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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


OS PRÍNCIPES DA IRLANDA / Edward Rutherfurd
OS PRÍNCIPES DA IRLANDA / Edward Rutherfurd

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio "SEBO"

 

 

 

  

                           Sol Esmeralda

Foi há muito tempo. Muito antes de São Patrício chegar. Antes da vinda das tribos celtas. Antes que se falasse o gaélico. No tempo dos deuses irlandeses que nem sequer deixaram seus nomes.

Muito pouco se pode dizer com precisão; no entanto, fatos podem ser constatados. Ainda existem evidências de sua presença. E, como se costuma fazer desde que as histórias são contadas, a gente pode imaginar.

Naqueles tempos de outrora, numa manhã de inverno, ocorreu um pequeno evento. Isso nós sabemos. Deve ter ocorrido muitas vezes: ano após ano, podemos supor; século após século.

Alvorada. O céu da metade do inverno já era de um pálido e claro azul-celeste. O sol não demoraria para se erguer do mar. Visto da costa oriental da ilha, já havia um tênue brilho dourado ao longo do horizonte.

Era o solstício de inverno, o dia mais curto do ano. Se naquele tempo o ano era indicado por uma data, o sistema utilizado não é conhecido hoje.

A ilha na verdade era uma de um par que se assentava na margem atlântica do continente europeu. Há milhares de anos, quando ambas se encontravam presas na grande estase da última era glacial, eram unidas uma à outra por um passadiço de pedra que seguia da extremidade nordeste da ilha menor, a ocidental, até a parte superior de sua vizinha, que, por sua vez, ligava-se à terra firme continental ao sul por uma passagem de terra calcária. Ao final da era glacial, entretanto, quando as águas do Ártico derretido inundaram o mundo, elas cobriram o passadiço de pedra e depois destruíram a ponte calcária, criando, dessa forma, duas ilhas no mar.

As separações eram muito estreitas. O passadiço alagado que ia da ilha ocidental, que um dia se chamaria Irlanda, para o promontório da Britânia conhecido como o Mull of Kintyre ficava apenas cerca de quinze quilômetros defronte; o intervalo entre os brancos rochedos do sudeste da Inglaterra e o continente europeu tinha apenas uns trinta.

Podia-se esperar, portanto, que as duas ilhas fossem bastante parecidas. E de certo modo eram. Mas havia diferenças sutis, pois quando as águas das enchentes as separaram, elas estavam, até então, apenas se aquecendo lentamente da condição ártica. Plantas e animais ainda retornavam para elas vindos do sul mais quente E quando o passadiço de pedra foi inundado, aparentemente algumas espécies que haviam chegado aparte sul da ilha mais larga, mais oriental, não tiveram tempo de atravessar para a ocidental. Desse modo, enquanto o carvalho, a aveleira e o freixo eram abundantes em ambas as ilhas, o visco que crescia nos carvalhos britânicos não encontrou seu caminho para as árvores irlandesas. E, pelo mesmo motivo — uma bênção singular —, enquanto a Britânia se via infestada por cobras, inclusive a venenosa víbora, nunca houve cobras na Irlanda.

A ilha ocidental sobre a qual o sol estava para nascer era em sua maior parte coberta por uma densa floresta entremeada com áreas de pântano. Aqui e ali, erguiam-se belas cadeias de montanhas. A terra tinha muitos rios ricos em salmão e outros peixes; e o maior deles corria para o Atlântico no oeste após serpentear por uma complexa sucessão de lagos e canais através do interior central da ilha. Mas, para aqueles que primeiro chegaram ali, duas outras características da paisagem natural seriam notadas em particular.

A primeira era mineral. Aqui e ali, em clareiras na densa floresta ou sobre as encostas a céu aberto das montanhas, surgiam afloramentos de rocha, forçados acima das entranhas da terra, os quais continham um mágico lampejo de quartzo. E em algumas dessas rochas brilhantes havia profundos veios de ouro. Como resultado, em várias partes da ilha onde se encontravam esses afloramentos, os rios A segunda era universal. Seja por causa da umidade do vento soprando do Atlântico, ou da leve tepidez da corrente do golfo, ou do modo como a luz incidia naquela latitude, ou alguma convergência destes ou de outros fatores, havia na vegetação da ilha um extraordinário verde-esmeralda que não era encontrado em nenhum outro lugar. E talvez tenha sido essa extraordinária combinação de verde-esmeralda e fluidez dourada que deu à ilha ocidental sua fama como um local onde habitam os espíritos mágicos.

E que homens habitavam a ilha esmeralda? Antes das tribos celtas de época posterior, os nomes das pessoas que haviam chegado ali pertencem apenas à lenda: os descendentes de Cessair, Partholon, Nemed; os Fir Bolg e os Tuatha De Danaan. Mas se esses eram nomes de gente de verdade ou de seus antigos deuses, ou ambos, é difícil dizer. Houve caçadores na Irlanda, depois da era glacial. Em seguida, agricultores. Isso é certo. Sem dúvida, para ali acorreu gente de vários lugares. E como em outras partes da Europa, os habitantes da ilha sabiam construir com pedra, fazer armas de bronze e fabricar bela cerâmica. Negociavam também com mercadores que vinham de lugares distantes como a Grécia.

Acima de tudo, faziam ornamentos com o abundante ouro da ilha. Colares, braceletes de ouro trançado, brincos, discos de sol de ouro forjado — os ourives irlandeses superavam a maioria dos demais da Europa. Podiam ser chamados de artesãos mágicos.

A qualquer momento o sol apareceria no horizonte, incendiando seu extenso e dourado caminho através do mar.

Em um ponto aproximadamente a meio caminho além da costa oriental repousava uma larga e agradável baía entre dois promontórios. Do promontório do sul, a vista da costa era a de uma cadeia de montanhas, incluindo duas pequenas montanhas vulcânicas que se erguiam do mar com tanta elegância que um visitante poderia se imaginar transportado para o clima mais quente do sul da Itália. Acima do outro promontório, uma vasta planície se estendia para o norte em direção às montanhas mais distantes abaixo do desaparecido passadiço para a segunda ilha. No meio da baía se espalhavam os vastos charcos e areias do estuário de um rio.

Então o sol rompia no horizonte, enviando um clarão dourado, escaldante através do mar. E quando os raios do sol se arremessavam sobre o promontório setentrional da baía e atravessavam a planície adiante, encontravam um clarão reluzente, como se, sobre o solo, repousasse um grande refletor cósmico. O clarão era de fato de singular interesse, pois emanava de um enorme e notável objeto que fora feito pela mão do Homem.

Cerca de quarenta quilômetros ao norte da baía, e afluindo de oeste para leste, havia outro belo rio. Corria através de um vale cuja terra verde exuberante possuía o solo mais rico da Terra. E foi sobre o suave declive da ribanceira da margem norte desse rio que as pessoas da ilha haviam construído várias estruturas enormes e impressionantes, das quais a principal acabara de enviar o ofuscante clarão em direção ao céu.

Eram montes imensos, circulares, cobertos de grama. Entretanto, não eram fortificações malfeitas. Suas laterais cilíndricas e tetos largos e convexos sugeriam uma construção interna mais cuidadosa. Suas bases eram assentadas com pedras monumentais cujas superfícies eram entalhadas com desenhos — círculos, zigue-zagues e estranhas e alucinatórias espirais. O mais impressionante, porém, era que a superfície voltada para o sol nascente era faceada com quartzo branco; e era essa imensa parede curva, cristalina, que agora, captando o nascer do sol, cintilava, reluzia e lampejava um fogo solar refletido de volta para o céu naquele límpido amanhecer de solstício de inverno.

Quem construiu esses monumentos à beira das tranqüilas e deslizantes águas do rio? Não se pode saber ao certo. E com que finalidade os construíram? Como lugar de descanso eterno para seus príncipes: isto se sabe. Mas que príncipes jaziam em seu interior e se seus espíritos eram iluminados ou ameaçadores só se pode conjecturar. Ali eles jazem, porém, antigos ancestrais dos habitantes da ilha, espíritos à espera.

Além de túmulos, contudo, esses grandes montes também eram santuários que, em determinadas ocasiões, recebiam as divinas e misteriosas forças do universo que traziam vida cósmica para a terra. E foi por esse motivo, durante a noite que acabara de terminar, que a porta para o santuário fora aberta.

E no centro da reluzente fachada de quartzo havia uma entrada estreita, ladeada por pedras monumentais, atrás da qual uma passagem exígua, porém reta, cercada de paredes de pedras, levava ao coração do grande monte, terminando numa câmara interna trifoliada. Dentro da passagem e da câmara, como do lado de fora, muitas das pedras tinham padrões gravados, inclusive o estranho conjunto de três espirais rodopiantes. E a estreita passagem era orientada de forma tão exata, no alvorecer do solstício de inverno, que a face do sol nascente, quando irrompia no horizonte, penetrava diretamente pelo topo do vão da porta e enviava seus raios através da escura passagem até o centro.

No céu então os raios solares se refletiam na baía, no litoral da ilha, nas florestas e pequenas clareiras de inverno, as quais, depois que os raios de sol passavam, eram subitamente banhadas pelo brilho da face do sol enquanto ele emergia do horizonte aquoso. Os raios solares seguiam além do vale, em direção ao monte, cujo quartzo reluzente, colhendo a luz refletida da paisagem verde em volta, parecia arder em chamas, brilhando como um sol esmeralda.

Havia algo de frio e pavoroso naquele clarão esverdeado, quando o sol irrompia através dos portais para o interior da escura passagem do monte? Talvez.

Mas havia também algo maravilhoso. Tamanha era a engenhosidade da construção da passagem que, enquanto o sol se erguia gradualmente, seus raios, como se abandonando inteiramente a rapidez de praxe, entravam furtivamente ao longo da passagem, lentos como uma criança sorrateira, pé ante pé, levando em sua passagem o delicado brilho às pedras, até alcançar a câmara tripla no centro. E ali, mais uma vez ganhando velocidade, cintilavam nas pedras, dançando de um lado a outro, levando luz, calor e vida ao túmulo de solstício de inverno.

 

 

 

 

                           Dubh Linn, 430 d.C.

Lughnasa. Alto verão. Logo seria época de colheita. Deirdre estava parada perto da pista e observava a cena. Deveria ser um dia alegre, mas este só lhe trazia agonia. O pai que ela amava e o caolho iam vendê-la. E nada havia que ela pudesse fazer.

De início, não viu Conall.

O costume nas corridas era os homens montarem nus. A tradição era antiga. Séculos atrás, os romanos haviam notado o modo como os guerreiros celtas desprezavam a proteção do peitoral e gostavam de se despir para a batalha. Um guerreiro tatuado, os músculos salientes, o cabelo preso em grandes cachos, o rosto contorcido em um arrebatamento aguerrido, era uma visão aterradora, mesmo para os experientes legionários romanos. As vezes esses ferozes guerreiros celtas em suas bigas preferiam vestir uma curta capa que esvoaçava atrás deles; e em algumas partes do Império Romano, os cavaleiros celtas usavam calções. Mas ali na ilha ocidental a tradição da nudez fora transferida para as corridas cerimoniais, e o jovem Conall nada vestia além de uma pequena tanga protetora.

O grande festival de Lughnasa era realizado em Carmun uma vez a cada três anos. A localização de Carmun era arrepiante. Em uma terra de florestas agrestes e pântanos, era um espaço a céu aberto coberto de grama que se estendia, verde e vazio, a meio caminho do horizonte. Situado a certa distância a oeste do ponto onde, seguindo rio acima, o curso do Liffey começava a recuar na direção leste, a caminho de sua nascente nas montanhas de Wicklow, o lugar era totalmente plano, exceto por alguns montes de terra onde os chefes ancestrais foram enterrados. O festival durava uma semana. Havia áreas reservadas para refeições e feiras de animais, e uma outra onde eram vendidas roupas de excelente qualidade; o espaço mais importante, porém, era onde uma larga pista de corrida estava disposta sobre o gramado vazio.

A pista era uma vista magnífica. As pessoas estavam acampadas em volta, em tendas ou cabanas provisórias, clãs inteiros juntos. Homens e mulheres vestidos com seus reluzentes capotes vermelhos, azuis ou verdes. Os homens usavam esplêndidos torques de ouro — como grossos amuletos — em volta do pescoço; as mulheres ostentavam todos os tipos de ornamentos e braceletes. Alguns homens exibiam tatuagens, ou longos cabelos esvoaçantes e bigodes, outros usavam os cabelos endurecidos com argila e erguidos como aterradores aguilhões de guerra. Aqui e ali havia uma esplêndida biga de guerra. Os cavalos estavam nos currais. Havia fogueiras onde os bardos contavam histórias. Um grupo de malabaristas e acrobatas tinha acabado de chegar. Por todo o acampamento, o som de uma harpa, um apito de osso ou uma gaita de foles podiam ser ouvidos no ar de verão, e o cheiro de carne assando e bolos de mel parecia se misturar na leve fumaça que flutuava por toda a cena. E sobre um monte cerimonial perto da pista de corrida, ocupando uma posição de destaque, estava o rei de Leinster.

Havia quatro partes na ilha. Para o norte ficava o território das antigas tribos de Ulaid, a província de guerreiros. A oeste ficava a adorável província dos lagos mágicos e litorais ermos — a terra dos druidas, como eram conhecidos. Para o sul, a província de Muma, famosa por sua música. Foi ali, reza a lenda, que os Filhos de Mil encontraram a deusa Eriu pela primeira vez. E por último, a leste, ficavam os ricos pastos e campos das tribos de Lagin. As províncias eram reconhecidas desde tempos imemoriais e, como Ulster, Connacht, Munster e Leinster, elas permaneceriam sendo divisões geográficas da ilha por todo o tempo futuro.

A vida, porém, nunca era estática na ilha. Em gerações recentes houve importantes mudanças entre as tribos antigas. Na metade norte da ilha — Leth Cuinn, a metade da cabeça, como gostavam de chamá-la — surgiram clãs poderosos para reivindicar seu domínio sobre a metade sul. Leth Moga. E uma nova província central conhecida como Mide, ou Meath, também passou a existir, e agora as pessoas referem-se às cinco partes da ilha em vez de quatro.

De todos os grandes chefes de clãs de cada uma das cinco partes, o mais poderoso geralmente governava como um rei, e às vezes o maior deles se proclamava rei supremo e exigia que os demais o reconhecessem como tal e lhe pagassem tributo.

Finbarr olhou para seu amigo e sacudiu a cabeça. Era meio da tarde e Conall estava para participar da corrida.

— Você podia pelo menos sorrir — comentou Finbarr. — É um camarada muito triste, Conall.

— Lamento — rebateu o outro. — Não é de propósito.

Esse era o problema de ser bem-nascido, refletiu Finbarr. Os deuses prestam muita atenção em você. Era sempre assim no mundo celta. Corvos voavam sobre a casa para anunciar a morte de um chefe de clã, cisnes desertavam do lago. Uma má decisão do rei podia afetar o clima. E se você fosse um príncipe, os druidas faziam profecias a seu respeito desde antes do dia de seu nascimento; depois disso, não havia escapatória.

Conall: magro, moreno, aquilino, belo — um perfeito príncipe. E príncipe ele era. Conall, filho de Morna. Seu pai fora um guerreiro incomparável. Não tinha sido enterrado de pé, no monte de um herói, virado na direção dos inimigos de sua tribo? No mundo celta, era o maior dos elogios que se podia fazer a um homem morto.

Na família do pai de Conall, dava azar para qualquer homem usar vermelho. Esse, porém, foi apenas o começo dos problemas de Conall. Ele nascera três meses após a morte do pai. Só isso o tornava especial. Sua mãe era a irmã do rei supremo, o qual se tornou seu pai adotivo. Isso significava que a ilha toda o estaria observando. E depois os druidas tinham feito suas revelações. O primeiro mostrara ao bebê uma seleção de gravetos de várias árvores e o menino esticara a mãozinha na direção do de aveleira. “Ele será um poeta, um homem de erudição”, declarou o druida. Um segundo fizera uma previsão mais sombria. “Ele causará a morte de um excelente guerreiro.” Entretanto, desde que isso fosse em batalha, a família aceitou como um bom presságio. Foi o terceiro druida, porém, As geissi — as proibições. Quando um príncipe ou um grande guerreiro vivia sob as geissi, era melhor que tomasse cuidado. As geissi eram terríveis, pois sempre aconteciam. Tendo em vista que, como muitos dos pronunciamentos sacerdotais, elas soavam como um enigma, nunca se tinha certeza do que significavam. Eram como armadilhas. Finbarr era feliz por ninguém ter se importado de colocar qualquer geissi sobre ele. As geissi de Conall, como todos da corte do rei supremo sabiam, eram as seguintes:

Conall não morreria antes de:

Primeira: Deitar suas próprias roupas na terra.

Segunda: Atravessar o mar durante o nascer do sol. Terceira: Chegar a Tara em meio a uma névoa negra.

A primeira não fazia sentido; a segunda ele cuidaria de nunca fazer. A terceira parecia impossível. Sempre costumava haver névoa durante a posse do rei supremo em Tara, mas nunca houve uma negra.

Conall era um homem cuidadoso. Respeitava a tradição da família. Finbarr nunca o vira vestir qualquer coisa vermelha. Na verdade, Conall até mesmo evitava tocar em qualquer coisa dessa cor. “No meu entender”, dissera-lhe certa vez Finbarr, “se você se mantiver longe do mar, viverá para sempre.”

Os dois eram amigos desde o dia em que, na infância, um grupo de caça que incluía o jovem Conall havia parado na modesta residência da família de Finbarr para descansar. Os dois meninos se conheceram e brincaram, e não demorou para disputarem uma briga e depois jogarem com um bastão e uma bola, jogo que os insulanos chamavam de hurling, enquanto os homens assistiam. Passado algum tempo, Conall perguntou se podia se encontrar outra vez com o seu novo conhecido; em um mês a amizade se solidificou. E quando, pouco depois, Conall perguntou se Finbarr podia se incorporar à residência real e treinar para se tornar um guerreiro, isso foi concedido. A família de Finbarr ficou feliz com essa oportunidade que se abria para ele. A amizade dos dois rapazes nunca estremeceu. Se Conall gostava da boa índole e do bom humor de Finbarr, este admirava a tranqüila e profunda sensatez do jovem aristocrata.

Não que Conall fosse sempre reservado. Embora não fosse o mais musculoso dos jovens campeões, era provavelmente o melhor atleta. Podia correr como um cervo. Somente Finbarr conseguia acompanhá-lo quando disputavam uma corrida em suas leves bigas de duas rodas. Quando Conall arremessava uma lança, ela parecia voar como um pássaro, e com mortal precisão. Era capaz de girar seu escudo tão rapidamente que mal se conseguia vê-lo. E quando atacava com sua espada favorita, dizia-se que os outros podiam desferir golpes mais duros, porém que tomassem cuidado — a lâmina de Conall é sempre mais rápida. Os dois rapazes também gostavam de música. Finbarr gostava de cantar, Conall, de tocar harpa, o que fazia muito bem; e, quando meninos, às vezes entretinham os convidados nos festins do rei supremo. Eram ocasiões felizes, quando, bem-humorado, o rei supremo pagava-lhes então como se fossem músicos contratados. Todos os guerreiros respeitavam e gostavam de Conall. Os que se lembravam de Morna concordavam: o filho tinha as mesmas características de líder que o pai.

E no entanto — isso era algo estranho para Finbarr — era como se Conall não estivesse realmente interessado.

Conall tinha apenas seis anos quando desapareceu pela primeira vez; sua mãe já passara a tarde toda procurando, quando, pouco antes do pôr-do-sol, ele apareceu com um velho druida que lhe disse calmamente:

— O menino estava comigo.

— Eu o encontrei no bosque — explicou Conall, como se sua ausência fosse a coisa mais natural do mundo.

— O que fez o dia todo com o druida? — perguntou a mãe depois que o velho se foi.

— Ah, a gente conversou.

— Sobre o quê? — quis saber a mãe atônita.

— Sobre tudo — respondeu ele, contente.

Fora sempre assim desde sua infância. Ele ia brincar com os outros meninos, mas então desaparecia. Às vezes levava Finbarr junto, e eles vagavam pelos bosques ou ao longo dos riachos. Finbarr sabia imitar cantos de pássaros. Conall gostava disso. E dificilmente havia uma planta na ilha cujo nome o jovem príncipe não soubesse dizer. Mesmo nesses passeios, porém, Finbarr às vezes sentia que, por mais que seu amigo o amasse, gostava de ficar sozinho; então ele o deixava, e Conall passava a metade do dia perambulando.

Sempre insistia com Finbarr que ele era feliz. Quando, porém, estava mergulhado em profunda meditação, seu rosto adotava um ar de melancolia; ou às vezes, quando tocava harpa, a melodia se tornava estranhamente triste. “Aí vem o homem a quem a tristeza tornou seu amigo”, dizia Finbarr afetuosamente quando Conall retornava de suas solitárias perambulações; mas o jovem príncipe só fazia rir, ou socá-lo de brincadeira e sair correndo.

Não foi nem um pouco surpreendente que, quando atingiu a idade adulta, aos dezessete anos, os outros jovens passassem a se referir a Conall, não sem espanto, como o Druida.

Havia na ilha três tipos de homens instruídos. Os mais humildes eram os bardos, os contadores de histórias que entretinham a corte nas festas; de uma classe bem mais alta eram os filidh, guardiões das genealogias, criadores de poesias, e às vezes até mesmo de profecias; acima de todos, porém, e muito mais temíveis, ficavam os druidas.

Dizia-se que muito tempo atrás, antes de os romanos terem chegado lá, os druidas mais instruídos e mais habilidosos tinham vivido na ilha vizinha da Britânia. Naquela época, os druidas costumavam sacrificar não apenas animais mas também homens e mulheres. Isso, contudo, fora muito tempo atrás. Os druidas agora estavam na ilha ocidental, e ninguém era capaz de se lembrar do último sacrifício humano.

O treinamento de um druida podia levar vinte anos. Geralmente sabiam mais do que os bardos e os filidh; mas, acima disso, ele era um sacerdote, com o conhecimento secreto dos encantamentos sagrados e dos números e de como se comunicar com os deuses. Os druidas realizavam sacrifícios e cerimônias no solstício de inverno e em outros importantes festivais do ano. Prescreviam em que dias se deviam semear as safras e abater os animais. Poucos reis ousavam iniciar qualquer empreendimento sem consultar os druidas. Dizia-se que, se alguém brigasse com eles, suas palavras podiam ser tão ásperas que provocavam bolhas. A maldição lançada por um druida podia durar por dezessete gerações. Sábios conselheiros, respeitados juizes, doutos professores, temíveis inimigos: os druidas eram tudo isso.

Entretanto, além disso havia algo mais misterioso. Alguns druidas, como os xamãs, podiam entrar em transe e visitar o outro mundo. Podiam até mesmo assumir a forma de um pássaro ou um outro animal. Haveria algo dessa característica mística, perguntava-se às vezes Finbarr, em seu amigo Conall?

Certamente ele sempre passava muito tempo com os druidas, desde aquele encontro na infância. Quando completou vinte anos, dizia-se, ele sabia mais do que a maioria dos jovens adultos que estudavam para o sacerdócio. Seu interesse não era considerado estranho. Muitos dos druidas vieram de famílias nobres; no Passado, alguns dos maiores guerreiros haviam estudado com druidas o grau de interesse de Conall, porém, era incomum, como também sua perícia. Sua memória era prodigiosa.

Dissesse o que dissesse Conall, a Finbarr parecia que ele às vezes era solitário.

Para selar sua amizade, alguns anos antes o príncipe lhe dera um filhote de cachorro. Finbarr levava o animalzinho para todo lugar. Dera-lhe o nome de Cuchulainn, o mesmo do herói da lenda. Apenas aos poucos, conforme o filhote crescia, Finbarr dera-se conta da natureza do presente. Cuchulainn tornara-se um magnífico cão de caça, do tipo que atraía para a ilha ocidental mercadores de lugares distantes além-mar, e pelo qual pagariam com lingotes de prata ou moedas romanas. O cão era inestimável. Nunca deixava sua companhia.

— Se algo acontecer comigo — disse-lhe certa vez Conall —, seu cachorro Cuchulainn estará presente para lembrá-lo de mim e de nossa amizade.

— Você será meu amigo enquanto eu viver — assegurou-lhe Finbarr. — Espero que seja eu quem morra primeiro. — E se não era capaz de dar em troca ao príncipe um presente de semelhante valor, podia pelo menos, pensou ele, garantir que sua própria amizade fosse constante e leal como era a do cão Cuchulainn.

Conall também tinha um outro talento. Sabia ler.

Às pessoas da ilha não era estranho o mundo da escrita. Os mercadores da Britânia e da Gália que chegavam aos portos geralmente sabiam ler. As moedas romanas que usavam exibiam letras latinas. Finbarr conhecia muitos bardos e druidas que sabiam ler. Poucas gerações atrás, os homens instruídos da ilha, usando sons de vogais e de consoantes do latim, haviam até mesmo inventado uma escrita simples de uso próprio para entalhar memoriais em celta sobre postes e pedras. Embora de tempos em tempos alguém pudesse se deparar com uma pedra erguida cheia desses estranhos riscos ogâmicos, esse antigo sistema de escrita celta nunca se tornou largamente utilizado. Nem, pelo que constava a Finbarr, foi usado para registrar a herança sagrada da ilha.

— Não é difícil dizer por quê — explicara-lhe Conall. — Em primeiro lugar, o conhecimento dos druidas é secreto. Você não ia querer que uma pessoa indigna o lesse. Isso irritaria os deuses.

— E os sacerdotes também perderiam seu poder secreto — observou Finbarr.

— Isso talvez seja verdade. Mas há um motivo além desse. O grande dom de nossos sábios, os bardos, filidb e druidas, é a capacidade de sua memória. Memorizar torna a mente muito forte. Se escrevêssemos todo o nosso conhecimento para não termos que lembrar dele, nossas mentes se tornariam fracas.

— Então por que você aprendeu a ler? — perguntou Finbarr.

— Eu sou curioso — respondeu Conall, como se isso fosse natural. Sorrindo, concluiu: — Além do mais, eu não sou um druida.

Essas palavras ficaram ecoando na mente de Finbarr. Claro que seu amigo não era um druida. Ele ia ser um guerreiro. Entretanto... Às vezes, quando Conall cantava e fechava os olhos, ou quando retornava de suas perambulações solitárias com um olhar distante e melancólico, como se estivesse sonhando, Finbarr não podia evitar de se perguntar se seu amigo não teria ultrapassado... Ele não sabia bem o quê. Uma espécie de fronteira.

E por isso ele não ficou realmente surpreso quando, perto do fim da primavera, Conall confessou: “Quero ter a tonsura dos druidas.”

Os druidas rapavam a cabeça da altura das orelhas até o topo. O corte conferia-lhes uma testa alta, redonda; a não ser, é claro, que o druida já fosse calvo na frente, e nesse caso a tonsura mal aparecia. No caso de Conall, como seu cabelo era denso, a tonsura deixaria uma área em forma de V acima da testa.

Claro que já houve antes príncipes druidas. Aliás, muita gente na ilha considerava a casta dos druidas superior à dos reis. Finbarr olhou pensativamente para seu amigo.

— O que dirá o rei supremo? — indagou.

— É difícil de dizer. É pena que minha mãe fosse irmã dele.

Finbarr sabia tudo sobre a mãe de Conall: sua devoção à memória do pai dele, sua determinação para que o filho seguisse os passos do pai como guerreiro. Quando ela morreu, dois anos atrás, implorara ao rei supremo — seu irmão — para que ele garantisse a continuação da linhagem do marido.

— Os druidas se casam — salientou Finbarr. Aliás, o posto de druida era geralmente transmitido de pai para filho. — Você pode ter filhos que serão guerreiros.

— É verdade — concordou Conall. — Mas o rei pode pensar diferente.

— Ele pode proibir você, se os druidas quiserem que se junte a eles?

— Eu acho que se os druidas souberem que o rei supremo não quer, eles não pedirão — rebateu Conall.

— O que você vai fazer?

— Esperar. Talvez eu consiga convencê-los.

Um mês depois o rei supremo mandou chamar Finbarr.

— Finbarr — começou ele —, sei que você é amigo íntimo do meu sobrinho Conall. Sabe que ele deseja se tornar um druida? — Finbarr fez que sim. — Seria muito bom se ele mudasse de idéia — sugeriu o rei. Isso foi tudo. De parte do rei supremo, porém, foi o suficiente.

Ela não quisera vir. Havia dois motivos. O primeiro, Deirdre sabia, era egoísta. Não gostava de sair de casa.

Era um lugar estranho para se morar, mas ela o adorava. No meio da costa leste da ilha, um rio, descendo das selvagens montanhas de Wicklow logo ao sul e fazendo uma extensa curva para o interior, seguia por um estuário até a larga baía com os dois promontórios — como se, pensou Deirdre, a deusa da Terra, Eriu, a mãe da ilha, estivesse esticando os braços para abraçar o mar. No interior, formava uma larga bacia sedimentar conhecida como Planície do Liffey. Tratava-se de um rio cheio de caprichos, sujeito a fúrias repentinas. Quando se zangava, suas grossas águas se arremessavam montanha abaixo em violentos jorros que carregavam tudo o que estivesse à frente. Mas esses acessos de raiva eram apenas ocasionais. Na maior parte do tempo, suas águas eram tranqüilas e sua voz suave, sussurrante e melódica. Com suas extensas águas de maré, pântanos cobertos de mato e pequenos alagadiços margeados com capim, o estuário era normalmente um lugar de silêncio, a não ser pelo grasnido das distantes gaivotas, os maçaricos pipilantes e as garças deslizando sobre as praias do litoral repletas de conchas.

Era quase deserta, exceto pelas poucas e dispersas fazendas sob o controle do pai dela. Havia, porém, duas pequenas características, cada qual já tendo dado um nome ao local. Uma, um pouco antes de o rio se abrir para seu pantanoso estuário com quilômetro e meio de largura, era feita pelo homem: uma trilha de madeira através da área pantanosa, que atravessava o rio no seu ponto mais raso junto a cercas e continuava até atingir terreno mais firme na margem norte. Ath Cliath era o seu nome na língua celta da ilha — o Vau das Cercas — que era pronunciado aproximadamente como “Aw Cleeya”.

A segunda característica era natural. O local onde Deirdre estava parada ficava na extremidade leste de um pequeno espinhaço que corria ao longo da margem sul dando vista para o vau. Abaixo dela, um riacho vinha do sul se juntar ao rio e, pouco antes de isso ocorrer, encontrando a extremidade do pequeno espinhaço, ele fazia uma ligeira curva, em cujo ângulo se formara uma profunda lagoa negra. Eles o chamavam Blackpool ou Dubh Linn. Para o ouvido soava “Doov Lin”.

Embora, porém, tivesse dois nomes, quase ninguém vivia ali. Nas encostas das montanhas de Wicklow havia povoados desde tempos imemoriais. Havia aldeias de pescadores e até mesmo pequenos portos ao longo da costa, tanto ao norte quanto ao sul da embocadura do rio. Lá pelos brejos do rio, contudo, ainda que Deirdre adorasse sua bela quietude, não havia muita razão para se assentar.

Em vista disso, Dubh Linn era uma região fronteiriça, uma terra de ninguém. Os territórios dos chefes poderosos ficavam a norte, sul e oeste do estuário, mas apesar de um ou de outro, de tempos em tempos, reivindicar a soberania, eles tinham muito pouco interesse na área; e portanto seu pai, Fergus, permanecia como chefe imperturbável do local.

Por mais que fosse deserto, o território de Fergus tinha o seu valor, pois ficava em uma importante encruzilhada da ilha. Trilhas antigas, geralmente abertas através das densas florestas da ilha e conhecidas como slige, vinham do norte e do sul para dar no vau. A velha Slige Mhor, a Grande Estrada, seguia pelo oeste. Além de ser o guardião desse entroncamento, Fergus também oferecia em sua casa a habitual hospitalidade da ilha aos viajantes.

Outrora, o lugar fora mais movimentado. Durante séculos, o mar aberto além da baía parecia mais um grande lago entre as duas ilhas onde, por muitas gerações, habitaram as várias tribos de seus povos, nas quais comerciaram, se assentaram e se casaram entre si. Quando o poderoso Império Romano tomou posse da ilha oriental — Britânia, como a chamavam —, os mercadores romanos foram para a ilha ocidental e instalaram pequenos entrepostos comerciais ao longo da costa, incluindo a baía, e às vezes iam até o estuário. Certa vez, ela sabia, as tropas romanas até mesmo desembarcaram e montaram um acampamento murado, do qual os disciplinados legionários romanos com sua armaduras reluzentes haviam ameaçado tomar também a ilha ocidental. Entretanto, não tiveram sucesso. Foram embora, e a mágica ilha ocidental foi deixada em paz. Ela tinha orgulho disso. Orgulho da terra e do povo de Eriu, que conservavam antigos costumes e nunca se submeteram.

E quando o poderoso Império Romano ruiu, tribos bárbaras haviam rompido suas fronteiras; a própria cidade imperial de Roma fora saqueada; as legiões deixaram a Britânia; e os entrepostos de comércio romanos ficaram desertos.

Alguns dos chefes mais aventureiros da ilha ocidental se deram bem nesses tempos de mudanças. Houve grandes ataques na então indefesa Britânia. Ouro, prata, escravos — todos os tipos de mercadorias vieram enriquecer os brilhantes salões de Eriu. Mas essas expedições ficaram aquém dos portos localizados mais distantes costa acima. Embora mercadores de vez em quando ainda se aventurassem no estuário do Liffey, o lugar raramente ficava movimentado.

A propriedade de Fergus, filho de Fergus, compunha-se de um conjunto de cabanas e armazéns — alguns colmados, outros com telhado de torrões — em um cercado circular na elevação em frente à lagoa negra, rodeado por um muro de terra e cerca. Esse assentamento fortificado, para dar ao pequeno forte seu nome técnico, era apenas um do grande número que começava a aparecer na ilha. Na língua celta local era chamado de rath. Essencialmente, o rath de Fergus era uma versão ampliada das fazendas simples — uma casa de moradia e quatro abrigos para animais — encontradas em todas as regiões mais férteis da ilha. Havia um pequeno chiqueiro, um curral para o gado, um silo, um belo salão e uma casa de moradia extra, menor. A maioria tinha forma circular, com fortes paredes de pau-a-pique. Essas várias instalações podiam facilmente acomodar Fergus, sua família, o tratador do gado e sua família, o pastor, duas outras famílias, três escravos britânicos, o bardo — pois o chefe, cuidadoso com a sua posição, mantinha seu próprio bardo, cujos pai e avô haviam ocupado a mesma posição antes dele — e, é claro, a criação de animais. Na prática, essas numerosas almas raramente estavam todas juntas ao mesmo tempo. Mas, ainda assim, poderiam se acomodar pelo simples motivo de que as pessoas estavam acostumadas a dormir comunalmente. Instalado na modesta elevação que dava vista para o vau, esse era o rath de Fergus, filho de Fergus. Abaixo, um pequeno moinho próximo ao riacho e um desembar-cadouro no rio completavam o assentamento.

O segundo motivo por que Deirdre não quisera vir tinha a ver com seu pai. Ela temia que ele fosse assassinado.

Fergus, filho de Fergus. A antiga sociedade da ilha ocidental era uma rigorosa hierarquia, com muitas classes. Cada classe, do rei ou druida ao escravo, tinha sua própria linhagem, o preço do sangue a ser pago no caso de morte ou dano. Cada homem conhecia sua posição e a de seus ancestrais. E Fergus era um chefe.

Era respeitado pelos habitantes das fazendas dispersas, que ele chamava de sua tribo, como um chefe de temperamento amável mas por vezes instável. Numa primeira reunião, o chefe alto talvez parecesse calado e indiferente — mas não por muito tempo. Se avistasse um dos vizinhos que lhe deviam obediência, ou um dos seus tratadores de gado, isso podia significar uma demorada e expansiva conversa. Acima de tudo, ele adorava conhecer gente nova, pois o guardião do isolado Vau das Cercas era profundamente curioso. Um viajante do Ath Cliath seria sempre esplendidamente alimentado e distraído, mas podia abandonar qualquer esperança de seguir com seus assuntos enquanto Fergus não achasse que ele tivesse revelado cada informação, pessoal e geral, que possuísse e depois ouvisse o chefe falar tudo o que quisesse.

Se o visitante fosse especialmente estimado, Fergus oferecia vinho, depois ia até a mesa onde eram guardadas suas estimadas posses e retornava com um pálido objeto transportado reverentemente nas mãos em concha. Uma caveira humana. Mas cuidadosamente trabalhada. A coroa da caveira fora habilmente cortada fora e o buraco circular orlado de ouro. Era bastante leve. O pálido osso era liso, delicado, quase como um ovo. As órbitas vazias dos olhos encaravam inexpressivas, como se para lembrar que, como devem fazê-lo todos os seres humanos, o inquilino da caveira partiu para outro lugar. O louco esgar da boca parecia dizer que alguma coisa na natureza da morte não fazia sentido — pois todos sabiam que no seio da família estava-se sempre na companhia dos mortos.

— Foi a cabeça de Erc, o Guerreiro — contava Fergus orgulhoso ao visitante. — Morto pelo meu próprio avô.

Deirdre sempre recordava do dia — ela apenas uma menininha — em que os guerreiros passaram. Houve uma luta entre dois clãs no sul, e os homens viajaram para o norte depois disso. Eram três; todos pareciam imensos para ela; dois ostentavam longos bigodes, o terceiro tinha o cabelo rapado exceto por um alto e pontudo espigão no meio. Essas figuras aterrorizantes, disseram-lhe, eram guerreiros. Foram recebidos calorosamente pelo seu pai e conduzidos ao interior da casa. E de uma corda de couro pendurada no lombo de um dos cavalos, ela tivera a terrível visão de três cabeças humanas, o sangue nos pescoços congelado até se tornar preto, os olhos encarando, esbugalhados mas cegos. Ela as fitara com aterrador fascínio. Ao correr para dentro, vira o pai brindando com os guerreiros e bebendo na caveira.

Em pouco tempo ela aprendeu que a estranha e velha caveira devia ser venerada. Como o escudo e a espada de seu avô, era um símbolo do antigo orgulho da família. Seus ancestrais foram guerreiros, dignos parceiros de príncipes e heróis, e até mesmo de deuses. Será que os deuses, em seus brilhantes salões, bebiam de caveiras semelhantes? Ela supunha que sim. De que outro modo beberia um deus senão como um herói? Podia ser que sua família mandasse apenas num pequeno território, mas ela ainda podia pensar na espada, e no escudo, e na caveira orlada de ouro, e manter a cabeça erguida.

De sua infância, Deirdre podia lembrar-se de ocasionais explosões de raiva do pai. Eram causadas principalmente por alguém tentando trapaceá-lo ou por lhe faltar com o devido respeito; embora às vezes, ela percebera ao ficar mais velha, sua demonstração de ira devesse ser planejada — principalmente se estivesse negociando a compra ou a venda de animais. Tampouco se importava se o pai às vezes explodia e bufava como um touro. Um homem que nunca perdia as estribeiras era um homem que nunca estava preparado para lutar: não era totalmente homem. A vida sem essas explosões ocasionais era maçante, carecendo de emoção natural.

Nos últimos três anos, porém, desde a morte de sua mãe, ocorrera uma mudança. O prazer do pai pela vida diminuíra; nem sempre cuidava de seus negócios como devia; sua irritação tornara-se mais freqüente, os motivos das rixas nem sempre claros. No ano anterior, quase engalfinhou-se com um jovem nobre que contradissera Fergus em sua própria casa. E também havia a bebida. Seu pai, mesmo em festanças, sempre bebera um tanto frugalmente. Várias vezes, porém, em meses recentes, ela notara que ele e o velho bardo tinham andado bebendo mais do que o normal à noite; e uma ou duas vezes sua melancolia nessas ocasiões o havia levado a explosões de temperamento, pelas quais ele se desculpava no dia seguinte mas que na ocasião haviam magoado. Deirdre se orgulhava bastante de sua posição como a mulher no comando da casa desde a morte de sua mãe, e secretamente temia a possibilidade de seu pai arrumar outra esposa; mas de uns tempos para cá passara a pensar se essa não seria a melhor solução. E então, pensou ela, suponho que eu mesma teria que me casar, pois certamente não há lugar para duas mulheres na casa. No mínimo, essa não era uma possibilidade que ela aguardava com interesse.

Haveria, porém, outro motivo para a aflição do pai? Ele nunca confessaria — era muito orgulhoso para isso —, mas ela às vezes ficava imaginando se o pai talvez não estivesse vivendo além de suas posses. Não sabia por que estaria. A maior parte das grandes transações feitas na ilha era paga com gado, e Fergus possuía grandes rebanhos. Algum tempo atrás, ela sabia, ele havia penhorado com um mercador a mais valiosa peça de sua herança. O torque de ouro, usado em volta do pescoço como um amuleto, era o sinal de sua posição como chefe. A explicação que deu a ela, na ocasião, fora bem simples. “Com o preço que me foi oferecido, posso adquirir gado suficiente para comprá-lo de volta dentro de poucos anos. Não me faz nenhuma falta”, dissera-lhe grosseiramente. Com certeza havia poucos criadores de gado em Leinster mais habilidosos do que seu pai. Mas, mesmo assim, ela não se convencera. Várias vezes no último ano ouvira-o resmungar sobre suas dívidas, e imaginava o que mais ele poderia estar devendo sem que ela soubesse. Foi, porém, um incidente três meses atrás o que realmente a deixara apavorada. Um homem que ela nunca vira antes chegou no rath e rudemente anunciou diante de todos da casa que Fergus lhe devia dez vacas e era melhor que ele pagasse imediatamente. Ela nunca vira o pai tão furioso, embora suspeitasse que tenha sido a humilhação de ser exposto daquela maneira o que realmente o deixara enfurecido. Visto que ele se recusou a pagar, o sujeito retornou uma semana depois com vinte homens armados e levou não apenas dez, mas vinte cabeças de gado. Seu pai ficou fora de si e jurou vingança. Nada se concretizara dessa ameaça, mas, desde essa ocasião, seu humor ficou pior do que nunca. Naquela semana, ele surrou duas vezes um dos seus escravos.

Haveria mais gente, pensava ela, de quem seu pai era devedor na grande reunião em Carmun? Desconfiava que sim. Ou resolveria ele que alguém por lá o insultara? Ou, após beber, começaria uma discussão por qualquer motivo? Parecia-lhe que coisas assim eram bem possíveis de acontecer e a perspectiva a enchia de medo, pois, nos grandes festivais, havia uma regra incondicional: não podia haver brigas. Era regra necessária quando se tinha uma enorme afluência de pessoas competindo e se divertindo. Causar um distúrbio era um insulto ao rei, o que não seria perdoado. O rei em pessoa poderia tirar a sua vida por causa disso, e os druidas e os bardos e todos os demais o apoiariam. Em outras ocasiões, podia-se discutir com um vizinho, roubar gado ou participar de uma briga pela honra. No grande festival de Lughnasa, porém, comportar-se dessa forma era sempre um risco de vida.

No seu presente estado, ela só conseguia ver o pai se envolvendo em uma briga. E depois? Não haveria demonstração de piedade ao velho chefe do obscuro e pequeno território de Dubh Linn. Ela tremia só de pensar. Por um mês, tentara convencê-lo a não ir. Mas não adiantou. Ele estava determinado a ir, e levar Deirdre e seus dois irmãos mais novos.

— Tenho assuntos importantes a tratar lá — dissera-lhe. Mas que assuntos seriam ele não disse.

Por isso, ela foi tomada de surpresa pelo que acontecera no dia anterior à partida deles. Ele havia saído cedo para pescar com os irmãos dela e retornara no meio da manhã.

Mesmo a distância, não se podia confundir Fergus. Qualquer um o reconhecia pelo andar. Quando se encontrava nas colinas com seu gado ou caminhando pela ribanceira para ir pescar, Fergus era inconfundível. Sua figura alta movimentava-se com uma tranqüila despreocupação; as passadas longas e lentas consumiam a distância. Raramente falava quando caminhava, e havia algo em seus modos, ao se movimentar pela silenciosa paisagem, que sugeria que ele considerava não apenas aquela região mas a ilha inteira como sua propriedade pessoal.

Chegara por uma extensão de pasto, com um comprido bastão na mão direita e os dois filhos seguindo fielmente atrás dele. Seu rosto, com o enorme bigode e o comprido nariz, vinha vigilante e silenciosamente pensativo, descansado — sua expressão, Deirdre deu-se conta, lembrava-lhe um velho e sábio salmão. Mas, ao se aproximar, seu rosto havia se alargado e se fendido em um contagiante sorriso.

— Pescou alguma coisa, papai? — perguntou ela.

Mas, em vez de responder à pergunta, ele comentou prazeroso:

— Bem, Deirdre, vamos partir amanhã para lhe conseguir um marido.

Para Goibniu, o Ferreiro, tudo começara certa manhã do mês anterior. Não conseguia realmente entender o que aconteceu naquele dia. Foi muito estranho. Mas, por outro lado, o lugar, era sabido, vivia apinhado de espíritos.

De todos os muitos rios da ilha, nenhum era mais sagrado do que o rio Boyne. Fluindo para o mar oriental e a um dia de viagem para o norte de Dubh Linn, suas férteis margens estavam sob o controle do rei de Ulster. Movendo-se lentamente, repleto com o majestoso salmão, o Boyne seguia suavemente pelo solo mais fértil de toda a ilha. Havia, porém, uma área — um lugar sobre um pequeno espinhaço que dava vista para a margem norte do Boyne — aonde a maioria dos homens temia ir. O lugar dos antigos montes.

Era uma bela manhã quando Goibniu se aproximou da lateral do monte. Ele sempre subia por ali se precisasse passar pela área. Outros homens podiam ter medo do local, mas ele não. Para o oeste, a distância, podia ver o cume da real colina de Tara. Olhou para baixo do declive onde os gansos deslizavam nas águas do Boyne. Um sujeito com uma foice caminhava pela trilha ao lado da ribanceira. Ele olhou para cima, viu Goibniu e deu-lhe de má vontade um cumprimento com a cabeça ao qual Goibniu retribuiu com irônica cortesia. Não havia muita gente que gostasse de Goibniu. “Govnyoo” era como se pronunciava o nome. Mas fosse o que fosse que sentissem, o ferreiro não se importava, Apesar de não ser muito alto, seu olhar irrequieto e a perspicaz inteligência logo pareciam dominar qualquer grupo ao qual se juntasse. Seu rosto não era agradável. Um queixo que se projetava como uma rocha, lábios caídos, um nariz adunco que descia e quase os encontrava, olhos salientes e uma testa que recuava sob o cabelo ralo: apenas isso formava um rosto que ninguém esqueceria facilmente. Na juventude, porém, ele perdera um dos olhos numa briga e, como resultado, um olho vivia permanentemente fechado enquanto o outro parecia assomar de seu rosto numa medonha esguelha. Alguns diziam que ele adotara aquela expressão de soslaio mesmo antes de ter perdido o olho. Pode ser. Em todo caso, as pessoas o chamavam de Balar pelas costas, como o malvado rei caolho dos fomorianos, uma tribo lendária de horrendos gigantes — um fato de que ele estava perfeitamente a par. Isso o divertia. Podiam não gostar dele, mas o temiam. Havia vantagens nisso.

Eles tinham motivo para temer. Não era apenas por causa daquele único olho que tudo via. Era por causa do cérebro que havia atrás.

Goibniu era importante. Como um dos melhores mestres artesãos da ilha, em tudo, menos no nome, desfrutava o status de um nobre. Embora fosse conhecido como ferreiro — e ninguém na ilha era capaz de forjar melhores armas de ferro —, sua vocação era trabalhar metais preciosos. Aliás, foram os preços altos que os homens importantes da ilha pagavam pelos seus ornamentos de ouro que tornaram Goibniu um homem rico. O rei supremo em pessoa o convidava para suas festas. Sua verdadeira importância, porém, residia naquele terrível e tortuoso cérebro. Os chefes mais importantes, até mesmo os sábios e poderosos druidas, procuravam seus conselhos. “Goibniu é profundo”, reconheciam, antes de acrescentar reservadamente, “Nunca o queira como seu inimigo”.

Logo atrás dele estava o maior dos grandes montes circulares situados ao longo do espinhaço. Um sid, chamavam os insulanos a um monte como esse — pronunciavam “shee” —, e, embora misteriosos, havia muitos deles.

Era evidente que o sid se deteriorara com o tempo. As paredes do cilindro em muitos pontos haviam afundado ou desaparecido sob os barrancos cobertos de grama. Em vez de um cilindro com teto arqueado, ele agora parecia mais um outeiro com várias entradas. No seu lado sul, a face de quartzo que outrora brilhava ao sol agora tinha desabado quase toda, e por isso havia um pequeno deslizamento formado por pedras de um pálido metálico diante do antigo vão da porta. Ele se virou a fim de ficar de frente para o sid.

Os Tuatha De Danaan viviam ali. O Dagda, o bondoso deus do sol, vivia naquele sid; mas todos os montes que pontilhavam as ilhas eram entradas para o outro mundo deles. Todos conheciam as histórias. Primeiro uma, depois outra tribo viera para a ilha. Deuses, gigantes, escravos — suas identidades deixavam-se ficar na paisagem como nuvens de bruma. A mais gloriosa de todas, porém, fora a raça divina da deusa Anu, ou Danu, deusa da riqueza e dos rios: os Tuatha De Danaan. Guerreiros e caçadores, poetas e artesãos — haviam chegado à ilha, diziam alguns, cavalgando nas nuvens. A deles fora uma era de ouro. Foram os Tuatha De Danaan que as tribos atuais, os Filhos de Mil, encontraram na ilha quando chegaram. E fora um deles, a deusa Eriu, que prometera aos Filhos de Mil que, se dessem o nome dela à terra, eles viveriam na ilha para sempre. Isso já fazia muito tempo. Ninguém sabia exatamente quanto. Houve grandes batalhas, isso era certo. E então os Tuatha De Danaan retiraram-se da terra e foram viver no subterrâneo. Eles ainda viviam por lá, sob as colinas, sob os lagos, ou muito longe, no além-mar, nas lendárias Ilhas Ocidentais, banqueteando-se em seus resplandecentes salões. Essa era a história.

Mas Goibniu duvidava. Podia ver que os montes foram feitos pelo homem; aliás, sua edificação talvez não fosse muito diferente das obras de terra ou de pedra que os homens constróem atualmente. Mas, se foi dito que os Tuatha De Danaan haviam se recolhido para baixo deles, então datavam provavelmente daquela antiga era. Então foram os Tuatha De Danaan que os construíram? Era bastante provável, supunha ele. Raça divina ou não, decidiu, eles continuavam sendo homens. Contudo, se isso fosse correto, aí vai uma coisa curiosa: todas as vezes que ele examinava as pedras entalhadas nesses locais antigos, sempre observava que os padrões dos entalhes eram semelhantes àqueles existentes nos trabalhos em metal de sua própria época. Ele vira peças de excelente ouro trabalhado, também, que foram encontradas em pântanos e em outros lugares, e que supunha serem muito antigas. Nelas, também, os desenhos eram familiares. Goibniu era especialista nesses assuntos. As tribos que vieram realmente copiaram os desenhos deixados pela raça da deusa Danu que fora embora? Não seria mais provável que alguns dos antigos tivessem ficado e transmitido suas habilidades? De qualquer modo, teria um povo inteiro, divino ou não, desaparecido realmente sob as colinas?

Goibniu lançou seu frio olhar no sid. Havia ali uma pedra que sempre chamava sua atenção todas as vezes que passava por aquele lugar. Era grande, uma enorme placa com quase dois metros de largura, diante da qual havia antes uma entrada. Ele aproximou-se dela.

Que coisa curiosa era aquela. O redemoinho de linhas com o qual fora entalhada formava vários padrões, porém o mais significativo era o grande trifólio de espirais do lado esquerdo. E, como fizera antes muitas vezes, ele passou a mão sobre a pedra, cuja aspereza semelhante a uma lixa parecia agradavelmente fresca em meio ao sol quente enquanto seus dedos percorriam os sulcos. A espiral maior era dupla, como um par de enguias enroladas firmemente com as cabeças presas no meio. Acompanhando uma espiral, ela levava à segunda espiral, outra dupla, abaixo dela. A terceira, a espiral menor, a separada, repousava tangencialmente nos ombros rodopiantes das outras duas. E de suas bordas os sulcos juntavam-se nos ângulos em que as espirais se encontravam, como marcas deixadas pela maré numa entrada de baía, antes de se escoar em rios redemoinhantes em volta da pedra.

O que significariam? Qual era o significado do trifólio? Três espirais ligadas porém independentes, sempre conduzindo para dentro, mas também fluindo externamente para o nada. Seriam símbolos do sol e da lua e da terra embaixo? Ou dos três rios sagrados de um mundo quase esquecido?

Ele vira certa vez um sujeito maluco fazer um desenho parecido com aquele. Foi naquela mesma época do ano, antes da colheita, quando o último dos grãos velhos fica mofado, e o pobre coitado que o come age estranhamente e sonha sonhos. Topara com ele à beira-mar, sentado sozinho, grande e esquelético, os olhos fixos em coisa alguma, uma vara torta na mão, desenhando na areia vazia espirais exatamente iguais àquelas. Seria um louco ou um sábio? Goibniu deu de ombros. Quem sabe? Era tudo a mesma coisa.

Ainda percorria os sulcos rodopiantes no silêncio da manhã, a mão movendo-se para cá e para lá. Uma coisa era certa. Quem quer que tenha feito aquelas espirais, Tuatha De Danaan ou não, Goibniu sentia que o conhecia, como apenas um artífice era capaz. Outros homens podiam achar o sid sombrio e medonho, mas ele não se importava. Gostava das espirais cósmicas na terra fria como pedra.

Então lhe ocorreu. Foi uma sensação estranha. Nada a que se conseguisse dar um nome. Um eco na mente.

A época do Lughnasa estava se aproximando. Haveria na ilha uma série de grandes festivais, e embora estivesse pensando nos grandes jogos de Leinster em Carmun, ele planejava ir este ano a outro lugar. Agora, porém, parado diante da pedra com suas espirais, surgira em sua mente a sensação de que deveria ir a Carmun, embora não soubesse por quê.

Apurou os ouvidos. Tudo estava silencioso. Entretanto, no próprio silêncio parecia haver um significado, um recado trazido por um mensageiro ainda muito distante, como uma nuvem escondida no horizonte. Goibniu era um homem teimoso: não era dado a tolos estados de espírito ou fantasias. Mas não podia negar que, de vez em quando, ao caminhar pela paisagem da ilha, tivera a sensação de saber coisas que não podia explicar. Esperou. Lá estava ele novamente, aquele eco, como um sonho meio apagado. Algo estranho, tinha a impressão, ia acontecer em Carmun.

Deu de ombros. Talvez não significasse nada, mas não se devia ignorar essas coisas. Seu olho percorreu o horizonte ao sul. Ele então iria a Carmun, no Lughnasa. Quando foi a última mês que esteve no sul? No ano anterior, recolhendo ouro nas montanhas abaixo de Dubh Linn. Sorriu. Goibniu adorava ouro.

Então franziu a testa. A recordação daquela viagem lembrou-lhe de algo mais. Ele atravessara o Vau das Cercas. Havia lá um sujeito grandão. Fergus. Assentiu pensativamente. Aquele sujeito grandão tinha uma dívida para com ele — no valor de vinte cabeças de gado. Uma dívida havia muito tempo vencida. O chefe corria perigo ao aborrecê-lo. Imaginou se Fergus iria ao festival.

Deirdre não gostara da viagem a Carmun. Haviam partido de Dubh Linn ao amanhecer com uma leve chuva caindo em meio à neblina. O grupo não era grande: apenas Deirdre, seu pai, seus irmãos, o bardo e o menor dos escravos britânicos. Os homens montavam a cavalo: ela e o escravo seguiam na carroça. Os cavalos eram pequenos e robustos — em uma época posterior seriam chamados de pôneis —— mas de andar seguro e vigoroso. Ao cair da noite já teriam percorrido a maior parte da distância e chegariam no dia seguinte.

A chuva não a incomodava. Era do tipo que o pessoal da ilha fazia pouco caso. Se fosse perguntado a Fergus, ele diria: “Faz um dia agradável.” Para a viagem, usava roupas simples — um vestido de lã xadrez, uma capa leve presa nos ombros e um par de sandálias de couro. Seu pai vestia-se de modo semelhante, com uma túnica com cinto e capa. Como a maioria dos homens, suas compridas pernas estavam nuas.

Por algum tempo ficaram em silêncio. Atravessaram o vau. Muito tempo atrás, assim conta a história, as cercas foram instaladas por ordem de um lendário vidente. Seja como for, como era o chefe que controlava o território, Fergus as mantinha atualmente. Cada cerca consistia de uma balsa feita de varas trançadas fixada por estacas e pesadas pedras — bem compactas, para não serem levadas embora se o rio transbordasse. Na outra extremidade, onde a ponte seguia por cima do pântano, a carroça quebrou algumas das varas que haviam apodrecido. “Isso precisa ser consertado”, murmurou o pai distraidamente; mas ela ficou imaginando quantas semanas se passariam até ele cuidar daquilo.

Feita a travessia, viraram na direção oeste, seguindo riacho acima o rumo do Liffey. Bosques cresciam nas ribanceiras. Em solo seco, como em grande parte da floresta da ilha, abundavam freixos e excelentes carvalhos. Dair era como chamavam em celta o pé de carvalho, e às vezes um assentamento feito em uma clareira de um bosque de carvalhos era chamado de Daire — que soava, aproximadamente, “Derry”. Ao seguirem pela trilha da mata, a chuva cessara e o sol aparecera. Atravessaram uma grande clareira. E foi somente depois que o caminho os levou de volta novamente para o mato que Deirdre falou.

— Que tipo de marido eu vou ter?

— Veremos. Alguém que atenda às condições.

— E quais são elas?

— As apropriadas à única filha desta família. O seu marido se casará com a bisneta de Fergus, o guerreiro. O próprio Nuadu da Mão de Prata costumava falar com ele. Não esqueça isso.

Como podia esquecer? Não contava isso a ela desde antes de começar a andar? Nuadu da Mão de Prata, o fazedor de nuvens. Na Britânia, onde era representado como o Netuno romano, construíram para ele um grande santuário perto do rio ocidental Severn. Na ilha ocidental, porém, ele foi adotado como um dos Tuatha De Danaan — e os reis daquela parte da ilha até mesmo alegavam que era seu ancestral. Nuadu tinha uma predileção pessoal pelo bisavô dela. Seu futuro marido teria de ter conhecimento disso, e de todo o resto da herança da família. Ela olhou de soslaio para o pai.

— Talvez eu recuse — disse ela. Pelas antigas leis da ilha, uma mulher era livre para escolher seu marido e para se divorciar depois, se desejasse. Em teoria, portanto, seu pai não podia obrigá-la a casar com alguém, embora, sem dúvida, as coisas se tornassem desagradáveis para ela caso se recusasse.

No passado, homens haviam feito ofertas por ela. Mas, após a morte da mãe, com Deirdre cuidando da casa e fazendo o papel de mãe para os irmãos, o assunto de seu casamento fora colocado de lado. A última ocasião que ela sabia que lhe fora feita uma oferta aconteceu num dia em que ela saíra para caminhar. Na volta, seus irmãos lhe disseram que um homem havia perguntado por ela. O resto da conversa, porém, não fora encorajador.

Ronan e Rian: dois e quatro anos mais novos do que ela. Talvez não fossem piores do que outros garotos de sua idade. Mas certamente conseguiam aborrecê-la.

— Ele passou aqui enquanto você estava fora — contou Ronan.

— Que tipo de homem?

— Ora, apenas um homem. Como o papai. Mais novo. Estava viajando para algum lugar.

— Eles conversaram.

— E? O que papai disse?

— Ele ficou apenas... você sabe... falando. — Ronan olhou para Rian.

— A gente não ouviu muita coisa — acrescentou Rian. — Mas acho que ele fez uma proposta para casar com você.

Ela olhou para eles. Não estavam sendo evasivos. Apenas sendo eles mesmos. Dois jovens desengonçados sem um pingo de juízo que pudesse ser dividido entre os dois. Como uma dupla de filhotes de cachorro grandes. Mostre uma lebre e eles a perseguirão. Era praticamente a única coisa que os animava. Impraticável.

O que eles fariam sem ela?, perguntou-se.

— Vão ficar tristes se eu deixar vocês para me casar? — perguntou-lhes subitamente.

Os dois se entreolharam novamente.

— Você vai ter que ir, mais cedo ou mais tarde — disse Ronan.

— A gente vai ficar bem — disse Rian. — Poderá vir nos visitar — acrescentou, encorajador, como numa reflexão posterior.

— Vocês são muito bondosos — declarou ela, com amarga ironia, mas eles não perceberam. Não adiantava, supôs, esperar gratidão de garotos daquela idade.

Mais tarde, ao questionar o pai a respeito, ele fora sucinto.

— Ele não ofereceu o bastante.

O casamento de uma filha era uma negociação cuidadosa. Por um lado, uma bela jovem de sangue nobre era um valioso trunfo para qualquer família. Mas o homem que se casasse com ela teria de pagar o preço da noiva, do qual o pai recebia uma parte. Esse era o costume da ilha.

E agora, com os seus negócios no estado em que estavam, Fergus decidira evidentemente que precisava vendê-la. Ela sabia que não devia se surpreender. Era assim a tradição. Mas, mesmo assim, não podia evitar de se sentir um pouco magoada e traída. Depois de tudo que eu fiz por ele, desde que minha mãe morreu, é isso realmente o que sou para ele?, perguntava-se. Apenas mais uma cabeça de gado, para ser sustentada durante o tempo necessário, e depois vendida? Ela pensava que ele a amava. E realmente, refletiu, era provável que sim. Em vez de sentir pena de si mesma, devia sentir pena dele e tentar ajudá-lo a encontrar um homem adequado.

Ela tinha boa aparência. Já ouvira gente dizer que era bonita. Não que fosse tão especial assim. Tinha certeza de que devia haver dezenas de outras moças na ilha com o macio cabelo dourado, uma boca vermelha e generosa com dentes bons e brancos iguais aos dela. Suas faces, como se dizia, tinha a delicada cor de dedaleiras. Tinha lindos seios pequeninos também, sempre levara isso em conta. Entretanto, a característica mais notável que ela possuía eram seus olhos, do mais estranho e mais belo verde. “Não sei de onde eles vieram”, observara-lhe o pai, “embora digam que houve uma mulher com olhos mágicos em alguma geração da minha família por parte de mãe.” Ninguém mais na família nem nas proximidades de Dubh Linn tinha olhos como aqueles. Podiam não ser mágicos — ela certamente não achava que tinham qualquer poder especial —, mas eram muito admirados. Os homens sentiam-se fascinados por eles desde quando ela era criança. Por isso, ela sempre se sentira confiante de que, quando chegasse o momento, conseguiria encontrar um bom homem.

Mas não estava com pressa. Tinha apenas dezessete anos. Nunca conhecera alguém com quem quisesse se casar; e, com toda a certeza, o casamento a levaria para bem longe do tranqüilo estuário em Dubh Linn que ela tanto amava. E fossem quais fossem os problemas de seu pai com as dívidas, ela não achava que deveria ir embora por enquanto, deixando o pai e os irmãos sem uma mulher para cuidar da casa.

O festival de Lughnasa era uma ocasião tradicional para se tratar de casamentos. Mas ela não achava que queria um marido. Não naquele ano.

O resto do dia transcorrera tranqüilamente. Ela não fez mais perguntas, pois não havia sentido. Seu pai pelo menos parecia contente: isso era algo pelo qual se devia agradecer. Talvez, com sorte, ele não se envolveria em nenhuma briga e não lhe arrumaria qualquer pretendente aceitável. Podiam então todos voltar para casa em segurança e em paz.

Tarde da manhã chegaram a uma aldeia numa clareira cujos habitantes seu pai conhecia; mas, pela primeira vez, ele não parou para conversar. E logo depois disso, quando o Liffey fazia uma curva para o sul, o caminho começou a subir da estreita planície fluvial para um terreno mais alto, levando-os na direção oeste. Perto do meio-dia, chegaram a uma picada no meio das árvores, que os levou para uma larga saliência de charneca turfosa pontilhada por arbustos de tojo.

— Ali — apontou o pai para um objeto a pouca distância adiante. — É ali que descansaremos.

O sol do meio-dia permaneceu agradavelmente quente enquanto se sentaram na grama e comeram a leve refeição que ela tinha trazido. Seu pai bebeu um pouco de cerveja clara para empurrar o pão.

O lugar que ele escolhera era um pequeno círculo aterrado ao lado de uma solitária pedra erguida. Essas pedras, sozinhas ou em grupos, eram uma característica normal da paisagem — colocadas ali, presumia-se, por ancestrais ou pelos deuses. Essa pedra solitária, quase da altura de um homem, contemplava uma planície coberta de vegetação que se estendia à frente, para oeste, até o horizonte. No grande silêncio sob o sol de agosto, a velha pedra cinzenta parecia, a Deirdre, ser amistosa. Após terem comido, e enquanto os cavalos pastavam ali perto, eles se esticaram sob o sol para descansar um pouco. O tranqüilo roncar do pai logo avisou-lhe que ele tirava uma soneca, e não demorou muito para a própria Deirdre dar uma cochilada.

Ela acordou de repente. Devia ter dormido por algum tempo, deu-se conta, pois o sol mudara de posição. Ainda se encontrava naquele estado entorpecido por ter sido arrancada do sono velado para a luminosidade da consciência. Ao olhar para o sol pendurado sobre a grande planície, teve uma curiosa visão. Era como se o sol fosse uma roda de raios, como as de uma biga de guerra, estranho e ameaçador. Sacudiu a cabeça para dissipar as últimas névoas do sono e disse a si mesma para deixar de ser tola.

Durante o resto do dia, porém, e naquela noite enquanto permanecia deitada tentando dormir, foi incapaz de se livrar de uma imprecisa sensação de inquietude.

Era tarde da manhã quando Goibniu chegou. Seu único olho que tudo via inspecionou o cenário.

Lughnasa: um mês após o solstício do verão, a comemoração da primeira colheita do ano, um festival no qual casamentos são arranjados. Gostava de seu deus protetor — Lugh, Deus do Sol, Lugh, o Brilhante, o mestre de todas as artes e ofícios, o bravo guerreiro, o deus da cura.

As pessoas chegavam a Carmun vindas de todas as direções: chefes, guerreiros, atletas de tribos da ilha inteira. Quantas tribos havia ali, imaginou ele. Talvez umas cento e cinqüenta. Algumas eram grandes, governadas por clãs poderosos; outras eram menores, governadas por clãs aliados; algumas mal passavam de um grupo de famílias, provavelmente compartilhando um mesmo ancestral, mas que se denominavam orgulhosamente de tribos e tinham um chefe. Era fácil, numa ilha que a natureza havia dividido, por montanhas e pântanos, em um grande número de pequenos territórios, cada tribo ter sua terra no centro da qual havia normalmente um lugar sagrado ancestral, quase sempre marcado por um freixo.

E quem eram exatamente essas tribos? De onde vieram, esses Filhos de Mil que haviam enviado os lendários Tuatha De Danaan para debaixo das colinas? Goibniu sabia que as tribos conquistadoras tinham vindo séculos atrás para a ilha ocidental da vizinha Britânia e através do mar para o sul. O povo da ilha ocidental era em parte uma grande colcha de retalhos de tribos, cuja cultura e língua, chamada celta, se estendia principalmente para o noroeste da Europa. Com suas espadas de ferro, esplêndidas bigas de guerra e magnífico trabalho em metal, seus sacerdotes druidas e poetas, as tribos celtas de há muito eram temidas e admiradas. Depois que o Império Romano se estendeu em direção ao norte e através da Britânia, os principais centros de cada território tribal normalmente se tornaram um centro militar romano ou cidade mercantil e, igualmente, os deuses celtas das tribos locais vestiram roupas romanas. Desse modo, na Gália, por exemplo, o deus celta Lugh, o do festival, dera seu nome à cidade de Lugdunum, que um dia iria se transmudar para Lyon. E as tribos, por sua vez, foram se tornando gradualmente romanas, até mesmo perdendo sua antiga língua e, em vez dela, passando a falar latim.

Exceto nas afastadas periferias. Nas partes norte e oeste da Britânia, as quais os romanos em grande parte deixaram em paz, as antigas línguas e costumes tribais tinham permanecido. Acima de tudo, na vizinha ilha do outro lado do mar, onde os romanos iam comerciar mas não conquistar, a antiga cultura celta, em toda a sua riqueza, permaneceu intata. Os romanos nem sempre tinham certeza de como chamar essas pessoas diferentes. No norte da Britânia, que os romanos chamavam de Alba, viviam as antigas tribos dos pictos. Quando colonizadores da ilha ocidental celta velejaram para lá e criaram povoados em Alba, gradualmente empurrando os pictos de volta para o interior norte da Britânia, os romanos passaram a se referir a esses colonizadores como scotti, ou scots, os escoceses. Mas os membros das tribos celtas da ilha ocidental não chamavam a si mesmos por esse nome romano. Eles sabiam quem eram, desde quando haviam chegado à ilha e encontrado lá uma deusa amistosa. Eles eram o povo de Eriu.

Entretanto, enquanto observava os membros da tribo celta se aproximarem do festival, o olhar de Goibniu era frio. Seria ele um deles? Em parte, sem dúvida. Mas, se lá no alto, naqueles estranhos montes acima do Boyne ele sentia uma inominável familiaridade, nessas grandes reuniões celtas não podia evitar uma instintiva sensação de que era de algum modo um estrangeiro, que viera de alguma outra tribo que se encontrava naquela ilha desde há muito tempo. Talvez os Filhos de Mil tivessem conquistado seu povo, mas ele ainda sabia como fazer uso deles.

Seu único olho continuou a se movimentar pelo cenário, separando, com precisão cirúrgica, os pitorescos grupos em diferentes categorias: importante, sem importância; útil, irrelevante; devendo-lhe algo, ou devendo-lhe um favor. Perto de uma grande carroça avistou dois magníficos jovens campeões, braços grossos como troncos de árvore, tatuados — os dois filhos de Cas, o filho de Donn. Ricos. Devem ser instruídos. Mais afastado, dois druidas e um velho bardo. O idoso, Goibniu sabia, tinha uma língua perigosa, mas ele tinha alguns pequenos mexericos para deixar o velho contente. À esquerda, viu Fann, filha do importante chefe Ross: uma mulher orgulhosa. Goibniu, porém, sabia que ela dormira com um dos filhos de Cas, coisa que o marido não sabia. Saber é poder. Nunca se sabe quando uma informação como aquela poderá ser usada para garantir um negócio futuro. Contudo, em grande parte, enquanto seu olho vasculhava a multidão, o que Goibniu percebia eram pessoas que lhe deviam algo.

