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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


OS REIS DO BOURBON
OS REIS DO BOURBON

                                                                                                                                                  

 

 

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

 

DEZ

Claro que era uma ideia muito idiota.

Contudo, enquanto Lizzie retribuía o beijo, foi como se ela estivesse afunilando dois anos de raiva, frustração e dor diretamente dentro dele. E que ele fosse para o inferno, mas seu sabor era de bourbon, de desespero e de sexo selvagem… e ela gostava disso.

Ela sentia falta disso.

O que a deixou ainda mais enfurecida. Ela queria dizer que aquilo era horrível. Que era contra a sua vontade. Uma violação.

Mas não era verdade. Foi ela quem enfiou a língua na boca dele, e foi ela quem enterrou os dedos nos ombros dele, e foi ela quem, que Deus a ajudasse, aproximou o corpo, colando-se nele.

Para poder sentir a ereção dele.

Seu corpo não mudara no tempo em que ficaram afastados; ele era todo feito de músculos rijos e membros delgados. E ele beijava como antes, com aspereza e avidez, apesar de ter sido criado como um cavalheiro. E seu calor continuava o mesmo.

E então, para piorar ainda mais as coisas, memórias dos dois juntos, pele contra pele, se chocando, se balançando, ondulando, a assaltaram, enterrando toda a mágoa e o sentimento de traição debaixo de uma avalanche de lembranças eróticas.

Por uma fração de segundo, percebeu que acabaria fazendo sexo com ele ali mesmo, naquele instante.

Sim, claro, porque era uma maneira eficaz de mostrar que estava falando sério.

Um verdadeiro momento Gloria Steinem.17

Em vez disso, algo foi derrubado na mesa e o barulho interrompeu o silêncio; em seguida, um esguicho molhou o quadril e a coxa dela num choque de água fria. Dando um salto, ela o empurrou com força, e Lane tropeçou e caiu para trás, aterrissando no piso de ladrilhos.

Com um movimento brusco do braço, ela limpou a boca.

– Que diabos você estava fazendo?

Pergunta idiota. O mais adequado seria: O que ela estava fazendo?

Ele se pôs de pé na próxima batida de coração.

– Quis te beijar desde que voltei.

– O sentimento não é mútuo…

– Até parece. – Pegou o copo e sorveu um grande gole. – Você ainda me deseja…

– Saia!

– Está me expulsando da minha própria estufa?

– Ou você sai ou saio eu – ela rebateu. – Essas flores não vão parar nos vasos sozinhas. A menos que queira metade das mesas vazias na sua festa do Derby?

– Não estou nem aí com elas. Ou com essa maldita festa. Ou com nada disso… – Ele gesticulou, e teria sido mais convincente caso não estivesse segurando um bourbon da família naquele copo. – Deixei tudo isso para trás, Lizzie. Já estou farto mesmo.

Motrin. Era disso que ela precisava.

Menos Lane e mais analgésicos.

– Eu desisto – murmurou ela. – Você venceu. Vou eu.

Quando ela se virou para ir embora, ele a segurou e a girou, arrastando-a para junto de si. Foi nesse momento que ela notou o quanto ele envelhecera desde a última vez que o vira. Seu rosto estava mais magro, o olhar mais cínico, os pés de galinha mais acentuados nos cantos dos olhos.

Infelizmente, só o tornava mais belo.

– Nada dessa história horrível com Chantal é como você pensa – ele disse sombriamente.

– Mesmo que seja apenas metade…

– Você não entende…

– Eu estava apaixonada por você. – Sua voz se partiu, e ela o empurrou. – Eu não achava que a gente fosse se casar necessariamente, mas não pensei que você estivesse a caminho do altar com outra mulher. Que estava grávida… e que ainda por cima engravidou enquanto você estava comigo.

– Eu tinha terminado com ela, Lizzie. Antes de voltar para cá naquele mês de abril, eu disse para ela que estava acabado.

– Mas não foi bem assim, não é?

– Ela estava grávida de três meses quando fiquei sabendo, Lizzie. Faça as contas comigo. Estive com Chantal pela última antes de vir para cá, no aniversário da minha mãe, no fim de março. Você e eu… ficamos juntos em maio, e no fim de junho eu fiquei sabendo da gravidez. Se você se lembrar bem, não saí de Easterly durante todo aquele tempo. Você sabia onde eu estava todos os dias e todas as noites porque eu estava com você. – Ele a encarou do alto. – Três meses. Não dois, nem um. Três meses, Lizzie.

Ela levou as mãos ao rosto, lutando contra a lógica.

– Por favor, pare de fazer isso.

– Isso o quê?

– Dizer meu nome. Isso lhe dá a ilusão da credibilidade.

– Não estou mentindo. E faz quase dois anos que quero esclarecer a situação. – Ele praguejou novamente. – Tem mais coisas, mas não quero entrar nessa parte. E não afeta o que existe entre mim e você.

Antes que ela percebesse o próprio movimento, descobriu-se sentada no banco de rodinhas que estivera usando antes. Olhando para as mãos, flexionou os dedos, sentindo a rigidez das juntas e, por algum motivo, pensou nas unhas perfeitas de Chantal, em suas palmas lisas e sem marcas. Falando em opostos… As mãos que ela fitava eram as de uma trabalhadora, que tinha arranhões nos dorsos provocados por espinhos de rosa perdidos, e terra debaixo das unhas, que ela só conseguiria limpar depois que chegasse em casa. Também havia pintas, por ter cavado a terra sem a proteção de luvas e, definitiva e positivamente, não havia nenhum diamante de um milhão de dólares em seu dedo.

– Casei com Chantal no cartório depois que você me deixou – ele continuou com severidade. – O bebê não tinha culpa, e por eu ter crescido sem meus pais, não queria fazer o mesmo com um filho meu, a despeito dos meus sentimentos pela mãe dele. Mas eu tinha que sair da cidade. Chantal não admitia que o casamento fosse apenas no papel. Por isso fui para o norte, ficar em Nova York com um amigo dos tempos da Universidade da Virgínia. Foi pouco depois que Chantal me ligou para falar que tinha perdido o bebê.

A amargura em sua voz fez ele falar tão baixinho que ela mal ouviu.

– Ela também não me ama – ele murmurou. – Não amava na época e não ama hoje.

– Como você pode ter certeza? – Lizzie se ouviu dizer.

– Pode confiar em mim quanto a isso.

– Ela pareceu bem contente em ter você de volta.

– Não voltei por causa dela e deixei bem claro. Essa mulher só é capaz de se afeiçoar a uma refeição grátis.

– Pensei que ela tivesse dinheiro.

– Nada comparado ao que eu tenho.

Sim, ela imaginou que devia ser verdade. Existiam países com menos renda anual do que a dos Bradford.

– Você é o amor da minha vida, quer esteja comigo ou não. – Quando ela ergueu o olhar, ele apenas encolheu os ombros. – Não posso mudar o que aconteceu e sei que não há como voltar… Só o que peço é que não acredite nas aparências, ok? Você está há dez anos com esta família, mas estou com eles e com pessoas que os cercam minha vida inteira. É por isso que é você quem eu quero. Você é real. Não é como eles e isso é uma coisa muito, muito boa.

Ela esperou que ele fosse expressar mais alguma coisa, e quando ele não o fez, ela voltou a fitar as mãos.

Por algum motivo, seu coração batia forte, como se ela estivesse próxima demais de um penhasco. Pensando bem, imaginou que era isso mesmo, porque as palavras dele estavam entrando em sua cabeça e embaralhando seus pensamentos.

De um jeito que não a ajudava em nada.

– Tenho muito medo de você – sussurrou.

– Por quê?

Porque queria acreditar no que ele dizia com o desespero de um viciado.

– Não tenha – ele disse quando ela não respondeu. – Nunca quis que nada assim acontecesse. E faz muito tempo que eu queria acertar as contas com você.

Parecia apropriado que estivessem cercados por tantos vasos de flores. A prova do seu trabalho, de seu único objetivo ali na propriedade, era um lembrete do divisor que sempre os distanciaria.

Ela se forçou a se lembrar daquela fotografia e do artigo no Charlemont Herald sobre o casamento, sobre os dois grandes legados sulistas se unindo num arranjo feudal. Também se lembrou dos dias e das noites logo depois que ficou sabendo de Chantal, de todas aquelas horas de sofrimento até que pensou estar à beira da morte.

Mas as palavras dele exprimiam verdade sobre uma coisa. O orgulho fez com que ela continuasse a trabalhar em Easterly. Assim, estivera presente na propriedade todos os dias, exceto aos domingos, pelos últimos vinte e quatro meses. E Lane não voltara. Durante dois anos… ele não voltara para ver Chantal.

Não era lá um grande casamento.

– Deixe que as minhas ações falem por si mesmas. Deixe que eu prove para você que estou dizendo a verdade.

Em sua mente, ela ouviu seu celular tocando insistentemente. Logo após o rompimento, ele lhe telefonara no mínimo uma centena de vezes, deixando mensagens que ela nunca ouvira. Ela tirara duas semanas de férias assim que soube de tudo, fugindo para a fazenda em Indiana, voltando para Plattsburgh no nordeste, para o pomar de maçãs da sua juventude. Seus pais ficaram felizes em vê-la, e ela passara aqueles dias a cuidar das árvores McIntosh junto aos outros trabalhadores.

Quando regressara, ele já tinha ido embora.

Os telefonemas cessaram depois de um tempo. E, no fim, ela parou de ter sobressaltos toda vez que um carro parava na porta da frente.

– Por favor, Lizzie… diga alguma coisa. Mesmo que não seja o que quero ouvir…

O som da risada de uma mulher o interrompeu com suavidade e fez com que ambos olhassem para as portas que se abriam para o jardim. Quando Greta saíra, um dos painéis não se fechara por completo, e através da abertura, Lizzie viu duas pessoas andando pelo caminho de pedras em direção à piscina no extremo oposto.

Mesmo sob a iluminação fraca do paisagismo, ficou claro que o vestido de gala da mulher era vermelho rubi, suas saias volumosas se arrastando atrás dela. Ao seu lado, um homem alto de terno lhe ofereceu o braço num galanteio e a encarava com o tipo de atenção que se reserva a um lauto banquete.

– Minha irmã – Lane disse, sem necessidade.

– Aquele é Samuel T.? – Lizzie perguntou.

– Quem se importa…

Ela voltou a olhar para Lane.

– Você partiu o meu coração.

– Eu sinto muito. Não foi minha intenção, Lizzie, de modo nenhum. Juro por Deus.

– Pensei que você fosse ateu.

Ele ficou calado um instante, os olhos vasculhando suas feições.

– Eu me batizaria mil vezes, se necessário. Posso memorizar a Bíblia, beijar o anel do papa… faço qualquer coisa que você quiser… mas, por favor…

– Não posso voltar no tempo, Lane. Sinto muito. Não consigo.

Ele se calou. E depois de um longo instante, assentiu.

– Tudo bem, mas posso pedir uma coisa?

Não.

– Sim.

– Não me odeie mais. Eu já faço muito isso sozinho.

O jardim estava perfumado como uma mulher recém-saída do banho, tão arrumado quanto a sala de estar, e tão reservado quanto a biblioteca de uma universidade.

O que significava de fato que era semirreservado. As várias janelas de Easterly davam para as moitas de flores brancas e creme, todas elas bem cuidadas e discretamente iluminadas.

Felizmente, Gin não tinha problemas quanto a fazer sexo em público.

Enquanto se pendurava no braço forte de Samuel Theodore Lodge III, não se deu ao trabalho de esconder seu sorriso.

– Há quanto tempo está com ela?

– Desde quando chegamos. Uma hora?

Ela gargalhou.

– Ora, ora, meu caro Samuel, por que você perde tempo com mulheres como ela?

– Existe outro tipo?

Era difícil saber quem conduzia quem até os recessos escuros do canto mais afastado, onde o muro de tijolos se encontrava com os fundos da casa, onde ficava a piscina. Era para lá que ambos se dirigiam.

– Eu não sabia que você vinha – ela disse, erguendo a mão para tocar os diamantes pendurados no pescoço… e depois deslizar os dedos pelo corpete do vestido. – Eu teria me dado ao trabalho de vestir uma calcinha.

– Nova mania, então?

– Gosto quando você as arranca do meu corpo. Especialmente quando você se frustra e as rasga.

– Mas eu não faço parte de um clube exclusivo, não é mesmo?

– Não seja grosseiro.

– Foi você quem tocou no assunto da lingerie. E também foi você quem quis sair comigo. A menos que, para variar, precise mesmo de um pouco de ar fresco?

Gin estreitou o olhar nele.

– Você é um bastardo.

– Não de acordo com o dicionário. Meus pais estavam muito bem casados quando nasci. – Ele ergueu uma sobrancelha. – E creio que você não possa dizer o mesmo da sua filha, não é mesmo?

Ela parou, a maré virando numa direção que ela não previra.

– Está passando dos limites, Samuel. E você sabe disso.

– É um pouco estranho quando você fala de decoro. Você não está transando com aquele advogado casado da minha empresa? Acho que ouvi alguma coisa a esse respeito.

Ah, então era por isso que ele estava agindo daquela maneira.

– Está com ciúmes? – ela pronunciou de maneira arrastada, o sorriso retornando às suas feições.

– Ele não consegue te satisfazer. Não por muito tempo, e não como eu consigo.

Quando ele a agarrou, ela deixou, adorando o modo como as mãos dele seguraram sua cintura e a boca se afundou na sua. Não demorou muito para que ele erguesse sua saia até as coxas, mantendo-a ali apesar de toda a armação do vestido.

Pensando bem, ele vinha se metendo debaixo de tecidos finos e delicados desde os catorze anos, quando passara a frequentar os bailes da sociedade.

Samuel T. gemeu ao descobrir que ela não estava mentindo quando disse não ter nada debaixo daquele vestido, e seus dedos foram rudes ao penetrá-la. O fogo e o desejo que sentiu foram um tremendo alívio para os assuntos em que ela não queria pensar, o sexo lavando todos os seus arrependimentos e sua tristeza, dando-lhe nada além de prazer.

Não havia motivos para fingir o orgasmo que teve de fato, as unhas se enterrando nos ombros macios do smoking enquanto arquejava, a antiquada colônia Bay Rum tão atávica que fazia com que ele fosse um homem à frente do seu tempo.

Enquanto se entregava, pensava que ele era o único homem que já tinha amado – e o único que jamais teria verdadeiramente. Samuel T. era muito parecido com ela, só que pior: uma alma que nunca se assentaria enquanto estivesse passeando pelos caminhos de tijolos da expectativa social.

– Me come – ela exigiu ao encontro dos lábios dele.

Ele arfava, seu corpo estava rijo debaixo do smoking caro, pronto para ela… Mas em vez de lhe dar o que ela tanto queria, ele recuou um passo, abaixando a saia e fitando-a de longe.

– Samuel? – ela inquiriu.

Com uma lentidão deliberada, ele levou os dedos até a boca e os lambeu. Depois passou a língua para cima e para baixo, entre eles, lambendo a essência dela em sua pele.

– Não – ele disse. – Acho que não.

– O quê?

Samuel se inclinou na direção dela.

– Vou voltar para a festa do seu pai e vou me sentar à mesa dele. Adiantei-me e troquei a disposição dos lugares, de modo que Veronica estará sentada ao meu lado. E você vai saber quando eu colocar a minha mão entre as pernas dela, você vai vê-la se empertigar e tentar manter a compostura enquanto faço com ela o que acabei de fazer com você. Observe o rosto dela, Gin. E saiba que, assim que eu sair, vou transar com ela no banco da frente do meu Jaguar.

– Você não ousaria.

– Como acabei de dizer, preste atenção, Gin.

Ele se virou para se afastar, e ela quis jogar alguma coisa na cabeça dele. E vez disso, disse entre dentes cerrados: – O nome dela não é Savannah?

Ele relanceou por sobre o ombro.

– E eu me importo com o nome dela? A única coisa relevante é: ela não é você.

Dito isso, ele se afastou a passos largos naqueles elegantes sapatos de couro que ecoaram nos tijolos, com os ombros retos e a cabeça erguida.

Envolvendo-se com os braços, ela percebeu pela primeira vez que a noite estava fria. Embora fizesse 26°C.

Concluiu que deveria ter lhe contado a respeito do advogado. Em retrospecto, escolhera o homenzinho grudento exatamente porque sabia que cedo ou tarde Samuel T. descobriria.

Pelo menos uma coisa era certa: Samuel T. voltaria. Por algum motivo, os dois não conseguiam ficar longe um do outro por muito tempo.

E, no fim, ela acabaria tendo que lhe contar a respeito de Amelia, pensou. Mas não hoje. Nem… tão cedo.

Se aquele homem descobrisse que ela lhe escondera a filha por todos aqueles anos?

Ele seria capaz de matá-la.


Gloria Steinem, famosa feminista, é uma jornalista americana, célebre por seu engajamento com o feminismo e sua atuação como escritora e palestrante, principalmente durante a década de 1960. (N.T.)

 

ONZE

Depois que Lane saiu da estufa, a perspectiva de retornar para a festa do pai era extremamente desagradável, ainda mais depois de ouvir o gongo que anunciava que o jantar estava sendo servido. Mas, considerando-se que a outra alternativa seria ir ver Edward, ele…

– Lane?

Concentrando-se, olhou além do arco da sala de jantar. Uma morena alta num vestido cinza-claro estava parada diante dos antigos espelhos venezianos, a visão dos ombros nus tão adorável de trás quanto de frente.

Falando no diabo, ele pensou. Mas sorriu ao se aproximar e beijá-la no rosto macio.

– Sutton, como está?

Mas quis dizer: Que diabos você está fazendo aqui? Ela e a família eram o “inimigo”, proprietários da Destilaria Sutton, produtores do famoso bourbon Sutton e de outras bebidas – mas isso não significava que ele tivesse algo particularmente contra a mulher. Tradicionalmente, porém, pessoas da linhagem dela eram persona non grata em Easterly… em conversas… nas orações noturnas.

E eram fãs da UK. Portanto, eram azuis nos jogos, e não vermelhos.

Isso era algo que poderia irritá-lo.

Quando se abraçaram, seu perfume refletiu a mulher rica que era, sua fragrância delicada preencheram as narinas dele mesmo quando se afastou; assim como seu corpo perfeito e bem vestido, surgindo novamente em seus olhos quando ele piscou.

Mas não era por isso que estava atraído por ela. Aquilo era o mesmo que admirar uma pintura num museu ou um automóvel Duesenberg.

– Eu não sabia que você viria este final de semana. – Ela sorriu. – É bom te ver depois de tanto tempo. Você me parece bem.

Isso foi engraçado, porque ele se sentia uma merda.

– E você, bela como sempre.

– Vai ficar para o Derby?

Por cima do ombro de Sutton, ele viu que Chantal entrava na sala de jantar, o longo vestido amarelo se arrastando junto com a sua postura de inocente.

Só até eu preencher a papelada do divórcio, ele pensou.

– Lane? – Sutton o chamou.

– Desculpe. Na verdade, tenho que voltar logo para Nova York. – Afinal, aquelas partidas de pôquer precisavam dele lá. – Estou contente em ver você. Surpreso por vê-la no jantar do meu pai, mas contente.

Sutton assentiu.

– Também é uma surpresa e tanto para mim.

– Veio a negócios?

Ela sorveu um gole da taça de vinho.

– Hummm.

– Era para ser uma piada.

– Me diga uma coisa, você tem visto…

Ela deixou a frase inacabada, sem mencionar o nome, pois não havia motivos para que ela pronunciasse “Edward”. Por muitos motivos.

– Ainda não o vi. Mas vou até a fazenda.

– Sabe, Edward nunca vem à cidade. – Sutton tomou mais um gole da taça de borda fina. – Eu costumava vê-lo com bastante frequência antes que ele… Bem, fazíamos parte do conselho da Universidade de Charlemont, mesmo eu sendo fã da UK, e…

Enquanto a mulher prosseguia, ele ficou com a sensação de que ela não estava lhe informando fatos que ele já sabia, mas que revivia um período da vida cuja perda ela lamentava. Não pela primeira vez, ele ficou se perguntando o que realmente acontecera entre o garoto de ouro da família e a adorável filha do concorrente deles.

– Ora, se o filho pródigo não retornou…

O som da voz do pai foi um alerta que o atingiu tal qual uma flecha, e Lane encobriu seu dissabor ao tomar um gole de bourbon.

– Pai.

William Baldwine era quase tão alto quanto ele, tinha os mesmos cabelos negros e olhos azuis, o mesmo maxilar, os mesmos ombros. As diferenças eram a idade, o grisalho nas têmporas, os óculos bifocais de aro de casco de tartaruga, a ruga entre as sobrancelhas causada pelos muitos anos de semblante fechado. De algum modo, porém, todos aqueles sinais do passar dos anos não diminuíam a estatura do pai. De fato, apenas serviam de contraponto para uma aura de poder.

– Tenho que mandar arranjarem um lugar para você. – Por trás daqueles óculos, os olhos do pai encararam as roupas de Lane com um desdém apropriado para as fezes de um cachorro no meio de uma sala de estar. – Ou está de saída?

– Deixe-me pensar… – Lane estreitou o olhar. – Por mais que eu aprecie degradar a sua mesa com esta minha camisa, eu teria que ficar na sua presença durante uma refeição de, no mínimo, três pratos. Portanto, acho que vou embora.

Lane colocou seu Reserva de Família na mesinha de apoio mais próxima e se curvou para Sutton, que parecia preferir ir com ele em vez de ficar ali.

– Sutton, é sempre um prazer. – Olhou para o pai. – Pai, vá se foder.

Lançou essa granada e seguiu em meio à multidão, acenando para políticos e socialites, para aqueles dois atores da série da HBO na qual estava viciado e para Samuel T. e sua namorada do momento.

Chegou ao vestíbulo de entrada, e estava quase na porta da frente quando um par de saltos agulha se aproximou por trás.

– Aonde você vai? – Chantal sibilou ao agarrar o braço dele. – E por que não está vestido?

– Não é da sua conta. – Soltou-se dela. – Nos dois casos.

– Lane, é inaceitável…

– Essas palavras jamais deveriam passar pelos seus lábios, mulher.

Chantal fechou a boca muito bem delineada. Em seguida, inspirou fundo, como se estivesse com dificuldade para aplacar a raiva.

– Eu gostaria de passar um tempo com você esta noite, para conversar e discutir… nosso futuro.

– O único futuro em que você precisa pensar é quantas malas Vuitton vai precisar para a sua mudança.

Chantal ergueu o queixo.

– Você não faz ideia do que está falando.

Ele se inclinou na direção dela e abaixou a voz até um sussurro.

– Sei o que você fez. Sei que não “perdeu” o bebê. Se queria manter o aborto em segredo, não deveria ter pedido a um dos motoristas da família que a levasse para aquela clínica em Cincinnati.

Quando ela empalideceu, ele se lembrou exatamente onde estava quando o homem que a levara lá titubeou para lhe dar a informação.

– Não tem resposta? Não vai negar? – Lane a repreendeu. – Ou isso virá quando a surpresa por ter sido descoberta passar?

Houve um instante de silêncio, e ele sabia que ela estava pesando suas opções, tentando descobrir como abordá-lo de um jeito favorável.

– O que eu deveria ter feito? – disse ela por fim, baixinho. – Você me abandonou sem explicações, sem apoio, sem dinheiro, sem um modo de entrar em contato com você.

Ele fez um gesto abarcando as pinturas a óleo e os tapetes orientais.

– Sim, porque você ficou num lugarzinho bem largado no meio da selva.

– Você me abandonou!

– Por isso a solução foi se recompor para tentar seduzir outro homem, certo? Estou deduzindo que foi o que fez, já que você precisava caber de novo no manequim 38, não é? Minha querida esposa.

– Lane, você está dizendo coisas que não quer…

– Você matou um inocente…

Reginald veio da sala de estar com uma bandeja de prata com copos usados, deu uma olhada nos dois e voltou para trás, desaparecendo de novo no cômodo agora vazio.

Ah, sim, a vida em Easterly… Onde a privacidade era menos comum que diamantes e distribuída em termos relativos. Pelo menos sabia que podia confiar naquele homem mais do que em sua própria família.

Não que isso significasse muito.

– Não vou ficar aqui discutindo com você – Lane disse, ríspido. – E você vai sair desta casa. Assim que o Derby acabar, a sua estada grátis já era.

Chantal arqueou uma das sobrancelhas perfeitas.

– Peça o divórcio se quiser, mas não vou a parte alguma.

– Você não terá mais o direito de ficar sob este teto depois que essa aliança sair do seu dedo.

O sorriso que ela lhe lançou foi gélido.

– É o que vamos ver. – Acenou com a cabeça para a porta da frente. – Vá para onde quiser, fuja… É isso o que você faz, não é? Mas tenha certeza que: eu estarei aqui quando você voltar.

Lane estreitou os olhos. Chantal era muitas coisas, mas não era uma maluca. Ela se autopromovia demais para tanto.

E o encarava como se soubesse de algo que ele não sabia.

Que diabos aconteceu enquanto ele se manteve afastado?

No Vermelho & Preto, Edward estava sentado numa antiga poltrona de couro diante de uma televisão tão velha que ainda tinha antenas saindo da tela em forma de caixa. O cômodo estava na penumbra, mas reluzia por causa dos inúmeros troféus de corrida abarrotando as estantes até o teto do lado oposto.

O chalé do haras tinha um quarto, um banheiro com banheira com pés em forma de garras, uma cozinha pequena e aquela área, que era um misto de biblioteca, escritório, sala de estar e de jantar. Não havia segundo andar, apenas um sótão cheio de recordações de velhas corridas de cavalo, e também não havia garagem. A área era menor do que a sala de jantar de Easterly e, desde que se mudara para lá, ele aprendera a apreciar o valor de ter um lugar pequeno o bastante para poder ouvir e ver quase tudo. Lá na mansão, nunca se sabia quem mais estava na gigantesca casa, onde estavam, o que estavam fazendo.

Para alguém como ele, cuja única amante eram os terrores noturnos e cujo principal trabalho era impedir que seu cérebro se canibalizasse, os aposentos apertados eram algo muito mais fácil de lidar, ainda mais naquela época do ano. Pena que a sua ida à América do Sul, quando fora sequestrado, tivesse acontecido pouco antes do Derby. O aniversário da sua captura arruinara o que sempre fora um fim de semana agradável.

Consultou o relógio e praguejou. Agora que o sol tinha se posto, as horas se apresentavam numa confusão nebulosa, minutos se tornando séculos e um segundo ao mesmo tempo. O seu trabalho noturno? Chegar, de algum modo, ao nascer do sol sem gritar.

Junto ao cotovelo, havia uma garrafa de vodca quase vazia. Começara a beber com cinco cubos de gelo num copo alto, que já estava derretido havia um tempo, e ele agora sorvia a bebida pura. Na noite anterior, fora gim. Na de antes, tomara três garrafas de vinho, duas de tinto e uma de branco.

Durante a fase inicial e aguda da sua “recuperação”, aprendera todos os estágios da administração da dor, aprendera como espaçar os analgésicos e a comida a fim de fazer com que os impulsos nevrálgicos do seu corpo arruinado não fossem piores do que a tortura que suportara quando aquelas feridas foram provocadas. Mais tarde, o mestrado em Gerenciamento de Medicação se traduziu muito bem na segunda parte – a parte crônica, a da “recuperação”. Graças às tentativas e aos erros adquiridos com os analgésicos, ele conseguia distribuir tudo para otimizar o efeito sedativo: todas as tardes, por volta das quatro horas, comia alguma coisa; às seis, quando os funcionários liberavam os estábulos, ele podia começar a beber estando, basicamente, de estômago vazio.

Nada o irritava mais do que alguém se metendo no meio do seu torpor…

Quando uma batida se fez à porta, apanhou a pistola ao lado da garrafa Grey Goose e tentou se lembrar que dia da semana era. O Derby aconteceria dali a dois dias… Então era quinta-feira. Era quinta-feira, algumas horas depois do pôr do sol.

Portanto, não era uma das prostitutas que ele pagava para vir servi-lo. Elas vinham às sextas-feiras. A menos que tivesse chamado duas pelo preço de uma aquela semana, mas não havia pedido aquilo.

Certo. Ou havia?

Apanhando a bengala, suspendeu-se da poltrona e claudicou até a janela da frente. Afastou as cortinas, com a pistola firme numa mão, mas o coração batia descompassado. Mesmo ciente de que, pela lógica, não existiam mercenários no Condado Ogden à sua procura, que estava seguro atrás das travas e do sistema de segurança que instalara, apesar da quarenta milímetros em suas mãos… seu cérebro continuava eletrizado.

Quando viu quem era, franziu o cenho e abaixou a arma. Seguindo até a porta, retirou a corrente, destrancou as três travas e abriu a porta, as dobradiças rangendo como camundongos. Outro mecanismo de alerta para ele.

– Cliente errado – murmurou com secura para a loira baixinha que vestia jeans e camiseta justa. – Eu só peço morenas. Em vestidos de gala.

Por um motivo que preferia guardar para si.

Ela franziu a testa.

– O que disse?

– Só aceito morenas. E elas têm que estar adequadamente vestidas.

Ele queria cabelos longos curvados nas pontas, um vestido que se arrastasse pelo chão, e elas tinham que estar usando Must da Cartier. Ah, e tinham que ficar de boca fechada. Não tinham permissão para falar com ele enquanto estivessem transando. Ainda que as putas conseguissem representar bem o exterior, a ilusão frágil seria rompida no instante em que as vozes delas não fossem a da mulher que desejava, mas que não podia ter.

Ele já tinha bastante dificuldade para manter a ereção daquele modo; na verdade, a única maneira de fazer seu pau subir era se conseguisse acreditar na mentira pelo tempo necessário até chegar ao orgasmo.

A mulher em sua soleira pousou as mãos nos quadris.

– Acho que não sei do que está falando. Mas sei que estou no lugar certo. Você é Edward Baldwine, e este é o Vermelho & Preto.

– E você quem é?

– Filha de Jeb Landis. Shelby. Shelby Landis.

Edward fechou os olhos.

– Maldito seja Ele.

– Eu agradeceria se não usasse o nome de Deus em vão na minha presença. Obrigada.

Ele levantou as pálpebras.

– O que você quer?

– O meu pai morreu.

Edward se concentrou num ponto acima da cabeça dela, na lua que crescia acima do Estábulo C.

– Quer entrar?

– Se guardar arma, sim.

Ele enfiou a pistola no cós do jeans e recuou.

– Quer beber alguma coisa?

Quando ela entrou, ele percebeu o quanto ela era baixinha. E devia pesar só uns 45 quilos, isso se estivesse ensopada segurando um fardo de feno.

– Não, obrigada. Não bebo álcool. Mas eu gostaria de usar o seu banheiro. A viagem foi longa.

– É por ali.

– Muito obrigada.

Ele se recostou na porta. A picape na qual ela evidentemente chegara sabe lá Deus de onde estava estacionada à esquerda, o motor ainda estalava debaixo do capô.

Depois de fechá-la e trancar tudo de volta, ouviu a descarga nos fundos da casa. Um momento mais tarde, a moça voltou e olhou para os troféus.

Edward seguiu para a poltrona, fazendo uma careta de dor ao se acomodar.

– Quando? – ele perguntou ao se servir do resto da vodca.

– Uma semana atrás – ela respondeu sem olhar para ele.

– Como?

– Pisoteado. Bem, os médicos disseram que o coração dele não aguentou, mas a causa foi o pisoteamento. Foi assim que você se machucou?

– Não. – Ele sorveu um longo gole. – Então, o que você faz aqui?

Dessa vez ela se virou.

– O meu pai sempre disse pra eu vir para cá pra encontrar você se alguma coisa acontecesse com ele. Ele disse que você lhe devia uma. Nunca perguntei o quê.

Edward a encarou demoradamente.

– Quantos anos você tem? Doze?

– Vinte e dois.

– Jesus, como você é nova…

– Cuidado com o que diz perto de mim.

Ele teve que sorrir.

– Você é igualzinha ao seu velho, sabia disso?

– É o que dizem. – Ela voltou a apoiar as mãos nos quadris. – Não quero esmola. Preciso de um lugar pra ficar e de um trabalho. Sou boa com cavalos, assim como o meu pai era, e ruim com pessoas… Por isso, considere-se avisado. Não tenho dinheiro, mas tenho costas fortes e não tenho medo de nada. Quando posso começar?

– Quem disse que estou procurando ajuda?

Ela franziu o cenho.

– O meu pai disse que você precisaria. Disse que você precisaria de mais mãos.

O Vermelho & Preto era uma grande operação, e sempre havia vagas. Mas Jeb Landis era uma lembrança complicada do passado… e a família dele estava contaminada por associação.

Mesmo assim…

– O que sabe fazer?

– Limpar estábulos e manter os cavalos em ordem não é física nuclear…

Ele dispensou as palavras dela com a mão.

– Tudo bem, tudo bem, está contratada. E só estou sendo um cretino porque, assim como você, não me dou bem com as pessoas. Tem um apartamento vazio ao lado do apartamento de Moe, sobre o Estábulo B. Pode se mudar para lá.

– Mostre o caminho.

Edward grunhiu ao voltar a ficar de pé e carregou o copo consigo de propósito ao conduzi-la até a porta.

– Não quer saber do salário?

– Você vai ser justo. O meu pai disse que desonestidade não faz parte do seu caráter.

– Ele foi generoso ao dizer isso.

– Duvido. Ele conhecia homens e cavalos.

Enquanto Edward voltava a destrancar tudo, conseguia senti-la observando-o e odiou isso. Seus ferimentos eram o resultado de um inferno que ele preferia manter escondido do mundo.

Antes de deixá-la sair do chalé, olhou-a fixamente.

– Só há uma regra.

– Qual?

Por algum motivo, ele se deteve nas feições dela. Ela não se parecia fisicamente em nada com o pai – bem, desconsiderando-se a altura. Shelby, ou qualquer que fosse seu nome, tinha olhos claros, e não negros. E sua pele não tinha a consistência de couro, embora isso ainda pudesse mudar.

A voz dela, porém, era como a de Jeb: aquele sotaque arrastado tinha um fundo de solidez.

– Você não vai chegar perto daquele garanhão – Edward avisou. – Ele é malvado até os ossos.

– Nebekanzer.

– Você o conhece.

– Meu pai costumava dizer que aquele cavalo tinha gasolina nas veias e ácido nos olhos.

– Então você já conhece o meu cavalo. Não se aproxime dele. Não vai limpar a baia dele, não vai chegar perto dele se ele estiver no pasto e nunca, jamais, vai colocar qualquer coisa sobre a porta da baia dele se quiser conservá-la. E isso inclui a sua cabeça.

– Quem cuida dele?

– Eu. – Edward claudicou noite afora, o ar úmido e pesado fazendo com que ele pensasse que não conseguiria respirar. – E ninguém mais.

Enquanto tentava respirar fundo, perguntou-se se todos aqueles médicos tinham deixado passar algum ferimento interno. Pensando bem, talvez a sensação de sufocamento fosse causada pela imagem daquela moça perto do maldito garanhão negro. Ele só conseguia pensar no que Neb poderia fazer com ela.

Ela se colocou na frente e pegou a mochila sobre o banco do passageiro.

– Então você é o encarregado aqui.

– Não, Moe Brown é. Você vai conhecê-lo pela manhã. Ele será o seu chefe. – Edward seguiu na direção dos estábulos. – Como já disse, o apartamento ao lado do dele está mobiliado, mas não sei quando o último a morar lá saiu.

– Já dormi em baias e em bancos de praça. Ter um telhado sobre a cabeça já basta.

Ele olhou na direção dela.

– O seu pai… era um bom homem.

– Não era nem melhor nem pior do que qualquer outra pessoa.

Era impossível não pensar em quem devia ser a mãe dela – ou em como alguém poderia ter suportado tempo suficiente ao lado de Jeb até ter uma filha com ele. Jeb Landis era uma lenda na indústria, tinha uma lista de cavalos vencedores maior do que qualquer outro, vivo ou morto. Também fora um alcoólatra filho da puta, com um vício por jogo ainda pior do que a sua veia misógina.

Uma coisa com a qual Edward não tinha que se preocupar era se Shelby saberia tomar conta de si mesma. Se conseguira sobreviver tendo vivido com Jeb, trabalhar num turno de dezoito horas numa fazenda criadora de cavalos seria fácil, fácil.

Quando chegaram ao Estábulo B, as luzes detectoras de movimento se acenderam e os cavalos se movimentaram lá dentro, batendo os cascos e relinchando. Entraram pela porta lateral, passaram pelo escritório de Moe e pelo depósito de suprimentos, e Edward a levou até o lance de escadas que antes conduzia ao palheiro, cobrindo toda a extensão do telhado. Em algum momento nos anos 1970, o lugar fora convertido em dois apartamentos, e Moe morava no da frente, que dava para a passagem de carros.

– Vá na frente e espere por mim ali em cima – disse com os dentes cerrados. – Eu demoro um pouco para subir.

Shelby Landis subiu os degraus rapidamente no compasso que ele costumava usar, mas que agora já não apreciava mais, e sentiu como se tivesse uma centena de anos ao se juntar a ela no andar superior.

Àquela altura, já estava tão sem fôlego que chiava como um pneu murchando.

Afastando-se dela, viu que não havia nenhuma luz por baixo da porta de Moe, mas, de todo modo, não teriam incomodado o homem. Com o Derby em menos de quarenta e oito horas, se estivesse em casa, o homem já devia estar dormindo a sono solto.

Ainda mais se considerasse que um dos seus dois cavalos poderia acabar excluído da corrida.

Enquanto Edward seguia em frente e girava a maçaneta do apartamento seguinte, percebeu que não sabia o que faria caso a porta estivesse trancada. Não fazia ideia de onde as chaves poderiam estar…

A porta se abriu, lembrando-o de que ele estava em meio a uma minoria de paranoicos ali naquela fazenda. O interruptor ficava à esquerda na parede e, quando ele o apertou, ficou aliviado em ver que o lugar não estava muito empoeirado e que, de fato, havia um sofá, uma cadeira, uma mesa e uma cozinha minúscula que, em comparação, fazia com que a sua parecesse industrial.

– O seu pai nunca mencionou o motivo de eu estar em débito com ele? – perguntou, mancando até o corredor escuro.

– Não, mas Jeb não era de falar muito.

Apertando o segundo interruptor, viu que o quarto e o banheiro também estavam organizados.

– Eis o que você tem aqui – disse ele, exausto só de ver a distância até a porta.

Quatro metros e meio.

Era como se fossem quilômetros.

Ela se aproximou.

– Obrigada pela oportunidade.

Ofereceu a mão e o fitou nos olhos e, por um instante, ele sentiu uma emoção diferente da raiva que ardia e queimava em seu íntimo nos últimos dois anos. Não sabia como defini-la, e o triste era que não sabia se a mudança era bem-vinda.

Havia uma certa claridade em ter um princípio de operação unilateralmente hostil.

Deixou a mão dela pendurada no ar enquanto arrastava o corpo de volta até a saída.

– Veremos se, mais tarde, você vai me agradecer.

De repente, lembrou-se de toda aquela coisa de não praguejar e não beber álcool.

– Ah, e mais uma coisa. Se a cortina do meu chalé estiver fechada, não me incomode.

– Sim, senhor.

Ele assentiu e fechou a porta. Depois, muito lenta e cuidadosamente, começou a descer.

A verdade era que Jeb Landis fora o responsável pela sua recuperação. Sem o chute que o homem deu no seu traseiro, só Deus sabia se Edward ainda estaria naquele planeta. Deus, ainda se lembrava com nitidez quando o treinador viera visitá-lo no centro de reabilitação. Apesar da regra explícita de Edward de não receber visitantes, Jeb passara pela estação da enfermagem e marchara para dentro do seu quarto.

Eles já se conheciam havia uma década. O interesse de Edward por cavalos de corrida, e sua subsequente posse, aliado ao compromisso prévio de ser o melhor em tudo o que fazia, significava que ele só aceitaria um homem treinando os seus cavalos.

No entanto, jamais previra que o homem seria um tipo de salvador.

O esporro de Jeb fora breve e direto, mas mais eficiente do que todos os argumentos e apoio emocional que recebeu de outras pessoas. E, um ano após sua mudança para lá, tendo jogado fora todos os seus ternos e decidido que aquela seria a sua vida, Jeb lhe disse que estava deixando o Vermelho & Preto rumo à Califórnia.

Provavelmente porque alguns agentes de apostas de Chicago estavam atrás de um pedaço do traseiro dele.

Em todos aqueles anos, antes e depois do sequestro, o fato de Jeb ter uma filha jamais viera à baila. Mas, sim, ele abrigaria a filha do homem. Claro.

E, felizmente, ela parecia ser capaz de cuidar de si mesma.

Portanto, o pagamento do débito teria um custo baixo.

Pelo menos, foi o que ele disse a si mesmo naquela primeira noite.

Só que aquilo não foi bem verdade… nem de longe.

 

DOZE

– Paguei cem mil dólares para me sentar ao seu lado.

Gin ergueu o garfo Tiffany com desenho de crisântemo para mexer na comida, mal ouvindo as palavras ditas junto ao seu ouvido. Estava ocupada demais se concentrando no arranjo floral diante dela. Samuel T. estava mais à esquerda, e a partir daquele ponto focal florido, sua visão periférica permitia que ela o acompanhasse ao lado da namoradinha, Veronica/Savannah.

– Por isso, você poderia pelo menos conversar comigo.

Voltando a se concentrar, fitou o odioso Richard Pford IV. O homem era só uma versão do jovem que um dia fora: alto e magro, com um olhar capaz de cortar vidro e uma natureza suspeita que contrastava com a sua posição invejável na hierarquia social de Charlemont. Filho de Richard Pford III, era o único herdeiro da Distribuidora de Bebidas Pford, uma cadeia nacional que distribuía vinhos, cerveja, bourbon, gim, vodca, champanhe, uísque etc. nas prateleiras e nos negócios do país inteiro.

O que significava que ele podia bancar um valor de seis dígitos para garantir um assento todas as noites da semana e duas vezes aos domingos.

Ele nadava em milhões, e seus familiares nem tinham começado a morrer ainda.

– Os assuntos do meu pai não me interessam – ela rebateu. – Portanto, parece que desperdiçou o seu dinheiro.

Ele tomou um gole de vinho.

– E pensar que ele foi para o programa de basquete da UC.

– Não sabia que você era fã deles.

– Não sou.

– Não é de se admirar que não nos damos bem. – UK. Ela devia ter desconfiado. – Além disso, não ouvi dizer que você estava para se casar?

– Os boatos quanto ao meu noivado foram exagerados.

– Difícil de acreditar, com todas as suas qualidades.

À esquerda, Veronica/Savannah deu um salto na cadeira, os cílios postiços flanaram, o garfo bateu no prato. Enquanto as lentes coloridas se voltavam para Samuel T., o maldito limpava casualmente a boca com o guardanapo damasco.

Samuel T., no entanto, não estava olhando para a namorada. Não, ele casualmente fitava o buquê de flores bem na frente de Gin.

O filho da puta.

Deliberadamente, Gin se virou para Richard e sorriu.

– Bem, estou encantada com a sua companhia.

Richard assentiu e voltou a cortar o seu filé mignon.

– Assim é muito melhor. Por favor, não pare.

Gin falou com suavidade, ainda que não fizesse ideia do que estava saindo da sua boca. Mas Richard assentia mais e mais, e respondia, por isso ela deduziu que estava se saindo bem com suas habilidades sociais. Mas, pensando melhor, quer se tratasse de conversas que não a interessavam ou orgasmos com homens com os quais não se importava, ela tinha bastante prática em fingir.

E, mesmo assim, estava ciente do que Samuel T. estava fazendo. Dolorosamente ciente.

Os olhos dele queimavam, cravados nela. E, nesse meio-tempo, bem como ele lhe prometera, a vadia ao lado dele começou a se esforçar para manter a compostura.

– … me resguardei para você – Richard declarou.

Gin franziu o cenho, captando aquela combinação de palavras, a despeito da sua preocupação.

– O que disse?

– Eu estava determinado a me casar, mas entrei num acordo com o seu pai. Foi por isso que pus fim ao noivado.

– Entrou num acordo com o meu pai? Do que está falando?

Richard sorriu com frieza.

– O seu pai e eu chegamos a um acordo quanto ao futuro. Em contrapartida por se casar comigo, estou disposto a conceder algumas vantagens à Cia. Bourbon Bradford.

Gin piscou. Depois balançou a cabeça.

– Não estou ouvindo muito bem.

– Sim, sim, você está. E já lhe comprei o anel de diamantes.

– Não, não, não… Espere um minuto. – Jogou o guardanapo na mesa mesmo sem terminar de jantar, assim como as outras trinta e uma pessoas. – Não vou me casar nem com você nem com ninguém.

– Mesmo?

– Tenho certeza de que “comprou” o seu lugar nesta mesa. Mas ninguém me obriga a fazer porra nenhuma, e isso inclui o meu pai.

Pensou que era uma tristeza não ter questionado a possibilidade do seu bom e velho pai a vender em favor do preço das ações da empresa.

Richard deu de ombros debaixo do terno elegante.

– Se é o que você diz.

Gin olhou para a cabeceira da mesa onde William Baldwine estava sentado em comando total, como se estivesse em um trono suspenso, mantendo-o acima dos seus súditos.

O homem não percebeu o olhar letal e, portanto, não sabia que a bomba tinha sido lançada. Ou talvez, quem sabe, ele tivesse planejado dessa forma, sabendo que Richard seria incapaz de ficar calado, e que ela não poderia provocar um escândalo por causa das testemunhas.

E, maldição, seu pai tinha razão quanto a isso. Por mais que desejasse dar um pulo e começar a berrar, ela não rebaixaria o nome Bradford dessa maneira, certamente não com Sutton Smythe e o pai dela, Reynolds, no mesmo cômodo.

À esquerda, um gemido foi encoberto por uma tossidela fraca.

Gin desviou a atenção do pai para Samuel T., ao que o advogado ergueu uma sobrancelha… e lançou um beijo no ar na sua direção.

– Sim, pode levar o prato dela. – Ela ouviu Richard dizer para o garçom uniformizado. – Ela já terminou.

– O que disse? – Gin se virou para Richard. – Mas você não tem o direito de…

– Aprovo a sua falta de apetite, mas não vamos nos arriscar, certo? – Richard acenou para o garçom. – E ela também não vai comer a sobremesa.

Gin se inclinou para o homem e lhe sorriu. Num sussurro, disse: – Não dê o passo maior que a perna. Eu ainda me lembro da época em que você enchia a sua saqueira com meias. Dois pares, porque um não adiantava muita coisa.

Richard a encarou. Num tom igualmente baixo, respondeu:

– Não faça de conta que tem algum poder de decisão.

– Espere e verá.

– É você quem mal pode esperar para ver. – Ele se recostou e lançou-lhe o olhar satisfeito de um homem que tem um royal flush nas mãos. – Mas não demore muito. O peso dos quilates do seu anel diminui a cada hora.

Eu vou te matar, ela pensou consigo mesma enquanto olhava para o pai. Que Deus me ajude, mas eu vou te matar.

Quando Lizzie fez a curva na estradinha secundária, a faixa de terra para a qual se dirigiu dividia terrenos com plantações de milho e só era larga o bastante para a passagem do seu Yaris. Havia árvores em ambos os lados, não de maneira organizada, mas num padrão casual, arranjado pela natureza, e não pela enxada de um paisagista. Acima, galhos grossos se uniam formando um dossel de verde brilhante na primavera, esmeralda no verão, amarelo e laranja no outono e esquelético no inverno.

Normalmente, aquela procissão de meio quilômetro até sua fazenda era o início do seu relaxamento, uma câmara de descompressão que ela acreditava ser o único motivo pelo qual conseguia dormir depois de um dia de problemas em Easterly.

Não naquela noite.

De fato, ela queria olhar por sobre o ombro só para se certificar de que não havia ninguém com ela no banco de trás do carro. Não que coubesse alguém de mais de doze anos ali, mas, mesmo assim… Sentia-se perseguida. Caçada. Assaltada. Ainda que sua carteira continuasse dentro da bolsa e ela estivesse, de fato, sozinha em seu carro.

A casa da fazenda era uma clássica casa americana, exatamente o que se veria num filme da Lifetime que se passasse num fim de semana de quatro de julho: branca com uma varanda, com vasos de amor-perfeito, uma cadeira de balanço e um banco suspenso em um dos lados. Tanto a indispensável chaminé de tijolos vermelhos quanto o telhado pontudo com telhas cinza eram originais, da época da sua construção em meados de 1833. E o coup de grâce? Um bordo imenso que oferecia abrigo para o calor do verão e para o vento frio do inverno.

Estacionou debaixo da árvore, que era o que de mais próximo a uma garagem que ela tinha, e saiu do carro. Mesmo que Charlemont dificilmente fosse Manhattan, a diferença no nível de barulho era impressionante. Naquelas partes, havia sapos, vagalumes que não tinham nada a dizer, e uma coruja que começara a montar guarda num velho celeiro uns dois anos antes. Nenhum murmúrio da autoestrada. Nenhuma sirene de ambulância. Nenhum acorde de jazz ou blues vindos do parque às margens do rio.

Fechando a porta, o som foi amplificado pela escuridão, e ela se viu aliviada quando caminhou e as luzes ativadas pelo movimento, colocadas em ambos os lados da entrada, foram ativadas. As botas rasparam nos cinco degraus que rangeram, e a porta de tela a acolheu com o resmungo das dobradiças. A fechadura era de latão, relativamente nova. Fora instalada em 1942.

Do lado de dentro, tudo estava escuro, e quando ela confrontou o vazio, desejou ter um cachorro. Um gato. Um peixinho dourado.

Apertando o interruptor, piscou quando seu lar doce lar se iluminou com a suave luz amarela. A decoração não se parecia em nada com a dos Bradford. Na sua casa, se havia algo antigo, era por ser útil e por ter sido feito por algum artesão do Kentucky: uma velha cesta de vime, um par de colchas de retalhos gastos pendurado nas paredes, uma cadeira de balanço, um banco de pinho debaixo da janela, cabeças de enxadas e pás que encontrara nos campos e que ela mesma emoldurara, para depois pendurar na parede. Também tinha uma coleção de instrumentos musicais, inclusive diversos violinos, muitas canecas, algumas tábuas de lavar roupa, e o maior dos seus tesouros: seu piano Price & Teeple de 1907. Feito de carvalho, com dobradiças incríveis de cobre, pedais e outras partes metálicas, ela o encontrara apodrecendo num celeiro, na porção oeste da propriedade, e o restaurara com muito amor.

A mãe chamava sua casa de museu do folclore, e Lizzie concluiu que isso devia ser bem verdade. Para ela, não existia conforto maior do que se ligar a gerações de homens e de mulheres que trabalharam na terra, esculpiram suas vidas e transmitiram seu conhecimento de vida para as gerações seguintes.

Agora? Tudo era 3G, 4G, LTE, e os computadores e smartphones eram cada vez menores e mais rápidos.

Sim, porque esse sim era um legado de honra e de perseverança para deixar aos seus filhos: como se esforçar para ficar na fila por vinte e seis minutos a fim de adquirir um novo iPhone, com um copo do Starbucks numa mão e um blog a respeito de alguma inutilidade na outra para passar o tempo.

De volta à sua cozinha anos 1940 – o estilo não era importado da Ikea ou Williams-Sonoma com suas réplicas, mas sim o original, de quando ela comprara a casa sete anos atrás –, abriu a geladeira e encarou as sobras da torta de frango que fizera na segunda à noite.

Aquilo era tão inspirador quanto a ideia de comer lascas de tinta esquentadas numa frigideira.

Quando seu celular começou a tocar, olhou por sobre o ombro, para a bolsa que largara no corredor.

Deixe para lá, ela se ordenou. Apenas deixe…

Esperou até que o aparelho silenciasse, e esperou mais para ver se haveria outra chamada – caso fosse uma emergência com a mãe, outra ligação se seguiria. Ou pelo menos haveria um toque alertando a chegada de uma mensagem.

Quando nenhum dos dois aconteceu, ela foi até o corredor e apanhou a bolsa. Nenhuma mensagem. Não reconheceu o número, mas conhecia o código de área: 917.

Cidade de Nova York. Celular.

Tinha amigos que ligavam para ela daquela área.

Suas mãos tremiam ao abrir a lista de chamadas recebidas e apertar o último número.

Foi atendida antes que o primeiro toque terminasse.

– Lizzie?

Seus olhos se fecharam quando a voz de Lane entrou em seu ouvido e em todo o seu corpo.

– Alô? – ele disse. – Lizzie?

Havia muitos lugares para sentar em sua sala ou na cozinha – cadeiras, sofás, até mesmo a mesinha de centro era robusta o suficiente. Em vez de usar qualquer um desses móveis, recostou-se contra a parede e deixou o traseiro escorregar até o chão.

– Lizzie? Você está aí?

– Sim. – Apoiou a testa na mão. – Estou aqui. Por que está ligando?

– Eu só queria me certificar de que você chegou bem em casa.

Sem nenhum motivo, lágrimas surgiram em seus olhos. Ele sempre agia assim. No tempo em que estiveram juntos, não importava que horas ela saía, ele lhe telefonava assim que ela passasse pela porta. Como se tivesse um timer no telefone.

– Não estou ouvindo a festa – comentou. – Ao fundo.

– Não estou em casa.

– Onde você está?

– No Antigo Silo. No armazém de barris. – Ela ouviu um barulho, como se ele também estivesse se sentando no chão. – Faz muito tempo que não venho aqui. O cheiro é o mesmo. A aparência também.

– Nunca fui aí.

– Você gostaria daqui. É o seu tipo de lugar, tudo muito simples e funcional e feito à mão.

Ela relanceou para a sala de estar e se concentrou na primeira pá que encontrara nos campos onde plantava milho todos os anos. O objeto era velho e enferrujado e, para ela, belo.

O silêncio que se seguiu fez parecer como se ele estivesse na sala junto dela.

– Estou feliz que não tenha desligado – Lane disse por fim.

– Eu queria poder desligar.

– Eu sei.

Ela pigarreou.

– Pensei em tudo o que me disse, no caminho para casa. Pensei em como você estava enquanto conversava comigo. Pensei… em como as coisas eram.

– E?

– Lane, mesmo que eu conseguisse superar tudo, e não estou dizendo que consigo, o que, exatamente, você quer de mim?

– Qualquer coisa que você me der.

Ela gargalhou num acesso tenso.

– Isso foi bem franco.

– Tenho outra chance com você? Porque vou te dizer isso agora, neste instante, se houver a mínima chance de você me aceitar, eu…

– Pare – ela inspirou fundo. – Apenas… pare.

Quando ele parou, ela ficou puxando e puxando o cabelo, com tanta força que seus olhos ficaram ainda mais marejados. Ou talvez isso estivesse acontecendo por outros motivos.

– Eu queria que você não tivesse voltado – ela se ouviu dizer. – Eu queria… Eu já estava te esquecendo, Lane. Estava recuperando o meu fôlego, a minha vida. Eu estava… e agora você está aqui, dizendo as coisas que quero ouvir, olhando para mim como se estivesse falando sério. Mas eu não quero voltar. Não posso.

– Então vamos em frente.

– A vida não é fácil assim.

– Não é. Mas é melhor do que nada.

Enquanto o silêncio se estendia uma vez mais, ela não sentiu necessidade de falar, de explicar mais coisas, de detalhar tudo. E enquanto as palavras martelavam em sua cabeça, ela desistiu de lutar.

– Não fiquei um dia, uma noite sem pensar em você, Lizzie.

O mesmo valia para ela, mas ela não queria lhe dar esse tipo de munição.

– O que você andou fazendo esse tempo todo lá?

– Nada. E estou falando sério. Fiquei com um amigo, o Jeff… bebi, joguei pôquer. Esperei, querendo ter uma oportunidade de falar com você.

– Por dois anos.

– Eu teria esperado uma dúzia.

Lizzie parou de puxar o cabelo.

– Por favor, não faça isso…

– Eu quero você, Lizzie.

Enquanto assimilava as palavras, seu coração batia tão forte que ela conseguiu sentir o aumento na pressão sanguínea no peito e no rosto.

– Nunca deixei de te querer, Lizzie. De pensar em você. De desejar que você estivesse comigo. Diabos, sinto como se estivesse num relacionamento com um fantasma. Eu te vejo nas ruas de Nova York sem parar, em alguma loira passando por mim numa calçada, talvez no modo como ela penteia os cabelos, ou por causa dos óculos, ou pela cor das calças jeans… Eu te vejo nos meus sonhos todas as noites; você é tão real que consigo te tocar, te sentir, estar com você.

– Você tem que parar.

– Não consigo. Lizzie… eu não consigo.

Fechando os olhos, ela começou a chorar baixinho na solidão da sua casa tão modesta, aquela que ela mesma comprara e que estava quase acabando de pagar, o maior símbolo da razão pela qual não precisava de um homem em sua vida, nem agora, nem nunca.

– Você está chorando? – ele sussurrou.

– Não – respondeu depois de um instante, num soluço. – Não estou.

– Está mentindo?

– Sim, estou.

 

TREZE

Lane olhava para o lado oposto do Antigo Silo construído por um dos seus ancestrais, sabendo que estava dentro do limite legal de álcool para poder dirigir, e que isso não duraria muito. Tinha uma garrafa de no 15 contra o quadril, que surrupiara de uma caixa pronta para ser despachada, e apesar de ainda não ter rompido o lacre, tinha toda intenção de secar a garrafa.

Em toda a sua volta, o Antigo Silo estava deserto, e surpreendeu-se ao perceber que o código de acesso do sistema de alarme ainda era o mesmo de antes.

Sabia que deveria deixar Lizzie em paz.

– Sinto muito – murmurou. – Quero dizer todas as coisas certas, fazer as coisas certas, e sei que não estou cumprindo esses objetivos. Maldição, Lizzie…

Inclinou a cabeça para o lado e segurou o telefone entre o ombro e a orelha. Pegando o bourbon, abriu a garrafa e a levou até a boca.

A ideia de tê-la feito chorar de novo o comia vivo.

– Você está bebendo? – ela perguntou.

– Ou faço isso ou bato a cabeça na parede até sangrar.

Enquanto ela exalava fundo, ele deu mais um gole. E um terceiro.

Quando terminou de engolir e a queimação na garganta cessou, ele fez a pergunta cuja resposta tanto temia: – Você está com alguém?

Ela demorou bastante para responder.

– Não.

Foi sua vez de exalar fundo.

– Não acredito em Deus, mas, neste instante, estou com vontade de me autoproclamar cristão.

– E se eu não te quiser mais? O que vai fazer, então?

– Está me dizendo que isso é verdade?

– Talvez.

Ele fechou os olhos.

– Então, eu vou recuar. Isso vai acabar comigo… mas vou embora.

Mais silêncio. Que ele passou bebendo da garrafa.

– Amigos – ela disse por fim. – Só vou até aí. É só isso que consigo fazer.

– Ok. Respeito isso.

Ele conseguiu ouvir o alívio na voz dela.

– Obrigada.

– Mas – ele a interrompeu – o que, exatamente, isso quer dizer?

– Como é?

– Bem, amizade… Como é isso? Posso te telefonar, certo? Amigos podem comer juntos de vez em quando, só para se manterem a par das novidades, não é? Você sabe, divórcio, planos de mudança, novas direções, esse tipo de coisa.

– Lane.

Ele sorriu.

– Adoro quando você diz meu nome desse jeito.

– Quando estou irritada?

– É sexy.

Lizzie pigarreou.

– Essa palavra não cabe numa amizade, ok?

– Eu apenas constatei um fato.

– Uma opinião.

– Fato.

– Lane, estou te avisando, você precisa…

Enquanto ela prosseguia, falando à sua maneira tipicamente franca e sem rodeios, ele fechou os olhos e prestou atenção às ordens dela, deixando que seu tom de voz o envolvesse. Bem no íntimo, aquele desejo velho e tão conhecido despertou, como um dragão adormecido… e o ímpeto foi tão forte que ele quis entrar no carro e atravessar as pontes até Indiana.

– Ainda está aí? – ela perguntou, brava.

– Ah, estou. – Arrumando a ereção dentro das calças, refreou um gemido. – Estou, sim.

– O que está fazendo?

Ele afastou a mão para longe, bem longe do marco zero.

– Nada.

– E então? – disse ela. – Está ou não?

– Estou o quê?

– Dormindo enquanto fala comigo.

– Muito pelo contrário – ele murmurou.

Houve uma leve pausa e depois:

– Ah…!

Como se ela o tivesse compreendido.

– Melhor eu desligar – ele disse, rouco. – Cuide-se. Nos falamos amanhã.

Só que ela não parecia querer que ele desligasse… e seu pau ficou todo lépido e faceiro.

– Quer dizer que você vai ficar? – ela perguntou.

Podemos falar sobre outro assunto?, sua ereção pensou.

Sossegue, garoto.

– Sim, vou. – Quando ele mudou de posição no chão duro, tentou ignorar o modo como o zíper resvalou. – Tenho que me encontrar com Samuel T. para falar do divórcio.

– Então, você vai mesmo…

– Vou – ele disse. – Imediatamente. E não, não é só por sua causa. Cometi um erro, e vou consertar isso para o bem de todo mundo.

– Tudo bem. – Ela pigarreou. – Ok.

– Só estou seguindo em frente, Lizzie.

– Se é o que você diz. Bem, tchau…

– Não – ele a interrompeu. – Assim não. Nós dizemos boa noite, está bem? E não tchau, a menos que você queira que eu apareça na soleira da sua porta como um cachorro sem dono.

– Está bem.

Antes que ela desligasse, ele formou um “eu te amo” com os lábios.

– Boa noite, Lizzie.

– Boa noite… Lane.

Encerrando a ligação, Lane deixou o braço cair, e o aparelho bateu no piso de concreto com um baque.

– Eu te amo, Lizzie – disse em voz alta.

Tomando mais um gole da garrafa, pensou em como era conveniente que a fortuna da família se baseasse em algo com o qual ele poderia se embebedar. Se fosse uma enormidade de outros produtos de consumo – canetas, baterias de carro, band-aids, chicletes –, nada poderia ajudá-lo na sua atual situação.

Quando o telefone voltou a tocar, ele o atendeu de pronto. Mas não era Lizzie.

– Jeff – ele disse, mesmo não querendo conversar com mais ninguém.

A voz do seu anfitrião nova-iorquino soou seca.

– Você ainda está vivo.

– Basicamente. – Levou a garrafa de volta à boca. – E você, como é que você está?

– Está bebendo?

– Isso mesmo. No 15. Eu dividiria com você, se estivesse aqui.

– Um cavalheiro sulista, sem dúvida. – Seu amigo praguejou. – Lane, onde você está?

– Em casa.

Houve tempo suficiente para grilos cantarem na conexão.

– Você está se referindo a…

– Isso mesmo.

– Charlemont?

– Nascido e criado eu fui, e ao lar regressei. – Puxa. Devia estar ficando bêbado, estava parecendo um sulista de verdade. – Assim como você e o Upper East Side, só que nós temos miúdos de porco e frango frito.

– Que diabos você está fazendo aí?

– A minha… – Pigarreou. – Uma pessoa muito importante para mim adoeceu. Tive que voltar.

– Quem?

– A mulher que me criou. A minha… bem, a minha mãe. Mesmo ela não sendo a minha mãe biológica. Ela ficou doente alguns anos atrás, mas sabe como são essas coisas. Elas podem voltar. Ela diz que vai ficar bem, então estou me apegando a isso.

– Quando vai voltar?

Lane tomou mais um gole.

– Já te contei que me casei?

– O quê?

– Foi um pouco antes de eu ir para o norte e acabar no seu sofá. Vou ficar aqui até a senhorita Aurora ficar bem e, assim, vou poder cuidar dessa outra coisa idiota. Além disso… é que… tem essa outra mulher.

– Espera um minuto. Cacete. Espera aí…

Houve uma espécie de farfalhar, seguindo de um clic, clic, clic como se alguém estivesse tentando acender um isqueiro… e depois uma baforada.

– Vou precisar de um cubano para ouvir isso. Então, você tem uma esposa?

– Eu te disse que não era gay.

– Foi por isso que você não ficou com ninguém aqui?

– Não, foi por causa da outra mulher. Aquela com quem não me casei. Aquela que é naturalmente bonita e boa demais para mim.

– Vou precisar de um diagrama de Venn – o cara murmurou. – Cacete, por que não me contou nada disso?

Lane balançou a cabeça, mesmo que o amigo não pudesse vê-lo.

– Eu estava no modo de fuga. – Caramba, odiou o fato de Chantal estar certa. – Tudo estava barulhento demais dentro da minha cabeça. A coisa toda. Então, como é que você está?

– Você joga isso tudo em cima de mim e termina querendo saber como é que eu estou?

– Tenho que voltar a beber. Conversar está me retardando, mas estou disposto a ouvir. – Tomou um gole grande. – E aí? Alguma novidade?

– Estou bem, você sabe, as coisas de sempre no trabalho. Dez mil amplificadores ligados, um chefe que não sai do meu rabo e dezesseis comprimidos de Motrin por dia para impedir que a minha cabeça exploda. O mesmo de sempre. Pelo menos ainda tem dinheiro… ainda mais agora que você não está me arrancando um quarto de milhão de dólares todas as semanas no feltro verde.

Conversaram um pouco mais sobre nada em especial. Jogos de pôquer, Wall Street, a mulher com quem Jeff andava transando… E mesmo que Lane não fosse muito de ficar conversando ao telefone, percebeu que estava com saudades do cara. Acostumara-se à troca rápida, às sacadas inteligentes e, em especial, àquele sotaque de Jersey nos fim das frases e no uso de algumas outras palavras.

– Então, acho que é adeus por ora – seu antigo colega de classe disse.

Lane franziu o cenho e visualizou Lizzie. Ouviu a voz dela. Lembrou-se da cautela dela.

Depois rearranjou sua ereção persistente.

Ficou se perguntando se existia a mínima possibilidade de voltar para Nova York.

Pensando bem, seria melhor não se adiantar. No que se referia a reconquistar Lizzie, dependia de duas pessoas. Só porque estava pronto para retomar o relacionamento deles não significava que ela se apressaria. E também havia a sua família. Como se ele conseguisse se imaginar voltando a viver em Easterly… Mesmo que a senhorita Aurora ficasse bem de saúde e que ele e Lizzie se acertassem, a ideia de coexistir com o pai bastava para ele contemplar a fronteira canadense com carinho. E nem isso seria longe o suficiente.

– Não sei se vou ficar de vez.

– Você sempre pode voltar. O meu sofá já está com saudades de você… e ninguém joga Texas Hold’em como você.

Os dois desligaram depois de se despedirem, e enquanto Lane mais uma vez largava o braço e deixava o aparelho cair, concentrou-se na antiga destilaria do lado oposto. O lugar fora usado por décadas na virada do século, e agora era visitado por dezenas de milhares de turistas que vinham conhecer o Antigo Silo durante todo o ano.

Por algum motivo, percebeu que nunca tivera um emprego. A extensão dos seus “empenhos profissionais” era evitar os paparazzi, o que era mais uma questão de sobrevivência do que algo relacionado a uma carreira. Graças ao seu fundo fiduciário, não sabia o que eram chefes ou colegas de cubículo chatos, nem trajetos ruins para o trabalho e de volta para casa. Não se preocupava em estar em algum lugar num determinado horário, ou em concluir relatórios, nem tinha dores de cabeça devido às tantas horas passadas diante da tela do computador.

Engraçado, nunca antes considerara o fato de ter tanto em comum com Chantal. A única diferença entre eles era que o dinheiro da família dela não bastava para sustentar o estilo de vida a que se acostumara, motivo pelo qual tivera que se casar com ele.

E lá estava Lizzie, trabalhando duro, pagando aquela fazenda. Conhecendo-a como a conhecia, ela já devia estar chegando ao seu objetivo.

O que o fazia respeitá-la ainda mais.

E também o fazia se questionar exatamente o que tinha para oferecer a uma mulher de substância. Dois anos atrás, estivera todo excitado e metido no drama familiar, ávido por ela fisicamente, e tão cativado por ela mentalmente que nunca olhara para si mesmo segundo o ponto de vista dela. Todo o seu dinheiro e a sua posição social só tinham valor para pessoas como Chantal. Lizzie queria mais, merecia mais.

Ela queria a realidade.

Talvez, no fim das contas, ele não estivesse tão acima daquela sua esposa.

Ex-esposa, corrigiu-se, enquanto continuava a beber.

 

CATORZE

– A que devo a honra?

O pai de Gin falava, e seu tom era de afirmação, não de pergunta, e sugeria que o fato de ela estar parada na porta do quarto dele era uma invasão.

Que pena, ela pensou com ironia.

– Quero saber que diabos aprontou com Richard Pford.

O pai não demonstrou nenhuma reação, parado diante da cômoda, prosseguindo com o ato de retirar as abotoaduras de ouro. O paletó do smoking preto tinha sido dobrado uma vez e estava ao pé de uma chaise longue, e os suspensórios preto e vermelho haviam sido retirados dos ombros e estavam pendurados na cintura como duas fitas.

– Pai – ela rugiu. – O que você fez?

Ele a deixou esperando até tirar a gravata borboleta, puxando-a do colarinho.

– Está na hora de você se assentar…

– Você dificilmente está em posição de defender o matrimônio.

– … e Richard é um marido perfeito.

– Não para mim.

– Isso ainda veremos. – Virou-se na direção dela, os olhos frios, o belo rosto impassível. – E não se engane, você se casará com ele.

– Como ousa! Não estamos na virada do século. As mulheres não são bens, podemos ter propriedades, as nossas próprias contas bancárias, podemos até votar! E, com certeza, podemos decidir se queremos ou não atravessar a nave de uma igreja… E eu não vou, de modo algum, sair com aquele homem, quanto menos me casar com ele! Ainda mais se isso beneficiar você de algum modo.

– Sim, você vai. – Por uma fração de segundo, o olhar dele se desviou para cima do ombro dela e ele meneou a cabeça como se estivesse dispensando alguém no corredor. – E fará isso o mais rápido possível.

Gin se virou, esperando ver alguém atrás de si na soleira da porta. Não havia ninguém ali.

Voltou a se concentrar nele.

– Você vai ter que apontar uma arma na minha cabeça.

– Não será preciso. Você fará isso por sua própria escolha.

– Não.

– Sim, você vai.

No silêncio que se seguiu, o coração dela deixou de bater algumas vezes. Durante toda a vida, aprendera a odiar e a temer o pai. E naquele silêncio tenso, de ar estagnado entre eles, ela se perguntou, e não pela primeira vez, do que ele seria verdadeiramente capaz.

– Você pode escolher brigar – disse ele com suavidade. – Ou pode ser eficaz em relação ao assunto. Você só vai acabar se ferindo se não fizer isso pela família. Agora, se me permite, vou me recolher…

– Você não pode me tratar dessa maneira. – Ela forçou um pouco a voz. – Não sou um executivo da empresa que você pode empregar e demitir. E não pode me dar ordens, não quando se trata de arruinar a minha vida.

– A sua vida já está arruinada. Você teve uma filha aos dezessete anos, aqui, nesta mesma casa, pelo amor de Deus, e deu seguimento a isso com o comportamento promíscuo tipicamente reservado para as strippers de Las Vegas. Quase não se formou na Sweet Briar por causa do affair com o professor de inglês, que era casado e, assim que voltou a morar aqui, deitou-se com o chofer. Você é a desgraça da família. E pior, tenho a distinta impressão de que parte da sua diversão nessas suas aventuras é a vergonha que provoca em sua mãe e em mim.

– Talvez se eu tivesse um bom exemplo masculino para admirar, eu não considerasse os homens tão universalmente desagradáveis.

– Antes você os considerasse mesmo desagradáveis. No entanto, esse parece não ser o seu problema. Por algum motivo, Richard não se intimidou com a sua reputação, um erro de julgamento que, por certo, ele vai acabar lamentando. Ainda bem que não é problema meu.

– Eu te odeio – ela sibilou.

– O mais triste, minha querida, é que lhe falta suficiente profundidade para tal nível de inimizade. Se fosse minimamente inteligente, perceberia que Richard Pford será capaz de mantê-la no estilo de vida que você necessita, tanto quanto precisa do ar para respirar, pelo resto dos seus dias. E você estará garantindo a continuação do sucesso e da saúde financeira da família que lhe deu essa bela ossatura e essa adorável coloração facial. Essa será, depois de tudo, a sua única contribuição ao nome “Bradford”.

Gin mal percebia que estava respirando superficialmente.

– Algum dia, você vai pagar pelos seus pecados.

– Está se tornando religiosa agora? Acredito que qualquer tipo de conversão para você será difícil, até por alguém como Jesus.

– Como pode ser tão odioso? Nunca conheci ninguém tão cruel quanto você…

– Só estou cuidando de você do único modo que sei. Estou lhe dando uma fortuna, um nome honrado, e você poderá levar Amelia com você, se desejar. Ou ela pode ficar aqui.

– Como se ela não passasse de uma maleta? – Balançou a cabeça. – Você é um depravado. Absolutamente depravado…

Ele avançou e a agarrou pelo braço, permitindo que alguma emoção escapasse por baixo da máscara aristocrática de autossegurança.

– Você não faz a mínima ideia do que é necessário para manter esta família. Nenhuma ideia. A sua tarefa diária mais complexa é priorizar o que fazer antes: unhas ou cabelos. Portanto, não ouse falar de depravação quando estou resolvendo o problema de todos os sanguessugas debaixo deste teto. Os termos favoráveis de Richard Pford continuarão a nos permitir isso. – Balançou a saia do vestido de gala dela. – E isso… – Apontou para o colar no seu pescoço. – E todas as outras coisas das quais você tira vantagem diariamente sem parar para ponderar, nem que seja por um instante, como chegaram até você e a que custo. Casar-se com aquele homem é a única coisa que já lhe pediram em troca pela sua boa estrela ao nascer e pela sua liberdade de cobiça. Você é uma Bradford dos pés à cabeça, capaz apenas de consumir, mas, às vezes, um pagamento deve ser feito. Portanto, sim – ele enfatizou –, posso lhe garantir que você será a deveras feliz e contente senhora Richard Pford. Você lhe dará filhos e será fiel a ele, ou, que Deus me ajude, eu a surrarei como a garotinha de cinco anos que você ainda é. Estamos entendidos? Ou quem sabe você vai preferir fazer um curso intensivo para tentar ser como as pessoas que lavam os seus carros, preparam a sua comida, limpam o seu quarto e passam as suas roupas? Talvez você goste de saber como é difícil trabalhar para se sustentar.

– Eu te desprezo – ela disse, trêmula dos pés à cabeça.

O pai também arfava, e tossiu no punho cerrado.

– Como se me importasse. Vá em frente, faça o seu escândalo, esperneie e grite, só provará o quanto estou certo. Se for uma mulher de fato, em vez de apenas uma criança mimada e malcriada, acordará pela manhã e cumprirá o seu dever pela primeira vez em sua vida.

– Eu seria capaz de te matar neste mesmo instante!

– Mas, para isso, você teria que carregar uma arma, não é? Não é algo que possa pedir a uma criada, desde que, claro, não queira ser descoberta.

– Não me subestime…

– Visto o baixo padrão que estabeleceu para si mesma, isso seria algo muito difícil de fazer.

Girando sobre os calcanhares, ela saiu do quarto aos tropeções, e correu pelo corredor até a sua suíte. Lançando-se pela porta, trancou-se e ofegou.

Ah, inferno, não, não, jurou. Você não vai fazer isso comigo.

Se ele achava que antes ela era um problema, ele que esperasse pelo que ela aprontaria em seguida.

Enquanto marchava do quarto para o banheiro, planos reviravam em sua cabeça, muitos dos quais envolviam crimes contra o pai. No fim, teve que tirar o vestido, e o deixou cair no chão, livrando-se da seda antes de continuar andando de um lado para o outro apenas de bustiê e saltos e aqueles diamantes que a vadia da esposa do irmão tentara pôr as mãos.

Fervendo, só conseguia pensar na primeira vez em que odiara o pai…

Tinha seis, talvez sete anos, quando aconteceu. Noite de Ano-Novo. Acordara por causa dos fogos, que explodiam ao longe sobre o centro da cidade. Assustada, fora à procura de Lane, aquele com quem sempre se sentia amparada… encontrando-o na sala de estar com Max.

Gin insistira em ficar com os irmãos e fazer o que quer que estivessem fazendo. Na época, era a história da sua vida, sempre correndo para acompanhá-los, conseguir alguma atenção, estar no radar de alguma pessoa. Os empregados da casa faziam o que os pais queriam e cuidavam dos irmãos. Ela era uma nota de rodapé, uma reflexão tardia, o tapete no qual tropeçavam a caminho da porta quando iam fazer algo melhor, mais interessante, mais importante.

Não quisera beber aquela coisa da garrafa. O cheiro do bourbon era ruim, e ela sabia que era proibido, mas se Max e Lane iam tomar um pouco, então ela também tomaria.

E assim foram apanhados.

Não uma vez, mas duas.

Assim que entrara na sala, Edward ordenara que ela voltasse para a cama, e ela saíra pelos fundos como ele lhe dissera. Depois de passar pelo corredor dos empregados, porém, ouvira vozes e tivera que se esconder nas sombras a fim de não ser flagrada… quando o pai saíra do escritório de Rosalinda Freeland.

Ele estava usando seu roupão, amarrando as duas pontas do cinto ao sair de lá, e seus olhos estavam arregalados, como se estivesse com raiva, mas não havia como ele ter ouvido suas vozes lá na sala de estar. O primeiro instinto de Gin fora o de correr para a frente da casa e alertar os irmãos. No entanto, o medo a detivera… E, em seguida, a senhora Freeland saíra também, agarrando o pai pelo braço.

Sua mente infantil se perguntara por que a blusa da moça do escritório estava desabotoada, e os cabelos, sempre bem penteados e presos, estavam meio desarrumados.

Os dois discutiram em tons sussurrados, dizendo coisas que ela não conseguiu entreouvir acima das batidas do seu coração. Em seguida, o pai saiu de lá e a senhora Freeland voltou para o escritório, fechando a porta.

Gin permanecera ali pelo que lhe pareceu um ano, temendo sair, caso a senhora Freeland voltasse. Só que ela também temia que o pai voltasse por aquele caminho e a encontrasse.

Ele não devia estar ali com aquela mulher.

Ele não ficaria feliz por ela tê-lo visto.

Descalça, apressou-se pelas escadas dos empregados, colando na parede de gesso conforme subia. Já no segundo andar, paralisou quando uma segunda rodada de fogos se iniciou e, assim que terminaram de explodir, ela se abrigou na porta aberta de um dos quartos de hóspedes, desejando ter algum lugar seguro para ir.

Voltar sozinha para o quarto parecia-lhe aterrorizante. E se, além disso, o pai estivesse procurando por ela?

Sentando-se encolhida, enfiou as pernas junto do corpo e abraçou os joelhos. O pai devia ter encontrado os irmãos. Não havia como o homem não os ter visto, se tivesse usado as escadas da frente.

E isso a assustava mais do que o barulho do lado de fora.

Momentos depois, Edward surgiu no alto da escadaria, com o pai logo atrás, pairando como um monstro. Por algum motivo, o andar do irmão estava trôpego e a pele do rosto estava pálida. O pai lhe pareceu tão inflexível e reprovador quanto um banco de igreja.

Onde estariam os outros dois?

Nada foi dito enquanto eles prosseguiam até a porta do quarto do pai. E quando chegaram ao destino, Edward ficou de lado e depois tropeçou para dentro do cômodo escuro assim que a porta lhe foi aberta.

– Sabe onde estão os cintos.

Foi tudo o que o pai disse.

Não, não, ela pensou. Aquilo não era justo, Edward não estava envolvido! Por que ele…

A porta se fechou num baque, e ela estremeceu ante o que estava para acontecer.

Como esperado, um estalido foi seguido por um grunhido.

De novo.

E mais uma vez.

Edward nunca chorava. Nunca praguejava.

Já ouvira aquilo vezes demais para saber disso.

Gin abaixou a cabeça sobre os braços finos e cerrou os olhos. Não sabia por que o pai odiava tanto Edward. O homem desgostava do resto deles, mas Edward o deixava furioso.

Edward nunca chorava.

Por isso, chorou por ele… E resolveu, dali por diante, que se o pai podia odiar Edward, dois poderiam jogar aquele jogo.

E ela escolheu o que segurava o cinto naquele minuto.

Odiaria o pai dali por diante.

Voltando a se concentrar, Gin descobriu-se sentada na cama, com os joelhos ao encontro do peito, os braços ao seu redor, como se estivesse, uma vez mais, sentada dentro daquele quarto de hóspedes com apenas a camisola para aquecê-la, e o que acontecia no quarto do pai a aterrorizava em seu íntimo.

Sim, fora assim que tudo começara para ela, e William Baldwine nunca lhe dera motivos para reconsiderar o seu ódio. Aquele acordo com Richard Pford era apenas mais um item numa longa lista.

Mas não era o pior.

Não, a pior coisa que o homem fizera foi algo que ela apenas suspeitava, algo que ninguém mencionara, quer sob o teto de Easterly, quer nos jornais.

Estava convencida de que o pai era o sequestrador de Edward.

O irmão ia com frequência à América do Sul, e assim como outros executivos de sua posição, sempre viajava acompanhado de seguranças contratados pela CBB. Com esse tipo de proteção, ninguém deveria ter sido capaz de se aproximar. No entanto, seu irmão fora levado… Não numa estrada, nem mesmo numa localização remota.

Mas da sua suíte no hotel.

Como foi que aquilo pôde acontecer?

A primeira coisa que ela pensou, quando lhe contaram, foi que ali havia dedo do seu pai.

Tinha provas? Não, não tinha. Mas passara a infância inteira vendo o homem observando Edward como se menosprezasse o ar que o garoto respirava. E mais tarde, quando Edward passara a trabalhar na empresa, teve a impressão de que o relacionamento daqueles dois esfriara ainda mais, visto que o Comitê dos Curadores passara a dar mais e mais responsabilidades a Edward.

Haveria um modo melhor de se livrar de um rival do que matá-lo no exterior? De uma maneira que faria William Baldwine parecer vítima por ser um pai “em luto”?

Deus, Edward quase fora enterrado lá. E quando finalmente regressara? Estava em péssimas condições. Nesse meio-tempo, o pai se colocara diante da mídia, dos curadores, da família, mas nunca, sequer uma vez, fora visitar o filho.

Vergonhoso. E na cabeça dela era uma confirmação de que William Baldwine tentara se livrar de uma ameaça corporativa que não podia demitir.

Não era de se admirar que ela não confiasse nos homens.

Não era de se admirar que nunca fosse se casar.

Quanto menos para fazer o pai feliz.

 

QUINZE

Quando chegou a Easterly na manhã seguinte, Lizzie precisou manobrar o Yaris duas vezes para conseguir estacioná-lo direito, o que revelava o quão lamentável era seu estado mental, considerando-se que o carro era do tamanho de uma bicicleta. Saindo dele, pegou desajeitada a bolsa e a deixou cair. E quando se abaixou para pegar o protetor solar no asfalto já quente, percebeu que tinha esquecido de trazer o almoço.

Fechou os olhos.

– Maldição…

– Tudo bem, menina?

Lizzie se endireitou e se virou na direção de Gary McAdams. O chefe da manutenção da propriedade vinha andando pelo gramado, o leve claudicar não o fazia diminuir o ritmo, com o rosto envelhecido pelo tempo crispado em sinal de preocupação, como se estivesse avaliando um trator com eixo solto.

Será que sua aparência estava tão ruim assim?, perguntou-se.

Pensando bem, não dormira praticamente nada.

– Ah, sim, estou bem. – Ela forçou um sorriso. – Ótima.

– Tem certeza disso?

Não.

– Sim. Como vai a sua equipe?

– Já terminaram de cortar a grama e de aparar as trepadeiras, e vou fazer com que limpem o terraço depois das dez. – Porque só então eles tinham permissão para fazer barulho perto da casa. – As tendas foram erguidas, a parte do buffet já está pronta com as grelhas no lugar, mas tem um probleminha.

Lizzie acomodou a bolsa no ombro e pensou que já estava pronta para lidar com qualquer problema que pudesse solucionar.

– O que foi?

– Aquele senhor Harris está querendo falar com você. Tem algo com as taças de champanhe.

– Com a disposição delas nas mesas? – Fechou a porta do carro. – Pensei que elas seriam distribuídas durante a festa.

– Não, só chegou metade do pedido. Ele acha que você mudou a quantidade.

– O q… Por que eu faria isso?

– Ele disse que você é a única pessoa com acesso ao pessoal do aluguel.

– Encomendei as tendas, só isso. É ele quem tem que cuidar da louça, dos talheres e dos copos… Desculpe, estou gritando? Sinto como se estivesse gritando.

Ele apoiou sua grande mão sobre o ombro dela.

– Não se preocupe com isso, menina. O senhor Harry também me deixa doido.

– É senhor Harris.

– Eu sei.

Ela teve que gargalhar.

– Vou lá falar com ele.

– Quando ficar cansada dele, eu tenho uma pá e um ancinho. E muita área verde livre lá na minha casa.

– Você é um cavalheiro.

– Nem perto disso. Me dá a sua bolsa, menina. Vou com você.

– Ela não pesa nada. Pode deixar comigo. – Começou a andar pelo caminho que levava até a ala dos empregados. – Além disso, posso precisar dela para bater na cabeça dele.

– Lembre-se do meu ancinho – ele disse.

– Sempre.

A cada passo sobre as pedras, seu peito se contraía, e a sensação de sufocamento piorava conforme a vastidão da mansão branca surgia ao longe.

Depois de passar a madrugada olhando para o teto, não chegou a conclusão nenhuma sobre ela e Lane. O que ela guardara para si? O som da voz dele no fim do telefonema. Lembrou-se daquele tom sexy que costumava significar que ele encontraria um modo de ficar sozinho com ela, despida, o mais rápido possível.

Pareceu-lhe uma traição total que seu corpo não fosse nada além de um simples “ah, sim, pode vir” – como se sua libido desejasse o retorno do seu mestre. Afinal, ela era muito mais do que apenas um ou dois orgasmos roubados com um homem que ela deveria estar manuseando com pinças de churrasco e um extintor de incêndio.

Loucura.

Quando, por fim, chegou à casa, passou pela entrada lateral do jardim e atravessou a porta dos fundos da cozinha só para se certificar de que tudo o que preparara para a festa ainda estava onde havia deixado na noite anterior.

O que era tolice. Como se um punhado de elfos tivesse entrado ali e bagunçado tudo à luz do luar.

Entrou pela porta de empregados e cruzou a imensa cozinha que, naquele momento, estaria limpa, fria e vazia, apenas à espera dos chefs que estavam escalados para trabalhar das oito às oito. Só que o cômodo não estava completamente deserto. A senhorita Aurora estava diante do fogão industrial, com uma panela de ferro cheia de bacon estalando à esquerda, uma segunda à direita tomada de ovos mexidos. Quatro pratos estavam dispostos na bancada de aço inoxidável da ilha principal, junto de tigelas com framboesas e mirtilos frescos, um açucareiro, um pote com creme de leite e café sobre uma bandeja, sem falar de uma seleção de pãezinhos doces caseiros.

– Senhorita Aurora?

A mulher olhou por sobre o ombro.

– Ah, aí está ela. Como está? Já comeu?

– Sim, senhora.

– Não o bastante. Você e Lane, magrinhos demais. – A cozinheira se voltou para os ovos e os virou com uma espátula vermelha. – Você deveria deixar que eu te alimentasse.

– Não quero causar problemas. – Houve um grunhido de desaprovação, e antes que a discussão de sempre começasse, Lizzie a interrompeu. – A senhora me parece bem.

– Eu disse praquele mordomo que não precisava de nenhuma ambulância.

– Pelo visto, a senhora tinha razão. – E Lane devia estar muito aliviado. – Viu o senhor Harris?

– No escritório dele. Quer que eu vá com você?

– Então ficou sabendo do “champanhegate”?

– Fui eu que mandei Gary te avisar. Eu sabia que ele ia te ver quando você chegasse. Não quis que você viesse pra cá sem ter sido avisada antes.

– Não mudei o pedido.

– Claro que não. – A senhorita Aurora levantou uma frigideira de uns sete quilos como se não pesasse mais que um prato de papel. Enquanto distribuía os ovos, balançava a cabeça. – Existe uma explicação perfeitamente boa.

– Qual?

– Não é da minha conta.

– Tuuudo bem. – Lizzie deu um tempo para que a cozinheira se explicasse, mas ela não o fez. – Bem, de toda forma, vou cuidar disso. Estou muito feliz que esteja bem e de pé, senhorita Aurora.

– Você é uma boa menina, Lizzie. Mas seria ainda melhor se me deixasse te oferecer o café da manhã.

– Talvez na próxima vida.

– Só se tem direito a uma. Depois, a gente vai pro céu.

– É o que o meu pai sempre me dizia.

– O meu também.

Andando sobre o piso de azulejos, Lizzie empurrou as portas duplas e seguiu pelo corredor dos empregados. O escritório do senhor Harris ficava bem diante do de Rosalinda, e ela bateu à porta do mordomo. E mais uma vez. Na terceira, achou que estava esfolando os nós dos dedos à toa.

Fungando no ar, fez uma careta e considerou que o corredor precisava ser arejado urgentemente. Mas, pensando bem, os Bradford se recusavam a instalar ar-condicionado ou aquecimento naquela parte da casa. Afinal, os empregados que se virassem.

Seguindo até a porta envernizada de Rosalinda, também bateu ali, mesmo que a organizadora da família fosse rígida em seu horário de trabalho das nove às cinco, com trinta minutos de almoço precisamente ao meio-dia e dois intervalos de quinze minutos às 10h30 e às 15 horas. A agenda controlada lhe parecera bizarra a princípio, mas, alguns anos mais tarde, já era somente mais uma das muitas regras e regulamentos de Easterly. E fazia sentido, uma mulher que não fazia nada além de pagar contas e somar e subtrair números provavelmente tinha uma régua de cálculo nas veias e sérios problemas de controle.

Daí, então, seu título.

Pousando as mãos nos quadris, Lizzie sabia que o mordomo muito provavelmente estaria servindo a família na sala de jantar íntima. Inclusive Lane.

Consultou as horas no relógio de pulso. Não ficaria esperando pelo senhor Harris e, de jeito nenhum teria aquele confronto diante dos outros. Além disso, ela tinha trabalho a fazer: não terminara os arranjos florais na noite anterior.

Seguindo para a estufa pelo caminho dos fundos, deixou de lado sua confusão mental e se concentrou no que tinha para fazer. Depois que terminasse os arranjos, disporia as toalhas de mesa, já que não havia probabilidade de chuva e de vento forte antes do Brunch da manhã seguinte. E estava encarregada de colocar todos os pratos e copos onde precisavam ficar: junto aos bares e estações de serviço espalhados pelos jardins. Greta deveria chegar em…

– Bom dia.

Lizzie parou com a mão na maçaneta da estufa.

Relanceando por cima do ombro, deparou-se com os olhos de Lane. Ele estava sentado numa espreguiçadeira lateral, com as pernas dobradas na altura dos joelhos, os cotovelos nos apoios de braço, os dedos longos cruzados diante do peito. Usava as mesmas roupas da noite anterior e o cabelo estava uma bagunça completa, como se ele não tivesse dormido em sua cama.

– Esperando por mim? – ouviu-se dizer enquanto seu coração batia forte.

Em seu quarto, Gin amarrotava uma blusa Prada e a enfiava num dos cantos da sua mala Louis Vuitton de rodinha.

– Lenço de papel… era para você colocar lenço de papel aí. Onde ele está…

Começando a procurar, encontrou as folhas cor-de-rosa clarinhas com suas iniciais estampadas numa gaveta ampla dentro de seu guarda-roupa. De volta para onde estava arrumando a mala, lambeu o dedo e tirou uma das folhas, sendo atingida pela fragrância suave de Coco, porque a empregada borrifava cada um dos lenços individualmente assim que eram entregues na casa. Colocando o papel delicado ao redor do bolinho de seda, cobriu tudo com uma saia McQueen.

Repetindo o processo até ter quatro conjuntos completos ali, inclinou-se para trás para dar uma olhada no trabalho. Horrível. Nada parecido com o que Blanche fazia para ela, mas não pretendia esperar até que a mulher chegasse para o seu turno ao meio-dia.

Gin estava fechando a mala quando percebeu que não tinha separado roupas íntimas, sapatos e tampouco os artigos de higiene.

Pegou outra mala LV e dispensou o lenço de papel.

De toda forma, o que importava? Acabaria simplesmente comprando tudo que precisasse.

Quando terminou, levantou o telefone ao lado da cama e ligou para o escritório de Rosalinda, sem acreditar quando a secretária eletrônica pediu que deixasse um recado.

– Onde diabos essa mulher foi…

Uma olhada rápida para o relógio Cartier sobre a mesa e ela descobriu que ainda eram 8h30. Deus, há quanto tempo não se levantava cedo assim?

Arranjos para o uso dos jatinhos também podiam ser feitos por meio da assistente executiva do pai, e aquele robô estava sempre junto à sua escrivaninha. Mas Gin só queria que ele soubesse que ela estava partindo quando estivesse na metade do caminho até a Califórnia e, sem dúvida, seu buldogue de saia atacaria o telefone para avisá-lo assim que ela a acionasse.

Deus, aquela expressão no rosto dele na noite anterior fez seu sangue gelar. Nunca o vira tão furioso.

Mas, em retrospecto, ela era mesmo filha do seu pai: assim como no jogo do ódio, dois podiam jogar aquele novo jogo.

Dez minutos mais tarde, Gin puxou as alças da bagagem e as rolou até o corredor, tropeçando sobre as malditas malas. Com a bolsa de monograma combinando com a bagagem batendo na lateral do corpo, empinou um dos saltos Louboutin para fechar a porta, e praguejou contra a falta de um carregador.

Mas também não confiava no mordomo.

A bem da verdade, não confiava em ninguém naquela casa.

Antes de tomar o elevador até o porão, foi até o quarto de Amelia e abriu a porta.

Pela primeira vez, percebeu a decoração.

A cama de dossel branca e rosa era queen size, apesar de a filha pesar pouco mais que um travesseiro, e não havia nenhum pôster da Taylor Swift ou do One Direction nas paredes. A penteadeira era francesa e antiga, o banheiro acoplado era de mármore e latão, e tinha mais de sessenta anos, e o candelabro Baccarat no meio do quarto era suspenso por uma corrente coberta por seda, e debaixo dele havia um medalhão de ouro feito à mão.

Parecia mais o quarto de uma senhora de cinquenta anos do que de alguém de quinze.

Dezesseis, a partir da noite anterior, Gin se lembrou.

Andando na ponta dos pés sobre o tapete bordado à mão, ela apanhou seu retrato predileto da menininha de cabelos negros, que agora já não eram mais tão escuros já que ela estava fazendo luzes a cada seis semanas, e tampouco era tão pequenina, pois já estava no segundo ano em Hotchkiss.

Só de pensar na filha, a ideia de sair de Easterly lhe parecia cada vez mais acertada. Ela tinha duas amigas esperando por ela em Montecito, e ficaria lá até que o pai entendesse que podia muito bem administrar uma empresa bilionária, mas que não mandava nela. E depois disso? Voltaria para lá com certa regularidade, só para ele ver que cometera um erro.

De novo no corredor, refreou os xingamentos ao se arrastar até o elevador e entrar. Quebrou uma unha ao apertar repetidamente o botão para fechar a porta, e quase quebrou um dos saltos quando pisou no chão da adega, puxando as malas para fora.

Não fazia a mínima ideia de onde ir. Onde ficava a garagem. Como se orientar no andar subterrâneo.

Levou quase vinte minutos para encontrar o túnel que levava até a frota da família, e quando emergiu na garagem para dez carros, sentia-se como se tivesse não só acabado de correr uma maratona, mas vencido.

Só que estava sem as chaves dos carros. Nada no Bentley. Nem do Drophead. E não pegaria nem o Porsche GTS, nem a Ferrari, tampouco o Jaguar antigo que se parecia com o de Samuel T., porque todos eles tinham câmbio manual e ela não sabia dirigir modelos assim. O mesmo acontecia com os 911 e o Spyker.

E os sedãs Mercedes não eram bons o bastante para ela.

– Maldição! – Quando bateu o pé no chão, uma das malas de rodinha caiu como se tivesse desmaiado. – Onde estão as chaves?

Abandonando a bagagem, marchou até o escritório. Trancado. Assim como as portas da garagem.

Aquilo era totalmente inaceitável.

Pegou o celular, estava prestes a telefonar – bem, não sabia exatamente para quem, mas para alguém –, quando um armarinho pendurado na parede chamou sua atenção. Indo na direção da portinha de metal de 0,3 por 0,9 metros, deu um puxão na alça, e não se surpreendeu quando a porta não cedeu.

A boa notícia? Ela estava com muita vontade de bater em alguma coisa.

Olhando ao redor, não viu nada fora do lugar. Desde lonas para cobrir os carros, até pneus sobressalentes e material de limpeza, tudo estava organizado numa parede com precisão militar em prateleiras, ganchos, e caixas tampadas.

Exceto pelo pé de cabra, que encontrou encostado numa pilha de panos limpos com o brasão da família bordado.

Gin sorriu ao caminhar do alto dos seus saltos, erguendo a peça de metal. De volta ao armário, arqueou o objeto acima da cabeça e bateu na caixa onde estavam as chaves como se aquilo fosse a cabeça do pai. Bateu, bateu, bateu e bateu, o som metálico agudo ecoando em seus ouvidos.

Apesar de já estar quase sem unhas quando concluiu a tarefa, a porta estava pendurada no que restava das suas dobradiças.

O Bentley, decidiu.

Não, o Rolls. Custava mais caro.

Levando a bagagem até o Phantom Drophead, abriu a porta que se abria ao contrário, enfiou as malas no banco de trás e se pôs atrás do volante. Afundou o sapato de salto no freio, apertou o botão da ignição e o motor rugiu a vida com um rosnado latente.

Esticando a mão na direção do espelho retrovisor, apertou todos os botões até a porta da frente se erguer.

E partiu.

A raiva dentro dela fez com que quisesse passar pelo caminho frontal só para desfilar diante dos cômodos particulares da família; mas era mais importante sair da propriedade sem que ninguém soubesse, por isso contentou-se em levantar o dedo médio para Easterly pelo espelho retrovisor enquanto usava o caminho dos empregados.

Quando chegou à estrada River, virou à esquerda, verificou as horas e pegou o telefone. Rosalinda já deveria ter chegado àquela altura, e ela poderia finalmente cuidar dos arranjos para o jatinho, o que não deveria ser um problema. Gin pedia o avião pelo menos uma vez por semana.

Caixa postal. De novo.

O maldito Brunch. Esquecera-se dele. Todos os funcionários estavam distraídos.

Mas ela tinha necessidades.

Gin ligou para outro número, um que tinha apenas um dígito diferente do de Rosalinda. Ao terceiro toque, ela estava quase desistindo quando ouviu o inconfundível sotaque britânico daquele mordomo.

– Senhor Harris falando, como posso ajudar?

– Preciso de um avião e não consigo falar com a Rosalinda. Você vai ter que providenciá-lo para mim. Decolando neste instante para o aeroporto de Los Angeles.

O mordomo limpou a garganta.

– Senhorita Baldwine, perdoe-me…

– Não venha me dizer que está ocupado demais. Você pode ligar diretamente para o piloto, já fez isso antes, e depois pode voltar para qualquer uma das suas incumbências idiotas do Brunch…

– Lamento, senhorita Baldwine, mas não haverá um avião disponível para a senhorita.

– Você só pode estar brincando. – Sem dúvida era por causa daqueles convidados corporativos que estavam chegando para o Derby. Mas ela era da família, pelo amor de Deus. – Tudo bem, apenas atrase alguém e eu…

– Não será possível.

– Eu sou prioridade! – O Phantom ganhou velocidade quando ela apertou o acelerador, pelo menos até quase acertar o carro na frente dela. – Isso é inaceitável. Ligue para aquela torre de controle, ou para aquela lista de pilotos ou… para quem quer que me coloque num maldito avião para a costa oeste!

Houve uma longa pausa.

– Sinto muito, senhorita Baldwine, mas não poderei mais fazer esse tipo de serviço para a senhorita.

Um alerta gélido apertou a sua nuca.

– Que tal mais tarde, ainda esta manhã?

– Não será possível.

– À tarde.

– Lamento, senhorita Baldwine.

– O que o meu pai lhe disse?

– Não cabe a mim comentar o que…

– Que porra que ele te disse? – ela berrou ao telefone.

A respiração que o homem soltou era o mais próximo que ele chegaria a uma imprecação em voz alta.

– Esta manhã, recebi um memorando dirigido à organizadora e a mim, indicando que os recursos da família não estariam mais disponíveis para a senhorita.

– Recursos…?

– O que inclui dinheiro vivo, contas bancárias, viagens e acomodações em hotéis, e acesso às demais propriedades dos Bradford ao redor do mundo.

Nessa hora o pé dela escorregou do acelerador, e quando o carro atrás dela buzinou, ela foi para o acostamento.

– Gostaria de poder fazer algo – ele disse num tom neutro que indicava que isso não era verdade. – Mas, como já disse, estou impossibilitado de ajudá-la.

– O que devo fazer?

– Talvez voltar para casa seja o melhor. Acabei de vê-la saindo no Rolls-Royce.

– Não vou me casar com Richard Pford – ela disse e depois encerrou a ligação.

Quando olhou pelo retrovisor, os arranha-céus denteados do centro da cidade pareceram assustadores pela primeira vez em sua vida. Nunca antes se impressionara com a cidade de Charlemont, tendo dado a volta ao mundo diversas vezes. Mas todas essas viagens aconteceram enquanto ela tinha recursos ilimitados ao seu dispor.

Com a mão trêmula, pegou a carteira e levantou o fecho. Ela tinha cinco notas de cem dólares e algumas de vinte… e sete cartões de crédito, inclusive um Amex Centurion. Estava sem a habilitação porque sempre andava com motorista particular. Também não tinha o cartão do seguro de saúde porque fazia uso dos serviços dos médicos afiliados à Cia. Bourbon Bradford. Não estava nem com o passaporte, apesar de não ter planejado sair do país.

Duzentos metros mais adiante, havia um posto de gasolina, e ela voltou a acionar o Phantom, seguindo o fluxo do trânsito. Quando chegou ao símbolo da Shell, cortou caminho diante de um caminhão que vinha na direção oposta e parou junto a algumas bombas de abastecimento.

Quando saiu, não foi para abastecer o carro. O tanque estava cheio.

Sacou um cartão Visa qualquer e colocou-o no leitor. Em seguida, apertou as teclas que compunham a sua senha. Esperou para ver se a transação hipotética seria aceita.

Não aprovado.

Tentou o Amex e recebeu a mesma resposta da máquina. Quando outros dois Visas não funcionaram, ela desistiu.

Ele bloqueara os seus cartões.

De volta ao volante, tudo ficou embaçado. Tinha investimentos por toda parte, dinheiro que lhe pertencia… mas só dali a dois anos, quando completasse trinta e cinco, e nenhum dia antes disso – algo que descobrira quando num impulso tentara comprar uma casa em Londres no ano passado e tivera esse desejo negado pelo pai. Pouco importou o quanto tivesse gritado com a empresa do seu fundo, eles se recusaram a lhe entregar o dinheiro, declarando que ela não tinha permissão para acessá-lo até que atingisse a idade estipulada.

Só havia um lugar para onde poderia ir.

Odiava implorar, mas isso era muito melhor que se casar, ou admitir uma derrota ao pai.

Colocando o câmbio mais uma vez no drive, enfiou-se no trânsito e tomou a direção da qual viera. No entanto, não retornaria a Easterly. Iria para…

De repente, o carro morreu. Tudo parou: o motor, o ar-condicionado, as luzes do painel. As únicas coisas que funcionavam eram o volante e o freio.

Enquanto pressionava o botão da ignição, viu suas ações frenéticas e impotentes de longe, notando, sem dar muita atenção, como suas unhas estavam arruinadas, as pontas cortadas, o esmalte vermelho-cereja lascado. Tendo que admitir que o motor não voltaria a funcionar, foi para o acostamento da estrada para não acabar numa colisão e…

Sirenes soaram ao longe e ela olhou pelo espelho retrovisor.

Uma viatura da Polícia Metropolitana de Charlemont encostou atrás dela com as luzes acionadas. E depois uma segunda unidade se pôs à frente até que o Phantom ficasse bloqueado.

Os dois policiais se aproximaram dela com as mãos sobre as pistolas presas ao coldre, como se não tivessem certeza se precisariam das armas.

– Saia do veículo, senhora – o mais alto deles disse com voz autoritária.

– Este carro é meu! – ela exclamou ao abaixar o vidro. – Vocês não têm o direito de…

– Esse veículo pertence a William Baldwine, e a senhora não tem autorização para usá-lo.

– Ah, meu Deus… – ela sussurrou.

– Saia do carro, senhora…

Merda, estava sem a habilitação.

– Sou filha dele!

– Senhora, estou ordenando que destrave as portas e saia do veículo. Se não fizer isso, vou autuá-la por resistir à prisão. Além de dirigir um veículo roubado.

 

DEZESSEIS

– Claro que eu estava à sua espera. – Assim que Lane falou, levantou as mãos, num gesto de quem pedia para aguardar. – Mas apenas como amigo. Queria me certificar de que chegou bem ao trabalho.

Maldição, ela estava linda. Mais uma vez, com a camisa polo preta do uniforme de Easterly e shorts cáqui, o cabelo puxado para trás, preso num rabo de cavalo… De alguma forma, parecia exoticamente bela.

Pensando bem, já fazia mais de doze horas que não a via.

Uma vida inteira, de fato.

Enquanto ela revirava os olhos, ele a flagrou tentando esconder um sorriso.

– Já fiz esse trajeto algumas vezes, sabe – ela disse.

– E como foi esta manhã?

Houve uma pausa, e então algo mágico aconteceu. Lizzie explodiu numa gargalhada.

Cobrindo a boca, ela meneou a cabeça.

– Desculpe, mas você está horrível. O seu cabelo está todo… – ela mexeu a mão ao redor da cabeça dele – … está uma bagunça, seus olhos mal conseguem ficar abertos. Sabia que está balançando para a frente e para trás apesar de estar sentado?

Ele deu um sorriso largo.

– Você precisava ver o outro cara.

– Ele era durão?

– Agora, em vez de usar capuz ele usa brinco. – Lane levantou um braço e flexionou o bíceps. – Homem pra valer este aqui…

Ouviram um par de passadas vindo na direção deles, então Lane espiou por cima do ombro dela e murmurou alguma coisa bem baixinho.

Era o mordomo inglês seguindo direto para ela, só que parou quando viu Lane.

– Com licença, Lane – Lizzie disse baixinho. – Tenho um assunto de trabalho para resolver agora.

– O que foi? – ele perguntou ao mordomo.

O inglês sorriu, parecendo um manequim de loja.

– Nada com que tenha que se preocupar, senhor Baldwine. Senhorita King, poderia fazer a gentileza de vir até o meu escritório quando tiver terminado de…

– O que houve? – Lane exigiu saber.

– Apenas um mal-entendido – Lizzie murmurou.

– Sobre o quê?!

Lizzie se concentrou no senhor Mais Sagrado Que o Senhor.

– O pedido das taças de champanhe alugadas foi reduzido, e ele acha que eu telefonei para Mackenzie para mudar a quantidade, mas não fiz isso. Ficarei feliz em poder organizar tudo quando os copos e os pratos chegarem, mas não sou responsável por coordenar nada que se refira aos pedidos. As tendas e as mesas são de minha responsabilidade, e elas estão exatamente onde deveriam estar.

Os olhos do senhor Harris se estreitaram.

– Esta conversa deve ser conduzida em meu…

– Então, não tem nada a ver com ela. – Lane sorriu para o mordomo com frieza. – E seu assunto aqui terminou.

Lizzie pôs uma mão no braço dele, e o contato foi uma surpresa tamanha, que de fato o calou.

– Está tudo bem. Repito, ficarei feliz em fazer o que puder para ajudar. Senhor Harris, quer que eu fale com Mackenzie e tente encontrar um modo de solucionar o caso?

O mordomo olhou de um a outro.

– Sei o que encomendei. O que não sei explicar é como apenas metade disso foi entregue.

– Veja bem, não quero lhe ensinar o seu trabalho – Lizzie disse. – Mas erros da parte deles já aconteceram antes. O que precisamos fazer é descobrir o que mais está faltando e ligar para eles para alertá-los. Isso não deve ser um problema. O senhor fez o pedido pessoalmente ou foi por intermédio de Rosalinda?

– Usei os serviços da senhora Freeland, e lhe entreguei os números corretos.

Lizzie franziu o cenho.

– Ela sabe o quanto pedir. Fez isso por anos a fio.

– Ela me garantiu que tomaria conta da questão. Deduzi que outra pessoa com acesso à conta tivesse reduzido a quantidade.

– Vá procurá-la, e eu encontrarei Greta para contar tudo o que foi entregue. Vamos resolver. Pelo menos, descobrimos hoje e não amanhã de manhã.

Houve um instante de constrangimento no qual o mordomo nada disse, e Lane se perguntou o quanto daquele plano sensato ele teria que enfiar goela abaixo do ditadorzinho.

– Muito bem – disse o mordomo. – A sua assistência será muito bem-vinda.

Enquanto o senhor Harris se afastava, Lizzie inspirou fundo.

– E assim entramos na contagem regressiva das vinte e quatro horas.

– Ninguém da equipe pode fazer essa contagem? Esse problema não é seu.

– Está tudo bem. Pelo menos se Greta e eu fizermos isso, saberei que está tudo certo. Além disso, todos em Easterly estão com trabalho até as orelhas, e os chefs auxiliares não poderão dispensar…

O telefone de Lane começou a tocar, e ele o tirou do bolso para silenciar o barulho.

– Quem diabos pode ser? – perguntou, quando viu o código de área local.

Ela riu de novo.

– Você pode descobrir se… prepare-se… atender!

– Está pegando no meu pé?

– Alguém tem que fazer isso.

Lane sorriu tão amplamente que suas bochechas começaram a doer.

– Ok, vamos lançar os dados e ver quem é. – Apertou o botão verde e disse em sua voz mais arrastada: – Vocccccêêêê ligoooouu paaaara…

– Lane! Ah, meu Deus, Lane, preciso da sua ajuda.

– Gin? – Ele se endireitou na espreguiçadeira. – Gin, você está bem?

– Estou no centro da cidade, na cadeia de Washington County. Você tem que vir aqui pagar a minha fiança…

– Que diabos? O que você…

– Preciso de um advogado…

– Ok, ok, ok, devagar. – Ele se pôs de pé. – Você está falando rápido demais e não estou entendendo.

Sua irmã fez uma pausa e depois disse quatro frases completas que o deixaram sem chão.

– Está bem – disse ele com seriedade. – Estou indo para aí agora mesmo. Sim. Certo. Ok. Fique aí.

Quando desligou, só o que ele conseguiu fazer foi procurar o rosto de Lizzie.

– O que foi? – ela perguntou.

– O meu pai mandou prenderem Gin. Tenho que, literalmente, ir até a cadeia e pagar a fiança dela.

Lizzie cobriu a boca com a mão num sinal de choque.

– Posso fazer alguma coisa?

– Não. Vou lá cuidar dela. Mas obrigado.

Ele precisou de todo o seu autocontrole para não se inclinar e beijá-la como costumava fazer. Em vez disso, contentou-se em esticar a mão e afagá-la no rosto, saindo antes que ela pudesse dizer que “amigos não fazem isso”.

Inferno, o que o seu pai estaria aprontando agora?

Na época em que fora fumante, Edward frequentemente acordava de manhã já esticando o braço para pegar o maço de Dunhill Reds antes de estar plenamente consciente de sequer ter rolado de lado.

Hoje em dia ele fazia o mesmo, só que para pegar o frasco de Advil.

Colocando quatro cápsulas de gel na palma trêmula, levou-as à boca e as engoliu com o que restava da vodca que levara para a cama. Fazendo uma careta enquanto essa sua versão de desjejum descia até o estômago, deitou-se de novo sobre o travesseiro.

Tinha parado de fumar durante a recuperação. Na verdade, o sequestro fora o primeiro passo para que abandonasse o vício.

Ironicamente, o fato de quase ter morrido foi o responsável por ajudá-lo a ter uma vida mais longa.

Saudou com a garrafa no ar.

– Gracias, muchachos.18

Antes que seu cérebro entrasse no looping infindável da sequência horrenda do Dia Em Que Tudo Aconteceu, virou as pernas para o chão e se sentou. Não olhou para a coxa e para a panturrilha direitas. Primeiro porque as cicatrizes tortas da sua pele à la Frankenstein estavam gravadas em sua mente. Segundo porque ele já não dormia mais nu, por isso elas não estavam aparecendo.

A bengala era necessária para que ele se levantasse, e seu equilíbrio não estava muito bom não só por causa dos ferimentos, mas pela falta de sono e pelo fato de ainda estar meio embriagado. Mancando até o banheiro, deixou as luzes apagadas, de modo que o espelho não foi um problema, e usou o vaso, lavou as mãos, o rosto e escovou os dentes.

A confirmação de que Deus ainda o odiava veio quando ele saiu do chalé uns dez minutos depois e foi ofuscado pela luz brilhante do sol e pela dor de cabeça causada pela ressaca.

Que horas são?, perguntou-se.

Já estava na metade do caminho até o Estábulo B quando percebeu que levara a garrafa junto. Como se fosse o seu brinquedinho predileto.

Revirando os olhos, seguiu em frente. A senhorita Nada de Praguejar Perto de Mim poderia muito bem se acostumar com ele e sua bebida; não havia motivos para apresentar-lhe uma ilusão diurna de abstinência que só a perturbaria no futuro. Se ela não conseguisse lidar com esse seu hábito, ela podia muito bem ir embora no primeiro dia.

O som de pneus cantando fez sua cabeça girar para a direita, e na fração de segundo seguinte, Shelby apareceu na ponta oposta do estábulo, o corpo encurvado na cintura ao empurrar uma tremenda carga de esterco de cavalo dentro de uma velha carreta enferrujada.

Pelo visto, Moe já a colocara para trabalhar.

– Ei – ele a chamou.

Sem diminuir o passo, ela acenou por sobre o ombro e seguiu em frente com o esterco para trás da construção mais próxima.

Enquanto a observava, invejou o corpo forte dela, talvez notando, sem nem se dar conta, que o sol fazia com que as mechas loiras dela parecessem quase brancas. Ela estava usando uma camiseta azul-marinho, um par de jeans escuros e as mesmas botas resistentes da noite anterior. Depois de desaparecer atrás da curva do prédio, reapareceu duas vezes mais rápido do que deveria, considerando a quantidade de esterco que teve que descarregar.

Portanto, ela também era eficiente.

Ao se aproximar, seus olhos estavam claros e alertas, o rosto corado pelo esforço.

– Quase terminando. Depois vou pro C.

– Jesus, Moe fez com que você… desculpe – disse antes que ela o corrigisse. – Maldição, Moe já te colocou pra trabalhar? E não venha me dizer que não posso usar “maldição”. Deixo de mencionar Deus e Jesus Cristo, mas só vou até aí.

Ela deixou os pés do carrinho encostarem na grama aparada.

– Suco de laranja.

– O que disse?

A filha de Jeb Landis acenou para a garrafa.

– Pode ficar com “maldição”, mas eu gostaria de ver você com outra coisa que…

– Você sempre julgou tanto assim?

– … não fosse vodca tão cedo assim. E não estou te julgando.

– Então por que quer mudar os hábitos de um desconhecido?

– Você não é um desconhecido. – Enxugou a testa com o antebraço. – Não são nem nove da manhã. Fico me perguntando por que você precisa beber tão cedo assim.

– Eu estava meio desidratado.

– Não tem água encanada na sua casa? Ontem tinha.

Ele balançou a garrafa.

– Isto aqui está servindo bastante bem. Pense que é a minha versão da vitamina C.

Ela resmungou alguma coisa ao se abaixar para pegar as alças.

– O que disse? – ele exigiu saber.

– Você me ouviu.

– Não, não ouvi, não. – O que não era exatamente a verdade.

Shelby só deu de ombros e seguiu em frente, aquele seu corpo se movendo debaixo das roupas, executando a tarefa sem nenhum esforço aparente.

E foi nessa hora que algo lhe ocorreu.

– Shelby?

Ela parou e olhou por cima do ombro.

– Pois não?

– Você disse que cuidou de todos os cavalos.

– Cuidei.

– Nos Estábulos A e B.

– Isso mesmo.

Ele se apressou e a agarrou pelo braço.

– Eu te disse. Uma regra. Não chegue perto daquele garanhão.

– A baia não ia se limpar sozinha…

A mão dele se apertou por vontade própria.

– Ele matou um ajudante de estábulo no ano passado. Foi pisoteado até morrer ali. Nunca mais faça isso.

Aqueles olhos azuis dela ficaram arregalados.

– Ele se portou bem comigo.

– Só eu chego perto dele. Estamos entendidos? Faça isso mais uma vez e eu faço as suas malas – ele disse firmemente – e te mando de volta para o lugar de onde veio.

– Sim, senhor.

Ele se afastou e tentou não cambalear.

– Muito bem, então.

– Está certo.

Ela soprou o cabelo para longe do rosto e voltou a andar, com os ombros tensos.

Tirando a tampa da vodca, Edward deu um trago longo e, provavelmente, deveria ter parado quando percebeu que a bebida já não ardia mais.

Mas essa era outra coisa sobre a qual não queria pensar.

Assim como não queria pensar no que poderia acontecer com a filha de Jeb Landis enquanto ela estivesse sob a sua proteção.

Maldição.


“Obrigado, meninos.”

 

DEZESSETE

A cadeia e o Tribunal do Condado de Washington formavam um complexo de edifícios modernos que ocupava dois quarteirões inteiros no centro da cidade, cujas instalações se comunicavam por meio de passarelas que se estendiam acima do trânsito da rua logo abaixo. Havia certa quantidade de entradas e, enquanto Lane encostava o Porsche, inúmeras pessoas entravam e saíam; eram homens e mulheres em ternos subindo e descendo os degraus de mármore, policiais dentro de suas viaturas, delegados estacionando suas SUVS e saindo de vagas reservadas, pessoas em roupas desgastadas fumando pelos cantos.

O seu 911 Turbo emitiu uma tossida baixa quando ele desacelerou e se dirigiu para os prédios imponentes. Não havia nenhum layout lógico que ele conseguisse distinguir. Tampouco um endereço.

Como se, caso tivesse que perguntar para onde deveria ir, ficaria com a sensação de que aquele não era o seu lugar…

Até que, de repente, um afro-americano uniformizado surgiu bem diante do seu carro.

– Droga! – Lane afundou o pé no freio. – Mas que diabos! Mitch?

O delegado Mitchel Ramsay não respondeu. Apenas indicou uma vaga livre bem atrás dele.

Lane estacionou com uma baliza perfeita, ciente de que o delegado estava bem ao lado do seu para-choque, os braços grossos como uma corda náutica cruzados sobre seu peito de jogador de futebol americano. Seus olhos negros estavam escondidos atrás de óculos Ray Ban, e a cabeça raspada fazia com que seu pescoço e seus ombros parecessem ainda maiores do que eram de fato.

Lane saiu do carro esportivo.

– Ei, sabe onde a minha irmã…

– Pode deixar.

Os dois bateram palmas e deram um abraço forte. Enquanto permaneciam peito contra peito, Lane foi transportado para quase dois anos atrás, para a pista de pouso particular a oeste da cidade. Para a noite em que Edward finalmente retornava do cativeiro.

Mitch o trouxera de volta aos Estados Unidos. De volta para a família.

Só Deus sabia como. Ninguém perguntara os detalhes, e Lane sempre ficou com a impressão de que o antigo soldado do Exército não teria partilhado os “como” e os “quem”, de todo modo.

– Ela não está muito bem – comentou Mitch.

– Não me surpreende.

Lane seguiu o delegado, subindo os cinquenta degraus até uma das portas giratórias. Quando terminaram de subir, Mitch desviou para uma porta demarcada com SOMENTE POLICIAIS e depois os fez passar pela segurança, de onde outros policiais acenaram em sinal de respeito.

– Agi o mais rápido que pude assim que vi o nome – disse Mitch enquanto suas passadas se uniam a todas as outras, ecoando no vestíbulo principal, com pé direito alto. – Ela foi presa por furto de veículo, por dirigir sem habilitação, por não apresentar o seguro…

– Como diabos isso foi acontecer?

– … e por resistir à prisão. Já isolei o incidente, mas não vou conseguir mantê-lo fora dos registros policiais indefinidamente.

– Espere. – Lane fez o homem parar. – Minha irmã roubou um carro?

– Um Rolls-Royce. Registrado no nome da Cia. Bourbon Bradford.

– Está se referindo… ao nosso Rolls. O Phantom Drophead?

– O seu pai telefonou pessoalmente para a Polícia Metropolitana e pediu que fossem atrás dela, alegando que ela não tinha permissão para dirigir o veículo.

– Você não pode estar falando sério. – Lane enfiou a mão nos cabelos. – Quero dizer, é claro que ele pode fazer isso. Já fez coisa pior.

– Você chamou um advogado?

– Samuel T. deve chegar aqui em…

– Lane!

Samuel T. avançou em meio a um grupo de pessoas, destacando-se por inúmeros motivos. Primeiro, seu terno de risca de giz azul e branco fazia com que ele parecesse pertencer a uma varanda da casa grande de uma fazenda, sorvendo um julepo de menta com um par de cães de caça aos seus pés. Segundo, ele era belo demais para estar entre os mortais.

– Obrigado por vir tão rápido – Lane disse ao apertarem as mãos. – Você conhece Mitch.

– Certamente. Delegado.

– Senhor Lodge.

Encerrando os cumprimentos, os três seguiram para as escadas rolantes que levavam ao segundo andar.

– Ela está numa cela. – Mitch os conduziu por uma das passarelas. – Mas removi qualquer tipo de retardo para a audiência da fiança. Assim que estiver pronto, senhor Lodge…

– Pode me chamar de Samuel ou de Sam.

– Samuel. – Mitch assentiu. – Assim que estiver pronto. Farei com que ela se apresente diante do juiz McQuaid. Já conversei com o promotor público. As mãos dele estão atadas, visto que o senhor Baldwine está pressionando. A única coisa que posso fazer é apressar, apressar, apressar.

Lane cerrou os molares. Gin dava trabalho e, evidentemente, o pai já estava farto disso, mas aquilo tudo era exposição demais.

– Vou ficar te devendo essa, Mitch.

– Não se preocupe.

O delegado os fez passar por vários pontos de controle de segurança, até adentrarem o complexo. Embora Lane tivesse aprontado sua porção de infrações quando era mais jovem, todas as suas transgressões foram discretamente “resolvidas”. Portanto, aquela era a primeira vez que ia para a cadeia, e não poderia dizer que estava com pressa para voltar lá algum dia.

A sala de espera tinha paredes creme. Piso creme. Cadeira plástica laranja, amarela e vermelha. O cheiro no ar era de suor e de roupas sujas, e de desinfetante em spray.

Graças a Mitch, passaram ao largo do balcão de registros com as divisórias de vidro à prova de balas e da fila de policiais com a pescaria do dia. Isso sim era um chamado para a realidade da outra parte da população. Homens sujos e rapazes estranhos… moças quase despidas… mulheres mais velhas com aspecto cansado… Todos eles de pé ou cambaleando, acompanhados dos policiais que os prenderam, seus rostos revelando as marcas da vida dura que levavam.

