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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


OS REIS DO BOURBON / J. R Ward
OS REIS DO BOURBON / J. R Ward

                                                                                                                                                  

 

 

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

 

Charlemont, Kentucky
Uma névoa pairava sobre as águas preguiçosas de Ohio como um sopro de Deus, e as árvores às margens da estrada River do lado de Charlemont tinham tantas nuances de verde que a cor exigia um sexto sentido para absorvê-las todas. Acima, o céu era de um azul-claro leitoso, o tipo de coisa que você via no norte apenas no mês de julho. Às sete e meia da manhã, a temperatura já passava dos vinte graus.
Era a primeira semana de maio. Os sete dias mais importantes do calendário, superando o nascimento de Cristo, a independência americana e as comemorações do Ano-Novo.
A 139a disputa do Derby de Charlemont aconteceria no sábado.
O que significava que todo o Estado do Kentucky estava imerso na loucura das corridas de cavalos puros-sangues.
Lizzie King se aproximava de seu trabalho, sentindo a forte descarga de adrenalina que a vinha acompanhando nas últimas três semanas. Ela sabia, por experiência prévia, que aquela agitação não se apaziguaria até a limpeza do sábado à tarde. Pelo menos estava indo, como de hábito, contra o fluxo que seguia para o centro da cidade, e chegaria rapidamente. Ela levava quarenta minutos em cada trajeto, mas isso não se comparava à hora do rush de Nova York, Boston ou Los Angeles, o que, no seu atual estado de espírito, faria com que seu cérebro explodisse como uma bomba nuclear. Não, o seu caminho para o trabalho consistia em vinte e oito minutos de paisagens rurais em Indiana, seguido de seis minutos de retardo em pontes e entroncamentos, completado por seis a dez minutos de tráfego ao longo do rio, contra a corrente.
Às vezes, ela pensava que os únicos carros que seguiam na mesma direção eram do restante dos funcionários que trabalhavam em Easterly junto dela.
Ah, sim, Easterly.

 

 


 

 


A Propriedade da Família Bradford, ou PFB, como vinha escrito nas notas de entrega, estava fincada na parte mais alta da área metropolitana de Charlemont, e abrangia a casa principal de 1 800 metros quadrados, três jardins formais, duas piscinas e uma visão de trezentos e sessenta graus do condado de Washington. Também havia doze chalés de serventes, dez construções externas, uma fazenda ativa de mais de 8 000 hectares, um estábulo para vinte cavalos, que fora convertido num escritório, e um campo de golfe com nove buracos. O campo era iluminado para o caso de você querer praticar as suas tacadas à uma da madrugada.

Até onde ela sabia, o enorme terreno fora concedido à família em 1778, depois que o primeiro Bradford chegara ao sul, vindo da Pensilvânia com o então coronel George Rogers Clark, trazendo tanto a sua ambição quanto a sua tradição na fabricação do bourbon. Quase duzentos e cinquenta anos depois, eles possuíam uma mansão ao estilo Federal1 do tamanho de uma cidade pequena no alto da colina e cerca de setenta e duas pessoas trabalhando na propriedade em meio período ou período integral.

Todos seguiam regras feudais e um rígido sistema de castas, retirado diretamente de Downton Abbey.

Ou talvez a rotina da Condessa Viúva de Grantham fosse um pouco progressista demais.

Provavelmente a época de Guilherme, o Conquistador, fosse algo mais próximo.

Então, por exemplo – e isso seria apenas uma conjectura de cinema – se uma jardineira se apaixonasse por um dos preciosos filhos da família? Mesmo que ela fosse uma das horticultoras-chefes e tivesse reputação nacional e um mestrado de Cornell em paisagismo?

Isso não seria aceitável.

Sabrina sem um final feliz, meu bem.

Xingando, Lizzie ligou o rádio na esperança de fazer seu cérebro se calar. Mas não foi muito longe. Seu Toyota Yaris tinha alto-falantes dignos da Barbie: a música supostamente deveria sair pelos pequenos círculos nas portas do automóvel, mas o sistema de som era quase de fachada e, neste dia, a música que vazava daquelas coisinhas simplesmente não era suficiente…

O som de uma ambulância se aproximando a toda velocidade por trás dela superou com muita facilidade a conversa da BBC News. Ela pressionou o freio e foi para o acostamento. Depois que a sirene e as luzes sumiram à distância, ela voltou para a estrada e fez a curva aberta ao longo do rio e da estrada… E lá estava a enorme mansão branca dos Bradford, bem no alto, o sol nascente sendo obrigado a se espalhar ao redor da simétrica e magnífica construção.

Ela crescera em Plattsburgh, no Estado de Nova York, num pomar de maçãs.

O que diabos tinha pensado quase dois anos atrás quando permitira que Lane Baldwine, o filho mais novo, entrasse em sua vida?

E por que ainda estava ali, depois de todo esse tempo, refletindo sobre aqueles detalhes?

Porque, sejamos sinceros, ela não era a primeira mulher que fora seduzida por ele…

Lizzie franziu a testa e se inclinou sobre o volante.

A ambulância que a ultrapassara estava indo para a parte de trás da colina da PFB, com suas luzes vermelhas e brancas girando ao longo da alameda de bordos.

– Ah, meu Deus – sussurrou.

Rezou para que não fosse quem ela pensava.

Ela não podia ser tão azarada assim.

E não era lamentável que isso fosse a primeira coisa a lhe passar pela mente? Ela não devia estar preocupada com quem quer que estivesse machucado/doente/desmaiado?

Passando pelos portões de ferro – com o monograma da família – que estavam para se fechar, Lizzie virou a primeira à direita uns trezentos metros mais adiante.

Como empregada, ela tinha que usar a entrada de serviço. Sem desculpas, sem exceções.

Por que Deus não permitiria que um veículo com valor inferior a uma centena de milhares de dólares fosse visto diante da casa?

Puxa, estava ficando azeda, concluiu. E, depois do Derby, precisaria tirar umas férias antes que as pessoas pensassem que ela estava enfrentando a menopausa uma década antes do previsto.

A máquina de costura debaixo do capô do Yaris rugiu quando ela desceu pelo caminho que dava a volta até a base da colina. Passou pelos campos de milho; o esterco já estava espalhado e revolvido na preparação do plantio. Em seguida, passou pelos jardins bem podados, com suas primeiras plantas perenes e anuais; os topos das peônias eram fofos como bolas de algodão, não muito mais escuras que o rubor nas faces de uma menina inocente. Depois, havia os orquidários e as estufas, seguidas pelos prédios externos com os equipamentos de fazenda e jardinagem, e então a fileira de chalés dos anos 1950, de dois e três dormitórios.

Eram tão variados e cheios de estilo quanto um par de latas de açúcar e de farinha de trigo sobre um balcão de fórmica.

Chegando ao estacionamento dos funcionários, parou o carro e saiu, deixando sua caixa térmica, o chapéu e a bolsa com o protetor solar para trás.

Apressando-se para a salinha do prédio principal, entrou na caverna com cheiro de gasolina e óleo pela baia aberta à esquerda. O escritório de Gary McAdams, o chefe da manutenção, ficava ao lado, com as portas de vidro jateadas ainda translúcidas o bastante para indicar que as luzes estavam acesas e que havia alguém lá dentro.

Ela não se deu ao trabalho de bater. Empurrando a porta, ignorou o calendário da Pirelli com mulheres praticamente nuas.

– Gary…

O homem de sessenta e dois anos acabava de colocar o telefone no gancho com sua mão de urso. Seu rosto curtido de sol, com sua pele de casca de árvore, estava mais sério do que ela jamais vira. Quando ele a fitou por sobre a mesa bagunçada, ela entendeu para quem era a ambulância antes mesmo que ele dissesse o nome.

Lizzie levou as mãos ao rosto e se recostou no batente.

Claro que lamentava pela família, mas seria impossível não personalizar a tragédia e querer vomitar em algum lugar.

O homem que nunca mais queria ver na vida… estava voltando para casa.

Ela podia muito bem disparar um cronômetro.

 

Nova York, NY

– Vamos lá… sei que você me quer.

Jonathan Tulane Baldwine olhou para o quadril que estava apoiado ao lado da sua pilha de fichas de pôquer.

– Aumentem as apostas, rapazes.

– Estou falando com você. – Um par de seios falsos parcialmente cobertos apareceu sobre o leque de cartas na mão dele. – Oooiii.

Hora de fingir interesse em alguma outra coisa, qualquer outra coisa, pensou Lane. Uma pena que o apartamento de um quarto em Midtown fosse de solteiro, decorado com apenas o estritamente funcional. E por que se dar ao trabalho de olhar para os rostos do que restava dos seis bastardos com quem começara a jogar pôquer oito horas antes? Nenhum deles se mostrou à altura de nada além de simplesmente cobrir apostas altas.

Decifrar as pistas deixadas por eles só para escapar não valia o cansaço dos olhos às sete e meia da manhã.

– Ooooiiii…

– Desista, meu bem, ele não está interessado – alguém murmurou.

– Todos se interessam por mim.

– Ele não. – Jeff Stern, o anfitrião e seu colega de apartamento jogaram fichas equivalentes a mil dólares. – Não é mesmo, Lane?

– Você é gay? Ele é gay?

Lane passou a rainha de copas para o lado do rei de copas. Colocou o valete ao lado da rainha. Quis empurrar aqueles seios falsos e aquela boca grande para o chão.

– Dois de vocês não cobriram a aposta.

– Estou fora, Baldwine. Está alto demais para mim.

– Estou dentro, se alguém me emprestar mil.

Jeff olhou por sobre a mesa de feltro verde e sorriu.

– Somos você e eu, mais uma vez, Baldwine.

– Mal posso esperar para arrancar o seu dinheiro. – Lane fechou as cartas. – A aposta é sua…

A mulher voltou a se inclinar.

– Adoro o seu sotaque sulista.

Os olhos de Jeff se estreitaram por trás da armação transparente dos óculos.

– É melhor desistir, garota.

– Não sou idiota – ela disse arrastado. – Sei exatamente quem você é e quanto dinheiro você tem. Bebo do seu bourbon…

Lane se recostou e se dirigiu para o imbecil que trouxera o acessório falante.

– Billy? Fala sério?

– Tá bom. Tá bom. – O cara que queria aumentar seu débito em mil dólares se levantou. – O sol já está nascendo mesmo. Vamos embora.

– Ei, eu quero ficar…

– Não, já chega. – Billy levou a loira burra com autoestima inflada pelo braço e a acompanhou até a porta. – Eu te levo pra casa. E não, ele não é quem você está pensando. Até mais, bundões.

– É sim. Vi nas revistas…

Antes que a porta se fechasse, o outro cara que fora depenado também se levantou.

– Também vou. Me lembrem de nunca mais jogar com vocês dois.

– Não vou fazer isso – Jeff disse ao erguer a palma. – Mande um olá pra sua esposa.

– Você mesmo pode fazê-lo quando nos encontrarmos no Sabbath.

– De novo?

– Toda sexta-feira. E se você não gosta, por que fica aparecendo na minha casa?

– Comida grátis. Simples assim.

– Como se você precisasse de esmola.

Então ficaram sozinhos. Com o equivalente a 250 mil dólares em fichas de pôquer, dois baralhos e um cinzeiro cheio de bitucas de cigarro, e nenhuma loira burra.

– É a sua vez – disse Lane.

– Acho que ele quer se casar com ela – murmurou Jeff, jogando mais fichas no meio da mesa. – Billy, quero dizer. E aqui estão vinte mil.

– Então ele deveria ter a cabeça examinada. – Lane cobriu a aposta do seu velho amigo da fraternidade, e depois dobrou o valor. – Patético. Os dois.

Jeff abaixou as cartas.

– Deixa eu te perguntar uma coisa.

– Nada que seja muito difícil. Estou bêbado.

– Você gosta delas?

– Das fichas de pôquer? – Ao fundo, um celular começou a tocar. – Claro que sim. Por isso, se não se importar em colocar algumas mais…

– Não. Mulheres.

Lane ergueu os olhos.

– Como é?

O seu amigo mais antigo apoiou um cotovelo na mesa e se inclinou. A gravata fora arrancada no começo do jogo, e sua outrora camisa branca e engomada agora estava tão maleável quanto uma camiseta polo. Os olhos, contudo, estavam tragicamente alertas e concentrados.

– Você me ouviu. Olha só, sei que não é da minha conta, mas quando foi mesmo que você apareceu aqui? Uns dois anos atrás? Você mora no meu sofá, não trabalha… coisa que até entendo, por causa da sua família. Mas não existe nenhuma mulher, nenhuma…

– Pare de pensar, Jeff.

– Estou falando sério.

– Então aposte.

O celular se calou. Mas seu amigo não.

– A Universidade da Virgínia ficou pra trás há muito tempo. Muita coisa pode mudar.

– Pelo visto, não se ainda estou no seu sofá…

– O que aconteceu com você, cara?

– Morri enquanto esperava você aumentar a aposta ou desistir.

Jeff resmungou, formando uma pilha azul e vermelha e a jogando no meio da mesa.

– Mais vinte mil.

– É assim que eu gosto. – O celular começou a tocar de novo. – Cubro. E ponho mais cinquenta se você calar a boca.

– Tem certeza de que quer fazer isso?

– Calar a sua boca? Tenho.

– Ser agressivo no pôquer com um investidor de bancos como eu. Clichês existem por um motivo: sou ganancioso e ótimo com números. Ao contrário do seu pessoal.

– O meu pessoal?

– Pessoas como vocês, os Bradford, não sabem ganhar dinheiro. Vocês foram treinados para gastar. Agora, ao contrário dos amadores, a sua família tem, de fato, um fluxo financeiro, ainda que isso o impeça de aprender qualquer coisa. Portanto, não sei se, a longo prazo, vai ser uma vantagem.

Lane refletiu sobre os motivos que o levaram a abandonar Charlemont de uma vez por todas.

– Aprendi muita coisa, acredite em mim.

– E agora você está me parecendo amargo.

– Você está me entediando. Era pra eu gostar disso?

– Por que nunca vai pra casa no Natal? No dia de Ação de Graças? Na Páscoa?

Lane abaixou as cartas, pousando-as sobre o feltro.

– Não acredito mais no Papai Noel nem no Coelhinho da Páscoa, cacete. E peru é superestimado. Qual é o seu problema?

Pergunta errada. Ainda mais depois de uma noite de jogatina e bebedeira. Ainda mais para um cara como Stern, que era categoricamente incapaz de ser outra coisa que não absolutamente honesto.

– Odeio que você seja tão sozinho.

– Você só pode estar de brincadeira…

– Sou um dos seus amigos mais antigos, não sou? Se eu não te disser, quem vai dizer? Não fique irritadinho comigo. Você escolheu um judeu nova-iorquino, e não um dos milhares de sulistas amantes de frango frito metidos a besta daquela faculdade ridícula pra ser o seu eterno colega de quarto. Por isso, vá se foder.

– Vamos terminar esse jogo?

O olhar perspicaz de Jeff se estreitou.

– Responda uma coisa.

– Sim, estou me perguntando por que não pensei em ficar com o Wedge ou o Chenoweth agora mesmo.

– Rá. Você não suportava nenhum dos dois por mais de um dia. A menos que estivesse bêbado, o que, de fato, você tem estado nos últimos três meses e meio. E essa é outra coisa que me incomoda.

– Aposte. Agora. Pelo amor de Deus.

– Por que…

Quando o celular começou a tocar pela terceira vez, Lane se levantou e atravessou a sala. Em cima do balcão do bar, ao lado da sua carteira, a tela estava iluminada. Nem se deu ao trabalho de ver quem era.

Atendeu à chamada porque as alternativas eram isso ou cometer homicídio.

A voz masculina com sotaque sulista do outro lado da linha disse quatro palavras: sua mãe está morrendo.

Enquanto o significado penetrava em sua consciência, tudo se desestabilizou à sua volta; as paredes começaram a se fechar ao seu redor, o chão ondulou, o teto caiu em sua cabeça. As lembranças não só voltaram, mas o atacaram, e o álcool em seu sistema não fez nada para reduzir o impacto.

Não, ele pensou. Não agora. Não esta manhã.

Haveria uma hora certa?

“Jamais” era a única opção aceitável para ele.

De longe, ele se ouviu dizendo:

– Chego antes do meio-dia.

E desligou.

– Lane? – Jeff se pôs de pé. – Ai, merda, não desmaie. Tenho que estar na Eleven Wall dentro de uma hora e ainda preciso tomar um banho.

De uma vasta distância, Lane viu sua mão se esticar e apanhar a carteira. Colocou-a no bolso da calça junto do celular e seguiu para a porta.

– Lane! Pra onde você vai, cacete?

– Não espere por mim – ele respondeu ao abrir a porta para sair.

– Quando você vai voltar? Ei, Lane? Mas que diabos!

Seu bom e velho amigo ainda falava quando ele saiu, deixando a porta se fechar sozinha. No fim do corredor, empurrou o portão de aço e começou a trotar escada abaixo. Enquanto suas passadas ecoavam no piso de concreto e ele fazia curva após curva, ligou para um número conhecido.

Quando atenderam, ele disse:

– Lane Baldwine. Preciso de um jatinho em Teterboro agora, vou para Charlemont.

Houve uma pequena pausa, em seguida a assistente executiva do seu pai voltou a falar: – Senhor Baldwine, temos um jatinho disponível. Falei diretamente com o piloto. O plano de voo está sendo preenchido enquanto conversamos. Assim que chegar ao aeroporto, siga para…

– Sei onde fica o nosso terminal. – Chegou ao saguão de mármore, acenou para o porteiro e passou pelas portas giratórias. – Obrigado.

Uma rapidinha, disse a si mesmo ao desligar e chamar um táxi. Com um pouco de sorte, estaria de volta a Manhattan ao cair do dia, entediando Jeff à noite. Meia-noite, pelo menos.

Umas dez horas. Quinze, no máximo.

Ele tinha que ir ver a mãe. Era isso o que os rapazes do sul faziam.


"Estilo Federal" é uma tendência arquitetônica e decorativa que se aplica a edificações e mobiliário. Popularizou-se nos EUA durante os séculos XVIII e XIX e conta com traços neoclássicos. (N. E.)

 

DOIS

Três horas, vinte e dois minutos e alguns segundos mais tarde, Lane olhava para fora da janela oval do novíssimo jatinho corporativo Embraer Lineage 1000E da Cia. Bourbon Bradford. Abaixo, a cidade de Charlemont estava disposta como um diorama de Lego, com suas seções ricas e pobres, comerciais e agrícolas, com fazendas e estradas dispostas no que parecia ser apenas duas dimensões. Por um instante, tentou visualizar a terra como fora quando sua família ali chegara em 1778.

Florestas. Rios. Americanos nativos. Vida selvagem.

Seu povo viera da Pensilvânia atravessando Cumberland Gap duzentos e cinquenta anos antes, e agora ali estava ele, a dez mil pés de altura, circundando a cidade junto com outros cinquenta e tantos outros caras em suas várias aeronaves.

Só que ele não estava ali para apostar em cavalos, se embebedar e fazer sexo.

– Posso servir mais no 15 antes de aterrissarmos, senhor Baldwine? Lamento, mas estamos numa fila de espera. Pode demorar um pouco até pousarmos.

– Obrigado. – Sorveu o que restava em seu copo de cristal. Os cubos de gelo escorregaram e bateram em seu lábio superior. – Você não poderia ter chegado em melhor hora.

Ok, talvez ele acabasse bebendo um pouco.

– É um prazer.

Quando a mulher na saia de uniforme se afastou, olhou por sobre o ombro para ver se ele a estava encarando. Seus olhos azuis reluziam debaixo dos cílios postiços.

A vida sexual dele há muito passara a depender da bondade de tais desconhecidas. Especialmente de loiras como ela, com pernas como aquelas, e quadris como aqueles, e seios como aqueles.

Mas não mais.

– Senhor Baldwine – o capitão informou pelo alto-falante –, quando descobriram que se tratava do senhor, eles nos adiantaram na fila, por isso estamos aterrissando agora.

– Quanta gentileza a deles – murmurou Lane quando a comissária de bordo retornou.

O modo como ela abriu a garrafa lhe deu uma pista de como ela desceria o zíper da calça de um homem; seu corpo todo se dedicava à libertação da rolha. Em seguida, ela se inclinou para servi-lo, encorajando-o a dar uma espiada em sua lingerie La Perla.

Tamanho desperdício de esforços.

– Assim está bom. – Ergueu a mão. – Obrigado.

– Posso ajudá-lo com mais alguma coisa?

– Não, obrigado.

Pausa. Como se ela não estivesse acostumada a receber um não como resposta, e quisesse lembrá-lo de que dispunham de pouco tempo.

Depois de um instante, ela ergueu o queixo.

– Pois não, senhor.

Era o modo dela de mandá-lo para o inferno: jogando o cabelo para trás e se afastar com um rebolado, balançando o que havia debaixo daquela saia como se segurasse um gato pelo rabo e tivesse um alvo para acertar.

Lane ergueu o copo e girou o seu no 15. Nunca se envolvera nos negócios da família, isso era trabalho do seu irmão mais velho, Edward. Ou, pelo menos, fora trabalho dele. Mas, mesmo como um mero espectador, Lane conhecia o apelido do produto mais vendido da Cia. Bourbon Bradford: no 15, o elemento principal da linha de produção, vendido em quantidades tão grandes que era chamado de A Grande Borracha – porque seu lucro era tão gigantesco que o dinheiro poderia eclipsar o prejuízo de qualquer erro corporativo interno ou externo, qualquer cálculo indevido ou recessão no mercado.

Enquanto o jato se preparava para a aterrissagem, um raio de sol atravessou a janela oval, caindo sobre a mesinha dobrável de nogueira falsa, o couro cor de creme do banco, o azul do seu jeans, a fivela de latão dos seus mocassins Gucci.

E depois atingiu o no 15 em seu copo, ressaltando as nuances de rubi do líquido âmbar. Ao sorver mais um gole pela borda de cristal, sentiu o calor do sol sobre o dorso da mão e a frieza do gelo nas pontas dos dedos.

Algum estudo feito recentemente divulgou que a indústria do bourbon tinha receitas anuais na casa dos 3 bilhões de dólares. Desse total, a CBB detinha mais de um quarto, quase um terço do total. Havia outra empresa no Estado, maior que eles – a odiada Destilaria Sutton Corporation – e, depois disso, uns outros oito ou dez produtores. Mas a CBB era o diamante em meio a outras pedras semipreciosas, a escolha dos bebedores de paladar mais apurado.

Como um consumidor leal, ele tinha que concordar com tal tendência.

Uma alteração no nível de bourbon em seu copo anunciou a aterrissagem, e ele relembrou a primeira vez que experimentara o produto da família.

Considerando-se o que acontecera, ele deveria ter se transformado num abstêmio.

– É noite de Ano-Novo, vamos. Não seja medroso.

Como de costume, foi Maxwell quem começou a festa. Dos quatro filhos, Max era o encrenqueiro, com Gin, a caçula, ocupando o segundo lugar na recalcitrante escala Richter. Edward, o mais velho e mais austero deles, não fora convidado para a festa; e Lane, que estava mais ou menos no meio, tanto em termos de ordem de nascença quanto na probabilidade de ser preso ainda em idade juvenil, fora forçado àquela excursão porque Max odiava aprontar sem ter público – e meninas não contavam para ele.

Lane sabia que era uma péssima ideia. Se iam beber álcool, deveriam pegar uma garrafa da despensa e subir para os quartos, onde não havia a mínima possibilidade de serem apanhados. Mas beber assim, às vistas de qualquer um, na sala de estar? Debaixo do olhar desaprovador do quadro de Elijah Bradford sobre a cornija da lareira?

Idiotice…

– Então, quer dizer que não vai beber nada, Lame?2

Ah, sim. O apelido predileto de Max para ele.

No alaranjado das luzes externas de segurança, Max o fitou do alto com uma expressão de tamanho desafio que seu olhar poderia muito bem estar acompanhado de uma faixa de largada e uma pistola, usados nas pistas de corrida.

Lane relanceou para a garrafa que o irmão segurava. O rótulo indicava um dos requintados, com as palavras “Reserva de família” em letras rebuscadas.

Se ele não fizesse aquilo, eles nunca o deixariam em paz.

– Só quero um copo – disse ele. – Um copo apropriado. Com gelo.

Porque era assim que o pai deles bebia. E era a única explicação varonil para a sua demora.

Max franziu a testa, como se considerasse a questão da apresentação.

– Tudo bem.

– Não preciso de um copo. – Gin, que contava com sete anos, estava com as mãos nos quadris e os olhos fixos em Max. Dentro da sua camisolinha de renda, ela parecia a Wendy do Peter Pan. Com aquela expressão agressiva no rosto, ela era praticamente uma lutadora profissional. – Preciso de uma colher.

– Uma colher? – Max perguntou, surpreso. – Do que está falando?

– É remédio, não é?

Max lançou a cabeça para trás e gargalhou.

– Mas o que…

Lane cobriu a boca do irmão.

– Cala a boca! Quer ser apanhado?

Max se livrou da mão dele.

– O que eles vão fazer comigo? Bater?

Bem, sim, se o pai deles os visse ou ficasse sabendo daquilo. Ainda que o grande William Baldwine delegasse a maior parte das atribuições paternas para outras pessoas, o cinto era ele quem empunhava.

– Espere um instante, você quer ser apanhado – Lane disse com suavidade. – Não quer?

Max se virou para o carrinho de bebidas de vidro e latão. O aparador ornamental era uma antiguidade, assim como a maioria das coisas em Easterly, e o brasão da família estava entalhado nos quatro cantos. Com suas rodas finas e grandes e sua bandeja de cristal, era o anfitrião da casa, amparando quatro tipos diferentes de bourbon Bradford, meia dúzia de copos de cristal e um balde de gelo de prata que constantemente era reabastecido pelo mordomo.

– Aqui está o seu copo. – Max o empurrou na direção de Lane. – Vou beber direto da garrafa.

– Onde está a minha colher? – Gin perguntou.

– Pode tomar um gole do meu – Lane sussurrou.

– Não. Quero o meu…

O debate foi interrompido quando Max empurrou a rolha e o projétil saiu voando, batendo no candelabro no meio da sala. O cristal sacudiu, fez barulho e os três ficaram imobilizados.

– Calados – ordenou Max, antes que fizessem qualquer comentário. – E nada de gelo pra você.

O bourbon fez um barulho gorgolejante enquanto seu irmão o derramava no copo de Lane, só parando quando a taça estava tão cheia quanto seu copo de leite durante as refeições.

– Agora beba tudo – Max lhe disse ao levar a garrafa à boca, inclinando a cabeça para trás.

A encenação de cara durão só durou o tempo da primeira golada; Max começou a tossir tão alto que poderia despertar os mortos. Deixando que o irmão se engasgasse ou morresse na tentativa de se recuperar, Lane ficou olhando para o próprio copo.

Levou o cristal até a boca, e deu um gole cuidadoso.

Fogo. Era como se estivesse engolindo fogo, e uma trilha ardeu-lhe até o estômago. Soltou um xingamento, meio que esperando ver labaredas saindo do seu rosto, como se fosse um dragão.

– Minha vez – Gin disse.

Ele segurou o copo, não permitindo que ela o pegasse. Nesse meio-tempo, Max tomava o segundo e o terceiro goles.

Gin mal tocou no líquido, apenas umedeceu os lábios, e se retraiu revelando seu desgosto.

– O que estão fazendo?

Quando a luz do candelabro foi acesa, os três deram um salto. Lane derrubou o bourbon do seu copo no pijama de monograma.

Edward estava parado perto da porta com um olhar de fúria absoluta no rosto.

– O que diabos há de errado com vocês? – ele disse, marchando e tirando o copo das mãos de Lane e a garrafa de Max.

– Só estávamos brincando – murmurou Gin.

– Vá pra cama, Gin. – Ele colocou o copo no carrinho e apontou para a porta com a garrafa. – Vá pra cama agora.

– Hum… Por quê?

– A menos que queira que eu chute o seu traseiro também.

Até mesmo Gin sabia respeitar aquela lógica.

Enquanto ela avançava para o arco da entrada, com os ombros pensos e chinelos arrastando sobre o tapete oriental, Edward sibilou: – E use a escada da criadagem. Se papai ouvir alguma coisa, vai descer pela da frente.

O coração de Lane disparou. E seu estômago ardeu. Não sabia se por terem sido flagrados ou por causa do bourbon.

– Ela tem sete anos – Edward disse depois que Gin se afastou. – Sete!

– Sabemos quantos anos ela tem…

– Cale a boca, Max. Apenas cale a boca. – Ele encarou Max de cima. – Se quer se corromper, não me importo. Mas não contamine os dois com as suas idiotices.

Palavras grandes. Xingamentos. E a conduta de alguém que poderia colocar os dois de castigo.

Pensando bem, Edward sempre parecera adulto, mesmo antes de chegar à adolescência.

– Não tenho que ficar aqui te escutando – Max replicou. Mas o espírito de combate já começava a abandoná-lo; sua língua estava frouxa, seus olhos caíam para o tapete.

– Tem, sim.

Então as coisas se acalmaram.

– Sinto muito – disse Lane.

– Não estou preocupado com você. – Edward meneou a cabeça. – É ele quem me preocupa.

– Peça desculpas – Lane sussurrou. – Vamos, Max.

– Não.

– Ele não é o papai, você sabe.

Max encarou Edward.

– Mas age como se fosse.

– Só porque você está descontrolado.

Lane pegou Max pela mão.

– Ele também sente muito, Edward. Venha, vamos antes que alguém nos ouça.

Ele precisou fazer um pouco mais de força, porém, no fim, Max o acompanhou sem mais nenhum comentário: a briga tendo terminado, o lance de independência fora lançado. Estavam na metade do piso de mármore preto e branco do vestíbulo pouco iluminado quando Lane percebeu algo no fim do corredor.

Alguém se movimentava nas sombras.

Alguém grande demais para ser Gin.

Lane puxou o irmão para a total escuridão do salão de baile do lado oposto.

– Shhh.

Através do arco da sala de estar, ele viu quando Edward se virou para o carrinho à procura da rolha e quis alertar o irmão…

Quando o pai deles entrou, o corpo alto de William Baldwine bloqueou a vista de Edward.

– O que está fazendo?

As mesmas palavras, o mesmo tom, grave e profundo.

Edward se virou com tranquilidade, com a garrafa na mão. O copo quase cheio de Lane estava bem no meio do carrinho.

– Responda – o pai ordenou. – O que está fazendo?

Ele e Max estavam mortos, pensou Lane. Assim que Edward contasse ao homem o que eles estavam fazendo ali embaixo, William explodiria.

Ao lado de Lane, Max tremia.

– Eu não devia ter feito isso… – sussurrou ele.

– Onde está o seu cinto? – Edward replicou.

– Responda.

– Fui eu. Onde está o cinto?

Não!, Lane pensou. Não, fomos nós!

O pai deles avançou, o roupão de seda com monograma reluzindo na luz, cor de sangue fresco.

– Maldição, garoto! Me diga o que está fazendo aqui com as minhas bebidas.

– O nome é Bourbon Bradford, pai. O senhor se casou com a família, lembra?

Quando o pai ergueu o braço à frente do tronco, seu pesado anel de sinete de ouro da mão esquerda brilhou como se estivesse antecipando o golpe, ansioso pelo contato com a pele. Em seguida, com um movimento elegante e poderoso, Edward foi atingido com um tapa tão violento que o som ricocheteou até o salão de baile.

– Agora vou lhe perguntar mais uma vez: o que está fazendo com as minhas bebidas? – William exigiu saber enquanto Edward cambaleava de lado, amparando o rosto.

Depois de um instante de respiração laboriosa, Edward se endireitou. Seu pijama parecia vivo de tanto que seu corpo tremeu, mas ele permaneceu de pé.

Pigarreando, respondeu com voz grave:

– Estava comemorando o Ano-Novo.

Um rastro de sangue descia pela lateral do rosto dele, manchando a pele clara.

– Então não deixe que eu atrapalhe o seu divertimento. – O pai apontou para o copo de Lane. – Beba.

Lane fechou os olhos e quis vomitar.

– Beba.

Os sons de engasgo e de ânsia continuaram por uma eternidade enquanto Edward consumia quase um quarto da garrafa do bourbon.

– Não vomite, garoto – ameaçou o pai. – Não ouse…

Quando o jatinho sacolejou ao entrar em contato com a pista, Lane voltou do passado. Não se surpreendeu ao ver que o copo que segurava tremia, e não por causa da aterrissagem.

Depositando o no 15 na bandeja sobre a mesinha, enxugou a testa.

Aquela não fora a única vez que Edward fora punido no lugar deles.

E nem fora a pior das vezes. Não, a pior de todas acontecera quando ele já era adulto, e fizera tudo o que a educação torpe fracassara em conseguir.

Edward agora estava arruinado, e não apenas fisicamente.

Deus, existiam tantos motivos para Lane não querer voltar para Easterly. E nem todas eram por causa da mulher que ele amava, mas que perdera.

No entanto, tinha que confessar… Lizzie King estava no topo daquela extensa lista.


Em inglês, o apelido cria uma brincadeira com o nome do personagem, Lane, e a palavra “lame”, que pode significar perdedor, fraco, coxo, defeituoso ou careta.

 

TRÊS

Propriedade da Família Bradford, Charlemont

A estufa Amdega Machin era uma extensão da ala sul de Easterly e, como tal, nenhum custo fora poupado em sua construção, em 1956. A estrutura era uma obra-prima ao estilo gótico; seu esqueleto delicado de ossos pintados de branco suportavam centenas de painéis de vidro, criando um interior maior e mais bem-acabado que a casa de fazenda na qual Lizzie morava. Com piso de ardósia e uma área de descanso com sofás e poltronas de tecidos florais, havia flores e plantas ao longo das laterais, na altura dos quadris, e vasos em cada um dos cantos. Mas tudo isso era apenas para demonstração. O verdadeiro trabalho de horticultura, a germinação e a reabilitação, as podas e os cuidados, eram executados longe das vistas da família, em outras estufas.

– Wo sind die Rosen? Wir brauchen mehr Rosen…3

– Não sei. – Lizzie abriu outra caixa de papelão tão comprida quanto a perna de um jogador de basquete. Dentro dela, duas dúzias de talos de hidrângeas brancas estavam embaladas em plástico individualmente, as cabeças protegidas por delicados colares de papelão. – Este é o total da entrega, por isso elas devem estar aqui.

– Ich bestellte zehn weitere Dutzend. Wo sind sie…?4

– Tudo bem, agora chega de alemão.

– Não pode serr só isto. – Greta von Schlieber ergueu um punhado de flores rosa-claro minúsculas que estavam envolvidas numa página de um jornal colombiano. – Não vamos conseguirr.

– Você diz isso todos os anos.

– Desta vez, eu tenho razão. – Greta empurrou os pesados óculos com aro de tartaruga pelo nariz e fitou a pilha de outras vinte e cinco caixas. – Estou dizendo, estamos encrrencadas.

E… era essa a essência do relacionamento entre ela e sua colega de trabalho.

Começando com a rotina pessimista/otimista, Greta era basicamente tudo o que Lizzie não era. Para começar, a mulher era europeia, não americana; o sotaque alemão era bem marcado em sua pronúncia, apesar de ela estar nos Estados Unidos havia trinta anos. Também era casada com um homem incrível, mãe de três filhos fantásticos na casa dos vinte anos e tinha dinheiro suficiente para que não apenas não tivesse que trabalhar, como seus dois rapazes e sua moça também não.

Nada de Yaris para ela. Ela dirigia uma perua Mercedes preta. E o anel de diamante que ela usava ao lado da aliança era grande o bastante para rivalizar com um dos Bradford.

Ah, e ao contrário de Lizzie, seu cabelo loiro era curto como o de um homem, o que era algo a invejar quando você tinha que prender o seu com o que quer que conseguisse ter à mão: cordinhas de saco de lixo, arames florais e elásticos que amarravam os brócolis.

A única coisa que tinham em comum? Nenhuma delas suportava ficar imóvel, desocupada ou ociosa por um segundo sequer. Vinham trabalhando lado a lado na PFB havia quase cinco anos – não, mais que isso. Seriam sete?

Oh, Deus, já estavam perto dos dez.

E Lizzie não conseguia visualizar uma vida sem aquela mulher, mesmo que, às vezes, Greta fosse o tipo que via o copo meio vazio em vez de meio cheio.

– Ich sage Ihnen, wir haben Schwierigkeiten.5

– Você acabou de repetir que estamos em apuros?

– Kann sein.6

Lizzie revirou os olhos, mas se deixou levar pela adrenalina, observando a linha de produção que tinham preparado: no fim da estufa de vinte metros de comprimento, uma fila dupla de mesas dobráveis estava formada e, sobre elas, setenta e cinco cubas de prata para buquês do tamanho de baldes de gelo.

O brilho era tão forte que Lizzie desejou não ter deixado os óculos escuros no carro.

E também desejou não ter que lidar com a situação, ciente que Lane Baldwine provavelmente estaria aterrissando no aeroporto naquele instante.

Como se ela precisasse também dessa pressão.

Conforme sua cabeça começava a latejar, tentou se concentrar no que podia controlar. Infelizmente, isso lhe deixava apenas se perguntando como ela e Greta preencheriam aqueles vasos com o equivalente a 50 mil dólares em flores entregues, mas que ainda precisavam ser desembaladas, inspecionadas, limpas, cortadas e arranjadas de maneira adequada.

Pensando bem, era a pressão que sempre a acometia nas quarenta e oito horas que precediam o Brunch do Derby.

Ou BD, como era chamado ali na propriedade.

Porque, sim, trabalhar em Easterly era o mesmo que estar no exército: tudo era reduzido, menos as horas de trabalho.

E, sim, apesar da ambulância daquela manhã, o evento ainda aconteceria. Como um trem que não parava para nada nem ninguém em seu caminho. Na verdade, ela e Greta costumavam dizer que, se eclodisse uma guerra nuclear, as únicas coisas que resistiriam depois que a nuvem de cogumelo se dissipasse seriam baratas, Twinkies… e o BD.

Deixando as piadas de lado, o Brunch era tão exclusivo e acontecia havia tanto tempo que tinha um nome próprio. As vagas na lista de convidados eram guardadas e passadas para a geração seguinte como herança. Era uma reunião de quase setecentas pessoas, composta pela elite financeira e política da cidade e da nação. Elas conversavam e se misturavam em meio aos jardins de Easterly, tomando julepos de menta e mimosas7 por apenas duas horas antes da partida para Steeplehill Downs, para o dia mais importante da corrida de cavalos e a primeira etapa da Tríplice Coroa do Turfe. As regras do Brunch eram simples e diretas: as damas tinham que usar chapéus, não eram permitidas fotografias, tampouco fotógrafos, e não importava se você viesse num Phantom Drophead ou numa limusine corporativa, todos os carros ficavam estacionados nos campos ao pé da colina, e todos chegavam nas vans que os conduziriam até a entrada da mansão.

Bem, quase todas as pessoas. As únicas que não precisavam pegar o transporte eram governadores e quaisquer presidentes que aparecessem, e o treinador-chefe da equipe masculina de basquete da Universidade de Charlemont.

No Kentucky, ou você era vermelho da UC, ou azul da Universidade do Kentucky, e o basquete era importante, quer você fosse rico ou pobre.

Os Bradford eram fãs dos Águias da UC. E era quase shakespeariano que seus rivais no negócio do bourbon, os Sutton, fossem todos Tigres da UK.

– Estou ouvindo você resmungar – Lizzie comentou. – Pense positivo. Vamos conseguir.

– Wir müssen alle Pfingstrosen zahlen8 – Greta anunciou ao abrir mais uma caixa de papelão. – No ano passado, eles nos entrregarram florres a menos.

Uma das portas duplas que dava para a casa foi aberta, e o senhor Newark Harris entrou como uma brisa fria. Com seu 1,67 metro de altura, ele parecia mais alto em seu terno e gravata pretos – mas, pensando bem, a ilusão talvez se devesse às sobrancelhas eternamente erguidas, e ao fato de ele sempre estar prestes a dizer “seu americano idiota” depois de tudo o que pronunciava. Fazendo um retrocesso na tradição centenária de um adequado criado inglês, ele não apenas nascera e fora criado em Londres, como também servira como criado de libré para a rainha Elizabeth no Palácio de Buckingham e, depois, como mordomo do príncipe Edward, conde de Wessex, em Bagshot Park. O pedigree da Casa de Windsor fora crucial para a sua contratação no ano anterior.

Por certo, não fora a sua personalidade.

– A senhora Baldwine está à beira da piscina. – Dirigiu-se a Lizzie. Greta, por sua nacionalidade alemã e por ainda ter um sotaque carregado, era persona non grata para ele. – Por favor, leve um buquê para ela. Obrigado.

E puf!, sumiu pela porta, fechando-a silenciosamente.

Lizzie cerrou os olhos. Havia duas senhoras Baldwine na propriedade, mas somente uma poderia estar fora do quarto, tomando sol à beira da piscina.

Um golpe duplo naquele dia, Lizzie pensou. Não só teria que ver seu antigo amante, agora teria que servir a esposa dele.

Fantástico.

– Ich hoffe, dass dem Idiot ein Klavier auf den Kopf fallt.9

– Você acabou de dizer que espera que um piano caia sobre a cabeça dele?

– E você diz que não entende alemão.

– Dez anos com você e eu estou chegando lá.

Lizzie relanceou ao redor para ver o que poderia usar da imensa entrega de flores. Depois que as caixas fossem abertas, as folhas precisariam ser arrancadas das hastes e as flores teriam que ser afofadas uma a uma para encorajar as pétalas a se abrirem, permitindo uma inspeção de qualidade. Ela e Greta não estavam nem perto daquele estágio ainda, mas o que a senhora Baldwine queria, ela tinha.

De muitas maneiras.

Quinze minutos de escolha, corte e arranjo, e Lizzie tinha montado um buquê razoável, enfiado numa espuma dentro de um vaso de prata.

Greta apareceu diante dela e estendeu as mãos, com aquele diamante enorme no dedo reluzindo.

– Deixe que eu levo.

– Não, pode deixar…

– Você não vai querrer lidar com ela hoje.

– Nunca quero lidar com ela.

– Lizzie.

– Estou bem. Sério.

Felizmente, sua velha amiga acreditou na mentira. A verdade? Lizzie estava longe de se sentir bem, ela sequer conseguia enxergar essa possibilidade, mas não significava que recuaria.

– Volto já.

– Estarrei contando as peônias.

– Tudo vai ficar bem.

Era o que esperava.

Enquanto Lizzie seguia para as portas duplas que davam para o jardim, sua cabeça começou a latejar de verdade, e ser atingida pelo calor e umidade do lado de fora não ajudou em nada. Motrin, pensou ela. Depois daquilo, ela tomaria quatro comprimidos e voltaria ao trabalho.

A grama estava cortada bem rente, mais parecida com um campo de golfe do que qualquer outra coisa que a Mãe Natureza tivesse imaginado. Apesar de ter muitas coisas em mente, ela fez uma lista mental de tarefas, como cuidar das moitas e do replantio nos dois hectares que compunham o jardim fechado. A boa notícia era que depois do início tardio da primavera, as árvores frutíferas vicejavam nos cantos do muro de tijolos, e as delicadas pétalas brancas começavam a cair como flocos de neve nos caminhos debaixo das copas. E a compostagem espalhada duas semanas antes perdera seu odor forte. Em um mês, os quatro cantos marcados pelas esculturas greco-romanas de mulheres em vestes e poses régias estariam todas rosadas e embranquecidas, em contraste com o verde e cinza tranquilizador do rio.

Mas, claro, agora tudo se tratava do Derby.

A casa de madeira branca da piscina ficava no canto à esquerda. Parecia o lar de uma família pequena e típica de médicos/advogados ao estilo colonial, atrás da piscina quase olímpica e seu azul-marinho. O caminho que ligava a casa à piscina era coberto por galhos de glicínias, que logo teriam flores brancas e lilases penduradas como lanternas caindo do emaranhado verde.

E debaixo da cobertura, estendida numa espreguiçadeira Brown Jordan, a senhora Chantal Baldwine era tão bela quanto uma inestimável estátua de mármore.

E continha o mesmo calor.

Sua pele era reluzente, graças ao spray bronzeador perfeitamente aplicado, seus cabelos loiros estavam artisticamente penteados e curvos nas pontas, e seu corpo provocaria complexo de inferioridade até em Rosie Huntington-Whiteley. As unhas eram postiças, mas perfeitas, nada de Jersey em seu tamanho e cor, e o anel de noivado e a aliança de casamento pareciam saídos da Town & Country, tão brancos e ofuscantes quando o sorriso dela.

Ela era a perfeita e moderna belle do sul, o tipo de mulher que as pessoas de Charlemont consideravam, aos sussurros, ser “de boa linhagem, apesar de ser da Virgínia”.

Lizzie sempre se perguntou se os Bradford verificavam os dentes das debutantes com quem seus filhos saíam – assim como se faz com cavalos puros-sangues.

– … desmaiou e a ambulância foi chamada. – A mão pesada devido ao diamante se ergueu e afastou uma mecha dos cabelos, em seguida passou o iPhone no qual falava com alguém para a outra orelha. – Levaram-na pela porta da frente. Dá para acreditar nisso? Eles deveriam tê-lo feito pela porta dos fundos… Ah, essas são adoráveis!

Chantal Baldwine levou a mão à frente da boca, numa postura de gueixa, enquanto Lizzie carregava as flores até a bancada de mármore do bar, colocando-as na ponta que não estava diretamente exposta ao sol.

– Newark fez isso? Ele é tão atencioso.

Lizzie assentiu e se virou para sair. Quanto menos tempo desperdiçasse ali, melhor.

– Ah, Lisa, você poderia…

– É Lizzie. – Ela parou. – Posso ajudá-la com mais alguma coisa?

– Você faria a gentileza de me trazer mais disto? – A mulher apontou para um jarro pela metade. – O gelo derreteu e ficou aguado. Vou almoçar no clube, mas só daqui a uma hora. Muito obrigada.

Lizzie desviou o olhar para a limonada e tentou, tentou mesmo – tinha Deus como testemunha – não se imaginar afogando a mulher naquela coisa.

– Avisarei o senhor Harris para que ele mande alguém…

– Ah, mas ele é muito ocupado. E você mesma pode dar um pulo lá dentro… Você é tão prestativa. – A mulher voltou ao iPhone com a capinha da Universidade de Charlemont. – Onde eu estava? Ah, então, eles a levaram pela porta da frente. Quero dizer, com toda a sinceridade, consegue imaginar?

Lizzie se aproximou, pegou o jarro e voltou a cruzar o terraço branco na direção do gramado.

– Será um prazer.

Será um prazer.

Ah, sim, e como. Mas era isso o que você devia dizer quando alguém da família lhe pedia alguma coisa. Era a única resposta aceitável. E certamente melhor que “Que tal se eu pegar essa limonada e enfiá-la onde o sol não alcança, sua miserável filha de uma…?”.

– Ah, Lisa! Virgem, ok? Obrigada.

Lizzie apenas continuou em frente, lançando mais uma granada de “Será um prazer” por sobre o ombro.

Aproximando-se da mansão, teve que escolher sua via de entrada. Como membro do staff, não tinha permissão de entrar pelas quatro entradas principais: a da frente, a lateral da biblioteca, a dos fundos da sala de jantar e a dos fundos da sala de jogos. E era “desencorajada” a usar outras portas que não as da cozinha e da sala de utensílios, ainda que tivesse permissão se estivesse fazendo as três distribuições semanais de buquês pela casa.

Escolheu a porta que estava no meio do caminho entre a sala de jantar e a cozinha porque se recusava a dar toda a volta até a entrada de funcionários. Pisando no interior fresco, manteve a cabeça abaixada, não porque se preocupasse em irritar alguém, mas porque tinha esperanças e rezava para entrar e sair sem ser flagrada por…

– Fiquei pensando se a encontraria hoje aqui.

Lizzie congelou como um ladrão pego em flagrante e sentiu lágrimas ameaçando cair nos cantos dos olhos. Mas não iria chorar.

Não diante de Lane Baldwine.

E não por causa dele.

Aprumando os ombros, ergueu o queixo… e começou a se virar.

Antes de se deparar com os olhos de Lane pela primeira vez desde que o mandara para o inferno ao fim do relacionamento deles, Lizzie entendeu três coisas: um, sua aparência seria exatamente a mesma de antes; dois, isso não seria uma boa notícia para ela; e três, se tivesse um pouco de cérebro dentro da cabeça, colocaria aquilo que ele lhe fizera quase dois anos antes em autolooping e não pensaria em nada mais.

Autoconfiança, um lugar agradável…

Ah, merda, ele ainda tinha que ser assim tão bonito?

Lane não se lembrava muito da experiência de entrar em Easterly pela primeira vez desde o que o parecia ser uma eternidade.

Nada ficou muito registrado. Não a imponente porta de entrada com suas aldravas em forma de cabeça de leão e seu painel preto reluzente. Não o vestíbulo do tamanho de um campo de futebol e todos os quadros a óleo dos Bradford do passado e do presente. Não o candelabro de cristal ou os candeeiros de ouro, nem os tapetes orientais vermelho rubi ou as pesadas cortinas de brocado. Tampouco a sala de estar e o salão de baile em lados opostos.

A elegância sulista de Easterly, aliada à eterna fragrância cítrica do antigo lustra-móveis, era como um belo terno que, uma vez no corpo, não se percebia no resto do dia porque foi feito sob medida por um alfaiate, moldando-se ao seu esqueleto e músculos. Para ele, não houve nenhuma estranheza ao entrar ali: era uma imersão total em águas mansas, à temperatura ideal. Era como respirar o ar parado, com a umidade perfeita. Era como um cochilo ao estar sentado numa poltrona de couro do clube.

Esse era, ao mesmo tempo, seu lar e seu inimigo e, muito provavelmente, não sentiu nada porque estava oprimido por emoções que reprimia.

No entanto, notou cada detalhe a respeito do seu reencontro com Lizzie King.

A colisão aconteceu bem quando ele passava pela sala de jantar à procura daquela pela qual ele viajara.

Ah, Deus, pensou. Ah, bom Deus.

Depois de ter apenas confiado em suas lembranças por tanto tempo, estar diante de Lizzie era a diferença entre uma passagem descritiva e a coisa real – e seu corpo reagiu de pronto, o sangue bombeando, todos aqueles instintos dormentes não apenas despertando, mas explodindo em suas veias.

O cabelo dela ainda era loiro por causa do sol, não pelo trabalho de algum cabeleireiro, e estava preso para trás com um laço, as pontas aparadas como uma corda náutica que fora cortada com fogo. Seu rosto ainda estava sem maquiagem, a pele bronzeada e reluzente, a estrutura óssea lembrando-o de que a boa genética era muito melhor que cirurgias plásticas de milhares de dólares. E seu corpo… aquele corpo forte que apresentava curvas onde ele mais apreciava, e a firmeza que testemunhava todo o trabalho físico que ela executava tão bem. Ela estava exatamente como ele se lembrava. Até estava vestida do mesmo modo, com shorts cáqui e a camiseta polo preta com o brasão Easterly bordado.

Seu perfume era Coppertone, e não Chanel. Seus sapatos eram Merrel, não Manolo. Seu relógio era Nike, não Rolex.

Para ele, ela era a mulher mais bela e mais bem-vestida que já vira.

Infelizmente, aquele olhar também permanecia inalterado.

Aquele que lhe dizia que ela também pensara nele desde a sua partida.

Mas não de uma maneira boa.

Lane movia a boca, percebendo que pronunciava uma combinação de palavras, mas não as acompanhava. Imagens demais se infiltravam em seu cérebro, todas as lembranças do passado: o corpo nu de Lizzie em meio aos lençóis revoltos, o cabelo emaranhado em seus dedos, suas mãos entre as pernas dela. Em sua mente, ele a ouvia pronunciar-lhe o nome enquanto a penetrava fundo, balançando a cama até que a cabeceira se chocasse contra a parede…

– Sim, eu sei por que veio – ela disse num tom neutro.

Pense em diferentes ondas cerebrais. Ele estava desequilibrado até as pontas dos seus Gucci, revivendo o relacionamento deles, e ela estava completamente impassível diante da sua presença.

– Você já a viu? – ela perguntou. Depois franziu o cenho. – Oi?

Que diabos ela estava falando? Ah, sim.

– Fiquei sabendo que ela já voltou do hospital.

– Cerca de uma hora atrás.

– Ela está bem?

– Ela saiu daqui numa ambulância com uma máscara de oxigênio. O que você acha? – Lizzie relanceou na direção para onde estava indo. – Olha, preciso pedir licença, tenho que…

– Lizzie – ele disse em voz baixa. – Lizzie, eu…

Como ele não concluiu a frase, ela se mostrou aborrecida.

– Faça um favor e nem pense em terminar essa frase, ok? Apenas vá vê-la e… e faça o que veio fazer, está bem? Me deixe fora disso.

– Nossa, Lizzie, por que você não quer me ouvir…?

– “Por que eu deveria?” é a pergunta correta.

– Porque pessoas civilizadas são gentis umas com as outras…

E BUM! Começaram a discutir.

– O que disse? – ela exigiu saber. – Só porque moro do outro lado do rio e trabalho para a sua família, isso faz de mim uma espécie de símio? Mesmo? Vai começar por aí?

– Não foi isso o que eu quis dizer…

– Ah, mas eu acho que foi mesmo…

– Eu juro – ele murmurou –, esse seu orgulho…

– O que tem ele, Lane? Está se mostrando de novo? É isso? Sinto muito, você não pode distorcer as coisas como se fosse eu quem tem problemas. Isso é com você. Sempre foi com você.

Lane ergueu as mãos.

– Não consigo falar com você. E eu só quero explicar…

– Quer fazer uma coisa por mim? Ótimo, maravilha. Segure isto aqui. – Ela enfiou o jarro pela metade com o que lhe pareceu ser uma limonada. – Leve-o para a cozinha e peça para alguém enchê-lo. Depois, mande alguém levá-lo de volta à piscina, ou, quem sabe, leve você mesmo… para a sua esposa.

Dito isso, ela girou e saiu pela porta mais próxima. E enquanto atravessava o gramado em direção à estufa, Lane não conseguia decidir o que o atraía mais: bater a cabeça na parede, quebrar o jarro no chão ou uma combinação dos dois.

Escolheu a quarta opção.

– Maldição, filha de uma… merda…

– Senhor? Posso ajudá-lo?

Ante o sotaque britânico, Lane relanceou para um homem de cerca cinquenta anos que se vestia como se fosse um recepcionista de uma funerária.

– Quem diabos é você?

– Harris, senhor. Sou Newark Harris, o mordomo. – O homem se curvou na altura da cintura. – Os pilotos foram gentis o bastante para nos telefonar e avisar que o senhor estava a caminho. Posso cuidar da sua bagagem?

– Não trouxe nenhuma.

– Pois não, senhor. Os seus aposentos estão arrumados, e caso necessite de algo, será um prazer providenciar o que o senhor necessitar.

Ah, não, Lane pensou. Nada disso, ele não ia ficar – ele sabia muito bem qual final de semana se aproximava, e o objetivo da sua visita não tinha nada a ver com o circo armado do Derby.

Empurrou o jarro nas mãos do senhor Engomadinho.

– Não sei o que tem aqui dentro e não me importo. Apenas reabasteça e leve-o para o seu devido lugar.

– Será um prazer, senhor. O senhor precisará de…

– Não, é só isso.

O homem pareceu surpreso quando Lane passou por ele e partiu para a ala da casa reservada à criadagem. Mas, obviamente, o inglês não o questionou. O que, levando em consideração o seu humor, não apenas era adequado à etiqueta de um mordomo, como também se enquadraria numa questão de autopreservação.

Dois minutos dentro daquela casa. Dois malditos minutos.

E já estava em ponto de bala.


“Onde estão as rosas? Precisamos de mais rosas!”

“Pedi mais dez dúzias. Onde elas estão?”

“Eu te digo, estamos com problemas.”

“Pode ser.”

Julepo de menta é uma bebida feita de uísque, açúcar, gelo moído e hortelã. Mimosa é um coquetel feito com três partes de vinho espumante e duas partes de suco de laranja gelado, tradicionalmente servido em uma taça alta chamada flute. (N.E.)

“Precisamos pagar todas as peônias”

“Espero que um piano caia sobre a cabeça desse idiota.”

 

QUATRO

Lane marchou pela imensa cozinha industrial e foi imediatamente surpreendido pelo “barulho olfativo” e pelo silêncio do auditório. Mesmo havendo uma bela dúzia de chefs inclinados sobre as bancadas de aço inoxidável e sobre os enormes fogões, nenhum dos homens em seus dolmãs brancos conversava enquanto trabalhava. Alguns poucos ergueram o olhar, reconhecendo-o e parando o que quer que estivessem fazendo. Lane ignorou os “Oh, meu Deus!”. Àquela altura, já estava acostumado quando o olhavam duas vezes só para se certificarem de que era ele mesmo, sua reputação o precedia por toda a nação havia muito tempo.

Obrigado, Vanity Fair, pelo artigo sobre a família uma década atrás. E pelos que vieram depois disso. E tinha as especulações dos tabloides. Sem falar no que aparecia na internet.

O que acontecia quando o status de celebridade, com o menor denominador comum embalado pela mídia, fisgava você?

Não havia mais como se livrar.

Conforme avançava na direção da porta com a placa de PARTICULAR, viu-se colocando a camisa para dentro, ajeitando a calça e alisando os cabelos. Queria ter se permitido um tempo para tomar banho, se barbear e trocar de roupa.

E queria muito que seu reencontro com Lizzie tivesse sido um pouco melhor. Como se ele precisasse de outra coisa na cabeça agora.

Bateu na porta baixinho, respeitosamente. Mas a resposta que conseguiu não foi nada respeitosa: – Pra que é que você está batendo? – exclamou uma voz feminina com forte sotaque sulista.

Lane franziu o cenho e empurrou a porta. E parou de pronto.

A senhorita Aurora estava junto ao fogão, o cheiro forte de óleo e os estalos do frango fritando na frigideira subiam pelo ar. Seus cabelos estavam puxados para cima num rabo de cachos negros e pequeninos, e ela usava o mesmo avental que ele vira nela no dia em que partira para o norte.

Ele só conseguiu piscar e se perguntar se alguém lhe pregara uma peça.

– Ora, ora, não fique parado aí – ela ralhou. – Lave as mãos e pegue as bandejas. Só deve demorar uns cinco minutinhos.

Certo, ele esperava encontrá-la deitada na cama com o lençol a cobrir-lhe o peito, com um brilho fraco no olhar enquanto aguardava que seu amado Jesus viesse buscá-la.

– Lane, mexa-se, ainda não morri.

Ele esfregou o alto do nariz quando uma onda de exaustão o acometeu.

– Sim, senhora.

Quando fechou a porta atrás de si, procurou por sinais de fraqueza física naqueles ombros e pernas fortes. Não encontrou nenhum. Não havia absolutamente nada naquela mulher de sessenta e cinco anos que sugerisse que ela fora parar no pronto-socorro naquela mesma manhã.

Ok, então estava num impasse, ele concluiu, espiando a comida que ela tinha preparado. Um impasse entre se sentir aliviado… e furioso por ter perdido tempo para ir até ali.

De uma coisa ele tinha certeza: não iria embora antes de comer. Em parte porque ela o amarraria numa cadeira e o forçaria a se alimentar, mas principalmente porque, no instante em que sentiu aqueles aromas, seu estômago roncou a valer.

– Você está bem? – ele tinha que perguntar.

O olhar que ela lhe lançou sugeria que, se ele continuasse naquele caminho, ela ficaria mais do que feliz em socá-lo até ele fechar a matraca.

Entendido, senhora, ele pensou.

Atravessando o cômodo, descobriu que as bandejas nas quais eles dois comiam estavam exatamente onde as vira pela última vez: num dos cantos, apoiadas entre o móvel da TV e uma prateleira de livros. O par de poltronas também estava no mesmo lugar, cada uma diante de uma janela alta, com paninhos de crochê sobre o encosto da cabeça.

Fotos de crianças estavam espalhadas por toda a parte, em diferentes porta-retratos, e em meio aos rostos morenos e belos, também havia alguns rostos brancos: ali estava ele na sua formatura do jardim de infância; seu irmão Max fazendo um gol num jogo de lacrosse; sua irmã, Gin, num vestido branco, como leiteira numa peça escolar; seu irmão mais velho, Edward, de terno e gravata no seu último ano na Universidade da Virgínia.

– Bom Deus, você está magro demais, menino – murmurou a senhorita Aurora enquanto mexia numa panela que ele sabia estar cheia de vagem com cubos de bacon. – Eles não têm comida lá em Nova York?

– Não como esta, senhora.

O som que ela emitiu no fundo da garganta foi como o de um velho Chevrolet com escapamento ruim.

– Pegue os pratos.

– Sim, senhora.

Descobriu que suas mãos estavam tremendo quando pegou dois pratos no armário e os ouviu batendo um contra o outro. Ao contrário da mulher que lhe dera a luz – que sem dúvida estaria “descansando” num torpor medicinal do tipo “Não sou viciada porque o médico me receitou essas pílulas” –, a senhorita Aurora sempre parecera não ter a idade que tinha e ser forte como uma heroína. O que fazer com a ideia de que o câncer tivesse voltado?

Inferno. Para início de conversa, ele não aceitava que ela tivesse passado por isso da primeira vez. Mas não se enganava. Aquele devia ser o motivo de ela ter desmaiado.

Depois de pegar os talheres e os guardanapos, colocando-os nas bandejas, e de ter servido copos de chá, foi até as poltronas e se sentou na da direita.

– Você não devia estar cozinhando – ele disse quando ela começou a servir os pratos.

– E você não devia ter ficado longe por tanto tempo. O que deu em você?

Ela definitivamente não está à beira da morte, ele pensou.

– O que o médico disse? – ele perguntou.

– Na minha opinião, nada que valesse a pena. – Ela trouxe todo tipo de comida celestial. – Agora fique quieto e coma.

– Sim, senhora.

Hummm, bom Jesus, pensou ele ao olhar para o prato. Quiabo frito. Miúdo de porco. Bolinhos de batata. Vagens naquele cozido de bacon. E frango frito.

Quando o estômago dele roncou alto, ela gargalhou.

Mas ele não. E, de repente, teve que limpar a garganta. Isso era seu lar. Essa comida, preparada especificamente por essa mulher, era seu lar. Ele comera exatamente o que estava neste prato durante toda a sua vida, especialmente antes de sua mãe se afastar de tudo, quando ela e seu pai sumiam cinco noites por semana para socializar. Doentes ou saudáveis, felizes ou tristes, no calor ou no frio, ele e seus irmãos sentavam-se naquela cozinha com a senhorita Aurora e se comportavam bem, para não se arriscarem a levar um tapinha no cocuruto.

Nunca houve nenhum encrenqueiro na cozinha da senhorita Aurora.

– Vá em frente – ela disse com suavidade. – Não deixe esfriar.

Ele atacou a comida e gemeu com a primeira garfada, que explodiu em sabores na sua boca.

– Hum, senhorita Aurora…

– Você precisa voltar pra casa, menino. – Ela balançou a cabeça ao se sentar com o próprio prato. – Aquela coisa lá do norte não é pra você. Não sei como aguenta o clima… muito menos as pessoas.

– Então, vai me contar o que aconteceu? – perguntou, indicando a bolinha de algodão e o esparadrapo na curva do braço dela.

– Não preciso daquele carro que comprou pra mim. Foi o que aconteceu.

Ele limpou a boca.

– Que carro?

Os olhos negros se estreitaram.

– Não tente brincar comigo, menino.

– Senhorita Aurora, a senhora estava dirigindo um pedaço de… hum, sucata. Não vou tolerar esse tipo de coisa.

Ele podia distinguir o sotaque sulista ficando mais forte em sua voz. Não demorou muito, demorou?

– O meu Malibu está muitíssimo bom…

Foi a vez de Lane encará-la.

– Era um carro barato, pra início de conversa, e tinha mais de cem mil quilômetros rodados.

– Não entendo por q…

– Senhorita Aurora, não vou deixar que dirija aquela lata velha. Lamento.

Ela o encarou com determinação suficiente para abrir um buraco em sua testa, mas como ele não recuou, ela abaixou o olhar. E assim era a natureza do relacionamento deles. Dois teimosos, nenhum deles querendo ceder um milímetro sequer.

– Não preciso de um Mercedes – ela murmurou.

– Com tração nas quatro rodas, senhora.

– Não gosto da cor. É profana.

– Besteira. É vermelha da UC e a senhora adora.

Mesmo que ela tenha resmungado uma vez mais, ele sabia. Ela adorava o carro novo. A irmã dela, a senhorita Patience, ligara para ele e lhe dissera que a senhorita Aurora vinha dirigindo o E350 4Matic para cima e para baixo pela cidade. Claro, a senhorita Aurora nunca lhe telefonara para agradecer, e ele já esperava que ela protestasse – ela sempre fora orgulhosa demais para aceitar qualquer coisa de graça.

Mas a senhorita Aurora também não queria aborrecê-lo; e ela sabia que ele estava certo.

– Mas, então, o que aconteceu hoje cedo… – Já não era mais uma pergunta. Não perguntaria mais nada.

– Só fiquei um pouco tonta.

– Disseram que desmaiou.

– Estou bem.

– Disseram que o câncer voltou.

– Quem são eles?

– Senhorita Aurora…

– Meu Senhor e Salvador já me curou antes e vai me curar de novo. – Ela levantou uma palma para o céu e fechou os olhos. Depois olhou para ele. – Vou ficar bem. Já menti pra você antes, menino?

– Não, senhora.

– Agora coma.

A ordem calou a boca dele pelos próximos vinte minutos.

Lane já estava terminando o segundo prato quando teve que perguntar: – A senhora o tem visto ultimamente?

Não havia motivo para especificar de quem estava falando. Edward. Todos se referiam a “ele” em vozes sussurradas.

O rosto da senhorita Aurora se fechou.

– Não.

Houve mais um longo período de silêncio.

– Vai procurá-lo enquanto estiver aqui? – ela perguntou.

– Não.

– Alguém tem que fazer isso.

– Não vai fazer nenhuma diferença. Além do mais, tenho que voltar pra Nova York. Só vim aqui pra ver como a senhora estava…

– Você vai até ele. Antes de voltar para o norte.

Lane fechou os olhos. Depois de um instante, disse:

– Sim, senhora.

– Bom menino.

Depois do terceiro prato, Lane lavou a louça, e teve que ignorar o fato de que a senhorita Aurora parecia não ter comido nada. A conversa se voltara para os sobrinhos e sobrinhas dela, para os irmãos e irmãs, onze ao todo, e o pai dela, Tom, que por fim falecera aos oitenta e seis anos.

Ela se chamava Aurora Toms porque era uma entre os vários filhos de Tom. Havia boatos que, além dos doze que tivera com a esposa, existiam inúmeros outros fora do casamento. Lane encontrava o homem na igreja de Aurora de tempos em tempos; ele tinha sido grandioso, tão sulista quanto o Mississipi, tão carismático quanto um orador e tão belo quanto o pecado.

Embora não quisesse ser arrogante, Lane sabia que sempre fora o predileto dela, e imaginava que Tom era o motivo pelo qual ela o mimava tanto: assim como aconteceu com seu pai, também diziam que Lane era mais bonito do que lhe faria bem, e ele também tivera sua época de mulherengo. Quando tinha seus vinte e poucos anos, Lane estivera pau a pau com o bom e velho senhor Toms.

Lizzie o curara disso tudo. Mais ou menos como uma barragem que detém um carro a toda velocidade.

– Suba e cumprimente a sua mãe antes de ir embora, também – disse a senhorita Aurora, depois que ele lavou, enxugou e guardou os pratos e os talheres.

Deixou a frigideira e as demais panelas no fogão. Sabia que era melhor não tocar nelas.

Girando, dobrou o pano de prato e se recostou contra a pia de aço inoxidável.

Da sua poltrona, ela levantou a mão.

– É melhor vocês todos pararem de…

– Senhorita Aurora…

– Não me diga que voou mais de mil quilômetros só pra olhar pra mim como se eu fosse uma inválida. Não faz nenhum sentido.

– A sua comida fez a viagem valer a pena.

– Isso é verdade. Agora vá ver a sua mãe.

Eu já vi, ele pensou, olhando para ela.

– Senhorita Aurora, vai ter ajuda para o Derby?

– O que acha que é aquele monte de bobalhões ali na minha cozinha?

– É muita coisa pra fazer. Não me diga que a senhora não fica ali dando ordens.

O conhecido olhar se cravou nele, mas foi só isso que ele recebeu e isso o assustou. Normalmente, ela se levantaria da poltrona e o empurraria porta afora. Em vez disso, permaneceu sentada.

– Vou ficar bem, menino.

– É melhor mesmo. Sem você, não tenho ninguém pra me manter na linha.

Ela murmurou alguma coisa bem baixinho e fixou o olhar acima do ombro dele, enquanto ele esperava calado.

Por fim, gesticulou para que ele se aproximasse, e ele obedeceu de pronto, atravessando o piso de linóleo e se ajoelhando diante da sua poltrona. Uma das mãos, uma das lindas, fortes e negras mãos dela, se esticou e alisou o cabelo de Lane.

– Precisa cortar isso.

– Sim, senhora.

Ela lhe tocou o rosto.

– Você é bonito demais para o seu próprio bem.

– Como acabei de dizer, a senhora tem que ficar por perto pra me manter na linha.

A senhorita Aurora assentiu.

– Pode contar com isso. – Houve uma longa pausa. – Obrigada pelo meu carro novo.

Ele pressionou um beijo na palma dela.

– De nada.

– E você precisa se lembrar de uma coisa. – Seus olhos, aqueles olhos negros que o fitaram quando ele era menino, adolescente, jovem… até se tornar um homem crescido, vasculharam seu rosto, como se ela estivesse tomando nota das mudanças que o passar dos anos causara nas feições que ela conhecia por mais de trinta anos. – Tenho você e tenho Deus. Sou mais rica do que poderia sonhar… Entendeu, menino? Não preciso de um Mercedes. Não preciso de uma casa luxuosa e de roupas elegantes. Não tem nenhum buraco em mim que precisa ser preenchido… Entendeu?

– Sim, senhora. – Fechou os olhos, pensando que ela era a mulher mais nobre que já conhecera.

Isto é, ela e Lizzie.

– Entendo o que quer dizer, senhora – ele disse, rouco.

Aproximadamente uma hora depois do episódio da limonada com Lane, Lizzie saiu da estufa com dois grandes arranjos. A senhora Bradford sempre insistira em ter flores frescas nos cômodos sociais e em todos os quartos ocupados, e esse padrão fora preservado mesmo depois que ela se recolhera à sua suíte havia três anos, ali permanecendo. Lizzie gostava de imaginar que se continuasse com esse costume, talvez a Pequena V.E., como a família a chamava, voltasse a aparecer e ser a dona da casa.

Easterly tinha bem uns cinquenta cômodos, mas muitos deles eram escritórios, aposentos e banheiros de funcionários, ou cozinha, adega, salas de imprensa, ou quartos desocupados que não necessitavam das flores. Os buquês do primeiro andar estavam em ordem; ela já os inspecionara e retirara uma rosa murcha na noite anterior. Aquelas flores frescas iriam para o vestíbulo do piso superior e para o quarto do senhor Baldwine. O vaso da senhora Bradford só deveria ser trocado no dia seguinte, bem como o de Chantal e…

Será que Lane ficaria no quarto da esposa?

Provavelmente, e isso lhe provocou ânsias.

Seguindo para a escada dos empregados, os dois vasos de prata pesavam-lhe nos braços e pulsos, enrijecendo-lhe os bíceps, mas ela seguiu em frente. A queimação não duraria muito tempo, e descansar em algum lugar só prolongaria a tarefa.

O corredor de cima era tão longo quanto uma pista de corrida de cavalos, bifurcando-se numa espécie de sala de estar, seguindo para um total de vinte e uma suítes que se abriam em cada um dos lados. Os aposentos do senhor Baldwine ficavam ao lado dos da esposa, ambos com vista para o jardim e o rio. Uma porta unia os dois closets, mas ela sabia que nunca era usada.

Pelo que sabia, depois do nascimento dos filhos, aquela parte do relacionamento deles não fora “retomada”, para usar um vocábulo mais sutil.

Assim que começara a trabalhar em Easterly, confundia-se com os nomes, e certa vez referira-se à senhora Bradford pelo seu nome de casada, senhora Baldwine. Inaceitável. Fora corrigida pelo encarregado dos funcionários: a dona da mansão Bradford seria chamada de “senhora” e de “Bradford”, pouco importando qual fosse o sobrenome do marido.

Confuso. Até ela perceber que marido e mulher tinham vidas separadas, assim como seus aposentos. Portanto, havia um senhor Baldwine com uma suíte em tons de azul-marinho e pesadas antiguidades em mogno, e uma senhora Bradford com uma suíte em tons pastéis, mobília Luís XIV e uma cama de dossel.

Na verdade, talvez os dois tivessem algo em comum: ele se escondia no escritório no centro de negócios; ela, em seus aposentos.

Loucura.

Lizzie seguiu para a escada curva e formal e trocou o buquê da mesa de centro da área social. Depois foi em frente e parou diante da suíte do senhor Baldwine. Bateu duas vezes na madeira e esperou, apesar de saber que não havia ninguém no interior. Todas as manhãs, ele ia para o centro de negócios ao lado da propriedade e só regressava às sete da noite para o jantar.

Colocou o arranjo floral da sala de estar no chão, girou a maçaneta, empurrou a porta e avançou até uma cômoda antiga que deveria pertencer a um museu. Não havia nada de muito errado com as flores ali, mas nada tinha permissão de perecer em Easterly. Ali, naquele casulo de riqueza, não se permitia que existisse entropia.

Enquanto trocava os vasos, ouviu vozes no jardim e foi até as janelas. Mais de uma dúzia de homens haviam chegado, carregando pesados rolos de lona branca e grandes postes de alumínio, que, com força humana e um tanto de hidráulica, formariam a tenda de 12 por 24 metros do Brunch do Derby.

Maravilha. Chantal provavelmente chamaria o senhor Harris nesse mesmo instante para reclamar que a zona de não sobrevoo fora violada. Se um membro da família ou um convidado estivesse usando a piscina, a casa da piscina, ou quaisquer um dos terraços, todos os trabalhos tinham que ser interrompidos no jardim e todos os trabalhadores tinham que evacuar a área até que a Sua Alteza tivesse concluído seu lazer.

A boa notícia? Greta já estava ali, controlando os homens. A má notícia? A alemã devia estar ordenando que eles montassem tudo bem ao lado de onde Chantal estava.

Deliberadamente.

Temendo um confronto, Lizzie se virou…

E parou quando uma centelha de cor chamou sua atenção.

– Mas o quê…?

Inclinando-se para baixo, ficou sem saber exatamente para o que estava olhando. Assim como todo o resto em Easterly, o quarto de William Baldwine era imaculado, todos os objetos e pertences estavam onde deveriam estar, todas as armas de um poderoso homem de negócios estavam guardadas em gavetas, organizadas em prateleiras, à espera dele em um closet imenso.

Portanto, o que era aquele pedaço de seda cor de pêssego entre a cabeceira e a parede?

Bem, ela podia imaginar.

E a lingerie não devia ser de Virginia Elizabeth Bradford Baldwine.

Lizzie não via a hora de sair do quarto. Foi até a porta, abriu-a e…

– Ah, mas eu estou tãããão feliz em ver vocêêêê!

O sotaque arrastado sulista pareceu um arranhado em uma lousa, mas o pior foi olhar para a direita e ver Chantal Baldwine lançando os braços ao redor do pescoço de Lane e se pendurando nele.

Fantástico. Os dois estavam entre ela e a escadaria dos funcionários.

– Não consigo acreditar que tenha me feito esta surpresa! – A mulher recuou um passo e fez uma pose, como se quisesse que ele lhe desse uma bela olhada. – Eu estava na piscina, mas subi porque as pessoas que vão armar a tenda chegaram. Resolvi sair para liberar a área.

Não é que você merece um prêmio por seu coração de ouro, querida?, Lizzie pensou. E você não estava a caminho do clube?

Lizzie se virou para seguir para a escadaria principal e fugir. Mesmo que fosse contra as regras, seria melhor que ter que passar por…

Como se soubesse disso, o senhor Harris surgiu com a senhora Mollie, a chefe da arrumação. O mordomo inglês passava o dedo pelo corrimão da balaustrada e o erguia para inspecionar, balançando a cabeça.

Maravilha.

Suas únicas saídas eram: brasas quentes ou uma fogueira acesa. Ou voltar para se esconder no quarto em que o senhor Baldwine traía a esposa.

Ah, as escolhas da vida…

Às vezes, ela simplesmente amava seu emprego.

 

CINCO

Destilaria de Bourbon Bradford, Condado Ogden

Edwin “Mack” MacAllan Junior caminhava ao longo da pilha de barris de bourbon de doze metros de altura, as botas de couro feitas à mão ressoando contra o antigo piso de concreto. O aroma das centenas de tábuas de madeira e dos milhões de litros de bourbon envelhecendo era tão agradável ao seu olfato quanto um perfume feminino.

Pena que estivesse irritado demais para apreciar direito.

Em seu punho, ele trazia um memorando corporativo todo amassado; as letras no papel branco eram irrecuperáveis. Teve que ler o maldito texto três vezes, e não só porque a leitura era um obstáculo insuperável para o seu cérebro disléxico.

Ele não era nenhum caipira. Nascera e fora criado numa família culta, frequentara a Universidade Auburn, e sabia tudo sobre fabricar bourbon e sobre os processos químicos envolvidos naquela arte intangível.

Na verdade, ele era o Mestre Destilador da marca de bourbon de maior prestígio no mercado, filho do Mestre Destilador mais respeitado na história da indústria de bebidas.

Mas, naquele instante, queria entrar na sua F-150 de meia tonelada e invadir a recepção do escritório de William Baldwine em Easterly. Em seguida, queria pegar seu rifle de cem anos de idade e fazer alguns buracos nas escrivaninhas dos idiotas corporativos.

Parando de súbito, recostou-se e fitou as prateleiras que se estendiam pelo armazém de teto de vigas expostas. Os códigos e as datas queimados diante dos barris tinham sido colocados em ordem ali primeiro pelo seu pai, e depois por ele mesmo, e havia uma progressão lógica. Os preciosos contêineres descansavam em paz por quatro anos, por dez anos, por vinte anos, e até mais. Inspecionava-os com regularidade, ainda que dispusesse de pessoas em número mais que suficiente para fazer exatamente isso. Mas, em sua opinião, aqueles eram os únicos filhos que teria, e não permitiria que crescessem aos cuidados do equivalente a uma babá.

Aos trinta e oito anos, era um solitário, tanto por escolha quanto por necessidade. Aquele trabalho – aquele trabalho de vinte e cinco horas por dia, oito dias por semana – era a sua esposa e a sua amante, a sua família e o seu legado.

Portanto, receber aquele memorando, que encontrara sobre sua mesa ao entrar, era como assistir a um motorista embriagado batendo de frente na minivan que continha toda a sua existência.

A receita do bourbon era algo verdadeiramente simples: uma mistura de grãos que, de acordo com as leis do Kentucky, tinha que conter um mínimo de cinquenta e um por cento de milho. Ali na Destilaria de Bourbon Bradford, adicionava-se a isso uma combinação de centeio, malte de cevada, e cerca de dez por cento de trigo, para dar um sabor mais suave; água, captada de um aquífero subterrâneo de pedra calcária; e levedura. Em seguida, depois que a mágica acontecia, o bourbon era colocado em barris de carvalho branco, queimados por dentro e deixados para se transformarem em armazéns bonitos e fortes como aquele.

Era só isso. Todo fabricante de bourbon tinha que trabalhar com esses cinco elementos: grãos, água, levedura, barril e tempo. Mas, assim como Deus conseguira criar uma variedade de pessoas a partir dos mesmos elementos centrais, também cada família ou empresa produzia diferentes nuances do mesmo produto.

Esticando o braço, apoiou a mão em um dos barris arredondados que enchera logo que se tornara mestre, quase dez anos atrás, embora trabalhasse para a empresa desde os catorze anos. Substituir o pai sempre fora o plano, mas o velho morrera cedo demais, e ali estava ele. Mack fora abandonado para nadar sozinho, e não tinha a menor intenção de morrer afogado.

Portanto, sim, ali estava ele, no auge do sucesso e ainda jovem o suficiente para criar uma dinastia própria, supostamente trabalhando para a aristocracia dos produtores de bourbon, a empresa que criara o Bourbon Perfeito.

Era o slogan para tudo o que a CBB fazia, a filosofia de marketing, de negócios e de fabricação.

Portanto, como, em nome de Deus, a administração esperava que ele aceitasse atrasos na entrega de grãos? Era como se aqueles idiotas com MBA não entendessem que, por mais que tivessem produtos de quatro anos em quantidade suficiente hoje, se não enchessem os silos, acabariam sem estoque desse tipo de bourbon em quarenta e oito meses; e isso se aplicava aos demais níveis, que esgotariam em dez, vinte anos…

Ele sabia exatamente para onde estavam indo. A redução na produção de milho, resultado do aquecimento global que desequilibrara o padrão climático no último verão, significava que o preço do alqueire estava na estratosfera. Mas não seria sempre assim. Obviamente, os contadores de moedas do escritório central, também conhecido como propriedade do senhor Baldwine, resolveram poupar uns trocados freando a produção nos meses seguintes, esperando recuperá-la quando o preço do milho se autorregulasse.

Desde que a seca que abalara a nação no ano anterior não se repetisse.

Havia muitas falhas na lógica desse “negócio”, mas a questão principal era que aqueles engravatados não entendiam que este bourbon não era um produto fabricado numa linha de montagem, com um interruptor de liga e desliga. O bourbon era um processo – era o auge e a expressão de inúmeras tentativas e erros –, refinado ao longo de duzentos e cinquenta anos: você tinha que cultivar o paladar do bourbon, encontrar os sabores e o equilíbrio, guiar os elementos até seu ápice… E, depois, enviar para os seus consumidores sob o rótulo distintivo. Inferno. Ele se orgulhava de resguardar a marca registrada no 15, o maior sucesso da empresa, ainda que fosse a linha mais barata, assim como fizera com os produtos mais dispendiosos e mais antigos, como o Black Mountain, o Bradford I e o mais que exclusivo Reserva de Família.

E se interrompesse a produção agora? Sabia muito bem que eles o procurariam em seis meses, ordenando que modificasse as datas dos barris.

Seis meses para os engravatados era apenas metade de um ano, vinte e seis semanas, duas estações.

Mas para o seu paladar… Ele conseguia distinguir um bourbon de nove anos e meio e um de dez anos e um dia. Talvez muitos dos clientes deles não percebessem a diferença, mas a questão não era essa, certo? E o fato de que vários de seus concorrentes adulteravam as datas de forma regular? Esse não era um padrão a ser seguido.

Se Edward estivesse ali, pensou, não teria que se preocupar com isso. Edward Baldwine era a raridade dentro da família Bradford – um verdadeiro destilador, o regresso a uma era de linhagem augusta, um homem que valorizava o produto. Mas o presumível herdeiro do trono já não estava mais envolvido com a companhia.

Portanto, não havia como recorrer a ele.

E o memorando sobre a sua mesa? Era o modo típico como as coisas vinham sendo resolvidas desde a tragédia com Edward. Os covardes do centro de negócios sabiam que ele surtaria, mas não tinham coragem de ir até lá para lhe contar pessoalmente. Nada disso. Simplesmente escreva um memorando e jogue por cima dos outros papéis como se não afetasse em cheio o cerne dos negócios.

Mack voltou a fitar as vigas de madeira de lei centenária. Aquele era o armazém mais antigo da empresa, utilizado para abrigar os barris mais especiais. Ficava localizado ao lado do armazém original, que hoje servia tanto de museu para turistas como de escritório. Este lugar era um maldito santuário.

A alma do seu pai perambulava pelos corredores.

Mack estava convencido de que sentia o velho junto aos seus calcanhares naquele mesmo instante.

Estava convencido também de que, em um dia tranquilo como este, quando suas únicas companhias ali no armazém eram a luz do sol que se infiltrava pelas janelas empoeiradas, o som das suas botas sobre o concreto e a neblina da parte dos anjos10 que evaporava… ele era um dos poucos defensores da tradição deixada pela companhia.

Os jovens que surgiam – mesmo aqueles que desejavam ocupar o seu posto – professavam amor pelos rituais e pelos fundamentos e clamavam estar comprometidos com o processo, porém eram apenas subordinados corporativos que vestiam calças cáqui em vez de ternos. Eram de uma geração de flocos de neve especiais, que esperavam receber troféus só por terem aparecido, e esperavam que tudo fosse fácil e que todos cuidassem deles e os protegessem, como faziam os seus pais.

Eles tinham tanta profundidade quanto seus perfis do Facebook. Ou seu egoísmo inesgotável e suas frivolidades sem alma.

Em comparação aos fundadores daquela empresa, que protegeram seu produto em meio à fome e à guerra, em meio à doença e à Grande Depressão… nos tempos da Proibição, pelo amor de Deus! Eles eram apenas meninos tentando fazer o trabalho de um homem.

Eles só não sabiam disso. E, com uma cultura corporativa como aquela, jamais saberiam.

– Mack?

Ele olhou por sobre o ombro. A sua secretária, Georgie O’Malley, que cuidara do escritório de seu pai antes que ele morresse, aproximou-se por trás dele sem fazer som algum. Aos sessenta e quatro anos, ela já estava na empresa havia quarenta e um, sem dar nenhum indício de que estava diminuindo o ritmo. Autoproclamada esposa de fazendeiro, porém sem marido nem fazenda, era um espírito aliado na luta contra a atual corrente que dizia que tudo era descartável.

– Tudo bem, Mack?

Mack ergueu o olhar para as janelas, vendo os vapores da parte dos anjos subindo aos céus.

A parte dos anjos era sagrada: cada um dos barris de carvalho era queimado por dentro antes de ser preenchido com duzentos litros de bourbon. Armazenados num local como aquele, num ambiente que, propositadamente, não era climatizado, a madeira dos barris se expandia e se contraía sazonalmente, e o bourbon dentro deles se coloria e adquiria sabor com os açúcares caramelizados provindos da madeira queimada.

Uma parte significativa evaporava e era absorvida pelos barris com o decorrer do tempo.

Essa era a parte dos anjos.

Seu pai a considerava o sacrifício pelo passado, a porção que ia para os criadores, para que eles bebessem no Paraíso. Também era uma antecipação à própria morte… e a esperança de que o próximo guardião da tradição fará o mesmo por você quando você já tiver morrido.

– Não vai sobrar nada para nós, Georgie – ele se ouviu dizer.

– Do que você está falando?

Ele apenas meneou a cabeça.

– Quero que mande os rapazes fecharem os silos.

– O quê?

– Você me ouviu. – Mack levantou o punho para que ela visse o papel amassado. – A corporação parou as encomendas de milho dos próximos três meses. No mínimo. Vão avisar quando poderemos fazer mais mistura. Qualquer centeio, cevada e trigo que tenhamos deve ser redesignado.

– Redesignado? O que isso quer dizer?

– Eles não podem vender para um concorrente. E se isso parar nos ouvidos de pessoas como os Sutton? Ou da imprensa? Vai fazer com que os dez centavos que eles pouparam se tornem o maior erro financeiro da história da empresa.

– Nunca paramos a produção.

– Não. Não desde a Proibição… E, mesmo assim, foi só pra fingir.

Houve uma longa pausa.

– Mack… o que eles estão fazendo?

– Eles vão arruinar esta empresa, é o que estão fazendo.

Aproximou-se da mulher.

– Vão acabar com a gente com a desculpa de maximizar o lucro. Ou, inferno, talvez estejam preparando um OPI, finalmente. Todos os outros produtores de bourbon têm ações na bolsa, exceto os Sutton. Talvez estejam tentando inflar os lucros artificialmente antes de uma venda particular. Não sei, e não quero saber. Mas tenho a mais absoluta certeza de que Elijah Bradford está se revirando dentro do caixão.

Conforme ele seguia para a saída, ela o chamou.

– Aonde você vai?

– Encher a cara. Com muita, muita cerveja.


Durante o processo de envelhecimento, pelo menos 2% do uísque armazenado nos barris evapora através do carvalho. As destilarias se referem a essa porção como a “parte dos anjos”. (N.T.)

 

SEIS

Parado diante da porta do seu quarto ao fitar sua “esposa”, Lane pensou que, assim como Easterly, ela era a mesma. Chantal Blair Stowe Baldwine era, de fato, exatamente a mesma: mesmo corte de cabelo, bronzeado artificial, maquiagem, roupas caras cor-de-rosa. Tudo idêntico ao que ele deixara para trás. Inclusive a voz dela… que parecia a da protagonista Distinta Dama Sulista do Entretenimento.

Ela ainda tagarelava muito, palavras saíam de sua boca numa torrente sem considerar racionamento em benefício do ouvinte. Mas, pensando bem, a conversa era para ela uma forma de arte; suas mãos se movimentavam como as asas de uma pomba, arqueando-se para cima e para baixo, exibindo aquele imenso diamante do qual ela tanto fez questão, que reluzia como uma luz estroboscópica.

– … fim de semana do Derby! Claro, Samuel Theodore Lodge vem hoje à noite. Gin está tão animada em vê-lo…

Inacreditável. Fazia literalmente dois anos que não se viam, tampouco se falavam, e ela estava discorrendo sobre a lista de convidados para o jantar.

O que diabos um dia ele viu nela…

– Ah, Lisa! Com licença, você pode, por favor, pedir que o senhor Harris traga o carro do senhor Baldwine? Vamos almoçar no clube.

Lisa?, ele pensou. Mas, como de hábito, os empregados estavam sempre mudando por ali desde que…

Lane relanceou por cima do ombro. Lizzie estava parada diante da porta do quarto de seu pai, segurando dois vasos com flores perfeitas, que sem dúvida tinham acabado de ser substituídos.

– O senhor Harris está logo ali – Lizzie informou com frieza.

– Não gosto de gritar. Não é apropriado. – Chantal se inclinou para ela, como se fossem duas amigas partilhando um segredo. – Muito obrigada. Você é tão obsequi…

– Você enlouqueceu? – Lane perguntou, irritado.

Chantal se encolheu, a cabeça virando para trás, os olhos passando de ingênuos a matadores num piscar dos cílios postiços e lindos.

– O que disse? – Chantal sussurrou para ele.

Lane tentou capturar o olhar de Lizzie enquanto falava.

– Vá você mesma falar com ele.

Lizzie se recusava a olhar para ele. Com uma impassível expressão profissional, avançou, com passadas longas e elegantes, seguindo pelo longo corredor até a escada dos empregados. Nesse meio-tempo, Chantal voltou a falar.

– … falar comigo nesse tom diante da criadagem – ela sibilou.

– O nome dela é Lizzie, não Lisa. – Agora era ele quem se inclinava. – E você sabe disso, não sabe?

– O nome dela é irrelevante.

– Ela está aqui há mais tempo que você. – Ele sorriu com frieza. – E estou disposto a apostar como vai continuar a aqui depois que você se for.

– E o que isso deveria significar?

– Você não tem que ficar debaixo deste teto e sabe disso muito bem.

– Sou a sua esposa.

Lane a encarou de cima, e ficou se perguntando por que diabos ela ainda estava em sua vida. A resposta fácil era que ele vinha fingindo que Charlemont não existia. A mais complexa estava ligada ao que ela fizera.

Sou a sua esposa.

– Não por muito tempo – ele retrucou num tom baixo.

As sobrancelhas bem desenhadas dela se ergueram e, no mesmo instante, a expressão de gato irritado sumiu; ela ficou calma e tranquila, como a imagem de uma pintura.

– Não vamos discutir, querido. A nossa reserva no clube é para daqui a vinte minutos…

– Deixe-me ser bem claro. Não vou a parte alguma com você. A não ser para o escritório de um advogado.

Pela visão periférica, ele notou que o senhor Newark ou Harris – qualquer que fosse o nome do mordomo – estava dando meia-volta discretamente, levando a senhora Mollie, a governanta, na direção oposta.

– Fala sério, Tulane.

Deus, como ele odiava o seu nome nos lábios de Chantal: Tooooouuuuuulaaaayne. Pelo amor de Deus, eram três sílabas, e não trezentas.

– Estou falando sério – ele disse. – Está na hora de terminarmos isto.

Chantal inspirou fundo.

– Você está chateado por causa da pobre senhorita Aurora e está dizendo coisas que não sente. Entendo isso. Ela é uma excelente cozinheira… E é muito, muito difícil encontrá-las hoje em dia.

Os molares dele travaram.

– Você acha que ela é apenas uma cozinheira.

– Está me dizendo que ela é contadora?

Deus, por que ele…

– Aquela mulher significa mais para mim do que a que me pariu.

– Não seja ridículo. Além do mais, ela é negra…

Lane agarrou o braço de Chantal e a puxou para perto de si.

– Nunca mais fale dela dessa maneira. Nunca bati numa mulher antes, mas garanto que acabo com a sua vida se a desrespeitar.

– Lane, você está me machucando!

Naquele instante, ele percebeu que havia uma criada parada diante da porta de um dos quartos de hóspedes, com os braços tomados por toalhas dobradas. Quando ela abaixou a cabeça e seguiu em frente, ele empurrou Chantal. Ajeitou as calças. Encarou o tapete no chão.

– Acabou, Chantal. Se é que você ainda não percebeu.

Ela uniu as mãos como se estivesse rezando, e ele não acreditou nem por um segundo. O sofrimento falso na voz dela tampouco o comoveu quando ela sussurrou: – Acredito que precisamos cuidar do nosso relacionamento.

– Concordo. Este nosso casamento precisa sair desse estado miserável. É assim que cuidaremos dele.

– Você não pode estar falando sério.

– Ao inferno que não estou. Contrate um bom advogado ou não. De todo modo, você vai sair daqui.

Lágrimas. Grandes e grossas, que fizeram os olhos azuis dela brilharem como uma piscina.

– Você sabe ser muito cruel.

Não como ela sabia, ele pensou, nem de perto. E, pelo amor de Deus, ele deveria ter dado seguimento ao acordo pré-nupcial, mas que pena, que tristeza, tanto fazia àquela altura. A boa notícia era que sempre haveria mais dinheiro; mesmo que ela lhe arrancasse milhões, ele conseguiria recuperar em um ou dois anos.

– Vou falar com a minha mãe – ele disse. – E depois ligar para Samuel T. Talvez ele consiga lhe servir a papelada junto ao seu jantar hoje à noite.

E, simples assim, aqueles olhos tornaram-se implacáveis mais uma vez.

– Arruinarei você e sua família se for em frente com isso.

O que ela não sabia era que já arruinara a sua vida. Ela lhe custara Lizzie… e muito mais. Mas, maldição, aquilo tudo teria um fim.

– Cuidado, Chantal. – Ele não desviou o olhar. – Faço qualquer coisa, dentro ou fora da lei, para proteger o que é meu.

– Isso é uma ameaça?

– Apenas um lembrete de que sou um Bradford, minha cara. E nós cuidamos do que é nosso.

Afastando-se da mulher, Lane bateu à porta do quarto da mãe. Mesmo sem obter resposta, adentrou a perfumada suíte, fechando a porta atrás de si.

Cerrou os olhos, e precisou de um segundo para aplacar a fúria antes de enfrentar aquele reencontro dúbio. Precisava apenas de um segundo para se recompor. Apenas…

Quando ergueu as pálpebras, deparou-se com mais um cenário que não fora alterado.

O quarto branco e creme da mãe estava como sempre, as janelas imensas com vista para os jardins adornadas com cortinas elegantes de seda, quadros de Maxfield Parrish reluzentes como joias usadas pelas paredes, antiguidades francesas delicadas, preciosas demais para que fossem utilizadas como assento ou deixadas nos cantos. Mas nada disso era o ponto focal, por mais impressionante que fossem.

A cama de dossel do lado oposto era a verdadeira obra de arte. Tão resplandecente e maravilhosa quando o Baldaquino da Basílica de São Pedro, de Bernini. A compacta plataforma do tamanho de um barco tinha colunas entalhadas que se erguiam ao céu e uma grinalda de seda rosa-clara. E lá estava ela, Virginia Elizabeth Bradford Baldwine, deitada tão imóvel e preservada quanto uma santa, o corpo alto e magro escondido numa profusão de mantas de cetim e travesseiros, o cabelo loiro claro perfeitamente penteado, e o rosto maquiado, apesar de ela não estar indo a parte alguma e sequer estar consciente.

Ao lado dela, sobre uma cômoda bombê de tampo de mármore, havia uma dúzia de frascos de remédios com rótulos brancos dispostos em filas bem ordenadas, como um pelotão de soldados. Ele não fazia a mínima ideia do que havia dentro deles e, muito provavelmente, nem ela sabia.

Ela era a Sunny von Büllow11 sulista, a não ser pelo fato de que seu marido jamais tentara matá-la. Pelo menos não fisicamente.

O maldito provocara outros tipos de dano, porém.

– Mamãe – ele disse ao se aproximar. Quando chegou perto, segurou a mão fria e seca, de pele fina como papel e veias saltadas. – Mãe?

– Ela está repousando – informou uma voz.

Uma mulher com cerca de cinquenta anos, cabelos ruivos e um uniforme de enfermeira branco e cinza se aproximou, vindo do closet. Ela combinava perfeitamente com a decoração, e ele não desconsideraria a possibilidade de a mãe tê-la contratado exatamente por isso.

– Sou Patty Sweringin – ela se apresentou, estendendo a mão. – Você deve ser o jovem senhor Baldwine.

– Lane. – Ele apertou a mão dela. – Como mamãe tem passado?

– Repousando. – O sorriso era tão rígido e profissional quanto o uniforme dela. – Ela teve uma manhã cheia. O cabeleireiro veio tingir o cabelo.

Ah, sim, a confidencialidade. O que significava que ela não tinha permissão de lhe contar a condição de saúde da sua mãe. Mas não era culpa da enfermeira. E se sua mãe ficara exausta apenas porque arrumaram seu cabelo? Como é que ele achava que ela estava?

– Quando ela acordar, diga que… – Relanceou para a mãe.

– O que devo dizer, senhor Baldwine?

Ele pensou em Chantal.

– Vou ficar aqui alguns dias – replicou com seriedade. – Eu mesmo lhe direi isso.

– Pois não, senhor.

De volta ao corredor, ele fechou a porta e se recostou nela. Fitando um e outro retrato dos Bradford, descobriu que o passado voltava como uma picada de abelha.

Rápido e doloroso.

– O que está fazendo aqui?

Lizzie perguntara para ele no jardim, na escuridão, numa noite úmida e quente de verão. Acima, nuvens de tempestade tinham obscurecido a luz do luar, deixando as flores em broto e as árvores nas sombras.

