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Poesia & Contos Infantis

 

 

 


OS QUARENTA E CINCO 2º Volume / Alexandre Dumas
OS QUARENTA E CINCO 2º Volume / Alexandre Dumas

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

OS QUARENTA E CINCO

2º Volume / Primeira Parte

 

         O GABINETE DE MARGARIDA

Nós bem quiséramos que não nos acusassem de pintarmos unicamente festões e astrága-los, e de termos detido o leitor tanto tempo no jardim; porém, tal amo, tal casa; e se não foi inútil descrevermos a alameda dos três mil passos e o gabinete de Henrique, também poderá oferecer algum interesse a descrição do gabinete de Margarida.

O gabinete da rainha ficava paralelo ao de Henrique, diferindo porém deste em ter várias portas ocultas que davam para outros quartos e corredores, e janelas condescendentes e mudas como as portas, resguardadas por gelosias de ferro com fechaduras, cujas chaves abriam e fechavam sem o menor ruído.

O ornato interno constava de móveis modernos, de tapeçarias da última moda, de painéis, de esmaltes, de objectos de louça, armas de subido valor, de livros e manuscritos gregos, latinos e franceses, espalhados por cima de todas as mesas, de gaiolas com pássaros e de cães deitados sobre as alcatifas; enfim: um mundo inteiro vegetal e animal, que partilhava da vida íntima de Margarida.

As pessoas de espírito superior, ou em quem a vida superabunda, não podem conformar-se com uma existência isolada; procuram acompanhar cada um dos sentidos, cada uma das inclinações, de objectos que se harmonizem com eles, e que sigam o impulso da mesma força atractiva que os arrebata no turbilhão da vida, de forma que, em vez de terem vivido e sentido como o vulgo, conseguem multiplicar as sensações e duplicar a existência.

Epicuro foi sem questão um herói para a humanidade; os próprios pagãos não o compreenderam: era um filósofo severo que, desejoso de aproveitar toda a soma de recursos de que é susceptível a natureza humana, achava, com a sua inflexível economia, prazeres naquilo em que só teriam visto privações ou dores os indivíduos inteiramente entregues a uma vida espirituosa ou a uma existência bestial.

Ora, tem-se declamado muito contra Epicuro sem o conhecer, como se têm louvado muito, sem os conhecer também, os devotos solitários da Tebaida, que aniquilavam o belo da natureza humana neutralizando o feio. Matar o homem é sem dúvida matar as paixões que nele existem; mas afinal sempre é matar, coisa expressamente proibida pelas leis de Deus.

A rainha era mulher capaz de compreender Epicuro, e em grego demais a mais, sendo este o menor de seus merecimentos; ocupava por tal maneira a sua existência, que de mil penas sabia compor um prazer, e isto fazia com que ela, na sua qualidade de cristã, louvasse com frequência o Ente Supremo, quer ele se chamasse Deus, ou Theos, Jeová, ou Magog.

Esta digressão serve para provar a toda a evidência a necessidade em que estávamos de descrever o aposento de Margarida.

Chicot foi convidado a sentar-se numa boa e bonita cadeira de braços, coberta de tapeçaria bordada representando o Amor a espalhar uma nuvem de flores; um pajem, mais galante e mais ricamente vestido que d'Aubiac, ofereceu novamente alguns refrescos ao mensageiro. Chicot não aceitou e, mal o visconde de Turenne saiu, começou a recitar com imperturbável memória a carta do rei de França e da Polónia pela graça de Deus.

Já sabemos o conteúdo da tal carta, que lemos em português ao mesmo tempo que Chicot; parece-nos, portanto, escusado apresentar aqui a tradução latina.

Chicot fingiu que titubeava, a fim de que a rainha não pudesse entendê-lo perfeitamente logo à primeira vez; mas apesar da destreza com que desfigurava a própria obra, Margarida percebia à légua e não ocultava de modo algum o seu furor e profunda indignação.

A medida que ia chegando ao fim da carta, Chicot enterrava-se cada vez mais nos embaraços que ele próprio havia criado; quando recitava algumas passagens escabrosas abaixava o rosto como um confessor envergonhado do que lhe diz o penitente; e deste jogo resultava-lhe uma grande vantagem, pois não via fulgurar os olhos da rainha e contraírem-se-lhe os nervos ao ouvir a denúncia positiva de todos os seus delitos conjugais.

Margarida não ignorava a que ponto chegava a requintada maldade do irmão; sobejas provas de inimizade lhe tinha ele dado; também sabia, pois não era mulher que procurasse desculpar-se para consigo mesma, quais eram os pretextos que tinha dado e quais os que poderia dar de futuro; e por isso, ao passo que Chicot declamava, ia ela equilibrando na sua mente a cólera legítima com o receio razoável.

Mostrar-se devidamente indignada, desconfiar oportunamente, evitar o perigo repelindo a injúria, provar a injustiça aproveitando a advertência, tal era o grande plano que formava o espírito de Margarida enquanto Chicot prosseguia na sua narração epistolar.

Não se persuada porém o leitor que Chicot se conservava com o rosto eternamente abaixado; erguia ora um olho ora o outro, e então tranquilizava-se ao ver que a rainha, apesar do franzimento das sobrancelhas, ia assentando gradualmente no partido que havia de tomar. Acabou portanto de dizer com todo o sossego os cumprimentos com que finalizava a carta régia.

— Pela santa comunhão! — exclamou a rainha apenas Chicot concluiu — meu irmão descreve lindamente em latim! Que veemência, que estilo! Não o julgava tão adiantado. Chicot fez um movimento com os olhos e abriu as mãos, como quem aprova por civilidade mas sem entender.

— Não percebe? — perguntou a rainha, que estava familiarizada com todas as linguagens mesmo com a da mímica. — Julgava contudo, Senhor, que era um grande latinista...

— Estou muito esquecido, minha Senhora; de todo o meu antigo saber, apenas hoje me lembra que em latim não há artigo, que há um vocativo e que cabeça é do género neutro.

— Ah! deveras?... — exclamou alegremente uma personagem que entrou estrepitosamente no aposento.

Chicot e a rainha voltaram-se ao mesmo tempo.

Era o rei de Navarra.

— Pois quê!? — disse Henrique aproximando-se — cabeça em latim é do género neutro, Sr. Chicot?! E por que razão não é do género masculino?...

— Ah! meu Senhor — replicou Chicot —, não sei na verdade porque será, e é coisa que me faz cismar, assim como a Vossa Majestade.

— E a mim também — disse Margarida pensativa.

— Deve ser — disse o rei — porque é ora o homem ora a mulher quem domina a cabeça, conforme o temperamento do homem e da mulher.

Chicot cumprimentou.

— É essa por certo — disse ele — a melhor explicação que ouvi dar.

— Ora ainda bem! muito estimo ver que sou mais filósofo do que julgava. Tornemos porém ao assunto da carta; saberá, minha Senhora, que estou impaciente por ouvir notícias da corte de França, e eis senão quando traz-mas o honrado Sr. Chicot, numa língua que não entendo: sem o que...

— Sem o que...? — repetiu Margarida.

— Sem o que, muito me havia de divertir! Sabe muito bem quanto gosto de notícias, e especialmente de notícias escandalosas, como as que meu cunhado Henrique de Valois conta com tanta graça.

E Henrique de Navarra sentou-se esfregando as mãos.

— Vamos lá, Sr. Chicot — prosseguiu o rei, com os modos de quem está disposto a divertir-se muito —, disse a minha esposa o conteúdo dessa carta, não é assim?...

— Sim, Real Senhor!

— Muito bem! Então, minha querida amiga, conte-me o que diz a carta.

— Vossa Majestade não receia — disse Chicot, animado pela liberdade de que lhe davam exemplo os reais cônjuges — que o latim em que é escrita a missiva de que se trata seja um mau prognóstico?

— Por que motivo? — perguntou o rei. E logo, virando-se para a esposa:

— Então que diz, minha Senhora? — perguntou ele.

Margarida meditou um instante, como se estivesse pensando e comentando uma por uma as palavras saídas da boca de Chicot.

— O nosso mensageiro tem razão, Senhor — disse ela quando acabou o seu exame —, o latim é um mau prognóstico.

— Qual! — disse Henrique — é possível que a prezadíssima carta de meu cunhado Henrique de Valois contenha expressões impróprias?! Advirto-a, querida amiga, que el-rei seu irmão é um literato de polpa e muito cortês.

— Mesmo quando me manda insultar na minha liteira, como sucedeu a algumas léguas de Sens, quando eu saí de Paris para vir ter com Vossa Majestade?...

— Quando se tem um irmão que é muito severo nos seus costumes — disse Henrique naquele tom indefinível que formava um meio-termo entre a seriedade e a zombaria —, um irmão rei, um irmão escrupuloso...

— Deve sê-lo quando se trate verdadeiramente da honra de sua irmã e da sua casa; mas parece-me, Senhor, que se Catarina de Albret, sua irmã, desse motivo a algum escândalo, Vossa Majestade não faria divulgar esse escândalo pelo capitão da sua guarda...

— Oh! mas eu sou um burguês patriarcal e benigno — disse Henrique —, não sou rei; se o sou, é por divertimento, e também por isso quero divertir-me. Porém a carta, a carta: visto ser-me ela dirigida, desejo saber o seu conteúdo.

— É uma carta pérfida, Senhor.

— Qual!

— Oh! não há dúvida; e encerra em si calúnias mais que suficientes para malquistar não somente um marido com sua esposa, mas também um amigo com todos os seus amigos.

— Oh! oh! — disse Henrique perfilando-se e revestindo de afectada desconfiança o semblante, que de seu natural era franco e risonho — malquistar um marido com sua mulher?... será possível?!...

— Comigo, sim senhor.

— E porquê, minha querida amiga?

Chicot estava em brasa, e teria dado o que lhe pedissem naquele instante para poder ir deitar-se sem ceia, apesar de estar com muita fome.

«Vai desabar a tempestade! murmurou ele consigo, vai desabar a tempestade!»

— Senhor — disse a rainha —, muita pena tenho que Vossa Majestade esteja esquecido do latim, que forçosamente lhe ensinaram na sua mocidade...

— Minha Senhora, de todo o latim que aprendi, só me recordo desta única frase: Deus et virtus aeterna: singular união de masculino, de feminino e de neutro, de que o meu professor nunca me pôde dar a explicação senão em grego, que eu entendia ainda menos que o latim.

— Pois, Senhor — prosseguiu a rainha —, se entendesse latim, veria que a carta vem recheada de cumprimentos que me são dirigidos.

— Oh! muito bem — disse o rei.

— Optime — disse Chicot.

— Mas como é, minha Senhora — perguntou Henrique —, que os cumprimentos que lhe são dirigidos podem malquistar-nos um com o outro? Porque sempre que meu cunhado Henrique lhe fizer cumprimentos hei-de aprovar o seu procedimento. Se na tal carta se dissesse mal de Vossa Majestade, então o caso era outro, minha Senhora, e, enfim, adivinharia então qual era o fim político de meu cunhado.

— Ah! se se dissesse mal de mim, logo adivinharia o fim político que Henrique teria em

vista?...

— Certamente, pois sei que Henrique de Valois tem seus motivos para querer malquistá-la comigo.

— Espere então, Senhor, porque os cumprimentos a que me referi são apenas o exórdio de insinuações caluniosas contra os seus amigos e os meus.

E depois de ter soltado audaciosamente estas palavras, a rainha de Navarra dirigiu para o esposo um olhar cheio de desconfiança.

— Digne-se ouvir-me até ao fim, meu Senhor — disse ela.

— Deus é testemunha de que é esse o meu maior desejo, minha Senhora — respondeu Henrique.

— Carece ou não dos meus servidores, diga-me?

— Se careço deles, querida amiga?... Boa pergunta! Que faria eu sem eles e reduzido aos meus únicos recursos?...

— Pois bem, Senhor! el-rei quer afastar de si os melhores dos seus servidores.

— Desafio que o consiga.

— Bravo, Real Senhor! — exclamou Chicot.

— Decerto — disse Henrique com aquela admirável candura que ele sabia tão bem afectar, e que até ao fim da sua vida a todos iludiu —, porque os meus servidores estão ligados a mim por afecto e não por interesses. Eu nada tenho que lhes dar.

— Dá-lhes todo o seu coração e toda a sua fé, Senhor, e essa é a melhor remuneração que um rei pode dar aos seus amigos.

— Sim, querida amiga; e então?

— Então, Senhor, deixe de ter confiança neles.

— Por Deus! nunca tal farei! salvo se a isso me obrigarem, isto é, se desmerecerem do conceito em que os tenho.

— Bom — disse Margarida —, pois querem provar-lhe que desmereceram, Senhor...!

— Ah! ah! — disse o rei — mas em quê?

Chicot tornou a abaixar a cabeça, como fazia sempre que chegava a algum ponto escabroso.

— Não o posso dizer — respondeu Margarida — sem comprometer...

E olhou em redor de si. Chicot percebeu que a sua presença estava constrangendo a rainha, e recuou.

— Meu emissário — disse o rei —, faça-me o favor de ir esperar por mim ao meu gabinete: a rainha tem a comunicar-me coisas particulares e muito úteis para o meu serviço, segundo vejo.

Margarida conservou-se imóvel, à excepção de um leve aceno de cabeça que Chicot julgou que só ele tinha percebido.

Como viu que os dois esposos desejavam que se retirasse, levantou-se e saiu do aposento, cumprimentando-os respeitosamente.

 

         COMPOSIÇÃO E VERSÃO

O afastamento daquela testemunha, que Margarida supunha mais entendedora de latim do que queria confessar, era já um triunfo, ou pelo menos uma garantia de segurança para ela porque, como já dissemos, Margarida não acreditava que Chicot fosse na realidade tão pouco letrado como queria parecer, e ficando só com o marido podia dar a cada palavra latina mais latitude e acompanhá-la de mais comentários ainda do que aqueles que todos os glosadores juntos têm dado a Plauto ou a Pérsio, que foram os dois enigmas em verso do mundo latino.

Henrique e a esposa tiveram pois a satisfação de ficar a sós.

O rei não mostrava no parecer indício algum de inquietação, nem de ameaça. Era evidente que ele não entendia latim.

— Senhor — disse Margarida —, estou esperando que me interrogue.

— Preocupa-a demasiadamente a tal carta, querida amiga — disse ele. — Não se assuste

por essa forma,

— Senhor, a carta de que se trata é, ou devia ser, um acontecimento notável; um rei nunca manda assim um emissário a outro rei sem motivos da mais alta importância.

— Bem — disse Henrique —, deixemos de parte a mensagem e o mensageiro: não tenciona dar-nos esta noite uma coisa parecida com um baile?

— Não passa de projecto, por enquanto, Senhor — disse Margarida muito admirada —, mas não é coisa extraordinária, sabe muito bem que quase todas as noites se dança aqui.

— Eu tenho uma grande montaria amanhã, uma famosa montaria...

— Ah sim?

— Sim, uma batida aos lobos.

— Cada qual segue a sua inclinação, Senhor; Vossa Majestade gosta de caçadas, e eu de bailes; o senhor caça e eu danço.

— Sim, querida amiga — disse Henrique com um suspiro —, e na verdade nenhum mal pode disso resultar.

— Decerto; porém Vossa Majestade suspirou ao proferir essas palavras...

— Ouça-me, minha Senhora... Margarida tornou-se toda ouvidos.

— Estou bastante inquieto...

— Por que motivo, Senhor?

— Por causa de um boato que se tem espalhado.

— De um boato? Pois é possível que um boato dê cuidado a Vossa Majestade?...

— Parece-me que não é admiração alguma, querida amiga, quando de um tal boato pode resultar-lhe um desgosto!...

— A mim?

— Sim, à senhora.

— Não percebo, Senhor...

— Não ouviu dizer coisa alguma? — perguntou Henrique no mesmo tom. Margarida começou a recear seriamente que fosse este o prelúdio do ataque que o marido

lhe queria dirigir.

— Eu sou a mulher menos curiosa do mundo, Senhor — disse ela —, e nunca ouço senão aquilo que alguém se lembra de vir apregoar-me aos ouvidos. E demais, dou tão pouco valor a isso a que chama boatos, que mal os ouviria mesmo escutando-os; não admira pois que não os ouça, tapando eu os ouvidos quando passam por mim.

— É pois de parecer, minha Senhora, que é preciso desprezar os boatos?...

— Completamente, Senhor; e sobretudo nós, os reis.

— Por que razão nós sobretudo, minha Senhora?

— Porque como nós, os reis, somos assunto de todas as conversas, não nos faltaria que fazer se déssemos atenção ao que dizem de nós.

— Muito bem; parece-me que tem muita razão, querida amiga, e vou proporcionar-lhe uma ocasião óptima para fazer uso da sua filosofia...

Margarida julgou que era chegado o momento decisivo; armou-se de todo o seu valor, e com voz bastante firme:

— Assim seja, Senhor — disse ela —, aceito de todo o coração.

Henrique começou com os modos de um penitente que deseja confessar-se de algum pecado muito sério:

— Sabe muito bem a afeição que tenho à minha filha Fosseuse...

— Ah!... — exclamou Margarida, vendo que não era dela que se tratava, e tomando uma atitude vitoriosa. — Sim, sim: à pequenina Fosseuse, sua amiga.

— Sim — respondeu Henrique, sempre no mesmo tom —, sim: à pequenina Fosseuse.

— A minha dama de honor...

— A sua dama de honor.

— Por quem anda louco de amores...

— Ah! querida amiga, está repetindo um desses boatos que ainda há pouco censurava!

— É verdade, Senhor — disse Margarida, sorrindo —, e peço-lhe perdão com toda a humildade.

— Querida amiga: tem razão; as vozes do público quase sempre mentem, e nós, os reis, especialmente, precisamos tornar este teorema em axioma... Por Deus, minha Senhora! parece-me que estou falando grego...

E Henrique começou a rir. Margarida conheceu a ironia daquela risada tão estrepitosa, e sobretudo do olhar tão matreiro de que era acompanhada. Tornou por conseguinte a ficar inquieta.

— A Fosseuse, pois...? — perguntou ela.

— A Fosseuse está doente, querida amiga, e os médicos não atinam com a causa da doença.

— É caso notável, Senhor. Fosseuse, segundo afirma Vossa Majestade, tem conservado sempre a sua castidade. Fosseuse, que, pelo que lhe tenho ouvido dizer, seria capaz de resistir a um rei, se um rei se lembrasse de lhe falar em amor; Fosseuse, flor de pureza, cristal, tão límpido, não pode decerto hesitar em consentir que os olhos da ciência penetrem até ao âmago das suas alegrias e dos seus sofrimentos!

— Infelizmente, não sucede assim... — disse Henrique com tristeza.

— Pois quê!? — exclamou a rainha, com a maldade impetuosa que a mulher mais superior nunca deixa de arremessar como um dardo contra outra mulher — pois quê!? Fosseuse não é uma flor de pureza?!...

— Não digo isso — respondeu secamente Henrique. — Deus me livre de acusar pessoa alguma! Digo que a Fosseuse foi acometida de um incómodo que ela teima em ocultar aos médicos.

— Aos médicos não me admira, mas ao senhor... seu confidente, seu pai... parece-me extraordinário!

— Nada mais sei além disto que disse, querida amiga — respondeu Henrique, reassumindo o mesmo sorriso afável —, ou se sei mais alguma coisa tenho por acertado não ir mais longe.

— Então, Senhor — disse Margarida, julgando perceber, pelo assunto da conversação, que estava do seu lado a superioridade e que era ela que teria de perdoar, quando pensava que teria de implorar o próprio perdão —, não percebo o que Vossa Majestade deseja e esperarei que se

explique.

— Pois bem, visto ser isso que espera, querida amiga, vou contar-lhe tudo... Margarida fez um movimento como para dar a conhecer que estava pronta a ouvir.

— Seria preciso... — prosseguiu Henrique — porém conheço que é exigir demasiado da senhora, querida amiga,..

— Diga sempre, Senhor.

— Seria preciso que tivesse a condescendência de ir visitar a Fosseuse.

— Eu?! ir visitar essa rapariga que, segundo dizem, tem a honra de ser sua amante, facto que o senhor não nega?!

— Vamos, vamos! devagarinho, querida amiga! — disse o rei. — Pela minha honra! vai fazer um escândalo com essas exclamações; e que gosto não dará à corte de França!... pois naquela carta de el-rei meu cunhado, que me foi recitada por Chicot, dizia-se: quotidie scandalum; isto é, traduzido por um pobre humanista como eu: quotidianamente escândalo.

Margarida fez um movimento.

— Não é preciso saber latim para entender estas palavras — prosseguiu Henrique. — São quase francesas.

— Porém, Senhor, a quem se referem essas palavras? — perguntou Margarida.

— Ah! eis o que eu não pude entender. Mas a senhora sabe latim: ajudar-me-á quando lá chegarmos, querida amiga.

Margarida corou até à raiz dos cabelos, enquanto Henrique, de cabeça baixa e mão erguida, parecia procurar ingenuamente quem seria o indivíduo da sua corte a que poderia ser aplicável o quotidie scandalum.

— Muito bem, Senhor — disse a rainha —, quer, em nome da concórdia, obrigar-me a dar um passo indecoroso: obedecerei, pois, em nome da concórdia.

— Obrigado, querida amiga, obrigado — disse Henrique.

— Entretanto, qual é o fim da visita que deseja que eu faça?

— É mui simples, minha Senhora...

— Contudo será bom que o diga, visto eu ser tão ingénua que não o adivinho.

— Pois bem: encontrará Fosseuse com as demais damas de honor, e deitada no quarto! onde elas todas dormem. Essas senhoras, como sabe, são tão curiosas e tão indiscretas, que só Deus sabe em que apertos se terá visto a Fosseuse...

— Então, visto isso, sempre ela se arreceia de alguma coisa! — exclamou Margarida, enraivecendo-se novamente. — Ah!... quer esconder-se!

— Não sei — replicou Henrique. — Sei unicamente que é preciso que ela saia do quarto das damas de honor.

— Se ela pretende esconder-se, não conte comigo. Eu poderei fechar os olhos a certas coisas, mas nunca serei cúmplice delas.

E Margarida esperou para ver o efeito do seu ultimato.

Mas Henrique parecia não ter ouvido: tinha deixado pender novamente a cabeça, e estava naquela atitude pensativa que tanto havia feito cismar Margarida um instante antes.

— Margota... —murmurou ele — Margota cum Turennio... São estes os dois nomes que eu buscava, minha Senhora... Margota cum Turennio...

Margarida, nesta ocasião, tornou-se carmesim.

— Isso são calúnias, Senhor! — exclamou ela. — Quer repetir-me calúnias!?...

— Calúnias? — disse Henrique com a maior naturalidade — acha que são calúnias, minha senhora?... É uma passagem da carta de meu cunhado que me ocorreu agora mesmo, Margota cum Turennio conveniunt in castello nomine Loignac. Bem... não tenho remédio senão mandar traduzir a carta por algum homem letrado.

— Está bom: acabemos com a brincadeira, Senhor — replicou Margarida com um estremecimento —, e diga claramente o que pretende de mim.

— Pois bem: desejava, querida amiga, que separasse Fosseuse das outras damas de honor, que lhe destinasse um quarto para ela só e que lhe mandasse um médico muito discreto... o seu, por exemplo.

— Oh! já percebo! — exclamou a rainha. — Fosseuse, que tanto apregoava a sua virtude, Fosseuse, que tanto alarde fazia de uma virgindade falsa, está grávida e próxima a dar à luz!...

— Eu não disse semelhante coisa, querida amiga — replicou Henrique —, é a senhora quem o afirma.

— Vejo que acertei, Senhor, vejo que acertei! — exclamou a rainha. — Esse tom insinuante, essa falsa humildade, provam-me que assim é. Porém há sacrifícios tais, que nem mesmo um rei deve exigi-los de sua mulher. Trate de encobrir como puder a falta da Sr.a Fosseuse, Senhor; é seu cúmplice, e como tal tem que a proteger; é o criminoso, e não o inocente quem deve ser castigado.

— O criminoso?... bom! fez-me recordar novamente as expressões daquela maldita carta...

— Como assim!?...

— Criminoso em latim diz-se nocens, não é verdade?

— Sim senhor nocens.

— Pois a carta diz assim: Margota cum Turennio ambo nocentes, conveniunt in castello nomine Loignac. Oh, meu Deus! causa-me pena não possuir mais instrução tendo tão boa memória! ...

«Ambo nocentes, repetiu baixinho Margarida, tornando-se mais pálida do que a sua coleira de rendas engomadas; entendeu tudo, não há dúvida.»

— Margota cum Turennio, ambo nocentes. Que demónio queria dizer meu cunhado com a palavra ambo?... — prosseguiu desapiedadamente Henrique de Navarra. — Por Deus, querida amiga! muito me admira que, sabendo tão bem latim, não me tenha dado ainda a explicação desta frase, que tanto me preocupa.

— Já tive a honra de lhe dizer, Senhor...

— Ah! ainda bem... — interrompeu o rei — acolá está precisamente Turennius, que anda passeando defronte das suas janelas, olhando para cima, como se estivesse à sua espera; pobre rapaz!... Vou-lhe fazer sinal para que suba; é muito erudito e logo me dirá o que eu pretendo saber.

— Senhor, Senhor!... — exclamou Margarida, erguendo-se da poltrona e unindo as mãos. — Senhor, mostre-se superior a todos os enredadores e caluniadores de França!

— Minha querida amiga, parece-me que não se é mais indulgente em Navarra do que em França, e ainda há pouco a senhora mesma mostrou bastante severidade a respeito da pobre Fosseuse...

— Severidade, eu?! — bradou Margarida.

— Peço-lhe que se recorde; contudo, todos nós aqui deveríamos ser indulgentes, minha Senhora, pois levamos uma vida divertida: a senhora nos bailes, de que tanto gosta, e eu nas caçadas, por que sou apaixonado.

— Sim senhor — disse Margarida —, tem razão: sejamos indulgentes.

— Oh! bem certo estava eu que tinha bom coração, querida amiga.

— É porque me conhece bem, Senhor.

— Não há dúvida. Irá pois visitar a Fosseuse, não é assim?

— Sim senhor.

— E há-de separá-la das outras damas de honor?

— Sim senhor.

— Dar-lhe-á o seu próprio médico?

— Sim senhor.

— E nada de enfermeira. Os médicos são calados por ofício, as enfermeiras são tagarelas

por costume.

— É verdade, Senhor.

— E dado infelizmente o caso de ser verdade o que por aí dizem, e que a pobre pequena tivesse sucumbido na realidade a uma fraqueza...

Henrique levantou os olhos para o Céu.

— O que muito bem pode ser — prosseguiu ele. — A mulher é coisa muito frágil, resfra-gilis mulier, como diz o Evangelho...

— Se assim for, Senhor, eu também sou mulher e sei que devo ser indulgente para com

as outras mulheres.

— Ah? sabe, sim; é na verdade um modelo de perfeições, e...

— Eu?

— ... beijo-lhe as mãos.

— Fique certo, Senhor — replicou Margarida —, que é por amor de Vossa Majestade, unicamente, que faço tão grande sacrifício.

— Oh! oh! — disse Henrique — eu bem a conheço, minha Senhora, e o meu cunhado de França também, porque depois de dizer tanto bem de Vossa Majestade na sua carta, acrescenta: Fiat sanum exemplo statim, atque res certior eveniet. O bom exemplo a que ele se refere, querida amiga, é sem dúvida este que me está dando.

Henrique beijou em seguida a mão quase gelada de Margarida. E depois, detendo-se no limiar da porta:

— Dê muitos recados meus à Fosseuse, minha Senhora; trate dela conforme prometeu, enquanto eu andar na minha montaria; pode ser que não a torne a ver senão à volta, e também pode ser que não a veja mais... os lobos são muito más feras. Aproxime-se de mim para que a abrace, querida amiga.

Abraçou Margarida quase afectuosamente, e saiu, deixando-a pasmada de quanto acabava de ouvir.

 

         O EMBAIXADOR DE ESPANHA

O rei foi ter com Chicot ao seu gabinete, e encontrou-o ainda tremendo, com receio das explicações.

— Então, Chicot? — disse Henrique.

— Então, meu Senhor? — respondeu Chicot.

— Não sabes o que assevera a rainha?

— Não, Real Senhor.

— Assevera que o teu maldido latinório vem perturbar a paz da nossa casa.

— Ah! meu Senhor — exclamou Chicot —, por Deus! esqueçamos o tal latinório, e acabou-se. O latim declamado difere muito do latim escrito; o vento leva o primeiro, mas o fogo não consegue às vezes consumir o segundo.

— Quero que o Diabo me leve — disse Henrique — se penso mais em semelhante coisa!

— Ora ainda bem.

— Tenho muitas outras coisas em que me ocupar.

— Vossa Majestade prefere divertir-se, hem?

— Sim, meu filho — disse Henrique, meio descontente do tom com que Chicot proferira estas poucas palavras. — Sim, a minha majestade prefere divertir-se.

— Peço perdão... estou incomodando talvez Vossa Majestade...

— Ah! meu filho — disse Henrique, encolhendo os ombros —, já te disse que aqui não se vive como no Louvre. Aqui tudo se faz às escâncaras, seja amor, guerra ou política.

O olhar do rei era tão meigo, o seu sorriso tão afável, que Chicot cobrou novo ânimo.

— A guerra e a política menos que o amor, não é verdade, Real Senhor? — disse ele.

— Confesso que sim, meu caro amigo: esta terra é tão bonita, os vinhos do Linguadoque são tão saborosos, e as mulheres da Navarra são tão lindas!...

— Ah, meu Senhor! — redarguiu Chicot — esquece-lhe a rainha... Serão acaso as navarresas mais formosas e amáveis do que ela?... Se assim é, dou os parabéns às navarresas!

— Por Deus! tens razão, Chicot! e eu que já me ia esquecendo que és embaixador, que representas aqui el-rei Henrique III, que el-rei Henrique III é irmão da rainha Margarida, e que, por consequência, o decoro exige que na tua presença eu coloque a rainha Margarida acima de todas as demais mulheres! Porém, deves desculpar a minha imprudência, Chicot: não estou afeito a receber embaixadores, meu filho.

Quando o rei dizia isto, abriu-se a porta do gabinete e d'Aubiac anunciou em voz alta:

— O Senhor Embaixador de Espanha!

Chicot deu tal pulo sobre a cadeira que o rei não pôde deixar de sorrir.

— Palavra de honra! — disse Henrique — não esperava ser assim desmentido. O embaixador de Espanha!... Que demónio virá ele cá fazer?

— Sim — repetiu Chicot —, que demónio virá fazer?...

— Não tarda que o saibamos — replicou Henrique —, pode ser que o meu vizinho espanhol tenha a discutir comigo alguma questão de fronteira.

— Retiro-me — disse Chicot respeitosamente. — O enviado de Sua Majestade Filipe II é provavelmente um embaixador deveras, enquanto eu...

— Qual! pois o embaixador de França havia de retirar-se para ceder o lugar ao de Espanha, e isto em Navarra?! Por Deus! tal não será! Abre esse gabinete, Chicot, e espera aí.

— Porém dali ouvirei tudo, mesmo sem querer, meu Senhor...

— E que importa que ouças? não tenho segredos. Ah! é verdade: nada mais tem a dizer-me de mandado de el-rei seu amo, Senhor Embaixador?

— Não, meu Senhor, nada mais.

— Está bom; então agora só te resta ver e ouvir, que é o ofício de todos os embaixadores do mundo: ficarás portanto às mil maravilhas nesse gabinete, para desempenhares o teu cargo. Vê pois com ambos os olhos e ouve com ambos os ouvidos, meu caro Chicot.

E, em seguida, disse para o pajem:

— D'Aubiac, vai dizer ao capitão da minha guarda que introduza o Senhor Embaixador de Espanha.

Chicot, logo que ouviu esta ordem, deu-se pressa em entrar para a biblioteca, tendo o cuidado de correr o reposteiro bordado.

Ressoaram no sobrado passos vagarosos e compassados: era o embaixador de Sua Majestade Filipe II que vinha entrando.

Acabados os preliminares consagrados pelas leis da etiqueta, à vista dos quais Chicot ficou convencido de que o Bearnês entendia perfeitamente como se dava uma audiência, o enviado perguntou em língua espanhola, que todo o gascão ou bearnês entende como a própria:

— Posso falar livremente a Vossa Majestade?

— Pode — respondeu o Bearnês.

Chicot aprontou os ouvidos. O caso era para ele sobremaneira interessante.

— Real Senhor — disse o embaixador —, trago-lhe a resposta de Sua Majestade Católica. «Bom! pensou Chicot, ele que traz a resposta é porque houve algum pedido.»

— Acerca de que assunto? — perguntou Henrique.

— Relativamente às suas proposições do mês passado, Real Senhor.

— Confesso que sou muito esquecido — disse Henrique. — Peço-lhe o favor de me recordar que proposições foram, Senhor Embaixador.

— Acerca das invasões dos príncipes lorenos em França.

— Ah! sim... e particularmente a respeito do meu compadre de Guisa. Muito bem! já estou lembrado; prossiga, Senhor, prossiga.

— Real Senhor — replicou o espanhol —, el-rei meu amo, apesar de haver sido rogado para assinar um tratado de aliança com a Lorena, foi de parecer que uma aliança com a Navarra seria mais leal e, para falar sem rebuço, muito mais vantajosa.

— Sim, falemos sem rebuço — disse Henrique.

— Usarei de franqueza para com Vossa Majestade, Real Senhor, por isso que estou ciente das intenções de el-rei meu amo a respeito de Vossa Majestade.

— E poderei eu saber quais são?

— Real Senhor, el-rei meu amo nada recusará à Navarra.

Chicot aproximou os ouvidos ainda mais do reposteiro e mordeu as pontas dos dedos para se certificar que estava acordado.

— Visto que nada me recusará — disse Henrique —, saibamos o que poderei exigir.

— Tudo quanto aprouver a Vossa Majestade, Real Senhor.

— Cos demónios!

— Pode portanto Vossa Majestade falar aberta e francamente, Real Senhor.

— Tudo!... por Deus, que não sei o que hei-de escolher!

— Sua Majestade El-Rei de Espanha quer dar ao seu novo aliado um penhor seguro da sua amizade; a proposta que tenho a fazer a Vossa Majestade comprovará o que eu digo...

— Estou ouvindo — disse Henrique.

— El-rei de França trata a rainha de Navarra como sua inimiga figadal; repudiou-a por irmã, desde o instante em que a cobriu de opróbrio, como é constante. O procedimento injurioso de el-rei de França (peço perdão a Vossa Majestade por trazer à discussão um assunto tão delicado)...

— Continue.

— O procedimento injurioso de el-rei de França foi bem notório e é sabido do público... Henrique fez um movimento como para negar.

— Foi tão notório — prosseguiu o espanhol — que nos constou a nós; repito, portanto, Real Senhor: el-rei de França repudiou a rainha Margarida por sua irmã, visto que se abalançou a vexá-la mandando deter publicamente a sua liteira e ordenando que o capitão da sua guarda real lhe desse busca.

— E então, Senhor Embaixador, qual é a conclusão a que pretende chegar?

— É que, por consequência, nada há mais natural do que repudiar Vossa Majestade por mulher aquela que seu irmão repudiou por irmã...

Henrique olhou para o reposteiro atrás do qual Chicot, com os olhos espantados, esperava com ansiedade o resultado de tão pomposo exórdio.

— Repudiada que seja a rainha — prosseguiu o embaixador —, a aliança entre o rei de Navarra e o rei de Espanha...

Henrique cumprimentou.

— ... fica logo concluída — continuou o embaixador —, e eis aqui por que maneira el-rei de Espanha dá a infanta sua filha em casamento a el-rei de Navarra, e Sua Majestade mesmo casa com a princesa Catarina de Navarra, irmã de Vossa Majestade.

Um estremecimento de orgulho correu por todo o corpo do Bearnês, e um arrepio de susto pelo corpo de Chicot. O primeiro via surgir no horizonte a sua fortuna, radiante como o Sol nascente, o segundo via descer e morrer o ceptro e a fortuna dos Valois. O espanhol, frio e impassível, nada via além das instruções de seu amo. Reinou, durante um instante, profundo silêncio; e logo, passado esse instante, o rei de Navarra replicou:

— A proposta que me faz, Senhor, é magnífica, e honra-me em extremo.

— Sua Majestade — apressou-se a dizer o orgulhoso negociador que já contava com uma aceitação entusiástica — El-Rei de Espanha tenciona apenas submeter a Vossa Majestade uma única condição...

— Ah!... uma condição — disse Henrique —, é muito justo; vejamos, qual é a condição?

— El-rei meu amo, prestando-se a auxiliar Vossa Majestade contra os príncipes lorenos, isto é, abrir-lhe o caminho do trono, deseja habilitar-se com a aliança de Vossa Majestade a conservar a Flandres, da qual o Senhor Duque de Anjou está procurando apoderar-se actualmente. Vossa Majestade bem vê que é grande a preferência que lhe dá meu amo sobre os príncipes lorenos, por isso que os Srs. de Guisa, seus aliados naturais como príncipes católicos, formam, eles sós, um partido contra o Senhor Duque de Anjou, na Flandres. Ora pois, eis a condição única; é razoável e moderada: Sua Majestade El-Rei de Espanha aliar-se-á com Vossa Majestade por meio de um dúplice casamento; ajudá-lo-á a... — o embaixador procurou um instante a expressão adequada - a suceder ao rei de França, e Vossa Majestade assegurar-lhe-á a posse da Flandres.

— Bem sei que é uma fortuna preciosa e incomparável, Senhor, mas não a comprarei nunca à custa do sangue e da honra dos meus súbditos futuros. Pois quê, Senhor!? eu havia de desembainhar a espada contra el-rei de França, meu cunhado, a favor da Espanha, de um país estrangeiro? Havia de deter o estandarte da França na sua carreira de glória, para deixar que as torres de terra e os leões de Leão concluíssem a empresa que ele encetou?! Havia de armar irmãos contra irmãos, e abrir o caminho da minha pátria?!... Atente bem, Senhor: eu solicitei de meu vizinho el-rei de Espanha auxílio contra os Srs. de Guisa, que são uns facciosos ávidos do meu património, mas não contra el-rei Henrique III, meu amigo; não contra minha esposa, irmã do meu rei. Auxiliará os Guisas e dar-lhes-á o seu apoio, me dirá o senhor... Faça-o, muito embora: que eu soltarei contra eles e contra os senhores todos os protestantes da Alemanha juntamente com os da França. El-rei de Espanha quer reconquistar a Flandres, que está próxima a escapar do seu poder; pois que faça o mesmo que fez seu pai Carlos V: peça passagem a el-rei de França, para ir reivindicar o seu título de primeiro burguês da cidade de Gand, e posso afirmar-lhe que el-rei Henrique III lhe concederá a passagem com tanta lealdade como fez el-rei Francisco I. Diz Sua Majestade Católica que eu quero o trono de França; pode ser, mas não preciso que ele me ajude a conquistá-lo; devagar eu saberei apoderar-me dele por minhas mãos, não obstante todas as majestades do mundo. Assim, pois... adeus, Senhor. Diga a meu irmão Filipe que lhe fico muito agradecido pelos seus oferecimentos. Porém, muito me magoaria se soubesse que quando os fez julgou, um único instante, que eu seria capaz de os aceitar. Adeus, senhor. O embaixador ficou estupefacto, e balbuciou:

— Tome cuidado, Real Senhor, que a má harmonia entre dois vizinhos depende às vezes

de uma má palavra.

— Senhor Embaixador — replicou Henrique —, repare bem no que lhe digo: rei de Navarra ou rei de coisa nenhuma, para mim é o mesmo. A minha coroa é tão leve, que nem a sentiria cair se me escorregasse da cabeça; e demais, se um tal caso se desse, sempre havia de procurar meios de a suster, tenha essa certeza. Diga a el-rei seu amo que eu ambiciono coisas mais elevadas ainda do que essas com que ele me acena. Adeus.

E o Bearnês, reassumindo a lhaneza e a afabilidade que todos lhe conheciam, e de que por um instante se havia esquecido no calor do seu heroísmo, o Bearnês, dizíamos, sorrindo cortesmente, acompanhou o embaixador até à porta do gabinete.

 

          OS POBRES DO REI DE NAVARRA

Chicot estava por tal maneira espantado do que tinha ouvido, que não se lembrou de sair do gabinete quando Henrique ficou só.

O Bearnês ergueu o reposteiro e foi bater-lhe no ombro.

— Então, Chicot? — disse ele — que tal me saí desta?

— Perfeitamente, Real Senhor — replicou Chicot ainda atordoado. — É forçoso confessar que, se Vossa Majestade não costuma receber embaixadores, quando alguma vez os recebe são de boa casta...

— É contudo meu irmão Henrique quem dá causa a eu receber tais embaixadas.

— Como assim, meu Senhor!?

— Decerto, porque se ele não perseguisse sem descanso a sua pobre irmã, não se lembrariam os outros de a perseguirem também. Pensas tu porventura que se el-rei de Espanha não tivesse sabido do insulto tão público que sofreu a rainha de Navarra quando o capitão da guarda real lhe revistou a liteira mandaria propor-me que a repudiasse?...

— Vejo com a maior satisfação, Real Senhor — respondeu Chicot —, que semelhantes tentativas serão baldadas, e que nunca será possível destruir a boa harmonia que existe entre Vossa Majestade e a rainha.

— Ah! meu amigo, é bem evidente o empenho que há em nos malquistarem um com o outro...

— Confesso-lhe, Senhor, que não sou tão perspicaz como Vossa Majestade supõe...

— É fora de dúvida que o desejo de meu irmão Henrique é que eu repudie sua irmã.

— Como pode isso ser!? Peço a Vossa Majestade que se sirva explicar-me o seu dito. Realmente, nunca pensei que viria aprender a tão boa escola...

— Sabes, Chicot, que se esqueceram de me pagar o dote de minha mulher?

— Não sabia, Senhor; tinha apenas algumas desconfianças de que assim era.

— E que o dote em questão constava de trezentos mil escudos de ouro?

— Bonita soma!

— E de várias cidades fortificadas, entre elas a cidade de Cahors?

— Bonita cidade, por Deus!

— Eu reclamei, não os meus trezentos mil escudos de ouro — pois, apesar de pobre, considero-me mais rico do que el-rei de França —, mas sim Cahors.

— Ah Vossa Majestade reclamou Cahors?... Com a breca! fez muito bem! e eu, no seu lugar, teria feito o mesmo.

— E eis o motivo... — disse o Bearnês com o seu sorriso astuto — eis o motivo... (Percebes agora?)...

— Vou percebendo!

— Eis o motivo pelo qual desejariam malquistar-me com minha mulher a ponto de eu a repudiar. Deixando ela de ser minha mulher, acabava-se o dote e, por conseguinte, não me pagariam os trezentos mil escudos, nem me entregariam as cidades, e especialmente a de Cahors. É uma maneira decente de iludir a palavra dada; e meu irmão Valois é mestre nestas subtilezas.

— Penso que Vossa Majestade muito havia de estimar ter aquela praça em seu poder, não é verdade, Real Senhor? — disse Chicot.

— Sem dúvida; afinal de contas, o que é o meu reino de Béarn?... Um pobre e pequeno principado, por tal forma cerceado pela avareza de meu cunhado e de minha sogra, que o nome de rei que me dá tem-se tornado um título ridículo.

— E assim; enquanto que, anexando Cahors ao seu principado...

— Cahors seria o meu baluarte, a salvaguarda dos meus correligionários.

— Pois, Senhor, parece-me que Vossa Majestade pode dizer adeus a Cahors porque, malquiste-se ou não com a rainha Margarida, el-rei de França nunca lha entregará, salvo o caso de a tomar à força...

— Oh! — exclamou Henrique — eu não hesitaria em a tomar se não fosse uma praça tão forte, e sobretudo se não tivesse tanta aversão à guerra.

— Cahors é inexpugnável, meu Senhor — disse Chicot. Henrique revestiu o semblante de impenetrável candura.

— Oh! inexpugnável não seria, se eu tivesse um exército... que não tenho.

— Atenda-me, Real Senhor (os Gascões, como sabe, costumam falar com franqueza): para tomar Cahors, de que é governador o Sr. de Vezin, era preciso ser Aníbal ou César, e Vossa Majestade...

— Acaba: a minha majestade...? — perguntou Henrique, com o seu sorriso matreiro.

— Vossa Majestade há pouco disse que tem aversão à guerra...

Henrique suspirou; um raio de fogo iluminou-lhe por um instante os olhos melancólicos; mas comprimindo logo aquele movimento involuntário, alisou com a mão queimada do sol a sua barba castanha, dizendo:

— É verdade que nunca desembainhei a espada, nem a desembainharei nunca, provavelmente; sou um rei de palha e um homem de paz; entretanto, Chicot, por um contraste extraordinário, gosto de discorrer sobre assuntos de guerra; é coisa que está no meu sangue: S. Luís, meu antepassado, senhor religioso pela sua educação, e pacífico pelo seu carácter, tinha tão feliz disposição neste particular, que, sempre que era preciso, sabia transformar-se num destemido jogador de lança e manejava a espada com valor. Conversemos, pois, se queres, Chicot, acerca do Sr. de Vezin, que tu tens em conta de um césar ou de um um aníbal...

— Real Senhor, perdoe-me — disse Chicot — se as minhas palavras puderam não só ofendê-lo, mas mesmo causar-lhe alguma inquietação. Se falei no Sr. de Vezin foi somente para apagar qualquer vestígio de louco ardor que a juventude e a pouca prática de negócios militares tivessem acendido em seu peito. Cahors, meu Senhor, é a chave do Sul da França, e por isso está muito bem defendida e guardada.

— Infelizmente assim é! — disse Henrique tornando a suspirar.

— Ali — prosseguiu Chicot — está a riqueza territorial unida à segurança da habitação.! Quem tiver Cahors, possuirá celeiros, adegas, granjas, aquartelamentos, relações e dinheiro. Quem possuir Cahors, terá tudo a seu favor; quem não possuir Cahors, terá tudo contra si.

— Com todos os demónios! — murmurou o rei de Navarra — eis aí um motivo por que eu tinha tanto desejo de possuir Cahors; tanto, que até disse à minha pobre mãe que fizesse da sua posse uma das condições sine qua non do meu casamento. Cahors era o apanágio de minha mulher: tinham-mo prometido, deviam-mo.

— Meu Senhor, dever e pagar... — disse Chicot.

— Tens razão: dever e pagar são duas coisas muito diversas, meu amigo; de forma que o teu parecer é que não me hão-de pagar, não é assim?

— Receio muito que não.

— Diacho! — disse Henrique.

— E direi com franqueza... — prosseguiu Chicot.

— O quê?

— Direi com franqueza que farão muito bem, meu Senhor.

— Farão muito bem?! porquê, meu amigo?

— Porque Vossa Majestade não soube desempenhar o papel de um rei que se casa com uma princesa francesa, que era exigir em primeiro lugar o pagamento do dote e em segundo a entrega das cidades.

— Desgraçado! — disse Henrique sorrindo amargamente — já não te lembras dos sinos de Saint-Germain l'Auxerrois a tocarem a rebate?... Parece-me que um noivo a quem querem assassinar na mesma noite das suas bodas não pensa tanto em exigir o dote como em salvar a vida.

— Bom — disse Chicot —, mas depois?

— Depois? — perguntou Henrique.

— Sim; parece-me que de então para cá tem havido paz... Pois devia ter aproveitado este tempo de paz para instaurar as suas reclamações; era melhor (perdoe a minha confiança, Real Senhor), era melhor que tivesse tratado de negociações em vez de se ocupar de negócios amorosos. Bem sei que é menos divertido, mas é muito mais proveitoso. Digo-lhe isto, na verdade, meu Senhor, tanto no interesse de el-rei meu amo, como no de Vossa Majestade. Se Henrique de França tivesse na pessoa de Henrique de Navarra um forte aliado, muito cresceria em poder Henrique de França; e, supondo a possibilidade de se reunirem os católicos e protestantes para o mesmo fim político, pondo temporariamente de parte a discussão das questões de religião, os católicos e protestantes, isto é, os dois Henriques, assim ligados, fariam tremer o género humano.

— Oh! — disse Henrique com humildade — não aspiro a fazer tremer ninguém; conquanto eu não trema... Sabes que mais, Chicot? Deixemos esta conversa, que inquieta o espírito. Não me dão Cahors? Pois bem! passarei sem ela.

— Dura necessidade é essa, meu rei!

— Que queres? Não és tu próprio de parecer que Henrique nunca me entregará essa cidade?...

— Sou desse parecer, por três razões...

— Diz-me quais, Chicot.

— Com todo o gosto. A primeira é porque Cahors é uma cidade de grande rendimento, e por este motivo el-rei de França preferirá reservá-la para si a dá-la a outrem.

— Não é acto de muita probidade, Chicot.

— Mas é próprio de um rei, meu Senhor.

— Ah! é acto próprio de um rei lançar mão daquilo que mais nos convém?...

— Sim, meu Senhor; chama-se a isso tomar o quinhão do leão, e o leão é o rei dos animais.

— Lembrar-me-ei de quanto acabas de me dizer, meu Chicot, se alguma vez for rei deveras. Qual é a tua segunda razão, meu filho?

— Ei-la: a rainha Catarina...

— Pelo que vejo, a minha boa sogra Catarina ainda se intromete na política... — interrompeu Henrique.

— Ainda; a rainha Catarina estimaria muito mais que a filha estivesse em Paris do que em Nérac; antes a quer junto de si do que de Vossa Majestade.