– Por aqui, delegado Ramsey – alguém o chamou ao lado de uma porta reforçada.

Depois de passar por mais um ponto de segurança, cruzaram com diversas salas de reunião com luzes vermelhas acesas sobre as portas e grades diante das janelas protegidas por telas.

– Se esperarem aqui – o policial disse, na frente de uma das salas –, eu a trago já.

– Obrigado, Stu. – Mitch abriu a porta e se colocou de lado. – Fico esperando do lado de fora.

– Muito obrigado. – Lane bateu no ombro do homem. – E, provavelmente, ainda vamos precisar da sua ajuda.

– Estou aqui para o que precisarem.

Samuel T. parou ao lado do delegado.

– Alguém já falou com a imprensa?

– Nós não – Mitch respondeu. – E quero que continue assim.

– A minha irmã não tem a melhor das reputações. – Lane meneou a cabeça. – Quanto menos pessoas souberem, melhor.

Mitch os deixou ali na sala. Embora houvesse quatro cadeiras presas ao chão junto a uma mesa de aço também presa, Lane não conseguiu ficar sentado. Samuel T., por sua vez, pôs a velha maleta ao seu lado e cruzou as mãos.

O advogado balançou a cabeça.

– Ela vai ficar louca quando souber que você me chamou.

– E quem mais eu poderia chamar? – Lane esfregou os olhos doloridos. – E depois disso, você vai me ajudar com o meu divórcio, certo?

– Apenas mais uma manhã atarefada com os Bradford…

Pelo menos deixaram que ela permanecesse com as próprias roupas, Gin pensou, enquanto era conduzida por outro corredor de concreto pintado com a vichyssoise do mês.

Ficara aterrorizada com a perspectiva de se despir diante de uma guarda feminina de peito cabeludo para depois ser violada por uma mão com uma luva antes de ser enfiada dentro de um macacão laranja do tamanho de uma tenda de circo. Quando isso não aconteceu, ficara obsessiva com a possibilidade de ser trancafiada numa cela horrorosa e suja com um punhado de prostitutas viciadas em drogas tossindo o vírus da AIDS em cima dela.

Em vez disso, fora colocada numa cela sozinha. Uma cela fria, com apenas um banco e um vaso sanitário de aço sem assento nem papel higiênico.

Não que um dia ela fosse fazer uso daquilo.

Seus brincos de diamante foram retirados, assim como o relógio Chanel, juntamente com as malas LV, o celular, aquelas notas de quinhentos dólares e os cartões de crédito inúteis que tinha na carteira.

Um telefonema. Foi só o que lhe concederam, bem como nos filmes.

– Por aqui – disse o guarda, parando diante de um homem afro-americano uniformizado, e em seguida abrindo uma porta pesada.

– Lane…! – Só que ela parou de correr na direção do irmão assim que viu quem estava sentado à mesa. – Ah, Deus. Ele não.

Lane a abraçou com força depois que a porta se fechou.

– Você precisa de um advogado.

– Estou livre – Samuel T. disse com a fala arrastada. – Relativamente livre.

– Não vou falar na frente dele. – Ela cruzou os braços diante do peito. – Nenhuma palavra.

– Gin…

Samuel T. interrompeu o irmão dela.

– Eu te disse. Acho melhor pegar as minhas coisas e ir embora.

– Sentem-se – Lane ordenou. – Os dois.

Houve um instante de silêncio, que Gin entendeu como sinal de que Samuel T. estava tão surpreso pelo tom de comando quanto ela. Lane sempre fora, dentre os quatro irmãos Baldwine, aquele que seguia conforme a maré. Agora, ele parecia Edward.

Ou como Edward costumava ser.

Depois que se sentou desajeitada numa cadeira tão dura e fria quanto um bloco de gelo, Lane apontou um dedo na direção dela.

– O que você aprontou?

– Como é? – ela disse, se retraindo. – Por que é culpa minha? Por que acha que fui eu quem…

– Porque normalmente é o que acontece, Gin. – Ele cortou o ar com a mão quando ela começou a discutir. – Nem comece, eu te conheço há tempo demais. O que fez desta vez para irritá-lo? Vou tirar você daqui, mas tenho que saber com o que estou lidando.

Enquanto Gin encarava o irmão, quis mais do que nunca mandá-lo se foder. Mas só conseguia pensar na imagem dos seus cartões sendo negados no mostrador digital da bomba do posto de gasolina. Quem mais poderia ajudá-la?

Olhou para Samuel T. Ele não a encarava, e seu rosto estava impassível, mas a desaprovação altiva que ele emanava era tão evidente quanto sua colônia no ar.

– E então? – Lane inquiriu.

Pesando as opções, percebeu que estava completamente desconfortável com essa coisa de enfrentar situações difíceis. Com dinheiro suficiente e uma amnésia conveniente, não existia nada que ela não pudesse evitar, quer isso envolvesse suborno ou teimosia.

Infelizmente, as infindáveis opções estavam fundamentadas num estilo de vida que apenas parecia ser dela. Mas, na verdade, era de outra pessoa. Só não sabia disso até aquela manhã.

Pigarreou.

– Samuel T., você pode… me dar um momento a sós com o meu irmão? – Ela avançou a mão sobre a mesa. – Não estou dizendo que não pode ser o meu advogado, só preciso de um pouco de privacidade com ele. Por favor.

Samuel T. curvou uma sobrancelha.

– É a primeira vez que a ouço dizer essas palavras. Pelo menos estando vestida.

– Cuidado, Lodge – Lane rosnou. – Ela é minha irmã.

O homem se recompôs, como se tivesse se esquecido de que não estava sozinho com ela.

– Perdão. Isso foi inapropriado.

– Não vá para longe. – Lane começou a andar pela sala, puxando os cabelos negros e curtos com a mão. – Pelo amor de Deus, vamos precisar de uma boa representação.

Enquanto seu advogado, amante e pai da sua filha saía – ainda que ele desconhecesse essa última identidade –, Gin mirou os sapatos de salto de seda. A ponta do esquerdo tinha se sujado quando ela foi colocada no banco de trás da viatura.

Houve um clique, indicando que a porta tinha sido fechada atrás de Samuel T. Ela não precisou ser encorajada a falar.

– Ele quer que eu me case com Richard Pford.

– Richard… Desculpe, o que você disse?

– Você ouviu muito bem. Papai vai cortar todos os meus recursos a menos que eu me case com aquele homem. Ele disse que é por causa daquela maldita empresa de distribuição que nos dará melhores taxas ou algo assim.

– Ele ficou louco? – Lane inspirou.

– Você quis saber por que peguei o carro. É por isso, e é por isso que papai chamou a polícia. – Levantou o olhar para o irmão. – Não vou me casar com Richard. Não importa o que o nosso pai faça comigo. É com isso que você vai lidar.

Levantando-se, ela foi até a porta e a abriu.

– Pode voltar.

– Quanta honra – murmurou Samuel T.

Enquanto seu advogado voltava a se acomodar, ela disse: – Então, o que faço para sair daqui?

– Você paga a fiança – Samuel T. respondeu. – E depois tentamos fazer com que as acusações sejam retiradas. Você pode fazer um apelo ou seu pai pode perdoar o que quer que você tenha feito.

– Qual seria o montante da fiança? – Lane perguntou.

– Sem antecedentes, isso vai a favor dela, mas o risco de fugir não. Acho que no máximo cinquenta mil. McQuaid é um juiz amigável para pessoas como nós, por isso o valor não será muito alto.

50 mil dólares. De fato, a quantia nunca lhe parecera muito antes. Apenas mais um pulinho à loja Chanel em Chicago.

Pensou no pouco que tinha na carteira.

– Não tenho essa quantia.

Samuel T. gargalhou.

– Claro que tem.

– Farei com que seja pago – Lane o interrompeu.

Samuel T. abriu a maleta e tirou alguns papéis.

– Você me autoriza a representá-la nessa questão, Virginia?

Desde quando ele a chamava por algo que não fosse o apelido? Pensando bem, talvez ele só não quisesse que seu irmão o esmurrasse no piso de concreto por ter demonstrado familiaridade demais.

– Sim.

Os olhos dele, aqueles olhos cinzentos e aguçados, sustentaram o olhar dela.

– Assine aqui. – Depois de ela ter assinado, murmurou: – Não se preocupe, eu vou tirar você daqui.

A respiração dela vacilou quando ela expirou.

– Mas e depois?

O que, exatamente, seria diferente do outro lado de tudo aquilo? Era muito improvável que seu pai virasse a página subitamente. Edward mal sobrevivera à decisão de William Baldwine de escolher os negócios em detrimento dos filhos.

– Primeiro, te tiramos daqui – Lane disse. – Depois lidamos com o resto.

Voltando-se para o irmão, ela percebeu que nunca o vira tão sério. Recostado à parede nua do cubículo horrendo, ele parecia muito mais velho do que quando partira, dois anos antes. Parecia no comando das coisas.

Ela crescera esperando encontrar autoridade em Edward, e nunca em Lane, o playboy.

– Ele vai ganhar – ela se ouviu dizer. – Papai sempre vence.

– Não desta vez – Lane disse entredentes.

– Que diabos está acontecendo aqui? – perguntou Samuel T.

Lane apenas meneou a cabeça.

– Resolva isso, Samuel. Apenas tire a minha irmã daqui. Eu cuido do resto.

Deus, como ela queria que fosse verdade. Porque, evidentemente, a sua tentativa de irritar o pai não dera muito certo.

 

CONTINUA

DEZ

Claro que era uma ideia muito idiota.

Contudo, enquanto Lizzie retribuía o beijo, foi como se ela estivesse afunilando dois anos de raiva, frustração e dor diretamente dentro dele. E que ele fosse para o inferno, mas seu sabor era de bourbon, de desespero e de sexo selvagem… e ela gostava disso.

Ela sentia falta disso.

O que a deixou ainda mais enfurecida. Ela queria dizer que aquilo era horrível. Que era contra a sua vontade. Uma violação.

Mas não era verdade. Foi ela quem enfiou a língua na boca dele, e foi ela quem enterrou os dedos nos ombros dele, e foi ela quem, que Deus a ajudasse, aproximou o corpo, colando-se nele.

Para poder sentir a ereção dele.

Seu corpo não mudara no tempo em que ficaram afastados; ele era todo feito de músculos rijos e membros delgados. E ele beijava como antes, com aspereza e avidez, apesar de ter sido criado como um cavalheiro. E seu calor continuava o mesmo.

E então, para piorar ainda mais as coisas, memórias dos dois juntos, pele contra pele, se chocando, se balançando, ondulando, a assaltaram, enterrando toda a mágoa e o sentimento de traição debaixo de uma avalanche de lembranças eróticas.

Por uma fração de segundo, percebeu que acabaria fazendo sexo com ele ali mesmo, naquele instante.

Sim, claro, porque era uma maneira eficaz de mostrar que estava falando sério.

Um verdadeiro momento Gloria Steinem.17

Em vez disso, algo foi derrubado na mesa e o barulho interrompeu o silêncio; em seguida, um esguicho molhou o quadril e a coxa dela num choque de água fria. Dando um salto, ela o empurrou com força, e Lane tropeçou e caiu para trás, aterrissando no piso de ladrilhos.

Com um movimento brusco do braço, ela limpou a boca.

– Que diabos você estava fazendo?

Pergunta idiota. O mais adequado seria: O que ela estava fazendo?

Ele se pôs de pé na próxima batida de coração.

– Quis te beijar desde que voltei.

– O sentimento não é mútuo…

– Até parece. – Pegou o copo e sorveu um grande gole. – Você ainda me deseja…

– Saia!

– Está me expulsando da minha própria estufa?

– Ou você sai ou saio eu – ela rebateu. – Essas flores não vão parar nos vasos sozinhas. A menos que queira metade das mesas vazias na sua festa do Derby?

– Não estou nem aí com elas. Ou com essa maldita festa. Ou com nada disso… – Ele gesticulou, e teria sido mais convincente caso não estivesse segurando um bourbon da família naquele copo. – Deixei tudo isso para trás, Lizzie. Já estou farto mesmo.

Motrin. Era disso que ela precisava.

Menos Lane e mais analgésicos.

– Eu desisto – murmurou ela. – Você venceu. Vou eu.

Quando ela se virou para ir embora, ele a segurou e a girou, arrastando-a para junto de si. Foi nesse momento que ela notou o quanto ele envelhecera desde a última vez que o vira. Seu rosto estava mais magro, o olhar mais cínico, os pés de galinha mais acentuados nos cantos dos olhos.

Infelizmente, só o tornava mais belo.

– Nada dessa história horrível com Chantal é como você pensa – ele disse sombriamente.

– Mesmo que seja apenas metade…

– Você não entende…

– Eu estava apaixonada por você. – Sua voz se partiu, e ela o empurrou. – Eu não achava que a gente fosse se casar necessariamente, mas não pensei que você estivesse a caminho do altar com outra mulher. Que estava grávida… e que ainda por cima engravidou enquanto você estava comigo.

– Eu tinha terminado com ela, Lizzie. Antes de voltar para cá naquele mês de abril, eu disse para ela que estava acabado.

– Mas não foi bem assim, não é?

– Ela estava grávida de três meses quando fiquei sabendo, Lizzie. Faça as contas comigo. Estive com Chantal pela última antes de vir para cá, no aniversário da minha mãe, no fim de março. Você e eu… ficamos juntos em maio, e no fim de junho eu fiquei sabendo da gravidez. Se você se lembrar bem, não saí de Easterly durante todo aquele tempo. Você sabia onde eu estava todos os dias e todas as noites porque eu estava com você. – Ele a encarou do alto. – Três meses. Não dois, nem um. Três meses, Lizzie.

Ela levou as mãos ao rosto, lutando contra a lógica.

– Por favor, pare de fazer isso.

– Isso o quê?

– Dizer meu nome. Isso lhe dá a ilusão da credibilidade.

– Não estou mentindo. E faz quase dois anos que quero esclarecer a situação. – Ele praguejou novamente. – Tem mais coisas, mas não quero entrar nessa parte. E não afeta o que existe entre mim e você.

Antes que ela percebesse o próprio movimento, descobriu-se sentada no banco de rodinhas que estivera usando antes. Olhando para as mãos, flexionou os dedos, sentindo a rigidez das juntas e, por algum motivo, pensou nas unhas perfeitas de Chantal, em suas palmas lisas e sem marcas. Falando em opostos… As mãos que ela fitava eram as de uma trabalhadora, que tinha arranhões nos dorsos provocados por espinhos de rosa perdidos, e terra debaixo das unhas, que ela só conseguiria limpar depois que chegasse em casa. Também havia pintas, por ter cavado a terra sem a proteção de luvas e, definitiva e positivamente, não havia nenhum diamante de um milhão de dólares em seu dedo.

– Casei com Chantal no cartório depois que você me deixou – ele continuou com severidade. – O bebê não tinha culpa, e por eu ter crescido sem meus pais, não queria fazer o mesmo com um filho meu, a despeito dos meus sentimentos pela mãe dele. Mas eu tinha que sair da cidade. Chantal não admitia que o casamento fosse apenas no papel. Por isso fui para o norte, ficar em Nova York com um amigo dos tempos da Universidade da Virgínia. Foi pouco depois que Chantal me ligou para falar que tinha perdido o bebê.

A amargura em sua voz fez ele falar tão baixinho que ela mal ouviu.

– Ela também não me ama – ele murmurou. – Não amava na época e não ama hoje.

– Como você pode ter certeza? – Lizzie se ouviu dizer.

– Pode confiar em mim quanto a isso.

– Ela pareceu bem contente em ter você de volta.

– Não voltei por causa dela e deixei bem claro. Essa mulher só é capaz de se afeiçoar a uma refeição grátis.

– Pensei que ela tivesse dinheiro.

– Nada comparado ao que eu tenho.

Sim, ela imaginou que devia ser verdade. Existiam países com menos renda anual do que a dos Bradford.

– Você é o amor da minha vida, quer esteja comigo ou não. – Quando ela ergueu o olhar, ele apenas encolheu os ombros. – Não posso mudar o que aconteceu e sei que não há como voltar… Só o que peço é que não acredite nas aparências, ok? Você está há dez anos com esta família, mas estou com eles e com pessoas que os cercam minha vida inteira. É por isso que é você quem eu quero. Você é real. Não é como eles e isso é uma coisa muito, muito boa.

Ela esperou que ele fosse expressar mais alguma coisa, e quando ele não o fez, ela voltou a fitar as mãos.

Por algum motivo, seu coração batia forte, como se ela estivesse próxima demais de um penhasco. Pensando bem, imaginou que era isso mesmo, porque as palavras dele estavam entrando em sua cabeça e embaralhando seus pensamentos.

De um jeito que não a ajudava em nada.

– Tenho muito medo de você – sussurrou.

– Por quê?

Porque queria acreditar no que ele dizia com o desespero de um viciado.

– Não tenha – ele disse quando ela não respondeu. – Nunca quis que nada assim acontecesse. E faz muito tempo que eu queria acertar as contas com você.

Parecia apropriado que estivessem cercados por tantos vasos de flores. A prova do seu trabalho, de seu único objetivo ali na propriedade, era um lembrete do divisor que sempre os distanciaria.

Ela se forçou a se lembrar daquela fotografia e do artigo no Charlemont Herald sobre o casamento, sobre os dois grandes legados sulistas se unindo num arranjo feudal. Também se lembrou dos dias e das noites logo depois que ficou sabendo de Chantal, de todas aquelas horas de sofrimento até que pensou estar à beira da morte.

Mas as palavras dele exprimiam verdade sobre uma coisa. O orgulho fez com que ela continuasse a trabalhar em Easterly. Assim, estivera presente na propriedade todos os dias, exceto aos domingos, pelos últimos vinte e quatro meses. E Lane não voltara. Durante dois anos… ele não voltara para ver Chantal.

Não era lá um grande casamento.

– Deixe que as minhas ações falem por si mesmas. Deixe que eu prove para você que estou dizendo a verdade.

Em sua mente, ela ouviu seu celular tocando insistentemente. Logo após o rompimento, ele lhe telefonara no mínimo uma centena de vezes, deixando mensagens que ela nunca ouvira. Ela tirara duas semanas de férias assim que soube de tudo, fugindo para a fazenda em Indiana, voltando para Plattsburgh no nordeste, para o pomar de maçãs da sua juventude. Seus pais ficaram felizes em vê-la, e ela passara aqueles dias a cuidar das árvores McIntosh junto aos outros trabalhadores.

Quando regressara, ele já tinha ido embora.

Os telefonemas cessaram depois de um tempo. E, no fim, ela parou de ter sobressaltos toda vez que um carro parava na porta da frente.

– Por favor, Lizzie… diga alguma coisa. Mesmo que não seja o que quero ouvir…

O som da risada de uma mulher o interrompeu com suavidade e fez com que ambos olhassem para as portas que se abriam para o jardim. Quando Greta saíra, um dos painéis não se fechara por completo, e através da abertura, Lizzie viu duas pessoas andando pelo caminho de pedras em direção à piscina no extremo oposto.

Mesmo sob a iluminação fraca do paisagismo, ficou claro que o vestido de gala da mulher era vermelho rubi, suas saias volumosas se arrastando atrás dela. Ao seu lado, um homem alto de terno lhe ofereceu o braço num galanteio e a encarava com o tipo de atenção que se reserva a um lauto banquete.

– Minha irmã – Lane disse, sem necessidade.

– Aquele é Samuel T.? – Lizzie perguntou.

– Quem se importa…

Ela voltou a olhar para Lane.

– Você partiu o meu coração.

– Eu sinto muito. Não foi minha intenção, Lizzie, de modo nenhum. Juro por Deus.

– Pensei que você fosse ateu.

Ele ficou calado um instante, os olhos vasculhando suas feições.

– Eu me batizaria mil vezes, se necessário. Posso memorizar a Bíblia, beijar o anel do papa… faço qualquer coisa que você quiser… mas, por favor…

– Não posso voltar no tempo, Lane. Sinto muito. Não consigo.

Ele se calou. E depois de um longo instante, assentiu.

– Tudo bem, mas posso pedir uma coisa?

Não.

– Sim.

– Não me odeie mais. Eu já faço muito isso sozinho.

O jardim estava perfumado como uma mulher recém-saída do banho, tão arrumado quanto a sala de estar, e tão reservado quanto a biblioteca de uma universidade.

O que significava de fato que era semirreservado. As várias janelas de Easterly davam para as moitas de flores brancas e creme, todas elas bem cuidadas e discretamente iluminadas.

Felizmente, Gin não tinha problemas quanto a fazer sexo em público.

Enquanto se pendurava no braço forte de Samuel Theodore Lodge III, não se deu ao trabalho de esconder seu sorriso.

– Há quanto tempo está com ela?

– Desde quando chegamos. Uma hora?

Ela gargalhou.

– Ora, ora, meu caro Samuel, por que você perde tempo com mulheres como ela?

– Existe outro tipo?

Era difícil saber quem conduzia quem até os recessos escuros do canto mais afastado, onde o muro de tijolos se encontrava com os fundos da casa, onde ficava a piscina. Era para lá que ambos se dirigiam.

– Eu não sabia que você vinha – ela disse, erguendo a mão para tocar os diamantes pendurados no pescoço… e depois deslizar os dedos pelo corpete do vestido. – Eu teria me dado ao trabalho de vestir uma calcinha.

– Nova mania, então?

– Gosto quando você as arranca do meu corpo. Especialmente quando você se frustra e as rasga.

– Mas eu não faço parte de um clube exclusivo, não é mesmo?

– Não seja grosseiro.

– Foi você quem tocou no assunto da lingerie. E também foi você quem quis sair comigo. A menos que, para variar, precise mesmo de um pouco de ar fresco?

Gin estreitou o olhar nele.

– Você é um bastardo.

– Não de acordo com o dicionário. Meus pais estavam muito bem casados quando nasci. – Ele ergueu uma sobrancelha. – E creio que você não possa dizer o mesmo da sua filha, não é mesmo?

Ela parou, a maré virando numa direção que ela não previra.

– Está passando dos limites, Samuel. E você sabe disso.

– É um pouco estranho quando você fala de decoro. Você não está transando com aquele advogado casado da minha empresa? Acho que ouvi alguma coisa a esse respeito.

Ah, então era por isso que ele estava agindo daquela maneira.

– Está com ciúmes? – ela pronunciou de maneira arrastada, o sorriso retornando às suas feições.

– Ele não consegue te satisfazer. Não por muito tempo, e não como eu consigo.

Quando ele a agarrou, ela deixou, adorando o modo como as mãos dele seguraram sua cintura e a boca se afundou na sua. Não demorou muito para que ele erguesse sua saia até as coxas, mantendo-a ali apesar de toda a armação do vestido.

Pensando bem, ele vinha se metendo debaixo de tecidos finos e delicados desde os catorze anos, quando passara a frequentar os bailes da sociedade.

Samuel T. gemeu ao descobrir que ela não estava mentindo quando disse não ter nada debaixo daquele vestido, e seus dedos foram rudes ao penetrá-la. O fogo e o desejo que sentiu foram um tremendo alívio para os assuntos em que ela não queria pensar, o sexo lavando todos os seus arrependimentos e sua tristeza, dando-lhe nada além de prazer.

Não havia motivos para fingir o orgasmo que teve de fato, as unhas se enterrando nos ombros macios do smoking enquanto arquejava, a antiquada colônia Bay Rum tão atávica que fazia com que ele fosse um homem à frente do seu tempo.

Enquanto se entregava, pensava que ele era o único homem que já tinha amado – e o único que jamais teria verdadeiramente. Samuel T. era muito parecido com ela, só que pior: uma alma que nunca se assentaria enquanto estivesse passeando pelos caminhos de tijolos da expectativa social.

– Me come – ela exigiu ao encontro dos lábios dele.

Ele arfava, seu corpo estava rijo debaixo do smoking caro, pronto para ela… Mas em vez de lhe dar o que ela tanto queria, ele recuou um passo, abaixando a saia e fitando-a de longe.

– Samuel? – ela inquiriu.

Com uma lentidão deliberada, ele levou os dedos até a boca e os lambeu. Depois passou a língua para cima e para baixo, entre eles, lambendo a essência dela em sua pele.

– Não – ele disse. – Acho que não.

– O quê?

Samuel se inclinou na direção dela.

– Vou voltar para a festa do seu pai e vou me sentar à mesa dele. Adiantei-me e troquei a disposição dos lugares, de modo que Veronica estará sentada ao meu lado. E você vai saber quando eu colocar a minha mão entre as pernas dela, você vai vê-la se empertigar e tentar manter a compostura enquanto faço com ela o que acabei de fazer com você. Observe o rosto dela, Gin. E saiba que, assim que eu sair, vou transar com ela no banco da frente do meu Jaguar.

– Você não ousaria.

– Como acabei de dizer, preste atenção, Gin.

Ele se virou para se afastar, e ela quis jogar alguma coisa na cabeça dele. E vez disso, disse entre dentes cerrados: – O nome dela não é Savannah?

Ele relanceou por sobre o ombro.

– E eu me importo com o nome dela? A única coisa relevante é: ela não é você.

Dito isso, ele se afastou a passos largos naqueles elegantes sapatos de couro que ecoaram nos tijolos, com os ombros retos e a cabeça erguida.

Envolvendo-se com os braços, ela percebeu pela primeira vez que a noite estava fria. Embora fizesse 26°C.

Concluiu que deveria ter lhe contado a respeito do advogado. Em retrospecto, escolhera o homenzinho grudento exatamente porque sabia que cedo ou tarde Samuel T. descobriria.

Pelo menos uma coisa era certa: Samuel T. voltaria. Por algum motivo, os dois não conseguiam ficar longe um do outro por muito tempo.

E, no fim, ela acabaria tendo que lhe contar a respeito de Amelia, pensou. Mas não hoje. Nem… tão cedo.

Se aquele homem descobrisse que ela lhe escondera a filha por todos aqueles anos?

Ele seria capaz de matá-la.


Gloria Steinem, famosa feminista, é uma jornalista americana, célebre por seu engajamento com o feminismo e sua atuação como escritora e palestrante, principalmente durante a década de 1960. (N.T.)

 

ONZE

Depois que Lane saiu da estufa, a perspectiva de retornar para a festa do pai era extremamente desagradável, ainda mais depois de ouvir o gongo que anunciava que o jantar estava sendo servido. Mas, considerando-se que a outra alternativa seria ir ver Edward, ele…

– Lane?

Concentrando-se, olhou além do arco da sala de jantar. Uma morena alta num vestido cinza-claro estava parada diante dos antigos espelhos venezianos, a visão dos ombros nus tão adorável de trás quanto de frente.

Falando no diabo, ele pensou. Mas sorriu ao se aproximar e beijá-la no rosto macio.

– Sutton, como está?

Mas quis dizer: Que diabos você está fazendo aqui? Ela e a família eram o “inimigo”, proprietários da Destilaria Sutton, produtores do famoso bourbon Sutton e de outras bebidas – mas isso não significava que ele tivesse algo particularmente contra a mulher. Tradicionalmente, porém, pessoas da linhagem dela eram persona non grata em Easterly… em conversas… nas orações noturnas.

E eram fãs da UK. Portanto, eram azuis nos jogos, e não vermelhos.

Isso era algo que poderia irritá-lo.

Quando se abraçaram, seu perfume refletiu a mulher rica que era, sua fragrância delicada preencheram as narinas dele mesmo quando se afastou; assim como seu corpo perfeito e bem vestido, surgindo novamente em seus olhos quando ele piscou.

Mas não era por isso que estava atraído por ela. Aquilo era o mesmo que admirar uma pintura num museu ou um automóvel Duesenberg.

– Eu não sabia que você viria este final de semana. – Ela sorriu. – É bom te ver depois de tanto tempo. Você me parece bem.

Isso foi engraçado, porque ele se sentia uma merda.

– E você, bela como sempre.

– Vai ficar para o Derby?

Por cima do ombro de Sutton, ele viu que Chantal entrava na sala de jantar, o longo vestido amarelo se arrastando junto com a sua postura de inocente.

Só até eu preencher a papelada do divórcio, ele pensou.

– Lane? – Sutton o chamou.

– Desculpe. Na verdade, tenho que voltar logo para Nova York. – Afinal, aquelas partidas de pôquer precisavam dele lá. – Estou contente em ver você. Surpreso por vê-la no jantar do meu pai, mas contente.

Sutton assentiu.

– Também é uma surpresa e tanto para mim.

– Veio a negócios?

Ela sorveu um gole da taça de vinho.

– Hummm.

– Era para ser uma piada.

– Me diga uma coisa, você tem visto…

Ela deixou a frase inacabada, sem mencionar o nome, pois não havia motivos para que ela pronunciasse “Edward”. Por muitos motivos.

– Ainda não o vi. Mas vou até a fazenda.

– Sabe, Edward nunca vem à cidade. – Sutton tomou mais um gole da taça de borda fina. – Eu costumava vê-lo com bastante frequência antes que ele… Bem, fazíamos parte do conselho da Universidade de Charlemont, mesmo eu sendo fã da UK, e…

Enquanto a mulher prosseguia, ele ficou com a sensação de que ela não estava lhe informando fatos que ele já sabia, mas que revivia um período da vida cuja perda ela lamentava. Não pela primeira vez, ele ficou se perguntando o que realmente acontecera entre o garoto de ouro da família e a adorável filha do concorrente deles.

– Ora, se o filho pródigo não retornou…

O som da voz do pai foi um alerta que o atingiu tal qual uma flecha, e Lane encobriu seu dissabor ao tomar um gole de bourbon.

– Pai.

William Baldwine era quase tão alto quanto ele, tinha os mesmos cabelos negros e olhos azuis, o mesmo maxilar, os mesmos ombros. As diferenças eram a idade, o grisalho nas têmporas, os óculos bifocais de aro de casco de tartaruga, a ruga entre as sobrancelhas causada pelos muitos anos de semblante fechado. De algum modo, porém, todos aqueles sinais do passar dos anos não diminuíam a estatura do pai. De fato, apenas serviam de contraponto para uma aura de poder.

– Tenho que mandar arranjarem um lugar para você. – Por trás daqueles óculos, os olhos do pai encararam as roupas de Lane com um desdém apropriado para as fezes de um cachorro no meio de uma sala de estar. – Ou está de saída?

– Deixe-me pensar… – Lane estreitou o olhar. – Por mais que eu aprecie degradar a sua mesa com esta minha camisa, eu teria que ficar na sua presença durante uma refeição de, no mínimo, três pratos. Portanto, acho que vou embora.

Lane colocou seu Reserva de Família na mesinha de apoio mais próxima e se curvou para Sutton, que parecia preferir ir com ele em vez de ficar ali.

– Sutton, é sempre um prazer. – Olhou para o pai. – Pai, vá se foder.

Lançou essa granada e seguiu em meio à multidão, acenando para políticos e socialites, para aqueles dois atores da série da HBO na qual estava viciado e para Samuel T. e sua namorada do momento.

Chegou ao vestíbulo de entrada, e estava quase na porta da frente quando um par de saltos agulha se aproximou por trás.

– Aonde você vai? – Chantal sibilou ao agarrar o braço dele. – E por que não está vestido?

– Não é da sua conta. – Soltou-se dela. – Nos dois casos.

– Lane, é inaceitável…

– Essas palavras jamais deveriam passar pelos seus lábios, mulher.

Chantal fechou a boca muito bem delineada. Em seguida, inspirou fundo, como se estivesse com dificuldade para aplacar a raiva.

– Eu gostaria de passar um tempo com você esta noite, para conversar e discutir… nosso futuro.

– O único futuro em que você precisa pensar é quantas malas Vuitton vai precisar para a sua mudança.

Chantal ergueu o queixo.

– Você não faz ideia do que está falando.

Ele se inclinou na direção dela e abaixou a voz até um sussurro.

– Sei o que você fez. Sei que não “perdeu” o bebê. Se queria manter o aborto em segredo, não deveria ter pedido a um dos motoristas da família que a levasse para aquela clínica em Cincinnati.

Quando ela empalideceu, ele se lembrou exatamente onde estava quando o homem que a levara lá titubeou para lhe dar a informação.

– Não tem resposta? Não vai negar? – Lane a repreendeu. – Ou isso virá quando a surpresa por ter sido descoberta passar?

Houve um instante de silêncio, e ele sabia que ela estava pesando suas opções, tentando descobrir como abordá-lo de um jeito favorável.

– O que eu deveria ter feito? – disse ela por fim, baixinho. – Você me abandonou sem explicações, sem apoio, sem dinheiro, sem um modo de entrar em contato com você.

Ele fez um gesto abarcando as pinturas a óleo e os tapetes orientais.

– Sim, porque você ficou num lugarzinho bem largado no meio da selva.

– Você me abandonou!

– Por isso a solução foi se recompor para tentar seduzir outro homem, certo? Estou deduzindo que foi o que fez, já que você precisava caber de novo no manequim 38, não é? Minha querida esposa.

– Lane, você está dizendo coisas que não quer…

– Você matou um inocente…

Reginald veio da sala de estar com uma bandeja de prata com copos usados, deu uma olhada nos dois e voltou para trás, desaparecendo de novo no cômodo agora vazio.

Ah, sim, a vida em Easterly… Onde a privacidade era menos comum que diamantes e distribuída em termos relativos. Pelo menos sabia que podia confiar naquele homem mais do que em sua própria família.

Não que isso significasse muito.

– Não vou ficar aqui discutindo com você – Lane disse, ríspido. – E você vai sair desta casa. Assim que o Derby acabar, a sua estada grátis já era.

Chantal arqueou uma das sobrancelhas perfeitas.

– Peça o divórcio se quiser, mas não vou a parte alguma.

– Você não terá mais o direito de ficar sob este teto depois que essa aliança sair do seu dedo.

O sorriso que ela lhe lançou foi gélido.

– É o que vamos ver. – Acenou com a cabeça para a porta da frente. – Vá para onde quiser, fuja… É isso o que você faz, não é? Mas tenha certeza que: eu estarei aqui quando você voltar.

Lane estreitou os olhos. Chantal era muitas coisas, mas não era uma maluca. Ela se autopromovia demais para tanto.

E o encarava como se soubesse de algo que ele não sabia.

Que diabos aconteceu enquanto ele se manteve afastado?

No Vermelho & Preto, Edward estava sentado numa antiga poltrona de couro diante de uma televisão tão velha que ainda tinha antenas saindo da tela em forma de caixa. O cômodo estava na penumbra, mas reluzia por causa dos inúmeros troféus de corrida abarrotando as estantes até o teto do lado oposto.

O chalé do haras tinha um quarto, um banheiro com banheira com pés em forma de garras, uma cozinha pequena e aquela área, que era um misto de biblioteca, escritório, sala de estar e de jantar. Não havia segundo andar, apenas um sótão cheio de recordações de velhas corridas de cavalo, e também não havia garagem. A área era menor do que a sala de jantar de Easterly e, desde que se mudara para lá, ele aprendera a apreciar o valor de ter um lugar pequeno o bastante para poder ouvir e ver quase tudo. Lá na mansão, nunca se sabia quem mais estava na gigantesca casa, onde estavam, o que estavam fazendo.

Para alguém como ele, cuja única amante eram os terrores noturnos e cujo principal trabalho era impedir que seu cérebro se canibalizasse, os aposentos apertados eram algo muito mais fácil de lidar, ainda mais naquela época do ano. Pena que a sua ida à América do Sul, quando fora sequestrado, tivesse acontecido pouco antes do Derby. O aniversário da sua captura arruinara o que sempre fora um fim de semana agradável.

Consultou o relógio e praguejou. Agora que o sol tinha se posto, as horas se apresentavam numa confusão nebulosa, minutos se tornando séculos e um segundo ao mesmo tempo. O seu trabalho noturno? Chegar, de algum modo, ao nascer do sol sem gritar.

Junto ao cotovelo, havia uma garrafa de vodca quase vazia. Começara a beber com cinco cubos de gelo num copo alto, que já estava derretido havia um tempo, e ele agora sorvia a bebida pura. Na noite anterior, fora gim. Na de antes, tomara três garrafas de vinho, duas de tinto e uma de branco.

Durante a fase inicial e aguda da sua “recuperação”, aprendera todos os estágios da administração da dor, aprendera como espaçar os analgésicos e a comida a fim de fazer com que os impulsos nevrálgicos do seu corpo arruinado não fossem piores do que a tortura que suportara quando aquelas feridas foram provocadas. Mais tarde, o mestrado em Gerenciamento de Medicação se traduziu muito bem na segunda parte – a parte crônica, a da “recuperação”. Graças às tentativas e aos erros adquiridos com os analgésicos, ele conseguia distribuir tudo para otimizar o efeito sedativo: todas as tardes, por volta das quatro horas, comia alguma coisa; às seis, quando os funcionários liberavam os estábulos, ele podia começar a beber estando, basicamente, de estômago vazio.

Nada o irritava mais do que alguém se metendo no meio do seu torpor…

Quando uma batida se fez à porta, apanhou a pistola ao lado da garrafa Grey Goose e tentou se lembrar que dia da semana era. O Derby aconteceria dali a dois dias… Então era quinta-feira. Era quinta-feira, algumas horas depois do pôr do sol.

Portanto, não era uma das prostitutas que ele pagava para vir servi-lo. Elas vinham às sextas-feiras. A menos que tivesse chamado duas pelo preço de uma aquela semana, mas não havia pedido aquilo.

Certo. Ou havia?

Apanhando a bengala, suspendeu-se da poltrona e claudicou até a janela da frente. Afastou as cortinas, com a pistola firme numa mão, mas o coração batia descompassado. Mesmo ciente de que, pela lógica, não existiam mercenários no Condado Ogden à sua procura, que estava seguro atrás das travas e do sistema de segurança que instalara, apesar da quarenta milímetros em suas mãos… seu cérebro continuava eletrizado.

Quando viu quem era, franziu o cenho e abaixou a arma. Seguindo até a porta, retirou a corrente, destrancou as três travas e abriu a porta, as dobradiças rangendo como camundongos. Outro mecanismo de alerta para ele.

– Cliente errado – murmurou com secura para a loira baixinha que vestia jeans e camiseta justa. – Eu só peço morenas. Em vestidos de gala.

Por um motivo que preferia guardar para si.

Ela franziu a testa.

– O que disse?

– Só aceito morenas. E elas têm que estar adequadamente vestidas.

Ele queria cabelos longos curvados nas pontas, um vestido que se arrastasse pelo chão, e elas tinham que estar usando Must da Cartier. Ah, e tinham que ficar de boca fechada. Não tinham permissão para falar com ele enquanto estivessem transando. Ainda que as putas conseguissem representar bem o exterior, a ilusão frágil seria rompida no instante em que as vozes delas não fossem a da mulher que desejava, mas que não podia ter.

Ele já tinha bastante dificuldade para manter a ereção daquele modo; na verdade, a única maneira de fazer seu pau subir era se conseguisse acreditar na mentira pelo tempo necessário até chegar ao orgasmo.

A mulher em sua soleira pousou as mãos nos quadris.

– Acho que não sei do que está falando. Mas sei que estou no lugar certo. Você é Edward Baldwine, e este é o Vermelho & Preto.

– E você quem é?

– Filha de Jeb Landis. Shelby. Shelby Landis.

Edward fechou os olhos.

– Maldito seja Ele.

– Eu agradeceria se não usasse o nome de Deus em vão na minha presença. Obrigada.

Ele levantou as pálpebras.

– O que você quer?

– O meu pai morreu.

Edward se concentrou num ponto acima da cabeça dela, na lua que crescia acima do Estábulo C.

– Quer entrar?

– Se guardar arma, sim.

Ele enfiou a pistola no cós do jeans e recuou.

– Quer beber alguma coisa?

Quando ela entrou, ele percebeu o quanto ela era baixinha. E devia pesar só uns 45 quilos, isso se estivesse ensopada segurando um fardo de feno.

– Não, obrigada. Não bebo álcool. Mas eu gostaria de usar o seu banheiro. A viagem foi longa.

– É por ali.

– Muito obrigada.

Ele se recostou na porta. A picape na qual ela evidentemente chegara sabe lá Deus de onde estava estacionada à esquerda, o motor ainda estalava debaixo do capô.

Depois de fechá-la e trancar tudo de volta, ouviu a descarga nos fundos da casa. Um momento mais tarde, a moça voltou e olhou para os troféus.

Edward seguiu para a poltrona, fazendo uma careta de dor ao se acomodar.

– Quando? – ele perguntou ao se servir do resto da vodca.

– Uma semana atrás – ela respondeu sem olhar para ele.

– Como?

– Pisoteado. Bem, os médicos disseram que o coração dele não aguentou, mas a causa foi o pisoteamento. Foi assim que você se machucou?

– Não. – Ele sorveu um longo gole. – Então, o que você faz aqui?

Dessa vez ela se virou.

– O meu pai sempre disse pra eu vir para cá pra encontrar você se alguma coisa acontecesse com ele. Ele disse que você lhe devia uma. Nunca perguntei o quê.

Edward a encarou demoradamente.

– Quantos anos você tem? Doze?

– Vinte e dois.

– Jesus, como você é nova…

– Cuidado com o que diz perto de mim.

Ele teve que sorrir.

– Você é igualzinha ao seu velho, sabia disso?

– É o que dizem. – Ela voltou a apoiar as mãos nos quadris. – Não quero esmola. Preciso de um lugar pra ficar e de um trabalho. Sou boa com cavalos, assim como o meu pai era, e ruim com pessoas… Por isso, considere-se avisado. Não tenho dinheiro, mas tenho costas fortes e não tenho medo de nada. Quando posso começar?

– Quem disse que estou procurando ajuda?

Ela franziu o cenho.

– O meu pai disse que você precisaria. Disse que você precisaria de mais mãos.

O Vermelho & Preto era uma grande operação, e sempre havia vagas. Mas Jeb Landis era uma lembrança complicada do passado… e a família dele estava contaminada por associação.

Mesmo assim…

– O que sabe fazer?

– Limpar estábulos e manter os cavalos em ordem não é física nuclear…

Ele dispensou as palavras dela com a mão.

– Tudo bem, tudo bem, está contratada. E só estou sendo um cretino porque, assim como você, não me dou bem com as pessoas. Tem um apartamento vazio ao lado do apartamento de Moe, sobre o Estábulo B. Pode se mudar para lá.

– Mostre o caminho.

Edward grunhiu ao voltar a ficar de pé e carregou o copo consigo de propósito ao conduzi-la até a porta.

– Não quer saber do salário?

– Você vai ser justo. O meu pai disse que desonestidade não faz parte do seu caráter.

– Ele foi generoso ao dizer isso.

– Duvido. Ele conhecia homens e cavalos.

Enquanto Edward voltava a destrancar tudo, conseguia senti-la observando-o e odiou isso. Seus ferimentos eram o resultado de um inferno que ele preferia manter escondido do mundo.

Antes de deixá-la sair do chalé, olhou-a fixamente.

– Só há uma regra.

– Qual?

Por algum motivo, ele se deteve nas feições dela. Ela não se parecia fisicamente em nada com o pai – bem, desconsiderando-se a altura. Shelby, ou qualquer que fosse seu nome, tinha olhos claros, e não negros. E sua pele não tinha a consistência de couro, embora isso ainda pudesse mudar.

A voz dela, porém, era como a de Jeb: aquele sotaque arrastado tinha um fundo de solidez.

– Você não vai chegar perto daquele garanhão – Edward avisou. – Ele é malvado até os ossos.

– Nebekanzer.

– Você o conhece.

– Meu pai costumava dizer que aquele cavalo tinha gasolina nas veias e ácido nos olhos.

– Então você já conhece o meu cavalo. Não se aproxime dele. Não vai limpar a baia dele, não vai chegar perto dele se ele estiver no pasto e nunca, jamais, vai colocar qualquer coisa sobre a porta da baia dele se quiser conservá-la. E isso inclui a sua cabeça.

– Quem cuida dele?

– Eu. – Edward claudicou noite afora, o ar úmido e pesado fazendo com que ele pensasse que não conseguiria respirar. – E ninguém mais.

Enquanto tentava respirar fundo, perguntou-se se todos aqueles médicos tinham deixado passar algum ferimento interno. Pensando bem, talvez a sensação de sufocamento fosse causada pela imagem daquela moça perto do maldito garanhão negro. Ele só conseguia pensar no que Neb poderia fazer com ela.

Ela se colocou na frente e pegou a mochila sobre o banco do passageiro.

– Então você é o encarregado aqui.

– Não, Moe Brown é. Você vai conhecê-lo pela manhã. Ele será o seu chefe. – Edward seguiu na direção dos estábulos. – Como já disse, o apartamento ao lado do dele está mobiliado, mas não sei quando o último a morar lá saiu.

– Já dormi em baias e em bancos de praça. Ter um telhado sobre a cabeça já basta.

Ele olhou na direção dela.

– O seu pai… era um bom homem.

– Não era nem melhor nem pior do que qualquer outra pessoa.

Era impossível não pensar em quem devia ser a mãe dela – ou em como alguém poderia ter suportado tempo suficiente ao lado de Jeb até ter uma filha com ele. Jeb Landis era uma lenda na indústria, tinha uma lista de cavalos vencedores maior do que qualquer outro, vivo ou morto. Também fora um alcoólatra filho da puta, com um vício por jogo ainda pior do que a sua veia misógina.

Uma coisa com a qual Edward não tinha que se preocupar era se Shelby saberia tomar conta de si mesma. Se conseguira sobreviver tendo vivido com Jeb, trabalhar num turno de dezoito horas numa fazenda criadora de cavalos seria fácil, fácil.

Quando chegaram ao Estábulo B, as luzes detectoras de movimento se acenderam e os cavalos se movimentaram lá dentro, batendo os cascos e relinchando. Entraram pela porta lateral, passaram pelo escritório de Moe e pelo depósito de suprimentos, e Edward a levou até o lance de escadas que antes conduzia ao palheiro, cobrindo toda a extensão do telhado. Em algum momento nos anos 1970, o lugar fora convertido em dois apartamentos, e Moe morava no da frente, que dava para a passagem de carros.

– Vá na frente e espere por mim ali em cima – disse com os dentes cerrados. – Eu demoro um pouco para subir.

Shelby Landis subiu os degraus rapidamente no compasso que ele costumava usar, mas que agora já não apreciava mais, e sentiu como se tivesse uma centena de anos ao se juntar a ela no andar superior.

Àquela altura, já estava tão sem fôlego que chiava como um pneu murchando.

Afastando-se dela, viu que não havia nenhuma luz por baixo da porta de Moe, mas, de todo modo, não teriam incomodado o homem. Com o Derby em menos de quarenta e oito horas, se estivesse em casa, o homem já devia estar dormindo a sono solto.

Ainda mais se considerasse que um dos seus dois cavalos poderia acabar excluído da corrida.

Enquanto Edward seguia em frente e girava a maçaneta do apartamento seguinte, percebeu que não sabia o que faria caso a porta estivesse trancada. Não fazia ideia de onde as chaves poderiam estar…

A porta se abriu, lembrando-o de que ele estava em meio a uma minoria de paranoicos ali naquela fazenda. O interruptor ficava à esquerda na parede e, quando ele o apertou, ficou aliviado em ver que o lugar não estava muito empoeirado e que, de fato, havia um sofá, uma cadeira, uma mesa e uma cozinha minúscula que, em comparação, fazia com que a sua parecesse industrial.

– O seu pai nunca mencionou o motivo de eu estar em débito com ele? – perguntou, mancando até o corredor escuro.

– Não, mas Jeb não era de falar muito.

Apertando o segundo interruptor, viu que o quarto e o banheiro também estavam organizados.

– Eis o que você tem aqui – disse ele, exausto só de ver a distância até a porta.

Quatro metros e meio.

Era como se fossem quilômetros.

Ela se aproximou.

– Obrigada pela oportunidade.

Ofereceu a mão e o fitou nos olhos e, por um instante, ele sentiu uma emoção diferente da raiva que ardia e queimava em seu íntimo nos últimos dois anos. Não sabia como defini-la, e o triste era que não sabia se a mudança era bem-vinda.

Havia uma certa claridade em ter um princípio de operação unilateralmente hostil.

Deixou a mão dela pendurada no ar enquanto arrastava o corpo de volta até a saída.

– Veremos se, mais tarde, você vai me agradecer.

De repente, lembrou-se de toda aquela coisa de não praguejar e não beber álcool.

– Ah, e mais uma coisa. Se a cortina do meu chalé estiver fechada, não me incomode.

– Sim, senhor.

Ele assentiu e fechou a porta. Depois, muito lenta e cuidadosamente, começou a descer.

A verdade era que Jeb Landis fora o responsável pela sua recuperação. Sem o chute que o homem deu no seu traseiro, só Deus sabia se Edward ainda estaria naquele planeta. Deus, ainda se lembrava com nitidez quando o treinador viera visitá-lo no centro de reabilitação. Apesar da regra explícita de Edward de não receber visitantes, Jeb passara pela estação da enfermagem e marchara para dentro do seu quarto.

Eles já se conheciam havia uma década. O interesse de Edward por cavalos de corrida, e sua subsequente posse, aliado ao compromisso prévio de ser o melhor em tudo o que fazia, significava que ele só aceitaria um homem treinando os seus cavalos.

No entanto, jamais previra que o homem seria um tipo de salvador.

O esporro de Jeb fora breve e direto, mas mais eficiente do que todos os argumentos e apoio emocional que recebeu de outras pessoas. E, um ano após sua mudança para lá, tendo jogado fora todos os seus ternos e decidido que aquela seria a sua vida, Jeb lhe disse que estava deixando o Vermelho & Preto rumo à Califórnia.

Provavelmente porque alguns agentes de apostas de Chicago estavam atrás de um pedaço do traseiro dele.

Em todos aqueles anos, antes e depois do sequestro, o fato de Jeb ter uma filha jamais viera à baila. Mas, sim, ele abrigaria a filha do homem. Claro.

E, felizmente, ela parecia ser capaz de cuidar de si mesma.

Portanto, o pagamento do débito teria um custo baixo.

Pelo menos, foi o que ele disse a si mesmo naquela primeira noite.

Só que aquilo não foi bem verdade… nem de longe.

 

DOZE

– Paguei cem mil dólares para me sentar ao seu lado.

Gin ergueu o garfo Tiffany com desenho de crisântemo para mexer na comida, mal ouvindo as palavras ditas junto ao seu ouvido. Estava ocupada demais se concentrando no arranjo floral diante dela. Samuel T. estava mais à esquerda, e a partir daquele ponto focal florido, sua visão periférica permitia que ela o acompanhasse ao lado da namoradinha, Veronica/Savannah.

– Por isso, você poderia pelo menos conversar comigo.

Voltando a se concentrar, fitou o odioso Richard Pford IV. O homem era só uma versão do jovem que um dia fora: alto e magro, com um olhar capaz de cortar vidro e uma natureza suspeita que contrastava com a sua posição invejável na hierarquia social de Charlemont. Filho de Richard Pford III, era o único herdeiro da Distribuidora de Bebidas Pford, uma cadeia nacional que distribuía vinhos, cerveja, bourbon, gim, vodca, champanhe, uísque etc. nas prateleiras e nos negócios do país inteiro.

O que significava que ele podia bancar um valor de seis dígitos para garantir um assento todas as noites da semana e duas vezes aos domingos.

Ele nadava em milhões, e seus familiares nem tinham começado a morrer ainda.

– Os assuntos do meu pai não me interessam – ela rebateu. – Portanto, parece que desperdiçou o seu dinheiro.

Ele tomou um gole de vinho.

– E pensar que ele foi para o programa de basquete da UC.

– Não sabia que você era fã deles.

– Não sou.

– Não é de se admirar que não nos damos bem. – UK. Ela devia ter desconfiado. – Além disso, não ouvi dizer que você estava para se casar?

– Os boatos quanto ao meu noivado foram exagerados.

– Difícil de acreditar, com todas as suas qualidades.

À esquerda, Veronica/Savannah deu um salto na cadeira, os cílios postiços flanaram, o garfo bateu no prato. Enquanto as lentes coloridas se voltavam para Samuel T., o maldito limpava casualmente a boca com o guardanapo damasco.

Samuel T., no entanto, não estava olhando para a namorada. Não, ele casualmente fitava o buquê de flores bem na frente de Gin.

O filho da puta.

Deliberadamente, Gin se virou para Richard e sorriu.

– Bem, estou encantada com a sua companhia.

Richard assentiu e voltou a cortar o seu filé mignon.

– Assim é muito melhor. Por favor, não pare.

Gin falou com suavidade, ainda que não fizesse ideia do que estava saindo da sua boca. Mas Richard assentia mais e mais, e respondia, por isso ela deduziu que estava se saindo bem com suas habilidades sociais. Mas, pensando melhor, quer se tratasse de conversas que não a interessavam ou orgasmos com homens com os quais não se importava, ela tinha bastante prática em fingir.

E, mesmo assim, estava ciente do que Samuel T. estava fazendo. Dolorosamente ciente.

Os olhos dele queimavam, cravados nela. E, nesse meio-tempo, bem como ele lhe prometera, a vadia ao lado dele começou a se esforçar para manter a compostura.

– … me resguardei para você – Richard declarou.

Gin franziu o cenho, captando aquela combinação de palavras, a despeito da sua preocupação.

– O que disse?

– Eu estava determinado a me casar, mas entrei num acordo com o seu pai. Foi por isso que pus fim ao noivado.

– Entrou num acordo com o meu pai? Do que está falando?

Richard sorriu com frieza.

– O seu pai e eu chegamos a um acordo quanto ao futuro. Em contrapartida por se casar comigo, estou disposto a conceder algumas vantagens à Cia. Bourbon Bradford.

Gin piscou. Depois balançou a cabeça.

– Não estou ouvindo muito bem.

– Sim, sim, você está. E já lhe comprei o anel de diamantes.

– Não, não, não… Espere um minuto. – Jogou o guardanapo na mesa mesmo sem terminar de jantar, assim como as outras trinta e uma pessoas. – Não vou me casar nem com você nem com ninguém.

– Mesmo?

– Tenho certeza de que “comprou” o seu lugar nesta mesa. Mas ninguém me obriga a fazer porra nenhuma, e isso inclui o meu pai.

Pensou que era uma tristeza não ter questionado a possibilidade do seu bom e velho pai a vender em favor do preço das ações da empresa.

Richard deu de ombros debaixo do terno elegante.

– Se é o que você diz.

Gin olhou para a cabeceira da mesa onde William Baldwine estava sentado em comando total, como se estivesse em um trono suspenso, mantendo-o acima dos seus súditos.

O homem não percebeu o olhar letal e, portanto, não sabia que a bomba tinha sido lançada. Ou talvez, quem sabe, ele tivesse planejado dessa forma, sabendo que Richard seria incapaz de ficar calado, e que ela não poderia provocar um escândalo por causa das testemunhas.

E, maldição, seu pai tinha razão quanto a isso. Por mais que desejasse dar um pulo e começar a berrar, ela não rebaixaria o nome Bradford dessa maneira, certamente não com Sutton Smythe e o pai dela, Reynolds, no mesmo cômodo.

À esquerda, um gemido foi encoberto por uma tossidela fraca.

Gin desviou a atenção do pai para Samuel T., ao que o advogado ergueu uma sobrancelha… e lançou um beijo no ar na sua direção.

– Sim, pode levar o prato dela. – Ela ouviu Richard dizer para o garçom uniformizado. – Ela já terminou.

– O que disse? – Gin se virou para Richard. – Mas você não tem o direito de…

– Aprovo a sua falta de apetite, mas não vamos nos arriscar, certo? – Richard acenou para o garçom. – E ela também não vai comer a sobremesa.

Gin se inclinou para o homem e lhe sorriu. Num sussurro, disse: – Não dê o passo maior que a perna. Eu ainda me lembro da época em que você enchia a sua saqueira com meias. Dois pares, porque um não adiantava muita coisa.

Richard a encarou. Num tom igualmente baixo, respondeu:

– Não faça de conta que tem algum poder de decisão.

– Espere e verá.

– É você quem mal pode esperar para ver. – Ele se recostou e lançou-lhe o olhar satisfeito de um homem que tem um royal flush nas mãos. – Mas não demore muito. O peso dos quilates do seu anel diminui a cada hora.

Eu vou te matar, ela pensou consigo mesma enquanto olhava para o pai. Que Deus me ajude, mas eu vou te matar.

Quando Lizzie fez a curva na estradinha secundária, a faixa de terra para a qual se dirigiu dividia terrenos com plantações de milho e só era larga o bastante para a passagem do seu Yaris. Havia árvores em ambos os lados, não de maneira organizada, mas num padrão casual, arranjado pela natureza, e não pela enxada de um paisagista. Acima, galhos grossos se uniam formando um dossel de verde brilhante na primavera, esmeralda no verão, amarelo e laranja no outono e esquelético no inverno.

Normalmente, aquela procissão de meio quilômetro até sua fazenda era o início do seu relaxamento, uma câmara de descompressão que ela acreditava ser o único motivo pelo qual conseguia dormir depois de um dia de problemas em Easterly.

Não naquela noite.

De fato, ela queria olhar por sobre o ombro só para se certificar de que não havia ninguém com ela no banco de trás do carro. Não que coubesse alguém de mais de doze anos ali, mas, mesmo assim… Sentia-se perseguida. Caçada. Assaltada. Ainda que sua carteira continuasse dentro da bolsa e ela estivesse, de fato, sozinha em seu carro.

A casa da fazenda era uma clássica casa americana, exatamente o que se veria num filme da Lifetime que se passasse num fim de semana de quatro de julho: branca com uma varanda, com vasos de amor-perfeito, uma cadeira de balanço e um banco suspenso em um dos lados. Tanto a indispensável chaminé de tijolos vermelhos quanto o telhado pontudo com telhas cinza eram originais, da época da sua construção em meados de 1833. E o coup de grâce? Um bordo imenso que oferecia abrigo para o calor do verão e para o vento frio do inverno.

Estacionou debaixo da árvore, que era o que de mais próximo a uma garagem que ela tinha, e saiu do carro. Mesmo que Charlemont dificilmente fosse Manhattan, a diferença no nível de barulho era impressionante. Naquelas partes, havia sapos, vagalumes que não tinham nada a dizer, e uma coruja que começara a montar guarda num velho celeiro uns dois anos antes. Nenhum murmúrio da autoestrada. Nenhuma sirene de ambulância. Nenhum acorde de jazz ou blues vindos do parque às margens do rio.

Fechando a porta, o som foi amplificado pela escuridão, e ela se viu aliviada quando caminhou e as luzes ativadas pelo movimento, colocadas em ambos os lados da entrada, foram ativadas. As botas rasparam nos cinco degraus que rangeram, e a porta de tela a acolheu com o resmungo das dobradiças. A fechadura era de latão, relativamente nova. Fora instalada em 1942.

Do lado de dentro, tudo estava escuro, e quando ela confrontou o vazio, desejou ter um cachorro. Um gato. Um peixinho dourado.

Apertando o interruptor, piscou quando seu lar doce lar se iluminou com a suave luz amarela. A decoração não se parecia em nada com a dos Bradford. Na sua casa, se havia algo antigo, era por ser útil e por ter sido feito por algum artesão do Kentucky: uma velha cesta de vime, um par de colchas de retalhos gastos pendurado nas paredes, uma cadeira de balanço, um banco de pinho debaixo da janela, cabeças de enxadas e pás que encontrara nos campos e que ela mesma emoldurara, para depois pendurar na parede. Também tinha uma coleção de instrumentos musicais, inclusive diversos violinos, muitas canecas, algumas tábuas de lavar roupa, e o maior dos seus tesouros: seu piano Price & Teeple de 1907. Feito de carvalho, com dobradiças incríveis de cobre, pedais e outras partes metálicas, ela o encontrara apodrecendo num celeiro, na porção oeste da propriedade, e o restaurara com muito amor.

A mãe chamava sua casa de museu do folclore, e Lizzie concluiu que isso devia ser bem verdade. Para ela, não existia conforto maior do que se ligar a gerações de homens e de mulheres que trabalharam na terra, esculpiram suas vidas e transmitiram seu conhecimento de vida para as gerações seguintes.

Agora? Tudo era 3G, 4G, LTE, e os computadores e smartphones eram cada vez menores e mais rápidos.

Sim, porque esse sim era um legado de honra e de perseverança para deixar aos seus filhos: como se esforçar para ficar na fila por vinte e seis minutos a fim de adquirir um novo iPhone, com um copo do Starbucks numa mão e um blog a respeito de alguma inutilidade na outra para passar o tempo.

De volta à sua cozinha anos 1940 – o estilo não era importado da Ikea ou Williams-Sonoma com suas réplicas, mas sim o original, de quando ela comprara a casa sete anos atrás –, abriu a geladeira e encarou as sobras da torta de frango que fizera na segunda à noite.

Aquilo era tão inspirador quanto a ideia de comer lascas de tinta esquentadas numa frigideira.

Quando seu celular começou a tocar, olhou por sobre o ombro, para a bolsa que largara no corredor.

Deixe para lá, ela se ordenou. Apenas deixe…

Esperou até que o aparelho silenciasse, e esperou mais para ver se haveria outra chamada – caso fosse uma emergência com a mãe, outra ligação se seguiria. Ou pelo menos haveria um toque alertando a chegada de uma mensagem.

Quando nenhum dos dois aconteceu, ela foi até o corredor e apanhou a bolsa. Nenhuma mensagem. Não reconheceu o número, mas conhecia o código de área: 917.

Cidade de Nova York. Celular.

Tinha amigos que ligavam para ela daquela área.

Suas mãos tremiam ao abrir a lista de chamadas recebidas e apertar o último número.

Foi atendida antes que o primeiro toque terminasse.

– Lizzie?

Seus olhos se fecharam quando a voz de Lane entrou em seu ouvido e em todo o seu corpo.

– Alô? – ele disse. – Lizzie?

Havia muitos lugares para sentar em sua sala ou na cozinha – cadeiras, sofás, até mesmo a mesinha de centro era robusta o suficiente. Em vez de usar qualquer um desses móveis, recostou-se contra a parede e deixou o traseiro escorregar até o chão.

– Lizzie? Você está aí?

– Sim. – Apoiou a testa na mão. – Estou aqui. Por que está ligando?

– Eu só queria me certificar de que você chegou bem em casa.

Sem nenhum motivo, lágrimas surgiram em seus olhos. Ele sempre agia assim. No tempo em que estiveram juntos, não importava que horas ela saía, ele lhe telefonava assim que ela passasse pela porta. Como se tivesse um timer no telefone.

– Não estou ouvindo a festa – comentou. – Ao fundo.

– Não estou em casa.

– Onde você está?

– No Antigo Silo. No armazém de barris. – Ela ouviu um barulho, como se ele também estivesse se sentando no chão. – Faz muito tempo que não venho aqui. O cheiro é o mesmo. A aparência também.

– Nunca fui aí.

– Você gostaria daqui. É o seu tipo de lugar, tudo muito simples e funcional e feito à mão.

Ela relanceou para a sala de estar e se concentrou na primeira pá que encontrara nos campos onde plantava milho todos os anos. O objeto era velho e enferrujado e, para ela, belo.

O silêncio que se seguiu fez parecer como se ele estivesse na sala junto dela.

– Estou feliz que não tenha desligado – Lane disse por fim.

– Eu queria poder desligar.

– Eu sei.

Ela pigarreou.

– Pensei em tudo o que me disse, no caminho para casa. Pensei em como você estava enquanto conversava comigo. Pensei… em como as coisas eram.

– E?

– Lane, mesmo que eu conseguisse superar tudo, e não estou dizendo que consigo, o que, exatamente, você quer de mim?

– Qualquer coisa que você me der.

Ela gargalhou num acesso tenso.

– Isso foi bem franco.

– Tenho outra chance com você? Porque vou te dizer isso agora, neste instante, se houver a mínima chance de você me aceitar, eu…

– Pare – ela inspirou fundo. – Apenas… pare.

Quando ele parou, ela ficou puxando e puxando o cabelo, com tanta força que seus olhos ficaram ainda mais marejados. Ou talvez isso estivesse acontecendo por outros motivos.

– Eu queria que você não tivesse voltado – ela se ouviu dizer. – Eu queria… Eu já estava te esquecendo, Lane. Estava recuperando o meu fôlego, a minha vida. Eu estava… e agora você está aqui, dizendo as coisas que quero ouvir, olhando para mim como se estivesse falando sério. Mas eu não quero voltar. Não posso.

– Então vamos em frente.

– A vida não é fácil assim.

– Não é. Mas é melhor do que nada.

Enquanto o silêncio se estendia uma vez mais, ela não sentiu necessidade de falar, de explicar mais coisas, de detalhar tudo. E enquanto as palavras martelavam em sua cabeça, ela desistiu de lutar.

– Não fiquei um dia, uma noite sem pensar em você, Lizzie.

O mesmo valia para ela, mas ela não queria lhe dar esse tipo de munição.

– O que você andou fazendo esse tempo todo lá?

– Nada. E estou falando sério. Fiquei com um amigo, o Jeff… bebi, joguei pôquer. Esperei, querendo ter uma oportunidade de falar com você.

– Por dois anos.

– Eu teria esperado uma dúzia.

Lizzie parou de puxar o cabelo.

– Por favor, não faça isso…

– Eu quero você, Lizzie.

Enquanto assimilava as palavras, seu coração batia tão forte que ela conseguiu sentir o aumento na pressão sanguínea no peito e no rosto.

– Nunca deixei de te querer, Lizzie. De pensar em você. De desejar que você estivesse comigo. Diabos, sinto como se estivesse num relacionamento com um fantasma. Eu te vejo nas ruas de Nova York sem parar, em alguma loira passando por mim numa calçada, talvez no modo como ela penteia os cabelos, ou por causa dos óculos, ou pela cor das calças jeans… Eu te vejo nos meus sonhos todas as noites; você é tão real que consigo te tocar, te sentir, estar com você.

– Você tem que parar.

– Não consigo. Lizzie… eu não consigo.

Fechando os olhos, ela começou a chorar baixinho na solidão da sua casa tão modesta, aquela que ela mesma comprara e que estava quase acabando de pagar, o maior símbolo da razão pela qual não precisava de um homem em sua vida, nem agora, nem nunca.

– Você está chorando? – ele sussurrou.

– Não – respondeu depois de um instante, num soluço. – Não estou.

– Está mentindo?

– Sim, estou.

 

TREZE

Lane olhava para o lado oposto do Antigo Silo construído por um dos seus ancestrais, sabendo que estava dentro do limite legal de álcool para poder dirigir, e que isso não duraria muito. Tinha uma garrafa de no 15 contra o quadril, que surrupiara de uma caixa pronta para ser despachada, e apesar de ainda não ter rompido o lacre, tinha toda intenção de secar a garrafa.

Em toda a sua volta, o Antigo Silo estava deserto, e surpreendeu-se ao perceber que o código de acesso do sistema de alarme ainda era o mesmo de antes.

Sabia que deveria deixar Lizzie em paz.

– Sinto muito – murmurou. – Quero dizer todas as coisas certas, fazer as coisas certas, e sei que não estou cumprindo esses objetivos. Maldição, Lizzie…

Inclinou a cabeça para o lado e segurou o telefone entre o ombro e a orelha. Pegando o bourbon, abriu a garrafa e a levou até a boca.

A ideia de tê-la feito chorar de novo o comia vivo.

– Você está bebendo? – ela perguntou.

– Ou faço isso ou bato a cabeça na parede até sangrar.

Enquanto ela exalava fundo, ele deu mais um gole. E um terceiro.

Quando terminou de engolir e a queimação na garganta cessou, ele fez a pergunta cuja resposta tanto temia: – Você está com alguém?

Ela demorou bastante para responder.

– Não.

Foi sua vez de exalar fundo.

– Não acredito em Deus, mas, neste instante, estou com vontade de me autoproclamar cristão.

– E se eu não te quiser mais? O que vai fazer, então?

– Está me dizendo que isso é verdade?

– Talvez.

Ele fechou os olhos.

– Então, eu vou recuar. Isso vai acabar comigo… mas vou embora.

Mais silêncio. Que ele passou bebendo da garrafa.

– Amigos – ela disse por fim. – Só vou até aí. É só isso que consigo fazer.

– Ok. Respeito isso.

Ele conseguiu ouvir o alívio na voz dela.

– Obrigada.

– Mas – ele a interrompeu – o que, exatamente, isso quer dizer?

– Como é?

– Bem, amizade… Como é isso? Posso te telefonar, certo? Amigos podem comer juntos de vez em quando, só para se manterem a par das novidades, não é? Você sabe, divórcio, planos de mudança, novas direções, esse tipo de coisa.

– Lane.

Ele sorriu.

– Adoro quando você diz meu nome desse jeito.

– Quando estou irritada?

– É sexy.

Lizzie pigarreou.

– Essa palavra não cabe numa amizade, ok?

– Eu apenas constatei um fato.

– Uma opinião.

– Fato.

– Lane, estou te avisando, você precisa…

Enquanto ela prosseguia, falando à sua maneira tipicamente franca e sem rodeios, ele fechou os olhos e prestou atenção às ordens dela, deixando que seu tom de voz o envolvesse. Bem no íntimo, aquele desejo velho e tão conhecido despertou, como um dragão adormecido… e o ímpeto foi tão forte que ele quis entrar no carro e atravessar as pontes até Indiana.

– Ainda está aí? – ela perguntou, brava.

– Ah, estou. – Arrumando a ereção dentro das calças, refreou um gemido. – Estou, sim.

– O que está fazendo?

Ele afastou a mão para longe, bem longe do marco zero.

– Nada.

– E então? – disse ela. – Está ou não?

– Estou o quê?

– Dormindo enquanto fala comigo.

– Muito pelo contrário – ele murmurou.

Houve uma leve pausa e depois:

– Ah…!

Como se ela o tivesse compreendido.

– Melhor eu desligar – ele disse, rouco. – Cuide-se. Nos falamos amanhã.

Só que ela não parecia querer que ele desligasse… e seu pau ficou todo lépido e faceiro.

– Quer dizer que você vai ficar? – ela perguntou.

Podemos falar sobre outro assunto?, sua ereção pensou.

Sossegue, garoto.

– Sim, vou. – Quando ele mudou de posição no chão duro, tentou ignorar o modo como o zíper resvalou. – Tenho que me encontrar com Samuel T. para falar do divórcio.

– Então, você vai mesmo…

– Vou – ele disse. – Imediatamente. E não, não é só por sua causa. Cometi um erro, e vou consertar isso para o bem de todo mundo.

– Tudo bem. – Ela pigarreou. – Ok.

– Só estou seguindo em frente, Lizzie.

– Se é o que você diz. Bem, tchau…

– Não – ele a interrompeu. – Assim não. Nós dizemos boa noite, está bem? E não tchau, a menos que você queira que eu apareça na soleira da sua porta como um cachorro sem dono.

– Está bem.

Antes que ela desligasse, ele formou um “eu te amo” com os lábios.

– Boa noite, Lizzie.

– Boa noite… Lane.

Encerrando a ligação, Lane deixou o braço cair, e o aparelho bateu no piso de concreto com um baque.

– Eu te amo, Lizzie – disse em voz alta.

Tomando mais um gole da garrafa, pensou em como era conveniente que a fortuna da família se baseasse em algo com o qual ele poderia se embebedar. Se fosse uma enormidade de outros produtos de consumo – canetas, baterias de carro, band-aids, chicletes –, nada poderia ajudá-lo na sua atual situação.

Quando o telefone voltou a tocar, ele o atendeu de pronto. Mas não era Lizzie.

– Jeff – ele disse, mesmo não querendo conversar com mais ninguém.

A voz do seu anfitrião nova-iorquino soou seca.

– Você ainda está vivo.

– Basicamente. – Levou a garrafa de volta à boca. – E você, como é que você está?

– Está bebendo?

– Isso mesmo. No 15. Eu dividiria com você, se estivesse aqui.

– Um cavalheiro sulista, sem dúvida. – Seu amigo praguejou. – Lane, onde você está?

– Em casa.

Houve tempo suficiente para grilos cantarem na conexão.

– Você está se referindo a…

– Isso mesmo.

– Charlemont?

– Nascido e criado eu fui, e ao lar regressei. – Puxa. Devia estar ficando bêbado, estava parecendo um sulista de verdade. – Assim como você e o Upper East Side, só que nós temos miúdos de porco e frango frito.

– Que diabos você está fazendo aí?

– A minha… – Pigarreou. – Uma pessoa muito importante para mim adoeceu. Tive que voltar.

– Quem?

– A mulher que me criou. A minha… bem, a minha mãe. Mesmo ela não sendo a minha mãe biológica. Ela ficou doente alguns anos atrás, mas sabe como são essas coisas. Elas podem voltar. Ela diz que vai ficar bem, então estou me apegando a isso.

– Quando vai voltar?

Lane tomou mais um gole.

– Já te contei que me casei?

– O quê?

– Foi um pouco antes de eu ir para o norte e acabar no seu sofá. Vou ficar aqui até a senhorita Aurora ficar bem e, assim, vou poder cuidar dessa outra coisa idiota. Além disso… é que… tem essa outra mulher.

– Espera um minuto. Cacete. Espera aí…

Houve uma espécie de farfalhar, seguindo de um clic, clic, clic como se alguém estivesse tentando acender um isqueiro… e depois uma baforada.

– Vou precisar de um cubano para ouvir isso. Então, você tem uma esposa?

– Eu te disse que não era gay.

– Foi por isso que você não ficou com ninguém aqui?

– Não, foi por causa da outra mulher. Aquela com quem não me casei. Aquela que é naturalmente bonita e boa demais para mim.

– Vou precisar de um diagrama de Venn – o cara murmurou. – Cacete, por que não me contou nada disso?

Lane balançou a cabeça, mesmo que o amigo não pudesse vê-lo.

– Eu estava no modo de fuga. – Caramba, odiou o fato de Chantal estar certa. – Tudo estava barulhento demais dentro da minha cabeça. A coisa toda. Então, como é que você está?

– Você joga isso tudo em cima de mim e termina querendo saber como é que eu estou?

– Tenho que voltar a beber. Conversar está me retardando, mas estou disposto a ouvir. – Tomou um gole grande. – E aí? Alguma novidade?

– Estou bem, você sabe, as coisas de sempre no trabalho. Dez mil amplificadores ligados, um chefe que não sai do meu rabo e dezesseis comprimidos de Motrin por dia para impedir que a minha cabeça exploda. O mesmo de sempre. Pelo menos ainda tem dinheiro… ainda mais agora que você não está me arrancando um quarto de milhão de dólares todas as semanas no feltro verde.

Conversaram um pouco mais sobre nada em especial. Jogos de pôquer, Wall Street, a mulher com quem Jeff andava transando… E mesmo que Lane não fosse muito de ficar conversando ao telefone, percebeu que estava com saudades do cara. Acostumara-se à troca rápida, às sacadas inteligentes e, em especial, àquele sotaque de Jersey nos fim das frases e no uso de algumas outras palavras.

– Então, acho que é adeus por ora – seu antigo colega de classe disse.

Lane franziu o cenho e visualizou Lizzie. Ouviu a voz dela. Lembrou-se da cautela dela.

Depois rearranjou sua ereção persistente.

Ficou se perguntando se existia a mínima possibilidade de voltar para Nova York.

Pensando bem, seria melhor não se adiantar. No que se referia a reconquistar Lizzie, dependia de duas pessoas. Só porque estava pronto para retomar o relacionamento deles não significava que ela se apressaria. E também havia a sua família. Como se ele conseguisse se imaginar voltando a viver em Easterly… Mesmo que a senhorita Aurora ficasse bem de saúde e que ele e Lizzie se acertassem, a ideia de coexistir com o pai bastava para ele contemplar a fronteira canadense com carinho. E nem isso seria longe o suficiente.

– Não sei se vou ficar de vez.

– Você sempre pode voltar. O meu sofá já está com saudades de você… e ninguém joga Texas Hold’em como você.

Os dois desligaram depois de se despedirem, e enquanto Lane mais uma vez largava o braço e deixava o aparelho cair, concentrou-se na antiga destilaria do lado oposto. O lugar fora usado por décadas na virada do século, e agora era visitado por dezenas de milhares de turistas que vinham conhecer o Antigo Silo durante todo o ano.

Por algum motivo, percebeu que nunca tivera um emprego. A extensão dos seus “empenhos profissionais” era evitar os paparazzi, o que era mais uma questão de sobrevivência do que algo relacionado a uma carreira. Graças ao seu fundo fiduciário, não sabia o que eram chefes ou colegas de cubículo chatos, nem trajetos ruins para o trabalho e de volta para casa. Não se preocupava em estar em algum lugar num determinado horário, ou em concluir relatórios, nem tinha dores de cabeça devido às tantas horas passadas diante da tela do computador.

Engraçado, nunca antes considerara o fato de ter tanto em comum com Chantal. A única diferença entre eles era que o dinheiro da família dela não bastava para sustentar o estilo de vida a que se acostumara, motivo pelo qual tivera que se casar com ele.

E lá estava Lizzie, trabalhando duro, pagando aquela fazenda. Conhecendo-a como a conhecia, ela já devia estar chegando ao seu objetivo.

O que o fazia respeitá-la ainda mais.

E também o fazia se questionar exatamente o que tinha para oferecer a uma mulher de substância. Dois anos atrás, estivera todo excitado e metido no drama familiar, ávido por ela fisicamente, e tão cativado por ela mentalmente que nunca olhara para si mesmo segundo o ponto de vista dela. Todo o seu dinheiro e a sua posição social só tinham valor para pessoas como Chantal. Lizzie queria mais, merecia mais.

Ela queria a realidade.

Talvez, no fim das contas, ele não estivesse tão acima daquela sua esposa.

Ex-esposa, corrigiu-se, enquanto continuava a beber.

 

CATORZE

– A que devo a honra?

O pai de Gin falava, e seu tom era de afirmação, não de pergunta, e sugeria que o fato de ela estar parada na porta do quarto dele era uma invasão.

Que pena, ela pensou com ironia.

– Quero saber que diabos aprontou com Richard Pford.

O pai não demonstrou nenhuma reação, parado diante da cômoda, prosseguindo com o ato de retirar as abotoaduras de ouro. O paletó do smoking preto tinha sido dobrado uma vez e estava ao pé de uma chaise longue, e os suspensórios preto e vermelho haviam sido retirados dos ombros e estavam pendurados na cintura como duas fitas.

– Pai – ela rugiu. – O que você fez?

Ele a deixou esperando até tirar a gravata borboleta, puxando-a do colarinho.

– Está na hora de você se assentar…

– Você dificilmente está em posição de defender o matrimônio.

– … e Richard é um marido perfeito.

– Não para mim.

– Isso ainda veremos. – Virou-se na direção dela, os olhos frios, o belo rosto impassível. – E não se engane, você se casará com ele.

– Como ousa! Não estamos na virada do século. As mulheres não são bens, podemos ter propriedades, as nossas próprias contas bancárias, podemos até votar! E, com certeza, podemos decidir se queremos ou não atravessar a nave de uma igreja… E eu não vou, de modo algum, sair com aquele homem, quanto menos me casar com ele! Ainda mais se isso beneficiar você de algum modo.

– Sim, você vai. – Por uma fração de segundo, o olhar dele se desviou para cima do ombro dela e ele meneou a cabeça como se estivesse dispensando alguém no corredor. – E fará isso o mais rápido possível.

Gin se virou, esperando ver alguém atrás de si na soleira da porta. Não havia ninguém ali.

Voltou a se concentrar nele.

– Você vai ter que apontar uma arma na minha cabeça.

– Não será preciso. Você fará isso por sua própria escolha.

– Não.

– Sim, você vai.

No silêncio que se seguiu, o coração dela deixou de bater algumas vezes. Durante toda a vida, aprendera a odiar e a temer o pai. E naquele silêncio tenso, de ar estagnado entre eles, ela se perguntou, e não pela primeira vez, do que ele seria verdadeiramente capaz.

– Você pode escolher brigar – disse ele com suavidade. – Ou pode ser eficaz em relação ao assunto. Você só vai acabar se ferindo se não fizer isso pela família. Agora, se me permite, vou me recolher…

– Você não pode me tratar dessa maneira. – Ela forçou um pouco a voz. – Não sou um executivo da empresa que você pode empregar e demitir. E não pode me dar ordens, não quando se trata de arruinar a minha vida.

– A sua vida já está arruinada. Você teve uma filha aos dezessete anos, aqui, nesta mesma casa, pelo amor de Deus, e deu seguimento a isso com o comportamento promíscuo tipicamente reservado para as strippers de Las Vegas. Quase não se formou na Sweet Briar por causa do affair com o professor de inglês, que era casado e, assim que voltou a morar aqui, deitou-se com o chofer. Você é a desgraça da família. E pior, tenho a distinta impressão de que parte da sua diversão nessas suas aventuras é a vergonha que provoca em sua mãe e em mim.

– Talvez se eu tivesse um bom exemplo masculino para admirar, eu não considerasse os homens tão universalmente desagradáveis.

– Antes você os considerasse mesmo desagradáveis. No entanto, esse parece não ser o seu problema. Por algum motivo, Richard não se intimidou com a sua reputação, um erro de julgamento que, por certo, ele vai acabar lamentando. Ainda bem que não é problema meu.

– Eu te odeio – ela sibilou.

– O mais triste, minha querida, é que lhe falta suficiente profundidade para tal nível de inimizade. Se fosse minimamente inteligente, perceberia que Richard Pford será capaz de mantê-la no estilo de vida que você necessita, tanto quanto precisa do ar para respirar, pelo resto dos seus dias. E você estará garantindo a continuação do sucesso e da saúde financeira da família que lhe deu essa bela ossatura e essa adorável coloração facial. Essa será, depois de tudo, a sua única contribuição ao nome “Bradford”.

Gin mal percebia que estava respirando superficialmente.

– Algum dia, você vai pagar pelos seus pecados.

– Está se tornando religiosa agora? Acredito que qualquer tipo de conversão para você será difícil, até por alguém como Jesus.

– Como pode ser tão odioso? Nunca conheci ninguém tão cruel quanto você…

– Só estou cuidando de você do único modo que sei. Estou lhe dando uma fortuna, um nome honrado, e você poderá levar Amelia com você, se desejar. Ou ela pode ficar aqui.

– Como se ela não passasse de uma maleta? – Balançou a cabeça. – Você é um depravado. Absolutamente depravado…

Ele avançou e a agarrou pelo braço, permitindo que alguma emoção escapasse por baixo da máscara aristocrática de autossegurança.

– Você não faz a mínima ideia do que é necessário para manter esta família. Nenhuma ideia. A sua tarefa diária mais complexa é priorizar o que fazer antes: unhas ou cabelos. Portanto, não ouse falar de depravação quando estou resolvendo o problema de todos os sanguessugas debaixo deste teto. Os termos favoráveis de Richard Pford continuarão a nos permitir isso. – Balançou a saia do vestido de gala dela. – E isso… – Apontou para o colar no seu pescoço. – E todas as outras coisas das quais você tira vantagem diariamente sem parar para ponderar, nem que seja por um instante, como chegaram até você e a que custo. Casar-se com aquele homem é a única coisa que já lhe pediram em troca pela sua boa estrela ao nascer e pela sua liberdade de cobiça. Você é uma Bradford dos pés à cabeça, capaz apenas de consumir, mas, às vezes, um pagamento deve ser feito. Portanto, sim – ele enfatizou –, posso lhe garantir que você será a deveras feliz e contente senhora Richard Pford. Você lhe dará filhos e será fiel a ele, ou, que Deus me ajude, eu a surrarei como a garotinha de cinco anos que você ainda é. Estamos entendidos? Ou quem sabe você vai preferir fazer um curso intensivo para tentar ser como as pessoas que lavam os seus carros, preparam a sua comida, limpam o seu quarto e passam as suas roupas? Talvez você goste de saber como é difícil trabalhar para se sustentar.

– Eu te desprezo – ela disse, trêmula dos pés à cabeça.

O pai também arfava, e tossiu no punho cerrado.

– Como se me importasse. Vá em frente, faça o seu escândalo, esperneie e grite, só provará o quanto estou certo. Se for uma mulher de fato, em vez de apenas uma criança mimada e malcriada, acordará pela manhã e cumprirá o seu dever pela primeira vez em sua vida.

– Eu seria capaz de te matar neste mesmo instante!

– Mas, para isso, você teria que carregar uma arma, não é? Não é algo que possa pedir a uma criada, desde que, claro, não queira ser descoberta.

– Não me subestime…

– Visto o baixo padrão que estabeleceu para si mesma, isso seria algo muito difícil de fazer.

Girando sobre os calcanhares, ela saiu do quarto aos tropeções, e correu pelo corredor até a sua suíte. Lançando-se pela porta, trancou-se e ofegou.

Ah, inferno, não, não, jurou. Você não vai fazer isso comigo.

Se ele achava que antes ela era um problema, ele que esperasse pelo que ela aprontaria em seguida.

Enquanto marchava do quarto para o banheiro, planos reviravam em sua cabeça, muitos dos quais envolviam crimes contra o pai. No fim, teve que tirar o vestido, e o deixou cair no chão, livrando-se da seda antes de continuar andando de um lado para o outro apenas de bustiê e saltos e aqueles diamantes que a vadia da esposa do irmão tentara pôr as mãos.

Fervendo, só conseguia pensar na primeira vez em que odiara o pai…

Tinha seis, talvez sete anos, quando aconteceu. Noite de Ano-Novo. Acordara por causa dos fogos, que explodiam ao longe sobre o centro da cidade. Assustada, fora à procura de Lane, aquele com quem sempre se sentia amparada… encontrando-o na sala de estar com Max.

Gin insistira em ficar com os irmãos e fazer o que quer que estivessem fazendo. Na época, era a história da sua vida, sempre correndo para acompanhá-los, conseguir alguma atenção, estar no radar de alguma pessoa. Os empregados da casa faziam o que os pais queriam e cuidavam dos irmãos. Ela era uma nota de rodapé, uma reflexão tardia, o tapete no qual tropeçavam a caminho da porta quando iam fazer algo melhor, mais interessante, mais importante.

Não quisera beber aquela coisa da garrafa. O cheiro do bourbon era ruim, e ela sabia que era proibido, mas se Max e Lane iam tomar um pouco, então ela também tomaria.

E assim foram apanhados.

Não uma vez, mas duas.

Assim que entrara na sala, Edward ordenara que ela voltasse para a cama, e ela saíra pelos fundos como ele lhe dissera. Depois de passar pelo corredor dos empregados, porém, ouvira vozes e tivera que se esconder nas sombras a fim de não ser flagrada… quando o pai saíra do escritório de Rosalinda Freeland.

Ele estava usando seu roupão, amarrando as duas pontas do cinto ao sair de lá, e seus olhos estavam arregalados, como se estivesse com raiva, mas não havia como ele ter ouvido suas vozes lá na sala de estar. O primeiro instinto de Gin fora o de correr para a frente da casa e alertar os irmãos. No entanto, o medo a detivera… E, em seguida, a senhora Freeland saíra também, agarrando o pai pelo braço.

Sua mente infantil se perguntara por que a blusa da moça do escritório estava desabotoada, e os cabelos, sempre bem penteados e presos, estavam meio desarrumados.

Os dois discutiram em tons sussurrados, dizendo coisas que ela não conseguiu entreouvir acima das batidas do seu coração. Em seguida, o pai saiu de lá e a senhora Freeland voltou para o escritório, fechando a porta.

Gin permanecera ali pelo que lhe pareceu um ano, temendo sair, caso a senhora Freeland voltasse. Só que ela também temia que o pai voltasse por aquele caminho e a encontrasse.

Ele não devia estar ali com aquela mulher.

Ele não ficaria feliz por ela tê-lo visto.

Descalça, apressou-se pelas escadas dos empregados, colando na parede de gesso conforme subia. Já no segundo andar, paralisou quando uma segunda rodada de fogos se iniciou e, assim que terminaram de explodir, ela se abrigou na porta aberta de um dos quartos de hóspedes, desejando ter algum lugar seguro para ir.

Voltar sozinha para o quarto parecia-lhe aterrorizante. E se, além disso, o pai estivesse procurando por ela?

Sentando-se encolhida, enfiou as pernas junto do corpo e abraçou os joelhos. O pai devia ter encontrado os irmãos. Não havia como o homem não os ter visto, se tivesse usado as escadas da frente.

E isso a assustava mais do que o barulho do lado de fora.

Momentos depois, Edward surgiu no alto da escadaria, com o pai logo atrás, pairando como um monstro. Por algum motivo, o andar do irmão estava trôpego e a pele do rosto estava pálida. O pai lhe pareceu tão inflexível e reprovador quanto um banco de igreja.

Onde estariam os outros dois?

Nada foi dito enquanto eles prosseguiam até a porta do quarto do pai. E quando chegaram ao destino, Edward ficou de lado e depois tropeçou para dentro do cômodo escuro assim que a porta lhe foi aberta.

– Sabe onde estão os cintos.

Foi tudo o que o pai disse.

Não, não, ela pensou. Aquilo não era justo, Edward não estava envolvido! Por que ele…

A porta se fechou num baque, e ela estremeceu ante o que estava para acontecer.

Como esperado, um estalido foi seguido por um grunhido.

De novo.

E mais uma vez.

Edward nunca chorava. Nunca praguejava.

Já ouvira aquilo vezes demais para saber disso.

Gin abaixou a cabeça sobre os braços finos e cerrou os olhos. Não sabia por que o pai odiava tanto Edward. O homem desgostava do resto deles, mas Edward o deixava furioso.

Edward nunca chorava.

Por isso, chorou por ele… E resolveu, dali por diante, que se o pai podia odiar Edward, dois poderiam jogar aquele jogo.

E ela escolheu o que segurava o cinto naquele minuto.

Odiaria o pai dali por diante.

Voltando a se concentrar, Gin descobriu-se sentada na cama, com os joelhos ao encontro do peito, os braços ao seu redor, como se estivesse, uma vez mais, sentada dentro daquele quarto de hóspedes com apenas a camisola para aquecê-la, e o que acontecia no quarto do pai a aterrorizava em seu íntimo.

Sim, fora assim que tudo começara para ela, e William Baldwine nunca lhe dera motivos para reconsiderar o seu ódio. Aquele acordo com Richard Pford era apenas mais um item numa longa lista.

Mas não era o pior.

Não, a pior coisa que o homem fizera foi algo que ela apenas suspeitava, algo que ninguém mencionara, quer sob o teto de Easterly, quer nos jornais.

Estava convencida de que o pai era o sequestrador de Edward.

O irmão ia com frequência à América do Sul, e assim como outros executivos de sua posição, sempre viajava acompanhado de seguranças contratados pela CBB. Com esse tipo de proteção, ninguém deveria ter sido capaz de se aproximar. No entanto, seu irmão fora levado… Não numa estrada, nem mesmo numa localização remota.

Mas da sua suíte no hotel.

Como foi que aquilo pôde acontecer?

A primeira coisa que ela pensou, quando lhe contaram, foi que ali havia dedo do seu pai.

Tinha provas? Não, não tinha. Mas passara a infância inteira vendo o homem observando Edward como se menosprezasse o ar que o garoto respirava. E mais tarde, quando Edward passara a trabalhar na empresa, teve a impressão de que o relacionamento daqueles dois esfriara ainda mais, visto que o Comitê dos Curadores passara a dar mais e mais responsabilidades a Edward.

Haveria um modo melhor de se livrar de um rival do que matá-lo no exterior? De uma maneira que faria William Baldwine parecer vítima por ser um pai “em luto”?

Deus, Edward quase fora enterrado lá. E quando finalmente regressara? Estava em péssimas condições. Nesse meio-tempo, o pai se colocara diante da mídia, dos curadores, da família, mas nunca, sequer uma vez, fora visitar o filho.

Vergonhoso. E na cabeça dela era uma confirmação de que William Baldwine tentara se livrar de uma ameaça corporativa que não podia demitir.

Não era de se admirar que ela não confiasse nos homens.

Não era de se admirar que nunca fosse se casar.

Quanto menos para fazer o pai feliz.

 

QUINZE

Quando chegou a Easterly na manhã seguinte, Lizzie precisou manobrar o Yaris duas vezes para conseguir estacioná-lo direito, o que revelava o quão lamentável era seu estado mental, considerando-se que o carro era do tamanho de uma bicicleta. Saindo dele, pegou desajeitada a bolsa e a deixou cair. E quando se abaixou para pegar o protetor solar no asfalto já quente, percebeu que tinha esquecido de trazer o almoço.

Fechou os olhos.

– Maldição…

– Tudo bem, menina?

Lizzie se endireitou e se virou na direção de Gary McAdams. O chefe da manutenção da propriedade vinha andando pelo gramado, o leve claudicar não o fazia diminuir o ritmo, com o rosto envelhecido pelo tempo crispado em sinal de preocupação, como se estivesse avaliando um trator com eixo solto.

Será que sua aparência estava tão ruim assim?, perguntou-se.

Pensando bem, não dormira praticamente nada.

– Ah, sim, estou bem. – Ela forçou um sorriso. – Ótima.

– Tem certeza disso?

Não.

– Sim. Como vai a sua equipe?

– Já terminaram de cortar a grama e de aparar as trepadeiras, e vou fazer com que limpem o terraço depois das dez. – Porque só então eles tinham permissão para fazer barulho perto da casa. – As tendas foram erguidas, a parte do buffet já está pronta com as grelhas no lugar, mas tem um probleminha.

Lizzie acomodou a bolsa no ombro e pensou que já estava pronta para lidar com qualquer problema que pudesse solucionar.

– O que foi?

– Aquele senhor Harris está querendo falar com você. Tem algo com as taças de champanhe.

– Com a disposição delas nas mesas? – Fechou a porta do carro. – Pensei que elas seriam distribuídas durante a festa.

– Não, só chegou metade do pedido. Ele acha que você mudou a quantidade.

– O q… Por que eu faria isso?

– Ele disse que você é a única pessoa com acesso ao pessoal do aluguel.

– Encomendei as tendas, só isso. É ele quem tem que cuidar da louça, dos talheres e dos copos… Desculpe, estou gritando? Sinto como se estivesse gritando.

Ele apoiou sua grande mão sobre o ombro dela.

– Não se preocupe com isso, menina. O senhor Harry também me deixa doido.

– É senhor Harris.

– Eu sei.

Ela teve que gargalhar.

– Vou lá falar com ele.

– Quando ficar cansada dele, eu tenho uma pá e um ancinho. E muita área verde livre lá na minha casa.

– Você é um cavalheiro.

– Nem perto disso. Me dá a sua bolsa, menina. Vou com você.

– Ela não pesa nada. Pode deixar comigo. – Começou a andar pelo caminho que levava até a ala dos empregados. – Além disso, posso precisar dela para bater na cabeça dele.

– Lembre-se do meu ancinho – ele disse.

– Sempre.

A cada passo sobre as pedras, seu peito se contraía, e a sensação de sufocamento piorava conforme a vastidão da mansão branca surgia ao longe.

Depois de passar a madrugada olhando para o teto, não chegou a conclusão nenhuma sobre ela e Lane. O que ela guardara para si? O som da voz dele no fim do telefonema. Lembrou-se daquele tom sexy que costumava significar que ele encontraria um modo de ficar sozinho com ela, despida, o mais rápido possível.

Pareceu-lhe uma traição total que seu corpo não fosse nada além de um simples “ah, sim, pode vir” – como se sua libido desejasse o retorno do seu mestre. Afinal, ela era muito mais do que apenas um ou dois orgasmos roubados com um homem que ela deveria estar manuseando com pinças de churrasco e um extintor de incêndio.

Loucura.

Quando, por fim, chegou à casa, passou pela entrada lateral do jardim e atravessou a porta dos fundos da cozinha só para se certificar de que tudo o que preparara para a festa ainda estava onde havia deixado na noite anterior.

O que era tolice. Como se um punhado de elfos tivesse entrado ali e bagunçado tudo à luz do luar.

Entrou pela porta de empregados e cruzou a imensa cozinha que, naquele momento, estaria limpa, fria e vazia, apenas à espera dos chefs que estavam escalados para trabalhar das oito às oito. Só que o cômodo não estava completamente deserto. A senhorita Aurora estava diante do fogão industrial, com uma panela de ferro cheia de bacon estalando à esquerda, uma segunda à direita tomada de ovos mexidos. Quatro pratos estavam dispostos na bancada de aço inoxidável da ilha principal, junto de tigelas com framboesas e mirtilos frescos, um açucareiro, um pote com creme de leite e café sobre uma bandeja, sem falar de uma seleção de pãezinhos doces caseiros.

– Senhorita Aurora?

A mulher olhou por sobre o ombro.

– Ah, aí está ela. Como está? Já comeu?

– Sim, senhora.

– Não o bastante. Você e Lane, magrinhos demais. – A cozinheira se voltou para os ovos e os virou com uma espátula vermelha. – Você deveria deixar que eu te alimentasse.

– Não quero causar problemas. – Houve um grunhido de desaprovação, e antes que a discussão de sempre começasse, Lizzie a interrompeu. – A senhora me parece bem.

– Eu disse praquele mordomo que não precisava de nenhuma ambulância.

– Pelo visto, a senhora tinha razão. – E Lane devia estar muito aliviado. – Viu o senhor Harris?

– No escritório dele. Quer que eu vá com você?

– Então ficou sabendo do “champanhegate”?

– Fui eu que mandei Gary te avisar. Eu sabia que ele ia te ver quando você chegasse. Não quis que você viesse pra cá sem ter sido avisada antes.

– Não mudei o pedido.

– Claro que não. – A senhorita Aurora levantou uma frigideira de uns sete quilos como se não pesasse mais que um prato de papel. Enquanto distribuía os ovos, balançava a cabeça. – Existe uma explicação perfeitamente boa.

– Qual?

– Não é da minha conta.

– Tuuudo bem. – Lizzie deu um tempo para que a cozinheira se explicasse, mas ela não o fez. – Bem, de toda forma, vou cuidar disso. Estou muito feliz que esteja bem e de pé, senhorita Aurora.

– Você é uma boa menina, Lizzie. Mas seria ainda melhor se me deixasse te oferecer o café da manhã.

– Talvez na próxima vida.

– Só se tem direito a uma. Depois, a gente vai pro céu.

– É o que o meu pai sempre me dizia.

– O meu também.

Andando sobre o piso de azulejos, Lizzie empurrou as portas duplas e seguiu pelo corredor dos empregados. O escritório do senhor Harris ficava bem diante do de Rosalinda, e ela bateu à porta do mordomo. E mais uma vez. Na terceira, achou que estava esfolando os nós dos dedos à toa.

Fungando no ar, fez uma careta e considerou que o corredor precisava ser arejado urgentemente. Mas, pensando bem, os Bradford se recusavam a instalar ar-condicionado ou aquecimento naquela parte da casa. Afinal, os empregados que se virassem.

Seguindo até a porta envernizada de Rosalinda, também bateu ali, mesmo que a organizadora da família fosse rígida em seu horário de trabalho das nove às cinco, com trinta minutos de almoço precisamente ao meio-dia e dois intervalos de quinze minutos às 10h30 e às 15 horas. A agenda controlada lhe parecera bizarra a princípio, mas, alguns anos mais tarde, já era somente mais uma das muitas regras e regulamentos de Easterly. E fazia sentido, uma mulher que não fazia nada além de pagar contas e somar e subtrair números provavelmente tinha uma régua de cálculo nas veias e sérios problemas de controle.

Daí, então, seu título.

Pousando as mãos nos quadris, Lizzie sabia que o mordomo muito provavelmente estaria servindo a família na sala de jantar íntima. Inclusive Lane.

Consultou as horas no relógio de pulso. Não ficaria esperando pelo senhor Harris e, de jeito nenhum teria aquele confronto diante dos outros. Além disso, ela tinha trabalho a fazer: não terminara os arranjos florais na noite anterior.

Seguindo para a estufa pelo caminho dos fundos, deixou de lado sua confusão mental e se concentrou no que tinha para fazer. Depois que terminasse os arranjos, disporia as toalhas de mesa, já que não havia probabilidade de chuva e de vento forte antes do Brunch da manhã seguinte. E estava encarregada de colocar todos os pratos e copos onde precisavam ficar: junto aos bares e estações de serviço espalhados pelos jardins. Greta deveria chegar em…

– Bom dia.

Lizzie parou com a mão na maçaneta da estufa.

Relanceando por cima do ombro, deparou-se com os olhos de Lane. Ele estava sentado numa espreguiçadeira lateral, com as pernas dobradas na altura dos joelhos, os cotovelos nos apoios de braço, os dedos longos cruzados diante do peito. Usava as mesmas roupas da noite anterior e o cabelo estava uma bagunça completa, como se ele não tivesse dormido em sua cama.

– Esperando por mim? – ouviu-se dizer enquanto seu coração batia forte.

Em seu quarto, Gin amarrotava uma blusa Prada e a enfiava num dos cantos da sua mala Louis Vuitton de rodinha.

– Lenço de papel… era para você colocar lenço de papel aí. Onde ele está…

Começando a procurar, encontrou as folhas cor-de-rosa clarinhas com suas iniciais estampadas numa gaveta ampla dentro de seu guarda-roupa. De volta para onde estava arrumando a mala, lambeu o dedo e tirou uma das folhas, sendo atingida pela fragrância suave de Coco, porque a empregada borrifava cada um dos lenços individualmente assim que eram entregues na casa. Colocando o papel delicado ao redor do bolinho de seda, cobriu tudo com uma saia McQueen.

Repetindo o processo até ter quatro conjuntos completos ali, inclinou-se para trás para dar uma olhada no trabalho. Horrível. Nada parecido com o que Blanche fazia para ela, mas não pretendia esperar até que a mulher chegasse para o seu turno ao meio-dia.

Gin estava fechando a mala quando percebeu que não tinha separado roupas íntimas, sapatos e tampouco os artigos de higiene.

Pegou outra mala LV e dispensou o lenço de papel.

De toda forma, o que importava? Acabaria simplesmente comprando tudo que precisasse.

Quando terminou, levantou o telefone ao lado da cama e ligou para o escritório de Rosalinda, sem acreditar quando a secretária eletrônica pediu que deixasse um recado.

– Onde diabos essa mulher foi…

Uma olhada rápida para o relógio Cartier sobre a mesa e ela descobriu que ainda eram 8h30. Deus, há quanto tempo não se levantava cedo assim?

Arranjos para o uso dos jatinhos também podiam ser feitos por meio da assistente executiva do pai, e aquele robô estava sempre junto à sua escrivaninha. Mas Gin só queria que ele soubesse que ela estava partindo quando estivesse na metade do caminho até a Califórnia e, sem dúvida, seu buldogue de saia atacaria o telefone para avisá-lo assim que ela a acionasse.

Deus, aquela expressão no rosto dele na noite anterior fez seu sangue gelar. Nunca o vira tão furioso.

Mas, em retrospecto, ela era mesmo filha do seu pai: assim como no jogo do ódio, dois podiam jogar aquele novo jogo.

Dez minutos mais tarde, Gin puxou as alças da bagagem e as rolou até o corredor, tropeçando sobre as malditas malas. Com a bolsa de monograma combinando com a bagagem batendo na lateral do corpo, empinou um dos saltos Louboutin para fechar a porta, e praguejou contra a falta de um carregador.

Mas também não confiava no mordomo.

A bem da verdade, não confiava em ninguém naquela casa.

Antes de tomar o elevador até o porão, foi até o quarto de Amelia e abriu a porta.

Pela primeira vez, percebeu a decoração.

A cama de dossel branca e rosa era queen size, apesar de a filha pesar pouco mais que um travesseiro, e não havia nenhum pôster da Taylor Swift ou do One Direction nas paredes. A penteadeira era francesa e antiga, o banheiro acoplado era de mármore e latão, e tinha mais de sessenta anos, e o candelabro Baccarat no meio do quarto era suspenso por uma corrente coberta por seda, e debaixo dele havia um medalhão de ouro feito à mão.

Parecia mais o quarto de uma senhora de cinquenta anos do que de alguém de quinze.

Dezesseis, a partir da noite anterior, Gin se lembrou.

Andando na ponta dos pés sobre o tapete bordado à mão, ela apanhou seu retrato predileto da menininha de cabelos negros, que agora já não eram mais tão escuros já que ela estava fazendo luzes a cada seis semanas, e tampouco era tão pequenina, pois já estava no segundo ano em Hotchkiss.

Só de pensar na filha, a ideia de sair de Easterly lhe parecia cada vez mais acertada. Ela tinha duas amigas esperando por ela em Montecito, e ficaria lá até que o pai entendesse que podia muito bem administrar uma empresa bilionária, mas que não mandava nela. E depois disso? Voltaria para lá com certa regularidade, só para ele ver que cometera um erro.

De novo no corredor, refreou os xingamentos ao se arrastar até o elevador e entrar. Quebrou uma unha ao apertar repetidamente o botão para fechar a porta, e quase quebrou um dos saltos quando pisou no chão da adega, puxando as malas para fora.

Não fazia a mínima ideia de onde ir. Onde ficava a garagem. Como se orientar no andar subterrâneo.

Levou quase vinte minutos para encontrar o túnel que levava até a frota da família, e quando emergiu na garagem para dez carros, sentia-se como se tivesse não só acabado de correr uma maratona, mas vencido.

Só que estava sem as chaves dos carros. Nada no Bentley. Nem do Drophead. E não pegaria nem o Porsche GTS, nem a Ferrari, tampouco o Jaguar antigo que se parecia com o de Samuel T., porque todos eles tinham câmbio manual e ela não sabia dirigir modelos assim. O mesmo acontecia com os 911 e o Spyker.

E os sedãs Mercedes não eram bons o bastante para ela.

– Maldição! – Quando bateu o pé no chão, uma das malas de rodinha caiu como se tivesse desmaiado. – Onde estão as chaves?

Abandonando a bagagem, marchou até o escritório. Trancado. Assim como as portas da garagem.

Aquilo era totalmente inaceitável.

Pegou o celular, estava prestes a telefonar – bem, não sabia exatamente para quem, mas para alguém –, quando um armarinho pendurado na parede chamou sua atenção. Indo na direção da portinha de metal de 0,3 por 0,9 metros, deu um puxão na alça, e não se surpreendeu quando a porta não cedeu.

A boa notícia? Ela estava com muita vontade de bater em alguma coisa.

Olhando ao redor, não viu nada fora do lugar. Desde lonas para cobrir os carros, até pneus sobressalentes e material de limpeza, tudo estava organizado numa parede com precisão militar em prateleiras, ganchos, e caixas tampadas.

Exceto pelo pé de cabra, que encontrou encostado numa pilha de panos limpos com o brasão da família bordado.

Gin sorriu ao caminhar do alto dos seus saltos, erguendo a peça de metal. De volta ao armário, arqueou o objeto acima da cabeça e bateu na caixa onde estavam as chaves como se aquilo fosse a cabeça do pai. Bateu, bateu, bateu e bateu, o som metálico agudo ecoando em seus ouvidos.

Apesar de já estar quase sem unhas quando concluiu a tarefa, a porta estava pendurada no que restava das suas dobradiças.

O Bentley, decidiu.

Não, o Rolls. Custava mais caro.

Levando a bagagem até o Phantom Drophead, abriu a porta que se abria ao contrário, enfiou as malas no banco de trás e se pôs atrás do volante. Afundou o sapato de salto no freio, apertou o botão da ignição e o motor rugiu a vida com um rosnado latente.

Esticando a mão na direção do espelho retrovisor, apertou todos os botões até a porta da frente se erguer.

E partiu.

A raiva dentro dela fez com que quisesse passar pelo caminho frontal só para desfilar diante dos cômodos particulares da família; mas era mais importante sair da propriedade sem que ninguém soubesse, por isso contentou-se em levantar o dedo médio para Easterly pelo espelho retrovisor enquanto usava o caminho dos empregados.

Quando chegou à estrada River, virou à esquerda, verificou as horas e pegou o telefone. Rosalinda já deveria ter chegado àquela altura, e ela poderia finalmente cuidar dos arranjos para o jatinho, o que não deveria ser um problema. Gin pedia o avião pelo menos uma vez por semana.

Caixa postal. De novo.

O maldito Brunch. Esquecera-se dele. Todos os funcionários estavam distraídos.

Mas ela tinha necessidades.

Gin ligou para outro número, um que tinha apenas um dígito diferente do de Rosalinda. Ao terceiro toque, ela estava quase desistindo quando ouviu o inconfundível sotaque britânico daquele mordomo.

– Senhor Harris falando, como posso ajudar?

– Preciso de um avião e não consigo falar com a Rosalinda. Você vai ter que providenciá-lo para mim. Decolando neste instante para o aeroporto de Los Angeles.

O mordomo limpou a garganta.

– Senhorita Baldwine, perdoe-me…

– Não venha me dizer que está ocupado demais. Você pode ligar diretamente para o piloto, já fez isso antes, e depois pode voltar para qualquer uma das suas incumbências idiotas do Brunch…

– Lamento, senhorita Baldwine, mas não haverá um avião disponível para a senhorita.

– Você só pode estar brincando. – Sem dúvida era por causa daqueles convidados corporativos que estavam chegando para o Derby. Mas ela era da família, pelo amor de Deus. – Tudo bem, apenas atrase alguém e eu…

– Não será possível.

– Eu sou prioridade! – O Phantom ganhou velocidade quando ela apertou o acelerador, pelo menos até quase acertar o carro na frente dela. – Isso é inaceitável. Ligue para aquela torre de controle, ou para aquela lista de pilotos ou… para quem quer que me coloque num maldito avião para a costa oeste!

Houve uma longa pausa.

– Sinto muito, senhorita Baldwine, mas não poderei mais fazer esse tipo de serviço para a senhorita.

Um alerta gélido apertou a sua nuca.

– Que tal mais tarde, ainda esta manhã?

– Não será possível.

– À tarde.

– Lamento, senhorita Baldwine.

– O que o meu pai lhe disse?

– Não cabe a mim comentar o que…

– Que porra que ele te disse? – ela berrou ao telefone.

A respiração que o homem soltou era o mais próximo que ele chegaria a uma imprecação em voz alta.

– Esta manhã, recebi um memorando dirigido à organizadora e a mim, indicando que os recursos da família não estariam mais disponíveis para a senhorita.

– Recursos…?

– O que inclui dinheiro vivo, contas bancárias, viagens e acomodações em hotéis, e acesso às demais propriedades dos Bradford ao redor do mundo.

Nessa hora o pé dela escorregou do acelerador, e quando o carro atrás dela buzinou, ela foi para o acostamento.

– Gostaria de poder fazer algo – ele disse num tom neutro que indicava que isso não era verdade. – Mas, como já disse, estou impossibilitado de ajudá-la.

– O que devo fazer?

– Talvez voltar para casa seja o melhor. Acabei de vê-la saindo no Rolls-Royce.

– Não vou me casar com Richard Pford – ela disse e depois encerrou a ligação.

Quando olhou pelo retrovisor, os arranha-céus denteados do centro da cidade pareceram assustadores pela primeira vez em sua vida. Nunca antes se impressionara com a cidade de Charlemont, tendo dado a volta ao mundo diversas vezes. Mas todas essas viagens aconteceram enquanto ela tinha recursos ilimitados ao seu dispor.

Com a mão trêmula, pegou a carteira e levantou o fecho. Ela tinha cinco notas de cem dólares e algumas de vinte… e sete cartões de crédito, inclusive um Amex Centurion. Estava sem a habilitação porque sempre andava com motorista particular. Também não tinha o cartão do seguro de saúde porque fazia uso dos serviços dos médicos afiliados à Cia. Bourbon Bradford. Não estava nem com o passaporte, apesar de não ter planejado sair do país.

Duzentos metros mais adiante, havia um posto de gasolina, e ela voltou a acionar o Phantom, seguindo o fluxo do trânsito. Quando chegou ao símbolo da Shell, cortou caminho diante de um caminhão que vinha na direção oposta e parou junto a algumas bombas de abastecimento.

Quando saiu, não foi para abastecer o carro. O tanque estava cheio.

Sacou um cartão Visa qualquer e colocou-o no leitor. Em seguida, apertou as teclas que compunham a sua senha. Esperou para ver se a transação hipotética seria aceita.

Não aprovado.

Tentou o Amex e recebeu a mesma resposta da máquina. Quando outros dois Visas não funcionaram, ela desistiu.

Ele bloqueara os seus cartões.

De volta ao volante, tudo ficou embaçado. Tinha investimentos por toda parte, dinheiro que lhe pertencia… mas só dali a dois anos, quando completasse trinta e cinco, e nenhum dia antes disso – algo que descobrira quando num impulso tentara comprar uma casa em Londres no ano passado e tivera esse desejo negado pelo pai. Pouco importou o quanto tivesse gritado com a empresa do seu fundo, eles se recusaram a lhe entregar o dinheiro, declarando que ela não tinha permissão para acessá-lo até que atingisse a idade estipulada.

Só havia um lugar para onde poderia ir.

Odiava implorar, mas isso era muito melhor que se casar, ou admitir uma derrota ao pai.

Colocando o câmbio mais uma vez no drive, enfiou-se no trânsito e tomou a direção da qual viera. No entanto, não retornaria a Easterly. Iria para…

De repente, o carro morreu. Tudo parou: o motor, o ar-condicionado, as luzes do painel. As únicas coisas que funcionavam eram o volante e o freio.

Enquanto pressionava o botão da ignição, viu suas ações frenéticas e impotentes de longe, notando, sem dar muita atenção, como suas unhas estavam arruinadas, as pontas cortadas, o esmalte vermelho-cereja lascado. Tendo que admitir que o motor não voltaria a funcionar, foi para o acostamento da estrada para não acabar numa colisão e…

Sirenes soaram ao longe e ela olhou pelo espelho retrovisor.

Uma viatura da Polícia Metropolitana de Charlemont encostou atrás dela com as luzes acionadas. E depois uma segunda unidade se pôs à frente até que o Phantom ficasse bloqueado.

Os dois policiais se aproximaram dela com as mãos sobre as pistolas presas ao coldre, como se não tivessem certeza se precisariam das armas.

– Saia do veículo, senhora – o mais alto deles disse com voz autoritária.

– Este carro é meu! – ela exclamou ao abaixar o vidro. – Vocês não têm o direito de…

– Esse veículo pertence a William Baldwine, e a senhora não tem autorização para usá-lo.

– Ah, meu Deus… – ela sussurrou.

– Saia do carro, senhora…

Merda, estava sem a habilitação.

– Sou filha dele!

– Senhora, estou ordenando que destrave as portas e saia do veículo. Se não fizer isso, vou autuá-la por resistir à prisão. Além de dirigir um veículo roubado.

 

DEZESSEIS

– Claro que eu estava à sua espera. – Assim que Lane falou, levantou as mãos, num gesto de quem pedia para aguardar. – Mas apenas como amigo. Queria me certificar de que chegou bem ao trabalho.

Maldição, ela estava linda. Mais uma vez, com a camisa polo preta do uniforme de Easterly e shorts cáqui, o cabelo puxado para trás, preso num rabo de cavalo… De alguma forma, parecia exoticamente bela.

Pensando bem, já fazia mais de doze horas que não a via.

Uma vida inteira, de fato.

Enquanto ela revirava os olhos, ele a flagrou tentando esconder um sorriso.

– Já fiz esse trajeto algumas vezes, sabe – ela disse.

– E como foi esta manhã?

Houve uma pausa, e então algo mágico aconteceu. Lizzie explodiu numa gargalhada.

Cobrindo a boca, ela meneou a cabeça.

– Desculpe, mas você está horrível. O seu cabelo está todo… – ela mexeu a mão ao redor da cabeça dele – … está uma bagunça, seus olhos mal conseguem ficar abertos. Sabia que está balançando para a frente e para trás apesar de estar sentado?

Ele deu um sorriso largo.

– Você precisava ver o outro cara.

– Ele era durão?

– Agora, em vez de usar capuz ele usa brinco. – Lane levantou um braço e flexionou o bíceps. – Homem pra valer este aqui…

Ouviram um par de passadas vindo na direção deles, então Lane espiou por cima do ombro dela e murmurou alguma coisa bem baixinho.

Era o mordomo inglês seguindo direto para ela, só que parou quando viu Lane.

– Com licença, Lane – Lizzie disse baixinho. – Tenho um assunto de trabalho para resolver agora.

– O que foi? – ele perguntou ao mordomo.

O inglês sorriu, parecendo um manequim de loja.

– Nada com que tenha que se preocupar, senhor Baldwine. Senhorita King, poderia fazer a gentileza de vir até o meu escritório quando tiver terminado de…

– O que houve? – Lane exigiu saber.

– Apenas um mal-entendido – Lizzie murmurou.

– Sobre o quê?!

Lizzie se concentrou no senhor Mais Sagrado Que o Senhor.

– O pedido das taças de champanhe alugadas foi reduzido, e ele acha que eu telefonei para Mackenzie para mudar a quantidade, mas não fiz isso. Ficarei feliz em poder organizar tudo quando os copos e os pratos chegarem, mas não sou responsável por coordenar nada que se refira aos pedidos. As tendas e as mesas são de minha responsabilidade, e elas estão exatamente onde deveriam estar.

Os olhos do senhor Harris se estreitaram.

– Esta conversa deve ser conduzida em meu…

– Então, não tem nada a ver com ela. – Lane sorriu para o mordomo com frieza. – E seu assunto aqui terminou.

Lizzie pôs uma mão no braço dele, e o contato foi uma surpresa tamanha, que de fato o calou.

– Está tudo bem. Repito, ficarei feliz em fazer o que puder para ajudar. Senhor Harris, quer que eu fale com Mackenzie e tente encontrar um modo de solucionar o caso?

O mordomo olhou de um a outro.

– Sei o que encomendei. O que não sei explicar é como apenas metade disso foi entregue.

– Veja bem, não quero lhe ensinar o seu trabalho – Lizzie disse. – Mas erros da parte deles já aconteceram antes. O que precisamos fazer é descobrir o que mais está faltando e ligar para eles para alertá-los. Isso não deve ser um problema. O senhor fez o pedido pessoalmente ou foi por intermédio de Rosalinda?

– Usei os serviços da senhora Freeland, e lhe entreguei os números corretos.

Lizzie franziu o cenho.

– Ela sabe o quanto pedir. Fez isso por anos a fio.

– Ela me garantiu que tomaria conta da questão. Deduzi que outra pessoa com acesso à conta tivesse reduzido a quantidade.

– Vá procurá-la, e eu encontrarei Greta para contar tudo o que foi entregue. Vamos resolver. Pelo menos, descobrimos hoje e não amanhã de manhã.

Houve um instante de constrangimento no qual o mordomo nada disse, e Lane se perguntou o quanto daquele plano sensato ele teria que enfiar goela abaixo do ditadorzinho.

– Muito bem – disse o mordomo. – A sua assistência será muito bem-vinda.

Enquanto o senhor Harris se afastava, Lizzie inspirou fundo.

– E assim entramos na contagem regressiva das vinte e quatro horas.

– Ninguém da equipe pode fazer essa contagem? Esse problema não é seu.

– Está tudo bem. Pelo menos se Greta e eu fizermos isso, saberei que está tudo certo. Além disso, todos em Easterly estão com trabalho até as orelhas, e os chefs auxiliares não poderão dispensar…

O telefone de Lane começou a tocar, e ele o tirou do bolso para silenciar o barulho.

– Quem diabos pode ser? – perguntou, quando viu o código de área local.

Ela riu de novo.

– Você pode descobrir se… prepare-se… atender!

– Está pegando no meu pé?

– Alguém tem que fazer isso.

Lane sorriu tão amplamente que suas bochechas começaram a doer.

– Ok, vamos lançar os dados e ver quem é. – Apertou o botão verde e disse em sua voz mais arrastada: – Vocccccêêêê ligoooouu paaaara…

– Lane! Ah, meu Deus, Lane, preciso da sua ajuda.

– Gin? – Ele se endireitou na espreguiçadeira. – Gin, você está bem?

– Estou no centro da cidade, na cadeia de Washington County. Você tem que vir aqui pagar a minha fiança…

– Que diabos? O que você…

– Preciso de um advogado…

– Ok, ok, ok, devagar. – Ele se pôs de pé. – Você está falando rápido demais e não estou entendendo.

Sua irmã fez uma pausa e depois disse quatro frases completas que o deixaram sem chão.

– Está bem – disse ele com seriedade. – Estou indo para aí agora mesmo. Sim. Certo. Ok. Fique aí.

Quando desligou, só o que ele conseguiu fazer foi procurar o rosto de Lizzie.

– O que foi? – ela perguntou.

– O meu pai mandou prenderem Gin. Tenho que, literalmente, ir até a cadeia e pagar a fiança dela.

Lizzie cobriu a boca com a mão num sinal de choque.

– Posso fazer alguma coisa?

– Não. Vou lá cuidar dela. Mas obrigado.

Ele precisou de todo o seu autocontrole para não se inclinar e beijá-la como costumava fazer. Em vez disso, contentou-se em esticar a mão e afagá-la no rosto, saindo antes que ela pudesse dizer que “amigos não fazem isso”.

Inferno, o que o seu pai estaria aprontando agora?

Na época em que fora fumante, Edward frequentemente acordava de manhã já esticando o braço para pegar o maço de Dunhill Reds antes de estar plenamente consciente de sequer ter rolado de lado.

Hoje em dia ele fazia o mesmo, só que para pegar o frasco de Advil.

Colocando quatro cápsulas de gel na palma trêmula, levou-as à boca e as engoliu com o que restava da vodca que levara para a cama. Fazendo uma careta enquanto essa sua versão de desjejum descia até o estômago, deitou-se de novo sobre o travesseiro.

Tinha parado de fumar durante a recuperação. Na verdade, o sequestro fora o primeiro passo para que abandonasse o vício.

Ironicamente, o fato de quase ter morrido foi o responsável por ajudá-lo a ter uma vida mais longa.

Saudou com a garrafa no ar.

– Gracias, muchachos.18

Antes que seu cérebro entrasse no looping infindável da sequência horrenda do Dia Em Que Tudo Aconteceu, virou as pernas para o chão e se sentou. Não olhou para a coxa e para a panturrilha direitas. Primeiro porque as cicatrizes tortas da sua pele à la Frankenstein estavam gravadas em sua mente. Segundo porque ele já não dormia mais nu, por isso elas não estavam aparecendo.

A bengala era necessária para que ele se levantasse, e seu equilíbrio não estava muito bom não só por causa dos ferimentos, mas pela falta de sono e pelo fato de ainda estar meio embriagado. Mancando até o banheiro, deixou as luzes apagadas, de modo que o espelho não foi um problema, e usou o vaso, lavou as mãos, o rosto e escovou os dentes.

A confirmação de que Deus ainda o odiava veio quando ele saiu do chalé uns dez minutos depois e foi ofuscado pela luz brilhante do sol e pela dor de cabeça causada pela ressaca.

Que horas são?, perguntou-se.

Já estava na metade do caminho até o Estábulo B quando percebeu que levara a garrafa junto. Como se fosse o seu brinquedinho predileto.

Revirando os olhos, seguiu em frente. A senhorita Nada de Praguejar Perto de Mim poderia muito bem se acostumar com ele e sua bebida; não havia motivos para apresentar-lhe uma ilusão diurna de abstinência que só a perturbaria no futuro. Se ela não conseguisse lidar com esse seu hábito, ela podia muito bem ir embora no primeiro dia.

O som de pneus cantando fez sua cabeça girar para a direita, e na fração de segundo seguinte, Shelby apareceu na ponta oposta do estábulo, o corpo encurvado na cintura ao empurrar uma tremenda carga de esterco de cavalo dentro de uma velha carreta enferrujada.

