sem ela.
— Nem a Corporação.
— Mas não teria havido Tirano nem Muad'Dib. A especiaria dá com uma das mãos e tira com todas as outras.
— Que mão contém aquilo que desejamos? — perguntou ele — Não é sempre essa a pergunta?
— Você é uma singularidade, sabia, Miles? É muito raro Mentats mergulharem na filosofia. Acho que isso é uma de suas forças. Você tem uma capacidade suprema para duvidar.
Ele encolheu os ombros. Esse tipo de assunto o perturbava.
— Você não achou graça — ela disse. — Mas é bom agarrar-se às suas dúvidas, de qualquer modo. A dúvida é necessária ao filósofo.
— Assim dizem os Zensunni.
— Todos os místicos concordam com isso, Miles. Nunca subestime o poder da dúvida. É muito persuasivo. O s'tori guarda a dúvida e a certeza em uma só mão.
Muito surpreso ele perguntou:
— As Reverendas Madres praticam rituais Zensunni?
Jamais esperara tal coisa.
— Só uma vez — respondeu ela. — Nós atingimos uma forma exaltada de s'tori, uma forma total que envolve cada célula do nosso corpo.
— A agonia da especiaria — ele disse.
— Tenho certeza de que sua mãe lhe contou. Obviamente, ela nunca explicou a afinidade com o Zensunni.
Teg engoliu em seco, sentindo uma constrição na garganta. Fascinante! Isso lhe fornecia uma nova compreensão da Bene Gesserit, mudando todo o seu conceito, inclusive a imagem de sua mãe. Elas estavam apartadas dele, colocadas numa posição que jamais poderia alcançar. Podiam tratá-lo como camarada em determinadas ocasiões, mas ele seria incapaz de penetrar no seu círculo mais íntimo. Podia simular, não mais que isso. Nunca seria como o Muad'Dib ou o Tirano.
— Presciência — comentou Taraza.
A palavra desviou-lhe a atenção. Ela mudara o assunto sem realmente mudá-lo.
— Eu estava pensando no Muad'Dib — disse ele.
— Você pensa que ele previa o futuro?
— Esse é o ensinamento Mentat.
— Percebo a dúvida em sua voz, Miles. Será que ele previa ou será que ele criava? A presciência pode ser uma coisa mortal. As pessoas que exigem que o oráculo lhe faça previsões querem saber o preço da pele de baleia no próximo ano ou alguma outra coisa igualmente mundana. Nenhuma quer uma previsão, instante por instante, de sua vida.
— Não haveria surpresas — comentou Teg.
— Exatamente. Se você possuísse tal conhecimento do amanhã, sua vida se tornaria insuportavelmente tediosa.
— Acha que a vida do Muad'Dib era tediosa?
— E a do Tirano também. Acreditamos que as vidas deles foram inteiramente dedicadas à tentativa de quebrar as correntes nas quais eles mesmos se haviam prendido.
— Mas eles acreditavam...
— Lembre-se de suas dúvidas filosóficas, Miles. Cuidado! A mente do crente torna-se estagnada. Ela deixa de crescer para fora, em direção a um universo infinito e ilimitado.
Teg sentou-se em silêncio por um momento. Sentia a fadiga que fora impulsionada para além de sua consciência imediata pelo efeito da bebida, sentia o modo como os seus pensamentos eram agitados pela introdução de novos conceitos. Essas eram coisas que, tinham lhe ensinado, enfraqueceriam um Mentat, e no entanto se sentia fortalecido por elas.
“Ela está me ensinando”, pensou. “Existe uma lição nisto”
Como se fosse projetado em sua mente, delineando-se em fogo, ele encontrou toda a sua atenção de Mentat fixada na advertência Zensunni ensinada a cada aluno principiante na escola de Mentats:
Por sua crença em singularidades granulares, você nega todo o movimento — seja ele evolutivo ou involutivo. A crença fixa um universo granular e faz com que esse universo passe a existir. Não se pode permitir a mudança porque esta faria seu universo imóvel desaparecer. Não obstante ele se move por si mesmo quando você fica parado. Ele evolui à sua volta e se torna inacessível.
— A coisa mais curiosa — disse Taraza, ajustando-se ao estado de espírito que ela mesma tinha criado — é que os cientistas de Ix não percebem o quanto suas crenças dominam seu universo.
Teg olhou para ela, silencioso e receptivo.
— As crenças dos Ixianos são totalmente submissas às escolhas que eles fizeram no seu modo de encarar o universo — explicou Taraza. — O universo deles não age por si mesmo, mas de acordo com o tipo de experiências que eles escolhem.
Repentinamente, Teg escapou de suas memórias, assustado, e acordou no Castelo Gammu. Ainda se encontrava sentado na cadeira familiar de sua sala de trabalho. Um olhar pelo aposento mostrou que nada tinha saído do lugar. Somente alguns minutos se haviam passado naquele gabinete e seu conteúdo não lhe era mais estranho. Ele mergulhara e saíra do transe Mentat: “Restaurado.”
O cheiro e o gosto da bebida que Taraza lhe oferecera há tanto tempo ainda podia ser sentido em sua língua e em suas narinas. Num piscar Mentat, ele sabia que poderia reviver a cena uma vez mais — a luz mortiça dos globos luminosos, o sentimento da cadeira embaixo dele, os sons de suas vozes. Tudo estava lá para ser repetido, congelado numa cápsula de tempo de memória isolada.
Chamar de volta aquela memória era como criar um universo mágico onde suas habilidades eram ampliadas além de seus sonhos mais loucos. Não havia átomos naquele universo mágico, somente ondas e espantosos movimentos à sua volta. Ele era forçado a voltar lá para se libertar de todas as barreiras erguidas pela crença e pelo entendimento. Esse universo era transparente. Ele poderia ver através dele sem a interferência de telas sobre as quais tivesse que projetar aquelas formas. O universo mágico o reduzia a um núcleo de imaginação ativa em que suas próprias habilidades de criação de imagens constituíam a única tela sobre a qual se podia sentir uma projeção.
“Lá, eu sou o executor e a execução.”
O gabinete de trabalho ao redor de Teg ondulou para fora de sua realidade sensorial. Sentia sua consciência reduzindo-se a um único propósito, e esse propósito preenchia o universo. Encontrava-se aberto ao infinito.
“Taraza fez isso deliberadamente!”, pensou. “Ela me ampliou!”
O sentimento de espanto o ameaçava. Reconheceu como sua filha, Odrade, tinha recorrido a tais poderes a fim de criar para Taraza o Manifesto Atreides. Seus próprios poderes de Mentat encontravam-se submersos num grande padrão.
Taraza estava exigindo um terrível desempenho da parte dele. A necessidade de tal coisa desafiava-o e o aterrorizava. Podia muito bem significar o fim da Irmandade.
A regra básica é: nunca apóie a fraqueza; sempre apóie a força.
— Código da Bene Gesserit
— Como é que você dá ordens aos sacerdotes? — perguntou Sheeana. — Este lugar é deles.
Odrade respondeu com aparente superficialidade, mas escolheu as palavras de modo a se ajustarem ao conhecimento que ela sabia que Sheeana já possuía:
— Os sacerdotes têm origens Fremen. Sempre tiveram Reverendas Madres por perto. Além disso, criança, você também lhes dá ordens.
— Isso é diferente.
Odrade controlou um sorriso.
Pouco mais de três horas tinham transcorrido desde que sua força de assalto interrompera o ataque ao complexo do templo. Nesse período Odrade estabelecera um centro de comando nos alojamentos de Sheeana e realizara o trabalho necessário de avaliação dos resultados e da retaliação preliminar, tudo isso enquanto estimulava e observava Sheeana.
“Simulfluxo.”
Odrade olhou para o aposento que tinha escolhido como centro de comando. Um fragmento das roupas rasgadas de Stiros ainda restava junto à parede diante dela. “Baixas.” O aposento tinha uma forma curiosa. Não havia duas paredes paralelas. Ela cheirou o ar. Ainda restava um perfume residual de ozônio dos farejadores com que sua gente havia assegurado a privacidade desse quarto.
Por que a forma estranha? O prédio era antigo, fora remodelado e ampliado em muitas ocasiões, mas isso não explicava esse quarto. Havia uma textura agradável no reboco áspero, cor de creme, sobre as paredes e o teto. Belas cortinas de fibra de especiaria flanqueavam as duas portas. Era o início da tarde e a luz do sol filtrada por gelosias manchava a parede oposta à janela. Globos luminosos de cor amarelo-prata flutuavam perto do teto, todos sintonizados para igualarem a luz do sol. Sons abafados da rua chegavam pelos ventiladores embaixo das janelas. No piso, um suave padrão de tapetes cor de laranja e azulejos cinzentos revelava riqueza e segurança, mas repentinamente Odrade não se sentiu segura.
Uma Reverenda Madre de elevada estatura entrou da sala adjacente, onde ficara o centro de comunicações.
— Madre Comandante — ela disse —, as mensagens foram enviadas à Corporação, a Ix e aos Tleilaxu.
Odrade respondeu com a mente distante.
— Entendido.
A mensageira voltou às suas tarefas.
— Que está fazendo? — perguntou Sheeana.
— Estudando uma coisa.
Odrade comprimiu os lábios, pensando. Seus guias através do complexo do templo a tinham levado até ali através de um labirinto de corredores, escadarias com vislumbres de pátios através de arcadas e um esplêndido sistema de tubo-suspensores Ixiano que os conduzira silenciosamente até outro corredor, mais escadarias, outro corredor curvo... e finalmente esse aposento.
— Por que está estudando este quarto? — perguntou Sheeana.
— Quieta, criança!
O aposento era um poliedro irregular com o lado menor para a esquerda. Tinha cerca de 35 metros de comprimento, com metade dessa medida de largura, muitos divãs baixos e muitas cadeiras que ofereciam graus variados de conforto. Sheeana estava sentada, com o esplendor de uma rainha, numa poltrona de amarelo brilhante com braços amplos e macios. Não havia cadeiras-cães nesse lugar. Muito tecido marrom e azul. Odrade olhou para o trançado de um gradil branco, uma entrada de ventilação acima de uma pintura de montanhas na parede maior do canto. Uma brisa fresca vinha dos ventiladores abaixo das janelas e subia para o gradil acima da pintura...
— Este é o quarto de Hedley — disse Sheeana.
— Por que o aborrece usando o primeiro nome dele, criança?
— Isso o aborrece?
— Não faça jogos de palavras comigo, menina! Você sabe que isso o aborrece e é por isso que o faz.
— Então por que perguntou?
Odrade ignorou a resposta enquanto prosseguia seu estudo minucioso do aposento. A parede oposta à pintura mantinha um ângulo obliquo com relação á parede externa. Podia entender agora. “Muito hábil!” Esse aposento fora construído de modo a que cada sussurro lá dentro pudesse ser ouvido por alguém colocado atrás da grade de ventilação. Sem dúvida a pintura devia ocultar outro duto de ar para transportar os sons produzidos lá dentro. Nenhum farejador ou qualquer outro instrumento poderia detectar semelhante disposição. Nada daria sinal de ouvido ou olho espião. Somente os sentidos aguçados de uma pessoa treinada em camuflagens pudera descobrir isso.
Um sinal com a mão chamou uma acólita que esperava. Os dedos de Odrade sinalizaram de modo silencioso: “Descubra quem está escutando atrás daquele ventilador” Fez sinal com a cabeça para a grade acima da pintura. “Deixe-os continuar. Devemos saber para quem passam a informação.”
— Como soube que devia vir me salvar? — perguntou Sheeana.
“A criança tinha uma voz adorável, mas precisava de treinamento”, pensou Odrade. Havia nela uma firmeza que poderia ser transformada num instrumento poderoso.
— Responda-me! — ordenou Sheeana.
O tom imperioso surpreendeu Odrade, produzindo uma rápida irritação que ela foi forçada a suprimir. Correções deviam ser feitas imediatamente!
— Acalme-se, criança — disse Odrade.
Ela moldou a ordem num tenor preciso e viu que fizera efeito.
Novamente Sheeana a surpreendeu:
— Isso é outro tipo de Voz. Você está tentando me acalmar. Kipuna me contou tudo sobre a Voz.
Odrade ficou de frente para Sheeana e olhou para a menina. Sua tristeza inicial já tinha passado, mas ainda havia ódio quando ela falava de Kipuna.
— Estou ocupada estruturando nossa resposta àquele ataque — explicou Odrade. — Por que você fica me distraindo? Pensava que você queria que eles fossem punidos.
— Que vai fazer com eles? Diga-me. Que vai fazer?
Uma criança surpreendentemente vingativa, pensou Odrade. Isso teria que ser dominado. O ódio era uma emoção tão perigosa quanto o amor. A capacidade de odiar equivalia à capacidade de amar.