— Parece-te isso? Nunca julguei que a rainha Catarina fosse tão extremosa pela filha.

— Não é; mas a rainha Margarida está servindo de refém, meu Senhor.

— Sempre és muito ladino, Chicot! O Diabo me leve se eu era capaz de ter semelhante ideia! O caso é que pode muito bem ser que tenhas razão... Sim, sim: uma princesa de França pode, se preciso for, servir de refém. E depois?

— Depois, meu Senhor, com a diminuição dos recursos, diminuirão também para si os prazeres da existência. Nérac é sem dúvida uma cidade muito agradável, tem uma linda tapada e alamedas como não há em parte alguma; mas a rainha Margarida, quando lhe faltarem os recursos, há-de aborrecer-se de Nérac e terá saudades do Louvre.

— Prefiro a primeira razão que me deste, Chicot — disse Henrique abanando a cabeça.

— Pois então vou dizer-lhe a terceira: o Senhor Príncipe de Navarra é a balança que mantém um certo equilíbrio entre o duque de Anjou, que para conseguir um trono está agitando a Flandres, entre os Srs. de Guisa, que para adquirirem uma coroa agitam a França, e entre Sua Majestade o Rei de Espanha, que muito estimaria a monarquia universal e para isso agita o mundo.

— Deveras?!... eu, que tão pouco peso?...

— Exactamente; e senão, lance os olhos para a república suíça. Torne-se poderoso, isto é, mais pesado, e fará descair o prato. Deixará de ser contrapeso, para se tornar um peso.

— Oh! agrada-me mais que todas essa última razão, Chicot, e foi muito bem deduzida. És na verdade muito erudito, Chicot.

— Por minha fé, Real Senhor, que bem limitado é o meu saber — disse Chicot, lisonjeado pelo elogio e penhorado por aquela afabilidade régia, a que não estava acostumado.

— É essa, portanto, a explicação da minha situação? — disse Henrique.

— A mais completa, meu Senhor.

— E eu sem ver nada disso, Chicot! e eu a esperar sempre!... Que te parece?

— Se me é lícito dar-lhe um conselho, meu Senhor, dir-lhe-ei que abandone toda a esperança.

— Vejo que não tenho remédio, Chicot, senão fazer a esta dívida do rei de França o mesmo que faço com as dos caseiros que não me podem pagar as rendas no fim do ano: ponho um P ao lado dos seus nomes.

— Quer dizer: Pagou...

— Tal qual.

— Pois assente nesse caso dois PP, meu Senhor, e solte um suspiro. Henrique suspirou.

— Assim farei, Chicot — disse ele. — Porém, afinal de contas, meu amigo, bem vês que sempre se pode viver aqui em Béarn, e não me é indispensável Cahors.

— Vejo, por certo, e conheço que Vossa Majestade é, como eu sempre desconfiei, um príncipe prudente e um rei filósofo... Mas... que bulha é aquela?...

— Bulha?... onde?

— Penso que é no pátio...

— Olha da janela, meu amigo, olha. Chicot chegou à janela.

— Meu Senhor — disse ele —, estão lá em baixo uns doze indivíduos bastante mal trajados...

— Ah! são os meus pobres — disse o rei de Navarra levantando-se.

— Vossa Majestade também tem os seus pobres?

— Decerto; não nos recomenda Deus a caridade?... Apesar de não ser católico, Chicot, não deixo de ser cristão.

— Muito bem, meu Senhor.

— Anda comigo, Chicot, vamos lá abaixo; dar-lhes-emos esmola e depois voltaremos, para cear.

— Estou pronto a acompanhá-lo, meu Senhor?

— Olha, traz a bolsa que está sobre aquela banquinha, ao pé da minha espada.

— Aqui está, meu Senhor.

— Muito bem.

Desceram juntos: já tinha anoitecido. O rei parecia pensativo e preocupado. Chicot observava-o e causava-lhe tristeza aquela preocupação.

«Que desastrada lembrança a minha de conversar em política com tão bom príncipe! Bem se vê que lhe dilacerei o coração; sempre sou muito mau!»

Henrique de Navarra, apenas chegou ao pátio, aproximou-se do grupo de mendigos de que Chicot lhe tinha dado notícia.

Eram uns doze homens, de diversa estatura, fisionomia e trajo; qualquer observador superficial que os visse passar tê-los-ia tomado por ciganos ou estrangeiros, pela voz, pelo modo de andar e pelos gestos, mas quem neles atentasse bem logo conheceria que eram cavalheiros disfarçados.

Henrique tirou a bolsa da mão de Chicot e fez um sinal cujo significado os mendigos pareceram entender perfeitamente. Vieram então cumprimentá-lo, cada um por sua vez, com certo ar de humildade que não excluía um olhar inteligente e audaz, dirigido ao rei unicamente, como para lhe dizer: «Por baixo deste grosseiro invólucro arde o meu coração!»

Henrique correspondeu com um aceno de cabeça, e logo, introduzindo o dedo indicador e o polegar na bolsa, que Chicot segurava aberta, tirou dela uma peça.

— Vossa Majestade sabe que é ouro o que tirou?... — disse Chicot.

— Sim, meu amigo, sei muito bem.

— Então é bem rico!

— Não vês, meu amigo — respondeu Henrique sorrindo —, que cada uma destas peças me serve para duas esmolas? Enganas-te, Chicot: sou pobre, e vejo-me na necessidade de partir as minhas peças de ouro ao meio para as estender.

— É verdade — replicou Chicot, cada vez mais admirado —, são metades de peças cortadas com lavores fantásticos!

— Oh! é porque eu me pareço com o meu irmão de França, que se diverte a recortar imagens: também tenho as minhas baldas. Divirto-me, quando não tenho que fazer, a cercear os meus ducados. Um bearnês pobre e honrado é tão industrioso como um judeu.

— Contudo, meu Senhor — disse Chicot abanando a cabeça, pois já desconfiava que também havia naquilo algum mistério —, confesso que essa é uma maneira muito singular de dar esmolas...

— Se fosses tu, farias a coisa por outro modo?

— Decerto, pois em vez de estar com o trabalho de partir cada peça ao meio, dá-la-ia inteira, dizendo: Aqui está para dois.

— Eram capazes de brigar uns com os outros, meu caro, e em lugar de fazeres bem, causarias um escândalo.

— Talvez — murmurou Chicot, resumindo nesta palavra, que é a quintessência de todas as filosofias, a sua oposição às ideias extravagantes do rei.

Henrique tirou, pois, metade de uma peça de ouro da bolsa e, colocando-se na frente do primeiro mendigo, com o semblante sereno e afável que lhe era habitual, olhou para o homem sem falar, mas interrogando-o com os olhos.

— Agen — disse este, inclinando-se.

— Quantos? — perguntou o rei.

— Quinhentos.

— Cahors.

E dizendo isto entregou-lhe a peça e tirou outra da bolsa.

O mendigo cumprimentou, ainda mais respeitosamente do que da primeira vez, e afastou-se.

Seguiu-se-lhe outro, que cumprimentou o rei com humildade.

— Auch — disse ele ao inclinar-se.

— Quantos?

— Trezentos e cinquenta.

— Cahors.

E entregou-lhe a segunda peça, tirando logo outra da bolsa.

O segundo desapareceu como o primeiro. Aproximou-se um terceiro e cortejou também.

— Narbona — disse ele.

— Quantos?

— Oitocentos.

— Cahors.

Entregou-lhe a terceira peça e tirou outra da bolsa.

— Montauban — disse um quarto.

— Quantos?

— Seiscentos.

— Cahors.

Todos eles, enfim, aproximando-se e cortejando, proferiram um nome, receberam a célebre esmola e acusaram um número, cuja totalidade somava oito mil.

A cada um deles respondeu Henrique: Cahors, sem que a acentuação da voz variasse uma única vez ao proferir esta palavra.

Acabada que foi a distribuição, já não havia mais metades de peças na bolsa, nem mendigos no pátio.

— Pronto — disse Henrique.

— Foi-se tudo, meu Senhor?

— Sim, acabou-se.

Chicot puxou pela manga do rei.

— Real Senhor... — disse ele.

— Que é?

— É-me permitido ser algum tanto curioso?...

— Porque não? A curiosidade é uma qualidade muito natural.

— Que lhe diziam aqueles mendigos? E que demónio lhes respondia? Henrique sorriu.

— Digo-lhe, na verdade, que aqui tudo é mistério.

— Parece-te?

— Sim; nunca vi dar esmolas deste modo!

— É este o uso em Nérac, meu caro Chicot. Sabes o ditado: cada terra com seu uso, cada

roca com seu fuso...

— É um uso muito esquisito, meu Senhor.

— Não, cos diabos! a coisa é muito simples: estes homens que viste andam divagando por todo o país a pedir esmolas, mas são todos de diferentes cidades.

— E depois, meu Senhor?

— E depois, para não dar as esmolas aos mesmos, dizem-me o nome da cidade de que são oriundos; e bem vês que assim, meu caro Chicot, posso repartir igualmente os meus benefícios e ser útil a todos os desgraçados de todas as cidades do meu Estado.

— Satisfaz-me essa explicação, meu Senhor, pelo que respeita ao nome da cidade que eles dizem; mas por que razão respondeu a todos Cahors?

—Ah eu respondi Cahors?!... — replicou Henrique com um gesto de admiração perfeitamente fingido.

— Não há dúvida!

— Pareceu-te isso?...

— Estou certo que sim!

— Será porque desde que falámos a respeito de Cahors tenho sempre aquela palavra na boca... Sucedeu-me o que acontece quando se deseja com ardor alguma coisa que não se pode alcançar: pensa-se nela, e mesmo sem querer se fala nela.

— Hum!... — disse Chicot, olhando desconfiado para o lado por onde tinham desaparecido os mendigos — o negócio não é tão claro como eu desejaria; além disso...

— Quê!? ainda há mais alguma coisa?!

— Há, sim, meu Senhor: os números que cada um deles proferia, e que, somados, dão um total de oito mil.

— Ah! pelo que toca aos tais números, Chicot, estou como tu: não percebi; lembra-me, contudo, que, achando-se os mendigos divididos, como sabes, em corporações, pode ser que eles acusassem assim o número de membros de cada uma das corporações.

— Meu Senhor! meu Senhor!...

— Anda cear, meu amigo; não há coisa que mais esclareça o espírito, na minha opinião, do que comer e beber. Procuraremos à mesa a solução do enigma e verás que, apesar de as minhas peças serem cerceadas, as minhas garrafas estão bem cheias.

O rei apitou para chamar um pajem e mandou que lhe servissem a ceia. Em seguida, enfiando familiarmente o braço no de Chicot, voltou para o gabinete, onde estava posta a mesa para a ceia.

Quando passou pela frente dos quartos da rainha, olhou para as janelas e não viu luz.

— Pajem — disse ele —, Sua Majestade a Rainha não está no paço?

— Sua Majestade — respondeu o pajem — foi visitar a Sr.a de Montmorency que, segundo dizem, está muito doente.

— Ah! pobre Fosseuse!... — disse Henrique. — A rainha tem muito bom coração! Anda cear, Chicot, anda.

 

         QUAL ERA A VERDADEIRA AMANTE DO REI DE NAVARRA

A ceia foi das mais alegres.

Henrique parecia inteiramente livre de cuidados e de pensamentos tristes, e quando estava naquela disposição de espírito era o Bearnês um excelente conviva.

Quanto a Chicot, disfarçava da melhor forma que podia aquela espécie de inquietação que principiara a apoderar-se dele com a aparição do embaixador de Espanha e que, depois de ter aumentado com a cena do pátio e a distribuição das peças de ouro aos mendigos, nunca mais o havia abandonado.

Henrique tinha querido que o seu amigo Chicot ceasse a sós com ele; mesmo no tempo em que ele vivia na corte do rei Henrique, sempre mostrara muito afecto a Chicot; tinha por ele uma daquelas inclinações que os homens de espírito costumam sentir pelas pessoas que se lhes assemelham; e Chicot também: apesar das embaixadas de Espanha, dos mendigos com santo-e-senha e das peças de ouro cerceadas, simpatizava muito com o rei de Navarra.

Chicot, vendo que o rei mudava de vinho e se portava a todos os respeitos como bom conviva, resolveu logo poupar-se um pouco a si mesmo, a fim de poder tomar nota de todos os ditos inspirados ao Bearnês pela liberdade da mesa e pelo calor dos vinhos.

Henrique bebia o vinho sem água, e tinha umas tais maneiras para induzir os hóspedes a acompanharem-no que Chicot nunca conseguia atrasar-se dele mais do que um copo em cada três.

Porém a cabeça do Sr. Chicot parecia feita de ferro, como os leitores já terão notado.

Pelo que respeita a Henrique de Navarra, esse dizia que aqueles vinhos eram da lavra da casa e bebia-os como se fossem soro de leite.

Tudo isto era entremeado de muitos cumprimentos, que os dois convivas trocavam entre si.

— Quando vejo a sorte de Vossa Majestade — disse Chicot ao rei — e que existência tão ditosa deve ser a sua, meu Senhor, nesta corte tão amável!... Que rostos tão satisfeitos vejo nesta boa casa, e como é rica esta bela terra da Gasconha!...

— Se minha mulher aqui estivesse, meu caro Chicot, eu não te diria o que vou dizer; mas, na sua ausência, posso confessar-te que os momentos mais ditosos da minha vida são aqueles que tu não vês.

— Ah, meu Senhor! tenho, com efeito, ouvido histórias esplêndidas a respeito de Vossa Majestade...

Henrique deitou-se para trás na poltrona e correu a mão pela barba rindo-se.

— Sim, sim, bem sei — disse ele —, afirmam por aí que eu impero mais nas minhas súbditas do que nos meus súbditos.

— É isso mesmo, meu Senhor! E contudo... é coisa que me admira...

— Porquê, meu amigo?

— Porque existe em Vossa Majestade muito daquele espírito agitado que torna os reis

grandes.

— Ah! Chicot, estás enganado! — disse Henrique. — Sou ainda mais mandrião do que agitado, e a prova do que digo está em toda a minha vida. Se me lembro de namorar uma mulher, é sempre a que me fica mais à mão; e quando quero beber vinho, sempre pego na garrafa que está mais próxima de mim. — Lá vai à tua saúde, Chicot.

— Agradeço a honra que me fez, meu Senhor — respondeu Chicot, despejando o copo até à última pinga, porque o rei estava fitando nele um olhar tão subtil que parecia querer penetrar-lhe até ao íntimo do pensamento.

— E por isso também — prosseguiu o rei, levantando os olhos para o Céu — não faltam

disputas nesta minha casa, amigo.

— Sim, faço ideia... Todas as damas de honor da rainha adoram Vossa Majestade!...

— São minhas vizinhas, Chicot.

— Ah! ah! meu Senhor, a consequência desse axioma é que, se Vossa Majestade habitasse em São Dinis, em vez de residir em Nérac, podia muito bem ser que el-rei não vivesse tão sossegado como vive...

Henrique tornou-se grave.

— El-rei, dizes tu, Chicot?... — replicou Henrique de Navarra. — El-rei!... imaginas porventura que eu sou algum Guisa?... Desejo a posse de Cahors, é verdade, mas porque Cahors me fica ao pé da casa. Sempre o mesmo sistema, Chicot. Tenho ambição enquanto estou sentado; apenas me levanto, acabaram-se os desejos.

— Com a breca Real Senhor —, respondeu Chicot — essa ambição de coisas que lhe ficam à mão parece-se muito com a de César Bórgia, que ia colhendo um reino inteiro, cidade por cidade, dizendo que a Itália era uma alcachofra que devia ser comida folha por folha.

— O tal César Bórgia, a meu ver, não era nenhum néscio em política, meu amigo —

disse Henrique.

— Não, mas era um vizinho muito perigoso e muito mau irmão.

— Então que é isso!? Quer comparar-me com um filho de papa, a mim, que sou chefe dos huguenotes?! Devagar, Senhor Embaixador!

— Meu Senhor, eu não comparo Vossa Majestade com pessoa alguma.

— Por que razão?

— Porque estou convencido que se há-de enganar todo aquele que o comparar com outrem que não seja Vossa Majestade mesmo. É muito ambicioso, meu Senhor.

— Que fantasia!... — exclamou o Bearnês. — Ora aqui está um homem que pretende obrigar-me por força a aceitar alguma coisa!

— Deus me livre de tal, meu Senhor! Pelo contrário: desejo de todo o coração que Vossa

Majestade não deseje coisa alguma.

— Olha, Chicot — disse o rei —, não tens pressa de regressar a Paris... pois não?

— Nenhuma, meu Senhor.

— Queres então passar alguns dias comigo?

— Se Vossa Majestade me faz a honra de desejar a minha companhia, com muito gosto me demorarei por aqui uns oito dias.

— Oito dias?... Pois bem, aceito, meu amigo! Em oito dias conhecer-me-ás como se fôssemos irmãos. — Bebamos, Chicot.

— Meu Senhor, não tenho mais sede — disse Chicot, que já ia renunciando ao projecto que a princípio tivera de embriagar o rei.

— Então retiro-me, meu amigo — disse Henrique. — De que serve estar à mesa a não ser para comer e beber?... Bebamos, repito.

— Para quê?

— Para dormirmos melhor. Este vinho da minha lavra é remédio eficaz para quem quiser ter um sono sossegado. — Gostas de caçadas, Chicot?

— Nem por isso, meu Senhor; e Vossa Majestade?

— Eu sou apaixonadíssimo da caça, desde que residi na corte do rei Carlos IX.

— Por que motivo me fez Vossa Majestade a honra de perguntar se eu gosto de caçadas? — perguntou Chicot.

— É porque vou a uma montaria amanhã e tenciono levar-te comigo.

— Será para mim uma grande honra, meu Senhor, porém...

— Oh! meu caro amigo, posso asseverar-te que há-de ser uma montaria de regalar os olhos e o coração de todo o homem guerreiro. Eu sou bom caçador, Chicot, e desejo mostrar-te a minha destreza. Não disseste que muito desejarias conhecer-me bem?...

— Confesso, meu Senhor, que é esse um dos meus maiores desejos.

— Pois bem: vou apresentar-te um aspecto debaixo do qual ainda não tiveste ocasião de me estudar.

— Meu Senhor, farei tudo quanto aprouver a Vossa Majestade.

— Bom! está o negócio tratado! —Ah! aí vem um pajem. Porque nos hão-de incomodar sempre!?...

— Talvez seja algum negócio importante, meu Senhor.

— Negócio, comigo?! e quando estou à mesa?! Oh! meu caro Chicot, julgas sempre que estás na corte de França! Chicot, meu amigo, fica sabendo uma coisa: em Nérac...

— Em Nérac o quê, meu Senhor?

— Quem acaba de cear, vai-se deitar.

— Mas o pajem, meu Senhor?...

— O pajem não poderá vir aqui por algum motivo que não seja para tratar de negócios?...

— Ah!... já percebo, meu Senhor, e vou-me deitar.

Chicot levantou-se da mesa, o rei imitou-o, e enfiou o braço no do hóspede.

Aquela pressa com que o rei estava de o mandar retirar causou alguma desconfiança a Chicot, a quem tudo parecia suspeito desde a cena com o embaixador de Espanha. Resolveu pois demorar-se o mais que pudesse no gabinete.

— Oh! oh!... — disse ele a cambalear — é notável, meu Senhor!... O Bearnês sorriu.

— Que achas tu notável, meu amigo?

— Com a breca! anda-me a cabeça à roda... Enquanto estava sentado ia o negócio bem; mas agora, que me levantei... é com dificuldade que me sustento em pé...

— Ora essa! — disse Henrique — apenas provámos o vinho!...

— Provar, meu Senhor?! Chama àquilo provar?! Bravo, meu Senhor!... Ah! sempre é um rijo bebedor! Curvo-me ante Vossa Majestade, como meu soberano senhor... Está bom! chama Vossa Majestade àquilo provar, hem?...

— Chicot, meu amigo — disse o Bearnês, procurando certificar-se, com aquele olhar penetrante que lhe era particular, se a embriaguez de Chicot era verdadeira ou fingida —, está-me parecendo que o mais acertado agora será ires para a cama.

— Sim, meu Senhor... muito boa noite, meu Senhor.

— Boa noite, Chicot, até amanhã.

— Sim, meu Senhor... até amanhã; Vossa Majestade tem razão, será muito acertado que Chicot se deite... Boa noite, Real Senhor.

E Chicot, dizendo isto, deitou-se no chão.

Henrique, quando viu a deliberação que tomava o seu hóspede, dirigiu os olhos para a porta.

Aquele olhar, apesar da sua rapidez, não escapou a Chicot Henrique chegou-se a Chicot.

— Estás tão bêbado, meu pobre Chicot — disse ele —, que não reparas numa coisa...

— Que é?

— É que estás tomando o tapete do meu gabinete pela tua cama.

— Chicot é um homem de guerra; Chicot não faz caso de ninharias.

— Então também não reparas em outra coisa...

— Ah! ah!... Qual é a outra coisa?

— É que estou à espera de alguém.

— Para cear? Bom; ceemos lá outra vez! E Chicot tentou debalde levantar-se.

— Cos demónios! — exclamou Henrique — como tu te embriagas de repente, amigo!... Vai para o teu quarto, por Deus! bem vês que ela está impaciente.

— Ela?! — disse Chicot — ela quem?...

— A mulher que eu estou esperando, e que está de sentinela ali à porta. Vamos...

— Uma mulher?! E porque não me disse isso logo, Henriquinho?... Ah! perdão — disse Chicot —, pensava... pensava que estava falando com el-rei de França... O bom do Henriquinho pôs-me neste mau costume. Porque não me disse isso logo, meu Senhor? Vou-me já embora.

— Muito bem, és um cavalheiro às direitas, Chicot. Vamos lá, levanta-te e vai-te embora, porque tenciono passar uma noite muito agradável, percebes? A noite inteira...

Chicot levantou-se e encaminhou-se para a porta aos tropeções.

— Adeus, Real Senhor; estimarei que tenha uma noite muito feliz — muito feliz!

— Adeus, caro amigo, adeus; dorme bem.

— E Vossa Majestade?

— Caluda!

— Sim, sim: caluda! E abriu a porta.

— Lá na galeria encontrarás o pajem; ele te dirá onde é o teu quarto. Vai com Deus.

— Obrigado, meu Senhor.

E Chicot saiu, depois de ter cortejado a el-rei, inclinando-se tanto quanto pode um homem bêbado.

Porém, mal fechou a porta logo desapareceram todos os vestígios de embriaguez; deu três passos para diante e, voltando logo atrás, espreitou pelo buraco da fechadura.

Henrique já estava tratando de abrir a porta à sua misteriosa visita, que Chicot, com a curiosidade própria de um embaixador, queria por força ver.

Em vez de mulher, entrou no gabinete um homem.

Apenas o homem tirou o chapéu, logo Chicot conheceu o nobre e severo rosto de Duplessis Mornay, rígido e vigilante conselheiro de Henrique de Navarra.

— Ah! cos demónios! aquele figurão veio surpreender o nosso namorado... Decerto que o há-de estorvar mais que eu.

Porém, o semblante de Henrique mostrou alegrar-se com aquela aparição; apertou a mão ao recém-chegado, empurrou a mesa e fez sentar Mornay a seu lado com o ardor de um amante que se aproxima do objecto amado.

Parecia ansioso por ouvir as primeiras palavras que ia proferir o conselheiro: mas de repente, e antes que Mornay começasse a falar, levantou-se, fazendo-lhe sinal que esperasse, foi direito à porta e correu os ferrolhos com uma circunspecção que deu muito que cismar a Chicot.

Em seguida passou a examinar com atenção mapas, planos e cartas que o ministro lhe apresentou sucessivamente.

O rei acendeu mais velas, e começou a escrever e a marcar com pontos as cartas geográficas. «Oh! oh! pensou Chicot, é esta a noite tão agradável que tencionava passar o rei de Navarra?...»

Naquele momento sentiu passos atrás de si; era o pajem que estava de serviço na galeria, e que o esperava por ordem do rei.

Chicot, com receio de ser surpreendido, endireitou-se imediatamente e pediu ao rapazito que lhe ensinasse onde era o seu quarto.

Além de que, nada mais precisava saber, pois a aparição de Duplessis tudo explicava. — Faça-me o favor de vir comigo, Senhor — disse d'Aubiac —, estou encarregado de o conduzir ao seu aposento.

E acompanhou Chicot ao segundo andar, onde lhe tinham preparado o quarto. Chicot já não tinha dúvida; conhecia metade das letras de que se compunha o enigma chamado rei de Navarra.

E por isso, em vez de adormecer, sentou-se na cama triste e pensativo, enquanto o luar, rompendo pelos ângulos agudos do telhado, derramava, como de um jarro de prata, a sua luz azulada pelos rios e pelas campinas.

«Não tenho dúvida, disse Chicot com mágoa: Henrique é rei a valer, Henrique está conspirando. Este palácio, a sua tapada, a cidade que o cerca, tudo isto é um foco de conspiração; todas as mulheres namoram, mas com fins políticos, e os homens todos nutrem a esperança de um brilhante futuro. Henrique é astuto; a sua inteligência pode torná-lo um grande homem; está relacionado com a Espanha, que é a terra da velhacaria... Quem sabe se aquela resposta cavalheiresca que ele deu ao embaixador não é o contrário daquilo que ele tem no pensamento, e se avisou o diplomático piscando-lhe os olhos, ou fazendo-lhe algum outro sinal que eu não pude perceber do meu esconderijo... Henrique tem espiões por sua conta; paga-lhes ou manda-lhes pagar por algum agente seu. Aqueles mendigos não eram outra coisa senão cavalheiros disfarçados. As peças de ouro recortadas com tanta precisão são sinais para se conhecerem, são senhas materiais e palpáveis. Henrique finge andar louco de amores, e enquanto eles pensam que ele está entretido a namorar passa as noites a trabalhar com Mornay, que nunca dorme, e que não sabe o que são amores. Era isto mesmo que eu precisava ver, e já o consegui. A rainha Margarida tem amantes: o rei sabe-o; conhece-os e tolera-os, porque ainda precisa deles e dela, talvez de todos ao mesmo tempo. Como não é homem de guerra carece de bons generais, e como não possui muito dinheiro, não tem remédio senão deixá-los escolher a remuneração que mais lhes agrada... Dizia-me Henrique de Valois que já não dormia: com a breca! faz muito bem em não dormir! Felizmente, ainda, o pérfido Henrique é um pobre cavalheiro, a quem Deus, concedendo-lhe o génio próprio para a intriga, negou contudo o vigor necessário para a iniciativa. Henrique, segundo dizem, tem medo de ouvir o estrondo da mosquetaria e quando, na mocidade, foi levado à guerra, todos são unânimes em contar que não conseguia conservar-se a cavalo por mais de um quarto de hora. Felizmente! porque nestes tempos em que vivemos, se aquele homem reunisse em si génio intrigante e valor, não tardaria a ser rei do mundo. É verdade que ainda resta o Guisa. Aquele possui os dois valores: o do braço e o da intriga; porém tem contra si que todos o conhecem como valente e hábil, enquanto do Bearnês ninguém desconfia. Só eu soube conhecê-lo.» E dizendo isto, Chicot esfregou as mãos. «Pois bem! prosseguiu ele: como já o conheço, nada mais tenho a fazer aqui; assim pois, enquanto ele trabalhar ou dormir, vou eu sair da cidade com todo o segredo e cautela. Parece-me que não haverá muitos embaixadores que possam gabar-se de terem dado conta satisfatória da sua missão num só dia, mas fi-lo eu. Sairei portanto de Nérac, e apenas me apanhar fora daqui meterei a galope até França.»

Disse, e começou a afivelar as esporas, que havia tirado na ocasião de ir apresentar-se ao

rei.

 

         DE QUAL FOI A ADMIRAÇÃO QUE CAUSOU A CHICOT A POPULARIDADE DE QUE GOZAVA NA CIDADE DE NÉRAC

Chicot, depois de se ter resolvido a deixar incógnito a corte do rei de Navarra, começou a fazer a troixa para se pôr a caminho.

Simplificou-a quanto pôde, porque estava persuadido de que quanto menos se pesa, mais depressa se anda.

A espada era sem questão a parte mais pesada da bagagem que ele levava.

«Ora vamos: quanto tempo me será preciso, perguntava Chicot a si mesmo enquanto atava a troixa, para fazer chegar ao conhecimento de el-rei a notícia do que vi, e, por conseguinte do que receio? Dois dias para chegar até alguma cidade de onde um governador fiel expeça correios a toda a brida. Posso escolher, por exemplo, Cahors, de que tanto fala o rei de Navarra, e que ele cobiça com tanta razão. Logo que lá chegue, poderei então descansar, porque, enfim, as forças do homem não passam de certos limites. Descansarei portanto em Cahors, e correrão cavalos em meu lugar. Eis, pois, meu amigo Chicot, pernas ligeiras e sangue-frio! Julgas ter dado conta da tua missão, pateta? Ainda estás em meio, e o pior está para vir...»

Dizendo isto, Chicot apagou a luz, abriu a porta o mais devagar que pôde e começou a sair às apalpadelas.

Chicot era muito hábil em estratégia; quando vinha acompanhado de d'Aubiac tinha deixado os olhos para a esquerda, para diante e para trás, e assim havia explorado todos os lugares.

Havia uma antessala, um corredor, uma escada, e, no fim da escada, o pátio.

Porém, mal Chicot deu quatro passos na antessala, tropeçou em alguma coisa, que logo se levantou.

A tal alguma coisa era um pajem deitado sobre a esteira pela parte de fora do quarto e que, apenas acordou, começou a dizer:

— Olá! boa noite, Sr. Chicot! boa noite! Chicot logo conheceu d'Aubiac.

— Boa noite, Sr. d'Aubiac — disse ele. — Porém deixe-me passar, por favor, que estou com vontade de ir passear.

— Ah! não sei como isso há-de ser, porque há proibição de se passear de noite pelo paço, Sr. Chicot...

— Por que motivo, não me dirá, Sr. d'Aubiac!?

— Porque el-rei tem receio dos ladrões, e a rainha dos namorados.

— Cos diabos!

— E somente ladrões ou namorados se lembram de passear de noite em vez de dormir!

— Contudo, meu caro Sr. d'Aubiac — disse Chicot com amável sorriso —, eu não sou nem uma nem outra coisa; sou embaixador, e estou muito cansado de ter falado latim com a rainha e ceado com el-rei; porque a rainha é exímia latinista, e el-rei bebe bem; deixe pois que eu saia, meu amigo, porque desejo muito ir passear.

— Pela cidade, Sr. Chicot?

— Nada! pelos jardins.

— Ora! pelos jardins, Sr. Chicot?... isso ainda é mais proibido do que os passeios pela cidade!...

— Meu amigo — disse Chicot —, devo dizer-lhe, em abono da verdade, que é muito louvável ser tão vigilante na sua idade. Visto isso... não tem nada com que se entreter?

— Nada.

— Não é jogador nem namorado?...

— Para jogar é preciso ter dinheiro, Sr. Chicot, e para namorar é preciso ter uma amante.

— Decerto — replicou Chicot, e meteu a mão no bolso. O pajem observava o que ele ia fazer.

— Procure bem na sua lembrança, meu caro amigo — disse ele —, e aposto que encontrará alguma mulher encantadora, a quem peço que compre alguns presentes e ofereça alguma serenata com isto que lhe dou.

E Chicot meteu na mão do pajem dez peças de ouro, que não eram cerceadas como as do Bearnês.

— Sr. Chicot — disse o pajem —, bem se vê que vem da corte de França; tem umas tais maneiras que não é possível resistir-lhe!... Saia pois do seu quarto. Mas recomendo-lhe que não faça bulha.

Chicot não esperou que ele lho repetisse; encaminhou-se como uma sombra pelo corredor, e do corredor passou para a escada. Mas quando chegou abaixo, ao peristilo, deu com um oficial do paço sentado a dormir numa cadeira.

Aquele homem obstruía a porta, à qual tinha encostado o corpo em cheio.

«Ah pajem brejeiro! murmurou Chicot: tu sabias deste obstáculo e não me avisaste!...»

Para maior desgraça, o oficial parecia ter o sono muito leve: mexia, com estremecimentos nervosos, ora um braço, ora uma perna, e de uma das vezes até estendeu os braços como um homem que está para acordar.

Chicot procurou em redor de si, a ver se não haveria alguma saída pela qual, a favor de suas imensas forças e da rigidez dos pulsos, lhe fosse possível evadir-se sem passar pela porta.

Achou finalmente o que procurava.

Era uma daquelas janelas de arco, com varões de ferro, que chamam impostas, e que tinha ficado aberta, ou fosse para deixar entrar o ar ou porque o rei de Navarra, proprietário bastante desmazelado, não julgara necessário mandar-lhe consertar o caixilho.

Chicot examinou a parede com os dedos; calculou, apalpando-os, todos os espaços compreendidos entre as partes salientes da pedra, e serviu-se deles para trepar como se fossem degraus de escada.

Içou-se afinal (os nossos leitores já sabem quanto ele era hábil e leve), sem fazer mais bulha do que teria feito uma folha seca impelida de encontro à parede pelo vento do Outono.

Porém a imposta era de uma convexidade desproporcionada, tanto que a elipse não era igual à da barriga e dos ombros de Chicot, apesar de a barriga estar ausente, e os ombros, flexíveis como os de um gato, pareciam desmanchar-se e derreter-se dentro da carne para tomarem o menor espaço possível.

O resultado foi que, logo que Chicot conseguiu introduzir a cabeça e um dos ombros por entre a grade, deixando de fazer finca-pé na saliência da parede, achou-se suspenso entre o céu e a terra, sem poder adiantar-se nem retrogradar.

Começou então uma série de esforços, de que logo lhe resultou rasgar o gibão e esfolar a pele.

A sua posição tornava-se ainda mais crítica por causa da espada, cujos copos não cabiam pelo buraco juntamente com o corpo, ficando Chicot assim pregado ao caixilho da imposta, como se o detivesse um gancho de ferro.

Chicot empregou toda a sua força, toda a sua paciência e indústria, para soltar o gancho do boldrié, mas era precisamente sobre o gancho que descansava o peso do peito; teve por conseguinte de mudar de manobra; conseguiu levar a mão atrás das costas e tirar a espada para fora da bainha; logo que a espada saiu da bainha, pôde então mais facilmente achar, por entre os ângulos do corpo, um interstício por onde introduziu os copos; a espada foi portanto a primeira que caiu sobre as lajes, e Chicot, escorregando pela abertura fora como uma enguia, seguiu logo após ela, quebrando a força da queda com as mãos.

Toda aquela luta de um homem para passar por entre as grades de ferro da imposta não se tinha efectuado sem alguma bulha; e por isso, apenas Chicot se levantou, achou-se cara a cara com um soldado.

— Ah! Deus meu!... magoou-se, Sr. Chicot?... —perguntou este, apresentando-lhe a ponta da alabarda como para o amparar.

«Outro!» pensou Chicot.

Mas logo, grato ao cuidado que por ele mostrava o honrado homem:

— Não, meu amigo — disse ele —, não me magoei.

— Pois foi grande felicidade! — disse o soldado — e desafio que haja quem execute semelhante habilidade sem partir a cabeça; digo-lhe, na verdade, que só o Sr. Chicot seria capaz de uma coisa destas.

— Mas como demónio sabes tu o meu nome!? — perguntou Chicot, muito admirado e procurando passar adiante.

— Sei como se chama porque o vi hoje no paço e perguntei: «Quem é aquele fidalgo de semblante tão altivo que está conversando com el-rei?» — «É o Sr. Chicot», responderam-me... E cá está como eu soube o seu nome.

— É caso bem curioso... — disse Chicot. — Mas como estou com muita pressa, meu amigo, hás-de permitir-me...

— Permitir-lhe o quê, Sr. Chicot?

— Que te deixe e vá tratar dos meus negócios.

— Mas não há licença para sair do paço durante a noite, Sr. Chicot; são as instruções que tenho...

— Bem vês que se sai, pois eu de lá saí.

— Essa razão é boa, bem sei; mas...

— Mas quê?

— Tem de passar pelo incómodo de tornar a entrar, Sr. Chicot.

— Ah! isso não!

— Não? porquê?

— Porque o caminho por onde vim é péssimo.

— Se eu fosse oficial em vez de ser soldado, perguntar-lhe-ia por que motivo saiu por ali; mas isso não é da minha conta; somente exijo que torne a entrar... Peço-lhe, pois, que volte para dentro, Sr. Chicot.

A rogativa do soldado era proferida num tom tão persuasivo, que Chicot sentia-se comovido.

Meteu por conseguinte a mão no bolso e puxou por dez peças de ouro.

— Meu rico amigo — disse ele —, bem vês o estado em que ficou o meu fato por ter passado por aquele buraco; que seria se por lá me tornasse a encaixar?... acabaria de o rasgar, e ficaria nu; e isso seria uma indecência numa corte onde há tanta mulher moça e bonita, começando pela rainha; deixa-me pois passar para ir a casa do alfaiate, meu amigo.

E meteu-lhe as dez peças na mão.

— Passe depressa então, Sr. Chicot, passe depressa.

E guardou o dinheiro.

Chicot estava afinal na rua: procurou orientar-se; tinha atravessado a cidade para chegar ao paço, devia agora seguir o caminho contrário, visto que tinha de sair pela porta oposta àquela por onde havia entrado.

O caso era simples.

Mas a noite, clara e sem nuvens, não era favorável para uma evasão.

Chicot lembrava-se com saudade das noites nubladas de Paris, onde, àquela hora, era tal a cerração, que podia uma pessoa passar a quatro passos de outra sem ser vista; e demais a mais, os pregos dos tacões dos sapatos retiniam sobre as pedras da calçada como ferraduras de cavalo.

O malfadado embaixador, apenas voltou a esquina da rua, encontrou uma patrulha. Parou logo, por se lembrar que poderia parecer suspeito se procurasse esconder-se ou passar à força.

— Olá! boas-noites, Sr. Chicot! — disse o comandante da patrulha, fazendo-lhe continência com a espada. — Quer que o acompanhemos ao paço? Creio que se perdeu pelas ruas da cidade e que não atina com o caminho...

«Ora esta... pelo que vejo, aqui toda a gente me conhece! murmurou Chicot. É coisa célebre!. ..» E logo, em voz alta e com o modo mais desembaraçado que pôde assumir: — Não, Senhor Alferes — disse ele —, está enganado, não vou para o paço.

— Pois faz mal, Sr. Chicot — respondeu gravemente o oficial.

— E por que motivo, Senhor?

— Porque há um edital, muito severo, que proíbe aos habitantes de Nérac que saiam de noite sem licença nem lanterna, salvo em algum caso de urgente necessidade.

— Peço desculpa — disse Chicot —, mas as disposições desse edital não podem entender-se comigo.

— Porquê?

— Porque não sou de Nérac.

— Não é, mas está em Nérac... Habitante não quer dizer oriundo de...; habitante quer dizer que reside em... Ora não negará que está residindo em Nérac, visto que o encontro nas ruas de Nérac.

— É muito lógico, Senhor Alferes, mas infelizmente estou com pressa. Peço-lhe pois que me faça o favor de infringir as suas instruções deixando-me passar.

— Olhe que vai perder-se, Sr. Chicot... Nérac é uma cidade turtuosa; arrisca-se a cair dentro de algum cano se não for alguém ensinar-lhe o caminho; conceda-me pois licença que mande três dos meus homens acompanhá-lo até ao paço.

— Mas se lhe estou dizendo que não vou para o paço!...

— Onde vai então?

— Não posso dormir de noite, e por isso tomo o partido de passear. Nérac é uma linda cidade, toda ela de altos e baixos, segundo me pareceu; quero vê-la e estudá-la.

— Darei ordem para que o acompanhem para toda a parte para onde lhe aprouver ir, Sr. Chicot. — Eh! três homens à frente!

— Peço-lhe, Senhor, que não queira tornar-me o passeio menos pitoresco: gosto de andar só.

— Será roubado ou assassinado...

— Levo a minha espada comigo.

— Ah é verdade! não tinha reparado: pois então será preso pelo preboste por andar armado. Chicot, vendo que de nada lhe serviam as subtilezas, chamou o oficial de parte.

— Senhor oficial — disse ele —, o senhor é moço galante, sabe necessariamente que o amor é um tirano imperioso...

— Não há dúvida, Sr. Chicot, não há dúvida.

— Pois estou com o coração abrasado de amor, Senhor Alferes... Preciso de ir visitar certa senhora...

— Onde?

— Em certo bairro.

— É nova ainda?

— Tem vinte e três anos.

— É formosa?

— Como os amores!

— Dou-lhe os meus parabéns, Sr. Chicot.

— Muito bem! vai-me deixar passar, então, não vai?

— Eu sei lá!... é caso urgente, é?...

— Muito urgente por certo, Senhor!

— Passe pois.

— Mas hei-de ir sozinho, não é assim?... Bem vê que não devo comprometer...

— Pois! que dúvida!... Passe, Sr. Chicot, passe!

— É um homem de bem, Senhor Alferes.

— Ora, ora...

— Não, com a breca! é na realidade muito delicado. — Porém, diga-me: como me conheceu?

— Vi-o hoje no paço com el-rei.

«Aqui está o que sucede em cidades pequenas! pensou Chicot; se eu fosse assim tão conhecido em Paris, quantas vezes teria ficado com a pele esburacada em vez do gibão!...» E apertou a mão do jovem oficial, que lhe disse ao despedir-se:

— É verdade: para que lado se dirige?

— Vou em direcção da Porta de Agen.

— Tome sentido não se engane na rua, hem?

— Não é este o caminho?...

— É, sim senhor; vá sempre a direito. Estimo que não tenha nenhum mau encontro.

— Muito obrigado.

E Chicot seguiu o seu caminho, mais satisfeito do que nunca.

Ainda bem não teria andado uns dez passos, deu de cara com a ronda da polícia.

«Por Deus! que cidade tão bem guardada!» pensou Chicot.

— Por aqui ninguém passa! — bradou o preboste com voz de trovão.

— Porém, Senhor... — observou Chicot — desejava...

— Ah Sr. Chicot!... pois o senhor atreveu-se a sair à rua com este frio?!... — perguntou o magistrado.

«Ah! isto é de propósito, não há que duvidar» pensou Chicot, bastante inquieto. E cumprimentando o preboste, fez um movimento como que para seguir o seu caminho.

— Sr. Chicot, repare no que faz... — disse o preboste.

— Em que hei-de eu reparar, senhor magistrado?

— Engana-se no caminho, Senhor: vai na direcção das portas...

— Exactamente.

— Pois então vou prendê-lo, Sr. Chicot.

— Nada, Senhor Preboste! era o que faltava! Fá-la-ia bonita!...

— Contudo...

— Faça favor de me dar uma palavra em particular, Senhor Preboste, para que os seus soldados não ouçam o que lhe vou dizer.

O preboste aproximou-se.

— Estou ouvindo — disse ele.

— El-rei mandou-me levar um recado ao tenente que está de guarda na Porta de Agen.

— Ah!... — exclamou o preboste, como admirado.

— Admira-se?...

— É verdade.

— Pois não sei porque se admira, visto que me conhece...

— Conheço-o, porque o vi hoje no paço com el-rei. Chicot bateu o pé no chão; já ia perdendo a paciência.

— Essa circunstância deve provar-lhe que eu gozo da confiança de Sua Majestade.

— Decerto, decerto... Vá pois desempenhar a incumbência que lhe deu el-rei, Sr. Chicot, já não o detenho.

«O caso é célebre e divertido ao mesmo tempo, pensou Chicot; tropeço a cada passo, mas sempre vou caminhando! Com a breca! cá está uma porta; deve ser a de Agen. Dentro de cinco minutos sairei por ela fora.»

Chegou efectivamente à tal porta, a que estava de guarda uma sentinela, que passeava de cá para lá com a arma ao ombro.

— Olé, amigo! — disse Chicot — quer fazer-me o favor de mandar abrir a porta?

— Eu não mando, Sr. Chicot — respondeu a sentinela com amenidade —, não sou mais do que um simples soldado.

— Também tu me conheces?!... — exclamou Chicot desesperado.

— Tenho essa honra, Sr. Chicot; estava esta manhã de guarda ao paço e vi-o conversar com el-rei.

— Pois bem, meu amigo! visto que me conhece, sabe uma coisa...

— Que é?

— É que el-rei mandou-me levar uns despachos muito urgentes a Agen; bastará portanto que me abras o postigo.

— Fá-lo-ia com muito gosto, Sr. Chicot, mas não tenho as chaves em meu poder.

— Então quem as tem?

— O oficial da guarda. Chicot suspirou.

— E onde está o oficial de serviço? — perguntou ele.

— Oh! é escusado incomodar-se.

O soldado puxou por uma campainha para acordar o oficial, que estava deitado no quarto.

— Que novidades temos? — perguntou este metendo a cabeça por uma fresta.

— Meu tenente, é um cavalheiro que pede que lhe abram a porta para sair da cidade.

— Ah! Sr. Chicot! — exclamou o oficial — peço perdão por tê-lo obrigado a esperar! Espere um pouco, que eu já desço.

Chicot roía as unhas de raiva.

«Então não haverá um só que me não conheça!?... esta Nérac parece-me uma lanterna de que eu sou a vela!»

O oficial veio à porta.

— Desculpe-me, Sr. Chicot! — disse ele adiantando-se apressadamente — estava a dormir...

— Essa é boa, Senhor! — respondeu Chicot — para isto é que a noite foi feita. Quer fazer-me o obséquio de mandar abrir a porta? Eu, infelizmente, não posso dormir. El-rei... (também sabe, provavelmente que sou conhecido de el-rei, não?)...

— Vi hoje que estava conversando com Sua Majestade no paço.

«É tal qual o que me disseram os outros» resmungou Chicot. — Pois bem! viu-me a conversar com el-rei, mas não ouviu o que ele me dizia...

— Não, Sr. Chicot; nunca digo senão o que é verdade.

— Também eu; ora pois, el-rei, quando esteve conversando comigo, encarregou-me de levar uns despachos esta noite a Agen... E se não me engano, é esta a porta de Agen, não é verdade?

— É, sim, Sr. Chicot.

— Está fechada?

— Como vê.

— Peço-lhe que a mande abrir.

— Pois não, Sr. Chicot! — Anthenas! Anthenas! abra a porta para sair o Sr. Chicot; já, sem demora!

Chicot escancarou muito os olhos e respirou como um mergulhador que sai da água depois de uma imersão de cinco minutos.

A porta rangeu sobre os gonzos, como se fora a porta do Paraíso para o pobre Chicot, que via além dela todas as delícias da liberdade.

Chicot cumprimentou o oficial e foi para o arco.

— Adeus — disse ele —, muito obrigado.

— Adeus, Sr. Chicot; desejo-lhe uma feliz jornada! E Chicot deu outro passo para a porta.

— Ah é verdade!... que estouvado eu sou! — gritou o oficial, correndo atrás de Chicot e detendo-o pelo braço. — Ia-me esquecendo, meu caro Sr. Chicot, de lhe pedir o passe...

— Como assim!? o meu passe?!

— Decerto; o senhor é militar e sabe muito bem o que é um passe, não é assim? Ninguém sai de uma cidade como Nérac sem um passe de el-rei, e especialmente estando el-rei aqui residindo.

— E por quem deve ser assinado o passe?

— Pelo próprio punho de el-rei. Assim pois, visto ser el-rei quem o mandou sair da cidade, não havia de esquecer-se por certo de lhe dar o passe...

— Ah!... então duvida que seja el-rei quem me manda fora... — disse Chicot, fulgurando-lhe os olhos, porque via a sua tentativa em termos de se malograr, e a cólera de que estava possuído sugeria-lhe o ruim pensamento de matar o oficial e o porteiro, e de fugir pela porta aberta, ainda que se expusesse a ser perseguido na fuga por cem tiros de arcabuz.

— Eu de nada duvido, Sr. Chicot, e sobretudo das coisas que me faz a honra de me asseverar; porém reflecti que, se el-rei o encarregou da missão que diz...

— Foi ele mesmo em pessoa, Senhor! em pessoa!

— Mais uma razão. Sua Majestade sabe por conseguinte que vai sair da cidade...

— Com a breca! — exclamou Chicot — sabe com toda a certeza!

— Visto isso, terei que entregar amanhã pela manhã ao Senhor Governador da praça um bilhete de saída.

— E o governador da praça quem é? — perguntou Chicot.

— É o Sr. de Mornay, com quem não se brinca quando se trata de cumprir instruções; deve sabê-lo tão bem como eu, Sr. Chicot; e ele seria capaz de me mandar arcabuzar se eu não executasse à risca as ordens que recebi.

Chicot já começava a acariciar o punho da espada e a sorrir com más tenções quando, ao voltar-se, percebeu que estava a porta obstruída por uma ronda externa, que parecia ter chegado ali expressamente para obstar à saída de Chicot, ainda mesmo que ele conseguisse matar o tenente, a sentinela e o porteiro.

«Está bom, pensou Chicot com um suspiro; são melhores jogadores do que eu; perdi a partida como um asno!»

E voltou as costas.

— Quer que o acompanhem ao palácio, Sr. Chicot? — perguntou o oficial.

— Não é preciso, fico-lhe muito obrigado — replicou Chicot.

Chicot voltou pelo caminho por onde tinha vindo, mas ainda não estava acabado o seu martírio.

Encontrou outra vez o preboste, que lhe disse:

— Bravo Sr. Chicot! já deu conta do seu recado?... apre! que muito ligeiro andou!... Mais adiante encontrou-se com o alferes ao virar de uma esquina, e este gritou-lhe: — Boa noite, Sr. Chicot. Então como passa aquela senhora que nós sabemos?... Agrada-lhe Nérac, Sr. Chicot?