O imponente e gordo Diarmait: nove vacas, três capas, três pares de botas, um torque de ouro para usar no pescoço. Culann: dez peças de ouro. Roth Mac Roth: uma peça de ouro. Art: uma ovelha. Todos eles pegaram emprestado, todos estavam em seu poder. Ótimo. Então avistou Fergus.

O sujeito alto de Dubh Linn, que lhe devia o preço de vinte vacas. Uma bela moça com ele: deve ser sua filha. Que interessante. Foi na direção deles.

Deirdre também estivera olhando a multidão. Os clãs continuavam chegando de todas as partes de Leinster. Era de fato uma cena impressionante. Enquanto isso, ocorria uma curiosa transação entre seu pai e um mercador. Dizia respeito ao magnífico torque de ouro do chefe.

Era costume na ilha que, se uma pessoa tivesse dado suas jóias como garantia de um empréstimo, podia tomá-las emprestado para os grandes festivais, a fim de não ser desonrada. Uma gentil condescendência. Se Fergus sentia-se constrangido em reaver do mercador o esplêndido colar de ouro, ele certamente não demonstrou. Aliás, pegou solenemente a herança com o outro homem como se estivessem realizando uma cerimônia. Ele acabara de colocá-la no pescoço quando Goibniu chegou.

Fosse o que fosse que o ferreiro pensasse de Fergus, não se podia deixar de notar sua civilidade. Goibniu dirigiu-se a ele com toda a excessiva cortesia que teria usado com o próprio rei.

— Que o bem esteja com você, Fergus, filho de Fergus. O torque de seus nobres ancestrais fica muito bem em você.

Fergus olhou-o cautelosamente. Não esperava o ferreiro em Carmun.

— O que é, Goibniu? — perguntou de forma abrupta. — O que você quer?

— Isso é fácil de responder — disse Goibniu amavelmente. — Gostaria apenas de lembrá-lo da sua obrigação para comigo, assumida antes do último inverno, ao preço de vinte vacas.

Deirdre olhou aflita para o pai. Nada sabia daquela dívida. Aquilo daria início a uma rixa? Até então o rosto do chefe permanecia impassível.

— É verdade — admitiu Fergus. —Você tem um devido. — Mas então, com uma voz mais baixa. — É uma coisa desagradável o que me pergunta, neste momento. Principalmente no festival.

Pois era outro amável costume do festival o fato de Goibniu não poder realmente cobrar sua dívida durante o mesmo.

— Talvez queira resolver a questão quando o festival terminar — sugeriu o ferreiro.

— Sem dúvida — afirmou Fergus.

Durante a conversa, Deirdre continuara a observar atentamente seu pai. Estaria ele escondendo a irritação? Seria aquela a bonança antes da tempestade? Goibniu era um homem com muitos amigos importantes. Talvez fosse isso que mantinha seu pai sob controle. Ela torceu para que aquilo continuasse assim.

Goibniu aquiesceu lentamente. Então seu único olho repousou em Deirdre.

— Você tem uma bela filha, Fergus — comentou. — Tem olhos maravilhosos. Vai oferecê-la em casamento no festival?

— Está no meu pensamento — disse Fergus.

— Será realmente um homem afortunado aquele que a conseguir — prosseguiu o ferreiro. — Não desonre sua beleza, ou seu nome nobre, aceitando nada menos do que o maior preço por uma noiva. — Fez uma pausa. — Eu gostaria de ser um bardo — disse ele, com um educado gesto de cabeça na direção de Deirdre — para compor um poema sobre sua beleza.

— Faria isso para mim? — perguntou ela com uma risada, esperando manter o clima amistoso da conversa.

— Certamente. — O olho de Goibniu mirou diretamente Fergus.

Então Deirdre viu seu pai olhar pensativamente para o astuto artífice. Estaria Goibniu oferecendo-se para lhe conseguir um noivo rico? Ela sabia que o ferreiro caolho tinha muito mais influência do que seu pai. Fosse qual fosse o noivo que Fergus pudesse levar em consideração, Goibniu provavelmente conseguiria algo melhor.

— Vamos dar uma volta — sugeriu seu pai, com uma inusitada suavidade; e Deirdre viu os dois homens se afastarem.

E foi o que aconteceu. Qualquer alívio momentâneo que ela sentira pelo pai ter evitado uma briga agora tinha sido estragado por essa nova reviravolta. Com seu pai, pelo menos, ela sabia que ainda conseguia manter algum controle da situação. Ele podia gritar e se enfurecer, mas não a forçaria a se casar contra sua vontade. Mas, se seu destino ficasse nas mãos de Goibniu — Goibniu, o confidente de reis, o amigo dos druidas —, quem sabe o que poderia maquinar o íntimo de seu cérebro? Contra o caolho ela não teria nenhuma esperança. Olhou para seus irmãos. Eles estavam admirando uma biga.

— Vocês viram o que aconteceu? — gritou ela. Os dois se entreolharam inexpressivamente e então sacudiram a cabeça.

— Alguma coisa interessante? — perguntaram.

— Não — retrucou ela irritada. — Simplesmente a irmã de vocês vai ser vendida.

 

                                       Lughnasa. Alto verão.

Nas cerimônias, os druidas fariam a Lugh as oferendas da colheita; as mulheres dançariam. E ela, bem possivelmente, seria entregue a um estranho ali mesmo e, talvez, nunca mais retornaria a Dubh Linn.

Ela começara a caminhar em uma área a céu aberto. Aqui e ali, pessoas nas animadas baias ou paradas em grupos tinham se virado para olhá-la passar, mas ela mal as notara. Passou por algumas tendas e cercados para animais e deu-se conta de que devia estar se aproximando da grande pista onde corriam os cavalos. Ainda não havia uma grande corrida marcada, mas alguns dos jovens deviam estar exercitando seus cavalos, talvez organizando uma ou duas corridas informais, amistosas. Aparentemente alguns dos cavalos estavam sendo conduzidos até lá para esse propósito. O sol do fim da manhã estava a pino quando ela chegou ao cercado com um parapeito onde vários cavaleiros se preparavam para montar.

Parou perto do parapeito e observou a cena.

Os cavalos em pêlo estavam agitados. Ela podia ouvir gozações e gargalhadas. A sua direita notou um grupo de homens, elegantemente vestidos, reunidos em volta de um jovem de cabelos negros. Ele era um pouquinho mais alto do que os outros, e quando ela localizou seu rosto notou que este era incomumente fino. Um rosto inteligente, talvez meditativo —, cuja tranqüila expressão, a despeito do sorriso, sugeria que sua mente talvez se encontrasse um pouco distante da atividade em que estava envolvido. Poderia ser, pensou ela, um druida bem-nascido em vez de um jovem campeão. Ficou imaginando quem era ele. O pequeno grupo se desfez e ela se deu conta de que ele devia estar para participar de uma corrida, visto que, exceto por uma tanga protetora, despira o corpo inteiro.

Deirdre olhou-o fixamente. Parecia-lhe nunca ter visto nada tão belo em toda a sua vida. Tão delgado, tão pálido, mas perfeitamente estruturado: o corpo de um atleta. Não tinha um só defeito, pelo que pôde perceber. Viu-o montar e cavalgar, facilmente, pela pista.

— Quem é aquele? — perguntou ao homem parado ali perto.

— É Conall, filho de Morna — respondeu; e percebendo que ela não entendera direito: — É o sobrinho do próprio rei supremo.

— Ah — fez Deirdre.

Ela assistiu a várias corridas. Os homens cavalgavam em pêlo. Os cavalos da ilha, apesar de pequenos, eram muito velozes, e as corridas, emocionantes. Na primeira corrida, viu Conall chegar logo atrás do líder; a segunda ele venceu. Não correu as duas seguintes, mas, enquanto isso, mais e mais pessoas chegavam à lateral da pista. Uma das principais atrações do dia estava para começar.

As corridas de bigas. Deirdre já podia ver que o rei de Leinster havia chegado ao pequeno monte perto da pista, para ocupar o lugar de destaque naquele posto de observação. Se a corrida de cavalos era o esporte dos guerreiros, a condução de bigas representava a mais importante e mais aristocrática das artes de guerra. As bigas eram resistentes veículos leves de duas rodas, com um único varal entre dois cavalos. Cada biga acomodava uma dupla — o guerreiro e seu cocheiro. Eram velozes e, nas mãos de um cocheiro habilidoso, maravilhosamente manobráveis. Não eram eficazes contra as couraças das disciplinadas legiões romanas, e por isso nas províncias romanas da Britânia e da Gália havia muito tempo tinham caído em desuso; mas ali na ilha ocidental, onde a guerra era cultivada lado a lado das tradições celtas, a antiga arte ainda era praticada. Deirdre podia ver cerca de vinte bigas preparando-se para entrar na pista. Antes, porém, parecia que ia haver uma exibição, pois viu duas bigas, sozinhas, saindo para a imensa arena gramada.

— Eis Conall — observou o homem com quem ela havia falado antes — e seu amigo Finbarr. — Abriu um largo sorriso. — Agora você vai ver algo impressionante.

Conall e Finbarr estavam ambos despidos, pois também era tradição os guerreiros celtas lutarem nus. Ela percebeu que Finbarr tinha uma compleição forte, era um pouco mais baixo do que Conall, embora mais largo de peito, no qual ela podia ver cachos de um cabelo castanho-claro. Parados logo atrás de seus cocheiros, cada homem segurava um escudo redondo decorado com bronze polido que reluzia ao sol. As bigas seguiram juntas para o centro da arena antes de se separarem para lados opostos. Então começaram.

Era impressionante. Deirdre já vira antes bigas em ação, mas nada como aquilo. Arremessando-se uma na direção da outra, a uma velocidade arriscada, as rodas com espigões, cada qual um borrão, quase se tocaram ao passarem uma pela outra. Até o final elas foram e viraram. Dessa vez cada herói apanhara um enorme dardo de arremesso. Ao correrem novamente juntos, jogaram suas lanças com devastadora habilidade, Finbarr atirando a sua um instante antes de Conall. Quan-do as duas lanças se cruzaram no ar, a multidão subitamente prendeu a respiração.

E por um bom motivo: a pontaria de ambos era mortal. A biga de Conall, ao bater numa pequena lombada da pista, foi retardada apenas um instante e, por causa disso, a lança arremessada por Finbarr certamente teria acertado e provavelmente matado o cocheiro, se Conall não tivesse se esticado à frente e, com a velocidade de um raio, a desviado com seu escudo. A pontaria de Conall, por um lado, foi tão perfeita que seu dardo bateu exatamente no escudo de Finbarr enquanto este corria à frente, de modo que, mantendo-o diante de si, Finbarr pôde tranqüilamente deslocar sua ponta afiada para um lado. Houve por parte da multidão um clamor de aprovação. Aquela era a guerra como uma arte superior.

Os dois homens sacaram suas espadas reluzentes enquanto as bigas faziam novamente a volta. Agora, entretanto, era a vez de os cocheiros mostrarem sua habilidade. Não se lançaram dessa vez um contra o outro; em vez disso, começaram um intrincado padrão de perseguição e fuga, fazendo deslumbrantes círculos e ziguezagues por todo o terreno, avançando um contra o outro como aves de rapina, caçando e sendo caçados. Cada vez que se aproximavam, às vezes disparando adiante lado a lado, os dois guerreiros se batiam e aparavam golpes com espada e escudo. Era impossível dizer se essas lutas tinham sido coreografadas antecipadamente. Quando as lâminas reluziam e retiniam, Deirdre esperava ver a qualquer momento o sangue esguichar da alva pele de um dos homens, e percebeu que estava quase sem fôlego e tremendo de nervoso. Eles continuaram sem parar, diante dos gritos da multidão. Era algo de uma habilidade sensacional, de um perigo medonho.

Finalmente, acabou. As duas bigas, Conall na da frente, deram uma volta triunfal pelo campo para receber os aplausos e, assim o fazendo, passaram diante de Deirdre. Conall fora para a frente e estava de pé, perfeitamente equilibrado, no varal entre os cavalos. Os cavalos espumavam, e seu próprio peito ainda ofegava após o esforço enquanto agradecia os aplausos da multidão que se encontrava tão obviamente encantada. Ele esquadrinhava seus rostos; ela presumiu que ele devia estar contente. Então, quando a biga de Conall se aproximou, o olhar dele pousou em Deirdre e ela descobriu-se encarando seus olhos.

Mas a expressão dos olhos dele não era de modo algum aquela que ela esperaria. Eram penetrantes, contudo não pareciam felizes. Era como se parte dele estivesse bem distante — como se, enquanto fornecia emoção e deleite à multidão, ele mesmo permanecesse afastado, sozinho, como se se equilibrasse habilmente entre a vida e a morte.

Por que ele a teria escolhido para olhar? Não fazia idéia. Mas seus olhos permaneceram fixos nos dela, como se quisesse lhe falar, a cabeça girando lentamente enquanto ele passava. Sua biga passou e ele não olhou para trás, mas ela continuou a olhar na direção dele mesmo depois de ter sumido.

Então virou-se e viu seu pai. Ele sorria e fez um gesto para ela, sinalizando que devia se aproximar.

Fora idéia de Finbarr eles irem a Carmun. Esperava melhorar o ânimo do amigo. Também não esquecera das instruções do rei supremo.

— Ainda não pensou em encontrar uma mulher bonita aqui em Leinster? — ele já perguntara a Conall.

Na noite anterior, depois que chegaram e foram apresentar seus cumprimentos ao rei de Leinster, não foi apenas o próprio rei da província que demonstrara seu prazer em dar as boas-vindas ao sobrinho do rei supremo. Praticamente não houve uma só mulher do séquito real que não tivesse dado um sorriso para Conall. Se ele notara, porém, esses sinais de favorecimento, preferira ignorá-los.

Agora parecia a Finbarr que ele vira a sua chance.

— Havia uma moça, com cabelo dourado e olhos admiráveis, observando você após a exibição — disse ele. — Você não a viu?

— Não vi.

— Pois ela o observou por um longo tempo — continuou Finbarr. — Acho que gostou de você.

— Não notei — disse Conall.

— Era a moça para quem você ficou olhando ainda há pouco — insistiu Finbarr. Pareceu-lhe que seu amigo ficou um pouco curioso e viu-o olhar em volta. — Fique aqui — disse Finbarr. — Vou procurá-la. — E antes que Conall pudesse objetar, ele partiu com Cuchulainn na direção em que, momentos antes, vira Deirdre seguir.

— Goibniu tem o homem para você. — Seu pai estava radiante.

— Que sorte — ela disse secamente. — Ele está aqui?

— Não. Está em Ulster.

— Mas fica muito longe. E quanto ele está pagando?

— Uma quantia considerável.

— O suficiente para pagar sua dívida com Goibniu?

— O suficiente para isso e todas as minhas dívidas — disse o pai sem se envergonhar.

— Então devo parabenizá-lo — disse ela com ironia. Mas ele nem estava ouvindo.

— Claro que ele não a viu. Talvez não goste de você. Mas Goibniu acha que vai gostar. E deve — acrescentou seu pai, com firmeza. — É um excelente jovem. — Fez uma pausa e olhou-a cordialmente. — Você não terá que se casar com ele, se não gostar, Deirdre.

Não, pensou ela. Mas você me fará ver que eu o arruinei.

— Goibniu vai falar com esse rapaz no mês que vem — dizia-lhe seu pai. — Poderá conhecê-lo antes do inverno.

Ela supôs que no mínimo devia ser grata por aquela pequena demora.

— E o que pode me dizer sobre o homem? — indagou ela. — É jovem ou velho? É filho de um chefe? É um guerreiro?

— Ele é — declarou o pai, satisfeito — satisfatório de todos os modos. Mas é Goibniu quem o conhece realmente. Ele lhe dirá tudo esta noite. — E, dito isso, ele se foi, deixando-a com seus pensamentos.

Ela estava parada sozinha havia algum tempo, quando Finbarr e seu cachorro foram em sua direção.

Finbarr reunira vários homens e mulheres que queriam apenas a felicidade de conhecer o sobrinho do rei supremo. Quando a convidou, Deirdre hesitou por um momento, e talvez não tivesse ido se Finbarr não lhe tivesse dito baixinho que uma recusa seria vista como descortesia ao príncipe. E já que ela se encontrava na companhia de outros, não se sentia constrangida.

Conall agora estava vestido com uma túnica e uma leve capa. A princípio, ele não falou com ela, portanto Deirdre teve a chance de observá-lo. Apesar de ainda ser um jovem, agiu perante o grupo com uma tranqüila dignidade que a impressionou. Embora todos sorrissem para ele e suas respostas fossem corteses e amistosas, havia uma seriedade em seus modos que parecia destacá-lo dos demais. Ao vir em sua direção, porém, ela subitamente deu-se conta de que não fazia idéia do que dizer.

Teria ele mandado chamá-la? Não sabia. Quando Finbarr lhe perguntou se gostaria de conhecer o príncipe e frisou que seria descortesia recusar, ele não disse realmente que Conall mandara chamá-la. Ela seria apenas mais um das centenas de rostos que desfilavam diante dele em ocasiões como aquela — a metade, sem dúvida, jovens ansiosas para impressioná-lo. O orgulho dela se rebelou contra aquilo. Começou a se sentir constrangida. Minha família não é nem um pouco importante para ele se interessar por mim, disse a si mesma; além do mais, meu pai e Goibniu já encontraram um pretendente para mim. Contudo, quando ele chegou perto, ela havia resolvido ser educada mas de certa forma fria.

Ele olhava nos olhos dela.

— Eu a vi, depois da exibição das bigas. — Os mesmos olhos, mas, em vez daquele olhar solitário, eles agora estavam animados por uma luz diferente. Procuravam os dela, curiosos, como se intrigados, interessados. A despeito de toda a sua determinação para ser fria com ele, ela podia sentir-se começando a enrubescer.

Ele perguntou-lhe quem era seu pai e de onde ela viera. Evidentemente, conhecia Ath Cliath, mas, embora tivesse dito “Ah, sim”, quando ela mencionou Fergus como o chefe do lugar, Deirdre desconfiava de que Conall nunca tinha ouvido falar nele. Fez-lhe mais algumas perguntas e trocou algumas palavras sobre as corridas; e, de fato, ela se deu conta de que realmente ele gastara mais tempo conversando com ela do que com qualquer um dos outros. Então Finbarr apareceu e murmurou-lhe que o rei de Leinster perguntava por ele. Conall olhou atentamente nos olhos dela e sorriu.

— Talvez nós nos encontremos novamente. — Teria ele falado sério, ou foi apenas uma atitude educada? Talvez tenha sido só por educação. De qualquer modo, não achou que fosse muito provável. Seu pai não freqüentava os círculos do rei supremo. O fato de que talvez ele não tivesse sido sincero a aborreceu ligeiramente, e ela quase deixou escapar: “Bem, você sabe onde me encontrar.” Mas se conteve e quase enrubesceu novamente ao pensar no quanto isso a teria feito parecer grosseira e impertinente.

E assim eles se separaram e ela começou a voltar, sozinha, em direção ao lugar onde provavelmente seu pai seria encontrado. Outra corrida de bigas acabara de começar. Ficou imaginando se contaria ao pai e aos irmãos sobre o encontro com o jovem príncipe, mas decidiu que era melhor não contar. Eles apenas caçoariam dela, ou fofocariam a respeito; de qualquer maneira a deixariam constrangida.

Era outono e o cair das folhas parecia o lento tanger de dedos numa harpa. No fim da tarde o sol começava a declinar, as samambaias tinham um brilho dourado e parecia que a urze roxa se fundia com as colinas.

Os alojamentos de verão do rei supremo ficavam em uma colina plana com vista para toda a paisagem rural. Cercados, currais para gado e acampamentos da comitiva real se espalhavam por todo o cume. Tratava-se de algo impressionante, pois a comitiva do rei supremo era enorme. Druidas, guardiões das antigas leis não-escritas da ilha, harpistas, bardos, copeiros — sem falar nos guardas reais —, esses postos eram altamente apreciados e em geral passavam por herança dentro da família. Na extremidade sul ficava o alojamento maior e, em seu centro, havia um grande salão circular com paredes feitas de toras e pau-a-pique e teto alto colmado. Uma entrada dava acesso a esse salão real, no meio do qual, sobre um poste ao lado do braseiro, havia uma pedra esculpida com três rostos olhando em diferentes direções, como se para lembrar àqueles reunidos ali que o rei supremo, como os deuses, podia ver tudo ao mesmo tempo.

No lado oeste do salão, havia uma galeria no alto de onde se podia ver as pessoas reunidas lá embaixo ou do lado de fora, no gramado em volta do salão e a paisagem além dele. E era nessa galeria que haviam sido colocados dois bancos cobertos, separados poucos centímetros um do outro, nos quais o rei supremo e sua rainha gostavam de se sentar no fim da tarde para observar o sol se pôr.

Em menos de um mês haveria o mágico festim de Samhain. Em alguns anos acontecia no grande centro cerimonial de Tara; em outros anos realizava-se em outros lugares. Em Samhain, o excesso da criação de animais seria abatido, e o resto deixado em terra improdutiva e posteriormente colocado em currais, enquanto o rei supremo e seu séquito executavam suas atividades de inverno. Até lá, contudo, era um período lento e tranqüilo. A safra estava plantada, o tempo continuava quente. Deveria, para o rei supremo, ser um período de satisfação.

Ele era um homem moreno. Seus olhos azul-escuros miravam de baixo de um par de largos penhascos de peludas sobrancelhas. Embora o rosto fosse avermelhado por uma rede de pequenas veias, e seu corpo de ombros largos, outrora maciça-mente vigoroso, estivesse engrossando, ainda havia nele uma certa energia vibrante.

Sua esposa, uma gorda mulher de cabelos louros, estava sentada havia algum tempo envolvida pelo silêncio. Finalmente, quando o sol que se punha passava lentamente por trás de uma nuvem, ela falou.

— Faz dois meses. Ele não respondeu.

— Faz dois meses — repetiu —, dois meses desde que fez amor comigo.

— É mesmo?

— Dois meses. — Se ela percebeu a ironia na voz dele, ignorou-a.

— Precisamos fazer isso novamente, minha querida — continuou, falsamente. No passado tinham feito muito amor; mas isso tinha sido há bastante tempo. Seus filhos já estavam crescidos. Uma curta pausa seguiu-se enquanto ele continuava a contemplar adiante a paisagem temporariamente escura.

— Você não faz nada para mim — queixou-se ela melancolicamente. Ele esperou, depois deu um estalido com a língua.

— Olhe bem ali. — Apontou.

— O que é?

— Ovelhas. — Observou-as com interesse. —Agora há um carneiro. — Sorriu satisfeito. — Há uma centena de ovelhas a quem ele pode servir.

Da rainha partiu um bufo, seguido pelo silêncio.

— Nada! — explodiu ela de repente. — Uma coisa mole e úmida que parece um dedinho. Isso é tudo que eu consigo! Nada que uma mulher consiga segurar. Já vi um peixe mais duro. Já vi um girino maior. — A explosão não era inteiramente verdadeira, como ambos sabiam; mas se ela esperava envergonhá-lo, o rosto dele permanecia sereno. Ela bufou novamente. — Seu pai teve três esposas e duas concubinas. Cinco mulheres e conseguiu administrar todas elas. — Os habitantes da ilha não viam nenhuma virtude na monogamia. — Mas você...

— Aquela nuvem está quase saindo da frente do sol.

— Você não tem utilidade para mim.

— Entretanto — não se apressou, falando meditativamente, como se discutisse uma curiosidade histórica —, devemos lembrar que já servi a uma égua.

— É o que você diz.

— Ora, aconteceu. Caso contrário, eu não estaria sentado aqui agora.

A cerimônia de iniciação, quando um grande clã elegia um novo rei na ilha, recuava às brumas do tempo e pertencia a uma tradição encontrada entre as populações indo-européias desde a Ásia a algumas regiões ocidentais muito afastadas do centro da Europa. Nessa cerimônia, após um touro branco ser morto, o futuro rei precisa acasalar-se com uma égua sagrada. Isso está explicitado tanto nas lendas irlandesas quanto nas gravuras de templos da índia. A tarefa não era difícil como se poderia supor. A égua em questão não era grande. Contida por vários homens fortes, suas ancas adequadamente abertas, ela era oferecida ao futuro rei, o qual, desde que — por quaisquer meios — conseguisse se excitar, não tinha muita dificuldade em penetrá-la. Tratava-se de um ritual condizente com um povo que, desde que emergiu das planícies eurasianas, dependia para sua liderança de homens com estreita ligação com cavalos.

Se a rainha estava ou não pensando na égua era difícil de saber; mas, pouco tempo depois, ela falou novamente, a meia-voz.

— A colheita foi arruinada.

O rei supremo franziu a testa. Involuntariamente olhou para trás em direção ao salão vazio, onde a cabeça trifaciada olhava adiante, de seu poste totêmico para as sombras circundantes.

— A culpa é sua — acrescentou ela.

Então o rei supremo franziu os lábios, pois aquilo era política.

O rei supremo era muito bom em política. Quando colocava o braço em volta dos ombros de um homem, este homem seria sempre seu para ser mandado — ou para ser ludibriado. Ele conhecia a fraqueza da maioria dos homens, e seu preço. O sucesso de sua família fora notável. Seu clã real viera do oeste e era imensamente ambicioso. Alegando descender de figuras míticas como Conn das Cem Batalhas e Cormac Mac Art — heróis que eles mesmos podiam ter inventado —, os membros do clã já haviam expulsado de suas terras muitos chefes de Ulster. Sua ascensão culminara, em época bem recente, nos êxitos que atribuíram ao seu heróico líder Niall.

Como muitos líderes bem-sucedidos da história, Niall era em parte um pirata. Sabia o valor da riqueza. Desde a juventude liderara ataques por toda a ilha da Britânia — fáceis coletas de sobras com as legiões romanas batendo em retirada ou já tendo ido embora. Na maioria das vezes roubara rapazes e moças para vender nos mercados de escravos; os lucros usava consigo mesmo e com seus seguidores. Era costume, quando um rei se submetia a outro — quando concordava em “ir à sua casa”, como diziam —, que pagasse um tributo, normalmente em gado, e fornecesse reféns para garantir sua contínua lealdade. Segundo se contava, muitos reis haviam entregado seus filhos como reféns de Niall, e por isso ele era lembrado como Niall dos Nove Reféns. Seu poderoso clã não apenas dominara a ilha e reivindicara a monarquia suprema como forçara os reis de Leinster a lhe entregar o antigo local real de Tara, que pretendiam transformar no centro cerimonial de sua própria dinastia, do qual poderiam governar toda a ilha.

Contudo, por mais poderoso que pudesse ser o clã de Niall, até mesmo reis supremos estavam à mercê de forças naturais muito maiores.

Aconteceu quase inesperadamente, logo após o festival de Lughnasa. Dez dias de um forte aguaceiro: o solo reduzido a um lamaçal, a safra totalmente arruinada. Ninguém se recordava de um verão como aquele. E a culpa era do rei supremo, pois embora os motivos dos deuses raramente fossem claros, um clima terrível como aquele só podia significar que pelos menos um deles fora ofendido pelo rei.

Todo lugar tinha seus deuses. Eles brotavam da paisagem e das histórias dos seres que ali haviam habitado anteriormente. Todos podiam sentir sua presença. E os deuses celtas da ilha eram espíritos animados e cheios de vida. Quando um homem subia as montanhas da ilha e fitava os bosques e pastos esmeralda, respirando o leve ar da ilha, seu coração quase explodia de gratidão a Eriu, a deusa-mãe da terra. Quando o sol se erguia pela manhã, ele sorria para ver Dagda, o deus bom, cavalgando seu cavalo pelo céu — o bondoso Dagda cujo caldeirão mágico supria todas as coisas boas da vida. Quando parava na praia e olhava para as ondas, parecia-lhe quase avistar Manannan mac Lir, o deus do mar, erguendo-se das profundezas.

Os deuses também podiam ser medonhos. Bem longe, na ponta sudoeste da ilha, num afloramento rochoso em meio às águas ondulantes, vivia Donn, o senhor da morte. A maioria dos homens temia Donn. A deusa-mãe, quando assumia a forma do raivoso Morrigain e vinha com seus corvos e grasnava com os homens em uma batalha, também podia ser uma figura aterradora. Estaria ela zangada agora?

Reis eram poderosos quando agradavam aos deuses. Um rei, porém, tinha de tomar cuidado. Se um monarca aborrecesse um deus — ou mesmo um dos druidas onfilidh que conversava com ele —, podia perder uma batalha. Se homens fossem ao rei supremo em busca de justiça e nada conseguissem, os deuses provavelmente enviariam uma peste ou mau tempo. Todo mundo sabia: um rei ruim atraía má sorte; um rei bom era recompensado com boas colheitas. Havia uma moralidade nisso. As pessoas podiam não falar abertamente, mas ele sabia o que estavam pensando: se a colheita foi arruinada, a culpa provavelmente era do rei supremo.

Contudo, por mais que vasculhasse sua consciência, o rei supremo não era capaz de se lembrar de qualquer grande falha de sua parte que pudesse ter atraído para ele a ira dos deuses. Ele possuía todas as qualidades reais. Não era mesquinho: recompensava muito bem seus partidários; as festas do rei supremo eram esplêndidas. Certamente não era um covarde. Não era ciumento ou egoísta. Nem mesmo sua mulher tinha queixas dele a esse respeito.

O que deveria fazer? Já consultara os druidas. Oferendas tinham sido feitas. Até então ninguém tinha aparecido com mais sugestões. O tempo, na ocasião, estava excelente. Poucos dias atrás, ele decidira que o procedimento mais sensato por enquanto seria esperar para ver.

—Você foi humilhado em Connacht. — A voz de sua mulher perfurou como uma adaga o silêncio que os envolvia. Involuntariamente, ele estremeceu.

— Isso não é verdade. — Humilhado.

— Foi minha humilhação em Connacht que trouxe a chuva. É isso que quer dizer?

Ela nada disse, mas, pela primeira vez, um leve sorriso de satisfação pareceu percorrer por um instante o seu rosto.

O ocorrido em Connacht não fora nada. Era costume, no verão, o rei supremo ou seus servos visitarem partes da ilha para receber pagamentos de tributos. Isso não apenas servia de reconhecimento à autoridade do rei supremo como era uma importante fonte de renda. Enormes rebanhos de gado eram recolhidos e levados para os pastos do rei supremo. Naquele verão ele fora a Connacht, onde o rei o recebera amavelmente e pagara sem questionar. Mas havia um complemento a ser pago, e o rei de Connacht explicara com certo constrangimento que um dos chefes de Connacht deixara de levar a sua quota. Como o território do homem ficava em seu caminho de volta para casa, o rei supremo dissera que cuidaria pessoalmente da questão. Um erro, percebera depois.

Ao chegar ao território do chefe, não encontrou nem este nem seu gado e, após alguns dias de busca, ele continuou seu caminho. Um mês depois toda a ilha já sabia. Ele enviou um grupo de homens para pegar o insolente, mas novamente o homem de Connacht escapou à captura. Pretendia resolver de uma vez a questão depois da colheita, no entanto as chuvas haviam desviado sua atenção do assunto. E agora ele era motivo de riso. O tal chefe pagaria caro em seu devido tempo, mas até lá, a autoridade do rei supremo estava danificada. Entretanto, ele não agiria apressadamente.

—Teremos uma péssima hospitalidade neste inverno — prosseguiu ela. Se o rei supremo coletava tributos no verão, no inverno ele tinha outro modo de marcar sua presença. Ele se hospedava. E embora muitos chefes pudessem se sentir honrados pelo rei supremo aparecer para reivindicar alguns dias de hospitalidade, quando a comitiva real ia embora, eles ficavam felizes em vê-la partir. “Eles comeram tudo o que tínhamos” era a queixa habitual. Se o rei supremo quisesse comer bem naquele inverno, precisaria inspirar medo além de amor.

— Aquele homem que o humilhou. O tal chefete. — Ela colocou ênfase no diminutivo. — São dez novilhas que ele lhe deve.

— São. Mas agora tomarei trinta.

— Não deveria tomá-las.

— Por quê?

— Porque ele lhe deve algo mais valioso, algo que está escondendo. Nunca deixava de assombrar o rei o modo como sua mulher conseguia descobrir detalhes dos negócios dos outros.

— E o que é?

— Ele tem um touro negro. Dizem que é o maior da ilha. Ele o mantém escondido porque planeja criar toda uma manada com ele e ficar rico. — Fez uma pausa e olhou para ele maliciosamente. — Já que não faz nada mais para mim, poderia me trazer esse touro.

Ele sacudiu a cabeça, abismado.

— Você é como Maeve — disse ele. Todos conheciam a história da rainha Maeve, que, com inveja porque o rebanho do marido tinha um touro maior do que o seu próprio rebanho tinha, mandou o herói lendário, o grande guerreiro Cuchulainn, capturar o Touro Marrom de Cuailnge, o que levou à trágica carnificina que se seguiu. De todas as histórias sobre deuses e heróis que os bardos contavam, essa era uma de suas favoritas.

— Consiga esse touro para o meu rebanho — ordenou ela.

— Quer que eu vá pegá-lo pessoalmente? — perguntou ele.

— Não. — Olhou-o furiosa. — Não seria adequado. — Reis supremos não lideravam pequenas incursões para arrebanhar gado alheio.

— Quem deve ir então?

— Mande seu sobrinho Conall — sugeriu.

Enquanto pensava a respeito, o rei supremo, não pela primeira vez, teve de admitir que sua esposa era esperta. — Pode ser que eu mande — disse ele após alguns instantes. — Isso talvez tire da cabeça dele o desejo de se tornar um druida. Mas acho que isso deveria ser feito na próxima primavera.

Agora era a vez de a rainha, contra a vontade, olhar para seu marido com certo respeito. Ela adivinhou o que passava pela sua mente. É bem possível, pensou, que ele tenha deixado inacabado propositadamente o assunto com o homem de Connacht. Se talvez houvesse qualquer indicação entre os muitos chefes da ilha para desafiar sua autoridade, ele lhes daria os meses de inverno para se apresentar. Podiam pensar que estavam tramando em segredo, mas ele certamente saberia disso. Ele não era o rei supremo à toa. Assim que soubesse quem eram os seus inimigos, ele os esmagaria antes que tivessem tempo de se unir.

— Não diga nada, então — pediu ela —, mas mande Conall pegar o touro em Bealtaine.

Havia um arco-íris. Não era incomum naquela parte da ilha ver um arco-íris; e agora, enquanto o sol saía através do filtro da umidade após um aguaceiro, havia um arco-íris atravessado bem entre o estuário do Liffey e a baía.

Como ela adorava a região de Dubh Linn. Com a perspectiva agora sempre presente de deixá-la por Ulster, Deirdre saboreava cada dia. Se os lugares que freqüentava na infância sempre lhe pareceram caros, agora pareciam impregnados de pungência especial. Costumava perambular ao longo do rio. Adorava suas mudanças de humor. Ou ia até a beira-mar e seguia as longas e curvas areias, com conchas espalhadas, que levavam à colina rochosa na extremidade sul da baía. Havia, porém, um lugar do qual gostava ainda mais. Demorava um pouquinho mais para se alcançar, mas valia a pena.

Primeiro ela cruzava o Vau das Cercas até a margem norte. Depois, seguindo trilhas através das baixas extensões pantanosas, ela contornava a praia na direção leste que formava a metade superior da baía. Alagadiços e bancos de areia cobertos de grama, um pouco distante da costa, acompanhavam-na por um longo tempo; mas acabavam chegando ao fim e, adiante dela, na extremidade de uma ponta de areia, ela avistava a grande corcova da península setentrional. E, com uma nova sensação de alegria, ela seguia em frente e começava a subir.

Sobre o montículo da península, completamente isolado, havia um pequeno e agradável abrigo. Colocado ali por homens ou por deuses muito tempo atrás, consistia de algumas sebes espessas, pedras erguidas com uma enorme pedra plana pousada sobre elas formando um ângulo inclinado contra o céu. Dentro desse dólmen, a brisa do mar era reduzida a um tranqüilo ruído sibilante. Entretanto, quando se sentava ou ficava sob seu teto de pedra, Deirdre podia sonhar acordada sob o sol ou desfrutar a paisagem.

E se Deirdre gostava de fitar a paisagem da península, isso não era em nada surpreendente, pois se tratava de uma das mais belas vistas da costa em toda a Europa. Olhando na direção sul através da grande amplidão da baía, suas águas cinza-azuladas pareciam estar derretidas porém frias — lava aquosa, pele do deus do mar, brilhando suavemente. E, além da baía, o tempo todo até o contorno da costa, pontas e promontórios, colinas e serranias, e as agradáveis extensões de antigos vulcões formavam uma bruma recessional no azul mais adiante.

Contudo, por mais que Deirdre admirasse essa linda vista do sul, o que ela adorava em especial era olhar através do promontório para o outro lado, para o norte. Ali também havia uma bela extensão de mar, se bem que menos dramática, e o plano litoral, conhecido como Planície das Revoadas de Pássaros, era uma região agradável; mas o que a interessava eram duas maravilhas que ficavam bem perto. Imediatamente acima do promontório ficava outra baía menor no contorno de um estuário; e nesse estuário havia duas ilhas. A maior, mais distante, cuja comprida figura lembrava-lhe um peixe, parecia às vezes, quando as águas se agitavam, estar à deriva no mar. De fato, já estava quase livre do estuário. Era, porém, a ilha menor que mais a encantava. Ficava apenas a uma curta distância da costa. Podia-se remar facilmente até lá, supunha ela. Tinha uma praia arenosa de um lado e um pequeno outeiro cheio de urzes no centro. No lado que dava para o mar, porém, havia um pequeno rochedo que fora fendido pela erosão, formando uma brecha abrigada entre sua face e um pilar de pedra ereta, com uma praia de seixos abaixo. Como parecia aconchegante. A ilha não era habitada nem tinha nome. Mas parecia tão convidativa. Ela a achava fascinante e nas tardes quentes ficava ali sentada admirando-a por horas. Certa vez, ela levara seu pai lá em cima, e, se ela voltava tarde após uma longa caminhada, ele costumava sorrir e falar: “E então, Deirdre, esteve olhando novamente para a sua ilha?”

Ela estivera lá esta manhã e voltara de péssimo humor. Fora apanhada pelo agua-ceiro — mas isso não foi nada. A idéia de seu casamento a deixara deprimida. Ainda não sabia quem era o homem a quem Goibniu e seu pai iam oferecê-la; mas fosse lá com quem se casasse, isso significaria deixar aquelas praias adoradas. Pois não posso me casar com as aves marinhas, pensou tristemente. Então, ao voltar, ela descobriu que um dos dois escravos britânicos havia acidentalmente rachado um barril do melhor vinho de seu pai e perdido mais da metade do conteúdo. O pai e os irmãos estavam fora, caso contrário o escravo teria sido açoitado, mas ela o amaldiçoou sonoramente perante todos os deuses. Irritou-a ainda mais o fato de que, em vez de se desculpar ou pelo menos parecer pesaroso, o infeliz sujeito, ao ouvir os deuses serem invocados, caíra de joelhos, benzera-se e passara a balbuciar suas preces.

Comprar os dois escravos britânicos ocidentais tinha sido uma das melhores idéias de seu pai. Quaisquer que fossem os seus defeitos, ele tinha um olho formidável para rebanhos, animal ou humano. Muitos dos britânicos na metade oriental da ilha vizinha só falavam latim, segundo ela ouvira dizer. Achava que, após séculos de domínio romano, isso não era de surpreender. A Britânia ocidental, porém, falava em sua maioria uma língua parecida com a dela. Um dos escravos era grande e troncudo, o outro, baixo; ambos tinham cabelos negros, barbeavam-se até perto de sua marca de escravidão. E trabalhavam arduamente. Mas tinham sua própria religião. Logo após terem chegado, ela descobrira uma vez os dois orando juntos e eles explicaram que eram cristãos. Deirdre sabia que muitos dos britânicos eram cristãos, e até mesmo ouvira falar de pequenas comunidades cristãs na ilha, mas pouco sabia sobre a religião. Um pouco preocupada, ela perguntara ao pai a respeito, mas ele a tranqüilizara. “Os escravos britânicos são geralmente cristãos. É uma religião de escravos. Aprendem a ser submissos.”

Deixou, portanto, que o escravo troncudo balbuciasse suas preces enquanto ela permanecia em casa. Talvez na paz e tranqüilidade do lar seu ânimo melhorasse. Seu cabelo ficara emaranhado por causa da chuva. Sentou-se e passou a penteá-lo.

A casa era uma boa e sólida construção — uma estrutura circular com paredes de pau-a-pique e cerca de cinco metros de diâmetro. A luz penetrava por três vãos de portas que se abriam para deixar entrar o ar fresco da manhã. No centro havia uma lareira; colunas de fumaça filtravam-se acima do telhado de colmo. Ao lado da lareira ficava um enorme caldeirão e, sobre uma mesa baixa de madeira, uma coleção de pratos de madeira — pois os insulanos não usavam muitas louças de barro, apesar de no passado já terem usado. Em outra mesa perto da parede, ficavam os pertences domésticos mais valiosos da família: uma bela tigela de bronze com cinco alças; um moedor de grãos; um par de dados, de formato retangular com quatro faces, para rolar em linha reta; várias canecas de madeira cintadas de prata para cerveja; e, é claro, a taça de caveira de seu pai.

Deirdre ficou sentada ali por algum tempo penteando o cabelo. Sua irritação havia cessado. Havia, porém, algo mais, no fundo, algo que a vinha perturbando durante os últimos dois meses, desde seu retorno de Lughnasa, e isso ela não queria reconhecer. Um alto, pálido e jovem príncipe. Deu de ombros. Não adiantava pensar nele.

Então ouviu o idiota do escravo chamá-la.

Conall encontrava-se em sua biga. Dois velozes cavalos estavam arreados ao varal central. No braço, usava uma pesada armila de bronze. Condizente com a posição dele, a biga continha sua lança, o escudo e a espada reluzente. E era conduzida por seu cocheiro. Além do mar, notou, havia um arco-íris.

O que ele estava fazendo? Mesmo quando da biga avistou Dubh Linn e o vau, Conall não teve certeza. Estava para concluir que era culpa de Finbarr, mas se conteve. Não era culpa de Finbarr. Era do cabelo dourado da moça, e de seus olhos maravilhosos. E de algo mais. Não sabia dizer o que era.

Conall nunca se apaixonara. Não carecia de experiência com mulheres. Os membros da comitiva do rei supremo cuidavam disso. Mas nenhuma das jovens que até então conhecera o tinha interessado realmente. Sentira desejos, é claro. Toda vez, porém, que conversava com uma jovem mais demoradamente, ele sempre sentia como se uma barreira invisível tivesse se colocado entre os dois. As próprias mulheres nem sempre davam-se conta disso; elas achavam atraente se o belo sobrinho do rei supremo às vezes parecia pensativo ou um pouco melancólico. E ele desejava que fosse o contrário. Entristecia-o não poder compartilhar seus pensamentos, e os delas, por sua vez, sempre pareciam bastante previsíveis.

“Você é exigente demais”, dissera-lhe Finbarr com franqueza. “Não pode esperar que uma jovem seja tão profunda e sábia quanto um druida.”

Era, porém, mais do que isso. Desde sua tenra infância, quando ficava sentado sozinho à beira dos lagos ou observava o sol se pôr, ele era dominado por uma sensação de comunhão interior, uma sensação de que os deuses o haviam reservado para algum propósito especial. Algumas vezes isso o enchia de uma inefável alegria; outras, parecia um fardo. De início, ele presumira que todo mundo sentia a mesma coisa, e ficou bastante surpreso ao descobrir que não. Ele não queria ser diferente. Entretanto, com o passar dos anos, essas sensações não cessaram, só fizeram aumentar. E, por isso, gostasse ou não, quando fitava os olhos de alguma moça bem-intencionada, era atormentado por uma incômoda voz interior que lhe dizia que ela era um desvio que o afastaria do caminho de seu destino.

Por tudo isso, por que aquela moça de estranhos olhos verdes era diferente? Seria ela apenas um desvio maior? Ele não achava que ela fosse em nada diferente das outras moças que conhecera. Contudo, de algum modo, a voz da cautela que costumava perturbá-lo, se estava falando, não falava alto o bastante para ser ouvida. Ele foi atraído para ela. Queria saber mais. A Finbarr parecera realmente estranho que ele tivesse hesitado tanto antes de convocar seu cocheiro, arrear um par de seus cavalos mais velozes à sua leve biga e, sem dizer aonde estava indo, partir na direção do Vau das Cercas e do lago negro de Dubh Linn.

Agora encontrou-a sozinha, tendo por companhia apenas alguns dos criados. Seu pai e seus irmãos tinham ido caçar. Ele percebeu de imediato que a propriedade de Fergus era bem modesta, e isso parecia tornar sua visita mais fácil. Se fosse visitar um chefe importante, em pouco tempo a notícia percorreria toda a ilha. Portanto, atravessou as cercas, notou particularmente que precisavam de conserto, e seguiu com toda a naturalidade à fortificação circular de Fergus para pedir uma bebida antes de prosseguir viagem.

Ela foi ao seu encontro na entrada. Após cumprimentá-lo educadamente e desculpar-se pela ausência do pai, conduziu-o ao interior e ofereceu-lhe a habitual hospitalidade a um viajante. Quando a cerveja branca foi trazida, ela mesma o serviu. Recordou calma e educadamente o encontro dos dois em Lughnasa; entretanto, parecia a ele haver um tranqüilo ar risonho em seus olhos. Esquecera que ela era tão encantadora. E estava imaginando por quanto tempo deveria prolongar sua estada, quando ela lhe perguntou se, após atravessar o vau, ele vira a lagoa negra que dera nome ao lugar.

— Não vi — mentiu. E quando ela lhe perguntou se gostaria que lhe mostrasse, ele disse que sim.

Talvez porque as folhas do carvalho perro da lagoa fossem de um marrom dourado, ou porque algum truque de luz o confundisse, a verdade é que enquanto ficou com Deirdre olhando para baixo do íngreme barranco para sua tranqüila superfície, Conall sentiu a passageira apreensão de que as águas escuras da lagoa estavam prestes a puxá-lo, inelutavelmente, para suas profundezas sem fim. Toda lagoa, é claro, podia ser mágica. Passagens secretas sob suas águas podiam levar ao outro mundo. Era por isso que as oferendas aos deuses como armas, caldeirões cerimoniais ou ornamentos de ouro eram freqüentemente lançadas em suas águas. Entretanto, para Conall, naquele momento, a lagoa negra de Dubh Linn parecia ofertar uma ameaça mais misteriosa e inominável. Ele nunca antes experimentara tal sensação de medo, e mal sabia como lidar com aquilo.

A moça ali perto a seu lado sorria.

—Também temos três poços — observou. — Um deles é consagrado à deusa Brígida. Gostaria de vê-lo?

Ele fez que sim.

Olharam os poços, que ficavam agradavelmente situados no solo que se erguia além do Lififey. Depois caminharam pelo gramado a céu aberto de volta à fortificação. Enquanto o faziam, Conall não soube como agir. A moça não fez nada do que as outras costumavam fazer. Não chegou perto demais, nem roçou nele, ou colocou a mão em seu braço. Quando olhava para ele, era apenas com um sorriso agradável. Ela era amável; era cordial. Ele desejou colocar o braço à sua volta. Mas não o fez. Quando chegaram à fortificação, disse que precisava ir embora.

Será que houve um vestígio de decepção no rosto dela? Talvez um pouco. Estava esperando que pudesse haver? Sim, deu-se conta, estava.

— É por aqui que deverá vir, quando voltar — sugeriu ela. — Espero que se demore mais da próxima vez.

— Eu farei isso — prometeu ele. — Em breve. — Então requisitou sua biga e foi embora.

Quando Fergus chegou em casa naquela noite e Deirdre contou-lhe que um viajante passara por ali, sua curiosidade foi imediata.

— Que tipo de viajante? — exigiu saber.

— Apenas um homem indo para o sul. Não demorou muito.

— Esteve em Carmun no Lughnasa, segundo contou.

— E metade de Leinster também esteve — retrucou.

— Ele disse que nos viu lá — disse ela vagamente —, mas não me lembrei dele. — A idéia de ver um estranho não uma, mas duas vezes, e ainda não saber nada sobre seus negócios estava muito além da compreensão de seu pai, que conseguia apenas olhá-la em silêncio. — Eu lhe dei um pouco de cerveja — contou animada. — Talvez ele volte. — E com isso, para seu alívio, o pai afastou-se e seguiu para seu lugar favorito perto da taça de caveira, envolveu o corpo na capa e foi dormir.

Por muito tempo depois disso, porém, Deirdre permaneceu acordada, sentada com os joelhos erguidos até o queixo, pensando no dia que havia passado.

Sentia-se orgulhosa de si mesma por aquela manhã. Assim que viu Conall se aproximar, sua respiração acelerou e depois começou a tremer. Foram necessárias toda a sua concentração e força de vontade, e, quando ele chegou à entrada, ela já tinha conseguido se controlar. Não enrubescera. E se mantivera assim o tempo todo em que ele estivera lá. Mas será que lhe dera incentivo suficiente para que ele voltasse? Essa era a questão. A idéia de tê-lo dissuadido era ainda mais terrível do que ter bancado a tola. Enquanto caminhavam até a lagoa, ela se perguntara: devo chegar mais perto dele, devo tocá-lo? Decidiu que não. Acreditava que havia feito tudo certo. Mas como teria gostado, no caminho de volta, que ele tivesse colocado o braço em volta dela. Teria ela segurado seu braço? Isso teria sido melhor? Não sabia.

A única coisa que ela sabia era que, o quanto mais longe mantivesse o faro do pai, melhor. Dado o seu amor por tagarelar, com certeza ele iria constrangê-la. Se tivesse de haver alguma chance para ela com o jovem príncipe...

E por que, de sua parte, ela estava tão interessada no calado e pensativo estranho? Porque era um príncipe? Não, não era isso.

Era uma antiga tradição que o rei supremo tinha de ser um homem perfeito. Não podia ter defeitos. Todos conheciam a história do lendário rei dos deuses, Nuadu. Após perder a mão numa batalha, renunciou à sua realeza. E lhe foi dada uma mão de prata, a qual afinal acabou se transformando em uma mão natural. Somente então Nuadu da Mão de Prata pôde ser rei novamente. O mesmo, supostamente, acontecia com o rei supremo. Se este não fosse perfeito, não poderia agradar aos deuses. O reino seria arruinado.

Para Deirdre, parecia que o belo guerreiro, o qual, ela sentia, relutara em conhecê-la no Lughnasa, tinha uma qualidade real. Seu corpo era sem defeitos ela certamente verificara isso. Foi, porém, seu jeito circunspecto, a sensação de reserva, e mesmo de secreto mistério e melancolia em relação a ele, o que o destacou diante de seus olhos. Esse homem era especial. Não era para qualquer mulher descuidada, rude. E ele fora a Dubh Linn para vê-la. Ela tinha certeza. A pergunta era: ele voltaria?

No dia seguinte o tempo estava excelente. A manhã passou rotineiramente, com todos cuidando de seus afazeres habituais. Era quase meio-dia quando um dos escravos britânicos avisou que havia cavaleiros atravessando o vau, e Deirdre saiu para ver. Eram apenas dois, numa ligeira carroça com um pequeno comboio de cavalos de carga. Um homem ela reconheceu facilmente. O outro, um sujeito alto, não sabia quem era.

O mais baixo era Goibniu, o Ferreiro.

Conall acordou ao alvorecer. Na tarde anterior, após deixar Deirdre, ele atravessara o alto promontório ao pé da larga baía do Liffey e, optando por um local abrigado em uma rocha, passara a noite em sua encosta sul. Agora, no rubor inicial da alvorada, escalou o alto da rocha e contemplou a revelação enevoada do panorama abaixo.

À sua direita, captando os primeiros raios do sol, as suaves colinas e montanhas vulcânicas se erguiam contra um céu azul-claro no qual as estrelas ainda estavam de partida; à sua esquerda, a névoa branca e o resplendor prateado do mar. Entre esses dois mundos naturais, a imensa vastidão da região a céu aberto se estendia como uma capa verde sobre os declives e ao longo da costa até onde a vista alcançava e a neblina restringia. E, como uma bainha ao longo da capa verde, viam-se os pequenos rochedos contornando o litoral, em cujas distantes areias a espuma do mar se espalhava.

A alguma distância abaixo das encostas diante dele, avistou uma raposa correr pelo meio do mato e desaparecer em meio às árvores. Por toda a volta, o coro da alvorada enchia o ar. Ao longe, próximo à beira-mar, viu a silenciosa sombra de uma garça deslizar acima da água. Sentiu na face fria a leve tepidez do sol nascente e virou o rosto em direção ao oriente. Era como se o mundo tivesse acabado de começar.

Era em épocas como essa, quando o mundo parecia tão perfeito que ele gostaria de poder cantar como os pássaros à sua volta para exaltá-lo, que Conall encontrava as palavras dos antigos poetas celtas que lhe vinham à mente. E, nessa manhã, foram as palavras do mais antigo deles todos que lhe ocorreram. — Amairgen, o poeta que chegou à ilha com os primeiros invasores celtas, quando estes a tomaram dos divinos Tuatha De Danaan. Foi Amairgen, desembarcando na praia de um litoral como aquele, quem pronunciou as palavras que se tornaram a base de toda a poesia celta desde então. E não poderia ter sido de outro modo — pois o poema de Amairgen é nada menos do que um antigo mantra védico como os que encontramos logo após a grande diáspora indo-européia das canções bárdicas celtas ocidentais para a poesia da índia.

 

               Eu sou o Vento no Mar

               Eu sou a Onda do Oceano

               Eu sou o Bramir do Mar

 

Assim iniciava a magnífica canção. O poeta era um touro, um abutre, uma gota de orvalho, uma flor, um salmão, um lago, uma arma aguçada, uma palavra, até mesmo um deus. O poeta foi transformado em todas as coisas, não apenas por mágica mas porque todas as coisas, atomizadas, eram uma só. Homem e natureza, mar e terra, até mesmo os próprios deuses surgiram da névoa primordial, e foram criados em um encantamento sem fim. Esse era o conhecimento dos antigos, preservado na ilha ocidental. Isso era o que os druidas sabiam.

E isso era o que ele, Conall, vivenciava quando ficava sozinho — a sensação de estar em harmonia com todas as coisas. Era tão intensa, tão importante, tão preciosa para ele que não tinha certeza se conseguiria viver sem isso.

Foi por esse motivo que agora, no maravilhoso silêncio do nascer do sol, ele sacudiu a cabeça, pois ali estava um dilema que ele não conseguia resolver. Você perderia essa grande comunhão se vivesse lado a lado com outra pessoa? Você seria capaz de dividir tais coisas com uma esposa, ou de algum modo as perderia? Um instinto lhe disse que sim, mas ele não tinha certeza.

Ele queria Deirdre. Já estava certo disso. Queria voltar para ela. Mas se o fizesse, iria ele, de algum modo ainda incerto, perder sua vida?

Era um homem bem-apessoado, não se podia negar. Alto, quase calvo, cerca de trinta anos de idade, calculou ela, com um rosto que lembrava um rochedo escarpado; olhos negros mas não hostis. Os dois tiveram uma conversa bastante agradável e após algum tempo, depois de ele averiguar do que ela gostava e desgostava e, assim ela supôs, fazer alguns julgamentos sobre seu caráter — e ela certamente não achava que seus julgamentos seriam tolos —, Deirdre viu-o dirigir um rápido olhar para Goibniu, que deveria ser um sinal, pois viu logo após o ferreiro segurar seu pai pelo braço e sugerir que dessem um passeio lá fora.

Então era isso. Ela estava para se casar. Não tinha nenhuma dúvida de que a oferta seria generosa. E, pelo que pôde verificar, seu futuro marido era um homem honesto. Podia se considerar uma mulher de sorte. O único problema era que, pelo menos naquele momento, ela não o queria.

Ela se levantou. Ele pareceu um pouco surpreso. Ela sorriu, disse que voltaria num instante, e foi lá fora.

Goibniu e seu pai estavam parados a pouca distância. Olharam-na na expectativa, mas quando ela revelou que queria falar com o pai, este se adiantou.

— O que foi, Deirdre?

— É uma oferta que ele está fazendo por mim, pai?

— É. Uma oferta excelente. Há algum problema?

— Não. Nenhum. Pode dizer a Goibniu — sorriu na direção do ferreiro — que gostei da sua escolha. Ele parece um bom homem.

— Ah. — O alívio do pai foi palpável. — Isso ele é. — Ele pareceu se preparar para retornar à companhia do ferreiro.

— Mas estive pensando — continuou, agradavelmente — se devo lhe contar uma coisa.

— O que é?

Ainda não havia nada certo. Fosse qual fosse o risco, ela deveria correr.

— Já ouviu falar em Conall, filho de Morna, papai? É sobrinho do rei supremo.

— Já ouvi. Mas não o conheço.

— Mas eu sim. Eu o conheci em Lughnasa. — Fez uma pausa enquanto ele a encarava, estupefato. — Foi ele quem veio ontem aqui. E acho que foi para me ver.

— Tem certeza? Ele é sério?

— Como posso saber, papai? Precisaríamos de tempo para descobrir. Mas creio que é possível. Há algo que possa ser feito?

E agora o chefe que negociava com gado sorriu.

— Entre, filha — ordenou —, e deixe isso comigo.

— Ela não desgosta dele? — perguntou Goibniu prontamente quando Fergus voltou.

— ja veio me dizer que gosta dele — disse Fergus sorrindo, antes de acrescentar amavelmente —, bastante.

Goibniu assentiu animadamente.

— Bastante é o suficiente. E o preço?

— É aceitável.

— Vamos levá-la conosco então.

— Ah Isso não será possível.

— Por quê?

— Preciso dela comigo — alegou Fergus imperturbável — por todo o inverno. Mas, na primavera...

— No inverno que ele vai querer uma mulher, Fergus.

— Se a intenção dele é verdadeira...

— Pelos deuses, homem — explodiu Goibniu. — Ele não teria vindo de Ulster até este lugar miserável se não fosse verdadeira.

— Alegro-me em ouvir isso — declarou Fergus solenemente. — E, na primavera, ela será dele.

O único olho de Goibniu se estreitou.

— Você teve outra oferta.

— para dizer a verdade, não tive. — Fergus fez uma pausa. — Sem dúvida,

eu poderia ter tido. Mas como era com você que eu estava negociando...

— Não gosto de ser traído — interrompeu-o Goibniu.

— ja será dele — prometeu Fergus. — Não resta a menor dúvida.

— você terá que ser dele, Deirdre — disse ele à filha depois que os visitantes foram embora —, se o seu Conaíl não fizer nada até a primavera.

Embora fosse um dos mais jovens druidas, Larine era reconhecido pela sua sabedoria. O Pacificador, como o chamavam. Portanto não o surpreendeu quando, num frio dia de início de primavera, ele foi ao acampamento na costa de Ulster, onde o rei supremo passava uma temporada, e, assim que ficaram sozinhos, o rei se virasse para ele e perguntasse:

— Dê-me sua opinião, Larine. O que devo fazer com o meu sobrinho Conall?

O druida sempre gostou de Conall e em meses recentes o jovem príncipe havia confiado bastante nele. Sentia ternura e lealdade em relação a ele. Também se preocupava com a crescente tristeza que ele sentia na mente do jovem. Portanto, respondeu cautelosamente.

— Na minha opinião, ele está perturbado. Seu dever é obedecer-lhe em tudo e honrar a memória do pai. Ele quer fazer isso, mas os deuses lhe deram os olhos de um druida.

— Você acredita que ele tenha mesmo os dons de um druida?

— Acredito.

Seguiu-se um demorado silêncio antes de o rei supremo falar novamente.

— Eu prometi à mãe dele que seguiria os passos do pai.

— Eu sei — ponderou Larine. — Mas fez um juramento ou coisa semelhante?

— Não — pronunciou o rei lentamente —, não fiz. Mas isso só porque, com a minha própria irmã, não houve necessidade.

— De qualquer modo, não está obrigado.

Novamente caiu um prolongado silêncio. E se ao menos tivessem permanecido sozinhos um pouco mais de tempo para conversar tranqüilamente, pareceu a Larine que, ali e naquele momento, o rei supremo talvez tivesse concedido o desejo de Conall.

Portanto, deve ter sido o destino que fez a rainha surgir naquele instante. E provavelmente nada houve que Larine pudesse ter feito quando, após as saudações habituais, ela olhou-o pensativamente através de olhos estreitados e exigiu saber sobre o que eles estavam conversando.

— Sobre o desejo de Conall de se tornar um druida — respondeu ele calmamente.

Ela se importava se Conall fosse ou não um druida? Ele não via motivo para que ela se importasse. Tampouco entendeu, até o rei supremo lhe explicar, o que ela quis dizer quando gritou furiosamente:

— Não até ele me trazer aquele touro.

— Seu tio ainda não decidiu — contou Larine a Conall posteriormente.

— E a rainha?

— A rainha ficou aborrecida — admitiu o druida.

Era uma atenuação. Claro, ele conhecia o humor da rainha, mas Larine ainda assim ficara chocado com o modo pelo qual praguejara contra o marido. Ele havia prometido mandar Conall, gritou para ele, prometido a ela pessoalmente. Ele era um traidor inútil. Seu marido tentara dizer alguma coisa, mas ela estava subindo pelas paredes e recusou-se a ouvir. Uma coisa, porém, que o druida captara de sua tempestade de palavras, era o motivo mais profundo do ataque planejado: a afirmação da autoridade real. E nisso ele não podia negar razão à rainha. Outros poderiam ser enviados, mas o belo e inexperiente jovem príncipe Conall era a escolha inteligente para mostrar a clara supremacia da família real sobre o chefe impertinente. A coisa tinha estilo. Mesmo assim, ela fora tola. Se tivesse falado calmamente e em particular, talvez conseguisse seu intento. Gritando e acumulando insultos contra o rei supremo na frente de um druida, ela tornou difícil para o seu marido ceder e manter a dignidade. Larine, contudo, não disse isso a Conall, mas apenas informou:

— O rei supremo disse que decidirá depois. Ele me prometeu que vai primeiro falar em particular com você.

— Eu nada sei desse plano para roubar o touro negro — confessou Conall.

— É segredo, e não deve deixar que eles saibam que eu lhe contei. — Larine fez uma pausa. — Você poderia pegar o touro, Conall, e depois pedir que o rei supremo o libere de suas obrigações. A rainha não teria nada para dizer então.

Mas Conall sacudiu a cabeça.

— Acredita mesmo nisso? — Suspirou. — Eu conheço os dois, Larine, muito melhor do que você. Se eu for bem-sucedido em conseguir o touro, com toda a certeza, em menos de um mês, eles vão me pedir para fazer uma outra coisa. Será tarefa após tarefa. Se eu fracassar, desgraça; e, se eu for bem-sucedido, honra... para mim, é claro, mas acima de tudo para o meu tio, o rei supremo. Isso só vai acabar quando eu morrer.

— Pode acontecer o contrário.

— Não, Larine. É assim que será. Só há um modo de pôr um fim nisso, que é não começar.

— Não pode se recusar a ir.

Conall meditou em silêncio por algum tempo.

— Talvez eu possa — murmurou.

Seria melhor, pensou o druida, não contar a respeito ao rei supremo.

O inverno estava quase no fim e ele ainda não aparecera. Em poucos dias, pensou Fergus, Deirdre parecia mais pálida do que a lua. Até mesmo seus irmãos notaram que ela estava triste. Foi um péssimo dia, pensou seu pai, aquele em que a levei ao Lughnasa em Carmun. Uma coisa triste, percebia agora, ela ter conhecido Conall.

A princípio ele acreditara que Conall voltaria. Deirdre não era nenhuma tola; ele não achava que ela se equivocara com os interesses do jovem. Conall gostava dela. Mas o tempo passou e nem sinal dele. O chefe fez até mesmo discretas indagações sobre o jovem príncipe. Descobrira e, delicadamente, alertara sua filha sobre as geissi de druidas que governavam a vida de Conall. “Homens como esse, marcados pelo destino”, preveniu-a, “nem sempre têm uma vida fácil e tranqüila.” Mas era claro que tais alertas nada significavam para ela.

Então por que ele não aparecera? Podia haver muitos motivos. Quando via, porém, sua filha abater-se silenciosamente, um pensamento martelava em sua cabeça e, cada vez que surgia, crescia insidiosamente. De quem era a culpa por Conall não ter vindo? Não era do príncipe, não era de Deirdre. A culpa era dele. Por que motivo um príncipe como Conall se casaria com a filha de Fergus? Não havia nenhum. Se ele fosse um grande chefe, se tivesse riquezas —, aí seria outra coisa. Mas ele não tinha nada disso.

Outros homens na ilha, sem melhores ancestrais do que os dele, haviam participado dos grandes ataques do outro lado do mar ou tinham ido guerrear, ganhando riquezas e fama. Mas o que ele havia feito? Ficara em Dubh Linn, cuidando do vau, acolhendo os viajantes em sua casa.

Isso era parte do problema. Quando os viajantes iam à casa de Fergus, eram bem acolhidos. Fergus não hesitava nem um pouco em abater um porco, ou mesmo uma novilha, para fornecer uma pródiga refeição a um convidado. O velho bardo, que recitava para ele quase todas as noites, sempre era generosamente pago. As famílias das propriedades mais afastadas, que o chamavam de chefe, sempre encontravam comida e uma boa acolhida em sua casa; e, se estavam atrasadas com freqüentemente perdoadas. Foi a simples repetição dessas modestas demonstrações de status, que via como tão essenciais à sua dignidade, que levou Fergus em anos recentes a contrair uma boa quantidade de dívidas que ele mantinha em segredo de sua família. Conseguira se ajeitar porque o gado sempre o tinha salvo. Possuía um talento nato como criador de gado e agradecia aos deuses por isso. Entretanto, seu secreto constrangimento o corroía, principalmente desde a morte de sua mulher, e agora a compreensão de seu fracasso na vida o torturava.

No entanto, o que sou eu?, pensava. O que os homens podem dizer de mim? Ali vai um homem que é o orgulho de sua filha. Ali vai uma jovem que conseguirá um bom dote para seu pai. E o que eu já fiz para que ela se orgulhasse de mim? Muito pouco. Essa é a verdade. E agora sua filha estava apaixonada por um homem que não se casaria com ela por causa de seu pai.

Ela nunca falava a respeito. Realizava suas tarefas diárias como de hábito. Às vezes, antes do solstício de inverno, ele a vira fitando além das águas frias do vau. Certa vez, ela caminhara pelo promontório para olhar a pequena ilha que tanto adorava. Perto do fim do inverno, porém, ela não mais olhava para coisa alguma, além do que ia carregar, a não ser que fosse para fitar apaticamente o duro e frio chão.

— Você está mais pálida do que um galanto — disse-lhe ele certo dia.

— Galantos murcham. Eu não murcharei — retrucou. — Tem medo — perguntou-lhe subitamente com uma sombria disposição de espírito — de que eu definhe antes do dia do meu casamento? — E quando ele sacudiu a cabeça: — É melhor me levar ao meu marido em Ulster.

— Não — disse ele delicadamente. — Ainda não.

— Conall não virá. — Ela parecia resignada. — Eu deveria ser grata pelo bom homem que conseguiu para mim.

Você não deveria ser grata por coisa alguma, pensou ele. Mas, em voz alta, falou:

—— Ainda há bastante tempo.

Então, poucas manhãs depois, avisou a todos que ficaria fora vários dias e, sem nada explicar, montou em seu cavalo, atravessou o vau e foi embora.

Finbarr ouviu atentamente quando Conall lhe contou sobre a incursão do rei para confisco do gado e o que pensava a respeito. Em seguida sacudiu a cabeça admirado.

— Eis aí a diferença entre nós, Conall — comentou. — Aqui estou eu, um homem pobre. O que eu não daria por uma chance como essa? E você, um príncipe, vai ser arrastado para a glória contra a própria vontade.

— Era você que deveria ir nessa incursão, Finbarr, e não eu — rebateu Conall. — Vou falar com o meu tio.

— Não faça isso — pediu Finbarr. — Isso só traria preocupações para a minha cabeça. — Então, após uma pausa, olhou com curiosidade para Conall. — Há mais alguma coisa que queira me contar?

Fora no início do inverno que ele notara a mudança no comportamento do amigo. Claro que Conall vivia sempre taciturno, mas quando começara a franzir a testa e apertar os lábios e fitar inexpressivo o horizonte, Finbarr concluiu que algo novo devia estar perturbando os pensamentos de seu amigo. Por isso, agora, quando Conall lhe contou sobre o touro, ele deduziu que era esse o problema secreto nos pensamentos do amigo. Quando, porém, perguntou “Há quanto tempo sabe disso” e Conall respondeu “Dois dias”, ficou evidente que o comportamento que ele notara só podia ter sido causado por algo mais.

— Tem certeza de que não há nada em sua mente? — tentou ele novamente.

— Nada mesmo — garantiu Conall.

E foi então que uma figura alta e desconhecida caminhando a passos largos surgiu à vista.

Fergus levara alguns dias para encontrar o acampamento do rei supremo, mas, assim que chegou, um homem indicou-lhe imediatamente Conall. Ele olhou com secreta admiração o belo príncipe e seu bem-apessoado colega.

— Saudações, Conall, filho de Morna — cumprimentou-o solenemente. — Sou Fergus, filho de Fergus, e tenho algo para lhe dizer em particular.

— Não há nada que meu amigo Finbarr não possa ouvir — disse Conall calmamente.

— É sobre minha filha Deirdre — começou Fergus —, que você foi visitar em Dubh Linn.

— Vamos conversar a sós — falou Conall rapidamente, e Finbarr deixou-os a sós. Mas notara, surpreso, que seu amigo corara.

Fergus não levou muito tempo para contar a Conall sobre Deirdre. Quando lhe falou do amor dela por ele, viu Conall aparentar culpa. Quando lhe explicou sobre o dote que Goibniu conseguira, viu o príncipe empalidecer. Não pressionou, de um modo ou de outro, o jovem perturbado a se declarar, mas simplesmente afirmou:

— Ela não será entregue até o festival de Bealtaine. Depois ela terá de ir. — Dito isso, foi embora.

Finbarr sorria consigo mesmo. Então Conall foi até o Liffey para ver aquela moça que conheceu no Lughnasa. Era por isso que seu amigo andava mergulhado em pensamentos. Não restava dúvida. Pela primeira vez o misterioso príncipe druida se comportava como um homem normal. Ainda havia esperança para ele.

Ele não hesitou em confrontar o amigo assim que Fergus se foi. E dessa vez Conall cedeu e contou-lhe tudo.