Odrade explicou:
— Eu enviei para a Corporação, para Ix e para os Tleilaxu a mensagem que sempre despachamos quando ficamos aborrecidas. Três palavras: “Vocês vão pagar”
— E como eles vão pagar?
— Uma adequada punição Bene Gesserit esta sendo elaborada. Eles vão sentir as conseqüências de seu comportamento.
— Mas o que vão fazer?
— No devido tempo você poderá aprender. Pode até aprender como preparamos nossas punições. Por ora não há necessidade de que saiba.
Uma expressão aborrecida surgiu na face de Sheeana. Ela disse:
— Vocês não estão nem mesmo zangadas. Aborrecidas, foi isso que falou.
— Domine sua impaciência, criança! Existem coisas que você não entende.
A Reverenda Madre da sala de comunicações retornou, olhou para Sheeana e disse a Odrade:
— A sede da Irmandade acusa o recebimento do seu relatório. Elas aprovam sua resposta.
Como a Reverenda Madre das comunicações permanecesse de pé esperando, Odrade perguntou:
— Mais alguma coisa?
Um rápido olhar para Sheeana revelou as reservas da mulher. Odrade ergueu a palma direita, sinal para a comunicação silenciosa.
A Reverenda Madre respondeu, seus dedos dançando com a excitação liberada: “Mensagem de Taraza — Os Tleilaxu são o pivô da trama. A Corporação deve ser levada a pagar caro por sua melange. Feche o seu acesso ao fornecimento Rakiano. Lance juntos a Corporação e Ix. Eles irão esgotar-se diante da esmagadora competição da Dispersão. Ignore as Oradoras Peixes por enquanto. Elas estão com Ix. O Mestre dos Mestres responde a nós de Tleilaxu. Ele vai para Rakis. Pegue-o.”
Odrade deu um leve sorriso para indicar que havia entendido. Observou a outra mulher deixar a sala. Não somente a Irmandade concordava com as ações executadas em Rakis como uma adequada punição Bene Gesserit seria preparada com uma velocidade fascinante. Obviamente, Taraza e suas assessoras tinham antecipado esse momento.
Odrade permitiu-se um suspiro de alívio. A mensagem para a Irmandade fora sucinta: um resumo do ataque, a lista das baixas entre as Irmãs, a identificação dos atacantes e uma nota confirmando a Taraza que Odrade já transmitira o aviso aos culpados: “Vocês vão pagar”
Sim, aqueles tolos atacantes agora conheceriam o ninho de vespas que tinham agitado. Isso iria criar o medo — parte importante de qualquer punição.
Sheeana remexeu-se na cadeira. Sua atitude revelava que ela iria tentar uma nova abordagem.
— Uma das suas disse que havia Dançarinos Faciais. — Ela indicou o teto com o queixo.
“Que vasto reservatório de ignorância é essa criança”, pensou Odrade. Esse vazio teria que ser preenchido. “Dançarinos Faciais!” Odrade pensou nos corpos que tinha examinado. Os Tleilaxu tinham finalmente colocado em ação seus novos Dançarinos Faciais. Era um teste para a Bene Gesserit, é claro. Esses novos eram extremamente difíceis de detectar. Mas ainda deixavam escapar o cheiro característico de seus feromônios, algo que lhes era único. Odrade enviara esse dado em sua mensagem à Irmandade.
O problema agora era manter secreto o conhecimento da Bene Gesserit. Odrade chamou a acólita mensageira e, indicando o ventilador com um rápido movimento dos olhos, disse na linguagem silenciosa dos dedos: “Mate aqueles que estão ouvindo!”
— Você está muito interessada na Voz, criança — disse ela, falando com Sheeana, ainda na poltrona. — O silêncio é a ferramenta mais valiosa para o aprendizado.
— Mas eu poderia aprender a usar a Voz? Eu quero aprender.
— Estou lhe dizendo para ficar calada e aprender com o silêncio.
— Eu lhe ordeno que me ensine a Voz!
Odrade refletiu a respeito dos relatórios de Kipuna. Sheeana tinha estabelecido um efetivo controle da Voz sobre a maioria das pessoas à sua volta. A criança tinha aprendido sozinha. Um nível intermediário de Voz para uma audiência limitada. Ela era uma criatura natural assustando Tuek, Cania e os outros. Fantasias religiosas contribuíam para esse temor, é claro, mas o domínio que Sheeana tinha do tom e da freqüência da Voz exibia uma admirável seletividade inconsciente.
A resposta indicada para tratar com Sheeana era óbvia. Odrade sabia que teria que usar de honestidade. Era o engodo mais poderoso e servia a mais de um propósito.
— Eu estou aqui para lhe ensinar muitas coisas — disse Odrade. — Mas não vou fazer isso sob ordem sua.
— Todos me obedecem! — disse Sheeana.
“Mal entrou na puberdade e já é uma Aristocrata”, pensou Odrade. “Deuses que criamos! Que será que ela pode tornar-se?”
Sheeana levantou-se da poltrona e ficou olhando para Odrade com uma expressão questionadora. Os olhos da criança estavam no mesmo nível dos ombros de Odrade. Sheeana ia ser alta, uma presença dominadora. Se sobrevivesse.
— Você responde algumas de minhas perguntas, mas não responde outras — ela disse. — Diz que estava esperando por mim, mas não me explica por quê. Por que não me obedece?
— Uma pergunta tola, criança.
— Por que fica me chamando de criança?
— Você não é uma criança?
— Já estou menstruando.
— Mas ainda é uma criança.
— Os sacerdotes me obedecem.
— Eles têm medo de você.
— E você não tem?
— Não, eu não.
— Ótimo! É chato as pessoas terem medo de você.
— Os sacerdotes pensam que você foi enviada por Deus.
— E você não pensa isso?
— Por que deveria? Nós...
Odrade interrompeu-se com a chegada da acólita mensageira. Os dedos dela dançaram em silenciosa comunicação: “Quatro sacerdotes escutavam. Eles foram mortos. Todos serviam a Tuek.”
Odrade mandou embora a mensageira.
— Ela fala a você com os dedos — comentou Sheeana. — Como é que ela faz isso?
— Você faz muitas perguntas erradas, criança. E ainda não me disse por que devo considerá-la um instrumento de Deus.
— Shaitan me poupa. Eu caminho pelo deserto e, quando Shaitan vem, eu converso com ele.
— Por que o chama de Shaitan e não de Shai-hulud?
— Todo o mundo me faz essa mesma pergunta estúpida!
— Então me dê sua resposta estúpida.
A expressão aborrecida retornou ao rosto de Sheeana.
— E devido ao modo como nos conhecemos.
— E como se conheceram?
Sheeana inclinou a cabeça para um lado, olhou para Odrade por um momento e então disse:
— Isso é segredo.
— E você sabe como conservar segredos?
Sheeana endireitou-se e fez sinal de que sim com a cabeça, mas Odrade percebeu a incerteza nos movimentos. A criança sabia quando estava sendo conduzida a uma posição impossível de manter!
— Excelente! — exclamou Odrade. — Manter segredos é um dos ensinamentos mais essenciais de uma Reverenda Madre. Fico feliz por não termos que incomodá-la quanto a esse detalhe.
— Mas eu quero aprender tudo!
Havia petulância naquela voz. Controle emocional muito pobre.
— Você deve me ensinar tudo! — insistiu Sheeana.
“Hora do chicote”, pensou Odrade. Sheeana tinha falado e gesticulado o suficiente para que até uma acólita do quinto grau se sentisse confiante em sua capacidade de controlá-la agora.
Usando todo o poder da Voz, Odrade disse:
— Não use esse tom de voz comigo, criança! Não se quiser aprender tudo!
Sheeana ficou rígida. levou mais de um minuto absorvendo o que lhe tinha acontecido e então relaxou. Daí a pouco sorriu com uma expressão meiga e aberta.
— Oh, ficou tão feliz por você ter vindo! Estava muito chato ultimamente.
Nada ultrapassa a complexidade da mente humana.
— Leto II: Registros de Dar-es-Balat
A noite de Gammu, que caía muito depressa nessa latitude, ainda se encontrava a duas horas no futuro. Uma formação crescente de nuvens lançava sua sombra sobre o Castelo e, ao comando de Lucilla, Duncan retornara ao pátio para uma sessão intensa de exercícios autodirigidos.
Lucilla observava do parapeito de onde o tinha visto pela primeira vez.
Duncan movia-se aos saltos e contorções do combate Bene Gesserit, lançando o corpo através do jardim, rolando, arremessando-se para o lado, correndo para a frente e para trás.
Era uma ótima exibição da maneira de se esquivar ao acaso, pensou Lucilla. Ela não podia perceber qualquer padrão previsível nos movimentos dele, e a velocidade era atordoante. O rapaz já tinha quase 16 AP e atingira a plataforma de seu potencial prana-bindu.
Os movimentos cuidadosamente controlados de seus exercícios de treinamento revelavam tanto! Ele tinha respondido rapidamente quando ela ordenara pela primeira vez essas sessões noturnas. O passo inicial nas instruções que recebera de Taraza tinha sido dado. O ghola a amava. Não havia dúvidas a respeito. Ela desempenhava um papel de fixação maternal e isso fora conseguido sem enfraquecê-lo, embora as ansiedades de Teg tivessem sido despertadas.
“Minha sombra encontra-se neste ghola, mas ele não é um seguidor suplicante nem dependente”, procurou tranqüilizar-se. “Teg preocupa-se sem motivo.”
Naquela manhã mesma ela tinha dito a Teg:
— Aonde suas forças o levam ele continua a se expressar livremente.
“Teg devia vê-lo agora”, ela pensou. Esses novos exercícios eram, em grande parte, criação do próprio Duncan.
Lucila conteve uma exclamação de entusiasmo ante um salto particularmente ágil que levou Duncan quase ao centro do pátio. O ghola estava desenvolvendo um equilíbrio neuromuscular que, no devido tempo poderia ser igualado por um equilibro psicológico pelo menos igual ao de Teg. O impacto cultural de semelhante conquista seria imenso. Bastava ver todos aqueles que ofereciam sua lealdade a Teg e, através dele, à Irmandade.
“Devemos agradecer ao Tirano por grande parte disso”, pensou ela. Antes de Leto II, nenhum sistema amplo de ajuste cultural tinha durado o suficiente para se aproximar do equilíbrio que a Bene Gesserit sustentava ser um ideal. Era esse equilíbrio — “fluindo ao longo da lâmina de uma espada” — que fascinava Lucila. Era por isso que ela se entregava sem reservas a um projeto cujo objetivo final não conhecia, mas que lhe exigia um desempenho que seus instintos rotulavam de repugnante.
“Duncan é tão jovem!”
O que a Irmandade queria que fizesse em seguida fora enunciado explicitamente por Taraza: “Impressão Sexual.” Naquela mesma manhã Lucilla se observara nua diante de um espelho, moldando as atitudes e os movimentos de face e de corpo que sabia ter que usar para cumprir as ordens de Taraza. Num repouso artificial, Lucilla vira o próprio rosto aparecer como o de uma deusa do amor pré-histórica — opulenta de carne e de promessa de uma suavidade na qual um macho excitado poderia mergulhar.
Em seu processo de educação, Lucilla tinha visto estátuas muito antigas dos Primeiros Tempos, pequenas figuras de pedra de fêmeas humanas com quadris largos e seios pendentes, que asseguravam abundância a uma criança que estivesse sendo amamentada. À sua vontade, Lucilla poderia produzir uma jovem simulação daquela forma ancestral.
No jardim lá embaixo Duncan parou por um momento e pareceu estar pensando em seu próximo movimento. Daí a pouco ele assentiu para si mesmo, deu um salto alto com uma pirueta no ar e caiu sobre uma perna só, o que o lançou de lado em giros mais próximos da dança que do combate.
Lucilla comprimiu a boca numa linha de decisão.
“Impressão Sexual.”
O segredo do sexo não era segredo algum, pensou. Suas raízes estavam ligadas à própria vida. Isso explicava, logicamente, por que a primeira sedução que lhe fora ordenada pela Irmandade tinha plantado um rosto masculino em sua memória. A Madre Procriadora dissera-lhe para esperar algo assim e não ficar alarmada. Mas Lucilla percebia que a Impressão Sexual era uma faca de dois gumes. A pessoa pode aprender a fluir ao longo do fio da lâmina, mas também pode ser cortada por ele. Algumas vezes, quando o rosto masculino daquela primeira sedução ordenada lhe voltava à mente sem ser solicitado, Lucilla sentia-se confundida por ele. A memória vinha com tanta freqüência no pico de um momento íntimo que a forçava a grandes esforços de dissimulação.
— Assim você ganha forças — dissera a Madre Procriadora, tranqüilizando-a.
E no entanto havia ocasiões em que ela sentia ter trivializado uma coisa que teria sido melhor guardar como mistério.