Finalmente, o soldado de peristilo, que ainda estava de sentinela no mesmo sítio, descarregou-lhe o último golpe:

— Por Deus, Sr. Chicot! sempre o alfaiate lhe consertou muito mal o fato!... assim Deus me perdoe, que volta muito mais rasgado do que estava quando daqui saiu!

Chicot não quis expor-se a ficar esfolado como uma lebre, tornando a passar pela grade da imposta; deitou-se pois na frente da porta e fingiu que dormia.

A porta porém, abriu-se, ou fosse por acaso, ou por caridade, e Chicot tornou a entrar para o paço, envergonhado e cabisbaixo pelo que lhe acabava de suceder.

O seu semblante espavorido comoveu o pajem, que ainda se conservava no seu posto.

— Meu caro Sr. Chicot — disse ele —, quer que lhe dê a chave desta charada?

— Dá, serpente, dá... — murmurou Chicot.

— É que el-rei estima-o tanto que deseja a todo o pano conservá-lo junto de si.

— E tu, sabendo isso, meu brejeiro, não me avisaste!...

— Oh! Sr. Chicot, não podia, era segredo de Estado...

— Mas paguei-te, malvado!

— Oh! há-de confessar, meu caro Senhor, que um tal segredo valia mais do que dez peças de ouro.

Chicot entrou para o quarto e adormeceu desesperado.

 

         O MONTEIRO-MOR DO REI DE NAVARRA

A rainha Margarida, ao separar-se do rei, tinha-se encaminhado para o aposento das damas de companhia.

Levava consigo o seu médico, Chirac, e com ele entrara no quarto da pobre Fosseuse, a qual, pálida, rodeada das companheiras, que a olhavam com curiosidade, estava-se queixando de dores de estômago, sendo tal o seu sofrimento que nem respondia às perguntas que lhe dirigiam nem consentia que lhe fizessem remédio algum.

Fosseuse teria naquela época vinte a vinte e um anos; era uma rapariga formosa e esbelta, com olhos azuis, cabelo louro e o corpo flexível cheio de languidez e de graça; havia quase três meses já que não saía, e queixava-se de cansaços que não lhe permitiam levantar-se; passara alguns dias deitada sobre um canapé, por fim já não se tirava da cama.

Chirac despediu logo as pessoas que estavam presentes e, chegando-se para a cabeceira da doente, ficou só com ela e com a rainha.

Fosseuse, assustada com aqueles preliminares, a que davam certa solenidade as fisionomias de Chirac e da rainha — lendo-se nesta a impassibilidade, e naquela a indiferença —, ergueu-se encostando o cotovelo ao travesseiro e balbuciou um agradecimento pela honra que lhe fazia a rainha sua ama.

Margarida estava ainda mais pálida do que a Fosseuse; porque uma ferida no amor-próprio causa uma dor mais pungente do que a doença ou qualquer outro sofrimento moral. Chirac tomou o pulso à dama, quase contra a vontade dela.

— Que sente? — perguntou-lhe, depois de a ter observado por alguns momentos.

— Sinto fortíssimas dores no estômago, Senhor — respondeu a pobre menina —, mas não há-de ser coisa de cuidado, e se me deixassem sossegar...

— Que mais sossego quer, Menina?... — perguntou a rainha. Fosseuse desatou a chorar.

— Não se aflija, Menina — prosseguiu Margarida. — El-rei pediu-me que viesse visitá-la para lhe tranquilizar o espírito.

— Oh! que bondade, minha Senhora! Chirac largou a mão da Fosseuse:

— E eu — disse ele — já sei qual é a sua moléstia.

— Já sabe? — murmurou Fosseuse a tremer.

— Sim, sabemos que necessariamente deve sofrer muito — acrescentou Margarida.

O susto de Fosseuse ia em aumento, por se ver assim à mercê de duas impassibilidades: a da ciência e a do ciúme.

Margarida fez um sinal a Chirac, que logo saiu do quarto. O susto de Fosseuse tornou-se então num tremor tal, que por pouco não desmaiou.

— Menina — disse Margarida —, se bem que há algum tempo a esta parte se esteja portando para comigo como se eu fora uma pessoa estranha, tendo-me constado diariamente as péssimas ausências que me faz junto de meu marido...

— Eu, minha senhora?!...

— Peço-lhe que não me interrompa. Enfim: apesar de haver aspirado a um bem muito superior à sua ambição, a amizade que sempre tive pela senhora, e a que tenho consagrado à família distinta a que pertence, induz-me a vir em seu auxílio nesta desgraça que lhe sucedeu.

— Minha Senhora, juro-lhe...

— Não negue: bem me bastam os meus desgostos; não arruine a sua reputação e a minha também, pois tenho o seu bom nome quase tanto a peito como a menina, visto pertencer à minha casa. Menina, conte-me tudo, e farei para consigo as vezes de mãe.

— Oh! minha Senhora! minha Senhora!... pois Vossa Majestade dá crédito ao que por aí dizem?!...

— Faça-me o favor de não me interromper, Menina, pois segundo me quer parecer não há tempo a perder. Ia eu dizendo que o Sr. Chirac, que já sabe qual é a sua doença, como viu pelas palavras que ele há pouco soltou, está na antessala espalhando por todos que apareceu no paço a moléstia contagiosa que dizem grassar na cidade, e que a senhora foi por ela acometida. Entretanto, eu, se ainda for tempo, levá-la-ei comigo para Mas-d'Agenais, que é uma casa onde raras vezes aparece el-rei, meu marido; lá estaremos quase sós; el-rei parte amanhã para uma montaria que, segundo ele diz, o obrigará a estar ausente alguns dias: só depois do seu bom-sucesso sairemos de Mas-d'Agenais.

— Minha Senhora! minha Senhora! — exclamou a Fosseuse, corando a um tempo de pejo e de dor — se dá crédito a tudo quanto dizem a meu respeito, deixe-me aqui morrer miseravelmente!

— Corresponde muito mal à minha generosidade, Menina, e fia-se demasiado na amizade de el-rei, que me pediu que não a abandonasse.

— El-rei?!... pois el-rei disse...?!

— Pois ainda duvida?! Se eu não visse claramente os sintomas do seu verdadeiro incómodo, se não conhecesse pelo seu sofrimento que está próximo o momento crítico, até podia acreditar nas suas negativas!

Naquele mesmo instante, como para dar completamente razão à rainha, a pobre Fosseuse, vencida pela força das dores que estava sofrendo, caiu para trás lívida e arquejante. Margarida considerou-a durante um momento, sem cólera, mas também sem dó.

— Então, Menina? ainda deverei acreditar nas suas negativas? — disse ela afinal à pobre rapariga, quando esta, tornando a erguer-se, mostrou um rosto tão transtornado e tão lavado em lágrimas, que teria comovido a própria Catarina.

Naquele momento, como se Deus tivesse querido mandar um auxílio à infeliz menina, abriu-se a porta e entrou apressadamente o rei de Navarra.

Henrique, que não tinha os mesmos motivos que Chicot para querer dormir, não se havia deitado.

Depois de ter passado uma hora a trabalhar com Mornay, e de ter dado todas as providências para a montaria tão pomposamente anunciada a Chicot, dirigira-se a toda a pressa para o aposento das damas de honor.

— Então sempre é certo o que me disseram? — exclamou ele, ao entrar — que a minha filha Fosseuse ainda continua incomodada?...

— Vê, minha Senhora?... — exclamou a Fosseuse ao avistar o amante, e animada pelo auxílio que lhe aparecia. — Vê que el-rei nada disse e que eu fazia bem em negar?...

— Senhor — interrompeu a rainha voltando-se para Henrique —, peço-lhe que ponha termo a tão humilhante luta; parece-me que Vossa Majestade depositou em mim toda a sua confiança quando há pouco me revelou o estado em que se acha esta senhora. Avise-a pois de que estou informada de tudo, para que ela não tenha o atrevimento de duvidar de uma coisa que eu afirmo.

— Minha filha — perguntou Henrique, sem que procurasse disfarçar a expressão de ternura que acusavam as suas palavras —, teima pois em negar?

— O segredo não me pertence a mim, meu Senhor — respondeu a animosa menina —, e enquanto eu não ouvir da sua própria boca que me dá licença para confessar tudo...

— A minha filha Fosseuse tem um coração muito bem formado, minha Senhora — replicou Henrique —, peço-lhe que lhe perdoe; e tu, minha filha, confia plenamente na bondade da tua rainha; o agradecimento fica por minha conta.

E Henrique, dizendo isto, pegou na mão de Margarida e apertou-a com ternura. Naquele instante, uma dor acerba acometeu novamente a doente; cedeu segunda vez à violência da tempestade e, dobrando-se pelo meio como uma açucena açoitada pelo vento, inclinou a cabeça com um gemido surdo e doloroso.

Henrique sentiu-se comovido até ao íntimo do coração quando viu aquela fronte pálida, aqueles olhos debulhados em pranto, aquele cabelo húmido e solto; quando viu, enfim, as fontes e lábios da Fosseuse banhados daquele suor da angústia que parece precursor da agonia. Correu para ela fora de si, e abrindo os braços:

— Fosseuse! minha querida Fosseuse! — murmurou ele, caindo de joelhos ao lado da cama. Margarida, sombria e silenciosa, foi encostar a testa abrasada aos vidros da janela. Fosseuse teve força para levantar os braços e deitá-los ao pescoço do amante; e puxando-o a si, pregou os lábios nos dele, pensando que ia morrer, e que naquele derradeiro beijo transmitia a Henrique a sua alma por despedida. Em seguida caiu para trás sem sentidos.

Henrique, tão pálido como ela, e como ela inerte e sem voz, deixou cair a cabeça sobre o lençol daquele leito de agonia, que parecia destinado a servir de mortalha.

Margarida aproximou-se desse grupo, em que se confundia o sofrimento físico com o sofrimento moral.

— Levante-se, Senhor, e deixe que eu desempenhe o dever que me impôs — disse ela com majestosa energia.

E como Henrique parecia receoso daquela manifestação, e apenas levantava um dos joelhos do chão:

— Oh! nada receie — disse ela —, eu sou forte quando ferem o meu orgulho; se a ofensa fosse feita ao meu coração, talvez não fosse senhora de mim; mas o meu coração, felizmente, nada tem com o que se passa.

Henrique ergueu a cabeça.

— Minha senhora!... — disse ele.

— Não acrescente uma única palavra, Senhor — disse Margarida estendendo a mão —, quando não far-me-á capacitar que a sua indulgência para comigo foi um cálculo. Somos irmão e irmã, e como tal havemos de viver sempre em boa harmonia.

Henrique levou-a ao pé da Fosseuse, e depositou a mão gelada desta na mão ardente de Margarida.

— Vá, Senhor, vá: parta para a sua montaria. Quanta mais gente levar consigo, mais curiosos afastará do leito de... desta senhora.

— Mas — disse Henrique — eu não vi pessoa alguma na antessala...

— Não, decerto — replicou Margarida sorrindo —, julgam todos que há peste aqui. Vá quanto antes divertir-se para outra parte.

— Minha Senhora — disse Henrique —, vou-me já embora, e amanhã hei-de montear por conta de ambos nós.

E fitando os olhos com ternura na Fosseuse, que ainda se conservava desmaiada, saiu arrebatadamente do quarto.

Apenas chegou à antessala, sacudiu a cabeça como para apagar do semblante qualquer vestígio de inquietação; e depois, sorrindo com a expressão de astúcia que lhe era habitual, subiu ao quarto de Chicot, o qual, como já dissemos, dormia com os punhos cerrados.

O rei mandou que lhe abrissem a porta e, sacudindo o dorminhoco dentro da cama, disse:

— Olá, compadre! arriba! são duas horas da madrugada!...

— Ah! cos demónios! — exclamou Chicot — está-me chamando compadre, meu Senhor... Julga, porventura, que eu sou o duque de Guisa?

E com efeito, Henrique, quando falava no duque de Guisa, costumava chamar-lhe seu compadre.

— Julgo que és meu amigo — disse ele.

— Pois é, e conserva-me preso... a mim, que sou um embaixador! É uma violação do direito das gentes, meu Senhor!

Henrique deu uma gargalhada. Chicot, que era sobretudo homem de espírito, não pôde deixar de lhe fazer companhia.

— Estás louco! por que demónio queres tu ir-te embora daqui!? Não estás sendo bem tratado?..

— Bem demais, com a breca! bem demais!... Afigura-se-me que estou aqui como um pato fechado numa capoeira para engordar. Toda a gente me diz: «Chicot, Chicot, anda cá... Como é tão bonito!...» mas vão-me aparando as asas e fecham-me as portas.

— Chicot, meu filho — disse Henrique abanando a cabeça — não te assustes, porque és muito magro para figurares na minha mesa.

— Mas que é isso, meu Senhor? — disse Chicot sentando-se na cama — está hoje tão folgazão... Que novidades temos?

— Ah! eu te digo! é porque vou partir para uma montaria, e sempre me alegro imenso quando estou para ir montear. — Vamos! já para fora da cama, compadre! para fora da cama!

— Pois quê!? tenciona levar-me consigo, meu Senhor?!

— Hás-de ser o meu historiógrafo, Chicot.

— Para fazer uma relação dos tiros que se dispararem?...

— Exactamente. Chicot abanou a cabeça.

— Então!? que tens? — perguntou o rei.

— É porque nunca vi sem algum receio uma alegria como a sua — respondeu Chicot.

— Histórias!

— Sim, é como quando em Maio o Sol...

— Que sucede então?

— Não estão muito longe a chuva, os relâmpagos e trovões, meu Senhor. Henrique correu a mão pela barba, sorrindo, e respondeu:

— Se houver algum temporal, Chicot, o meu capote é muito espesso e debaixo dele te abrigarás.

E, dirigindo-se para a porta, enquanto Chicot se vestia a grazinar:

— Aparelhem o meu cavalo! — gritou o rei — e vão dizer ao Sr. de Mornay que estou pronto.

— Ah! é o Sr. de Mornay que faz de monteiro-mor na tal montaria? — perguntou Chicot.

— O Sr. de Mornay é tudo aqui, Chicot — respondeu Henrique. — El-rei de Navarra é tão pobre que não pode dividir os empregos da sua casa por diversas pessoas. Tenho um homem só para tudo.

— Sim, mas é dos bons — disse Chicot com um suspiro...

 

         DE QUE MANEIRA SE FAZIA MONTARIA AOS LOBOS EM NAVARRA

Chicot, quando viu os preparativos para a partida, não pôde deixar de notar a meia voz que as caçadas do rei Henrique de Navarra eram menos sumptuosas do que as do rei Henrique de França. Doze ou quinze fidalgos apenas (entre os quais figurava o Senhor Visconde de Turen-ne, objecto das contestações matrimoniais), formavam toda a comitiva de Sua Majestade.

Demais a mais, como a riqueza daqueles cavalheiros era muito superficial, não lhes consentindo os minguados rendimentos que fizessem despesas inúteis, e às vezes nem mesmo despesas úteis, quase todos eles, em vez do trajo de caça que se usava na época, traziam elmos e couraças, circunstância esta que deu causa a Chicot perguntar se os lobos da Gasconha tinham nos seus bosques mosquetes e artilharia.

Henrique ouviu a pergunta, se bem que lhe não fosse directamente dirigida, aproximou-se de Chicot e tocou-lhe no ombro.

— Não, meu filho — disse ele —, os lobos da Gasconha não têm mosquetes nem artilharia; mas são animais ferozes, que têm boas unhas e dentes, e atraem os caçadores para o mato, onde sucede muitas vezes rasgar-se a veste nos espinhos: ora pois, um gibão de seda ou de veludo, ou mesmo de pano ou de anta, rasga-se com facilidade; mas já não acontece o mesmo com uma couraça.

— Isso é uma razão — resmungou Chicot —, porém não a acho convincente.

— Que queres?.. — disse Henrique — não me ocorre outra...

— Devo portanto dar-me por satisfeito com ela?

— Não vejo outro remédio, meu filho.

— Assim seja.

— Esse assim seja cheira-me a crítica interna — replicou Henrique, rindo. — Estás amuado comigo por te ter incomodado para me acompanhares na montaria?

— Confesso que sim.

— E é por isso que estás criticando?

— Também me é proibido?...

— Não, meu amigo, não; as críticas são moeda corrente aqui na Gasconha.

— Atenda, meu Senhor, que eu não sou caçador — replicou Chicot — e, por conseguinte, preciso entreter-me em alguma coisa, enquanto Vossa Majestade morde os bigodes saboreando de antemão o prazer que lhe vai causar a montaria dos famosos lobos desencovados por doze ou quinze homens.

— Ah! sim — disse o rei tornando a sorrir —, venha mais sátira! Primeiro foram os trajos, agora o número dos caçadores... Caçoa, caçoa, meu caro Chicot!

— Oh! meu Senhor!...

— Porém, sempre te observarei, meu filho: o Béarn não iguala a França em grandeza: el-rei, lá, sai sempre acompanhado de duzentos monteiros; e eu, aqui, apenas levo comigo doze, como vês.

— Sim, meu Senhor.

— Mas — prosseguiu Henrique — vou dizer-te uma coisa, que tu julgarás talvez ser bazófia minha, Chicot: sucede aqui com frequência uma coisa que nunca acontece lá: é que os fidalgos que residem pelo campo, quando lhes consta que eu ando monteando, abandonam, as casas ou os castelos, e vêm juntar-se comigo, formando-me assim um sofrível acompanhamento.

— Aposto, meu Senhor, que não terei a ventura de presenciar semelhante coisa — disse Chicot. — Na verdade, Real Senhor, hoje tudo me sai torto!

— Quem sabe?... — respondeu Henrique, com o seu risinho mofador.

Depois de terem saído das portas de Nérac, e quando já haveria meia hora que cavalgavam pelo descampado:

— Olha — disse Henrique a Chicot, resguardando os olhos do sol com a mão — olha, parece-me que não é engano meu.

— O quê? — perguntou Chicot.

— Olha para acolá, junto das barreiras da vila de Moiras: não são cavaleiros que estou vendo?...

Chicot levantou-se sobre os estribos.

— Serão cavaleiros, sim — disse Chicot, olhando mais atentamente —, porém caçadores, não.

— Porque não são caçadores?

— Porque estão armados como outros tantos Rolandos ou Amadis — respondeu Chicot.

— O trajo pouco importa, meu caro Chicot; já viste por nós que o hábito não faz o caçador.

— Mas... — exclamou Chicot — estou vendo além duzentos homens, pelo menos!...

— E então? que prova isso, meu filho? que Moiras é um bom feudo, e nada mais. Chicot sentiu a sua curiosidade ainda mais excitada. O bando, a que ele tinha dado uma

avaliação muito baixa, pois constava de duzentos e cinquenta cavaleiros, juntou-se silenciosamente à escolta: cada um dos homens de que se compunha vinha bem montado e bem armado; e à frente de todos estava um homem de boa presença, que beijou a mão de Henrique com cortesia e mostras de dedicado afecto.

Passaram o Gers a vau; entre o Gers e o Garona, encontraram um segundo bando, de uns cem homens; o chefe chegou-se a Henrique e pareceu pedir-lhe desculpa de não trazer consigo maior número de caçadores. Henrique aceitou as desculpas estendendo-lhe a mão.

Continuaram a marchar e chegaram ao Carona, que atravessaram pela mesma forma que o Gers; contudo, como o Garona é mais fundo do que o Gers, perderam pé a dois terços do rio e tiveram de nadar por espaço de trinta ou quarenta passos; no entanto, chegaram à margem oposta sem novidade.

— Por Deus!— exclamou Chicot — que exercício é este que está fazendo, meu Senhor!? de que serve molhar assim as couraças, tendo pontes acima e abaixo de Agen?...

— Meu caro Chicot — disse Henrique —, nós somos uns selvagens; deves perdoar-nos. Bem sabes que meu cunhado Carlos costumava chamar-me o seu javali; ora o javali... — oh! tu não és caçador, não entendes destas coisas... — bem! mas o javali, ia dizendo, nunca torce caminho: sempre em frente! Eu imito-o, visto ter o mesmo nome; também nunca torço caminho. Um rio corra-me a estrada? atravesso-o a nado; levanta-se uma cidade na minha frente? engulo-a como se fosse uma empada!

Esta chalaça do Bearnês motivou estrepitosas gargalhadas de todos os circunstantes. O Sr. de Mornay, que se conservava sempre ao lado do rei, foi o único que não se riu com estrondo; limitou-se a morder os lábios, e esta acção indicava nele uma hilaridade extravagante.

— Mornay está de muito bom humor hoje — disse o Bearnês muito satisfeito ao ouvido

de Chicot —, riu-se do meu gracejo...

Chicot perguntou a si mesmo de qual dos dois se deveria rir, se do amo, que tão feliz se julgava por ter feito rir o servidor, ou do servidor, que a tanto custo se alegrava. Mas nada disto diminuía a admiração que causava a Chicot tudo quanto via. Da parte de lá do Garona, a meia légua pouco mais ou menos das margens do rio, apareceram aos olhos de Chicot trezentos cavaleiros, que estavam escondidos num pinhal.

— Oh! oh! meu Senhor — disse ele baixo a Henrique —, aqueles indivíduos serão alguns invejosos que ouviram falar da sua montaria e tencionam opor-se a que ela se efectue?...

— Nada! — disse Henrique — também desta vez te enganaste, meu filho: aqueles indivíduos são amigos meus vindos de Puy-mirol; verdadeiros amigos.

— Por Deus, meu senhor! não tardará que o número dos homens da sua comitiva exceda o das árvores do bosque!

— Chicot, meu filho — disse Henrique —, assim Deus me perdoe! mas penso que se espalhou por todo o país a notícia da tua chegada, e que esta gente toda vem acudindo das quatro extremidades da província para obsequiar el-rei de França na pessoa do seu embaixador.

Chicot era demasiado esperto para não perceber que havia já algum tempo que estavam mangando com ele.

Ficou desconfiado, mas não se zangou.

A jornada acabou em Monroy, onde os fidalgos dos arredores, ali reunidos como se houvessem sido avisados de que o rei de Navarra devia passar por lá, lhe ofereceram uma ceia lauta, de que Chicot partilhou com entusiasmo, por isso que não tinham julgado necessário parar no caminho para um objecto de tão pouca monta como o jantar, e por conseguinte ninguém tinha comido desde a saída de Nérac.

A melhor casa da cidade havia sido reservada para Henrique; metade da comitiva dormia na rua onde ficava o rei, e a outra metade fora de portas.

— Quando começaremos a montear? — perguntou Chicot a Henrique, na ocasião em que lhe estavam descalçando as botas.

— Ainda não chegámos ao território dos lobos, meu caro Chicot — respondeu Henrique.

— E quando chegaremos nós lá, meu Senhor?

— Sempre és muito curioso!...

— Não, meu Senhor; mas é muito natural desejar saber para onde vou.

— Amanhã o saberás, meu filho. Entretanto, deita-te aí, sobre as almofadas, à minha esquerda; olha, aqui está Mornay ressonando à minha direita.

— Safa! — disse Chicot — faz mais bulha a dormir do que quando está acordado!

— Isso é verdade — disse Henrique —, não é muito falador; mas tu verás que homem ele é para uma montaria.

O dia ia despontando, quando um grande motim de cavalos acordou Chicot e o rei de Navarra. Um fidalgo velho, que quis servir o rei por suas mãos, trouxe a Henrique uma fatia de pão com mel e uma taça de vinho fervido com especiarias. Os criados do fidalgo ofereceram o mesmo a Mornay e a Chicot. Apenas acabaram de comer, tocou-se a montar.

— Vamos, vamos! — disse Henrique — temos bastante que andar hoje; a cavalo, Senhores, a cavalo!

Chicot viu com admiração que, durante a noite, tinham vindo engrossar a escolta quinhentos cavaleiros.

— Ora esta! — disse ele — a isto já não se chama comitiva nem mesmo escolta, meu Senhor: é um exército!

Henrique somente lhe respondeu estas palavras:

— Espera, que ainda não viste tudo.

Nas proximidades de Lauzerte apareceram seiscentos homens de pé, que vieram formar na retaguarda dos cavaleiros.

— Infantaria também!... — exclamou Chicot — e tantos peões!...

— São batedores de mato — disse o rei —, batedores de mato, unicamente. Chicot franziu os sobrolhos, e daquele instante em diante não tornou a falar.

Por mais de vinte vezes correu os olhos pelas campinas, isto é, por mais de vinte vezes se lhe apresentou à imaginação a ideia de fugir.

Chicot tinha a sua guarda de honra, provavelmente por causa da sua qualidade de representante do rei de França.

E estava tão bem recomendado à tal guarda, como uma personagem da mais alta importância, que não fazia um único gesto que não fosse logo repetido por dez homens.

Por fim desagradou-lhe tanto o afinco com que o vigiavam, que tomou a deliberação de se queixar ao rei.

— Então que queres? — respondeu-lhe Henrique — é por tua culpa, meu filho: tentaste fugir de Nérac e tenho medo que tentes novamente pôr-te ao fresco.

— Meu Senhor — replicou Chicot —, dou a Vossa Majestade a minha palavra de cavalheiro que não hei-de tornar a lembrar-me de tal.

— Ora ainda bem.

— E demais, faria mal.

— Farias mal?

— Sim, porque estou persuadido de que hei-de ver coisas muito curiosas conservando-me na companhia de Vossa Majestade.

— Pois bem: muito estimo que seja essa a tua opinião, meu caro Chicot, porque é a minha também.

Iam atravessando naquele momento a cidade de Mont-cuq; quatro peças pequenas de campanha vieram reunir-se ao exército.

— Ainda estou pelo que disse à saída de Nérac, meu Senhor — exclamou Chicot —, os lobos desta terra parecem ser bichos muito respeitáveis e são tratados com uma consideração de que não gozam os lobos ordinários; até artilharia se emprega contra eles, meu Senhor!

— Ah reparaste nas peças?... — disse Henrique — é uma mania desta gente de Mont-cuq: desde que eu lhe dei para os seus exercícios aquelas quatro peças, que mandei comprar em Espanha, e que foram passadas para cá de contrabando, arrastam-nas consigo por toda a parte.

— Afinal — perguntou Chicot —, chegaremos hoje ao nosso destino, meu Senhor?

— Não, amanhã.

— Amanhã pela manhã, ou amanhã à noite?

— Amanhã pela manhã.

— Então — disse Chicot — é a Cahors que vamos montear, não é assim, meu Senhor?

— Sim, é para essas bandas — respondeu o rei.

— Porém, meu Senhor, como é que, trazendo Vossa Majestade consigo infantaria, cavalaria e artilharia, para fazer montaria aos lobos, não se lembrou de trazer também o estandarte real?.. Assim teria sido completa a honra que faz a tão estimáveis animais.

— Não me esqueceu, por Deus, Chicot! era o que faltava! mas está guardado no estojo para se não sujar. Porém, visto que tu exiges um estandarte, meu filho, para saberes qual é a bandeira que segues, eu te mostro já um bem bonito... Tire o estandarte do estojo — ordenou o rei —, que o Sr. Chicot deseja ver como são as armas de Navarra.

— Não, não; é escusado — disse Chicot —, mais tarde o verei; deixe-o ficar onde está, que está bem.

— E demais, podes ficar descansado — disse o rei —, que a seu tempo o verás.

Dormiram a segunda noite em Catus, que se passou quase pela mesma forma que a primeira; desde que Chicot tinha dado a sua palavra de honra que não havia de fugir, já não o vigiavam.

Deu um passeio pela aldeia e chegou aos postos avançados. Por todos os lados apareciam bandos de cem, cento e cinquenta ou duzentos homens, que vinham reunir-se ao exército. Aquela noite tinha sido destinada para a reunião da infantaria.

«Ainda bem que não marchamos sobre Paris, disse Chicot, pois éramos capazes de lá chegar com cem mil homens...»

No dia seguinte, pelas oito horas da manhã, tinham chegado à vista da Cahors, com mil homens de pé e dois mil de cavalo.

Encontraram a cidade em atitude de defesa; a presença dos exploradores havia dado rebate pelas imediações, e o Sr. de Vezin tinha tratado de se acautelar.

— Ah! — disse o rei quando Mornay lhe deu esta notícia — souberam da nossa vinda... É forte zanga!

— Teremos de pôr cerco em forma à praça, meu Senhor — disse Mornay. — Ainda esperamos dois mil homens, pouco mais ou menos; é quanto basta.

— Reunamos o conselho — disse o Sr. de Turenne —, e entretanto poderá dar-se o início às obras de assédio.

Chicot olhava para tudo aquilo e ouvia todas aquelas palavras com o maior espanto. O semblante pensativo e quase lastimoso do rei de Navarra confirmava-o cada vez mais da desconfiança em que ele estava de que Henrique era muito insignificante como homem de guerra; e era essa convicção que o tranquilizava algum tanto.

Henrique de Navarra tinha deixado falar toda a gente, e durante a emissão dos diversos pareceres havia-se conservado mudo como um peixe. De repente saiu da sua meditação, ergueu a cabeça e disse em tom imperioso:

— Senhores, eis o que nos cumpre fazer. Temos três mil homens, e mais dois mil que se esperam, segundo disse Mornay; não é assim?...

— Sim, real senhor.

— Teremos pois ao todo cinco mil. Se pusermos cerco à praça em devida forma, matar-nos-ão mil ou mil e quinhentos no espaço de dois meses; a morte desses desanimará os que sobreviverem: seremos obrigados a levantar o cerco e fazer uma retirada; na retirada perderemos outros mil, e assim ficaremos privados de metade das nossas forças. Sacrifiquemos já quinhentos homens e tomemos Cahors.

— Como pensa Vossa Majestade que isso possa realizar-se? — perguntou Mornay.

— Meu caro amigo: iremos em direitura à porta que nos ficar mais próxima; encontraremos um fosso na nossa frente; entulhá-lo-emos com faxinas; deixaremos provavelmente uns duzentos homens por terra mas havemos de chegar à porta.

— E depois, meu Senhor?

— Depois de chegarmos à porta, arrombá-la-emos com petardos e entraremos. Nada mais fácil.

Chicot olhou com pasmo para Henrique.

«Sim: resmungou, pusilânime e jactancioso; não foras tu gascão... Sempre queria que me dissessem se tencionas também ir em pessoa pregar o petardo na porta..."

No mesmo instante, e como se tivesse ouvido o pensamento de Chicot, Henrique acrescentou:

— Não percamos tempo, meus Senhores, que podem esfriar os ânimos; vamos para a frente, e siga-me quem for meu amigo!

Chicot aproximou-se de Mornay, a quem não tinha tido ocasião de dizer uma única palavra durante a jornada.

— Diga-me, Senhor Conde — perguntou-lhe ao ouvido —, querem ser chacinados todos?...

— Sr. Chicot, não será mau que assim suceda, para nos excitar um pouco — replicou Mornay com toda a placidez.

— Mas vai expor el-rei a ser morto!

— Não se incomode: Sua Majestade traz uma óptima couraça.

— E penso que não será tão louco que se exponha a levar algum tiro... — disse Chicot. Mornay encolheu os ombros, e sem responder a Chicot voltou-lhe as costas.

«Está bom! disse consigo Chicot, gosto mais dele quando dorme do que quando está acordado, e quando ressona do que quando fala, porque então é mais cortês.»

 

         COMO SE PORTOU O REI HENRIQUE DE NAVARRA A PRIMEIRA VEZ QUE ENTROU EM FOGO

O exercitozinho chegou ao alcance de dois tiros de peça da cidade, e ali almoçou.

Acabada a refeição, concederam-se duas horas de descanso aos oficiais e soldados.

Eram três horas da tarde, e restavam por conseguinte duas horas de dia, quando o rei mandou chamar os oficiais à sua barraca.

Henrique estava muito pálido e, quando gesticulava, as mãos tremiam-lhe tão visivelmente que sacudiam os dedos como luvas penduradas para enxugar.

— Senhores — disse ele —, viemos aqui para tomar Cahors; é preciso portanto que a tomemos, visto que foi esse o fim a que viemos; porém é necessário tomar Cahors à força; à força, perceberam? isto é, arrombando ferro e madeira com carne.

«Não começou mal, disse Chicot, que estava escutando como censor, e se os gestos não desmentissem as palavras, dificilmente se poderia exigir mais do que isso, mesmo do Sr. de Crillon.»

— O Senhor Marechal de Biron — prosseguiu Henrique —, que jurou, como é notório, que havia de enforcar até ao último huguenote, está com as suas tropas distante daqui quarenta e cinco léguas. É provável que o Sr. de Vezin já a estas horas o tenha mandado avisar. Dentro de quatro ou cinco dias tê-lo-emos pela retaguarda; ele tem consigo dez mil homens; nós ficaremos assim entalados entre ele e a cidade. Apoderemo-nos portanto de Cahors antes que ele chegue, e recebê-lo-emos então como o Sr. de Vezin pretende receber-nos a nós, porém com melhor êxito, segundo espero. Se assim não suceder, encontrará pelo menos boas traves católicas para enforcar os huguenotes, e é uma fineza que devemos fazer-lhe. Vamos a eles, Senhores! vou colocar-me à frente, e é dar para baixo: dar até mais não poder!

Aqui findou a alocução régia, e era suficiente, porque os soldados corresponderam com murmúrios de entusiasmo, e os oficiais com aplausos frenéticos.

«Lindas frases, mas sempre mostra que é gascão, disse Chicot consigo. Felizmente para ele não é com as mãos que se fala! Com a breca! se assim fosse, muito teria gaguejado o Bear-nês!... Veremos como ele se sai da empresa.»

O exército abalou, para tomar as suas posições, debaixo do comando de Mornay. No momento em que as tropas começavam a marchar, o rei chegou-se a Chicot.

— Desculpa-me, meu amigo Chicot — disse ele —, enganei-te quando te falei em montaria, em lobos e outras frioleiras; mas assim era preciso, e foste tu quem me deste o conselho. Está visto que el-rei Henrique não quer pagar-me o dote de sua irmã Margarida, e Margarida chora, desespera-se, por não estar de posse da sua querida Cahors. Quem deseja viver bem com a mulher, deve fazer-lhe as vontades: eis o motivo por que vou tratar de me apoderar de Cahors, meu caro Chicot.

— Não sei como ela também não se lembrou de lhe pedir a Lua, meu Senhor, visto que é um marido tão condescendente... — replicou Chicot, que já se ia estomagando com os gracejos do rei.

— Havia de fazer toda a diligência para lha alcançar, Chicot — respondeu o Bearnês. — Sou tão amigo da minha Margarida!...

— Oh! basta Cahors para lhe dar que fazer, e veremos como se sairá desta.

— Ah! era justamente a este respeito que eu te queria falar; ouve, amigo Chicot, este momento é muito solene, e sobremaneira desagradável. Eu não tenho impostura alguma: confesso que não sou valente, e a cada arcabuzada revolta-se em mim a natureza; Chicot, meu amigo, não escarneças muito do pobre Bearnês, teu compatriota e teu amigo; se perceberes que estou com medo, não o digas a pessoa alguma.

— Se estiver com medo, disse Vossa Majestade?...

— Sim.

— Está então com medo de ter medo?...

— É verdade.

— Mas então... com a breca! como é que se meteu numa empresa destas, sabendo que tinha esse defeito!?

— Então que queres? se assim é preciso...

— O Sr. de Vezin é um homem temível...

— Bem sei.

— E não há-de dar quartel a pessoa alguma.

— Estás persuadido disso, Chicot?

— Oh! estou certíssimo; tanto se importa ele com as plumas vermelhas como com as plumas brancas: sempre há-de mandar dar fogo às peças.

— Dizes isso por causa do meu penacho branco, é?

— Sim, meu Senhor; e como é o único que se apresenta com um dessa cor...

— Diz, diz.

— Dou-lhe de conselho que o tire, meu Senhor.

— Mas nota, meu amigo, que o escolhi assim para que os soldados me conhecessem de longe; e se o tirar...

— Que sucederá?

— Não conseguirei o fim que tive em vista, Chicot.

— Conservá-lo-á, pois, Real Senhor, apesar do conselho que lhe dou?..

— Sim, estou resolvido a conservá-lo.

E ao proferir estas palavras, que indicavam uma resolução irrevogável, Henrique tremia ainda mais visivelmente do que quando estava falando aos oficiais.

— Ora vamos! — disse Chicot, espantado daquelas duas manifestações tão opostas, da palavra e do gesto — ora vamos! ainda está a tempo, Real Senhor; nada de loucuras: não é possível que monte a cavalo nesse estado.

— Estou muito pálido, Chicot? — perguntou Henrique.

— Pálido como um defunto, Real Senhor!

— Bom — disse o rei.

— Bom?...

— Sim, eu cá me entendo.

Naquele mesmo instante troou a artilharia da praça, com um acompanhamento furioso de mosquetaria: era a resposta que o Sr. de Vezin dava à intimação que lhe fazia Dulpessis Mornay para que se entregasse.

— Hem?... — exclamou Chicot — que tal lhe parece aquela música?...

— Está-me fazendo um frio de todos os demónios na medula dos ossos — replicou Henrique. — Vamos! o meu cavalo, tragam-me o meu cavalo! — gritou ele com voz trémula e vibrante como uma mola de relógio.

Chicot olhava para ele e escutava-o sem poder compreender o singular fenómeno que se lhe oferecia à vista. Henrique montou, mas só à segunda tentativa é que pôde escarranchar-se na sela.

— Vamos, Chicot — disse ele —, monta a cavalo tu também; não és homem de guerra tão-pouco, hem?

— Não, meu Senhor.

— Pois bem! anda comigo, Chicot: vamos ter medo juntos; entra em fogo comigo, meu amigo; vem daí. Um bom cavalo para o Sr. Chicot!

Chicot encolheu os ombros e montou sem pestanejar um bom cavalo, espanhol, que lhe trouxeram em cumprimento da ordem que o rei acabava de dar.

Henrique meteu o seu cavalo a galope; Chicot acompanhou-o.

Henrique, logo que chegou à frente do seu diminuto exército, ergueu a viseira do capacete.

— Desfraldem a bandeira! desfraldem a bandeira nova! — gritou ele com voz trémula. Abriram o estojo, e a bandeira nova, em que figuravam os dois escudos de Navarra e de

Bourbon, desenrolou-se majestosamente nos ares; era branca e apresentava, de um lado, em campo azul, as cadeias de ouro, e do outro, as flores-de-lis de ouro com a figura usada no brasão para distinguir os filhos segundos dos primogénitos.

«Eis, disse Chicot consigo, uma bandeira que vai ser mal estreada se se realizar o que receio.»

No mesmo momento, e como respondendo ao pensamento de Chicot, troou novamente a artilharia da praça, e levou uma fileira toda de infantaria a distância de dez passos do rei.

— Cos demónios! — exclamou ele — viste, Chicot?... parece-me que a coisa é séria! E dizendo isto, batia o queixo.

«Não tarda que desmaie» pensou Chicot.

«Ah!... murmurou Henrique, estás com medo, maldita carcaça; tremes e estás tiritando!... espera, espera, que já te faço tremer com razão...»

E cravando ambas as esporas nas ilhargas do cavalo branco em que estava montado, passou adiante da cavalaria, infantaria e artilharia, e chegou à distância de cem passos da praça, que parecia toda abrasada pelo fogo das baterias que trovejavam do alto das muralhas com um estrondo semelhante ao de uma tempestade, cujo clarão se lhe reflectia na armadura como os raios do pôr do Sol.

Chegado ali, conservou o cavalo imóvel durante uns dez minutos, com a frente voltada para a porta da cidade, bradando:

— As faxinas! com todos os demónios! venham as faxinas!

Mornay tinha-o acompanhado, com a viseira erguida e a espada desembainhada. Chicot imitou Mornay; tinha consentido que lhe vestissem uma couraça, mas não puxou pela espada. Logo atrás daqueles três homens, correram, exaltados pelo exemplo, os jovens fidalgos hugue-notes, gritando a bom gritar:

— Viva a Navarra!

A frente deles vinha o visconde de Turenne, com uma faxina atravessada no pescoço do cavalo.

Vieram todos, uns após outros, atirar com uma faxina para dentro do fosso; e num abrir e fechar de olhos ficou entulhada a parte do fosso que se estendia por baixo da ponte levadiça.

Os artilheiros saíram à frente; perderam trinta homens, de quarenta que eram; mas conseguiram pregar os petardos na porta.

A metralha e a mosquetaria zuniam como um furacão de fogo de roda de Henrique; num instante caíram vinte homens mortos à sua vista.

— Para a frente! para a frente! — disse ele, e impeliu o cavalo para o meio dos artilheiros. Chegou à borda do fosso na ocasião em que estourava o primeiro petardo.

A porta tinha-se rachado em duas partes. Os artilheiros deram fogo ao segundo petardo.

Apareceu nova greta na madeira: mas logo pelas três aberturas saíram vinte arcabuzes a vomitar balas sobre os soldados e oficiais.

Os homens caíram em redor do rei como espigas de trigo às mãos dos ceifeiros.

— Real Senhor! — dizia Chicot sem curar de si próprio —, real senhor! em nome do Céu, retire-se!

Mornay nada dizia, mas ufanava-se ao ver o comportamento do seu discípulo, e de vez em quando procurava colocar-se diante dele; porém Henrique deitava-lhe a mão e afastava-o com um estremecimento nervoso.

De repente Henrique sentiu que se lhe humedecia a testa de suor e que se lhe turva a vista.

«Ah! maldita natureza! exclamou ele, não te hás-de gabar de me haveres vencido!» Em seguida, saltando abaixo do cavalo:

— Um machado! — gritou ele — dêem-me um machado!

E com um vigoroso golpe derrubou canos de arcabuzes, fragmentos de carvalho e pregaria de bronze.

Afinal caiu uma trave, uma porção da porta, um lanço de muro, e cem homens se arremessaram pela brecha bradando:

— Navarra! Navarra! Cahors é nossa! Viva Navarra! Viva!

Chicot não tinha desamparado o rei: estava com ele debaixo do arco da porta onde Henrique havia entrado primeiro que todos; mas a cada arcabuzada, via-o estremecer e abaixar a cabeça.

— Com todos os demónios! — dizia Henrique, enfurecido — já viste cobardia igual à minha, Chicot!?

— Não, Real Senhor — replicou este —, nunca vi um cobarde como Vossa Majestade; é coisa espantosa!

Naquele momento os soldados do Sr. de Vezin tentaram desalojar Henrique e a sua vanguarda, que iam tomando posição por baixo da porta e nas casas circunvizinhas. Henrique recebeu-os à ponta da espada.

Porém os sitiados levaram a melhor, e conseguiram repelir Henrique e os seus para além do fosso.

— Cos demónios! — exclamou o rei — parece-me que a minha bandeira vai recuando! - pois então, levá-la-ei eu mesmo!

E com um esforço sublime, arrancando o estandarte das mãos do oficial que o levava, levantou-o no ar, e tornou a entrar na praça adiante de todos, e quase encoberto pelas suas pregas ondeantes.

«Anda, atreve-te a ter medo! treme agora, cobarde!» dizia ele.

As balas zuniam e achatavam-se-lhe sobre a armadura com um som estridente, ou esbura-cavam a bandeira com um som surdo.

Os Srs. de Turenne, Mornay e mil outros, introduziram-se pela porta aberta em seguimento do rei.

A artilharia calou-se da parte de fora: a luta, dali em diante, deveria ser cara a cara, corpo a corpo.

Ouvia-se acima do estridor das armas, do estrondo das mosquetadas, e do tinir do ferro, a voz do Sr. de Vezin, gritando:

— Levantem trincheiras nas ruas, abram fossos, façam seteiras nas casas!

— Oh! — disse o Sr. de Turenne, que estava a alcance de ouvir — o cerco da cidade está concluído, meu pobre Vezin!

E, como acompanhamento destas palavras, disparou-lhe um tiro de pistola que o feriu num braço.

— Estás enganado, Turenne, estás enganado! — respondeu o Sr. de Vezin. — São precisos vinte cercos para tomar Cahors; e portanto, se já está concluído o primeiro, ainda restam dezanove.

O Sr. de Vezin resistiu durante cinco dias e cinco noites, de rua em rua, de casa em casa.

Por felicidade, para a fortuna nascente de Henrique de Navarra, ele fiara-se demasiadamente nas muralhas e na guarnição de Cahors, de forma que não tratara de mandar avisar o Sr. de Biron.

Henrique, durante cinco dias e cinco noites consecutivas comandou como um general e pelejou como um soldado; quando se deitava era fazendo de uma pedra travesseiro, e quando acordava era já com o machado na mão.

Cada dia se conquistava uma rua, uma praça ou uma encruzilhada, e cada noite intentava a guarnição tornar a apoderar-se daquilo que de dia tinha perdido.

Até que, por fim, na noite do quarto para o quinto dia, o inimigo, já cansado de lutar, não incomodou o exército protestante. Foi Henrique quem o atacou então; foi tomado à força um ponto fortificado que custou setecentos homens; os melhores oficiais ficaram quase todos feridos; o Sr. de Turenne levou um tiro de arcabuz num ombro, e Mornay por pouco não ficou esmagado por uma laje que lhe atiraram à cabeça.

O rei foi o único que não ficou ferido: depois do medo que ao princípio havia tido, e que tão heroicamente conseguira vencer, apoderara-se dele uma agitação febril, uma audácia quase insensata; todas as correias da sua armadura estavam despedaçadas, não só por causa dos esforços que ele próprio havia feito, como também pelas cutiladas do inimigo; os golpes que ele descarregava eram de tal natureza que nunca feria os seus adversários: matava-os.

Depois de forçada a última fortificação, o rei entrou no recinto dela, acompanhado pelo eterno Chicot, o qual, silencioso e taciturno, presenciava com desespero, havia cinco dias, o engrandecimento do temível fantasma de uma monarquia destinada a abafar a monarquia dos Valois.

— Então? que dizes tu a isto, Chicot? — perguntou o rei, levantando a viseira do capacete e como querendo ler na alma do pobre embaixador.

— Real Senhor — murmurou Chicot tristemente —, digo que Vossa Majestade é um rei às direitas!

— E eu, meu Senhor — exclamou Mornay —, digo que é um imprudente; pois que é isso!? descalça os guantes e ergue a viseira quando de toda a parte lhe estão fazendo fogo?! Olhe, aí vem outra bala!

Naquele mesmo instante zuniu com efeito uma bala que levou uma das plumas da cimeira do capacete de Henrique.

E logo em seguida, como para dar razão a Mornay, o rei foi cercado por uns dez arcabuzeiros da guarda particular do governador.

Tinham sido ali emboscados pelo Sr. de Vezin, e faziam pontarias baixas e certas.

O cavalo em que montava o rei foi morto, o de Mornay ficou com uma perna partida, O rei caiu; foram-lhe imediatamente apontadas dez espadas ao peito.

Chicot era o único que tinha ficado de pé. Saltou do cavalo abaixo, colocou-se diante do] rei, fez com a espada um movimento de sarilho tão rápido, que afastou os que estavam mais chegados.

Depois, ajudando a levantar Henrique, que estava envolvido no arnês do cavalo, trouxe-lhe o seu próprio cavalo e disse-lhe:

— Meu Senhor, far-me-á a mercê de atestar a el-rei de França que, se bem que desembainhei a espada contra ele, não feri contudo pessoa alguma.

Henrique puxou Chicot a si, e com as lágrimas nos olhos abraçou-o.

— Com todos os demónios! — exclamou ele — hás-de ser meu, Chicot: hás-de viver e morrer na minha companhia, meu filho! Olha que o meu serviço é tão suave quanto o meu coração é bom.

— Real Senhor — respondeu Chicot —, eu não tenho neste mundo senão um serviço a desempenhar, que é o do meu príncipe. Infelizmente, vai-se-lhe acabando o esplendor; mas hei-de ser-lhe fiel na adversidade, assim como me afastei dele quando a fortuna lhe era próspera. Deixe pois que eu sirva o meu rei enquanto ele viver, Real Senhor; dentro em breve só eu lhe restarei; não lhe inveje portanto o seu último servidor.

— Chicot — replicou Henrique —, tomo nota da tua promessa; estimo-te e respeito-te; e quando te faltar Henrique de França, terás por amigo Henrique de Navarra.

— Sim, meu Senhor — respondeu laconicamente Chicot, beijando com respeito a mão do rei.

— Agora, como vês, meu amigo — disse o rei —, Cahors é nossa; o Sr. de Vezin fará aqui matar toda a sua gente; porém há-de ser mais fácil ficar aqui também toda a minha tropa do que recuar eu uma polegada.

Esta ameaça era escusada, e Henrique já não precisava porfiar mais. As suas tropas, capitaneadas pelo Sr. de Turenne, acabavam de se assenhorear da guarnição da cidade; o Sr. de Vezin estava prisioneiro. A cidade tinha sido tomada.

Henrique pegou na mão de Chicot e levou-o consigo para uma casa toda crivada de balas e que ainda estava a arder, a qual lhe servia de quartel-general; e ali ditou ao Sr. de Mornay uma carta que Chicot havia de levar ao rei de França.

A carta era redigida em mau latim, e acabava com estas palavras:

Quod mihi dixisti projuit multum. Cognosco meos devotos, nosce tuos. Chicotus caetera expediete.

Isto queria dizer, pouco mais ou menos:

«Foi-me proveitoso o que me dissestes. Conheço quem me é fiel, conheci também quem vo-lo é. Chicot explicará o mais.»