— Eu acho — falou Finbarr com um certo prazer — que vai precisar dos meus conselhos. — Olhou-o fixamente. — Você quer de verdade essa moça?

— Talvez. Creio que sim. Não sei direito. Bealtaine. Início de maio.

— Você tem apenas dois meses — frisou Finbarr — para se decidir.

Goibniu deu um sorriso largo. Por toda a paisagem ele podia ver pequenos grupos de pessoas — algumas a cavalo ou em carroças, a maioria, porém, conduzindo gado — seguindo em direção à colina solitária que se erguia do meio da planície.

Uisnech: o centro da ilha.

Na verdade, a ilha tinha dois centros. A real Colina de Tara, que ficava a apenas um curto dia de viagem para leste, era o mais importante centro político. Mas o centro geográfico da ilha ficava ali em Uisnech. A partir de Uisnech, dizia a lenda, os doze rios da ilha tinham sido formados em uma violenta tempestade de granizo. O umbigo da ilha, era como algumas pessoas a chamavam: a colina circular no meio da região.

Uisnech, porém, era muito mais do que isso. Se Tara era a colina dos reis, Uisnech era a colina dos druidas, o centro religioso e cósmico da ilha. Ali vivia a Deusa Eriu, que dera seu nome à ilha. Ali, antes mesmo de virem os Tuatha de Danaan, um místico druida acendera a primeira fogueira, cujas brasas foram levadas para cada lar da ilha. Oculto em Uisnech, em uma caverna secreta, estava o poço sagrado que continha o conhecimento de todas as coisas. No cume da colina elevava-se a pentagonal Pedra das Divisões em torno da qual ficavam os solos sagrados de reunião dos cinco reinos da ilha. Nesse centro cósmico, os druidas faziam seus conclaves.

E era também em Uisnech, a cada Primeiro de Maio, que os druidas realizavam a grande assembléia de Bealtaine.

De todos os festivais do ano celta, os dois mais mágicos eram certamente o Samhain, o Halloween original, e o festival do Primeiro de Maio chamado de Bealtaine. Se o ano era dividido em duas metades — inverno e verão, trevas e luz —, então esses dois festivais marcavam as junções. No Samhain, o inverno começava; no Bealtaine, o inverno terminava e o verão começava. A véspera de cada um desses dois festivais era uma ocasião especialmente sinistra, pois, durante a noite, o calendário entrava numa espécie de limbo, quando não era nem inverno nem verão. O inverno, a estação da morte, se encontrava com o verão, a estação da vida; o mundo de baixo se encontrava com o mundo de cima. Os espíritos saíam para caminhar; os mortos se misturavam com os vivos. Eram noites de presenças estranhas e sombras fugidias — apavorantes no Samhain, visto que conduziam à morte; mas, no Bealtaine, não inspiravam medo, pois, no verão, o mundo dos espíritos era apenas travesso, e sexual.

Goibniu gostava do Bealtaine. Podia ter apenas um olho, mas em todo o resto era completo, e sua proezas sexuais eram bem conhecidas. Enquanto observava o povo se reunir, teve uma ardente sensação de antecipação. Quanto tempo até ele ter uma mulher? Não muito, pensou. Afinal de contas, era o Bealtaine.

A noitinha, havia milhares de pessoas reunidas sob a luz rósea, aguardando a hora da subida. Havia uma brisa leve e morna. O som de uma gaita de foles soprava seu caminho em volta do sopé da colina. A expectativa estava no ar.

Deirdre olhou para sua pequena família. Os dois irmãos carregavam ramos de folhas verdes. Ela deveria estar fazendo o mesmo: era o costume no Bealtaine. Mas ela estava sem disposição. Os irmãos sorriam tolamente. Quando colhiam seus ramos verdes, uma velha senhora lhes perguntara se eles iam pegar garotas naquela noite. Deirdre nada dissera. Não havia hipótese na opinião dela. Tais coisas aconteciam, é claro. Ao final da noite que seguiria, depois que todos tivessem dançado e bebido, haveria todo tipo de uniões ilícitas nas sombras. Jovens amantes, esposas que haviam escapado dos maridos, homens que deixavam de lado suas esposas. Era sempre assim na estação de maio. Não que ela já tivesse feito tal coisa. Como filha solteira de um chefe, tinha de pensar na sua reputação. Não podia se comportar como as mulheres do campo ou as escravas. Mas, e o pai? Olhou-o de soslaio, curiosa. Visto que ela estava, supunha, prestes a sair de casa para se casar, seu pai deixaria de ter uma criada. Será que ele aproveitaria o festival de Bealtaine para conseguir uma mulher? Não havia motivo para que não o fizesse, embora não tivesse dado nenhuma indicação de que tal coisa poderia estar em sua mente. Ficou imaginando como se sentiria a respeito disso.

Sem que ela quisesse, seu olhar vagou pela multidão. Conall estava ali, em algum lugar. Ela ainda não o vira; mas sabia que devia estar ali. Ele não fora procurá-la. Ela vira que o rei supremo estava lá com uma enorme comitiva; mas não fora verificar se Conall estava lá. Se ele quisesse encontrá-la, que viesse. Se não quisesse... Ela não podia esperar mais. Seu noivo estava vindo, e ele não podia ser rejeitado.

Talvez Conall a quisesse, mas apenas à maneira do Primeiro de Maio e nada mais do que isso. Ele se aproximaria dela, iria lhe oferecer uma noite de amor, e depois abandoná-la ao seu destino? Não. Ele era puro demais para isso. Mas e se ele fosse procurá-la, no topo da colina, no meio da noite? E se, como um fantasma, ele surgisse a seu lado? Se a tocasse? Pedisse a ela, na escuridão, com seus olhos? E se Conall... Ela iria com ele? Ela se entregaria a ele, como uma escrava? Que idéia. Mas ela pensou nisso.

À medida que o sol baixava, a multidão inteira começou a subir a colina. Por toda a ilha havia gente subindo colinas como aquela. Na véspera do Bealtaine, toda a comunidade mantinha vigília em conjunto para se proteger contra os maus espíritos que circulavam naquela noite mágica. Os espíritos eram dados a todo tipo de travessuras: roubavam o leite, provocavam sonhos estranhos, enfeitiçavam e desencaminhavam as pessoas. Por pura diversão. Mas eles gostavam de nos pegar desprevenidos. Eram matreiros. Se ficássemos alertas contra os espíritos, eles costumavam ir embora. Era por isso que, no mundo celta, todas as comunidades ficavam de prontidão a noite toda da véspera do Primeiro de Maio.

Deirdre suspirou. Seria uma longa vigília até o raiar do dia. Apesar de si mesma, sem querer ela olhou em volta mais uma vez.

Como parecia estranho o rosto de Conall sob a luz das estrelas. Num momento, pensou Finbarr, parecia tão duro quanto a pedra pentagonal que se encontrava a apenas quarenta passos no centro do topo da colina. Contudo, concentrando-se um pouco nele, parecia que ele se dissolvia na escuridão. Será que o rosto de Conall era capaz de derreter? Não. Era apenas o leve bruxuleio da luz estelar sobre o orvalho que se formava em todos os rostos.

Em breve veriam a primeira insinuação da alvorada. Depois o ritual do nascer do sol e, depois dele, em plena luz do dia, a grande cerimônia das fogueiras do Bealtaine. Mas ainda era noite. Finbarr nunca vira o céu tão claro. As estrelas incendiavam a escuridão; a planície em volta da colina estava coberta por uma fina manta de bruma, à qual a luz estelar conferia um leve brilho, de forma que a Colina de Uisnech, com sua pedra ereta, parecia estar encravada em uma nuvem no centro do cosmos.

— Eu a vi — disse ele baixinho, para que somente Conall pudesse ouvir.

— Viu quem? — perguntou Conall.

— Você sabe muito bem que é a Deirdre que me refiro. — Finbarr fez uma pausa, mas como não houve nenhuma reação de Conall, ele prosseguiu: — Ela está bem ali. — E apontou para longe, à direita. Conall virou a cabeça e seu rosto virou uma sombra. — Você não a viu? — No demorado silêncio que se seguiu, as estrelas se moveram, mas Conall não respondeu. — Você sabe que estes são os últimos dias — sussurrou Finbarr. — O noivo dela está esperando. Não vai fazer nada?

— Não.

— Não devia falar com ela?

— Não.

— Então não está interessado.

— Não foi o que eu disse.

— Você é complicado demais para mim, Conall. — Finbarr nada mais disse, porém se perguntou: seria alguma estranha renúncia que o seu amigo estava praticando, como druidas e guerreiros às vezes faziam? Seria mera hesitação, o temor que assola a maioria dos jovens ao enfrentar um compromisso? Ou seria algo mais? Por que Conall estava deliberadamente empurrando essa moça para os braços de outro homem? Para Finbarr parecia perverso. Mas talvez, ainda, ele pudesse fazer algo para ajudar seu amigo. Pelo menos tentaria.

Agora metade do céu estava pálido. As estrelas se apagavam. Havia um brilho dourado no horizonte.

O rei supremo observava atentamente. Em alvoradas como aquela, ainda conseguia sentir um formigamento dentro de si, como se fosse novamente um jovem. A despeito, porém, da antecipação do nascer do sol, seus pensamentos permaneciam nos assuntos sérios que o haviam ocupado toda a noite. Ele tomara a decisão algum tempo atrás. Seu plano estava completo. Apenas uma peça, pequena mas importante, estava faltando para poder colocá-lo em prática.

Duas coisas precisavam ser realizadas. A primeira, é claro, era obter uma boa colheita. Ele manipulara cuidadosamente os druidas. Presentes, lisonja, respeito — dera tudo com liberalidade. Os sacerdotes estavam do seu lado. Não que se pudesse confiar demasiadamente neles. Era da natureza dos sacerdotes, dizia-lhe sua experiência, serem vaidosos. Entretanto, o que fosse necessário para cerimônias ou sacrifícios, ele lhes prometera que teriam. Precisava que todos eles orassem aos deuses por um tempo bom.

A segunda era se reafirmar. Algumas medidas eram fáceis. A incursão para tomar o touro negro seria um bom começo. Sua mulher, fossem quais fossem seus defeitos, tivera razão em insistir nisso, e a oportunidade era perfeita. A questão, porém, era mais profunda do que isso. Quando a autoridade de um rei era desgastada, o processo logo se tornava tão sutil e difundido que penetrava em cada aspecto de sua vida. O modo desrespeitoso com que sua própria mulher falou com ele diante do jovem druida, apesar de insignificante, era uma evidência disso. E para remediar essa situação ele precisava de mais do que uma simples demonstração de autoridade. Um rei deve ser respeitado, mas um rei supremo, temido. Como um deus, ser incognoscível, mais sagaz que seus inimigos. Mais sagaz que seus amigos. As pessoas precisam saber que, se escarneceram de sua autoridade, foi porque ele permitiu, para vê-las expor sua deslealdade, para o tempo todo conhecer seus pensamentos e ações. Então, ao nascer do sol, ele devia revelar-se em todo o seu poder, ferocidade e intimidação.

Era o momento de atacar onde menos esperavam, e ele sabia exatamente o que faria. Precisava de apenas uma peça para colocar no lugar. Uma pessoa que ainda não escolhera. Quem sabe, talvez ele encontrasse essa pessoa naquele dia.

Conall não falou pelo resto da noite. Se seus motivos eram obscuros para Finbarr, para ele eram claros o bastante.

Sua principal preocupação, quando chegaram a Uisnech, era com a incursão para confiscar o touro negro. Quando Larine falou com ele no início daquele ano, garantiu a Conall que o rei supremo não tomara uma decisão sobre o assunto e prometera ao druida que, antes de tomá-la, conversaria em particular com seu sobrinho. Durante semanas ele esperou ansiosamente que o tio tocasse no assunto, mas ele não o fizera. Aos poucos, foi chegando à conclusão de que os planos do rei supremo haviam mudado. E a crescente sensação de alívio que passou a sentir por causa disso alentou seus pensamentos de se tornar um druida.

Ainda havia, porém, a questão de Deirdre. Compartilharia ela de seu destino sacerdotal? Estaria ele preparado para assumir o compromisso, dar o passo irrevogável de ir até Dubh Linn para reivindicá-la? Repetidamente, enquanto os dias e os meses passavam, ele revirara essa pergunta em sua mente. Contudo, todas as vezes que pensou em fazer a viagem algo o detivera. E finalmente, pouco antes da partida para Uisnech, ele chegou à constatação que lhe dera alguma paz de espírito. Se ainda não fui até ela, pensou, então é porque não a quero de verdade. E, portanto, ela não é o meu destino.

Foi quando o sol estava para nascer que Finbarr tocou em seu braço.

— Devemos ir para lá — murmurou Finbarr, apontando para um pouco mais à esquerda deles. — Lá, a vista do nascer do sol é melhor. — Não pareceu a Conall que isso faria alguma diferença, mas não discutiu, e assim mudaram de lugar.

Esperaram, com todos os milhares de outros nas encostas de Uisnech, pelo momento mágico. O horizonte reluzia. A imensa órbita do sol se libertava do líquido abraço do horizonte. Seu brilho dourado espalhou-se pela planície enevoada e fez cintilar o orvalho do sopé da colina. Começou então um dos mais adoráveis costumes do Primeiro de Maio do mundo celta: o banho de orvalho.

Deirdre não o viu quando se abaixou, as mãos em concha na reluzente umidade do orvalho, e lavou o rosto. Perto dali, outra mulher segurou seu bebê nu e delicadamente rolou-o na grama. Agora Deirdre estava de pé, e as mãos em concha novamente espalharam o orvalho em seu rosto; e então, esticando bem os braços para poder sentir a tepidez do sol nascente sobre os seios, inclinou a cabeça para trás, e os seios ergueram-se ligeiramente e baixaram como se ela estivesse inspirando os raios de sol.

Conall ficou de pé e olhou fixamente. Finbarr observou seu rosto. Então, percebendo que Finbarr o enganara, Conall olhou zangado para o amigo, virou-se e foi embora.

O calor era intenso. A fila de gado era comprida. Os bois tinham sido mantidos durante a noite nos currais e agora eram conduzidos, um por um, em direção às fogueiras. Eles não gostavam. O bramir das fogueiras adiante os atemorizava. Uma fila de fogueiras menores, dispostas como um funil, os guiava para as duas grandes fogueiras ao ar livre pelas quais deviam passar. Começaram a mugir; alguns tiveram de ser cutucados com varas. A cena mais apavorante, porém, pelo menos aos olhos humanos, não era a fogueira abrasadora, mas as estranhas figuras que se agrupavam como um bando de pássaros imensos, ferozes, logo depois do portão resplandecente.

Era o mesmo por todo o mundo. Dos druidas da Irlanda aos xamãs da Sibéria, dos templos persas de Mitras aos curandeiros da América do Norte, na ocasião de rituais sagrados, aqueles que comungavam com os deuses em transes vestiam capas de penas, pois a plumagem de aves era o traje mais magnífico da natureza e era, sem dúvida, mais do que uma insinuação de que os homens sagrados podiam voar.

Nas cerimônias do Bealtaine, os druidas de Uisnech vestiam enormes capas de cores brilhantes com altas cristas de pássaros que os faziam parecer ter quase o dobro da altura. Enquanto cada animal era conduzido pelo meio das fogueiras purificadoras, eles o molhavam com água. Esse era o ritual do Primeiro de Maio que deveria garantir a saúde do importantíssimo rebanho no próximo ano.

Larine estava parado ao lado de uma druidesa mais velha. Sua atenção deveria estar na fila dos bois. Faltavam apenas cinqüenta para passar. Era muito quente o trabalho perto do fogo e, com tanto gado, os druidas tinham de se revezar. Seu turno acabara havia algum tempo e ele tirara a pesada capa de penas. Mas agora, enquanto a druidesa mais velha continuava vigiando as fogueiras, seus olhos vagavam pela planície em volta da colina.

Larine tinha algumas coisas em mente. A primeira, e certamente a menos importante, era um rumor — quase nem mesmo rumor, mais um sussurro no horizonte. Ele o ouvira no mês anterior.

Referia-se aos cristãos.

Ele sabia que houvera cristãos na ilha ocidental já havia uma geração. Formavam pequenas comunidades — uma capela aqui, uma fazenda ali, alguns sacerdotes missionários dispersos ministrando para os escravos cristãos da área e, se tivessem sorte, para alguns dos seus amos. Como um druida bem informado, Larine ocupara-se em conhecer algo a respeito deles. Até mesmo travou conhecimento com um sacerdote cristão no sul de Leinster, com quem discutira detalhes da doutrina cristã. E foi o sacerdote quem lhe falara, no mês anterior, sobre o rumor.

“Dizem que os bispos da Gália planejam enviar uma nova missão à ilha para aumentar a comunidade, e talvez fazer uma aproximação com o próprio rei supremo.” O sacerdote não tinha certeza dos detalhes. Até mesmo os nomes dos missionários que seriam enviados não estavam claros. “Mas dizem que o Santo Padre em pessoa sancionou a missão.”

O poderoso Império Romano, um século atrás, adotara o cristianismo como sua religião oficial. Por várias gerações, portanto, os druidas da ilha ocidental sabiam que eram a última e isolada fortaleza dos antigos deuses ao lado dos vastos territórios do Império Romano cristão. Havia, porém, vários fatores que lhes davam alívio. O cristianismo do império não era total: ainda havia importantes templos pagãos na Britânia, e recente na memória a tentativa do imperador Juliano de verdadeiramente inverter o processo e devolver ao império sua característica tradição pagã. Em todo caso, a ilha ocidental era protegida pelo mar. E com a retirada das guarnições romanas da Britânia e da Gália, parecia não haver agora nenhuma chance de que Roma viesse a perturbar o reino do rei supremo. Sem as tropas romanas, o que fariam os sacerdotes cristãos? As pequenas comunidades no sul da ilha eram toleradas porque não causavam problemas. Se qualquer missionário cristão fosse perturbar o rei supremo, os druidas logo se ocupariam dele.

Larine dissera tudo isso ao sacerdote, e talvez tivesse falado muito asperamente, pois o sacerdote ficara irritado, murmurando palavras sobre não fazer muito tempo que os druidas realizavam sacrifícios humanos, e disse-lhe que deveria se lembrar de como o profeta Elias subjugou os sacerdotes pagãos de Baal. “Foi até o festival deles”, declarara o sacerdote, “e construiu uma enorme fogueira, que irrompeu em chamas quando orou para o Senhor, ao passo que os sacerdotes de Baal não conseguiram que os deuses deles a acendessem. Portanto, previna-se”, acrescentara duramente, “para que os missionários do verdadeiro Deus não envergonhem vocês no Bealtaine”.

“As fogueiras do Bealtaine queimam fulgurantes”, rebatera Larine. O cristão, julgou, estava se iludindo.

Contudo, alguma coisa, não sabia dizer o que era, o incomodara naquela conversa. Uma leve apreensão. Apesar de absurdo, ele até mesmo olhara em volta uma ou duas vezes para ver se algum dos sacerdotes cristãos decidira aparecer para perturbá-los. Mas claro que não. As fogueiras do Bealtaine queimavam fulgurantes. Ao esquadrinhar o horizonte, nada viu que perturbasse as sagradas cerimônias do dia.

Se uma sensação de intranqüilidade continuava a afligi-lo, concluiu que devia ser por causa da segunda e mais séria de suas preocupações.

Conall. O príncipe acabara de surgir na multidão que se enfileirava do outro lado do caminho ao longo do qual o gado era conduzido, após passar pelas fogueiras. Estava parado atrás da fila da frente, mas sua altura dava-lhe uma boa visão das fogueiras para as quais, como o resto da multidão, ele olhava. Não viu Larine. Pareceu ao jovem druida que, enquanto todos os demais divertiam-se com as festividades, o rosto de Conall parecia tenso.

Muitos dos animais conduzidos pelo meio das fogueiras eram especialmente excelentes. Em vez de trazer rebanhos inteiros, fazendeiros que haviam percorrido uma longa distância traziam talvez o seu melhor animal, normalmente um touro, para servir de representante dos demais. E exatamente naquele momento um esplêndido touro marrom era conduzido por uma figura alta e uma jovem. O homem era uma espécie de chefe menor, adivinhou Larine, um sujeito velho bem-apessoado com longos bigodes. Mas a jovem, com cabelos dourados, era admirável. O druida olhou-a com apreço. Seu rosto estava vermelho por causa do calor do fogo; como estavam também seus braços nus. Ele teve a impressão de que seu corpo todo incandescia. Conall também pareceu notar a dupla, pois olhava fixo para ela. Que contraste seu tenso e pálido rosto fazia, pensou o druida, com o vermelho reluzente do da moça: como uma alva espada diante da fornalha de um ferreiro. A moça, se viu Conall, passou direto sem olhar para ele. Provavelmente não sabia quem ele era. Então outro animal passou pelo meio do fogo e o druida dirigiu seu olhar para ele. Entretanto, alguns momentos depois, ele observou que Conall continuava olhando direto para a frente e parecia mais do que nunca um fantasma.

Virou-se para a druidesa mais velha a seu lado.

— Por que pergunta?

— Estou preocupado com ele.

— Ah. — A druidesa olhou-o bruscamente. — E o que é, Larine, que você deseja saber?

Embora a maioria dos druidas fossem homens, também sempre havia druidas mulheres. Tais mulheres, geralmente dotadas de uma segunda visão e admitidas nos mistérios do druidismo, podiam inspirar medo. Se reis temiam a repreensão dos druidas homens, o escárnio da mulher druida podia ser ainda mais perigoso. E essa velha mulher era terrível.

Larine olhou para baixo, para o rosto fino da mulher. Agora estava enrugado. O cabelo, que caía até quase a cintura, era grisalho, mas seus olhos, do mais claro azul, poderiam pertencer a uma jovem mulher e eram estranhamente translúcidos, como se se pudesse passar através deles. Ele tentou responder do modo mais breve possível. O seu amigo encontraria a felicidade? Ele se tornaria um druida? Mas, enquanto ele perguntava, ela apenas encolhia os ombros, impaciente.

— Perguntas tolas.

— Por quê?

— O destino de Conall já foi vaticinado. Está nas suas geissi.

Larine franziu a testa. Dissessem o que dissessem de Conall, ele sempre fora um homem cauteloso.

— Sabe que ele nunca usa vermelho porque a cor não traz sorte para sua família. Não acredito que ele vá quebrar qualquer uma das geissi.

— Entretanto, terá de quebrá-las, Larine, já que não poderá morrer enquanto não fizer isso.

— É verdade — concordou Larine —, mas isso está distante, no futuro; e é com o presente que estou preocupado.

— Como sabe? Cabe a você decidir essas coisas, Larine? Como druida, não devia pensar assim. — Fez uma pausa e deu-lhe um olhar penetrante. — Uma coisa eu vou lhe dizer e nada mais. Seu amigo Conall vai quebrar a primeira das geissi muito em breve.

Ao encarar os olhos da velha e depois olhar para o pálido rosto do amigo, Larine sentiu um calafrio percorrer seu corpo. Ela era vidente.

— Quando?

— Três dias. Não pergunte mais.

Finbarr sentia-se satisfeito consigo mesmo. Todo o gado fora conduzido por entre as fogueiras. A festa do rei supremo logo começaria. E não acabara de fazer um favor a Conall? Sim, isso mesmo. Fizera a coisa certa. E, se seu amigo não aproveitasse a ocasião desta vez... Bem, ele fizera o máximo possível.

A festa do rei supremo não era um acontecimento banal. Começava no início da tarde e se estendia pela noite. Fora montado um amplo salão para o banquete com laterais de vime. Em seu interior, havia mesas de cavaletes e bancos para trezentas pessoas. Haveria gaitistas de foles e harpistas, dançarinas e bardos recitando. Os grandes chefes e druidas, os mantenedores da lei e os guerreiros mais nobres estariam todos presentes. Conall também, é claro. Trinta das jovens mais bem-nascidas, filhas de chefes todas elas, serviriam o hidromel e a cerveja clara para os presentes.

E foi isso que Finbarr fizera tão bem, pois Deirdre seria uma delas. Fora um favor que lhe prestara a mulher encarregada das moças. Depois, uma rápida consulta a Fergus e sua filha. Deirdre recusara, constrangida, mas seu pai lhe ordenara ir. Mesmo agora ela não fazia idéia de que seria encaminhada para servir cerveja a Conall. Finbarr também se certificara disso. E mais do que isso, disse a si mesmo, ele não conseguiria fazer.

O meio-dia havia passado e o banquete começara quando Goibniu, o Ferreiro, seguiu em direção ao salão de festa. Estava de péssimo humor. O motivo era simples: fracassara em conseguir uma mulher.

Ele encontrara uma no dia anterior. Uma mulher bela e saudável, esposa de um fazendeiro de Leinster. Ao anoitecer, ela lhe dissera: “Meu marido está grudando como cola. Espere um pouco.” Mais tarde, à noite, ela apareceu e cochichou: “Me encontre bem ali, perto daquele espinheiro, ao amanhecer.” E essa foi a última vez que ele a viu — até poucos momentos atrás, quando a avistou nos braços de um homem alto que certamente não era o fazendeiro de Leinster. A essa altura já era tarde demais para fazer qualquer coisa. Quem queria encontrar um parceiro já tinha conseguido. Uma moça se aproximara dele, mas era tão sem graça que ofendia o seu orgulho. Ele tinha sido feito de bobo, estava cansado e sentia-se frustrado. Outro homem talvez tivesse decidido se embriagar. Mas não foi isso que Goibniu fez. Seu único olho permaneceu vigilante. E então, de repente, o olho avistou algo mais que o lembraria dos negócios.

O grandalhão de Dubh Linn. O tal com a filha que ele negociaria. Contudo, não viu sinal da moça. Goibniu foi até ele.

O que havia em Fergus que deixava o esperto ferreiro tão desconfiado? Goibniu não se deu ao trabalho de analisar. Não tinha necessidade. Mas em vista das primeiras palavras de saudação, em vista do sorriso fácil do chefe e do modo alegre como ele respondeu “Está, está”, quando lhe foi perguntado se Deirdre estava presente, Goibniu pressentiu que havia algo errado. Sua expressão ficou carregada.

— Então vou levá-la comigo.

— Vai, com toda a certeza. Não resta dúvida.

Fergus estava amável demais. Só podia estar mentindo. Não era com freqüência que o matreiro ferreiro permitia que seu humor o abatesse, mas a experiência da noite anterior afetara seu discernimento. Com uma repentina explosão de irritabilidade na qual ficou visível o seu desprezo, ele estourou:

— Está me tomando por um idiota? Ela não está aqui.

Foi o visível desprezo que magoou Fergus. Assumiu toda a sua altura e olhou de cima ameaçadoramente para Goibniu.

— Foi para me insultar que veio aqui? — perguntou um pouco inflamado.

— Não dou a mínima se o insultei ou não — retrucou o ferreiro.

E agora, com o rosto enchendo-se de sangue, ficou óbvio para qualquer um que o conhecesse que Fergus, filho de Fergus, estava para se tornar muito furioso mesmo.

Ela sabia que tinha boa aparência. Podia ver pelos olhares curiosos das outras moças enquanto todas deslizavam em seus vestidos ondeantes pelo gramado até a entrada do salão de festa. E por que eu não deveria ser bonita?, pensou ela, pois meus ancestrais não eram tão bem-apessoados quanto os delas? De qualquer modo, sentia-se como uma princesa, não importava o que pudessem pensar.

Ela não quis fazer aquilo. Ficou tão constrangida e atormentada quando Finbarr foi falar com seu pai. “Não posso”, gritou. O que ia parecer se ela surgisse onde não deveria e se jogasse em cima dele para todos verem? Mas eles a forçaram e, tendo ido tão longe, ela se decidiu a uma coisa. Não tomaria conhecimento dele. Se ele quisesse, que falasse com ela. Empinaria bem alto a cabeça e deixaria que os outros homens a vissem como a princesa que era. De qualquer modo, já não tinha um marido à sua espera? Foi com esse pensamento firmado na mente que ela passou pela entrada do salão de festa.

Um delicioso cheiro impregnava o ar: cerveja clara e hidromel, frutas cozidas e, por cima de tudo, o aroma de carne bem gorda assada. No centro do salão, havia um enorme caldeirão repleto de cerveja. Nas mesas ao lado dele, pequenas tigelas de hidromel. Em volta das paredes ficavam as mesas onde os grupos estavam sentados. Vermelhos e azuis, verdes e dourados — os reluzentes trajes e os cintilantes ornamentos dos chefes e suas esposas davam ao salão um ar resplandecente. Havia conversas e gargalhadas, mas o delicado dedilhar dos três harpistas no canto ainda podia ser ouvido.

Assim que entrou, sentiu sobre ela os olhos dos homens, mas não ligou. Cuidou do que tinha de fazer, movimentando-se graciosamente, despejando cerveja ou hidromel conforme os pedidos, acompanhados por uma palavra educada ou um sorriso agradável, mas, fora isso, ela não se importava em olhar para seus rostos. Quando precisou passar diante do rei supremo, tomou ciência, pelo canto do olho, de sua figura morena, o que achou um tanto desagradável, e da enorme presença da rainha. Estavam ambos envolvidos em uma conversa e ela tomou cuidado de não olhar para eles. Aliás, era mantida tão ocupada que a princípio mal notou quando foi instruída a servir no local onde Conall estava sentado.

Como parecia pálido, como estava sério. Ela o serviu exatamente como a todos os demais, dando-lhe um sorriso.

— Prazer em vê-la, Deirdre, filha de Fergus. — Sua voz era moderada, sóbria. — Não sabia que você estava aqui no banquete.

— Foi uma surpresa também para mim, Conall, filho de Morna — devolveu agradavelmente. Depois seguiu adiante sem tornar a olhar para ele.

Precisou voltar várias vezes à mesa, mas os dois não se falaram novamente. Deirdre viu uma vez seu tio, o rei supremo, chamá-lo com um sinal da cabeça, mas a atenção dela foi distraída por um gaitista que começou a tocar.

Conall voltou perturbado do encontro com o rei. Sob aquelas pesadas sobrancelhas escuras, os olhos de seu tio, azul-escuros e um tanto injetados, brilhavam de um modo que deixava notar que ele não perdia nada de vista.

— Ora Conall – começara ele. – É a festa do Bealtaine, mas você está triste.

— É apenas o jeito como meu rosto parece.

— Quem é aquela moça... a tal com quem falou? Eu já a vi antes? — Em resposta, Conall explicou o melhor que pôde quem era ela e seu pai, o chefe de Dubh Linn. — Está dizendo que esse tal de Fergus é um chefe?

— É verdade. — Conall sorriu. — Um dos menores. Seus ancestrais tiveram certa reputação.

— Bem, ele tem uma filha muito bonita. Ela está comprometida para casamento?

— Há um acordo, creio eu. Alguém em Ulster.

— Mas... — Os olhos do rei se dirigiram para cima, astutamente. — Você gosta dela?

Conall sentiu-se enrubescer. Não pôde evitar.

— De modo algum — gaguejara.

— Hum. — Seu tio aquiescera e então encerrou a conversa; entretanto, após ter voltado ao seu lugar, ele notou que o rei deu a Deirdre um olhar pensativo. Estaria seu tio passando uma mensagem? Dando a entender que ele devia se casar com ela? No mínimo, estava lhe dizendo que seu amor por aquela moça era óbvio. E não estava ele agora, fossem quais fossem seus motivos, prestes a deixar que ela se casasse com outro? Sem a decência de dar a ela nem mesmo uma palavra de explicação? Não havia como negar. E por que fazia aquilo? Era realmente o que queria?

Por um tempo ficou sentado ali, sem falar com ninguém. Por fim ergueu os olhos e viu que ela se aproximava. Chegou tão perto que, se esticasse a mão, poderia ter tocado seu cabelo dourado.

— Deirdre, filha de Fergus. — Ele pronunciou as palavras baixinho, mas ela as ouviu. Ela virou a cabeça. Teria visto ele, apenas por um momento, um expressão de dor em seus olhos maravilhosos? — Eu preciso falar com você. Amanhã de manhã. Ao amanhecer.

— Como desejar. — Ela pareceu hesitante.

Ele assentiu. Nada mais. E ela mal começara a se afastar quando a gritaria começou.

Todas as cabeças se voltaram; os druidas franziram a testa; o rei olhou raivoso; até o gaitista parou. No local sagrado de Uisnech, no festival de Bealtaine, alguém perturbava a paz do rei supremo.

Os gritos continuaram. Então, fez-se silêncio. Um dos criados pessoais do rei entrou no salão de festa e falou algo para o rei, que aquiesceu friamente. E, poucos instantes depois, duas figuras foram conduzidas para dentro. A primeira, com aparência irritada mas cautelosa, era Goibniu, o Ferreiro. Atrás dele, a própria imagem de um chefe ofendido, Fergus aproximava-se silenciosamente. Conall olhou na direção onde Deirdre agora se encontrava e a viu empalidecer. Quando os dois estavam diante do rei, este falou. E o fez baixinho, primeiro para Goibniu.

— A briga?

— Eu discuti com este homem.

— O motivo?

— Sua filha não está aqui. Ela está prometida para um homem em Ulster, e eu devia levá-la até lá. Então — olhou desdenhosamente para Fergus — este sujeito me deu um soco.

O rei dirigiu o olhar para Fergus. Então era aquele o chefe de Dubh Linn. Uma olhadela bastou para compreender Fergus inteiramente.

— Entretanto, como pode ver, a filha dele está aqui.—Apontou para Deirdre. Goibniu olhou e mostrou-se atônito. — O que tem a dizer, Fergus?

— Que esse homem me chamou de mentiroso — declarou Fergus com veemência, e então, com mais humildade — mas que a minha filha é digna de um príncipe, e agora eu causei a sua desgraça.

Com o canto do olho, o rei viu vários dos poderosos nobres darem ao pobre e orgulhoso chefe um olhar de aprovação. Ele concordou.

— Parece, Goibniu — disse o rei amavelmente —, que você se enganou a respeito da moça. É possível que também tenha se enganado a respeito do soco, não acha? Quem sabe você talvez tenha só pensado que ele quase o agrediu? — E os olhos azul-escuros do rei olharam fixamente para o ferreiro.

Goibniu podia ser tudo, menos burro.

— Pode ter sido isso — admitiu.

— Você talvez tenha ficado confuso.

— Confuso. Deve ter sido isso.

— Tome o seu lugar em nosso banquete, Goibniu. Esqueça esse assunto. Quanto a você — dirigiu-se a Fergus —, terá de me esperar, Fergus, filho de Fergus, lá fora. Pois pode ser que eu tenha algo a lhe dizer. — Dito isso, fez um sinal com a cabeça para o gaitista, que imediatamente começou a soprar seus foles, e o banquete recomeçou.

Mas, enquanto as festividades prosseguiam e Fergus aguardava lá fora, Deirdre, sem saber o que o rei tinha em mente para seu pobre pai, fazia o melhor possível para se dedicar às suas tarefas e nenhum dos presentes, vendo as fartas sobrancelhas e o rosto vermelho do monarca da ilha, fazia idéia do que na verdade passava pela sua mente.

Perfeito, pensou ele. Seu plano agora estava completo. Precisou apenas olhar para aquele sujeito de Dubh Linn e a armadilha para todos eles ficou pronta. Que improvável portador da boa fortuna os deuses haviam enviado. Ele faria o comunicado no auge da festa. Durante o pôr-do-sol.

No fim daquela tarde, diante de uma multidão alegre, uma pequena cerimônia se realizava, testemunhada por um dos druidas mais velhos.

Com uma razoável demonstração de cortesia, Fergus e Goibniu encaravam um ao outro. O druida deu a ordem e Goibniu foi primeiro. Puxando a camisa para abri-la, desnudou o peito para Fergus, que solenemente deu um passo à frente, colocou na boca um dos mamilos do ferreiro e sugou-o por um ou dois segundos. Então, recuando, ofereceu o próprio peito, Goibniu adiantou-se e retribuiu o cumprimento. Depois disso, ambos aquiesceram um para o outro e o druida declarou a cerimônia encerrada, pois na ilha era dessa forma que dois homens que haviam brigado selavam sua reconciliação. Fergus e o ferreiro, fossem quais fossem suas diferenças, estavam agora unidos por um vínculo de amizade. Em outras terras esses acordos eram selados com um aperto de mãos, ou fumando um cachimbo, ou se misturando os sangues. Na ilha, isso era feito beijando-se o mamilo.

E foi feito por ordem expressa do rei supremo. Pois nada, disse-lhes ele, arruinaria a paz e a felicidade geral do banquete real.

Eles estavam, Conall e Finbarr, no topo de Uisnech. O sol estava no horizonte e sua ardente luz depositou uma rubra luminescência no alvo rosto de Conall, quando ele se virou para o amigo e falou que deviam descer. Estava na hora de voltar para a festa. E agora, após terem ficado em silêncio por tanto tempo, Finbarr arriscou:

— Você viu a moça?

?— Eu vi a moça.

?— E o que vai fazer?

— Foi você quem providenciou para ela estar no banquete? Conall já deduzira.

— Foi. Você me perdoa?

— Foi a coisa certa a fazer. — Conall sorriu docemente. — Você será sempre

o meu bom amigo, Finbarr, aconteça o que acontecer?

— serei — prometeu Finbarr. — E o que fará a respeito de Deirdre?

— Pergunte-me amanhã.

Finbarr suspirou. Sabia que era inútil insistir no assunto. Em vez disso, estendeu a mão e deu um aperto afetuoso no braço do amigo. Desceram a colina enquanto caía a noite. Tochas tinham sido acesas em volta do sopé. Ao seguirem caminho na direção do banquete, viram uma velha druida, que cumprimentou Conall com um gesto de cabeça, ao qual ele retribuiu educadamente. Perto da entrada do salão, eles se separaram e Finbarr observou seu amigo entrar. Um momento depois, viu Fergus e sua filha também entrarem. O chefe agora parecia contente. Obviamente o rei supremo tivera pena dele; mas a impressão de Finbarr foi a de que Deirdre parecia estranhamente indisposta.

O rei supremo levantou-se e o silêncio baixou no salão de festa.

Ele começou baixinho, um leve sorriso no rosto vigoroso, e deu a todos as boas-vindas ao que era sempre uma alegre ocasião. Agradeceu aos druidas. Agradeceu aos chefes pelo fiel tributo que haviam pago. Aliás, destacou, estava feliz em poder dizer que não havia mais qualquer inadimplente em qualquer lugar da ilha. Fez uma pausa.

— Exceto por um homem em Connacht. —Todos agora prestavam atenção nele. Esperando por algum sinal. Lentamente, permitiu que se formasse uma expressão de irônico divertimento em seu rosto. — Parece que estava fora, quando o visitamos.

Seguiram-se gargalhadas. Bem, o rei estava fazendo rir. Mas o que ele ia fazer? O ar divertido demorou-se o tempo suficiente para se tornar ameaçador.

— Meu sobrinho Conall — gesticulou com a cabeça na direção do pálido príncipe —, juntamente com alguns outros, lhe farão uma visita. — Olhou em volta do salão. —Vão partir ao amanhecer. — Dirigiu a todos um assentir amis-toso. Virou-se para sua mulher e assentiu para ela. Depois sentou-se.

O ar ficou em suspenso no salão. Risadas tímidas e nervosas soaram por um momento, depois soaram com mais força. Homens começaram a bater na mesa em aplauso. “Em pleno Bealtaine”, gritou uma voz. “O homem de Connacht não está esperando por isso.” Mais risadas. “Ele vai se arrepender por não ter vindo.”

Ele os tinha conquistado. Foi a firme bofetada da autoridade, misturada com uma tortuosa astúcia. Eles respeitavam isso. Gostara do sombrio humor da coisa. E quando, em vez de tributo, o próprio touro digno de prêmio fosse trazido, toda a ilha admiraria sua vingança. Alguns, que conheciam o desejo de Conall de se tornar um druida e seu desagrado por tais aventuras, enxergaram mais profundamente. Até mesmo o sobrinho favorito tinha de curvar a cabeça diante do jugo real. “Mas o rei está certo”, murmuraram estes. “Tinha de ser feito.”

O rei olhou adiante para o pobre Conall de pé. Seu sobrinho parecia chocado. Sem dúvida Larine contara ao jovem sobre a promessa que fizera de consultá-lo antes de tomar tamanha decisão. Bem, foi uma pena. Serviria de lição a Larine e a seu sobrinho. Reis utilizam-se de príncipes: ambos deviam saber disso. Além do mais, ponderou seu tio, o jovem parecia tão inseguro do que queria realmente que, ao enviá-lo nessa missão, talvez ele lhe estivesse prestando um favor. Então olhou para sua esposa. Ela olhava sorridente para ele, como ele esperara. Conseguira o que queria. Ele sorriu de volta para ela.

Causou uma certa surpresa, um pouco depois, quando ele se levantou novamente para falar. Talvez fosse homenagear alguém. Todos ouviram educadamente.

—Tenho mais um comunicado a fazer. E bem auspicioso. — Olhou em volta lentamente para que todos soubessem que a felicidade era um dever.

— Como sabem, tenho tido muita sorte em ter a companhia da minha amada esposa por tantos anos. — Inclinou a cabeça em direção a ela e seguiu-se um murmúrio de concordância não inteiramente sincero. — Contudo — prosseguiu —, é costume entre nós, de tempos em tempos, ter uma esposa a mais. — Silêncio mortal. — Portanto, além de manter minha querida esposa, decidi me casar novamente.

Ouviu-se um ofegar. Todos os olhos voltaram-se para a rainha, que parecia atordoada, como se tivesse sido atingida por uma pedra. Os maridos, que conheciam os modos tirânicos da rainha, olharam uns para os outros. Algumas esposas ficaram chocadas. Contudo, não foram poucos os que, num momento ou noutro, haviam sofrido nas mãos da rainha. E em pouco tempo, por todo o salão, como neblina condensando em gotículas nas folhas das árvores, um pensamento comum se formava: ela também pagaria caro.

Mas quem era a noiva? Com um gesto do rei, todos agora viram uma alta figura com longos bigodes se aproximar, acompanhado por uma bela moça que, ainda há pouco, servia a cerveja e o hidromel. As pessoas se entreolharam. O que significava aquilo?

— Deirdre, filha de Fergus, filho de Fergus, de Dubh Linn — anunciou o rei. E, sorrindo para Deirdre, puxou Fergus para perto e colocou o braço em volta do homem mais velho, e então o chefe, que agora parecia feliz como se tivesse derrotado sozinho um exército, viu-se agarrado, pelo seu majestoso genro, num aperto que parecia com o de um torniquete.

Foi Goibniu, enquanto os presentes ainda ordenavam seus pensamentos, que rapidamente se pôs de pé, levantou a caneca e gritou: “Vida longa, boa saúde, ao nosso rei e a Deirdre.” Diante do que os presentes, após constatarem em que direção soprava o vento, aquiesceram com um cordial bramido.

Debaixo de suas bastas sobrancelhas, o rei supremo observava todo mundo. Ele podia ter se divorciado da rainha. O divórcio era comum e fácil na ilha ocidental. Isso, porém, ofenderia a família dela, que era importante, ao passo que, escolhendo uma outra esposa, ele simplesmente diminuía a importância da rainha. Foi um golpe de mestre. Qualquer homem na ilha podia ter uma outra esposa, mas um rei precisava ter cuidado. Se escolhesse a filha de um grande chefe, ofenderia todos os demais. Podia ter concubinas, é claro, mas essa não era a intenção dele. Casamento era um equilíbrio de poder, gostasse ou não do fato. Ele tivera necessidade de rebaixar a rainha e o fizera. A escolha fora inteligente porque a jovem era nobre e parecia uma princesa, mas seu pai não tinha a menor importância. Senhor de um pântano, uma terra de ninguém, um vau deserto.

O ex-futuro marido em Ulster não causaria problemas. Ele enviaria um dos seus homens para ofertar um generoso presente ao sujeito. O homem de Ulster entenderia: um rei supremo tinha a prioridade. Quanto a Goibniu, o rei já recompensara secretamente o astuto ferreiro pela sua perda de gratificação no casamento arranjado. Portanto, todo mundo que precisava estar feliz estava feliz; exceto talvez Conall e a jovem.

— A festa de casamento será amanhã à noite — anunciou.

Estava escuro naquela noite; as estrelas tinham escondido seus rostos atrás das nuvens. Nem sequer um ponto infinitesimal de luz se mostrava no céu para ajudar Deirdre, enquanto ela tateava o caminho através do negrume que, rastejando ali perto, parecia porejar sobre ela, sufocante em seu desvelo.

Algumas vezes ela sentia as coberturas de couro de boi das carroças e de outros abrigos provisórios que pontilhavam o terreno; por várias vezes perturbou corpos adormecidos envoltos em suas capas. A toda a volta ouvia roncos ou outros sussurros mais íntimos. Seu pai estava no salão, deitado e dormindo satisfeito junto com outros cinqüenta. Mas ela não suportou continuar ali, e por isso o deixou, seguiu além das tochas desvanecentes e começou a perambular na direção do local onde a carroça deles devia estar com seus dois irmãos mais novos. Era estranho que, nesse momento de crise, ela fosse procurar o consolo de seus dois corpos provavelmente bêbados; mas pelo menos eram a família dela. Bem ou mal, era alguma coisa. Uma última noite com a família.

E depois? Casar-se com o rei. Ela não culpou o pai. Nada havia que ele pudesse fazer a respeito. Nem mesmo o culpava por estar tão contente. Era natural. E como poderia dizer ao pai que, ao ficar de frente para o rei, ela nada sentira além de um horror físico? Não era o fato de que o rei tinha idade para ser seu pai. Homens mais velhos podiam ser atraentes. Mas seu rosto moreno de olhos injetados, o corpo volumoso, as mãos que, para ela, pareciam terríveis patas cabeludas, tudo a enchia de repugnância. Teria mesmo de oferecer seu corpo a ele na noite seguinte? Seria esse o único amor que conheceria, ano após ano, até ele morrer? Ou ela morrer? Fora necessário todo o autocontrole que ela possuía, diante de toda aquela gente, para não tremer abertamente. Mesmo o homem de Ulster, pensara amargamente, não teria sido tão ruim. Ele não lhe causara repulsa. Provavelmente até poderia aprender a amá-lo.

E Conall? O que estaria planejando para lhe dizer naquela manhã? Será que decidira, após esperar tanto tempo, pedi-la finalmente em casamento? A idéia era tão dolorosa que ela mal conseguia suportá-la. Inútil. Tarde demais.

Agora, apesar da escuridão à sua volta, ela pôde distinguir a forma da carroça deles. Avançou cautelosamente. Alcançou-a. Procurou ouvir o som dos roncos dos irmãos. Começou a levantar a cobertura de couro da traseira.

E gelou, quando uma mão agarrou seu braço.

— Passeando? — A voz era um leve sibilo. Ela arfou e tentou se soltar, mas o aperto em seu braço era forte demais. — Eu estava à sua espera. — Dessa vez, a voz soou como um rugido. Ela ainda não tinha certeza de quem a agarrava tão firmemente. Somente com as palavras seguintes ela deu-se conta. — Você pensa que pode me desafiar? Era a rainha.

— Não — ela gaguejou. Em sua infelicidade, ela esquecera da rainha. — Não foi escolha minha — disse roucamente.

— Pequena idiota. — Ela podia sentir o hálito da rainha em sua face. Cheirava a cerveja choca. — Acha que eu vou deixar você viver? Fale docemente agora. Acha?

— Eu... — Deirdre queria dizer algo, mas as palavras não saíram.

— Veneno, afogamento, um acidente... — prosseguiu o terrível sibilo. — É fácil de se providenciar. Se você se casar com o rei, mocinha, eu lhe prometo que não viverá um mês. Está entendendo? — O aperto no braço agora era tão forte que tudo o que Deirdre conseguia fazer era não gritar.

— O que posso fazer? — Seu sussurro foi quase uma lamúria.

— Eu lhe direi. — A rainha pressionou os lábios no ouvido dela. — Fuja, jovem Deirdre. Fuja para poupar sua vida. Fuja de Uisnech. Fuja de Dubh Linn. Vá para um lugar onde ninguém consiga encontrá-la. Corra esta noite e não pare de correr. Pois, se o rei a encontrar, ele a trará de volta; e, se ele fizer isso, eu tirarei a sua vida. Fuja.

O aperto foi subitamente afrouxado. Seguiu-se um farfalhar; então a rainha sumiu.

Deirdre respirava com dificuldade. Tremia violentamente. Queria correr, para algum lugar, qualquer lugar, um lugar seguro. Não adiantava recorrer aos irmãos ou ao pai adormecido. Começou a se movimentar, apressada, aos tropeções, quase correndo, praticamente sem saber para onde, até que, na escuridão, encontrou um caminho que parecia levar a algum lugar. O caminho subia. Em seguida, sentiu o doce aroma de capim alto. E então, acima dela, um punhado de estrelas irrompeu por entre as nuvens e ela percebeu que havia escalado a Colina de Uisnech.

Conall estava sentado com as costas apoiadas na enorme pedra pentagonal e olhava inexpressivo a escuridão adiante do cume de Uisnech. Seu ânimo era tão negro quanto a noite.

Primeiro, aquele anúncio da incursão para confisco do gado. Era a intenção por trás do fato que o enfurecia. Em vez de falar com ele antecipadamente, como seu tio prometera a Larine, ele fizera um pronunciamento público que deixou Conall numa posição difícil. Qualquer argumentação seria agora um desafio ao rei supremo. Seu tio pretendera levar a melhor sobre ele, usá-lo, tratá-lo com cínico desprezo. Ele o odiava por isso.

Contudo, até mesmo isso não era nada comparado ao choque do segundo anúncio. Deirdre sumiu. Naquele último momento, após meses de dificuldade, de agonia, seu amor tornou-se subitamente impossível. Ela pertencia ao rei supremo. Ela era inalcançável. Era evidente que não queria seu tio. Um rápido olhar para o seu rosto lhe dissera isso.

Ao considerar o terrível fato de que ela jamais poderia ser dele, Conall vivenciara uma nova e intensa emoção. Era como se suas dúvidas jamais tivessem existido. Deirdre. Ele mal conseguia afastar os olhos dela. Todo o resto daquela tarde, sempre que Deirdre se encontrava no salão, ele se pegava observando cada gesto seu. Ela, de sua parte, não olhara para ele. Como pôde? Se bem que, uma vez, ao se virar para sair, ele achou que a vira olhando de relance em sua direção. Ela ainda tentaria se encontrar com ele ao amanhecer? Provavelmente não. O que eles poderiam dizer um ao outro? Ele não tinha certeza. Mas, mesmo após ter deixado o banquete, a sensação da presença dela permanecera com ele, como uma sombra.

Então, atrás da pedra, ele ouviu um leve ruído e uma sombra aproximou-se e desabou para descansar do outro lado da pedra, de tal modo que, se ele quisesse, poderia esticar a mão e tocá-la; e, a seguir, a sombra começou a soluçar baixinho, mas antes, numa voz que ele reconheceu, ela murmurou: “Ela vai me matar.” E então, ao dar-se conta de quem era, e tentando não assustá-la, ele sussurrou: “Deirdre.”

Não demorou muito e ele estava envolvendo-a em seus braços. E logo ela lhe contou sobre o encontro com a rainha.

— Diga-me, Conall, o que devo fazer? — bradou. — Como posso fugir, e para onde fugiria, com o rei à minha procura, e eu sozinha no mundo? — Então, chorosa: — Ela quer mesmo me matar? Diga-me que não é verdade.

Mas Conall ficou calado, pois ele conhecia a rainha.

Por algum tempo permaneceram ali, ela tremendo em seus braços, enquanto ele, também temendo por Deirdre, refletia sobre as impossibilidades de sua própria vida. Até, finalmente, ele tomar uma decisão. Assim que a tomou, sentiu um novo e imenso fervor em seu coração e uma sensação de grande júbilo que parecia encher seu mundo com uma luz visionária. Finalmente, pensou ele aliviado, finalmente sabia o que devia fazer.

— Fugiremos juntos — disse então. — Se preciso, até o fim do mundo.

Finbarr esperava nervosamente enquanto Fergus hesitava.

— E então? — O rei cravou no homem de Dubh Linn um olhar inflexível. A resposta à primeira pergunta — Ele sabia algo sobre o plano de sua filha de

fugir? — fora fácil. Não sabia. Aliás, Fergus ficara revoltado, isto ficara evidente. Mas ele sabia que Conall estava cortejando Deirdre? Fergus concluiu que a franqueza seria a melhor política.

— Teria sido ótimo para mim — confessou —, mas era difícil dizer se ele via isso seriamente. Nunca veio atrás dela — explicou.

Todos agora se voltaram para Finbarr: o rei, a rainha, os dois chefes que tinham sido convocados ao salão de festa naquela manhã. Então Finbarr fez a única coisa sensata. Contou-lhes o que sabia sobre os sentimentos de Conall e como ele mesmo planejara para que Deirdre se encontrasse com Conall no banquete do dia anterior. Curvando respeitosamente a cabeça diante do rei — e tentando não olhar para a rainha —, ele acrescentou:

— Na ocasião, eu não tinha conhecimento de vosso interesse por ela. — Para seu alívio, o rei aceitou a explicação com um breve assentir.

— Está claro que foi com Conall que a jovem fugiu — concluiu o rei. Ninguém falou. Dado o insulto a seu orgulho e à sua autoridade, ponderou

Finbarr, era de se admirar a calma do rei. Mas também parecia pensativo.

— Estou pensando — disse ele baixinho — se pode haver algum outro motivo que os levou a fugir.

Todos se entreolharam. Ninguém sabia. O rosto da rainha estava impassível. Então ela se pronunciou:

— E o touro?

— Ah. O touro. — O rei olhou em volta. — Finbarr irá pegá-lo. — Deu a Finbarr um olhar frio. — E trate de ser bem-sucedido — acrescentou.

Finbarr novamente curvou a cabeça. A mensagem era clara. O rei aceitara o fato de ele não ser diretamente o culpado e até mesmo estava lhe dando uma chance de se destacar. Se, porém, ele fracassasse em levar ao rei o que ele queria, poderia esperar o fim de todos os favores.

— E quanto aos fugitivos? — um dos chefes perguntou.

— Levem cinqüenta homens — respondeu o rei brevemente — e os encontrem. Tragam a jovem de volta.

— E Conall?

O rei olhou-o, surpreso.

— Mate-o — disse ele.

 

                               Tara

A primeira noite fora generosa com eles. Haviam pegado duas velozes montarias robustas e dois cavalos de carga. Prepararam-se às pressas; Conall não apanhara sua espada ou lança, apenas uma faca de caça; levava também uma pequena barra de prata oculta em seu cinto. Era noite alta quando deixaram o acampamento onde todos estavam dormindo. Provavelmente foi muito depois do amanhecer que alguém dera pela ausência deles. E embora, sem dúvida, os seus perseguidores fossem se deslocar com rapidez, estes não saberiam que direção os dois haviam tomado.

Que caminho deviam seguir? Acima, penetrando nos ermos de Connacht? Até Ulster, onde poderiam conseguir um barco e atravessar para Alba? Não, decidiu Conall: essa seria a primeira coisa em que o rei pensaria; em poucos dias, teria espiões nas vigias de cada porto. Se quisessem escapar atravessando o mar, o melhor seria esperar. Então para onde conseguiriam escapar do longo braço do rei supremo?

— Nossa melhor chance fica no sul — disse a ela. — Em Munster. — O vasto e adorável litoral do sudoeste, com suas inúmeras colinas, enseadas e ilhas, fornecia infindáveis oportunidades de esconderijo, como também ficava menos sob o controle do rei supremo do que qualquer outra parte da ilha.

Por toda a primeira noite eles tomaram o caminho em direção ao sul. A região era plana, a mata freqüentemente interrompida por um pasto a céu aberto.

Quando rompeu a manhã, viram uma paisagem de pântanos vazios em volta deles e continuaram cautelosamente por mais um pouco, passando a vau por um pequeno rio, até atingirem um pedaço de solo seco, onde descansaram. Já era início da tarde, quando Deirdre acordou e encontrou Conall de pé ao seu lado. —Já fiz um reconhecimento do terreno — disse-lhe. — Temos de continuar em frente. Durante toda a tarde cavalgaram cautelosamente. As principais trilhas da ilha normalmente eram transitáveis. Em muitos lugares, a vegetação rasteira ao lado deles era tão densa que em pouco tempo poderiam encontrar um esconderijo; mas isso significava que as trilhas eram os únicos meios por onde poderiam seguir. No entanto, mesmo nas áreas menos povoadas, sempre havia o risco de encontrarem alguém na estrada. Em uma ocasião, chegaram a um urzal ondulante, onde encontraram uma cabana de pastor vazia. Depois, descobrindo que havia uma fazenda à frente, deram uma volta demorada para evitar serem vistos; mas os galhos que açoitavam seus rostos tornavam tão lenta a viagem que perderam um tempo valioso. Corria a metade da tarde quando chegaram ao topo de um espinhaço e Conall fez uma pausa.

— Ali. — Apontou em direção ao sul. E, a distância, Deirdre pôde apenas distinguir uma comprida cadeia de montanhas com densa vegetação se erguendo da planície. — As montanhas Slieve Bloom — explicou ele. — Se conseguirmos alcançá-las amanhã, sem sermos vistos, será difícil nos encontrarem. — E estavam bem perto delas, quando, ao cair da noite, envolveram-se em suas capas e deitaram sob as estrelas. Deirdre, porém, ficou acordada por algum tempo e, quando adormeceu, seu sono foi agitado. Duas vezes durante a noite ela pensou ter ouvido o distante uivar de lobos.

Deirdre acordou ao primeiro cinzento vislumbre da alvorada e sentiu um arrepio. Uma brisa fria e úmida surgira de repente. Conall já estava acordado e acenou com a cabeça para ela.

— Não vai demorar a chover. Isso é bom, pois temos que atravessar um pedaço de terreno a céu aberto.

A chuva não era forte, mas persistiu por toda a manhã, ocultando-os enquanto seguiam uma trilha que levava através de um capinzal e um urzal a céu aberto até, perto da metade do dia, começarem a subir uma longa encosta. Árvores surgiram de ambos os lados, a trilha começou a serpentear e Deirdre percebeu aliviada que haviam chegado à segurança das montanhas. Logo depois, a chuva começou a esmorecer e, dos ocasionais afloramentos, ela podia vislumbrar magníficas cenas da paisagem rural se estendendo lá embaixo. Pararam e ela descobriu que estava com muita fome. Trouxera pão e carne, quando partiram. Ainda restava um pouco de cada. Agora, sentados perto de um pequeno riacho da montanha, comeram o resto da carne e beberam água do riacho, que tinha um sabor doce.

— Daqui — disse Conall —, podemos seguir as trilhas da floresta e ir até Munster.

— E permita-me perguntar: o que iremos comer? — indagou ela.

— Eu vi uma lebre. — Sorriu aflito. — Avelãs nos sustentarão. Há peixes nos rios e veados nos bosques. Posso ir até uma casa, dizer que sou um pobre viajante e pedir um pouco de pão.

— Nesse caso, é melhor não usar essa capa — disse ela rindo. — Nem mesmo ser visto com ela — acrescentou mais seriamente. — É a capa de um príncipe.

E quando Conall olhou para sua capa, toda feita de caros materiais, percebeu que ela tinha razão.

— Como sou idiota... — exclamou ele. —Atravessar o campo com uma coisa desta. — Sacudiu a cabeça, foi até um dos cavalos de carga e pegou uma machadinha. Em seguida, afastou algumas folhas de um local sem vegetação atrás de uma árvore e começou a cavar um buraco raso. Não demorou muito para ter cavado uma profundidade boa o bastante para receber a capa, cobriu-a e voltou a espalhar novamente as folhas sobre o local. Satisfeito com seu trabalho, retornou, devolveu a machadinha ao seu lugar e deu um sorriso para ela.

— Quer dizer então que enterrou suas roupas elegantes, não foi? — Ela retribuiu seu sorriso.

— Sim. — Subitamente, porém, o sorriso deixou seu rosto e ele pareceu preocupado.

— O que foi? — quis saber ela.

— Nada — respondeu. — Nada importante. Vamos prosseguir? Então ela se lembrou das três geissi sobre as quais seu pai lhe contara.

Conall não morreria antes de:

Deitar suas próprias roupas na terra. Atravessar o mar durante o nascer do sol. Chegar a Tara em meio a uma névoa negra.

Ele acabara de realizar a primeira.

Ela começou, um pouco insegura, a dizer algo. Mas ele já cavalgava à frente.

Apenas uma coisa intrigava Deirdre. Ele ainda não tentara aproveitar-se dela. Estavam viajando, é claro: as circunstâncias não eram nem um pouco convenientes. Mas também nem chegara a tocá-la. Ela supunha que ele o faria no momento oportuno. Enquanto isso, não tinha certeza se devia ou não fazer algo para incentivá-lo. Tentou segurar seu braço, ou ficar parada de costas para ele, à espera de que a abraçasse. Tentou ficar cara a cara, esperando ser beijada. Tudo que conseguiu foi um sorriso.

Lembrou-se de que, certa vez, sua mãe dissera: “Com um homem, tudo se resolve com um pouco de tempo e uma boa refeição.” Por isso, ficou duplamente esperançosa quando, ao seguirem ao longo das trilhas altas das montanhas Slieve Bloom, Conall lhe disse:

— Amanhã, irei atrás de comida.

Na manhã seguinte, deixando o resto do pão para ela, ele partiu bem cedo, com a promessa de retornar à tardinha. O dia transcorreu agradavelmente. O tempo estava excelente. Por uma abertura entre as árvores, ela podia desfrutar uma vista esplendorosa. Afora o gorjeio dos pássaros, estava silencioso. Nem uma alma se aproximava. O sol já mergulhava no horizonte quando Conall apareceu. Carregava um saco contendo pão, bolos de aveia e outras provisões. Parecia satisfeito consigo mesmo.

— Consegui comida numa casa—explicou. — Falei que era um mensageiro indo ao rei de Leinster.

Comeram bem naquela noite. Conall acendeu uma pequena fogueira. Quando ficou pronta, Deirdre sentou-se satisfeita com as costas ao lado dela. A luz da fogueira, sabia, brincava em seu rosto. Sorriu para ele. Mas Conall apenas retribuiu o sorriso, bocejou, comentou que fora um longo dia e, envolvendo-se em um cobertor de lã, rolou para o lado e dormiu.

Ele não lhe contara sobre a mensagem que havia enviado.

Tivera sorte de encontrar um viajante na estrada. Havia viajantes na ilha, claro, como havia na maior parte do mundo: mercadores, mensageiros, homens santos, artistas. Estes últimos em particular, no mundo celta, estavam sempre perambulando. Músicos, dançarinos, bardos. Ele supunha que fosse da natureza deles. Às vezes, paravam numa fazenda para pernoitar e entretiam o pessoal em troca de comida e alojamento. Na corte de um grande chefe, porém, eram bem recompensados.

Ele avistou o homem a distância. Estava a pé, caminhando pela trilha da mata com um modo de andar tranqüilo e balouçante. Após esconder seu cavalo no meio das árvores, Conall foi na direção dele.

O viajante era um bardo. Entabularam facilmente uma conversa, e Conall era capaz de exibir um tal conhecimento de poesia que o estranho rapidamente o tomou por outro bardo como ele mesmo. Conall considerou o homem um bom praticante de seu ofício, mas não demorou muito para descobrir que o bardo estava deixando Munster para fugir de algum tipo de encrenca. Portanto, quando Conall sugeriu que talvez pudesse ajudar o seu novo conhecido a conseguir emprego na corte do rei supremo, não ficou surpreso ao ver os olhos do sujeito se iluminarem.

— Você precisa ir a Uisnech, enquanto o rei ainda está lá — disse-lhe. — Tenho um amigo, um druida chamado Larine. Se procurá-lo e lhe disser que mandei você, talvez ele possa ajudá-lo. Mas tenho inimigos, portanto não deve dizer a ninguém que o mandei. Vá direto a Larine.

— Mas como ele saberá que foi você que me mandou? — perguntou.

— Eu lhe darei um sinal — respondeu Conall. E, após quebrar um pequeno galho de uma árvore próxima, aparou-o com uma faca e, com todo o cuidado, gravou símbolos em ogamo. Depois entregou-o a ele.

— Mostre-lhe isto e fale que eu lhe disse que ele ia ajudá-lo.

— É o que farei — prometeu o homem, retomando seu caminho.

O que Conall escrevera no graveto era uma solicitação. Acabara de pedir a Larine que viesse encontrá-lo. Este precisava levar uma mensagem para o rei.

Nos dias subseqüentes, foram às vezes em direção ao sul, às vezes em direção a oeste, num furta-passo despreocupado. Apearam para se movimentar cautelosamente e passar por algumas casas dispersas, antes de encontrar novamente terreno alto e mata. Também passaram a utilizar um novo método de viagem.

Foi seu encontro com o bardo que dera a idéia a Conall. Cada dia, ele explorava O caminho à frente, depois guiava Deirdre adiante até um lugar que julgava seguro. Então, avançando sozinho, viajava até avistar uma casa. Ele agora tinha uma barba de dias. Sua camisa não estava tão limpa. Caminhando com uma ligeira inclinação à frente, fazia-se parecer mais velho. Sempre tendo o cuidado de chegar a pé, não tinha dificuldade de se fazer passar por um bardo e obter comida e abrigo para a noite. De manhã, pedia um pouco de comida a mais para sua viagem, e esta o levava de volta a Deirdre. Isso não apenas resolvia o problema de alimentá-la como também permitia que ele se mantivesse informado das notícias que corriam pela zona rural. Até então não ouvira nenhuma palavra sobre sua fuga, nem qualquer sinal de um grupo de busca, Esse método de viajar também tinha outra vantagem para Conall. Ele o mantinha longe de Deirdre à noite.

Quando um homem quer se esquivar de uma mulher, ou uma mulher de um homem, o método mais eficaz de se reprimir está em providenciar as condições. O método de viajar em segurança que Conall planejara era tão plenamente lógico que Deirdre mal podia questioná-lo. Em algumas noites, Conall ficava com ela, mas quando o fazia estava cansado; e assim, embora Deirdre continuasse intrigada, achava que ele pretendia deixar a consumação do amor deles para quando chegassem a um lugar onde poderiam permanecer em segurança, e que ela apenas precisava ser paciente.

Ele dissera a Larine para encontrá-lo dentro de quinze dias. O bardo levaria três, talvez cinco dias, para encontrar o druida; e outros três para este chegar ao local de encontro. Concedendo uma generosa margem de erro, quinze dias pareceram razoáveis. Ele escolhera o lugar do encontro com todo o cuidado. Ficava a céu aberto, onde podia observar as tentativas de aproximação. Para alcançá-lo vindo do norte, o druida teria de tomar um caminho sinuoso através do pântano. Ele lhe dissera que viesse sozinho, mas, mesmo se seu amigo fosse seguido, Conall poderia escapar antes que qualquer perseguidor se aproximasse. O único problema que ainda não resolvera era o que fazer com Deirdre enquanto ele estivesse lá. Talvez encontrasse uma casa onde ela pudesse esperá-lo; mas isso era arriscado. O mais aconselhável seria encontrar um lugar seguro onde poderia deixá-la com provisões para alguns dias. Até lá, ele não queria ficar muito longe do local do encontro. Era por essa razão que a viagem deles seguia uma grande curva para oeste, em vez de precipitar-se exatamente para o sul em direção a Munster.

Sua escolha de Larine fora natural. Se havia uma pessoa em quem ele podia confiar, e a quem o rei talvez pudesse ouvir, era o druida. era Larine quem deveria transmitir as importantes mensagens: primeira, que eles tinham fugido por causa da ameaça da rainha. E segunda, que ele não tocara na jovem.

Fora no primeiro dia, enquanto procuravam as montanhas Slieve Bloom, que ele se dera conta do quanto sua abstinência era importante.

Ele soubera, já naquela noite escura quando partiram, que, assim que livrasse Deirdre do perigo, teria de enviar ao tio alguma explicação. Precisava contar-lhe da ameaça da rainha. Tinha bastante confiança que seu tio saberia que ele falava a verdade. Levara Deirdre apenas para salvar sua vida, pois se a rainha estava resolvida a matá-la, mais cedo ou mais tarde daria um jeito de fazê-lo, e certamente seu tio não ia querer isso. Talvez, por intermédio de Larine, pudessem chegar a um entendimento. Após uma perseguição simbólica, seu tio talvez até o deixasse escapar discretamente através do mar, e ficaria por isso mesmo.

Foi durante a manhã que ele percebeu outras possibilidades, mais complexas. E se o tio mandasse a moça embora, para sua própria segurança, mas exigisse a volta dele? Ou poderia se divorciar da rainha e mandar buscar Deirdre. Ambas improváveis, mas possíveis. Claro, lembrou a si mesmo, não poderia admitir nenhuma das duas. Afinal, ele amava Deirdre e sabia que ela não suportaria o rei.

Mas, ao mesmo tempo, quando ficou parado com Deirdre olhando as montanhas, a implicação ocorreu-lhe subitamente. Para a negociação ter alguma chance de ser bem-sucedida, ele não podia tocar nela. Até então, Deirdre continuava sendo a mulher do rei, e sua fuga com ela fora para sua proteção. A não ser que pudesse jurar a Larine, com o tipo mais solene de um juramento druídico, que a moça permanecia intocada, todas as explicações sobre sua conduta cairiam por terra.

Era por isso, portanto, pelo menos por enquanto, que ele evitava contato com a mulher que amava. Não era algo que ele achasse que podia explicar a ela.

Larine leu a mensagem no graveto. Era sucinta: um nome, um lugar, uma data e a palavra “sozinho”. Então voltou a atenção ao mensageiro. Não seria difícil encontrar um emprego para o sujeito. Ainda havia três ou quatro chefes em Uisnech que, diante de um pedido de Larine, fariam uma experiência com aquele bardo e lhe pagariam alguma coisa. Se fosse bom, a notícia correria rapidamente.

— Eu posso ajudá-lo – dissei-lhe.

A mensagem de Conall, porém, era mais difícil. As festividades tinham prosseguido, como deveriam, mas havia tensão no ar. O rei supremo estava aparentemente calmo, mas, para aqueles como Larine que o conheciam, ele nunca parecera tão furioso. E, portanto, perigoso.

Embora tivesse a proteção de ser um druida, ele ousaria realizar tal incumbência para o fugitivo? Se Conall queria encontrá-lo, talvez fosse para pedir seu conselho, mas também poderia ser para transmitir uma mensagem. Será que ele iria querer retornar e dizer ao rei que fora se encontrar com Conall pelas suas costas? Sua amizade com Conall valeria tanto assim?

Meditou muito e arduamente durante aquele dia antes de decidir que iria. Era uma alma corajosa.