Ele se lembrava de tudo; como ela ficara diante dele contra a parede de tijolos, com as mãos apoiadas nos quadris, o olhar fixo enfrentando o dele com uma firmeza a que ele não estava acostumado, seu uniforme de Easterly tão sexy quanto qualquer peça de lingerie que ele já tivesse visto.

Lizzie King tinha capturado a sua atenção desde a primeira vez que a vira na propriedade da família. E a cada regresso durante os recessos semestrais na faculdade, ele se via procurando por ela, buscando por ela, tentando se colocar em seu caminho.

Deus, ele adorava a perseguição.

E a captura também não era nada ruim.

Claro, ele não teve muitas experiências depois disso… e nem queria.

– E então? – ela exigiu saber. Como se, caso ele não entrasse logo no assunto, ela fosse começar a bater o pé no chão, e o movimento seguinte seria derrubá-lo por desperdiçar o seu tempo.

– Vim atrás de você.

Espere, não era isso. Ele quis dizer que viera vê-la. Para conversar com ela. Para olhá-la de perto.

Mas essas quatro palavras também eram verdadeiras. Ele queria saber qual era o sabor dela, como ela ficaria debaixo dele, o que…

Ela cruzou os braços diante do peito.

– Olha só, vou ser bem franca com você.

Lane deu um leve sorriso.

– Gosto de franqueza.

– Não acho que você vai continuar pensando assim depois que eu tiver acabado com você.

Opa, agora ele estava ficando excitado. Era curioso; isso não o teria aborrecido se ele estivesse com uma das mulheres com quem costumava se divertir. Mas ficar ali diante daquela mulher em particular com uma necessidade premente de ajustar as calças lhe pareceu… de mau gosto.

– Vou poupá-lo de perder seu tempo. – Ela manteve a voz baixa, como se não quisesse que ninguém os ouvisse, mas isso não diminuía o peso da mensagem. – Não estou, nem nunca estarei, interessada em alguém como você. Você não passa de um garoto levado que se diverte provocando o caos com o sexo oposto. Esse tipo de coisa era entediante quando eu tinha quinze anos, e levando em consideração que estou chegando aos trinta este ano, me sinto ainda menos atraída pela situação. Portanto, faça um favor: vá para o seu clube de campo, encontre uma dessas loiras junto à piscina e a transforme em mais uma esteira para você se exercitar por vinte minutos. Você não vai conseguir isso de mim.

Ele piscou como um idiota.

E pensou que o fato de estar tão chocado por alguém chamar sua atenção de tal maneira provava que ela estava certa.

– Agora, se me der licença, vou para casa. Estou trabalhando desde as sete horas da manhã.

Esticando a mão, ele a segurou pelo braço quando ela se virou.

– Espere.

– Como é? – Ela abaixou o olhar para o local em que mantinham contato e depois o fitou nos olhos. – A menos que seja algo relacionado às flores do jardim, você não tem nada a me dizer.

– Vai me dar uma chance de me defender? Ou vai só dar uma de juíza e me julgar?

– Você não está falando sério.

– Você sempre foi assim tão preconceituosa?

Ela se afastou da pegada dele.

– Antes isso do que ser ingênua. Ainda mais com um homem como você.

– Não acredite em tudo o que vê nos jornais…

– Ora, por favor. Não preciso ler nos jornais, eu vejo em primeira mão. Duas delas saíram ontem de manhã pelos fundos da casa. Na noite em que chegou, trouxe uma ruiva de um bar. E disseram que você foi fazer um check-up na quarta-feira, mas voltou com um chupão no pescoço, provavelmente adquirido quando a médica pediu para você virar a cabeça e tossir? – Ela o interrompeu quando ele fez menção de responder, ao levantar a palma na frente do rosto dele. – E antes que pense que estou mantendo esse lindo registro de conquistas porque sinto alguma atração por você, saiba que é porque as empregadas ficam prestando atenção em tudo isso e não param de comentar.

– Vai me dar a chance de falar? – ele rebateu. – Ou vai continuar este monólogo? Jesus, e você acha que eu é que sou o metido.

– O quê?

– Você acha que eu sou mimado? Bem, você está me deixando para trás nesse quesito, minha querida.

– Como é?

– Você resolveu que sabe tudo a meu respeito só porque um punhado de pessoas, que também não me conhecem, ficam falando de coisas sobre as quais não sabem nada. Isso é bastante arrogante.

– Não é sinônimo de mimada.

– Quer mesmo discutir lexicografia comigo?

Certo, o fato de estarem discutindo não deveria ser algo excitante, mas para o inferno se não era. Para cada rebatida, ele se via olhando menos para o corpo e mais para os olhos dela, o que a deixava ainda mais sexy.

– Olha só, a gente pode parar por aqui? – ela disse. – Tenho que voltar quase de madrugada para cá e esta conversa não é mais importante do que o meu sono.

Dessa vez, quando ela se virou, ele a deteve com a voz.

– Vi você perto da piscina ontem.

Ela o encarou por cima do ombro.

– Sim, eu estava arrancando ervas daninhas. Algum problema com isso?

– Você estava me medindo. Eu percebi.

Touché, ele pensou quando a viu piscar.

– Eu estava na piscina – ele sussurrou, dando um passo para se aproximar. – E você gostou do que viu, não gostou? Mesmo que odeie quem acha que eu sou, gostou do que viu.

– Você está enganado.

– Franqueza. Foi você quem mencionou isso antes. – Ele se inclinou, virando a cabeça de lado como se fosse beijá-la. – Então, tem coragem de ser franca?

As mãos dela remexeram no colarinho da camisa polo.

– Não sei do que está falando.

– Mentirosa. – Ele sorriu. – Por que acha que fiquei lá fora tanto tempo? Foi por sua causa. Gostei que estivesse admirando o meu corpo.

– Você está louco.

Deus, a negativa falsa dela foi ainda melhor do que o último orgasmo que teve com um boquete.

– Estou? – Concentrou-se nos lábios dela e, em sua mente, estava beijando-os, lambendo-os, puxando-a para junto de si. – Acho que não. E estou mais para mulherengo do que para covarde.

E foi assim que ele a deixou.

Virou-se no caminho de tijolos, e seguiu para a casa, deixando-a para trás.

Mas ele sabia, a cada passo, que ela não conseguiria deixar as coisas naquele pé.

Da próxima vez, ela o procuraria…

E, claro, foi o que aconteceu.


A história verídica de Sunny von Büllow, socialite americana que ficou 28 anos em estado vegetativo, inspirou o filme O reverso da fortuna (1990), dirigido por Barbet Schroeder. (N.E.)

 

SETE

– Desculpe, o que disse?

Lizzie falava, fitando as flores no vaso que segurava, sem conseguir se lembrar o que deveria fazer com elas… Ah, sim, colocá-las num balde até o fim do expediente para depois enrolá-las num papel toalha umedecido e depois num saco plástico, e levá-las para casa.

– Pode repetir? – pediu, olhando para o outro lado da estufa onde Greta estava.

– Eu estava falando em inglês dessa vez, sabe?

– Só estou meio distraída.

– O pessoal da tenda está exigindo pagamento antecipado. Ou vão desmancharr tudo o que arrmarram até agorra.

– O quê? – Lizzie abaixou o buquê ao lado dos vasos de prata vazios. – É uma nova política deles?

– Acho que sim.

– Vou falar com Rosalinda, então. Sabe qual é o montante?

– Doze mil, quatrrocentos e cinquenta e nove e setenta e dois centavos.

– Um instante, preciso anotar isso. – Lizzie apanhou uma caneta. – Pode repetir?

Anotou o valor na palma da mão, e olhou para o jardim. O pessoal da tenda tinha acabado de esticar a lona e estava começando a distribuir os postes enquanto alguns costuravam seções com cordas grossas.

Em mais duas horas eles terminariam. Três no máximo.

– Ainda estão trabalhando – murmurou.

– Não porr muito tempo. – Greta voltou a limpar as flores cor-de-rosa. – O escrritório deles ligou, dizendo que estão prreparrados parra voltarr parra o caminhão.

– Não há razão para surtar por causa disso – murmurou Lizzie, saindo.

O escritório de Rosalinda Freeland ficava na ala da cozinha, e ela tomou a rota externa mais longa porque estava cansada de esbarrar em Lane.

Estava no terraço, na metade do caminho, passando pelas portas francesas que davam para a sala de jantar quando olhou na direção do centro de negócios.

As instalações foram montadas onde costumavam ficar os estábulos e, assim como a estufa, tinham vista para o jardim e o rio. A arquitetura da estrutura combinava perfeitamente com a de Easterly, e a área total devia ser a mesma da mansão. Com uma dúzia de escritórios, uma sala de reuniões do tamanho de uma sala de aula de universidade, e cozinha e sala de jantar próprias, William Baldwine comandava a empresa produtora de bourbon da esposa a partir de um complexo de primeira linha.

Quase não se via gente à toa por aquelas partes, mas, pelo visto, alguma coisa estava acontecendo porque havia um grupo de pessoas de terno parado no terraço do lado de fora da principal sala de reuniões, fumando e conversando num enclave fechado.

Estranho, ela pensou. O senhor Baldwine era fumante, por isso era improvável que aquelas pessoas tivessem sido banidas para o terraço apenas para fumarem em paz.

De fato, ela reconheceu a única mulher não fumante naquele bolo. Era Sutton Smythe, herdeira da fortuna da Destilaria Sutton Corporation. Lizzie nunca a vira pessoalmente, mas muito se publicara sobre aquela mulher – era muito provável que ela se tornaria, na década seguinte, a cabeça de uma das maiores destilarias do mundo.

A bem da verdade, já parecia que ela era a chefe, com aqueles cabelos escuros penteados e o terno preto sério e caríssimo. Ela era mesmo uma mulher notável, com feições atrevidas e um corpo curvilíneo que poderia colocá-la no território das mulheres de negócio mais sexy do país, caso quisesse jogar tal jogo, o que, evidentemente, não era o caso.

Contudo, o que estaria fazendo ali?

Falando em dormir com o inimigo…

Lizzie meneou a cabeça e atravessou a porta dos fundos da cozinha. O que quer que estivesse acontecendo ali, não era problema seu. Ela estava muito, mas muito abaixo naquele totem, apenas tentando erguer uma tenda para os seus arranjos florais.

Uau.

Quantos chefs juntos!, ela pensou ao desviar dos homens e mulheres de chapéus altos e dólmãs brancos que acabariam com escoliose por ficarem tanto tempo curvados enrolando mil folhas e coisinhas recheadas com cogumelos.

Atrás de todos aqueles Gordon Ramsays, havia uma pesada porta vai e vem que se abria para um corredor simples repleto de armarinhos, a lavanderia e a sala de descanso das arrumadeiras, assim como os aposentos do mordomo, da organizadora e a escada dos empregados.

Lizzie seguiu até a porta da direita, que tinha uma plaquinha onde se lia PARTICULAR e bateu uma vez. Duas. Três vezes.

Considerando que Rosalinda era eficiente e pontual como um relógio, ela não devia estar ali. Talvez tivesse ido ao banco.

– … verificaremos novamente dentro de uma hora – dizia o senhor Harris ao entrar no corredor do lado oposto, acompanhado pela governanta. – Obrigado, senhora Mollie.

– O prazer é meu, senhor Harris – a mulher mais velha murmurou.

Lizzie fitou o mordomo enquanto a governanta se afastava.

– Temos um problema.

Ele parou diante dela.

– Sim?

– Precisamos entregar mais de doze mil para a empresa que aluga a tenda e a senhora Freeland não está aqui. Você pode emitir cheques?

– Eles precisam de doze mil dólares? – ele perguntou em seu sotaque cortante. – Mas por que motivo?

– Para o aluguel da tenda. Imagino que seja uma nova política da empresa. Nunca exigiram isso antes.

– Mas estamos falando de Easterly. Temos uma conta com eles desde a virada do século e eles farão uma exceção. Permita-me.

Girando sobre os sapatos bem lustrados, ele seguiu para os seus aposentos, sem dúvida para telefonar para a empresa.

Se ele conseguisse dar um jeito naquilo e Lizzie tivesse a sua tenda e as mesas, até que valeria a pena aguentar a sua atitude arrogante.

Além disso, se o pior acontecesse, Greta poderia assinar um cheque.

Duas coisas eram certas: Lizzie não pediria a Lane, e eles precisavam daquela tenda. Em menos de 48 horas, o mundo viria até a propriedade, e nada irritava mais os Bradford do que qualquer coisa fora do lugar.

Enquanto aguardava o mordomo retornar, todo triunfante em seu terno de pinguim, apoiou-se na parede de gesso lisa e fresca e se descobriu pensando na decisão mais idiota que tomara na vida…

Ela deveria ter deixado toda essa coisa para lá.

Depois que o temido Lane Baldwine a procurara à noite, no jardim, ela deveria ter deixado a discussão deles de lado. Por que diabos se importava se ele estava errado a seu respeito? Como aquele idiota ridículo, insano e egocêntrico podia ser assim? Ela não lhe devia nenhuma explicação para que o mundo voltasse ao seu eixo; além disso, isso não aconteceria sem o auxílio de uma marreta.

Não que ela não fosse apreciar uma tentativa nesses termos.

Mas o problema era que, entre os seus defeitos, estava a necessidade paralisante de não ser mal interpretada pelo clone de Channing Tatum.

Portanto, ela tinha que esclarecer o assunto. E, de fato, falou com ele durante todo o caminho até a sua casa naquela noite. Assim como no trajeto de volta a Easterly na manhã seguinte. E durante toda a semana que se seguiu.

No fim, acabou se convencendo de que ele a estava evitando: pela primeira vez desde que voltara para casa, fazia sete dias consecutivos que não o via. O lado bom, se é que era possível interpretar dessa forma, é que ninguém viu mulheres entrando e saindo da casa em horas estranhas em combinações pornográficas. O lado ruim era que agora ela estava com todos os discursos preparados, se arriscando a revelar exatamente quanto tempo desperdiçara gritando com ele em sua cabeça.

E Lane, sem dúvida, permanecia em Easterly. O seu Porsche – como se ele fosse dirigir qualquer outra coisa – ainda estava na garagem, e toda vez que era forçada a levar flores para o quarto dele, ela sentia a fragrância da colônia no ar e via a carteira ao lado das abotoaduras de ouro sobre a cômoda.

Ele estava jogando com ela. E por mais que ela detestasse admitir, estava funcionando. Sentia-se cada vez mais frustrada e mais determinada a encontrá-lo.

O homem era um mestre com as mulheres, isso mesmo.

O maldito.

E com mais um buquê de flores frescas em mãos, ela seguiu pela escada dos fundos até o quarto dele. Não esperava encontrá-lo ali, mas, de algum modo, a ideia de entrar no espaço dele e lançar alguns ataques verbais bem escolhidos oferecia um pouco de alívio. Quando bateu à porta, foi uma batida exigente, e depois de um instante, ela empurrou…

Lane estava ali.

Sentado na beira da cama. A cabeça entre as mãos, o corpo encurvado.

Ele não olhou para a porta.

Não parecia ter notado que havia alguém ali.

Lizzie pigarreou uma vez. Duas.

– Com licença. Preciso trocar as flores.

– Ah, obrigado. Muita gentileza sua.

Evidentemente, ele não parecia saber o que estava dizendo a ela. Os bons modos pareceram apenas um reflexo, o equivalente verbal de quando levamos uma martelada de borracha no joelho.

Isso não é da sua conta, ela resmungou para si mesma, conforme avançava na direção da cômoda.

A troca levou apenas um segundo, e logo ela tinha em suas mãos o arranjo imperceptivelmente murcho, voltando para a porta entreaberta. Aconselhou a si mesma para não olhar para ele enquanto saía. Até onde podia saber, seu cão de caça predileto podia estar com micose… ou talvez a namorada na Virgínia descobrira os trabalhos extracurriculares que ele vinha fazendo em Charlemont.

O maior erro aconteceu quando ela chegou à soleira.

Mais tarde, quando a situação explodiu em seu rosto, depois que superara suas paredes de autopreservação e se queimara, ela se convenceria de que, se simplesmente tivesse ido em frente, teria ficado bem. Suas vidas não teriam se chocado, deixando-a coberta de estilhaços.

Mas Lizzie olhou para ele.

E teve que abrir a boca uma vez mais:

– O que aconteceu?

Os olhos de Lane se ergueram.

– O que disse?

– Qual é o seu problema?

Ele apoiou as mãos nos joelhos.

– Sinto muito.

Ela esperava ouvir outra coisa.

– Pelo quê?

Ele fechou os olhos e abaixou a cabeça de novo.

E mesmo sem emitir som algum, ela soube que ele estava chorando.

E isso foi algo que ela não esperava de alguém como ele.

Quis preservar a privacidade dele, e fechou a porta.

– O que aconteceu? Estão todos bem?

Lane meneou a cabeça, inspirou fundo e se recompôs.

– Não. Nem todos.

– É a sua irmã? Ouvi dizer que ela está passando por…

– Edward. Eles o levaram.

Edward…? Deus, ela via o homem na propriedade de tempos em tempos, e ele parecia a última pessoa que alguém “levaria”. Ao contrário do pai, cujo escritório ficava em Easterly, Edward trabalhava no quartel general da CBB no centro da cidade e, pelo pouco que sabia, ele era o oposto de Lane, um homem de negócios muito sério e extremamente agressivo.

– Desculpe, mas acho que não estou conseguindo entender muito bem…

– Ele foi sequestrado na América do Sul, o resgate está em negociação. – Ele esfregou o rosto. – Não consigo nem imaginar o que estão fazendo com ele… Já se passaram cinco dias desde o primeiro contato. Jesus Cristo, como isso foi acontecer? Era para ele estar protegido lá. Como permitiram que isso acontecesse?

Então, ele estremeceu e a encarou.

– Você não pode dizer nada a ninguém. Nem Gin sabe disso. Estamos abafando o caso para que a imprensa não descubra.

– Não vou contar. Quero dizer, não direi nada a ninguém. As autoridades estão envolvidas?

– O meu pai está trabalhando com eles. Isto é um pesadelo… Eu falei para ele não ir para lá.

– Sinto muito. – Que declaração mais infeliz. – Posso fazer alguma coisa?

O que também era outra combinação infeliz de palavras.

– Devia ter sido eu – Lane murmurou. – Ou Max. Por que não poderia ter sido um de nós? Não servimos para nada. Devia ter sido um de nós.

A próxima coisa que ela se lembra foi de ter apoiado o vaso em algum lugar e ter se aproximado da cama.

– Posso pegar algo para você?

Sentou-se ao lado dele e levantou a mão para pousá-la no seu ombro, mas pensou melhor e…

Um celular tocou na mesinha de cabeceira, e quando ele não se mexeu para atender, ela perguntou: – Não quer atender?

Quando ele não respondeu, ela se inclinou para o lado, apanhou o telefone e mostrou a tela para ele. Chantal Blair Stowe.

– Acho que é a sua namorada.

Ele deu uma olhada de esguelha.

– Não, não quero falar com ela. E ela não é minha namorada.

Ela sabe disso?, Lizzie se perguntou ao recolocar o aparelho sobre a mesa.

Lane balançou a cabeça.

– Edward é o único de nós que vale alguma coisa.

– Não é verdade.

Ele deu uma gargalhada.

– Até parece que não. Não era o que estava me dizendo na semana passada?

De súbito, Lane se concentrou nela, e houve um silêncio estranho, como se só então ele tivesse percebido quem estava no quarto com ele.

O coração de Lizzie começou a bater forte. Havia algo naqueles olhos, algo que ela não vira antes. E que Deus a ajudasse, ela sabia o que era.

Sexo com um playboy não era de seu interesse. Desejo ardente por um homem de verdade? Isso… era algo muito mais difícil de fugir.

– É melhor você ir embora agora – ele disse com a voz contraída.

Sim, ela disse a si mesma, é melhor.

Ainda assim, por algum motivo louco, ela sussurrou:

– Por quê?

– Porque se eu já a desejava quando tudo não passava de um jogo – o olhar dele se concentrou na sua boca –, no meu estado atual, estou desesperado por você.

Lizzie se retraiu. Dessa vez, quando ele riu, foi um som mais grave, mais profundo.

– Você não sabe que o estresse é como o álcool? Ele o torna descuidado, estúpido e faminto. Eu deveria saber, a minha família lida tão bem com isso…

– Está tudo acertado, senhorita King.

Lizzie deu um pulo assustado, arquejando.

– Quê?

O senhor Harris franziu a testa.

– O aluguel da tenda. Já cuidei de tudo.

– Ah, sim, que ótimo. Obrigada.

Ela tropeçou, afastando-se do mordomo. Depois, tomou a direção errada no corredor, indo para a ala social da casa. Antes que o senhor Harris lhe chamasse a atenção, retrocedeu, encontrou uma porta para o lado externo e saiu.

Direto para o jardim.

Bem debaixo da janela do quarto de Lane.

Levando as mãos ao rosto, lembrou-se de como ele a beijara, duas noites depois de ela ter se sentado ao lado dele no quarto.

Fora ela a procurá-lo, sem a desculpa das flores dessa vez. Ela esperou pelo tanto que conseguiu e então, deliberadamente, foi até o quarto de Lane ao fim da jornada de trabalho para ver como ele estava, o que estava acontecendo e se houvera alguma resolução.

Nada vazara para a imprensa àquela altura. Toda a cobertura acontecera depois, quando, por fim, Edward regressara para casa.

Na segunda vez que ela entrara no quarto, batera com mais suavidade. Depois de um momento, ele lhe abriu a porta… e ela ainda conseguia ver o quanto ele envelhecera. Estava magro, com barba por fazer e olheiras profundas. Mudara de roupa, ainda que fossem apenas uma versão diferente do que ele sempre vestia: uma camisa com monograma, só que para fora da calça num dos lados; calças caras, embora estivessem amassadas na dobra do quadril e com as marcas dos joelhos; e sapatos Gucci. Dessa vez, ele estava usando apenas meias escuras.

E isso basicamente lhe contara o que ela precisava saber.

– Venha comigo – ela lhe dissera. – Você precisa sair deste quarto.

Com voz rouca, ele lhe perguntou que horas eram e ela respondeu que passavam das oito. Quando ele pareceu confuso, ela teve que esclarecer que já era noite.

Conduziu-o pela escada dos fundos como se ele fosse uma criança, segurando-o pela mão, sem mencionar nada em especial. A única coisa que ele lhe dissera era que não queria ser visto por ninguém, e ela se certificou para que isso não ocorresse, dirigindo-o para longe das conversas na sala de jantar, mantendo-o distante de olhos curiosos.

Conforme o levava para a noite cálida, ela ouvia risadas vindas da sala de jantar, cômodo no qual a refeição estava sendo servida.

Como podiam fazer aquilo?, ela se perguntara. Ficar jogando conversa fora como se nada tivesse acontecido? Como se um deles não estivesse longe dali, muito longe, em mãos muito perigosas.

Daquela vez, ela não fazia a mínima ideia do que estava fazendo com Lane e do porquê se importava tanto com o sofrimento dele. Só sabia que o playboy de uma faceta que ela rotulara como desperdício tornara-se humano, e que a dor dele era importante para ela.

Não foram muito longe. Apenas até a parede de tijolos, em meio às moitas de flores, além do belvedere do lado oposto ao jardim.

Sentaram-se juntos e não disseram muita coisa. Mas, quando ela lhe tomou a mão, ele a apertou com força, aceitando o que lhe era oferecido.

E quando ele se voltou para ela, Lizzie soube o que ele queria… não era conversar. Houve um momento de congestionamento em seu cérebro, com todos os tipos de: ei, espere, pare, longe demais…

Mas logo ela se inclinou e seus lábios se tocaram.

Os pensamentos eram complicados. Mas a conexão era simples demais.

E não ficou por isso. Ele a segurou, e ela permitiu. Ele colocou as mãos por baixo das suas roupas, e ela deixou.

Em algum momento no meio daquilo tudo, percebeu que o odiava porque se sentia atraída por ele. Loucamente atraída. E o observara sim na piscina naquela tarde, embora fosse muito mais do que isso: toda vez que ele entrava ou saía da casa, tentava espiá-lo, ainda que negasse isso para todos e qualquer um. Notícias de sua chegada iminente a Easterly tinham a capacidade de eletrizá-la, e as suas partidas a entristeciam. E a infeliz realidade era que ela invejara todas aquelas mulheres, as loiras burras com seus corpos perfeitos e sotaques sulistas, que colocavam a notória porta giratória diante do quarto em bom uso.

A verdade que não quisera admitir para si mesma era que encontraria algo para desgostar nele, mesmo que isso não fosse possível.

Não foi o dinheiro dele, ou a família centenária, nem as múltiplas mulheres, a sua aparência bela demais, tampouco o sorriso malicioso.

O que odiava nele era como ele a fazia se sentir. A vulnerabilidade fora uma invasora cruel em sua vida, um hóspede indesejado que se mudara para a sua casa, se infiltrara em seu trabalho e que a perseguia mesmo nos sonhos.

Em retrospecto, deveria ter dado ouvidos ao medo. Escolhido o instinto em vez da incrível atração.

Contudo, a vida nem sempre era sábia.

Às vezes, você não prestava atenção nos sinais de aviso, pisava fundo no acelerador, e saía derrapando no meio da curva, sem poder ver o fim.

E ela ainda sofria por causa da colisão, isso era fato.

 

OITO

Haras Vermelho & Preto, Condado Oglen, Kentucky

O sol começava a se por, e seus raios dourados penetravam a baia aberta do Estábulo B, derramando-se sobre o corredor de concreto e deixando um rastro de pura magia com o feno e partículas de pó misturadas. O som ritmado da vassoura no chão fazia as éguas se aproximarem, os olhos inteligentes e os focinhos graciosos avançando numa pergunta curiosa.

Edward Westfork Bradford Baldwine ia varrendo devagar, visto que seu corpo já não era como outrora. O esforço não era de todo ruim, a dor constante que sentia cedia ante o exercício leve. Contudo, o desconforto crônico retornaria assim que ele parasse ou começasse outra série de movimentos.

Já se acostumara a isso.

A combinação de músculos, ossos e órgãos que o amparavam na jornada da atual encarnação mortal era uma máquina que já não aceitava transições muito bem. Ela preferia atividades arraigadas, esforços repetitivos ou descanso contínuo em qualquer posição. Seus fisioterapeutas, também conhecidos como Sádicos, sugeriram que permanecesse ativo de diversas maneiras, como alguém que, segundo explicaram, tivesse que reativar as ondas cerebrais por meio de terapia ocupacional.

Quanto mais ele mudasse de atividade, melhor seria para a sua “recuperação”.

Ele sempre colocava essa palavra entre aspas. A verdadeira recuperação para ele seria voltar a ser quem ele fora – e isso jamais aconteceria, mesmo se conseguisse andar direito, comer direito, dormir a noite inteira.

Não havia como voltar a ser aquela pessoa, uma versão mais jovem, mais alegre, mais bela de si mesmo.

Ele odiava os Sádicos, mas eles eram uma parte pequena na sua longa lista de ódio. E aquele corpo alquebrado que eles pareciam tão determinados em reabilitar simplesmente não concordava com o programa. Já fazia quanto tempo que ele estava metido naquilo? E ainda havia dor, a eterna dor, a ponto de ser difícil juntar energias para atravessar aquela parede de fogo e chegar onde estava naquele instante, onde as coisas funcionavam com alguma semelhança de ordem.

Era como se ele se deparasse com o mesmo assaltante em cada beco pelo qual passava.

Às vezes, se perguntava se se sentiria menos exausto se houvesse um criminoso diferente de tempos em tempos, um inimigo diverso acabando com a sua qualidade de vida.

No entanto, os assaltos eram sempre executados pelo mesmo ladrão.

– O que está fazendo, menina? – Fez uma pausa para afagar um focinho negro. – Você está bem?

Depois de uma bufada da puro-sangue, Edward seguiu em frente. A época dos cruzamentos fora muito boa, e ele tinha noventa por cento das suas vinte e três éguas prenhas. Se tudo corresse conforme planejado, os potrinhos nasceriam em janeiro do ano seguinte, época crítica para iniciar os trabalhos de parto. Nas corridas, o relógio começava a correr segundo o calendário, não o dia do parto por si só; se você quisesse que um futuro animal de três anos disputasse o Derby o mais maduro e forte possível, era melhor que suas éguas parissem em março no mais tardar, considerando suas gestações de quase um ano.

A maioria das pessoas ligadas às corridas operava num sistema estratificado, onde os criadores ficavam separados dos treinadores iniciantes, que se diferenciavam dos treinadores de corrida. Mas ele tinha dinheiro e tempo suficientes nas mãos, de modo que não apenas criava cavalos, mas também os educava na escola primária em sua fazenda, no ensino fundamental no centro que adquirira no ano anterior, até em vendas massivas para estábulos em Steeplehill Downs em Charlemont e Garland Downs na vizinha Arlington, ali mesmo no Kentucky.

O dinheiro necessário para a criação e o treino era astronômico, e qualquer retorno era apenas uma hipótese, motivo pelo qual os cartéis dos investidores eram tipicamente formados para dividir a exposição e o risco financeiros. Ele, por sua vez, não lidava com cartéis, com coinvestidores ou sócios.

Ainda não perdera tudo. Na verdade, estava quase lucrando. A sua operação, no último ano e meio, tivera resultados admiráveis, tudo graças a Nebekanzer, o seu garanhão – que, por acaso, era o maior e mais malvado filho da mãe com o qual as pessoas já se depararam. No entanto, aquele maldito bastardo gerava filhos e filhas velozes, algo que descobrira quando se mudara ali para o chalé do administrador do Vermelho & Preto, e comprara num leilão o filho do demônio de quatro cascos e três da prole de dois anos de Neb. No ano seguinte? Todos os três descendentes venceram mais de 200 mil por cabeça até abril, e um deles chegara em segundo lugar no Derby, em terceiro em Preakness, e em primeiro em Belmont.

E aquele fora seu ano de debutante, como diziam. Este ano, esperavam que ele se saísse ainda melhor. Ele tinha dois cavalos seus no Derby.

Ambos filhos de Neb.

Ele não poderia dizer que seu coração estava naquele negócio, mas, certamente, era melhor do que ficar sentado ruminando sobre tudo o que perdera.

Assim como todos aqueles cavalos de corrida, ele nascera, fora criado e treinado para um futuro determinado: assumir a Cia. Bourbon Bradford. Mas, tal qual um puro-sangue com uma pata fraturada, esse já não era mais o seu futuro.

– Buenas noches, jefe.12

Edward acenou para um dos seus onze ajudantes do estábulo.

– Hasta mañana.13

Voltou a varrer, abaixando a cabeça.

– Jefe, hay algo aqui.14

– Quem?

– No sé.15

Edward franziu o cenho e usou a vassoura como bengala, claudicando até a porta da baia. Do lado de fora, numa manobra circular, uma limusine preta comprida parava diante do Estábulo A.

Moe Brown, o gerente do haras, caminhou até perto daquela monstruosidade, suas passadas largas diminuindo a distância. Moe tinha sessenta anos, era magro como um poste de cerca e inteligente como um matemático. E também tinha o “olho”: aquele cara conseguia predizer o futuro de um cavalo no instante em que o animal ficava de pé pela primeira vez. Era assustador, e algo inestimável naquele negócio.

E lentamente, com segurança, estava ensinando seus segredos a Edward.

O talento inato de Edward, por sua vez, era o da procriação. Ele simplesmente parecia saber quais linhagens cruzar.

Quando Moe parou ao lado da limusine, um chofer uniformizado saltou e deu a volta para as portas de trás, e Edward meneou a cabeça quando viu de quem se tratava.

Os Pendergast estavam enviando artilharia pesada.

A mulher de cerca de quarenta anos saindo do banco de trás da limusine devia ter um terço do peso de Moe, estava vestida de Chanel cor-de-rosa e tinha mais cabelos que a cauda de Neb. Bela como uma rainha, mimada como um cachorro da Pomerânia, e com uma determinação que faria as Flores de Aço16 saírem correndo para salvar seu dinheiro, Buggy Pendergast estava acostumada a conseguir o que queria.

Por exemplo, uns cinco anos atrás, armara uma jogada e fizera um dos herdeiros de uma família petrolífera largar uma perfeita primeira esposa em seu favor. E, desde então, vinha gastando o dinheiro dele com cavalos puro-sangue.

Edward já lhe dissera não três vezes pelo telefone.

Nada de cartéis. Nada de coinvestidores. Nada de sócios.

Ele trabalhava sozinho e sem interferências externas.

O homem que saiu atrás de Buggy não era o marido dela e, pela maleta que ele segurava, era possível deduzir que era algum tipo de contador. Por certo, não era nenhum segurança – era baixinho demais, e aqueles óculos eram um escoadouro de testosterona, como nunca antes visto por Edward.

Moe começou a falar com eles, e Edward entendeu que a coisa não ia bem. E tudo piorou quando aquela maleta foi sumariamente depositada sobre o capô da limusine e Buggy a abriu com um floreio, como se estivesse levantando a saia, à espera de que todos gemessem em aprovação.

Edward surgiu na luz tardia do sol com sua vassoura-bengala e mau humor. Enquanto se aproximava, Buggy não olhou para ele. E quando ele parou atrás de Moe, ela apenas o fitou com raiva, como se não apreciasse o fato de um ajudante de estábulo testemunhar aquilo tudo.

– … um quarto de milhão de dólares – ela disse – e eu vou embora com o meu potro.

Moe moveu o pedaço de feno que mastigava para o outro lado da boca.

– Acho que não.

– Eu tenho o dinheiro.

– Vocês todos têm que sair desta propriedade…

– Onde está Edward Baldwine? Exijo falar com…

– Estou bem aqui – Edward disse num tom baixo. – Moe, pode deixar que eu cuido disso.

– E Deus nos concede pequenos milagres… – o homem murmurou ao se afastar.

As lentes de contato coloridas de Buggy subiam e desciam, percorrendo o corpo de Edward, e até mesmo seu rosto cheio de Botox revelou o choque que sentiu.

– Edward… você está…

– Um arraso, eu sei. – Indicou o dinheiro. – Feche essa ridícula demonstração, volte para o seu carro e toque a sua vida. Já lhe disse pelo telefone, não vendo o meu rebanho.

Buggy pigarreou.

– Eu… hum… Fiquei sabendo o que aconteceu. Mas não fazia ideia de que…

– Os cirurgiões plásticos fizeram um excelente trabalho no meu rosto. Não concorda?

– Ah… sim. Claro que sim.

– Mas chega de jogar conversa fora. Você está de saída.

Buggy forçou um sorriso no rosto.

– Ora, Edward, há quanto tempo as nossas famílias se conhecem?

– A família do seu marido e a minha se conhecem há mais de duzentos anos. Não conheço a sua família e não faço a mínima questão de conhecer. Estou certo de que você não vai sair daqui com direito sobre qualquer um dos meus potros. Agora, vá. Pode ir.

Quando ele se virou, ela disse:

– Há duzentos e cinquenta mil dólares nessa maleta.

– E isso deveria me impressionar? Minha cara, consigo encontrar um quarto de milhão na almofada do meu sofá, portanto, eu lhe garanto, não estou nem um pouco tentado. E mais especificamente: não estou à venda. Nem por um dólar. Nem por um bilhão. – Voltou-se para o chofer. – Vou pegar a minha espingarda. Ou você vai voltar a se espremer na sua limusine e pedir para que o seu motorista pise fundo?

– Vou contar tudo isso ao seu pai! Isso é um desresp…

– O meu pai morreu para mim. Você pode discutir os meus negócios o quanto quiser com ele, mas adiantará tanto quanto este seu trajeto desperdiçado até o interior. Aproveite o seu fim de semana de Derby… em algum outro canto.

Pressionando o cabo da vassoura, ele começou a bambolear de volta ao estábulo. Em seu rastro, um coro de múltiplas portas se fechando e os pneus da limusine cantando no asfalto sugeriam que a mulher já devia estar ao celular, reclamando com seu marido vinte anos mais velho sobre a maneira vergonhosa como havia sido tratada.

Levando em consideração os boatos de que fora uma dançarina exótica aos vinte anos, ele podia adivinhar que ela fora exposta a coisas muito piores em sua vida prévia.

Antes que voltasse a entrar e retomasse a varrição, contemplou o cenário da sua fazenda: centenas de hectares de gramados verdejantes separados em picadeiros com cercas marrom-escuro. Três estábulos com telhados vermelho e cinza, e laterais pretas com molduras em vermelho. As construções externas para os equipamentos, os reboques de ponta de linha, a casa de fazenda branca onde ele ficava, a clínica veterinária e o picadeiro de exercícios…

Sua mãe era dona de tudo aquilo. O bisavô dela comprara a terra e dera início aos negócios equestres, e depois o avô e o pai dela continuaram a investir no negócio. As coisas desandaram depois que seu avô morrera, vinte anos antes, e Edward jamais considerara se envolver naquilo.

Como filho mais velho, estava destinado a assumir o papel de líder da Cia. Bourbon Bradford e, na verdade, era mais do que um legado ou primogenitura: era onde o seu coração habitava. Em seu sangue, era um destilador, tão escrupuloso com seus produtos quanto um padre o seria.

Então, tudo mudara.

O Haras Vermelho & Preto fora a melhor solução, uma distração que ocupava os seus dias até a hora de se embebedar para dormir. E, melhor ainda, era algo em que seu pai não estava envolvido.

O pouco futuro que tinha estava ali com os gramados e os cavalos.

Era tudo de que ele dispunha.

– Você gostou disso, não gostou? – Moe perguntou atrás dele.

– Não muito. – Passou o peso para o outro lado e recomeçou a varrer o corredor. – Mas ninguém vai ficar com uma parte da minha fazenda, nem mesmo Deus.

– Você não devia falar assim.

Edward olhou por sobre o ombro para lembrar ao homem a aparência do seu rosto.

– Acha mesmo que tenho medo de mais alguma coisa a esta altura?

Enquanto Moe fazia o sinal da cruz, Edward revirava os olhos… e retomava o trabalho.


“Boa noite, chefe.”

“Até amanhã.”

“Chefe, tem alguma coisa aqui.”

“Não sei.”

Referência ao filme Flores de Aço, de 1989, que se passa em uma pequena cidade da Louisiana e narra a história de um grupo de mulheres durante o falecimento de uma delas. A história tornou-se símbolo de lealdade e amizade entre as personagens que, apesar de delicadas como flores, demonstram ser fortes como o aço. (N.E.)

 

NOVE

– … deitada na cama, mexendo nos mamilos. – Virginia Elizabeth Baldwine, “Gin” para a família, se recostou na poltrona acolchoada. – Agora estou colocando a mão entre as pernas. O que quer que eu faça com ela? Sim, estou nua… Como mais eu poderia estar? Diga o que devo fazer.

Bateu o cigarro na taça de vinho de cristal Baccarat que esvaziara uns dez minutos antes e cruzou as pernas por baixo do roupão de seda. Os puxões em seus cabelos eram mais do que incômodos, e ela encarou a cabeleireira pelo espelho do banheiro.

– Hum… sim… – ela gemeu no celular. – Estou tão… molhada… e só pra você.

Ela teve que revirar os olhos quando ele disse que ela era uma boa moça, mas Conrad Stetson gostava justamente disso. Era um homem das antigas: precisava da ilusão de que a mulher com quem traía a esposa lhe era fiel.

Tão tolo.

Gin sentia saudades dos primeiros dias do relacionamento entre eles. Tinha sido difícil atraí-lo e afastá-lo do seu casamento. Ficou encantada com a determinação com que ele lutara contra a atração que sentia por ela, com a vergonha que ele sentiu após o primeiro beijo, com a resistência que ele demonstrou para não lhe telefonar, não vê-la, não procurá-la… E, por uma ou duas semanas, ela, de fato, estivera interessada nele, querendo as atenções dele, uma droga na qual valia a pena se perder.

E depois do sexo? Bem, para início de conversa, era papai e mamãe demais.

– Isso, ai, assim… vou gozar, vou gozar…

Enquanto ela “gozava”, a cabeleireira corava de vergonha, mas continuou a puxar seu cabelo negro. Uma criada vinha do closet com uma bandeja de veludo nas mãos contendo dois conjuntos, um de rubis da Birmânia feitos pela Cartier nos anos 1940, e uma criação em safiras da Van Cleef & Arpels do fim dos anos 1950. Ambos pertenceram à sua avó; um fora dado à Grande Virginia Elizabeth pelo marido no nascimento da mãe de Gin, e o outro fora um presente no vigésimo aniversário de casamento dos avós.

Produziu um som de fastio; depois pressionou o botão do mudo e meneou a cabeça na direção da criada.

– Quero os diamantes Winston.

– Acredito que a senhora Baldwine os esteja usando.

Gin visualizou a cunhada, Chantal, com mais de cem quilates em diamantes impecáveis, e sorriu, falando com lentidão, como se estivesse se dirigindo a uma tola: – Então arranque os diamantes que meu pai deu à minha mãe do pescoço e das orelhas daquela vadia e traga-os para mim.

A criada empalideceu.

– Será… um prazer.

Pouco antes de a mulher sair apressada do quarto, Gin a chamou: – Certifique-se de limpá-los antes. Não suporto o perfume de farmácia que ela insiste em usar.

– Será um prazer.

Referir-se ao Flowerbomb de Vyktor e Rolf como perfume de “farmácia” era um pouco exagerado, embora certamente não fosse nenhum Chanel. Francamente, o que esperar de uma mulher que sequer concluíra a Sweet Briar?

Gin liberou o som do celular.

– Querido, preciso ir. Tenho que me aprontar. Que pena que não está aqui. – Então seguiu-se uma sequência de vozinhas infantis.

Deus, será que ele sempre teve aquele sotaque sulista tão carregado? Os Bradford não tinham aquele sotaque anasalado horrível, mas apenas um leve arrastado para provar de que lado da Linha Mason-Dixon vinham, e para mostrar que sabiam a diferença entre bourbon e uísque.

Sendo que o último não merecia nenhum comentário.

– Tchauzinho – disse e desligou.

Ao terminar a ligação, resolveu pôr um fim naquele relacionamento. Conrad tinha começado a falar sobre deixar a esposa, e ela não queria isso. Ele tinha dois filhos, pelo amor de Deus. O que estava pensando? Uma coisa era se divertir um pouquinho além dos limites impostos pelo casamento, mas as crianças precisavam da ilusão dos pais.

Além disso, ela já provara que não podia ser mãe de nada. Nem mesmo de um peixinho dourado.

Meia hora mais tarde, usava um vestido Christian Dior vermelho UC e estava com aquele pesado colar Harry Winston sobre a clavícula. Seu perfume era Coco da Chanel, um clássico, que decidira adotar como marca registrada desde que completara trinta anos. Os sapatos eram Louboutin.

Não vestia calcinha.

Samuel Theodore Lodge viria jantar.

Ao entrar no corredor, olhou para a porta oposta à sua. Exatamente há dezesseis anos, dera luz à moça que morava lá. E seu envolvimento com Amelia terminara ali. Uma enfermeira, e mais duas babás, aliadas a uma longa passagem do tempo, e já estava indo para a escola preparatória.

Com isso, sequer tinha um vislumbre da filha.

De fato, Amelia não viera para casa no feriado de primavera, o que fora muito bom. Mas o verão se aproximava, e o regresso da moça de Hotchkiss não era o que ninguém, Amelia menos ainda, estava esperando.

Seria possível enviar uma moça de dezesseis anos para um acampamento?

Talvez devessem mandá-la para uma turnê de dois meses pela Europa. Os vitorianos faziam isso duzentos anos atrás, antes mesmo dos aviões e dos carros com air bags.

Poderiam pagar alguém para que fosse como acompanhante.

E, na verdade, a necessidade de mantê-la afastada de Easterly não significava que Gin não amasse a filha. Era apenas que a presença da jovem era um lembrete forte demais das escolhas erradas e mentiras de Gin, e de ninguém mais – e, às vezes, era melhor não olhar com muita atenção para essas coisas.

Além disso, a Europa era maravilhosa. Ainda mais se fosse explorada da maneira correta.

Gin avançou direto para a escadaria ao estilo de Tara que se bifurcava no meio antes de chegar ao enorme vestíbulo de mármore de Easterly. O vestido falava a cada passo, o caimento da seda resvalando na anágua de tule de um modo que a fazia imaginar a conversa abafada das francesas que costuraram aquele belo vestido de noite.

Ao chegar à plataforma do meio e escolher a escada da direita, mais próxima da sala onde os coquetéis eram sempre servidos, conseguiu ouvir as pessoas conversando. Haveria trinta e duas para o jantar daquela noite, e ela estaria sentada na cadeira outrora de sua mãe, na ponta oposta em que seu pai se sentava à cabeceira.

Já fizera aquela apresentação de dama da casa um milhão de vezes, e o faria outras tantas – normalmente, esta era uma obrigação que cumpria com orgulho.

Naquela noite, entretanto, por algum motivo havia um lamento em seu coração.

Provavelmente por ser o aniversário de Amelia.

Melhor começar a beber.

Quando telefonara para a filha, Amelia se recusara a descer e falar ao telefone do seu dormitório.

Era o tipo de coisa que Gin teria feito.

Viram? Ela era uma boa mãe. Entendia a filha.

Lane se recusou a usar black tie para o jantar. Estava com as mesmas calças e trocou a camisa por outra social, que deixara para trás quando fora morar com Jeff no norte.

Estava disposto a ser pontual e só.

Assim que chegou ao térreo, evitou ao máximo os olhares das pessoas e procurou um drinque. E se deparou com um velho amigo antes de chegar ao Reserva de Família.

– Ora, ora, ora, o nova-iorquino voltou para as suas raízes, finalmente – Samuel cdisse ao se aproximar.

Lane teve que sorrir.

– Como anda o meu advogado sulista-frito predileto?

Enquanto se abraçavam e davam tapas nas costas um do outro, a loira que estava com Samuel T. ficou de lado, com os olhos atentos, sem deixar passar nada despercebido. Seu vestido era notável – se fosse um pouco mais curto na parte de cima ou de baixo, ela estaria vestindo apenas um cinto.

Bem ao estilo de Samuel T.

– Permita-me que eu lhe apresente a senhorita Savannah Locke. – Samuel T. acenou para a mulher, como se dando permissão para que ela se aproximasse, e ela logo o atendeu, inclinando-se para a frente e oferecendo a mão delgada e pálida. – Vá pegar um drinque para nós, sim, querida? Ele vai tomar o Reserva de Família.

Enquanto a mulher recuava para o bar, Lane balançou a cabeça.

– Posso me servir sozinho.

– Ela era aeromoça. Gosta de servir as pessoas.

– Hoje em dia não são chamadas de comissárias de bordo?

– Então decidiu voltar? Não pode ser por causa do Derby. Isso era coisa do Edward.

Lane dispensou a pergunta, sem vontade de mencionar a situação da senhorita Aurora. Era difícil demais.

– Preciso da sua ajuda com uma coisa. Isto é, no âmbito profissional.

O olhar de Samuel T. se estreitou e mirou a mão de Lane, sem aliança.

– Está limpando a casa, pelo visto.

– Consegue agir com rapidez? Quero que a situação se resolva rápida e discretamente.

O homem assentiu.

– Pode me ligar amanhã de manhã. Cuido de tudo.

– Obrigado.

No alto da escada, sua irmã, Gin, fez a curva na plataforma do meio e parou, como se soubesse que as pessoas iriam querer examinar o que ela vestia – e o vestido vermelho e todas aquelas joias de fato estavam ali para serem contemplados. Com metros de seda rubra se estendendo pelo chão e aquele conjunto de diamantes digno da Princesa Diana, ela era o Oscar, a Town & Country e o Palácio de St. James, todos ao mesmo tempo.

As vozes que se calaram no vestíbulo eram sinal tanto de admiração quanto de condenação.

A reputação de Gin a precedia.

Não é que era de família?

Quando ela o viu junto a Samuel T., suas sobrancelhas se arquearam e, por uma fração de segundo, ela sorriu com sinceridade, a antiga luz voltando ao seu olhar, os anos sumindo até que os três voltassem a ser os mesmos de antes de todos os acontecimentos.

– Se me der licença – disse Samuel T. – Vou dar uma olhada naqueles drinques. Acho que minha acompanhante se perdeu.

– A casa não é tão grande assim.

– Talvez para mim e para você.

Enquanto Samuel T. se afastava, Gin levantou a barra do vestido vermelho e terminou de descer a escada. Quando pisou no mármore preto e branco, veio direto na direção de Lane, os saltos altos fazendo barulho pelo piso de mais de cem anos. Ele pensou em lhe dar um abraço de cavalheiro quando ela se aproximasse, em respeito ao penteado e às joias, mas foi ela quem o abraçou forte até que ele a sentiu tremer.

– Estou tão feliz que esteja aqui – ela disse com uma voz rouca. – Deveria ter me avisado.

E foi então que ele fez uns cálculos e percebeu que era o aniversário de Amelia.

Estava para dizer alguma coisa quando ela se afastou e recolocou a máscara no lugar, suas feições de Katharine Hepburn se arranjando num vazio perfeito que fez o peito dele doer.

– Preciso de um drinque – ela anunciou. – Para onde foi Samuel T.?

– Ele não está sozinho hoje, Gin.

– E isso importa?

Quando ela se afastou com a cabeça erguida e os ombros aprumados, ele sentiu pena da pobre aeromoça loira. Lane não sabia quem era a acompanhante de Samuel T., mas por certo ela entendia quem era seu par: lá no bar, ela estava encostada no quadril dele como o coldre de um revólver, como se estivesse ciente de que teria que proteger seu território.

Pelo menos ele teria algo para se distrair durante o jantar.

– O seu Reserva de Família, senhor? O senhor Lodge o mandou com os seus cumprimentos.

Lane se virou e sorriu. Reginald Tressel era o eterno barman em Easterly, e o cavalheiro afro-americano em seu casaco preto e sapatos reluzentes estava mais distinto que muitos dos convidados, como sempre.

– Obrigado, Reg. – Lane pegou o copo de cristal da bandeja de prata. – Ei, obrigado por me telefonar avisando sobre a senhorita Aurora. Recebeu o meu recado?

– Recebi. Eu sabia que o senhor gostaria de vir.

– Ela parece melhor do que pensei.

– Ela disfarça bem. O senhor não vai partir tão cedo, vai?

– Ei, como Hazel tem passado? – Lane desconversou.

– Muito melhor, obrigado. Sei que não vai querer voltar para o norte até que as coisas estejam resolvidas por aqui.

Reginald lhe lançou um sorriso que não alterou a sombra escura daqueles olhos negros, e depois retornou para as suas tarefas, caminhando em meio à multidão como um estadista, as pessoas o cumprimentando como um de seus semelhantes.

Lane se lembrava de quando ele era mais novo, quando as pessoas diziam que o senhor Tressel era o prefeito não oficial de Charlemont. Isso, certamente, não mudara.

Deus, não estava pronto para perder a senhorita Aurora. Seria o mesmo que ter que vender Easterly – algo que não conseguia imaginar num universo em que as coisas estivessem funcionando como deviam.

O cheiro de fumaça de cigarro o fez endurecer.

Só existia uma pessoa que podia fumar dentro daquela casa.

Imerso em tal pensamento, Lane seguiu na direção oposta.

Seu pai sempre fora fumante, seguindo as tradições sulistas, o que equivalia a dizer que mesmo o homem sendo asmático, ele se achava no direito patriótico de se presentear com câncer de pulmão – não que ele estivesse doente, ou que ficaria doente. Ele acreditava que um homem de verdade nunca deixava uma mulher puxar a própria cadeira à mesa, nunca maltratava seus cães de caça e nunca, jamais, ficava doente.

Bom código de conduta. O problema? Só contemplava isso. Não tinha nada a respeito dos filhos. Das pessoas que trabalhavam para ele. Do seu papel como marido. E os Dez Mandamentos? Eram apenas uma lista velha para governar as vidas das outras pessoas, de modo que ninguém se aborrecesse quando um atirasse no outro.

Era engraçado. Graças ao pai, Lane jamais fumara – e não era uma espécie de rebeldia. Ao crescer, ele e seus irmãos sabiam quando o homem se aproximava por causa do cheiro do tabaco, e isso nunca era uma boa notícia. Por conseguinte, ele ficava todo tenso, como num experimento de Pavlov, toda vez que alguém acendia um cigarro.

Provavelmente, foi a única contribuição positiva do pai em sua vida. E, ainda assim, uma ajuda insincera.

O gelo em seu copo batia como sinos enquanto ele andava pela casa, sem saber para onde estava indo… até chegar às portas duplas que se abriam para a estufa. Mesmo fechadas, ele sentiu o cheiro das flores, e ficou parado por um tempo olhando através dos vidros para o enclave verdejante e colorido do outro lado.

Lizzie, sem dúvida, estaria ali, arranjando buquês, como sempre fazia às quintas que precediam o Derby.

Como uma mariposa atraída pela luz, ele pensou ao ver a mão se esticando para a maçaneta de latão.

O som de Greta von Schlieber falando com aquela voz carregada de alemão quase fez com que desse meia-volta. Por causa de tudo o que fizera, a mulher o odiava, e ela não era de esconder suas opiniões. E provavelmente estaria segurando um par de tesouras de jardim.

Mas o chamado de Lizzie era mais forte do que qualquer necessidade de autoproteção.

E lá estava ela.

Mesmo tendo já passado das oito da noite, ela estava sentada num banco com rodinhas diante de uma mesa com vinte e sete vasos de prata do tamanho de bolas de basquete. Metade estava cheio com flores rosa-claro, brancas e creme, e os outros ainda tinham que ser arrumados. Esponjas florais molhadas aguardavam para ancorar as incontáveis hastes.

Ela espiou por sobre o ombro, deu uma olhada nele… e continuou falando sem perder o compasso.

– … mesas e cadeiras debaixo da tenda. E você poderia também pegar mais spray conservador?

Greta não foi tão fleumática. Embora estivesse evidentemente de saída, com a grande bolsa Prada verde no ombro e uma menor cor de laranja na mão, segurando as chaves do carro, aquele olhar fixo, aliado ao silêncio abrupto, sugeria que ela não iria a parte alguma até que ele voltasse para o jantar da família.

– Está tudo bem – Lizzie grunhiu. – Pode ir.

Greta murmurou alguma coisa em alemão. Depois saiu pela porta que dava para o jardim, resmungando baixinho.

– O que ela disse? – ele perguntou depois que ficaram sozinhos.

– Não sei. Provavelmente alguma coisa sobre um piano caindo na sua cabeça.

Ele sorveu um gole do copo, sugando o bourbon frio por entre os dentes.

– Só isso? Pensei que poderia ser algo mais sangrento.

– Acho que um Steinway caindo de uma altura baixa já faria um belo estrago.

Havia meia dúzia de baldes de dois litros ao redor dela, cada um contendo um tipo diferente de flor. Ela escolhia de um e de outro como se estivesse tocando notas em um instrumento musical: uma desta, depois uma daquela, voltando à primeira, depois a terceira, a quarta, a quinta. O resultado, em pouco tempo, era um lindo arranjo de pétalas brotando do contêiner de prata muito polido.

– Posso ajudar? – ele perguntou.

– Pode. Indo embora.

– Você está quase sem estas. – Ele olhou ao redor. – Ali, deixe que eu traga o outro balde.

– Pode voltar para o seu jantar? – ela replicou. – Você não está ajudando.

– E essas outras também já estão acabando.

Deixou o copo na mesa cheia de vasos vazios e começou a puxar os baldes pesados.

– Obrigada – ela murmurou quando ele retirou os vazios, levando-os para a pia de cerâmica. – Pode ir agora…

– Vou me divorciar.

O rosto dela não demonstrou nenhuma reação, mas as mãos, aquelas mãos fortes e seguras, quase derrubaram a rosa que pegava do balde que ele trouxera.

– Não por minha causa, espero – ela disse.

Ele virou um dos baldes vazios e se sentou no fundo, segurando o bourbon entre os joelhos.

– Lizzie…

– O que quer que eu diga? Parabéns? – Espiou na direção dele. – Ou você quer uma reação chorosa cheia de alívio? Porque posso lhe garantir neste instante, essa é a última coisa que vai conseguir de mim…

– Nunca amei Chantal.

– E isso importa? – Lizzie revirou os olhos. – A mulher estava grávida de você. Portanto, talvez você não a amasse, mas, obviamente, andou fazendo alguma coisa com ela.

– Lizzie…

– Sabe, seu tom exasperado que pede que eu seja racional é muito desagradável. É como se você achasse que estou fazendo algo errado por não lhe dar uma chance para você discorrer sobre toooodas as formas de como foi uma vítima. O que sei que é verdade: você veio com tudo pra cima de mim, e eu cedi porque lamentei o que estava acontecendo com o seu irmão. Naquela época, você mostrava uma fachada perfeita e socialmente aceitável para esconder o fato de que estava transando com uma empregada. O seu problema começou quando eu me recusei a ser o seu segredinho vergonhoso.

– Maldição, Lizzie, não foi nada disso…

– Talvez da sua parte…

– Nunca a tratei com inferioridade!

– Você só pode estar brincando. Como acha que me senti quando me disse que me amava e depois li sobre o seu noivado nas colunas sociais na manhã seguinte? – Ela levantou as mãos para o alto. – Você faz alguma ideia do impacto daquilo sobre mim? Sou uma mulher inteligente. Tenho a minha fazenda e estou pagando por ela com o meu próprio dinheiro. Tenho um mestrado em Cornell. – Ela bateu no peito. – Cuido de mim mesma. E ainda assim… – Desviou o olhar. – Você me pegou.

– Não fui eu quem colocou aquele anúncio.

– Bem, havia uma foto bem grande de vocês dois ali.

– Não foi minha culpa.

– Tolice! Está tentando me dizer que havia uma arma apontada na sua cabeça quando se casou com Chantal?

– Você não queria falar comigo! E ela estava grávida… Eu não queria que o meu filho nascesse um bastardo. Deduzi que era o único modo de agir como homem, dada a situação.

– Ah, mas você foi muito homem. Foi assim que ela acabou com um filho seu na barriga.

Lane praguejou e abaixou a cabeça. Deus, já perdera tanto tempo ansiando em poder refazer tudo com Lizzie – começando muito antes de quando ficaram juntos, quando estava fazendo sexo casual com Chantal e acreditara que ela estava tomando pílula.

Mas todos já sabem como isso terminou.

E a gravidez não fora a única surpresa que Chantal reservara para ele. A segunda fora ainda mais devastadora.

– Por isso, podemos dar um basta? – Lizzie perguntou ao partir para o vaso seguinte. – Isso não é da minha conta.

– Por que não fiquei com ela? – Ele se inclinou para a frente. – Já que tem tudo resolvido, por que não fiquei com ela? Por que fiquei afastado por quase dois anos? E se eu queria ter um filho com ela, por que ela não engravidou de novo depois que perdeu o primeiro?

Lizzie balançou a cabeça e o encarou.

– Que parte do “não é da minha conta” você não entendeu?

E foi nesse instante que ele avançou.

Assim como no primeiro beijo deles no jardim, no escuro, no calor do verão, ele foi tomado por emoções descontroladas ao se apossar da boca dela, por um instinto que ele não conseguia combater. Num momento, eles estavam discutindo; no seguinte, ele estava bem perto, segurando-a pela nuca e beijando-a com avidez.

E, assim como antes, ela retribuiu o beijo.

No entanto, da parte dela não foi paixão. Ele tinha quase certeza de que, para ela, o encontro das bocas não passava de uma extensão do conflito entre eles, uma discussão verbal tornando-se não verbal.

Lane não se importou. Ele a aceitaria de qualquer jeito.

 

CONTINUA

Charlemont, Kentucky
Uma névoa pairava sobre as águas preguiçosas de Ohio como um sopro de Deus, e as árvores às margens da estrada River do lado de Charlemont tinham tantas nuances de verde que a cor exigia um sexto sentido para absorvê-las todas. Acima, o céu era de um azul-claro leitoso, o tipo de coisa que você via no norte apenas no mês de julho. Às sete e meia da manhã, a temperatura já passava dos vinte graus.
Era a primeira semana de maio. Os sete dias mais importantes do calendário, superando o nascimento de Cristo, a independência americana e as comemorações do Ano-Novo.
A 139a disputa do Derby de Charlemont aconteceria no sábado.
O que significava que todo o Estado do Kentucky estava imerso na loucura das corridas de cavalos puros-sangues.
Lizzie King se aproximava de seu trabalho, sentindo a forte descarga de adrenalina que a vinha acompanhando nas últimas três semanas. Ela sabia, por experiência prévia, que aquela agitação não se apaziguaria até a limpeza do sábado à tarde. Pelo menos estava indo, como de hábito, contra o fluxo que seguia para o centro da cidade, e chegaria rapidamente. Ela levava quarenta minutos em cada trajeto, mas isso não se comparava à hora do rush de Nova York, Boston ou Los Angeles, o que, no seu atual estado de espírito, faria com que seu cérebro explodisse como uma bomba nuclear. Não, o seu caminho para o trabalho consistia em vinte e oito minutos de paisagens rurais em Indiana, seguido de seis minutos de retardo em pontes e entroncamentos, completado por seis a dez minutos de tráfego ao longo do rio, contra a corrente.
Às vezes, ela pensava que os únicos carros que seguiam na mesma direção eram do restante dos funcionários que trabalhavam em Easterly junto dela.
Ah, sim, Easterly.

 


https://img.comunidades.net/bib/bibliotecasemlimites/OS_REIS_DO_BOURBON.jpg

 


A Propriedade da Família Bradford, ou PFB, como vinha escrito nas notas de entrega, estava fincada na parte mais alta da área metropolitana de Charlemont, e abrangia a casa principal de 1 800 metros quadrados, três jardins formais, duas piscinas e uma visão de trezentos e sessenta graus do condado de Washington. Também havia doze chalés de serventes, dez construções externas, uma fazenda ativa de mais de 8 000 hectares, um estábulo para vinte cavalos, que fora convertido num escritório, e um campo de golfe com nove buracos. O campo era iluminado para o caso de você querer praticar as suas tacadas à uma da madrugada.

Até onde ela sabia, o enorme terreno fora concedido à família em 1778, depois que o primeiro Bradford chegara ao sul, vindo da Pensilvânia com o então coronel George Rogers Clark, trazendo tanto a sua ambição quanto a sua tradição na fabricação do bourbon. Quase duzentos e cinquenta anos depois, eles possuíam uma mansão ao estilo Federal1 do tamanho de uma cidade pequena no alto da colina e cerca de setenta e duas pessoas trabalhando na propriedade em meio período ou período integral.

Todos seguiam regras feudais e um rígido sistema de castas, retirado diretamente de Downton Abbey.

Ou talvez a rotina da Condessa Viúva de Grantham fosse um pouco progressista demais.

Provavelmente a época de Guilherme, o Conquistador, fosse algo mais próximo.

Então, por exemplo – e isso seria apenas uma conjectura de cinema – se uma jardineira se apaixonasse por um dos preciosos filhos da família? Mesmo que ela fosse uma das horticultoras-chefes e tivesse reputação nacional e um mestrado de Cornell em paisagismo?

Isso não seria aceitável.

Sabrina sem um final feliz, meu bem.

Xingando, Lizzie ligou o rádio na esperança de fazer seu cérebro se calar. Mas não foi muito longe. Seu Toyota Yaris tinha alto-falantes dignos da Barbie: a música supostamente deveria sair pelos pequenos círculos nas portas do automóvel, mas o sistema de som era quase de fachada e, neste dia, a música que vazava daquelas coisinhas simplesmente não era suficiente…

O som de uma ambulância se aproximando a toda velocidade por trás dela superou com muita facilidade a conversa da BBC News. Ela pressionou o freio e foi para o acostamento. Depois que a sirene e as luzes sumiram à distância, ela voltou para a estrada e fez a curva aberta ao longo do rio e da estrada… E lá estava a enorme mansão branca dos Bradford, bem no alto, o sol nascente sendo obrigado a se espalhar ao redor da simétrica e magnífica construção.

Ela crescera em Plattsburgh, no Estado de Nova York, num pomar de maçãs.

O que diabos tinha pensado quase dois anos atrás quando permitira que Lane Baldwine, o filho mais novo, entrasse em sua vida?

E por que ainda estava ali, depois de todo esse tempo, refletindo sobre aqueles detalhes?

Porque, sejamos sinceros, ela não era a primeira mulher que fora seduzida por ele…

Lizzie franziu a testa e se inclinou sobre o volante.

A ambulância que a ultrapassara estava indo para a parte de trás da colina da PFB, com suas luzes vermelhas e brancas girando ao longo da alameda de bordos.

– Ah, meu Deus – sussurrou.

Rezou para que não fosse quem ela pensava.

Ela não podia ser tão azarada assim.

E não era lamentável que isso fosse a primeira coisa a lhe passar pela mente? Ela não devia estar preocupada com quem quer que estivesse machucado/doente/desmaiado?

Passando pelos portões de ferro – com o monograma da família – que estavam para se fechar, Lizzie virou a primeira à direita uns trezentos metros mais adiante.

Como empregada, ela tinha que usar a entrada de serviço. Sem desculpas, sem exceções.

Por que Deus não permitiria que um veículo com valor inferior a uma centena de milhares de dólares fosse visto diante da casa?

Puxa, estava ficando azeda, concluiu. E, depois do Derby, precisaria tirar umas férias antes que as pessoas pensassem que ela estava enfrentando a menopausa uma década antes do previsto.

A máquina de costura debaixo do capô do Yaris rugiu quando ela desceu pelo caminho que dava a volta até a base da colina. Passou pelos campos de milho; o esterco já estava espalhado e revolvido na preparação do plantio. Em seguida, passou pelos jardins bem podados, com suas primeiras plantas perenes e anuais; os topos das peônias eram fofos como bolas de algodão, não muito mais escuras que o rubor nas faces de uma menina inocente. Depois, havia os orquidários e as estufas, seguidas pelos prédios externos com os equipamentos de fazenda e jardinagem, e então a fileira de chalés dos anos 1950, de dois e três dormitórios.

Eram tão variados e cheios de estilo quanto um par de latas de açúcar e de farinha de trigo sobre um balcão de fórmica.

Chegando ao estacionamento dos funcionários, parou o carro e saiu, deixando sua caixa térmica, o chapéu e a bolsa com o protetor solar para trás.

Apressando-se para a salinha do prédio principal, entrou na caverna com cheiro de gasolina e óleo pela baia aberta à esquerda. O escritório de Gary McAdams, o chefe da manutenção, ficava ao lado, com as portas de vidro jateadas ainda translúcidas o bastante para indicar que as luzes estavam acesas e que havia alguém lá dentro.

Ela não se deu ao trabalho de bater. Empurrando a porta, ignorou o calendário da Pirelli com mulheres praticamente nuas.

– Gary…

O homem de sessenta e dois anos acabava de colocar o telefone no gancho com sua mão de urso. Seu rosto curtido de sol, com sua pele de casca de árvore, estava mais sério do que ela jamais vira. Quando ele a fitou por sobre a mesa bagunçada, ela entendeu para quem era a ambulância antes mesmo que ele dissesse o nome.

Lizzie levou as mãos ao rosto e se recostou no batente.

Claro que lamentava pela família, mas seria impossível não personalizar a tragédia e querer vomitar em algum lugar.

O homem que nunca mais queria ver na vida… estava voltando para casa.

Ela podia muito bem disparar um cronômetro.

 

Nova York, NY

– Vamos lá… sei que você me quer.

Jonathan Tulane Baldwine olhou para o quadril que estava apoiado ao lado da sua pilha de fichas de pôquer.

– Aumentem as apostas, rapazes.

– Estou falando com você. – Um par de seios falsos parcialmente cobertos apareceu sobre o leque de cartas na mão dele. – Oooiii.

Hora de fingir interesse em alguma outra coisa, qualquer outra coisa, pensou Lane. Uma pena que o apartamento de um quarto em Midtown fosse de solteiro, decorado com apenas o estritamente funcional. E por que se dar ao trabalho de olhar para os rostos do que restava dos seis bastardos com quem começara a jogar pôquer oito horas antes? Nenhum deles se mostrou à altura de nada além de simplesmente cobrir apostas altas.

Decifrar as pistas deixadas por eles só para escapar não valia o cansaço dos olhos às sete e meia da manhã.

– Ooooiiii…

– Desista, meu bem, ele não está interessado – alguém murmurou.

– Todos se interessam por mim.

– Ele não. – Jeff Stern, o anfitrião e seu colega de apartamento jogaram fichas equivalentes a mil dólares. – Não é mesmo, Lane?

– Você é gay? Ele é gay?

Lane passou a rainha de copas para o lado do rei de copas. Colocou o valete ao lado da rainha. Quis empurrar aqueles seios falsos e aquela boca grande para o chão.

– Dois de vocês não cobriram a aposta.

– Estou fora, Baldwine. Está alto demais para mim.

– Estou dentro, se alguém me emprestar mil.

Jeff olhou por sobre a mesa de feltro verde e sorriu.

– Somos você e eu, mais uma vez, Baldwine.

– Mal posso esperar para arrancar o seu dinheiro. – Lane fechou as cartas. – A aposta é sua…

A mulher voltou a se inclinar.

– Adoro o seu sotaque sulista.

Os olhos de Jeff se estreitaram por trás da armação transparente dos óculos.

– É melhor desistir, garota.

– Não sou idiota – ela disse arrastado. – Sei exatamente quem você é e quanto dinheiro você tem. Bebo do seu bourbon…

Lane se recostou e se dirigiu para o imbecil que trouxera o acessório falante.

– Billy? Fala sério?

– Tá bom. Tá bom. – O cara que queria aumentar seu débito em mil dólares se levantou. – O sol já está nascendo mesmo. Vamos embora.

– Ei, eu quero ficar…

– Não, já chega. – Billy levou a loira burra com autoestima inflada pelo braço e a acompanhou até a porta. – Eu te levo pra casa. E não, ele não é quem você está pensando. Até mais, bundões.

– É sim. Vi nas revistas…

Antes que a porta se fechasse, o outro cara que fora depenado também se levantou.

– Também vou. Me lembrem de nunca mais jogar com vocês dois.

– Não vou fazer isso – Jeff disse ao erguer a palma. – Mande um olá pra sua esposa.

– Você mesmo pode fazê-lo quando nos encontrarmos no Sabbath.

– De novo?

– Toda sexta-feira. E se você não gosta, por que fica aparecendo na minha casa?

– Comida grátis. Simples assim.

– Como se você precisasse de esmola.

Então ficaram sozinhos. Com o equivalente a 250 mil dólares em fichas de pôquer, dois baralhos e um cinzeiro cheio de bitucas de cigarro, e nenhuma loira burra.

– É a sua vez – disse Lane.

– Acho que ele quer se casar com ela – murmurou Jeff, jogando mais fichas no meio da mesa. – Billy, quero dizer. E aqui estão vinte mil.

– Então ele deveria ter a cabeça examinada. – Lane cobriu a aposta do seu velho amigo da fraternidade, e depois dobrou o valor. – Patético. Os dois.

Jeff abaixou as cartas.

– Deixa eu te perguntar uma coisa.

– Nada que seja muito difícil. Estou bêbado.

– Você gosta delas?

– Das fichas de pôquer? – Ao fundo, um celular começou a tocar. – Claro que sim. Por isso, se não se importar em colocar algumas mais…

– Não. Mulheres.

Lane ergueu os olhos.

– Como é?

O seu amigo mais antigo apoiou um cotovelo na mesa e se inclinou. A gravata fora arrancada no começo do jogo, e sua outrora camisa branca e engomada agora estava tão maleável quanto uma camiseta polo. Os olhos, contudo, estavam tragicamente alertas e concentrados.

– Você me ouviu. Olha só, sei que não é da minha conta, mas quando foi mesmo que você apareceu aqui? Uns dois anos atrás? Você mora no meu sofá, não trabalha… coisa que até entendo, por causa da sua família. Mas não existe nenhuma mulher, nenhuma…

– Pare de pensar, Jeff.

– Estou falando sério.

– Então aposte.

O celular se calou. Mas seu amigo não.

– A Universidade da Virgínia ficou pra trás há muito tempo. Muita coisa pode mudar.

– Pelo visto, não se ainda estou no seu sofá…

– O que aconteceu com você, cara?

– Morri enquanto esperava você aumentar a aposta ou desistir.

Jeff resmungou, formando uma pilha azul e vermelha e a jogando no meio da mesa.

– Mais vinte mil.

– É assim que eu gosto. – O celular começou a tocar de novo. – Cubro. E ponho mais cinquenta se você calar a boca.

– Tem certeza de que quer fazer isso?

– Calar a sua boca? Tenho.

– Ser agressivo no pôquer com um investidor de bancos como eu. Clichês existem por um motivo: sou ganancioso e ótimo com números. Ao contrário do seu pessoal.

– O meu pessoal?

– Pessoas como vocês, os Bradford, não sabem ganhar dinheiro. Vocês foram treinados para gastar. Agora, ao contrário dos amadores, a sua família tem, de fato, um fluxo financeiro, ainda que isso o impeça de aprender qualquer coisa. Portanto, não sei se, a longo prazo, vai ser uma vantagem.

Lane refletiu sobre os motivos que o levaram a abandonar Charlemont de uma vez por todas.

– Aprendi muita coisa, acredite em mim.

– E agora você está me parecendo amargo.

– Você está me entediando. Era pra eu gostar disso?

– Por que nunca vai pra casa no Natal? No dia de Ação de Graças? Na Páscoa?

Lane abaixou as cartas, pousando-as sobre o feltro.

– Não acredito mais no Papai Noel nem no Coelhinho da Páscoa, cacete. E peru é superestimado. Qual é o seu problema?

Pergunta errada. Ainda mais depois de uma noite de jogatina e bebedeira. Ainda mais para um cara como Stern, que era categoricamente incapaz de ser outra coisa que não absolutamente honesto.

– Odeio que você seja tão sozinho.

– Você só pode estar de brincadeira…

– Sou um dos seus amigos mais antigos, não sou? Se eu não te disser, quem vai dizer? Não fique irritadinho comigo. Você escolheu um judeu nova-iorquino, e não um dos milhares de sulistas amantes de frango frito metidos a besta daquela faculdade ridícula pra ser o seu eterno colega de quarto. Por isso, vá se foder.

– Vamos terminar esse jogo?

O olhar perspicaz de Jeff se estreitou.

– Responda uma coisa.

– Sim, estou me perguntando por que não pensei em ficar com o Wedge ou o Chenoweth agora mesmo.

– Rá. Você não suportava nenhum dos dois por mais de um dia. A menos que estivesse bêbado, o que, de fato, você tem estado nos últimos três meses e meio. E essa é outra coisa que me incomoda.

– Aposte. Agora. Pelo amor de Deus.

– Por que…

Quando o celular começou a tocar pela terceira vez, Lane se levantou e atravessou a sala. Em cima do balcão do bar, ao lado da sua carteira, a tela estava iluminada. Nem se deu ao trabalho de ver quem era.

Atendeu à chamada porque as alternativas eram isso ou cometer homicídio.

A voz masculina com sotaque sulista do outro lado da linha disse quatro palavras: sua mãe está morrendo.

Enquanto o significado penetrava em sua consciência, tudo se desestabilizou à sua volta; as paredes começaram a se fechar ao seu redor, o chão ondulou, o teto caiu em sua cabeça. As lembranças não só voltaram, mas o atacaram, e o álcool em seu sistema não fez nada para reduzir o impacto.

Não, ele pensou. Não agora. Não esta manhã.

Haveria uma hora certa?

“Jamais” era a única opção aceitável para ele.

De longe, ele se ouviu dizendo:

– Chego antes do meio-dia.

E desligou.

– Lane? – Jeff se pôs de pé. – Ai, merda, não desmaie. Tenho que estar na Eleven Wall dentro de uma hora e ainda preciso tomar um banho.

De uma vasta distância, Lane viu sua mão se esticar e apanhar a carteira. Colocou-a no bolso da calça junto do celular e seguiu para a porta.

– Lane! Pra onde você vai, cacete?

– Não espere por mim – ele respondeu ao abrir a porta para sair.

– Quando você vai voltar? Ei, Lane? Mas que diabos!

Seu bom e velho amigo ainda falava quando ele saiu, deixando a porta se fechar sozinha. No fim do corredor, empurrou o portão de aço e começou a trotar escada abaixo. Enquanto suas passadas ecoavam no piso de concreto e ele fazia curva após curva, ligou para um número conhecido.

Quando atenderam, ele disse:

– Lane Baldwine. Preciso de um jatinho em Teterboro agora, vou para Charlemont.

Houve uma pequena pausa, em seguida a assistente executiva do seu pai voltou a falar: – Senhor Baldwine, temos um jatinho disponível. Falei diretamente com o piloto. O plano de voo está sendo preenchido enquanto conversamos. Assim que chegar ao aeroporto, siga para…

– Sei onde fica o nosso terminal. – Chegou ao saguão de mármore, acenou para o porteiro e passou pelas portas giratórias. – Obrigado.

Uma rapidinha, disse a si mesmo ao desligar e chamar um táxi. Com um pouco de sorte, estaria de volta a Manhattan ao cair do dia, entediando Jeff à noite. Meia-noite, pelo menos.

Umas dez horas. Quinze, no máximo.

Ele tinha que ir ver a mãe. Era isso o que os rapazes do sul faziam.


"Estilo Federal" é uma tendência arquitetônica e decorativa que se aplica a edificações e mobiliário. Popularizou-se nos EUA durante os séculos XVIII e XIX e conta com traços neoclássicos. (N. E.)

 

DOIS

Três horas, vinte e dois minutos e alguns segundos mais tarde, Lane olhava para fora da janela oval do novíssimo jatinho corporativo Embraer Lineage 1000E da Cia. Bourbon Bradford. Abaixo, a cidade de Charlemont estava disposta como um diorama de Lego, com suas seções ricas e pobres, comerciais e agrícolas, com fazendas e estradas dispostas no que parecia ser apenas duas dimensões. Por um instante, tentou visualizar a terra como fora quando sua família ali chegara em 1778.

Florestas. Rios. Americanos nativos. Vida selvagem.

Seu povo viera da Pensilvânia atravessando Cumberland Gap duzentos e cinquenta anos antes, e agora ali estava ele, a dez mil pés de altura, circundando a cidade junto com outros cinquenta e tantos outros caras em suas várias aeronaves.

Só que ele não estava ali para apostar em cavalos, se embebedar e fazer sexo.

– Posso servir mais no 15 antes de aterrissarmos, senhor Baldwine? Lamento, mas estamos numa fila de espera. Pode demorar um pouco até pousarmos.

– Obrigado. – Sorveu o que restava em seu copo de cristal. Os cubos de gelo escorregaram e bateram em seu lábio superior. – Você não poderia ter chegado em melhor hora.

Ok, talvez ele acabasse bebendo um pouco.

– É um prazer.

Quando a mulher na saia de uniforme se afastou, olhou por sobre o ombro para ver se ele a estava encarando. Seus olhos azuis reluziam debaixo dos cílios postiços.

A vida sexual dele há muito passara a depender da bondade de tais desconhecidas. Especialmente de loiras como ela, com pernas como aquelas, e quadris como aqueles, e seios como aqueles.

Mas não mais.

– Senhor Baldwine – o capitão informou pelo alto-falante –, quando descobriram que se tratava do senhor, eles nos adiantaram na fila, por isso estamos aterrissando agora.

– Quanta gentileza a deles – murmurou Lane quando a comissária de bordo retornou.

O modo como ela abriu a garrafa lhe deu uma pista de como ela desceria o zíper da calça de um homem; seu corpo todo se dedicava à libertação da rolha. Em seguida, ela se inclinou para servi-lo, encorajando-o a dar uma espiada em sua lingerie La Perla.

Tamanho desperdício de esforços.

– Assim está bom. – Ergueu a mão. – Obrigado.

– Posso ajudá-lo com mais alguma coisa?

– Não, obrigado.

Pausa. Como se ela não estivesse acostumada a receber um não como resposta, e quisesse lembrá-lo de que dispunham de pouco tempo.

Depois de um instante, ela ergueu o queixo.

– Pois não, senhor.

Era o modo dela de mandá-lo para o inferno: jogando o cabelo para trás e se afastar com um rebolado, balançando o que havia debaixo daquela saia como se segurasse um gato pelo rabo e tivesse um alvo para acertar.

Lane ergueu o copo e girou o seu no 15. Nunca se envolvera nos negócios da família, isso era trabalho do seu irmão mais velho, Edward. Ou, pelo menos, fora trabalho dele. Mas, mesmo como um mero espectador, Lane conhecia o apelido do produto mais vendido da Cia. Bourbon Bradford: no 15, o elemento principal da linha de produção, vendido em quantidades tão grandes que era chamado de A Grande Borracha – porque seu lucro era tão gigantesco que o dinheiro poderia eclipsar o prejuízo de qualquer erro corporativo interno ou externo, qualquer cálculo indevido ou recessão no mercado.

Enquanto o jato se preparava para a aterrissagem, um raio de sol atravessou a janela oval, caindo sobre a mesinha dobrável de nogueira falsa, o couro cor de creme do banco, o azul do seu jeans, a fivela de latão dos seus mocassins Gucci.

E depois atingiu o no 15 em seu copo, ressaltando as nuances de rubi do líquido âmbar. Ao sorver mais um gole pela borda de cristal, sentiu o calor do sol sobre o dorso da mão e a frieza do gelo nas pontas dos dedos.

Algum estudo feito recentemente divulgou que a indústria do bourbon tinha receitas anuais na casa dos 3 bilhões de dólares. Desse total, a CBB detinha mais de um quarto, quase um terço do total. Havia outra empresa no Estado, maior que eles – a odiada Destilaria Sutton Corporation – e, depois disso, uns outros oito ou dez produtores. Mas a CBB era o diamante em meio a outras pedras semipreciosas, a escolha dos bebedores de paladar mais apurado.

Como um consumidor leal, ele tinha que concordar com tal tendência.

Uma alteração no nível de bourbon em seu copo anunciou a aterrissagem, e ele relembrou a primeira vez que experimentara o produto da família.

Considerando-se o que acontecera, ele deveria ter se transformado num abstêmio.

– É noite de Ano-Novo, vamos. Não seja medroso.

Como de costume, foi Maxwell quem começou a festa. Dos quatro filhos, Max era o encrenqueiro, com Gin, a caçula, ocupando o segundo lugar na recalcitrante escala Richter. Edward, o mais velho e mais austero deles, não fora convidado para a festa; e Lane, que estava mais ou menos no meio, tanto em termos de ordem de nascença quanto na probabilidade de ser preso ainda em idade juvenil, fora forçado àquela excursão porque Max odiava aprontar sem ter público – e meninas não contavam para ele.

Lane sabia que era uma péssima ideia. Se iam beber álcool, deveriam pegar uma garrafa da despensa e subir para os quartos, onde não havia a mínima possibilidade de serem apanhados. Mas beber assim, às vistas de qualquer um, na sala de estar? Debaixo do olhar desaprovador do quadro de Elijah Bradford sobre a cornija da lareira?

Idiotice…

– Então, quer dizer que não vai beber nada, Lame?2

Ah, sim. O apelido predileto de Max para ele.

No alaranjado das luzes externas de segurança, Max o fitou do alto com uma expressão de tamanho desafio que seu olhar poderia muito bem estar acompanhado de uma faixa de largada e uma pistola, usados nas pistas de corrida.

Lane relanceou para a garrafa que o irmão segurava. O rótulo indicava um dos requintados, com as palavras “Reserva de família” em letras rebuscadas.

Se ele não fizesse aquilo, eles nunca o deixariam em paz.

– Só quero um copo – disse ele. – Um copo apropriado. Com gelo.

Porque era assim que o pai deles bebia. E era a única explicação varonil para a sua demora.

Max franziu a testa, como se considerasse a questão da apresentação.

– Tudo bem.

– Não preciso de um copo. – Gin, que contava com sete anos, estava com as mãos nos quadris e os olhos fixos em Max. Dentro da sua camisolinha de renda, ela parecia a Wendy do Peter Pan. Com aquela expressão agressiva no rosto, ela era praticamente uma lutadora profissional. – Preciso de uma colher.

– Uma colher? – Max perguntou, surpreso. – Do que está falando?

– É remédio, não é?

Max lançou a cabeça para trás e gargalhou.

– Mas o que…

Lane cobriu a boca do irmão.

– Cala a boca! Quer ser apanhado?

Max se livrou da mão dele.

– O que eles vão fazer comigo? Bater?

Bem, sim, se o pai deles os visse ou ficasse sabendo daquilo. Ainda que o grande William Baldwine delegasse a maior parte das atribuições paternas para outras pessoas, o cinto era ele quem empunhava.

– Espere um instante, você quer ser apanhado – Lane disse com suavidade. – Não quer?

Max se virou para o carrinho de bebidas de vidro e latão. O aparador ornamental era uma antiguidade, assim como a maioria das coisas em Easterly, e o brasão da família estava entalhado nos quatro cantos. Com suas rodas finas e grandes e sua bandeja de cristal, era o anfitrião da casa, amparando quatro tipos diferentes de bourbon Bradford, meia dúzia de copos de cristal e um balde de gelo de prata que constantemente era reabastecido pelo mordomo.

– Aqui está o seu copo. – Max o empurrou na direção de Lane. – Vou beber direto da garrafa.

– Onde está a minha colher? – Gin perguntou.

– Pode tomar um gole do meu – Lane sussurrou.

– Não. Quero o meu…

O debate foi interrompido quando Max empurrou a rolha e o projétil saiu voando, batendo no candelabro no meio da sala. O cristal sacudiu, fez barulho e os três ficaram imobilizados.

– Calados – ordenou Max, antes que fizessem qualquer comentário. – E nada de gelo pra você.

O bourbon fez um barulho gorgolejante enquanto seu irmão o derramava no copo de Lane, só parando quando a taça estava tão cheia quanto seu copo de leite durante as refeições.

– Agora beba tudo – Max lhe disse ao levar a garrafa à boca, inclinando a cabeça para trás.

A encenação de cara durão só durou o tempo da primeira golada; Max começou a tossir tão alto que poderia despertar os mortos. Deixando que o irmão se engasgasse ou morresse na tentativa de se recuperar, Lane ficou olhando para o próprio copo.

Levou o cristal até a boca, e deu um gole cuidadoso.

Fogo. Era como se estivesse engolindo fogo, e uma trilha ardeu-lhe até o estômago. Soltou um xingamento, meio que esperando ver labaredas saindo do seu rosto, como se fosse um dragão.

– Minha vez – Gin disse.

Ele segurou o copo, não permitindo que ela o pegasse. Nesse meio-tempo, Max tomava o segundo e o terceiro goles.

Gin mal tocou no líquido, apenas umedeceu os lábios, e se retraiu revelando seu desgosto.

– O que estão fazendo?

Quando a luz do candelabro foi acesa, os três deram um salto. Lane derrubou o bourbon do seu copo no pijama de monograma.

Edward estava parado perto da porta com um olhar de fúria absoluta no rosto.

– O que diabos há de errado com vocês? – ele disse, marchando e tirando o copo das mãos de Lane e a garrafa de Max.

– Só estávamos brincando – murmurou Gin.

– Vá pra cama, Gin. – Ele colocou o copo no carrinho e apontou para a porta com a garrafa. – Vá pra cama agora.

– Hum… Por quê?

– A menos que queira que eu chute o seu traseiro também.

Até mesmo Gin sabia respeitar aquela lógica.

Enquanto ela avançava para o arco da entrada, com os ombros pensos e chinelos arrastando sobre o tapete oriental, Edward sibilou: – E use a escada da criadagem. Se papai ouvir alguma coisa, vai descer pela da frente.

O coração de Lane disparou. E seu estômago ardeu. Não sabia se por terem sido flagrados ou por causa do bourbon.

– Ela tem sete anos – Edward disse depois que Gin se afastou. – Sete!

– Sabemos quantos anos ela tem…

– Cale a boca, Max. Apenas cale a boca. – Ele encarou Max de cima. – Se quer se corromper, não me importo. Mas não contamine os dois com as suas idiotices.

Palavras grandes. Xingamentos. E a conduta de alguém que poderia colocar os dois de castigo.

Pensando bem, Edward sempre parecera adulto, mesmo antes de chegar à adolescência.

– Não tenho que ficar aqui te escutando – Max replicou. Mas o espírito de combate já começava a abandoná-lo; sua língua estava frouxa, seus olhos caíam para o tapete.

– Tem, sim.

Então as coisas se acalmaram.

– Sinto muito – disse Lane.

– Não estou preocupado com você. – Edward meneou a cabeça. – É ele quem me preocupa.

– Peça desculpas – Lane sussurrou. – Vamos, Max.

– Não.

– Ele não é o papai, você sabe.

Max encarou Edward.

– Mas age como se fosse.

– Só porque você está descontrolado.

Lane pegou Max pela mão.

– Ele também sente muito, Edward. Venha, vamos antes que alguém nos ouça.

Ele precisou fazer um pouco mais de força, porém, no fim, Max o acompanhou sem mais nenhum comentário: a briga tendo terminado, o lance de independência fora lançado. Estavam na metade do piso de mármore preto e branco do vestíbulo pouco iluminado quando Lane percebeu algo no fim do corredor.

Alguém se movimentava nas sombras.

Alguém grande demais para ser Gin.

Lane puxou o irmão para a total escuridão do salão de baile do lado oposto.

– Shhh.

Através do arco da sala de estar, ele viu quando Edward se virou para o carrinho à procura da rolha e quis alertar o irmão…

Quando o pai deles entrou, o corpo alto de William Baldwine bloqueou a vista de Edward.

– O que está fazendo?

As mesmas palavras, o mesmo tom, grave e profundo.

Edward se virou com tranquilidade, com a garrafa na mão. O copo quase cheio de Lane estava bem no meio do carrinho.

– Responda – o pai ordenou. – O que está fazendo?

Ele e Max estavam mortos, pensou Lane. Assim que Edward contasse ao homem o que eles estavam fazendo ali embaixo, William explodiria.

Ao lado de Lane, Max tremia.

– Eu não devia ter feito isso… – sussurrou ele.

– Onde está o seu cinto? – Edward replicou.

– Responda.

– Fui eu. Onde está o cinto?

Não!, Lane pensou. Não, fomos nós!

O pai deles avançou, o roupão de seda com monograma reluzindo na luz, cor de sangue fresco.

– Maldição, garoto! Me diga o que está fazendo aqui com as minhas bebidas.

– O nome é Bourbon Bradford, pai. O senhor se casou com a família, lembra?

Quando o pai ergueu o braço à frente do tronco, seu pesado anel de sinete de ouro da mão esquerda brilhou como se estivesse antecipando o golpe, ansioso pelo contato com a pele. Em seguida, com um movimento elegante e poderoso, Edward foi atingido com um tapa tão violento que o som ricocheteou até o salão de baile.

– Agora vou lhe perguntar mais uma vez: o que está fazendo com as minhas bebidas? – William exigiu saber enquanto Edward cambaleava de lado, amparando o rosto.

Depois de um instante de respiração laboriosa, Edward se endireitou. Seu pijama parecia vivo de tanto que seu corpo tremeu, mas ele permaneceu de pé.

Pigarreando, respondeu com voz grave:

– Estava comemorando o Ano-Novo.

Um rastro de sangue descia pela lateral do rosto dele, manchando a pele clara.

– Então não deixe que eu atrapalhe o seu divertimento. – O pai apontou para o copo de Lane. – Beba.

Lane fechou os olhos e quis vomitar.

– Beba.

Os sons de engasgo e de ânsia continuaram por uma eternidade enquanto Edward consumia quase um quarto da garrafa do bourbon.

– Não vomite, garoto – ameaçou o pai. – Não ouse…

Quando o jatinho sacolejou ao entrar em contato com a pista, Lane voltou do passado. Não se surpreendeu ao ver que o copo que segurava tremia, e não por causa da aterrissagem.

Depositando o no 15 na bandeja sobre a mesinha, enxugou a testa.

Aquela não fora a única vez que Edward fora punido no lugar deles.

E nem fora a pior das vezes. Não, a pior de todas acontecera quando ele já era adulto, e fizera tudo o que a educação torpe fracassara em conseguir.

Edward agora estava arruinado, e não apenas fisicamente.

Deus, existiam tantos motivos para Lane não querer voltar para Easterly. E nem todas eram por causa da mulher que ele amava, mas que perdera.

No entanto, tinha que confessar… Lizzie King estava no topo daquela extensa lista.


Em inglês, o apelido cria uma brincadeira com o nome do personagem, Lane, e a palavra “lame”, que pode significar perdedor, fraco, coxo, defeituoso ou careta.

 

TRÊS

Propriedade da Família Bradford, Charlemont

A estufa Amdega Machin era uma extensão da ala sul de Easterly e, como tal, nenhum custo fora poupado em sua construção, em 1956. A estrutura era uma obra-prima ao estilo gótico; seu esqueleto delicado de ossos pintados de branco suportavam centenas de painéis de vidro, criando um interior maior e mais bem-acabado que a casa de fazenda na qual Lizzie morava. Com piso de ardósia e uma área de descanso com sofás e poltronas de tecidos florais, havia flores e plantas ao longo das laterais, na altura dos quadris, e vasos em cada um dos cantos. Mas tudo isso era apenas para demonstração. O verdadeiro trabalho de horticultura, a germinação e a reabilitação, as podas e os cuidados, eram executados longe das vistas da família, em outras estufas.

– Wo sind die Rosen? Wir brauchen mehr Rosen…3

– Não sei. – Lizzie abriu outra caixa de papelão tão comprida quanto a perna de um jogador de basquete. Dentro dela, duas dúzias de talos de hidrângeas brancas estavam embaladas em plástico individualmente, as cabeças protegidas por delicados colares de papelão. – Este é o total da entrega, por isso elas devem estar aqui.

– Ich bestellte zehn weitere Dutzend. Wo sind sie…?4

– Tudo bem, agora chega de alemão.

– Não pode serr só isto. – Greta von Schlieber ergueu um punhado de flores rosa-claro minúsculas que estavam envolvidas numa página de um jornal colombiano. – Não vamos conseguirr.

– Você diz isso todos os anos.

– Desta vez, eu tenho razão. – Greta empurrou os pesados óculos com aro de tartaruga pelo nariz e fitou a pilha de outras vinte e cinco caixas. – Estou dizendo, estamos encrrencadas.

E… era essa a essência do relacionamento entre ela e sua colega de trabalho.

Começando com a rotina pessimista/otimista, Greta era basicamente tudo o que Lizzie não era. Para começar, a mulher era europeia, não americana; o sotaque alemão era bem marcado em sua pronúncia, apesar de ela estar nos Estados Unidos havia trinta anos. Também era casada com um homem incrível, mãe de três filhos fantásticos na casa dos vinte anos e tinha dinheiro suficiente para que não apenas não tivesse que trabalhar, como seus dois rapazes e sua moça também não.

Nada de Yaris para ela. Ela dirigia uma perua Mercedes preta. E o anel de diamante que ela usava ao lado da aliança era grande o bastante para rivalizar com um dos Bradford.

Ah, e ao contrário de Lizzie, seu cabelo loiro era curto como o de um homem, o que era algo a invejar quando você tinha que prender o seu com o que quer que conseguisse ter à mão: cordinhas de saco de lixo, arames florais e elásticos que amarravam os brócolis.

A única coisa que tinham em comum? Nenhuma delas suportava ficar imóvel, desocupada ou ociosa por um segundo sequer. Vinham trabalhando lado a lado na PFB havia quase cinco anos – não, mais que isso. Seriam sete?

Oh, Deus, já estavam perto dos dez.

E Lizzie não conseguia visualizar uma vida sem aquela mulher, mesmo que, às vezes, Greta fosse o tipo que via o copo meio vazio em vez de meio cheio.

– Ich sage Ihnen, wir haben Schwierigkeiten.5

– Você acabou de repetir que estamos em apuros?

– Kann sein.6

Lizzie revirou os olhos, mas se deixou levar pela adrenalina, observando a linha de produção que tinham preparado: no fim da estufa de vinte metros de comprimento, uma fila dupla de mesas dobráveis estava formada e, sobre elas, setenta e cinco cubas de prata para buquês do tamanho de baldes de gelo.

O brilho era tão forte que Lizzie desejou não ter deixado os óculos escuros no carro.

E também desejou não ter que lidar com a situação, ciente que Lane Baldwine provavelmente estaria aterrissando no aeroporto naquele instante.

Como se ela precisasse também dessa pressão.

Conforme sua cabeça começava a latejar, tentou se concentrar no que podia controlar. Infelizmente, isso lhe deixava apenas se perguntando como ela e Greta preencheriam aqueles vasos com o equivalente a 50 mil dólares em flores entregues, mas que ainda precisavam ser desembaladas, inspecionadas, limpas, cortadas e arranjadas de maneira adequada.

Pensando bem, era a pressão que sempre a acometia nas quarenta e oito horas que precediam o Brunch do Derby.

Ou BD, como era chamado ali na propriedade.

Porque, sim, trabalhar em Easterly era o mesmo que estar no exército: tudo era reduzido, menos as horas de trabalho.

E, sim, apesar da ambulância daquela manhã, o evento ainda aconteceria. Como um trem que não parava para nada nem ninguém em seu caminho. Na verdade, ela e Greta costumavam dizer que, se eclodisse uma guerra nuclear, as únicas coisas que resistiriam depois que a nuvem de cogumelo se dissipasse seriam baratas, Twinkies… e o BD.

Deixando as piadas de lado, o Brunch era tão exclusivo e acontecia havia tanto tempo que tinha um nome próprio. As vagas na lista de convidados eram guardadas e passadas para a geração seguinte como herança. Era uma reunião de quase setecentas pessoas, composta pela elite financeira e política da cidade e da nação. Elas conversavam e se misturavam em meio aos jardins de Easterly, tomando julepos de menta e mimosas7 por apenas duas horas antes da partida para Steeplehill Downs, para o dia mais importante da corrida de cavalos e a primeira etapa da Tríplice Coroa do Turfe. As regras do Brunch eram simples e diretas: as damas tinham que usar chapéus, não eram permitidas fotografias, tampouco fotógrafos, e não importava se você viesse num Phantom Drophead ou numa limusine corporativa, todos os carros ficavam estacionados nos campos ao pé da colina, e todos chegavam nas vans que os conduziriam até a entrada da mansão.

Bem, quase todas as pessoas. As únicas que não precisavam pegar o transporte eram governadores e quaisquer presidentes que aparecessem, e o treinador-chefe da equipe masculina de basquete da Universidade de Charlemont.

No Kentucky, ou você era vermelho da UC, ou azul da Universidade do Kentucky, e o basquete era importante, quer você fosse rico ou pobre.

Os Bradford eram fãs dos Águias da UC. E era quase shakespeariano que seus rivais no negócio do bourbon, os Sutton, fossem todos Tigres da UK.

– Estou ouvindo você resmungar – Lizzie comentou. – Pense positivo. Vamos conseguir.

– Wir müssen alle Pfingstrosen zahlen8 – Greta anunciou ao abrir mais uma caixa de papelão. – No ano passado, eles nos entrregarram florres a menos.