— E agora, amigo Chicot — prosseguiu Henrique —, abraça-me! e cuidado não te enxovalhes, pois, assim Deus me perdoe! estou tão cheio de sangue como um carniceiro! Não teria dúvida em oferecer-te um quinhão do produto da montaria se soubesse que o aceitavas, mas estou vendo nos teus olhos que mo recusarias. Entretanto, aqui está o meu anel; guarda-o, assim o quero. E agora, adeus, Chicot, já não te detenho por mais tempo; monta a cavalo e galopa para França; estou certo que, lá, hás-de causar furor na corte narrando o que presenciaste.

Chicot aceitou o anel e partiu. Levou três dias para se convencer que aquilo tudo não era um sonho e que havia de acordar em Paris defronte das janelas da sua casa, onde fazia serenatas o Sr. de Joyeuse.

 

O QUE SE PASSAVA NO LOUVRE PELO MESMO TEMPO, POUCO MAIS OU MENOS, EM QUE CHICOT ENTRAVA NA CIDADE DE NÉRAC

A necessidade em que nos vimos de acompanhar o nosso amigo Chicot até ao fim da sua missão, fez com que nos afastássemos bastante do Louvre, pelo que pedimos agora desculpa aos nossos leitores.

Não seria justo que deixássemos por mais tempo no esquecimento os pormenores da tentativa de Vincennes, nem a pessoa que tinha sido objecto dela.

O rei, depois de haver arrostado valorosamente com o perigo, tinha sentido aquela comoção retrospectiva que se apodera às vezes dos corações mais destemidos quando o perigo já está longe; tinha entrado no Louvre sem dar palavra; tinha-se demorado a rezar mais tempo do que era costume, e foi tal o fervor com que se entregou a Deus que se esqueceu de agradecer aos oficiais, tão vigilantes, e aos guardas, tão dedicados, que o haviam livrado do risco que o ameaçava.

Em seguida meteu-se na cama, deixando os criados espantados ao verem a rapidez com que ele se despia; parecia que estava com pressa de adormecer para ter no dia seguinte as ideias mais frescas e lúcidas.

D'Epernon, que se conservara na câmara do rei depois de saírem todos à espera que ele lhe agradecesse, saiu de muito mau humor por ver que não tinha aparecido o agradecimento.

E Loignac, que estava de pé junto do reposteiro de veludo, vendo que o Sr. d'Epernon passava sem proferir uma única palavra, voltou-se desabridamente para os Quarenta e Cinco, dizendo-lhes:

— El-rei já não precisa dos senhores: vão-se deitar.

Às duas horas da madrugada já toda a gente dormia no Louvre.

O segredo da aventura tinha sido fielmente guardado, e em parte alguma havia transpirado. Os honrados burgueses de Paris ressonavam conscienciosamente, e nem lhes passava pela cabeça que tinha estado próxima a elevação ao trono de uma nova dinastia.

O Sr. d'Epernon mandou que lhe descalçassem imediatamente as botas e, em lugar de ir correr as ruas da cidade, como era seu costume, com uns trinta cavaleiros, seguiu o exemplo que lhe tinha dado o seu ilustre amo, enfiando-se na cama sem dirigir palavra a pessoa alguma.

Só Loignac, que, semelhante ao justum et tenacem de Horácio, nem que visse cair o mundo era capaz de se esquecer dos seus deveres, só ele foi rondar as sentinelas dos suíços e da guarda francesa, que faziam serviço com regularidade, mas sem excessos de zelo.

Três infracções insignificantes das leis da disciplina foram castigadas naquela noite como faltas graves.

No dia seguinte, Henrique, de quem tanta gente esperava com impaciência o despertar para saber o que dele devia temer, tomou quatro caldos na cama, em vez dos dois que tomava habitualmente, e mandou chamar o Sr. de Ó e o Sr. de Villequier à sua câmara, para trabalhar na redacção de um novo decreto acerca de finanças.

A rainha teve aviso para jantar sozinha e, mandando ela saber por um de seus gentis-homens notícias da saúde de Sua Majestade, dignou-se Henrique responder que à noite receberia as senhoras e cearia no seu gabinete. A mesma resposta teve um gentil-homem da rainha-mãe, a qual, tendo-se retirado havia dois anos para o seu palácio de Soissons, mandava contudo saber todos os dias notícias do filho.

Os Senhores Secretários de Estado olharam um para o outro com alguma inquietação. O rei estava naquela manhã tão desatento, que os despropósitos que eles propunham relativamente a exacções nem fizeram sorrir Sua Majestade.

É geralmente sabido que as distracções dos reis causam sempre inquietação aos secretários de Estado.

Todavia, Henrique entretinha-se a brincar com master Love e dizia-lhe, de cada vez que o animalzinho lhe apertava os esguios dedos com os seus dentinhos brancos:

— Ah! ah! meu rebelde! também tu me queres morder?! ah! ah! cãozinho, também tu atacas o teu rei? Visto isso, toda a gente conspira hoje em dia!

E Henrique, fazendo aparentemente esforços iguais aos que fez Hércules, filho de Alcmena, para domar o leão de Nemeia, domava aquele monstro do tamanho de um punho, e exclamava com indizível satisfação:

— Estás vencido, master Love! estás vencido, infame membro da Liga! vencido! vencido! vencido!!!

Foi isto unicamente que puderam pescar os Srs. de Villequier e de O, dois grandes diplomatas que se persuadiam que nenhum segredo humano podia escapar-lhes. A excepção daquelas apóstrofes dirigidas a master Love, conservava-se Henrique perfeitamente mudo.

Apresentaram-lhe papéis para assinar: assinou-os; teve de ouvir a leitura de outros, e ouviu-os ler, fechando os olhos com tanta naturalidade que era impossível perceber se estava escutando ou dormindo.

Afinal, deram três horas da tarde.

O rei mandou chamar o Sr. d'Epernon. Responderam-lhe que o duque andava passando revista à cavalaria ligeira.

Perguntou por Loignac. Disseram-lhe que tinha ido experimentar uns cavalos de Limoges.

Todos esperavam ver o rei agastado por aquelas duas contrariedades; mas não sucedeu assim; o rei, contra a expectação geral, começou a assobiar um toque de trompa de caçador, distracção à qual nunca se entregava senão quando estava muito satisfeito.

Era evidente que o desejo que o rei tinha tido de se calar desde pela manhã ia-se transformando gradualmente numa comichão insuportável de falar.

A tal comichão acabou por se tornar numa necessidade irresistível; porém, não tendo a quem dirigir a palavra, viu-se obrigado a falar só.

Pediu de merendar e, enquanto comia, mandou que lhe fizessem uma leitura edificante, que interrompeu para dizer ao leitor:

— Foi Plutarco, não é assim, quem escreveu a vida de Sila?

O leitor, que estava lendo uma obra sagrada, e que interrompiam com uma pergunta profana, voltou-se para o rei muito admirado. O rei repetiu a pergunta.

— Sim, Real Senhor — respondeu o leitor.

— Estás lembrado daquela passagem em que o historiador conta que o ditador evitou a morte?

O leitor hesitou.

— Não estou bem certo, meu Senhor — disse ele —, há já muito tempo que não leio Plutarco.

Nesse mesmo instante o porteiro anunciou a chegada de Sua Eminência o Cardeal de Joyeuse. ;

— Ah! perfeitamente! — exclamou o rei — aí vem um homem erudito e nosso amigo; aposto que me responde sem hesitar.

— Real Senhor —- disse o cardeal — dar-se-á o caso que eu tivesse a ventura de chegar aqui a propósito? É coisa rara neste mundo.

— Chegou, não há dúvida; ouviu bem a minha pergunta?

— Vossa Majestade perguntava, se não me engano, de que maneira e em que circunstâncias o ditador Sila escapou à morte, não é assim?

— Exactamente. Pode responder-me a isto, cardeal?

— Nada há mais fácil, Real Senhor.

— Ora ainda bem.

— Sila, que foi causa da morte de tanto homem, Real Senhor, nunca arriscou a sua vida senão em combates. Vossa Majestade alude a algum combate?

— Sim; e num dos últimos combates que deu, parece-me, se bem me recordo, que encarou a morte de muito perto... Abra um plutarco, cardeal (deve estar aí um traduzido pelo bom do Amyot), e leia-me a passagem da vida do romano, em que ele, graças à velocidade do seu cavalo branco, escapou aos dardos dos seus inimigos.

— Real Senhor, não preciso para isso de abrir um plutarco: o acontecimento a que se refere verificou-se na batalha que ele deu a Teleserius Samnita e a Lamponius Lucraniano.

— Deve saber isso melhor do que pessoa alguma, meu caro cardeal: é tão erudito!

— Vossa Majestade trata-me realmente com demasiada bondade — respondeu o cardeal, inclinando-se.

— Agora — disse o rei depois de uma breve pausa — explique-me por que motivo o leão romano, que era tão cruel, nunca foi incomodado pelos seus inimigos.

— Real Senhor — disse o cardeal —, responderei a Vossa Majestade com um dito do mesmo Plutarco...

— Diga, Joyeuse, diga.

— Carbon, o inimigo de Sila, dizia com frequência: «Tenho de lutar ao mesmo tempo com um leão e uma raposa que habitam na alma de Sila; porém é a raposa quem me dá mais que fazer.»

— Ah! pois deveras?! — replicou Henrique pensativo — era a raposa?...

— Assim diz Plutarco, meu Senhor.

— E tem razão — disse o rei —, tem razão, cardeal. Mas já que falámos em combates: que notícias tem de seu irmão?

— De qual deles? Vossa Majestade sabe que eles são quatro...

— Do duque de Arques, meu amigo.

— Ainda não tive notícias dele, meu Senhor.

— Muito bom seria que o duque de Anjou, que até aqui tem sabido fazer tão bem de raposa, soubesse fazer um pouco de leão! — disse o rei.

O cardeal não respondeu, porque desta vez Plutarco não lhe podia servir de auxílio: receava, como subtil cortesão que era, responder desagradavelmente para o rei, respondendo agradavelmente para o duque de Anjou.

Henrique, vendo que o cardeal ficava calado, tornou às suas batalhas com master Love; e, passado um instante, fazendo sinal ao cardeal para que ficasse, levantou-se, vestiu-se sumptuosamente e encaminhou-se para o gabinete onde o esperava a corte.

A gente da corte sabe pressentir com o mesmo instinto que se encontra nos habitantes das montanhas a aproximação ou o fim das tempestades; apesar de que ninguém tinha falado e ninguém tinha ainda avistado o rei, todos estavam em disposição análoga à circunstância.

As duas rainhas estavam visivelmente inquietas. Catarina, pálida e desassossegada, cumprimentava muito a todos, e falava em tom breve e sacudido. Luísa de Vaudemont não olhava para pessoa alguma e nada ouvia. Havia instantes em que a pobre senhora parecia prestes a perder o juízo.

O rei entrou. Tinha os olhos animados e a tez rosada: lia-se-lhe no rosto uma aparência de bom humor que produziu em todos aqueles semblantes carregados que esperavam pela sua aparição, o mesmo efeito que produzem os raios de Sol nos bosques tintos de amarelo pelo Outono.

Tudo ficou dourado e avermelhado no mesmo instante; dali a um segundo tudo resplandecia.

Henrique beijou a mão da mãe e da esposa com tanta galantaria como se ainda fosse duque de Anjou. Dirigiu mil cumprimentos lisonjeiros às senhoras, que já não estavam acostumadas a obséquios daquela natureza, e chegou até a oferecer-lhes confeitos.

— Estavam todos com muito cuidado na sua saúde, meu filho — disse Catarina, olhando atentamente para o rei como para se certificar que aquelas cores não eram decerto resultado de arrebique e que aquele bom humor não era fingido.

— Não tinham razão, minhas Senhoras: nunca na minha vida passei melhor.

E acompanhou estas palavras de um sorriso que todas as bocas presentes repetiram.

— E qual é a feliz influência, meu filho — perguntou Catarina com mal disfarçada inquietação —, a que é devedor dessas melhoras na sua saúde?

— É o resultado de ter rido muito, minha Senhora — respondeu o rei.

Olharam todos uns para os outros com mostras de tamanha admiração, que parecia que o rei acabava de dizer um disparate.

— Riu muito? Se pode rir muito, meu filho — disse Catarina com o seu semblante austero —, é sinal que é muito feliz.

— Pois foi o que me sucedeu, sem tirar nem pôr, minha Senhora.

— E qual foi o motivo que lhe ocasionou uma tal hilaridade?

— Devo dizer-lhe em primeiro lugar, minha mãe, que ontem à noite fui ao bosque de Vincennes...

— Assim me constou.

— Ah! constou-lhe a minha ida lá?

— Sim, meu filho: tudo quanto lhe diz respeito me interessa muito; parece-me que não lhe dou nisto novidade alguma.

— Não, por certo. Fui pois ao bosque de Vincennes, e, ao regressar, os meus batedores deram-me parte de terem avistado um exército inimigo, cujos mosquetes brilhavam na estrada.

— Um exército inimigo na estrada de Vincennes?!

— Sim, minha mãe.

— E em que sítio?

— Defronte da piscina dos Domínicos, junto à casa da nossa boa prima.

— Junto à casa da Sr.a de Montpensier?! — exclamou Luísa de Vaudemont.

— Exactamente; sim, minha Senhora: junto de Bel-Esbat; aproximei-me denodadamente, pronto a combater, e avistei...

— Continue, por Deus! senhor — disse a rainha, seriamente assustada.

— Oh! tranquilize-se, minha Senhora...

Catarina esperava com ansiedade; porém não mostrava nem por gestos nem por palavras a inquietação em que estava.

— Avistei — prosseguiu o rei — um priorado todo, uma comunidade de estimáveis monges, que me apresentavam armas com aclamações belicosas.

O cardeal de Joyeuse desatou a rir; a corte toda acompanhou-o logo naquela manifestação.

— Oh! — disse o rei — com razão se ri, pois é sucesso que há-de lembrar por muito tempo; tenho em França para cima de dez mil monges, que posso transformar em caso de aperto em dez mil mosqueteiros; hei-de criar então o emprego de comandante-geral dos mosqueteiros tonsurados de Sua Majestade Cristianíssima, e dar-lho-ei, cardeal.

— Aceito, meu Senhor; estou pronto para desempenhar todo e qualquer serviço que seja do agrado de Vossa Majestade. Durante o colóquio do rei com o cardeal, as senhoras tinham-se levantado, segundo a etiqueta daquele tempo, e, uma a uma, depois de terem cumprimentado o rei, iam saindo do aposento; a rainha seguiu-as, com as suas damas de honor.

A rainha-mãe ficou só; a jovialidade insólita do rei encobria um mistério que ela queria sondar.

— Ah! cardeal — disse de repente o rei para o prelado, que se dispunha a sair, vendo que a rainha-mãe ficava e percebendo que ela lhe queria falar —, não me dirá que é feito de seu irmão de Bouchage?

— Não sei dele, meu Senhor.

— O quê!? pois não sabe dele?!

— Não, porque só de longe a longe o vejo; ou, para melhor dizer, já há muito que o não vejo.

Uma voz grave e triste ressoou lá no fundo da sala:

— Eis-me aqui, Real Senhor.

— Ah! ei-lo! — exclamou Henrique — aproxime-se, conde, aproxime-se! O mancebo obedeceu.

— Oh! santo nome de Deus! — disse o rei, olhando para ele com espanto — já não é um corpo, é uma sombra ambulante!

— Entrega-se demasiado ao estudo, meu Senhor — balbuciou o cardeal, pasmado também de ver a mudança que no espaço de oito dias se tinha efectuado no corpo e no rosto do irmão.

E, com efeito, de Bouchage estava pálido como uma estátua de cera, e o corpo, por baixo da seda e bordaduras que o encobriam, apresentava o inteiriçamento e a tenuidade de uma

sombra.

— Aproxime-se — disse o rei —, aproxime-se. Obrigado, cardeal, pela sua citação de Plutarco; prometo recorrer à sua memória sempre que se apresentarem iguais dúvidas.

O cardeal entendeu que o rei desejava ficar só com Henrique e saiu imediatamente. O rei viu-o sair, e depois volveu os olhos para a mãe, que se conservava no mesmo lugar. Já não havia na sala senão a rainha-mãe, o Sr. d'Epernon, que a estava cumprimentando, e de Bouchage. A porta estava Loignac, meio cortesão, meio soldado, o qual só tratava do seu serviço. O rei sentou-se e acenou a de Bouchage para que se aproximasse.

— Conde — disse-lhe ele —, por que motivo se oculta assim atrás das senhoras? Não sabe que tenho sempre muito gosto em vê-lo?...

— Essas boas palavras de Vossa Majestade honram-me sobremaneira, meu Senhor — respondeu o conde, inclinando-se com respeito.

— Então, conde, porque é que ninguém o vê no Louvre?

— Ninguém me vê, meu Senhor?

— Não, por certo! e disso me estava queixando a seu irmão cardeal, que é muito mais erudito do que eu supunha.

— Se Vossa Majestade não me vê — disse Henrique — é porque não se tem dignado volver os olhos para o canto do gabinete, Real Senhor; todos os dias aqui estou à mesma hora quando el-rei entra. Também apareço regularmente à hora de Vossa Majestade se levantar, e sempre o cortejo respeitosamente quando sai do Conselho. Ainda não faltei, nem hei-de faltar um só dia, enquanto me puder ter de pé, pois é para mim um dever sagrado.

— E é isso que tão triste te torna? — perguntou Henrique amigavelmente.

— Oh! estou certo que Vossa Majestade não pensa tal.

— Não, pois sei que tu e teu irmão são meus amigos.

— Meu Senhor!...

— E eu também os estimo a ambos. É verdade: sabes que o pobre Anne escreveu-me de Diepa?..

— Não sabia, meu Senhor.

— Mas sabias que ele partiu daqui desesperado...

— Ele confessou-me que lhe custava a sair de Paris.

— Sim; mas queres saber o que ele me disse? Que havia um homem a quem teria sido muito mais custoso sair de Paris, e que tu, se recebesses semelhante ordem, terias morrido.

— Pode ser, meu Senhor.

— Ainda me disse mais (porque o teu irmão conta-me muita coisa... quando não está amuado comigo, já se sabe): disse-me que tu, no caso dele, ter-me-ias desobedecido... Será verdade?

— Real Senhor, Vossa Majestade teve razão em falar da morte antes da desobediência.

— Mas diz-me: que farias dado o caso de não teres morrido ao receberes a ordem de partida?

— Real Senhor, ter-me-ia sido muito mais doloroso desobedecer-lhe do que morrer; contudo — acrescentou o mancebo, baixando a pálida fronte como para ocultar o seu enleio —, ter-lhe-ia desobedecido.

O rei cruzou os braços e olhou para Joyeuse.

— Sabes que mais?... — disse ele — parece-me que estás caminhando para louco, meu pobre conde!

O mancebo sorriu tristemente.

— Oh! já estou louco de todo, meu Senhor — replicou ele —, e Vossa Majestade faz mal em me poupar.

— Visto isso, a coisa é séria, meu amigo? Joyeuse abafou um suspiro.

— Ora vamos! conta-me isso.

O mancebo levou o heroísmo ao ponto de sorrir.

— Um rei como Vossa Majestade, meu Senhor, não pode descer a semelhantes confidências.

— Não haja dúvida, Henrique; fala, conta-me a tua história para me distraíres.

— Meu Senhor — respondeu o moço com orgulho — , Vossa Majestade está enganado; posso asseverar-lhe que a narração dos meus pesares não é própria para distrair um coração bem formado.

O rei pegou na mão do mancebo.

— Vamos! não te enfades, de Bouchage; não ignoras que o teu rei também sabe por experiência própria o que é uma paixão não correspondida.

— Sei, sim, meu Senhor, mas foi noutro tempo.

— Por isso me compadeço dos teus sofrimentos.

— É demasiada bondade num rei.

— Não; quando eu sofria o que agora sofres, como só tinha acima de mim o poder de Deus,

não pude lançar mão de recurso algum; porém tu, meu filho, estás noutro caso: podes! aproveitar-te do meu auxílio.

— É impossível, meu Senhor!

— E por conseguinte — prosseguiu Henrique com afectuosa tristeza —, podes ter a esperança de ver finalizar as tuas mágoas.

O mancebo abanou a cabeça, como quem duvida.

— De Bouchage — disse Henrique —, ou tu hás-de ser feliz, ou eu hei-de deixar de me chamar rei de França!

— Feliz, eu?! ah! meu Senhor, não é possível! — respondeu o mancebo, com um sorriso acompanhado de inexprimível amargura.

— E por que razão?

— Porque a minha felicidade não é deste mundo.

— Henrique — insistiu o rei —, teu irmão, quando daqui partiu, recomendou-te a mim como a um amigo. Já que não queres consultar sobre o que tens a fazer, nem a prudência de teu pai, nem a sabedoria do teu irmão cardeal, quero ser eu para ti como um irmão mais velho.i Ora vamos! sê franco, e conta-me tudo. Afirmo-te, de Bouchage, que o meu poder, e o afecto! que tenho por ti, tudo remediarão, excepto a morte.

— Meu Senhor — respondeu o mancebo ajoelhando aos pés do rei —, não me confumda com essas provas de bondade a que eu não posso corresponder. A minha infelicidade não tem remédio, porque a minha infelicidade é a minha única consolação.

— De Bouchage, és um louco e acabarás por matar-te com essas quimeras!

— Bem sei, meu Senhor — respondeu o mancebo com placidez.

— Mas enfim! — exclamou o rei com certa impaciência — é algum casamento que desejas contrair, ou alguma influência que pretendes exercer?

— Meu Senhor, é uma paixão que preciso inspirar. Bem vê que ninguém no mundo tem poder para me alcançar esse favor: só eu devo obtê-lo, e obtê-lo por mim unicamente.

— Então para que te desesperas!?

— Porque estou certo que nunca o hei-de conseguir, meu Senhor.

— Faz a diligência, meu filho; és rico e moço: qual é a mulher que pode resistir à tríplice influência da formosura, do amor e da mocidade?... Não há nenhuma, de Bouchage, não há nenhuma!

— Quantas pessoas no meu lugar bendiriam Vossa Majestade por sua excessiva indulgência, pelos favores que me dispensa! Possuir a estima de um rei como Vossa Majestade, vale quase tanto como ser estimado por Deus.

— Então sempre aceitas? Está bom! não digas mais nada se tens empenho em mostrar que és discreto: eu tirarei informações e darei os passos necessários. Sabes quanto tenho feito por teu irmão; hei-de fazer o mesmo por ti: não olharei a despender cem mil escudos, se preciso for.

De Bouchage pegou na mão do rei e levou-a aos lábios.

— Se um dia Vossa Majestade se lembrar de me pedir o meu sangue — disse ele —, derramá-lo-ei até à última gota para lhe provar quanto sou grato à protecção que recuso.

Henrique III virou as costas com enfado.

— Na verdade — disse ele —, estes Joyeuses são ainda mais teimosos do que os Valois. Aqui está um que há-de trazer-me todos os dias para aqui a sua cara de palmo e meio e os olhos pisados! Que divertido há-de ser! E há já na minha corte tanta cara alegre!...

— Oh! meu Senhor, não tenha esse receio — exclamou o mancebo —, o rubor da febre cobrir-me-á as faces como mentiroso arrebique, e todos julgarão, quando me virem sorrir, que sou o mais feliz dos homens.

— Sim; mas como eu sei o contrário, desgraçado cabeçudo! essa convicção há-de entristecer-me.

—Vossa Majestade dá licença que me retire? — disse de Bouchage.

— Dou, meu filho; vai, e faz por ser homem.

O mancebo beijou a mão do rei, foi cumprimentar a rainha-mãe, passou com altivez por diante de d'Epernon, que não o cortejava, e saiu.

Apenas ele transpôs o limiar da porta, bradou o rei:

— Fecha, Nambu!

O porteiro da câmara, a quem aquela ordem era dirigida, logo anunciou na antessala que o rei não recebia mais pessoa alguma.

Henrique aproximou-se do duque d'Epernon, e batendo-lhe no ombro:

— La Valette — disse ele —, hás-de mandar fazer uma distribuição de dinheiro esta noite aos teus Quarenta e Cinco, e conceder-lhes-ás licença por toda uma noite e um dia. Quero que se divirtam. Salvaram-me, por Deus! Salvaram-me os maganões, como o cavalo branco de Sila!

— Salvaram-te?... — disse Catarina com admiração.

— Sim, minha mãe.

— E de que foi que te salvaram?

— Ah! se quer saber, pergunte a d'Epernon.

— Estou-te perguntando a ti; parece-me que é muito melhor.

— Pois bem, minha Senhora! a nossa muito querida prima, irmã do seu prezado amigo Sr. de Guisa... Oh! não o negue: bem se sabe que é seu amigo muito prezado...

Catarina sorriu, em ar de quem diz: «Está visto que nunca há-de compreender.» O rei reparou no sorriso, mordeu os lábios, e prosseguiu:

— A irmã do seu prezado amigo de Guisa mandou-me armar ontem uma cilada.

— Uma cilada?!

— Sim, minha Senhora; ontem escapei por pouco de ser agarrado, e assassinado talvez.

— Pelo Sr. de Guisa?! — exclamou Catarina.

— Não acredita?...

— Confesso que não — respondeu Catarina.

— D'Epernon, meu amigo, pelo amor de Deus, conte a Sua Majestade a Rainha-mãe a aventura com todos os seus pormenores. Se eu falasse e ela continuasse a encolher os ombros como está fazendo, acabaria por me encolerizar, e juro que não tenho saúde para isso.

E em seguida, voltando-se para Catarina:

— Adeus, minha Senhora, adeus; estime o Sr. de Guisa, se assim lhe apraz. Eu já mandei rodar o Sr. de Salcède, há-de estar lembrada, não?

— Decerto.

— Pois muito folgarei que os Srs. de Guisa o não esqueçam, como a senhora.

O rei, depois de proferir estas palavras, encolheu os ombros ainda mais do que os havia encolhido a rainha, e voltou para a sua câmara, seguido de master Love, que para o acompanhar se via obrigado a correr.

 

         A PLUMA VERMELHA E A PLUMA BRANCA

Já tratámos dos homens, tratemos agora das coisas.

Eram oito horas da noite, e a casa de Roberto Briquet, sozinha, triste, sem um único reflexo, perfilava o seu vulto triangular sobre o céu coberto de nuvens, e mais disposto para chuva do que para luar.

Aquela pobre casa, que bem mostrava estar privada da sua alma, formava boa simetria com a casa misteriosa de que já temos tido a honra de falar aos nossos leitores e que lhe ficava fronteira.

Os filósofos que afirmam que nada vive, fala e sente, como as coisas inanimadas, teriam dito por certo, ao ver aquelas duas casas, que estavam bocejando uma defronte da outra.

Não longe daquele sítio ouvia-se um grande ruído de objectos de cobre ou de arame misturado com vozes confusas e com murmúrios vagos e gritaria, como se os Coribantes estivessem celebrando nalgum antro os mistérios de Cibele.

Era provavelmente aquele ruído que atraía um guapo mancebo, de gorro roxo com uma pluma vermelha, e capa cinzenta, o qual se demorava minutos inteiros a escutar aquela algazarra, e depois voltava vagarosamente, pensativo e de cabeça baixa, na direcção da casa de Roberto Briquet.

Aquela sinfonia de tangeres de cobre e de arame era a bulha das caçarolas; os murmúrios vagos: as panelas a ferver ao lume e os espetos movidos por hábeis mãos; os gritos eram proferidos por mestre Fournichon, dono da hospedaria do Cavaleiro Destemido, que estava dirigindo os trabalhos das suas fornalhas; e os guinchos eram da Sr.a Fournichon, que mandava aprontar os camarins dos seus torreões.

O mancebo do gorro roxo, depois de se conservar por alguns momentos a contemplar o lume, a respirar o cheiro das aves assadas e a examinar as cortinas das janelas, desandava o caminho que tinha andado, e em seguida voltava, para continuar a examinar aquela cena.

Havia, contudo, por mais independente que parecesse o seu passeio à primeira vista, um limite que ele nunca ultrapassava: era a espécie de rego que dividia a rua na frente da casa de Roberto Briquet e terminava junto da casa misteriosa.

Cumpre também notar que toda a vez que o passeante chegava àquele limite encontrava, como sentinela vigilante, um outro mancebo, que teria a mesma idade, pouco mais ou menos, com gorro preto, pluma branca e capa roxa, o qual, com a testa enrugada, os olhos fitos e a mão sobre a espada, parecia dizer-lhe, à semelhança do gigante Adamastor: «Daqui não passarás sem encontrares tempestade.»

O passeante da pluma vermelha, isto é, o primeiro que apresentámos em cena, deu vinte voltas sem reparar nisto que acabámos de dizer, tal era a sua preocupação. Não era porque não tivesse visto que andava um homem passeando como ele pela via pública; porém aquele indivíduo estava tão bem trajado que não podia ser um ladrão, e ele só curava de espreitar o que se passava na hospedaria do Cavaleiro Destemido.

O outro, pelo contrário, a cada volta do da pluma vermelha, carregava mais o semblante, já bastante sombrio; até que, afinal, a dose do fluido irritado tornou-se tão pesada no dono da pluma branca, que acabou por despertar a atenção do da pluma vermelha.

Ergueu a cabeça e leu no rosto do sujeito que tinha na sua frente a péssima disposição em que parecia estar a seu respeito.

Esta observação induziu-o naturalmente a pensar que estava incomodando o mancebo com a sua presença; e esta ideia trouxe consigo o desejo de indagar o motivo por que o incomodava.

Pôs-se por consequência a olhar atentamente para a casa de Roberto Briquet. E depois de olhar para esta, passou a examinar a que lhe ficava fronteira. Afinal, depois de ter olhado muito para ambas sem dar mostras de lhe importar a maneira por que o olhava a ele também o mancebo da pluma branca, voltou costas e encaminhou-se novamente na direcção das fornalhas rutilantes de mestre Fournichon.

O da pluma branca, satisfeito por ter derrotado o seu adversário, pois tinha tomado por derrota a reviravolta que o outro acabava de executar, continuou a passear na mesma direcção, isto é, de leste para oeste, enquanto o outro caminhava de oeste para leste.

Ambos, porém, quando chegaram ao ponto que interiormente haviam marcado para limite do passeio, voltaram-se e tornaram a andar em linha recta ao encontro um do outro, e tão directamente que, se não fora o regato que os separava, qual outro Rubicão, ter-se-iam chocado os narizes de ambos.

O da pluma branca retorceu o bigodinho com um movimento de impaciência bem visível. O da pluma vermelha mostrou-se muito admirado e olhou novamente para a casa misteriosa. O da pluma branca deu então um passo, como para atravessar o «Rubicão», porém o da pluma vermelha já se havia afastado: e o passeio em sentido inverso começou novamente.

Durante cinco minutos pareceu que só nos antípodas eles se encontrariam; mas não tardou que ambos se voltassem ao mesmo tempo, com tanto instinto e precisão como da primeira vez.

Os dois passeantes, semelhantes a duas nuvens que seguem a mesma zona do céu impelidas por ventos contrários, e que avançam uma para a outra destacando como vanguardas fragmentos mais escuros, chegaram desta vez à frente um do outro resolvidos a pisarem-se mutuamente de preferência a recuarem um único passo sequer.

O da pluma branca, que era provavelmente mais impaciente do que o que vinha ao seu encontro, em vez de se conservar, como até ali tinha feito, nos limites do regato, atravessou-o, e fez recuar o adversário, que, não esperando aquela agressão, e achando-se com os braços tolhidos pela capa em que estava embuçado, por pouco não perdeu o equilíbrio.

— Ora diga-me, Senhor — exclamou este último —, está louco ou quer insultar-me!?

— O que eu quero, Senhor, é afirmar-lhe que me está incomodando sobremaneira; parecia-me até que já o tinha percebido sem que eu lho dissesse.

— Está enganado, Senhor, pois tenho por sistema não ver nunca aquilo que não quero ver.

— Contudo, estou persuadido que há coisas que seriam capazes de atrair as suas vistas se alguém as fizesse brilhar aos seus olhos.

E acompanhando as palavras com o gesto, o mancebo da pluma branca tirou a capa e puxou pela espada, que cintilou aos raios da Lua, que naquele momento aparecia por entre as nuvens.

O da pluma vermelha conservou-se imóvel.

— Dir-se-ia, senhor — replicou ele encolhendo os ombros —, que nunca tirou um ferro da bainha, tal é a pressa com que puxa pela espada contra uma pessoa que não se defende!

— Mas que há-de defender-se, segundo espero.

O da pluma vermelha sorriu com uma tal placidez, que muito aumentou a irritação do seu adversário.

— Por que motivo, e que direito tem para obstar a que eu passeie pela rua!?...

— E por que razão anda o Senhor passeando por esta rua?

— Realmente!... acho graça à pergunta... É que assim me apraz!

— Ah! é por que assim lhe apraz?...

— Sim, por certo; também o senhor por aqui anda passeando! tem acaso privilégio exclusivo de el-rei para ser o único a andar na Rua Bussy?...

— Ou tenha privilégio ou não, isso nada faz ao caso.

— Está enganado! faz muito, pelo contrário; eu sou súbdito fiel de Sua Majestade e não quero desobedecer-lhe em coisa alguma.

— Ah... ah... parece-me que está zombando!...

— E se assim fosse?... também o senhor me está ameaçando!

— Repito-lhe que me incomoda aqui, Senhor! E se não se afasta por bem, eu saberei afastá-lo à força!

— Oh! Senhor, isso é o que me falta ver.

— Cos demónios!... há uma hora que lho estou dizendo!

— Senhor, estou aqui porque tenho que fazer neste bairro. Agora, se o exigir, trocarei com o senhor duas ou três estocadas, mas não sairei daqui.

— Senhor — replicou o da pluma branca, unindo os calcanhares e agitando a espada, como que se dispondo a pôr-se em guarda —, eu sou o conde Henrique de Bouchage, irmão do Senhor Duque de Joyeuse; pela última vez lhe pergunto: quer ceder-me o terreno e retirar-se daqui?

— Eu, Senhor — respondeu o da pluma vermelha —, sou o visconde Ernauton de Car-mainges; o senhor não me incomoda por forma alguma, e não me oponho a que se conserve aqui.

De Bouchage reflectiu um instante e embainhou a espada.

— Desculpe-me, Senhor, desculpe-me — disse ele —, estou meio louco... estou apaixonado...

— Eu também — respondeu Ernauton —, mas nem por isso julgo ter enlouquecido. Henrique empalideceu.

— Está apaixonado?...

— Sim senhor.

— E confessa-o?!

— Será algum crime, porventura?...

— Mas a sua namorada está nesta rua?

— Actualmente está, sim senhor.

— Em nome do Céu, senhor! diga-me quem é a sua namorada!

— Ah! Sr. de Bouchage, não reflectiu no que me pede; sabe muito bem que um cavalheiro não pode revelar um segredo de que só lhe pertence...

— Peço perdão, Sr. de Carmainges, mas na verdade não há no mundo um ente mais infeliz do que eu.

Estas palavras foram proferidas com tal expressão de dor e de desespero, que Ernauton sentiu-se profundamente comovido.

— Oh! percebo — disse ele —, receia que sejamos rivais...

— Muito!

— Pois bem! — prosseguiu Ernauton — vou ser franco com o senhor... Joyeuse empalideceu e correu a mão pela testa.

— Eu — prosseguiu Ernauton — estou aqui aprazado para uma entrevista.

— Está aprazado para uma entrevista?

— Sim senhor, e em boa e devida forma.

— Nesta rua?

— Nesta mesma rua.

— Por escrito?

— Sim senhor; e até com bem bonita letra.

— De mulher?

— Não senhor: de homem.

— De homem?! que quer dizer?

— Quero dizer isto mesmo que estou dizendo. Estou aprazado para me encontrar com uma mulher, e o bilhete é escrito por mão de homem que tem bonita letra; o convite, por esta maneira, é menos misterioso; mas é mais elegante; vê-se que é pessoa que tem secretário.

— Ah! — murmurou Henrique — conclua, Senhor, em nome do Céu!

— Pede-me isso com tanta instância, Senhor, que não me posso negar a fazer-lhe a vontade. Vou pois dizer-lhe o conteúdo do bilhete...

— Estou ouvindo.

— Verá se é o mesmo que lhe escreveram.

— Basta, Senhor, por mercê! a mim nem me aprazaram encontro algum, nem me mandaram bilhete.

Ernauton tirou do bolso um papelinho.

— Eis aqui o bilhete, Senhor — disse ele. — Ser-me-ia custoso lê-lo, visto estar a noite tão escura; porém consta de poucas palavras e sei-o de cor: confia em que não sou capaz de o enganar? >

— Oh! confio, decerto!

— Eis pois os termos em que é concebido: «Sr. Ernauton, incumbo o meu secretário de lhe dizer que tenho muito desejo de conversar uma hora com o senhor; é o seu merecimento que me faz dar este passo.»

— Isso está escrito aí? — perguntou de Bouchage.

— Confesso que sim, Senhor; a última frase até está sublinhada. Calo a frase que se segue, e que é demasiado lisonjeira.

— E essa pessoa está à sua espera?

— Quem está à espera, por ora, sou eu, como vê.

— Então hão-de abrir-lhe a porta, é?

— Não: apitarão três vezes da janela.

Henrique, muito trémulo, agarrou o braço de Ernauton e, apontando-lhe a casa misteriosa:

— Dali?... — perguntou ele.

— Nada! — respondeu Ernauton, indicando os torreões do Cavaleiro Destemido.

— Oh! abençoado seja! — disse o mancebo apertando-lhe a mão — oh! desculpe as minhas grosserias e a minha loucura! Sabe muito bem que para todo o homem que ama deveras não existe no mundo senão uma mulher, e quando vi que não cessava de passear pela frente da casa pensei que era a mulher que nela habita que estava à sua espera.

— Não tenho de que lhe conceder desculpa, Senhor — respondeu Ernauton sorrindo — pois, a dizer-lhe a verdade, também eu cheguei a persuadir-me de que o senhor estava nesta rua pelo mesmo motivo que eu.

— E teve a incrível paciência de não me dizer coisa alguma?! Oh! não está verdadeiramente apaixonado!...

— Confesso-lhe que ainda não tenho fortes motivos para isso; estou à espera que se me dê uma explicação, antes de romper de todo, as fidalgas são tão fantásticas nos seus namoros, e diverte-as tanto pregar uma peça a qualquer!...

— Está bom, Sr. de Carmainges, vejo que não está apaixonado como eu; e contudo...

— E contudo o quê?

— E contudo... é mais feliz.

— Ah então a dona desta casa trata-o com crueldade?...

— Sr. de Carmainges — disse Joyeuse —, há três meses que amo como um louco a pessoa que aqui habita e ainda não tive a dita de lhe ouvir o som da voz.

— Diacho! não está muito adiantado... Mas espera...

— Que é?

— Não ouviu apitar?

— Com efeito, parece-me que ouvi.

Os dois mancebos puseram-se à escuta, e um segundo toque de apito ressoou na direcção do Cavaleiro Destemido.

— Senhor Conde — disse Ernauton —, desculpe-me se não lhe faço por mais tempo companhia, mas parece-me que é aquele o meu sinal.

Ressoou um terceiro toque de apito.

— Vá, Senhor, vá — disse Henrique — e estimo que seja feliz.

Ernauton retirou-se imediatamente, e o seu interlocutor viu-o desaparecer na escuridão da rua, e depois tornar a aparecer no clarão que projectavam as janelas da hospedaria do Cavaleiro Destemido, para dentro da qual se sumiu.

Quanto a ele, mais triste do que antes, pois aquela espécie de luta tinha-o feito sair por um instante do seu letargo:

«Vamos lá, disse consigo, cumpra-se o meu fado: batamos como nos mais dias a esta porta maldita que nunca se abre.»

E ao dizer estas palavras, encaminhou-se para a porta da casa misteriosa.

 

         ABRE-SE A PORTA

Ao chegar à porta da casa misteriosa, o pobre Henrique sentiu que se apoderava dele a costumada hesitação.

«Ânimo! disse a si mesmo; batamos.»

E deu outro passo. Porém, antes de bater, tornou a olhar para trás e viu a distância o reflexo brilhante das luzes da hospedaria.

«Além, disse ele consigo, vai em procura de amor e de gozos um homem a quem mandaram chamar sem que ele o desejasse; porque não tenho eu o coração tranquilo e o pensamento isento de cuidados? Podia ser que também estivesse a estas horas entrando para ali, em vez de tentar debalde entrar para aqui.»

Ouviu-se vibrar melancolicamente no espaço o sino de S. Germano dos Prados.

«Vamos lá, estão dando as dez horas.»

Pôs o pé no degrau da porta e levantou a aldraba.

«Que vida tão enfadonha! murmurou; tenho uma vida de velho! Oh! quando chegará o dia em que eu possa dizer: amiga morte, morte risonha, doce túmulo, bem-vindos sejam!»

Bateu segunda argolada.

«É isto mesmo, prosseguiu ele, ouço o barulho que faz a porta interna ao abrir-se, range a escada e sentem-se as passadas de alguém que se aproxima; sempre assim, sempre a mesma coisa!»

E bateu terceira vez.

«Mais esta argolada, disse ele; é a última. Aproximam-se mais as passadas, o criado espreita pela grade de ferro, vê a minha cara pálida, sinistra, e retira-se, sem nunca abrir!»

A cessação de todo o rumor pareceu justificar a predição do infeliz mancebo.

«Adeus, cruel casa, adeus! até amanhã» disse ele.

E, baixando-se de tal maneira que chegou com a testa ao nível do degrau de pedra, depositou nele, do íntimo da alma, um beijo que fez estremecer o duro granito, que era assim menos duro do que o coração dos habitantes daquela casa...

E depois retirou-se, como tinha feito na véspera, e como tencionava fazer no dia seguinte.

Porém, apenas teria dado dois passos quando, com grande admiração sua, o ferrolho rangeu nas argolas, a porta abriu-se e o criado surgiu, inclinando-se profundamente.

Era o mesmo que retratamos por ocasião da sua entrevista com Roberto Briquet.

— Boas-noites, Senhor — disse ele com voz rouca, mas cujo som pareceu a de Bouchage mais suave do que os mais harmoniosos concertos dos querubins que ouvimos nas visões da mocidade, quando ainda sonhamos com o Céu.

Henrique, que já ia para se afastar, voltou logo, trémulo e fora de si, e, unindo as mãos, cambaleou tão visivelmente que o criado o amparou para evitar que ele caísse sobre o degrau da porta, dando ao mesmo tempo mostras evidentes de respeitosa compaixão.

— Ora vamos, Senhor — disse ele —, aqui me tem; peço-lhe que me explique o que deseja de mim.

— Eu tenho amado tanto — respondeu o mancebo —, que já não sei se ainda amo. O meu coração tem palpitado tanto, que não posso dizer se ainda palpita.

— Quer fazer-me o favor — disse o criado respeitosamente — de se sentar aqui ao meu lado para conversarmos?

— Oh! sim!

O criado fez-lhe um aceno com a mão.

Henrique obedeceu ao aceno, como teria obedecido a um gesto do rei de França ou do imperador romano.

— Fale, Senhor — disse o criado, logo que ele se sentou ao seu lado —, e diga-me o que deseja.

— Meu amigo — respondeu de Bouchage —, não é hoje a primeira vez que nos falamos e que estamos assim em contacto um com o outro. Por várias vezes, como sabe, o tenho esperado e surpreendido ao voltar de alguma esquina, e lhe tenho oferecido ouro suficiente para o enriquecer; noutras ocasiões tenho procurado intimidá-lo; nunca me tem dado ouvidos: sempre me tem visto sofrer sem se compadecer, visivelmente pelo menos, dos meus sofrimentos. Hoje convida-me para conversar consigo, e diz-me que lhe declare qual é o meu desejo: que terá acontecido, meu Deus! e qual será a nova desgraça que me encobre essa condescendência?

O criado soltou um suspiro. Era evidente que por baixo daquela casca grossa existia um coração verdadeiramente compadecido.

Henrique ouviu o suspiro, e cobrou ânimo.

— Sabe — prosseguiu ele — quem eu amo; viu-me perseguir uma mulher e descobri-la, apesar dos esforços que ela fez para se esconder e fugir de mim; nunca nos momentos do mais acerbo sofrimento me escapou um único queixume, nunca dei seguimento aos pensamentos de violência que nascem da desesperação dos conselhos que a fogosa mocidade nos transmite com o ardor do sangue.

— É verdade, Senhor — disse o criado —, e nesse particular lhe fazemos justiça, minha ama e eu.

— Diga-me — continuou Henrique, apertando as mãos do vigilante guarda —, não podia eu lembrar-me, em qualquer daquelas noites em que me negava a entrada nesta casa, de arrombar a porta, como sucede por aí todos os dias com qualquer estudante embriagado ou namorado?... E então teria visto, ainda que fosse só um momento, aquela mulher inexorável, e ter-lhe-ia falado...

— Também é verdade.

— Finalmente — prosseguiu o jovem conde com indizível doçura e tristeza —, eu sou alguma coisa neste mundo, tenho um nome distinto, uma grande fortuna e muito valimento; sou protegido pelo próprio rei; ainda há pouco me aconselhava el-rei que lhe confiasse o motivo do meu pesar, dizendo-me que recorresse a ele, oferecendo-me a sua protecção...

— Ah!... — exclamou o criado, com visível inquietação.

— E eu não quis — acudiu logo o mancebo — não, não! tudo recusei para vir aqui pedir de mãos postas que me abrissem esta porta, que eu bem sei que não se abre nunca para mim.

— Senhor Conde, tem com efeito um coração muito leal e merece ser amado.

— Pois bem — interrompeu Henrique, com um doloroso aperto de coração, — qual é o pago que recebe este homem de coração leal, e que, segundo confessa, merece ser amado? ] Todas as manhãs mando aqui o meu pajem com uma carta: nem sequer a aceitam; todas as noites venho eu mesmo bater a esta porta, e todas as noites me mandam embora; enfim: consentem que eu sofra, que me desespere e que morra nesta rua, sem mostrarem por mim a compaixão que se tem por um pobre cão que está a uivar. Ah! meu amigo, torno a dizer-lhe: essa mulher não tem coração de mulher! é possível não ter amor a um infeliz, porque ninguém pode mandar ao coração que ame ou deixe de amar. Porém, deve-se ter dó de um desgraçado que sofre, dizer-lhe alguma palavra para o consolar; deve-se lamentar a sorte de um desditoso que cai, e estender-lhe a mão para o erguer; mas não! essa mulher folga de me ver penar! Não, essa mulher não tem coração; porque se o tivesse, ter-me-ia morto com uma palavra da sua boca, ou ter-me-ia mandado matar com alguma facada ou punhalada; e assim, ao menos, já eu teria deixado de sofrer.

— Senhor Conde — respondeu o criado, depois de ter ouvido com escrupulosa atenção tudo quanto o mancebo acabava de dizer —, acredite que a dama a quem acusa está bem longe de ter um coração tão insensível e tão cruel como diz; ela padece mais do que o senhor, pois tem reconhecido quanto sofre e sente pelo senhor viva simpatia.

— Oh! fala-me em compaixão, em compaixão!... — exclamou o mancebo, limpando o suor frio que lhe escorria das fontes — oh! quem me dera que um dia o seu coração, que tanto gaba, chegue a sentir o que é amor, assim como eu sinto! e então, se em troca desse amor lhe oferecerem compaixão, julgar-me-ei suficientemente vingado.

— Senhor Conde, Senhor Conde, pode não ser por falta de ter amado que se deixa de corresponder a uma paixão; essa mulher já teve talvez por alguém uma paixão mais violenta do que o senhor nunca há-de sentir; essa mulher já amou talvez como o senhor nunca há-de amar.

Henrique levantou as mãos para o Céu.

— Quem assim amou uma vez, ama toda a vida! — exclamou ele.

— E eu disse-lhe, porventura, que ela já deixou de amar, Senhor Conde?... — perguntou o criado.

Henrique soltou um grito de dor e deixou-se cair para trás como se houvessse sido mortalmente ferido.

— Ela ama outro!... — exclamou ele — ela ama outro! ah! meu Deus! meu Deus!

— Sim, ela ama outro; porém não tenha ciúmes do homem a quem ela ama, Senhor Conde, porque esse homem já não é deste mundo. A minha ama é viúva — acrescentou o compassivo criado, julgando acalmar com estas palavras a dor do mancebo.

E, com efeito, estas palavras restituíram-lhe, como por encanto, o fôlego, a vida e a esperança.

— Em nome do Céu! — disse ele — não me abandone! Oh! meu amigo, se ela é viúva, então não ama pessoa alguma, visto que o objecto a quem ama é um cadáver, uma sombra, um nome apenas... A morte é menos ainda do que a ausência. Dizer-me que ela ama um defunto é o mesmo que se me dissesse que me há-de amar a mim... Não há pesar, por maior que seja, que o tempo não acabe por acalmar. Também a viúva de Mausolo tinha jurado sobre o túmulo do esposo que a sua dor havia de ser eterna; mas, apenas se lhe esgotaram as lágrimas, ficou curada. A saudade é uma doença, e o indivíduo a quem a crise não arrebata sai da mesma crise mais vigoroso e vivaz do que antes.

O criado abanou a cabeça.

— Esta senhora, Senhor Conde, à imitação da viúva do rei Mausolo, jurou ao defunto eterna fidelidade; mas eu conheço-lhe o génio, e estou inteira e plenamente convencido de que há-de sustentar a sua promessa melhor do que essa mulher tão esquecida com quem a compara.

— Esperarei dez anos, se preciso for! — exclamou Henrique. — Deus não permitiu que ela morresse de desgosto, ou que abreviasse violentamente a sua vida: bem vê que, se ela não morreu, é porque pode viver, e enquanto ela viver posso eu esperar.