Já havia três dias que descansavam à beira d'água. Era um lugar tranqüilo, um laguinho num declive da montanha, alimentado por um riacho, do qual, debaixo de um freixo na extremidade mais distante, um filete de água límpida escorria por uma aba de pedra antes de descer até uma sinuosa garganta mais abaixo. As encostas por toda a volta eram densamente arborizadas. Ninguém ia ali. Conall construíra um abrigo. Eles pescaram no lago, conseguiram truta — pequena, mas boa de comer. No primeiro dia que descansaram ali, Conall desaparecera, retornando no fim da manhã seguinte com bastantes suprimentos e lenha que cortara para uma fogueira. Deirdre, nesse meio tempo, lavara as roupas deles no riacho.

O tempo vinha se tornando quente havia vários dias. Acima, o céu era azul-claro. A leve brisa da manhã ficava cada vez mais fraca. Conall aparava uma vara para lancear um peixe quando ela lhe perguntou por acaso se ele ia descer ao vale naquela noite.

— Não — respondeu rapidamente. — Temos comida suficiente. Mas, amanhã —, acrescentou — deverei ficar fora vários dias. — Logo depois, vadeou o lago e ficou a postos com sua lança, à espera de um peixe.

Então ela soube o que tinha de fazer. Não sabia por quê, mas sabia que precisava ser naquele dia.

Era início da tarde quando comeram. Ela assara na fogueira os dois peixes que ele havia apanhado, o que enviou para o ar parado pequenas colunas de fumaça azul-acinzentadas. Além do peixe, ela cozinhara feijões e lentilhas.

No dia anterior, ele trouxera uma jarra de cerveja clara, e eles tomaram direto dela. Para encerrar, Deirdre fizera bolos de aveia adoçados com mel. E foi quando ele estava deitado de costas, satisfeito, após a refeição, que ela comentou docemente:

— Sorte minha nós termos fugido, Conall. Você salvou a minha vida.

— Talvez seja verdade — concordou ele, encarando o céu. — A rainha é uma mulher perigosa.

— Mesmo sem ela, eu não voltaria para o rei. Era você quem eu queria.

— No entanto — inclinou a cabeça para olhar para ela —, se os homens do rei nos pegarem, eles talvez me matem. Então você terá de voltar, sabe disso. — Ele sorriu. — Talvez o rei se divorcie da rainha e a mande embora. É possível. Então, você estaria em segurança.

Ela, porém, apenas balançou a cabeça.

— O rei nunca me possuirá, Conall. Eu me mataria. — Ela disse isso com tanta simplicidade que ele supôs que devia ser verdade.

— Oh — exclamou, e virou a cabeça de volta para fitar o céu.

Depois disso, permaneceram em silêncio, deitados ao sol. Agora não havia uma brisa. A pequena coluna de fumaça da fogueira não se dispersava, subia reta até ficar invisível ao se dissolver no azul acima. Havia silêncio em volta do lago. A alguma distância dali, Deirdre avistou um pássaro num galho pendente, sua plumagem reluzindo como ouro ao sol; mas se emitia algum som, esse som, também, estava detido, como se a própria passagem do tempo tivesse cessado no silêncio corrente da tarde.

Então, sabendo o que devia fazer, ela se levantou lentamente, enquanto ele permanecia onde estava, ainda fitando o céu, foi até a beira do lago e, despindo as vestes e as roupas de baixo, entrou rapidamente na formigante água gelada e nadou até o meio, onde conseguia boiar.

Tendo ouvido o som, mas sem saber que ela estava nua, Conall olhou para o lago e, após algum tempo, sentou-se para observar Deirdre. Ela permaneceu onde estava, sem fazer nenhuma sugestão para que ele a acompanhasse, mas sorrindo mansamente para Conall, enquanto este continuava a olhar e a luz dourada a brincar nas pequenas moradas que ela fazia à sua volta. Ficaram assim, os dois, por algum tempo.

Ela nadou algumas braçadas até a parte rasa e, erguendo-se lentamente, com a água pingando dos cabelos e seios, caminhou na direção dele.

Então Conall, com um leve arfar, pôs-se de pé e a envolveu em seus braços.

Por três dias Larine esperou no local do encontro. Mas teve apenas os pássaros, pairando atentamente acima, por companhia. Conall não apareceu. E, após esperar mais dois dias, só para ter certeza, o druida retornou, pesarosamente.

Apesar da tristeza pelo desaparecimento do amigo, Finbarr não podia evitar de se sentir cheio de alegria, quando, com Cuchulainn saltitando atrás dele, aproximou-se da montanha de Uisnech.

Ele trazia o touro negro. Era certamente um animal magnífico. Enquanto poucas cabeças do peludo gado insular mal chegavam à cintura de um homem, os ombros do touro negro se nivelavam aos de Finbarr. Seus olhos vermelhos e irados brilhavam na direção dele. com ambos os braços estendidos, ele só conseguia tocar nas pontas dos imensos chifres da criatura. Sua pelagem era preto-azeviche, sua imensa crina emaranhada, tão pesada quanto a cabeça de um homem.

A incursão fora executada com perícia. Escondidos, ele e seus homens passaram dois dias observando até terem certeza de que um dos empregados, que repetidamente sumia no meio do mato, devia ser quem cuidava do touro. Seguindo-o, no terceiro dia, encontraram a enorme besta, habilmente escondida num pequeno cercado onde o sujeito enchia uma gamela para alimentá-la.

— Precisamos de você para conduzir o touro — disse-lhe Finbarr.

— E se eu me recusar? — questionou o homem.

— Eu cortarei sua cabeça — retrucou Finbarr, prazerosamente. Portanto, o homem tinha ido.

Seguindo uma rota por meios indiretos, eles haviam tirado o touro em segurança de Connacht e, enquanto seguiam na direção de Uisnech, Finbarr mandou de volta um dos seus homens com a seguinte mensagem para o proprietário:

“O rei supremo lamentou muito por você não estar presente quando ele foi cobrar o imposto, mas agradece pelo excelente touro que, em vez disso, mandou para ele.”

A chegada deles não poderia ter sido mais animadora. Ainda havia um grande número de chefes que permanecia com o rei supremo e sua comitiva em Uisnech. Uma multidão e tanto, inclusive muitos druidas, se enfileirou no caminho enquanto seguiam para o alojamento do rei. Foi a rainha, porém, quem primeiro seguiu na direção deles, o rosto retorcido por sorrisos.

— O meu touro — gritou ela. E, aproximando-se, com um tom mais baixo, repetiu com satisfação: — O meu touro.

Do rei, contudo, eles tiveram uma recepção menos calorosa. Fimbarr recebeu um aceno de cabeça e um grunhido, que pareceram indicar que o sucesso de sua missão foi aceito. Mas, evidentemente, havia outros assuntos, mais importantes, na cabeça do rei.

— Conall e Deirdre foram vistos. — disse Larine a Finbarr. Sobre sua malograda viagem o druida nada disse, e ninguém soube dela. Ele ficara intrigado e um tanto magoado quando, após seu retorno, soube que, no exato momento em que esperava por ele no local do encontro, Conall fora visto, com a jovem, seguindo rumo ao sul, para Munster. Os grupos de busca continuavam fora, ele agora informava a Finbarr. — Mas ainda não há notícias deles.

Era pouco antes do pôr-do-sol quando o rei mandou chamar Finbarr. Este encontrou o rei sentado em um banco abrigado sob uma árvore. Debaixo de suas grossas sobrancelhas, o rei encarou-o pensativo.

— Você executou muito bem a sua missão. — Esperou Finbarr curvar cortesmente a cabeça. — Agora eu lhe darei outra. Mas primeiro me diga: você sabe onde Conall está?

— Não, senhor.

— Encontre-o. E traga-o de volta. — Fez uma pausa e então, com súbita ira, explodiu: — Ele era o filho da minha irmã, Finbarr. Eu só o tratei com bondade. Acha que ele tinha o direito de se comportar assim comigo? — Finbarr conseguiu apenas curvar novamente a cabeça, pois o rei dissera nada mais do que a verdade. — Ele precisa voltar, Finbarr, e então talvez me diga por que fez uma coisa dessas. Mas se ele não quiser vir, você voltará com a cabeça dele ou não voltará. Enviarei dois chefes com você. Eles já receberam suas ordens.

Para me vigiar, pensou Finbarr. Em voz alta, perguntou:

— E Deirdre?

— Ela não deve ser machucada. — O rei suspirou. — Seria uma desonra para mim se a aceitasse agora. Ela deverá ser devolvida a Dubh Linn. Pode dizer isso a ela.

— Talvez não o encontremos.

— Seus pais e seus irmãos e irmãs são pobres, Finbarr. Se for bem-sucedido nisso, prometo que eles nunca mais serão pobres. Se fracassar, serão mais pobres ainda.

— Então não tenho escolha — disse Finbarr amargurado, e saiu.

O rei observou-o, mas sem raiva. No lugar dele, refletiu, sentiria a mesma coisa. Mas reis não podem se dar ao luxo de ser sempre bondosos. Nem podem se dar ao luxo de ser inteiramente honestos.

Se Conall vier com Finbarr, os dois chefes deverão matar Conall durante a viagem. Quanto à moça, ela será devolvida a Dubh Linn. Antes de chegar lá, porém, deverá ser entregue ao seu novo amo, pois o rei já a vendera, como concubina, a Goibniu, o Ferreiro.

Não poderia ser de outro modo, pensando bem.

Lenta e cuidadosamente, eles viajavam agora, jamais se arriscando em terreno aberto em plena luz do dia.

Fora por um triz o dia em que tinham sido vistos. Tinham acabado de atravessar uma área de charneca, quando dois dos cavaleiros do rei, emergindo logo atrás, vislumbraram os dois e saíram no encalço deles. Nada lhes restara a não ser fugir. Correndo para a floresta, abandonaram a trilha e conseguiram despistar os homens do rei; mas a experiência abalara a ambos. Agora o rei saberia que estavam se escondendo em Munster. com suas inúmeras montanhas, riachos e ilhas, talvez fosse difícil encontrá-los, mas ele ficaria intranqüilo.

Foi Deirdre quem teve a idéia.

Das colinas de Munster, viajando-se na direção leste, havia florestas e trilhas em declives na maior parte do caminho até se chegar às cadeias de montanhas que se estendiam pelo litoral oriental da ilha e culminavam nas magníficas elevações das montanhas de Wicklow.

— Enquanto eles estiverem procurando em cada morro e em cada vale do sudoeste, nós poderemos seguir ali por cima — apontou. Era um blefe inteligente — retornar às margens costeiras das próprias regiões das quais eles haviam fugido — e era improvável que alguém pensasse nisso. Ela também deu outra sugestão que o surpreendeu: — Devemos deixar os cavalos e seguir a pé. — Mas ele logo percebeu também a sensatez disso. Ninguém procuraria Conall, o príncipe, a pé. Depois ela deu mais duas sugestões que o surpreenderam ainda mais.

E foi assim que, em meados de junho, ao anoitecer, um solitário druida, caminhando lentamente com um bastão e acompanhado, a poucos passos atrás, por um criado, desceu das montanhas de Wicklow e pegou a trilha em direção à travessia de Ath Cliath em Dubh Linn. Fergus e seus filhos, como Deirdre lhe dissera que estariam, estavam nos pastos distantes, com o gado. Era, porém, tarde da noite quando, margeando a alguma distância do rath, para o caso de haver cães por perto, eles atravessaram a ponte de madeira sobre os baixios do Liffey. Ao fazerem isso, Deirdre notou que as pranchas podres ainda não haviam sido trocadas. Em seguida passaram pela larga Planície das Revoadas de Pássaros.

Até então, o plano dela havia funcionado. Quando, por sua sugestão, Conall rapara a cabeça à maneira dos druidas, ela sorrira consigo mesma, pois ele parecia agora ainda mais com ele mesmo do que antes. Quando, por sua vez, ela rapou a cabeça como a de um escravo, ele caiu na gargalhada. Deirdre ficou imaginando se a perda de seu magnífico cabelo a tornaria menos atraente para ele e interferiria na atividade sexual dos dois, a qual, desde a tarde no lago, fora freqüente. Ela descobriu, poucos momentos após completar o corte, que não interferira.

Mas por que ela sugerira que procurassem um esconderijo tão perto de sua casa? Seria porque, naquele período de crise, almejava a segurança de sua infância e de sua família? Talvez. Ao passarem no escuro pelo rath de seu pai, ela sentiu uma súbita pontada de emoção; ansiou entrar sorrateiramente, sentir o cheiro familiar do lar, ver a fosca forma da taça de caveira do pai em sua prateleira. Se ao menos o orgulhoso homem relativamente velho estivesse ali, para poderem cair um nos braços do outro. Mas ele não estava e ela não podia entrar; assim, pôde apenas observar a tênue silhueta do rath ao passar por ele na escuridão. Entretanto, sua escolha de esconderijo foi também inteligente, pois ninguém jamais ia lá.

No primeiro dia, Conall deixou-a no dólmen abrigado acima do promontório. Seguiu pela praia, mas não teve sorte. No segundo dia, voltou sorrindo. Encontrara uma velha viúva que morava sozinha em uma cabana na praia. Dizendo-lhe que era um druida solitário em busca de uma maior solidão, ele lhe explicara suas necessidades e ela ficou feliz em fornecê-las: um pouco de comida, quando fosse buscá-la, e a utilização do pequeno curragh que pertencera ao marido dela, que era pescador.

Tarde da noite e sem serem vistos, Conall e Deirdre desceram até a praia e seguiram no curragh, por um mar calmo e iluminado pelas estrelas, até a pequena ilha com a pedra fendida, que ficava além do promontório, e que Deirdre adorava. Ninguém, esperava ela, os acharia ali.

 

As buscas continuaram por um ano. Espiões do rei supremo vigiavam os portos; em várias ocasiões também vigiaram secretamente Fergus e sua propriedade, para o caso de ele estar escondendo a filha; cada vez, porém, eles retornavam para relatar: “Nenhum sinal.”

E por um ano Finbarr viajou.

Dia a dia o padrão era inalterável — Finbarr, com Cuchulainn saltitando ao lado, cavalgava à frente. Os dois chefes vinham atrás. Às vezes, pegavam trilhas sinuosas; outras vezes, viajavam ao longo de uma das grandes estradas principais da ilha. Podia ser um largo caminho de gado através dos pastos da região montanhosa, uma trilha cortando a floresta, ou uma sólida ponte de madeira atravessando um pântano, mas, qualquer que fosse o terreno, os três cavaleiros abriam caminho à frente, incansáveis. Faziam perguntas em cada fazenda; interrogavam os barqueiros em cada rio. Mesmo no imenso interior árido da ilha, era difícil uma pessoa se deslocar entre os territórios tribais sem encontrar alguém. Alguém devia tê-los visto. No entanto, com exceção da vez em que foram avistados pelos homens do rei em Munster, os dois pareciam ter sumido completamente.

Era um período difícil. A perda da safra do ano anterior fora grave. Até então, não causara fome na ilha. Os chefes de cada território normalmente cuidavam disso. Ainda havia leite e carne, legumes e grãos. Eles conduziam seu povo até as áreas de pasto comunais, sabedores de que, apesar das perdas das colheitas, todos ainda podiam viver como seus distantes ancestrais antes de o plantio tornar-se uma riqueza suplementar da tribo. Mas havia privação. Aveia, pão e cerveja, também, com a ruína da cevada, tinham um estoque insuficiente. Nas fazendas, na maioria dos casos, Finbarr notou, os chefes eram implacáveis em reservar grãos para a semeadura. Ainda bem, pensou, que a terra da ilha era fértil e que os chefes tinham grande autoridade. Contudo, se as pessoas confiavam em seus chefes e estes em seus reis, então o foco de suas esperanças estava, mais do que nunca, no rei supremo e suas boas graças com os deuses.

Logo após Lughnasa, a chuva começou a cair. Não a chuva comum que se podia esperar nas quentes e úmidas regiões costeiras de Munster, mas fortes tempestades e ventos uivantes, dia após dia, sem cessar. Era evidente que, naquele ano, também, a safra seria arruinada. E ao constatar essa terrível evidência da insatisfação dos deuses, embora amasse seu amigo, Finbarr não podia deixar de imaginar se a causa não seria o fato de Conall ter humilhado o rei supremo.

Com tempo bom ou ruim, eles vasculharam o litoral e as colinas de Munster; percorreram Leinster; subiram até Ulster. Às vezes, conseguiam abrigo em uma fazenda.; às vezes, dormiam ao ar livre e escutavam os uivos dos lobos. Atravessaram as férteis terras pastoris onde grandes muros fortificados e fossos marcavam as divisões entre as terras de uma tribo e de outra; aventuraram-se nos sombrios pântanos onde as pessoas viviam em povoados brannog, ilhas artificiais de plataformas de madeira construídas sobre a água. Onde quer que perguntassem, em toda parte, a resposta era a mesma: “Não os vimos por aqui.”

Certa vez, apenas uma vez, Finbarr teve a sensação de que eles poderiam estar perto. Foi na costa oriental, logo acima da baía de Liffey. Ali, em um trecho de praia deserta, ele encontrara uma velha e perguntara se ela tinha visto algum estranho.

— Apenas o druida que vive na ilha — dissera ela.

— Ele tinha acompanhantes? — indagara Finbarr.

— Não, não tinha. Nenhum. Ele vive sozinho.

Entretanto, um instinto talvez tivesse feito com que ele fosse até o lugar, se os seus dois companheiros não o tivessem chamado: “Finbarr, vamos embora. Ele não está aqui.” E, por isso, partiram.

Finalmente, chegaram a Connacht, com suas montanhas, lagos e litoral agreste. Fizeram bem, pensou ele, em chamá-la de terra dos druidas. E, pensando no espírito solitário do seu amigo, pareceu-lhe que era ali que Conall poderia estar. E assim, por meses, procuraram, mas nem um sussurro sobre ele. Até que um dia, quando estavam parados nos imensos e íngremes despenhadeiros de Moher, observando adiante o mar bravio — no qual, em algum lugar, segundo dizem, ficam as Ilhas dos Abençoados, o descanso eterno dos espíritos dos grandes guerreiros — e Finbarr estava justamente imaginando que talvez o seu amigo tivesse morrido e ido para lá, um dos seus dois companheiros falou:

— É hora de voltar, Finbarr.

— Não posso — retrucou. — Eu não o encontrei.

— Venha com a gente — disse o outro. — Não pode fazer mais nada. E ele se deu conta de que um ano se passara desde que haviam partido.

Às vezes parecia a Conall que ele nunca fora feliz antes. Sua vida com Deirdre fora uma revelação para ambos. Não demorou muito para ela se tornar, no ato de amor, ainda mais ousada do que ele. Freqüentemente ela tomava a iniciativa, montando nele, controlando-o, ou fazendo com que ficasse imóvel enquanto explorava novas maneiras de lhe dar prazer ou excitá-lo novamente. Quando o seu corpo delgado o cingia, não era surpresa que Conall, há tanto tempo assaltado por dúvidas e tensões internas, descobrisse o que era se sentir feliz de verdade.

A vida deles na ilha corria surpreendentemente bem. As chuvas de fim de verão não os incomodaram. A fenda no rochedo fornecia igualmente proteção e esconderijo, e ali, além das pequenas angra e praia, Conall usou galhos da pequena oferta de árvores da ilha para construir uma cabana com paredes de taipa que certamente os abrigaria durante o moderado inverno. A viúva tinha prazer em fornecer comida simples, que ele podia complementar com periódicas viagens ao interior, onde, como um druida andarilho, podia conseguir suprimentos sem dificuldade. Na ilha, podia pegar peixes e também plantou feijão e ervilha. Duas outras necessidades eram enfrentadas da seguinte maneira: para coletar água para beber, ele encontrou vários lugares onde a água da chuva descia pela face do rochedo e cavou três buracos de bom tamanho que ele revestiu. Para cozinhar legumes ou carne, que às vezes conseguia obter, preparou um outro buraco, bem menor. Enchendo-o com água, ele então transferia para o buraco pedras incandescentes da fogueira, o que fazia a água ferver e a mantinha quente por algum tempo. Esses buracos de cozimento eram uma especialidade do povo da ilha e eram tão eficazes quanto simples.

Ninguém se aproximava deles. Não havia motivo para isso. O promontório próximo era deserto. No litoral principal em frente, não havia ninguém além da viúva. Um pouco mais além do litoral, havia uma ilha muito maior defronte a uma baía. Ninguém habitava a ilha, e os poucos pescadores que viviam perto da baía iam até lá apenas ocasionalmente.

Ainda que alguém pensasse em se aventurar na direção deles, Conall tomara o cuidado de dizer à velha que ele queria ficar sozinho, e ela, sem dúvida, transmitiu essa informação aos pescadores da baía. Druidas que viviam como eremitas não eram desconhecidos; e só mesmo uma pessoa imprudente arriscaria a ser alvo de uma praga rogada por um druida, por perturbá-lo se o seu desejo era ficar só.

A única coisa, por enquanto, que preocupava Conall era o fato de a ilha deles ser muito pequena. Havia uma praia para passear, um promontório coberto de capim para escalar, e algumas árvores, mas isso, e algumas poças na rocha, era tudo. Deirdre não ficava intranqüila? Surpreendentemente, parecia que não. Sua aparência era de contentamento. Várias vezes, porém, em noites de luar, ele a levava no curragh até o promontório, subiam até o cume e de lá contemplavam juntos não apenas a direção norte, para o seu pequeno refúgio, mas também o sul, através de toda a extensão da baía, passando por Dubh Linn e o estuário do Liffey até o promontório sulista e as silenciosas formas vulcânicas das montanhas de Wicklow banhadas pelo luar prateado estendendo-se pela costa.

— Pena que você não possa visitá-los — comentou ele na primeira vez, gesticulando na direção da propriedade da família dela, indistintamente visível além do estuário.

— Não importa — retrucou. — Eu tenho você. — E ele confiou que isso era verdade.

Contudo, com o passar dos meses, além de sua felicidade com Deirdre, Conall ficou surpreso em descobrir outra profunda alegria. Pois, se ele sempre havia suposto que a companhia de uma mulher, de alguma forma, interferiria nos pensamentos contemplativos que ocupavam sua mente, até então isso não demonstrara ser o caso. Aliás, muito pelo contrário. Em parte era por causa do silêncio do lugar; certamente havia o fato de ela entender instintivamente que ele precisava ser deixado sozinho com seus pensamentos; e talvez também, mais do que ele mesmo se dava conta, o fato de que agora estava livre de sua antiga identidade. Contudo, fossem quais fossem os motivos, no ritmo de sua vida ele encontrou um senso de paz, de frescor e renovação. Seu disfarce, de fato, tornara-se uma nova realidade; pois, efetivamente, se tornara um druida. Cada dia, em sua mente, ele percorria o vasto estoque de sabedoria que já possuía. Cada manhã e tarde observava o mar e escutava as ondas. E às vezes, ao perder inteiramente a noção de identidade pessoal, ele entrava em transe e, como o poeta Amairgen, recitava baixinho: “Eu sou o Vento no Mar, eu sou a Onda do Oceano.”

E o outono se tornou inverno moderado, e o inverno, primavera. Então, no final da primavera, Deirdre lhe disse que estava grávida.

Perto do solstício de verão, após o retorno de Finbarr, aparentemente haveria uma boa colheita. Por toda a ilha, nos pequenos campos das fazendas, os grãos amadureciam. O tempo era excelente. Veio o Lughnasa e, imediatamente depois, o rei supremo iniciou uma viagem por Leinster. Estava acampado perto das montanhas Slieve Bloom quando desceu a grande escuridão.

Larine sempre se lembraria de como ela começara. Ao pôr-do-sol, notara as compridas carreiras de nuvens ao longo do horizonte, mas somente quando acordou no meio da noite, ele notou que as estrelas tinham se apagado. “O amanhecer”, os homens o chamaram posteriormente, “que não amanheceu.” Por toda a manhã o céu permaneceu negro e não cinzento. Em seguida, tornou-se marrom. Depois choveu.

Não foi uma tempestade; foi um aguaceiro. Diferentemente, porém, de qualquer aguaceiro que ele já vira antes, esse durou sete dias. Cada córrego tornou-se uma torrente, cada barranco, um lago. Gansos flutuavam através dos prados; e nas plantações, transformadas em brejos barrentos, restaram apenas os talos esmagados e encharcados da colheita arruinada. O rei supremo seguiu ao norte para Ulster.

Era início de setembro quando mandou chamar Larine. O druida encontrouo calado.

— Três colheitas perdidas, Larine. — Ele sacudiu a cabeça. — É a mim que eles culpam. — Voltou a ficar em silêncio.

— Qual é o seu desejo?

— Quando Conall me envergonhou... — começou o rei gravemente, e então suspirou. — Dizem que o Dagda castiga os reis que são zombados. É verdade?

— Não sei.

— Preciso encontrá-lo, Larine. Mas não é fácil. Meus homens fracassaram. Finbarr fracassou. Nenhum druida ou filidh consegue me dizer onde ele está. — Fora uma fonte de grande alívio para o druida que o rei não tivesse morto Finbarr por seu fracasso, como ele havia ameaçado. Larine tivera a chance de interrogálos rigorosamente, em especial Finbarr, após sua volta, sobre as rotas que fizeram nas viagens e os locais onde procuraram; mas embora tivesse refletido cuidadosamente, até então não fizera qualquer juízo definitivo sobre onde seu amigo Conall poderia estar.

Desolado, o rei supremo olhou acima, por baixo de suas grossas sobrancelhas.

— Você sabe me dizer, Larine?

— Tentarei — prometeu o druida, e foi-se embora para se preparar.

Teve de esperar um ou dois dias, pois os dias no calendário dos druidas eram claramente indicados como afortunados ou desafortunados para rituais desse tipo. Contudo, assim que a ocasião se mostrou propícia, ele se preparou.

Os homens santos do mundo celta utilizavam muitos métodos para ver o futuro. “Imbas”, eram chamados: adivinhação. O salmão, dizia-se, podia conceder os dons da sabedoria e da profecia para alguns. Corvos podiam falar, se você soubesse que encantos usar e como ouvir. Até mesmo homens comuns, às vezes, podiam ouvir vozes do mar. Entretanto, o método preferido particularmente pela classe iniciada fazia uso do ato de mastigar. Alguns druidas conseguiam poderes de visão simplesmente mascando o polegar; mas isso era apenas um rápido substituto para o método adequado, que era a versão de uma das mais antigas cerimônias conhecidas pelo homem: a ingestão de um alimento sagrado.

No dia apropriado, Larine levantou-se, lavou-se cuidadosamente e colocou sua capa de druida, de penas. A seguir, passou um breve tempo em orações, tentando esvaziar a mente de qualquer coisa que pudesse interferir no recebimento de qualquer mensagem que os deuses quisessem lhe enviar. Depois foi para a pequena cabana onde, na noite anterior, deixara tudo pronto. Dois outros druidas vigiavam a entrada, para garantir que ninguém perturbasse o rito sagrado.

O interior da cabana era vazio exceto por uma mesinha e três pedestais. Num pedestal, estava a pequena estatueta do deus-sol, o Dagda; em outro, a deusa Maeve, padroeira da real Tara; e, no terceiro, Nuadu da Mão de Prata. Sobre a mesa, numa travessa de prata, havia três tiras de carne. A carne podia ser de porco, cachorro ou outro animal, e Larine escolhera a de cachorro. com um gesto de cabeça seu, os dois druidas do lado de fora fecharam a porta da entrada e, após ficar parado por poucos momentos, em uma prece silenciosa, Larine foi até a travessa. Pegando uma das tiras de carne, mascou-a cuidadosamente, mostrou-a a um dos deuses e colocou-a atrás da porta. O processo foi repetido mais duas vezes, antes de fazer uma educada mesura diante de cada deus e rezar outra prece. Em seguida, deitando-se no chão, colocou as palmas das mãos sobre as bochechas e fechou os olhos, preparado para receber a mensagem.

Havia muitas técnicas, mas o objetivo de todos os homens santos, desde os druidas do Ocidente aos xamãs da Sibéria, era sempre o mesmo: entrar num transe no qual os deuses pudessem se comunicar. Por algum tempo, Larine permaneceu imóvel. Havia silêncio. Ele esvaziou a mente. Então — ele não saberia dizer quanto tempo demorou — sentiu como se começasse a flutuar. Se havia mesmo deixado o chão, ele não fazia idéia. Isso era irrelevante. Seu corpo não importava mais. Ele era fumaça de uma fogueira, uma nuvem. Flutuava.

Quando saiu do transe, foi até a porta e bateu três vezes. Os dois druidas a abriram e ele saiu. Depois foi até o rei.

— Eu vi o lugar — anunciou. — Eles estão lá. — E descreveu a pequena ilha com sua rocha fendida. — Mas se fica na costa norte ou sul, no leste ou no oeste, eu não vi.

— Há mais alguma coisa que possa dizer?

— Vi Fergus conduzido por Nuadu da Mão de Prata caminhando ao luar através do mar para falar com Deirdre enquanto ela dormia.

— Então ele sabe onde ela está?

— Isso eu não sei. Talvez.

— Mandarei Finbarr até ele — disse o rei supremo.

Era noitinha quando Finbarr chegou a Dubh Linn. Tinha apenas seu cão e seu cocheiro por companhia.

Chegou triste, mas também com determinação em seu coração. O rei supremo deixara sua posição brutalmente clara.

—Você fracassou da outra vez, Finbarr, e não houve castigo. Desta vez haverá.

Ambos sabiam por quê. Quando ele retornou de sua demorada busca com os dois chefes, eles foram tão enfáticos em relação aos seus esforços para encontrar Conall que castigá-lo teria parecido petulância e fraqueza. Mas o caso agora era diferente. Ele foi mandado sozinho para encontrar seu amigo. Um respeitado druida descrevera o lugar onde Conall estava. O rei supremo, após três colheitas fracassadas, não podia se permitir mais qualquer fracasso.

E, verdade seja dita, após tantos meses de buscas e aborrecimentos, Finbarr começava a guardar uma certa mágoa de seu amigo.

Fergus estava em seu rath e o saudou de um modo amistoso. Entraram, e mesmo antes de ser trazida qualquer bebida, Finbarr disse ao velho, tranqüila mas firmemente.

— Fergus, sabemos que você sabe onde Deirdre está.

E, apesar de observá-lo cuidadosamente, Finbarr poderia jurar que o chefe foi sincero quando olhou tristemente para ele e retrucou:

— Eu gostaria de saber.

Finbarr, em seguida, contou-lhe da visão do druida e descreveu a ilha que Larine tinha visto. Então Fergus soube onde sua filha estava.

— Não sei que lugar é esse — disse ele.

— Eu ficarei aqui até você saber — rebateu Finbarr. Fergus hesitou, avaliando suas opções.

— Pode haver uma ilha assim, a alguma distância daqui, ao longo da costa — aventou, finalmente. — Poderemos procurá-la amanhã. — Pediu que os criados trouxessem comida e vinho; e, como Finbarr estava cansado da viagem, ao cair da noite, ele adormeceu. Depois que todos no rath estavam dormindo, Fergus levantou-se silenciosamente e saiu. Pegou uma pequena curragh de couro e colocou nas costas; por medo de acordar seu visitante, não levou um cavalo, mas desceu a pé para a ponte e atravessou o Liffey, seguindo na direção do promontório que Deirdre amava tanto. Suas pernas compridas percorreram facilmente a distância, mas sempre que podia, com o currahg às costas, o velho corria.

Era tarde da noite quando Fergus chegou à praia. Uma lua em quarto crescente encontrava-se no seu ponto mais alto e o mar estava calmo. Então ele pôs o curragh na água, atravessou para a ilha e encontrou Deirdre e Conall adormecidos um nos braços do outro. Acordou-os e, quando Deirdre o viu, jogou os braços em volta dele. E, vendo o estado deles, e que sua filha ia ter um bebê, Fergus chorou.

O chefe não demorou muito para lhes contar o que acontecera e alertá-los.

— Vocês só têm até amanhã antes que ele os encontre. — Mas o que eles poderiam fazer? — Terão de sair daqui esta noite — disse ele, e, olhando para a filha, não pôde deixar de acrescentar: — Por quanto tempo, Deirdre, você consegue correr?

Era o problema que preocupara Conall todo o verão. Deirdre só deveria ter o filho depois do solstício de inverno, e ela parecia forte e bem. Conall esperava que, nessa época, talvez já fosse possível atravessar o mar, mas as indicações que percebeu secretamente ao longo da costa não foram encorajadoras. Cada porto continuava sendo vigiado. Mais de uma vez se perguntara se ela deveria procurar o pai. Certamente, mesmo se fosse descoberta, o rei não faria mal a uma mãe indefesa e seu filho. Mas Deirdre foi contra, e foi ela quem imaginou uma engenhosa solução.

— Leve-me à praia, quando se aproximar a minha hora. Direi à velha viúva que sou uma mulher abandonada. Ela me ajudará. — Ela sorriu. — Então talvez o druida da ilha passe por lá e cuide de mim.

— E depois?

— No devido tempo, você encontrará um meio de partirmos.

Conall supunha que esse plano de ação poderia funcionar, mas não tinha certeza; e, a cada dia que passava, sua secreta apreensão aumentava. E agora, quase antes de ele ter tempo de pensar a respeito, ouviu-se dizendo:

— Talvez eu possa atrair Finbarr para longe e Deirdre poderá ficar com você. Fergus, por um momento, nada disse. Embora olhasse para o rosto pálido e aflito da filha, estava perdido em seus próprios pensamentos. Quais seriam as conseqüências para ele, e seus dois filhos, se descobrissem que escondia Deirdre? Queria realmente a filha que amava de volta à sua casa? E ao pensar no tão pouco que conseguiu fazer por ela, ele se sentiu envergonhado.

— Dubh Linn é o lar dela — afirmou ele — e sempre será. — Mas, segurando Conall pelo braço, acrescentou: —Você precisa tirá-la da ilha antes do amanhecer, pois, pela manhã, levarei Finbarr ao longo da costa. Depois que Finbarr se for, deixe que ela vá à noite para o rath e darei um jeito de escondê-la. — Então, ansioso para voltar ao rath antes que notassem sua ausência, atravessou de volta pela água.

A lua ainda estava alguma distância acima do horizonte, quando ele começou a caminhar de volta ao longo da praia. À sua esquerda, a alta corcunda do promontório erguia-se sombriamente; apressando-se o máximo que podia, não demorou muito a chegar ao pé da pequena elevação de cujo cume ele poderia avistar a ampla extensão da baía de Dubh Linn. Parando apenas por um momento para inspirar profundamente um pouco de ar, o velho começou a subida. A trilha era sem dificuldade. Avistou adiante o contorno do cume, silhuetado contra o céu estrelado. Havia algumas moitas de árvores e arbustos ao longo do caminho.

Aproximava-se do cume, quando ouviu o retinir de um arreio e o bufar de um cavalo logo adiante. Parou e olhou para a moita de arbustos de trás da qual viera o ruído. Então, das sombras, emergiu uma forma enorme.

Era uma biga. Avançou para encará-lo mais abaixo da encosta, e da biga veio a voz de Finbarr.

— Obrigado, Fergus, por me mostrar o caminho.

Finalmente ela estava pronta. Sabia que não podia mais se demorar; o céu ainda estava repleto de estrelas, mas agora havia uma insinuação de palidez a leste, além do mar.

Ela demorara o máximo que podia. A ilha era seu santuário: assim que a deixasse, sentia, nunca mais estaria a salvo novamente. Talvez, Conall lhe dissera, eles pudessem voltar ali. Seria possível? Olhou para Conall. Já fazia algum tempo que ele estava de pé, de costas para ela, fitando silenciosamente além da praia.

O plano que haviam imaginado era bastante simples. Atravessariam agora para a praia, seguiriam para o interior e se esconderiam na mata. Se Finbarr fosse inspecionar a ilha, encontraria apenas a pequena cabana. A velha da praia lhe diria que nunca vira ninguém naquele lugar além do druida andarilho. No seu devido tempo, ele desistiria e iria embora. E depois? Talvez eles pudessem voltar para a ilha. Ou Deirdre poderia ir para a casa do pai. Ou talvez ainda pudessem atravessar o mar. Quem sabe?

Levantou-se e foi até Conall. Ele não se mexeu. Ficou parada ao lado dele e tocou em seu braço.

— Estou pronta — sussurrou. Mas Conall apenas sacudiu a cabeça.

— Tarde demais — disse ele, e apontou. Quando ela olhou para o meio da escuridão, viu a sombra da biga de Finbarr esperando na praia; e antes que ela conseguisse segurar as palavras, elas saíram: — Oh, Conall, não posso voltar. Eu morrerei.

Ficaram parados, olhando, enquanto a luminosidade aumentava, o mar ficava cinzento e a biga se tornava uma forma escura, compacta na praia. Então Conall falou:

— Preciso ir com ele agora. — Deirdre conseguiu mantê-lo consigo mais um pouco; entretanto, embora ela ainda tentasse impedi-lo, quando aumentou a claridade no horizonte ele finalmente se livrou, pegou o curragh e atravessou sozinho.

Ele estava a meio caminho quando ela avistou a borda ardente do sol romper no horizonte e deu-se conta de que Conall infringia o segundo geissi, pois atravessava o mar com o sol nascente às suas costas. Ela gritou:

— Conall! O sol!

Mas, se ele a escutou, não se virou.

Finbarr não se mexeu. Estivera de pé em sua biga, imóvel como uma pedra, desde muito antes da alvorada. Durante esse tempo, ele ponderara: sentiria algo do seu antigo amor pelo amigo? Sentiria pesar ou apenas frustração? Não saberia dizer. Mas sabia o que deveria ser feito e, assim, talvez com medo de suas próprias emoções, endurecera o coração. Agora, porém, enquanto Conall vinha através da água e se aproximava, não era nenhuma delas, mas uma emoção completamente diferente que ele sentia. Era surpreendente. E espantoso.

Ele devia ter-se dado conta, lembrou, após o que a velha lhe dissera, quando esteve por ali da outra vez, que a pessoa que vinha da ilha parecia um druida. Era, porém, mais do que isso. Quando Conall alcançou a praia e começou a andar em sua direção, Finbarr vivenciou a mais estranha das sensações. Vendo-o agora, saindo do meio das ondas, com a cabeça rapada como a de um druida, vestido de forma simples como um eremita, era como se ele olhasse não para Conall, mas para o fantasma de Conall. Pois se Conall tivesse morrido e retornado das Ilhas dos Abençoados, então certamente era assim que ele pareceria. Era o espírito interno, a própria essência do homem que ele amara que agora se aproximava parecendo uma sombra lamentável. A alguns passos de distância, Conall parou e assentiu calmamente.

—Você sabe, Conall, por que estou aqui. — Finbarr achou que sua voz estava rouca.

— É pena você ter vindo, Finbarr. Isso não lhe fará nenhum bem. Era isso tudo o que seu amigo tinha a lhe dizer?

— Faz mais de um ano que procuro por você — explodiu.

— Quais foram as ordens que o rei lhe deu? — perguntou Conall mansamente.

— Levar vocês dois de volta em segurança.

— Deirdre não irá, e eu não a deixarei.

— Isso é tudo que importa... você e Deirdre?

— É o que parece.

— Não está preocupado, Conall — ele não conseguia evitar a amargura na sua voz — que por três anos tenha havido péssimas colheitas, que os pobres só não estão morrendo de fome porque os chefes lhes dão um pouco de comida e que a culpa de tudo isso recai sobre você, por ter envergonhado o rei supremo, o seu tio?

— Quem diz isso? — Conall pareceu um pouco abalado.

— São os druidas que dizem, Conall, e os filidh e os bardos. — Ele inspirou fundo. — E eu também digo.

Conall fez uma pausa pensativa antes de retrucar, e quando o fez, pareceu fazê-lo com tristeza.

— Não posso ir com você, Finbarr.

— Não há escolha, Conall — Finbarr apontou para sua biga, — Pode ver que estou armado.

Então terá de me matar. — Não foi um desafio. Conall simplesmente ficou parado calmamente, olhando em frente, como se esperasse o golpe ser Desfechado.

Por um longo momento, Finbarr olhou fixamente para o amigo. Então, abaixou-se, apanhou três objetos e jogou-os aos pés do seu amigo. Eram a lança, o escudo e a espada reluzente de Conall.

— Defenda-se — disse ele.

— Não posso — rebateu Conall, que não apanhou as suas armas. E então Finbarr perdeu completamente a paciência com o amigo.

— É medo de lutar? — bradou. — Então eis o que faremos. Vou esperar no Vau das Cercas, Conall. Você pode ir lá e lutar comigo como homem... e, se vencer, pode ir embora. Ou pode fugir com a sua mulher, e eu voltarei ao seu tio e lhe direi que deixei livre um covarde. Você escolhe. — E, dito isso, foi embora em sua biga.

Então, após uma demorada pausa, sem ter outra alternativa, Conall recolheu suas armas e tristemente o seguiu.

Foi num trecho de praia coberto de grama, com o vau do Liffey logo atrás deles, que Conall e Finbarr prepararam-se para a luta.

Havia um ritual a ser seguido, antes de um guerreiro celta lutar. Primeiro, o guerreiro devia ficar nu, mas podia pintar o rosto e o corpo com a tintura azulada chamada ísatis. Mais importante, porém, do que a decoração externa era a preparação interna. Pois não travavam uma batalha frios. Os exércitos incentivavam a si mesmos com cantos de guerra e aterrorizantes gritos de batalha. Druidas gritavam para os inimigos, dizendo-lhes que estavam condenados. Enquanto os druidas rogavam pragas e os guerreiros proferiam insultos, homens comuns às vezes jogavam lama ou até mesmo excremento humano nos rostos de seus oponentes para desencorajá-los. Acima de tudo, porém, cada guerreiro tinha de se empenhar para alcançar aquele estado elevado no qual a força e a habilidade tornavam-se algo mais do que simplesmente ossos e músculos — onde, também, extraía força de todos os seus ancestrais, e até mesmo dos deuses. Essa era a inspiração sublime do guerreiro, sua fúria para a batalha, seu espasmo guerreiro, como diziam os poetas celtas.

Para atingir esse estado elevado, um guerreiro celta teria de executar movimentos rituais, ficar parado sobre um pé, girar o corpo e contorcer o rosto até este parecer transformado em uma máscara de guerra humana.

Finbarr preparou-se da maneira clássica. Dobrando o joelho esquerdo, lentamente curvou o corpo como se este fosse um arco. Fechando o olho esquerdo, inclinou o rosto de modo que seu olho alerta, arregalado e firme, parecia penetrar em seu oponente com um penetrante olhar de esguelha. Conall, enquanto isso, permanecia completamente imóvel, mas parecia a Finbarr que ele se comunicava com os deuses.

— Haverá o pior para você, Conall, se vier aqui. Eu sou um javali que arrancará seu olho, Conall. Um javali — ele gritou.

Mas Conall nada disse.

Então apanharam lanças e escudos, e Finbarr disparou sua lança com uma força imensa direto para Conall. Foi um lançamento perfeito. A lança poderia ter atravessado facilmente o escudo do oponente e pregado o homem pelo peito no chão, Conall, porém, saltou tão rapidamente para o lado que Finbarr mal o viu se mexer e, com um golpe de vista, deixou a lança passar além de seu escudo. Em seguida, Conall arremessou a sua em resposta. A lança voou de sua mão, apontada diretamente para o coração de Finbarr. E, se qualquer outro guerreiro a tivesse lançado, Finbarr teria achado um arremesso certeiro. Mas ele conhecia a incrível força de arremesso de Conall quando este queria de verdade e, deixando a lança se chocar contra seu escudo, blasfemou intimamente. De repente, sacando a espada, correu na direção de Conall.

Havia poucos capazes de se igualar a Finbarr na espada. Ele era valente, rápido e forte. Quando forçou Conall a recuar, foi difícil para ele distinguir se seu amigo estava propositadamente cedendo terreno ou fora de forma. Quando ferro retiniu em ferro, faíscas voaram. Chegaram à beira dos baixios. Conall continuava cedendo terreno; mas, em pouco tempo, estava com a água pelo tornozelo, e Finbarr deu-se conta de que nenhum dos dois havia tirado sangue do outro.

E, quanto mais ele golpeava, mais misteriosamente Conall parecia esquivarse dele. Soltou um grito de guerra, chapinhou na água, golpeou e estocou. Usava cada movimento que conhecia. Estranhamente, porém, sua espada ou atingia em vão a espada e o escudo defensores de Conall, ou errava inteiramente. A certa altura, quando o escudo de Conall estava abaixado e sua espada pendia afastada, Finbarr deu uma ligeira estocada — e não achou nada. Era como se, por um instante, Conall tivesse se tornado uma névoa. Não luto com um guerreiro, pensou Finbarr, luto com um druida.

Esse estranho combate prosseguiu por algum tempo e quem sabe como poderia terminar se, por um golpe do destino, Conall não tivesse recuado para uma pedra. Num movimento repentino, Finbarr atacara, acertando-o no braço. Quando Conall caiu para trás e ergueu o escudo, Finbarr golpeou sua perna, abrindo um profundo talho. Em um instante, Conall estava de pé e aparou os golpes seguintes, mas coxeava. A seus pés, havia sangue na água. Cedeu mais terreno, porém dessa vez Finbarr teve certeza de que era porque ele estava enrascado. Uma rápida finta e acertou-o novamente, no ombro. Continuaram, golpe contra golpe; porém, por mais habilidoso que fosse Conall, Finbarr podia sentir que ele estava enfraquecendo.

Ele o havia superado. Tinha certeza. O fim era apenas uma questão de tempo. Longos momentos se passaram. Recuaram mais vinte passos, com Finbarr avançando pelos baixios cobertos de água que estavam vermelhos com o sangue do oponente. Conall escorregava. Parecia prestes a cair.

E agora, perto do triunfo, toda a frustração do ano anterior e, embora ele mal percebesse, os muitos anos de ciúme falaram sozinhos quando ele berrou:

— Não pense que vou matá-lo, Conall. Pois não vou. Será assim, amarrados e caminhando atrás de minha biga, que você e Deirdre irão comigo, hoje, até o rei. — E, brandindo a sua espada, saltou à frente.

Ele nem viu a lâmina. Ela se deslocou tão velozmente que ele nem a sentiu por um momento, em sua fúria guerreira. Ela, porém, atravessou o seu peito e decepou cada tecido logo acima do coração, o que levou Finbarr a franzir a testa, primeiro de perplexidade ao perceber que algo havia parado. Em seguida, sentiu uma dor imensa, rubra, contínua, e descobriu que sufocava, que a garganta e a boca estavam cheias de sangue, e que tudo corria para longe dele como um rio quando desabou sobre a água rasa. Sentiu seu corpo ser virado e viu o rosto de Conall olhando-o de cima para baixo, infinitamente pesaroso. Por que estava ele tão pesaroso? Seu rosto tornava-se um borrão.

— Oh, Finbarr. Eu não queria matar você.

Por que Conall disse isso? Ele o tinha matado? Finbarr tentou dizer algo para o borrão.

— Conall...

Então a luz aumentou de intensidade e seus olhos se arregalaram. Conall e o cocheiro carregaram seu corpo até a biga, para ser levado ao rei. Só então Conall se deu conta de que Cuchulainn, o cão, estava amarrado à biga, à espera de seu dono. com um último olhar triste para as extensas águas do Liffey, Conall coxeou de volta em direção a Deirdre e à ilha.

O único olho de Goibniu vigiava todos eles: o rei supremo, a rainha, os chefes e os druidas. Ouvia, mas nada dizia.

Fora naquela tarde, após dois dias de difícil condução, que o exausto cocheiro chegara ao acampamento do rei com o corpo de Finbarr. As mulheres o preparavam para o sepultamento. E, no grande salão, com suas paredes de vime, todos falavam.

Havia pelo menos vinte jovens que queriam ir atrás de Conall. Iriam, é claro. Matar o herói que matara o nobre Finbarr — que chance para um jovem ávido por glória. Os druidas, em conjunto, pareciam achar que era o melhor plano. Larine, o amigo de Conall, estava presente. Parecia triste, mas nada dizia. A rainha, contudo, falava. Ela nunca parecia a Goibniu, demonstrara muito interesse na caçada a Conall; mas agora era inflexível. Conall e Deirdre tinham de ser mortos. “Que o pai dela enterre sua filha em Dubh Linn”, bradou. “E tragam-me a cabeça de Conall.” Olhou em volta para os chefes e os jovens heróis. “O homem que me trouxer a cabeça de Conall receberá a recompensa de doze vacas.” Uma coisa era óbvia: ela não os queria de volta. O que, porém, interessava muito mais a Goibniu era o que pensava o rei, o qual, apesar de estar sentado em seu largo banco coberto, parecendo deprimido, ainda não dissera nada. Estaria ele pensando o que Goibniu pensava? Procuraria ele por causas mais profundas?

Como acontecia freqüentemente quando Goibniu ouvia os homens falarem, pareceu ao ferreiro que suas palavras eram vazias, nada significavam. Qual era o verdadeiro problema do rei? A perda da safra. E qual a causa dessa perda? Era realmente culpa do rei supremo? Isso poderia ser solucionado com a morte de Conall? Goibniu não sabia, mas duvidava. Nem, avaliava intimamente, ninguém mais sabia. Mas eles acreditavam. Era isso o que importava: a crença deles. A morte de Conall vingaria o fato de o rei ter sido escarnecido. Mas, e se, depois disso, a colheita seguinte também fosse perdida? Os druidas não culpariam o rei supremo? Fariam isso. Sem dúvida alguma.

Notou que agora o rei olhava para ele.

— Bem, Goibniu, o que tem a dizer? — perguntou o rei.

Goibniu, o ferreiro, esperou um momento, pensando cuidadosamente antes de responder.

— A mim me parece — respondeu calmamente — que existe uma outra maneira. Posso lhe falar a sós?

Durante aqueles dias, ela até mesmo sonhara, uma ou duas vezes, que eles talvez pudessem ficar livres.

Nada, supôs, poderia ser pior do que aquela primeira manhã, esperando na ilha para ver se era a biga de Finbarr ou a bela forma de Conall que surgiria ao longo da praia para ir buscá-la. Sua espera terminou sem nenhum dos dois, mas com a forma recurvada, sangrando, de Conall, coxeando pela areia como um animal moribundo, de tal modo que a princípio mal o reconheceu. E quando, por fim, ele caiu para fora do curragh sobre o cascalho diante dela, tudo que pôde fazer foi ocultar sua aversão à vista de seus ferimentos.

Ela tratou-o da melhor maneira que pôde. Ele estava fraco, e uma ou duas vezes desmaiou; mas contou-lhe o que acontecera e como matara seu amigo. Ela nem quis lhe perguntar o que fariam a seguir. No final daquela tarde, seu pai chegou.

— Eles virão atrás de Conall. O cocheiro de Finbarr lhes mostrará onde ele está. Mas isso levará alguns dias, Deirdre. Amanhã, poderemos pensar no que fazer. — Discutiram se deviam levar Conall de volta para o rath em Dubh Linn, mas Fergus decidiu: — Deixe-o ficar aqui, por enquanto, Deirdre. Ele estará bem aqui como em qualquer outro lugar. — À noitinha, partiu. E, embora Conall tivesse tido febre durante a noite, pela manhã parecia melhor, e ela o alimentou com um pouco de caldo e um pouco de hidromel que seu pai trouxera.

Perto da metade do dia, Fergus chegou novamente. Após examinar Conall e declarar que ele sobreviveria, dirigiu-se aos dois com toda a seriedade:

— É impossível vocês permanecerem mais tempo aqui. Sejam quais forem os riscos, têm de atravessar o mar. — Fitou a água. — Pelo menos podem agradecer aos deuses pelo tempo estar bom. — Sorriu para Conall. — Em dois dias, voltarei com um barco.

— Mas, papai — lamentou-se ela —, mesmo se conseguir um barco, como conseguirei manejá-lo sozinha, no estado em que estou e Conall sem forças nem mesmo para erguer um remo?

— Haverá uma tripulação — afirmou seu pai, e partiu.

O dia seguinte foi de aflição para Deirdre. De início, ficou agradecida. Apesar de cada onda fazer com que ela olhasse para a praia, esperando ver os homens do rei, ninguém apareceu. Fisicamente, Conall parecia melhor. Até mesmo deu um passeio em volta da pequena ilha deles, e ela ficou aliviada por seus ferimentos não abrirem novamente. O estado de ânimo dele, porém, era outra história. Ela estava acostumada aos seus estados de humor, e quando, no fim da tarde, ele foi se sentar sozinho na praia de cascalho e olhar o mar, a princípio ela não atribuiu nenhum significado particular àquilo; após algum tempo, contudo, ele pareceu tão excepcionalmente triste que ela foi até lá e parou de pé a seu lado.

— No que está pensando? — perguntou. Por alguns momentos, ele não respondeu.

— Era em Finbarr que eu pensava — disse enfim calmamente. — Ele era meu amigo.

Deirdre quis colocar os braços em volta de Conall, mas ele parecia distante, portanto não ousou fazê-lo. Tocou-o no ombro e depois recolheu a mão.

— Ele conhecia os riscos que corria — observou ela suavemente. — A culpa não foi sua.

Conall não retrucou e ficaram em silêncio.

— Ele me contou — disse calmamente — que os druidas afirmam que as más colheitas são culpa minha... porque humilhei o rei supremo.

— Então a culpa é minha também, Conall.

— Não é. — Franziu a testa. — É minha.

— Isso é tolice.

—Talvez. —Voltou a ficar em silêncio enquanto ela o olhava com ansiedade.

— Não deve pensar nisso, Conall — pediu ela e, em resposta, ele tocou em sua mão.

— Não é para ser pensado — murmurou ele sem olhar para ela. Após um tempo, sem saber o que fazer, ela se afastou; e Conall permaneceu lá, sentado no cascalho, encarando a água até o sol se pôr.

O pai dela chegou na manhã seguinte. Ainda havia uma névoa sobre o mar, quando o barco contornou o promontório. Era uma pequena embarcação, com laterais de couro e uma única vela redonda com a qual poderia pegar velocidade, se bem que desengonçadamente, contra o vento — bem diferente dos curraghs nos quais seus distantes ancestrais tinham chegado à ilha ocidental. Seu pai a comprara de um pescador do extremo sul da baía. Ele mesmo a velejava, acompanhado pelos dois irmãos dela. Todos saltaram para a praia, parecendo não se conter de felicidade.

— Eis seu barco — informou o pai. — O vento vem do oeste, mas é suave; o mar está calmo. Não precisarão se preocupar em fazer a travessia.

— Mas onde está a tripulação que prometeu? — questionou ela.

— Ora, são seu pai e seus irmãos, Deirdre — disse ele, como se fosse a coisa mais natural do mundo. — Deposite sua confiança em seu pai, Deirdre, e eu depositarei a minha em Manannan mac Lir. O deus do mar a protegerá. Não é bom o bastante para você?

—Talvez apenas em relação a você — arriscou ela, olhando desconfiada para os irmãos. — O barco é pequeno.

— Você ia querer que eu deixasse seus irmãos para trás — indagou, sorrindo —, completamente sozinhos no mundo?

Então Deirdre entendeu.

— Está querendo dizer que não voltará?

— Para enfrentar o rei, após ter ajudado vocês a fugir? Não, Deirdre, iremos todos. Eu sempre tive vontade de sair numa viagem. Só estou partindo um pouco tarde.

— Mas o rath, suas terras, o gado...

— Em Dubh Linn? — Deu de ombros. — Não é um bom lugar, arrisco dizer. É pantanoso demais. Não, Deirdre, eu diria que está na hora de nos mudarmos. — E, olhando para o pequeno barco, ela viu que estava abastecido com provisões, e um pequeno saco com prata e a taça de caveira de seu pai. Então beijou o pai e não disse mais nada.

Só havia um problema. Conall não iria.

Isso era ponto pacífico. A depressão que exibira na tarde anterior parecia terse transformado em algo mais. Ele parecia triste, talvez um pouco desligado, mas tranqüilo. E inflexível. Não iria.

— Por todos os deuses, homem — berrou Fergus. — O que há com você? Não vê o que estamos fazendo por você? — E quando isso não funcionou: — Teremos que levar você à força para o barco? — Mas um olhar do príncipe disse-lhe que, mesmo no estado de fraqueza em que se encontrava, aquilo não seria uma boa idéia. — Pode pelo menos nos dizer por quê? — perguntou Fergus finalmente, em desespero.

Por alguns momentos, não ficou claro se Conall responderia, mas, enfim, ele falou calmamente:

— Não é desejo dos deuses que eu deva ir.

— Como sabe disso? — indagou Fergus com irritação.

— Se eu atravessar o mar com vocês, isso não lhes trará sorte. Enquanto o pai blasfemava baixinho, os dois irmãos de Deirdre se entreolhavam aflitos. Teriam os deuses amaldiçoado o homem da irmã deles? Já que Conall tinha a aparência de um druida, pareceu-lhes que ele deveria saber disso.

— Não vale a pena a gente se afogar, pai — disse um deles.

— Vamos então levar Deirdre e deixar você para trás? — Fergus quase gritou. Conall não respondeu, mas Deirdre segurou o braço do pai.

— Eu não posso deixá-lo, papai — murmurou. E embora ele elevasse os olhos para o céu com impaciência, ela o conduziu a um canto e continuou: — Espere mais um dia. Talvez amanhã ele se sinta diferente. — E, como não parecia haver alternativa, Fergus pôde apenas erguer os ombros e suspirar. Antes de partir, entretanto, alertou:

— Não há muito tempo. Você precisa pensar em Deirdre, e na criança Por algum tempo, depois que seu pai e seus irmãos se foram, Deirdre nada falou. Havia uma revoada de gaivotas sobre a praia de cascalho. Repetidamente elas alçaram vôo, crocitando no céu azul de setembro, enquanto Conall permanecia sentado, observando-as como se estivesse em transe. Finalmente, partiram, e então ela falou.

— O que será de nós, Conall?

— Não sei.

— Por que não quer partir? — Ele não respondeu. — Foi um sonho que teve à noite. — Ele não retrucou, mas ela desconfiou que ele havia sonhado. — É isso que tem conversado com os deuses? Diga-me a verdade, Conall. O que é que você sabe?

— Que devo esperar aqui, Deirdre. Apenas isso. Ela olhou para seu rosto pálido e belo.

— Eu ficarei aqui com você — falou simplesmente.

Ele esticou-se e segurou sua mão, para que ela soubesse que ele a amava; e Deirdre ficou imaginando se, talvez, ele poderia mudar de idéia antes do amanhecer.

Quando ela acordou, o céu estava claro, mas havia uma fina camada de névoa sobre o chão. Olhando além da água para a praia, pareceu-lhe que tudo estava imóvel. Certamente era cedo demais para que alguém, vindo a mando do rei supremo, os tivesse alcançado. Então algo prendeu seu olhar.

A princípio, a distância, a pequena forma que avançava pela planície nebulosa pareceu a de um pássaro batendo as asas. Por toda a ampla extensão da planície, a neblina assentava-se em véus esgarçados ou pairava em tufos como fantasmas, sua alvura despejando-se na praia e no mar em volta de modo que era impossível a Deirdre distinguir se era terra ou água o que havia por baixo. Quanto ao aparente pássaro, ela podia apenas supor que podia ser um homem com a capa flutuando em seu rastro, sendo conduzido velozmente por uma biga, a não ser, talvez, que fosse um dos deuses ou seus mensageiros que haviam assumido a forma de um corvo, cisne ou outro pássaro qualquer para visitá-los.

Então, onde devia ser a praia, a presença fantasmagórica virou-se e parou. E agora, enquanto fitava, Deirdre poderia jurar que se tratava de um gracioso cervo. Após uma pausa, porém, ele desapareceu na neblina apenas para emergir mais uma vez, como se pudesse mudar de forma à vontade, flutuando muito lentamente, imóvel e cinzento, como uma pedra ereta, em direção à sua pequena ilha.

Ela olhou em volta, na esperança de ver o barco de seu pai vindo do promontório. Mas, em vez disso, viu Conall parado atrás dela, com a aparência sisuda.

— É Larine — disse ele.

— Ele parece mudar de forma à medida que avança.

— É um druida — frisou. — Provavelmente poderia desaparecer, se quisesse. — E agora ela percebeu que era Larine num pequeno curragh, que era remado na direção deles pelo seu cocheiro.

— Venha cá, Conall — ele disse calmamente, ao pisar na praia. — Precisamos conversar. — E quando se virou aflita para Conall, Deirdre ficou surpresa ao ver que ele parecia aliviado.

Ficaram um longo tempo juntos, a alguma distância dela, como duas sombras pairando sobre as grinaldas de névoa que rodopiavam na beira d'água; o sol acabara de irromper acima do horizonte quando voltaram para Deirdre, e ela percebeu que o rosto de Conall se transformara. Toda sua infelicidade desaparecera e, com um delicado sorriso, ele segurou sua mão.

— Está tudo bem. Meu tio e eu nos reconciliamos.

Samhain: o antigo Halloween, quando os espíritos dos mortos caminham durante uma noite entre os vivos. Samhain, o ponto decisivo, o ingresso à metade sombria do ano. Samhain, quando os animais são abatidos, Samhain, o sinistro. Contudo, na ilha ocidental com seu clima ameno, o mês que levava ao Samhain era normalmente uma estação agradável.

Deirdre sempre achou isso. Às vezes, os dias eram chuvosos e enevoados, outras vezes o claro céu azul parecia tão duro que se podia tocá-lo. Ela adorava os bosques outonais, as folhas marrons nos pés de carvalho ou quebradiças ao serem pisadas. E quando havia uma friagem no ar, ela sentia um formigamento no sangue.

Larine ficara com eles na ilha durante três dias. Levara ervas para curar Conall. Os dois passaram horas juntos, conversando e rezando; e, apesar de se sentir excluída, Deirdre podia ver que Conall se curava de corpo e alma. Após esse período, Larine foi embora, mas, antes de partir, explicou-lhe amavelmente: “Levará pouco tempo, Deirdre, para Conall ficar inteiramente bem. Descanse aqui, ou na casa de seu pai. Ninguém perturbará vocês. O rei supremo deseja fazer a reconciliação no festival de Samhain, e vocês deverão encontrá-lo lá.” E, adivinhando seus pensamentos, acrescentou, com um sorriso: “Não precisa mais temer a rainha, Deirdre. Ela agora não vai mais lhe fazer mal.”

No dia seguinte, o pai dela levou-os para casa.

O mês que passaram em Dubh Linn foi um período feliz. Se ela receava que Conall pudesse não se mostrar tolerante com sua família, seus medos foram logo superados. Todas as noites ele ouvia a história da linhagem de sua família, sem o menor sinal de tédio; jogava hurling com os irmãos dela e se divertia com um arremedo de luta de espada sem matá-los. Até mesmo convenceu Fergus a substituir as tábuas do Vau das Cercas e ajudou-o a fazê-lo. Ela notou que seus ferimentos não apenas curaram como mal podiam ser vistas as cicatrizes. À noite, ao deitarse ao lado de Deirdre, parecia a ela que o corpo nu de Conall estava pálido mais uma vez, perfeito como antes. Quanto a ela, podia sentir o bebê crescendo dentro de si e se fortalecendo.

— Ele virá no solstício de inverno — disse ela contente —, como promessa da primavera.

— Você disse “ele” — observou Conall.

— Será um menino, Conall — retrucou. — Posso sentir.

Eles caminhavam juntos ao longo do Liffey onde os salgueiros arrastavam seus galhos ou nos bosques de carvalho e faia. Todos os dias visitavam uma das três fontes sagradas e Conall massageava sua barriga inchada com água, correndo a mão suavemente pela pele.

Houve dias de neblina e dias de sol, mas a brisa foi muito leve naquele mês, de modo que apenas poucas folhas caíram das árvores ainda pesadas e cheias com o rico ouro e bronze do brando outono. Somente os bandos de aves migratórias prenunciavam que a inevitável chegada do inverno estava perto.

Dois dias antes do Samhain, quando bandos de estorninhos rodopiavam em volta das árvores em Dubh Linn, as três bigas chegaram.

Deirdre podia ver que seu pai estava satisfeito; ele nunca viajara antes daquela maneira. As três bigas, cada qual com um cocheiro, eram realmente esplêndidas. Ele e os dois filhos iam numa, Deirdre na segunda; a terceira biga, a mais bela de todas, era do próprio Conall, com seus dois cavalos velozes arreados ao varal.

Fazia um dia excelente. O sol cintilava nos vastos baixios do Liffey, ao atravessarem o vau. O caminho era o do noroeste. A tarde inteira fizeram um rápido e fácil progresso, passando por gramados e encostas arborizadas. À noitinha, encontraram um lugar agradável em um bosque de pinheiros para acampar. Na manhã seguinte o clima havia mudado. Fazia um tempo seco, mas o céu estava coberto de nuvens. A luz era cor de chumbo e os raios enviesados do sol, que às vezes irrompiam das nuvens, pareciam a Deirdre vagamente sinistros e ameaçadores. O resto do grupo, porém, estava com o ânimo alto quando seguiram para noroeste em direção ao vale do rio Boyne.

— Chegaremos lá à tarde — comentou seu cocheiro. — Estaremos na real Tara.

E logo depois, seu pai gritou, contente:

— Você se lembra, Deirdre? Lembra-se de Tara?

Claro que ela se lembrava. Como poderia esquecer? Fora anos atrás, quando seu irmão mais jovem tinha oito anos, que Fergus levara a todos, em um dia de verão, pela estrada para Tara. Fora uma época feliz. O grande centro cerimonial tinha uma localização magnífica — uma grande e ampla colina com suas encostas que se erguiam sobre o vale do Boyne a meio dia de viagem do antigo túmulo, com sua travessia para o solstício de inverno, onde habitava Dagda.

Exceto por um guardião, o local estivera deserto naquela estação de verão, pois os Reis Supremos só costumavam ir a Tara para o festival de Samhain ou para a posse de um novo rei. Fergus acompanhara sua pequena família tão orgulhoso como se fosse proprietário do lugar, e lhe mostrara as atrações principais — os grandes muros circulares de terra dentro dos quais os altares e o salão de banquete eram erigidos para o festival. Também lhe mostrou alguns dos aspectos mágicos do local.

— É aqui que os druidas elegem o novo rei supremo — explicou diante de uma pequena área cercada por um muro de terra. — Um deles bebe sangue de touro e então os deuses lhe enviam uma visão. — Mostrando um par de pedras dispostas juntas: — O novo rei tem de passar entre elas com sua biga. Se ficar entalado, então não é o rei legítimo. — A atração mais impressionante, porém, para Deirdre fora a antiga pedra erguida perto do cume da colina, a Pedra de Fal. — Quando a biga do verdadeiro rei chega e toca na Pedra de Fal — explicou ele —, os druidas a escutam gritar.

— E depois disso — indagara um dos irmãos —, ele não tem que acasalar com uma égua branca?

— Tem sim — confirmou Fergus, orgulhosamente.

Contudo, se esses detalhes da posse de um rei fascinavam os seus irmãos, a mágica de Tara para Deirdre era a sua localização. Não era apenas a paisagem magnífica que exibia durante o dia, mas ao nascer e ao pôr-do-sol, quando a névoa repousava sobre os vales em toda a sua volta, e a Colina de Tara parecia uma ilha flutuando no mundo dos deuses.

Ela, portanto, devia se sentir feliz enquanto se dirigiam para lá.

A metade do dia já se passara quando avistaram Tara. Quando as três bigas avançaram velozmente ao longo do largo caminho, os cocheiros fizeram uma formação triangular com Conall à frente, a biga dela atrás da roda esquerda da dele, e a de seu pai atrás da direita. Embora o céu ainda fosse de um fosco cinza metálico, com poucos raios de sol, o dia não estava frio. Adiante deles, no caminho, ela notou pessoas dispersas, muitas delas carregando cestos. Ao vê-las, Conall subitamente tirou a capa para que, com seu pálido corpo despido, parecesse um guerreiro indo para a batalha. Em sua formação de ponta de flecha, as três bigas corriam à frente e quando emparelhavam com as pessoas, elas enfiavam as mãos em seus cestos e jogavam punhados de flores de outono na biga de Conall. Apesar de Conall ser o sobrinho do rei supremo, Deirdre ficou surpresa por ele receber semelhante acolhida de herói.

A colina agora assomava à frente dele. Deirdre viu multidões em cima do extenso muro de terra que cercava o cume. No meio do muro havia uma fila de sacerdotes, segurando compridas cometas de bronze e grandes chifres de touro que eram o sinal de realeza. Atrás deles ficavam as estruturas com paredes de vime que haviam sido erigidas para o festival. Havia poucas fogueiras enviando finos rastros de fumaça para o espaço. Chegaram a um terreno plano no pé da colina, coberto de grama e pontilhado de árvores, a trilha para subir a longa encosta logo adiante dela. Os sacerdotes ergueram suas cometas. Ouviu-se então um forte bramido gutural sombriamente latejante, que se transformou em um urro aterrorizante.

E a névoa se ergueu.

Foi tão repentino e tão violento que ela gritou. Os estorninhos voaram diante deles com um forte zumbido que era quase um rugido. Estorninhos, milhares deles, envolveram as bigas em uma rodopiante nuvem negra. Rodopiaram em torno delas como se eles e os viajantes tivessem sido colhidos por um estranho vórtice negro de um redemoinho. Girando e girando, as miríades de batidas de asas eram tão altas que Deirdre nem mesmo conseguia escutar os próprios gritos. À frente, pelos lados, atrás, a nuvem negra elevou-se, baixou, elevou-se novamente e então, do mesmo modo repentino, guinou para longe, com uma grande investida, para descer numa arremetida sobre as árvores próximas.

Deirdre olhou para o lado. Seu pai e seus irmãos riam. O rosto de Conall ela não podia ver. Olhando para cima, porém, para a multidão de gente sobre os muros de terra, ela entendeu, com novo e vaticinante horror, o que haviam testemunhado.

Conall acabara de passar por uma névoa negra ao chegar a Tara.

As geissi haviam sido cumpridas.

Não havia tempo para pensar nisso agora, enquanto disparavam encosta acima e para o interior do imenso cercado de Tara. Havia tochas ardendo, enfileiradas no caminho que levava à crista do morro. Ao chegarem ao trecho final, duas das bigas pararam, deixando que Conall seguisse sozinho pela curta avenida cerimonial com seus muros de terra, em cuja cabeceira, flanqueado pelos seus chefes, encontrava-se de pé o rei supremo.

Deirdre viu Conall descer da biga e ir até o rei. Viu o rei desnudar o peito para seu sobrinho beijar e então retribuir o gesto de reconciliação. Em seguida, Conall ajoelhou-se diante do tio, que colocou as mãos sobre a cabeça do jovem, abençoando-o. Embora devesse se sentir contente com esses sinais de amor e perdão, ela ainda tremia tanto por causa da revoada de pássaros que seu coração estava inquieto. Parecia-lhe, agora, bom demais para ser verdade. E por que, após o encerramento das saudações, o rei e seus homens afastaram-se para o lado, como se reverenciassem Conall, enquanto este caminhava através da névoa em direção ao grupo de druidas que aguardava atrás da comitiva real? Por que Conall, o príncipe fugitivo, subitamente havia se transformado em herói?