Pelo visto, Moe já a colocara para trabalhar.

– Ei – ele a chamou.

Sem diminuir o passo, ela acenou por sobre o ombro e seguiu em frente com o esterco para trás da construção mais próxima.

Enquanto a observava, invejou o corpo forte dela, talvez notando, sem nem se dar conta, que o sol fazia com que as mechas loiras dela parecessem quase brancas. Ela estava usando uma camiseta azul-marinho, um par de jeans escuros e as mesmas botas resistentes da noite anterior. Depois de desaparecer atrás da curva do prédio, reapareceu duas vezes mais rápido do que deveria, considerando a quantidade de esterco que teve que descarregar.

Portanto, ela também era eficiente.

Ao se aproximar, seus olhos estavam claros e alertas, o rosto corado pelo esforço.

– Quase terminando. Depois vou pro C.

– Jesus, Moe fez com que você… desculpe – disse antes que ela o corrigisse. – Maldição, Moe já te colocou pra trabalhar? E não venha me dizer que não posso usar “maldição”. Deixo de mencionar Deus e Jesus Cristo, mas só vou até aí.

Ela deixou os pés do carrinho encostarem na grama aparada.

– Suco de laranja.

– O que disse?

A filha de Jeb Landis acenou para a garrafa.

– Pode ficar com “maldição”, mas eu gostaria de ver você com outra coisa que…

– Você sempre julgou tanto assim?

– … não fosse vodca tão cedo assim. E não estou te julgando.

– Então por que quer mudar os hábitos de um desconhecido?

– Você não é um desconhecido. – Enxugou a testa com o antebraço. – Não são nem nove da manhã. Fico me perguntando por que você precisa beber tão cedo assim.

– Eu estava meio desidratado.

– Não tem água encanada na sua casa? Ontem tinha.

Ele balançou a garrafa.

– Isto aqui está servindo bastante bem. Pense que é a minha versão da vitamina C.

Ela resmungou alguma coisa ao se abaixar para pegar as alças.

– O que disse? – ele exigiu saber.

– Você me ouviu.

– Não, não ouvi, não. – O que não era exatamente a verdade.

Shelby só deu de ombros e seguiu em frente, aquele seu corpo se movendo debaixo das roupas, executando a tarefa sem nenhum esforço aparente.

E foi nessa hora que algo lhe ocorreu.

– Shelby?

Ela parou e olhou por cima do ombro.

– Pois não?

– Você disse que cuidou de todos os cavalos.

– Cuidei.

– Nos Estábulos A e B.

– Isso mesmo.

Ele se apressou e a agarrou pelo braço.

– Eu te disse. Uma regra. Não chegue perto daquele garanhão.

– A baia não ia se limpar sozinha…

A mão dele se apertou por vontade própria.

– Ele matou um ajudante de estábulo no ano passado. Foi pisoteado até morrer ali. Nunca mais faça isso.

Aqueles olhos azuis dela ficaram arregalados.

– Ele se portou bem comigo.

– Só eu chego perto dele. Estamos entendidos? Faça isso mais uma vez e eu faço as suas malas – ele disse firmemente – e te mando de volta para o lugar de onde veio.

– Sim, senhor.

Ele se afastou e tentou não cambalear.

– Muito bem, então.

– Está certo.

Ela soprou o cabelo para longe do rosto e voltou a andar, com os ombros tensos.

Tirando a tampa da vodca, Edward deu um trago longo e, provavelmente, deveria ter parado quando percebeu que a bebida já não ardia mais.

Mas essa era outra coisa sobre a qual não queria pensar.

Assim como não queria pensar no que poderia acontecer com a filha de Jeb Landis enquanto ela estivesse sob a sua proteção.

Maldição.


“Obrigado, meninos.”

 

DEZESSETE

A cadeia e o Tribunal do Condado de Washington formavam um complexo de edifícios modernos que ocupava dois quarteirões inteiros no centro da cidade, cujas instalações se comunicavam por meio de passarelas que se estendiam acima do trânsito da rua logo abaixo. Havia certa quantidade de entradas e, enquanto Lane encostava o Porsche, inúmeras pessoas entravam e saíam; eram homens e mulheres em ternos subindo e descendo os degraus de mármore, policiais dentro de suas viaturas, delegados estacionando suas SUVS e saindo de vagas reservadas, pessoas em roupas desgastadas fumando pelos cantos.

O seu 911 Turbo emitiu uma tossida baixa quando ele desacelerou e se dirigiu para os prédios imponentes. Não havia nenhum layout lógico que ele conseguisse distinguir. Tampouco um endereço.

Como se, caso tivesse que perguntar para onde deveria ir, ficaria com a sensação de que aquele não era o seu lugar…

Até que, de repente, um afro-americano uniformizado surgiu bem diante do seu carro.

– Droga! – Lane afundou o pé no freio. – Mas que diabos! Mitch?

O delegado Mitchel Ramsay não respondeu. Apenas indicou uma vaga livre bem atrás dele.

Lane estacionou com uma baliza perfeita, ciente de que o delegado estava bem ao lado do seu para-choque, os braços grossos como uma corda náutica cruzados sobre seu peito de jogador de futebol americano. Seus olhos negros estavam escondidos atrás de óculos Ray Ban, e a cabeça raspada fazia com que seu pescoço e seus ombros parecessem ainda maiores do que eram de fato.

Lane saiu do carro esportivo.

– Ei, sabe onde a minha irmã…

– Pode deixar.

Os dois bateram palmas e deram um abraço forte. Enquanto permaneciam peito contra peito, Lane foi transportado para quase dois anos atrás, para a pista de pouso particular a oeste da cidade. Para a noite em que Edward finalmente retornava do cativeiro.

Mitch o trouxera de volta aos Estados Unidos. De volta para a família.

Só Deus sabia como. Ninguém perguntara os detalhes, e Lane sempre ficou com a impressão de que o antigo soldado do Exército não teria partilhado os “como” e os “quem”, de todo modo.

– Ela não está muito bem – comentou Mitch.

– Não me surpreende.

Lane seguiu o delegado, subindo os cinquenta degraus até uma das portas giratórias. Quando terminaram de subir, Mitch desviou para uma porta demarcada com SOMENTE POLICIAIS e depois os fez passar pela segurança, de onde outros policiais acenaram em sinal de respeito.

– Agi o mais rápido que pude assim que vi o nome – disse Mitch enquanto suas passadas se uniam a todas as outras, ecoando no vestíbulo principal, com pé direito alto. – Ela foi presa por furto de veículo, por dirigir sem habilitação, por não apresentar o seguro…

– Como diabos isso foi acontecer?

– … e por resistir à prisão. Já isolei o incidente, mas não vou conseguir mantê-lo fora dos registros policiais indefinidamente.

– Espere. – Lane fez o homem parar. – Minha irmã roubou um carro?

– Um Rolls-Royce. Registrado no nome da Cia. Bourbon Bradford.

– Está se referindo… ao nosso Rolls. O Phantom Drophead?

– O seu pai telefonou pessoalmente para a Polícia Metropolitana e pediu que fossem atrás dela, alegando que ela não tinha permissão para dirigir o veículo.

– Você não pode estar falando sério. – Lane enfiou a mão nos cabelos. – Quero dizer, é claro que ele pode fazer isso. Já fez coisa pior.

– Você chamou um advogado?

– Samuel T. deve chegar aqui em…

– Lane!

Samuel T. avançou em meio a um grupo de pessoas, destacando-se por inúmeros motivos. Primeiro, seu terno de risca de giz azul e branco fazia com que ele parecesse pertencer a uma varanda da casa grande de uma fazenda, sorvendo um julepo de menta com um par de cães de caça aos seus pés. Segundo, ele era belo demais para estar entre os mortais.

– Obrigado por vir tão rápido – Lane disse ao apertarem as mãos. – Você conhece Mitch.

– Certamente. Delegado.

– Senhor Lodge.

Encerrando os cumprimentos, os três seguiram para as escadas rolantes que levavam ao segundo andar.

– Ela está numa cela. – Mitch os conduziu por uma das passarelas. – Mas removi qualquer tipo de retardo para a audiência da fiança. Assim que estiver pronto, senhor Lodge…

– Pode me chamar de Samuel ou de Sam.

– Samuel. – Mitch assentiu. – Assim que estiver pronto. Farei com que ela se apresente diante do juiz McQuaid. Já conversei com o promotor público. As mãos dele estão atadas, visto que o senhor Baldwine está pressionando. A única coisa que posso fazer é apressar, apressar, apressar.

Lane cerrou os molares. Gin dava trabalho e, evidentemente, o pai já estava farto disso, mas aquilo tudo era exposição demais.

– Vou ficar te devendo essa, Mitch.

– Não se preocupe.

O delegado os fez passar por vários pontos de controle de segurança, até adentrarem o complexo. Embora Lane tivesse aprontado sua porção de infrações quando era mais jovem, todas as suas transgressões foram discretamente “resolvidas”. Portanto, aquela era a primeira vez que ia para a cadeia, e não poderia dizer que estava com pressa para voltar lá algum dia.

A sala de espera tinha paredes creme. Piso creme. Cadeira plástica laranja, amarela e vermelha. O cheiro no ar era de suor e de roupas sujas, e de desinfetante em spray.

Graças a Mitch, passaram ao largo do balcão de registros com as divisórias de vidro à prova de balas e da fila de policiais com a pescaria do dia. Isso sim era um chamado para a realidade da outra parte da população. Homens sujos e rapazes estranhos… moças quase despidas… mulheres mais velhas com aspecto cansado… Todos eles de pé ou cambaleando, acompanhados dos policiais que os prenderam, seus rostos revelando as marcas da vida dura que levavam.

– Por aqui, delegado Ramsey – alguém o chamou ao lado de uma porta reforçada.

Depois de passar por mais um ponto de segurança, cruzaram com diversas salas de reunião com luzes vermelhas acesas sobre as portas e grades diante das janelas protegidas por telas.

– Se esperarem aqui – o policial disse, na frente de uma das salas –, eu a trago já.

– Obrigado, Stu. – Mitch abriu a porta e se colocou de lado. – Fico esperando do lado de fora.

– Muito obrigado. – Lane bateu no ombro do homem. – E, provavelmente, ainda vamos precisar da sua ajuda.

– Estou aqui para o que precisarem.

Samuel T. parou ao lado do delegado.

– Alguém já falou com a imprensa?

– Nós não – Mitch respondeu. – E quero que continue assim.

– A minha irmã não tem a melhor das reputações. – Lane meneou a cabeça. – Quanto menos pessoas souberem, melhor.

Mitch os deixou ali na sala. Embora houvesse quatro cadeiras presas ao chão junto a uma mesa de aço também presa, Lane não conseguiu ficar sentado. Samuel T., por sua vez, pôs a velha maleta ao seu lado e cruzou as mãos.

O advogado balançou a cabeça.

– Ela vai ficar louca quando souber que você me chamou.

– E quem mais eu poderia chamar? – Lane esfregou os olhos doloridos. – E depois disso, você vai me ajudar com o meu divórcio, certo?

– Apenas mais uma manhã atarefada com os Bradford…

Pelo menos deixaram que ela permanecesse com as próprias roupas, Gin pensou, enquanto era conduzida por outro corredor de concreto pintado com a vichyssoise do mês.

Ficara aterrorizada com a perspectiva de se despir diante de uma guarda feminina de peito cabeludo para depois ser violada por uma mão com uma luva antes de ser enfiada dentro de um macacão laranja do tamanho de uma tenda de circo. Quando isso não aconteceu, ficara obsessiva com a possibilidade de ser trancafiada numa cela horrorosa e suja com um punhado de prostitutas viciadas em drogas tossindo o vírus da AIDS em cima dela.

Em vez disso, fora colocada numa cela sozinha. Uma cela fria, com apenas um banco e um vaso sanitário de aço sem assento nem papel higiênico.

Não que um dia ela fosse fazer uso daquilo.

Seus brincos de diamante foram retirados, assim como o relógio Chanel, juntamente com as malas LV, o celular, aquelas notas de quinhentos dólares e os cartões de crédito inúteis que tinha na carteira.

Um telefonema. Foi só o que lhe concederam, bem como nos filmes.

– Por aqui – disse o guarda, parando diante de um homem afro-americano uniformizado, e em seguida abrindo uma porta pesada.

– Lane…! – Só que ela parou de correr na direção do irmão assim que viu quem estava sentado à mesa. – Ah, Deus. Ele não.

Lane a abraçou com força depois que a porta se fechou.

– Você precisa de um advogado.

– Estou livre – Samuel T. disse com a fala arrastada. – Relativamente livre.

– Não vou falar na frente dele. – Ela cruzou os braços diante do peito. – Nenhuma palavra.

– Gin…

Samuel T. interrompeu o irmão dela.

– Eu te disse. Acho melhor pegar as minhas coisas e ir embora.

– Sentem-se – Lane ordenou. – Os dois.

Houve um instante de silêncio, que Gin entendeu como sinal de que Samuel T. estava tão surpreso pelo tom de comando quanto ela. Lane sempre fora, dentre os quatro irmãos Baldwine, aquele que seguia conforme a maré. Agora, ele parecia Edward.

Ou como Edward costumava ser.

Depois que se sentou desajeitada numa cadeira tão dura e fria quanto um bloco de gelo, Lane apontou um dedo na direção dela.

– O que você aprontou?

– Como é? – ela disse, se retraindo. – Por que é culpa minha? Por que acha que fui eu quem…

– Porque normalmente é o que acontece, Gin. – Ele cortou o ar com a mão quando ela começou a discutir. – Nem comece, eu te conheço há tempo demais. O que fez desta vez para irritá-lo? Vou tirar você daqui, mas tenho que saber com o que estou lidando.

Enquanto Gin encarava o irmão, quis mais do que nunca mandá-lo se foder. Mas só conseguia pensar na imagem dos seus cartões sendo negados no mostrador digital da bomba do posto de gasolina. Quem mais poderia ajudá-la?

Olhou para Samuel T. Ele não a encarava, e seu rosto estava impassível, mas a desaprovação altiva que ele emanava era tão evidente quanto sua colônia no ar.

– E então? – Lane inquiriu.

Pesando as opções, percebeu que estava completamente desconfortável com essa coisa de enfrentar situações difíceis. Com dinheiro suficiente e uma amnésia conveniente, não existia nada que ela não pudesse evitar, quer isso envolvesse suborno ou teimosia.

Infelizmente, as infindáveis opções estavam fundamentadas num estilo de vida que apenas parecia ser dela. Mas, na verdade, era de outra pessoa. Só não sabia disso até aquela manhã.

Pigarreou.

– Samuel T., você pode… me dar um momento a sós com o meu irmão? – Ela avançou a mão sobre a mesa. – Não estou dizendo que não pode ser o meu advogado, só preciso de um pouco de privacidade com ele. Por favor.

Samuel T. curvou uma sobrancelha.

– É a primeira vez que a ouço dizer essas palavras. Pelo menos estando vestida.

– Cuidado, Lodge – Lane rosnou. – Ela é minha irmã.

O homem se recompôs, como se tivesse se esquecido de que não estava sozinho com ela.

– Perdão. Isso foi inapropriado.

– Não vá para longe. – Lane começou a andar pela sala, puxando os cabelos negros e curtos com a mão. – Pelo amor de Deus, vamos precisar de uma boa representação.

Enquanto seu advogado, amante e pai da sua filha saía – ainda que ele desconhecesse essa última identidade –, Gin mirou os sapatos de salto de seda. A ponta do esquerdo tinha se sujado quando ela foi colocada no banco de trás da viatura.

Houve um clique, indicando que a porta tinha sido fechada atrás de Samuel T. Ela não precisou ser encorajada a falar.

– Ele quer que eu me case com Richard Pford.

– Richard… Desculpe, o que você disse?

– Você ouviu muito bem. Papai vai cortar todos os meus recursos a menos que eu me case com aquele homem. Ele disse que é por causa daquela maldita empresa de distribuição que nos dará melhores taxas ou algo assim.

– Ele ficou louco? – Lane inspirou.

– Você quis saber por que peguei o carro. É por isso, e é por isso que papai chamou a polícia. – Levantou o olhar para o irmão. – Não vou me casar com Richard. Não importa o que o nosso pai faça comigo. É com isso que você vai lidar.

Levantando-se, ela foi até a porta e a abriu.

– Pode voltar.

– Quanta honra – murmurou Samuel T.

Enquanto seu advogado voltava a se acomodar, ela disse: – Então, o que faço para sair daqui?

– Você paga a fiança – Samuel T. respondeu. – E depois tentamos fazer com que as acusações sejam retiradas. Você pode fazer um apelo ou seu pai pode perdoar o que quer que você tenha feito.

– Qual seria o montante da fiança? – Lane perguntou.

– Sem antecedentes, isso vai a favor dela, mas o risco de fugir não. Acho que no máximo cinquenta mil. McQuaid é um juiz amigável para pessoas como nós, por isso o valor não será muito alto.

50 mil dólares. De fato, a quantia nunca lhe parecera muito antes. Apenas mais um pulinho à loja Chanel em Chicago.

Pensou no pouco que tinha na carteira.

– Não tenho essa quantia.

Samuel T. gargalhou.

– Claro que tem.

– Farei com que seja pago – Lane o interrompeu.

Samuel T. abriu a maleta e tirou alguns papéis.

– Você me autoriza a representá-la nessa questão, Virginia?

Desde quando ele a chamava por algo que não fosse o apelido? Pensando bem, talvez ele só não quisesse que seu irmão o esmurrasse no piso de concreto por ter demonstrado familiaridade demais.

– Sim.

Os olhos dele, aqueles olhos cinzentos e aguçados, sustentaram o olhar dela.

– Assine aqui. – Depois de ela ter assinado, murmurou: – Não se preocupe, eu vou tirar você daqui.

A respiração dela vacilou quando ela expirou.

– Mas e depois?

O que, exatamente, seria diferente do outro lado de tudo aquilo? Era muito improvável que seu pai virasse a página subitamente. Edward mal sobrevivera à decisão de William Baldwine de escolher os negócios em detrimento dos filhos.

– Primeiro, te tiramos daqui – Lane disse. – Depois lidamos com o resto.

Voltando-se para o irmão, ela percebeu que nunca o vira tão sério. Recostado à parede nua do cubículo horrendo, ele parecia muito mais velho do que quando partira, dois anos antes. Parecia no comando das coisas.

Ela crescera esperando encontrar autoridade em Edward, e nunca em Lane, o playboy.

– Ele vai ganhar – ela se ouviu dizer. – Papai sempre vence.

– Não desta vez – Lane disse entredentes.

– Que diabos está acontecendo aqui? – perguntou Samuel T.

Lane apenas meneou a cabeça.

– Resolva isso, Samuel. Apenas tire a minha irmã daqui. Eu cuido do resto.

Deus, como ela queria que fosse verdade. Porque, evidentemente, a sua tentativa de irritar o pai não dera muito certo.

 

CONTINUA

DEZ

Claro que era uma ideia muito idiota.

Contudo, enquanto Lizzie retribuía o beijo, foi como se ela estivesse afunilando dois anos de raiva, frustração e dor diretamente dentro dele. E que ele fosse para o inferno, mas seu sabor era de bourbon, de desespero e de sexo selvagem… e ela gostava disso.

Ela sentia falta disso.

O que a deixou ainda mais enfurecida. Ela queria dizer que aquilo era horrível. Que era contra a sua vontade. Uma violação.

Mas não era verdade. Foi ela quem enfiou a língua na boca dele, e foi ela quem enterrou os dedos nos ombros dele, e foi ela quem, que Deus a ajudasse, aproximou o corpo, colando-se nele.

Para poder sentir a ereção dele.

Seu corpo não mudara no tempo em que ficaram afastados; ele era todo feito de músculos rijos e membros delgados. E ele beijava como antes, com aspereza e avidez, apesar de ter sido criado como um cavalheiro. E seu calor continuava o mesmo.

E então, para piorar ainda mais as coisas, memórias dos dois juntos, pele contra pele, se chocando, se balançando, ondulando, a assaltaram, enterrando toda a mágoa e o sentimento de traição debaixo de uma avalanche de lembranças eróticas.

Por uma fração de segundo, percebeu que acabaria fazendo sexo com ele ali mesmo, naquele instante.

Sim, claro, porque era uma maneira eficaz de mostrar que estava falando sério.

Um verdadeiro momento Gloria Steinem.17

Em vez disso, algo foi derrubado na mesa e o barulho interrompeu o silêncio; em seguida, um esguicho molhou o quadril e a coxa dela num choque de água fria. Dando um salto, ela o empurrou com força, e Lane tropeçou e caiu para trás, aterrissando no piso de ladrilhos.

Com um movimento brusco do braço, ela limpou a boca.

– Que diabos você estava fazendo?

Pergunta idiota. O mais adequado seria: O que ela estava fazendo?

Ele se pôs de pé na próxima batida de coração.

– Quis te beijar desde que voltei.

– O sentimento não é mútuo…

– Até parece. – Pegou o copo e sorveu um grande gole. – Você ainda me deseja…

– Saia!

– Está me expulsando da minha própria estufa?

– Ou você sai ou saio eu – ela rebateu. – Essas flores não vão parar nos vasos sozinhas. A menos que queira metade das mesas vazias na sua festa do Derby?

– Não estou nem aí com elas. Ou com essa maldita festa. Ou com nada disso… – Ele gesticulou, e teria sido mais convincente caso não estivesse segurando um bourbon da família naquele copo. – Deixei tudo isso para trás, Lizzie. Já estou farto mesmo.

Motrin. Era disso que ela precisava.

Menos Lane e mais analgésicos.

– Eu desisto – murmurou ela. – Você venceu. Vou eu.

Quando ela se virou para ir embora, ele a segurou e a girou, arrastando-a para junto de si. Foi nesse momento que ela notou o quanto ele envelhecera desde a última vez que o vira. Seu rosto estava mais magro, o olhar mais cínico, os pés de galinha mais acentuados nos cantos dos olhos.

Infelizmente, só o tornava mais belo.

– Nada dessa história horrível com Chantal é como você pensa – ele disse sombriamente.

– Mesmo que seja apenas metade…

– Você não entende…

– Eu estava apaixonada por você. – Sua voz se partiu, e ela o empurrou. – Eu não achava que a gente fosse se casar necessariamente, mas não pensei que você estivesse a caminho do altar com outra mulher. Que estava grávida… e que ainda por cima engravidou enquanto você estava comigo.

– Eu tinha terminado com ela, Lizzie. Antes de voltar para cá naquele mês de abril, eu disse para ela que estava acabado.

– Mas não foi bem assim, não é?

– Ela estava grávida de três meses quando fiquei sabendo, Lizzie. Faça as contas comigo. Estive com Chantal pela última antes de vir para cá, no aniversário da minha mãe, no fim de março. Você e eu… ficamos juntos em maio, e no fim de junho eu fiquei sabendo da gravidez. Se você se lembrar bem, não saí de Easterly durante todo aquele tempo. Você sabia onde eu estava todos os dias e todas as noites porque eu estava com você. – Ele a encarou do alto. – Três meses. Não dois, nem um. Três meses, Lizzie.

Ela levou as mãos ao rosto, lutando contra a lógica.

– Por favor, pare de fazer isso.

– Isso o quê?

– Dizer meu nome. Isso lhe dá a ilusão da credibilidade.

– Não estou mentindo. E faz quase dois anos que quero esclarecer a situação. – Ele praguejou novamente. – Tem mais coisas, mas não quero entrar nessa parte. E não afeta o que existe entre mim e você.

Antes que ela percebesse o próprio movimento, descobriu-se sentada no banco de rodinhas que estivera usando antes. Olhando para as mãos, flexionou os dedos, sentindo a rigidez das juntas e, por algum motivo, pensou nas unhas perfeitas de Chantal, em suas palmas lisas e sem marcas. Falando em opostos… As mãos que ela fitava eram as de uma trabalhadora, que tinha arranhões nos dorsos provocados por espinhos de rosa perdidos, e terra debaixo das unhas, que ela só conseguiria limpar depois que chegasse em casa. Também havia pintas, por ter cavado a terra sem a proteção de luvas e, definitiva e positivamente, não havia nenhum diamante de um milhão de dólares em seu dedo.

– Casei com Chantal no cartório depois que você me deixou – ele continuou com severidade. – O bebê não tinha culpa, e por eu ter crescido sem meus pais, não queria fazer o mesmo com um filho meu, a despeito dos meus sentimentos pela mãe dele. Mas eu tinha que sair da cidade. Chantal não admitia que o casamento fosse apenas no papel. Por isso fui para o norte, ficar em Nova York com um amigo dos tempos da Universidade da Virgínia. Foi pouco depois que Chantal me ligou para falar que tinha perdido o bebê.

A amargura em sua voz fez ele falar tão baixinho que ela mal ouviu.

– Ela também não me ama – ele murmurou. – Não amava na época e não ama hoje.

– Como você pode ter certeza? – Lizzie se ouviu dizer.

– Pode confiar em mim quanto a isso.

– Ela pareceu bem contente em ter você de volta.

– Não voltei por causa dela e deixei bem claro. Essa mulher só é capaz de se afeiçoar a uma refeição grátis.

– Pensei que ela tivesse dinheiro.

– Nada comparado ao que eu tenho.

Sim, ela imaginou que devia ser verdade. Existiam países com menos renda anual do que a dos Bradford.

– Você é o amor da minha vida, quer esteja comigo ou não. – Quando ela ergueu o olhar, ele apenas encolheu os ombros. – Não posso mudar o que aconteceu e sei que não há como voltar… Só o que peço é que não acredite nas aparências, ok? Você está há dez anos com esta família, mas estou com eles e com pessoas que os cercam minha vida inteira. É por isso que é você quem eu quero. Você é real. Não é como eles e isso é uma coisa muito, muito boa.

Ela esperou que ele fosse expressar mais alguma coisa, e quando ele não o fez, ela voltou a fitar as mãos.

Por algum motivo, seu coração batia forte, como se ela estivesse próxima demais de um penhasco. Pensando bem, imaginou que era isso mesmo, porque as palavras dele estavam entrando em sua cabeça e embaralhando seus pensamentos.

De um jeito que não a ajudava em nada.

– Tenho muito medo de você – sussurrou.

– Por quê?

Porque queria acreditar no que ele dizia com o desespero de um viciado.

– Não tenha – ele disse quando ela não respondeu. – Nunca quis que nada assim acontecesse. E faz muito tempo que eu queria acertar as contas com você.

Parecia apropriado que estivessem cercados por tantos vasos de flores. A prova do seu trabalho, de seu único objetivo ali na propriedade, era um lembrete do divisor que sempre os distanciaria.

Ela se forçou a se lembrar daquela fotografia e do artigo no Charlemont Herald sobre o casamento, sobre os dois grandes legados sulistas se unindo num arranjo feudal. Também se lembrou dos dias e das noites logo depois que ficou sabendo de Chantal, de todas aquelas horas de sofrimento até que pensou estar à beira da morte.

Mas as palavras dele exprimiam verdade sobre uma coisa. O orgulho fez com que ela continuasse a trabalhar em Easterly. Assim, estivera presente na propriedade todos os dias, exceto aos domingos, pelos últimos vinte e quatro meses. E Lane não voltara. Durante dois anos… ele não voltara para ver Chantal.

Não era lá um grande casamento.

– Deixe que as minhas ações falem por si mesmas. Deixe que eu prove para você que estou dizendo a verdade.

Em sua mente, ela ouviu seu celular tocando insistentemente. Logo após o rompimento, ele lhe telefonara no mínimo uma centena de vezes, deixando mensagens que ela nunca ouvira. Ela tirara duas semanas de férias assim que soube de tudo, fugindo para a fazenda em Indiana, voltando para Plattsburgh no nordeste, para o pomar de maçãs da sua juventude. Seus pais ficaram felizes em vê-la, e ela passara aqueles dias a cuidar das árvores McIntosh junto aos outros trabalhadores.

Quando regressara, ele já tinha ido embora.

Os telefonemas cessaram depois de um tempo. E, no fim, ela parou de ter sobressaltos toda vez que um carro parava na porta da frente.

– Por favor, Lizzie… diga alguma coisa. Mesmo que não seja o que quero ouvir…

O som da risada de uma mulher o interrompeu com suavidade e fez com que ambos olhassem para as portas que se abriam para o jardim. Quando Greta saíra, um dos painéis não se fechara por completo, e através da abertura, Lizzie viu duas pessoas andando pelo caminho de pedras em direção à piscina no extremo oposto.

Mesmo sob a iluminação fraca do paisagismo, ficou claro que o vestido de gala da mulher era vermelho rubi, suas saias volumosas se arrastando atrás dela. Ao seu lado, um homem alto de terno lhe ofereceu o braço num galanteio e a encarava com o tipo de atenção que se reserva a um lauto banquete.

– Minha irmã – Lane disse, sem necessidade.

– Aquele é Samuel T.? – Lizzie perguntou.

– Quem se importa…

Ela voltou a olhar para Lane.

– Você partiu o meu coração.

– Eu sinto muito. Não foi minha intenção, Lizzie, de modo nenhum. Juro por Deus.

– Pensei que você fosse ateu.

Ele ficou calado um instante, os olhos vasculhando suas feições.

– Eu me batizaria mil vezes, se necessário. Posso memorizar a Bíblia, beijar o anel do papa… faço qualquer coisa que você quiser… mas, por favor…

– Não posso voltar no tempo, Lane. Sinto muito. Não consigo.

Ele se calou. E depois de um longo instante, assentiu.

– Tudo bem, mas posso pedir uma coisa?

Não.

– Sim.

– Não me odeie mais. Eu já faço muito isso sozinho.

O jardim estava perfumado como uma mulher recém-saída do banho, tão arrumado quanto a sala de estar, e tão reservado quanto a biblioteca de uma universidade.

O que significava de fato que era semirreservado. As várias janelas de Easterly davam para as moitas de flores brancas e creme, todas elas bem cuidadas e discretamente iluminadas.

Felizmente, Gin não tinha problemas quanto a fazer sexo em público.

Enquanto se pendurava no braço forte de Samuel Theodore Lodge III, não se deu ao trabalho de esconder seu sorriso.

– Há quanto tempo está com ela?

– Desde quando chegamos. Uma hora?

Ela gargalhou.

– Ora, ora, meu caro Samuel, por que você perde tempo com mulheres como ela?

– Existe outro tipo?

Era difícil saber quem conduzia quem até os recessos escuros do canto mais afastado, onde o muro de tijolos se encontrava com os fundos da casa, onde ficava a piscina. Era para lá que ambos se dirigiam.

– Eu não sabia que você vinha – ela disse, erguendo a mão para tocar os diamantes pendurados no pescoço… e depois deslizar os dedos pelo corpete do vestido. – Eu teria me dado ao trabalho de vestir uma calcinha.

– Nova mania, então?

– Gosto quando você as arranca do meu corpo. Especialmente quando você se frustra e as rasga.

– Mas eu não faço parte de um clube exclusivo, não é mesmo?

– Não seja grosseiro.

– Foi você quem tocou no assunto da lingerie. E também foi você quem quis sair comigo. A menos que, para variar, precise mesmo de um pouco de ar fresco?

Gin estreitou o olhar nele.

– Você é um bastardo.

– Não de acordo com o dicionário. Meus pais estavam muito bem casados quando nasci. – Ele ergueu uma sobrancelha. – E creio que você não possa dizer o mesmo da sua filha, não é mesmo?

Ela parou, a maré virando numa direção que ela não previra.

– Está passando dos limites, Samuel. E você sabe disso.

– É um pouco estranho quando você fala de decoro. Você não está transando com aquele advogado casado da minha empresa? Acho que ouvi alguma coisa a esse respeito.

Ah, então era por isso que ele estava agindo daquela maneira.

– Está com ciúmes? – ela pronunciou de maneira arrastada, o sorriso retornando às suas feições.

– Ele não consegue te satisfazer. Não por muito tempo, e não como eu consigo.

Quando ele a agarrou, ela deixou, adorando o modo como as mãos dele seguraram sua cintura e a boca se afundou na sua. Não demorou muito para que ele erguesse sua saia até as coxas, mantendo-a ali apesar de toda a armação do vestido.

Pensando bem, ele vinha se metendo debaixo de tecidos finos e delicados desde os catorze anos, quando passara a frequentar os bailes da sociedade.

Samuel T. gemeu ao descobrir que ela não estava mentindo quando disse não ter nada debaixo daquele vestido, e seus dedos foram rudes ao penetrá-la. O fogo e o desejo que sentiu foram um tremendo alívio para os assuntos em que ela não queria pensar, o sexo lavando todos os seus arrependimentos e sua tristeza, dando-lhe nada além de prazer.

Não havia motivos para fingir o orgasmo que teve de fato, as unhas se enterrando nos ombros macios do smoking enquanto arquejava, a antiquada colônia Bay Rum tão atávica que fazia com que ele fosse um homem à frente do seu tempo.

Enquanto se entregava, pensava que ele era o único homem que já tinha amado – e o único que jamais teria verdadeiramente. Samuel T. era muito parecido com ela, só que pior: uma alma que nunca se assentaria enquanto estivesse passeando pelos caminhos de tijolos da expectativa social.

– Me come – ela exigiu ao encontro dos lábios dele.

Ele arfava, seu corpo estava rijo debaixo do smoking caro, pronto para ela… Mas em vez de lhe dar o que ela tanto queria, ele recuou um passo, abaixando a saia e fitando-a de longe.

– Samuel? – ela inquiriu.

Com uma lentidão deliberada, ele levou os dedos até a boca e os lambeu. Depois passou a língua para cima e para baixo, entre eles, lambendo a essência dela em sua pele.

– Não – ele disse. – Acho que não.

– O quê?

Samuel se inclinou na direção dela.

– Vou voltar para a festa do seu pai e vou me sentar à mesa dele. Adiantei-me e troquei a disposição dos lugares, de modo que Veronica estará sentada ao meu lado. E você vai saber quando eu colocar a minha mão entre as pernas dela, você vai vê-la se empertigar e tentar manter a compostura enquanto faço com ela o que acabei de fazer com você. Observe o rosto dela, Gin. E saiba que, assim que eu sair, vou transar com ela no banco da frente do meu Jaguar.

– Você não ousaria.

– Como acabei de dizer, preste atenção, Gin.

Ele se virou para se afastar, e ela quis jogar alguma coisa na cabeça dele. E vez disso, disse entre dentes cerrados: – O nome dela não é Savannah?

Ele relanceou por sobre o ombro.

– E eu me importo com o nome dela? A única coisa relevante é: ela não é você.

Dito isso, ele se afastou a passos largos naqueles elegantes sapatos de couro que ecoaram nos tijolos, com os ombros retos e a cabeça erguida.

Envolvendo-se com os braços, ela percebeu pela primeira vez que a noite estava fria. Embora fizesse 26°C.

Concluiu que deveria ter lhe contado a respeito do advogado. Em retrospecto, escolhera o homenzinho grudento exatamente porque sabia que cedo ou tarde Samuel T. descobriria.

Pelo menos uma coisa era certa: Samuel T. voltaria. Por algum motivo, os dois não conseguiam ficar longe um do outro por muito tempo.

E, no fim, ela acabaria tendo que lhe contar a respeito de Amelia, pensou. Mas não hoje. Nem… tão cedo.

Se aquele homem descobrisse que ela lhe escondera a filha por todos aqueles anos?

Ele seria capaz de matá-la.


Gloria Steinem, famosa feminista, é uma jornalista americana, célebre por seu engajamento com o feminismo e sua atuação como escritora e palestrante, principalmente durante a década de 1960. (N.T.)

 

ONZE

Depois que Lane saiu da estufa, a perspectiva de retornar para a festa do pai era extremamente desagradável, ainda mais depois de ouvir o gongo que anunciava que o jantar estava sendo servido. Mas, considerando-se que a outra alternativa seria ir ver Edward, ele…

– Lane?

Concentrando-se, olhou além do arco da sala de jantar. Uma morena alta num vestido cinza-claro estava parada diante dos antigos espelhos venezianos, a visão dos ombros nus tão adorável de trás quanto de frente.

Falando no diabo, ele pensou. Mas sorriu ao se aproximar e beijá-la no rosto macio.

– Sutton, como está?

Mas quis dizer: Que diabos você está fazendo aqui? Ela e a família eram o “inimigo”, proprietários da Destilaria Sutton, produtores do famoso bourbon Sutton e de outras bebidas – mas isso não significava que ele tivesse algo particularmente contra a mulher. Tradicionalmente, porém, pessoas da linhagem dela eram persona non grata em Easterly… em conversas… nas orações noturnas.

E eram fãs da UK. Portanto, eram azuis nos jogos, e não vermelhos.

Isso era algo que poderia irritá-lo.

Quando se abraçaram, seu perfume refletiu a mulher rica que era, sua fragrância delicada preencheram as narinas dele mesmo quando se afastou; assim como seu corpo perfeito e bem vestido, surgindo novamente em seus olhos quando ele piscou.

Mas não era por isso que estava atraído por ela. Aquilo era o mesmo que admirar uma pintura num museu ou um automóvel Duesenberg.

– Eu não sabia que você viria este final de semana. – Ela sorriu. – É bom te ver depois de tanto tempo. Você me parece bem.

Isso foi engraçado, porque ele se sentia uma merda.

– E você, bela como sempre.

– Vai ficar para o Derby?

Por cima do ombro de Sutton, ele viu que Chantal entrava na sala de jantar, o longo vestido amarelo se arrastando junto com a sua postura de inocente.

Só até eu preencher a papelada do divórcio, ele pensou.

– Lane? – Sutton o chamou.

– Desculpe. Na verdade, tenho que voltar logo para Nova York. – Afinal, aquelas partidas de pôquer precisavam dele lá. – Estou contente em ver você. Surpreso por vê-la no jantar do meu pai, mas contente.

Sutton assentiu.

– Também é uma surpresa e tanto para mim.

– Veio a negócios?

Ela sorveu um gole da taça de vinho.

– Hummm.

– Era para ser uma piada.

– Me diga uma coisa, você tem visto…

Ela deixou a frase inacabada, sem mencionar o nome, pois não havia motivos para que ela pronunciasse “Edward”. Por muitos motivos.

– Ainda não o vi. Mas vou até a fazenda.

– Sabe, Edward nunca vem à cidade. – Sutton tomou mais um gole da taça de borda fina. – Eu costumava vê-lo com bastante frequência antes que ele… Bem, fazíamos parte do conselho da Universidade de Charlemont, mesmo eu sendo fã da UK, e…

Enquanto a mulher prosseguia, ele ficou com a sensação de que ela não estava lhe informando fatos que ele já sabia, mas que revivia um período da vida cuja perda ela lamentava. Não pela primeira vez, ele ficou se perguntando o que realmente acontecera entre o garoto de ouro da família e a adorável filha do concorrente deles.

– Ora, se o filho pródigo não retornou…

O som da voz do pai foi um alerta que o atingiu tal qual uma flecha, e Lane encobriu seu dissabor ao tomar um gole de bourbon.

– Pai.

William Baldwine era quase tão alto quanto ele, tinha os mesmos cabelos negros e olhos azuis, o mesmo maxilar, os mesmos ombros. As diferenças eram a idade, o grisalho nas têmporas, os óculos bifocais de aro de casco de tartaruga, a ruga entre as sobrancelhas causada pelos muitos anos de semblante fechado. De algum modo, porém, todos aqueles sinais do passar dos anos não diminuíam a estatura do pai. De fato, apenas serviam de contraponto para uma aura de poder.

– Tenho que mandar arranjarem um lugar para você. – Por trás daqueles óculos, os olhos do pai encararam as roupas de Lane com um desdém apropriado para as fezes de um cachorro no meio de uma sala de estar. – Ou está de saída?

– Deixe-me pensar… – Lane estreitou o olhar. – Por mais que eu aprecie degradar a sua mesa com esta minha camisa, eu teria que ficar na sua presença durante uma refeição de, no mínimo, três pratos. Portanto, acho que vou embora.

Lane colocou seu Reserva de Família na mesinha de apoio mais próxima e se curvou para Sutton, que parecia preferir ir com ele em vez de ficar ali.

– Sutton, é sempre um prazer. – Olhou para o pai. – Pai, vá se foder.

Lançou essa granada e seguiu em meio à multidão, acenando para políticos e socialites, para aqueles dois atores da série da HBO na qual estava viciado e para Samuel T. e sua namorada do momento.

Chegou ao vestíbulo de entrada, e estava quase na porta da frente quando um par de saltos agulha se aproximou por trás.

– Aonde você vai? – Chantal sibilou ao agarrar o braço dele. – E por que não está vestido?

– Não é da sua conta. – Soltou-se dela. – Nos dois casos.

– Lane, é inaceitável…

– Essas palavras jamais deveriam passar pelos seus lábios, mulher.

Chantal fechou a boca muito bem delineada. Em seguida, inspirou fundo, como se estivesse com dificuldade para aplacar a raiva.

– Eu gostaria de passar um tempo com você esta noite, para conversar e discutir… nosso futuro.

– O único futuro em que você precisa pensar é quantas malas Vuitton vai precisar para a sua mudança.

Chantal ergueu o queixo.

– Você não faz ideia do que está falando.

Ele se inclinou na direção dela e abaixou a voz até um sussurro.

– Sei o que você fez. Sei que não “perdeu” o bebê. Se queria manter o aborto em segredo, não deveria ter pedido a um dos motoristas da família que a levasse para aquela clínica em Cincinnati.

Quando ela empalideceu, ele se lembrou exatamente onde estava quando o homem que a levara lá titubeou para lhe dar a informação.

– Não tem resposta? Não vai negar? – Lane a repreendeu. – Ou isso virá quando a surpresa por ter sido descoberta passar?

Houve um instante de silêncio, e ele sabia que ela estava pesando suas opções, tentando descobrir como abordá-lo de um jeito favorável.

– O que eu deveria ter feito? – disse ela por fim, baixinho. – Você me abandonou sem explicações, sem apoio, sem dinheiro, sem um modo de entrar em contato com você.

Ele fez um gesto abarcando as pinturas a óleo e os tapetes orientais.

– Sim, porque você ficou num lugarzinho bem largado no meio da selva.

– Você me abandonou!

– Por isso a solução foi se recompor para tentar seduzir outro homem, certo? Estou deduzindo que foi o que fez, já que você precisava caber de novo no manequim 38, não é? Minha querida esposa.

– Lane, você está dizendo coisas que não quer…

– Você matou um inocente…

Reginald veio da sala de estar com uma bandeja de prata com copos usados, deu uma olhada nos dois e voltou para trás, desaparecendo de novo no cômodo agora vazio.

Ah, sim, a vida em Easterly… Onde a privacidade era menos comum que diamantes e distribuída em termos relativos. Pelo menos sabia que podia confiar naquele homem mais do que em sua própria família.

Não que isso significasse muito.

– Não vou ficar aqui discutindo com você – Lane disse, ríspido. – E você vai sair desta casa. Assim que o Derby acabar, a sua estada grátis já era.

Chantal arqueou uma das sobrancelhas perfeitas.

– Peça o divórcio se quiser, mas não vou a parte alguma.

– Você não terá mais o direito de ficar sob este teto depois que essa aliança sair do seu dedo.

O sorriso que ela lhe lançou foi gélido.

– É o que vamos ver. – Acenou com a cabeça para a porta da frente. – Vá para onde quiser, fuja… É isso o que você faz, não é? Mas tenha certeza que: eu estarei aqui quando você voltar.

Lane estreitou os olhos. Chantal era muitas coisas, mas não era uma maluca. Ela se autopromovia demais para tanto.

E o encarava como se soubesse de algo que ele não sabia.

Que diabos aconteceu enquanto ele se manteve afastado?

No Vermelho & Preto, Edward estava sentado numa antiga poltrona de couro diante de uma televisão tão velha que ainda tinha antenas saindo da tela em forma de caixa. O cômodo estava na penumbra, mas reluzia por causa dos inúmeros troféus de corrida abarrotando as estantes até o teto do lado oposto.

O chalé do haras tinha um quarto, um banheiro com banheira com pés em forma de garras, uma cozinha pequena e aquela área, que era um misto de biblioteca, escritório, sala de estar e de jantar. Não havia segundo andar, apenas um sótão cheio de recordações de velhas corridas de cavalo, e também não havia garagem. A área era menor do que a sala de jantar de Easterly e, desde que se mudara para lá, ele aprendera a apreciar o valor de ter um lugar pequeno o bastante para poder ouvir e ver quase tudo. Lá na mansão, nunca se sabia quem mais estava na gigantesca casa, onde estavam, o que estavam fazendo.

Para alguém como ele, cuja única amante eram os terrores noturnos e cujo principal trabalho era impedir que seu cérebro se canibalizasse, os aposentos apertados eram algo muito mais fácil de lidar, ainda mais naquela época do ano. Pena que a sua ida à América do Sul, quando fora sequestrado, tivesse acontecido pouco antes do Derby. O aniversário da sua captura arruinara o que sempre fora um fim de semana agradável.

Consultou o relógio e praguejou. Agora que o sol tinha se posto, as horas se apresentavam numa confusão nebulosa, minutos se tornando séculos e um segundo ao mesmo tempo. O seu trabalho noturno? Chegar, de algum modo, ao nascer do sol sem gritar.

Junto ao cotovelo, havia uma garrafa de vodca quase vazia. Começara a beber com cinco cubos de gelo num copo alto, que já estava derretido havia um tempo, e ele agora sorvia a bebida pura. Na noite anterior, fora gim. Na de antes, tomara três garrafas de vinho, duas de tinto e uma de branco.

Durante a fase inicial e aguda da sua “recuperação”, aprendera todos os estágios da administração da dor, aprendera como espaçar os analgésicos e a comida a fim de fazer com que os impulsos nevrálgicos do seu corpo arruinado não fossem piores do que a tortura que suportara quando aquelas feridas foram provocadas. Mais tarde, o mestrado em Gerenciamento de Medicação se traduziu muito bem na segunda parte – a parte crônica, a da “recuperação”. Graças às tentativas e aos erros adquiridos com os analgésicos, ele conseguia distribuir tudo para otimizar o efeito sedativo: todas as tardes, por volta das quatro horas, comia alguma coisa; às seis, quando os funcionários liberavam os estábulos, ele podia começar a beber estando, basicamente, de estômago vazio.

Nada o irritava mais do que alguém se metendo no meio do seu torpor…

Quando uma batida se fez à porta, apanhou a pistola ao lado da garrafa Grey Goose e tentou se lembrar que dia da semana era. O Derby aconteceria dali a dois dias… Então era quinta-feira. Era quinta-feira, algumas horas depois do pôr do sol.

Portanto, não era uma das prostitutas que ele pagava para vir servi-lo. Elas vinham às sextas-feiras. A menos que tivesse chamado duas pelo preço de uma aquela semana, mas não havia pedido aquilo.

Certo. Ou havia?

Apanhando a bengala, suspendeu-se da poltrona e claudicou até a janela da frente. Afastou as cortinas, com a pistola firme numa mão, mas o coração batia descompassado. Mesmo ciente de que, pela lógica, não existiam mercenários no Condado Ogden à sua procura, que estava seguro atrás das travas e do sistema de segurança que instalara, apesar da quarenta milímetros em suas mãos… seu cérebro continuava eletrizado.

Quando viu quem era, franziu o cenho e abaixou a arma. Seguindo até a porta, retirou a corrente, destrancou as três travas e abriu a porta, as dobradiças rangendo como camundongos. Outro mecanismo de alerta para ele.

– Cliente errado – murmurou com secura para a loira baixinha que vestia jeans e camiseta justa. – Eu só peço morenas. Em vestidos de gala.

Por um motivo que preferia guardar para si.

Ela franziu a testa.

– O que disse?

– Só aceito morenas. E elas têm que estar adequadamente vestidas.

Ele queria cabelos longos curvados nas pontas, um vestido que se arrastasse pelo chão, e elas tinham que estar usando Must da Cartier. Ah, e tinham que ficar de boca fechada. Não tinham permissão para falar com ele enquanto estivessem transando. Ainda que as putas conseguissem representar bem o exterior, a ilusão frágil seria rompida no instante em que as vozes delas não fossem a da mulher que desejava, mas que não podia ter.

Ele já tinha bastante dificuldade para manter a ereção daquele modo; na verdade, a única maneira de fazer seu pau subir era se conseguisse acreditar na mentira pelo tempo necessário até chegar ao orgasmo.

A mulher em sua soleira pousou as mãos nos quadris.

– Acho que não sei do que está falando. Mas sei que estou no lugar certo. Você é Edward Baldwine, e este é o Vermelho & Preto.

– E você quem é?

– Filha de Jeb Landis. Shelby. Shelby Landis.

Edward fechou os olhos.

– Maldito seja Ele.

– Eu agradeceria se não usasse o nome de Deus em vão na minha presença. Obrigada.

Ele levantou as pálpebras.

– O que você quer?

– O meu pai morreu.

Edward se concentrou num ponto acima da cabeça dela, na lua que crescia acima do Estábulo C.

– Quer entrar?

– Se guardar arma, sim.

Ele enfiou a pistola no cós do jeans e recuou.

– Quer beber alguma coisa?

Quando ela entrou, ele percebeu o quanto ela era baixinha. E devia pesar só uns 45 quilos, isso se estivesse ensopada segurando um fardo de feno.

– Não, obrigada. Não bebo álcool. Mas eu gostaria de usar o seu banheiro. A viagem foi longa.

– É por ali.

– Muito obrigada.

Ele se recostou na porta. A picape na qual ela evidentemente chegara sabe lá Deus de onde estava estacionada à esquerda, o motor ainda estalava debaixo do capô.

Depois de fechá-la e trancar tudo de volta, ouviu a descarga nos fundos da casa. Um momento mais tarde, a moça voltou e olhou para os troféus.

Edward seguiu para a poltrona, fazendo uma careta de dor ao se acomodar.

– Quando? – ele perguntou ao se servir do resto da vodca.

– Uma semana atrás – ela respondeu sem olhar para ele.

– Como?

– Pisoteado. Bem, os médicos disseram que o coração dele não aguentou, mas a causa foi o pisoteamento. Foi assim que você se machucou?

– Não. – Ele sorveu um longo gole. – Então, o que você faz aqui?

Dessa vez ela se virou.

– O meu pai sempre disse pra eu vir para cá pra encontrar você se alguma coisa acontecesse com ele. Ele disse que você lhe devia uma. Nunca perguntei o quê.

Edward a encarou demoradamente.

– Quantos anos você tem? Doze?

– Vinte e dois.

– Jesus, como você é nova…

– Cuidado com o que diz perto de mim.

Ele teve que sorrir.

– Você é igualzinha ao seu velho, sabia disso?

– É o que dizem. – Ela voltou a apoiar as mãos nos quadris. – Não quero esmola. Preciso de um lugar pra ficar e de um trabalho. Sou boa com cavalos, assim como o meu pai era, e ruim com pessoas… Por isso, considere-se avisado. Não tenho dinheiro, mas tenho costas fortes e não tenho medo de nada. Quando posso começar?

– Quem disse que estou procurando ajuda?

Ela franziu o cenho.

– O meu pai disse que você precisaria. Disse que você precisaria de mais mãos.

O Vermelho & Preto era uma grande operação, e sempre havia vagas. Mas Jeb Landis era uma lembrança complicada do passado… e a família dele estava contaminada por associação.

Mesmo assim…

– O que sabe fazer?

– Limpar estábulos e manter os cavalos em ordem não é física nuclear…

Ele dispensou as palavras dela com a mão.

– Tudo bem, tudo bem, está contratada. E só estou sendo um cretino porque, assim como você, não me dou bem com as pessoas. Tem um apartamento vazio ao lado do apartamento de Moe, sobre o Estábulo B. Pode se mudar para lá.

– Mostre o caminho.

Edward grunhiu ao voltar a ficar de pé e carregou o copo consigo de propósito ao conduzi-la até a porta.

– Não quer saber do salário?

– Você vai ser justo. O meu pai disse que desonestidade não faz parte do seu caráter.

– Ele foi generoso ao dizer isso.

– Duvido. Ele conhecia homens e cavalos.

Enquanto Edward voltava a destrancar tudo, conseguia senti-la observando-o e odiou isso. Seus ferimentos eram o resultado de um inferno que ele preferia manter escondido do mundo.

Antes de deixá-la sair do chalé, olhou-a fixamente.

– Só há uma regra.

– Qual?

Por algum motivo, ele se deteve nas feições dela. Ela não se parecia fisicamente em nada com o pai – bem, desconsiderando-se a altura. Shelby, ou qualquer que fosse seu nome, tinha olhos claros, e não negros. E sua pele não tinha a consistência de couro, embora isso ainda pudesse mudar.

A voz dela, porém, era como a de Jeb: aquele sotaque arrastado tinha um fundo de solidez.

– Você não vai chegar perto daquele garanhão – Edward avisou. – Ele é malvado até os ossos.

– Nebekanzer.

– Você o conhece.

– Meu pai costumava dizer que aquele cavalo tinha gasolina nas veias e ácido nos olhos.

– Então você já conhece o meu cavalo. Não se aproxime dele. Não vai limpar a baia dele, não vai chegar perto dele se ele estiver no pasto e nunca, jamais, vai colocar qualquer coisa sobre a porta da baia dele se quiser conservá-la. E isso inclui a sua cabeça.

– Quem cuida dele?

– Eu. – Edward claudicou noite afora, o ar úmido e pesado fazendo com que ele pensasse que não conseguiria respirar. – E ninguém mais.

Enquanto tentava respirar fundo, perguntou-se se todos aqueles médicos tinham deixado passar algum ferimento interno. Pensando bem, talvez a sensação de sufocamento fosse causada pela imagem daquela moça perto do maldito garanhão negro. Ele só conseguia pensar no que Neb poderia fazer com ela.

Ela se colocou na frente e pegou a mochila sobre o banco do passageiro.

– Então você é o encarregado aqui.

– Não, Moe Brown é. Você vai conhecê-lo pela manhã. Ele será o seu chefe. – Edward seguiu na direção dos estábulos. – Como já disse, o apartamento ao lado do dele está mobiliado, mas não sei quando o último a morar lá saiu.

– Já dormi em baias e em bancos de praça. Ter um telhado sobre a cabeça já basta.

Ele olhou na direção dela.

– O seu pai… era um bom homem.

– Não era nem melhor nem pior do que qualquer outra pessoa.

Era impossível não pensar em quem devia ser a mãe dela – ou em como alguém poderia ter suportado tempo suficiente ao lado de Jeb até ter uma filha com ele. Jeb Landis era uma lenda na indústria, tinha uma lista de cavalos vencedores maior do que qualquer outro, vivo ou morto. Também fora um alcoólatra filho da puta, com um vício por jogo ainda pior do que a sua veia misógina.

Uma coisa com a qual Edward não tinha que se preocupar era se Shelby saberia tomar conta de si mesma. Se conseguira sobreviver tendo vivido com Jeb, trabalhar num turno de dezoito horas numa fazenda criadora de cavalos seria fácil, fácil.

Quando chegaram ao Estábulo B, as luzes detectoras de movimento se acenderam e os cavalos se movimentaram lá dentro, batendo os cascos e relinchando. Entraram pela porta lateral, passaram pelo escritório de Moe e pelo depósito de suprimentos, e Edward a levou até o lance de escadas que antes conduzia ao palheiro, cobrindo toda a extensão do telhado. Em algum momento nos anos 1970, o lugar fora convertido em dois apartamentos, e Moe morava no da frente, que dava para a passagem de carros.

– Vá na frente e espere por mim ali em cima – disse com os dentes cerrados. – Eu demoro um pouco para subir.

Shelby Landis subiu os degraus rapidamente no compasso que ele costumava usar, mas que agora já não apreciava mais, e sentiu como se tivesse uma centena de anos ao se juntar a ela no andar superior.

Àquela altura, já estava tão sem fôlego que chiava como um pneu murchando.

Afastando-se dela, viu que não havia nenhuma luz por baixo da porta de Moe, mas, de todo modo, não teriam incomodado o homem. Com o Derby em menos de quarenta e oito horas, se estivesse em casa, o homem já devia estar dormindo a sono solto.

Ainda mais se considerasse que um dos seus dois cavalos poderia acabar excluído da corrida.

Enquanto Edward seguia em frente e girava a maçaneta do apartamento seguinte, percebeu que não sabia o que faria caso a porta estivesse trancada. Não fazia ideia de onde as chaves poderiam estar…

A porta se abriu, lembrando-o de que ele estava em meio a uma minoria de paranoicos ali naquela fazenda. O interruptor ficava à esquerda na parede e, quando ele o apertou, ficou aliviado em ver que o lugar não estava muito empoeirado e que, de fato, havia um sofá, uma cadeira, uma mesa e uma cozinha minúscula que, em comparação, fazia com que a sua parecesse industrial.

– O seu pai nunca mencionou o motivo de eu estar em débito com ele? – perguntou, mancando até o corredor escuro.

– Não, mas Jeb não era de falar muito.

Apertando o segundo interruptor, viu que o quarto e o banheiro também estavam organizados.

– Eis o que você tem aqui – disse ele, exausto só de ver a distância até a porta.

Quatro metros e meio.

Era como se fossem quilômetros.

Ela se aproximou.

– Obrigada pela oportunidade.

Ofereceu a mão e o fitou nos olhos e, por um instante, ele sentiu uma emoção diferente da raiva que ardia e queimava em seu íntimo nos últimos dois anos. Não sabia como defini-la, e o triste era que não sabia se a mudança era bem-vinda.

Havia uma certa claridade em ter um princípio de operação unilateralmente hostil.

Deixou a mão dela pendurada no ar enquanto arrastava o corpo de volta até a saída.

– Veremos se, mais tarde, você vai me agradecer.

De repente, lembrou-se de toda aquela coisa de não praguejar e não beber álcool.

– Ah, e mais uma coisa. Se a cortina do meu chalé estiver fechada, não me incomode.

– Sim, senhor.

Ele assentiu e fechou a porta. Depois, muito lenta e cuidadosamente, começou a descer.

A verdade era que Jeb Landis fora o responsável pela sua recuperação. Sem o chute que o homem deu no seu traseiro, só Deus sabia se Edward ainda estaria naquele planeta. Deus, ainda se lembrava com nitidez quando o treinador viera visitá-lo no centro de reabilitação. Apesar da regra explícita de Edward de não receber visitantes, Jeb passara pela estação da enfermagem e marchara para dentro do seu quarto.

Eles já se conheciam havia uma década. O interesse de Edward por cavalos de corrida, e sua subsequente posse, aliado ao compromisso prévio de ser o melhor em tudo o que fazia, significava que ele só aceitaria um homem treinando os seus cavalos.

No entanto, jamais previra que o homem seria um tipo de salvador.

O esporro de Jeb fora breve e direto, mas mais eficiente do que todos os argumentos e apoio emocional que recebeu de outras pessoas. E, um ano após sua mudança para lá, tendo jogado fora todos os seus ternos e decidido que aquela seria a sua vida, Jeb lhe disse que estava deixando o Vermelho & Preto rumo à Califórnia.

Provavelmente porque alguns agentes de apostas de Chicago estavam atrás de um pedaço do traseiro dele.

Em todos aqueles anos, antes e depois do sequestro, o fato de Jeb ter uma filha jamais viera à baila. Mas, sim, ele abrigaria a filha do homem. Claro.

E, felizmente, ela parecia ser capaz de cuidar de si mesma.

Portanto, o pagamento do débito teria um custo baixo.

Pelo menos, foi o que ele disse a si mesmo naquela primeira noite.

Só que aquilo não foi bem verdade… nem de longe.

 

DOZE

– Paguei cem mil dólares para me sentar ao seu lado.

Gin ergueu o garfo Tiffany com desenho de crisântemo para mexer na comida, mal ouvindo as palavras ditas junto ao seu ouvido. Estava ocupada demais se concentrando no arranjo floral diante dela. Samuel T. estava mais à esquerda, e a partir daquele ponto focal florido, sua visão periférica permitia que ela o acompanhasse ao lado da namoradinha, Veronica/Savannah.

– Por isso, você poderia pelo menos conversar comigo.

Voltando a se concentrar, fitou o odioso Richard Pford IV. O homem era só uma versão do jovem que um dia fora: alto e magro, com um olhar capaz de cortar vidro e uma natureza suspeita que contrastava com a sua posição invejável na hierarquia social de Charlemont. Filho de Richard Pford III, era o único herdeiro da Distribuidora de Bebidas Pford, uma cadeia nacional que distribuía vinhos, cerveja, bourbon, gim, vodca, champanhe, uísque etc. nas prateleiras e nos negócios do país inteiro.

O que significava que ele podia bancar um valor de seis dígitos para garantir um assento todas as noites da semana e duas vezes aos domingos.

Ele nadava em milhões, e seus familiares nem tinham começado a morrer ainda.

– Os assuntos do meu pai não me interessam – ela rebateu. – Portanto, parece que desperdiçou o seu dinheiro.

Ele tomou um gole de vinho.

– E pensar que ele foi para o programa de basquete da UC.

– Não sabia que você era fã deles.

– Não sou.

– Não é de se admirar que não nos damos bem. – UK. Ela devia ter desconfiado. – Além disso, não ouvi dizer que você estava para se casar?

– Os boatos quanto ao meu noivado foram exagerados.

– Difícil de acreditar, com todas as suas qualidades.

À esquerda, Veronica/Savannah deu um salto na cadeira, os cílios postiços flanaram, o garfo bateu no prato. Enquanto as lentes coloridas se voltavam para Samuel T., o maldito limpava casualmente a boca com o guardanapo damasco.

Samuel T., no entanto, não estava olhando para a namorada. Não, ele casualmente fitava o buquê de flores bem na frente de Gin.

O filho da puta.

Deliberadamente, Gin se virou para Richard e sorriu.

– Bem, estou encantada com a sua companhia.

Richard assentiu e voltou a cortar o seu filé mignon.

– Assim é muito melhor. Por favor, não pare.

Gin falou com suavidade, ainda que não fizesse ideia do que estava saindo da sua boca. Mas Richard assentia mais e mais, e respondia, por isso ela deduziu que estava se saindo bem com suas habilidades sociais. Mas, pensando melhor, quer se tratasse de conversas que não a interessavam ou orgasmos com homens com os quais não se importava, ela tinha bastante prática em fingir.

E, mesmo assim, estava ciente do que Samuel T. estava fazendo. Dolorosamente ciente.

Os olhos dele queimavam, cravados nela. E, nesse meio-tempo, bem como ele lhe prometera, a vadia ao lado dele começou a se esforçar para manter a compostura.

– … me resguardei para você – Richard declarou.

Gin franziu o cenho, captando aquela combinação de palavras, a despeito da sua preocupação.

– O que disse?

– Eu estava determinado a me casar, mas entrei num acordo com o seu pai. Foi por isso que pus fim ao noivado.

– Entrou num acordo com o meu pai? Do que está falando?

Richard sorriu com frieza.

– O seu pai e eu chegamos a um acordo quanto ao futuro. Em contrapartida por se casar comigo, estou disposto a conceder algumas vantagens à Cia. Bourbon Bradford.

Gin piscou. Depois balançou a cabeça.

– Não estou ouvindo muito bem.

– Sim, sim, você está. E já lhe comprei o anel de diamantes.

– Não, não, não… Espere um minuto. – Jogou o guardanapo na mesa mesmo sem terminar de jantar, assim como as outras trinta e uma pessoas. – Não vou me casar nem com você nem com ninguém.

– Mesmo?

– Tenho certeza de que “comprou” o seu lugar nesta mesa. Mas ninguém me obriga a fazer porra nenhuma, e isso inclui o meu pai.

Pensou que era uma tristeza não ter questionado a possibilidade do seu bom e velho pai a vender em favor do preço das ações da empresa.

Richard deu de ombros debaixo do terno elegante.

– Se é o que você diz.

Gin olhou para a cabeceira da mesa onde William Baldwine estava sentado em comando total, como se estivesse em um trono suspenso, mantendo-o acima dos seus súditos.

O homem não percebeu o olhar letal e, portanto, não sabia que a bomba tinha sido lançada. Ou talvez, quem sabe, ele tivesse planejado dessa forma, sabendo que Richard seria incapaz de ficar calado, e que ela não poderia provocar um escândalo por causa das testemunhas.

E, maldição, seu pai tinha razão quanto a isso. Por mais que desejasse dar um pulo e começar a berrar, ela não rebaixaria o nome Bradford dessa maneira, certamente não com Sutton Smythe e o pai dela, Reynolds, no mesmo cômodo.

À esquerda, um gemido foi encoberto por uma tossidela fraca.

Gin desviou a atenção do pai para Samuel T., ao que o advogado ergueu uma sobrancelha… e lançou um beijo no ar na sua direção.

– Sim, pode levar o prato dela. – Ela ouviu Richard dizer para o garçom uniformizado. – Ela já terminou.

– O que disse? – Gin se virou para Richard. – Mas você não tem o direito de…

– Aprovo a sua falta de apetite, mas não vamos nos arriscar, certo? – Richard acenou para o garçom. – E ela também não vai comer a sobremesa.

Gin se inclinou para o homem e lhe sorriu. Num sussurro, disse: – Não dê o passo maior que a perna. Eu ainda me lembro da época em que você enchia a sua saqueira com meias. Dois pares, porque um não adiantava muita coisa.

Richard a encarou. Num tom igualmente baixo, respondeu:

– Não faça de conta que tem algum poder de decisão.

– Espere e verá.

– É você quem mal pode esperar para ver. – Ele se recostou e lançou-lhe o olhar satisfeito de um homem que tem um royal flush nas mãos. – Mas não demore muito. O peso dos quilates do seu anel diminui a cada hora.

Eu vou te matar, ela pensou consigo mesma enquanto olhava para o pai. Que Deus me ajude, mas eu vou te matar.

Quando Lizzie fez a curva na estradinha secundária, a faixa de terra para a qual se dirigiu dividia terrenos com plantações de milho e só era larga o bastante para a passagem do seu Yaris. Havia árvores em ambos os lados, não de maneira organizada, mas num padrão casual, arranjado pela natureza, e não pela enxada de um paisagista. Acima, galhos grossos se uniam formando um dossel de verde brilhante na primavera, esmeralda no verão, amarelo e laranja no outono e esquelético no inverno.

Normalmente, aquela procissão de meio quilômetro até sua fazenda era o início do seu relaxamento, uma câmara de descompressão que ela acreditava ser o único motivo pelo qual conseguia dormir depois de um dia de problemas em Easterly.

Não naquela noite.

De fato, ela queria olhar por sobre o ombro só para se certificar de que não havia ninguém com ela no banco de trás do carro. Não que coubesse alguém de mais de doze anos ali, mas, mesmo assim… Sentia-se perseguida. Caçada. Assaltada. Ainda que sua carteira continuasse dentro da bolsa e ela estivesse, de fato, sozinha em seu carro.

A casa da fazenda era uma clássica casa americana, exatamente o que se veria num filme da Lifetime que se passasse num fim de semana de quatro de julho: branca com uma varanda, com vasos de amor-perfeito, uma cadeira de balanço e um banco suspenso em um dos lados. Tanto a indispensável chaminé de tijolos vermelhos quanto o telhado pontudo com telhas cinza eram originais, da época da sua construção em meados de 1833. E o coup de grâce? Um bordo imenso que oferecia abrigo para o calor do verão e para o vento frio do inverno.

Estacionou debaixo da árvore, que era o que de mais próximo a uma garagem que ela tinha, e saiu do carro. Mesmo que Charlemont dificilmente fosse Manhattan, a diferença no nível de barulho era impressionante. Naquelas partes, havia sapos, vagalumes que não tinham nada a dizer, e uma coruja que começara a montar guarda num velho celeiro uns dois anos antes. Nenhum murmúrio da autoestrada. Nenhuma sirene de ambulância. Nenhum acorde de jazz ou blues vindos do parque às margens do rio.

Fechando a porta, o som foi amplificado pela escuridão, e ela se viu aliviada quando caminhou e as luzes ativadas pelo movimento, colocadas em ambos os lados da entrada, foram ativadas. As botas rasparam nos cinco degraus que rangeram, e a porta de tela a acolheu com o resmungo das dobradiças. A fechadura era de latão, relativamente nova. Fora instalada em 1942.

Do lado de dentro, tudo estava escuro, e quando ela confrontou o vazio, desejou ter um cachorro. Um gato. Um peixinho dourado.

Apertando o interruptor, piscou quando seu lar doce lar se iluminou com a suave luz amarela. A decoração não se parecia em nada com a dos Bradford. Na sua casa, se havia algo antigo, era por ser útil e por ter sido feito por algum artesão do Kentucky: uma velha cesta de vime, um par de colchas de retalhos gastos pendurado nas paredes, uma cadeira de balanço, um banco de pinho debaixo da janela, cabeças de enxadas e pás que encontrara nos campos e que ela mesma emoldurara, para depois pendurar na parede. Também tinha uma coleção de instrumentos musicais, inclusive diversos violinos, muitas canecas, algumas tábuas de lavar roupa, e o maior dos seus tesouros: seu piano Price & Teeple de 1907. Feito de carvalho, com dobradiças incríveis de cobre, pedais e outras partes metálicas, ela o encontrara apodrecendo num celeiro, na porção oeste da propriedade, e o restaurara com muito amor.

A mãe chamava sua casa de museu do folclore, e Lizzie concluiu que isso devia ser bem verdade. Para ela, não existia conforto maior do que se ligar a gerações de homens e de mulheres que trabalharam na terra, esculpiram suas vidas e transmitiram seu conhecimento de vida para as gerações seguintes.

Agora? Tudo era 3G, 4G, LTE, e os computadores e smartphones eram cada vez menores e mais rápidos.

Sim, porque esse sim era um legado de honra e de perseverança para deixar aos seus filhos: como se esforçar para ficar na fila por vinte e seis minutos a fim de adquirir um novo iPhone, com um copo do Starbucks numa mão e um blog a respeito de alguma inutilidade na outra para passar o tempo.

De volta à sua cozinha anos 1940 – o estilo não era importado da Ikea ou Williams-Sonoma com suas réplicas, mas sim o original, de quando ela comprara a casa sete anos atrás –, abriu a geladeira e encarou as sobras da torta de frango que fizera na segunda à noite.

Aquilo era tão inspirador quanto a ideia de comer lascas de tinta esquentadas numa frigideira.

Quando seu celular começou a tocar, olhou por sobre o ombro, para a bolsa que largara no corredor.

Deixe para lá, ela se ordenou. Apenas deixe…

Esperou até que o aparelho silenciasse, e esperou mais para ver se haveria outra chamada – caso fosse uma emergência com a mãe, outra ligação se seguiria. Ou pelo menos haveria um toque alertando a chegada de uma mensagem.

Quando nenhum dos dois aconteceu, ela foi até o corredor e apanhou a bolsa. Nenhuma mensagem. Não reconheceu o número, mas conhecia o código de área: 917.

Cidade de Nova York. Celular.

Tinha amigos que ligavam para ela daquela área.

Suas mãos tremiam ao abrir a lista de chamadas recebidas e apertar o último número.

Foi atendida antes que o primeiro toque terminasse.

– Lizzie?

Seus olhos se fecharam quando a voz de Lane entrou em seu ouvido e em todo o seu corpo.

– Alô? – ele disse. – Lizzie?

Havia muitos lugares para sentar em sua sala ou na cozinha – cadeiras, sofás, até mesmo a mesinha de centro era robusta o suficiente. Em vez de usar qualquer um desses móveis, recostou-se contra a parede e deixou o traseiro escorregar até o chão.

– Lizzie? Você está aí?

– Sim. – Apoiou a testa na mão. – Estou aqui. Por que está ligando?

– Eu só queria me certificar de que você chegou bem em casa.

Sem nenhum motivo, lágrimas surgiram em seus olhos. Ele sempre agia assim. No tempo em que estiveram juntos, não importava que horas ela saía, ele lhe telefonava assim que ela passasse pela porta. Como se tivesse um timer no telefone.

– Não estou ouvindo a festa – comentou. – Ao fundo.

– Não estou em casa.

– Onde você está?

– No Antigo Silo. No armazém de barris. – Ela ouviu um barulho, como se ele também estivesse se sentando no chão. – Faz muito tempo que não venho aqui. O cheiro é o mesmo. A aparência também.

– Nunca fui aí.

– Você gostaria daqui. É o seu tipo de lugar, tudo muito simples e funcional e feito à mão.

Ela relanceou para a sala de estar e se concentrou na primeira pá que encontrara nos campos onde plantava milho todos os anos. O objeto era velho e enferrujado e, para ela, belo.

O silêncio que se seguiu fez parecer como se ele estivesse na sala junto dela.

– Estou feliz que não tenha desligado – Lane disse por fim.

– Eu queria poder desligar.

– Eu sei.

Ela pigarreou.

– Pensei em tudo o que me disse, no caminho para casa. Pensei em como você estava enquanto conversava comigo. Pensei… em como as coisas eram.

– E?

– Lane, mesmo que eu conseguisse superar tudo, e não estou dizendo que consigo, o que, exatamente, você quer de mim?

– Qualquer coisa que você me der.

Ela gargalhou num acesso tenso.

– Isso foi bem franco.

– Tenho outra chance com você? Porque vou te dizer isso agora, neste instante, se houver a mínima chance de você me aceitar, eu…

– Pare – ela inspirou fundo. – Apenas… pare.

Quando ele parou, ela ficou puxando e puxando o cabelo, com tanta força que seus olhos ficaram ainda mais marejados. Ou talvez isso estivesse acontecendo por outros motivos.

– Eu queria que você não tivesse voltado – ela se ouviu dizer. – Eu queria… Eu já estava te esquecendo, Lane. Estava recuperando o meu fôlego, a minha vida. Eu estava… e agora você está aqui, dizendo as coisas que quero ouvir, olhando para mim como se estivesse falando sério. Mas eu não quero voltar. Não posso.

– Então vamos em frente.

– A vida não é fácil assim.

– Não é. Mas é melhor do que nada.

Enquanto o silêncio se estendia uma vez mais, ela não sentiu necessidade de falar, de explicar mais coisas, de detalhar tudo. E enquanto as palavras martelavam em sua cabeça, ela desistiu de lutar.

– Não fiquei um dia, uma noite sem pensar em você, Lizzie.

O mesmo valia para ela, mas ela não queria lhe dar esse tipo de munição.

– O que você andou fazendo esse tempo todo lá?

– Nada. E estou falando sério. Fiquei com um amigo, o Jeff… bebi, joguei pôquer. Esperei, querendo ter uma oportunidade de falar com você.

– Por dois anos.

– Eu teria esperado uma dúzia.

Lizzie parou de puxar o cabelo.

– Por favor, não faça isso…

– Eu quero você, Lizzie.

Enquanto assimilava as palavras, seu coração batia tão forte que ela conseguiu sentir o aumento na pressão sanguínea no peito e no rosto.

– Nunca deixei de te querer, Lizzie. De pensar em você. De desejar que você estivesse comigo. Diabos, sinto como se estivesse num relacionamento com um fantasma. Eu te vejo nas ruas de Nova York sem parar, em alguma loira passando por mim numa calçada, talvez no modo como ela penteia os cabelos, ou por causa dos óculos, ou pela cor das calças jeans… Eu te vejo nos meus sonhos todas as noites; você é tão real que consigo te tocar, te sentir, estar com você.

– Você tem que parar.

– Não consigo. Lizzie… eu não consigo.

Fechando os olhos, ela começou a chorar baixinho na solidão da sua casa tão modesta, aquela que ela mesma comprara e que estava quase acabando de pagar, o maior símbolo da razão pela qual não precisava de um homem em sua vida, nem agora, nem nunca.

– Você está chorando? – ele sussurrou.

– Não – respondeu depois de um instante, num soluço. – Não estou.

– Está mentindo?

– Sim, estou.

 

TREZE

Lane olhava para o lado oposto do Antigo Silo construído por um dos seus ancestrais, sabendo que estava dentro do limite legal de álcool para poder dirigir, e que isso não duraria muito. Tinha uma garrafa de no 15 contra o quadril, que surrupiara de uma caixa pronta para ser despachada, e apesar de ainda não ter rompido o lacre, tinha toda intenção de secar a garrafa.

Em toda a sua volta, o Antigo Silo estava deserto, e surpreendeu-se ao perceber que o código de acesso do sistema de alarme ainda era o mesmo de antes.

Sabia que deveria deixar Lizzie em paz.

– Sinto muito – murmurou. – Quero dizer todas as coisas certas, fazer as coisas certas, e sei que não estou cumprindo esses objetivos. Maldição, Lizzie…

Inclinou a cabeça para o lado e segurou o telefone entre o ombro e a orelha. Pegando o bourbon, abriu a garrafa e a levou até a boca.

A ideia de tê-la feito chorar de novo o comia vivo.

– Você está bebendo? – ela perguntou.

– Ou faço isso ou bato a cabeça na parede até sangrar.

Enquanto ela exalava fundo, ele deu mais um gole. E um terceiro.

Quando terminou de engolir e a queimação na garganta cessou, ele fez a pergunta cuja resposta tanto temia: – Você está com alguém?

Ela demorou bastante para responder.

– Não.

Foi sua vez de exalar fundo.

– Não acredito em Deus, mas, neste instante, estou com vontade de me autoproclamar cristão.

– E se eu não te quiser mais? O que vai fazer, então?

– Está me dizendo que isso é verdade?

– Talvez.

Ele fechou os olhos.

– Então, eu vou recuar. Isso vai acabar comigo… mas vou embora.

Mais silêncio. Que ele passou bebendo da garrafa.

– Amigos – ela disse por fim. – Só vou até aí. É só isso que consigo fazer.

– Ok. Respeito isso.

Ele conseguiu ouvir o alívio na voz dela.

– Obrigada.

– Mas – ele a interrompeu – o que, exatamente, isso quer dizer?

– Como é?

– Bem, amizade… Como é isso? Posso te telefonar, certo? Amigos podem comer juntos de vez em quando, só para se manterem a par das novidades, não é? Você sabe, divórcio, planos de mudança, novas direções, esse tipo de coisa.

– Lane.

Ele sorriu.

– Adoro quando você diz meu nome desse jeito.

– Quando estou irritada?

– É sexy.

Lizzie pigarreou.

– Essa palavra não cabe numa amizade, ok?

– Eu apenas constatei um fato.

– Uma opinião.

– Fato.

– Lane, estou te avisando, você precisa…

Enquanto ela prosseguia, falando à sua maneira tipicamente franca e sem rodeios, ele fechou os olhos e prestou atenção às ordens dela, deixando que seu tom de voz o envolvesse. Bem no íntimo, aquele desejo velho e tão conhecido despertou, como um dragão adormecido… e o ímpeto foi tão forte que ele quis entrar no carro e atravessar as pontes até Indiana.

– Ainda está aí? – ela perguntou, brava.

– Ah, estou. – Arrumando a ereção dentro das calças, refreou um gemido. – Estou, sim.

– O que está fazendo?

Ele afastou a mão para longe, bem longe do marco zero.

– Nada.

– E então? – disse ela. – Está ou não?

– Estou o quê?

– Dormindo enquanto fala comigo.

– Muito pelo contrário – ele murmurou.

Houve uma leve pausa e depois:

– Ah…!

Como se ela o tivesse compreendido.

– Melhor eu desligar – ele disse, rouco. – Cuide-se. Nos falamos amanhã.

Só que ela não parecia querer que ele desligasse… e seu pau ficou todo lépido e faceiro.

– Quer dizer que você vai ficar? – ela perguntou.

Podemos falar sobre outro assunto?, sua ereção pensou.

Sossegue, garoto.

– Sim, vou. – Quando ele mudou de posição no chão duro, tentou ignorar o modo como o zíper resvalou. – Tenho que me encontrar com Samuel T. para falar do divórcio.

– Então, você vai mesmo…

– Vou – ele disse. – Imediatamente. E não, não é só por sua causa. Cometi um erro, e vou consertar isso para o bem de todo mundo.

– Tudo bem. – Ela pigarreou. – Ok.

– Só estou seguindo em frente, Lizzie.

– Se é o que você diz. Bem, tchau…

– Não – ele a interrompeu. – Assim não. Nós dizemos boa noite, está bem? E não tchau, a menos que você queira que eu apareça na soleira da sua porta como um cachorro sem dono.

– Está bem.

Antes que ela desligasse, ele formou um “eu te amo” com os lábios.

– Boa noite, Lizzie.

– Boa noite… Lane.

Encerrando a ligação, Lane deixou o braço cair, e o aparelho bateu no piso de concreto com um baque.

– Eu te amo, Lizzie – disse em voz alta.

Tomando mais um gole da garrafa, pensou em como era conveniente que a fortuna da família se baseasse em algo com o qual ele poderia se embebedar. Se fosse uma enormidade de outros produtos de consumo – canetas, baterias de carro, band-aids, chicletes –, nada poderia ajudá-lo na sua atual situação.

Quando o telefone voltou a tocar, ele o atendeu de pronto. Mas não era Lizzie.

– Jeff – ele disse, mesmo não querendo conversar com mais ninguém.

A voz do seu anfitrião nova-iorquino soou seca.

– Você ainda está vivo.

– Basicamente. – Levou a garrafa de volta à boca. – E você, como é que você está?

– Está bebendo?

– Isso mesmo. No 15. Eu dividiria com você, se estivesse aqui.

– Um cavalheiro sulista, sem dúvida. – Seu amigo praguejou. – Lane, onde você está?

– Em casa.

Houve tempo suficiente para grilos cantarem na conexão.

– Você está se referindo a…

– Isso mesmo.

– Charlemont?

– Nascido e criado eu fui, e ao lar regressei. – Puxa. Devia estar ficando bêbado, estava parecendo um sulista de verdade. – Assim como você e o Upper East Side, só que nós temos miúdos de porco e frango frito.

– Que diabos você está fazendo aí?

– A minha… – Pigarreou. – Uma pessoa muito importante para mim adoeceu. Tive que voltar.

– Quem?

– A mulher que me criou. A minha… bem, a minha mãe. Mesmo ela não sendo a minha mãe biológica. Ela ficou doente alguns anos atrás, mas sabe como são essas coisas. Elas podem voltar. Ela diz que vai ficar bem, então estou me apegando a isso.

– Quando vai voltar?

Lane tomou mais um gole.

– Já te contei que me casei?

– O quê?

– Foi um pouco antes de eu ir para o norte e acabar no seu sofá. Vou ficar aqui até a senhorita Aurora ficar bem e, assim, vou poder cuidar dessa outra coisa idiota. Além disso… é que… tem essa outra mulher.

– Espera um minuto. Cacete. Espera aí…

Houve uma espécie de farfalhar, seguindo de um clic, clic, clic como se alguém estivesse tentando acender um isqueiro… e depois uma baforada.

– Vou precisar de um cubano para ouvir isso. Então, você tem uma esposa?

– Eu te disse que não era gay.

– Foi por isso que você não ficou com ninguém aqui?

– Não, foi por causa da outra mulher. Aquela com quem não me casei. Aquela que é naturalmente bonita e boa demais para mim.

– Vou precisar de um diagrama de Venn – o cara murmurou. – Cacete, por que não me contou nada disso?

Lane balançou a cabeça, mesmo que o amigo não pudesse vê-lo.

– Eu estava no modo de fuga. – Caramba, odiou o fato de Chantal estar certa. – Tudo estava barulhento demais dentro da minha cabeça. A coisa toda. Então, como é que você está?

– Você joga isso tudo em cima de mim e termina querendo saber como é que eu estou?

– Tenho que voltar a beber. Conversar está me retardando, mas estou disposto a ouvir. – Tomou um gole grande. – E aí? Alguma novidade?

– Estou bem, você sabe, as coisas de sempre no trabalho. Dez mil amplificadores ligados, um chefe que não sai do meu rabo e dezesseis comprimidos de Motrin por dia para impedir que a minha cabeça exploda. O mesmo de sempre. Pelo menos ainda tem dinheiro… ainda mais agora que você não está me arrancando um quarto de milhão de dólares todas as semanas no feltro verde.

Conversaram um pouco mais sobre nada em especial. Jogos de pôquer, Wall Street, a mulher com quem Jeff andava transando… E mesmo que Lane não fosse muito de ficar conversando ao telefone, percebeu que estava com saudades do cara. Acostumara-se à troca rápida, às sacadas inteligentes e, em especial, àquele sotaque de Jersey nos fim das frases e no uso de algumas outras palavras.

– Então, acho que é adeus por ora – seu antigo colega de classe disse.

Lane franziu o cenho e visualizou Lizzie. Ouviu a voz dela. Lembrou-se da cautela dela.

Depois rearranjou sua ereção persistente.

Ficou se perguntando se existia a mínima possibilidade de voltar para Nova York.

Pensando bem, seria melhor não se adiantar. No que se referia a reconquistar Lizzie, dependia de duas pessoas. Só porque estava pronto para retomar o relacionamento deles não significava que ela se apressaria. E também havia a sua família. Como se ele conseguisse se imaginar voltando a viver em Easterly… Mesmo que a senhorita Aurora ficasse bem de saúde e que ele e Lizzie se acertassem, a ideia de coexistir com o pai bastava para ele contemplar a fronteira canadense com carinho. E nem isso seria longe o suficiente.

– Não sei se vou ficar de vez.

– Você sempre pode voltar. O meu sofá já está com saudades de você… e ninguém joga Texas Hold’em como você.

Os dois desligaram depois de se despedirem, e enquanto Lane mais uma vez largava o braço e deixava o aparelho cair, concentrou-se na antiga destilaria do lado oposto. O lugar fora usado por décadas na virada do século, e agora era visitado por dezenas de milhares de turistas que vinham conhecer o Antigo Silo durante todo o ano.

Por algum motivo, percebeu que nunca tivera um emprego. A extensão dos seus “empenhos profissionais” era evitar os paparazzi, o que era mais uma questão de sobrevivência do que algo relacionado a uma carreira. Graças ao seu fundo fiduciário, não sabia o que eram chefes ou colegas de cubículo chatos, nem trajetos ruins para o trabalho e de volta para casa. Não se preocupava em estar em algum lugar num determinado horário, ou em concluir relatórios, nem tinha dores de cabeça devido às tantas horas passadas diante da tela do computador.

Engraçado, nunca antes considerara o fato de ter tanto em comum com Chantal. A única diferença entre eles era que o dinheiro da família dela não bastava para sustentar o estilo de vida a que se acostumara, motivo pelo qual tivera que se casar com ele.

E lá estava Lizzie, trabalhando duro, pagando aquela fazenda. Conhecendo-a como a conhecia, ela já devia estar chegando ao seu objetivo.

O que o fazia respeitá-la ainda mais.

E também o fazia se questionar exatamente o que tinha para oferecer a uma mulher de substância. Dois anos atrás, estivera todo excitado e metido no drama familiar, ávido por ela fisicamente, e tão cativado por ela mentalmente que nunca olhara para si mesmo segundo o ponto de vista dela. Todo o seu dinheiro e a sua posição social só tinham valor para pessoas como Chantal. Lizzie queria mais, merecia mais.

Ela queria a realidade.

Talvez, no fim das contas, ele não estivesse tão acima daquela sua esposa.

Ex-esposa, corrigiu-se, enquanto continuava a beber.

 

CATORZE

– A que devo a honra?

O pai de Gin falava, e seu tom era de afirmação, não de pergunta, e sugeria que o fato de ela estar parada na porta do quarto dele era uma invasão.

Que pena, ela pensou com ironia.

– Quero saber que diabos aprontou com Richard Pford.

O pai não demonstrou nenhuma reação, parado diante da cômoda, prosseguindo com o ato de retirar as abotoaduras de ouro. O paletó do smoking preto tinha sido dobrado uma vez e estava ao pé de uma chaise longue, e os suspensórios preto e vermelho haviam sido retirados dos ombros e estavam pendurados na cintura como duas fitas.

– Pai – ela rugiu. – O que você fez?

Ele a deixou esperando até tirar a gravata borboleta, puxando-a do colarinho.

– Está na hora de você se assentar…

– Você dificilmente está em posição de defender o matrimônio.

– … e Richard é um marido perfeito.

– Não para mim.

– Isso ainda veremos. – Virou-se na direção dela, os olhos frios, o belo rosto impassível. – E não se engane, você se casará com ele.

– Como ousa! Não estamos na virada do século. As mulheres não são bens, podemos ter propriedades, as nossas próprias contas bancárias, podemos até votar! E, com certeza, podemos decidir se queremos ou não atravessar a nave de uma igreja… E eu não vou, de modo algum, sair com aquele homem, quanto menos me casar com ele! Ainda mais se isso beneficiar você de algum modo.

– Sim, você vai. – Por uma fração de segundo, o olhar dele se desviou para cima do ombro dela e ele meneou a cabeça como se estivesse dispensando alguém no corredor. – E fará isso o mais rápido possível.

Gin se virou, esperando ver alguém atrás de si na soleira da porta. Não havia ninguém ali.

Voltou a se concentrar nele.

– Você vai ter que apontar uma arma na minha cabeça.

– Não será preciso. Você fará isso por sua própria escolha.

– Não.

– Sim, você vai.

No silêncio que se seguiu, o coração dela deixou de bater algumas vezes. Durante toda a vida, aprendera a odiar e a temer o pai. E naquele silêncio tenso, de ar estagnado entre eles, ela se perguntou, e não pela primeira vez, do que ele seria verdadeiramente capaz.

– Você pode escolher brigar – disse ele com suavidade. – Ou pode ser eficaz em relação ao assunto. Você só vai acabar se ferindo se não fizer isso pela família. Agora, se me permite, vou me recolher…

– Você não pode me tratar dessa maneira. – Ela forçou um pouco a voz. – Não sou um executivo da empresa que você pode empregar e demitir. E não pode me dar ordens, não quando se trata de arruinar a minha vida.

– A sua vida já está arruinada. Você teve uma filha aos dezessete anos, aqui, nesta mesma casa, pelo amor de Deus, e deu seguimento a isso com o comportamento promíscuo tipicamente reservado para as strippers de Las Vegas. Quase não se formou na Sweet Briar por causa do affair com o professor de inglês, que era casado e, assim que voltou a morar aqui, deitou-se com o chofer. Você é a desgraça da família. E pior, tenho a distinta impressão de que parte da sua diversão nessas suas aventuras é a vergonha que provoca em sua mãe e em mim.

– Talvez se eu tivesse um bom exemplo masculino para admirar, eu não considerasse os homens tão universalmente desagradáveis.

– Antes você os considerasse mesmo desagradáveis. No entanto, esse parece não ser o seu problema. Por algum motivo, Richard não se intimidou com a sua reputação, um erro de julgamento que, por certo, ele vai acabar lamentando. Ainda bem que não é problema meu.

– Eu te odeio – ela sibilou.

– O mais triste, minha querida, é que lhe falta suficiente profundidade para tal nível de inimizade. Se fosse minimamente inteligente, perceberia que Richard Pford será capaz de mantê-la no estilo de vida que você necessita, tanto quanto precisa do ar para respirar, pelo resto dos seus dias. E você estará garantindo a continuação do sucesso e da saúde financeira da família que lhe deu essa bela ossatura e essa adorável coloração facial. Essa será, depois de tudo, a sua única contribuição ao nome “Bradford”.

Gin mal percebia que estava respirando superficialmente.

– Algum dia, você vai pagar pelos seus pecados.

– Está se tornando religiosa agora? Acredito que qualquer tipo de conversão para você será difícil, até por alguém como Jesus.

– Como pode ser tão odioso? Nunca conheci ninguém tão cruel quanto você…

– Só estou cuidando de você do único modo que sei. Estou lhe dando uma fortuna, um nome honrado, e você poderá levar Amelia com você, se desejar. Ou ela pode ficar aqui.

– Como se ela não passasse de uma maleta? – Balançou a cabeça. – Você é um depravado. Absolutamente depravado…

Ele avançou e a agarrou pelo braço, permitindo que alguma emoção escapasse por baixo da máscara aristocrática de autossegurança.

– Você não faz a mínima ideia do que é necessário para manter esta família. Nenhuma ideia. A sua tarefa diária mais complexa é priorizar o que fazer antes: unhas ou cabelos. Portanto, não ouse falar de depravação quando estou resolvendo o problema de todos os sanguessugas debaixo deste teto. Os termos favoráveis de Richard Pford continuarão a nos permitir isso. – Balançou a saia do vestido de gala dela. – E isso… – Apontou para o colar no seu pescoço. – E todas as outras coisas das quais você tira vantagem diariamente sem parar para ponderar, nem que seja por um instante, como chegaram até você e a que custo. Casar-se com aquele homem é a única coisa que já lhe pediram em troca pela sua boa estrela ao nascer e pela sua liberdade de cobiça. Você é uma Bradford dos pés à cabeça, capaz apenas de consumir, mas, às vezes, um pagamento deve ser feito. Portanto, sim – ele enfatizou –, posso lhe garantir que você será a deveras feliz e contente senhora Richard Pford. Você lhe dará filhos e será fiel a ele, ou, que Deus me ajude, eu a surrarei como a garotinha de cinco anos que você ainda é. Estamos entendidos? Ou quem sabe você vai preferir fazer um curso intensivo para tentar ser como as pessoas que lavam os seus carros, preparam a sua comida, limpam o seu quarto e passam as suas roupas? Talvez você goste de saber como é difícil trabalhar para se sustentar.

– Eu te desprezo – ela disse, trêmula dos pés à cabeça.

O pai também arfava, e tossiu no punho cerrado.

– Como se me importasse. Vá em frente, faça o seu escândalo, esperneie e grite, só provará o quanto estou certo. Se for uma mulher de fato, em vez de apenas uma criança mimada e malcriada, acordará pela manhã e cumprirá o seu dever pela primeira vez em sua vida.

– Eu seria capaz de te matar neste mesmo instante!

– Mas, para isso, você teria que carregar uma arma, não é? Não é algo que possa pedir a uma criada, desde que, claro, não queira ser descoberta.

– Não me subestime…

– Visto o baixo padrão que estabeleceu para si mesma, isso seria algo muito difícil de fazer.

Girando sobre os calcanhares, ela saiu do quarto aos tropeções, e correu pelo corredor até a sua suíte. Lançando-se pela porta, trancou-se e ofegou.

Ah, inferno, não, não, jurou. Você não vai fazer isso comigo.

Se ele achava que antes ela era um problema, ele que esperasse pelo que ela aprontaria em seguida.

Enquanto marchava do quarto para o banheiro, planos reviravam em sua cabeça, muitos dos quais envolviam crimes contra o pai. No fim, teve que tirar o vestido, e o deixou cair no chão, livrando-se da seda antes de continuar andando de um lado para o outro apenas de bustiê e saltos e aqueles diamantes que a vadia da esposa do irmão tentara pôr as mãos.

Fervendo, só conseguia pensar na primeira vez em que odiara o pai…

Tinha seis, talvez sete anos, quando aconteceu. Noite de Ano-Novo. Acordara por causa dos fogos, que explodiam ao longe sobre o centro da cidade. Assustada, fora à procura de Lane, aquele com quem sempre se sentia amparada… encontrando-o na sala de estar com Max.

Gin insistira em ficar com os irmãos e fazer o que quer que estivessem fazendo. Na época, era a história da sua vida, sempre correndo para acompanhá-los, conseguir alguma atenção, estar no radar de alguma pessoa. Os empregados da casa faziam o que os pais queriam e cuidavam dos irmãos. Ela era uma nota de rodapé, uma reflexão tardia, o tapete no qual tropeçavam a caminho da porta quando iam fazer algo melhor, mais interessante, mais importante.

Não quisera beber aquela coisa da garrafa. O cheiro do bourbon era ruim, e ela sabia que era proibido, mas se Max e Lane iam tomar um pouco, então ela também tomaria.

E assim foram apanhados.

Não uma vez, mas duas.

Assim que entrara na sala, Edward ordenara que ela voltasse para a cama, e ela saíra pelos fundos como ele lhe dissera. Depois de passar pelo corredor dos empregados, porém, ouvira vozes e tivera que se esconder nas sombras a fim de não ser flagrada… quando o pai saíra do escritório de Rosalinda Freeland.

Ele estava usando seu roupão, amarrando as duas pontas do cinto ao sair de lá, e seus olhos estavam arregalados, como se estivesse com raiva, mas não havia como ele ter ouvido suas vozes lá na sala de estar. O primeiro instinto de Gin fora o de correr para a frente da casa e alertar os irmãos. No entanto, o medo a detivera… E, em seguida, a senhora Freeland saíra também, agarrando o pai pelo braço.

Sua mente infantil se perguntara por que a blusa da moça do escritório estava desabotoada, e os cabelos, sempre bem penteados e presos, estavam meio desarrumados.

Os dois discutiram em tons sussurrados, dizendo coisas que ela não conseguiu entreouvir acima das batidas do seu coração. Em seguida, o pai saiu de lá e a senhora Freeland voltou para o escritório, fechando a porta.

Gin permanecera ali pelo que lhe pareceu um ano, temendo sair, caso a senhora Freeland voltasse. Só que ela também temia que o pai voltasse por aquele caminho e a encontrasse.

Ele não devia estar ali com aquela mulher.

Ele não ficaria feliz por ela tê-lo visto.

Descalça, apressou-se pelas escadas dos empregados, colando na parede de gesso conforme subia. Já no segundo andar, paralisou quando uma segunda rodada de fogos se iniciou e, assim que terminaram de explodir, ela se abrigou na porta aberta de um dos quartos de hóspedes, desejando ter algum lugar seguro para ir.

Voltar sozinha para o quarto parecia-lhe aterrorizante. E se, além disso, o pai estivesse procurando por ela?

Sentando-se encolhida, enfiou as pernas junto do corpo e abraçou os joelhos. O pai devia ter encontrado os irmãos. Não havia como o homem não os ter visto, se tivesse usado as escadas da frente.

E isso a assustava mais do que o barulho do lado de fora.

Momentos depois, Edward surgiu no alto da escadaria, com o pai logo atrás, pairando como um monstro. Por algum motivo, o andar do irmão estava trôpego e a pele do rosto estava pálida. O pai lhe pareceu tão inflexível e reprovador quanto um banco de igreja.

Onde estariam os outros dois?

Nada foi dito enquanto eles prosseguiam até a porta do quarto do pai. E quando chegaram ao destino, Edward ficou de lado e depois tropeçou para dentro do cômodo escuro assim que a porta lhe foi aberta.

– Sabe onde estão os cintos.

Foi tudo o que o pai disse.

Não, não, ela pensou. Aquilo não era justo, Edward não estava envolvido! Por que ele…

A porta se fechou num baque, e ela estremeceu ante o que estava para acontecer.

Como esperado, um estalido foi seguido por um grunhido.

De novo.

E mais uma vez.

Edward nunca chorava. Nunca praguejava.

Já ouvira aquilo vezes demais para saber disso.

Gin abaixou a cabeça sobre os braços finos e cerrou os olhos. Não sabia por que o pai odiava tanto Edward. O homem desgostava do resto deles, mas Edward o deixava furioso.

Edward nunca chorava.

Por isso, chorou por ele… E resolveu, dali por diante, que se o pai podia odiar Edward, dois poderiam jogar aquele jogo.

E ela escolheu o que segurava o cinto naquele minuto.

Odiaria o pai dali por diante.

Voltando a se concentrar, Gin descobriu-se sentada na cama, com os joelhos ao encontro do peito, os braços ao seu redor, como se estivesse, uma vez mais, sentada dentro daquele quarto de hóspedes com apenas a camisola para aquecê-la, e o que acontecia no quarto do pai a aterrorizava em seu íntimo.

Sim, fora assim que tudo começara para ela, e William Baldwine nunca lhe dera motivos para reconsiderar o seu ódio. Aquele acordo com Richard Pford era apenas mais um item numa longa lista.

Mas não era o pior.

Não, a pior coisa que o homem fizera foi algo que ela apenas suspeitava, algo que ninguém mencionara, quer sob o teto de Easterly, quer nos jornais.

Estava convencida de que o pai era o sequestrador de Edward.

O irmão ia com frequência à América do Sul, e assim como outros executivos de sua posição, sempre viajava acompanhado de seguranças contratados pela CBB. Com esse tipo de proteção, ninguém deveria ter sido capaz de se aproximar. No entanto, seu irmão fora levado… Não numa estrada, nem mesmo numa localização remota.

Mas da sua suíte no hotel.

Como foi que aquilo pôde acontecer?

A primeira coisa que ela pensou, quando lhe contaram, foi que ali havia dedo do seu pai.

Tinha provas? Não, não tinha. Mas passara a infância inteira vendo o homem observando Edward como se menosprezasse o ar que o garoto respirava. E mais tarde, quando Edward passara a trabalhar na empresa, teve a impressão de que o relacionamento daqueles dois esfriara ainda mais, visto que o Comitê dos Curadores passara a dar mais e mais responsabilidades a Edward.

Haveria um modo melhor de se livrar de um rival do que matá-lo no exterior? De uma maneira que faria William Baldwine parecer vítima por ser um pai “em luto”?

Deus, Edward quase fora enterrado lá. E quando finalmente regressara? Estava em péssimas condições. Nesse meio-tempo, o pai se colocara diante da mídia, dos curadores, da família, mas nunca, sequer uma vez, fora visitar o filho.

Vergonhoso. E na cabeça dela era uma confirmação de que William Baldwine tentara se livrar de uma ameaça corporativa que não podia demitir.

Não era de se admirar que ela não confiasse nos homens.

Não era de se admirar que nunca fosse se casar.

Quanto menos para fazer o pai feliz.

 

QUINZE

Quando chegou a Easterly na manhã seguinte, Lizzie precisou manobrar o Yaris duas vezes para conseguir estacioná-lo direito, o que revelava o quão lamentável era seu estado mental, considerando-se que o carro era do tamanho de uma bicicleta. Saindo dele, pegou desajeitada a bolsa e a deixou cair. E quando se abaixou para pegar o protetor solar no asfalto já quente, percebeu que tinha esquecido de trazer o almoço.

Fechou os olhos.

– Maldição…

– Tudo bem, menina?

Lizzie se endireitou e se virou na direção de Gary McAdams. O chefe da manutenção da propriedade vinha andando pelo gramado, o leve claudicar não o fazia diminuir o ritmo, com o rosto envelhecido pelo tempo crispado em sinal de preocupação, como se estivesse avaliando um trator com eixo solto.

Será que sua aparência estava tão ruim assim?, perguntou-se.

Pensando bem, não dormira praticamente nada.

– Ah, sim, estou bem. – Ela forçou um sorriso. – Ótima.

– Tem certeza disso?

Não.

– Sim. Como vai a sua equipe?

– Já terminaram de cortar a grama e de aparar as trepadeiras, e vou fazer com que limpem o terraço depois das dez. – Porque só então eles tinham permissão para fazer barulho perto da casa. – As tendas foram erguidas, a parte do buffet já está pronta com as grelhas no lugar, mas tem um probleminha.

Lizzie acomodou a bolsa no ombro e pensou que já estava pronta para lidar com qualquer problema que pudesse solucionar.

– O que foi?

– Aquele senhor Harris está querendo falar com você. Tem algo com as taças de champanhe.

– Com a disposição delas nas mesas? – Fechou a porta do carro. – Pensei que elas seriam distribuídas durante a festa.

– Não, só chegou metade do pedido. Ele acha que você mudou a quantidade.

– O q… Por que eu faria isso?

– Ele disse que você é a única pessoa com acesso ao pessoal do aluguel.

– Encomendei as tendas, só isso. É ele quem tem que cuidar da louça, dos talheres e dos copos… Desculpe, estou gritando? Sinto como se estivesse gritando.

Ele apoiou sua grande mão sobre o ombro dela.

– Não se preocupe com isso, menina. O senhor Harry também me deixa doido.

– É senhor Harris.

– Eu sei.

Ela teve que gargalhar.

– Vou lá falar com ele.

– Quando ficar cansada dele, eu tenho uma pá e um ancinho. E muita área verde livre lá na minha casa.

– Você é um cavalheiro.

– Nem perto disso. Me dá a sua bolsa, menina. Vou com você.

– Ela não pesa nada. Pode deixar comigo. – Começou a andar pelo caminho que levava até a ala dos empregados. – Além disso, posso precisar dela para bater na cabeça dele.

– Lembre-se do meu ancinho – ele disse.

– Sempre.

A cada passo sobre as pedras, seu peito se contraía, e a sensação de sufocamento piorava conforme a vastidão da mansão branca surgia ao longe.

Depois de passar a madrugada olhando para o teto, não chegou a conclusão nenhuma sobre ela e Lane. O que ela guardara para si? O som da voz dele no fim do telefonema. Lembrou-se daquele tom sexy que costumava significar que ele encontraria um modo de ficar sozinho com ela, despida, o mais rápido possível.

Pareceu-lhe uma traição total que seu corpo não fosse nada além de um simples “ah, sim, pode vir” – como se sua libido desejasse o retorno do seu mestre. Afinal, ela era muito mais do que apenas um ou dois orgasmos roubados com um homem que ela deveria estar manuseando com pinças de churrasco e um extintor de incêndio.

Loucura.

Quando, por fim, chegou à casa, passou pela entrada lateral do jardim e atravessou a porta dos fundos da cozinha só para se certificar de que tudo o que preparara para a festa ainda estava onde havia deixado na noite anterior.

O que era tolice. Como se um punhado de elfos tivesse entrado ali e bagunçado tudo à luz do luar.

Entrou pela porta de empregados e cruzou a imensa cozinha que, naquele momento, estaria limpa, fria e vazia, apenas à espera dos chefs que estavam escalados para trabalhar das oito às oito. Só que o cômodo não estava completamente deserto. A senhorita Aurora estava diante do fogão industrial, com uma panela de ferro cheia de bacon estalando à esquerda, uma segunda à direita tomada de ovos mexidos. Quatro pratos estavam dispostos na bancada de aço inoxidável da ilha principal, junto de tigelas com framboesas e mirtilos frescos, um açucareiro, um pote com creme de leite e café sobre uma bandeja, sem falar de uma seleção de pãezinhos doces caseiros.

– Senhorita Aurora?

A mulher olhou por sobre o ombro.

– Ah, aí está ela. Como está? Já comeu?

– Sim, senhora.

– Não o bastante. Você e Lane, magrinhos demais. – A cozinheira se voltou para os ovos e os virou com uma espátula vermelha. – Você deveria deixar que eu te alimentasse.

– Não quero causar problemas. – Houve um grunhido de desaprovação, e antes que a discussão de sempre começasse, Lizzie a interrompeu. – A senhora me parece bem.

– Eu disse praquele mordomo que não precisava de nenhuma ambulância.

– Pelo visto, a senhora tinha razão. – E Lane devia estar muito aliviado. – Viu o senhor Harris?

– No escritório dele. Quer que eu vá com você?

– Então ficou sabendo do “champanhegate”?

– Fui eu que mandei Gary te avisar. Eu sabia que ele ia te ver quando você chegasse. Não quis que você viesse pra cá sem ter sido avisada antes.

– Não mudei o pedido.

– Claro que não. – A senhorita Aurora levantou uma frigideira de uns sete quilos como se não pesasse mais que um prato de papel. Enquanto distribuía os ovos, balançava a cabeça. – Existe uma explicação perfeitamente boa.

– Qual?

– Não é da minha conta.

– Tuuudo bem. – Lizzie deu um tempo para que a cozinheira se explicasse, mas ela não o fez. – Bem, de toda forma, vou cuidar disso. Estou muito feliz que esteja bem e de pé, senhorita Aurora.

– Você é uma boa menina, Lizzie. Mas seria ainda melhor se me deixasse te oferecer o café da manhã.

– Talvez na próxima vida.

– Só se tem direito a uma. Depois, a gente vai pro céu.

– É o que o meu pai sempre me dizia.

– O meu também.

Andando sobre o piso de azulejos, Lizzie empurrou as portas duplas e seguiu pelo corredor dos empregados. O escritório do senhor Harris ficava bem diante do de Rosalinda, e ela bateu à porta do mordomo. E mais uma vez. Na terceira, achou que estava esfolando os nós dos dedos à toa.

Fungando no ar, fez uma careta e considerou que o corredor precisava ser arejado urgentemente. Mas, pensando bem, os Bradford se recusavam a instalar ar-condicionado ou aquecimento naquela parte da casa. Afinal, os empregados que se virassem.

Seguindo até a porta envernizada de Rosalinda, também bateu ali, mesmo que a organizadora da família fosse rígida em seu horário de trabalho das nove às cinco, com trinta minutos de almoço precisamente ao meio-dia e dois intervalos de quinze minutos às 10h30 e às 15 horas. A agenda controlada lhe parecera bizarra a princípio, mas, alguns anos mais tarde, já era somente mais uma das muitas regras e regulamentos de Easterly. E fazia sentido, uma mulher que não fazia nada além de pagar contas e somar e subtrair números provavelmente tinha uma régua de cálculo nas veias e sérios problemas de controle.

Daí, então, seu título.

Pousando as mãos nos quadris, Lizzie sabia que o mordomo muito provavelmente estaria servindo a família na sala de jantar íntima. Inclusive Lane.

Consultou as horas no relógio de pulso. Não ficaria esperando pelo senhor Harris e, de jeito nenhum teria aquele confronto diante dos outros. Além disso, ela tinha trabalho a fazer: não terminara os arranjos florais na noite anterior.

Seguindo para a estufa pelo caminho dos fundos, deixou de lado sua confusão mental e se concentrou no que tinha para fazer. Depois que terminasse os arranjos, disporia as toalhas de mesa, já que não havia probabilidade de chuva e de vento forte antes do Brunch da manhã seguinte. E estava encarregada de colocar todos os pratos e copos onde precisavam ficar: junto aos bares e estações de serviço espalhados pelos jardins. Greta deveria chegar em…

– Bom dia.

Lizzie parou com a mão na maçaneta da estufa.

Relanceando por cima do ombro, deparou-se com os olhos de Lane. Ele estava sentado numa espreguiçadeira lateral, com as pernas dobradas na altura dos joelhos, os cotovelos nos apoios de braço, os dedos longos cruzados diante do peito. Usava as mesmas roupas da noite anterior e o cabelo estava uma bagunça completa, como se ele não tivesse dormido em sua cama.

– Esperando por mim? – ouviu-se dizer enquanto seu coração batia forte.

Em seu quarto, Gin amarrotava uma blusa Prada e a enfiava num dos cantos da sua mala Louis Vuitton de rodinha.

– Lenço de papel… era para você colocar lenço de papel aí. Onde ele está…

Começando a procurar, encontrou as folhas cor-de-rosa clarinhas com suas iniciais estampadas numa gaveta ampla dentro de seu guarda-roupa. De volta para onde estava arrumando a mala, lambeu o dedo e tirou uma das folhas, sendo atingida pela fragrância suave de Coco, porque a empregada borrifava cada um dos lenços individualmente assim que eram entregues na casa. Colocando o papel delicado ao redor do bolinho de seda, cobriu tudo com uma saia McQueen.

Repetindo o processo até ter quatro conjuntos completos ali, inclinou-se para trás para dar uma olhada no trabalho. Horrível. Nada parecido com o que Blanche fazia para ela, mas não pretendia esperar até que a mulher chegasse para o seu turno ao meio-dia.

Gin estava fechando a mala quando percebeu que não tinha separado roupas íntimas, sapatos e tampouco os artigos de higiene.

Pegou outra mala LV e dispensou o lenço de papel.

De toda forma, o que importava? Acabaria simplesmente comprando tudo que precisasse.

Quando terminou, levantou o telefone ao lado da cama e ligou para o escritório de Rosalinda, sem acreditar quando a secretária eletrônica pediu que deixasse um recado.

– Onde diabos essa mulher foi…

Uma olhada rápida para o relógio Cartier sobre a mesa e ela descobriu que ainda eram 8h30. Deus, há quanto tempo não se levantava cedo assim?

Arranjos para o uso dos jatinhos também podiam ser feitos por meio da assistente executiva do pai, e aquele robô estava sempre junto à sua escrivaninha. Mas Gin só queria que ele soubesse que ela estava partindo quando estivesse na metade do caminho até a Califórnia e, sem dúvida, seu buldogue de saia atacaria o telefone para avisá-lo assim que ela a acionasse.

Deus, aquela expressão no rosto dele na noite anterior fez seu sangue gelar. Nunca o vira tão furioso.

Mas, em retrospecto, ela era mesmo filha do seu pai: assim como no jogo do ódio, dois podiam jogar aquele novo jogo.

Dez minutos mais tarde, Gin puxou as alças da bagagem e as rolou até o corredor, tropeçando sobre as malditas malas. Com a bolsa de monograma combinando com a bagagem batendo na lateral do corpo, empinou um dos saltos Louboutin para fechar a porta, e praguejou contra a falta de um carregador.

Mas também não confiava no mordomo.

A bem da verdade, não confiava em ninguém naquela casa.

Antes de tomar o elevador até o porão, foi até o quarto de Amelia e abriu a porta.

Pela primeira vez, percebeu a decoração.

A cama de dossel branca e rosa era queen size, apesar de a filha pesar pouco mais que um travesseiro, e não havia nenhum pôster da Taylor Swift ou do One Direction nas paredes. A penteadeira era francesa e antiga, o banheiro acoplado era de mármore e latão, e tinha mais de sessenta anos, e o candelabro Baccarat no meio do quarto era suspenso por uma corrente coberta por seda, e debaixo dele havia um medalhão de ouro feito à mão.

Parecia mais o quarto de uma senhora de cinquenta anos do que de alguém de quinze.

Dezesseis, a partir da noite anterior, Gin se lembrou.

Andando na ponta dos pés sobre o tapete bordado à mão, ela apanhou seu retrato predileto da menininha de cabelos negros, que agora já não eram mais tão escuros já que ela estava fazendo luzes a cada seis semanas, e tampouco era tão pequenina, pois já estava no segundo ano em Hotchkiss.

Só de pensar na filha, a ideia de sair de Easterly lhe parecia cada vez mais acertada. Ela tinha duas amigas esperando por ela em Montecito, e ficaria lá até que o pai entendesse que podia muito bem administrar uma empresa bilionária, mas que não mandava nela. E depois disso? Voltaria para lá com certa regularidade, só para ele ver que cometera um erro.

De novo no corredor, refreou os xingamentos ao se arrastar até o elevador e entrar. Quebrou uma unha ao apertar repetidamente o botão para fechar a porta, e quase quebrou um dos saltos quando pisou no chão da adega, puxando as malas para fora.

Não fazia a mínima ideia de onde ir. Onde ficava a garagem. Como se orientar no andar subterrâneo.

Levou quase vinte minutos para encontrar o túnel que levava até a frota da família, e quando emergiu na garagem para dez carros, sentia-se como se tivesse não só acabado de correr uma maratona, mas vencido.

Só que estava sem as chaves dos carros. Nada no Bentley. Nem do Drophead. E não pegaria nem o Porsche GTS, nem a Ferrari, tampouco o Jaguar antigo que se parecia com o de Samuel T., porque todos eles tinham câmbio manual e ela não sabia dirigir modelos assim. O mesmo acontecia com os 911 e o Spyker.

E os sedãs Mercedes não eram bons o bastante para ela.

– Maldição! – Quando bateu o pé no chão, uma das malas de rodinha caiu como se tivesse desmaiado. – Onde estão as chaves?

Abandonando a bagagem, marchou até o escritório. Trancado. Assim como as portas da garagem.

Aquilo era totalmente inaceitável.

Pegou o celular, estava prestes a telefonar – bem, não sabia exatamente para quem, mas para alguém –, quando um armarinho pendurado na parede chamou sua atenção. Indo na direção da portinha de metal de 0,3 por 0,9 metros, deu um puxão na alça, e não se surpreendeu quando a porta não cedeu.

A boa notícia? Ela estava com muita vontade de bater em alguma coisa.

Olhando ao redor, não viu nada fora do lugar. Desde lonas para cobrir os carros, até pneus sobressalentes e material de limpeza, tudo estava organizado numa parede com precisão militar em prateleiras, ganchos, e caixas tampadas.

Exceto pelo pé de cabra, que encontrou encostado numa pilha de panos limpos com o brasão da família bordado.

Gin sorriu ao caminhar do alto dos seus saltos, erguendo a peça de metal. De volta ao armário, arqueou o objeto acima da cabeça e bateu na caixa onde estavam as chaves como se aquilo fosse a cabeça do pai. Bateu, bateu, bateu e bateu, o som metálico agudo ecoando em seus ouvidos.

Apesar de já estar quase sem unhas quando concluiu a tarefa, a porta estava pendurada no que restava das suas dobradiças.

O Bentley, decidiu.

Não, o Rolls. Custava mais caro.

Levando a bagagem até o Phantom Drophead, abriu a porta que se abria ao contrário, enfiou as malas no banco de trás e se pôs atrás do volante. Afundou o sapato de salto no freio, apertou o botão da ignição e o motor rugiu a vida com um rosnado latente.

Esticando a mão na direção do espelho retrovisor, apertou todos os botões até a porta da frente se erguer.

E partiu.

A raiva dentro dela fez com que quisesse passar pelo caminho frontal só para desfilar diante dos cômodos particulares da família; mas era mais importante sair da propriedade sem que ninguém soubesse, por isso contentou-se em levantar o dedo médio para Easterly pelo espelho retrovisor enquanto usava o caminho dos empregados.

Quando chegou à estrada River, virou à esquerda, verificou as horas e pegou o telefone. Rosalinda já deveria ter chegado àquela altura, e ela poderia finalmente cuidar dos arranjos para o jatinho, o que não deveria ser um problema. Gin pedia o avião pelo menos uma vez por semana.

Caixa postal. De novo.

O maldito Brunch. Esquecera-se dele. Todos os funcionários estavam distraídos.

Mas ela tinha necessidades.

Gin ligou para outro número, um que tinha apenas um dígito diferente do de Rosalinda. Ao terceiro toque, ela estava quase desistindo quando ouviu o inconfundível sotaque britânico daquele mordomo.

– Senhor Harris falando, como posso ajudar?

– Preciso de um avião e não consigo falar com a Rosalinda. Você vai ter que providenciá-lo para mim. Decolando neste instante para o aeroporto de Los Angeles.

O mordomo limpou a garganta.

– Senhorita Baldwine, perdoe-me…

– Não venha me dizer que está ocupado demais. Você pode ligar diretamente para o piloto, já fez isso antes, e depois pode voltar para qualquer uma das suas incumbências idiotas do Brunch…

– Lamento, senhorita Baldwine, mas não haverá um avião disponível para a senhorita.

– Você só pode estar brincando. – Sem dúvida era por causa daqueles convidados corporativos que estavam chegando para o Derby. Mas ela era da família, pelo amor de Deus. – Tudo bem, apenas atrase alguém e eu…

– Não será possível.

– Eu sou prioridade! – O Phantom ganhou velocidade quando ela apertou o acelerador, pelo menos até quase acertar o carro na frente dela. – Isso é inaceitável. Ligue para aquela torre de controle, ou para aquela lista de pilotos ou… para quem quer que me coloque num maldito avião para a costa oeste!

Houve uma longa pausa.

– Sinto muito, senhorita Baldwine, mas não poderei mais fazer esse tipo de serviço para a senhorita.

Um alerta gélido apertou a sua nuca.

– Que tal mais tarde, ainda esta manhã?

– Não será possível.

– À tarde.

– Lamento, senhorita Baldwine.

– O que o meu pai lhe disse?

– Não cabe a mim comentar o que…

– Que porra que ele te disse? – ela berrou ao telefone.

A respiração que o homem soltou era o mais próximo que ele chegaria a uma imprecação em voz alta.

– Esta manhã, recebi um memorando dirigido à organizadora e a mim, indicando que os recursos da família não estariam mais disponíveis para a senhorita.

– Recursos…?

– O que inclui dinheiro vivo, contas bancárias, viagens e acomodações em hotéis, e acesso às demais propriedades dos Bradford ao redor do mundo.

Nessa hora o pé dela escorregou do acelerador, e quando o carro atrás dela buzinou, ela foi para o acostamento.

– Gostaria de poder fazer algo – ele disse num tom neutro que indicava que isso não era verdade. – Mas, como já disse, estou impossibilitado de ajudá-la.

– O que devo fazer?

– Talvez voltar para casa seja o melhor. Acabei de vê-la saindo no Rolls-Royce.

– Não vou me casar com Richard Pford – ela disse e depois encerrou a ligação.

Quando olhou pelo retrovisor, os arranha-céus denteados do centro da cidade pareceram assustadores pela primeira vez em sua vida. Nunca antes se impressionara com a cidade de Charlemont, tendo dado a volta ao mundo diversas vezes. Mas todas essas viagens aconteceram enquanto ela tinha recursos ilimitados ao seu dispor.

Com a mão trêmula, pegou a carteira e levantou o fecho. Ela tinha cinco notas de cem dólares e algumas de vinte… e sete cartões de crédito, inclusive um Amex Centurion. Estava sem a habilitação porque sempre andava com motorista particular. Também não tinha o cartão do seguro de saúde porque fazia uso dos serviços dos médicos afiliados à Cia. Bourbon Bradford. Não estava nem com o passaporte, apesar de não ter planejado sair do país.

Duzentos metros mais adiante, havia um posto de gasolina, e ela voltou a acionar o Phantom, seguindo o fluxo do trânsito. Quando chegou ao símbolo da Shell, cortou caminho diante de um caminhão que vinha na direção oposta e parou junto a algumas bombas de abastecimento.

Quando saiu, não foi para abastecer o carro. O tanque estava cheio.

Sacou um cartão Visa qualquer e colocou-o no leitor. Em seguida, apertou as teclas que compunham a sua senha. Esperou para ver se a transação hipotética seria aceita.

Não aprovado.

Tentou o Amex e recebeu a mesma resposta da máquina. Quando outros dois Visas não funcionaram, ela desistiu.

Ele bloqueara os seus cartões.

De volta ao volante, tudo ficou embaçado. Tinha investimentos por toda parte, dinheiro que lhe pertencia… mas só dali a dois anos, quando completasse trinta e cinco, e nenhum dia antes disso – algo que descobrira quando num impulso tentara comprar uma casa em Londres no ano passado e tivera esse desejo negado pelo pai. Pouco importou o quanto tivesse gritado com a empresa do seu fundo, eles se recusaram a lhe entregar o dinheiro, declarando que ela não tinha permissão para acessá-lo até que atingisse a idade estipulada.

Só havia um lugar para onde poderia ir.

Odiava implorar, mas isso era muito melhor que se casar, ou admitir uma derrota ao pai.

Colocando o câmbio mais uma vez no drive, enfiou-se no trânsito e tomou a direção da qual viera. No entanto, não retornaria a Easterly. Iria para…

De repente, o carro morreu. Tudo parou: o motor, o ar-condicionado, as luzes do painel. As únicas coisas que funcionavam eram o volante e o freio.

Enquanto pressionava o botão da ignição, viu suas ações frenéticas e impotentes de longe, notando, sem dar muita atenção, como suas unhas estavam arruinadas, as pontas cortadas, o esmalte vermelho-cereja lascado. Tendo que admitir que o motor não voltaria a funcionar, foi para o acostamento da estrada para não acabar numa colisão e…

Sirenes soaram ao longe e ela olhou pelo espelho retrovisor.

Uma viatura da Polícia Metropolitana de Charlemont encostou atrás dela com as luzes acionadas. E depois uma segunda unidade se pôs à frente até que o Phantom ficasse bloqueado.

Os dois policiais se aproximaram dela com as mãos sobre as pistolas presas ao coldre, como se não tivessem certeza se precisariam das armas.

– Saia do veículo, senhora – o mais alto deles disse com voz autoritária.

– Este carro é meu! – ela exclamou ao abaixar o vidro. – Vocês não têm o direito de…

– Esse veículo pertence a William Baldwine, e a senhora não tem autorização para usá-lo.