— Oh! Senhor — disse o criado com lúgubre acento —, não conte assim com os sombrios pensamentos dos vivos, nem com as exigências dos mortos. Ela tem vivido, diz o senhor; sim, ela tem vivido! e não tem sido um só dia, um mês, ou um ano: há sete anos que vive assim.

Joyeuse estremeceu.

— Sabe porventura por que motivo ela tem vivido, para que fim, ou qual é o plano que ela tenciona pôr em execução? Espera que ela um dia se console?... Nunca, Senhor Conde, nunca! Sou eu que o digo, sou eu que o juro; eu, que não era mais do que um servo humilde do defunto, eu, que, enquanto ele foi vivo, tinha uma alma piedosa, ardente e cheia de esperança, e, desde que ele morreu, tenho um coração empedernido; pois eu, que só era seu servo, torno a repetir, nunca me hei-de consolar!

— Esse homem, que deixou tantas saudades — interrompeu Henrique —, esse bem-aven-turado defunto, esse marido...

— Não era marido, era amante, Senhor Conde; e uma mulher como esta, a quem desgraçadamente ama, nunca tem senão um amante em toda a vida.

— Meu amigo! — exclamou o conde, aterrado pela selvática majestade daquele homem de tão elevado espírito, e que assim se encobria com trajos vulgares — meu amigo! suplico-lhe que interceda por mim!

— Eu?! — exclamou ele — eu?! Ouça, Senhor Conde: se eu o julgasse capaz de usar de violência para com minha ama, tê-lo-ia morto com esta mão!

E deitou fora do capote um braço musculoso e robusto, que parecia de um homem de vinte e cinco anos, quando muito, enquanto a encanecida cabeça e o corpo alcatruzado lhe davam a aparência de um homem de sessenta anos.

— E se, pelo contrário — prosseguiu ele —, eu me persuadisse que minha ama lhe tinha amor, matá-la-ia. Agora, Senhor Conde, já disse quanto tinha a dizer; não procure induzir-me a ser mais explícito, porque lhe declaro, pela minha honra, que lhe disse tudo quanto lhe podia declarar.

Henrique levantou-se com a morte no coração.

— Agradeço-lhe — disse ele — a compaixão que teve pelas minhas mágoas; agora já estou decidido.

— Visto isso, há-de viver mais sossegado para o futuro, Senhor Conde; afastar-se-á de nós e deixar-nos-á entregues ao nosso destino, que é, assevero-lhe, muito pior do que o seu.

— Sim, afastar-me-ei, efectivamente, eu o prometo — disse o mancebo — e há-de ser para sempre.

— Quer morrer, bem o entendo.

— Para que o hei-de ocultar?... não posso viver sem ela... Que remédio tenho, pois, senão morrer, logo que estou desenganado de que nunca a hei-de possuir?...

— Senhor Conde, minha ama e eu temos conversado com frequência a respeito de mortes; acredite no que lhe digo: não é bom matar-se a gente por nossas próprias mãos.

i — Também não é assim que quero morrer; um mancebo com um nome como o meu, com a minha idade e a minha fortuna, sempre tem ocasião de morrer honrosamente, dedicando-se à defesa de el-rei e da pátria.

— Se o seu sofrimento é superior às suas forças, se nada deve aos que hão-de sobreviver-lhe, se se lhe oferece a oportunidade de morrer num campo de batalha, morra, Senhor Conde, morra: há muito que eu assim teria morrido, se não estivesse condenado a viver.

— Adeus, e muito obrigado — respondeu Joyeuse, estendendo a mão ao criado desconhecido. — Até mais ver, lá no outro mundo!

E afastou-se rapidamente, depois de ter atirado aos pés do criado, que tão profunda dor havia comovido, uma pesada bolsa cheia de ouro.

Estava dando meia-noite na Igreja de S. Germano dos Prados.

 

         DE COMO ERAM OS AMORES DE UMA FIDALGA NO ANO DO NASCIMENTO DE 1586

Os três toques de apito que em iguais intervalos tinham ressoado, eram efectivamente destinados a servir de sinal ao feliz Ernauton.

Por isso, quando o mancebo chegou junto da casa, encontrou a Sr.a Fournichon à porta, onde estava à espera dos fregueses com um sorriso que se assemelhava ao de uma deusa da mitologia debuxada por um pintor flamengo.

A Sr.a Fournichon conservava ainda numa das suas alentadas e brancas mãos um escudo de ouro, que nelas acabava de depositar, ao entrar, uma outra mão, igualmente branca, porém muito mais delicada que as suas.

Olhou para Ernauton e, descansando as mãos nos quadris, encheu a abertura da porta de modo a tornar impossível a entrada.

Ernauton, ao ver aquele movimento, parou, como pedindo licença para passar.

— Que pretende, Senhor? — disse ela — quem procura?

— Não foi da janela daquele torreão que apitaram há pouco por três vezes?

— Foi, sim senhor.

— Pois bem! queira dar-me licença, então, porque aqueles três toques de apito eram para me chamar.

— Ao senhor?

— Sim, a mim.

— Então pode entrar, se me der a sua palavra de honra de que é verdade o que afirma.

— À fé de cavalheiro que é verdade, minha rica Sr.a Fournichon!

— Muito bem, é quanto basta. Entre, guapo cavalheiro, entre.

E, satisfeita por ter conseguido afinal a casta de fregueses que ela tanto ambicionava para a desgraçada Roseira do Amor, que tinha sido suplantada pelo Cavaleiro Destemido, a boa da estalajadeira mandou subir Ernauton pela escada de caracol que dava serventia para o mais enfeitado e mais retirado dos seus torreões.

Uma portinha, vulgarmente pintada, dava entrada para uma espécie de antessala, e desta passava-se para o interior do torreão, em cuja mobília, ornatos e tapeçarias se via um certo luxo, que ninguém esperaria encontrar naquele canto afastado de Paris; devemos notar, porém, que a Sr.a Fournichon se tinha esmerado em aformosear aquele torreão, que era o seu predilecto, e as coisas executadas com gosto ficam geralmente perfeitas.

A Sr.a Fournichon tinha pois conseguido o seu intento com a perfeição de que é susceptível um espírito bastante vulgar.

O mancebo, ao entrar na antessala, sentiu um cheiro activo de benjoim e de aloés: era um holocausto feito sem dúvida alguma pela pessoa que estava esperando por Ernauton, e que assim procurava neutralizar, com o auxílio de perfumes vegetais, os vapores culinários que exalavam o espeto e as caçarolas.

A Sr.a Fournichon ia acompanhando o mancebo passo a passo; conduziu-o da escada para a antessala, e daqui para o torreão, piscando os olhos com gesto anacreôntico; e depois retirou-se.

Ernauton estacou, com a mão direita agarrada ao reposteiro, a mão esquerda sobre o fecho da porta e o corpo dobrado em acção de cortejar.

Acabava de avistar, no voluptuoso mezzo-tinto do quarto, que uma única vela de cera cor-de-rosa alumiava, um daqueles elegantes vultos de mulher que, quando não provocam o amor, despertam sempre a atenção, e muitas vezes os desejos.

A dama que ele tinha à vista, reclinada sobre as almofadas de um canapé, toda ela embrulhada em seda e veludo, e com o delicado pé pendente fora do vestido, entretinha-se a queimar à luz da vela o resto de um raminho de aloés, que aproximava de vez em quando do rosto para lhe respirar o cheiro, enchendo daquele fumo o cabelo e as pregas do capuz que lhe resguardava a cabeça, como querendo penetrar-se toda de tão embriagante vapor.

Pelo modo por que atirou para o lume o remanescente do raminho, abaixando em seguida o vestido para cima do pé e o capuz para a cara, encoberta com uma máscara, logo Ernauton percebeu que lhe tinha ouvido as passadas e que sabia que se aproximava dela.

Contudo não se tinha voltado.

Ernauton esperou um instante; ela conservou-se na mesma posição.

— Minha Senhora... — disse o mancebo, procurando suavizar a voz — mandou chamar o seu humilde servo, ei-lo aqui presente.

— Ah! muito bem — disse a dama. — Queira sentar-se, Sr. Ernauton.

— Peço perdão, minha Senhora, mas devo primeiro que tudo agradecer-lhe a honra que me faz.

— Ah! isso é próprio de homem bem-criado, e tem toda a razão, Sr. de Carmainges; contudo, aposto que ainda não sabe perfeitamente quem é a pessoa a quem está agradecendo...

— Minha Senhora — replicou o mancebo, aproximando-se gradualmente —, tem o rosto oculto por uma máscara, as mãos encobertas pelas luvas; no momento em que eu entrava, privou-me da vista de um pezinho capaz de me fazer enlouquecer de amores: não vejo coisa alguma pela qual possa conhecê-la, e por isso só me resta adivinhar.

— E adivinha quem eu sou?

— É aquela que o meu coração deseja, aquela que a minha imaginação me pinta moça, formosa, poderosa e rica; tão rica e tão poderosa que dificilmente posso crer que o que se passa comigo seja uma realidade e não um sonho.

— Teve grande dificuldade para chegar até aqui? — perguntou a dama, sem responder directamente à torrente de palavras que trasbordava do coração de Ernauton.

— Não, minha Senhora; confesso mesmo que a entrada foi muito mais fácil do que eu

julgava

— É verdade que para um homem tudo é fácil, mas já não sucede assim com uma mulher.

— Sinto imenso, minha Senhora, o incómodo que teve, e pelo qual só posso tributar-lhe os meus humildes agradecimentos.

Porém, o pensamento da dama parecia ter já saltado para outra ideia.

— Que é que me dizia, Senhor? —'- disse ela com indolência, e descalçando ao mesmo tempo a luva, para mostrar uma mão adorável, redonda e afusada ao mesmo tempo.

— Dizia-lhe, minha Senhora, que apesar de não ter visto as suas feições, sei quem é e posso, sem receio de me enganar, dizer-lhe que a amo.

— Visto isso, julga poder afirmar que sou na realidade a pessoa que esperava encontrar aqui?

— A falta de vista, diz-mo o coração.

— Então conhece-me?

— Conheço, sim, minha Senhora.

— Deveras?... o senhor, um provinciano recém-chegado à capital, já conhece as mulheres de Paris?!

— De todas as mulheres de Paris, minha Senhora, só conheço por ora uma única.

— E essa única sou eu?

— Assim o penso.

— E por onde me conhece?

— Pela sua voz, pela sua graça e pela sua formosura.

— Pela minha voz, não duvido, porque não posso disfarçá-la; pela minha graça, posso tomar essa palavra como um cumprimento; mas pela minha formosura, só posso admitir a resposta como uma hipótese.

— Por que razão, minha Senhora?

— Decerto; conhece-me pela minha formosura, e a minha formosura está encoberta...

— Porém não o estava, minha Senhora, no dia em que, para a introduzir em Paris, a tive tão chegada a mim que o seu seio roçava pelos meus ombros, e o seu hálito me abrasava o pescoço.

— E por isso, apenas recebeu a minha carta, logo adivinhou que era de mim que se tratava?...

— Oh! não, não, minha Senhora, não pense tal! Não me ocorreu um único instante semelhante pensamento. Julguei que tinha sido tomado para alvo de alguma caçoada, ou que era vítima de algum erro; convenci-me que estava ameaçado de alguma daquelas catástrofes a que chamam boas fortunas, e há apenas alguns minutos, vendo-a e tocando-lhe...

E Ernauton fez o gesto de agarrar numa mão que fugia dele.

— Basta! — disse a dama — o caso é que o que eu fiz foi uma grande loucura.

— E porquê, minha Senhora, não me dirá?

— Porquê?! Afirma conhecer-me e ainda me pergunta por que razão chamo a isto loucura?!

— Oh! é verdade, minha Senhora! e eu que sou um ente bem insignificante, bem obscuro, à vista de Vossa Alteza...

— Por Deus lhe peço que me faça o favor de se calar, Senhor! Dar-se-á o caso que não tenha penetração alguma?...

— Que fiz eu, minha Senhora? Diga-mo em nome do Céu! — perguntou Ernauton, assustado.

— É assim?!... vê-me com esta máscara...

— E então?

— Se estou de máscara, é provavelmente porque desejo ocultar-me! e está-me chamando Alteza.?... porque não abre a janela para apregoar o meu nome para a rua?...

— Oh! perdão, perdão! — disse Ernauton, pondo-se de joelhos — mas eu confiava na discrição destas paredes.

— Parece-me que é muito crédulo!

— Ah! minha Senhora, se eu estou tão apaixonado!...

— E está convencido de que eu pago esse amor com igual amor?... Ernauton ergueu-se, agastado.

— Não, minha Senhora — respondeu ele.

— A que atribui pois a minha vinda aqui?

— Penso que tem a fazer-me alguma comunicação importante; que não quis receber-me no Palácio de Guisa, nem na sua casa de Bel-Esbat, e que preferiu encontrar-se comigo num sítio retirado.

— Pensou isso?

— Sim, minha Senhora.

— E que julgou que eu teria a dizer-lhe? Vamos, fale; não se me dará de apreciar a sua perspicácia.

E a dama, apesar da sua aparente indiferença, deu mostras de alguma inquietação.

— Ora! que sei eu... — respondeu Ernauton — alguma coisa que diga respeito ao Sr. de

Maiena, por exemplo.

— Não tenho eu porventura os meus correios, Senhor, pelos quais hei-de receber amanhã à noite notícias mais pormenorizadas do que as que me pode dar, visto que já me disse tudo

quanto a respeito dele sabia?...

— Pode ser também que queira fazer-me alguma pergunta acerca do acontecimento da

noite passada...

— Ah! que acontecimento é esse a que alude? — perguntou a dama, cujo seio palpitava

visivelmente.

— Refiro-me ao pânico que teve o Sr. d'Epernon e à prisão dos cavalheiros lorenos.

— Prenderam alguns cavalheiros lorenos?

— Uns vinte, que foram encontrados intempestivamente na estrada de Vincennes.

— Que é também o caminho para Soissons, cidade onde o Sr. de Guisa está de guarnição, creio eu. Já que falámos nisso, Sr. Ernauton, e visto pertencer à corte, poder-me-á dizer qual foi o motivo por que prenderam esses tais fidalgos?

— Eu pertenço à corte?

— Não há dúvida.

— Como" soube isso, minha Senhora?

— Boa pergunta!... para saber a sua morada não tive remédio senão indagar e tirar informações. — Mas acabe com as suas frases, pelo amor de Deus! Tem um péssimo costume, que é o de atalhar continuamente a conversa. — E qual foi o resultado, então?

— Não me consta que houvesse resultado algum, minha Senhora.

— Então porque imaginou que eu lhe queria falar numa coisa que não teve resultado?

— Enganei-me nesta suposição, como nas mais, minha Senhora, e confesso que não tenho

razão.

— Diga-me, Senhor: de que terra é?

— De Agen.

— Então é gascão, Senhor, porque Agen, se não me engano, é na Gasconha.

— Pouco mais ou menos.

— É gascão, e não tem vaidade bastante para supor simplesmente que, tendo-o visto à Porta de Santo António no dia da execução de Salcède, o achei uma bonita figura?...

Ernauton corou e ficou enleado. A dama prosseguiu imperturbavelmente:

— Que o encontrei depois na rua, e que me pareceu muito galante?... Ernauton tornou-se carmesim.

— Enfim, que, tendo vindo a minha casa como portador de uma mensagem de meu irmão Maiena, me agradou muito?...

— Minha Senhora, Deus me livre de ter semelhantes pensamentos!

— Pois faz mal — replicou a dama, voltando-se pela primeira vez para Ernauton e fitando nele uns olhos que chamejavam pelas aberturas da máscara, ao passo que oferecia à vista sôfrega do mancebo a sedução de um airoso talhe, cujos contornos arredondados e voluptuosos destacavam do veludo das almofadas. Ernauton uniu as mãos:

— Minha Senhora! minha Senhora! — exclamou ele — está zombando de mim?...

— Juro-lhe que não! — respondeu ela com o mesmo desembaraço — digo-lhe que me agradou, e é a pura verdade.

— Oh! meu Deus!...

— Não sei de que se admira, quando o senhor já se atreveu a declarar-me que me amava...

— Porém, quando lhe fiz essa declaração não sabia quem era, minha Senhora, e agora, que o sei... oh! peço-lhe muito humildemente perdão.

— Bom! aí vem agora com disparates... — murmurou a dama com impaciência. — Não procure tornar-se diferente daquilo que é, Senhor; diga com franqueza o que tem no pensamento, quando não far-me-á arrepender de ter vindo aqui.

Ernauton tornou a ajoelhar.

— Fale, minha Senhora, fale, para que eu me convença de que isto não é simples brincadeira, e então pode ser que me atreva a responder-lhe.

— Eis os meus projectos a seu respeito — disse a dama, afastando Ernauton, ao passo que arranjava as pregas do vestido. — Gosto do senhor, mas ainda não o conheço. Não costumo resistir às minhas inclinações, mas nunca caio na asneira de cometer erros. Se fôssemos iguais, tê-lo-ia recebido em minha casa, e lá poderia estudar-lhe o génio à vontade, sem que chegasse sequer a desconfiar das minhas intenções a seu respeito. Mas como este meio era impossível, foi-me preciso lançar mão de outro, e por isso procurei esta entrevista. Agora já fica sabendo o que deve pensar de mim. Torne-se digno de mim, é quanto lhe recomendo.

Ernauton desfez-se em protestos.

— Oh! menos calor, Sr. de Carmainges — disse a dama com indolência —, não é preciso tanta desculpa. Pode ser que fosse o som do seu nome unicamente o que me agradou a primeira vez que nos encontrámos, e que só dele é que eu ficasse gostando... Afinal de contas, parece-me que o que sinto pelo senhor é uma inclinação muito passageira que o tempo em breve desvanecerá. Entretanto não se desespere por se julgar muito longe da perfeição. Eu não posso sofrer gente perfeita. Oh! o que estimo sobremaneira, por exemplo, é gente que mostra ser-me dedicada. Permito-lhe, meu galante cavalheiro, que conserve o que lhe acabo de dizer bem gravado na memória.

Ernauton estava fora de si. Aquela linguagem altiva, aqueles gestos repletos de voluptuosidade e de moleza, aquela superioridade orgulhosa, aquele abandono, enfim, de uma pessoa tão ilustre que se lhe entregava, tudo concorria para lhe causar ao mesmo tempo indizível prazer e imenso susto.

Sentou-se ao lado da sua formosa e soberba amante, que não fez oposição alguma, e depois tentou introduzir o braço por detrás das almofadas a que ela estava encostada.

— Parece-me, Senhor — disse ela —, que me ouviu, mas que não me compreendeu. Nada de familiaridades, por favor: conserve cada um de nós o seu lugar. É certo que tenciono conceder-lhe um dia o direito de me chamar sua, mas por enquanto ainda não está no gozo desse direito.

Ernauton levantou-se, pálido e despeitado:

— Desculpe-me, minha Senhora — disse ele. — Pelo que vejo, não faço senão tolices; não admira: ainda não estou afeito aos costumes de Paris... É certo que lá na minha terra, na província, a duzentas léguas daqui, quando uma mulher diz amo, ama deveras, e não se nega. Não lhe servem de pretexto algumas palavras menos reflectidas para humilhar um homem a seus pés.

É esse o seu uso como parisiense e o seu direito como princesa. Aceito tudo isso. Falta-me o hábito, mas o hábito há-de vir com o tempo.

A dama ouviu-o sem dizer palavra. Era evidente que estava continuando a observar atentamente Ernauton para saber se o seu despeito terminaria em verdadeira cólera.

— Ah! ah! quer-me parecer que está enfadado... — disse ela com altivez.

— Estou, com efeito, minha Senhora, mas é comigo mesmo, porque sinto pela senhora, não uma inclinação passageira, mas amor, um amor muito puro e verdadeiro. Não é a pessoa de Vossa Alteza que eu ambiciono, pois isso não passaria de um desejo e nada mais; o que eu ambiciono é a posse do seu coração. E por isso nunca me consolarei de ter faltado hoje, com as minhas impertinências, ao respeito que lhe devo, e que só transformarei em amor, minha Senhora, quando me permitir. E depois desta declaração, dê-me licença, minha Senhora, que fique esperando as suas ordens.

— Vamos, vamos — disse a dama —, nada de exageros, Sr. de Carmainges! Aí está o senhor frio de gelo, quando há pouco estava em brasa!

— Parece-me, minha Senhora...

— Ah! Senhor, não diga nunca a uma mulher que há-de amá-la como ela quiser, e assim alcançará bom resultado.

— Foi isso mesmo que eu disse, minha Senhora.

— Sim, mas não é o que pensa.

— Inclino-me respeitosamente perante a sua superioridade, minha Senhora.

— Basta de cumprimentos, pois repugnar-me-ia imenso fazer aqui de rainha. Olhe, aqui tem a minha mão: tome-a, é a de uma simples mulher; está mais ardente e mais animada do que a sua.

Ernauton pegou respeitosamente na formosa mão que a dama lhe apresentava.

— Então? — disse a duquesa.

— Então o quê?

— Não a beija?! está louco? ou está resolvido a fazer-me perder a paciência?...

— Porém, ainda agora...

— Ainda agora fugi com ela, mas presentemente...

— Entrego-lha.

Ernauton beijou a mão com tanta obediência que a dama retirou-a logo.

— Ora aí está — disse o mancebo — mais outra lição!...

— Visto isso, fiz mal?

— Decerto, porque me está fazendo saltar de um extremo a outro, e o receio há-de acabar por destruir o amor. Continuarei a adorá-la de joelhos, é verdade, mas não poderei dar-lhe mostras de amor nem de confiança.

— Oh! não é isso que eu quero — disse a dama com modo jovial —, pois seria um triste amante, e previno-o que é coisa de que não gosto. Não, conserve-se tal qual é: seja o Sr. Ernauton de Carmainges e nada mais. Eu tenho as minhas manias. Não me disse há pouco que eu era formosa?... Toda a mulher formosa tem as suas manias: respeite algumas, não faça caso de outras; sobretudo não tenha medo de mim, e quando eu disser ao demasiado ardente Ernauton: «Sossegue», deve ele consultar os meus olhos e nunca a minha voz.

Ao proferir estas palavras a dama levantou-se.

Já era tempo: o mancebo, tornado ao seu delírio, tinha-a agarrado nos braços, e a máscara da duquesa roçou um instante pelos lábios de Ernauton; foi então que ela lhe mostrou a verdade das palavras que acabava de dizer, pois os seus olhos despediram, através da máscara, um raio frio e lívido como o sinistro precursor das tempestades. Aquele olhar infundiu tal respeito a Carmainges, que deixou pender os braços e todo o seu fogo se apagou.

— Está bom — disse a duquesa —, muito bem; havemos de tornar a ver-nos. Agrada-me, decididamente, Sr. de Carmainges.

Ernauton inclinou-se.

— Quando estará desembaraçado outra vez? — perguntou ela com indiferença.

— Infelizmente, minha Senhora, pouco tempo tenho de meu... — respondeu Ernauton.

— Ah! sim, bem entendo: o serviço é muito pesado, não é assim?

— Que serviço?

— O que tem a fazer no paço. Não faz parte de uma espécie de guarda de Sua Majestade?

— Isto é, minha Senhora, pertenço a um corpo de gentis-homens.

— É isso mesmo que quero dizer; e esses gentis-homens são todos gascões, creio eu...

— Todos, sim, minha Senhora.

— Quantos são? Já me disseram, mas não me lembra.

— Quarenta e cinco.

— Que conta essa! será por cálculo?...

— Penso que não; foi naturalmente o acaso que reuniu este número.

— E esses quarenta e cinco gentis-homens estão sempre ao pé do rei, disse o senhor?

— Eu não disse que não nos tirávamos de junto de Sua Majestade, minha Senhora.

— Ah! perdão: pensava que lho tinha ouvido dizer. Mas não há dúvida que me disse que tinha pouco tempo disponível...

— É verdade, tenho pouco tempo disponível, minha Senhora; porque de dia estamos de serviço para acompanhar Sua Majestade, quando sai ou quando vai a alguma caçada, e de noite obrigam-nos a permanecer no Louvre.

— De noite?

— Sim, minha Senhora.

— Todas as noites?

— Quase todas.

— Ora veja lá o que teria sucedido se esta noite, por exemplo, o prendesse o tal serviço! Eu estava aqui à sua espera, e não sabendo o motivo que obstava a que viesse, poderia persuadir-me de que tinha sido desprezado o meu convite!

— Ah! minha Senhora! de hoje em diante juro-lhe que me hei-de arriscar a tudo para tornar a vê-la.

— É escusado, e seria um absurdo; não quero tal.

— Mas então, como há-de ser?

— Cumpra o seu serviço; e eu, como estou sempre livre e sou senhora das minhas acções, hei-de tratar de combinar os nossos encontros nos dias em que estiver de folga.

— Oh! que bondade, minha Senhora!

— Mas afinal não me explicou — prosseguiu a duquesa com o seu sorriso insinuante — como foi que sucedeu estar desembaraçado esta noite para poder vir aqui...

— Esta noite, minha Senhora, já eu tinha feito tenção de pedir licença ao Sr. de Loignac, nosso capitão, que me trata com amizade, quando chegou ordem para se conceder licença por toda a noite aos Quarenta e Cinco.

— Ah! deu-se essa ordem?

— É verdade.

— E por que motivo tiveram essa fortuna?

— Penso, minha Senhora, que foi em remuneração de um serviço bastante pesado que fizemos ontem em Vincennes.

— Ah! Muito bem — disse a duquesa.

— É portanto a essa feliz circunstância, minha Senhora, que sou devedor da ventura de estar com Vossa Alteza esta noite.

— Pois bem! ouça, Carmainges — disse a duquesa com uma doce familiaridade que encheu de prazer o coração do mancebo —, eis o que tem a fazer: sempre que estiver de folga, mande prevenir a estalajadeira por meio de um bilhete; um criado meu há-de vir a casa dela todos os dias.

— Oh! meu Deus! é demasiada bondade, minha Senhora! A duquesa pôs a mão no braço de Ernauton.

— Espere... — disse ela.

— Que é, minha Senhora?

— De que provém este ruído?

E com efeito retumbava na sala de baixo, como o eco de uma invasão, um rumor de esporas, de vozes, de abrir e fechar de portas e de exclamações de alegria. Ernauton deitou a cabeça fora da porta da antessala.

— São os meus companheiros — disse ele —, que vêm aqui festejar a licença que lhes concedeu o Sr. de Loignac.

— Mas porque viriam eles precisamente para esta hospedaria onde estamos?

— Porque foi precisamente na estalagem do Cavaleiro Destemido, minha Senhora, que nos encontrámos todos à nossa chegada a Paris; e os meus companheiros, desde o feliz dia da sua entrada na capital, ficaram gostando imenso do vinho e dos pastéis do mestre Fournichon... e alguns deles também gostam muito dos torreões da patroa.

— Oh! — disse a duquesa com malicioso sorriso — está falando nos torreões como quem já sabe por experiência para que servem...

— Afirmo-lhe, pela minha honra, minha Senhora, que é a primeira vez que entro aqui. Porém... porque os escolheu a senhora para o nosso encontro? — atreveu-se ele a dizer.

— Escolhi-os, sim, e facilmente avaliará o motivo. Este sítio é o mais deserto de Paris, fica próximo ao rio, junto às muralhas, e ninguém aqui me conhece, nem se pode desconfiar que eu aqui venho. Mas... santo Deus! que bulhentos são os seus companheiros! — prosseguiu a duquesa.

A algazarra da entrada ia-se tornando efectivamente num furacão infernal; a narração das proezas da véspera, as bravatas, o som dos escudos de ouro e o tinir dos copos, tudo pressagiava uma tempestade completa. De repente ouviu-se o rumor de passos na escadinha que dava serventia para o torreão, e a voz da Sr.a Fournichon gritar lá de baixo:

— Sr. de Saint-Maline! Sr. de Saint-Maline!

— Que é? — respondeu uma voz.

— Peço-lhe que não suba, Sr. de Saint-Maline.

— Deveras?... por que razão, minha rica Sr.a Fournichon? Não somos porventura senhores de toda a casa esta noite?...

— De toda a casa, sim, mas não dos torreões.

— Histórias! os torreões formam parte da casa — bradaram cinco ou seis vozes mais, entre as quais Ernauton conheceu as de Perducas de Pincorney e de Eustáquio de Miradoux.

— Não senhor! os torreões não lhes pertencem; os torreões não estão compreendidos no ajuste, os torreões pertencem-me a mim. Não incomode os meus inquilinos.

— Sr.a Fournichon — retorquiu Saint-Maline —, também eu sou seu inquilino, e peço-lhe que não me importune.

— Saint-Maline!... — murmurou Ernauton com alguma inquietação, pois conhecia a má índole daquele homem.

— Por favor! peço-lhe que não suba! — repetiu a Sr.a Fournichon.

— Sr.a Fournichon — disse Saint-Maline —, já deu meia-noite; às nove horas devem estar apagadas todas as luzes, e eu estou vendo luzes no seu torreão; só os súbditos desobedientes de el-rei são capazes de transgredir os decretos de Sua Majestade, e eu quero ir ver quem são esses súbditos desobedientes.

E Saint-Maline continuou a subir, seguido de uns poucos de gascões, que iam acertando o passo pelo dele.

— Oh! meu Deus! — exclamou a duquesa — oh! meu Deus!... Sr. de Carmainges, aquela gente atrever-se-á a entrar aqui?...

— Se eles se atrevessem a entrar, minha Senhora, eu aqui estava; e desde já lhe posso dizer que não tenha receio algum.

— Oh! mas lá estão eles arrombando as portas, Senhor!...

Com efeito, Saint-Maline, tendo chegado a ponto tal que já não lhe era possível recuar, empurrou com tanta violência a porta que a rachou a meio; a Sr.a Fournichon, cujo respeito pelos amores chegava a ser fanatismo, nunca se tinha lembrado de experimentar se a madeira de pinho de que era feita aquela porta seria capaz de resistir a um choque de semelhante natureza.

 

         DE COMO SAINT-MALINE ENTROU NO TORREÃO, E DO MAIS QUE SE SEGUIU

Ernauton, apenas viu que a porta da antessala cedia aos empurrões de Saint-Maline, correu à vela e apagou-a. Esta cautela, que podia ser muito boa, mas que só era momentânea, não bastou para tranquilizar a duquesa; porém, de repente a Sr.a Fournichon, que já tinha esgotado todos os recursos, lançou mão de um último meio e começou a gritar:

— Sr. de Saint-Maline!! desde já o previno de que as pessoas com quem vai contender são amigos seus; vejo-me na necessidade de lho confessar.

— Pois bem! mais uma razão para desejarmos fazer-lhes os nossos cumprimentos — disse Perducas de Pincorney com voz avinhada, e tropeçando atrás de Saint-Maline no último degrau da escada.

— E que amigos são esses? vejamo-los! — disse Saint-Maline.

— Sim, vejamos! — gritou Eustáquio de Miradoux.

A boa da patroa, querendo evitar uma colisão que, se bem que muito honrosa para o Cavaleiro Destemido, podia ser muito prejudicial à Roseira do Amor, subiu por entre a chusma dos cavalheiros e proferiu o nome de Ernauton ao ouvido do seu agressor.

— Ernauton?! — repetiu em voz alta Saint-Maline, em quem semelhante revelação produziu o efeito de azeite, em lugar de água, sobre o lume. — Ernauton?! não pode ser!

— Porquê? — perguntou a Sr.a Fournichon.

— Sim, porquê? — repetiram várias vozes.

— Ora essa! — disse Saint-Maline — Ernauton é um modelo de castidade, um exemplo de continência, um composto de todas as virtudes! Não! está enganada, Sr.a Fournichon: não é o Sr. de Carmainges que está fechado lá dentro.

E aproximou-se da segunda porta, para fazer o mesmo que tinha feito à primeira, quando, de repente, a porta se abriu e apareceu Ernaunton, de pé, no limiar, com um semblante que bem mostrava que a paciência não se compreendia no número das virtudes que ele praticava tão religiosamente, segundo afirmava Saint-Maline.

— Com que direito arrombou o Sr. de Saint-Maline aquela porta? — perguntou ele. — E por que motivo, depois de ter arrombado aquela, quer arrombar esta?

— É ele, na realidade! é Ernauton! — exclamou Saint-Maline — conheço-lhe a voz, pois quanto à pessoa... diabos me levem se posso diferençar nesta escuridão de que cor é!

— Não respondeu à minha pergunta, Senhor! — tornou Ernauton. Saint-Maline desatou a rir estrepitosamente, tranquilizando assim aqueles dos Quarenta e Cinco que, ao ouvirem a voz ameaçadora de Ernauton, tinham julgado mais acertado descer por prudência dois degraus da escada.

— É consigo que estou falando, Sr. de Saint-Maline, não me ouve? — bradou Ernauton.

— Ouço, sim senhor, ouço muito bem — respondeu este.

— Então que resposta tem a dar-me?

— Tenho a dizer-lhe, meu caro companheiro, que desejávamos saber se era o senhor efectivamente que estava nesta hospedaria dos amores.

— Pois bem! agora, Senhor, que já lhe provei que era eu realmente, visto que lhe estou falando, e que, se preciso fosse, lhe poderia tocar, deixe-me em paz.

— Presumo porém — disse Saint-Maline — que não se tornou ermitão... e provavelmente não está sozinho neste quarto...

— A esse respeito, Senhor, há-de permitir que o deixe em dúvida, se é que duvida.

— Pois seriamente?!... — prosseguiu Saint-Maline, tentando entrar para dentro do quarto — está sozinho deveras?! Ah!... e sem luz, demais a mais... bravo!

— Vamos, Senhores — disse Ernauton com altivez —, admito que estejam embriagados, e por isso perdoo-lhes; porém a paciência devida a homens que estão fora do seu juízo também tem limites: acabou-se a brincadeira, não é assim? Queiram pois retirar-se.

Infelizmente Saint-Maline estava com um dos seus acessos de invejosa maldade.

— Oh! oh! retirarmo-nos... — repetiu ele — que modo com que nos diz isso, Sr. Ernauton!...

— Digo-lhe isto de modo a fazer-lhe entender que é esse o meu desejo, Sr. de Saint-Maline; e se é preciso, ainda repito: queiram retirar-se por favor.

— Oh! não há-de ser antes de termos a honra de cumprimentar a pessoa por quem desertou da nossa companhia.

Em seguida a esta insistência de Saint-Maline, tornou a fechar-se em roda dele o círculo, que já se ia rompendo.

— Sr. de Montcrabeau — disse Saint-Maline com voz imperiosa —, vá lá abaixo buscar uma vela.

— Sr. de Montcrabeau! — gritou Ernauton — lembre-se que, se tal fizer, me ofende pessoalmente.

Montcrabeau hesitou ao ouvir o tom ameaçador da voz do mancebo.

— Não há dúvida! — replicou Saint-Maline — estamos ligados por um juramento, e o Sr. de Carmainges observa tão religiosamente a disciplina que não quererá infringi-la: não podemos puxar pela espada uns contra os outros; vá, pois, Montcrabeau: traga a luz.

Montcrabeau desceu, e dali a cinco minutos voltou com uma vela que quis entregar a Saint-Maline.

— Nada, nada! — disse este — segure-a o senhor, pode ser que tenha de empregar ambas as mãos.

E Saint-Maline deu um passo para a frente, diligenciando entrar no interior do torreão.

— Tomo-os para testemunhas, a todos quantos estão presentes — disse Ernauton —, de que sou indignamente insultado e vexado sem motivos, e que, por conseguinte — e Ernauton desembainhou a espada —, vou cravar esta espada no peito do primeiro que der um passo em frente.

Saint-Maline, enfurecido, quis puxar também pela espada, porém, ainda não a tinha desembainhado até ao meio quando viu luzir sobre o peito a ponta da espada de Ernauton.

Como naquele mesmo instante ele dava um passo para diante, não foi necessário que o Sr. de Carmainges estendesse ou alongasse o braço: Saint-Maline sentiu logo o frio do ferro e recuou, enraivecido como um touro em quem se crava uma farpa.

Ernauton, então, deu para a frente um passo igual ao passo de retirada que dava Saint-Maline, e a espada conservou-se, assim, apontada ao peito deste último.

Saint-Maline empalideceu: bastava que Ernauton estendesse o braço para o pregar de encontro à parede.

Empurrou vagarosamente a espada para dentro da bainha.

— Merecia que o matasse, Senhor — disse Ernauton —, para castigar a sua insolência; porém considero-me ligado pelo juramento em que há pouco falou, e por isso o poupo: abra-me caminho.

Ao dizer estas palavras deu um passo para trás, a ver se lhe obedeceriam. E logo, com um gesto de rei:

— Afastem-se, Senhores — disse ele. — Venha, minha Senhora, não tem que recear. Apareceu então no limiar da porta do torreão uma mulher, que trazia a cabeça coberta com

uma coifa e o rosto tapado com um véu, e que agarrou a tremer no braço de Ernauton.

O mancebo meteu a espada na bainha e, como se estivesse convencido de que já nada tinha a temer, atravessou com arrogância a antessala, onde estavam agrupados os seus companheiros, que a curiosidade e o receio ali haviam atraído.

Saint-Maline, a quem a espada de Ernauton havia ferido levemente no peito, tinha recuado até ao patamar, sufocado pela raiva que lhe causava a afronta, tão bem merecida, que acabava de sofrer na presença dos seus companheiros e da dama incógnita.

Viu que tanto os zombadores como os homens sérios se reuniriam contra ele, se o caso ficasse naqueles termos entre ele e Ernauton, e esta convicção arrastou-o a um último excesso. Puxou pela adaga na ocasião em que Carmainges lhe passava pela frente. Teria acaso tenção de apunhalar Carmainges? ou tencionaria fazer unicamente o que fez? É esta uma dúvida que só se poderia esclarecer lendo no pensamento tenebroso daquele homem, e disto nem ele próprio era capaz quando a cólera o arrebatava.

O caso é que deixou cair o braço sobre o par, e o ferro do punhal, em vez de ferir o peito de Ernauton, rasgou a coifa de seda da duquesa e cortou um dos cordões da máscara. A máscara caiu ao chão. O movimento de Saint-Maline tinha sido tão rápido, que nenhum dos indivíduos a quem a sombra encobria tinha podido percebê-lo, e muito menos opor-se-lhe. A duquesa soltou um grito; ao passo que lhe caía a máscara, tinha sentido resvalar pelo pescoço a folha arredondada do punhal, que por pouco a não ferira.

Enquanto durou o espanto que causara a Ernauton o grito da duquesa, teve Saint-Maline ocasião de apanhar a máscara e de lha restituir, e então, à luz da vela de Montcrabeau, pôde ver o rosto da dama, assim posto a descoberto.

— Ah!... ah!... — disse ele com voz zombeteira e insolente — é a formosa dama da liteira... Dou-lhe os parabéns, Ernauton; é muito pronto em contrair relações.

Ernauton deteve-se, e ia puxar pela espada, que já se arrependera de ter embainhado, mas a duquesa arrastou-o para a escada dizendo-lhe ao ouvido:

— Venha, venha! suplico-lhe, meu caro Sr. de Carmainges!

— Até à vista, Sr. de Saint-Maline — disse Ernauton ao afastar-se. — E pode ficar certo de que me há-de pagar esta cobardia, juntamente com as mais.

— Bem! bem! — disse Saint-Maline — vá tomando nota das minhas dívidas, que eu tomarei nota das suas; e um dia virá em que saldaremos as contas.

Carmainges ouviu-o, mas nem voltou a cabeça; estava todo entregue à duquesa. Chegou ao fim da escada sem que mais ninguém lhe tolhesse a passagem; aqueles dos Quarenta e Cinco que não tinham subido desaprovavam no seu íntimo a violência praticada pelos camaradas. Ernauton acompanhou a duquesa até à liteira, a que tinham ficado de guarda dois criados. A duquesa, logo que viu que já não tinha que recear, apertou a mão de Carmainges e disse-lhe:

— Sr. Ernauton, depois do que acaba de se passar, e do insulto de que não pôde livrar-me, apesar do seu valor, já não podemos aqui voltar; peço-lhe pois que indague se haverá por estes arredores alguma casa para vender ou para alugar; tenha a certeza de que não tardarei a dar-lhe notícias minhas.

— Devo despedir-me de Vossa Alteza aqui, minha Senhora? — perguntou Ernauton, inclinando-se em sinal de obediência às ordens que acabava de receber, e que tão lisonjeiras eram para o seu amor-próprio que nem lhe lembrou discuti-las.

— Ainda não, Sr. de Carmainges, ainda não; siga a minha liteira até à Ponte Nova, pois receio que aquele miserável, que me conheceu como a dama da liteira, mas não ficou sabendo quem sou na realidade, venha atrás de nós e descubra assim a minha morada.

Ernauton obedeceu; mas ninguém os seguiu.

Ao chegar à Ponte Nova, que então merecia este nome, porque havia apenas sete anos que o arquitecto Ducerceau a tinha construído sobre o Sena, a duquesa ofereceu a mão aos lábios de Ernauton, dizendo-lhe:

— Pode retirar-se.

— Ser-me-á lícito perguntar quando a tornarei a ver, minha Senhora?

— O nosso encontro fica dependente da prontidão com que desempenhar a incumbência que lhe dei, e essa prontidão servirá para me convencer do muito ou do pouco desejo que terá de me tornar a ver.

— Oh! minha Senhora, se assim é, asseguro-lhe que não tardarei em cumprir as suas ordens.

— Muito bem. Agora pode retirar-se, meu cavalheiro.

A duquesa, ao dizer isto, deu novamente a mão a beijar a Ernauton, e depois mandou seguir.

«É admirável, na realidade, pensou o mancebo, enquanto desandava o caminho que tinha andado; não posso duvidar de que esta mulher gosta de mim, e contudo não dá mostras de lhe importar saber se eu poderei ou não ser morto por aquele malvado do Saint-Maline.»

E um imperceptível movimento de ombros indicou que o mancebo dava o devido valor àquela indiferença.

Em seguida, afastando de si aquele primeiro sentimento que nada tinha de lisonjeiro para o seu amor-próprio:

«Oh! prosseguiu ele, é preciso atender a que a pobre mulher estava muito desorientada; e o receio de uma pessoa se ver comprometida pode mais, numa princesa sobretudo, do que qualquer outro sentimento. Porque, acrescentou, sorrindo para si mesmo, não há dúvida que é princesa.»

E como este último sentimento era o que mais o lisonjeava, foi este o que ficou predominando.

Porém este sentimento não pôde destruir em Carmainges a recordação do insulto que lhe havia sido feito; voltou portanto em direitura à hospedaria, para não dar azo a que pessoa alguma supusesse que ele se arreceara das consequências que poderia ter aquela ocorrência.

Ia naturalmente resolvido a infringir todas e quaisquer ordens e juramentos, e a chegar às do cabo com Saint-Maline apenas ele se atrevesse a dizer-lhe alguma palavra ou a fazer algum gesto.

O amor e o amor-próprio feridos ao mesmo tempo e de um só golpe, davam-lhe um tal furor de valentia que, no estado de excitação em que se achava, teria sido capaz de lutar com dez homens.

Esta resolução brilhava-lhe nos olhos quando chegou à porta da hospedaria do Cavaleiro Destemido.

A Sr.a Fournichon, que estava ansiosamente esperando que ele voltasse, conservava-se muito trémula no limiar da porta.

Mal avistou Ernauton, enxugou os olhos como se tivesse chorado amargamente e, deitando-lhe os braços ao pescoço, pediu-lhe perdão, apesar de todos os esforços do marido, o qual afirmava que sua mulher não tinha de que pedir perdão, visto não ser culpada do que se havia passado.

A boa estalajadeira não era desagradável a ponto de Carmainges poder mostrar-lhe mau modo, mesmo que tivesse motivo para se queixar dela; afirmou pois à Sr.a Fournichon que não tinha a menor indisposição contra ela, e que a culpa toda era do seu vinho.

O marido mostrou aprovar a opinião de Ernauton e agradeceu-lhe com um aceno de cabeça.

Enquanto isto se passava à porta da rua, estava toda a gente à mesa, e ali se conversava acaloradamente acerca do acontecimento que mais tinha dado que falar naquela noite. Muitos censuravam o procedimento de Saint-Maline, com aquela franqueza que forma o carácter principal dos gascões quando conversam entre si. Outros abstinham-se de emitir parecer, ao verem os sobrolhos franzidos do companheiro, e a sua boca contraída por profundo meditar. Nada disto diminuía o entusiasmo com que era atacada a ceia de mestre Fournichon; era porém um ataque acompanhado de reflexões filosóficas.

— Eu — dizia em altas vozes o Sr. Heitor de Biran — afirmo que o Sr. de Saint-Maline fez muito mal! E se fosse eu que por um instante me chamasse Ernauton de Carmainges, o Sr. de Saint-Maline estaria a estas horas deitado debaixo desta mesa, em lugar de estar sentado a ela.

Saint-Maline ergueu a cabeça e olhou para Heitor de Biran.

— É assim mesmo como lhe digo! — respondeu ele. — Olhe! lá está à entrada da porta uma pessoa que parece conformar-se com a minha opinião.

Voltaram todos os olhos para o ponto que o jovem fidalgo indicava, e viram Carmainges, pálido e de pé, no quadrado que formava a porta. Àquela vista, que parecia uma aparição, cada um dos circunstantes sentiu um calafrio por todo o corpo. Ernauton desceu do limiar da porta, como a estátua do Comendador, baixando do seu pedestal, e caminhou direito a Saint-Maline, sem o provocar abertamente, mas com firmeza que fez palpitar mais de um coração.

Começaram todos a gritar para o Sr. de Carmainges:

— Venha para aqui, Ernauton! Venha para este lado, Carmainges! Tem um lugar aqui ao pé de mim!

— Obrigado — respondeu o mancebo —, quero sentar-me ao pé do Sr. de Saint-Maline. Saint-Maline levantou-se: os olhos de todos fitaram-se nele. Porém, no movimento que fez ao levantar-se, o rosto mudou completamente de expressão.

— Vou dar-lhe o lugar que deseja, Senhor — disse ele sem animosidade —, e ao mesmo tempo quero pedir-lhe muito franca e sinceramente desculpa da minha estúpida agressão de há pouco; eu estava embriagado... o senhor mesmo o disse. Perdoe-me.

Esta declaração, feita no meio de um silêncio geral, não satisfez Ernauton, se bem que era evidente que nem uma única sílaba dela tinha escapado aos quarenta e três convivas, que estavam ansiosos por ver a maneira por que terminaria aquela cena.

Porém, às últimas palavras que Saint-Maline proferiu, os gritos de alegria dos seus companheiros deram a conhecer a Ernauton que devia mostrar-se satisfeito e que estava completamente vingado. A reflexão obrigou-o portanto a calar-se. Ao mesmo tempo, um olhar que dirigiu para Saint-Maline convenceu-o de que devia desconfiar dele mais de que nunca.

«Este miserável, contudo, é valente, disse consigo Ernauton; e se ele nesta ocasião cede, é em consequência de alguma combinação odiosa de que espera tirar melhor resultado.»

O copo de Saint-Maline estava cheio; ele encheu também o de Ernauton.

— Vamos, vamos! façam as pazes! — gritaram todos à uma. — Bebamos à reconciliação de Carmainges e de Saint-Maline!

Carmainges aproveitou o tinir dos cepos e a bulha das vozes e, inclinando-se para Saint-Maline com gesto risonho, para que ninguém pudesse conjecturar o sentido das palavras que proferia:

— Sr. de Saint-Maline — disse-lhe ele —, esta é a segunda vez que me insulta sem me dar uma satisfação. Acautele-se, porque à terceira vez que me ofender matá-lo-ei como um cão.

— Pode fazê-lo Senhor, se se lhe oferecer ocasião — respondeu Saint-Maline — pois, à fé de cavalheiro, o mesmo faria eu se estivesse no seu lugar.

E os dois inimigos mortais tocaram os copos, como teriam feito os dois melhores amigos.

 

         O QUE SE PASSAVA NA CASA MISTERIOSA

Enquanto a hospedaria do Cavaleiro Destemido, morada aparente da mais perfeita concórdia, se conservava com as portas fechadas e as adegas abertas, deixando coar pelos interstícios das portas e das janelas a luz das velas e a alegre vozearia dos convivas, um movimento desusado se notava na misteriosa casa que os nossos leitores só têm visto exteriormente nas páginas desta história.

O criado de cabeça calva ia e vinha de um quarto para o outro, trazendo na mão objectos embrulhados, que metia num baú de jornada. Concluídos estes primeiros aprestos, carregou uma pistola e examinou um punhal metido numa bainha de veludo; depois pendurou-o, por uma argola, a uma corrente que tinha à cinta, na qual também prendeu a pistola, um molho de chaves, e um livro de reza com encadernação preta.

Enquanto ele tratava destes arranjos, uns pés ligeiros como os de uma sombra pisavam o sobrado do segundo andar, e vinham descendo pela escada.

De repente, uma mulher pálida e semelhante a um fantasma, envolta nas dobras de um véu branco, apareceu no limiar da porta, e ouviu-se uma voz triste e suave como o canto de um passarinho no fundo de um bosque.

— Rémy — disse a voz —, estás pronto?

— Sim, minha Senhora, e já não espero senão pela sua caixinha para a juntar ao meu baú.

— Parece-te que os nossos cavalos poderão com estas caixas?

— Creio que sim, minha Senhora; mas se isso lhe dá cuidado, podemos dispensar-nos de levar a minha: não tenho porventura lá no castelo tudo quanto me é preciso?...