— Deve vir comigo agora. — Ela olhou para baixo e surpreendeu-se ao ver Larine sorrindo ao lado da biga. — Foi preparado um lugar para você descansar. Estará em boas mãos. — Vendo-a olhar desconfiada, ele acrescentou: — Você carrega o filho de Conall. Será altamente reverenciada. Siga-me. — E, mostrando o caminho, levou-a na direção de um pequeno alojamento. Pouco antes de chegarem, ela avistou Goibniu, o Ferreiro. Ele estava sozinho, parado, observando-a. Ela não o cumprimentou, nem ele fez qualquer tentativa de saudá-la. Apenas observou-a. Ela não sabia por quê. Ao chegarem ao alojamento, perguntou:

— Onde está Conall?

— Eu o trarei para você muito em breve — prometeu Larine.

Havia ali uma escrava, que lhe trouxe comida e bebida. Seu pai e seus irmãos, supôs ela, deviam ter recebido alojamentos em outra parte. Havia muita gente andando pelo acampamento, mas ninguém foi até Deirdre quando ela ficou parada no vão da porta. Teve a sensação de que educadamente a ignoravam, como se tivesse sido isolada.

Então, finalmente, Conall chegou. Vinha com Larine, que o seguia alguns passos atrás.

Como Conall parecia em paz. Sério, mas em paz. Ela supôs que era o alívio pela reconciliação com o tio. com que amabilidade e afeto ele olhou para ela.

— Estive com os druidas, Deirdre — falou delicadamente. — Havia coisas a serem feitas. — Fez uma pausa. — Eles vão me prestar uma grande honra.

— Isso é ótimo, Conall — comentou, sem entender.

— Seguirei numa jornada, Deirdre, que somente um príncipe pode fazer. E, se agradar aos deuses, ela trará colheitas melhores. — Fez uma pausa, olhando-a pensativamente. — Se fosse necessário que eu atravessasse o mar até as ilhas abençoadas para falar com os deuses, você tentaria impedir minha partida?

— Eu esperaria sua volta. Mas as ilhas abençoadas — acrescentou nervosamente — estão muito distantes, Conall, no mar ocidental.

— Isso é verdade. E se eu naufragasse, você choraria por mim, mas se sentiria orgulhosa, não é mesmo? Diria ao meu filho para ter orgulho de seu pai?

— Como poderia seu filho não ter orgulho do pai?

— O meu pai morreu em batalha, com honra. Portanto, minha mãe e eu não nos afligimos por ele, pois sabíamos que estava com os deuses.

— O que isso tem a ver comigo, Conall? — perguntou ela, confusa. Então Conall gesticulou com a cabeça para Larine se aproximar.

— Deirdre — disse ele —, sabe que foi o único amor de minha vida e que carrega o meu filho. Se me ama tanto quanto eu a amo, não sofra se eu partir numa viagem. E se me ama, lembre-se disso. Finbarr, a quem eu matei, era meu mais querido amigo. Mas Larine é um amigo ainda melhor. Devo deixá-la agora porque é a vontade dos deuses. Mas deixe que Larine seja seu amigo e conselheiro e nunca será prejudicada. — Dito isso, beijou-a amorosamente; em seguida, virou-se e foi embora, deixando-a com o druida.

Então Larine contou-lhe o que aconteceria.

A alvorada se aproximava. Ele estava com medo? Acreditava que não.

Quando Conall era criança, a véspera do Samhain parecia uma ocasião mágica, mas perigosa. As pessoas deixavam comida para os espíritos visitantes, mas apagavam suas fogueiras para se assegurarem de que os perigosos visitantes não se demorassem ali. Sua mãe sempre o fazia dormir perto dela, naquelas noites, quando ele era pequeno. Após a longa noite, vinha a escolha dos animais — as vacas, os porcos e as ovelhas selecionados para a matança de inverno. Para Conall, havia sempre algo de melancólico no mugido do gado quando este era conduzido para o curral onde os homens esperavam com suas facas. Os outros meninos sempre costumavam achar divertido quando os porcos eram agarrados e as cordas amarradas em volta de seus pés enquanto eles guinchavam. Após os homens os pendurarem em uma árvore pelas patas traseiras, vinha o corte no pescoço, com mais guinchos e o sangue rubro jorrando e esguichando para todo lado. Conall nunca apreciou a carnificina, embora fosse necessária, e obtinha seu consolo dos druidas abençoando a cena.

Na véspera do Samhain, quando já era um pouco mais velho, ele costumava dar uma escapada e ficar sentado sozinho lá fora. Por toda a noite, espreitava as vagas sombras e atentava para as suaves pegadas dos espíritos em visita, deslizando para o interior das cabanas de vime ou roçando nas folhas de outono. Um em particular, ele esperara. Claro que, quando menino, ele pensara que seu heróico pai viria visitá-lo. Repetidamente conjurava na mente imagens de seu pai — a figura alta sobre a qual sua mãe lhe falara, com reluzentes olhos azuis e bigodes ondulantes. Será que seu pai não iria visitá-lo? Ele nunca foi. Certa vez, na véspera do Samhain, quando ele tinha quatorze anos, vivenciara algo: uma estranha sensação de calor, uma presença perto dele. E porque almejara e desejara ansiosamente que fosse, ele acreditou que era seu pai.

Mas nesta última noite fora diferente. Ele ficara contente com a companhia de Larine. Pedira-lhe que o conduzisse através da provação e o pedido fora concedido. Haviam sentado juntos, conversado e rezado um pouco, recitando os ditos sagrados. Então, perto da meia-noite, Larine deixara-o sozinho por um instante.

Ele havia se concentrado tanto em sua provação que até mesmo se esquecera de que os espíritos estavam circulando naquela noite. Sentado sozinho na escuridão da casa do druida, não tinha certeza se caíra no sono ou se estava acordado; mas foi em algum momento da parte mais profunda da noite que ele viu a figura entrar. Era tão claramente visível quanto Larine, o que talvez fosse estranho, visto que não havia nenhuma luz; e ele soube imediatamente quem era. Seu pai parou diante dele, com um sorriso grave mas amável.

— Tenho esperado tanto tempo por você, papai — disse ele.

— Deveremos estar juntos em breve — retrucou seu pai. — Estaremos juntos para sempre, nas terras da manhã radiante. Tenho muitas coisas para lhe mostrar. — Depois ele desapareceu, e Conall teve a sensação de uma grande paz, sabedor de que ia se juntar ao pai com a bênção dos deuses.

Havia muito tempo que não se sacrificava um homem em Tara. Não por três gerações, pelo menos. Isso tornava a cerimônia muito mais solene e importante. Se havia algo capaz de afastar a maldição que aparentemente caíra sobre o rei supremo e toda a terra, certamente teria de ser isso. Se ele esperava purgar seu próprio senso de pesar e culpa após ter fugido com Deirdre e assassinado Finbarr, tal sacrifício faria a reparação. Contudo, seu senso dominante, ao se preparar para atravessar os portais para o outro mundo, não era o do sacrifício pessoal. Dificilmente seria o do pesar ou da alegria. Pesar era desnecessário, alegria, insuficiente. O que Conall vivenciava agora era um senso de destino. Não eram apenas as três geissi e a profecia sobre Finbarr que haviam sido realizadas, mas, em vez disso, naquele ato, tudo o que ele era — príncipe, guerreiro, druida — encontrava sua perfeita expressão. Era a morte mais nobre, a mais distinta. Era para o que ele nascera. Estar junto com os deuses: era sua volta para casa. Ele permaneceu em paz até surgirem os primeiros vestígios da alvorada, quando Larine retornou.

Eles o alimentaram com um pouco de bolo queimado e avelãs moídas, pois a aveleira era sagrada. Tomou três goles de água e, quando terminou, despiu-se. Então, após lavarem-no cuidadosamente, pintaram seu corpo nu com tintura vermelho-sangue, o que levou algum tempo para secar. Quando secou, Larine amarrou um bracelete de pele de raposa em volta do braço esquerdo de Conall. Depois disso, ele teve de esperar, mas só um pouco. Pois já ficava cada vez mais claro do lado de fora da porta. E, sem perda de tempo, com um sorriso, Larine lhe disse: — Venha.

Devia haver umas mil pessoas assistindo. O círculo de druidas estava de pé sobre o monte onde todos podiam vê-los. Em outro monte, estava o rei supremo. A multidão acabara de silenciar. Estavam trazendo Conall.

O rei supremo olhou atentamente para a multidão. Tinha de ser feito. Não tinha certeza se gostava daquilo, mas tinha de ser feito. Avistou Goibniu. Não restava dúvida, o ferreiro fora inteligente. A volta do príncipe penitente e sua disposição ao sacrifício foi um golpe de mestre. Isso não apenas restabeleceria o prestígio real — a casa real oferecia um dos seus aos deuses — como deixaria os druidas em uma posição delicada. Era, também, o sacrifício deles, o mais importante que poderiam fazer. Se a ilha sofresse outra perda de safra, seria difícil eles jogarem toda a culpa sobre o rei. Sua própria credibilidade estaria em jogo.

Ao lado dele estava a rainha. Ela também fora silenciada. Após a visita que Larine fizera a Conall na pequena ilha, o rei ficou sabendo das ameaças dela à pobre Deirdre. Ele já vinha desconfiando disso. Não foi necessário trocarem palavras, mas ela sabia que ele sabia. Por um bom tempo não haveria mais encrencas provocadas pela rainha. Quanto à moça, ele francamente sentia pena dela. Receberia permissão de voltar para seu pai e ter o filho de Conall. Até mesmo Goibniu concordou com isso. Um dia talvez ele fizesse algo pela criança. Nunca se sabe quando uma criança da família poderia vir a ser útil.

Abriu-se um caminho no meio da multidão. Conall, Larine e dois outros sacerdotes seguiram por ali. Ele ficou imaginando se Conall ergueria a vista para olhá-lo, mas o jovem olhava diretamente para a frente, com uma expressão arrebatada. Graças aos deuses por isso. Chegaram ao monte dos druidas e subiram. Estes, com suas capas de penas, ficaram em uma extremidade do monte, enquanto Conall, o corpo nu pintado de vermelho, permaneceu por um momento sozinho e afastado, para que todos pudessem vê-lo. O rei olhou em direção ao leste. O céu ao longo do horizonte estava claro. Isso era bom. Eles presenciariam o nascer do sol. O horizonte começava a cintilar. Agora não demoraria muito.

Três druidas foram até Conall. Um deles era Larine. A uma ordem de um dos druidas mais velhos, Conall ajoelhou-se. Por trás, o druida mais velho colocou um garrote no pescoço de Conall, mas deixou-o solto. O segundo ergueu uma faca curva de bronze. Larine ergueu um porrete.

Tinha de haver três mortes no sacrifício celta: uma para a terra, uma para o ar, uma para o céu — os três mundos. Da mesma forma, algumas oferendas eram queimadas, outras enterradas ou jogadas em rios. Conall, portanto, seria submetido às três mortes rituais. O processo em si, porém, era piedoso, pois Larine desferiria um golpe com o porrete que o deixaria atordoado; enquanto Conall estivesse mais ou menos consciente, o druida mais velho apertaria o garrote que o mataria. Então a faca curva, fendendo sua garganta, liberaria o sangue para ser derramado.

O rei olhou de relance para o horizonte. O sol saía. Chegou a hora. No monte dos druidas, houve uma movimentação, eram os druidas se aproximando para formar um círculo em volta da vítima. Tudo que a multidão podia ver agora eram as costas dos druidas cobertas com penas reluzentes e, no centro, o porrete que Larine erguia bem alto.

E agora o rei viu o sol brilhar radiante em direção a Tara, mas ele se virou bem a tempo de ver o porrete descer e sumir com um baque surdo que ressoou por todo o cercado, seguido por um longo silêncio, quebrado apenas pelo farfalhar de penas no interior do círculo dos druidas.

Lembrou-se do menino e do rapaz que conhecera, da mãe de Conall — sua irmã. Era penoso, pensou, e desejou que tivesse sido de outro modo. Mas Goibniu estava certo. O sacrifício era a única saída. Na vida sempre há sacrifícios.

Acabou-se. Os druidas recuaram, exceto os três primeiros. Larine tinha nas mãos uma enorme tigela de prata. O corpo vermelho de Conall, a cabeça pendendo à frente num curioso ângulo, estava sem vida. Quando o druida mais velho levantou a cabeça para expor o pescoço, o druida com a faca curva movimentou-a rapidamente, cortou a garganta e Larine, segurando a tigela de prata diante do peito de Conall, encheu-a com o sangue de seu amigo que escorria.

O rei supremo observava. O sangue, esperava-se, quando fosse espalhado no solo, garantiria uma safra melhor. Ao olhar em volta a multidão, pareceu-lhe que todos estavam satisfeitos. Isso era bom. Por acaso, notou a moça, Deirdre, parada ao lado do pai.

Era início da tarde quando Deirdre anunciou que, em vez de ficar para o banquete do rei, ela queria ir para casa em Dubh Linn.

Um tanto para sua surpresa, ninguém colocou qualquer objeção. O rei supremo, informado do desejo pelo seu pai, enviou-lhe suas bênçãos e um anel de ouro. Logo depois, Larine veio lhe avisar que visitaria Dubh Linn em breve e que duas bigas já estavam prontas à disposição da família. Seus irmãos, ela sabia muito bem, teriam gostado de ficar para a festa, mas o pai mandara que ficassem calados. Ela sabia que devia ir agora. Não podia permanecer mais tempo em Tara.

Entretanto, durante o assassínio de Conall, não foi nem pesar ou horror o que ela sentiu. Ela sabia como aquilo pareceria. Não passara toda a sua vida assistindo ao abate de animais no Samhain? Não, a emoção que sentiu foi totalmente diferente.

Foi raiva.

Começara a senti-la quando Larine a deixara no dia anterior. Ela ficou sozinha. Conall havia sumido e ficaria com os druidas até a cerimônia. Ela reconheceu a força deles, do rei e do terrível poder dos deuses. com o simples instinto, porém, ela entendeu algo mais: não importava o quanto aquilo fosse explicado, ele a abandonara. E, durante a noite, enquanto refletia sobre isso, mais e mais lhe vinha a raiva: todo aquele tempo na ilha, e mesmo após a visita de Larine, ele poderia ter escapado. Ele dera sua palavra, é claro. O rei e os próprios deuses a haviam exigido. Mas poderia ter escapado. Conall nunca levara isso em conta; seu pai lhe dissera para não ser tola. Mas poderiam ter fugido juntos pelo mar. Ele tivera a chance. E não a aproveitara. Ele preferiu os deuses, pensou ela. Escolheu a morte, em vez de a mim. Isso era tudo que ela entendia. Em sua mente, ela o amaldiçoou, e aos druidas, e até mesmo aos próprios deuses. E, assim, assistiu à sua morte com amargura e raiva. Isso a protegeu por um tempo da dor.

Foi imediatamente antes de partirem naquela tarde que ela teve um encontro inesperado.

Estava sozinha, parada perto de uma das bigas, quando avistou a rainha vindo em sua direção. Achando que seria melhor evitá-la, Deirdre procurou um meio de escapar; mas a mulher mais velha já a tinha visto e vinha na sua direção. Portanto, Deirdre ficou onde estava e esperou o pior. Para sua surpresa, quando a rainha chegou mais perto, fez-lhe um gesto com a cabeça que não lhe pareceu inamistoso.

— É um dia triste para você, Deirdre, filha de Fergus. Lamento pelo seu sofrimento. — Seus olhos a fitavam sem maldade. Deirdre pensou no que responder. Afinal de contas, ela era a rainha. Devia mostrar respeito. Mas não conseguiu se convencer a fazê-lo.

— Não quero que lamente por mim — rebateu amargurada. Não eram modos de se falar com uma rainha, mas ela não ligava. Que mais tinha a perder?

— Ainda está zangada comigo — observou a rainha, muito calmamente. Deirdre não conseguia acreditar.

— Não disse que ia me matar? — disparou.

— É verdade — concordou a rainha. — Mas isso foi há muito tempo.

— Pelos deuses — exclamou Deirdre —, você é uma mulher estranha. — E a mulher mais velha pareceu aceitar isso também.

— Pelo menos ele teve uma morte nobre — disse ela. — Pode se orgulhar dele. Deirdre teria apenas que curvar a cabeça ou murmurar algo cortês, mas estava agora dominada pela raiva e não pôde evitar.

— Orgulhosa de um morto — exclamou. — Vai me adiantar muito, ficar completamente só em Dubh Linn.

— Você sabe que ele não teve escolha.

— Ele poderia ter escolhido — declarou furiosa, — E escolheu. Mas não foi a mim e ao seu filho que ele escolheu, não é mesmo?

Ela fora longe demais dessa vez, e sabia disso. Insultava Sua Majestade, os druidas, a própria Tara. Meio desafiadora, meio temerosa, esperou que a ira da rainha desabasse.

Por um ou dois momentos a rainha ficou em silêncio. Sua cabeça estava abaixada, como se pensasse profundamente. Então, sem erguer a vista, ela falou.

— Não conhece os homens, Deirdre? Eles sempre nos decepcionam. E então foi embora.

No dia do solstício de inverno, na propriedade de seu pai em Dubh Linn, olhando além do vau chamado Ath Cliath, Deirdre, como havia esperado, teve um filho. Para ela, já ao nascer, ele parecia com Conall. Não tinha certeza se isso a deixava ou não feliz.

O tempo foi excelente naquela primavera, e também naquele verão. A colheita, embora não especialmente boa, não foi arruinada. E os homens disseram que foi graças a Conall, filho de Morna, sobrinho do rei supremo, que tinha influência com os deuses.

 

                           São Patrício, 450 d.C.

Sua primeira visita fora inauspiciosa, e poucos daqueles que o haviam mandado de volta imaginaram que ele conseguiria realizar muita coisa na distante ilha ocidental. Contudo, após sua chegada, tudo mudou.

Ele deixou um relato de sua vida; esse relato porém, por se tratar principalmente de uma confissão de fé e uma justificativa de seu ministério, deixa envoltos em mistério muitos detalhes de sua vida. As histórias sobre ele eram numerosas, mas na maioria invenções. A verdade é que a história nada conhece nem da data de sua missão, os nomes dos governantes irlandeses com quem ele se encontrou, nem mesmo onde, exatamente, esteve baseado o seu ofício. Tudo é incerteza; tudo é conjectura.

Mas São Patrício existiu. Disso não há nenhuma dúvida. Nasceu em uma família aristocrática britânica sem importância. Quando menino, foi raptado perto de sua casa, em algum lugar a oeste da Britânia, por piratas irlandeses. Mantido na ilha como escravo por alguns anos, durante os quais, na maioria do tempo, cuidou de gado, conseguiu escapar e encontrar o caminho de volta pelo mar até seus pais. Nessa época, porém, já decidira seguir a vida religiosa. Estudou uns tempos na Gália; talvez tenha visitado Roma. Ele afirmava que certos membros da Igreja consideravam seu aprendizado abaixo do padrão, sem dúvida por causa de sua educação interrompida. Talvez haja, contudo, alguma ironia nessa afirmação, pois seus escritos sugerem uma sofisticação literária como também política. Na ocasião oportuna, foi enviado, a seu pedido, como bispo missionário à ilha ocidental, onde outrora fora escravo.

Por que quis voltar para lá? Em seus textos, declara que tivera um sonho no qual ouviu vozes dos insulanos chamando-o, implorando para que lhes levasse o Evangelho. Não há motivo para se duvidar da autenticidade desse registro: relatos de visões e vozes sobrenaturais abundam no período inicial da Igreja, e têm sido registrados desde então. No caso de São Patrício, a experiência foi decisiva. Ele implorou para que lhe fosse dada a missão ingrata e possivelmente perigosa.

A data que a tradição marca como sua chegada à Irlanda, 432. d.C., é apenas um palpite. Pode ter sido bem antes. Em algum momento, contudo, durante as décadas que se seguiram à queda do Império Romano no Ocidente, o bispo Patrício iniciou sua missão. Não foi, de modo algum, o primeiro missionário a alcançar as praias irlandesas: as comunidades cristãs de Munster e Leinster já estavam lá havia talvez uma geração ou mais. Ele, porém, foi provavelmente o primeiro missionário no norte se, como parece provável, sua base de operações ficava perto de Armagh, em Ulster, onde o rei do antigo Ulaid, acuado em um território reduzido pelo poderoso clã de Niall, gostou suficientemente do bispo para lhe dar sua proteção local.

Da efetiva pregação de São Patrício não resta nenhum registro confiável. Seu famoso sermão, no qual explica o mistério da Santíssima Trindade comparando-a a um trevo, é uma lenda encantadora, mas não há nenhuma evidência de que tenha dito tal coisa. Igualmente, pode-se acrescentar, ninguém é capaz de afirmar que ele não o tenha dito. Muito mais pode ser inferido em relação à personalidade e ao estilo missionário de São Patrício. Humilde, como todos aqueles que vivem do espírito, como bispo da Santa Igreja ele exigiu e obteve o respeito devido a um príncipe celta. De sua base em Ulster, ele pode ter ido na direção oeste e estabelecido uma segunda frente missionária em Connacht. Sem dúvida, de tempos em tempos, esteve em contato com seus colegas cristãos na metade sul da ilha.

E será que, em suas viagens, desceu a antiga estrada que levava à travessia do Liffey no Vau das Cercas e chegou ao pequeno assentamento perto de Dubh Linn? A história consegue apenas dizer que o registro, nesse ponto, silencia.

Seria a qualquer momento. Todos sabiam. Fergus estava morrendo. As folhas de outono caíam e ele estava pronto para partir.

E agora chamara a família para uma reunião. O que ele ia dizer?

Fergus governara por tanto tempo que era o único chefe que o povo da região já conhecera. com o avançar da idade, sua perspicácia e sua sabedoria continuaram a se desenvolver. Os moradores da Planície do Liffey recorriam a ele em busca de justiça; e o território ao redor de Ath Cliath passara a ser conhecido, em grande parte de Leinster, como Terra de Fergus. E nos últimos vinte anos, desde a morte de Conall, ela cuidara fielmente da casa para ele. Dia após dia, cuidara dele naquele último longo ano, enquanto seu esplêndido velho corpo gradualmente sucumbia. Mesmo agora, perto do fim, ela sempre o mantinha limpo. E ele era grato. “Se atingi esta idade avançada, Deirdre, foi graças a você”, dissera-lhe mais de uma vez diante de seus irmãos.

Contudo, era ela própria, pensou Deirdre, quem devia agradecer a ele — pela paz que lhe dera. Vinte anos de paz ao lado do Liffey. Vinte anos para caminhar ao lado de suas águas, pelas areias da baía e o promontório que ela amava. Vinte anos para criar seu filho, Morna, em segurança sob a delicada proteção das montanhas de Wicklow.

Morna, filho de Conall. Aquele que todos amavam. Aquele que protegiam. Aquele que haviam escondido. Morna: o futuro. Ele era tudo o que ela possuía.

Após a morte de Conall, ela nunca aceitara qualquer outro homem. Não que não sentisse necessidade. Às vezes, seria capaz de gritar de frustração. O problema eram os homens. A princípio, havia suposto que talvez conseguisse encontrar alguém num dos grandes festivais. “Você não encontrará outro Conall”, seu pai a alertara. Ela, porém, tivera a esperança de que algum jovem chefe pudesse se interessar. O tempo que passara com Conall no mínimo serviu para lhe dar segurança com relação aos homens. Ela mantinha a cabeça erguida. Podia ver que os deixava agitados. Contudo, embora fossem corteses — afinal, o próprio rei supremo a escolhera como noiva — as pessoas eram cautelosas. O príncipe que se entregara ao sacrifício era uma estranha imagem de honra e reverência. Sua mulher, porém, a causa do problema, deixava as pessoas nervosas.

— Você acha que sou uma ave de mau agouro? — desafiou ela, às gargalhadas, um jovem nobre. — Tem medo de mim?

— Não tenho medo de ninguém — devolveu, indignado. Mesmo assim, porém, ele a evitava.

Após um ou dois anos, deixou de ir aos festivais.

O que lhe restava então? Algumas poucas almas corajosas na região de Dubh Linn. Dois robustos fazendeiros, um pescador viúvo com três barcos: eles não a inspiravam. Certa vez, seu pai levara para casa um comerciante da Britânia, que lhe vendeu alguns escravos. Ele era mais interessante. Entretanto, ela teria de ir embora e viver do outro lado do mar. Deirdre ficou comovida pelo pai ter sugerido tal coisa, pois sabia que ele precisava dela e que amava seu netinho; quando ela resolveu que não ia, ele não pareceu lamentar muito.

Morna, eles o chamaram, como o pai de Conall. Seus primeiros dois anos, para ela, foram especialmente difíceis. Talvez, se ele não parecesse tanto com Conall, tivessem sido mais fáceis. Ele tinha os estranhos olhos verdes dela; mas, em todos os outros aspectos, era imagem do pai. Ela não podia evitar. Sempre que olhava para seu rostinho, tinha visões do destino do pai esperando-o. Era perturbada por pesadelos: pesadelos com Tara, pesadelos de sangue. Desenvolvera um pavor de druidas — um pavor de que eles, de algum modo, fossem tirar o seu filho e destruí-lo. Um ano após o nascimento de Morna, Larine viera, como prometera que faria. Ela sabia que sua intenção era boa. Entretanto, não agüentou vê-lo e falou para o pai pedir que ele fosse embora. Fergus ficou preocupado que ele se sentisse ofendido e isso pudesse atrair uma maldição de druida, mas Larine pareceu entender. Desde então, ela não o viu mais.

Morna era um menino alegre. Gostava de brincar, de caçar com o pai dela. Fergus se derramava por ele. Para o alívio de Deirdre, ele não demonstrava sinais de querer se isolar ou de melancolia. Era uma criança ativa e afetuosa. Adorava pescar, procurar ninhos de passarinhos e nadar nas águas do Liffey ou do mar. Quando ele tinha quatro anos, Deirdre o levara para fazer o seu passeio favorito até o promontório, de onde do alto se contemplava a ilha, e ao longo da praia onde crocitavam as aves marinhas. Seus irmãos também eram afetuosos com ele. Quando era pequeno, eles pareciam gostar de brincar com ele a manhã toda. Ensinaram-lhe a pescar e tocar o gado. Ele gargalhava com as brincadeiras dos dois. Quando fez dez anos, ia contente com eles nas demoradas conduções de manadas de gado que às vezes podiam durar um mês ou mais.

Mas, acima de tudo, era Fergus quem cuidava da educação do menino. Certa vez, quando Deirdre começara a lhe agradecer, ele a interrompeu: “Ele é meu único neto”, grunhiu. “Que outra coisa eu poderia fazer?” De fato, o menino deu ao seu avô um novo alento na vida. Raramente Fergus ficava deprimido depois que passou a cuidar de Morna. Ele bebia moderadamente. Dava a impressão de ter encontrado um novo vigor. Ela, porém, sabia que era mais do que isso, pois ele notara um dom especial no menino. Todos notaram. Sua rapidez no aprendizado encantava Fergus. Aos seis anos, Morna conhecia todas as histórias de Cuchulainn, dos lendários reis da ilha e dos deuses antigos. Também era capaz de narrar as histórias da família de sua mãe, do assassinato de Erc, o Guerreiro. Fergus adorava deixar que Morna segurasse a velha taça de caveira enquanto contava a história. Ensinou o menino a usar espada e disparar lanças. E, é claro, Morna quis saber se seu pai também havia sido um grande guerreiro.

Deirdre ficara em dúvida sobre o que dizer, mas Fergus o satisfizera sem qualquer dificuldade. “Ele lutou todos os tipos de batalha”, declarou animadamente. “A maior, porém, foi contra Finbarr. Um homem terrível. Seu pai o matou perto daqui, no litoral próximo à Planície das Revoadas de Pássaros.” Morna nunca se cansava de ouvir detalhes da luta, dentre eles um que incluía a morte adicional de um monstro marinho. Não era nenhuma surpresa, então, que Morna sonhasse ele mesmo em se tornar guerreiro e herói. Mas Fergus controlava isso muito bem. “Eu queria a mesma coisa, quando era menino”, disse ao neto. “Mas a maioria dos guerreiros atravessa o mar para saquear as posses de outros homens; por outro lado, veja quanto gado nós temos aqui. Você também terá de defender este lugar.” Se, enquanto crescia e se tornava um homem, Morna sonhava às vezes em se tornar um guerreiro, ele não falava a respeito.

Não era, em todo caso, seu potencial como guerreiro que tanto impressionara seu avô. Mas sua inteligência. Isso se revelava em tudo o que ele fazia. Depois que ele fez dez anos, Fergus pedia que se sentasse a seu lado, quando as pessoas iam à procura de justiça. Após alguns anos, o menino sabia quase tanto quanto ele sobre as antigas leis comuns não-escritas da ilha. Ele se deleitava com os problemas complicados. Se um homem vendesse uma vaca e, um mês depois, ela tivesse um bezerro, a quem este pertencia: ao novo dono ou ao antigo? Se um homem construísse um moinho movimentado por um riacho que descia das terras de outro homem, este teria o direito de usar o moinho de graça? E o mais sutil de todos, qual de dois gêmeos era o mais velho, o que nasceu primeiro ou o segundo? Em outras partes da Europa, era o primogênito, mas, na ilha ocidental, nem sempre. “Pois, se ele veio atrás do outro”, raciocinava Morna, “então devia ter estado lá primeiro. Portanto, o que nasceu depois é o mais velho.”

Seus filhos nunca teriam imaginado isso, pensou Fergus. A não ser em casos do interesse deles, tais problemas abstratos não os interessavam.

Havia algo mais em relação a Morna, algo difícil de definir. Revelado em seu amor pela música, pois tocava harpa lindamente. Revelado em seu comportamento — e ia além de sua sombria boa aparência. Ainda jovem, tinha a dignidade do velho Fergus; havia, porém, algo mais, uma qualidade mágica que atraía as pessoas para ele. Era majestoso.

Não fora fácil decidir o que dizer a Morna sobre sua ascendência real. Deirdre não queria contar nada.

— Ele não vai obter nada de bom disso — argumentara —, não mais do que seu pai. — O sangue real era uma maldição, não uma bênção. O pai dela não discordava dessa opinião.

— Mas temos de lhe dizer alguma coisa — alegou ele. Morna tinha dez anos, quando seu avô finalmente tocou no assunto.

— Seu pai tinha sangue real por parte de mãe — informou a ele certo dia. — Mas isso não lhe fez nenhum bem. O rei supremo tinha antipatia por ele. Foi o rei quem mandou Finbarr matá-lo.

— Será que o rei também me odeia? — perguntara o menino.

— Provavelmente ele já esqueceu de sua existência — respondeu Fergus. — E é melhor para você que ele tenha esquecido. Você está seguro aqui em Dubh Linn — acrescentou; e visto que Morna assentiu silenciosamente, o velho deduziu que ele aceitara o que fora dito.

Quanto ao papel da mãe do menino na rixa com o rei e o sacrifício de Conall, Fergus deu ordens a seus filhos e todo o seu pessoal para que esse assunto jamais fosse mencionado em sua presença. Aliás, de qualquer maneira, pouca gente estaria mesmo inclinada a fazer isso. A história do príncipe que fora sacrificado era algo de que se falava com parcimônia, aos cochichos. Muitos se sentiam constrangidos com isso; outros declaravam abertamente que os druidas tinham errado ao fazê-lo. Por consenso, era melhor que o assunto fosse esquecido. Uma delicada e protetora conspiração silenciosa originara-se na região. E se, ocasionalmente, um viajante perguntasse que fim levara a mulher de Conall, parecia que ninguém nunca mais tinha ouvido falar nela.

Com o passar dos anos, e sem aparecer ninguém para perturbá-los, Deirdre encontrara a paz. Sua posição como matriarca da família estava garantida, pois nenhum de seus irmãos tinha esposa, e Fergus confiava plenamente nela. Os moradores da região tratavam-na com respeito. E quando, naquele verão, chegou notícia da morte do velho rei supremo, ela sentiu, finalmente, que estava livre: o passado podia descansar; Morna estava salvo. Morna — o futuro.

Ela não sabia por que seu pai reunira a todos. Diante de sua convocação, entretanto, seus irmãos vieram obedientemente do pasto e Morna, do rio, e todos haviam se dirigido à casa. Agora esperavam para saber o que ele tinha a dizer.

Era uma velha figura imponente, sentada aprumada, envolta em uma capa ao lado do fogo. Seu rosto era pálido e esquelético, mas os olhos encovados ainda perfuravam. Fez um gesto para Morna ficar à sua direita, e Deirdre à esquerda, enquanto seus dois filhos permaneciam diante dele. Fosse o que fosse que pretendesse dizer, Fergus não se apressou, fitou os filhos pensativamente como se estivesse juntando forças. Enquanto esperava, Deirdre também os fitava.

Ronan e Rian. Dois homens desengonçados. Ronan um pouco mais alto do que seu irmão mais novo, com cabelos negros onde os de Rian eram castanhos. Seu rosto revelava os mesmos traços altivos do pai, mas nada tinha de sua força; o irmão dela também desenvolvera uma ligeira inclinação nos ombros, o que lhe dava um ar abatido. Rian parecia apenas sereno.

Por que motivo, em todos aqueles anos, nenhum dos dois conseguira arrumar uma esposa? Pelo menos um deles poderia ter-se casado. Será que ao menos tentaram? Não que eles não tivessem interesse em mulheres. Houve por algum tempo aquela escrava britânica. com certeza Ronan dormira com ela. Deirdre achava que ambos haviam dormido. Houve até mesmo um bebê, só que morreu. Então a garota ficou adoentada e, no final das contas, Deirdre vendeu-a. Ela se oferecera para comprar outra para eles, mas de algum modo os negócios declinaram e nunca mais conseguiram dinheiro suficiente. Ela soube que eles conseguiam mulheres quando estavam fora, conduzindo as manadas de gado, ou nos festivais. Uma esposa, porém, jamais. “É muito aborrecimento”, disseram-lhe. E, de forma mais gratificante, Ninguém cuidaria da casa como você”. De certo modo, supunha, ela devia se dar por agradecida por não ter rivais no seu pequeno domínio. Os anos, em todo caso, haviam passado, e seus irmãos pareciam suficientemente felizes, caçando e cuidando do rebanho de Fergus, o qual, diga-se de passagem, crescera bastante.

Seu pai, porém, não estaria decepcionado com o malogro dos dois filhos em lhe darem netos? Provavelmente sim, mas nunca disse isso; e, visto que, durante todos os anos que se passaram, ele nunca os pressionara a se casarem, ela se deu conta de que ele devia ter tirado suas próprias conclusões particulares sobre os filhos.

Finalmente Fergus falou.

— Meu fim está se aproximando. Só me restam poucos dias. Então chegará a hora de escolher um novo chefe para os Ui Fergusa.

Ui Fergusa: os descendentes de Fergus. Era costume na ilha um clã eleger seu chefe do círculo familiar — normalmente os descendentes masculinos, até primo em segundo grau, de um único bisavô. No caso do pequeno clã que ocupava Dubh Linn, com exceção dos irmãos de Deirdre, não havia descendentes homens sobreviventes do pai de Fergus, de Fergus, nem mesmo do seu avô, que lhes deixara a velha taça de caveira. Após os irmãos de Deirdre, portanto, a não ser que tivessem herdeiros do sexo masculino, o clã teria um problema. As regras, contudo, não eram absolutas. A sobrevivência era o segredo.

— Embora eu esteja velho — destacou Fergus —, nunca foi designado um Tanaiste. — Tratava-se do herdeiro reconhecido de um chefe. Era bastante comum um clã indicar um herdeiro durante o governo de um chefe. — Admitindo-se que um de vocês dois, Ronan ou Rian, venha a me suceder, depois de vocês não haverá ninguém para herdar, exceto o filho de Deirdre.

— Terá de ser Morna — ambos concordaram. — Morna deverá ser o chefe do clã depois de nós.

— Ele dará um bom chefe? — indagou ele.

— O melhor. Sem dúvida — ambos responderam.

—Então, eis o que proponho. — Fitou-os calmamente. — Deixem que Morna seja chefe em vez de vocês. — Fez uma pausa. — Reflitam. Se vocês mesmos o escolherem, ninguém poderá duvidar do direito dele. Vocês o amam como a um filho e ele vê vocês como dois pais. Unam-se em torno de Morna e o clã de Fergus será forte. — Parou e olhou cuidadosamente de um para o outro. — Esse é o meu último desejo.

Deirdre observou-os. Ela não fazia idéia de que seu pai iria propor tal coisa. Sabia que, no tempo devido, Morna talvez herdasse a chefia dos seus tios, embora não fosse da linha masculina. Mas percebeu a lógica profunda nas palavras do velho. A verdade é que nenhum dos dois era realmente talhado para ser chefe e, no fundo de seus corações, talvez soubessem disso. Mas serem forçados daquele modo a desistir de suas pretensões em favor do filho da irmã deles, que ainda era um jovem? Isso era algo difícil. No demorado silêncio que agora se seguiu, ela nem sequer tinha certeza de como se sentia em relação a isso. Desejava tal coisa assim tão cedo? Isso causaria ressentimentos, e até mesmo colocaria Morna em risco? Pensava se devia intervir e pedir ao pai que reconsiderasse, quando seu irmão Ronan falou.

— Ele é jovem demais — disse com firmeza. — Mas se eu for o chefe, ele poderá ser nomeado meu Tanaiste. Que objeção pode haver a isso?

Deirdre arregalou os olhos. Ronan ficara pálido, Rian parecia constrangido. Morna olhou rapidamente para ela, indeciso e preocupado.

— Eu preferiria esperar — disse ele respeitosamente ao avô. — A sugestão de Ronan me contentaria.

O velho, porém, embora sorrisse para o neto, sacudiu a cabeça.

— É melhor desse modo — rebateu. — Meditei cuidadosamente sobre o assunto e tomei uma decisão.

— Tomou uma decisão? — irrompeu Ronan asperamente. — E o que significa isso? Não caberá a nós decidir, depois que você se for?

Deirdre nunca tinha ouvido seu irmão se dirigir ao pai com tamanho desrespeito, mas Fergus aceitou aquilo com tranqüilidade.

— Você está irritado — disse ele calmamente.

— Deixe que seja Morna, Ronan. — Agora foi Rian quem interveio, a voz delicadamente suplicante. — Afinal de contas, o que um de nós dois faria sendo chefe? — Subitamente ocorreu a Deirdre que Rian talvez preferisse ter Morna como chefe do que ser governado pelo irmão. Ao olhar para os dois, ela percebeu o quanto habilmente o seu velho pai lidara com a questão, pois Ronan não apenas daria um péssimo chefe, como depois que soubessem que Fergus escolhera Morna, nenhum dos habitantes de Dubh Linn aceitaria o irmão dela como chefe.

E, no silêncio que se seguiu, Ronan também deve ter-se dado conta disso, pois, após um instante, ele suspirou.

— Que seja então o garoto, se é esse o seu desejo. — Deu um sorriso amarelo para o sobrinho. — Você dará um bom chefe, Morna. Não nego isso. com alguma ajuda — acrescentou, para salvar as aparências.

— Era isso que esperava ouvir — declarou Fergus. — Mostrou sabedoria, Ronan, como eu sabia que faria.

E agora, colocando a mão sobre o braço de Morna, o velho chefe levantou-se lentamente. Como fazia quase um mês que não andava sem ajuda, Deirdre só podia imaginar o esforço que aquilo lhe custava, e quase adiantou-se para ajudálo; mas compreendeu que não era o que ele desejava. com a capa ainda em volta do corpo, Fergus ficou ali de pé como uma estátua, a magreza apenas acrescentando imponência à sua dignidade.

— Traga a taça de caveira — ordenou baixinho a ela. Deirdre apanhou-a e colocou-a diante dele, Fergus então pousou a mão na taça e indicou que Morna e seus tios deviam fazer o mesmo.

— Jurem — ordenou. — Jurem que Morna será o chefe do clã.

E eles juraram. E, quando terminaram o ritual, abraçaram-se e concordaram que fora uma decisão sábia. Fergus então descansou. E Deirdre, sem saber se devia ficar feliz ou não com o que acabara de acontecer, pôde apenas pensar em uma coisa: Ronan gentilmente dera a vez a Morna, mas ele manteria sua palavra?

A solitária biga chegou na tarde do dia seguinte. Era um veículo veloz e esplêndido. Morna e seus tios, como de costume, estavam fora, com o rebanho; Fergus, sentindo-se fraco após os acontecimentos do dia anterior, descansava lá dentro; mas Deirdre, que estava sentada ao sol do lado de fora da casa remendando uma camisa, observou com interesse sua aproximação. Não era sempre que um veículo tão esplêndido passava por ali. Nele, de pé ao lado do cocheiro, aproximou-se um jovem nobre com cerca da idade de Morna, longos bigodes escuros e uma linda capa verde, que olhou para Deirdre e gritou para saber se aquela era a casa de Fergus.

— É, mas ele está doente. Que assunto deseja tratar com ele?

— Nenhum que lhe interesse, creio eu — retrucou o jovem guerreiro, que obviamente pensou que ela fosse uma criada. — Mas é Morna, filho de Conall, que vim procurar.

— Morna? — Ela desconfiou imediatamente, e logo pensou o que responder, quando a voz de seu pai veio fracamente lá de dentro.

— Quem é, Deirdre?

— Apenas um viajante de passagem por aqui, papai.

— Deixe então que ele entre — gritou debilmente de volta, mas isso foi seguido por uma tosse e o ruído do chefe pelejando para recuperar o fôlego. Ao ouvir o esforço do pai ela decidiu dar uma resposta firme.

— Eu sou Deirdre, filha de Fergus. Como pôde ouvir, meu pai está muito doente. Na verdade — baixou a voz —, não deverá viver por muitos dias mais. Pode transmitir a mim a sua mensagem,

O mensageiro pareceu desconcertado, mas não podia argumentar.

— É uma mensagem do rei supremo que devo transmitir. Vai haver o feis em Tara. E pede que seu filho, Morna, compareça.

— Tara? — Deirdre encarou alarmada o jovem nobre. — Por que Morna e não Fergus deve ir ao feis?

Agora foi a vez do visitante parecer surpreso.

— Seria estranho se ele não fosse — retrucou. — Afinal, ele é o primo do próprio rei.

O feis — a cerimônia de posse na qual o rei se acasala com uma égua — não ocorria antes do Samhain. Ainda estava distante. Ela disse a si mesma que tinha pouco tempo. Mas por que esse repentino interesse do novo rei em Morna? Seria apenas um gesto de cortesia para com alguém que o antigo rei havia ignorado? Ou haveria outro motivo por trás daquilo? Ela não tinha como saber. O que devia fazer?

Então ficou quase abismada ao ouvir a própria voz responder calmamente.

— É realmente uma notícia maravilhosa. — Deu um sorriso para o jovem nobre. — Meu filho se sentirá honrado. Todos nós nos sentiremos honrados. Só há um problema.

— E qual é?

— Ele não está. Está fora. — Fez um gesto em direção ao estuário. — Em uma viagem marítima. Prometeu retornar antes do inverno, mas... — suspirou. — Se eu soubesse onde ele está, poderia mandar buscá-lo. Ele ficará muito desgostoso por perder um evento tão formidável.

— Acredita, porém, que ele poderá retornar a tempo?

— Ele sabe que seu avô não vai demorar muito neste mundo. Esperamos que ele retorne antes que o avô parta. Mas isso está nas mãos dos deuses.

Ela ofereceu-lhe uma bebida, mas indicou que seria melhor não entrar no quarto de enfermo onde se encontrava seu pai.

O mensageiro permaneceu apenas por pouco tempo antes de partir. Levou consigo mensagens de lealdade do velho chefe e a clara impressão de que o jovem Morna se apressaria ansiosamente para ir ao feis se chegasse a tempo no litoral da ilha. Seu desempenho, Deirdre disse depois a si mesma, fora bem impressionante. Só havia um problema.

Ela simplesmente mentira ao rei supremo.

Por que fizera aquilo? Nem mesmo sabia dizer. Morna, porém, não deveria ir. Estava convencida disso. Mesmo durante o curto espaço de tempo que o mensageiro permanecera ali, ela ficara sentada num estado de aflição. Quando ele partiu, pareceu-lhe que uma sombria e perigosa presença partira da casa. Naquela noite, teve um pesadelo no qual ela e Morna aproximavam-se de Tara e os estorninhos novamente se erguiam do chão como uma névoa negra. Acordou em pânico. Não, ele não devia ir.

No dia seguinte, Morna e seus tios retornaram. Ela dera instruções aos escravos para não contarem sobre a visita do mensageiro. Entretanto, ninguém havia escutado a conversa. Nenhum deles — Morna, seus irmãos, nem o próprio chefe — tinha idéia do que ela fizera.

Havia um risco, é claro. Se algum dia o novo rei supremo descobrisse a mentira, ele a consideraria um insulto. Mas, pelo menos, a mentira era dela. Ele poderia fazer com ela o que quisesse. Não se importava. Aliás, havia apenas uma pequena e incômoda dúvida perturbando sua consciência. Era possível que ela estivesse enganada, que o novo rei supremo apenas pretendesse uma cortesia ou uma amizade — que, na verdade, não havia qualquer perigo no convite feito a Morna? Seria o temor de Deirdre não tanto por causa da segurança de Morna, mas, antes, se ele fosse até o rei supremo e recebesse seus favores, talvez não quisesse voltar para ela em Dubh Linn? Não estaria ela sendo não apenas tola mas também egoísta? Não. Não era isso. Afastou da mente o pensamento indesejável.

O definhamento final de Fergus, o chefe, começou três dias depois.

Foi uma época penosa. Houve a tristeza de ver seu pai indo embora; a tristeza, também, de ver a dor de Morna pela sua partida. Seus dois irmãos se reprimiam: por várias vezes, Rian parecera quase chegar às lágrimas e, se Ronan ficou com raiva por ter sido preterido, até isso parecia agora esquecido. Ela cuidou do velho incansavelmente. Estava determinada a que sua morte se desse da forma mais suave e digna possível. Mas teve de admitir que também havia outra ponderação em sua mente.

Se ao menos conseguisse manter vivo Fergus até o Samhain. Que ele morresse, se tivesse de morrer, mas depois disso. Mesmo se o rei supremo descobrisse que Morna estava em Dubh Linn na ocasião, não se queixaria pelo fato de o jovem permanecer lá para cuidar de seu chefe e avô no leito de morte. Viva, pedia a ele. Viva mais um mês por mim. “Deixem-no viver”, orava silenciosamente aos deuses de seu povo, “pelo menos até depois do festival de Samhain.” E quando, em vez disso, ele a deixou no início de outubro, sua dor tornou-se ainda mais aguda por causa da desesperada aflição.

Deram-lhe um excelente velório. Ninguém poderia culpar a família de Fergus por isso. Por três dias os convidados beberam e conversaram, comeram e cantaram. Beberam como apenas amigos do morto são capazes. Chefes, fazendeiros, boiadeiros, pescadores, todos se reuniram para beber por ele em sua passagem para o mundo melhor do além. “Excelente velório, Deirdre”, disseram.

Enterraram-no, talvez não tanto quanto ele sonhara — de pé, completamente armado, olhando além do rio para seus inimigos invisíveis — mas bastante honradamente, sob um simpático monte perto das águas do estuário. E, ao mesmo tempo, proclamaram que Morna era o novo chefe.

com o fim do funeral, Dubh Linn retornou à costumeira quietude e acompanhou os ritmos do outono. Morna e seus tios trouxeram o gado de seu pasto de verão. Nos bosques, os porcos engordavam com as bolotas caídas. Na estrada em direção às montanhas, podia-se ouvir, de tempos em tempos, o urro de um veado na época do cio. No assentamento, tudo estava silencioso. Uma manhã podia transcorrer com apenas o som do riacho se derramando na lagoa negra em frente e o delicado roçar das folhas caindo. Fazia um ótimo tempo, mas Deirdre estava ciente de que os dias ficavam mais curtos e da aspereza no ar.

Também estava ciente da data. O Samhain não estava distante. Agora a travessia do rio podia estar deserta, mas em breve haveria grupos de viajantes seguindo caminho, desde o sul, estrada acima, até chegarem a Tara. E então outro pensamento lhe ocorreu, do qual não se dera conta antes: os viajantes passariam pela propriedade deles. Como chefe, esperava-se que Morna lhes fornecesse hospitalidade e os entretivesse. Um chefe tão jovem e vistoso seria objeto de comentários. Alguém, chegando a Tara, seguramente mencionaria o sucessor do velho Fergus no Vau das Cercas. Seria realmente de se esperar que nenhuma palavra sobre a presença de Morna chegasse aos ouvidos do rei supremo? Não, não seria. A situação era aflitiva. Se ela não conseguisse pensar em algo, sua mentira seria descoberta.

O que mais poderia fazer? Não conseguia pensar em nada. Mandar Morna Para longe? com que possível pretexto? O bom senso dizia que só havia uma coisa a fazer. Ela devia lhe contar imediatamente sobre a convocação feita pelo rei supremo e deixar que ele decidisse por si mesmo. Contudo, a estação do outono tornava tudo pior ainda. A paisagem, os odores, a sensação do ar frio de outono, tudo parecia conspirar para arrastá-la de volta àquela estação, quando ela fora com tanta má vontade naquela terrível viagem com Conall a Tara. Sentia-se tão sozinha. Gostaria que Fergus estivesse ali para lhe dar seu conselho, mas desconfiava de que sabia qual seria o conselho dele. Contar a Morna.

Então por que não o fazia? Não conseguia. Essa não era a solução. Ela sabia disso. A cada dia que o Samhain ficava mais perto, seu nervosismo aumentava. Dias se passaram. Começou a prometer a si mesma, cada noite, que no dia seguinte contaria ao filho. A cada manhã acordava e decidia esperar, apenas até à noite, para o caso de algo — não fazia idéia do quê — poder surgir durante o dia e resolver a situação. E a cada noite, depois que nada havia mudado, ela prometia a si mesma, novamente, contar a ele pela manhã.

Um dos escravos britânicos viu-os primeiro. Quando ela chegou à entrada da casa, o grupo de cavaleiros estava a meio caminho da travessia do Vau das Cercas. Parecia haver quatro deles. Um, perto do líder, aparentava carregar uma lança ou uma espécie de tridente, a qual, oscilando atrás da cabeça dele, dava-lhe uma estranha aparência, como se fosse um veado com galhada. Ela observou curiosamente à medida que se aproximavam. Então, com súbita e aflita apreensão, como a de um pesadelo sem fim, percebeu quem era o líder.

Era Larine.

Devia vir a mando do rei supremo.

Cavalgou lentamente pelo caminho que levava ao assentamento. Não estava muito mudado. Os cabelos agora estavam grisalhos, mas rapados na mesma tonsura. Parecia saudável. O rosto permanecia tranqüilo e atento. Ela observou sua aproximação com um aperto no peito. E ele estava perto da entrada, quando algo estranho aconteceu. Os escravos britânicos—havia agora meia dúzia—todos eles correram e caíram de joelhos diante dele. Desviou-se ao passar por eles e fez um sinal solene sobre suas cabeças. Um momento depois, apeou e parou diante dela.

— O que deseja, Larine? — perguntou-lhe, tentando conter o temor em sua voz.

— Apenas você e seu filho — respondeu tranqüilamente.

Era isso, então. Ele viera para levá-los a Tara. Apenas uma coisa parecia estranha. Os escravos estavam parados em volta, com sorrisos nos lábios.

— O que os meus escravos estão fazendo? — indagou ela. — Por que eles se ajoelharam?

— Por que são britânicos, Deirdre. Eles são cristãos.

— Então por que se ajoelharam para um druida?

— Ah. — Ele sorriu. — Você não soube. Sabe, Deirdre, eu sou cristão. — Fez uma pausa. — Aliás, sou um bispo.

Ela o fitou, confusa.

— Mas não veio a mando do rei supremo? Ele a olhou com uma leve surpresa.

— O rei supremo? Nada disso. Há muitos anos que não vejo o rei. — Segurou-a delicadamente pelo braço. — Vejo que é melhor eu explicar. Podemos entrar? — E, indicando a seus homens que deviam esperá-lo, conduziu-a para dentro.

Quando entraram, ela ainda tentava entender suas palavras. O comprido cajado, que ela tomara por um tridente, revelou-se uma cruz. O jovem, que orgulhosamente a segurava, permaneceu do lado de fora com os dois criados, quando ela seguiu Larine para o interior da casa. Mas Larine, o druida, agora um cristão? Como foi possível? Afinal de contas, o que ela sabia sobre cristãos? Tentou refletir.

Os romanos eram cristãos. Todo mundo sabia disso. Como muitos na ilha ocidental, ela havia suposto vagamente que, com a demolição de todas as construções romanas do outro lado do mar, eles ouviriam falar cada vez menos do cristianismo com o passar dos anos. Estranhamente, porém, fora o contrário que aconteceu.

Era o pai dela que sempre colhia as notícias. Pelos ocasionais navios mercantes que paravam no desembarcadouro em Dubh Linn, ele descobriu que, longe de desistir, as igrejas cristãs na Gália e mesmo na Britânia pareciam encarar os problemas e as invasões como um desafio à sua religião, e reagiam. Ela sabia que havia alguns cristãos na ilha, no sul. E, de vez em quando, seu pai costumava retornar de uma de suas viagens e relatar: “Não vai acreditar, mas temos agora outro grupo de cristãos em Leinster. Há apenas alguns poucos, mas o rei de Leinster permitiu que ficassem lá. Não há a menor dúvida.” Entretanto, se os sacerdotes cristãos tinham vindo originalmente pregar para os escravos, com o passar dos anos Fergus começara a trazer outros fragmentos de notícias. Um chefe, ou sua mulher, fora convertido. Num ano, ouvira falar de uma novidade que o fez sacudir a cabeça. “Um grupo de cristãos planeja instalar um local de culto à vista de um santuário druida. Já imaginou?”

Se, porém, ela havia suposto que Fergus ficaria veementemente contra essa usurpação estrangeira, ficou surpresa em descobrir que a reação dele foi bem silenciosa. O pior que ele disse sobre a afronta aos druidas foi que era “imprudente”. Quando ela o desafiou com relação a isso e lhe perguntou como o rei de Leinster podia ter permitido tal coisa, ele lhe deu um olhar pensativo e declarou: “O rei deve estar satisfeito com eles, Deirdre. Se os druidas se tornarem poderosos demais, será um meio de mantê-los sob controle. Ele pode intimidá-los com os sacerdotes cristãos.” A cínica atitude do pai não a chocara nem um pouco.

Entretanto, mesmo seu velho pai certamente ficaria pasmado ao ver Larine, o druida, entrando agora sua casa como um bispo cristão. Ao se sentarem, Larine lançou-lhe um olhar amistoso mas agudo, expressou seu pesar pelo falecimento de seu pai, comentou que ela estava com uma ótima aparência e, então, de um modo bastante prosaico, observou:

— Você está com medo de mim, Deirdre.

— Foi você quem veio levar Conall embora — lembrou-lhe com uma branda amargura.

— Ele foi por vontade própria.

Ela o olhou fixamente. Ele agora podia ser um bispo de cabelos grisalhos, mas tudo o que Deirdre conseguia enxergar naquele momento era o discreto druida, o suposto amigo que convencera Conall a abandoná-la e entregar sua vida aos deuses cruéis de Tara. Se o outono recentemente trouxera de volta as lembranças daquela época terrível, agora, na presença de Larine, o dia do próprio sacrifício, a imagem de Conall se afastando com o corpo nu lambuzado de vermelho, os druidas com seus porretes, garrotes e facas — tudo irrompia em sua lembrança com uma nitidez e uma força que a fizeram tremer.

— Vocês, druidas, o mataram — berrou, com impetuosa ira. — Que os deuses amaldiçoem todos vocês!

Ele permaneceu sentado completamente imóvel. Ela o insultara, mas ele não parecia zangado. Seu aspecto era apenas de tristeza. Por um ou dois momentos ele não reagiu. Então, suspirou.

— É verdade, Deirdre. Eu ajudei a executar o sacrifício. Perdoe-me se puder. — Fez uma pausa enquanto ela continuava encarando-o. — Nunca esqueci. Eu o amava, Deirdre. Lembre-se disso. Eu amava Conall e o respeitava. — Depois de um silêncio, perguntou baixinho: — Você tem pesadelos com aquele dia?

— Tenho.

— Eu também tive, Deirdre. Por muitos anos. — Baixou a vista, pensativo.

Sabe, já fazia muito tempo que os druidas tinham sacrificado um homem. —

Ergueu novamente os olhos para ela. — Você aprova os sacrifícios que os druidas fazem?

Ela deu de ombros.

— Eles sempre sacrificaram animais.

— E homens também, no passado. — Suspirou. — Confesso a você, Deirdre, que, após a morte de Conall, comecei a perder meu desejo por sacrifícios. Não queria mais nenhum deles.

— Você não acredita em sacrifícios? Ele sacudiu a cabeça.

— Foi uma coisa terrível, Deirdre, o que aconteceu com Conall. Terrível. Sou afligido pela dor, encolho-me de vergonha toda vez que me lembro disso. Contudo, quando foi feito, todos nós imaginávamos estar fazendo o que era certo. Eu pensava assim, Deirdre, e também, posso lhe assegurar, Conall pensava. — Balançou a cabeça tristemente. — Era assim com os antigos deuses, Deirdre. Sempre foi a mesma coisa: sempre os terríveis sacrifícios, sejam de homens ou de animais; sempre o derramamento de sangue para aplacar os deuses, os quais, verdade seja dita, não são melhores do que os homens que fazem os sacrifícios.

O pensamento pareceu deprimi-lo. Sacudiu a cabeça pesarosamente, antes de retomar o assunto.

— Sabe, Deirdre, é apenas aqui que essas coisas ainda são feitas. Na Britânia, na Gália e em Roma, há muito tempo todos se voltaram para o verdadeiro Deus. Os nossos deuses são encarados com desprezo. E com toda a razão. — Ele fitou-a gravemente. — Imagine só, Deirdre, se podemos realmente supor que o sol, o céu, a terra e as estrelas foram criados por seres como Dagda com seu caldeirão, ou por outros deuses que se comportam, não poucas vezes, como crianças tolas e cruéis? Poderia este mundo ter sido criado por qualquer outro que não fosse um ser supremo tão grande, tão abrangente, que está além da nossa compreensão?

Ele esperava que ela respondesse? Deirdre não tinha certeza. Estava tão abismada por ouvi-lo falar daquele modo que, em todo caso, não saberia mesmo o que dizer.

— Quando eu era um druida — continuou baixinho — costumava sentir isso. Sentia a presença de um Deus eterno, Deirdre, eu o sentia quando fazia as orações da manhã e da noite, sentia nos grandes silêncios quando estava sozinho, mas sem realmente entender o que era aquilo que sentia. — Sorriu. — Mas agora, Deirdre, eu entendo. Todos esses sentimentos vêm do único e verdadeiro Deus que toda a cristandade conhece.

“E o maravilhoso de tudo isso — prosseguiu — é que não há mais necessidade de qualquer sacrifício. Você sabe, suponho, por que somos chamados de cristãos. — Resumiu então brevemente a vida de Jesus Cristo. — Deus deu Seu único Filho para que fosse sacrificado numa cruz. Esse sacrifício foi feito por todos os homens e por todos os tempos. — Sorriu. — Imagine só, Deirdre: não há mais necessidade de qualquer sacrifício sangrento, nem de homem nem de animal. O derradeiro sacrifício já foi feito. Estamos todos livres. Acabaram-se todos os sacrifícios. — Observava-a enquanto lhe transmitia essas notícias.

Ela ficou calada por um instante.

— E essa é a mensagem que você prega agora, em oposição à dos druidas?

— Sim. E é uma mensagem consoladora. Pois o verdadeiro Deus não é um deus ganancioso ou vingativo, Deirdre. É um Deus amoroso. Quer apenas que amemos uns aos outros e que vivamos em paz. Essa é a mais bela das mensagens que consigo imaginar, e não desejo nenhuma outra. Não tenho nenhuma dúvida de que é a verdade.

— Você foi o único druida a se tornar cristão?

— De modo algum. Muitos dos sacerdotes da antiga religião são violentamente contra. Isso era mesmo de se esperar. Alguns dos mais instruídos de nós, porém, mantinham esse interesse havia muito tempo. Sabe, a Igreja Cristã contém todo o saber do mundo romano.

Deirdre franziu o cenho. Ainda não tinha certeza do que inferir daquilo.

— Mas vocês tiveram de abandonar tudo em que acreditavam antes.

— Não inteiramente. Para alguns de nós, como disse, a nova fé era o que procurávamos realmente o tempo todo. Como um sacerdote cristão, vivencio o mesmo sentido das coisas. O mundo continua repleto de poesia. Você se recorda das palavras do grande poema de Amairgen?

Eu sou o Vento no Mar. Um de nossos bispos fez um hino, para o Criador... isto é, o único Deus...

e um de seus versos é bastante semelhante. Escute isto:

 

                     Ergo-me hoje

                     Por força, de céu;

                     Luz de sol,

                     Brilho de lua,

                     Fulgor de fogo,

                     Velocidade de raio,

                     Rapidez de vento,

                     Profundidade de mar,

                     Estabilidade de terra,

                      Firmeza de pedra.

 

“A inspiração é a mesma, mas reconhecemos a sua verdadeira fonte. — Ele sorriu e apontou para a cabeça rapada. — Como vê, como sacerdote cristão, nem mesmo tive de mudar a minha tonsura de druida.

— Creio que sim. — Ela franziu a testa. — E quem converteu você?

—Ah. Uma boa pergunta. Um homem a que chamam de bispo Patrício. Um grande homem. Na verdade, é ele o autor do poema.

Deirdre recebeu essa informação, porém não fez nenhum comentário a mais. O fato era que sua mente trabalhava velozmente. A visita de Larine, com sua espantosa nova identidade e sua ainda mais surpreendente mensagem, precisava de um pouco mais de tempo para ser absorvida, mas certas coisas pareciam claras. Não restava qualquer dúvida de sua sinceridade; e, fossem quais fossem os sentimentos dela sobre o passado, Deirdre fora tocada pela visível benevolência de Larine. Quanto à sua mensagem religiosa, sentia-se menos segura. Talvez tivesse sido tentada por ela; certamente não morria de amores pelos sacrifícios dos druidas e seus deuses cruéis. Agora, porém, era um outro pensamento que se formava em sua mente.

— Você disse que veio ver a mim e ao meu filho. Deseja nos converter?

— Certamente. — Sorriu. — Eu encontrei a luz, Deirdre, e ela me trouxe alegria e paz de espírito. Claro que desejo dividir essa alegria com vocês. — Fez uma pausa. — Contudo, há mais do que isso. Depois de tudo que aconteceu, devo isso a Conall, vim trazer o Evangelho a você e a seu filho.

Ela concordou lentamente com a cabeça. Sim, pensou, sim, esse pode ser o caminho. O convincente bispo, o velho amigo de seu pai, talvez fosse a pessoa capaz de lhe mostrar uma saída para seu dilema em relação a Morna. Pelo menos, ponderou, valia a pena tentar. Então, olhando-o com firmeza, ela disse:

— Precisa saber de uma coisa, Larine. Morna nunca foi informado de como seu pai morreu. Eu não conseguiria agüentar. Todos nós achamos que era melhor. Ele não sabe de nada.

— Entendo. — Larine certamente pareceu surpreso. — Quer dizer que você quer que eu também não diga nada?

— Não. — Ela sacudiu a cabeça. — Não, Larine, creio que é o momento de saber. E quero que você conte a ele. Fará isso?

— Se é o que deseja.

— Diga-lhe o que aconteceu realmente, Larine. Diga-lhe como o rei supremo e os druidas assassinaram seu pai. Diga-lhe da maldade disso — prosseguiu com veemência. — Diga-lhe sobre o seu novo e melhor Deus, se quiser. Diga-lhe, acima de tudo, para evitar o rei e seus druidas. Fará isso por mim?

Será que Larine pareceu embaraçado por apenas um instante? Ela não via por que ele deveria. Não era isso que ele queria? E isso não resolveria a grande dificuldade dela, se Morna ficasse suficientemente impressionado com a mensagem cristã de Larine para querer evitar os rituais druidas? Se, depois disso, ela lhe falasse do convite do rei supremo, ele provavelmente nem mesmo quereria ir à festa pagã em Tara. com sorte, se conseguissem mantê-lo fora de vista por uns tempos, ele poderia evitar a atenção do rei supremo no futuro.

— Farei o que puder — declarou Larine cautelosamente.

— Isso é bom. — Ela sorriu. E pensava se deveria contar a Larine toda a história do convite real e pedir seu conselho, quando a conversa dos dois foi interrompida bruscamente pelo surgimento na porta do próprio Morna.

— Quem são as visitas? — indagou alegremente. E Larine engoliu em seco.

Que estranho, pensou Larine, ao caminhar ao lado do jovem pela encosta que descia em direção à água. Ele fora a Dubh Linn esperando, num certo sentido, deixar em paz uma lembrança dolorosa; mas, em vez disso, o passado tornava-se vivo diante de seus próprios olhos com uma nitidez quase assustadora.

Sentia que era o próprio Conall quem caminhava a seu lado. Sim, o jovem Morna tinha os estranhos olhos verdes da mãe. Mas o cabelo negro e a bela aparência aquilina eram uma cópia perfeita de Conall. Por Deus, ele tinha até mesmo a voz suave do pai. E quando o rapaz sorriu para ele, Larine sentiu como se alguém tivesse enfiado uma faca de druida em seu coração.

Foi muito fácil introduzir o assunto sobre o qual viera falar; pois, assim que Morna soube que Larine fora amigo de seu pai, ele ficou ansioso para saber tudo o que o ex-druida tinha para lhe falar. Ficou fascinado ao saber da natureza poética e religiosa do príncipe.

— Eu pensava nele apenas como um guerreiro — disse.

— Ele era um guerreiro, e excelente — assegurou-lhe Larine —, mas era mais do que isso. — E explicou como Conall quisera ser um druida. Daí foi apenas um passo para contar a Morna sobre o sacrifício. O rapaz ficou perplexo.

— E você tomou parte nisso?

— Eu era um druida. Eu era amigo dele. Foi seu próprio desejo, Morna. Ofereceu-se em sacrifício pelo povo da ilha. O gesto mais nobre que um homem é capaz de fazer. Seu pai teve a morte de um herói — disse-lhe. — Você pode se orgulhar muito disso. Mas agora — continuou, percebendo o quanto Morna ficara impressionado — deixe-me lhe falar sobre outra pessoa que se ofereceu em sacrifício.

Foi com grande sentimento que Larine explicou ao filho de seu amigo a poderosa mensagem da fé cristã. — Os antigos deuses — concluiu — cederam lugar à Suprema Divindade. Imagine só, Morna: em vez de um sacrifício para salvar uma safra, o Nosso Salvador sacrificou a Si mesmo para salvar o mundo todo, e não apenas por uma estação, mas por toda a eternidade.

Se por um lado a apresentação da fé a esse jovem, tão obviamente faminto para imitar o pai heróico que não conheceu, foi sutilmente diferente do caso que Larine apresentou a Deirdre, por outro ele ficou contente ao perceber que parecera ser do mesmo modo eficaz.

— Você acredita que meu pai teria sido um cristão — perguntou ele —, se tivesse tido a chance?

— Não há a menor dúvida — respondeu Larine. — Teríamos sido cristãos juntos. Como eu queria — suspirou — que ele estivesse aqui agora para se juntar a mim. Trilharíamos juntos esse caminho. — Disse isso com verdadeira emoção.

— Eu poderia assumir o lugar dele — sugeriu Morna ansiosamente.

— Você se parece tanto com ele — retrucou Larine. — Isso me daria uma grande alegria. —Assentiu pensativamente. — Poderíamos dizer que o círculo se fecharia.

Estavam à beira do rio. Agora faziam o caminho de volta à casa. Morna estava visivelmente emocionado. Quando o ex-druida olhou rapidamente para ele, será que sentiu, apenas por um instante, uma pontada de culpa pelo que estava fazendo? Pensou em seu plano. Estava se utilizando do filho de Conall para seus próprios objetivos? Não, disse a si mesmo. Estava trazendo a família de Conall para a luz. Se, ao fazê-lo, estivesse servindo à causa maior de sua missão, tanto melhor. Pois essa era uma causa certamente maior. E seu senso de missão era forte.

Quando entraram em casa, Deirdre e os criados preparavam a refeição, e Ronan e Rian haviam retornado. Os dois irmãos já estavam envolvidos em uma conversa com o jovem sacerdote que viera acompanhando Larine. Era um homem decente de Ulster que Larine convertera poucos anos atrás, e os irmãos pareciam gostar dele; mas quando viram Larine, tiveram o cuidado de ser respeitosos. Como um ex-druida, o bispo era obviamente um homem a quem não se devia irritar. Conversaram um pouco. Primeiro assuntos gerais, falou sobre Ulster e a colheita de lá, e isso levou facilmente a um breve relato sobre sua missão. Eles ouviram educadamente, enquanto ele delineava a essência da fé cristã. Era difícil imaginar o que eles pensaram, mas Larine teve a impressão de que os dois provavelmente seguiriam Morna e Deirdre em quase tudo. Não demorou e foram chamados para comer.

Foi então, quando todos os moradores da casa se reuniram para a refeição e Larine abençoou a comida, que ele fez o comunicado.

— Esta noite, meus amigos, comemos juntos e desfruto a excelente hospitalidade desta casa. Mas agora devo lhes dizer que amanhã receberão um convidado muito mais importante do que eu, pois vim apenas preparar o caminho para ele, visto que ele virá pregar e batizar. — Fez uma pausa solene. — É ao próprio bispo Patrício que me refiro.

Essa era uma técnica que Larine usara antes com sucesso. Ele, o ex-druida, seguia para uma região onde o bispo Patrício não era conhecido, a fim de preparar o caminho para o grande homem e se certificar de que o povo entenderia a importância do visitante. Brevemente, disse algumas palavras sobre o missionário. Resumiu a ascendência do bispo — pois era importante, na antiga sociedade da ilha ocidental, que seus ouvintes soubessem que Patrício era por si mesmo um homem de berço nobre. Isso, para começar, obteria o respeito deles. Falou-lhe também de sua captura, de seus anos na ilha como escravo e do subseqüente retorno. Também citou alguns dos príncipes do norte que haviam dado sua proteção a Patrício e até mesmo tinham sido convertidos. Essa informação, igualmente, impressionaria seus ouvintes. Forneceu, também, alguns indicativos do caráter do grande homem.