Uma das portas duplas que dava para a casa foi aberta, e o senhor Newark Harris entrou como uma brisa fria. Com seu 1,67 metro de altura, ele parecia mais alto em seu terno e gravata pretos – mas, pensando bem, a ilusão talvez se devesse às sobrancelhas eternamente erguidas, e ao fato de ele sempre estar prestes a dizer “seu americano idiota” depois de tudo o que pronunciava. Fazendo um retrocesso na tradição centenária de um adequado criado inglês, ele não apenas nascera e fora criado em Londres, como também servira como criado de libré para a rainha Elizabeth no Palácio de Buckingham e, depois, como mordomo do príncipe Edward, conde de Wessex, em Bagshot Park. O pedigree da Casa de Windsor fora crucial para a sua contratação no ano anterior.

Por certo, não fora a sua personalidade.

– A senhora Baldwine está à beira da piscina. – Dirigiu-se a Lizzie. Greta, por sua nacionalidade alemã e por ainda ter um sotaque carregado, era persona non grata para ele. – Por favor, leve um buquê para ela. Obrigado.

E puf!, sumiu pela porta, fechando-a silenciosamente.

Lizzie cerrou os olhos. Havia duas senhoras Baldwine na propriedade, mas somente uma poderia estar fora do quarto, tomando sol à beira da piscina.

Um golpe duplo naquele dia, Lizzie pensou. Não só teria que ver seu antigo amante, agora teria que servir a esposa dele.

Fantástico.

– Ich hoffe, dass dem Idiot ein Klavier auf den Kopf fallt.9

– Você acabou de dizer que espera que um piano caia sobre a cabeça dele?

– E você diz que não entende alemão.

– Dez anos com você e eu estou chegando lá.

Lizzie relanceou ao redor para ver o que poderia usar da imensa entrega de flores. Depois que as caixas fossem abertas, as folhas precisariam ser arrancadas das hastes e as flores teriam que ser afofadas uma a uma para encorajar as pétalas a se abrirem, permitindo uma inspeção de qualidade. Ela e Greta não estavam nem perto daquele estágio ainda, mas o que a senhora Baldwine queria, ela tinha.

De muitas maneiras.

Quinze minutos de escolha, corte e arranjo, e Lizzie tinha montado um buquê razoável, enfiado numa espuma dentro de um vaso de prata.

Greta apareceu diante dela e estendeu as mãos, com aquele diamante enorme no dedo reluzindo.

– Deixe que eu levo.

– Não, pode deixar…

– Você não vai querrer lidar com ela hoje.

– Nunca quero lidar com ela.

– Lizzie.

– Estou bem. Sério.

Felizmente, sua velha amiga acreditou na mentira. A verdade? Lizzie estava longe de se sentir bem, ela sequer conseguia enxergar essa possibilidade, mas não significava que recuaria.

– Volto já.

– Estarrei contando as peônias.

– Tudo vai ficar bem.

Era o que esperava.

Enquanto Lizzie seguia para as portas duplas que davam para o jardim, sua cabeça começou a latejar de verdade, e ser atingida pelo calor e umidade do lado de fora não ajudou em nada. Motrin, pensou ela. Depois daquilo, ela tomaria quatro comprimidos e voltaria ao trabalho.

A grama estava cortada bem rente, mais parecida com um campo de golfe do que qualquer outra coisa que a Mãe Natureza tivesse imaginado. Apesar de ter muitas coisas em mente, ela fez uma lista mental de tarefas, como cuidar das moitas e do replantio nos dois hectares que compunham o jardim fechado. A boa notícia era que depois do início tardio da primavera, as árvores frutíferas vicejavam nos cantos do muro de tijolos, e as delicadas pétalas brancas começavam a cair como flocos de neve nos caminhos debaixo das copas. E a compostagem espalhada duas semanas antes perdera seu odor forte. Em um mês, os quatro cantos marcados pelas esculturas greco-romanas de mulheres em vestes e poses régias estariam todas rosadas e embranquecidas, em contraste com o verde e cinza tranquilizador do rio.

Mas, claro, agora tudo se tratava do Derby.

A casa de madeira branca da piscina ficava no canto à esquerda. Parecia o lar de uma família pequena e típica de médicos/advogados ao estilo colonial, atrás da piscina quase olímpica e seu azul-marinho. O caminho que ligava a casa à piscina era coberto por galhos de glicínias, que logo teriam flores brancas e lilases penduradas como lanternas caindo do emaranhado verde.

E debaixo da cobertura, estendida numa espreguiçadeira Brown Jordan, a senhora Chantal Baldwine era tão bela quanto uma inestimável estátua de mármore.

E continha o mesmo calor.

Sua pele era reluzente, graças ao spray bronzeador perfeitamente aplicado, seus cabelos loiros estavam artisticamente penteados e curvos nas pontas, e seu corpo provocaria complexo de inferioridade até em Rosie Huntington-Whiteley. As unhas eram postiças, mas perfeitas, nada de Jersey em seu tamanho e cor, e o anel de noivado e a aliança de casamento pareciam saídos da Town & Country, tão brancos e ofuscantes quando o sorriso dela.

Ela era a perfeita e moderna belle do sul, o tipo de mulher que as pessoas de Charlemont consideravam, aos sussurros, ser “de boa linhagem, apesar de ser da Virgínia”.

Lizzie sempre se perguntou se os Bradford verificavam os dentes das debutantes com quem seus filhos saíam – assim como se faz com cavalos puros-sangues.

– … desmaiou e a ambulância foi chamada. – A mão pesada devido ao diamante se ergueu e afastou uma mecha dos cabelos, em seguida passou o iPhone no qual falava com alguém para a outra orelha. – Levaram-na pela porta da frente. Dá para acreditar nisso? Eles deveriam tê-lo feito pela porta dos fundos… Ah, essas são adoráveis!

Chantal Baldwine levou a mão à frente da boca, numa postura de gueixa, enquanto Lizzie carregava as flores até a bancada de mármore do bar, colocando-as na ponta que não estava diretamente exposta ao sol.

– Newark fez isso? Ele é tão atencioso.

Lizzie assentiu e se virou para sair. Quanto menos tempo desperdiçasse ali, melhor.

– Ah, Lisa, você poderia…

– É Lizzie. – Ela parou. – Posso ajudá-la com mais alguma coisa?

– Você faria a gentileza de me trazer mais disto? – A mulher apontou para um jarro pela metade. – O gelo derreteu e ficou aguado. Vou almoçar no clube, mas só daqui a uma hora. Muito obrigada.

Lizzie desviou o olhar para a limonada e tentou, tentou mesmo – tinha Deus como testemunha – não se imaginar afogando a mulher naquela coisa.

– Avisarei o senhor Harris para que ele mande alguém…

– Ah, mas ele é muito ocupado. E você mesma pode dar um pulo lá dentro… Você é tão prestativa. – A mulher voltou ao iPhone com a capinha da Universidade de Charlemont. – Onde eu estava? Ah, então, eles a levaram pela porta da frente. Quero dizer, com toda a sinceridade, consegue imaginar?

Lizzie se aproximou, pegou o jarro e voltou a cruzar o terraço branco na direção do gramado.

– Será um prazer.

Será um prazer.

Ah, sim, e como. Mas era isso o que você devia dizer quando alguém da família lhe pedia alguma coisa. Era a única resposta aceitável. E certamente melhor que “Que tal se eu pegar essa limonada e enfiá-la onde o sol não alcança, sua miserável filha de uma…?”.

– Ah, Lisa! Virgem, ok? Obrigada.

Lizzie apenas continuou em frente, lançando mais uma granada de “Será um prazer” por sobre o ombro.

Aproximando-se da mansão, teve que escolher sua via de entrada. Como membro do staff, não tinha permissão de entrar pelas quatro entradas principais: a da frente, a lateral da biblioteca, a dos fundos da sala de jantar e a dos fundos da sala de jogos. E era “desencorajada” a usar outras portas que não as da cozinha e da sala de utensílios, ainda que tivesse permissão se estivesse fazendo as três distribuições semanais de buquês pela casa.

Escolheu a porta que estava no meio do caminho entre a sala de jantar e a cozinha porque se recusava a dar toda a volta até a entrada de funcionários. Pisando no interior fresco, manteve a cabeça abaixada, não porque se preocupasse em irritar alguém, mas porque tinha esperanças e rezava para entrar e sair sem ser flagrada por…

– Fiquei pensando se a encontraria hoje aqui.

Lizzie congelou como um ladrão pego em flagrante e sentiu lágrimas ameaçando cair nos cantos dos olhos. Mas não iria chorar.

Não diante de Lane Baldwine.

E não por causa dele.

Aprumando os ombros, ergueu o queixo… e começou a se virar.

Antes de se deparar com os olhos de Lane pela primeira vez desde que o mandara para o inferno ao fim do relacionamento deles, Lizzie entendeu três coisas: um, sua aparência seria exatamente a mesma de antes; dois, isso não seria uma boa notícia para ela; e três, se tivesse um pouco de cérebro dentro da cabeça, colocaria aquilo que ele lhe fizera quase dois anos antes em autolooping e não pensaria em nada mais.

Autoconfiança, um lugar agradável…

Ah, merda, ele ainda tinha que ser assim tão bonito?

Lane não se lembrava muito da experiência de entrar em Easterly pela primeira vez desde o que o parecia ser uma eternidade.

Nada ficou muito registrado. Não a imponente porta de entrada com suas aldravas em forma de cabeça de leão e seu painel preto reluzente. Não o vestíbulo do tamanho de um campo de futebol e todos os quadros a óleo dos Bradford do passado e do presente. Não o candelabro de cristal ou os candeeiros de ouro, nem os tapetes orientais vermelho rubi ou as pesadas cortinas de brocado. Tampouco a sala de estar e o salão de baile em lados opostos.

A elegância sulista de Easterly, aliada à eterna fragrância cítrica do antigo lustra-móveis, era como um belo terno que, uma vez no corpo, não se percebia no resto do dia porque foi feito sob medida por um alfaiate, moldando-se ao seu esqueleto e músculos. Para ele, não houve nenhuma estranheza ao entrar ali: era uma imersão total em águas mansas, à temperatura ideal. Era como respirar o ar parado, com a umidade perfeita. Era como um cochilo ao estar sentado numa poltrona de couro do clube.

Esse era, ao mesmo tempo, seu lar e seu inimigo e, muito provavelmente, não sentiu nada porque estava oprimido por emoções que reprimia.

No entanto, notou cada detalhe a respeito do seu reencontro com Lizzie King.

A colisão aconteceu bem quando ele passava pela sala de jantar à procura daquela pela qual ele viajara.

Ah, Deus, pensou. Ah, bom Deus.

Depois de ter apenas confiado em suas lembranças por tanto tempo, estar diante de Lizzie era a diferença entre uma passagem descritiva e a coisa real – e seu corpo reagiu de pronto, o sangue bombeando, todos aqueles instintos dormentes não apenas despertando, mas explodindo em suas veias.

O cabelo dela ainda era loiro por causa do sol, não pelo trabalho de algum cabeleireiro, e estava preso para trás com um laço, as pontas aparadas como uma corda náutica que fora cortada com fogo. Seu rosto ainda estava sem maquiagem, a pele bronzeada e reluzente, a estrutura óssea lembrando-o de que a boa genética era muito melhor que cirurgias plásticas de milhares de dólares. E seu corpo… aquele corpo forte que apresentava curvas onde ele mais apreciava, e a firmeza que testemunhava todo o trabalho físico que ela executava tão bem. Ela estava exatamente como ele se lembrava. Até estava vestida do mesmo modo, com shorts cáqui e a camiseta polo preta com o brasão Easterly bordado.

Seu perfume era Coppertone, e não Chanel. Seus sapatos eram Merrel, não Manolo. Seu relógio era Nike, não Rolex.

Para ele, ela era a mulher mais bela e mais bem-vestida que já vira.

Infelizmente, aquele olhar também permanecia inalterado.

Aquele que lhe dizia que ela também pensara nele desde a sua partida.

Mas não de uma maneira boa.

Lane movia a boca, percebendo que pronunciava uma combinação de palavras, mas não as acompanhava. Imagens demais se infiltravam em seu cérebro, todas as lembranças do passado: o corpo nu de Lizzie em meio aos lençóis revoltos, o cabelo emaranhado em seus dedos, suas mãos entre as pernas dela. Em sua mente, ele a ouvia pronunciar-lhe o nome enquanto a penetrava fundo, balançando a cama até que a cabeceira se chocasse contra a parede…

– Sim, eu sei por que veio – ela disse num tom neutro.

Pense em diferentes ondas cerebrais. Ele estava desequilibrado até as pontas dos seus Gucci, revivendo o relacionamento deles, e ela estava completamente impassível diante da sua presença.

– Você já a viu? – ela perguntou. Depois franziu o cenho. – Oi?

Que diabos ela estava falando? Ah, sim.

– Fiquei sabendo que ela já voltou do hospital.

– Cerca de uma hora atrás.

– Ela está bem?

– Ela saiu daqui numa ambulância com uma máscara de oxigênio. O que você acha? – Lizzie relanceou na direção para onde estava indo. – Olha, preciso pedir licença, tenho que…

– Lizzie – ele disse em voz baixa. – Lizzie, eu…

Como ele não concluiu a frase, ela se mostrou aborrecida.

– Faça um favor e nem pense em terminar essa frase, ok? Apenas vá vê-la e… e faça o que veio fazer, está bem? Me deixe fora disso.

– Nossa, Lizzie, por que você não quer me ouvir…?

– “Por que eu deveria?” é a pergunta correta.

– Porque pessoas civilizadas são gentis umas com as outras…

E BUM! Começaram a discutir.

– O que disse? – ela exigiu saber. – Só porque moro do outro lado do rio e trabalho para a sua família, isso faz de mim uma espécie de símio? Mesmo? Vai começar por aí?

– Não foi isso o que eu quis dizer…

– Ah, mas eu acho que foi mesmo…

– Eu juro – ele murmurou –, esse seu orgulho…

– O que tem ele, Lane? Está se mostrando de novo? É isso? Sinto muito, você não pode distorcer as coisas como se fosse eu quem tem problemas. Isso é com você. Sempre foi com você.

Lane ergueu as mãos.

– Não consigo falar com você. E eu só quero explicar…

– Quer fazer uma coisa por mim? Ótimo, maravilha. Segure isto aqui. – Ela enfiou o jarro pela metade com o que lhe pareceu ser uma limonada. – Leve-o para a cozinha e peça para alguém enchê-lo. Depois, mande alguém levá-lo de volta à piscina, ou, quem sabe, leve você mesmo… para a sua esposa.

Dito isso, ela girou e saiu pela porta mais próxima. E enquanto atravessava o gramado em direção à estufa, Lane não conseguia decidir o que o atraía mais: bater a cabeça na parede, quebrar o jarro no chão ou uma combinação dos dois.

Escolheu a quarta opção.

– Maldição, filha de uma… merda…

– Senhor? Posso ajudá-lo?

Ante o sotaque britânico, Lane relanceou para um homem de cerca cinquenta anos que se vestia como se fosse um recepcionista de uma funerária.

– Quem diabos é você?

– Harris, senhor. Sou Newark Harris, o mordomo. – O homem se curvou na altura da cintura. – Os pilotos foram gentis o bastante para nos telefonar e avisar que o senhor estava a caminho. Posso cuidar da sua bagagem?

– Não trouxe nenhuma.

– Pois não, senhor. Os seus aposentos estão arrumados, e caso necessite de algo, será um prazer providenciar o que o senhor necessitar.

Ah, não, Lane pensou. Nada disso, ele não ia ficar – ele sabia muito bem qual final de semana se aproximava, e o objetivo da sua visita não tinha nada a ver com o circo armado do Derby.

Empurrou o jarro nas mãos do senhor Engomadinho.

– Não sei o que tem aqui dentro e não me importo. Apenas reabasteça e leve-o para o seu devido lugar.

– Será um prazer, senhor. O senhor precisará de…

– Não, é só isso.

O homem pareceu surpreso quando Lane passou por ele e partiu para a ala da casa reservada à criadagem. Mas, obviamente, o inglês não o questionou. O que, levando em consideração o seu humor, não apenas era adequado à etiqueta de um mordomo, como também se enquadraria numa questão de autopreservação.

Dois minutos dentro daquela casa. Dois malditos minutos.

E já estava em ponto de bala.


“Onde estão as rosas? Precisamos de mais rosas!”

“Pedi mais dez dúzias. Onde elas estão?”

“Eu te digo, estamos com problemas.”

“Pode ser.”

Julepo de menta é uma bebida feita de uísque, açúcar, gelo moído e hortelã. Mimosa é um coquetel feito com três partes de vinho espumante e duas partes de suco de laranja gelado, tradicionalmente servido em uma taça alta chamada flute. (N.E.)

“Precisamos pagar todas as peônias”

“Espero que um piano caia sobre a cabeça desse idiota.”

 

QUATRO

Lane marchou pela imensa cozinha industrial e foi imediatamente surpreendido pelo “barulho olfativo” e pelo silêncio do auditório. Mesmo havendo uma bela dúzia de chefs inclinados sobre as bancadas de aço inoxidável e sobre os enormes fogões, nenhum dos homens em seus dolmãs brancos conversava enquanto trabalhava. Alguns poucos ergueram o olhar, reconhecendo-o e parando o que quer que estivessem fazendo. Lane ignorou os “Oh, meu Deus!”. Àquela altura, já estava acostumado quando o olhavam duas vezes só para se certificarem de que era ele mesmo, sua reputação o precedia por toda a nação havia muito tempo.

Obrigado, Vanity Fair, pelo artigo sobre a família uma década atrás. E pelos que vieram depois disso. E tinha as especulações dos tabloides. Sem falar no que aparecia na internet.

O que acontecia quando o status de celebridade, com o menor denominador comum embalado pela mídia, fisgava você?

Não havia mais como se livrar.

Conforme avançava na direção da porta com a placa de PARTICULAR, viu-se colocando a camisa para dentro, ajeitando a calça e alisando os cabelos. Queria ter se permitido um tempo para tomar banho, se barbear e trocar de roupa.

E queria muito que seu reencontro com Lizzie tivesse sido um pouco melhor. Como se ele precisasse de outra coisa na cabeça agora.

Bateu na porta baixinho, respeitosamente. Mas a resposta que conseguiu não foi nada respeitosa: – Pra que é que você está batendo? – exclamou uma voz feminina com forte sotaque sulista.

Lane franziu o cenho e empurrou a porta. E parou de pronto.

A senhorita Aurora estava junto ao fogão, o cheiro forte de óleo e os estalos do frango fritando na frigideira subiam pelo ar. Seus cabelos estavam puxados para cima num rabo de cachos negros e pequeninos, e ela usava o mesmo avental que ele vira nela no dia em que partira para o norte.

Ele só conseguiu piscar e se perguntar se alguém lhe pregara uma peça.

– Ora, ora, não fique parado aí – ela ralhou. – Lave as mãos e pegue as bandejas. Só deve demorar uns cinco minutinhos.

Certo, ele esperava encontrá-la deitada na cama com o lençol a cobrir-lhe o peito, com um brilho fraco no olhar enquanto aguardava que seu amado Jesus viesse buscá-la.

– Lane, mexa-se, ainda não morri.

Ele esfregou o alto do nariz quando uma onda de exaustão o acometeu.

– Sim, senhora.

Quando fechou a porta atrás de si, procurou por sinais de fraqueza física naqueles ombros e pernas fortes. Não encontrou nenhum. Não havia absolutamente nada naquela mulher de sessenta e cinco anos que sugerisse que ela fora parar no pronto-socorro naquela mesma manhã.

Ok, então estava num impasse, ele concluiu, espiando a comida que ela tinha preparado. Um impasse entre se sentir aliviado… e furioso por ter perdido tempo para ir até ali.

De uma coisa ele tinha certeza: não iria embora antes de comer. Em parte porque ela o amarraria numa cadeira e o forçaria a se alimentar, mas principalmente porque, no instante em que sentiu aqueles aromas, seu estômago roncou a valer.

– Você está bem? – ele tinha que perguntar.

O olhar que ela lhe lançou sugeria que, se ele continuasse naquele caminho, ela ficaria mais do que feliz em socá-lo até ele fechar a matraca.

Entendido, senhora, ele pensou.

Atravessando o cômodo, descobriu que as bandejas nas quais eles dois comiam estavam exatamente onde as vira pela última vez: num dos cantos, apoiadas entre o móvel da TV e uma prateleira de livros. O par de poltronas também estava no mesmo lugar, cada uma diante de uma janela alta, com paninhos de crochê sobre o encosto da cabeça.

Fotos de crianças estavam espalhadas por toda a parte, em diferentes porta-retratos, e em meio aos rostos morenos e belos, também havia alguns rostos brancos: ali estava ele na sua formatura do jardim de infância; seu irmão Max fazendo um gol num jogo de lacrosse; sua irmã, Gin, num vestido branco, como leiteira numa peça escolar; seu irmão mais velho, Edward, de terno e gravata no seu último ano na Universidade da Virgínia.

– Bom Deus, você está magro demais, menino – murmurou a senhorita Aurora enquanto mexia numa panela que ele sabia estar cheia de vagem com cubos de bacon. – Eles não têm comida lá em Nova York?

– Não como esta, senhora.

O som que ela emitiu no fundo da garganta foi como o de um velho Chevrolet com escapamento ruim.

– Pegue os pratos.

– Sim, senhora.

Descobriu que suas mãos estavam tremendo quando pegou dois pratos no armário e os ouviu batendo um contra o outro. Ao contrário da mulher que lhe dera a luz – que sem dúvida estaria “descansando” num torpor medicinal do tipo “Não sou viciada porque o médico me receitou essas pílulas” –, a senhorita Aurora sempre parecera não ter a idade que tinha e ser forte como uma heroína. O que fazer com a ideia de que o câncer tivesse voltado?

Inferno. Para início de conversa, ele não aceitava que ela tivesse passado por isso da primeira vez. Mas não se enganava. Aquele devia ser o motivo de ela ter desmaiado.

Depois de pegar os talheres e os guardanapos, colocando-os nas bandejas, e de ter servido copos de chá, foi até as poltronas e se sentou na da direita.

– Você não devia estar cozinhando – ele disse quando ela começou a servir os pratos.

– E você não devia ter ficado longe por tanto tempo. O que deu em você?

Ela definitivamente não está à beira da morte, ele pensou.

– O que o médico disse? – ele perguntou.

– Na minha opinião, nada que valesse a pena. – Ela trouxe todo tipo de comida celestial. – Agora fique quieto e coma.

– Sim, senhora.

Hummm, bom Jesus, pensou ele ao olhar para o prato. Quiabo frito. Miúdo de porco. Bolinhos de batata. Vagens naquele cozido de bacon. E frango frito.

Quando o estômago dele roncou alto, ela gargalhou.

Mas ele não. E, de repente, teve que limpar a garganta. Isso era seu lar. Essa comida, preparada especificamente por essa mulher, era seu lar. Ele comera exatamente o que estava neste prato durante toda a sua vida, especialmente antes de sua mãe se afastar de tudo, quando ela e seu pai sumiam cinco noites por semana para socializar. Doentes ou saudáveis, felizes ou tristes, no calor ou no frio, ele e seus irmãos sentavam-se naquela cozinha com a senhorita Aurora e se comportavam bem, para não se arriscarem a levar um tapinha no cocuruto.

Nunca houve nenhum encrenqueiro na cozinha da senhorita Aurora.

– Vá em frente – ela disse com suavidade. – Não deixe esfriar.

Ele atacou a comida e gemeu com a primeira garfada, que explodiu em sabores na sua boca.

– Hum, senhorita Aurora…

– Você precisa voltar pra casa, menino. – Ela balançou a cabeça ao se sentar com o próprio prato. – Aquela coisa lá do norte não é pra você. Não sei como aguenta o clima… muito menos as pessoas.

– Então, vai me contar o que aconteceu? – perguntou, indicando a bolinha de algodão e o esparadrapo na curva do braço dela.

– Não preciso daquele carro que comprou pra mim. Foi o que aconteceu.

Ele limpou a boca.

– Que carro?

Os olhos negros se estreitaram.

– Não tente brincar comigo, menino.

– Senhorita Aurora, a senhora estava dirigindo um pedaço de… hum, sucata. Não vou tolerar esse tipo de coisa.

Ele podia distinguir o sotaque sulista ficando mais forte em sua voz. Não demorou muito, demorou?

– O meu Malibu está muitíssimo bom…

Foi a vez de Lane encará-la.

– Era um carro barato, pra início de conversa, e tinha mais de cem mil quilômetros rodados.

– Não entendo por q…

– Senhorita Aurora, não vou deixar que dirija aquela lata velha. Lamento.

Ela o encarou com determinação suficiente para abrir um buraco em sua testa, mas como ele não recuou, ela abaixou o olhar. E assim era a natureza do relacionamento deles. Dois teimosos, nenhum deles querendo ceder um milímetro sequer.

– Não preciso de um Mercedes – ela murmurou.

– Com tração nas quatro rodas, senhora.

– Não gosto da cor. É profana.

– Besteira. É vermelha da UC e a senhora adora.

Mesmo que ela tenha resmungado uma vez mais, ele sabia. Ela adorava o carro novo. A irmã dela, a senhorita Patience, ligara para ele e lhe dissera que a senhorita Aurora vinha dirigindo o E350 4Matic para cima e para baixo pela cidade. Claro, a senhorita Aurora nunca lhe telefonara para agradecer, e ele já esperava que ela protestasse – ela sempre fora orgulhosa demais para aceitar qualquer coisa de graça.

Mas a senhorita Aurora também não queria aborrecê-lo; e ela sabia que ele estava certo.

– Mas, então, o que aconteceu hoje cedo… – Já não era mais uma pergunta. Não perguntaria mais nada.

– Só fiquei um pouco tonta.

– Disseram que desmaiou.

– Estou bem.

– Disseram que o câncer voltou.

– Quem são eles?

– Senhorita Aurora…

– Meu Senhor e Salvador já me curou antes e vai me curar de novo. – Ela levantou uma palma para o céu e fechou os olhos. Depois olhou para ele. – Vou ficar bem. Já menti pra você antes, menino?

– Não, senhora.

– Agora coma.

A ordem calou a boca dele pelos próximos vinte minutos.

Lane já estava terminando o segundo prato quando teve que perguntar: – A senhora o tem visto ultimamente?

Não havia motivo para especificar de quem estava falando. Edward. Todos se referiam a “ele” em vozes sussurradas.

O rosto da senhorita Aurora se fechou.

– Não.

Houve mais um longo período de silêncio.

– Vai procurá-lo enquanto estiver aqui? – ela perguntou.

– Não.

– Alguém tem que fazer isso.

– Não vai fazer nenhuma diferença. Além do mais, tenho que voltar pra Nova York. Só vim aqui pra ver como a senhora estava…

– Você vai até ele. Antes de voltar para o norte.

Lane fechou os olhos. Depois de um instante, disse:

– Sim, senhora.

– Bom menino.

Depois do terceiro prato, Lane lavou a louça, e teve que ignorar o fato de que a senhorita Aurora parecia não ter comido nada. A conversa se voltara para os sobrinhos e sobrinhas dela, para os irmãos e irmãs, onze ao todo, e o pai dela, Tom, que por fim falecera aos oitenta e seis anos.

Ela se chamava Aurora Toms porque era uma entre os vários filhos de Tom. Havia boatos que, além dos doze que tivera com a esposa, existiam inúmeros outros fora do casamento. Lane encontrava o homem na igreja de Aurora de tempos em tempos; ele tinha sido grandioso, tão sulista quanto o Mississipi, tão carismático quanto um orador e tão belo quanto o pecado.

Embora não quisesse ser arrogante, Lane sabia que sempre fora o predileto dela, e imaginava que Tom era o motivo pelo qual ela o mimava tanto: assim como aconteceu com seu pai, também diziam que Lane era mais bonito do que lhe faria bem, e ele também tivera sua época de mulherengo. Quando tinha seus vinte e poucos anos, Lane estivera pau a pau com o bom e velho senhor Toms.

Lizzie o curara disso tudo. Mais ou menos como uma barragem que detém um carro a toda velocidade.

– Suba e cumprimente a sua mãe antes de ir embora, também – disse a senhorita Aurora, depois que ele lavou, enxugou e guardou os pratos e os talheres.

Deixou a frigideira e as demais panelas no fogão. Sabia que era melhor não tocar nelas.

Girando, dobrou o pano de prato e se recostou contra a pia de aço inoxidável.

Da sua poltrona, ela levantou a mão.

– É melhor vocês todos pararem de…

– Senhorita Aurora…

– Não me diga que voou mais de mil quilômetros só pra olhar pra mim como se eu fosse uma inválida. Não faz nenhum sentido.

– A sua comida fez a viagem valer a pena.

– Isso é verdade. Agora vá ver a sua mãe.

Eu já vi, ele pensou, olhando para ela.

– Senhorita Aurora, vai ter ajuda para o Derby?

– O que acha que é aquele monte de bobalhões ali na minha cozinha?

– É muita coisa pra fazer. Não me diga que a senhora não fica ali dando ordens.

O conhecido olhar se cravou nele, mas foi só isso que ele recebeu e isso o assustou. Normalmente, ela se levantaria da poltrona e o empurraria porta afora. Em vez disso, permaneceu sentada.

– Vou ficar bem, menino.

– É melhor mesmo. Sem você, não tenho ninguém pra me manter na linha.

Ela murmurou alguma coisa bem baixinho e fixou o olhar acima do ombro dele, enquanto ele esperava calado.

Por fim, gesticulou para que ele se aproximasse, e ele obedeceu de pronto, atravessando o piso de linóleo e se ajoelhando diante da sua poltrona. Uma das mãos, uma das lindas, fortes e negras mãos dela, se esticou e alisou o cabelo de Lane.

– Precisa cortar isso.

– Sim, senhora.

Ela lhe tocou o rosto.

– Você é bonito demais para o seu próprio bem.

– Como acabei de dizer, a senhora tem que ficar por perto pra me manter na linha.

A senhorita Aurora assentiu.

– Pode contar com isso. – Houve uma longa pausa. – Obrigada pelo meu carro novo.

Ele pressionou um beijo na palma dela.

– De nada.

– E você precisa se lembrar de uma coisa. – Seus olhos, aqueles olhos negros que o fitaram quando ele era menino, adolescente, jovem… até se tornar um homem crescido, vasculharam seu rosto, como se ela estivesse tomando nota das mudanças que o passar dos anos causara nas feições que ela conhecia por mais de trinta anos. – Tenho você e tenho Deus. Sou mais rica do que poderia sonhar… Entendeu, menino? Não preciso de um Mercedes. Não preciso de uma casa luxuosa e de roupas elegantes. Não tem nenhum buraco em mim que precisa ser preenchido… Entendeu?

– Sim, senhora. – Fechou os olhos, pensando que ela era a mulher mais nobre que já conhecera.

Isto é, ela e Lizzie.

– Entendo o que quer dizer, senhora – ele disse, rouco.

Aproximadamente uma hora depois do episódio da limonada com Lane, Lizzie saiu da estufa com dois grandes arranjos. A senhora Bradford sempre insistira em ter flores frescas nos cômodos sociais e em todos os quartos ocupados, e esse padrão fora preservado mesmo depois que ela se recolhera à sua suíte havia três anos, ali permanecendo. Lizzie gostava de imaginar que se continuasse com esse costume, talvez a Pequena V.E., como a família a chamava, voltasse a aparecer e ser a dona da casa.

Easterly tinha bem uns cinquenta cômodos, mas muitos deles eram escritórios, aposentos e banheiros de funcionários, ou cozinha, adega, salas de imprensa, ou quartos desocupados que não necessitavam das flores. Os buquês do primeiro andar estavam em ordem; ela já os inspecionara e retirara uma rosa murcha na noite anterior. Aquelas flores frescas iriam para o vestíbulo do piso superior e para o quarto do senhor Baldwine. O vaso da senhora Bradford só deveria ser trocado no dia seguinte, bem como o de Chantal e…

Será que Lane ficaria no quarto da esposa?

Provavelmente, e isso lhe provocou ânsias.

Seguindo para a escada dos empregados, os dois vasos de prata pesavam-lhe nos braços e pulsos, enrijecendo-lhe os bíceps, mas ela seguiu em frente. A queimação não duraria muito tempo, e descansar em algum lugar só prolongaria a tarefa.

O corredor de cima era tão longo quanto uma pista de corrida de cavalos, bifurcando-se numa espécie de sala de estar, seguindo para um total de vinte e uma suítes que se abriam em cada um dos lados. Os aposentos do senhor Baldwine ficavam ao lado dos da esposa, ambos com vista para o jardim e o rio. Uma porta unia os dois closets, mas ela sabia que nunca era usada.

Pelo que sabia, depois do nascimento dos filhos, aquela parte do relacionamento deles não fora “retomada”, para usar um vocábulo mais sutil.

Assim que começara a trabalhar em Easterly, confundia-se com os nomes, e certa vez referira-se à senhora Bradford pelo seu nome de casada, senhora Baldwine. Inaceitável. Fora corrigida pelo encarregado dos funcionários: a dona da mansão Bradford seria chamada de “senhora” e de “Bradford”, pouco importando qual fosse o sobrenome do marido.

Confuso. Até ela perceber que marido e mulher tinham vidas separadas, assim como seus aposentos. Portanto, havia um senhor Baldwine com uma suíte em tons de azul-marinho e pesadas antiguidades em mogno, e uma senhora Bradford com uma suíte em tons pastéis, mobília Luís XIV e uma cama de dossel.

Na verdade, talvez os dois tivessem algo em comum: ele se escondia no escritório no centro de negócios; ela, em seus aposentos.

Loucura.

Lizzie seguiu para a escada curva e formal e trocou o buquê da mesa de centro da área social. Depois foi em frente e parou diante da suíte do senhor Baldwine. Bateu duas vezes na madeira e esperou, apesar de saber que não havia ninguém no interior. Todas as manhãs, ele ia para o centro de negócios ao lado da propriedade e só regressava às sete da noite para o jantar.

Colocou o arranjo floral da sala de estar no chão, girou a maçaneta, empurrou a porta e avançou até uma cômoda antiga que deveria pertencer a um museu. Não havia nada de muito errado com as flores ali, mas nada tinha permissão de perecer em Easterly. Ali, naquele casulo de riqueza, não se permitia que existisse entropia.

Enquanto trocava os vasos, ouviu vozes no jardim e foi até as janelas. Mais de uma dúzia de homens haviam chegado, carregando pesados rolos de lona branca e grandes postes de alumínio, que, com força humana e um tanto de hidráulica, formariam a tenda de 12 por 24 metros do Brunch do Derby.

Maravilha. Chantal provavelmente chamaria o senhor Harris nesse mesmo instante para reclamar que a zona de não sobrevoo fora violada. Se um membro da família ou um convidado estivesse usando a piscina, a casa da piscina, ou quaisquer um dos terraços, todos os trabalhos tinham que ser interrompidos no jardim e todos os trabalhadores tinham que evacuar a área até que a Sua Alteza tivesse concluído seu lazer.

A boa notícia? Greta já estava ali, controlando os homens. A má notícia? A alemã devia estar ordenando que eles montassem tudo bem ao lado de onde Chantal estava.

Deliberadamente.

Temendo um confronto, Lizzie se virou…

E parou quando uma centelha de cor chamou sua atenção.

– Mas o quê…?

Inclinando-se para baixo, ficou sem saber exatamente para o que estava olhando. Assim como todo o resto em Easterly, o quarto de William Baldwine era imaculado, todos os objetos e pertences estavam onde deveriam estar, todas as armas de um poderoso homem de negócios estavam guardadas em gavetas, organizadas em prateleiras, à espera dele em um closet imenso.

Portanto, o que era aquele pedaço de seda cor de pêssego entre a cabeceira e a parede?

Bem, ela podia imaginar.

E a lingerie não devia ser de Virginia Elizabeth Bradford Baldwine.

Lizzie não via a hora de sair do quarto. Foi até a porta, abriu-a e…

– Ah, mas eu estou tãããão feliz em ver vocêêêê!

O sotaque arrastado sulista pareceu um arranhado em uma lousa, mas o pior foi olhar para a direita e ver Chantal Baldwine lançando os braços ao redor do pescoço de Lane e se pendurando nele.

Fantástico. Os dois estavam entre ela e a escadaria dos funcionários.

– Não consigo acreditar que tenha me feito esta surpresa! – A mulher recuou um passo e fez uma pose, como se quisesse que ele lhe desse uma bela olhada. – Eu estava na piscina, mas subi porque as pessoas que vão armar a tenda chegaram. Resolvi sair para liberar a área.

Não é que você merece um prêmio por seu coração de ouro, querida?, Lizzie pensou. E você não estava a caminho do clube?

Lizzie se virou para seguir para a escadaria principal e fugir. Mesmo que fosse contra as regras, seria melhor que ter que passar por…

Como se soubesse disso, o senhor Harris surgiu com a senhora Mollie, a chefe da arrumação. O mordomo inglês passava o dedo pelo corrimão da balaustrada e o erguia para inspecionar, balançando a cabeça.

Maravilha.

Suas únicas saídas eram: brasas quentes ou uma fogueira acesa. Ou voltar para se esconder no quarto em que o senhor Baldwine traía a esposa.

Ah, as escolhas da vida…

Às vezes, ela simplesmente amava seu emprego.

 

CINCO

Destilaria de Bourbon Bradford, Condado Ogden

Edwin “Mack” MacAllan Junior caminhava ao longo da pilha de barris de bourbon de doze metros de altura, as botas de couro feitas à mão ressoando contra o antigo piso de concreto. O aroma das centenas de tábuas de madeira e dos milhões de litros de bourbon envelhecendo era tão agradável ao seu olfato quanto um perfume feminino.

Pena que estivesse irritado demais para apreciar direito.

Em seu punho, ele trazia um memorando corporativo todo amassado; as letras no papel branco eram irrecuperáveis. Teve que ler o maldito texto três vezes, e não só porque a leitura era um obstáculo insuperável para o seu cérebro disléxico.

Ele não era nenhum caipira. Nascera e fora criado numa família culta, frequentara a Universidade Auburn, e sabia tudo sobre fabricar bourbon e sobre os processos químicos envolvidos naquela arte intangível.

Na verdade, ele era o Mestre Destilador da marca de bourbon de maior prestígio no mercado, filho do Mestre Destilador mais respeitado na história da indústria de bebidas.

Mas, naquele instante, queria entrar na sua F-150 de meia tonelada e invadir a recepção do escritório de William Baldwine em Easterly. Em seguida, queria pegar seu rifle de cem anos de idade e fazer alguns buracos nas escrivaninhas dos idiotas corporativos.

Parando de súbito, recostou-se e fitou as prateleiras que se estendiam pelo armazém de teto de vigas expostas. Os códigos e as datas queimados diante dos barris tinham sido colocados em ordem ali primeiro pelo seu pai, e depois por ele mesmo, e havia uma progressão lógica. Os preciosos contêineres descansavam em paz por quatro anos, por dez anos, por vinte anos, e até mais. Inspecionava-os com regularidade, ainda que dispusesse de pessoas em número mais que suficiente para fazer exatamente isso. Mas, em sua opinião, aqueles eram os únicos filhos que teria, e não permitiria que crescessem aos cuidados do equivalente a uma babá.

Aos trinta e oito anos, era um solitário, tanto por escolha quanto por necessidade. Aquele trabalho – aquele trabalho de vinte e cinco horas por dia, oito dias por semana – era a sua esposa e a sua amante, a sua família e o seu legado.

Portanto, receber aquele memorando, que encontrara sobre sua mesa ao entrar, era como assistir a um motorista embriagado batendo de frente na minivan que continha toda a sua existência.

A receita do bourbon era algo verdadeiramente simples: uma mistura de grãos que, de acordo com as leis do Kentucky, tinha que conter um mínimo de cinquenta e um por cento de milho. Ali na Destilaria de Bourbon Bradford, adicionava-se a isso uma combinação de centeio, malte de cevada, e cerca de dez por cento de trigo, para dar um sabor mais suave; água, captada de um aquífero subterrâneo de pedra calcária; e levedura. Em seguida, depois que a mágica acontecia, o bourbon era colocado em barris de carvalho branco, queimados por dentro e deixados para se transformarem em armazéns bonitos e fortes como aquele.

Era só isso. Todo fabricante de bourbon tinha que trabalhar com esses cinco elementos: grãos, água, levedura, barril e tempo. Mas, assim como Deus conseguira criar uma variedade de pessoas a partir dos mesmos elementos centrais, também cada família ou empresa produzia diferentes nuances do mesmo produto.

Esticando o braço, apoiou a mão em um dos barris arredondados que enchera logo que se tornara mestre, quase dez anos atrás, embora trabalhasse para a empresa desde os catorze anos. Substituir o pai sempre fora o plano, mas o velho morrera cedo demais, e ali estava ele. Mack fora abandonado para nadar sozinho, e não tinha a menor intenção de morrer afogado.

Portanto, sim, ali estava ele, no auge do sucesso e ainda jovem o suficiente para criar uma dinastia própria, supostamente trabalhando para a aristocracia dos produtores de bourbon, a empresa que criara o Bourbon Perfeito.

Era o slogan para tudo o que a CBB fazia, a filosofia de marketing, de negócios e de fabricação.

Portanto, como, em nome de Deus, a administração esperava que ele aceitasse atrasos na entrega de grãos? Era como se aqueles idiotas com MBA não entendessem que, por mais que tivessem produtos de quatro anos em quantidade suficiente hoje, se não enchessem os silos, acabariam sem estoque desse tipo de bourbon em quarenta e oito meses; e isso se aplicava aos demais níveis, que esgotariam em dez, vinte anos…

Ele sabia exatamente para onde estavam indo. A redução na produção de milho, resultado do aquecimento global que desequilibrara o padrão climático no último verão, significava que o preço do alqueire estava na estratosfera. Mas não seria sempre assim. Obviamente, os contadores de moedas do escritório central, também conhecido como propriedade do senhor Baldwine, resolveram poupar uns trocados freando a produção nos meses seguintes, esperando recuperá-la quando o preço do milho se autorregulasse.

Desde que a seca que abalara a nação no ano anterior não se repetisse.

Havia muitas falhas na lógica desse “negócio”, mas a questão principal era que aqueles engravatados não entendiam que este bourbon não era um produto fabricado numa linha de montagem, com um interruptor de liga e desliga. O bourbon era um processo – era o auge e a expressão de inúmeras tentativas e erros –, refinado ao longo de duzentos e cinquenta anos: você tinha que cultivar o paladar do bourbon, encontrar os sabores e o equilíbrio, guiar os elementos até seu ápice… E, depois, enviar para os seus consumidores sob o rótulo distintivo. Inferno. Ele se orgulhava de resguardar a marca registrada no 15, o maior sucesso da empresa, ainda que fosse a linha mais barata, assim como fizera com os produtos mais dispendiosos e mais antigos, como o Black Mountain, o Bradford I e o mais que exclusivo Reserva de Família.

E se interrompesse a produção agora? Sabia muito bem que eles o procurariam em seis meses, ordenando que modificasse as datas dos barris.

Seis meses para os engravatados era apenas metade de um ano, vinte e seis semanas, duas estações.

Mas para o seu paladar… Ele conseguia distinguir um bourbon de nove anos e meio e um de dez anos e um dia. Talvez muitos dos clientes deles não percebessem a diferença, mas a questão não era essa, certo? E o fato de que vários de seus concorrentes adulteravam as datas de forma regular? Esse não era um padrão a ser seguido.

Se Edward estivesse ali, pensou, não teria que se preocupar com isso. Edward Baldwine era a raridade dentro da família Bradford – um verdadeiro destilador, o regresso a uma era de linhagem augusta, um homem que valorizava o produto. Mas o presumível herdeiro do trono já não estava mais envolvido com a companhia.

Portanto, não havia como recorrer a ele.

E o memorando sobre a sua mesa? Era o modo típico como as coisas vinham sendo resolvidas desde a tragédia com Edward. Os covardes do centro de negócios sabiam que ele surtaria, mas não tinham coragem de ir até lá para lhe contar pessoalmente. Nada disso. Simplesmente escreva um memorando e jogue por cima dos outros papéis como se não afetasse em cheio o cerne dos negócios.

Mack voltou a fitar as vigas de madeira de lei centenária. Aquele era o armazém mais antigo da empresa, utilizado para abrigar os barris mais especiais. Ficava localizado ao lado do armazém original, que hoje servia tanto de museu para turistas como de escritório. Este lugar era um maldito santuário.

A alma do seu pai perambulava pelos corredores.

Mack estava convencido de que sentia o velho junto aos seus calcanhares naquele mesmo instante.

Estava convencido também de que, em um dia tranquilo como este, quando suas únicas companhias ali no armazém eram a luz do sol que se infiltrava pelas janelas empoeiradas, o som das suas botas sobre o concreto e a neblina da parte dos anjos10 que evaporava… ele era um dos poucos defensores da tradição deixada pela companhia.

Os jovens que surgiam – mesmo aqueles que desejavam ocupar o seu posto – professavam amor pelos rituais e pelos fundamentos e clamavam estar comprometidos com o processo, porém eram apenas subordinados corporativos que vestiam calças cáqui em vez de ternos. Eram de uma geração de flocos de neve especiais, que esperavam receber troféus só por terem aparecido, e esperavam que tudo fosse fácil e que todos cuidassem deles e os protegessem, como faziam os seus pais.

Eles tinham tanta profundidade quanto seus perfis do Facebook. Ou seu egoísmo inesgotável e suas frivolidades sem alma.

Em comparação aos fundadores daquela empresa, que protegeram seu produto em meio à fome e à guerra, em meio à doença e à Grande Depressão… nos tempos da Proibição, pelo amor de Deus! Eles eram apenas meninos tentando fazer o trabalho de um homem.

Eles só não sabiam disso. E, com uma cultura corporativa como aquela, jamais saberiam.

– Mack?

Ele olhou por sobre o ombro. A sua secretária, Georgie O’Malley, que cuidara do escritório de seu pai antes que ele morresse, aproximou-se por trás dele sem fazer som algum. Aos sessenta e quatro anos, ela já estava na empresa havia quarenta e um, sem dar nenhum indício de que estava diminuindo o ritmo. Autoproclamada esposa de fazendeiro, porém sem marido nem fazenda, era um espírito aliado na luta contra a atual corrente que dizia que tudo era descartável.

– Tudo bem, Mack?

Mack ergueu o olhar para as janelas, vendo os vapores da parte dos anjos subindo aos céus.

A parte dos anjos era sagrada: cada um dos barris de carvalho era queimado por dentro antes de ser preenchido com duzentos litros de bourbon. Armazenados num local como aquele, num ambiente que, propositadamente, não era climatizado, a madeira dos barris se expandia e se contraía sazonalmente, e o bourbon dentro deles se coloria e adquiria sabor com os açúcares caramelizados provindos da madeira queimada.

Uma parte significativa evaporava e era absorvida pelos barris com o decorrer do tempo.

Essa era a parte dos anjos.

Seu pai a considerava o sacrifício pelo passado, a porção que ia para os criadores, para que eles bebessem no Paraíso. Também era uma antecipação à própria morte… e a esperança de que o próximo guardião da tradição fará o mesmo por você quando você já tiver morrido.

– Não vai sobrar nada para nós, Georgie – ele se ouviu dizer.

– Do que você está falando?

Ele apenas meneou a cabeça.

– Quero que mande os rapazes fecharem os silos.

– O quê?

– Você me ouviu. – Mack levantou o punho para que ela visse o papel amassado. – A corporação parou as encomendas de milho dos próximos três meses. No mínimo. Vão avisar quando poderemos fazer mais mistura. Qualquer centeio, cevada e trigo que tenhamos deve ser redesignado.

– Redesignado? O que isso quer dizer?

– Eles não podem vender para um concorrente. E se isso parar nos ouvidos de pessoas como os Sutton? Ou da imprensa? Vai fazer com que os dez centavos que eles pouparam se tornem o maior erro financeiro da história da empresa.

– Nunca paramos a produção.

– Não. Não desde a Proibição… E, mesmo assim, foi só pra fingir.

Houve uma longa pausa.

– Mack… o que eles estão fazendo?

– Eles vão arruinar esta empresa, é o que estão fazendo.

Aproximou-se da mulher.

– Vão acabar com a gente com a desculpa de maximizar o lucro. Ou, inferno, talvez estejam preparando um OPI, finalmente. Todos os outros produtores de bourbon têm ações na bolsa, exceto os Sutton. Talvez estejam tentando inflar os lucros artificialmente antes de uma venda particular. Não sei, e não quero saber. Mas tenho a mais absoluta certeza de que Elijah Bradford está se revirando dentro do caixão.

Conforme ele seguia para a saída, ela o chamou.

– Aonde você vai?

– Encher a cara. Com muita, muita cerveja.


Durante o processo de envelhecimento, pelo menos 2% do uísque armazenado nos barris evapora através do carvalho. As destilarias se referem a essa porção como a “parte dos anjos”. (N.T.)

 

SEIS

Parado diante da porta do seu quarto ao fitar sua “esposa”, Lane pensou que, assim como Easterly, ela era a mesma. Chantal Blair Stowe Baldwine era, de fato, exatamente a mesma: mesmo corte de cabelo, bronzeado artificial, maquiagem, roupas caras cor-de-rosa. Tudo idêntico ao que ele deixara para trás. Inclusive a voz dela… que parecia a da protagonista Distinta Dama Sulista do Entretenimento.

Ela ainda tagarelava muito, palavras saíam de sua boca numa torrente sem considerar racionamento em benefício do ouvinte. Mas, pensando bem, a conversa era para ela uma forma de arte; suas mãos se movimentavam como as asas de uma pomba, arqueando-se para cima e para baixo, exibindo aquele imenso diamante do qual ela tanto fez questão, que reluzia como uma luz estroboscópica.

– … fim de semana do Derby! Claro, Samuel Theodore Lodge vem hoje à noite. Gin está tão animada em vê-lo…

Inacreditável. Fazia literalmente dois anos que não se viam, tampouco se falavam, e ela estava discorrendo sobre a lista de convidados para o jantar.

O que diabos um dia ele viu nela…

– Ah, Lisa! Com licença, você pode, por favor, pedir que o senhor Harris traga o carro do senhor Baldwine? Vamos almoçar no clube.

Lisa?, ele pensou. Mas, como de hábito, os empregados estavam sempre mudando por ali desde que…

Lane relanceou por cima do ombro. Lizzie estava parada diante da porta do quarto de seu pai, segurando dois vasos com flores perfeitas, que sem dúvida tinham acabado de ser substituídos.

– O senhor Harris está logo ali – Lizzie informou com frieza.

– Não gosto de gritar. Não é apropriado. – Chantal se inclinou para ela, como se fossem duas amigas partilhando um segredo. – Muito obrigada. Você é tão obsequi…

– Você enlouqueceu? – Lane perguntou, irritado.

Chantal se encolheu, a cabeça virando para trás, os olhos passando de ingênuos a matadores num piscar dos cílios postiços e lindos.

– O que disse? – Chantal sussurrou para ele.

Lane tentou capturar o olhar de Lizzie enquanto falava.

– Vá você mesma falar com ele.

Lizzie se recusava a olhar para ele. Com uma impassível expressão profissional, avançou, com passadas longas e elegantes, seguindo pelo longo corredor até a escada dos empregados. Nesse meio-tempo, Chantal voltou a falar.

– … falar comigo nesse tom diante da criadagem – ela sibilou.

– O nome dela é Lizzie, não Lisa. – Agora era ele quem se inclinava. – E você sabe disso, não sabe?

– O nome dela é irrelevante.

– Ela está aqui há mais tempo que você. – Ele sorriu com frieza. – E estou disposto a apostar como vai continuar a aqui depois que você se for.

– E o que isso deveria significar?

– Você não tem que ficar debaixo deste teto e sabe disso muito bem.

– Sou a sua esposa.

Lane a encarou de cima, e ficou se perguntando por que diabos ela ainda estava em sua vida. A resposta fácil era que ele vinha fingindo que Charlemont não existia. A mais complexa estava ligada ao que ela fizera.

Sou a sua esposa.

– Não por muito tempo – ele retrucou num tom baixo.

As sobrancelhas bem desenhadas dela se ergueram e, no mesmo instante, a expressão de gato irritado sumiu; ela ficou calma e tranquila, como a imagem de uma pintura.

– Não vamos discutir, querido. A nossa reserva no clube é para daqui a vinte minutos…

– Deixe-me ser bem claro. Não vou a parte alguma com você. A não ser para o escritório de um advogado.

Pela visão periférica, ele notou que o senhor Newark ou Harris – qualquer que fosse o nome do mordomo – estava dando meia-volta discretamente, levando a senhora Mollie, a governanta, na direção oposta.

– Fala sério, Tulane.

Deus, como ele odiava o seu nome nos lábios de Chantal: Tooooouuuuuulaaaayne. Pelo amor de Deus, eram três sílabas, e não trezentas.

– Estou falando sério – ele disse. – Está na hora de terminarmos isto.

Chantal inspirou fundo.

– Você está chateado por causa da pobre senhorita Aurora e está dizendo coisas que não sente. Entendo isso. Ela é uma excelente cozinheira… E é muito, muito difícil encontrá-las hoje em dia.

Os molares dele travaram.

– Você acha que ela é apenas uma cozinheira.

– Está me dizendo que ela é contadora?

Deus, por que ele…

– Aquela mulher significa mais para mim do que a que me pariu.

– Não seja ridículo. Além do mais, ela é negra…

Lane agarrou o braço de Chantal e a puxou para perto de si.

– Nunca mais fale dela dessa maneira. Nunca bati numa mulher antes, mas garanto que acabo com a sua vida se a desrespeitar.

– Lane, você está me machucando!

Naquele instante, ele percebeu que havia uma criada parada diante da porta de um dos quartos de hóspedes, com os braços tomados por toalhas dobradas. Quando ela abaixou a cabeça e seguiu em frente, ele empurrou Chantal. Ajeitou as calças. Encarou o tapete no chão.

– Acabou, Chantal. Se é que você ainda não percebeu.

Ela uniu as mãos como se estivesse rezando, e ele não acreditou nem por um segundo. O sofrimento falso na voz dela tampouco o comoveu quando ela sussurrou: – Acredito que precisamos cuidar do nosso relacionamento.

– Concordo. Este nosso casamento precisa sair desse estado miserável. É assim que cuidaremos dele.

– Você não pode estar falando sério.

– Ao inferno que não estou. Contrate um bom advogado ou não. De todo modo, você vai sair daqui.

Lágrimas. Grandes e grossas, que fizeram os olhos azuis dela brilharem como uma piscina.

– Você sabe ser muito cruel.

Não como ela sabia, ele pensou, nem de perto. E, pelo amor de Deus, ele deveria ter dado seguimento ao acordo pré-nupcial, mas que pena, que tristeza, tanto fazia àquela altura. A boa notícia era que sempre haveria mais dinheiro; mesmo que ela lhe arrancasse milhões, ele conseguiria recuperar em um ou dois anos.

– Vou falar com a minha mãe – ele disse. – E depois ligar para Samuel T. Talvez ele consiga lhe servir a papelada junto ao seu jantar hoje à noite.

E, simples assim, aqueles olhos tornaram-se implacáveis mais uma vez.

– Arruinarei você e sua família se for em frente com isso.

O que ela não sabia era que já arruinara a sua vida. Ela lhe custara Lizzie… e muito mais. Mas, maldição, aquilo tudo teria um fim.

– Cuidado, Chantal. – Ele não desviou o olhar. – Faço qualquer coisa, dentro ou fora da lei, para proteger o que é meu.

– Isso é uma ameaça?

– Apenas um lembrete de que sou um Bradford, minha cara. E nós cuidamos do que é nosso.

Afastando-se da mulher, Lane bateu à porta do quarto da mãe. Mesmo sem obter resposta, adentrou a perfumada suíte, fechando a porta atrás de si.

Cerrou os olhos, e precisou de um segundo para aplacar a fúria antes de enfrentar aquele reencontro dúbio. Precisava apenas de um segundo para se recompor. Apenas…

Quando ergueu as pálpebras, deparou-se com mais um cenário que não fora alterado.

O quarto branco e creme da mãe estava como sempre, as janelas imensas com vista para os jardins adornadas com cortinas elegantes de seda, quadros de Maxfield Parrish reluzentes como joias usadas pelas paredes, antiguidades francesas delicadas, preciosas demais para que fossem utilizadas como assento ou deixadas nos cantos. Mas nada disso era o ponto focal, por mais impressionante que fossem.

A cama de dossel do lado oposto era a verdadeira obra de arte. Tão resplandecente e maravilhosa quando o Baldaquino da Basílica de São Pedro, de Bernini. A compacta plataforma do tamanho de um barco tinha colunas entalhadas que se erguiam ao céu e uma grinalda de seda rosa-clara. E lá estava ela, Virginia Elizabeth Bradford Baldwine, deitada tão imóvel e preservada quanto uma santa, o corpo alto e magro escondido numa profusão de mantas de cetim e travesseiros, o cabelo loiro claro perfeitamente penteado, e o rosto maquiado, apesar de ela não estar indo a parte alguma e sequer estar consciente.

Ao lado dela, sobre uma cômoda bombê de tampo de mármore, havia uma dúzia de frascos de remédios com rótulos brancos dispostos em filas bem ordenadas, como um pelotão de soldados. Ele não fazia a mínima ideia do que havia dentro deles e, muito provavelmente, nem ela sabia.

Ela era a Sunny von Büllow11 sulista, a não ser pelo fato de que seu marido jamais tentara matá-la. Pelo menos não fisicamente.

O maldito provocara outros tipos de dano, porém.

– Mamãe – ele disse ao se aproximar. Quando chegou perto, segurou a mão fria e seca, de pele fina como papel e veias saltadas. – Mãe?

– Ela está repousando – informou uma voz.

Uma mulher com cerca de cinquenta anos, cabelos ruivos e um uniforme de enfermeira branco e cinza se aproximou, vindo do closet. Ela combinava perfeitamente com a decoração, e ele não desconsideraria a possibilidade de a mãe tê-la contratado exatamente por isso.

– Sou Patty Sweringin – ela se apresentou, estendendo a mão. – Você deve ser o jovem senhor Baldwine.

– Lane. – Ele apertou a mão dela. – Como mamãe tem passado?

– Repousando. – O sorriso era tão rígido e profissional quanto o uniforme dela. – Ela teve uma manhã cheia. O cabeleireiro veio tingir o cabelo.

Ah, sim, a confidencialidade. O que significava que ela não tinha permissão de lhe contar a condição de saúde da sua mãe. Mas não era culpa da enfermeira. E se sua mãe ficara exausta apenas porque arrumaram seu cabelo? Como é que ele achava que ela estava?

– Quando ela acordar, diga que… – Relanceou para a mãe.

– O que devo dizer, senhor Baldwine?

Ele pensou em Chantal.

– Vou ficar aqui alguns dias – replicou com seriedade. – Eu mesmo lhe direi isso.

– Pois não, senhor.

De volta ao corredor, ele fechou a porta e se recostou nela. Fitando um e outro retrato dos Bradford, descobriu que o passado voltava como uma picada de abelha.

Rápido e doloroso.

– O que está fazendo aqui?

Lizzie perguntara para ele no jardim, na escuridão, numa noite úmida e quente de verão. Acima, nuvens de tempestade tinham obscurecido a luz do luar, deixando as flores em broto e as árvores nas sombras.

Ele se lembrava de tudo; como ela ficara diante dele contra a parede de tijolos, com as mãos apoiadas nos quadris, o olhar fixo enfrentando o dele com uma firmeza a que ele não estava acostumado, seu uniforme de Easterly tão sexy quanto qualquer peça de lingerie que ele já tivesse visto.

Lizzie King tinha capturado a sua atenção desde a primeira vez que a vira na propriedade da família. E a cada regresso durante os recessos semestrais na faculdade, ele se via procurando por ela, buscando por ela, tentando se colocar em seu caminho.

Deus, ele adorava a perseguição.

E a captura também não era nada ruim.

Claro, ele não teve muitas experiências depois disso… e nem queria.

– E então? – ela exigiu saber. Como se, caso ele não entrasse logo no assunto, ela fosse começar a bater o pé no chão, e o movimento seguinte seria derrubá-lo por desperdiçar o seu tempo.

– Vim atrás de você.

Espere, não era isso. Ele quis dizer que viera vê-la. Para conversar com ela. Para olhá-la de perto.

Mas essas quatro palavras também eram verdadeiras. Ele queria saber qual era o sabor dela, como ela ficaria debaixo dele, o que…

Ela cruzou os braços diante do peito.

– Olha só, vou ser bem franca com você.

Lane deu um leve sorriso.

– Gosto de franqueza.

– Não acho que você vai continuar pensando assim depois que eu tiver acabado com você.

Opa, agora ele estava ficando excitado. Era curioso; isso não o teria aborrecido se ele estivesse com uma das mulheres com quem costumava se divertir. Mas ficar ali diante daquela mulher em particular com uma necessidade premente de ajustar as calças lhe pareceu… de mau gosto.

– Vou poupá-lo de perder seu tempo. – Ela manteve a voz baixa, como se não quisesse que ninguém os ouvisse, mas isso não diminuía o peso da mensagem. – Não estou, nem nunca estarei, interessada em alguém como você. Você não passa de um garoto levado que se diverte provocando o caos com o sexo oposto. Esse tipo de coisa era entediante quando eu tinha quinze anos, e levando em consideração que estou chegando aos trinta este ano, me sinto ainda menos atraída pela situação. Portanto, faça um favor: vá para o seu clube de campo, encontre uma dessas loiras junto à piscina e a transforme em mais uma esteira para você se exercitar por vinte minutos. Você não vai conseguir isso de mim.

Ele piscou como um idiota.

E pensou que o fato de estar tão chocado por alguém chamar sua atenção de tal maneira provava que ela estava certa.

– Agora, se me der licença, vou para casa. Estou trabalhando desde as sete horas da manhã.

Esticando a mão, ele a segurou pelo braço quando ela se virou.

– Espere.

– Como é? – Ela abaixou o olhar para o local em que mantinham contato e depois o fitou nos olhos. – A menos que seja algo relacionado às flores do jardim, você não tem nada a me dizer.

– Vai me dar uma chance de me defender? Ou vai só dar uma de juíza e me julgar?

– Você não está falando sério.

– Você sempre foi assim tão preconceituosa?

Ela se afastou da pegada dele.

– Antes isso do que ser ingênua. Ainda mais com um homem como você.

– Não acredite em tudo o que vê nos jornais…

– Ora, por favor. Não preciso ler nos jornais, eu vejo em primeira mão. Duas delas saíram ontem de manhã pelos fundos da casa. Na noite em que chegou, trouxe uma ruiva de um bar. E disseram que você foi fazer um check-up na quarta-feira, mas voltou com um chupão no pescoço, provavelmente adquirido quando a médica pediu para você virar a cabeça e tossir? – Ela o interrompeu quando ele fez menção de responder, ao levantar a palma na frente do rosto dele. – E antes que pense que estou mantendo esse lindo registro de conquistas porque sinto alguma atração por você, saiba que é porque as empregadas ficam prestando atenção em tudo isso e não param de comentar.

– Vai me dar a chance de falar? – ele rebateu. – Ou vai continuar este monólogo? Jesus, e você acha que eu é que sou o metido.

– O quê?

– Você acha que eu sou mimado? Bem, você está me deixando para trás nesse quesito, minha querida.

– Como é?

– Você resolveu que sabe tudo a meu respeito só porque um punhado de pessoas, que também não me conhecem, ficam falando de coisas sobre as quais não sabem nada. Isso é bastante arrogante.

– Não é sinônimo de mimada.

– Quer mesmo discutir lexicografia comigo?

Certo, o fato de estarem discutindo não deveria ser algo excitante, mas para o inferno se não era. Para cada rebatida, ele se via olhando menos para o corpo e mais para os olhos dela, o que a deixava ainda mais sexy.

– Olha só, a gente pode parar por aqui? – ela disse. – Tenho que voltar quase de madrugada para cá e esta conversa não é mais importante do que o meu sono.

Dessa vez, quando ela se virou, ele a deteve com a voz.

– Vi você perto da piscina ontem.

Ela o encarou por cima do ombro.

– Sim, eu estava arrancando ervas daninhas. Algum problema com isso?

– Você estava me medindo. Eu percebi.

Touché, ele pensou quando a viu piscar.

– Eu estava na piscina – ele sussurrou, dando um passo para se aproximar. – E você gostou do que viu, não gostou? Mesmo que odeie quem acha que eu sou, gostou do que viu.

– Você está enganado.

– Franqueza. Foi você quem mencionou isso antes. – Ele se inclinou, virando a cabeça de lado como se fosse beijá-la. – Então, tem coragem de ser franca?

As mãos dela remexeram no colarinho da camisa polo.

– Não sei do que está falando.

– Mentirosa. – Ele sorriu. – Por que acha que fiquei lá fora tanto tempo? Foi por sua causa. Gostei que estivesse admirando o meu corpo.

– Você está louco.

Deus, a negativa falsa dela foi ainda melhor do que o último orgasmo que teve com um boquete.

– Estou? – Concentrou-se nos lábios dela e, em sua mente, estava beijando-os, lambendo-os, puxando-a para junto de si. – Acho que não. E estou mais para mulherengo do que para covarde.

E foi assim que ele a deixou.

Virou-se no caminho de tijolos, e seguiu para a casa, deixando-a para trás.

Mas ele sabia, a cada passo, que ela não conseguiria deixar as coisas naquele pé.

Da próxima vez, ela o procuraria…

E, claro, foi o que aconteceu.


A história verídica de Sunny von Büllow, socialite americana que ficou 28 anos em estado vegetativo, inspirou o filme O reverso da fortuna (1990), dirigido por Barbet Schroeder. (N.E.)

 

SETE

– Desculpe, o que disse?

Lizzie falava, fitando as flores no vaso que segurava, sem conseguir se lembrar o que deveria fazer com elas… Ah, sim, colocá-las num balde até o fim do expediente para depois enrolá-las num papel toalha umedecido e depois num saco plástico, e levá-las para casa.

– Pode repetir? – pediu, olhando para o outro lado da estufa onde Greta estava.

– Eu estava falando em inglês dessa vez, sabe?

– Só estou meio distraída.

– O pessoal da tenda está exigindo pagamento antecipado. Ou vão desmancharr tudo o que arrmarram até agorra.

– O quê? – Lizzie abaixou o buquê ao lado dos vasos de prata vazios. – É uma nova política deles?

– Acho que sim.

– Vou falar com Rosalinda, então. Sabe qual é o montante?

– Doze mil, quatrrocentos e cinquenta e nove e setenta e dois centavos.

– Um instante, preciso anotar isso. – Lizzie apanhou uma caneta. – Pode repetir?

Anotou o valor na palma da mão, e olhou para o jardim. O pessoal da tenda tinha acabado de esticar a lona e estava começando a distribuir os postes enquanto alguns costuravam seções com cordas grossas.

Em mais duas horas eles terminariam. Três no máximo.

– Ainda estão trabalhando – murmurou.

– Não porr muito tempo. – Greta voltou a limpar as flores cor-de-rosa. – O escrritório deles ligou, dizendo que estão prreparrados parra voltarr parra o caminhão.

– Não há razão para surtar por causa disso – murmurou Lizzie, saindo.

O escritório de Rosalinda Freeland ficava na ala da cozinha, e ela tomou a rota externa mais longa porque estava cansada de esbarrar em Lane.

Estava no terraço, na metade do caminho, passando pelas portas francesas que davam para a sala de jantar quando olhou na direção do centro de negócios.

As instalações foram montadas onde costumavam ficar os estábulos e, assim como a estufa, tinham vista para o jardim e o rio. A arquitetura da estrutura combinava perfeitamente com a de Easterly, e a área total devia ser a mesma da mansão. Com uma dúzia de escritórios, uma sala de reuniões do tamanho de uma sala de aula de universidade, e cozinha e sala de jantar próprias, William Baldwine comandava a empresa produtora de bourbon da esposa a partir de um complexo de primeira linha.

Quase não se via gente à toa por aquelas partes, mas, pelo visto, alguma coisa estava acontecendo porque havia um grupo de pessoas de terno parado no terraço do lado de fora da principal sala de reuniões, fumando e conversando num enclave fechado.

Estranho, ela pensou. O senhor Baldwine era fumante, por isso era improvável que aquelas pessoas tivessem sido banidas para o terraço apenas para fumarem em paz.

De fato, ela reconheceu a única mulher não fumante naquele bolo. Era Sutton Smythe, herdeira da fortuna da Destilaria Sutton Corporation. Lizzie nunca a vira pessoalmente, mas muito se publicara sobre aquela mulher – era muito provável que ela se tornaria, na década seguinte, a cabeça de uma das maiores destilarias do mundo.

A bem da verdade, já parecia que ela era a chefe, com aqueles cabelos escuros penteados e o terno preto sério e caríssimo. Ela era mesmo uma mulher notável, com feições atrevidas e um corpo curvilíneo que poderia colocá-la no território das mulheres de negócio mais sexy do país, caso quisesse jogar tal jogo, o que, evidentemente, não era o caso.

Contudo, o que estaria fazendo ali?

Falando em dormir com o inimigo…

Lizzie meneou a cabeça e atravessou a porta dos fundos da cozinha. O que quer que estivesse acontecendo ali, não era problema seu. Ela estava muito, mas muito abaixo naquele totem, apenas tentando erguer uma tenda para os seus arranjos florais.

Uau.

Quantos chefs juntos!, ela pensou ao desviar dos homens e mulheres de chapéus altos e dólmãs brancos que acabariam com escoliose por ficarem tanto tempo curvados enrolando mil folhas e coisinhas recheadas com cogumelos.

Atrás de todos aqueles Gordon Ramsays, havia uma pesada porta vai e vem que se abria para um corredor simples repleto de armarinhos, a lavanderia e a sala de descanso das arrumadeiras, assim como os aposentos do mordomo, da organizadora e a escada dos empregados.

Lizzie seguiu até a porta da direita, que tinha uma plaquinha onde se lia PARTICULAR e bateu uma vez. Duas. Três vezes.

Considerando que Rosalinda era eficiente e pontual como um relógio, ela não devia estar ali. Talvez tivesse ido ao banco.

– … verificaremos novamente dentro de uma hora – dizia o senhor Harris ao entrar no corredor do lado oposto, acompanhado pela governanta. – Obrigado, senhora Mollie.

– O prazer é meu, senhor Harris – a mulher mais velha murmurou.

Lizzie fitou o mordomo enquanto a governanta se afastava.

– Temos um problema.

Ele parou diante dela.

– Sim?

– Precisamos entregar mais de doze mil para a empresa que aluga a tenda e a senhora Freeland não está aqui. Você pode emitir cheques?

– Eles precisam de doze mil dólares? – ele perguntou em seu sotaque cortante. – Mas por que motivo?

– Para o aluguel da tenda. Imagino que seja uma nova política da empresa. Nunca exigiram isso antes.

– Mas estamos falando de Easterly. Temos uma conta com eles desde a virada do século e eles farão uma exceção. Permita-me.

Girando sobre os sapatos bem lustrados, ele seguiu para os seus aposentos, sem dúvida para telefonar para a empresa.

Se ele conseguisse dar um jeito naquilo e Lizzie tivesse a sua tenda e as mesas, até que valeria a pena aguentar a sua atitude arrogante.

Além disso, se o pior acontecesse, Greta poderia assinar um cheque.

Duas coisas eram certas: Lizzie não pediria a Lane, e eles precisavam daquela tenda. Em menos de 48 horas, o mundo viria até a propriedade, e nada irritava mais os Bradford do que qualquer coisa fora do lugar.

Enquanto aguardava o mordomo retornar, todo triunfante em seu terno de pinguim, apoiou-se na parede de gesso lisa e fresca e se descobriu pensando na decisão mais idiota que tomara na vida…

Ela deveria ter deixado toda essa coisa para lá.

Depois que o temido Lane Baldwine a procurara à noite, no jardim, ela deveria ter deixado a discussão deles de lado. Por que diabos se importava se ele estava errado a seu respeito? Como aquele idiota ridículo, insano e egocêntrico podia ser assim? Ela não lhe devia nenhuma explicação para que o mundo voltasse ao seu eixo; além disso, isso não aconteceria sem o auxílio de uma marreta.

Não que ela não fosse apreciar uma tentativa nesses termos.

Mas o problema era que, entre os seus defeitos, estava a necessidade paralisante de não ser mal interpretada pelo clone de Channing Tatum.

Portanto, ela tinha que esclarecer o assunto. E, de fato, falou com ele durante todo o caminho até a sua casa naquela noite. Assim como no trajeto de volta a Easterly na manhã seguinte. E durante toda a semana que se seguiu.

No fim, acabou se convencendo de que ele a estava evitando: pela primeira vez desde que voltara para casa, fazia sete dias consecutivos que não o via. O lado bom, se é que era possível interpretar dessa forma, é que ninguém viu mulheres entrando e saindo da casa em horas estranhas em combinações pornográficas. O lado ruim era que agora ela estava com todos os discursos preparados, se arriscando a revelar exatamente quanto tempo desperdiçara gritando com ele em sua cabeça.

E Lane, sem dúvida, permanecia em Easterly. O seu Porsche – como se ele fosse dirigir qualquer outra coisa – ainda estava na garagem, e toda vez que era forçada a levar flores para o quarto dele, ela sentia a fragrância da colônia no ar e via a carteira ao lado das abotoaduras de ouro sobre a cômoda.

Ele estava jogando com ela. E por mais que ela detestasse admitir, estava funcionando. Sentia-se cada vez mais frustrada e mais determinada a encontrá-lo.

O homem era um mestre com as mulheres, isso mesmo.

O maldito.

E com mais um buquê de flores frescas em mãos, ela seguiu pela escada dos fundos até o quarto dele. Não esperava encontrá-lo ali, mas, de algum modo, a ideia de entrar no espaço dele e lançar alguns ataques verbais bem escolhidos oferecia um pouco de alívio. Quando bateu à porta, foi uma batida exigente, e depois de um instante, ela empurrou…

Lane estava ali.

Sentado na beira da cama. A cabeça entre as mãos, o corpo encurvado.

Ele não olhou para a porta.

Não parecia ter notado que havia alguém ali.

Lizzie pigarreou uma vez. Duas.

– Com licença. Preciso trocar as flores.

– Ah, obrigado. Muita gentileza sua.

Evidentemente, ele não parecia saber o que estava dizendo a ela. Os bons modos pareceram apenas um reflexo, o equivalente verbal de quando levamos uma martelada de borracha no joelho.

Isso não é da sua conta, ela resmungou para si mesma, conforme avançava na direção da cômoda.

A troca levou apenas um segundo, e logo ela tinha em suas mãos o arranjo imperceptivelmente murcho, voltando para a porta entreaberta. Aconselhou a si mesma para não olhar para ele enquanto saía. Até onde podia saber, seu cão de caça predileto podia estar com micose… ou talvez a namorada na Virgínia descobrira os trabalhos extracurriculares que ele vinha fazendo em Charlemont.

O maior erro aconteceu quando ela chegou à soleira.

Mais tarde, quando a situação explodiu em seu rosto, depois que superara suas paredes de autopreservação e se queimara, ela se convenceria de que, se simplesmente tivesse ido em frente, teria ficado bem. Suas vidas não teriam se chocado, deixando-a coberta de estilhaços.

Mas Lizzie olhou para ele.

E teve que abrir a boca uma vez mais:

– O que aconteceu?

Os olhos de Lane se ergueram.

– O que disse?

– Qual é o seu problema?

Ele apoiou as mãos nos joelhos.

– Sinto muito.

Ela esperava ouvir outra coisa.

– Pelo quê?

Ele fechou os olhos e abaixou a cabeça de novo.

E mesmo sem emitir som algum, ela soube que ele estava chorando.

E isso foi algo que ela não esperava de alguém como ele.

Quis preservar a privacidade dele, e fechou a porta.

– O que aconteceu? Estão todos bem?

Lane meneou a cabeça, inspirou fundo e se recompôs.

– Não. Nem todos.

– É a sua irmã? Ouvi dizer que ela está passando por…

– Edward. Eles o levaram.

Edward…? Deus, ela via o homem na propriedade de tempos em tempos, e ele parecia a última pessoa que alguém “levaria”. Ao contrário do pai, cujo escritório ficava em Easterly, Edward trabalhava no quartel general da CBB no centro da cidade e, pelo pouco que sabia, ele era o oposto de Lane, um homem de negócios muito sério e extremamente agressivo.

– Desculpe, mas acho que não estou conseguindo entender muito bem…

– Ele foi sequestrado na América do Sul, o resgate está em negociação. – Ele esfregou o rosto. – Não consigo nem imaginar o que estão fazendo com ele… Já se passaram cinco dias desde o primeiro contato. Jesus Cristo, como isso foi acontecer? Era para ele estar protegido lá. Como permitiram que isso acontecesse?

Então, ele estremeceu e a encarou.

– Você não pode dizer nada a ninguém. Nem Gin sabe disso. Estamos abafando o caso para que a imprensa não descubra.

– Não vou contar. Quero dizer, não direi nada a ninguém. As autoridades estão envolvidas?

– O meu pai está trabalhando com eles. Isto é um pesadelo… Eu falei para ele não ir para lá.

– Sinto muito. – Que declaração mais infeliz. – Posso fazer alguma coisa?

O que também era outra combinação infeliz de palavras.

– Devia ter sido eu – Lane murmurou. – Ou Max. Por que não poderia ter sido um de nós? Não servimos para nada. Devia ter sido um de nós.

A próxima coisa que ela se lembra foi de ter apoiado o vaso em algum lugar e ter se aproximado da cama.

– Posso pegar algo para você?

Sentou-se ao lado dele e levantou a mão para pousá-la no seu ombro, mas pensou melhor e…

Um celular tocou na mesinha de cabeceira, e quando ele não se mexeu para atender, ela perguntou: – Não quer atender?

Quando ele não respondeu, ela se inclinou para o lado, apanhou o telefone e mostrou a tela para ele. Chantal Blair Stowe.

– Acho que é a sua namorada.

Ele deu uma olhada de esguelha.

– Não, não quero falar com ela. E ela não é minha namorada.

Ela sabe disso?, Lizzie se perguntou ao recolocar o aparelho sobre a mesa.

Lane balançou a cabeça.

– Edward é o único de nós que vale alguma coisa.

– Não é verdade.

Ele deu uma gargalhada.

– Até parece que não. Não era o que estava me dizendo na semana passada?

De súbito, Lane se concentrou nela, e houve um silêncio estranho, como se só então ele tivesse percebido quem estava no quarto com ele.

O coração de Lizzie começou a bater forte. Havia algo naqueles olhos, algo que ela não vira antes. E que Deus a ajudasse, ela sabia o que era.

Sexo com um playboy não era de seu interesse. Desejo ardente por um homem de verdade? Isso… era algo muito mais difícil de fugir.

– É melhor você ir embora agora – ele disse com a voz contraída.

Sim, ela disse a si mesma, é melhor.

Ainda assim, por algum motivo louco, ela sussurrou:

– Por quê?

– Porque se eu já a desejava quando tudo não passava de um jogo – o olhar dele se concentrou na sua boca –, no meu estado atual, estou desesperado por você.

Lizzie se retraiu. Dessa vez, quando ele riu, foi um som mais grave, mais profundo.

– Você não sabe que o estresse é como o álcool? Ele o torna descuidado, estúpido e faminto. Eu deveria saber, a minha família lida tão bem com isso…

– Está tudo acertado, senhorita King.

Lizzie deu um pulo assustado, arquejando.

– Quê?

O senhor Harris franziu a testa.

– O aluguel da tenda. Já cuidei de tudo.

– Ah, sim, que ótimo. Obrigada.

Ela tropeçou, afastando-se do mordomo. Depois, tomou a direção errada no corredor, indo para a ala social da casa. Antes que o senhor Harris lhe chamasse a atenção, retrocedeu, encontrou uma porta para o lado externo e saiu.

Direto para o jardim.

Bem debaixo da janela do quarto de Lane.

Levando as mãos ao rosto, lembrou-se de como ele a beijara, duas noites depois de ela ter se sentado ao lado dele no quarto.

Fora ela a procurá-lo, sem a desculpa das flores dessa vez. Ela esperou pelo tanto que conseguiu e então, deliberadamente, foi até o quarto de Lane ao fim da jornada de trabalho para ver como ele estava, o que estava acontecendo e se houvera alguma resolução.

Nada vazara para a imprensa àquela altura. Toda a cobertura acontecera depois, quando, por fim, Edward regressara para casa.

Na segunda vez que ela entrara no quarto, batera com mais suavidade. Depois de um momento, ele lhe abriu a porta… e ela ainda conseguia ver o quanto ele envelhecera. Estava magro, com barba por fazer e olheiras profundas. Mudara de roupa, ainda que fossem apenas uma versão diferente do que ele sempre vestia: uma camisa com monograma, só que para fora da calça num dos lados; calças caras, embora estivessem amassadas na dobra do quadril e com as marcas dos joelhos; e sapatos Gucci. Dessa vez, ele estava usando apenas meias escuras.

E isso basicamente lhe contara o que ela precisava saber.

– Venha comigo – ela lhe dissera. – Você precisa sair deste quarto.

Com voz rouca, ele lhe perguntou que horas eram e ela respondeu que passavam das oito. Quando ele pareceu confuso, ela teve que esclarecer que já era noite.

Conduziu-o pela escada dos fundos como se ele fosse uma criança, segurando-o pela mão, sem mencionar nada em especial. A única coisa que ele lhe dissera era que não queria ser visto por ninguém, e ela se certificou para que isso não ocorresse, dirigindo-o para longe das conversas na sala de jantar, mantendo-o distante de olhos curiosos.

Conforme o levava para a noite cálida, ela ouvia risadas vindas da sala de jantar, cômodo no qual a refeição estava sendo servida.

Como podiam fazer aquilo?, ela se perguntara. Ficar jogando conversa fora como se nada tivesse acontecido? Como se um deles não estivesse longe dali, muito longe, em mãos muito perigosas.

Daquela vez, ela não fazia a mínima ideia do que estava fazendo com Lane e do porquê se importava tanto com o sofrimento dele. Só sabia que o playboy de uma faceta que ela rotulara como desperdício tornara-se humano, e que a dor dele era importante para ela.

Não foram muito longe. Apenas até a parede de tijolos, em meio às moitas de flores, além do belvedere do lado oposto ao jardim.

Sentaram-se juntos e não disseram muita coisa. Mas, quando ela lhe tomou a mão, ele a apertou com força, aceitando o que lhe era oferecido.

E quando ele se voltou para ela, Lizzie soube o que ele queria… não era conversar. Houve um momento de congestionamento em seu cérebro, com todos os tipos de: ei, espere, pare, longe demais…

Mas logo ela se inclinou e seus lábios se tocaram.

Os pensamentos eram complicados. Mas a conexão era simples demais.

E não ficou por isso. Ele a segurou, e ela permitiu. Ele colocou as mãos por baixo das suas roupas, e ela deixou.

Em algum momento no meio daquilo tudo, percebeu que o odiava porque se sentia atraída por ele. Loucamente atraída. E o observara sim na piscina naquela tarde, embora fosse muito mais do que isso: toda vez que ele entrava ou saía da casa, tentava espiá-lo, ainda que negasse isso para todos e qualquer um. Notícias de sua chegada iminente a Easterly tinham a capacidade de eletrizá-la, e as suas partidas a entristeciam. E a infeliz realidade era que ela invejara todas aquelas mulheres, as loiras burras com seus corpos perfeitos e sotaques sulistas, que colocavam a notória porta giratória diante do quarto em bom uso.

A verdade que não quisera admitir para si mesma era que encontraria algo para desgostar nele, mesmo que isso não fosse possível.

Não foi o dinheiro dele, ou a família centenária, nem as múltiplas mulheres, a sua aparência bela demais, tampouco o sorriso malicioso.

O que odiava nele era como ele a fazia se sentir. A vulnerabilidade fora uma invasora cruel em sua vida, um hóspede indesejado que se mudara para a sua casa, se infiltrara em seu trabalho e que a perseguia mesmo nos sonhos.

Em retrospecto, deveria ter dado ouvidos ao medo. Escolhido o instinto em vez da incrível atração.

Contudo, a vida nem sempre era sábia.

Às vezes, você não prestava atenção nos sinais de aviso, pisava fundo no acelerador, e saía derrapando no meio da curva, sem poder ver o fim.

E ela ainda sofria por causa da colisão, isso era fato.

 

OITO

Haras Vermelho & Preto, Condado Oglen, Kentucky

O sol começava a se por, e seus raios dourados penetravam a baia aberta do Estábulo B, derramando-se sobre o corredor de concreto e deixando um rastro de pura magia com o feno e partículas de pó misturadas. O som ritmado da vassoura no chão fazia as éguas se aproximarem, os olhos inteligentes e os focinhos graciosos avançando numa pergunta curiosa.

Edward Westfork Bradford Baldwine ia varrendo devagar, visto que seu corpo já não era como outrora. O esforço não era de todo ruim, a dor constante que sentia cedia ante o exercício leve. Contudo, o desconforto crônico retornaria assim que ele parasse ou começasse outra série de movimentos.

Já se acostumara a isso.

A combinação de músculos, ossos e órgãos que o amparavam na jornada da atual encarnação mortal era uma máquina que já não aceitava transições muito bem. Ela preferia atividades arraigadas, esforços repetitivos ou descanso contínuo em qualquer posição. Seus fisioterapeutas, também conhecidos como Sádicos, sugeriram que permanecesse ativo de diversas maneiras, como alguém que, segundo explicaram, tivesse que reativar as ondas cerebrais por meio de terapia ocupacional.

Quanto mais ele mudasse de atividade, melhor seria para a sua “recuperação”.

Ele sempre colocava essa palavra entre aspas. A verdadeira recuperação para ele seria voltar a ser quem ele fora – e isso jamais aconteceria, mesmo se conseguisse andar direito, comer direito, dormir a noite inteira.

Não havia como voltar a ser aquela pessoa, uma versão mais jovem, mais alegre, mais bela de si mesmo.

Ele odiava os Sádicos, mas eles eram uma parte pequena na sua longa lista de ódio. E aquele corpo alquebrado que eles pareciam tão determinados em reabilitar simplesmente não concordava com o programa. Já fazia quanto tempo que ele estava metido naquilo? E ainda havia dor, a eterna dor, a ponto de ser difícil juntar energias para atravessar aquela parede de fogo e chegar onde estava naquele instante, onde as coisas funcionavam com alguma semelhança de ordem.

Era como se ele se deparasse com o mesmo assaltante em cada beco pelo qual passava.

Às vezes, se perguntava se se sentiria menos exausto se houvesse um criminoso diferente de tempos em tempos, um inimigo diverso acabando com a sua qualidade de vida.

No entanto, os assaltos eram sempre executados pelo mesmo ladrão.

– O que está fazendo, menina? – Fez uma pausa para afagar um focinho negro. – Você está bem?

Depois de uma bufada da puro-sangue, Edward seguiu em frente. A época dos cruzamentos fora muito boa, e ele tinha noventa por cento das suas vinte e três éguas prenhas. Se tudo corresse conforme planejado, os potrinhos nasceriam em janeiro do ano seguinte, época crítica para iniciar os trabalhos de parto. Nas corridas, o relógio começava a correr segundo o calendário, não o dia do parto por si só; se você quisesse que um futuro animal de três anos disputasse o Derby o mais maduro e forte possível, era melhor que suas éguas parissem em março no mais tardar, considerando suas gestações de quase um ano.

A maioria das pessoas ligadas às corridas operava num sistema estratificado, onde os criadores ficavam separados dos treinadores iniciantes, que se diferenciavam dos treinadores de corrida. Mas ele tinha dinheiro e tempo suficientes nas mãos, de modo que não apenas criava cavalos, mas também os educava na escola primária em sua fazenda, no ensino fundamental no centro que adquirira no ano anterior, até em vendas massivas para estábulos em Steeplehill Downs em Charlemont e Garland Downs na vizinha Arlington, ali mesmo no Kentucky.

O dinheiro necessário para a criação e o treino era astronômico, e qualquer retorno era apenas uma hipótese, motivo pelo qual os cartéis dos investidores eram tipicamente formados para dividir a exposição e o risco financeiros. Ele, por sua vez, não lidava com cartéis, com coinvestidores ou sócios.

Ainda não perdera tudo. Na verdade, estava quase lucrando. A sua operação, no último ano e meio, tivera resultados admiráveis, tudo graças a Nebekanzer, o seu garanhão – que, por acaso, era o maior e mais malvado filho da mãe com o qual as pessoas já se depararam. No entanto, aquele maldito bastardo gerava filhos e filhas velozes, algo que descobrira quando se mudara ali para o chalé do administrador do Vermelho & Preto, e comprara num leilão o filho do demônio de quatro cascos e três da prole de dois anos de Neb. No ano seguinte? Todos os três descendentes venceram mais de 200 mil por cabeça até abril, e um deles chegara em segundo lugar no Derby, em terceiro em Preakness, e em primeiro em Belmont.

E aquele fora seu ano de debutante, como diziam. Este ano, esperavam que ele se saísse ainda melhor. Ele tinha dois cavalos seus no Derby.

Ambos filhos de Neb.

Ele não poderia dizer que seu coração estava naquele negócio, mas, certamente, era melhor do que ficar sentado ruminando sobre tudo o que perdera.

Assim como todos aqueles cavalos de corrida, ele nascera, fora criado e treinado para um futuro determinado: assumir a Cia. Bourbon Bradford. Mas, tal qual um puro-sangue com uma pata fraturada, esse já não era mais o seu futuro.

– Buenas noches, jefe.12

Edward acenou para um dos seus onze ajudantes do estábulo.

– Hasta mañana.13

Voltou a varrer, abaixando a cabeça.

– Jefe, hay algo aqui.14

– Quem?

– No sé.15

Edward franziu o cenho e usou a vassoura como bengala, claudicando até a porta da baia. Do lado de fora, numa manobra circular, uma limusine preta comprida parava diante do Estábulo A.

Moe Brown, o gerente do haras, caminhou até perto daquela monstruosidade, suas passadas largas diminuindo a distância. Moe tinha sessenta anos, era magro como um poste de cerca e inteligente como um matemático. E também tinha o “olho”: aquele cara conseguia predizer o futuro de um cavalo no instante em que o animal ficava de pé pela primeira vez. Era assustador, e algo inestimável naquele negócio.

E lentamente, com segurança, estava ensinando seus segredos a Edward.

O talento inato de Edward, por sua vez, era o da procriação. Ele simplesmente parecia saber quais linhagens cruzar.

Quando Moe parou ao lado da limusine, um chofer uniformizado saltou e deu a volta para as portas de trás, e Edward meneou a cabeça quando viu de quem se tratava.

Os Pendergast estavam enviando artilharia pesada.

A mulher de cerca de quarenta anos saindo do banco de trás da limusine devia ter um terço do peso de Moe, estava vestida de Chanel cor-de-rosa e tinha mais cabelos que a cauda de Neb. Bela como uma rainha, mimada como um cachorro da Pomerânia, e com uma determinação que faria as Flores de Aço16 saírem correndo para salvar seu dinheiro, Buggy Pendergast estava acostumada a conseguir o que queria.

Por exemplo, uns cinco anos atrás, armara uma jogada e fizera um dos herdeiros de uma família petrolífera largar uma perfeita primeira esposa em seu favor. E, desde então, vinha gastando o dinheiro dele com cavalos puro-sangue.

Edward já lhe dissera não três vezes pelo telefone.

Nada de cartéis. Nada de coinvestidores. Nada de sócios.

Ele trabalhava sozinho e sem interferências externas.

O homem que saiu atrás de Buggy não era o marido dela e, pela maleta que ele segurava, era possível deduzir que era algum tipo de contador. Por certo, não era nenhum segurança – era baixinho demais, e aqueles óculos eram um escoadouro de testosterona, como nunca antes visto por Edward.

Moe começou a falar com eles, e Edward entendeu que a coisa não ia bem. E tudo piorou quando aquela maleta foi sumariamente depositada sobre o capô da limusine e Buggy a abriu com um floreio, como se estivesse levantando a saia, à espera de que todos gemessem em aprovação.

Edward surgiu na luz tardia do sol com sua vassoura-bengala e mau humor. Enquanto se aproximava, Buggy não olhou para ele. E quando ele parou atrás de Moe, ela apenas o fitou com raiva, como se não apreciasse o fato de um ajudante de estábulo testemunhar aquilo tudo.

– … um quarto de milhão de dólares – ela disse – e eu vou embora com o meu potro.

Moe moveu o pedaço de feno que mastigava para o outro lado da boca.

– Acho que não.

– Eu tenho o dinheiro.

– Vocês todos têm que sair desta propriedade…

– Onde está Edward Baldwine? Exijo falar com…

– Estou bem aqui – Edward disse num tom baixo. – Moe, pode deixar que eu cuido disso.

– E Deus nos concede pequenos milagres… – o homem murmurou ao se afastar.

As lentes de contato coloridas de Buggy subiam e desciam, percorrendo o corpo de Edward, e até mesmo seu rosto cheio de Botox revelou o choque que sentiu.

– Edward… você está…

– Um arraso, eu sei. – Indicou o dinheiro. – Feche essa ridícula demonstração, volte para o seu carro e toque a sua vida. Já lhe disse pelo telefone, não vendo o meu rebanho.

Buggy pigarreou.

– Eu… hum… Fiquei sabendo o que aconteceu. Mas não fazia ideia de que…

– Os cirurgiões plásticos fizeram um excelente trabalho no meu rosto. Não concorda?

– Ah… sim. Claro que sim.

– Mas chega de jogar conversa fora. Você está de saída.

Buggy forçou um sorriso no rosto.

– Ora, Edward, há quanto tempo as nossas famílias se conhecem?

– A família do seu marido e a minha se conhecem há mais de duzentos anos. Não conheço a sua família e não faço a mínima questão de conhecer. Estou certo de que você não vai sair daqui com direito sobre qualquer um dos meus potros. Agora, vá. Pode ir.

Quando ele se virou, ela disse:

– Há duzentos e cinquenta mil dólares nessa maleta.

– E isso deveria me impressionar? Minha cara, consigo encontrar um quarto de milhão na almofada do meu sofá, portanto, eu lhe garanto, não estou nem um pouco tentado. E mais especificamente: não estou à venda. Nem por um dólar. Nem por um bilhão. – Voltou-se para o chofer. – Vou pegar a minha espingarda. Ou você vai voltar a se espremer na sua limusine e pedir para que o seu motorista pise fundo?

– Vou contar tudo isso ao seu pai! Isso é um desresp…

– O meu pai morreu para mim. Você pode discutir os meus negócios o quanto quiser com ele, mas adiantará tanto quanto este seu trajeto desperdiçado até o interior. Aproveite o seu fim de semana de Derby… em algum outro canto.

Pressionando o cabo da vassoura, ele começou a bambolear de volta ao estábulo. Em seu rastro, um coro de múltiplas portas se fechando e os pneus da limusine cantando no asfalto sugeriam que a mulher já devia estar ao celular, reclamando com seu marido vinte anos mais velho sobre a maneira vergonhosa como havia sido tratada.

Levando em consideração os boatos de que fora uma dançarina exótica aos vinte anos, ele podia adivinhar que ela fora exposta a coisas muito piores em sua vida prévia.

Antes que voltasse a entrar e retomasse a varrição, contemplou o cenário da sua fazenda: centenas de hectares de gramados verdejantes separados em picadeiros com cercas marrom-escuro. Três estábulos com telhados vermelho e cinza, e laterais pretas com molduras em vermelho. As construções externas para os equipamentos, os reboques de ponta de linha, a casa de fazenda branca onde ele ficava, a clínica veterinária e o picadeiro de exercícios…

Sua mãe era dona de tudo aquilo. O bisavô dela comprara a terra e dera início aos negócios equestres, e depois o avô e o pai dela continuaram a investir no negócio. As coisas desandaram depois que seu avô morrera, vinte anos antes, e Edward jamais considerara se envolver naquilo.

Como filho mais velho, estava destinado a assumir o papel de líder da Cia. Bourbon Bradford e, na verdade, era mais do que um legado ou primogenitura: era onde o seu coração habitava. Em seu sangue, era um destilador, tão escrupuloso com seus produtos quanto um padre o seria.

Então, tudo mudara.

O Haras Vermelho & Preto fora a melhor solução, uma distração que ocupava os seus dias até a hora de se embebedar para dormir. E, melhor ainda, era algo em que seu pai não estava envolvido.

O pouco futuro que tinha estava ali com os gramados e os cavalos.

Era tudo de que ele dispunha.

– Você gostou disso, não gostou? – Moe perguntou atrás dele.

– Não muito. – Passou o peso para o outro lado e recomeçou a varrer o corredor. – Mas ninguém vai ficar com uma parte da minha fazenda, nem mesmo Deus.

– Você não devia falar assim.

Edward olhou por sobre o ombro para lembrar ao homem a aparência do seu rosto.

– Acha mesmo que tenho medo de mais alguma coisa a esta altura?

Enquanto Moe fazia o sinal da cruz, Edward revirava os olhos… e retomava o trabalho.


“Boa noite, chefe.”

“Até amanhã.”

“Chefe, tem alguma coisa aqui.”

“Não sei.”

Referência ao filme Flores de Aço, de 1989, que se passa em uma pequena cidade da Louisiana e narra a história de um grupo de mulheres durante o falecimento de uma delas. A história tornou-se símbolo de lealdade e amizade entre as personagens que, apesar de delicadas como flores, demonstram ser fortes como o aço. (N.E.)

 

NOVE

– … deitada na cama, mexendo nos mamilos. – Virginia Elizabeth Baldwine, “Gin” para a família, se recostou na poltrona acolchoada. – Agora estou colocando a mão entre as pernas. O que quer que eu faça com ela? Sim, estou nua… Como mais eu poderia estar? Diga o que devo fazer.

Bateu o cigarro na taça de vinho de cristal Baccarat que esvaziara uns dez minutos antes e cruzou as pernas por baixo do roupão de seda. Os puxões em seus cabelos eram mais do que incômodos, e ela encarou a cabeleireira pelo espelho do banheiro.

– Hum… sim… – ela gemeu no celular. – Estou tão… molhada… e só pra você.

Ela teve que revirar os olhos quando ele disse que ela era uma boa moça, mas Conrad Stetson gostava justamente disso. Era um homem das antigas: precisava da ilusão de que a mulher com quem traía a esposa lhe era fiel.

Tão tolo.

Gin sentia saudades dos primeiros dias do relacionamento entre eles. Tinha sido difícil atraí-lo e afastá-lo do seu casamento. Ficou encantada com a determinação com que ele lutara contra a atração que sentia por ela, com a vergonha que ele sentiu após o primeiro beijo, com a resistência que ele demonstrou para não lhe telefonar, não vê-la, não procurá-la… E, por uma ou duas semanas, ela, de fato, estivera interessada nele, querendo as atenções dele, uma droga na qual valia a pena se perder.