— Não, Rémy, não quero, por modo nenhum, que te prives dos objectos precisos para a jornada; e depois, lá no castelo, como o pobre velho está doente, todos os criados hão-de estar entretidos a tratar dele. Oh! Rémy! estou com pressa de ir ter com meu pai; tenho um triste pressentimento e parece-me que há um século que o não vejo.

— Contudo, minha Senhora — replicou Rémy —, estive com ele há apenas três meses, e entre esta jornada e a última não mediou maior intervalo do que entre as mais.

— Rémy, não me confessaste, a última vez que o deixámos, que meu pai já não poderia viver muito tempo?...

— É certo; mas foi unicamente um receio que exprimi, e não uma predição. Deus esquece-se às vezes dos velhos, e é coisa admirável: eles teimam em viver pelo costume de viverem; há mais ainda: sucede com a gente velha como com as crianças — hoje doentes, amanhã de perfeita saúde.

— Ah! Rémy... E também, à imitação das crianças, o velho que hoje está de perfeita saúde pode morrer amanhã.

Rémy não respondeu, porque na realidade não podia dar resposta alguma consoladora, e um lúgubre silêncio seguiu-se durante alguns minutos ao diálogo que acabámos de reproduzir. Cada um dos dois interlocutores conservou a mesma posição triste e pensativa.

— Para que horas encomendaste os cavalos, Rémy? — perguntou afinal a dama misteriosa.

— Para as duas horas da madrugada.

— Deu agora mesmo uma hora.

— Sim, minha Senhora.

— Ninguém estará à espreita lá na rua, Rémy?

— Ninguém.

— Nem mesmo aquele desgraçado mancebo?

— Nem mesmo ele. Rémy suspirou.

— Dizes isso de um modo singular, Rémy...

— É porque também ele tomou uma resolução.

— Qual? — perguntou a dama estremecendo.

— A de não tornar a vê-la ou, pelo menos, de não fazer diligência para tornar a vê-la.

— E para onde vai ele?

— Para onde todos nós vamos: para o repouso.

— Deus lho dê eterno — respondeu a dama, com uma voz grave e fria como um sino a dobrar por defuntos. — E contudo...

A dama não concluiu.

— < Contudo o quê? — perguntou Rémy.

— Não tinha ele nada que o prendesse ao mundo?

— Teria o amor, se fosse correspondido.

— Um homem com aquele nome, daquela categoria, e daquela idade, deveria esperar tudo do futuro.

— E a senhora, que é jovem, de uma categoria e de uma casa tão ilustre como a dele, tem acaso alguma esperança no futuro?...

Os olhos da dama fulguraram com um clarão sinistro.

— Sim, Rémy — disse ela —, espero, e por isso vivo ainda. — Mas escuta... Dizendo isto, aplicou o ouvido.

— Não é o trotar de um cavalo que estou ouvindo?

— Quer-me parecer que sim.

— Será o nosso arrieiro já?

— Pode ser; mas, se assim é, vem uma hora mais cedo do que a aprazada.

— Lá param à porta, Rémy.

— É verdade.

Rémy desceu apressadamente, e chegou ao fim da escada no momento em que três argoladas, dadas com rapidez, ressoavam na porta.

— Quem está aí? — perguntou Rémy.

— Eu — respondeu uma voz fraca e trémula —, eu, Grandchamp, criado particular do barão.

— Ah! meu Deus! tu, Grandchamp, aqui em Paris?! Espera, que já abro; mas fala devagar, homem!

E dizendo isto, abriu a porta.

— De onde vens? — perguntou Rémy em voz baixa.

— De Méridor.

— De Méridor?

— Sim, Sr. Rémy. Ai de mim!

— Entra, entra depressa. Deus meu!...

— Então, Rémy? — disse do patamar da escada a voz da senhora. — São os nossos cavalos?

— Não, minha Senhora, ainda não. Depois, voltando-se para o velho:

— Que foi que sucedeu, meu bom Grandchamp?

— Pois não adivinha?!... — respondeu o criado.

— Adivinho, sim, infelizmente! porém, em nome do Céu! não lhe comuniques essa notícia assim de repente. Oh! que dirá a pobre senhora?...

— Rémy, Rémy — tornou a voz —, estás conversando com alguém, segundo me parece...

— Sim, minha Senhora, estou.

— Com alguém cuja voz me é conhecida...

— Exactamente, minha Senhora. — Ah! Grandchamp, como lhe pouparemos o golpe?... ela aí vem...

A dama, que tinha descido do primeiro andar para o andar térreo, assim como já havia descido do segundo para o primeiro, apareceu na extremidade do corredor.

— Quem está aí? — perguntou ela. — Afigurou-se-me que era a voz de Grandchamp...

— Sim, minha Senhora, sou eu — respondeu o velho criado, com humildade e tristeza, descobrindo ao mesmo tempo a encanecida cabeça.

— Grandchamp, tu aqui?! oh! meu Deus! não me enganaram os meus pressentimentos: morreu meu pai!...

— Com efeito, minha Senhora — respondeu Grandchamp, esquecendo-se das recomendações de Rémy —, com efeito! Méridor já não tem senhor!

A dama, pálida, gelada, mas imóvel e firme, suportou o golpe sem fraquejar. Rémy, vendo-a tão resignada e sombria, foi a ela e pegou-lhe afectuosamente na mão.

— Como foi que ele morreu? — perguntou a dama. — Conta-me, meu amigo.

— Minha Senhora, o Senhor Barão, que já não se levantava da poltrona, foi acometido, há oito dias, de um terceiro ataque de apoplexia. Ainda pôde balbuciar uma última vez mais o seu nome, depois não tornou a falar e expirou pela noite adiante.

Diana agradeceu ao criado por um aceno; e depois, sem acrescentar uma única palavra, tornou a subir para o seu quarto.

«Está livre, afinal» murmurou Rémy, ainda mais sombrio e mais pálido do que ela — Vem, Grandchamp, vem.

O quarto da dama era situado no primeiro andar, pela parte detrás de um gabinete que tinha janela para a rua, enquanto para o quarto só entrava a claridade por uma janelinha que deitava para um pátio. A mobília do aposento era de cor escura, mas rica; as armações, de tapeçarias de Arras, que eram as mais perfeitas daquela época, representavam as diversas passagens da Paixão. Um genuflexório de carvalho esculpido, uma cadeira de braços de igual madeira e do mesmo lavor, um leito com colunas torsas, e armação semelhante à das paredes, e, finalmente, uma alcatifa de Bruges, eram estes os únicos ornatos do quarto. Nem uma flor, nem uma jóia, nem uma moldura dourada; a madeira ou o ferro polido substituíam em tudo a prata ou o ouro. Um quadro de madeira preta encerrava um retrato de homem, colocado num canto cortado do quarto em que dava a luz da janela, evidentemente aberta naquela parede para o alumiar. A dama foi ajoelhar em frente do retrato, com o coração opresso, mas os olhos enxutos. Fitou naquela figura inanimada um demorado e indizível olhar de amor, como se esperasse que a nobre imagem se animasse para lhe responder. Era uma nobre imagem, com efeito, e bem lhe cabia este epíteto. O pintor tinha figurado um mancebo de vinte e oito anos, deitado meio despido sobre um canapé; do seio, que lhe aparecia a descoberto, gotejavam ainda algumas pingas de sangue; uma das mãos, a direita, pendia toda retalhada, mas assim mesmo ainda segurava um fragmento de espada. Tinha os olhos cerrados como os de um homem que está para morrer; a palidez e o sofrimento davam àquela fisionomia um carácter divino, que o rosto do homem só começa a assumir no momento em que deixa a vida para entrar na eternidade. A única legenda ou divisa que havia por baixo daquele retrato era, em letras cor de sangue: Aut César aut nihil.

A dama estendeu os braços para a imagem, dirigindo-lhe a palavra como se fora a um deus:

— Eu tinha-te suplicado que esperasses, se bem que a tua alma irritada devesse estar sequiosa de vingança — disse ela —, e como os mortos tudo vêem, ó meu amor, tu bem viste que se suportei a vida foi unicamente para não me tornar parricida; apenas expiraste, eu deveria ter morrido; mas com a minha morte matava meu pai.

«E demais, também sabes qual foi o voto que fiz sobre o teu cadáver ensanguentado; jurei que havia de pagar morte com morte, sangue com sangue; mas o cumprimento da minha promessa faria pesar um crime sobre a encanecida cabeça do venerável ancião que me chamava sua inocente filha.

«Esperaste até hoje, eu to agradeço, meu muito querido, esperaste até agora, e hoje estou senhora de mim; o último laço que me prendia à Terra acaba de ser despedaçado pelo Senhor; louvado seja pois o Senhor. Sou toda tua; já não preciso encobrir-me, posso proceder à luz do dia, porque, como agora já não faço falta a ninguém neste mundo, tenho direito a deixá-lo.»

Ergueu-se sobre um joelho, e beijou a mão que parecia pendente para fora da moldura:

— Perdoas-me, não é assim, meu amigo, por estar com os olhos enxutos? Foi por muito chorar sobre a tua campa que se esgotou o pranto destes olhos de que tanto gostavas.

«Dentro em»pouco irei ter contigo, e responder-me-ás então, sombra querida a quem tanto tenho falado sem nunca conseguir uma resposta.»

Diana, logo que acabou de proferir estas palavras, levantou-se respeitosamente, como se tivesse estado a conversar com Deus; e foi sentar-se na cadeira de carvalho.

«Pobre pai!» murmurou ela, com um tom de voz frio e uma expressão que não parecia de criatura humana.

Em seguida entregou-se a uma triste meditação que lhe fez esquecer em aparência a desgraça presente e as desgraças passadas. De repente levantou-se, encostando a mão ao braço da cadeira.

«É isto mesmo, disse, será melhor assim Rémy!»

O fiel servidor estava provavelmente escutando à porta, porque logo apareceu.

— Eis-me aqui, minha Senhora.

— Meu digno amigo, meu irmão — disse Diana —, és tu a única criatura que me conhece neste mundo; diz-me adeus.

— Porquê, minha Senhora?

— Porque chegou a hora da nossa separação, Rémy.

— Da nossa separação?! — exclamou o mancebo num tom de voz que fez estremecer a sua companheira. — Que está dizendo, minha Senhora?...

— Sim, Rémy. Este projecto de vingança parecia-me nobre e puro enquanto havia um obstáculo entre ele e eu, enquanto só o avistava no horizonte; assim são as coisas deste mundo: grandes e belas quando as vemos a distância. Agora, que está chegado o momento da execução, agora que o obstáculo já desapareceu, não recuo, por certo, Rémy, mas não quero arrastar em meu seguimento, na estrada do crime, uma alma generosa e sem mancha: por isso desejo que me deixes, meu amigo. Toda esta vida que tenho passado em lágrimas me será contada como uma expiação perante Deus e perante ti, Rémy, e espero também que te será levada em conta; e assim como nunca fizeste nem hás-de fazer mal a pessoa alguma, terás dobrada certeza de ires para o Céu.

Rémy tinha escutado as palavras da dama de Monsoreau numa atitude sombria e quase altiva.

— Minha Senhora — respondeu ele —, julga acaso que está falando com algum velho medroso e já gasto por ter abusado da vida?... Minha Senhora, eu tenho vinte e seis anos, isto é, possuo toda a seiva da mocidade, que parece exausta em mim; sou um cadáver arrancado ao túmulo. E se vivo ainda é para executar alguma acção terrível, é para desempenhar um papel activo nas obras da Providência. Não separe nunca, pois, o meu pensamento do seu, minha Senhora, já que estes dois pensamentos sinistros têm há tanto tempo habitado debaixo do mesmo tecto: para onde for, irei eu, e hei-de ajudá-la naquilo que fizer; quando não, minha Senhora, se, apesar dos meus rogos, persistir na resolução de me expulsar da sua companhia...

— Oh! — murmurou a dama — de te expulsar?!... como podes dizer semelhante palavra, Rémy!?

— Se persistir nessa resolução — prosseguiu o mancebo como se ela não tivesse falado —, eu sei o que hei-de fazer; e o resultado de todos os nossos estudos, assim tornados inúteis, será o dar duas punhaladas: uma no coração da pessoa que sabe, e a outra no meu próprio.

— Rémy, Rémy!... — exclamou Diana, dando um passo para ele e estendendo-lhe a mão imperativamente por cima da cabeça — Rémy, não digas isso! A vida desse homem a quem ameaças não te pertence: é propriedade minha; paguei-a tão cara que só eu tenho direito a tirar-lha quando chegar a ocasião. Sabes muito bem o que sucedeu, Rémy (não foi sonho, eu o juro), no dia em que eu fui ajoelhar junto do corpo já frio deste que aqui está...

E apontou para o retrato.

— Naquele dia, repito, quando eu cheguei os meus lábios aos daquela ferida que ali vês aberta, os lábios tremeram e disseram-me: «Vinga-me, Diana, vinga-me!»

— Minha Senhora!...

— Rémy, repito ainda: não foi uma ilusão, não foi efeito do meu delírio; a ferida falou, digo-te que falou! e ainda a ouço murmurar: «Vinga-me, Diana, vinga-me!»

O criado baixou a cabeça.

— É pois a mim, e não a ti, que pertence vingá-lo — continuou Diana. — E demais, para quem e por quem morreu ele?... Por mim, e para mim.

— Devo obedecer-lhe, minha Senhora — respondeu Rémy —, porque estava tão morto como ele. Quem me mandou tirar do meio dos cadáveres de que estava juncado aquele quarto? Foi a senhora. Quem me curou das minhas feridas? Foi a senhora. Quem me escondeu? Foi a senhora ainda, isto é, a outra metade da alma daquele por quem eu tinha morrido com tanto gosto. Mande, pois, que eu obedecerei, contanto que não mande que eu me aparte da senhora.

— Está bem, Rémy, segue a minha fortuna, já que assim o exiges; tens razão: já nada nos deve separar.

Rémy apontou para o retrato.

— Ouça-me agora, minha Senhora — disse Rémy com energia —, ele foi morto à traição, deve ser vingado por uma traição também. Ah! não sabe ainda uma coisa... (Tem razão, a mão de Deus está connosco!) não sabe ainda que finalmente atinei, a noite passada, com o segredo da água-tofana, que é o célebre veneno dos Médicis, inventado pelo florentino Renato...

— Oh! será verdade!?

— Venha ver, minha Senhora, venha ver!

— Porém Grandchamp, que está à espera?... que dirá ele quando vir que não lhe aparecemos, e que não nos ouve?... pois é lá abaixo que me queres levar, não é assim?

— O pobre velho andou sessenta léguas a cavalo, minha Senhora; está muito fatigado e adormeceu agora mesmo sobre a minha cama. Venha.

Diana acompanhou Rémy.

 

         O LABORATÓRIO

Rémy conduziu a dama para o quarto contíguo e, carregando numa mola escondida debaixo de uma tábua do sobrado, fez levantar um alçapão aberto junto à parede. O alçapão, ao abrir, pôs patente uma escada sombria, íngreme e estreita. Rémy desceu adiante, e ofereceu o braço a Diana, que se encostou a ele e foi descendo em seu seguimento. Os vinte degraus daquela escada, que mais parecia uma escada de mão, iam ter a um subterrâneo circular, escuro e húmido, sendo a única mobília que o guarnecia um fogão com imenso lar, uma mesa quadrada, duas cadeiras de palhinha, uma porção de garrafinhas de vidro, e algumas caixinhas de ferro.

Os habitantes daquele esconderijo eram uma cabra que já não balava, e alguns pássaros completamente mudos que figuravam, naquele lugar escuro e subterrâneo, espectros dos animais com que se pareciam, e não já os mesmos animais. No fogo ia-se apagando um resto de lume, enquanto o fumo grosso e negro saía em silêncio por um tubo metido na grossura da parede.

De um alambique posto sobre o lar ia correndo vagarosamente, gota a gota, um licor amarelo como ouro. As gotas caíam dentro de um frasco de vidro branco da grossura de dois dedos, mas perfeitamente transparente, e cuja boca estava tapada pelo tubo do alambique que com ele comunicava.

Diana desceu, e parou no meio daqueles objectos e entes extraordinários, sem admiração e sem susto; parecia que as impressões ordinárias da vida tinham deixado de exercer influência sobre aquela mulher, que já de há muito não era deste mundo. Rémy fez-lhe sinal que se demorasse ao pé da escada; ela ficou onde disse Rémy.

O mancebo foi acender uma lâmpada, que alumiou com o seu lívido clarão todos os objectos que acabámos de enumerar, e que até ali dormiam ou se agitavam nas trevas. Em seguida aproximou-se de um poço aberto no chão do subterrâneo, junto à cantaria da parede, que não tinha parapeito nem bocal, atou um balde a uma corda comprida e deixou escorregar a corda sem roldana para dentro da água que dormitava sinistramente no fundo daquele funil, e que produziu um som surdo ao contacto do balde; depois puxou-o para cima, cheio de água fria como gelo e pura como cristal.

— Aproxime-se, minha Senhora — disse Rémy.

Diana aproximou-se. Naquela enorme quantidade de água Rémy deixou cair uma única gota do líquido que continha o frasco de vidro, e a massa toda da água tingiu-se no mesmo instante de cor amarela; pouco a pouco foi-se a cor diluindo, e, ao cabo de dez minutos, já a água estava outra vez transparente como dantes.

A fixidade dos olhos de Diana bem dava a conhecer a profunda atenção com que ela observava aquela operação. Rémy olhou para ela.

— E então? — perguntou Diana.

— Agora — disse Rémy — molhe com esta água que aqui vê, e que não tem sabor nem cor, uma luva, uma flor, ou um lenço; amasse com esta água sabonetes de cheiro, deite-a no jarro que servir para lavar as mãos e o rosto, ou para limpar os dentes, e verá, como sucedeu outrora na corte de el-rei Carlos IX, que a flor há-de sufocar quem lhe respirar a fragrância, que a luva há-de envenenar pelo contacto, e o sabonete há-de matar aquele em cujos poros se introduzir. Vaze uma gota deste óleo puro sobre a torcida de uma vela ou de uma lâmpada: o algodão ficará impregnado do veneno até à altura de uma polegada pouco mais ou menos, e a vela ou lâmpada exalará a morte durante uma hora, passada a qual continuará a arder tão inocentemente como qualquer outra lâmpada ou vela.

— Estás certo disso, Rémy?... — perguntou Diana.

— Já fiz todas as experiências, minha Senhora. Olhe para estes pássaros, que já não podem dormir e não querem comer: beberam água igual a esta que aqui está no balde. Olhe para aquela cabra, que pastou uma porção de erva regada com a mesma água: está amuada e com o olhar incerto; debalde a restituiremos agora à liberdade, à luz e à natureza; a sua vida está condenada... salvo se a natureza a quem a restituirmos revelar ao seu instinto algum dos contravenenos cuja existência os animais adivinham e os homens ignoram.

— Pode-se ver aquele frasco, Rémy? — perguntou Diana.

— Sim, minha Senhora, porque a estas horas já o líquido todo está precipitado. Porém espere.

Rémy separou o frasco do alambique com a maior cautela, e tapou-o imediatamente com uma rolha de cera mole que aplicou à superfície do orifício; depois cobriu o orifício com um bocado de lã, e apresentou o frasco à sua companheira. Diana pegou-lhe sem a menor emoção, levantou-o à altura da lâmpada, e depois de ter examinado durante alguns instantes o líquido grosso que ele continha:

— Basta — disse ela —, escolheremos, quando for chegada a ocasião, um ramalhete, um par de luvas, uma lâmpada, um sabonete ou um jarro de água. Este licor conserva-se em vasos de metal?

— Corrói os metais.

— Mas, sendo assim, o frasco pode talvez estalar...

— Não creio! Vê a grossura do cristal?... Demais, podemos encerrá-lo ou encaixá-lo numa capa de ouro.

— Então, Rémy — disse a dama —, estás satisfeito, não é assim?

E uma coisa semelhante a um pálido sorriso descerrou os lábios da dama, e deu-lhes um reflexo de vida semelhante ao que dá um raio de luar aos objectos que fere.

— Mais do que nunca, minha Senhora! Quem castiga os maus goza da santa prerrogativa de Deus.

— Escuta, Rémy, escuta... E a dama aplicou o ouvido.

— Ouviu algum ruído?

— O tropear de cavalos na rua, se não me engano... Rémy, chegaram os nossos cavalos.

— É provável, minha Senhora, porque é esta, pouco mais ou menos, a hora a que deviam aqui chegar. Mas agora vou mandá-los embora.

— Por que motivo?

— Para que servem eles agora?...

— Em vez de irmos para Méridor, Rémy, partiremos para a Flandres; deixa estar os cavalos.

— Ah! já percebo...

E nos olhos do servidor brilhou um raio de alegria, que só podia comparar-se com o sorriso de Diana.

— Mas Grandchamp?... — acrescentou ele — que destino lhe daremos?

— Grandchamp, como já te disse, precisa descansar. Ficará em Paris e tratará de vender esta casa, de que já não carecemos. Antes de sairmos daqui, hás-de soltar estes pobres e inocentes animais, que fizemos sofrer por muita necessidade. Como bem disseste, Deus os salvará talvez.

— Mas este fogão, estas retortas e estes alambiques?...

— Visto que todos estes objectos estavam aqui quando comprámos a casa, que nos importa que outros os venham encontrar depois de nós a deixarmos?...

— Mas estes pós, estes ácidos, estas essências?...

— Atira com tudo isso ao lume, Rémy!

— Afaste-se daqui, então.

— Eu?

— Sim; ou, pelo menos, ponha esta máscara de vidro.

E Rémy entregou a Diana uma máscara, com que ela cobriu o rosto.

Tapou então a sua própria boca e o nariz com um tampão de lã e puxou pelo cordão do fole, avivando a chama do carvão; depois, assim que o lume mostrou estar bem ateado, despejou no fogão os pós, que arderam crepitando alegremente, lançando algumas chamas verdes, outros volatilizando-se em faíscas pálidas como enxofre; e em seguida, as essências, as quais, em vez de apagar o lume, subiram como serpentes de fogo pelo tubo, com estrondo semelhante ao ribombar longínquo de um trovão.

Finalmente, depois de tudo consumido:

— Tem razão, minha Senhora — disse Rémy —, se alguém presentemente descobrir o segredo deste subterrâneo, esse alguém julgará que habitou aqui algum alquimista; ainda é costume queimar os feiticeiros, hoje em dia, mas todos respeitam os alquimistas.

— E demais — disse a dama —, ainda que nos queimassem, Rémy, parece-me que não seria injustiça: não somos porventura dois envenenadores?... Contanto que no dia em que eu subir para a fogueira já tenha levado a cabo a minha empresa, não me repugna mais esta qualidade de morte do que outra qualquer: a maior parte dos antigos mártires assim morreram.

Rémy fez um gesto de aprovação e, tirando o frasco das mãos de sua ama, embrulhou-o cuidadosamente.

Bateram naquele momento à porta da rua.

— É a nossa gente, minha Senhora, não foi engano seu. Depressa: volte acima e responda-lhes, enquanto eu vou fechar o alçapão.

A dama obedeceu.

Naqueles dois corpos existia por tal forma o mesmo pensamento, que muito difícil seria dizer qual dos dois dominava o outro.

Rémy subiu logo atrás dela, e puxou pela mola. O alçapão fechou-se.

Diana encontrou Grandchamp de pé; tinha acordado com o barulho que faziam à porta, e vinha abrir.

Não foi pequena a admiração do velho quando soube da próxima partida de sua ama, que lhe deu essa notícia sem lhe dizer para onde ia.

— Grandchamp, meu amigo — disse ela —, Rémy e eu vamos a uma romaria em cumprimento de uma promessa feita há muito tempo. Mas não há-de falar desta jornada a pessoa alguma, e a ninguém dirá o meu nome, compreende?

— Oh, minha Senhora! assim o juro — respondeu o velho criado. — Porém... havemos de tornar a ver-nos?...

— Decerto, Grandchamp, decerto: não sabes que quem não se torna a encontrar neste mundo, sempre se encontra no outro?... — Mas, vamos, ao caso, Grandchamp: esta casa para nada nos serve agora...

Diana tirou de um armário um maço de papéis.

— Aqui estão os títulos que constituem a propriedade do prédio: alugarás ou venderás esta casa. Se, daqui a um mês, não tiveres encontrado nem inquilino, nem comprador, abandoná-la-ás e voltarás para Méridor.

— E se achar comprador, minha Senhora, por quanto determina que a venda?

— Por aquilo que te aprouver.

— E depois levarei o dinheiro comigo para Méridor?

— Não; guardá-lo-ás para ti, meu velho Grandchamp.

— O quê, minha Senhora!? uma soma tão grande?!...

— Acaso não te devo eu mais do que isso pelos teus bons serviços, Grandchamp?... Demais, não cumpre também que, além das minhas dívidas, eu pague igualmente as que meu pai contraiu para contigo?...

— Porém, minha Senhora, eu nada posso fazer sem contrato ou procuração...

— Ele tem razão — disse Rémy.

— Procura algum meio, Rémy — disse Diana.

— É fácil. Esta casa foi comprada em meu nome; eu vendo-a a Grandchamp, que assim fica habilitado a vendê-la a quem quiser.

— Faz lá isso, então.

Rémy pegou numa pena e escreveu a doação por baixo do contrato de venda.

— E agora... adeus! — disse a dama de Monsoreau para Grandchamp, cujo semblante bem mostrava a tristeza que lhe fazia o ficar só naquela casa. — Adeus, Grandchamp. Manda aproximar os cavalos, enquanto eu acabo de me aprontar.

Diana voltou ao quarto, cortou com um punhal a tela do retrato, enrolou-o, embrulhou-o num pedaço de fazenda de seda e meteu o rolo na sua caixa de jornada.

A moldura, assim vazia, parecia repetir, ainda com mais eloquência do que antes, as dolorosas expressões que tinha ouvido proferir.

O quarto, depois de tirado o retrato da moldura, já não tinha carácter algum particular e tornara-se um aposento comum.

Rémy amarrou as caixas com cilhas às ancas de um dos cavalos, tornou a afirmar-se se não estaria alguém na rua à excepção do arrieiro; e depois, ajudando a sua pálida ama a montar:

— Parece-me, minha Senhora, que será esta a última casa em que tenhamos morado tanto tempo...

— Será a penúltima, Rémy — respondeu a dama, com a sua voz grave e monótona.

— Qual há-de ser a outra, então?

— O túmulo, Rémy.

 

         O QUE FAZIA NA FLANDRES SUA ALTEZA O SR. FRANCISCO DE FRANÇA, DUQUE DE ANJOU E DE BRABANTE, E CONDE DA FLANDRES

 

 

Agora, com a devida vénia dos nossos leitores, deixaremos o rei no Louvre, Henrique de Navarra em Cahors, Chicot na estrada real e a dama de Monsoreau a caminho, para irmos à Flandres ao encontro do duque de Anjou, recentemente nomeado duque de Brabante, e em auxílio do qual já vimos que tinha marchado o almirante-mor de França, Anne de Arques, duque de Joyeuse.

A oitenta léguas de Paris, para o norte, ouvia-se o som de vozes francesas, e o estandarte da França tremulava num arraial francês sobre as margens do Escalda.

Era noite fechada: os fogos do acampamento, formando um círculo imenso, reflectiam-se nas águas profundas do rio, que tão largo é em frente de Antuérpia.

A habitual solidão das campinas cobertas de escura relva era animada pelos relinchos dos cavalos franceses.

Do alto das muralhas da cidade, as sentinelas viam brilhar, ao clarão do fogo dos bivaques, os mosquetes das sentinelas francesas, qual relâmpago fugitivo e longínquo, que a largura do rio que separava o exército da cidade tornava tão inofensivo como os relâmpagos que brilham no horizonte em calmosa noite de Estio.

O exército era o do duque de Anjou.

Não podemos dispensar-nos de contar aos nossos leitores o que ele ali tinha ido fazer.

Não será talvez muito divertido, mas hão-de desculpar-nos, visto que os avisamos com antecedência: há tanta gente que se torna aborrecida sem aviso prévio!

Os nossos leitores que se deram ao incómodo de folhear A Rainha Margot e A Dama de Monsoreau, já conhecem o duque de Anjou, príncipe invejoso, egoísta, ambicioso e impaciente, que, tendo nascido tão chegado àquele trono de que ainda mais o aproximavam os acontecimentos que se iam sucedendo, nunca pudera resolver-se a esperar resignadamente que a morte lhe abrisse caminho.

Vimo-lo pois cobiçar o trono de Navarra no tempo de Carlos IX, depois o trono de Carlos IX e, finalmente, o de seu irmão Henrique, ex-rei da Polónia, o qual havia sido senhor de duas coroas, causando assim grande ciúme a seu irmão, que nunca pudera conseguir uma única.

Tinha deitado, posteriormente, as vistas para a Inglaterra, então governada por uma mulher, e, para obter o trono, pedira em casamento a mulher, apesar dessa mulher se chamar Isabel e de contar mais vinte anos do que ele.

Neste ponto tinha o destino começado a sorrir-lhe, se é que podia dar o nome de sorriso da fortuna a um casamento com a orgulhosa filha de Henrique VIII.

O homem que, em todo o decurso da sua carreira ambiciosa, nem tinha sabido defender a própria liberdade; que tinha visto matar, ou mandado matar talvez, os seus validos La Mole e Cocunasse, e sacrificado cobardemente Bussy, o mais valente dos seus gentis-homens; isto tudo sem proveito para a sua elevação e em grave detrimento da sua glória; esse príncipe, a quem a fortuna enjeitara, via-se a um tempo cumulado de favores de uma poderosa rainha, até ali inacessível às vistas dos mortais, e chamado por todo um povo a ocupar a primeira dignidade que o mesmo povo podia conferir.

A Flandres oferecia-lhe uma coroa, e Isabel tinha-lhe mandado o seu anel.

Não temos a menor pretensão de ser historiador; se alguma vez nos tornamos tal, é por acaso, quando a história desce ao nível do romance, ou, mais exactamente, quando o romance sobe à altura da história; é então que lançamos curiosas vistas para a existência do duque de Anjou, a qual, tendo trilhado constantemente a vereda da realeza, se nos oferece repleta daqueles sucessos, ora sombrios, ora brilhantes, que, em geral, somente se observam nas vidas dos reis.

Passaremos pois a narrar em poucas palavras a vida daquele príncipe.

Vendo as dificuldades em que se achava seu irmão Henrique por causa da sua desavença com os Guisas, ligara-se com estes; mas em breve reconhecera que o único fim que eles levavam em vista era suplantar os Valois no trono de França.

Separou-se então dos Guisas, mas, como já vimos, aquela separação não se havia efectuado sem perigo, e a execução de Salcède na Praça de Greve bem tinha mostrado qual era a importância que a susceptibilidade dos Srs. de Lorena ligava à amizade do Sr. de Anjou.

Demais a mais, havia já muito tempo que Henrique abrira os olhos, não se deixando já iludir com a mesma facilidade de outrora; e um ano antes da época em que principia esta história, tinha-se o duque de Alençon retirado para Amboise, quase como deportado.

Foi então que os Flamengos lhe abriram os braços. Cansados do domínio espanhol, dizimados pelo proconsulado do duque de Alba, iludidos pela paz fingida de Dom João de Áustria, que dela se tinha aproveitado para tornar a apoderar-se de Namur e Charlement, os Flamengos haviam chamado a si Guilherme de Nassau, príncipe de Orange, nomeando-o governador-geral de Brabante.

Diremos algumas palavras acerca desta nova personagem, que tamanho espaço ocupou na História, mas que apenas aparecerá aqui de relance.

Guilherme de Nassau, príncipe de Orange, tinha naquela época cinquenta ou cinquenta e um anos; era filho de Guilherme de Nassau, cognominado o Velho, e de Juliana de Stolbergue, e primo de Renato de Nassau, morto no cerco de Saint-Dizier; tendo herdado deste o título de príncipe de Orange, e sendo embebido desde a infância nos princípios mais severos da Reforma, soube conhecer, ainda mesmo durante a juventude, qual era a sua importância e a grandeza da sua missão.

A missão, que ele se persuadia ter recebido do Céu, à qual se conservou fiel toda a vida, e pela qual morreu como um mártir, era a fundação da república da Holanda, que se realizou com efeito.

Era ainda muito moço quando o imperador Carlos V o chamou à sua corte. Carlos V sabia conhecer os homens; tinha formado o seu juízo acerca de Guilherme, e o velho imperador, que então sustentava nas mãos o globo mais pesado que tem figurado em mãos imperiais, consultara muitas vezes a criança sobre assuntos intrincados da política dos Países Baixos. Ainda mais: o mancebo apenas teria vinte e quatro anos quando Carlos V lhe entregou o comando do exército da Flandres, durante a ausência do célebre Felisberto Manuel de Sabóia.

Guilherme tinha mostrado então que a escolha fora acertada; conservou em respeito o duque de Nears e Coligny, dois dos mais abalizados generais daquele tempo, e à vista deles fortificou Filipevila e Charlemont; no dia em que Carlos V abdicou, foi a Guilherme de Nassau que se encostou para descer os degraus do trono, e foi a ele que incumbiu de levar a Fernando a coroa imperial que acabava de resignar voluntariamente.

Seguiu-se o reinado de Filipe II e, apesar da recomendação que fizera Carlos V a seu filho, de considerar Guilherme como um irmão, este em breve conheceu que Filipe II era um daqueles príncipes que não querem ter família.

Foi então que mais se consolidou no seu pensamento a grande ideia da libertação da Holanda e da emancipação da Flandres, que teria ficado talvez eternamente encerrada em seu espírito, se não houvesse ocorrido ao velho imperador, seu amigo e pai, a singular lembrança de substituir pelo hábito de monge o manto real.

Foi então que os Países Baixos, por proposta de Guilherme, pediram que fossem mandadas recolher as tropas estrangeiras; foi então que pesaram sobre aquele desgraçado povo, sempre espezinhado pela França e pelo Império, a vice-realeza de Margarida de Áustria e o sanguinolento proconsulado do duque de Alba; foi então que se organizou a luta política e religiosa, a que serviu de pretexto o protesto feito no Palácio Sulemburgo para que se abolisse a Inquisição nos Países Baixos; foi então que apareceu uma procissão de quatrocentos cavaleiros vestidos com a maior simplicidade, e que, desfilando a dois e dois, vieram trazer aos pés do trono da vice-rainha a expressão da vontade geral, resumida naquele protesto; foi então que Barlaimont, um dos conselheiros da duquesa, ao ver aqueles homens tão sisudos e tão singelamente trajados, soltou a palavra rotos, que, tendo sido ouvida pelos cavalheiros flamengos e por eles aceite, ficou servindo para designar nos Países Baixos o partido dos patriotas, que até ali não tinha alcunha.

A datar daquele momento, Guilherme começou a representar o papel que o tornou um dos maiores actores políticos que tem havido no mundo. Sempre derrotado na sua luta contra o poder esmagador de Filipe II, tornou constantemente a levantar-se, sempre mais forte depois das derrotas, organizando sempre um novo exército para substituir o outro anterior, desaparecido, posto em fuga, ou aniquilado, aparecendo-nos sempre mais poderoso do que antes, e sempre vitoriado como um libertador.

Foi no meio destas alternativas de triunfos morais e derrotas físicas, se é lícito assim dizer, que Guilherme soube em Mons a notícia da matança da noite de S. Bartolomeu.

Era uma ferida terrível, e que chegava quase ao coração dos Países Baixos; a Holanda e a parte calvinista da Flandres perdiam por aquela ferida o melhor sangue dos seus aliados naturais, os huguenotes de França.

Guilherme respondeu àquela notícia com uma retirada, como era seu costume; de Mons, onde se achava, recuou até ao Reno; e ficou esperando os acontecimentos.

Os acontecimentos poucas vezes falham, quando a causa que se defende é justa.

Espalhou-se de repente a notícia de que ninguém podia esperar. Alguns rotos do mar, pois havia rotos do mar e rotos de terra, impelidos pelo vento contrário para o porto de Brillle, vendo que lhes era impossível fazerem-se ao largo, deixaram dar as embarcações à costa e, exasperados pelo apuro em que se viam, tomaram a cidade, que já tinha aprontado os patíbulos para os enforcar.

Depois de tomarem a cidade, trataram de expulsar as guarnições espanholas dos arredores e, não encontrando entre si um homem forte bastante para tirar o fruto necessário da boa fortuna que o acaso lhes tinha deparado, chamaram o príncipe de Orange. Guilherme acudiu logo; era preciso vibrar um golpe de mestre; era preciso comprometer toda a Holanda, para assim tornar para sempre impossível qualquer reconciliação com a Espanha.

Guilherme fez promulgar uma lei que proscrevia na Holanda o culto católico, assim como o culto protestante era proscrito em França.

Logo depois desta manifestação tornou a começar a guerra; o duque de Alba enviou contra os revoltosos seu próprio filho, Frederico de Toledo, que lhes tomou Zutphen, Nardem e Har-lém; porém este revés, em vez de desanimar os Holandeses, pareceu ter-lhes dado nova força: tudo se sublevou; tudo pegou em armas, desde o Zuiderzê até ao Escalda. A Espanha chegou a atemorizar-se: tirou o comando ao duque de Alba e nomeou para seu sucessor Dom Luís de Requesens, um dos vencedores de Lepanto.

Começou então para Guilherme uma nova série de desgraças: Ludovico e Henrique de Nassau, que vinham em auxílio do príncipe de Orange, foram surpreendidos por um dos generais de Dom Luís, na proximidade de Nimégue, e ficaram completamente derrotados e mortos; os Espanhóis penetraram na Holanda, puseram cerco a Ledve e saquearam Antuérpia.

Estava tudo perdido, mas o Céu veio segunda vez em auxílio da nascente república. Requesens morreu em Bruxelas.

Foi então que todas as províncias, reunidas pelo interesse geral, redigiram de comum acordo, e assinaram, em 8 de Novembro de 1576, isto é, quatro dias depois do saque de Antuérpia, o tratado a que se deu o nome de paz de Gand, pelo qual se comprometiam a auxiliarem-se mutuamente para libertarem o país da servidão dos Espanhóis e dos outros estrangeiros.

  1. João tornou a aparecer, e com ele a fortuna adversa dos Países Baixos. Em menos de dois meses foram tomadas Namur e Charlemont.

Os Flamengos responderam a estes reveses com a nomeação do príncipe de Orange para governador-geral do Brabante.

  1. João morreu também. Deus protegia evidentemente a liberdade dos Países Baixos. Sucedeu-lhe Alexandre Farnésio.

Era um príncipe muito hábil, com maneiras encantadoras, afável e valente ao mesmo tempo, grande político e bom general; o povo da Flandres estremeceu quando ouviu pela primeira vez aquela doce voz italiana chamar-lhe amigo, em lugar de o tratar de rebelde.

Guilherme conheceu logo que Farnésio faria mais a favor de Espanha com as suas promessas, do que o duque de Alba com os seus suplícios.

Fez com que as províncias assinassem, em 29 de Janeiro de 1579, a união de Utreque, que ficou sendo a base fundamental do direito público da Holanda.

Foi então que, receando não poder levar avante, ele só, o plano de emancipação, para o bom êxito do qual lutava havia quinze anos, mandou propor ao duque de Anjou a soberania dos Países Baixos, com a condição de respeitar os privilégios dos Holandeses e dos Flamengos, e a liberdade das consciências.

Este golpe foi terrível para Filipe II, que lhe respondeu oferecendo vinte e cinco mil escudos pela cabeça de Guilherme.

Os Estados, reunidos em Haia, declararam então que Filipe II tinha deixado de reinar nos Países Baixos, e determinaram que o juramento de fidelidade lhes fosse prestado a eles dali por diante, em vez de ser prestado ao rei de Espanha.

Foi nessa ocasião que o duque de Anjou entrou na Bélgica, onde foi recebido pelos Flamengos com a desconfiança que eles mostravam sempre a tudo quanto era estrangeiro.

Porém, o apoio da França, que lhes prometia o príncipe francês, era para eles tão importante que não podiam deixar de lhe fazer, aparentemente pelo menos, boa e respeitosa recepção.

Entretanto, a promessa de Filipe II ia produzindo os seus frutos. No meio das festas que tiveram lugar por ocasião da sua entrada, disparou-se uma pistola ao lado do príncipe de Orange, e Guilherme cambaleou: todos julgaram que tinha sido mortalmente ferido, porém a Holanda ainda carecia dele.

A bala do assassino só lhe tinha atravessado as faces de lado a lado. O indivíduo que havia disparado a pistola era João Jaureguy, precursor de Baltasar Gérard, assim como João Chalet estava destinado a ser precursor de Ravaillac.

Todos estes acontecimentos tinham infundido em Guilherme uma tristeza sombria, que raras vezes era substituída por um sorriso pensativo.

Os Flamengos e Holandeses respeitavam aquele homem meditabundo como se fora um deus, porque conheciam que dele dependia unicamente todo o seu porvir; e quando o viam aproximar, embuçado no seu grande capote, com o rosto encoberto pela aba do chapéu, o cotovelo encostado à mão esquerda e a barba encaixada na mão direita, os homens desviavam-se para lhe abrir caminho, e as mães, levadas de certa superstição religiosa, mostravam-no aos filhos, dizendo-lhes:

— Olha, meu filho: aquele é o Taciturno.

Os Flamengos, em virtude da proposta de Guilherme, haviam eleito Francisco de Valois duque de Brabante e conde da Flandres, isto é, príncipe soberano.

Nada disto obstava a que Isabel o conservasse na esperança de casar com ela. Bem pelo contrário, via naquela aliança o meio de reunir os calvinistas da Flandres e da França, como os de Inglaterra: a sagaz Isabel cobiçava talvez uma terceira coroa.

O príncipe de Orange favorecia na aparência o duque de Anjou, emprestando-lhe provisoriamente o manto da sua popularidade, com a tenção de lhe tirar o mesmo manto quando lhe parecesse chegado o momento de se livrar do poder francês, como se tinha livrado da tirania espanhola.

Porém, aquele aliado hipócrita era mais temível para o duque de Anjou do que um inimigo: paralisava a execução de todos os planos que poderiam dar-lhe demasiado poder ou muito grande influência na Flandres.

Filipe II, vendo aquela entrada de um príncipe francês em Bruxelas, tinha intimado o duque de Guisa que viesse em seu socorro, reclamando este auxílio em virtude de um tratado concluído noutro tempo entre Dom João de Áustria e Henrique de Guisa.

Esses dois jovens heróis, que eram da mesma idade, com pouca diferença, tinham adivinhado os projectos um do outro e, juntando-se e associando as suas ambições, comprometeram-se a conquistar, cada um deles, um reino para si.

Quando, por ocasião da morte do seu temível irmão, Filipe II encontrou nos papéis do jovem príncipe o tratado assinado por Henrique de Guisa, não mostrou dar-lhe importância alguma. Que receio podia ele ter da ambição de um defunto? Não estava já porventura encerrada num túmulo a espada que podia dar vida àquele escrito?

Contudo, um rei tão astuto como Filipe II, que sabia a importância que podem ter, em política, duas regras escritas por certas mãos, não podia deixar apodrecer no pó de alguma colecção de manuscritos e autógrafos, para recreio das pessoas que visitavam o Escorial, a assinatura de Henrique de Guisa, pois era uma firma que ia começando a gozar de grandes créditos entre os traficantes da realeza, chamado Grange, Valois, Habsburgo e Tudor.

Filipe convidou portanto o duque de Guisa a continuar com ele o tratado que havia feito com Dom João, sendo o teor do mesmo tratado que o loreno havia de manter o espanhol na posse da Flandres, enquanto o espanhol havia de ajudar o loreno a levar a cabo o conselho hereditário que o cardeal legara outrora à sua casa.

O conselho hereditário em questão era de não sobrestar um único instante no trabalho eterno que havia de conduzir, mais dia menos dia, os que trabalhavam, à usurpação do reino de França.

Guisa anuiu; nem podia deixar de assim fazer, porque Filipe II o ameaçava com a remessa de uma cópia do tratado a Henrique de França; e fora então que o espanhol e o loreno tinham soltado contra o duque de Anjou, vencedor e rei da Flandres, o espanhol Salcède, que pertencia à Casa de Lorena e havia sido incumbido de o assassinar.

Aquele assassinato efectuando-se, terminava tudo à medida dos desejos do espanhol e do loreno.

Uma vez morto o duque de Anjou, já não havia pretendente ao trono da Flandres, nem sucessor à coroa de França.

É verdade que ainda restava o príncipe de Orange; mas, como já se viu, Filipe II tinha aprontado um outro Salcède, que se chamava João Jaureguy.

Salcède foi agarrado e esquartejado na Praça de Greve, sem ter podido executar o seu projecto.

João Jaureguy feriu gravemente o príncipe de Orange, mas o caso é que não fez mais do que feri-lo.

O duque de Anjou e o Taciturno conservaram-se portanto ainda vivos, em boa harmonia um com o outro, aparentemente, mas odiando-se na realidade, ainda mais do que os próprios que procuravam mandá-los assassinar.

Anjou, como já dissemos, tinha sido recebido com desconfiança. Bruxelas abrira-lhe as portas, porém Bruxelas não era a Flandres nem o Brabante; tinha começado a entranhar-se pelos Países Baixos e a apossar-se do seu recalcitrante reino, cidade por cidade, pedaço por pedaço, usando ora da persuasão, ora da força, conforme o conselho do príncipe de Orange, o qual, conhecendo a susceptibilidade dos Flamengos, o induzia a comer folha por folha, como diria César Bórgia, a saborosa alcachofra chamada Flandres.

Os Flamengos, por outro lado, não resistiam muito abertamente; conheciam que o duque de Anjou os estava defendendo vitoriosamente contra os Espanhóis; não se davam muita pressa em aceitar o seu libertador, mas enfim... sempre o iam aceitando.

Francisco impacientava-se e batia o pé no chão, vendo a dificuldade com que ia ganhando terreno.

— Estes povos são vagarosos e tímidos — diziam a Francisco os seus bons amigos —, espera.

— Estes povos são traiçoeiros e inconstantes — dizia ao príncipe o Taciturno —, leve-os pela força.

O resultado foi que o duque, a quem o seu amor-próprio natural ainda exagerava a moleza dos Flamengos, como desfeita, começou a apoderar-se pela força das cidades que não se entregavam tão espontaneamente como ele teria desejado.

Era justamente o que esperavam, vigiando-se um ao outro, o seu aliado, o Taciturno, príncipe de Orange, e o seu figadal inimigo, Filipe II.

Anjou, depois de haver alcançado algumas vantagens, viera acampar em frente de Antuérpia, para tomar aquela cidade, que o duque de Alba, Requesens, Dom João e o duque de Parma, cada um por sua vez, tinham feito curvar debaixo dos seus respectivos jugos, sem nunca a enfraquecerem e sem a acostumarem à escravidão um único instante.

Antuérpia tinha chamado o duque de Anjou em seu auxílio contra Alexandre Farnésio; quando porém chegou a ocasião de o duque de Anjou querer entrar em Antuérpia, a cidade voltou contra ele a sua artilharia.

Era esta, pois, a posição em que se tinha colocado Francisco de França, no momento em que o tornamos a encontrar nesta história, no dia imediato ao da chegada de Joyeuse com a sua esquadra.

 

         PREPARATIVOS DE BATALHA

O acampamento do novo duque de Brabante estava assente sobre as duas margens do Escalda: o exército, apesar de bem disciplinado, conservava-se numa contínua agitação, por um motivo bem fácil de perceber.

Debaixo das ordens do duque de Anjou militavam muitos calvinistas, não por simpatia pelo príncipe, mas por pirraça à Espanha e aos católicos da França e da Inglaterra; combatiam mais por amor-próprio do que por convicção ou afecto, e toda a gente previa que, logo que se acabasse a campanha, haviam de abandonar o chefe ou impor-lhe condições.

Demais, o duque de Anjou entretinha todos na esperança de que, chegada a ocasião, ele próprio iria ao encontro das tais condições. O seu estribilho predilecto era: «Se Henrique de Navarra, por conveniências políticas, se fez católico, porque não se fará, pelo mesmo motivo, Francisco de França protestante?»

Do outro lado, pelo contrário, isto é, da parte do inimigo, existiam, em oposição a estas dissidências morais e políticas, princípios distintos e um plano perfeitamente combinado, tudo completamente isento de ambição ou de cólera.

Antuérpia, a princípio, tinha tido tenção de se entregar, mas havia de ser quando lhe parecesse e com as condições que mais lhe conviessem; não se recusava abertamente a receber Francisco, mas queria esperar, fiada na fortaleza da sua posição e no valor e experiência bélica dos seus habitantes; sabia, entretanto, que, se deitasse os braços de fora, encontraria, além do duque de Guisa, que estava em observação na Lorena, Alexandre Farnésio no Luxemburgo.

Por que razão não aceitaria, em caso de necessidade, o auxílio da Espanha contra o Anjou, como tinha aceitado o auxílio do Anjou contra a Espanha?

Sempre ficava senhora de repelir a Espanha, depois que a Espanha a houvesse ajudado a repelir o Anjou.

Aqueles republicanos monótonos tinham a seu favor a brônzea força do bom senso.

Eis senão quando, viram aparecer uma esquadra na foz do Escalda, e souberam que a esquadra era comandada pelo almirante-mor de França, que vinha em socorro do seu inimigo.

O duque de Anjou, desde o instante em que tinha posto cerco a Antuérpia, havia-se tornado naturalmente inimigo dos Antuerpenses.