— Ele é um príncipe da Igreja. Para seus seguidores, sua palavra é lei — explicou. — No entanto, como qualquer outro homem que atingiu a iluminação espiritual, ele é uma pessoa de grande simplicidade. É austero. Honra todas as mulheres, mas é totalmente celibatário. É humilde. E também praticamente não sente medo. As pessoas às vezes o ameaçam por pregar o Evangelho, mas isso nunca causou nenhum efeito.

— Ele tem um temperamento terrível — acrescentou o jovem sacerdote com um certo prazer.

— Isso raramente se verifica — corrigiu Larine. — Mas é verdade que sua repreensão é terrível. Mas agora — falou com um sorriso para Deirdre —, vamos nos dedicar a este banquete.

Deirdre estava orgulhosa da refeição que havia preparado. Havia salada de agrião; vários pratos de carnes, inclusive a tradicional carne de porco para um convidado distinto; maçãs cozidas; queijo e cerveja branca — a melhor servida na ilha. Quando Larine a cumprimentou calorosamente pela comida e foi acompanhado por um coro de aprovação, ela soube que merecera.

Se era estranho que o bispo cristão sentasse no meio deles enquanto ao fundo a taça de caveira de Erc, o Guerreiro, refletia o brilho pálido e fantasmagórico do braseiro, isso não pareceu incomodar a ninguém. Larine conversava com os homens, falando-lhes das coisas do dia-a-dia. Contou-lhes sobre os acontecimentos em Ulster, e os incentivou a contar histórias sobre Fergus. A conversa foi descontraída e alegre. O único momento em que mencionou o tema religião rói após terem terminado os pratos principais, quando Larine se dirigiu a ela e comentou:

— Talvez sejam necessárias uma ou duas gerações, Deirdre, mas assim que for estabelecido um forte alicerce, é inevitável que a verdadeira religião triunfe aqui na ilha, do mesmo modo que triunfou em cada um dos lugares onde chegou. As comunidades de Munster e aqui em Leinster ainda são pequenas e dispersas, mas têm padroeiros e começam a crescer. E atualmente o bispo Patrício faz grandes avanços em Ulster, especialmente com os príncipes. — Sorriu. — Assim que os príncipes forem convertidos, os povos deles os seguirão.

— Não acredita que os druidas poderão trazer as pessoas de volta à antiga fé, depois que tiverem conhecido a nova? — perguntou ela.

— Não acredito. Afinal de contas, os nossos deuses pagãos são apenas superstições, ídolos. Eles deverão cair diante da compreensão maior.

Deirdre não teve muita certeza sobre essa última afirmação. Parecia-lhe que os druidas e seus deuses não recuariam assim tão facilmente, mas nada disse. Nesse ponto, ela quis falar a Larine sobre o convite de Morna a Tara e pedir seu conselho, mas os outros iriam ouvir e ela nada disse. Logo depois, porém, vendo o bispo e seu filho conversando animadamente e percebendo a admiração no rosto do rapaz, pareceu-lhe que não seria algo difícil para Larine convencê-lo a evitar cerimônias pagãs. Então ela recostou-se com uma sensação de conforto e bem-estar e deixou a conversa circular à sua volta. Sua mente até mesmo vagueou um pouco. Viu Larine dizer algo a Morna e percebeu seu filho parecer surpreso. Então, subitamente, ela ficou alerta. O que estava ele dizendo? Ficou atenta.

A princípio, quando ele falou aquilo, ela pensou ter ouvido mal.

— A posse do rei supremo — repetiu Larine. — Quero saber quando você partirá para Tara. Já que vai participar.

— Eu? Participar? — Morna aparentava um leve aturdimento. — O guardião do vau fornece hospitalidade aos homens importantes a caminho de Tara, mas não irei lá, não participarei pessoalmente.

Agora, porém, foi Larine quem ficou confuso.

— Mas não pode deixar de obedecer ao seu parente, o rei supremo, já que ele o convocou — afirmou ele.

— O rei supremo me convocou? — Morna pareceu estupefato.

Deirdre gelou. Larine pareceu estranhamente desconcertado. Ninguém, contudo, olhava para ela. Eles ainda não haviam adivinhado. Como, refletiu ela, Larine soubera da convocação do rei ao jovem chefe de Dubh Linn? Ela não lhe dissera que até então ele nem chegara perto do rei supremo? Ela supôs que, como no passado, Larine provavelmente tinha fontes de informação em muitos lugares. Mas o que ela devia fazer? Seria aquele o momento de confessar a verdade? Não via outra saída. Decidiu, porém, ganhar tempo, apenas por poucos momentos mais. Além disso, havia algo que a intrigava.

— Na feis — frisou ela calmamente —, serão os druidas quem dirigirão as cerimônias.

— Claro — concordou Larine.

— Haverá sacrifícios.

— De animais. Sim.

— E o rei vai se acasalar com uma égua?

— Imagino que sim.

— Você vai tomar parte nesse ritual pagão? — perguntou a Larine.

— Não seria apropriado.

— Então, se Morna se tornar um cristão, certamente deverá evitar tal ritual pagão, não é mesmo?

Larine hesitou apenas um momento. —-

— Se o rei supremo chamou Morna para ir, devo admitir que para ele será difícil recusar. Eu não insistiria nisso. Aliás... — Deteve-se. Então olhou-a astutamente. — Diga-me, Deirdre, por que Morna não sabe que foi convocado pelo rei supremo?

Agora todos se voltaram para Deirdre. Ela ficou calada. Morna franziu a testa.

— Mamãe?

Seus irmãos também a encaravam. Não era nada bom. Ela teria de confessar o que fizera. Seria humilhada diante deles. Podia perceber. Seus irmãos a culpariam. E Morna... por mais que a amasse, ele também iria praguejar contra ela. Tinha certeza. Seus planos aflitos, desesperados, seus planos que subitamente pareceram tão tolos, estavam todos se deslindando. Fitou tristemente Larine e viu um pequeno vislumbre de expectativa em seus olhos.

Então, de repente, ela entendeu.

— Então é por isso que está aqui — gritou ela. — Foi por isso que veio. Veio atrás de Morna porque pensava que ele ia a Tara.

Sim, uma leve sombra de culpa atravessara o rosto de Larine. Morna estava prestes a intervir, mas ela o interrompeu.

— Você não entende — disparou contra o filho. — Ele está usando você. Ela percebeu tudo. Larine podia ser um bispo, deduziu ela, mas continuava sendo Larine; e ele viera novamente, com um disfarce diferente, como tinha vindo antes. Todas as suas antigas lembranças voltaram a inundá-la: a névoa negra de pássaros, as roucas trombetas, o corpo de Conall lambuzado de vermelho.

— Está atrás de outro sacrifício — disse ela amargamente.

Larine era inteligente. Não se podia negar. O que ele dissera? Converter primeiro o príncipe. Era esse o seu jogo. Se não fosse possível chegar ao príncipe, então começar pelo seu círculo familiar. Ele soubera que o novo rei estava interessado no jovem Morna. Portanto, é claro, ele quis convertê-lo. Então poderia insinuar uma conversão no círculo do próprio rei supremo.

— Qual é o plano? — ela exigiu saber. — Morna revelar na cerimônia de posse do rei que é um cristão? — Morna, a imagem de seu pai, Conall, o parente do rei supremo que dera sua vida aos druidas e aos deuses pagãos... Morna chegar e dizer que era um cristão? Na própria Tara, o sagrado local real? Na cerimônia de posse? Isso criaria uma comoção. — Ou você prefere que ele oculte sua fé até se tornar amigo do rei supremo? — Isso seria ainda melhor para Larine. Se o rei supremo e sua família tivessem simpatia pelo belo rapaz. Claro que teriam. Como poderiam não ter? Então, no momento apropriado, ele revelaria que era cristão.

De um modo ou de outro, uma manobra brilhante, um insidioso golpe na antiga ordem pagã.

E o que seria de Morna? Se ele revelasse sua religião em Tara, o rei supremo não toleraria isso, e os druidas provavelmente o matariam no ato. Se ele conquistasse a amizade do rei e confessasse posteriormente sua nova fé, ainda assim, no mínimo, atrairia a imorredoura inimizade dos druidas.

— Eles vão destruir você — gritou para o filho. — Vão matá-lo do mesmo modo que mataram seu pai.

Larine sacudia a cabeça.

— Mamãe — protestou o jovem —, Larine é nosso amigo.

— Você não o conhece — retrucou furiosamente.

— Ele é nosso convidado.

— Não é mais! — Socou a mesa e pôs-se de pé. — Traidor! — Apontou o dedo para ele. — Você consegue mudar sua forma, mas jamais sua natureza. Será sempre o mesmo, e eu conheço você. A mesma raposa astuta. Saia daqui!

Agora Larine também se pusera de pé. Estava branco e tremia de fúria. O sacerdote que o acompanhava também se levantou.

— Esta não é a maneira de tratar um convidado em sua casa, Deirdre — protestou Larine. — Principalmente um homem cristão de paz.

— Um homem de sangue! — berrou.

— Eu sou bispo da Santa Igreja.

— Impostor.

— Não dormirei nesta casa — declarou Larine com dignidade.

-— Durma com os porcos — replicou ela, e observou-o penetrar na escuridão seguido pelo seu pessoal. Seus irmãos, após um momento de pausa e um olhar um tanto aturdido para ela, seguiram atrás, presumivelmente para arrumar alojamentos para eles em uma das outras cabanas. E assim, restaram ela e Morna.

Ele não falou. Ela imaginava o que dizer. Por um momento, Deirdre quase disse: Lamento. Mas receou fazê-lo. No fim das contas, falou:

— Saiba que estou com a razão. Ele não retrucou.

Ela começou, furiosamente, a ajudar os criados a limpar os restos da refeição. Silenciosamente, ele ajudou-a, mas manteve distância. Nenhum deles falou. Após terem terminado, seu irmão Ronan retornou.

— Eles estão no celeiro — informou, e pareceu que ia continuar falando; mas ela o silenciou com um olhar. Só então Morna falou.

— Há algo, mamãe, que você parece ter esquecido.

— O que é? — Ela sentiu-se subitamente cansada.

— Não cabe a você mandar nossos convidados embora. Eu agora sou o chefe.

— Foi para o seu próprio bem.

— Sou eu quem deve julgar isso. E não você.

com o canto do olho, ela viu Ronan sorrir maliciosamente.

— Você também me enganou, mamãe — prosseguiu Morna calmamente. — É verdade, não é, que o rei supremo me convocou a Tara?

— Eu ia lhe contar. — Fez uma pausa. — Fiquei com medo. Depois que seu pai... — A voz morreu. Como poderia explicar tudo a ele? — Você não conhece o perigo — disse ela.

— Devo ir a Tara, mamãe.

Ela concordou tristemente com a cabeça. Sim, ele teria de ir.

— Mas não vá como cristão, Morna. Eu lhe imploro. Pelo menos não faça isso.

— Eu também decidirei isso. — As palavras dele pareceram como uma pesada pedra pendurada no seu pescoço. Ela curvou-se. — Agora irei lá fora me desculpar com Larine. Se ele voltar para cá, seja amável. Mas acho que seria melhor você dormir no celeiro. — Saiu.

Ronan ficou. Olhava para ela curiosamente. Deirdre achou que, após todos aqueles anos durante os quais ela fora a força dominante na residência e, após a humilhação que ele sofrera ao se ser preterido como chefe, Ronan provavelmente devia estar gostando daquilo. Um pouco depois, Morna retornou. Não foi nenhuma surpresa Larine ter-se recusado a voltar.

A situação na manhã seguinte não era nada boa. Os cristãos estavam lá fora, mas haviam anunciado que só partiriam depois que o bispo Patrício chegasse. Sem dúvida, estavam ansiosos para ver o missionário do norte exibir seu famoso temperamento. Deirdre sabia que devia se desculpar, mas como seus irmãos pareciam se comportar grosseiramente com os visitantes, ela não conseguiu forçar a si mesma a fazer isso. Mandara os escravos alimentá-los, e fora preparada uma enorme tigela com mingau de cereal. Morna também estava lá fora, mas, diplomaticamente, decidira se ocupar com os animais. Ela não fazia idéia do que ele pensava.

A manhã escoava. Larine parecia gastar seu tempo rezando. Seus seguidores conversavam com os irmãos dela. Em um determinado momento, Ronan foi até ela e comentou:

— Há uma porção de coisas que esses cristãos dizem, irmã. Eles nos disseram que você irá para o fogo eterno do inferno. — Então, saiu novamente.

Era quase metade do dia, quando um dos escravos anunciou que uma biga se aproximava. Larine levantou-se, olhou através do portão e saiu. Seguiu-se uma demorada pausa. Obviamente, os dois bispos conferenciavam. Talvez, pensou Deirdre, se ela seguisse Larine até o portão, o bispo Patrício iria embora.

O séquito que havia parado a uma curta distância diante da entrada do assentamento era composto de uma biga, uma comprida carroça e vários cavaleiros. A biga, que abria o caminho, era suntuosa e poderia pertencer a um rei. Deirdre teve de admitir que estava impressionada. Da carroça, emergiram alguns sacerdotes; parecia haver cinco deles, que se juntaram aos vários jovens a cavalo, os quais, pelas suas ricas roupas e ornamentos de ouro, eram evidentemente filhos de príncipes. Formavam uma pequena procissão. Os sacerdotes estavam vestidos de branco. Da carroça, ela agora viu descer um homem de cabelos grisalhos, também de branco. Não era particularmente alto, mas se mantinha bem empertigado. Assumiu seu lugar logo atrás dos sacerdotes, com Larine atrás dele e seguido pelo resto do grupo. O sacerdote isolado que liderava a procissão ergueu então no ar um alto cajado. Não era uma cruz, como a que Larine trouxera, mas na extremidade da comprida haste havia uma cabeça arqueada, como o bordão de pastor, polida para que brilhasse. Quando o sacerdote o ergueu bem alto no ar, ele reluziu ao sol.

A procissão seguiu lentamente em direção ao portão. Deirdre e a família observavam silenciosamente. Ela notou que todos os escravos tinham ido para a lateral do caminho e que se ajoelhavam. A procissão alcançou o portão e começou a entrar no assentamento. Quando, porém, chegou à entrada, o bispo do norte parou, ajoelhou-se e beijou o chão. Em seguida, reerguendo-se, entrou. Alinharam-se diante do portão que dava para a casa. Nada mais havia, em questões de cortesia, que ela ou sua família pudessem fazer, a não ser dar-lhe as boas-vindas e oferecer a costumeira hospitalidade. Assim que isso foi feito, o homem de Ulster deu-lhe um bondoso sorriso e, numa voz clara, anunciou:

— Grafias agamus. Deirdre percebeu que era latim, mas não sabia o que significava.

— Demos graças — bradou Larine.

Então esse, deduziu Deirdre, era o bispo Patrício.

Não havia como duvidar de sua autoridade. Ele tinha um belo rosto aristocrático. Seus olhos eram muito límpidos e aguçados, mas havia algo especial — ela pôde perceber de imediato — uma aura de espiritualidade que parecia irradiar dele, e que era impressionante. com dois sacerdotes logo atrás dele, iniciou um pequeno circuito de inspeção. Primeiro foi até onde duas escravas continuavam ajoelhadas, verificou ligeiramente suas mãos e seus dentes, assentiu, aparentemente satisfeito, e foi até os irmãos de Deirdre. Olhou-os apenas brevemente e seguiu adiante. Chegou na frente de Morna e olhou-o demorada e intensamente, ao mesmo tempo que este enrubescia. Então ele falou algo em latim para Larine. Deirdre não sabia que agora o esperto druida falava latim.

— O que ele disse? — indagou ela.

— Que seu filho tem um rosto honesto.

O bispo Patrício agora se aproximava dela. Deirdre sabia que antes ela fora agudamente observada. Notou os cabelos grisalhos na calva do bispo quando ele curvou cortesmente a cabeça diante dela.

Morna estava ao lado dela, quando o bispo seguiu adiante para inspecionar os dois escravos. Ela pôde perceber que o bispo o impressionara enormemente.

O bispo Patrício completou seu circuito. Olhou de lado para Larine, gesticulou com a cabeça de modo a indicar que este devia permanecer onde estava e então retornou a Deirdre e Morna.

— Desculpe este transtorno, Deirdre, filha de Fergus — falou para ela. Ele agora se expressava na língua dela. Seus olhos, sob um teto de sobrancelhas castanhas, pareciam enxergar tudo. — Soube que você foi uma boa filha.

— Fui. — Fosse o homem seu inimigo ou não, ela não pôde evitar de ficar emocionada.

— E é você mesma, devo dizer — prosseguiu o bispo Patrício —, quem mantém tudo aqui em ordem. Não é mesmo?

— É — respondeu com sentimento.

— Graças a Deus por isso. — Ele sorriu amavelmente para ela. — Você teme pela segurança do seu filho? — Ela fez que sim. — Que boa mãe não temeria? — Ele fez uma pausa meditativa. — Diga-me, é Deus a quem você teme, Deirdre, ou são os druidas?

— Os druidas.

— Não acredita que Deus, que fez todas as coisas, pode proteger o seu filho? Ela ficou calada; mas ele não pareceu ficar ofendido. Então dirigiu-se a Morna.

— Pois bem, meu jovem. — Ele olhava agudamente para os olhos de Morna. — Você é o rapaz que motivou tudo isso. O parente do rei supremo. — Deu um passo para trás, como se para observar o jovem chefe. — Foi convocado por ele, não é mesmo?

— É verdade — respondeu Morna respeitosamente.

O bispo Patrício parecia meditar. Seus olhos pareciam estar semicerrados, ao refletir sobre o assunto. Não havia dúvida, pensou ela, que ele devia ter sido algum jovem príncipe druida. Iria ele incentivar Morna ou, talvez, repreendê-lo? Ela não fazia idéia.

— Você gostaria de ir à posse do rei supremo em Tara?

— Eu devo. — Morna não tinha certeza se essa era a resposta, mas era a verdade.

— Somente um jovem estranho não iria — afirmou o bispo Patrício. — E você brigou com sua mãe?

— É que... — Morna começou a explicar, mas o bispo continuou amavelmente.

— Honre sua mãe, meu jovem. Ela é a única que você tem. Se é a vontade de Deus que você deva fazer uma certa coisa, ela será levada à compreensão. — Refletiu por um instante. —Você deseja servir ao único e verdadeiro Deus. Estou certo?

— Creio que sim.

—Você crê que sim. — O bispo Patrício fez uma pausa. — Servir a Ele, Morna, nem sempre é fácil. Aqueles que trilham o caminho cristão precisam tentar fazer a vontade de Deus, e não a sua própria. Às vezes temos de fazer sacrifícios. — À menção de sacrifícios, Deirdre ficou tensa; mas se o bispo Patrício percebeu isso, não deixou transparecer. — Está preparado para fazer sacrifícios para servir ao Deus que deu Seu único Filho para salvar o mundo?

— Estou. — Ele falou isso baixinho, mas não pareceu hesitar.

— Daqueles que me seguem, Morna, espero total obediência. Meus seguidores têm de confiar em mim. Esses jovens — apontou para os príncipes parados ali perto — obedecem às minhas ordens, as quais às vezes são duras.

Morna olhou-os rapidamente. Parecia um grupo nobre, o tipo de grupo ao qual qualquer jovem chefe teria orgulho de pertencer. Ao dizer-lhe isso, porém, o bispo não parecia esperar qualquer resposta. Pois, virando-se bruscamente, ele foi até onde um dos sacerdotes segurava seu cajado. Tomando-o nas mãos, segurouo firmemente e, numa voz nítida, dirigiu-se a eles.

— Este é o cajado que me dá forças, pois é o cajado da vida, o cajado de Jesus, o único Filho de Deus, o Pai, que morreu pelos nossos pecados. Jesus, que sacrificou sua vida para que cada um de nós pudesse ter a vida eterna. Eu, Patrício, bispo, humilde sacerdote, pecador penitente — prosseguiu solenemente —, eu, Patrício, vim aqui, não pela minha autoridade... pois não tenho nenhuma... mas por ordem de Deus, o Pai, dada a mim através de Seu Espírito Santo, para ser testemunha de Seu filho e para lhes trazer a boa nova de que vocês também, se acreditarem Nele, poderão ter a vida eterna no Céu e não perecer no nada ou nas terríveis fogueiras do Inferno. Não vou convencê-los com grande sabedoria, pois a minha é modesta. Não vou convencê-los com palavras eloqüentes, pois não possuo nenhuma eloqüência a não ser a que me foi dada pelo Espírito Santo. Mas escutem cuidadosamente as minhas pobres palavras, pois vim salvar suas almas.

Era estranho. Posteriormente, Deirdre não conseguia se lembrar exatamente do que ele dissera. Alguma coisa ela reconheceu do que Larine lhe dissera; mas, quando Patrício falou, foi diferente. Ele lhes contou a história de Cristo e como fora levado ao sacrifício. Descreveu a cruel antiga ilha dos deuses e explicou que os deuses não eram reais. Eram lendas, disse-lhes, para dar prazer ou assustar crianças. E como o seu Deus era muito maior, era o único e todo-poderoso Deus, que criou o mundo todo.

Uma parte do sermão ela recordava em detalhes. Ele frisara que, como muitos dos deuses dos tempos antigos, esse Ser Supremo tinha três aspectos: Pai, Filho, Espírito Santo — o Três-em-Um, como chamou. Isso não deveria ser nenhuma surpresa, explicou. Toda a natureza estava repleta de tríades: a raiz, o caule e a flor de uma planta; a nascente, a corrente e o estuário de um rio; até mesmo as folhas de plantas, como a do trevo tripartido, por exemplo, revelavam o princípio do Três-em-Um. “Isso”, explicou, “é o que queremos dizer com a Santíssima Trindade”.

Acima de tudo, porém, foi a maneira como ele falou que a impressionou. Ele tinha tanta paixão, tanta certeza, tanto fervor. Transmitiu-lhe uma sensação de paz. Mesmo sem entender por que exatamente esse Deus de amor, sobre quem ele falou, devia necessariamente ser todo-poderoso, ela achava que queria que fosse assim. Os deuses cruéis estavam sendo afugentados, como nuvens negras escapando para o horizonte. E já iam tarde, pensou. A sensação de fervor que emanava do pregador a envolveu. A confiança que o bispo demonstrou disse-lhe que ele devia estar certo. Ela olhou para Morna. Os olhos dele brilhavam.

Quando o bispo Patrício terminou de falar, a idéia de fazer o que ele queria não parecia tão estranha. Quando perguntou se queriam se juntar a ele em comunhão e ser batizados, Deirdre percebeu que desejava que ele ficasse com eles mais tempo. Não queria que ele partisse. Juntar-se à sua nova fé parecia um modo de manter com eles sua presença reconfortante. Se seguisse seu coração, ela estava disposta a fazer o que ele desejava. Mas ela seguira seu coração uma vez anteriormente, e Conall também. O coração era algo perigoso. Perigoso para Morna.

— Batize-me — bradou ela de repente. — Batize todos nós. Mas poupe Morna. — Ela não pôde evitar.

— Poupá-lo? — O bispo Patrício a encarava. — Poupar? — Ela viu o terrível clarão de fúria nos olhos do velho. Ele deu vários passos em sua direção e, por um momento, ela pensou que poderia até mesmo bater nela, ou amaldiçoá-la como um druida. Em vez disso, para sua surpresa, ele deteve-se, sacudiu a cabeça, aparentemente para si mesmo, e então, para total surpresa dela, ajoelhou-se à sua frente.

— Perdoe-me, Deirdre — pediu. — Perdoe minha fúria.

— Ora... — Ela não soube o que dizer.

— Se fracassei em tocar seu coração, a falta foi minha, não sua. São minhas falhas que me deixam furioso.

— Foi lindo o que disse — protestou ela. — É apenas...

Ele teve de novamente se pôr de pé e interrompeu-a com um gesto da mão.

— Você não entende — grunhiu. — Virou-se para Morna. — Você agora é o chefe dos Ui Fergusa — declarou solenemente. — É seu desejo que sua família seja batizada?

— É — disse Morna.

— E, se aceitar o batismo de minhas mãos, você irá se submeter à minha autoridade em questões concernentes à religião, e irá seguir minhas instruções, como o fazem esses jovens príncipes?

— Irei — disse Morna.

— Venha, então — ordenou o bispo —, e lhe direi o que deve fazer.

O batismo que realizavam exigia uma simples imersão na água. Um rápido olhar aos baixios do Liffey haviam convencido o bispo Patrício de que o rio não era um lugar muito conveniente. Os três poços locais, os quais ele agora rapidamente inspecionou e abençoou, tampouco eram adequados. A lagoa negra de Dubh Linn, porém, seria perfeita, decidiu, e mandou que todos se reunissem lá imediatamente.

E, assim, o pequeno grupo de Deirdre, seus dois irmãos e Morna, vestidos apenas com camisões de linho sob os mantos e ajudados pela sua meia dúzia de escravos, desceu naquela bela mas ligeiramente fria tarde de setembro para os limites de Dubh Linn a fim de ser batizado. E, um por um, eles entraram na água escura, onde o bispo Patrício se encontrava de pé e, durante um momento gelado, foram mergulhados em sua superfície para emergir de volta à luz, batizados pela própria mão de Patrício, em nome de Cristo.

Secaram-se rapidamente. Todos, exceto Deirdre, pareciam alegres. E começavam a voltar em direção ao assentamento, quando foram levados a parar inesperadamente por Rian, o irmão mais novo de Deirdre. Ele acabara de se lembrar de uma coisa.

— É verdade que somente cristãos vão para o lugar bom? — perguntou.

— É — garantiram-lhe.

— E os outros vão para o inferno?

— Sim — eles disseram.

— E o meu pai, então? — quis saber ele, com sincera preocupação. — Isso quer dizer que ele vai para a fogueira. — E, após alguns momentos de consulta com o irmão, ambos concordaram. A lógica dos dois podia ser um pouco estranha, mas sustentada com convicção. O pai deles descansava com os deuses da família. Certo ou errado aos olhos dos visitantes, esses deuses sempre haviam estado lá e, de algum modo, protegiam os seus. Se, porém, Dubh Linn e o assentamento de Fergus se tornassem cristãos, então a família teria de virar as costas para os deuses. Insultá-los. Fergus, de certo modo, ficaria abandonado. Os antigos deuses provavelmente não iriam querer mais nada com ele, e o Deus cristão, aparentemente, o despacharia para o fogo do inferno.

— Não podemos deixar que isso aconteça com ele — protestou ele. Seu irmão, Ronan, também parecia preocupado.

Contudo, embora se sentisse constrangida, Deirdre observou que nenhum dos sacerdotes parecia nem um pouco surpreso.

Pois esse não era um problema incomum para os missionários cristãos. Se vamos ser salvos, indagavam os convertidos para eles, então qual é o destino de nossos venerados ancestrais? Estão nos dizendo que eles foram maus? A resposta normal a essa pergunta era que Deus, no mínimo, faria uma isenção parcial para aqueles que, não por culpa deles mesmos, não tiveram a oportunidade de aceitar Cristo. Somente aqueles que, tendo ouvido a mensagem de Cristo, recusaram-na, não poderiam ter salvação. Era uma explicação razoável, mas nem sempre satisfatória. E era típico do grande bispo do norte, dependendo da ocasião, que ele empregasse um método todo seu de enfrentar esse problema.

— Há quanto tempo ocorreu a morte? — perguntou.

— Cinco dias — responderam.

— Então desenterrem o homem — ordenou. — Vou batizá-lo agora.

E foi o que fizeram. com a ajuda dos escravos, os irmãos desenterraram o pai de seu monte à beira do rio Liffey. Enquanto a pálida forma de Fergus permanecia rígida no chão, com uma notável aparência digna na morte, o bispo Patrício espargiu um pouco de água sobre ele e, com o sinal-da-cruz, trouxe-o para o mundo cristão.

— Não posso lhes prometer que ele vá alcançar o céu — falou para os irmãos com um sorriso complacente —, mas suas chances aumentaram consideravelmente.

Enterraram o velho novamente em seu monte e Larine colocou sobre este dois pedaços de pau juntos, formando o sinal-da-cruz.

Eles haviam retornado à casa e estavam para entrar no grande salão onde ardia uma fogueira, quando o bispo Patrício parou e virou-se para os membros da família.

—Agora há uma pequena gentileza que podem me fazer. — Pediram-lhe que lhes dissesse o que poderia ser. Ele sorriu. — Talvez vocês não gostem. Refiro-me aos seus escravos. — Ao ouvirem isso, os escravos que estavam por perto ergueram a vista, esperançosos.

— Seus escravos britânicos. — Sorriu. — Meus colegas patrícios. São cristãos, também. Parte do meu rebanho. — Dirigiu-se a Deirdre. — A vida dos escravos é dura, Deirdre, filha de Fergus. Eu sei porque fui um. Arrancados de seus lares. Furtados de suas famílias e de sua Igreja. Gostaria que você libertasse seus escravos britânicos. — Sorriu novamente. — Sabe, eles nem sempre vão embora. Vejo que trata bem os seus escravos. Mas eles precisam ser livres para retornar aos seus lares, se desejarem. É um comércio bárbaro — acrescentou com súbito sentimento.

Deirdre percebeu Larine e os sacerdotes assentirem automaticamente. Era óbvio que estavam acostumados a esse estranho processo. De sua parte, ela não sabia ao certo o que dizer. Morna parecia abismado. Foi Ronan quem falou.

— Está dizendo que devemos libertá-los sem pagamento? Patrício virou-se para ele.

— Quantos escravos vocês têm?

— Eles são seis.

— A oferta de escravos é grande. Eles não podem ter custado muito a vocês. O irmão dela pensou por um momento.

— Mas três são mulheres — frisou. — Elas fazem todo o serviço pesado.

— Que Deus nos proteja — murmurou o bispo, e voltou os olhos em direção ao céu. Seguiu-se um silêncio. com um suspiro, o bispo Patrício sinalizou com a cabeça para Larine, que enfiou a mão numa bolsinha pendurada em seu cinturão e de lá retirou uma moeda romana.

— Isto basta? — indagou Larine. Parecia que estava acostumado a tais barganhas para ajudar os cristãos britânicos.

— Duas — afirmou rapidamente o irmão de Deirdre. Ele podia ser burro, pensou, mas continuava sendo filho de seu pai quando se tratava de negociar gado.

Larine olhou para o bispo Patrício, que concordou com a cabeça. Um momento depois, os escravos britânicos estavam de joelhos diante do bispo beijando suas mãos.

— Dêem graças a Deus, meus filhos — disse-lhes bondosamente —, não a mim. — Deirdre ficou imaginando quanto ele deveria gastar por ano com este ofício.

Nenhum desses acontecimentos, porém, no que se referia a Deirdre, fez com que diminuísse sua agonia.

Morna era cristão. Ia a Tara. O bispo missionário podia ter a língua de um anjo, podia ter sido enviado por Deus, mas, ainda assim, ia colocar seu único filho em perigo mortal. E nada havia que ela pudesse fazer. Uma grande melancolia abateu-se sobre ela.

O bispo Patrício revelara que partiria na manhã seguinte. Até lá, ele e todo o seu grupo deviam ser tratados como convidados de honra. O bispo retirou-se por um instante para descansar perto do fogo. Larine quis descer até o estuário e caminhar um pouco por lá, antes de voltar e ficar sentado sozinho na entrada do assentamento. Deirdre e os escravos passaram a se dedicar aos preparativos do banquete. Morna, enquanto isso, fazia companhia aos jovens príncipes que formavam a comitiva do bispo. Deirdre os ouviu dar risadas lá fora, e era óbvio que Morna estava impressionado com eles. Uma hora ele apareceu e disse a ela: “São sujeitos formidáveis. Cada um deles é um príncipe. Viajam de um lado para o outro com o bispo Patrício e o tratam como um rei.”

Foi somente após ter descansado que o bispo Patrício, parecendo muito mais revigorado, mandou um dos seus sacerdotes chamar Larine e Morna, e convidar Deirdre a se juntar a eles. Quando os quatro estavam reunidos perto do fogo, ele dirigiu-se a Morna.

— Você se recorda que prometeu me obedecer — começou. Morna curvou a cabeça.

— Pois muito bem — prosseguiu o bispo. — Deixe-me dizer o que quero que faça. Vai me acompanhar amanhã. Quero que se junte a esses jovens que viajam comigo. Quero que permaneça conosco por algum tempo. Gostaria disso?

— Certamente. — O rosto de Morna iluminou-se de alegria.

— Não fique tão contente — alertou-o o bispo Patrício. — Eu também lhe disse que haveria sacrifícios, e terá de haver um agora. — Fez uma pausa. — Você não irá a Tara.

Deirdre arregalou os olhos. Não ir a Tara? Ela tinha ouvido direito? Evidente que tinha. O rosto de Morna revelou estupefação, e Larine pareceu horrorizado.

— Não devo ir à posse do rei?

— Não deve ir. Eu o proíbo.

Larine abriu a boca para dizer algo, mas o bispo Patrício lançou-lhe um olhar e ele ficou calado.

— Mas o rei supremo... — começou Morna.

— Provavelmente ele notará a sua ausência. Mas como você partirá amanhã, qualquer viajante em direção a Tara que atravessar o vau dirá que você não estava aqui. E se, em algum momento, o rei supremo souber que você partiu comigo — sorriu —, ele está acostumado com os aborrecimentos que lhe causo. Fui eu, afinal de contas, quem levou embora Larine. A culpa será minha, não sua. Pode estar certo disso. — Virou-se para Deirdre. — Arrisco afirmar que você sentirá falta dele.

Sim, ela sentiria falta dele. Sentiria desesperadamente a sua falta. Mas ele não estaria em Tara. Era isso o que importava. Ela mal podia acreditar no que acontecia.

— E onde ele estará? — indagou ela.

— No norte e no oeste comigo. Tenho defensores, Deirdre. Ele estará bem seguro.

— E ele... será que eu...?

— Vai vê-lo novamente? Claro que vai. Eu não lhe disse para honrar sua mãe? Vou mandá-lo de volta após um ano. Você e seus irmãos poderão cuidar de Dubh Linn até lá, creio eu, não é mesmo?

— Sim — afirmou agradecida. — Poderemos.

Morna parecia profundamente abatido, mas o bispo manteve-se firme.

— Você jurou obedecer — lembrou-lhe duramente. — Agora precisa cumprir seu juramento. — Em seguida, sorriu amavelmente. — Não lamente por Tara, meu jovem amigo. Eu prometo que, antes do término deste ano, lhe mostrarei coisas muito melhores.

Foi um pequeno e agradável banquete que todos desfrutaram naquela noite. Um clima alegre envolveu o grupo. O alívio de Deirdre era tão grande que ela estava radiante. Seu irmão Ronan, com a perspectiva de atuar como chefe por um ano, parecia contente consigo mesmo. E o próprio Morna, na companhia dos jovens nobres, estava visivelmente se animando. A comida fora bem preparada, e cerveja e vinho jorravam. E, se a velha taça de caveira, que brilhava brandamente num canto, talvez parecesse inadequada em tal festim cristão, ninguém pareceu se incomodar com isso. O bondoso bispo não apenas provou ter um belo estoque de boas histórias e chistes, como até mesmo insistiu para que Larine contasse algumas delas sobre os antigos deuses.

— São histórias maravilhosas — comentou —, repletas de poesia. Vocês não devem mais cultuar os antigos deuses. Eles não têm nenhum poder, porque não são reais. Mas nunca percam as histórias. Faço Larine recitá-las sempre que passo uma noite com ele.

Ao recordar dos extraordinários acontecimentos daquele dia e do maravilhoso passeio que deram, havia apenas um detalhe que intrigava Deirdre. Perto do fim da noite, ela o confidenciou a Larine.

— Você disse que o bispo Patrício é austero? Ele nunca toca numa mulher? — Era um aspecto da nova religião que ela achava estranho.

— É verdade.

— Pois bem, quando mergulhei na água, sabe que eu usava apenas o meu camisão. Quando saí, todo ele estava grudado em mim. — Olhou de banda para se certificar de que o bispo não podia ouvi-la. — E... eu vi os olhos dele brilharem. Sabe, ele prestou atenção em mim.

E agora, pela primeira vez desde sua chegada, Larine jogou a cabeça para trás e gargalhou.

— Ora, tenho certeza que sim, Deirdre. Certamente ele prestou atenção.

Partiram pouco depois do amanhecer. O bispo Patrício deu sua bênção a todos e mais uma vez prometeu a Deirdre que mandaria seu filho de volta em segurança para ela. Morna, por seu lado, deu um carinhoso adeus à mãe e, igualmente, prometeu voltar.

Portanto, foi com alívio e felicidade, em vez de tristeza, que Deirdre viu a enorme biga, a carroça e os cavaleiros que a acompanhavam, com suas cruzes e cajados, atravessar rapidamente o Vau das Cercas e tomar o caminho rumo ao norte em direção a Ulster.

De fato, todo mundo envolvido naquele laborioso dia estava contente, com a possível exceção de Larine, que, por volta da metade do dia, quando descansavam, arriscou-se a fazer uma pequena queixa ao bispo Patrício.

— Fiquei um pouco surpreso por ter decidido ignorar o meu conselho. — comentou. — Aliás, fiquei um tanto constrangido. Eu esperava enviar um jovem cristão ao rei supremo em Tara. Mas tudo que consegui foram alguns poucos convertidos em um assentamento perto de um vau.

O bispo Patrício olhou-o calmamente.

—— Você ficou zangado.

— Fiquei. Por que fez isso?

— Porque, quando vi todos eles, achei que a mulher tinha razão. Eu voltei a esta ilha para trazer aos pagãos a jubilosa mensagem do Evangelho, Larine. Não para fazer mártires. — Suspirou. — Os caminhos de Deus são inescrutáveis, Larine. Não precisamos ser tão ambiciosos. — Deu um tapinha no braço do ex-druida. — Morna é um chefe. O vau é uma encruzilhada. Quem é capaz de dizer o que Dubh Linn pode valer?

 

                                         Vikings

O menino de cabelos ruivos olhava o barco. Era quase meia-noite. O mar era como prata em pó, o céu, cinza-pálido. Ele encontrara homens que haviam velejado além das ilhas no distante norte, onde o sol brilhava à meia-noite e por muitas semanas no verão não havia qualquer escuridão. Contudo, mesmo ali em Dyflin, em julho, a noite fora quase banida. Durante mais ou menos uma hora havia escuridão suficiente para se enxergar algumas poucas estrelas, mas, durante a curta ausência do sol, o mundo se enchia de um estranho e luminoso cinzento peculiar às noites do solstício de verão nos mares do norte.

O barco movia-se silenciosamente. Ele chegara à costa vindo do sul. Em vez de usar seus remos, a tripulação deixava que a brisa a carregasse ao estuário do Liffèy ao longo da margem setentrional onde espreitavam os pálidos bancos de areia.

Harold não devia estar lá embaixo, perto dos bancos de areia; devia estar dormindo na fazenda. Mas, às vezes, em noites de verão como aquela, ele saía furtivamente, pegava seu pônei no campo e ia até a costa para observar a imensidão das águas cor de prata da baía que pareciam atraí-lo, como as marés são atraídas invisivelmente pela lua, com uma magia que ele não compreendia.

Era o maior barco que ele já vira. Suas compridas linhas eram como uma enorme serpente marinha; sua alta proa curvada cortava a água tão suavemente como um machado em metal líquido. Sua enorme vela redonda erguia-se acima do banco de areia, bloqueando uma parte do céu, e mesmo no lusco-fusco ele podia ver que era negra e ocre como sangue seco. Pois aquele era um barco viking.

Harold, porém, não sentia medo. Afinal, ele próprio era um viking e aquelas agora eram águas vikings.

Portanto, observou a enegrecida serpente marinha com sua vela brutal passar e deslizar para a expectante corrente do Liffey, sabendo que ela transportava não apenas homens armados — visto que aqueles eram tempos perigosos —, mas ricas mercadorias. Talvez, no dia seguinte, ele conseguisse convencer seu pai a leválo até lá para vê-las.

Ele não notou o outro menino, a princípio. Havia tanta gente na margem do rio, abaixo do escuro muro de Dyflin. Só veio mesmo a notá-lo quando ele falou.

Estava com sorte. Seu pai, Olaf, concordara em levá-lo ao porto. O dia estava luminoso quando partiram da fazenda e passaram a cavalgar pela Planície das Revoadas de Pássaros. A úmida brisa soprara refrescante ao pressionar contra sua bochecha; o céu estava azul e o sol brilhava no cabelo ruivo de seu pai.

Não havia ninguém como seu pai: ninguém tão corajoso, ninguém tão bonito. Ele era firme. Quando Harold ajudava na fazenda, seu pai costumava forçá-lo a trabalhar um pouco mais do que ele desejava. Mas, se estivesse desanimado, ele logo contava uma história para fazê-lo rir. Havia também mais uma coisa. Quando Harold estava com sua mãe e suas irmãs, ele sabia que era amado e sentia-se feliz. Mas não conseguia se sentir livre. Não totalmente. Não agora. Quando, porém, seu pai o erguia com seus braços fortes e o colocava sobre o pônei e o deixava trotar ao lado do magnífico cavalo dele, Harold sentia algo mais do que felicidade. Uma onda de energia parecia inundar seu pequeno corpo; seus olhos azuis reluziam. Era quando percebia o que era se sentir livre. Livre como um pássaro no ar. Livre como um viking no mar aberto.

Fazia quase dois séculos desde que os vikings da Escandinávia haviam começado suas épicas viagens pelos mares do norte. Houve maiores migrações em terra no mundo antigo; mercadores marítimos, gregos e fenícios haviam estabelecido portos e colônias na maior parte das praias conhecidas pela civilização clássica. Nunca antes, porém, na história humana houve uma tão imensa aventura quanto a dos navegadores vikings pelo mundo oceânico. Piratas, comerciantes, exploradores — eles partiram de suas enseadas setentrionais em seus velozes barcos e logo, por toda a Europa, os homens aprenderam a tremer quando viam suas velas redondas se aproximando pelo mar, ou seus grandes capacetes com chifres subindo a ribanceira. Da Suécia, viajaram até os imensos rios da Rússia; da Dinamarca, primeiro pilharam e depois se instalaram no norte da Inglaterra. Os vikings velejaram para o sul até a França e o Mediterrâneo: a Normandia e a Sicília normanda foram suas colônias. Viajaram na direção oeste para as ilhas escocesas, Ilha de Man, Islândia, Groenlândia, até os Estados Unidos. E foram os vikings de cabelos louros da Noruega que, chegando à agradável ilha a oeste da Britânia, exploraram seus portos naturais e, convertendo seu nome celta — Eriu, que se pronunciava Eire — para sua própria língua, deram ao lugar o nome nórdico de Ire-land.

Harold sabia como seus ancestrais tinham chegado à Irlanda. A história era tão maravilhosa para ele quanto qualquer saga nórdica que seu pai contava. Quase um século e meio se passara desde que a grande frota de sessenta barcos havia navegado pelo estuário do rio Liffey. “E o avô do meu pai, Harold Red-Hair, estava num deles”, dissera-lhe orgulhosamente o pai. Depois que um grande grupo remara rio acima até o Vau das Cercas ficara bastante decepcionado. Após passar por um sepulcro, encontraram um pequeno assentamento protegendo um desembarcadouro, uma lagoa negra e, um pouco mais acima, um pequeno mosteiro ao qual o líder do lugar parecia conferir grande importância. Os nórdicos pagãos não ligaram muito para aquilo. Vinte homens armados mal puderam caber na capela de pedra que continha apenas uma modesta cruz de ouro e um cálice para levar em troca de seu esforço.

Se, porém, o posto mercantil e seu pequeno mosteiro forneceram uma parca colheita, os vikings puderam perceber de imediato que o local tinha potencial. O antigo sistema rodoviário celta convergia ali perto, para usar a travessia do rio; o porto de maré era protegido e a terra era boa. A área em volta do assentamento também era defensável.

Os noruegueses se instalaram. Embora conhecidos pela história como vikings, ou nórdicos, eles se referiam a si mesmos como ostmen — homens do leste. Logo, um pouco adiante rio acima do vau, surgiram na margem do rio um amontoado de suas cabanas de madeira e taipa e um cemitério viking. Ao saberem que a lagoa negra era chamada de Dubh Linn, os nórdicos forneceram sua própria versão do nome: Dyflin. A presença viking não se limitava ao seu pequeno porto. Fazendas escandinavas haviam se espalhado pelo território norte do estuário do Liffey. A fazenda da família de Harold era uma delas. E, portanto, a antiga Planície das Revoadas de Pássaros adquirira um nome celta adicional: Fine Gall, o Lugar dos Estrangeiros — Fingal.

Quando o ancestral de Harold e a frota escandinava chegaram a Dubh Linn naquele dia, os homens do assentamento não tentaram combater. Visto que um barco viking podia transportar de trinta a sessenta combatentes, a resistência seria inútil. E foi graças a essa recepção que, daquele dia em diante, os louros noruegueses tomaram para si a proteção das pessoas daquele posto mercantil.

Não que o último século e meio tivesse sido pacífico. No mundo viking, a vida era raramente pacífica por muito tempo. Para Harold, porém, a planície costeira de Fingal e a pequena cidade de Dyflin eram lugares encantadores. E quando, hoje, ao cavalgarem na direção do Liffey, um amontoado de nuvens cinzentas se deslocou pelo céu, escurecendo a paisagem, isso não afetou nem um pouco sua felicidade.

O barco mercante chegara do porto de Waterford, na costa sul da ilha. Havia uma porção de portos pela costa da Irlanda—quase todos assentados pelos vikings e ostentando nomes vikings. Apesar de os barcos de guerra vikings serem longos e suaves, seus barcos mercantes eram abaulados a meio-navio, o que lhes permitia carregar uma quantidade considerável de carga. O barco de Waterford trouxera uma carga de vinho do sudoeste da Franca, e o pai de Harold ia comprar alguns barris. Enquanto o pai falava com os comerciantes, Harold admirava as belas linhas do barco, quando ouviu uma voz vinda de algum lugar atrás dele.

— Você. Ei. Menino aleijado. Estou falando com você.

Quando Harold se virou, viu um garoto pálido, cabelos negros, com oito ou nove anos, estimou — mais ou menos da sua idade —, parado no meio de uma multidão. Embora um ou dois da multidão tivessem olhado na direção do garoto quando este chamou, ninguém pareceu particularmente interessado, mas os olhos dele estavam fixados em Harold. Ele falara em nórdico, e não em irlandês, e, como Harold nunca o vira antes, deduziu que devia ter chegado com o barco. Perguntou-se se devia ignorar o estranho grosseiro, mas isso poderia parecer covardia, e então coxeou em sua direção. À medida que se aproximava, os olhos do garoto fitavam suas pernas.

— Quem é você? — perguntou Harold.

— Aquele é seu pai, não é? — disse, ignorando a pergunta e gesticulando com a cabeça na direção do pai de Harold, que estava parado um pouco mais distante. — Aquele de cabelo ruivo, como o seu.

— É.

— Eu não sabia — disse o garoto, solícito — que você era aleijado. A sua outra perna é boa, não é? Apenas a esquerda é torta.

— Isso mesmo. Não que seja da sua conta.

— Talvez não. Ou talvez sim. O que aconteceu?

— Um cavalo caiu em cima de mim. — Um cavalo que seu pai dissera para não chegar perto. O cavalo que acabou disparando com ele, depois saltou sobre uma vala e caiu em cima de sua perna esquerda, que quebrou.

— Você tem irmãos?

— Não. Apenas irmãs.

— Foi o que me disseram. Ela sempre foi torta, a sua perna, não?

— Creio que sim.

— Pena. — Deu um estranho sorriso para Harold. — Não me entenda mal. Não ligo para a sua perna. Espero mesmo que sofra muito. Apenas preferia que você não fosse aleijado quando crescesse.

— Por quê?

— Porque é quando irei matá-lo. A propósito, o meu nome é Sigurd. Então ele virou-se e caminhou rapidamente misturando-se à multidão. Harold

ficou tão atônito que, quando tentou correr atrás dele, o menino de cabelos negros tinha sumido.

— Quer dizer que você sabe quem é? — Harold contou ao pai o estranho incidente. Agora seu pai tinha a aparência grave.

— Sim. — Olaf fez uma pausa. — Se esse garoto é quem eu penso que é, então ele veio de Waterford. É dinamarquês.

O primeiro assentamento nórdico em Dyílin só existia havia dez anos quando os vikings dinamarqueses chegaram. com a metade norte da Inglaterra sob seu domínio, passaram a rondar a costa irlandesa à procura de lugares para pilhar e se fixar. O posto mercantil que seus colegas vikings da Noruega haviam estabelecido no Liffey parecia atraente. Chegaram em grande número e disseram aos noruegueses: “Viemos compartilhar este lugar.” Durante uma geração depois disso, o porto realizara seus negócios sob vários senhores: às vezes um norueguês, outras vezes um dinamarquês, e às vezes até ambos mandando juntos. Embora ainda houvesse na região muitos colonos noruegueses de cabelos louros como Harold e sua família, eram os vikings dinamarqueses que agora mandavam em Dyflin e em muitos outros portos irlandeses.

— Mas por que ele vai querer me matar? — perguntou o menino. Seu pai suspirou.

— Por causa de um passado muito remoto, Harold — começou ele. — Como sabe, os ostmen de Dyflin sempre tiveram um inimigo, o rei supremo.

Mesmo agora, seis séculos após Niall dos Nove Reféns ter reivindicado a monarquia suprema de Tara, seus descendentes, os O'Neill, como eram chamados, ainda mantinham a monarquia suprema e dominavam a metade norte da ilha. Os vikings nunca haviam conseguido se estabelecer nas costas norte e oeste, que eram governadas diretamente pelos O'Neill; e a existência do porto viking independente no Liffey sempre os irritara. Pois não demorou muito para o administrador viking de lá ter começado a se comportar como um dos reis provinciais irlandeses. O último rei de Dyflin, como ele mesmo se denominava, se casara com uma princesa de Leinster; seu território havia incluído toda Fingal. “E ele gostaria de controlar toda a terra acima do rio Boyne e além”, o pai de Harold dissera-lhe certa vez. Não era de admirar que os poderosos O'Neill olhassem os recém-chegados com desagrado. A cada dez anos, mais ou menos, desde que se iniciara o povoado, o rei supremo O'Neill tentava expulsar os vikings. Certa vez, oito anos atrás, os irlandeses tinham conseguido arrasar o local com um incêndio e os vikings foram embora, ainda que apenas por alguns anos. Ao retornarem, entre Ath Cliath e a lagoa de Dubh Linn, os nórdicos montaram um novo assentamento em uma elevação, com resistente muralha e paliçada, e uma robusta ponte de madeira atravessando o rio. Contudo, o rei O'Neill de então era um homem determinado. Um ano antes, em uma grande batalha em Tara, ele derrotara os nórdicos de Dyflin. O pai de Harold não participara dessa luta; posteriormente, porém, ele e Harold assistiram à fila de bigas do rei irlandês atravessar a comprida ponte de madeira sobre o Liffey. O rei permanecera em Dyflin por muitos meses, mas depois partira, levando muito ouro e prata, e Dyflin voltou ao domínio de um governante viking. O porto agora teria de pagar tributos ao rei irlandês, mas, fora isso, fazia negócios como sempre.

— Muito tempo atrás — começou seu pai —, quando Dyflin ainda era nórdico, o rei supremo nos atacou num ano. E pagou a alguns dinamarqueses para ajudá-lo. Já ouviu essa história?

Harold franziu a testa. Havia muitas sagas sobre batalhas vikings e feitos heróicos, mas não conseguia se recordar dessa. Sacudiu a cabeça.

Está registrado — falou o pai baixinho —, mas não é uma história popular hoje em dia. — Suspirou. — Havia um grupo de dinamarqueses em particular que andava atacando as ilhas setentrionais. Gente ruim. Até mesmo os outros dinamarqueses os evitavam. O rei supremo mandou um recado para eles e lhes ofereceu uma recompensa se o ajudassem a atacar Dyflin.

— E eles vieram?

— Ah, sim. — Olaf entristeceu-se. — Nós os expulsamos. Mas foi um caso sério. Meu avô, ele era criança na ocasião, perdeu o pai nesse ataque. — Fez uma pausa. Harold ouvia atentamente. Esperava que seu ancestral não tivesse morrido em desonra.

— Ele foi morto depois que a batalha terminou — prosseguiu o pai. — Veio um dinamarquês, esfaqueou-o nas costas e depois fugiu. O nome do dinamarquês era Sigurd, filho de Sweyn. Até mesmo seus próprios homens o desprezaram por esse ato.

— E não foi vingado?

— Não na ocasião. Eles fugiram. Anos depois, porém, quando meu avô se encontrava em um barco fazendo comércio nas ilhas do norte, ele viu um barco viking num porto e lhe disseram que pertencia a Sigurd e seu filho. Então ele os desafiou a lutar. Sigurd era um velho, na época, se bem que ainda forte, e seu filho era da idade do meu pai. Então Sigurd concordou em lutar com a condição de que, se fosse morto, meu avô lutaria também com o filho dele. E meu avô jurou: “Eu cortarei suas cabeças, Sigurd, filho de Sweyn, e, se você tivesse mais filhos, eu também levaria as deles comigo.” Como já era noite, combinaram de lutar na manhã seguinte, assim que o sol estivesse sobre o mar. Então, ao amanhecer, meu avô foi até onde estava o barco deles; mas, ao se aproximar, eles se afastaram da praia e começaram a remar para o mar. E riram dele e gritaram insultos. Então meu avô correu de volta para seu navio e implorou que seguissem Sigurd. Eles se recusaram e, como meu avô era apenas um jovem, não houve nada que pudesse fazer. Todos, porém, tinham visto o que acontecera, e Sigurd e seu filho passaram a ser conhecidos como covardes por todos os mares do norte.

“Ao longo dos anos, de tempos em tempos, meu avô teve notícia deles. Estiveram por um tempo na Ilha de Man, que fica entre nós e a Britânia, depois na Inglaterra, em York. Mas nunca vieram a Dyflin. E depois que meu avô morreu não tivemos mais notícias deles. Até cinco anos atrás, quando um mercador me disse que o neto de Sigurd estava em Waterford. Pensei em ir até lá, mas... tinha sido há tanto tempo. Achei que o neto em Waterford talvez nem mesmo soubesse desse assunto. Deixei para lá e nunca mais voltei a me preocupar com isso... até hoje.

— Mas a família de Sigurd não esqueceu.

— Parece que não.

— Se você preferiu esquecer, por que esse garoto não fez o mesmo?

— Foi a família dele que foi desgraçada, Harold, não a nossa. Pelo menos ele parece ser mais orgulhoso do que seus ancestrais. Estes nunca ligaram para a péssima reputação, mas obviamente ele liga. Portanto, precisa vingar a honra deles matando você.

— Ele quer cortar a minha cabeça e mostrá-la para todo mundo?

— Sim.

— Então, algum dia, terei de lutar com ele?

— A não ser que ele mude de idéia. Mas não acredito que vá mudar. Harold refletiu. Sentiu-se um pouco amedrontado, mas, se esse era seu destino, então sabia que teria de ser valente.

— E o que devo fazer, papai?

— Preparar-se. — Seu pai olhou para ele gravemente por um momento. Então sorriu e deu-lhe um tapinha nas costas. — Porque, quando lutar, Harold, você vai vencer.

Goibniu, o ferreiro, contemplou o monte. Depois agarrou o braço do filho.

— Olhe só para aquilo!

O rapaz de dezesseis anos olhou. Não tinha certeza do que deveria ver, mas sabia que seu pai estava furioso com alguma coisa. Tentou, dissimuladamente, descobrir o ponto exato no qual o olho do pai estava fixado.

Os montes pré-históricos acima do rio Boyne não haviam sofrido grandes alterações desde a época de Patrício. Aqui e ali ocorrera mais uma sedimentação. As passagens da entrada agora estavam todas ocultas; mas diante delas uma quantidade de pedras de quartzo branco ainda continuava espalhada pelo chão, reluzindo quando o sol batia nelas. Abaixo, no rio Boyne, os salmões e os gansos continuavam com suas silenciosas ocupações, como se eles mesmos tivessem estado ali quando os Tuatha De Danaan foram para seus resplandecentes salões no interior do cume. Algo, porém, havia desagradado ao olho de Goibniu. Diferentemente de seu distante ancestral, Goibniu utilizava ambos os olhos. Mas quando refletia sobre algo, tinha o hábito de fechar um olho e olhar de banda com o outro, que com isso parecia ficar enorme. Os homens achavam o seu olhar desconcertante. E não sem motivo. Ele nunca deixava passar nada.

— Olhe o topo, Morann. — Goibniu apertava com firmeza o braço do filho, ao apontar impacientemente.

E agora o rapaz percebeu que o topo de um dos montes fora mexido. Próximo à metade do domo coberto de grama, várias pilhas de pedras danificadas indicavam que alguém tentara arrombar o túmulo pela parte de cima.

— Bárbaros! Pagãos! — bradou o artesão. — Foram os malditos Ostmen que fizeram isso.

Cerca de um século atrás, um grupo de vikings, curiosos para saber de que modo os grandes túmulos haviam sido construídos e se estes continham qualquer tesouro, tinham passado vários dias tentando arrombar um deles. Ignorando que existia uma entrada oculta na lateral, eles haviam tentado entrar pelo topo.

— Levaram alguma coisa? — perguntou Morann.

— Não. As pedras são imensas. Eu já olhei. Eles desistiram. — Voltou a ficar em silêncio por um momento, e então explodiu. — Como ousam tocar nos deuses?

Rigorosamente falando, isso era inconsistente. Embora a família do artesão, como muitas outras, tivesse se mantido firme por várias gerações, após o sacerdócio de Patrício, antes de aceitarem de mau grado a nova religião, eles agora já eram cristãos havia mais de quatro séculos. Nos dias santificados, Goibniu ia à igreja no pequeno mosteiro ali perto e, solenemente, fazia a comunhão. Sua família sempre supôs que ele era um fiel servo da Igreja — embora nunca se pudesse ter certeza em relação a Goibniu. Contudo, como a maior parte dos fiéis da ilha, ele ainda prezava os costumes do passado. O paganismo nunca morre inteiramente. A maioria dos ritos pagãos da época do plantio e da colheita já havia sido incorporada com novos nomes ao calendário cristão; e mesmo alguns dos antigos ritos de investidura de reis, inclusive o cruzamento com uma égua, ainda eram uma recordação afetuosa. Quanto aos antigos deuses, talvez não fossem mais deuses “ídolos e invenções”, declararam os sacerdotes. Talvez fossem apenas mitos, para serem narrados pelos bardos. Ou talvez, com a bênção da Igreja, pudessem ser considerados heróis ancestrais, homens extraordinários, dos quais dinastias como a dos poderosos O'Neill podiam alegar descendência. Mas o que quer que tivessem sido, eles pertenciam à Irlanda, e não era para os piratas vikings profanarem seus locais sagrados.

Morann nada disse. Seu pai apeara e, juntos, caminharam em silêncio em volta dos túmulos. Diante do maior deles ficava a grande pedra com suas estranhas espirais entalhadas, e os dois pararam para olhar o objeto místico.

— O nosso povo costumava viver perto daqui — comentou o ferreiro melancolicamente. Fora um ancestral, dois séculos atrás, que se mudara para dois dias de viagem longe dali, a noroeste, para a região de pequenos lagos, que a família ocupava atualmente. Evidentemente, para Goibniu, a pedra com suas espirais cósmicas representava uma espécie de volta ao lar.

Foi só então que seu filho se arriscou a fazer a pergunta que o vinha intrigando, desde o início da explosão de seu pai.

— Se odeia tanto os ostmen, papai, então por que quer me convencer a viver com eles?

Parecia uma pergunta natural; mas, em resposta, o ferreiro olhou-o friamente

e murmurou:

— É um idiota que tenho por filho — e recaiu no silêncio. Somente após uma demorada pausa, ele se dignou a dar maiores explicações. — Quem detém o maior poder nesta ilha? — perguntou o ferreiro.

— O rei supremo, papai.

— Muito bem. — Concordou com a cabeça. — E não é verdade que, há gerações, os reis supremos vêm tentando expulsar os ostmen de Dyflin? — Pronunciou lugubremente o nome nórdico.

— É sim, papai.

— Mas, ano passado, quando o rei supremo venceu uma grande batalha em Tara e desceu o Liffey, em vez de expulsá-los, deixou que ficassem e passou a cobrar um tributo. Por que acha que ele fez isso?

— Acho que foi porque isso lhe convinha — sugeriu o filho. — Ele achou melhor cobrar um tributo do que expulsá-los.

— É verdade. Um porto é algo valioso. Os portos dos ostmen trazem riqueza. É melhor preservá-los do que destruí-los. — Fez uma pausa. — Vou lhe dizer mais uma coisa. O poder dos O'Neill é tão grande hoje quanto já foi antigamente?

— Não.

— E por quê?

— Porque brigaram entre eles. — Até certo ponto isso era verdade. Muito tempo atrás, a poderosa casa real se dividira em dois ramos, os O'Neill do Norte e os do Sul. Em geral os dois tinham conseguido habilmente evitar dissensões alternando entre si o reinado. Em gerações recentes, porém, houve muita contenda. Outros poderosos da ilha, principalmente os reis de Munster no sul, desgastaram a autoridade dos O'Neill de um modo constante. Um jovem chefe de Munster, chamado Brian Boru, parecia sempre pronto a causar encrenca por causa de seu escasso respeito por qualquer uma das monarquias estabelecidas. Os O'Neill ainda eram fortes — não tinham acabado de derrotar os vikings de Dyflin? —, mas os reis irlandeses estavam de olho. Como um imenso touro, o enorme poder do norte revelava sinais de envelhecimento.

— Talvez. Mas vou lhe propor uma causa mais profunda. Os O'Neill não tiveram culpa. Não podiam ter previsto as conseqüências de seus atos. Mas, quando os ostmen iniciaram o seu ataque ao nosso litoral, os O'Neill eram tão fortes que os ostmen não conseguiram estabelecer um só porto nas costas das terras deles. Nem um só. Todos os portos dos ostmen ficam mais distantes, ao sul. Contudo, essa força pode ter sido uma maldição. Sabe me dizer por quê?

— Os portos trazem riqueza? — arriscou o filho.

— E riqueza é poder. Como você acha que Niall dos Nove Reféns se tornou tão poderoso antes de São Patrício chegar? Atacando a Britânia. Ele tinha tesouros e escravos para recompensar seus seguidores. Os ostmen, em sua maioria, são piratas e pagãos. Mas seus portos são ricos. Quanto mais portos tiver um rei, e se ele conseguir controlá-los, mais riquezas e poder ele terá. Esse é atualmente o ponto fraco dos O'Neill. Os portos não estão nas mãos deles. É por isso que precisam de Dyflin, o porto mais rico de todos.

— Então é por isso que me quer lá?

— É. — Goibniu olhou seriamente para o filho. As vezes ele pensava que o rapaz era cauteloso demais, cuidadoso demais. Bem, se assim for, que seja para o melhor. Gesticulou novamente para o túmulo e seu teto quebrado. — Eu nunca gostei dos ostmen. Mas Dyflin é o futuro, Morann, e é para lá que você vai.

Ela dançava. Era uma figura delgada, morena — pernas brancas como gravetos e um emaranhado de cabelos negros desabando às suas costas —, arrastando os pés, ela dançava, para cá e para lá; e ele, observando-a o tempo todo, a menina na rua. Caoilinn era o nome dela; o dele, Osgar. E, enquanto a observava, ele se perguntava: “Será que ele se casaria naquele dia?”

Para onde quer que se olhasse na cidade viking de Dyflin, via-se mato. As ruas estreitas que seguiam acima e abaixo das encostas desiguais eram feitas de troncos de madeira cortados ao meio; nos becos tortuosos e nas trilhas caminhava-se sobre tábuas de madeira. Todas as alamedas eram guarnecidas em ambos os lados com paliçadas ou taipas atrás das quais, em seus estreitos terrenos, podiam ser vistos os telhados colmados das moradias retangulares dos nórdicos com suas paredes de vime ou entradas revestidas de madeira. Algumas habitações continham cercados para porcos, galinhas e outros animais domésticos, e outras haviam sido transformadas em oficinas; e as paredes de madeira em volta delas eram para deter ladrões ou agressores ou, como os bordos de um navio, para conter o vento invernal do vasto e cinzento estuário e a paisagem marinha a céu aberto do outro lado. Circundando esse povoado de madeira com oito mil hectares, havia uma cerca de defesa encimada por uma paliçada de madeira. Na frente da paliçada, à margem do rio, havia um robusto cais de madeira ao qual vários barcos longos estavam amarrados. Rio acima ficava a comprida ponte de madeira e, depois dela, o Vau das Cercas. O povo irlandês, na sua maioria, ainda chamava o lugar pelo seu nome antigo, Ath Cliath, mesmo se costumassem atravessar a ponte viking em vez do vau celta. Mas embora Caoilinn fosse irlandesa, ela chamava a cidade de madeira de Dyflin, porque morava lá.

— Vamos até o mosteiro? — De repente, ela virou seus olhos verdes para ele

— Você acha que devemos? — perguntou. Ela tinha nove anos e ele, onze. Ele tinha mais juízo.

— Ora, vamos — gritou ela; e, com um divertido sacudir de cabeça, ele a seguiu. Ele ainda não sabia se ia se casar.

O pequeno mosteiro ficava na encosta logo ao sul do cume onde o antigo assentamento de Fergus contemplara do alto a lagoa negra de Dubh Linn. Já estava ali quando os primeiros vikings chegaram — uma pequena casa religiosa protegida pelos descendentes Ui Fergusa do antigo chefe. Nos séculos após a morte de Fergus, outros chefes menores haviam estabelecido assentamentos aqui e ali na ampla planície do estuário do Liffey e seus nomes sobreviveram. Rathmines, Rathgar, Rathfarnham, todos ficam a poucos quilômetros de distância uns dos outros. O antigo rath de Fergus agora fica dentro dos muros de Dyflin, mas os componentes do pequeno clã dos Ui Fergusa ainda eram reconhecidos como os chefes da região, e eles tinham uma fazenda ali perto.

Ao olhar atentamente para a lagoa negra e o povoado viking murado mais além, Osgar sentiu um reconfortante fervor se espalhar pelo seu corpo. Ali era o seu lar.

Quando os vikings noruegueses chegaram ali, seu ancestral, o chefe Ui Fergusa da época, decidiu sabiamente não opor uma inútil resistência. Também foi auspicioso o fato de, como Fergus muito antes dele, esse dono do rath ser um excelente criador de gado. Assim que chegaram ao rio Liffey, os vikings começaram a procurar provisões. Por ter dispersado seus animais por lugares onde os nórdicos teriam dificuldade de encontrar, o criador de gado tornou-se útil a eles em todos os sentidos, fornecendo-lhes grãos, carne e gado a preços justos. Os vikings podiam ser piratas, mas também eram comerciantes. Eles o respeitaram. A despeito de sua religião cristã, esse descendente de Fergus ainda preservava orgulhosamente a antiga taça de caveira da família. Os vikings não se importaram. Ele logo aprendeu o suficiente da língua deles para fazer negócios e garantir que ninguém do seu povo lhes criasse problemas. Tornou-se uma figura bastante popular. Havia ainda terra desocupada, não houve necessidade de expulsar o antigo chefe de seu território. E se ele quisesse manter o pequeno mosteiro, de cujos únicos objetos de valor já tinham se apossado, os nórdicos pagãos não faziam nenhuma objeção. O mosteiro lhes pagava um pequeno aluguel. Os monges geralmente tinham conhecimentos de medicina. De quando em quando, os vikings do povoado faziam uma longa e penosa caminhada até lá em busca de cura. E foi assim que a família de Osgar se manteve, no antigo Ath Cliath, ao longo dos séculos.

As duas crianças se aproximavam do portão do mosteiro, do qual emergia um monge idoso, quando Caoilinn declarou sua intenção.

—Acho — disse ela—que eu gostaria de me casar na igreja hoje. — E, aproximando-se do velho monge, perguntou educadamente: — O abade, o irmão Brendan, está?

— Ele não está — veio a áspera resposta. — Foi pescar com seus filhos.

— Então não podemos usar a capela — disse-lhe firmemente Osgar — ou arranjaremos encrenca com o meu tio. — O abade era rigoroso nessas questões. Se ele permitisse o ingresso de crianças na pequena capela quando não houvesse cerimônia religiosa, tudo bem. Mas se entrassem às escondidas sem sua permissão, elas poderiam esperar a correia dele em suas nádegas.

O fato de o tio de Osgar, o abade, ser casado e ter filhos não era sinal de lassidão moral no mosteiro. Desde sempre a família se ligara ao mosteiro, pois cerca de dois séculos após a visita do bispo Patrício, os Ui Fergusa haviam permitido que um grupo de monges de uma grande comunidade religiosa do sul se instalasse perto de sua propriedade. De vez em quando, através das gerações, se algum membro da família optasse pela vida contemplativa, o que poderia haver de mais natural para ele do que entrar para sua própria casa religiosa? Aliás, isso até mesmo aumentava o prestígio dela: pois, do mesmo modo que seus ancestrais tinham às vezes escolhido ser druidas, as maiores famílias da ilha costumavam, de tempos em tempos, oferecer um dos seus às ordens sagradas. E era natural, também, que os Ui Fergusa vissem a si mesmos como guardiões dos monges.

Não que o pequeno mosteiro necessitasse de muita proteção. Alguns dos maiores mosteiros da ilha enriqueceram tanto que os chefes da região, para quem o roubo de gado, afinal de contas, era uma antiga e honrada tradição, por vezes não resistiam à tentação de pilhar as casas religiosas. Nos últimos dois séculos, os invasores vikings também haviam pilhado alguns dos mosteiros próximos das costas da ilha e dos rios navegáveis. Houve até mesmo, em ocasiões memoráveis, intensas batalhas entre os monges de mosteiros rivais, por causa de suas posses, hierarquia ou outras questões. Mas a pequena casa religiosa acima da lagoa negra tivera poucos desses problemas pelo simples motivo de ser minúscula e não possuir grandes tesouros.

Não obstante, satisfazia ao orgulho da família ser guardiã do mosteiro e, em gerações recentes, o chefe da família ou um dos seus irmãos geralmente assumia a posição de abade laico, o que permitia à família o benefício de uma modesta moradia no local e também proteção garantida. Tais acordos eram bastante comuns, tanto na ilha quanto em muitas outras partes da cristandade.

— Bem — disse Caoilinn, chateada —, se não podemos usar a capela, então terá de ser em outro lugar. — Ela pensou por um momento.—Vamos até o monte. Você está com o anel?

— Estou com o anel — retrucou ele pacientemente, enquanto enfiava a mão na bolsinha de couro pendurada em seu cinturão e retirava de lá o pequeno anel feito de galhada de veado com que já a desposara pelo menos uma dezena de vezes.

— Vamos lá então — disse ela.