Um sentimento de amargura pelo que devia fazer invadiu Lucilla. Esses crepúsculos, quando ela observava as sessões de treinamento do Duncan, tinham constituído sua hora favorita do dia. O desenvolvimento muscular do rapaz mostrava um progresso muito definido, com o crescimento de músculos e ligações nervosas sensíveis — todas as maravilhas da prana-bindu pelas quais a Irmandade era tão famosa. O próximo passo estava quase chegando, contudo, e ela não poderia mais mergulhar na vigilante apreciação de seu pupilo.
Miles Teg viria dai a pouco, ela sabia, e o treinamento do Duncan passaria novamente para o salão, com suas armas mais mortais.
“Teg”
Uma vez mais Lucilla pensou a respeito dele, admirada. Teg a tinha atraído mais de uma vez, num modo particular que ela reconhecera imediatamente. Uma Impressora dispunha de alguma liberdade para selecionar seus próprios parceiros de procriação, desde que não recebesse tarefas anteriores nem ordens contrárias. Teg era velho, mas seus registros sugeriam que ainda poderia ser viril. Ela não teria permissão para ficar com a criança, é claro, mas já tinha aprendido a lidar com isso.
“Por que não?”, perguntara a si mesma.
Seu plano era extremamente simples. Complete a Impressão do ghola e então, registrando sua intenção ante Taraza, conceba uma criança do formidável Miles Teg. Uma sedução introdutória, prática, era indicada, mas Teg ainda não tinha sucumbido. Seu cinismo Mentat a detivera numa tarde, na câmara vestuário da Sala de Armas.
— Meus dias como reprodutor estão terminados, Lucilla. A Irmandade já devia estar satisfeita com o que lhe dei.
Teg, vestido apenas com uma malha negra de exercício, terminou de enxugar o rosto suado com uma toalha e a jogou no cesto. Sem olhar para ela, disse:
— Quer por favor me deixar sozinho agora?
“Então ele percebeu minhas insinuações!”, pensou ela.
Devia ter previsto isso, sendo Teg quem era. Lucilla tinha certeza de que ainda poderia seduzi-lo. Nenhuma Reverenda Madre com o treinamento dela deveria fracassar, nem mesmo com um Mentat de poderes tão óbvios quanto Teg.
Lucilla permaneceu por um momento sem se decidir, sua mente planejando automaticamente um meio de superar essa rejeição preliminar. Alguma coisa a deteve. Não era a raiva da rejeição nem a remota possibilidade de que ele poderia ser imune à sua astúcia. O orgulho e um possível fracasso (havia sempre essa possibilidade) pouco tinham a ver com isso.
“Dignidade.”
Havia em Teg uma dignidade tranqüila, e ela já tinha o conhecimento comprovado daquilo que sua coragem e sua perícia tinham fornecido à Irmandade. Não inteiramente consciente de seus motivos, Lucilla afastou-se dele. Possivelmente era a gratidão subjacente que à Irmandade sentia com relação a Teg. Seduzi-lo agora seria humilhante, não apenas para ele, mas para ela própria. Não podia realizar tal ato, não sem ordem direta de uma superiora.
Enquanto permanecia no parapeito, algumas dessas memórias turvavam os sentidos de Lucilla. Havia um movimento nas sombras do portal rumo à Ala das Armas, e Teg podia ser vislumbrado por lá. Lucilla dominou suas reações e focalizou sua atenção no Duncan. O ghola havia interrompido seus rolamentos controlados pelo gramado. Ficou quieto, respirando profundamente, sua atenção voltada para Lucilla. Ela notou a transpiração no rosto dele, as manchas escuras no macacão azul-claro.
Inclinando-se sobre o parapeito, Lucilla o chamou.
— Isso foi muito bom, Duncan. Amanhã vou começar a lhe ensinar mais algumas combinações de pés e punhos.
As palavras lhe escaparam espontaneamente e ela soube de imediato qual fora o motivo. Elas eram dirigidas a Teg, cuja sombra aparecia na porta, e não ao ghola. Ela estava dizendo a Miles: Está vendo? Você não é o único que lhe pode ensinar habilidades mortais.
Lucilla percebeu então que Teg se insinuara mais profundamente em sua psique do que deveria permitir. Aborrecida, voltou sua atenção para a figura alta, emergindo das sombras do portal. Duncan já corria em direção ao Bashar.
Enquanto Lucilla focalizava sua atenção em Teg, a mais elementar das reações Bene Gesserit relampejou pelo seu corpo. Os passos de sua reação poderiam ser definidos depois: “Algo está errado! Perigo! Teg não é Teg!” Naquele relâmpago de reação, nada disso, entretanto, tomou uma forma distinta. Ela respondeu empregando todo o volume da Voz que poderia usar:
— Duncan! Para o chão!
Duncan caiu esticado no gramado, sua atenção centrada na figura de Teg que emergia da Ala de Armas. Havia uma arma laser modelo de campo, nas mãos do homem.
“Dançarino Facial!”, pensou Lucilla. Somente os sentidos hiperalertas lhe revelavam isso. “Um dos novos!”
— Dançarino Facial! — gritou Lucilla.
Duncan pulou de lado e depois saltou para cima, rodopiando no ar a pelo menos um metro do solo. A velocidade de sua reação deixou Lucilla chocada. Ela não sabia que um ser humano poderia mover-se tão depressa! O primeiro raio da arma laser cortou o ar embaixo de Duncan enquanto ele parecia flutuar antes da queda.
Lucilla pulou do parapeito e agarrou um apoio no peitoril da janela do nível inferior. Antes que sua queda fosse detida, sua mão direita disparou num movimento rápido, encontrando a calha que sua memória lhe dizia estar ali. Seu corpo arqueou para o lado e ela caiu no peitoril da janela mais abaixo. O desespero a impulsionava, muito embora soubesse que seria muito tarde.
Alguma coisa estalou na parede acima dela. Viu uma linha de matéria derretida correndo em sua direção enquanto se jogava para a esquerda, girando e caindo no gramado abaixo. Seu olhar captou a cena à sua volta num instante, enquanto ela recuperava o equilíbrio.
Duncan corria para o atacante, esquivando-se e se contorcendo numa terrível repetição de sua sessão de prática de solo. A velocidade de seus movimentos era incrível!
Lucilla notou indecisão no rosto do falso Teg.
Ela correu em direção ao Dançarino Facial, sentindo os pensamentos da criatura: “Dois deles atrás de mim!'
Mas o fracasso era inevitável e Lucilla já sabia disso enquanto corria. O Dançarino Facial só tinha que ajustar sua arma para força total a curto alcance e lancetar o ar, sacudindo a arma à sua frente. Nada penetraria tal defesa. Enquanto calculava suas opções, buscando desesperadamente algum meio de derrotar o atacante, Lucilla viu uma fumaça vermelha aparecer no peito do falso Teg. Uma linha vermelha subiu num ângulo oblíquo através da musculatura do braço que segurava a arma laser. O braço caiu como uma peça partida de uma estátua, o ombro soltando-se do torso num esguicho de sangue. A figura tombou e se dissolveu em mais fumaça vermelha e névoa sangrenta, desfazendo-se em pedaços nos degraus, uma mistura de fragmentos escuros e azuis, tintos de vermelho.
Lucilla sentiu o cheiro característico dos feromônios enquanto parava. Duncan parou ao lado dela, olhando para o movimento da porta, atrás do Dançarino Facial.
Outro Teg surgiu por trás do morto. Lucilla identificou a realidade: era o verdadeiro Teg.
— Este é o Bashar — disse Duncan
Lucilla experimentou um breve sentimento de prazer ao ver que Duncan aprendera tão bem suas lições de identificação: como reconhecer seus amigos mesmo que veja apenas uma parte deles. Ela apontou para o Dançarino Facial morto.
— Sinta o cheiro dele.
Duncan inalou.
— Sim, percebo. Mas não era uma cópia muito boa. Percebi o que ele era assim que você notou.
Teg saiu para o jardim carregando uma arma laser pesada apoiada sobre o braço esquerdo. A mão direita estava firme sobre a empunhadura e o gatilho. Olhou à volta, examinando o pátio, depois voltou sua atenção para o Duncan e finalmente para Lucilla.
— Traga o Duncan para dentro — ele disse.
Era a ordem de um comandante em batalha, dependente apenas de um conhecimento superior sobre o que fazer durante uma emergência. Lucilla obedeceu sem questionar.
Duncan não falou quando ela o puxou pela mão, passando pelo monte de carne sangrenta que fora o Dançarino Facial e o levando para a Ala das Armas. Uma vez lá dentro, ele olhou para a pilha úmida nos degraus lá fora e perguntou:
— Quem o deixou entrar?
Não “como ele entrou?”, observou ela. Duncan já ultrapassara os detalhes menos importantes para enxergar a raiz do problema.
Teg caminhava à frente deles em direção ao seu gabinete. Parou na porta, deu uma olhada lá dentro e fez sinal para que Duncan e Lucilla o seguissem.
O quarto de Teg estava cheio de um cheiro forte de carne queimada com fios de fumaça a exalarem aquele odor de churrasco passado que Lucilla tanto detestava: carne humana assada! Uma figura usando um dos uniformes de Teg estava caída de cara no chão, no ponto onde rolara de cima da cama.
Teg rolou o corpo com a ponta de uma das botas, expondo o rosto: olhos abertos fixos, sorriso fixo num esgar. Lucilla reconheceu um dos guardas do perímetro, um dos que tinham vindo para o Castelo com Schwangyu, assim diziam os registros.
— O homem deles aqui dentro — disse Teg. — Patrin deu cabo dele e nós o vestimos com um de meus uniformes. Foi o suficiente para confundir os Dançarinos Faciais, pois nós não os deixamos ver o rosto antes de atacarmos. Eles não tiveram tempo de fazer uma impressão de memória.
— Você sabe disso! — surpreendeu-se Lucilla.
— Bellonda instruiu-me completamente.
De repente, Lucilla percebeu o significado do que Teg tinha revelado. Suprimiu um sentimento de raiva.
— Como deixou que um deles chegasse até o pátio?
Com a voz calma, Teg explicou:
— Havia coisas mais urgentes a serem feitas aqui. Tive que fazer uma escolha que se revelou certa.
Lucilla não ocultou a irritação:
— A decisão foi deixar o Duncan defender-se sozinho?
— Deixá-lo a seus cuidados ou deixar que outros atacantes se entrincheirassem firmemente aqui dentro. Patrin e eu passamos maus bocados limpando esta ala. Tínhamos as mãos cheias. — Teg olhou para o Duncan. — Ele se saiu muito bem, graças ao nosso treinamento.
— Aquela... aquela coisa quase o pegou!
— Lucilla! — Teg sacudiu a cabeça. — Eu tinha tudo bem cronometrado. Vocês dois poderiam defender-se durante pelo menos um minuto lá fora. Eu sabia que você ia jogar-se na frente daquela coisa e se sacrificar para salvar o Duncan. Mais 20 segundos.
Ante as palavras de Teg, Duncan voltou-se para Lucilla com olhos brilhantes.
— Você teria feito isso?
Como Lucilla não respondesse, Teg disse:
— Sim, ela teria feito isso.
Lucilla não negou. lembrava-se agora da incrível rapidez com que o Duncan se movera, das atordoantes mudanças de direção de seu ataque.
— Foram decisões de Batalha — Teg acrescentou, olhando para Lucilla.
Ela aceitou isso. Como de hábito, Teg tinha tomado a decisão certa. Ela sabia, entretanto, que teria que relatar isso a Taraza. As acelerações prana-bindu do ghola iam além de qualquer coisa que se pudesse esperar. Seu corpo enrijeceu-se quando Teg se virou, completamente alerta, seu olhar no portal atrás dela. Lucila olhou para trás.
Schwangyu estava lá, com Patrin atrás dela segurando outro laser pesado. O cano, percebeu Lucilla, estava apontado para Schwangyu.
— Ela insistiu — disse Patrin.
Havia uma expressão furiosa no rosto do velho ajudante. As linhas profundas ao lado de sua boca apontavam para baixo.
— Há um rastro de corpos indo até a casamata do sul — disse Schwangyu. — Sua gente não permite que eu vá até lá inspecionar. Eu lhe ordeno que retire essas ordens imediatamente.
— Não até que minhas equipes de limpeza tenham terminado — disse Teg.
— Eles estão matando gente lá fora! Eu posso ouvir!
Um tom de raiva tinha surgido na voz de Schwangyu. Ela olhou furiosa para Lucilla.
— Também estamos interrogando gente lá fora — acrescentou Teg.
Schwangyu voltou seu olhar de fúria para Teg.
— Se aqui é muito perigoso, então vamos levar a... criança para os meus alojamentos. Agora!
— Não vamos fazer isso — replicou Teg.
Seu tom de voz era baixo, mas afirmativo.
Schwangyu enrijeceu-se contrariada, e os nós dos dedos de Patrin ficaram brancos em torno do cabo da arma laser. O olhar de Schwangyu passou pela arma, encontrando o olhar avaliador de Lucilla. As duas mulheres olharam nos olhos uma da outra.