– Ah, meu Deus… – ela sussurrou.

– Saia do carro, senhora…

Merda, estava sem a habilitação.

– Sou filha dele!

– Senhora, estou ordenando que destrave as portas e saia do veículo. Se não fizer isso, vou autuá-la por resistir à prisão. Além de dirigir um veículo roubado.

 

DEZESSEIS

– Claro que eu estava à sua espera. – Assim que Lane falou, levantou as mãos, num gesto de quem pedia para aguardar. – Mas apenas como amigo. Queria me certificar de que chegou bem ao trabalho.

Maldição, ela estava linda. Mais uma vez, com a camisa polo preta do uniforme de Easterly e shorts cáqui, o cabelo puxado para trás, preso num rabo de cavalo… De alguma forma, parecia exoticamente bela.

Pensando bem, já fazia mais de doze horas que não a via.

Uma vida inteira, de fato.

Enquanto ela revirava os olhos, ele a flagrou tentando esconder um sorriso.

– Já fiz esse trajeto algumas vezes, sabe – ela disse.

– E como foi esta manhã?

Houve uma pausa, e então algo mágico aconteceu. Lizzie explodiu numa gargalhada.

Cobrindo a boca, ela meneou a cabeça.

– Desculpe, mas você está horrível. O seu cabelo está todo… – ela mexeu a mão ao redor da cabeça dele – … está uma bagunça, seus olhos mal conseguem ficar abertos. Sabia que está balançando para a frente e para trás apesar de estar sentado?

Ele deu um sorriso largo.

– Você precisava ver o outro cara.

– Ele era durão?

– Agora, em vez de usar capuz ele usa brinco. – Lane levantou um braço e flexionou o bíceps. – Homem pra valer este aqui…

Ouviram um par de passadas vindo na direção deles, então Lane espiou por cima do ombro dela e murmurou alguma coisa bem baixinho.

Era o mordomo inglês seguindo direto para ela, só que parou quando viu Lane.

– Com licença, Lane – Lizzie disse baixinho. – Tenho um assunto de trabalho para resolver agora.

– O que foi? – ele perguntou ao mordomo.

O inglês sorriu, parecendo um manequim de loja.

– Nada com que tenha que se preocupar, senhor Baldwine. Senhorita King, poderia fazer a gentileza de vir até o meu escritório quando tiver terminado de…

– O que houve? – Lane exigiu saber.

– Apenas um mal-entendido – Lizzie murmurou.

– Sobre o quê?!

Lizzie se concentrou no senhor Mais Sagrado Que o Senhor.

– O pedido das taças de champanhe alugadas foi reduzido, e ele acha que eu telefonei para Mackenzie para mudar a quantidade, mas não fiz isso. Ficarei feliz em poder organizar tudo quando os copos e os pratos chegarem, mas não sou responsável por coordenar nada que se refira aos pedidos. As tendas e as mesas são de minha responsabilidade, e elas estão exatamente onde deveriam estar.

Os olhos do senhor Harris se estreitaram.

– Esta conversa deve ser conduzida em meu…

– Então, não tem nada a ver com ela. – Lane sorriu para o mordomo com frieza. – E seu assunto aqui terminou.

Lizzie pôs uma mão no braço dele, e o contato foi uma surpresa tamanha, que de fato o calou.

– Está tudo bem. Repito, ficarei feliz em fazer o que puder para ajudar. Senhor Harris, quer que eu fale com Mackenzie e tente encontrar um modo de solucionar o caso?

O mordomo olhou de um a outro.

– Sei o que encomendei. O que não sei explicar é como apenas metade disso foi entregue.

– Veja bem, não quero lhe ensinar o seu trabalho – Lizzie disse. – Mas erros da parte deles já aconteceram antes. O que precisamos fazer é descobrir o que mais está faltando e ligar para eles para alertá-los. Isso não deve ser um problema. O senhor fez o pedido pessoalmente ou foi por intermédio de Rosalinda?

– Usei os serviços da senhora Freeland, e lhe entreguei os números corretos.

Lizzie franziu o cenho.

– Ela sabe o quanto pedir. Fez isso por anos a fio.

– Ela me garantiu que tomaria conta da questão. Deduzi que outra pessoa com acesso à conta tivesse reduzido a quantidade.

– Vá procurá-la, e eu encontrarei Greta para contar tudo o que foi entregue. Vamos resolver. Pelo menos, descobrimos hoje e não amanhã de manhã.

Houve um instante de constrangimento no qual o mordomo nada disse, e Lane se perguntou o quanto daquele plano sensato ele teria que enfiar goela abaixo do ditadorzinho.

– Muito bem – disse o mordomo. – A sua assistência será muito bem-vinda.

Enquanto o senhor Harris se afastava, Lizzie inspirou fundo.

– E assim entramos na contagem regressiva das vinte e quatro horas.

– Ninguém da equipe pode fazer essa contagem? Esse problema não é seu.

– Está tudo bem. Pelo menos se Greta e eu fizermos isso, saberei que está tudo certo. Além disso, todos em Easterly estão com trabalho até as orelhas, e os chefs auxiliares não poderão dispensar…

O telefone de Lane começou a tocar, e ele o tirou do bolso para silenciar o barulho.

– Quem diabos pode ser? – perguntou, quando viu o código de área local.

Ela riu de novo.

– Você pode descobrir se… prepare-se… atender!

– Está pegando no meu pé?

– Alguém tem que fazer isso.

Lane sorriu tão amplamente que suas bochechas começaram a doer.

– Ok, vamos lançar os dados e ver quem é. – Apertou o botão verde e disse em sua voz mais arrastada: – Vocccccêêêê ligoooouu paaaara…

– Lane! Ah, meu Deus, Lane, preciso da sua ajuda.

– Gin? – Ele se endireitou na espreguiçadeira. – Gin, você está bem?

– Estou no centro da cidade, na cadeia de Washington County. Você tem que vir aqui pagar a minha fiança…

– Que diabos? O que você…

– Preciso de um advogado…

– Ok, ok, ok, devagar. – Ele se pôs de pé. – Você está falando rápido demais e não estou entendendo.

Sua irmã fez uma pausa e depois disse quatro frases completas que o deixaram sem chão.

– Está bem – disse ele com seriedade. – Estou indo para aí agora mesmo. Sim. Certo. Ok. Fique aí.

Quando desligou, só o que ele conseguiu fazer foi procurar o rosto de Lizzie.

– O que foi? – ela perguntou.

– O meu pai mandou prenderem Gin. Tenho que, literalmente, ir até a cadeia e pagar a fiança dela.

Lizzie cobriu a boca com a mão num sinal de choque.

– Posso fazer alguma coisa?

– Não. Vou lá cuidar dela. Mas obrigado.

Ele precisou de todo o seu autocontrole para não se inclinar e beijá-la como costumava fazer. Em vez disso, contentou-se em esticar a mão e afagá-la no rosto, saindo antes que ela pudesse dizer que “amigos não fazem isso”.

Inferno, o que o seu pai estaria aprontando agora?

Na época em que fora fumante, Edward frequentemente acordava de manhã já esticando o braço para pegar o maço de Dunhill Reds antes de estar plenamente consciente de sequer ter rolado de lado.

Hoje em dia ele fazia o mesmo, só que para pegar o frasco de Advil.

Colocando quatro cápsulas de gel na palma trêmula, levou-as à boca e as engoliu com o que restava da vodca que levara para a cama. Fazendo uma careta enquanto essa sua versão de desjejum descia até o estômago, deitou-se de novo sobre o travesseiro.

Tinha parado de fumar durante a recuperação. Na verdade, o sequestro fora o primeiro passo para que abandonasse o vício.

Ironicamente, o fato de quase ter morrido foi o responsável por ajudá-lo a ter uma vida mais longa.

Saudou com a garrafa no ar.

– Gracias, muchachos.18

Antes que seu cérebro entrasse no looping infindável da sequência horrenda do Dia Em Que Tudo Aconteceu, virou as pernas para o chão e se sentou. Não olhou para a coxa e para a panturrilha direitas. Primeiro porque as cicatrizes tortas da sua pele à la Frankenstein estavam gravadas em sua mente. Segundo porque ele já não dormia mais nu, por isso elas não estavam aparecendo.

A bengala era necessária para que ele se levantasse, e seu equilíbrio não estava muito bom não só por causa dos ferimentos, mas pela falta de sono e pelo fato de ainda estar meio embriagado. Mancando até o banheiro, deixou as luzes apagadas, de modo que o espelho não foi um problema, e usou o vaso, lavou as mãos, o rosto e escovou os dentes.

A confirmação de que Deus ainda o odiava veio quando ele saiu do chalé uns dez minutos depois e foi ofuscado pela luz brilhante do sol e pela dor de cabeça causada pela ressaca.

Que horas são?, perguntou-se.

Já estava na metade do caminho até o Estábulo B quando percebeu que levara a garrafa junto. Como se fosse o seu brinquedinho predileto.

Revirando os olhos, seguiu em frente. A senhorita Nada de Praguejar Perto de Mim poderia muito bem se acostumar com ele e sua bebida; não havia motivos para apresentar-lhe uma ilusão diurna de abstinência que só a perturbaria no futuro. Se ela não conseguisse lidar com esse seu hábito, ela podia muito bem ir embora no primeiro dia.

O som de pneus cantando fez sua cabeça girar para a direita, e na fração de segundo seguinte, Shelby apareceu na ponta oposta do estábulo, o corpo encurvado na cintura ao empurrar uma tremenda carga de esterco de cavalo dentro de uma velha carreta enferrujada.

Pelo visto, Moe já a colocara para trabalhar.

– Ei – ele a chamou.

Sem diminuir o passo, ela acenou por sobre o ombro e seguiu em frente com o esterco para trás da construção mais próxima.

Enquanto a observava, invejou o corpo forte dela, talvez notando, sem nem se dar conta, que o sol fazia com que as mechas loiras dela parecessem quase brancas. Ela estava usando uma camiseta azul-marinho, um par de jeans escuros e as mesmas botas resistentes da noite anterior. Depois de desaparecer atrás da curva do prédio, reapareceu duas vezes mais rápido do que deveria, considerando a quantidade de esterco que teve que descarregar.

Portanto, ela também era eficiente.

Ao se aproximar, seus olhos estavam claros e alertas, o rosto corado pelo esforço.

– Quase terminando. Depois vou pro C.

– Jesus, Moe fez com que você… desculpe – disse antes que ela o corrigisse. – Maldição, Moe já te colocou pra trabalhar? E não venha me dizer que não posso usar “maldição”. Deixo de mencionar Deus e Jesus Cristo, mas só vou até aí.

Ela deixou os pés do carrinho encostarem na grama aparada.

– Suco de laranja.

– O que disse?

A filha de Jeb Landis acenou para a garrafa.

– Pode ficar com “maldição”, mas eu gostaria de ver você com outra coisa que…

– Você sempre julgou tanto assim?

– … não fosse vodca tão cedo assim. E não estou te julgando.

– Então por que quer mudar os hábitos de um desconhecido?

– Você não é um desconhecido. – Enxugou a testa com o antebraço. – Não são nem nove da manhã. Fico me perguntando por que você precisa beber tão cedo assim.

– Eu estava meio desidratado.

– Não tem água encanada na sua casa? Ontem tinha.

Ele balançou a garrafa.

– Isto aqui está servindo bastante bem. Pense que é a minha versão da vitamina C.

Ela resmungou alguma coisa ao se abaixar para pegar as alças.

– O que disse? – ele exigiu saber.

– Você me ouviu.

– Não, não ouvi, não. – O que não era exatamente a verdade.

Shelby só deu de ombros e seguiu em frente, aquele seu corpo se movendo debaixo das roupas, executando a tarefa sem nenhum esforço aparente.

E foi nessa hora que algo lhe ocorreu.

– Shelby?

Ela parou e olhou por cima do ombro.

– Pois não?

– Você disse que cuidou de todos os cavalos.

– Cuidei.

– Nos Estábulos A e B.

– Isso mesmo.

Ele se apressou e a agarrou pelo braço.

– Eu te disse. Uma regra. Não chegue perto daquele garanhão.

– A baia não ia se limpar sozinha…

A mão dele se apertou por vontade própria.

– Ele matou um ajudante de estábulo no ano passado. Foi pisoteado até morrer ali. Nunca mais faça isso.

Aqueles olhos azuis dela ficaram arregalados.

– Ele se portou bem comigo.

– Só eu chego perto dele. Estamos entendidos? Faça isso mais uma vez e eu faço as suas malas – ele disse firmemente – e te mando de volta para o lugar de onde veio.

– Sim, senhor.

Ele se afastou e tentou não cambalear.

– Muito bem, então.

– Está certo.

Ela soprou o cabelo para longe do rosto e voltou a andar, com os ombros tensos.

Tirando a tampa da vodca, Edward deu um trago longo e, provavelmente, deveria ter parado quando percebeu que a bebida já não ardia mais.

Mas essa era outra coisa sobre a qual não queria pensar.

Assim como não queria pensar no que poderia acontecer com a filha de Jeb Landis enquanto ela estivesse sob a sua proteção.

Maldição.


“Obrigado, meninos.”

 

DEZESSETE

A cadeia e o Tribunal do Condado de Washington formavam um complexo de edifícios modernos que ocupava dois quarteirões inteiros no centro da cidade, cujas instalações se comunicavam por meio de passarelas que se estendiam acima do trânsito da rua logo abaixo. Havia certa quantidade de entradas e, enquanto Lane encostava o Porsche, inúmeras pessoas entravam e saíam; eram homens e mulheres em ternos subindo e descendo os degraus de mármore, policiais dentro de suas viaturas, delegados estacionando suas SUVS e saindo de vagas reservadas, pessoas em roupas desgastadas fumando pelos cantos.

O seu 911 Turbo emitiu uma tossida baixa quando ele desacelerou e se dirigiu para os prédios imponentes. Não havia nenhum layout lógico que ele conseguisse distinguir. Tampouco um endereço.

Como se, caso tivesse que perguntar para onde deveria ir, ficaria com a sensação de que aquele não era o seu lugar…

Até que, de repente, um afro-americano uniformizado surgiu bem diante do seu carro.

– Droga! – Lane afundou o pé no freio. – Mas que diabos! Mitch?

O delegado Mitchel Ramsay não respondeu. Apenas indicou uma vaga livre bem atrás dele.

Lane estacionou com uma baliza perfeita, ciente de que o delegado estava bem ao lado do seu para-choque, os braços grossos como uma corda náutica cruzados sobre seu peito de jogador de futebol americano. Seus olhos negros estavam escondidos atrás de óculos Ray Ban, e a cabeça raspada fazia com que seu pescoço e seus ombros parecessem ainda maiores do que eram de fato.

Lane saiu do carro esportivo.

– Ei, sabe onde a minha irmã…

– Pode deixar.

Os dois bateram palmas e deram um abraço forte. Enquanto permaneciam peito contra peito, Lane foi transportado para quase dois anos atrás, para a pista de pouso particular a oeste da cidade. Para a noite em que Edward finalmente retornava do cativeiro.

Mitch o trouxera de volta aos Estados Unidos. De volta para a família.

Só Deus sabia como. Ninguém perguntara os detalhes, e Lane sempre ficou com a impressão de que o antigo soldado do Exército não teria partilhado os “como” e os “quem”, de todo modo.

– Ela não está muito bem – comentou Mitch.

– Não me surpreende.

Lane seguiu o delegado, subindo os cinquenta degraus até uma das portas giratórias. Quando terminaram de subir, Mitch desviou para uma porta demarcada com SOMENTE POLICIAIS e depois os fez passar pela segurança, de onde outros policiais acenaram em sinal de respeito.

– Agi o mais rápido que pude assim que vi o nome – disse Mitch enquanto suas passadas se uniam a todas as outras, ecoando no vestíbulo principal, com pé direito alto. – Ela foi presa por furto de veículo, por dirigir sem habilitação, por não apresentar o seguro…

– Como diabos isso foi acontecer?

– … e por resistir à prisão. Já isolei o incidente, mas não vou conseguir mantê-lo fora dos registros policiais indefinidamente.

– Espere. – Lane fez o homem parar. – Minha irmã roubou um carro?

– Um Rolls-Royce. Registrado no nome da Cia. Bourbon Bradford.

– Está se referindo… ao nosso Rolls. O Phantom Drophead?

– O seu pai telefonou pessoalmente para a Polícia Metropolitana e pediu que fossem atrás dela, alegando que ela não tinha permissão para dirigir o veículo.

– Você não pode estar falando sério. – Lane enfiou a mão nos cabelos. – Quero dizer, é claro que ele pode fazer isso. Já fez coisa pior.

– Você chamou um advogado?

– Samuel T. deve chegar aqui em…

– Lane!

Samuel T. avançou em meio a um grupo de pessoas, destacando-se por inúmeros motivos. Primeiro, seu terno de risca de giz azul e branco fazia com que ele parecesse pertencer a uma varanda da casa grande de uma fazenda, sorvendo um julepo de menta com um par de cães de caça aos seus pés. Segundo, ele era belo demais para estar entre os mortais.

– Obrigado por vir tão rápido – Lane disse ao apertarem as mãos. – Você conhece Mitch.

– Certamente. Delegado.

– Senhor Lodge.

Encerrando os cumprimentos, os três seguiram para as escadas rolantes que levavam ao segundo andar.

– Ela está numa cela. – Mitch os conduziu por uma das passarelas. – Mas removi qualquer tipo de retardo para a audiência da fiança. Assim que estiver pronto, senhor Lodge…

– Pode me chamar de Samuel ou de Sam.

– Samuel. – Mitch assentiu. – Assim que estiver pronto. Farei com que ela se apresente diante do juiz McQuaid. Já conversei com o promotor público. As mãos dele estão atadas, visto que o senhor Baldwine está pressionando. A única coisa que posso fazer é apressar, apressar, apressar.

Lane cerrou os molares. Gin dava trabalho e, evidentemente, o pai já estava farto disso, mas aquilo tudo era exposição demais.

– Vou ficar te devendo essa, Mitch.

– Não se preocupe.

O delegado os fez passar por vários pontos de controle de segurança, até adentrarem o complexo. Embora Lane tivesse aprontado sua porção de infrações quando era mais jovem, todas as suas transgressões foram discretamente “resolvidas”. Portanto, aquela era a primeira vez que ia para a cadeia, e não poderia dizer que estava com pressa para voltar lá algum dia.

A sala de espera tinha paredes creme. Piso creme. Cadeira plástica laranja, amarela e vermelha. O cheiro no ar era de suor e de roupas sujas, e de desinfetante em spray.

Graças a Mitch, passaram ao largo do balcão de registros com as divisórias de vidro à prova de balas e da fila de policiais com a pescaria do dia. Isso sim era um chamado para a realidade da outra parte da população. Homens sujos e rapazes estranhos… moças quase despidas… mulheres mais velhas com aspecto cansado… Todos eles de pé ou cambaleando, acompanhados dos policiais que os prenderam, seus rostos revelando as marcas da vida dura que levavam.

– Por aqui, delegado Ramsey – alguém o chamou ao lado de uma porta reforçada.

Depois de passar por mais um ponto de segurança, cruzaram com diversas salas de reunião com luzes vermelhas acesas sobre as portas e grades diante das janelas protegidas por telas.

– Se esperarem aqui – o policial disse, na frente de uma das salas –, eu a trago já.

– Obrigado, Stu. – Mitch abriu a porta e se colocou de lado. – Fico esperando do lado de fora.

– Muito obrigado. – Lane bateu no ombro do homem. – E, provavelmente, ainda vamos precisar da sua ajuda.

– Estou aqui para o que precisarem.

Samuel T. parou ao lado do delegado.

– Alguém já falou com a imprensa?

– Nós não – Mitch respondeu. – E quero que continue assim.

– A minha irmã não tem a melhor das reputações. – Lane meneou a cabeça. – Quanto menos pessoas souberem, melhor.

Mitch os deixou ali na sala. Embora houvesse quatro cadeiras presas ao chão junto a uma mesa de aço também presa, Lane não conseguiu ficar sentado. Samuel T., por sua vez, pôs a velha maleta ao seu lado e cruzou as mãos.

O advogado balançou a cabeça.

– Ela vai ficar louca quando souber que você me chamou.

– E quem mais eu poderia chamar? – Lane esfregou os olhos doloridos. – E depois disso, você vai me ajudar com o meu divórcio, certo?

– Apenas mais uma manhã atarefada com os Bradford…

Pelo menos deixaram que ela permanecesse com as próprias roupas, Gin pensou, enquanto era conduzida por outro corredor de concreto pintado com a vichyssoise do mês.

Ficara aterrorizada com a perspectiva de se despir diante de uma guarda feminina de peito cabeludo para depois ser violada por uma mão com uma luva antes de ser enfiada dentro de um macacão laranja do tamanho de uma tenda de circo. Quando isso não aconteceu, ficara obsessiva com a possibilidade de ser trancafiada numa cela horrorosa e suja com um punhado de prostitutas viciadas em drogas tossindo o vírus da AIDS em cima dela.

Em vez disso, fora colocada numa cela sozinha. Uma cela fria, com apenas um banco e um vaso sanitário de aço sem assento nem papel higiênico.

Não que um dia ela fosse fazer uso daquilo.

Seus brincos de diamante foram retirados, assim como o relógio Chanel, juntamente com as malas LV, o celular, aquelas notas de quinhentos dólares e os cartões de crédito inúteis que tinha na carteira.

Um telefonema. Foi só o que lhe concederam, bem como nos filmes.

– Por aqui – disse o guarda, parando diante de um homem afro-americano uniformizado, e em seguida abrindo uma porta pesada.

– Lane…! – Só que ela parou de correr na direção do irmão assim que viu quem estava sentado à mesa. – Ah, Deus. Ele não.

Lane a abraçou com força depois que a porta se fechou.

– Você precisa de um advogado.

– Estou livre – Samuel T. disse com a fala arrastada. – Relativamente livre.

– Não vou falar na frente dele. – Ela cruzou os braços diante do peito. – Nenhuma palavra.

– Gin…

Samuel T. interrompeu o irmão dela.

– Eu te disse. Acho melhor pegar as minhas coisas e ir embora.

– Sentem-se – Lane ordenou. – Os dois.

Houve um instante de silêncio, que Gin entendeu como sinal de que Samuel T. estava tão surpreso pelo tom de comando quanto ela. Lane sempre fora, dentre os quatro irmãos Baldwine, aquele que seguia conforme a maré. Agora, ele parecia Edward.

Ou como Edward costumava ser.

Depois que se sentou desajeitada numa cadeira tão dura e fria quanto um bloco de gelo, Lane apontou um dedo na direção dela.

– O que você aprontou?

– Como é? – ela disse, se retraindo. – Por que é culpa minha? Por que acha que fui eu quem…

– Porque normalmente é o que acontece, Gin. – Ele cortou o ar com a mão quando ela começou a discutir. – Nem comece, eu te conheço há tempo demais. O que fez desta vez para irritá-lo? Vou tirar você daqui, mas tenho que saber com o que estou lidando.

Enquanto Gin encarava o irmão, quis mais do que nunca mandá-lo se foder. Mas só conseguia pensar na imagem dos seus cartões sendo negados no mostrador digital da bomba do posto de gasolina. Quem mais poderia ajudá-la?

Olhou para Samuel T. Ele não a encarava, e seu rosto estava impassível, mas a desaprovação altiva que ele emanava era tão evidente quanto sua colônia no ar.

– E então? – Lane inquiriu.

Pesando as opções, percebeu que estava completamente desconfortável com essa coisa de enfrentar situações difíceis. Com dinheiro suficiente e uma amnésia conveniente, não existia nada que ela não pudesse evitar, quer isso envolvesse suborno ou teimosia.

Infelizmente, as infindáveis opções estavam fundamentadas num estilo de vida que apenas parecia ser dela. Mas, na verdade, era de outra pessoa. Só não sabia disso até aquela manhã.

Pigarreou.

– Samuel T., você pode… me dar um momento a sós com o meu irmão? – Ela avançou a mão sobre a mesa. – Não estou dizendo que não pode ser o meu advogado, só preciso de um pouco de privacidade com ele. Por favor.

Samuel T. curvou uma sobrancelha.

– É a primeira vez que a ouço dizer essas palavras. Pelo menos estando vestida.

– Cuidado, Lodge – Lane rosnou. – Ela é minha irmã.

O homem se recompôs, como se tivesse se esquecido de que não estava sozinho com ela.

– Perdão. Isso foi inapropriado.

– Não vá para longe. – Lane começou a andar pela sala, puxando os cabelos negros e curtos com a mão. – Pelo amor de Deus, vamos precisar de uma boa representação.

Enquanto seu advogado, amante e pai da sua filha saía – ainda que ele desconhecesse essa última identidade –, Gin mirou os sapatos de salto de seda. A ponta do esquerdo tinha se sujado quando ela foi colocada no banco de trás da viatura.

Houve um clique, indicando que a porta tinha sido fechada atrás de Samuel T. Ela não precisou ser encorajada a falar.

– Ele quer que eu me case com Richard Pford.

– Richard… Desculpe, o que você disse?

– Você ouviu muito bem. Papai vai cortar todos os meus recursos a menos que eu me case com aquele homem. Ele disse que é por causa daquela maldita empresa de distribuição que nos dará melhores taxas ou algo assim.

– Ele ficou louco? – Lane inspirou.

– Você quis saber por que peguei o carro. É por isso, e é por isso que papai chamou a polícia. – Levantou o olhar para o irmão. – Não vou me casar com Richard. Não importa o que o nosso pai faça comigo. É com isso que você vai lidar.

Levantando-se, ela foi até a porta e a abriu.

– Pode voltar.

– Quanta honra – murmurou Samuel T.

Enquanto seu advogado voltava a se acomodar, ela disse: – Então, o que faço para sair daqui?

– Você paga a fiança – Samuel T. respondeu. – E depois tentamos fazer com que as acusações sejam retiradas. Você pode fazer um apelo ou seu pai pode perdoar o que quer que você tenha feito.

– Qual seria o montante da fiança? – Lane perguntou.

– Sem antecedentes, isso vai a favor dela, mas o risco de fugir não. Acho que no máximo cinquenta mil. McQuaid é um juiz amigável para pessoas como nós, por isso o valor não será muito alto.

50 mil dólares. De fato, a quantia nunca lhe parecera muito antes. Apenas mais um pulinho à loja Chanel em Chicago.

Pensou no pouco que tinha na carteira.

– Não tenho essa quantia.

Samuel T. gargalhou.

– Claro que tem.

– Farei com que seja pago – Lane o interrompeu.

Samuel T. abriu a maleta e tirou alguns papéis.

– Você me autoriza a representá-la nessa questão, Virginia?

Desde quando ele a chamava por algo que não fosse o apelido? Pensando bem, talvez ele só não quisesse que seu irmão o esmurrasse no piso de concreto por ter demonstrado familiaridade demais.

– Sim.

Os olhos dele, aqueles olhos cinzentos e aguçados, sustentaram o olhar dela.

– Assine aqui. – Depois de ela ter assinado, murmurou: – Não se preocupe, eu vou tirar você daqui.

A respiração dela vacilou quando ela expirou.

– Mas e depois?

O que, exatamente, seria diferente do outro lado de tudo aquilo? Era muito improvável que seu pai virasse a página subitamente. Edward mal sobrevivera à decisão de William Baldwine de escolher os negócios em detrimento dos filhos.

– Primeiro, te tiramos daqui – Lane disse. – Depois lidamos com o resto.

Voltando-se para o irmão, ela percebeu que nunca o vira tão sério. Recostado à parede nua do cubículo horrendo, ele parecia muito mais velho do que quando partira, dois anos antes. Parecia no comando das coisas.

Ela crescera esperando encontrar autoridade em Edward, e nunca em Lane, o playboy.

– Ele vai ganhar – ela se ouviu dizer. – Papai sempre vence.

– Não desta vez – Lane disse entredentes.

– Que diabos está acontecendo aqui? – perguntou Samuel T.

Lane apenas meneou a cabeça.

– Resolva isso, Samuel. Apenas tire a minha irmã daqui. Eu cuido do resto.

Deus, como ela queria que fosse verdade. Porque, evidentemente, a sua tentativa de irritar o pai não dera muito certo.

 

CONTINUA

DEZ

Claro que era uma ideia muito idiota.

Contudo, enquanto Lizzie retribuía o beijo, foi como se ela estivesse afunilando dois anos de raiva, frustração e dor diretamente dentro dele. E que ele fosse para o inferno, mas seu sabor era de bourbon, de desespero e de sexo selvagem… e ela gostava disso.

Ela sentia falta disso.

O que a deixou ainda mais enfurecida. Ela queria dizer que aquilo era horrível. Que era contra a sua vontade. Uma violação.

Mas não era verdade. Foi ela quem enfiou a língua na boca dele, e foi ela quem enterrou os dedos nos ombros dele, e foi ela quem, que Deus a ajudasse, aproximou o corpo, colando-se nele.

Para poder sentir a ereção dele.

Seu corpo não mudara no tempo em que ficaram afastados; ele era todo feito de músculos rijos e membros delgados. E ele beijava como antes, com aspereza e avidez, apesar de ter sido criado como um cavalheiro. E seu calor continuava o mesmo.

E então, para piorar ainda mais as coisas, memórias dos dois juntos, pele contra pele, se chocando, se balançando, ondulando, a assaltaram, enterrando toda a mágoa e o sentimento de traição debaixo de uma avalanche de lembranças eróticas.

Por uma fração de segundo, percebeu que acabaria fazendo sexo com ele ali mesmo, naquele instante.

Sim, claro, porque era uma maneira eficaz de mostrar que estava falando sério.

Um verdadeiro momento Gloria Steinem.17

Em vez disso, algo foi derrubado na mesa e o barulho interrompeu o silêncio; em seguida, um esguicho molhou o quadril e a coxa dela num choque de água fria. Dando um salto, ela o empurrou com força, e Lane tropeçou e caiu para trás, aterrissando no piso de ladrilhos.

Com um movimento brusco do braço, ela limpou a boca.

– Que diabos você estava fazendo?

Pergunta idiota. O mais adequado seria: O que ela estava fazendo?

Ele se pôs de pé na próxima batida de coração.

– Quis te beijar desde que voltei.

– O sentimento não é mútuo…

– Até parece. – Pegou o copo e sorveu um grande gole. – Você ainda me deseja…

– Saia!

– Está me expulsando da minha própria estufa?

– Ou você sai ou saio eu – ela rebateu. – Essas flores não vão parar nos vasos sozinhas. A menos que queira metade das mesas vazias na sua festa do Derby?

– Não estou nem aí com elas. Ou com essa maldita festa. Ou com nada disso… – Ele gesticulou, e teria sido mais convincente caso não estivesse segurando um bourbon da família naquele copo. – Deixei tudo isso para trás, Lizzie. Já estou farto mesmo.

Motrin. Era disso que ela precisava.

Menos Lane e mais analgésicos.

– Eu desisto – murmurou ela. – Você venceu. Vou eu.

Quando ela se virou para ir embora, ele a segurou e a girou, arrastando-a para junto de si. Foi nesse momento que ela notou o quanto ele envelhecera desde a última vez que o vira. Seu rosto estava mais magro, o olhar mais cínico, os pés de galinha mais acentuados nos cantos dos olhos.

Infelizmente, só o tornava mais belo.

– Nada dessa história horrível com Chantal é como você pensa – ele disse sombriamente.

– Mesmo que seja apenas metade…

– Você não entende…

– Eu estava apaixonada por você. – Sua voz se partiu, e ela o empurrou. – Eu não achava que a gente fosse se casar necessariamente, mas não pensei que você estivesse a caminho do altar com outra mulher. Que estava grávida… e que ainda por cima engravidou enquanto você estava comigo.

– Eu tinha terminado com ela, Lizzie. Antes de voltar para cá naquele mês de abril, eu disse para ela que estava acabado.

– Mas não foi bem assim, não é?

– Ela estava grávida de três meses quando fiquei sabendo, Lizzie. Faça as contas comigo. Estive com Chantal pela última antes de vir para cá, no aniversário da minha mãe, no fim de março. Você e eu… ficamos juntos em maio, e no fim de junho eu fiquei sabendo da gravidez. Se você se lembrar bem, não saí de Easterly durante todo aquele tempo. Você sabia onde eu estava todos os dias e todas as noites porque eu estava com você. – Ele a encarou do alto. – Três meses. Não dois, nem um. Três meses, Lizzie.

Ela levou as mãos ao rosto, lutando contra a lógica.

– Por favor, pare de fazer isso.

– Isso o quê?

– Dizer meu nome. Isso lhe dá a ilusão da credibilidade.

– Não estou mentindo. E faz quase dois anos que quero esclarecer a situação. – Ele praguejou novamente. – Tem mais coisas, mas não quero entrar nessa parte. E não afeta o que existe entre mim e você.

Antes que ela percebesse o próprio movimento, descobriu-se sentada no banco de rodinhas que estivera usando antes. Olhando para as mãos, flexionou os dedos, sentindo a rigidez das juntas e, por algum motivo, pensou nas unhas perfeitas de Chantal, em suas palmas lisas e sem marcas. Falando em opostos… As mãos que ela fitava eram as de uma trabalhadora, que tinha arranhões nos dorsos provocados por espinhos de rosa perdidos, e terra debaixo das unhas, que ela só conseguiria limpar depois que chegasse em casa. Também havia pintas, por ter cavado a terra sem a proteção de luvas e, definitiva e positivamente, não havia nenhum diamante de um milhão de dólares em seu dedo.

– Casei com Chantal no cartório depois que você me deixou – ele continuou com severidade. – O bebê não tinha culpa, e por eu ter crescido sem meus pais, não queria fazer o mesmo com um filho meu, a despeito dos meus sentimentos pela mãe dele. Mas eu tinha que sair da cidade. Chantal não admitia que o casamento fosse apenas no papel. Por isso fui para o norte, ficar em Nova York com um amigo dos tempos da Universidade da Virgínia. Foi pouco depois que Chantal me ligou para falar que tinha perdido o bebê.

A amargura em sua voz fez ele falar tão baixinho que ela mal ouviu.

– Ela também não me ama – ele murmurou. – Não amava na época e não ama hoje.

– Como você pode ter certeza? – Lizzie se ouviu dizer.

– Pode confiar em mim quanto a isso.

– Ela pareceu bem contente em ter você de volta.

– Não voltei por causa dela e deixei bem claro. Essa mulher só é capaz de se afeiçoar a uma refeição grátis.

– Pensei que ela tivesse dinheiro.

– Nada comparado ao que eu tenho.

Sim, ela imaginou que devia ser verdade. Existiam países com menos renda anual do que a dos Bradford.

– Você é o amor da minha vida, quer esteja comigo ou não. – Quando ela ergueu o olhar, ele apenas encolheu os ombros. – Não posso mudar o que aconteceu e sei que não há como voltar… Só o que peço é que não acredite nas aparências, ok? Você está há dez anos com esta família, mas estou com eles e com pessoas que os cercam minha vida inteira. É por isso que é você quem eu quero. Você é real. Não é como eles e isso é uma coisa muito, muito boa.

Ela esperou que ele fosse expressar mais alguma coisa, e quando ele não o fez, ela voltou a fitar as mãos.

Por algum motivo, seu coração batia forte, como se ela estivesse próxima demais de um penhasco. Pensando bem, imaginou que era isso mesmo, porque as palavras dele estavam entrando em sua cabeça e embaralhando seus pensamentos.

De um jeito que não a ajudava em nada.

– Tenho muito medo de você – sussurrou.

– Por quê?

Porque queria acreditar no que ele dizia com o desespero de um viciado.

– Não tenha – ele disse quando ela não respondeu. – Nunca quis que nada assim acontecesse. E faz muito tempo que eu queria acertar as contas com você.

Parecia apropriado que estivessem cercados por tantos vasos de flores. A prova do seu trabalho, de seu único objetivo ali na propriedade, era um lembrete do divisor que sempre os distanciaria.

Ela se forçou a se lembrar daquela fotografia e do artigo no Charlemont Herald sobre o casamento, sobre os dois grandes legados sulistas se unindo num arranjo feudal. Também se lembrou dos dias e das noites logo depois que ficou sabendo de Chantal, de todas aquelas horas de sofrimento até que pensou estar à beira da morte.

Mas as palavras dele exprimiam verdade sobre uma coisa. O orgulho fez com que ela continuasse a trabalhar em Easterly. Assim, estivera presente na propriedade todos os dias, exceto aos domingos, pelos últimos vinte e quatro meses. E Lane não voltara. Durante dois anos… ele não voltara para ver Chantal.

Não era lá um grande casamento.

– Deixe que as minhas ações falem por si mesmas. Deixe que eu prove para você que estou dizendo a verdade.

Em sua mente, ela ouviu seu celular tocando insistentemente. Logo após o rompimento, ele lhe telefonara no mínimo uma centena de vezes, deixando mensagens que ela nunca ouvira. Ela tirara duas semanas de férias assim que soube de tudo, fugindo para a fazenda em Indiana, voltando para Plattsburgh no nordeste, para o pomar de maçãs da sua juventude. Seus pais ficaram felizes em vê-la, e ela passara aqueles dias a cuidar das árvores McIntosh junto aos outros trabalhadores.

Quando regressara, ele já tinha ido embora.

Os telefonemas cessaram depois de um tempo. E, no fim, ela parou de ter sobressaltos toda vez que um carro parava na porta da frente.

– Por favor, Lizzie… diga alguma coisa. Mesmo que não seja o que quero ouvir…

O som da risada de uma mulher o interrompeu com suavidade e fez com que ambos olhassem para as portas que se abriam para o jardim. Quando Greta saíra, um dos painéis não se fechara por completo, e através da abertura, Lizzie viu duas pessoas andando pelo caminho de pedras em direção à piscina no extremo oposto.

Mesmo sob a iluminação fraca do paisagismo, ficou claro que o vestido de gala da mulher era vermelho rubi, suas saias volumosas se arrastando atrás dela. Ao seu lado, um homem alto de terno lhe ofereceu o braço num galanteio e a encarava com o tipo de atenção que se reserva a um lauto banquete.

– Minha irmã – Lane disse, sem necessidade.

– Aquele é Samuel T.? – Lizzie perguntou.

– Quem se importa…

Ela voltou a olhar para Lane.

– Você partiu o meu coração.

– Eu sinto muito. Não foi minha intenção, Lizzie, de modo nenhum. Juro por Deus.

– Pensei que você fosse ateu.

Ele ficou calado um instante, os olhos vasculhando suas feições.

– Eu me batizaria mil vezes, se necessário. Posso memorizar a Bíblia, beijar o anel do papa… faço qualquer coisa que você quiser… mas, por favor…

– Não posso voltar no tempo, Lane. Sinto muito. Não consigo.

Ele se calou. E depois de um longo instante, assentiu.

– Tudo bem, mas posso pedir uma coisa?

Não.

– Sim.

– Não me odeie mais. Eu já faço muito isso sozinho.

O jardim estava perfumado como uma mulher recém-saída do banho, tão arrumado quanto a sala de estar, e tão reservado quanto a biblioteca de uma universidade.

O que significava de fato que era semirreservado. As várias janelas de Easterly davam para as moitas de flores brancas e creme, todas elas bem cuidadas e discretamente iluminadas.

Felizmente, Gin não tinha problemas quanto a fazer sexo em público.

Enquanto se pendurava no braço forte de Samuel Theodore Lodge III, não se deu ao trabalho de esconder seu sorriso.

– Há quanto tempo está com ela?

– Desde quando chegamos. Uma hora?

Ela gargalhou.

– Ora, ora, meu caro Samuel, por que você perde tempo com mulheres como ela?

– Existe outro tipo?

Era difícil saber quem conduzia quem até os recessos escuros do canto mais afastado, onde o muro de tijolos se encontrava com os fundos da casa, onde ficava a piscina. Era para lá que ambos se dirigiam.

– Eu não sabia que você vinha – ela disse, erguendo a mão para tocar os diamantes pendurados no pescoço… e depois deslizar os dedos pelo corpete do vestido. – Eu teria me dado ao trabalho de vestir uma calcinha.

– Nova mania, então?

– Gosto quando você as arranca do meu corpo. Especialmente quando você se frustra e as rasga.

– Mas eu não faço parte de um clube exclusivo, não é mesmo?

– Não seja grosseiro.

– Foi você quem tocou no assunto da lingerie. E também foi você quem quis sair comigo. A menos que, para variar, precise mesmo de um pouco de ar fresco?

Gin estreitou o olhar nele.

– Você é um bastardo.

– Não de acordo com o dicionário. Meus pais estavam muito bem casados quando nasci. – Ele ergueu uma sobrancelha. – E creio que você não possa dizer o mesmo da sua filha, não é mesmo?

Ela parou, a maré virando numa direção que ela não previra.

– Está passando dos limites, Samuel. E você sabe disso.

– É um pouco estranho quando você fala de decoro. Você não está transando com aquele advogado casado da minha empresa? Acho que ouvi alguma coisa a esse respeito.

Ah, então era por isso que ele estava agindo daquela maneira.

– Está com ciúmes? – ela pronunciou de maneira arrastada, o sorriso retornando às suas feições.

– Ele não consegue te satisfazer. Não por muito tempo, e não como eu consigo.

Quando ele a agarrou, ela deixou, adorando o modo como as mãos dele seguraram sua cintura e a boca se afundou na sua. Não demorou muito para que ele erguesse sua saia até as coxas, mantendo-a ali apesar de toda a armação do vestido.

Pensando bem, ele vinha se metendo debaixo de tecidos finos e delicados desde os catorze anos, quando passara a frequentar os bailes da sociedade.

Samuel T. gemeu ao descobrir que ela não estava mentindo quando disse não ter nada debaixo daquele vestido, e seus dedos foram rudes ao penetrá-la. O fogo e o desejo que sentiu foram um tremendo alívio para os assuntos em que ela não queria pensar, o sexo lavando todos os seus arrependimentos e sua tristeza, dando-lhe nada além de prazer.

Não havia motivos para fingir o orgasmo que teve de fato, as unhas se enterrando nos ombros macios do smoking enquanto arquejava, a antiquada colônia Bay Rum tão atávica que fazia com que ele fosse um homem à frente do seu tempo.

Enquanto se entregava, pensava que ele era o único homem que já tinha amado – e o único que jamais teria verdadeiramente. Samuel T. era muito parecido com ela, só que pior: uma alma que nunca se assentaria enquanto estivesse passeando pelos caminhos de tijolos da expectativa social.

– Me come – ela exigiu ao encontro dos lábios dele.

Ele arfava, seu corpo estava rijo debaixo do smoking caro, pronto para ela… Mas em vez de lhe dar o que ela tanto queria, ele recuou um passo, abaixando a saia e fitando-a de longe.

– Samuel? – ela inquiriu.

Com uma lentidão deliberada, ele levou os dedos até a boca e os lambeu. Depois passou a língua para cima e para baixo, entre eles, lambendo a essência dela em sua pele.

– Não – ele disse. – Acho que não.

– O quê?

Samuel se inclinou na direção dela.

– Vou voltar para a festa do seu pai e vou me sentar à mesa dele. Adiantei-me e troquei a disposição dos lugares, de modo que Veronica estará sentada ao meu lado. E você vai saber quando eu colocar a minha mão entre as pernas dela, você vai vê-la se empertigar e tentar manter a compostura enquanto faço com ela o que acabei de fazer com você. Observe o rosto dela, Gin. E saiba que, assim que eu sair, vou transar com ela no banco da frente do meu Jaguar.

– Você não ousaria.

– Como acabei de dizer, preste atenção, Gin.

Ele se virou para se afastar, e ela quis jogar alguma coisa na cabeça dele. E vez disso, disse entre dentes cerrados: – O nome dela não é Savannah?

Ele relanceou por sobre o ombro.

– E eu me importo com o nome dela? A única coisa relevante é: ela não é você.

Dito isso, ele se afastou a passos largos naqueles elegantes sapatos de couro que ecoaram nos tijolos, com os ombros retos e a cabeça erguida.

Envolvendo-se com os braços, ela percebeu pela primeira vez que a noite estava fria. Embora fizesse 26°C.

Concluiu que deveria ter lhe contado a respeito do advogado. Em retrospecto, escolhera o homenzinho grudento exatamente porque sabia que cedo ou tarde Samuel T. descobriria.

Pelo menos uma coisa era certa: Samuel T. voltaria. Por algum motivo, os dois não conseguiam ficar longe um do outro por muito tempo.

E, no fim, ela acabaria tendo que lhe contar a respeito de Amelia, pensou. Mas não hoje. Nem… tão cedo.

Se aquele homem descobrisse que ela lhe escondera a filha por todos aqueles anos?

Ele seria capaz de matá-la.


Gloria Steinem, famosa feminista, é uma jornalista americana, célebre por seu engajamento com o feminismo e sua atuação como escritora e palestrante, principalmente durante a década de 1960. (N.T.)

 

ONZE

Depois que Lane saiu da estufa, a perspectiva de retornar para a festa do pai era extremamente desagradável, ainda mais depois de ouvir o gongo que anunciava que o jantar estava sendo servido. Mas, considerando-se que a outra alternativa seria ir ver Edward, ele…

– Lane?

Concentrando-se, olhou além do arco da sala de jantar. Uma morena alta num vestido cinza-claro estava parada diante dos antigos espelhos venezianos, a visão dos ombros nus tão adorável de trás quanto de frente.

Falando no diabo, ele pensou. Mas sorriu ao se aproximar e beijá-la no rosto macio.

– Sutton, como está?

Mas quis dizer: Que diabos você está fazendo aqui? Ela e a família eram o “inimigo”, proprietários da Destilaria Sutton, produtores do famoso bourbon Sutton e de outras bebidas – mas isso não significava que ele tivesse algo particularmente contra a mulher. Tradicionalmente, porém, pessoas da linhagem dela eram persona non grata em Easterly… em conversas… nas orações noturnas.

E eram fãs da UK. Portanto, eram azuis nos jogos, e não vermelhos.

Isso era algo que poderia irritá-lo.

Quando se abraçaram, seu perfume refletiu a mulher rica que era, sua fragrância delicada preencheram as narinas dele mesmo quando se afastou; assim como seu corpo perfeito e bem vestido, surgindo novamente em seus olhos quando ele piscou.

Mas não era por isso que estava atraído por ela. Aquilo era o mesmo que admirar uma pintura num museu ou um automóvel Duesenberg.

– Eu não sabia que você viria este final de semana. – Ela sorriu. – É bom te ver depois de tanto tempo. Você me parece bem.

Isso foi engraçado, porque ele se sentia uma merda.

– E você, bela como sempre.

– Vai ficar para o Derby?

Por cima do ombro de Sutton, ele viu que Chantal entrava na sala de jantar, o longo vestido amarelo se arrastando junto com a sua postura de inocente.

Só até eu preencher a papelada do divórcio, ele pensou.

– Lane? – Sutton o chamou.

– Desculpe. Na verdade, tenho que voltar logo para Nova York. – Afinal, aquelas partidas de pôquer precisavam dele lá. – Estou contente em ver você. Surpreso por vê-la no jantar do meu pai, mas contente.

Sutton assentiu.

– Também é uma surpresa e tanto para mim.

– Veio a negócios?

Ela sorveu um gole da taça de vinho.

– Hummm.

– Era para ser uma piada.

– Me diga uma coisa, você tem visto…

Ela deixou a frase inacabada, sem mencionar o nome, pois não havia motivos para que ela pronunciasse “Edward”. Por muitos motivos.

– Ainda não o vi. Mas vou até a fazenda.

– Sabe, Edward nunca vem à cidade. – Sutton tomou mais um gole da taça de borda fina. – Eu costumava vê-lo com bastante frequência antes que ele… Bem, fazíamos parte do conselho da Universidade de Charlemont, mesmo eu sendo fã da UK, e…

Enquanto a mulher prosseguia, ele ficou com a sensação de que ela não estava lhe informando fatos que ele já sabia, mas que revivia um período da vida cuja perda ela lamentava. Não pela primeira vez, ele ficou se perguntando o que realmente acontecera entre o garoto de ouro da família e a adorável filha do concorrente deles.

– Ora, se o filho pródigo não retornou…

O som da voz do pai foi um alerta que o atingiu tal qual uma flecha, e Lane encobriu seu dissabor ao tomar um gole de bourbon.

– Pai.

William Baldwine era quase tão alto quanto ele, tinha os mesmos cabelos negros e olhos azuis, o mesmo maxilar, os mesmos ombros. As diferenças eram a idade, o grisalho nas têmporas, os óculos bifocais de aro de casco de tartaruga, a ruga entre as sobrancelhas causada pelos muitos anos de semblante fechado. De algum modo, porém, todos aqueles sinais do passar dos anos não diminuíam a estatura do pai. De fato, apenas serviam de contraponto para uma aura de poder.

– Tenho que mandar arranjarem um lugar para você. – Por trás daqueles óculos, os olhos do pai encararam as roupas de Lane com um desdém apropriado para as fezes de um cachorro no meio de uma sala de estar. – Ou está de saída?

– Deixe-me pensar… – Lane estreitou o olhar. – Por mais que eu aprecie degradar a sua mesa com esta minha camisa, eu teria que ficar na sua presença durante uma refeição de, no mínimo, três pratos. Portanto, acho que vou embora.

Lane colocou seu Reserva de Família na mesinha de apoio mais próxima e se curvou para Sutton, que parecia preferir ir com ele em vez de ficar ali.

– Sutton, é sempre um prazer. – Olhou para o pai. – Pai, vá se foder.

Lançou essa granada e seguiu em meio à multidão, acenando para políticos e socialites, para aqueles dois atores da série da HBO na qual estava viciado e para Samuel T. e sua namorada do momento.

Chegou ao vestíbulo de entrada, e estava quase na porta da frente quando um par de saltos agulha se aproximou por trás.

– Aonde você vai? – Chantal sibilou ao agarrar o braço dele. – E por que não está vestido?

– Não é da sua conta. – Soltou-se dela. – Nos dois casos.

– Lane, é inaceitável…

– Essas palavras jamais deveriam passar pelos seus lábios, mulher.

Chantal fechou a boca muito bem delineada. Em seguida, inspirou fundo, como se estivesse com dificuldade para aplacar a raiva.

– Eu gostaria de passar um tempo com você esta noite, para conversar e discutir… nosso futuro.

– O único futuro em que você precisa pensar é quantas malas Vuitton vai precisar para a sua mudança.

Chantal ergueu o queixo.

– Você não faz ideia do que está falando.

Ele se inclinou na direção dela e abaixou a voz até um sussurro.

– Sei o que você fez. Sei que não “perdeu” o bebê. Se queria manter o aborto em segredo, não deveria ter pedido a um dos motoristas da família que a levasse para aquela clínica em Cincinnati.

Quando ela empalideceu, ele se lembrou exatamente onde estava quando o homem que a levara lá titubeou para lhe dar a informação.

– Não tem resposta? Não vai negar? – Lane a repreendeu. – Ou isso virá quando a surpresa por ter sido descoberta passar?

Houve um instante de silêncio, e ele sabia que ela estava pesando suas opções, tentando descobrir como abordá-lo de um jeito favorável.

– O que eu deveria ter feito? – disse ela por fim, baixinho. – Você me abandonou sem explicações, sem apoio, sem dinheiro, sem um modo de entrar em contato com você.

Ele fez um gesto abarcando as pinturas a óleo e os tapetes orientais.

– Sim, porque você ficou num lugarzinho bem largado no meio da selva.

– Você me abandonou!

– Por isso a solução foi se recompor para tentar seduzir outro homem, certo? Estou deduzindo que foi o que fez, já que você precisava caber de novo no manequim 38, não é? Minha querida esposa.

– Lane, você está dizendo coisas que não quer…

– Você matou um inocente…

Reginald veio da sala de estar com uma bandeja de prata com copos usados, deu uma olhada nos dois e voltou para trás, desaparecendo de novo no cômodo agora vazio.

Ah, sim, a vida em Easterly… Onde a privacidade era menos comum que diamantes e distribuída em termos relativos. Pelo menos sabia que podia confiar naquele homem mais do que em sua própria família.

Não que isso significasse muito.

– Não vou ficar aqui discutindo com você – Lane disse, ríspido. – E você vai sair desta casa. Assim que o Derby acabar, a sua estada grátis já era.

Chantal arqueou uma das sobrancelhas perfeitas.

– Peça o divórcio se quiser, mas não vou a parte alguma.

– Você não terá mais o direito de ficar sob este teto depois que essa aliança sair do seu dedo.

O sorriso que ela lhe lançou foi gélido.

– É o que vamos ver. – Acenou com a cabeça para a porta da frente. – Vá para onde quiser, fuja… É isso o que você faz, não é? Mas tenha certeza que: eu estarei aqui quando você voltar.

Lane estreitou os olhos. Chantal era muitas coisas, mas não era uma maluca. Ela se autopromovia demais para tanto.

E o encarava como se soubesse de algo que ele não sabia.

Que diabos aconteceu enquanto ele se manteve afastado?

No Vermelho & Preto, Edward estava sentado numa antiga poltrona de couro diante de uma televisão tão velha que ainda tinha antenas saindo da tela em forma de caixa. O cômodo estava na penumbra, mas reluzia por causa dos inúmeros troféus de corrida abarrotando as estantes até o teto do lado oposto.

O chalé do haras tinha um quarto, um banheiro com banheira com pés em forma de garras, uma cozinha pequena e aquela área, que era um misto de biblioteca, escritório, sala de estar e de jantar. Não havia segundo andar, apenas um sótão cheio de recordações de velhas corridas de cavalo, e também não havia garagem. A área era menor do que a sala de jantar de Easterly e, desde que se mudara para lá, ele aprendera a apreciar o valor de ter um lugar pequeno o bastante para poder ouvir e ver quase tudo. Lá na mansão, nunca se sabia quem mais estava na gigantesca casa, onde estavam, o que estavam fazendo.

Para alguém como ele, cuja única amante eram os terrores noturnos e cujo principal trabalho era impedir que seu cérebro se canibalizasse, os aposentos apertados eram algo muito mais fácil de lidar, ainda mais naquela época do ano. Pena que a sua ida à América do Sul, quando fora sequestrado, tivesse acontecido pouco antes do Derby. O aniversário da sua captura arruinara o que sempre fora um fim de semana agradável.

Consultou o relógio e praguejou. Agora que o sol tinha se posto, as horas se apresentavam numa confusão nebulosa, minutos se tornando séculos e um segundo ao mesmo tempo. O seu trabalho noturno? Chegar, de algum modo, ao nascer do sol sem gritar.

Junto ao cotovelo, havia uma garrafa de vodca quase vazia. Começara a beber com cinco cubos de gelo num copo alto, que já estava derretido havia um tempo, e ele agora sorvia a bebida pura. Na noite anterior, fora gim. Na de antes, tomara três garrafas de vinho, duas de tinto e uma de branco.

Durante a fase inicial e aguda da sua “recuperação”, aprendera todos os estágios da administração da dor, aprendera como espaçar os analgésicos e a comida a fim de fazer com que os impulsos nevrálgicos do seu corpo arruinado não fossem piores do que a tortura que suportara quando aquelas feridas foram provocadas. Mais tarde, o mestrado em Gerenciamento de Medicação se traduziu muito bem na segunda parte – a parte crônica, a da “recuperação”. Graças às tentativas e aos erros adquiridos com os analgésicos, ele conseguia distribuir tudo para otimizar o efeito sedativo: todas as tardes, por volta das quatro horas, comia alguma coisa; às seis, quando os funcionários liberavam os estábulos, ele podia começar a beber estando, basicamente, de estômago vazio.

Nada o irritava mais do que alguém se metendo no meio do seu torpor…

Quando uma batida se fez à porta, apanhou a pistola ao lado da garrafa Grey Goose e tentou se lembrar que dia da semana era. O Derby aconteceria dali a dois dias… Então era quinta-feira. Era quinta-feira, algumas horas depois do pôr do sol.

Portanto, não era uma das prostitutas que ele pagava para vir servi-lo. Elas vinham às sextas-feiras. A menos que tivesse chamado duas pelo preço de uma aquela semana, mas não havia pedido aquilo.

Certo. Ou havia?

Apanhando a bengala, suspendeu-se da poltrona e claudicou até a janela da frente. Afastou as cortinas, com a pistola firme numa mão, mas o coração batia descompassado. Mesmo ciente de que, pela lógica, não existiam mercenários no Condado Ogden à sua procura, que estava seguro atrás das travas e do sistema de segurança que instalara, apesar da quarenta milímetros em suas mãos… seu cérebro continuava eletrizado.

Quando viu quem era, franziu o cenho e abaixou a arma. Seguindo até a porta, retirou a corrente, destrancou as três travas e abriu a porta, as dobradiças rangendo como camundongos. Outro mecanismo de alerta para ele.

– Cliente errado – murmurou com secura para a loira baixinha que vestia jeans e camiseta justa. – Eu só peço morenas. Em vestidos de gala.

Por um motivo que preferia guardar para si.

Ela franziu a testa.

– O que disse?

– Só aceito morenas. E elas têm que estar adequadamente vestidas.

Ele queria cabelos longos curvados nas pontas, um vestido que se arrastasse pelo chão, e elas tinham que estar usando Must da Cartier. Ah, e tinham que ficar de boca fechada. Não tinham permissão para falar com ele enquanto estivessem transando. Ainda que as putas conseguissem representar bem o exterior, a ilusão frágil seria rompida no instante em que as vozes delas não fossem a da mulher que desejava, mas que não podia ter.

Ele já tinha bastante dificuldade para manter a ereção daquele modo; na verdade, a única maneira de fazer seu pau subir era se conseguisse acreditar na mentira pelo tempo necessário até chegar ao orgasmo.

A mulher em sua soleira pousou as mãos nos quadris.

– Acho que não sei do que está falando. Mas sei que estou no lugar certo. Você é Edward Baldwine, e este é o Vermelho & Preto.

– E você quem é?

– Filha de Jeb Landis. Shelby. Shelby Landis.

Edward fechou os olhos.

– Maldito seja Ele.

– Eu agradeceria se não usasse o nome de Deus em vão na minha presença. Obrigada.

Ele levantou as pálpebras.

– O que você quer?

– O meu pai morreu.

Edward se concentrou num ponto acima da cabeça dela, na lua que crescia acima do Estábulo C.

– Quer entrar?

– Se guardar arma, sim.

Ele enfiou a pistola no cós do jeans e recuou.

– Quer beber alguma coisa?

Quando ela entrou, ele percebeu o quanto ela era baixinha. E devia pesar só uns 45 quilos, isso se estivesse ensopada segurando um fardo de feno.

– Não, obrigada. Não bebo álcool. Mas eu gostaria de usar o seu banheiro. A viagem foi longa.

– É por ali.

– Muito obrigada.

Ele se recostou na porta. A picape na qual ela evidentemente chegara sabe lá Deus de onde estava estacionada à esquerda, o motor ainda estalava debaixo do capô.

Depois de fechá-la e trancar tudo de volta, ouviu a descarga nos fundos da casa. Um momento mais tarde, a moça voltou e olhou para os troféus.

Edward seguiu para a poltrona, fazendo uma careta de dor ao se acomodar.

– Quando? – ele perguntou ao se servir do resto da vodca.

– Uma semana atrás – ela respondeu sem olhar para ele.

– Como?

– Pisoteado. Bem, os médicos disseram que o coração dele não aguentou, mas a causa foi o pisoteamento. Foi assim que você se machucou?

– Não. – Ele sorveu um longo gole. – Então, o que você faz aqui?

Dessa vez ela se virou.

– O meu pai sempre disse pra eu vir para cá pra encontrar você se alguma coisa acontecesse com ele. Ele disse que você lhe devia uma. Nunca perguntei o quê.

Edward a encarou demoradamente.

– Quantos anos você tem? Doze?

– Vinte e dois.

– Jesus, como você é nova…

– Cuidado com o que diz perto de mim.

Ele teve que sorrir.

– Você é igualzinha ao seu velho, sabia disso?

– É o que dizem. – Ela voltou a apoiar as mãos nos quadris. – Não quero esmola. Preciso de um lugar pra ficar e de um trabalho. Sou boa com cavalos, assim como o meu pai era, e ruim com pessoas… Por isso, considere-se avisado. Não tenho dinheiro, mas tenho costas fortes e não tenho medo de nada. Quando posso começar?

– Quem disse que estou procurando ajuda?

Ela franziu o cenho.

– O meu pai disse que você precisaria. Disse que você precisaria de mais mãos.

O Vermelho & Preto era uma grande operação, e sempre havia vagas. Mas Jeb Landis era uma lembrança complicada do passado… e a família dele estava contaminada por associação.

Mesmo assim…

– O que sabe fazer?

– Limpar estábulos e manter os cavalos em ordem não é física nuclear…

Ele dispensou as palavras dela com a mão.

– Tudo bem, tudo bem, está contratada. E só estou sendo um cretino porque, assim como você, não me dou bem com as pessoas. Tem um apartamento vazio ao lado do apartamento de Moe, sobre o Estábulo B. Pode se mudar para lá.

– Mostre o caminho.

Edward grunhiu ao voltar a ficar de pé e carregou o copo consigo de propósito ao conduzi-la até a porta.

– Não quer saber do salário?

– Você vai ser justo. O meu pai disse que desonestidade não faz parte do seu caráter.

– Ele foi generoso ao dizer isso.

– Duvido. Ele conhecia homens e cavalos.

Enquanto Edward voltava a destrancar tudo, conseguia senti-la observando-o e odiou isso. Seus ferimentos eram o resultado de um inferno que ele preferia manter escondido do mundo.

Antes de deixá-la sair do chalé, olhou-a fixamente.

– Só há uma regra.

– Qual?

Por algum motivo, ele se deteve nas feições dela. Ela não se parecia fisicamente em nada com o pai – bem, desconsiderando-se a altura. Shelby, ou qualquer que fosse seu nome, tinha olhos claros, e não negros. E sua pele não tinha a consistência de couro, embora isso ainda pudesse mudar.

A voz dela, porém, era como a de Jeb: aquele sotaque arrastado tinha um fundo de solidez.

– Você não vai chegar perto daquele garanhão – Edward avisou. – Ele é malvado até os ossos.

– Nebekanzer.

– Você o conhece.

– Meu pai costumava dizer que aquele cavalo tinha gasolina nas veias e ácido nos olhos.

– Então você já conhece o meu cavalo. Não se aproxime dele. Não vai limpar a baia dele, não vai chegar perto dele se ele estiver no pasto e nunca, jamais, vai colocar qualquer coisa sobre a porta da baia dele se quiser conservá-la. E isso inclui a sua cabeça.

– Quem cuida dele?

– Eu. – Edward claudicou noite afora, o ar úmido e pesado fazendo com que ele pensasse que não conseguiria respirar. – E ninguém mais.

Enquanto tentava respirar fundo, perguntou-se se todos aqueles médicos tinham deixado passar algum ferimento interno. Pensando bem, talvez a sensação de sufocamento fosse causada pela imagem daquela moça perto do maldito garanhão negro. Ele só conseguia pensar no que Neb poderia fazer com ela.

Ela se colocou na frente e pegou a mochila sobre o banco do passageiro.

– Então você é o encarregado aqui.

– Não, Moe Brown é. Você vai conhecê-lo pela manhã. Ele será o seu chefe. – Edward seguiu na direção dos estábulos. – Como já disse, o apartamento ao lado do dele está mobiliado, mas não sei quando o último a morar lá saiu.

– Já dormi em baias e em bancos de praça. Ter um telhado sobre a cabeça já basta.

Ele olhou na direção dela.

– O seu pai… era um bom homem.

– Não era nem melhor nem pior do que qualquer outra pessoa.

Era impossível não pensar em quem devia ser a mãe dela – ou em como alguém poderia ter suportado tempo suficiente ao lado de Jeb até ter uma filha com ele. Jeb Landis era uma lenda na indústria, tinha uma lista de cavalos vencedores maior do que qualquer outro, vivo ou morto. Também fora um alcoólatra filho da puta, com um vício por jogo ainda pior do que a sua veia misógina.

Uma coisa com a qual Edward não tinha que se preocupar era se Shelby saberia tomar conta de si mesma. Se conseguira sobreviver tendo vivido com Jeb, trabalhar num turno de dezoito horas numa fazenda criadora de cavalos seria fácil, fácil.

Quando chegaram ao Estábulo B, as luzes detectoras de movimento se acenderam e os cavalos se movimentaram lá dentro, batendo os cascos e relinchando. Entraram pela porta lateral, passaram pelo escritório de Moe e pelo depósito de suprimentos, e Edward a levou até o lance de escadas que antes conduzia ao palheiro, cobrindo toda a extensão do telhado. Em algum momento nos anos 1970, o lugar fora convertido em dois apartamentos, e Moe morava no da frente, que dava para a passagem de carros.

– Vá na frente e espere por mim ali em cima – disse com os dentes cerrados. – Eu demoro um pouco para subir.

Shelby Landis subiu os degraus rapidamente no compasso que ele costumava usar, mas que agora já não apreciava mais, e sentiu como se tivesse uma centena de anos ao se juntar a ela no andar superior.

Àquela altura, já estava tão sem fôlego que chiava como um pneu murchando.

Afastando-se dela, viu que não havia nenhuma luz por baixo da porta de Moe, mas, de todo modo, não teriam incomodado o homem. Com o Derby em menos de quarenta e oito horas, se estivesse em casa, o homem já devia estar dormindo a sono solto.

Ainda mais se considerasse que um dos seus dois cavalos poderia acabar excluído da corrida.

Enquanto Edward seguia em frente e girava a maçaneta do apartamento seguinte, percebeu que não sabia o que faria caso a porta estivesse trancada. Não fazia ideia de onde as chaves poderiam estar…

A porta se abriu, lembrando-o de que ele estava em meio a uma minoria de paranoicos ali naquela fazenda. O interruptor ficava à esquerda na parede e, quando ele o apertou, ficou aliviado em ver que o lugar não estava muito empoeirado e que, de fato, havia um sofá, uma cadeira, uma mesa e uma cozinha minúscula que, em comparação, fazia com que a sua parecesse industrial.

– O seu pai nunca mencionou o motivo de eu estar em débito com ele? – perguntou, mancando até o corredor escuro.

– Não, mas Jeb não era de falar muito.

Apertando o segundo interruptor, viu que o quarto e o banheiro também estavam organizados.

– Eis o que você tem aqui – disse ele, exausto só de ver a distância até a porta.

Quatro metros e meio.

Era como se fossem quilômetros.

Ela se aproximou.

– Obrigada pela oportunidade.

Ofereceu a mão e o fitou nos olhos e, por um instante, ele sentiu uma emoção diferente da raiva que ardia e queimava em seu íntimo nos últimos dois anos. Não sabia como defini-la, e o triste era que não sabia se a mudança era bem-vinda.

Havia uma certa claridade em ter um princípio de operação unilateralmente hostil.

Deixou a mão dela pendurada no ar enquanto arrastava o corpo de volta até a saída.

– Veremos se, mais tarde, você vai me agradecer.

De repente, lembrou-se de toda aquela coisa de não praguejar e não beber álcool.

– Ah, e mais uma coisa. Se a cortina do meu chalé estiver fechada, não me incomode.

– Sim, senhor.

Ele assentiu e fechou a porta. Depois, muito lenta e cuidadosamente, começou a descer.

A verdade era que Jeb Landis fora o responsável pela sua recuperação. Sem o chute que o homem deu no seu traseiro, só Deus sabia se Edward ainda estaria naquele planeta. Deus, ainda se lembrava com nitidez quando o treinador viera visitá-lo no centro de reabilitação. Apesar da regra explícita de Edward de não receber visitantes, Jeb passara pela estação da enfermagem e marchara para dentro do seu quarto.

Eles já se conheciam havia uma década. O interesse de Edward por cavalos de corrida, e sua subsequente posse, aliado ao compromisso prévio de ser o melhor em tudo o que fazia, significava que ele só aceitaria um homem treinando os seus cavalos.

No entanto, jamais previra que o homem seria um tipo de salvador.

O esporro de Jeb fora breve e direto, mas mais eficiente do que todos os argumentos e apoio emocional que recebeu de outras pessoas. E, um ano após sua mudança para lá, tendo jogado fora todos os seus ternos e decidido que aquela seria a sua vida, Jeb lhe disse que estava deixando o Vermelho & Preto rumo à Califórnia.

Provavelmente porque alguns agentes de apostas de Chicago estavam atrás de um pedaço do traseiro dele.

Em todos aqueles anos, antes e depois do sequestro, o fato de Jeb ter uma filha jamais viera à baila. Mas, sim, ele abrigaria a filha do homem. Claro.

E, felizmente, ela parecia ser capaz de cuidar de si mesma.

Portanto, o pagamento do débito teria um custo baixo.

Pelo menos, foi o que ele disse a si mesmo naquela primeira noite.

Só que aquilo não foi bem verdade… nem de longe.

 

DOZE

– Paguei cem mil dólares para me sentar ao seu lado.

Gin ergueu o garfo Tiffany com desenho de crisântemo para mexer na comida, mal ouvindo as palavras ditas junto ao seu ouvido. Estava ocupada demais se concentrando no arranjo floral diante dela. Samuel T. estava mais à esquerda, e a partir daquele ponto focal florido, sua visão periférica permitia que ela o acompanhasse ao lado da namoradinha, Veronica/Savannah.

– Por isso, você poderia pelo menos conversar comigo.

Voltando a se concentrar, fitou o odioso Richard Pford IV. O homem era só uma versão do jovem que um dia fora: alto e magro, com um olhar capaz de cortar vidro e uma natureza suspeita que contrastava com a sua posição invejável na hierarquia social de Charlemont. Filho de Richard Pford III, era o único herdeiro da Distribuidora de Bebidas Pford, uma cadeia nacional que distribuía vinhos, cerveja, bourbon, gim, vodca, champanhe, uísque etc. nas prateleiras e nos negócios do país inteiro.

O que significava que ele podia bancar um valor de seis dígitos para garantir um assento todas as noites da semana e duas vezes aos domingos.

Ele nadava em milhões, e seus familiares nem tinham começado a morrer ainda.

– Os assuntos do meu pai não me interessam – ela rebateu. – Portanto, parece que desperdiçou o seu dinheiro.

Ele tomou um gole de vinho.

– E pensar que ele foi para o programa de basquete da UC.

– Não sabia que você era fã deles.

– Não sou.

– Não é de se admirar que não nos damos bem. – UK. Ela devia ter desconfiado. – Além disso, não ouvi dizer que você estava para se casar?

– Os boatos quanto ao meu noivado foram exagerados.

– Difícil de acreditar, com todas as suas qualidades.

À esquerda, Veronica/Savannah deu um salto na cadeira, os cílios postiços flanaram, o garfo bateu no prato. Enquanto as lentes coloridas se voltavam para Samuel T., o maldito limpava casualmente a boca com o guardanapo damasco.

Samuel T., no entanto, não estava olhando para a namorada. Não, ele casualmente fitava o buquê de flores bem na frente de Gin.

O filho da puta.

Deliberadamente, Gin se virou para Richard e sorriu.

– Bem, estou encantada com a sua companhia.

Richard assentiu e voltou a cortar o seu filé mignon.

– Assim é muito melhor. Por favor, não pare.

Gin falou com suavidade, ainda que não fizesse ideia do que estava saindo da sua boca. Mas Richard assentia mais e mais, e respondia, por isso ela deduziu que estava se saindo bem com suas habilidades sociais. Mas, pensando melhor, quer se tratasse de conversas que não a interessavam ou orgasmos com homens com os quais não se importava, ela tinha bastante prática em fingir.

E, mesmo assim, estava ciente do que Samuel T. estava fazendo. Dolorosamente ciente.

Os olhos dele queimavam, cravados nela. E, nesse meio-tempo, bem como ele lhe prometera, a vadia ao lado dele começou a se esforçar para manter a compostura.

– … me resguardei para você – Richard declarou.

Gin franziu o cenho, captando aquela combinação de palavras, a despeito da sua preocupação.

– O que disse?

– Eu estava determinado a me casar, mas entrei num acordo com o seu pai. Foi por isso que pus fim ao noivado.

– Entrou num acordo com o meu pai? Do que está falando?

Richard sorriu com frieza.

– O seu pai e eu chegamos a um acordo quanto ao futuro. Em contrapartida por se casar comigo, estou disposto a conceder algumas vantagens à Cia. Bourbon Bradford.

Gin piscou. Depois balançou a cabeça.

– Não estou ouvindo muito bem.

– Sim, sim, você está. E já lhe comprei o anel de diamantes.

– Não, não, não… Espere um minuto. – Jogou o guardanapo na mesa mesmo sem terminar de jantar, assim como as outras trinta e uma pessoas. – Não vou me casar nem com você nem com ninguém.

– Mesmo?

– Tenho certeza de que “comprou” o seu lugar nesta mesa. Mas ninguém me obriga a fazer porra nenhuma, e isso inclui o meu pai.

Pensou que era uma tristeza não ter questionado a possibilidade do seu bom e velho pai a vender em favor do preço das ações da empresa.

Richard deu de ombros debaixo do terno elegante.

– Se é o que você diz.

Gin olhou para a cabeceira da mesa onde William Baldwine estava sentado em comando total, como se estivesse em um trono suspenso, mantendo-o acima dos seus súditos.

O homem não percebeu o olhar letal e, portanto, não sabia que a bomba tinha sido lançada. Ou talvez, quem sabe, ele tivesse planejado dessa forma, sabendo que Richard seria incapaz de ficar calado, e que ela não poderia provocar um escândalo por causa das testemunhas.

E, maldição, seu pai tinha razão quanto a isso. Por mais que desejasse dar um pulo e começar a berrar, ela não rebaixaria o nome Bradford dessa maneira, certamente não com Sutton Smythe e o pai dela, Reynolds, no mesmo cômodo.

À esquerda, um gemido foi encoberto por uma tossidela fraca.

Gin desviou a atenção do pai para Samuel T., ao que o advogado ergueu uma sobrancelha… e lançou um beijo no ar na sua direção.

– Sim, pode levar o prato dela. – Ela ouviu Richard dizer para o garçom uniformizado. – Ela já terminou.

– O que disse? – Gin se virou para Richard. – Mas você não tem o direito de…

– Aprovo a sua falta de apetite, mas não vamos nos arriscar, certo? – Richard acenou para o garçom. – E ela também não vai comer a sobremesa.

Gin se inclinou para o homem e lhe sorriu. Num sussurro, disse: – Não dê o passo maior que a perna. Eu ainda me lembro da época em que você enchia a sua saqueira com meias. Dois pares, porque um não adiantava muita coisa.

Richard a encarou. Num tom igualmente baixo, respondeu:

– Não faça de conta que tem algum poder de decisão.

– Espere e verá.

– É você quem mal pode esperar para ver. – Ele se recostou e lançou-lhe o olhar satisfeito de um homem que tem um royal flush nas mãos. – Mas não demore muito. O peso dos quilates do seu anel diminui a cada hora.

Eu vou te matar, ela pensou consigo mesma enquanto olhava para o pai. Que Deus me ajude, mas eu vou te matar.

Quando Lizzie fez a curva na estradinha secundária, a faixa de terra para a qual se dirigiu dividia terrenos com plantações de milho e só era larga o bastante para a passagem do seu Yaris. Havia árvores em ambos os lados, não de maneira organizada, mas num padrão casual, arranjado pela natureza, e não pela enxada de um paisagista. Acima, galhos grossos se uniam formando um dossel de verde brilhante na primavera, esmeralda no verão, amarelo e laranja no outono e esquelético no inverno.

Normalmente, aquela procissão de meio quilômetro até sua fazenda era o início do seu relaxamento, uma câmara de descompressão que ela acreditava ser o único motivo pelo qual conseguia dormir depois de um dia de problemas em Easterly.

Não naquela noite.

De fato, ela queria olhar por sobre o ombro só para se certificar de que não havia ninguém com ela no banco de trás do carro. Não que coubesse alguém de mais de doze anos ali, mas, mesmo assim… Sentia-se perseguida. Caçada. Assaltada. Ainda que sua carteira continuasse dentro da bolsa e ela estivesse, de fato, sozinha em seu carro.

A casa da fazenda era uma clássica casa americana, exatamente o que se veria num filme da Lifetime que se passasse num fim de semana de quatro de julho: branca com uma varanda, com vasos de amor-perfeito, uma cadeira de balanço e um banco suspenso em um dos lados. Tanto a indispensável chaminé de tijolos vermelhos quanto o telhado pontudo com telhas cinza eram originais, da época da sua construção em meados de 1833. E o coup de grâce? Um bordo imenso que oferecia abrigo para o calor do verão e para o vento frio do inverno.

Estacionou debaixo da árvore, que era o que de mais próximo a uma garagem que ela tinha, e saiu do carro. Mesmo que Charlemont dificilmente fosse Manhattan, a diferença no nível de barulho era impressionante. Naquelas partes, havia sapos, vagalumes que não tinham nada a dizer, e uma coruja que começara a montar guarda num velho celeiro uns dois anos antes. Nenhum murmúrio da autoestrada. Nenhuma sirene de ambulância. Nenhum acorde de jazz ou blues vindos do parque às margens do rio.

Fechando a porta, o som foi amplificado pela escuridão, e ela se viu aliviada quando caminhou e as luzes ativadas pelo movimento, colocadas em ambos os lados da entrada, foram ativadas. As botas rasparam nos cinco degraus que rangeram, e a porta de tela a acolheu com o resmungo das dobradiças. A fechadura era de latão, relativamente nova. Fora instalada em 1942.

Do lado de dentro, tudo estava escuro, e quando ela confrontou o vazio, desejou ter um cachorro. Um gato. Um peixinho dourado.

Apertando o interruptor, piscou quando seu lar doce lar se iluminou com a suave luz amarela. A decoração não se parecia em nada com a dos Bradford. Na sua casa, se havia algo antigo, era por ser útil e por ter sido feito por algum artesão do Kentucky: uma velha cesta de vime, um par de colchas de retalhos gastos pendurado nas paredes, uma cadeira de balanço, um banco de pinho debaixo da janela, cabeças de enxadas e pás que encontrara nos campos e que ela mesma emoldurara, para depois pendurar na parede. Também tinha uma coleção de instrumentos musicais, inclusive diversos violinos, muitas canecas, algumas tábuas de lavar roupa, e o maior dos seus tesouros: seu piano Price & Teeple de 1907. Feito de carvalho, com dobradiças incríveis de cobre, pedais e outras partes metálicas, ela o encontrara apodrecendo num celeiro, na porção oeste da propriedade, e o restaurara com muito amor.

A mãe chamava sua casa de museu do folclore, e Lizzie concluiu que isso devia ser bem verdade. Para ela, não existia conforto maior do que se ligar a gerações de homens e de mulheres que trabalharam na terra, esculpiram suas vidas e transmitiram seu conhecimento de vida para as gerações seguintes.

Agora? Tudo era 3G, 4G, LTE, e os computadores e smartphones eram cada vez menores e mais rápidos.

Sim, porque esse sim era um legado de honra e de perseverança para deixar aos seus filhos: como se esforçar para ficar na fila por vinte e seis minutos a fim de adquirir um novo iPhone, com um copo do Starbucks numa mão e um blog a respeito de alguma inutilidade na outra para passar o tempo.

De volta à sua cozinha anos 1940 – o estilo não era importado da Ikea ou Williams-Sonoma com suas réplicas, mas sim o original, de quando ela comprara a casa sete anos atrás –, abriu a geladeira e encarou as sobras da torta de frango que fizera na segunda à noite.

Aquilo era tão inspirador quanto a ideia de comer lascas de tinta esquentadas numa frigideira.

Quando seu celular começou a tocar, olhou por sobre o ombro, para a bolsa que largara no corredor.

Deixe para lá, ela se ordenou. Apenas deixe…

Esperou até que o aparelho silenciasse, e esperou mais para ver se haveria outra chamada – caso fosse uma emergência com a mãe, outra ligação se seguiria. Ou pelo menos haveria um toque alertando a chegada de uma mensagem.

Quando nenhum dos dois aconteceu, ela foi até o corredor e apanhou a bolsa. Nenhuma mensagem. Não reconheceu o número, mas conhecia o código de área: 917.

Cidade de Nova York. Celular.

Tinha amigos que ligavam para ela daquela área.

Suas mãos tremiam ao abrir a lista de chamadas recebidas e apertar o último número.

Foi atendida antes que o primeiro toque terminasse.

– Lizzie?

Seus olhos se fecharam quando a voz de Lane entrou em seu ouvido e em todo o seu corpo.

– Alô? – ele disse. – Lizzie?

Havia muitos lugares para sentar em sua sala ou na cozinha – cadeiras, sofás, até mesmo a mesinha de centro era robusta o suficiente. Em vez de usar qualquer um desses móveis, recostou-se contra a parede e deixou o traseiro escorregar até o chão.

– Lizzie? Você está aí?

– Sim. – Apoiou a testa na mão. – Estou aqui. Por que está ligando?

– Eu só queria me certificar de que você chegou bem em casa.

Sem nenhum motivo, lágrimas surgiram em seus olhos. Ele sempre agia assim. No tempo em que estiveram juntos, não importava que horas ela saía, ele lhe telefonava assim que ela passasse pela porta. Como se tivesse um timer no telefone.

– Não estou ouvindo a festa – comentou. – Ao fundo.

– Não estou em casa.

– Onde você está?

– No Antigo Silo. No armazém de barris. – Ela ouviu um barulho, como se ele também estivesse se sentando no chão. – Faz muito tempo que não venho aqui. O cheiro é o mesmo. A aparência também.

– Nunca fui aí.

– Você gostaria daqui. É o seu tipo de lugar, tudo muito simples e funcional e feito à mão.

Ela relanceou para a sala de estar e se concentrou na primeira pá que encontrara nos campos onde plantava milho todos os anos. O objeto era velho e enferrujado e, para ela, belo.

O silêncio que se seguiu fez parecer como se ele estivesse na sala junto dela.

– Estou feliz que não tenha desligado – Lane disse por fim.

– Eu queria poder desligar.

– Eu sei.

Ela pigarreou.

– Pensei em tudo o que me disse, no caminho para casa. Pensei em como você estava enquanto conversava comigo. Pensei… em como as coisas eram.

– E?

– Lane, mesmo que eu conseguisse superar tudo, e não estou dizendo que consigo, o que, exatamente, você quer de mim?

– Qualquer coisa que você me der.

Ela gargalhou num acesso tenso.

– Isso foi bem franco.

– Tenho outra chance com você? Porque vou te dizer isso agora, neste instante, se houver a mínima chance de você me aceitar, eu…

– Pare – ela inspirou fundo. – Apenas… pare.

Quando ele parou, ela ficou puxando e puxando o cabelo, com tanta força que seus olhos ficaram ainda mais marejados. Ou talvez isso estivesse acontecendo por outros motivos.

– Eu queria que você não tivesse voltado – ela se ouviu dizer. – Eu queria… Eu já estava te esquecendo, Lane. Estava recuperando o meu fôlego, a minha vida. Eu estava… e agora você está aqui, dizendo as coisas que quero ouvir, olhando para mim como se estivesse falando sério. Mas eu não quero voltar. Não posso.

– Então vamos em frente.

– A vida não é fácil assim.

– Não é. Mas é melhor do que nada.

Enquanto o silêncio se estendia uma vez mais, ela não sentiu necessidade de falar, de explicar mais coisas, de detalhar tudo. E enquanto as palavras martelavam em sua cabeça, ela desistiu de lutar.

– Não fiquei um dia, uma noite sem pensar em você, Lizzie.

O mesmo valia para ela, mas ela não queria lhe dar esse tipo de munição.

– O que você andou fazendo esse tempo todo lá?

– Nada. E estou falando sério. Fiquei com um amigo, o Jeff… bebi, joguei pôquer. Esperei, querendo ter uma oportunidade de falar com você.

– Por dois anos.

– Eu teria esperado uma dúzia.

Lizzie parou de puxar o cabelo.

– Por favor, não faça isso…

– Eu quero você, Lizzie.

Enquanto assimilava as palavras, seu coração batia tão forte que ela conseguiu sentir o aumento na pressão sanguínea no peito e no rosto.

– Nunca deixei de te querer, Lizzie. De pensar em você. De desejar que você estivesse comigo. Diabos, sinto como se estivesse num relacionamento com um fantasma. Eu te vejo nas ruas de Nova York sem parar, em alguma loira passando por mim numa calçada, talvez no modo como ela penteia os cabelos, ou por causa dos óculos, ou pela cor das calças jeans… Eu te vejo nos meus sonhos todas as noites; você é tão real que consigo te tocar, te sentir, estar com você.

– Você tem que parar.

– Não consigo. Lizzie… eu não consigo.

Fechando os olhos, ela começou a chorar baixinho na solidão da sua casa tão modesta, aquela que ela mesma comprara e que estava quase acabando de pagar, o maior símbolo da razão pela qual não precisava de um homem em sua vida, nem agora, nem nunca.

– Você está chorando? – ele sussurrou.

– Não – respondeu depois de um instante, num soluço. – Não estou.

– Está mentindo?

– Sim, estou.

 

TREZE

Lane olhava para o lado oposto do Antigo Silo construído por um dos seus ancestrais, sabendo que estava dentro do limite legal de álcool para poder dirigir, e que isso não duraria muito. Tinha uma garrafa de no 15 contra o quadril, que surrupiara de uma caixa pronta para ser despachada, e apesar de ainda não ter rompido o lacre, tinha toda intenção de secar a garrafa.

Em toda a sua volta, o Antigo Silo estava deserto, e surpreendeu-se ao perceber que o código de acesso do sistema de alarme ainda era o mesmo de antes.

Sabia que deveria deixar Lizzie em paz.

– Sinto muito – murmurou. – Quero dizer todas as coisas certas, fazer as coisas certas, e sei que não estou cumprindo esses objetivos. Maldição, Lizzie…

Inclinou a cabeça para o lado e segurou o telefone entre o ombro e a orelha. Pegando o bourbon, abriu a garrafa e a levou até a boca.

A ideia de tê-la feito chorar de novo o comia vivo.

– Você está bebendo? – ela perguntou.

– Ou faço isso ou bato a cabeça na parede até sangrar.

Enquanto ela exalava fundo, ele deu mais um gole. E um terceiro.

Quando terminou de engolir e a queimação na garganta cessou, ele fez a pergunta cuja resposta tanto temia: – Você está com alguém?

Ela demorou bastante para responder.

– Não.

Foi sua vez de exalar fundo.

– Não acredito em Deus, mas, neste instante, estou com vontade de me autoproclamar cristão.

– E se eu não te quiser mais? O que vai fazer, então?

– Está me dizendo que isso é verdade?

– Talvez.

Ele fechou os olhos.

– Então, eu vou recuar. Isso vai acabar comigo… mas vou embora.

Mais silêncio. Que ele passou bebendo da garrafa.

– Amigos – ela disse por fim. – Só vou até aí. É só isso que consigo fazer.

– Ok. Respeito isso.

Ele conseguiu ouvir o alívio na voz dela.

– Obrigada.

– Mas – ele a interrompeu – o que, exatamente, isso quer dizer?

– Como é?

– Bem, amizade… Como é isso? Posso te telefonar, certo? Amigos podem comer juntos de vez em quando, só para se manterem a par das novidades, não é? Você sabe, divórcio, planos de mudança, novas direções, esse tipo de coisa.

– Lane.

Ele sorriu.

– Adoro quando você diz meu nome desse jeito.

– Quando estou irritada?

– É sexy.

Lizzie pigarreou.

– Essa palavra não cabe numa amizade, ok?

– Eu apenas constatei um fato.

– Uma opinião.

– Fato.

– Lane, estou te avisando, você precisa…

Enquanto ela prosseguia, falando à sua maneira tipicamente franca e sem rodeios, ele fechou os olhos e prestou atenção às ordens dela, deixando que seu tom de voz o envolvesse. Bem no íntimo, aquele desejo velho e tão conhecido despertou, como um dragão adormecido… e o ímpeto foi tão forte que ele quis entrar no carro e atravessar as pontes até Indiana.

– Ainda está aí? – ela perguntou, brava.

– Ah, estou. – Arrumando a ereção dentro das calças, refreou um gemido. – Estou, sim.

– O que está fazendo?

Ele afastou a mão para longe, bem longe do marco zero.

– Nada.

– E então? – disse ela. – Está ou não?

– Estou o quê?

– Dormindo enquanto fala comigo.

– Muito pelo contrário – ele murmurou.

Houve uma leve pausa e depois:

– Ah…!

Como se ela o tivesse compreendido.

– Melhor eu desligar – ele disse, rouco. – Cuide-se. Nos falamos amanhã.

Só que ela não parecia querer que ele desligasse… e seu pau ficou todo lépido e faceiro.

– Quer dizer que você vai ficar? – ela perguntou.

Podemos falar sobre outro assunto?, sua ereção pensou.

Sossegue, garoto.

– Sim, vou. – Quando ele mudou de posição no chão duro, tentou ignorar o modo como o zíper resvalou. – Tenho que me encontrar com Samuel T. para falar do divórcio.

– Então, você vai mesmo…

– Vou – ele disse. – Imediatamente. E não, não é só por sua causa. Cometi um erro, e vou consertar isso para o bem de todo mundo.

– Tudo bem. – Ela pigarreou. – Ok.

– Só estou seguindo em frente, Lizzie.

– Se é o que você diz. Bem, tchau…

– Não – ele a interrompeu. – Assim não. Nós dizemos boa noite, está bem? E não tchau, a menos que você queira que eu apareça na soleira da sua porta como um cachorro sem dono.

– Está bem.

Antes que ela desligasse, ele formou um “eu te amo” com os lábios.

– Boa noite, Lizzie.

– Boa noite… Lane.

Encerrando a ligação, Lane deixou o braço cair, e o aparelho bateu no piso de concreto com um baque.

– Eu te amo, Lizzie – disse em voz alta.

Tomando mais um gole da garrafa, pensou em como era conveniente que a fortuna da família se baseasse em algo com o qual ele poderia se embebedar. Se fosse uma enormidade de outros produtos de consumo – canetas, baterias de carro, band-aids, chicletes –, nada poderia ajudá-lo na sua atual situação.

Quando o telefone voltou a tocar, ele o atendeu de pronto. Mas não era Lizzie.

– Jeff – ele disse, mesmo não querendo conversar com mais ninguém.

A voz do seu anfitrião nova-iorquino soou seca.

– Você ainda está vivo.

– Basicamente. – Levou a garrafa de volta à boca. – E você, como é que você está?

– Está bebendo?

– Isso mesmo. No 15. Eu dividiria com você, se estivesse aqui.

– Um cavalheiro sulista, sem dúvida. – Seu amigo praguejou. – Lane, onde você está?

– Em casa.

Houve tempo suficiente para grilos cantarem na conexão.

– Você está se referindo a…

– Isso mesmo.

– Charlemont?

– Nascido e criado eu fui, e ao lar regressei. – Puxa. Devia estar ficando bêbado, estava parecendo um sulista de verdade. – Assim como você e o Upper East Side, só que nós temos miúdos de porco e frango frito.

– Que diabos você está fazendo aí?

– A minha… – Pigarreou. – Uma pessoa muito importante para mim adoeceu. Tive que voltar.

– Quem?

– A mulher que me criou. A minha… bem, a minha mãe. Mesmo ela não sendo a minha mãe biológica. Ela ficou doente alguns anos atrás, mas sabe como são essas coisas. Elas podem voltar. Ela diz que vai ficar bem, então estou me apegando a isso.

– Quando vai voltar?

Lane tomou mais um gole.

– Já te contei que me casei?

– O quê?

– Foi um pouco antes de eu ir para o norte e acabar no seu sofá. Vou ficar aqui até a senhorita Aurora ficar bem e, assim, vou poder cuidar dessa outra coisa idiota. Além disso… é que… tem essa outra mulher.

– Espera um minuto. Cacete. Espera aí…

Houve uma espécie de farfalhar, seguindo de um clic, clic, clic como se alguém estivesse tentando acender um isqueiro… e depois uma baforada.

– Vou precisar de um cubano para ouvir isso. Então, você tem uma esposa?

– Eu te disse que não era gay.

– Foi por isso que você não ficou com ninguém aqui?

– Não, foi por causa da outra mulher. Aquela com quem não me casei. Aquela que é naturalmente bonita e boa demais para mim.

– Vou precisar de um diagrama de Venn – o cara murmurou. – Cacete, por que não me contou nada disso?

Lane balançou a cabeça, mesmo que o amigo não pudesse vê-lo.

– Eu estava no modo de fuga. – Caramba, odiou o fato de Chantal estar certa. – Tudo estava barulhento demais dentro da minha cabeça. A coisa toda. Então, como é que você está?

– Você joga isso tudo em cima de mim e termina querendo saber como é que eu estou?

– Tenho que voltar a beber. Conversar está me retardando, mas estou disposto a ouvir. – Tomou um gole grande. – E aí? Alguma novidade?

– Estou bem, você sabe, as coisas de sempre no trabalho. Dez mil amplificadores ligados, um chefe que não sai do meu rabo e dezesseis comprimidos de Motrin por dia para impedir que a minha cabeça exploda. O mesmo de sempre. Pelo menos ainda tem dinheiro… ainda mais agora que você não está me arrancando um quarto de milhão de dólares todas as semanas no feltro verde.

Conversaram um pouco mais sobre nada em especial. Jogos de pôquer, Wall Street, a mulher com quem Jeff andava transando… E mesmo que Lane não fosse muito de ficar conversando ao telefone, percebeu que estava com saudades do cara. Acostumara-se à troca rápida, às sacadas inteligentes e, em especial, àquele sotaque de Jersey nos fim das frases e no uso de algumas outras palavras.

– Então, acho que é adeus por ora – seu antigo colega de classe disse.

Lane franziu o cenho e visualizou Lizzie. Ouviu a voz dela. Lembrou-se da cautela dela.

Depois rearranjou sua ereção persistente.

Ficou se perguntando se existia a mínima possibilidade de voltar para Nova York.

Pensando bem, seria melhor não se adiantar. No que se referia a reconquistar Lizzie, dependia de duas pessoas. Só porque estava pronto para retomar o relacionamento deles não significava que ela se apressaria. E também havia a sua família. Como se ele conseguisse se imaginar voltando a viver em Easterly… Mesmo que a senhorita Aurora ficasse bem de saúde e que ele e Lizzie se acertassem, a ideia de coexistir com o pai bastava para ele contemplar a fronteira canadense com carinho. E nem isso seria longe o suficiente.

– Não sei se vou ficar de vez.

– Você sempre pode voltar. O meu sofá já está com saudades de você… e ninguém joga Texas Hold’em como você.

Os dois desligaram depois de se despedirem, e enquanto Lane mais uma vez largava o braço e deixava o aparelho cair, concentrou-se na antiga destilaria do lado oposto. O lugar fora usado por décadas na virada do século, e agora era visitado por dezenas de milhares de turistas que vinham conhecer o Antigo Silo durante todo o ano.

Por algum motivo, percebeu que nunca tivera um emprego. A extensão dos seus “empenhos profissionais” era evitar os paparazzi, o que era mais uma questão de sobrevivência do que algo relacionado a uma carreira. Graças ao seu fundo fiduciário, não sabia o que eram chefes ou colegas de cubículo chatos, nem trajetos ruins para o trabalho e de volta para casa. Não se preocupava em estar em algum lugar num determinado horário, ou em concluir relatórios, nem tinha dores de cabeça devido às tantas horas passadas diante da tela do computador.

Engraçado, nunca antes considerara o fato de ter tanto em comum com Chantal. A única diferença entre eles era que o dinheiro da família dela não bastava para sustentar o estilo de vida a que se acostumara, motivo pelo qual tivera que se casar com ele.

E lá estava Lizzie, trabalhando duro, pagando aquela fazenda. Conhecendo-a como a conhecia, ela já devia estar chegando ao seu objetivo.

O que o fazia respeitá-la ainda mais.

E também o fazia se questionar exatamente o que tinha para oferecer a uma mulher de substância. Dois anos atrás, estivera todo excitado e metido no drama familiar, ávido por ela fisicamente, e tão cativado por ela mentalmente que nunca olhara para si mesmo segundo o ponto de vista dela. Todo o seu dinheiro e a sua posição social só tinham valor para pessoas como Chantal. Lizzie queria mais, merecia mais.

Ela queria a realidade.

Talvez, no fim das contas, ele não estivesse tão acima daquela sua esposa.

Ex-esposa, corrigiu-se, enquanto continuava a beber.

 

CATORZE

– A que devo a honra?

O pai de Gin falava, e seu tom era de afirmação, não de pergunta, e sugeria que o fato de ela estar parada na porta do quarto dele era uma invasão.

Que pena, ela pensou com ironia.

– Quero saber que diabos aprontou com Richard Pford.

O pai não demonstrou nenhuma reação, parado diante da cômoda, prosseguindo com o ato de retirar as abotoaduras de ouro. O paletó do smoking preto tinha sido dobrado uma vez e estava ao pé de uma chaise longue, e os suspensórios preto e vermelho haviam sido retirados dos ombros e estavam pendurados na cintura como duas fitas.

– Pai – ela rugiu. – O que você fez?

Ele a deixou esperando até tirar a gravata borboleta, puxando-a do colarinho.

– Está na hora de você se assentar…

– Você dificilmente está em posição de defender o matrimônio.

– … e Richard é um marido perfeito.

– Não para mim.

– Isso ainda veremos. – Virou-se na direção dela, os olhos frios, o belo rosto impassível. – E não se engane, você se casará com ele.

– Como ousa! Não estamos na virada do século. As mulheres não são bens, podemos ter propriedades, as nossas próprias contas bancárias, podemos até votar! E, com certeza, podemos decidir se queremos ou não atravessar a nave de uma igreja… E eu não vou, de modo algum, sair com aquele homem, quanto menos me casar com ele! Ainda mais se isso beneficiar você de algum modo.

– Sim, você vai. – Por uma fração de segundo, o olhar dele se desviou para cima do ombro dela e ele meneou a cabeça como se estivesse dispensando alguém no corredor. – E fará isso o mais rápido possível.

Gin se virou, esperando ver alguém atrás de si na soleira da porta. Não havia ninguém ali.

Voltou a se concentrar nele.

– Você vai ter que apontar uma arma na minha cabeça.

– Não será preciso. Você fará isso por sua própria escolha.

– Não.

– Sim, você vai.

No silêncio que se seguiu, o coração dela deixou de bater algumas vezes. Durante toda a vida, aprendera a odiar e a temer o pai. E naquele silêncio tenso, de ar estagnado entre eles, ela se perguntou, e não pela primeira vez, do que ele seria verdadeiramente capaz.

– Você pode escolher brigar – disse ele com suavidade. – Ou pode ser eficaz em relação ao assunto. Você só vai acabar se ferindo se não fizer isso pela família. Agora, se me permite, vou me recolher…

– Você não pode me tratar dessa maneira. – Ela forçou um pouco a voz. – Não sou um executivo da empresa que você pode empregar e demitir. E não pode me dar ordens, não quando se trata de arruinar a minha vida.

– A sua vida já está arruinada. Você teve uma filha aos dezessete anos, aqui, nesta mesma casa, pelo amor de Deus, e deu seguimento a isso com o comportamento promíscuo tipicamente reservado para as strippers de Las Vegas. Quase não se formou na Sweet Briar por causa do affair com o professor de inglês, que era casado e, assim que voltou a morar aqui, deitou-se com o chofer. Você é a desgraça da família. E pior, tenho a distinta impressão de que parte da sua diversão nessas suas aventuras é a vergonha que provoca em sua mãe e em mim.

– Talvez se eu tivesse um bom exemplo masculino para admirar, eu não considerasse os homens tão universalmente desagradáveis.

– Antes você os considerasse mesmo desagradáveis. No entanto, esse parece não ser o seu problema. Por algum motivo, Richard não se intimidou com a sua reputação, um erro de julgamento que, por certo, ele vai acabar lamentando. Ainda bem que não é problema meu.

– Eu te odeio – ela sibilou.

– O mais triste, minha querida, é que lhe falta suficiente profundidade para tal nível de inimizade. Se fosse minimamente inteligente, perceberia que Richard Pford será capaz de mantê-la no estilo de vida que você necessita, tanto quanto precisa do ar para respirar, pelo resto dos seus dias. E você estará garantindo a continuação do sucesso e da saúde financeira da família que lhe deu essa bela ossatura e essa adorável coloração facial. Essa será, depois de tudo, a sua única contribuição ao nome “Bradford”.

Gin mal percebia que estava respirando superficialmente.

– Algum dia, você vai pagar pelos seus pecados.

– Está se tornando religiosa agora? Acredito que qualquer tipo de conversão para você será difícil, até por alguém como Jesus.

– Como pode ser tão odioso? Nunca conheci ninguém tão cruel quanto você…

– Só estou cuidando de você do único modo que sei. Estou lhe dando uma fortuna, um nome honrado, e você poderá levar Amelia com você, se desejar. Ou ela pode ficar aqui.

– Como se ela não passasse de uma maleta? – Balançou a cabeça. – Você é um depravado. Absolutamente depravado…

Ele avançou e a agarrou pelo braço, permitindo que alguma emoção escapasse por baixo da máscara aristocrática de autossegurança.

– Você não faz a mínima ideia do que é necessário para manter esta família. Nenhuma ideia. A sua tarefa diária mais complexa é priorizar o que fazer antes: unhas ou cabelos. Portanto, não ouse falar de depravação quando estou resolvendo o problema de todos os sanguessugas debaixo deste teto. Os termos favoráveis de Richard Pford continuarão a nos permitir isso. – Balançou a saia do vestido de gala dela. – E isso… – Apontou para o colar no seu pescoço. – E todas as outras coisas das quais você tira vantagem diariamente sem parar para ponderar, nem que seja por um instante, como chegaram até você e a que custo. Casar-se com aquele homem é a única coisa que já lhe pediram em troca pela sua boa estrela ao nascer e pela sua liberdade de cobiça. Você é uma Bradford dos pés à cabeça, capaz apenas de consumir, mas, às vezes, um pagamento deve ser feito. Portanto, sim – ele enfatizou –, posso lhe garantir que você será a deveras feliz e contente senhora Richard Pford. Você lhe dará filhos e será fiel a ele, ou, que Deus me ajude, eu a surrarei como a garotinha de cinco anos que você ainda é. Estamos entendidos? Ou quem sabe você vai preferir fazer um curso intensivo para tentar ser como as pessoas que lavam os seus carros, preparam a sua comida, limpam o seu quarto e passam as suas roupas? Talvez você goste de saber como é difícil trabalhar para se sustentar.

– Eu te desprezo – ela disse, trêmula dos pés à cabeça.

O pai também arfava, e tossiu no punho cerrado.

– Como se me importasse. Vá em frente, faça o seu escândalo, esperneie e grite, só provará o quanto estou certo. Se for uma mulher de fato, em vez de apenas uma criança mimada e malcriada, acordará pela manhã e cumprirá o seu dever pela primeira vez em sua vida.

– Eu seria capaz de te matar neste mesmo instante!

– Mas, para isso, você teria que carregar uma arma, não é? Não é algo que possa pedir a uma criada, desde que, claro, não queira ser descoberta.

– Não me subestime…

– Visto o baixo padrão que estabeleceu para si mesma, isso seria algo muito difícil de fazer.

Girando sobre os calcanhares, ela saiu do quarto aos tropeções, e correu pelo corredor até a sua suíte. Lançando-se pela porta, trancou-se e ofegou.

Ah, inferno, não, não, jurou. Você não vai fazer isso comigo.

Se ele achava que antes ela era um problema, ele que esperasse pelo que ela aprontaria em seguida.

Enquanto marchava do quarto para o banheiro, planos reviravam em sua cabeça, muitos dos quais envolviam crimes contra o pai. No fim, teve que tirar o vestido, e o deixou cair no chão, livrando-se da seda antes de continuar andando de um lado para o outro apenas de bustiê e saltos e aqueles diamantes que a vadia da esposa do irmão tentara pôr as mãos.

Fervendo, só conseguia pensar na primeira vez em que odiara o pai…

Tinha seis, talvez sete anos, quando aconteceu. Noite de Ano-Novo. Acordara por causa dos fogos, que explodiam ao longe sobre o centro da cidade. Assustada, fora à procura de Lane, aquele com quem sempre se sentia amparada… encontrando-o na sala de estar com Max.

Gin insistira em ficar com os irmãos e fazer o que quer que estivessem fazendo. Na época, era a história da sua vida, sempre correndo para acompanhá-los, conseguir alguma atenção, estar no radar de alguma pessoa. Os empregados da casa faziam o que os pais queriam e cuidavam dos irmãos. Ela era uma nota de rodapé, uma reflexão tardia, o tapete no qual tropeçavam a caminho da porta quando iam fazer algo melhor, mais interessante, mais importante.

Não quisera beber aquela coisa da garrafa. O cheiro do bourbon era ruim, e ela sabia que era proibido, mas se Max e Lane iam tomar um pouco, então ela também tomaria.

E assim foram apanhados.

Não uma vez, mas duas.

Assim que entrara na sala, Edward ordenara que ela voltasse para a cama, e ela saíra pelos fundos como ele lhe dissera. Depois de passar pelo corredor dos empregados, porém, ouvira vozes e tivera que se esconder nas sombras a fim de não ser flagrada… quando o pai saíra do escritório de Rosalinda Freeland.

Ele estava usando seu roupão, amarrando as duas pontas do cinto ao sair de lá, e seus olhos estavam arregalados, como se estivesse com raiva, mas não havia como ele ter ouvido suas vozes lá na sala de estar. O primeiro instinto de Gin fora o de correr para a frente da casa e alertar os irmãos. No entanto, o medo a detivera… E, em seguida, a senhora Freeland saíra também, agarrando o pai pelo braço.

Sua mente infantil se perguntara por que a blusa da moça do escritório estava desabotoada, e os cabelos, sempre bem penteados e presos, estavam meio desarrumados.

Os dois discutiram em tons sussurrados, dizendo coisas que ela não conseguiu entreouvir acima das batidas do seu coração. Em seguida, o pai saiu de lá e a senhora Freeland voltou para o escritório, fechando a porta.

Gin permanecera ali pelo que lhe pareceu um ano, temendo sair, caso a senhora Freeland voltasse. Só que ela também temia que o pai voltasse por aquele caminho e a encontrasse.

Ele não devia estar ali com aquela mulher.

Ele não ficaria feliz por ela tê-lo visto.

Descalça, apressou-se pelas escadas dos empregados, colando na parede de gesso conforme subia. Já no segundo andar, paralisou quando uma segunda rodada de fogos se iniciou e, assim que terminaram de explodir, ela se abrigou na porta aberta de um dos quartos de hóspedes, desejando ter algum lugar seguro para ir.

Voltar sozinha para o quarto parecia-lhe aterrorizante. E se, além disso, o pai estivesse procurando por ela?

Sentando-se encolhida, enfiou as pernas junto do corpo e abraçou os joelhos. O pai devia ter encontrado os irmãos. Não havia como o homem não os ter visto, se tivesse usado as escadas da frente.

E isso a assustava mais do que o barulho do lado de fora.

Momentos depois, Edward surgiu no alto da escadaria, com o pai logo atrás, pairando como um monstro. Por algum motivo, o andar do irmão estava trôpego e a pele do rosto estava pálida. O pai lhe pareceu tão inflexível e reprovador quanto um banco de igreja.

Onde estariam os outros dois?

Nada foi dito enquanto eles prosseguiam até a porta do quarto do pai. E quando chegaram ao destino, Edward ficou de lado e depois tropeçou para dentro do cômodo escuro assim que a porta lhe foi aberta.

– Sabe onde estão os cintos.

Foi tudo o que o pai disse.

Não, não, ela pensou. Aquilo não era justo, Edward não estava envolvido! Por que ele…

A porta se fechou num baque, e ela estremeceu ante o que estava para acontecer.

Como esperado, um estalido foi seguido por um grunhido.

De novo.

E mais uma vez.

Edward nunca chorava. Nunca praguejava.

Já ouvira aquilo vezes demais para saber disso.

Gin abaixou a cabeça sobre os braços finos e cerrou os olhos. Não sabia por que o pai odiava tanto Edward. O homem desgostava do resto deles, mas Edward o deixava furioso.

Edward nunca chorava.

Por isso, chorou por ele… E resolveu, dali por diante, que se o pai podia odiar Edward, dois poderiam jogar aquele jogo.

E ela escolheu o que segurava o cinto naquele minuto.

Odiaria o pai dali por diante.

Voltando a se concentrar, Gin descobriu-se sentada na cama, com os joelhos ao encontro do peito, os braços ao seu redor, como se estivesse, uma vez mais, sentada dentro daquele quarto de hóspedes com apenas a camisola para aquecê-la, e o que acontecia no quarto do pai a aterrorizava em seu íntimo.

Sim, fora assim que tudo começara para ela, e William Baldwine nunca lhe dera motivos para reconsiderar o seu ódio. Aquele acordo com Richard Pford era apenas mais um item numa longa lista.

Mas não era o pior.

Não, a pior coisa que o homem fizera foi algo que ela apenas suspeitava, algo que ninguém mencionara, quer sob o teto de Easterly, quer nos jornais.

Estava convencida de que o pai era o sequestrador de Edward.

O irmão ia com frequência à América do Sul, e assim como outros executivos de sua posição, sempre viajava acompanhado de seguranças contratados pela CBB. Com esse tipo de proteção, ninguém deveria ter sido capaz de se aproximar. No entanto, seu irmão fora levado… Não numa estrada, nem mesmo numa localização remota.

Mas da sua suíte no hotel.

Como foi que aquilo pôde acontecer?

A primeira coisa que ela pensou, quando lhe contaram, foi que ali havia dedo do seu pai.

Tinha provas? Não, não tinha. Mas passara a infância inteira vendo o homem observando Edward como se menosprezasse o ar que o garoto respirava. E mais tarde, quando Edward passara a trabalhar na empresa, teve a impressão de que o relacionamento daqueles dois esfriara ainda mais, visto que o Comitê dos Curadores passara a dar mais e mais responsabilidades a Edward.

Haveria um modo melhor de se livrar de um rival do que matá-lo no exterior? De uma maneira que faria William Baldwine parecer vítima por ser um pai “em luto”?

Deus, Edward quase fora enterrado lá. E quando finalmente regressara? Estava em péssimas condições. Nesse meio-tempo, o pai se colocara diante da mídia, dos curadores, da família, mas nunca, sequer uma vez, fora visitar o filho.

Vergonhoso. E na cabeça dela era uma confirmação de que William Baldwine tentara se livrar de uma ameaça corporativa que não podia demitir.

Não era de se admirar que ela não confiasse nos homens.

Não era de se admirar que nunca fosse se casar.

Quanto menos para fazer o pai feliz.

 

QUINZE

Quando chegou a Easterly na manhã seguinte, Lizzie precisou manobrar o Yaris duas vezes para conseguir estacioná-lo direito, o que revelava o quão lamentável era seu estado mental, considerando-se que o carro era do tamanho de uma bicicleta. Saindo dele, pegou desajeitada a bolsa e a deixou cair. E quando se abaixou para pegar o protetor solar no asfalto já quente, percebeu que tinha esquecido de trazer o almoço.

Fechou os olhos.

– Maldição…

– Tudo bem, menina?

Lizzie se endireitou e se virou na direção de Gary McAdams. O chefe da manutenção da propriedade vinha andando pelo gramado, o leve claudicar não o fazia diminuir o ritmo, com o rosto envelhecido pelo tempo crispado em sinal de preocupação, como se estivesse avaliando um trator com eixo solto.

Será que sua aparência estava tão ruim assim?, perguntou-se.

Pensando bem, não dormira praticamente nada.

– Ah, sim, estou bem. – Ela forçou um sorriso. – Ótima.

– Tem certeza disso?

Não.

– Sim. Como vai a sua equipe?

– Já terminaram de cortar a grama e de aparar as trepadeiras, e vou fazer com que limpem o terraço depois das dez. – Porque só então eles tinham permissão para fazer barulho perto da casa. – As tendas foram erguidas, a parte do buffet já está pronta com as grelhas no lugar, mas tem um probleminha.

Lizzie acomodou a bolsa no ombro e pensou que já estava pronta para lidar com qualquer problema que pudesse solucionar.

– O que foi?

– Aquele senhor Harris está querendo falar com você. Tem algo com as taças de champanhe.

– Com a disposição delas nas mesas? – Fechou a porta do carro. – Pensei que elas seriam distribuídas durante a festa.

– Não, só chegou metade do pedido. Ele acha que você mudou a quantidade.

– O q… Por que eu faria isso?

– Ele disse que você é a única pessoa com acesso ao pessoal do aluguel.

– Encomendei as tendas, só isso. É ele quem tem que cuidar da louça, dos talheres e dos copos… Desculpe, estou gritando? Sinto como se estivesse gritando.

Ele apoiou sua grande mão sobre o ombro dela.

– Não se preocupe com isso, menina. O senhor Harry também me deixa doido.

– É senhor Harris.

– Eu sei.

Ela teve que gargalhar.

– Vou lá falar com ele.

– Quando ficar cansada dele, eu tenho uma pá e um ancinho. E muita área verde livre lá na minha casa.

– Você é um cavalheiro.

– Nem perto disso. Me dá a sua bolsa, menina. Vou com você.

– Ela não pesa nada. Pode deixar comigo. – Começou a andar pelo caminho que levava até a ala dos empregados. – Além disso, posso precisar dela para bater na cabeça dele.

– Lembre-se do meu ancinho – ele disse.

– Sempre.

A cada passo sobre as pedras, seu peito se contraía, e a sensação de sufocamento piorava conforme a vastidão da mansão branca surgia ao longe.

Depois de passar a madrugada olhando para o teto, não chegou a conclusão nenhuma sobre ela e Lane. O que ela guardara para si? O som da voz dele no fim do telefonema. Lembrou-se daquele tom sexy que costumava significar que ele encontraria um modo de ficar sozinho com ela, despida, o mais rápido possível.

Pareceu-lhe uma traição total que seu corpo não fosse nada além de um simples “ah, sim, pode vir” – como se sua libido desejasse o retorno do seu mestre. Afinal, ela era muito mais do que apenas um ou dois orgasmos roubados com um homem que ela deveria estar manuseando com pinças de churrasco e um extintor de incêndio.

Loucura.

Quando, por fim, chegou à casa, passou pela entrada lateral do jardim e atravessou a porta dos fundos da cozinha só para se certificar de que tudo o que preparara para a festa ainda estava onde havia deixado na noite anterior.

O que era tolice. Como se um punhado de elfos tivesse entrado ali e bagunçado tudo à luz do luar.

Entrou pela porta de empregados e cruzou a imensa cozinha que, naquele momento, estaria limpa, fria e vazia, apenas à espera dos chefs que estavam escalados para trabalhar das oito às oito. Só que o cômodo não estava completamente deserto. A senhorita Aurora estava diante do fogão industrial, com uma panela de ferro cheia de bacon estalando à esquerda, uma segunda à direita tomada de ovos mexidos. Quatro pratos estavam dispostos na bancada de aço inoxidável da ilha principal, junto de tigelas com framboesas e mirtilos frescos, um açucareiro, um pote com creme de leite e café sobre uma bandeja, sem falar de uma seleção de pãezinhos doces caseiros.

– Senhorita Aurora?

A mulher olhou por sobre o ombro.

– Ah, aí está ela. Como está? Já comeu?

– Sim, senhora.

– Não o bastante. Você e Lane, magrinhos demais. – A cozinheira se voltou para os ovos e os virou com uma espátula vermelha. – Você deveria deixar que eu te alimentasse.

– Não quero causar problemas. – Houve um grunhido de desaprovação, e antes que a discussão de sempre começasse, Lizzie a interrompeu. – A senhora me parece bem.

– Eu disse praquele mordomo que não precisava de nenhuma ambulância.

– Pelo visto, a senhora tinha razão. – E Lane devia estar muito aliviado. – Viu o senhor Harris?

– No escritório dele. Quer que eu vá com você?

– Então ficou sabendo do “champanhegate”?

– Fui eu que mandei Gary te avisar. Eu sabia que ele ia te ver quando você chegasse. Não quis que você viesse pra cá sem ter sido avisada antes.

– Não mudei o pedido.

– Claro que não. – A senhorita Aurora levantou uma frigideira de uns sete quilos como se não pesasse mais que um prato de papel. Enquanto distribuía os ovos, balançava a cabeça. – Existe uma explicação perfeitamente boa.

– Qual?

– Não é da minha conta.

– Tuuudo bem. – Lizzie deu um tempo para que a cozinheira se explicasse, mas ela não o fez. – Bem, de toda forma, vou cuidar disso. Estou muito feliz que esteja bem e de pé, senhorita Aurora.

– Você é uma boa menina, Lizzie. Mas seria ainda melhor se me deixasse te oferecer o café da manhã.

– Talvez na próxima vida.

– Só se tem direito a uma. Depois, a gente vai pro céu.

– É o que o meu pai sempre me dizia.

– O meu também.

Andando sobre o piso de azulejos, Lizzie empurrou as portas duplas e seguiu pelo corredor dos empregados. O escritório do senhor Harris ficava bem diante do de Rosalinda, e ela bateu à porta do mordomo. E mais uma vez. Na terceira, achou que estava esfolando os nós dos dedos à toa.

Fungando no ar, fez uma careta e considerou que o corredor precisava ser arejado urgentemente. Mas, pensando bem, os Bradford se recusavam a instalar ar-condicionado ou aquecimento naquela parte da casa. Afinal, os empregados que se virassem.

Seguindo até a porta envernizada de Rosalinda, também bateu ali, mesmo que a organizadora da família fosse rígida em seu horário de trabalho das nove às cinco, com trinta minutos de almoço precisamente ao meio-dia e dois intervalos de quinze minutos às 10h30 e às 15 horas. A agenda controlada lhe parecera bizarra a princípio, mas, alguns anos mais tarde, já era somente mais uma das muitas regras e regulamentos de Easterly. E fazia sentido, uma mulher que não fazia nada além de pagar contas e somar e subtrair números provavelmente tinha uma régua de cálculo nas veias e sérios problemas de controle.

Daí, então, seu título.

Pousando as mãos nos quadris, Lizzie sabia que o mordomo muito provavelmente estaria servindo a família na sala de jantar íntima. Inclusive Lane.

Consultou as horas no relógio de pulso. Não ficaria esperando pelo senhor Harris e, de jeito nenhum teria aquele confronto diante dos outros. Além disso, ela tinha trabalho a fazer: não terminara os arranjos florais na noite anterior.

Seguindo para a estufa pelo caminho dos fundos, deixou de lado sua confusão mental e se concentrou no que tinha para fazer. Depois que terminasse os arranjos, disporia as toalhas de mesa, já que não havia probabilidade de chuva e de vento forte antes do Brunch da manhã seguinte. E estava encarregada de colocar todos os pratos e copos onde precisavam ficar: junto aos bares e estações de serviço espalhados pelos jardins. Greta deveria chegar em…

– Bom dia.

Lizzie parou com a mão na maçaneta da estufa.

Relanceando por cima do ombro, deparou-se com os olhos de Lane. Ele estava sentado numa espreguiçadeira lateral, com as pernas dobradas na altura dos joelhos, os cotovelos nos apoios de braço, os dedos longos cruzados diante do peito. Usava as mesmas roupas da noite anterior e o cabelo estava uma bagunça completa, como se ele não tivesse dormido em sua cama.

– Esperando por mim? – ouviu-se dizer enquanto seu coração batia forte.

Em seu quarto, Gin amarrotava uma blusa Prada e a enfiava num dos cantos da sua mala Louis Vuitton de rodinha.

– Lenço de papel… era para você colocar lenço de papel aí. Onde ele está…

Começando a procurar, encontrou as folhas cor-de-rosa clarinhas com suas iniciais estampadas numa gaveta ampla dentro de seu guarda-roupa. De volta para onde estava arrumando a mala, lambeu o dedo e tirou uma das folhas, sendo atingida pela fragrância suave de Coco, porque a empregada borrifava cada um dos lenços individualmente assim que eram entregues na casa. Colocando o papel delicado ao redor do bolinho de seda, cobriu tudo com uma saia McQueen.

Repetindo o processo até ter quatro conjuntos completos ali, inclinou-se para trás para dar uma olhada no trabalho. Horrível. Nada parecido com o que Blanche fazia para ela, mas não pretendia esperar até que a mulher chegasse para o seu turno ao meio-dia.

Gin estava fechando a mala quando percebeu que não tinha separado roupas íntimas, sapatos e tampouco os artigos de higiene.

Pegou outra mala LV e dispensou o lenço de papel.

De toda forma, o que importava? Acabaria simplesmente comprando tudo que precisasse.

Quando terminou, levantou o telefone ao lado da cama e ligou para o escritório de Rosalinda, sem acreditar quando a secretária eletrônica pediu que deixasse um recado.

– Onde diabos essa mulher foi…

Uma olhada rápida para o relógio Cartier sobre a mesa e ela descobriu que ainda eram 8h30. Deus, há quanto tempo não se levantava cedo assim?

Arranjos para o uso dos jatinhos também podiam ser feitos por meio da assistente executiva do pai, e aquele robô estava sempre junto à sua escrivaninha. Mas Gin só queria que ele soubesse que ela estava partindo quando estivesse na metade do caminho até a Califórnia e, sem dúvida, seu buldogue de saia atacaria o telefone para avisá-lo assim que ela a acionasse.

Deus, aquela expressão no rosto dele na noite anterior fez seu sangue gelar. Nunca o vira tão furioso.

Mas, em retrospecto, ela era mesmo filha do seu pai: assim como no jogo do ódio, dois podiam jogar aquele novo jogo.

Dez minutos mais tarde, Gin puxou as alças da bagagem e as rolou até o corredor, tropeçando sobre as malditas malas. Com a bolsa de monograma combinando com a bagagem batendo na lateral do corpo, empinou um dos saltos Louboutin para fechar a porta, e praguejou contra a falta de um carregador.

Mas também não confiava no mordomo.

A bem da verdade, não confiava em ninguém naquela casa.

Antes de tomar o elevador até o porão, foi até o quarto de Amelia e abriu a porta.

Pela primeira vez, percebeu a decoração.

A cama de dossel branca e rosa era queen size, apesar de a filha pesar pouco mais que um travesseiro, e não havia nenhum pôster da Taylor Swift ou do One Direction nas paredes. A penteadeira era francesa e antiga, o banheiro acoplado era de mármore e latão, e tinha mais de sessenta anos, e o candelabro Baccarat no meio do quarto era suspenso por uma corrente coberta por seda, e debaixo dele havia um medalhão de ouro feito à mão.

Parecia mais o quarto de uma senhora de cinquenta anos do que de alguém de quinze.

Dezesseis, a partir da noite anterior, Gin se lembrou.

Andando na ponta dos pés sobre o tapete bordado à mão, ela apanhou seu retrato predileto da menininha de cabelos negros, que agora já não eram mais tão escuros já que ela estava fazendo luzes a cada seis semanas, e tampouco era tão pequenina, pois já estava no segundo ano em Hotchkiss.

Só de pensar na filha, a ideia de sair de Easterly lhe parecia cada vez mais acertada. Ela tinha duas amigas esperando por ela em Montecito, e ficaria lá até que o pai entendesse que podia muito bem administrar uma empresa bilionária, mas que não mandava nela. E depois disso? Voltaria para lá com certa regularidade, só para ele ver que cometera um erro.

De novo no corredor, refreou os xingamentos ao se arrastar até o elevador e entrar. Quebrou uma unha ao apertar repetidamente o botão para fechar a porta, e quase quebrou um dos saltos quando pisou no chão da adega, puxando as malas para fora.