A brincadeira de casar já durava um ano. Ela nunca parecia se cansar daquilo. E ele continuava sem saber — era apenas uma brincadeira de menina, ingênua e sem significado, ou haveria uma intenção séria por trás daquilo? Era sempre ele a quem ela escolhia para ser o noivo. Seria porque ele era seu primo e aceitava a brincadeira, e ela receava que os outros meninos pudessem rir dela? Provavelmente. Não era constrangedor? Não. Ele não ligava. Ela era apenas sua priminha. De qualquer modo, Osgar podia ser magro, porém era mais alto do que a maioria dos meninos de sua idade, e era forte. As outras crianças o tratavam com um respeito cauteloso. Por isso ele costumava fazer as vontades dela. Certa vez, quando estava ocupado, ele se recusou, e viu o rosto dela se abater e observou-a emudecer. Então, jogando desafiadoramente a cabeça para trás, ela voltou à carga.

— Pois bem, se não se casar comigo, vou procurar outro.

— Não, eu me casarei com você — cedera ele. Afinal de contas, era melhor que fosse ele do que outro.

O monte não ficava longe. Ficava numa plataforma coberta de grama, um pouco antes dos alagadiços que se estendiam rio abaixo até a lagoa negra. Quando os vikings o viram pela primeira vez, chamaram o lugar de Hoggen Green, que significava “cemitério”; e, como o povo nórdico costumava fazer ao encontrar um lugar sagrado próximo a um assentamento, usavam Hoggen Green para suas assembléias, onde os cidadãos livres da cidade se reuniam para deliberar e eleger seus líderes. Desse modo, enquanto as sepulturas de seus ancestrais, inclusive Deirdre, Morna e seus filhos, afundaram aos poucos até ficarem no nível do resto da grama no local de encontro dos vikings, o monte onde fora sepultado Fergus foi erigido para ser usado como a plataforma sobre a qual os chefes vikings ficavam de pé para dirigir suas assembléias. A assembléia era chamada de “Thing”. E assim, a sepultura do velho Fergus adquiriu um novo nome. Era conhecida como Thingmount.

Diante do Thingmount, as duas crianças pararam e se prepararam para casar. casamento, ambos sabiam, não tinha proibições. Eles eram primos em segundo grau: o avô de Caoilinn virara artesão e se mudara para Dyflin, enquanto o de sgar permanecera na fazenda da família perto do mosteiro.

O velho e imponente Thingmount perto do rio tranqüilo era também um lugar apropriado, pois ambos sabiam que seu ancestral Fergus fora desenterrado lá para ser batizado por ninguém menos que o próprio São Patrício. E tanto Isgar quanto a pequena Caoilinn de nove anos sabiam falar com desembaraçada acüidade sobre as vinte e cinco gerações que os uniam ao velho.

Como sempre fazia, Osgar teve de interpretar igualmente os papéis do noivo e do padre. E o fazia muito bem. Como seu pai morrera havia quatro anos, seu tio, o abade, cuidou de sua educação. Para grande alegria de sua mãe, que caía de joelhos quatro ou cinco vezes por dia para orar, ele não apenas sabia de cor o catecismo e muitos dos Salmos, mas também era capaz de recitar grandes partes das cerimônias religiosas da Igreja. “Você tem talento para a vida espiritual”, seu tio o preveniu. Ele também sabia ler e escrever, hesitante, em latim. Aliás, seu tio disse à orgulhosa mãe que o jovem Osgar mostrava mais aptidão para essas coisas do que seus próprios filhos.

De pé ao lado de Caoilinn, mas também quase em frente, ele entoava não muito convincentemente a parte do padre e dava as respostas do noivo. O anel de galhada foi colocado, a noiva, conveniente mas castamente, beijou-o na face, e Caoilinn, encantada consigo mesma, como sempre, caminhou para lá e para cá de braços dados com ele e o anel no dedo. Ela o usaria até o fim da brincadeira, quando, ao se separarem, o devolveria a ele, para ser colocado em segurança na bolsinha até a vez seguinte.

O que significava tudo aquilo? Talvez ela mesma não soubesse, mas Osgar achava que realmente, um dia, eles se casariam de fato.

Podia-se perceber que eram primos. Eles tinham o mesmo cabelo escuro e a boa aparência que era normalmente uma característica da família. Mas, se, por um lado, os olhos de Osgar eram azul-escuros, os dela era de um verde surpreendente. Ele sabia que olhos verdes eram uma característica da família, mas, de todas as suas primas, Caoilinn era a única que os tinha, e isso fizera com que lhe parecesse alguém especial, mesmo quando ela era apenas um bebê. Também havia algo com relação à sua prima. A ascendência compartilhada parecia criar um estranho vínculo entre eles — familiar, porém mágico. Ele não sabia explicar direito, mas sentia como se estivessem destinados a ficar juntos em um mundo do qual as outras famílias eram de alguma forma excluídas. Contudo, mesmo se não fossem primos, ele se sentiria fascinado pelo seu espírito indômito e livre. Os adultos, seus tios e tias, sempre o haviam considerado a mais responsável de todas as crianças da enorme família. O menino que seria o mais indicado a liderar. Ele não sabia por quê, mas isso acontecia desde antes da morte do seu pai. Talvez fosse por isso que tivesse um sentimento de proteção em relação à priminha Caoilinn, que sempre fazia o que queria, trepava nas árvores mais altas e insistia para que ele se casasse com ela. Pois, em seu coração, ele sabia que não conseguia pensar em se casar com mais ninguém. Havia muito tempo o pequeno espírito fulgurante de seus olhos verdes o tinha encantado.

Ficaram um pouco por ali, brincando perto do Thingmount e às margens de um pequeno riacho; mas, enfim, era hora de voltar. E Caoilinn tirava o anel e o entregava a Osgar, quando notaram dois vultos vindo em sua direção. Um deles era o de um homem alto de cabelos ruivos montado em um magnífico cavalo; o outro, o de um menino ruivo sobre um pônei. Cavalgavam lentamente ao longo da beira do rio do lado de Hoggen Green.

— Quem são eles? — indagou Osgar a Caoilinn. Ela sempre conhecia todo mundo.

— Ostmen. Noruegueses. Estão aqui há muito tempo — disse ela, — Vivem em Fingal, mas às vezes vêm a Dyflin. Fazendeiros ricos.

— Ah. — Ele achava que conhecia a fazenda deles e ficou olhando curiosamente os dois cavaleiros, supondo que estivessem vindo visitar o Thingmount. Mas, para sua surpresa, embora olhassem na direção do monte, as duas figuras viraram abruptamente na direção do estuário e começaram a seguir para os baixios. — Então eles devem estar indo para a pedra — observou.

Era uma estranha visão. Dos encharcados alagadiços, erguia-se uma única pedra como uma sentinela solitária, com apenas as grasnantes aves marinhas por companhia. Por trás dela, lamaçal e charcos; diante dela, as águas do estuário bafejadas pela brisa: a Long Stone, como era chamada, fora colocada ali pelos vikings para marcar o local onde, um século e meio antes, o barco deles encalhou pela primeira vez na margem do Liffey. Para os dois noruegueses, supôs Osgar, aquela pedra à beira-mar devia evocar os mesmos ecos ancestrais que a sepultura do velho Fergus fazia com ele.

Não havia dúvida, pensou ele, que o ostman alto de cabelos ruivos era uma pessoa bem bonita. E, como se captasse seu pensamento no vento, ouviu Caoilinn dizer perto dele:

— O nome do garoto é Harold. Ele é bonito.

Por que aquilo soou mal? Sem dúvida, ela o notara em Dyflin. Por que o garoto norueguês não deveria ser bonito?

— E eles são cristãos ou pagãos? — perguntou ele.

Muitos dos vikings de Dyflin continuavam sendo pagãos. Mas a situação era fluida. Os irlandeses que viviam no interior da muralha, como Caoilinn e sua família, é claro, eram todos cristãos. Do outro lado do mar, na Inglaterra, Normandia e as terras onde eles haviam tomado seu lugar ao lado de outros governantes cristãos, os chefes vikings e seus seguidores haviam se beneficiado do prestígio e do reconhecimento que acompanhavam o membro da igreja universal. Mas, na Irlanda, ainda era preciso perguntar. Aqueles que viviam e negociavam em alto-mar geralmente aprendiam a mostrar respeito por diferentes deuses em diferentes terras. Os antigos deuses vikings como Tor e Odin ainda eram cultuados. Portanto, se um mercador em Dyflin tivesse algo como uma cruz pendurada no pescoço, nunca se podia ter certeza se era um crucifixo ou o martelo símbolo de Tor.

Uma coisa era certa, pensou. A família de sua prima Caoilinn era devotadamente cristã, como a sua. Caoilinn nunca teria permissão para se casar com um pagão, por mais rico e bonito que este pudesse ser.

— Não sei — retrucou ela, e um breve silêncio baixou sobre eles. — O garoto é aleijado — acrescentou ela casualmente.

— Oh. Coitado — disse Osgar.

— É melhor ir apanhá-lo, Morann. Você sabe como ele é.

Morann Mac Goibnenn ergueu a vista para sua esposa, Freya, com um sorriso, e concordou com a cabeça.

Era o final de um verão quente e tranqüilo. O mundo todo, ao que parecia, estava em paz naquele ano. Sete anos atrás, o chefe guerreiro de Munster, Brian Boru, juntamente com alguns vikings de Waterford, havia tentado atacar o porto. Dois anos atrás, o rei supremo fizera outra breve e aterrorizante visita ao lugar. Entretanto, no ano passado e neste, tudo se mantinha calmo. Nada de navios de guerra, nada de estrondo de cascos de cavalos, de incêndios ameaçadores ou do estrepitar de armas: o porto de Dyflin, sob as ordens de um novo rei, Sitric, permanecera tranqüilamente cuidando de seus negócios. Era tempo de cuidar da diversão da família e do amor. E como Morann tinha essas coisas para si mesmo, era tempo de cuidar delas para seu amigo Harold.

O que havia de errado com ele? Era esquecimento, como ele fingia ser, ou timidez o que fazia com que faltasse a encontros com garotas bonitas? “Desde que isso não signifique conhecer algumas mulheres”, dizia ele, quando Morann o convidava. Um ano atrás, haviam tentado apresentá-lo a uma garota. Ele permanecera calado a noite toda. “Não quis que ela tirasse conclusões erradas”, explicou depois, enquanto Morann balançava a cabeça e sua esposa, atrás de Harold, revirava os olhos. Agora estava na hora de tentar novamente. Freya escolhera a garota, cujo nome era Astrid e era uma parente sua. Passara a manhã toda falando com ela sobre Harold, contou-lhe tudo sobre ele, o bom e o ruim. Embora o nórdico não soubesse nada a respeito, a moça já estivera onde ele trabalhava e o observara diversas vezes. A fim de contornar a timidez de Harold, eles haviam combinado que diriam que ela estava indo para Waterford, onde tinha um noivo.

Seria uma grande felicidade para Morann se o seu amigo se casasse com uma boa mulher como sua própria esposa. Olhou para ela afetuosamente. Havia duas comunidades na Irlanda, celta e escandinava, e, ao descrever suas batalhas, os bardos talvez gostassem de mostrá-las como adversários heróicos — celta contra viking, gaélicos contra estrangeiros, “Gaedhil e Gaill!”, como diz a expressão poética — mas, na realidade, a divisão nunca fora tão simples assim. Apesar de os portos vikings serem enclaves nórdicos, os nórdicos vinham se casando com mulheres da ilha desde quando chegaram, e irlandeses se casavam com mulheres nórdicas.

Freya estava vestida como condizia a uma boa esposa escandinava — meias simples de lã, sapatos de couro, vestido inteiro cintado sobre um camisão de linho. Da fivela de casco de tartaruga em seu ombro, numa corrente de prata, pendiam duas chaves, um estojinho de bronze de agulhas e uma tesourinha. Partindo de sua testa larga, o cabelo castanho-claro estava preso austeramente para trás debaixo de uma rede. Apenas Morann conhecia o fogo que ardia sob aquele exterior circunspecto. Ela sabia ser tão devassa, pensou com satisfação, quanto qualquer prostituta. Esse era o tipo de esposa de que seu amigo precisava.

Astrid também era paga. Embora a maioria de seus vizinhos de Fingal fossem cristãos, a família de Harold permanecia fiel a seus antigos deuses. A esposa de Morann também era paga, mas se converteu ao cristianismo quando se casou com ele. Morann insistira nisso porque achava que mostraria respeito à sua família. Aliás, quando ela lhe perguntara o que significava tornar-se cristão, ele lhe dera uma resposta digna de seu ancestral caolho de seis séculos atrás: “Significa que você fará o que eu mandar.” Ele sorriu ao se lembrar disso. Cinco anos de casamento feliz e dois filhos o ensinaram a ser uma pessoa melhor.

Freya certamente preparara uma excelente refeição. Eles viviam à moda viking: um modesto desjejum pela manhã, e nada mais até a refeição principal do dia, à noite. Arenque defumado e peixe fresco, para começar; dois tipos de pães recém-assados; um prato principal de guisado de vitela, servido com alho-porro e cebola; coalhos de queijo e avelãs, para encerrar. Tudo enfiado goela abaixo com hidromel e um bom vinho proveniente da França. O guisado estava na panela sobre o braseiro central do grande aposento principal. De sua oficina, ele podia sentir o cheiro da comida.

— Quer que eu vá agora? — perguntou a Freya. Ela fez que sim. Lentamente, porém, ele passou a recolher os objetos sobre a mesa à sua frente.

Na oficina havia várias ferramentas: as verrumas, pinças e martelos, que indicavam que ele trabalhava com metal. Mais interessante era o pequeno pedaço de osso achatado sobre o qual ele entalhava toscos desenhos de futuros trabalhos em metal. Seu talento era visível. Mesmo em estado bruto, com suas complexas formas entrelaçadas, podia-se notar a habilidosa combinação dos abstratos padrões espiralados da antiga arte da ilha com as formas de serpentes tão populares entre os nórdicos. Em suas hábeis mãos, as rudes serpentes marinhas vikings eram capturadas em padrões cósmicos, celtas, que encantavam igualmente homens e mulheres.

Em uma caixa-forte atrás de sua mesa, que era dividida ordenadamente em compartimentos, havia todo tipo de curiosidades. Havia pedaços de uma pedra escura conhecida como âmbar-negro, importada da cidade britânica viking de York; outro compartimento continha pedacinhos de vidro colorido romano, escavados em Londres e usados por joalheiros vikings para decoração. Havia contas azul-escuras, brancas e amarelas para confecção de pulseiras, pois Morann podia montar qualquer coisa: fivelas de cobre, cabos de espada de prata, braçadeiras de ouro; podia decorar com filigrana de ouro e prata modelada, e fabricar jóias e ornamentos de qualquer espécie.

Em sua caixa havia igualmente pequenas pilhas de moedas. Do mesmo modo como o antigo dinheiro em forma de argola e pedaços de prata cortados de moedas ou jóias, os mercadores vikings de Dyflin acostumavam fazer negócios com moedas de toda a Europa, apesar de falarem em criar a sua própria casa de cunho ali em Dyflin, como os ingleses fizeram em suas cidades. Morann possuía uma ou duas moedas antigas das casas de cunho de Alfredo, o Grande, na Inglaterra, e até jnesmo uma, de dois séculos, da qual se orgulhava especialmente, do tempo do imperador romano Carlos Magno.

Agora, com todo o cuidado, ele colocou o que havia sobre sua mesa de trabalho na caixa cintada de ferro, que então trancou e entregou à sua mulher para guardá-la em segurança no interior da casa.

Mais um dia de trabalho chegava ao fim. Ele seguiu caminho passando pelas oficinas de fabricantes de pentes e carpinteiros, fabricantes de arreios e vendedores de pedras preciosas. Por toda a parte era evidente a ativa prosperidade da cidade viking. Passou pela incandescente forja de um ferreiro e sorriu — a ocupação de seus ancestrais. Mas teve de admitir — os invasores nórdicos eram melhores artesãos com ferro e aço do que haviam sido os próprios homens belicosos da ilha. Virando agora para a rua Fish Shambles, que todos chamavam de Matadouro de Peixes, onde o mercado de peixe já estava fechado, ele avistou um comerciante que lhe dirigiu um respeitoso aceno de cabeça. O comerciante negociava com a mercadoria mais preciosa de todas — âmbar dourado que vinha da Rússia pelo Báltico. Somente alguns poucos artesãos de Dyflin podiam se dar ao luxo de comprar âmbar, e Morann era um deles.

Morann Mac Goibnenn. Em irlandês, soava “Mocgovnan” — filho do ferreiro —, pois tanto seu pai quanto seu avô haviam ostentado o nome Goibniu. Foi apenas a partir da última geração ou da penúltima que essa forma de nome familiar individual começara a ser usada. Um homem podia ser chamado de Fergus, filho de Fergus, e podia pertencer a uma grande tribo real, como os O'Neill; mas a tribo não era, ainda, um nome de família. Contudo, Morann e seus filhos eram agora a família Mac Goibnenn.

E isso era usado, igualmente por vikings e habitantes da cidade, com respeito. Embora muito jovem, o fabricante de jóias se mostrara um mestre em seu ofício. Era também conhecido por ser cauteloso e sagaz, e já era um homem a quem davam ouvidos no porto viking. Seu pai morreu dois anos após ter chegado a Dyflin e isso causou uma grande dor; mas dava prazer a Morann pensar em como seu pai ficaria orgulhoso se pudesse vê-lo agora. Quase inconscientemente, como se para manter viva a memória do pai, ele começara, desde a morte do velho, a imitar seu truque de olhar fixamente uma pessoa com um olho só, quando negociava ou a examinava por algum motivo. Quando sua esposa reclamou disso, ele apenas riu, mas não parou de fazê-lo.

Descendo a Matadouro de Peixes, ele chegou ao grande cais de madeira. Ainda havia bastante gente por ali. Um grupo de escravos, acorrentados juntos com argolas de ferro em volta do pescoço, estava sendo retirado de um dos barcos. Olhou-os rapidamente de relance, mas com um olhar crítico. Pareciam fortes e saudáveis. Dyflin era o principal mercado de escravos da ilha e havia embarques regulares do grande porto britânico de escravos de Bristol. Os ingleses, em sua opinião, por serem de certo modo lentos e dóceis, davam bons escravos. Rapidamente, percorreu o cais até o final, onde sabia que estaria seu amigo. E ali estava ele. Acenou. Harold o viu e sorriu.

Ótimo. Ele não desconfiava de nada.

Demorou um pouco para afastar Harold do cais; mas ele parecia bastante feliz por ter vindo, que era tudo o que importava. Sua verdadeira preocupação, porém, parecia ser que Morann devesse admirar o grande projeto no qual ele estava trabalhando, e do qual se sentia obviamente orgulhoso. Morann também não tivera qualquer dificuldade de fazer isso.

— É magnífico — concordou ele. De fato, era impressionante.

Tratava-se de um barco viking. Em todo o mundo viking, atualmente, o porto de Dyflin era famoso por construir navios. Havia muitos estaleiros na Escandinávia e na Britânia; mas, se você quisesse o melhor, ia a Dyflin.

Como qualquer um na cidade, Morann sabia que o mais recente barco era especial; mas, naquele dia, retiraram parte do andaime que o circundava, e agora o elegante contorno do barco estava visível. Era impressionante.

— Maior do que qualquer outro construído em Londres ou York—declarou Harold orgulhosamente. — Venha, veja o interior. — E mostrou o caminho até uma escada, que foi seguido por Morann.

Sempre surpreendeu Morann que, a despeito de seu coxear, Harold conseguisse se movimentar tão depressa, aliás mais depressa do que qualquer homem. Observando-o subir às pressas a escada e em seguida, com uma risada, saltar sobre o costado do barco, o artesão pôde apenas se admirar de sua agilidade. Ele conhecia o jovem nórdico desde que este fora trabalhar no porto, mas não fazia idéia dos anos de doloroso treinamento e esforço que levaram àquele resultado.

Desde o encontro com Sigurd que começou a se exercitar. De manhã bem cedo, ele estava de pé para ajudar o pai na fazenda. Na metade do dia, porém, sempre estava livre, e então começava o seu exercício. Primeiro, vinha o treinamento físico. Ele exigia impiedosamente de si mesmo. Ignorando a dor e a humilhação de seus tropeços e tombos, o menino na fazenda forçava a si mesmo a caminhar o mais depressa que conseguia, arrastando a perna aleijada, estimulando-a a se movimentar. com o tempo ele conseguiu correr, embora de forma errática. Conseguiu até mesmo saltar, pulando com a perna boa e encolhendo a danificada ao superar um obstáculo. Às tardes, seu pai costumava se juntar a ele. Então começava a diversão.

Primeiro, seu pai lhe fizera pequenas armas de madeira: um machado, uma espada, uma adaga e um escudo. Durante dois anos, foi como se brincassem, ensinando Harold a golpear, aparar, espetar e se esquivar. “Para o lado. Defenda seu terreno. Golpeie agora!”, gritava ele. E, brandindo, desviando-se ou girando seu machado de brinquedo, o menino executava todo exercício que seu pai fosse capaz de imaginar. Por volta dos doze anos, sua habilidade era espantosa e seu pai gargalhava: “Não consigo alcançá-lo!” Aos treze, Harold ganhou suas primeiras armas de verdade. Eram leves, mas um ano depois seu pai lhe deu umas mais pesadas. com a idade de quinze anos, o pai confessou que nada mais tinha a lhe ensinar, e o enviou a um amigo que tinha na costa, o qual, ele sabia, possuía uma enorme habilidade. Foi lá que Harold obteve não apenas mais agilidade como aprendeu até mesmo a usar suas peculiaridades físicas para desferir golpes nãoconvencionais que apanhavam qualquer oponente de surpresa. com a idade de 16 anos, ele era uma máquina de matar.

— Que estranho — comentou certa ocasião seu bem-intencionado pai —, ao ameaçar a sua vida, aquele dinamarquês talvez lhe tenha feito um favor. Lembre-se do que era antes e olhe você agora.

E Harold beijou o pai afetuosamente e nada disse, pois sabia que desenvolvera habilidades extraordinárias, mas continuava um aleijado.

— As linhas do barco são admiráveis — gritou Harold para Morann, enquanto o artesão escalava a escada. E eram realmente. O longo barco, construído de pranchas superpostas, estendia-se até a imensa proa de um modo tão suave e com tamanha força que, quando alguém o imaginava na água, seu rápido deslizar não parecia apenas natural, mas inevitável — tão inevitável quanto o destino nas mãos dos próprios deuses nórdicos pagãos. — O espaço para a carga — gesticulava Harold na direção do centro vazio da enorme embarcação — é quase um terço maior do que qualquer outra coisa que navegue sobre a água. — Apontou para o fundo do navio, onde a poderosa espinha dorsal da quilha corria como uma lâmina. — Apesar disso, o calado continua sendo raso o suficiente para todos os rios principais da ilha. — O Liffey, o enorme curso d'água da região do Shannon a oeste, e cada rio importante da Irlanda haviam visto os remadores vikings virem deslizando por suas águas rasas. — Mas sabe qual é o verdadeiro segredo de barcos como este, Morann? O segredo do manejo das velas no mar?

Eles eram resistentes. Nunca emborcavam. O artesão sabia disso. Mas, com um sorriso, o nórdico prosseguiu:

— Eles vergam, Morann — Ele fez um movimento com a mão. — Quando você sente a força do vento na vela, correndo mastro abaixo, e a força da água contra os costados, consegue perceber algo mais. A própria quilha verga, acompanha a curva da água. O barco se orienta em relação ao vento, ele e a água viram um só. Não é um barco, Morann, é uma serpente. — Gargalhou com prazer. — Uma enorme serpente marinha!

Como ele parecia bonito, pensou o artesão, com seu comprido cabelo ruivo, como o de seu pai, e os reluzentes olhos azuis, tão feliz em seu barco.

Certa ocasião, Freya perguntara a Morann:

—Você nunca se perguntou por que Harold largou a fazenda e veio trabalhar em Dyflin?

— Ele adora construir barcos — respondera. — Está no sangue — acrescentara. Era óbvio para qualquer um.

E, de fato, se houvesse outro motivo para isso que Morann Mac Goibnenn pudesse supor, ele nunca o ouvira do seu jovem amigo.

Harold tinha quase dezessete anos no verão em que foi apresentado à jovem. Ela veio de além-mar, de uma das ilhas do norte — uma moça de boa ascendência, disseram-lhe, cujos pais haviam morrido, deixando-a aos cuidados do tio. “Ele é um bom homem”, disse-lhe seu pai, “e a mandou para mim. Ela será nossa hóspede durante um mês e você cuidará dela. Seu nome é Helga.”

Ela era uma jovem formosa, magra, olhos azuis, um ano mais velha do que ele. Seu pai era norueguês; a mãe, sueca. Cabelos louros emolduravam suas faces, pressionando-as, como se fossem um par de mãos segurando seu rosto antes de os lábios serem beijados. Ela não sorria muito e seus olhos tinham um ar ligeiramente distante, como se parte de sua mente estivesse em outro lugar. Contudo, havia uma insinuação de sensualidade em sua boca, que Harold achava um pouco misteriosa, e excitante.

Por toda parte da casa, ela parecia plácida e contente. Duas das irmãs de Harold eram casadas e, na ocasião, estavam fora, mas as demais se deram muito bem com ela. Ninguém tinha qualquer queixa. A obrigação que ele tinha, além da de participar de qualquer divertimento que as garotas inventassem à noite para si mesmas, era levá-la para cavalgar de vez em quando. Certa vez ele a levara para dar uma volta por Dyílin. Mais freqüentemente, porém, eles saíam para cavalgar ou para caminhar ao longo da praia arenosa. Nessas ocasiões, ela lhe contava, com seu jeito estranhamente desinteressado mas natural, sobre a fazenda, sobre o queijo que faziam, o xale que ela e a mãe dele teciam para sua tia. Perguntava-lhe do que gostava e do que não gostava, aquiescendo calmamente e dizendo, “Já, já”, como se extraísse cada fragmento de informação, de tal modo que, ele começou a pensar, se tivesse lhe dito que seu passatempo favorito era cortar a cabeça das pessoas, ela provavelmente teria aquiescido do mesmo modo e dito: “Já, já.” Entretanto, a conversa era muito agradável.

Quando ele questionou Helga sobre sua própria vida, ela lhe falou da fazenda do tio e também de sua vida anterior no norte. Do que ela sentia falta, perguntou ele. “Da neve e do gelo”, respondeu, com uma nesga de genuíno entusiasmo maior do que qualquer um que ele vira antes. “A neve e o gelo são muito bons. Eu gosto de pescar no gelo.” Ela confirmou com a cabeça. “E gosto muito de andar de barco no mar.”

Em um dia ensolarado ele a levou para passear de barco. Ele remou da praia até a pequena ilha com seu alto rochedo fendido defronte ao promontório. Ela ficara feliz da vida. Sentaram-se juntos na praia. Então, para sua grande surpresa, ela disse calmamente: “Eu quero nadar agora. Você também?” E, despindo todas as suas roupas, como se fosse a coisa mais natural do mundo, ela caminhou até o mar. Ele não a seguiu. Talvez fosse tímido, ou tivesse vergonha de seu corpo. Mas olhou para o corpo magro dela, e seus pequenos seios empinados, e pensou consigo mesmo que seria algo realmente muito agradável possuí-los.

Foi poucos dias depois que seus pais o chamaram ao interior da casa, quando todas as moças estavam ocupadas do lado de fora, e o pai, com um sorriso, lhe Perguntou:

— O que você acharia, Harold, se Helga viesse a ser sua esposa? — E antes que Harold conseguisse formular uma resposta, ele continuou: — Sua mãe e eu achamos que ela seria perfeita.

Ele olhou-os sem saber direito o que dizer. A idéia era certamente estimulante. Pensou no corpo de Helga quando a vira saindo do mar, e na água escorrendo pelos seus seios sob o sol.

— Mas — gaguejou finalmente — ela vai me querer?

Seu pai e sua mãe trocaram um terno sorriso conspirador, e foi a mãe quem respondeu:

— Claro que vai. Ela falou comigo.

— Eu achei que... — Ele pensou em sua perna. Seu pai o interrompeu:

— Ela gosta de você, Harold. Tudo isso surgiu a partir dela. Quando seu tio me pediu para aceitá-la aqui, arrisco dizer que talvez ele desejasse uma união com a nossa família; mas você é jovem e eu achei que ainda não era tempo de se pensar nessas coisas para você. Mas gostamos dessa moça. Gostamos muito dela. Então, quando ela foi falar com a sua mãe... — Ele sorriu novamente. — Você decide, Harold. Você é o meu único filho homem. Um dia esta fazenda será sua. Quem escolhe a moça é você, e certamente não se casará com uma de que não goste. Mas essa, devo admitir, não é ruim.

Harold olhou para seus pais contentes e sentiu um grande calor percorrer seu corpo. Seria mesmo verdade que a garota o escolhera? Ele sabia que era fisicamente forte, mas, com aquela maravilhosa informação, experimentou uma nova e emocionante sensação de força e arrebatamento diferentes de qualquer coisa que tivesse sentido antes.

— Ela me pediu em casamento? — Eles fizeram que sim. Então sua imperfeição não teve influência? Parecia que não. — Vocês acham que eu devo? — O que significava ser casado? Ele não tinha certeza. — Eu acho... eu acho que vou gostar.

— Esplêndido — bradou Olaf, e estava para se levantar e colocar o braço em volta dos ombros do filho quando sua esposa colocou delicadamente a mão em seu braço, como se para lembrá-lo.

— Devemos esperar alguns dias — disse ela tranqüilamente. —Já conversamos sobre isso.

— Ah. — O pai pareceu um pouco decepcionado, mas então sorriu para ela. — Você tem razão, é claro. — E, em seguida, para Harold: — Você acabou de ouvir tudo isso, meu filho. É tudo muito novo para você. Pense nisso durante alguns dias. Não há pressa. Deve ser justo consigo mesmo.

— E com a moça também — lembrou-lhe delicadamente a esposa.

— Sim, é claro. com ela também. — Então seu pai levantou-se e colocou o braço em volta dele, e Harold sentiu a grande calidez de sua amorosa presença. — Muito bem, meu filho — murmurou. — Estou muito orgulhoso de você.

E, se não fosse pelo mero acaso, supôs Harold, ele teria se casado naquele mesmo inverno.

Aconteceu dois dias depois. Ele acabara de deixar seu pai no campo e voltava um pouco mais cedo do que o esperado. Ele vira suas irmãs desaparecerem já havia algum tempo no enorme celeiro de madeira. Além de um escravo fazendo um cesto perto do depósito de madeira, não havia ninguém por perto quando ele chegou à entrada da alta construção com telhado de palha. E estava para se curvar sob o vão da porta e penetrar no escuro espaço interno, quando ouviu a voz de sua mãe.

— Mas, Helga, tem certeza de que será feliz? —Já, já. Eu gosto desta fazenda.

— Alegro-me por você gostar, Helga. Mas gostar da fazenda talvez não seja o bastante. Você gosta do meu filho?

—Já, já. Eu gosto dele.

— Ele é meu único filho, Helga. Eu quero que ele seja feliz. —Já, já. Eu faço ele feliz.

— Mas o que faz você pensar assim, Helga? O casamento envolve muitas coisas. Envolve companheirismo. Envolve amor...

Houve um vestígio de impaciência, uma insensibilidade na voz da moça que ele não ouvira antes, quando ela respondeu?

— Foi seu marido que procurou meu tio, já? Quando ele soube que meu tio tinha uma sobrinha que queria tirar de casa para ter mais espaço para suas próprias quatro filhas. Ele então paga meu tio para me trazer aqui. Porque ele quer casar seu filho, que é aleijado? Isso é verdade, já!

— Talvez seja, mas...

— E eu venho e faço tudo que você quer, e então seu marido, três dias atrás, fala para mim: “Você se casa com ele?”, e eu falo: “Já, já.” Porque ele quer netos para esse único filho e ele tem medo que ninguém case com seu filho aleijado.

Houve uma pausa. Ele esperou que sua mãe negasse tudo aquilo, mas ela não o fez.

— Você acha meu filho...?

— Suas pernas? — Foi como se ele a ouvisse dar de ombros. — Eu pensei que ia me casar com um rapaz com as duas pernas boas. Mas ele é forte.

— Quando duas pessoas se casam — a voz da mãe agora era ansiosa, quase suplicante —, precisa haver a verdade entre eles.

—Já? Você e seu marido não dizem nada. Meu tio não diz nada. Mas ouço meu tio dizer à minha tia que seu marido teme que alguém venha matar seu filho antes que ele lhe dê netos, e é por isso que seu marido quer me comprar depressa do meu tio. Isso não é verdade? Nós falamos de verdade, — Meu filho é capaz de se defender sozinho. Harold afastou-se da porta. Já ouvira o bastante.

No dia seguinte, foi a Dyflin. Por causa de seu trabalho na fazenda, ele era um carpinteiro toleravelmente bom. Arranjou emprego no estaleiro. E, à tardinha, conseguiu alojamento temporário na casa de um artesão. Ao retornar naquela noite à fazenda, avisou aos pais atônitos:

— Vou embora.

— Mas e a moça? O seu casamento? — perguntou o pai.

— Mudei de idéia. Não a quero mais.

— Em nome de todos os deuses, por quê? — rosnou Olaf.

Há tantas coisas que filhos não podem dizer a seus pais. Conseguiria realmente contar ao pai que sabia da verdade, que a confiança entre eles foi quebrada, que ele foi humilhado? Se algum dia viesse a se casar, e agora duvidava disso, ele mesmo encontraria a moça — isso era certo. — Não quero me casar com ela. Só isso — disse ele. — Eu decido. Você disse isso.

— Você não sabe o que é bom para você — vociferou o pai. Sua frustração era tão visível que o filho até sentiu pena dele. Mas não adiantou.

— Você não precisa ir embora — frisou a mãe.

Mas ele foi, ainda que na ocasião nem depois dissesse por quê.

E, assim, fora para Dyflin. Ficou hospedado durante um ano com Morann Mac Goibnenn. Ele se fizera tão útil no estaleiro que era atualmente um capataz. Sabia-se que era herdeiro de uma grande fazenda distante dali, em Fingal; mas raramente ia lá, e dizia-se que ele e seu pai não se davam bem. Ele trabalhava arduamente, era uma boa companhia, mas, apesar de parecer bastante à vontade com mulheres, nunca o viram sair com uma delas.

O pôr-do-sol já enviava uma rubra incandescência sobre a água quando Harold e Morann deixaram o barco viking e iniciaram a caminhada pelo cais de madeira. Vários outros barcos estavam atracados ali. Um deles, o que trouxera os escravos de Bristol, acabara de ser carregado com enormes fardos de peles e lã. A esquina para a Matadouro dos Peixes ficava logo adiante.

— Lembra-se de mim?

Morann olhou para o jovem de cabelos negros que estava encostado despreocupadamente em alguns fardos que se encontravam quase no meio do caminho. Usava um casaco de couro preto que ia até os joelhos. O cinturão de couro estava tão apertado que o casaco abarcava o que, evidentemente, era um corpo magro, musculoso. A barba negra era aparada em forma de ponta sobre o peito. O artesão ficou imaginando quem seria.

— Vejo que continua aleijado.

Harold havia parado e Morann parou a seu lado.

— Vim a Dyflin por acaso. — Ele não se mexera. Apenas ficava ali, encostado despreocupadamente nos engradados, como se o homem que insultava não oferecesse maior perigo do que uma mosca que por ali passasse.

— Boa noite, Sigurd — cumprimentou Harold, com uma calma que surpreendeu o artesão. — Veio tratar daquele nosso negócio?

— Pensei nisso — disse o estranho friamente. — Mas acho que vou esperar.

— Imaginei que eu não corria risco nenhum, assim que o vi diante de mim — comentou Harold. — Disseram-me que os homens de sua família só atacam pelas costas.

Apenas por um momento, pareceu a Morann, o estranho estremeceu. A mão moveu-se, talvez inconscientemente, até a adaga em seu cinto. Mas, apesar de seus dedos compridos terem-na apertado brevemente, eles recuaram lentamente, e a mão voltou a descansar sobre a perna.

—Andei perguntando a seu respeito — revelou. — E fiquei muito decepcionado. Parece que você não tem nenhuma mulher. Você diria que é porque é aleijado?

Isso bastou para Morann.

— Não consigo imaginar qualquer mulher, a não ser uma prostituta, olhando para você, seu animal sujo — vociferou ele.

— Ah, o joalheiro. — O estranho fez uma ligeira mesura com a cabeça.

Um homem de respeito. Não tenho nenhuma rixa com você, Morann Mac Goibnenn. Ele sabe — perguntou a Harold — quem sou eu? — E, depois que Harold balançou a cabeça negativamente: — Foi o que imaginei.

— Eu poderia lutar com você agora — declarou Harold tranqüilamente

Não vai adiantar eu combinar um lugar para amanhã de manhã; a última vez que houve esse tipo de combinação o seu avô fugiu.

— Entretanto — disse meditativo o sujeito moreno, como se não tivesse ouvido o último comentário —, creio que ficarei mais feliz em matá-lo quando houver uma família para prantear você. Filhos para ouvirem contar que seu pai foi derrotado e morto. Talvez, no devido tempo, eles também sejam mortos. — Assentiu pensativamente e então, num tom de voz mais alegre: —Você não acha que há uma chance de se casar?

Harold tinha uma faca no cinturão. Tirou-a, movimentou-a destramente de uma mão a outra e fez sinal para Morann se afastar para o lado.

— Vou matá-lo agora, Sigurd — anunciou.

— Ah. — O homem moreno endireitou-se, mas, em vez avançar, deu um passo para o lado. — Prefiro que você tenha tempo para pensar sobre isso. Como, por exemplo, no dia do seu casamento. — Deu então um passo para trás, ficando ao lado dos engradados. Como não olhava para trás, Morann deduziu que ele já soubesse aonde ia. E, realmente, um momento depois: — Adeus por enquanto — disse ele e, veloz como um clarão, colocou-se atrás dos engradados, na lateral do cais, e, com um salto espontâneo, estava no interior de um pequeno bote, o qual, até aquele momento, o artesão não notara.

— Remem, rapazes — berrou para os dois homens que já se encontravam no bote; e Harold e Morann observaram da lateral do cais o bote se afastar rapidamente na água. Da parte do homem moreno veio uma gargalhada desdenhosa, e então, das águas avermelhadas, enquanto a negra silhueta do bote deslizava rio abaixo, sua voz surgiu novamente aos brados: —Tentarei vir para o seu casamento.

Por algum tempo, os dois ficaram parados ali.

— Que história é essa, afinal? — perguntou finalmente Morann.

— Uma antiga rixa de família.

— Ele pretende mesmo matar você?

— Provavelmente. Mas eu o matarei. — Harold mudou de assunto. — E então, vamos à sua casa para jantar?

— Vamos. Claro que vamos. — Morann forçou um sorriso.

Contudo, enquanto percorriam a Matadouro de Peixes em meio às crescentes sombras, ele ficou imaginando o que diria à sua esposa. E à moça. Se o sujeito de cabelos negros for ao casamento, pensou, é melhor que eu mesmo o mate.

Era bem cedo na manhã seguinte quando Osgar recebeu a visita do pai de Caoilinn. Aquilo fora preparado para parecer um encontro casual, mas Osgar desconfiava que o artesão ficara esperando algum tempo perto do muro do mosteiro antes de passar por ali. Embora seu parente de Dyflin tivesse feições aquilinas parecidas, ele era mais baixo e mais atarracado do que Osgar e, o que era incomum na família, estava ficando calvo. Ao ficar parado diante do jovem aristocrático, pareceu a Osgar que detectara um vestígio de constrangimento em seus modos.

Mas ele não era o único, pensou Osgar, que se sentia constrangido. Contudo, não havia nada a ser feito. Ele precisava esperar que o homem falasse. Dedicaram-se a algumas das amenidades habituais que devem preceder qualquer assunto importante. Então, como ele já sabia, aconteceu.

— Muito em breve, precisaremos pensar em encontrar um marido para Caoilinn. Era o começo. Ele sabia que aquilo não podia ser evitado. Fitou o homem mais velho, imaginando o que dizer.

— Ela deverá ter um bom dote — prosseguiu seu parente. Fazia mais de dois séculos desde que qualquer pai na ilha fora capaz de garantir o antigo preço por uma noiva. Os pais agora tinham de conseguir dotes para suas filhas, o qual geralmente era um pesado ônus — embora um importante genro sempre fosse um valioso trunfo.

Osgar certamente representava um bom partido. Disso não havia dúvida. com vinte e um anos de idade, era um jovem admiravelmente belo. De compleição simples mas atlética, com o rosto belamente traçado e elegância natural, Osgar também tinha uma tranqüila dignidade, quase uma reserva, que impressionava as pessoas. Muitos achavam que seria o futuro chefe dos Ui Fergusa. Não apenas para a família, mas também para os monges do mosteiro, ele se tornara uma figura a ser respeitada.

Osgar adorava o pequeno mosteiro da família. Era quase tão orgulhoso dele como seu tio. “Nunca esqueçamos”, dizia seu tio, “que São Patrício veio aqui.”

Era notável como, nos últimos séculos, crescera a lenda de São Patrício. com a diocese do norte onde ele se instalara — Armagh — desejava ser considerada mais antigo e mais importante bispado da Irlanda, foi desencadeada uma grande campanha de propaganda medieval, por meio de crônicas e outros documentos e registros, para provar a importância de Armagh. Bispos mais antigos e suas comunidades foram praticamente apagados da história; bispos da própria época do santo foram transformados em seus discípulos; dizia-se agora que as missões do norte haviam abrangido toda a ilha. Até mesmo as cobras, que nunca houve por lá, foram supostamente banidas pelo santo. Em Dubh Linn, um dos três antigos poços fora batizado com seu nome e uma capela construída no local.

— E também não nos esqueçamos — lembrava o tio a Osgar — que o nosso ancestral Fergus recebeu o batismo do próprio São Patrício.

— Ele estava morto, nessa época — observara rudemente seu filho mais velho, em certa ocasião.

— Ressurgiu dos mortos — vociferara o abade. — Um milagre maior ainda. E lembrem-se também — advertia ele — de que não houve melhores cristãos nem maiores sábios do que os desta ilha, pois coube a nós manter viva a chama da fé quando todo o resto da cristandade estava nas trevas, fomos nós que convertemos os saxões da Inglaterra, e fomos nós que construímos mosteiros com bibliotecas quando metade da cristandade mal sabia ler ou escrever.

Se, porém, essas preleções tinham a intenção de incentivar seus filhos a trilhar os caminhos da religiosidade e da erudição, elas não tiveram nenhum efeito. Os filhos do seu tio tinham pouco interesse no mosteiro da família. Constantemente achavam desculpas para evitar as lições. Se por um lado Osgar tivera prazer em memorizar os cento e cinqüenta Salmos em latim — um feito que qualquer noviço analfabeto teria de conseguir —, por outro, eles conseguiam apenas movimentar os lábios para fingir pronunciar as palavras, nas ocasiões em que se juntavam aos monges em suas preces.

Uma coisa, porém, era muito clara: o mosteiro e seus patronos Ui Fergusa surgiram durante a sagrada alvorada do cristianismo irlandês. Essa era uma tradição que a família tinha o dever de conservar. E Osgar o fazia. Quando tinha doze anos, sua mãe morreu e, conseqüentemente, ele foi morar no pequeno mosteiro com o tio. Tinha sido Osgar quem organizara os monges para renovar o interior da capela do mosteiro; Osgar convencera alguns comerciantes de Dyflin a doar uma cruz nova para o altar. Era Osgar quem sempre parecia saber exatamente o que os arrendatários do mosteiro deviam, quem vendia o gado ou comprava as coisas necessárias; Osgar sabia quantas velas havia no estoque e quais Salmos deviam ser cantados em determinados dias. Nessas, e em todas as questões, ele era igualmente metódico e bastante preciso. Até mesmo seu tio ficava nervoso de esquecer alguma coisa diante dele. E, um ano atrás, seu tio o chamara a um canto e lhe dissera: “Creio que, algum dia, será você quem assumirá o meu lugar no mosteiro, Osgar.” Então, como numa reflexão tardia, ele acrescentara: “Você poderá se casar, sabe.”

Não apenas poderia se casar, como, diante da posição importante que ocuparia, ele seria um partido muito atraente para as filhas de seus parentes em Dyflin. Ele poderia se casar com Caoilinn. Como isso seria maravilhoso. Durante dias, ele ficara num estado de tamanha felicidade que lhe parecera como se toda Dyflin e sua baía estivessem banhadas por uma divina luz dourada.

Eles haviam crescidos juntos. Mesmo durante os desajeitados anos da adolescência, nunca houve um dia em que não tivessem sido amigos. Houve ocasiões em que se viram menos vezes, mas ela nunca se mantivera distante. Se ele estivesse em Dyflin, era natural que fosse visitá-la na casa de seu pai. Ela era de estirpe. A garota ativa que ele conhecera como criança nunca desaparecera inteiramente. Se estivessem caminhando juntos, ela subitamente apontava para as nuvens e via nelas estranhas formas engraçadas. Certa vez, parada no promontório ao sul da baía, leia insistiu que acabara de ver nas águas o antigo deus marinho Manannan mac iLir; e, por quase toda a tarde, ela ficara gritando: “Lá está ele!” Apanhado distraído, ele olhara várias vezes, enquanto ela caía numa estrepitosa gargalhada.

Certa ocasião, porém, ela foi longe demais. Eles caminhavam pela praia do lado norte do estuário e tinham perambulado para bem distante, até as areias que, na maré baixa, se estendiam por centenas de passos para o interior da baía. Quanlo a maré começou a subir, ele lhe disse que deviam voltar, mas ela se recusou, ímpacientemente, ele começou a voltar e, com igual teimosia, ela permaneceu onde estava. Nem mesmo ele, entretanto, previu a rapidez e a força da maré naquele dia. O mar viera com a velocidade de um cavalo de corrida. Da praia, ele a Avistou de pé, desafiadoramente, sobre um banco de areia, rindo a princípio enquanto a água, que avançava, rodopiava à sua volta, e depois tentando patinhar eu caminho de volta e descobrindo que a água era sempre mais profunda do que pensava. De repente, ele percebeu que a água se movia com uma forte corrente; a superfície espumava com pequenas ondas encrespadas. Viu-a perder o equilíbrio; seus braços serem jogados para cima; e ele atravessou correndo o alagadiço e mergulhou na corrente da cheia. Por sorte, ele sabia nadar. A corrente quase o arrastou também. Mas ele conseguiu alcançá-la e, nadando pelos dois, com o delgado corpo dela pressionado contra o seu, levou-a de volta à praia, encharcada e muito pálida. Ela ficou sentada ali, tossindo e tremendo por algum tempo, enquanto ele colocava o braço à sua volta para aquecê-la e ajudá-la a secar. Por fim, ela se levantou e, então, para sua grande surpresa, ela deu uma risada. “Você me salvou”, bradou ela. E, quando voltaram, ela contou a todo mundo, alegremente: “Osgar salvou a minha vida!” Era uma garota estranha. Depois desse dia, porém, ele sempre tinha um caloroso sentimento de proteção em relação a ela que lhe agradava. com exceção de pequenas aventuras como essa, ele não podia dizer que sua própria vida, durante os anos da infância à idade adulta, fora particularmente agitada. Certa vez, o rei irlandês veio exigir imposto dos nórdicos de Dyflin e ficou acampado do lado de fora da muralha até conseguir receber; embora tivesse havido uma pequena escaramuça, foi algo emocionante de se ver e nada amedrontador. A vida de Osgar não vinha sendo muito diferente das vidas de todos os outros rapazes que conhecia. Ele, porém, desenvolvera uma paixão. Começara ainda criança. Divertia os adultos ao retornar de suas caminhadas pela praia com sacos de conchas que recolhera. A princípio, não passava de uma brincadeira infantil, colher conchas de formas estranhas ou com cores brilhantes que lhe agradavam. Depois passou a organizar suas conchas como uma coleção, até possuir um exemplar de cada espécie das diferentes criaturas do mar cujas conchas podiam ser encontradas na área. Se surgisse na praia qualquer concha estranha ou incomum, ele sabia de imediato. com o passar do tempo, contudo, ao cuidar desse tesouro infantil, ele começou a ficar fascinado com a forma e a estrutura que cada uma exibia. Examinava suas linhas minuciosamente, observando a simplicidade e a pureza de suas formas, admirando a elegância e a complexidade com que cada concha obtinha o seu todo necessário e harmonioso. Suas cores também o fascinavam. Às vezes, sem perceber o tempo passar, admirava sua coleção de conchas, completamente absorto. com o decorrer do tempo, ele acrescentou outros tipos de objetos: folhas prensadas, pedras curiosas, galhos com nós complexos de árvores caídas. Levava todos para casa e os estudava. Era uma atividade solitária, pois não encontrava ninguém que compartilhasse seu entusiasmo, apesar de seu tio, de um modo complacente, sempre achar divertido as coisas estranhas que ele encontrava. Até mesmo Caoilinn, quando ele lhe mostrava às vezes sua coleção, corria com os olhos o tesouro achado, assentia ligeiramente, mas logo se entediava.

Ocasionalmente, ele também visitava uma das igrejas de Dyflin. Ali havia um Saltério, não maravilhoso, mas com algumas belas iluminuras; e os padres de lá, sabedores de que ele era sobrinho do abade do pequeno mosteiro na encosta, permitiam que ele o folheasse e o admirasse longamente. Osgar esperara bastante tempo até levar Caoilinn para ver o Saltério, por achar que talvez ela fosse jovem demais para apreciá-lo. Mas, depois, quando fez 16 anos, ele levou-a até lá e, reverentemente, virou as páginas para ela. Uma em particular, em verde e dourado, ele achava maravilhosa.

— Está vendo — mostrou-lhe — como brilha? É como se você pudesse entrar na página; e, uma vez lá, deparar-se com — procurou as palavras por um momento — um grande silêncio. — Ele a observava, na esperança de que ela sentisse a mesma coisa. Mas, embora ela sorrisse brevemente, ele também detectou um ligeiro franzir de testa de impaciência.

Após o que achou ser uma pausa adequada, ela disse:

— Vamos lá fora.

A transformação por que passara Caoilinn fora notável. A menininha magra que ele conhecera e amava havia desaparecido por completo e, em seu lugar, havia agora uma jovem mulher de cabelos negros com um corpo bem-feito. Também haviam ocorrido mudanças sutis. Era de se esperar que seus interesses tivessem mudado. Ela agora falava de assuntos domésticos, ou mostrava-se encantada diante de um tecido fino na barraca de um comerciante — coisas com as quais ele não se importava mas sabia que eram assuntos que mulheres gostavam de comentar. Havia agora, porém, algo mais em Caoilinn, algo em seus olhos, algo diferente em sua pessoa como um todo, e que ele achava excitante e até mesmo um pouco misterioso. Fora no ano passado, no Lughnasa, que ele descobrira.

No antigo festival, havia muitas danças à noite. A maioria dos jovens de Dyflin, irlandeses ou não, tomavam parte. O próprio Osgar era um bom dançarino. Ele observara com prazer algumas das mulheres mais velhas dançarem de um modo imponente. Contudo, quando Caoilinn subira para se juntar à dança, ele ficara abismado. Sabia que ela era jovial e graciosa; mas, ali, viu-se diante de uma nova Caoilinn, uma jovem mulher vigorosa que movimentava o corpo para lá e para cá, com um fervoroso e confiante encantamento. Seu rosto estava ligeiramente afogueado, os olhos reluziam, a boca aberta num sorriso prazeroso no qual ele achou ter detectado um vestígio de opulenta sensualidade. Ela dançava entre os rapazes Dançava acompanhando os passos deles, nada mais do que isso, mas enquanto O observava os rostos deles, parecia como se ela houvesse tocado cada um deles, transmitindo-lhes uma pequena parte de seu ardor; e, por algum tempo, ele se manteve distante da dança, sentindo-se quase acanhado. Estaria sua prima se comportando de um modo chamativo demais, vulgar demais para seu gosto?

Mas, então, ela lhe acenara e ele entrara na dança. E, de repente, estava diante dela, ciente da proximidade de seu corpo; a calidez e o aroma de seu corpo eram embriagadores. Ela sorriu ao vê-lo dançar tão bem. Ao final, ele se curvara para beijá-la na face, mas, em vez disso, ela o beijara de modo casto mas delicadamente na boca e, apenas por um momento, olhou-o diretamente nos olhos e ele viu a Caoilinn de olhos verdes que amara por toda a sua vida. Depois ela deu uma risada e foi embora.

No dia seguinte, ele saiu para um longo passeio à beira-mar, sozinho.

Foi Caoilinn quem tocou no assunto do casamento dos dois. Num domingo de primavera, ele saíra para passear com toda a família dela. Foram até Hoggen Green perto do antigo Thingmount, e ele e Caoilinn se encontravam um pouco mais separados, quando ela lhe perguntou:

— Lembra que a gente costumava se casar aqui?

— Lembro.

— Você ainda tem o anel? — O pequeno anel de galhada.

— Tenho.

Ela ficou calada por um momento.

— Ele agora não caberia no meu dedo — disse ela rindo baixinho. — Mas quando eu me casar... seja lá com quem eu me case... eu gostaria de colocá-lo no dedo mindinho. — Sorriu para ele. — Você promete me dar o anel para o meu casamento?

Ele olhou-a afetuosamente.

— Prometo — disse.

Ele havia entendido. Embora tenha sido clara, ela não podia ir mais adiante e manter sua dignidade. Deixara escapar a insinuação. Caberia a ele o movimento seguinte.

E, agora, ali estava o pai dela, olhando-o com expectativa.

— Precisamos encontrar um marido — repetiu ele.

— Ah — fez Osgar. Seguiu-se uma pausa.

— Eu poderia ter procurado antes um marido para ela — frisou o pai. — haveria carência de ofertas. — Isso era sem dúvida verdade. — Mas tive a impressão de que ela talvez estivesse esperando por você. — Parou e sorriu de modo encorajador para Osgar.

temos nos casado desde quando éramos criancinhas — lembrou Osgar Com um sorriso.

— Exatamente. Vocês têm mesmo — concordou o pai, e esperou que Osgar continuasse. Mas nada aconteceu. — Os rapazes — prosseguiu, pacientemente — geralmente sentem dificuldade quando chega o momento de se comprometer num casamento. Sentem-se receosos. Acham que se trata de uma armadilha. Isso é natural. Mas há compensações. E, com Caoilinn... — Calou-se, permitindo que Osgar imaginasse sozinho as delícias de se casar com a filha dele.

— Ah, de fato — disse Osgar.

— Mas se eles não se apresentam na ocasião certa — lançou um olhar de advertência para Osgar

podem perder para outro a moça que amam.

Perder Caoilinn para outro? Era um pensamento terrível.

— Eu vou falar com Caoilinn — prometeu Osgar. — Muito em breve.

Por que ele hesitara?, perguntou a si mesmo quando o pai dela se foi. Não era isso o que ele sempre quis? O que poderia haver de melhor do que morar com Caoilinn no pequeno mosteiro da família, desfrutando os prazeres do espírito e da carne pelo resto de sua vida? Era uma perspectiva encantadora.

Portanto, o que estava faltando? O que havia de errado com aquilo? Ele mesmo mal sabia. Tudo o que sabia era que andara sentindo um estranho desassossego nos últimos meses. Desde o incidente.

O perturbador incidente ocorrera na virada do ano. Ele vinha cavalgando de volta pela Planície da Revoada de Pássaros, após entregar uma mensagem de seu tio para uma pequena casa religiosa daquela área. Como fazia um lindo dia, um dos filhos do seu tio decidira cavalgar com ele, acompanhado de um dos escravos. Havia várias fazendas vikings naquela parte de Pingai, com enormes campos a céu aberto, e o grupo passara por um deles e havia penetrado num pequeno bosque, quando, de repente, meia dúzia de homens saltou na frente deles.

Osgar teve tempo apenas de pensar. Sabia-se que havia assaltantes na área, e os viajantes sempre iam armados. Seu primo levava uma espada, mas Osgar carregava apenas uma faca de caça. Os assaltantes estariam atrás de objetos de valor mas eles não tinham; então roubariam seus cavalos. Se pretendiam matá-los, ele não sabia, mas certamente não valia a pena esperar para descobrir. Ele viu seu primo golpear dois dos homens com a espada e feri-los. Dois outros vinham em sua direção. O escravo já fora arrastado para fora de seu cavalo. Um dos homens estava de pé sobre ele, com um porrete. Ergueu-o.

Osgar nunca soube o que aconteceu realmente. Ele pareceu voar pelo ar. A faca de caça estava fora da bainha e em sua mão. Aterrissou em cima do homem com o porrete. Os dois caíram no chão, lutaram e, um momento depois, a faca de Osgar estava enfiada nas costelas do assaltante e o sujeito tossia sangue. Enquanto isso, o resto dos assaltantes decidiu não se arriscar mais a lutar e fugiu pelo meio das árvores. Osgar virou-se para o homem que ele havia esfaqueado. O assaltante estava cinzento. Pouco depois, começou a se agitar, depois estremeceu e ficou imóvel. Estava morto. Osgar fitou-o.

Cavalgaram de volta à fazenda pela qual haviam acabado de passar, onde o ruivo e grandalhão proprietário convocou imediatamente seu pessoal para organizar uma caçada aos assaltantes.

— Pena que meu filho, Harold, não esteja aqui — comentou, e Osgar se deu conta de que devia ser o norueguês grandalhão que vira certa vez, anos atrás, perto de Thingmount. Quando Osgar esclareceu quem era, o viking grandalhão ficou encantado. — É uma honra conhecer um dos Ui Fergusa—disse alegremente.

— Você agiu bem. Pode se orgulhar de si mesmo. — Quando voltaram ao mosteiro, tarde daquela noite, e contaram o ocorrido, seu tio também o parabenizou. Na manhã seguinte, a história já havia corrido toda Dyflin e, ao se encontrar com Caoilinn, ela se aproximou e apertou sua mão. “Nosso herói”, disse ela, com um sorriso orgulhoso.

Só havia um problema. Ele não se sentia um herói. Aliás, nunca se sentira pior em sua vida. Nem com o passar dos dias se sentiria melhor.

Ele matara um homem. Não era culpado de qualquer crime. Fez o que tinha de fazer. Contudo, por algum motivo, o rosto do morto com seu olhar fixo parecia assombrá-lo. Surgia-lhe nos sonhos, mas também quando ele estava acordado — pálido, horrível e estranhamente insistente. Supôs que, após algum tempo, ele iria embora, mas não foi; e, em pouco tempo, descobriu-se imaginando também o corpo apodrecido. O pior, porém, não era tanto a recordação mas os pensamentos ruins que a acompanhavam.

Repugnância. Embora fosse absurdo, ele vivenciava todo o horror e a aversão teria sentido se tivesse cometido assassinato. Não queria nunca mais fazer tal coisa. Jurou a si mesmo que não o faria. Mas, naquele mundo tão violento, como se ter certeza de cumprir tal juramento? E, com a repugnância, vinha outro pensamento perturbador.

Ele estivera por um triz diante da morte. E se tivesse morrido? O que teria sido a sua vida? Poucos anos inexpressivos, encerrados por uma briga estúpida. Quase aconteceu naquela ocasião; poderia acontecer amanhã. Pela primeira vez, foi afetado pelo terrível e premente sentido de sua própria mortalidade. Certamente sua vida deveria ter algum propósito; certamente ele deveria servir a alguma causa. Quando pensava na paixão que sentia ao estudar as formas naturais ou as ilustrações que amava, o monótono cotidiano de Dyílin parecia carecer de um ingrediente essencial. Ansiava por algo mais, algo duradouro, que não pudesse ser arrebatado tão despropositadamente. Não sabia exatamente o que mas sua inquietação continuava a crescer, como se uma voz dentro dele sussurrasse: “Essa não é a sua vida de verdade. Esse não é o seu destino. Não é a isso que você pertence.” Ele a ouvira repetidamente, mas não sabia o que fazer.

E agora, subitamente, aquela história com Caoilinn parecia levar o problema ao seu ponto culminante. Não sabia por quê, mas um instinto lhe dizia que sua decisão sobre o casamento deles iria também decidir tudo o mais. Se ele se casasse agora, iria se estabelecer com ela em Dyflin, ter filhos e viver ali o resto de seus dias. Uma decente vida de felicidade doméstica. Era uma opção atraente. Era o que ele sempre quisera. Não era?

Os dois monges deixaram o pequeno mosteiro uma semana após seu encontro com o pai de Caoilinn. Eles haviam permanecido alguns dias em Dyflin e retornavam em direção ao sul para seu mosteiro em Glendalough.

Osgar só estivera uma vez no grande mosteiro à beira do lago nas montanhas de Wicklow. O abade de Glendalough tinha o direito de visitar e inspecionar o Pequeno mosteiro deles, e quando Osgar era um menino de oito anos seu tio o levara junto com ele; mas havia chovido o tempo todo, Osgar ficara entediado e, talvez por causa dessa lembrança depressiva, nunca fizera uma tentativa de viajar novamente até lá. Agora, entretanto, sentindo a necessidade de uma mudança de cenário enquanto se decidia sobre o assunto Caoilinn, perguntou se podia acompanhar os monges para visitar o lugar, com o que eles prontamente concordarame assim, informando ao tio que voltaria dentro de poucos dias, partiu na companhia dos dois.

A viagem foi agradável. Eles haviam escolhido a estrada mais baixa em direção ao sul que seguia pelas encostas das grandes montanhas vulcânicas abaixo do estuário do Liffey, com esplêndida vista para a planície costeira do leste. Percorreram cerca de trinta quilômetros antes de descansar à noite e depois continuaram a subida que levava a terreno alto. Corria a metade da manhã quando ao parar por instantes na trilha da montanha, um dos monges acenou para ele e apontou.

Ainda havia uma neblina matutina sobre o solo do estreito vale da montanha, e as laterais arborizadas que se erguiam íngremes das águas pareciam flutuar nas nuvens. Os dois laguinhos eram invisíveis sob a neblina, mas as copas das árvores em volta deles, encharcadas de orvalho, emergiam no ar da manhã. De onde estava, Osgar também podia ver os telhados de várias das edificações de pedra: a capela principal, que eles chamavam de abadia, com sua pequena torre; algumas igrejas menores, o alto arco do portal; e um pequeno número de capelas. E, dominando tudo, elevando-se a uns trinta metros do chão, encontrava-se a solitária guardiã do vale, a torre redonda.

Ali estava Glendalough — o vale dos dois lagos —, o mais adorável mosteiro de toda a Irlanda.

A posição isolada de Glendalough não era incomum. Alguns mosteiros irlandeses foram fundados em antigos locais sagrados aos pagãos; mas, em outras partes da cristandade, eram em geral estabelecidos em terrenos desabitados — barrancos pantanosos, regiões fronteiriças e locais isolados nas montanhas. Ele fora fundado, cerca de um século após a missão de São Patrício, por um eremita.

A tradição da Igreja na Irlanda, desde os tempos de São Patrício, fora bondosa e pacífica. Houve santos e sábios numerosos demais para se mencionar, mas poucos ou talvez nenhum mártir. Também houve eremitas. Havia muitos eremitas na Igreja celta. A prática chegara à ilha, através da Gália, com os primeiros cristãos anacoretas, como eram chamados esses solitários habitantes do deserto do Egito. E, visto que nunca houve muita necessidade de mártires cristãos na Irlanda, era natural, talvez, que o papel de um recluso numa montanha ou num bosque tivesse algum atrativo para homens, herdeiros dos druidas de antigamente, desejosos de um compromisso radical com sua fé religiosa.

Como muitos homens santos, Kevin, o monge eremita, atraíra seguidores; e, ortanto, o refúgio nas montanhas fora organizado em duas partes. Junto ao lago superior, que ficava no interior do estreito vale, ficava a cela do eremita, sobranceada por uma minúscula caverna na íngreme encosta, conhecida como Kevins Bed, o Leito de Kevin. Uma curta caminhada até o vale embaixo, passando-se pelo lago menor e onde as águas dos córregos dos lagos se juntavam, e encontrava-se a principal comunidade monástica, com seus sólidos edifícios feitos de pedra.

Quando chegaram à entrada, Osgar teve sua primeira surpresa. O mosteiro poderia ser isolado, mas pequeno não era. O imenso e impressionante portão proclamava seu poder. “Não esqueça”, seus companheiros lhe lembraram, “que o bispo tem uma casa lá em cima, como também o abade.” O bispo, Osgar sabia, supervisionava a maioria das igrejas do vale do Liffey.

Portanto, assim que passaram pelo impressionante portão para o grande recinto murado, Osgar sentiu como se tivesse penetrado em um outro mundo. Situado em um prado coberto de grama entre dois córregos que se juntavam abaixo do lago menor, a área ocupada pelo mosteiro parecia uma ilha encantada. Após se apresentarem ao prior, um dos noviços foi chamado para mostrar o lugar a Osgar.

Havia um grande número de igrejas e capelas, um sinal da grande reputação e importância de Glendalough; quase todas construídas solidamente com pedras bem polidas. Do mesmo modo que a grande igreja principal com sua bela entrada, havia uma igreja dedicada a São Kevin e uma capela para outro santo celta. Eles examinaram o alojamento, onde vivia a maioria dos monges; embora, à maneira habitual dos celtas, alguns dos monges mais antigos tivessem, na propriedade, pequenas celas próprias isoladas, feitas de madeira e cobertas de palha.

A construção mais impressionante do mosteiro era a imensa torre. Os dois jovens haviam, solenemente, erguido os olhos para ela. A torre era circular e muito alta. Cerca de cinco metros de diâmetro na base, afilando gradualmente em direção ao seu topo cônico a uns trinta metros de altura; as laterais íngremes do grande tubo de pedra pareciam apequenar tudo o mais.

— Nós a chamamos de campanário — explicou o noviço. Osgar lembrou com estranheza da modesta sineta que chamava os monges para as orações no Costeiro de sua família. — Mas é também uma torre de vigia. Há quatro janelas no topo, abaixo do cone. Lá de cima dá para ver quem se aproxima de qualquer direção.

As torres redondas da Irlanda vinham se tornando uma notável característica da paisagem durante as últimas gerações, e a de Glendalough era uma das mais belas. Essas torres, com seus cones apoiados em modilhões, haviam sido inventadas pelos monges irlandeses. Tinham, em sua maioria, cerca de trinta metros de altura, a circunferência de sua base quase exatamente a metade de sua altura. Desde que as fundações fossem boas, essas proporções contribuíam para uma estrutura muito estável. As paredes eram grossas — em Glendalough tinham mais de um metro de espessura.

— No caso de um ataque, colocamos os objetos de valor lá dentro — explicou o guia. — E a maioria de nós também consegue caber nela. Tem seis andares. — Apontou para a entrada. Ficava a uns três metros e meio do chão, alcançada por uma estreita escada de madeira. — Assim que a porta é trancada, é quase impossível arrombá-la.

— Glendalough é muito atacado? — perguntou Osgar.

— Por vikings? Apenas uma vez nos últimos cem anos, creio eu. Há outros problemas. As terras aqui em volta vêm sendo disputadas por vários dos reis menores. Poucos anos atrás, eles vieram e fizeram muita confusão nos moinhos do vale. Mas, hoje em dia, não se vê qualquer sinal deles. Temos vivido muito tranqüilamente aqui em cima. — Ele sorriu. — Não procuramos uma morte de mártir. — Deu meia-volta. — Venha ver o scriptorium.

Tratava-se de um prédio baixo e comprido, onde meia dúzia de monges trabalhava copiando textos. Alguns, notou Osgar, eram escritos em latim, outros em irlandês. Seu tio, claro, possuía vários livros, mas embora Osgar e um dos monges idosos tivessem uma boa caligrafia, eles não produziam novos livros. Ele observou a hábil caligrafia com admiração. Foi, porém, um único monge, sentado a uma mesa num canto, que chamou sua atenção. Diante dele havia uma ilustração na qual trabalhava. O contorno do desenho já estava pronto e ele começava a preencher um canto com tintas coloridas. A larga margem abstrata fascinou Osgar. Suas linhas pareciam geométricas, mas seu experiente olho percebeu por toda a parte visíveis nuances de formas naturais, da delicada geometria da concha de uma vieira às vigorosas linhas de um nó de carvalho retorcido. Como as formas eram complexas, porém tão puras. Fitou aquilo, extasiado, e imaginou como devia ser maravilhoso passar a vida assim. Já estava ali olhando havia um bom tempo quando o monge ergueu a vista, fez-lhe uma careta, por estar sendo perturbado, e eles se foram na ponta dos pés.

— Venha — disse o noviço, quando chegaram lá fora. — Ainda não viu o melhor.

Conduziu Osgar através de uma pequena ponte sobre o córrego e virou à direita, para uma trilha que subia pelo vale.

Chamamos de Green Road — explicou. Após passarem pelo lago menor, o vale estreitou-se. À esquerda deles, a íngreme encosta arborizada era quase um penhasco e Osgar podia ouvir o som de uma cachoeira. À sua direita, notou um círculo de terra gramada, como um pequeno rath. Então, subitamente, assim que passaram por algumas árvores: — Entre no paraíso — disse suavemente seu acompanhante.

Por um momento, a respiração de Osgar ficou em suspenso. O lago de cima era enorme, cerca de quilômetro e meio de comprimento. Embora suas águas tranqüilas se estendessem diante dele em meio às altas encostas rochosas cercadas de árvores, parecia que elas saíam de dentro da própria montanha.

— Eis a cela de Kevin. — O noviço indicou uma pequena estrutura de pedra a uma certa distância do lago. — E ali em cima — apontou para onde Osgar conseguiu enxergar apenas a entrada para uma pequena caverna sob uma saliência rochosa por sobre a água — fica o Leito de Kevin. — Parecia um local de difícil acesso; a encosta rochosa abaixo dela era quase um despenhadeiro. Ele notou que havia azedas crescendo logo abaixo e, perto delas, fileiras de comichantes urtigas. Seguindo seu olhar, o acompanhante sorriu. —Algumas pessoas dizem que foi ali que o santo se jogou nas urtigas.

Todo mundo conhecia a história da juventude de São Kevin. Tentado por uma jovem que queria seduzi-lo, o jovem eremita repeliu-a e, despindo-se, rolou num leito de urtigas para curar sua luxúria.

— Ele costumava ficar de pé na parte rasa do lago, para rezar — prosseguiu o jovem monge. —Às vezes, ficava ali o dia inteiro. — Não era difícil, pensou Osgar, imaginar tal coisa. Na paz perfeita do lago, ele também, tinha certeza, poderia fazer o mesmo.

Por algum tempo, os dois jovens ficaram parados ali, juntos, absorvendo a cena, e pareceu a Osgar que nunca tivera tamanha sensação de paz perfeita em toda a sua vida. Tanta paz que mal percebeu o som de um sino vindo do vale quando o acompanhante tocou em seu braço e disse-lhe que estava na hora de comer.