Teg aproveitou o momento e disse:
— Lucilla, leve o Duncan para a minha sala de estar.
Indicou uma porta atrás.
Lucilla obedeceu, mantendo seu corpo entre Duncan e Schwangyu o tempo todo.
Uma vez atrás da porta fechada, Duncan disse:
— Ela quase me chamou de ghola. Está mesmo perturbada.
— Schwangyu deixou muitas coisas escaparem à sua guarda — disse Lucilla.
Ela olhou a sala de estar de Teg, a primeira visão que tinha dessa parte dos alojamentos dele. A intimidade do Bashar lembrou-lhe de seus próprios alojamentos — a mesma mistura de ordem e desordem. Rolos de leitura aglomeravam-se sobre uma mesinha ao lado de uma cadeira antiga com um estofado cinza-claro. O leitor de rolos fora colocado para o lado, como se o usuário tivesse saído por um momento pretendendo voltar num instante. Uma jaqueta negra do uniforme de Bashar fora deixada sobre o recosto de uma cadeira próxima, com material de costura numa caixa aberta ao lado. O punho da jaqueta mostrava um buraco cuidadosamente costurado.
“Ele cuida de suas roupas pessoalmente.”
Essa era uma faceta do famoso Miles Teg que ela não tinha esperado. Se tivesse pensado a respeito, teria julgado que Patrin cuidaria dessas tarefas.
— Schwangyu deixou os atacantes entrarem, não foi? — perguntou Duncan.
— O pessoal dela deixou — respondeu Lucilla sem esconder a irritação. — Ela foi longe demais. Um pacto com os Tleilaxu!
— Patrin vai matá-la?
— Não sei nem me importo!
Do lado de fora da porta, Schwangyu falava com raiva, sua voz alta e muito clara:
— Vamos ficar esperando aqui, Bashar?
— Você pode sair a hora que quiser.
— Mas não posso entrar no túnel sul!
Schwangyu parecia petulante. Lucila sabia que isso era alguma coisa que a velha estava fazendo deliberadamente. Que estaria ela planejando? Teg devia ser muito cauteloso agora. Tinha sido muito hábil lá fora, revelando a Lucilla as falhas no controle de Schwangyu, mas eles ainda não tinham dominado todos os recursos desta última. Lucilla se perguntou se não devia deixar o Duncan e voltar para junto de Teg.
Ele disse:
— Você pode ir agora, mas eu a aviso para que não volte aos seus alojamentos.
— E por que não?
Schwangyu parecia surpresa, realmente surpresa, e não escondia isso muito bem.
— Só um momento — disse Teg.
Lucilla tornou-se consciente de gritos distantes. A pancada pesada de uma explosão soou em algum lugar próximo, seguida por outra mais distante. A poeira levantou-se da cornija acima da porta da sala de estar de Teg.
— Que foi isso?
Era Schwangyu novamente, sua voz excessivamente alta.
Lucilla postou-se entre Duncan e a parede que os separava do corredor.
Duncan olhou para a porta, o corpo posicionado para a defesa.
— Aquela primeira explosão é a que eu esperava que eles provocassem — disse a voz de Teg. — A segunda, creio, é a que eles não esperavam.
Um apito soou próximo, suficientemente alto para cobrir alguma coisa que Schwangyu disse.
— Foi isso, Bashar — confirmou Patrin.
— Que está acontecendo? — quis saber Schwangyu.
— A primeira explosão, cara Reverenda Madre, foram os seus alojamentos sendo destruídos por nossos atacantes. A segunda explosão éramos nós destruindo os atacantes.
— Acabo de receber o sinal, Bashar — disse a voz de Patrin. — Pegamos todos eles. Eles desceram de flutuador de uma não-nave, exatamente como esperava que fizessem.
— E quanto à nave?
A voz de Teg transmitia uma exigência cheia de fúria.
— Destruída no instante em que saiu da dobra espacial. Sem sobreviventes.
— Seus tolos! — gritou Schwangyu. — Sabem o que fizeram?
— Eu cumpri minhas ordens de proteger o rapaz de qualquer ataque. — disse Teg. — A propósito, você não devia estar nos seus alojamentos a esta hora?
— O quê?
— Eles estavam atrás de você quando explodiram seu quarto. Os Tleilaxu são muito perigosos, Reverenda Madre.
— Eu não acredito em você!
— Sugiro que dê uma olhada. Patrin, deixe-a passar.
Enquanto ouvia, Lucila percebia a discussão implícita. O Bashar Mentat recebera um voto de confiança maior do que a Reverenda Madre, e Schwangyu sabia disso. Ela devia estar desesperada. Fora um movimento muito hábil afirmar que os alojamentos dela tinham sido destruídos. Mas ela podia não acreditar. À frente de tudo mais na consciência de Schwangyu devia estar agora a compreensão de que Teg e Lucilla reconheciam a cumplicidade dela no ataque. E não havia modo de avaliar quantos já saberiam disso. Patrin, é claro, sabia.
Duncan olhava para a porta fechada, a cabeça inclinada para um dos lados. Havia uma expressão curiosa em seu rosto, como se ele pudesse enxergar realmente através da porta, vigiando as pessoas lá fora.
Schwangyu disse, com o controle mais cuidadoso de sua voz.
— Não acredito que meus alojamentos tenham sido destruídos.
Ela sabia que Lucilla devia estar ouvindo.
— Só há um meio de se certificar — disse Teg.
“Muito esperto!”, pensou Lucilla Schwangyu não poderia tomar uma decisão até que tivesse certeza de que os Tleilaxu tinham agido traiçoeiramente.
— Vocês vão me esperar aqui, então! Isso é uma ordem!
Lucilla ouviu suas palavras, seguidas do ruído dos mantos da mulher em movimento. A Reverenda Madre saiu.
“Controle emocional muito ruim”, pensou Lucilla. O que isso revelava a respeito de Teg era igualmente perturbador. “Ele fez isso com ela!” Teg tinha feito uma Reverenda Madre perder o equilíbrio.
A porta em frente de Duncan se abriu. Teg apareceu com uma das mãos na maçaneta.
— Rápido! — ele disse. — Devemos estar longe do Castelo antes que ela volte.
— Longe do Castelo?
Lucilla não escondeu o choque.
— Rápido, faça o que eu digo! Patrin tem uma rota de fuga preparada para nós.
— Mas eu devo...
— Você não deve fazer nada! Venha como está. Siga-me ou serei obrigado a forçá-la.
— Você pensa realmente que pode forçar...
Lucilla não completou a frase. Era um novo Teg que estava diante de si, e ela percebia que ele não teria feito semelhante ameaça se não tivesse condições de cumpri-la.
— Muito bem.
Ela obedeceu. Pegou Duncan pela mão e seguiu Teg para fora de seus alojamentos.
Patrin estava no corredor, olhando para a direita.
— Ela se foi — disse o velho. Olhou para Teg. — Sabe o que fazer, Bashar?
— Pat!
Lucilla nunca tinha ouvido Teg chamar seu ajudante pelo diminutivo.
Patrin sorriu, revelando dentes brancos e perfeitos.
— Desculpe Bashar, mas toda essa excitação, sabe como é. Deixo por sua conta, então. Tenho que fazer a minha parte.
Teg fez sinal para que Lucilla e Duncan seguissem pelo corredor à direita. Ela obedeceu e ouviu Teg seguindo-a logo atrás. A mão de Duncan parecia escorregadia de suor em sua mão. Ele se soltou dela e caminhou livremente ao seu lado, sem olhar para trás.
A queda sustentada por suspensores, no final do corredor, estava guarnecida por dois guardas de confiança de Teg. Ele fez sinal para eles:
— Ninguém deve seguir-nos.
Os dois responderam ao mesmo tempo
— Certo, Bashar.
Ao entrar na queda junto com Teg e Duncan, Lucilla percebeu ter tomado partido numa disputa que ela mesma não entendia totalmente. Podia sentir os movimentos ditados pela política da Irmandade como se fosse uma corrente de água fluindo em torno dela. Em geral o movimento permanecia como uma onda suave, lavando a areia da praia, mas agora ela sentia uma vaga imensa, destruidora, preparando-se para afogá-la em espuma.
Quando eles saíram para a câmara de interconexão da casamata do sul, Duncan disse:
— Nós devíamos estar todos armados.
— Logo estaremos — disse Teg. — E espero que você esteja preparado para matar qualquer um que tente nos deter.
O fato mais significativo é este: nenhuma fêmea Bene Tleilax jamais foi vista longe da proteção de seu núcleo planetário. (Os Dançarinos Faciais que assumem a identidade de mulheres não contam para esta análise. Eles são híbridos estéreis, não podendo ser contados como reprodutores.) Os Tleilaxu conservam suas mulheres segregadas para mantê-las fora do nosso alcance. Essa é nossa dedução primária. Deve ser nos óvulos que os Mestres Tleilaxu escondem seus segredos mais preciosos.
— Análise da Bene Gesserit, Arquivos XOXTM99...041
— Então nos encontramos, afinal — disse Taraza.
Olhava através dos dois metros de espaço que separavam sua cadeira da de Tylwyth Waff. Suas analistas tinham garantido que esse homem era o Mestre de todos os Mestres Tleilaxu. Que uma figura tão frágil pudesse ter tanto poder era difícil de acreditar. Mas os estereótipos gerados pela aparência deviam ser abandonados, lembrou ela a si mesma.
— Há quem não acredite que isto fosse possível — disse ele.
A voz dele era fraca, meio cantada, notou Taraza. Mais uma coisa para ser avaliada por padrões diferentes.
Ambos encontravam-se na neutralidade de uma não-nave da Corporação, com naves monitoras da Bene Gesserit e dos Tleilaxu agarradas ao casco do imenso vaso espacial como pássaros predadores pousados sobre uma carcaça. (A Corporação mostrara-se superansiosa em aplacar a Bene Gesserit. “Vocês vão pagar”, sabia a Corporação. E eles já tinham pago outras vezes.) O pequeno aposento oval no qual o encontro era realizado fora convencionalmente revestido de cobre e se tornara “à prova de espionagem”. Taraza não acreditava nisso nem por um instante. Também presumia que os laços de união entre a Corporação e os Tleilaxu, laços forjados com melange, ainda permaneciam plenamente atados.
Waff não se iludia com Taraza. Essa mulher era muito mais perigosa do que qualquer Honrada Madre. E se matasse Taraza ela seria imediatamente substituída por outra tão perigosa quanto ela. Alguém que possuiria todas as informações atualmente na posse dessa Madre Superiora.
— Achamos seus novos Dançarinos Faciais muito interessantes — disse Taraza.
Waff fez uma careta involuntária. Sim, muito mais perigosas que as Honradas Madres, que ainda nem culpavam os Tleilaxu pela perda de toda uma não-nave.
Taraza olhou para o pequeno relógio digital de face dupla colocado sobre a mesa baixa à sua direita, de onde o relógio podia ser visto pelos dois. O mostrador voltado para Waff fora sincronizado com o relógio interno dele. Ela notou que as duas leituras de relógio biológico encontravam-se a 10 segundos de sincronia com o meio-dia arbitrário. Era uma das sofisticações desse confronto, onde até a posição e o espaço entre as duas cadeiras tinham sido especificados no acordo.
Waff e ela estavam sozinhos na sala. O espaço oval ao redor tinha seis metros no eixo maior e metade dessa distância de largura. Ambos ocupavam cadeiras-fundas de madeira coberta por um tecido laranja, sem qualquer parte de metal ou de material estranho. O único móvel no aposento era a mesinha com o relógio, uma superfície de plaz negro sobre três pés de madeira tipo palito. Cada um dos participantes do encontro fora examinado com detectores. Cada um tinha três guardas pessoais montando guarda fora da única entrada. Taraza não acreditava que os Tleilaxu fossem tentar uma troca com Dançarinos Faciais, não nas atuais circunstâncias!
“Vocês vão pagar”
Os Tleilaxu também estavam conscientes de sua vulnerabilidade, especialmente agora que tinham o conhecimento de que as Reverendas Madres podiam expor os novos Dançarinos Faciais.
Waff pigarreou.
— Eu não espero que cheguemos a um acordo.
— Então por que veio?
— Busco uma explicação para essa mensagem curiosa que recebemos de seu Castelo em Rakis. Pelo que devemos pagar?
— Eu lhe peço, Sr. Waff, que abandone os fingimentos e dissimulações tolas nesta sala. Existem fatos que ambos conhecemos e que não podemos evitar.
— Tais como?
— Nenhuma fêmea Bene Tleilax jamais nos foi fornecida para procriação.
E ela pensou: “Deixe-o suar com isso!” Era terrivelmente frustrante não dispor de uma linha de Outras Memórias Tleilaxu para ser investigada pela Bene Gesserit, e Waff devia saber disso.