Não fazia a mínima ideia de onde ir. Onde ficava a garagem. Como se orientar no andar subterrâneo.

Levou quase vinte minutos para encontrar o túnel que levava até a frota da família, e quando emergiu na garagem para dez carros, sentia-se como se tivesse não só acabado de correr uma maratona, mas vencido.

Só que estava sem as chaves dos carros. Nada no Bentley. Nem do Drophead. E não pegaria nem o Porsche GTS, nem a Ferrari, tampouco o Jaguar antigo que se parecia com o de Samuel T., porque todos eles tinham câmbio manual e ela não sabia dirigir modelos assim. O mesmo acontecia com os 911 e o Spyker.

E os sedãs Mercedes não eram bons o bastante para ela.

– Maldição! – Quando bateu o pé no chão, uma das malas de rodinha caiu como se tivesse desmaiado. – Onde estão as chaves?

Abandonando a bagagem, marchou até o escritório. Trancado. Assim como as portas da garagem.

Aquilo era totalmente inaceitável.

Pegou o celular, estava prestes a telefonar – bem, não sabia exatamente para quem, mas para alguém –, quando um armarinho pendurado na parede chamou sua atenção. Indo na direção da portinha de metal de 0,3 por 0,9 metros, deu um puxão na alça, e não se surpreendeu quando a porta não cedeu.

A boa notícia? Ela estava com muita vontade de bater em alguma coisa.

Olhando ao redor, não viu nada fora do lugar. Desde lonas para cobrir os carros, até pneus sobressalentes e material de limpeza, tudo estava organizado numa parede com precisão militar em prateleiras, ganchos, e caixas tampadas.

Exceto pelo pé de cabra, que encontrou encostado numa pilha de panos limpos com o brasão da família bordado.

Gin sorriu ao caminhar do alto dos seus saltos, erguendo a peça de metal. De volta ao armário, arqueou o objeto acima da cabeça e bateu na caixa onde estavam as chaves como se aquilo fosse a cabeça do pai. Bateu, bateu, bateu e bateu, o som metálico agudo ecoando em seus ouvidos.

Apesar de já estar quase sem unhas quando concluiu a tarefa, a porta estava pendurada no que restava das suas dobradiças.

O Bentley, decidiu.

Não, o Rolls. Custava mais caro.

Levando a bagagem até o Phantom Drophead, abriu a porta que se abria ao contrário, enfiou as malas no banco de trás e se pôs atrás do volante. Afundou o sapato de salto no freio, apertou o botão da ignição e o motor rugiu a vida com um rosnado latente.

Esticando a mão na direção do espelho retrovisor, apertou todos os botões até a porta da frente se erguer.

E partiu.

A raiva dentro dela fez com que quisesse passar pelo caminho frontal só para desfilar diante dos cômodos particulares da família; mas era mais importante sair da propriedade sem que ninguém soubesse, por isso contentou-se em levantar o dedo médio para Easterly pelo espelho retrovisor enquanto usava o caminho dos empregados.

Quando chegou à estrada River, virou à esquerda, verificou as horas e pegou o telefone. Rosalinda já deveria ter chegado àquela altura, e ela poderia finalmente cuidar dos arranjos para o jatinho, o que não deveria ser um problema. Gin pedia o avião pelo menos uma vez por semana.

Caixa postal. De novo.

O maldito Brunch. Esquecera-se dele. Todos os funcionários estavam distraídos.

Mas ela tinha necessidades.

Gin ligou para outro número, um que tinha apenas um dígito diferente do de Rosalinda. Ao terceiro toque, ela estava quase desistindo quando ouviu o inconfundível sotaque britânico daquele mordomo.

– Senhor Harris falando, como posso ajudar?

– Preciso de um avião e não consigo falar com a Rosalinda. Você vai ter que providenciá-lo para mim. Decolando neste instante para o aeroporto de Los Angeles.

O mordomo limpou a garganta.

– Senhorita Baldwine, perdoe-me…

– Não venha me dizer que está ocupado demais. Você pode ligar diretamente para o piloto, já fez isso antes, e depois pode voltar para qualquer uma das suas incumbências idiotas do Brunch…

– Lamento, senhorita Baldwine, mas não haverá um avião disponível para a senhorita.

– Você só pode estar brincando. – Sem dúvida era por causa daqueles convidados corporativos que estavam chegando para o Derby. Mas ela era da família, pelo amor de Deus. – Tudo bem, apenas atrase alguém e eu…

– Não será possível.

– Eu sou prioridade! – O Phantom ganhou velocidade quando ela apertou o acelerador, pelo menos até quase acertar o carro na frente dela. – Isso é inaceitável. Ligue para aquela torre de controle, ou para aquela lista de pilotos ou… para quem quer que me coloque num maldito avião para a costa oeste!

Houve uma longa pausa.

– Sinto muito, senhorita Baldwine, mas não poderei mais fazer esse tipo de serviço para a senhorita.

Um alerta gélido apertou a sua nuca.

– Que tal mais tarde, ainda esta manhã?

– Não será possível.

– À tarde.

– Lamento, senhorita Baldwine.

– O que o meu pai lhe disse?

– Não cabe a mim comentar o que…

– Que porra que ele te disse? – ela berrou ao telefone.

A respiração que o homem soltou era o mais próximo que ele chegaria a uma imprecação em voz alta.

– Esta manhã, recebi um memorando dirigido à organizadora e a mim, indicando que os recursos da família não estariam mais disponíveis para a senhorita.

– Recursos…?

– O que inclui dinheiro vivo, contas bancárias, viagens e acomodações em hotéis, e acesso às demais propriedades dos Bradford ao redor do mundo.

Nessa hora o pé dela escorregou do acelerador, e quando o carro atrás dela buzinou, ela foi para o acostamento.

– Gostaria de poder fazer algo – ele disse num tom neutro que indicava que isso não era verdade. – Mas, como já disse, estou impossibilitado de ajudá-la.

– O que devo fazer?

– Talvez voltar para casa seja o melhor. Acabei de vê-la saindo no Rolls-Royce.

– Não vou me casar com Richard Pford – ela disse e depois encerrou a ligação.

Quando olhou pelo retrovisor, os arranha-céus denteados do centro da cidade pareceram assustadores pela primeira vez em sua vida. Nunca antes se impressionara com a cidade de Charlemont, tendo dado a volta ao mundo diversas vezes. Mas todas essas viagens aconteceram enquanto ela tinha recursos ilimitados ao seu dispor.

Com a mão trêmula, pegou a carteira e levantou o fecho. Ela tinha cinco notas de cem dólares e algumas de vinte… e sete cartões de crédito, inclusive um Amex Centurion. Estava sem a habilitação porque sempre andava com motorista particular. Também não tinha o cartão do seguro de saúde porque fazia uso dos serviços dos médicos afiliados à Cia. Bourbon Bradford. Não estava nem com o passaporte, apesar de não ter planejado sair do país.

Duzentos metros mais adiante, havia um posto de gasolina, e ela voltou a acionar o Phantom, seguindo o fluxo do trânsito. Quando chegou ao símbolo da Shell, cortou caminho diante de um caminhão que vinha na direção oposta e parou junto a algumas bombas de abastecimento.

Quando saiu, não foi para abastecer o carro. O tanque estava cheio.

Sacou um cartão Visa qualquer e colocou-o no leitor. Em seguida, apertou as teclas que compunham a sua senha. Esperou para ver se a transação hipotética seria aceita.

Não aprovado.

Tentou o Amex e recebeu a mesma resposta da máquina. Quando outros dois Visas não funcionaram, ela desistiu.

Ele bloqueara os seus cartões.

De volta ao volante, tudo ficou embaçado. Tinha investimentos por toda parte, dinheiro que lhe pertencia… mas só dali a dois anos, quando completasse trinta e cinco, e nenhum dia antes disso – algo que descobrira quando num impulso tentara comprar uma casa em Londres no ano passado e tivera esse desejo negado pelo pai. Pouco importou o quanto tivesse gritado com a empresa do seu fundo, eles se recusaram a lhe entregar o dinheiro, declarando que ela não tinha permissão para acessá-lo até que atingisse a idade estipulada.

Só havia um lugar para onde poderia ir.

Odiava implorar, mas isso era muito melhor que se casar, ou admitir uma derrota ao pai.

Colocando o câmbio mais uma vez no drive, enfiou-se no trânsito e tomou a direção da qual viera. No entanto, não retornaria a Easterly. Iria para…

De repente, o carro morreu. Tudo parou: o motor, o ar-condicionado, as luzes do painel. As únicas coisas que funcionavam eram o volante e o freio.

Enquanto pressionava o botão da ignição, viu suas ações frenéticas e impotentes de longe, notando, sem dar muita atenção, como suas unhas estavam arruinadas, as pontas cortadas, o esmalte vermelho-cereja lascado. Tendo que admitir que o motor não voltaria a funcionar, foi para o acostamento da estrada para não acabar numa colisão e…

Sirenes soaram ao longe e ela olhou pelo espelho retrovisor.

Uma viatura da Polícia Metropolitana de Charlemont encostou atrás dela com as luzes acionadas. E depois uma segunda unidade se pôs à frente até que o Phantom ficasse bloqueado.

Os dois policiais se aproximaram dela com as mãos sobre as pistolas presas ao coldre, como se não tivessem certeza se precisariam das armas.

– Saia do veículo, senhora – o mais alto deles disse com voz autoritária.

– Este carro é meu! – ela exclamou ao abaixar o vidro. – Vocês não têm o direito de…

– Esse veículo pertence a William Baldwine, e a senhora não tem autorização para usá-lo.

– Ah, meu Deus… – ela sussurrou.

– Saia do carro, senhora…

Merda, estava sem a habilitação.

– Sou filha dele!

– Senhora, estou ordenando que destrave as portas e saia do veículo. Se não fizer isso, vou autuá-la por resistir à prisão. Além de dirigir um veículo roubado.

 

DEZESSEIS

– Claro que eu estava à sua espera. – Assim que Lane falou, levantou as mãos, num gesto de quem pedia para aguardar. – Mas apenas como amigo. Queria me certificar de que chegou bem ao trabalho.

Maldição, ela estava linda. Mais uma vez, com a camisa polo preta do uniforme de Easterly e shorts cáqui, o cabelo puxado para trás, preso num rabo de cavalo… De alguma forma, parecia exoticamente bela.

Pensando bem, já fazia mais de doze horas que não a via.

Uma vida inteira, de fato.

Enquanto ela revirava os olhos, ele a flagrou tentando esconder um sorriso.

– Já fiz esse trajeto algumas vezes, sabe – ela disse.

– E como foi esta manhã?

Houve uma pausa, e então algo mágico aconteceu. Lizzie explodiu numa gargalhada.

Cobrindo a boca, ela meneou a cabeça.

– Desculpe, mas você está horrível. O seu cabelo está todo… – ela mexeu a mão ao redor da cabeça dele – … está uma bagunça, seus olhos mal conseguem ficar abertos. Sabia que está balançando para a frente e para trás apesar de estar sentado?

Ele deu um sorriso largo.

– Você precisava ver o outro cara.

– Ele era durão?

– Agora, em vez de usar capuz ele usa brinco. – Lane levantou um braço e flexionou o bíceps. – Homem pra valer este aqui…

Ouviram um par de passadas vindo na direção deles, então Lane espiou por cima do ombro dela e murmurou alguma coisa bem baixinho.

Era o mordomo inglês seguindo direto para ela, só que parou quando viu Lane.

– Com licença, Lane – Lizzie disse baixinho. – Tenho um assunto de trabalho para resolver agora.

– O que foi? – ele perguntou ao mordomo.

O inglês sorriu, parecendo um manequim de loja.

– Nada com que tenha que se preocupar, senhor Baldwine. Senhorita King, poderia fazer a gentileza de vir até o meu escritório quando tiver terminado de…

– O que houve? – Lane exigiu saber.

– Apenas um mal-entendido – Lizzie murmurou.

– Sobre o quê?!

Lizzie se concentrou no senhor Mais Sagrado Que o Senhor.

– O pedido das taças de champanhe alugadas foi reduzido, e ele acha que eu telefonei para Mackenzie para mudar a quantidade, mas não fiz isso. Ficarei feliz em poder organizar tudo quando os copos e os pratos chegarem, mas não sou responsável por coordenar nada que se refira aos pedidos. As tendas e as mesas são de minha responsabilidade, e elas estão exatamente onde deveriam estar.

Os olhos do senhor Harris se estreitaram.

– Esta conversa deve ser conduzida em meu…

– Então, não tem nada a ver com ela. – Lane sorriu para o mordomo com frieza. – E seu assunto aqui terminou.

Lizzie pôs uma mão no braço dele, e o contato foi uma surpresa tamanha, que de fato o calou.

– Está tudo bem. Repito, ficarei feliz em fazer o que puder para ajudar. Senhor Harris, quer que eu fale com Mackenzie e tente encontrar um modo de solucionar o caso?

O mordomo olhou de um a outro.

– Sei o que encomendei. O que não sei explicar é como apenas metade disso foi entregue.

– Veja bem, não quero lhe ensinar o seu trabalho – Lizzie disse. – Mas erros da parte deles já aconteceram antes. O que precisamos fazer é descobrir o que mais está faltando e ligar para eles para alertá-los. Isso não deve ser um problema. O senhor fez o pedido pessoalmente ou foi por intermédio de Rosalinda?

– Usei os serviços da senhora Freeland, e lhe entreguei os números corretos.

Lizzie franziu o cenho.

– Ela sabe o quanto pedir. Fez isso por anos a fio.

– Ela me garantiu que tomaria conta da questão. Deduzi que outra pessoa com acesso à conta tivesse reduzido a quantidade.

– Vá procurá-la, e eu encontrarei Greta para contar tudo o que foi entregue. Vamos resolver. Pelo menos, descobrimos hoje e não amanhã de manhã.

Houve um instante de constrangimento no qual o mordomo nada disse, e Lane se perguntou o quanto daquele plano sensato ele teria que enfiar goela abaixo do ditadorzinho.

– Muito bem – disse o mordomo. – A sua assistência será muito bem-vinda.

Enquanto o senhor Harris se afastava, Lizzie inspirou fundo.

– E assim entramos na contagem regressiva das vinte e quatro horas.

– Ninguém da equipe pode fazer essa contagem? Esse problema não é seu.

– Está tudo bem. Pelo menos se Greta e eu fizermos isso, saberei que está tudo certo. Além disso, todos em Easterly estão com trabalho até as orelhas, e os chefs auxiliares não poderão dispensar…

O telefone de Lane começou a tocar, e ele o tirou do bolso para silenciar o barulho.

– Quem diabos pode ser? – perguntou, quando viu o código de área local.

Ela riu de novo.

– Você pode descobrir se… prepare-se… atender!

– Está pegando no meu pé?

– Alguém tem que fazer isso.

Lane sorriu tão amplamente que suas bochechas começaram a doer.

– Ok, vamos lançar os dados e ver quem é. – Apertou o botão verde e disse em sua voz mais arrastada: – Vocccccêêêê ligoooouu paaaara…

– Lane! Ah, meu Deus, Lane, preciso da sua ajuda.

– Gin? – Ele se endireitou na espreguiçadeira. – Gin, você está bem?

– Estou no centro da cidade, na cadeia de Washington County. Você tem que vir aqui pagar a minha fiança…

– Que diabos? O que você…

– Preciso de um advogado…

– Ok, ok, ok, devagar. – Ele se pôs de pé. – Você está falando rápido demais e não estou entendendo.

Sua irmã fez uma pausa e depois disse quatro frases completas que o deixaram sem chão.

– Está bem – disse ele com seriedade. – Estou indo para aí agora mesmo. Sim. Certo. Ok. Fique aí.

Quando desligou, só o que ele conseguiu fazer foi procurar o rosto de Lizzie.

– O que foi? – ela perguntou.

– O meu pai mandou prenderem Gin. Tenho que, literalmente, ir até a cadeia e pagar a fiança dela.

Lizzie cobriu a boca com a mão num sinal de choque.

– Posso fazer alguma coisa?

– Não. Vou lá cuidar dela. Mas obrigado.

Ele precisou de todo o seu autocontrole para não se inclinar e beijá-la como costumava fazer. Em vez disso, contentou-se em esticar a mão e afagá-la no rosto, saindo antes que ela pudesse dizer que “amigos não fazem isso”.

Inferno, o que o seu pai estaria aprontando agora?

Na época em que fora fumante, Edward frequentemente acordava de manhã já esticando o braço para pegar o maço de Dunhill Reds antes de estar plenamente consciente de sequer ter rolado de lado.

Hoje em dia ele fazia o mesmo, só que para pegar o frasco de Advil.

Colocando quatro cápsulas de gel na palma trêmula, levou-as à boca e as engoliu com o que restava da vodca que levara para a cama. Fazendo uma careta enquanto essa sua versão de desjejum descia até o estômago, deitou-se de novo sobre o travesseiro.

Tinha parado de fumar durante a recuperação. Na verdade, o sequestro fora o primeiro passo para que abandonasse o vício.

Ironicamente, o fato de quase ter morrido foi o responsável por ajudá-lo a ter uma vida mais longa.

Saudou com a garrafa no ar.

– Gracias, muchachos.18

Antes que seu cérebro entrasse no looping infindável da sequência horrenda do Dia Em Que Tudo Aconteceu, virou as pernas para o chão e se sentou. Não olhou para a coxa e para a panturrilha direitas. Primeiro porque as cicatrizes tortas da sua pele à la Frankenstein estavam gravadas em sua mente. Segundo porque ele já não dormia mais nu, por isso elas não estavam aparecendo.

A bengala era necessária para que ele se levantasse, e seu equilíbrio não estava muito bom não só por causa dos ferimentos, mas pela falta de sono e pelo fato de ainda estar meio embriagado. Mancando até o banheiro, deixou as luzes apagadas, de modo que o espelho não foi um problema, e usou o vaso, lavou as mãos, o rosto e escovou os dentes.

A confirmação de que Deus ainda o odiava veio quando ele saiu do chalé uns dez minutos depois e foi ofuscado pela luz brilhante do sol e pela dor de cabeça causada pela ressaca.

Que horas são?, perguntou-se.

Já estava na metade do caminho até o Estábulo B quando percebeu que levara a garrafa junto. Como se fosse o seu brinquedinho predileto.

Revirando os olhos, seguiu em frente. A senhorita Nada de Praguejar Perto de Mim poderia muito bem se acostumar com ele e sua bebida; não havia motivos para apresentar-lhe uma ilusão diurna de abstinência que só a perturbaria no futuro. Se ela não conseguisse lidar com esse seu hábito, ela podia muito bem ir embora no primeiro dia.

O som de pneus cantando fez sua cabeça girar para a direita, e na fração de segundo seguinte, Shelby apareceu na ponta oposta do estábulo, o corpo encurvado na cintura ao empurrar uma tremenda carga de esterco de cavalo dentro de uma velha carreta enferrujada.

Pelo visto, Moe já a colocara para trabalhar.

– Ei – ele a chamou.

Sem diminuir o passo, ela acenou por sobre o ombro e seguiu em frente com o esterco para trás da construção mais próxima.

Enquanto a observava, invejou o corpo forte dela, talvez notando, sem nem se dar conta, que o sol fazia com que as mechas loiras dela parecessem quase brancas. Ela estava usando uma camiseta azul-marinho, um par de jeans escuros e as mesmas botas resistentes da noite anterior. Depois de desaparecer atrás da curva do prédio, reapareceu duas vezes mais rápido do que deveria, considerando a quantidade de esterco que teve que descarregar.

Portanto, ela também era eficiente.

Ao se aproximar, seus olhos estavam claros e alertas, o rosto corado pelo esforço.

– Quase terminando. Depois vou pro C.

– Jesus, Moe fez com que você… desculpe – disse antes que ela o corrigisse. – Maldição, Moe já te colocou pra trabalhar? E não venha me dizer que não posso usar “maldição”. Deixo de mencionar Deus e Jesus Cristo, mas só vou até aí.

Ela deixou os pés do carrinho encostarem na grama aparada.

– Suco de laranja.

– O que disse?

A filha de Jeb Landis acenou para a garrafa.

– Pode ficar com “maldição”, mas eu gostaria de ver você com outra coisa que…

– Você sempre julgou tanto assim?

– … não fosse vodca tão cedo assim. E não estou te julgando.

– Então por que quer mudar os hábitos de um desconhecido?

– Você não é um desconhecido. – Enxugou a testa com o antebraço. – Não são nem nove da manhã. Fico me perguntando por que você precisa beber tão cedo assim.

– Eu estava meio desidratado.

– Não tem água encanada na sua casa? Ontem tinha.

Ele balançou a garrafa.

– Isto aqui está servindo bastante bem. Pense que é a minha versão da vitamina C.

Ela resmungou alguma coisa ao se abaixar para pegar as alças.

– O que disse? – ele exigiu saber.

– Você me ouviu.

– Não, não ouvi, não. – O que não era exatamente a verdade.

Shelby só deu de ombros e seguiu em frente, aquele seu corpo se movendo debaixo das roupas, executando a tarefa sem nenhum esforço aparente.

E foi nessa hora que algo lhe ocorreu.

– Shelby?

Ela parou e olhou por cima do ombro.

– Pois não?

– Você disse que cuidou de todos os cavalos.

– Cuidei.

– Nos Estábulos A e B.

– Isso mesmo.

Ele se apressou e a agarrou pelo braço.

– Eu te disse. Uma regra. Não chegue perto daquele garanhão.

– A baia não ia se limpar sozinha…

A mão dele se apertou por vontade própria.

– Ele matou um ajudante de estábulo no ano passado. Foi pisoteado até morrer ali. Nunca mais faça isso.

Aqueles olhos azuis dela ficaram arregalados.

– Ele se portou bem comigo.

– Só eu chego perto dele. Estamos entendidos? Faça isso mais uma vez e eu faço as suas malas – ele disse firmemente – e te mando de volta para o lugar de onde veio.

– Sim, senhor.

Ele se afastou e tentou não cambalear.

– Muito bem, então.

– Está certo.

Ela soprou o cabelo para longe do rosto e voltou a andar, com os ombros tensos.

Tirando a tampa da vodca, Edward deu um trago longo e, provavelmente, deveria ter parado quando percebeu que a bebida já não ardia mais.

Mas essa era outra coisa sobre a qual não queria pensar.

Assim como não queria pensar no que poderia acontecer com a filha de Jeb Landis enquanto ela estivesse sob a sua proteção.

Maldição.


“Obrigado, meninos.”

 

DEZESSETE

A cadeia e o Tribunal do Condado de Washington formavam um complexo de edifícios modernos que ocupava dois quarteirões inteiros no centro da cidade, cujas instalações se comunicavam por meio de passarelas que se estendiam acima do trânsito da rua logo abaixo. Havia certa quantidade de entradas e, enquanto Lane encostava o Porsche, inúmeras pessoas entravam e saíam; eram homens e mulheres em ternos subindo e descendo os degraus de mármore, policiais dentro de suas viaturas, delegados estacionando suas SUVS e saindo de vagas reservadas, pessoas em roupas desgastadas fumando pelos cantos.

O seu 911 Turbo emitiu uma tossida baixa quando ele desacelerou e se dirigiu para os prédios imponentes. Não havia nenhum layout lógico que ele conseguisse distinguir. Tampouco um endereço.

Como se, caso tivesse que perguntar para onde deveria ir, ficaria com a sensação de que aquele não era o seu lugar…

Até que, de repente, um afro-americano uniformizado surgiu bem diante do seu carro.

– Droga! – Lane afundou o pé no freio. – Mas que diabos! Mitch?

O delegado Mitchel Ramsay não respondeu. Apenas indicou uma vaga livre bem atrás dele.

Lane estacionou com uma baliza perfeita, ciente de que o delegado estava bem ao lado do seu para-choque, os braços grossos como uma corda náutica cruzados sobre seu peito de jogador de futebol americano. Seus olhos negros estavam escondidos atrás de óculos Ray Ban, e a cabeça raspada fazia com que seu pescoço e seus ombros parecessem ainda maiores do que eram de fato.

Lane saiu do carro esportivo.

– Ei, sabe onde a minha irmã…

– Pode deixar.

Os dois bateram palmas e deram um abraço forte. Enquanto permaneciam peito contra peito, Lane foi transportado para quase dois anos atrás, para a pista de pouso particular a oeste da cidade. Para a noite em que Edward finalmente retornava do cativeiro.

Mitch o trouxera de volta aos Estados Unidos. De volta para a família.

Só Deus sabia como. Ninguém perguntara os detalhes, e Lane sempre ficou com a impressão de que o antigo soldado do Exército não teria partilhado os “como” e os “quem”, de todo modo.

– Ela não está muito bem – comentou Mitch.

– Não me surpreende.

Lane seguiu o delegado, subindo os cinquenta degraus até uma das portas giratórias. Quando terminaram de subir, Mitch desviou para uma porta demarcada com SOMENTE POLICIAIS e depois os fez passar pela segurança, de onde outros policiais acenaram em sinal de respeito.

– Agi o mais rápido que pude assim que vi o nome – disse Mitch enquanto suas passadas se uniam a todas as outras, ecoando no vestíbulo principal, com pé direito alto. – Ela foi presa por furto de veículo, por dirigir sem habilitação, por não apresentar o seguro…

– Como diabos isso foi acontecer?

– … e por resistir à prisão. Já isolei o incidente, mas não vou conseguir mantê-lo fora dos registros policiais indefinidamente.

– Espere. – Lane fez o homem parar. – Minha irmã roubou um carro?

– Um Rolls-Royce. Registrado no nome da Cia. Bourbon Bradford.

– Está se referindo… ao nosso Rolls. O Phantom Drophead?

– O seu pai telefonou pessoalmente para a Polícia Metropolitana e pediu que fossem atrás dela, alegando que ela não tinha permissão para dirigir o veículo.

– Você não pode estar falando sério. – Lane enfiou a mão nos cabelos. – Quero dizer, é claro que ele pode fazer isso. Já fez coisa pior.

– Você chamou um advogado?

– Samuel T. deve chegar aqui em…

– Lane!

Samuel T. avançou em meio a um grupo de pessoas, destacando-se por inúmeros motivos. Primeiro, seu terno de risca de giz azul e branco fazia com que ele parecesse pertencer a uma varanda da casa grande de uma fazenda, sorvendo um julepo de menta com um par de cães de caça aos seus pés. Segundo, ele era belo demais para estar entre os mortais.

– Obrigado por vir tão rápido – Lane disse ao apertarem as mãos. – Você conhece Mitch.

– Certamente. Delegado.

– Senhor Lodge.

Encerrando os cumprimentos, os três seguiram para as escadas rolantes que levavam ao segundo andar.

– Ela está numa cela. – Mitch os conduziu por uma das passarelas. – Mas removi qualquer tipo de retardo para a audiência da fiança. Assim que estiver pronto, senhor Lodge…

– Pode me chamar de Samuel ou de Sam.

– Samuel. – Mitch assentiu. – Assim que estiver pronto. Farei com que ela se apresente diante do juiz McQuaid. Já conversei com o promotor público. As mãos dele estão atadas, visto que o senhor Baldwine está pressionando. A única coisa que posso fazer é apressar, apressar, apressar.

Lane cerrou os molares. Gin dava trabalho e, evidentemente, o pai já estava farto disso, mas aquilo tudo era exposição demais.

– Vou ficar te devendo essa, Mitch.

– Não se preocupe.

O delegado os fez passar por vários pontos de controle de segurança, até adentrarem o complexo. Embora Lane tivesse aprontado sua porção de infrações quando era mais jovem, todas as suas transgressões foram discretamente “resolvidas”. Portanto, aquela era a primeira vez que ia para a cadeia, e não poderia dizer que estava com pressa para voltar lá algum dia.

A sala de espera tinha paredes creme. Piso creme. Cadeira plástica laranja, amarela e vermelha. O cheiro no ar era de suor e de roupas sujas, e de desinfetante em spray.

Graças a Mitch, passaram ao largo do balcão de registros com as divisórias de vidro à prova de balas e da fila de policiais com a pescaria do dia. Isso sim era um chamado para a realidade da outra parte da população. Homens sujos e rapazes estranhos… moças quase despidas… mulheres mais velhas com aspecto cansado… Todos eles de pé ou cambaleando, acompanhados dos policiais que os prenderam, seus rostos revelando as marcas da vida dura que levavam.

– Por aqui, delegado Ramsey – alguém o chamou ao lado de uma porta reforçada.

Depois de passar por mais um ponto de segurança, cruzaram com diversas salas de reunião com luzes vermelhas acesas sobre as portas e grades diante das janelas protegidas por telas.

– Se esperarem aqui – o policial disse, na frente de uma das salas –, eu a trago já.

– Obrigado, Stu. – Mitch abriu a porta e se colocou de lado. – Fico esperando do lado de fora.

– Muito obrigado. – Lane bateu no ombro do homem. – E, provavelmente, ainda vamos precisar da sua ajuda.

– Estou aqui para o que precisarem.

Samuel T. parou ao lado do delegado.

– Alguém já falou com a imprensa?

– Nós não – Mitch respondeu. – E quero que continue assim.

– A minha irmã não tem a melhor das reputações. – Lane meneou a cabeça. – Quanto menos pessoas souberem, melhor.

Mitch os deixou ali na sala. Embora houvesse quatro cadeiras presas ao chão junto a uma mesa de aço também presa, Lane não conseguiu ficar sentado. Samuel T., por sua vez, pôs a velha maleta ao seu lado e cruzou as mãos.

O advogado balançou a cabeça.

– Ela vai ficar louca quando souber que você me chamou.

– E quem mais eu poderia chamar? – Lane esfregou os olhos doloridos. – E depois disso, você vai me ajudar com o meu divórcio, certo?

– Apenas mais uma manhã atarefada com os Bradford…

Pelo menos deixaram que ela permanecesse com as próprias roupas, Gin pensou, enquanto era conduzida por outro corredor de concreto pintado com a vichyssoise do mês.

Ficara aterrorizada com a perspectiva de se despir diante de uma guarda feminina de peito cabeludo para depois ser violada por uma mão com uma luva antes de ser enfiada dentro de um macacão laranja do tamanho de uma tenda de circo. Quando isso não aconteceu, ficara obsessiva com a possibilidade de ser trancafiada numa cela horrorosa e suja com um punhado de prostitutas viciadas em drogas tossindo o vírus da AIDS em cima dela.

Em vez disso, fora colocada numa cela sozinha. Uma cela fria, com apenas um banco e um vaso sanitário de aço sem assento nem papel higiênico.

Não que um dia ela fosse fazer uso daquilo.

Seus brincos de diamante foram retirados, assim como o relógio Chanel, juntamente com as malas LV, o celular, aquelas notas de quinhentos dólares e os cartões de crédito inúteis que tinha na carteira.

Um telefonema. Foi só o que lhe concederam, bem como nos filmes.

– Por aqui – disse o guarda, parando diante de um homem afro-americano uniformizado, e em seguida abrindo uma porta pesada.

– Lane…! – Só que ela parou de correr na direção do irmão assim que viu quem estava sentado à mesa. – Ah, Deus. Ele não.

Lane a abraçou com força depois que a porta se fechou.

– Você precisa de um advogado.

– Estou livre – Samuel T. disse com a fala arrastada. – Relativamente livre.

– Não vou falar na frente dele. – Ela cruzou os braços diante do peito. – Nenhuma palavra.

– Gin…

Samuel T. interrompeu o irmão dela.

– Eu te disse. Acho melhor pegar as minhas coisas e ir embora.

– Sentem-se – Lane ordenou. – Os dois.

Houve um instante de silêncio, que Gin entendeu como sinal de que Samuel T. estava tão surpreso pelo tom de comando quanto ela. Lane sempre fora, dentre os quatro irmãos Baldwine, aquele que seguia conforme a maré. Agora, ele parecia Edward.

Ou como Edward costumava ser.

Depois que se sentou desajeitada numa cadeira tão dura e fria quanto um bloco de gelo, Lane apontou um dedo na direção dela.

– O que você aprontou?

– Como é? – ela disse, se retraindo. – Por que é culpa minha? Por que acha que fui eu quem…

– Porque normalmente é o que acontece, Gin. – Ele cortou o ar com a mão quando ela começou a discutir. – Nem comece, eu te conheço há tempo demais. O que fez desta vez para irritá-lo? Vou tirar você daqui, mas tenho que saber com o que estou lidando.

Enquanto Gin encarava o irmão, quis mais do que nunca mandá-lo se foder. Mas só conseguia pensar na imagem dos seus cartões sendo negados no mostrador digital da bomba do posto de gasolina. Quem mais poderia ajudá-la?

Olhou para Samuel T. Ele não a encarava, e seu rosto estava impassível, mas a desaprovação altiva que ele emanava era tão evidente quanto sua colônia no ar.

– E então? – Lane inquiriu.

Pesando as opções, percebeu que estava completamente desconfortável com essa coisa de enfrentar situações difíceis. Com dinheiro suficiente e uma amnésia conveniente, não existia nada que ela não pudesse evitar, quer isso envolvesse suborno ou teimosia.

Infelizmente, as infindáveis opções estavam fundamentadas num estilo de vida que apenas parecia ser dela. Mas, na verdade, era de outra pessoa. Só não sabia disso até aquela manhã.

Pigarreou.

– Samuel T., você pode… me dar um momento a sós com o meu irmão? – Ela avançou a mão sobre a mesa. – Não estou dizendo que não pode ser o meu advogado, só preciso de um pouco de privacidade com ele. Por favor.

Samuel T. curvou uma sobrancelha.

– É a primeira vez que a ouço dizer essas palavras. Pelo menos estando vestida.

– Cuidado, Lodge – Lane rosnou. – Ela é minha irmã.

O homem se recompôs, como se tivesse se esquecido de que não estava sozinho com ela.

– Perdão. Isso foi inapropriado.

– Não vá para longe. – Lane começou a andar pela sala, puxando os cabelos negros e curtos com a mão. – Pelo amor de Deus, vamos precisar de uma boa representação.

Enquanto seu advogado, amante e pai da sua filha saía – ainda que ele desconhecesse essa última identidade –, Gin mirou os sapatos de salto de seda. A ponta do esquerdo tinha se sujado quando ela foi colocada no banco de trás da viatura.

Houve um clique, indicando que a porta tinha sido fechada atrás de Samuel T. Ela não precisou ser encorajada a falar.

– Ele quer que eu me case com Richard Pford.

– Richard… Desculpe, o que você disse?

– Você ouviu muito bem. Papai vai cortar todos os meus recursos a menos que eu me case com aquele homem. Ele disse que é por causa daquela maldita empresa de distribuição que nos dará melhores taxas ou algo assim.

– Ele ficou louco? – Lane inspirou.

– Você quis saber por que peguei o carro. É por isso, e é por isso que papai chamou a polícia. – Levantou o olhar para o irmão. – Não vou me casar com Richard. Não importa o que o nosso pai faça comigo. É com isso que você vai lidar.

Levantando-se, ela foi até a porta e a abriu.

– Pode voltar.

– Quanta honra – murmurou Samuel T.

Enquanto seu advogado voltava a se acomodar, ela disse: – Então, o que faço para sair daqui?

– Você paga a fiança – Samuel T. respondeu. – E depois tentamos fazer com que as acusações sejam retiradas. Você pode fazer um apelo ou seu pai pode perdoar o que quer que você tenha feito.

– Qual seria o montante da fiança? – Lane perguntou.

– Sem antecedentes, isso vai a favor dela, mas o risco de fugir não. Acho que no máximo cinquenta mil. McQuaid é um juiz amigável para pessoas como nós, por isso o valor não será muito alto.

50 mil dólares. De fato, a quantia nunca lhe parecera muito antes. Apenas mais um pulinho à loja Chanel em Chicago.

Pensou no pouco que tinha na carteira.

– Não tenho essa quantia.

Samuel T. gargalhou.

– Claro que tem.

– Farei com que seja pago – Lane o interrompeu.

Samuel T. abriu a maleta e tirou alguns papéis.

– Você me autoriza a representá-la nessa questão, Virginia?

Desde quando ele a chamava por algo que não fosse o apelido? Pensando bem, talvez ele só não quisesse que seu irmão o esmurrasse no piso de concreto por ter demonstrado familiaridade demais.

– Sim.

Os olhos dele, aqueles olhos cinzentos e aguçados, sustentaram o olhar dela.

– Assine aqui. – Depois de ela ter assinado, murmurou: – Não se preocupe, eu vou tirar você daqui.

A respiração dela vacilou quando ela expirou.

– Mas e depois?

O que, exatamente, seria diferente do outro lado de tudo aquilo? Era muito improvável que seu pai virasse a página subitamente. Edward mal sobrevivera à decisão de William Baldwine de escolher os negócios em detrimento dos filhos.

– Primeiro, te tiramos daqui – Lane disse. – Depois lidamos com o resto.

Voltando-se para o irmão, ela percebeu que nunca o vira tão sério. Recostado à parede nua do cubículo horrendo, ele parecia muito mais velho do que quando partira, dois anos antes. Parecia no comando das coisas.

Ela crescera esperando encontrar autoridade em Edward, e nunca em Lane, o playboy.

– Ele vai ganhar – ela se ouviu dizer. – Papai sempre vence.

– Não desta vez – Lane disse entredentes.

– Que diabos está acontecendo aqui? – perguntou Samuel T.

Lane apenas meneou a cabeça.

– Resolva isso, Samuel. Apenas tire a minha irmã daqui. Eu cuido do resto.

Deus, como ela queria que fosse verdade. Porque, evidentemente, a sua tentativa de irritar o pai não dera muito certo.

 

CONTINUA

DEZ

Claro que era uma ideia muito idiota.

Contudo, enquanto Lizzie retribuía o beijo, foi como se ela estivesse afunilando dois anos de raiva, frustração e dor diretamente dentro dele. E que ele fosse para o inferno, mas seu sabor era de bourbon, de desespero e de sexo selvagem… e ela gostava disso.

Ela sentia falta disso.

O que a deixou ainda mais enfurecida. Ela queria dizer que aquilo era horrível. Que era contra a sua vontade. Uma violação.

Mas não era verdade. Foi ela quem enfiou a língua na boca dele, e foi ela quem enterrou os dedos nos ombros dele, e foi ela quem, que Deus a ajudasse, aproximou o corpo, colando-se nele.

Para poder sentir a ereção dele.

Seu corpo não mudara no tempo em que ficaram afastados; ele era todo feito de músculos rijos e membros delgados. E ele beijava como antes, com aspereza e avidez, apesar de ter sido criado como um cavalheiro. E seu calor continuava o mesmo.

E então, para piorar ainda mais as coisas, memórias dos dois juntos, pele contra pele, se chocando, se balançando, ondulando, a assaltaram, enterrando toda a mágoa e o sentimento de traição debaixo de uma avalanche de lembranças eróticas.

Por uma fração de segundo, percebeu que acabaria fazendo sexo com ele ali mesmo, naquele instante.

Sim, claro, porque era uma maneira eficaz de mostrar que estava falando sério.

Um verdadeiro momento Gloria Steinem.17

Em vez disso, algo foi derrubado na mesa e o barulho interrompeu o silêncio; em seguida, um esguicho molhou o quadril e a coxa dela num choque de água fria. Dando um salto, ela o empurrou com força, e Lane tropeçou e caiu para trás, aterrissando no piso de ladrilhos.

Com um movimento brusco do braço, ela limpou a boca.

– Que diabos você estava fazendo?

Pergunta idiota. O mais adequado seria: O que ela estava fazendo?

Ele se pôs de pé na próxima batida de coração.

– Quis te beijar desde que voltei.

– O sentimento não é mútuo…

– Até parece. – Pegou o copo e sorveu um grande gole. – Você ainda me deseja…

– Saia!

– Está me expulsando da minha própria estufa?

– Ou você sai ou saio eu – ela rebateu. – Essas flores não vão parar nos vasos sozinhas. A menos que queira metade das mesas vazias na sua festa do Derby?

– Não estou nem aí com elas. Ou com essa maldita festa. Ou com nada disso… – Ele gesticulou, e teria sido mais convincente caso não estivesse segurando um bourbon da família naquele copo. – Deixei tudo isso para trás, Lizzie. Já estou farto mesmo.

Motrin. Era disso que ela precisava.

Menos Lane e mais analgésicos.

– Eu desisto – murmurou ela. – Você venceu. Vou eu.

Quando ela se virou para ir embora, ele a segurou e a girou, arrastando-a para junto de si. Foi nesse momento que ela notou o quanto ele envelhecera desde a última vez que o vira. Seu rosto estava mais magro, o olhar mais cínico, os pés de galinha mais acentuados nos cantos dos olhos.

Infelizmente, só o tornava mais belo.

– Nada dessa história horrível com Chantal é como você pensa – ele disse sombriamente.

– Mesmo que seja apenas metade…

– Você não entende…

– Eu estava apaixonada por você. – Sua voz se partiu, e ela o empurrou. – Eu não achava que a gente fosse se casar necessariamente, mas não pensei que você estivesse a caminho do altar com outra mulher. Que estava grávida… e que ainda por cima engravidou enquanto você estava comigo.

– Eu tinha terminado com ela, Lizzie. Antes de voltar para cá naquele mês de abril, eu disse para ela que estava acabado.

– Mas não foi bem assim, não é?

– Ela estava grávida de três meses quando fiquei sabendo, Lizzie. Faça as contas comigo. Estive com Chantal pela última antes de vir para cá, no aniversário da minha mãe, no fim de março. Você e eu… ficamos juntos em maio, e no fim de junho eu fiquei sabendo da gravidez. Se você se lembrar bem, não saí de Easterly durante todo aquele tempo. Você sabia onde eu estava todos os dias e todas as noites porque eu estava com você. – Ele a encarou do alto. – Três meses. Não dois, nem um. Três meses, Lizzie.

Ela levou as mãos ao rosto, lutando contra a lógica.

– Por favor, pare de fazer isso.

– Isso o quê?

– Dizer meu nome. Isso lhe dá a ilusão da credibilidade.

– Não estou mentindo. E faz quase dois anos que quero esclarecer a situação. – Ele praguejou novamente. – Tem mais coisas, mas não quero entrar nessa parte. E não afeta o que existe entre mim e você.

Antes que ela percebesse o próprio movimento, descobriu-se sentada no banco de rodinhas que estivera usando antes. Olhando para as mãos, flexionou os dedos, sentindo a rigidez das juntas e, por algum motivo, pensou nas unhas perfeitas de Chantal, em suas palmas lisas e sem marcas. Falando em opostos… As mãos que ela fitava eram as de uma trabalhadora, que tinha arranhões nos dorsos provocados por espinhos de rosa perdidos, e terra debaixo das unhas, que ela só conseguiria limpar depois que chegasse em casa. Também havia pintas, por ter cavado a terra sem a proteção de luvas e, definitiva e positivamente, não havia nenhum diamante de um milhão de dólares em seu dedo.

– Casei com Chantal no cartório depois que você me deixou – ele continuou com severidade. – O bebê não tinha culpa, e por eu ter crescido sem meus pais, não queria fazer o mesmo com um filho meu, a despeito dos meus sentimentos pela mãe dele. Mas eu tinha que sair da cidade. Chantal não admitia que o casamento fosse apenas no papel. Por isso fui para o norte, ficar em Nova York com um amigo dos tempos da Universidade da Virgínia. Foi pouco depois que Chantal me ligou para falar que tinha perdido o bebê.

A amargura em sua voz fez ele falar tão baixinho que ela mal ouviu.

– Ela também não me ama – ele murmurou. – Não amava na época e não ama hoje.

– Como você pode ter certeza? – Lizzie se ouviu dizer.

– Pode confiar em mim quanto a isso.

– Ela pareceu bem contente em ter você de volta.

– Não voltei por causa dela e deixei bem claro. Essa mulher só é capaz de se afeiçoar a uma refeição grátis.

– Pensei que ela tivesse dinheiro.

– Nada comparado ao que eu tenho.

Sim, ela imaginou que devia ser verdade. Existiam países com menos renda anual do que a dos Bradford.

– Você é o amor da minha vida, quer esteja comigo ou não. – Quando ela ergueu o olhar, ele apenas encolheu os ombros. – Não posso mudar o que aconteceu e sei que não há como voltar… Só o que peço é que não acredite nas aparências, ok? Você está há dez anos com esta família, mas estou com eles e com pessoas que os cercam minha vida inteira. É por isso que é você quem eu quero. Você é real. Não é como eles e isso é uma coisa muito, muito boa.

Ela esperou que ele fosse expressar mais alguma coisa, e quando ele não o fez, ela voltou a fitar as mãos.

Por algum motivo, seu coração batia forte, como se ela estivesse próxima demais de um penhasco. Pensando bem, imaginou que era isso mesmo, porque as palavras dele estavam entrando em sua cabeça e embaralhando seus pensamentos.

De um jeito que não a ajudava em nada.

– Tenho muito medo de você – sussurrou.

– Por quê?

Porque queria acreditar no que ele dizia com o desespero de um viciado.

– Não tenha – ele disse quando ela não respondeu. – Nunca quis que nada assim acontecesse. E faz muito tempo que eu queria acertar as contas com você.

Parecia apropriado que estivessem cercados por tantos vasos de flores. A prova do seu trabalho, de seu único objetivo ali na propriedade, era um lembrete do divisor que sempre os distanciaria.

Ela se forçou a se lembrar daquela fotografia e do artigo no Charlemont Herald sobre o casamento, sobre os dois grandes legados sulistas se unindo num arranjo feudal. Também se lembrou dos dias e das noites logo depois que ficou sabendo de Chantal, de todas aquelas horas de sofrimento até que pensou estar à beira da morte.

Mas as palavras dele exprimiam verdade sobre uma coisa. O orgulho fez com que ela continuasse a trabalhar em Easterly. Assim, estivera presente na propriedade todos os dias, exceto aos domingos, pelos últimos vinte e quatro meses. E Lane não voltara. Durante dois anos… ele não voltara para ver Chantal.

Não era lá um grande casamento.

– Deixe que as minhas ações falem por si mesmas. Deixe que eu prove para você que estou dizendo a verdade.

Em sua mente, ela ouviu seu celular tocando insistentemente. Logo após o rompimento, ele lhe telefonara no mínimo uma centena de vezes, deixando mensagens que ela nunca ouvira. Ela tirara duas semanas de férias assim que soube de tudo, fugindo para a fazenda em Indiana, voltando para Plattsburgh no nordeste, para o pomar de maçãs da sua juventude. Seus pais ficaram felizes em vê-la, e ela passara aqueles dias a cuidar das árvores McIntosh junto aos outros trabalhadores.

Quando regressara, ele já tinha ido embora.

Os telefonemas cessaram depois de um tempo. E, no fim, ela parou de ter sobressaltos toda vez que um carro parava na porta da frente.

– Por favor, Lizzie… diga alguma coisa. Mesmo que não seja o que quero ouvir…

O som da risada de uma mulher o interrompeu com suavidade e fez com que ambos olhassem para as portas que se abriam para o jardim. Quando Greta saíra, um dos painéis não se fechara por completo, e através da abertura, Lizzie viu duas pessoas andando pelo caminho de pedras em direção à piscina no extremo oposto.

Mesmo sob a iluminação fraca do paisagismo, ficou claro que o vestido de gala da mulher era vermelho rubi, suas saias volumosas se arrastando atrás dela. Ao seu lado, um homem alto de terno lhe ofereceu o braço num galanteio e a encarava com o tipo de atenção que se reserva a um lauto banquete.

– Minha irmã – Lane disse, sem necessidade.

– Aquele é Samuel T.? – Lizzie perguntou.

– Quem se importa…

Ela voltou a olhar para Lane.

– Você partiu o meu coração.

– Eu sinto muito. Não foi minha intenção, Lizzie, de modo nenhum. Juro por Deus.

– Pensei que você fosse ateu.

Ele ficou calado um instante, os olhos vasculhando suas feições.

– Eu me batizaria mil vezes, se necessário. Posso memorizar a Bíblia, beijar o anel do papa… faço qualquer coisa que você quiser… mas, por favor…

– Não posso voltar no tempo, Lane. Sinto muito. Não consigo.

Ele se calou. E depois de um longo instante, assentiu.

– Tudo bem, mas posso pedir uma coisa?

Não.

– Sim.

– Não me odeie mais. Eu já faço muito isso sozinho.

O jardim estava perfumado como uma mulher recém-saída do banho, tão arrumado quanto a sala de estar, e tão reservado quanto a biblioteca de uma universidade.

O que significava de fato que era semirreservado. As várias janelas de Easterly davam para as moitas de flores brancas e creme, todas elas bem cuidadas e discretamente iluminadas.

Felizmente, Gin não tinha problemas quanto a fazer sexo em público.

Enquanto se pendurava no braço forte de Samuel Theodore Lodge III, não se deu ao trabalho de esconder seu sorriso.

– Há quanto tempo está com ela?

– Desde quando chegamos. Uma hora?

Ela gargalhou.

– Ora, ora, meu caro Samuel, por que você perde tempo com mulheres como ela?

– Existe outro tipo?

Era difícil saber quem conduzia quem até os recessos escuros do canto mais afastado, onde o muro de tijolos se encontrava com os fundos da casa, onde ficava a piscina. Era para lá que ambos se dirigiam.

– Eu não sabia que você vinha – ela disse, erguendo a mão para tocar os diamantes pendurados no pescoço… e depois deslizar os dedos pelo corpete do vestido. – Eu teria me dado ao trabalho de vestir uma calcinha.

– Nova mania, então?

– Gosto quando você as arranca do meu corpo. Especialmente quando você se frustra e as rasga.

– Mas eu não faço parte de um clube exclusivo, não é mesmo?

– Não seja grosseiro.

– Foi você quem tocou no assunto da lingerie. E também foi você quem quis sair comigo. A menos que, para variar, precise mesmo de um pouco de ar fresco?

Gin estreitou o olhar nele.

– Você é um bastardo.

– Não de acordo com o dicionário. Meus pais estavam muito bem casados quando nasci. – Ele ergueu uma sobrancelha. – E creio que você não possa dizer o mesmo da sua filha, não é mesmo?

Ela parou, a maré virando numa direção que ela não previra.

– Está passando dos limites, Samuel. E você sabe disso.

– É um pouco estranho quando você fala de decoro. Você não está transando com aquele advogado casado da minha empresa? Acho que ouvi alguma coisa a esse respeito.

Ah, então era por isso que ele estava agindo daquela maneira.

– Está com ciúmes? – ela pronunciou de maneira arrastada, o sorriso retornando às suas feições.

– Ele não consegue te satisfazer. Não por muito tempo, e não como eu consigo.

Quando ele a agarrou, ela deixou, adorando o modo como as mãos dele seguraram sua cintura e a boca se afundou na sua. Não demorou muito para que ele erguesse sua saia até as coxas, mantendo-a ali apesar de toda a armação do vestido.

Pensando bem, ele vinha se metendo debaixo de tecidos finos e delicados desde os catorze anos, quando passara a frequentar os bailes da sociedade.

Samuel T. gemeu ao descobrir que ela não estava mentindo quando disse não ter nada debaixo daquele vestido, e seus dedos foram rudes ao penetrá-la. O fogo e o desejo que sentiu foram um tremendo alívio para os assuntos em que ela não queria pensar, o sexo lavando todos os seus arrependimentos e sua tristeza, dando-lhe nada além de prazer.

Não havia motivos para fingir o orgasmo que teve de fato, as unhas se enterrando nos ombros macios do smoking enquanto arquejava, a antiquada colônia Bay Rum tão atávica que fazia com que ele fosse um homem à frente do seu tempo.

Enquanto se entregava, pensava que ele era o único homem que já tinha amado – e o único que jamais teria verdadeiramente. Samuel T. era muito parecido com ela, só que pior: uma alma que nunca se assentaria enquanto estivesse passeando pelos caminhos de tijolos da expectativa social.

– Me come – ela exigiu ao encontro dos lábios dele.

Ele arfava, seu corpo estava rijo debaixo do smoking caro, pronto para ela… Mas em vez de lhe dar o que ela tanto queria, ele recuou um passo, abaixando a saia e fitando-a de longe.

– Samuel? – ela inquiriu.

Com uma lentidão deliberada, ele levou os dedos até a boca e os lambeu. Depois passou a língua para cima e para baixo, entre eles, lambendo a essência dela em sua pele.

– Não – ele disse. – Acho que não.

– O quê?

Samuel se inclinou na direção dela.

– Vou voltar para a festa do seu pai e vou me sentar à mesa dele. Adiantei-me e troquei a disposição dos lugares, de modo que Veronica estará sentada ao meu lado. E você vai saber quando eu colocar a minha mão entre as pernas dela, você vai vê-la se empertigar e tentar manter a compostura enquanto faço com ela o que acabei de fazer com você. Observe o rosto dela, Gin. E saiba que, assim que eu sair, vou transar com ela no banco da frente do meu Jaguar.

– Você não ousaria.

– Como acabei de dizer, preste atenção, Gin.

Ele se virou para se afastar, e ela quis jogar alguma coisa na cabeça dele. E vez disso, disse entre dentes cerrados: – O nome dela não é Savannah?

Ele relanceou por sobre o ombro.

– E eu me importo com o nome dela? A única coisa relevante é: ela não é você.

Dito isso, ele se afastou a passos largos naqueles elegantes sapatos de couro que ecoaram nos tijolos, com os ombros retos e a cabeça erguida.

Envolvendo-se com os braços, ela percebeu pela primeira vez que a noite estava fria. Embora fizesse 26°C.

Concluiu que deveria ter lhe contado a respeito do advogado. Em retrospecto, escolhera o homenzinho grudento exatamente porque sabia que cedo ou tarde Samuel T. descobriria.

Pelo menos uma coisa era certa: Samuel T. voltaria. Por algum motivo, os dois não conseguiam ficar longe um do outro por muito tempo.

E, no fim, ela acabaria tendo que lhe contar a respeito de Amelia, pensou. Mas não hoje. Nem… tão cedo.

Se aquele homem descobrisse que ela lhe escondera a filha por todos aqueles anos?

Ele seria capaz de matá-la.


Gloria Steinem, famosa feminista, é uma jornalista americana, célebre por seu engajamento com o feminismo e sua atuação como escritora e palestrante, principalmente durante a década de 1960. (N.T.)

 

ONZE

Depois que Lane saiu da estufa, a perspectiva de retornar para a festa do pai era extremamente desagradável, ainda mais depois de ouvir o gongo que anunciava que o jantar estava sendo servido. Mas, considerando-se que a outra alternativa seria ir ver Edward, ele…

– Lane?

Concentrando-se, olhou além do arco da sala de jantar. Uma morena alta num vestido cinza-claro estava parada diante dos antigos espelhos venezianos, a visão dos ombros nus tão adorável de trás quanto de frente.

Falando no diabo, ele pensou. Mas sorriu ao se aproximar e beijá-la no rosto macio.

– Sutton, como está?

Mas quis dizer: Que diabos você está fazendo aqui? Ela e a família eram o “inimigo”, proprietários da Destilaria Sutton, produtores do famoso bourbon Sutton e de outras bebidas – mas isso não significava que ele tivesse algo particularmente contra a mulher. Tradicionalmente, porém, pessoas da linhagem dela eram persona non grata em Easterly… em conversas… nas orações noturnas.

E eram fãs da UK. Portanto, eram azuis nos jogos, e não vermelhos.

Isso era algo que poderia irritá-lo.

Quando se abraçaram, seu perfume refletiu a mulher rica que era, sua fragrância delicada preencheram as narinas dele mesmo quando se afastou; assim como seu corpo perfeito e bem vestido, surgindo novamente em seus olhos quando ele piscou.

Mas não era por isso que estava atraído por ela. Aquilo era o mesmo que admirar uma pintura num museu ou um automóvel Duesenberg.

– Eu não sabia que você viria este final de semana. – Ela sorriu. – É bom te ver depois de tanto tempo. Você me parece bem.

Isso foi engraçado, porque ele se sentia uma merda.

– E você, bela como sempre.

– Vai ficar para o Derby?

Por cima do ombro de Sutton, ele viu que Chantal entrava na sala de jantar, o longo vestido amarelo se arrastando junto com a sua postura de inocente.

Só até eu preencher a papelada do divórcio, ele pensou.

– Lane? – Sutton o chamou.

– Desculpe. Na verdade, tenho que voltar logo para Nova York. – Afinal, aquelas partidas de pôquer precisavam dele lá. – Estou contente em ver você. Surpreso por vê-la no jantar do meu pai, mas contente.

Sutton assentiu.

– Também é uma surpresa e tanto para mim.

– Veio a negócios?

Ela sorveu um gole da taça de vinho.

– Hummm.

– Era para ser uma piada.

– Me diga uma coisa, você tem visto…

Ela deixou a frase inacabada, sem mencionar o nome, pois não havia motivos para que ela pronunciasse “Edward”. Por muitos motivos.

– Ainda não o vi. Mas vou até a fazenda.

– Sabe, Edward nunca vem à cidade. – Sutton tomou mais um gole da taça de borda fina. – Eu costumava vê-lo com bastante frequência antes que ele… Bem, fazíamos parte do conselho da Universidade de Charlemont, mesmo eu sendo fã da UK, e…

Enquanto a mulher prosseguia, ele ficou com a sensação de que ela não estava lhe informando fatos que ele já sabia, mas que revivia um período da vida cuja perda ela lamentava. Não pela primeira vez, ele ficou se perguntando o que realmente acontecera entre o garoto de ouro da família e a adorável filha do concorrente deles.

– Ora, se o filho pródigo não retornou…

O som da voz do pai foi um alerta que o atingiu tal qual uma flecha, e Lane encobriu seu dissabor ao tomar um gole de bourbon.

– Pai.

William Baldwine era quase tão alto quanto ele, tinha os mesmos cabelos negros e olhos azuis, o mesmo maxilar, os mesmos ombros. As diferenças eram a idade, o grisalho nas têmporas, os óculos bifocais de aro de casco de tartaruga, a ruga entre as sobrancelhas causada pelos muitos anos de semblante fechado. De algum modo, porém, todos aqueles sinais do passar dos anos não diminuíam a estatura do pai. De fato, apenas serviam de contraponto para uma aura de poder.

– Tenho que mandar arranjarem um lugar para você. – Por trás daqueles óculos, os olhos do pai encararam as roupas de Lane com um desdém apropriado para as fezes de um cachorro no meio de uma sala de estar. – Ou está de saída?

– Deixe-me pensar… – Lane estreitou o olhar. – Por mais que eu aprecie degradar a sua mesa com esta minha camisa, eu teria que ficar na sua presença durante uma refeição de, no mínimo, três pratos. Portanto, acho que vou embora.

Lane colocou seu Reserva de Família na mesinha de apoio mais próxima e se curvou para Sutton, que parecia preferir ir com ele em vez de ficar ali.

– Sutton, é sempre um prazer. – Olhou para o pai. – Pai, vá se foder.

Lançou essa granada e seguiu em meio à multidão, acenando para políticos e socialites, para aqueles dois atores da série da HBO na qual estava viciado e para Samuel T. e sua namorada do momento.

Chegou ao vestíbulo de entrada, e estava quase na porta da frente quando um par de saltos agulha se aproximou por trás.

– Aonde você vai? – Chantal sibilou ao agarrar o braço dele. – E por que não está vestido?

– Não é da sua conta. – Soltou-se dela. – Nos dois casos.

– Lane, é inaceitável…

– Essas palavras jamais deveriam passar pelos seus lábios, mulher.

Chantal fechou a boca muito bem delineada. Em seguida, inspirou fundo, como se estivesse com dificuldade para aplacar a raiva.

– Eu gostaria de passar um tempo com você esta noite, para conversar e discutir… nosso futuro.

– O único futuro em que você precisa pensar é quantas malas Vuitton vai precisar para a sua mudança.

Chantal ergueu o queixo.

– Você não faz ideia do que está falando.

Ele se inclinou na direção dela e abaixou a voz até um sussurro.

– Sei o que você fez. Sei que não “perdeu” o bebê. Se queria manter o aborto em segredo, não deveria ter pedido a um dos motoristas da família que a levasse para aquela clínica em Cincinnati.

Quando ela empalideceu, ele se lembrou exatamente onde estava quando o homem que a levara lá titubeou para lhe dar a informação.

– Não tem resposta? Não vai negar? – Lane a repreendeu. – Ou isso virá quando a surpresa por ter sido descoberta passar?

Houve um instante de silêncio, e ele sabia que ela estava pesando suas opções, tentando descobrir como abordá-lo de um jeito favorável.

– O que eu deveria ter feito? – disse ela por fim, baixinho. – Você me abandonou sem explicações, sem apoio, sem dinheiro, sem um modo de entrar em contato com você.

Ele fez um gesto abarcando as pinturas a óleo e os tapetes orientais.

– Sim, porque você ficou num lugarzinho bem largado no meio da selva.

– Você me abandonou!

– Por isso a solução foi se recompor para tentar seduzir outro homem, certo? Estou deduzindo que foi o que fez, já que você precisava caber de novo no manequim 38, não é? Minha querida esposa.

– Lane, você está dizendo coisas que não quer…

– Você matou um inocente…

Reginald veio da sala de estar com uma bandeja de prata com copos usados, deu uma olhada nos dois e voltou para trás, desaparecendo de novo no cômodo agora vazio.

Ah, sim, a vida em Easterly… Onde a privacidade era menos comum que diamantes e distribuída em termos relativos. Pelo menos sabia que podia confiar naquele homem mais do que em sua própria família.

Não que isso significasse muito.

– Não vou ficar aqui discutindo com você – Lane disse, ríspido. – E você vai sair desta casa. Assim que o Derby acabar, a sua estada grátis já era.

Chantal arqueou uma das sobrancelhas perfeitas.

– Peça o divórcio se quiser, mas não vou a parte alguma.

– Você não terá mais o direito de ficar sob este teto depois que essa aliança sair do seu dedo.

O sorriso que ela lhe lançou foi gélido.

– É o que vamos ver. – Acenou com a cabeça para a porta da frente. – Vá para onde quiser, fuja… É isso o que você faz, não é? Mas tenha certeza que: eu estarei aqui quando você voltar.

Lane estreitou os olhos. Chantal era muitas coisas, mas não era uma maluca. Ela se autopromovia demais para tanto.

E o encarava como se soubesse de algo que ele não sabia.

Que diabos aconteceu enquanto ele se manteve afastado?

No Vermelho & Preto, Edward estava sentado numa antiga poltrona de couro diante de uma televisão tão velha que ainda tinha antenas saindo da tela em forma de caixa. O cômodo estava na penumbra, mas reluzia por causa dos inúmeros troféus de corrida abarrotando as estantes até o teto do lado oposto.

O chalé do haras tinha um quarto, um banheiro com banheira com pés em forma de garras, uma cozinha pequena e aquela área, que era um misto de biblioteca, escritório, sala de estar e de jantar. Não havia segundo andar, apenas um sótão cheio de recordações de velhas corridas de cavalo, e também não havia garagem. A área era menor do que a sala de jantar de Easterly e, desde que se mudara para lá, ele aprendera a apreciar o valor de ter um lugar pequeno o bastante para poder ouvir e ver quase tudo. Lá na mansão, nunca se sabia quem mais estava na gigantesca casa, onde estavam, o que estavam fazendo.

Para alguém como ele, cuja única amante eram os terrores noturnos e cujo principal trabalho era impedir que seu cérebro se canibalizasse, os aposentos apertados eram algo muito mais fácil de lidar, ainda mais naquela época do ano. Pena que a sua ida à América do Sul, quando fora sequestrado, tivesse acontecido pouco antes do Derby. O aniversário da sua captura arruinara o que sempre fora um fim de semana agradável.

Consultou o relógio e praguejou. Agora que o sol tinha se posto, as horas se apresentavam numa confusão nebulosa, minutos se tornando séculos e um segundo ao mesmo tempo. O seu trabalho noturno? Chegar, de algum modo, ao nascer do sol sem gritar.

Junto ao cotovelo, havia uma garrafa de vodca quase vazia. Começara a beber com cinco cubos de gelo num copo alto, que já estava derretido havia um tempo, e ele agora sorvia a bebida pura. Na noite anterior, fora gim. Na de antes, tomara três garrafas de vinho, duas de tinto e uma de branco.

Durante a fase inicial e aguda da sua “recuperação”, aprendera todos os estágios da administração da dor, aprendera como espaçar os analgésicos e a comida a fim de fazer com que os impulsos nevrálgicos do seu corpo arruinado não fossem piores do que a tortura que suportara quando aquelas feridas foram provocadas. Mais tarde, o mestrado em Gerenciamento de Medicação se traduziu muito bem na segunda parte – a parte crônica, a da “recuperação”. Graças às tentativas e aos erros adquiridos com os analgésicos, ele conseguia distribuir tudo para otimizar o efeito sedativo: todas as tardes, por volta das quatro horas, comia alguma coisa; às seis, quando os funcionários liberavam os estábulos, ele podia começar a beber estando, basicamente, de estômago vazio.

Nada o irritava mais do que alguém se metendo no meio do seu torpor…

Quando uma batida se fez à porta, apanhou a pistola ao lado da garrafa Grey Goose e tentou se lembrar que dia da semana era. O Derby aconteceria dali a dois dias… Então era quinta-feira. Era quinta-feira, algumas horas depois do pôr do sol.

Portanto, não era uma das prostitutas que ele pagava para vir servi-lo. Elas vinham às sextas-feiras. A menos que tivesse chamado duas pelo preço de uma aquela semana, mas não havia pedido aquilo.

Certo. Ou havia?

Apanhando a bengala, suspendeu-se da poltrona e claudicou até a janela da frente. Afastou as cortinas, com a pistola firme numa mão, mas o coração batia descompassado. Mesmo ciente de que, pela lógica, não existiam mercenários no Condado Ogden à sua procura, que estava seguro atrás das travas e do sistema de segurança que instalara, apesar da quarenta milímetros em suas mãos… seu cérebro continuava eletrizado.

Quando viu quem era, franziu o cenho e abaixou a arma. Seguindo até a porta, retirou a corrente, destrancou as três travas e abriu a porta, as dobradiças rangendo como camundongos. Outro mecanismo de alerta para ele.

– Cliente errado – murmurou com secura para a loira baixinha que vestia jeans e camiseta justa. – Eu só peço morenas. Em vestidos de gala.

Por um motivo que preferia guardar para si.

Ela franziu a testa.

– O que disse?

– Só aceito morenas. E elas têm que estar adequadamente vestidas.

Ele queria cabelos longos curvados nas pontas, um vestido que se arrastasse pelo chão, e elas tinham que estar usando Must da Cartier. Ah, e tinham que ficar de boca fechada. Não tinham permissão para falar com ele enquanto estivessem transando. Ainda que as putas conseguissem representar bem o exterior, a ilusão frágil seria rompida no instante em que as vozes delas não fossem a da mulher que desejava, mas que não podia ter.

Ele já tinha bastante dificuldade para manter a ereção daquele modo; na verdade, a única maneira de fazer seu pau subir era se conseguisse acreditar na mentira pelo tempo necessário até chegar ao orgasmo.

A mulher em sua soleira pousou as mãos nos quadris.

– Acho que não sei do que está falando. Mas sei que estou no lugar certo. Você é Edward Baldwine, e este é o Vermelho & Preto.

– E você quem é?

– Filha de Jeb Landis. Shelby. Shelby Landis.

Edward fechou os olhos.

– Maldito seja Ele.

– Eu agradeceria se não usasse o nome de Deus em vão na minha presença. Obrigada.

Ele levantou as pálpebras.

– O que você quer?

– O meu pai morreu.

Edward se concentrou num ponto acima da cabeça dela, na lua que crescia acima do Estábulo C.

– Quer entrar?

– Se guardar arma, sim.

Ele enfiou a pistola no cós do jeans e recuou.

– Quer beber alguma coisa?

Quando ela entrou, ele percebeu o quanto ela era baixinha. E devia pesar só uns 45 quilos, isso se estivesse ensopada segurando um fardo de feno.

– Não, obrigada. Não bebo álcool. Mas eu gostaria de usar o seu banheiro. A viagem foi longa.

– É por ali.

– Muito obrigada.

Ele se recostou na porta. A picape na qual ela evidentemente chegara sabe lá Deus de onde estava estacionada à esquerda, o motor ainda estalava debaixo do capô.

Depois de fechá-la e trancar tudo de volta, ouviu a descarga nos fundos da casa. Um momento mais tarde, a moça voltou e olhou para os troféus.

Edward seguiu para a poltrona, fazendo uma careta de dor ao se acomodar.

– Quando? – ele perguntou ao se servir do resto da vodca.

– Uma semana atrás – ela respondeu sem olhar para ele.

– Como?

– Pisoteado. Bem, os médicos disseram que o coração dele não aguentou, mas a causa foi o pisoteamento. Foi assim que você se machucou?

– Não. – Ele sorveu um longo gole. – Então, o que você faz aqui?

Dessa vez ela se virou.

– O meu pai sempre disse pra eu vir para cá pra encontrar você se alguma coisa acontecesse com ele. Ele disse que você lhe devia uma. Nunca perguntei o quê.

Edward a encarou demoradamente.

– Quantos anos você tem? Doze?

– Vinte e dois.

– Jesus, como você é nova…

– Cuidado com o que diz perto de mim.

Ele teve que sorrir.

– Você é igualzinha ao seu velho, sabia disso?

– É o que dizem. – Ela voltou a apoiar as mãos nos quadris. – Não quero esmola. Preciso de um lugar pra ficar e de um trabalho. Sou boa com cavalos, assim como o meu pai era, e ruim com pessoas… Por isso, considere-se avisado. Não tenho dinheiro, mas tenho costas fortes e não tenho medo de nada. Quando posso começar?

– Quem disse que estou procurando ajuda?

Ela franziu o cenho.

– O meu pai disse que você precisaria. Disse que você precisaria de mais mãos.

O Vermelho & Preto era uma grande operação, e sempre havia vagas. Mas Jeb Landis era uma lembrança complicada do passado… e a família dele estava contaminada por associação.

Mesmo assim…

– O que sabe fazer?

– Limpar estábulos e manter os cavalos em ordem não é física nuclear…

Ele dispensou as palavras dela com a mão.

– Tudo bem, tudo bem, está contratada. E só estou sendo um cretino porque, assim como você, não me dou bem com as pessoas. Tem um apartamento vazio ao lado do apartamento de Moe, sobre o Estábulo B. Pode se mudar para lá.

– Mostre o caminho.

Edward grunhiu ao voltar a ficar de pé e carregou o copo consigo de propósito ao conduzi-la até a porta.

– Não quer saber do salário?

– Você vai ser justo. O meu pai disse que desonestidade não faz parte do seu caráter.

– Ele foi generoso ao dizer isso.

– Duvido. Ele conhecia homens e cavalos.

Enquanto Edward voltava a destrancar tudo, conseguia senti-la observando-o e odiou isso. Seus ferimentos eram o resultado de um inferno que ele preferia manter escondido do mundo.

Antes de deixá-la sair do chalé, olhou-a fixamente.

– Só há uma regra.

– Qual?

Por algum motivo, ele se deteve nas feições dela. Ela não se parecia fisicamente em nada com o pai – bem, desconsiderando-se a altura. Shelby, ou qualquer que fosse seu nome, tinha olhos claros, e não negros. E sua pele não tinha a consistência de couro, embora isso ainda pudesse mudar.

A voz dela, porém, era como a de Jeb: aquele sotaque arrastado tinha um fundo de solidez.

– Você não vai chegar perto daquele garanhão – Edward avisou. – Ele é malvado até os ossos.

– Nebekanzer.

– Você o conhece.

– Meu pai costumava dizer que aquele cavalo tinha gasolina nas veias e ácido nos olhos.

– Então você já conhece o meu cavalo. Não se aproxime dele. Não vai limpar a baia dele, não vai chegar perto dele se ele estiver no pasto e nunca, jamais, vai colocar qualquer coisa sobre a porta da baia dele se quiser conservá-la. E isso inclui a sua cabeça.

– Quem cuida dele?

– Eu. – Edward claudicou noite afora, o ar úmido e pesado fazendo com que ele pensasse que não conseguiria respirar. – E ninguém mais.

Enquanto tentava respirar fundo, perguntou-se se todos aqueles médicos tinham deixado passar algum ferimento interno. Pensando bem, talvez a sensação de sufocamento fosse causada pela imagem daquela moça perto do maldito garanhão negro. Ele só conseguia pensar no que Neb poderia fazer com ela.

Ela se colocou na frente e pegou a mochila sobre o banco do passageiro.

– Então você é o encarregado aqui.

– Não, Moe Brown é. Você vai conhecê-lo pela manhã. Ele será o seu chefe. – Edward seguiu na direção dos estábulos. – Como já disse, o apartamento ao lado do dele está mobiliado, mas não sei quando o último a morar lá saiu.

– Já dormi em baias e em bancos de praça. Ter um telhado sobre a cabeça já basta.

Ele olhou na direção dela.

– O seu pai… era um bom homem.

– Não era nem melhor nem pior do que qualquer outra pessoa.

Era impossível não pensar em quem devia ser a mãe dela – ou em como alguém poderia ter suportado tempo suficiente ao lado de Jeb até ter uma filha com ele. Jeb Landis era uma lenda na indústria, tinha uma lista de cavalos vencedores maior do que qualquer outro, vivo ou morto. Também fora um alcoólatra filho da puta, com um vício por jogo ainda pior do que a sua veia misógina.

Uma coisa com a qual Edward não tinha que se preocupar era se Shelby saberia tomar conta de si mesma. Se conseguira sobreviver tendo vivido com Jeb, trabalhar num turno de dezoito horas numa fazenda criadora de cavalos seria fácil, fácil.

Quando chegaram ao Estábulo B, as luzes detectoras de movimento se acenderam e os cavalos se movimentaram lá dentro, batendo os cascos e relinchando. Entraram pela porta lateral, passaram pelo escritório de Moe e pelo depósito de suprimentos, e Edward a levou até o lance de escadas que antes conduzia ao palheiro, cobrindo toda a extensão do telhado. Em algum momento nos anos 1970, o lugar fora convertido em dois apartamentos, e Moe morava no da frente, que dava para a passagem de carros.

– Vá na frente e espere por mim ali em cima – disse com os dentes cerrados. – Eu demoro um pouco para subir.

Shelby Landis subiu os degraus rapidamente no compasso que ele costumava usar, mas que agora já não apreciava mais, e sentiu como se tivesse uma centena de anos ao se juntar a ela no andar superior.

Àquela altura, já estava tão sem fôlego que chiava como um pneu murchando.

Afastando-se dela, viu que não havia nenhuma luz por baixo da porta de Moe, mas, de todo modo, não teriam incomodado o homem. Com o Derby em menos de quarenta e oito horas, se estivesse em casa, o homem já devia estar dormindo a sono solto.

Ainda mais se considerasse que um dos seus dois cavalos poderia acabar excluído da corrida.

Enquanto Edward seguia em frente e girava a maçaneta do apartamento seguinte, percebeu que não sabia o que faria caso a porta estivesse trancada. Não fazia ideia de onde as chaves poderiam estar…

A porta se abriu, lembrando-o de que ele estava em meio a uma minoria de paranoicos ali naquela fazenda. O interruptor ficava à esquerda na parede e, quando ele o apertou, ficou aliviado em ver que o lugar não estava muito empoeirado e que, de fato, havia um sofá, uma cadeira, uma mesa e uma cozinha minúscula que, em comparação, fazia com que a sua parecesse industrial.

– O seu pai nunca mencionou o motivo de eu estar em débito com ele? – perguntou, mancando até o corredor escuro.

– Não, mas Jeb não era de falar muito.

Apertando o segundo interruptor, viu que o quarto e o banheiro também estavam organizados.

– Eis o que você tem aqui – disse ele, exausto só de ver a distância até a porta.

Quatro metros e meio.

Era como se fossem quilômetros.

Ela se aproximou.

– Obrigada pela oportunidade.

Ofereceu a mão e o fitou nos olhos e, por um instante, ele sentiu uma emoção diferente da raiva que ardia e queimava em seu íntimo nos últimos dois anos. Não sabia como defini-la, e o triste era que não sabia se a mudança era bem-vinda.

Havia uma certa claridade em ter um princípio de operação unilateralmente hostil.

Deixou a mão dela pendurada no ar enquanto arrastava o corpo de volta até a saída.

– Veremos se, mais tarde, você vai me agradecer.

De repente, lembrou-se de toda aquela coisa de não praguejar e não beber álcool.

– Ah, e mais uma coisa. Se a cortina do meu chalé estiver fechada, não me incomode.

– Sim, senhor.

Ele assentiu e fechou a porta. Depois, muito lenta e cuidadosamente, começou a descer.

A verdade era que Jeb Landis fora o responsável pela sua recuperação. Sem o chute que o homem deu no seu traseiro, só Deus sabia se Edward ainda estaria naquele planeta. Deus, ainda se lembrava com nitidez quando o treinador viera visitá-lo no centro de reabilitação. Apesar da regra explícita de Edward de não receber visitantes, Jeb passara pela estação da enfermagem e marchara para dentro do seu quarto.

Eles já se conheciam havia uma década. O interesse de Edward por cavalos de corrida, e sua subsequente posse, aliado ao compromisso prévio de ser o melhor em tudo o que fazia, significava que ele só aceitaria um homem treinando os seus cavalos.

No entanto, jamais previra que o homem seria um tipo de salvador.

O esporro de Jeb fora breve e direto, mas mais eficiente do que todos os argumentos e apoio emocional que recebeu de outras pessoas. E, um ano após sua mudança para lá, tendo jogado fora todos os seus ternos e decidido que aquela seria a sua vida, Jeb lhe disse que estava deixando o Vermelho & Preto rumo à Califórnia.

Provavelmente porque alguns agentes de apostas de Chicago estavam atrás de um pedaço do traseiro dele.

Em todos aqueles anos, antes e depois do sequestro, o fato de Jeb ter uma filha jamais viera à baila. Mas, sim, ele abrigaria a filha do homem. Claro.

E, felizmente, ela parecia ser capaz de cuidar de si mesma.

Portanto, o pagamento do débito teria um custo baixo.

Pelo menos, foi o que ele disse a si mesmo naquela primeira noite.

Só que aquilo não foi bem verdade… nem de longe.

 

DOZE

– Paguei cem mil dólares para me sentar ao seu lado.

Gin ergueu o garfo Tiffany com desenho de crisântemo para mexer na comida, mal ouvindo as palavras ditas junto ao seu ouvido. Estava ocupada demais se concentrando no arranjo floral diante dela. Samuel T. estava mais à esquerda, e a partir daquele ponto focal florido, sua visão periférica permitia que ela o acompanhasse ao lado da namoradinha, Veronica/Savannah.

– Por isso, você poderia pelo menos conversar comigo.

Voltando a se concentrar, fitou o odioso Richard Pford IV. O homem era só uma versão do jovem que um dia fora: alto e magro, com um olhar capaz de cortar vidro e uma natureza suspeita que contrastava com a sua posição invejável na hierarquia social de Charlemont. Filho de Richard Pford III, era o único herdeiro da Distribuidora de Bebidas Pford, uma cadeia nacional que distribuía vinhos, cerveja, bourbon, gim, vodca, champanhe, uísque etc. nas prateleiras e nos negócios do país inteiro.

O que significava que ele podia bancar um valor de seis dígitos para garantir um assento todas as noites da semana e duas vezes aos domingos.

Ele nadava em milhões, e seus familiares nem tinham começado a morrer ainda.

– Os assuntos do meu pai não me interessam – ela rebateu. – Portanto, parece que desperdiçou o seu dinheiro.

Ele tomou um gole de vinho.

– E pensar que ele foi para o programa de basquete da UC.

– Não sabia que você era fã deles.

– Não sou.

– Não é de se admirar que não nos damos bem. – UK. Ela devia ter desconfiado. – Além disso, não ouvi dizer que você estava para se casar?

– Os boatos quanto ao meu noivado foram exagerados.

– Difícil de acreditar, com todas as suas qualidades.

À esquerda, Veronica/Savannah deu um salto na cadeira, os cílios postiços flanaram, o garfo bateu no prato. Enquanto as lentes coloridas se voltavam para Samuel T., o maldito limpava casualmente a boca com o guardanapo damasco.

Samuel T., no entanto, não estava olhando para a namorada. Não, ele casualmente fitava o buquê de flores bem na frente de Gin.

O filho da puta.

Deliberadamente, Gin se virou para Richard e sorriu.

– Bem, estou encantada com a sua companhia.

Richard assentiu e voltou a cortar o seu filé mignon.

– Assim é muito melhor. Por favor, não pare.

Gin falou com suavidade, ainda que não fizesse ideia do que estava saindo da sua boca. Mas Richard assentia mais e mais, e respondia, por isso ela deduziu que estava se saindo bem com suas habilidades sociais. Mas, pensando melhor, quer se tratasse de conversas que não a interessavam ou orgasmos com homens com os quais não se importava, ela tinha bastante prática em fingir.

E, mesmo assim, estava ciente do que Samuel T. estava fazendo. Dolorosamente ciente.

Os olhos dele queimavam, cravados nela. E, nesse meio-tempo, bem como ele lhe prometera, a vadia ao lado dele começou a se esforçar para manter a compostura.

– … me resguardei para você – Richard declarou.

Gin franziu o cenho, captando aquela combinação de palavras, a despeito da sua preocupação.

– O que disse?

– Eu estava determinado a me casar, mas entrei num acordo com o seu pai. Foi por isso que pus fim ao noivado.

– Entrou num acordo com o meu pai? Do que está falando?

Richard sorriu com frieza.

– O seu pai e eu chegamos a um acordo quanto ao futuro. Em contrapartida por se casar comigo, estou disposto a conceder algumas vantagens à Cia. Bourbon Bradford.

Gin piscou. Depois balançou a cabeça.

– Não estou ouvindo muito bem.

– Sim, sim, você está. E já lhe comprei o anel de diamantes.

– Não, não, não… Espere um minuto. – Jogou o guardanapo na mesa mesmo sem terminar de jantar, assim como as outras trinta e uma pessoas. – Não vou me casar nem com você nem com ninguém.

– Mesmo?

– Tenho certeza de que “comprou” o seu lugar nesta mesa. Mas ninguém me obriga a fazer porra nenhuma, e isso inclui o meu pai.

Pensou que era uma tristeza não ter questionado a possibilidade do seu bom e velho pai a vender em favor do preço das ações da empresa.

Richard deu de ombros debaixo do terno elegante.

– Se é o que você diz.

Gin olhou para a cabeceira da mesa onde William Baldwine estava sentado em comando total, como se estivesse em um trono suspenso, mantendo-o acima dos seus súditos.

O homem não percebeu o olhar letal e, portanto, não sabia que a bomba tinha sido lançada. Ou talvez, quem sabe, ele tivesse planejado dessa forma, sabendo que Richard seria incapaz de ficar calado, e que ela não poderia provocar um escândalo por causa das testemunhas.

E, maldição, seu pai tinha razão quanto a isso. Por mais que desejasse dar um pulo e começar a berrar, ela não rebaixaria o nome Bradford dessa maneira, certamente não com Sutton Smythe e o pai dela, Reynolds, no mesmo cômodo.

À esquerda, um gemido foi encoberto por uma tossidela fraca.

Gin desviou a atenção do pai para Samuel T., ao que o advogado ergueu uma sobrancelha… e lançou um beijo no ar na sua direção.

– Sim, pode levar o prato dela. – Ela ouviu Richard dizer para o garçom uniformizado. – Ela já terminou.

– O que disse? – Gin se virou para Richard. – Mas você não tem o direito de…

– Aprovo a sua falta de apetite, mas não vamos nos arriscar, certo? – Richard acenou para o garçom. – E ela também não vai comer a sobremesa.

Gin se inclinou para o homem e lhe sorriu. Num sussurro, disse: – Não dê o passo maior que a perna. Eu ainda me lembro da época em que você enchia a sua saqueira com meias. Dois pares, porque um não adiantava muita coisa.

Richard a encarou. Num tom igualmente baixo, respondeu:

– Não faça de conta que tem algum poder de decisão.

– Espere e verá.

– É você quem mal pode esperar para ver. – Ele se recostou e lançou-lhe o olhar satisfeito de um homem que tem um royal flush nas mãos. – Mas não demore muito. O peso dos quilates do seu anel diminui a cada hora.

Eu vou te matar, ela pensou consigo mesma enquanto olhava para o pai. Que Deus me ajude, mas eu vou te matar.

Quando Lizzie fez a curva na estradinha secundária, a faixa de terra para a qual se dirigiu dividia terrenos com plantações de milho e só era larga o bastante para a passagem do seu Yaris. Havia árvores em ambos os lados, não de maneira organizada, mas num padrão casual, arranjado pela natureza, e não pela enxada de um paisagista. Acima, galhos grossos se uniam formando um dossel de verde brilhante na primavera, esmeralda no verão, amarelo e laranja no outono e esquelético no inverno.

Normalmente, aquela procissão de meio quilômetro até sua fazenda era o início do seu relaxamento, uma câmara de descompressão que ela acreditava ser o único motivo pelo qual conseguia dormir depois de um dia de problemas em Easterly.

Não naquela noite.

De fato, ela queria olhar por sobre o ombro só para se certificar de que não havia ninguém com ela no banco de trás do carro. Não que coubesse alguém de mais de doze anos ali, mas, mesmo assim… Sentia-se perseguida. Caçada. Assaltada. Ainda que sua carteira continuasse dentro da bolsa e ela estivesse, de fato, sozinha em seu carro.

A casa da fazenda era uma clássica casa americana, exatamente o que se veria num filme da Lifetime que se passasse num fim de semana de quatro de julho: branca com uma varanda, com vasos de amor-perfeito, uma cadeira de balanço e um banco suspenso em um dos lados. Tanto a indispensável chaminé de tijolos vermelhos quanto o telhado pontudo com telhas cinza eram originais, da época da sua construção em meados de 1833. E o coup de grâce? Um bordo imenso que oferecia abrigo para o calor do verão e para o vento frio do inverno.

Estacionou debaixo da árvore, que era o que de mais próximo a uma garagem que ela tinha, e saiu do carro. Mesmo que Charlemont dificilmente fosse Manhattan, a diferença no nível de barulho era impressionante. Naquelas partes, havia sapos, vagalumes que não tinham nada a dizer, e uma coruja que começara a montar guarda num velho celeiro uns dois anos antes. Nenhum murmúrio da autoestrada. Nenhuma sirene de ambulância. Nenhum acorde de jazz ou blues vindos do parque às margens do rio.

Fechando a porta, o som foi amplificado pela escuridão, e ela se viu aliviada quando caminhou e as luzes ativadas pelo movimento, colocadas em ambos os lados da entrada, foram ativadas. As botas rasparam nos cinco degraus que rangeram, e a porta de tela a acolheu com o resmungo das dobradiças. A fechadura era de latão, relativamente nova. Fora instalada em 1942.

Do lado de dentro, tudo estava escuro, e quando ela confrontou o vazio, desejou ter um cachorro. Um gato. Um peixinho dourado.

Apertando o interruptor, piscou quando seu lar doce lar se iluminou com a suave luz amarela. A decoração não se parecia em nada com a dos Bradford. Na sua casa, se havia algo antigo, era por ser útil e por ter sido feito por algum artesão do Kentucky: uma velha cesta de vime, um par de colchas de retalhos gastos pendurado nas paredes, uma cadeira de balanço, um banco de pinho debaixo da janela, cabeças de enxadas e pás que encontrara nos campos e que ela mesma emoldurara, para depois pendurar na parede. Também tinha uma coleção de instrumentos musicais, inclusive diversos violinos, muitas canecas, algumas tábuas de lavar roupa, e o maior dos seus tesouros: seu piano Price & Teeple de 1907. Feito de carvalho, com dobradiças incríveis de cobre, pedais e outras partes metálicas, ela o encontrara apodrecendo num celeiro, na porção oeste da propriedade, e o restaurara com muito amor.

A mãe chamava sua casa de museu do folclore, e Lizzie concluiu que isso devia ser bem verdade. Para ela, não existia conforto maior do que se ligar a gerações de homens e de mulheres que trabalharam na terra, esculpiram suas vidas e transmitiram seu conhecimento de vida para as gerações seguintes.

Agora? Tudo era 3G, 4G, LTE, e os computadores e smartphones eram cada vez menores e mais rápidos.

Sim, porque esse sim era um legado de honra e de perseverança para deixar aos seus filhos: como se esforçar para ficar na fila por vinte e seis minutos a fim de adquirir um novo iPhone, com um copo do Starbucks numa mão e um blog a respeito de alguma inutilidade na outra para passar o tempo.

De volta à sua cozinha anos 1940 – o estilo não era importado da Ikea ou Williams-Sonoma com suas réplicas, mas sim o original, de quando ela comprara a casa sete anos atrás –, abriu a geladeira e encarou as sobras da torta de frango que fizera na segunda à noite.

Aquilo era tão inspirador quanto a ideia de comer lascas de tinta esquentadas numa frigideira.

Quando seu celular começou a tocar, olhou por sobre o ombro, para a bolsa que largara no corredor.

Deixe para lá, ela se ordenou. Apenas deixe…

Esperou até que o aparelho silenciasse, e esperou mais para ver se haveria outra chamada – caso fosse uma emergência com a mãe, outra ligação se seguiria. Ou pelo menos haveria um toque alertando a chegada de uma mensagem.

Quando nenhum dos dois aconteceu, ela foi até o corredor e apanhou a bolsa. Nenhuma mensagem. Não reconheceu o número, mas conhecia o código de área: 917.

Cidade de Nova York. Celular.

Tinha amigos que ligavam para ela daquela área.

Suas mãos tremiam ao abrir a lista de chamadas recebidas e apertar o último número.

Foi atendida antes que o primeiro toque terminasse.

– Lizzie?

Seus olhos se fecharam quando a voz de Lane entrou em seu ouvido e em todo o seu corpo.

– Alô? – ele disse. – Lizzie?

Havia muitos lugares para sentar em sua sala ou na cozinha – cadeiras, sofás, até mesmo a mesinha de centro era robusta o suficiente. Em vez de usar qualquer um desses móveis, recostou-se contra a parede e deixou o traseiro escorregar até o chão.

– Lizzie? Você está aí?

– Sim. – Apoiou a testa na mão. – Estou aqui. Por que está ligando?

– Eu só queria me certificar de que você chegou bem em casa.

Sem nenhum motivo, lágrimas surgiram em seus olhos. Ele sempre agia assim. No tempo em que estiveram juntos, não importava que horas ela saía, ele lhe telefonava assim que ela passasse pela porta. Como se tivesse um timer no telefone.

– Não estou ouvindo a festa – comentou. – Ao fundo.

– Não estou em casa.

– Onde você está?

– No Antigo Silo. No armazém de barris. – Ela ouviu um barulho, como se ele também estivesse se sentando no chão. – Faz muito tempo que não venho aqui. O cheiro é o mesmo. A aparência também.

– Nunca fui aí.

– Você gostaria daqui. É o seu tipo de lugar, tudo muito simples e funcional e feito à mão.

Ela relanceou para a sala de estar e se concentrou na primeira pá que encontrara nos campos onde plantava milho todos os anos. O objeto era velho e enferrujado e, para ela, belo.

O silêncio que se seguiu fez parecer como se ele estivesse na sala junto dela.

– Estou feliz que não tenha desligado – Lane disse por fim.

– Eu queria poder desligar.

– Eu sei.

Ela pigarreou.

– Pensei em tudo o que me disse, no caminho para casa. Pensei em como você estava enquanto conversava comigo. Pensei… em como as coisas eram.

– E?

– Lane, mesmo que eu conseguisse superar tudo, e não estou dizendo que consigo, o que, exatamente, você quer de mim?

– Qualquer coisa que você me der.

Ela gargalhou num acesso tenso.

– Isso foi bem franco.

– Tenho outra chance com você? Porque vou te dizer isso agora, neste instante, se houver a mínima chance de você me aceitar, eu…

– Pare – ela inspirou fundo. – Apenas… pare.

Quando ele parou, ela ficou puxando e puxando o cabelo, com tanta força que seus olhos ficaram ainda mais marejados. Ou talvez isso estivesse acontecendo por outros motivos.

– Eu queria que você não tivesse voltado – ela se ouviu dizer. – Eu queria… Eu já estava te esquecendo, Lane. Estava recuperando o meu fôlego, a minha vida. Eu estava… e agora você está aqui, dizendo as coisas que quero ouvir, olhando para mim como se estivesse falando sério. Mas eu não quero voltar. Não posso.

– Então vamos em frente.

– A vida não é fácil assim.

– Não é. Mas é melhor do que nada.

Enquanto o silêncio se estendia uma vez mais, ela não sentiu necessidade de falar, de explicar mais coisas, de detalhar tudo. E enquanto as palavras martelavam em sua cabeça, ela desistiu de lutar.

– Não fiquei um dia, uma noite sem pensar em você, Lizzie.

O mesmo valia para ela, mas ela não queria lhe dar esse tipo de munição.

– O que você andou fazendo esse tempo todo lá?

– Nada. E estou falando sério. Fiquei com um amigo, o Jeff… bebi, joguei pôquer. Esperei, querendo ter uma oportunidade de falar com você.

– Por dois anos.

– Eu teria esperado uma dúzia.

Lizzie parou de puxar o cabelo.

– Por favor, não faça isso…

– Eu quero você, Lizzie.

Enquanto assimilava as palavras, seu coração batia tão forte que ela conseguiu sentir o aumento na pressão sanguínea no peito e no rosto.

– Nunca deixei de te querer, Lizzie. De pensar em você. De desejar que você estivesse comigo. Diabos, sinto como se estivesse num relacionamento com um fantasma. Eu te vejo nas ruas de Nova York sem parar, em alguma loira passando por mim numa calçada, talvez no modo como ela penteia os cabelos, ou por causa dos óculos, ou pela cor das calças jeans… Eu te vejo nos meus sonhos todas as noites; você é tão real que consigo te tocar, te sentir, estar com você.

– Você tem que parar.

– Não consigo. Lizzie… eu não consigo.

Fechando os olhos, ela começou a chorar baixinho na solidão da sua casa tão modesta, aquela que ela mesma comprara e que estava quase acabando de pagar, o maior símbolo da razão pela qual não precisava de um homem em sua vida, nem agora, nem nunca.

– Você está chorando? – ele sussurrou.

– Não – respondeu depois de um instante, num soluço. – Não estou.

– Está mentindo?

– Sim, estou.

 

TREZE

Lane olhava para o lado oposto do Antigo Silo construído por um dos seus ancestrais, sabendo que estava dentro do limite legal de álcool para poder dirigir, e que isso não duraria muito. Tinha uma garrafa de no 15 contra o quadril, que surrupiara de uma caixa pronta para ser despachada, e apesar de ainda não ter rompido o lacre, tinha toda intenção de secar a garrafa.

Em toda a sua volta, o Antigo Silo estava deserto, e surpreendeu-se ao perceber que o código de acesso do sistema de alarme ainda era o mesmo de antes.

Sabia que deveria deixar Lizzie em paz.

– Sinto muito – murmurou. – Quero dizer todas as coisas certas, fazer as coisas certas, e sei que não estou cumprindo esses objetivos. Maldição, Lizzie…

Inclinou a cabeça para o lado e segurou o telefone entre o ombro e a orelha. Pegando o bourbon, abriu a garrafa e a levou até a boca.

A ideia de tê-la feito chorar de novo o comia vivo.

– Você está bebendo? – ela perguntou.

– Ou faço isso ou bato a cabeça na parede até sangrar.

Enquanto ela exalava fundo, ele deu mais um gole. E um terceiro.

Quando terminou de engolir e a queimação na garganta cessou, ele fez a pergunta cuja resposta tanto temia: – Você está com alguém?

Ela demorou bastante para responder.

– Não.

Foi sua vez de exalar fundo.

– Não acredito em Deus, mas, neste instante, estou com vontade de me autoproclamar cristão.

– E se eu não te quiser mais? O que vai fazer, então?

– Está me dizendo que isso é verdade?

– Talvez.

Ele fechou os olhos.

– Então, eu vou recuar. Isso vai acabar comigo… mas vou embora.

Mais silêncio. Que ele passou bebendo da garrafa.

– Amigos – ela disse por fim. – Só vou até aí. É só isso que consigo fazer.

– Ok. Respeito isso.

Ele conseguiu ouvir o alívio na voz dela.

– Obrigada.

– Mas – ele a interrompeu – o que, exatamente, isso quer dizer?

– Como é?

– Bem, amizade… Como é isso? Posso te telefonar, certo? Amigos podem comer juntos de vez em quando, só para se manterem a par das novidades, não é? Você sabe, divórcio, planos de mudança, novas direções, esse tipo de coisa.

– Lane.

Ele sorriu.

– Adoro quando você diz meu nome desse jeito.

– Quando estou irritada?

– É sexy.

Lizzie pigarreou.

– Essa palavra não cabe numa amizade, ok?

– Eu apenas constatei um fato.

– Uma opinião.

– Fato.

– Lane, estou te avisando, você precisa…

Enquanto ela prosseguia, falando à sua maneira tipicamente franca e sem rodeios, ele fechou os olhos e prestou atenção às ordens dela, deixando que seu tom de voz o envolvesse. Bem no íntimo, aquele desejo velho e tão conhecido despertou, como um dragão adormecido… e o ímpeto foi tão forte que ele quis entrar no carro e atravessar as pontes até Indiana.

– Ainda está aí? – ela perguntou, brava.

– Ah, estou. – Arrumando a ereção dentro das calças, refreou um gemido. – Estou, sim.

– O que está fazendo?

Ele afastou a mão para longe, bem longe do marco zero.

– Nada.

– E então? – disse ela. – Está ou não?

– Estou o quê?

– Dormindo enquanto fala comigo.

– Muito pelo contrário – ele murmurou.

Houve uma leve pausa e depois:

– Ah…!

Como se ela o tivesse compreendido.

– Melhor eu desligar – ele disse, rouco. – Cuide-se. Nos falamos amanhã.

Só que ela não parecia querer que ele desligasse… e seu pau ficou todo lépido e faceiro.

– Quer dizer que você vai ficar? – ela perguntou.

Podemos falar sobre outro assunto?, sua ereção pensou.

Sossegue, garoto.

– Sim, vou. – Quando ele mudou de posição no chão duro, tentou ignorar o modo como o zíper resvalou. – Tenho que me encontrar com Samuel T. para falar do divórcio.

– Então, você vai mesmo…

– Vou – ele disse. – Imediatamente. E não, não é só por sua causa. Cometi um erro, e vou consertar isso para o bem de todo mundo.

– Tudo bem. – Ela pigarreou. – Ok.

– Só estou seguindo em frente, Lizzie.

– Se é o que você diz. Bem, tchau…

– Não – ele a interrompeu. – Assim não. Nós dizemos boa noite, está bem? E não tchau, a menos que você queira que eu apareça na soleira da sua porta como um cachorro sem dono.

– Está bem.

Antes que ela desligasse, ele formou um “eu te amo” com os lábios.

– Boa noite, Lizzie.

– Boa noite… Lane.

Encerrando a ligação, Lane deixou o braço cair, e o aparelho bateu no piso de concreto com um baque.

– Eu te amo, Lizzie – disse em voz alta.

Tomando mais um gole da garrafa, pensou em como era conveniente que a fortuna da família se baseasse em algo com o qual ele poderia se embebedar. Se fosse uma enormidade de outros produtos de consumo – canetas, baterias de carro, band-aids, chicletes –, nada poderia ajudá-lo na sua atual situação.

Quando o telefone voltou a tocar, ele o atendeu de pronto. Mas não era Lizzie.

– Jeff – ele disse, mesmo não querendo conversar com mais ninguém.

A voz do seu anfitrião nova-iorquino soou seca.

– Você ainda está vivo.

– Basicamente. – Levou a garrafa de volta à boca. – E você, como é que você está?

– Está bebendo?

– Isso mesmo. No 15. Eu dividiria com você, se estivesse aqui.

– Um cavalheiro sulista, sem dúvida. – Seu amigo praguejou. – Lane, onde você está?

– Em casa.

Houve tempo suficiente para grilos cantarem na conexão.

– Você está se referindo a…

– Isso mesmo.

– Charlemont?

– Nascido e criado eu fui, e ao lar regressei. – Puxa. Devia estar ficando bêbado, estava parecendo um sulista de verdade. – Assim como você e o Upper East Side, só que nós temos miúdos de porco e frango frito.

– Que diabos você está fazendo aí?

– A minha… – Pigarreou. – Uma pessoa muito importante para mim adoeceu. Tive que voltar.

– Quem?

– A mulher que me criou. A minha… bem, a minha mãe. Mesmo ela não sendo a minha mãe biológica. Ela ficou doente alguns anos atrás, mas sabe como são essas coisas. Elas podem voltar. Ela diz que vai ficar bem, então estou me apegando a isso.

– Quando vai voltar?

Lane tomou mais um gole.

– Já te contei que me casei?

– O quê?

– Foi um pouco antes de eu ir para o norte e acabar no seu sofá. Vou ficar aqui até a senhorita Aurora ficar bem e, assim, vou poder cuidar dessa outra coisa idiota. Além disso… é que… tem essa outra mulher.

– Espera um minuto. Cacete. Espera aí…

Houve uma espécie de farfalhar, seguindo de um clic, clic, clic como se alguém estivesse tentando acender um isqueiro… e depois uma baforada.

– Vou precisar de um cubano para ouvir isso. Então, você tem uma esposa?

– Eu te disse que não era gay.

– Foi por isso que você não ficou com ninguém aqui?

– Não, foi por causa da outra mulher. Aquela com quem não me casei. Aquela que é naturalmente bonita e boa demais para mim.

– Vou precisar de um diagrama de Venn – o cara murmurou. – Cacete, por que não me contou nada disso?

Lane balançou a cabeça, mesmo que o amigo não pudesse vê-lo.

– Eu estava no modo de fuga. – Caramba, odiou o fato de Chantal estar certa. – Tudo estava barulhento demais dentro da minha cabeça. A coisa toda. Então, como é que você está?

– Você joga isso tudo em cima de mim e termina querendo saber como é que eu estou?

– Tenho que voltar a beber. Conversar está me retardando, mas estou disposto a ouvir. – Tomou um gole grande. – E aí? Alguma novidade?

– Estou bem, você sabe, as coisas de sempre no trabalho. Dez mil amplificadores ligados, um chefe que não sai do meu rabo e dezesseis comprimidos de Motrin por dia para impedir que a minha cabeça exploda. O mesmo de sempre. Pelo menos ainda tem dinheiro… ainda mais agora que você não está me arrancando um quarto de milhão de dólares todas as semanas no feltro verde.

Conversaram um pouco mais sobre nada em especial. Jogos de pôquer, Wall Street, a mulher com quem Jeff andava transando… E mesmo que Lane não fosse muito de ficar conversando ao telefone, percebeu que estava com saudades do cara. Acostumara-se à troca rápida, às sacadas inteligentes e, em especial, àquele sotaque de Jersey nos fim das frases e no uso de algumas outras palavras.

– Então, acho que é adeus por ora – seu antigo colega de classe disse.

Lane franziu o cenho e visualizou Lizzie. Ouviu a voz dela. Lembrou-se da cautela dela.

Depois rearranjou sua ereção persistente.

Ficou se perguntando se existia a mínima possibilidade de voltar para Nova York.

Pensando bem, seria melhor não se adiantar. No que se referia a reconquistar Lizzie, dependia de duas pessoas. Só porque estava pronto para retomar o relacionamento deles não significava que ela se apressaria. E também havia a sua família. Como se ele conseguisse se imaginar voltando a viver em Easterly… Mesmo que a senhorita Aurora ficasse bem de saúde e que ele e Lizzie se acertassem, a ideia de coexistir com o pai bastava para ele contemplar a fronteira canadense com carinho. E nem isso seria longe o suficiente.

– Não sei se vou ficar de vez.

– Você sempre pode voltar. O meu sofá já está com saudades de você… e ninguém joga Texas Hold’em como você.

Os dois desligaram depois de se despedirem, e enquanto Lane mais uma vez largava o braço e deixava o aparelho cair, concentrou-se na antiga destilaria do lado oposto. O lugar fora usado por décadas na virada do século, e agora era visitado por dezenas de milhares de turistas que vinham conhecer o Antigo Silo durante todo o ano.

Por algum motivo, percebeu que nunca tivera um emprego. A extensão dos seus “empenhos profissionais” era evitar os paparazzi, o que era mais uma questão de sobrevivência do que algo relacionado a uma carreira. Graças ao seu fundo fiduciário, não sabia o que eram chefes ou colegas de cubículo chatos, nem trajetos ruins para o trabalho e de volta para casa. Não se preocupava em estar em algum lugar num determinado horário, ou em concluir relatórios, nem tinha dores de cabeça devido às tantas horas passadas diante da tela do computador.

Engraçado, nunca antes considerara o fato de ter tanto em comum com Chantal. A única diferença entre eles era que o dinheiro da família dela não bastava para sustentar o estilo de vida a que se acostumara, motivo pelo qual tivera que se casar com ele.

E lá estava Lizzie, trabalhando duro, pagando aquela fazenda. Conhecendo-a como a conhecia, ela já devia estar chegando ao seu objetivo.

O que o fazia respeitá-la ainda mais.

E também o fazia se questionar exatamente o que tinha para oferecer a uma mulher de substância. Dois anos atrás, estivera todo excitado e metido no drama familiar, ávido por ela fisicamente, e tão cativado por ela mentalmente que nunca olhara para si mesmo segundo o ponto de vista dela. Todo o seu dinheiro e a sua posição social só tinham valor para pessoas como Chantal. Lizzie queria mais, merecia mais.

Ela queria a realidade.

Talvez, no fim das contas, ele não estivesse tão acima daquela sua esposa.

Ex-esposa, corrigiu-se, enquanto continuava a beber.

 

CATORZE

– A que devo a honra?

O pai de Gin falava, e seu tom era de afirmação, não de pergunta, e sugeria que o fato de ela estar parada na porta do quarto dele era uma invasão.

Que pena, ela pensou com ironia.

– Quero saber que diabos aprontou com Richard Pford.

O pai não demonstrou nenhuma reação, parado diante da cômoda, prosseguindo com o ato de retirar as abotoaduras de ouro. O paletó do smoking preto tinha sido dobrado uma vez e estava ao pé de uma chaise longue, e os suspensórios preto e vermelho haviam sido retirados dos ombros e estavam pendurados na cintura como duas fitas.

– Pai – ela rugiu. – O que você fez?

Ele a deixou esperando até tirar a gravata borboleta, puxando-a do colarinho.

– Está na hora de você se assentar…

– Você dificilmente está em posição de defender o matrimônio.

– … e Richard é um marido perfeito.

– Não para mim.

– Isso ainda veremos. – Virou-se na direção dela, os olhos frios, o belo rosto impassível. – E não se engane, você se casará com ele.

– Como ousa! Não estamos na virada do século. As mulheres não são bens, podemos ter propriedades, as nossas próprias contas bancárias, podemos até votar! E, com certeza, podemos decidir se queremos ou não atravessar a nave de uma igreja… E eu não vou, de modo algum, sair com aquele homem, quanto menos me casar com ele! Ainda mais se isso beneficiar você de algum modo.

– Sim, você vai. – Por uma fração de segundo, o olhar dele se desviou para cima do ombro dela e ele meneou a cabeça como se estivesse dispensando alguém no corredor. – E fará isso o mais rápido possível.

Gin se virou, esperando ver alguém atrás de si na soleira da porta. Não havia ninguém ali.

Voltou a se concentrar nele.

– Você vai ter que apontar uma arma na minha cabeça.

– Não será preciso. Você fará isso por sua própria escolha.

– Não.

– Sim, você vai.

No silêncio que se seguiu, o coração dela deixou de bater algumas vezes. Durante toda a vida, aprendera a odiar e a temer o pai. E naquele silêncio tenso, de ar estagnado entre eles, ela se perguntou, e não pela primeira vez, do que ele seria verdadeiramente capaz.

– Você pode escolher brigar – disse ele com suavidade. – Ou pode ser eficaz em relação ao assunto. Você só vai acabar se ferindo se não fizer isso pela família. Agora, se me permite, vou me recolher…

– Você não pode me tratar dessa maneira. – Ela forçou um pouco a voz. – Não sou um executivo da empresa que você pode empregar e demitir. E não pode me dar ordens, não quando se trata de arruinar a minha vida.

– A sua vida já está arruinada. Você teve uma filha aos dezessete anos, aqui, nesta mesma casa, pelo amor de Deus, e deu seguimento a isso com o comportamento promíscuo tipicamente reservado para as strippers de Las Vegas. Quase não se formou na Sweet Briar por causa do affair com o professor de inglês, que era casado e, assim que voltou a morar aqui, deitou-se com o chofer. Você é a desgraça da família. E pior, tenho a distinta impressão de que parte da sua diversão nessas suas aventuras é a vergonha que provoca em sua mãe e em mim.

– Talvez se eu tivesse um bom exemplo masculino para admirar, eu não considerasse os homens tão universalmente desagradáveis.

– Antes você os considerasse mesmo desagradáveis. No entanto, esse parece não ser o seu problema. Por algum motivo, Richard não se intimidou com a sua reputação, um erro de julgamento que, por certo, ele vai acabar lamentando. Ainda bem que não é problema meu.

– Eu te odeio – ela sibilou.

– O mais triste, minha querida, é que lhe falta suficiente profundidade para tal nível de inimizade. Se fosse minimamente inteligente, perceberia que Richard Pford será capaz de mantê-la no estilo de vida que você necessita, tanto quanto precisa do ar para respirar, pelo resto dos seus dias. E você estará garantindo a continuação do sucesso e da saúde financeira da família que lhe deu essa bela ossatura e essa adorável coloração facial. Essa será, depois de tudo, a sua única contribuição ao nome “Bradford”.

Gin mal percebia que estava respirando superficialmente.

– Algum dia, você vai pagar pelos seus pecados.

– Está se tornando religiosa agora? Acredito que qualquer tipo de conversão para você será difícil, até por alguém como Jesus.

– Como pode ser tão odioso? Nunca conheci ninguém tão cruel quanto você…

– Só estou cuidando de você do único modo que sei. Estou lhe dando uma fortuna, um nome honrado, e você poderá levar Amelia com você, se desejar. Ou ela pode ficar aqui.

– Como se ela não passasse de uma maleta? – Balançou a cabeça. – Você é um depravado. Absolutamente depravado…

Ele avançou e a agarrou pelo braço, permitindo que alguma emoção escapasse por baixo da máscara aristocrática de autossegurança.

– Você não faz a mínima ideia do que é necessário para manter esta família. Nenhuma ideia. A sua tarefa diária mais complexa é priorizar o que fazer antes: unhas ou cabelos. Portanto, não ouse falar de depravação quando estou resolvendo o problema de todos os sanguessugas debaixo deste teto. Os termos favoráveis de Richard Pford continuarão a nos permitir isso. – Balançou a saia do vestido de gala dela. – E isso… – Apontou para o colar no seu pescoço. – E todas as outras coisas das quais você tira vantagem diariamente sem parar para ponderar, nem que seja por um instante, como chegaram até você e a que custo. Casar-se com aquele homem é a única coisa que já lhe pediram em troca pela sua boa estrela ao nascer e pela sua liberdade de cobiça. Você é uma Bradford dos pés à cabeça, capaz apenas de consumir, mas, às vezes, um pagamento deve ser feito. Portanto, sim – ele enfatizou –, posso lhe garantir que você será a deveras feliz e contente senhora Richard Pford. Você lhe dará filhos e será fiel a ele, ou, que Deus me ajude, eu a surrarei como a garotinha de cinco anos que você ainda é. Estamos entendidos? Ou quem sabe você vai preferir fazer um curso intensivo para tentar ser como as pessoas que lavam os seus carros, preparam a sua comida, limpam o seu quarto e passam as suas roupas? Talvez você goste de saber como é difícil trabalhar para se sustentar.

– Eu te desprezo – ela disse, trêmula dos pés à cabeça.

O pai também arfava, e tossiu no punho cerrado.

– Como se me importasse. Vá em frente, faça o seu escândalo, esperneie e grite, só provará o quanto estou certo. Se for uma mulher de fato, em vez de apenas uma criança mimada e malcriada, acordará pela manhã e cumprirá o seu dever pela primeira vez em sua vida.

– Eu seria capaz de te matar neste mesmo instante!

– Mas, para isso, você teria que carregar uma arma, não é? Não é algo que possa pedir a uma criada, desde que, claro, não queira ser descoberta.

– Não me subestime…

– Visto o baixo padrão que estabeleceu para si mesma, isso seria algo muito difícil de fazer.

Girando sobre os calcanhares, ela saiu do quarto aos tropeções, e correu pelo corredor até a sua suíte. Lançando-se pela porta, trancou-se e ofegou.

Ah, inferno, não, não, jurou. Você não vai fazer isso comigo.

Se ele achava que antes ela era um problema, ele que esperasse pelo que ela aprontaria em seguida.

Enquanto marchava do quarto para o banheiro, planos reviravam em sua cabeça, muitos dos quais envolviam crimes contra o pai. No fim, teve que tirar o vestido, e o deixou cair no chão, livrando-se da seda antes de continuar andando de um lado para o outro apenas de bustiê e saltos e aqueles diamantes que a vadia da esposa do irmão tentara pôr as mãos.

Fervendo, só conseguia pensar na primeira vez em que odiara o pai…

Tinha seis, talvez sete anos, quando aconteceu. Noite de Ano-Novo. Acordara por causa dos fogos, que explodiam ao longe sobre o centro da cidade. Assustada, fora à procura de Lane, aquele com quem sempre se sentia amparada… encontrando-o na sala de estar com Max.

Gin insistira em ficar com os irmãos e fazer o que quer que estivessem fazendo. Na época, era a história da sua vida, sempre correndo para acompanhá-los, conseguir alguma atenção, estar no radar de alguma pessoa. Os empregados da casa faziam o que os pais queriam e cuidavam dos irmãos. Ela era uma nota de rodapé, uma reflexão tardia, o tapete no qual tropeçavam a caminho da porta quando iam fazer algo melhor, mais interessante, mais importante.

Não quisera beber aquela coisa da garrafa. O cheiro do bourbon era ruim, e ela sabia que era proibido, mas se Max e Lane iam tomar um pouco, então ela também tomaria.

E assim foram apanhados.

Não uma vez, mas duas.

Assim que entrara na sala, Edward ordenara que ela voltasse para a cama, e ela saíra pelos fundos como ele lhe dissera. Depois de passar pelo corredor dos empregados, porém, ouvira vozes e tivera que se esconder nas sombras a fim de não ser flagrada… quando o pai saíra do escritório de Rosalinda Freeland.

Ele estava usando seu roupão, amarrando as duas pontas do cinto ao sair de lá, e seus olhos estavam arregalados, como se estivesse com raiva, mas não havia como ele ter ouvido suas vozes lá na sala de estar. O primeiro instinto de Gin fora o de correr para a frente da casa e alertar os irmãos. No entanto, o medo a detivera… E, em seguida, a senhora Freeland saíra também, agarrando o pai pelo braço.

Sua mente infantil se perguntara por que a blusa da moça do escritório estava desabotoada, e os cabelos, sempre bem penteados e presos, estavam meio desarrumados.

Os dois discutiram em tons sussurrados, dizendo coisas que ela não conseguiu entreouvir acima das batidas do seu coração. Em seguida, o pai saiu de lá e a senhora Freeland voltou para o escritório, fechando a porta.

Gin permanecera ali pelo que lhe pareceu um ano, temendo sair, caso a senhora Freeland voltasse. Só que ela também temia que o pai voltasse por aquele caminho e a encontrasse.

Ele não devia estar ali com aquela mulher.

Ele não ficaria feliz por ela tê-lo visto.

Descalça, apressou-se pelas escadas dos empregados, colando na parede de gesso conforme subia. Já no segundo andar, paralisou quando uma segunda rodada de fogos se iniciou e, assim que terminaram de explodir, ela se abrigou na porta aberta de um dos quartos de hóspedes, desejando ter algum lugar seguro para ir.

Voltar sozinha para o quarto parecia-lhe aterrorizante. E se, além disso, o pai estivesse procurando por ela?

Sentando-se encolhida, enfiou as pernas junto do corpo e abraçou os joelhos. O pai devia ter encontrado os irmãos. Não havia como o homem não os ter visto, se tivesse usado as escadas da frente.

E isso a assustava mais do que o barulho do lado de fora.

Momentos depois, Edward surgiu no alto da escadaria, com o pai logo atrás, pairando como um monstro. Por algum motivo, o andar do irmão estava trôpego e a pele do rosto estava pálida. O pai lhe pareceu tão inflexível e reprovador quanto um banco de igreja.

Onde estariam os outros dois?

Nada foi dito enquanto eles prosseguiam até a porta do quarto do pai. E quando chegaram ao destino, Edward ficou de lado e depois tropeçou para dentro do cômodo escuro assim que a porta lhe foi aberta.

– Sabe onde estão os cintos.

Foi tudo o que o pai disse.

Não, não, ela pensou. Aquilo não era justo, Edward não estava envolvido! Por que ele…

A porta se fechou num baque, e ela estremeceu ante o que estava para acontecer.

Como esperado, um estalido foi seguido por um grunhido.

De novo.

E mais uma vez.

Edward nunca chorava. Nunca praguejava.

Já ouvira aquilo vezes demais para saber disso.

Gin abaixou a cabeça sobre os braços finos e cerrou os olhos. Não sabia por que o pai odiava tanto Edward. O homem desgostava do resto deles, mas Edward o deixava furioso.

Edward nunca chorava.

Por isso, chorou por ele… E resolveu, dali por diante, que se o pai podia odiar Edward, dois poderiam jogar aquele jogo.

E ela escolheu o que segurava o cinto naquele minuto.

Odiaria o pai dali por diante.

Voltando a se concentrar, Gin descobriu-se sentada na cama, com os joelhos ao encontro do peito, os braços ao seu redor, como se estivesse, uma vez mais, sentada dentro daquele quarto de hóspedes com apenas a camisola para aquecê-la, e o que acontecia no quarto do pai a aterrorizava em seu íntimo.

Sim, fora assim que tudo começara para ela, e William Baldwine nunca lhe dera motivos para reconsiderar o seu ódio. Aquele acordo com Richard Pford era apenas mais um item numa longa lista.

Mas não era o pior.

Não, a pior coisa que o homem fizera foi algo que ela apenas suspeitava, algo que ninguém mencionara, quer sob o teto de Easterly, quer nos jornais.

Estava convencida de que o pai era o sequestrador de Edward.

O irmão ia com frequência à América do Sul, e assim como outros executivos de sua posição, sempre viajava acompanhado de seguranças contratados pela CBB. Com esse tipo de proteção, ninguém deveria ter sido capaz de se aproximar. No entanto, seu irmão fora levado… Não numa estrada, nem mesmo numa localização remota.

Mas da sua suíte no hotel.

Como foi que aquilo pôde acontecer?

A primeira coisa que ela pensou, quando lhe contaram, foi que ali havia dedo do seu pai.

Tinha provas? Não, não tinha. Mas passara a infância inteira vendo o homem observando Edward como se menosprezasse o ar que o garoto respirava. E mais tarde, quando Edward passara a trabalhar na empresa, teve a impressão de que o relacionamento daqueles dois esfriara ainda mais, visto que o Comitê dos Curadores passara a dar mais e mais responsabilidades a Edward.

Haveria um modo melhor de se livrar de um rival do que matá-lo no exterior? De uma maneira que faria William Baldwine parecer vítima por ser um pai “em luto”?

Deus, Edward quase fora enterrado lá. E quando finalmente regressara? Estava em péssimas condições. Nesse meio-tempo, o pai se colocara diante da mídia, dos curadores, da família, mas nunca, sequer uma vez, fora visitar o filho.

Vergonhoso. E na cabeça dela era uma confirmação de que William Baldwine tentara se livrar de uma ameaça corporativa que não podia demitir.

Não era de se admirar que ela não confiasse nos homens.

Não era de se admirar que nunca fosse se casar.

Quanto menos para fazer o pai feliz.

 

QUINZE

Quando chegou a Easterly na manhã seguinte, Lizzie precisou manobrar o Yaris duas vezes para conseguir estacioná-lo direito, o que revelava o quão lamentável era seu estado mental, considerando-se que o carro era do tamanho de uma bicicleta. Saindo dele, pegou desajeitada a bolsa e a deixou cair. E quando se abaixou para pegar o protetor solar no asfalto já quente, percebeu que tinha esquecido de trazer o almoço.

Fechou os olhos.

– Maldição…

– Tudo bem, menina?

Lizzie se endireitou e se virou na direção de Gary McAdams. O chefe da manutenção da propriedade vinha andando pelo gramado, o leve claudicar não o fazia diminuir o ritmo, com o rosto envelhecido pelo tempo crispado em sinal de preocupação, como se estivesse avaliando um trator com eixo solto.

Será que sua aparência estava tão ruim assim?, perguntou-se.

Pensando bem, não dormira praticamente nada.

– Ah, sim, estou bem. – Ela forçou um sorriso. – Ótima.

– Tem certeza disso?

Não.

– Sim. Como vai a sua equipe?

– Já terminaram de cortar a grama e de aparar as trepadeiras, e vou fazer com que limpem o terraço depois das dez. – Porque só então eles tinham permissão para fazer barulho perto da casa. – As tendas foram erguidas, a parte do buffet já está pronta com as grelhas no lugar, mas tem um probleminha.

Lizzie acomodou a bolsa no ombro e pensou que já estava pronta para lidar com qualquer problema que pudesse solucionar.

– O que foi?

– Aquele senhor Harris está querendo falar com você. Tem algo com as taças de champanhe.

– Com a disposição delas nas mesas? – Fechou a porta do carro. – Pensei que elas seriam distribuídas durante a festa.

– Não, só chegou metade do pedido. Ele acha que você mudou a quantidade.

– O q… Por que eu faria isso?

– Ele disse que você é a única pessoa com acesso ao pessoal do aluguel.

– Encomendei as tendas, só isso. É ele quem tem que cuidar da louça, dos talheres e dos copos… Desculpe, estou gritando? Sinto como se estivesse gritando.

Ele apoiou sua grande mão sobre o ombro dela.

– Não se preocupe com isso, menina. O senhor Harry também me deixa doido.

– É senhor Harris.

– Eu sei.

Ela teve que gargalhar.

– Vou lá falar com ele.

– Quando ficar cansada dele, eu tenho uma pá e um ancinho. E muita área verde livre lá na minha casa.

– Você é um cavalheiro.

– Nem perto disso. Me dá a sua bolsa, menina. Vou com você.

– Ela não pesa nada. Pode deixar comigo. – Começou a andar pelo caminho que levava até a ala dos empregados. – Além disso, posso precisar dela para bater na cabeça dele.

– Lembre-se do meu ancinho – ele disse.

– Sempre.

A cada passo sobre as pedras, seu peito se contraía, e a sensação de sufocamento piorava conforme a vastidão da mansão branca surgia ao longe.

Depois de passar a madrugada olhando para o teto, não chegou a conclusão nenhuma sobre ela e Lane. O que ela guardara para si? O som da voz dele no fim do telefonema. Lembrou-se daquele tom sexy que costumava significar que ele encontraria um modo de ficar sozinho com ela, despida, o mais rápido possível.

Pareceu-lhe uma traição total que seu corpo não fosse nada além de um simples “ah, sim, pode vir” – como se sua libido desejasse o retorno do seu mestre. Afinal, ela era muito mais do que apenas um ou dois orgasmos roubados com um homem que ela deveria estar manuseando com pinças de churrasco e um extintor de incêndio.

Loucura.