Sua entrevista com o abade ocorreu no dia seguinte. Ele era um homem alto e bonito, com cabelos grisalhos encaracolados e modos delicados mas imponentes, que viera de uma família importante. Conhecia o tio de Osgar e recebeu o jovem calorosamente e quis saber a respeito do mosteiro da família.

— O que o trouxe até nós em Glendalough? — indagou.

Osgar explicou ao abade sua situação, sua hesitação sobre o casamento, sua sensação de desassossego e incerteza; e sentiu-se aliviado ao perceber que o homem mais velho ouvia de uma maneira que sugeria que não achava tolice as suas preocupações. Quando ele terminou, o abade assentiu.

— Você sente vocação para a vida religiosa?

Ele sentia? Pensou em sua vida no pequeno mosteiro da família perto de Dyflin e em seu possível futuro ali. Seria isso o que o abade quis dizer com vida religiosa? Provavelmente não.

— Creio que sim, senhor.

— Acredita que, se você se casar, isso... — o abade pensou por um momento

— vai afastá-lo da conversa que deseja ter com Deus?

Osgar olhou-o admirado. Ele não formulara o pensamento daquela maneira, mas era exatamente como se sentia.

— Eu sinto... uma necessidade... — titubeou.

— Acha que seu tio não está se aproximando de Deus?

O que deveria dizer? Pensou na despreocupada vida familiar de seu tio, suas demoradas pescarias, suas freqüentes cochiladas durante o serviço divino.

— Não muito — respondeu meio sem jeito.

Se o abade conteve um sorriso, Osgar não notou,

— Essa moça—perguntou o homem mais velho —, essa Caoilinn, com quem você acha que tem o dever de se casar. Você já... — Olhou para Osgar e percebeu que ele não entendera. — Você já teve experiência carnal com ela, meu rapaz?

— Não, padre. Nunca.

— Entendo. Já a beijou?

— Apenas uma vez, padre.

— Sente desejos, talvez? — sondou o padre e, então, aparentemente perdendo a paciência com sua linha de interrogatório: — Bem, sem dúvida você sente.

— Fez uma pausa e encarou pensativamente o jovem. — Você acha que gostaria daqui?

Daquele paraíso terrestre? Daquele retiro nas montanhas a meio caminho do céu?

— Acho — respondeu lentamente. — Acho que gostaria.

— Não ficaria, talvez, entediado aqui em cima nas montanhas?

— Entediado? — Osgar olhou-o pasmado. Pensou nas igrejas, no scriptorium, maravilhoso silêncio do lago maior. Entediado? Não, pensou, nem em uma. centena de existências. — Não, padre.

O caminho do espírito não é fácil, você sabe. — O olhar do abade era de certo modo ríspido. — Não é apenas o caso de se achar uma vida que seja adequada. Tem de haver uma renúncia, mais cedo ou mais tarde. Aqui em Glendalough — prosseguiu — nosso regulamento é rigoroso. Vivemos, poder-se-ia dizer, como uma comunidade de eremitas. O caminho é árduo. Reto é o portão. — E — assentiu lentamente — você não escapará das tentações da carne. Ninguém escapa. O diabo — sorriu ironicamente — não desiste tão facilmente. Ele coloca tentações em nosso caminho: às vezes são óbvias, às vezes insidiosas. Cuidado. Você terá de superá-las. — Fez uma pausa. — Não posso lhe dizer o que fazer. Somente Deus é capaz de fazer isso. Mas rezarei por você. E você também deve rezar.

Naquele dia e no seguinte, ele participou juntamente com os monges de todos os serviços diários da igreja e passou o resto do tempo rezando.

Tentou seguir a ordem do abade. Rezou como nunca havia rezado antes. Conhecia a técnica adequada. Tentava esvaziar a mente de todas as outras ponderações, para ouvir apenas a silenciosa indução de Deus. Pediu para que lhe fosse mostrado o seu dever. O que Deus exigia?

Deus falaria com ele? Perguntou-se durante quase dois dias, mas não surgiu nenhuma palavra.

Contudo, como Deus escolhia revelar Seu desejo de modos estranhos. Osgar estava parado perto do lago superior enquanto o sol mergulhava na direção das montanhas, no final da tarde do segundo dia. Não rezava, mas se perdia na beleza do local, quando sentiu um tapinha no ombro, virou-se e viu o rosto amistoso de um dos monges que o haviam levado ao mosteiro.

— E então, já descobriu o que deseja? — perguntou o homem mais velho.

Osgar deu de ombros.

— O que desejo é ficar aqui, é claro — disse ele, como se isso não fosse o que realmente interessava.

Então, subitamente, ele entendeu. A coisa era tão simples que passara despercebida para ele. Queria estar em Glendalough e em nenhum outro lugar. Nunca Se sentira tão em casa em sua vida. Era ali que ele pretendia estar. E Caoilinn? Por mais que a amasse, ele sabia agora que não queria se casar com ela. E ali percebeu com um notável senso de iluminação —, ali estava a maravilha da questão: Deus, em Sua bondade, não apenas lhe enviara um senso de pertencer àquilo como levara seu desejo pela moça que amava. Para ajudá-lo em seu caminho, o velho desejo fora substituído por um novo, um desejo ardente por Glendaloush Ele tinha certeza. Era para ser assim. Amava Caoilinn tanto quanto a amara antes; mas esse amor devia ser o amor de um irmão. Tinha de ser assim. Sabia que lhe causaria dor, mas seria de longe muito mais cruel se casar com ela não podendo lhe dar seu coração por inteiro. Ficou ali por algum tempo, fitando além da água, repleto de uma estranha e nova sensação de paz e compreensão. Naquela noite, informou ao abade, que aquiesceu calmamente e não fez nenhum comentário.

Partiu na manhã seguinte.

Resolvera voltar pela rota mais curta, que seguia diretamente através do terreno alto. Ao meio-dia, passou pelo grande desfiladeiro central nas montanhas de Wicklow, onde, não longe da trilha, ficava a nascente do rio Liffey. A vista era magnífica. Abaixo, o córrego escorria pela montanha para se juntar a outros, e Osgar pôde ver o rio abrindo seu caminho por uns trezentos metros abaixo para penetrar na larga planície do Liffey, que se estendia a distância por trinta quilômetros.

O dia estava excelente. Ao seguir o caminho através do elevado planalto, ele experimentou uma grande sensação de paz. Aliás, a única preocupação que podia imaginar era a de que talvez estivesse feliz demais. O que dissera mesmo o abade de Glendalough sobre a vida religiosa? Tinha de haver renúncia. Ele não estava certo de ter uma sensação de renúncia naquele momento. Seria possível que o diabo, que preparava esse tipo de armadilha sutil, estivesse preparando uma agora? Estava atendendo os desejos de seu coração e sua mente? Não achou que fosse aquilo; mas resolveu ficar alerta. E foi assim, incólume, com o coração leve, que ele seguiu seu caminho em direção ao norte.

Corria o final da tarde quando, descendo a trilha da extremidade norte da montanha, ele passou perto de uma abertura entre as árvores e avistou as grandes encostas descendo centenas de metros para o imenso panorama a céu aberto do verde estuário do LifFey e sua larga baía.

Parou e observou. O sol da tardinha inclinava-se no poente sobre as águas do Liffey. Além da foz do rio, ele podia ver o banco de areia na baía e o curvo promontório adiante. Podia ver os largos pântanos; podia ver o outro lado da comprida ponte de madeira sobre o rio. Podia até mesmo distinguir — ou estaria enganando a si mesmo? — o muro do pequeno mosteiro da família. Esquecendo tudo o mais por um momento, sentiu-se inundado de alegria. E passou vários minutos fitando com carinho o lar de sua infância antes de se dar conta. Assim que fosse para Glendalough ficaria separado de tudo aquilo. Separado para sempre. Separado da larga baía, separado de sua família, separado de Caoilinn. E, ao pensar em Caoilinn, ocorreram-lhe com assombrosa nitidez lembranças da menininha que ele sempre conhecera: as brincadeiras que faziam; como ele se casara com ela diante do túmulo do velho Fergus; como ele a resgatara do mar. E agora ele não a veria mais, a pequena Caoilinn, que era para ter sido a sua esposa.

Que ainda podia ser sua esposa.

E agora aquilo lhe ocorreu com um clarão de compreensão. Tratava-se de uma prova. Deus, afinal de contas, não tornara aquilo fácil, Ele teria de desistir de Caoilinn. Caoilinn que ele amava e com quem, Deus sabia, se não fosse pela sua vocação, ficaria feliz em casar. Sim, concluiu, é isso. Essa é a minha renúncia.

E, com um novo senso de dedicação, no qual desejo era mitigado com dor e alegria com tristeza, Osgar prosseguiu seu caminho de descida em direção a Dyflin.

Sua conversa com Caoilinn no dia seguinte não foi nada do que ele poderia ter esperado. Chegou bem cedo à casa do pai dela na cidade. Seus pais e toda a família estavam presentes, e por isso Osgar a convidou para um passeio lá fora. Ele notou o ar de ansiedade no rosto do pai dela. Então ele e Caoilinn caminharam até o Thingmount. E ali, diante do túmulo do velho Fergus perto das águas fluentes do Liffey, ele lhe contou tudo.

Mesmo parecendo um pouco surpresa, ela o ouviu atentamente. Ele explicou tudo: o quanto a amava, a sensação de incerteza que o perturbava e sua vocação para a vida monástica. Descreveu, o mais delicadamente que conseguiu, sua necessidade de ir para Glendalough e sua incapacidade de se casar com ela. Quando terminou, ela ficou calada por um instante, olhando para o chão.

— Você deve fazer o que acha ser correto, Osgar — murmurou finalmente. Então ergueu a vista, olhando-o com seus olhos verdes, um pouco estranhamente.

— Quer dizer que, se não fosse para Glendalough, você se casaria comigo?

— De todo o coração.

— Entendo. — Fez uma pausa. — O que faz você pensar que eu diria sim? Por um momento ele a encarou, surpreso. Mas então achou que entendia.

Claro, ela preservava seu orgulho.

— Talvez não dissesse — retrucou ele.

— Diga-me, Osgar — ela parecia curiosa —, você deseja salvar a sua alma?

— Sim — confessou. — Desejo.

— E você diria que eu tenho uma chance de ir para o céu?

— Eu... — Hesitou. — Não sei. — Ele não tinha pensado nisso.

— Porque não creio que eu me torne uma freira.

— Isso não é necessário — garantiu-lhe. E passou a lhe explicar como bons cristãos podem alcançar um lugar no céu se seguissem adequadamente suas vocações. Mas não tinha certeza se ela estava realmente prestando atenção. — Eu sempre pensarei em você — acrescentou. — Lembrarei de você em minhas preces.

— Obrigada — disse ela.

— Devo acompanhá-la de volta? — sugeriu ele. Ao caminharem juntos de volta, ele ficou imaginando por que a conversa não parecera satisfatória. O que ele esperava? Lágrimas? Confissões de amor? Não sabia ao certo. Era como se sua mente estivesse flutuando em outra parte, distante dele, mas em uma região que não conseguia determinar. Quando chegaram ao portão da casa de Caoilinn, ela parou.

— Lamento — comentou ela com um pouco de tristeza — que você prefira Glendalough a mim. — Sorriu amavelmente. — Sentirei saudades suas, Osgar. Virá nos visitar de vez em quando?

— Virei.

Ela aquiesceu, baixou os olhos por um momento, e então, para grande surpresa de Osgar, ergueu a vista subitamente com o que talvez, se a ocasião não fosse tão solene, poderia parecer o seu antigo olhar travesso.

— Alguma vez já sentiu a luxúria da carne, Osgar?

Ele ficou tão surpreso que, por um momento, não soube o que dizer.

— O diabo testa todos nós, Caoilinn — retrucou um tanto sem jeito; então, após beijá-la castamente, pela última vez, na face, foi embora.

Uma semana depois, Osgar partiu para Glendalough. Seu tio não ficou nada contente, mas sugeriu que, no devido tempo, ele ainda poderia vir do mosteiro da montanha para assumir seu lugar e manter o domínio da família. O pai de Caoilinn deu-se ao trabalho de sair e, com a melhor expressão possível, desejoulhe felicidades e até mesmo disse que permaneceria ali para vê-lo partir. Osgar ficou comovido com a magnânima gentileza. Ele não viu Caoilinn, mas como já se tinham despedido, não houve necessidade.

Na manhã em que partiu, ele decidiu seguir o caminho de baixo em vez de atravessar o desfiladeiro da montanha e, assim, com uma mochila de provisões às costas, uma carta de seu tio ao abade, com a promessa de um generoso pagamento ao mosteiro pela sua aceitação, e a bênção de amigos e vizinhos, ele seguiu em direção ao sul atravessando os campos de Dyílin. Seu tio lhe oferecera um cavalo para levá-lo, o qual poderia ser devolvido em outra ocasião, mas Osgar achara mais apropriado caminhar.

O dia estava lindo. No límpido ar matinal, o grande crescente das montanhas de Wicklow ao sul parecia tão perto que se poderia tocá-lo. Osgar seguiu seu caminho pelas encostas que davam para o mar com alegres passadas largas. À sua esquerda, o terreno pantanoso cedia lugar a matas dispersas. À sua direita, campos e renques de árvores. Passou por um pomar e se aproximava de um vau de um riacho chamado o Trêmulo, quando, para sua grande surpresa, perto de uma árvore ao lado do caminho, ele avistou Caoilinn. Ela apoiava-se na árvore e estava enrolada em uma longa capa. Ele deduziu que, como sentia frio, ela devia estar havia algum tempo à espera. Ela sorriu.

— Vim me despedir — disse ela. — Achei que gostaria de me ver antes de ir.

— Seu pai esteve lá em casa.

— Eu sei.

— É muita bondade sua, Caoilinn — disse ele.

— Tem razão — disse ela. — É mesmo.

— Está aqui há muito tempo? — perguntou ele. — Deve estar com frio.

— Já faz algum tempo. — Ela o olhava atentamente, como se cogitasse algo a seu respeito. — Você guardou o anel?

— Guardei. Claro.

Ela aquiesceu. Pareceu contente.

— E está a caminho para ser um monge nas montanhas?

— Estou, de fato. — Ele sorriu.

— E não tem sido tentado por qualquer luxúria da carne, não é, Osgar?

— Não, não tenho. Pelo menos recentemente—ele respondeu com delicadeza.

— Isso é bom. Porque, sabe, você tem de superá-las.

E ele estava justamente pensando em algo para dizer quando, para seu espanto, ela abriu a capa e Osgar se descobriu olhando para seu corpo nu.

Sua pele era de um branco leitoso; os seios, jovens e firmes, porém um pouco maiores do que ele supunha, uma magnífica escuridão nos mamilos que o fez involuntariamente engolir em seco. Ela estava completamente nua. Ele descobriu-se encarando sua barriga, suas coxas, tudo.

— Vai se lembrar de mim agora, Osgar? — indagou ela, e então voltou a fechar a capa.

com um grito, ele passou correndo por ela. Um momento depois, patinhava pelo vau. Quando chegou do outro lado, olhou para trás, meio receoso de que ela pudesse tê-lo seguido. Não havia, porém, sinal dela. Ele se benzeu. Meu bom Deus por que ela fez isso?

Ao continuar sua caminhada, descobriu que tremia como se tivesse visto um fantasma; mal conseguia acreditar no que acabara de acontecer. Teria imaginado tudo? Não. Ela fora bastante real. O que a teria possuído? Aquela foi Caoilinn, a criança, cedendo a uma última brincadeira tola e irrefletida? Ou foi a jovem mulher, magoada por causa de uma rejeição, tentando chocá-lo e humilhá-lo? Talvez ambas. E ele ficou chocado? Ficou. Não pela visão de seu corpo, mas pela sua grosseria. Sacudiu a cabeça. Ela não devia ter feito isso.

Somente quando se afastou um pouco mais no caminho ocorreu-lhe que também havia uma outra explicação, mais profunda. As tentações da carne. Novamente o diabo e suas armadilhas. O abade o alertara. Este era o significado daquele encontro. Ele foi tentado? Certamente que não. Contudo, ao prosseguir, para seu horror, a visão do corpo dela continuava em sua mente. Sem saber se era atormentado por luxúria ou por medo, ele tentou apagar a visão; mas ela retornava, cada vez mais nítida do que antes. Pior ainda, após um breve instante, ele viu que ela começava a fazer coisas lascivas — coisas que nem imaginava que ela soubesse — e quanto mais ele tentava afastá-las da mente, piores elas se tornavam. Tentou até mesmo retornar à nudez pura e simples do começo, mas não adiantou. Quanto mais pelejava, pior ela se tornava, e ele se descobria observando, agora meio fascinado e meio enojado.

Aquilo não era Caoilinn. Ela não fizera aquelas coisas. Era ele, e não ela, que as imaginava: ele, e não ela, que estava nas garras do demônio. Uma quente sensação de culpa varreu seu corpo e, em seguida, o frio pânico. Parou.

O diabo lhe preparara um desafio em seu caminho para Glendalough. De que modo iria encará-lo? Um pouco mais adiante, viu que perto do caminho havia um barranco no qual cresciam arbustos e, abaixo dele, um torrão verde-escuro. Ao se apressar em frente, percebeu que era exatamente o que supunha: a vegetação verde-escura fora colocada ali por Deus, que, em Sua sabedoria e Sua bondade, previra tudo. Urtigas.

Pois o que fez São Kevin de Glendalough quando fora tentado por uma mulher? Expulsou a mulher e mortificou a própria carne. com urtiga. Aquilo só podia ser um sinal.

Olhou em volta. Não havia ninguém à vista. Rapidamente, despiu suas roupas e, lançando-se nas urtigas, rolou várias e várias vezes sobre elas, tremendo de dor.

O casamento de Harold e Astrid realizou-se naquele inverno. Foi uma ocasião feliz por vários motivos.

Em primeiro lugar, e mais importante de tudo, ficou claro que o jovem casal combinava muito bem um com o outro. Em segundo, estavam obviamente apaixonados.

Se houve uma faísca entre eles na primeira noite que se conheceram, na casa de Morann e sua esposa, sua futura esposa percebera que seriam necessários tempo e esforço para quebrar sua resistência. E então, dedicou-se pacientemente a isso. Ela pedira para visitar o barco e, quando ele a levou para uma volta, ela pediu para ver o trabalho manual dele, após o que comentara com apreço: “Você é bom no que faz, não é mesmo?” Uma semana depois, Astrid encontrou-se com ele e lhe ofereceu algumas frutas cristalizadas embrulhadas num guardanapo. “Creio que são do tipo de que você gosta”, disse ela esperançosa. E quando ele respondeu, com certo espanto, que eram realmente do tipo que ele gostava, ela explicou: “Você revelou isso, quando nos conhecemos, na casa dos Morann.” Ele havia esquecido. “Eu queria que você ficasse com elas”, acrescentou e, depois, carinhosamente, tocou no braço dele.

Astrid esperou três semanas para virar-se um dia para ele e perguntar casualmente:

— Sua perna dói?

— Não. Não realmente — respondeu ele, dando de ombros. — Gostaria que fosse direita, mas não é — acrescentou, antes de se calar.

— Isso não me preocupa — rebateu ela simplesmente. — Para dizer a verdade — e agora ela se permitiu fitar seus olhos por um momento —, eu gosto de você do jeito que você é.

Contudo, talvez seu lance mais inteligente tenha sido o que fez no terceiro mês de namoro. Eles estavam parados no cais, perto do local onde já começara a construção de um novo barco menor, e olhavam na direção do rio onde se encontrava atracado o grande barco que Harold construíra. O que, ela lhe perguntara o que ele mais gostaria de fazer na vida? Qual era o seu sonho?

— Penso um dia em velejar naquele barco — ele confessou, apontando o barco que estava prestes a partir numa viagem à Normandia.

— Pois devia — afirmou ela, e deu-lhe um aperto no braço. — Devia fazer isso.

— Talvez. — Ele fez uma pausa, quase olhou para ela, mas não o fez. — As viagens são longas. Os mares são perigosos.

— Um homem deve seguir o chamado do seu espírito — disse ela mansamente. — Você devia partir em uma aventura no mar e retornar para encontrar sua esposa à sua espera no cais. Posso vê-lo fazer isso.

— Pode?

— Pode fazer isso se se casar comigo.

Não demorou muito, depois disso, para Harold se dar conta de que devia se casar com Astrid e, assim, o namoro dela com ele chegou ao fim. Fora um namoro muito bem-sucedido. Para ele, a descoberta de que era respeitado e amado abriu as comportas de sua paixão. Para ela, embora não dissesse a ele, o processo de superar sua indecisão produzira uma transformação: no início, Harold era o homem que ela decidira amar; no final, tornou-se o objeto de um intenso desejo.

O casamento também tivera o venturoso efeito de reconciliar Harold com seus familiares. Dizer que eles ficaram encantados com sua esposa era pouco; e se, por parte de Harold, restasse qualquer ressentimento, ele estava feliz demais para se preocupar com isso agora. O casamento foi celebrado na fazenda da família, no antigo estilo pagão, e o casal recebeu a sincera bênção do pai dele.

Somente uma pessoa no casamento não sorriu., Morann Mac Goibnenn, sabia Deus, estava contente demais com a felicidade do amigo. Seu presente ao casal fora uma tigela de prata, belamente marchetada e decorada com suas próprias mãos; ele e sua família estiveram presentes para comer e dançar no banquete de casamento. Mas o tempo todo, enquanto as fogueiras queimavam lá fora e os convidados entravam e saíam do salão viking, Morann permaneceu afastado, vigiando. Vigiava os convidados que chegavam tarde ao banquete; as ruas próximas e mais ao longo, a Planície das Revoadas de Pássaros na direção de Dyflin, vasculhava o horizonte para leste em direção ao mar. Apalpava a longa lâmina escondida sob seu manto, pronta para ser usada se o dinamarquês de cabelos negros aparecesse.

Morann não gostava de correr riscos. Sem que Harold soubesse, assim que seu casamento fora decidido, o artesão fizera uma cuidadosa investigação sobre o dinamarquês. Descobriu que ele se envolvera em uma briga em Waterford e logo depois partira com um bando de homens como ele e velejara em direção ao norte. O boato era de que eles tinham ido para a ilha de Man. Será que ele sabia do casamento de Harold? Talvez tivesse ouvido falar. Ele viria agora para interrompê-lo? Morann continuou sua vigília até após o crepúsculo; e, depois disso, dentro do salão, seus olhos se movimentaram continuamente para a porta até tarde da noite. Por fim, pela manhã, eles foram embora e não houve sinal de Sigurd.

Uma semana depois realizou-se outro casamento, em Dyflin, que também deu um grande prazer às famílias envolvidas. Havia algum tempo que o pai de Caoilinn estivera em negociações com a família de um jovem do povoado vizinho de Rathmines. Não apenas a família dele era próspera, como descendia, havia apenas quatro gerações, dos reis de Leinster. “Sangue real”, anunciara orgulhosamente o pai de Caoilinn; e ele fora rápido em informar à família do noivo que a própria Caoilinn, descendente direta porém distante de Conall, também tinha sangue real. Os primos de Caoilinn do antigo rath perto do mosteiro estiveram todos presentes à cerimônia de casamento, inclusive Osgar, que viera de Glendalough e a quem a noiva cumprimentara com um sereno beijo na face. O tio de Osgar realizou o serviço matrimonial e todos concordaram que a noiva e o noivo formavam um belo casal.

Entretanto, o ponto alto do casamento, nisso todos concordaram, foi quando Osgar, o monge, deu ao casal um inesperado presente de casamento. Vinha numa caixa de madeira.

— Meu pai sempre guardou isto — explicou. — Mas certamente pertence mais a você e a seu marido — disse com um sorriso enviesado — do que a mim.

E, da caixa, retirou um estranho objeto cor de marfim amarelado com uma borda de ouro. Era a taça de caveira do velho Fergus.

Caoilinn ficou muito contente.

E, se ela percebeu, não mencionou o fato de que, se por discrição ou porque se esquecera, Osgar não cumprira sua promessa de entregar o pequeno anel de casamento feito de galhada de veado.

A princípio, quando os alertara, seus vizinhos riram dele. Todos em Dyflin sabiam que Morann Mac Goibnenn não gostava de correr riscos, mas certamente seus temores eram injustificados. “Não corremos qualquer perigo”, anunciara o rei de Dyflin. Como o artesão ainda poderia duvidar? Algumas pessoas até mesmo o chamaram de traidor.

“Ele não é um ostmari', observara um velho dinamarquês. “O que se pode esperar?” E apesar, dada a situação, de seu raciocínio ser completamente ilógico, havia muitas pessoas que concordavam sabiamente com um movimento de cabeça. Não que Morann ligasse muito para o que quer que elas pensassem. Não demorou muito, porém, e toda Dyflin ficou em pânico. A questão era: o que fazer? Todos concordaram que deviam tirar o gado da planície do Liffey e transferi-lo para locais seguros em terreno alto. Mas e as pessoas? Algumas foram com o gado e se abrigaram nas montanhas de Wicklow; outras permaneceram em suas fazendas; outras ainda foram para Dyflin, procurar abrigo entre seus muros. O tio de Osgar e seus filhos recolheram-se para o interior do pequeno mosteiro e fecharam os portões. Enquanto isso, uma força imensa se agrupava. Filhos ansiosos de chefes por toda a Leinster chegavam para acampar nos gramados próximos aos muros da cidade. Barcos chegavam de outros portos vikings, os homens bebendo muito e vociferando animados gritos de batalha pelo cais. O rei Sitric de Dyflin, vestindo um esplêndido manto, a comprida barba e o rosto vermelho fazendo com que parecesse muito alegre, cavalgava pela cidade com um séquito que aumentava a cada dia. Finalmente, quando a primeira geada de inverno surgiu sobre o solo, o rei de Leinster chegou e, com o rei Sitric a seu lado, todos partiram para o sul com a venturosa garantia de que o inimigo não chegaria nem mesmo perto da planície do Liffey.

No dia seguinte, quando Morann caminhava pelas ruas, que pareciam muito tranqüilas agora após as movimentadas semanas anteriores, ele avistou um velho artesão da cidade caminhando ao lado de uma bela mulher de cabelos negros que lhe parecia vagamente familiar. Parando para cumprimentá-lo, o artesão comentou:

— Você se lembra de minha filha, Caoilinn, que vive fora, em Rathmines. Claro. Ele não conhecia bem a família, mas se lembrava da moça de cabelos negros e olhos verdes que se casara com um homem de Rathmines, que pertencia nada menos do que à casa real. Ela sorriu para ele.

— Meu pai me disse que você tem dúvidas sobre esse assunto dos reis.

— Talvez — retrucou ele.

— Bem, meu marido foi com eles. Está muito confiante.

— Eu diria que ele então saberá.

— Mas meu pai quis que eu e as crianças viéssemos para Dyflin. — Havia agora uma insinuação de incerteza em seus olhos, ele notou. — Estamos bastante seguros em Dyflin, suponho — observou ela. — Vejo que você continua aqui.

— Estão — concordou ele. — Vocês estão.

Ele carregou a carroça naquela noite. Bem cedo, na manhã seguinte, a carroça, levando sua família e todos os seus objetos de valor, avançou lentamente pela comprida ponte de madeira sobre o LifFey e desapareceu na neblina do outro lado. Morann sumiu.

Seu primeiro objetivo não ficava muito distante. Atravessando a Planície das Revoadas de Pássaros ficava a fazenda de Harold.

Embora não tivesse motivo para duvidar de que o casamento do amigo era feliz, Morann não podia evitar imaginar se a mulher de Harold, Astrid, às vezes talvez se arrependesse de tê-lo incentivado a ir para o mar. Isso lhes trouxera prosperidade, é claro. Harold, o Coxo, como era chamado, já se tornara um notável comerciante marítimo; mas ocasionalmente suas viagens o mantinham fora semanas seguidas. Mais de um mês se passara desde que partira em uma viagem que o levaria à Normandia e à Inglaterra. Como seu pai morrera em um acidente três anos antes, Harold e a mulher também haviam assumido a direção da fazenda. Mas, naquela manhã, quando a mulher e os filhos de Harold saíram para cumprimentá-lo, o recado de Morann para eles foi brusco.

— Vocês precisam deixar a fazenda e vir com a gente. — E quando Astrid relutou e observou, “Eles já vieram aqui antes”, Morann sacudiu a cabeça e insistiu para que ela se aprontasse imediatamente.

— Desta vez — afirmou — será diferente.

Havia seis séculos que Niall dos Nove Reféns fundara a poderosa dinastia o'Neill e, em todo esse tempo, apesar das alternâncias de poder entre os chefes celtas da ilha, ninguém jamais destituíra os o'Neill da monarquia suprema. Até agora.

Brian: o primeiro nome de seu pai era Kennedy, portanto ele era chamado apropriadamente Brian, filho de Kennedy. Mas como Niall dos Nove Reféns muitos séculos antes, Brian era tão mais conhecido pelo imposto que cobrava que era chamado de “Boruma”, o contador de gado, ou Brian Boru. Ele surpreendera toda a Irlanda com sua ascensão.

Seu povo, os Dal Cais, fora apenas uma pequena e sem importância tribo de Munster na época de seu avô. Habitava as ribanceiras do Shannon logo rio acima, onde este se abria em seu longo estuário ocidental. Entretanto, quando os vikings fundaram seu povoado próximo a Limerick, o avô de Brian se recusara a entrar num acordo com eles. Por três gerações, a família liderara uma guerra sem tréguas ao tráfego fluvial dos vikings. Os Dal Cais se tornaram famosos. O avô de Brian se intitulara rei; a mãe de Brian era uma princesa de Connacht; a irmã dele fora até mesmo escolhida como esposa do rei de Tara — embora isso não tivesse adiantado muito à família pois ela foi executada por dormir com o filho do seu marido.

Os Dal Cais eram ambiciosos. Possuíam uma aguerrida força de combate. Os irmãos de Brian já haviam testado sua força contra vários dos outros governantes da região. Mas ninguém poderia ter imaginado o que eles fariam a seguir. Toda a landa engoliu em seco quando chegou a notícia.

— Eles tomaram Cashel.

Cashel — a antiga fortaleza dos reis de Munster. É bem verdade que os reis de Munster não eram mais como antigamente. Mas que descaramento! E quando o rei de Munster convocou os vikings de Limerick para se unirem a ele a fim de punir os insolentes invasores, os Dal Cais derrotaram todos eles, e também saquearam Limerick. Poucos anos depois, Brian Boru tornou-se rei de Munster.

Uma família de chefes sem importância apossara-se de uma das quatro grandes monarquias da Irlanda — onde as dinastias reais celtas remontavam às névoas do tempo. E, de fato, para combinar com sua nova posição, os Dal Cais decidiram refinar sua ascendência. De repente, foi descoberto e declarado nas crônicas que eles tinham um direito antigo, ancestral, de compartilhar a velha realeza de Munster com a dinastia anterior — uma reivindicação que certamente teria causado surpresa ao avô de Brian. Contudo, essas alterações nos registros não eram tão raras como se poderia supor: até mesmos os poderosos o'Neill haviam falsificado grande parte de sua genealogia.

Brian estava no auge. A maré da fortuna estava do seu lado. Ele era o rei de Munster. Aonde mais a ambição poderia levá-lo? Aos poucos tornou-se claro que ele decidira investir nada menos que contra o próprio rei supremo.

Ele era ousado, metódico e paciente. Num ano, avançou contra o território vizinho de Ossory; no outro, levou uma grande frota a Connacht; doze anos após tornar-se rei de Munster, avançou para a área central da ilha e acampou no sítio sagrado de Uisnech. Ele se demorava, mas o recado para os o'Neill era claro: ou liquidavam Brian Boru ou lhe dariam o reconhecimento que pedia. Dois anos antes, o rei supremo fora a seu encontro.

Foi sorte para Brian, e provavelmente para a Irlanda, que o rei supremo o'Neill da época tivesse uma inclinação nobre e de estadista. As opções eram claras, mas não eram fáceis: ou desafiava o homem de Munster à guerra, o que apenas envolveria uma grande perda de vidas, ou engoliria seu orgulho e entraria num acordo com ele, se as coisas pudessem ser feitas honradamente. Ele optou pela última. E ao restabelecer a antiga divisão da ilha em duas metades, a Leth Cuinn superior e a Leth Moga inferior, o'Neill declarou:

— Vamos governar juntos: você no sul, e eu no norte.

— Então eu governarei Leinster e Munster, enquanto você ficará com Connacht e Ulster — concordou Brian solenemente. “Isso significa”, diria ele posteriormente aos seus seguidores, “que controlarei todos os portos importantes, inclusive Dyflin.” Sem precisar desferir um só golpe, ele havia conseguido os prêmios mais valiosos da Irlanda.

Ou pensou que havia.

Morann permaneceu dois dias na fazenda. Tentou o melhor possível, mas nada que ele ou sua esposa pudessem dizer conseguiu convencer Astrid a ir com eles. Ela concordou em enterrar alguns de seus objetos de valor.

.— Deixe algum para os homens de Munster encontrarem — ele aconselhou-a sombriamente — se não quiser que queimem a fazenda. — Morann permaneceu lá o máximo que pôde, na esperança de que Harold pudesse retornar; mas, quando não conseguiu permanecer mais tempo, implorou para que ela pelo menos procurasse um refúgio.

— Há o Swords aqui perto — observou ela. Tratava-se de um pequeno e excelente mosteiro com muros resistentes e uma alta torre redonda, que poderia oferecer refúgio. — Mas não somos cristãos. Ou há Dyflin. É para onde Harold irá. Não me importo de ir para lá.

Morann suspirou.

— Então Dyflin terá de servir — retrucou ele. E ficou combinado que a família ocuparia a casa de Morann na cidade.

No dia seguinte, continuou seu caminho. Passaram pelo mosteiro de Swords — seguro o bastante, mas perto demais de Dyflin para seu gosto — e dirigiram-se ao norte. Só pararam à noite, quando dormiram no sopé da Colina de Tara.

O rei supremo podia ter sido bem-intencionado, mas quando entregou o seu reino a Brian, os orgulhosos homens de Leinster não se convenceram. Ninguém os consultara. O rei e os chefes em particular ficaram enfurecidos. O novo chefe supremo, com toda a certeza, iria querer cobrar impostos e levar seus filhos como reféns, como era de hábito.

— Dar nossos filhos ao homem de Munster? — bradaram. Ao usurpador? — Se os o'Neill não conseguem nos defender, que direito eles têm de nos entregar a esse sujeito? — reclamaram.

Independentemente do que os homens de Leinster pudessem ter sentido a respeito dos vikings de Dyflin, quando estes chegaram pela primeira vez, as duas comunidades já viviam juntas havia gerações. Tornaram-se parentes por afinidade. Aliás, o rei Sitric de Dyflin era realmente sobrinho do rei de Leinster. É verdade que muitos dos vikings continuavam pagãos, mas mesmo a religião ficava em segundo plano, quando as questões de honra estavam em jogo. Quanto aos próprios vikings, havia muito tempo vinham obstinadamente resistindo ao controle do rei supremo. Dificilmente se disporiam a se submeter a Brian Boru apenas porque o rei supremo o'Neill, que era fraco demais para lutar, disse-lhes que deveriam fazê-lo.

Portanto, foi naquele outono que o rei de Leinster e o rei de Dyflin haviam decidido se recusar a reconhecer o homem de Munster. “Se ele quer briga”, declararam, “terá mais do que pechinchou.” E agora o homem de Munster estava vindo, e eles partiram para encontrá-lo.

O céu estava nublado na manhã seguinte, quando Morann e sua família atravessaram o rio Boyne; continuava cinza-escuro ao meio-dia. O ânimo deles não estava alto. Para as crianças, a viagem parecia longa; e ele desconfiava de que, secretamente, sua esposa preferia ter permanecido no interior dos muros de Dyflin com seus vizinhos e a esposa de Harold. Mais de uma vez ela lhe perguntara receosa sobre o lugar aonde estavam indo. Seria realmente mais seguro do que Dyflin? “Você verá. Chegaremos lá antes do anoitecer”, prometeu-lhes. A tarde se exauriu, o cavalo que puxava a carroça parecia caminhar mais penosa e vagarosamente e, embora seus filhos não ousassem dizer, imaginavam se passariam outra noite a céu aberto na paisagem vazia, quando, no momento em que a escuridão se aproximava, um fulgurante raio de luz solar vespertina perfurou a nuvem e eles viram, iluminado, sobre uma colina a alguma distância adiante, o grande refugio murado que era seu destino.

— O mosteiro de Kells — anunciou Morann com satisfação.

Se a viagem fora melancólica, agora o efeito do grande mosteiro sobre sua família compensou tudo. As crianças o fitaram admiradas. Até mesmo sua esposa virou-se para ele com um ar de apreço.

— Parece uma cidade — comentou.

— É uma cidade — afirmou ele. — É um refúgio. Vocês poderão dormir tranqüilos esta noite — acrescentou, satisfeito com a impressão que havia causado. — É quase tão grande quanto Dyflin — disse ele. Dali a pouco, enquanto houvesse claridade, ele poderia se dar ao prazer de lhes mostrar o lugar.

Contudo, tinham avançado apenas uma centena de passos quando ouviram o som de cascos de cavalo galopando atrás deles, e se viraram para ver um homem envolto em um manto, o rosto pálido como o de um fantasma, o cavalo espumando, prestes a ultrapassá-los a caminho do mosteiro. Mal pareceu vê-los ao passar, mas, em resposta ao grito de Morann se ele tinha notícias, o homem berrou de volta: “Estamos perdidos. Brian Boru nos derrotou. Ele está agora a caminho de Dyflin.

O aposento estava silencioso. Olhando os monges em seus hábitos de lã, sentados inclinados para a frente nas escrivaninhas, poder-se-ia confundi-los com cinco imensos camundongos tentando escavar o velino diante deles.

Velino — pele de bezerro recém-nascido — claro e liso; pois o pêlo fora removido depois de embebido em excremento ou cal, antes de ser raspado com uma faca afiada. Os documentos e negócios do dia-a-dia eram escritos em peles ordinárias de gado, que eram abundantes e baratas na ilha. Mas para copiar textos sacros como os Evangelhos, só servia o dispendioso velino. E ali, no scriptorium do grande mosteiro de Kells, podiam se dar ao luxo do mais fino velino.

Olhando agora para fora, Osgar viu cadentes flocos de neve; rapidamente, com apenas um leve rabisco, sua mão movimentou-se de um lado para o outro. Fazia quase dois meses que ele chegara a Kells e em pouco tempo estaria de partida.

Mas não tão cedo. Não se pudesse evitar. Contemplou a neve lá fora. O tempo mudara abruptamente naquela manhã, como se em reação às notícias de Dyflin que chegaram na noite anterior. Não era, porém, a neve que preocupava o irmão Osgar, mas a pessoa que o esperava lá fora. Talvez a neve se tornasse um impedimento. Se esperasse no scriptorium até o sino para as preces, talvez conseguisse escapar sem ser apanhado. Pelo menos, era uma esperança.

Ele mudara na última década. Havia agora um pouco de cabelo grisalho, alguns traços de austeridade no rosto, uma tranqüila dignidade.

Seus olhos retornaram ao trabalho. O pálido velino fora caprichosamente pautado com um buril. Ele mergulhou sua pena na tinta. A maioria dos escribas usava uma pena de ave para escrever, de gansos ou de cisnes; mas Osgar sempre preferira juncos e trouxera consigo um bom suprimento, colhido nas margens do lago de Glendalough. A tinta era de dois tipos: de uma cor amarronzada, feita com bolotas de carvalho e sulfato de ferro; ou de um preto-azeviche, feita de azevinho.

Osgar era um habilidoso calígrafo. Escrevendo com a clara e redonda letra dos mosteiros irlandeses, ele conseguia copiar um texto em mais ou menos cinqüenta linhas por hora. Trabalhando seis horas por dia, que era certamente o máximo possível durante aqueles curtos dias de inverno — pois a boa caligrafia precisa de luz natural —, ele quase havia terminado de copiar o livro dos Evangelhos, o motivo de ter ido para lá. Mais um dia e terminaria.

Fez uma pausa para se esticar. Apenas aqueles que já o fizeram sabiam — pode parecer que o calígrafo movimenta apenas as mãos, mas, na verdade, todo o corpo está envolvido. É um esforço para o braço, as costas e até mesmo as pernas.

Retornou à sua tarefa. Mais doze linhas, um quarto de hora de silêncio. Então ergueu novamente os olhos. Um dos monges fez contato visual com ele e assentiu. A luz enfraquecia; estava na hora de parar o trabalho. Osgar começou a limpar sua pena.

No chão, a seu lado, havia duas sacolas. Uma delas continha um pequeno e primoroso texto dos Evangelhos, e outro do Pentateuco. Os Salmos, é claro, ele sabia de cor. Havia também dois pequenos devocionários que gostava de ter sempre consigo. A outra sacola, na qual agora ele mergulhou a mão, continha seu material de caligrafia e mais uma outra coisa. Foi em volta desse objeto que seus dedos se fecharam.

Seu pecado secreto. Ninguém sabia. Jamais nem sequer o mencionara no confessionário. Ah, ele confessara o próprio pecado da luxúria uma centena de vezes. Tinha orgulho disso — o orgulho, também, era um pecado, é claro. E, no entanto, o fato de ocultar esse segredo não seria pior do que repeti-lo tantas vezes? Mais alguma coisa?, perguntava seu confessor. Não. Uma mentira. Uma centena de mentiras. Entretanto, ele não tinha intenção de confessar o seu segredo, pelo simples motivo de que, se o fizesse, receberia ordem de deixá-lo de lado. E isso ele não poderia fazer. Seu talismã. O anel de Caoilinn.

Ele sempre o guardava consigo. Não havia um dia em que não o pegasse e o olhasse. A cada vez, dava um pequeno sorriso e então, com uma doce tristeza, guardava novamente o anel.

O que ela significava agora para ele? Era a menina de cabelos negros com quem planejara se casar; a moça que lhe mostrara sua nudez. Ele já não se sentia chocado. Se, por um curto espaço de tempo, ele a vira como uma mulher rude, um poço de pecados, seu subseqüente casamento obliterara a idéia. Ela era uma mulher respeitavelmente casada, uma matrona cristã. Seu corpo agora se avolumara, supunha ele. Será que às vezes pensava nele? Tinha certeza que sim. Como podia não pensar, se pensava nela todos os dias? O amor do qual desistira.

O anel, porém, não era apenas um talismã sentimental. De certo modo, ajudava-o a regular sua vida. Se em certos momentos pensava em deixar o mosteiro, ele tinha apenas «que olhar para o anel e se lembrar de que, já que Caoilinn estava casada com outro, não havia sentido nisso. Se, como acontecera uma ou duas vezes, ele sentia atraído por uma mulher, o anel era uma lembrança de que seu coração pertencia a outra. E se talvez algum monge — como o jovem noviço que lhe mostrara Glendalough pela primeira vez — parecesse se aproximar demais e ele, só por gentileza, tivesse sido forçado a retribuir um olhar ou um toque amável, ele só precisava apanhar a pequena recordação de Caoilinn, revivendo os sentimentos que tivera por ela durante todos aqueles anos, para saber que não percorreria aquele outro caminho que alguns de seus colegas monges trilhavam. Portanto, se ele a princípio a rejeitara ao entrar para o mosteiro, e ela depois se tornara indisponível por meio do casamento, parecia-lhe que, naquele relacionamento impossível, obtivera uma proteção contra males maiores; até mesmo ousara imaginar se, em sua pequena desobediência e luxaria sentimental, conseguia distinguir a mão da própria providência ajudando-o, pobre pecador que era, ao longo de sua jornada por vezes solitária. Ainda faltava uma hora para o sino das preces. Os outros monges arrastavam os pés na direção da porta, mas ele não os seguiu, pois sabia exatamente como ocupar o tempo. No canto, num púlpito, repousava um grosso livro. Normalmente era mantido na sacristia da grande igreja de pedra, mas fora levado para o scriptorium por enquanto. Estava encerrado em uma capa de prata incrustada com pedras preciosas. Apanhando agora uma vela da mesa, ele avançou em sua direção. Ao fazê-lo, notou com prazer que uma das pedras captou a incandescência da chama de sua vela.

O maior tesouro do mosteiro de Kells: o livro dos Evangelhos. Era a chance de gastar o tempo com o texto magnificamente ornado com iluminuras, que o trouxera a Kells dois meses atrás. Seu dom para a caligrafia progredira tão rapidamente em Glendalough que ele tentou a ilustração, no que também revelara talento. Em troca dos dois meses que passou copiando textos, ele recebera permissão para estudar o tesouro de ilustrações da coleção de Kells e, em particular, o grande livro dos Evangelhos, o que fazia normalmente todas as manhãs por duas horas. Essa hora a mais, portanto, era uma bonificação. Alcançou o púlpito e estava justamente estendendo a mão quando ouviu um silvo à sua orelha. Era o irmão mais idoso, o encarregado do scriptorium.

— Vou trancar agora.

— Se quiser, posso trancar mais tarde e lhe entregar a chave depois.

O velho encarou a sugestão com um silencioso desprezo. Osgar sabia que era melhor não discutir. Suspirou e, após se demorar esperançosamente mais alguns instantes, saiu.

Silêncio. A leve brisa cessara. A neve caía suavemente, acariciando seu rosto Os últimos vestígios da luz do dia davam ao pálido cenário um sinistro brilho Seus olhos vasculharam a rua e perscrutaram encosta abaixo em direção ao portão do mosteiro. Não havia sinal de irmã Martha. Nem de ninguém por ali. Fungou O ar não estava muito frio. Talvez, em vez de voltar ao seu alojamento, ele devesse dar uma esticada nas pernas e descer até o portão. Cobrindo a cabeça com o capuz, mais para esconder o rosto do que para se proteger da neve, ele desceu a rua.

Não havia dúvida de que era reconfortante, naqueles tempos perigosos, sentir-se seguro no interior dos altos muros de Kells. Mesmo debaixo de neve, era um lugar que impressionava. Estendendo-se por toda a baixa colina, com suas robustas edificações, igrejas de pedra e ruas bem assentadas, sem falar na feira e nos subúrbios que ficavam logo depois dos muros altos, o mosteiro não era apenas um refúgio murado, como Glendalough, mas, como várias outras grandes residências religiosas, era na verdade uma cidade medieval.

Como Osgar sabia, essa idéia recuava aos primeiros dias da missão cristã na ilha, pois, quando começara sua missão, São Patrício viera como bispo. Por todo o Império Romano em desintegração, o padrão era o mesmo: sacerdotes cristãos e seus rebanhos eram guiados e orientados por um bispo, que estaria instalado na importante cidade romana mais próxima. Era vagamente admitido, portanto, que, mesmo na distante ilha ocidental, as questões seriam organizadas de modo semelhante. O problema era que a ilha, como nunca fizera parte do império, não era como as cidades; e, embora os primeiros bispos missionários tentassem se unir aos reis tribais, os chefes celtas viviam continuamente mudando seus territórios. Isso não convinha de modo algum aos sacerdotes romanos.

Um mosteiro, porém, era permanente, um centro durante o ano todo. Podia-se construir ali uma igreja, alojamentos, até mesmo uma biblioteca. Podia ser protegido com muros. Era auto-sustentável, conseguindo trabalhadores, padres e líderes da própria comunidade. O abade poderia agir como o próprio bispo local, ou fornecer uma casa para um bispo na segurança do interior dos muros do mosteiro. Por um longo tempo, o bispo que supervisionava Dyflin mantivera sua residência em Glendalough. Artesãos e comerciantes foram atraídos para se instalar em mosteiros. Surgiram feiras; comunidades inteiras cresceram em subúrbios em volta dos muros. Não era de admirar que, após um século da missão do bispo Patrício, esses mosteiros se tornassem rapidamente os principais centros da comunidade cristã na ilha. Até os primeiros povoados costeiros vikings, séculos depois, os mosteiros maiores eram as únicas cidades na Irlanda. Kells fora construído dentro desse padrão.

Ele atravessou o portão até o local da feira. Estava vazio. Perto de um dos lados, como um padre em um ofertório cercado de neve, ficava uma bela cruz de pedra e, atrás dela, várias carroças cobertas, já brancas. Olhou em volta. Todas as barracas e lojas estavam fechadas. Um lampião solitário brilhava em um estábulo, mas os únicos sinais de vida eram as colunas de fumaça que saíam dos telhados de palha das cabanas em volta, fechadas para se protegerem da neve e do dia moribundo. Osgar virou-se, inspirou fundo três vezes, decidiu que aquele fora um exercício suficiente para o momento, e teria ido embora logo após, se não tivesse notado, só então, uma figura emergir de uma das carroças. Não era a irmã Martha, mas a figura parecia vagamente familiar.

Era Morann, o artesão de Dyflin. Fazia anos que não o via, e conhecia o homem apenas de vista, mas seu rosto não era de se esquecer facilmente. O artesão ficou surpreso, mas pareceu contente em vê-lo e explicou seus motivos para ter procurado refúgio ali.

—Ano passado, forneci ao abade excelentes castiçais — acrescentou com um sorriso largo —, e, portanto, tiveram prazer em me dar abrigo.

— E você acha realmente que Brian Boru vai destruir Dyflin? — perguntou Osgar.

— Ele é inteligente demais para isso — respondeu Morann. — Mas lhes dará uma terrível lição.

— Você acredita que as residências religiosas estão a salvo, não é mesmo? — quis saber Osgar, pensando no pequeno mosteiro da família.

— Ele sempre as respeitou no passado — lembrou Morann.

Eles agora estavam parados diante da grande cruz da feira. Kells tinha várias dessas cruzes de pedra entalhadas com esmero, as quais, como as torres redondas, se tornaram uma característica dos mosteiros da ilha. Os braços da cruz eram fixados sobre um círculo de pedra—um arranjo que, apesar de ser conhecido como cruz celta, era anterior à época de São Patrício, às grinaldas romanas de triunfo, e reproduzia o símbolo mais antigo ainda do deus do sol. Contudo, a característica verdadeiramente notável das cruzes da ilha era o modo como eram esculpidas. Algumas reproduziam os desenhos rendilhados e as espirais dos tempos antigos. Mas as cruzes de Kells eram únicas: dispostas em painéis, cada superfície, até mesmo os plintos sobre os quais se apoiavam, parecia coberta de relevos: Adão e Eva, Noé e sua arca, cenas da vida de Cristo, anjos e demônios; a base da cruz da feira mostrava uma notável cena de guerreiros seguindo para a batalha. Como as estátuas e as gravuras no interior das igrejas, as figuras nessas enormes cruzes ornamentais eram pintadas com cores brilhantes. As lanças dos guerreiros tinham até mesmo pontas de prata. Morann olhou para ela com admiração. Embora em uma escala muito maior, a disposição de suas partes não era muito diferente da arte do joalheiro.

Estavam para retornar quando a viram, parada no portão. Irmã Martha. Osgar praguejou baixinho.

Ele gostava dela. Com seu rosto largo e bondosos olhos cinzentos, a freira de meia-idade era uma boa alma. Irmã Martha, a freira de Kildare. A abadessa de Kildare dera-lhe permissão para visitar Kells a fim de cuidar de uma tia, que se pensava estar morrendo ali. Entretanto, a velha senhora em questão tivera uma recuperação inesperada e a irmã Martha estava agora ansiosa para voltar. Se ao menos, em um momento de fraqueza algum tempo atrás, ele não tivesse prometido que a acompanharia na volta.

Havia certamente todos os motivos por que ele deveria fazer isso. Já tinha quase acabado seu trabalho em Kells; poderia, sem se afastar muito de seu caminho, viajar de volta a Glendalough passando por Kildare; e era inquestionavelmente seu dever acompanhar uma freira sozinha pela zona rural, em tempos conturbados como aqueles. A princípio ele esperava já estar pronto para partir por essa ocasião, mas seu trabalho demorara um pouco mais do que imaginara. Ao explicar-lhe isso, a freira aceitara com bastante satisfação, mas Osgar sabia muito bem que ela estava ansiosa para ir embora, e havia alguns dias vinha lhe perguntando delicadamente quando achava que estaria pronto para partir. Ele desconfiava que a irmã Martha sabia que a cópia ficaria pronta no dia seguinte, portanto, com toda a probabilidade, ela esperava partir um dia depois.

O problema era: ele não queria ir. Ainda não. Pois, após completar seu trabalho, ele ansiava passar uma semana sozinho com os tesouros da biblioteca de Kells, principalmente, é claro, o grande livro dos Evangelhos. Uma semana de enlevados estudos particulares, sem ser incomodado. Trabalhara arduamente, era um mínimo que ele merecia. E agora a idéia de se esquivar das perguntas dela e mantê-la esperando por mais alguns dias o enchia de um cansativo sentimento de culpa. No dia anterior, com a recente reviravolta dos acontecimentos agitando a zona rural, ele havia sugerido que ela talvez devesse esperar um pouco antes de partir. Mas, infelizmente, ela lhe dera um olhar penetrante e então retrucara delicadamente: “Estou certa de que Deus nos protegerá.” Desde então, ele tentava evitá-la.

Ouvindo a imprecação resmungada, Morann perguntou-lhe o motivo; e, enquanto caminhavam em direção ao portão, Osgar contou-lhe rapidamente.

Portanto, foi com prazer que, após apresentar o artesão à freira, ele ouviu Morann comentar:

— Soube que vocês dois vão viajar a Kildare, irmã Martha. Gostaria de lhes dizer que a região está perigosa no momento, mas, se quiserem esperar, estarei voltando por esse caminho daqui a cinco dias e poderemos viajar todos juntos. — Ele sorriu para ela. — Quanto mais gente, maior a segurança. —Tratava-se de uma oferta que ninguém sensatamente recusaria; e, após a freira ter aceitado, e os dois homens se afastarem, o artesão dirigiu-se a ele: — Isso lhe dá tempo suficiente?

Três dias inteiros na biblioteca. A companhia de Morann através do que talvez pudesse ser, realmente, um terreno perigoso.

— Não acredito na minha sorte — retrucou Osgar com um sorriso.

O plano de Morann, ele soube, era instalar sua família em Kells e depois voltar para Dyflin, onde pretendia verificar a segurança da família de Harold. — Mas tenho um assunto que pretendo resolver em Kildare — explicou —, e então é melhor eu passar por lá primeiro. — Osgar lembrou-se da grande fazenda em Fingal, onde ele encontrara o pai de Harold após ter sido atacado por assaltantes, anos antes, e ficou impressionado com a lealdade do artesão para com seu amigo.

— Não teme o perigo em Dyflin? — perguntou.

— Tomarei cuidado — respondeu Morann.

— Se chegar a Dyflin — observou Osgar —, talvez vá ver meu tio e meus primos no mosteiro. Espero que estejam em segurança. Transmita-lhes minhas saudações.

— Transmitirei, com certeza — prometeu Morann. — A propósito — acrescentou —, vi outra prima sua, creio. Ela chegou a Dyflin pouco antes de eu partir, para ficar mais segura enquanto o marido está fora, lutando.

— É mesmo? E quem era?

— É casada com um homem rico de Rathmines. Como é mesmo o nome dela... Caoilinn?

—Ah. — Osgar parou e olhou para o chão. — É — disse ele calmamente. — Caoilinn.

Era o último dia antes da partida. Durante a primeira hora do dia, Osgar gostava de se dedicar à ilustração. Se a caligrafia era esmerada, a ilustração era ainda mais intricada. Claro que antes havia o projeto. Este podia ser simples ou complexo Apenas os habilidosos em geometria deviam certamente tentar desenhar um padrão celta. Contudo, assim que o projeto era esboçado, depois copiado cuidadosamente e transferido para o velino como um desenho, a complicada tarefa de escolher as cores e pintá-las lentamente com pincéis da espessura de uma agulha exigia extraordinária paciência e habilidade.

Os próprios pigmentos eram raros e valiosos. Ele mergulhou seu pincel em um vermelho, para colorir parte de um desenho de penas de águia. Alguns vermelhos eram feitos de chumbo, mas esse viera do corpo grávido — tinha de estar grávido — de um certo inseto mediterrâneo. Verificou a proporção do desenho com um transferidor. A seguir, o roxo de uma planta mediterrânea. Os verdes vinham em sua maioria do cobre. Era preciso ter cuidado. Se a página ficasse molhada, o cobre poderia corroer e atravessar o velino. Os brancos eram geralmente feitos de greda. Os mais engenhosos eram os dourados. O pigmento para o ouro na verdade era amarelo — sulfeto de arsênico — mas, quando aplicado, adquiria um brilho metálico, parecendo uma lâmina de ouro. O mais precioso e raro de todos era o azul lápis-lazúli. Vinha do distante Oriente, de um lugar, dizia-se, onde as montanhas, mais altas ainda do que os Alpes, erguiam-se em direção ao céu azul até tocá-lo. Um país sem nome. Ou assim ele ouvira dizer.

O mais formidável de tudo, na opinião de Osgar, eram as delicadas camadas de tinta, uma sobre a outra, para se obter não apenas uma sutil gradação de tom mas até mesmo um relevo, da maneira como uma paisagem seria vista de cima, como pelo olho do próprio Deus.

Naquela manhã, porém, ao entrar no scriptorium, Osgar não se preocupou em praticar sua pobre arte. Foi direto ao grande livro no púlpito. Tratava-se, afinal de contas, de sua última oportunidade de fazê-lo.

Que maravilha. Enquanto permanecia parado diante da obra-prima, era difícil para Osgar acreditar que talvez nunca mais a visse. Por dois meses ele havia explorado suas leitosas páginas de velino e de tal modo descobrira suas maravilhas que, tal qual um peregrino em uma cidade santa que conhecia todos os seus meandros e locais secretos, ele se sentia quase como se o grande tesouro lhe pertencesse pessoalmente.

E, aliás, o grande livro não repousava ali como uma cidade celestial? Quatro Evangelhos: quatro pontos cardeais, quatro braços da cruz sagrada. A Irlanda não tinha quatro províncias? Até mesmo o poderoso Império Romano, já perto do fim, quando era cristão, fora dividido em quatro. No início de cada um dos Evangelhos, vinham três magníficas iluminuras de página inteira: a primeira, o símbolo alado do evangelista — o Homem Mateus, o Leão Marcos, o Touro Lucas e a Águia João; a segunda, um retrato de página inteira; a terceira, as primeiras palavras do Evangelho desenhadas em um corpo maior. Uma trindade de páginas para começar cada um dos quatro Evangelhos. Três mais quatro: os sete dias da semana. Três vezes quatro: os doze apóstolos.

Havia outras iluminuras de página inteira em locais relevantes, como o desenho da cruz dupla com pontas de oito círculos, a Virgem e o Menino Jesus, e o grande monograma de Chi-Rho que inicia o relato de Mateus sobre o nascimento de Jesus.

O esplendor das páginas estava em suas cores: intensas, suntuosos vermelhos e violeta, os roxos, os verde-esmeralda e azul-safira; a pálida coloração dos rostos dos santos, como marfim envelhecido; e por toda parte o amarelo cintilante que as fazia parecer telas adornadas de ouro.

Sua magnificência, porém, estava em sua estrutura. Espirais trifólias encerradas em discos, margens de fitas e nós entrelaçados e motivos do mais antigo passado da ilha se juntavam com símbolos cristãos — a águia de João; o pavão, símbolo da incorruptibilidade de Cristo; peixes, cobras, leões, anjos e suas cometas — tudo estilizado em padrões geométricos. Havia também figuras humanas, agrupadas nos espaços triangulares dos cantos, ou em volta das bases das letras douradas, homens com braços e pernas alongados e entrelaçados para que o corpo humano e o desenho abstrato se tornassem um todo e semelhantes nesse cosmos celta. E esses padrões eram intermináveis: repetindo entrelaçamentos de uma tal complexidade oriental que o olho nunca conseguia desembaraçá-los; discos de espirais dispostos em cachos como jóias, círculos e pontilhados, formas como serpentes e filigranas — a rica profusão da decoração celta pareceria provavelmente fugir completamente do controle se não fosse a maciça e monumental geometria da composição.

Ah, aquilo sim. Aquilo, pensou Osgar, é que era maravilhoso. Pois, tanto pela grande imagem cruciforme dos quatro evangelistas quanto pela poderosa curva sinuosa do Chi-Rho, a mensagem das páginas ornadas era inequívoca. Exatamente como, perto do fim, o impassível império da Roma pagã tentara com suas inúmeras legiões e maciças muralhas deter as ondas de bárbaros, a Igreja romana de agora, ainda mantendo o grande poder e a autoridade da verdadeira religião, impunha sua ordem monumental sobre a anarquia do paganismo, e construía não apenas uma cidade imperial mas celestial — infinita, eterna, compreensiva e banhada em luz espiritual. Dia a dia ele fitou as páginas e, às vezes, sonhava com elas à noite. Certa ocasião, sonhou até mesmo que havia entrado na igreja do mosteiro e encontrado o livro aberto. Duas de suas páginas haviam se separado sozinhas e se tornado imensas: uma delas era um mosaico dourado na parede; a outra, como uma enorme divisória bizantina de ouro e ícones, atravessava o coro, barrando seu caminho em direção ao altar. E, ao se aproximar da divisória dourada, ela brilhara, como se iluminada por um fogo escuro e sagrado; e ele a tocara levemente e ela soara, asperamente, como um velho gongo.

Mas agora ele teria de partir com Morann e irmã Martha. Acompanharia a freira até Kildare, depois seguiria para as montanhas, de volta a Glendalough. E Morann iria a Dyflin e talvez encontrasse Caoilinn. Bem, ele não podia se queixar. Aquela era a vida que ele escolhera.

— A mão de São Colum Cille.

Osgar sobressaltou-se ao ouvir a voz atrás de seu ombro. Era o velho monge encarregado do scriptorium. Ele não o ouvira se aproximar.

— É o que dizem — retrucou. Muita gente atribuía o livro dos Evangelhos de Kells a São Cclum Cille. O santo real, descendente direto do próprio Niall dos Nove Reféns — seu nome significava a Pomba da Igreja — que fundara na ilha o famoso mosteiro de lona ao largo da costa norte da Britânia, era certamente um famoso calígrafo. Mas Colum Cille vivera apenas um século depois de São Patrício, e parecia a Osgar, que examinara numerosas obras na biblioteca do mosteiro, que o grande livro era de uma data posterior. Dois séculos atrás, Kells fora fundado como refúgio para alguns dos monges da comunidade de lona, após o mosteiro da ilha ter sido atacado por vikings. Algumas das ilustrações estavam incompletas; portanto, talvez o grande livro tivesse sido preparado em lona e os vikings tivessem interrompido sua conclusão.

— Eu o estive observando, sabe.

— Esteve? — Nos dois meses desde que Osgar chegara ali, o zelador do scriptorium mal lhe dirigira a palavra além do necessário, e quando uma ou duas vezes vira o velho olhando-o severamente, ele teve a sensação de que o monge de Kells talvez o desaprovasse. Osgar ficou imaginando o que fizera de errado. Mas, para sua surpresa, quando girou a cabeça, viu que a boca do velho monge estava contraída em um sorriso.

— Você é um erudito. Percebo isso. No momento em que o vi, disse a mim mesmo: “Eis um verdadeiro erudito de nossa raça insular.”

Osgar ficou tão contente quanto surpreso. Desde as preleções de seu tio sobre o assunto, quando ele era criança, sentira um justificado orgulho das conquistas de seus conterrâneos. Afinal, com bárbaros ocupando a maior parte do mundo, tinham sido os monges missionários da ilha ocidental que haviam seguido para as antigas áreas celtas do arruinado Império Romano, a fim de reafirmar a civilização cristã. A partir do lona de Colum Cille, eles estabeleceram outros centros notáveis, como o grande mosteiro ocidental de Lindisfarne, e converteram a maior parte do norte da Inglaterra. Outros foram para a Gália, a Alemanha e a Borgonha, e até mesmo além dos Alpes, no norte da Itália. Com o tempo, os fundadores de mosteiros haviam sido seguidos por peregrinos celtas, em números espantosos, seguindo caminho em direção ao sul, percorrendo as rotas de peregrinação que levavam a Roma. A igreja celta não apenas conduzira novamente a tocha da verdade; ela se tornara uma das maiores guardiãs da cultura clássica. Bíblias em latim e seus comentários, as obras dos grandes autores latinos — Virgílio, Horácio, Ovídio —, até mesmo alguns dos filósofos: todos foram copiados e entesourados. Príncipes ingleses enviavam seus jovens para estudar na ilha ocidental, onde alguns dos mosteiros eram quase como academias; os estudiosos da ilha eram conhecidos em cortes de toda a Europa. “Esses celtas insulanos”, dizia-se, “são excelentes gramáticos.”

Pessoalmente, Osgar achava que essa competência se devia muito à grande tradição da complexa mas poética língua celta. Aliás, reservadamente, ele duvidava se os falantes de anglo-saxão eram capazes de apreciar realmente a literatura clássica. E lembrou-se de como outro dos monges de Glendalough observara certa vez: “Anglo-saxão: era como uma casa de palha falaria, se pudesse.” E sentia-se feliz que os cronistas monásticos também tivessem se ocupado em registrar a antiga tradição celta na escrita. Desde as antigas leis comuns não-escritas das tribos e dos druidas até velhas narrativas orais entoadas pelos bardos, os monges da ilha as vinham registrando juntamente com suas crônicas de fatos passados. As histórias de Cuchulainn, Finn Mac Cumaill e outros heróis e deuses celtas estavam agora em bibliotecas monásticas, junto com os textos clássicos e as escrituras sagradas.

Não apenas isso. Uma nova tradição literária fora criada por monges ir landeses que, imersos na sonora tradição de seus hinos em latim, pegaram a rica aliteração do antigo verso celta e a transformaram em uma poesia escrita irlandesa mais heróica, mais assombrosa até mesmo do que fora a original pagã. Era notório que muitas dessas histórias sofreram pequenas alterações. Havia coisas em algumas dessas antigas narrativas, pensava Osgar, que nenhum cristão se comprometeria a escrever. Não se podia deixar como estavam. Mas a formidável poesia antiga continuava ali, a alma celta preservada.

Uma coisa ele lastimava: a antiga tonsura druídica dos monges da ilha fora abandonada. Dois séculos depois de São Patrício, o papa insistira que todos os monges da cristandade deveriam rapar apenas o topo da cabeça, à moda romana, e, após algum protesto, a igreja celta aceitara. “Mas no fundo ainda somos druidas”, ele gostava de dizer, apenas como pilhéria.

— Vai mesmo embora amanhã? — perguntou-lhe o velho monge.

— Vou.

— Quando há tantos problemas no mundo. — O velho suspirou. — Os homens de Brian Boru estão por toda Leinster e sabe Deus o que estarão dispostos a fazer. Você devia ficar aqui algum tempo. Esperar até ser seguro. — Osgar alegou o caso da irmã Martha, mas o velho sacudiu a cabeça. — É terrível um erudito como você sair pelo mundo só por causa de uma freira de Kildare. — Então, deu meia-volta e afastou-se. Pouco depois, ele voltou.

Trazia na mão um pequeno pedaço de pergaminho, que pousou na mesa diante de Osgar.

— Veja isto — disse.

Era um desenho feito em tinta preta. Osgar nunca vira algo semelhante. Um trifólio com três espirais frouxamente ligadas, que lhe lembraram alguns dos trevos encontrados nas grandes iluminuras. Mas, diferentemente destas, nas quais as espirais eram dispostas em um desenho geométrico completo, as linhas rodopiantes pareciam fugir na direção das margens, como se tivessem sido apanhadas em meio a intermináveis e inacabadas tarefas.

— Fui eu que copiei — anunciou orgulhosamente o monge.

— De onde?

— De uma grande pedra. Perto dos antigos túmulos acima do Boyne. Eu às vezes costumava caminhar por lá. — Olhou satisfeito seu trabalho manual. — E assim que está entalhado. A cópia é exata.

Osgar continuava fitando-a. O desenho errante parecia antigo.

— Você saberia o que significa? — perguntou o monge.

— Não, não sei. Lamento.

— Ninguém sabe. — O velho monge suspirou, e então se animou. — Mas é algo curioso, você não diria que é?

Era. E, por mais estranho que pareça, após ele deixar a biblioteca naquela noite, foi o curioso desenho, muito mais do que os magníficos Evangelhos, que pareceu permanecer, assombrando sua imaginação, como se as errantes espirais contivessem uma mensagem cifrada para aqueles prestes a começar uma jornada para o seu destino.

Partiram à primeira luz. A neve já desaparecera no dia anterior; embora estivesse frio, não havia gelo e o solo estava úmido. Viajavam numa pequena carroça fornecida por Morann. Não encontraram ninguém mais viajando. Todas as vezes que passavam por uma fazenda, perguntavam por notícias dos soldados de Munster, mas ninguém vira ou ouvira nada. Parecia que aquela parte do país, pelo menos, continuava tranqüila. No início da tarde, alcançaram um ponto no Boyne onde havia um vau. Uma vez atravessado o rio, continuaram em direção ao sul, sob um céu plúmbeo.

 

 

                                                                             CONTINUA

 

 

O dia transcorreu calmamente. Mantiveram um alerta contra grupos de assalto, mas não viram nenhum. Ao se aproximar o anoitecer, avistaram fumaça vindo de uma fazenda perto de um antigo assentamento e encontraram um pastor e sua família. Pernoitaram agradecidos pelo calor de uma fogueira e pelo abrigo. O pastor contou-lhes que Brian Boru, juntamente com uma enorme tropa, fora para Dyflin e agora estavam todos acampados lá.

 

 

 

 

— Dizem que ele pretende ficar até o Natal — alertou o pastor. — Mas por aqui está calmo — disse-lhes ele.

Na manhã seguinte, quando retomaram a viagem, o tempo estava nublado. Adiante, estendia-se um enorme terreno plano. À direita, para oeste, começava uma enorme área pantanosa. Para leste, a dois dias de viagem, ficava Dyflin. Adiante, ao sul, a planície compunha-se de matas entremeadas de amplos espaços abertos. No final da tarde, se viajassem numa velocidade razoável, chegariam ao maior desses espaços abertos, o platô descampado de Carmun, onde, desde tempos imemoriais, as pessoas da ilha se reuniam para o festival pagão do Lughnasa e a corrida de cavalos. E apenas a uma curta distância da antiga pista de corridas ficava o destino deles, o grande mosteiro de Kildare.

A tarde estava quase terminada e a escuridão praticamente caindo, quando chegaram à extremidade de Carmun. Uma estranha cor cinzenta impregnava o céu. Os enormes e planos espaços vazios pareciam sinistros e vagamente ameaçadores. Até mesmo Morann estava inquieto, e Osgar viu-o olhar em volta, aflito Estaria escuro antes de chegarem a Kildare. Olhou a irmã Martha de relance.

A bondosa freira fora certamente uma excelente companheira de viagem. Não falou, a não ser quando... 

 

                                                                               

                      

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