Waff olhou, carrancudo.
— Certamente não pensa que pode barganhar com uma linha de... — Ele se interrompeu, sacudindo a cabeça. — Não posso crer que esse seja o pagamento que estão pedindo.
Como Taraza não respondesse, ele acrescentou:
— Aquele estúpido ataque ao templo Rakiano foi realizado independentemente, por pessoas que se encontravam no local. Elas já foram punidas.
“Movimento esperado numero três”, pensou Taraza.
Ela participara de numerosas sessões de instruções-análise antes desse encontro, se é que se poderia chamá-las de sessões de instrução. Havia análises em excesso. Muito pouco se sabia a respeito desse Mestre Tleilaxu, esse Tylwyth Waff. Algumas projeções opcionais extremamente importantes tinham sido obtidas por inferência (mas ainda era preciso provar que eram verdadeiras). O problema é que alguns dos dados mais interessantes vinham de fontes não muito confiáveis. Mas num fato se podia confiar: essa figura de duende sentada diante dela era uma criatura mortalmente perigosa.
O movimento número três de Waff chamou sua atenção. Era hora de responder. Taraza deu um sorriso:
— Esse era precisamente o tipo de mentira que esperávamos de vocês — ela disse.
— Vamos começar com os insultos? — perguntou ele calmamente.
— Vocês estabeleceram o padrão. Mas me permita adverti-lo de que não vai nos tratar da maneira como tratou aquelas prostitutas da Dispersão.
A expressão de Waff gelou, convidando Taraza a um movimento ousado. As deduções da Irmandade, baseadas parcialmente no desaparecimento de uma nave de conferência Ixiana, eram precisas! Mantendo o mesmo sorriso, ela seguiu uma linha de conjectura opcional como se fosse um fato conhecido.
— Eu acho — ela disse — que as prostitutas gostariam de saber que existem Dançarmos Faciais no meio delas.
Waff dominou sua raiva. “Essas malditas bruxas! Elas sabem, de algum modo elas sabem!” Seus conselheiros tinham manifestado dúvidas quanto a esse encontro. E uma minoria substancial fora contra ele. As bruxas eram tão... diabólicas. E suas retaliações!
“Hora de mudar a atenção para Gammu”, pensou Taraza. “Deixá-lo desequilibrado”. Ela disse:
— Mesmo quando vocês subvertem uma de nós, como fizeram com Schwangyu em Gammu, não aprendem coisa alguma que seja de valor!”
Waff deixou transparecer a irritação:
— Ela pensou em... contratar-nos como se fôssemos um bando de assassinos! Nós lhe ensinamos uma lição!
“Ah, seu orgulho começa a aparecer”, pensou Taraza. “Interessante. As implicações de uma estrutura moral atrás de tal orgulho devem ser exploradas.”
— Vocês nunca penetraram realmente em nossas fileiras — comentou Taraza.
— E vocês nunca penetraram entre os Tleilaxu!
Waff conseguiu passar essa ostentação com extraordinária calma. “Ele precisa de tempo para pensar! Para planejar!”
— Talvez queiram saber o preço do nosso silêncio — sugeriu Taraza. Ela tomou a expressão imutável de Waff por um sinal de concordância e acrescentou: — Uma coisa: vocês vão compartilhar conosco tudo que aprenderam sobre aquelas prostitutas criadas pela Dispersão, aquelas que se chamam de Honradas Madres.
Waff estremeceu. Muita coisa fora confirmada através do assassinato das Honradas Madres. As sutilezas sexuais! Somente a psique mais forte poderia resistir ao envolvimento em tamanhos êxtases. O potencial de tal ferramenta era enorme! Devia ser compartilhado com essas bruxas?
— Tudo que aprendeu a partir delas — insistiu Taraza.
— Por que as chama de prostitutas?
— Elas tentam imitar-nos e no entanto se vendem em troca de poder, criando uma farsa a partir de tudo o que representamos. Honradas Madres!
— Elas superam vocês em número, pelo menos na proporção de 10 mil a um! Vimos a evidência.
— Uma de nós poderia derrotar todas elas — disse Taraza.
Waff ficou em silêncio, observando-a. Seria isso mera ostentação? Nunca se podia ter certeza no que dizia respeito às bruxas Bene Gesserit. Elas faziam coisas. O lado sombrio do universo mágico pertencia-lhes. Em mais de uma ocasião, as bruxas tinham derrotado o Shariat. Seria a vontade de Deus que os verdadeiros crentes passassem por outra provação?
Taraza deixou o silêncio continuar construindo suas próprias tensões. Sentia o redemoinho na mente de Waff. Isso lembrava-lhe a conferência preliminar na Irmandade que a preparara para esse encontro. Bellonda tinha feito uma pergunta aparentemente simples:
— Que é que realmente sabemos a respeito dos Tleilaxu?
Taraza sentira a resposta inundar cada mente em torno da mesa de conferência no planeta da Irmandade: “Só podemos saber com certeza o que eles querem que saibamos.”
Nenhuma de suas analistas podia evitar a suspeita de que os Tleilaxu tinham criado deliberadamente uma imagem falsa de si mesmos. A inteligência Tleilaxu tinha que ser avaliada diante do fato de que somente eles controlavam o segredo dos tanques axlotl. Seria um acidente fortuito, como alguns sugeriam? Então por que os outros tinham sido incapazes de duplicar esse feito em todos esses milênios?
“Gholas.”
Estariam os Tleilaxu usando o processo de criação de gholas para obter seu próprio tipo de imortalidade? Ela podia ver indícios sugestivos nas ações de Waff... nada definido, mas altamente suspeito.
Nas conferências na Irmandade, Bellonda retornara seguidamente às suas suspeitas básicas, martelando:
— Tudo isso... tudo isso que está em nossos arquivos, eu digo, pode não passar de lixo, comida de lorcos!
Essa menção tinha feito algumas das Reverendas Madres mais descontraídas, em torno da mesa, estremecerem.
“Lorcos!”
Essas criaturas lentamente rastejantes, produto do cruzamento de lesmas com porcos, forneciam carne para alguns dos pratos mais caros de todo o universo, mas as criaturas em si representavam tudo aquilo que a Irmandade achava mais repugnante a respeito dos Tleilaxu. Os lorcos tinham sido uma das primeiras ofertas comerciais dos Tleilaxu, produto cultivado em seus tanques e formado com o núcleo helicoidal de que todos os tipos de vida tomavam suas formas. O fato de os Bene Tleilaxu terem criado tais criaturas aumentava a aura de obscenidade desses seres cujas bocas múltiplas comiam incessantemente qualquer tipo de lixo, transformando-o rapidamente num excremento que não apenas cheirava a chiqueiro, mas também era gosmento.
— A melhor carne deste lado do céu — citara Bellonda, repetindo um anúncio da CHOAM.
— E vem de uma obscenidade — acrescentara Taraza.
“Obscenidade”
Taraza pensava nisso enquanto olhava para Waff. Por que motivo possível essa gente poderia ter criado em torno de si uma máscara de obscenidade? A explosão de orgulho de Waff não se encaixava muito bem em tal imagem.
Waff tossiu na mão. Sentia a pressão dos invólucros onde escondera seus dois potentes lança-dardos. A minoria entre seus conselheiros tinha advertido:
— Como no caso das Honradas Madres, o vencedor desse encontro com a Bene Gesserit será aquele que sair carregando a informação mais secreta a respeito do outro. E a morte do oponente é a garantia desse sucesso.
“Eu poderia mata-la, mas e aí?”
Havia mais três Reverendas Madres esperando do lado de fora daquela comporta. Sem dúvida Taraza tinha algum tipo de sinal preparado para o instante em que a comporta fosse aberta. Sem o sinal, a violência e o desastre seriam instantâneos. Waff não acreditava nem por um instante que mesmo os seus novos Dançarinos Faciais pudessem dominar aquelas Reverendas Madres lá fora. As bruxas estariam totalmente alertas. Elas deviam ter reconhecido a natureza dos guardas de Waff.
— Nós vamos compartilhar — disse Waff.
A admissão implícita nisso o magoava, mas ele sabia não ter alternativa. A afirmação de Taraza quanto a habilidades relativas podia ser imprecisa, devido ao que afirmava, mas ele sentia a verdade ali, não obstante o exagero. Não tinha ilusões quanto ao que aconteceria se as Honradas Madres descobrissem o que realmente acontecera com suas enviadas. A perda da não-nave ainda não podia ser atribuída aos Tleilaxu. Naves desaparecem. Já o assassinato deliberado era outra coisa. As Honradas Madres certamente tentariam exterminar um adversário tão impetuoso, ainda que apenas como um exemplo para os outros. Tleilaxu retornados da Dispersão tinham falado em coisas assim. E, tendo visto as Honradas Madres, Waff agora acreditava nas histórias que se contavam.
Taraza disse:
— O segundo item em minha agenda para este encontro é o nosso ghola.
Waff remexeu-se na cadeira funda.
Taraza sentia-se repelida pelos olhos pequeninos de Waff, a face redonda com o nariz arrebitado e os dentes muito aguçados.
— Vocês têm matado nossos gholas para controlar os movimentos de um projeto no qual não desempenham papel algum que não o de fornecer um único elemento — acusou Taraza.
Waff uma vez mais se perguntou se não devia matá-la. Será que não se podia ocultar nada dessas malditas bruxas? A hipótese de a Bene Gesserit contar com a ajuda de um traidor dentro do núcleo Tleilaxu não podia ser ignorada. De que outro modo poderiam elas saber?
Ele disse:
— Eu lhe asseguro, Reverenda Madre Superiora, que o ghola..
— Não me assegure nada! Nós mesmas nos asseguramos. — Uma expressão de tristeza surgiu no rosto de Taraza e ela sacudiu a cabeça.
— E pensa que não sabemos que nos tem vendido produtos danificados?
Waff respondeu rapidamente:
— Ele corresponde a cada exigência imposta por seu contrato!
Novamente Taraza sacudiu a cabeça de um lado para o outro. Este pequenino mestre Tleilaxu não tinha idéia do que estava lhe revelando ali.
— Vocês imprimiram seus próprios esquemas em sua psique — ela disse — Eu lhe aviso, Sr. Waff, que se suas alterações impedirem nossos objetivos nós vamos feri-los mais profundamente do que julgam possível
Waff passou a mão pelo rosto, sentindo a transpiração em sua testa. Malditas bruxas! Mas elas não conheciam tudo. Os Tleilaxu tornados da Dispersão e as Honradas Madres que ela odiava tão amargamente tinham fornecido aos Tleilaxu uma arma sexualmente carregada que não seria partilhada, não importavam as promessas feitas ali!
Taraza avaliou as reações de Waff em silêncio e decidiu partir para uma mentira ousada:
— Quando capturamos sua nave de conferências Ixiana, alguns de seus novos Dançarmos Faciais não morreram suficientemente rápido. Nós aprendemos um bocado.
Waff postou-se à beira da violência.
“Acertei no alvo”, pensou Taraza. A mentira corajosa tinha aberto um caminho de revelações a uma das sugestões mais preocupantes feitas por suas assessoras. Fora considerada uma idéia extravagante, mas não parecia mais assim.
— A ambição dos Tleilaxu é produzir uma completa mímica prana-bindu — afirmara sua assessora.
— Completa?
Todas as irmãs presentes à mesa de conferências tinham ficado abismadas com a idéia. Ela implicava uma forma de cópia de memória que ia muito além da impressão mental a respeito da qual já sabiam.
A assessora, a Irmã Hesterion dos Arquivos, viera armada com uma lista muito bem-organizada de material em apoio à sua tese.
— Nós já sabemos que aquilo que uma sonda Ixiana faz mecanicamente, os Tleilaxu fazem com carne e nervos. O passo seguinte é muito óbvio.
Vendo a reação de Waff ante sua mentira ousada, Taraza continuou a observá-lo cuidadosamente. Ele se encontrava na sua condição mais perigosa nesse momento.
Uma expressão de ira surgiu no rosto de Waff. As coisas que as bruxas sabiam eram por demais perigosas! Não duvidava nem um pouco da afirmação de Taraza. “Devo matá-la, não importa o que me aconteça! Devemos matar todas elas. Abominações! É uma expressão delas e as descreve perfeitamente”
Taraza interpretou corretamente a expressão dele e falou depressa:
— O senhor não corre qualquer perigo de nossa parte, desde que não prejudique nossos projetos. Sua religião, seu modo de vida, isso é problema de vocês.
Waff hesitou. Não tanto pelo que Taraza dissera, e sim pela lembrança dos poderes dela. Que mais saberiam elas? Mas continuar numa posição subserviente! Depois de rejeitar semelhante aliança com as Honradas Madres. E com ascendência tão próxima depois de tantos milênios. O desânimo o dominou. A minoria entre seus conselheiros estivera certa, afinal: “Não pode existir laço de união entre nossos povos. Qualquer acordo com as forças dos powindah é uma união baseada no mal.”