Quando, por fim, chegou à casa, passou pela entrada lateral do jardim e atravessou a porta dos fundos da cozinha só para se certificar de que tudo o que preparara para a festa ainda estava onde havia deixado na noite anterior.

O que era tolice. Como se um punhado de elfos tivesse entrado ali e bagunçado tudo à luz do luar.

Entrou pela porta de empregados e cruzou a imensa cozinha que, naquele momento, estaria limpa, fria e vazia, apenas à espera dos chefs que estavam escalados para trabalhar das oito às oito. Só que o cômodo não estava completamente deserto. A senhorita Aurora estava diante do fogão industrial, com uma panela de ferro cheia de bacon estalando à esquerda, uma segunda à direita tomada de ovos mexidos. Quatro pratos estavam dispostos na bancada de aço inoxidável da ilha principal, junto de tigelas com framboesas e mirtilos frescos, um açucareiro, um pote com creme de leite e café sobre uma bandeja, sem falar de uma seleção de pãezinhos doces caseiros.

– Senhorita Aurora?

A mulher olhou por sobre o ombro.

– Ah, aí está ela. Como está? Já comeu?

– Sim, senhora.

– Não o bastante. Você e Lane, magrinhos demais. – A cozinheira se voltou para os ovos e os virou com uma espátula vermelha. – Você deveria deixar que eu te alimentasse.

– Não quero causar problemas. – Houve um grunhido de desaprovação, e antes que a discussão de sempre começasse, Lizzie a interrompeu. – A senhora me parece bem.

– Eu disse praquele mordomo que não precisava de nenhuma ambulância.

– Pelo visto, a senhora tinha razão. – E Lane devia estar muito aliviado. – Viu o senhor Harris?

– No escritório dele. Quer que eu vá com você?

– Então ficou sabendo do “champanhegate”?

– Fui eu que mandei Gary te avisar. Eu sabia que ele ia te ver quando você chegasse. Não quis que você viesse pra cá sem ter sido avisada antes.

– Não mudei o pedido.

– Claro que não. – A senhorita Aurora levantou uma frigideira de uns sete quilos como se não pesasse mais que um prato de papel. Enquanto distribuía os ovos, balançava a cabeça. – Existe uma explicação perfeitamente boa.

– Qual?

– Não é da minha conta.

– Tuuudo bem. – Lizzie deu um tempo para que a cozinheira se explicasse, mas ela não o fez. – Bem, de toda forma, vou cuidar disso. Estou muito feliz que esteja bem e de pé, senhorita Aurora.

– Você é uma boa menina, Lizzie. Mas seria ainda melhor se me deixasse te oferecer o café da manhã.

– Talvez na próxima vida.

– Só se tem direito a uma. Depois, a gente vai pro céu.

– É o que o meu pai sempre me dizia.

– O meu também.

Andando sobre o piso de azulejos, Lizzie empurrou as portas duplas e seguiu pelo corredor dos empregados. O escritório do senhor Harris ficava bem diante do de Rosalinda, e ela bateu à porta do mordomo. E mais uma vez. Na terceira, achou que estava esfolando os nós dos dedos à toa.

Fungando no ar, fez uma careta e considerou que o corredor precisava ser arejado urgentemente. Mas, pensando bem, os Bradford se recusavam a instalar ar-condicionado ou aquecimento naquela parte da casa. Afinal, os empregados que se virassem.

Seguindo até a porta envernizada de Rosalinda, também bateu ali, mesmo que a organizadora da família fosse rígida em seu horário de trabalho das nove às cinco, com trinta minutos de almoço precisamente ao meio-dia e dois intervalos de quinze minutos às 10h30 e às 15 horas. A agenda controlada lhe parecera bizarra a princípio, mas, alguns anos mais tarde, já era somente mais uma das muitas regras e regulamentos de Easterly. E fazia sentido, uma mulher que não fazia nada além de pagar contas e somar e subtrair números provavelmente tinha uma régua de cálculo nas veias e sérios problemas de controle.

Daí, então, seu título.

Pousando as mãos nos quadris, Lizzie sabia que o mordomo muito provavelmente estaria servindo a família na sala de jantar íntima. Inclusive Lane.

Consultou as horas no relógio de pulso. Não ficaria esperando pelo senhor Harris e, de jeito nenhum teria aquele confronto diante dos outros. Além disso, ela tinha trabalho a fazer: não terminara os arranjos florais na noite anterior.

Seguindo para a estufa pelo caminho dos fundos, deixou de lado sua confusão mental e se concentrou no que tinha para fazer. Depois que terminasse os arranjos, disporia as toalhas de mesa, já que não havia probabilidade de chuva e de vento forte antes do Brunch da manhã seguinte. E estava encarregada de colocar todos os pratos e copos onde precisavam ficar: junto aos bares e estações de serviço espalhados pelos jardins. Greta deveria chegar em…

– Bom dia.

Lizzie parou com a mão na maçaneta da estufa.

Relanceando por cima do ombro, deparou-se com os olhos de Lane. Ele estava sentado numa espreguiçadeira lateral, com as pernas dobradas na altura dos joelhos, os cotovelos nos apoios de braço, os dedos longos cruzados diante do peito. Usava as mesmas roupas da noite anterior e o cabelo estava uma bagunça completa, como se ele não tivesse dormido em sua cama.

– Esperando por mim? – ouviu-se dizer enquanto seu coração batia forte.

Em seu quarto, Gin amarrotava uma blusa Prada e a enfiava num dos cantos da sua mala Louis Vuitton de rodinha.

– Lenço de papel… era para você colocar lenço de papel aí. Onde ele está…

Começando a procurar, encontrou as folhas cor-de-rosa clarinhas com suas iniciais estampadas numa gaveta ampla dentro de seu guarda-roupa. De volta para onde estava arrumando a mala, lambeu o dedo e tirou uma das folhas, sendo atingida pela fragrância suave de Coco, porque a empregada borrifava cada um dos lenços individualmente assim que eram entregues na casa. Colocando o papel delicado ao redor do bolinho de seda, cobriu tudo com uma saia McQueen.

Repetindo o processo até ter quatro conjuntos completos ali, inclinou-se para trás para dar uma olhada no trabalho. Horrível. Nada parecido com o que Blanche fazia para ela, mas não pretendia esperar até que a mulher chegasse para o seu turno ao meio-dia.

Gin estava fechando a mala quando percebeu que não tinha separado roupas íntimas, sapatos e tampouco os artigos de higiene.

Pegou outra mala LV e dispensou o lenço de papel.

De toda forma, o que importava? Acabaria simplesmente comprando tudo que precisasse.

Quando terminou, levantou o telefone ao lado da cama e ligou para o escritório de Rosalinda, sem acreditar quando a secretária eletrônica pediu que deixasse um recado.

– Onde diabos essa mulher foi…

Uma olhada rápida para o relógio Cartier sobre a mesa e ela descobriu que ainda eram 8h30. Deus, há quanto tempo não se levantava cedo assim?

Arranjos para o uso dos jatinhos também podiam ser feitos por meio da assistente executiva do pai, e aquele robô estava sempre junto à sua escrivaninha. Mas Gin só queria que ele soubesse que ela estava partindo quando estivesse na metade do caminho até a Califórnia e, sem dúvida, seu buldogue de saia atacaria o telefone para avisá-lo assim que ela a acionasse.

Deus, aquela expressão no rosto dele na noite anterior fez seu sangue gelar. Nunca o vira tão furioso.

Mas, em retrospecto, ela era mesmo filha do seu pai: assim como no jogo do ódio, dois podiam jogar aquele novo jogo.

Dez minutos mais tarde, Gin puxou as alças da bagagem e as rolou até o corredor, tropeçando sobre as malditas malas. Com a bolsa de monograma combinando com a bagagem batendo na lateral do corpo, empinou um dos saltos Louboutin para fechar a porta, e praguejou contra a falta de um carregador.

Mas também não confiava no mordomo.

A bem da verdade, não confiava em ninguém naquela casa.

Antes de tomar o elevador até o porão, foi até o quarto de Amelia e abriu a porta.

Pela primeira vez, percebeu a decoração.

A cama de dossel branca e rosa era queen size, apesar de a filha pesar pouco mais que um travesseiro, e não havia nenhum pôster da Taylor Swift ou do One Direction nas paredes. A penteadeira era francesa e antiga, o banheiro acoplado era de mármore e latão, e tinha mais de sessenta anos, e o candelabro Baccarat no meio do quarto era suspenso por uma corrente coberta por seda, e debaixo dele havia um medalhão de ouro feito à mão.

Parecia mais o quarto de uma senhora de cinquenta anos do que de alguém de quinze.

Dezesseis, a partir da noite anterior, Gin se lembrou.

Andando na ponta dos pés sobre o tapete bordado à mão, ela apanhou seu retrato predileto da menininha de cabelos negros, que agora já não eram mais tão escuros já que ela estava fazendo luzes a cada seis semanas, e tampouco era tão pequenina, pois já estava no segundo ano em Hotchkiss.

Só de pensar na filha, a ideia de sair de Easterly lhe parecia cada vez mais acertada. Ela tinha duas amigas esperando por ela em Montecito, e ficaria lá até que o pai entendesse que podia muito bem administrar uma empresa bilionária, mas que não mandava nela. E depois disso? Voltaria para lá com certa regularidade, só para ele ver que cometera um erro.

De novo no corredor, refreou os xingamentos ao se arrastar até o elevador e entrar. Quebrou uma unha ao apertar repetidamente o botão para fechar a porta, e quase quebrou um dos saltos quando pisou no chão da adega, puxando as malas para fora.

Não fazia a mínima ideia de onde ir. Onde ficava a garagem. Como se orientar no andar subterrâneo.

Levou quase vinte minutos para encontrar o túnel que levava até a frota da família, e quando emergiu na garagem para dez carros, sentia-se como se tivesse não só acabado de correr uma maratona, mas vencido.

Só que estava sem as chaves dos carros. Nada no Bentley. Nem do Drophead. E não pegaria nem o Porsche GTS, nem a Ferrari, tampouco o Jaguar antigo que se parecia com o de Samuel T., porque todos eles tinham câmbio manual e ela não sabia dirigir modelos assim. O mesmo acontecia com os 911 e o Spyker.

E os sedãs Mercedes não eram bons o bastante para ela.

– Maldição! – Quando bateu o pé no chão, uma das malas de rodinha caiu como se tivesse desmaiado. – Onde estão as chaves?

Abandonando a bagagem, marchou até o escritório. Trancado. Assim como as portas da garagem.

Aquilo era totalmente inaceitável.

Pegou o celular, estava prestes a telefonar – bem, não sabia exatamente para quem, mas para alguém –, quando um armarinho pendurado na parede chamou sua atenção. Indo na direção da portinha de metal de 0,3 por 0,9 metros, deu um puxão na alça, e não se surpreendeu quando a porta não cedeu.

A boa notícia? Ela estava com muita vontade de bater em alguma coisa.

Olhando ao redor, não viu nada fora do lugar. Desde lonas para cobrir os carros, até pneus sobressalentes e material de limpeza, tudo estava organizado numa parede com precisão militar em prateleiras, ganchos, e caixas tampadas.

Exceto pelo pé de cabra, que encontrou encostado numa pilha de panos limpos com o brasão da família bordado.

Gin sorriu ao caminhar do alto dos seus saltos, erguendo a peça de metal. De volta ao armário, arqueou o objeto acima da cabeça e bateu na caixa onde estavam as chaves como se aquilo fosse a cabeça do pai. Bateu, bateu, bateu e bateu, o som metálico agudo ecoando em seus ouvidos.

Apesar de já estar quase sem unhas quando concluiu a tarefa, a porta estava pendurada no que restava das suas dobradiças.

O Bentley, decidiu.

Não, o Rolls. Custava mais caro.

Levando a bagagem até o Phantom Drophead, abriu a porta que se abria ao contrário, enfiou as malas no banco de trás e se pôs atrás do volante. Afundou o sapato de salto no freio, apertou o botão da ignição e o motor rugiu a vida com um rosnado latente.

Esticando a mão na direção do espelho retrovisor, apertou todos os botões até a porta da frente se erguer.

E partiu.

A raiva dentro dela fez com que quisesse passar pelo caminho frontal só para desfilar diante dos cômodos particulares da família; mas era mais importante sair da propriedade sem que ninguém soubesse, por isso contentou-se em levantar o dedo médio para Easterly pelo espelho retrovisor enquanto usava o caminho dos empregados.

Quando chegou à estrada River, virou à esquerda, verificou as horas e pegou o telefone. Rosalinda já deveria ter chegado àquela altura, e ela poderia finalmente cuidar dos arranjos para o jatinho, o que não deveria ser um problema. Gin pedia o avião pelo menos uma vez por semana.

Caixa postal. De novo.

O maldito Brunch. Esquecera-se dele. Todos os funcionários estavam distraídos.

Mas ela tinha necessidades.

Gin ligou para outro número, um que tinha apenas um dígito diferente do de Rosalinda. Ao terceiro toque, ela estava quase desistindo quando ouviu o inconfundível sotaque britânico daquele mordomo.

– Senhor Harris falando, como posso ajudar?

– Preciso de um avião e não consigo falar com a Rosalinda. Você vai ter que providenciá-lo para mim. Decolando neste instante para o aeroporto de Los Angeles.

O mordomo limpou a garganta.

– Senhorita Baldwine, perdoe-me…

– Não venha me dizer que está ocupado demais. Você pode ligar diretamente para o piloto, já fez isso antes, e depois pode voltar para qualquer uma das suas incumbências idiotas do Brunch…

– Lamento, senhorita Baldwine, mas não haverá um avião disponível para a senhorita.

– Você só pode estar brincando. – Sem dúvida era por causa daqueles convidados corporativos que estavam chegando para o Derby. Mas ela era da família, pelo amor de Deus. – Tudo bem, apenas atrase alguém e eu…

– Não será possível.

– Eu sou prioridade! – O Phantom ganhou velocidade quando ela apertou o acelerador, pelo menos até quase acertar o carro na frente dela. – Isso é inaceitável. Ligue para aquela torre de controle, ou para aquela lista de pilotos ou… para quem quer que me coloque num maldito avião para a costa oeste!

Houve uma longa pausa.

– Sinto muito, senhorita Baldwine, mas não poderei mais fazer esse tipo de serviço para a senhorita.

Um alerta gélido apertou a sua nuca.

– Que tal mais tarde, ainda esta manhã?

– Não será possível.

– À tarde.

– Lamento, senhorita Baldwine.

– O que o meu pai lhe disse?

– Não cabe a mim comentar o que…

– Que porra que ele te disse? – ela berrou ao telefone.

A respiração que o homem soltou era o mais próximo que ele chegaria a uma imprecação em voz alta.

– Esta manhã, recebi um memorando dirigido à organizadora e a mim, indicando que os recursos da família não estariam mais disponíveis para a senhorita.

– Recursos…?

– O que inclui dinheiro vivo, contas bancárias, viagens e acomodações em hotéis, e acesso às demais propriedades dos Bradford ao redor do mundo.

Nessa hora o pé dela escorregou do acelerador, e quando o carro atrás dela buzinou, ela foi para o acostamento.

– Gostaria de poder fazer algo – ele disse num tom neutro que indicava que isso não era verdade. – Mas, como já disse, estou impossibilitado de ajudá-la.

– O que devo fazer?

– Talvez voltar para casa seja o melhor. Acabei de vê-la saindo no Rolls-Royce.

– Não vou me casar com Richard Pford – ela disse e depois encerrou a ligação.

Quando olhou pelo retrovisor, os arranha-céus denteados do centro da cidade pareceram assustadores pela primeira vez em sua vida. Nunca antes se impressionara com a cidade de Charlemont, tendo dado a volta ao mundo diversas vezes. Mas todas essas viagens aconteceram enquanto ela tinha recursos ilimitados ao seu dispor.

Com a mão trêmula, pegou a carteira e levantou o fecho. Ela tinha cinco notas de cem dólares e algumas de vinte… e sete cartões de crédito, inclusive um Amex Centurion. Estava sem a habilitação porque sempre andava com motorista particular. Também não tinha o cartão do seguro de saúde porque fazia uso dos serviços dos médicos afiliados à Cia. Bourbon Bradford. Não estava nem com o passaporte, apesar de não ter planejado sair do país.

Duzentos metros mais adiante, havia um posto de gasolina, e ela voltou a acionar o Phantom, seguindo o fluxo do trânsito. Quando chegou ao símbolo da Shell, cortou caminho diante de um caminhão que vinha na direção oposta e parou junto a algumas bombas de abastecimento.

Quando saiu, não foi para abastecer o carro. O tanque estava cheio.

Sacou um cartão Visa qualquer e colocou-o no leitor. Em seguida, apertou as teclas que compunham a sua senha. Esperou para ver se a transação hipotética seria aceita.

Não aprovado.

Tentou o Amex e recebeu a mesma resposta da máquina. Quando outros dois Visas não funcionaram, ela desistiu.

Ele bloqueara os seus cartões.

De volta ao volante, tudo ficou embaçado. Tinha investimentos por toda parte, dinheiro que lhe pertencia… mas só dali a dois anos, quando completasse trinta e cinco, e nenhum dia antes disso – algo que descobrira quando num impulso tentara comprar uma casa em Londres no ano passado e tivera esse desejo negado pelo pai. Pouco importou o quanto tivesse gritado com a empresa do seu fundo, eles se recusaram a lhe entregar o dinheiro, declarando que ela não tinha permissão para acessá-lo até que atingisse a idade estipulada.

Só havia um lugar para onde poderia ir.

Odiava implorar, mas isso era muito melhor que se casar, ou admitir uma derrota ao pai.

Colocando o câmbio mais uma vez no drive, enfiou-se no trânsito e tomou a direção da qual viera. No entanto, não retornaria a Easterly. Iria para…

De repente, o carro morreu. Tudo parou: o motor, o ar-condicionado, as luzes do painel. As únicas coisas que funcionavam eram o volante e o freio.

Enquanto pressionava o botão da ignição, viu suas ações frenéticas e impotentes de longe, notando, sem dar muita atenção, como suas unhas estavam arruinadas, as pontas cortadas, o esmalte vermelho-cereja lascado. Tendo que admitir que o motor não voltaria a funcionar, foi para o acostamento da estrada para não acabar numa colisão e…

Sirenes soaram ao longe e ela olhou pelo espelho retrovisor.

Uma viatura da Polícia Metropolitana de Charlemont encostou atrás dela com as luzes acionadas. E depois uma segunda unidade se pôs à frente até que o Phantom ficasse bloqueado.

Os dois policiais se aproximaram dela com as mãos sobre as pistolas presas ao coldre, como se não tivessem certeza se precisariam das armas.

– Saia do veículo, senhora – o mais alto deles disse com voz autoritária.

– Este carro é meu! – ela exclamou ao abaixar o vidro. – Vocês não têm o direito de…

– Esse veículo pertence a William Baldwine, e a senhora não tem autorização para usá-lo.

– Ah, meu Deus… – ela sussurrou.

– Saia do carro, senhora…

Merda, estava sem a habilitação.

– Sou filha dele!

– Senhora, estou ordenando que destrave as portas e saia do veículo. Se não fizer isso, vou autuá-la por resistir à prisão. Além de dirigir um veículo roubado.

 

DEZESSEIS

– Claro que eu estava à sua espera. – Assim que Lane falou, levantou as mãos, num gesto de quem pedia para aguardar. – Mas apenas como amigo. Queria me certificar de que chegou bem ao trabalho.

Maldição, ela estava linda. Mais uma vez, com a camisa polo preta do uniforme de Easterly e shorts cáqui, o cabelo puxado para trás, preso num rabo de cavalo… De alguma forma, parecia exoticamente bela.

Pensando bem, já fazia mais de doze horas que não a via.

Uma vida inteira, de fato.

Enquanto ela revirava os olhos, ele a flagrou tentando esconder um sorriso.

– Já fiz esse trajeto algumas vezes, sabe – ela disse.

– E como foi esta manhã?

Houve uma pausa, e então algo mágico aconteceu. Lizzie explodiu numa gargalhada.

Cobrindo a boca, ela meneou a cabeça.

– Desculpe, mas você está horrível. O seu cabelo está todo… – ela mexeu a mão ao redor da cabeça dele – … está uma bagunça, seus olhos mal conseguem ficar abertos. Sabia que está balançando para a frente e para trás apesar de estar sentado?

Ele deu um sorriso largo.

– Você precisava ver o outro cara.

– Ele era durão?

– Agora, em vez de usar capuz ele usa brinco. – Lane levantou um braço e flexionou o bíceps. – Homem pra valer este aqui…

Ouviram um par de passadas vindo na direção deles, então Lane espiou por cima do ombro dela e murmurou alguma coisa bem baixinho.

Era o mordomo inglês seguindo direto para ela, só que parou quando viu Lane.

– Com licença, Lane – Lizzie disse baixinho. – Tenho um assunto de trabalho para resolver agora.

– O que foi? – ele perguntou ao mordomo.

O inglês sorriu, parecendo um manequim de loja.

– Nada com que tenha que se preocupar, senhor Baldwine. Senhorita King, poderia fazer a gentileza de vir até o meu escritório quando tiver terminado de…

– O que houve? – Lane exigiu saber.

– Apenas um mal-entendido – Lizzie murmurou.

– Sobre o quê?!

Lizzie se concentrou no senhor Mais Sagrado Que o Senhor.

– O pedido das taças de champanhe alugadas foi reduzido, e ele acha que eu telefonei para Mackenzie para mudar a quantidade, mas não fiz isso. Ficarei feliz em poder organizar tudo quando os copos e os pratos chegarem, mas não sou responsável por coordenar nada que se refira aos pedidos. As tendas e as mesas são de minha responsabilidade, e elas estão exatamente onde deveriam estar.

Os olhos do senhor Harris se estreitaram.

– Esta conversa deve ser conduzida em meu…

– Então, não tem nada a ver com ela. – Lane sorriu para o mordomo com frieza. – E seu assunto aqui terminou.

Lizzie pôs uma mão no braço dele, e o contato foi uma surpresa tamanha, que de fato o calou.

– Está tudo bem. Repito, ficarei feliz em fazer o que puder para ajudar. Senhor Harris, quer que eu fale com Mackenzie e tente encontrar um modo de solucionar o caso?

O mordomo olhou de um a outro.

– Sei o que encomendei. O que não sei explicar é como apenas metade disso foi entregue.

– Veja bem, não quero lhe ensinar o seu trabalho – Lizzie disse. – Mas erros da parte deles já aconteceram antes. O que precisamos fazer é descobrir o que mais está faltando e ligar para eles para alertá-los. Isso não deve ser um problema. O senhor fez o pedido pessoalmente ou foi por intermédio de Rosalinda?

– Usei os serviços da senhora Freeland, e lhe entreguei os números corretos.

Lizzie franziu o cenho.

– Ela sabe o quanto pedir. Fez isso por anos a fio.

– Ela me garantiu que tomaria conta da questão. Deduzi que outra pessoa com acesso à conta tivesse reduzido a quantidade.

– Vá procurá-la, e eu encontrarei Greta para contar tudo o que foi entregue. Vamos resolver. Pelo menos, descobrimos hoje e não amanhã de manhã.

Houve um instante de constrangimento no qual o mordomo nada disse, e Lane se perguntou o quanto daquele plano sensato ele teria que enfiar goela abaixo do ditadorzinho.

– Muito bem – disse o mordomo. – A sua assistência será muito bem-vinda.

Enquanto o senhor Harris se afastava, Lizzie inspirou fundo.

– E assim entramos na contagem regressiva das vinte e quatro horas.

– Ninguém da equipe pode fazer essa contagem? Esse problema não é seu.

– Está tudo bem. Pelo menos se Greta e eu fizermos isso, saberei que está tudo certo. Além disso, todos em Easterly estão com trabalho até as orelhas, e os chefs auxiliares não poderão dispensar…

O telefone de Lane começou a tocar, e ele o tirou do bolso para silenciar o barulho.

– Quem diabos pode ser? – perguntou, quando viu o código de área local.

Ela riu de novo.

– Você pode descobrir se… prepare-se… atender!

– Está pegando no meu pé?

– Alguém tem que fazer isso.

Lane sorriu tão amplamente que suas bochechas começaram a doer.

– Ok, vamos lançar os dados e ver quem é. – Apertou o botão verde e disse em sua voz mais arrastada: – Vocccccêêêê ligoooouu paaaara…

– Lane! Ah, meu Deus, Lane, preciso da sua ajuda.

– Gin? – Ele se endireitou na espreguiçadeira. – Gin, você está bem?

– Estou no centro da cidade, na cadeia de Washington County. Você tem que vir aqui pagar a minha fiança…

– Que diabos? O que você…

– Preciso de um advogado…

– Ok, ok, ok, devagar. – Ele se pôs de pé. – Você está falando rápido demais e não estou entendendo.

Sua irmã fez uma pausa e depois disse quatro frases completas que o deixaram sem chão.

– Está bem – disse ele com seriedade. – Estou indo para aí agora mesmo. Sim. Certo. Ok. Fique aí.

Quando desligou, só o que ele conseguiu fazer foi procurar o rosto de Lizzie.

– O que foi? – ela perguntou.

– O meu pai mandou prenderem Gin. Tenho que, literalmente, ir até a cadeia e pagar a fiança dela.

Lizzie cobriu a boca com a mão num sinal de choque.

– Posso fazer alguma coisa?

– Não. Vou lá cuidar dela. Mas obrigado.

Ele precisou de todo o seu autocontrole para não se inclinar e beijá-la como costumava fazer. Em vez disso, contentou-se em esticar a mão e afagá-la no rosto, saindo antes que ela pudesse dizer que “amigos não fazem isso”.

Inferno, o que o seu pai estaria aprontando agora?

Na época em que fora fumante, Edward frequentemente acordava de manhã já esticando o braço para pegar o maço de Dunhill Reds antes de estar plenamente consciente de sequer ter rolado de lado.

Hoje em dia ele fazia o mesmo, só que para pegar o frasco de Advil.

Colocando quatro cápsulas de gel na palma trêmula, levou-as à boca e as engoliu com o que restava da vodca que levara para a cama. Fazendo uma careta enquanto essa sua versão de desjejum descia até o estômago, deitou-se de novo sobre o travesseiro.

Tinha parado de fumar durante a recuperação. Na verdade, o sequestro fora o primeiro passo para que abandonasse o vício.

Ironicamente, o fato de quase ter morrido foi o responsável por ajudá-lo a ter uma vida mais longa.

Saudou com a garrafa no ar.

– Gracias, muchachos.18

Antes que seu cérebro entrasse no looping infindável da sequência horrenda do Dia Em Que Tudo Aconteceu, virou as pernas para o chão e se sentou. Não olhou para a coxa e para a panturrilha direitas. Primeiro porque as cicatrizes tortas da sua pele à la Frankenstein estavam gravadas em sua mente. Segundo porque ele já não dormia mais nu, por isso elas não estavam aparecendo.

A bengala era necessária para que ele se levantasse, e seu equilíbrio não estava muito bom não só por causa dos ferimentos, mas pela falta de sono e pelo fato de ainda estar meio embriagado. Mancando até o banheiro, deixou as luzes apagadas, de modo que o espelho não foi um problema, e usou o vaso, lavou as mãos, o rosto e escovou os dentes.

A confirmação de que Deus ainda o odiava veio quando ele saiu do chalé uns dez minutos depois e foi ofuscado pela luz brilhante do sol e pela dor de cabeça causada pela ressaca.

Que horas são?, perguntou-se.

Já estava na metade do caminho até o Estábulo B quando percebeu que levara a garrafa junto. Como se fosse o seu brinquedinho predileto.

Revirando os olhos, seguiu em frente. A senhorita Nada de Praguejar Perto de Mim poderia muito bem se acostumar com ele e sua bebida; não havia motivos para apresentar-lhe uma ilusão diurna de abstinência que só a perturbaria no futuro. Se ela não conseguisse lidar com esse seu hábito, ela podia muito bem ir embora no primeiro dia.

O som de pneus cantando fez sua cabeça girar para a direita, e na fração de segundo seguinte, Shelby apareceu na ponta oposta do estábulo, o corpo encurvado na cintura ao empurrar uma tremenda carga de esterco de cavalo dentro de uma velha carreta enferrujada.

Pelo visto, Moe já a colocara para trabalhar.

– Ei – ele a chamou.

Sem diminuir o passo, ela acenou por sobre o ombro e seguiu em frente com o esterco para trás da construção mais próxima.

Enquanto a observava, invejou o corpo forte dela, talvez notando, sem nem se dar conta, que o sol fazia com que as mechas loiras dela parecessem quase brancas. Ela estava usando uma camiseta azul-marinho, um par de jeans escuros e as mesmas botas resistentes da noite anterior. Depois de desaparecer atrás da curva do prédio, reapareceu duas vezes mais rápido do que deveria, considerando a quantidade de esterco que teve que descarregar.

Portanto, ela também era eficiente.

Ao se aproximar, seus olhos estavam claros e alertas, o rosto corado pelo esforço.

– Quase terminando. Depois vou pro C.

– Jesus, Moe fez com que você… desculpe – disse antes que ela o corrigisse. – Maldição, Moe já te colocou pra trabalhar? E não venha me dizer que não posso usar “maldição”. Deixo de mencionar Deus e Jesus Cristo, mas só vou até aí.

Ela deixou os pés do carrinho encostarem na grama aparada.

– Suco de laranja.

– O que disse?

A filha de Jeb Landis acenou para a garrafa.

– Pode ficar com “maldição”, mas eu gostaria de ver você com outra coisa que…

– Você sempre julgou tanto assim?

– … não fosse vodca tão cedo assim. E não estou te julgando.

– Então por que quer mudar os hábitos de um desconhecido?

– Você não é um desconhecido. – Enxugou a testa com o antebraço. – Não são nem nove da manhã. Fico me perguntando por que você precisa beber tão cedo assim.

– Eu estava meio desidratado.

– Não tem água encanada na sua casa? Ontem tinha.

Ele balançou a garrafa.

– Isto aqui está servindo bastante bem. Pense que é a minha versão da vitamina C.

Ela resmungou alguma coisa ao se abaixar para pegar as alças.

– O que disse? – ele exigiu saber.

– Você me ouviu.

– Não, não ouvi, não. – O que não era exatamente a verdade.

Shelby só deu de ombros e seguiu em frente, aquele seu corpo se movendo debaixo das roupas, executando a tarefa sem nenhum esforço aparente.

E foi nessa hora que algo lhe ocorreu.

– Shelby?

Ela parou e olhou por cima do ombro.

– Pois não?

– Você disse que cuidou de todos os cavalos.

– Cuidei.

– Nos Estábulos A e B.

– Isso mesmo.

Ele se apressou e a agarrou pelo braço.

– Eu te disse. Uma regra. Não chegue perto daquele garanhão.

– A baia não ia se limpar sozinha…

A mão dele se apertou por vontade própria.

– Ele matou um ajudante de estábulo no ano passado. Foi pisoteado até morrer ali. Nunca mais faça isso.

Aqueles olhos azuis dela ficaram arregalados.

– Ele se portou bem comigo.

– Só eu chego perto dele. Estamos entendidos? Faça isso mais uma vez e eu faço as suas malas – ele disse firmemente – e te mando de volta para o lugar de onde veio.

– Sim, senhor.

Ele se afastou e tentou não cambalear.

– Muito bem, então.

– Está certo.

Ela soprou o cabelo para longe do rosto e voltou a andar, com os ombros tensos.

Tirando a tampa da vodca, Edward deu um trago longo e, provavelmente, deveria ter parado quando percebeu que a bebida já não ardia mais.

Mas essa era outra coisa sobre a qual não queria pensar.

Assim como não queria pensar no que poderia acontecer com a filha de Jeb Landis enquanto ela estivesse sob a sua proteção.

Maldição.


“Obrigado, meninos.”

 

DEZESSETE

A cadeia e o Tribunal do Condado de Washington formavam um complexo de edifícios modernos que ocupava dois quarteirões inteiros no centro da cidade, cujas instalações se comunicavam por meio de passarelas que se estendiam acima do trânsito da rua logo abaixo. Havia certa quantidade de entradas e, enquanto Lane encostava o Porsche, inúmeras pessoas entravam e saíam; eram homens e mulheres em ternos subindo e descendo os degraus de mármore, policiais dentro de suas viaturas, delegados estacionando suas SUVS e saindo de vagas reservadas, pessoas em roupas desgastadas fumando pelos cantos.

O seu 911 Turbo emitiu uma tossida baixa quando ele desacelerou e se dirigiu para os prédios imponentes. Não havia nenhum layout lógico que ele conseguisse distinguir. Tampouco um endereço.

Como se, caso tivesse que perguntar para onde deveria ir, ficaria com a sensação de que aquele não era o seu lugar…

Até que, de repente, um afro-americano uniformizado surgiu bem diante do seu carro.

– Droga! – Lane afundou o pé no freio. – Mas que diabos! Mitch?

O delegado Mitchel Ramsay não respondeu. Apenas indicou uma vaga livre bem atrás dele.

Lane estacionou com uma baliza perfeita, ciente de que o delegado estava bem ao lado do seu para-choque, os braços grossos como uma corda náutica cruzados sobre seu peito de jogador de futebol americano. Seus olhos negros estavam escondidos atrás de óculos Ray Ban, e a cabeça raspada fazia com que seu pescoço e seus ombros parecessem ainda maiores do que eram de fato.

Lane saiu do carro esportivo.

– Ei, sabe onde a minha irmã…

– Pode deixar.

Os dois bateram palmas e deram um abraço forte. Enquanto permaneciam peito contra peito, Lane foi transportado para quase dois anos atrás, para a pista de pouso particular a oeste da cidade. Para a noite em que Edward finalmente retornava do cativeiro.

Mitch o trouxera de volta aos Estados Unidos. De volta para a família.

Só Deus sabia como. Ninguém perguntara os detalhes, e Lane sempre ficou com a impressão de que o antigo soldado do Exército não teria partilhado os “como” e os “quem”, de todo modo.

– Ela não está muito bem – comentou Mitch.

– Não me surpreende.

Lane seguiu o delegado, subindo os cinquenta degraus até uma das portas giratórias. Quando terminaram de subir, Mitch desviou para uma porta demarcada com SOMENTE POLICIAIS e depois os fez passar pela segurança, de onde outros policiais acenaram em sinal de respeito.

– Agi o mais rápido que pude assim que vi o nome – disse Mitch enquanto suas passadas se uniam a todas as outras, ecoando no vestíbulo principal, com pé direito alto. – Ela foi presa por furto de veículo, por dirigir sem habilitação, por não apresentar o seguro…

– Como diabos isso foi acontecer?

– … e por resistir à prisão. Já isolei o incidente, mas não vou conseguir mantê-lo fora dos registros policiais indefinidamente.

– Espere. – Lane fez o homem parar. – Minha irmã roubou um carro?

– Um Rolls-Royce. Registrado no nome da Cia. Bourbon Bradford.

– Está se referindo… ao nosso Rolls. O Phantom Drophead?

– O seu pai telefonou pessoalmente para a Polícia Metropolitana e pediu que fossem atrás dela, alegando que ela não tinha permissão para dirigir o veículo.

– Você não pode estar falando sério. – Lane enfiou a mão nos cabelos. – Quero dizer, é claro que ele pode fazer isso. Já fez coisa pior.

– Você chamou um advogado?

– Samuel T. deve chegar aqui em…

– Lane!

Samuel T. avançou em meio a um grupo de pessoas, destacando-se por inúmeros motivos. Primeiro, seu terno de risca de giz azul e branco fazia com que ele parecesse pertencer a uma varanda da casa grande de uma fazenda, sorvendo um julepo de menta com um par de cães de caça aos seus pés. Segundo, ele era belo demais para estar entre os mortais.

– Obrigado por vir tão rápido – Lane disse ao apertarem as mãos. – Você conhece Mitch.

– Certamente. Delegado.

– Senhor Lodge.

Encerrando os cumprimentos, os três seguiram para as escadas rolantes que levavam ao segundo andar.

– Ela está numa cela. – Mitch os conduziu por uma das passarelas. – Mas removi qualquer tipo de retardo para a audiência da fiança. Assim que estiver pronto, senhor Lodge…

– Pode me chamar de Samuel ou de Sam.

– Samuel. – Mitch assentiu. – Assim que estiver pronto. Farei com que ela se apresente diante do juiz McQuaid. Já conversei com o promotor público. As mãos dele estão atadas, visto que o senhor Baldwine está pressionando. A única coisa que posso fazer é apressar, apressar, apressar.

Lane cerrou os molares. Gin dava trabalho e, evidentemente, o pai já estava farto disso, mas aquilo tudo era exposição demais.

– Vou ficar te devendo essa, Mitch.

– Não se preocupe.

O delegado os fez passar por vários pontos de controle de segurança, até adentrarem o complexo. Embora Lane tivesse aprontado sua porção de infrações quando era mais jovem, todas as suas transgressões foram discretamente “resolvidas”. Portanto, aquela era a primeira vez que ia para a cadeia, e não poderia dizer que estava com pressa para voltar lá algum dia.

A sala de espera tinha paredes creme. Piso creme. Cadeira plástica laranja, amarela e vermelha. O cheiro no ar era de suor e de roupas sujas, e de desinfetante em spray.

Graças a Mitch, passaram ao largo do balcão de registros com as divisórias de vidro à prova de balas e da fila de policiais com a pescaria do dia. Isso sim era um chamado para a realidade da outra parte da população. Homens sujos e rapazes estranhos… moças quase despidas… mulheres mais velhas com aspecto cansado… Todos eles de pé ou cambaleando, acompanhados dos policiais que os prenderam, seus rostos revelando as marcas da vida dura que levavam.

– Por aqui, delegado Ramsey – alguém o chamou ao lado de uma porta reforçada.

Depois de passar por mais um ponto de segurança, cruzaram com diversas salas de reunião com luzes vermelhas acesas sobre as portas e grades diante das janelas protegidas por telas.

– Se esperarem aqui – o policial disse, na frente de uma das salas –, eu a trago já.

– Obrigado, Stu. – Mitch abriu a porta e se colocou de lado. – Fico esperando do lado de fora.

– Muito obrigado. – Lane bateu no ombro do homem. – E, provavelmente, ainda vamos precisar da sua ajuda.

– Estou aqui para o que precisarem.

Samuel T. parou ao lado do delegado.

– Alguém já falou com a imprensa?

– Nós não – Mitch respondeu. – E quero que continue assim.

– A minha irmã não tem a melhor das reputações. – Lane meneou a cabeça. – Quanto menos pessoas souberem, melhor.

Mitch os deixou ali na sala. Embora houvesse quatro cadeiras presas ao chão junto a uma mesa de aço também presa, Lane não conseguiu ficar sentado. Samuel T., por sua vez, pôs a velha maleta ao seu lado e cruzou as mãos.

O advogado balançou a cabeça.

– Ela vai ficar louca quando souber que você me chamou.

– E quem mais eu poderia chamar? – Lane esfregou os olhos doloridos. – E depois disso, você vai me ajudar com o meu divórcio, certo?

– Apenas mais uma manhã atarefada com os Bradford…

Pelo menos deixaram que ela permanecesse com as próprias roupas, Gin pensou, enquanto era conduzida por outro corredor de concreto pintado com a vichyssoise do mês.

Ficara aterrorizada com a perspectiva de se despir diante de uma guarda feminina de peito cabeludo para depois ser violada por uma mão com uma luva antes de ser enfiada dentro de um macacão laranja do tamanho de uma tenda de circo. Quando isso não aconteceu, ficara obsessiva com a possibilidade de ser trancafiada numa cela horrorosa e suja com um punhado de prostitutas viciadas em drogas tossindo o vírus da AIDS em cima dela.

Em vez disso, fora colocada numa cela sozinha. Uma cela fria, com apenas um banco e um vaso sanitário de aço sem assento nem papel higiênico.

Não que um dia ela fosse fazer uso daquilo.

Seus brincos de diamante foram retirados, assim como o relógio Chanel, juntamente com as malas LV, o celular, aquelas notas de quinhentos dólares e os cartões de crédito inúteis que tinha na carteira.

Um telefonema. Foi só o que lhe concederam, bem como nos filmes.

– Por aqui – disse o guarda, parando diante de um homem afro-americano uniformizado, e em seguida abrindo uma porta pesada.

– Lane…! – Só que ela parou de correr na direção do irmão assim que viu quem estava sentado à mesa. – Ah, Deus. Ele não.

Lane a abraçou com força depois que a porta se fechou.

– Você precisa de um advogado.

– Estou livre – Samuel T. disse com a fala arrastada. – Relativamente livre.

– Não vou falar na frente dele. – Ela cruzou os braços diante do peito. – Nenhuma palavra.

– Gin…

Samuel T. interrompeu o irmão dela.

– Eu te disse. Acho melhor pegar as minhas coisas e ir embora.

– Sentem-se – Lane ordenou. – Os dois.

Houve um instante de silêncio, que Gin entendeu como sinal de que Samuel T. estava tão surpreso pelo tom de comando quanto ela. Lane sempre fora, dentre os quatro irmãos Baldwine, aquele que seguia conforme a maré. Agora, ele parecia Edward.

Ou como Edward costumava ser.

Depois que se sentou desajeitada numa cadeira tão dura e fria quanto um bloco de gelo, Lane apontou um dedo na direção dela.

– O que você aprontou?

– Como é? – ela disse, se retraindo. – Por que é culpa minha? Por que acha que fui eu quem…

– Porque normalmente é o que acontece, Gin. – Ele cortou o ar com a mão quando ela começou a discutir. – Nem comece, eu te conheço há tempo demais. O que fez desta vez para irritá-lo? Vou tirar você daqui, mas tenho que saber com o que estou lidando.

Enquanto Gin encarava o irmão, quis mais do que nunca mandá-lo se foder. Mas só conseguia pensar na imagem dos seus cartões sendo negados no mostrador digital da bomba do posto de gasolina. Quem mais poderia ajudá-la?

Olhou para Samuel T. Ele não a encarava, e seu rosto estava impassível, mas a desaprovação altiva que ele emanava era tão evidente quanto sua colônia no ar.

– E então? – Lane inquiriu.

Pesando as opções, percebeu que estava completamente desconfortável com essa coisa de enfrentar situações difíceis. Com dinheiro suficiente e uma amnésia conveniente, não existia nada que ela não pudesse evitar, quer isso envolvesse suborno ou teimosia.

Infelizmente, as infindáveis opções estavam fundamentadas num estilo de vida que apenas parecia ser dela. Mas, na verdade, era de outra pessoa. Só não sabia disso até aquela manhã.

Pigarreou.

– Samuel T., você pode… me dar um momento a sós com o meu irmão? – Ela avançou a mão sobre a mesa. – Não estou dizendo que não pode ser o meu advogado, só preciso de um pouco de privacidade com ele. Por favor.

Samuel T. curvou uma sobrancelha.

– É a primeira vez que a ouço dizer essas palavras. Pelo menos estando vestida.

– Cuidado, Lodge – Lane rosnou. – Ela é minha irmã.

O homem se recompôs, como se tivesse se esquecido de que não estava sozinho com ela.

– Perdão. Isso foi inapropriado.

– Não vá para longe. – Lane começou a andar pela sala, puxando os cabelos negros e curtos com a mão. – Pelo amor de Deus, vamos precisar de uma boa representação.

Enquanto seu advogado, amante e pai da sua filha saía – ainda que ele desconhecesse essa última identidade –, Gin mirou os sapatos de salto de seda. A ponta do esquerdo tinha se sujado quando ela foi colocada no banco de trás da viatura.

Houve um clique, indicando que a porta tinha sido fechada atrás de Samuel T. Ela não precisou ser encorajada a falar.

– Ele quer que eu me case com Richard Pford.

– Richard… Desculpe, o que você disse?

– Você ouviu muito bem. Papai vai cortar todos os meus recursos a menos que eu me case com aquele homem. Ele disse que é por causa daquela maldita empresa de distribuição que nos dará melhores taxas ou algo assim.

– Ele ficou louco? – Lane inspirou.

– Você quis saber por que peguei o carro. É por isso, e é por isso que papai chamou a polícia. – Levantou o olhar para o irmão. – Não vou me casar com Richard. Não importa o que o nosso pai faça comigo. É com isso que você vai lidar.

Levantando-se, ela foi até a porta e a abriu.

– Pode voltar.

– Quanta honra – murmurou Samuel T.

Enquanto seu advogado voltava a se acomodar, ela disse: – Então, o que faço para sair daqui?

– Você paga a fiança – Samuel T. respondeu. – E depois tentamos fazer com que as acusações sejam retiradas. Você pode fazer um apelo ou seu pai pode perdoar o que quer que você tenha feito.

– Qual seria o montante da fiança? – Lane perguntou.

– Sem antecedentes, isso vai a favor dela, mas o risco de fugir não. Acho que no máximo cinquenta mil. McQuaid é um juiz amigável para pessoas como nós, por isso o valor não será muito alto.

50 mil dólares. De fato, a quantia nunca lhe parecera muito antes. Apenas mais um pulinho à loja Chanel em Chicago.

Pensou no pouco que tinha na carteira.

– Não tenho essa quantia.

Samuel T. gargalhou.

– Claro que tem.

– Farei com que seja pago – Lane o interrompeu.

Samuel T. abriu a maleta e tirou alguns papéis.

– Você me autoriza a representá-la nessa questão, Virginia?

Desde quando ele a chamava por algo que não fosse o apelido? Pensando bem, talvez ele só não quisesse que seu irmão o esmurrasse no piso de concreto por ter demonstrado familiaridade demais.

– Sim.

Os olhos dele, aqueles olhos cinzentos e aguçados, sustentaram o olhar dela.

– Assine aqui. – Depois de ela ter assinado, murmurou: – Não se preocupe, eu vou tirar você daqui.

A respiração dela vacilou quando ela expirou.

– Mas e depois?

O que, exatamente, seria diferente do outro lado de tudo aquilo? Era muito improvável que seu pai virasse a página subitamente. Edward mal sobrevivera à decisão de William Baldwine de escolher os negócios em detrimento dos filhos.

– Primeiro, te tiramos daqui – Lane disse. – Depois lidamos com o resto.

Voltando-se para o irmão, ela percebeu que nunca o vira tão sério. Recostado à parede nua do cubículo horrendo, ele parecia muito mais velho do que quando partira, dois anos antes. Parecia no comando das coisas.

Ela crescera esperando encontrar autoridade em Edward, e nunca em Lane, o playboy.

– Ele vai ganhar – ela se ouviu dizer. – Papai sempre vence.

– Não desta vez – Lane disse entredentes.

– Que diabos está acontecendo aqui? – perguntou Samuel T.

Lane apenas meneou a cabeça.

– Resolva isso, Samuel. Apenas tire a minha irmã daqui. Eu cuido do resto.

Deus, como ela queria que fosse verdade. Porque, evidentemente, a sua tentativa de irritar o pai não dera muito certo.

 

CONTINUA

DEZ

Claro que era uma ideia muito idiota.

Contudo, enquanto Lizzie retribuía o beijo, foi como se ela estivesse afunilando dois anos de raiva, frustração e dor diretamente dentro dele. E que ele fosse para o inferno, mas seu sabor era de bourbon, de desespero e de sexo selvagem… e ela gostava disso.

Ela sentia falta disso.

O que a deixou ainda mais enfurecida. Ela queria dizer que aquilo era horrível. Que era contra a sua vontade. Uma violação.

Mas não era verdade. Foi ela quem enfiou a língua na boca dele, e foi ela quem enterrou os dedos nos ombros dele, e foi ela quem, que Deus a ajudasse, aproximou o corpo, colando-se nele.

Para poder sentir a ereção dele.

Seu corpo não mudara no tempo em que ficaram afastados; ele era todo feito de músculos rijos e membros delgados. E ele beijava como antes, com aspereza e avidez, apesar de ter sido criado como um cavalheiro. E seu calor continuava o mesmo.

E então, para piorar ainda mais as coisas, memórias dos dois juntos, pele contra pele, se chocando, se balançando, ondulando, a assaltaram, enterrando toda a mágoa e o sentimento de traição debaixo de uma avalanche de lembranças eróticas.

Por uma fração de segundo, percebeu que acabaria fazendo sexo com ele ali mesmo, naquele instante.

Sim, claro, porque era uma maneira eficaz de mostrar que estava falando sério.

Um verdadeiro momento Gloria Steinem.17

Em vez disso, algo foi derrubado na mesa e o barulho interrompeu o silêncio; em seguida, um esguicho molhou o quadril e a coxa dela num choque de água fria. Dando um salto, ela o empurrou com força, e Lane tropeçou e caiu para trás, aterrissando no piso de ladrilhos.

Com um movimento brusco do braço, ela limpou a boca.

– Que diabos você estava fazendo?

Pergunta idiota. O mais adequado seria: O que ela estava fazendo?

Ele se pôs de pé na próxima batida de coração.

– Quis te beijar desde que voltei.

– O sentimento não é mútuo…

– Até parece. – Pegou o copo e sorveu um grande gole. – Você ainda me deseja…

– Saia!

– Está me expulsando da minha própria estufa?

– Ou você sai ou saio eu – ela rebateu. – Essas flores não vão parar nos vasos sozinhas. A menos que queira metade das mesas vazias na sua festa do Derby?

– Não estou nem aí com elas. Ou com essa maldita festa. Ou com nada disso… – Ele gesticulou, e teria sido mais convincente caso não estivesse segurando um bourbon da família naquele copo. – Deixei tudo isso para trás, Lizzie. Já estou farto mesmo.

Motrin. Era disso que ela precisava.

Menos Lane e mais analgésicos.

– Eu desisto – murmurou ela. – Você venceu. Vou eu.

Quando ela se virou para ir embora, ele a segurou e a girou, arrastando-a para junto de si. Foi nesse momento que ela notou o quanto ele envelhecera desde a última vez que o vira. Seu rosto estava mais magro, o olhar mais cínico, os pés de galinha mais acentuados nos cantos dos olhos.

Infelizmente, só o tornava mais belo.

– Nada dessa história horrível com Chantal é como você pensa – ele disse sombriamente.

– Mesmo que seja apenas metade…

– Você não entende…

– Eu estava apaixonada por você. – Sua voz se partiu, e ela o empurrou. – Eu não achava que a gente fosse se casar necessariamente, mas não pensei que você estivesse a caminho do altar com outra mulher. Que estava grávida… e que ainda por cima engravidou enquanto você estava comigo.

– Eu tinha terminado com ela, Lizzie. Antes de voltar para cá naquele mês de abril, eu disse para ela que estava acabado.

– Mas não foi bem assim, não é?

– Ela estava grávida de três meses quando fiquei sabendo, Lizzie. Faça as contas comigo. Estive com Chantal pela última antes de vir para cá, no aniversário da minha mãe, no fim de março. Você e eu… ficamos juntos em maio, e no fim de junho eu fiquei sabendo da gravidez. Se você se lembrar bem, não saí de Easterly durante todo aquele tempo. Você sabia onde eu estava todos os dias e todas as noites porque eu estava com você. – Ele a encarou do alto. – Três meses. Não dois, nem um. Três meses, Lizzie.

Ela levou as mãos ao rosto, lutando contra a lógica.

– Por favor, pare de fazer isso.

– Isso o quê?

– Dizer meu nome. Isso lhe dá a ilusão da credibilidade.

– Não estou mentindo. E faz quase dois anos que quero esclarecer a situação. – Ele praguejou novamente. – Tem mais coisas, mas não quero entrar nessa parte. E não afeta o que existe entre mim e você.

Antes que ela percebesse o próprio movimento, descobriu-se sentada no banco de rodinhas que estivera usando antes. Olhando para as mãos, flexionou os dedos, sentindo a rigidez das juntas e, por algum motivo, pensou nas unhas perfeitas de Chantal, em suas palmas lisas e sem marcas. Falando em opostos… As mãos que ela fitava eram as de uma trabalhadora, que tinha arranhões nos dorsos provocados por espinhos de rosa perdidos, e terra debaixo das unhas, que ela só conseguiria limpar depois que chegasse em casa. Também havia pintas, por ter cavado a terra sem a proteção de luvas e, definitiva e positivamente, não havia nenhum diamante de um milhão de dólares em seu dedo.

– Casei com Chantal no cartório depois que você me deixou – ele continuou com severidade. – O bebê não tinha culpa, e por eu ter crescido sem meus pais, não queria fazer o mesmo com um filho meu, a despeito dos meus sentimentos pela mãe dele. Mas eu tinha que sair da cidade. Chantal não admitia que o casamento fosse apenas no papel. Por isso fui para o norte, ficar em Nova York com um amigo dos tempos da Universidade da Virgínia. Foi pouco depois que Chantal me ligou para falar que tinha perdido o bebê.

A amargura em sua voz fez ele falar tão baixinho que ela mal ouviu.

– Ela também não me ama – ele murmurou. – Não amava na época e não ama hoje.

– Como você pode ter certeza? – Lizzie se ouviu dizer.

– Pode confiar em mim quanto a isso.

– Ela pareceu bem contente em ter você de volta.

– Não voltei por causa dela e deixei bem claro. Essa mulher só é capaz de se afeiçoar a uma refeição grátis.

– Pensei que ela tivesse dinheiro.

– Nada comparado ao que eu tenho.

Sim, ela imaginou que devia ser verdade. Existiam países com menos renda anual do que a dos Bradford.

– Você é o amor da minha vida, quer esteja comigo ou não. – Quando ela ergueu o olhar, ele apenas encolheu os ombros. – Não posso mudar o que aconteceu e sei que não há como voltar… Só o que peço é que não acredite nas aparências, ok? Você está há dez anos com esta família, mas estou com eles e com pessoas que os cercam minha vida inteira. É por isso que é você quem eu quero. Você é real. Não é como eles e isso é uma coisa muito, muito boa.

Ela esperou que ele fosse expressar mais alguma coisa, e quando ele não o fez, ela voltou a fitar as mãos.

Por algum motivo, seu coração batia forte, como se ela estivesse próxima demais de um penhasco. Pensando bem, imaginou que era isso mesmo, porque as palavras dele estavam entrando em sua cabeça e embaralhando seus pensamentos.

De um jeito que não a ajudava em nada.

– Tenho muito medo de você – sussurrou.

– Por quê?

Porque queria acreditar no que ele dizia com o desespero de um viciado.

– Não tenha – ele disse quando ela não respondeu. – Nunca quis que nada assim acontecesse. E faz muito tempo que eu queria acertar as contas com você.

Parecia apropriado que estivessem cercados por tantos vasos de flores. A prova do seu trabalho, de seu único objetivo ali na propriedade, era um lembrete do divisor que sempre os distanciaria.

Ela se forçou a se lembrar daquela fotografia e do artigo no Charlemont Herald sobre o casamento, sobre os dois grandes legados sulistas se unindo num arranjo feudal. Também se lembrou dos dias e das noites logo depois que ficou sabendo de Chantal, de todas aquelas horas de sofrimento até que pensou estar à beira da morte.

Mas as palavras dele exprimiam verdade sobre uma coisa. O orgulho fez com que ela continuasse a trabalhar em Easterly. Assim, estivera presente na propriedade todos os dias, exceto aos domingos, pelos últimos vinte e quatro meses. E Lane não voltara. Durante dois anos… ele não voltara para ver Chantal.

Não era lá um grande casamento.

– Deixe que as minhas ações falem por si mesmas. Deixe que eu prove para você que estou dizendo a verdade.

Em sua mente, ela ouviu seu celular tocando insistentemente. Logo após o rompimento, ele lhe telefonara no mínimo uma centena de vezes, deixando mensagens que ela nunca ouvira. Ela tirara duas semanas de férias assim que soube de tudo, fugindo para a fazenda em Indiana, voltando para Plattsburgh no nordeste, para o pomar de maçãs da sua juventude. Seus pais ficaram felizes em vê-la, e ela passara aqueles dias a cuidar das árvores McIntosh junto aos outros trabalhadores.

Quando regressara, ele já tinha ido embora.

Os telefonemas cessaram depois de um tempo. E, no fim, ela parou de ter sobressaltos toda vez que um carro parava na porta da frente.

– Por favor, Lizzie… diga alguma coisa. Mesmo que não seja o que quero ouvir…

O som da risada de uma mulher o interrompeu com suavidade e fez com que ambos olhassem para as portas que se abriam para o jardim. Quando Greta saíra, um dos painéis não se fechara por completo, e através da abertura, Lizzie viu duas pessoas andando pelo caminho de pedras em direção à piscina no extremo oposto.

Mesmo sob a iluminação fraca do paisagismo, ficou claro que o vestido de gala da mulher era vermelho rubi, suas saias volumosas se arrastando atrás dela. Ao seu lado, um homem alto de terno lhe ofereceu o braço num galanteio e a encarava com o tipo de atenção que se reserva a um lauto banquete.

– Minha irmã – Lane disse, sem necessidade.

– Aquele é Samuel T.? – Lizzie perguntou.

– Quem se importa…

Ela voltou a olhar para Lane.

– Você partiu o meu coração.

– Eu sinto muito. Não foi minha intenção, Lizzie, de modo nenhum. Juro por Deus.

– Pensei que você fosse ateu.

Ele ficou calado um instante, os olhos vasculhando suas feições.

– Eu me batizaria mil vezes, se necessário. Posso memorizar a Bíblia, beijar o anel do papa… faço qualquer coisa que você quiser… mas, por favor…

– Não posso voltar no tempo, Lane. Sinto muito. Não consigo.

Ele se calou. E depois de um longo instante, assentiu.

– Tudo bem, mas posso pedir uma coisa?

Não.

– Sim.

– Não me odeie mais. Eu já faço muito isso sozinho.

O jardim estava perfumado como uma mulher recém-saída do banho, tão arrumado quanto a sala de estar, e tão reservado quanto a biblioteca de uma universidade.

O que significava de fato que era semirreservado. As várias janelas de Easterly davam para as moitas de flores brancas e creme, todas elas bem cuidadas e discretamente iluminadas.

Felizmente, Gin não tinha problemas quanto a fazer sexo em público.

Enquanto se pendurava no braço forte de Samuel Theodore Lodge III, não se deu ao trabalho de esconder seu sorriso.

– Há quanto tempo está com ela?

– Desde quando chegamos. Uma hora?

Ela gargalhou.

– Ora, ora, meu caro Samuel, por que você perde tempo com mulheres como ela?

– Existe outro tipo?

Era difícil saber quem conduzia quem até os recessos escuros do canto mais afastado, onde o muro de tijolos se encontrava com os fundos da casa, onde ficava a piscina. Era para lá que ambos se dirigiam.

– Eu não sabia que você vinha – ela disse, erguendo a mão para tocar os diamantes pendurados no pescoço… e depois deslizar os dedos pelo corpete do vestido. – Eu teria me dado ao trabalho de vestir uma calcinha.

– Nova mania, então?

– Gosto quando você as arranca do meu corpo. Especialmente quando você se frustra e as rasga.

– Mas eu não faço parte de um clube exclusivo, não é mesmo?

– Não seja grosseiro.

– Foi você quem tocou no assunto da lingerie. E também foi você quem quis sair comigo. A menos que, para variar, precise mesmo de um pouco de ar fresco?

Gin estreitou o olhar nele.

– Você é um bastardo.

– Não de acordo com o dicionário. Meus pais estavam muito bem casados quando nasci. – Ele ergueu uma sobrancelha. – E creio que você não possa dizer o mesmo da sua filha, não é mesmo?

Ela parou, a maré virando numa direção que ela não previra.

– Está passando dos limites, Samuel. E você sabe disso.

– É um pouco estranho quando você fala de decoro. Você não está transando com aquele advogado casado da minha empresa? Acho que ouvi alguma coisa a esse respeito.

Ah, então era por isso que ele estava agindo daquela maneira.

– Está com ciúmes? – ela pronunciou de maneira arrastada, o sorriso retornando às suas feições.

– Ele não consegue te satisfazer. Não por muito tempo, e não como eu consigo.

Quando ele a agarrou, ela deixou, adorando o modo como as mãos dele seguraram sua cintura e a boca se afundou na sua. Não demorou muito para que ele erguesse sua saia até as coxas, mantendo-a ali apesar de toda a armação do vestido.

Pensando bem, ele vinha se metendo debaixo de tecidos finos e delicados desde os catorze anos, quando passara a frequentar os bailes da sociedade.

Samuel T. gemeu ao descobrir que ela não estava mentindo quando disse não ter nada debaixo daquele vestido, e seus dedos foram rudes ao penetrá-la. O fogo e o desejo que sentiu foram um tremendo alívio para os assuntos em que ela não queria pensar, o sexo lavando todos os seus arrependimentos e sua tristeza, dando-lhe nada além de prazer.

Não havia motivos para fingir o orgasmo que teve de fato, as unhas se enterrando nos ombros macios do smoking enquanto arquejava, a antiquada colônia Bay Rum tão atávica que fazia com que ele fosse um homem à frente do seu tempo.

Enquanto se entregava, pensava que ele era o único homem que já tinha amado – e o único que jamais teria verdadeiramente. Samuel T. era muito parecido com ela, só que pior: uma alma que nunca se assentaria enquanto estivesse passeando pelos caminhos de tijolos da expectativa social.

– Me come – ela exigiu ao encontro dos lábios dele.

Ele arfava, seu corpo estava rijo debaixo do smoking caro, pronto para ela… Mas em vez de lhe dar o que ela tanto queria, ele recuou um passo, abaixando a saia e fitando-a de longe.

– Samuel? – ela inquiriu.

Com uma lentidão deliberada, ele levou os dedos até a boca e os lambeu. Depois passou a língua para cima e para baixo, entre eles, lambendo a essência dela em sua pele.

– Não – ele disse. – Acho que não.

– O quê?

Samuel se inclinou na direção dela.

– Vou voltar para a festa do seu pai e vou me sentar à mesa dele. Adiantei-me e troquei a disposição dos lugares, de modo que Veronica estará sentada ao meu lado. E você vai saber quando eu colocar a minha mão entre as pernas dela, você vai vê-la se empertigar e tentar manter a compostura enquanto faço com ela o que acabei de fazer com você. Observe o rosto dela, Gin. E saiba que, assim que eu sair, vou transar com ela no banco da frente do meu Jaguar.

– Você não ousaria.

– Como acabei de dizer, preste atenção, Gin.

Ele se virou para se afastar, e ela quis jogar alguma coisa na cabeça dele. E vez disso, disse entre dentes cerrados: – O nome dela não é Savannah?

Ele relanceou por sobre o ombro.

– E eu me importo com o nome dela? A única coisa relevante é: ela não é você.

Dito isso, ele se afastou a passos largos naqueles elegantes sapatos de couro que ecoaram nos tijolos, com os ombros retos e a cabeça erguida.

Envolvendo-se com os braços, ela percebeu pela primeira vez que a noite estava fria. Embora fizesse 26°C.

Concluiu que deveria ter lhe contado a respeito do advogado. Em retrospecto, escolhera o homenzinho grudento exatamente porque sabia que cedo ou tarde Samuel T. descobriria.

Pelo menos uma coisa era certa: Samuel T. voltaria. Por algum motivo, os dois não conseguiam ficar longe um do outro por muito tempo.

E, no fim, ela acabaria tendo que lhe contar a respeito de Amelia, pensou. Mas não hoje. Nem… tão cedo.

Se aquele homem descobrisse que ela lhe escondera a filha por todos aqueles anos?

Ele seria capaz de matá-la.


Gloria Steinem, famosa feminista, é uma jornalista americana, célebre por seu engajamento com o feminismo e sua atuação como escritora e palestrante, principalmente durante a década de 1960. (N.T.)

 

ONZE

Depois que Lane saiu da estufa, a perspectiva de retornar para a festa do pai era extremamente desagradável, ainda mais depois de ouvir o gongo que anunciava que o jantar estava sendo servido. Mas, considerando-se que a outra alternativa seria ir ver Edward, ele…

– Lane?

Concentrando-se, olhou além do arco da sala de jantar. Uma morena alta num vestido cinza-claro estava parada diante dos antigos espelhos venezianos, a visão dos ombros nus tão adorável de trás quanto de frente.

Falando no diabo, ele pensou. Mas sorriu ao se aproximar e beijá-la no rosto macio.

– Sutton, como está?

Mas quis dizer: Que diabos você está fazendo aqui? Ela e a família eram o “inimigo”, proprietários da Destilaria Sutton, produtores do famoso bourbon Sutton e de outras bebidas – mas isso não significava que ele tivesse algo particularmente contra a mulher. Tradicionalmente, porém, pessoas da linhagem dela eram persona non grata em Easterly… em conversas… nas orações noturnas.

E eram fãs da UK. Portanto, eram azuis nos jogos, e não vermelhos.

Isso era algo que poderia irritá-lo.

Quando se abraçaram, seu perfume refletiu a mulher rica que era, sua fragrância delicada preencheram as narinas dele mesmo quando se afastou; assim como seu corpo perfeito e bem vestido, surgindo novamente em seus olhos quando ele piscou.

Mas não era por isso que estava atraído por ela. Aquilo era o mesmo que admirar uma pintura num museu ou um automóvel Duesenberg.

– Eu não sabia que você viria este final de semana. – Ela sorriu. – É bom te ver depois de tanto tempo. Você me parece bem.

Isso foi engraçado, porque ele se sentia uma merda.

– E você, bela como sempre.

– Vai ficar para o Derby?

Por cima do ombro de Sutton, ele viu que Chantal entrava na sala de jantar, o longo vestido amarelo se arrastando junto com a sua postura de inocente.

Só até eu preencher a papelada do divórcio, ele pensou.

– Lane? – Sutton o chamou.

– Desculpe. Na verdade, tenho que voltar logo para Nova York. – Afinal, aquelas partidas de pôquer precisavam dele lá. – Estou contente em ver você. Surpreso por vê-la no jantar do meu pai, mas contente.

Sutton assentiu.

– Também é uma surpresa e tanto para mim.

– Veio a negócios?

Ela sorveu um gole da taça de vinho.

– Hummm.

– Era para ser uma piada.

– Me diga uma coisa, você tem visto…

Ela deixou a frase inacabada, sem mencionar o nome, pois não havia motivos para que ela pronunciasse “Edward”. Por muitos motivos.

– Ainda não o vi. Mas vou até a fazenda.

– Sabe, Edward nunca vem à cidade. – Sutton tomou mais um gole da taça de borda fina. – Eu costumava vê-lo com bastante frequência antes que ele… Bem, fazíamos parte do conselho da Universidade de Charlemont, mesmo eu sendo fã da UK, e…

Enquanto a mulher prosseguia, ele ficou com a sensação de que ela não estava lhe informando fatos que ele já sabia, mas que revivia um período da vida cuja perda ela lamentava. Não pela primeira vez, ele ficou se perguntando o que realmente acontecera entre o garoto de ouro da família e a adorável filha do concorrente deles.

– Ora, se o filho pródigo não retornou…

O som da voz do pai foi um alerta que o atingiu tal qual uma flecha, e Lane encobriu seu dissabor ao tomar um gole de bourbon.

– Pai.

William Baldwine era quase tão alto quanto ele, tinha os mesmos cabelos negros e olhos azuis, o mesmo maxilar, os mesmos ombros. As diferenças eram a idade, o grisalho nas têmporas, os óculos bifocais de aro de casco de tartaruga, a ruga entre as sobrancelhas causada pelos muitos anos de semblante fechado. De algum modo, porém, todos aqueles sinais do passar dos anos não diminuíam a estatura do pai. De fato, apenas serviam de contraponto para uma aura de poder.

– Tenho que mandar arranjarem um lugar para você. – Por trás daqueles óculos, os olhos do pai encararam as roupas de Lane com um desdém apropriado para as fezes de um cachorro no meio de uma sala de estar. – Ou está de saída?

– Deixe-me pensar… – Lane estreitou o olhar. – Por mais que eu aprecie degradar a sua mesa com esta minha camisa, eu teria que ficar na sua presença durante uma refeição de, no mínimo, três pratos. Portanto, acho que vou embora.

Lane colocou seu Reserva de Família na mesinha de apoio mais próxima e se curvou para Sutton, que parecia preferir ir com ele em vez de ficar ali.

– Sutton, é sempre um prazer. – Olhou para o pai. – Pai, vá se foder.

Lançou essa granada e seguiu em meio à multidão, acenando para políticos e socialites, para aqueles dois atores da série da HBO na qual estava viciado e para Samuel T. e sua namorada do momento.

Chegou ao vestíbulo de entrada, e estava quase na porta da frente quando um par de saltos agulha se aproximou por trás.

– Aonde você vai? – Chantal sibilou ao agarrar o braço dele. – E por que não está vestido?

– Não é da sua conta. – Soltou-se dela. – Nos dois casos.

– Lane, é inaceitável…

– Essas palavras jamais deveriam passar pelos seus lábios, mulher.

Chantal fechou a boca muito bem delineada. Em seguida, inspirou fundo, como se estivesse com dificuldade para aplacar a raiva.

– Eu gostaria de passar um tempo com você esta noite, para conversar e discutir… nosso futuro.

– O único futuro em que você precisa pensar é quantas malas Vuitton vai precisar para a sua mudança.

Chantal ergueu o queixo.

– Você não faz ideia do que está falando.

Ele se inclinou na direção dela e abaixou a voz até um sussurro.

– Sei o que você fez. Sei que não “perdeu” o bebê. Se queria manter o aborto em segredo, não deveria ter pedido a um dos motoristas da família que a levasse para aquela clínica em Cincinnati.

Quando ela empalideceu, ele se lembrou exatamente onde estava quando o homem que a levara lá titubeou para lhe dar a informação.

– Não tem resposta? Não vai negar? – Lane a repreendeu. – Ou isso virá quando a surpresa por ter sido descoberta passar?

Houve um instante de silêncio, e ele sabia que ela estava pesando suas opções, tentando descobrir como abordá-lo de um jeito favorável.

– O que eu deveria ter feito? – disse ela por fim, baixinho. – Você me abandonou sem explicações, sem apoio, sem dinheiro, sem um modo de entrar em contato com você.

Ele fez um gesto abarcando as pinturas a óleo e os tapetes orientais.

– Sim, porque você ficou num lugarzinho bem largado no meio da selva.

– Você me abandonou!

– Por isso a solução foi se recompor para tentar seduzir outro homem, certo? Estou deduzindo que foi o que fez, já que você precisava caber de novo no manequim 38, não é? Minha querida esposa.

– Lane, você está dizendo coisas que não quer…

– Você matou um inocente…

Reginald veio da sala de estar com uma bandeja de prata com copos usados, deu uma olhada nos dois e voltou para trás, desaparecendo de novo no cômodo agora vazio.

Ah, sim, a vida em Easterly… Onde a privacidade era menos comum que diamantes e distribuída em termos relativos. Pelo menos sabia que podia confiar naquele homem mais do que em sua própria família.

Não que isso significasse muito.

– Não vou ficar aqui discutindo com você – Lane disse, ríspido. – E você vai sair desta casa. Assim que o Derby acabar, a sua estada grátis já era.

Chantal arqueou uma das sobrancelhas perfeitas.

– Peça o divórcio se quiser, mas não vou a parte alguma.

– Você não terá mais o direito de ficar sob este teto depois que essa aliança sair do seu dedo.

O sorriso que ela lhe lançou foi gélido.

– É o que vamos ver. – Acenou com a cabeça para a porta da frente. – Vá para onde quiser, fuja… É isso o que você faz, não é? Mas tenha certeza que: eu estarei aqui quando você voltar.

Lane estreitou os olhos. Chantal era muitas coisas, mas não era uma maluca. Ela se autopromovia demais para tanto.

E o encarava como se soubesse de algo que ele não sabia.

Que diabos aconteceu enquanto ele se manteve afastado?

No Vermelho & Preto, Edward estava sentado numa antiga poltrona de couro diante de uma televisão tão velha que ainda tinha antenas saindo da tela em forma de caixa. O cômodo estava na penumbra, mas reluzia por causa dos inúmeros troféus de corrida abarrotando as estantes até o teto do lado oposto.

O chalé do haras tinha um quarto, um banheiro com banheira com pés em forma de garras, uma cozinha pequena e aquela área, que era um misto de biblioteca, escritório, sala de estar e de jantar. Não havia segundo andar, apenas um sótão cheio de recordações de velhas corridas de cavalo, e também não havia garagem. A área era menor do que a sala de jantar de Easterly e, desde que se mudara para lá, ele aprendera a apreciar o valor de ter um lugar pequeno o bastante para poder ouvir e ver quase tudo. Lá na mansão, nunca se sabia quem mais estava na gigantesca casa, onde estavam, o que estavam fazendo.

Para alguém como ele, cuja única amante eram os terrores noturnos e cujo principal trabalho era impedir que seu cérebro se canibalizasse, os aposentos apertados eram algo muito mais fácil de lidar, ainda mais naquela época do ano. Pena que a sua ida à América do Sul, quando fora sequestrado, tivesse acontecido pouco antes do Derby. O aniversário da sua captura arruinara o que sempre fora um fim de semana agradável.

Consultou o relógio e praguejou. Agora que o sol tinha se posto, as horas se apresentavam numa confusão nebulosa, minutos se tornando séculos e um segundo ao mesmo tempo. O seu trabalho noturno? Chegar, de algum modo, ao nascer do sol sem gritar.

Junto ao cotovelo, havia uma garrafa de vodca quase vazia. Começara a beber com cinco cubos de gelo num copo alto, que já estava derretido havia um tempo, e ele agora sorvia a bebida pura. Na noite anterior, fora gim. Na de antes, tomara três garrafas de vinho, duas de tinto e uma de branco.

Durante a fase inicial e aguda da sua “recuperação”, aprendera todos os estágios da administração da dor, aprendera como espaçar os analgésicos e a comida a fim de fazer com que os impulsos nevrálgicos do seu corpo arruinado não fossem piores do que a tortura que suportara quando aquelas feridas foram provocadas. Mais tarde, o mestrado em Gerenciamento de Medicação se traduziu muito bem na segunda parte – a parte crônica, a da “recuperação”. Graças às tentativas e aos erros adquiridos com os analgésicos, ele conseguia distribuir tudo para otimizar o efeito sedativo: todas as tardes, por volta das quatro horas, comia alguma coisa; às seis, quando os funcionários liberavam os estábulos, ele podia começar a beber estando, basicamente, de estômago vazio.

Nada o irritava mais do que alguém se metendo no meio do seu torpor…

Quando uma batida se fez à porta, apanhou a pistola ao lado da garrafa Grey Goose e tentou se lembrar que dia da semana era. O Derby aconteceria dali a dois dias… Então era quinta-feira. Era quinta-feira, algumas horas depois do pôr do sol.

Portanto, não era uma das prostitutas que ele pagava para vir servi-lo. Elas vinham às sextas-feiras. A menos que tivesse chamado duas pelo preço de uma aquela semana, mas não havia pedido aquilo.

Certo. Ou havia?

Apanhando a bengala, suspendeu-se da poltrona e claudicou até a janela da frente. Afastou as cortinas, com a pistola firme numa mão, mas o coração batia descompassado. Mesmo ciente de que, pela lógica, não existiam mercenários no Condado Ogden à sua procura, que estava seguro atrás das travas e do sistema de segurança que instalara, apesar da quarenta milímetros em suas mãos… seu cérebro continuava eletrizado.

Quando viu quem era, franziu o cenho e abaixou a arma. Seguindo até a porta, retirou a corrente, destrancou as três travas e abriu a porta, as dobradiças rangendo como camundongos. Outro mecanismo de alerta para ele.

– Cliente errado – murmurou com secura para a loira baixinha que vestia jeans e camiseta justa. – Eu só peço morenas. Em vestidos de gala.

Por um motivo que preferia guardar para si.

Ela franziu a testa.

– O que disse?

– Só aceito morenas. E elas têm que estar adequadamente vestidas.

Ele queria cabelos longos curvados nas pontas, um vestido que se arrastasse pelo chão, e elas tinham que estar usando Must da Cartier. Ah, e tinham que ficar de boca fechada. Não tinham permissão para falar com ele enquanto estivessem transando. Ainda que as putas conseguissem representar bem o exterior, a ilusão frágil seria rompida no instante em que as vozes delas não fossem a da mulher que desejava, mas que não podia ter.

Ele já tinha bastante dificuldade para manter a ereção daquele modo; na verdade, a única maneira de fazer seu pau subir era se conseguisse acreditar na mentira pelo tempo necessário até chegar ao orgasmo.

A mulher em sua soleira pousou as mãos nos quadris.

– Acho que não sei do que está falando. Mas sei que estou no lugar certo. Você é Edward Baldwine, e este é o Vermelho & Preto.

– E você quem é?

– Filha de Jeb Landis. Shelby. Shelby Landis.

Edward fechou os olhos.

– Maldito seja Ele.

– Eu agradeceria se não usasse o nome de Deus em vão na minha presença. Obrigada.

Ele levantou as pálpebras.

– O que você quer?

– O meu pai morreu.

Edward se concentrou num ponto acima da cabeça dela, na lua que crescia acima do Estábulo C.

– Quer entrar?

– Se guardar arma, sim.

Ele enfiou a pistola no cós do jeans e recuou.

– Quer beber alguma coisa?

Quando ela entrou, ele percebeu o quanto ela era baixinha. E devia pesar só uns 45 quilos, isso se estivesse ensopada segurando um fardo de feno.

– Não, obrigada. Não bebo álcool. Mas eu gostaria de usar o seu banheiro. A viagem foi longa.

– É por ali.

– Muito obrigada.

Ele se recostou na porta. A picape na qual ela evidentemente chegara sabe lá Deus de onde estava estacionada à esquerda, o motor ainda estalava debaixo do capô.

Depois de fechá-la e trancar tudo de volta, ouviu a descarga nos fundos da casa. Um momento mais tarde, a moça voltou e olhou para os troféus.

Edward seguiu para a poltrona, fazendo uma careta de dor ao se acomodar.

– Quando? – ele perguntou ao se servir do resto da vodca.

– Uma semana atrás – ela respondeu sem olhar para ele.

– Como?

– Pisoteado. Bem, os médicos disseram que o coração dele não aguentou, mas a causa foi o pisoteamento. Foi assim que você se machucou?

– Não. – Ele sorveu um longo gole. – Então, o que você faz aqui?

Dessa vez ela se virou.

– O meu pai sempre disse pra eu vir para cá pra encontrar você se alguma coisa acontecesse com ele. Ele disse que você lhe devia uma. Nunca perguntei o quê.

Edward a encarou demoradamente.

– Quantos anos você tem? Doze?

– Vinte e dois.

– Jesus, como você é nova…

– Cuidado com o que diz perto de mim.

Ele teve que sorrir.

– Você é igualzinha ao seu velho, sabia disso?

– É o que dizem. – Ela voltou a apoiar as mãos nos quadris. – Não quero esmola. Preciso de um lugar pra ficar e de um trabalho. Sou boa com cavalos, assim como o meu pai era, e ruim com pessoas… Por isso, considere-se avisado. Não tenho dinheiro, mas tenho costas fortes e não tenho medo de nada. Quando posso começar?

– Quem disse que estou procurando ajuda?

Ela franziu o cenho.

– O meu pai disse que você precisaria. Disse que você precisaria de mais mãos.

O Vermelho & Preto era uma grande operação, e sempre havia vagas. Mas Jeb Landis era uma lembrança complicada do passado… e a família dele estava contaminada por associação.

Mesmo assim…

– O que sabe fazer?

– Limpar estábulos e manter os cavalos em ordem não é física nuclear…

Ele dispensou as palavras dela com a mão.

– Tudo bem, tudo bem, está contratada. E só estou sendo um cretino porque, assim como você, não me dou bem com as pessoas. Tem um apartamento vazio ao lado do apartamento de Moe, sobre o Estábulo B. Pode se mudar para lá.

– Mostre o caminho.

Edward grunhiu ao voltar a ficar de pé e carregou o copo consigo de propósito ao conduzi-la até a porta.

– Não quer saber do salário?

– Você vai ser justo. O meu pai disse que desonestidade não faz parte do seu caráter.

– Ele foi generoso ao dizer isso.

– Duvido. Ele conhecia homens e cavalos.

Enquanto Edward voltava a destrancar tudo, conseguia senti-la observando-o e odiou isso. Seus ferimentos eram o resultado de um inferno que ele preferia manter escondido do mundo.

Antes de deixá-la sair do chalé, olhou-a fixamente.

– Só há uma regra.

– Qual?

Por algum motivo, ele se deteve nas feições dela. Ela não se parecia fisicamente em nada com o pai – bem, desconsiderando-se a altura. Shelby, ou qualquer que fosse seu nome, tinha olhos claros, e não negros. E sua pele não tinha a consistência de couro, embora isso ainda pudesse mudar.

A voz dela, porém, era como a de Jeb: aquele sotaque arrastado tinha um fundo de solidez.

– Você não vai chegar perto daquele garanhão – Edward avisou. – Ele é malvado até os ossos.

– Nebekanzer.

– Você o conhece.

– Meu pai costumava dizer que aquele cavalo tinha gasolina nas veias e ácido nos olhos.

– Então você já conhece o meu cavalo. Não se aproxime dele. Não vai limpar a baia dele, não vai chegar perto dele se ele estiver no pasto e nunca, jamais, vai colocar qualquer coisa sobre a porta da baia dele se quiser conservá-la. E isso inclui a sua cabeça.

– Quem cuida dele?

– Eu. – Edward claudicou noite afora, o ar úmido e pesado fazendo com que ele pensasse que não conseguiria respirar. – E ninguém mais.

Enquanto tentava respirar fundo, perguntou-se se todos aqueles médicos tinham deixado passar algum ferimento interno. Pensando bem, talvez a sensação de sufocamento fosse causada pela imagem daquela moça perto do maldito garanhão negro. Ele só conseguia pensar no que Neb poderia fazer com ela.

Ela se colocou na frente e pegou a mochila sobre o banco do passageiro.

– Então você é o encarregado aqui.

– Não, Moe Brown é. Você vai conhecê-lo pela manhã. Ele será o seu chefe. – Edward seguiu na direção dos estábulos. – Como já disse, o apartamento ao lado do dele está mobiliado, mas não sei quando o último a morar lá saiu.

– Já dormi em baias e em bancos de praça. Ter um telhado sobre a cabeça já basta.

Ele olhou na direção dela.

– O seu pai… era um bom homem.

– Não era nem melhor nem pior do que qualquer outra pessoa.

Era impossível não pensar em quem devia ser a mãe dela – ou em como alguém poderia ter suportado tempo suficiente ao lado de Jeb até ter uma filha com ele. Jeb Landis era uma lenda na indústria, tinha uma lista de cavalos vencedores maior do que qualquer outro, vivo ou morto. Também fora um alcoólatra filho da puta, com um vício por jogo ainda pior do que a sua veia misógina.

Uma coisa com a qual Edward não tinha que se preocupar era se Shelby saberia tomar conta de si mesma. Se conseguira sobreviver tendo vivido com Jeb, trabalhar num turno de dezoito horas numa fazenda criadora de cavalos seria fácil, fácil.

Quando chegaram ao Estábulo B, as luzes detectoras de movimento se acenderam e os cavalos se movimentaram lá dentro, batendo os cascos e relinchando. Entraram pela porta lateral, passaram pelo escritório de Moe e pelo depósito de suprimentos, e Edward a levou até o lance de escadas que antes conduzia ao palheiro, cobrindo toda a extensão do telhado. Em algum momento nos anos 1970, o lugar fora convertido em dois apartamentos, e Moe morava no da frente, que dava para a passagem de carros.

– Vá na frente e espere por mim ali em cima – disse com os dentes cerrados. – Eu demoro um pouco para subir.

Shelby Landis subiu os degraus rapidamente no compasso que ele costumava usar, mas que agora já não apreciava mais, e sentiu como se tivesse uma centena de anos ao se juntar a ela no andar superior.

Àquela altura, já estava tão sem fôlego que chiava como um pneu murchando.

Afastando-se dela, viu que não havia nenhuma luz por baixo da porta de Moe, mas, de todo modo, não teriam incomodado o homem. Com o Derby em menos de quarenta e oito horas, se estivesse em casa, o homem já devia estar dormindo a sono solto.

Ainda mais se considerasse que um dos seus dois cavalos poderia acabar excluído da corrida.

Enquanto Edward seguia em frente e girava a maçaneta do apartamento seguinte, percebeu que não sabia o que faria caso a porta estivesse trancada. Não fazia ideia de onde as chaves poderiam estar…

A porta se abriu, lembrando-o de que ele estava em meio a uma minoria de paranoicos ali naquela fazenda. O interruptor ficava à esquerda na parede e, quando ele o apertou, ficou aliviado em ver que o lugar não estava muito empoeirado e que, de fato, havia um sofá, uma cadeira, uma mesa e uma cozinha minúscula que, em comparação, fazia com que a sua parecesse industrial.

– O seu pai nunca mencionou o motivo de eu estar em débito com ele? – perguntou, mancando até o corredor escuro.

– Não, mas Jeb não era de falar muito.

Apertando o segundo interruptor, viu que o quarto e o banheiro também estavam organizados.

– Eis o que você tem aqui – disse ele, exausto só de ver a distância até a porta.

Quatro metros e meio.

Era como se fossem quilômetros.

Ela se aproximou.

– Obrigada pela oportunidade.

Ofereceu a mão e o fitou nos olhos e, por um instante, ele sentiu uma emoção diferente da raiva que ardia e queimava em seu íntimo nos últimos dois anos. Não sabia como defini-la, e o triste era que não sabia se a mudança era bem-vinda.

Havia uma certa claridade em ter um princípio de operação unilateralmente hostil.

Deixou a mão dela pendurada no ar enquanto arrastava o corpo de volta até a saída.

– Veremos se, mais tarde, você vai me agradecer.

De repente, lembrou-se de toda aquela coisa de não praguejar e não beber álcool.

– Ah, e mais uma coisa. Se a cortina do meu chalé estiver fechada, não me incomode.

– Sim, senhor.

Ele assentiu e fechou a porta. Depois, muito lenta e cuidadosamente, começou a descer.

A verdade era que Jeb Landis fora o responsável pela sua recuperação. Sem o chute que o homem deu no seu traseiro, só Deus sabia se Edward ainda estaria naquele planeta. Deus, ainda se lembrava com nitidez quando o treinador viera visitá-lo no centro de reabilitação. Apesar da regra explícita de Edward de não receber visitantes, Jeb passara pela estação da enfermagem e marchara para dentro do seu quarto.

Eles já se conheciam havia uma década. O interesse de Edward por cavalos de corrida, e sua subsequente posse, aliado ao compromisso prévio de ser o melhor em tudo o que fazia, significava que ele só aceitaria um homem treinando os seus cavalos.

No entanto, jamais previra que o homem seria um tipo de salvador.

O esporro de Jeb fora breve e direto, mas mais eficiente do que todos os argumentos e apoio emocional que recebeu de outras pessoas. E, um ano após sua mudança para lá, tendo jogado fora todos os seus ternos e decidido que aquela seria a sua vida, Jeb lhe disse que estava deixando o Vermelho & Preto rumo à Califórnia.

Provavelmente porque alguns agentes de apostas de Chicago estavam atrás de um pedaço do traseiro dele.

Em todos aqueles anos, antes e depois do sequestro, o fato de Jeb ter uma filha jamais viera à baila. Mas, sim, ele abrigaria a filha do homem. Claro.

E, felizmente, ela parecia ser capaz de cuidar de si mesma.

Portanto, o pagamento do débito teria um custo baixo.

Pelo menos, foi o que ele disse a si mesmo naquela primeira noite.

Só que aquilo não foi bem verdade… nem de longe.

 

DOZE

– Paguei cem mil dólares para me sentar ao seu lado.

Gin ergueu o garfo Tiffany com desenho de crisântemo para mexer na comida, mal ouvindo as palavras ditas junto ao seu ouvido. Estava ocupada demais se concentrando no arranjo floral diante dela. Samuel T. estava mais à esquerda, e a partir daquele ponto focal florido, sua visão periférica permitia que ela o acompanhasse ao lado da namoradinha, Veronica/Savannah.

– Por isso, você poderia pelo menos conversar comigo.

Voltando a se concentrar, fitou o odioso Richard Pford IV. O homem era só uma versão do jovem que um dia fora: alto e magro, com um olhar capaz de cortar vidro e uma natureza suspeita que contrastava com a sua posição invejável na hierarquia social de Charlemont. Filho de Richard Pford III, era o único herdeiro da Distribuidora de Bebidas Pford, uma cadeia nacional que distribuía vinhos, cerveja, bourbon, gim, vodca, champanhe, uísque etc. nas prateleiras e nos negócios do país inteiro.

O que significava que ele podia bancar um valor de seis dígitos para garantir um assento todas as noites da semana e duas vezes aos domingos.

Ele nadava em milhões, e seus familiares nem tinham começado a morrer ainda.

– Os assuntos do meu pai não me interessam – ela rebateu. – Portanto, parece que desperdiçou o seu dinheiro.

Ele tomou um gole de vinho.

– E pensar que ele foi para o programa de basquete da UC.

– Não sabia que você era fã deles.

– Não sou.

– Não é de se admirar que não nos damos bem. – UK. Ela devia ter desconfiado. – Além disso, não ouvi dizer que você estava para se casar?

– Os boatos quanto ao meu noivado foram exagerados.

– Difícil de acreditar, com todas as suas qualidades.

À esquerda, Veronica/Savannah deu um salto na cadeira, os cílios postiços flanaram, o garfo bateu no prato. Enquanto as lentes coloridas se voltavam para Samuel T., o maldito limpava casualmente a boca com o guardanapo damasco.

Samuel T., no entanto, não estava olhando para a namorada. Não, ele casualmente fitava o buquê de flores bem na frente de Gin.

O filho da puta.

Deliberadamente, Gin se virou para Richard e sorriu.

– Bem, estou encantada com a sua companhia.

Richard assentiu e voltou a cortar o seu filé mignon.

– Assim é muito melhor. Por favor, não pare.

Gin falou com suavidade, ainda que não fizesse ideia do que estava saindo da sua boca. Mas Richard assentia mais e mais, e respondia, por isso ela deduziu que estava se saindo bem com suas habilidades sociais. Mas, pensando melhor, quer se tratasse de conversas que não a interessavam ou orgasmos com homens com os quais não se importava, ela tinha bastante prática em fingir.

E, mesmo assim, estava ciente do que Samuel T. estava fazendo. Dolorosamente ciente.

Os olhos dele queimavam, cravados nela. E, nesse meio-tempo, bem como ele lhe prometera, a vadia ao lado dele começou a se esforçar para manter a compostura.

– … me resguardei para você – Richard declarou.

Gin franziu o cenho, captando aquela combinação de palavras, a despeito da sua preocupação.

– O que disse?

– Eu estava determinado a me casar, mas entrei num acordo com o seu pai. Foi por isso que pus fim ao noivado.

– Entrou num acordo com o meu pai? Do que está falando?

Richard sorriu com frieza.

– O seu pai e eu chegamos a um acordo quanto ao futuro. Em contrapartida por se casar comigo, estou disposto a conceder algumas vantagens à Cia. Bourbon Bradford.

Gin piscou. Depois balançou a cabeça.

– Não estou ouvindo muito bem.

– Sim, sim, você está. E já lhe comprei o anel de diamantes.

– Não, não, não… Espere um minuto. – Jogou o guardanapo na mesa mesmo sem terminar de jantar, assim como as outras trinta e uma pessoas. – Não vou me casar nem com você nem com ninguém.

– Mesmo?

– Tenho certeza de que “comprou” o seu lugar nesta mesa. Mas ninguém me obriga a fazer porra nenhuma, e isso inclui o meu pai.

Pensou que era uma tristeza não ter questionado a possibilidade do seu bom e velho pai a vender em favor do preço das ações da empresa.

Richard deu de ombros debaixo do terno elegante.

– Se é o que você diz.

Gin olhou para a cabeceira da mesa onde William Baldwine estava sentado em comando total, como se estivesse em um trono suspenso, mantendo-o acima dos seus súditos.

O homem não percebeu o olhar letal e, portanto, não sabia que a bomba tinha sido lançada. Ou talvez, quem sabe, ele tivesse planejado dessa forma, sabendo que Richard seria incapaz de ficar calado, e que ela não poderia provocar um escândalo por causa das testemunhas.

E, maldição, seu pai tinha razão quanto a isso. Por mais que desejasse dar um pulo e começar a berrar, ela não rebaixaria o nome Bradford dessa maneira, certamente não com Sutton Smythe e o pai dela, Reynolds, no mesmo cômodo.

À esquerda, um gemido foi encoberto por uma tossidela fraca.

Gin desviou a atenção do pai para Samuel T., ao que o advogado ergueu uma sobrancelha… e lançou um beijo no ar na sua direção.

– Sim, pode levar o prato dela. – Ela ouviu Richard dizer para o garçom uniformizado. – Ela já terminou.

– O que disse? – Gin se virou para Richard. – Mas você não tem o direito de…

– Aprovo a sua falta de apetite, mas não vamos nos arriscar, certo? – Richard acenou para o garçom. – E ela também não vai comer a sobremesa.

Gin se inclinou para o homem e lhe sorriu. Num sussurro, disse: – Não dê o passo maior que a perna. Eu ainda me lembro da época em que você enchia a sua saqueira com meias. Dois pares, porque um não adiantava muita coisa.

Richard a encarou. Num tom igualmente baixo, respondeu:

– Não faça de conta que tem algum poder de decisão.

– Espere e verá.

– É você quem mal pode esperar para ver. – Ele se recostou e lançou-lhe o olhar satisfeito de um homem que tem um royal flush nas mãos. – Mas não demore muito. O peso dos quilates do seu anel diminui a cada hora.

Eu vou te matar, ela pensou consigo mesma enquanto olhava para o pai. Que Deus me ajude, mas eu vou te matar.

Quando Lizzie fez a curva na estradinha secundária, a faixa de terra para a qual se dirigiu dividia terrenos com plantações de milho e só era larga o bastante para a passagem do seu Yaris. Havia árvores em ambos os lados, não de maneira organizada, mas num padrão casual, arranjado pela natureza, e não pela enxada de um paisagista. Acima, galhos grossos se uniam formando um dossel de verde brilhante na primavera, esmeralda no verão, amarelo e laranja no outono e esquelético no inverno.

Normalmente, aquela procissão de meio quilômetro até sua fazenda era o início do seu relaxamento, uma câmara de descompressão que ela acreditava ser o único motivo pelo qual conseguia dormir depois de um dia de problemas em Easterly.

Não naquela noite.

De fato, ela queria olhar por sobre o ombro só para se certificar de que não havia ninguém com ela no banco de trás do carro. Não que coubesse alguém de mais de doze anos ali, mas, mesmo assim… Sentia-se perseguida. Caçada. Assaltada. Ainda que sua carteira continuasse dentro da bolsa e ela estivesse, de fato, sozinha em seu carro.

A casa da fazenda era uma clássica casa americana, exatamente o que se veria num filme da Lifetime que se passasse num fim de semana de quatro de julho: branca com uma varanda, com vasos de amor-perfeito, uma cadeira de balanço e um banco suspenso em um dos lados. Tanto a indispensável chaminé de tijolos vermelhos quanto o telhado pontudo com telhas cinza eram originais, da época da sua construção em meados de 1833. E o coup de grâce? Um bordo imenso que oferecia abrigo para o calor do verão e para o vento frio do inverno.

Estacionou debaixo da árvore, que era o que de mais próximo a uma garagem que ela tinha, e saiu do carro. Mesmo que Charlemont dificilmente fosse Manhattan, a diferença no nível de barulho era impressionante. Naquelas partes, havia sapos, vagalumes que não tinham nada a dizer, e uma coruja que começara a montar guarda num velho celeiro uns dois anos antes. Nenhum murmúrio da autoestrada. Nenhuma sirene de ambulância. Nenhum acorde de jazz ou blues vindos do parque às margens do rio.

Fechando a porta, o som foi amplificado pela escuridão, e ela se viu aliviada quando caminhou e as luzes ativadas pelo movimento, colocadas em ambos os lados da entrada, foram ativadas. As botas rasparam nos cinco degraus que rangeram, e a porta de tela a acolheu com o resmungo das dobradiças. A fechadura era de latão, relativamente nova. Fora instalada em 1942.

Do lado de dentro, tudo estava escuro, e quando ela confrontou o vazio, desejou ter um cachorro. Um gato. Um peixinho dourado.

Apertando o interruptor, piscou quando seu lar doce lar se iluminou com a suave luz amarela. A decoração não se parecia em nada com a dos Bradford. Na sua casa, se havia algo antigo, era por ser útil e por ter sido feito por algum artesão do Kentucky: uma velha cesta de vime, um par de colchas de retalhos gastos pendurado nas paredes, uma cadeira de balanço, um banco de pinho debaixo da janela, cabeças de enxadas e pás que encontrara nos campos e que ela mesma emoldurara, para depois pendurar na parede. Também tinha uma coleção de instrumentos musicais, inclusive diversos violinos, muitas canecas, algumas tábuas de lavar roupa, e o maior dos seus tesouros: seu piano Price & Teeple de 1907. Feito de carvalho, com dobradiças incríveis de cobre, pedais e outras partes metálicas, ela o encontrara apodrecendo num celeiro, na porção oeste da propriedade, e o restaurara com muito amor.

A mãe chamava sua casa de museu do folclore, e Lizzie concluiu que isso devia ser bem verdade. Para ela, não existia conforto maior do que se ligar a gerações de homens e de mulheres que trabalharam na terra, esculpiram suas vidas e transmitiram seu conhecimento de vida para as gerações seguintes.

Agora? Tudo era 3G, 4G, LTE, e os computadores e smartphones eram cada vez menores e mais rápidos.

Sim, porque esse sim era um legado de honra e de perseverança para deixar aos seus filhos: como se esforçar para ficar na fila por vinte e seis minutos a fim de adquirir um novo iPhone, com um copo do Starbucks numa mão e um blog a respeito de alguma inutilidade na outra para passar o tempo.

De volta à sua cozinha anos 1940 – o estilo não era importado da Ikea ou Williams-Sonoma com suas réplicas, mas sim o original, de quando ela comprara a casa sete anos atrás –, abriu a geladeira e encarou as sobras da torta de frango que fizera na segunda à noite.

Aquilo era tão inspirador quanto a ideia de comer lascas de tinta esquentadas numa frigideira.

Quando seu celular começou a tocar, olhou por sobre o ombro, para a bolsa que largara no corredor.

Deixe para lá, ela se ordenou. Apenas deixe…

Esperou até que o aparelho silenciasse, e esperou mais para ver se haveria outra chamada – caso fosse uma emergência com a mãe, outra ligação se seguiria. Ou pelo menos haveria um toque alertando a chegada de uma mensagem.

Quando nenhum dos dois aconteceu, ela foi até o corredor e apanhou a bolsa. Nenhuma mensagem. Não reconheceu o número, mas conhecia o código de área: 917.

Cidade de Nova York. Celular.

Tinha amigos que ligavam para ela daquela área.

Suas mãos tremiam ao abrir a lista de chamadas recebidas e apertar o último número.

Foi atendida antes que o primeiro toque terminasse.

– Lizzie?

Seus olhos se fecharam quando a voz de Lane entrou em seu ouvido e em todo o seu corpo.

– Alô? – ele disse. – Lizzie?

Havia muitos lugares para sentar em sua sala ou na cozinha – cadeiras, sofás, até mesmo a mesinha de centro era robusta o suficiente. Em vez de usar qualquer um desses móveis, recostou-se contra a parede e deixou o traseiro escorregar até o chão.

– Lizzie? Você está aí?

– Sim. – Apoiou a testa na mão. – Estou aqui. Por que está ligando?

– Eu só queria me certificar de que você chegou bem em casa.

Sem nenhum motivo, lágrimas surgiram em seus olhos. Ele sempre agia assim. No tempo em que estiveram juntos, não importava que horas ela saía, ele lhe telefonava assim que ela passasse pela porta. Como se tivesse um timer no telefone.

– Não estou ouvindo a festa – comentou. – Ao fundo.

– Não estou em casa.

– Onde você está?

– No Antigo Silo. No armazém de barris. – Ela ouviu um barulho, como se ele também estivesse se sentando no chão. – Faz muito tempo que não venho aqui. O cheiro é o mesmo. A aparência também.

– Nunca fui aí.

– Você gostaria daqui. É o seu tipo de lugar, tudo muito simples e funcional e feito à mão.

Ela relanceou para a sala de estar e se concentrou na primeira pá que encontrara nos campos onde plantava milho todos os anos. O objeto era velho e enferrujado e, para ela, belo.

O silêncio que se seguiu fez parecer como se ele estivesse na sala junto dela.

– Estou feliz que não tenha desligado – Lane disse por fim.

– Eu queria poder desligar.

– Eu sei.

Ela pigarreou.

– Pensei em tudo o que me disse, no caminho para casa. Pensei em como você estava enquanto conversava comigo. Pensei… em como as coisas eram.

– E?

– Lane, mesmo que eu conseguisse superar tudo, e não estou dizendo que consigo, o que, exatamente, você quer de mim?

– Qualquer coisa que você me der.

Ela gargalhou num acesso tenso.

– Isso foi bem franco.

– Tenho outra chance com você? Porque vou te dizer isso agora, neste instante, se houver a mínima chance de você me aceitar, eu…

– Pare – ela inspirou fundo. – Apenas… pare.

Quando ele parou, ela ficou puxando e puxando o cabelo, com tanta força que seus olhos ficaram ainda mais marejados. Ou talvez isso estivesse acontecendo por outros motivos.

– Eu queria que você não tivesse voltado – ela se ouviu dizer. – Eu queria… Eu já estava te esquecendo, Lane. Estava recuperando o meu fôlego, a minha vida. Eu estava… e agora você está aqui, dizendo as coisas que quero ouvir, olhando para mim como se estivesse falando sério. Mas eu não quero voltar. Não posso.

– Então vamos em frente.

– A vida não é fácil assim.

– Não é. Mas é melhor do que nada.

Enquanto o silêncio se estendia uma vez mais, ela não sentiu necessidade de falar, de explicar mais coisas, de detalhar tudo. E enquanto as palavras martelavam em sua cabeça, ela desistiu de lutar.

– Não fiquei um dia, uma noite sem pensar em você, Lizzie.

O mesmo valia para ela, mas ela não queria lhe dar esse tipo de munição.

– O que você andou fazendo esse tempo todo lá?

– Nada. E estou falando sério. Fiquei com um amigo, o Jeff… bebi, joguei pôquer. Esperei, querendo ter uma oportunidade de falar com você.

– Por dois anos.

– Eu teria esperado uma dúzia.

Lizzie parou de puxar o cabelo.

– Por favor, não faça isso…

– Eu quero você, Lizzie.

Enquanto assimilava as palavras, seu coração batia tão forte que ela conseguiu sentir o aumento na pressão sanguínea no peito e no rosto.

– Nunca deixei de te querer, Lizzie. De pensar em você. De desejar que você estivesse comigo. Diabos, sinto como se estivesse num relacionamento com um fantasma. Eu te vejo nas ruas de Nova York sem parar, em alguma loira passando por mim numa calçada, talvez no modo como ela penteia os cabelos, ou por causa dos óculos, ou pela cor das calças jeans… Eu te vejo nos meus sonhos todas as noites; você é tão real que consigo te tocar, te sentir, estar com você.

– Você tem que parar.

– Não consigo. Lizzie… eu não consigo.

Fechando os olhos, ela começou a chorar baixinho na solidão da sua casa tão modesta, aquela que ela mesma comprara e que estava quase acabando de pagar, o maior símbolo da razão pela qual não precisava de um homem em sua vida, nem agora, nem nunca.

– Você está chorando? – ele sussurrou.

– Não – respondeu depois de um instante, num soluço. – Não estou.

– Está mentindo?

– Sim, estou.

 

TREZE

Lane olhava para o lado oposto do Antigo Silo construído por um dos seus ancestrais, sabendo que estava dentro do limite legal de álcool para poder dirigir, e que isso não duraria muito. Tinha uma garrafa de no 15 contra o quadril, que surrupiara de uma caixa pronta para ser despachada, e apesar de ainda não ter rompido o lacre, tinha toda intenção de secar a garrafa.

Em toda a sua volta, o Antigo Silo estava deserto, e surpreendeu-se ao perceber que o código de acesso do sistema de alarme ainda era o mesmo de antes.

Sabia que deveria deixar Lizzie em paz.

– Sinto muito – murmurou. – Quero dizer todas as coisas certas, fazer as coisas certas, e sei que não estou cumprindo esses objetivos. Maldição, Lizzie…

Inclinou a cabeça para o lado e segurou o telefone entre o ombro e a orelha. Pegando o bourbon, abriu a garrafa e a levou até a boca.

A ideia de tê-la feito chorar de novo o comia vivo.

– Você está bebendo? – ela perguntou.

– Ou faço isso ou bato a cabeça na parede até sangrar.

Enquanto ela exalava fundo, ele deu mais um gole. E um terceiro.

Quando terminou de engolir e a queimação na garganta cessou, ele fez a pergunta cuja resposta tanto temia: – Você está com alguém?

Ela demorou bastante para responder.

– Não.

Foi sua vez de exalar fundo.

– Não acredito em Deus, mas, neste instante, estou com vontade de me autoproclamar cristão.

– E se eu não te quiser mais? O que vai fazer, então?

– Está me dizendo que isso é verdade?

– Talvez.

Ele fechou os olhos.

– Então, eu vou recuar. Isso vai acabar comigo… mas vou embora.

Mais silêncio. Que ele passou bebendo da garrafa.

– Amigos – ela disse por fim. – Só vou até aí. É só isso que consigo fazer.

– Ok. Respeito isso.

Ele conseguiu ouvir o alívio na voz dela.

– Obrigada.

– Mas – ele a interrompeu – o que, exatamente, isso quer dizer?

– Como é?

– Bem, amizade… Como é isso? Posso te telefonar, certo? Amigos podem comer juntos de vez em quando, só para se manterem a par das novidades, não é? Você sabe, divórcio, planos de mudança, novas direções, esse tipo de coisa.

– Lane.

Ele sorriu.

– Adoro quando você diz meu nome desse jeito.

– Quando estou irritada?

– É sexy.

Lizzie pigarreou.

– Essa palavra não cabe numa amizade, ok?

– Eu apenas constatei um fato.

– Uma opinião.

– Fato.

– Lane, estou te avisando, você precisa…

Enquanto ela prosseguia, falando à sua maneira tipicamente franca e sem rodeios, ele fechou os olhos e prestou atenção às ordens dela, deixando que seu tom de voz o envolvesse. Bem no íntimo, aquele desejo velho e tão conhecido despertou, como um dragão adormecido… e o ímpeto foi tão forte que ele quis entrar no carro e atravessar as pontes até Indiana.

– Ainda está aí? – ela perguntou, brava.

– Ah, estou. – Arrumando a ereção dentro das calças, refreou um gemido. – Estou, sim.

– O que está fazendo?

Ele afastou a mão para longe, bem longe do marco zero.

– Nada.

– E então? – disse ela. – Está ou não?

– Estou o quê?

– Dormindo enquanto fala comigo.

– Muito pelo contrário – ele murmurou.

Houve uma leve pausa e depois:

– Ah…!

Como se ela o tivesse compreendido.

– Melhor eu desligar – ele disse, rouco. – Cuide-se. Nos falamos amanhã.

Só que ela não parecia querer que ele desligasse… e seu pau ficou todo lépido e faceiro.

– Quer dizer que você vai ficar? – ela perguntou.

Podemos falar sobre outro assunto?, sua ereção pensou.

Sossegue, garoto.

– Sim, vou. – Quando ele mudou de posição no chão duro, tentou ignorar o modo como o zíper resvalou. – Tenho que me encontrar com Samuel T. para falar do divórcio.

– Então, você vai mesmo…

– Vou – ele disse. – Imediatamente. E não, não é só por sua causa. Cometi um erro, e vou consertar isso para o bem de todo mundo.

– Tudo bem. – Ela pigarreou. – Ok.

– Só estou seguindo em frente, Lizzie.

– Se é o que você diz. Bem, tchau…

– Não – ele a interrompeu. – Assim não. Nós dizemos boa noite, está bem? E não tchau, a menos que você queira que eu apareça na soleira da sua porta como um cachorro sem dono.

– Está bem.

Antes que ela desligasse, ele formou um “eu te amo” com os lábios.

– Boa noite, Lizzie.

– Boa noite… Lane.

Encerrando a ligação, Lane deixou o braço cair, e o aparelho bateu no piso de concreto com um baque.

– Eu te amo, Lizzie – disse em voz alta.

Tomando mais um gole da garrafa, pensou em como era conveniente que a fortuna da família se baseasse em algo com o qual ele poderia se embebedar. Se fosse uma enormidade de outros produtos de consumo – canetas, baterias de carro, band-aids, chicletes –, nada poderia ajudá-lo na sua atual situação.

Quando o telefone voltou a tocar, ele o atendeu de pronto. Mas não era Lizzie.

– Jeff – ele disse, mesmo não querendo conversar com mais ninguém.

A voz do seu anfitrião nova-iorquino soou seca.

– Você ainda está vivo.

– Basicamente. – Levou a garrafa de volta à boca. – E você, como é que você está?

– Está bebendo?

– Isso mesmo. No 15. Eu dividiria com você, se estivesse aqui.

– Um cavalheiro sulista, sem dúvida. – Seu amigo praguejou. – Lane, onde você está?

– Em casa.

Houve tempo suficiente para grilos cantarem na conexão.

– Você está se referindo a…

– Isso mesmo.

– Charlemont?

– Nascido e criado eu fui, e ao lar regressei. – Puxa. Devia estar ficando bêbado, estava parecendo um sulista de verdade. – Assim como você e o Upper East Side, só que nós temos miúdos de porco e frango frito.

– Que diabos você está fazendo aí?

– A minha… – Pigarreou. – Uma pessoa muito importante para mim adoeceu. Tive que voltar.

– Quem?

– A mulher que me criou. A minha… bem, a minha mãe. Mesmo ela não sendo a minha mãe biológica. Ela ficou doente alguns anos atrás, mas sabe como são essas coisas. Elas podem voltar. Ela diz que vai ficar bem, então estou me apegando a isso.

– Quando vai voltar?

Lane tomou mais um gole.

– Já te contei que me casei?

– O quê?

– Foi um pouco antes de eu ir para o norte e acabar no seu sofá. Vou ficar aqui até a senhorita Aurora ficar bem e, assim, vou poder cuidar dessa outra coisa idiota. Além disso… é que… tem essa outra mulher.

– Espera um minuto. Cacete. Espera aí…

Houve uma espécie de farfalhar, seguindo de um clic, clic, clic como se alguém estivesse tentando acender um isqueiro… e depois uma baforada.

– Vou precisar de um cubano para ouvir isso. Então, você tem uma esposa?

– Eu te disse que não era gay.

– Foi por isso que você não ficou com ninguém aqui?

– Não, foi por causa da outra mulher. Aquela com quem não me casei. Aquela que é naturalmente bonita e boa demais para mim.

– Vou precisar de um diagrama de Venn – o cara murmurou. – Cacete, por que não me contou nada disso?

Lane balançou a cabeça, mesmo que o amigo não pudesse vê-lo.

– Eu estava no modo de fuga. – Caramba, odiou o fato de Chantal estar certa. – Tudo estava barulhento demais dentro da minha cabeça. A coisa toda. Então, como é que você está?

– Você joga isso tudo em cima de mim e termina querendo saber como é que eu estou?

– Tenho que voltar a beber. Conversar está me retardando, mas estou disposto a ouvir. – Tomou um gole grande. – E aí? Alguma novidade?

– Estou bem, você sabe, as coisas de sempre no trabalho. Dez mil amplificadores ligados, um chefe que não sai do meu rabo e dezesseis comprimidos de Motrin por dia para impedir que a minha cabeça exploda. O mesmo de sempre. Pelo menos ainda tem dinheiro… ainda mais agora que você não está me arrancando um quarto de milhão de dólares todas as semanas no feltro verde.

Conversaram um pouco mais sobre nada em especial. Jogos de pôquer, Wall Street, a mulher com quem Jeff andava transando… E mesmo que Lane não fosse muito de ficar conversando ao telefone, percebeu que estava com saudades do cara. Acostumara-se à troca rápida, às sacadas inteligentes e, em especial, àquele sotaque de Jersey nos fim das frases e no uso de algumas outras palavras.

– Então, acho que é adeus por ora – seu antigo colega de classe disse.

Lane franziu o cenho e visualizou Lizzie. Ouviu a voz dela. Lembrou-se da cautela dela.

Depois rearranjou sua ereção persistente.

Ficou se perguntando se existia a mínima possibilidade de voltar para Nova York.

Pensando bem, seria melhor não se adiantar. No que se referia a reconquistar Lizzie, dependia de duas pessoas. Só porque estava pronto para retomar o relacionamento deles não significava que ela se apressaria. E também havia a sua família. Como se ele conseguisse se imaginar voltando a viver em Easterly… Mesmo que a senhorita Aurora ficasse bem de saúde e que ele e Lizzie se acertassem, a ideia de coexistir com o pai bastava para ele contemplar a fronteira canadense com carinho. E nem isso seria longe o suficiente.

– Não sei se vou ficar de vez.

– Você sempre pode voltar. O meu sofá já está com saudades de você… e ninguém joga Texas Hold’em como você.

Os dois desligaram depois de se despedirem, e enquanto Lane mais uma vez largava o braço e deixava o aparelho cair, concentrou-se na antiga destilaria do lado oposto. O lugar fora usado por décadas na virada do século, e agora era visitado por dezenas de milhares de turistas que vinham conhecer o Antigo Silo durante todo o ano.

Por algum motivo, percebeu que nunca tivera um emprego. A extensão dos seus “empenhos profissionais” era evitar os paparazzi, o que era mais uma questão de sobrevivência do que algo relacionado a uma carreira. Graças ao seu fundo fiduciário, não sabia o que eram chefes ou colegas de cubículo chatos, nem trajetos ruins para o trabalho e de volta para casa. Não se preocupava em estar em algum lugar num determinado horário, ou em concluir relatórios, nem tinha dores de cabeça devido às tantas horas passadas diante da tela do computador.

Engraçado, nunca antes considerara o fato de ter tanto em comum com Chantal. A única diferença entre eles era que o dinheiro da família dela não bastava para sustentar o estilo de vida a que se acostumara, motivo pelo qual tivera que se casar com ele.

E lá estava Lizzie, trabalhando duro, pagando aquela fazenda. Conhecendo-a como a conhecia, ela já devia estar chegando ao seu objetivo.

O que o fazia respeitá-la ainda mais.

E também o fazia se questionar exatamente o que tinha para oferecer a uma mulher de substância. Dois anos atrás, estivera todo excitado e metido no drama familiar, ávido por ela fisicamente, e tão cativado por ela mentalmente que nunca olhara para si mesmo segundo o ponto de vista dela. Todo o seu dinheiro e a sua posição social só tinham valor para pessoas como Chantal. Lizzie queria mais, merecia mais.

Ela queria a realidade.

Talvez, no fim das contas, ele não estivesse tão acima daquela sua esposa.

Ex-esposa, corrigiu-se, enquanto continuava a beber.

 

CATORZE

– A que devo a honra?

O pai de Gin falava, e seu tom era de afirmação, não de pergunta, e sugeria que o fato de ela estar parada na porta do quarto dele era uma invasão.

Que pena, ela pensou com ironia.

– Quero saber que diabos aprontou com Richard Pford.

O pai não demonstrou nenhuma reação, parado diante da cômoda, prosseguindo com o ato de retirar as abotoaduras de ouro. O paletó do smoking preto tinha sido dobrado uma vez e estava ao pé de uma chaise longue, e os suspensórios preto e vermelho haviam sido retirados dos ombros e estavam pendurados na cintura como duas fitas.

– Pai – ela rugiu. – O que você fez?

Ele a deixou esperando até tirar a gravata borboleta, puxando-a do colarinho.

– Está na hora de você se assentar…

– Você dificilmente está em posição de defender o matrimônio.

– … e Richard é um marido perfeito.

– Não para mim.

– Isso ainda veremos. – Virou-se na direção dela, os olhos frios, o belo rosto impassível. – E não se engane, você se casará com ele.

– Como ousa! Não estamos na virada do século. As mulheres não são bens, podemos ter propriedades, as nossas próprias contas bancárias, podemos até votar! E, com certeza, podemos decidir se queremos ou não atravessar a nave de uma igreja… E eu não vou, de modo algum, sair com aquele homem, quanto menos me casar com ele! Ainda mais se isso beneficiar você de algum modo.

– Sim, você vai. – Por uma fração de segundo, o olhar dele se desviou para cima do ombro dela e ele meneou a cabeça como se estivesse dispensando alguém no corredor. – E fará isso o mais rápido possível.

Gin se virou, esperando ver alguém atrás de si na soleira da porta. Não havia ninguém ali.

Voltou a se concentrar nele.

– Você vai ter que apontar uma arma na minha cabeça.

– Não será preciso. Você fará isso por sua própria escolha.

– Não.

– Sim, você vai.

No silêncio que se seguiu, o coração dela deixou de bater algumas vezes. Durante toda a vida, aprendera a odiar e a temer o pai. E naquele silêncio tenso, de ar estagnado entre eles, ela se perguntou, e não pela primeira vez, do que ele seria verdadeiramente capaz.

– Você pode escolher brigar – disse ele com suavidade. – Ou pode ser eficaz em relação ao assunto. Você só vai acabar se ferindo se não fizer isso pela família. Agora, se me permite, vou me recolher…

– Você não pode me tratar dessa maneira. – Ela forçou um pouco a voz. – Não sou um executivo da empresa que você pode empregar e demitir. E não pode me dar ordens, não quando se trata de arruinar a minha vida.

– A sua vida já está arruinada. Você teve uma filha aos dezessete anos, aqui, nesta mesma casa, pelo amor de Deus, e deu seguimento a isso com o comportamento promíscuo tipicamente reservado para as strippers de Las Vegas. Quase não se formou na Sweet Briar por causa do affair com o professor de inglês, que era casado e, assim que voltou a morar aqui, deitou-se com o chofer. Você é a desgraça da família. E pior, tenho a distinta impressão de que parte da sua diversão nessas suas aventuras é a vergonha que provoca em sua mãe e em mim.

– Talvez se eu tivesse um bom exemplo masculino para admirar, eu não considerasse os homens tão universalmente desagradáveis.

– Antes você os considerasse mesmo desagradáveis. No entanto, esse parece não ser o seu problema. Por algum motivo, Richard não se intimidou com a sua reputação, um erro de julgamento que, por certo, ele vai acabar lamentando. Ainda bem que não é problema meu.

– Eu te odeio – ela sibilou.

– O mais triste, minha querida, é que lhe falta suficiente profundidade para tal nível de inimizade. Se fosse minimamente inteligente, perceberia que Richard Pford será capaz de mantê-la no estilo de vida que você necessita, tanto quanto precisa do ar para respirar, pelo resto dos seus dias. E você estará garantindo a continuação do sucesso e da saúde financeira da família que lhe deu essa bela ossatura e essa adorável coloração facial. Essa será, depois de tudo, a sua única contribuição ao nome “Bradford”.

Gin mal percebia que estava respirando superficialmente.

– Algum dia, você vai pagar pelos seus pecados.

– Está se tornando religiosa agora? Acredito que qualquer tipo de conversão para você será difícil, até por alguém como Jesus.

– Como pode ser tão odioso? Nunca conheci ninguém tão cruel quanto você…

– Só estou cuidando de você do único modo que sei. Estou lhe dando uma fortuna, um nome honrado, e você poderá levar Amelia com você, se desejar. Ou ela pode ficar aqui.

– Como se ela não passasse de uma maleta? – Balançou a cabeça. – Você é um depravado. Absolutamente depravado…

Ele avançou e a agarrou pelo braço, permitindo que alguma emoção escapasse por baixo da máscara aristocrática de autossegurança.

– Você não faz a mínima ideia do que é necessário para manter esta família. Nenhuma ideia. A sua tarefa diária mais complexa é priorizar o que fazer antes: unhas ou cabelos. Portanto, não ouse falar de depravação quando estou resolvendo o problema de todos os sanguessugas debaixo deste teto. Os termos favoráveis de Richard Pford continuarão a nos permitir isso. – Balançou a saia do vestido de gala dela. – E isso… – Apontou para o colar no seu pescoço. – E todas as outras coisas das quais você tira vantagem diariamente sem parar para ponderar, nem que seja por um instante, como chegaram até você e a que custo. Casar-se com aquele homem é a única coisa que já lhe pediram em troca pela sua boa estrela ao nascer e pela sua liberdade de cobiça. Você é uma Bradford dos pés à cabeça, capaz apenas de consumir, mas, às vezes, um pagamento deve ser feito. Portanto, sim – ele enfatizou –, posso lhe garantir que você será a deveras feliz e contente senhora Richard Pford. Você lhe dará filhos e será fiel a ele, ou, que Deus me ajude, eu a surrarei como a garotinha de cinco anos que você ainda é. Estamos entendidos? Ou quem sabe você vai preferir fazer um curso intensivo para tentar ser como as pessoas que lavam os seus carros, preparam a sua comida, limpam o seu quarto e passam as suas roupas? Talvez você goste de saber como é difícil trabalhar para se sustentar.

– Eu te desprezo – ela disse, trêmula dos pés à cabeça.

O pai também arfava, e tossiu no punho cerrado.

– Como se me importasse. Vá em frente, faça o seu escândalo, esperneie e grite, só provará o quanto estou certo. Se for uma mulher de fato, em vez de apenas uma criança mimada e malcriada, acordará pela manhã e cumprirá o seu dever pela primeira vez em sua vida.

– Eu seria capaz de te matar neste mesmo instante!

– Mas, para isso, você teria que carregar uma arma, não é? Não é algo que possa pedir a uma criada, desde que, claro, não queira ser descoberta.

– Não me subestime…

– Visto o baixo padrão que estabeleceu para si mesma, isso seria algo muito difícil de fazer.

Girando sobre os calcanhares, ela saiu do quarto aos tropeções, e correu pelo corredor até a sua suíte. Lançando-se pela porta, trancou-se e ofegou.

Ah, inferno, não, não, jurou. Você não vai fazer isso comigo.

Se ele achava que antes ela era um problema, ele que esperasse pelo que ela aprontaria em seguida.

Enquanto marchava do quarto para o banheiro, planos reviravam em sua cabeça, muitos dos quais envolviam crimes contra o pai. No fim, teve que tirar o vestido, e o deixou cair no chão, livrando-se da seda antes de continuar andando de um lado para o outro apenas de bustiê e saltos e aqueles diamantes que a vadia da esposa do irmão tentara pôr as mãos.

Fervendo, só conseguia pensar na primeira vez em que odiara o pai…

Tinha seis, talvez sete anos, quando aconteceu. Noite de Ano-Novo. Acordara por causa dos fogos, que explodiam ao longe sobre o centro da cidade. Assustada, fora à procura de Lane, aquele com quem sempre se sentia amparada… encontrando-o na sala de estar com Max.

Gin insistira em ficar com os irmãos e fazer o que quer que estivessem fazendo. Na época, era a história da sua vida, sempre correndo para acompanhá-los, conseguir alguma atenção, estar no radar de alguma pessoa. Os empregados da casa faziam o que os pais queriam e cuidavam dos irmãos. Ela era uma nota de rodapé, uma reflexão tardia, o tapete no qual tropeçavam a caminho da porta quando iam fazer algo melhor, mais interessante, mais importante.

Não quisera beber aquela coisa da garrafa. O cheiro do bourbon era ruim, e ela sabia que era proibido, mas se Max e Lane iam tomar um pouco, então ela também tomaria.

E assim foram apanhados.

Não uma vez, mas duas.