E depois do sexo? Bem, para início de conversa, era papai e mamãe demais.

– Isso, ai, assim… vou gozar, vou gozar…

Enquanto ela “gozava”, a cabeleireira corava de vergonha, mas continuou a puxar seu cabelo negro. Uma criada vinha do closet com uma bandeja de veludo nas mãos contendo dois conjuntos, um de rubis da Birmânia feitos pela Cartier nos anos 1940, e uma criação em safiras da Van Cleef & Arpels do fim dos anos 1950. Ambos pertenceram à sua avó; um fora dado à Grande Virginia Elizabeth pelo marido no nascimento da mãe de Gin, e o outro fora um presente no vigésimo aniversário de casamento dos avós.

Produziu um som de fastio; depois pressionou o botão do mudo e meneou a cabeça na direção da criada.

– Quero os diamantes Winston.

– Acredito que a senhora Baldwine os esteja usando.

Gin visualizou a cunhada, Chantal, com mais de cem quilates em diamantes impecáveis, e sorriu, falando com lentidão, como se estivesse se dirigindo a uma tola: – Então arranque os diamantes que meu pai deu à minha mãe do pescoço e das orelhas daquela vadia e traga-os para mim.

A criada empalideceu.

– Será… um prazer.

Pouco antes de a mulher sair apressada do quarto, Gin a chamou: – Certifique-se de limpá-los antes. Não suporto o perfume de farmácia que ela insiste em usar.

– Será um prazer.

Referir-se ao Flowerbomb de Vyktor e Rolf como perfume de “farmácia” era um pouco exagerado, embora certamente não fosse nenhum Chanel. Francamente, o que esperar de uma mulher que sequer concluíra a Sweet Briar?

Gin liberou o som do celular.

– Querido, preciso ir. Tenho que me aprontar. Que pena que não está aqui. – Então seguiu-se uma sequência de vozinhas infantis.

Deus, será que ele sempre teve aquele sotaque sulista tão carregado? Os Bradford não tinham aquele sotaque anasalado horrível, mas apenas um leve arrastado para provar de que lado da Linha Mason-Dixon vinham, e para mostrar que sabiam a diferença entre bourbon e uísque.

Sendo que o último não merecia nenhum comentário.

– Tchauzinho – disse e desligou.

Ao terminar a ligação, resolveu pôr um fim naquele relacionamento. Conrad tinha começado a falar sobre deixar a esposa, e ela não queria isso. Ele tinha dois filhos, pelo amor de Deus. O que estava pensando? Uma coisa era se divertir um pouquinho além dos limites impostos pelo casamento, mas as crianças precisavam da ilusão dos pais.

Além disso, ela já provara que não podia ser mãe de nada. Nem mesmo de um peixinho dourado.

Meia hora mais tarde, usava um vestido Christian Dior vermelho UC e estava com aquele pesado colar Harry Winston sobre a clavícula. Seu perfume era Coco da Chanel, um clássico, que decidira adotar como marca registrada desde que completara trinta anos. Os sapatos eram Louboutin.

Não vestia calcinha.

Samuel Theodore Lodge viria jantar.

Ao entrar no corredor, olhou para a porta oposta à sua. Exatamente há dezesseis anos, dera luz à moça que morava lá. E seu envolvimento com Amelia terminara ali. Uma enfermeira, e mais duas babás, aliadas a uma longa passagem do tempo, e já estava indo para a escola preparatória.

Com isso, sequer tinha um vislumbre da filha.

De fato, Amelia não viera para casa no feriado de primavera, o que fora muito bom. Mas o verão se aproximava, e o regresso da moça de Hotchkiss não era o que ninguém, Amelia menos ainda, estava esperando.

Seria possível enviar uma moça de dezesseis anos para um acampamento?

Talvez devessem mandá-la para uma turnê de dois meses pela Europa. Os vitorianos faziam isso duzentos anos atrás, antes mesmo dos aviões e dos carros com air bags.

Poderiam pagar alguém para que fosse como acompanhante.

E, na verdade, a necessidade de mantê-la afastada de Easterly não significava que Gin não amasse a filha. Era apenas que a presença da jovem era um lembrete forte demais das escolhas erradas e mentiras de Gin, e de ninguém mais – e, às vezes, era melhor não olhar com muita atenção para essas coisas.

Além disso, a Europa era maravilhosa. Ainda mais se fosse explorada da maneira correta.

Gin avançou direto para a escadaria ao estilo de Tara que se bifurcava no meio antes de chegar ao enorme vestíbulo de mármore de Easterly. O vestido falava a cada passo, o caimento da seda resvalando na anágua de tule de um modo que a fazia imaginar a conversa abafada das francesas que costuraram aquele belo vestido de noite.

Ao chegar à plataforma do meio e escolher a escada da direita, mais próxima da sala onde os coquetéis eram sempre servidos, conseguiu ouvir as pessoas conversando. Haveria trinta e duas para o jantar daquela noite, e ela estaria sentada na cadeira outrora de sua mãe, na ponta oposta em que seu pai se sentava à cabeceira.

Já fizera aquela apresentação de dama da casa um milhão de vezes, e o faria outras tantas – normalmente, esta era uma obrigação que cumpria com orgulho.

Naquela noite, entretanto, por algum motivo havia um lamento em seu coração.

Provavelmente por ser o aniversário de Amelia.

Melhor começar a beber.

Quando telefonara para a filha, Amelia se recusara a descer e falar ao telefone do seu dormitório.

Era o tipo de coisa que Gin teria feito.

Viram? Ela era uma boa mãe. Entendia a filha.

Lane se recusou a usar black tie para o jantar. Estava com as mesmas calças e trocou a camisa por outra social, que deixara para trás quando fora morar com Jeff no norte.

Estava disposto a ser pontual e só.

Assim que chegou ao térreo, evitou ao máximo os olhares das pessoas e procurou um drinque. E se deparou com um velho amigo antes de chegar ao Reserva de Família.

– Ora, ora, ora, o nova-iorquino voltou para as suas raízes, finalmente – Samuel cdisse ao se aproximar.

Lane teve que sorrir.

– Como anda o meu advogado sulista-frito predileto?

Enquanto se abraçavam e davam tapas nas costas um do outro, a loira que estava com Samuel T. ficou de lado, com os olhos atentos, sem deixar passar nada despercebido. Seu vestido era notável – se fosse um pouco mais curto na parte de cima ou de baixo, ela estaria vestindo apenas um cinto.

Bem ao estilo de Samuel T.

– Permita-me que eu lhe apresente a senhorita Savannah Locke. – Samuel T. acenou para a mulher, como se dando permissão para que ela se aproximasse, e ela logo o atendeu, inclinando-se para a frente e oferecendo a mão delgada e pálida. – Vá pegar um drinque para nós, sim, querida? Ele vai tomar o Reserva de Família.

Enquanto a mulher recuava para o bar, Lane balançou a cabeça.

– Posso me servir sozinho.

– Ela era aeromoça. Gosta de servir as pessoas.

– Hoje em dia não são chamadas de comissárias de bordo?

– Então decidiu voltar? Não pode ser por causa do Derby. Isso era coisa do Edward.

Lane dispensou a pergunta, sem vontade de mencionar a situação da senhorita Aurora. Era difícil demais.

– Preciso da sua ajuda com uma coisa. Isto é, no âmbito profissional.

O olhar de Samuel T. se estreitou e mirou a mão de Lane, sem aliança.

– Está limpando a casa, pelo visto.

– Consegue agir com rapidez? Quero que a situação se resolva rápida e discretamente.

O homem assentiu.

– Pode me ligar amanhã de manhã. Cuido de tudo.

– Obrigado.

No alto da escada, sua irmã, Gin, fez a curva na plataforma do meio e parou, como se soubesse que as pessoas iriam querer examinar o que ela vestia – e o vestido vermelho e todas aquelas joias de fato estavam ali para serem contemplados. Com metros de seda rubra se estendendo pelo chão e aquele conjunto de diamantes digno da Princesa Diana, ela era o Oscar, a Town & Country e o Palácio de St. James, todos ao mesmo tempo.

As vozes que se calaram no vestíbulo eram sinal tanto de admiração quanto de condenação.

A reputação de Gin a precedia.

Não é que era de família?

Quando ela o viu junto a Samuel T., suas sobrancelhas se arquearam e, por uma fração de segundo, ela sorriu com sinceridade, a antiga luz voltando ao seu olhar, os anos sumindo até que os três voltassem a ser os mesmos de antes de todos os acontecimentos.

– Se me der licença – disse Samuel T. – Vou dar uma olhada naqueles drinques. Acho que minha acompanhante se perdeu.

– A casa não é tão grande assim.

– Talvez para mim e para você.

Enquanto Samuel T. se afastava, Gin levantou a barra do vestido vermelho e terminou de descer a escada. Quando pisou no mármore preto e branco, veio direto na direção de Lane, os saltos altos fazendo barulho pelo piso de mais de cem anos. Ele pensou em lhe dar um abraço de cavalheiro quando ela se aproximasse, em respeito ao penteado e às joias, mas foi ela quem o abraçou forte até que ele a sentiu tremer.

– Estou tão feliz que esteja aqui – ela disse com uma voz rouca. – Deveria ter me avisado.

E foi então que ele fez uns cálculos e percebeu que era o aniversário de Amelia.

Estava para dizer alguma coisa quando ela se afastou e recolocou a máscara no lugar, suas feições de Katharine Hepburn se arranjando num vazio perfeito que fez o peito dele doer.

– Preciso de um drinque – ela anunciou. – Para onde foi Samuel T.?

– Ele não está sozinho hoje, Gin.

– E isso importa?

Quando ela se afastou com a cabeça erguida e os ombros aprumados, ele sentiu pena da pobre aeromoça loira. Lane não sabia quem era a acompanhante de Samuel T., mas por certo ela entendia quem era seu par: lá no bar, ela estava encostada no quadril dele como o coldre de um revólver, como se estivesse ciente de que teria que proteger seu território.

Pelo menos ele teria algo para se distrair durante o jantar.

– O seu Reserva de Família, senhor? O senhor Lodge o mandou com os seus cumprimentos.

Lane se virou e sorriu. Reginald Tressel era o eterno barman em Easterly, e o cavalheiro afro-americano em seu casaco preto e sapatos reluzentes estava mais distinto que muitos dos convidados, como sempre.

– Obrigado, Reg. – Lane pegou o copo de cristal da bandeja de prata. – Ei, obrigado por me telefonar avisando sobre a senhorita Aurora. Recebeu o meu recado?

– Recebi. Eu sabia que o senhor gostaria de vir.

– Ela parece melhor do que pensei.

– Ela disfarça bem. O senhor não vai partir tão cedo, vai?

– Ei, como Hazel tem passado? – Lane desconversou.

– Muito melhor, obrigado. Sei que não vai querer voltar para o norte até que as coisas estejam resolvidas por aqui.

Reginald lhe lançou um sorriso que não alterou a sombra escura daqueles olhos negros, e depois retornou para as suas tarefas, caminhando em meio à multidão como um estadista, as pessoas o cumprimentando como um de seus semelhantes.

Lane se lembrava de quando ele era mais novo, quando as pessoas diziam que o senhor Tressel era o prefeito não oficial de Charlemont. Isso, certamente, não mudara.

Deus, não estava pronto para perder a senhorita Aurora. Seria o mesmo que ter que vender Easterly – algo que não conseguia imaginar num universo em que as coisas estivessem funcionando como deviam.

O cheiro de fumaça de cigarro o fez endurecer.

Só existia uma pessoa que podia fumar dentro daquela casa.

Imerso em tal pensamento, Lane seguiu na direção oposta.

Seu pai sempre fora fumante, seguindo as tradições sulistas, o que equivalia a dizer que mesmo o homem sendo asmático, ele se achava no direito patriótico de se presentear com câncer de pulmão – não que ele estivesse doente, ou que ficaria doente. Ele acreditava que um homem de verdade nunca deixava uma mulher puxar a própria cadeira à mesa, nunca maltratava seus cães de caça e nunca, jamais, ficava doente.

Bom código de conduta. O problema? Só contemplava isso. Não tinha nada a respeito dos filhos. Das pessoas que trabalhavam para ele. Do seu papel como marido. E os Dez Mandamentos? Eram apenas uma lista velha para governar as vidas das outras pessoas, de modo que ninguém se aborrecesse quando um atirasse no outro.

Era engraçado. Graças ao pai, Lane jamais fumara – e não era uma espécie de rebeldia. Ao crescer, ele e seus irmãos sabiam quando o homem se aproximava por causa do cheiro do tabaco, e isso nunca era uma boa notícia. Por conseguinte, ele ficava todo tenso, como num experimento de Pavlov, toda vez que alguém acendia um cigarro.

Provavelmente, foi a única contribuição positiva do pai em sua vida. E, ainda assim, uma ajuda insincera.

O gelo em seu copo batia como sinos enquanto ele andava pela casa, sem saber para onde estava indo… até chegar às portas duplas que se abriam para a estufa. Mesmo fechadas, ele sentiu o cheiro das flores, e ficou parado por um tempo olhando através dos vidros para o enclave verdejante e colorido do outro lado.

Lizzie, sem dúvida, estaria ali, arranjando buquês, como sempre fazia às quintas que precediam o Derby.

Como uma mariposa atraída pela luz, ele pensou ao ver a mão se esticando para a maçaneta de latão.

O som de Greta von Schlieber falando com aquela voz carregada de alemão quase fez com que desse meia-volta. Por causa de tudo o que fizera, a mulher o odiava, e ela não era de esconder suas opiniões. E provavelmente estaria segurando um par de tesouras de jardim.

Mas o chamado de Lizzie era mais forte do que qualquer necessidade de autoproteção.

E lá estava ela.

Mesmo tendo já passado das oito da noite, ela estava sentada num banco com rodinhas diante de uma mesa com vinte e sete vasos de prata do tamanho de bolas de basquete. Metade estava cheio com flores rosa-claro, brancas e creme, e os outros ainda tinham que ser arrumados. Esponjas florais molhadas aguardavam para ancorar as incontáveis hastes.

Ela espiou por sobre o ombro, deu uma olhada nele… e continuou falando sem perder o compasso.

– … mesas e cadeiras debaixo da tenda. E você poderia também pegar mais spray conservador?

Greta não foi tão fleumática. Embora estivesse evidentemente de saída, com a grande bolsa Prada verde no ombro e uma menor cor de laranja na mão, segurando as chaves do carro, aquele olhar fixo, aliado ao silêncio abrupto, sugeria que ela não iria a parte alguma até que ele voltasse para o jantar da família.

– Está tudo bem – Lizzie grunhiu. – Pode ir.

Greta murmurou alguma coisa em alemão. Depois saiu pela porta que dava para o jardim, resmungando baixinho.

– O que ela disse? – ele perguntou depois que ficaram sozinhos.

– Não sei. Provavelmente alguma coisa sobre um piano caindo na sua cabeça.

Ele sorveu um gole do copo, sugando o bourbon frio por entre os dentes.

– Só isso? Pensei que poderia ser algo mais sangrento.

– Acho que um Steinway caindo de uma altura baixa já faria um belo estrago.

Havia meia dúzia de baldes de dois litros ao redor dela, cada um contendo um tipo diferente de flor. Ela escolhia de um e de outro como se estivesse tocando notas em um instrumento musical: uma desta, depois uma daquela, voltando à primeira, depois a terceira, a quarta, a quinta. O resultado, em pouco tempo, era um lindo arranjo de pétalas brotando do contêiner de prata muito polido.

– Posso ajudar? – ele perguntou.

– Pode. Indo embora.

– Você está quase sem estas. – Ele olhou ao redor. – Ali, deixe que eu traga o outro balde.

– Pode voltar para o seu jantar? – ela replicou. – Você não está ajudando.

– E essas outras também já estão acabando.

Deixou o copo na mesa cheia de vasos vazios e começou a puxar os baldes pesados.

– Obrigada – ela murmurou quando ele retirou os vazios, levando-os para a pia de cerâmica. – Pode ir agora…

– Vou me divorciar.

O rosto dela não demonstrou nenhuma reação, mas as mãos, aquelas mãos fortes e seguras, quase derrubaram a rosa que pegava do balde que ele trouxera.

– Não por minha causa, espero – ela disse.

Ele virou um dos baldes vazios e se sentou no fundo, segurando o bourbon entre os joelhos.

– Lizzie…

– O que quer que eu diga? Parabéns? – Espiou na direção dele. – Ou você quer uma reação chorosa cheia de alívio? Porque posso lhe garantir neste instante, essa é a última coisa que vai conseguir de mim…

– Nunca amei Chantal.

– E isso importa? – Lizzie revirou os olhos. – A mulher estava grávida de você. Portanto, talvez você não a amasse, mas, obviamente, andou fazendo alguma coisa com ela.

– Lizzie…

– Sabe, seu tom exasperado que pede que eu seja racional é muito desagradável. É como se você achasse que estou fazendo algo errado por não lhe dar uma chance para você discorrer sobre toooodas as formas de como foi uma vítima. O que sei que é verdade: você veio com tudo pra cima de mim, e eu cedi porque lamentei o que estava acontecendo com o seu irmão. Naquela época, você mostrava uma fachada perfeita e socialmente aceitável para esconder o fato de que estava transando com uma empregada. O seu problema começou quando eu me recusei a ser o seu segredinho vergonhoso.

– Maldição, Lizzie, não foi nada disso…

– Talvez da sua parte…

– Nunca a tratei com inferioridade!

– Você só pode estar brincando. Como acha que me senti quando me disse que me amava e depois li sobre o seu noivado nas colunas sociais na manhã seguinte? – Ela levantou as mãos para o alto. – Você faz alguma ideia do impacto daquilo sobre mim? Sou uma mulher inteligente. Tenho a minha fazenda e estou pagando por ela com o meu próprio dinheiro. Tenho um mestrado em Cornell. – Ela bateu no peito. – Cuido de mim mesma. E ainda assim… – Desviou o olhar. – Você me pegou.

– Não fui eu quem colocou aquele anúncio.

– Bem, havia uma foto bem grande de vocês dois ali.

– Não foi minha culpa.

– Tolice! Está tentando me dizer que havia uma arma apontada na sua cabeça quando se casou com Chantal?

– Você não queria falar comigo! E ela estava grávida… Eu não queria que o meu filho nascesse um bastardo. Deduzi que era o único modo de agir como homem, dada a situação.

– Ah, mas você foi muito homem. Foi assim que ela acabou com um filho seu na barriga.

Lane praguejou e abaixou a cabeça. Deus, já perdera tanto tempo ansiando em poder refazer tudo com Lizzie – começando muito antes de quando ficaram juntos, quando estava fazendo sexo casual com Chantal e acreditara que ela estava tomando pílula.

Mas todos já sabem como isso terminou.

E a gravidez não fora a única surpresa que Chantal reservara para ele. A segunda fora ainda mais devastadora.

– Por isso, podemos dar um basta? – Lizzie perguntou ao partir para o vaso seguinte. – Isso não é da minha conta.

– Por que não fiquei com ela? – Ele se inclinou para a frente. – Já que tem tudo resolvido, por que não fiquei com ela? Por que fiquei afastado por quase dois anos? E se eu queria ter um filho com ela, por que ela não engravidou de novo depois que perdeu o primeiro?

Lizzie balançou a cabeça e o encarou.

– Que parte do “não é da minha conta” você não entendeu?

E foi nesse instante que ele avançou.

Assim como no primeiro beijo deles no jardim, no escuro, no calor do verão, ele foi tomado por emoções descontroladas ao se apossar da boca dela, por um instinto que ele não conseguia combater. Num momento, eles estavam discutindo; no seguinte, ele estava bem perto, segurando-a pela nuca e beijando-a com avidez.

E, assim como antes, ela retribuiu o beijo.

No entanto, da parte dela não foi paixão. Ele tinha quase certeza de que, para ela, o encontro das bocas não passava de uma extensão do conflito entre eles, uma discussão verbal tornando-se não verbal.

Lane não se importou. Ele a aceitaria de qualquer jeito.

 

CONTINUA

Charlemont, Kentucky
Uma névoa pairava sobre as águas preguiçosas de Ohio como um sopro de Deus, e as árvores às margens da estrada River do lado de Charlemont tinham tantas nuances de verde que a cor exigia um sexto sentido para absorvê-las todas. Acima, o céu era de um azul-claro leitoso, o tipo de coisa que você via no norte apenas no mês de julho. Às sete e meia da manhã, a temperatura já passava dos vinte graus.
Era a primeira semana de maio. Os sete dias mais importantes do calendário, superando o nascimento de Cristo, a independência americana e as comemorações do Ano-Novo.
A 139a disputa do Derby de Charlemont aconteceria no sábado.
O que significava que todo o Estado do Kentucky estava imerso na loucura das corridas de cavalos puros-sangues.
Lizzie King se aproximava de seu trabalho, sentindo a forte descarga de adrenalina que a vinha acompanhando nas últimas três semanas. Ela sabia, por experiência prévia, que aquela agitação não se apaziguaria até a limpeza do sábado à tarde. Pelo menos estava indo, como de hábito, contra o fluxo que seguia para o centro da cidade, e chegaria rapidamente. Ela levava quarenta minutos em cada trajeto, mas isso não se comparava à hora do rush de Nova York, Boston ou Los Angeles, o que, no seu atual estado de espírito, faria com que seu cérebro explodisse como uma bomba nuclear. Não, o seu caminho para o trabalho consistia em vinte e oito minutos de paisagens rurais em Indiana, seguido de seis minutos de retardo em pontes e entroncamentos, completado por seis a dez minutos de tráfego ao longo do rio, contra a corrente.
Às vezes, ela pensava que os únicos carros que seguiam na mesma direção eram do restante dos funcionários que trabalhavam em Easterly junto dela.
Ah, sim, Easterly.

 


https://img.comunidades.net/bib/bibliotecasemlimites/OS_REIS_DO_BOURBON.jpg

 


A Propriedade da Família Bradford, ou PFB, como vinha escrito nas notas de entrega, estava fincada na parte mais alta da área metropolitana de Charlemont, e abrangia a casa principal de 1 800 metros quadrados, três jardins formais, duas piscinas e uma visão de trezentos e sessenta graus do condado de Washington. Também havia doze chalés de serventes, dez construções externas, uma fazenda ativa de mais de 8 000 hectares, um estábulo para vinte cavalos, que fora convertido num escritório, e um campo de golfe com nove buracos. O campo era iluminado para o caso de você querer praticar as suas tacadas à uma da madrugada.

Até onde ela sabia, o enorme terreno fora concedido à família em 1778, depois que o primeiro Bradford chegara ao sul, vindo da Pensilvânia com o então coronel George Rogers Clark, trazendo tanto a sua ambição quanto a sua tradição na fabricação do bourbon. Quase duzentos e cinquenta anos depois, eles possuíam uma mansão ao estilo Federal1 do tamanho de uma cidade pequena no alto da colina e cerca de setenta e duas pessoas trabalhando na propriedade em meio período ou período integral.

Todos seguiam regras feudais e um rígido sistema de castas, retirado diretamente de Downton Abbey.

Ou talvez a rotina da Condessa Viúva de Grantham fosse um pouco progressista demais.

Provavelmente a época de Guilherme, o Conquistador, fosse algo mais próximo.

Então, por exemplo – e isso seria apenas uma conjectura de cinema – se uma jardineira se apaixonasse por um dos preciosos filhos da família? Mesmo que ela fosse uma das horticultoras-chefes e tivesse reputação nacional e um mestrado de Cornell em paisagismo?

Isso não seria aceitável.

Sabrina sem um final feliz, meu bem.

Xingando, Lizzie ligou o rádio na esperança de fazer seu cérebro se calar. Mas não foi muito longe. Seu Toyota Yaris tinha alto-falantes dignos da Barbie: a música supostamente deveria sair pelos pequenos círculos nas portas do automóvel, mas o sistema de som era quase de fachada e, neste dia, a música que vazava daquelas coisinhas simplesmente não era suficiente…

O som de uma ambulância se aproximando a toda velocidade por trás dela superou com muita facilidade a conversa da BBC News. Ela pressionou o freio e foi para o acostamento. Depois que a sirene e as luzes sumiram à distância, ela voltou para a estrada e fez a curva aberta ao longo do rio e da estrada… E lá estava a enorme mansão branca dos Bradford, bem no alto, o sol nascente sendo obrigado a se espalhar ao redor da simétrica e magnífica construção.

Ela crescera em Plattsburgh, no Estado de Nova York, num pomar de maçãs.

O que diabos tinha pensado quase dois anos atrás quando permitira que Lane Baldwine, o filho mais novo, entrasse em sua vida?

E por que ainda estava ali, depois de todo esse tempo, refletindo sobre aqueles detalhes?

Porque, sejamos sinceros, ela não era a primeira mulher que fora seduzida por ele…

Lizzie franziu a testa e se inclinou sobre o volante.

A ambulância que a ultrapassara estava indo para a parte de trás da colina da PFB, com suas luzes vermelhas e brancas girando ao longo da alameda de bordos.

– Ah, meu Deus – sussurrou.

Rezou para que não fosse quem ela pensava.

Ela não podia ser tão azarada assim.

E não era lamentável que isso fosse a primeira coisa a lhe passar pela mente? Ela não devia estar preocupada com quem quer que estivesse machucado/doente/desmaiado?

Passando pelos portões de ferro – com o monograma da família – que estavam para se fechar, Lizzie virou a primeira à direita uns trezentos metros mais adiante.

Como empregada, ela tinha que usar a entrada de serviço. Sem desculpas, sem exceções.

Por que Deus não permitiria que um veículo com valor inferior a uma centena de milhares de dólares fosse visto diante da casa?

Puxa, estava ficando azeda, concluiu. E, depois do Derby, precisaria tirar umas férias antes que as pessoas pensassem que ela estava enfrentando a menopausa uma década antes do previsto.

A máquina de costura debaixo do capô do Yaris rugiu quando ela desceu pelo caminho que dava a volta até a base da colina. Passou pelos campos de milho; o esterco já estava espalhado e revolvido na preparação do plantio. Em seguida, passou pelos jardins bem podados, com suas primeiras plantas perenes e anuais; os topos das peônias eram fofos como bolas de algodão, não muito mais escuras que o rubor nas faces de uma menina inocente. Depois, havia os orquidários e as estufas, seguidas pelos prédios externos com os equipamentos de fazenda e jardinagem, e então a fileira de chalés dos anos 1950, de dois e três dormitórios.

Eram tão variados e cheios de estilo quanto um par de latas de açúcar e de farinha de trigo sobre um balcão de fórmica.

Chegando ao estacionamento dos funcionários, parou o carro e saiu, deixando sua caixa térmica, o chapéu e a bolsa com o protetor solar para trás.

Apressando-se para a salinha do prédio principal, entrou na caverna com cheiro de gasolina e óleo pela baia aberta à esquerda. O escritório de Gary McAdams, o chefe da manutenção, ficava ao lado, com as portas de vidro jateadas ainda translúcidas o bastante para indicar que as luzes estavam acesas e que havia alguém lá dentro.

Ela não se deu ao trabalho de bater. Empurrando a porta, ignorou o calendário da Pirelli com mulheres praticamente nuas.

– Gary…

O homem de sessenta e dois anos acabava de colocar o telefone no gancho com sua mão de urso. Seu rosto curtido de sol, com sua pele de casca de árvore, estava mais sério do que ela jamais vira. Quando ele a fitou por sobre a mesa bagunçada, ela entendeu para quem era a ambulância antes mesmo que ele dissesse o nome.

Lizzie levou as mãos ao rosto e se recostou no batente.

Claro que lamentava pela família, mas seria impossível não personalizar a tragédia e querer vomitar em algum lugar.

O homem que nunca mais queria ver na vida… estava voltando para casa.

Ela podia muito bem disparar um cronômetro.

 

Nova York, NY

– Vamos lá… sei que você me quer.

Jonathan Tulane Baldwine olhou para o quadril que estava apoiado ao lado da sua pilha de fichas de pôquer.

– Aumentem as apostas, rapazes.

– Estou falando com você. – Um par de seios falsos parcialmente cobertos apareceu sobre o leque de cartas na mão dele. – Oooiii.

Hora de fingir interesse em alguma outra coisa, qualquer outra coisa, pensou Lane. Uma pena que o apartamento de um quarto em Midtown fosse de solteiro, decorado com apenas o estritamente funcional. E por que se dar ao trabalho de olhar para os rostos do que restava dos seis bastardos com quem começara a jogar pôquer oito horas antes? Nenhum deles se mostrou à altura de nada além de simplesmente cobrir apostas altas.

Decifrar as pistas deixadas por eles só para escapar não valia o cansaço dos olhos às sete e meia da manhã.

– Ooooiiii…

– Desista, meu bem, ele não está interessado – alguém murmurou.

– Todos se interessam por mim.

– Ele não. – Jeff Stern, o anfitrião e seu colega de apartamento jogaram fichas equivalentes a mil dólares. – Não é mesmo, Lane?

– Você é gay? Ele é gay?

Lane passou a rainha de copas para o lado do rei de copas. Colocou o valete ao lado da rainha. Quis empurrar aqueles seios falsos e aquela boca grande para o chão.

– Dois de vocês não cobriram a aposta.

– Estou fora, Baldwine. Está alto demais para mim.

– Estou dentro, se alguém me emprestar mil.

Jeff olhou por sobre a mesa de feltro verde e sorriu.

– Somos você e eu, mais uma vez, Baldwine.

– Mal posso esperar para arrancar o seu dinheiro. – Lane fechou as cartas. – A aposta é sua…

A mulher voltou a se inclinar.

– Adoro o seu sotaque sulista.

Os olhos de Jeff se estreitaram por trás da armação transparente dos óculos.

– É melhor desistir, garota.

– Não sou idiota – ela disse arrastado. – Sei exatamente quem você é e quanto dinheiro você tem. Bebo do seu bourbon…

Lane se recostou e se dirigiu para o imbecil que trouxera o acessório falante.

– Billy? Fala sério?

– Tá bom. Tá bom. – O cara que queria aumentar seu débito em mil dólares se levantou. – O sol já está nascendo mesmo. Vamos embora.

– Ei, eu quero ficar…

– Não, já chega. – Billy levou a loira burra com autoestima inflada pelo braço e a acompanhou até a porta. – Eu te levo pra casa. E não, ele não é quem você está pensando. Até mais, bundões.

– É sim. Vi nas revistas…

Antes que a porta se fechasse, o outro cara que fora depenado também se levantou.

– Também vou. Me lembrem de nunca mais jogar com vocês dois.

– Não vou fazer isso – Jeff disse ao erguer a palma. – Mande um olá pra sua esposa.

– Você mesmo pode fazê-lo quando nos encontrarmos no Sabbath.

– De novo?

– Toda sexta-feira. E se você não gosta, por que fica aparecendo na minha casa?

– Comida grátis. Simples assim.

– Como se você precisasse de esmola.

Então ficaram sozinhos. Com o equivalente a 250 mil dólares em fichas de pôquer, dois baralhos e um cinzeiro cheio de bitucas de cigarro, e nenhuma loira burra.

– É a sua vez – disse Lane.

– Acho que ele quer se casar com ela – murmurou Jeff, jogando mais fichas no meio da mesa. – Billy, quero dizer. E aqui estão vinte mil.

– Então ele deveria ter a cabeça examinada. – Lane cobriu a aposta do seu velho amigo da fraternidade, e depois dobrou o valor. – Patético. Os dois.

Jeff abaixou as cartas.

– Deixa eu te perguntar uma coisa.

– Nada que seja muito difícil. Estou bêbado.

– Você gosta delas?

– Das fichas de pôquer? – Ao fundo, um celular começou a tocar. – Claro que sim. Por isso, se não se importar em colocar algumas mais…

– Não. Mulheres.

Lane ergueu os olhos.

– Como é?

O seu amigo mais antigo apoiou um cotovelo na mesa e se inclinou. A gravata fora arrancada no começo do jogo, e sua outrora camisa branca e engomada agora estava tão maleável quanto uma camiseta polo. Os olhos, contudo, estavam tragicamente alertas e concentrados.

– Você me ouviu. Olha só, sei que não é da minha conta, mas quando foi mesmo que você apareceu aqui? Uns dois anos atrás? Você mora no meu sofá, não trabalha… coisa que até entendo, por causa da sua família. Mas não existe nenhuma mulher, nenhuma…

– Pare de pensar, Jeff.

– Estou falando sério.

– Então aposte.

O celular se calou. Mas seu amigo não.

– A Universidade da Virgínia ficou pra trás há muito tempo. Muita coisa pode mudar.

– Pelo visto, não se ainda estou no seu sofá…

– O que aconteceu com você, cara?

– Morri enquanto esperava você aumentar a aposta ou desistir.

Jeff resmungou, formando uma pilha azul e vermelha e a jogando no meio da mesa.

– Mais vinte mil.

– É assim que eu gosto. – O celular começou a tocar de novo. – Cubro. E ponho mais cinquenta se você calar a boca.

– Tem certeza de que quer fazer isso?

– Calar a sua boca? Tenho.

– Ser agressivo no pôquer com um investidor de bancos como eu. Clichês existem por um motivo: sou ganancioso e ótimo com números. Ao contrário do seu pessoal.

– O meu pessoal?

– Pessoas como vocês, os Bradford, não sabem ganhar dinheiro. Vocês foram treinados para gastar. Agora, ao contrário dos amadores, a sua família tem, de fato, um fluxo financeiro, ainda que isso o impeça de aprender qualquer coisa. Portanto, não sei se, a longo prazo, vai ser uma vantagem.

Lane refletiu sobre os motivos que o levaram a abandonar Charlemont de uma vez por todas.

– Aprendi muita coisa, acredite em mim.

– E agora você está me parecendo amargo.

– Você está me entediando. Era pra eu gostar disso?

– Por que nunca vai pra casa no Natal? No dia de Ação de Graças? Na Páscoa?

Lane abaixou as cartas, pousando-as sobre o feltro.

– Não acredito mais no Papai Noel nem no Coelhinho da Páscoa, cacete. E peru é superestimado. Qual é o seu problema?

Pergunta errada. Ainda mais depois de uma noite de jogatina e bebedeira. Ainda mais para um cara como Stern, que era categoricamente incapaz de ser outra coisa que não absolutamente honesto.

– Odeio que você seja tão sozinho.

– Você só pode estar de brincadeira…

– Sou um dos seus amigos mais antigos, não sou? Se eu não te disser, quem vai dizer? Não fique irritadinho comigo. Você escolheu um judeu nova-iorquino, e não um dos milhares de sulistas amantes de frango frito metidos a besta daquela faculdade ridícula pra ser o seu eterno colega de quarto. Por isso, vá se foder.

– Vamos terminar esse jogo?

O olhar perspicaz de Jeff se estreitou.

– Responda uma coisa.

– Sim, estou me perguntando por que não pensei em ficar com o Wedge ou o Chenoweth agora mesmo.

– Rá. Você não suportava nenhum dos dois por mais de um dia. A menos que estivesse bêbado, o que, de fato, você tem estado nos últimos três meses e meio. E essa é outra coisa que me incomoda.

– Aposte. Agora. Pelo amor de Deus.

– Por que…

Quando o celular começou a tocar pela terceira vez, Lane se levantou e atravessou a sala. Em cima do balcão do bar, ao lado da sua carteira, a tela estava iluminada. Nem se deu ao trabalho de ver quem era.

Atendeu à chamada porque as alternativas eram isso ou cometer homicídio.

A voz masculina com sotaque sulista do outro lado da linha disse quatro palavras: sua mãe está morrendo.

Enquanto o significado penetrava em sua consciência, tudo se desestabilizou à sua volta; as paredes começaram a se fechar ao seu redor, o chão ondulou, o teto caiu em sua cabeça. As lembranças não só voltaram, mas o atacaram, e o álcool em seu sistema não fez nada para reduzir o impacto.

Não, ele pensou. Não agora. Não esta manhã.

Haveria uma hora certa?

“Jamais” era a única opção aceitável para ele.

De longe, ele se ouviu dizendo:

– Chego antes do meio-dia.

E desligou.

– Lane? – Jeff se pôs de pé. – Ai, merda, não desmaie. Tenho que estar na Eleven Wall dentro de uma hora e ainda preciso tomar um banho.

De uma vasta distância, Lane viu sua mão se esticar e apanhar a carteira. Colocou-a no bolso da calça junto do celular e seguiu para a porta.

– Lane! Pra onde você vai, cacete?

– Não espere por mim – ele respondeu ao abrir a porta para sair.

– Quando você vai voltar? Ei, Lane? Mas que diabos!

Seu bom e velho amigo ainda falava quando ele saiu, deixando a porta se fechar sozinha. No fim do corredor, empurrou o portão de aço e começou a trotar escada abaixo. Enquanto suas passadas ecoavam no piso de concreto e ele fazia curva após curva, ligou para um número conhecido.

Quando atenderam, ele disse:

– Lane Baldwine. Preciso de um jatinho em Teterboro agora, vou para Charlemont.

Houve uma pequena pausa, em seguida a assistente executiva do seu pai voltou a falar: – Senhor Baldwine, temos um jatinho disponível. Falei diretamente com o piloto. O plano de voo está sendo preenchido enquanto conversamos. Assim que chegar ao aeroporto, siga para…

– Sei onde fica o nosso terminal. – Chegou ao saguão de mármore, acenou para o porteiro e passou pelas portas giratórias. – Obrigado.

Uma rapidinha, disse a si mesmo ao desligar e chamar um táxi. Com um pouco de sorte, estaria de volta a Manhattan ao cair do dia, entediando Jeff à noite. Meia-noite, pelo menos.

Umas dez horas. Quinze, no máximo.

Ele tinha que ir ver a mãe. Era isso o que os rapazes do sul faziam.


"Estilo Federal" é uma tendência arquitetônica e decorativa que se aplica a edificações e mobiliário. Popularizou-se nos EUA durante os séculos XVIII e XIX e conta com traços neoclássicos. (N. E.)

 

DOIS

Três horas, vinte e dois minutos e alguns segundos mais tarde, Lane olhava para fora da janela oval do novíssimo jatinho corporativo Embraer Lineage 1000E da Cia. Bourbon Bradford. Abaixo, a cidade de Charlemont estava disposta como um diorama de Lego, com suas seções ricas e pobres, comerciais e agrícolas, com fazendas e estradas dispostas no que parecia ser apenas duas dimensões. Por um instante, tentou visualizar a terra como fora quando sua família ali chegara em 1778.

Florestas. Rios. Americanos nativos. Vida selvagem.

Seu povo viera da Pensilvânia atravessando Cumberland Gap duzentos e cinquenta anos antes, e agora ali estava ele, a dez mil pés de altura, circundando a cidade junto com outros cinquenta e tantos outros caras em suas várias aeronaves.

Só que ele não estava ali para apostar em cavalos, se embebedar e fazer sexo.

– Posso servir mais no 15 antes de aterrissarmos, senhor Baldwine? Lamento, mas estamos numa fila de espera. Pode demorar um pouco até pousarmos.

– Obrigado. – Sorveu o que restava em seu copo de cristal. Os cubos de gelo escorregaram e bateram em seu lábio superior. – Você não poderia ter chegado em melhor hora.

Ok, talvez ele acabasse bebendo um pouco.

– É um prazer.

Quando a mulher na saia de uniforme se afastou, olhou por sobre o ombro para ver se ele a estava encarando. Seus olhos azuis reluziam debaixo dos cílios postiços.

A vida sexual dele há muito passara a depender da bondade de tais desconhecidas. Especialmente de loiras como ela, com pernas como aquelas, e quadris como aqueles, e seios como aqueles.

Mas não mais.

– Senhor Baldwine – o capitão informou pelo alto-falante –, quando descobriram que se tratava do senhor, eles nos adiantaram na fila, por isso estamos aterrissando agora.

– Quanta gentileza a deles – murmurou Lane quando a comissária de bordo retornou.

O modo como ela abriu a garrafa lhe deu uma pista de como ela desceria o zíper da calça de um homem; seu corpo todo se dedicava à libertação da rolha. Em seguida, ela se inclinou para servi-lo, encorajando-o a dar uma espiada em sua lingerie La Perla.

Tamanho desperdício de esforços.

– Assim está bom. – Ergueu a mão. – Obrigado.

– Posso ajudá-lo com mais alguma coisa?

– Não, obrigado.

Pausa. Como se ela não estivesse acostumada a receber um não como resposta, e quisesse lembrá-lo de que dispunham de pouco tempo.

Depois de um instante, ela ergueu o queixo.

– Pois não, senhor.

Era o modo dela de mandá-lo para o inferno: jogando o cabelo para trás e se afastar com um rebolado, balançando o que havia debaixo daquela saia como se segurasse um gato pelo rabo e tivesse um alvo para acertar.

Lane ergueu o copo e girou o seu no 15. Nunca se envolvera nos negócios da família, isso era trabalho do seu irmão mais velho, Edward. Ou, pelo menos, fora trabalho dele. Mas, mesmo como um mero espectador, Lane conhecia o apelido do produto mais vendido da Cia. Bourbon Bradford: no 15, o elemento principal da linha de produção, vendido em quantidades tão grandes que era chamado de A Grande Borracha – porque seu lucro era tão gigantesco que o dinheiro poderia eclipsar o prejuízo de qualquer erro corporativo interno ou externo, qualquer cálculo indevido ou recessão no mercado.

Enquanto o jato se preparava para a aterrissagem, um raio de sol atravessou a janela oval, caindo sobre a mesinha dobrável de nogueira falsa, o couro cor de creme do banco, o azul do seu jeans, a fivela de latão dos seus mocassins Gucci.

E depois atingiu o no 15 em seu copo, ressaltando as nuances de rubi do líquido âmbar. Ao sorver mais um gole pela borda de cristal, sentiu o calor do sol sobre o dorso da mão e a frieza do gelo nas pontas dos dedos.

Algum estudo feito recentemente divulgou que a indústria do bourbon tinha receitas anuais na casa dos 3 bilhões de dólares. Desse total, a CBB detinha mais de um quarto, quase um terço do total. Havia outra empresa no Estado, maior que eles – a odiada Destilaria Sutton Corporation – e, depois disso, uns outros oito ou dez produtores. Mas a CBB era o diamante em meio a outras pedras semipreciosas, a escolha dos bebedores de paladar mais apurado.

Como um consumidor leal, ele tinha que concordar com tal tendência.

Uma alteração no nível de bourbon em seu copo anunciou a aterrissagem, e ele relembrou a primeira vez que experimentara o produto da família.

Considerando-se o que acontecera, ele deveria ter se transformado num abstêmio.

– É noite de Ano-Novo, vamos. Não seja medroso.

Como de costume, foi Maxwell quem começou a festa. Dos quatro filhos, Max era o encrenqueiro, com Gin, a caçula, ocupando o segundo lugar na recalcitrante escala Richter. Edward, o mais velho e mais austero deles, não fora convidado para a festa; e Lane, que estava mais ou menos no meio, tanto em termos de ordem de nascença quanto na probabilidade de ser preso ainda em idade juvenil, fora forçado àquela excursão porque Max odiava aprontar sem ter público – e meninas não contavam para ele.

Lane sabia que era uma péssima ideia. Se iam beber álcool, deveriam pegar uma garrafa da despensa e subir para os quartos, onde não havia a mínima possibilidade de serem apanhados. Mas beber assim, às vistas de qualquer um, na sala de estar? Debaixo do olhar desaprovador do quadro de Elijah Bradford sobre a cornija da lareira?

Idiotice…

– Então, quer dizer que não vai beber nada, Lame?2

Ah, sim. O apelido predileto de Max para ele.

No alaranjado das luzes externas de segurança, Max o fitou do alto com uma expressão de tamanho desafio que seu olhar poderia muito bem estar acompanhado de uma faixa de largada e uma pistola, usados nas pistas de corrida.

Lane relanceou para a garrafa que o irmão segurava. O rótulo indicava um dos requintados, com as palavras “Reserva de família” em letras rebuscadas.

Se ele não fizesse aquilo, eles nunca o deixariam em paz.

– Só quero um copo – disse ele. – Um copo apropriado. Com gelo.

Porque era assim que o pai deles bebia. E era a única explicação varonil para a sua demora.

Max franziu a testa, como se considerasse a questão da apresentação.

– Tudo bem.

– Não preciso de um copo. – Gin, que contava com sete anos, estava com as mãos nos quadris e os olhos fixos em Max. Dentro da sua camisolinha de renda, ela parecia a Wendy do Peter Pan. Com aquela expressão agressiva no rosto, ela era praticamente uma lutadora profissional. – Preciso de uma colher.

– Uma colher? – Max perguntou, surpreso. – Do que está falando?

– É remédio, não é?

Max lançou a cabeça para trás e gargalhou.

– Mas o que…

Lane cobriu a boca do irmão.

– Cala a boca! Quer ser apanhado?

Max se livrou da mão dele.

– O que eles vão fazer comigo? Bater?

Bem, sim, se o pai deles os visse ou ficasse sabendo daquilo. Ainda que o grande William Baldwine delegasse a maior parte das atribuições paternas para outras pessoas, o cinto era ele quem empunhava.

– Espere um instante, você quer ser apanhado – Lane disse com suavidade. – Não quer?

Max se virou para o carrinho de bebidas de vidro e latão. O aparador ornamental era uma antiguidade, assim como a maioria das coisas em Easterly, e o brasão da família estava entalhado nos quatro cantos. Com suas rodas finas e grandes e sua bandeja de cristal, era o anfitrião da casa, amparando quatro tipos diferentes de bourbon Bradford, meia dúzia de copos de cristal e um balde de gelo de prata que constantemente era reabastecido pelo mordomo.

– Aqui está o seu copo. – Max o empurrou na direção de Lane. – Vou beber direto da garrafa.

– Onde está a minha colher? – Gin perguntou.

– Pode tomar um gole do meu – Lane sussurrou.

– Não. Quero o meu…

O debate foi interrompido quando Max empurrou a rolha e o projétil saiu voando, batendo no candelabro no meio da sala. O cristal sacudiu, fez barulho e os três ficaram imobilizados.

– Calados – ordenou Max, antes que fizessem qualquer comentário. – E nada de gelo pra você.

O bourbon fez um barulho gorgolejante enquanto seu irmão o derramava no copo de Lane, só parando quando a taça estava tão cheia quanto seu copo de leite durante as refeições.

– Agora beba tudo – Max lhe disse ao levar a garrafa à boca, inclinando a cabeça para trás.

A encenação de cara durão só durou o tempo da primeira golada; Max começou a tossir tão alto que poderia despertar os mortos. Deixando que o irmão se engasgasse ou morresse na tentativa de se recuperar, Lane ficou olhando para o próprio copo.

Levou o cristal até a boca, e deu um gole cuidadoso.

Fogo. Era como se estivesse engolindo fogo, e uma trilha ardeu-lhe até o estômago. Soltou um xingamento, meio que esperando ver labaredas saindo do seu rosto, como se fosse um dragão.

– Minha vez – Gin disse.

Ele segurou o copo, não permitindo que ela o pegasse. Nesse meio-tempo, Max tomava o segundo e o terceiro goles.

Gin mal tocou no líquido, apenas umedeceu os lábios, e se retraiu revelando seu desgosto.

– O que estão fazendo?

Quando a luz do candelabro foi acesa, os três deram um salto. Lane derrubou o bourbon do seu copo no pijama de monograma.

Edward estava parado perto da porta com um olhar de fúria absoluta no rosto.

– O que diabos há de errado com vocês? – ele disse, marchando e tirando o copo das mãos de Lane e a garrafa de Max.

– Só estávamos brincando – murmurou Gin.

– Vá pra cama, Gin. – Ele colocou o copo no carrinho e apontou para a porta com a garrafa. – Vá pra cama agora.

– Hum… Por quê?

– A menos que queira que eu chute o seu traseiro também.

Até mesmo Gin sabia respeitar aquela lógica.

Enquanto ela avançava para o arco da entrada, com os ombros pensos e chinelos arrastando sobre o tapete oriental, Edward sibilou: – E use a escada da criadagem. Se papai ouvir alguma coisa, vai descer pela da frente.

O coração de Lane disparou. E seu estômago ardeu. Não sabia se por terem sido flagrados ou por causa do bourbon.

– Ela tem sete anos – Edward disse depois que Gin se afastou. – Sete!

– Sabemos quantos anos ela tem…

– Cale a boca, Max. Apenas cale a boca. – Ele encarou Max de cima. – Se quer se corromper, não me importo. Mas não contamine os dois com as suas idiotices.

Palavras grandes. Xingamentos. E a conduta de alguém que poderia colocar os dois de castigo.

Pensando bem, Edward sempre parecera adulto, mesmo antes de chegar à adolescência.

– Não tenho que ficar aqui te escutando – Max replicou. Mas o espírito de combate já começava a abandoná-lo; sua língua estava frouxa, seus olhos caíam para o tapete.

– Tem, sim.

Então as coisas se acalmaram.

– Sinto muito – disse Lane.

– Não estou preocupado com você. – Edward meneou a cabeça. – É ele quem me preocupa.

– Peça desculpas – Lane sussurrou. – Vamos, Max.

– Não.

– Ele não é o papai, você sabe.

Max encarou Edward.

– Mas age como se fosse.

– Só porque você está descontrolado.

Lane pegou Max pela mão.

– Ele também sente muito, Edward. Venha, vamos antes que alguém nos ouça.

Ele precisou fazer um pouco mais de força, porém, no fim, Max o acompanhou sem mais nenhum comentário: a briga tendo terminado, o lance de independência fora lançado. Estavam na metade do piso de mármore preto e branco do vestíbulo pouco iluminado quando Lane percebeu algo no fim do corredor.

Alguém se movimentava nas sombras.

Alguém grande demais para ser Gin.

Lane puxou o irmão para a total escuridão do salão de baile do lado oposto.

– Shhh.

Através do arco da sala de estar, ele viu quando Edward se virou para o carrinho à procura da rolha e quis alertar o irmão…

Quando o pai deles entrou, o corpo alto de William Baldwine bloqueou a vista de Edward.

– O que está fazendo?

As mesmas palavras, o mesmo tom, grave e profundo.

Edward se virou com tranquilidade, com a garrafa na mão. O copo quase cheio de Lane estava bem no meio do carrinho.

– Responda – o pai ordenou. – O que está fazendo?

Ele e Max estavam mortos, pensou Lane. Assim que Edward contasse ao homem o que eles estavam fazendo ali embaixo, William explodiria.

Ao lado de Lane, Max tremia.

– Eu não devia ter feito isso… – sussurrou ele.

– Onde está o seu cinto? – Edward replicou.

– Responda.

– Fui eu. Onde está o cinto?

Não!, Lane pensou. Não, fomos nós!

O pai deles avançou, o roupão de seda com monograma reluzindo na luz, cor de sangue fresco.

– Maldição, garoto! Me diga o que está fazendo aqui com as minhas bebidas.

– O nome é Bourbon Bradford, pai. O senhor se casou com a família, lembra?

Quando o pai ergueu o braço à frente do tronco, seu pesado anel de sinete de ouro da mão esquerda brilhou como se estivesse antecipando o golpe, ansioso pelo contato com a pele. Em seguida, com um movimento elegante e poderoso, Edward foi atingido com um tapa tão violento que o som ricocheteou até o salão de baile.

– Agora vou lhe perguntar mais uma vez: o que está fazendo com as minhas bebidas? – William exigiu saber enquanto Edward cambaleava de lado, amparando o rosto.

Depois de um instante de respiração laboriosa, Edward se endireitou. Seu pijama parecia vivo de tanto que seu corpo tremeu, mas ele permaneceu de pé.

Pigarreando, respondeu com voz grave:

– Estava comemorando o Ano-Novo.

Um rastro de sangue descia pela lateral do rosto dele, manchando a pele clara.

– Então não deixe que eu atrapalhe o seu divertimento. – O pai apontou para o copo de Lane. – Beba.

Lane fechou os olhos e quis vomitar.

– Beba.

Os sons de engasgo e de ânsia continuaram por uma eternidade enquanto Edward consumia quase um quarto da garrafa do bourbon.

– Não vomite, garoto – ameaçou o pai. – Não ouse…

Quando o jatinho sacolejou ao entrar em contato com a pista, Lane voltou do passado. Não se surpreendeu ao ver que o copo que segurava tremia, e não por causa da aterrissagem.

Depositando o no 15 na bandeja sobre a mesinha, enxugou a testa.

Aquela não fora a única vez que Edward fora punido no lugar deles.

E nem fora a pior das vezes. Não, a pior de todas acontecera quando ele já era adulto, e fizera tudo o que a educação torpe fracassara em conseguir.

Edward agora estava arruinado, e não apenas fisicamente.

Deus, existiam tantos motivos para Lane não querer voltar para Easterly. E nem todas eram por causa da mulher que ele amava, mas que perdera.

No entanto, tinha que confessar… Lizzie King estava no topo daquela extensa lista.


Em inglês, o apelido cria uma brincadeira com o nome do personagem, Lane, e a palavra “lame”, que pode significar perdedor, fraco, coxo, defeituoso ou careta.

 

TRÊS

Propriedade da Família Bradford, Charlemont

A estufa Amdega Machin era uma extensão da ala sul de Easterly e, como tal, nenhum custo fora poupado em sua construção, em 1956. A estrutura era uma obra-prima ao estilo gótico; seu esqueleto delicado de ossos pintados de branco suportavam centenas de painéis de vidro, criando um interior maior e mais bem-acabado que a casa de fazenda na qual Lizzie morava. Com piso de ardósia e uma área de descanso com sofás e poltronas de tecidos florais, havia flores e plantas ao longo das laterais, na altura dos quadris, e vasos em cada um dos cantos. Mas tudo isso era apenas para demonstração. O verdadeiro trabalho de horticultura, a germinação e a reabilitação, as podas e os cuidados, eram executados longe das vistas da família, em outras estufas.

– Wo sind die Rosen? Wir brauchen mehr Rosen…3

– Não sei. – Lizzie abriu outra caixa de papelão tão comprida quanto a perna de um jogador de basquete. Dentro dela, duas dúzias de talos de hidrângeas brancas estavam embaladas em plástico individualmente, as cabeças protegidas por delicados colares de papelão. – Este é o total da entrega, por isso elas devem estar aqui.

– Ich bestellte zehn weitere Dutzend. Wo sind sie…?4

– Tudo bem, agora chega de alemão.

– Não pode serr só isto. – Greta von Schlieber ergueu um punhado de flores rosa-claro minúsculas que estavam envolvidas numa página de um jornal colombiano. – Não vamos conseguirr.

– Você diz isso todos os anos.

– Desta vez, eu tenho razão. – Greta empurrou os pesados óculos com aro de tartaruga pelo nariz e fitou a pilha de outras vinte e cinco caixas. – Estou dizendo, estamos encrrencadas.

E… era essa a essência do relacionamento entre ela e sua colega de trabalho.

Começando com a rotina pessimista/otimista, Greta era basicamente tudo o que Lizzie não era. Para começar, a mulher era europeia, não americana; o sotaque alemão era bem marcado em sua pronúncia, apesar de ela estar nos Estados Unidos havia trinta anos. Também era casada com um homem incrível, mãe de três filhos fantásticos na casa dos vinte anos e tinha dinheiro suficiente para que não apenas não tivesse que trabalhar, como seus dois rapazes e sua moça também não.

Nada de Yaris para ela. Ela dirigia uma perua Mercedes preta. E o anel de diamante que ela usava ao lado da aliança era grande o bastante para rivalizar com um dos Bradford.

Ah, e ao contrário de Lizzie, seu cabelo loiro era curto como o de um homem, o que era algo a invejar quando você tinha que prender o seu com o que quer que conseguisse ter à mão: cordinhas de saco de lixo, arames florais e elásticos que amarravam os brócolis.

A única coisa que tinham em comum? Nenhuma delas suportava ficar imóvel, desocupada ou ociosa por um segundo sequer. Vinham trabalhando lado a lado na PFB havia quase cinco anos – não, mais que isso. Seriam sete?

Oh, Deus, já estavam perto dos dez.

E Lizzie não conseguia visualizar uma vida sem aquela mulher, mesmo que, às vezes, Greta fosse o tipo que via o copo meio vazio em vez de meio cheio.

– Ich sage Ihnen, wir haben Schwierigkeiten.5

– Você acabou de repetir que estamos em apuros?

– Kann sein.6

Lizzie revirou os olhos, mas se deixou levar pela adrenalina, observando a linha de produção que tinham preparado: no fim da estufa de vinte metros de comprimento, uma fila dupla de mesas dobráveis estava formada e, sobre elas, setenta e cinco cubas de prata para buquês do tamanho de baldes de gelo.

O brilho era tão forte que Lizzie desejou não ter deixado os óculos escuros no carro.

E também desejou não ter que lidar com a situação, ciente que Lane Baldwine provavelmente estaria aterrissando no aeroporto naquele instante.

Como se ela precisasse também dessa pressão.

Conforme sua cabeça começava a latejar, tentou se concentrar no que podia controlar. Infelizmente, isso lhe deixava apenas se perguntando como ela e Greta preencheriam aqueles vasos com o equivalente a 50 mil dólares em flores entregues, mas que ainda precisavam ser desembaladas, inspecionadas, limpas, cortadas e arranjadas de maneira adequada.

Pensando bem, era a pressão que sempre a acometia nas quarenta e oito horas que precediam o Brunch do Derby.

Ou BD, como era chamado ali na propriedade.

Porque, sim, trabalhar em Easterly era o mesmo que estar no exército: tudo era reduzido, menos as horas de trabalho.

E, sim, apesar da ambulância daquela manhã, o evento ainda aconteceria. Como um trem que não parava para nada nem ninguém em seu caminho. Na verdade, ela e Greta costumavam dizer que, se eclodisse uma guerra nuclear, as únicas coisas que resistiriam depois que a nuvem de cogumelo se dissipasse seriam baratas, Twinkies… e o BD.

Deixando as piadas de lado, o Brunch era tão exclusivo e acontecia havia tanto tempo que tinha um nome próprio. As vagas na lista de convidados eram guardadas e passadas para a geração seguinte como herança. Era uma reunião de quase setecentas pessoas, composta pela elite financeira e política da cidade e da nação. Elas conversavam e se misturavam em meio aos jardins de Easterly, tomando julepos de menta e mimosas7 por apenas duas horas antes da partida para Steeplehill Downs, para o dia mais importante da corrida de cavalos e a primeira etapa da Tríplice Coroa do Turfe. As regras do Brunch eram simples e diretas: as damas tinham que usar chapéus, não eram permitidas fotografias, tampouco fotógrafos, e não importava se você viesse num Phantom Drophead ou numa limusine corporativa, todos os carros ficavam estacionados nos campos ao pé da colina, e todos chegavam nas vans que os conduziriam até a entrada da mansão.

Bem, quase todas as pessoas. As únicas que não precisavam pegar o transporte eram governadores e quaisquer presidentes que aparecessem, e o treinador-chefe da equipe masculina de basquete da Universidade de Charlemont.

No Kentucky, ou você era vermelho da UC, ou azul da Universidade do Kentucky, e o basquete era importante, quer você fosse rico ou pobre.

Os Bradford eram fãs dos Águias da UC. E era quase shakespeariano que seus rivais no negócio do bourbon, os Sutton, fossem todos Tigres da UK.

– Estou ouvindo você resmungar – Lizzie comentou. – Pense positivo. Vamos conseguir.

– Wir müssen alle Pfingstrosen zahlen8 – Greta anunciou ao abrir mais uma caixa de papelão. – No ano passado, eles nos entrregarram florres a menos.

Uma das portas duplas que dava para a casa foi aberta, e o senhor Newark Harris entrou como uma brisa fria. Com seu 1,67 metro de altura, ele parecia mais alto em seu terno e gravata pretos – mas, pensando bem, a ilusão talvez se devesse às sobrancelhas eternamente erguidas, e ao fato de ele sempre estar prestes a dizer “seu americano idiota” depois de tudo o que pronunciava. Fazendo um retrocesso na tradição centenária de um adequado criado inglês, ele não apenas nascera e fora criado em Londres, como também servira como criado de libré para a rainha Elizabeth no Palácio de Buckingham e, depois, como mordomo do príncipe Edward, conde de Wessex, em Bagshot Park. O pedigree da Casa de Windsor fora crucial para a sua contratação no ano anterior.

Por certo, não fora a sua personalidade.

– A senhora Baldwine está à beira da piscina. – Dirigiu-se a Lizzie. Greta, por sua nacionalidade alemã e por ainda ter um sotaque carregado, era persona non grata para ele. – Por favor, leve um buquê para ela. Obrigado.

E puf!, sumiu pela porta, fechando-a silenciosamente.

Lizzie cerrou os olhos. Havia duas senhoras Baldwine na propriedade, mas somente uma poderia estar fora do quarto, tomando sol à beira da piscina.

Um golpe duplo naquele dia, Lizzie pensou. Não só teria que ver seu antigo amante, agora teria que servir a esposa dele.

Fantástico.

– Ich hoffe, dass dem Idiot ein Klavier auf den Kopf fallt.9

– Você acabou de dizer que espera que um piano caia sobre a cabeça dele?

– E você diz que não entende alemão.

– Dez anos com você e eu estou chegando lá.

Lizzie relanceou ao redor para ver o que poderia usar da imensa entrega de flores. Depois que as caixas fossem abertas, as folhas precisariam ser arrancadas das hastes e as flores teriam que ser afofadas uma a uma para encorajar as pétalas a se abrirem, permitindo uma inspeção de qualidade. Ela e Greta não estavam nem perto daquele estágio ainda, mas o que a senhora Baldwine queria, ela tinha.

De muitas maneiras.

Quinze minutos de escolha, corte e arranjo, e Lizzie tinha montado um buquê razoável, enfiado numa espuma dentro de um vaso de prata.

Greta apareceu diante dela e estendeu as mãos, com aquele diamante enorme no dedo reluzindo.

– Deixe que eu levo.

– Não, pode deixar…

– Você não vai querrer lidar com ela hoje.

– Nunca quero lidar com ela.

– Lizzie.

– Estou bem. Sério.

Felizmente, sua velha amiga acreditou na mentira. A verdade? Lizzie estava longe de se sentir bem, ela sequer conseguia enxergar essa possibilidade, mas não significava que recuaria.

– Volto já.

– Estarrei contando as peônias.

– Tudo vai ficar bem.

Era o que esperava.

Enquanto Lizzie seguia para as portas duplas que davam para o jardim, sua cabeça começou a latejar de verdade, e ser atingida pelo calor e umidade do lado de fora não ajudou em nada. Motrin, pensou ela. Depois daquilo, ela tomaria quatro comprimidos e voltaria ao trabalho.

A grama estava cortada bem rente, mais parecida com um campo de golfe do que qualquer outra coisa que a Mãe Natureza tivesse imaginado. Apesar de ter muitas coisas em mente, ela fez uma lista mental de tarefas, como cuidar das moitas e do replantio nos dois hectares que compunham o jardim fechado. A boa notícia era que depois do início tardio da primavera, as árvores frutíferas vicejavam nos cantos do muro de tijolos, e as delicadas pétalas brancas começavam a cair como flocos de neve nos caminhos debaixo das copas. E a compostagem espalhada duas semanas antes perdera seu odor forte. Em um mês, os quatro cantos marcados pelas esculturas greco-romanas de mulheres em vestes e poses régias estariam todas rosadas e embranquecidas, em contraste com o verde e cinza tranquilizador do rio.

Mas, claro, agora tudo se tratava do Derby.

A casa de madeira branca da piscina ficava no canto à esquerda. Parecia o lar de uma família pequena e típica de médicos/advogados ao estilo colonial, atrás da piscina quase olímpica e seu azul-marinho. O caminho que ligava a casa à piscina era coberto por galhos de glicínias, que logo teriam flores brancas e lilases penduradas como lanternas caindo do emaranhado verde.

E debaixo da cobertura, estendida numa espreguiçadeira Brown Jordan, a senhora Chantal Baldwine era tão bela quanto uma inestimável estátua de mármore.

E continha o mesmo calor.

Sua pele era reluzente, graças ao spray bronzeador perfeitamente aplicado, seus cabelos loiros estavam artisticamente penteados e curvos nas pontas, e seu corpo provocaria complexo de inferioridade até em Rosie Huntington-Whiteley. As unhas eram postiças, mas perfeitas, nada de Jersey em seu tamanho e cor, e o anel de noivado e a aliança de casamento pareciam saídos da Town & Country, tão brancos e ofuscantes quando o sorriso dela.

Ela era a perfeita e moderna belle do sul, o tipo de mulher que as pessoas de Charlemont consideravam, aos sussurros, ser “de boa linhagem, apesar de ser da Virgínia”.

Lizzie sempre se perguntou se os Bradford verificavam os dentes das debutantes com quem seus filhos saíam – assim como se faz com cavalos puros-sangues.

– … desmaiou e a ambulância foi chamada. – A mão pesada devido ao diamante se ergueu e afastou uma mecha dos cabelos, em seguida passou o iPhone no qual falava com alguém para a outra orelha. – Levaram-na pela porta da frente. Dá para acreditar nisso? Eles deveriam tê-lo feito pela porta dos fundos… Ah, essas são adoráveis!

Chantal Baldwine levou a mão à frente da boca, numa postura de gueixa, enquanto Lizzie carregava as flores até a bancada de mármore do bar, colocando-as na ponta que não estava diretamente exposta ao sol.

– Newark fez isso? Ele é tão atencioso.

Lizzie assentiu e se virou para sair. Quanto menos tempo desperdiçasse ali, melhor.

– Ah, Lisa, você poderia…

– É Lizzie. – Ela parou. – Posso ajudá-la com mais alguma coisa?

– Você faria a gentileza de me trazer mais disto? – A mulher apontou para um jarro pela metade. – O gelo derreteu e ficou aguado. Vou almoçar no clube, mas só daqui a uma hora. Muito obrigada.

Lizzie desviou o olhar para a limonada e tentou, tentou mesmo – tinha Deus como testemunha – não se imaginar afogando a mulher naquela coisa.

– Avisarei o senhor Harris para que ele mande alguém…

– Ah, mas ele é muito ocupado. E você mesma pode dar um pulo lá dentro… Você é tão prestativa. – A mulher voltou ao iPhone com a capinha da Universidade de Charlemont. – Onde eu estava? Ah, então, eles a levaram pela porta da frente. Quero dizer, com toda a sinceridade, consegue imaginar?

Lizzie se aproximou, pegou o jarro e voltou a cruzar o terraço branco na direção do gramado.

– Será um prazer.

Será um prazer.

Ah, sim, e como. Mas era isso o que você devia dizer quando alguém da família lhe pedia alguma coisa. Era a única resposta aceitável. E certamente melhor que “Que tal se eu pegar essa limonada e enfiá-la onde o sol não alcança, sua miserável filha de uma…?”.

– Ah, Lisa! Virgem, ok? Obrigada.

Lizzie apenas continuou em frente, lançando mais uma granada de “Será um prazer” por sobre o ombro.

Aproximando-se da mansão, teve que escolher sua via de entrada. Como membro do staff, não tinha permissão de entrar pelas quatro entradas principais: a da frente, a lateral da biblioteca, a dos fundos da sala de jantar e a dos fundos da sala de jogos. E era “desencorajada” a usar outras portas que não as da cozinha e da sala de utensílios, ainda que tivesse permissão se estivesse fazendo as três distribuições semanais de buquês pela casa.

Escolheu a porta que estava no meio do caminho entre a sala de jantar e a cozinha porque se recusava a dar toda a volta até a entrada de funcionários. Pisando no interior fresco, manteve a cabeça abaixada, não porque se preocupasse em irritar alguém, mas porque tinha esperanças e rezava para entrar e sair sem ser flagrada por…

– Fiquei pensando se a encontraria hoje aqui.

Lizzie congelou como um ladrão pego em flagrante e sentiu lágrimas ameaçando cair nos cantos dos olhos. Mas não iria chorar.

Não diante de Lane Baldwine.

E não por causa dele.

Aprumando os ombros, ergueu o queixo… e começou a se virar.

Antes de se deparar com os olhos de Lane pela primeira vez desde que o mandara para o inferno ao fim do relacionamento deles, Lizzie entendeu três coisas: um, sua aparência seria exatamente a mesma de antes; dois, isso não seria uma boa notícia para ela; e três, se tivesse um pouco de cérebro dentro da cabeça, colocaria aquilo que ele lhe fizera quase dois anos antes em autolooping e não pensaria em nada mais.

Autoconfiança, um lugar agradável…

Ah, merda, ele ainda tinha que ser assim tão bonito?

Lane não se lembrava muito da experiência de entrar em Easterly pela primeira vez desde o que o parecia ser uma eternidade.

Nada ficou muito registrado. Não a imponente porta de entrada com suas aldravas em forma de cabeça de leão e seu painel preto reluzente. Não o vestíbulo do tamanho de um campo de futebol e todos os quadros a óleo dos Bradford do passado e do presente. Não o candelabro de cristal ou os candeeiros de ouro, nem os tapetes orientais vermelho rubi ou as pesadas cortinas de brocado. Tampouco a sala de estar e o salão de baile em lados opostos.

A elegância sulista de Easterly, aliada à eterna fragrância cítrica do antigo lustra-móveis, era como um belo terno que, uma vez no corpo, não se percebia no resto do dia porque foi feito sob medida por um alfaiate, moldando-se ao seu esqueleto e músculos. Para ele, não houve nenhuma estranheza ao entrar ali: era uma imersão total em águas mansas, à temperatura ideal. Era como respirar o ar parado, com a umidade perfeita. Era como um cochilo ao estar sentado numa poltrona de couro do clube.

Esse era, ao mesmo tempo, seu lar e seu inimigo e, muito provavelmente, não sentiu nada porque estava oprimido por emoções que reprimia.

No entanto, notou cada detalhe a respeito do seu reencontro com Lizzie King.

A colisão aconteceu bem quando ele passava pela sala de jantar à procura daquela pela qual ele viajara.

Ah, Deus, pensou. Ah, bom Deus.

Depois de ter apenas confiado em suas lembranças por tanto tempo, estar diante de Lizzie era a diferença entre uma passagem descritiva e a coisa real – e seu corpo reagiu de pronto, o sangue bombeando, todos aqueles instintos dormentes não apenas despertando, mas explodindo em suas veias.

O cabelo dela ainda era loiro por causa do sol, não pelo trabalho de algum cabeleireiro, e estava preso para trás com um laço, as pontas aparadas como uma corda náutica que fora cortada com fogo. Seu rosto ainda estava sem maquiagem, a pele bronzeada e reluzente, a estrutura óssea lembrando-o de que a boa genética era muito melhor que cirurgias plásticas de milhares de dólares. E seu corpo… aquele corpo forte que apresentava curvas onde ele mais apreciava, e a firmeza que testemunhava todo o trabalho físico que ela executava tão bem. Ela estava exatamente como ele se lembrava. Até estava vestida do mesmo modo, com shorts cáqui e a camiseta polo preta com o brasão Easterly bordado.

Seu perfume era Coppertone, e não Chanel. Seus sapatos eram Merrel, não Manolo. Seu relógio era Nike, não Rolex.

Para ele, ela era a mulher mais bela e mais bem-vestida que já vira.

Infelizmente, aquele olhar também permanecia inalterado.

Aquele que lhe dizia que ela também pensara nele desde a sua partida.

Mas não de uma maneira boa.

Lane movia a boca, percebendo que pronunciava uma combinação de palavras, mas não as acompanhava. Imagens demais se infiltravam em seu cérebro, todas as lembranças do passado: o corpo nu de Lizzie em meio aos lençóis revoltos, o cabelo emaranhado em seus dedos, suas mãos entre as pernas dela. Em sua mente, ele a ouvia pronunciar-lhe o nome enquanto a penetrava fundo, balançando a cama até que a cabeceira se chocasse contra a parede…

– Sim, eu sei por que veio – ela disse num tom neutro.

Pense em diferentes ondas cerebrais. Ele estava desequilibrado até as pontas dos seus Gucci, revivendo o relacionamento deles, e ela estava completamente impassível diante da sua presença.

– Você já a viu? – ela perguntou. Depois franziu o cenho. – Oi?

Que diabos ela estava falando? Ah, sim.

– Fiquei sabendo que ela já voltou do hospital.

– Cerca de uma hora atrás.

– Ela está bem?

– Ela saiu daqui numa ambulância com uma máscara de oxigênio. O que você acha? – Lizzie relanceou na direção para onde estava indo. – Olha, preciso pedir licença, tenho que…

– Lizzie – ele disse em voz baixa. – Lizzie, eu…

Como ele não concluiu a frase, ela se mostrou aborrecida.

– Faça um favor e nem pense em terminar essa frase, ok? Apenas vá vê-la e… e faça o que veio fazer, está bem? Me deixe fora disso.

– Nossa, Lizzie, por que você não quer me ouvir…?

– “Por que eu deveria?” é a pergunta correta.

– Porque pessoas civilizadas são gentis umas com as outras…

E BUM! Começaram a discutir.

– O que disse? – ela exigiu saber. – Só porque moro do outro lado do rio e trabalho para a sua família, isso faz de mim uma espécie de símio? Mesmo? Vai começar por aí?

– Não foi isso o que eu quis dizer…

– Ah, mas eu acho que foi mesmo…

– Eu juro – ele murmurou –, esse seu orgulho…

– O que tem ele, Lane? Está se mostrando de novo? É isso? Sinto muito, você não pode distorcer as coisas como se fosse eu quem tem problemas. Isso é com você. Sempre foi com você.

Lane ergueu as mãos.

– Não consigo falar com você. E eu só quero explicar…

– Quer fazer uma coisa por mim? Ótimo, maravilha. Segure isto aqui. – Ela enfiou o jarro pela metade com o que lhe pareceu ser uma limonada. – Leve-o para a cozinha e peça para alguém enchê-lo. Depois, mande alguém levá-lo de volta à piscina, ou, quem sabe, leve você mesmo… para a sua esposa.

Dito isso, ela girou e saiu pela porta mais próxima. E enquanto atravessava o gramado em direção à estufa, Lane não conseguia decidir o que o atraía mais: bater a cabeça na parede, quebrar o jarro no chão ou uma combinação dos dois.

Escolheu a quarta opção.

– Maldição, filha de uma… merda…

– Senhor? Posso ajudá-lo?

Ante o sotaque britânico, Lane relanceou para um homem de cerca cinquenta anos que se vestia como se fosse um recepcionista de uma funerária.

– Quem diabos é você?

– Harris, senhor. Sou Newark Harris, o mordomo. – O homem se curvou na altura da cintura. – Os pilotos foram gentis o bastante para nos telefonar e avisar que o senhor estava a caminho. Posso cuidar da sua bagagem?

– Não trouxe nenhuma.

– Pois não, senhor. Os seus aposentos estão arrumados, e caso necessite de algo, será um prazer providenciar o que o senhor necessitar.

Ah, não, Lane pensou. Nada disso, ele não ia ficar – ele sabia muito bem qual final de semana se aproximava, e o objetivo da sua visita não tinha nada a ver com o circo armado do Derby.

Empurrou o jarro nas mãos do senhor Engomadinho.

– Não sei o que tem aqui dentro e não me importo. Apenas reabasteça e leve-o para o seu devido lugar.

– Será um prazer, senhor. O senhor precisará de…

– Não, é só isso.

O homem pareceu surpreso quando Lane passou por ele e partiu para a ala da casa reservada à criadagem. Mas, obviamente, o inglês não o questionou. O que, levando em consideração o seu humor, não apenas era adequado à etiqueta de um mordomo, como também se enquadraria numa questão de autopreservação.

Dois minutos dentro daquela casa. Dois malditos minutos.

E já estava em ponto de bala.


“Onde estão as rosas? Precisamos de mais rosas!”

“Pedi mais dez dúzias. Onde elas estão?”

“Eu te digo, estamos com problemas.”

“Pode ser.”

Julepo de menta é uma bebida feita de uísque, açúcar, gelo moído e hortelã. Mimosa é um coquetel feito com três partes de vinho espumante e duas partes de suco de laranja gelado, tradicionalmente servido em uma taça alta chamada flute. (N.E.)

“Precisamos pagar todas as peônias”

“Espero que um piano caia sobre a cabeça desse idiota.”

 

QUATRO

Lane marchou pela imensa cozinha industrial e foi imediatamente surpreendido pelo “barulho olfativo” e pelo silêncio do auditório. Mesmo havendo uma bela dúzia de chefs inclinados sobre as bancadas de aço inoxidável e sobre os enormes fogões, nenhum dos homens em seus dolmãs brancos conversava enquanto trabalhava. Alguns poucos ergueram o olhar, reconhecendo-o e parando o que quer que estivessem fazendo. Lane ignorou os “Oh, meu Deus!”. Àquela altura, já estava acostumado quando o olhavam duas vezes só para se certificarem de que era ele mesmo, sua reputação o precedia por toda a nação havia muito tempo.

Obrigado, Vanity Fair, pelo artigo sobre a família uma década atrás. E pelos que vieram depois disso. E tinha as especulações dos tabloides. Sem falar no que aparecia na internet.

O que acontecia quando o status de celebridade, com o menor denominador comum embalado pela mídia, fisgava você?

Não havia mais como se livrar.

Conforme avançava na direção da porta com a placa de PARTICULAR, viu-se colocando a camisa para dentro, ajeitando a calça e alisando os cabelos. Queria ter se permitido um tempo para tomar banho, se barbear e trocar de roupa.

E queria muito que seu reencontro com Lizzie tivesse sido um pouco melhor. Como se ele precisasse de outra coisa na cabeça agora.

Bateu na porta baixinho, respeitosamente. Mas a resposta que conseguiu não foi nada respeitosa: – Pra que é que você está batendo? – exclamou uma voz feminina com forte sotaque sulista.

Lane franziu o cenho e empurrou a porta. E parou de pronto.

A senhorita Aurora estava junto ao fogão, o cheiro forte de óleo e os estalos do frango fritando na frigideira subiam pelo ar. Seus cabelos estavam puxados para cima num rabo de cachos negros e pequeninos, e ela usava o mesmo avental que ele vira nela no dia em que partira para o norte.

Ele só conseguiu piscar e se perguntar se alguém lhe pregara uma peça.

– Ora, ora, não fique parado aí – ela ralhou. – Lave as mãos e pegue as bandejas. Só deve demorar uns cinco minutinhos.

Certo, ele esperava encontrá-la deitada na cama com o lençol a cobrir-lhe o peito, com um brilho fraco no olhar enquanto aguardava que seu amado Jesus viesse buscá-la.

– Lane, mexa-se, ainda não morri.

Ele esfregou o alto do nariz quando uma onda de exaustão o acometeu.

– Sim, senhora.

Quando fechou a porta atrás de si, procurou por sinais de fraqueza física naqueles ombros e pernas fortes. Não encontrou nenhum. Não havia absolutamente nada naquela mulher de sessenta e cinco anos que sugerisse que ela fora parar no pronto-socorro naquela mesma manhã.

Ok, então estava num impasse, ele concluiu, espiando a comida que ela tinha preparado. Um impasse entre se sentir aliviado… e furioso por ter perdido tempo para ir até ali.

De uma coisa ele tinha certeza: não iria embora antes de comer. Em parte porque ela o amarraria numa cadeira e o forçaria a se alimentar, mas principalmente porque, no instante em que sentiu aqueles aromas, seu estômago roncou a valer.

– Você está bem? – ele tinha que perguntar.

O olhar que ela lhe lançou sugeria que, se ele continuasse naquele caminho, ela ficaria mais do que feliz em socá-lo até ele fechar a matraca.

Entendido, senhora, ele pensou.

Atravessando o cômodo, descobriu que as bandejas nas quais eles dois comiam estavam exatamente onde as vira pela última vez: num dos cantos, apoiadas entre o móvel da TV e uma prateleira de livros. O par de poltronas também estava no mesmo lugar, cada uma diante de uma janela alta, com paninhos de crochê sobre o encosto da cabeça.

Fotos de crianças estavam espalhadas por toda a parte, em diferentes porta-retratos, e em meio aos rostos morenos e belos, também havia alguns rostos brancos: ali estava ele na sua formatura do jardim de infância; seu irmão Max fazendo um gol num jogo de lacrosse; sua irmã, Gin, num vestido branco, como leiteira numa peça escolar; seu irmão mais velho, Edward, de terno e gravata no seu último ano na Universidade da Virgínia.

– Bom Deus, você está magro demais, menino – murmurou a senhorita Aurora enquanto mexia numa panela que ele sabia estar cheia de vagem com cubos de bacon. – Eles não têm comida lá em Nova York?

– Não como esta, senhora.

O som que ela emitiu no fundo da garganta foi como o de um velho Chevrolet com escapamento ruim.

– Pegue os pratos.

– Sim, senhora.

Descobriu que suas mãos estavam tremendo quando pegou dois pratos no armário e os ouviu batendo um contra o outro. Ao contrário da mulher que lhe dera a luz – que sem dúvida estaria “descansando” num torpor medicinal do tipo “Não sou viciada porque o médico me receitou essas pílulas” –, a senhorita Aurora sempre parecera não ter a idade que tinha e ser forte como uma heroína. O que fazer com a ideia de que o câncer tivesse voltado?

Inferno. Para início de conversa, ele não aceitava que ela tivesse passado por isso da primeira vez. Mas não se enganava. Aquele devia ser o motivo de ela ter desmaiado.

Depois de pegar os talheres e os guardanapos, colocando-os nas bandejas, e de ter servido copos de chá, foi até as poltronas e se sentou na da direita.

– Você não devia estar cozinhando – ele disse quando ela começou a servir os pratos.

– E você não devia ter ficado longe por tanto tempo. O que deu em você?

Ela definitivamente não está à beira da morte, ele pensou.

– O que o médico disse? – ele perguntou.

– Na minha opinião, nada que valesse a pena. – Ela trouxe todo tipo de comida celestial. – Agora fique quieto e coma.

– Sim, senhora.

Hummm, bom Jesus, pensou ele ao olhar para o prato. Quiabo frito. Miúdo de porco. Bolinhos de batata. Vagens naquele cozido de bacon. E frango frito.

Quando o estômago dele roncou alto, ela gargalhou.

Mas ele não. E, de repente, teve que limpar a garganta. Isso era seu lar. Essa comida, preparada especificamente por essa mulher, era seu lar. Ele comera exatamente o que estava neste prato durante toda a sua vida, especialmente antes de sua mãe se afastar de tudo, quando ela e seu pai sumiam cinco noites por semana para socializar. Doentes ou saudáveis, felizes ou tristes, no calor ou no frio, ele e seus irmãos sentavam-se naquela cozinha com a senhorita Aurora e se comportavam bem, para não se arriscarem a levar um tapinha no cocuruto.

Nunca houve nenhum encrenqueiro na cozinha da senhorita Aurora.

– Vá em frente – ela disse com suavidade. – Não deixe esfriar.

Ele atacou a comida e gemeu com a primeira garfada, que explodiu em sabores na sua boca.

– Hum, senhorita Aurora…

– Você precisa voltar pra casa, menino. – Ela balançou a cabeça ao se sentar com o próprio prato. – Aquela coisa lá do norte não é pra você. Não sei como aguenta o clima… muito menos as pessoas.

– Então, vai me contar o que aconteceu? – perguntou, indicando a bolinha de algodão e o esparadrapo na curva do braço dela.

– Não preciso daquele carro que comprou pra mim. Foi o que aconteceu.

Ele limpou a boca.

– Que carro?

Os olhos negros se estreitaram.

– Não tente brincar comigo, menino.

– Senhorita Aurora, a senhora estava dirigindo um pedaço de… hum, sucata. Não vou tolerar esse tipo de coisa.

Ele podia distinguir o sotaque sulista ficando mais forte em sua voz. Não demorou muito, demorou?

– O meu Malibu está muitíssimo bom…

Foi a vez de Lane encará-la.

– Era um carro barato, pra início de conversa, e tinha mais de cem mil quilômetros rodados.

– Não entendo por q…

– Senhorita Aurora, não vou deixar que dirija aquela lata velha. Lamento.

Ela o encarou com determinação suficiente para abrir um buraco em sua testa, mas como ele não recuou, ela abaixou o olhar. E assim era a natureza do relacionamento deles. Dois teimosos, nenhum deles querendo ceder um milímetro sequer.

– Não preciso de um Mercedes – ela murmurou.

– Com tração nas quatro rodas, senhora.

– Não gosto da cor. É profana.

– Besteira. É vermelha da UC e a senhora adora.

Mesmo que ela tenha resmungado uma vez mais, ele sabia. Ela adorava o carro novo. A irmã dela, a senhorita Patience, ligara para ele e lhe dissera que a senhorita Aurora vinha dirigindo o E350 4Matic para cima e para baixo pela cidade. Claro, a senhorita Aurora nunca lhe telefonara para agradecer, e ele já esperava que ela protestasse – ela sempre fora orgulhosa demais para aceitar qualquer coisa de graça.

Mas a senhorita Aurora também não queria aborrecê-lo; e ela sabia que ele estava certo.

– Mas, então, o que aconteceu hoje cedo… – Já não era mais uma pergunta. Não perguntaria mais nada.

– Só fiquei um pouco tonta.

– Disseram que desmaiou.

– Estou bem.

– Disseram que o câncer voltou.

– Quem são eles?

– Senhorita Aurora…

– Meu Senhor e Salvador já me curou antes e vai me curar de novo. – Ela levantou uma palma para o céu e fechou os olhos. Depois olhou para ele. – Vou ficar bem. Já menti pra você antes, menino?

– Não, senhora.

– Agora coma.

A ordem calou a boca dele pelos próximos vinte minutos.

Lane já estava terminando o segundo prato quando teve que perguntar: – A senhora o tem visto ultimamente?

Não havia motivo para especificar de quem estava falando. Edward. Todos se referiam a “ele” em vozes sussurradas.

O rosto da senhorita Aurora se fechou.

– Não.

Houve mais um longo período de silêncio.

– Vai procurá-lo enquanto estiver aqui? – ela perguntou.

– Não.

– Alguém tem que fazer isso.

– Não vai fazer nenhuma diferença. Além do mais, tenho que voltar pra Nova York. Só vim aqui pra ver como a senhora estava…

– Você vai até ele. Antes de voltar para o norte.

Lane fechou os olhos. Depois de um instante, disse:

– Sim, senhora.

– Bom menino.

Depois do terceiro prato, Lane lavou a louça, e teve que ignorar o fato de que a senhorita Aurora parecia não ter comido nada. A conversa se voltara para os sobrinhos e sobrinhas dela, para os irmãos e irmãs, onze ao todo, e o pai dela, Tom, que por fim falecera aos oitenta e seis anos.

Ela se chamava Aurora Toms porque era uma entre os vários filhos de Tom. Havia boatos que, além dos doze que tivera com a esposa, existiam inúmeros outros fora do casamento. Lane encontrava o homem na igreja de Aurora de tempos em tempos; ele tinha sido grandioso, tão sulista quanto o Mississipi, tão carismático quanto um orador e tão belo quanto o pecado.

Embora não quisesse ser arrogante, Lane sabia que sempre fora o predileto dela, e imaginava que Tom era o motivo pelo qual ela o mimava tanto: assim como aconteceu com seu pai, também diziam que Lane era mais bonito do que lhe faria bem, e ele também tivera sua época de mulherengo. Quando tinha seus vinte e poucos anos, Lane estivera pau a pau com o bom e velho senhor Toms.

Lizzie o curara disso tudo. Mais ou menos como uma barragem que detém um carro a toda velocidade.

– Suba e cumprimente a sua mãe antes de ir embora, também – disse a senhorita Aurora, depois que ele lavou, enxugou e guardou os pratos e os talheres.

Deixou a frigideira e as demais panelas no fogão. Sabia que era melhor não tocar nelas.

Girando, dobrou o pano de prato e se recostou contra a pia de aço inoxidável.

Da sua poltrona, ela levantou a mão.

– É melhor vocês todos pararem de…

– Senhorita Aurora…

– Não me diga que voou mais de mil quilômetros só pra olhar pra mim como se eu fosse uma inválida. Não faz nenhum sentido.

– A sua comida fez a viagem valer a pena.

– Isso é verdade. Agora vá ver a sua mãe.

Eu já vi, ele pensou, olhando para ela.

– Senhorita Aurora, vai ter ajuda para o Derby?

– O que acha que é aquele monte de bobalhões ali na minha cozinha?

– É muita coisa pra fazer. Não me diga que a senhora não fica ali dando ordens.

O conhecido olhar se cravou nele, mas foi só isso que ele recebeu e isso o assustou. Normalmente, ela se levantaria da poltrona e o empurraria porta afora. Em vez disso, permaneceu sentada.

– Vou ficar bem, menino.

– É melhor mesmo. Sem você, não tenho ninguém pra me manter na linha.

Ela murmurou alguma coisa bem baixinho e fixou o olhar acima do ombro dele, enquanto ele esperava calado.

Por fim, gesticulou para que ele se aproximasse, e ele obedeceu de pronto, atravessando o piso de linóleo e se ajoelhando diante da sua poltrona. Uma das mãos, uma das lindas, fortes e negras mãos dela, se esticou e alisou o cabelo de Lane.

– Precisa cortar isso.

– Sim, senhora.

Ela lhe tocou o rosto.

– Você é bonito demais para o seu próprio bem.

– Como acabei de dizer, a senhora tem que ficar por perto pra me manter na linha.

A senhorita Aurora assentiu.

– Pode contar com isso. – Houve uma longa pausa. – Obrigada pelo meu carro novo.

Ele pressionou um beijo na palma dela.

– De nada.

– E você precisa se lembrar de uma coisa. – Seus olhos, aqueles olhos negros que o fitaram quando ele era menino, adolescente, jovem… até se tornar um homem crescido, vasculharam seu rosto, como se ela estivesse tomando nota das mudanças que o passar dos anos causara nas feições que ela conhecia por mais de trinta anos. – Tenho você e tenho Deus. Sou mais rica do que poderia sonhar… Entendeu, menino? Não preciso de um Mercedes. Não preciso de uma casa luxuosa e de roupas elegantes. Não tem nenhum buraco em mim que precisa ser preenchido… Entendeu?

– Sim, senhora. – Fechou os olhos, pensando que ela era a mulher mais nobre que já conhecera.

Isto é, ela e Lizzie.

– Entendo o que quer dizer, senhora – ele disse, rouco.

Aproximadamente uma hora depois do episódio da limonada com Lane, Lizzie saiu da estufa com dois grandes arranjos. A senhora Bradford sempre insistira em ter flores frescas nos cômodos sociais e em todos os quartos ocupados, e esse padrão fora preservado mesmo depois que ela se recolhera à sua suíte havia três anos, ali permanecendo. Lizzie gostava de imaginar que se continuasse com esse costume, talvez a Pequena V.E., como a família a chamava, voltasse a aparecer e ser a dona da casa.

Easterly tinha bem uns cinquenta cômodos, mas muitos deles eram escritórios, aposentos e banheiros de funcionários, ou cozinha, adega, salas de imprensa, ou quartos desocupados que não necessitavam das flores. Os buquês do primeiro andar estavam em ordem; ela já os inspecionara e retirara uma rosa murcha na noite anterior. Aquelas flores frescas iriam para o vestíbulo do piso superior e para o quarto do senhor Baldwine. O vaso da senhora Bradford só deveria ser trocado no dia seguinte, bem como o de Chantal e…

Será que Lane ficaria no quarto da esposa?

Provavelmente, e isso lhe provocou ânsias.

Seguindo para a escada dos empregados, os dois vasos de prata pesavam-lhe nos braços e pulsos, enrijecendo-lhe os bíceps, mas ela seguiu em frente. A queimação não duraria muito tempo, e descansar em algum lugar só prolongaria a tarefa.

O corredor de cima era tão longo quanto uma pista de corrida de cavalos, bifurcando-se numa espécie de sala de estar, seguindo para um total de vinte e uma suítes que se abriam em cada um dos lados. Os aposentos do senhor Baldwine ficavam ao lado dos da esposa, ambos com vista para o jardim e o rio. Uma porta unia os dois closets, mas ela sabia que nunca era usada.

Pelo que sabia, depois do nascimento dos filhos, aquela parte do relacionamento deles não fora “retomada”, para usar um vocábulo mais sutil.

Assim que começara a trabalhar em Easterly, confundia-se com os nomes, e certa vez referira-se à senhora Bradford pelo seu nome de casada, senhora Baldwine. Inaceitável. Fora corrigida pelo encarregado dos funcionários: a dona da mansão Bradford seria chamada de “senhora” e de “Bradford”, pouco importando qual fosse o sobrenome do marido.

Confuso. Até ela perceber que marido e mulher tinham vidas separadas, assim como seus aposentos. Portanto, havia um senhor Baldwine com uma suíte em tons de azul-marinho e pesadas antiguidades em mogno, e uma senhora Bradford com uma suíte em tons pastéis, mobília Luís XIV e uma cama de dossel.

Na verdade, talvez os dois tivessem algo em comum: ele se escondia no escritório no centro de negócios; ela, em seus aposentos.

Loucura.

Lizzie seguiu para a escada curva e formal e trocou o buquê da mesa de centro da área social. Depois foi em frente e parou diante da suíte do senhor Baldwine. Bateu duas vezes na madeira e esperou, apesar de saber que não havia ninguém no interior. Todas as manhãs, ele ia para o centro de negócios ao lado da propriedade e só regressava às sete da noite para o jantar.

Colocou o arranjo floral da sala de estar no chão, girou a maçaneta, empurrou a porta e avançou até uma cômoda antiga que deveria pertencer a um museu. Não havia nada de muito errado com as flores ali, mas nada tinha permissão de perecer em Easterly. Ali, naquele casulo de riqueza, não se permitia que existisse entropia.

Enquanto trocava os vasos, ouviu vozes no jardim e foi até as janelas. Mais de uma dúzia de homens haviam chegado, carregando pesados rolos de lona branca e grandes postes de alumínio, que, com força humana e um tanto de hidráulica, formariam a tenda de 12 por 24 metros do Brunch do Derby.

Maravilha. Chantal provavelmente chamaria o senhor Harris nesse mesmo instante para reclamar que a zona de não sobrevoo fora violada. Se um membro da família ou um convidado estivesse usando a piscina, a casa da piscina, ou quaisquer um dos terraços, todos os trabalhos tinham que ser interrompidos no jardim e todos os trabalhadores tinham que evacuar a área até que a Sua Alteza tivesse concluído seu lazer.

A boa notícia? Greta já estava ali, controlando os homens. A má notícia? A alemã devia estar ordenando que eles montassem tudo bem ao lado de onde Chantal estava.

Deliberadamente.

Temendo um confronto, Lizzie se virou…

E parou quando uma centelha de cor chamou sua atenção.

– Mas o quê…?

Inclinando-se para baixo, ficou sem saber exatamente para o que estava olhando. Assim como todo o resto em Easterly, o quarto de William Baldwine era imaculado, todos os objetos e pertences estavam onde deveriam estar, todas as armas de um poderoso homem de negócios estavam guardadas em gavetas, organizadas em prateleiras, à espera dele em um closet imenso.

Portanto, o que era aquele pedaço de seda cor de pêssego entre a cabeceira e a parede?

Bem, ela podia imaginar.

E a lingerie não devia ser de Virginia Elizabeth Bradford Baldwine.

Lizzie não via a hora de sair do quarto. Foi até a porta, abriu-a e…

– Ah, mas eu estou tãããão feliz em ver vocêêêê!

O sotaque arrastado sulista pareceu um arranhado em uma lousa, mas o pior foi olhar para a direita e ver Chantal Baldwine lançando os braços ao redor do pescoço de Lane e se pendurando nele.

Fantástico. Os dois estavam entre ela e a escadaria dos funcionários.

– Não consigo acreditar que tenha me feito esta surpresa! – A mulher recuou um passo e fez uma pose, como se quisesse que ele lhe desse uma bela olhada. – Eu estava na piscina, mas subi porque as pessoas que vão armar a tenda chegaram. Resolvi sair para liberar a área.

Não é que você merece um prêmio por seu coração de ouro, querida?, Lizzie pensou. E você não estava a caminho do clube?

Lizzie se virou para seguir para a escadaria principal e fugir. Mesmo que fosse contra as regras, seria melhor que ter que passar por…

Como se soubesse disso, o senhor Harris surgiu com a senhora Mollie, a chefe da arrumação. O mordomo inglês passava o dedo pelo corrimão da balaustrada e o erguia para inspecionar, balançando a cabeça.

Maravilha.

Suas únicas saídas eram: brasas quentes ou uma fogueira acesa. Ou voltar para se esconder no quarto em que o senhor Baldwine traía a esposa.

Ah, as escolhas da vida…

Às vezes, ela simplesmente amava seu emprego.

 

CINCO

Destilaria de Bourbon Bradford, Condado Ogden

Edwin “Mack” MacAllan Junior caminhava ao longo da pilha de barris de bourbon de doze metros de altura, as botas de couro feitas à mão ressoando contra o antigo piso de concreto. O aroma das centenas de tábuas de madeira e dos milhões de litros de bourbon envelhecendo era tão agradável ao seu olfato quanto um perfume feminino.

Pena que estivesse irritado demais para apreciar direito.

Em seu punho, ele trazia um memorando corporativo todo amassado; as letras no papel branco eram irrecuperáveis. Teve que ler o maldito texto três vezes, e não só porque a leitura era um obstáculo insuperável para o seu cérebro disléxico.

Ele não era nenhum caipira. Nascera e fora criado numa família culta, frequentara a Universidade Auburn, e sabia tudo sobre fabricar bourbon e sobre os processos químicos envolvidos naquela arte intangível.

Na verdade, ele era o Mestre Destilador da marca de bourbon de maior prestígio no mercado, filho do Mestre Destilador mais respeitado na história da indústria de bebidas.

Mas, naquele instante, queria entrar na sua F-150 de meia tonelada e invadir a recepção do escritório de William Baldwine em Easterly. Em seguida, queria pegar seu rifle de cem anos de idade e fazer alguns buracos nas escrivaninhas dos idiotas corporativos.

Parando de súbito, recostou-se e fitou as prateleiras que se estendiam pelo armazém de teto de vigas expostas. Os códigos e as datas queimados diante dos barris tinham sido colocados em ordem ali primeiro pelo seu pai, e depois por ele mesmo, e havia uma progressão lógica. Os preciosos contêineres descansavam em paz por quatro anos, por dez anos, por vinte anos, e até mais. Inspecionava-os com regularidade, ainda que dispusesse de pessoas em número mais que suficiente para fazer exatamente isso. Mas, em sua opinião, aqueles eram os únicos filhos que teria, e não permitiria que crescessem aos cuidados do equivalente a uma babá.

Aos trinta e oito anos, era um solitário, tanto por escolha quanto por necessidade. Aquele trabalho – aquele trabalho de vinte e cinco horas por dia, oito dias por semana – era a sua esposa e a sua amante, a sua família e o seu legado.

Portanto, receber aquele memorando, que encontrara sobre sua mesa ao entrar, era como assistir a um motorista embriagado batendo de frente na minivan que continha toda a sua existência.