Taraza ainda sentia a violência potencial em seu interlocutor. Será que o teria pressionado demais? Colocou-se em prontidão defensiva. Uma contração involuntária dos braços dele a alertou. “Armas em suas mangas!” Os recursos dos Tleilaxu não deviam ser subestimados. Seus detectores não tinham acusado coisa alguma.
— Sabemos sobre as armas que carrega — ela disse. Era outra mentira ousada, sugerida pelo comportamento dele. — Se cometer esse erro agora, as prostitutas também vão saber como usou essas armas.
Waff respirou três vezes. Quando falou, já se colocara sob controle:
— Não vamos ser satélites da Bene Gesserit!
Taraza respondeu numa voz calma, tranqüilizadora:
— Por palavra ou por ação, jamais lhes sugeri tal coisa.
Ela esperou. Não houve mudança na expressão de Waff, nem o menor desvio no olhar desfocado que ele lhe dirigia.
— Vocês nos ameaçam — murmurou ele. — Exigem que compartilhemos tudo que...
— Compartilhar! — retrucou ela. — Não se compartilha com parceiros desiguais.
— E que iriam vocês compartilhar conosco? — indagou ele.
Ela falou com o tom de voz que usaria para ralhar com uma criança:
— Sr. Waff, pergunte a si mesmo por que, como membro governante de sua oligarquia, veio a este encontro?
Com a voz ainda firmemente controlada, Waff contra-atacou:
— E por que você, Madre Superiora da Bene Gesserit, veio até aqui?
Ela falou calmamente:
— Para nos fortalecer.
— Ainda não disse o que vai compartilhar — acusou ele. — Ainda espera obter vantagem.
Taraza continuou a observá-lo cuidadosamente. Raramente sentira tamanho ódio reprimido num ser humano.
— Diga-me abertamente o que quer.
— E vocês, com sua grande generosidade, darão?
— Negociaremos.
— Onde é que estava a negociação quando me ordenou... ME ORDENOU que...
— Veio até aqui firmemente decidido a quebrar qualquer acordo que fizéssemos — ela disse. — Nem uma vez tentou negociar. Senta-se diante de alguém que quer negociar e só consegue...
— Negociar?
A memória de Waff trouxe-lhe a raiva da Honrada Madre ante essa palavra.
— Foi o que eu disse — insistiu Taraza. — Negociar.
Algo como um sorriso torceu os cantos da boca de Waff.
— Pensa que tenho autoridade para barganhar com vocês?
— Tenha cuidado, Sr. Waff — disse Taraza. — O senhor tem a autoridade final. Ela reside na derradeira habilidade de destruir completamente um oponente. Eu não ameacei tal coisa, mas o senhor o fez.
Ela olhou para as mangas dele.
Waff suspirou. Que dilema. Ela era uma powindah! Como se poderia negociar com uma powindah?
— Temos um problema que não pode ser resolvido por métodos racionais — disse Taraza.
Waff escondeu sua surpresa. Aquelas eram as mesmas palavras que a Honrada Madre tinha usado! Ele estremeceu por dentro ante o que isso poderia significar. Estariam as Bene Gesserit e as Honradas Madres unidas em uma causa comum? O ódio de Taraza revelava o contrário, mas desde quando se podia confiar nas bruxas?
Uma vez mais, Waff se perguntou se deveria sacrificar-se para eliminar essa bruxa. Mas de que adiantaria? Outras delas certamente sabiam o mesmo que essa. Só iria precipitar o desastre. Havia uma luta interna entre as bruxas, mas isso, novamente, podia ser apenas outro ardil.
— O senhor nos pede que compartilhemos alguma coisa — continuou Taraza. — Que tal se lhe oferecermos algumas de nossas preciosas linhagens genéticas?
Não havia dúvida agora, o interesse de Waff aumentava.
Ele disse:
— Por que lhes pediríamos tal coisa? Temos nossos tanques e podemos colher amostras genéticas em quase todo lugar.
— Por exemplo?
Waff suspirou. Não se podia escapar ao caráter incisivo das Bene Gesserit. Era como um golpe de espada. Supôs corretamente ter lhe revelado coisas que a levaram naturalmente ao assunto. O dano já fora feito. Ela deduzira corretamente (ou espiões lhe tinham contado) que o reservatório selvagem dos genes humanos tinha pouco interesse para os Tleilaxu, com seu conhecimento mais sofisticado da linguagem íntima da vida. Eles não podiam subestimar, entretanto, a Bene Gesserit ou os produtos do seu programa de procriação controlada. Deus sabia que elas tinham produzido o Muad'Dib e o Profeta!
— O que vocês pediriam em troca disso? — perguntou ele.
— Ah, estamos negociando, afinal! — exclamou Taraza. — Ambos sabemos, é claro, que estou lhe oferecendo madres procriadoras da linhagem Atreides.
E ela pensou: “Deixe-o acreditar nisso! Elas vão parecer Atreides, mas não o serão!”
Waff sentiu o pulso acelerar. Seria possível tal coisa? Será que ela teria a menor idéia do que os Tleilaxu poderiam aprender com o exame de semelhante fonte de material genético?
— Nós exigiríamos prioridade na seleção da prole — disse Taraza.
— Não!
— Uma prioridade alternada, então?
— Talvez.
— Que quer dizer com talvez?
Ela inclinou-se para a frente. As emoções de Waff diziam-lhe estar na pista certa.
— Que mais pediriam de nós?
— Nossas madres procriadoras devem ter acesso irrestrito aos seus laboratórios genéticos.
— Está louca?
Waff sacudiu a cabeça, exasperado. Será que ela acreditava realmente que os Tleilaxu iriam entregar sua arma mais poderosa assim, desse modo?
— Então aceitamos um tanque axlotl totalmente operacional.
Waff ficou apenas olhando para ela.
Taraza encolheu os ombros.
— Eu tinha que tentar.
— Suponho que tivesse.
Taraza reclinou-se e reviu o que aprendera ali. A reação de Waff àquela sonda Zensunni fora interessante. “Um problema que não pode ser resolvido por meios racionais.” As palavras tinham produzido nele um efeito sutil. Ele tinha parecido erguer-se de algum lugar interior com uma aparência questionadora no olhar. “Deus nos preserva a todos! Seria Waff um Zensunni secreto?”
Não importavam os perigos, isso tinha que ser explorado. Odrade devia ser armada com toda a vantagem possível que pudesse usar em Rakis.
— Talvez já tenhamos feito tudo o que podíamos por ora — disse Taraza. — Há tempo para completarmos nosso acordo. Somente Deus, em Sua infinita misericórdia, nos deu este universo infinito onde tudo pode acontecer.
Waff uniu as mãos sem pestanejar:
— A dádiva das surpresas é a maior de todas! — disse ele.
“Não apenas Zensunni.” pensou Taraza. “Sufi também. Sufi!” Começou a reajustar a visão que tinha dos Tleilaxu. “Há quanto tempo eles estarão guardando isso no peito?”
— O tempo em si não conta — disse ela, sondando. — Só precisamos olhar para os círculos.
— Os sóis são círculos — disse Waff. — Cada universo é um círculo.
Ele prendeu a respiração, esperando pela resposta.
— Os círculos são limitações — disse Taraza, colhendo a resposta adequada em suas Outras Memórias. — Tudo que fecha e limita deve expor-se ao infinito.
Waff ergueu as mãos para lhe mostrar as palmas e então deixou os braços caírem sobre o colo. Seus ombros tinham perdido um pouco da tensão.
— Por que não disse essas coisas logo no começo? — perguntou.
“Devo ter muito cuidado”, pensou Taraza. A confirmação nos modos e nas palavras de Waff exigia uma revisão cuidadosa.
— O que se passou entre nós nada revela, a menos que possamos falar abertamente — ela disse. — E mesmo então ainda estaríamos usando apenas palavras.
Waff estudou o rosto dela, tentando ler naquela máscara Bene Gesserit alguma confirmação das coisas que as palavras e as atitudes dela implicavam. Ela era uma powindah, lembrou a si mesmo. Nunca se deveria confiar nos powindah... mas se ela compartilhava da Grande Crença...
— Deus não enviou a Rakis Seu Profeta para testar nossa fé e nos ensinar? — perguntou ele.
Taraza mergulhou profundamente em suas Outras Memórias. “Um Profeta em Rakis? Devia ser o Muad'Dib? Não.. isso não cruzava com as crenças dos Sufi ou dos Zensunni em...
O Tirano! Ela comprimiu a boca numa linha.
— O que não se pode controlar, deve-se aceitar — disse ela.
— Pois certamente é um ato de Deus — completou Waff.
Taraza já tinha visto e ouvido o suficiente. A Missionaria Protectiva a tinha mergulhado em todas as religiões conhecidas. Ela sentia uma grande necessidade de escapar em segurança dessa sala. Odrade devia ser alertada!
— Posso fazer uma sugestão? — perguntou Taraza.
Waff assentiu polidamente.
— Talvez exista aqui a substância para um laço de união entre nós muito maior do que imaginamos — disse ela. — Ofereço-lhe a hospitalidade de nosso Castelo em Rakis e os serviços de nossa comandante naquele local.
— Uma Atreides? — perguntou ele.
— Não — mentiu Taraza. — Mas é claro que alertarei nossas Madres Procriadoras quanto as suas necessidades.
— E eu reunirei as coisas que exige em pagamento — ele disse. — Por que o acordo será finalizado em Rakis?
— Não é o lugar adequado? — perguntou ela. — Quem poderia faltar com a verdade no lar do Profeta?
Waff recostou-se na cadeira, os braços relaxados sobre o colo. Taraza certamente conhecia as respostas adequadas. Era uma revelação que jamais esperara.
Taraza levantou-se.
— Cada um de nós ouve a Deus pessoalmente — acrescentou ela. “E juntos estamos no kehl.” pensou ele. Olhou para ela, lembrando-se de que era uma powindah. Não se podia confiar em nenhuma delas. “Cautela!” Essa mulher era, apesar de tudo, uma bruxa Bene Gesserit. Sabia-se que elas eram capazes de criar religiões para o seu próprio uso. “Powindah!”
Taraza foi até a comporta, abriu-a e fez o sinal de que tudo estava seguro. Voltou-se novamente para Waff, que continuava sentado em sua cadeira. “Ele ainda não penetrou em nossos verdadeiros propósitos”, pensou. “Aquelas que lhe vamos enviar devem ser escolhidas com o maior cuidado. Ele nunca deve suspeitar de que é parte de nossa isca.
As feições de duende recompostas, Waff olhou para ela.
Como parecia inofensivo, pensou Taraza. Mas poderia ser capturado! Uma aliança entre a Irmandade e os Tleilaxu oferecia novas atrações. “Mas em nossos termos!”
— Até Rakis — ela disse.
Que tipo de fatores sociais se expandiram junto com a Dispersão? Conhecemos aqueles tempos intimamente Conhecemos ambos os cenários, o físico e o mental. Os Perdidos levaram consigo uma mentalidade confinada principalmente às questões de forca de trabalho e tecnologia. Havia uma necessidade desesperada de fronteiras para expansão, uma necessidade impulsionada pelo mito da Liberdade. A maioria não tinha aprendido a lição mais profunda do Tirano, de que a violência estabelece seus próprios limites. A Dispersão foi um movimento selvagem e ao acaso, interpretado como um crescimento (expansão). Algo estimulado pelo medo profundo (freqüentemente inconsciente) da estagnação e da morte.
— A Dispersão: Análise da Bene Gesserit (Arquivos)
Odrade estava deitada de lado sobre a saliência formada pela sacada de uma janela curva, uma das faces tocando levemente o plaz morno através do qual podia ver a Grande Praça de Keen. Suas costas eram suportadas por almofadas vermelhas que cheiravam a melange, como a maioria das coisas em Rakis. Atrás delas havia três aposentos, pequenos mas adequados, bem afastados do Templo e do Castelo da Bene Gesserit. Esse afastamento fora conseqüência do acordo da Bene Gesserit com os sacerdotes.
— Sheeana deve ser guardada com mais segurança — insistira Odrade.
— Ela não pode ficar sob custódia apenas da Irmandade! — discordara Tuek.
— Nem dos sacerdotes — contra-atacara Odrade.
Seis andares abaixo do ponto de observação de Odrade, na janela curva, uma enorme feira se espalhava numa confusão pouco organizada, preenchendo quase todo o espaço da Grande Praça. A luz amarelo-prateada de um sol baixo no horizonte inundava a cena de brilho, destacando as cores brilhantes dos toldos das barracas e lançando longas sombras no calçamento irregular. Havia uma iluminação poeirenta nos pontos onde aglomerados de pessoas caminhavam em torno de guarda sóis remendados e do confuso alinhamento das mercadorias.