Assim que entrara na sala, Edward ordenara que ela voltasse para a cama, e ela saíra pelos fundos como ele lhe dissera. Depois de passar pelo corredor dos empregados, porém, ouvira vozes e tivera que se esconder nas sombras a fim de não ser flagrada… quando o pai saíra do escritório de Rosalinda Freeland.

Ele estava usando seu roupão, amarrando as duas pontas do cinto ao sair de lá, e seus olhos estavam arregalados, como se estivesse com raiva, mas não havia como ele ter ouvido suas vozes lá na sala de estar. O primeiro instinto de Gin fora o de correr para a frente da casa e alertar os irmãos. No entanto, o medo a detivera… E, em seguida, a senhora Freeland saíra também, agarrando o pai pelo braço.

Sua mente infantil se perguntara por que a blusa da moça do escritório estava desabotoada, e os cabelos, sempre bem penteados e presos, estavam meio desarrumados.

Os dois discutiram em tons sussurrados, dizendo coisas que ela não conseguiu entreouvir acima das batidas do seu coração. Em seguida, o pai saiu de lá e a senhora Freeland voltou para o escritório, fechando a porta.

Gin permanecera ali pelo que lhe pareceu um ano, temendo sair, caso a senhora Freeland voltasse. Só que ela também temia que o pai voltasse por aquele caminho e a encontrasse.

Ele não devia estar ali com aquela mulher.

Ele não ficaria feliz por ela tê-lo visto.

Descalça, apressou-se pelas escadas dos empregados, colando na parede de gesso conforme subia. Já no segundo andar, paralisou quando uma segunda rodada de fogos se iniciou e, assim que terminaram de explodir, ela se abrigou na porta aberta de um dos quartos de hóspedes, desejando ter algum lugar seguro para ir.

Voltar sozinha para o quarto parecia-lhe aterrorizante. E se, além disso, o pai estivesse procurando por ela?

Sentando-se encolhida, enfiou as pernas junto do corpo e abraçou os joelhos. O pai devia ter encontrado os irmãos. Não havia como o homem não os ter visto, se tivesse usado as escadas da frente.

E isso a assustava mais do que o barulho do lado de fora.

Momentos depois, Edward surgiu no alto da escadaria, com o pai logo atrás, pairando como um monstro. Por algum motivo, o andar do irmão estava trôpego e a pele do rosto estava pálida. O pai lhe pareceu tão inflexível e reprovador quanto um banco de igreja.

Onde estariam os outros dois?

Nada foi dito enquanto eles prosseguiam até a porta do quarto do pai. E quando chegaram ao destino, Edward ficou de lado e depois tropeçou para dentro do cômodo escuro assim que a porta lhe foi aberta.

– Sabe onde estão os cintos.

Foi tudo o que o pai disse.

Não, não, ela pensou. Aquilo não era justo, Edward não estava envolvido! Por que ele…

A porta se fechou num baque, e ela estremeceu ante o que estava para acontecer.

Como esperado, um estalido foi seguido por um grunhido.

De novo.

E mais uma vez.

Edward nunca chorava. Nunca praguejava.

Já ouvira aquilo vezes demais para saber disso.

Gin abaixou a cabeça sobre os braços finos e cerrou os olhos. Não sabia por que o pai odiava tanto Edward. O homem desgostava do resto deles, mas Edward o deixava furioso.

Edward nunca chorava.

Por isso, chorou por ele… E resolveu, dali por diante, que se o pai podia odiar Edward, dois poderiam jogar aquele jogo.

E ela escolheu o que segurava o cinto naquele minuto.

Odiaria o pai dali por diante.

Voltando a se concentrar, Gin descobriu-se sentada na cama, com os joelhos ao encontro do peito, os braços ao seu redor, como se estivesse, uma vez mais, sentada dentro daquele quarto de hóspedes com apenas a camisola para aquecê-la, e o que acontecia no quarto do pai a aterrorizava em seu íntimo.

Sim, fora assim que tudo começara para ela, e William Baldwine nunca lhe dera motivos para reconsiderar o seu ódio. Aquele acordo com Richard Pford era apenas mais um item numa longa lista.

Mas não era o pior.

Não, a pior coisa que o homem fizera foi algo que ela apenas suspeitava, algo que ninguém mencionara, quer sob o teto de Easterly, quer nos jornais.

Estava convencida de que o pai era o sequestrador de Edward.

O irmão ia com frequência à América do Sul, e assim como outros executivos de sua posição, sempre viajava acompanhado de seguranças contratados pela CBB. Com esse tipo de proteção, ninguém deveria ter sido capaz de se aproximar. No entanto, seu irmão fora levado… Não numa estrada, nem mesmo numa localização remota.

Mas da sua suíte no hotel.

Como foi que aquilo pôde acontecer?

A primeira coisa que ela pensou, quando lhe contaram, foi que ali havia dedo do seu pai.

Tinha provas? Não, não tinha. Mas passara a infância inteira vendo o homem observando Edward como se menosprezasse o ar que o garoto respirava. E mais tarde, quando Edward passara a trabalhar na empresa, teve a impressão de que o relacionamento daqueles dois esfriara ainda mais, visto que o Comitê dos Curadores passara a dar mais e mais responsabilidades a Edward.

Haveria um modo melhor de se livrar de um rival do que matá-lo no exterior? De uma maneira que faria William Baldwine parecer vítima por ser um pai “em luto”?

Deus, Edward quase fora enterrado lá. E quando finalmente regressara? Estava em péssimas condições. Nesse meio-tempo, o pai se colocara diante da mídia, dos curadores, da família, mas nunca, sequer uma vez, fora visitar o filho.

Vergonhoso. E na cabeça dela era uma confirmação de que William Baldwine tentara se livrar de uma ameaça corporativa que não podia demitir.

Não era de se admirar que ela não confiasse nos homens.

Não era de se admirar que nunca fosse se casar.

Quanto menos para fazer o pai feliz.

 

QUINZE

Quando chegou a Easterly na manhã seguinte, Lizzie precisou manobrar o Yaris duas vezes para conseguir estacioná-lo direito, o que revelava o quão lamentável era seu estado mental, considerando-se que o carro era do tamanho de uma bicicleta. Saindo dele, pegou desajeitada a bolsa e a deixou cair. E quando se abaixou para pegar o protetor solar no asfalto já quente, percebeu que tinha esquecido de trazer o almoço.

Fechou os olhos.

– Maldição…

– Tudo bem, menina?

Lizzie se endireitou e se virou na direção de Gary McAdams. O chefe da manutenção da propriedade vinha andando pelo gramado, o leve claudicar não o fazia diminuir o ritmo, com o rosto envelhecido pelo tempo crispado em sinal de preocupação, como se estivesse avaliando um trator com eixo solto.

Será que sua aparência estava tão ruim assim?, perguntou-se.

Pensando bem, não dormira praticamente nada.

– Ah, sim, estou bem. – Ela forçou um sorriso. – Ótima.

– Tem certeza disso?

Não.

– Sim. Como vai a sua equipe?

– Já terminaram de cortar a grama e de aparar as trepadeiras, e vou fazer com que limpem o terraço depois das dez. – Porque só então eles tinham permissão para fazer barulho perto da casa. – As tendas foram erguidas, a parte do buffet já está pronta com as grelhas no lugar, mas tem um probleminha.

Lizzie acomodou a bolsa no ombro e pensou que já estava pronta para lidar com qualquer problema que pudesse solucionar.

– O que foi?

– Aquele senhor Harris está querendo falar com você. Tem algo com as taças de champanhe.

– Com a disposição delas nas mesas? – Fechou a porta do carro. – Pensei que elas seriam distribuídas durante a festa.

– Não, só chegou metade do pedido. Ele acha que você mudou a quantidade.

– O q… Por que eu faria isso?

– Ele disse que você é a única pessoa com acesso ao pessoal do aluguel.

– Encomendei as tendas, só isso. É ele quem tem que cuidar da louça, dos talheres e dos copos… Desculpe, estou gritando? Sinto como se estivesse gritando.

Ele apoiou sua grande mão sobre o ombro dela.

– Não se preocupe com isso, menina. O senhor Harry também me deixa doido.

– É senhor Harris.

– Eu sei.

Ela teve que gargalhar.

– Vou lá falar com ele.

– Quando ficar cansada dele, eu tenho uma pá e um ancinho. E muita área verde livre lá na minha casa.

– Você é um cavalheiro.

– Nem perto disso. Me dá a sua bolsa, menina. Vou com você.

– Ela não pesa nada. Pode deixar comigo. – Começou a andar pelo caminho que levava até a ala dos empregados. – Além disso, posso precisar dela para bater na cabeça dele.

– Lembre-se do meu ancinho – ele disse.

– Sempre.

A cada passo sobre as pedras, seu peito se contraía, e a sensação de sufocamento piorava conforme a vastidão da mansão branca surgia ao longe.

Depois de passar a madrugada olhando para o teto, não chegou a conclusão nenhuma sobre ela e Lane. O que ela guardara para si? O som da voz dele no fim do telefonema. Lembrou-se daquele tom sexy que costumava significar que ele encontraria um modo de ficar sozinho com ela, despida, o mais rápido possível.

Pareceu-lhe uma traição total que seu corpo não fosse nada além de um simples “ah, sim, pode vir” – como se sua libido desejasse o retorno do seu mestre. Afinal, ela era muito mais do que apenas um ou dois orgasmos roubados com um homem que ela deveria estar manuseando com pinças de churrasco e um extintor de incêndio.

Loucura.

Quando, por fim, chegou à casa, passou pela entrada lateral do jardim e atravessou a porta dos fundos da cozinha só para se certificar de que tudo o que preparara para a festa ainda estava onde havia deixado na noite anterior.

O que era tolice. Como se um punhado de elfos tivesse entrado ali e bagunçado tudo à luz do luar.

Entrou pela porta de empregados e cruzou a imensa cozinha que, naquele momento, estaria limpa, fria e vazia, apenas à espera dos chefs que estavam escalados para trabalhar das oito às oito. Só que o cômodo não estava completamente deserto. A senhorita Aurora estava diante do fogão industrial, com uma panela de ferro cheia de bacon estalando à esquerda, uma segunda à direita tomada de ovos mexidos. Quatro pratos estavam dispostos na bancada de aço inoxidável da ilha principal, junto de tigelas com framboesas e mirtilos frescos, um açucareiro, um pote com creme de leite e café sobre uma bandeja, sem falar de uma seleção de pãezinhos doces caseiros.

– Senhorita Aurora?

A mulher olhou por sobre o ombro.

– Ah, aí está ela. Como está? Já comeu?

– Sim, senhora.

– Não o bastante. Você e Lane, magrinhos demais. – A cozinheira se voltou para os ovos e os virou com uma espátula vermelha. – Você deveria deixar que eu te alimentasse.

– Não quero causar problemas. – Houve um grunhido de desaprovação, e antes que a discussão de sempre começasse, Lizzie a interrompeu. – A senhora me parece bem.

– Eu disse praquele mordomo que não precisava de nenhuma ambulância.

– Pelo visto, a senhora tinha razão. – E Lane devia estar muito aliviado. – Viu o senhor Harris?

– No escritório dele. Quer que eu vá com você?

– Então ficou sabendo do “champanhegate”?

– Fui eu que mandei Gary te avisar. Eu sabia que ele ia te ver quando você chegasse. Não quis que você viesse pra cá sem ter sido avisada antes.

– Não mudei o pedido.

– Claro que não. – A senhorita Aurora levantou uma frigideira de uns sete quilos como se não pesasse mais que um prato de papel. Enquanto distribuía os ovos, balançava a cabeça. – Existe uma explicação perfeitamente boa.

– Qual?

– Não é da minha conta.

– Tuuudo bem. – Lizzie deu um tempo para que a cozinheira se explicasse, mas ela não o fez. – Bem, de toda forma, vou cuidar disso. Estou muito feliz que esteja bem e de pé, senhorita Aurora.

– Você é uma boa menina, Lizzie. Mas seria ainda melhor se me deixasse te oferecer o café da manhã.

– Talvez na próxima vida.

– Só se tem direito a uma. Depois, a gente vai pro céu.

– É o que o meu pai sempre me dizia.

– O meu também.

Andando sobre o piso de azulejos, Lizzie empurrou as portas duplas e seguiu pelo corredor dos empregados. O escritório do senhor Harris ficava bem diante do de Rosalinda, e ela bateu à porta do mordomo. E mais uma vez. Na terceira, achou que estava esfolando os nós dos dedos à toa.

Fungando no ar, fez uma careta e considerou que o corredor precisava ser arejado urgentemente. Mas, pensando bem, os Bradford se recusavam a instalar ar-condicionado ou aquecimento naquela parte da casa. Afinal, os empregados que se virassem.

Seguindo até a porta envernizada de Rosalinda, também bateu ali, mesmo que a organizadora da família fosse rígida em seu horário de trabalho das nove às cinco, com trinta minutos de almoço precisamente ao meio-dia e dois intervalos de quinze minutos às 10h30 e às 15 horas. A agenda controlada lhe parecera bizarra a princípio, mas, alguns anos mais tarde, já era somente mais uma das muitas regras e regulamentos de Easterly. E fazia sentido, uma mulher que não fazia nada além de pagar contas e somar e subtrair números provavelmente tinha uma régua de cálculo nas veias e sérios problemas de controle.

Daí, então, seu título.

Pousando as mãos nos quadris, Lizzie sabia que o mordomo muito provavelmente estaria servindo a família na sala de jantar íntima. Inclusive Lane.

Consultou as horas no relógio de pulso. Não ficaria esperando pelo senhor Harris e, de jeito nenhum teria aquele confronto diante dos outros. Além disso, ela tinha trabalho a fazer: não terminara os arranjos florais na noite anterior.

Seguindo para a estufa pelo caminho dos fundos, deixou de lado sua confusão mental e se concentrou no que tinha para fazer. Depois que terminasse os arranjos, disporia as toalhas de mesa, já que não havia probabilidade de chuva e de vento forte antes do Brunch da manhã seguinte. E estava encarregada de colocar todos os pratos e copos onde precisavam ficar: junto aos bares e estações de serviço espalhados pelos jardins. Greta deveria chegar em…

– Bom dia.

Lizzie parou com a mão na maçaneta da estufa.

Relanceando por cima do ombro, deparou-se com os olhos de Lane. Ele estava sentado numa espreguiçadeira lateral, com as pernas dobradas na altura dos joelhos, os cotovelos nos apoios de braço, os dedos longos cruzados diante do peito. Usava as mesmas roupas da noite anterior e o cabelo estava uma bagunça completa, como se ele não tivesse dormido em sua cama.

– Esperando por mim? – ouviu-se dizer enquanto seu coração batia forte.

Em seu quarto, Gin amarrotava uma blusa Prada e a enfiava num dos cantos da sua mala Louis Vuitton de rodinha.

– Lenço de papel… era para você colocar lenço de papel aí. Onde ele está…

Começando a procurar, encontrou as folhas cor-de-rosa clarinhas com suas iniciais estampadas numa gaveta ampla dentro de seu guarda-roupa. De volta para onde estava arrumando a mala, lambeu o dedo e tirou uma das folhas, sendo atingida pela fragrância suave de Coco, porque a empregada borrifava cada um dos lenços individualmente assim que eram entregues na casa. Colocando o papel delicado ao redor do bolinho de seda, cobriu tudo com uma saia McQueen.

Repetindo o processo até ter quatro conjuntos completos ali, inclinou-se para trás para dar uma olhada no trabalho. Horrível. Nada parecido com o que Blanche fazia para ela, mas não pretendia esperar até que a mulher chegasse para o seu turno ao meio-dia.

Gin estava fechando a mala quando percebeu que não tinha separado roupas íntimas, sapatos e tampouco os artigos de higiene.

Pegou outra mala LV e dispensou o lenço de papel.

De toda forma, o que importava? Acabaria simplesmente comprando tudo que precisasse.

Quando terminou, levantou o telefone ao lado da cama e ligou para o escritório de Rosalinda, sem acreditar quando a secretária eletrônica pediu que deixasse um recado.

– Onde diabos essa mulher foi…

Uma olhada rápida para o relógio Cartier sobre a mesa e ela descobriu que ainda eram 8h30. Deus, há quanto tempo não se levantava cedo assim?

Arranjos para o uso dos jatinhos também podiam ser feitos por meio da assistente executiva do pai, e aquele robô estava sempre junto à sua escrivaninha. Mas Gin só queria que ele soubesse que ela estava partindo quando estivesse na metade do caminho até a Califórnia e, sem dúvida, seu buldogue de saia atacaria o telefone para avisá-lo assim que ela a acionasse.

Deus, aquela expressão no rosto dele na noite anterior fez seu sangue gelar. Nunca o vira tão furioso.

Mas, em retrospecto, ela era mesmo filha do seu pai: assim como no jogo do ódio, dois podiam jogar aquele novo jogo.

Dez minutos mais tarde, Gin puxou as alças da bagagem e as rolou até o corredor, tropeçando sobre as malditas malas. Com a bolsa de monograma combinando com a bagagem batendo na lateral do corpo, empinou um dos saltos Louboutin para fechar a porta, e praguejou contra a falta de um carregador.

Mas também não confiava no mordomo.

A bem da verdade, não confiava em ninguém naquela casa.

Antes de tomar o elevador até o porão, foi até o quarto de Amelia e abriu a porta.

Pela primeira vez, percebeu a decoração.

A cama de dossel branca e rosa era queen size, apesar de a filha pesar pouco mais que um travesseiro, e não havia nenhum pôster da Taylor Swift ou do One Direction nas paredes. A penteadeira era francesa e antiga, o banheiro acoplado era de mármore e latão, e tinha mais de sessenta anos, e o candelabro Baccarat no meio do quarto era suspenso por uma corrente coberta por seda, e debaixo dele havia um medalhão de ouro feito à mão.

Parecia mais o quarto de uma senhora de cinquenta anos do que de alguém de quinze.

Dezesseis, a partir da noite anterior, Gin se lembrou.

Andando na ponta dos pés sobre o tapete bordado à mão, ela apanhou seu retrato predileto da menininha de cabelos negros, que agora já não eram mais tão escuros já que ela estava fazendo luzes a cada seis semanas, e tampouco era tão pequenina, pois já estava no segundo ano em Hotchkiss.

Só de pensar na filha, a ideia de sair de Easterly lhe parecia cada vez mais acertada. Ela tinha duas amigas esperando por ela em Montecito, e ficaria lá até que o pai entendesse que podia muito bem administrar uma empresa bilionária, mas que não mandava nela. E depois disso? Voltaria para lá com certa regularidade, só para ele ver que cometera um erro.

De novo no corredor, refreou os xingamentos ao se arrastar até o elevador e entrar. Quebrou uma unha ao apertar repetidamente o botão para fechar a porta, e quase quebrou um dos saltos quando pisou no chão da adega, puxando as malas para fora.

Não fazia a mínima ideia de onde ir. Onde ficava a garagem. Como se orientar no andar subterrâneo.

Levou quase vinte minutos para encontrar o túnel que levava até a frota da família, e quando emergiu na garagem para dez carros, sentia-se como se tivesse não só acabado de correr uma maratona, mas vencido.

Só que estava sem as chaves dos carros. Nada no Bentley. Nem do Drophead. E não pegaria nem o Porsche GTS, nem a Ferrari, tampouco o Jaguar antigo que se parecia com o de Samuel T., porque todos eles tinham câmbio manual e ela não sabia dirigir modelos assim. O mesmo acontecia com os 911 e o Spyker.

E os sedãs Mercedes não eram bons o bastante para ela.

– Maldição! – Quando bateu o pé no chão, uma das malas de rodinha caiu como se tivesse desmaiado. – Onde estão as chaves?

Abandonando a bagagem, marchou até o escritório. Trancado. Assim como as portas da garagem.

Aquilo era totalmente inaceitável.

Pegou o celular, estava prestes a telefonar – bem, não sabia exatamente para quem, mas para alguém –, quando um armarinho pendurado na parede chamou sua atenção. Indo na direção da portinha de metal de 0,3 por 0,9 metros, deu um puxão na alça, e não se surpreendeu quando a porta não cedeu.

A boa notícia? Ela estava com muita vontade de bater em alguma coisa.

Olhando ao redor, não viu nada fora do lugar. Desde lonas para cobrir os carros, até pneus sobressalentes e material de limpeza, tudo estava organizado numa parede com precisão militar em prateleiras, ganchos, e caixas tampadas.

Exceto pelo pé de cabra, que encontrou encostado numa pilha de panos limpos com o brasão da família bordado.

Gin sorriu ao caminhar do alto dos seus saltos, erguendo a peça de metal. De volta ao armário, arqueou o objeto acima da cabeça e bateu na caixa onde estavam as chaves como se aquilo fosse a cabeça do pai. Bateu, bateu, bateu e bateu, o som metálico agudo ecoando em seus ouvidos.

Apesar de já estar quase sem unhas quando concluiu a tarefa, a porta estava pendurada no que restava das suas dobradiças.

O Bentley, decidiu.

Não, o Rolls. Custava mais caro.

Levando a bagagem até o Phantom Drophead, abriu a porta que se abria ao contrário, enfiou as malas no banco de trás e se pôs atrás do volante. Afundou o sapato de salto no freio, apertou o botão da ignição e o motor rugiu a vida com um rosnado latente.

Esticando a mão na direção do espelho retrovisor, apertou todos os botões até a porta da frente se erguer.

E partiu.

A raiva dentro dela fez com que quisesse passar pelo caminho frontal só para desfilar diante dos cômodos particulares da família; mas era mais importante sair da propriedade sem que ninguém soubesse, por isso contentou-se em levantar o dedo médio para Easterly pelo espelho retrovisor enquanto usava o caminho dos empregados.

Quando chegou à estrada River, virou à esquerda, verificou as horas e pegou o telefone. Rosalinda já deveria ter chegado àquela altura, e ela poderia finalmente cuidar dos arranjos para o jatinho, o que não deveria ser um problema. Gin pedia o avião pelo menos uma vez por semana.

Caixa postal. De novo.

O maldito Brunch. Esquecera-se dele. Todos os funcionários estavam distraídos.

Mas ela tinha necessidades.

Gin ligou para outro número, um que tinha apenas um dígito diferente do de Rosalinda. Ao terceiro toque, ela estava quase desistindo quando ouviu o inconfundível sotaque britânico daquele mordomo.

– Senhor Harris falando, como posso ajudar?

– Preciso de um avião e não consigo falar com a Rosalinda. Você vai ter que providenciá-lo para mim. Decolando neste instante para o aeroporto de Los Angeles.

O mordomo limpou a garganta.

– Senhorita Baldwine, perdoe-me…

– Não venha me dizer que está ocupado demais. Você pode ligar diretamente para o piloto, já fez isso antes, e depois pode voltar para qualquer uma das suas incumbências idiotas do Brunch…

– Lamento, senhorita Baldwine, mas não haverá um avião disponível para a senhorita.

– Você só pode estar brincando. – Sem dúvida era por causa daqueles convidados corporativos que estavam chegando para o Derby. Mas ela era da família, pelo amor de Deus. – Tudo bem, apenas atrase alguém e eu…

– Não será possível.

– Eu sou prioridade! – O Phantom ganhou velocidade quando ela apertou o acelerador, pelo menos até quase acertar o carro na frente dela. – Isso é inaceitável. Ligue para aquela torre de controle, ou para aquela lista de pilotos ou… para quem quer que me coloque num maldito avião para a costa oeste!

Houve uma longa pausa.

– Sinto muito, senhorita Baldwine, mas não poderei mais fazer esse tipo de serviço para a senhorita.

Um alerta gélido apertou a sua nuca.

– Que tal mais tarde, ainda esta manhã?

– Não será possível.

– À tarde.

– Lamento, senhorita Baldwine.

– O que o meu pai lhe disse?

– Não cabe a mim comentar o que…

– Que porra que ele te disse? – ela berrou ao telefone.

A respiração que o homem soltou era o mais próximo que ele chegaria a uma imprecação em voz alta.

– Esta manhã, recebi um memorando dirigido à organizadora e a mim, indicando que os recursos da família não estariam mais disponíveis para a senhorita.

– Recursos…?

– O que inclui dinheiro vivo, contas bancárias, viagens e acomodações em hotéis, e acesso às demais propriedades dos Bradford ao redor do mundo.

Nessa hora o pé dela escorregou do acelerador, e quando o carro atrás dela buzinou, ela foi para o acostamento.

– Gostaria de poder fazer algo – ele disse num tom neutro que indicava que isso não era verdade. – Mas, como já disse, estou impossibilitado de ajudá-la.

– O que devo fazer?

– Talvez voltar para casa seja o melhor. Acabei de vê-la saindo no Rolls-Royce.

– Não vou me casar com Richard Pford – ela disse e depois encerrou a ligação.

Quando olhou pelo retrovisor, os arranha-céus denteados do centro da cidade pareceram assustadores pela primeira vez em sua vida. Nunca antes se impressionara com a cidade de Charlemont, tendo dado a volta ao mundo diversas vezes. Mas todas essas viagens aconteceram enquanto ela tinha recursos ilimitados ao seu dispor.

Com a mão trêmula, pegou a carteira e levantou o fecho. Ela tinha cinco notas de cem dólares e algumas de vinte… e sete cartões de crédito, inclusive um Amex Centurion. Estava sem a habilitação porque sempre andava com motorista particular. Também não tinha o cartão do seguro de saúde porque fazia uso dos serviços dos médicos afiliados à Cia. Bourbon Bradford. Não estava nem com o passaporte, apesar de não ter planejado sair do país.

Duzentos metros mais adiante, havia um posto de gasolina, e ela voltou a acionar o Phantom, seguindo o fluxo do trânsito. Quando chegou ao símbolo da Shell, cortou caminho diante de um caminhão que vinha na direção oposta e parou junto a algumas bombas de abastecimento.

Quando saiu, não foi para abastecer o carro. O tanque estava cheio.

Sacou um cartão Visa qualquer e colocou-o no leitor. Em seguida, apertou as teclas que compunham a sua senha. Esperou para ver se a transação hipotética seria aceita.

Não aprovado.

Tentou o Amex e recebeu a mesma resposta da máquina. Quando outros dois Visas não funcionaram, ela desistiu.

Ele bloqueara os seus cartões.

De volta ao volante, tudo ficou embaçado. Tinha investimentos por toda parte, dinheiro que lhe pertencia… mas só dali a dois anos, quando completasse trinta e cinco, e nenhum dia antes disso – algo que descobrira quando num impulso tentara comprar uma casa em Londres no ano passado e tivera esse desejo negado pelo pai. Pouco importou o quanto tivesse gritado com a empresa do seu fundo, eles se recusaram a lhe entregar o dinheiro, declarando que ela não tinha permissão para acessá-lo até que atingisse a idade estipulada.

Só havia um lugar para onde poderia ir.

Odiava implorar, mas isso era muito melhor que se casar, ou admitir uma derrota ao pai.

Colocando o câmbio mais uma vez no drive, enfiou-se no trânsito e tomou a direção da qual viera. No entanto, não retornaria a Easterly. Iria para…

De repente, o carro morreu. Tudo parou: o motor, o ar-condicionado, as luzes do painel. As únicas coisas que funcionavam eram o volante e o freio.

Enquanto pressionava o botão da ignição, viu suas ações frenéticas e impotentes de longe, notando, sem dar muita atenção, como suas unhas estavam arruinadas, as pontas cortadas, o esmalte vermelho-cereja lascado. Tendo que admitir que o motor não voltaria a funcionar, foi para o acostamento da estrada para não acabar numa colisão e…

Sirenes soaram ao longe e ela olhou pelo espelho retrovisor.

Uma viatura da Polícia Metropolitana de Charlemont encostou atrás dela com as luzes acionadas. E depois uma segunda unidade se pôs à frente até que o Phantom ficasse bloqueado.

Os dois policiais se aproximaram dela com as mãos sobre as pistolas presas ao coldre, como se não tivessem certeza se precisariam das armas.

– Saia do veículo, senhora – o mais alto deles disse com voz autoritária.

– Este carro é meu! – ela exclamou ao abaixar o vidro. – Vocês não têm o direito de…

– Esse veículo pertence a William Baldwine, e a senhora não tem autorização para usá-lo.

– Ah, meu Deus… – ela sussurrou.

– Saia do carro, senhora…

Merda, estava sem a habilitação.

– Sou filha dele!

– Senhora, estou ordenando que destrave as portas e saia do veículo. Se não fizer isso, vou autuá-la por resistir à prisão. Além de dirigir um veículo roubado.

 

DEZESSEIS

– Claro que eu estava à sua espera. – Assim que Lane falou, levantou as mãos, num gesto de quem pedia para aguardar. – Mas apenas como amigo. Queria me certificar de que chegou bem ao trabalho.

Maldição, ela estava linda. Mais uma vez, com a camisa polo preta do uniforme de Easterly e shorts cáqui, o cabelo puxado para trás, preso num rabo de cavalo… De alguma forma, parecia exoticamente bela.

Pensando bem, já fazia mais de doze horas que não a via.

Uma vida inteira, de fato.

Enquanto ela revirava os olhos, ele a flagrou tentando esconder um sorriso.

– Já fiz esse trajeto algumas vezes, sabe – ela disse.

– E como foi esta manhã?

Houve uma pausa, e então algo mágico aconteceu. Lizzie explodiu numa gargalhada.

Cobrindo a boca, ela meneou a cabeça.

– Desculpe, mas você está horrível. O seu cabelo está todo… – ela mexeu a mão ao redor da cabeça dele – … está uma bagunça, seus olhos mal conseguem ficar abertos. Sabia que está balançando para a frente e para trás apesar de estar sentado?

Ele deu um sorriso largo.

– Você precisava ver o outro cara.

– Ele era durão?

– Agora, em vez de usar capuz ele usa brinco. – Lane levantou um braço e flexionou o bíceps. – Homem pra valer este aqui…

Ouviram um par de passadas vindo na direção deles, então Lane espiou por cima do ombro dela e murmurou alguma coisa bem baixinho.

Era o mordomo inglês seguindo direto para ela, só que parou quando viu Lane.

– Com licença, Lane – Lizzie disse baixinho. – Tenho um assunto de trabalho para resolver agora.

– O que foi? – ele perguntou ao mordomo.

O inglês sorriu, parecendo um manequim de loja.

– Nada com que tenha que se preocupar, senhor Baldwine. Senhorita King, poderia fazer a gentileza de vir até o meu escritório quando tiver terminado de…

– O que houve? – Lane exigiu saber.

– Apenas um mal-entendido – Lizzie murmurou.

– Sobre o quê?!

Lizzie se concentrou no senhor Mais Sagrado Que o Senhor.

– O pedido das taças de champanhe alugadas foi reduzido, e ele acha que eu telefonei para Mackenzie para mudar a quantidade, mas não fiz isso. Ficarei feliz em poder organizar tudo quando os copos e os pratos chegarem, mas não sou responsável por coordenar nada que se refira aos pedidos. As tendas e as mesas são de minha responsabilidade, e elas estão exatamente onde deveriam estar.

Os olhos do senhor Harris se estreitaram.

– Esta conversa deve ser conduzida em meu…

– Então, não tem nada a ver com ela. – Lane sorriu para o mordomo com frieza. – E seu assunto aqui terminou.

Lizzie pôs uma mão no braço dele, e o contato foi uma surpresa tamanha, que de fato o calou.

– Está tudo bem. Repito, ficarei feliz em fazer o que puder para ajudar. Senhor Harris, quer que eu fale com Mackenzie e tente encontrar um modo de solucionar o caso?

O mordomo olhou de um a outro.

– Sei o que encomendei. O que não sei explicar é como apenas metade disso foi entregue.

– Veja bem, não quero lhe ensinar o seu trabalho – Lizzie disse. – Mas erros da parte deles já aconteceram antes. O que precisamos fazer é descobrir o que mais está faltando e ligar para eles para alertá-los. Isso não deve ser um problema. O senhor fez o pedido pessoalmente ou foi por intermédio de Rosalinda?

– Usei os serviços da senhora Freeland, e lhe entreguei os números corretos.

Lizzie franziu o cenho.

– Ela sabe o quanto pedir. Fez isso por anos a fio.

– Ela me garantiu que tomaria conta da questão. Deduzi que outra pessoa com acesso à conta tivesse reduzido a quantidade.

– Vá procurá-la, e eu encontrarei Greta para contar tudo o que foi entregue. Vamos resolver. Pelo menos, descobrimos hoje e não amanhã de manhã.

Houve um instante de constrangimento no qual o mordomo nada disse, e Lane se perguntou o quanto daquele plano sensato ele teria que enfiar goela abaixo do ditadorzinho.

– Muito bem – disse o mordomo. – A sua assistência será muito bem-vinda.

Enquanto o senhor Harris se afastava, Lizzie inspirou fundo.

– E assim entramos na contagem regressiva das vinte e quatro horas.

– Ninguém da equipe pode fazer essa contagem? Esse problema não é seu.

– Está tudo bem. Pelo menos se Greta e eu fizermos isso, saberei que está tudo certo. Além disso, todos em Easterly estão com trabalho até as orelhas, e os chefs auxiliares não poderão dispensar…

O telefone de Lane começou a tocar, e ele o tirou do bolso para silenciar o barulho.

– Quem diabos pode ser? – perguntou, quando viu o código de área local.

Ela riu de novo.

– Você pode descobrir se… prepare-se… atender!

– Está pegando no meu pé?

– Alguém tem que fazer isso.

Lane sorriu tão amplamente que suas bochechas começaram a doer.

– Ok, vamos lançar os dados e ver quem é. – Apertou o botão verde e disse em sua voz mais arrastada: – Vocccccêêêê ligoooouu paaaara…

– Lane! Ah, meu Deus, Lane, preciso da sua ajuda.

– Gin? – Ele se endireitou na espreguiçadeira. – Gin, você está bem?

– Estou no centro da cidade, na cadeia de Washington County. Você tem que vir aqui pagar a minha fiança…

– Que diabos? O que você…

– Preciso de um advogado…

– Ok, ok, ok, devagar. – Ele se pôs de pé. – Você está falando rápido demais e não estou entendendo.

Sua irmã fez uma pausa e depois disse quatro frases completas que o deixaram sem chão.

– Está bem – disse ele com seriedade. – Estou indo para aí agora mesmo. Sim. Certo. Ok. Fique aí.

Quando desligou, só o que ele conseguiu fazer foi procurar o rosto de Lizzie.

– O que foi? – ela perguntou.

– O meu pai mandou prenderem Gin. Tenho que, literalmente, ir até a cadeia e pagar a fiança dela.

Lizzie cobriu a boca com a mão num sinal de choque.

– Posso fazer alguma coisa?

– Não. Vou lá cuidar dela. Mas obrigado.

Ele precisou de todo o seu autocontrole para não se inclinar e beijá-la como costumava fazer. Em vez disso, contentou-se em esticar a mão e afagá-la no rosto, saindo antes que ela pudesse dizer que “amigos não fazem isso”.

Inferno, o que o seu pai estaria aprontando agora?

Na época em que fora fumante, Edward frequentemente acordava de manhã já esticando o braço para pegar o maço de Dunhill Reds antes de estar plenamente consciente de sequer ter rolado de lado.

Hoje em dia ele fazia o mesmo, só que para pegar o frasco de Advil.

Colocando quatro cápsulas de gel na palma trêmula, levou-as à boca e as engoliu com o que restava da vodca que levara para a cama. Fazendo uma careta enquanto essa sua versão de desjejum descia até o estômago, deitou-se de novo sobre o travesseiro.

Tinha parado de fumar durante a recuperação. Na verdade, o sequestro fora o primeiro passo para que abandonasse o vício.

Ironicamente, o fato de quase ter morrido foi o responsável por ajudá-lo a ter uma vida mais longa.

Saudou com a garrafa no ar.

– Gracias, muchachos.18

Antes que seu cérebro entrasse no looping infindável da sequência horrenda do Dia Em Que Tudo Aconteceu, virou as pernas para o chão e se sentou. Não olhou para a coxa e para a panturrilha direitas. Primeiro porque as cicatrizes tortas da sua pele à la Frankenstein estavam gravadas em sua mente. Segundo porque ele já não dormia mais nu, por isso elas não estavam aparecendo.

A bengala era necessária para que ele se levantasse, e seu equilíbrio não estava muito bom não só por causa dos ferimentos, mas pela falta de sono e pelo fato de ainda estar meio embriagado. Mancando até o banheiro, deixou as luzes apagadas, de modo que o espelho não foi um problema, e usou o vaso, lavou as mãos, o rosto e escovou os dentes.

A confirmação de que Deus ainda o odiava veio quando ele saiu do chalé uns dez minutos depois e foi ofuscado pela luz brilhante do sol e pela dor de cabeça causada pela ressaca.

Que horas são?, perguntou-se.

Já estava na metade do caminho até o Estábulo B quando percebeu que levara a garrafa junto. Como se fosse o seu brinquedinho predileto.

Revirando os olhos, seguiu em frente. A senhorita Nada de Praguejar Perto de Mim poderia muito bem se acostumar com ele e sua bebida; não havia motivos para apresentar-lhe uma ilusão diurna de abstinência que só a perturbaria no futuro. Se ela não conseguisse lidar com esse seu hábito, ela podia muito bem ir embora no primeiro dia.

O som de pneus cantando fez sua cabeça girar para a direita, e na fração de segundo seguinte, Shelby apareceu na ponta oposta do estábulo, o corpo encurvado na cintura ao empurrar uma tremenda carga de esterco de cavalo dentro de uma velha carreta enferrujada.

Pelo visto, Moe já a colocara para trabalhar.

– Ei – ele a chamou.

Sem diminuir o passo, ela acenou por sobre o ombro e seguiu em frente com o esterco para trás da construção mais próxima.

Enquanto a observava, invejou o corpo forte dela, talvez notando, sem nem se dar conta, que o sol fazia com que as mechas loiras dela parecessem quase brancas. Ela estava usando uma camiseta azul-marinho, um par de jeans escuros e as mesmas botas resistentes da noite anterior. Depois de desaparecer atrás da curva do prédio, reapareceu duas vezes mais rápido do que deveria, considerando a quantidade de esterco que teve que descarregar.

Portanto, ela também era eficiente.

Ao se aproximar, seus olhos estavam claros e alertas, o rosto corado pelo esforço.

– Quase terminando. Depois vou pro C.

– Jesus, Moe fez com que você… desculpe – disse antes que ela o corrigisse. – Maldição, Moe já te colocou pra trabalhar? E não venha me dizer que não posso usar “maldição”. Deixo de mencionar Deus e Jesus Cristo, mas só vou até aí.

Ela deixou os pés do carrinho encostarem na grama aparada.

– Suco de laranja.

– O que disse?

A filha de Jeb Landis acenou para a garrafa.

– Pode ficar com “maldição”, mas eu gostaria de ver você com outra coisa que…

– Você sempre julgou tanto assim?

– … não fosse vodca tão cedo assim. E não estou te julgando.

– Então por que quer mudar os hábitos de um desconhecido?

– Você não é um desconhecido. – Enxugou a testa com o antebraço. – Não são nem nove da manhã. Fico me perguntando por que você precisa beber tão cedo assim.

– Eu estava meio desidratado.

– Não tem água encanada na sua casa? Ontem tinha.

Ele balançou a garrafa.

– Isto aqui está servindo bastante bem. Pense que é a minha versão da vitamina C.

Ela resmungou alguma coisa ao se abaixar para pegar as alças.

– O que disse? – ele exigiu saber.

– Você me ouviu.

– Não, não ouvi, não. – O que não era exatamente a verdade.

Shelby só deu de ombros e seguiu em frente, aquele seu corpo se movendo debaixo das roupas, executando a tarefa sem nenhum esforço aparente.

E foi nessa hora que algo lhe ocorreu.

– Shelby?

Ela parou e olhou por cima do ombro.

– Pois não?

– Você disse que cuidou de todos os cavalos.

– Cuidei.

– Nos Estábulos A e B.

– Isso mesmo.

Ele se apressou e a agarrou pelo braço.

– Eu te disse. Uma regra. Não chegue perto daquele garanhão.

– A baia não ia se limpar sozinha…

A mão dele se apertou por vontade própria.

– Ele matou um ajudante de estábulo no ano passado. Foi pisoteado até morrer ali. Nunca mais faça isso.

Aqueles olhos azuis dela ficaram arregalados.

– Ele se portou bem comigo.

– Só eu chego perto dele. Estamos entendidos? Faça isso mais uma vez e eu faço as suas malas – ele disse firmemente – e te mando de volta para o lugar de onde veio.

– Sim, senhor.

Ele se afastou e tentou não cambalear.

– Muito bem, então.

– Está certo.

Ela soprou o cabelo para longe do rosto e voltou a andar, com os ombros tensos.

Tirando a tampa da vodca, Edward deu um trago longo e, provavelmente, deveria ter parado quando percebeu que a bebida já não ardia mais.

Mas essa era outra coisa sobre a qual não queria pensar.

Assim como não queria pensar no que poderia acontecer com a filha de Jeb Landis enquanto ela estivesse sob a sua proteção.

Maldição.


“Obrigado, meninos.”

 

DEZESSETE

A cadeia e o Tribunal do Condado de Washington formavam um complexo de edifícios modernos que ocupava dois quarteirões inteiros no centro da cidade, cujas instalações se comunicavam por meio de passarelas que se estendiam acima do trânsito da rua logo abaixo. Havia certa quantidade de entradas e, enquanto Lane encostava o Porsche, inúmeras pessoas entravam e saíam; eram homens e mulheres em ternos subindo e descendo os degraus de mármore, policiais dentro de suas viaturas, delegados estacionando suas SUVS e saindo de vagas reservadas, pessoas em roupas desgastadas fumando pelos cantos.

O seu 911 Turbo emitiu uma tossida baixa quando ele desacelerou e se dirigiu para os prédios imponentes. Não havia nenhum layout lógico que ele conseguisse distinguir. Tampouco um endereço.

Como se, caso tivesse que perguntar para onde deveria ir, ficaria com a sensação de que aquele não era o seu lugar…

Até que, de repente, um afro-americano uniformizado surgiu bem diante do seu carro.

– Droga! – Lane afundou o pé no freio. – Mas que diabos! Mitch?

O delegado Mitchel Ramsay não respondeu. Apenas indicou uma vaga livre bem atrás dele.

Lane estacionou com uma baliza perfeita, ciente de que o delegado estava bem ao lado do seu para-choque, os braços grossos como uma corda náutica cruzados sobre seu peito de jogador de futebol americano. Seus olhos negros estavam escondidos atrás de óculos Ray Ban, e a cabeça raspada fazia com que seu pescoço e seus ombros parecessem ainda maiores do que eram de fato.

Lane saiu do carro esportivo.

– Ei, sabe onde a minha irmã…

– Pode deixar.

Os dois bateram palmas e deram um abraço forte. Enquanto permaneciam peito contra peito, Lane foi transportado para quase dois anos atrás, para a pista de pouso particular a oeste da cidade. Para a noite em que Edward finalmente retornava do cativeiro.

Mitch o trouxera de volta aos Estados Unidos. De volta para a família.

Só Deus sabia como. Ninguém perguntara os detalhes, e Lane sempre ficou com a impressão de que o antigo soldado do Exército não teria partilhado os “como” e os “quem”, de todo modo.

– Ela não está muito bem – comentou Mitch.

– Não me surpreende.

Lane seguiu o delegado, subindo os cinquenta degraus até uma das portas giratórias. Quando terminaram de subir, Mitch desviou para uma porta demarcada com SOMENTE POLICIAIS e depois os fez passar pela segurança, de onde outros policiais acenaram em sinal de respeito.

– Agi o mais rápido que pude assim que vi o nome – disse Mitch enquanto suas passadas se uniam a todas as outras, ecoando no vestíbulo principal, com pé direito alto. – Ela foi presa por furto de veículo, por dirigir sem habilitação, por não apresentar o seguro…

– Como diabos isso foi acontecer?

– … e por resistir à prisão. Já isolei o incidente, mas não vou conseguir mantê-lo fora dos registros policiais indefinidamente.

– Espere. – Lane fez o homem parar. – Minha irmã roubou um carro?

– Um Rolls-Royce. Registrado no nome da Cia. Bourbon Bradford.

– Está se referindo… ao nosso Rolls. O Phantom Drophead?

– O seu pai telefonou pessoalmente para a Polícia Metropolitana e pediu que fossem atrás dela, alegando que ela não tinha permissão para dirigir o veículo.

– Você não pode estar falando sério. – Lane enfiou a mão nos cabelos. – Quero dizer, é claro que ele pode fazer isso. Já fez coisa pior.

– Você chamou um advogado?

– Samuel T. deve chegar aqui em…

– Lane!

Samuel T. avançou em meio a um grupo de pessoas, destacando-se por inúmeros motivos. Primeiro, seu terno de risca de giz azul e branco fazia com que ele parecesse pertencer a uma varanda da casa grande de uma fazenda, sorvendo um julepo de menta com um par de cães de caça aos seus pés. Segundo, ele era belo demais para estar entre os mortais.

– Obrigado por vir tão rápido – Lane disse ao apertarem as mãos. – Você conhece Mitch.

– Certamente. Delegado.

– Senhor Lodge.

Encerrando os cumprimentos, os três seguiram para as escadas rolantes que levavam ao segundo andar.

– Ela está numa cela. – Mitch os conduziu por uma das passarelas. – Mas removi qualquer tipo de retardo para a audiência da fiança. Assim que estiver pronto, senhor Lodge…

– Pode me chamar de Samuel ou de Sam.

– Samuel. – Mitch assentiu. – Assim que estiver pronto. Farei com que ela se apresente diante do juiz McQuaid. Já conversei com o promotor público. As mãos dele estão atadas, visto que o senhor Baldwine está pressionando. A única coisa que posso fazer é apressar, apressar, apressar.

Lane cerrou os molares. Gin dava trabalho e, evidentemente, o pai já estava farto disso, mas aquilo tudo era exposição demais.

– Vou ficar te devendo essa, Mitch.

– Não se preocupe.

O delegado os fez passar por vários pontos de controle de segurança, até adentrarem o complexo. Embora Lane tivesse aprontado sua porção de infrações quando era mais jovem, todas as suas transgressões foram discretamente “resolvidas”. Portanto, aquela era a primeira vez que ia para a cadeia, e não poderia dizer que estava com pressa para voltar lá algum dia.

A sala de espera tinha paredes creme. Piso creme. Cadeira plástica laranja, amarela e vermelha. O cheiro no ar era de suor e de roupas sujas, e de desinfetante em spray.

Graças a Mitch, passaram ao largo do balcão de registros com as divisórias de vidro à prova de balas e da fila de policiais com a pescaria do dia. Isso sim era um chamado para a realidade da outra parte da população. Homens sujos e rapazes estranhos… moças quase despidas… mulheres mais velhas com aspecto cansado… Todos eles de pé ou cambaleando, acompanhados dos policiais que os prenderam, seus rostos revelando as marcas da vida dura que levavam.

– Por aqui, delegado Ramsey – alguém o chamou ao lado de uma porta reforçada.

Depois de passar por mais um ponto de segurança, cruzaram com diversas salas de reunião com luzes vermelhas acesas sobre as portas e grades diante das janelas protegidas por telas.

– Se esperarem aqui – o policial disse, na frente de uma das salas –, eu a trago já.

– Obrigado, Stu. – Mitch abriu a porta e se colocou de lado. – Fico esperando do lado de fora.

– Muito obrigado. – Lane bateu no ombro do homem. – E, provavelmente, ainda vamos precisar da sua ajuda.

– Estou aqui para o que precisarem.

Samuel T. parou ao lado do delegado.

– Alguém já falou com a imprensa?

– Nós não – Mitch respondeu. – E quero que continue assim.

– A minha irmã não tem a melhor das reputações. – Lane meneou a cabeça. – Quanto menos pessoas souberem, melhor.

Mitch os deixou ali na sala. Embora houvesse quatro cadeiras presas ao chão junto a uma mesa de aço também presa, Lane não conseguiu ficar sentado. Samuel T., por sua vez, pôs a velha maleta ao seu lado e cruzou as mãos.

O advogado balançou a cabeça.

– Ela vai ficar louca quando souber que você me chamou.

– E quem mais eu poderia chamar? – Lane esfregou os olhos doloridos. – E depois disso, você vai me ajudar com o meu divórcio, certo?

– Apenas mais uma manhã atarefada com os Bradford…

Pelo menos deixaram que ela permanecesse com as próprias roupas, Gin pensou, enquanto era conduzida por outro corredor de concreto pintado com a vichyssoise do mês.

Ficara aterrorizada com a perspectiva de se despir diante de uma guarda feminina de peito cabeludo para depois ser violada por uma mão com uma luva antes de ser enfiada dentro de um macacão laranja do tamanho de uma tenda de circo. Quando isso não aconteceu, ficara obsessiva com a possibilidade de ser trancafiada numa cela horrorosa e suja com um punhado de prostitutas viciadas em drogas tossindo o vírus da AIDS em cima dela.

Em vez disso, fora colocada numa cela sozinha. Uma cela fria, com apenas um banco e um vaso sanitário de aço sem assento nem papel higiênico.

Não que um dia ela fosse fazer uso daquilo.

Seus brincos de diamante foram retirados, assim como o relógio Chanel, juntamente com as malas LV, o celular, aquelas notas de quinhentos dólares e os cartões de crédito inúteis que tinha na carteira.

Um telefonema. Foi só o que lhe concederam, bem como nos filmes.

– Por aqui – disse o guarda, parando diante de um homem afro-americano uniformizado, e em seguida abrindo uma porta pesada.

– Lane…! – Só que ela parou de correr na direção do irmão assim que viu quem estava sentado à mesa. – Ah, Deus. Ele não.

Lane a abraçou com força depois que a porta se fechou.

– Você precisa de um advogado.

– Estou livre – Samuel T. disse com a fala arrastada. – Relativamente livre.

– Não vou falar na frente dele. – Ela cruzou os braços diante do peito. – Nenhuma palavra.

– Gin…

Samuel T. interrompeu o irmão dela.

– Eu te disse. Acho melhor pegar as minhas coisas e ir embora.

– Sentem-se – Lane ordenou. – Os dois.

Houve um instante de silêncio, que Gin entendeu como sinal de que Samuel T. estava tão surpreso pelo tom de comando quanto ela. Lane sempre fora, dentre os quatro irmãos Baldwine, aquele que seguia conforme a maré. Agora, ele parecia Edward.

Ou como Edward costumava ser.

Depois que se sentou desajeitada numa cadeira tão dura e fria quanto um bloco de gelo, Lane apontou um dedo na direção dela.

– O que você aprontou?

– Como é? – ela disse, se retraindo. – Por que é culpa minha? Por que acha que fui eu quem…

– Porque normalmente é o que acontece, Gin. – Ele cortou o ar com a mão quando ela começou a discutir. – Nem comece, eu te conheço há tempo demais. O que fez desta vez para irritá-lo? Vou tirar você daqui, mas tenho que saber com o que estou lidando.

Enquanto Gin encarava o irmão, quis mais do que nunca mandá-lo se foder. Mas só conseguia pensar na imagem dos seus cartões sendo negados no mostrador digital da bomba do posto de gasolina. Quem mais poderia ajudá-la?

Olhou para Samuel T. Ele não a encarava, e seu rosto estava impassível, mas a desaprovação altiva que ele emanava era tão evidente quanto sua colônia no ar.

– E então? – Lane inquiriu.

Pesando as opções, percebeu que estava completamente desconfortável com essa coisa de enfrentar situações difíceis. Com dinheiro suficiente e uma amnésia conveniente, não existia nada que ela não pudesse evitar, quer isso envolvesse suborno ou teimosia.

Infelizmente, as infindáveis opções estavam fundamentadas num estilo de vida que apenas parecia ser dela. Mas, na verdade, era de outra pessoa. Só não sabia disso até aquela manhã.

Pigarreou.

– Samuel T., você pode… me dar um momento a sós com o meu irmão? – Ela avançou a mão sobre a mesa. – Não estou dizendo que não pode ser o meu advogado, só preciso de um pouco de privacidade com ele. Por favor.

Samuel T. curvou uma sobrancelha.

– É a primeira vez que a ouço dizer essas palavras. Pelo menos estando vestida.

– Cuidado, Lodge – Lane rosnou. – Ela é minha irmã.

O homem se recompôs, como se tivesse se esquecido de que não estava sozinho com ela.

– Perdão. Isso foi inapropriado.

– Não vá para longe. – Lane começou a andar pela sala, puxando os cabelos negros e curtos com a mão. – Pelo amor de Deus, vamos precisar de uma boa representação.

Enquanto seu advogado, amante e pai da sua filha saía – ainda que ele desconhecesse essa última identidade –, Gin mirou os sapatos de salto de seda. A ponta do esquerdo tinha se sujado quando ela foi colocada no banco de trás da viatura.

Houve um clique, indicando que a porta tinha sido fechada atrás de Samuel T. Ela não precisou ser encorajada a falar.

– Ele quer que eu me case com Richard Pford.

– Richard… Desculpe, o que você disse?

– Você ouviu muito bem. Papai vai cortar todos os meus recursos a menos que eu me case com aquele homem. Ele disse que é por causa daquela maldita empresa de distribuição que nos dará melhores taxas ou algo assim.

– Ele ficou louco? – Lane inspirou.

– Você quis saber por que peguei o carro. É por isso, e é por isso que papai chamou a polícia. – Levantou o olhar para o irmão. – Não vou me casar com Richard. Não importa o que o nosso pai faça comigo. É com isso que você vai lidar.

Levantando-se, ela foi até a porta e a abriu.

– Pode voltar.

– Quanta honra – murmurou Samuel T.

Enquanto seu advogado voltava a se acomodar, ela disse: – Então, o que faço para sair daqui?

– Você paga a fiança – Samuel T. respondeu. – E depois tentamos fazer com que as acusações sejam retiradas. Você pode fazer um apelo ou seu pai pode perdoar o que quer que você tenha feito.

– Qual seria o montante da fiança? – Lane perguntou.

– Sem antecedentes, isso vai a favor dela, mas o risco de fugir não. Acho que no máximo cinquenta mil. McQuaid é um juiz amigável para pessoas como nós, por isso o valor não será muito alto.

50 mil dólares. De fato, a quantia nunca lhe parecera muito antes. Apenas mais um pulinho à loja Chanel em Chicago.

Pensou no pouco que tinha na carteira.

– Não tenho essa quantia.

Samuel T. gargalhou.

– Claro que tem.

– Farei com que seja pago – Lane o interrompeu.

Samuel T. abriu a maleta e tirou alguns papéis.

– Você me autoriza a representá-la nessa questão, Virginia?

Desde quando ele a chamava por algo que não fosse o apelido? Pensando bem, talvez ele só não quisesse que seu irmão o esmurrasse no piso de concreto por ter demonstrado familiaridade demais.

– Sim.

Os olhos dele, aqueles olhos cinzentos e aguçados, sustentaram o olhar dela.

– Assine aqui. – Depois de ela ter assinado, murmurou: – Não se preocupe, eu vou tirar você daqui.

A respiração dela vacilou quando ela expirou.

– Mas e depois?

O que, exatamente, seria diferente do outro lado de tudo aquilo? Era muito improvável que seu pai virasse a página subitamente. Edward mal sobrevivera à decisão de William Baldwine de escolher os negócios em detrimento dos filhos.

– Primeiro, te tiramos daqui – Lane disse. – Depois lidamos com o resto.

Voltando-se para o irmão, ela percebeu que nunca o vira tão sério. Recostado à parede nua do cubículo horrendo, ele parecia muito mais velho do que quando partira, dois anos antes. Parecia no comando das coisas.

Ela crescera esperando encontrar autoridade em Edward, e nunca em Lane, o playboy.

– Ele vai ganhar – ela se ouviu dizer. – Papai sempre vence.

– Não desta vez – Lane disse entredentes.

– Que diabos está acontecendo aqui? – perguntou Samuel T.

Lane apenas meneou a cabeça.

– Resolva isso, Samuel. Apenas tire a minha irmã daqui. Eu cuido do resto.

Deus, como ela queria que fosse verdade. Porque, evidentemente, a sua tentativa de irritar o pai não dera muito certo.

 

CONTINUA

DEZ

Claro que era uma ideia muito idiota.

Contudo, enquanto Lizzie retribuía o beijo, foi como se ela estivesse afunilando dois anos de raiva, frustração e dor diretamente dentro dele. E que ele fosse para o inferno, mas seu sabor era de bourbon, de desespero e de sexo selvagem… e ela gostava disso.

Ela sentia falta disso.

O que a deixou ainda mais enfurecida. Ela queria dizer que aquilo era horrível. Que era contra a sua vontade. Uma violação.

Mas não era verdade. Foi ela quem enfiou a língua na boca dele, e foi ela quem enterrou os dedos nos ombros dele, e foi ela quem, que Deus a ajudasse, aproximou o corpo, colando-se nele.

Para poder sentir a ereção dele.

Seu corpo não mudara no tempo em que ficaram afastados; ele era todo feito de músculos rijos e membros delgados. E ele beijava como antes, com aspereza e avidez, apesar de ter sido criado como um cavalheiro. E seu calor continuava o mesmo.

E então, para piorar ainda mais as coisas, memórias dos dois juntos, pele contra pele, se chocando, se balançando, ondulando, a assaltaram, enterrando toda a mágoa e o sentimento de traição debaixo de uma avalanche de lembranças eróticas.

Por uma fração de segundo, percebeu que acabaria fazendo sexo com ele ali mesmo, naquele instante.

Sim, claro, porque era uma maneira eficaz de mostrar que estava falando sério.

Um verdadeiro momento Gloria Steinem.17

Em vez disso, algo foi derrubado na mesa e o barulho interrompeu o silêncio; em seguida, um esguicho molhou o quadril e a coxa dela num choque de água fria. Dando um salto, ela o empurrou com força, e Lane tropeçou e caiu para trás, aterrissando no piso de ladrilhos.

Com um movimento brusco do braço, ela limpou a boca.

– Que diabos você estava fazendo?

Pergunta idiota. O mais adequado seria: O que ela estava fazendo?

Ele se pôs de pé na próxima batida de coração.

– Quis te beijar desde que voltei.

– O sentimento não é mútuo…

– Até parece. – Pegou o copo e sorveu um grande gole. – Você ainda me deseja…

– Saia!

– Está me expulsando da minha própria estufa?

– Ou você sai ou saio eu – ela rebateu. – Essas flores não vão parar nos vasos sozinhas. A menos que queira metade das mesas vazias na sua festa do Derby?

– Não estou nem aí com elas. Ou com essa maldita festa. Ou com nada disso… – Ele gesticulou, e teria sido mais convincente caso não estivesse segurando um bourbon da família naquele copo. – Deixei tudo isso para trás, Lizzie. Já estou farto mesmo.

Motrin. Era disso que ela precisava.

Menos Lane e mais analgésicos.

– Eu desisto – murmurou ela. – Você venceu. Vou eu.

Quando ela se virou para ir embora, ele a segurou e a girou, arrastando-a para junto de si. Foi nesse momento que ela notou o quanto ele envelhecera desde a última vez que o vira. Seu rosto estava mais magro, o olhar mais cínico, os pés de galinha mais acentuados nos cantos dos olhos.

Infelizmente, só o tornava mais belo.

– Nada dessa história horrível com Chantal é como você pensa – ele disse sombriamente.

– Mesmo que seja apenas metade…

– Você não entende…

– Eu estava apaixonada por você. – Sua voz se partiu, e ela o empurrou. – Eu não achava que a gente fosse se casar necessariamente, mas não pensei que você estivesse a caminho do altar com outra mulher. Que estava grávida… e que ainda por cima engravidou enquanto você estava comigo.

– Eu tinha terminado com ela, Lizzie. Antes de voltar para cá naquele mês de abril, eu disse para ela que estava acabado.

– Mas não foi bem assim, não é?

– Ela estava grávida de três meses quando fiquei sabendo, Lizzie. Faça as contas comigo. Estive com Chantal pela última antes de vir para cá, no aniversário da minha mãe, no fim de março. Você e eu… ficamos juntos em maio, e no fim de junho eu fiquei sabendo da gravidez. Se você se lembrar bem, não saí de Easterly durante todo aquele tempo. Você sabia onde eu estava todos os dias e todas as noites porque eu estava com você. – Ele a encarou do alto. – Três meses. Não dois, nem um. Três meses, Lizzie.

Ela levou as mãos ao rosto, lutando contra a lógica.

– Por favor, pare de fazer isso.

– Isso o quê?

– Dizer meu nome. Isso lhe dá a ilusão da credibilidade.

– Não estou mentindo. E faz quase dois anos que quero esclarecer a situação. – Ele praguejou novamente. – Tem mais coisas, mas não quero entrar nessa parte. E não afeta o que existe entre mim e você.

Antes que ela percebesse o próprio movimento, descobriu-se sentada no banco de rodinhas que estivera usando antes. Olhando para as mãos, flexionou os dedos, sentindo a rigidez das juntas e, por algum motivo, pensou nas unhas perfeitas de Chantal, em suas palmas lisas e sem marcas. Falando em opostos… As mãos que ela fitava eram as de uma trabalhadora, que tinha arranhões nos dorsos provocados por espinhos de rosa perdidos, e terra debaixo das unhas, que ela só conseguiria limpar depois que chegasse em casa. Também havia pintas, por ter cavado a terra sem a proteção de luvas e, definitiva e positivamente, não havia nenhum diamante de um milhão de dólares em seu dedo.

– Casei com Chantal no cartório depois que você me deixou – ele continuou com severidade. – O bebê não tinha culpa, e por eu ter crescido sem meus pais, não queria fazer o mesmo com um filho meu, a despeito dos meus sentimentos pela mãe dele. Mas eu tinha que sair da cidade. Chantal não admitia que o casamento fosse apenas no papel. Por isso fui para o norte, ficar em Nova York com um amigo dos tempos da Universidade da Virgínia. Foi pouco depois que Chantal me ligou para falar que tinha perdido o bebê.

A amargura em sua voz fez ele falar tão baixinho que ela mal ouviu.

– Ela também não me ama – ele murmurou. – Não amava na época e não ama hoje.

– Como você pode ter certeza? – Lizzie se ouviu dizer.

– Pode confiar em mim quanto a isso.

– Ela pareceu bem contente em ter você de volta.

– Não voltei por causa dela e deixei bem claro. Essa mulher só é capaz de se afeiçoar a uma refeição grátis.

– Pensei que ela tivesse dinheiro.

– Nada comparado ao que eu tenho.

Sim, ela imaginou que devia ser verdade. Existiam países com menos renda anual do que a dos Bradford.

– Você é o amor da minha vida, quer esteja comigo ou não. – Quando ela ergueu o olhar, ele apenas encolheu os ombros. – Não posso mudar o que aconteceu e sei que não há como voltar… Só o que peço é que não acredite nas aparências, ok? Você está há dez anos com esta família, mas estou com eles e com pessoas que os cercam minha vida inteira. É por isso que é você quem eu quero. Você é real. Não é como eles e isso é uma coisa muito, muito boa.

Ela esperou que ele fosse expressar mais alguma coisa, e quando ele não o fez, ela voltou a fitar as mãos.

Por algum motivo, seu coração batia forte, como se ela estivesse próxima demais de um penhasco. Pensando bem, imaginou que era isso mesmo, porque as palavras dele estavam entrando em sua cabeça e embaralhando seus pensamentos.

De um jeito que não a ajudava em nada.

– Tenho muito medo de você – sussurrou.

– Por quê?

Porque queria acreditar no que ele dizia com o desespero de um viciado.

– Não tenha – ele disse quando ela não respondeu. – Nunca quis que nada assim acontecesse. E faz muito tempo que eu queria acertar as contas com você.

Parecia apropriado que estivessem cercados por tantos vasos de flores. A prova do seu trabalho, de seu único objetivo ali na propriedade, era um lembrete do divisor que sempre os distanciaria.

Ela se forçou a se lembrar daquela fotografia e do artigo no Charlemont Herald sobre o casamento, sobre os dois grandes legados sulistas se unindo num arranjo feudal. Também se lembrou dos dias e das noites logo depois que ficou sabendo de Chantal, de todas aquelas horas de sofrimento até que pensou estar à beira da morte.

Mas as palavras dele exprimiam verdade sobre uma coisa. O orgulho fez com que ela continuasse a trabalhar em Easterly. Assim, estivera presente na propriedade todos os dias, exceto aos domingos, pelos últimos vinte e quatro meses. E Lane não voltara. Durante dois anos… ele não voltara para ver Chantal.

Não era lá um grande casamento.

– Deixe que as minhas ações falem por si mesmas. Deixe que eu prove para você que estou dizendo a verdade.

Em sua mente, ela ouviu seu celular tocando insistentemente. Logo após o rompimento, ele lhe telefonara no mínimo uma centena de vezes, deixando mensagens que ela nunca ouvira. Ela tirara duas semanas de férias assim que soube de tudo, fugindo para a fazenda em Indiana, voltando para Plattsburgh no nordeste, para o pomar de maçãs da sua juventude. Seus pais ficaram felizes em vê-la, e ela passara aqueles dias a cuidar das árvores McIntosh junto aos outros trabalhadores.

Quando regressara, ele já tinha ido embora.

Os telefonemas cessaram depois de um tempo. E, no fim, ela parou de ter sobressaltos toda vez que um carro parava na porta da frente.

– Por favor, Lizzie… diga alguma coisa. Mesmo que não seja o que quero ouvir…

O som da risada de uma mulher o interrompeu com suavidade e fez com que ambos olhassem para as portas que se abriam para o jardim. Quando Greta saíra, um dos painéis não se fechara por completo, e através da abertura, Lizzie viu duas pessoas andando pelo caminho de pedras em direção à piscina no extremo oposto.

Mesmo sob a iluminação fraca do paisagismo, ficou claro que o vestido de gala da mulher era vermelho rubi, suas saias volumosas se arrastando atrás dela. Ao seu lado, um homem alto de terno lhe ofereceu o braço num galanteio e a encarava com o tipo de atenção que se reserva a um lauto banquete.

– Minha irmã – Lane disse, sem necessidade.

– Aquele é Samuel T.? – Lizzie perguntou.

– Quem se importa…

Ela voltou a olhar para Lane.

– Você partiu o meu coração.

– Eu sinto muito. Não foi minha intenção, Lizzie, de modo nenhum. Juro por Deus.

– Pensei que você fosse ateu.

Ele ficou calado um instante, os olhos vasculhando suas feições.

– Eu me batizaria mil vezes, se necessário. Posso memorizar a Bíblia, beijar o anel do papa… faço qualquer coisa que você quiser… mas, por favor…

– Não posso voltar no tempo, Lane. Sinto muito. Não consigo.

Ele se calou. E depois de um longo instante, assentiu.

– Tudo bem, mas posso pedir uma coisa?

Não.

– Sim.

– Não me odeie mais. Eu já faço muito isso sozinho.

O jardim estava perfumado como uma mulher recém-saída do banho, tão arrumado quanto a sala de estar, e tão reservado quanto a biblioteca de uma universidade.

O que significava de fato que era semirreservado. As várias janelas de Easterly davam para as moitas de flores brancas e creme, todas elas bem cuidadas e discretamente iluminadas.

Felizmente, Gin não tinha problemas quanto a fazer sexo em público.

Enquanto se pendurava no braço forte de Samuel Theodore Lodge III, não se deu ao trabalho de esconder seu sorriso.

– Há quanto tempo está com ela?

– Desde quando chegamos. Uma hora?

Ela gargalhou.

– Ora, ora, meu caro Samuel, por que você perde tempo com mulheres como ela?

– Existe outro tipo?

Era difícil saber quem conduzia quem até os recessos escuros do canto mais afastado, onde o muro de tijolos se encontrava com os fundos da casa, onde ficava a piscina. Era para lá que ambos se dirigiam.

– Eu não sabia que você vinha – ela disse, erguendo a mão para tocar os diamantes pendurados no pescoço… e depois deslizar os dedos pelo corpete do vestido. – Eu teria me dado ao trabalho de vestir uma calcinha.

– Nova mania, então?

– Gosto quando você as arranca do meu corpo. Especialmente quando você se frustra e as rasga.

– Mas eu não faço parte de um clube exclusivo, não é mesmo?

– Não seja grosseiro.

– Foi você quem tocou no assunto da lingerie. E também foi você quem quis sair comigo. A menos que, para variar, precise mesmo de um pouco de ar fresco?

Gin estreitou o olhar nele.

– Você é um bastardo.

– Não de acordo com o dicionário. Meus pais estavam muito bem casados quando nasci. – Ele ergueu uma sobrancelha. – E creio que você não possa dizer o mesmo da sua filha, não é mesmo?

Ela parou, a maré virando numa direção que ela não previra.

– Está passando dos limites, Samuel. E você sabe disso.

– É um pouco estranho quando você fala de decoro. Você não está transando com aquele advogado casado da minha empresa? Acho que ouvi alguma coisa a esse respeito.

Ah, então era por isso que ele estava agindo daquela maneira.

– Está com ciúmes? – ela pronunciou de maneira arrastada, o sorriso retornando às suas feições.

– Ele não consegue te satisfazer. Não por muito tempo, e não como eu consigo.

Quando ele a agarrou, ela deixou, adorando o modo como as mãos dele seguraram sua cintura e a boca se afundou na sua. Não demorou muito para que ele erguesse sua saia até as coxas, mantendo-a ali apesar de toda a armação do vestido.

Pensando bem, ele vinha se metendo debaixo de tecidos finos e delicados desde os catorze anos, quando passara a frequentar os bailes da sociedade.

Samuel T. gemeu ao descobrir que ela não estava mentindo quando disse não ter nada debaixo daquele vestido, e seus dedos foram rudes ao penetrá-la. O fogo e o desejo que sentiu foram um tremendo alívio para os assuntos em que ela não queria pensar, o sexo lavando todos os seus arrependimentos e sua tristeza, dando-lhe nada além de prazer.

Não havia motivos para fingir o orgasmo que teve de fato, as unhas se enterrando nos ombros macios do smoking enquanto arquejava, a antiquada colônia Bay Rum tão atávica que fazia com que ele fosse um homem à frente do seu tempo.

Enquanto se entregava, pensava que ele era o único homem que já tinha amado – e o único que jamais teria verdadeiramente. Samuel T. era muito parecido com ela, só que pior: uma alma que nunca se assentaria enquanto estivesse passeando pelos caminhos de tijolos da expectativa social.

– Me come – ela exigiu ao encontro dos lábios dele.

Ele arfava, seu corpo estava rijo debaixo do smoking caro, pronto para ela… Mas em vez de lhe dar o que ela tanto queria, ele recuou um passo, abaixando a saia e fitando-a de longe.

– Samuel? – ela inquiriu.

Com uma lentidão deliberada, ele levou os dedos até a boca e os lambeu. Depois passou a língua para cima e para baixo, entre eles, lambendo a essência dela em sua pele.

– Não – ele disse. – Acho que não.

– O quê?

Samuel se inclinou na direção dela.

– Vou voltar para a festa do seu pai e vou me sentar à mesa dele. Adiantei-me e troquei a disposição dos lugares, de modo que Veronica estará sentada ao meu lado. E você vai saber quando eu colocar a minha mão entre as pernas dela, você vai vê-la se empertigar e tentar manter a compostura enquanto faço com ela o que acabei de fazer com você. Observe o rosto dela, Gin. E saiba que, assim que eu sair, vou transar com ela no banco da frente do meu Jaguar.

– Você não ousaria.

– Como acabei de dizer, preste atenção, Gin.

Ele se virou para se afastar, e ela quis jogar alguma coisa na cabeça dele. E vez disso, disse entre dentes cerrados: – O nome dela não é Savannah?

Ele relanceou por sobre o ombro.

– E eu me importo com o nome dela? A única coisa relevante é: ela não é você.

Dito isso, ele se afastou a passos largos naqueles elegantes sapatos de couro que ecoaram nos tijolos, com os ombros retos e a cabeça erguida.

Envolvendo-se com os braços, ela percebeu pela primeira vez que a noite estava fria. Embora fizesse 26°C.

Concluiu que deveria ter lhe contado a respeito do advogado. Em retrospecto, escolhera o homenzinho grudento exatamente porque sabia que cedo ou tarde Samuel T. descobriria.

Pelo menos uma coisa era certa: Samuel T. voltaria. Por algum motivo, os dois não conseguiam ficar longe um do outro por muito tempo.

E, no fim, ela acabaria tendo que lhe contar a respeito de Amelia, pensou. Mas não hoje. Nem… tão cedo.

Se aquele homem descobrisse que ela lhe escondera a filha por todos aqueles anos?

Ele seria capaz de matá-la.


Gloria Steinem, famosa feminista, é uma jornalista americana, célebre por seu engajamento com o feminismo e sua atuação como escritora e palestrante, principalmente durante a década de 1960. (N.T.)

 

ONZE

Depois que Lane saiu da estufa, a perspectiva de retornar para a festa do pai era extremamente desagradável, ainda mais depois de ouvir o gongo que anunciava que o jantar estava sendo servido. Mas, considerando-se que a outra alternativa seria ir ver Edward, ele…

– Lane?

Concentrando-se, olhou além do arco da sala de jantar. Uma morena alta num vestido cinza-claro estava parada diante dos antigos espelhos venezianos, a visão dos ombros nus tão adorável de trás quanto de frente.

Falando no diabo, ele pensou. Mas sorriu ao se aproximar e beijá-la no rosto macio.

– Sutton, como está?

Mas quis dizer: Que diabos você está fazendo aqui? Ela e a família eram o “inimigo”, proprietários da Destilaria Sutton, produtores do famoso bourbon Sutton e de outras bebidas – mas isso não significava que ele tivesse algo particularmente contra a mulher. Tradicionalmente, porém, pessoas da linhagem dela eram persona non grata em Easterly… em conversas… nas orações noturnas.

E eram fãs da UK. Portanto, eram azuis nos jogos, e não vermelhos.

Isso era algo que poderia irritá-lo.

Quando se abraçaram, seu perfume refletiu a mulher rica que era, sua fragrância delicada preencheram as narinas dele mesmo quando se afastou; assim como seu corpo perfeito e bem vestido, surgindo novamente em seus olhos quando ele piscou.

Mas não era por isso que estava atraído por ela. Aquilo era o mesmo que admirar uma pintura num museu ou um automóvel Duesenberg.

– Eu não sabia que você viria este final de semana. – Ela sorriu. – É bom te ver depois de tanto tempo. Você me parece bem.

Isso foi engraçado, porque ele se sentia uma merda.

– E você, bela como sempre.

– Vai ficar para o Derby?

Por cima do ombro de Sutton, ele viu que Chantal entrava na sala de jantar, o longo vestido amarelo se arrastando junto com a sua postura de inocente.

Só até eu preencher a papelada do divórcio, ele pensou.

– Lane? – Sutton o chamou.

– Desculpe. Na verdade, tenho que voltar logo para Nova York. – Afinal, aquelas partidas de pôquer precisavam dele lá. – Estou contente em ver você. Surpreso por vê-la no jantar do meu pai, mas contente.

Sutton assentiu.

– Também é uma surpresa e tanto para mim.

– Veio a negócios?

Ela sorveu um gole da taça de vinho.

– Hummm.

– Era para ser uma piada.

– Me diga uma coisa, você tem visto…

Ela deixou a frase inacabada, sem mencionar o nome, pois não havia motivos para que ela pronunciasse “Edward”. Por muitos motivos.

– Ainda não o vi. Mas vou até a fazenda.

– Sabe, Edward nunca vem à cidade. – Sutton tomou mais um gole da taça de borda fina. – Eu costumava vê-lo com bastante frequência antes que ele… Bem, fazíamos parte do conselho da Universidade de Charlemont, mesmo eu sendo fã da UK, e…

Enquanto a mulher prosseguia, ele ficou com a sensação de que ela não estava lhe informando fatos que ele já sabia, mas que revivia um período da vida cuja perda ela lamentava. Não pela primeira vez, ele ficou se perguntando o que realmente acontecera entre o garoto de ouro da família e a adorável filha do concorrente deles.

– Ora, se o filho pródigo não retornou…

O som da voz do pai foi um alerta que o atingiu tal qual uma flecha, e Lane encobriu seu dissabor ao tomar um gole de bourbon.

– Pai.

William Baldwine era quase tão alto quanto ele, tinha os mesmos cabelos negros e olhos azuis, o mesmo maxilar, os mesmos ombros. As diferenças eram a idade, o grisalho nas têmporas, os óculos bifocais de aro de casco de tartaruga, a ruga entre as sobrancelhas causada pelos muitos anos de semblante fechado. De algum modo, porém, todos aqueles sinais do passar dos anos não diminuíam a estatura do pai. De fato, apenas serviam de contraponto para uma aura de poder.

– Tenho que mandar arranjarem um lugar para você. – Por trás daqueles óculos, os olhos do pai encararam as roupas de Lane com um desdém apropriado para as fezes de um cachorro no meio de uma sala de estar. – Ou está de saída?

– Deixe-me pensar… – Lane estreitou o olhar. – Por mais que eu aprecie degradar a sua mesa com esta minha camisa, eu teria que ficar na sua presença durante uma refeição de, no mínimo, três pratos. Portanto, acho que vou embora.

Lane colocou seu Reserva de Família na mesinha de apoio mais próxima e se curvou para Sutton, que parecia preferir ir com ele em vez de ficar ali.

– Sutton, é sempre um prazer. – Olhou para o pai. – Pai, vá se foder.

Lançou essa granada e seguiu em meio à multidão, acenando para políticos e socialites, para aqueles dois atores da série da HBO na qual estava viciado e para Samuel T. e sua namorada do momento.

Chegou ao vestíbulo de entrada, e estava quase na porta da frente quando um par de saltos agulha se aproximou por trás.

– Aonde você vai? – Chantal sibilou ao agarrar o braço dele. – E por que não está vestido?

– Não é da sua conta. – Soltou-se dela. – Nos dois casos.

– Lane, é inaceitável…

– Essas palavras jamais deveriam passar pelos seus lábios, mulher.

Chantal fechou a boca muito bem delineada. Em seguida, inspirou fundo, como se estivesse com dificuldade para aplacar a raiva.

– Eu gostaria de passar um tempo com você esta noite, para conversar e discutir… nosso futuro.

– O único futuro em que você precisa pensar é quantas malas Vuitton vai precisar para a sua mudança.

Chantal ergueu o queixo.

– Você não faz ideia do que está falando.

Ele se inclinou na direção dela e abaixou a voz até um sussurro.

– Sei o que você fez. Sei que não “perdeu” o bebê. Se queria manter o aborto em segredo, não deveria ter pedido a um dos motoristas da família que a levasse para aquela clínica em Cincinnati.

Quando ela empalideceu, ele se lembrou exatamente onde estava quando o homem que a levara lá titubeou para lhe dar a informação.

– Não tem resposta? Não vai negar? – Lane a repreendeu. – Ou isso virá quando a surpresa por ter sido descoberta passar?

Houve um instante de silêncio, e ele sabia que ela estava pesando suas opções, tentando descobrir como abordá-lo de um jeito favorável.

– O que eu deveria ter feito? – disse ela por fim, baixinho. – Você me abandonou sem explicações, sem apoio, sem dinheiro, sem um modo de entrar em contato com você.

Ele fez um gesto abarcando as pinturas a óleo e os tapetes orientais.

– Sim, porque você ficou num lugarzinho bem largado no meio da selva.

– Você me abandonou!

– Por isso a solução foi se recompor para tentar seduzir outro homem, certo? Estou deduzindo que foi o que fez, já que você precisava caber de novo no manequim 38, não é? Minha querida esposa.

– Lane, você está dizendo coisas que não quer…

– Você matou um inocente…

Reginald veio da sala de estar com uma bandeja de prata com copos usados, deu uma olhada nos dois e voltou para trás, desaparecendo de novo no cômodo agora vazio.

Ah, sim, a vida em Easterly… Onde a privacidade era menos comum que diamantes e distribuída em termos relativos. Pelo menos sabia que podia confiar naquele homem mais do que em sua própria família.

Não que isso significasse muito.

– Não vou ficar aqui discutindo com você – Lane disse, ríspido. – E você vai sair desta casa. Assim que o Derby acabar, a sua estada grátis já era.

Chantal arqueou uma das sobrancelhas perfeitas.

– Peça o divórcio se quiser, mas não vou a parte alguma.

– Você não terá mais o direito de ficar sob este teto depois que essa aliança sair do seu dedo.

O sorriso que ela lhe lançou foi gélido.

– É o que vamos ver. – Acenou com a cabeça para a porta da frente. – Vá para onde quiser, fuja… É isso o que você faz, não é? Mas tenha certeza que: eu estarei aqui quando você voltar.

Lane estreitou os olhos. Chantal era muitas coisas, mas não era uma maluca. Ela se autopromovia demais para tanto.

E o encarava como se soubesse de algo que ele não sabia.

Que diabos aconteceu enquanto ele se manteve afastado?

No Vermelho & Preto, Edward estava sentado numa antiga poltrona de couro diante de uma televisão tão velha que ainda tinha antenas saindo da tela em forma de caixa. O cômodo estava na penumbra, mas reluzia por causa dos inúmeros troféus de corrida abarrotando as estantes até o teto do lado oposto.

O chalé do haras tinha um quarto, um banheiro com banheira com pés em forma de garras, uma cozinha pequena e aquela área, que era um misto de biblioteca, escritório, sala de estar e de jantar. Não havia segundo andar, apenas um sótão cheio de recordações de velhas corridas de cavalo, e também não havia garagem. A área era menor do que a sala de jantar de Easterly e, desde que se mudara para lá, ele aprendera a apreciar o valor de ter um lugar pequeno o bastante para poder ouvir e ver quase tudo. Lá na mansão, nunca se sabia quem mais estava na gigantesca casa, onde estavam, o que estavam fazendo.

Para alguém como ele, cuja única amante eram os terrores noturnos e cujo principal trabalho era impedir que seu cérebro se canibalizasse, os aposentos apertados eram algo muito mais fácil de lidar, ainda mais naquela época do ano. Pena que a sua ida à América do Sul, quando fora sequestrado, tivesse acontecido pouco antes do Derby. O aniversário da sua captura arruinara o que sempre fora um fim de semana agradável.

Consultou o relógio e praguejou. Agora que o sol tinha se posto, as horas se apresentavam numa confusão nebulosa, minutos se tornando séculos e um segundo ao mesmo tempo. O seu trabalho noturno? Chegar, de algum modo, ao nascer do sol sem gritar.

Junto ao cotovelo, havia uma garrafa de vodca quase vazia. Começara a beber com cinco cubos de gelo num copo alto, que já estava derretido havia um tempo, e ele agora sorvia a bebida pura. Na noite anterior, fora gim. Na de antes, tomara três garrafas de vinho, duas de tinto e uma de branco.

Durante a fase inicial e aguda da sua “recuperação”, aprendera todos os estágios da administração da dor, aprendera como espaçar os analgésicos e a comida a fim de fazer com que os impulsos nevrálgicos do seu corpo arruinado não fossem piores do que a tortura que suportara quando aquelas feridas foram provocadas. Mais tarde, o mestrado em Gerenciamento de Medicação se traduziu muito bem na segunda parte – a parte crônica, a da “recuperação”. Graças às tentativas e aos erros adquiridos com os analgésicos, ele conseguia distribuir tudo para otimizar o efeito sedativo: todas as tardes, por volta das quatro horas, comia alguma coisa; às seis, quando os funcionários liberavam os estábulos, ele podia começar a beber estando, basicamente, de estômago vazio.

Nada o irritava mais do que alguém se metendo no meio do seu torpor…

Quando uma batida se fez à porta, apanhou a pistola ao lado da garrafa Grey Goose e tentou se lembrar que dia da semana era. O Derby aconteceria dali a dois dias… Então era quinta-feira. Era quinta-feira, algumas horas depois do pôr do sol.

Portanto, não era uma das prostitutas que ele pagava para vir servi-lo. Elas vinham às sextas-feiras. A menos que tivesse chamado duas pelo preço de uma aquela semana, mas não havia pedido aquilo.

Certo. Ou havia?

Apanhando a bengala, suspendeu-se da poltrona e claudicou até a janela da frente. Afastou as cortinas, com a pistola firme numa mão, mas o coração batia descompassado. Mesmo ciente de que, pela lógica, não existiam mercenários no Condado Ogden à sua procura, que estava seguro atrás das travas e do sistema de segurança que instalara, apesar da quarenta milímetros em suas mãos… seu cérebro continuava eletrizado.

Quando viu quem era, franziu o cenho e abaixou a arma. Seguindo até a porta, retirou a corrente, destrancou as três travas e abriu a porta, as dobradiças rangendo como camundongos. Outro mecanismo de alerta para ele.

– Cliente errado – murmurou com secura para a loira baixinha que vestia jeans e camiseta justa. – Eu só peço morenas. Em vestidos de gala.

Por um motivo que preferia guardar para si.

Ela franziu a testa.

– O que disse?

– Só aceito morenas. E elas têm que estar adequadamente vestidas.

Ele queria cabelos longos curvados nas pontas, um vestido que se arrastasse pelo chão, e elas tinham que estar usando Must da Cartier. Ah, e tinham que ficar de boca fechada. Não tinham permissão para falar com ele enquanto estivessem transando. Ainda que as putas conseguissem representar bem o exterior, a ilusão frágil seria rompida no instante em que as vozes delas não fossem a da mulher que desejava, mas que não podia ter.

Ele já tinha bastante dificuldade para manter a ereção daquele modo; na verdade, a única maneira de fazer seu pau subir era se conseguisse acreditar na mentira pelo tempo necessário até chegar ao orgasmo.

A mulher em sua soleira pousou as mãos nos quadris.

– Acho que não sei do que está falando. Mas sei que estou no lugar certo. Você é Edward Baldwine, e este é o Vermelho & Preto.

– E você quem é?

– Filha de Jeb Landis. Shelby. Shelby Landis.

Edward fechou os olhos.

– Maldito seja Ele.

– Eu agradeceria se não usasse o nome de Deus em vão na minha presença. Obrigada.

Ele levantou as pálpebras.

– O que você quer?

– O meu pai morreu.

Edward se concentrou num ponto acima da cabeça dela, na lua que crescia acima do Estábulo C.

– Quer entrar?

– Se guardar arma, sim.

Ele enfiou a pistola no cós do jeans e recuou.

– Quer beber alguma coisa?

Quando ela entrou, ele percebeu o quanto ela era baixinha. E devia pesar só uns 45 quilos, isso se estivesse ensopada segurando um fardo de feno.

– Não, obrigada. Não bebo álcool. Mas eu gostaria de usar o seu banheiro. A viagem foi longa.

– É por ali.

– Muito obrigada.

Ele se recostou na porta. A picape na qual ela evidentemente chegara sabe lá Deus de onde estava estacionada à esquerda, o motor ainda estalava debaixo do capô.

Depois de fechá-la e trancar tudo de volta, ouviu a descarga nos fundos da casa. Um momento mais tarde, a moça voltou e olhou para os troféus.

Edward seguiu para a poltrona, fazendo uma careta de dor ao se acomodar.

– Quando? – ele perguntou ao se servir do resto da vodca.

– Uma semana atrás – ela respondeu sem olhar para ele.

– Como?

– Pisoteado. Bem, os médicos disseram que o coração dele não aguentou, mas a causa foi o pisoteamento. Foi assim que você se machucou?

– Não. – Ele sorveu um longo gole. – Então, o que você faz aqui?

Dessa vez ela se virou.

– O meu pai sempre disse pra eu vir para cá pra encontrar você se alguma coisa acontecesse com ele. Ele disse que você lhe devia uma. Nunca perguntei o quê.

Edward a encarou demoradamente.

– Quantos anos você tem? Doze?

– Vinte e dois.

– Jesus, como você é nova…

– Cuidado com o que diz perto de mim.

Ele teve que sorrir.

– Você é igualzinha ao seu velho, sabia disso?

– É o que dizem. – Ela voltou a apoiar as mãos nos quadris. – Não quero esmola. Preciso de um lugar pra ficar e de um trabalho. Sou boa com cavalos, assim como o meu pai era, e ruim com pessoas… Por isso, considere-se avisado. Não tenho dinheiro, mas tenho costas fortes e não tenho medo de nada. Quando posso começar?

– Quem disse que estou procurando ajuda?

Ela franziu o cenho.

– O meu pai disse que você precisaria. Disse que você precisaria de mais mãos.

O Vermelho & Preto era uma grande operação, e sempre havia vagas. Mas Jeb Landis era uma lembrança complicada do passado… e a família dele estava contaminada por associação.

Mesmo assim…

– O que sabe fazer?

– Limpar estábulos e manter os cavalos em ordem não é física nuclear…

Ele dispensou as palavras dela com a mão.

– Tudo bem, tudo bem, está contratada. E só estou sendo um cretino porque, assim como você, não me dou bem com as pessoas. Tem um apartamento vazio ao lado do apartamento de Moe, sobre o Estábulo B. Pode se mudar para lá.

– Mostre o caminho.

Edward grunhiu ao voltar a ficar de pé e carregou o copo consigo de propósito ao conduzi-la até a porta.

– Não quer saber do salário?

– Você vai ser justo. O meu pai disse que desonestidade não faz parte do seu caráter.

– Ele foi generoso ao dizer isso.

– Duvido. Ele conhecia homens e cavalos.

Enquanto Edward voltava a destrancar tudo, conseguia senti-la observando-o e odiou isso. Seus ferimentos eram o resultado de um inferno que ele preferia manter escondido do mundo.

Antes de deixá-la sair do chalé, olhou-a fixamente.

– Só há uma regra.

– Qual?

Por algum motivo, ele se deteve nas feições dela. Ela não se parecia fisicamente em nada com o pai – bem, desconsiderando-se a altura. Shelby, ou qualquer que fosse seu nome, tinha olhos claros, e não negros. E sua pele não tinha a consistência de couro, embora isso ainda pudesse mudar.

A voz dela, porém, era como a de Jeb: aquele sotaque arrastado tinha um fundo de solidez.

– Você não vai chegar perto daquele garanhão – Edward avisou. – Ele é malvado até os ossos.

– Nebekanzer.

– Você o conhece.

– Meu pai costumava dizer que aquele cavalo tinha gasolina nas veias e ácido nos olhos.

– Então você já conhece o meu cavalo. Não se aproxime dele. Não vai limpar a baia dele, não vai chegar perto dele se ele estiver no pasto e nunca, jamais, vai colocar qualquer coisa sobre a porta da baia dele se quiser conservá-la. E isso inclui a sua cabeça.

– Quem cuida dele?

– Eu. – Edward claudicou noite afora, o ar úmido e pesado fazendo com que ele pensasse que não conseguiria respirar. – E ninguém mais.

Enquanto tentava respirar fundo, perguntou-se se todos aqueles médicos tinham deixado passar algum ferimento interno. Pensando bem, talvez a sensação de sufocamento fosse causada pela imagem daquela moça perto do maldito garanhão negro. Ele só conseguia pensar no que Neb poderia fazer com ela.

Ela se colocou na frente e pegou a mochila sobre o banco do passageiro.

– Então você é o encarregado aqui.

– Não, Moe Brown é. Você vai conhecê-lo pela manhã. Ele será o seu chefe. – Edward seguiu na direção dos estábulos. – Como já disse, o apartamento ao lado do dele está mobiliado, mas não sei quando o último a morar lá saiu.

– Já dormi em baias e em bancos de praça. Ter um telhado sobre a cabeça já basta.

Ele olhou na direção dela.

– O seu pai… era um bom homem.

– Não era nem melhor nem pior do que qualquer outra pessoa.

Era impossível não pensar em quem devia ser a mãe dela – ou em como alguém poderia ter suportado tempo suficiente ao lado de Jeb até ter uma filha com ele. Jeb Landis era uma lenda na indústria, tinha uma lista de cavalos vencedores maior do que qualquer outro, vivo ou morto. Também fora um alcoólatra filho da puta, com um vício por jogo ainda pior do que a sua veia misógina.

Uma coisa com a qual Edward não tinha que se preocupar era se Shelby saberia tomar conta de si mesma. Se conseguira sobreviver tendo vivido com Jeb, trabalhar num turno de dezoito horas numa fazenda criadora de cavalos seria fácil, fácil.

Quando chegaram ao Estábulo B, as luzes detectoras de movimento se acenderam e os cavalos se movimentaram lá dentro, batendo os cascos e relinchando. Entraram pela porta lateral, passaram pelo escritório de Moe e pelo depósito de suprimentos, e Edward a levou até o lance de escadas que antes conduzia ao palheiro, cobrindo toda a extensão do telhado. Em algum momento nos anos 1970, o lugar fora convertido em dois apartamentos, e Moe morava no da frente, que dava para a passagem de carros.

– Vá na frente e espere por mim ali em cima – disse com os dentes cerrados. – Eu demoro um pouco para subir.

Shelby Landis subiu os degraus rapidamente no compasso que ele costumava usar, mas que agora já não apreciava mais, e sentiu como se tivesse uma centena de anos ao se juntar a ela no andar superior.

Àquela altura, já estava tão sem fôlego que chiava como um pneu murchando.

Afastando-se dela, viu que não havia nenhuma luz por baixo da porta de Moe, mas, de todo modo, não teriam incomodado o homem. Com o Derby em menos de quarenta e oito horas, se estivesse em casa, o homem já devia estar dormindo a sono solto.

Ainda mais se considerasse que um dos seus dois cavalos poderia acabar excluído da corrida.

Enquanto Edward seguia em frente e girava a maçaneta do apartamento seguinte, percebeu que não sabia o que faria caso a porta estivesse trancada. Não fazia ideia de onde as chaves poderiam estar…

A porta se abriu, lembrando-o de que ele estava em meio a uma minoria de paranoicos ali naquela fazenda. O interruptor ficava à esquerda na parede e, quando ele o apertou, ficou aliviado em ver que o lugar não estava muito empoeirado e que, de fato, havia um sofá, uma cadeira, uma mesa e uma cozinha minúscula que, em comparação, fazia com que a sua parecesse industrial.

– O seu pai nunca mencionou o motivo de eu estar em débito com ele? – perguntou, mancando até o corredor escuro.

– Não, mas Jeb não era de falar muito.

Apertando o segundo interruptor, viu que o quarto e o banheiro também estavam organizados.

– Eis o que você tem aqui – disse ele, exausto só de ver a distância até a porta.

Quatro metros e meio.

Era como se fossem quilômetros.

Ela se aproximou.

– Obrigada pela oportunidade.

Ofereceu a mão e o fitou nos olhos e, por um instante, ele sentiu uma emoção diferente da raiva que ardia e queimava em seu íntimo nos últimos dois anos. Não sabia como defini-la, e o triste era que não sabia se a mudança era bem-vinda.

Havia uma certa claridade em ter um princípio de operação unilateralmente hostil.

Deixou a mão dela pendurada no ar enquanto arrastava o corpo de volta até a saída.

– Veremos se, mais tarde, você vai me agradecer.

De repente, lembrou-se de toda aquela coisa de não praguejar e não beber álcool.

– Ah, e mais uma coisa. Se a cortina do meu chalé estiver fechada, não me incomode.

– Sim, senhor.

Ele assentiu e fechou a porta. Depois, muito lenta e cuidadosamente, começou a descer.

A verdade era que Jeb Landis fora o responsável pela sua recuperação. Sem o chute que o homem deu no seu traseiro, só Deus sabia se Edward ainda estaria naquele planeta. Deus, ainda se lembrava com nitidez quando o treinador viera visitá-lo no centro de reabilitação. Apesar da regra explícita de Edward de não receber visitantes, Jeb passara pela estação da enfermagem e marchara para dentro do seu quarto.

Eles já se conheciam havia uma década. O interesse de Edward por cavalos de corrida, e sua subsequente posse, aliado ao compromisso prévio de ser o melhor em tudo o que fazia, significava que ele só aceitaria um homem treinando os seus cavalos.

No entanto, jamais previra que o homem seria um tipo de salvador.

O esporro de Jeb fora breve e direto, mas mais eficiente do que todos os argumentos e apoio emocional que recebeu de outras pessoas. E, um ano após sua mudança para lá, tendo jogado fora todos os seus ternos e decidido que aquela seria a sua vida, Jeb lhe disse que estava deixando o Vermelho & Preto rumo à Califórnia.

Provavelmente porque alguns agentes de apostas de Chicago estavam atrás de um pedaço do traseiro dele.

Em todos aqueles anos, antes e depois do sequestro, o fato de Jeb ter uma filha jamais viera à baila. Mas, sim, ele abrigaria a filha do homem. Claro.

E, felizmente, ela parecia ser capaz de cuidar de si mesma.

Portanto, o pagamento do débito teria um custo baixo.

Pelo menos, foi o que ele disse a si mesmo naquela primeira noite.

Só que aquilo não foi bem verdade… nem de longe.

 

DOZE

– Paguei cem mil dólares para me sentar ao seu lado.

Gin ergueu o garfo Tiffany com desenho de crisântemo para mexer na comida, mal ouvindo as palavras ditas junto ao seu ouvido. Estava ocupada demais se concentrando no arranjo floral diante dela. Samuel T. estava mais à esquerda, e a partir daquele ponto focal florido, sua visão periférica permitia que ela o acompanhasse ao lado da namoradinha, Veronica/Savannah.

– Por isso, você poderia pelo menos conversar comigo.

Voltando a se concentrar, fitou o odioso Richard Pford IV. O homem era só uma versão do jovem que um dia fora: alto e magro, com um olhar capaz de cortar vidro e uma natureza suspeita que contrastava com a sua posição invejável na hierarquia social de Charlemont. Filho de Richard Pford III, era o único herdeiro da Distribuidora de Bebidas Pford, uma cadeia nacional que distribuía vinhos, cerveja, bourbon, gim, vodca, champanhe, uísque etc. nas prateleiras e nos negócios do país inteiro.

O que significava que ele podia bancar um valor de seis dígitos para garantir um assento todas as noites da semana e duas vezes aos domingos.

Ele nadava em milhões, e seus familiares nem tinham começado a morrer ainda.

– Os assuntos do meu pai não me interessam – ela rebateu. – Portanto, parece que desperdiçou o seu dinheiro.

Ele tomou um gole de vinho.

– E pensar que ele foi para o programa de basquete da UC.

– Não sabia que você era fã deles.

– Não sou.

– Não é de se admirar que não nos damos bem. – UK. Ela devia ter desconfiado. – Além disso, não ouvi dizer que você estava para se casar?

– Os boatos quanto ao meu noivado foram exagerados.

– Difícil de acreditar, com todas as suas qualidades.

À esquerda, Veronica/Savannah deu um salto na cadeira, os cílios postiços flanaram, o garfo bateu no prato. Enquanto as lentes coloridas se voltavam para Samuel T., o maldito limpava casualmente a boca com o guardanapo damasco.

Samuel T., no entanto, não estava olhando para a namorada. Não, ele casualmente fitava o buquê de flores bem na frente de Gin.

O filho da puta.

Deliberadamente, Gin se virou para Richard e sorriu.

– Bem, estou encantada com a sua companhia.

Richard assentiu e voltou a cortar o seu filé mignon.

– Assim é muito melhor. Por favor, não pare.

Gin falou com suavidade, ainda que não fizesse ideia do que estava saindo da sua boca. Mas Richard assentia mais e mais, e respondia, por isso ela deduziu que estava se saindo bem com suas habilidades sociais. Mas, pensando melhor, quer se tratasse de conversas que não a interessavam ou orgasmos com homens com os quais não se importava, ela tinha bastante prática em fingir.

E, mesmo assim, estava ciente do que Samuel T. estava fazendo. Dolorosamente ciente.

Os olhos dele queimavam, cravados nela. E, nesse meio-tempo, bem como ele lhe prometera, a vadia ao lado dele começou a se esforçar para manter a compostura.

– … me resguardei para você – Richard declarou.

Gin franziu o cenho, captando aquela combinação de palavras, a despeito da sua preocupação.

– O que disse?

– Eu estava determinado a me casar, mas entrei num acordo com o seu pai. Foi por isso que pus fim ao noivado.

– Entrou num acordo com o meu pai? Do que está falando?

Richard sorriu com frieza.

– O seu pai e eu chegamos a um acordo quanto ao futuro. Em contrapartida por se casar comigo, estou disposto a conceder algumas vantagens à Cia. Bourbon Bradford.

Gin piscou. Depois balançou a cabeça.

– Não estou ouvindo muito bem.

– Sim, sim, você está. E já lhe comprei o anel de diamantes.

– Não, não, não… Espere um minuto. – Jogou o guardanapo na mesa mesmo sem terminar de jantar, assim como as outras trinta e uma pessoas. – Não vou me casar nem com você nem com ninguém.

– Mesmo?

– Tenho certeza de que “comprou” o seu lugar nesta mesa. Mas ninguém me obriga a fazer porra nenhuma, e isso inclui o meu pai.

Pensou que era uma tristeza não ter questionado a possibilidade do seu bom e velho pai a vender em favor do preço das ações da empresa.

Richard deu de ombros debaixo do terno elegante.

– Se é o que você diz.

Gin olhou para a cabeceira da mesa onde William Baldwine estava sentado em comando total, como se estivesse em um trono suspenso, mantendo-o acima dos seus súditos.

O homem não percebeu o olhar letal e, portanto, não sabia que a bomba tinha sido lançada. Ou talvez, quem sabe, ele tivesse planejado dessa forma, sabendo que Richard seria incapaz de ficar calado, e que ela não poderia provocar um escândalo por causa das testemunhas.

E, maldição, seu pai tinha razão quanto a isso. Por mais que desejasse dar um pulo e começar a berrar, ela não rebaixaria o nome Bradford dessa maneira, certamente não com Sutton Smythe e o pai dela, Reynolds, no mesmo cômodo.

À esquerda, um gemido foi encoberto por uma tossidela fraca.

Gin desviou a atenção do pai para Samuel T., ao que o advogado ergueu uma sobrancelha… e lançou um beijo no ar na sua direção.

– Sim, pode levar o prato dela. – Ela ouviu Richard dizer para o garçom uniformizado. – Ela já terminou.

– O que disse? – Gin se virou para Richard. – Mas você não tem o direito de…

– Aprovo a sua falta de apetite, mas não vamos nos arriscar, certo? – Richard acenou para o garçom. – E ela também não vai comer a sobremesa.

Gin se inclinou para o homem e lhe sorriu. Num sussurro, disse: – Não dê o passo maior que a perna. Eu ainda me lembro da época em que você enchia a sua saqueira com meias. Dois pares, porque um não adiantava muita coisa.

Richard a encarou. Num tom igualmente baixo, respondeu:

– Não faça de conta que tem algum poder de decisão.

– Espere e verá.

– É você quem mal pode esperar para ver. – Ele se recostou e lançou-lhe o olhar satisfeito de um homem que tem um royal flush nas mãos. – Mas não demore muito. O peso dos quilates do seu anel diminui a cada hora.

Eu vou te matar, ela pensou consigo mesma enquanto olhava para o pai. Que Deus me ajude, mas eu vou te matar.

Quando Lizzie fez a curva na estradinha secundária, a faixa de terra para a qual se dirigiu dividia terrenos com plantações de milho e só era larga o bastante para a passagem do seu Yaris. Havia árvores em ambos os lados, não de maneira organizada, mas num padrão casual, arranjado pela natureza, e não pela enxada de um paisagista. Acima, galhos grossos se uniam formando um dossel de verde brilhante na primavera, esmeralda no verão, amarelo e laranja no outono e esquelético no inverno.

Normalmente, aquela procissão de meio quilômetro até sua fazenda era o início do seu relaxamento, uma câmara de descompressão que ela acreditava ser o único motivo pelo qual conseguia dormir depois de um dia de problemas em Easterly.

Não naquela noite.

De fato, ela queria olhar por sobre o ombro só para se certificar de que não havia ninguém com ela no banco de trás do carro. Não que coubesse alguém de mais de doze anos ali, mas, mesmo assim… Sentia-se perseguida. Caçada. Assaltada. Ainda que sua carteira continuasse dentro da bolsa e ela estivesse, de fato, sozinha em seu carro.

A casa da fazenda era uma clássica casa americana, exatamente o que se veria num filme da Lifetime que se passasse num fim de semana de quatro de julho: branca com uma varanda, com vasos de amor-perfeito, uma cadeira de balanço e um banco suspenso em um dos lados. Tanto a indispensável chaminé de tijolos vermelhos quanto o telhado pontudo com telhas cinza eram originais, da época da sua construção em meados de 1833. E o coup de grâce? Um bordo imenso que oferecia abrigo para o calor do verão e para o vento frio do inverno.

Estacionou debaixo da árvore, que era o que de mais próximo a uma garagem que ela tinha, e saiu do carro. Mesmo que Charlemont dificilmente fosse Manhattan, a diferença no nível de barulho era impressionante. Naquelas partes, havia sapos, vagalumes que não tinham nada a dizer, e uma coruja que começara a montar guarda num velho celeiro uns dois anos antes. Nenhum murmúrio da autoestrada. Nenhuma sirene de ambulância. Nenhum acorde de jazz ou blues vindos do parque às margens do rio.

Fechando a porta, o som foi amplificado pela escuridão, e ela se viu aliviada quando caminhou e as luzes ativadas pelo movimento, colocadas em ambos os lados da entrada, foram ativadas. As botas rasparam nos cinco degraus que rangeram, e a porta de tela a acolheu com o resmungo das dobradiças. A fechadura era de latão, relativamente nova. Fora instalada em 1942.

Do lado de dentro, tudo estava escuro, e quando ela confrontou o vazio, desejou ter um cachorro. Um gato. Um peixinho dourado.

Apertando o interruptor, piscou quando seu lar doce lar se iluminou com a suave luz amarela. A decoração não se parecia em nada com a dos Bradford. Na sua casa, se havia algo antigo, era por ser útil e por ter sido feito por algum artesão do Kentucky: uma velha cesta de vime, um par de colchas de retalhos gastos pendurado nas paredes, uma cadeira de balanço, um banco de pinho debaixo da janela, cabeças de enxadas e pás que encontrara nos campos e que ela mesma emoldurara, para depois pendurar na parede. Também tinha uma coleção de instrumentos musicais, inclusive diversos violinos, muitas canecas, algumas tábuas de lavar roupa, e o maior dos seus tesouros: seu piano Price & Teeple de 1907. Feito de carvalho, com dobradiças incríveis de cobre, pedais e outras partes metálicas, ela o encontrara apodrecendo num celeiro, na porção oeste da propriedade, e o restaurara com muito amor.

A mãe chamava sua casa de museu do folclore, e Lizzie concluiu que isso devia ser bem verdade. Para ela, não existia conforto maior do que se ligar a gerações de homens e de mulheres que trabalharam na terra, esculpiram suas vidas e transmitiram seu conhecimento de vida para as gerações seguintes.

Agora? Tudo era 3G, 4G, LTE, e os computadores e smartphones eram cada vez menores e mais rápidos.

Sim, porque esse sim era um legado de honra e de perseverança para deixar aos seus filhos: como se esforçar para ficar na fila por vinte e seis minutos a fim de adquirir um novo iPhone, com um copo do Starbucks numa mão e um blog a respeito de alguma inutilidade na outra para passar o tempo.

De volta à sua cozinha anos 1940 – o estilo não era importado da Ikea ou Williams-Sonoma com suas réplicas, mas sim o original, de quando ela comprara a casa sete anos atrás –, abriu a geladeira e encarou as sobras da torta de frango que fizera na segunda à noite.

Aquilo era tão inspirador quanto a ideia de comer lascas de tinta esquentadas numa frigideira.

Quando seu celular começou a tocar, olhou por sobre o ombro, para a bolsa que largara no corredor.

Deixe para lá, ela se ordenou. Apenas deixe…

Esperou até que o aparelho silenciasse, e esperou mais para ver se haveria outra chamada – caso fosse uma emergência com a mãe, outra ligação se seguiria. Ou pelo menos haveria um toque alertando a chegada de uma mensagem.

Quando nenhum dos dois aconteceu, ela foi até o corredor e apanhou a bolsa. Nenhuma mensagem. Não reconheceu o número, mas conhecia o código de área: 917.

Cidade de Nova York. Celular.

Tinha amigos que ligavam para ela daquela área.

Suas mãos tremiam ao abrir a lista de chamadas recebidas e apertar o último número.

Foi atendida antes que o primeiro toque terminasse.

– Lizzie?

Seus olhos se fecharam quando a voz de Lane entrou em seu ouvido e em todo o seu corpo.

– Alô? – ele disse. – Lizzie?

Havia muitos lugares para sentar em sua sala ou na cozinha – cadeiras, sofás, até mesmo a mesinha de centro era robusta o suficiente. Em vez de usar qualquer um desses móveis, recostou-se contra a parede e deixou o traseiro escorregar até o chão.

– Lizzie? Você está aí?

– Sim. – Apoiou a testa na mão. – Estou aqui. Por que está ligando?

– Eu só queria me certificar de que você chegou bem em casa.

Sem nenhum motivo, lágrimas surgiram em seus olhos. Ele sempre agia assim. No tempo em que estiveram juntos, não importava que horas ela saía, ele lhe telefonava assim que ela passasse pela porta. Como se tivesse um timer no telefone.

– Não estou ouvindo a festa – comentou. – Ao fundo.

– Não estou em casa.

– Onde você está?

– No Antigo Silo. No armazém de barris. – Ela ouviu um barulho, como se ele também estivesse se sentando no chão. – Faz muito tempo que não venho aqui. O cheiro é o mesmo. A aparência também.

– Nunca fui aí.

– Você gostaria daqui. É o seu tipo de lugar, tudo muito simples e funcional e feito à mão.

Ela relanceou para a sala de estar e se concentrou na primeira pá que encontrara nos campos onde plantava milho todos os anos. O objeto era velho e enferrujado e, para ela, belo.

O silêncio que se seguiu fez parecer como se ele estivesse na sala junto dela.

– Estou feliz que não tenha desligado – Lane disse por fim.

– Eu queria poder desligar.

– Eu sei.

Ela pigarreou.

– Pensei em tudo o que me disse, no caminho para casa. Pensei em como você estava enquanto conversava comigo. Pensei… em como as coisas eram.

– E?

– Lane, mesmo que eu conseguisse superar tudo, e não estou dizendo que consigo, o que, exatamente, você quer de mim?

– Qualquer coisa que você me der.

Ela gargalhou num acesso tenso.

– Isso foi bem franco.

– Tenho outra chance com você? Porque vou te dizer isso agora, neste instante, se houver a mínima chance de você me aceitar, eu…

– Pare – ela inspirou fundo. – Apenas… pare.

Quando ele parou, ela ficou puxando e puxando o cabelo, com tanta força que seus olhos ficaram ainda mais marejados. Ou talvez isso estivesse acontecendo por outros motivos.

– Eu queria que você não tivesse voltado – ela se ouviu dizer. – Eu queria… Eu já estava te esquecendo, Lane. Estava recuperando o meu fôlego, a minha vida. Eu estava… e agora você está aqui, dizendo as coisas que quero ouvir, olhando para mim como se estivesse falando sério. Mas eu não quero voltar. Não posso.

– Então vamos em frente.

– A vida não é fácil assim.

– Não é. Mas é melhor do que nada.

Enquanto o silêncio se estendia uma vez mais, ela não sentiu necessidade de falar, de explicar mais coisas, de detalhar tudo. E enquanto as palavras martelavam em sua cabeça, ela desistiu de lutar.

– Não fiquei um dia, uma noite sem pensar em você, Lizzie.

O mesmo valia para ela, mas ela não queria lhe dar esse tipo de munição.

– O que você andou fazendo esse tempo todo lá?

– Nada. E estou falando sério. Fiquei com um amigo, o Jeff… bebi, joguei pôquer. Esperei, querendo ter uma oportunidade de falar com você.

– Por dois anos.

– Eu teria esperado uma dúzia.

Lizzie parou de puxar o cabelo.

– Por favor, não faça isso…

– Eu quero você, Lizzie.

Enquanto assimilava as palavras, seu coração batia tão forte que ela conseguiu sentir o aumento na pressão sanguínea no peito e no rosto.

– Nunca deixei de te querer, Lizzie. De pensar em você. De desejar que você estivesse comigo. Diabos, sinto como se estivesse num relacionamento com um fantasma. Eu te vejo nas ruas de Nova York sem parar, em alguma loira passando por mim numa calçada, talvez no modo como ela penteia os cabelos, ou por causa dos óculos, ou pela cor das calças jeans… Eu te vejo nos meus sonhos todas as noites; você é tão real que consigo te tocar, te sentir, estar com você.

– Você tem que parar.

– Não consigo. Lizzie… eu não consigo.

Fechando os olhos, ela começou a chorar baixinho na solidão da sua casa tão modesta, aquela que ela mesma comprara e que estava quase acabando de pagar, o maior símbolo da razão pela qual não precisava de um homem em sua vida, nem agora, nem nunca.

– Você está chorando? – ele sussurrou.

– Não – respondeu depois de um instante, num soluço. – Não estou.

– Está mentindo?

– Sim, estou.

 

TREZE

Lane olhava para o lado oposto do Antigo Silo construído por um dos seus ancestrais, sabendo que estava dentro do limite legal de álcool para poder dirigir, e que isso não duraria muito. Tinha uma garrafa de no 15 contra o quadril, que surrupiara de uma caixa pronta para ser despachada, e apesar de ainda não ter rompido o lacre, tinha toda intenção de secar a garrafa.

Em toda a sua volta, o Antigo Silo estava deserto, e surpreendeu-se ao perceber que o código de acesso do sistema de alarme ainda era o mesmo de antes.

Sabia que deveria deixar Lizzie em paz.

– Sinto muito – murmurou. – Quero dizer todas as coisas certas, fazer as coisas certas, e sei que não estou cumprindo esses objetivos. Maldição, Lizzie…

Inclinou a cabeça para o lado e segurou o telefone entre o ombro e a orelha. Pegando o bourbon, abriu a garrafa e a levou até a boca.

A ideia de tê-la feito chorar de novo o comia vivo.

– Você está bebendo? – ela perguntou.

– Ou faço isso ou bato a cabeça na parede até sangrar.

Enquanto ela exalava fundo, ele deu mais um gole. E um terceiro.

Quando terminou de engolir e a queimação na garganta cessou, ele fez a pergunta cuja resposta tanto temia: – Você está com alguém?

Ela demorou bastante para responder.

– Não.

Foi sua vez de exalar fundo.

– Não acredito em Deus, mas, neste instante, estou com vontade de me autoproclamar cristão.

– E se eu não te quiser mais? O que vai fazer, então?

– Está me dizendo que isso é verdade?

– Talvez.

Ele fechou os olhos.

– Então, eu vou recuar. Isso vai acabar comigo… mas vou embora.

Mais silêncio. Que ele passou bebendo da garrafa.

– Amigos – ela disse por fim. – Só vou até aí. É só isso que consigo fazer.

– Ok. Respeito isso.

Ele conseguiu ouvir o alívio na voz dela.

– Obrigada.

– Mas – ele a interrompeu – o que, exatamente, isso quer dizer?

– Como é?

– Bem, amizade… Como é isso? Posso te telefonar, certo? Amigos podem comer juntos de vez em quando, só para se manterem a par das novidades, não é? Você sabe, divórcio, planos de mudança, novas direções, esse tipo de coisa.

– Lane.

Ele sorriu.

– Adoro quando você diz meu nome desse jeito.

– Quando estou irritada?

– É sexy.

Lizzie pigarreou.

– Essa palavra não cabe numa amizade, ok?

– Eu apenas constatei um fato.

– Uma opinião.

– Fato.

– Lane, estou te avisando, você precisa…

Enquanto ela prosseguia, falando à sua maneira tipicamente franca e sem rodeios, ele fechou os olhos e prestou atenção às ordens dela, deixando que seu tom de voz o envolvesse. Bem no íntimo, aquele desejo velho e tão conhecido despertou, como um dragão adormecido… e o ímpeto foi tão forte que ele quis entrar no carro e atravessar as pontes até Indiana.

– Ainda está aí? – ela perguntou, brava.

– Ah, estou. – Arrumando a ereção dentro das calças, refreou um gemido. – Estou, sim.

– O que está fazendo?

Ele afastou a mão para longe, bem longe do marco zero.

– Nada.

– E então? – disse ela. – Está ou não?

– Estou o quê?

– Dormindo enquanto fala comigo.

– Muito pelo contrário – ele murmurou.

Houve uma leve pausa e depois:

– Ah…!

Como se ela o tivesse compreendido.

– Melhor eu desligar – ele disse, rouco. – Cuide-se. Nos falamos amanhã.

Só que ela não parecia querer que ele desligasse… e seu pau ficou todo lépido e faceiro.

– Quer dizer que você vai ficar? – ela perguntou.

Podemos falar sobre outro assunto?, sua ereção pensou.

Sossegue, garoto.

– Sim, vou. – Quando ele mudou de posição no chão duro, tentou ignorar o modo como o zíper resvalou. – Tenho que me encontrar com Samuel T. para falar do divórcio.

– Então, você vai mesmo…

– Vou – ele disse. – Imediatamente. E não, não é só por sua causa. Cometi um erro, e vou consertar isso para o bem de todo mundo.

– Tudo bem. – Ela pigarreou. – Ok.

– Só estou seguindo em frente, Lizzie.

– Se é o que você diz. Bem, tchau…

– Não – ele a interrompeu. – Assim não. Nós dizemos boa noite, está bem? E não tchau, a menos que você queira que eu apareça na soleira da sua porta como um cachorro sem dono.

– Está bem.

Antes que ela desligasse, ele formou um “eu te amo” com os lábios.

– Boa noite, Lizzie.

– Boa noite… Lane.

Encerrando a ligação, Lane deixou o braço cair, e o aparelho bateu no piso de concreto com um baque.

– Eu te amo, Lizzie – disse em voz alta.

Tomando mais um gole da garrafa, pensou em como era conveniente que a fortuna da família se baseasse em algo com o qual ele poderia se embebedar. Se fosse uma enormidade de outros produtos de consumo – canetas, baterias de carro, band-aids, chicletes –, nada poderia ajudá-lo na sua atual situação.

Quando o telefone voltou a tocar, ele o atendeu de pronto. Mas não era Lizzie.

– Jeff – ele disse, mesmo não querendo conversar com mais ninguém.

A voz do seu anfitrião nova-iorquino soou seca.

– Você ainda está vivo.

– Basicamente. – Levou a garrafa de volta à boca. – E você, como é que você está?

– Está bebendo?

– Isso mesmo. No 15. Eu dividiria com você, se estivesse aqui.

– Um cavalheiro sulista, sem dúvida. – Seu amigo praguejou. – Lane, onde você está?

– Em casa.

Houve tempo suficiente para grilos cantarem na conexão.

– Você está se referindo a…

– Isso mesmo.

– Charlemont?

– Nascido e criado eu fui, e ao lar regressei. – Puxa. Devia estar ficando bêbado, estava parecendo um sulista de verdade. – Assim como você e o Upper East Side, só que nós temos miúdos de porco e frango frito.

– Que diabos você está fazendo aí?

– A minha… – Pigarreou. – Uma pessoa muito importante para mim adoeceu. Tive que voltar.

– Quem?

– A mulher que me criou. A minha… bem, a minha mãe. Mesmo ela não sendo a minha mãe biológica. Ela ficou doente alguns anos atrás, mas sabe como são essas coisas. Elas podem voltar. Ela diz que vai ficar bem, então estou me apegando a isso.

– Quando vai voltar?

Lane tomou mais um gole.

– Já te contei que me casei?

– O quê?

– Foi um pouco antes de eu ir para o norte e acabar no seu sofá. Vou ficar aqui até a senhorita Aurora ficar bem e, assim, vou poder cuidar dessa outra coisa idiota. Além disso… é que… tem essa outra mulher.

– Espera um minuto. Cacete. Espera aí…

Houve uma espécie de farfalhar, seguindo de um clic, clic, clic como se alguém estivesse tentando acender um isqueiro… e depois uma baforada.

– Vou precisar de um cubano para ouvir isso. Então, você tem uma esposa?

– Eu te disse que não era gay.

– Foi por isso que você não ficou com ninguém aqui?

– Não, foi por causa da outra mulher. Aquela com quem não me casei. Aquela que é naturalmente bonita e boa demais para mim.

– Vou precisar de um diagrama de Venn – o cara murmurou. – Cacete, por que não me contou nada disso?

Lane balançou a cabeça, mesmo que o amigo não pudesse vê-lo.

– Eu estava no modo de fuga. – Caramba, odiou o fato de Chantal estar certa. – Tudo estava barulhento demais dentro da minha cabeça. A coisa toda. Então, como é que você está?

– Você joga isso tudo em cima de mim e termina querendo saber como é que eu estou?

– Tenho que voltar a beber. Conversar está me retardando, mas estou disposto a ouvir. – Tomou um gole grande. – E aí? Alguma novidade?

– Estou bem, você sabe, as coisas de sempre no trabalho. Dez mil amplificadores ligados, um chefe que não sai do meu rabo e dezesseis comprimidos de Motrin por dia para impedir que a minha cabeça exploda. O mesmo de sempre. Pelo menos ainda tem dinheiro… ainda mais agora que você não está me arrancando um quarto de milhão de dólares todas as semanas no feltro verde.

Conversaram um pouco mais sobre nada em especial. Jogos de pôquer, Wall Street, a mulher com quem Jeff andava transando… E mesmo que Lane não fosse muito de ficar conversando ao telefone, percebeu que estava com saudades do cara. Acostumara-se à troca rápida, às sacadas inteligentes e, em especial, àquele sotaque de Jersey nos fim das frases e no uso de algumas outras palavras.

– Então, acho que é adeus por ora – seu antigo colega de classe disse.

Lane franziu o cenho e visualizou Lizzie. Ouviu a voz dela. Lembrou-se da cautela dela.

Depois rearranjou sua ereção persistente.

Ficou se perguntando se existia a mínima possibilidade de voltar para Nova York.

Pensando bem, seria melhor não se adiantar. No que se referia a reconquistar Lizzie, dependia de duas pessoas. Só porque estava pronto para retomar o relacionamento deles não significava que ela se apressaria. E também havia a sua família. Como se ele conseguisse se imaginar voltando a viver em Easterly… Mesmo que a senhorita Aurora ficasse bem de saúde e que ele e Lizzie se acertassem, a ideia de coexistir com o pai bastava para ele contemplar a fronteira canadense com carinho. E nem isso seria longe o suficiente.

– Não sei se vou ficar de vez.

– Você sempre pode voltar. O meu sofá já está com saudades de você… e ninguém joga Texas Hold’em como você.

Os dois desligaram depois de se despedirem, e enquanto Lane mais uma vez largava o braço e deixava o aparelho cair, concentrou-se na antiga destilaria do lado oposto. O lugar fora usado por décadas na virada do século, e agora era visitado por dezenas de milhares de turistas que vinham conhecer o Antigo Silo durante todo o ano.

Por algum motivo, percebeu que nunca tivera um emprego. A extensão dos seus “empenhos profissionais” era evitar os paparazzi, o que era mais uma questão de sobrevivência do que algo relacionado a uma carreira. Graças ao seu fundo fiduciário, não sabia o que eram chefes ou colegas de cubículo chatos, nem trajetos ruins para o trabalho e de volta para casa. Não se preocupava em estar em algum lugar num determinado horário, ou em concluir relatórios, nem tinha dores de cabeça devido às tantas horas passadas diante da tela do computador.

Engraçado, nunca antes considerara o fato de ter tanto em comum com Chantal. A única diferença entre eles era que o dinheiro da família dela não bastava para sustentar o estilo de vida a que se acostumara, motivo pelo qual tivera que se casar com ele.

E lá estava Lizzie, trabalhando duro, pagando aquela fazenda. Conhecendo-a como a conhecia, ela já devia estar chegando ao seu objetivo.