A receita do bourbon era algo verdadeiramente simples: uma mistura de grãos que, de acordo com as leis do Kentucky, tinha que conter um mínimo de cinquenta e um por cento de milho. Ali na Destilaria de Bourbon Bradford, adicionava-se a isso uma combinação de centeio, malte de cevada, e cerca de dez por cento de trigo, para dar um sabor mais suave; água, captada de um aquífero subterrâneo de pedra calcária; e levedura. Em seguida, depois que a mágica acontecia, o bourbon era colocado em barris de carvalho branco, queimados por dentro e deixados para se transformarem em armazéns bonitos e fortes como aquele.

Era só isso. Todo fabricante de bourbon tinha que trabalhar com esses cinco elementos: grãos, água, levedura, barril e tempo. Mas, assim como Deus conseguira criar uma variedade de pessoas a partir dos mesmos elementos centrais, também cada família ou empresa produzia diferentes nuances do mesmo produto.

Esticando o braço, apoiou a mão em um dos barris arredondados que enchera logo que se tornara mestre, quase dez anos atrás, embora trabalhasse para a empresa desde os catorze anos. Substituir o pai sempre fora o plano, mas o velho morrera cedo demais, e ali estava ele. Mack fora abandonado para nadar sozinho, e não tinha a menor intenção de morrer afogado.

Portanto, sim, ali estava ele, no auge do sucesso e ainda jovem o suficiente para criar uma dinastia própria, supostamente trabalhando para a aristocracia dos produtores de bourbon, a empresa que criara o Bourbon Perfeito.

Era o slogan para tudo o que a CBB fazia, a filosofia de marketing, de negócios e de fabricação.

Portanto, como, em nome de Deus, a administração esperava que ele aceitasse atrasos na entrega de grãos? Era como se aqueles idiotas com MBA não entendessem que, por mais que tivessem produtos de quatro anos em quantidade suficiente hoje, se não enchessem os silos, acabariam sem estoque desse tipo de bourbon em quarenta e oito meses; e isso se aplicava aos demais níveis, que esgotariam em dez, vinte anos…

Ele sabia exatamente para onde estavam indo. A redução na produção de milho, resultado do aquecimento global que desequilibrara o padrão climático no último verão, significava que o preço do alqueire estava na estratosfera. Mas não seria sempre assim. Obviamente, os contadores de moedas do escritório central, também conhecido como propriedade do senhor Baldwine, resolveram poupar uns trocados freando a produção nos meses seguintes, esperando recuperá-la quando o preço do milho se autorregulasse.

Desde que a seca que abalara a nação no ano anterior não se repetisse.

Havia muitas falhas na lógica desse “negócio”, mas a questão principal era que aqueles engravatados não entendiam que este bourbon não era um produto fabricado numa linha de montagem, com um interruptor de liga e desliga. O bourbon era um processo – era o auge e a expressão de inúmeras tentativas e erros –, refinado ao longo de duzentos e cinquenta anos: você tinha que cultivar o paladar do bourbon, encontrar os sabores e o equilíbrio, guiar os elementos até seu ápice… E, depois, enviar para os seus consumidores sob o rótulo distintivo. Inferno. Ele se orgulhava de resguardar a marca registrada no 15, o maior sucesso da empresa, ainda que fosse a linha mais barata, assim como fizera com os produtos mais dispendiosos e mais antigos, como o Black Mountain, o Bradford I e o mais que exclusivo Reserva de Família.

E se interrompesse a produção agora? Sabia muito bem que eles o procurariam em seis meses, ordenando que modificasse as datas dos barris.

Seis meses para os engravatados era apenas metade de um ano, vinte e seis semanas, duas estações.

Mas para o seu paladar… Ele conseguia distinguir um bourbon de nove anos e meio e um de dez anos e um dia. Talvez muitos dos clientes deles não percebessem a diferença, mas a questão não era essa, certo? E o fato de que vários de seus concorrentes adulteravam as datas de forma regular? Esse não era um padrão a ser seguido.

Se Edward estivesse ali, pensou, não teria que se preocupar com isso. Edward Baldwine era a raridade dentro da família Bradford – um verdadeiro destilador, o regresso a uma era de linhagem augusta, um homem que valorizava o produto. Mas o presumível herdeiro do trono já não estava mais envolvido com a companhia.

Portanto, não havia como recorrer a ele.

E o memorando sobre a sua mesa? Era o modo típico como as coisas vinham sendo resolvidas desde a tragédia com Edward. Os covardes do centro de negócios sabiam que ele surtaria, mas não tinham coragem de ir até lá para lhe contar pessoalmente. Nada disso. Simplesmente escreva um memorando e jogue por cima dos outros papéis como se não afetasse em cheio o cerne dos negócios.

Mack voltou a fitar as vigas de madeira de lei centenária. Aquele era o armazém mais antigo da empresa, utilizado para abrigar os barris mais especiais. Ficava localizado ao lado do armazém original, que hoje servia tanto de museu para turistas como de escritório. Este lugar era um maldito santuário.

A alma do seu pai perambulava pelos corredores.

Mack estava convencido de que sentia o velho junto aos seus calcanhares naquele mesmo instante.

Estava convencido também de que, em um dia tranquilo como este, quando suas únicas companhias ali no armazém eram a luz do sol que se infiltrava pelas janelas empoeiradas, o som das suas botas sobre o concreto e a neblina da parte dos anjos10 que evaporava… ele era um dos poucos defensores da tradição deixada pela companhia.

Os jovens que surgiam – mesmo aqueles que desejavam ocupar o seu posto – professavam amor pelos rituais e pelos fundamentos e clamavam estar comprometidos com o processo, porém eram apenas subordinados corporativos que vestiam calças cáqui em vez de ternos. Eram de uma geração de flocos de neve especiais, que esperavam receber troféus só por terem aparecido, e esperavam que tudo fosse fácil e que todos cuidassem deles e os protegessem, como faziam os seus pais.

Eles tinham tanta profundidade quanto seus perfis do Facebook. Ou seu egoísmo inesgotável e suas frivolidades sem alma.

Em comparação aos fundadores daquela empresa, que protegeram seu produto em meio à fome e à guerra, em meio à doença e à Grande Depressão… nos tempos da Proibição, pelo amor de Deus! Eles eram apenas meninos tentando fazer o trabalho de um homem.

Eles só não sabiam disso. E, com uma cultura corporativa como aquela, jamais saberiam.

– Mack?

Ele olhou por sobre o ombro. A sua secretária, Georgie O’Malley, que cuidara do escritório de seu pai antes que ele morresse, aproximou-se por trás dele sem fazer som algum. Aos sessenta e quatro anos, ela já estava na empresa havia quarenta e um, sem dar nenhum indício de que estava diminuindo o ritmo. Autoproclamada esposa de fazendeiro, porém sem marido nem fazenda, era um espírito aliado na luta contra a atual corrente que dizia que tudo era descartável.

– Tudo bem, Mack?

Mack ergueu o olhar para as janelas, vendo os vapores da parte dos anjos subindo aos céus.

A parte dos anjos era sagrada: cada um dos barris de carvalho era queimado por dentro antes de ser preenchido com duzentos litros de bourbon. Armazenados num local como aquele, num ambiente que, propositadamente, não era climatizado, a madeira dos barris se expandia e se contraía sazonalmente, e o bourbon dentro deles se coloria e adquiria sabor com os açúcares caramelizados provindos da madeira queimada.

Uma parte significativa evaporava e era absorvida pelos barris com o decorrer do tempo.

Essa era a parte dos anjos.

Seu pai a considerava o sacrifício pelo passado, a porção que ia para os criadores, para que eles bebessem no Paraíso. Também era uma antecipação à própria morte… e a esperança de que o próximo guardião da tradição fará o mesmo por você quando você já tiver morrido.

– Não vai sobrar nada para nós, Georgie – ele se ouviu dizer.

– Do que você está falando?

Ele apenas meneou a cabeça.

– Quero que mande os rapazes fecharem os silos.

– O quê?

– Você me ouviu. – Mack levantou o punho para que ela visse o papel amassado. – A corporação parou as encomendas de milho dos próximos três meses. No mínimo. Vão avisar quando poderemos fazer mais mistura. Qualquer centeio, cevada e trigo que tenhamos deve ser redesignado.

– Redesignado? O que isso quer dizer?

– Eles não podem vender para um concorrente. E se isso parar nos ouvidos de pessoas como os Sutton? Ou da imprensa? Vai fazer com que os dez centavos que eles pouparam se tornem o maior erro financeiro da história da empresa.

– Nunca paramos a produção.

– Não. Não desde a Proibição… E, mesmo assim, foi só pra fingir.

Houve uma longa pausa.

– Mack… o que eles estão fazendo?

– Eles vão arruinar esta empresa, é o que estão fazendo.

Aproximou-se da mulher.

– Vão acabar com a gente com a desculpa de maximizar o lucro. Ou, inferno, talvez estejam preparando um OPI, finalmente. Todos os outros produtores de bourbon têm ações na bolsa, exceto os Sutton. Talvez estejam tentando inflar os lucros artificialmente antes de uma venda particular. Não sei, e não quero saber. Mas tenho a mais absoluta certeza de que Elijah Bradford está se revirando dentro do caixão.

Conforme ele seguia para a saída, ela o chamou.

– Aonde você vai?

– Encher a cara. Com muita, muita cerveja.


Durante o processo de envelhecimento, pelo menos 2% do uísque armazenado nos barris evapora através do carvalho. As destilarias se referem a essa porção como a “parte dos anjos”. (N.T.)

 

SEIS

Parado diante da porta do seu quarto ao fitar sua “esposa”, Lane pensou que, assim como Easterly, ela era a mesma. Chantal Blair Stowe Baldwine era, de fato, exatamente a mesma: mesmo corte de cabelo, bronzeado artificial, maquiagem, roupas caras cor-de-rosa. Tudo idêntico ao que ele deixara para trás. Inclusive a voz dela… que parecia a da protagonista Distinta Dama Sulista do Entretenimento.

Ela ainda tagarelava muito, palavras saíam de sua boca numa torrente sem considerar racionamento em benefício do ouvinte. Mas, pensando bem, a conversa era para ela uma forma de arte; suas mãos se movimentavam como as asas de uma pomba, arqueando-se para cima e para baixo, exibindo aquele imenso diamante do qual ela tanto fez questão, que reluzia como uma luz estroboscópica.

– … fim de semana do Derby! Claro, Samuel Theodore Lodge vem hoje à noite. Gin está tão animada em vê-lo…

Inacreditável. Fazia literalmente dois anos que não se viam, tampouco se falavam, e ela estava discorrendo sobre a lista de convidados para o jantar.

O que diabos um dia ele viu nela…

– Ah, Lisa! Com licença, você pode, por favor, pedir que o senhor Harris traga o carro do senhor Baldwine? Vamos almoçar no clube.

Lisa?, ele pensou. Mas, como de hábito, os empregados estavam sempre mudando por ali desde que…

Lane relanceou por cima do ombro. Lizzie estava parada diante da porta do quarto de seu pai, segurando dois vasos com flores perfeitas, que sem dúvida tinham acabado de ser substituídos.

– O senhor Harris está logo ali – Lizzie informou com frieza.

– Não gosto de gritar. Não é apropriado. – Chantal se inclinou para ela, como se fossem duas amigas partilhando um segredo. – Muito obrigada. Você é tão obsequi…

– Você enlouqueceu? – Lane perguntou, irritado.

Chantal se encolheu, a cabeça virando para trás, os olhos passando de ingênuos a matadores num piscar dos cílios postiços e lindos.

– O que disse? – Chantal sussurrou para ele.

Lane tentou capturar o olhar de Lizzie enquanto falava.

– Vá você mesma falar com ele.

Lizzie se recusava a olhar para ele. Com uma impassível expressão profissional, avançou, com passadas longas e elegantes, seguindo pelo longo corredor até a escada dos empregados. Nesse meio-tempo, Chantal voltou a falar.

– … falar comigo nesse tom diante da criadagem – ela sibilou.

– O nome dela é Lizzie, não Lisa. – Agora era ele quem se inclinava. – E você sabe disso, não sabe?

– O nome dela é irrelevante.

– Ela está aqui há mais tempo que você. – Ele sorriu com frieza. – E estou disposto a apostar como vai continuar a aqui depois que você se for.

– E o que isso deveria significar?

– Você não tem que ficar debaixo deste teto e sabe disso muito bem.

– Sou a sua esposa.

Lane a encarou de cima, e ficou se perguntando por que diabos ela ainda estava em sua vida. A resposta fácil era que ele vinha fingindo que Charlemont não existia. A mais complexa estava ligada ao que ela fizera.

Sou a sua esposa.

– Não por muito tempo – ele retrucou num tom baixo.

As sobrancelhas bem desenhadas dela se ergueram e, no mesmo instante, a expressão de gato irritado sumiu; ela ficou calma e tranquila, como a imagem de uma pintura.

– Não vamos discutir, querido. A nossa reserva no clube é para daqui a vinte minutos…

– Deixe-me ser bem claro. Não vou a parte alguma com você. A não ser para o escritório de um advogado.

Pela visão periférica, ele notou que o senhor Newark ou Harris – qualquer que fosse o nome do mordomo – estava dando meia-volta discretamente, levando a senhora Mollie, a governanta, na direção oposta.

– Fala sério, Tulane.

Deus, como ele odiava o seu nome nos lábios de Chantal: Tooooouuuuuulaaaayne. Pelo amor de Deus, eram três sílabas, e não trezentas.

– Estou falando sério – ele disse. – Está na hora de terminarmos isto.

Chantal inspirou fundo.

– Você está chateado por causa da pobre senhorita Aurora e está dizendo coisas que não sente. Entendo isso. Ela é uma excelente cozinheira… E é muito, muito difícil encontrá-las hoje em dia.

Os molares dele travaram.

– Você acha que ela é apenas uma cozinheira.

– Está me dizendo que ela é contadora?

Deus, por que ele…

– Aquela mulher significa mais para mim do que a que me pariu.

– Não seja ridículo. Além do mais, ela é negra…

Lane agarrou o braço de Chantal e a puxou para perto de si.

– Nunca mais fale dela dessa maneira. Nunca bati numa mulher antes, mas garanto que acabo com a sua vida se a desrespeitar.

– Lane, você está me machucando!

Naquele instante, ele percebeu que havia uma criada parada diante da porta de um dos quartos de hóspedes, com os braços tomados por toalhas dobradas. Quando ela abaixou a cabeça e seguiu em frente, ele empurrou Chantal. Ajeitou as calças. Encarou o tapete no chão.

– Acabou, Chantal. Se é que você ainda não percebeu.

Ela uniu as mãos como se estivesse rezando, e ele não acreditou nem por um segundo. O sofrimento falso na voz dela tampouco o comoveu quando ela sussurrou: – Acredito que precisamos cuidar do nosso relacionamento.

– Concordo. Este nosso casamento precisa sair desse estado miserável. É assim que cuidaremos dele.

– Você não pode estar falando sério.

– Ao inferno que não estou. Contrate um bom advogado ou não. De todo modo, você vai sair daqui.

Lágrimas. Grandes e grossas, que fizeram os olhos azuis dela brilharem como uma piscina.

– Você sabe ser muito cruel.

Não como ela sabia, ele pensou, nem de perto. E, pelo amor de Deus, ele deveria ter dado seguimento ao acordo pré-nupcial, mas que pena, que tristeza, tanto fazia àquela altura. A boa notícia era que sempre haveria mais dinheiro; mesmo que ela lhe arrancasse milhões, ele conseguiria recuperar em um ou dois anos.

– Vou falar com a minha mãe – ele disse. – E depois ligar para Samuel T. Talvez ele consiga lhe servir a papelada junto ao seu jantar hoje à noite.

E, simples assim, aqueles olhos tornaram-se implacáveis mais uma vez.

– Arruinarei você e sua família se for em frente com isso.

O que ela não sabia era que já arruinara a sua vida. Ela lhe custara Lizzie… e muito mais. Mas, maldição, aquilo tudo teria um fim.

– Cuidado, Chantal. – Ele não desviou o olhar. – Faço qualquer coisa, dentro ou fora da lei, para proteger o que é meu.

– Isso é uma ameaça?

– Apenas um lembrete de que sou um Bradford, minha cara. E nós cuidamos do que é nosso.

Afastando-se da mulher, Lane bateu à porta do quarto da mãe. Mesmo sem obter resposta, adentrou a perfumada suíte, fechando a porta atrás de si.

Cerrou os olhos, e precisou de um segundo para aplacar a fúria antes de enfrentar aquele reencontro dúbio. Precisava apenas de um segundo para se recompor. Apenas…

Quando ergueu as pálpebras, deparou-se com mais um cenário que não fora alterado.

O quarto branco e creme da mãe estava como sempre, as janelas imensas com vista para os jardins adornadas com cortinas elegantes de seda, quadros de Maxfield Parrish reluzentes como joias usadas pelas paredes, antiguidades francesas delicadas, preciosas demais para que fossem utilizadas como assento ou deixadas nos cantos. Mas nada disso era o ponto focal, por mais impressionante que fossem.

A cama de dossel do lado oposto era a verdadeira obra de arte. Tão resplandecente e maravilhosa quando o Baldaquino da Basílica de São Pedro, de Bernini. A compacta plataforma do tamanho de um barco tinha colunas entalhadas que se erguiam ao céu e uma grinalda de seda rosa-clara. E lá estava ela, Virginia Elizabeth Bradford Baldwine, deitada tão imóvel e preservada quanto uma santa, o corpo alto e magro escondido numa profusão de mantas de cetim e travesseiros, o cabelo loiro claro perfeitamente penteado, e o rosto maquiado, apesar de ela não estar indo a parte alguma e sequer estar consciente.

Ao lado dela, sobre uma cômoda bombê de tampo de mármore, havia uma dúzia de frascos de remédios com rótulos brancos dispostos em filas bem ordenadas, como um pelotão de soldados. Ele não fazia a mínima ideia do que havia dentro deles e, muito provavelmente, nem ela sabia.

Ela era a Sunny von Büllow11 sulista, a não ser pelo fato de que seu marido jamais tentara matá-la. Pelo menos não fisicamente.

O maldito provocara outros tipos de dano, porém.

– Mamãe – ele disse ao se aproximar. Quando chegou perto, segurou a mão fria e seca, de pele fina como papel e veias saltadas. – Mãe?

– Ela está repousando – informou uma voz.

Uma mulher com cerca de cinquenta anos, cabelos ruivos e um uniforme de enfermeira branco e cinza se aproximou, vindo do closet. Ela combinava perfeitamente com a decoração, e ele não desconsideraria a possibilidade de a mãe tê-la contratado exatamente por isso.

– Sou Patty Sweringin – ela se apresentou, estendendo a mão. – Você deve ser o jovem senhor Baldwine.

– Lane. – Ele apertou a mão dela. – Como mamãe tem passado?

– Repousando. – O sorriso era tão rígido e profissional quanto o uniforme dela. – Ela teve uma manhã cheia. O cabeleireiro veio tingir o cabelo.

Ah, sim, a confidencialidade. O que significava que ela não tinha permissão de lhe contar a condição de saúde da sua mãe. Mas não era culpa da enfermeira. E se sua mãe ficara exausta apenas porque arrumaram seu cabelo? Como é que ele achava que ela estava?

– Quando ela acordar, diga que… – Relanceou para a mãe.

– O que devo dizer, senhor Baldwine?

Ele pensou em Chantal.

– Vou ficar aqui alguns dias – replicou com seriedade. – Eu mesmo lhe direi isso.

– Pois não, senhor.

De volta ao corredor, ele fechou a porta e se recostou nela. Fitando um e outro retrato dos Bradford, descobriu que o passado voltava como uma picada de abelha.

Rápido e doloroso.

– O que está fazendo aqui?

Lizzie perguntara para ele no jardim, na escuridão, numa noite úmida e quente de verão. Acima, nuvens de tempestade tinham obscurecido a luz do luar, deixando as flores em broto e as árvores nas sombras.

Ele se lembrava de tudo; como ela ficara diante dele contra a parede de tijolos, com as mãos apoiadas nos quadris, o olhar fixo enfrentando o dele com uma firmeza a que ele não estava acostumado, seu uniforme de Easterly tão sexy quanto qualquer peça de lingerie que ele já tivesse visto.

Lizzie King tinha capturado a sua atenção desde a primeira vez que a vira na propriedade da família. E a cada regresso durante os recessos semestrais na faculdade, ele se via procurando por ela, buscando por ela, tentando se colocar em seu caminho.

Deus, ele adorava a perseguição.

E a captura também não era nada ruim.

Claro, ele não teve muitas experiências depois disso… e nem queria.

– E então? – ela exigiu saber. Como se, caso ele não entrasse logo no assunto, ela fosse começar a bater o pé no chão, e o movimento seguinte seria derrubá-lo por desperdiçar o seu tempo.

– Vim atrás de você.

Espere, não era isso. Ele quis dizer que viera vê-la. Para conversar com ela. Para olhá-la de perto.

Mas essas quatro palavras também eram verdadeiras. Ele queria saber qual era o sabor dela, como ela ficaria debaixo dele, o que…

Ela cruzou os braços diante do peito.

– Olha só, vou ser bem franca com você.

Lane deu um leve sorriso.

– Gosto de franqueza.

– Não acho que você vai continuar pensando assim depois que eu tiver acabado com você.

Opa, agora ele estava ficando excitado. Era curioso; isso não o teria aborrecido se ele estivesse com uma das mulheres com quem costumava se divertir. Mas ficar ali diante daquela mulher em particular com uma necessidade premente de ajustar as calças lhe pareceu… de mau gosto.

– Vou poupá-lo de perder seu tempo. – Ela manteve a voz baixa, como se não quisesse que ninguém os ouvisse, mas isso não diminuía o peso da mensagem. – Não estou, nem nunca estarei, interessada em alguém como você. Você não passa de um garoto levado que se diverte provocando o caos com o sexo oposto. Esse tipo de coisa era entediante quando eu tinha quinze anos, e levando em consideração que estou chegando aos trinta este ano, me sinto ainda menos atraída pela situação. Portanto, faça um favor: vá para o seu clube de campo, encontre uma dessas loiras junto à piscina e a transforme em mais uma esteira para você se exercitar por vinte minutos. Você não vai conseguir isso de mim.

Ele piscou como um idiota.

E pensou que o fato de estar tão chocado por alguém chamar sua atenção de tal maneira provava que ela estava certa.

– Agora, se me der licença, vou para casa. Estou trabalhando desde as sete horas da manhã.

Esticando a mão, ele a segurou pelo braço quando ela se virou.

– Espere.

– Como é? – Ela abaixou o olhar para o local em que mantinham contato e depois o fitou nos olhos. – A menos que seja algo relacionado às flores do jardim, você não tem nada a me dizer.

– Vai me dar uma chance de me defender? Ou vai só dar uma de juíza e me julgar?

– Você não está falando sério.

– Você sempre foi assim tão preconceituosa?

Ela se afastou da pegada dele.

– Antes isso do que ser ingênua. Ainda mais com um homem como você.

– Não acredite em tudo o que vê nos jornais…

– Ora, por favor. Não preciso ler nos jornais, eu vejo em primeira mão. Duas delas saíram ontem de manhã pelos fundos da casa. Na noite em que chegou, trouxe uma ruiva de um bar. E disseram que você foi fazer um check-up na quarta-feira, mas voltou com um chupão no pescoço, provavelmente adquirido quando a médica pediu para você virar a cabeça e tossir? – Ela o interrompeu quando ele fez menção de responder, ao levantar a palma na frente do rosto dele. – E antes que pense que estou mantendo esse lindo registro de conquistas porque sinto alguma atração por você, saiba que é porque as empregadas ficam prestando atenção em tudo isso e não param de comentar.

– Vai me dar a chance de falar? – ele rebateu. – Ou vai continuar este monólogo? Jesus, e você acha que eu é que sou o metido.

– O quê?

– Você acha que eu sou mimado? Bem, você está me deixando para trás nesse quesito, minha querida.

– Como é?

– Você resolveu que sabe tudo a meu respeito só porque um punhado de pessoas, que também não me conhecem, ficam falando de coisas sobre as quais não sabem nada. Isso é bastante arrogante.

– Não é sinônimo de mimada.

– Quer mesmo discutir lexicografia comigo?

Certo, o fato de estarem discutindo não deveria ser algo excitante, mas para o inferno se não era. Para cada rebatida, ele se via olhando menos para o corpo e mais para os olhos dela, o que a deixava ainda mais sexy.

– Olha só, a gente pode parar por aqui? – ela disse. – Tenho que voltar quase de madrugada para cá e esta conversa não é mais importante do que o meu sono.

Dessa vez, quando ela se virou, ele a deteve com a voz.

– Vi você perto da piscina ontem.

Ela o encarou por cima do ombro.

– Sim, eu estava arrancando ervas daninhas. Algum problema com isso?

– Você estava me medindo. Eu percebi.

Touché, ele pensou quando a viu piscar.

– Eu estava na piscina – ele sussurrou, dando um passo para se aproximar. – E você gostou do que viu, não gostou? Mesmo que odeie quem acha que eu sou, gostou do que viu.

– Você está enganado.

– Franqueza. Foi você quem mencionou isso antes. – Ele se inclinou, virando a cabeça de lado como se fosse beijá-la. – Então, tem coragem de ser franca?

As mãos dela remexeram no colarinho da camisa polo.

– Não sei do que está falando.

– Mentirosa. – Ele sorriu. – Por que acha que fiquei lá fora tanto tempo? Foi por sua causa. Gostei que estivesse admirando o meu corpo.

– Você está louco.

Deus, a negativa falsa dela foi ainda melhor do que o último orgasmo que teve com um boquete.

– Estou? – Concentrou-se nos lábios dela e, em sua mente, estava beijando-os, lambendo-os, puxando-a para junto de si. – Acho que não. E estou mais para mulherengo do que para covarde.

E foi assim que ele a deixou.

Virou-se no caminho de tijolos, e seguiu para a casa, deixando-a para trás.

Mas ele sabia, a cada passo, que ela não conseguiria deixar as coisas naquele pé.

Da próxima vez, ela o procuraria…

E, claro, foi o que aconteceu.


A história verídica de Sunny von Büllow, socialite americana que ficou 28 anos em estado vegetativo, inspirou o filme O reverso da fortuna (1990), dirigido por Barbet Schroeder. (N.E.)

 

SETE

– Desculpe, o que disse?

Lizzie falava, fitando as flores no vaso que segurava, sem conseguir se lembrar o que deveria fazer com elas… Ah, sim, colocá-las num balde até o fim do expediente para depois enrolá-las num papel toalha umedecido e depois num saco plástico, e levá-las para casa.

– Pode repetir? – pediu, olhando para o outro lado da estufa onde Greta estava.

– Eu estava falando em inglês dessa vez, sabe?

– Só estou meio distraída.

– O pessoal da tenda está exigindo pagamento antecipado. Ou vão desmancharr tudo o que arrmarram até agorra.

– O quê? – Lizzie abaixou o buquê ao lado dos vasos de prata vazios. – É uma nova política deles?

– Acho que sim.

– Vou falar com Rosalinda, então. Sabe qual é o montante?

– Doze mil, quatrrocentos e cinquenta e nove e setenta e dois centavos.

– Um instante, preciso anotar isso. – Lizzie apanhou uma caneta. – Pode repetir?

Anotou o valor na palma da mão, e olhou para o jardim. O pessoal da tenda tinha acabado de esticar a lona e estava começando a distribuir os postes enquanto alguns costuravam seções com cordas grossas.

Em mais duas horas eles terminariam. Três no máximo.

– Ainda estão trabalhando – murmurou.

– Não porr muito tempo. – Greta voltou a limpar as flores cor-de-rosa. – O escrritório deles ligou, dizendo que estão prreparrados parra voltarr parra o caminhão.

– Não há razão para surtar por causa disso – murmurou Lizzie, saindo.

O escritório de Rosalinda Freeland ficava na ala da cozinha, e ela tomou a rota externa mais longa porque estava cansada de esbarrar em Lane.

Estava no terraço, na metade do caminho, passando pelas portas francesas que davam para a sala de jantar quando olhou na direção do centro de negócios.

As instalações foram montadas onde costumavam ficar os estábulos e, assim como a estufa, tinham vista para o jardim e o rio. A arquitetura da estrutura combinava perfeitamente com a de Easterly, e a área total devia ser a mesma da mansão. Com uma dúzia de escritórios, uma sala de reuniões do tamanho de uma sala de aula de universidade, e cozinha e sala de jantar próprias, William Baldwine comandava a empresa produtora de bourbon da esposa a partir de um complexo de primeira linha.

Quase não se via gente à toa por aquelas partes, mas, pelo visto, alguma coisa estava acontecendo porque havia um grupo de pessoas de terno parado no terraço do lado de fora da principal sala de reuniões, fumando e conversando num enclave fechado.

Estranho, ela pensou. O senhor Baldwine era fumante, por isso era improvável que aquelas pessoas tivessem sido banidas para o terraço apenas para fumarem em paz.

De fato, ela reconheceu a única mulher não fumante naquele bolo. Era Sutton Smythe, herdeira da fortuna da Destilaria Sutton Corporation. Lizzie nunca a vira pessoalmente, mas muito se publicara sobre aquela mulher – era muito provável que ela se tornaria, na década seguinte, a cabeça de uma das maiores destilarias do mundo.

A bem da verdade, já parecia que ela era a chefe, com aqueles cabelos escuros penteados e o terno preto sério e caríssimo. Ela era mesmo uma mulher notável, com feições atrevidas e um corpo curvilíneo que poderia colocá-la no território das mulheres de negócio mais sexy do país, caso quisesse jogar tal jogo, o que, evidentemente, não era o caso.

Contudo, o que estaria fazendo ali?

Falando em dormir com o inimigo…

Lizzie meneou a cabeça e atravessou a porta dos fundos da cozinha. O que quer que estivesse acontecendo ali, não era problema seu. Ela estava muito, mas muito abaixo naquele totem, apenas tentando erguer uma tenda para os seus arranjos florais.

Uau.

Quantos chefs juntos!, ela pensou ao desviar dos homens e mulheres de chapéus altos e dólmãs brancos que acabariam com escoliose por ficarem tanto tempo curvados enrolando mil folhas e coisinhas recheadas com cogumelos.

Atrás de todos aqueles Gordon Ramsays, havia uma pesada porta vai e vem que se abria para um corredor simples repleto de armarinhos, a lavanderia e a sala de descanso das arrumadeiras, assim como os aposentos do mordomo, da organizadora e a escada dos empregados.

Lizzie seguiu até a porta da direita, que tinha uma plaquinha onde se lia PARTICULAR e bateu uma vez. Duas. Três vezes.

Considerando que Rosalinda era eficiente e pontual como um relógio, ela não devia estar ali. Talvez tivesse ido ao banco.

– … verificaremos novamente dentro de uma hora – dizia o senhor Harris ao entrar no corredor do lado oposto, acompanhado pela governanta. – Obrigado, senhora Mollie.

– O prazer é meu, senhor Harris – a mulher mais velha murmurou.

Lizzie fitou o mordomo enquanto a governanta se afastava.

– Temos um problema.

Ele parou diante dela.

– Sim?

– Precisamos entregar mais de doze mil para a empresa que aluga a tenda e a senhora Freeland não está aqui. Você pode emitir cheques?

– Eles precisam de doze mil dólares? – ele perguntou em seu sotaque cortante. – Mas por que motivo?

– Para o aluguel da tenda. Imagino que seja uma nova política da empresa. Nunca exigiram isso antes.

– Mas estamos falando de Easterly. Temos uma conta com eles desde a virada do século e eles farão uma exceção. Permita-me.

Girando sobre os sapatos bem lustrados, ele seguiu para os seus aposentos, sem dúvida para telefonar para a empresa.

Se ele conseguisse dar um jeito naquilo e Lizzie tivesse a sua tenda e as mesas, até que valeria a pena aguentar a sua atitude arrogante.

Além disso, se o pior acontecesse, Greta poderia assinar um cheque.

Duas coisas eram certas: Lizzie não pediria a Lane, e eles precisavam daquela tenda. Em menos de 48 horas, o mundo viria até a propriedade, e nada irritava mais os Bradford do que qualquer coisa fora do lugar.

Enquanto aguardava o mordomo retornar, todo triunfante em seu terno de pinguim, apoiou-se na parede de gesso lisa e fresca e se descobriu pensando na decisão mais idiota que tomara na vida…

Ela deveria ter deixado toda essa coisa para lá.

Depois que o temido Lane Baldwine a procurara à noite, no jardim, ela deveria ter deixado a discussão deles de lado. Por que diabos se importava se ele estava errado a seu respeito? Como aquele idiota ridículo, insano e egocêntrico podia ser assim? Ela não lhe devia nenhuma explicação para que o mundo voltasse ao seu eixo; além disso, isso não aconteceria sem o auxílio de uma marreta.

Não que ela não fosse apreciar uma tentativa nesses termos.

Mas o problema era que, entre os seus defeitos, estava a necessidade paralisante de não ser mal interpretada pelo clone de Channing Tatum.

Portanto, ela tinha que esclarecer o assunto. E, de fato, falou com ele durante todo o caminho até a sua casa naquela noite. Assim como no trajeto de volta a Easterly na manhã seguinte. E durante toda a semana que se seguiu.

No fim, acabou se convencendo de que ele a estava evitando: pela primeira vez desde que voltara para casa, fazia sete dias consecutivos que não o via. O lado bom, se é que era possível interpretar dessa forma, é que ninguém viu mulheres entrando e saindo da casa em horas estranhas em combinações pornográficas. O lado ruim era que agora ela estava com todos os discursos preparados, se arriscando a revelar exatamente quanto tempo desperdiçara gritando com ele em sua cabeça.

E Lane, sem dúvida, permanecia em Easterly. O seu Porsche – como se ele fosse dirigir qualquer outra coisa – ainda estava na garagem, e toda vez que era forçada a levar flores para o quarto dele, ela sentia a fragrância da colônia no ar e via a carteira ao lado das abotoaduras de ouro sobre a cômoda.

Ele estava jogando com ela. E por mais que ela detestasse admitir, estava funcionando. Sentia-se cada vez mais frustrada e mais determinada a encontrá-lo.

O homem era um mestre com as mulheres, isso mesmo.

O maldito.

E com mais um buquê de flores frescas em mãos, ela seguiu pela escada dos fundos até o quarto dele. Não esperava encontrá-lo ali, mas, de algum modo, a ideia de entrar no espaço dele e lançar alguns ataques verbais bem escolhidos oferecia um pouco de alívio. Quando bateu à porta, foi uma batida exigente, e depois de um instante, ela empurrou…

Lane estava ali.

Sentado na beira da cama. A cabeça entre as mãos, o corpo encurvado.

Ele não olhou para a porta.

Não parecia ter notado que havia alguém ali.

Lizzie pigarreou uma vez. Duas.

– Com licença. Preciso trocar as flores.

– Ah, obrigado. Muita gentileza sua.

Evidentemente, ele não parecia saber o que estava dizendo a ela. Os bons modos pareceram apenas um reflexo, o equivalente verbal de quando levamos uma martelada de borracha no joelho.

Isso não é da sua conta, ela resmungou para si mesma, conforme avançava na direção da cômoda.

A troca levou apenas um segundo, e logo ela tinha em suas mãos o arranjo imperceptivelmente murcho, voltando para a porta entreaberta. Aconselhou a si mesma para não olhar para ele enquanto saía. Até onde podia saber, seu cão de caça predileto podia estar com micose… ou talvez a namorada na Virgínia descobrira os trabalhos extracurriculares que ele vinha fazendo em Charlemont.

O maior erro aconteceu quando ela chegou à soleira.

Mais tarde, quando a situação explodiu em seu rosto, depois que superara suas paredes de autopreservação e se queimara, ela se convenceria de que, se simplesmente tivesse ido em frente, teria ficado bem. Suas vidas não teriam se chocado, deixando-a coberta de estilhaços.

Mas Lizzie olhou para ele.

E teve que abrir a boca uma vez mais:

– O que aconteceu?

Os olhos de Lane se ergueram.

– O que disse?

– Qual é o seu problema?

Ele apoiou as mãos nos joelhos.

– Sinto muito.

Ela esperava ouvir outra coisa.

– Pelo quê?

Ele fechou os olhos e abaixou a cabeça de novo.

E mesmo sem emitir som algum, ela soube que ele estava chorando.

E isso foi algo que ela não esperava de alguém como ele.

Quis preservar a privacidade dele, e fechou a porta.

– O que aconteceu? Estão todos bem?

Lane meneou a cabeça, inspirou fundo e se recompôs.

– Não. Nem todos.

– É a sua irmã? Ouvi dizer que ela está passando por…

– Edward. Eles o levaram.

Edward…? Deus, ela via o homem na propriedade de tempos em tempos, e ele parecia a última pessoa que alguém “levaria”. Ao contrário do pai, cujo escritório ficava em Easterly, Edward trabalhava no quartel general da CBB no centro da cidade e, pelo pouco que sabia, ele era o oposto de Lane, um homem de negócios muito sério e extremamente agressivo.

– Desculpe, mas acho que não estou conseguindo entender muito bem…

– Ele foi sequestrado na América do Sul, o resgate está em negociação. – Ele esfregou o rosto. – Não consigo nem imaginar o que estão fazendo com ele… Já se passaram cinco dias desde o primeiro contato. Jesus Cristo, como isso foi acontecer? Era para ele estar protegido lá. Como permitiram que isso acontecesse?

Então, ele estremeceu e a encarou.

– Você não pode dizer nada a ninguém. Nem Gin sabe disso. Estamos abafando o caso para que a imprensa não descubra.

– Não vou contar. Quero dizer, não direi nada a ninguém. As autoridades estão envolvidas?

– O meu pai está trabalhando com eles. Isto é um pesadelo… Eu falei para ele não ir para lá.

– Sinto muito. – Que declaração mais infeliz. – Posso fazer alguma coisa?

O que também era outra combinação infeliz de palavras.

– Devia ter sido eu – Lane murmurou. – Ou Max. Por que não poderia ter sido um de nós? Não servimos para nada. Devia ter sido um de nós.

A próxima coisa que ela se lembra foi de ter apoiado o vaso em algum lugar e ter se aproximado da cama.

– Posso pegar algo para você?

Sentou-se ao lado dele e levantou a mão para pousá-la no seu ombro, mas pensou melhor e…

Um celular tocou na mesinha de cabeceira, e quando ele não se mexeu para atender, ela perguntou: – Não quer atender?

Quando ele não respondeu, ela se inclinou para o lado, apanhou o telefone e mostrou a tela para ele. Chantal Blair Stowe.

– Acho que é a sua namorada.

Ele deu uma olhada de esguelha.

– Não, não quero falar com ela. E ela não é minha namorada.

Ela sabe disso?, Lizzie se perguntou ao recolocar o aparelho sobre a mesa.

Lane balançou a cabeça.

– Edward é o único de nós que vale alguma coisa.

– Não é verdade.

Ele deu uma gargalhada.

– Até parece que não. Não era o que estava me dizendo na semana passada?

De súbito, Lane se concentrou nela, e houve um silêncio estranho, como se só então ele tivesse percebido quem estava no quarto com ele.

O coração de Lizzie começou a bater forte. Havia algo naqueles olhos, algo que ela não vira antes. E que Deus a ajudasse, ela sabia o que era.

Sexo com um playboy não era de seu interesse. Desejo ardente por um homem de verdade? Isso… era algo muito mais difícil de fugir.

– É melhor você ir embora agora – ele disse com a voz contraída.

Sim, ela disse a si mesma, é melhor.

Ainda assim, por algum motivo louco, ela sussurrou:

– Por quê?

– Porque se eu já a desejava quando tudo não passava de um jogo – o olhar dele se concentrou na sua boca –, no meu estado atual, estou desesperado por você.

Lizzie se retraiu. Dessa vez, quando ele riu, foi um som mais grave, mais profundo.

– Você não sabe que o estresse é como o álcool? Ele o torna descuidado, estúpido e faminto. Eu deveria saber, a minha família lida tão bem com isso…

– Está tudo acertado, senhorita King.

Lizzie deu um pulo assustado, arquejando.

– Quê?

O senhor Harris franziu a testa.

– O aluguel da tenda. Já cuidei de tudo.

– Ah, sim, que ótimo. Obrigada.

Ela tropeçou, afastando-se do mordomo. Depois, tomou a direção errada no corredor, indo para a ala social da casa. Antes que o senhor Harris lhe chamasse a atenção, retrocedeu, encontrou uma porta para o lado externo e saiu.

Direto para o jardim.

Bem debaixo da janela do quarto de Lane.

Levando as mãos ao rosto, lembrou-se de como ele a beijara, duas noites depois de ela ter se sentado ao lado dele no quarto.

Fora ela a procurá-lo, sem a desculpa das flores dessa vez. Ela esperou pelo tanto que conseguiu e então, deliberadamente, foi até o quarto de Lane ao fim da jornada de trabalho para ver como ele estava, o que estava acontecendo e se houvera alguma resolução.

Nada vazara para a imprensa àquela altura. Toda a cobertura acontecera depois, quando, por fim, Edward regressara para casa.

Na segunda vez que ela entrara no quarto, batera com mais suavidade. Depois de um momento, ele lhe abriu a porta… e ela ainda conseguia ver o quanto ele envelhecera. Estava magro, com barba por fazer e olheiras profundas. Mudara de roupa, ainda que fossem apenas uma versão diferente do que ele sempre vestia: uma camisa com monograma, só que para fora da calça num dos lados; calças caras, embora estivessem amassadas na dobra do quadril e com as marcas dos joelhos; e sapatos Gucci. Dessa vez, ele estava usando apenas meias escuras.

E isso basicamente lhe contara o que ela precisava saber.

– Venha comigo – ela lhe dissera. – Você precisa sair deste quarto.

Com voz rouca, ele lhe perguntou que horas eram e ela respondeu que passavam das oito. Quando ele pareceu confuso, ela teve que esclarecer que já era noite.

Conduziu-o pela escada dos fundos como se ele fosse uma criança, segurando-o pela mão, sem mencionar nada em especial. A única coisa que ele lhe dissera era que não queria ser visto por ninguém, e ela se certificou para que isso não ocorresse, dirigindo-o para longe das conversas na sala de jantar, mantendo-o distante de olhos curiosos.

Conforme o levava para a noite cálida, ela ouvia risadas vindas da sala de jantar, cômodo no qual a refeição estava sendo servida.

Como podiam fazer aquilo?, ela se perguntara. Ficar jogando conversa fora como se nada tivesse acontecido? Como se um deles não estivesse longe dali, muito longe, em mãos muito perigosas.

Daquela vez, ela não fazia a mínima ideia do que estava fazendo com Lane e do porquê se importava tanto com o sofrimento dele. Só sabia que o playboy de uma faceta que ela rotulara como desperdício tornara-se humano, e que a dor dele era importante para ela.

Não foram muito longe. Apenas até a parede de tijolos, em meio às moitas de flores, além do belvedere do lado oposto ao jardim.

Sentaram-se juntos e não disseram muita coisa. Mas, quando ela lhe tomou a mão, ele a apertou com força, aceitando o que lhe era oferecido.

E quando ele se voltou para ela, Lizzie soube o que ele queria… não era conversar. Houve um momento de congestionamento em seu cérebro, com todos os tipos de: ei, espere, pare, longe demais…

Mas logo ela se inclinou e seus lábios se tocaram.

Os pensamentos eram complicados. Mas a conexão era simples demais.

E não ficou por isso. Ele a segurou, e ela permitiu. Ele colocou as mãos por baixo das suas roupas, e ela deixou.

Em algum momento no meio daquilo tudo, percebeu que o odiava porque se sentia atraída por ele. Loucamente atraída. E o observara sim na piscina naquela tarde, embora fosse muito mais do que isso: toda vez que ele entrava ou saía da casa, tentava espiá-lo, ainda que negasse isso para todos e qualquer um. Notícias de sua chegada iminente a Easterly tinham a capacidade de eletrizá-la, e as suas partidas a entristeciam. E a infeliz realidade era que ela invejara todas aquelas mulheres, as loiras burras com seus corpos perfeitos e sotaques sulistas, que colocavam a notória porta giratória diante do quarto em bom uso.

A verdade que não quisera admitir para si mesma era que encontraria algo para desgostar nele, mesmo que isso não fosse possível.

Não foi o dinheiro dele, ou a família centenária, nem as múltiplas mulheres, a sua aparência bela demais, tampouco o sorriso malicioso.

O que odiava nele era como ele a fazia se sentir. A vulnerabilidade fora uma invasora cruel em sua vida, um hóspede indesejado que se mudara para a sua casa, se infiltrara em seu trabalho e que a perseguia mesmo nos sonhos.

Em retrospecto, deveria ter dado ouvidos ao medo. Escolhido o instinto em vez da incrível atração.

Contudo, a vida nem sempre era sábia.

Às vezes, você não prestava atenção nos sinais de aviso, pisava fundo no acelerador, e saía derrapando no meio da curva, sem poder ver o fim.

E ela ainda sofria por causa da colisão, isso era fato.

 

OITO

Haras Vermelho & Preto, Condado Oglen, Kentucky

O sol começava a se por, e seus raios dourados penetravam a baia aberta do Estábulo B, derramando-se sobre o corredor de concreto e deixando um rastro de pura magia com o feno e partículas de pó misturadas. O som ritmado da vassoura no chão fazia as éguas se aproximarem, os olhos inteligentes e os focinhos graciosos avançando numa pergunta curiosa.

Edward Westfork Bradford Baldwine ia varrendo devagar, visto que seu corpo já não era como outrora. O esforço não era de todo ruim, a dor constante que sentia cedia ante o exercício leve. Contudo, o desconforto crônico retornaria assim que ele parasse ou começasse outra série de movimentos.

Já se acostumara a isso.

A combinação de músculos, ossos e órgãos que o amparavam na jornada da atual encarnação mortal era uma máquina que já não aceitava transições muito bem. Ela preferia atividades arraigadas, esforços repetitivos ou descanso contínuo em qualquer posição. Seus fisioterapeutas, também conhecidos como Sádicos, sugeriram que permanecesse ativo de diversas maneiras, como alguém que, segundo explicaram, tivesse que reativar as ondas cerebrais por meio de terapia ocupacional.

Quanto mais ele mudasse de atividade, melhor seria para a sua “recuperação”.

Ele sempre colocava essa palavra entre aspas. A verdadeira recuperação para ele seria voltar a ser quem ele fora – e isso jamais aconteceria, mesmo se conseguisse andar direito, comer direito, dormir a noite inteira.

Não havia como voltar a ser aquela pessoa, uma versão mais jovem, mais alegre, mais bela de si mesmo.

Ele odiava os Sádicos, mas eles eram uma parte pequena na sua longa lista de ódio. E aquele corpo alquebrado que eles pareciam tão determinados em reabilitar simplesmente não concordava com o programa. Já fazia quanto tempo que ele estava metido naquilo? E ainda havia dor, a eterna dor, a ponto de ser difícil juntar energias para atravessar aquela parede de fogo e chegar onde estava naquele instante, onde as coisas funcionavam com alguma semelhança de ordem.

Era como se ele se deparasse com o mesmo assaltante em cada beco pelo qual passava.

Às vezes, se perguntava se se sentiria menos exausto se houvesse um criminoso diferente de tempos em tempos, um inimigo diverso acabando com a sua qualidade de vida.

No entanto, os assaltos eram sempre executados pelo mesmo ladrão.

– O que está fazendo, menina? – Fez uma pausa para afagar um focinho negro. – Você está bem?

Depois de uma bufada da puro-sangue, Edward seguiu em frente. A época dos cruzamentos fora muito boa, e ele tinha noventa por cento das suas vinte e três éguas prenhas. Se tudo corresse conforme planejado, os potrinhos nasceriam em janeiro do ano seguinte, época crítica para iniciar os trabalhos de parto. Nas corridas, o relógio começava a correr segundo o calendário, não o dia do parto por si só; se você quisesse que um futuro animal de três anos disputasse o Derby o mais maduro e forte possível, era melhor que suas éguas parissem em março no mais tardar, considerando suas gestações de quase um ano.

A maioria das pessoas ligadas às corridas operava num sistema estratificado, onde os criadores ficavam separados dos treinadores iniciantes, que se diferenciavam dos treinadores de corrida. Mas ele tinha dinheiro e tempo suficientes nas mãos, de modo que não apenas criava cavalos, mas também os educava na escola primária em sua fazenda, no ensino fundamental no centro que adquirira no ano anterior, até em vendas massivas para estábulos em Steeplehill Downs em Charlemont e Garland Downs na vizinha Arlington, ali mesmo no Kentucky.

O dinheiro necessário para a criação e o treino era astronômico, e qualquer retorno era apenas uma hipótese, motivo pelo qual os cartéis dos investidores eram tipicamente formados para dividir a exposição e o risco financeiros. Ele, por sua vez, não lidava com cartéis, com coinvestidores ou sócios.

Ainda não perdera tudo. Na verdade, estava quase lucrando. A sua operação, no último ano e meio, tivera resultados admiráveis, tudo graças a Nebekanzer, o seu garanhão – que, por acaso, era o maior e mais malvado filho da mãe com o qual as pessoas já se depararam. No entanto, aquele maldito bastardo gerava filhos e filhas velozes, algo que descobrira quando se mudara ali para o chalé do administrador do Vermelho & Preto, e comprara num leilão o filho do demônio de quatro cascos e três da prole de dois anos de Neb. No ano seguinte? Todos os três descendentes venceram mais de 200 mil por cabeça até abril, e um deles chegara em segundo lugar no Derby, em terceiro em Preakness, e em primeiro em Belmont.

E aquele fora seu ano de debutante, como diziam. Este ano, esperavam que ele se saísse ainda melhor. Ele tinha dois cavalos seus no Derby.

Ambos filhos de Neb.

Ele não poderia dizer que seu coração estava naquele negócio, mas, certamente, era melhor do que ficar sentado ruminando sobre tudo o que perdera.

Assim como todos aqueles cavalos de corrida, ele nascera, fora criado e treinado para um futuro determinado: assumir a Cia. Bourbon Bradford. Mas, tal qual um puro-sangue com uma pata fraturada, esse já não era mais o seu futuro.

– Buenas noches, jefe.12

Edward acenou para um dos seus onze ajudantes do estábulo.

– Hasta mañana.13

Voltou a varrer, abaixando a cabeça.

– Jefe, hay algo aqui.14

– Quem?

– No sé.15

Edward franziu o cenho e usou a vassoura como bengala, claudicando até a porta da baia. Do lado de fora, numa manobra circular, uma limusine preta comprida parava diante do Estábulo A.

Moe Brown, o gerente do haras, caminhou até perto daquela monstruosidade, suas passadas largas diminuindo a distância. Moe tinha sessenta anos, era magro como um poste de cerca e inteligente como um matemático. E também tinha o “olho”: aquele cara conseguia predizer o futuro de um cavalo no instante em que o animal ficava de pé pela primeira vez. Era assustador, e algo inestimável naquele negócio.

E lentamente, com segurança, estava ensinando seus segredos a Edward.

O talento inato de Edward, por sua vez, era o da procriação. Ele simplesmente parecia saber quais linhagens cruzar.

Quando Moe parou ao lado da limusine, um chofer uniformizado saltou e deu a volta para as portas de trás, e Edward meneou a cabeça quando viu de quem se tratava.

Os Pendergast estavam enviando artilharia pesada.

A mulher de cerca de quarenta anos saindo do banco de trás da limusine devia ter um terço do peso de Moe, estava vestida de Chanel cor-de-rosa e tinha mais cabelos que a cauda de Neb. Bela como uma rainha, mimada como um cachorro da Pomerânia, e com uma determinação que faria as Flores de Aço16 saírem correndo para salvar seu dinheiro, Buggy Pendergast estava acostumada a conseguir o que queria.

Por exemplo, uns cinco anos atrás, armara uma jogada e fizera um dos herdeiros de uma família petrolífera largar uma perfeita primeira esposa em seu favor. E, desde então, vinha gastando o dinheiro dele com cavalos puro-sangue.

Edward já lhe dissera não três vezes pelo telefone.

Nada de cartéis. Nada de coinvestidores. Nada de sócios.

Ele trabalhava sozinho e sem interferências externas.

O homem que saiu atrás de Buggy não era o marido dela e, pela maleta que ele segurava, era possível deduzir que era algum tipo de contador. Por certo, não era nenhum segurança – era baixinho demais, e aqueles óculos eram um escoadouro de testosterona, como nunca antes visto por Edward.

Moe começou a falar com eles, e Edward entendeu que a coisa não ia bem. E tudo piorou quando aquela maleta foi sumariamente depositada sobre o capô da limusine e Buggy a abriu com um floreio, como se estivesse levantando a saia, à espera de que todos gemessem em aprovação.

Edward surgiu na luz tardia do sol com sua vassoura-bengala e mau humor. Enquanto se aproximava, Buggy não olhou para ele. E quando ele parou atrás de Moe, ela apenas o fitou com raiva, como se não apreciasse o fato de um ajudante de estábulo testemunhar aquilo tudo.

– … um quarto de milhão de dólares – ela disse – e eu vou embora com o meu potro.

Moe moveu o pedaço de feno que mastigava para o outro lado da boca.

– Acho que não.

– Eu tenho o dinheiro.

– Vocês todos têm que sair desta propriedade…

– Onde está Edward Baldwine? Exijo falar com…

– Estou bem aqui – Edward disse num tom baixo. – Moe, pode deixar que eu cuido disso.

– E Deus nos concede pequenos milagres… – o homem murmurou ao se afastar.

As lentes de contato coloridas de Buggy subiam e desciam, percorrendo o corpo de Edward, e até mesmo seu rosto cheio de Botox revelou o choque que sentiu.

– Edward… você está…

– Um arraso, eu sei. – Indicou o dinheiro. – Feche essa ridícula demonstração, volte para o seu carro e toque a sua vida. Já lhe disse pelo telefone, não vendo o meu rebanho.

Buggy pigarreou.

– Eu… hum… Fiquei sabendo o que aconteceu. Mas não fazia ideia de que…

– Os cirurgiões plásticos fizeram um excelente trabalho no meu rosto. Não concorda?

– Ah… sim. Claro que sim.

– Mas chega de jogar conversa fora. Você está de saída.

Buggy forçou um sorriso no rosto.

– Ora, Edward, há quanto tempo as nossas famílias se conhecem?

– A família do seu marido e a minha se conhecem há mais de duzentos anos. Não conheço a sua família e não faço a mínima questão de conhecer. Estou certo de que você não vai sair daqui com direito sobre qualquer um dos meus potros. Agora, vá. Pode ir.

Quando ele se virou, ela disse:

– Há duzentos e cinquenta mil dólares nessa maleta.

– E isso deveria me impressionar? Minha cara, consigo encontrar um quarto de milhão na almofada do meu sofá, portanto, eu lhe garanto, não estou nem um pouco tentado. E mais especificamente: não estou à venda. Nem por um dólar. Nem por um bilhão. – Voltou-se para o chofer. – Vou pegar a minha espingarda. Ou você vai voltar a se espremer na sua limusine e pedir para que o seu motorista pise fundo?

– Vou contar tudo isso ao seu pai! Isso é um desresp…

– O meu pai morreu para mim. Você pode discutir os meus negócios o quanto quiser com ele, mas adiantará tanto quanto este seu trajeto desperdiçado até o interior. Aproveite o seu fim de semana de Derby… em algum outro canto.

Pressionando o cabo da vassoura, ele começou a bambolear de volta ao estábulo. Em seu rastro, um coro de múltiplas portas se fechando e os pneus da limusine cantando no asfalto sugeriam que a mulher já devia estar ao celular, reclamando com seu marido vinte anos mais velho sobre a maneira vergonhosa como havia sido tratada.

Levando em consideração os boatos de que fora uma dançarina exótica aos vinte anos, ele podia adivinhar que ela fora exposta a coisas muito piores em sua vida prévia.

Antes que voltasse a entrar e retomasse a varrição, contemplou o cenário da sua fazenda: centenas de hectares de gramados verdejantes separados em picadeiros com cercas marrom-escuro. Três estábulos com telhados vermelho e cinza, e laterais pretas com molduras em vermelho. As construções externas para os equipamentos, os reboques de ponta de linha, a casa de fazenda branca onde ele ficava, a clínica veterinária e o picadeiro de exercícios…

Sua mãe era dona de tudo aquilo. O bisavô dela comprara a terra e dera início aos negócios equestres, e depois o avô e o pai dela continuaram a investir no negócio. As coisas desandaram depois que seu avô morrera, vinte anos antes, e Edward jamais considerara se envolver naquilo.

Como filho mais velho, estava destinado a assumir o papel de líder da Cia. Bourbon Bradford e, na verdade, era mais do que um legado ou primogenitura: era onde o seu coração habitava. Em seu sangue, era um destilador, tão escrupuloso com seus produtos quanto um padre o seria.

Então, tudo mudara.

O Haras Vermelho & Preto fora a melhor solução, uma distração que ocupava os seus dias até a hora de se embebedar para dormir. E, melhor ainda, era algo em que seu pai não estava envolvido.

O pouco futuro que tinha estava ali com os gramados e os cavalos.

Era tudo de que ele dispunha.

– Você gostou disso, não gostou? – Moe perguntou atrás dele.

– Não muito. – Passou o peso para o outro lado e recomeçou a varrer o corredor. – Mas ninguém vai ficar com uma parte da minha fazenda, nem mesmo Deus.

– Você não devia falar assim.

Edward olhou por sobre o ombro para lembrar ao homem a aparência do seu rosto.

– Acha mesmo que tenho medo de mais alguma coisa a esta altura?

Enquanto Moe fazia o sinal da cruz, Edward revirava os olhos… e retomava o trabalho.


“Boa noite, chefe.”

“Até amanhã.”

“Chefe, tem alguma coisa aqui.”

“Não sei.”

Referência ao filme Flores de Aço, de 1989, que se passa em uma pequena cidade da Louisiana e narra a história de um grupo de mulheres durante o falecimento de uma delas. A história tornou-se símbolo de lealdade e amizade entre as personagens que, apesar de delicadas como flores, demonstram ser fortes como o aço. (N.E.)

 

NOVE

– … deitada na cama, mexendo nos mamilos. – Virginia Elizabeth Baldwine, “Gin” para a família, se recostou na poltrona acolchoada. – Agora estou colocando a mão entre as pernas. O que quer que eu faça com ela? Sim, estou nua… Como mais eu poderia estar? Diga o que devo fazer.

Bateu o cigarro na taça de vinho de cristal Baccarat que esvaziara uns dez minutos antes e cruzou as pernas por baixo do roupão de seda. Os puxões em seus cabelos eram mais do que incômodos, e ela encarou a cabeleireira pelo espelho do banheiro.

– Hum… sim… – ela gemeu no celular. – Estou tão… molhada… e só pra você.

Ela teve que revirar os olhos quando ele disse que ela era uma boa moça, mas Conrad Stetson gostava justamente disso. Era um homem das antigas: precisava da ilusão de que a mulher com quem traía a esposa lhe era fiel.

Tão tolo.

Gin sentia saudades dos primeiros dias do relacionamento entre eles. Tinha sido difícil atraí-lo e afastá-lo do seu casamento. Ficou encantada com a determinação com que ele lutara contra a atração que sentia por ela, com a vergonha que ele sentiu após o primeiro beijo, com a resistência que ele demonstrou para não lhe telefonar, não vê-la, não procurá-la… E, por uma ou duas semanas, ela, de fato, estivera interessada nele, querendo as atenções dele, uma droga na qual valia a pena se perder.

E depois do sexo? Bem, para início de conversa, era papai e mamãe demais.

– Isso, ai, assim… vou gozar, vou gozar…

Enquanto ela “gozava”, a cabeleireira corava de vergonha, mas continuou a puxar seu cabelo negro. Uma criada vinha do closet com uma bandeja de veludo nas mãos contendo dois conjuntos, um de rubis da Birmânia feitos pela Cartier nos anos 1940, e uma criação em safiras da Van Cleef & Arpels do fim dos anos 1950. Ambos pertenceram à sua avó; um fora dado à Grande Virginia Elizabeth pelo marido no nascimento da mãe de Gin, e o outro fora um presente no vigésimo aniversário de casamento dos avós.

Produziu um som de fastio; depois pressionou o botão do mudo e meneou a cabeça na direção da criada.

– Quero os diamantes Winston.

– Acredito que a senhora Baldwine os esteja usando.

Gin visualizou a cunhada, Chantal, com mais de cem quilates em diamantes impecáveis, e sorriu, falando com lentidão, como se estivesse se dirigindo a uma tola: – Então arranque os diamantes que meu pai deu à minha mãe do pescoço e das orelhas daquela vadia e traga-os para mim.

A criada empalideceu.

– Será… um prazer.

Pouco antes de a mulher sair apressada do quarto, Gin a chamou: – Certifique-se de limpá-los antes. Não suporto o perfume de farmácia que ela insiste em usar.

– Será um prazer.

Referir-se ao Flowerbomb de Vyktor e Rolf como perfume de “farmácia” era um pouco exagerado, embora certamente não fosse nenhum Chanel. Francamente, o que esperar de uma mulher que sequer concluíra a Sweet Briar?

Gin liberou o som do celular.

– Querido, preciso ir. Tenho que me aprontar. Que pena que não está aqui. – Então seguiu-se uma sequência de vozinhas infantis.

Deus, será que ele sempre teve aquele sotaque sulista tão carregado? Os Bradford não tinham aquele sotaque anasalado horrível, mas apenas um leve arrastado para provar de que lado da Linha Mason-Dixon vinham, e para mostrar que sabiam a diferença entre bourbon e uísque.

Sendo que o último não merecia nenhum comentário.

– Tchauzinho – disse e desligou.

Ao terminar a ligação, resolveu pôr um fim naquele relacionamento. Conrad tinha começado a falar sobre deixar a esposa, e ela não queria isso. Ele tinha dois filhos, pelo amor de Deus. O que estava pensando? Uma coisa era se divertir um pouquinho além dos limites impostos pelo casamento, mas as crianças precisavam da ilusão dos pais.

Além disso, ela já provara que não podia ser mãe de nada. Nem mesmo de um peixinho dourado.

Meia hora mais tarde, usava um vestido Christian Dior vermelho UC e estava com aquele pesado colar Harry Winston sobre a clavícula. Seu perfume era Coco da Chanel, um clássico, que decidira adotar como marca registrada desde que completara trinta anos. Os sapatos eram Louboutin.

Não vestia calcinha.

Samuel Theodore Lodge viria jantar.

Ao entrar no corredor, olhou para a porta oposta à sua. Exatamente há dezesseis anos, dera luz à moça que morava lá. E seu envolvimento com Amelia terminara ali. Uma enfermeira, e mais duas babás, aliadas a uma longa passagem do tempo, e já estava indo para a escola preparatória.

Com isso, sequer tinha um vislumbre da filha.

De fato, Amelia não viera para casa no feriado de primavera, o que fora muito bom. Mas o verão se aproximava, e o regresso da moça de Hotchkiss não era o que ninguém, Amelia menos ainda, estava esperando.

Seria possível enviar uma moça de dezesseis anos para um acampamento?

Talvez devessem mandá-la para uma turnê de dois meses pela Europa. Os vitorianos faziam isso duzentos anos atrás, antes mesmo dos aviões e dos carros com air bags.

Poderiam pagar alguém para que fosse como acompanhante.

E, na verdade, a necessidade de mantê-la afastada de Easterly não significava que Gin não amasse a filha. Era apenas que a presença da jovem era um lembrete forte demais das escolhas erradas e mentiras de Gin, e de ninguém mais – e, às vezes, era melhor não olhar com muita atenção para essas coisas.

Além disso, a Europa era maravilhosa. Ainda mais se fosse explorada da maneira correta.

Gin avançou direto para a escadaria ao estilo de Tara que se bifurcava no meio antes de chegar ao enorme vestíbulo de mármore de Easterly. O vestido falava a cada passo, o caimento da seda resvalando na anágua de tule de um modo que a fazia imaginar a conversa abafada das francesas que costuraram aquele belo vestido de noite.

Ao chegar à plataforma do meio e escolher a escada da direita, mais próxima da sala onde os coquetéis eram sempre servidos, conseguiu ouvir as pessoas conversando. Haveria trinta e duas para o jantar daquela noite, e ela estaria sentada na cadeira outrora de sua mãe, na ponta oposta em que seu pai se sentava à cabeceira.

Já fizera aquela apresentação de dama da casa um milhão de vezes, e o faria outras tantas – normalmente, esta era uma obrigação que cumpria com orgulho.

Naquela noite, entretanto, por algum motivo havia um lamento em seu coração.

Provavelmente por ser o aniversário de Amelia.

Melhor começar a beber.

Quando telefonara para a filha, Amelia se recusara a descer e falar ao telefone do seu dormitório.

Era o tipo de coisa que Gin teria feito.

Viram? Ela era uma boa mãe. Entendia a filha.

Lane se recusou a usar black tie para o jantar. Estava com as mesmas calças e trocou a camisa por outra social, que deixara para trás quando fora morar com Jeff no norte.

Estava disposto a ser pontual e só.

Assim que chegou ao térreo, evitou ao máximo os olhares das pessoas e procurou um drinque. E se deparou com um velho amigo antes de chegar ao Reserva de Família.

– Ora, ora, ora, o nova-iorquino voltou para as suas raízes, finalmente – Samuel cdisse ao se aproximar.

Lane teve que sorrir.

– Como anda o meu advogado sulista-frito predileto?

Enquanto se abraçavam e davam tapas nas costas um do outro, a loira que estava com Samuel T. ficou de lado, com os olhos atentos, sem deixar passar nada despercebido. Seu vestido era notável – se fosse um pouco mais curto na parte de cima ou de baixo, ela estaria vestindo apenas um cinto.

Bem ao estilo de Samuel T.

– Permita-me que eu lhe apresente a senhorita Savannah Locke. – Samuel T. acenou para a mulher, como se dando permissão para que ela se aproximasse, e ela logo o atendeu, inclinando-se para a frente e oferecendo a mão delgada e pálida. – Vá pegar um drinque para nós, sim, querida? Ele vai tomar o Reserva de Família.

Enquanto a mulher recuava para o bar, Lane balançou a cabeça.

– Posso me servir sozinho.

– Ela era aeromoça. Gosta de servir as pessoas.

– Hoje em dia não são chamadas de comissárias de bordo?

– Então decidiu voltar? Não pode ser por causa do Derby. Isso era coisa do Edward.

Lane dispensou a pergunta, sem vontade de mencionar a situação da senhorita Aurora. Era difícil demais.

– Preciso da sua ajuda com uma coisa. Isto é, no âmbito profissional.

O olhar de Samuel T. se estreitou e mirou a mão de Lane, sem aliança.

– Está limpando a casa, pelo visto.

– Consegue agir com rapidez? Quero que a situação se resolva rápida e discretamente.

O homem assentiu.

– Pode me ligar amanhã de manhã. Cuido de tudo.

– Obrigado.

No alto da escada, sua irmã, Gin, fez a curva na plataforma do meio e parou, como se soubesse que as pessoas iriam querer examinar o que ela vestia – e o vestido vermelho e todas aquelas joias de fato estavam ali para serem contemplados. Com metros de seda rubra se estendendo pelo chão e aquele conjunto de diamantes digno da Princesa Diana, ela era o Oscar, a Town & Country e o Palácio de St. James, todos ao mesmo tempo.

As vozes que se calaram no vestíbulo eram sinal tanto de admiração quanto de condenação.

A reputação de Gin a precedia.

Não é que era de família?

Quando ela o viu junto a Samuel T., suas sobrancelhas se arquearam e, por uma fração de segundo, ela sorriu com sinceridade, a antiga luz voltando ao seu olhar, os anos sumindo até que os três voltassem a ser os mesmos de antes de todos os acontecimentos.

– Se me der licença – disse Samuel T. – Vou dar uma olhada naqueles drinques. Acho que minha acompanhante se perdeu.

– A casa não é tão grande assim.

– Talvez para mim e para você.

Enquanto Samuel T. se afastava, Gin levantou a barra do vestido vermelho e terminou de descer a escada. Quando pisou no mármore preto e branco, veio direto na direção de Lane, os saltos altos fazendo barulho pelo piso de mais de cem anos. Ele pensou em lhe dar um abraço de cavalheiro quando ela se aproximasse, em respeito ao penteado e às joias, mas foi ela quem o abraçou forte até que ele a sentiu tremer.

– Estou tão feliz que esteja aqui – ela disse com uma voz rouca. – Deveria ter me avisado.

E foi então que ele fez uns cálculos e percebeu que era o aniversário de Amelia.

Estava para dizer alguma coisa quando ela se afastou e recolocou a máscara no lugar, suas feições de Katharine Hepburn se arranjando num vazio perfeito que fez o peito dele doer.

– Preciso de um drinque – ela anunciou. – Para onde foi Samuel T.?

– Ele não está sozinho hoje, Gin.

– E isso importa?

Quando ela se afastou com a cabeça erguida e os ombros aprumados, ele sentiu pena da pobre aeromoça loira. Lane não sabia quem era a acompanhante de Samuel T., mas por certo ela entendia quem era seu par: lá no bar, ela estava encostada no quadril dele como o coldre de um revólver, como se estivesse ciente de que teria que proteger seu território.

Pelo menos ele teria algo para se distrair durante o jantar.

– O seu Reserva de Família, senhor? O senhor Lodge o mandou com os seus cumprimentos.

Lane se virou e sorriu. Reginald Tressel era o eterno barman em Easterly, e o cavalheiro afro-americano em seu casaco preto e sapatos reluzentes estava mais distinto que muitos dos convidados, como sempre.

– Obrigado, Reg. – Lane pegou o copo de cristal da bandeja de prata. – Ei, obrigado por me telefonar avisando sobre a senhorita Aurora. Recebeu o meu recado?

– Recebi. Eu sabia que o senhor gostaria de vir.

– Ela parece melhor do que pensei.

– Ela disfarça bem. O senhor não vai partir tão cedo, vai?

– Ei, como Hazel tem passado? – Lane desconversou.

– Muito melhor, obrigado. Sei que não vai querer voltar para o norte até que as coisas estejam resolvidas por aqui.

Reginald lhe lançou um sorriso que não alterou a sombra escura daqueles olhos negros, e depois retornou para as suas tarefas, caminhando em meio à multidão como um estadista, as pessoas o cumprimentando como um de seus semelhantes.

Lane se lembrava de quando ele era mais novo, quando as pessoas diziam que o senhor Tressel era o prefeito não oficial de Charlemont. Isso, certamente, não mudara.

Deus, não estava pronto para perder a senhorita Aurora. Seria o mesmo que ter que vender Easterly – algo que não conseguia imaginar num universo em que as coisas estivessem funcionando como deviam.

O cheiro de fumaça de cigarro o fez endurecer.

Só existia uma pessoa que podia fumar dentro daquela casa.

Imerso em tal pensamento, Lane seguiu na direção oposta.

Seu pai sempre fora fumante, seguindo as tradições sulistas, o que equivalia a dizer que mesmo o homem sendo asmático, ele se achava no direito patriótico de se presentear com câncer de pulmão – não que ele estivesse doente, ou que ficaria doente. Ele acreditava que um homem de verdade nunca deixava uma mulher puxar a própria cadeira à mesa, nunca maltratava seus cães de caça e nunca, jamais, ficava doente.

Bom código de conduta. O problema? Só contemplava isso. Não tinha nada a respeito dos filhos. Das pessoas que trabalhavam para ele. Do seu papel como marido. E os Dez Mandamentos? Eram apenas uma lista velha para governar as vidas das outras pessoas, de modo que ninguém se aborrecesse quando um atirasse no outro.

Era engraçado. Graças ao pai, Lane jamais fumara – e não era uma espécie de rebeldia. Ao crescer, ele e seus irmãos sabiam quando o homem se aproximava por causa do cheiro do tabaco, e isso nunca era uma boa notícia. Por conseguinte, ele ficava todo tenso, como num experimento de Pavlov, toda vez que alguém acendia um cigarro.

Provavelmente, foi a única contribuição positiva do pai em sua vida. E, ainda assim, uma ajuda insincera.

O gelo em seu copo batia como sinos enquanto ele andava pela casa, sem saber para onde estava indo… até chegar às portas duplas que se abriam para a estufa. Mesmo fechadas, ele sentiu o cheiro das flores, e ficou parado por um tempo olhando através dos vidros para o enclave verdejante e colorido do outro lado.

Lizzie, sem dúvida, estaria ali, arranjando buquês, como sempre fazia às quintas que precediam o Derby.

Como uma mariposa atraída pela luz, ele pensou ao ver a mão se esticando para a maçaneta de latão.

O som de Greta von Schlieber falando com aquela voz carregada de alemão quase fez com que desse meia-volta. Por causa de tudo o que fizera, a mulher o odiava, e ela não era de esconder suas opiniões. E provavelmente estaria segurando um par de tesouras de jardim.

Mas o chamado de Lizzie era mais forte do que qualquer necessidade de autoproteção.

E lá estava ela.

Mesmo tendo já passado das oito da noite, ela estava sentada num banco com rodinhas diante de uma mesa com vinte e sete vasos de prata do tamanho de bolas de basquete. Metade estava cheio com flores rosa-claro, brancas e creme, e os outros ainda tinham que ser arrumados. Esponjas florais molhadas aguardavam para ancorar as incontáveis hastes.

Ela espiou por sobre o ombro, deu uma olhada nele… e continuou falando sem perder o compasso.

– … mesas e cadeiras debaixo da tenda. E você poderia também pegar mais spray conservador?

Greta não foi tão fleumática. Embora estivesse evidentemente de saída, com a grande bolsa Prada verde no ombro e uma menor cor de laranja na mão, segurando as chaves do carro, aquele olhar fixo, aliado ao silêncio abrupto, sugeria que ela não iria a parte alguma até que ele voltasse para o jantar da família.

– Está tudo bem – Lizzie grunhiu. – Pode ir.

Greta murmurou alguma coisa em alemão. Depois saiu pela porta que dava para o jardim, resmungando baixinho.

– O que ela disse? – ele perguntou depois que ficaram sozinhos.

– Não sei. Provavelmente alguma coisa sobre um piano caindo na sua cabeça.

Ele sorveu um gole do copo, sugando o bourbon frio por entre os dentes.

– Só isso? Pensei que poderia ser algo mais sangrento.

– Acho que um Steinway caindo de uma altura baixa já faria um belo estrago.

Havia meia dúzia de baldes de dois litros ao redor dela, cada um contendo um tipo diferente de flor. Ela escolhia de um e de outro como se estivesse tocando notas em um instrumento musical: uma desta, depois uma daquela, voltando à primeira, depois a terceira, a quarta, a quinta. O resultado, em pouco tempo, era um lindo arranjo de pétalas brotando do contêiner de prata muito polido.

– Posso ajudar? – ele perguntou.

– Pode. Indo embora.

– Você está quase sem estas. – Ele olhou ao redor. – Ali, deixe que eu traga o outro balde.

– Pode voltar para o seu jantar? – ela replicou. – Você não está ajudando.

– E essas outras também já estão acabando.

Deixou o copo na mesa cheia de vasos vazios e começou a puxar os baldes pesados.

– Obrigada – ela murmurou quando ele retirou os vazios, levando-os para a pia de cerâmica. – Pode ir agora…

– Vou me divorciar.

O rosto dela não demonstrou nenhuma reação, mas as mãos, aquelas mãos fortes e seguras, quase derrubaram a rosa que pegava do balde que ele trouxera.

– Não por minha causa, espero – ela disse.

Ele virou um dos baldes vazios e se sentou no fundo, segurando o bourbon entre os joelhos.

– Lizzie…

– O que quer que eu diga? Parabéns? – Espiou na direção dele. – Ou você quer uma reação chorosa cheia de alívio? Porque posso lhe garantir neste instante, essa é a última coisa que vai conseguir de mim…

– Nunca amei Chantal.

– E isso importa? – Lizzie revirou os olhos. – A mulher estava grávida de você. Portanto, talvez você não a amasse, mas, obviamente, andou fazendo alguma coisa com ela.

– Lizzie…

– Sabe, seu tom exasperado que pede que eu seja racional é muito desagradável. É como se você achasse que estou fazendo algo errado por não lhe dar uma chance para você discorrer sobre toooodas as formas de como foi uma vítima. O que sei que é verdade: você veio com tudo pra cima de mim, e eu cedi porque lamentei o que estava acontecendo com o seu irmão. Naquela época, você mostrava uma fachada perfeita e socialmente aceitável para esconder o fato de que estava transando com uma empregada. O seu problema começou quando eu me recusei a ser o seu segredinho vergonhoso.

– Maldição, Lizzie, não foi nada disso…

– Talvez da sua parte…

– Nunca a tratei com inferioridade!

– Você só pode estar brincando. Como acha que me senti quando me disse que me amava e depois li sobre o seu noivado nas colunas sociais na manhã seguinte? – Ela levantou as mãos para o alto. – Você faz alguma ideia do impacto daquilo sobre mim? Sou uma mulher inteligente. Tenho a minha fazenda e estou pagando por ela com o meu próprio dinheiro. Tenho um mestrado em Cornell. – Ela bateu no peito. – Cuido de mim mesma. E ainda assim… – Desviou o olhar. – Você me pegou.

– Não fui eu quem colocou aquele anúncio.

– Bem, havia uma foto bem grande de vocês dois ali.

– Não foi minha culpa.

– Tolice! Está tentando me dizer que havia uma arma apontada na sua cabeça quando se casou com Chantal?

– Você não queria falar comigo! E ela estava grávida… Eu não queria que o meu filho nascesse um bastardo. Deduzi que era o único modo de agir como homem, dada a situação.

– Ah, mas você foi muito homem. Foi assim que ela acabou com um filho seu na barriga.

Lane praguejou e abaixou a cabeça. Deus, já perdera tanto tempo ansiando em poder refazer tudo com Lizzie – começando muito antes de quando ficaram juntos, quando estava fazendo sexo casual com Chantal e acreditara que ela estava tomando pílula.

Mas todos já sabem como isso terminou.

E a gravidez não fora a única surpresa que Chantal reservara para ele. A segunda fora ainda mais devastadora.

– Por isso, podemos dar um basta? – Lizzie perguntou ao partir para o vaso seguinte. – Isso não é da minha conta.

– Por que não fiquei com ela? – Ele se inclinou para a frente. – Já que tem tudo resolvido, por que não fiquei com ela? Por que fiquei afastado por quase dois anos? E se eu queria ter um filho com ela, por que ela não engravidou de novo depois que perdeu o primeiro?

Lizzie balançou a cabeça e o encarou.

– Que parte do “não é da minha conta” você não entendeu?

E foi nesse instante que ele avançou.

Assim como no primeiro beijo deles no jardim, no escuro, no calor do verão, ele foi tomado por emoções descontroladas ao se apossar da boca dela, por um instinto que ele não conseguia combater. Num momento, eles estavam discutindo; no seguinte, ele estava bem perto, segurando-a pela nuca e beijando-a com avidez.

E, assim como antes, ela retribuiu o beijo.

No entanto, da parte dela não foi paixão. Ele tinha quase certeza de que, para ela, o encontro das bocas não passava de uma extensão do conflito entre eles, uma discussão verbal tornando-se não verbal.

Lane não se importou. Ele a aceitaria de qualquer jeito.

 

CONTINUA

Charlemont, Kentucky
Uma névoa pairava sobre as águas preguiçosas de Ohio como um sopro de Deus, e as árvores às margens da estrada River do lado de Charlemont tinham tantas nuances de verde que a cor exigia um sexto sentido para absorvê-las todas. Acima, o céu era de um azul-claro leitoso, o tipo de coisa que você via no norte apenas no mês de julho. Às sete e meia da manhã, a temperatura já passava dos vinte graus.
Era a primeira semana de maio. Os sete dias mais importantes do calendário, superando o nascimento de Cristo, a independência americana e as comemorações do Ano-Novo.
A 139a disputa do Derby de Charlemont aconteceria no sábado.
O que significava que todo o Estado do Kentucky estava imerso na loucura das corridas de cavalos puros-sangues.
Lizzie King se aproximava de seu trabalho, sentindo a forte descarga de adrenalina que a vinha acompanhando nas últimas três semanas. Ela sabia, por experiência prévia, que aquela agitação não se apaziguaria até a limpeza do sábado à tarde. Pelo menos estava indo, como de hábito, contra o fluxo que seguia para o centro da cidade, e chegaria rapidamente. Ela levava quarenta minutos em cada trajeto, mas isso não se comparava à hora do rush de Nova York, Boston ou Los Angeles, o que, no seu atual estado de espírito, faria com que seu cérebro explodisse como uma bomba nuclear. Não, o seu caminho para o trabalho consistia em vinte e oito minutos de paisagens rurais em Indiana, seguido de seis minutos de retardo em pontes e entroncamentos, completado por seis a dez minutos de tráfego ao longo do rio, contra a corrente.
Às vezes, ela pensava que os únicos carros que seguiam na mesma direção eram do restante dos funcionários que trabalhavam em Easterly junto dela.
Ah, sim, Easterly.

 


https://img.comunidades.net/bib/bibliotecasemlimites/OS_REIS_DO_BOURBON.jpg

 


A Propriedade da Família Bradford, ou PFB, como vinha escrito nas notas de entrega, estava fincada na parte mais alta da área metropolitana de Charlemont, e abrangia a casa principal de 1 800 metros quadrados, três jardins formais, duas piscinas e uma visão de trezentos e sessenta graus do condado de Washington. Também havia doze chalés de serventes, dez construções externas, uma fazenda ativa de mais de 8 000 hectares, um estábulo para vinte cavalos, que fora convertido num escritório, e um campo de golfe com nove buracos. O campo era iluminado para o caso de você querer praticar as suas tacadas à uma da madrugada.

Até onde ela sabia, o enorme terreno fora concedido à família em 1778, depois que o primeiro Bradford chegara ao sul, vindo da Pensilvânia com o então coronel George Rogers Clark, trazendo tanto a sua ambição quanto a sua tradição na fabricação do bourbon. Quase duzentos e cinquenta anos depois, eles possuíam uma mansão ao estilo Federal1 do tamanho de uma cidade pequena no alto da colina e cerca de setenta e duas pessoas trabalhando na propriedade em meio período ou período integral.

Todos seguiam regras feudais e um rígido sistema de castas, retirado diretamente de Downton Abbey.

Ou talvez a rotina da Condessa Viúva de Grantham fosse um pouco progressista demais.

Provavelmente a época de Guilherme, o Conquistador, fosse algo mais próximo.

Então, por exemplo – e isso seria apenas uma conjectura de cinema – se uma jardineira se apaixonasse por um dos preciosos filhos da família? Mesmo que ela fosse uma das horticultoras-chefes e tivesse reputação nacional e um mestrado de Cornell em paisagismo?

Isso não seria aceitável.

Sabrina sem um final feliz, meu bem.

Xingando, Lizzie ligou o rádio na esperança de fazer seu cérebro se calar. Mas não foi muito longe. Seu Toyota Yaris tinha alto-falantes dignos da Barbie: a música supostamente deveria sair pelos pequenos círculos nas portas do automóvel, mas o sistema de som era quase de fachada e, neste dia, a música que vazava daquelas coisinhas simplesmente não era suficiente…

O som de uma ambulância se aproximando a toda velocidade por trás dela superou com muita facilidade a conversa da BBC News. Ela pressionou o freio e foi para o acostamento. Depois que a sirene e as luzes sumiram à distância, ela voltou para a estrada e fez a curva aberta ao longo do rio e da estrada… E lá estava a enorme mansão branca dos Bradford, bem no alto, o sol nascente sendo obrigado a se espalhar ao redor da simétrica e magnífica construção.

Ela crescera em Plattsburgh, no Estado de Nova York, num pomar de maçãs.

O que diabos tinha pensado quase dois anos atrás quando permitira que Lane Baldwine, o filho mais novo, entrasse em sua vida?

E por que ainda estava ali, depois de todo esse tempo, refletindo sobre aqueles detalhes?

Porque, sejamos sinceros, ela não era a primeira mulher que fora seduzida por ele…

Lizzie franziu a testa e se inclinou sobre o volante.

A ambulância que a ultrapassara estava indo para a parte de trás da colina da PFB, com suas luzes vermelhas e brancas girando ao longo da alameda de bordos.

– Ah, meu Deus – sussurrou.

Rezou para que não fosse quem ela pensava.

Ela não podia ser tão azarada assim.

E não era lamentável que isso fosse a primeira coisa a lhe passar pela mente? Ela não devia estar preocupada com quem quer que estivesse machucado/doente/desmaiado?

Passando pelos portões de ferro – com o monograma da família – que estavam para se fechar, Lizzie virou a primeira à direita uns trezentos metros mais adiante.

Como empregada, ela tinha que usar a entrada de serviço. Sem desculpas, sem exceções.

Por que Deus não permitiria que um veículo com valor inferior a uma centena de milhares de dólares fosse visto diante da casa?

Puxa, estava ficando azeda, concluiu. E, depois do Derby, precisaria tirar umas férias antes que as pessoas pensassem que ela estava enfrentando a menopausa uma década antes do previsto.

A máquina de costura debaixo do capô do Yaris rugiu quando ela desceu pelo caminho que dava a volta até a base da colina. Passou pelos campos de milho; o esterco já estava espalhado e revolvido na preparação do plantio. Em seguida, passou pelos jardins bem podados, com suas primeiras plantas perenes e anuais; os topos das peônias eram fofos como bolas de algodão, não muito mais escuras que o rubor nas faces de uma menina inocente. Depois, havia os orquidários e as estufas, seguidas pelos prédios externos com os equipamentos de fazenda e jardinagem, e então a fileira de chalés dos anos 1950, de dois e três dormitórios.

Eram tão variados e cheios de estilo quanto um par de latas de açúcar e de farinha de trigo sobre um balcão de fórmica.

Chegando ao estacionamento dos funcionários, parou o carro e saiu, deixando sua caixa térmica, o chapéu e a bolsa com o protetor solar para trás.

Apressando-se para a salinha do prédio principal, entrou na caverna com cheiro de gasolina e óleo pela baia aberta à esquerda. O escritório de Gary McAdams, o chefe da manutenção, ficava ao lado, com as portas de vidro jateadas ainda translúcidas o bastante para indicar que as luzes estavam acesas e que havia alguém lá dentro.

Ela não se deu ao trabalho de bater. Empurrando a porta, ignorou o calendário da Pirelli com mulheres praticamente nuas.

– Gary…

O homem de sessenta e dois anos acabava de colocar o telefone no gancho com sua mão de urso. Seu rosto curtido de sol, com sua pele de casca de árvore, estava mais sério do que ela jamais vira. Quando ele a fitou por sobre a mesa bagunçada, ela entendeu para quem era a ambulância antes mesmo que ele dissesse o nome.

Lizzie levou as mãos ao rosto e se recostou no batente.

Claro que lamentava pela família, mas seria impossível não personalizar a tragédia e querer vomitar em algum lugar.

O homem que nunca mais queria ver na vida… estava voltando para casa.

Ela podia muito bem disparar um cronômetro.

 

Nova York, NY

– Vamos lá… sei que você me quer.

Jonathan Tulane Baldwine olhou para o quadril que estava apoiado ao lado da sua pilha de fichas de pôquer.

– Aumentem as apostas, rapazes.

– Estou falando com você. – Um par de seios falsos parcialmente cobertos apareceu sobre o leque de cartas na mão dele. – Oooiii.

Hora de fingir interesse em alguma outra coisa, qualquer outra coisa, pensou Lane. Uma pena que o apartamento de um quarto em Midtown fosse de solteiro, decorado com apenas o estritamente funcional. E por que se dar ao trabalho de olhar para os rostos do que restava dos seis bastardos com quem começara a jogar pôquer oito horas antes? Nenhum deles se mostrou à altura de nada além de simplesmente cobrir apostas altas.

Decifrar as pistas deixadas por eles só para escapar não valia o cansaço dos olhos às sete e meia da manhã.

– Ooooiiii…

– Desista, meu bem, ele não está interessado – alguém murmurou.

– Todos se interessam por mim.

– Ele não. – Jeff Stern, o anfitrião e seu colega de apartamento jogaram fichas equivalentes a mil dólares. – Não é mesmo, Lane?

– Você é gay? Ele é gay?

Lane passou a rainha de copas para o lado do rei de copas. Colocou o valete ao lado da rainha. Quis empurrar aqueles seios falsos e aquela boca grande para o chão.

– Dois de vocês não cobriram a aposta.

– Estou fora, Baldwine. Está alto demais para mim.

– Estou dentro, se alguém me emprestar mil.

Jeff olhou por sobre a mesa de feltro verde e sorriu.

– Somos você e eu, mais uma vez, Baldwine.

– Mal posso esperar para arrancar o seu dinheiro. – Lane fechou as cartas. – A aposta é sua…

A mulher voltou a se inclinar.

– Adoro o seu sotaque sulista.

Os olhos de Jeff se estreitaram por trás da armação transparente dos óculos.

– É melhor desistir, garota.

– Não sou idiota – ela disse arrastado. – Sei exatamente quem você é e quanto dinheiro você tem. Bebo do seu bourbon…

Lane se recostou e se dirigiu para o imbecil que trouxera o acessório falante.

– Billy? Fala sério?

– Tá bom. Tá bom. – O cara que queria aumentar seu débito em mil dólares se levantou. – O sol já está nascendo mesmo. Vamos embora.

– Ei, eu quero ficar…

– Não, já chega. – Billy levou a loira burra com autoestima inflada pelo braço e a acompanhou até a porta. – Eu te levo pra casa. E não, ele não é quem você está pensando. Até mais, bundões.

– É sim. Vi nas revistas…

Antes que a porta se fechasse, o outro cara que fora depenado também se levantou.

– Também vou. Me lembrem de nunca mais jogar com vocês dois.

– Não vou fazer isso – Jeff disse ao erguer a palma. – Mande um olá pra sua esposa.

– Você mesmo pode fazê-lo quando nos encontrarmos no Sabbath.

– De novo?

– Toda sexta-feira. E se você não gosta, por que fica aparecendo na minha casa?

– Comida grátis. Simples assim.

– Como se você precisasse de esmola.

Então ficaram sozinhos. Com o equivalente a 250 mil dólares em fichas de pôquer, dois baralhos e um cinzeiro cheio de bitucas de cigarro, e nenhuma loira burra.

– É a sua vez – disse Lane.

– Acho que ele quer se casar com ela – murmurou Jeff, jogando mais fichas no meio da mesa. – Billy, quero dizer. E aqui estão vinte mil.

– Então ele deveria ter a cabeça examinada. – Lane cobriu a aposta do seu velho amigo da fraternidade, e depois dobrou o valor. – Patético. Os dois.

Jeff abaixou as cartas.

– Deixa eu te perguntar uma coisa.

– Nada que seja muito difícil. Estou bêbado.

– Você gosta delas?

– Das fichas de pôquer? – Ao fundo, um celular começou a tocar. – Claro que sim. Por isso, se não se importar em colocar algumas mais…

– Não. Mulheres.

Lane ergueu os olhos.

– Como é?

O seu amigo mais antigo apoiou um cotovelo na mesa e se inclinou. A gravata fora arrancada no começo do jogo, e sua outrora camisa branca e engomada agora estava tão maleável quanto uma camiseta polo. Os olhos, contudo, estavam tragicamente alertas e concentrados.

– Você me ouviu. Olha só, sei que não é da minha conta, mas quando foi mesmo que você apareceu aqui? Uns dois anos atrás? Você mora no meu sofá, não trabalha… coisa que até entendo, por causa da sua família. Mas não existe nenhuma mulher, nenhuma…

– Pare de pensar, Jeff.

– Estou falando sério.

– Então aposte.

O celular se calou. Mas seu amigo não.

– A Universidade da Virgínia ficou pra trás há muito tempo. Muita coisa pode mudar.

– Pelo visto, não se ainda estou no seu sofá…

– O que aconteceu com você, cara?

– Morri enquanto esperava você aumentar a aposta ou desistir.

Jeff resmungou, formando uma pilha azul e vermelha e a jogando no meio da mesa.

– Mais vinte mil.

– É assim que eu gosto. – O celular começou a tocar de novo. – Cubro. E ponho mais cinquenta se você calar a boca.

– Tem certeza de que quer fazer isso?

– Calar a sua boca? Tenho.

– Ser agressivo no pôquer com um investidor de bancos como eu. Clichês existem por um motivo: sou ganancioso e ótimo com números. Ao contrário do seu pessoal.

– O meu pessoal?

– Pessoas como vocês, os Bradford, não sabem ganhar dinheiro. Vocês foram treinados para gastar. Agora, ao contrário dos amadores, a sua família tem, de fato, um fluxo financeiro, ainda que isso o impeça de aprender qualquer coisa. Portanto, não sei se, a longo prazo, vai ser uma vantagem.

Lane refletiu sobre os motivos que o levaram a abandonar Charlemont de uma vez por todas.

– Aprendi muita coisa, acredite em mim.

– E agora você está me parecendo amargo.

– Você está me entediando. Era pra eu gostar disso?

– Por que nunca vai pra casa no Natal? No dia de Ação de Graças? Na Páscoa?

Lane abaixou as cartas, pousando-as sobre o feltro.

– Não acredito mais no Papai Noel nem no Coelhinho da Páscoa, cacete. E peru é superestimado. Qual é o seu problema?

Pergunta errada. Ainda mais depois de uma noite de jogatina e bebedeira. Ainda mais para um cara como Stern, que era categoricamente incapaz de ser outra coisa que não absolutamente honesto.

– Odeio que você seja tão sozinho.

– Você só pode estar de brincadeira…

– Sou um dos seus amigos mais antigos, não sou? Se eu não te disser, quem vai dizer? Não fique irritadinho comigo. Você escolheu um judeu nova-iorquino, e não um dos milhares de sulistas amantes de frango frito metidos a besta daquela faculdade ridícula pra ser o seu eterno colega de quarto. Por isso, vá se foder.

– Vamos terminar esse jogo?

O olhar perspicaz de Jeff se estreitou.

– Responda uma coisa.

– Sim, estou me perguntando por que não pensei em ficar com o Wedge ou o Chenoweth agora mesmo.

– Rá. Você não suportava nenhum dos dois por mais de um dia. A menos que estivesse bêbado, o que, de fato, você tem estado nos últimos três meses e meio. E essa é outra coisa que me incomoda.

– Aposte. Agora. Pelo amor de Deus.

– Por que…

Quando o celular começou a tocar pela terceira vez, Lane se levantou e atravessou a sala. Em cima do balcão do bar, ao lado da sua carteira, a tela estava iluminada. Nem se deu ao trabalho de ver quem era.

Atendeu à chamada porque as alternativas eram isso ou cometer homicídio.

A voz masculina com sotaque sulista do outro lado da linha disse quatro palavras: sua mãe está morrendo.

Enquanto o significado penetrava em sua consciência, tudo se desestabilizou à sua volta; as paredes começaram a se fechar ao seu redor, o chão ondulou, o teto caiu em sua cabeça. As lembranças não só voltaram, mas o atacaram, e o álcool em seu sistema não fez nada para reduzir o impacto.

Não, ele pensou. Não agora. Não esta manhã.

Haveria uma hora certa?

“Jamais” era a única opção aceitável para ele.

De longe, ele se ouviu dizendo:

– Chego antes do meio-dia.

E desligou.

– Lane? – Jeff se pôs de pé. – Ai, merda, não desmaie. Tenho que estar na Eleven Wall dentro de uma hora e ainda preciso tomar um banho.

De uma vasta distância, Lane viu sua mão se esticar e apanhar a carteira. Colocou-a no bolso da calça junto do celular e seguiu para a porta.

– Lane! Pra onde você vai, cacete?

– Não espere por mim – ele respondeu ao abrir a porta para sair.

– Quando você vai voltar? Ei, Lane? Mas que diabos!

Seu bom e velho amigo ainda falava quando ele saiu, deixando a porta se fechar sozinha. No fim do corredor, empurrou o portão de aço e começou a trotar escada abaixo. Enquanto suas passadas ecoavam no piso de concreto e ele fazia curva após curva, ligou para um número conhecido.

Quando atenderam, ele disse:

– Lane Baldwine. Preciso de um jatinho em Teterboro agora, vou para Charlemont.

Houve uma pequena pausa, em seguida a assistente executiva do seu pai voltou a falar: – Senhor Baldwine, temos um jatinho disponível. Falei diretamente com o piloto. O plano de voo está sendo preenchido enquanto conversamos. Assim que chegar ao aeroporto, siga para…

– Sei onde fica o nosso terminal. – Chegou ao saguão de mármore, acenou para o porteiro e passou pelas portas giratórias. – Obrigado.

Uma rapidinha, disse a si mesmo ao desligar e chamar um táxi. Com um pouco de sorte, estaria de volta a Manhattan ao cair do dia, entediando Jeff à noite. Meia-noite, pelo menos.

Umas dez horas. Quinze, no máximo.

Ele tinha que ir ver a mãe. Era isso o que os rapazes do sul faziam.


"Estilo Federal" é uma tendência arquitetônica e decorativa que se aplica a edificações e mobiliário. Popularizou-se nos EUA durante os séculos XVIII e XIX e conta com traços neoclássicos. (N. E.)

 

DOIS

Três horas, vinte e dois minutos e alguns segundos mais tarde, Lane olhava para fora da janela oval do novíssimo jatinho corporativo Embraer Lineage 1000E da Cia. Bourbon Bradford. Abaixo, a cidade de Charlemont estava disposta como um diorama de Lego, com suas seções ricas e pobres, comerciais e agrícolas, com fazendas e estradas dispostas no que parecia ser apenas duas dimensões. Por um instante, tentou visualizar a terra como fora quando sua família ali chegara em 1778.

Florestas. Rios. Americanos nativos. Vida selvagem.

Seu povo viera da Pensilvânia atravessando Cumberland Gap duzentos e cinquenta anos antes, e agora ali estava ele, a dez mil pés de altura, circundando a cidade junto com outros cinquenta e tantos outros caras em suas várias aeronaves.

Só que ele não estava ali para apostar em cavalos, se embebedar e fazer sexo.

– Posso servir mais no 15 antes de aterrissarmos, senhor Baldwine? Lamento, mas estamos numa fila de espera. Pode demorar um pouco até pousarmos.

– Obrigado. – Sorveu o que restava em seu copo de cristal. Os cubos de gelo escorregaram e bateram em seu lábio superior. – Você não poderia ter chegado em melhor hora.

Ok, talvez ele acabasse bebendo um pouco.

– É um prazer.

Quando a mulher na saia de uniforme se afastou, olhou por sobre o ombro para ver se ele a estava encarando. Seus olhos azuis reluziam debaixo dos cílios postiços.

A vida sexual dele há muito passara a depender da bondade de tais desconhecidas. Especialmente de loiras como ela, com pernas como aquelas, e quadris como aqueles, e seios como aqueles.

Mas não mais.

– Senhor Baldwine – o capitão informou pelo alto-falante –, quando descobriram que se tratava do senhor, eles nos adiantaram na fila, por isso estamos aterrissando agora.