Os calvinistas do duque de Anjou, quando avistaram a esquadra e souberam da chegada de Joyeuse, fizeram uma careta quase igual à que fizeram os Flamengos.

Os calvinistas eram muito valentes, mas ao mesmo tempo muito invejosos; não olhavam a questões de dinheiro, mas não gostavam que lhes viessem aparar os louros, especialmente com espadas que tinham servido para derramar o sangue de tantos huguenotes no dia de S. Bartolomeu.

Daqui se originaram imensas rixas, que tiveram princípio na mesma tarde da chegada de Joyeuse, e continuaram triunfantemente no dia imediato e nos seguintes.

Os Antuerpenses presenciavam todos os dias, do alto das suas muralhas, dez ou doze duelos entre católicos e huguenotes. As campinas serviam de arena, e o número de mortos que atiravam ao rio era muito superior àquele que teria custado aos Franceses uma batalha em campo aberto.

Se o cerco de Antuérpia houvesse durado nove anos, como o de Tróia, bastava que os sitiados se contentassem em deixar os sitiantes entregues a si próprios: ter-se-iam aniquilado completamente por suas mãos.

Francisco fazia de medianeiro em todas estas rixas, mas com enormes dificuldades; estava comprometido com os huguenotes franceses; ferindo estes, privava-se do apoio moral dos huguenotes flamengos, que podiam auxiliá-lo em Antuérpia.

Por outro lado, tratar mal os católicos mandados pelo rei para arriscarem a vida em seu serviço, era para o duque de Anjou um passo não somente impolítico, mas que também o podia comprometer.

A chegada daquele reforço, com o qual o próprio duque de Anjou não contava, tinha transtornado os planos dos Espanhóis e feito desesperar os Lorenos, não sendo pequena a satisfação que daqui resultava para o duque de Anjou.

Porém a disciplina do exército ressentia-se sobremaneira do cuidado com que o duque assim poupava os dois partidos.

Joyeuse, a quem a missão nunca tinha agradado, como os leitores estarão lembrados, vivia pouco satisfeito no meio daquela reunião de homens de tão diversos sentimentos; sentia por instinto que o tempo das vitórias já era passado.

O coração adivinhava-lhe um grande revés, e a sua indolência de cortesão, assim como o seu amor-próprio de comandante, faziam com que ele lamentasse ter vindo de tão longe para tomar parte numa derrota.

Por isso assentava na sua consciência, e dizia a quem o queria ouvir que o duque de Anjou tinha feito muito mal em pôr cerco a Antuérpia.

O príncipe de Orange, que fora quem lhe dera tão pérfido conselho, desaparecera apenas vira que o conselho era adoptado, e ninguém sabia o que era feito dele. O seu exército formava a guarnição da cidade, e ele prometera ao duque de Anjou a coadjuvação da tropa; entretanto, não constava que houvesse a menor desinteligência entre os soldados de Guilherme e os Antuerpenses, e desde que os sitiantes assentaram o seu acampamento em frente da praça, ainda não tinham tido o gosto de ouvir dizer que um só duelo se tivesse realizado entre os sitiados.

A principal razão que Joyeuse dava para motivar a sua oposição ao cerco, era ser a importante cidade de Antuérpia quase uma capital: ora, possuir uma grande cidade por sua livre vontade, era uma vantagem real; porém, tomar o duque de Anjou de assalto a segunda capital dos seus futuros Estados, era expor-se à desafeição dos Flamengos, e Joyeuse, pelo conhecimento que tinha do carácter dos Flamengos, sabia muito bem que, ainda mesmo que o duque tomasse Antuérpia, nunca eles deixariam, mais cedo ou mais tarde, de se vingar com usura de semelhante perda.

Enquanto os generais deliberavam em conselho, estava o duque sentado, ou, mais exactamente, deitado numa comprida cadeira de bruços, que podia servir-lhe de cama em caso de necessidade, e em vez de prestar atenção ao parecer do almirante-mor de França, ouvia os segredinhos que lhe dizia Aurilly, seu tocador de alaúde.

Aurilly, pelas suas cobardes condescendências, pelas suas vis lisonjas e contínuas assidui-dades, adquirira valimento junto do príncipe; para o servir nunca atraiçoara o rei, nem personagens poderosas, como haviam feito os outros amigos do duque, de sorte que evitara assim o cachopo de encontro ao qual se tinham despedaçado La Mole, Cocunasse, Bussy e tantos outros.

Com o seu alaúde, as suas carrinhas de amores, as suas informações exactas a respeito de todas as personagens e de todas as intrigas da corte, com a destreza dos seus manejos para atrair aos laços do duque a presa que ele apetecia, fosse qual fosse, havia Aurilly juntado, em surdina, uma grande fortuna, que tinha guardado em mãos seguras, para a eventualidade de algum revés; de forma que aos olhos de todos figurava sempre como o pobre músico Aurilly, aceitando com gratidão um escudo, e cantando como as cigarras quando estava com fome.

A influência desse homem era imensa, porque era secreta.

Joyeuse, vendo-o atalhar assim os seus desenvolvimentos de estratégia e desviar dele a atenção do duque, retirou-se para trás, interrompendo de todo o fio do seu discurso.

Francisco parecia não estar ouvindo, mas estava na realidade dando-lhe atenção; por isso não lhe escapou a impaciência de Joyeuse, e, logo:

— Senhor Almirante — disse ele —, que tem?

— Nada, meu Senhor; esperarei todavia que Vossa Alteza esteja com vagar para me ouvir.

— Mas eu estou ouvindo, Sr. de Joyeuse!... — respondeu alegremente o duque. — Ah! os Parisienses julgam-me tão embrutecido com esta guerra da Flandres, que não posso dar atenção a duas pessoas falando a um tempo, quando César ditava sete cartas de uma vez!...

— Meu Senhor — respondeu Joyeuse, deitando para o pobre músico um olhar que lhe fez abaixar a cabeça com a sua humildade usual —, eu não sou cantor, por isso não preciso que me acompanhem quando falo.

— Bom, bom, duque. Cale-se, Aurilly. Aurilly inclinou-se.

— Então — prosseguiu Francisco — não aprova a minha tentativa contra Antuérpia, Sr. de Joyeuse?

— Não, meu Senhor. E por isso, também, é com a maior reserva que emito o meu parecer em presença de tão hábeis oficiais.

E Joyeuse, com a delicadeza própria de homem da corte, cumprimentou todos que estavam em redor de si.

Ouviram-se várias vozes afirmando ao almirante-mor que eram do mesmo parecer. Outros, sem falar, deram sinais de aprovação.

— Conde de Saint-Aignan — disse o príncipe para um dos seus mais valentes coronéis —, não é da opinião do Sr. de Joyeuse?

— Sou, sim, meu Senhor — respondeu o Sr. de Saint-Aignan.

— Ah!... como vi que fez uma careta...

Todos desataram a rir, Joyeuse enfiou, o conde corou.

— Se o Senhor Conde de Saint-Aignan — disse Joyeuse — costuma emitir o seu parecer dessa maneira, sempre lhe digo que é um conselheiro pouco civil.

— Sr. de Joyeuse — retorquiu prontamente Saint-Aignan —, Sua Alteza fez mal em me increpar por causa de uma enfermidade que adquiri no seu serviço; na ocasião da tomada de Château-Cambrésis fui ferido com um pique na cabeça, e fiquei desde então sujeito a contracções nervosas que motivam as caretas de que se queixa Sua Alteza... Não imagine, contudo, Sr. de Joyeuse, que é uma desculpa que lhe estou dando: é uma explicação unicamente — disse o conde, voltando-se para ele com altivez.

— Não senhor — replicou Joyeuse, dando-lhe a mão —, foi uma censura que fez, e teve razão.

Subiu o sangue ao rosto do duque Francisco.

— E a quem foi dirigida a censura? — perguntou ele.

— A mim, provavelmente, meu Senhor.

— Por que motivo lhe dirigiria Saint-Aignan uma censura, Sr. de Joyeuse, se ele o não conhece?

— Por eu ter podido pensar um instante que o Sr. de Saint-Aignan era tão pouco amigo de Vossa Alteza que lhe tenha dado o conselho de tomar Antuérpia.

— Mas enfim! — exclamou o príncipe — é preciso que o país conheça qual é a minha posição. Eu sou duque de Brabante e conde de Flandres no nome unicamente. É necessário que o seja de facto também. Aquele Taciturno, que se sumiu não sei para onde, falou-me em realeza. Onde está a coroa a que ele aludiu? Dentro de Antuérpia. E ele, onde está? Em Antuérpia também, provavelmente. Pois bem! é preciso tomar Antuérpia, e depois veremos o juízo que devemos formar acerca de tudo isto.

— Isso já Vossa Alteza sabe, por minha alma! ou é menos hábil político do que dizem... Quem lhe aconselhou que tomasse Antuérpia? Foi o Senhor Príncipe de Orange... que desapareceu na ocasião de entrar em campanha; o Senhor Príncipe de Orange, que fez nomear Vossa Alteza duque de Brabante, reservando para si o cargo de lugar-tenente do ducado; o príncipe de Orange, que deseja servir-se de Vossa Alteza para aniquilar os Espanhóis, e dos Espanhóis para aniquilar Vossa Alteza; o Senhor Príncipe de Orange, que há-de tomar o seu lugar e ser o seu sucessor... se é que o não fez já; o príncipe de Orange... Repare, meu Senhor, que Vossa Alteza, até ao presente, seguindo os conselhos do príncipe de Orange, não tem feito senão indispor os Flamengos contra si. Se amanhã sofrer um revés, toda esta gente que não se atreve a encará-lo, persegui-lo-á, como fazem os cães medrosos, que só correm atrás de quem foge.

— O quê!? pois parece-lhe possível que eu seja batido por mercadores de lã e bebedores de cerveja?!...

— Esses mercadores de lã e bebedores de cerveja já deram muito que fazer a el-rei Filipe de Valois, ao imperador Carlos V e a el-rei Filipe II! três príncipes de tão ilustre estirpe, meu Senhor, que decerto não me levará a mal que o compare com eles.

— Quer dizer: receia um revés, não é assim?

— Sim, meu Senhor, é esse o meu receio.

— Então não tenciona permanecer aqui, Sr. de Joyeuse?

— Por que motivo não havia eu de permanecer aqui?...

— Porque me admira que duvide da sua própria valentia, a ponto de se lhe figurar que já está fugindo dos Flamengos. Mas pode tranquilizar-se: os tais comerciantes são muito prudentes, e quando saem a combater costumam cobrir-se de armaduras tão pesadas que dificilmente o alcançariam ainda que se lembrassem de o perseguir.

— Meu Senhor, não receie que me faleça o ânimo; hei-de apresentar-me na fileira da vanguarda, mas hei-de ser batido na fileira da vanguarda, enquanto outros o serão na da retaguarda; é essa a única diferença.

— Porém o seu argumento não é lógico, Sr. de Joyeuse! Ainda há pouco disse que tinha feito bem em tomar as praças pequenas...

— Acho acertado que Vossa Alteza tome tudo aquilo que não se defende.

— Pois bem! Agora, que já tomei as praças pequenas, que não se defendiam, como diz> não recuarei em presença desta, porque se defende, ou, para melhor dizer, porque mostra querer defender-se.

— Acho que Vossa Alteza não tem razão: é melhor recuar num terreno seguro do que marchar em frente e cair dentro de algum fosso.

— Cairei, se assim tiver de ser, mas não recuarei.

— Vossa Alteza fará o que entender — respondeu Joyeuse —, e a nós cumpre-nos fazer o que Vossa Alteza determinar; estamos aqui para lhe obedecer.

— Isso não é resposta, duque.

— É, contudo, a única resposta que posso dar a Vossa Alteza.

— Ora vamos! prove-me em como não tenho razão; desejo imenso poder concordar com o duque.

— Meu Senhor: veja o exército do duque de Orange. Era seu, não é assim? Pois em vez de estar aqui acampado, com o seu, em frente de Antuérpia, está dentro da cidade, e isso muda muito de figura. Veja o Taciturno, como mesmo Vossa Alteza lhe chama: era seu amigo e seu conselheiro; pois Vossa Alteza não ignora o que é feito do conselheiro, mas até está quase certo de que o amigo se transformou em inimigo; veja os Flamengos: quando estavam na Flandres, embandeiravam os navios e as fortalezas ao vê-lo aproximar; agora fecham-lhe as portas na cara e viram contra Vossa Alteza a artilharia, como se fosse o duque de Alba sem tirar nem pôr. Olhe, sou eu que o digo: Flamengos e Holandeses, Antuérpia e Orange, só esperam pelo momento de se unirem contra Vossa Alteza, e esse momento será aquele em que der a voz de fogo ao comandante da sua artilharia.

— Embora! — respondeu o duque de Anjou — venceremos juntamente Antuérpia e Orange, Flamengos e Holandeses.

— Não, meu Senhor, porque Vossa Alteza tem apenas a gente precisa para dar um assalto a Antuérpia, na suposição de que só teremos de lidar com os Antuerpenses, e que, enquanto estivermos dando o assalto, não cairá sobre a nossa retaguarda o Taciturno, com os seus eternos oito ou dez mil homens, sempre destruídos e sempre renascentes, com os quais há dez ou doze anos faz frente ao duque de Alba, a Dom Luís Requesens e ao duque de Parma.

— Pelo que vejo, ainda persiste na sua opinião...

— Que opinião?

— A de que seremos derrotados.

— Sem a menor dúvida!

— Pois bem! facilmente poderá escapar a essa vergonha, Sr. de Joyeuse — prosseguiu desabridamente o príncipe. — Meu irmão enviou-o aqui para me apoiar: a sua responsabilidade ficará salva se eu o despedir, dizendo-lhe que julgo não carecer de auxílio.

— Vossa Alteza pode despedir-me — replicou Joyeuse —, mas seria uma desonra para mim retirar-me na véspera de uma batalha.

Seguiu-se às palavras de Joyeuse um comprido murmúrio de aprovação; o príncipe percebeu que se tinha excedido.

— Meu caro almirante — disse ele, levantando-se e indo abraçar o mancebo —, não me percebeu. Parece-me, contudo, que tenho razão, ou, mais exactamente, que na posição em que me acho não posso confessar que fiz mal; censurou os meus erros, eu bem os conheço: tomei demasiadamente a peito a honra do meu nome; quis mostrar a todo o pano a superioridade do exército francês; foi um desacerto. Porém, o mal já está feito, quer que o pioremos?... Estamos aqui em presença de gente armada, isto é, em presença de gente que nos disputa a posse daquilo que me foi prometido: quer que eu ceda?... Se assim fizer, começarão amanhã a tirar-me as minhas conquistas. Não! a espada já está desembainhada: devemos ferir, quando não, seremos feridos. E este o meu parecer.

— Em vista do que Vossa Alteza diz — replicou Joyeuse —, não acrescentarei mais palavra; estou aqui para lhe obedecer, meu Senhor, e acredite que o farei com tanta satisfação se me levar à morte, como se me guiasse à vitória. Entretanto... Mas não! não, meu Senhor.

— O que é?

— Nada; quero e devo calar-me.

— Não, por Deus! fale, almirante, fale! eu lho ordeno.

— Então será em particular, meu Senhor.

— Em particular?

— Sim, se assim for do agrado de Vossa Alteza.

Levantaram-se todos e arredaram-se para as extremidades da espaçosa barraca de Francisco.

— Fale — disse este.

— Vossa Alteza pode olhar com indiferença um revés que lhe cause a Espanha, uma derrota que faça triunfar os bebedores de cerveja, ou o tal príncipe de Orange, de duas caras, mas... parecer-lhe-á muito agradável dar motivo de riso ao Senhor Duque de Guisa?...

Francisco franziu as sobrancelhas.

— O Sr. de Guisa? — disse ele — mas que tem ele que ver em tudo isto?

— O Sr. de Guisa — continuou Joyeuse — intentou, segundo dizem, mandar assassinar Vossa Alteza. Salcède não o confessou sobre o cadafalso, mas confessou-o quando lhe deram tratos. Ora, será grande satisfação para o loreno (o qual, se não me engano, representa em tudo isto um dos principais papéis), se formos derrotados em frente de Antuérpia e lhe arranjarmos assim — quem sabe? — sem ele gastar real, a morte de um príncipe francês pela qual ele tinha prometido tão subido preço a Salcède. Leia a história da Flandres, e lá verá que os Flamengos têm por costume estrumar a terra com o sangue dos príncipes mais ilustres e dos melhores cavaleiros franceses.

O duque abanou a cabeça.

— Embora, Joyeuse — disse ele —, darei, se preciso for, ao loreno maldito, a satisfação de me ver morto, mas não lhe darei a de me ver fugir. Tenho sede de glória, Joyeuse; sou o único da minha casa que ainda não ganhou batalhas.

— Esquece-lhe Château-Cambrésis, meu Senhor; verdade seja que só a Vossa Alteza esquece...

— Compare essa escaramuça com Jarnac e Montcontour, Joyeuse, e veja quanto eu ainda fico devendo a meu muito prezado irmão Henrique. Não, não! — prosseguiu ele — eu não sou um reizinho de Navarra! Sou um príncipe francês!

E em seguida, voltando-se para os fidalgos que se tinham afastado para o deixar falar com Joyeuse:

— Meus Senhores — disse ele —, sempre vai avante o projecto do assalto; a chuva parou, o terreno está bom: daremos o ataque esta noite.

Joyeuse inclinou-se.

— Sirva-se Vossa Alteza dar as suas ordens — disse ele —, só por elas esperamos.

— Tem oito navios, sem contar com a galera almirante, não é assim, Sr. de Joyeuse?

— Sim, meu Senhor.

— Com eles romperá a linha de defesa (e não será difícil, pois os Antuerpenses só têm navios mercantes no porto); virá depois fundear em frente do cais. Logo que ali chegar, se o cais estiver fortificado, bombardeará a cidade, e ao mesmo tempo tentará um desembarque com os seus mil e quinhentos homens. Dividirei o resto do exército em duas colunas: uma será comandada pelo Senhor Conde de Saint-Aignan, e a outra por mim mesmo. Ambas tentarão subir à escala por surpresa, logo que se ouçam os primeiros tiros de artilharia. A cavalaria ficará de reserva, para, no caso de algum revés, proteger a retirada da coluna que for repelida. Um destes três ataques há-de necessariamente ter bom êxito. O primeiro corpo que conseguir alojar-se sobre as muralhas deitará um foguete, para reunir a si os outros.

— Mas sempre é bom prever tudo, meu Senhor... — disse Joyeuse. — Suponhamos uma coisa que Vossa Alteza julga impossível, isto é, que sejam repelidas as três colunas de ataque...

— Então retiraremos para os navios, protegidos pelo fogo das nossas baterias, e espalhar-nos-emos pelas campinas, onde os Antuerpenses não se atreverão a vir procurar-nos.

Todos se inclinaram em sinal de adesão.

— Agora, Senhores — disse o duque —, haja silêncio. Acordem-se os soldados e faça-se o embarque com ordem; apaguem-se os fogos; e nada de tiros, para que não se desconfie do nosso intento. Estará dentro do porto, almirante, antes que os Antuerpenses percebam que saiu daqui. Nós vamos atravessá-lo e seguir a margem esquerda, mas havemos de chegar ao mesmo tempo. Vamos, Senhores! e mostrem o vosso valor. A fortuna que nos acompanhou até aqui não deixará por certo de nos seguir à outra margem do Escalda.

Os oficiais saíram da barraca do príncipe, e deram as suas ordens com as cautelas que tinham sido indicadas.

Dali a pouco ouviu-se o murmúrio confuso de todo aquele formigueiro humano: mas ninguém poderia diferençar aquele sussurro do vento agitando os gigantescos canaviais e a basta erva das campinas.

O almirante tinha ido para bordo.

 

         SUA ALTEZA

Entretanto, os Antuerpenses não viam com indiferença os preparos hostis do Senhor Duque de Anjou, e Joyeuse não se enganava atribuindo-lhes toda a possível malquerença.

Antuérpia assemelhava-se a um cortiço de abelhas quando chega a noite: estava tranquila e deserta exteriormente, mas cheia de murmúrio e de movimento no interior.

Os Flamengos, em armas, patrulhavam as ruas, fortificavam as casas, prendiam correntes de ferro de umas às outras e fraternizavam com os batalhões do príncipe de Orange, uma parte dos quais já estava de guarnição em Antuérpia, enquanto a outra ia entrando às fracções, que, apenas entravam, logo se disseminavam pela cidade. O príncipe de Orange, mal lhe constou que estava tudo pronto para uma vigorosa resistência, escolheu uma noite sombria e sem luar, e entrou para a cidade, sem manifestação alguma, mas com o sossego e firmeza que presidiam ao cumprimento de todas as suas resoluções logo que ele as adoptava.

Foi apear-se nos Paços do Conselho, onde os seis partidários lhe tinham aprontado quartel.

Ali recebeu os centuriões dos burgueses, passou revista aos oficiais das tropas assalariadas e, finalmente, conferenciou com os principais chefes, a quem deu conhecimento dos seus projectos.

O seu principal projecto era aproveitar a manifestação do duque de Anjou contra a cidade para romper com ele. O duque de Anjou estava chegado ao ponto a que tinha querido trazê-lo o Taciturno, e este via com satisfação que aquele novo competidor ao poder Supremo ia perder-se como os mais.

Naquela mesma noite em que o duque de Anjou se dispunha a atacar, como já vimos, o príncipe de Orange, que se achava havia dois dias na cidade, estava em conselho com o comandante da praça nomeado pelos burgueses.

A cada dúvida que o governador opunha ao plano ofensivo do príncipe de Orange, se a dúvida era de natureza a demorar a execução do mesmo plano, o príncipe de Orange abanava a cabeça como admirado daquela incerteza. Mas, a cada aceno de cabeça, o comandante da praça respondia:

— Príncipe, muito bem sabe que é negócio tratado, que Sua Alteza prometeu vir: esperemos pois por Sua Alteza.

Esta palavra mágica fazia encrespar as sobrancelhas do Taciturno; mas apesar de franzir as sobrancelhas e de roer as unhas com impaciência, sempre ia esperando.

Todos dirigiam então as vistas para o mostrador de um grande relógio que havia na sala, e pareciam pedir à pêndula que apressassse a vinda da personagem que tão impacientemente era esperada.

Deram as nove horas da noite: a incerteza tinha-se transformado em verdadeira ansiedade; algumas vedetas afirmavam ter percebido movimento no arraial dos Franceses. Uma barquinha chata como o prato de uma balança tinha sido mandada a explorar o Escalda; os Antuerpenses, a quem dava menos cuidado o que se passava em terra do que o que se passava no mar, tinham querido obter notícias positivas da esquadra francesa; a barquinha não havia regressado. O príncipe de Orange levantou-se e, mordendo de raiva as suas luvas de anta, disse para os antuerpenses:

— Tanto havemos de esperar por Sua Alteza, Senhores, que quando ele chegar já Antuérpia estará tomada e queimada: a cidade, então, poderá ajuizar da diferença que há a esse respeito entre os Franceses e os Espanhóis.

Estas palavras não eram muito animadoras para os oficiais civis, e por isso também olharam uns para os outros com bastante emoção.

Naquele momento chegou um espião que haviam mandado pela estrada de Malines, o qual, tendo-se adiantado até São Nicolau, voltava, a dizer que não vira nem ouvira indícios da vinda da pessoa que se esperava.

— Senhores — exclamou o Taciturno ao ouvir aquela notícia —, bem vêem que debalde esperaremos; tratemos nós mesmos dos nossos negócios; o tempo urge, e em campanha não há garantias. É bom ter confiança em talentos superiores; mas ninguém deve contar senão consigo mesmo. Deliberemos, pois, Senhores.

Ainda ele não tinha acabado, correu-se o reposteiro da sala, e um contínuo da câmara proferiu à entrada da porta estas únicas palavras, que, naquele momento, pareciam valer mais de mil:

— Sua Alteza!

No acento daquele homem, na alegria que ele não tinha podido reprimir ao passo que desempenhava a sua obrigação de contínuo, facilmente se lia o entusiasmo do povo e a confiança que depositavam no homem a quem davam este nome vago e respeitoso: «Sua Alteza!»

Apenas se tinha apagado o som daquela voz trémula de prazer, entrou na sala um homem de estatura elevada e imperiosa, garbosamente embuçado num capote que o cobria todo, e cumprimentou cortesmente todos quantos se achavam presentes. Logo à primeira vista, os seus olhos altivos e penetrantes distinguiram o príncipe no meio dos oficiais. Foi direito a ele, e estendeu-lhe a mão. O príncipe apertou-lha com afecto, e quase com respeito.

Trataram-se por Alteza um ao outro.

Depois desta breve troca de cumprimentos, o desconhecido desembuçou-se.

Vinha vestido com um gibão de pele de búfalo, trazia calções de pano e botas altas de couro.

As suas armas constavam de uma comprida espada, que pendia ao lado com tanta natura-lidade que parecia formar-lhe parte do corpo mais do que do trajo, e de uma adaga, que trazia metida no cinto, e junto da qual se via uma bolsa recheada de papéis.

Quando abriu o capote viu-se que as botas altas estavam sujas de poeira e de lama.

As esporas, tintas do sangue do cavalo, retiniam com um som sinistro a cada passo que dava nas lajes.

Tomou lugar na mesa do conselho.

— Então? que se tem feito por cá, meus senhores? — perguntou ele.

— Vossa Alteza — respondeu o Taciturno — deve ter observado, na sua vinda para aqui, que se fizeram barricadas nas ruas...

— Reparei nisso.

— E seteiras nas casas — acrescentou um oficial.

— Isso não pude eu ver: mas é boa cautela.

— E correntes dobradas por toda a parte — disse outro.

— Às mil maravilhas! — replicou o desconhecido em tom desdenhoso e negligente.

— Vossa Alteza não aprova estes preparativos de defesa? — perguntou uma voz.

— Aprovo, sim — disse o desconhecido —, mas não me parece, todavia, que sejam muito úteis nas circunstâncias em que nos achamos; cansam os soldados e incomodam os cidadãos. Penso que hão-de ter algum plano de ataque e de defesa...

— Estávamos à espera de Vossa Alteza para lho comunicarmos — respondeu o burgomestre.

— Falem, Senhores, falem.

— Vossa Alteza demorou-se algum tempo — acrescentou o príncipe —, e no seu impedimento tive de dar algumas providências.

— Vossa Alteza fez muito bem, e todos sabem que as providências que dá são sempre acertadas. Posso assegurar-lhe que também não perdi o meu tempo pelo caminho.

— Consta-nos, pelos nossos espiões — disse o burgomestre —, que há movimento no acampamento dos franceses; estão-se aprontando para algum ataque; porém, como não sabemos por que lado terá lugar esse ataque, mandámos colocar a artilharia por tal forma que seja igualmente repartida por toda a extensão das muralhas.

— Acho essa medida muito prudente — respondeu o desconhecido, com um sorriso imperceptível e olhando a furto para o Taciturno, que se conservava calado, deixando todos aqueles burgueses falar nas coisas de guerra em presença de um homem de guerra como ele.

— O mesmo fizemos a respeito das tropas cívicas — prosseguiu o burgomestre. — Estão repartidas por destacamentos dobrados sobre toda a extensão das muralhas, e têm ordem de acudir imediatamente ao ponto do ataque.

O desconhecido nada respondeu; parecia estar à espera que o príncipe de Orange falasse também.

— Entretanto — continuou o burgomestre —, a maioria do conselho é de parecer que os franceses só projectam um ataque simulado.

— E qual seria o intuito desse ataque simulado? — perguntou o desconhecido.

— Atemorizar-nos e induzir-nos a tratar amigavelmente da entrega da cidade aos franceses. O desconhecido olhou novamente para o príncipe de Orange; este parecia estar estranho

a tudo quanto ali se passava, pois escutava todas estas palavras com desdenhosa indiferença.

— Contudo — disse uma voz inquieta —, há quem desconfie que se aprontam esta noite no acampamento para um ataque...

— São desconfianças infundadas — replicou o burgomestre. — Eu mesmo examinei o acampamento com um excelente óculo que mandei vir de Estrasburgo: a artilharia parecia pregada no chão, os homens dispunham-se para dormir com todo o descanso, e o Senhor Duque de Anjou tinha gente na sua barraca.

O desconhecido dirigiu de novo os olhos para o príncipe de Orange. Pareceu-lhe que desta vez um leve sorriso assomava aos lábios do Taciturno, e que um encolher de ombros apenas visível acompanhava aquele sorriso.

— Pois, Senhores — disse o desconhecido —, estão completamente enganados: não é um ataque fingido que se está preparando neste momento, é um bom e bonito assalto.

— Deveras?...

— Esses planos, que lhes parecem tão naturais, são incompletos.

— Entretanto, meu Senhor... — disseram os burgueses, um tanto agastados por verem que havia quem duvidasse dos seus conhecimentos estratégicos.

— São incompletos — repetiu o desconhecido —, por isso que estão à espera de um choque, e foi nessa suposição que deram todas as providências.

— Não há dúvida.

— Pois bem, Senhores: se quiserem seguir o meu parecer...

— Conclua, meu Senhor.

— Em vez de esperarem pelo choque, dá-lo-ão.

— Ora ainda bem! — exclamou o príncipe de Orange — assim é que eu gosto de ouvir falar!

— Neste mesmo instante — prosseguiu o desconhecido, que logo percebeu que havia de ser apoiado pelo príncipe — estão-se fazendo de vela os navios do Sr. de Joyeuse.

— Como sabe Vossa Alteza isso!? — exclamaram ao mesmo tempo o burgomestre e os demais membros do conselho.

— Sei-o perfeitamente, e é quanto basta — disse o desconhecido.

Um murmúrio de dúvida passou como um sopro pela assembleia, porém assim mesmo, apesar de leve, chegou aos ouvidos do hábil homem de guerra que acabava de aparecer em cena para ali representar provavelmente o principal papel.

— Duvidam do que eu digo? — perguntou ele, com a maior placidez e com o modo de um homem já habituado à luta com todas as apreensões, com todo o amor-próprio e todos os preconceitos dos burgueses.

— Não duvidamos, visto que o afirma, meu Senhor. Mas permita-me Vossa Alteza que lhe digamos...

— Digam.

— Que, se assim fosse...

— Concluam.

— Já nós o saberíamos.

— Por quem?

— Pelo nosso espião da marinha.

Quando diziam isto entrava pesadamente na sala um homem empurrado pelo contínuo, e deu alguns passos, adiantando-se respeitosamente para o lugar onde estavam o burgomestre e o príncipe de Orange.

— Ah! ah! — disse o burgomestre — és tu, meu amigo?

— Sou eú mesmo, Senhor Burgomestre — respondeu o recém-chegado.

— Meu Senhor — disse o burgomestre —, é este o homem que mandámos à descoberta.

O espião, ao ouvir as palavras «meu Senhor», que não eram dirigidas ao príncipe de Orange, fez um movimento de admiração e alegria, e adiantou-se apressadamente para ver melhor a pessoa a quem davam aquele tratamento.

O recém-chegado era um daqueles marítimos flamengos cujo tipo é tão conhecido: tinha a cabeça quadrada, os olhos azuis, o pescoço curto e os ombros largos; amarrotava nas enormes mãos um gorro de lã molhado, e quando chegou aonde estavam os oficiais viu-se que deixava sobre as lajes um largo rastro de água. Era porque trazia o grosseiro fato literalmente encharcado e a escorrer.

— Oh! oh! este honrado homem voltou a nado — disse o desconhecido, olhando para o embarcadiço com aquele gesto de autoridade que sempre impõe respeito ao soldado e ao criado, por isso que exprime simultaneamente o mando e o afago.

— Sim, meu Senhor — respondeu prontamente o marinheiro —, e bem largo e caudaloso que é o Escalda!...

— Fala, Gois, fala — prosseguiu o desconhecido, que bem sabia o preço que tinha o favor que ele fazia a um simples marinheiro tratando-o pelo nome.

Também, daquele instante por diante, pareceu que para Gois só existia o desconhecido; e dirigiu-se a ele, se bem que, tendo sido mandado por outro, era a esse outro que devia dar contas da sua missão:

— Meu Senhor — disse ele —, eu larguei do cais no mais pequeno dos meus barcos; passei com a senha pelo centro da barreira que formámos sobre o Escalda com os nossos navios, e fui navegando até ao pé dos excomungados franceses... Ah! perdão, meu Senhor!...

Gois calou-se.

— Continua, anda — disse o desconhecido sorrindo — eu sou meio francês somente, e por isso só me cabe meia excomunhão.

— Ora, meu Senhor, visto que Vossa Alteza é servido de me perdoar... O desconhecido fez um aceno com a cabeça. Gois prosseguiu:

— Ia eu remando no meio da escuridão (tendo, para maior cautela, embrulhado os meus remos em panos), quando ouvi uma voz que bradava: «Olá do barco! onde vai?» Pensei que era a mim que se fazia a pergunta, e já me dispunha a responder fosse o que fosse, quando ouvi gritar à minha retaguarda: «É o escaler-almirante!»

O desconhecido olhou para os oficiais com um gesto que significava: «Então, que lhes disse eu?»

— No mesmo instante — continuou Gois —, e quando eu tratava de virar de bordo, senti um tremendo choque; o meu barco afundou-se; a água cobriu-me a cabeça; caí num abismo sem fundo; mas as ondas do Escalda conheceram-me como amigo velho, e tornei a ver o céu. Era simplesmente o escaler-almirante, que ia levar o Sr. de Joyeuse para bordo, e tinha passado por cima de mim. Só Deus sabe como escapei de ser esmagado ou afogado!

— Obrigado, honrado Gois, obrigado! — disse o príncipe de Orange, satisfeito por ver que se tinham realizado os seus vaticínios. — Vai-te e cala-te.

E estendendo o braço para ele, meteu-lhe uma bolsa na mão.

O marinheiro, todavia, parecia esperar alguma outra coisa: era que o desconhecido lhe dissesse adeus.

Este fez-lhe com a mão um aceno amigável, e Gois retirou-se logo, mostrando claramente que lhe causava mais satisfação aquele aceno do que o presente do príncipe de Orange.

— Então? — perguntou o desconhecido ao burgomestre — que diz agora, depois desta notícia? Ainda duvida que os franceses se vão fazer de vela? Julga que seria unicamente para ter o gosto de passar a noite a bordo que o Sr. de Joyeuse se retiraria do acampamento para a galera-almirante?...

— Vossa Alteza então adivinha?... — perguntaram os burgueses, curiosamente.

— Tão pouco como o Senhor Príncipe de Orange, o qual estou certo de que é do meu parecer. É porque, como Sua Alteza, eu também tenho informações exactas, e sobretudo porque conheço aquela gente que está da parte de além.

E dizendo isto apontava com a mão para a banda das campinas.

— De forma que — prosseguiu —, muito me havia de admirar se não nos atacassem esta noite. Digo-lhes, pois, que se aprontem, Senhores, porque, se lhes derem tempo, hão-de atacá-los seriamente.

— Estes senhores far-me-ão a justiça de confessar que, antes da chegada de Vossa Alteza, já eu lhes tinha falado no mesmo sentido — disse o príncipe de Orange.

— Porém — perguntou o burgomestre — como pensa Vossa Alteza que vamos ser atacados pelos franceses?

— Eis as probabilidades: a infantaria é católica, há-de atacar toda por um lado; a cavalaria é calvinista, há-de bater-se separadamente também. Aí temos para dois lados. A marinha está debaixo do comando do Sr. de Joyeuse, recém-chegado a Paris; a corte bem sabe o fim para que aqui o mandou; ele também há-de querer o seu quinhão de combate e de glória. São ao todo três lados.

— Visto isso, formemos três corpos — disse o burgomestre.

— Formem um único, Senhores, um único, composto dos melhores soldados que tiverem, e deixem em campo raso, à guarda das muralhas, aqueles de quem desconfiam. Com esse corpo façam uma surtida vigorosa no momento em que os franceses menos esperarem. Eles pensam que vêm atacá-los; é preciso atacá-los primeiro: se esperarem um assalto, estão perdidos, porque em assaltos não há quem iguale os Franceses, assim como também não há quem iguale os senhores, quando defendem em campo aberto a entrada das vossas cidades.

Os semblantes flamengos radiaram.

— Que lhes dizia eu, meus Senhores?... — exclamou o Taciturno...

— Tenho muita honra — disse o desconhecido — em ter sido, sem o saber, da mesma opinião que o primeiro general deste século.

Ambos se inclinaram cortesmente.

— Assim pois — prosseguiu o desconhecido —, estamos de acordo; farão uma surtida furiosa acometendo a infantaria e a cavalaria. Espero que os vossos oficiais hão-de dirigir a surtida de maneira tal que os sitiantes serão repelidos.

— Porém os navios?... os navios — disse o burgomestre — vão romper a nossa barreira... e como o vento está do noroeste, daqui a duas horas tê-los-emos no centro da cidade!

— Os senhores têm seis navios velhos e uns trinta barcos em Santa Maria, isto é, a uma légua daqui, não é assim? É a barricada marítima, é a corrente que fecha a entrada do Escalda.

— Sim, meu Senhor, é isso mesmo. Como soube todos esses pormenores? O desconhecido sorriu.

— Soube-os, como vê — disse ele —, é daí que depende o bom êxito da batalha.

— Então — disse o burgomestre — é preciso mandarmos reforço aos nossos valentes marinheiros.

— Pelo contrário: ainda poderá dispor de quatrocentos homens que lá se acham; basta que fiquem vinte homens inteligentes, destemidos e dedicados à causa.

Os antuerpenses abriram desmesuradamente os olhos.

— Quereis — disse o desconhecido — destruir toda a esquadra francesa, sacrificando os seis navios' velhos e os trinta barcos podres?

— Hum... — disseram os antuerpenses, olhando uns para os outros — os navios ainda não estão muito velhos, e os barcos ainda não estão podres...

— Pois bem! avaliem-nos — disse o desconhecido —, ser-lhes-á pago o seu valor.

— Aí está — disse o Taciturno em voz baixa ao desconhecido — são estes os homens com que tenho de lutar todos os dias. Oh! se eu tivesse só os acontecimentos contra mim, esses já eu teria vencido!

— Vamos lá, meus Senhores — replicou o desconhecido levando a mão à bolsa, que estava bem recheada. — Como já disse, avaliem, mas avaliem depressa; serão pagos em letras sacadas sobre si mesmos; penso que as acharão boas.

— Meu senhor — disse o burgomestre, depois de ter deliberado um instante com os chefes do povo —, nós somos comerciantes e não fidalgos; deve portanto desculpar certas hesitações, porque as nossas almas não residem nos nossos corpos, mas sim nos nossos balcões. Entretanto há circunstâncias em que sabemos sacrificar-nos ao bem geral. Disponha portanto da nossa barreira flutuante como lhe parecer.

— Realmente, Vossa Alteza — disse o Taciturno — sabe a arte de os levar. A mim, ser-me-iam precisos seis meses para conseguir isto que obteve em dez minutos.

— Passo pois a dispor da barreira flutuante, meus Senhores; mas é por esta maneira: os franceses, com a galera-almirante na frente, vão tratar de romper à força pela barreira. Mando duplicar as correntes da barreira, deixando-lhes suficiente comprimento para que a esquadra fique entalada no meio dos vossos barcos e dos vossos navios. Então, os vinte homens destemidos que deixei nos barcos e nos navios deitarão arpéus de abordagem aos navios da esquerda, e, feito isso, fogem num bote, depois de terem lançado fogo à barreira, cheia de matérias inflamáveis.

— Ouviram?... — exclamou o Taciturno — e arde assim toda a esquadra.

— Sim, toda — disse o desconhecido —, e então acabou-se a retirada por mar e também a retirada pelas campinas, porque os senhores hão-de abrir as represas de Malinas, de Barchem, de Lier, de Duffel e de Antuérpia. Os franceses, repelidos primeiro pelos senhores, perseguidos em seguida pela abertura das comportas, cercados por todos os lados por aquela maré inesperada e sempre crescente, por um mar que há-de ter enchente mas que não terá vazante, ficarão todos afogados, abismados e aniquilados.

Os oficiais soltaram um grito de alegria.

— Há apenas um inconveniente — disse o príncipe.

— Qual, meu Senhor? — perguntou o desconhecido.

— É que mal chegaria um dia inteiro para expedir as ordens necessárias às diferentes cidades, e nós apenas temos uma hora.

— Basta uma hora — respondeu o indivíduo a quem chamavam Alteza.

— Mas quem há-de avisar a esquadrilha?

— Já está avisada.

— Por quem?

— Por mim.

— Mas... Malinas, Lier e Duffel?...

— Passei por Malinas e Lier, e mandei um agente fiel a Duffel. As onze horas serão derrotados os franceses, à meia-noite a esquadra será incendiada, à uma hora os franceses estarão em retirada, às duas horas Malinas destruirá os seus diques, Lier abrirá as suas represas, Duffel deixará transbordar os seus canais: a planície toda tornar-se-á então num oceano furioso, que submergirá casas, campos, bosques, aldeias, é verdade, mas ao mesmo tempo afogará os franceses, de modo que nem um único há-de voltar para França.

Seguiu-se a estas palavras um silêncio de admiração e quase de terror; mas, passado um instante, os flamengos romperam em aplausos. O príncipe de Orange deu dois passos para o desconhecido, e estendeu-lhe a mão.

— Pelo que vejo, meu Senhor, está tudo pronto da nossa parte?

— Tudo — respondeu o desconhecido. — E olhem, parece-me que da parte dos franceses também tudo está pronto...

E mostrou-lhes com o dedo um oficial que acabava de levantar o reposteiro.

— Meus Senhores — disse o oficial —, participam-nos agora mesmo que os franceses estão em marcha e se aproximam da cidade.

— Às armas! — bradou o burgomestre.

— Às armas! — repetiram os circunstantes.

— Esperem, Senhores — interrompeu o desconhecido, com voz sonora e imperiosa —, esquecia-me de lhes recomendar uma coisa muito mais importante do que as outras.

— Diga! diga! — exclamaram todos à uma.

— Vão surpreender os franceses, por conseguinte não há-de haver somente um combate e uma retirada, mas uma fuga também: para que possam persegui-los, é preciso que estejam leves. Fora com as couraças, que lhes tolhem os movimentos e lhes têm feito perder todas as batalhas em que têm entrado. Fora com as couraças, Senhores, fora com as couraças!

E o desconhecido mostrou-lhes o robusto peito apenas resguardado por um colete de anta.

— Senhores Capitães — prosseguiu o desconhecido —, na refrega nos tornaremos a encontrar; entretanto, vão para o Largo dos Paços do Conselho; lá acharão a sua gente já formada. Não tardaremos em ir ter com os senhores.

— Obrigado, meu Senhor — disse o príncipe ao desconhecido —, acaba de salvar ao mesmo tempo a Bélgica e a Holanda.

— Príncipe — respondeu este —, confunde-me...

— Vossa Alteza tenciona desembainhar a espada contra os franceses? — perguntou o príncipe.

— Combaterei à frente dos huguenotes — respondeu o desconhecido, inclinando-se com um sorriso capaz de causar inveja ao seu sombrio companheiro, e que só Deus entendeu.

 

         FRANCESES E FLAMENGOS

No momento em que os membros do conselho saíam do palácio da municipalidade, e quando os oficiais iam colocar-se à frente dos soldados, a fim de darem execução às ordens do chefe desconhecido que parecia ter sido enviado aos flamengos pela Providência, ouviu-se um grande rumor circular que parecia cercar toda a cidade, e que em breve se resumiu num imenso grito. Ao mesmo tempo troou a artilharia.

A artilharia veio surpreender os franceses no meio da sua marcha nocturna, e quando supunham que eram eles que iam surpreender a cidade adormecida. Porém, em vez de lhes retardar a marcha, apressou-a.

Se não fosse possível tomar a cidade por escalada, podiam, à imitação do que fez o rei de Navarra em Cahors, entulhar os fossos com faxinas e arrombar as portas com petardos.

Continuou pois o fogo da artilharia das muralhas, mas quase sem efeito por causa da escuridão da noite; os franceses, depois de terem respondido aos gritos dos seus adversários com iguais gritos, avançaram em silêncio para as muralhas com a fogosa intrepidez que sempre mostram nos ataques.

Mas, de repente, abrem-se portas e postigos, e por todos os lados saem homens armados; bem se vê que não os anima o ímpeto ardente dos franceses, mas vêm entregues a uma espécie de embriaguez pesada que não tolhe os movimentos ao guerreiro, mas o torna maciço como uma parede ambulante.

Eram os flamengos, que avançavam formados em batalhões bem unidos e em grupos compactos, por cima dos quais continuava a trovejar a artilharia, que fazia mais bulha do que dano.

Travou-se então o combate corpo a corpo, encontraram-se as espadas e os terçados, cruzaram-se os piques e os chuços; os tiros de pistola e o desfechar dos arcabuzes alumiavam os rostos tintos de sangue.

Mas não se ouvia um grito, um murmúrio, uma queixa: os flamengos batiam-se com raiva, os franceses com despeito.

Os flamengos estavam furiosos por se verem obrigados a bater-se, porque não se batiam nem por ofício nem por gosto.

Os franceses tinham ficado furiosos por terem sido atacados quando vinham atacar.

No momento em que a luta começava com um encarniçamento que debalde tentaríamos descrever, ouviram-se amiudadas detonações para a banda de Santa Maria, e brilhou por cima da cidade um clarão semelhante a um penacho de chamas.

Era Joyeuse que atacava e tentava fazer uma diversão rompendo à força pela barreira que defendia o Escalda, para poder penetrar com a sua esquadra até ao coração da cidade.

Era isto, pelo menos, o que os franceses esperavam.

Mas não sucedeu assim.

Joyeuse, favorecido pelo vento oeste, que era o mais próprio para semelhante empresa levantara ferro, e a esquadra toda, com a galera-almirante na frente, tinha aproveitado a brisa que a impelia contra a corrente.

Estava tudo pronto para o combate; os marujos, armados de espadas de abordagem, tinham sido colocados à ré; os artilheiros, com os morrões acesos, estavam junto das peças; os gajeiros nos cestos das gáveas, com granadas de mão; finalmente, alguns marinheiros, escolhidos e armados de machados, conservavam-se prontos a saltar à primeira voz para dentro dos navios e barcos inimigos a fim de despedaçarem as correntes e cabos para assim abrirem caminho à esquadra.

Avançavam em silêncio. Os sete navios de Joyeuse, dispostos à feição de uma cunha, cujo ângulo era formado pela galera-almirante, pareciam um bando de fantasmas gigantescos deslizando pela superfície da água. A impaciência do mancebo não lhe tinha consentido que se conservasse no seu lugar a catavento. Depois de vestir uma armadura magnífica, tinha tomado sobre a galera o lugar do primeiro-tenente, e, com o corpo curvado sobre o gurupés, parecia querer penetrar com os olhos o nevoeiro do rio e a escuridão da noite.

Pouco tardou em avistar por entre aquelas trevas o vulto sombrio da barreira que atravessava o rio; parecia abandonada e deserta. Porém naquela terra de ciladas, um tal abandono e solidão eram medonhos.

Entretanto, continuavam a avançar; estavam à vista da barreira, a distância de pouco mais de cem braças, e a cada segundo mais se aproximavam, sem que um único quem vem lá!ainda houvesse ferido os ouvidos dos Franceses.

Os marinheiros alegraram-se ao ver aquele silêncio, que eles atribuíam a desleixo; porém o jovem almirante, mais previdente do que eles, assustou-se, porque logo desconfiou de algum ardil.

Afinal, a proa da galera-almirante ficou entalada entre os dois navios que formavam o centro da barreira, e, levando-os adiante de si, fez curvar pelo meio todo aquele dique flexível, cujos compartimentos estavam ligados uns aos outros por correntes de ferro, e que, cedendo sem se romper, tomou, aplicando-se ao bojo dos navios, a mesma forma que ofereciam os próprios navios.

De repente, e no momento em que se dava ordem aos homens dos machados que descessem para cortar as correntes, uma imensidade de arpéus, arremessados por mãos invisíveis, vieram aferrar-se aos aparelhos dos navios franceses.

Os flamengos tinham prevenido a manobra dos franceses fazendo o mesmo que eles tencionavam fazer.

Joyeuse pensou que os inimigos queriam oferecer-lhe um combate encarniçado. Acei-tou-o. Mandou arremessar também arpéus, e assim ligou por laços de ferro os navios inimigos aos seus. E logo, arrebatando um machado das mãos dum marujo, foi ele o primeiro a saltar para o navio que tinha mais seguramente agarrado, bradando:

— A abordagem! à abordagem!

Toda a tripulação o seguiu, oficiais e marujos, proferindo o mesmo grito que ele; mas nem um único grito respondeu ao dele, nenhuma força se opôs à sua agressão.

Somente se viu que três barcos carregados de homens cortavam silenciosamente as águas do rio, como três pássaros marinhos atrasados do seu bando.

Os barcos fugiam com rapidez: os pássaros afastavam-se de um voo.

Os agressores conservavam-se imóveis sobre aqueles navios que acabavam de conquistar sem luta.

O mesmo sucedeu em toda a linha.

De repente Joyeuse ouviu por baixo dos pés um estrondo surdo, e logo em seguida espalhou-se pelo ar cheiro de enxofre.

Ocorreu-lhe subitamente uma desconfiança; foi direito a uma escotilha e levantou-a: O interior do navio estava a arder.

]No mesmo instante soou por toda a linha o grito:

— Para bordo! para bordo!

Todos subiram mais apressadamente do que tinham descido, e Joyeuse, que fora o primeiro a descer, foi o último que subiu.