A Grande Praça não tinha forma quadrada. A partir da janela de Odrade, estendia-se por um quilômetro em torno da feira e tinha duas vezes essa distância para a esquerda e a direita — um gigantesco retângulo de pedras e terra compactada, empoeirado pelos fregueses que enfrentavam o calor do dia na esperança de obter uma pechincha.
À medida que a noite se aproximava, um sentimento diferente de atividade se desenvolvia lá embaixo — mais pessoas chegavam, acrescentando uma pulsação mais rápida, mais frenética, aos movimentos.
Odrade inclinou a cabeça para enxergar o solo logo abaixo, junto às paredes do prédio onde se encontrava. Alguns dos mercadores diretamente abaixo de sua janela tinham se afastado de seus pontos de venda. Iriam voltar logo, depois de uma refeição e uma breve sesta, prontos para aproveitar as horas mais lucrativas, quando os compradores poderiam respirar um ar que não lhes queimasse as gargantas.
Sheeana estava atrasada, notou Odrade. Os sacerdotes não se atreveriam a retardá-la ainda mais. Deviam estar trabalhando freneticamente agora, disparando-lhe perguntas, advertindo-a para que se lembrasse de que era a própria emissária de Deus para a Sua Igreja, lembrando-lhe as muitas lealdades que Odrade teria que esmiuçar e tornar ridículas antes de colocar tais tolices em sua perspectiva adequada.
Odrade arqueou-se para trás e dedicou um minuto de seu tempo aos pequenos exercícios destinados a aliviar tensões. Admitia certa simpatia por Sheeana. Os pensamentos da garota deviam estar caóticos a essa altura. Sheeana sabia muito pouco ou nada do que deveria esperar quando se colocasse inteiramente sob a tutela de uma Reverenda Madre. Havia poucas dúvidas de que sua mente jovem não estivesse cheia de mitos e desinformação.
“Como a minha se encontrava”, pensou Odrade.
Não podia evitar tal lembrança num momento como esse. Seu dever imediato era claro: exorcismo, não apenas por Sheeana, mas por si mesma.
Pensou nos pensamentos de uma Reverenda Madre que assombrava suas memórias: “Odrade, idade cinco anos, casa confortável em Gammu. A estrada fora da casa apresenta uma sucessão de construções que passariam por mansões dos médios escalões nas cidades costeiras do planeta — prédios baixos, de um único andar, com amplas entradas. As casas curvam-se para baixo ao longo de um paredão à beira-mar onde elas são muito mais largas do que ao longo das fachadas. Somente no lado voltado para o mar é que elas se tornam extensas e menos ciumentas de cada centímetro quadrado.”
A memória de Odrade, aguçada pela Bene Gesserit, deslizou para a casa mais distante, seus ocupantes, a entrada, os companheiros de brincadeiras. Sentiu um aperto no peito a revelar que tais memórias se encontravam ligadas a eventos posteriores.
A creche da Bene Gesserit no mundo artificial de Al Dhanab, um dos planetas seguros da Irmandade original. (Mais tarde ela aprendeu que a Bene Gesserit considerara certa vez a possibilidade de tornar o planeta inteiro uma não-câmara. As exigências de energia tinham derrotado tal projeto.)
A creche era um mundo de variedades para uma criança que viera das amizades e dos confortos de Gammu. A educação da Bene Gesserit incluía intensos treinamentos físicos. Havia censuras freqüentes de que ela não poderia esperar tornar-se uma Reverenda Madre sem passar por muitas dores e por diversos períodos de exercícios musculares aparentemente inúteis.
Algumas de suas companheiras falharam nesse estágio. Tornaram-se enfermeiras, servas, operárias, até mesmo reprodutoras casuais. Preenchiam lacunas onde quer que a Irmandade julgasse necessário. Havia ocasiões em que Odrade sentia que um fracasso daqueles podia levar a uma vida melhor — com poucas responsabilidades e objetivos menos importantes. Mas isto fora antes de ela sair do Treinamento Primário.
“Na ocasião pensei que estava saindo vitoriosa. Emergindo do outro lado.”
Somente para se encontrar mergulhada em novas e mais duras exigências.
Odrade sentou-se no patamar de sua janela Rakiana, colocando de lado as almofadas, e voltou as costas para a feira. Estava ficando muito barulhento lá embaixo. Malditos sacerdotes! Estavam esticando a demora até os limites absolutos!
“Devo pensar em minha própria infância porque isso vai ajudar-me com Sheeana”, pensou. Imediatamente, sentiu revolta contra sua própria fraqueza. “Outra desculpa!”
Algumas candidatas levavam até 50 anos para se tornarem Reverendas Madres. Isso era incutido nelas durante o Treinamento Secundário: uma lição de paciência. Odrade demonstrara uma tendência inicial de se engajar em estudos profundos. Houve comentários de que ela poderia tornar-se uma das Mentats Bene Gesserit e provavelmente uma Arquivista. Tal idéia foi abandonada ao se descobrir que seus talentos se voltavam para uma direção mais valiosa. E ela foi conduzida a assumir deveres mais importantes dentro da Irmandade.
“Segurança.”
Aquele talento selvagem dos Atreides freqüentemente apresentava sua utilidade. A marca de Odrade era o cuidado com os detalhes. Sabia que suas irmãs podiam prever algumas de suas ações simplesmente a partir do conhecimento profundo que tinham dela. Algo que Taraza usava com freqüência. Odrade ouvira a explicação dos próprios lábios de Taraza:
— A personalidade de Odrade reflete-se extraordinariamente nas tarefas que executa.
Havia uma piada na Irmandade: “Sabe para onde vai Odrade quando não está trabalhando? Vai trabalhar”
Na sede da Irmandade havia pouca necessidade de adotar as máscaras expressivas que uma Reverenda Madre usava automaticamente quando no Exterior. Lá ela podia demonstrar suas emoções momentaneamente, enfrentar abertamente seus erros e os erros das colegas, sentir-se triste e amargurada, ou até mesmo, em algumas ocasiões, feliz. Havia homens disponíveis — não para procriação, mas para consolo ocasional. Todos os homens a serviço na sede da Irmandade Bene Gesserit eram muito charmosos, e havia alguns até sinceros com seus encantos. Esses poucos, é claro, eram muito procurados.
“Emoções”
A constatação girou na mente de Odrade.
“Assim eu chego ao ponto crucial, como sempre fiz!'
Sentia o calor do sol da tarde batendo em suas costas. Sabia onde se encontrava seu corpo, mas sua mente se abria para o próximo encontro com Sheeana.
“Amor!”
Pode vir tão facilmente e ser tão perigoso.
Em momentos como esse, ela invejava as Madres Estacionadas, aquelas a quem se permitia viver uma vida inteira com um único parceiro de procriação. Miles Teg surgira de uma união assim. Suas Outras Memórias revelavam-lhe que também fora assim com Lady Jessica e seu Duque. E mesmo o Muad'Dib escolhera essa forma de união.
“Não é para mim!'
Odrade admitia sentir um pouco de mágoa por não lhe terem permitido tal vida. E onde estavam as compensações da vida para a qual fora conduzida?
“Uma vida sem amor pode ser devotada mais intensamente à Irmandade. Nós fornecemos nossas próprias formas de apoio às iniciadas. Não se preocupe quanto aos prazeres sexuais. Eles estarão disponíveis sempre que sentir necessidade”
“Com homens encantadores!”
Desde os tempos de Lady Jessica, passando pela era do Tirano, muita coisa tinha mudado... incluindo a Bene Gesserit. Cada Reverenda Madre sabia disso.
Um suspiro profundo estremeceu Odrade. Olhou para a feira por sobre o ombro. Ainda não havia sinal de Sheeana.
“Não devo amar essa criança!”
Estava feito. Odrade sabia ter realizado o truque mnemônico na forma requerida pela Bene Gesserit. Girou o corpo e se sentou com as pernas cruzadas no patamar. Era uma visão privilegiada da feira e dos telhados da cidade, até o fim da depressão onde ela se localizava. Aquelas poucas colinas remanescentes, lá para o sul, eram, bem sabia, tudo o que restara da Muralha Escudo de Duna, as altas muralhas de rocha que tinham sido abertas pelo Muad'Dib e suas legiões montadas nos vermes gigantes.
O calor fazia o ar tremular junto ao solo, além do qanat e do canal que protegia Keen da intrusão dos novos vermes. Odrade sorriu suavemente. Os sacerdotes não achavam estranho umedecer o solo para evitar que seu Deus Dividido os atacasse.
“Deus, nós ainda o adoramos, mas não nos incomode. Esta é nossa religião, nossa cidade. Está vendo, nem mais chamamos este lugar de Arrakeen. Agora é Keen. O planeta não se chama mais Duna ou Arrakis. Agora é Rakis. Mantenha distância, ó Deus. O Senhor é passado e o passado nos embaraça!”
Odrade olhou para aquelas colinas distantes, que tremulavam no calor. Memórias podiam recriar a antiga paisagem. Ela conhecia o passado.
“Se os sacerdotes atrasarem ainda mais a chegada de Sheeana, vou ter que puni-los!”
O calor ainda dominava a feira lá embaixo, mantido pela armazenagem do solo e as paredes espessas que cercavam a Grande Praça. A difusão da temperatura era ampliada pela fumaça de pequenos fogos nos prédios à volta e entre os aglomerados de vida protegidos pelas tendas da feira. Tinha sido um dia quente, bem acima dos 38 graus. Esse prédio, entretanto, pertencera nos velhos dias às Oradoras Peixes, sendo resfriado por máquinas Ixianas, com tanques de evaporação no teto.
“Nós ficaremos confortáveis aqui!”
E estariam tão seguras quanto poderiam garantir as medidas de proteção da Bene Gesserit. Reverendas Madres caminhavam entre aqueles prédios lá fora. Os sacerdotes tinham representantes nesse prédio, mas nenhum deles se intrometeria onde Odrade não os desejasse. Sheeana se encontraria com eles em determinadas ocasiões, mas Odrade é quem determinaria essas ocasiões.
“Está acontecendo”, pensou Odrade. “O plano de Taraza coloca-se em movimento!”
Os últimos comunicados da sede da Irmandade encontravam-se vividos na memória de Odrade. O que revelavam a respeito dos Tleilaxu enchia-a de uma excitação que ela dominava cuidadosamente. Esse Waff, esse Mestre Tleilaxu, seria assunto fascinante para um estudo.
“Zensunni! E Sufi!”
— Um padrão ritualístico congelado durante milênios — dissera Taraza.
Implícita no relatório de Taraza, havia outra mensagem. “Taraza está depositando toda a sua confiança em mim!' E Odrade sentia uma grande força fluir para dentro dela ante essa percepção.
“Sheeana é o eixo, o ponto de apoio. Nossa força virá de muitas fontes!”
Odrade relaxou. Sabia que Sheeana não permitiria que os sacerdotes a atrasassem ainda mais. A própria paciência de Odrade fora atingida pela expectativa. Teria sido pior para Sheeana.
Elas se haviam tornado conspiradoras. Sheeana e Odrade. O primeiro passo. Para Sheeana, era um jogo maravilhoso. Nascera e fora criada com uma profunda desconfiança em relação aos sacerdotes. Que divertido era ter uma aliada, afinal!
Alguma forma de atividade agitou as pessoas diretamente abaixo da janela de Odrade. Ela olhou para baixo, curiosa. Cinco homens nus tinham dado as mãos, formando um círculo. Os mantos e trajes destiladores que eles tinham usado até então formavam agora uma pilha no chão. Uma jovem morena, usando longo vestido marrom de fibra de especiaria, vigiava as roupas. Seu cabelo estava preso por um pano vermelho.
“Dançarinos!”
Odrade tinha visto muitos relatórios a respeito desse fenômeno, mas essa era sua primeira visão pessoal desde que chegara. A platéia incluía um trio de altos Guardiães dos Sacerdotes, com capacetes amarelos dotados de elevados penachos. Usavam mantos curtos que deixavam as pernas livres para a ação, e cada um portava um cassetete revestido de metal.
Enquanto os dançarinos giravam, a multidão vigilante ficava cada vez mais silenciosa. Odrade conhecia o padrão. Logo haveria um cântico ritmado e depois uma grande confusão. Cabeças seriam quebradas. O sangue escorreria. Pessoas gritariam e correriam. No final, tudo iria acalmar-se sem intervenção oficial. Alguns iriam embora chorando. Outros sairiam rindo. E os Guardiães dos Sacerdotes não interfeririam.
A loucura sem sentido dessa dança e suas conseqüências tinham fascinado a Bene Gesserit durante séculos. Agora mantinham a atenção arrebatada de Odrade. E uma evolução inversa desse ritual tinha sido seguida pela Missionária Protectiva. Os Rakianos chamavam-na de “Dança Diversiva”. Havia outros nomes, e o mais significativo era Siaynoq. Essa dança era tudo que restava do maior ritual do Tirano, o momento de confraternização com suas Oradoras Peixes.