– Quanta gentileza a deles – murmurou Lane quando a comissária de bordo retornou.

O modo como ela abriu a garrafa lhe deu uma pista de como ela desceria o zíper da calça de um homem; seu corpo todo se dedicava à libertação da rolha. Em seguida, ela se inclinou para servi-lo, encorajando-o a dar uma espiada em sua lingerie La Perla.

Tamanho desperdício de esforços.

– Assim está bom. – Ergueu a mão. – Obrigado.

– Posso ajudá-lo com mais alguma coisa?

– Não, obrigado.

Pausa. Como se ela não estivesse acostumada a receber um não como resposta, e quisesse lembrá-lo de que dispunham de pouco tempo.

Depois de um instante, ela ergueu o queixo.

– Pois não, senhor.

Era o modo dela de mandá-lo para o inferno: jogando o cabelo para trás e se afastar com um rebolado, balançando o que havia debaixo daquela saia como se segurasse um gato pelo rabo e tivesse um alvo para acertar.

Lane ergueu o copo e girou o seu no 15. Nunca se envolvera nos negócios da família, isso era trabalho do seu irmão mais velho, Edward. Ou, pelo menos, fora trabalho dele. Mas, mesmo como um mero espectador, Lane conhecia o apelido do produto mais vendido da Cia. Bourbon Bradford: no 15, o elemento principal da linha de produção, vendido em quantidades tão grandes que era chamado de A Grande Borracha – porque seu lucro era tão gigantesco que o dinheiro poderia eclipsar o prejuízo de qualquer erro corporativo interno ou externo, qualquer cálculo indevido ou recessão no mercado.

Enquanto o jato se preparava para a aterrissagem, um raio de sol atravessou a janela oval, caindo sobre a mesinha dobrável de nogueira falsa, o couro cor de creme do banco, o azul do seu jeans, a fivela de latão dos seus mocassins Gucci.

E depois atingiu o no 15 em seu copo, ressaltando as nuances de rubi do líquido âmbar. Ao sorver mais um gole pela borda de cristal, sentiu o calor do sol sobre o dorso da mão e a frieza do gelo nas pontas dos dedos.

Algum estudo feito recentemente divulgou que a indústria do bourbon tinha receitas anuais na casa dos 3 bilhões de dólares. Desse total, a CBB detinha mais de um quarto, quase um terço do total. Havia outra empresa no Estado, maior que eles – a odiada Destilaria Sutton Corporation – e, depois disso, uns outros oito ou dez produtores. Mas a CBB era o diamante em meio a outras pedras semipreciosas, a escolha dos bebedores de paladar mais apurado.

Como um consumidor leal, ele tinha que concordar com tal tendência.

Uma alteração no nível de bourbon em seu copo anunciou a aterrissagem, e ele relembrou a primeira vez que experimentara o produto da família.

Considerando-se o que acontecera, ele deveria ter se transformado num abstêmio.

– É noite de Ano-Novo, vamos. Não seja medroso.

Como de costume, foi Maxwell quem começou a festa. Dos quatro filhos, Max era o encrenqueiro, com Gin, a caçula, ocupando o segundo lugar na recalcitrante escala Richter. Edward, o mais velho e mais austero deles, não fora convidado para a festa; e Lane, que estava mais ou menos no meio, tanto em termos de ordem de nascença quanto na probabilidade de ser preso ainda em idade juvenil, fora forçado àquela excursão porque Max odiava aprontar sem ter público – e meninas não contavam para ele.

Lane sabia que era uma péssima ideia. Se iam beber álcool, deveriam pegar uma garrafa da despensa e subir para os quartos, onde não havia a mínima possibilidade de serem apanhados. Mas beber assim, às vistas de qualquer um, na sala de estar? Debaixo do olhar desaprovador do quadro de Elijah Bradford sobre a cornija da lareira?

Idiotice…

– Então, quer dizer que não vai beber nada, Lame?2

Ah, sim. O apelido predileto de Max para ele.

No alaranjado das luzes externas de segurança, Max o fitou do alto com uma expressão de tamanho desafio que seu olhar poderia muito bem estar acompanhado de uma faixa de largada e uma pistola, usados nas pistas de corrida.

Lane relanceou para a garrafa que o irmão segurava. O rótulo indicava um dos requintados, com as palavras “Reserva de família” em letras rebuscadas.

Se ele não fizesse aquilo, eles nunca o deixariam em paz.

– Só quero um copo – disse ele. – Um copo apropriado. Com gelo.

Porque era assim que o pai deles bebia. E era a única explicação varonil para a sua demora.

Max franziu a testa, como se considerasse a questão da apresentação.

– Tudo bem.

– Não preciso de um copo. – Gin, que contava com sete anos, estava com as mãos nos quadris e os olhos fixos em Max. Dentro da sua camisolinha de renda, ela parecia a Wendy do Peter Pan. Com aquela expressão agressiva no rosto, ela era praticamente uma lutadora profissional. – Preciso de uma colher.

– Uma colher? – Max perguntou, surpreso. – Do que está falando?

– É remédio, não é?

Max lançou a cabeça para trás e gargalhou.

– Mas o que…

Lane cobriu a boca do irmão.

– Cala a boca! Quer ser apanhado?

Max se livrou da mão dele.

– O que eles vão fazer comigo? Bater?

Bem, sim, se o pai deles os visse ou ficasse sabendo daquilo. Ainda que o grande William Baldwine delegasse a maior parte das atribuições paternas para outras pessoas, o cinto era ele quem empunhava.

– Espere um instante, você quer ser apanhado – Lane disse com suavidade. – Não quer?

Max se virou para o carrinho de bebidas de vidro e latão. O aparador ornamental era uma antiguidade, assim como a maioria das coisas em Easterly, e o brasão da família estava entalhado nos quatro cantos. Com suas rodas finas e grandes e sua bandeja de cristal, era o anfitrião da casa, amparando quatro tipos diferentes de bourbon Bradford, meia dúzia de copos de cristal e um balde de gelo de prata que constantemente era reabastecido pelo mordomo.

– Aqui está o seu copo. – Max o empurrou na direção de Lane. – Vou beber direto da garrafa.

– Onde está a minha colher? – Gin perguntou.

– Pode tomar um gole do meu – Lane sussurrou.

– Não. Quero o meu…

O debate foi interrompido quando Max empurrou a rolha e o projétil saiu voando, batendo no candelabro no meio da sala. O cristal sacudiu, fez barulho e os três ficaram imobilizados.

– Calados – ordenou Max, antes que fizessem qualquer comentário. – E nada de gelo pra você.

O bourbon fez um barulho gorgolejante enquanto seu irmão o derramava no copo de Lane, só parando quando a taça estava tão cheia quanto seu copo de leite durante as refeições.

– Agora beba tudo – Max lhe disse ao levar a garrafa à boca, inclinando a cabeça para trás.

A encenação de cara durão só durou o tempo da primeira golada; Max começou a tossir tão alto que poderia despertar os mortos. Deixando que o irmão se engasgasse ou morresse na tentativa de se recuperar, Lane ficou olhando para o próprio copo.

Levou o cristal até a boca, e deu um gole cuidadoso.

Fogo. Era como se estivesse engolindo fogo, e uma trilha ardeu-lhe até o estômago. Soltou um xingamento, meio que esperando ver labaredas saindo do seu rosto, como se fosse um dragão.

– Minha vez – Gin disse.

Ele segurou o copo, não permitindo que ela o pegasse. Nesse meio-tempo, Max tomava o segundo e o terceiro goles.

Gin mal tocou no líquido, apenas umedeceu os lábios, e se retraiu revelando seu desgosto.

– O que estão fazendo?

Quando a luz do candelabro foi acesa, os três deram um salto. Lane derrubou o bourbon do seu copo no pijama de monograma.

Edward estava parado perto da porta com um olhar de fúria absoluta no rosto.

– O que diabos há de errado com vocês? – ele disse, marchando e tirando o copo das mãos de Lane e a garrafa de Max.

– Só estávamos brincando – murmurou Gin.

– Vá pra cama, Gin. – Ele colocou o copo no carrinho e apontou para a porta com a garrafa. – Vá pra cama agora.

– Hum… Por quê?

– A menos que queira que eu chute o seu traseiro também.

Até mesmo Gin sabia respeitar aquela lógica.

Enquanto ela avançava para o arco da entrada, com os ombros pensos e chinelos arrastando sobre o tapete oriental, Edward sibilou: – E use a escada da criadagem. Se papai ouvir alguma coisa, vai descer pela da frente.

O coração de Lane disparou. E seu estômago ardeu. Não sabia se por terem sido flagrados ou por causa do bourbon.

– Ela tem sete anos – Edward disse depois que Gin se afastou. – Sete!

– Sabemos quantos anos ela tem…

– Cale a boca, Max. Apenas cale a boca. – Ele encarou Max de cima. – Se quer se corromper, não me importo. Mas não contamine os dois com as suas idiotices.

Palavras grandes. Xingamentos. E a conduta de alguém que poderia colocar os dois de castigo.

Pensando bem, Edward sempre parecera adulto, mesmo antes de chegar à adolescência.

– Não tenho que ficar aqui te escutando – Max replicou. Mas o espírito de combate já começava a abandoná-lo; sua língua estava frouxa, seus olhos caíam para o tapete.

– Tem, sim.

Então as coisas se acalmaram.

– Sinto muito – disse Lane.

– Não estou preocupado com você. – Edward meneou a cabeça. – É ele quem me preocupa.

– Peça desculpas – Lane sussurrou. – Vamos, Max.

– Não.

– Ele não é o papai, você sabe.

Max encarou Edward.

– Mas age como se fosse.

– Só porque você está descontrolado.

Lane pegou Max pela mão.

– Ele também sente muito, Edward. Venha, vamos antes que alguém nos ouça.

Ele precisou fazer um pouco mais de força, porém, no fim, Max o acompanhou sem mais nenhum comentário: a briga tendo terminado, o lance de independência fora lançado. Estavam na metade do piso de mármore preto e branco do vestíbulo pouco iluminado quando Lane percebeu algo no fim do corredor.

Alguém se movimentava nas sombras.

Alguém grande demais para ser Gin.

Lane puxou o irmão para a total escuridão do salão de baile do lado oposto.

– Shhh.

Através do arco da sala de estar, ele viu quando Edward se virou para o carrinho à procura da rolha e quis alertar o irmão…

Quando o pai deles entrou, o corpo alto de William Baldwine bloqueou a vista de Edward.

– O que está fazendo?

As mesmas palavras, o mesmo tom, grave e profundo.

Edward se virou com tranquilidade, com a garrafa na mão. O copo quase cheio de Lane estava bem no meio do carrinho.

– Responda – o pai ordenou. – O que está fazendo?

Ele e Max estavam mortos, pensou Lane. Assim que Edward contasse ao homem o que eles estavam fazendo ali embaixo, William explodiria.

Ao lado de Lane, Max tremia.

– Eu não devia ter feito isso… – sussurrou ele.

– Onde está o seu cinto? – Edward replicou.

– Responda.

– Fui eu. Onde está o cinto?

Não!, Lane pensou. Não, fomos nós!

O pai deles avançou, o roupão de seda com monograma reluzindo na luz, cor de sangue fresco.

– Maldição, garoto! Me diga o que está fazendo aqui com as minhas bebidas.

– O nome é Bourbon Bradford, pai. O senhor se casou com a família, lembra?

Quando o pai ergueu o braço à frente do tronco, seu pesado anel de sinete de ouro da mão esquerda brilhou como se estivesse antecipando o golpe, ansioso pelo contato com a pele. Em seguida, com um movimento elegante e poderoso, Edward foi atingido com um tapa tão violento que o som ricocheteou até o salão de baile.

– Agora vou lhe perguntar mais uma vez: o que está fazendo com as minhas bebidas? – William exigiu saber enquanto Edward cambaleava de lado, amparando o rosto.

Depois de um instante de respiração laboriosa, Edward se endireitou. Seu pijama parecia vivo de tanto que seu corpo tremeu, mas ele permaneceu de pé.

Pigarreando, respondeu com voz grave:

– Estava comemorando o Ano-Novo.

Um rastro de sangue descia pela lateral do rosto dele, manchando a pele clara.

– Então não deixe que eu atrapalhe o seu divertimento. – O pai apontou para o copo de Lane. – Beba.

Lane fechou os olhos e quis vomitar.

– Beba.

Os sons de engasgo e de ânsia continuaram por uma eternidade enquanto Edward consumia quase um quarto da garrafa do bourbon.

– Não vomite, garoto – ameaçou o pai. – Não ouse…

Quando o jatinho sacolejou ao entrar em contato com a pista, Lane voltou do passado. Não se surpreendeu ao ver que o copo que segurava tremia, e não por causa da aterrissagem.

Depositando o no 15 na bandeja sobre a mesinha, enxugou a testa.

Aquela não fora a única vez que Edward fora punido no lugar deles.

E nem fora a pior das vezes. Não, a pior de todas acontecera quando ele já era adulto, e fizera tudo o que a educação torpe fracassara em conseguir.

Edward agora estava arruinado, e não apenas fisicamente.

Deus, existiam tantos motivos para Lane não querer voltar para Easterly. E nem todas eram por causa da mulher que ele amava, mas que perdera.

No entanto, tinha que confessar… Lizzie King estava no topo daquela extensa lista.


Em inglês, o apelido cria uma brincadeira com o nome do personagem, Lane, e a palavra “lame”, que pode significar perdedor, fraco, coxo, defeituoso ou careta.

 

TRÊS

Propriedade da Família Bradford, Charlemont

A estufa Amdega Machin era uma extensão da ala sul de Easterly e, como tal, nenhum custo fora poupado em sua construção, em 1956. A estrutura era uma obra-prima ao estilo gótico; seu esqueleto delicado de ossos pintados de branco suportavam centenas de painéis de vidro, criando um interior maior e mais bem-acabado que a casa de fazenda na qual Lizzie morava. Com piso de ardósia e uma área de descanso com sofás e poltronas de tecidos florais, havia flores e plantas ao longo das laterais, na altura dos quadris, e vasos em cada um dos cantos. Mas tudo isso era apenas para demonstração. O verdadeiro trabalho de horticultura, a germinação e a reabilitação, as podas e os cuidados, eram executados longe das vistas da família, em outras estufas.

– Wo sind die Rosen? Wir brauchen mehr Rosen…3

– Não sei. – Lizzie abriu outra caixa de papelão tão comprida quanto a perna de um jogador de basquete. Dentro dela, duas dúzias de talos de hidrângeas brancas estavam embaladas em plástico individualmente, as cabeças protegidas por delicados colares de papelão. – Este é o total da entrega, por isso elas devem estar aqui.

– Ich bestellte zehn weitere Dutzend. Wo sind sie…?4

– Tudo bem, agora chega de alemão.

– Não pode serr só isto. – Greta von Schlieber ergueu um punhado de flores rosa-claro minúsculas que estavam envolvidas numa página de um jornal colombiano. – Não vamos conseguirr.

– Você diz isso todos os anos.

– Desta vez, eu tenho razão. – Greta empurrou os pesados óculos com aro de tartaruga pelo nariz e fitou a pilha de outras vinte e cinco caixas. – Estou dizendo, estamos encrrencadas.

E… era essa a essência do relacionamento entre ela e sua colega de trabalho.

Começando com a rotina pessimista/otimista, Greta era basicamente tudo o que Lizzie não era. Para começar, a mulher era europeia, não americana; o sotaque alemão era bem marcado em sua pronúncia, apesar de ela estar nos Estados Unidos havia trinta anos. Também era casada com um homem incrível, mãe de três filhos fantásticos na casa dos vinte anos e tinha dinheiro suficiente para que não apenas não tivesse que trabalhar, como seus dois rapazes e sua moça também não.

Nada de Yaris para ela. Ela dirigia uma perua Mercedes preta. E o anel de diamante que ela usava ao lado da aliança era grande o bastante para rivalizar com um dos Bradford.

Ah, e ao contrário de Lizzie, seu cabelo loiro era curto como o de um homem, o que era algo a invejar quando você tinha que prender o seu com o que quer que conseguisse ter à mão: cordinhas de saco de lixo, arames florais e elásticos que amarravam os brócolis.

A única coisa que tinham em comum? Nenhuma delas suportava ficar imóvel, desocupada ou ociosa por um segundo sequer. Vinham trabalhando lado a lado na PFB havia quase cinco anos – não, mais que isso. Seriam sete?

Oh, Deus, já estavam perto dos dez.

E Lizzie não conseguia visualizar uma vida sem aquela mulher, mesmo que, às vezes, Greta fosse o tipo que via o copo meio vazio em vez de meio cheio.

– Ich sage Ihnen, wir haben Schwierigkeiten.5

– Você acabou de repetir que estamos em apuros?

– Kann sein.6

Lizzie revirou os olhos, mas se deixou levar pela adrenalina, observando a linha de produção que tinham preparado: no fim da estufa de vinte metros de comprimento, uma fila dupla de mesas dobráveis estava formada e, sobre elas, setenta e cinco cubas de prata para buquês do tamanho de baldes de gelo.

O brilho era tão forte que Lizzie desejou não ter deixado os óculos escuros no carro.

E também desejou não ter que lidar com a situação, ciente que Lane Baldwine provavelmente estaria aterrissando no aeroporto naquele instante.

Como se ela precisasse também dessa pressão.

Conforme sua cabeça começava a latejar, tentou se concentrar no que podia controlar. Infelizmente, isso lhe deixava apenas se perguntando como ela e Greta preencheriam aqueles vasos com o equivalente a 50 mil dólares em flores entregues, mas que ainda precisavam ser desembaladas, inspecionadas, limpas, cortadas e arranjadas de maneira adequada.

Pensando bem, era a pressão que sempre a acometia nas quarenta e oito horas que precediam o Brunch do Derby.

Ou BD, como era chamado ali na propriedade.

Porque, sim, trabalhar em Easterly era o mesmo que estar no exército: tudo era reduzido, menos as horas de trabalho.

E, sim, apesar da ambulância daquela manhã, o evento ainda aconteceria. Como um trem que não parava para nada nem ninguém em seu caminho. Na verdade, ela e Greta costumavam dizer que, se eclodisse uma guerra nuclear, as únicas coisas que resistiriam depois que a nuvem de cogumelo se dissipasse seriam baratas, Twinkies… e o BD.

Deixando as piadas de lado, o Brunch era tão exclusivo e acontecia havia tanto tempo que tinha um nome próprio. As vagas na lista de convidados eram guardadas e passadas para a geração seguinte como herança. Era uma reunião de quase setecentas pessoas, composta pela elite financeira e política da cidade e da nação. Elas conversavam e se misturavam em meio aos jardins de Easterly, tomando julepos de menta e mimosas7 por apenas duas horas antes da partida para Steeplehill Downs, para o dia mais importante da corrida de cavalos e a primeira etapa da Tríplice Coroa do Turfe. As regras do Brunch eram simples e diretas: as damas tinham que usar chapéus, não eram permitidas fotografias, tampouco fotógrafos, e não importava se você viesse num Phantom Drophead ou numa limusine corporativa, todos os carros ficavam estacionados nos campos ao pé da colina, e todos chegavam nas vans que os conduziriam até a entrada da mansão.

Bem, quase todas as pessoas. As únicas que não precisavam pegar o transporte eram governadores e quaisquer presidentes que aparecessem, e o treinador-chefe da equipe masculina de basquete da Universidade de Charlemont.

No Kentucky, ou você era vermelho da UC, ou azul da Universidade do Kentucky, e o basquete era importante, quer você fosse rico ou pobre.

Os Bradford eram fãs dos Águias da UC. E era quase shakespeariano que seus rivais no negócio do bourbon, os Sutton, fossem todos Tigres da UK.

– Estou ouvindo você resmungar – Lizzie comentou. – Pense positivo. Vamos conseguir.

– Wir müssen alle Pfingstrosen zahlen8 – Greta anunciou ao abrir mais uma caixa de papelão. – No ano passado, eles nos entrregarram florres a menos.

Uma das portas duplas que dava para a casa foi aberta, e o senhor Newark Harris entrou como uma brisa fria. Com seu 1,67 metro de altura, ele parecia mais alto em seu terno e gravata pretos – mas, pensando bem, a ilusão talvez se devesse às sobrancelhas eternamente erguidas, e ao fato de ele sempre estar prestes a dizer “seu americano idiota” depois de tudo o que pronunciava. Fazendo um retrocesso na tradição centenária de um adequado criado inglês, ele não apenas nascera e fora criado em Londres, como também servira como criado de libré para a rainha Elizabeth no Palácio de Buckingham e, depois, como mordomo do príncipe Edward, conde de Wessex, em Bagshot Park. O pedigree da Casa de Windsor fora crucial para a sua contratação no ano anterior.

Por certo, não fora a sua personalidade.

– A senhora Baldwine está à beira da piscina. – Dirigiu-se a Lizzie. Greta, por sua nacionalidade alemã e por ainda ter um sotaque carregado, era persona non grata para ele. – Por favor, leve um buquê para ela. Obrigado.

E puf!, sumiu pela porta, fechando-a silenciosamente.

Lizzie cerrou os olhos. Havia duas senhoras Baldwine na propriedade, mas somente uma poderia estar fora do quarto, tomando sol à beira da piscina.

Um golpe duplo naquele dia, Lizzie pensou. Não só teria que ver seu antigo amante, agora teria que servir a esposa dele.

Fantástico.

– Ich hoffe, dass dem Idiot ein Klavier auf den Kopf fallt.9

– Você acabou de dizer que espera que um piano caia sobre a cabeça dele?

– E você diz que não entende alemão.

– Dez anos com você e eu estou chegando lá.

Lizzie relanceou ao redor para ver o que poderia usar da imensa entrega de flores. Depois que as caixas fossem abertas, as folhas precisariam ser arrancadas das hastes e as flores teriam que ser afofadas uma a uma para encorajar as pétalas a se abrirem, permitindo uma inspeção de qualidade. Ela e Greta não estavam nem perto daquele estágio ainda, mas o que a senhora Baldwine queria, ela tinha.

De muitas maneiras.

Quinze minutos de escolha, corte e arranjo, e Lizzie tinha montado um buquê razoável, enfiado numa espuma dentro de um vaso de prata.

Greta apareceu diante dela e estendeu as mãos, com aquele diamante enorme no dedo reluzindo.

– Deixe que eu levo.

– Não, pode deixar…

– Você não vai querrer lidar com ela hoje.

– Nunca quero lidar com ela.

– Lizzie.

– Estou bem. Sério.

Felizmente, sua velha amiga acreditou na mentira. A verdade? Lizzie estava longe de se sentir bem, ela sequer conseguia enxergar essa possibilidade, mas não significava que recuaria.

– Volto já.

– Estarrei contando as peônias.

– Tudo vai ficar bem.

Era o que esperava.

Enquanto Lizzie seguia para as portas duplas que davam para o jardim, sua cabeça começou a latejar de verdade, e ser atingida pelo calor e umidade do lado de fora não ajudou em nada. Motrin, pensou ela. Depois daquilo, ela tomaria quatro comprimidos e voltaria ao trabalho.

A grama estava cortada bem rente, mais parecida com um campo de golfe do que qualquer outra coisa que a Mãe Natureza tivesse imaginado. Apesar de ter muitas coisas em mente, ela fez uma lista mental de tarefas, como cuidar das moitas e do replantio nos dois hectares que compunham o jardim fechado. A boa notícia era que depois do início tardio da primavera, as árvores frutíferas vicejavam nos cantos do muro de tijolos, e as delicadas pétalas brancas começavam a cair como flocos de neve nos caminhos debaixo das copas. E a compostagem espalhada duas semanas antes perdera seu odor forte. Em um mês, os quatro cantos marcados pelas esculturas greco-romanas de mulheres em vestes e poses régias estariam todas rosadas e embranquecidas, em contraste com o verde e cinza tranquilizador do rio.

Mas, claro, agora tudo se tratava do Derby.

A casa de madeira branca da piscina ficava no canto à esquerda. Parecia o lar de uma família pequena e típica de médicos/advogados ao estilo colonial, atrás da piscina quase olímpica e seu azul-marinho. O caminho que ligava a casa à piscina era coberto por galhos de glicínias, que logo teriam flores brancas e lilases penduradas como lanternas caindo do emaranhado verde.

E debaixo da cobertura, estendida numa espreguiçadeira Brown Jordan, a senhora Chantal Baldwine era tão bela quanto uma inestimável estátua de mármore.

E continha o mesmo calor.

Sua pele era reluzente, graças ao spray bronzeador perfeitamente aplicado, seus cabelos loiros estavam artisticamente penteados e curvos nas pontas, e seu corpo provocaria complexo de inferioridade até em Rosie Huntington-Whiteley. As unhas eram postiças, mas perfeitas, nada de Jersey em seu tamanho e cor, e o anel de noivado e a aliança de casamento pareciam saídos da Town & Country, tão brancos e ofuscantes quando o sorriso dela.

Ela era a perfeita e moderna belle do sul, o tipo de mulher que as pessoas de Charlemont consideravam, aos sussurros, ser “de boa linhagem, apesar de ser da Virgínia”.

Lizzie sempre se perguntou se os Bradford verificavam os dentes das debutantes com quem seus filhos saíam – assim como se faz com cavalos puros-sangues.

– … desmaiou e a ambulância foi chamada. – A mão pesada devido ao diamante se ergueu e afastou uma mecha dos cabelos, em seguida passou o iPhone no qual falava com alguém para a outra orelha. – Levaram-na pela porta da frente. Dá para acreditar nisso? Eles deveriam tê-lo feito pela porta dos fundos… Ah, essas são adoráveis!

Chantal Baldwine levou a mão à frente da boca, numa postura de gueixa, enquanto Lizzie carregava as flores até a bancada de mármore do bar, colocando-as na ponta que não estava diretamente exposta ao sol.

– Newark fez isso? Ele é tão atencioso.

Lizzie assentiu e se virou para sair. Quanto menos tempo desperdiçasse ali, melhor.

– Ah, Lisa, você poderia…

– É Lizzie. – Ela parou. – Posso ajudá-la com mais alguma coisa?

– Você faria a gentileza de me trazer mais disto? – A mulher apontou para um jarro pela metade. – O gelo derreteu e ficou aguado. Vou almoçar no clube, mas só daqui a uma hora. Muito obrigada.

Lizzie desviou o olhar para a limonada e tentou, tentou mesmo – tinha Deus como testemunha – não se imaginar afogando a mulher naquela coisa.

– Avisarei o senhor Harris para que ele mande alguém…

– Ah, mas ele é muito ocupado. E você mesma pode dar um pulo lá dentro… Você é tão prestativa. – A mulher voltou ao iPhone com a capinha da Universidade de Charlemont. – Onde eu estava? Ah, então, eles a levaram pela porta da frente. Quero dizer, com toda a sinceridade, consegue imaginar?

Lizzie se aproximou, pegou o jarro e voltou a cruzar o terraço branco na direção do gramado.

– Será um prazer.

Será um prazer.

Ah, sim, e como. Mas era isso o que você devia dizer quando alguém da família lhe pedia alguma coisa. Era a única resposta aceitável. E certamente melhor que “Que tal se eu pegar essa limonada e enfiá-la onde o sol não alcança, sua miserável filha de uma…?”.

– Ah, Lisa! Virgem, ok? Obrigada.

Lizzie apenas continuou em frente, lançando mais uma granada de “Será um prazer” por sobre o ombro.

Aproximando-se da mansão, teve que escolher sua via de entrada. Como membro do staff, não tinha permissão de entrar pelas quatro entradas principais: a da frente, a lateral da biblioteca, a dos fundos da sala de jantar e a dos fundos da sala de jogos. E era “desencorajada” a usar outras portas que não as da cozinha e da sala de utensílios, ainda que tivesse permissão se estivesse fazendo as três distribuições semanais de buquês pela casa.

Escolheu a porta que estava no meio do caminho entre a sala de jantar e a cozinha porque se recusava a dar toda a volta até a entrada de funcionários. Pisando no interior fresco, manteve a cabeça abaixada, não porque se preocupasse em irritar alguém, mas porque tinha esperanças e rezava para entrar e sair sem ser flagrada por…

– Fiquei pensando se a encontraria hoje aqui.

Lizzie congelou como um ladrão pego em flagrante e sentiu lágrimas ameaçando cair nos cantos dos olhos. Mas não iria chorar.

Não diante de Lane Baldwine.

E não por causa dele.

Aprumando os ombros, ergueu o queixo… e começou a se virar.

Antes de se deparar com os olhos de Lane pela primeira vez desde que o mandara para o inferno ao fim do relacionamento deles, Lizzie entendeu três coisas: um, sua aparência seria exatamente a mesma de antes; dois, isso não seria uma boa notícia para ela; e três, se tivesse um pouco de cérebro dentro da cabeça, colocaria aquilo que ele lhe fizera quase dois anos antes em autolooping e não pensaria em nada mais.

Autoconfiança, um lugar agradável…

Ah, merda, ele ainda tinha que ser assim tão bonito?

Lane não se lembrava muito da experiência de entrar em Easterly pela primeira vez desde o que o parecia ser uma eternidade.

Nada ficou muito registrado. Não a imponente porta de entrada com suas aldravas em forma de cabeça de leão e seu painel preto reluzente. Não o vestíbulo do tamanho de um campo de futebol e todos os quadros a óleo dos Bradford do passado e do presente. Não o candelabro de cristal ou os candeeiros de ouro, nem os tapetes orientais vermelho rubi ou as pesadas cortinas de brocado. Tampouco a sala de estar e o salão de baile em lados opostos.

A elegância sulista de Easterly, aliada à eterna fragrância cítrica do antigo lustra-móveis, era como um belo terno que, uma vez no corpo, não se percebia no resto do dia porque foi feito sob medida por um alfaiate, moldando-se ao seu esqueleto e músculos. Para ele, não houve nenhuma estranheza ao entrar ali: era uma imersão total em águas mansas, à temperatura ideal. Era como respirar o ar parado, com a umidade perfeita. Era como um cochilo ao estar sentado numa poltrona de couro do clube.

Esse era, ao mesmo tempo, seu lar e seu inimigo e, muito provavelmente, não sentiu nada porque estava oprimido por emoções que reprimia.

No entanto, notou cada detalhe a respeito do seu reencontro com Lizzie King.

A colisão aconteceu bem quando ele passava pela sala de jantar à procura daquela pela qual ele viajara.

Ah, Deus, pensou. Ah, bom Deus.

Depois de ter apenas confiado em suas lembranças por tanto tempo, estar diante de Lizzie era a diferença entre uma passagem descritiva e a coisa real – e seu corpo reagiu de pronto, o sangue bombeando, todos aqueles instintos dormentes não apenas despertando, mas explodindo em suas veias.

O cabelo dela ainda era loiro por causa do sol, não pelo trabalho de algum cabeleireiro, e estava preso para trás com um laço, as pontas aparadas como uma corda náutica que fora cortada com fogo. Seu rosto ainda estava sem maquiagem, a pele bronzeada e reluzente, a estrutura óssea lembrando-o de que a boa genética era muito melhor que cirurgias plásticas de milhares de dólares. E seu corpo… aquele corpo forte que apresentava curvas onde ele mais apreciava, e a firmeza que testemunhava todo o trabalho físico que ela executava tão bem. Ela estava exatamente como ele se lembrava. Até estava vestida do mesmo modo, com shorts cáqui e a camiseta polo preta com o brasão Easterly bordado.

Seu perfume era Coppertone, e não Chanel. Seus sapatos eram Merrel, não Manolo. Seu relógio era Nike, não Rolex.

Para ele, ela era a mulher mais bela e mais bem-vestida que já vira.

Infelizmente, aquele olhar também permanecia inalterado.

Aquele que lhe dizia que ela também pensara nele desde a sua partida.

Mas não de uma maneira boa.

Lane movia a boca, percebendo que pronunciava uma combinação de palavras, mas não as acompanhava. Imagens demais se infiltravam em seu cérebro, todas as lembranças do passado: o corpo nu de Lizzie em meio aos lençóis revoltos, o cabelo emaranhado em seus dedos, suas mãos entre as pernas dela. Em sua mente, ele a ouvia pronunciar-lhe o nome enquanto a penetrava fundo, balançando a cama até que a cabeceira se chocasse contra a parede…

– Sim, eu sei por que veio – ela disse num tom neutro.

Pense em diferentes ondas cerebrais. Ele estava desequilibrado até as pontas dos seus Gucci, revivendo o relacionamento deles, e ela estava completamente impassível diante da sua presença.

– Você já a viu? – ela perguntou. Depois franziu o cenho. – Oi?

Que diabos ela estava falando? Ah, sim.

– Fiquei sabendo que ela já voltou do hospital.

– Cerca de uma hora atrás.

– Ela está bem?

– Ela saiu daqui numa ambulância com uma máscara de oxigênio. O que você acha? – Lizzie relanceou na direção para onde estava indo. – Olha, preciso pedir licença, tenho que…

– Lizzie – ele disse em voz baixa. – Lizzie, eu…

Como ele não concluiu a frase, ela se mostrou aborrecida.

– Faça um favor e nem pense em terminar essa frase, ok? Apenas vá vê-la e… e faça o que veio fazer, está bem? Me deixe fora disso.

– Nossa, Lizzie, por que você não quer me ouvir…?

– “Por que eu deveria?” é a pergunta correta.

– Porque pessoas civilizadas são gentis umas com as outras…

E BUM! Começaram a discutir.

– O que disse? – ela exigiu saber. – Só porque moro do outro lado do rio e trabalho para a sua família, isso faz de mim uma espécie de símio? Mesmo? Vai começar por aí?

– Não foi isso o que eu quis dizer…

– Ah, mas eu acho que foi mesmo…

– Eu juro – ele murmurou –, esse seu orgulho…

– O que tem ele, Lane? Está se mostrando de novo? É isso? Sinto muito, você não pode distorcer as coisas como se fosse eu quem tem problemas. Isso é com você. Sempre foi com você.

Lane ergueu as mãos.

– Não consigo falar com você. E eu só quero explicar…

– Quer fazer uma coisa por mim? Ótimo, maravilha. Segure isto aqui. – Ela enfiou o jarro pela metade com o que lhe pareceu ser uma limonada. – Leve-o para a cozinha e peça para alguém enchê-lo. Depois, mande alguém levá-lo de volta à piscina, ou, quem sabe, leve você mesmo… para a sua esposa.

Dito isso, ela girou e saiu pela porta mais próxima. E enquanto atravessava o gramado em direção à estufa, Lane não conseguia decidir o que o atraía mais: bater a cabeça na parede, quebrar o jarro no chão ou uma combinação dos dois.

Escolheu a quarta opção.

– Maldição, filha de uma… merda…

– Senhor? Posso ajudá-lo?

Ante o sotaque britânico, Lane relanceou para um homem de cerca cinquenta anos que se vestia como se fosse um recepcionista de uma funerária.

– Quem diabos é você?

– Harris, senhor. Sou Newark Harris, o mordomo. – O homem se curvou na altura da cintura. – Os pilotos foram gentis o bastante para nos telefonar e avisar que o senhor estava a caminho. Posso cuidar da sua bagagem?

– Não trouxe nenhuma.

– Pois não, senhor. Os seus aposentos estão arrumados, e caso necessite de algo, será um prazer providenciar o que o senhor necessitar.

Ah, não, Lane pensou. Nada disso, ele não ia ficar – ele sabia muito bem qual final de semana se aproximava, e o objetivo da sua visita não tinha nada a ver com o circo armado do Derby.

Empurrou o jarro nas mãos do senhor Engomadinho.

– Não sei o que tem aqui dentro e não me importo. Apenas reabasteça e leve-o para o seu devido lugar.

– Será um prazer, senhor. O senhor precisará de…

– Não, é só isso.

O homem pareceu surpreso quando Lane passou por ele e partiu para a ala da casa reservada à criadagem. Mas, obviamente, o inglês não o questionou. O que, levando em consideração o seu humor, não apenas era adequado à etiqueta de um mordomo, como também se enquadraria numa questão de autopreservação.

Dois minutos dentro daquela casa. Dois malditos minutos.

E já estava em ponto de bala.


“Onde estão as rosas? Precisamos de mais rosas!”

“Pedi mais dez dúzias. Onde elas estão?”

“Eu te digo, estamos com problemas.”

“Pode ser.”

Julepo de menta é uma bebida feita de uísque, açúcar, gelo moído e hortelã. Mimosa é um coquetel feito com três partes de vinho espumante e duas partes de suco de laranja gelado, tradicionalmente servido em uma taça alta chamada flute. (N.E.)

“Precisamos pagar todas as peônias”

“Espero que um piano caia sobre a cabeça desse idiota.”

 

QUATRO

Lane marchou pela imensa cozinha industrial e foi imediatamente surpreendido pelo “barulho olfativo” e pelo silêncio do auditório. Mesmo havendo uma bela dúzia de chefs inclinados sobre as bancadas de aço inoxidável e sobre os enormes fogões, nenhum dos homens em seus dolmãs brancos conversava enquanto trabalhava. Alguns poucos ergueram o olhar, reconhecendo-o e parando o que quer que estivessem fazendo. Lane ignorou os “Oh, meu Deus!”. Àquela altura, já estava acostumado quando o olhavam duas vezes só para se certificarem de que era ele mesmo, sua reputação o precedia por toda a nação havia muito tempo.

Obrigado, Vanity Fair, pelo artigo sobre a família uma década atrás. E pelos que vieram depois disso. E tinha as especulações dos tabloides. Sem falar no que aparecia na internet.

O que acontecia quando o status de celebridade, com o menor denominador comum embalado pela mídia, fisgava você?

Não havia mais como se livrar.

Conforme avançava na direção da porta com a placa de PARTICULAR, viu-se colocando a camisa para dentro, ajeitando a calça e alisando os cabelos. Queria ter se permitido um tempo para tomar banho, se barbear e trocar de roupa.

E queria muito que seu reencontro com Lizzie tivesse sido um pouco melhor. Como se ele precisasse de outra coisa na cabeça agora.

Bateu na porta baixinho, respeitosamente. Mas a resposta que conseguiu não foi nada respeitosa: – Pra que é que você está batendo? – exclamou uma voz feminina com forte sotaque sulista.

Lane franziu o cenho e empurrou a porta. E parou de pronto.

A senhorita Aurora estava junto ao fogão, o cheiro forte de óleo e os estalos do frango fritando na frigideira subiam pelo ar. Seus cabelos estavam puxados para cima num rabo de cachos negros e pequeninos, e ela usava o mesmo avental que ele vira nela no dia em que partira para o norte.

Ele só conseguiu piscar e se perguntar se alguém lhe pregara uma peça.

– Ora, ora, não fique parado aí – ela ralhou. – Lave as mãos e pegue as bandejas. Só deve demorar uns cinco minutinhos.

Certo, ele esperava encontrá-la deitada na cama com o lençol a cobrir-lhe o peito, com um brilho fraco no olhar enquanto aguardava que seu amado Jesus viesse buscá-la.

– Lane, mexa-se, ainda não morri.

Ele esfregou o alto do nariz quando uma onda de exaustão o acometeu.

– Sim, senhora.

Quando fechou a porta atrás de si, procurou por sinais de fraqueza física naqueles ombros e pernas fortes. Não encontrou nenhum. Não havia absolutamente nada naquela mulher de sessenta e cinco anos que sugerisse que ela fora parar no pronto-socorro naquela mesma manhã.

Ok, então estava num impasse, ele concluiu, espiando a comida que ela tinha preparado. Um impasse entre se sentir aliviado… e furioso por ter perdido tempo para ir até ali.

De uma coisa ele tinha certeza: não iria embora antes de comer. Em parte porque ela o amarraria numa cadeira e o forçaria a se alimentar, mas principalmente porque, no instante em que sentiu aqueles aromas, seu estômago roncou a valer.

– Você está bem? – ele tinha que perguntar.

O olhar que ela lhe lançou sugeria que, se ele continuasse naquele caminho, ela ficaria mais do que feliz em socá-lo até ele fechar a matraca.

Entendido, senhora, ele pensou.

Atravessando o cômodo, descobriu que as bandejas nas quais eles dois comiam estavam exatamente onde as vira pela última vez: num dos cantos, apoiadas entre o móvel da TV e uma prateleira de livros. O par de poltronas também estava no mesmo lugar, cada uma diante de uma janela alta, com paninhos de crochê sobre o encosto da cabeça.

Fotos de crianças estavam espalhadas por toda a parte, em diferentes porta-retratos, e em meio aos rostos morenos e belos, também havia alguns rostos brancos: ali estava ele na sua formatura do jardim de infância; seu irmão Max fazendo um gol num jogo de lacrosse; sua irmã, Gin, num vestido branco, como leiteira numa peça escolar; seu irmão mais velho, Edward, de terno e gravata no seu último ano na Universidade da Virgínia.

– Bom Deus, você está magro demais, menino – murmurou a senhorita Aurora enquanto mexia numa panela que ele sabia estar cheia de vagem com cubos de bacon. – Eles não têm comida lá em Nova York?

– Não como esta, senhora.

O som que ela emitiu no fundo da garganta foi como o de um velho Chevrolet com escapamento ruim.

– Pegue os pratos.

– Sim, senhora.

Descobriu que suas mãos estavam tremendo quando pegou dois pratos no armário e os ouviu batendo um contra o outro. Ao contrário da mulher que lhe dera a luz – que sem dúvida estaria “descansando” num torpor medicinal do tipo “Não sou viciada porque o médico me receitou essas pílulas” –, a senhorita Aurora sempre parecera não ter a idade que tinha e ser forte como uma heroína. O que fazer com a ideia de que o câncer tivesse voltado?

Inferno. Para início de conversa, ele não aceitava que ela tivesse passado por isso da primeira vez. Mas não se enganava. Aquele devia ser o motivo de ela ter desmaiado.

Depois de pegar os talheres e os guardanapos, colocando-os nas bandejas, e de ter servido copos de chá, foi até as poltronas e se sentou na da direita.

– Você não devia estar cozinhando – ele disse quando ela começou a servir os pratos.

– E você não devia ter ficado longe por tanto tempo. O que deu em você?

Ela definitivamente não está à beira da morte, ele pensou.

– O que o médico disse? – ele perguntou.

– Na minha opinião, nada que valesse a pena. – Ela trouxe todo tipo de comida celestial. – Agora fique quieto e coma.

– Sim, senhora.

Hummm, bom Jesus, pensou ele ao olhar para o prato. Quiabo frito. Miúdo de porco. Bolinhos de batata. Vagens naquele cozido de bacon. E frango frito.

Quando o estômago dele roncou alto, ela gargalhou.

Mas ele não. E, de repente, teve que limpar a garganta. Isso era seu lar. Essa comida, preparada especificamente por essa mulher, era seu lar. Ele comera exatamente o que estava neste prato durante toda a sua vida, especialmente antes de sua mãe se afastar de tudo, quando ela e seu pai sumiam cinco noites por semana para socializar. Doentes ou saudáveis, felizes ou tristes, no calor ou no frio, ele e seus irmãos sentavam-se naquela cozinha com a senhorita Aurora e se comportavam bem, para não se arriscarem a levar um tapinha no cocuruto.

Nunca houve nenhum encrenqueiro na cozinha da senhorita Aurora.

– Vá em frente – ela disse com suavidade. – Não deixe esfriar.

Ele atacou a comida e gemeu com a primeira garfada, que explodiu em sabores na sua boca.

– Hum, senhorita Aurora…

– Você precisa voltar pra casa, menino. – Ela balançou a cabeça ao se sentar com o próprio prato. – Aquela coisa lá do norte não é pra você. Não sei como aguenta o clima… muito menos as pessoas.

– Então, vai me contar o que aconteceu? – perguntou, indicando a bolinha de algodão e o esparadrapo na curva do braço dela.

– Não preciso daquele carro que comprou pra mim. Foi o que aconteceu.

Ele limpou a boca.

– Que carro?

Os olhos negros se estreitaram.

– Não tente brincar comigo, menino.

– Senhorita Aurora, a senhora estava dirigindo um pedaço de… hum, sucata. Não vou tolerar esse tipo de coisa.

Ele podia distinguir o sotaque sulista ficando mais forte em sua voz. Não demorou muito, demorou?

– O meu Malibu está muitíssimo bom…

Foi a vez de Lane encará-la.

– Era um carro barato, pra início de conversa, e tinha mais de cem mil quilômetros rodados.

– Não entendo por q…

– Senhorita Aurora, não vou deixar que dirija aquela lata velha. Lamento.

Ela o encarou com determinação suficiente para abrir um buraco em sua testa, mas como ele não recuou, ela abaixou o olhar. E assim era a natureza do relacionamento deles. Dois teimosos, nenhum deles querendo ceder um milímetro sequer.

– Não preciso de um Mercedes – ela murmurou.

– Com tração nas quatro rodas, senhora.

– Não gosto da cor. É profana.

– Besteira. É vermelha da UC e a senhora adora.

Mesmo que ela tenha resmungado uma vez mais, ele sabia. Ela adorava o carro novo. A irmã dela, a senhorita Patience, ligara para ele e lhe dissera que a senhorita Aurora vinha dirigindo o E350 4Matic para cima e para baixo pela cidade. Claro, a senhorita Aurora nunca lhe telefonara para agradecer, e ele já esperava que ela protestasse – ela sempre fora orgulhosa demais para aceitar qualquer coisa de graça.

Mas a senhorita Aurora também não queria aborrecê-lo; e ela sabia que ele estava certo.

– Mas, então, o que aconteceu hoje cedo… – Já não era mais uma pergunta. Não perguntaria mais nada.

– Só fiquei um pouco tonta.

– Disseram que desmaiou.

– Estou bem.

– Disseram que o câncer voltou.

– Quem são eles?

– Senhorita Aurora…

– Meu Senhor e Salvador já me curou antes e vai me curar de novo. – Ela levantou uma palma para o céu e fechou os olhos. Depois olhou para ele. – Vou ficar bem. Já menti pra você antes, menino?

– Não, senhora.

– Agora coma.

A ordem calou a boca dele pelos próximos vinte minutos.

Lane já estava terminando o segundo prato quando teve que perguntar: – A senhora o tem visto ultimamente?

Não havia motivo para especificar de quem estava falando. Edward. Todos se referiam a “ele” em vozes sussurradas.

O rosto da senhorita Aurora se fechou.

– Não.

Houve mais um longo período de silêncio.

– Vai procurá-lo enquanto estiver aqui? – ela perguntou.

– Não.

– Alguém tem que fazer isso.

– Não vai fazer nenhuma diferença. Além do mais, tenho que voltar pra Nova York. Só vim aqui pra ver como a senhora estava…

– Você vai até ele. Antes de voltar para o norte.

Lane fechou os olhos. Depois de um instante, disse:

– Sim, senhora.

– Bom menino.

Depois do terceiro prato, Lane lavou a louça, e teve que ignorar o fato de que a senhorita Aurora parecia não ter comido nada. A conversa se voltara para os sobrinhos e sobrinhas dela, para os irmãos e irmãs, onze ao todo, e o pai dela, Tom, que por fim falecera aos oitenta e seis anos.

Ela se chamava Aurora Toms porque era uma entre os vários filhos de Tom. Havia boatos que, além dos doze que tivera com a esposa, existiam inúmeros outros fora do casamento. Lane encontrava o homem na igreja de Aurora de tempos em tempos; ele tinha sido grandioso, tão sulista quanto o Mississipi, tão carismático quanto um orador e tão belo quanto o pecado.

Embora não quisesse ser arrogante, Lane sabia que sempre fora o predileto dela, e imaginava que Tom era o motivo pelo qual ela o mimava tanto: assim como aconteceu com seu pai, também diziam que Lane era mais bonito do que lhe faria bem, e ele também tivera sua época de mulherengo. Quando tinha seus vinte e poucos anos, Lane estivera pau a pau com o bom e velho senhor Toms.

Lizzie o curara disso tudo. Mais ou menos como uma barragem que detém um carro a toda velocidade.

– Suba e cumprimente a sua mãe antes de ir embora, também – disse a senhorita Aurora, depois que ele lavou, enxugou e guardou os pratos e os talheres.

Deixou a frigideira e as demais panelas no fogão. Sabia que era melhor não tocar nelas.

Girando, dobrou o pano de prato e se recostou contra a pia de aço inoxidável.

Da sua poltrona, ela levantou a mão.

– É melhor vocês todos pararem de…

– Senhorita Aurora…

– Não me diga que voou mais de mil quilômetros só pra olhar pra mim como se eu fosse uma inválida. Não faz nenhum sentido.

– A sua comida fez a viagem valer a pena.

– Isso é verdade. Agora vá ver a sua mãe.

Eu já vi, ele pensou, olhando para ela.

– Senhorita Aurora, vai ter ajuda para o Derby?

– O que acha que é aquele monte de bobalhões ali na minha cozinha?

– É muita coisa pra fazer. Não me diga que a senhora não fica ali dando ordens.

O conhecido olhar se cravou nele, mas foi só isso que ele recebeu e isso o assustou. Normalmente, ela se levantaria da poltrona e o empurraria porta afora. Em vez disso, permaneceu sentada.

– Vou ficar bem, menino.

– É melhor mesmo. Sem você, não tenho ninguém pra me manter na linha.

Ela murmurou alguma coisa bem baixinho e fixou o olhar acima do ombro dele, enquanto ele esperava calado.

Por fim, gesticulou para que ele se aproximasse, e ele obedeceu de pronto, atravessando o piso de linóleo e se ajoelhando diante da sua poltrona. Uma das mãos, uma das lindas, fortes e negras mãos dela, se esticou e alisou o cabelo de Lane.

– Precisa cortar isso.

– Sim, senhora.

Ela lhe tocou o rosto.

– Você é bonito demais para o seu próprio bem.

– Como acabei de dizer, a senhora tem que ficar por perto pra me manter na linha.

A senhorita Aurora assentiu.

– Pode contar com isso. – Houve uma longa pausa. – Obrigada pelo meu carro novo.

Ele pressionou um beijo na palma dela.

– De nada.

– E você precisa se lembrar de uma coisa. – Seus olhos, aqueles olhos negros que o fitaram quando ele era menino, adolescente, jovem… até se tornar um homem crescido, vasculharam seu rosto, como se ela estivesse tomando nota das mudanças que o passar dos anos causara nas feições que ela conhecia por mais de trinta anos. – Tenho você e tenho Deus. Sou mais rica do que poderia sonhar… Entendeu, menino? Não preciso de um Mercedes. Não preciso de uma casa luxuosa e de roupas elegantes. Não tem nenhum buraco em mim que precisa ser preenchido… Entendeu?

– Sim, senhora. – Fechou os olhos, pensando que ela era a mulher mais nobre que já conhecera.

Isto é, ela e Lizzie.

– Entendo o que quer dizer, senhora – ele disse, rouco.

Aproximadamente uma hora depois do episódio da limonada com Lane, Lizzie saiu da estufa com dois grandes arranjos. A senhora Bradford sempre insistira em ter flores frescas nos cômodos sociais e em todos os quartos ocupados, e esse padrão fora preservado mesmo depois que ela se recolhera à sua suíte havia três anos, ali permanecendo. Lizzie gostava de imaginar que se continuasse com esse costume, talvez a Pequena V.E., como a família a chamava, voltasse a aparecer e ser a dona da casa.

Easterly tinha bem uns cinquenta cômodos, mas muitos deles eram escritórios, aposentos e banheiros de funcionários, ou cozinha, adega, salas de imprensa, ou quartos desocupados que não necessitavam das flores. Os buquês do primeiro andar estavam em ordem; ela já os inspecionara e retirara uma rosa murcha na noite anterior. Aquelas flores frescas iriam para o vestíbulo do piso superior e para o quarto do senhor Baldwine. O vaso da senhora Bradford só deveria ser trocado no dia seguinte, bem como o de Chantal e…

Será que Lane ficaria no quarto da esposa?

Provavelmente, e isso lhe provocou ânsias.

Seguindo para a escada dos empregados, os dois vasos de prata pesavam-lhe nos braços e pulsos, enrijecendo-lhe os bíceps, mas ela seguiu em frente. A queimação não duraria muito tempo, e descansar em algum lugar só prolongaria a tarefa.

O corredor de cima era tão longo quanto uma pista de corrida de cavalos, bifurcando-se numa espécie de sala de estar, seguindo para um total de vinte e uma suítes que se abriam em cada um dos lados. Os aposentos do senhor Baldwine ficavam ao lado dos da esposa, ambos com vista para o jardim e o rio. Uma porta unia os dois closets, mas ela sabia que nunca era usada.

Pelo que sabia, depois do nascimento dos filhos, aquela parte do relacionamento deles não fora “retomada”, para usar um vocábulo mais sutil.

Assim que começara a trabalhar em Easterly, confundia-se com os nomes, e certa vez referira-se à senhora Bradford pelo seu nome de casada, senhora Baldwine. Inaceitável. Fora corrigida pelo encarregado dos funcionários: a dona da mansão Bradford seria chamada de “senhora” e de “Bradford”, pouco importando qual fosse o sobrenome do marido.

Confuso. Até ela perceber que marido e mulher tinham vidas separadas, assim como seus aposentos. Portanto, havia um senhor Baldwine com uma suíte em tons de azul-marinho e pesadas antiguidades em mogno, e uma senhora Bradford com uma suíte em tons pastéis, mobília Luís XIV e uma cama de dossel.

Na verdade, talvez os dois tivessem algo em comum: ele se escondia no escritório no centro de negócios; ela, em seus aposentos.

Loucura.

Lizzie seguiu para a escada curva e formal e trocou o buquê da mesa de centro da área social. Depois foi em frente e parou diante da suíte do senhor Baldwine. Bateu duas vezes na madeira e esperou, apesar de saber que não havia ninguém no interior. Todas as manhãs, ele ia para o centro de negócios ao lado da propriedade e só regressava às sete da noite para o jantar.

Colocou o arranjo floral da sala de estar no chão, girou a maçaneta, empurrou a porta e avançou até uma cômoda antiga que deveria pertencer a um museu. Não havia nada de muito errado com as flores ali, mas nada tinha permissão de perecer em Easterly. Ali, naquele casulo de riqueza, não se permitia que existisse entropia.

Enquanto trocava os vasos, ouviu vozes no jardim e foi até as janelas. Mais de uma dúzia de homens haviam chegado, carregando pesados rolos de lona branca e grandes postes de alumínio, que, com força humana e um tanto de hidráulica, formariam a tenda de 12 por 24 metros do Brunch do Derby.

Maravilha. Chantal provavelmente chamaria o senhor Harris nesse mesmo instante para reclamar que a zona de não sobrevoo fora violada. Se um membro da família ou um convidado estivesse usando a piscina, a casa da piscina, ou quaisquer um dos terraços, todos os trabalhos tinham que ser interrompidos no jardim e todos os trabalhadores tinham que evacuar a área até que a Sua Alteza tivesse concluído seu lazer.

A boa notícia? Greta já estava ali, controlando os homens. A má notícia? A alemã devia estar ordenando que eles montassem tudo bem ao lado de onde Chantal estava.

Deliberadamente.

Temendo um confronto, Lizzie se virou…

E parou quando uma centelha de cor chamou sua atenção.

– Mas o quê…?

Inclinando-se para baixo, ficou sem saber exatamente para o que estava olhando. Assim como todo o resto em Easterly, o quarto de William Baldwine era imaculado, todos os objetos e pertences estavam onde deveriam estar, todas as armas de um poderoso homem de negócios estavam guardadas em gavetas, organizadas em prateleiras, à espera dele em um closet imenso.

Portanto, o que era aquele pedaço de seda cor de pêssego entre a cabeceira e a parede?

Bem, ela podia imaginar.

E a lingerie não devia ser de Virginia Elizabeth Bradford Baldwine.

Lizzie não via a hora de sair do quarto. Foi até a porta, abriu-a e…

– Ah, mas eu estou tãããão feliz em ver vocêêêê!

O sotaque arrastado sulista pareceu um arranhado em uma lousa, mas o pior foi olhar para a direita e ver Chantal Baldwine lançando os braços ao redor do pescoço de Lane e se pendurando nele.

Fantástico. Os dois estavam entre ela e a escadaria dos funcionários.

– Não consigo acreditar que tenha me feito esta surpresa! – A mulher recuou um passo e fez uma pose, como se quisesse que ele lhe desse uma bela olhada. – Eu estava na piscina, mas subi porque as pessoas que vão armar a tenda chegaram. Resolvi sair para liberar a área.

Não é que você merece um prêmio por seu coração de ouro, querida?, Lizzie pensou. E você não estava a caminho do clube?

Lizzie se virou para seguir para a escadaria principal e fugir. Mesmo que fosse contra as regras, seria melhor que ter que passar por…

Como se soubesse disso, o senhor Harris surgiu com a senhora Mollie, a chefe da arrumação. O mordomo inglês passava o dedo pelo corrimão da balaustrada e o erguia para inspecionar, balançando a cabeça.

Maravilha.

Suas únicas saídas eram: brasas quentes ou uma fogueira acesa. Ou voltar para se esconder no quarto em que o senhor Baldwine traía a esposa.

Ah, as escolhas da vida…

Às vezes, ela simplesmente amava seu emprego.

 

CINCO

Destilaria de Bourbon Bradford, Condado Ogden

Edwin “Mack” MacAllan Junior caminhava ao longo da pilha de barris de bourbon de doze metros de altura, as botas de couro feitas à mão ressoando contra o antigo piso de concreto. O aroma das centenas de tábuas de madeira e dos milhões de litros de bourbon envelhecendo era tão agradável ao seu olfato quanto um perfume feminino.

Pena que estivesse irritado demais para apreciar direito.

Em seu punho, ele trazia um memorando corporativo todo amassado; as letras no papel branco eram irrecuperáveis. Teve que ler o maldito texto três vezes, e não só porque a leitura era um obstáculo insuperável para o seu cérebro disléxico.

Ele não era nenhum caipira. Nascera e fora criado numa família culta, frequentara a Universidade Auburn, e sabia tudo sobre fabricar bourbon e sobre os processos químicos envolvidos naquela arte intangível.

Na verdade, ele era o Mestre Destilador da marca de bourbon de maior prestígio no mercado, filho do Mestre Destilador mais respeitado na história da indústria de bebidas.

Mas, naquele instante, queria entrar na sua F-150 de meia tonelada e invadir a recepção do escritório de William Baldwine em Easterly. Em seguida, queria pegar seu rifle de cem anos de idade e fazer alguns buracos nas escrivaninhas dos idiotas corporativos.

Parando de súbito, recostou-se e fitou as prateleiras que se estendiam pelo armazém de teto de vigas expostas. Os códigos e as datas queimados diante dos barris tinham sido colocados em ordem ali primeiro pelo seu pai, e depois por ele mesmo, e havia uma progressão lógica. Os preciosos contêineres descansavam em paz por quatro anos, por dez anos, por vinte anos, e até mais. Inspecionava-os com regularidade, ainda que dispusesse de pessoas em número mais que suficiente para fazer exatamente isso. Mas, em sua opinião, aqueles eram os únicos filhos que teria, e não permitiria que crescessem aos cuidados do equivalente a uma babá.

Aos trinta e oito anos, era um solitário, tanto por escolha quanto por necessidade. Aquele trabalho – aquele trabalho de vinte e cinco horas por dia, oito dias por semana – era a sua esposa e a sua amante, a sua família e o seu legado.

Portanto, receber aquele memorando, que encontrara sobre sua mesa ao entrar, era como assistir a um motorista embriagado batendo de frente na minivan que continha toda a sua existência.

A receita do bourbon era algo verdadeiramente simples: uma mistura de grãos que, de acordo com as leis do Kentucky, tinha que conter um mínimo de cinquenta e um por cento de milho. Ali na Destilaria de Bourbon Bradford, adicionava-se a isso uma combinação de centeio, malte de cevada, e cerca de dez por cento de trigo, para dar um sabor mais suave; água, captada de um aquífero subterrâneo de pedra calcária; e levedura. Em seguida, depois que a mágica acontecia, o bourbon era colocado em barris de carvalho branco, queimados por dentro e deixados para se transformarem em armazéns bonitos e fortes como aquele.

Era só isso. Todo fabricante de bourbon tinha que trabalhar com esses cinco elementos: grãos, água, levedura, barril e tempo. Mas, assim como Deus conseguira criar uma variedade de pessoas a partir dos mesmos elementos centrais, também cada família ou empresa produzia diferentes nuances do mesmo produto.

Esticando o braço, apoiou a mão em um dos barris arredondados que enchera logo que se tornara mestre, quase dez anos atrás, embora trabalhasse para a empresa desde os catorze anos. Substituir o pai sempre fora o plano, mas o velho morrera cedo demais, e ali estava ele. Mack fora abandonado para nadar sozinho, e não tinha a menor intenção de morrer afogado.

Portanto, sim, ali estava ele, no auge do sucesso e ainda jovem o suficiente para criar uma dinastia própria, supostamente trabalhando para a aristocracia dos produtores de bourbon, a empresa que criara o Bourbon Perfeito.

Era o slogan para tudo o que a CBB fazia, a filosofia de marketing, de negócios e de fabricação.

Portanto, como, em nome de Deus, a administração esperava que ele aceitasse atrasos na entrega de grãos? Era como se aqueles idiotas com MBA não entendessem que, por mais que tivessem produtos de quatro anos em quantidade suficiente hoje, se não enchessem os silos, acabariam sem estoque desse tipo de bourbon em quarenta e oito meses; e isso se aplicava aos demais níveis, que esgotariam em dez, vinte anos…

Ele sabia exatamente para onde estavam indo. A redução na produção de milho, resultado do aquecimento global que desequilibrara o padrão climático no último verão, significava que o preço do alqueire estava na estratosfera. Mas não seria sempre assim. Obviamente, os contadores de moedas do escritório central, também conhecido como propriedade do senhor Baldwine, resolveram poupar uns trocados freando a produção nos meses seguintes, esperando recuperá-la quando o preço do milho se autorregulasse.

Desde que a seca que abalara a nação no ano anterior não se repetisse.

Havia muitas falhas na lógica desse “negócio”, mas a questão principal era que aqueles engravatados não entendiam que este bourbon não era um produto fabricado numa linha de montagem, com um interruptor de liga e desliga. O bourbon era um processo – era o auge e a expressão de inúmeras tentativas e erros –, refinado ao longo de duzentos e cinquenta anos: você tinha que cultivar o paladar do bourbon, encontrar os sabores e o equilíbrio, guiar os elementos até seu ápice… E, depois, enviar para os seus consumidores sob o rótulo distintivo. Inferno. Ele se orgulhava de resguardar a marca registrada no 15, o maior sucesso da empresa, ainda que fosse a linha mais barata, assim como fizera com os produtos mais dispendiosos e mais antigos, como o Black Mountain, o Bradford I e o mais que exclusivo Reserva de Família.

E se interrompesse a produção agora? Sabia muito bem que eles o procurariam em seis meses, ordenando que modificasse as datas dos barris.

Seis meses para os engravatados era apenas metade de um ano, vinte e seis semanas, duas estações.

Mas para o seu paladar… Ele conseguia distinguir um bourbon de nove anos e meio e um de dez anos e um dia. Talvez muitos dos clientes deles não percebessem a diferença, mas a questão não era essa, certo? E o fato de que vários de seus concorrentes adulteravam as datas de forma regular? Esse não era um padrão a ser seguido.

Se Edward estivesse ali, pensou, não teria que se preocupar com isso. Edward Baldwine era a raridade dentro da família Bradford – um verdadeiro destilador, o regresso a uma era de linhagem augusta, um homem que valorizava o produto. Mas o presumível herdeiro do trono já não estava mais envolvido com a companhia.

Portanto, não havia como recorrer a ele.

E o memorando sobre a sua mesa? Era o modo típico como as coisas vinham sendo resolvidas desde a tragédia com Edward. Os covardes do centro de negócios sabiam que ele surtaria, mas não tinham coragem de ir até lá para lhe contar pessoalmente. Nada disso. Simplesmente escreva um memorando e jogue por cima dos outros papéis como se não afetasse em cheio o cerne dos negócios.

Mack voltou a fitar as vigas de madeira de lei centenária. Aquele era o armazém mais antigo da empresa, utilizado para abrigar os barris mais especiais. Ficava localizado ao lado do armazém original, que hoje servia tanto de museu para turistas como de escritório. Este lugar era um maldito santuário.

A alma do seu pai perambulava pelos corredores.

Mack estava convencido de que sentia o velho junto aos seus calcanhares naquele mesmo instante.

Estava convencido também de que, em um dia tranquilo como este, quando suas únicas companhias ali no armazém eram a luz do sol que se infiltrava pelas janelas empoeiradas, o som das suas botas sobre o concreto e a neblina da parte dos anjos10 que evaporava… ele era um dos poucos defensores da tradição deixada pela companhia.

Os jovens que surgiam – mesmo aqueles que desejavam ocupar o seu posto – professavam amor pelos rituais e pelos fundamentos e clamavam estar comprometidos com o processo, porém eram apenas subordinados corporativos que vestiam calças cáqui em vez de ternos. Eram de uma geração de flocos de neve especiais, que esperavam receber troféus só por terem aparecido, e esperavam que tudo fosse fácil e que todos cuidassem deles e os protegessem, como faziam os seus pais.

Eles tinham tanta profundidade quanto seus perfis do Facebook. Ou seu egoísmo inesgotável e suas frivolidades sem alma.

Em comparação aos fundadores daquela empresa, que protegeram seu produto em meio à fome e à guerra, em meio à doença e à Grande Depressão… nos tempos da Proibição, pelo amor de Deus! Eles eram apenas meninos tentando fazer o trabalho de um homem.

Eles só não sabiam disso. E, com uma cultura corporativa como aquela, jamais saberiam.

– Mack?

Ele olhou por sobre o ombro. A sua secretária, Georgie O’Malley, que cuidara do escritório de seu pai antes que ele morresse, aproximou-se por trás dele sem fazer som algum. Aos sessenta e quatro anos, ela já estava na empresa havia quarenta e um, sem dar nenhum indício de que estava diminuindo o ritmo. Autoproclamada esposa de fazendeiro, porém sem marido nem fazenda, era um espírito aliado na luta contra a atual corrente que dizia que tudo era descartável.

– Tudo bem, Mack?

Mack ergueu o olhar para as janelas, vendo os vapores da parte dos anjos subindo aos céus.

A parte dos anjos era sagrada: cada um dos barris de carvalho era queimado por dentro antes de ser preenchido com duzentos litros de bourbon. Armazenados num local como aquele, num ambiente que, propositadamente, não era climatizado, a madeira dos barris se expandia e se contraía sazonalmente, e o bourbon dentro deles se coloria e adquiria sabor com os açúcares caramelizados provindos da madeira queimada.

Uma parte significativa evaporava e era absorvida pelos barris com o decorrer do tempo.

Essa era a parte dos anjos.

Seu pai a considerava o sacrifício pelo passado, a porção que ia para os criadores, para que eles bebessem no Paraíso. Também era uma antecipação à própria morte… e a esperança de que o próximo guardião da tradição fará o mesmo por você quando você já tiver morrido.

– Não vai sobrar nada para nós, Georgie – ele se ouviu dizer.

– Do que você está falando?

Ele apenas meneou a cabeça.

– Quero que mande os rapazes fecharem os silos.

– O quê?

– Você me ouviu. – Mack levantou o punho para que ela visse o papel amassado. – A corporação parou as encomendas de milho dos próximos três meses. No mínimo. Vão avisar quando poderemos fazer mais mistura. Qualquer centeio, cevada e trigo que tenhamos deve ser redesignado.

– Redesignado? O que isso quer dizer?

– Eles não podem vender para um concorrente. E se isso parar nos ouvidos de pessoas como os Sutton? Ou da imprensa? Vai fazer com que os dez centavos que eles pouparam se tornem o maior erro financeiro da história da empresa.

– Nunca paramos a produção.

– Não. Não desde a Proibição… E, mesmo assim, foi só pra fingir.

Houve uma longa pausa.

– Mack… o que eles estão fazendo?

– Eles vão arruinar esta empresa, é o que estão fazendo.

Aproximou-se da mulher.

– Vão acabar com a gente com a desculpa de maximizar o lucro. Ou, inferno, talvez estejam preparando um OPI, finalmente. Todos os outros produtores de bourbon têm ações na bolsa, exceto os Sutton. Talvez estejam tentando inflar os lucros artificialmente antes de uma venda particular. Não sei, e não quero saber. Mas tenho a mais absoluta certeza de que Elijah Bradford está se revirando dentro do caixão.

Conforme ele seguia para a saída, ela o chamou.

– Aonde você vai?

– Encher a cara. Com muita, muita cerveja.


Durante o processo de envelhecimento, pelo menos 2% do uísque armazenado nos barris evapora através do carvalho. As destilarias se referem a essa porção como a “parte dos anjos”. (N.T.)

 

SEIS

Parado diante da porta do seu quarto ao fitar sua “esposa”, Lane pensou que, assim como Easterly, ela era a mesma. Chantal Blair Stowe Baldwine era, de fato, exatamente a mesma: mesmo corte de cabelo, bronzeado artificial, maquiagem, roupas caras cor-de-rosa. Tudo idêntico ao que ele deixara para trás. Inclusive a voz dela… que parecia a da protagonista Distinta Dama Sulista do Entretenimento.

Ela ainda tagarelava muito, palavras saíam de sua boca numa torrente sem considerar racionamento em benefício do ouvinte. Mas, pensando bem, a conversa era para ela uma forma de arte; suas mãos se movimentavam como as asas de uma pomba, arqueando-se para cima e para baixo, exibindo aquele imenso diamante do qual ela tanto fez questão, que reluzia como uma luz estroboscópica.

– … fim de semana do Derby! Claro, Samuel Theodore Lodge vem hoje à noite. Gin está tão animada em vê-lo…

Inacreditável. Fazia literalmente dois anos que não se viam, tampouco se falavam, e ela estava discorrendo sobre a lista de convidados para o jantar.

O que diabos um dia ele viu nela…

– Ah, Lisa! Com licença, você pode, por favor, pedir que o senhor Harris traga o carro do senhor Baldwine? Vamos almoçar no clube.

Lisa?, ele pensou. Mas, como de hábito, os empregados estavam sempre mudando por ali desde que…

Lane relanceou por cima do ombro. Lizzie estava parada diante da porta do quarto de seu pai, segurando dois vasos com flores perfeitas, que sem dúvida tinham acabado de ser substituídos.

– O senhor Harris está logo ali – Lizzie informou com frieza.

– Não gosto de gritar. Não é apropriado. – Chantal se inclinou para ela, como se fossem duas amigas partilhando um segredo. – Muito obrigada. Você é tão obsequi…

– Você enlouqueceu? – Lane perguntou, irritado.

Chantal se encolheu, a cabeça virando para trás, os olhos passando de ingênuos a matadores num piscar dos cílios postiços e lindos.

– O que disse? – Chantal sussurrou para ele.

Lane tentou capturar o olhar de Lizzie enquanto falava.

– Vá você mesma falar com ele.

Lizzie se recusava a olhar para ele. Com uma impassível expressão profissional, avançou, com passadas longas e elegantes, seguindo pelo longo corredor até a escada dos empregados. Nesse meio-tempo, Chantal voltou a falar.

– … falar comigo nesse tom diante da criadagem – ela sibilou.

– O nome dela é Lizzie, não Lisa. – Agora era ele quem se inclinava. – E você sabe disso, não sabe?

– O nome dela é irrelevante.

– Ela está aqui há mais tempo que você. – Ele sorriu com frieza. – E estou disposto a apostar como vai continuar a aqui depois que você se for.

– E o que isso deveria significar?

– Você não tem que ficar debaixo deste teto e sabe disso muito bem.

– Sou a sua esposa.

Lane a encarou de cima, e ficou se perguntando por que diabos ela ainda estava em sua vida. A resposta fácil era que ele vinha fingindo que Charlemont não existia. A mais complexa estava ligada ao que ela fizera.

Sou a sua esposa.

– Não por muito tempo – ele retrucou num tom baixo.

As sobrancelhas bem desenhadas dela se ergueram e, no mesmo instante, a expressão de gato irritado sumiu; ela ficou calma e tranquila, como a imagem de uma pintura.

– Não vamos discutir, querido. A nossa reserva no clube é para daqui a vinte minutos…

– Deixe-me ser bem claro. Não vou a parte alguma com você. A não ser para o escritório de um advogado.

Pela visão periférica, ele notou que o senhor Newark ou Harris – qualquer que fosse o nome do mordomo – estava dando meia-volta discretamente, levando a senhora Mollie, a governanta, na direção oposta.

– Fala sério, Tulane.

Deus, como ele odiava o seu nome nos lábios de Chantal: Tooooouuuuuulaaaayne. Pelo amor de Deus, eram três sílabas, e não trezentas.

– Estou falando sério – ele disse. – Está na hora de terminarmos isto.

Chantal inspirou fundo.

– Você está chateado por causa da pobre senhorita Aurora e está dizendo coisas que não sente. Entendo isso. Ela é uma excelente cozinheira… E é muito, muito difícil encontrá-las hoje em dia.

Os molares dele travaram.

– Você acha que ela é apenas uma cozinheira.

– Está me dizendo que ela é contadora?

Deus, por que ele…

– Aquela mulher significa mais para mim do que a que me pariu.

– Não seja ridículo. Além do mais, ela é negra…

Lane agarrou o braço de Chantal e a puxou para perto de si.

– Nunca mais fale dela dessa maneira. Nunca bati numa mulher antes, mas garanto que acabo com a sua vida se a desrespeitar.

– Lane, você está me machucando!

Naquele instante, ele percebeu que havia uma criada parada diante da porta de um dos quartos de hóspedes, com os braços tomados por toalhas dobradas. Quando ela abaixou a cabeça e seguiu em frente, ele empurrou Chantal. Ajeitou as calças. Encarou o tapete no chão.

– Acabou, Chantal. Se é que você ainda não percebeu.

Ela uniu as mãos como se estivesse rezando, e ele não acreditou nem por um segundo. O sofrimento falso na voz dela tampouco o comoveu quando ela sussurrou: – Acredito que precisamos cuidar do nosso relacionamento.

– Concordo. Este nosso casamento precisa sair desse estado miserável. É assim que cuidaremos dele.

– Você não pode estar falando sério.

– Ao inferno que não estou. Contrate um bom advogado ou não. De todo modo, você vai sair daqui.

Lágrimas. Grandes e grossas, que fizeram os olhos azuis dela brilharem como uma piscina.

– Você sabe ser muito cruel.

Não como ela sabia, ele pensou, nem de perto. E, pelo amor de Deus, ele deveria ter dado seguimento ao acordo pré-nupcial, mas que pena, que tristeza, tanto fazia àquela altura. A boa notícia era que sempre haveria mais dinheiro; mesmo que ela lhe arrancasse milhões, ele conseguiria recuperar em um ou dois anos.

– Vou falar com a minha mãe – ele disse. – E depois ligar para Samuel T. Talvez ele consiga lhe servir a papelada junto ao seu jantar hoje à noite.

E, simples assim, aqueles olhos tornaram-se implacáveis mais uma vez.

– Arruinarei você e sua família se for em frente com isso.

O que ela não sabia era que já arruinara a sua vida. Ela lhe custara Lizzie… e muito mais. Mas, maldição, aquilo tudo teria um fim.

– Cuidado, Chantal. – Ele não desviou o olhar. – Faço qualquer coisa, dentro ou fora da lei, para proteger o que é meu.

– Isso é uma ameaça?

– Apenas um lembrete de que sou um Bradford, minha cara. E nós cuidamos do que é nosso.

Afastando-se da mulher, Lane bateu à porta do quarto da mãe. Mesmo sem obter resposta, adentrou a perfumada suíte, fechando a porta atrás de si.

Cerrou os olhos, e precisou de um segundo para aplacar a fúria antes de enfrentar aquele reencontro dúbio. Precisava apenas de um segundo para se recompor. Apenas…

Quando ergueu as pálpebras, deparou-se com mais um cenário que não fora alterado.

O quarto branco e creme da mãe estava como sempre, as janelas imensas com vista para os jardins adornadas com cortinas elegantes de seda, quadros de Maxfield Parrish reluzentes como joias usadas pelas paredes, antiguidades francesas delicadas, preciosas demais para que fossem utilizadas como assento ou deixadas nos cantos. Mas nada disso era o ponto focal, por mais impressionante que fossem.

A cama de dossel do lado oposto era a verdadeira obra de arte. Tão resplandecente e maravilhosa quando o Baldaquino da Basílica de São Pedro, de Bernini. A compacta plataforma do tamanho de um barco tinha colunas entalhadas que se erguiam ao céu e uma grinalda de seda rosa-clara. E lá estava ela, Virginia Elizabeth Bradford Baldwine, deitada tão imóvel e preservada quanto uma santa, o corpo alto e magro escondido numa profusão de mantas de cetim e travesseiros, o cabelo loiro claro perfeitamente penteado, e o rosto maquiado, apesar de ela não estar indo a parte alguma e sequer estar consciente.

Ao lado dela, sobre uma cômoda bombê de tampo de mármore, havia uma dúzia de frascos de remédios com rótulos brancos dispostos em filas bem ordenadas, como um pelotão de soldados. Ele não fazia a mínima ideia do que havia dentro deles e, muito provavelmente, nem ela sabia.

Ela era a Sunny von Büllow11 sulista, a não ser pelo fato de que seu marido jamais tentara matá-la. Pelo menos não fisicamente.

O maldito provocara outros tipos de dano, porém.

– Mamãe – ele disse ao se aproximar. Quando chegou perto, segurou a mão fria e seca, de pele fina como papel e veias saltadas. – Mãe?

– Ela está repousando – informou uma voz.

Uma mulher com cerca de cinquenta anos, cabelos ruivos e um uniforme de enfermeira branco e cinza se aproximou, vindo do closet. Ela combinava perfeitamente com a decoração, e ele não desconsideraria a possibilidade de a mãe tê-la contratado exatamente por isso.

– Sou Patty Sweringin – ela se apresentou, estendendo a mão. – Você deve ser o jovem senhor Baldwine.

– Lane. – Ele apertou a mão dela. – Como mamãe tem passado?

– Repousando. – O sorriso era tão rígido e profissional quanto o uniforme dela. – Ela teve uma manhã cheia. O cabeleireiro veio tingir o cabelo.

Ah, sim, a confidencialidade. O que significava que ela não tinha permissão de lhe contar a condição de saúde da sua mãe. Mas não era culpa da enfermeira. E se sua mãe ficara exausta apenas porque arrumaram seu cabelo? Como é que ele achava que ela estava?

– Quando ela acordar, diga que… – Relanceou para a mãe.

– O que devo dizer, senhor Baldwine?

Ele pensou em Chantal.

– Vou ficar aqui alguns dias – replicou com seriedade. – Eu mesmo lhe direi isso.

– Pois não, senhor.

De volta ao corredor, ele fechou a porta e se recostou nela. Fitando um e outro retrato dos Bradford, descobriu que o passado voltava como uma picada de abelha.

Rápido e doloroso.

– O que está fazendo aqui?

Lizzie perguntara para ele no jardim, na escuridão, numa noite úmida e quente de verão. Acima, nuvens de tempestade tinham obscurecido a luz do luar, deixando as flores em broto e as árvores nas sombras.

Ele se lembrava de tudo; como ela ficara diante dele contra a parede de tijolos, com as mãos apoiadas nos quadris, o olhar fixo enfrentando o dele com uma firmeza a que ele não estava acostumado, seu uniforme de Easterly tão sexy quanto qualquer peça de lingerie que ele já tivesse visto.

Lizzie King tinha capturado a sua atenção desde a primeira vez que a vira na propriedade da família. E a cada regresso durante os recessos semestrais na faculdade, ele se via procurando por ela, buscando por ela, tentando se colocar em seu caminho.

Deus, ele adorava a perseguição.

E a captura também não era nada ruim.

Claro, ele não teve muitas experiências depois disso… e nem queria.

– E então? – ela exigiu saber. Como se, caso ele não entrasse logo no assunto, ela fosse começar a bater o pé no chão, e o movimento seguinte seria derrubá-lo por desperdiçar o seu tempo.

– Vim atrás de você.

Espere, não era isso. Ele quis dizer que viera vê-la. Para conversar com ela. Para olhá-la de perto.

Mas essas quatro palavras também eram verdadeiras. Ele queria saber qual era o sabor dela, como ela ficaria debaixo dele, o que…

Ela cruzou os braços diante do peito.

– Olha só, vou ser bem franca com você.

Lane deu um leve sorriso.

– Gosto de franqueza.

– Não acho que você vai continuar pensando assim depois que eu tiver acabado com você.

Opa, agora ele estava ficando excitado. Era curioso; isso não o teria aborrecido se ele estivesse com uma das mulheres com quem costumava se divertir. Mas ficar ali diante daquela mulher em particular com uma necessidade premente de ajustar as calças lhe pareceu… de mau gosto.

– Vou poupá-lo de perder seu tempo. – Ela manteve a voz baixa, como se não quisesse que ninguém os ouvisse, mas isso não diminuía o peso da mensagem. – Não estou, nem nunca estarei, interessada em alguém como você. Você não passa de um garoto levado que se diverte provocando o caos com o sexo oposto. Esse tipo de coisa era entediante quando eu tinha quinze anos, e levando em consideração que estou chegando aos trinta este ano, me sinto ainda menos atraída pela situação. Portanto, faça um favor: vá para o seu clube de campo, encontre uma dessas loiras junto à piscina e a transforme em mais uma esteira para você se exercitar por vinte minutos. Você não vai conseguir isso de mim.

Ele piscou como um idiota.

E pensou que o fato de estar tão chocado por alguém chamar sua atenção de tal maneira provava que ela estava certa.

– Agora, se me der licença, vou para casa. Estou trabalhando desde as sete horas da manhã.

Esticando a mão, ele a segurou pelo braço quando ela se virou.

– Espere.

– Como é? – Ela abaixou o olhar para o local em que mantinham contato e depois o fitou nos olhos. – A menos que seja algo relacionado às flores do jardim, você não tem nada a me dizer.

– Vai me dar uma chance de me defender? Ou vai só dar uma de juíza e me julgar?

– Você não está falando sério.

– Você sempre foi assim tão preconceituosa?

Ela se afastou da pegada dele.

– Antes isso do que ser ingênua. Ainda mais com um homem como você.

– Não acredite em tudo o que vê nos jornais…

– Ora, por favor. Não preciso ler nos jornais, eu vejo em primeira mão. Duas delas saíram ontem de manhã pelos fundos da casa. Na noite em que chegou, trouxe uma ruiva de um bar. E disseram que você foi fazer um check-up na quarta-feira, mas voltou com um chupão no pescoço, provavelmente adquirido quando a médica pediu para você virar a cabeça e tossir? – Ela o interrompeu quando ele fez menção de responder, ao levantar a palma na frente do rosto dele. – E antes que pense que estou mantendo esse lindo registro de conquistas porque sinto alguma atração por você, saiba que é porque as empregadas ficam prestando atenção em tudo isso e não param de comentar.

– Vai me dar a chance de falar? – ele rebateu. – Ou vai continuar este monólogo? Jesus, e você acha que eu é que sou o metido.

– O quê?

– Você acha que eu sou mimado? Bem, você está me deixando para trás nesse quesito, minha querida.

– Como é?

– Você resolveu que sabe tudo a meu respeito só porque um punhado de pessoas, que também não me conhecem, ficam falando de coisas sobre as quais não sabem nada. Isso é bastante arrogante.

– Não é sinônimo de mimada.

– Quer mesmo discutir lexicografia comigo?

Certo, o fato de estarem discutindo não deveria ser algo excitante, mas para o inferno se não era. Para cada rebatida, ele se via olhando menos para o corpo e mais para os olhos dela, o que a deixava ainda mais sexy.

– Olha só, a gente pode parar por aqui? – ela disse. – Tenho que voltar quase de madrugada para cá e esta conversa não é mais importante do que o meu sono.

Dessa vez, quando ela se virou, ele a deteve com a voz.

– Vi você perto da piscina ontem.

Ela o encarou por cima do ombro.

– Sim, eu estava arrancando ervas daninhas. Algum problema com isso?

– Você estava me medindo. Eu percebi.

Touché, ele pensou quando a viu piscar.

– Eu estava na piscina – ele sussurrou, dando um passo para se aproximar. – E você gostou do que viu, não gostou? Mesmo que odeie quem acha que eu sou, gostou do que viu.

– Você está enganado.

– Franqueza. Foi você quem mencionou isso antes. – Ele se inclinou, virando a cabeça de lado como se fosse beijá-la. – Então, tem coragem de ser franca?

As mãos dela remexeram no colarinho da camisa polo.

– Não sei do que está falando.

– Mentirosa. – Ele sorriu. – Por que acha que fiquei lá fora tanto tempo? Foi por sua causa. Gostei que estivesse admirando o meu corpo.

– Você está louco.

Deus, a negativa falsa dela foi ainda melhor do que o último orgasmo que teve com um boquete.

– Estou? – Concentrou-se nos lábios dela e, em sua mente, estava beijando-os, lambendo-os, puxando-a para junto de si. – Acho que não. E estou mais para mulherengo do que para covarde.

E foi assim que ele a deixou.

Virou-se no caminho de tijolos, e seguiu para a casa, deixando-a para trás.

Mas ele sabia, a cada passo, que ela não conseguiria deixar as coisas naquele pé.

Da próxima vez, ela o procuraria…

E, claro, foi o que aconteceu.


A história verídica de Sunny von Büllow, socialite americana que ficou 28 anos em estado vegetativo, inspirou o filme O reverso da fortuna (1990), dirigido por Barbet Schroeder. (N.E.)

 

SETE

– Desculpe, o que disse?

Lizzie falava, fitando as flores no vaso que segurava, sem conseguir se lembrar o que deveria fazer com elas… Ah, sim, colocá-las num balde até o fim do expediente para depois enrolá-las num papel toalha umedecido e depois num saco plástico, e levá-las para casa.

– Pode repetir? – pediu, olhando para o outro lado da estufa onde Greta estava.

– Eu estava falando em inglês dessa vez, sabe?

– Só estou meio distraída.

– O pessoal da tenda está exigindo pagamento antecipado. Ou vão desmancharr tudo o que arrmarram até agorra.

– O quê? – Lizzie abaixou o buquê ao lado dos vasos de prata vazios. – É uma nova política deles?

– Acho que sim.

– Vou falar com Rosalinda, então. Sabe qual é o montante?

– Doze mil, quatrrocentos e cinquenta e nove e setenta e dois centavos.

– Um instante, preciso anotar isso. – Lizzie apanhou uma caneta. – Pode repetir?

Anotou o valor na palma da mão, e olhou para o jardim. O pessoal da tenda tinha acabado de esticar a lona e estava começando a distribuir os postes enquanto alguns costuravam seções com cordas grossas.

Em mais duas horas eles terminariam. Três no máximo.

– Ainda estão trabalhando – murmurou.

– Não porr muito tempo. – Greta voltou a limpar as flores cor-de-rosa. – O escrritório deles ligou, dizendo que estão prreparrados parra voltarr parra o caminhão.

– Não há razão para surtar por causa disso – murmurou Lizzie, saindo.

O escritório de Rosalinda Freeland ficava na ala da cozinha, e ela tomou a rota externa mais longa porque estava cansada de esbarrar em Lane.

Estava no terraço, na metade do caminho, passando pelas portas francesas que davam para a sala de jantar quando olhou na direção do centro de negócios.

As instalações foram montadas onde costumavam ficar os estábulos e, assim como a estufa, tinham vista para o jardim e o rio. A arquitetura da estrutura combinava perfeitamente com a de Easterly, e a área total devia ser a mesma da mansão. Com uma dúzia de escritórios, uma sala de reuniões do tamanho de uma sala de aula de universidade, e cozinha e sala de jantar próprias, William Baldwine comandava a empresa produtora de bourbon da esposa a partir de um complexo de primeira linha.

Quase não se via gente à toa por aquelas partes, mas, pelo visto, alguma coisa estava acontecendo porque havia um grupo de pessoas de terno parado no terraço do lado de fora da principal sala de reuniões, fumando e conversando num enclave fechado.

Estranho, ela pensou. O senhor Baldwine era fumante, por isso era improvável que aquelas pessoas tivessem sido banidas para o terraço apenas para fumarem em paz.

De fato, ela reconheceu a única mulher não fumante naquele bolo. Era Sutton Smythe, herdeira da fortuna da Destilaria Sutton Corporation. Lizzie nunca a vira pessoalmente, mas muito se publicara sobre aquela mulher – era muito provável que ela se tornaria, na década seguinte, a cabeça de uma das maiores destilarias do mundo.

A bem da verdade, já parecia que ela era a chefe, com aqueles cabelos escuros penteados e o terno preto sério e caríssimo. Ela era mesmo uma mulher notável, com feições atrevidas e um corpo curvilíneo que poderia colocá-la no território das mulheres de negócio mais sexy do país, caso quisesse jogar tal jogo, o que, evidentemente, não era o caso.

Contudo, o que estaria fazendo ali?

Falando em dormir com o inimigo…

Lizzie meneou a cabeça e atravessou a porta dos fundos da cozinha. O que quer que estivesse acontecendo ali, não era problema seu. Ela estava muito, mas muito abaixo naquele totem, apenas tentando erguer uma tenda para os seus arranjos florais.

Uau.

Quantos chefs juntos!, ela pensou ao desviar dos homens e mulheres de chapéus altos e dólmãs brancos que acabariam com escoliose por ficarem tanto tempo curvados enrolando mil folhas e coisinhas recheadas com cogumelos.

Atrás de todos aqueles Gordon Ramsays, havia uma pesada porta vai e vem que se abria para um corredor simples repleto de armarinhos, a lavanderia e a sala de descanso das arrumadeiras, assim como os aposentos do mordomo, da organizadora e a escada dos empregados.

Lizzie seguiu até a porta da direita, que tinha uma plaquinha onde se lia PARTICULAR e bateu uma vez. Duas. Três vezes.

Considerando que Rosalinda era eficiente e pontual como um relógio, ela não devia estar ali. Talvez tivesse ido ao banco.

– … verificaremos novamente dentro de uma hora – dizia o senhor Harris ao entrar no corredor do lado oposto, acompanhado pela governanta. – Obrigado, senhora Mollie.

– O prazer é meu, senhor Harris – a mulher mais velha murmurou.

Lizzie fitou o mordomo enquanto a governanta se afastava.

– Temos um problema.

Ele parou diante dela.

– Sim?

– Precisamos entregar mais de doze mil para a empresa que aluga a tenda e a senhora Freeland não está aqui. Você pode emitir cheques?

– Eles precisam de doze mil dólares? – ele perguntou em seu sotaque cortante. – Mas por que motivo?

– Para o aluguel da tenda. Imagino que seja uma nova política da empresa. Nunca exigiram isso antes.

– Mas estamos falando de Easterly. Temos uma conta com eles desde a virada do século e eles farão uma exceção. Permita-me.

Girando sobre os sapatos bem lustrados, ele seguiu para os seus aposentos, sem dúvida para telefonar para a empresa.

Se ele conseguisse dar um jeito naquilo e Lizzie tivesse a sua tenda e as mesas, até que valeria a pena aguentar a sua atitude arrogante.

Além disso, se o pior acontecesse, Greta poderia assinar um cheque.

Duas coisas eram certas: Lizzie não pediria a Lane, e eles precisavam daquela tenda. Em menos de 48 horas, o mundo viria até a propriedade, e nada irritava mais os Bradford do que qualquer coisa fora do lugar.

Enquanto aguardava o mordomo retornar, todo triunfante em seu terno de pinguim, apoiou-se na parede de gesso lisa e fresca e se descobriu pensando na decisão mais idiota que tomara na vida…

Ela deveria ter deixado toda essa coisa para lá.

Depois que o temido Lane Baldwine a procurara à noite, no jardim, ela deveria ter deixado a discussão deles de lado. Por que diabos se importava se ele estava errado a seu respeito? Como aquele idiota ridículo, insano e egocêntrico podia ser assim? Ela não lhe devia nenhuma explicação para que o mundo voltasse ao seu eixo; além disso, isso não aconteceria sem o auxílio de uma marreta.

Não que ela não fosse apreciar uma tentativa nesses termos.

Mas o problema era que, entre os seus defeitos, estava a necessidade paralisante de não ser mal interpretada pelo clone de Channing Tatum.

Portanto, ela tinha que esclarecer o assunto. E, de fato, falou com ele durante todo o caminho até a sua casa naquela noite. Assim como no trajeto de volta a Easterly na manhã seguinte. E durante toda a semana que se seguiu.

No fim, acabou se convencendo de que ele a estava evitando: pela primeira vez desde que voltara para casa, fazia sete dias consecutivos que não o via. O lado bom, se é que era possível interpretar dessa forma, é que ninguém viu mulheres entrando e saindo da casa em horas estranhas em combinações pornográficas. O lado ruim era que agora ela estava com todos os discursos preparados, se arriscando a revelar exatamente quanto tempo desperdiçara gritando com ele em sua cabeça.

E Lane, sem dúvida, permanecia em Easterly. O seu Porsche – como se ele fosse dirigir qualquer outra coisa – ainda estava na garagem, e toda vez que era forçada a levar flores para o quarto dele, ela sentia a fragrância da colônia no ar e via a carteira ao lado das abotoaduras de ouro sobre a cômoda.

Ele estava jogando com ela. E por mais que ela detestasse admitir, estava funcionando. Sentia-se cada vez mais frustrada e mais determinada a encontrá-lo.

O homem era um mestre com as mulheres, isso mesmo.

O maldito.

E com mais um buquê de flores frescas em mãos, ela seguiu pela escada dos fundos até o quarto dele. Não esperava encontrá-lo ali, mas, de algum modo, a ideia de entrar no espaço dele e lançar alguns ataques verbais bem escolhidos oferecia um pouco de alívio. Quando bateu à porta, foi uma batida exigente, e depois de um instante, ela empurrou…

Lane estava ali.

Sentado na beira da cama. A cabeça entre as mãos, o corpo encurvado.

Ele não olhou para a porta.

Não parecia ter notado que havia alguém ali.

Lizzie pigarreou uma vez. Duas.

– Com licença. Preciso trocar as flores.

– Ah, obrigado. Muita gentileza sua.

Evidentemente, ele não parecia saber o que estava dizendo a ela. Os bons modos pareceram apenas um reflexo, o equivalente verbal de quando levamos uma martelada de borracha no joelho.

Isso não é da sua conta, ela resmungou para si mesma, conforme avançava na direção da cômoda.

A troca levou apenas um segundo, e logo ela tinha em suas mãos o arranjo imperceptivelmente murcho, voltando para a porta entreaberta. Aconselhou a si mesma para não olhar para ele enquanto saía. Até onde podia saber, seu cão de caça predileto podia estar com micose… ou talvez a namorada na Virgínia descobrira os trabalhos extracurriculares que ele vinha fazendo em Charlemont.

O maior erro aconteceu quando ela chegou à soleira.

Mais tarde, quando a situação explodiu em seu rosto, depois que superara suas paredes de autopreservação e se queimara, ela se convenceria de que, se simplesmente tivesse ido em frente, teria ficado bem. Suas vidas não teriam se chocado, deixando-a coberta de estilhaços.

Mas Lizzie olhou para ele.

E teve que abrir a boca uma vez mais:

– O que aconteceu?

Os olhos de Lane se ergueram.

– O que disse?

– Qual é o seu problema?

Ele apoiou as mãos nos joelhos.

– Sinto muito.

Ela esperava ouvir outra coisa.

– Pelo quê?

Ele fechou os olhos e abaixou a cabeça de novo.

E mesmo sem emitir som algum, ela soube que ele estava chorando.

E isso foi algo que ela não esperava de alguém como ele.

Quis preservar a privacidade dele, e fechou a porta.

– O que aconteceu? Estão todos bem?

Lane meneou a cabeça, inspirou fundo e se recompôs.

– Não. Nem todos.

– É a sua irmã? Ouvi dizer que ela está passando por…

– Edward. Eles o levaram.

Edward…? Deus, ela via o homem na propriedade de tempos em tempos, e ele parecia a última pessoa que alguém “levaria”. Ao contrário do pai, cujo escritório ficava em Easterly, Edward trabalhava no quartel general da CBB no centro da cidade e, pelo pouco que sabia, ele era o oposto de Lane, um homem de negócios muito sério e extremamente agressivo.

– Desculpe, mas acho que não estou conseguindo entender muito bem…

– Ele foi sequestrado na América do Sul, o resgate está em negociação. – Ele esfregou o rosto. – Não consigo nem imaginar o que estão fazendo com ele… Já se passaram cinco dias desde o primeiro contato. Jesus Cristo, como isso foi acontecer? Era para ele estar protegido lá. Como permitiram que isso acontecesse?

Então, ele estremeceu e a encarou.

– Você não pode dizer nada a ninguém. Nem Gin sabe disso. Estamos abafando o caso para que a imprensa não descubra.

– Não vou contar. Quero dizer, não direi nada a ninguém. As autoridades estão envolvidas?

– O meu pai está trabalhando com eles. Isto é um pesadelo… Eu falei para ele não ir para lá.

– Sinto muito. – Que declaração mais infeliz. – Posso fazer alguma coisa?

O que também era outra combinação infeliz de palavras.

– Devia ter sido eu – Lane murmurou. – Ou Max. Por que não poderia ter sido um de nós? Não servimos para nada. Devia ter sido um de nós.

A próxima coisa que ela se lembra foi de ter apoiado o vaso em algum lugar e ter se aproximado da cama.

– Posso pegar algo para você?

Sentou-se ao lado dele e levantou a mão para pousá-la no seu ombro, mas pensou melhor e…

Um celular tocou na mesinha de cabeceira, e quando ele não se mexeu para atender, ela perguntou: – Não quer atender?

Quando ele não respondeu, ela se inclinou para o lado, apanhou o telefone e mostrou a tela para ele. Chantal Blair Stowe.

– Acho que é a sua namorada.

Ele deu uma olhada de esguelha.

– Não, não quero falar com ela. E ela não é minha namorada.

Ela sabe disso?, Lizzie se perguntou ao recolocar o aparelho sobre a mesa.

Lane balançou a cabeça.

– Edward é o único de nós que vale alguma coisa.

– Não é verdade.

Ele deu uma gargalhada.

– Até parece que não. Não era o que estava me dizendo na semana passada?

De súbito, Lane se concentrou nela, e houve um silêncio estranho, como se só então ele tivesse percebido quem estava no quarto com ele.

O coração de Lizzie começou a bater forte. Havia algo naqueles olhos, algo que ela não vira antes. E que Deus a ajudasse, ela sabia o que era.

Sexo com um playboy não era de seu interesse. Desejo ardente por um homem de verdade? Isso… era algo muito mais difícil de fugir.

– É melhor você ir embora agora – ele disse com a voz contraída.

Sim, ela disse a si mesma, é melhor.

Ainda assim, por algum motivo louco, ela sussurrou:

– Por quê?

– Porque se eu já a desejava quando tudo não passava de um jogo – o olhar dele se concentrou na sua boca –, no meu estado atual, estou desesperado por você.