No momento em que galgava a amurada da sua galera, arrebentavam as chamas pelo convés do navio que abandonava.

Levantaram-se então umas labaredas que pareciam a erupção de vinte vulcões; cada barco, cada iate, cada navio, era uma cratera; a esquadra francesa, composta de navios de maior lote, figurava dominar um abismo de fogo.

Houve ordem de picar as amarras, de destruir as correntes e de despedaçar os arpéus; os marujos acudiram ao trabalho com a rapidez de homens convencidos de que a sua salvação dependia da prontidão da manobra. Porém as dificuldades eram imensas; não bastava desprender os navios dos arpéus lançados pelo inimigo à esquadra francesa, era preciso desaferrar também os que a mesma esquadra tinha arremessado aos navios inimigos.

De repente ouviram-se vinte detonações; os navios franceses tremeram de popa à proa, e gemeram até à quilha. Eram as peças de artilharia que defendiam a barreira, as quais, tendo sido carregadas até à boca e abandonadas pelos antuerpenses, se disparavam por si, à medida que lhes chegava o fogo, destruindo tudo quanto encontravam na frente.

As chamas subiam ao ar como serpentes gigantescas, trepando pelos mastros, enroscando-se nas vergas, e depois vinham com as línguas agudas lamber o cobre dos costados dos navios franceses.

Joyeuse, com a sua magnífica armadura marchetada de ouro, dando as suas ordens, com voz serena e imperiosa, no meio de todas aquelas labaredas, assemelhava-se a uma daquelas salamandras fabulosas cobertas de milhões de escamas, que sacudiam de si um chuveiro de faíscas a cada movimento que faziam.

Mas em breve se tornaram as detonações mais amiudadas e terríveis: já não era a artilharia que se disparava; eram os paióis que se incendiavam, eram os navios mesmo que iam pelos ares.

Joyeuse tinha lutado enquanto conservava a esperança de quebrar os laços mortais que o prendiam aos seus inimigos; mas já estava desenganado de o conseguir: o incêndio tinha-se comunicado aos navios franceses, e a cada navio inimigo que voava pelos ares, uma chuva de fogo, semelhante ao fogo-de-artifício, caía-lhe sobre o convés.

Os navios antuerpenses, com a sua explosão, tinham destruído a barreira; porém os navios franceses, em vez de caminharem para a frente, iam ao som da água, também incendiados, e arrastando após si alguns fragmentos do brulote devorador que os tinha agarrado com os seus braços de fogo.

Joyeuse conheceu que lhe não era possível continuar a lutar; mandou pois deitar todos os escaleres ao mar e ordenou imediatamente um desembarque sobre a margem esquerda.

Esta ordem foi transmitida aos navios que se achavam mais próximos, e os que a não ouviram tiveram por instinto a mesma ideia.

Joyeuse não deixou o convés da galera enquanto não embarcou toda a tripulação, até ao último marinheiro.

A sua presença de espírito parecia ter-se comunicado a todos: cada um dos marujos levava na mão o machado ou a espada de abordagem.

Antes que chegassem à margem, foi pelos ares a galera-almirante, alumiando por um lado o perfil da cidade, e pelo outro o imenso horizonte do rio, que ia alargando sempre até se perder no mar.

Durante este tempo tinha cessado o fogo da artilharia das muralhas; não porque houvesse abrandado o furor do combate; mas, pelo contrário, porque, estando já os flamengos e franceses a combater frente a frente, não podiam atirar sobre uns sem atirar sobre os outros.

A cavalaria calvinista tinha carregado também, fazendo prodígios: o ferro dos cavaleiros abriu um largo sulco esmagando tudo debaixo dos pés dos cavalos; mas os flamengos, mesmo feridos, estripavam os cavalos com os terçados.

Apesar da brilhante carga da cavalaria, começou a aparecer alguma desordem nas colunas francesas, que só tratavam de conservar as posições, em vez de avançar, enquanto das portas da cidade saíam continuamente novos batalhões que se arrojavam ao exército do duque de Anjou.

De repente ouviu-se um grande rumor quase junto das muralhas da cidade. Os gritos de: «Anjou! Anjou! França! França!» ressoaram no flanco dos antuerpenses, e um choque terrível abalou aquela massa compacta pelo simples impulso daqueles que a empurravam, pois os da frente eram valentes porque assim entalados não podiam deixar de o ser.

Este movimento era causado por Joyeuse, e os gritos que se ouviam eram erguidos pelos seus marinheiros, uns mil e quinhentos homens armados de machados e de terçados, capitaneados por Joyeuse, a quem haviam trazido um cavalo que fora encontrado sem cavaleiro; tinham acometido os flamengos; vinham vingar o incêndio da esquadra e a morte de duzentos companheiros queimados ou afogados.

Não se tinham dado ao trabalho de escolher ordem de batalha: atacaram o primeiro grupo que pela fala e pelo trajo conheceram ser inimigo.

Ninguém melhor do que Joyeuse manejava uma comprida espada de combate: o seu punho girava como um sarilho de aço; cada cutilada rachava uma cabeça, cada estocada abria um homem.

O grupo de flamengos atacados por Joyeuse desapareceu como um grão de trigo devorado por uma legião de formigas.

Os marinheiros, embriagados por aquela primeira vitória, marcharam para a frente. Enquanto ganhavam terreno, a cavalaria calvinista, envolvida por aquelas torrentes de homens, ia recuando gradualmente, mas a infantaria do conde de Saint-Aignan continuava a lutar corpo a corpo com os flamengos.

O príncipe tinha visto o incêndio da esquadra como um clarão longínquo; ouvira as detonações da artilharia e as explosões dos navios, sem pensar que fosse outra coisa senão um combate encarniçado, que havia de terminar com a vitória de Joyeuse: quem poderia persuadir-se de que uns poucos de navios flamengos quisessem lutar com uma esquadra francesa?.•. Esperava pois a cada instante ver o efeito da diversão operada por Joyeuse, quando, de repente, lhe vieram dizer que a esquadra tinha sido destruída e que Joyeuse e os seus marinheiros estavam pelejando no meio dos flamengos.

Esta notícia causou grande sensação ao príncipe: a esquadra era o asilo, e por consequência a segurança do exército.

O duque mandou ordem à cavalaria calvinista para que tentasse dar uma nova carga; e esta apesar de estarem esfalfados os cavaleiros e os cavalos, formou novamente para tornar a carregar contra os antuerpenses.

Ouviu-se então a voz de Joyeuse gritando no meio da refrega:

— Firme, Sr. de Saint-Aignan! França! França!

E, à imitação de um ceifeiro segando um campo de trigo, a sua espada volteava no ar, . abaixava-se estendendo pelo chão a sua colheita de homens; o débil valido, o sibarita delicado parecia ter adquirido com o afivelar da couraça a força fabulosa de Hércules.

E a infantaria, ouvindo aquela voz que dominava o alarido, e vendo aquela espada que figurava na escuridão, ia cobrando ânimo, e, assim como a cavalaria, fazia um movimento para empenhar de novo o combate.

Foi então que o homem a quem chamavam Alteza saiu da cidade montado num lindo cavalo preto. Trazia armas pretas, isto é, um capacete, braçais, couraça e coxotes de aço brunido; vinha acompanhado por uns quinhentos cavaleiros bem montados, que o príncipe de Orange tinha posto às suas ordens.

Ao mesmo tempo, Guilherme o Taciturno saía pela porta paralela, com a sua infantaria escolhida, que ainda não tinha atacado.

O cavaleiro de armadura preta correu para o ponto onde mais se carecia de socorro, que era aquele em que Joyeuse estava combatendo com os seus marinheiros. Os flamengos conheciam-no, e abriram-lhe caminho gritando alegremente: «Sua Alteza! Sua Alteza!» Joyeuse e a sua gente sentiram que o inimigo cedia terreno, ouviram aqueles gritos e acharam-se subitamente em frente daquele novo troço de gente que ali aparecia como por encanto.

Joyeuse arremessou o cavalo para o cavaleiro da armadura preta, e ambos se encontraram com sombrio encarniçamento. As duas espadas faiscaram ao primeiro choque. Joyeuse, fiado na têmpera da sua armadura e na sua destreza em esgrima, atirou ao seu adversário rijas cutiladas, que foram habilmente aparadas. Ao mesmo tempo, uma estocada deste apanhou-lhe o peito em cheio, e, resvalando-lhe pela couraça, entrou por uma junta da armadura e fez-lhe correr alguns pingos de sangue do ombro.

— Ah! — exclamou o jovem almirante, quando sentiu a ponta do ferro — este homem é cfrancês!... E ainda digo mais: aprendeu a jogar a espada com o mesmo mestre que eu.

O desconhecido ao ouvir estas palavras desviou-se dele e tentou dirigir-se para outro ponto.

— Se és na realidade francês — bradou-lhe Joyeuse —, és um traidor, porque estás contra o teu rei, a tua pátria e a tua bandeira!

O desconhecido não respondeu, mas voltou-se e atacou Joyeuse com furor.

Porém, desta vez já Joyeuse estava prevenido e sabia que tinha diante de si um hábil jogador de espada. Aparou sucessivamente três ou quatro botes que o outro lhe atirou com tanta destreza como raiva, com tanta força como cólera. Foi então o desconhecido quem fez um movimento de retirada.

— Olha! — bradou-lhe o mancebo — vê o que faz quem se bate pela sua pátria: um coração puro e um braço leal bastam para defender uma cabeça sem couraça, um rosto sem viseira.

E arrancando as correias do elmo, atirou-o para longe de si, deixando a descoberto a sua nobre e bela cabeça, e os olhos brilhantes de vigor, de orgulho e de mocidade. O cavaleiro das armas pretas, em vez de responder de boca ou de imitar o exemplo que lhe davam, soltou um rugido surdo e alçou a espada sobre aquela cabeça nua.

- Ah! — exclamou Joyeuse — bem dizia eu: és um traidor! e como traidor morrerás!

Apertando em seguida com ele, e atirando-lhe, um após outro, dois ou três botes de ponta, Penetrou-lhe por uma das aberturas da viseira do capacete.

- Ah! hei-de matar-te — dizia o mancebo — e depois hei-de tirar-te esse capacete, que bem te defende e esconde, e hei-de enforcar-te na primeira árvore que encontrar no meu caminho!

O desconhecido ia para rebater a estocada, quando um cavaleiro que andava à procura dele, se lhe debruçou ao ouvido e lhe disse:

— Meu Senhor, basta de escaramuça; a sua presença é necessária mais além.

O desconhecido seguiu com a vista a direcção que lhe indicava a mão do seu interlocutor e viu que os flamengos hesitavam em frente da cavalaria calvinista.

— Com efeito — disse ele com voz sombria —, acolá estão os que eu procurava. Naquele momento caiu uma onda de cavaleiros sobre os marinheiros de Joyeuse, os quais já cansados de manejar sem interrupção as suas armas de gigantes, deram um primeiro passo para a retaguarda.

O cavaleiro da armadura preta aproveitou-se daquele movimento para desaparecer no meio da refrega e da escuridão.

Dali a um quarto de hora cediam os franceses em toda a linha e tentavam recuar sem fugir.

O Sr. de Saint-Aignan tomava medidas para conseguir que a sua gente retirasse em boa ordem.

Porém, uma última coluna de quinhentos cavalos e dois mil homens de infantaria, que acabava de sair da cidade, caiu sobre aquele exército estafado e já em acção de recuar. Eram aqueles antigos batalhões do príncipe de Orange, que tinham lutado sucessivamente contra o duque de Alba, contra Dom João, contra Requesens e contra Alexandre Farnésio.

Tiveram então de se resolver a abandonar o campo de batalha, e a efectuar uma retirada por terra, visto que tinha sido destruída a esquadra com que contavam para o caso de um desastre.

Apesar da presença de espírito dos chefes, e do valor do maior número, começou logo uma derrota horrorosa.

Naquele momento, o desconhecido, com toda aquela cavalarra que mal tinha entrado em fogo, caiu sobre os favoritos e tornou a encontrar, na retaguarda deles, Joyeuse, com os seus marinheiros, duas terças partes dos quais tinham ficado sobre o campo de batalha.

O jovem almirante havia montado num terceiro cavalo, pois os outros dois tinham-lhe sido mortos debaixo das pernas. A espada fizera-se-lhe em pedaços e, para a substituir, tinha tirado a um marujo um pesado machado de abordagem, que fazia redemoinhar em roda da cabeça com a mesma facilidade com que um fundibulário maneja a funda.

De quando em quando voltava-se, e fazia frente ao inimigo, à imitação dos javalis que não podem resolver-se a fugir, e voltam a acometer desesperadamente o caçador.

Entretanto, os Flamengos, que, segundo a recomendação que lhes havia feito aquele a quem chamavam Alteza, tinham vindo ao combate sem couraças, perseguiam vivamente o exército de Anjou, sem lhe darem um segundo sequer de folga.

Uma coisa parecida com um remorso, ou ao menos com uma dúvida, assaltou o coração do desconhecido em presença daquele grande desastre.

— Basta, Senhores, basta! — disse ele em francês para a sua gente. — Foram expulsos esta noite de Antuérpia, e daqui a oito dias estarão fora da Flandres: não exijamos mais nada do deus dos exércitos.

— Ah! era um francês — exclamou Joyeuse —, bem dizia eu; traidor!... Ah! maldito sejas, e possas morrer tu como morrem os traidores!

Esta imprecação furiosa pareceu desanimar o homem, que não tinha estremecido em mil espadas erguidas contra si; virou o cavalo e, apesar de vencedor, fugiu tão rapidamente como os vencidos. .

Porém aquela retirada de um único homem não alterou em nada a face das coisas: o medo é contagioso, tinha-se comunicado a todo o exército, e os soldados, tomados de um pânico insensato, começaram a fugir como desesperados.

Os cavalos animavam-se, apesar do cansaço, parecendo estarem também sob a influência do medo; os homens dispersavam-se para procurarem abrigo: em poucas horas deixou o exército de existir em forma de exército.

Era neste momento que se abriam os diques e se soltavam as represas, em observância das ordens de Sua Alteza.

Desde Lier até Termonde, desde Haesdouk até Malinas, cada riacho, engrossado pelos afluentes e cada canal saindo do seu leito, espalhava pela superfície plana do país o seu contingente de água furiosa.

Assim, quando os franceses fugitivos começaram a fazer alto, depois de terem estafado os inimigos; quando viram os antuerpenses voltarem afinal para a sua cidade acompanhados pelos soldados do príncipe de Orange; quando os indivíduos que tinham escapado sãos e salvos da carnificina da noite se julgavam por fim livres de perigo, e respiravam um instante, dando graças a Deus uns, e outros blasfemando, era nessa mesma hora que um novo inimigo, cego e desapiedado, corria sobre eles com a celeridade do vento e com a impetuosidade do mar; entretanto, apesar da iminência do perigo que já ia começando a envolvê-los, os fugitivos ainda não desconfiavam de coisa alguma.

Joyeuse havia mandado fazer alto aos seus marinheiros, que se achavam reduzidos a oitocentos, e eram os únicos que ainda tinham conservado uma espécie de ordem naquela terrível derrota.

O conde de Saint-Aignan, arquejante, sem voz, e falando apenas por gestos e ameaças, procurava reunir os seus soldados dispersos.

O duque de Anjou, à frente dos fugitivos, montado num excelente cavalo, e seguido de um criado que levava outro à mão, caminhava para diante, sem dar mostras de se importar com coisa alguma.

— Aquele miserável não tem coração! — diziam uns.

— O valentão tem um sangue-frio extraordinário! — diziam outros.

A infantaria, depois de ter descansado das duas às seis da manhã, recobrou a força necessária para continuar a retirada. Porém, faltavam os víveres. Quanto aos cavalos, esses ainda pareciam estar mais cansados do que os homens; com dificuldade se arrastavam, pois não comiam desde a véspera. E por isso também marchavam na retaguarda do exército.

Esperavam todos poder chegar a Bruxelas, que estava pelo duque, e onde ele contava numerosos partidários; contudo não deixavam de ter algumas dúvidas relativamente às boas disposições daquela cidade, por isso que também todos se haviam persuadido de que podiam contar com Antuérpia, como agora julgavam que deviam contar com Bruxelas.

Ali, em Bruxelas, isto é, a oito léguas apenas do lugar onde se achavam, poderia a tropa ser abastecida de víveres e munições, e seria fácil formar um acampamento vantajoso, para tornar a começar a interrompida campanha no momento em que se julgasse mais conveniente.

Os destroços que tinham escapado deviam servir de núcleo a um novo exército.

Pensou assim porque até aquela hora ainda ninguém previa o momento terrível em que o chão desapareceria debaixo dos pés dos infelizes soldados, em que montanhas de água viriam cobrir-lhes as cabeças, e em que restos de tanto homem valente, arrebatados pelas águas lodosas, iriam rolando até ao mar, ou ficariam pelo caminho para servir de estrume aos vastos campos do Brabante.

O duque de Anjou mandou fazer o almoço na cabana de um camponês entre Heboken Heckhont.

A cabana estava desabitada; os donos tinham fugido na noite antecedente, e ainda ardia na chaminé o lume que nela tinham acendido na véspera.

Os soldados e os oficiais, querendo imitar o seu chefe, espalharam-se pelos dois lugares que acabámos de mencionar; mas viram, com surpresa acompanhada de espanto, que todas as casas estavam desertas, e que os habitantes tinham levado consigo quase todas as provisões.

O conde de Saint-Aignan andava procurando fortuna como os mais; tinha-se afastado do duque de Anjou, porque repugnava ao seu espírito a indiferença que mostrava o príncipe na ocasião em que tanta gente esforçada morria por ele.

Era do número dos que diziam: «Aquele miserável não tem coração!»

Passou revista, por sua própria conta, a duas ou três casas que achou devolutas, e estava já batendo à porta de uma quarta, quando lhe vieram dizer que num raio de duas léguas, ou, por outra, na parte da região que o exército ocupava, todas as casas estavam do mesmo modo desertas.

O Sr. de Saint-Aignan, ao ouvir esta notícia, franziu as sobrancelhas e fez a careta do costume.

— A caminho, Senhores, a caminho! — disse ele para os oficiais.

— General! — responderam estes — atenda a que estamos esfalfados e mortos de fome.

— Sim; mas ainda estão vivos; e se permanecerem aqui mais uma hora, estarão mortos; e talvez mesmo que já seja tarde.

O Sr. de Saint-Aignan não podia indicar o que receava; mas desconfiava que aquela solidão encobria algum perigo muito grande.

Abalaram todos. O duque de Anjou tomou lugar na frente, o Sr. de Saint-Aignan capitaneou o centro, e Joyeuse encarregou-se da retaguarda.

Porém, ainda se destacaram dessas forças uns dois ou três mil homens, que, enfraquecidos pelas feridas ou prostrados pelo cansaço, se deixaram ficar estendidos na relva ou ao pé das árvores, abandonados pelos companheiros, desanimados e como que tocados de um sinistro pressentimento.

Com eles ficaram também os cavaleiros desmontados, ou aqueles cujos cavalos já não podiam arrastar-se ou se tinham ferido na marcha. Apenas restavam junto do duque de Anjou uns três mil homens em estado de combater.

 

         OS VIAJANTES

Enquanto tinha lugar aquele desastre, que era precursor de outro ainda maior, dois viajantes, montados em excelentes cavalos da Normandia, saíam pela porta de Bruxelas, pelo fresco da noite, e encaminhavam-se na direcção de Malinas.

Marchavam lado a lado, com os capotes à garupa, e aparentemente sem armas, a não ser uma larga faca flamenga cujo punho de metal brilhava à cinta de um deles.

Os dois viajantes iam seguindo o seu caminho, entregue cada um aos seus pensamentos, que eram talvez os mesmos, mas sem trocar a menor palavra.

Apresentavam a figura e o vestuário dos caixeiros-viajantes da Picardia, que naquele tempo faziam um comércio muito activo entre o reino da França e a Flandres.

Quem os visse trotar tão pacificamente pela estrada alumiada pelo luar, julgaria que eram umas boas pessoas ansiosas por encontrar uma boa cama depois duma jornada muito trabalhosa. Entretanto, bastava ouvir algumas frases que o vento destacava da conversa desses dois indivíduos, quando alguma vez conversavam, para não se conservar a respeito deles a opinião errada em que se ficava à primeira vista. As palavras mais singulares de todas quantas proferiram foram as que trocaram quando chegaram a meia légua de Bruxelas pouco mais ou menos.

— Minha Senhora — disse o mais alto para o mais baixo dos dois companheiros —, fez bem em partir esta noite; adiantamos sete léguas com esta marcha, e chegaremos a Malinas no momento em que, segundo todas as probabilidades, já há-de ser conhecido o resultado da tentativa contra Antuérpia. Hão-de estar todos entregues à embriaguez do triunfo. Com dois dias de marchas pequenas, pois é preciso que as etapas sejam curtas para que possa descansar, com dois dias de marchas pequenas, digo, chegaremos a Antuérpia, e, se os meus cálculos não falham, há-de ser na ocasião em que o príncipe já terá dado largas à sua alegria e se dignará olhar para a terra depois de ter subido ao sétimo céu.

O companheiro, a quem o outro dava o nome de minha Senhora, e que não mostrava escandalizar-se com o tratamento, apesar do seu trajo de homem, respondeu com voz serena, grave e doce ao mesmo tempo:

— Meu amigo, acredita no que te digo: Deus há-de enfastiar-se de proteger aquele miserável príncipe, e hás-de castigá-lo cruelmente; tratemos pois de pôr quanto antes em execução os nossos projectos, porque eu não sou dos que crêem na fatalidade, e estou convencida que

os homens têm o livre arbítrio das suas vontades e acções. Se não havemos de trabalhar, e se devemos deixar obrar a mão de Deus, não sei para que serviu vivermos tão dolorosamente até hoje.

Naquele momento deu-lhes pela frente uma rabanada, fria e gelada, de vento noroeste.

— Está com arrepios de frio, minha Senhora — disse o mais velho dos dois viajantes —, então ponha o seu capote.

— Não, Rémy, obrigada; bem sabes que já não sinto as dores do corpo nem os grandes tormentos de espírito.

Rémy levantou os olhos para o Céu, e conservou-se em profundo silêncio. De vez em quando parava o cavalo e olhava para trás, erguendo-se sobre os estribos, enquanto a sua companheira continuava a caminhar, muda como uma estátua equestre. Depois de uma daquelas paradas de um instante, disse a mulher para o companheiro, quando este voltou para junto dela:

— Já não vês ninguém atrás de nós?

— Não, minha Senhora, ninguém.

— E aquele cavaleiro que nos alcançou de noite em Valencianas e que indagou quem éramos depois de nos ter observado tanto tempo com admiração?

— Já não o vejo.

— Quer-me parecer que o vi antes de entrar em Mons...

— E eu, minha Senhora, estou certo que o vi antes de entrar em Bruxelas.

— Em Bruxelas dizes?

— Sim; mas provavelmente ficou nessa cidade.

— Rémy — disse a dama, chegando-se mais ao companheiro, como se receasse que naquela estrada deserta alguém pudesse ouvi-la —, Rémy, não se te figurou que se parecia...

— Com quem, minha Senhora?

— (Na figura, ao menos, porque o rosto nunca lho vi) com aquele desgraçado mancebo...?

— Oh! não, não, minha Senhora — disse prontamente Rémy —, nem remotamente se parecia; demais, como havia ele de adivinhar que deixámos Paris e que vamos aqui nesta estrada?...

— Do mesmo modo que conseguia saber onde parávamos quando mudávamos de casa em Paris.

— Não, não, minha Senhora — replicou Rémy —, ele nem nos seguiu, nem nos mandou seguir, e, conforme já lhe disse, tenho fortes razões para me persuadir de que tinha adoptado um partido extremo.

— Ah! Rémy — disse ela suspirando —, cada qual tem o seu quinhão de pesares neste mundo. Deus tenha dó desse pobre rapaz!

Rémy respondeu com um suspiro ao suspiro que a ama soltara, e ambos prosseguiram no seu caminho sem outra bulha além do som das patas dos cavalos sobre a estrada.

Assim decorreram duas horas. Quando os nossos viajantes iam para entrar em Vilvorde, Rémy voltou a cabeça. Acabava de ouvir o galopar de um cavalo ao longe na estrada. Parou, escutou, mas nada viu. Procurou debalde penetrar com a vista a densidade das trevas; afinal, como nenhum rumor tornou a interromper o solene silêncio da noite, entrou na vila com a companheira.

— Minha Senhora — disse ele —, não tarda que amanheça; se quiser seguir o meu parecer, ficaremos aqui; os cavalos estão cansados e a senhora também carece de dormir.

— Rémy — disse a dama —, por mais que faças, não conseguirás ocultar-me o que sentes. Rémy, alguma coisa te dá cuidado...

— Sim, minha Senhora, é a sua saúde; creia no que lhe digo: uma senhora não pode com semelhantes fadigas, e eu mesmo...

— Faz o que te parecer, Rémy — respondeu a dama.

— Pois bem! então entre neste beco, em cuja extremidade vejo uma lanterna quase apagada; é o sinal que dá a conhecer as estalagens da noite.

— Ouviste alguma coisa?

— Ouvi; pareceram-me passos de cavalo. Creio que foi engano; contudo fico um instante para trás para me certificar se são reais ou infundados os meus receios.

A dama, sem responder e sem procurar fazer com que Rémy mudasse de tenção, tocou o cavalo, e entranhou-se pelo comprido e tortuoso beco. Rémy deixou-a passar adiante, apeou-se, e largou a rédea ao cavalo, o qual foi seguindo o da sua companheira, como era natural. Quanto a ele, escondeu-se por trás de uma gigantesca coluna de pedra e esperou. A dama bateu à porta da estalagem, junto da qual, conforme o uso hospitaleiro da Flandres, velava, ou, para melhor dizer, dormia uma criada de ombros largos e robustos. A rapariga já tinha ouvido o som das patas dos cavalos sobre as pedras do beco e, acordando sem se enfadar, veio abrir a porta e receber nos braços o viajante, ou antes, a viajante. E logo abriu um portão pelo qual se enfiaram os cavalos apenas lhes cheirou a cavalariça.

— Estou à espera do meu companheiro — disse a dama —, deixe que me sente junto do braseiro enquanto ele não vem; não quero deitar-me sem que ele chegue.

A criada atirou um braçado de palha aos cavalos, tornou a fechar a porta da cavalariça, voltou para a cozinha, chegou um escabelo para ao pé do lume, atiçou com os dedos a maciça vela de cebo e pegou novamente no sono.

Durante este tempo, Rémy, do lugar onde se emboscara, espreitava a vinda do viajante cujo cavalo tinha ouvido galopar.

Viu-o entrar na vila e meter a passo, aplicando o ouvido com atenção; em seguida, tendo chegado à altura do beco, o cavaleiro avistou a lanterna, e pareceu hesitar se passaria adiante, ou se se dirigiria para aquele lado.

Parou à distância de dois passos de Rémy, o qual sentiu sobre o ombro o resfolegar do cavalo.

Rémy levou a mão à faca.

«É ele, não há dúvida, murmurou Rémy; ele, por aqui, e a seguir-nos outra vez... Que nos quererá?»

O viajante cruzou os braços sobre o peito, enquanto o cavalo estendia o pescoço, respirando a custo.

Não proferia uma só palavra; mas, pelo chamejar dos olhos, que dirigia ora para diante, ora para trás, e ora para o beco, era fácil de adivinhar que estava perguntando a si mesmo se deveria retroceder, se caminhar para diante ou dirigir-se para a estalagem.

— Seguiram para diante — murmurou ele a meia voz —, sigamos também. e dando a mão ao cavalo, prosseguiu no seu caminho.

«Amanhã, disse consigo Rémy, mudaremos de caminho.»

E voltou para junto da companheira, que o estava esperando com impaciência.

— Então? — perguntou-lhe ela baixinho — alguém nos segue?

— Nada; foi engano meu. Não há pessoa alguma na estrada; pode dormir descansada.

— Oh! não tenho sono, Rémy, bem o sabes.

— Há-de cear, ao menos, minha Senhora, pois já ontem nada tomou.

— Com todo o gosto, Rémy.

Acordaram a pobre criada, que se levantou esta segunda vez de tão bom humor como da Primeira, e que, mal soube do que se tratava, tirou de um armário um pedaço de carne de Porco salgada, uma lebre fria e doces, que pôs sobre a mesa juntamente com um canjirão de espumante cerveja de Lovaina.

Rémy sentou-se à mesa com a ama. Esta encheu um copo de asa até meio de cerveja, em que apenas tocou com os lábios; cortou um bocado de pão, de que só comeu algumas migalhas, e depois recostou-se para trás na cadeira, empurrando para longe de si o copo e o pão.

— Que é isso!? não come mais, minha fidalga?! — perguntou a criada.

— Não, já acabei, obrigada.

A criada então pôs-se a olhar para Rémy, o qual, pegando no pão que a ama cortara, ia-o comendo com todo o vagar, acompanhando-o com um copo de cerveja.

— E a carne? — disse ela — então o senhor não come a carne?

— Não, Menina, obrigado.

— Não lhe parece boa, talvez...

— Estou certo que há-de ser excelente, mas não tenho vontade.

A criada juntou as mãos, para exprimir a admiração que lhe causava tão extraordinária sobriedade: não era assim decerto que costumavam praticar os seus patrícios quando viajavam.

Rémy, percebendo que também entrava algum despeito no gesto invocatório da criada, atirou com uma moeda de prata para cima da mesa.

— Oh! — disse a criada — a despesa é tão pouco avultada que melhor será não trocar esse dinheiro; a despesa de ambos importa apenas em seis dinheiros!

— Guarda o dinheiro; o troco é para ti — disse a dama. — Meu irmão e eu somos muito sóbrios, é verdade, mas não queremos tirar o interesse à casa e a ti.

A criada corou de contentamento, ao passo que lhe humedeciam os olhos lágrimas de compaixão, que provocara o tom doloroso com que haviam sido proferidas aquelas palavras.

— Diga-me, Menina — perguntou Rémy —, há algum caminho de atalho daqui para Malinas?

— Há, sim, meu Senhor, porém muito mau; mas talvez o senhor não saiba: há uma excelente estrada real!...

— Sei, Menina, sei isso muito bem. Mas prefiro viajar pelo atalho.

— Eu dizia isto ao Senhor porque, como o seu companheiro é uma senhora, o caminho há-de ser duplamente incómodo, principalmente para ela.

— Porque?

— Porque esta noite grande multidão de gente do campo está em marcha para Bruxelas.

— Para Bruxelas?

— Sim senhor; emigram momentaneamente.

— E por que razão emigram?

— Não sei, foi a ordem que se deu.

— Quem deu essa ordem? o príncipe de Orange?

— Não, foi Sua Alteza.

— Quem é essa Alteza?

— Ah! a essa pergunta agora é que eu já não sei responder; mas o caso é que desde ontem à noite todos vão emigrando.

— E quem são os emigrantes?

— São os habitantes dos campos, das aldeias e das vilas que não têm diques nem muralhas.

— É célebre! — disse Rémy.

— Nós mesmos — prosseguiu a rapariga — também havemos de partir, ao despontar do dia, juntamente com a gente da vila. Ontem, às onze horas, todo o gado foi mandado para Bruxelas pelos canais e caminhos de atalhos; é este o motivo por que o caminho em que lhe falei deve estar a estas horas atravancado de cavalos, de carros e de gente.

— E porque não vão pela estrada real? Parece que pela estrada real havia de ser a retirada muito mais fácil...

— Não sei; foi esta a ordem.

Rémy e a sua companheira olharam um para o outro.

— Porém, nós, que vamos para Malinas, podemos prosseguir na nossa jornada, não é assim?

— Penso que sim, dado o caso que não prefiram fazer como toda a gente, isto é, dirigirem-se para Bruxelas.

Rémy olhou para a sua companheira.

— Não, não, vamos partir imediatamente para Malinas — exclamou a dama, levantando-se. — Faça favor de abrir a cavalariça, Menina.

Rémy levantou-se logo em seguida à companheira murmurando a meia voz:

«Perigo por perigo, antes quero expor-me àquele que já conheço: demais, o mancebo leva-nos alguma dianteira... e se por acaso nos esperar, então veremos!»

E como os cavalos não tinham sido desaparelhados, segurou o estribo à companheira, cavalgou ele também, e ao primeiro arrebol da manhã achavam-se nas margens do Dyle.

 

         EXPLICAÇÃO

O perigo que Rémy ia arrostar era um perigo verdadeiro, porque o viajante que os seguia, depois de haver deixado a vila e andando um quarto de légua para a frente, não vendo pessoa alguma na estrada, logo calculou que as pessoas que seguia se tinham demorado na vila.

Não quis voltar atrás, provavelmente para que não desse muito na vista a sua perseguição, mas deitou-se num campo de trevo, tendo primeiro a cautela de descer o cavalo para dentro de um daqueles fossos muito fundos que cercam as herdades na Flandres. Resultava desta manobra que o viajante ficava em posição de ver tudo sem ser visto.

Esse viajante, já os leitores sabem quem era, como Rémy também o tinha conhecido e a dama suspeitado; era Henrique de Bouchage, que uma singular fatalidade impelia outra vez para junto da mulher de quem tinha jurado fugir.

Henrique, depois da sua conversa com Rémy à porta da casa misteriosa, vendo todas as suas esperanças perdidas, voltara para o Palácio de Joyeuse firmemente resolvido, conforme dissera, a acabar com a vida, que tão miserável se lhe apresentava logo na sua aurora; mas, como cavalheiro brioso e bom filho, pois queria conservar o nome de seu pai puro de qualquer mancha, escolhera o suicídio glorioso do campo de batalha.

Havia guerra na Flandres; o duque de Joyeuse, seu irmão, comandava um exército, e podia proporcionar-lhe uma ocasião de deixar a vida honrosamente. Henrique não hesitou; saiu do palácio na tarde do dia seguinte, isto é, vinte horas depois da partida de Rémy e da sua companheira.

As cartas chegadas da Flandres diziam que se tinha resolvido dar um ataque decisivo contra Antuérpia. Henrique esperava chegar ainda a tempo. Comprazia-se na ideia de morrer ao menos de espada em punho, nos braços do irmão, e à sombra de uma bandeira francesa; lisonjeava-se de que a sua morte havia de ser falada, e que a notícia chegaria até à solidão em que vivia a dama da casa misteriosa.

Nobre loucura! triste e glorioso sonho! Henrique viveu quatro dias a fio apenas da sua dor, e sobretudo da esperança que tinha de em breve lhe pôr termo.

No momento em que, todo entregue a esses projectos de morte, já avistava a agulha do campanário de Valencianas, ouviu dar oito horas na cidade, e percebendo que se dispunham a fechar as portas, chegou as esporas ao cavalo e, ao passar pela ponte levadiça, por pouco não deitou ao chão um homem que estava apertando a cilha do seu.

Henrique não era desses fidalgos insolentes que calcam aos pés tudo quanto não tem um brasão. Pediu desculpa ao homem, que se voltou ao ouvir-lhe a voz, mas logo virou a cara Para a banda.

Henrique, arrebatado pelo ímpeto do cavalo, que debalde procurava deter, estremeceu, como se visse alguma coisa que não esperava encontrar ali.

«Oh! estou doido! pensou; Rémy em Valencianas!... Rémy, que deixei há quatro dias na Rua de Bussy; Rémy sem a sua ama, pois segundo me pareceu, o seu companheiro era um rapaz!... Na verdade, a dor transtorna-me a cabeça e altera-me a vista de tal modo, que tudo quanto me cerca toma a forma das minhas imutáveis ideias.»

E, prosseguindo no seu caminho, entrou na cidade, sem que a desconfiança que lhe havia passado pelo espírito lançasse nele a menor raiz. Parou à entrada da primeira estalagem que encontrou, entregou o cavalo a um moço da cavalariça, e sentou-se num banco, junto da porta, à espera que lhe aprontassem o quarto e a ceia.

Mas enquanto ali se conservava, pensativo e sentado no banco, viu aparecer os dois viajantes que caminhavam ao lado um do outro, e notou que aquele que se lhe afigurava ser Rémy voltava repetidas vezes a cabeça.

O outro trazia o rosto encoberto com um chapéu desabado.

Rémy, ao passar pela estalagem, viu Henrique sentado no banco, e tornou a virar a cara para a banda; mas esta mesma cautela contribuiu para o outro o conhecer.

«Oh! desta vez, murmurou Henrique, não é engano, estou com a vista bem clara e as ideias frescas; foi-se a minha primeira alucinação; estou completamente senhor de mim. Repete-se o mesmo fenómeno, e torna a parecer-me que um daqueles viajantes é Rémy, o criado da casa do arrabalde. Não! não posso conservar-me numa tal incerteza; preciso desvanecer sem demora as minhas dúvidas.

Henrique, apenas tomou esta resolução, levantou-se e tratou de seguir as pisadas dos dois viajantes; mas, ou fosse porque estes já tivessem entrado para alguma casa, ou porque tivessem tomado outra direcção, já não os avistou. Correu até às portas da cidade, mas já estavam fechadas. Era pois evidente que não tinham podido sair. Henrique entrou em todas as hospedarias, perguntou, indagou, e acabou por saber que tinham visto dois cavaleiros que se encaminharam para uma estalagem de mesquinho aspecto sita na Rua da Torre.

O estalajadeiro estava fechando a porta quando de Bouchage se lhe apresentou. Enquanto o homem, atraído pela boa aparência do jovem viajante, lhe oferecia a sua casa e préstimo. Henrique corria a vista pelo interior da sala da entrada, e do sítio onde se achava ainda pôde ver, no alto da escada, Rémy, que ia subindo acompanhado por uma criada com luz. Não pôde ver o companheiro, que, tendo provavelmente subido adiante, já tinha desaparecido. Rémy, ao chegar ao cimo da escada, parou. O conde, conhecendo-o positivamente desta vez, tinha soltado uma exclamação, e Rémy, apenas ouviu o som da voz do conde, voltou-se logo. Henrique, mal viu aquele rosto, tão notável pela cicatriz que o sulcava, e aquele olhar inquieto, não conservou a menor dúvida quanto à identidade do indivíduo e, achando-se extremamente comovido para tomar um partido qualquer naquele momento, afastou-se com um horrível aperto do coração, e perguntando a si mesmo qual seria o motivo por que Rémy abandonara a ama e se achava só na mesma estrada que ele seguia.

Dizemos só, porque Henrique não tinha prestado a princípio a menor atenção ao segundo cavaleiro.

O seu pensamento precipitava-se de abismo em abismo.

No dia seguinte, à hora de se abrirem as portas, quando ele julgava que se poderia encontrar cara a cara com os dois viajantes, soube, com a maior admiração, que durante a noite os desconhecidos tinham obtido do governador licença para saírem, e que lhes haviam sido abertas as portas, contrariamente ao uso estabelecido.

Levavam pois seis horas de dianteira a Henrique, visto terem saído da cidade pela uma da madrugada.

Era-lhe preciso recobrar aquelas seis horas. Henrique meteu o cavalo a galope, e junto Je Mons alcançou os viajantes e passou-lhes adiante. Tornou a ver Rémy, mas desta vez era preciso que Rémy fosse bruxo para o conhecer. Henrique tinha-se disfarçado com um gibão de soldado e comprara outro cavalo.

Contudo, os olhos desconfiados do fiel criado quase inutilizaram aquela combinação, e o companheiro de Rémy, que este avisou por uma única palavra, teve tempo de voltar o rosto, de forma que Henrique ainda desta vez não o pôde ver. Porém não desanimou: indagou na primeira estalagem em que se recolheram os visitantes, e como as suas perguntas eram sempre acompanhadas de um auxiliar irresistível, acabou por saber que o companheiro de Rémy era um mancebo muito galante, mas muito triste, sombrio e resignado, e que nunca se queixava de cansaço.

Henrique estremeceu, ocorrendo-lhe uma ideia:

— Não será acaso uma mulher? — perguntou.

— Pode ser — respondeu o estalajadeiro —, hoje em dia passam por aqui muitas mulheres assim disfarçadas, para irem ter com os amantes ao exército da Flandres, e como nós, os estalajadeiros, temos obrigação de nada ver, fechamos os olhos.

Esta explicação dilacerou o coração de Henrique. Não seria com efeito provável que o companheiro de Rémy fosse a sua ama disfarçada em trajos de homem? Se assim fosse, a aventura era bem desagradável para Henrique. Sem dúvida, como dizia o hoteleiro, a dama incógnita ia ter com o amante à Flandres. Visto isso, Rémy mentia quando falava daquela eterna saudade; e a fábula de um amor passado que lhe tinha coberto a ama de luto para toda a vida, fora por ele inventada para afastar um importuno.

«Pois bem! dizia então consigo Henrique, a quem esta ideia magoava mais do que nunca o tinha magoado o seu desespero, pois bem! assim é melhor: um dia virá em que eu possa falar-lhe, lançar-lhe em rosto todos esses subterfúgios.»

E o mancebo arrancava os cabelos e rasgava o peito com as unhas, quando se lembrava que talvez chegasse a perder um dia esse amor e essas ilusões que o matavam, tão certo é que mais vale um coração morto do que um coração vazio.

Henrique passara adiante dos viajantes, como já dissemos, e ia cismando qual seria o motivo que teria obrigado aquelas duas personagens indispensáveis à sua existência a visitarem a Flandres, quando as viu entrar em Bruxelas.

Já sabemos como foi que ele continuou a segui-las.

Em Bruxelas tinha Henrique colhido informações precisas acerca da campanha que projectava o Senhor Duque de Anjou.

Os Flamengos eram demasiado avessos ao duque de Anjou para fazerem bom acolhimento a um francês de distinção; estavam tão ufanos do triunfo que acabava de alcançar a causa nacional, pois era já um triunfo Antuérpia ter fechado as suas portas ao príncipe que os da Flandres haviam chamado para seu rei, que não podiam deixar de querer humilhar um pouco aquele fidalgo que chegava de França e lhes fazia perguntas com o mais puro acento parisiense, acento que tão ridículo tem parecido, em todas as épocas, ao povo belga.

Henrique concebeu desde logo sérios receios a respeito daquela expedição em que seu irmão tomava parte: resolveu-se, por consequência, a apressar a marcha. Causava-lhe indizível estranheza ver que Rémy e a sua companheira, apesar do empenho que pareciam ter em não Serem conhecidos, persistiam em seguir o mesmo caminho. Era prova evidente que levavam o mesmo destino.

A saída da vila, Henrique, escondido no campo de trevo onde o deixámos, tinha a certeza que daquela vez, ao menos, havia de ver bem à sua vontade o rosto do mancebo que acompanhava Rémy. Só assim conseguiria pôr termo às suas dúvidas.

Quando os dois viajantes passaram em frente do mancebo, que eles estavam longe de suspeitar que estivesse escondido, a dama ia entretida a arranjar o cabelo, que não se tinha atrevido a atar à vista da criada da estalagem.

Henrique viu-a, conheceu-a, e por pouco não caiu desmaiado para dentro do fosso onde tinha o cavalo pastando sossegadamente.

Os viajantes passaram adiante.

Então foi acometido de um verdadeiro ataque de cólera, aquele Henrique que tão meigo e paciente havia sido enquanto se persuadira de que os habitantes da casa misteriosa eram tão leais como ele.

Mas depois dos protestos de Rémy, depois das hipócritas consolações da dama, aquela jornada, ou, para melhor dizer, aquela fuga, constituía uma espécie de traição para com o homem que lhes havia sitiado a porta tão porfiadamente, é verdade, mas sem nunca ultrapassar os limites do respeito.

Apenas se desvanecera um pouco a dor do golpe que acabava de levar, Henrique sacudiu o seu lindo cabelo louro, limpou a testa húmida de suor e tornou a montar a cavalo, firmemente resolvido a pôr de parte todas as cautelas que até ali tinha tomado, movido por uma espécie de respeito, e começou pois a seguir os viajantes ostensivamente e de rosto descoberto.

Deixou-se de capote, de capelo e de hesitações na sua marcha; a estrada era tanto dele como dos mais; tomou pois pacífica posse dela, regulando o passo do seu cavalo pela andadura dos cavalos que o precediam. Estava resolvido a não falar com Rémy, nem com a companheira dele, mas somente a fazer com que estes o conhecessem.

«Oh! sim, sim, dizia ele consigo, se ambos possuem ainda alguma parcela de brio, a minha presença, se bem que ocasionada pelo acaso, nem por isso deixará de ser uma cruel exprobração àquela gente sem fé que se divertiu a dilacerar-me o coração.»

Ainda não tinha andado quinhentos passos em seguimento dos viajantes, quando Rémy deu por ele. Ao vê-lo aparecer assim deliberadamente, de cara levantada e a descoberto, Rémy perturbou-se. A dama reparou na inquietação de Rémy e voltou-se.

— Ah! — disse ela — aquele não é o tal mancebo, Rémy? Rémy tentou iludi-la para a tranquilizar.

— Penso que não, minha Senhora; segundo me quer parecer pelo trajo, é algum soldado alemão que vai para Amsterdão e quer passar pelo teatro da guerra para buscar aventuras.

— Apesar do que dizes, estou com receio que seja ele, Rémy.

— Sossegue, minha Senhora: se aquele mancebo fosse o conde de Bouchage já teria vindo ter connosco; sabe muito bem quanto ele era ferrenho.

— E também sei quanto ele era respeitoso, Rémy, porque, se assim não fora, ter-me-ia limitado a dizer-te: «Afasta-o, Rémy», sem nunca mais me importar com ele.

— Pois, minha Senhora, se ele era tão respeitoso, ainda terá conservado os mesmos sentimentos, e, dado o caso que seja ele, não deve causar-lhe mais receio na estrada de Bruxelas a Antuérpia do que lhe causava em Paris, na Rua de Bussy.

— Não importa — prosseguiu a dama, tornando a olhar para trás —, somos chegados a Matinas, mudemos pois de cavalos, se é preciso para caminharmos mais depressa, mas tratemos de chegar quanto antes a Antuérpia; vamos, Rémy.

— Pelo contrário, minha Senhora, dir-lhe-ei que não entremos em Malinas; os nossos cavalos são de boa raça, vamos andando até aquela aldeia que se avista além à esquerda, e que é, se bem me lembra, Villebrock; assim evitaremos a cidade, a demora na estalagem, as perguntas e os curiosos, e mais comodamente poderemos mudar de cavalos ou de trajo, se assim for necessário.

- Pois sim, Rémy, vamos então em direitura à aldeia.

Tomaram para a esquerda, metendo-se por uma vereda pouco trilhada, mas que visivelmente se conhecia que ia ter a Villebrock.

Henrique deixou a estrada real no mesmo ponto que eles, meteu-se pela mesma vereda e foi-os seguindo, conservando-se sempre a distância.

O olhar oblíquo de Rémy, a agitação em que ia, e sobretudo as repetidas vezes que olhava para trás com gesto ameaçador e esporeando o cavalo, bem davam a conhecer a inquietação que dele se tinha apoderado. Estes sintomas, como bem se pode supor, não escapavam à sua companheira.

Chegaram afinal a Villebrock.

Não estava habitada uma única das duzentas casas de que se compunha a aldeia; apenas alguns cães, que tinham sido esquecidos, ou alguns gatos perdidos, corriam espavoridos por aquela solidão, os primeiros uivando tristemente, como para chamar os donos, e os outros fugindo com ligeireza, e parando, quando se julgavam em lugar seguro, para meterem o focinho por baixo de alguma porta ou pela fresta de alguma adega.

Rémy bateu a mais de vinte portas; não viu pessoa alguma, e ninguém lhe respondeu.

Henrique, que seguia os viajantes como se fora a sua sombra, também tinha parado à porta da primeira casa da aldeia, à qual batera com tão pouco resultado como eles, e adivinhando então que aquela deserção era causada pela guerra, esperava, para tornar a pôr-se a caminho, que eles tomassem uma deliberação.

Assim fizeram efectivamente, logo que os cavalos acabaram de comer a cevada que Rémy achou na arca de uma estalagem abandonada.

— Minha Senhora — disse então Rémy —, nós não estamos aqui num país tranquilo, nem numa situação normal; não convém que nos arrisquemos como crianças. Não tarda por certo que encontremos algum bando de franceses ou flamengos, sem falar nos guerrilheiros espanhóis, pois, na situação singular em que se acha a Flandres, devem forçosamente abundar por aqui os aventureiros de todos os países; se fosse homem, não lhe faria estas reflexões; porém é mulher, moça e formosa, e por isso mesmo é que muito mais periga a sua vida e a sua honra.

— Oh! a minha vida... A minha vida nada vale — replicou a dama.

— Não se pode dizer isso, minha Senhora — respondeu Rémy —, quando da vida depende a execução de um projecto.

— Pois bem! que devemos fazer então? Pensa e delibera por mim, Rémy; sabes muito bem que o meu pensamento não é deste mundo.

— Então, minha Senhora — retorquiu o servidor —, se quer que lhe dê o meu parecer, conservemo-nos aqui; temos casas onde poderemos abrigar-nos com segurança; eu tenho armas comigo: defender-nos-emos ou trataremos de nos ocultar, conforme eu vir que estamos fortes ou fracos.

— Não, Rémy, não: é preciso que eu siga para diante, nada será capaz de me deter — respondeu a dama abanando a cabeça. — Se algum receio tenho, é por tua causa unicamente.

— Então — disse Rémy — marchemos.

E tocou o cavalo sem acrescentar mais palavra. A dama incógnita seguiu-o, e Henrique de Bouchage, que se tinha apeado ao vê-los parar, pôs-se outra vez em marcha atrás deles.

 

                                                                                CONTINUA  

 

                      

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