Odrade reconhecia e respeitava a energia desse fenômeno. Nenhuma Reverenda Madre deixaria de perceber isso. O desperdício, contudo, a incomodava. Tais coisas deviam ser canalizadas, focalizadas. Esse ritual devia ser empregado de alguma forma útil. Tudo o que ele fazia agora era esgotar forças que poderiam revelar-se destrutivas para os sacerdotes se não tivessem uma válvula de escape.
Um doce cheio de frutas chegou às narinas de Odrade. Ela inspirou e olhou para as aberturas de ventilação ao lado da janela; o calor da multidão e da terra aquecida criava uma corrente de ar ascendente. O ar transportava os odores lá de baixo através dos ventiladores Ixianos. Ela pressionou a testa e o nariz contra o plaz da janela a fim de olhar diretamente para baixo. Ah, os dançarinos ou a platéia tinham derrubado a bancada de um vendedor. Os dançarinos pisavam em cima das frutas enquanto a polpa amarela esguichava-lhes nas coxas.
Odrade reconheceu na platéia o vendedor de frutas, um familiar rosto enrugado que ela tinha visto várias vezes com o tabuleiro junto à entrada do prédio. Não parecia preocupado com a perda. Como todos ao redor, concentrava sua atenção nos dançarinos. Os cinco homens nus moviam-se levantando os pés de uma forma desritmada que parecia totalmente sem coordenação, embora houvesse um padrão que se repetia periodicamente — três dos dançarinos com ambos os pés no chão e os outros dois erguidos pelos companheiros.
Odrade reconheceu o padrão. Tinha uma relação com o antigo método dos Fremen de caminhar na areia. Essa dança curiosa era um fóssil com raízes na antiga necessidade de andar na areia sem atrair os vermes.
As pessoas começavam a se aglomerar junto dos dançarinos, vindas de fora do grande retângulo definido pela feira. Pulavam como brinquedos de criança, tentando obter uma visão dos cinco homens nus por cima da massa da multidão.
Odrade viu então a escolta de Sheeana, caminhando bem à direita, onde uma larga avenida entrava na praça. Símbolos de rastros de animais em um prédio revelavam que a avenida fora a rota usada por Leto II para entrar nessa cidade, vindo de dentro das altas muralhas de seu Sareer, bem ao sul. Com atenção aos detalhes, ainda se podia discernir algumas das formas e padrões daquela que tinha sido a cidade dos festivais do Tirano, Onn, que ele construíra em torno da cidade de Arrakeen, mais antiga. Onn havia obliterado muitas das marcas de Arrakeen, mas tinham restado algumas avenidas: alguns prédios eram muito úteis para serem substituídos. E os prédios inevitavelmente definiam as ruas.
A escolta de Sheeana parou no ponto em que a avenida entrava na feira. Guardas de capacete amarelo vinham na frente, abrindo caminho com seus cassetetes. Os guardas eram altos: quando apoiado no chão, o bastão de dois metros chegava somente a altura do ombro do mais baixo deles. Mesmo no meio da multidão mais agitada, seria impossível deixar de notar um Guardião dos Sacerdotes, mas os protetores de Sheeana eram os mais altos de todos.
Encontravam-se uma vez mais em movimento, conduzindo seu grupo em direção a Odrade. Os mantos abertos em ambos os lados do corpo revelavam o cinza lustroso dos melhores trajes destiladores. Caminhavam diretamente para a frente, 15 deles formando um amplo “V” que evitava os aglomerados mais espessos de barracas.
Um grupo de sacerdotisas, com Sheeana ao centro, marchava atrás dos guardas. Odrade captou alguns vislumbres da figura distinta de Sheeana, o cabelo riscado de ouro em torno do rosto que se erguia orgulhosamente. Eram os guardas de capacete amarelo que mais atraíam, no entanto, a atenção de Odrade. Caminhavam com uma arrogância condicionada desde a infância. Esses guardas sabiam ser superiores às pessoas comuns. E as pessoas comuns reagiam a eles de modo previsível, abrindo caminho para a passagem da comitiva de Sheeana.
Isto era feito com tanta naturalidade que Odrade podia perceber o padrão ancestral como se estivesse assistindo a outra dança ritualística, algo que não tinha mudado durante milênios.
Como fazia freqüentemente, Odrade pensava em si mesma agora como uma arqueóloga. Não aquela que remexia nos detritos poeirentos das eras, mas como uma pessoa que focalizava sua atenção naquilo que muitas vezes era alvo da consciência da Irmandade: os modos como as pessoas carregam seu passado dentro de si. O projeto do Tirano ainda era evidente ali. A aproximação de Sheeana era uma coisa estabelecida pelo próprio Imperador-Deus.
Debaixo da janela de Odrade, os cinco homens despidos continuavam a dançar. Entre a assistência, entretanto, Odrade percebia uma nova atitude. Sem olhar para a falange de Guardiães dos Sacerdotes que se aproximava, aquelas pessoas já tinham consciência dessa aproximação.
“Os animais sempre sabem quando chegam os pastores”
Agora, a inquietação da multidão produzia a aceleração do ritmo. Ninguém lhes negaria o seu caos! Um punhado de terra voou do meio da turba e atingiu o solo perto dos dançarinos. Os cinco homens não perderam o passo no padrão que executavam, mas sua velocidade aumentou. A duração das seqüências entre as repetições revelava memórias extraordinárias.
Outro torrão de terra voou da multidão e atingiu o ombro de um dos dançarinos. Nenhum dos cinco homens vacilou.
A multidão começou a gritar e cantar. Alguns gritavam pragas. O canto tornou-se um bater ritmado de palmas que se intrometia nos movimentos dos dançarmos.
Ainda assim o padrão não mudou.
O canto da turba transformou-se num ritmo dissonante, gritos repetidos que ecoavam nas paredes da Grande Praça. Eles estavam tentando romper o padrão dos dançarinos. Odrade sentia uma importância profunda na cena que via lá embaixo.
O grupo de Sheeana chegara à metade do caminho a ser percorrido dentro da feira. Movia-se através das amplas passagens entre as barracas dos vendedores e agora se voltava em direção ao ponto de onde Odrade observava. A multidão estava mais compacta num ponto situado 50 metros à frente dos Guardiães dos Sacerdotes. Eles caminhavam num passo firme, desdenhando aqueles que se afastavam para os lados. Debaixo dos capacetes amarelos, os olhos estavam fixos à frente, olhando por sobre a turba. Nenhum dos Guardiães que avançavam demonstrava o menor indício de consciência para com a turba, os dançarinos ou qualquer outra barreira que pudesse impedi-los.
A multidão parou de cantar instantaneamente, como se um maestro invisível tivesse abaixado a mão ordenando silêncio. Os cinco homens continuaram a dançar. O silêncio abaixo estava carregado de uma força que fazia os pêlos da nuca de Odrade se erguerem. Diretamente abaixo, os três Guardiães dos Sacerdotes misturados à platéia viraram-se como se fossem um único homem e entraram no prédio.
Do meio da massa humana, uma mulher gritou uma praga.
Os dançarinos não deram sinal de terem ouvido.
A multidão avançou, diminuindo pela metade o espaço que a separava dos dançarinos. A garota que guardava as roupas e os trajes destiladores dos dançarinos não mais podia ser vista.
A falange de Sheeana continuou marchando para a frente, as sacerdotisas e sua jovem protegida diretamente atras.
A violência começou num ponto à direita de Odrade. As pessoas começaram a gritar umas com as outras. Mais projéteis descreveram arcos no ar em direção aos cinco dançarinos. A multidão voltou a cantar, agora num ritmo mais acelerado.
Ao mesmo tempo, a retaguarda da multidão se abria para dar passagem aos Guardiães. A platéia não desviava a atenção dos dançarinos, não interrompia sua contribuição ao caos crescente. Não obstante, um caminho fora aberto para a passagem da comitiva.
Totalmente cativada, Odrade olhava para baixo. Muitas coisas estavam acontecendo simultaneamente: a briga, pessoas xingando e golpeando umas às outras, o canto contínuo, o implacável avanço dos Guardiães.
Protegida pelas sacerdotisas, Sheeana podia ser vista olhando de um lado para o outro, tentando captar a excitação à sua volta.
Algumas pessoas na multidão apareceram com bastões e começaram a distribuir pauladas naqueles que as rodeavam, mas ninguém ameaçou os Guardiães ou qualquer outro integrante da comitiva de Sheeana. Os dançarinos continuavam no seu ritmo dentro de um círculo cada vez mais estreito. Todos aglomeravam-se cada vez mais junto à parede do prédio de Odrade, forçando-a a comprimir a cabeça contra o plaz a fim de olhar para baixo num ângulo ainda mais pronunciado.
Os Guardiães que lideravam o grupo de Sheeana avançaram por uma abertura cada vez mais ampla em meio ao caos. As sacerdotisas não olhavam nem para a esquerda nem para a direita. Os Guardiães de capacete amarelo olhavam só em frente.
Desdém era uma palavra muito branda para a atitude deles, percebeu Odrade. E não seria correto dizer que a multidão rodopiante ignorava o avanço da comitiva. Uma tinha consciência da outra, mas ambas, multidão e comitiva, existiam em mundos separados, observando as regras estritas de tal separação. Somente Sheeana ignorava o protocolo implícito, pulando para tentar enxergar um pouco mais dos corpos à sua volta.
Diretamente abaixo de Odrade, a multidão avançou num movimento súbito. Os dançarinos foram apanhados no fluxo, arrastados para o lado como navios atingidos por uma onda gigantesca. Odrade viu trechos de carne nua sendo esmurrados e jogados de mão em mão no meio do caos ululante. Somente com a concentração mais intensa podia Odrade separar os sons que eram levados até ela.
Uma loucura!
Nenhum dos dançarinos resistiu. Estariam sendo mortos? Seria aquilo tudo um sacrifício? As análises da Irmandade ainda não tinham nem começado a tocar nessa realidade.
Capacetes amarelos moviam-se abaixo de Odrade, abrindo caminho para que Sheeana e o grupo de sacerdotisas passassem, entrando no prédio. Então os Guardiães cerraram fileiras e se voltaram, formando um arco protetor em torno da entrada do prédio. Mantinham seus bastões na horizontal, unidos um ao outro defronte da cintura.
A confusão começou a diminuir. Nenhum dos dançarinos podia ser visto, mas havia feridos. Pessoas estiradas no chão, outros cambaleando, cabeças ensangüentadas.
Sheeana e as sacerdotisas estavam dentro do prédio, fora da visão de Odrade. Ela sentou-se tentando avaliar o que acabara de testemunhar.
Incrível.
Nenhum registro ou holofoto da Irmandade tinha capturado o que acontecia ali! Em parte eram os cheiros — poeira, suor, uma concentração intensa de feromônios humanos. Odrade respirou fundo. Sentia estar trêmula. A turba reduzira-se a alguns indivíduos andando pela feira. Algumas pessoas choravam, outras praguejavam, outras riam.
A porta atrás de Odrade abriu-se subitamente e Sheeana entrou, rindo. Odrade voltou-se e captou uma rápida visão de sua própria guarda e das sacerdotisas antes que Sheeana fechasse a porta.
Os olhos castanhos-escuros da garota brilhavam de excitação. Seu rosto magro, já começando a ser suavizado pelas curvas que teriam quando adulto, estava tenso de emoção contida. A tensão esvaiu-se quando ela focalizou a atenção em Odrade.
“Muito bom”, pensou Odrade ao ver isso. “A lição número um de união já começou!'
— Você viu os dançarinos? — indagou Sheeana, girando a pulando até parar diante de Odrade. — Não estavam lindos? Acho que são tão lindos! Cania não queria que eu olhasse. Diz que é perigoso que eu tome parte no Siaynoq. Mas eu não me importo! Shaitan nunca vai comer aqueles dançarinos!
Com uma súbita consciência fluindo para fora, coisa que experimentara apenas durante a agonia da especiaria, Odrade percebeu todo o padrão inteiro daquilo que acabara de testemunhar na Grande Praça. Fora preciso apenas a presença de Sheeana e suas palavras para tornar a coisa toda muito clara.
“Uma linguagem!”
Aquelas pessoas todas carregavam bem fundo em sua consciência coletiva uma linguagem que lhes podia dizer coisas que elas não queriam ouvir. Os dançarinos falavam essa linguagem. Sheeana também. A coisa era feita de movimentos, tons de voz e feromônios. Uma combinação complexa e sutil que evoluíra do modo como todas as linguagens evoluem.
A partir da necessidade.
Odrade sorriu para a garota feliz diante dela. Agora sabia como capturar os Tleilaxu. Agora sabia mais a respeito do projeto de Taraza.
“Devo acompanhar Sheeana ao deserto na primeira oportunidade que aparecer. Vamos esperar só a chegada desse Mestre Tleilaxu, esse tal de Waff. Vamos levá-lo conosco!”
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