Lizzie se retraiu. Dessa vez, quando ele riu, foi um som mais grave, mais profundo.

– Você não sabe que o estresse é como o álcool? Ele o torna descuidado, estúpido e faminto. Eu deveria saber, a minha família lida tão bem com isso…

– Está tudo acertado, senhorita King.

Lizzie deu um pulo assustado, arquejando.

– Quê?

O senhor Harris franziu a testa.

– O aluguel da tenda. Já cuidei de tudo.

– Ah, sim, que ótimo. Obrigada.

Ela tropeçou, afastando-se do mordomo. Depois, tomou a direção errada no corredor, indo para a ala social da casa. Antes que o senhor Harris lhe chamasse a atenção, retrocedeu, encontrou uma porta para o lado externo e saiu.

Direto para o jardim.

Bem debaixo da janela do quarto de Lane.

Levando as mãos ao rosto, lembrou-se de como ele a beijara, duas noites depois de ela ter se sentado ao lado dele no quarto.

Fora ela a procurá-lo, sem a desculpa das flores dessa vez. Ela esperou pelo tanto que conseguiu e então, deliberadamente, foi até o quarto de Lane ao fim da jornada de trabalho para ver como ele estava, o que estava acontecendo e se houvera alguma resolução.

Nada vazara para a imprensa àquela altura. Toda a cobertura acontecera depois, quando, por fim, Edward regressara para casa.

Na segunda vez que ela entrara no quarto, batera com mais suavidade. Depois de um momento, ele lhe abriu a porta… e ela ainda conseguia ver o quanto ele envelhecera. Estava magro, com barba por fazer e olheiras profundas. Mudara de roupa, ainda que fossem apenas uma versão diferente do que ele sempre vestia: uma camisa com monograma, só que para fora da calça num dos lados; calças caras, embora estivessem amassadas na dobra do quadril e com as marcas dos joelhos; e sapatos Gucci. Dessa vez, ele estava usando apenas meias escuras.

E isso basicamente lhe contara o que ela precisava saber.

– Venha comigo – ela lhe dissera. – Você precisa sair deste quarto.

Com voz rouca, ele lhe perguntou que horas eram e ela respondeu que passavam das oito. Quando ele pareceu confuso, ela teve que esclarecer que já era noite.

Conduziu-o pela escada dos fundos como se ele fosse uma criança, segurando-o pela mão, sem mencionar nada em especial. A única coisa que ele lhe dissera era que não queria ser visto por ninguém, e ela se certificou para que isso não ocorresse, dirigindo-o para longe das conversas na sala de jantar, mantendo-o distante de olhos curiosos.

Conforme o levava para a noite cálida, ela ouvia risadas vindas da sala de jantar, cômodo no qual a refeição estava sendo servida.

Como podiam fazer aquilo?, ela se perguntara. Ficar jogando conversa fora como se nada tivesse acontecido? Como se um deles não estivesse longe dali, muito longe, em mãos muito perigosas.

Daquela vez, ela não fazia a mínima ideia do que estava fazendo com Lane e do porquê se importava tanto com o sofrimento dele. Só sabia que o playboy de uma faceta que ela rotulara como desperdício tornara-se humano, e que a dor dele era importante para ela.

Não foram muito longe. Apenas até a parede de tijolos, em meio às moitas de flores, além do belvedere do lado oposto ao jardim.

Sentaram-se juntos e não disseram muita coisa. Mas, quando ela lhe tomou a mão, ele a apertou com força, aceitando o que lhe era oferecido.

E quando ele se voltou para ela, Lizzie soube o que ele queria… não era conversar. Houve um momento de congestionamento em seu cérebro, com todos os tipos de: ei, espere, pare, longe demais…

Mas logo ela se inclinou e seus lábios se tocaram.

Os pensamentos eram complicados. Mas a conexão era simples demais.

E não ficou por isso. Ele a segurou, e ela permitiu. Ele colocou as mãos por baixo das suas roupas, e ela deixou.

Em algum momento no meio daquilo tudo, percebeu que o odiava porque se sentia atraída por ele. Loucamente atraída. E o observara sim na piscina naquela tarde, embora fosse muito mais do que isso: toda vez que ele entrava ou saía da casa, tentava espiá-lo, ainda que negasse isso para todos e qualquer um. Notícias de sua chegada iminente a Easterly tinham a capacidade de eletrizá-la, e as suas partidas a entristeciam. E a infeliz realidade era que ela invejara todas aquelas mulheres, as loiras burras com seus corpos perfeitos e sotaques sulistas, que colocavam a notória porta giratória diante do quarto em bom uso.

A verdade que não quisera admitir para si mesma era que encontraria algo para desgostar nele, mesmo que isso não fosse possível.

Não foi o dinheiro dele, ou a família centenária, nem as múltiplas mulheres, a sua aparência bela demais, tampouco o sorriso malicioso.

O que odiava nele era como ele a fazia se sentir. A vulnerabilidade fora uma invasora cruel em sua vida, um hóspede indesejado que se mudara para a sua casa, se infiltrara em seu trabalho e que a perseguia mesmo nos sonhos.

Em retrospecto, deveria ter dado ouvidos ao medo. Escolhido o instinto em vez da incrível atração.

Contudo, a vida nem sempre era sábia.

Às vezes, você não prestava atenção nos sinais de aviso, pisava fundo no acelerador, e saía derrapando no meio da curva, sem poder ver o fim.

E ela ainda sofria por causa da colisão, isso era fato.

 

OITO

Haras Vermelho & Preto, Condado Oglen, Kentucky

O sol começava a se por, e seus raios dourados penetravam a baia aberta do Estábulo B, derramando-se sobre o corredor de concreto e deixando um rastro de pura magia com o feno e partículas de pó misturadas. O som ritmado da vassoura no chão fazia as éguas se aproximarem, os olhos inteligentes e os focinhos graciosos avançando numa pergunta curiosa.

Edward Westfork Bradford Baldwine ia varrendo devagar, visto que seu corpo já não era como outrora. O esforço não era de todo ruim, a dor constante que sentia cedia ante o exercício leve. Contudo, o desconforto crônico retornaria assim que ele parasse ou começasse outra série de movimentos.

Já se acostumara a isso.

A combinação de músculos, ossos e órgãos que o amparavam na jornada da atual encarnação mortal era uma máquina que já não aceitava transições muito bem. Ela preferia atividades arraigadas, esforços repetitivos ou descanso contínuo em qualquer posição. Seus fisioterapeutas, também conhecidos como Sádicos, sugeriram que permanecesse ativo de diversas maneiras, como alguém que, segundo explicaram, tivesse que reativar as ondas cerebrais por meio de terapia ocupacional.

Quanto mais ele mudasse de atividade, melhor seria para a sua “recuperação”.

Ele sempre colocava essa palavra entre aspas. A verdadeira recuperação para ele seria voltar a ser quem ele fora – e isso jamais aconteceria, mesmo se conseguisse andar direito, comer direito, dormir a noite inteira.

Não havia como voltar a ser aquela pessoa, uma versão mais jovem, mais alegre, mais bela de si mesmo.

Ele odiava os Sádicos, mas eles eram uma parte pequena na sua longa lista de ódio. E aquele corpo alquebrado que eles pareciam tão determinados em reabilitar simplesmente não concordava com o programa. Já fazia quanto tempo que ele estava metido naquilo? E ainda havia dor, a eterna dor, a ponto de ser difícil juntar energias para atravessar aquela parede de fogo e chegar onde estava naquele instante, onde as coisas funcionavam com alguma semelhança de ordem.

Era como se ele se deparasse com o mesmo assaltante em cada beco pelo qual passava.

Às vezes, se perguntava se se sentiria menos exausto se houvesse um criminoso diferente de tempos em tempos, um inimigo diverso acabando com a sua qualidade de vida.

No entanto, os assaltos eram sempre executados pelo mesmo ladrão.

– O que está fazendo, menina? – Fez uma pausa para afagar um focinho negro. – Você está bem?

Depois de uma bufada da puro-sangue, Edward seguiu em frente. A época dos cruzamentos fora muito boa, e ele tinha noventa por cento das suas vinte e três éguas prenhas. Se tudo corresse conforme planejado, os potrinhos nasceriam em janeiro do ano seguinte, época crítica para iniciar os trabalhos de parto. Nas corridas, o relógio começava a correr segundo o calendário, não o dia do parto por si só; se você quisesse que um futuro animal de três anos disputasse o Derby o mais maduro e forte possível, era melhor que suas éguas parissem em março no mais tardar, considerando suas gestações de quase um ano.

A maioria das pessoas ligadas às corridas operava num sistema estratificado, onde os criadores ficavam separados dos treinadores iniciantes, que se diferenciavam dos treinadores de corrida. Mas ele tinha dinheiro e tempo suficientes nas mãos, de modo que não apenas criava cavalos, mas também os educava na escola primária em sua fazenda, no ensino fundamental no centro que adquirira no ano anterior, até em vendas massivas para estábulos em Steeplehill Downs em Charlemont e Garland Downs na vizinha Arlington, ali mesmo no Kentucky.

O dinheiro necessário para a criação e o treino era astronômico, e qualquer retorno era apenas uma hipótese, motivo pelo qual os cartéis dos investidores eram tipicamente formados para dividir a exposição e o risco financeiros. Ele, por sua vez, não lidava com cartéis, com coinvestidores ou sócios.

Ainda não perdera tudo. Na verdade, estava quase lucrando. A sua operação, no último ano e meio, tivera resultados admiráveis, tudo graças a Nebekanzer, o seu garanhão – que, por acaso, era o maior e mais malvado filho da mãe com o qual as pessoas já se depararam. No entanto, aquele maldito bastardo gerava filhos e filhas velozes, algo que descobrira quando se mudara ali para o chalé do administrador do Vermelho & Preto, e comprara num leilão o filho do demônio de quatro cascos e três da prole de dois anos de Neb. No ano seguinte? Todos os três descendentes venceram mais de 200 mil por cabeça até abril, e um deles chegara em segundo lugar no Derby, em terceiro em Preakness, e em primeiro em Belmont.

E aquele fora seu ano de debutante, como diziam. Este ano, esperavam que ele se saísse ainda melhor. Ele tinha dois cavalos seus no Derby.

Ambos filhos de Neb.

Ele não poderia dizer que seu coração estava naquele negócio, mas, certamente, era melhor do que ficar sentado ruminando sobre tudo o que perdera.

Assim como todos aqueles cavalos de corrida, ele nascera, fora criado e treinado para um futuro determinado: assumir a Cia. Bourbon Bradford. Mas, tal qual um puro-sangue com uma pata fraturada, esse já não era mais o seu futuro.

– Buenas noches, jefe.12

Edward acenou para um dos seus onze ajudantes do estábulo.

– Hasta mañana.13

Voltou a varrer, abaixando a cabeça.

– Jefe, hay algo aqui.14

– Quem?

– No sé.15

Edward franziu o cenho e usou a vassoura como bengala, claudicando até a porta da baia. Do lado de fora, numa manobra circular, uma limusine preta comprida parava diante do Estábulo A.

Moe Brown, o gerente do haras, caminhou até perto daquela monstruosidade, suas passadas largas diminuindo a distância. Moe tinha sessenta anos, era magro como um poste de cerca e inteligente como um matemático. E também tinha o “olho”: aquele cara conseguia predizer o futuro de um cavalo no instante em que o animal ficava de pé pela primeira vez. Era assustador, e algo inestimável naquele negócio.

E lentamente, com segurança, estava ensinando seus segredos a Edward.

O talento inato de Edward, por sua vez, era o da procriação. Ele simplesmente parecia saber quais linhagens cruzar.

Quando Moe parou ao lado da limusine, um chofer uniformizado saltou e deu a volta para as portas de trás, e Edward meneou a cabeça quando viu de quem se tratava.

Os Pendergast estavam enviando artilharia pesada.

A mulher de cerca de quarenta anos saindo do banco de trás da limusine devia ter um terço do peso de Moe, estava vestida de Chanel cor-de-rosa e tinha mais cabelos que a cauda de Neb. Bela como uma rainha, mimada como um cachorro da Pomerânia, e com uma determinação que faria as Flores de Aço16 saírem correndo para salvar seu dinheiro, Buggy Pendergast estava acostumada a conseguir o que queria.

Por exemplo, uns cinco anos atrás, armara uma jogada e fizera um dos herdeiros de uma família petrolífera largar uma perfeita primeira esposa em seu favor. E, desde então, vinha gastando o dinheiro dele com cavalos puro-sangue.

Edward já lhe dissera não três vezes pelo telefone.

Nada de cartéis. Nada de coinvestidores. Nada de sócios.

Ele trabalhava sozinho e sem interferências externas.

O homem que saiu atrás de Buggy não era o marido dela e, pela maleta que ele segurava, era possível deduzir que era algum tipo de contador. Por certo, não era nenhum segurança – era baixinho demais, e aqueles óculos eram um escoadouro de testosterona, como nunca antes visto por Edward.

Moe começou a falar com eles, e Edward entendeu que a coisa não ia bem. E tudo piorou quando aquela maleta foi sumariamente depositada sobre o capô da limusine e Buggy a abriu com um floreio, como se estivesse levantando a saia, à espera de que todos gemessem em aprovação.

Edward surgiu na luz tardia do sol com sua vassoura-bengala e mau humor. Enquanto se aproximava, Buggy não olhou para ele. E quando ele parou atrás de Moe, ela apenas o fitou com raiva, como se não apreciasse o fato de um ajudante de estábulo testemunhar aquilo tudo.

– … um quarto de milhão de dólares – ela disse – e eu vou embora com o meu potro.

Moe moveu o pedaço de feno que mastigava para o outro lado da boca.

– Acho que não.

– Eu tenho o dinheiro.

– Vocês todos têm que sair desta propriedade…

– Onde está Edward Baldwine? Exijo falar com…

– Estou bem aqui – Edward disse num tom baixo. – Moe, pode deixar que eu cuido disso.

– E Deus nos concede pequenos milagres… – o homem murmurou ao se afastar.

As lentes de contato coloridas de Buggy subiam e desciam, percorrendo o corpo de Edward, e até mesmo seu rosto cheio de Botox revelou o choque que sentiu.

– Edward… você está…

– Um arraso, eu sei. – Indicou o dinheiro. – Feche essa ridícula demonstração, volte para o seu carro e toque a sua vida. Já lhe disse pelo telefone, não vendo o meu rebanho.

Buggy pigarreou.

– Eu… hum… Fiquei sabendo o que aconteceu. Mas não fazia ideia de que…

– Os cirurgiões plásticos fizeram um excelente trabalho no meu rosto. Não concorda?

– Ah… sim. Claro que sim.

– Mas chega de jogar conversa fora. Você está de saída.

Buggy forçou um sorriso no rosto.

– Ora, Edward, há quanto tempo as nossas famílias se conhecem?

– A família do seu marido e a minha se conhecem há mais de duzentos anos. Não conheço a sua família e não faço a mínima questão de conhecer. Estou certo de que você não vai sair daqui com direito sobre qualquer um dos meus potros. Agora, vá. Pode ir.

Quando ele se virou, ela disse:

– Há duzentos e cinquenta mil dólares nessa maleta.

– E isso deveria me impressionar? Minha cara, consigo encontrar um quarto de milhão na almofada do meu sofá, portanto, eu lhe garanto, não estou nem um pouco tentado. E mais especificamente: não estou à venda. Nem por um dólar. Nem por um bilhão. – Voltou-se para o chofer. – Vou pegar a minha espingarda. Ou você vai voltar a se espremer na sua limusine e pedir para que o seu motorista pise fundo?

– Vou contar tudo isso ao seu pai! Isso é um desresp…

– O meu pai morreu para mim. Você pode discutir os meus negócios o quanto quiser com ele, mas adiantará tanto quanto este seu trajeto desperdiçado até o interior. Aproveite o seu fim de semana de Derby… em algum outro canto.

Pressionando o cabo da vassoura, ele começou a bambolear de volta ao estábulo. Em seu rastro, um coro de múltiplas portas se fechando e os pneus da limusine cantando no asfalto sugeriam que a mulher já devia estar ao celular, reclamando com seu marido vinte anos mais velho sobre a maneira vergonhosa como havia sido tratada.

Levando em consideração os boatos de que fora uma dançarina exótica aos vinte anos, ele podia adivinhar que ela fora exposta a coisas muito piores em sua vida prévia.

Antes que voltasse a entrar e retomasse a varrição, contemplou o cenário da sua fazenda: centenas de hectares de gramados verdejantes separados em picadeiros com cercas marrom-escuro. Três estábulos com telhados vermelho e cinza, e laterais pretas com molduras em vermelho. As construções externas para os equipamentos, os reboques de ponta de linha, a casa de fazenda branca onde ele ficava, a clínica veterinária e o picadeiro de exercícios…

Sua mãe era dona de tudo aquilo. O bisavô dela comprara a terra e dera início aos negócios equestres, e depois o avô e o pai dela continuaram a investir no negócio. As coisas desandaram depois que seu avô morrera, vinte anos antes, e Edward jamais considerara se envolver naquilo.

Como filho mais velho, estava destinado a assumir o papel de líder da Cia. Bourbon Bradford e, na verdade, era mais do que um legado ou primogenitura: era onde o seu coração habitava. Em seu sangue, era um destilador, tão escrupuloso com seus produtos quanto um padre o seria.

Então, tudo mudara.

O Haras Vermelho & Preto fora a melhor solução, uma distração que ocupava os seus dias até a hora de se embebedar para dormir. E, melhor ainda, era algo em que seu pai não estava envolvido.

O pouco futuro que tinha estava ali com os gramados e os cavalos.

Era tudo de que ele dispunha.

– Você gostou disso, não gostou? – Moe perguntou atrás dele.

– Não muito. – Passou o peso para o outro lado e recomeçou a varrer o corredor. – Mas ninguém vai ficar com uma parte da minha fazenda, nem mesmo Deus.

– Você não devia falar assim.

Edward olhou por sobre o ombro para lembrar ao homem a aparência do seu rosto.

– Acha mesmo que tenho medo de mais alguma coisa a esta altura?

Enquanto Moe fazia o sinal da cruz, Edward revirava os olhos… e retomava o trabalho.


“Boa noite, chefe.”

“Até amanhã.”

“Chefe, tem alguma coisa aqui.”

“Não sei.”

Referência ao filme Flores de Aço, de 1989, que se passa em uma pequena cidade da Louisiana e narra a história de um grupo de mulheres durante o falecimento de uma delas. A história tornou-se símbolo de lealdade e amizade entre as personagens que, apesar de delicadas como flores, demonstram ser fortes como o aço. (N.E.)

 

NOVE

– … deitada na cama, mexendo nos mamilos. – Virginia Elizabeth Baldwine, “Gin” para a família, se recostou na poltrona acolchoada. – Agora estou colocando a mão entre as pernas. O que quer que eu faça com ela? Sim, estou nua… Como mais eu poderia estar? Diga o que devo fazer.

Bateu o cigarro na taça de vinho de cristal Baccarat que esvaziara uns dez minutos antes e cruzou as pernas por baixo do roupão de seda. Os puxões em seus cabelos eram mais do que incômodos, e ela encarou a cabeleireira pelo espelho do banheiro.

– Hum… sim… – ela gemeu no celular. – Estou tão… molhada… e só pra você.

Ela teve que revirar os olhos quando ele disse que ela era uma boa moça, mas Conrad Stetson gostava justamente disso. Era um homem das antigas: precisava da ilusão de que a mulher com quem traía a esposa lhe era fiel.

Tão tolo.

Gin sentia saudades dos primeiros dias do relacionamento entre eles. Tinha sido difícil atraí-lo e afastá-lo do seu casamento. Ficou encantada com a determinação com que ele lutara contra a atração que sentia por ela, com a vergonha que ele sentiu após o primeiro beijo, com a resistência que ele demonstrou para não lhe telefonar, não vê-la, não procurá-la… E, por uma ou duas semanas, ela, de fato, estivera interessada nele, querendo as atenções dele, uma droga na qual valia a pena se perder.

E depois do sexo? Bem, para início de conversa, era papai e mamãe demais.

– Isso, ai, assim… vou gozar, vou gozar…

Enquanto ela “gozava”, a cabeleireira corava de vergonha, mas continuou a puxar seu cabelo negro. Uma criada vinha do closet com uma bandeja de veludo nas mãos contendo dois conjuntos, um de rubis da Birmânia feitos pela Cartier nos anos 1940, e uma criação em safiras da Van Cleef & Arpels do fim dos anos 1950. Ambos pertenceram à sua avó; um fora dado à Grande Virginia Elizabeth pelo marido no nascimento da mãe de Gin, e o outro fora um presente no vigésimo aniversário de casamento dos avós.

Produziu um som de fastio; depois pressionou o botão do mudo e meneou a cabeça na direção da criada.

– Quero os diamantes Winston.

– Acredito que a senhora Baldwine os esteja usando.

Gin visualizou a cunhada, Chantal, com mais de cem quilates em diamantes impecáveis, e sorriu, falando com lentidão, como se estivesse se dirigindo a uma tola: – Então arranque os diamantes que meu pai deu à minha mãe do pescoço e das orelhas daquela vadia e traga-os para mim.

A criada empalideceu.

– Será… um prazer.

Pouco antes de a mulher sair apressada do quarto, Gin a chamou: – Certifique-se de limpá-los antes. Não suporto o perfume de farmácia que ela insiste em usar.

– Será um prazer.

Referir-se ao Flowerbomb de Vyktor e Rolf como perfume de “farmácia” era um pouco exagerado, embora certamente não fosse nenhum Chanel. Francamente, o que esperar de uma mulher que sequer concluíra a Sweet Briar?

Gin liberou o som do celular.

– Querido, preciso ir. Tenho que me aprontar. Que pena que não está aqui. – Então seguiu-se uma sequência de vozinhas infantis.

Deus, será que ele sempre teve aquele sotaque sulista tão carregado? Os Bradford não tinham aquele sotaque anasalado horrível, mas apenas um leve arrastado para provar de que lado da Linha Mason-Dixon vinham, e para mostrar que sabiam a diferença entre bourbon e uísque.

Sendo que o último não merecia nenhum comentário.

– Tchauzinho – disse e desligou.

Ao terminar a ligação, resolveu pôr um fim naquele relacionamento. Conrad tinha começado a falar sobre deixar a esposa, e ela não queria isso. Ele tinha dois filhos, pelo amor de Deus. O que estava pensando? Uma coisa era se divertir um pouquinho além dos limites impostos pelo casamento, mas as crianças precisavam da ilusão dos pais.

Além disso, ela já provara que não podia ser mãe de nada. Nem mesmo de um peixinho dourado.

Meia hora mais tarde, usava um vestido Christian Dior vermelho UC e estava com aquele pesado colar Harry Winston sobre a clavícula. Seu perfume era Coco da Chanel, um clássico, que decidira adotar como marca registrada desde que completara trinta anos. Os sapatos eram Louboutin.

Não vestia calcinha.

Samuel Theodore Lodge viria jantar.

Ao entrar no corredor, olhou para a porta oposta à sua. Exatamente há dezesseis anos, dera luz à moça que morava lá. E seu envolvimento com Amelia terminara ali. Uma enfermeira, e mais duas babás, aliadas a uma longa passagem do tempo, e já estava indo para a escola preparatória.

Com isso, sequer tinha um vislumbre da filha.

De fato, Amelia não viera para casa no feriado de primavera, o que fora muito bom. Mas o verão se aproximava, e o regresso da moça de Hotchkiss não era o que ninguém, Amelia menos ainda, estava esperando.

Seria possível enviar uma moça de dezesseis anos para um acampamento?

Talvez devessem mandá-la para uma turnê de dois meses pela Europa. Os vitorianos faziam isso duzentos anos atrás, antes mesmo dos aviões e dos carros com air bags.

Poderiam pagar alguém para que fosse como acompanhante.

E, na verdade, a necessidade de mantê-la afastada de Easterly não significava que Gin não amasse a filha. Era apenas que a presença da jovem era um lembrete forte demais das escolhas erradas e mentiras de Gin, e de ninguém mais – e, às vezes, era melhor não olhar com muita atenção para essas coisas.

Além disso, a Europa era maravilhosa. Ainda mais se fosse explorada da maneira correta.

Gin avançou direto para a escadaria ao estilo de Tara que se bifurcava no meio antes de chegar ao enorme vestíbulo de mármore de Easterly. O vestido falava a cada passo, o caimento da seda resvalando na anágua de tule de um modo que a fazia imaginar a conversa abafada das francesas que costuraram aquele belo vestido de noite.

Ao chegar à plataforma do meio e escolher a escada da direita, mais próxima da sala onde os coquetéis eram sempre servidos, conseguiu ouvir as pessoas conversando. Haveria trinta e duas para o jantar daquela noite, e ela estaria sentada na cadeira outrora de sua mãe, na ponta oposta em que seu pai se sentava à cabeceira.

Já fizera aquela apresentação de dama da casa um milhão de vezes, e o faria outras tantas – normalmente, esta era uma obrigação que cumpria com orgulho.

Naquela noite, entretanto, por algum motivo havia um lamento em seu coração.

Provavelmente por ser o aniversário de Amelia.

Melhor começar a beber.

Quando telefonara para a filha, Amelia se recusara a descer e falar ao telefone do seu dormitório.

Era o tipo de coisa que Gin teria feito.

Viram? Ela era uma boa mãe. Entendia a filha.

Lane se recusou a usar black tie para o jantar. Estava com as mesmas calças e trocou a camisa por outra social, que deixara para trás quando fora morar com Jeff no norte.

Estava disposto a ser pontual e só.

Assim que chegou ao térreo, evitou ao máximo os olhares das pessoas e procurou um drinque. E se deparou com um velho amigo antes de chegar ao Reserva de Família.

– Ora, ora, ora, o nova-iorquino voltou para as suas raízes, finalmente – Samuel cdisse ao se aproximar.

Lane teve que sorrir.

– Como anda o meu advogado sulista-frito predileto?

Enquanto se abraçavam e davam tapas nas costas um do outro, a loira que estava com Samuel T. ficou de lado, com os olhos atentos, sem deixar passar nada despercebido. Seu vestido era notável – se fosse um pouco mais curto na parte de cima ou de baixo, ela estaria vestindo apenas um cinto.

Bem ao estilo de Samuel T.

– Permita-me que eu lhe apresente a senhorita Savannah Locke. – Samuel T. acenou para a mulher, como se dando permissão para que ela se aproximasse, e ela logo o atendeu, inclinando-se para a frente e oferecendo a mão delgada e pálida. – Vá pegar um drinque para nós, sim, querida? Ele vai tomar o Reserva de Família.

Enquanto a mulher recuava para o bar, Lane balançou a cabeça.

– Posso me servir sozinho.

– Ela era aeromoça. Gosta de servir as pessoas.

– Hoje em dia não são chamadas de comissárias de bordo?

– Então decidiu voltar? Não pode ser por causa do Derby. Isso era coisa do Edward.

Lane dispensou a pergunta, sem vontade de mencionar a situação da senhorita Aurora. Era difícil demais.

– Preciso da sua ajuda com uma coisa. Isto é, no âmbito profissional.

O olhar de Samuel T. se estreitou e mirou a mão de Lane, sem aliança.

– Está limpando a casa, pelo visto.

– Consegue agir com rapidez? Quero que a situação se resolva rápida e discretamente.

O homem assentiu.

– Pode me ligar amanhã de manhã. Cuido de tudo.

– Obrigado.

No alto da escada, sua irmã, Gin, fez a curva na plataforma do meio e parou, como se soubesse que as pessoas iriam querer examinar o que ela vestia – e o vestido vermelho e todas aquelas joias de fato estavam ali para serem contemplados. Com metros de seda rubra se estendendo pelo chão e aquele conjunto de diamantes digno da Princesa Diana, ela era o Oscar, a Town & Country e o Palácio de St. James, todos ao mesmo tempo.

As vozes que se calaram no vestíbulo eram sinal tanto de admiração quanto de condenação.

A reputação de Gin a precedia.

Não é que era de família?

Quando ela o viu junto a Samuel T., suas sobrancelhas se arquearam e, por uma fração de segundo, ela sorriu com sinceridade, a antiga luz voltando ao seu olhar, os anos sumindo até que os três voltassem a ser os mesmos de antes de todos os acontecimentos.

– Se me der licença – disse Samuel T. – Vou dar uma olhada naqueles drinques. Acho que minha acompanhante se perdeu.

– A casa não é tão grande assim.

– Talvez para mim e para você.

Enquanto Samuel T. se afastava, Gin levantou a barra do vestido vermelho e terminou de descer a escada. Quando pisou no mármore preto e branco, veio direto na direção de Lane, os saltos altos fazendo barulho pelo piso de mais de cem anos. Ele pensou em lhe dar um abraço de cavalheiro quando ela se aproximasse, em respeito ao penteado e às joias, mas foi ela quem o abraçou forte até que ele a sentiu tremer.

– Estou tão feliz que esteja aqui – ela disse com uma voz rouca. – Deveria ter me avisado.

E foi então que ele fez uns cálculos e percebeu que era o aniversário de Amelia.

Estava para dizer alguma coisa quando ela se afastou e recolocou a máscara no lugar, suas feições de Katharine Hepburn se arranjando num vazio perfeito que fez o peito dele doer.

– Preciso de um drinque – ela anunciou. – Para onde foi Samuel T.?

– Ele não está sozinho hoje, Gin.

– E isso importa?

Quando ela se afastou com a cabeça erguida e os ombros aprumados, ele sentiu pena da pobre aeromoça loira. Lane não sabia quem era a acompanhante de Samuel T., mas por certo ela entendia quem era seu par: lá no bar, ela estava encostada no quadril dele como o coldre de um revólver, como se estivesse ciente de que teria que proteger seu território.

Pelo menos ele teria algo para se distrair durante o jantar.

– O seu Reserva de Família, senhor? O senhor Lodge o mandou com os seus cumprimentos.

Lane se virou e sorriu. Reginald Tressel era o eterno barman em Easterly, e o cavalheiro afro-americano em seu casaco preto e sapatos reluzentes estava mais distinto que muitos dos convidados, como sempre.

– Obrigado, Reg. – Lane pegou o copo de cristal da bandeja de prata. – Ei, obrigado por me telefonar avisando sobre a senhorita Aurora. Recebeu o meu recado?

– Recebi. Eu sabia que o senhor gostaria de vir.

– Ela parece melhor do que pensei.

– Ela disfarça bem. O senhor não vai partir tão cedo, vai?

– Ei, como Hazel tem passado? – Lane desconversou.

– Muito melhor, obrigado. Sei que não vai querer voltar para o norte até que as coisas estejam resolvidas por aqui.

Reginald lhe lançou um sorriso que não alterou a sombra escura daqueles olhos negros, e depois retornou para as suas tarefas, caminhando em meio à multidão como um estadista, as pessoas o cumprimentando como um de seus semelhantes.

Lane se lembrava de quando ele era mais novo, quando as pessoas diziam que o senhor Tressel era o prefeito não oficial de Charlemont. Isso, certamente, não mudara.

Deus, não estava pronto para perder a senhorita Aurora. Seria o mesmo que ter que vender Easterly – algo que não conseguia imaginar num universo em que as coisas estivessem funcionando como deviam.

O cheiro de fumaça de cigarro o fez endurecer.

Só existia uma pessoa que podia fumar dentro daquela casa.

Imerso em tal pensamento, Lane seguiu na direção oposta.

Seu pai sempre fora fumante, seguindo as tradições sulistas, o que equivalia a dizer que mesmo o homem sendo asmático, ele se achava no direito patriótico de se presentear com câncer de pulmão – não que ele estivesse doente, ou que ficaria doente. Ele acreditava que um homem de verdade nunca deixava uma mulher puxar a própria cadeira à mesa, nunca maltratava seus cães de caça e nunca, jamais, ficava doente.

Bom código de conduta. O problema? Só contemplava isso. Não tinha nada a respeito dos filhos. Das pessoas que trabalhavam para ele. Do seu papel como marido. E os Dez Mandamentos? Eram apenas uma lista velha para governar as vidas das outras pessoas, de modo que ninguém se aborrecesse quando um atirasse no outro.

Era engraçado. Graças ao pai, Lane jamais fumara – e não era uma espécie de rebeldia. Ao crescer, ele e seus irmãos sabiam quando o homem se aproximava por causa do cheiro do tabaco, e isso nunca era uma boa notícia. Por conseguinte, ele ficava todo tenso, como num experimento de Pavlov, toda vez que alguém acendia um cigarro.

Provavelmente, foi a única contribuição positiva do pai em sua vida. E, ainda assim, uma ajuda insincera.

O gelo em seu copo batia como sinos enquanto ele andava pela casa, sem saber para onde estava indo… até chegar às portas duplas que se abriam para a estufa. Mesmo fechadas, ele sentiu o cheiro das flores, e ficou parado por um tempo olhando através dos vidros para o enclave verdejante e colorido do outro lado.

Lizzie, sem dúvida, estaria ali, arranjando buquês, como sempre fazia às quintas que precediam o Derby.

Como uma mariposa atraída pela luz, ele pensou ao ver a mão se esticando para a maçaneta de latão.

O som de Greta von Schlieber falando com aquela voz carregada de alemão quase fez com que desse meia-volta. Por causa de tudo o que fizera, a mulher o odiava, e ela não era de esconder suas opiniões. E provavelmente estaria segurando um par de tesouras de jardim.

Mas o chamado de Lizzie era mais forte do que qualquer necessidade de autoproteção.

E lá estava ela.

Mesmo tendo já passado das oito da noite, ela estava sentada num banco com rodinhas diante de uma mesa com vinte e sete vasos de prata do tamanho de bolas de basquete. Metade estava cheio com flores rosa-claro, brancas e creme, e os outros ainda tinham que ser arrumados. Esponjas florais molhadas aguardavam para ancorar as incontáveis hastes.

Ela espiou por sobre o ombro, deu uma olhada nele… e continuou falando sem perder o compasso.

– … mesas e cadeiras debaixo da tenda. E você poderia também pegar mais spray conservador?

Greta não foi tão fleumática. Embora estivesse evidentemente de saída, com a grande bolsa Prada verde no ombro e uma menor cor de laranja na mão, segurando as chaves do carro, aquele olhar fixo, aliado ao silêncio abrupto, sugeria que ela não iria a parte alguma até que ele voltasse para o jantar da família.

– Está tudo bem – Lizzie grunhiu. – Pode ir.

Greta murmurou alguma coisa em alemão. Depois saiu pela porta que dava para o jardim, resmungando baixinho.

– O que ela disse? – ele perguntou depois que ficaram sozinhos.

– Não sei. Provavelmente alguma coisa sobre um piano caindo na sua cabeça.

Ele sorveu um gole do copo, sugando o bourbon frio por entre os dentes.

– Só isso? Pensei que poderia ser algo mais sangrento.

– Acho que um Steinway caindo de uma altura baixa já faria um belo estrago.

Havia meia dúzia de baldes de dois litros ao redor dela, cada um contendo um tipo diferente de flor. Ela escolhia de um e de outro como se estivesse tocando notas em um instrumento musical: uma desta, depois uma daquela, voltando à primeira, depois a terceira, a quarta, a quinta. O resultado, em pouco tempo, era um lindo arranjo de pétalas brotando do contêiner de prata muito polido.

– Posso ajudar? – ele perguntou.

– Pode. Indo embora.

– Você está quase sem estas. – Ele olhou ao redor. – Ali, deixe que eu traga o outro balde.

– Pode voltar para o seu jantar? – ela replicou. – Você não está ajudando.

– E essas outras também já estão acabando.

Deixou o copo na mesa cheia de vasos vazios e começou a puxar os baldes pesados.

– Obrigada – ela murmurou quando ele retirou os vazios, levando-os para a pia de cerâmica. – Pode ir agora…

– Vou me divorciar.

O rosto dela não demonstrou nenhuma reação, mas as mãos, aquelas mãos fortes e seguras, quase derrubaram a rosa que pegava do balde que ele trouxera.

– Não por minha causa, espero – ela disse.

Ele virou um dos baldes vazios e se sentou no fundo, segurando o bourbon entre os joelhos.

– Lizzie…

– O que quer que eu diga? Parabéns? – Espiou na direção dele. – Ou você quer uma reação chorosa cheia de alívio? Porque posso lhe garantir neste instante, essa é a última coisa que vai conseguir de mim…

– Nunca amei Chantal.

– E isso importa? – Lizzie revirou os olhos. – A mulher estava grávida de você. Portanto, talvez você não a amasse, mas, obviamente, andou fazendo alguma coisa com ela.

– Lizzie…

– Sabe, seu tom exasperado que pede que eu seja racional é muito desagradável. É como se você achasse que estou fazendo algo errado por não lhe dar uma chance para você discorrer sobre toooodas as formas de como foi uma vítima. O que sei que é verdade: você veio com tudo pra cima de mim, e eu cedi porque lamentei o que estava acontecendo com o seu irmão. Naquela época, você mostrava uma fachada perfeita e socialmente aceitável para esconder o fato de que estava transando com uma empregada. O seu problema começou quando eu me recusei a ser o seu segredinho vergonhoso.

– Maldição, Lizzie, não foi nada disso…

– Talvez da sua parte…

– Nunca a tratei com inferioridade!

– Você só pode estar brincando. Como acha que me senti quando me disse que me amava e depois li sobre o seu noivado nas colunas sociais na manhã seguinte? – Ela levantou as mãos para o alto. – Você faz alguma ideia do impacto daquilo sobre mim? Sou uma mulher inteligente. Tenho a minha fazenda e estou pagando por ela com o meu próprio dinheiro. Tenho um mestrado em Cornell. – Ela bateu no peito. – Cuido de mim mesma. E ainda assim… – Desviou o olhar. – Você me pegou.

– Não fui eu quem colocou aquele anúncio.

– Bem, havia uma foto bem grande de vocês dois ali.

– Não foi minha culpa.

– Tolice! Está tentando me dizer que havia uma arma apontada na sua cabeça quando se casou com Chantal?

– Você não queria falar comigo! E ela estava grávida… Eu não queria que o meu filho nascesse um bastardo. Deduzi que era o único modo de agir como homem, dada a situação.

– Ah, mas você foi muito homem. Foi assim que ela acabou com um filho seu na barriga.

Lane praguejou e abaixou a cabeça. Deus, já perdera tanto tempo ansiando em poder refazer tudo com Lizzie – começando muito antes de quando ficaram juntos, quando estava fazendo sexo casual com Chantal e acreditara que ela estava tomando pílula.

Mas todos já sabem como isso terminou.

E a gravidez não fora a única surpresa que Chantal reservara para ele. A segunda fora ainda mais devastadora.

– Por isso, podemos dar um basta? – Lizzie perguntou ao partir para o vaso seguinte. – Isso não é da minha conta.

– Por que não fiquei com ela? – Ele se inclinou para a frente. – Já que tem tudo resolvido, por que não fiquei com ela? Por que fiquei afastado por quase dois anos? E se eu queria ter um filho com ela, por que ela não engravidou de novo depois que perdeu o primeiro?

Lizzie balançou a cabeça e o encarou.

– Que parte do “não é da minha conta” você não entendeu?

E foi nesse instante que ele avançou.

Assim como no primeiro beijo deles no jardim, no escuro, no calor do verão, ele foi tomado por emoções descontroladas ao se apossar da boca dela, por um instinto que ele não conseguia combater. Num momento, eles estavam discutindo; no seguinte, ele estava bem perto, segurando-a pela nuca e beijando-a com avidez.

E, assim como antes, ela retribuiu o beijo.

No entanto, da parte dela não foi paixão. Ele tinha quase certeza de que, para ela, o encontro das bocas não passava de uma extensão do conflito entre eles, uma discussão verbal tornando-se não verbal.

Lane não se importou. Ele a aceitaria de qualquer jeito.

 

CONTINUA

Charlemont, Kentucky
Uma névoa pairava sobre as águas preguiçosas de Ohio como um sopro de Deus, e as árvores às margens da estrada River do lado de Charlemont tinham tantas nuances de verde que a cor exigia um sexto sentido para absorvê-las todas. Acima, o céu era de um azul-claro leitoso, o tipo de coisa que você via no norte apenas no mês de julho. Às sete e meia da manhã, a temperatura já passava dos vinte graus.
Era a primeira semana de maio. Os sete dias mais importantes do calendário, superando o nascimento de Cristo, a independência americana e as comemorações do Ano-Novo.
A 139a disputa do Derby de Charlemont aconteceria no sábado.
O que significava que todo o Estado do Kentucky estava imerso na loucura das corridas de cavalos puros-sangues.
Lizzie King se aproximava de seu trabalho, sentindo a forte descarga de adrenalina que a vinha acompanhando nas últimas três semanas. Ela sabia, por experiência prévia, que aquela agitação não se apaziguaria até a limpeza do sábado à tarde. Pelo menos estava indo, como de hábito, contra o fluxo que seguia para o centro da cidade, e chegaria rapidamente. Ela levava quarenta minutos em cada trajeto, mas isso não se comparava à hora do rush de Nova York, Boston ou Los Angeles, o que, no seu atual estado de espírito, faria com que seu cérebro explodisse como uma bomba nuclear. Não, o seu caminho para o trabalho consistia em vinte e oito minutos de paisagens rurais em Indiana, seguido de seis minutos de retardo em pontes e entroncamentos, completado por seis a dez minutos de tráfego ao longo do rio, contra a corrente.
Às vezes, ela pensava que os únicos carros que seguiam na mesma direção eram do restante dos funcionários que trabalhavam em Easterly junto dela.
Ah, sim, Easterly.

 


https://img.comunidades.net/bib/bibliotecasemlimites/OS_REIS_DO_BOURBON.jpg

 


A Propriedade da Família Bradford, ou PFB, como vinha escrito nas notas de entrega, estava fincada na parte mais alta da área metropolitana de Charlemont, e abrangia a casa principal de 1 800 metros quadrados, três jardins formais, duas piscinas e uma visão de trezentos e sessenta graus do condado de Washington. Também havia doze chalés de serventes, dez construções externas, uma fazenda ativa de mais de 8 000 hectares, um estábulo para vinte cavalos, que fora convertido num escritório, e um campo de golfe com nove buracos. O campo era iluminado para o caso de você querer praticar as suas tacadas à uma da madrugada.

Até onde ela sabia, o enorme terreno fora concedido à família em 1778, depois que o primeiro Bradford chegara ao sul, vindo da Pensilvânia com o então coronel George Rogers Clark, trazendo tanto a sua ambição quanto a sua tradição na fabricação do bourbon. Quase duzentos e cinquenta anos depois, eles possuíam uma mansão ao estilo Federal1 do tamanho de uma cidade pequena no alto da colina e cerca de setenta e duas pessoas trabalhando na propriedade em meio período ou período integral.

Todos seguiam regras feudais e um rígido sistema de castas, retirado diretamente de Downton Abbey.

Ou talvez a rotina da Condessa Viúva de Grantham fosse um pouco progressista demais.

Provavelmente a época de Guilherme, o Conquistador, fosse algo mais próximo.

Então, por exemplo – e isso seria apenas uma conjectura de cinema – se uma jardineira se apaixonasse por um dos preciosos filhos da família? Mesmo que ela fosse uma das horticultoras-chefes e tivesse reputação nacional e um mestrado de Cornell em paisagismo?

Isso não seria aceitável.

Sabrina sem um final feliz, meu bem.

Xingando, Lizzie ligou o rádio na esperança de fazer seu cérebro se calar. Mas não foi muito longe. Seu Toyota Yaris tinha alto-falantes dignos da Barbie: a música supostamente deveria sair pelos pequenos círculos nas portas do automóvel, mas o sistema de som era quase de fachada e, neste dia, a música que vazava daquelas coisinhas simplesmente não era suficiente…

O som de uma ambulância se aproximando a toda velocidade por trás dela superou com muita facilidade a conversa da BBC News. Ela pressionou o freio e foi para o acostamento. Depois que a sirene e as luzes sumiram à distância, ela voltou para a estrada e fez a curva aberta ao longo do rio e da estrada… E lá estava a enorme mansão branca dos Bradford, bem no alto, o sol nascente sendo obrigado a se espalhar ao redor da simétrica e magnífica construção.

Ela crescera em Plattsburgh, no Estado de Nova York, num pomar de maçãs.

O que diabos tinha pensado quase dois anos atrás quando permitira que Lane Baldwine, o filho mais novo, entrasse em sua vida?

E por que ainda estava ali, depois de todo esse tempo, refletindo sobre aqueles detalhes?

Porque, sejamos sinceros, ela não era a primeira mulher que fora seduzida por ele…

Lizzie franziu a testa e se inclinou sobre o volante.

A ambulância que a ultrapassara estava indo para a parte de trás da colina da PFB, com suas luzes vermelhas e brancas girando ao longo da alameda de bordos.

– Ah, meu Deus – sussurrou.

Rezou para que não fosse quem ela pensava.

Ela não podia ser tão azarada assim.

E não era lamentável que isso fosse a primeira coisa a lhe passar pela mente? Ela não devia estar preocupada com quem quer que estivesse machucado/doente/desmaiado?

Passando pelos portões de ferro – com o monograma da família – que estavam para se fechar, Lizzie virou a primeira à direita uns trezentos metros mais adiante.

Como empregada, ela tinha que usar a entrada de serviço. Sem desculpas, sem exceções.

Por que Deus não permitiria que um veículo com valor inferior a uma centena de milhares de dólares fosse visto diante da casa?

Puxa, estava ficando azeda, concluiu. E, depois do Derby, precisaria tirar umas férias antes que as pessoas pensassem que ela estava enfrentando a menopausa uma década antes do previsto.

A máquina de costura debaixo do capô do Yaris rugiu quando ela desceu pelo caminho que dava a volta até a base da colina. Passou pelos campos de milho; o esterco já estava espalhado e revolvido na preparação do plantio. Em seguida, passou pelos jardins bem podados, com suas primeiras plantas perenes e anuais; os topos das peônias eram fofos como bolas de algodão, não muito mais escuras que o rubor nas faces de uma menina inocente. Depois, havia os orquidários e as estufas, seguidas pelos prédios externos com os equipamentos de fazenda e jardinagem, e então a fileira de chalés dos anos 1950, de dois e três dormitórios.

Eram tão variados e cheios de estilo quanto um par de latas de açúcar e de farinha de trigo sobre um balcão de fórmica.

Chegando ao estacionamento dos funcionários, parou o carro e saiu, deixando sua caixa térmica, o chapéu e a bolsa com o protetor solar para trás.

Apressando-se para a salinha do prédio principal, entrou na caverna com cheiro de gasolina e óleo pela baia aberta à esquerda. O escritório de Gary McAdams, o chefe da manutenção, ficava ao lado, com as portas de vidro jateadas ainda translúcidas o bastante para indicar que as luzes estavam acesas e que havia alguém lá dentro.

Ela não se deu ao trabalho de bater. Empurrando a porta, ignorou o calendário da Pirelli com mulheres praticamente nuas.

– Gary…

O homem de sessenta e dois anos acabava de colocar o telefone no gancho com sua mão de urso. Seu rosto curtido de sol, com sua pele de casca de árvore, estava mais sério do que ela jamais vira. Quando ele a fitou por sobre a mesa bagunçada, ela entendeu para quem era a ambulância antes mesmo que ele dissesse o nome.

Lizzie levou as mãos ao rosto e se recostou no batente.

Claro que lamentava pela família, mas seria impossível não personalizar a tragédia e querer vomitar em algum lugar.

O homem que nunca mais queria ver na vida… estava voltando para casa.

Ela podia muito bem disparar um cronômetro.

 

Nova York, NY

– Vamos lá… sei que você me quer.

Jonathan Tulane Baldwine olhou para o quadril que estava apoiado ao lado da sua pilha de fichas de pôquer.

– Aumentem as apostas, rapazes.

– Estou falando com você. – Um par de seios falsos parcialmente cobertos apareceu sobre o leque de cartas na mão dele. – Oooiii.

Hora de fingir interesse em alguma outra coisa, qualquer outra coisa, pensou Lane. Uma pena que o apartamento de um quarto em Midtown fosse de solteiro, decorado com apenas o estritamente funcional. E por que se dar ao trabalho de olhar para os rostos do que restava dos seis bastardos com quem começara a jogar pôquer oito horas antes? Nenhum deles se mostrou à altura de nada além de simplesmente cobrir apostas altas.

Decifrar as pistas deixadas por eles só para escapar não valia o cansaço dos olhos às sete e meia da manhã.

– Ooooiiii…

– Desista, meu bem, ele não está interessado – alguém murmurou.

– Todos se interessam por mim.

– Ele não. – Jeff Stern, o anfitrião e seu colega de apartamento jogaram fichas equivalentes a mil dólares. – Não é mesmo, Lane?

– Você é gay? Ele é gay?

Lane passou a rainha de copas para o lado do rei de copas. Colocou o valete ao lado da rainha. Quis empurrar aqueles seios falsos e aquela boca grande para o chão.

– Dois de vocês não cobriram a aposta.

– Estou fora, Baldwine. Está alto demais para mim.

– Estou dentro, se alguém me emprestar mil.

Jeff olhou por sobre a mesa de feltro verde e sorriu.

– Somos você e eu, mais uma vez, Baldwine.

– Mal posso esperar para arrancar o seu dinheiro. – Lane fechou as cartas. – A aposta é sua…

A mulher voltou a se inclinar.

– Adoro o seu sotaque sulista.

Os olhos de Jeff se estreitaram por trás da armação transparente dos óculos.

– É melhor desistir, garota.

– Não sou idiota – ela disse arrastado. – Sei exatamente quem você é e quanto dinheiro você tem. Bebo do seu bourbon…

Lane se recostou e se dirigiu para o imbecil que trouxera o acessório falante.

– Billy? Fala sério?

– Tá bom. Tá bom. – O cara que queria aumentar seu débito em mil dólares se levantou. – O sol já está nascendo mesmo. Vamos embora.

– Ei, eu quero ficar…

– Não, já chega. – Billy levou a loira burra com autoestima inflada pelo braço e a acompanhou até a porta. – Eu te levo pra casa. E não, ele não é quem você está pensando. Até mais, bundões.

– É sim. Vi nas revistas…

Antes que a porta se fechasse, o outro cara que fora depenado também se levantou.

– Também vou. Me lembrem de nunca mais jogar com vocês dois.

– Não vou fazer isso – Jeff disse ao erguer a palma. – Mande um olá pra sua esposa.

– Você mesmo pode fazê-lo quando nos encontrarmos no Sabbath.

– De novo?

– Toda sexta-feira. E se você não gosta, por que fica aparecendo na minha casa?

– Comida grátis. Simples assim.

– Como se você precisasse de esmola.

Então ficaram sozinhos. Com o equivalente a 250 mil dólares em fichas de pôquer, dois baralhos e um cinzeiro cheio de bitucas de cigarro, e nenhuma loira burra.

– É a sua vez – disse Lane.

– Acho que ele quer se casar com ela – murmurou Jeff, jogando mais fichas no meio da mesa. – Billy, quero dizer. E aqui estão vinte mil.

– Então ele deveria ter a cabeça examinada. – Lane cobriu a aposta do seu velho amigo da fraternidade, e depois dobrou o valor. – Patético. Os dois.

Jeff abaixou as cartas.

– Deixa eu te perguntar uma coisa.

– Nada que seja muito difícil. Estou bêbado.

– Você gosta delas?

– Das fichas de pôquer? – Ao fundo, um celular começou a tocar. – Claro que sim. Por isso, se não se importar em colocar algumas mais…

– Não. Mulheres.

Lane ergueu os olhos.

– Como é?

O seu amigo mais antigo apoiou um cotovelo na mesa e se inclinou. A gravata fora arrancada no começo do jogo, e sua outrora camisa branca e engomada agora estava tão maleável quanto uma camiseta polo. Os olhos, contudo, estavam tragicamente alertas e concentrados.

– Você me ouviu. Olha só, sei que não é da minha conta, mas quando foi mesmo que você apareceu aqui? Uns dois anos atrás? Você mora no meu sofá, não trabalha… coisa que até entendo, por causa da sua família. Mas não existe nenhuma mulher, nenhuma…

– Pare de pensar, Jeff.

– Estou falando sério.

– Então aposte.

O celular se calou. Mas seu amigo não.

– A Universidade da Virgínia ficou pra trás há muito tempo. Muita coisa pode mudar.

– Pelo visto, não se ainda estou no seu sofá…

– O que aconteceu com você, cara?

– Morri enquanto esperava você aumentar a aposta ou desistir.

Jeff resmungou, formando uma pilha azul e vermelha e a jogando no meio da mesa.

– Mais vinte mil.

– É assim que eu gosto. – O celular começou a tocar de novo. – Cubro. E ponho mais cinquenta se você calar a boca.

– Tem certeza de que quer fazer isso?

– Calar a sua boca? Tenho.

– Ser agressivo no pôquer com um investidor de bancos como eu. Clichês existem por um motivo: sou ganancioso e ótimo com números. Ao contrário do seu pessoal.

– O meu pessoal?

– Pessoas como vocês, os Bradford, não sabem ganhar dinheiro. Vocês foram treinados para gastar. Agora, ao contrário dos amadores, a sua família tem, de fato, um fluxo financeiro, ainda que isso o impeça de aprender qualquer coisa. Portanto, não sei se, a longo prazo, vai ser uma vantagem.

Lane refletiu sobre os motivos que o levaram a abandonar Charlemont de uma vez por todas.

– Aprendi muita coisa, acredite em mim.

– E agora você está me parecendo amargo.

– Você está me entediando. Era pra eu gostar disso?

– Por que nunca vai pra casa no Natal? No dia de Ação de Graças? Na Páscoa?

Lane abaixou as cartas, pousando-as sobre o feltro.

– Não acredito mais no Papai Noel nem no Coelhinho da Páscoa, cacete. E peru é superestimado. Qual é o seu problema?

Pergunta errada. Ainda mais depois de uma noite de jogatina e bebedeira. Ainda mais para um cara como Stern, que era categoricamente incapaz de ser outra coisa que não absolutamente honesto.

– Odeio que você seja tão sozinho.

– Você só pode estar de brincadeira…

– Sou um dos seus amigos mais antigos, não sou? Se eu não te disser, quem vai dizer? Não fique irritadinho comigo. Você escolheu um judeu nova-iorquino, e não um dos milhares de sulistas amantes de frango frito metidos a besta daquela faculdade ridícula pra ser o seu eterno colega de quarto. Por isso, vá se foder.

– Vamos terminar esse jogo?

O olhar perspicaz de Jeff se estreitou.

– Responda uma coisa.

– Sim, estou me perguntando por que não pensei em ficar com o Wedge ou o Chenoweth agora mesmo.

– Rá. Você não suportava nenhum dos dois por mais de um dia. A menos que estivesse bêbado, o que, de fato, você tem estado nos últimos três meses e meio. E essa é outra coisa que me incomoda.

– Aposte. Agora. Pelo amor de Deus.

– Por que…

Quando o celular começou a tocar pela terceira vez, Lane se levantou e atravessou a sala. Em cima do balcão do bar, ao lado da sua carteira, a tela estava iluminada. Nem se deu ao trabalho de ver quem era.

Atendeu à chamada porque as alternativas eram isso ou cometer homicídio.

A voz masculina com sotaque sulista do outro lado da linha disse quatro palavras: sua mãe está morrendo.

Enquanto o significado penetrava em sua consciência, tudo se desestabilizou à sua volta; as paredes começaram a se fechar ao seu redor, o chão ondulou, o teto caiu em sua cabeça. As lembranças não só voltaram, mas o atacaram, e o álcool em seu sistema não fez nada para reduzir o impacto.

Não, ele pensou. Não agora. Não esta manhã.

Haveria uma hora certa?

“Jamais” era a única opção aceitável para ele.

De longe, ele se ouviu dizendo:

– Chego antes do meio-dia.

E desligou.

– Lane? – Jeff se pôs de pé. – Ai, merda, não desmaie. Tenho que estar na Eleven Wall dentro de uma hora e ainda preciso tomar um banho.

De uma vasta distância, Lane viu sua mão se esticar e apanhar a carteira. Colocou-a no bolso da calça junto do celular e seguiu para a porta.

– Lane! Pra onde você vai, cacete?

– Não espere por mim – ele respondeu ao abrir a porta para sair.

– Quando você vai voltar? Ei, Lane? Mas que diabos!

Seu bom e velho amigo ainda falava quando ele saiu, deixando a porta se fechar sozinha. No fim do corredor, empurrou o portão de aço e começou a trotar escada abaixo. Enquanto suas passadas ecoavam no piso de concreto e ele fazia curva após curva, ligou para um número conhecido.

Quando atenderam, ele disse:

– Lane Baldwine. Preciso de um jatinho em Teterboro agora, vou para Charlemont.

Houve uma pequena pausa, em seguida a assistente executiva do seu pai voltou a falar: – Senhor Baldwine, temos um jatinho disponível. Falei diretamente com o piloto. O plano de voo está sendo preenchido enquanto conversamos. Assim que chegar ao aeroporto, siga para…

– Sei onde fica o nosso terminal. – Chegou ao saguão de mármore, acenou para o porteiro e passou pelas portas giratórias. – Obrigado.

Uma rapidinha, disse a si mesmo ao desligar e chamar um táxi. Com um pouco de sorte, estaria de volta a Manhattan ao cair do dia, entediando Jeff à noite. Meia-noite, pelo menos.

Umas dez horas. Quinze, no máximo.

Ele tinha que ir ver a mãe. Era isso o que os rapazes do sul faziam.


"Estilo Federal" é uma tendência arquitetônica e decorativa que se aplica a edificações e mobiliário. Popularizou-se nos EUA durante os séculos XVIII e XIX e conta com traços neoclássicos. (N. E.)

 

DOIS

Três horas, vinte e dois minutos e alguns segundos mais tarde, Lane olhava para fora da janela oval do novíssimo jatinho corporativo Embraer Lineage 1000E da Cia. Bourbon Bradford. Abaixo, a cidade de Charlemont estava disposta como um diorama de Lego, com suas seções ricas e pobres, comerciais e agrícolas, com fazendas e estradas dispostas no que parecia ser apenas duas dimensões. Por um instante, tentou visualizar a terra como fora quando sua família ali chegara em 1778.

Florestas. Rios. Americanos nativos. Vida selvagem.

Seu povo viera da Pensilvânia atravessando Cumberland Gap duzentos e cinquenta anos antes, e agora ali estava ele, a dez mil pés de altura, circundando a cidade junto com outros cinquenta e tantos outros caras em suas várias aeronaves.

Só que ele não estava ali para apostar em cavalos, se embebedar e fazer sexo.

– Posso servir mais no 15 antes de aterrissarmos, senhor Baldwine? Lamento, mas estamos numa fila de espera. Pode demorar um pouco até pousarmos.

– Obrigado. – Sorveu o que restava em seu copo de cristal. Os cubos de gelo escorregaram e bateram em seu lábio superior. – Você não poderia ter chegado em melhor hora.

Ok, talvez ele acabasse bebendo um pouco.

– É um prazer.

Quando a mulher na saia de uniforme se afastou, olhou por sobre o ombro para ver se ele a estava encarando. Seus olhos azuis reluziam debaixo dos cílios postiços.

A vida sexual dele há muito passara a depender da bondade de tais desconhecidas. Especialmente de loiras como ela, com pernas como aquelas, e quadris como aqueles, e seios como aqueles.

Mas não mais.

– Senhor Baldwine – o capitão informou pelo alto-falante –, quando descobriram que se tratava do senhor, eles nos adiantaram na fila, por isso estamos aterrissando agora.

– Quanta gentileza a deles – murmurou Lane quando a comissária de bordo retornou.

O modo como ela abriu a garrafa lhe deu uma pista de como ela desceria o zíper da calça de um homem; seu corpo todo se dedicava à libertação da rolha. Em seguida, ela se inclinou para servi-lo, encorajando-o a dar uma espiada em sua lingerie La Perla.

Tamanho desperdício de esforços.

– Assim está bom. – Ergueu a mão. – Obrigado.

– Posso ajudá-lo com mais alguma coisa?

– Não, obrigado.

Pausa. Como se ela não estivesse acostumada a receber um não como resposta, e quisesse lembrá-lo de que dispunham de pouco tempo.

Depois de um instante, ela ergueu o queixo.

– Pois não, senhor.

Era o modo dela de mandá-lo para o inferno: jogando o cabelo para trás e se afastar com um rebolado, balançando o que havia debaixo daquela saia como se segurasse um gato pelo rabo e tivesse um alvo para acertar.

Lane ergueu o copo e girou o seu no 15. Nunca se envolvera nos negócios da família, isso era trabalho do seu irmão mais velho, Edward. Ou, pelo menos, fora trabalho dele. Mas, mesmo como um mero espectador, Lane conhecia o apelido do produto mais vendido da Cia. Bourbon Bradford: no 15, o elemento principal da linha de produção, vendido em quantidades tão grandes que era chamado de A Grande Borracha – porque seu lucro era tão gigantesco que o dinheiro poderia eclipsar o prejuízo de qualquer erro corporativo interno ou externo, qualquer cálculo indevido ou recessão no mercado.

Enquanto o jato se preparava para a aterrissagem, um raio de sol atravessou a janela oval, caindo sobre a mesinha dobrável de nogueira falsa, o couro cor de creme do banco, o azul do seu jeans, a fivela de latão dos seus mocassins Gucci.

E depois atingiu o no 15 em seu copo, ressaltando as nuances de rubi do líquido âmbar. Ao sorver mais um gole pela borda de cristal, sentiu o calor do sol sobre o dorso da mão e a frieza do gelo nas pontas dos dedos.

Algum estudo feito recentemente divulgou que a indústria do bourbon tinha receitas anuais na casa dos 3 bilhões de dólares. Desse total, a CBB detinha mais de um quarto, quase um terço do total. Havia outra empresa no Estado, maior que eles – a odiada Destilaria Sutton Corporation – e, depois disso, uns outros oito ou dez produtores. Mas a CBB era o diamante em meio a outras pedras semipreciosas, a escolha dos bebedores de paladar mais apurado.

Como um consumidor leal, ele tinha que concordar com tal tendência.

Uma alteração no nível de bourbon em seu copo anunciou a aterrissagem, e ele relembrou a primeira vez que experimentara o produto da família.

Considerando-se o que acontecera, ele deveria ter se transformado num abstêmio.

– É noite de Ano-Novo, vamos. Não seja medroso.

Como de costume, foi Maxwell quem começou a festa. Dos quatro filhos, Max era o encrenqueiro, com Gin, a caçula, ocupando o segundo lugar na recalcitrante escala Richter. Edward, o mais velho e mais austero deles, não fora convidado para a festa; e Lane, que estava mais ou menos no meio, tanto em termos de ordem de nascença quanto na probabilidade de ser preso ainda em idade juvenil, fora forçado àquela excursão porque Max odiava aprontar sem ter público – e meninas não contavam para ele.

Lane sabia que era uma péssima ideia. Se iam beber álcool, deveriam pegar uma garrafa da despensa e subir para os quartos, onde não havia a mínima possibilidade de serem apanhados. Mas beber assim, às vistas de qualquer um, na sala de estar? Debaixo do olhar desaprovador do quadro de Elijah Bradford sobre a cornija da lareira?

Idiotice…

– Então, quer dizer que não vai beber nada, Lame?2

Ah, sim. O apelido predileto de Max para ele.

No alaranjado das luzes externas de segurança, Max o fitou do alto com uma expressão de tamanho desafio que seu olhar poderia muito bem estar acompanhado de uma faixa de largada e uma pistola, usados nas pistas de corrida.

Lane relanceou para a garrafa que o irmão segurava. O rótulo indicava um dos requintados, com as palavras “Reserva de família” em letras rebuscadas.

Se ele não fizesse aquilo, eles nunca o deixariam em paz.

– Só quero um copo – disse ele. – Um copo apropriado. Com gelo.

Porque era assim que o pai deles bebia. E era a única explicação varonil para a sua demora.

Max franziu a testa, como se considerasse a questão da apresentação.

– Tudo bem.

– Não preciso de um copo. – Gin, que contava com sete anos, estava com as mãos nos quadris e os olhos fixos em Max. Dentro da sua camisolinha de renda, ela parecia a Wendy do Peter Pan. Com aquela expressão agressiva no rosto, ela era praticamente uma lutadora profissional. – Preciso de uma colher.

– Uma colher? – Max perguntou, surpreso. – Do que está falando?

– É remédio, não é?

Max lançou a cabeça para trás e gargalhou.

– Mas o que…

Lane cobriu a boca do irmão.

– Cala a boca! Quer ser apanhado?

Max se livrou da mão dele.

– O que eles vão fazer comigo? Bater?

Bem, sim, se o pai deles os visse ou ficasse sabendo daquilo. Ainda que o grande William Baldwine delegasse a maior parte das atribuições paternas para outras pessoas, o cinto era ele quem empunhava.

– Espere um instante, você quer ser apanhado – Lane disse com suavidade. – Não quer?

Max se virou para o carrinho de bebidas de vidro e latão. O aparador ornamental era uma antiguidade, assim como a maioria das coisas em Easterly, e o brasão da família estava entalhado nos quatro cantos. Com suas rodas finas e grandes e sua bandeja de cristal, era o anfitrião da casa, amparando quatro tipos diferentes de bourbon Bradford, meia dúzia de copos de cristal e um balde de gelo de prata que constantemente era reabastecido pelo mordomo.

– Aqui está o seu copo. – Max o empurrou na direção de Lane. – Vou beber direto da garrafa.

– Onde está a minha colher? – Gin perguntou.

– Pode tomar um gole do meu – Lane sussurrou.

– Não. Quero o meu…

O debate foi interrompido quando Max empurrou a rolha e o projétil saiu voando, batendo no candelabro no meio da sala. O cristal sacudiu, fez barulho e os três ficaram imobilizados.

– Calados – ordenou Max, antes que fizessem qualquer comentário. – E nada de gelo pra você.

O bourbon fez um barulho gorgolejante enquanto seu irmão o derramava no copo de Lane, só parando quando a taça estava tão cheia quanto seu copo de leite durante as refeições.

– Agora beba tudo – Max lhe disse ao levar a garrafa à boca, inclinando a cabeça para trás.

A encenação de cara durão só durou o tempo da primeira golada; Max começou a tossir tão alto que poderia despertar os mortos. Deixando que o irmão se engasgasse ou morresse na tentativa de se recuperar, Lane ficou olhando para o próprio copo.

Levou o cristal até a boca, e deu um gole cuidadoso.

Fogo. Era como se estivesse engolindo fogo, e uma trilha ardeu-lhe até o estômago. Soltou um xingamento, meio que esperando ver labaredas saindo do seu rosto, como se fosse um dragão.

– Minha vez – Gin disse.

Ele segurou o copo, não permitindo que ela o pegasse. Nesse meio-tempo, Max tomava o segundo e o terceiro goles.

Gin mal tocou no líquido, apenas umedeceu os lábios, e se retraiu revelando seu desgosto.

– O que estão fazendo?

Quando a luz do candelabro foi acesa, os três deram um salto. Lane derrubou o bourbon do seu copo no pijama de monograma.

Edward estava parado perto da porta com um olhar de fúria absoluta no rosto.

– O que diabos há de errado com vocês? – ele disse, marchando e tirando o copo das mãos de Lane e a garrafa de Max.

– Só estávamos brincando – murmurou Gin.

– Vá pra cama, Gin. – Ele colocou o copo no carrinho e apontou para a porta com a garrafa. – Vá pra cama agora.

– Hum… Por quê?

– A menos que queira que eu chute o seu traseiro também.

Até mesmo Gin sabia respeitar aquela lógica.

Enquanto ela avançava para o arco da entrada, com os ombros pensos e chinelos arrastando sobre o tapete oriental, Edward sibilou: – E use a escada da criadagem. Se papai ouvir alguma coisa, vai descer pela da frente.

O coração de Lane disparou. E seu estômago ardeu. Não sabia se por terem sido flagrados ou por causa do bourbon.

– Ela tem sete anos – Edward disse depois que Gin se afastou. – Sete!

– Sabemos quantos anos ela tem…

– Cale a boca, Max. Apenas cale a boca. – Ele encarou Max de cima. – Se quer se corromper, não me importo. Mas não contamine os dois com as suas idiotices.

Palavras grandes. Xingamentos. E a conduta de alguém que poderia colocar os dois de castigo.

Pensando bem, Edward sempre parecera adulto, mesmo antes de chegar à adolescência.

– Não tenho que ficar aqui te escutando – Max replicou. Mas o espírito de combate já começava a abandoná-lo; sua língua estava frouxa, seus olhos caíam para o tapete.

– Tem, sim.

Então as coisas se acalmaram.

– Sinto muito – disse Lane.

– Não estou preocupado com você. – Edward meneou a cabeça. – É ele quem me preocupa.

– Peça desculpas – Lane sussurrou. – Vamos, Max.

– Não.

– Ele não é o papai, você sabe.

Max encarou Edward.

– Mas age como se fosse.

– Só porque você está descontrolado.

Lane pegou Max pela mão.

– Ele também sente muito, Edward. Venha, vamos antes que alguém nos ouça.

Ele precisou fazer um pouco mais de força, porém, no fim, Max o acompanhou sem mais nenhum comentário: a briga tendo terminado, o lance de independência fora lançado. Estavam na metade do piso de mármore preto e branco do vestíbulo pouco iluminado quando Lane percebeu algo no fim do corredor.

Alguém se movimentava nas sombras.

Alguém grande demais para ser Gin.

Lane puxou o irmão para a total escuridão do salão de baile do lado oposto.

– Shhh.

Através do arco da sala de estar, ele viu quando Edward se virou para o carrinho à procura da rolha e quis alertar o irmão…

Quando o pai deles entrou, o corpo alto de William Baldwine bloqueou a vista de Edward.

– O que está fazendo?

As mesmas palavras, o mesmo tom, grave e profundo.

Edward se virou com tranquilidade, com a garrafa na mão. O copo quase cheio de Lane estava bem no meio do carrinho.

– Responda – o pai ordenou. – O que está fazendo?

Ele e Max estavam mortos, pensou Lane. Assim que Edward contasse ao homem o que eles estavam fazendo ali embaixo, William explodiria.

Ao lado de Lane, Max tremia.

– Eu não devia ter feito isso… – sussurrou ele.

– Onde está o seu cinto? – Edward replicou.

– Responda.

– Fui eu. Onde está o cinto?

Não!, Lane pensou. Não, fomos nós!

O pai deles avançou, o roupão de seda com monograma reluzindo na luz, cor de sangue fresco.

– Maldição, garoto! Me diga o que está fazendo aqui com as minhas bebidas.

– O nome é Bourbon Bradford, pai. O senhor se casou com a família, lembra?

Quando o pai ergueu o braço à frente do tronco, seu pesado anel de sinete de ouro da mão esquerda brilhou como se estivesse antecipando o golpe, ansioso pelo contato com a pele. Em seguida, com um movimento elegante e poderoso, Edward foi atingido com um tapa tão violento que o som ricocheteou até o salão de baile.

– Agora vou lhe perguntar mais uma vez: o que está fazendo com as minhas bebidas? – William exigiu saber enquanto Edward cambaleava de lado, amparando o rosto.

Depois de um instante de respiração laboriosa, Edward se endireitou. Seu pijama parecia vivo de tanto que seu corpo tremeu, mas ele permaneceu de pé.

Pigarreando, respondeu com voz grave:

– Estava comemorando o Ano-Novo.

Um rastro de sangue descia pela lateral do rosto dele, manchando a pele clara.

– Então não deixe que eu atrapalhe o seu divertimento. – O pai apontou para o copo de Lane. – Beba.

Lane fechou os olhos e quis vomitar.

– Beba.

Os sons de engasgo e de ânsia continuaram por uma eternidade enquanto Edward consumia quase um quarto da garrafa do bourbon.

– Não vomite, garoto – ameaçou o pai. – Não ouse…

Quando o jatinho sacolejou ao entrar em contato com a pista, Lane voltou do passado. Não se surpreendeu ao ver que o copo que segurava tremia, e não por causa da aterrissagem.

Depositando o no 15 na bandeja sobre a mesinha, enxugou a testa.

Aquela não fora a única vez que Edward fora punido no lugar deles.

E nem fora a pior das vezes. Não, a pior de todas acontecera quando ele já era adulto, e fizera tudo o que a educação torpe fracassara em conseguir.

Edward agora estava arruinado, e não apenas fisicamente.

Deus, existiam tantos motivos para Lane não querer voltar para Easterly. E nem todas eram por causa da mulher que ele amava, mas que perdera.

No entanto, tinha que confessar… Lizzie King estava no topo daquela extensa lista.


Em inglês, o apelido cria uma brincadeira com o nome do personagem, Lane, e a palavra “lame”, que pode significar perdedor, fraco, coxo, defeituoso ou careta.

 

TRÊS

Propriedade da Família Bradford, Charlemont

A estufa Amdega Machin era uma extensão da ala sul de Easterly e, como tal, nenhum custo fora poupado em sua construção, em 1956. A estrutura era uma obra-prima ao estilo gótico; seu esqueleto delicado de ossos pintados de branco suportavam centenas de painéis de vidro, criando um interior maior e mais bem-acabado que a casa de fazenda na qual Lizzie morava. Com piso de ardósia e uma área de descanso com sofás e poltronas de tecidos florais, havia flores e plantas ao longo das laterais, na altura dos quadris, e vasos em cada um dos cantos. Mas tudo isso era apenas para demonstração. O verdadeiro trabalho de horticultura, a germinação e a reabilitação, as podas e os cuidados, eram executados longe das vistas da família, em outras estufas.

– Wo sind die Rosen? Wir brauchen mehr Rosen…3

– Não sei. – Lizzie abriu outra caixa de papelão tão comprida quanto a perna de um jogador de basquete. Dentro dela, duas dúzias de talos de hidrângeas brancas estavam embaladas em plástico individualmente, as cabeças protegidas por delicados colares de papelão. – Este é o total da entrega, por isso elas devem estar aqui.

– Ich bestellte zehn weitere Dutzend. Wo sind sie…?4

– Tudo bem, agora chega de alemão.

– Não pode serr só isto. – Greta von Schlieber ergueu um punhado de flores rosa-claro minúsculas que estavam envolvidas numa página de um jornal colombiano. – Não vamos conseguirr.

– Você diz isso todos os anos.

– Desta vez, eu tenho razão. – Greta empurrou os pesados óculos com aro de tartaruga pelo nariz e fitou a pilha de outras vinte e cinco caixas. – Estou dizendo, estamos encrrencadas.

E… era essa a essência do relacionamento entre ela e sua colega de trabalho.

Começando com a rotina pessimista/otimista, Greta era basicamente tudo o que Lizzie não era. Para começar, a mulher era europeia, não americana; o sotaque alemão era bem marcado em sua pronúncia, apesar de ela estar nos Estados Unidos havia trinta anos. Também era casada com um homem incrível, mãe de três filhos fantásticos na casa dos vinte anos e tinha dinheiro suficiente para que não apenas não tivesse que trabalhar, como seus dois rapazes e sua moça também não.

Nada de Yaris para ela. Ela dirigia uma perua Mercedes preta. E o anel de diamante que ela usava ao lado da aliança era grande o bastante para rivalizar com um dos Bradford.

Ah, e ao contrário de Lizzie, seu cabelo loiro era curto como o de um homem, o que era algo a invejar quando você tinha que prender o seu com o que quer que conseguisse ter à mão: cordinhas de saco de lixo, arames florais e elásticos que amarravam os brócolis.

A única coisa que tinham em comum? Nenhuma delas suportava ficar imóvel, desocupada ou ociosa por um segundo sequer. Vinham trabalhando lado a lado na PFB havia quase cinco anos – não, mais que isso. Seriam sete?

Oh, Deus, já estavam perto dos dez.

E Lizzie não conseguia visualizar uma vida sem aquela mulher, mesmo que, às vezes, Greta fosse o tipo que via o copo meio vazio em vez de meio cheio.

– Ich sage Ihnen, wir haben Schwierigkeiten.5

– Você acabou de repetir que estamos em apuros?

– Kann sein.6

Lizzie revirou os olhos, mas se deixou levar pela adrenalina, observando a linha de produção que tinham preparado: no fim da estufa de vinte metros de comprimento, uma fila dupla de mesas dobráveis estava formada e, sobre elas, setenta e cinco cubas de prata para buquês do tamanho de baldes de gelo.

O brilho era tão forte que Lizzie desejou não ter deixado os óculos escuros no carro.

E também desejou não ter que lidar com a situação, ciente que Lane Baldwine provavelmente estaria aterrissando no aeroporto naquele instante.

Como se ela precisasse também dessa pressão.

Conforme sua cabeça começava a latejar, tentou se concentrar no que podia controlar. Infelizmente, isso lhe deixava apenas se perguntando como ela e Greta preencheriam aqueles vasos com o equivalente a 50 mil dólares em flores entregues, mas que ainda precisavam ser desembaladas, inspecionadas, limpas, cortadas e arranjadas de maneira adequada.

Pensando bem, era a pressão que sempre a acometia nas quarenta e oito horas que precediam o Brunch do Derby.

Ou BD, como era chamado ali na propriedade.

Porque, sim, trabalhar em Easterly era o mesmo que estar no exército: tudo era reduzido, menos as horas de trabalho.

E, sim, apesar da ambulância daquela manhã, o evento ainda aconteceria. Como um trem que não parava para nada nem ninguém em seu caminho. Na verdade, ela e Greta costumavam dizer que, se eclodisse uma guerra nuclear, as únicas coisas que resistiriam depois que a nuvem de cogumelo se dissipasse seriam baratas, Twinkies… e o BD.

Deixando as piadas de lado, o Brunch era tão exclusivo e acontecia havia tanto tempo que tinha um nome próprio. As vagas na lista de convidados eram guardadas e passadas para a geração seguinte como herança. Era uma reunião de quase setecentas pessoas, composta pela elite financeira e política da cidade e da nação. Elas conversavam e se misturavam em meio aos jardins de Easterly, tomando julepos de menta e mimosas7 por apenas duas horas antes da partida para Steeplehill Downs, para o dia mais importante da corrida de cavalos e a primeira etapa da Tríplice Coroa do Turfe. As regras do Brunch eram simples e diretas: as damas tinham que usar chapéus, não eram permitidas fotografias, tampouco fotógrafos, e não importava se você viesse num Phantom Drophead ou numa limusine corporativa, todos os carros ficavam estacionados nos campos ao pé da colina, e todos chegavam nas vans que os conduziriam até a entrada da mansão.

Bem, quase todas as pessoas. As únicas que não precisavam pegar o transporte eram governadores e quaisquer presidentes que aparecessem, e o treinador-chefe da equipe masculina de basquete da Universidade de Charlemont.

No Kentucky, ou você era vermelho da UC, ou azul da Universidade do Kentucky, e o basquete era importante, quer você fosse rico ou pobre.

Os Bradford eram fãs dos Águias da UC. E era quase shakespeariano que seus rivais no negócio do bourbon, os Sutton, fossem todos Tigres da UK.

– Estou ouvindo você resmungar – Lizzie comentou. – Pense positivo. Vamos conseguir.

– Wir müssen alle Pfingstrosen zahlen8 – Greta anunciou ao abrir mais uma caixa de papelão. – No ano passado, eles nos entrregarram florres a menos.

Uma das portas duplas que dava para a casa foi aberta, e o senhor Newark Harris entrou como uma brisa fria. Com seu 1,67 metro de altura, ele parecia mais alto em seu terno e gravata pretos – mas, pensando bem, a ilusão talvez se devesse às sobrancelhas eternamente erguidas, e ao fato de ele sempre estar prestes a dizer “seu americano idiota” depois de tudo o que pronunciava. Fazendo um retrocesso na tradição centenária de um adequado criado inglês, ele não apenas nascera e fora criado em Londres, como também servira como criado de libré para a rainha Elizabeth no Palácio de Buckingham e, depois, como mordomo do príncipe Edward, conde de Wessex, em Bagshot Park. O pedigree da Casa de Windsor fora crucial para a sua contratação no ano anterior.

Por certo, não fora a sua personalidade.

– A senhora Baldwine está à beira da piscina. – Dirigiu-se a Lizzie. Greta, por sua nacionalidade alemã e por ainda ter um sotaque carregado, era persona non grata para ele. – Por favor, leve um buquê para ela. Obrigado.

E puf!, sumiu pela porta, fechando-a silenciosamente.

Lizzie cerrou os olhos. Havia duas senhoras Baldwine na propriedade, mas somente uma poderia estar fora do quarto, tomando sol à beira da piscina.

Um golpe duplo naquele dia, Lizzie pensou. Não só teria que ver seu antigo amante, agora teria que servir a esposa dele.

Fantástico.

– Ich hoffe, dass dem Idiot ein Klavier auf den Kopf fallt.9

– Você acabou de dizer que espera que um piano caia sobre a cabeça dele?

– E você diz que não entende alemão.

– Dez anos com você e eu estou chegando lá.

Lizzie relanceou ao redor para ver o que poderia usar da imensa entrega de flores. Depois que as caixas fossem abertas, as folhas precisariam ser arrancadas das hastes e as flores teriam que ser afofadas uma a uma para encorajar as pétalas a se abrirem, permitindo uma inspeção de qualidade. Ela e Greta não estavam nem perto daquele estágio ainda, mas o que a senhora Baldwine queria, ela tinha.

De muitas maneiras.

Quinze minutos de escolha, corte e arranjo, e Lizzie tinha montado um buquê razoável, enfiado numa espuma dentro de um vaso de prata.

Greta apareceu diante dela e estendeu as mãos, com aquele diamante enorme no dedo reluzindo.

– Deixe que eu levo.

– Não, pode deixar…

– Você não vai querrer lidar com ela hoje.

– Nunca quero lidar com ela.

– Lizzie.

– Estou bem. Sério.

Felizmente, sua velha amiga acreditou na mentira. A verdade? Lizzie estava longe de se sentir bem, ela sequer conseguia enxergar essa possibilidade, mas não significava que recuaria.

– Volto já.

– Estarrei contando as peônias.

– Tudo vai ficar bem.

Era o que esperava.

Enquanto Lizzie seguia para as portas duplas que davam para o jardim, sua cabeça começou a latejar de verdade, e ser atingida pelo calor e umidade do lado de fora não ajudou em nada. Motrin, pensou ela. Depois daquilo, ela tomaria quatro comprimidos e voltaria ao trabalho.

A grama estava cortada bem rente, mais parecida com um campo de golfe do que qualquer outra coisa que a Mãe Natureza tivesse imaginado. Apesar de ter muitas coisas em mente, ela fez uma lista mental de tarefas, como cuidar das moitas e do replantio nos dois hectares que compunham o jardim fechado. A boa notícia era que depois do início tardio da primavera, as árvores frutíferas vicejavam nos cantos do muro de tijolos, e as delicadas pétalas brancas começavam a cair como flocos de neve nos caminhos debaixo das copas. E a compostagem espalhada duas semanas antes perdera seu odor forte. Em um mês, os quatro cantos marcados pelas esculturas greco-romanas de mulheres em vestes e poses régias estariam todas rosadas e embranquecidas, em contraste com o verde e cinza tranquilizador do rio.

Mas, claro, agora tudo se tratava do Derby.

A casa de madeira branca da piscina ficava no canto à esquerda. Parecia o lar de uma família pequena e típica de médicos/advogados ao estilo colonial, atrás da piscina quase olímpica e seu azul-marinho. O caminho que ligava a casa à piscina era coberto por galhos de glicínias, que logo teriam flores brancas e lilases penduradas como lanternas caindo do emaranhado verde.

E debaixo da cobertura, estendida numa espreguiçadeira Brown Jordan, a senhora Chantal Baldwine era tão bela quanto uma inestimável estátua de mármore.

E continha o mesmo calor.

Sua pele era reluzente, graças ao spray bronzeador perfeitamente aplicado, seus cabelos loiros estavam artisticamente penteados e curvos nas pontas, e seu corpo provocaria complexo de inferioridade até em Rosie Huntington-Whiteley. As unhas eram postiças, mas perfeitas, nada de Jersey em seu tamanho e cor, e o anel de noivado e a aliança de casamento pareciam saídos da Town & Country, tão brancos e ofuscantes quando o sorriso dela.

Ela era a perfeita e moderna belle do sul, o tipo de mulher que as pessoas de Charlemont consideravam, aos sussurros, ser “de boa linhagem, apesar de ser da Virgínia”.

Lizzie sempre se perguntou se os Bradford verificavam os dentes das debutantes com quem seus filhos saíam – assim como se faz com cavalos puros-sangues.

– … desmaiou e a ambulância foi chamada. – A mão pesada devido ao diamante se ergueu e afastou uma mecha dos cabelos, em seguida passou o iPhone no qual falava com alguém para a outra orelha. – Levaram-na pela porta da frente. Dá para acreditar nisso? Eles deveriam tê-lo feito pela porta dos fundos… Ah, essas são adoráveis!

Chantal Baldwine levou a mão à frente da boca, numa postura de gueixa, enquanto Lizzie carregava as flores até a bancada de mármore do bar, colocando-as na ponta que não estava diretamente exposta ao sol.

– Newark fez isso? Ele é tão atencioso.

Lizzie assentiu e se virou para sair. Quanto menos tempo desperdiçasse ali, melhor.

– Ah, Lisa, você poderia…

– É Lizzie. – Ela parou. – Posso ajudá-la com mais alguma coisa?

– Você faria a gentileza de me trazer mais disto? – A mulher apontou para um jarro pela metade. – O gelo derreteu e ficou aguado. Vou almoçar no clube, mas só daqui a uma hora. Muito obrigada.

Lizzie desviou o olhar para a limonada e tentou, tentou mesmo – tinha Deus como testemunha – não se imaginar afogando a mulher naquela coisa.

– Avisarei o senhor Harris para que ele mande alguém…

– Ah, mas ele é muito ocupado. E você mesma pode dar um pulo lá dentro… Você é tão prestativa. – A mulher voltou ao iPhone com a capinha da Universidade de Charlemont. – Onde eu estava? Ah, então, eles a levaram pela porta da frente. Quero dizer, com toda a sinceridade, consegue imaginar?

Lizzie se aproximou, pegou o jarro e voltou a cruzar o terraço branco na direção do gramado.

– Será um prazer.

Será um prazer.

Ah, sim, e como. Mas era isso o que você devia dizer quando alguém da família lhe pedia alguma coisa. Era a única resposta aceitável. E certamente melhor que “Que tal se eu pegar essa limonada e enfiá-la onde o sol não alcança, sua miserável filha de uma…?”.

– Ah, Lisa! Virgem, ok? Obrigada.

Lizzie apenas continuou em frente, lançando mais uma granada de “Será um prazer” por sobre o ombro.

Aproximando-se da mansão, teve que escolher sua via de entrada. Como membro do staff, não tinha permissão de entrar pelas quatro entradas principais: a da frente, a lateral da biblioteca, a dos fundos da sala de jantar e a dos fundos da sala de jogos. E era “desencorajada” a usar outras portas que não as da cozinha e da sala de utensílios, ainda que tivesse permissão se estivesse fazendo as três distribuições semanais de buquês pela casa.

Escolheu a porta que estava no meio do caminho entre a sala de jantar e a cozinha porque se recusava a dar toda a volta até a entrada de funcionários. Pisando no interior fresco, manteve a cabeça abaixada, não porque se preocupasse em irritar alguém, mas porque tinha esperanças e rezava para entrar e sair sem ser flagrada por…

– Fiquei pensando se a encontraria hoje aqui.

Lizzie congelou como um ladrão pego em flagrante e sentiu lágrimas ameaçando cair nos cantos dos olhos. Mas não iria chorar.

Não diante de Lane Baldwine.

E não por causa dele.

Aprumando os ombros, ergueu o queixo… e começou a se virar.

Antes de se deparar com os olhos de Lane pela primeira vez desde que o mandara para o inferno ao fim do relacionamento deles, Lizzie entendeu três coisas: um, sua aparência seria exatamente a mesma de antes; dois, isso não seria uma boa notícia para ela; e três, se tivesse um pouco de cérebro dentro da cabeça, colocaria aquilo que ele lhe fizera quase dois anos antes em autolooping e não pensaria em nada mais.

Autoconfiança, um lugar agradável…

Ah, merda, ele ainda tinha que ser assim tão bonito?

Lane não se lembrava muito da experiência de entrar em Easterly pela primeira vez desde o que o parecia ser uma eternidade.

Nada ficou muito registrado. Não a imponente porta de entrada com suas aldravas em forma de cabeça de leão e seu painel preto reluzente. Não o vestíbulo do tamanho de um campo de futebol e todos os quadros a óleo dos Bradford do passado e do presente. Não o candelabro de cristal ou os candeeiros de ouro, nem os tapetes orientais vermelho rubi ou as pesadas cortinas de brocado. Tampouco a sala de estar e o salão de baile em lados opostos.

A elegância sulista de Easterly, aliada à eterna fragrância cítrica do antigo lustra-móveis, era como um belo terno que, uma vez no corpo, não se percebia no resto do dia porque foi feito sob medida por um alfaiate, moldando-se ao seu esqueleto e músculos. Para ele, não houve nenhuma estranheza ao entrar ali: era uma imersão total em águas mansas, à temperatura ideal. Era como respirar o ar parado, com a umidade perfeita. Era como um cochilo ao estar sentado numa poltrona de couro do clube.

Esse era, ao mesmo tempo, seu lar e seu inimigo e, muito provavelmente, não sentiu nada porque estava oprimido por emoções que reprimia.

No entanto, notou cada detalhe a respeito do seu reencontro com Lizzie King.

A colisão aconteceu bem quando ele passava pela sala de jantar à procura daquela pela qual ele viajara.

Ah, Deus, pensou. Ah, bom Deus.

Depois de ter apenas confiado em suas lembranças por tanto tempo, estar diante de Lizzie era a diferença entre uma passagem descritiva e a coisa real – e seu corpo reagiu de pronto, o sangue bombeando, todos aqueles instintos dormentes não apenas despertando, mas explodindo em suas veias.

O cabelo dela ainda era loiro por causa do sol, não pelo trabalho de algum cabeleireiro, e estava preso para trás com um laço, as pontas aparadas como uma corda náutica que fora cortada com fogo. Seu rosto ainda estava sem maquiagem, a pele bronzeada e reluzente, a estrutura óssea lembrando-o de que a boa genética era muito melhor que cirurgias plásticas de milhares de dólares. E seu corpo… aquele corpo forte que apresentava curvas onde ele mais apreciava, e a firmeza que testemunhava todo o trabalho físico que ela executava tão bem. Ela estava exatamente como ele se lembrava. Até estava vestida do mesmo modo, com shorts cáqui e a camiseta polo preta com o brasão Easterly bordado.

Seu perfume era Coppertone, e não Chanel. Seus sapatos eram Merrel, não Manolo. Seu relógio era Nike, não Rolex.

Para ele, ela era a mulher mais bela e mais bem-vestida que já vira.

Infelizmente, aquele olhar também permanecia inalterado.

Aquele que lhe dizia que ela também pensara nele desde a sua partida.

Mas não de uma maneira boa.

Lane movia a boca, percebendo que pronunciava uma combinação de palavras, mas não as acompanhava. Imagens demais se infiltravam em seu cérebro, todas as lembranças do passado: o corpo nu de Lizzie em meio aos lençóis revoltos, o cabelo emaranhado em seus dedos, suas mãos entre as pernas dela. Em sua mente, ele a ouvia pronunciar-lhe o nome enquanto a penetrava fundo, balançando a cama até que a cabeceira se chocasse contra a parede…

– Sim, eu sei por que veio – ela disse num tom neutro.

Pense em diferentes ondas cerebrais. Ele estava desequilibrado até as pontas dos seus Gucci, revivendo o relacionamento deles, e ela estava completamente impassível diante da sua presença.

– Você já a viu? – ela perguntou. Depois franziu o cenho. – Oi?

Que diabos ela estava falando? Ah, sim.

– Fiquei sabendo que ela já voltou do hospital.

– Cerca de uma hora atrás.

– Ela está bem?

– Ela saiu daqui numa ambulância com uma máscara de oxigênio. O que você acha? – Lizzie relanceou na direção para onde estava indo. – Olha, preciso pedir licença, tenho que…

– Lizzie – ele disse em voz baixa. – Lizzie, eu…

Como ele não concluiu a frase, ela se mostrou aborrecida.

– Faça um favor e nem pense em terminar essa frase, ok? Apenas vá vê-la e… e faça o que veio fazer, está bem? Me deixe fora disso.

– Nossa, Lizzie, por que você não quer me ouvir…?

– “Por que eu deveria?” é a pergunta correta.

– Porque pessoas civilizadas são gentis umas com as outras…

E BUM! Começaram a discutir.

– O que disse? – ela exigiu saber. – Só porque moro do outro lado do rio e trabalho para a sua família, isso faz de mim uma espécie de símio? Mesmo? Vai começar por aí?

– Não foi isso o que eu quis dizer…

– Ah, mas eu acho que foi mesmo…

– Eu juro – ele murmurou –, esse seu orgulho…

– O que tem ele, Lane? Está se mostrando de novo? É isso? Sinto muito, você não pode distorcer as coisas como se fosse eu quem tem problemas. Isso é com você. Sempre foi com você.

Lane ergueu as mãos.

– Não consigo falar com você. E eu só quero explicar…

– Quer fazer uma coisa por mim? Ótimo, maravilha. Segure isto aqui. – Ela enfiou o jarro pela metade com o que lhe pareceu ser uma limonada. – Leve-o para a cozinha e peça para alguém enchê-lo. Depois, mande alguém levá-lo de volta à piscina, ou, quem sabe, leve você mesmo… para a sua esposa.

Dito isso, ela girou e saiu pela porta mais próxima. E enquanto atravessava o gramado em direção à estufa, Lane não conseguia decidir o que o atraía mais: bater a cabeça na parede, quebrar o jarro no chão ou uma combinação dos dois.

Escolheu a quarta opção.

– Maldição, filha de uma… merda…

– Senhor? Posso ajudá-lo?

Ante o sotaque britânico, Lane relanceou para um homem de cerca cinquenta anos que se vestia como se fosse um recepcionista de uma funerária.

– Quem diabos é você?

– Harris, senhor. Sou Newark Harris, o mordomo. – O homem se curvou na altura da cintura. – Os pilotos foram gentis o bastante para nos telefonar e avisar que o senhor estava a caminho. Posso cuidar da sua bagagem?

– Não trouxe nenhuma.

– Pois não, senhor. Os seus aposentos estão arrumados, e caso necessite de algo, será um prazer providenciar o que o senhor necessitar.

Ah, não, Lane pensou. Nada disso, ele não ia ficar – ele sabia muito bem qual final de semana se aproximava, e o objetivo da sua visita não tinha nada a ver com o circo armado do Derby.

Empurrou o jarro nas mãos do senhor Engomadinho.

– Não sei o que tem aqui dentro e não me importo. Apenas reabasteça e leve-o para o seu devido lugar.

– Será um prazer, senhor. O senhor precisará de…

– Não, é só isso.

O homem pareceu surpreso quando Lane passou por ele e partiu para a ala da casa reservada à criadagem. Mas, obviamente, o inglês não o questionou. O que, levando em consideração o seu humor, não apenas era adequado à etiqueta de um mordomo, como também se enquadraria numa questão de autopreservação.

Dois minutos dentro daquela casa. Dois malditos minutos.

E já estava em ponto de bala.


“Onde estão as rosas? Precisamos de mais rosas!”

“Pedi mais dez dúzias. Onde elas estão?”

“Eu te digo, estamos com problemas.”

“Pode ser.”

Julepo de menta é uma bebida feita de uísque, açúcar, gelo moído e hortelã. Mimosa é um coquetel feito com três partes de vinho espumante e duas partes de suco de laranja gelado, tradicionalmente servido em uma taça alta chamada flute. (N.E.)

“Precisamos pagar todas as peônias”

“Espero que um piano caia sobre a cabeça desse idiota.”

 

QUATRO

Lane marchou pela imensa cozinha industrial e foi imediatamente surpreendido pelo “barulho olfativo” e pelo silêncio do auditório. Mesmo havendo uma bela dúzia de chefs inclinados sobre as bancadas de aço inoxidável e sobre os enormes fogões, nenhum dos homens em seus dolmãs brancos conversava enquanto trabalhava. Alguns poucos ergueram o olhar, reconhecendo-o e parando o que quer que estivessem fazendo. Lane ignorou os “Oh, meu Deus!”. Àquela altura, já estava acostumado quando o olhavam duas vezes só para se certificarem de que era ele mesmo, sua reputação o precedia por toda a nação havia muito tempo.

Obrigado, Vanity Fair, pelo artigo sobre a família uma década atrás. E pelos que vieram depois disso. E tinha as especulações dos tabloides. Sem falar no que aparecia na internet.

O que acontecia quando o status de celebridade, com o menor denominador comum embalado pela mídia, fisgava você?

Não havia mais como se livrar.

Conforme avançava na direção da porta com a placa de PARTICULAR, viu-se colocando a camisa para dentro, ajeitando a calça e alisando os cabelos. Queria ter se permitido um tempo para tomar banho, se barbear e trocar de roupa.

E queria muito que seu reencontro com Lizzie tivesse sido um pouco melhor. Como se ele precisasse de outra coisa na cabeça agora.

Bateu na porta baixinho, respeitosamente. Mas a resposta que conseguiu não foi nada respeitosa: – Pra que é que você está batendo? – exclamou uma voz feminina com forte sotaque sulista.

Lane franziu o cenho e empurrou a porta. E parou de pronto.

A senhorita Aurora estava junto ao fogão, o cheiro forte de óleo e os estalos do frango fritando na frigideira subiam pelo ar. Seus cabelos estavam puxados para cima num rabo de cachos negros e pequeninos, e ela usava o mesmo avental que ele vira nela no dia em que partira para o norte.

Ele só conseguiu piscar e se perguntar se alguém lhe pregara uma peça.

– Ora, ora, não fique parado aí – ela ralhou. – Lave as mãos e pegue as bandejas. Só deve demorar uns cinco minutinhos.

Certo, ele esperava encontrá-la deitada na cama com o lençol a cobrir-lhe o peito, com um brilho fraco no olhar enquanto aguardava que seu amado Jesus viesse buscá-la.

– Lane, mexa-se, ainda não morri.

Ele esfregou o alto do nariz quando uma onda de exaustão o acometeu.

– Sim, senhora.

Quando fechou a porta atrás de si, procurou por sinais de fraqueza física naqueles ombros e pernas fortes. Não encontrou nenhum. Não havia absolutamente nada naquela mulher de sessenta e cinco anos que sugerisse que ela fora parar no pronto-socorro naquela mesma manhã.

Ok, então estava num impasse, ele concluiu, espiando a comida que ela tinha preparado. Um impasse entre se sentir aliviado… e furioso por ter perdido tempo para ir até ali.

De uma coisa ele tinha certeza: não iria embora antes de comer. Em parte porque ela o amarraria numa cadeira e o forçaria a se alimentar, mas principalmente porque, no instante em que sentiu aqueles aromas, seu estômago roncou a valer.

– Você está bem? – ele tinha que perguntar.

O olhar que ela lhe lançou sugeria que, se ele continuasse naquele caminho, ela ficaria mais do que feliz em socá-lo até ele fechar a matraca.

Entendido, senhora, ele pensou.

Atravessando o cômodo, descobriu que as bandejas nas quais eles dois comiam estavam exatamente onde as vira pela última vez: num dos cantos, apoiadas entre o móvel da TV e uma prateleira de livros. O par de poltronas também estava no mesmo lugar, cada uma diante de uma janela alta, com paninhos de crochê sobre o encosto da cabeça.

Fotos de crianças estavam espalhadas por toda a parte, em diferentes porta-retratos, e em meio aos rostos morenos e belos, também havia alguns rostos brancos: ali estava ele na sua formatura do jardim de infância; seu irmão Max fazendo um gol num jogo de lacrosse; sua irmã, Gin, num vestido branco, como leiteira numa peça escolar; seu irmão mais velho, Edward, de terno e gravata no seu último ano na Universidade da Virgínia.

– Bom Deus, você está magro demais, menino – murmurou a senhorita Aurora enquanto mexia numa panela que ele sabia estar cheia de vagem com cubos de bacon. – Eles não têm comida lá em Nova York?

– Não como esta, senhora.

O som que ela emitiu no fundo da garganta foi como o de um velho Chevrolet com escapamento ruim.

– Pegue os pratos.

– Sim, senhora.

Descobriu que suas mãos estavam tremendo quando pegou dois pratos no armário e os ouviu batendo um contra o outro. Ao contrário da mulher que lhe dera a luz – que sem dúvida estaria “descansando” num torpor medicinal do tipo “Não sou viciada porque o médico me receitou essas pílulas” –, a senhorita Aurora sempre parecera não ter a idade que tinha e ser forte como uma heroína. O que fazer com a ideia de que o câncer tivesse voltado?

Inferno. Para início de conversa, ele não aceitava que ela tivesse passado por isso da primeira vez. Mas não se enganava. Aquele devia ser o motivo de ela ter desmaiado.

Depois de pegar os talheres e os guardanapos, colocando-os nas bandejas, e de ter servido copos de chá, foi até as poltronas e se sentou na da direita.

– Você não devia estar cozinhando – ele disse quando ela começou a servir os pratos.

– E você não devia ter ficado longe por tanto tempo. O que deu em você?

Ela definitivamente não está à beira da morte, ele pensou.

– O que o médico disse? – ele perguntou.

– Na minha opinião, nada que valesse a pena. – Ela trouxe todo tipo de comida celestial. – Agora fique quieto e coma.

– Sim, senhora.

Hummm, bom Jesus, pensou ele ao olhar para o prato. Quiabo frito. Miúdo de porco. Bolinhos de batata. Vagens naquele cozido de bacon. E frango frito.

Quando o estômago dele roncou alto, ela gargalhou.

Mas ele não. E, de repente, teve que limpar a garganta. Isso era seu lar. Essa comida, preparada especificamente por essa mulher, era seu lar. Ele comera exatamente o que estava neste prato durante toda a sua vida, especialmente antes de sua mãe se afastar de tudo, quando ela e seu pai sumiam cinco noites por semana para socializar. Doentes ou saudáveis, felizes ou tristes, no calor ou no frio, ele e seus irmãos sentavam-se naquela cozinha com a senhorita Aurora e se comportavam bem, para não se arriscarem a levar um tapinha no cocuruto.

Nunca houve nenhum encrenqueiro na cozinha da senhorita Aurora.

– Vá em frente – ela disse com suavidade. – Não deixe esfriar.

Ele atacou a comida e gemeu com a primeira garfada, que explodiu em sabores na sua boca.

– Hum, senhorita Aurora…

– Você precisa voltar pra casa, menino. – Ela balançou a cabeça ao se sentar com o próprio prato. – Aquela coisa lá do norte não é pra você. Não sei como aguenta o clima… muito menos as pessoas.

– Então, vai me contar o que aconteceu? – perguntou, indicando a bolinha de algodão e o esparadrapo na curva do braço dela.

– Não preciso daquele carro que comprou pra mim. Foi o que aconteceu.

Ele limpou a boca.

– Que carro?

Os olhos negros se estreitaram.

– Não tente brincar comigo, menino.

– Senhorita Aurora, a senhora estava dirigindo um pedaço de… hum, sucata. Não vou tolerar esse tipo de coisa.

Ele podia distinguir o sotaque sulista ficando mais forte em sua voz. Não demorou muito, demorou?

– O meu Malibu está muitíssimo bom…

Foi a vez de Lane encará-la.

– Era um carro barato, pra início de conversa, e tinha mais de cem mil quilômetros rodados.

– Não entendo por q…

– Senhorita Aurora, não vou deixar que dirija aquela lata velha. Lamento.

Ela o encarou com determinação suficiente para abrir um buraco em sua testa, mas como ele não recuou, ela abaixou o olhar. E assim era a natureza do relacionamento deles. Dois teimosos, nenhum deles querendo ceder um milímetro sequer.

– Não preciso de um Mercedes – ela murmurou.

– Com tração nas quatro rodas, senhora.

– Não gosto da cor. É profana.

– Besteira. É vermelha da UC e a senhora adora.

Mesmo que ela tenha resmungado uma vez mais, ele sabia. Ela adorava o carro novo. A irmã dela, a senhorita Patience, ligara para ele e lhe dissera que a senhorita Aurora vinha dirigindo o E350 4Matic para cima e para baixo pela cidade. Claro, a senhorita Aurora nunca lhe telefonara para agradecer, e ele já esperava que ela protestasse – ela sempre fora orgulhosa demais para aceitar qualquer coisa de graça.

Mas a senhorita Aurora também não queria aborrecê-lo; e ela sabia que ele estava certo.

– Mas, então, o que aconteceu hoje cedo… – Já não era mais uma pergunta. Não perguntaria mais nada.

– Só fiquei um pouco tonta.

– Disseram que desmaiou.

– Estou bem.

– Disseram que o câncer voltou.

– Quem são eles?

– Senhorita Aurora…

– Meu Senhor e Salvador já me curou antes e vai me curar de novo. – Ela levantou uma palma para o céu e fechou os olhos. Depois olhou para ele. – Vou ficar bem. Já menti pra você antes, menino?

– Não, senhora.

– Agora coma.

A ordem calou a boca dele pelos próximos vinte minutos.

Lane já estava terminando o segundo prato quando teve que perguntar: – A senhora o tem visto ultimamente?

Não havia motivo para especificar de quem estava falando. Edward. Todos se referiam a “ele” em vozes sussurradas.

O rosto da senhorita Aurora se fechou.

– Não.

Houve mais um longo período de silêncio.

– Vai procurá-lo enquanto estiver aqui? – ela perguntou.

– Não.

– Alguém tem que fazer isso.

– Não vai fazer nenhuma diferença. Além do mais, tenho que voltar pra Nova York. Só vim aqui pra ver como a senhora estava…

– Você vai até ele. Antes de voltar para o norte.

Lane fechou os olhos. Depois de um instante, disse:

– Sim, senhora.

– Bom menino.

Depois do terceiro prato, Lane lavou a louça, e teve que ignorar o fato de que a senhorita Aurora parecia não ter comido nada. A conversa se voltara para os sobrinhos e sobrinhas dela, para os irmãos e irmãs, onze ao todo, e o pai dela, Tom, que por fim falecera aos oitenta e seis anos.

Ela se chamava Aurora Toms porque era uma entre os vários filhos de Tom. Havia boatos que, além dos doze que tivera com a esposa, existiam inúmeros outros fora do casamento. Lane encontrava o homem na igreja de Aurora de tempos em tempos; ele tinha sido grandioso, tão sulista quanto o Mississipi, tão carismático quanto um orador e tão belo quanto o pecado.

Embora não quisesse ser arrogante, Lane sabia que sempre fora o predileto dela, e imaginava que Tom era o motivo pelo qual ela o mimava tanto: assim como aconteceu com seu pai, também diziam que Lane era mais bonito do que lhe faria bem, e ele também tivera sua época de mulherengo. Quando tinha seus vinte e poucos anos, Lane estivera pau a pau com o bom e velho senhor Toms.

Lizzie o curara disso tudo. Mais ou menos como uma barragem que detém um carro a toda velocidade.

– Suba e cumprimente a sua mãe antes de ir embora, também – disse a senhorita Aurora, depois que ele lavou, enxugou e guardou os pratos e os talheres.

Deixou a frigideira e as demais panelas no fogão. Sabia que era melhor não tocar nelas.

Girando, dobrou o pano de prato e se recostou contra a pia de aço inoxidável.

Da sua poltrona, ela levantou a mão.

– É melhor vocês todos pararem de…

– Senhorita Aurora…

– Não me diga que voou mais de mil quilômetros só pra olhar pra mim como se eu fosse uma inválida. Não faz nenhum sentido.

– A sua comida fez a viagem valer a pena.

– Isso é verdade. Agora vá ver a sua mãe.

Eu já vi, ele pensou, olhando para ela.

– Senhorita Aurora, vai ter ajuda para o Derby?

– O que acha que é aquele monte de bobalhões ali na minha cozinha?

– É muita coisa pra fazer. Não me diga que a senhora não fica ali dando ordens.

O conhecido olhar se cravou nele, mas foi só isso que ele recebeu e isso o assustou. Normalmente, ela se levantaria da poltrona e o empurraria porta afora. Em vez disso, permaneceu sentada.

– Vou ficar bem, menino.

– É melhor mesmo. Sem você, não tenho ninguém pra me manter na linha.

Ela murmurou alguma coisa bem baixinho e fixou o olhar acima do ombro dele, enquanto ele esperava calado.

Por fim, gesticulou para que ele se aproximasse, e ele obedeceu de pronto, atravessando o piso de linóleo e se ajoelhando diante da sua poltrona. Uma das mãos, uma das lindas, fortes e negras mãos dela, se esticou e alisou o cabelo de Lane.

– Precisa cortar isso.

– Sim, senhora.

Ela lhe tocou o rosto.

– Você é bonito demais para o seu próprio bem.

– Como acabei de dizer, a senhora tem que ficar por perto pra me manter na linha.

A senhorita Aurora assentiu.

– Pode contar com isso. – Houve uma longa pausa. – Obrigada pelo meu carro novo.

Ele pressionou um beijo na palma dela.

– De nada.

– E você precisa se lembrar de uma coisa. – Seus olhos, aqueles olhos negros que o fitaram quando ele era menino, adolescente, jovem… até se tornar um homem crescido, vasculharam seu rosto, como se ela estivesse tomando nota das mudanças que o passar dos anos causara nas feições que ela conhecia por mais de trinta anos. – Tenho você e tenho Deus. Sou mais rica do que poderia sonhar… Entendeu, menino? Não preciso de um Mercedes. Não preciso de uma casa luxuosa e de roupas elegantes. Não tem nenhum buraco em mim que precisa ser preenchido… Entendeu?

– Sim, senhora. – Fechou os olhos, pensando que ela era a mulher mais nobre que já conhecera.

Isto é, ela e Lizzie.

– Entendo o que quer dizer, senhora – ele disse, rouco.

Aproximadamente uma hora depois do episódio da limonada com Lane, Lizzie saiu da estufa com dois grandes arranjos. A senhora Bradford sempre insistira em ter flores frescas nos cômodos sociais e em todos os quartos ocupados, e esse padrão fora preservado mesmo depois que ela se recolhera à sua suíte havia três anos, ali permanecendo. Lizzie gostava de imaginar que se continuasse com esse costume, talvez a Pequena V.E., como a família a chamava, voltasse a aparecer e ser a dona da casa.

Easterly tinha bem uns cinquenta cômodos, mas muitos deles eram escritórios, aposentos e banheiros de funcionários, ou cozinha, adega, salas de imprensa, ou quartos desocupados que não necessitavam das flores. Os buquês do primeiro andar estavam em ordem; ela já os inspecionara e retirara uma rosa murcha na noite anterior. Aquelas flores frescas iriam para o vestíbulo do piso superior e para o quarto do senhor Baldwine. O vaso da senhora Bradford só deveria ser trocado no dia seguinte, bem como o de Chantal e…

Será que Lane ficaria no quarto da esposa?

Provavelmente, e isso lhe provocou ânsias.

Seguindo para a escada dos empregados, os dois vasos de prata pesavam-lhe nos braços e pulsos, enrijecendo-lhe os bíceps, mas ela seguiu em frente. A queimação não duraria muito tempo, e descansar em algum lugar só prolongaria a tarefa.

O corredor de cima era tão longo quanto uma pista de corrida de cavalos, bifurcando-se numa espécie de sala de estar, seguindo para um total de vinte e uma suítes que se abriam em cada um dos lados. Os aposentos do senhor Baldwine ficavam ao lado dos da esposa, ambos com vista para o jardim e o rio. Uma porta unia os dois closets, mas ela sabia que nunca era usada.

Pelo que sabia, depois do nascimento dos filhos, aquela parte do relacionamento deles não fora “retomada”, para usar um vocábulo mais sutil.

Assim que começara a trabalhar em Easterly, confundia-se com os nomes, e certa vez referira-se à senhora Bradford pelo seu nome de casada, senhora Baldwine. Inaceitável. Fora corrigida pelo encarregado dos funcionários: a dona da mansão Bradford seria chamada de “senhora” e de “Bradford”, pouco importando qual fosse o sobrenome do marido.

Confuso. Até ela perceber que marido e mulher tinham vidas separadas, assim como seus aposentos. Portanto, havia um senhor Baldwine com uma suíte em tons de azul-marinho e pesadas antiguidades em mogno, e uma senhora Bradford com uma suíte em tons pastéis, mobília Luís XIV e uma cama de dossel.

Na verdade, talvez os dois tivessem algo em comum: ele se escondia no escritório no centro de negócios; ela, em seus aposentos.

Loucura.

Lizzie seguiu para a escada curva e formal e trocou o buquê da mesa de centro da área social. Depois foi em frente e parou diante da suíte do senhor Baldwine. Bateu duas vezes na madeira e esperou, apesar de saber que não havia ninguém no interior. Todas as manhãs, ele ia para o centro de negócios ao lado da propriedade e só regressava às sete da noite para o jantar.

Colocou o arranjo floral da sala de estar no chão, girou a maçaneta, empurrou a porta e avançou até uma cômoda antiga que deveria pertencer a um museu. Não havia nada de muito errado com as flores ali, mas nada tinha permissão de perecer em Easterly. Ali, naquele casulo de riqueza, não se permitia que existisse entropia.

Enquanto trocava os vasos, ouviu vozes no jardim e foi até as janelas. Mais de uma dúzia de homens haviam chegado, carregando pesados rolos de lona branca e grandes postes de alumínio, que, com força humana e um tanto de hidráulica, formariam a tenda de 12 por 24 metros do Brunch do Derby.

Maravilha. Chantal provavelmente chamaria o senhor Harris nesse mesmo instante para reclamar que a zona de não sobrevoo fora violada. Se um membro da família ou um convidado estivesse usando a piscina, a casa da piscina, ou quaisquer um dos terraços, todos os trabalhos tinham que ser interrompidos no jardim e todos os trabalhadores tinham que evacuar a área até que a Sua Alteza tivesse concluído seu lazer.

A boa notícia? Greta já estava ali, controlando os homens. A má notícia? A alemã devia estar ordenando que eles montassem tudo bem ao lado de onde Chantal estava.

Deliberadamente.

Temendo um confronto, Lizzie se virou…

E parou quando uma centelha de cor chamou sua atenção.

– Mas o quê…?

Inclinando-se para baixo, ficou sem saber exatamente para o que estava olhando. Assim como todo o resto em Easterly, o quarto de William Baldwine era imaculado, todos os objetos e pertences estavam onde deveriam estar, todas as armas de um poderoso homem de negócios estavam guardadas em gavetas, organizadas em prateleiras, à espera dele em um closet imenso.

Portanto, o que era aquele pedaço de seda cor de pêssego entre a cabeceira e a parede?

Bem, ela podia imaginar.

E a lingerie não devia ser de Virginia Elizabeth Bradford Baldwine.

Lizzie não via a hora de sair do quarto. Foi até a porta, abriu-a e…

– Ah, mas eu estou tãããão feliz em ver vocêêêê!

O sotaque arrastado sulista pareceu um arranhado em uma lousa, mas o pior foi olhar para a direita e ver Chantal Baldwine lançando os braços ao redor do pescoço de Lane e se pendurando nele.

Fantástico. Os dois estavam entre ela e a escadaria dos funcionários.

– Não consigo acreditar que tenha me feito esta surpresa! – A mulher recuou um passo e fez uma pose, como se quisesse que ele lhe desse uma bela olhada. – Eu estava na piscina, mas subi porque as pessoas que vão armar a tenda chegaram. Resolvi sair para liberar a área.

Não é que você merece um prêmio por seu coração de ouro, querida?, Lizzie pensou. E você não estava a caminho do clube?

Lizzie se virou para seguir para a escadaria principal e fugir. Mesmo que fosse contra as regras, seria melhor que ter que passar por…

Como se soubesse disso, o senhor Harris surgiu com a senhora Mollie, a chefe da arrumação. O mordomo inglês passava o dedo pelo corrimão da balaustrada e o erguia para inspecionar, balançando a cabeça.

Maravilha.

Suas únicas saídas eram: brasas quentes ou uma fogueira acesa. Ou voltar para se esconder no quarto em que o senhor Baldwine traía a esposa.

Ah, as escolhas da vida…

Às vezes, ela simplesmente amava seu emprego.

 

CINCO

Destilaria de Bourbon Bradford, Condado Ogden

Edwin “Mack” MacAllan Junior caminhava ao longo da pilha de barris de bourbon de doze metros de altura, as botas de couro feitas à mão ressoando contra o antigo piso de concreto. O aroma das centenas de tábuas de madeira e dos milhões de litros de bourbon envelhecendo era tão agradável ao seu olfato quanto um perfume feminino.

Pena que estivesse irritado demais para apreciar direito.

Em seu punho, ele trazia um memorando corporativo todo amassado; as letras no papel branco eram irrecuperáveis. Teve que ler o maldito texto três vezes, e não só porque a leitura era um obstáculo insuperável para o seu cérebro disléxico.

Ele não era nenhum caipira. Nascera e fora criado numa família culta, frequentara a Universidade Auburn, e sabia tudo sobre fabricar bourbon e sobre os processos químicos envolvidos naquela arte intangível.

Na verdade, ele era o Mestre Destilador da marca de bourbon de maior prestígio no mercado, filho do Mestre Destilador mais respeitado na história da indústria de bebidas.

Mas, naquele instante, queria entrar na sua F-150 de meia tonelada e invadir a recepção do escritório de William Baldwine em Easterly. Em seguida, queria pegar seu rifle de cem anos de idade e fazer alguns buracos nas escrivaninhas dos idiotas corporativos.

Parando de súbito, recostou-se e fitou as prateleiras que se estendiam pelo armazém de teto de vigas expostas. Os códigos e as datas queimados diante dos barris tinham sido colocados em ordem ali primeiro pelo seu pai, e depois por ele mesmo, e havia uma progressão lógica. Os preciosos contêineres descansavam em paz por quatro anos, por dez anos, por vinte anos, e até mais. Inspecionava-os com regularidade, ainda que dispusesse de pessoas em número mais que suficiente para fazer exatamente isso. Mas, em sua opinião, aqueles eram os únicos filhos que teria, e não permitiria que crescessem aos cuidados do equivalente a uma babá.

Aos trinta e oito anos, era um solitário, tanto por escolha quanto por necessidade. Aquele trabalho – aquele trabalho de vinte e cinco horas por dia, oito dias por semana – era a sua esposa e a sua amante, a sua família e o seu legado.

Portanto, receber aquele memorando, que encontrara sobre sua mesa ao entrar, era como assistir a um motorista embriagado batendo de frente na minivan que continha toda a sua existência.

A receita do bourbon era algo verdadeiramente simples: uma mistura de grãos que, de acordo com as leis do Kentucky, tinha que conter um mínimo de cinquenta e um por cento de milho. Ali na Destilaria de Bourbon Bradford, adicionava-se a isso uma combinação de centeio, malte de cevada, e cerca de dez por cento de trigo, para dar um sabor mais suave; água, captada de um aquífero subterrâneo de pedra calcária; e levedura. Em seguida, depois que a mágica acontecia, o bourbon era colocado em barris de carvalho branco, queimados por dentro e deixados para se transformarem em armazéns bonitos e fortes como aquele.

Era só isso. Todo fabricante de bourbon tinha que trabalhar com esses cinco elementos: grãos, água, levedura, barril e tempo. Mas, assim como Deus conseguira criar uma variedade de pessoas a partir dos mesmos elementos centrais, também cada família ou empresa produzia diferentes nuances do mesmo produto.

Esticando o braço, apoiou a mão em um dos barris arredondados que enchera logo que se tornara mestre, quase dez anos atrás, embora trabalhasse para a empresa desde os catorze anos. Substituir o pai sempre fora o plano, mas o velho morrera cedo demais, e ali estava ele. Mack fora abandonado para nadar sozinho, e não tinha a menor intenção de morrer afogado.

Portanto, sim, ali estava ele, no auge do sucesso e ainda jovem o suficiente para criar uma dinastia própria, supostamente trabalhando para a aristocracia dos produtores de bourbon, a empresa que criara o Bourbon Perfeito.

Era o slogan para tudo o que a CBB fazia, a filosofia de marketing, de negócios e de fabricação.

Portanto, como, em nome de Deus, a administração esperava que ele aceitasse atrasos na entrega de grãos? Era como se aqueles idiotas com MBA não entendessem que, por mais que tivessem produtos de quatro anos em quantidade suficiente hoje, se não enchessem os silos, acabariam sem estoque desse tipo de bourbon em quarenta e oito meses; e isso se aplicava aos demais níveis, que esgotariam em dez, vinte anos…

Ele sabia exatamente para onde estavam indo. A redução na produção de milho, resultado do aquecimento global que desequilibrara o padrão climático no último verão, significava que o preço do alqueire estava na estratosfera. Mas não seria sempre assim. Obviamente, os contadores de moedas do escritório central, também conhecido como propriedade do senhor Baldwine, resolveram poupar uns trocados freando a produção nos meses seguintes, esperando recuperá-la quando o preço do milho se autorregulasse.

Desde que a seca que abalara a nação no ano anterior não se repetisse.

Havia muitas falhas na lógica desse “negócio”, mas a questão principal era que aqueles engravatados não entendiam que este bourbon não era um produto fabricado numa linha de montagem, com um interruptor de liga e desliga. O bourbon era um processo – era o auge e a expressão de inúmeras tentativas e erros –, refinado ao longo de duzentos e cinquenta anos: você tinha que cultivar o paladar do bourbon, encontrar os sabores e o equilíbrio, guiar os elementos até seu ápice… E, depois, enviar para os seus consumidores sob o rótulo distintivo. Inferno. Ele se orgulhava de resguardar a marca registrada no 15, o maior sucesso da empresa, ainda que fosse a linha mais barata, assim como fizera com os produtos mais dispendiosos e mais antigos, como o Black Mountain, o Bradford I e o mais que exclusivo Reserva de Família.

E se interrompesse a produção agora? Sabia muito bem que eles o procurariam em seis meses, ordenando que modificasse as datas dos barris.

Seis meses para os engravatados era apenas metade de um ano, vinte e seis semanas, duas estações.

Mas para o seu paladar… Ele conseguia distinguir um bourbon de nove anos e meio e um de dez anos e um dia. Talvez muitos dos clientes deles não percebessem a diferença, mas a questão não era essa, certo? E o fato de que vários de seus concorrentes adulteravam as datas de forma regular? Esse não era um padrão a ser seguido.

Se Edward estivesse ali, pensou, não teria que se preocupar com isso. Edward Baldwine era a raridade dentro da família Bradford – um verdadeiro destilador, o regresso a uma era de linhagem augusta, um homem que valorizava o produto. Mas o presumível herdeiro do trono já não estava mais envolvido com a companhia.

Portanto, não havia como recorrer a ele.

E o memorando sobre a sua mesa? Era o modo típico como as coisas vinham sendo resolvidas desde a tragédia com Edward. Os covardes do centro de negócios sabiam que ele surtaria, mas não tinham coragem de ir até lá para lhe contar pessoalmente. Nada disso. Simplesmente escreva um memorando e jogue por cima dos outros papéis como se não afetasse em cheio o cerne dos negócios.

Mack voltou a fitar as vigas de madeira de lei centenária. Aquele era o armazém mais antigo da empresa, utilizado para abrigar os barris mais especiais. Ficava localizado ao lado do armazém original, que hoje servia tanto de museu para turistas como de escritório. Este lugar era um maldito santuário.

A alma do seu pai perambulava pelos corredores.

Mack estava convencido de que sentia o velho junto aos seus calcanhares naquele mesmo instante.

Estava convencido também de que, em um dia tranquilo como este, quando suas únicas companhias ali no armazém eram a luz do sol que se infiltrava pelas janelas empoeiradas, o som das suas botas sobre o concreto e a neblina da parte dos anjos10 que evaporava… ele era um dos poucos defensores da tradição deixada pela companhia.

Os jovens que surgiam – mesmo aqueles que desejavam ocupar o seu posto – professavam amor pelos rituais e pelos fundamentos e clamavam estar comprometidos com o processo, porém eram apenas subordinados corporativos que vestiam calças cáqui em vez de ternos. Eram de uma geração de flocos de neve especiais, que esperavam receber troféus só por terem aparecido, e esperavam que tudo fosse fácil e que todos cuidassem deles e os protegessem, como faziam os seus pais.

Eles tinham tanta profundidade quanto seus perfis do Facebook. Ou seu egoísmo inesgotável e suas frivolidades sem alma.

Em comparação aos fundadores daquela empresa, que protegeram seu produto em meio à fome e à guerra, em meio à doença e à Grande Depressão… nos tempos da Proibição, pelo amor de Deus! Eles eram apenas meninos tentando fazer o trabalho de um homem.

Eles só não sabiam disso. E, com uma cultura corporativa como aquela, jamais saberiam.

– Mack?

Ele olhou por sobre o ombro. A sua secretária, Georgie O’Malley, que cuidara do escritório de seu pai antes que ele morresse, aproximou-se por trás dele sem fazer som algum. Aos sessenta e quatro anos, ela já estava na empresa havia quarenta e um, sem dar nenhum indício de que estava diminuindo o ritmo. Autoproclamada esposa de fazendeiro, porém sem marido nem fazenda, era um espírito aliado na luta contra a atual corrente que dizia que tudo era descartável.

– Tudo bem, Mack?

Mack ergueu o olhar para as janelas, vendo os vapores da parte dos anjos subindo aos céus.

A parte dos anjos era sagrada: cada um dos barris de carvalho era queimado por dentro antes de ser preenchido com duzentos litros de bourbon. Armazenados num local como aquele, num ambiente que, propositadamente, não era climatizado, a madeira dos barris se expandia e se contraía sazonalmente, e o bourbon dentro deles se coloria e adquiria sabor com os açúcares caramelizados provindos da madeira queimada.

Uma parte significativa evaporava e era absorvida pelos barris com o decorrer do tempo.

Essa era a parte dos anjos.

Seu pai a considerava o sacrifício pelo passado, a porção que ia para os criadores, para que eles bebessem no Paraíso. Também era uma antecipação à própria morte… e a esperança de que o próximo guardião da tradição fará o mesmo por você quando você já tiver morrido.

– Não vai sobrar nada para nós, Georgie – ele se ouviu dizer.

– Do que você está falando?

Ele apenas meneou a cabeça.

– Quero que mande os rapazes fecharem os silos.

– O quê?

– Você me ouviu. – Mack levantou o punho para que ela visse o papel amassado. – A corporação parou as encomendas de milho dos próximos três meses. No mínimo. Vão avisar quando poderemos fazer mais mistura. Qualquer centeio, cevada e trigo que tenhamos deve ser redesignado.

– Redesignado? O que isso quer dizer?

– Eles não podem vender para um concorrente. E se isso parar nos ouvidos de pessoas como os Sutton? Ou da imprensa? Vai fazer com que os dez centavos que eles pouparam se tornem o maior erro financeiro da história da empresa.

– Nunca paramos a produção.

– Não. Não desde a Proibição… E, mesmo assim, foi só pra fingir.

Houve uma longa pausa.

– Mack… o que eles estão fazendo?

– Eles vão arruinar esta empresa, é o que estão fazendo.

Aproximou-se da mulher.

– Vão acabar com a gente com a desculpa de maximizar o lucro. Ou, inferno, talvez estejam preparando um OPI, finalmente. Todos os outros produtores de bourbon têm ações na bolsa, exceto os Sutton. Talvez estejam tentando inflar os lucros artificialmente antes de uma venda particular. Não sei, e não quero saber. Mas tenho a mais absoluta certeza de que Elijah Bradford está se revirando dentro do caixão.

Conforme ele seguia para a saída, ela o chamou.

– Aonde você vai?

– Encher a cara. Com muita, muita cerveja.


Durante o processo de envelhecimento, pelo menos 2% do uísque armazenado nos barris evapora através do carvalho. As destilarias se referem a essa porção como a “parte dos anjos”. (N.T.)

 

SEIS

Parado diante da porta do seu quarto ao fitar sua “esposa”, Lane pensou que, assim como Easterly, ela era a mesma. Chantal Blair Stowe Baldwine era, de fato, exatamente a mesma: mesmo corte de cabelo, bronzeado artificial, maquiagem, roupas caras cor-de-rosa. Tudo idêntico ao que ele deixara para trás. Inclusive a voz dela… que parecia a da protagonista Distinta Dama Sulista do Entretenimento.

Ela ainda tagarelava muito, palavras saíam de sua boca numa torrente sem considerar racionamento em benefício do ouvinte. Mas, pensando bem, a conversa era para ela uma forma de arte; suas mãos se movimentavam como as asas de uma pomba, arqueando-se para cima e para baixo, exibindo aquele imenso diamante do qual ela tanto fez questão, que reluzia como uma luz estroboscópica.

– … fim de semana do Derby! Claro, Samuel Theodore Lodge vem hoje à noite. Gin está tão animada em vê-lo…

Inacreditável. Fazia literalmente dois anos que não se viam, tampouco se falavam, e ela estava discorrendo sobre a lista de convidados para o jantar.

O que diabos um dia ele viu nela…

– Ah, Lisa! Com licença, você pode, por favor, pedir que o senhor Harris traga o carro do senhor Baldwine? Vamos almoçar no clube.

Lisa?, ele pensou. Mas, como de hábito, os empregados estavam sempre mudando por ali desde que…

Lane relanceou por cima do ombro. Lizzie estava parada diante da porta do quarto de seu pai, segurando dois vasos com flores perfeitas, que sem dúvida tinham acabado de ser substituídos.

– O senhor Harris está logo ali – Lizzie informou com frieza.

– Não gosto de gritar. Não é apropriado. – Chantal se inclinou para ela, como se fossem duas amigas partilhando um segredo. – Muito obrigada. Você é tão obsequi…

– Você enlouqueceu? – Lane perguntou, irritado.

Chantal se encolheu, a cabeça virando para trás, os olhos passando de ingênuos a matadores num piscar dos cílios postiços e lindos.

– O que disse? – Chantal sussurrou para ele.

Lane tentou capturar o olhar de Lizzie enquanto falava.

– Vá você mesma falar com ele.

Lizzie se recusava a olhar para ele. Com uma impassível expressão profissional, avançou, com passadas longas e elegantes, seguindo pelo longo corredor até a escada dos empregados. Nesse meio-tempo, Chantal voltou a falar.

– … falar comigo nesse tom diante da criadagem – ela sibilou.

– O nome dela é Lizzie, não Lisa. – Agora era ele quem se inclinava. – E você sabe disso, não sabe?

– O nome dela é irrelevante.

– Ela está aqui há mais tempo que você. – Ele sorriu com frieza. – E estou disposto a apostar como vai continuar a aqui depois que você se for.

– E o que isso deveria significar?

– Você não tem que ficar debaixo deste teto e sabe disso muito bem.

– Sou a sua esposa.

Lane a encarou de cima, e ficou se perguntando por que diabos ela ainda estava em sua vida. A resposta fácil era que ele vinha fingindo que Charlemont não existia. A mais complexa estava ligada ao que ela fizera.

Sou a sua esposa.

– Não por muito tempo – ele retrucou num tom baixo.

As sobrancelhas bem desenhadas dela se ergueram e, no mesmo instante, a expressão de gato irritado sumiu; ela ficou calma e tranquila, como a imagem de uma pintura.

– Não vamos discutir, querido. A nossa reserva no clube é para daqui a vinte minutos…

– Deixe-me ser bem claro. Não vou a parte alguma com você. A não ser para o escritório de um advogado.

Pela visão periférica, ele notou que o senhor Newark ou Harris – qualquer que fosse o nome do mordomo – estava dando meia-volta discretamente, levando a senhora Mollie, a governanta, na direção oposta.

– Fala sério, Tulane.

Deus, como ele odiava o seu nome nos lábios de Chantal: Tooooouuuuuulaaaayne. Pelo amor de Deus, eram três sílabas, e não trezentas.

– Estou falando sério – ele disse. – Está na hora de terminarmos isto.

Chantal inspirou fundo.

– Você está chateado por causa da pobre senhorita Aurora e está dizendo coisas que não sente. Entendo isso. Ela é uma excelente cozinheira… E é muito, muito difícil encontrá-las hoje em dia.

Os molares dele travaram.

– Você acha que ela é apenas uma cozinheira.

– Está me dizendo que ela é contadora?

Deus, por que ele…

– Aquela mulher significa mais para mim do que a que me pariu.

– Não seja ridículo. Além do mais, ela é negra…

Lane agarrou o braço de Chantal e a puxou para perto de si.

– Nunca mais fale dela dessa maneira. Nunca bati numa mulher antes, mas garanto que acabo com a sua vida se a desrespeitar.

– Lane, você está me machucando!

Naquele instante, ele percebeu que havia uma criada parada diante da porta de um dos quartos de hóspedes, com os braços tomados por toalhas dobradas. Quando ela abaixou a cabeça e seguiu em frente, ele empurrou Chantal. Ajeitou as calças. Encarou o tapete no chão.

– Acabou, Chantal. Se é que você ainda não percebeu.

Ela uniu as mãos como se estivesse rezando, e ele não acreditou nem por um segundo. O sofrimento falso na voz dela tampouco o comoveu quando ela sussurrou: – Acredito que precisamos cuidar do nosso relacionamento.

– Concordo. Este nosso casamento precisa sair desse estado miserável. É assim que cuidaremos dele.

– Você não pode estar falando sério.

– Ao inferno que não estou. Contrate um bom advogado ou não. De todo modo, você vai sair daqui.

Lágrimas. Grandes e grossas, que fizeram os olhos azuis dela brilharem como uma piscina.

– Você sabe ser muito cruel.

Não como ela sabia, ele pensou, nem de perto. E, pelo amor de Deus, ele deveria ter dado seguimento ao acordo pré-nupcial, mas que pena, que tristeza, tanto fazia àquela altura. A boa notícia era que sempre haveria mais dinheiro; mesmo que ela lhe arrancasse milhões, ele conseguiria recuperar em um ou dois anos.

– Vou falar com a minha mãe – ele disse. – E depois ligar para Samuel T. Talvez ele consiga lhe servir a papelada junto ao seu jantar hoje à noite.

E, simples assim, aqueles olhos tornaram-se implacáveis mais uma vez.

– Arruinarei você e sua família se for em frente com isso.

O que ela não sabia era que já arruinara a sua vida. Ela lhe custara Lizzie… e muito mais. Mas, maldição, aquilo tudo teria um fim.

– Cuidado, Chantal. – Ele não desviou o olhar. – Faço qualquer coisa, dentro ou fora da lei, para proteger o que é meu.

– Isso é uma ameaça?

– Apenas um lembrete de que sou um Bradford, minha cara. E nós cuidamos do que é nosso.

Afastando-se da mulher, Lane bateu à porta do quarto da mãe. Mesmo sem obter resposta, adentrou a perfumada suíte, fechando a porta atrás de si.

Cerrou os olhos, e precisou de um segundo para aplacar a fúria antes de enfrentar aquele reencontro dúbio. Precisava apenas de um segundo para se recompor. Apenas…

Quando ergueu as pálpebras, deparou-se com mais um cenário que não fora alterado.

O quarto branco e creme da mãe estava como sempre, as janelas imensas com vista para os jardins adornadas com cortinas elegantes de seda, quadros de Maxfield Parrish reluzentes como joias usadas pelas paredes, antiguidades francesas delicadas, preciosas demais para que fossem utilizadas como assento ou deixadas nos cantos. Mas nada disso era o ponto focal, por mais impressionante que fossem.

A cama de dossel do lado oposto era a verdadeira obra de arte. Tão resplandecente e maravilhosa quando o Baldaquino da Basílica de São Pedro, de Bernini. A compacta plataforma do tamanho de um barco tinha colunas entalhadas que se erguiam ao céu e uma grinalda de seda rosa-clara. E lá estava ela, Virginia Elizabeth Bradford Baldwine, deitada tão imóvel e preservada quanto uma santa, o corpo alto e magro escondido numa profusão de mantas de cetim e travesseiros, o cabelo loiro claro perfeitamente penteado, e o rosto maquiado, apesar de ela não estar indo a parte alguma e sequer estar consciente.

Ao lado dela, sobre uma cômoda bombê de tampo de mármore, havia uma dúzia de frascos de remédios com rótulos brancos dispostos em filas bem ordenadas, como um pelotão de soldados. Ele não fazia a mínima ideia do que havia dentro deles e, muito provavelmente, nem ela sabia.

Ela era a Sunny von Büllow11 sulista, a não ser pelo fato de que seu marido jamais tentara matá-la. Pelo menos não fisicamente.

O maldito provocara outros tipos de dano, porém.

– Mamãe – ele disse ao se aproximar. Quando chegou perto, segurou a mão fria e seca, de pele fina como papel e veias saltadas. – Mãe?

– Ela está repousando – informou uma voz.

Uma mulher com cerca de cinquenta anos, cabelos ruivos e um uniforme de enfermeira branco e cinza se aproximou, vindo do closet. Ela combinava perfeitamente com a decoração, e ele não desconsideraria a possibilidade de a mãe tê-la contratado exatamente por isso.

– Sou Patty Sweringin – ela se apresentou, estendendo a mão. – Você deve ser o jovem senhor Baldwine.

– Lane. – Ele apertou a mão dela. – Como mamãe tem passado?

– Repousando. – O sorriso era tão rígido e profissional quanto o uniforme dela. – Ela teve uma manhã cheia. O cabeleireiro veio tingir o cabelo.

Ah, sim, a confidencialidade. O que significava que ela não tinha permissão de lhe contar a condição de saúde da sua mãe. Mas não era culpa da enfermeira. E se sua mãe ficara exausta apenas porque arrumaram seu cabelo? Como é que ele achava que ela estava?

– Quando ela acordar, diga que… – Relanceou para a mãe.

– O que devo dizer, senhor Baldwine?

Ele pensou em Chantal.

– Vou ficar aqui alguns dias – replicou com seriedade. – Eu mesmo lhe direi isso.

– Pois não, senhor.

De volta ao corredor, ele fechou a porta e se recostou nela. Fitando um e outro retrato dos Bradford, descobriu que o passado voltava como uma picada de abelha.

Rápido e doloroso.

– O que está fazendo aqui?

Lizzie perguntara para ele no jardim, na escuridão, numa noite úmida e quente de verão. Acima, nuvens de tempestade tinham obscurecido a luz do luar, deixando as flores em broto e as árvores nas sombras.

Ele se lembrava de tudo; como ela ficara diante dele contra a parede de tijolos, com as mãos apoiadas nos quadris, o olhar fixo enfrentando o dele com uma firmeza a que ele não estava acostumado, seu uniforme de Easterly tão sexy quanto qualquer peça de lingerie que ele já tivesse visto.

Lizzie King tinha capturado a sua atenção desde a primeira vez que a vira na propriedade da família. E a cada regresso durante os recessos semestrais na faculdade, ele se via procurando por ela, buscando por ela, tentando se colocar em seu caminho.

Deus, ele adorava a perseguição.

E a captura também não era nada ruim.

Claro, ele não teve muitas experiências depois disso… e nem queria.

– E então? – ela exigiu saber. Como se, caso ele não entrasse logo no assunto, ela fosse começar a bater o pé no chão, e o movimento seguinte seria derrubá-lo por desperdiçar o seu tempo.

– Vim atrás de você.

Espere, não era isso. Ele quis dizer que viera vê-la. Para conversar com ela. Para olhá-la de perto.

Mas essas quatro palavras também eram verdadeiras. Ele queria saber qual era o sabor dela, como ela ficaria debaixo dele, o que…

Ela cruzou os braços diante do peito.

– Olha só, vou ser bem franca com você.

Lane deu um leve sorriso.

– Gosto de franqueza.

– Não acho que você vai continuar pensando assim depois que eu tiver acabado com você.

Opa, agora ele estava ficando excitado. Era curioso; isso não o teria aborrecido se ele estivesse com uma das mulheres com quem costumava se divertir. Mas ficar ali diante daquela mulher em particular com uma necessidade premente de ajustar as calças lhe pareceu… de mau gosto.

– Vou poupá-lo de perder seu tempo. – Ela manteve a voz baixa, como se não quisesse que ninguém os ouvisse, mas isso não diminuía o peso da mensagem. – Não estou, nem nunca estarei, interessada em alguém como você. Você não passa de um garoto levado que se diverte provocando o caos com o sexo oposto. Esse tipo de coisa era entediante quando eu tinha quinze anos, e levando em consideração que estou chegando aos trinta este ano, me sinto ainda menos atraída pela situação. Portanto, faça um favor: vá para o seu clube de campo, encontre uma dessas loiras junto à piscina e a transforme em mais uma esteira para você se exercitar por vinte minutos. Você não vai conseguir isso de mim.

Ele piscou como um idiota.

E pensou que o fato de estar tão chocado por alguém chamar sua atenção de tal maneira provava que ela estava certa.

– Agora, se me der licença, vou para casa. Estou trabalhando desde as sete horas da manhã.

Esticando a mão, ele a segurou pelo braço quando ela se virou.

– Espere.

– Como é? – Ela abaixou o olhar para o local em que mantinham contato e depois o fitou nos olhos. – A menos que seja algo relacionado às flores do jardim, você não tem nada a me dizer.

– Vai me dar uma chance de me defender? Ou vai só dar uma de juíza e me julgar?

– Você não está falando sério.

– Você sempre foi assim tão preconceituosa?

Ela se afastou da pegada dele.

– Antes isso do que ser ingênua. Ainda mais com um homem como você.

– Não acredite em tudo o que vê nos jornais…

– Ora, por favor. Não preciso ler nos jornais, eu vejo em primeira mão. Duas delas saíram ontem de manhã pelos fundos da casa. Na noite em que chegou, trouxe uma ruiva de um bar. E disseram que você foi fazer um check-up na quarta-feira, mas voltou com um chupão no pescoço, provavelmente adquirido quando a médica pediu para você virar a cabeça e tossir? – Ela o interrompeu quando ele fez menção de responder, ao levantar a palma na frente do rosto dele. – E antes que pense que estou mantendo esse lindo registro de conquistas porque sinto alguma atração por você, saiba que é porque as empregadas ficam prestando atenção em tudo isso e não param de comentar.

– Vai me dar a chance de falar? – ele rebateu. – Ou vai continuar este monólogo? Jesus, e você acha que eu é que sou o metido.

– O quê?

– Você acha que eu sou mimado? Bem, você está me deixando para trás nesse quesito, minha querida.

– Como é?

– Você resolveu que sabe tudo a meu respeito só porque um punhado de pessoas, que também não me conhecem, ficam falando de coisas sobre as quais não sabem nada. Isso é bastante arrogante.

– Não é sinônimo de mimada.

– Quer mesmo discutir lexicografia comigo?

Certo, o fato de estarem discutindo não deveria ser algo excitante, mas para o inferno se não era. Para cada rebatida, ele se via olhando menos para o corpo e mais para os olhos dela, o que a deixava ainda mais sexy.

– Olha só, a gente pode parar por aqui? – ela disse. – Tenho que voltar quase de madrugada para cá e esta conversa não é mais importante do que o meu sono.

Dessa vez, quando ela se virou, ele a deteve com a voz.

– Vi você perto da piscina ontem.

Ela o encarou por cima do ombro.

– Sim, eu estava arrancando ervas daninhas. Algum problema com isso?

– Você estava me medindo. Eu percebi.

Touché, ele pensou quando a viu piscar.

– Eu estava na piscina – ele sussurrou, dando um passo para se aproximar. – E você gostou do que viu, não gostou? Mesmo que odeie quem acha que eu sou, gostou do que viu.

– Você está enganado.

– Franqueza. Foi você quem mencionou isso antes. – Ele se inclinou, virando a cabeça de lado como se fosse beijá-la. – Então, tem coragem de ser franca?

As mãos dela remexeram no colarinho da camisa polo.

– Não sei do que está falando.

– Mentirosa. – Ele sorriu. – Por que acha que fiquei lá fora tanto tempo? Foi por sua causa. Gostei que estivesse admirando o meu corpo.

– Você está louco.

Deus, a negativa falsa dela foi ainda melhor do que o último orgasmo que teve com um boquete.

– Estou? – Concentrou-se nos lábios dela e, em sua mente, estava beijando-os, lambendo-os, puxando-a para junto de si. – Acho que não. E estou mais para mulherengo do que para covarde.

E foi assim que ele a deixou.

Virou-se no caminho de tijolos, e seguiu para a casa, deixando-a para trás.

Mas ele sabia, a cada passo, que ela não conseguiria deixar as coisas naquele pé.

Da próxima vez, ela o procuraria…

E, claro, foi o que aconteceu.


A história verídica de Sunny von Büllow, socialite americana que ficou 28 anos em estado vegetativo, inspirou o filme O reverso da fortuna (1990), dirigido por Barbet Schroeder. (N.E.)

 

SETE

– Desculpe, o que disse?

Lizzie falava, fitando as flores no vaso que segurava, sem conseguir se lembrar o que deveria fazer com elas… Ah, sim, colocá-las num balde até o fim do expediente para depois enrolá-las num papel toalha umedecido e depois num saco plástico, e levá-las para casa.

– Pode repetir? – pediu, olhando para o outro lado da estufa onde Greta estava.

– Eu estava falando em inglês dessa vez, sabe?

– Só estou meio distraída.

– O pessoal da tenda está exigindo pagamento antecipado. Ou vão desmancharr tudo o que arrmarram até agorra.

– O quê? – Lizzie abaixou o buquê ao lado dos vasos de prata vazios. – É uma nova política deles?

– Acho que sim.

– Vou falar com Rosalinda, então. Sabe qual é o montante?

– Doze mil, quatrrocentos e cinquenta e nove e setenta e dois centavos.

– Um instante, preciso anotar isso. – Lizzie apanhou uma caneta. – Pode repetir?

Anotou o valor na palma da mão, e olhou para o jardim. O pessoal da tenda tinha acabado de esticar a lona e estava começando a distribuir os postes enquanto alguns costuravam seções com cordas grossas.

Em mais duas horas eles terminariam. Três no máximo.

– Ainda estão trabalhando – murmurou.

– Não porr muito tempo. – Greta voltou a limpar as flores cor-de-rosa. – O escrritório deles ligou, dizendo que estão prreparrados parra voltarr parra o caminhão.

– Não há razão para surtar por causa disso – murmurou Lizzie, saindo.

O escritório de Rosalinda Freeland ficava na ala da cozinha, e ela tomou a rota externa mais longa porque estava cansada de esbarrar em Lane.

Estava no terraço, na metade do caminho, passando pelas portas francesas que davam para a sala de jantar quando olhou na direção do centro de negócios.

As instalações foram montadas onde costumavam ficar os estábulos e, assim como a estufa, tinham vista para o jardim e o rio. A arquitetura da estrutura combinava perfeitamente com a de Easterly, e a área total devia ser a mesma da mansão. Com uma dúzia de escritórios, uma sala de reuniões do tamanho de uma sala de aula de universidade, e cozinha e sala de jantar próprias, William Baldwine comandava a empresa produtora de bourbon da esposa a partir de um complexo de primeira linha.

Quase não se via gente à toa por aquelas partes, mas, pelo visto, alguma coisa estava acontecendo porque havia um grupo de pessoas de terno parado no terraço do lado de fora da principal sala de reuniões, fumando e conversando num enclave fechado.

Estranho, ela pensou. O senhor Baldwine era fumante, por isso era improvável que aquelas pessoas tivessem sido banidas para o terraço apenas para fumarem em paz.

De fato, ela reconheceu a única mulher não fumante naquele bolo. Era Sutton Smythe, herdeira da fortuna da Destilaria Sutton Corporation. Lizzie nunca a vira pessoalmente, mas muito se publicara sobre aquela mulher – era muito provável que ela se tornaria, na década seguinte, a cabeça de uma das maiores destilarias do mundo.

A bem da verdade, já parecia que ela era a chefe, com aqueles cabelos escuros penteados e o terno preto sério e caríssimo. Ela era mesmo uma mulher notável, com feições atrevidas e um corpo curvilíneo que poderia colocá-la no território das mulheres de negócio mais sexy do país, caso quisesse jogar tal jogo, o que, evidentemente, não era o caso.

Contudo, o que estaria fazendo ali?

Falando em dormir com o inimigo…

Lizzie meneou a cabeça e atravessou a porta dos fundos da cozinha. O que quer que estivesse acontecendo ali, não era problema seu. Ela estava muito, mas muito abaixo naquele totem, apenas tentando erguer uma tenda para os seus arranjos florais.

Uau.

Quantos chefs juntos!, ela pensou ao desviar dos homens e mulheres de chapéus altos e dólmãs brancos que acabariam com escoliose por ficarem tanto tempo curvados enrolando mil folhas e coisinhas recheadas com cogumelos.

Atrás de todos aqueles Gordon Ramsays, havia uma pesada porta vai e vem que se abria para um corredor simples repleto de armarinhos, a lavanderia e a sala de descanso das arrumadeiras, assim como os aposentos do mordomo, da organizadora e a escada dos empregados.

Lizzie seguiu até a porta da direita, que tinha uma plaquinha onde se lia PARTICULAR e bateu uma vez. Duas. Três vezes.

Considerando que Rosalinda era eficiente e pontual como um relógio, ela não devia estar ali. Talvez tivesse ido ao banco.

– … verificaremos novamente dentro de uma hora – dizia o senhor Harris ao entrar no corredor do lado oposto, acompanhado pela governanta. – Obrigado, senhora Mollie.

– O prazer é meu, senhor Harris – a mulher mais velha murmurou.

Lizzie fitou o mordomo enquanto a governanta se afastava.

– Temos um problema.

Ele parou diante dela.

– Sim?

– Precisamos entregar mais de doze mil para a empresa que aluga a tenda e a senhora Freeland não está aqui. Você pode emitir cheques?

– Eles precisam de doze mil dólares? – ele perguntou em seu sotaque cortante. – Mas por que motivo?

– Para o aluguel da tenda. Imagino que seja uma nova política da empresa. Nunca exigiram isso antes.

– Mas estamos falando de Easterly. Temos uma conta com eles desde a virada do século e eles farão uma exceção. Permita-me.

Girando sobre os sapatos bem lustrados, ele seguiu para os seus aposentos, sem dúvida para telefonar para a empresa.

Se ele conseguisse dar um jeito naquilo e Lizzie tivesse a sua tenda e as mesas, até que valeria a pena aguentar a sua atitude arrogante.

Além disso, se o pior acontecesse, Greta poderia assinar um cheque.

Duas coisas eram certas: Lizzie não pediria a Lane, e eles precisavam daquela tenda. Em menos de 48 horas, o mundo viria até a propriedade, e nada irritava mais os Bradford do que qualquer coisa fora do lugar.

Enquanto aguardava o mordomo retornar, todo triunfante em seu terno de pinguim, apoiou-se na parede de gesso lisa e fresca e se descobriu pensando na decisão mais idiota que tomara na vida…

Ela deveria ter deixado toda essa coisa para lá.

Depois que o temido Lane Baldwine a procurara à noite, no jardim, ela deveria ter deixado a discussão deles de lado. Por que diabos se importava se ele estava errado a seu respeito? Como aquele idiota ridículo, insano e egocêntrico podia ser assim? Ela não lhe devia nenhuma explicação para que o mundo voltasse ao seu eixo; além disso, isso não aconteceria sem o auxílio de uma marreta.

Não que ela não fosse apreciar uma tentativa nesses termos.

Mas o problema era que, entre os seus defeitos, estava a necessidade paralisante de não ser mal interpretada pelo clone de Channing Tatum.

Portanto, ela tinha que esclarecer o assunto. E, de fato, falou com ele durante todo o caminho até a sua casa naquela noite. Assim como no trajeto de volta a Easterly na manhã seguinte. E durante toda a semana que se seguiu.

No fim, acabou se convencendo de que ele a estava evitando: pela primeira vez desde que voltara para casa, fazia sete dias consecutivos que não o via. O lado bom, se é que era possível interpretar dessa forma, é que ninguém viu mulheres entrando e saindo da casa em horas estranhas em combinações pornográficas. O lado ruim era que agora ela estava com todos os discursos preparados, se arriscando a revelar exatamente quanto tempo desperdiçara gritando com ele em sua cabeça.

E Lane, sem dúvida, permanecia em Easterly. O seu Porsche – como se ele fosse dirigir qualquer outra coisa – ainda estava na garagem, e toda vez que era forçada a levar flores para o quarto dele, ela sentia a fragrância da colônia no ar e via a carteira ao lado das abotoaduras de ouro sobre a cômoda.

Ele estava jogando com ela. E por mais que ela detestasse admitir, estava funcionando. Sentia-se cada vez mais frustrada e mais determinada a encontrá-lo.

O homem era um mestre com as mulheres, isso mesmo.

O maldito.

E com mais um buquê de flores frescas em mãos, ela seguiu pela escada dos fundos até o quarto dele. Não esperava encontrá-lo ali, mas, de algum modo, a ideia de entrar no espaço dele e lançar alguns ataques verbais bem escolhidos oferecia um pouco de alívio. Quando bateu à porta, foi uma batida exigente, e depois de um instante, ela empurrou…

Lane estava ali.

Sentado na beira da cama. A cabeça entre as mãos, o corpo encurvado.

Ele não olhou para a porta.

Não parecia ter notado que havia alguém ali.

Lizzie pigarreou uma vez. Duas.

– Com licença. Preciso trocar as flores.

– Ah, obrigado. Muita gentileza sua.

Evidentemente, ele não parecia saber o que estava dizendo a ela. Os bons modos pareceram apenas um reflexo, o equivalente verbal de quando levamos uma martelada de borracha no joelho.

Isso não é da sua conta, ela resmungou para si mesma, conforme avançava na direção da cômoda.

A troca levou apenas um segundo, e logo ela tinha em suas mãos o arranjo imperceptivelmente murcho, voltando para a porta entreaberta. Aconselhou a si mesma para não olhar para ele enquanto saía. Até onde podia saber, seu cão de caça predileto podia estar com micose… ou talvez a namorada na Virgínia descobrira os trabalhos extracurriculares que ele vinha fazendo em Charlemont.

O maior erro aconteceu quando ela chegou à soleira.

Mais tarde, quando a situação explodiu em seu rosto, depois que superara suas paredes de autopreservação e se queimara, ela se convenceria de que, se simplesmente tivesse ido em frente, teria ficado bem. Suas vidas não teriam se chocado, deixando-a coberta de estilhaços.

Mas Lizzie olhou para ele.

E teve que abrir a boca uma vez mais:

– O que aconteceu?

Os olhos de Lane se ergueram.

– O que disse?

– Qual é o seu problema?

Ele apoiou as mãos nos joelhos.

– Sinto muito.

Ela esperava ouvir outra coisa.

– Pelo quê?

Ele fechou os olhos e abaixou a cabeça de novo.

E mesmo sem emitir som algum, ela soube que ele estava chorando.

E isso foi algo que ela não esperava de alguém como ele.

Quis preservar a privacidade dele, e fechou a porta.

– O que aconteceu? Estão todos bem?

Lane meneou a cabeça, inspirou fundo e se recompôs.

– Não. Nem todos.

– É a sua irmã? Ouvi dizer que ela está passando por…

– Edward. Eles o levaram.

Edward…? Deus, ela via o homem na propriedade de tempos em tempos, e ele parecia a última pessoa que alguém “levaria”. Ao contrário do pai, cujo escritório ficava em Easterly, Edward trabalhava no quartel general da CBB no centro da cidade e, pelo pouco que sabia, ele era o oposto de Lane, um homem de negócios muito sério e extremamente agressivo.

– Desculpe, mas acho que não estou conseguindo entender muito bem…

– Ele foi sequestrado na América do Sul, o resgate está em negociação. – Ele esfregou o rosto. – Não consigo nem imaginar o que estão fazendo com ele… Já se passaram cinco dias desde o primeiro contato. Jesus Cristo, como isso foi acontecer? Era para ele estar protegido lá. Como permitiram que isso acontecesse?

Então, ele estremeceu e a encarou.

– Você não pode dizer nada a ninguém. Nem Gin sabe disso. Estamos abafando o caso para que a imprensa não descubra.

– Não vou contar. Quero dizer, não direi nada a ninguém. As autoridades estão envolvidas?

– O meu pai está trabalhando com eles. Isto é um pesadelo… Eu falei para ele não ir para lá.

– Sinto muito. – Que declaração mais infeliz. – Posso fazer alguma coisa?

O que também era outra combinação infeliz de palavras.

– Devia ter sido eu – Lane murmurou. – Ou Max. Por que não poderia ter sido um de nós? Não servimos para nada. Devia ter sido um de nós.

A próxima coisa que ela se lembra foi de ter apoiado o vaso em algum lugar e ter se aproximado da cama.

– Posso pegar algo para você?

Sentou-se ao lado dele e levantou a mão para pousá-la no seu ombro, mas pensou melhor e…

Um celular tocou na mesinha de cabeceira, e quando ele não se mexeu para atender, ela perguntou: – Não quer atender?

Quando ele não respondeu, ela se inclinou para o lado, apanhou o telefone e mostrou a tela para ele. Chantal Blair Stowe.

– Acho que é a sua namorada.

Ele deu uma olhada de esguelha.

– Não, não quero falar com ela. E ela não é minha namorada.

Ela sabe disso?, Lizzie se perguntou ao recolocar o aparelho sobre a mesa.

Lane balançou a cabeça.

– Edward é o único de nós que vale alguma coisa.

– Não é verdade.

Ele deu uma gargalhada.

– Até parece que não. Não era o que estava me dizendo na semana passada?

De súbito, Lane se concentrou nela, e houve um silêncio estranho, como se só então ele tivesse percebido quem estava no quarto com ele.

O coração de Lizzie começou a bater forte. Havia algo naqueles olhos, algo que ela não vira antes. E que Deus a ajudasse, ela sabia o que era.

Sexo com um playboy não era de seu interesse. Desejo ardente por um homem de verdade? Isso… era algo muito mais difícil de fugir.

– É melhor você ir embora agora – ele disse com a voz contraída.

Sim, ela disse a si mesma, é melhor.

Ainda assim, por algum motivo louco, ela sussurrou:

– Por quê?

– Porque se eu já a desejava quando tudo não passava de um jogo – o olhar dele se concentrou na sua boca –, no meu estado atual, estou desesperado por você.

Lizzie se retraiu. Dessa vez, quando ele riu, foi um som mais grave, mais profundo.

– Você não sabe que o estresse é como o álcool? Ele o torna descuidado, estúpido e faminto. Eu deveria saber, a minha família lida tão bem com isso…

– Está tudo acertado, senhorita King.

Lizzie deu um pulo assustado, arquejando.

– Quê?

O senhor Harris franziu a testa.

– O aluguel da tenda. Já cuidei de tudo.

– Ah, sim, que ótimo. Obrigada.

Ela tropeçou, afastando-se do mordomo. Depois, tomou a direção errada no corredor, indo para a ala social da casa. Antes que o senhor Harris lhe chamasse a atenção, retrocedeu, encontrou uma porta para o lado externo e saiu.

Direto para o jardim.

Bem debaixo da janela do quarto de Lane.

Levando as mãos ao rosto, lembrou-se de como ele a beijara, duas noites depois de ela ter se sentado ao lado dele no quarto.

Fora ela a procurá-lo, sem a desculpa das flores dessa vez. Ela esperou pelo tanto que conseguiu e então, deliberadamente, foi até o quarto de Lane ao fim da jornada de trabalho para ver como ele estava, o que estava acontecendo e se houvera alguma resolução.

Nada vazara para a imprensa àquela altura. Toda a cobertura acontecera depois, quando, por fim, Edward regressara para casa.

Na segunda vez que ela entrara no quarto, batera com mais suavidade. Depois de um momento, ele lhe abriu a porta… e ela ainda conseguia ver o quanto ele envelhecera. Estava magro, com barba por fazer e olheiras profundas. Mudara de roupa, ainda que fossem apenas uma versão diferente do que ele sempre vestia: uma camisa com monograma, só que para fora da calça num dos lados; calças caras, embora estivessem amassadas na dobra do quadril e com as marcas dos joelhos; e sapatos Gucci. Dessa vez, ele estava usando apenas meias escuras.

E isso basicamente lhe contara o que ela precisava saber.

– Venha comigo – ela lhe dissera. – Você precisa sair deste quarto.

Com voz rouca, ele lhe perguntou que horas eram e ela respondeu que passavam das oito. Quando ele pareceu confuso, ela teve que esclarecer que já era noite.

Conduziu-o pela escada dos fundos como se ele fosse uma criança, segurando-o pela mão, sem mencionar nada em especial. A única coisa que ele lhe dissera era que não queria ser visto por ninguém, e ela se certificou para que isso não ocorresse, dirigindo-o para longe das conversas na sala de jantar, mantendo-o distante de olhos curiosos.

Conforme o levava para a noite cálida, ela ouvia risadas vindas da sala de jantar, cômodo no qual a refeição estava sendo servida.

Como podiam fazer aquilo?, ela se perguntara. Ficar jogando conversa fora como se nada tivesse acontecido? Como se um deles não estivesse longe dali, muito longe, em mãos muito perigosas.

Daquela vez, ela não fazia a mínima ideia do que estava fazendo com Lane e do porquê se importava tanto com o sofrimento dele. Só sabia que o playboy de uma faceta que ela rotulara como desperdício tornara-se humano, e que a dor dele era importante para ela.

Não foram muito longe. Apenas até a parede de tijolos, em meio às moitas de flores, além do belvedere do lado oposto ao jardim.

Sentaram-se juntos e não disseram muita coisa. Mas, quando ela lhe tomou a mão, ele a apertou com força, aceitando o que lhe era oferecido.

E quando ele se voltou para ela, Lizzie soube o que ele queria… não era conversar. Houve um momento de congestionamento em seu cérebro, com todos os tipos de: ei, espere, pare, longe demais…

Mas logo ela se inclinou e seus lábios se tocaram.

Os pensamentos eram complicados. Mas a conexão era simples demais.

E não ficou por isso. Ele a segurou, e ela permitiu. Ele colocou as mãos por baixo das suas roupas, e ela deixou.

Em algum momento no meio daquilo tudo, percebeu que o odiava porque se sentia atraída por ele. Loucamente atraída. E o observara sim na piscina naquela tarde, embora fosse muito mais do que isso: toda vez que ele entrava ou saía da casa, tentava espiá-lo, ainda que negasse isso para todos e qualquer um. Notícias de sua chegada iminente a Easterly tinham a capacidade de eletrizá-la, e as suas partidas a entristeciam. E a infeliz realidade era que ela invejara todas aquelas mulheres, as loiras burras com seus corpos perfeitos e sotaques sulistas, que colocavam a notória porta giratória diante do quarto em bom uso.

A verdade que não quisera admitir para si mesma era que encontraria algo para desgostar nele, mesmo que isso não fosse possível.

Não foi o dinheiro dele, ou a família centenária, nem as múltiplas mulheres, a sua aparência bela demais, tampouco o sorriso malicioso.

O que odiava nele era como ele a fazia se sentir. A vulnerabilidade fora uma invasora cruel em sua vida, um hóspede indesejado que se mudara para a sua casa, se infiltrara em seu trabalho e que a perseguia mesmo nos sonhos.

Em retrospecto, deveria ter dado ouvidos ao medo. Escolhido o instinto em vez da incrível atração.

Contudo, a vida nem sempre era sábia.

Às vezes, você não prestava atenção nos sinais de aviso, pisava fundo no acelerador, e saía derrapando no meio da curva, sem poder ver o fim.

E ela ainda sofria por causa da colisão, isso era fato.

 

OITO

Haras Vermelho & Preto, Condado Oglen, Kentucky

O sol começava a se por, e seus raios dourados penetravam a baia aberta do Estábulo B, derramando-se sobre o corredor de concreto e deixando um rastro de pura magia com o feno e partículas de pó misturadas. O som ritmado da vassoura no chão fazia as éguas se aproximarem, os olhos inteligentes e os focinhos graciosos avançando numa pergunta curiosa.

Edward Westfork Bradford Baldwine ia varrendo devagar, visto que seu corpo já não era como outrora. O esforço não era de todo ruim, a dor constante que sentia cedia ante o exercício leve. Contudo, o desconforto crônico retornaria assim que ele parasse ou começasse outra série de movimentos.

Já se acostumara a isso.

A combinação de músculos, ossos e órgãos que o amparavam na jornada da atual encarnação mortal era uma máquina que já não aceitava transições muito bem. Ela preferia atividades arraigadas, esforços repetitivos ou descanso contínuo em qualquer posição. Seus fisioterapeutas, também conhecidos como Sádicos, sugeriram que permanecesse ativo de diversas maneiras, como alguém que, segundo explicaram, tivesse que reativar as ondas cerebrais por meio de terapia ocupacional.

Quanto mais ele mudasse de atividade, melhor seria para a sua “recuperação”.

Ele sempre colocava essa palavra entre aspas. A verdadeira recuperação para ele seria voltar a ser quem ele fora – e isso jamais aconteceria, mesmo se conseguisse andar direito, comer direito, dormir a noite inteira.

Não havia como voltar a ser aquela pessoa, uma versão mais jovem, mais alegre, mais bela de si mesmo.

Ele odiava os Sádicos, mas eles eram uma parte pequena na sua longa lista de ódio. E aquele corpo alquebrado que eles pareciam tão determinados em reabilitar simplesmente não concordava com o programa. Já fazia quanto tempo que ele estava metido naquilo? E ainda havia dor, a eterna dor, a ponto de ser difícil juntar energias para atravessar aquela parede de fogo e chegar onde estava naquele instante, onde as coisas funcionavam com alguma semelhança de ordem.

Era como se ele se deparasse com o mesmo assaltante em cada beco pelo qual passava.

Às vezes, se perguntava se se sentiria menos exausto se houvesse um criminoso diferente de tempos em tempos, um inimigo diverso acabando com a sua qualidade de vida.

No entanto, os assaltos eram sempre executados pelo mesmo ladrão.

– O que está fazendo, menina? – Fez uma pausa para afagar um focinho negro. – Você está bem?

Depois de uma bufada da puro-sangue, Edward seguiu em frente. A época dos cruzamentos fora muito boa, e ele tinha noventa por cento das suas vinte e três éguas prenhas. Se tudo corresse conforme planejado, os potrinhos nasceriam em janeiro do ano seguinte, época crítica para iniciar os trabalhos de parto. Nas corridas, o relógio começava a correr segundo o calendário, não o dia do parto por si só; se você quisesse que um futuro animal de três anos disputasse o Derby o mais maduro e forte possível, era melhor que suas éguas parissem em março no mais tardar, considerando suas gestações de quase um ano.

A maioria das pessoas ligadas às corridas operava num sistema estratificado, onde os criadores ficavam separados dos treinadores iniciantes, que se diferenciavam dos treinadores de corrida. Mas ele tinha dinheiro e tempo suficientes nas mãos, de modo que não apenas criava cavalos, mas também os educava na escola primária em sua fazenda, no ensino fundamental no centro que adquirira no ano anterior, até em vendas massivas para estábulos em Steeplehill Downs em Charlemont e Garland Downs na vizinha Arlington, ali mesmo no Kentucky.

O dinheiro necessário para a criação e o treino era astronômico, e qualquer retorno era apenas uma hipótese, motivo pelo qual os cartéis dos investidores eram tipicamente formados para dividir a exposição e o risco financeiros. Ele, por sua vez, não lidava com cartéis, com coinvestidores ou sócios.

Ainda não perdera tudo. Na verdade, estava quase lucrando. A sua operação, no último ano e meio, tivera resultados admiráveis, tudo graças a Nebekanzer, o seu garanhão – que, por acaso, era o maior e mais malvado filho da mãe com o qual as pessoas já se depararam. No entanto, aquele maldito bastardo gerava filhos e filhas velozes, algo que descobrira quando se mudara ali para o chalé do administrador do Vermelho & Preto, e comprara num leilão o filho do demônio de quatro cascos e três da prole de dois anos de Neb. No ano seguinte? Todos os três descendentes venceram mais de 200 mil por cabeça até abril, e um deles chegara em segundo lugar no Derby, em terceiro em Preakness, e em primeiro em Belmont.

E aquele fora seu ano de debutante, como diziam. Este ano, esperavam que ele se saísse ainda melhor. Ele tinha dois cavalos seus no Derby.

Ambos filhos de Neb.

Ele não poderia dizer que seu coração estava naquele negócio, mas, certamente, era melhor do que ficar sentado ruminando sobre tudo o que perdera.

Assim como todos aqueles cavalos de corrida, ele nascera, fora criado e treinado para um futuro determinado: assumir a Cia. Bourbon Bradford. Mas, tal qual um puro-sangue com uma pata fraturada, esse já não era mais o seu futuro.

– Buenas noches, jefe.12

Edward acenou para um dos seus onze ajudantes do estábulo.

– Hasta mañana.13

Voltou a varrer, abaixando a cabeça.

– Jefe, hay algo aqui.14

– Quem?

– No sé.15

Edward franziu o cenho e usou a vassoura como bengala, claudicando até a porta da baia. Do lado de fora, numa manobra circular, uma limusine preta comprida parava diante do Estábulo A.

Moe Brown, o gerente do haras, caminhou até perto daquela monstruosidade, suas passadas largas diminuindo a distância. Moe tinha sessenta anos, era magro como um poste de cerca e inteligente como um matemático. E também tinha o “olho”: aquele cara conseguia predizer o futuro de um cavalo no instante em que o animal ficava de pé pela primeira vez. Era assustador, e algo inestimável naquele negócio.

E lentamente, com segurança, estava ensinando seus segredos a Edward.

O talento inato de Edward, por sua vez, era o da procriação. Ele simplesmente parecia saber quais linhagens cruzar.

Quando Moe parou ao lado da limusine, um chofer uniformizado saltou e deu a volta para as portas de trás, e Edward meneou a cabeça quando viu de quem se tratava.

Os Pendergast estavam enviando artilharia pesada.

A mulher de cerca de quarenta anos saindo do banco de trás da limusine devia ter um terço do peso de Moe, estava vestida de Chanel cor-de-rosa e tinha mais cabelos que a cauda de Neb. Bela como uma rainha, mimada como um cachorro da Pomerânia, e com uma determinação que faria as Flores de Aço16 saírem correndo para salvar seu dinheiro, Buggy Pendergast estava acostumada a conseguir o que queria.

Por exemplo, uns cinco anos atrás, armara uma jogada e fizera um dos herdeiros de uma família petrolífera largar uma perfeita primeira esposa em seu favor. E, desde então, vinha gastando o dinheiro dele com cavalos puro-sangue.

Edward já lhe dissera não três vezes pelo telefone.

Nada de cartéis. Nada de coinvestidores. Nada de sócios.

Ele trabalhava sozinho e sem interferências externas.

O homem que saiu atrás de Buggy não era o marido dela e, pela maleta que ele segurava, era possível deduzir que era algum tipo de contador. Por certo, não era nenhum segurança – era baixinho demais, e aqueles óculos eram um escoadouro de testosterona, como nunca antes visto por Edward.

Moe começou a falar com eles, e Edward entendeu que a coisa não ia bem. E tudo piorou quando aquela maleta foi sumariamente depositada sobre o capô da limusine e Buggy a abriu com um floreio, como se estivesse levantando a saia, à espera de que todos gemessem em aprovação.

Edward surgiu na luz tardia do sol com sua vassoura-bengala e mau humor. Enquanto se aproximava, Buggy não olhou para ele. E quando ele parou atrás de Moe, ela apenas o fitou com raiva, como se não apreciasse o fato de um ajudante de estábulo testemunhar aquilo tudo.

– … um quarto de milhão de dólares – ela disse – e eu vou embora com o meu potro.

Moe moveu o pedaço de feno que mastigava para o outro lado da boca.

– Acho que não.

– Eu tenho o dinheiro.

– Vocês todos têm que sair desta propriedade…

– Onde está Edward Baldwine? Exijo falar com…

– Estou bem aqui – Edward disse num tom baixo. – Moe, pode deixar que eu cuido disso.

– E Deus nos concede pequenos milagres… – o homem murmurou ao se afastar.

As lentes de contato coloridas de Buggy subiam e desciam, percorrendo o corpo de Edward, e até mesmo seu rosto cheio de Botox revelou o choque que sentiu.

– Edward… você está…

– Um arraso, eu sei. – Indicou o dinheiro. – Feche essa ridícula demonstração, volte para o seu carro e toque a sua vida. Já lhe disse pelo telefone, não vendo o meu rebanho.

Buggy pigarreou.

– Eu… hum… Fiquei sabendo o que aconteceu. Mas não fazia ideia de que…

– Os cirurgiões plásticos fizeram um excelente trabalho no meu rosto. Não concorda?

– Ah… sim. Claro que sim.

– Mas chega de jogar conversa fora. Você está de saída.

Buggy forçou um sorriso no rosto.

– Ora, Edward, há quanto tempo as nossas famílias se conhecem?

– A família do seu marido e a minha se conhecem há mais de duzentos anos. Não conheço a sua família e não faço a mínima questão de conhecer. Estou certo de que você não vai sair daqui com direito sobre qualquer um dos meus potros. Agora, vá. Pode ir.

Quando ele se virou, ela disse:

– Há duzentos e cinquenta mil dólares nessa maleta.

– E isso deveria me impressionar? Minha cara, consigo encontrar um quarto de milhão na almofada do meu sofá, portanto, eu lhe garanto, não estou nem um pouco tentado. E mais especificamente: não estou à venda. Nem por um dólar. Nem por um bilhão. – Voltou-se para o chofer. – Vou pegar a minha espingarda. Ou você vai voltar a se espremer na sua limusine e pedir para que o seu motorista pise fundo?

– Vou contar tudo isso ao seu pai! Isso é um desresp…

– O meu pai morreu para mim. Você pode discutir os meus negócios o quanto quiser com ele, mas adiantará tanto quanto este seu trajeto desperdiçado até o interior. Aproveite o seu fim de semana de Derby… em algum outro canto.

Pressionando o cabo da vassoura, ele começou a bambolear de volta ao estábulo. Em seu rastro, um coro de múltiplas portas se fechando e os pneus da limusine cantando no asfalto sugeriam que a mulher já devia estar ao celular, reclamando com seu marido vinte anos mais velho sobre a maneira vergonhosa como havia sido tratada.

Levando em consideração os boatos de que fora uma dançarina exótica aos vinte anos, ele podia adivinhar que ela fora exposta a coisas muito piores em sua vida prévia.

Antes que voltasse a entrar e retomasse a varrição, contemplou o cenário da sua fazenda: centenas de hectares de gramados verdejantes separados em picadeiros com cercas marrom-escuro. Três estábulos com telhados vermelho e cinza, e laterais pretas com molduras em vermelho. As construções externas para os equipamentos, os reboques de ponta de linha, a casa de fazenda branca onde ele ficava, a clínica veterinária e o picadeiro de exercícios…

Sua mãe era dona de tudo aquilo. O bisavô dela comprara a terra e dera início aos negócios equestres, e depois o avô e o pai dela continuaram a investir no negócio. As coisas desandaram depois que seu avô morrera, vinte anos antes, e Edward jamais considerara se envolver naquilo.

Como filho mais velho, estava destinado a assumir o papel de líder da Cia. Bourbon Bradford e, na verdade, era mais do que um legado ou primogenitura: era onde o seu coração habitava. Em seu sangue, era um destilador, tão escrupuloso com seus produtos quanto um padre o seria.

Então, tudo mudara.

O Haras Vermelho & Preto fora a melhor solução, uma distração que ocupava os seus dias até a hora de se embebedar para dormir. E, melhor ainda, era algo em que seu pai não estava envolvido.

O pouco futuro que tinha estava ali com os gramados e os cavalos.

Era tudo de que ele dispunha.

– Você gostou disso, não gostou? – Moe perguntou atrás dele.

– Não muito. – Passou o peso para o outro lado e recomeçou a varrer o corredor. – Mas ninguém vai ficar com uma parte da minha fazenda, nem mesmo Deus.

– Você não devia falar assim.

Edward olhou por sobre o ombro para lembrar ao homem a aparência do seu rosto.

– Acha mesmo que tenho medo de mais alguma coisa a esta altura?

Enquanto Moe fazia o sinal da cruz, Edward revirava os olhos… e retomava o trabalho.


“Boa noite, chefe.”

“Até amanhã.”

“Chefe, tem alguma coisa aqui.”

“Não sei.”

Referência ao filme Flores de Aço, de 1989, que se passa em uma pequena cidade da Louisiana e narra a história de um grupo de mulheres durante o falecimento de uma delas. A história tornou-se símbolo de lealdade e amizade entre as personagens que, apesar de delicadas como flores, demonstram ser fortes como o aço. (N.E.)

 

NOVE

– … deitada na cama, mexendo nos mamilos. – Virginia Elizabeth Baldwine, “Gin” para a família, se recostou na poltrona acolchoada. – Agora estou colocando a mão entre as pernas. O que quer que eu faça com ela? Sim, estou nua… Como mais eu poderia estar? Diga o que devo fazer.

Bateu o cigarro na taça de vinho de cristal Baccarat que esvaziara uns dez minutos antes e cruzou as pernas por baixo do roupão de seda. Os puxões em seus cabelos eram mais do que incômodos, e ela encarou a cabeleireira pelo espelho do banheiro.

– Hum… sim… – ela gemeu no celular. – Estou tão… molhada… e só pra você.

Ela teve que revirar os olhos quando ele disse que ela era uma boa moça, mas Conrad Stetson gostava justamente disso. Era um homem das antigas: precisava da ilusão de que a mulher com quem traía a esposa lhe era fiel.

Tão tolo.

Gin sentia saudades dos primeiros dias do relacionamento entre eles. Tinha sido difícil atraí-lo e afastá-lo do seu casamento. Ficou encantada com a determinação com que ele lutara contra a atração que sentia por ela, com a vergonha que ele sentiu após o primeiro beijo, com a resistência que ele demonstrou para não lhe telefonar, não vê-la, não procurá-la… E, por uma ou duas semanas, ela, de fato, estivera interessada nele, querendo as atenções dele, uma droga na qual valia a pena se perder.

E depois do sexo? Bem, para início de conversa, era papai e mamãe demais.

– Isso, ai, assim… vou gozar, vou gozar…

Enquanto ela “gozava”, a cabeleireira corava de vergonha, mas continuou a puxar seu cabelo negro. Uma criada vinha do closet com uma bandeja de veludo nas mãos contendo dois conjuntos, um de rubis da Birmânia feitos pela Cartier nos anos 1940, e uma criação em safiras da Van Cleef & Arpels do fim dos anos 1950. Ambos pertenceram à sua avó; um fora dado à Grande Virginia Elizabeth pelo marido no nascimento da mãe de Gin, e o outro fora um presente no vigésimo aniversário de casamento dos avós.

Produziu um som de fastio; depois pressionou o botão do mudo e meneou a cabeça na direção da criada.

– Quero os diamantes Winston.

– Acredito que a senhora Baldwine os esteja usando.

Gin visualizou a cunhada, Chantal, com mais de cem quilates em diamantes impecáveis, e sorriu, falando com lentidão, como se estivesse se dirigindo a uma tola: – Então arranque os diamantes que meu pai deu à minha mãe do pescoço e das orelhas daquela vadia e traga-os para mim.

A criada empalideceu.

– Será… um prazer.

Pouco antes de a mulher sair apressada do quarto, Gin a chamou: – Certifique-se de limpá-los antes. Não suporto o perfume de farmácia que ela insiste em usar.

– Será um prazer.

Referir-se ao Flowerbomb de Vyktor e Rolf como perfume de “farmácia” era um pouco exagerado, embora certamente não fosse nenhum Chanel. Francamente, o que esperar de uma mulher que sequer concluíra a Sweet Briar?

Gin liberou o som do celular.

– Querido, preciso ir. Tenho que me aprontar. Que pena que não está aqui. – Então seguiu-se uma sequência de vozinhas infantis.

Deus, será que ele sempre teve aquele sotaque sulista tão carregado? Os Bradford não tinham aquele sotaque anasalado horrível, mas apenas um leve arrastado para provar de que lado da Linha Mason-Dixon vinham, e para mostrar que sabiam a diferença entre bourbon e uísque.

Sendo que o último não merecia nenhum comentário.

– Tchauzinho – disse e desligou.

Ao terminar a ligação, resolveu pôr um fim naquele relacionamento. Conrad tinha começado a falar sobre deixar a esposa, e ela não queria isso. Ele tinha dois filhos, pelo amor de Deus. O que estava pensando? Uma coisa era se divertir um pouquinho além dos limites impostos pelo casamento, mas as crianças precisavam da ilusão dos pais.

Além disso, ela já provara que não podia ser mãe de nada. Nem mesmo de um peixinho dourado.

Meia hora mais tarde, usava um vestido Christian Dior vermelho UC e estava com aquele pesado colar Harry Winston sobre a clavícula. Seu perfume era Coco da Chanel, um clássico, que decidira adotar como marca registrada desde que completara trinta anos. Os sapatos eram Louboutin.

Não vestia calcinha.

Samuel Theodore Lodge viria jantar.

Ao entrar no corredor, olhou para a porta oposta à sua. Exatamente há dezesseis anos, dera luz à moça que morava lá. E seu envolvimento com Amelia terminara ali. Uma enfermeira, e mais duas babás, aliadas a uma longa passagem do tempo, e já estava indo para a escola preparatória.

Com isso, sequer tinha um vislumbre da filha.

De fato, Amelia não viera para casa no feriado de primavera, o que fora muito bom. Mas o verão se aproximava, e o regresso da moça de Hotchkiss não era o que ninguém, Amelia menos ainda, estava esperando.

Seria possível enviar uma moça de dezesseis anos para um acampamento?

Talvez devessem mandá-la para uma turnê de dois meses pela Europa. Os vitorianos faziam isso duzentos anos atrás, antes mesmo dos aviões e dos carros com air bags.

Poderiam pagar alguém para que fosse como acompanhante.

E, na verdade, a necessidade de mantê-la afastada de Easterly não significava que Gin não amasse a filha. Era apenas que a presença da jovem era um lembrete forte demais das escolhas erradas e mentiras de Gin, e de ninguém mais – e, às vezes, era melhor não olhar com muita atenção para essas coisas.

Além disso, a Europa era maravilhosa. Ainda mais se fosse explorada da maneira correta.

Gin avançou direto para a escadaria ao estilo de Tara que se bifurcava no meio antes de chegar ao enorme vestíbulo de mármore de Easterly. O vestido falava a cada passo, o caimento da seda resvalando na anágua de tule de um modo que a fazia imaginar a conversa abafada das francesas que costuraram aquele belo vestido de noite.

Ao chegar à plataforma do meio e escolher a escada da direita, mais próxima da sala onde os coquetéis eram sempre servidos, conseguiu ouvir as pessoas conversando. Haveria trinta e duas para o jantar daquela noite, e ela estaria sentada na cadeira outrora de sua mãe, na ponta oposta em que seu pai se sentava à cabeceira.

Já fizera aquela apresentação de dama da casa um milhão de vezes, e o faria outras tantas – normalmente, esta era uma obrigação que cumpria com orgulho.

Naquela noite, entretanto, por algum motivo havia um lamento em seu coração.

Provavelmente por ser o aniversário de Amelia.

Melhor começar a beber.

Quando telefonara para a filha, Amelia se recusara a descer e falar ao telefone do seu dormitório.

Era o tipo de coisa que Gin teria feito.

Viram? Ela era uma boa mãe. Entendia a filha.

Lane se recusou a usar black tie para o jantar. Estava com as mesmas calças e trocou a camisa por outra social, que deixara para trás quando fora morar com Jeff no norte.

Estava disposto a ser pontual e só.

Assim que chegou ao térreo, evitou ao máximo os olhares das pessoas e procurou um drinque. E se deparou com um velho amigo antes de chegar ao Reserva de Família.

– Ora, ora, ora, o nova-iorquino voltou para as suas raízes, finalmente – Samuel cdisse ao se aproximar.

Lane teve que sorrir.

– Como anda o meu advogado sulista-frito predileto?

Enquanto se abraçavam e davam tapas nas costas um do outro, a loira que estava com Samuel T. ficou de lado, com os olhos atentos, sem deixar passar nada despercebido. Seu vestido era notável – se fosse um pouco mais curto na parte de cima ou de baixo, ela estaria vestindo apenas um cinto.

Bem ao estilo de Samuel T.

– Permita-me que eu lhe apresente a senhorita Savannah Locke. – Samuel T. acenou para a mulher, como se dando permissão para que ela se aproximasse, e ela logo o atendeu, inclinando-se para a frente e oferecendo a mão delgada e pálida. – Vá pegar um drinque para nós, sim, querida? Ele vai tomar o Reserva de Família.

Enquanto a mulher recuava para o bar, Lane balançou a cabeça.

– Posso me servir sozinho.

– Ela era aeromoça. Gosta de servir as pessoas.

– Hoje em dia não são chamadas de comissárias de bordo?

– Então decidiu voltar? Não pode ser por causa do Derby. Isso era coisa do Edward.

Lane dispensou a pergunta, sem vontade de mencionar a situação da senhorita Aurora. Era difícil demais.

– Preciso da sua ajuda com uma coisa. Isto é, no âmbito profissional.

O olhar de Samuel T. se estreitou e mirou a mão de Lane, sem aliança.

– Está limpando a casa, pelo visto.

– Consegue agir com rapidez? Quero que a situação se resolva rápida e discretamente.

O homem assentiu.

– Pode me ligar amanhã de manhã. Cuido de tudo.

– Obrigado.

No alto da escada, sua irmã, Gin, fez a curva na plataforma do meio e parou, como se soubesse que as pessoas iriam querer examinar o que ela vestia – e o vestido vermelho e todas aquelas joias de fato estavam ali para serem contemplados. Com metros de seda rubra se estendendo pelo chão e aquele conjunto de diamantes digno da Princesa Diana, ela era o Oscar, a Town & Country e o Palácio de St. James, todos ao mesmo tempo.

As vozes que se calaram no vestíbulo eram sinal tanto de admiração quanto de condenação.

A reputação de Gin a precedia.

Não é que era de família?

Quando ela o viu junto a Samuel T., suas sobrancelhas se arquearam e, por uma fração de segundo, ela sorriu com sinceridade, a antiga luz voltando ao seu olhar, os anos sumindo até que os três voltassem a ser os mesmos de antes de todos os acontecimentos.

– Se me der licença – disse Samuel T. – Vou dar uma olhada naqueles drinques. Acho que minha acompanhante se perdeu.

– A casa não é tão grande assim.

– Talvez para mim e para você.

Enquanto Samuel T. se afastava, Gin levantou a barra do vestido vermelho e terminou de descer a escada. Quando pisou no mármore preto e branco, veio direto na direção de Lane, os saltos altos fazendo barulho pelo piso de mais de cem anos. Ele pensou em lhe dar um abraço de cavalheiro quando ela se aproximasse, em respeito ao penteado e às joias, mas foi ela quem o abraçou forte até que ele a sentiu tremer.

– Estou tão feliz que esteja aqui – ela disse com uma voz rouca. – Deveria ter me avisado.

E foi então que ele fez uns cálculos e percebeu que era o aniversário de Amelia.

Estava para dizer alguma coisa quando ela se afastou e recolocou a máscara no lugar, suas feições de Katharine Hepburn se arranjando num vazio perfeito que fez o peito dele doer.

– Preciso de um drinque – ela anunciou. – Para onde foi Samuel T.?

– Ele não está sozinho hoje, Gin.

– E isso importa?

Quando ela se afastou com a cabeça erguida e os ombros aprumados, ele sentiu pena da pobre aeromoça loira. Lane não sabia quem era a acompanhante de Samuel T., mas por certo ela entendia quem era seu par: lá no bar, ela estava encostada no quadril dele como o coldre de um revólver, como se estivesse ciente de que teria que proteger seu território.

Pelo menos ele teria algo para se distrair durante o jantar.

– O seu Reserva de Família, senhor? O senhor Lodge o mandou com os seus cumprimentos.

Lane se virou e sorriu. Reginald Tressel era o eterno barman em Easterly, e o cavalheiro afro-americano em seu casaco preto e sapatos reluzentes estava mais distinto que muitos dos convidados, como sempre.

– Obrigado, Reg. – Lane pegou o copo de cristal da bandeja de prata. – Ei, obrigado por me telefonar avisando sobre a senhorita Aurora. Recebeu o meu recado?

– Recebi. Eu sabia que o senhor gostaria de vir.

– Ela parece melhor do que pensei.

– Ela disfarça bem. O senhor não vai partir tão cedo, vai?

– Ei, como Hazel tem passado? – Lane desconversou.

– Muito melhor, obrigado. Sei que não vai querer voltar para o norte até que as coisas estejam resolvidas por aqui.

Reginald lhe lançou um sorriso que não alterou a sombra escura daqueles olhos negros, e depois retornou para as suas tarefas, caminhando em meio à multidão como um estadista, as pessoas o cumprimentando como um de seus semelhantes.

Lane se lembrava de quando ele era mais novo, quando as pessoas diziam que o senhor Tressel era o prefeito não oficial de Charlemont. Isso, certamente, não mudara.

Deus, não estava pronto para perder a senhorita Aurora. Seria o mesmo que ter que vender Easterly – algo que não conseguia imaginar num universo em que as coisas estivessem funcionando como deviam.

O cheiro de fumaça de cigarro o fez endurecer.

Só existia uma pessoa que podia fumar dentro daquela casa.

Imerso em tal pensamento, Lane seguiu na direção oposta.

Seu pai sempre fora fumante, seguindo as tradições sulistas, o que equivalia a dizer que mesmo o homem sendo asmático, ele se achava no direito patriótico de se presentear com câncer de pulmão – não que ele estivesse doente, ou que ficaria doente. Ele acreditava que um homem de verdade nunca deixava uma mulher puxar a própria cadeira à mesa, nunca maltratava seus cães de caça e nunca, jamais, ficava doente.

Bom código de conduta. O problema? Só contemplava isso. Não tinha nada a respeito dos filhos. Das pessoas que trabalhavam para ele. Do seu papel como marido. E os Dez Mandamentos? Eram apenas uma lista velha para governar as vidas das outras pessoas, de modo que ninguém se aborrecesse quando um atirasse no outro.

Era engraçado. Graças ao pai, Lane jamais fumara – e não era uma espécie de rebeldia. Ao crescer, ele e seus irmãos sabiam quando o homem se aproximava por causa do cheiro do tabaco, e isso nunca era uma boa notícia. Por conseguinte, ele ficava todo tenso, como num experimento de Pavlov, toda vez que alguém acendia um cigarro.

Provavelmente, foi a única contribuição positiva do pai em sua vida. E, ainda assim, uma ajuda insincera.

O gelo em seu copo batia como sinos enquanto ele andava pela casa, sem saber para onde estava indo… até chegar às portas duplas que se abriam para a estufa. Mesmo fechadas, ele sentiu o cheiro das flores, e ficou parado por um tempo olhando através dos vidros para o enclave verdejante e colorido do outro lado.

Lizzie, sem dúvida, estaria ali, arranjando buquês, como sempre fazia às quintas que precediam o Derby.

Como uma mariposa atraída pela luz, ele pensou ao ver a mão se esticando para a maçaneta de latão.

O som de Greta von Schlieber falando com aquela voz carregada de alemão quase fez com que desse meia-volta. Por causa de tudo o que fizera, a mulher o odiava, e ela não era de esconder suas opiniões. E provavelmente estaria segurando um par de tesouras de jardim.

Mas o chamado de Lizzie era mais forte do que qualquer necessidade de autoproteção.

E lá estava ela.

Mesmo tendo já passado das oito da noite, ela estava sentada num banco com rodinhas diante de uma mesa com vinte e sete vasos de prata do tamanho de bolas de basquete. Metade estava cheio com flores rosa-claro, brancas e creme, e os outros ainda tinham que ser arrumados. Esponjas florais molhadas aguardavam para ancorar as incontáveis hastes.

Ela espiou por sobre o ombro, deu uma olhada nele… e continuou falando sem perder o compasso.

– … mesas e cadeiras debaixo da tenda. E você poderia também pegar mais spray conservador?

Greta não foi tão fleumática. Embora estivesse evidentemente de saída, com a grande bolsa Prada verde no ombro e uma menor cor de laranja na mão, segurando as chaves do carro, aquele olhar fixo, aliado ao silêncio abrupto, sugeria que ela não iria a parte alguma até que ele voltasse para o jantar da família.

– Está tudo bem – Lizzie grunhiu. – Pode ir.

Greta murmurou alguma coisa em alemão. Depois saiu pela porta que dava para o jardim, resmungando baixinho.

– O que ela disse? – ele perguntou depois que ficaram sozinhos.

– Não sei. Provavelmente alguma coisa sobre um piano caindo na sua cabeça.

Ele sorveu um gole do copo, sugando o bourbon frio por entre os dentes.

– Só isso? Pensei que poderia ser algo mais sangrento.

– Acho que um Steinway caindo de uma altura baixa já faria um belo estrago.

Havia meia dúzia de baldes de dois litros ao redor dela, cada um contendo um tipo diferente de flor. Ela escolhia de um e de outro como se estivesse tocando notas em um instrumento musical: uma desta, depois uma daquela, voltando à primeira, depois a terceira, a quarta, a quinta. O resultado, em pouco tempo, era um lindo arranjo de pétalas brotando do contêiner de prata muito polido.

– Posso ajudar? – ele perguntou.

– Pode. Indo embora.

– Você está quase sem estas. – Ele olhou ao redor. – Ali, deixe que eu traga o outro balde.

– Pode voltar para o seu jantar? – ela replicou. – Você não está ajudando.

– E essas outras também já estão acabando.

Deixou o copo na mesa cheia de vasos vazios e começou a puxar os baldes pesados.

– Obrigada – ela murmurou quando ele retirou os vazios, levando-os para a pia de cerâmica. – Pode ir agora…

– Vou me divorciar.

O rosto dela não demonstrou nenhuma reação, mas as mãos, aquelas mãos fortes e seguras, quase derrubaram a rosa que pegava do balde que ele trouxera.

– Não por minha causa, espero – ela disse.

Ele virou um dos baldes vazios e se sentou no fundo, segurando o bourbon entre os joelhos.

– Lizzie…

– O que quer que eu diga? Parabéns? – Espiou na direção dele. – Ou você quer uma reação chorosa cheia de alívio? Porque posso lhe garantir neste instante, essa é a última coisa que vai conseguir de mim…

– Nunca amei Chantal.

– E isso importa? – Lizzie revirou os olhos. – A mulher estava grávida de você. Portanto, talvez você não a amasse, mas, obviamente, andou fazendo alguma coisa com ela.

– Lizzie…

– Sabe, seu tom exasperado que pede que eu seja racional é muito desagradável. É como se você achasse que estou fazendo algo errado por não lhe dar uma chance para você discorrer sobre toooodas as formas de como foi uma vítima. O que sei que é verdade: você veio com tudo pra cima de mim, e eu cedi porque lamentei o que estava acontecendo com o seu irmão. Naquela época, você mostrava uma fachada perfeita e socialmente aceitável para esconder o fato de que estava transando com uma empregada. O seu problema começou quando eu me recusei a ser o seu segredinho vergonhoso.

– Maldição, Lizzie, não foi nada disso…

– Talvez da sua parte…

– Nunca a tratei com inferioridade!

– Você só pode estar brincando. Como acha que me senti quando me disse que me amava e depois li sobre o seu noivado nas colunas sociais na manhã seguinte? – Ela levantou as mãos para o alto. – Você faz alguma ideia do impacto daquilo sobre mim? Sou uma mulher inteligente. Tenho a minha fazenda e estou pagando por ela com o meu próprio dinheiro. Tenho um mestrado em Cornell. – Ela bateu no peito. – Cuido de mim mesma. E ainda assim… – Desviou o olhar. – Você me pegou.

– Não fui eu quem colocou aquele anúncio.

– Bem, havia uma foto bem grande de vocês dois ali.

– Não foi minha culpa.

– Tolice! Está tentando me dizer que havia uma arma apontada na sua cabeça quando se casou com Chantal?

– Você não queria falar comigo! E ela estava grávida… Eu não queria que o meu filho nascesse um bastardo. Deduzi que era o único modo de agir como homem, dada a situação.

– Ah, mas você foi muito homem. Foi assim que ela acabou com um filho seu na barriga.

Lane praguejou e abaixou a cabeça. Deus, já perdera tanto tempo ansiando em poder refazer tudo com Lizzie – começando muito antes de quando ficaram juntos, quando estava fazendo sexo casual com Chantal e acreditara que ela estava tomando pílula.

Mas todos já sabem como isso terminou.

E a gravidez não fora a única surpresa que Chantal reservara para ele. A segunda fora ainda mais devastadora.

– Por isso, podemos dar um basta? – Lizzie perguntou ao partir para o vaso seguinte. – Isso não é da minha conta.

– Por que não fiquei com ela? – Ele se inclinou para a frente. – Já que tem tudo resolvido, por que não fiquei com ela? Por que fiquei afastado por quase dois anos? E se eu queria ter um filho com ela, por que ela não engravidou de novo depois que perdeu o primeiro?

Lizzie balançou a cabeça e o encarou.

– Que parte do “não é da minha conta” você não entendeu?

E foi nesse instante que ele avançou.

Assim como no primeiro beijo deles no jardim, no escuro, no calor do verão, ele foi tomado por emoções descontroladas ao se apossar da boca dela, por um instinto que ele não conseguia combater. Num momento, eles estavam discutindo; no seguinte, ele estava bem perto, segurando-a pela nuca e beijando-a com avidez.

E, assim como antes, ela retribuiu o beijo.

No entanto, da parte dela não foi paixão. Ele tinha quase certeza de que, para ela, o encontro das bocas não passava de uma extensão do conflito entre eles, uma discussão verbal tornando-se não verbal.

Lane não se importou. Ele a aceitaria de qualquer jeito.

 

 

CONTINUA