O que o fazia respeitá-la ainda mais.

E também o fazia se questionar exatamente o que tinha para oferecer a uma mulher de substância. Dois anos atrás, estivera todo excitado e metido no drama familiar, ávido por ela fisicamente, e tão cativado por ela mentalmente que nunca olhara para si mesmo segundo o ponto de vista dela. Todo o seu dinheiro e a sua posição social só tinham valor para pessoas como Chantal. Lizzie queria mais, merecia mais.

Ela queria a realidade.

Talvez, no fim das contas, ele não estivesse tão acima daquela sua esposa.

Ex-esposa, corrigiu-se, enquanto continuava a beber.

 

CATORZE

– A que devo a honra?

O pai de Gin falava, e seu tom era de afirmação, não de pergunta, e sugeria que o fato de ela estar parada na porta do quarto dele era uma invasão.

Que pena, ela pensou com ironia.

– Quero saber que diabos aprontou com Richard Pford.

O pai não demonstrou nenhuma reação, parado diante da cômoda, prosseguindo com o ato de retirar as abotoaduras de ouro. O paletó do smoking preto tinha sido dobrado uma vez e estava ao pé de uma chaise longue, e os suspensórios preto e vermelho haviam sido retirados dos ombros e estavam pendurados na cintura como duas fitas.

– Pai – ela rugiu. – O que você fez?

Ele a deixou esperando até tirar a gravata borboleta, puxando-a do colarinho.

– Está na hora de você se assentar…

– Você dificilmente está em posição de defender o matrimônio.

– … e Richard é um marido perfeito.

– Não para mim.

– Isso ainda veremos. – Virou-se na direção dela, os olhos frios, o belo rosto impassível. – E não se engane, você se casará com ele.

– Como ousa! Não estamos na virada do século. As mulheres não são bens, podemos ter propriedades, as nossas próprias contas bancárias, podemos até votar! E, com certeza, podemos decidir se queremos ou não atravessar a nave de uma igreja… E eu não vou, de modo algum, sair com aquele homem, quanto menos me casar com ele! Ainda mais se isso beneficiar você de algum modo.

– Sim, você vai. – Por uma fração de segundo, o olhar dele se desviou para cima do ombro dela e ele meneou a cabeça como se estivesse dispensando alguém no corredor. – E fará isso o mais rápido possível.

Gin se virou, esperando ver alguém atrás de si na soleira da porta. Não havia ninguém ali.

Voltou a se concentrar nele.

– Você vai ter que apontar uma arma na minha cabeça.

– Não será preciso. Você fará isso por sua própria escolha.

– Não.

– Sim, você vai.

No silêncio que se seguiu, o coração dela deixou de bater algumas vezes. Durante toda a vida, aprendera a odiar e a temer o pai. E naquele silêncio tenso, de ar estagnado entre eles, ela se perguntou, e não pela primeira vez, do que ele seria verdadeiramente capaz.

– Você pode escolher brigar – disse ele com suavidade. – Ou pode ser eficaz em relação ao assunto. Você só vai acabar se ferindo se não fizer isso pela família. Agora, se me permite, vou me recolher…

– Você não pode me tratar dessa maneira. – Ela forçou um pouco a voz. – Não sou um executivo da empresa que você pode empregar e demitir. E não pode me dar ordens, não quando se trata de arruinar a minha vida.

– A sua vida já está arruinada. Você teve uma filha aos dezessete anos, aqui, nesta mesma casa, pelo amor de Deus, e deu seguimento a isso com o comportamento promíscuo tipicamente reservado para as strippers de Las Vegas. Quase não se formou na Sweet Briar por causa do affair com o professor de inglês, que era casado e, assim que voltou a morar aqui, deitou-se com o chofer. Você é a desgraça da família. E pior, tenho a distinta impressão de que parte da sua diversão nessas suas aventuras é a vergonha que provoca em sua mãe e em mim.

– Talvez se eu tivesse um bom exemplo masculino para admirar, eu não considerasse os homens tão universalmente desagradáveis.

– Antes você os considerasse mesmo desagradáveis. No entanto, esse parece não ser o seu problema. Por algum motivo, Richard não se intimidou com a sua reputação, um erro de julgamento que, por certo, ele vai acabar lamentando. Ainda bem que não é problema meu.

– Eu te odeio – ela sibilou.

– O mais triste, minha querida, é que lhe falta suficiente profundidade para tal nível de inimizade. Se fosse minimamente inteligente, perceberia que Richard Pford será capaz de mantê-la no estilo de vida que você necessita, tanto quanto precisa do ar para respirar, pelo resto dos seus dias. E você estará garantindo a continuação do sucesso e da saúde financeira da família que lhe deu essa bela ossatura e essa adorável coloração facial. Essa será, depois de tudo, a sua única contribuição ao nome “Bradford”.

Gin mal percebia que estava respirando superficialmente.

– Algum dia, você vai pagar pelos seus pecados.

– Está se tornando religiosa agora? Acredito que qualquer tipo de conversão para você será difícil, até por alguém como Jesus.

– Como pode ser tão odioso? Nunca conheci ninguém tão cruel quanto você…

– Só estou cuidando de você do único modo que sei. Estou lhe dando uma fortuna, um nome honrado, e você poderá levar Amelia com você, se desejar. Ou ela pode ficar aqui.

– Como se ela não passasse de uma maleta? – Balançou a cabeça. – Você é um depravado. Absolutamente depravado…

Ele avançou e a agarrou pelo braço, permitindo que alguma emoção escapasse por baixo da máscara aristocrática de autossegurança.

– Você não faz a mínima ideia do que é necessário para manter esta família. Nenhuma ideia. A sua tarefa diária mais complexa é priorizar o que fazer antes: unhas ou cabelos. Portanto, não ouse falar de depravação quando estou resolvendo o problema de todos os sanguessugas debaixo deste teto. Os termos favoráveis de Richard Pford continuarão a nos permitir isso. – Balançou a saia do vestido de gala dela. – E isso… – Apontou para o colar no seu pescoço. – E todas as outras coisas das quais você tira vantagem diariamente sem parar para ponderar, nem que seja por um instante, como chegaram até você e a que custo. Casar-se com aquele homem é a única coisa que já lhe pediram em troca pela sua boa estrela ao nascer e pela sua liberdade de cobiça. Você é uma Bradford dos pés à cabeça, capaz apenas de consumir, mas, às vezes, um pagamento deve ser feito. Portanto, sim – ele enfatizou –, posso lhe garantir que você será a deveras feliz e contente senhora Richard Pford. Você lhe dará filhos e será fiel a ele, ou, que Deus me ajude, eu a surrarei como a garotinha de cinco anos que você ainda é. Estamos entendidos? Ou quem sabe você vai preferir fazer um curso intensivo para tentar ser como as pessoas que lavam os seus carros, preparam a sua comida, limpam o seu quarto e passam as suas roupas? Talvez você goste de saber como é difícil trabalhar para se sustentar.

– Eu te desprezo – ela disse, trêmula dos pés à cabeça.

O pai também arfava, e tossiu no punho cerrado.

– Como se me importasse. Vá em frente, faça o seu escândalo, esperneie e grite, só provará o quanto estou certo. Se for uma mulher de fato, em vez de apenas uma criança mimada e malcriada, acordará pela manhã e cumprirá o seu dever pela primeira vez em sua vida.

– Eu seria capaz de te matar neste mesmo instante!

– Mas, para isso, você teria que carregar uma arma, não é? Não é algo que possa pedir a uma criada, desde que, claro, não queira ser descoberta.

– Não me subestime…

– Visto o baixo padrão que estabeleceu para si mesma, isso seria algo muito difícil de fazer.

Girando sobre os calcanhares, ela saiu do quarto aos tropeções, e correu pelo corredor até a sua suíte. Lançando-se pela porta, trancou-se e ofegou.

Ah, inferno, não, não, jurou. Você não vai fazer isso comigo.

Se ele achava que antes ela era um problema, ele que esperasse pelo que ela aprontaria em seguida.

Enquanto marchava do quarto para o banheiro, planos reviravam em sua cabeça, muitos dos quais envolviam crimes contra o pai. No fim, teve que tirar o vestido, e o deixou cair no chão, livrando-se da seda antes de continuar andando de um lado para o outro apenas de bustiê e saltos e aqueles diamantes que a vadia da esposa do irmão tentara pôr as mãos.

Fervendo, só conseguia pensar na primeira vez em que odiara o pai…

Tinha seis, talvez sete anos, quando aconteceu. Noite de Ano-Novo. Acordara por causa dos fogos, que explodiam ao longe sobre o centro da cidade. Assustada, fora à procura de Lane, aquele com quem sempre se sentia amparada… encontrando-o na sala de estar com Max.

Gin insistira em ficar com os irmãos e fazer o que quer que estivessem fazendo. Na época, era a história da sua vida, sempre correndo para acompanhá-los, conseguir alguma atenção, estar no radar de alguma pessoa. Os empregados da casa faziam o que os pais queriam e cuidavam dos irmãos. Ela era uma nota de rodapé, uma reflexão tardia, o tapete no qual tropeçavam a caminho da porta quando iam fazer algo melhor, mais interessante, mais importante.

Não quisera beber aquela coisa da garrafa. O cheiro do bourbon era ruim, e ela sabia que era proibido, mas se Max e Lane iam tomar um pouco, então ela também tomaria.

E assim foram apanhados.

Não uma vez, mas duas.

Assim que entrara na sala, Edward ordenara que ela voltasse para a cama, e ela saíra pelos fundos como ele lhe dissera. Depois de passar pelo corredor dos empregados, porém, ouvira vozes e tivera que se esconder nas sombras a fim de não ser flagrada… quando o pai saíra do escritório de Rosalinda Freeland.

Ele estava usando seu roupão, amarrando as duas pontas do cinto ao sair de lá, e seus olhos estavam arregalados, como se estivesse com raiva, mas não havia como ele ter ouvido suas vozes lá na sala de estar. O primeiro instinto de Gin fora o de correr para a frente da casa e alertar os irmãos. No entanto, o medo a detivera… E, em seguida, a senhora Freeland saíra também, agarrando o pai pelo braço.

Sua mente infantil se perguntara por que a blusa da moça do escritório estava desabotoada, e os cabelos, sempre bem penteados e presos, estavam meio desarrumados.

Os dois discutiram em tons sussurrados, dizendo coisas que ela não conseguiu entreouvir acima das batidas do seu coração. Em seguida, o pai saiu de lá e a senhora Freeland voltou para o escritório, fechando a porta.

Gin permanecera ali pelo que lhe pareceu um ano, temendo sair, caso a senhora Freeland voltasse. Só que ela também temia que o pai voltasse por aquele caminho e a encontrasse.

Ele não devia estar ali com aquela mulher.

Ele não ficaria feliz por ela tê-lo visto.

Descalça, apressou-se pelas escadas dos empregados, colando na parede de gesso conforme subia. Já no segundo andar, paralisou quando uma segunda rodada de fogos se iniciou e, assim que terminaram de explodir, ela se abrigou na porta aberta de um dos quartos de hóspedes, desejando ter algum lugar seguro para ir.

Voltar sozinha para o quarto parecia-lhe aterrorizante. E se, além disso, o pai estivesse procurando por ela?

Sentando-se encolhida, enfiou as pernas junto do corpo e abraçou os joelhos. O pai devia ter encontrado os irmãos. Não havia como o homem não os ter visto, se tivesse usado as escadas da frente.

E isso a assustava mais do que o barulho do lado de fora.

Momentos depois, Edward surgiu no alto da escadaria, com o pai logo atrás, pairando como um monstro. Por algum motivo, o andar do irmão estava trôpego e a pele do rosto estava pálida. O pai lhe pareceu tão inflexível e reprovador quanto um banco de igreja.

Onde estariam os outros dois?

Nada foi dito enquanto eles prosseguiam até a porta do quarto do pai. E quando chegaram ao destino, Edward ficou de lado e depois tropeçou para dentro do cômodo escuro assim que a porta lhe foi aberta.

– Sabe onde estão os cintos.

Foi tudo o que o pai disse.

Não, não, ela pensou. Aquilo não era justo, Edward não estava envolvido! Por que ele…

A porta se fechou num baque, e ela estremeceu ante o que estava para acontecer.

Como esperado, um estalido foi seguido por um grunhido.

De novo.

E mais uma vez.

Edward nunca chorava. Nunca praguejava.

Já ouvira aquilo vezes demais para saber disso.

Gin abaixou a cabeça sobre os braços finos e cerrou os olhos. Não sabia por que o pai odiava tanto Edward. O homem desgostava do resto deles, mas Edward o deixava furioso.

Edward nunca chorava.

Por isso, chorou por ele… E resolveu, dali por diante, que se o pai podia odiar Edward, dois poderiam jogar aquele jogo.

E ela escolheu o que segurava o cinto naquele minuto.

Odiaria o pai dali por diante.

Voltando a se concentrar, Gin descobriu-se sentada na cama, com os joelhos ao encontro do peito, os braços ao seu redor, como se estivesse, uma vez mais, sentada dentro daquele quarto de hóspedes com apenas a camisola para aquecê-la, e o que acontecia no quarto do pai a aterrorizava em seu íntimo.

Sim, fora assim que tudo começara para ela, e William Baldwine nunca lhe dera motivos para reconsiderar o seu ódio. Aquele acordo com Richard Pford era apenas mais um item numa longa lista.

Mas não era o pior.

Não, a pior coisa que o homem fizera foi algo que ela apenas suspeitava, algo que ninguém mencionara, quer sob o teto de Easterly, quer nos jornais.

Estava convencida de que o pai era o sequestrador de Edward.

O irmão ia com frequência à América do Sul, e assim como outros executivos de sua posição, sempre viajava acompanhado de seguranças contratados pela CBB. Com esse tipo de proteção, ninguém deveria ter sido capaz de se aproximar. No entanto, seu irmão fora levado… Não numa estrada, nem mesmo numa localização remota.

Mas da sua suíte no hotel.

Como foi que aquilo pôde acontecer?

A primeira coisa que ela pensou, quando lhe contaram, foi que ali havia dedo do seu pai.

Tinha provas? Não, não tinha. Mas passara a infância inteira vendo o homem observando Edward como se menosprezasse o ar que o garoto respirava. E mais tarde, quando Edward passara a trabalhar na empresa, teve a impressão de que o relacionamento daqueles dois esfriara ainda mais, visto que o Comitê dos Curadores passara a dar mais e mais responsabilidades a Edward.

Haveria um modo melhor de se livrar de um rival do que matá-lo no exterior? De uma maneira que faria William Baldwine parecer vítima por ser um pai “em luto”?

Deus, Edward quase fora enterrado lá. E quando finalmente regressara? Estava em péssimas condições. Nesse meio-tempo, o pai se colocara diante da mídia, dos curadores, da família, mas nunca, sequer uma vez, fora visitar o filho.

Vergonhoso. E na cabeça dela era uma confirmação de que William Baldwine tentara se livrar de uma ameaça corporativa que não podia demitir.

Não era de se admirar que ela não confiasse nos homens.

Não era de se admirar que nunca fosse se casar.

Quanto menos para fazer o pai feliz.

 

QUINZE

Quando chegou a Easterly na manhã seguinte, Lizzie precisou manobrar o Yaris duas vezes para conseguir estacioná-lo direito, o que revelava o quão lamentável era seu estado mental, considerando-se que o carro era do tamanho de uma bicicleta. Saindo dele, pegou desajeitada a bolsa e a deixou cair. E quando se abaixou para pegar o protetor solar no asfalto já quente, percebeu que tinha esquecido de trazer o almoço.

Fechou os olhos.

– Maldição…

– Tudo bem, menina?

Lizzie se endireitou e se virou na direção de Gary McAdams. O chefe da manutenção da propriedade vinha andando pelo gramado, o leve claudicar não o fazia diminuir o ritmo, com o rosto envelhecido pelo tempo crispado em sinal de preocupação, como se estivesse avaliando um trator com eixo solto.

Será que sua aparência estava tão ruim assim?, perguntou-se.

Pensando bem, não dormira praticamente nada.

– Ah, sim, estou bem. – Ela forçou um sorriso. – Ótima.

– Tem certeza disso?

Não.

– Sim. Como vai a sua equipe?

– Já terminaram de cortar a grama e de aparar as trepadeiras, e vou fazer com que limpem o terraço depois das dez. – Porque só então eles tinham permissão para fazer barulho perto da casa. – As tendas foram erguidas, a parte do buffet já está pronta com as grelhas no lugar, mas tem um probleminha.

Lizzie acomodou a bolsa no ombro e pensou que já estava pronta para lidar com qualquer problema que pudesse solucionar.

– O que foi?

– Aquele senhor Harris está querendo falar com você. Tem algo com as taças de champanhe.

– Com a disposição delas nas mesas? – Fechou a porta do carro. – Pensei que elas seriam distribuídas durante a festa.

– Não, só chegou metade do pedido. Ele acha que você mudou a quantidade.

– O q… Por que eu faria isso?

– Ele disse que você é a única pessoa com acesso ao pessoal do aluguel.

– Encomendei as tendas, só isso. É ele quem tem que cuidar da louça, dos talheres e dos copos… Desculpe, estou gritando? Sinto como se estivesse gritando.

Ele apoiou sua grande mão sobre o ombro dela.

– Não se preocupe com isso, menina. O senhor Harry também me deixa doido.

– É senhor Harris.

– Eu sei.

Ela teve que gargalhar.

– Vou lá falar com ele.

– Quando ficar cansada dele, eu tenho uma pá e um ancinho. E muita área verde livre lá na minha casa.

– Você é um cavalheiro.

– Nem perto disso. Me dá a sua bolsa, menina. Vou com você.

– Ela não pesa nada. Pode deixar comigo. – Começou a andar pelo caminho que levava até a ala dos empregados. – Além disso, posso precisar dela para bater na cabeça dele.

– Lembre-se do meu ancinho – ele disse.

– Sempre.

A cada passo sobre as pedras, seu peito se contraía, e a sensação de sufocamento piorava conforme a vastidão da mansão branca surgia ao longe.

Depois de passar a madrugada olhando para o teto, não chegou a conclusão nenhuma sobre ela e Lane. O que ela guardara para si? O som da voz dele no fim do telefonema. Lembrou-se daquele tom sexy que costumava significar que ele encontraria um modo de ficar sozinho com ela, despida, o mais rápido possível.

Pareceu-lhe uma traição total que seu corpo não fosse nada além de um simples “ah, sim, pode vir” – como se sua libido desejasse o retorno do seu mestre. Afinal, ela era muito mais do que apenas um ou dois orgasmos roubados com um homem que ela deveria estar manuseando com pinças de churrasco e um extintor de incêndio.

Loucura.

Quando, por fim, chegou à casa, passou pela entrada lateral do jardim e atravessou a porta dos fundos da cozinha só para se certificar de que tudo o que preparara para a festa ainda estava onde havia deixado na noite anterior.

O que era tolice. Como se um punhado de elfos tivesse entrado ali e bagunçado tudo à luz do luar.

Entrou pela porta de empregados e cruzou a imensa cozinha que, naquele momento, estaria limpa, fria e vazia, apenas à espera dos chefs que estavam escalados para trabalhar das oito às oito. Só que o cômodo não estava completamente deserto. A senhorita Aurora estava diante do fogão industrial, com uma panela de ferro cheia de bacon estalando à esquerda, uma segunda à direita tomada de ovos mexidos. Quatro pratos estavam dispostos na bancada de aço inoxidável da ilha principal, junto de tigelas com framboesas e mirtilos frescos, um açucareiro, um pote com creme de leite e café sobre uma bandeja, sem falar de uma seleção de pãezinhos doces caseiros.

– Senhorita Aurora?

A mulher olhou por sobre o ombro.

– Ah, aí está ela. Como está? Já comeu?

– Sim, senhora.

– Não o bastante. Você e Lane, magrinhos demais. – A cozinheira se voltou para os ovos e os virou com uma espátula vermelha. – Você deveria deixar que eu te alimentasse.

– Não quero causar problemas. – Houve um grunhido de desaprovação, e antes que a discussão de sempre começasse, Lizzie a interrompeu. – A senhora me parece bem.

– Eu disse praquele mordomo que não precisava de nenhuma ambulância.

– Pelo visto, a senhora tinha razão. – E Lane devia estar muito aliviado. – Viu o senhor Harris?

– No escritório dele. Quer que eu vá com você?

– Então ficou sabendo do “champanhegate”?

– Fui eu que mandei Gary te avisar. Eu sabia que ele ia te ver quando você chegasse. Não quis que você viesse pra cá sem ter sido avisada antes.

– Não mudei o pedido.

– Claro que não. – A senhorita Aurora levantou uma frigideira de uns sete quilos como se não pesasse mais que um prato de papel. Enquanto distribuía os ovos, balançava a cabeça. – Existe uma explicação perfeitamente boa.

– Qual?

– Não é da minha conta.

– Tuuudo bem. – Lizzie deu um tempo para que a cozinheira se explicasse, mas ela não o fez. – Bem, de toda forma, vou cuidar disso. Estou muito feliz que esteja bem e de pé, senhorita Aurora.

– Você é uma boa menina, Lizzie. Mas seria ainda melhor se me deixasse te oferecer o café da manhã.

– Talvez na próxima vida.

– Só se tem direito a uma. Depois, a gente vai pro céu.

– É o que o meu pai sempre me dizia.

– O meu também.

Andando sobre o piso de azulejos, Lizzie empurrou as portas duplas e seguiu pelo corredor dos empregados. O escritório do senhor Harris ficava bem diante do de Rosalinda, e ela bateu à porta do mordomo. E mais uma vez. Na terceira, achou que estava esfolando os nós dos dedos à toa.

Fungando no ar, fez uma careta e considerou que o corredor precisava ser arejado urgentemente. Mas, pensando bem, os Bradford se recusavam a instalar ar-condicionado ou aquecimento naquela parte da casa. Afinal, os empregados que se virassem.

Seguindo até a porta envernizada de Rosalinda, também bateu ali, mesmo que a organizadora da família fosse rígida em seu horário de trabalho das nove às cinco, com trinta minutos de almoço precisamente ao meio-dia e dois intervalos de quinze minutos às 10h30 e às 15 horas. A agenda controlada lhe parecera bizarra a princípio, mas, alguns anos mais tarde, já era somente mais uma das muitas regras e regulamentos de Easterly. E fazia sentido, uma mulher que não fazia nada além de pagar contas e somar e subtrair números provavelmente tinha uma régua de cálculo nas veias e sérios problemas de controle.

Daí, então, seu título.

Pousando as mãos nos quadris, Lizzie sabia que o mordomo muito provavelmente estaria servindo a família na sala de jantar íntima. Inclusive Lane.

Consultou as horas no relógio de pulso. Não ficaria esperando pelo senhor Harris e, de jeito nenhum teria aquele confronto diante dos outros. Além disso, ela tinha trabalho a fazer: não terminara os arranjos florais na noite anterior.

Seguindo para a estufa pelo caminho dos fundos, deixou de lado sua confusão mental e se concentrou no que tinha para fazer. Depois que terminasse os arranjos, disporia as toalhas de mesa, já que não havia probabilidade de chuva e de vento forte antes do Brunch da manhã seguinte. E estava encarregada de colocar todos os pratos e copos onde precisavam ficar: junto aos bares e estações de serviço espalhados pelos jardins. Greta deveria chegar em…

– Bom dia.

Lizzie parou com a mão na maçaneta da estufa.

Relanceando por cima do ombro, deparou-se com os olhos de Lane. Ele estava sentado numa espreguiçadeira lateral, com as pernas dobradas na altura dos joelhos, os cotovelos nos apoios de braço, os dedos longos cruzados diante do peito. Usava as mesmas roupas da noite anterior e o cabelo estava uma bagunça completa, como se ele não tivesse dormido em sua cama.

– Esperando por mim? – ouviu-se dizer enquanto seu coração batia forte.

Em seu quarto, Gin amarrotava uma blusa Prada e a enfiava num dos cantos da sua mala Louis Vuitton de rodinha.

– Lenço de papel… era para você colocar lenço de papel aí. Onde ele está…

Começando a procurar, encontrou as folhas cor-de-rosa clarinhas com suas iniciais estampadas numa gaveta ampla dentro de seu guarda-roupa. De volta para onde estava arrumando a mala, lambeu o dedo e tirou uma das folhas, sendo atingida pela fragrância suave de Coco, porque a empregada borrifava cada um dos lenços individualmente assim que eram entregues na casa. Colocando o papel delicado ao redor do bolinho de seda, cobriu tudo com uma saia McQueen.

Repetindo o processo até ter quatro conjuntos completos ali, inclinou-se para trás para dar uma olhada no trabalho. Horrível. Nada parecido com o que Blanche fazia para ela, mas não pretendia esperar até que a mulher chegasse para o seu turno ao meio-dia.

Gin estava fechando a mala quando percebeu que não tinha separado roupas íntimas, sapatos e tampouco os artigos de higiene.

Pegou outra mala LV e dispensou o lenço de papel.

De toda forma, o que importava? Acabaria simplesmente comprando tudo que precisasse.

Quando terminou, levantou o telefone ao lado da cama e ligou para o escritório de Rosalinda, sem acreditar quando a secretária eletrônica pediu que deixasse um recado.

– Onde diabos essa mulher foi…

Uma olhada rápida para o relógio Cartier sobre a mesa e ela descobriu que ainda eram 8h30. Deus, há quanto tempo não se levantava cedo assim?

Arranjos para o uso dos jatinhos também podiam ser feitos por meio da assistente executiva do pai, e aquele robô estava sempre junto à sua escrivaninha. Mas Gin só queria que ele soubesse que ela estava partindo quando estivesse na metade do caminho até a Califórnia e, sem dúvida, seu buldogue de saia atacaria o telefone para avisá-lo assim que ela a acionasse.

Deus, aquela expressão no rosto dele na noite anterior fez seu sangue gelar. Nunca o vira tão furioso.

Mas, em retrospecto, ela era mesmo filha do seu pai: assim como no jogo do ódio, dois podiam jogar aquele novo jogo.

Dez minutos mais tarde, Gin puxou as alças da bagagem e as rolou até o corredor, tropeçando sobre as malditas malas. Com a bolsa de monograma combinando com a bagagem batendo na lateral do corpo, empinou um dos saltos Louboutin para fechar a porta, e praguejou contra a falta de um carregador.

Mas também não confiava no mordomo.

A bem da verdade, não confiava em ninguém naquela casa.

Antes de tomar o elevador até o porão, foi até o quarto de Amelia e abriu a porta.

Pela primeira vez, percebeu a decoração.

A cama de dossel branca e rosa era queen size, apesar de a filha pesar pouco mais que um travesseiro, e não havia nenhum pôster da Taylor Swift ou do One Direction nas paredes. A penteadeira era francesa e antiga, o banheiro acoplado era de mármore e latão, e tinha mais de sessenta anos, e o candelabro Baccarat no meio do quarto era suspenso por uma corrente coberta por seda, e debaixo dele havia um medalhão de ouro feito à mão.

Parecia mais o quarto de uma senhora de cinquenta anos do que de alguém de quinze.

Dezesseis, a partir da noite anterior, Gin se lembrou.

Andando na ponta dos pés sobre o tapete bordado à mão, ela apanhou seu retrato predileto da menininha de cabelos negros, que agora já não eram mais tão escuros já que ela estava fazendo luzes a cada seis semanas, e tampouco era tão pequenina, pois já estava no segundo ano em Hotchkiss.

Só de pensar na filha, a ideia de sair de Easterly lhe parecia cada vez mais acertada. Ela tinha duas amigas esperando por ela em Montecito, e ficaria lá até que o pai entendesse que podia muito bem administrar uma empresa bilionária, mas que não mandava nela. E depois disso? Voltaria para lá com certa regularidade, só para ele ver que cometera um erro.

De novo no corredor, refreou os xingamentos ao se arrastar até o elevador e entrar. Quebrou uma unha ao apertar repetidamente o botão para fechar a porta, e quase quebrou um dos saltos quando pisou no chão da adega, puxando as malas para fora.

Não fazia a mínima ideia de onde ir. Onde ficava a garagem. Como se orientar no andar subterrâneo.

Levou quase vinte minutos para encontrar o túnel que levava até a frota da família, e quando emergiu na garagem para dez carros, sentia-se como se tivesse não só acabado de correr uma maratona, mas vencido.

Só que estava sem as chaves dos carros. Nada no Bentley. Nem do Drophead. E não pegaria nem o Porsche GTS, nem a Ferrari, tampouco o Jaguar antigo que se parecia com o de Samuel T., porque todos eles tinham câmbio manual e ela não sabia dirigir modelos assim. O mesmo acontecia com os 911 e o Spyker.

E os sedãs Mercedes não eram bons o bastante para ela.

– Maldição! – Quando bateu o pé no chão, uma das malas de rodinha caiu como se tivesse desmaiado. – Onde estão as chaves?

Abandonando a bagagem, marchou até o escritório. Trancado. Assim como as portas da garagem.

Aquilo era totalmente inaceitável.

Pegou o celular, estava prestes a telefonar – bem, não sabia exatamente para quem, mas para alguém –, quando um armarinho pendurado na parede chamou sua atenção. Indo na direção da portinha de metal de 0,3 por 0,9 metros, deu um puxão na alça, e não se surpreendeu quando a porta não cedeu.

A boa notícia? Ela estava com muita vontade de bater em alguma coisa.

Olhando ao redor, não viu nada fora do lugar. Desde lonas para cobrir os carros, até pneus sobressalentes e material de limpeza, tudo estava organizado numa parede com precisão militar em prateleiras, ganchos, e caixas tampadas.

Exceto pelo pé de cabra, que encontrou encostado numa pilha de panos limpos com o brasão da família bordado.

Gin sorriu ao caminhar do alto dos seus saltos, erguendo a peça de metal. De volta ao armário, arqueou o objeto acima da cabeça e bateu na caixa onde estavam as chaves como se aquilo fosse a cabeça do pai. Bateu, bateu, bateu e bateu, o som metálico agudo ecoando em seus ouvidos.

Apesar de já estar quase sem unhas quando concluiu a tarefa, a porta estava pendurada no que restava das suas dobradiças.

O Bentley, decidiu.

Não, o Rolls. Custava mais caro.

Levando a bagagem até o Phantom Drophead, abriu a porta que se abria ao contrário, enfiou as malas no banco de trás e se pôs atrás do volante. Afundou o sapato de salto no freio, apertou o botão da ignição e o motor rugiu a vida com um rosnado latente.

Esticando a mão na direção do espelho retrovisor, apertou todos os botões até a porta da frente se erguer.

E partiu.

A raiva dentro dela fez com que quisesse passar pelo caminho frontal só para desfilar diante dos cômodos particulares da família; mas era mais importante sair da propriedade sem que ninguém soubesse, por isso contentou-se em levantar o dedo médio para Easterly pelo espelho retrovisor enquanto usava o caminho dos empregados.

Quando chegou à estrada River, virou à esquerda, verificou as horas e pegou o telefone. Rosalinda já deveria ter chegado àquela altura, e ela poderia finalmente cuidar dos arranjos para o jatinho, o que não deveria ser um problema. Gin pedia o avião pelo menos uma vez por semana.

Caixa postal. De novo.

O maldito Brunch. Esquecera-se dele. Todos os funcionários estavam distraídos.

Mas ela tinha necessidades.

Gin ligou para outro número, um que tinha apenas um dígito diferente do de Rosalinda. Ao terceiro toque, ela estava quase desistindo quando ouviu o inconfundível sotaque britânico daquele mordomo.

– Senhor Harris falando, como posso ajudar?

– Preciso de um avião e não consigo falar com a Rosalinda. Você vai ter que providenciá-lo para mim. Decolando neste instante para o aeroporto de Los Angeles.

O mordomo limpou a garganta.

– Senhorita Baldwine, perdoe-me…

– Não venha me dizer que está ocupado demais. Você pode ligar diretamente para o piloto, já fez isso antes, e depois pode voltar para qualquer uma das suas incumbências idiotas do Brunch…

– Lamento, senhorita Baldwine, mas não haverá um avião disponível para a senhorita.

– Você só pode estar brincando. – Sem dúvida era por causa daqueles convidados corporativos que estavam chegando para o Derby. Mas ela era da família, pelo amor de Deus. – Tudo bem, apenas atrase alguém e eu…

– Não será possível.

– Eu sou prioridade! – O Phantom ganhou velocidade quando ela apertou o acelerador, pelo menos até quase acertar o carro na frente dela. – Isso é inaceitável. Ligue para aquela torre de controle, ou para aquela lista de pilotos ou… para quem quer que me coloque num maldito avião para a costa oeste!

Houve uma longa pausa.

– Sinto muito, senhorita Baldwine, mas não poderei mais fazer esse tipo de serviço para a senhorita.

Um alerta gélido apertou a sua nuca.

– Que tal mais tarde, ainda esta manhã?

– Não será possível.

– À tarde.

– Lamento, senhorita Baldwine.

– O que o meu pai lhe disse?

– Não cabe a mim comentar o que…

– Que porra que ele te disse? – ela berrou ao telefone.

A respiração que o homem soltou era o mais próximo que ele chegaria a uma imprecação em voz alta.

– Esta manhã, recebi um memorando dirigido à organizadora e a mim, indicando que os recursos da família não estariam mais disponíveis para a senhorita.

– Recursos…?

– O que inclui dinheiro vivo, contas bancárias, viagens e acomodações em hotéis, e acesso às demais propriedades dos Bradford ao redor do mundo.

Nessa hora o pé dela escorregou do acelerador, e quando o carro atrás dela buzinou, ela foi para o acostamento.

– Gostaria de poder fazer algo – ele disse num tom neutro que indicava que isso não era verdade. – Mas, como já disse, estou impossibilitado de ajudá-la.

– O que devo fazer?

– Talvez voltar para casa seja o melhor. Acabei de vê-la saindo no Rolls-Royce.

– Não vou me casar com Richard Pford – ela disse e depois encerrou a ligação.

Quando olhou pelo retrovisor, os arranha-céus denteados do centro da cidade pareceram assustadores pela primeira vez em sua vida. Nunca antes se impressionara com a cidade de Charlemont, tendo dado a volta ao mundo diversas vezes. Mas todas essas viagens aconteceram enquanto ela tinha recursos ilimitados ao seu dispor.

Com a mão trêmula, pegou a carteira e levantou o fecho. Ela tinha cinco notas de cem dólares e algumas de vinte… e sete cartões de crédito, inclusive um Amex Centurion. Estava sem a habilitação porque sempre andava com motorista particular. Também não tinha o cartão do seguro de saúde porque fazia uso dos serviços dos médicos afiliados à Cia. Bourbon Bradford. Não estava nem com o passaporte, apesar de não ter planejado sair do país.

Duzentos metros mais adiante, havia um posto de gasolina, e ela voltou a acionar o Phantom, seguindo o fluxo do trânsito. Quando chegou ao símbolo da Shell, cortou caminho diante de um caminhão que vinha na direção oposta e parou junto a algumas bombas de abastecimento.

Quando saiu, não foi para abastecer o carro. O tanque estava cheio.

Sacou um cartão Visa qualquer e colocou-o no leitor. Em seguida, apertou as teclas que compunham a sua senha. Esperou para ver se a transação hipotética seria aceita.

Não aprovado.

Tentou o Amex e recebeu a mesma resposta da máquina. Quando outros dois Visas não funcionaram, ela desistiu.

Ele bloqueara os seus cartões.

De volta ao volante, tudo ficou embaçado. Tinha investimentos por toda parte, dinheiro que lhe pertencia… mas só dali a dois anos, quando completasse trinta e cinco, e nenhum dia antes disso – algo que descobrira quando num impulso tentara comprar uma casa em Londres no ano passado e tivera esse desejo negado pelo pai. Pouco importou o quanto tivesse gritado com a empresa do seu fundo, eles se recusaram a lhe entregar o dinheiro, declarando que ela não tinha permissão para acessá-lo até que atingisse a idade estipulada.

Só havia um lugar para onde poderia ir.

Odiava implorar, mas isso era muito melhor que se casar, ou admitir uma derrota ao pai.

Colocando o câmbio mais uma vez no drive, enfiou-se no trânsito e tomou a direção da qual viera. No entanto, não retornaria a Easterly. Iria para…

De repente, o carro morreu. Tudo parou: o motor, o ar-condicionado, as luzes do painel. As únicas coisas que funcionavam eram o volante e o freio.

Enquanto pressionava o botão da ignição, viu suas ações frenéticas e impotentes de longe, notando, sem dar muita atenção, como suas unhas estavam arruinadas, as pontas cortadas, o esmalte vermelho-cereja lascado. Tendo que admitir que o motor não voltaria a funcionar, foi para o acostamento da estrada para não acabar numa colisão e…

Sirenes soaram ao longe e ela olhou pelo espelho retrovisor.

Uma viatura da Polícia Metropolitana de Charlemont encostou atrás dela com as luzes acionadas. E depois uma segunda unidade se pôs à frente até que o Phantom ficasse bloqueado.

Os dois policiais se aproximaram dela com as mãos sobre as pistolas presas ao coldre, como se não tivessem certeza se precisariam das armas.

– Saia do veículo, senhora – o mais alto deles disse com voz autoritária.

– Este carro é meu! – ela exclamou ao abaixar o vidro. – Vocês não têm o direito de…

– Esse veículo pertence a William Baldwine, e a senhora não tem autorização para usá-lo.

– Ah, meu Deus… – ela sussurrou.

– Saia do carro, senhora…

Merda, estava sem a habilitação.

– Sou filha dele!

– Senhora, estou ordenando que destrave as portas e saia do veículo. Se não fizer isso, vou autuá-la por resistir à prisão. Além de dirigir um veículo roubado.

 

DEZESSEIS

– Claro que eu estava à sua espera. – Assim que Lane falou, levantou as mãos, num gesto de quem pedia para aguardar. – Mas apenas como amigo. Queria me certificar de que chegou bem ao trabalho.

Maldição, ela estava linda. Mais uma vez, com a camisa polo preta do uniforme de Easterly e shorts cáqui, o cabelo puxado para trás, preso num rabo de cavalo… De alguma forma, parecia exoticamente bela.

Pensando bem, já fazia mais de doze horas que não a via.

Uma vida inteira, de fato.

Enquanto ela revirava os olhos, ele a flagrou tentando esconder um sorriso.

– Já fiz esse trajeto algumas vezes, sabe – ela disse.

– E como foi esta manhã?

Houve uma pausa, e então algo mágico aconteceu. Lizzie explodiu numa gargalhada.

Cobrindo a boca, ela meneou a cabeça.

– Desculpe, mas você está horrível. O seu cabelo está todo… – ela mexeu a mão ao redor da cabeça dele – … está uma bagunça, seus olhos mal conseguem ficar abertos. Sabia que está balançando para a frente e para trás apesar de estar sentado?

Ele deu um sorriso largo.

– Você precisava ver o outro cara.

– Ele era durão?

– Agora, em vez de usar capuz ele usa brinco. – Lane levantou um braço e flexionou o bíceps. – Homem pra valer este aqui…

Ouviram um par de passadas vindo na direção deles, então Lane espiou por cima do ombro dela e murmurou alguma coisa bem baixinho.

Era o mordomo inglês seguindo direto para ela, só que parou quando viu Lane.

– Com licença, Lane – Lizzie disse baixinho. – Tenho um assunto de trabalho para resolver agora.

– O que foi? – ele perguntou ao mordomo.

O inglês sorriu, parecendo um manequim de loja.

– Nada com que tenha que se preocupar, senhor Baldwine. Senhorita King, poderia fazer a gentileza de vir até o meu escritório quando tiver terminado de…

– O que houve? – Lane exigiu saber.

– Apenas um mal-entendido – Lizzie murmurou.

– Sobre o quê?!

Lizzie se concentrou no senhor Mais Sagrado Que o Senhor.

– O pedido das taças de champanhe alugadas foi reduzido, e ele acha que eu telefonei para Mackenzie para mudar a quantidade, mas não fiz isso. Ficarei feliz em poder organizar tudo quando os copos e os pratos chegarem, mas não sou responsável por coordenar nada que se refira aos pedidos. As tendas e as mesas são de minha responsabilidade, e elas estão exatamente onde deveriam estar.

Os olhos do senhor Harris se estreitaram.

– Esta conversa deve ser conduzida em meu…

– Então, não tem nada a ver com ela. – Lane sorriu para o mordomo com frieza. – E seu assunto aqui terminou.

Lizzie pôs uma mão no braço dele, e o contato foi uma surpresa tamanha, que de fato o calou.

– Está tudo bem. Repito, ficarei feliz em fazer o que puder para ajudar. Senhor Harris, quer que eu fale com Mackenzie e tente encontrar um modo de solucionar o caso?

O mordomo olhou de um a outro.

– Sei o que encomendei. O que não sei explicar é como apenas metade disso foi entregue.

– Veja bem, não quero lhe ensinar o seu trabalho – Lizzie disse. – Mas erros da parte deles já aconteceram antes. O que precisamos fazer é descobrir o que mais está faltando e ligar para eles para alertá-los. Isso não deve ser um problema. O senhor fez o pedido pessoalmente ou foi por intermédio de Rosalinda?

– Usei os serviços da senhora Freeland, e lhe entreguei os números corretos.

Lizzie franziu o cenho.

– Ela sabe o quanto pedir. Fez isso por anos a fio.

– Ela me garantiu que tomaria conta da questão. Deduzi que outra pessoa com acesso à conta tivesse reduzido a quantidade.

– Vá procurá-la, e eu encontrarei Greta para contar tudo o que foi entregue. Vamos resolver. Pelo menos, descobrimos hoje e não amanhã de manhã.

Houve um instante de constrangimento no qual o mordomo nada disse, e Lane se perguntou o quanto daquele plano sensato ele teria que enfiar goela abaixo do ditadorzinho.

– Muito bem – disse o mordomo. – A sua assistência será muito bem-vinda.

Enquanto o senhor Harris se afastava, Lizzie inspirou fundo.

– E assim entramos na contagem regressiva das vinte e quatro horas.

– Ninguém da equipe pode fazer essa contagem? Esse problema não é seu.

– Está tudo bem. Pelo menos se Greta e eu fizermos isso, saberei que está tudo certo. Além disso, todos em Easterly estão com trabalho até as orelhas, e os chefs auxiliares não poderão dispensar…

O telefone de Lane começou a tocar, e ele o tirou do bolso para silenciar o barulho.

– Quem diabos pode ser? – perguntou, quando viu o código de área local.

Ela riu de novo.

– Você pode descobrir se… prepare-se… atender!

– Está pegando no meu pé?

– Alguém tem que fazer isso.

Lane sorriu tão amplamente que suas bochechas começaram a doer.

– Ok, vamos lançar os dados e ver quem é. – Apertou o botão verde e disse em sua voz mais arrastada: – Vocccccêêêê ligoooouu paaaara…

– Lane! Ah, meu Deus, Lane, preciso da sua ajuda.

– Gin? – Ele se endireitou na espreguiçadeira. – Gin, você está bem?

– Estou no centro da cidade, na cadeia de Washington County. Você tem que vir aqui pagar a minha fiança…

– Que diabos? O que você…

– Preciso de um advogado…

– Ok, ok, ok, devagar. – Ele se pôs de pé. – Você está falando rápido demais e não estou entendendo.

Sua irmã fez uma pausa e depois disse quatro frases completas que o deixaram sem chão.

– Está bem – disse ele com seriedade. – Estou indo para aí agora mesmo. Sim. Certo. Ok. Fique aí.

Quando desligou, só o que ele conseguiu fazer foi procurar o rosto de Lizzie.

– O que foi? – ela perguntou.

– O meu pai mandou prenderem Gin. Tenho que, literalmente, ir até a cadeia e pagar a fiança dela.

Lizzie cobriu a boca com a mão num sinal de choque.

– Posso fazer alguma coisa?

– Não. Vou lá cuidar dela. Mas obrigado.

Ele precisou de todo o seu autocontrole para não se inclinar e beijá-la como costumava fazer. Em vez disso, contentou-se em esticar a mão e afagá-la no rosto, saindo antes que ela pudesse dizer que “amigos não fazem isso”.

Inferno, o que o seu pai estaria aprontando agora?

Na época em que fora fumante, Edward frequentemente acordava de manhã já esticando o braço para pegar o maço de Dunhill Reds antes de estar plenamente consciente de sequer ter rolado de lado.

Hoje em dia ele fazia o mesmo, só que para pegar o frasco de Advil.

Colocando quatro cápsulas de gel na palma trêmula, levou-as à boca e as engoliu com o que restava da vodca que levara para a cama. Fazendo uma careta enquanto essa sua versão de desjejum descia até o estômago, deitou-se de novo sobre o travesseiro.

Tinha parado de fumar durante a recuperação. Na verdade, o sequestro fora o primeiro passo para que abandonasse o vício.

Ironicamente, o fato de quase ter morrido foi o responsável por ajudá-lo a ter uma vida mais longa.

Saudou com a garrafa no ar.

– Gracias, muchachos.18

Antes que seu cérebro entrasse no looping infindável da sequência horrenda do Dia Em Que Tudo Aconteceu, virou as pernas para o chão e se sentou. Não olhou para a coxa e para a panturrilha direitas. Primeiro porque as cicatrizes tortas da sua pele à la Frankenstein estavam gravadas em sua mente. Segundo porque ele já não dormia mais nu, por isso elas não estavam aparecendo.

A bengala era necessária para que ele se levantasse, e seu equilíbrio não estava muito bom não só por causa dos ferimentos, mas pela falta de sono e pelo fato de ainda estar meio embriagado. Mancando até o banheiro, deixou as luzes apagadas, de modo que o espelho não foi um problema, e usou o vaso, lavou as mãos, o rosto e escovou os dentes.

A confirmação de que Deus ainda o odiava veio quando ele saiu do chalé uns dez minutos depois e foi ofuscado pela luz brilhante do sol e pela dor de cabeça causada pela ressaca.

Que horas são?, perguntou-se.

Já estava na metade do caminho até o Estábulo B quando percebeu que levara a garrafa junto. Como se fosse o seu brinquedinho predileto.

Revirando os olhos, seguiu em frente. A senhorita Nada de Praguejar Perto de Mim poderia muito bem se acostumar com ele e sua bebida; não havia motivos para apresentar-lhe uma ilusão diurna de abstinência que só a perturbaria no futuro. Se ela não conseguisse lidar com esse seu hábito, ela podia muito bem ir embora no primeiro dia.

O som de pneus cantando fez sua cabeça girar para a direita, e na fração de segundo seguinte, Shelby apareceu na ponta oposta do estábulo, o corpo encurvado na cintura ao empurrar uma tremenda carga de esterco de cavalo dentro de uma velha carreta enferrujada.

Pelo visto, Moe já a colocara para trabalhar.

– Ei – ele a chamou.

Sem diminuir o passo, ela acenou por sobre o ombro e seguiu em frente com o esterco para trás da construção mais próxima.

Enquanto a observava, invejou o corpo forte dela, talvez notando, sem nem se dar conta, que o sol fazia com que as mechas loiras dela parecessem quase brancas. Ela estava usando uma camiseta azul-marinho, um par de jeans escuros e as mesmas botas resistentes da noite anterior. Depois de desaparecer atrás da curva do prédio, reapareceu duas vezes mais rápido do que deveria, considerando a quantidade de esterco que teve que descarregar.

Portanto, ela também era eficiente.

Ao se aproximar, seus olhos estavam claros e alertas, o rosto corado pelo esforço.

– Quase terminando. Depois vou pro C.

– Jesus, Moe fez com que você… desculpe – disse antes que ela o corrigisse. – Maldição, Moe já te colocou pra trabalhar? E não venha me dizer que não posso usar “maldição”. Deixo de mencionar Deus e Jesus Cristo, mas só vou até aí.

Ela deixou os pés do carrinho encostarem na grama aparada.

– Suco de laranja.

– O que disse?

A filha de Jeb Landis acenou para a garrafa.

– Pode ficar com “maldição”, mas eu gostaria de ver você com outra coisa que…

– Você sempre julgou tanto assim?

– … não fosse vodca tão cedo assim. E não estou te julgando.

– Então por que quer mudar os hábitos de um desconhecido?

– Você não é um desconhecido. – Enxugou a testa com o antebraço. – Não são nem nove da manhã. Fico me perguntando por que você precisa beber tão cedo assim.

– Eu estava meio desidratado.

– Não tem água encanada na sua casa? Ontem tinha.

Ele balançou a garrafa.

– Isto aqui está servindo bastante bem. Pense que é a minha versão da vitamina C.

Ela resmungou alguma coisa ao se abaixar para pegar as alças.

– O que disse? – ele exigiu saber.

– Você me ouviu.

– Não, não ouvi, não. – O que não era exatamente a verdade.

Shelby só deu de ombros e seguiu em frente, aquele seu corpo se movendo debaixo das roupas, executando a tarefa sem nenhum esforço aparente.

E foi nessa hora que algo lhe ocorreu.

– Shelby?

Ela parou e olhou por cima do ombro.

– Pois não?

– Você disse que cuidou de todos os cavalos.

– Cuidei.

– Nos Estábulos A e B.

– Isso mesmo.

Ele se apressou e a agarrou pelo braço.

– Eu te disse. Uma regra. Não chegue perto daquele garanhão.

– A baia não ia se limpar sozinha…

A mão dele se apertou por vontade própria.

– Ele matou um ajudante de estábulo no ano passado. Foi pisoteado até morrer ali. Nunca mais faça isso.

Aqueles olhos azuis dela ficaram arregalados.

– Ele se portou bem comigo.

– Só eu chego perto dele. Estamos entendidos? Faça isso mais uma vez e eu faço as suas malas – ele disse firmemente – e te mando de volta para o lugar de onde veio.

– Sim, senhor.

Ele se afastou e tentou não cambalear.

– Muito bem, então.

– Está certo.

Ela soprou o cabelo para longe do rosto e voltou a andar, com os ombros tensos.

Tirando a tampa da vodca, Edward deu um trago longo e, provavelmente, deveria ter parado quando percebeu que a bebida já não ardia mais.

Mas essa era outra coisa sobre a qual não queria pensar.

Assim como não queria pensar no que poderia acontecer com a filha de Jeb Landis enquanto ela estivesse sob a sua proteção.

Maldição.


“Obrigado, meninos.”

 

DEZESSETE

A cadeia e o Tribunal do Condado de Washington formavam um complexo de edifícios modernos que ocupava dois quarteirões inteiros no centro da cidade, cujas instalações se comunicavam por meio de passarelas que se estendiam acima do trânsito da rua logo abaixo. Havia certa quantidade de entradas e, enquanto Lane encostava o Porsche, inúmeras pessoas entravam e saíam; eram homens e mulheres em ternos subindo e descendo os degraus de mármore, policiais dentro de suas viaturas, delegados estacionando suas SUVS e saindo de vagas reservadas, pessoas em roupas desgastadas fumando pelos cantos.

O seu 911 Turbo emitiu uma tossida baixa quando ele desacelerou e se dirigiu para os prédios imponentes. Não havia nenhum layout lógico que ele conseguisse distinguir. Tampouco um endereço.

Como se, caso tivesse que perguntar para onde deveria ir, ficaria com a sensação de que aquele não era o seu lugar…

Até que, de repente, um afro-americano uniformizado surgiu bem diante do seu carro.

– Droga! – Lane afundou o pé no freio. – Mas que diabos! Mitch?

O delegado Mitchel Ramsay não respondeu. Apenas indicou uma vaga livre bem atrás dele.

Lane estacionou com uma baliza perfeita, ciente de que o delegado estava bem ao lado do seu para-choque, os braços grossos como uma corda náutica cruzados sobre seu peito de jogador de futebol americano. Seus olhos negros estavam escondidos atrás de óculos Ray Ban, e a cabeça raspada fazia com que seu pescoço e seus ombros parecessem ainda maiores do que eram de fato.

Lane saiu do carro esportivo.

– Ei, sabe onde a minha irmã…

– Pode deixar.

Os dois bateram palmas e deram um abraço forte. Enquanto permaneciam peito contra peito, Lane foi transportado para quase dois anos atrás, para a pista de pouso particular a oeste da cidade. Para a noite em que Edward finalmente retornava do cativeiro.

Mitch o trouxera de volta aos Estados Unidos. De volta para a família.

Só Deus sabia como. Ninguém perguntara os detalhes, e Lane sempre ficou com a impressão de que o antigo soldado do Exército não teria partilhado os “como” e os “quem”, de todo modo.

– Ela não está muito bem – comentou Mitch.

– Não me surpreende.

Lane seguiu o delegado, subindo os cinquenta degraus até uma das portas giratórias. Quando terminaram de subir, Mitch desviou para uma porta demarcada com SOMENTE POLICIAIS e depois os fez passar pela segurança, de onde outros policiais acenaram em sinal de respeito.

– Agi o mais rápido que pude assim que vi o nome – disse Mitch enquanto suas passadas se uniam a todas as outras, ecoando no vestíbulo principal, com pé direito alto. – Ela foi presa por furto de veículo, por dirigir sem habilitação, por não apresentar o seguro…

– Como diabos isso foi acontecer?

– … e por resistir à prisão. Já isolei o incidente, mas não vou conseguir mantê-lo fora dos registros policiais indefinidamente.

– Espere. – Lane fez o homem parar. – Minha irmã roubou um carro?

– Um Rolls-Royce. Registrado no nome da Cia. Bourbon Bradford.

– Está se referindo… ao nosso Rolls. O Phantom Drophead?

– O seu pai telefonou pessoalmente para a Polícia Metropolitana e pediu que fossem atrás dela, alegando que ela não tinha permissão para dirigir o veículo.

– Você não pode estar falando sério. – Lane enfiou a mão nos cabelos. – Quero dizer, é claro que ele pode fazer isso. Já fez coisa pior.

– Você chamou um advogado?

– Samuel T. deve chegar aqui em…

– Lane!

Samuel T. avançou em meio a um grupo de pessoas, destacando-se por inúmeros motivos. Primeiro, seu terno de risca de giz azul e branco fazia com que ele parecesse pertencer a uma varanda da casa grande de uma fazenda, sorvendo um julepo de menta com um par de cães de caça aos seus pés. Segundo, ele era belo demais para estar entre os mortais.

– Obrigado por vir tão rápido – Lane disse ao apertarem as mãos. – Você conhece Mitch.

– Certamente. Delegado.

– Senhor Lodge.

Encerrando os cumprimentos, os três seguiram para as escadas rolantes que levavam ao segundo andar.

– Ela está numa cela. – Mitch os conduziu por uma das passarelas. – Mas removi qualquer tipo de retardo para a audiência da fiança. Assim que estiver pronto, senhor Lodge…

– Pode me chamar de Samuel ou de Sam.

– Samuel. – Mitch assentiu. – Assim que estiver pronto. Farei com que ela se apresente diante do juiz McQuaid. Já conversei com o promotor público. As mãos dele estão atadas, visto que o senhor Baldwine está pressionando. A única coisa que posso fazer é apressar, apressar, apressar.

Lane cerrou os molares. Gin dava trabalho e, evidentemente, o pai já estava farto disso, mas aquilo tudo era exposição demais.

– Vou ficar te devendo essa, Mitch.

– Não se preocupe.

O delegado os fez passar por vários pontos de controle de segurança, até adentrarem o complexo. Embora Lane tivesse aprontado sua porção de infrações quando era mais jovem, todas as suas transgressões foram discretamente “resolvidas”. Portanto, aquela era a primeira vez que ia para a cadeia, e não poderia dizer que estava com pressa para voltar lá algum dia.

A sala de espera tinha paredes creme. Piso creme. Cadeira plástica laranja, amarela e vermelha. O cheiro no ar era de suor e de roupas sujas, e de desinfetante em spray.

Graças a Mitch, passaram ao largo do balcão de registros com as divisórias de vidro à prova de balas e da fila de policiais com a pescaria do dia. Isso sim era um chamado para a realidade da outra parte da população. Homens sujos e rapazes estranhos… moças quase despidas… mulheres mais velhas com aspecto cansado… Todos eles de pé ou cambaleando, acompanhados dos policiais que os prenderam, seus rostos revelando as marcas da vida dura que levavam.

– Por aqui, delegado Ramsey – alguém o chamou ao lado de uma porta reforçada.

Depois de passar por mais um ponto de segurança, cruzaram com diversas salas de reunião com luzes vermelhas acesas sobre as portas e grades diante das janelas protegidas por telas.

– Se esperarem aqui – o policial disse, na frente de uma das salas –, eu a trago já.

– Obrigado, Stu. – Mitch abriu a porta e se colocou de lado. – Fico esperando do lado de fora.

– Muito obrigado. – Lane bateu no ombro do homem. – E, provavelmente, ainda vamos precisar da sua ajuda.

– Estou aqui para o que precisarem.

Samuel T. parou ao lado do delegado.

– Alguém já falou com a imprensa?

– Nós não – Mitch respondeu. – E quero que continue assim.

– A minha irmã não tem a melhor das reputações. – Lane meneou a cabeça. – Quanto menos pessoas souberem, melhor.

Mitch os deixou ali na sala. Embora houvesse quatro cadeiras presas ao chão junto a uma mesa de aço também presa, Lane não conseguiu ficar sentado. Samuel T., por sua vez, pôs a velha maleta ao seu lado e cruzou as mãos.

O advogado balançou a cabeça.

– Ela vai ficar louca quando souber que você me chamou.

– E quem mais eu poderia chamar? – Lane esfregou os olhos doloridos. – E depois disso, você vai me ajudar com o meu divórcio, certo?

– Apenas mais uma manhã atarefada com os Bradford…

Pelo menos deixaram que ela permanecesse com as próprias roupas, Gin pensou, enquanto era conduzida por outro corredor de concreto pintado com a vichyssoise do mês.

Ficara aterrorizada com a perspectiva de se despir diante de uma guarda feminina de peito cabeludo para depois ser violada por uma mão com uma luva antes de ser enfiada dentro de um macacão laranja do tamanho de uma tenda de circo. Quando isso não aconteceu, ficara obsessiva com a possibilidade de ser trancafiada numa cela horrorosa e suja com um punhado de prostitutas viciadas em drogas tossindo o vírus da AIDS em cima dela.

Em vez disso, fora colocada numa cela sozinha. Uma cela fria, com apenas um banco e um vaso sanitário de aço sem assento nem papel higiênico.

Não que um dia ela fosse fazer uso daquilo.

Seus brincos de diamante foram retirados, assim como o relógio Chanel, juntamente com as malas LV, o celular, aquelas notas de quinhentos dólares e os cartões de crédito inúteis que tinha na carteira.

Um telefonema. Foi só o que lhe concederam, bem como nos filmes.

– Por aqui – disse o guarda, parando diante de um homem afro-americano uniformizado, e em seguida abrindo uma porta pesada.

– Lane…! – Só que ela parou de correr na direção do irmão assim que viu quem estava sentado à mesa. – Ah, Deus. Ele não.

Lane a abraçou com força depois que a porta se fechou.

– Você precisa de um advogado.

– Estou livre – Samuel T. disse com a fala arrastada. – Relativamente livre.

– Não vou falar na frente dele. – Ela cruzou os braços diante do peito. – Nenhuma palavra.

– Gin…

Samuel T. interrompeu o irmão dela.

– Eu te disse. Acho melhor pegar as minhas coisas e ir embora.

– Sentem-se – Lane ordenou. – Os dois.

Houve um instante de silêncio, que Gin entendeu como sinal de que Samuel T. estava tão surpreso pelo tom de comando quanto ela. Lane sempre fora, dentre os quatro irmãos Baldwine, aquele que seguia conforme a maré. Agora, ele parecia Edward.

Ou como Edward costumava ser.

Depois que se sentou desajeitada numa cadeira tão dura e fria quanto um bloco de gelo, Lane apontou um dedo na direção dela.

– O que você aprontou?

– Como é? – ela disse, se retraindo. – Por que é culpa minha? Por que acha que fui eu quem…

– Porque normalmente é o que acontece, Gin. – Ele cortou o ar com a mão quando ela começou a discutir. – Nem comece, eu te conheço há tempo demais. O que fez desta vez para irritá-lo? Vou tirar você daqui, mas tenho que saber com o que estou lidando.

Enquanto Gin encarava o irmão, quis mais do que nunca mandá-lo se foder. Mas só conseguia pensar na imagem dos seus cartões sendo negados no mostrador digital da bomba do posto de gasolina. Quem mais poderia ajudá-la?

Olhou para Samuel T. Ele não a encarava, e seu rosto estava impassível, mas a desaprovação altiva que ele emanava era tão evidente quanto sua colônia no ar.

– E então? – Lane inquiriu.

Pesando as opções, percebeu que estava completamente desconfortável com essa coisa de enfrentar situações difíceis. Com dinheiro suficiente e uma amnésia conveniente, não existia nada que ela não pudesse evitar, quer isso envolvesse suborno ou teimosia.

Infelizmente, as infindáveis opções estavam fundamentadas num estilo de vida que apenas parecia ser dela. Mas, na verdade, era de outra pessoa. Só não sabia disso até aquela manhã.

Pigarreou.

– Samuel T., você pode… me dar um momento a sós com o meu irmão? – Ela avançou a mão sobre a mesa. – Não estou dizendo que não pode ser o meu advogado, só preciso de um pouco de privacidade com ele. Por favor.

Samuel T. curvou uma sobrancelha.

– É a primeira vez que a ouço dizer essas palavras. Pelo menos estando vestida.

– Cuidado, Lodge – Lane rosnou. – Ela é minha irmã.

O homem se recompôs, como se tivesse se esquecido de que não estava sozinho com ela.

– Perdão. Isso foi inapropriado.

– Não vá para longe. – Lane começou a andar pela sala, puxando os cabelos negros e curtos com a mão. – Pelo amor de Deus, vamos precisar de uma boa representação.

Enquanto seu advogado, amante e pai da sua filha saía – ainda que ele desconhecesse essa última identidade –, Gin mirou os sapatos de salto de seda. A ponta do esquerdo tinha se sujado quando ela foi colocada no banco de trás da viatura.

Houve um clique, indicando que a porta tinha sido fechada atrás de Samuel T. Ela não precisou ser encorajada a falar.

– Ele quer que eu me case com Richard Pford.

– Richard… Desculpe, o que você disse?

– Você ouviu muito bem. Papai vai cortar todos os meus recursos a menos que eu me case com aquele homem. Ele disse que é por causa daquela maldita empresa de distribuição que nos dará melhores taxas ou algo assim.

– Ele ficou louco? – Lane inspirou.

– Você quis saber por que peguei o carro. É por isso, e é por isso que papai chamou a polícia. – Levantou o olhar para o irmão. – Não vou me casar com Richard. Não importa o que o nosso pai faça comigo. É com isso que você vai lidar.

Levantando-se, ela foi até a porta e a abriu.

– Pode voltar.

– Quanta honra – murmurou Samuel T.

Enquanto seu advogado voltava a se acomodar, ela disse: – Então, o que faço para sair daqui?

– Você paga a fiança – Samuel T. respondeu. – E depois tentamos fazer com que as acusações sejam retiradas. Você pode fazer um apelo ou seu pai pode perdoar o que quer que você tenha feito.

– Qual seria o montante da fiança? – Lane perguntou.

– Sem antecedentes, isso vai a favor dela, mas o risco de fugir não. Acho que no máximo cinquenta mil. McQuaid é um juiz amigável para pessoas como nós, por isso o valor não será muito alto.

50 mil dólares. De fato, a quantia nunca lhe parecera muito antes. Apenas mais um pulinho à loja Chanel em Chicago.

Pensou no pouco que tinha na carteira.

– Não tenho essa quantia.

Samuel T. gargalhou.

– Claro que tem.

– Farei com que seja pago – Lane o interrompeu.

Samuel T. abriu a maleta e tirou alguns papéis.

– Você me autoriza a representá-la nessa questão, Virginia?

Desde quando ele a chamava por algo que não fosse o apelido? Pensando bem, talvez ele só não quisesse que seu irmão o esmurrasse no piso de concreto por ter demonstrado familiaridade demais.

– Sim.

Os olhos dele, aqueles olhos cinzentos e aguçados, sustentaram o olhar dela.

– Assine aqui. – Depois de ela ter assinado, murmurou: – Não se preocupe, eu vou tirar você daqui.

A respiração dela vacilou quando ela expirou.

– Mas e depois?

O que, exatamente, seria diferente do outro lado de tudo aquilo? Era muito improvável que seu pai virasse a página subitamente. Edward mal sobrevivera à decisão de William Baldwine de escolher os negócios em detrimento dos filhos.

– Primeiro, te tiramos daqui – Lane disse. – Depois lidamos com o resto.

Voltando-se para o irmão, ela percebeu que nunca o vira tão sério. Recostado à parede nua do cubículo horrendo, ele parecia muito mais velho do que quando partira, dois anos antes. Parecia no comando das coisas.

Ela crescera esperando encontrar autoridade em Edward, e nunca em Lane, o playboy.

– Ele vai ganhar – ela se ouviu dizer. – Papai sempre vence.

– Não desta vez – Lane disse entredentes.

– Que diabos está acontecendo aqui? – perguntou Samuel T.

Lane apenas meneou a cabeça.

– Resolva isso, Samuel. Apenas tire a minha irmã daqui. Eu cuido do resto.

Deus, como ela queria que fosse verdade. Porque, evidentemente, a sua tentativa de irritar o pai não dera muito certo.

 

CONTINUA

DEZ

Claro que era uma ideia muito idiota.

Contudo, enquanto Lizzie retribuía o beijo, foi como se ela estivesse afunilando dois anos de raiva, frustração e dor diretamente dentro dele. E que ele fosse para o inferno, mas seu sabor era de bourbon, de desespero e de sexo selvagem… e ela gostava disso.

Ela sentia falta disso.

O que a deixou ainda mais enfurecida. Ela queria dizer que aquilo era horrível. Que era contra a sua vontade. Uma violação.

Mas não era verdade. Foi ela quem enfiou a língua na boca dele, e foi ela quem enterrou os dedos nos ombros dele, e foi ela quem, que Deus a ajudasse, aproximou o corpo, colando-se nele.

Para poder sentir a ereção dele.

Seu corpo não mudara no tempo em que ficaram afastados; ele era todo feito de músculos rijos e membros delgados. E ele beijava como antes, com aspereza e avidez, apesar de ter sido criado como um cavalheiro. E seu calor continuava o mesmo.

E então, para piorar ainda mais as coisas, memórias dos dois juntos, pele contra pele, se chocando, se balançando, ondulando, a assaltaram, enterrando toda a mágoa e o sentimento de traição debaixo de uma avalanche de lembranças eróticas.

Por uma fração de segundo, percebeu que acabaria fazendo sexo com ele ali mesmo, naquele instante.

Sim, claro, porque era uma maneira eficaz de mostrar que estava falando sério.

Um verdadeiro momento Gloria Steinem.17

Em vez disso, algo foi derrubado na mesa e o barulho interrompeu o silêncio; em seguida, um esguicho molhou o quadril e a coxa dela num choque de água fria. Dando um salto, ela o empurrou com força, e Lane tropeçou e caiu para trás, aterrissando no piso de ladrilhos.

Com um movimento brusco do braço, ela limpou a boca.

– Que diabos você estava fazendo?

Pergunta idiota. O mais adequado seria: O que ela estava fazendo?

Ele se pôs de pé na próxima batida de coração.

– Quis te beijar desde que voltei.

– O sentimento não é mútuo…

– Até parece. – Pegou o copo e sorveu um grande gole. – Você ainda me deseja…

– Saia!

– Está me expulsando da minha própria estufa?

– Ou você sai ou saio eu – ela rebateu. – Essas flores não vão parar nos vasos sozinhas. A menos que queira metade das mesas vazias na sua festa do Derby?

– Não estou nem aí com elas. Ou com essa maldita festa. Ou com nada disso… – Ele gesticulou, e teria sido mais convincente caso não estivesse segurando um bourbon da família naquele copo. – Deixei tudo isso para trás, Lizzie. Já estou farto mesmo.

Motrin. Era disso que ela precisava.

Menos Lane e mais analgésicos.

– Eu desisto – murmurou ela. – Você venceu. Vou eu.

Quando ela se virou para ir embora, ele a segurou e a girou, arrastando-a para junto de si. Foi nesse momento que ela notou o quanto ele envelhecera desde a última vez que o vira. Seu rosto estava mais magro, o olhar mais cínico, os pés de galinha mais acentuados nos cantos dos olhos.

Infelizmente, só o tornava mais belo.

– Nada dessa história horrível com Chantal é como você pensa – ele disse sombriamente.

– Mesmo que seja apenas metade…

– Você não entende…

– Eu estava apaixonada por você. – Sua voz se partiu, e ela o empurrou. – Eu não achava que a gente fosse se casar necessariamente, mas não pensei que você estivesse a caminho do altar com outra mulher. Que estava grávida… e que ainda por cima engravidou enquanto você estava comigo.

– Eu tinha terminado com ela, Lizzie. Antes de voltar para cá naquele mês de abril, eu disse para ela que estava acabado.

– Mas não foi bem assim, não é?

– Ela estava grávida de três meses quando fiquei sabendo, Lizzie. Faça as contas comigo. Estive com Chantal pela última antes de vir para cá, no aniversário da minha mãe, no fim de março. Você e eu… ficamos juntos em maio, e no fim de junho eu fiquei sabendo da gravidez. Se você se lembrar bem, não saí de Easterly durante todo aquele tempo. Você sabia onde eu estava todos os dias e todas as noites porque eu estava com você. – Ele a encarou do alto. – Três meses. Não dois, nem um. Três meses, Lizzie.

Ela levou as mãos ao rosto, lutando contra a lógica.

– Por favor, pare de fazer isso.

– Isso o quê?

– Dizer meu nome. Isso lhe dá a ilusão da credibilidade.

– Não estou mentindo. E faz quase dois anos que quero esclarecer a situação. – Ele praguejou novamente. – Tem mais coisas, mas não quero entrar nessa parte. E não afeta o que existe entre mim e você.

Antes que ela percebesse o próprio movimento, descobriu-se sentada no banco de rodinhas que estivera usando antes. Olhando para as mãos, flexionou os dedos, sentindo a rigidez das juntas e, por algum motivo, pensou nas unhas perfeitas de Chantal, em suas palmas lisas e sem marcas. Falando em opostos… As mãos que ela fitava eram as de uma trabalhadora, que tinha arranhões nos dorsos provocados por espinhos de rosa perdidos, e terra debaixo das unhas, que ela só conseguiria limpar depois que chegasse em casa. Também havia pintas, por ter cavado a terra sem a proteção de luvas e, definitiva e positivamente, não havia nenhum diamante de um milhão de dólares em seu dedo.

– Casei com Chantal no cartório depois que você me deixou – ele continuou com severidade. – O bebê não tinha culpa, e por eu ter crescido sem meus pais, não queria fazer o mesmo com um filho meu, a despeito dos meus sentimentos pela mãe dele. Mas eu tinha que sair da cidade. Chantal não admitia que o casamento fosse apenas no papel. Por isso fui para o norte, ficar em Nova York com um amigo dos tempos da Universidade da Virgínia. Foi pouco depois que Chantal me ligou para falar que tinha perdido o bebê.

A amargura em sua voz fez ele falar tão baixinho que ela mal ouviu.

– Ela também não me ama – ele murmurou. – Não amava na época e não ama hoje.

– Como você pode ter certeza? – Lizzie se ouviu dizer.

– Pode confiar em mim quanto a isso.

– Ela pareceu bem contente em ter você de volta.

– Não voltei por causa dela e deixei bem claro. Essa mulher só é capaz de se afeiçoar a uma refeição grátis.

– Pensei que ela tivesse dinheiro.

– Nada comparado ao que eu tenho.

Sim, ela imaginou que devia ser verdade. Existiam países com menos renda anual do que a dos Bradford.

– Você é o amor da minha vida, quer esteja comigo ou não. – Quando ela ergueu o olhar, ele apenas encolheu os ombros. – Não posso mudar o que aconteceu e sei que não há como voltar… Só o que peço é que não acredite nas aparências, ok? Você está há dez anos com esta família, mas estou com eles e com pessoas que os cercam minha vida inteira. É por isso que é você quem eu quero. Você é real. Não é como eles e isso é uma coisa muito, muito boa.

Ela esperou que ele fosse expressar mais alguma coisa, e quando ele não o fez, ela voltou a fitar as mãos.

Por algum motivo, seu coração batia forte, como se ela estivesse próxima demais de um penhasco. Pensando bem, imaginou que era isso mesmo, porque as palavras dele estavam entrando em sua cabeça e embaralhando seus pensamentos.

De um jeito que não a ajudava em nada.

– Tenho muito medo de você – sussurrou.

– Por quê?

Porque queria acreditar no que ele dizia com o desespero de um viciado.

– Não tenha – ele disse quando ela não respondeu. – Nunca quis que nada assim acontecesse. E faz muito tempo que eu queria acertar as contas com você.

Parecia apropriado que estivessem cercados por tantos vasos de flores. A prova do seu trabalho, de seu único objetivo ali na propriedade, era um lembrete do divisor que sempre os distanciaria.

Ela se forçou a se lembrar daquela fotografia e do artigo no Charlemont Herald sobre o casamento, sobre os dois grandes legados sulistas se unindo num arranjo feudal. Também se lembrou dos dias e das noites logo depois que ficou sabendo de Chantal, de todas aquelas horas de sofrimento até que pensou estar à beira da morte.

Mas as palavras dele exprimiam verdade sobre uma coisa. O orgulho fez com que ela continuasse a trabalhar em Easterly. Assim, estivera presente na propriedade todos os dias, exceto aos domingos, pelos últimos vinte e quatro meses. E Lane não voltara. Durante dois anos… ele não voltara para ver Chantal.

Não era lá um grande casamento.

– Deixe que as minhas ações falem por si mesmas. Deixe que eu prove para você que estou dizendo a verdade.

Em sua mente, ela ouviu seu celular tocando insistentemente. Logo após o rompimento, ele lhe telefonara no mínimo uma centena de vezes, deixando mensagens que ela nunca ouvira. Ela tirara duas semanas de férias assim que soube de tudo, fugindo para a fazenda em Indiana, voltando para Plattsburgh no nordeste, para o pomar de maçãs da sua juventude. Seus pais ficaram felizes em vê-la, e ela passara aqueles dias a cuidar das árvores McIntosh junto aos outros trabalhadores.

Quando regressara, ele já tinha ido embora.

Os telefonemas cessaram depois de um tempo. E, no fim, ela parou de ter sobressaltos toda vez que um carro parava na porta da frente.

– Por favor, Lizzie… diga alguma coisa. Mesmo que não seja o que quero ouvir…

O som da risada de uma mulher o interrompeu com suavidade e fez com que ambos olhassem para as portas que se abriam para o jardim. Quando Greta saíra, um dos painéis não se fechara por completo, e através da abertura, Lizzie viu duas pessoas andando pelo caminho de pedras em direção à piscina no extremo oposto.

Mesmo sob a iluminação fraca do paisagismo, ficou claro que o vestido de gala da mulher era vermelho rubi, suas saias volumosas se arrastando atrás dela. Ao seu lado, um homem alto de terno lhe ofereceu o braço num galanteio e a encarava com o tipo de atenção que se reserva a um lauto banquete.

– Minha irmã – Lane disse, sem necessidade.

– Aquele é Samuel T.? – Lizzie perguntou.

– Quem se importa…

Ela voltou a olhar para Lane.

– Você partiu o meu coração.

– Eu sinto muito. Não foi minha intenção, Lizzie, de modo nenhum. Juro por Deus.

– Pensei que você fosse ateu.

Ele ficou calado um instante, os olhos vasculhando suas feições.

– Eu me batizaria mil vezes, se necessário. Posso memorizar a Bíblia, beijar o anel do papa… faço qualquer coisa que você quiser… mas, por favor…

– Não posso voltar no tempo, Lane. Sinto muito. Não consigo.

Ele se calou. E depois de um longo instante, assentiu.

– Tudo bem, mas posso pedir uma coisa?

Não.

– Sim.

– Não me odeie mais. Eu já faço muito isso sozinho.

O jardim estava perfumado como uma mulher recém-saída do banho, tão arrumado quanto a sala de estar, e tão reservado quanto a biblioteca de uma universidade.

O que significava de fato que era semirreservado. As várias janelas de Easterly davam para as moitas de flores brancas e creme, todas elas bem cuidadas e discretamente iluminadas.

Felizmente, Gin não tinha problemas quanto a fazer sexo em público.

Enquanto se pendurava no braço forte de Samuel Theodore Lodge III, não se deu ao trabalho de esconder seu sorriso.

– Há quanto tempo está com ela?

– Desde quando chegamos. Uma hora?

Ela gargalhou.

– Ora, ora, meu caro Samuel, por que você perde tempo com mulheres como ela?

– Existe outro tipo?

Era difícil saber quem conduzia quem até os recessos escuros do canto mais afastado, onde o muro de tijolos se encontrava com os fundos da casa, onde ficava a piscina. Era para lá que ambos se dirigiam.

– Eu não sabia que você vinha – ela disse, erguendo a mão para tocar os diamantes pendurados no pescoço… e depois deslizar os dedos pelo corpete do vestido. – Eu teria me dado ao trabalho de vestir uma calcinha.

– Nova mania, então?

– Gosto quando você as arranca do meu corpo. Especialmente quando você se frustra e as rasga.

– Mas eu não faço parte de um clube exclusivo, não é mesmo?

– Não seja grosseiro.

– Foi você quem tocou no assunto da lingerie. E também foi você quem quis sair comigo. A menos que, para variar, precise mesmo de um pouco de ar fresco?

Gin estreitou o olhar nele.

– Você é um bastardo.

– Não de acordo com o dicionário. Meus pais estavam muito bem casados quando nasci. – Ele ergueu uma sobrancelha. – E creio que você não possa dizer o mesmo da sua filha, não é mesmo?

Ela parou, a maré virando numa direção que ela não previra.

– Está passando dos limites, Samuel. E você sabe disso.

– É um pouco estranho quando você fala de decoro. Você não está transando com aquele advogado casado da minha empresa? Acho que ouvi alguma coisa a esse respeito.

Ah, então era por isso que ele estava agindo daquela maneira.

– Está com ciúmes? – ela pronunciou de maneira arrastada, o sorriso retornando às suas feições.

– Ele não consegue te satisfazer. Não por muito tempo, e não como eu consigo.

Quando ele a agarrou, ela deixou, adorando o modo como as mãos dele seguraram sua cintura e a boca se afundou na sua. Não demorou muito para que ele erguesse sua saia até as coxas, mantendo-a ali apesar de toda a armação do vestido.

Pensando bem, ele vinha se metendo debaixo de tecidos finos e delicados desde os catorze anos, quando passara a frequentar os bailes da sociedade.

Samuel T. gemeu ao descobrir que ela não estava mentindo quando disse não ter nada debaixo daquele vestido, e seus dedos foram rudes ao penetrá-la. O fogo e o desejo que sentiu foram um tremendo alívio para os assuntos em que ela não queria pensar, o sexo lavando todos os seus arrependimentos e sua tristeza, dando-lhe nada além de prazer.

Não havia motivos para fingir o orgasmo que teve de fato, as unhas se enterrando nos ombros macios do smoking enquanto arquejava, a antiquada colônia Bay Rum tão atávica que fazia com que ele fosse um homem à frente do seu tempo.

Enquanto se entregava, pensava que ele era o único homem que já tinha amado – e o único que jamais teria verdadeiramente. Samuel T. era muito parecido com ela, só que pior: uma alma que nunca se assentaria enquanto estivesse passeando pelos caminhos de tijolos da expectativa social.

– Me come – ela exigiu ao encontro dos lábios dele.

Ele arfava, seu corpo estava rijo debaixo do smoking caro, pronto para ela… Mas em vez de lhe dar o que ela tanto queria, ele recuou um passo, abaixando a saia e fitando-a de longe.

– Samuel? – ela inquiriu.

Com uma lentidão deliberada, ele levou os dedos até a boca e os lambeu. Depois passou a língua para cima e para baixo, entre eles, lambendo a essência dela em sua pele.

– Não – ele disse. – Acho que não.

– O quê?

Samuel se inclinou na direção dela.

– Vou voltar para a festa do seu pai e vou me sentar à mesa dele. Adiantei-me e troquei a disposição dos lugares, de modo que Veronica estará sentada ao meu lado. E você vai saber quando eu colocar a minha mão entre as pernas dela, você vai vê-la se empertigar e tentar manter a compostura enquanto faço com ela o que acabei de fazer com você. Observe o rosto dela, Gin. E saiba que, assim que eu sair, vou transar com ela no banco da frente do meu Jaguar.

– Você não ousaria.

– Como acabei de dizer, preste atenção, Gin.

Ele se virou para se afastar, e ela quis jogar alguma coisa na cabeça dele. E vez disso, disse entre dentes cerrados: – O nome dela não é Savannah?

Ele relanceou por sobre o ombro.

– E eu me importo com o nome dela? A única coisa relevante é: ela não é você.

Dito isso, ele se afastou a passos largos naqueles elegantes sapatos de couro que ecoaram nos tijolos, com os ombros retos e a cabeça erguida.

Envolvendo-se com os braços, ela percebeu pela primeira vez que a noite estava fria. Embora fizesse 26°C.

Concluiu que deveria ter lhe contado a respeito do advogado. Em retrospecto, escolhera o homenzinho grudento exatamente porque sabia que cedo ou tarde Samuel T. descobriria.

Pelo menos uma coisa era certa: Samuel T. voltaria. Por algum motivo, os dois não conseguiam ficar longe um do outro por muito tempo.

E, no fim, ela acabaria tendo que lhe contar a respeito de Amelia, pensou. Mas não hoje. Nem… tão cedo.

Se aquele homem descobrisse que ela lhe escondera a filha por todos aqueles anos?

Ele seria capaz de matá-la.


Gloria Steinem, famosa feminista, é uma jornalista americana, célebre por seu engajamento com o feminismo e sua atuação como escritora e palestrante, principalmente durante a década de 1960. (N.T.)

 

ONZE

Depois que Lane saiu da estufa, a perspectiva de retornar para a festa do pai era extremamente desagradável, ainda mais depois de ouvir o gongo que anunciava que o jantar estava sendo servido. Mas, considerando-se que a outra alternativa seria ir ver Edward, ele…

– Lane?

Concentrando-se, olhou além do arco da sala de jantar. Uma morena alta num vestido cinza-claro estava parada diante dos antigos espelhos venezianos, a visão dos ombros nus tão adorável de trás quanto de frente.

Falando no diabo, ele pensou. Mas sorriu ao se aproximar e beijá-la no rosto macio.

– Sutton, como está?

Mas quis dizer: Que diabos você está fazendo aqui? Ela e a família eram o “inimigo”, proprietários da Destilaria Sutton, produtores do famoso bourbon Sutton e de outras bebidas – mas isso não significava que ele tivesse algo particularmente contra a mulher. Tradicionalmente, porém, pessoas da linhagem dela eram persona non grata em Easterly… em conversas… nas orações noturnas.

E eram fãs da UK. Portanto, eram azuis nos jogos, e não vermelhos.

Isso era algo que poderia irritá-lo.

Quando se abraçaram, seu perfume refletiu a mulher rica que era, sua fragrância delicada preencheram as narinas dele mesmo quando se afastou; assim como seu corpo perfeito e bem vestido, surgindo novamente em seus olhos quando ele piscou.

Mas não era por isso que estava atraído por ela. Aquilo era o mesmo que admirar uma pintura num museu ou um automóvel Duesenberg.

– Eu não sabia que você viria este final de semana. – Ela sorriu. – É bom te ver depois de tanto tempo. Você me parece bem.

Isso foi engraçado, porque ele se sentia uma merda.

– E você, bela como sempre.

– Vai ficar para o Derby?

Por cima do ombro de Sutton, ele viu que Chantal entrava na sala de jantar, o longo vestido amarelo se arrastando junto com a sua postura de inocente.

Só até eu preencher a papelada do divórcio, ele pensou.

– Lane? – Sutton o chamou.

– Desculpe. Na verdade, tenho que voltar logo para Nova York. – Afinal, aquelas partidas de pôquer precisavam dele lá. – Estou contente em ver você. Surpreso por vê-la no jantar do meu pai, mas contente.

Sutton assentiu.

– Também é uma surpresa e tanto para mim.

– Veio a negócios?

Ela sorveu um gole da taça de vinho.

– Hummm.

– Era para ser uma piada.

– Me diga uma coisa, você tem visto…

Ela deixou a frase inacabada, sem mencionar o nome, pois não havia motivos para que ela pronunciasse “Edward”. Por muitos motivos.

– Ainda não o vi. Mas vou até a fazenda.

– Sabe, Edward nunca vem à cidade. – Sutton tomou mais um gole da taça de borda fina. – Eu costumava vê-lo com bastante frequência antes que ele… Bem, fazíamos parte do conselho da Universidade de Charlemont, mesmo eu sendo fã da UK, e…

Enquanto a mulher prosseguia, ele ficou com a sensação de que ela não estava lhe informando fatos que ele já sabia, mas que revivia um período da vida cuja perda ela lamentava. Não pela primeira vez, ele ficou se perguntando o que realmente acontecera entre o garoto de ouro da família e a adorável filha do concorrente deles.

– Ora, se o filho pródigo não retornou…

O som da voz do pai foi um alerta que o atingiu tal qual uma flecha, e Lane encobriu seu dissabor ao tomar um gole de bourbon.

– Pai.

William Baldwine era quase tão alto quanto ele, tinha os mesmos cabelos negros e olhos azuis, o mesmo maxilar, os mesmos ombros. As diferenças eram a idade, o grisalho nas têmporas, os óculos bifocais de aro de casco de tartaruga, a ruga entre as sobrancelhas causada pelos muitos anos de semblante fechado. De algum modo, porém, todos aqueles sinais do passar dos anos não diminuíam a estatura do pai. De fato, apenas serviam de contraponto para uma aura de poder.

– Tenho que mandar arranjarem um lugar para você. – Por trás daqueles óculos, os olhos do pai encararam as roupas de Lane com um desdém apropriado para as fezes de um cachorro no meio de uma sala de estar. – Ou está de saída?

– Deixe-me pensar… – Lane estreitou o olhar. – Por mais que eu aprecie degradar a sua mesa com esta minha camisa, eu teria que ficar na sua presença durante uma refeição de, no mínimo, três pratos. Portanto, acho que vou embora.

Lane colocou seu Reserva de Família na mesinha de apoio mais próxima e se curvou para Sutton, que parecia preferir ir com ele em vez de ficar ali.

– Sutton, é sempre um prazer. – Olhou para o pai. – Pai, vá se foder.

Lançou essa granada e seguiu em meio à multidão, acenando para políticos e socialites, para aqueles dois atores da série da HBO na qual estava viciado e para Samuel T. e sua namorada do momento.

Chegou ao vestíbulo de entrada, e estava quase na porta da frente quando um par de saltos agulha se aproximou por trás.

– Aonde você vai? – Chantal sibilou ao agarrar o braço dele. – E por que não está vestido?

– Não é da sua conta. – Soltou-se dela. – Nos dois casos.

– Lane, é inaceitável…

– Essas palavras jamais deveriam passar pelos seus lábios, mulher.

Chantal fechou a boca muito bem delineada. Em seguida, inspirou fundo, como se estivesse com dificuldade para aplacar a raiva.

– Eu gostaria de passar um tempo com você esta noite, para conversar e discutir… nosso futuro.

– O único futuro em que você precisa pensar é quantas malas Vuitton vai precisar para a sua mudança.

Chantal ergueu o queixo.

– Você não faz ideia do que está falando.

Ele se inclinou na direção dela e abaixou a voz até um sussurro.

– Sei o que você fez. Sei que não “perdeu” o bebê. Se queria manter o aborto em segredo, não deveria ter pedido a um dos motoristas da família que a levasse para aquela clínica em Cincinnati.

Quando ela empalideceu, ele se lembrou exatamente onde estava quando o homem que a levara lá titubeou para lhe dar a informação.

– Não tem resposta? Não vai negar? – Lane a repreendeu. – Ou isso virá quando a surpresa por ter sido descoberta passar?

Houve um instante de silêncio, e ele sabia que ela estava pesando suas opções, tentando descobrir como abordá-lo de um jeito favorável.

– O que eu deveria ter feito? – disse ela por fim, baixinho. – Você me abandonou sem explicações, sem apoio, sem dinheiro, sem um modo de entrar em contato com você.

Ele fez um gesto abarcando as pinturas a óleo e os tapetes orientais.

– Sim, porque você ficou num lugarzinho bem largado no meio da selva.

– Você me abandonou!

– Por isso a solução foi se recompor para tentar seduzir outro homem, certo? Estou deduzindo que foi o que fez, já que você precisava caber de novo no manequim 38, não é? Minha querida esposa.

– Lane, você está dizendo coisas que não quer…

– Você matou um inocente…

Reginald veio da sala de estar com uma bandeja de prata com copos usados, deu uma olhada nos dois e voltou para trás, desaparecendo de novo no cômodo agora vazio.

Ah, sim, a vida em Easterly… Onde a privacidade era menos comum que diamantes e distribuída em termos relativos. Pelo menos sabia que podia confiar naquele homem mais do que em sua própria família.

Não que isso significasse muito.

– Não vou ficar aqui discutindo com você – Lane disse, ríspido. – E você vai sair desta casa. Assim que o Derby acabar, a sua estada grátis já era.

Chantal arqueou uma das sobrancelhas perfeitas.

– Peça o divórcio se quiser, mas não vou a parte alguma.

– Você não terá mais o direito de ficar sob este teto depois que essa aliança sair do seu dedo.

O sorriso que ela lhe lançou foi gélido.

– É o que vamos ver. – Acenou com a cabeça para a porta da frente. – Vá para onde quiser, fuja… É isso o que você faz, não é? Mas tenha certeza que: eu estarei aqui quando você voltar.

Lane estreitou os olhos. Chantal era muitas coisas, mas não era uma maluca. Ela se autopromovia demais para tanto.

E o encarava como se soubesse de algo que ele não sabia.

Que diabos aconteceu enquanto ele se manteve afastado?

No Vermelho & Preto, Edward estava sentado numa antiga poltrona de couro diante de uma televisão tão velha que ainda tinha antenas saindo da tela em forma de caixa. O cômodo estava na penumbra, mas reluzia por causa dos inúmeros troféus de corrida abarrotando as estantes até o teto do lado oposto.

O chalé do haras tinha um quarto, um banheiro com banheira com pés em forma de garras, uma cozinha pequena e aquela área, que era um misto de biblioteca, escritório, sala de estar e de jantar. Não havia segundo andar, apenas um sótão cheio de recordações de velhas corridas de cavalo, e também não havia garagem. A área era menor do que a sala de jantar de Easterly e, desde que se mudara para lá, ele aprendera a apreciar o valor de ter um lugar pequeno o bastante para poder ouvir e ver quase tudo. Lá na mansão, nunca se sabia quem mais estava na gigantesca casa, onde estavam, o que estavam fazendo.

Para alguém como ele, cuja única amante eram os terrores noturnos e cujo principal trabalho era impedir que seu cérebro se canibalizasse, os aposentos apertados eram algo muito mais fácil de lidar, ainda mais naquela época do ano. Pena que a sua ida à América do Sul, quando fora sequestrado, tivesse acontecido pouco antes do Derby. O aniversário da sua captura arruinara o que sempre fora um fim de semana agradável.

Consultou o relógio e praguejou. Agora que o sol tinha se posto, as horas se apresentavam numa confusão nebulosa, minutos se tornando séculos e um segundo ao mesmo tempo. O seu trabalho noturno? Chegar, de algum modo, ao nascer do sol sem gritar.

Junto ao cotovelo, havia uma garrafa de vodca quase vazia. Começara a beber com cinco cubos de gelo num copo alto, que já estava derretido havia um tempo, e ele agora sorvia a bebida pura. Na noite anterior, fora gim. Na de antes, tomara três garrafas de vinho, duas de tinto e uma de branco.

Durante a fase inicial e aguda da sua “recuperação”, aprendera todos os estágios da administração da dor, aprendera como espaçar os analgésicos e a comida a fim de fazer com que os impulsos nevrálgicos do seu corpo arruinado não fossem piores do que a tortura que suportara quando aquelas feridas foram provocadas. Mais tarde, o mestrado em Gerenciamento de Medicação se traduziu muito bem na segunda parte – a parte crônica, a da “recuperação”. Graças às tentativas e aos erros adquiridos com os analgésicos, ele conseguia distribuir tudo para otimizar o efeito sedativo: todas as tardes, por volta das quatro horas, comia alguma coisa; às seis, quando os funcionários liberavam os estábulos, ele podia começar a beber estando, basicamente, de estômago vazio.

Nada o irritava mais do que alguém se metendo no meio do seu torpor…

Quando uma batida se fez à porta, apanhou a pistola ao lado da garrafa Grey Goose e tentou se lembrar que dia da semana era. O Derby aconteceria dali a dois dias… Então era quinta-feira. Era quinta-feira, algumas horas depois do pôr do sol.

Portanto, não era uma das prostitutas que ele pagava para vir servi-lo. Elas vinham às sextas-feiras. A menos que tivesse chamado duas pelo preço de uma aquela semana, mas não havia pedido aquilo.

Certo. Ou havia?

Apanhando a bengala, suspendeu-se da poltrona e claudicou até a janela da frente. Afastou as cortinas, com a pistola firme numa mão, mas o coração batia descompassado. Mesmo ciente de que, pela lógica, não existiam mercenários no Condado Ogden à sua procura, que estava seguro atrás das travas e do sistema de segurança que instalara, apesar da quarenta milímetros em suas mãos… seu cérebro continuava eletrizado.

Quando viu quem era, franziu o cenho e abaixou a arma. Seguindo até a porta, retirou a corrente, destrancou as três travas e abriu a porta, as dobradiças rangendo como camundongos. Outro mecanismo de alerta para ele.

– Cliente errado – murmurou com secura para a loira baixinha que vestia jeans e camiseta justa. – Eu só peço morenas. Em vestidos de gala.

Por um motivo que preferia guardar para si.

Ela franziu a testa.

– O que disse?

– Só aceito morenas. E elas têm que estar adequadamente vestidas.

Ele queria cabelos longos curvados nas pontas, um vestido que se arrastasse pelo chão, e elas tinham que estar usando Must da Cartier. Ah, e tinham que ficar de boca fechada. Não tinham permissão para falar com ele enquanto estivessem transando. Ainda que as putas conseguissem representar bem o exterior, a ilusão frágil seria rompida no instante em que as vozes delas não fossem a da mulher que desejava, mas que não podia ter.

Ele já tinha bastante dificuldade para manter a ereção daquele modo; na verdade, a única maneira de fazer seu pau subir era se conseguisse acreditar na mentira pelo tempo necessário até chegar ao orgasmo.

A mulher em sua soleira pousou as mãos nos quadris.

– Acho que não sei do que está falando. Mas sei que estou no lugar certo. Você é Edward Baldwine, e este é o Vermelho & Preto.

– E você quem é?

– Filha de Jeb Landis. Shelby. Shelby Landis.

Edward fechou os olhos.

– Maldito seja Ele.

– Eu agradeceria se não usasse o nome de Deus em vão na minha presença. Obrigada.

Ele levantou as pálpebras.

– O que você quer?

– O meu pai morreu.

Edward se concentrou num ponto acima da cabeça dela, na lua que crescia acima do Estábulo C.

– Quer entrar?

– Se guardar arma, sim.

Ele enfiou a pistola no cós do jeans e recuou.

– Quer beber alguma coisa?

Quando ela entrou, ele percebeu o quanto ela era baixinha. E devia pesar só uns 45 quilos, isso se estivesse ensopada segurando um fardo de feno.

– Não, obrigada. Não bebo álcool. Mas eu gostaria de usar o seu banheiro. A viagem foi longa.

– É por ali.

– Muito obrigada.

Ele se recostou na porta. A picape na qual ela evidentemente chegara sabe lá Deus de onde estava estacionada à esquerda, o motor ainda estalava debaixo do capô.

Depois de fechá-la e trancar tudo de volta, ouviu a descarga nos fundos da casa. Um momento mais tarde, a moça voltou e olhou para os troféus.

Edward seguiu para a poltrona, fazendo uma careta de dor ao se acomodar.

– Quando? – ele perguntou ao se servir do resto da vodca.

– Uma semana atrás – ela respondeu sem olhar para ele.

– Como?

– Pisoteado. Bem, os médicos disseram que o coração dele não aguentou, mas a causa foi o pisoteamento. Foi assim que você se machucou?

– Não. – Ele sorveu um longo gole. – Então, o que você faz aqui?

Dessa vez ela se virou.

– O meu pai sempre disse pra eu vir para cá pra encontrar você se alguma coisa acontecesse com ele. Ele disse que você lhe devia uma. Nunca perguntei o quê.

Edward a encarou demoradamente.

– Quantos anos você tem? Doze?

– Vinte e dois.

– Jesus, como você é nova…

– Cuidado com o que diz perto de mim.

Ele teve que sorrir.

– Você é igualzinha ao seu velho, sabia disso?

– É o que dizem. – Ela voltou a apoiar as mãos nos quadris. – Não quero esmola. Preciso de um lugar pra ficar e de um trabalho. Sou boa com cavalos, assim como o meu pai era, e ruim com pessoas… Por isso, considere-se avisado. Não tenho dinheiro, mas tenho costas fortes e não tenho medo de nada. Quando posso começar?

– Quem disse que estou procurando ajuda?

Ela franziu o cenho.

– O meu pai disse que você precisaria. Disse que você precisaria de mais mãos.

O Vermelho & Preto era uma grande operação, e sempre havia vagas. Mas Jeb Landis era uma lembrança complicada do passado… e a família dele estava contaminada por associação.

Mesmo assim…

– O que sabe fazer?

– Limpar estábulos e manter os cavalos em ordem não é física nuclear…

Ele dispensou as palavras dela com a mão.

– Tudo bem, tudo bem, está contratada. E só estou sendo um cretino porque, assim como você, não me dou bem com as pessoas. Tem um apartamento vazio ao lado do apartamento de Moe, sobre o Estábulo B. Pode se mudar para lá.

– Mostre o caminho.

Edward grunhiu ao voltar a ficar de pé e carregou o copo consigo de propósito ao conduzi-la até a porta.

– Não quer saber do salário?

– Você vai ser justo. O meu pai disse que desonestidade não faz parte do seu caráter.

– Ele foi generoso ao dizer isso.

– Duvido. Ele conhecia homens e cavalos.

Enquanto Edward voltava a destrancar tudo, conseguia senti-la observando-o e odiou isso. Seus ferimentos eram o resultado de um inferno que ele preferia manter escondido do mundo.

Antes de deixá-la sair do chalé, olhou-a fixamente.

– Só há uma regra.

– Qual?

Por algum motivo, ele se deteve nas feições dela. Ela não se parecia fisicamente em nada com o pai – bem, desconsiderando-se a altura. Shelby, ou qualquer que fosse seu nome, tinha olhos claros, e não negros. E sua pele não tinha a consistência de couro, embora isso ainda pudesse mudar.

A voz dela, porém, era como a de Jeb: aquele sotaque arrastado tinha um fundo de solidez.

– Você não vai chegar perto daquele garanhão – Edward avisou. – Ele é malvado até os ossos.

– Nebekanzer.

– Você o conhece.

– Meu pai costumava dizer que aquele cavalo tinha gasolina nas veias e ácido nos olhos.

– Então você já conhece o meu cavalo. Não se aproxime dele. Não vai limpar a baia dele, não vai chegar perto dele se ele estiver no pasto e nunca, jamais, vai colocar qualquer coisa sobre a porta da baia dele se quiser conservá-la. E isso inclui a sua cabeça.

– Quem cuida dele?

– Eu. – Edward claudicou noite afora, o ar úmido e pesado fazendo com que ele pensasse que não conseguiria respirar. – E ninguém mais.

Enquanto tentava respirar fundo, perguntou-se se todos aqueles médicos tinham deixado passar algum ferimento interno. Pensando bem, talvez a sensação de sufocamento fosse causada pela imagem daquela moça perto do maldito garanhão negro. Ele só conseguia pensar no que Neb poderia fazer com ela.

Ela se colocou na frente e pegou a mochila sobre o banco do passageiro.

– Então você é o encarregado aqui.

– Não, Moe Brown é. Você vai conhecê-lo pela manhã. Ele será o seu chefe. – Edward seguiu na direção dos estábulos. – Como já disse, o apartamento ao lado do dele está mobiliado, mas não sei quando o último a morar lá saiu.

– Já dormi em baias e em bancos de praça. Ter um telhado sobre a cabeça já basta.

Ele olhou na direção dela.

– O seu pai… era um bom homem.

– Não era nem melhor nem pior do que qualquer outra pessoa.

Era impossível não pensar em quem devia ser a mãe dela – ou em como alguém poderia ter suportado tempo suficiente ao lado de Jeb até ter uma filha com ele. Jeb Landis era uma lenda na indústria, tinha uma lista de cavalos vencedores maior do que qualquer outro, vivo ou morto. Também fora um alcoólatra filho da puta, com um vício por jogo ainda pior do que a sua veia misógina.

Uma coisa com a qual Edward não tinha que se preocupar era se Shelby saberia tomar conta de si mesma. Se conseguira sobreviver tendo vivido com Jeb, trabalhar num turno de dezoito horas numa fazenda criadora de cavalos seria fácil, fácil.

Quando chegaram ao Estábulo B, as luzes detectoras de movimento se acenderam e os cavalos se movimentaram lá dentro, batendo os cascos e relinchando. Entraram pela porta lateral, passaram pelo escritório de Moe e pelo depósito de suprimentos, e Edward a levou até o lance de escadas que antes conduzia ao palheiro, cobrindo toda a extensão do telhado. Em algum momento nos anos 1970, o lugar fora convertido em dois apartamentos, e Moe morava no da frente, que dava para a passagem de carros.

– Vá na frente e espere por mim ali em cima – disse com os dentes cerrados. – Eu demoro um pouco para subir.

Shelby Landis subiu os degraus rapidamente no compasso que ele costumava usar, mas que agora já não apreciava mais, e sentiu como se tivesse uma centena de anos ao se juntar a ela no andar superior.

Àquela altura, já estava tão sem fôlego que chiava como um pneu murchando.

Afastando-se dela, viu que não havia nenhuma luz por baixo da porta de Moe, mas, de todo modo, não teriam incomodado o homem. Com o Derby em menos de quarenta e oito horas, se estivesse em casa, o homem já devia estar dormindo a sono solto.

Ainda mais se considerasse que um dos seus dois cavalos poderia acabar excluído da corrida.

Enquanto Edward seguia em frente e girava a maçaneta do apartamento seguinte, percebeu que não sabia o que faria caso a porta estivesse trancada. Não fazia ideia de onde as chaves poderiam estar…

A porta se abriu, lembrando-o de que ele estava em meio a uma minoria de paranoicos ali naquela fazenda. O interruptor ficava à esquerda na parede e, quando ele o apertou, ficou aliviado em ver que o lugar não estava muito empoeirado e que, de fato, havia um sofá, uma cadeira, uma mesa e uma cozinha minúscula que, em comparação, fazia com que a sua parecesse industrial.

– O seu pai nunca mencionou o motivo de eu estar em débito com ele? – perguntou, mancando até o corredor escuro.

– Não, mas Jeb não era de falar muito.

Apertando o segundo interruptor, viu que o quarto e o banheiro também estavam organizados.

– Eis o que você tem aqui – disse ele, exausto só de ver a distância até a porta.

Quatro metros e meio.

Era como se fossem quilômetros.

Ela se aproximou.

– Obrigada pela oportunidade.

Ofereceu a mão e o fitou nos olhos e, por um instante, ele sentiu uma emoção diferente da raiva que ardia e queimava em seu íntimo nos últimos dois anos. Não sabia como defini-la, e o triste era que não sabia se a mudança era bem-vinda.

Havia uma certa claridade em ter um princípio de operação unilateralmente hostil.

Deixou a mão dela pendurada no ar enquanto arrastava o corpo de volta até a saída.

– Veremos se, mais tarde, você vai me agradecer.

De repente, lembrou-se de toda aquela coisa de não praguejar e não beber álcool.

– Ah, e mais uma coisa. Se a cortina do meu chalé estiver fechada, não me incomode.

– Sim, senhor.

Ele assentiu e fechou a porta. Depois, muito lenta e cuidadosamente, começou a descer.

A verdade era que Jeb Landis fora o responsável pela sua recuperação. Sem o chute que o homem deu no seu traseiro, só Deus sabia se Edward ainda estaria naquele planeta. Deus, ainda se lembrava com nitidez quando o treinador viera visitá-lo no centro de reabilitação. Apesar da regra explícita de Edward de não receber visitantes, Jeb passara pela estação da enfermagem e marchara para dentro do seu quarto.

Eles já se conheciam havia uma década. O interesse de Edward por cavalos de corrida, e sua subsequente posse, aliado ao compromisso prévio de ser o melhor em tudo o que fazia, significava que ele só aceitaria um homem treinando os seus cavalos.

No entanto, jamais previra que o homem seria um tipo de salvador.

O esporro de Jeb fora breve e direto, mas mais eficiente do que todos os argumentos e apoio emocional que recebeu de outras pessoas. E, um ano após sua mudança para lá, tendo jogado fora todos os seus ternos e decidido que aquela seria a sua vida, Jeb lhe disse que estava deixando o Vermelho & Preto rumo à Califórnia.

Provavelmente porque alguns agentes de apostas de Chicago estavam atrás de um pedaço do traseiro dele.

Em todos aqueles anos, antes e depois do sequestro, o fato de Jeb ter uma filha jamais viera à baila. Mas, sim, ele abrigaria a filha do homem. Claro.

E, felizmente, ela parecia ser capaz de cuidar de si mesma.

Portanto, o pagamento do débito teria um custo baixo.

Pelo menos, foi o que ele disse a si mesmo naquela primeira noite.

Só que aquilo não foi bem verdade… nem de longe.

 

DOZE

– Paguei cem mil dólares para me sentar ao seu lado.

Gin ergueu o garfo Tiffany com desenho de crisântemo para mexer na comida, mal ouvindo as palavras ditas junto ao seu ouvido. Estava ocupada demais se concentrando no arranjo floral diante dela. Samuel T. estava mais à esquerda, e a partir daquele ponto focal florido, sua visão periférica permitia que ela o acompanhasse ao lado da namoradinha, Veronica/Savannah.

– Por isso, você poderia pelo menos conversar comigo.

Voltando a se concentrar, fitou o odioso Richard Pford IV. O homem era só uma versão do jovem que um dia fora: alto e magro, com um olhar capaz de cortar vidro e uma natureza suspeita que contrastava com a sua posição invejável na hierarquia social de Charlemont. Filho de Richard Pford III, era o único herdeiro da Distribuidora de Bebidas Pford, uma cadeia nacional que distribuía vinhos, cerveja, bourbon, gim, vodca, champanhe, uísque etc. nas prateleiras e nos negócios do país inteiro.

O que significava que ele podia bancar um valor de seis dígitos para garantir um assento todas as noites da semana e duas vezes aos domingos.

Ele nadava em milhões, e seus familiares nem tinham começado a morrer ainda.

– Os assuntos do meu pai não me interessam – ela rebateu. – Portanto, parece que desperdiçou o seu dinheiro.

Ele tomou um gole de vinho.

– E pensar que ele foi para o programa de basquete da UC.

– Não sabia que você era fã deles.

– Não sou.

– Não é de se admirar que não nos damos bem. – UK. Ela devia ter desconfiado. – Além disso, não ouvi dizer que você estava para se casar?

– Os boatos quanto ao meu noivado foram exagerados.

– Difícil de acreditar, com todas as suas qualidades.

À esquerda, Veronica/Savannah deu um salto na cadeira, os cílios postiços flanaram, o garfo bateu no prato. Enquanto as lentes coloridas se voltavam para Samuel T., o maldito limpava casualmente a boca com o guardanapo damasco.

Samuel T., no entanto, não estava olhando para a namorada. Não, ele casualmente fitava o buquê de flores bem na frente de Gin.

O filho da puta.

Deliberadamente, Gin se virou para Richard e sorriu.

– Bem, estou encantada com a sua companhia.

Richard assentiu e voltou a cortar o seu filé mignon.

– Assim é muito melhor. Por favor, não pare.

Gin falou com suavidade, ainda que não fizesse ideia do que estava saindo da sua boca. Mas Richard assentia mais e mais, e respondia, por isso ela deduziu que estava se saindo bem com suas habilidades sociais. Mas, pensando melhor, quer se tratasse de conversas que não a interessavam ou orgasmos com homens com os quais não se importava, ela tinha bastante prática em fingir.

E, mesmo assim, estava ciente do que Samuel T. estava fazendo. Dolorosamente ciente.

Os olhos dele queimavam, cravados nela. E, nesse meio-tempo, bem como ele lhe prometera, a vadia ao lado dele começou a se esforçar para manter a compostura.

– … me resguardei para você – Richard declarou.

Gin franziu o cenho, captando aquela combinação de palavras, a despeito da sua preocupação.

– O que disse?

– Eu estava determinado a me casar, mas entrei num acordo com o seu pai. Foi por isso que pus fim ao noivado.

– Entrou num acordo com o meu pai? Do que está falando?

Richard sorriu com frieza.

– O seu pai e eu chegamos a um acordo quanto ao futuro. Em contrapartida por se casar comigo, estou disposto a conceder algumas vantagens à Cia. Bourbon Bradford.

Gin piscou. Depois balançou a cabeça.

– Não estou ouvindo muito bem.

– Sim, sim, você está. E já lhe comprei o anel de diamantes.

– Não, não, não… Espere um minuto. – Jogou o guardanapo na mesa mesmo sem terminar de jantar, assim como as outras trinta e uma pessoas. – Não vou me casar nem com você nem com ninguém.

– Mesmo?

– Tenho certeza de que “comprou” o seu lugar nesta mesa. Mas ninguém me obriga a fazer porra nenhuma, e isso inclui o meu pai.

Pensou que era uma tristeza não ter questionado a possibilidade do seu bom e velho pai a vender em favor do preço das ações da empresa.

Richard deu de ombros debaixo do terno elegante.

– Se é o que você diz.

Gin olhou para a cabeceira da mesa onde William Baldwine estava sentado em comando total, como se estivesse em um trono suspenso, mantendo-o acima dos seus súditos.

O homem não percebeu o olhar letal e, portanto, não sabia que a bomba tinha sido lançada. Ou talvez, quem sabe, ele tivesse planejado dessa forma, sabendo que Richard seria incapaz de ficar calado, e que ela não poderia provocar um escândalo por causa das testemunhas.

E, maldição, seu pai tinha razão quanto a isso. Por mais que desejasse dar um pulo e começar a berrar, ela não rebaixaria o nome Bradford dessa maneira, certamente não com Sutton Smythe e o pai dela, Reynolds, no mesmo cômodo.

À esquerda, um gemido foi encoberto por uma tossidela fraca.

Gin desviou a atenção do pai para Samuel T., ao que o advogado ergueu uma sobrancelha… e lançou um beijo no ar na sua direção.

– Sim, pode levar o prato dela. – Ela ouviu Richard dizer para o garçom uniformizado. – Ela já terminou.

– O que disse? – Gin se virou para Richard. – Mas você não tem o direito de…

– Aprovo a sua falta de apetite, mas não vamos nos arriscar, certo? – Richard acenou para o garçom. – E ela também não vai comer a sobremesa.

Gin se inclinou para o homem e lhe sorriu. Num sussurro, disse: – Não dê o passo maior que a perna. Eu ainda me lembro da época em que você enchia a sua saqueira com meias. Dois pares, porque um não adiantava muita coisa.

Richard a encarou. Num tom igualmente baixo, respondeu:

– Não faça de conta que tem algum poder de decisão.

– Espere e verá.

– É você quem mal pode esperar para ver. – Ele se recostou e lançou-lhe o olhar satisfeito de um homem que tem um royal flush nas mãos. – Mas não demore muito. O peso dos quilates do seu anel diminui a cada hora.

Eu vou te matar, ela pensou consigo mesma enquanto olhava para o pai. Que Deus me ajude, mas eu vou te matar.

Quando Lizzie fez a curva na estradinha secundária, a faixa de terra para a qual se dirigiu dividia terrenos com plantações de milho e só era larga o bastante para a passagem do seu Yaris. Havia árvores em ambos os lados, não de maneira organizada, mas num padrão casual, arranjado pela natureza, e não pela enxada de um paisagista. Acima, galhos grossos se uniam formando um dossel de verde brilhante na primavera, esmeralda no verão, amarelo e laranja no outono e esquelético no inverno.

Normalmente, aquela procissão de meio quilômetro até sua fazenda era o início do seu relaxamento, uma câmara de descompressão que ela acreditava ser o único motivo pelo qual conseguia dormir depois de um dia de problemas em Easterly.

Não naquela noite.

De fato, ela queria olhar por sobre o ombro só para se certificar de que não havia ninguém com ela no banco de trás do carro. Não que coubesse alguém de mais de doze anos ali, mas, mesmo assim… Sentia-se perseguida. Caçada. Assaltada. Ainda que sua carteira continuasse dentro da bolsa e ela estivesse, de fato, sozinha em seu carro.

A casa da fazenda era uma clássica casa americana, exatamente o que se veria num filme da Lifetime que se passasse num fim de semana de quatro de julho: branca com uma varanda, com vasos de amor-perfeito, uma cadeira de balanço e um banco suspenso em um dos lados. Tanto a indispensável chaminé de tijolos vermelhos quanto o telhado pontudo com telhas cinza eram originais, da época da sua construção em meados de 1833. E o coup de grâce? Um bordo imenso que oferecia abrigo para o calor do verão e para o vento frio do inverno.

Estacionou debaixo da árvore, que era o que de mais próximo a uma garagem que ela tinha, e saiu do carro. Mesmo que Charlemont dificilmente fosse Manhattan, a diferença no nível de barulho era impressionante. Naquelas partes, havia sapos, vagalumes que não tinham nada a dizer, e uma coruja que começara a montar guarda num velho celeiro uns dois anos antes. Nenhum murmúrio da autoestrada. Nenhuma sirene de ambulância. Nenhum acorde de jazz ou blues vindos do parque às margens do rio.

Fechando a porta, o som foi amplificado pela escuridão, e ela se viu aliviada quando caminhou e as luzes ativadas pelo movimento, colocadas em ambos os lados da entrada, foram ativadas. As botas rasparam nos cinco degraus que rangeram, e a porta de tela a acolheu com o resmungo das dobradiças. A fechadura era de latão, relativamente nova. Fora instalada em 1942.

Do lado de dentro, tudo estava escuro, e quando ela confrontou o vazio, desejou ter um cachorro. Um gato. Um peixinho dourado.

Apertando o interruptor, piscou quando seu lar doce lar se iluminou com a suave luz amarela. A decoração não se parecia em nada com a dos Bradford. Na sua casa, se havia algo antigo, era por ser útil e por ter sido feito por algum artesão do Kentucky: uma velha cesta de vime, um par de colchas de retalhos gastos pendurado nas paredes, uma cadeira de balanço, um banco de pinho debaixo da janela, cabeças de enxadas e pás que encontrara nos campos e que ela mesma emoldurara, para depois pendurar na parede. Também tinha uma coleção de instrumentos musicais, inclusive diversos violinos, muitas canecas, algumas tábuas de lavar roupa, e o maior dos seus tesouros: seu piano Price & Teeple de 1907. Feito de carvalho, com dobradiças incríveis de cobre, pedais e outras partes metálicas, ela o encontrara apodrecendo num celeiro, na porção oeste da propriedade, e o restaurara com muito amor.

A mãe chamava sua casa de museu do folclore, e Lizzie concluiu que isso devia ser bem verdade. Para ela, não existia conforto maior do que se ligar a gerações de homens e de mulheres que trabalharam na terra, esculpiram suas vidas e transmitiram seu conhecimento de vida para as gerações seguintes.

Agora? Tudo era 3G, 4G, LTE, e os computadores e smartphones eram cada vez menores e mais rápidos.

Sim, porque esse sim era um legado de honra e de perseverança para deixar aos seus filhos: como se esforçar para ficar na fila por vinte e seis minutos a fim de adquirir um novo iPhone, com um copo do Starbucks numa mão e um blog a respeito de alguma inutilidade na outra para passar o tempo.

De volta à sua cozinha anos 1940 – o estilo não era importado da Ikea ou Williams-Sonoma com suas réplicas, mas sim o original, de quando ela comprara a casa sete anos atrás –, abriu a geladeira e encarou as sobras da torta de frango que fizera na segunda à noite.

Aquilo era tão inspirador quanto a ideia de comer lascas de tinta esquentadas numa frigideira.

Quando seu celular começou a tocar, olhou por sobre o ombro, para a bolsa que largara no corredor.

Deixe para lá, ela se ordenou. Apenas deixe…

Esperou até que o aparelho silenciasse, e esperou mais para ver se haveria outra chamada – caso fosse uma emergência com a mãe, outra ligação se seguiria. Ou pelo menos haveria um toque alertando a chegada de uma mensagem.

Quando nenhum dos dois aconteceu, ela foi até o corredor e apanhou a bolsa. Nenhuma mensagem. Não reconheceu o número, mas conhecia o código de área: 917.

Cidade de Nova York. Celular.

Tinha amigos que ligavam para ela daquela área.

Suas mãos tremiam ao abrir a lista de chamadas recebidas e apertar o último número.

Foi atendida antes que o primeiro toque terminasse.

– Lizzie?

Seus olhos se fecharam quando a voz de Lane entrou em seu ouvido e em todo o seu corpo.

– Alô? – ele disse. – Lizzie?

Havia muitos lugares para sentar em sua sala ou na cozinha – cadeiras, sofás, até mesmo a mesinha de centro era robusta o suficiente. Em vez de usar qualquer um desses móveis, recostou-se contra a parede e deixou o traseiro escorregar até o chão.

– Lizzie? Você está aí?

– Sim. – Apoiou a testa na mão. – Estou aqui. Por que está ligando?

– Eu só queria me certificar de que você chegou bem em casa.

Sem nenhum motivo, lágrimas surgiram em seus olhos. Ele sempre agia assim. No tempo em que estiveram juntos, não importava que horas ela saía, ele lhe telefonava assim que ela passasse pela porta. Como se tivesse um timer no telefone.

– Não estou ouvindo a festa – comentou. – Ao fundo.

– Não estou em casa.

– Onde você está?

– No Antigo Silo. No armazém de barris. – Ela ouviu um barulho, como se ele também estivesse se sentando no chão. – Faz muito tempo que não venho aqui. O cheiro é o mesmo. A aparência também.

– Nunca fui aí.

– Você gostaria daqui. É o seu tipo de lugar, tudo muito simples e funcional e feito à mão.

Ela relanceou para a sala de estar e se concentrou na primeira pá que encontrara nos campos onde plantava milho todos os anos. O objeto era velho e enferrujado e, para ela, belo.

O silêncio que se seguiu fez parecer como se ele estivesse na sala junto dela.

– Estou feliz que não tenha desligado – Lane disse por fim.

– Eu queria poder desligar.

– Eu sei.

Ela pigarreou.

– Pensei em tudo o que me disse, no caminho para casa. Pensei em como você estava enquanto conversava comigo. Pensei… em como as coisas eram.

– E?

– Lane, mesmo que eu conseguisse superar tudo, e não estou dizendo que consigo, o que, exatamente, você quer de mim?

– Qualquer coisa que você me der.

Ela gargalhou num acesso tenso.

– Isso foi bem franco.

– Tenho outra chance com você? Porque vou te dizer isso agora, neste instante, se houver a mínima chance de você me aceitar, eu…

– Pare – ela inspirou fundo. – Apenas… pare.

Quando ele parou, ela ficou puxando e puxando o cabelo, com tanta força que seus olhos ficaram ainda mais marejados. Ou talvez isso estivesse acontecendo por outros motivos.

– Eu queria que você não tivesse voltado – ela se ouviu dizer. – Eu queria… Eu já estava te esquecendo, Lane. Estava recuperando o meu fôlego, a minha vida. Eu estava… e agora você está aqui, dizendo as coisas que quero ouvir, olhando para mim como se estivesse falando sério. Mas eu não quero voltar. Não posso.

– Então vamos em frente.

– A vida não é fácil assim.

– Não é. Mas é melhor do que nada.

Enquanto o silêncio se estendia uma vez mais, ela não sentiu necessidade de falar, de explicar mais coisas, de detalhar tudo. E enquanto as palavras martelavam em sua cabeça, ela desistiu de lutar.

– Não fiquei um dia, uma noite sem pensar em você, Lizzie.

O mesmo valia para ela, mas ela não queria lhe dar esse tipo de munição.

– O que você andou fazendo esse tempo todo lá?

– Nada. E estou falando sério. Fiquei com um amigo, o Jeff… bebi, joguei pôquer. Esperei, querendo ter uma oportunidade de falar com você.

– Por dois anos.

– Eu teria esperado uma dúzia.

Lizzie parou de puxar o cabelo.

– Por favor, não faça isso…

– Eu quero você, Lizzie.

Enquanto assimilava as palavras, seu coração batia tão forte que ela conseguiu sentir o aumento na pressão sanguínea no peito e no rosto.

– Nunca deixei de te querer, Lizzie. De pensar em você. De desejar que você estivesse comigo. Diabos, sinto como se estivesse num relacionamento com um fantasma. Eu te vejo nas ruas de Nova York sem parar, em alguma loira passando por mim numa calçada, talvez no modo como ela penteia os cabelos, ou por causa dos óculos, ou pela cor das calças jeans… Eu te vejo nos meus sonhos todas as noites; você é tão real que consigo te tocar, te sentir, estar com você.

– Você tem que parar.

– Não consigo. Lizzie… eu não consigo.

Fechando os olhos, ela começou a chorar baixinho na solidão da sua casa tão modesta, aquela que ela mesma comprara e que estava quase acabando de pagar, o maior símbolo da razão pela qual não precisava de um homem em sua vida, nem agora, nem nunca.

– Você está chorando? – ele sussurrou.

– Não – respondeu depois de um instante, num soluço. – Não estou.

– Está mentindo?

– Sim, estou.

 

TREZE

Lane olhava para o lado oposto do Antigo Silo construído por um dos seus ancestrais, sabendo que estava dentro do limite legal de álcool para poder dirigir, e que isso não duraria muito. Tinha uma garrafa de no 15 contra o quadril, que surrupiara de uma caixa pronta para ser despachada, e apesar de ainda não ter rompido o lacre, tinha toda intenção de secar a garrafa.

Em toda a sua volta, o Antigo Silo estava deserto, e surpreendeu-se ao perceber que o código de acesso do sistema de alarme ainda era o mesmo de antes.

Sabia que deveria deixar Lizzie em paz.

– Sinto muito – murmurou. – Quero dizer todas as coisas certas, fazer as coisas certas, e sei que não estou cumprindo esses objetivos. Maldição, Lizzie…

Inclinou a cabeça para o lado e segurou o telefone entre o ombro e a orelha. Pegando o bourbon, abriu a garrafa e a levou até a boca.

A ideia de tê-la feito chorar de novo o comia vivo.

– Você está bebendo? – ela perguntou.

– Ou faço isso ou bato a cabeça na parede até sangrar.

Enquanto ela exalava fundo, ele deu mais um gole. E um terceiro.

Quando terminou de engolir e a queimação na garganta cessou, ele fez a pergunta cuja resposta tanto temia: – Você está com alguém?

Ela demorou bastante para responder.

– Não.

Foi sua vez de exalar fundo.

– Não acredito em Deus, mas, neste instante, estou com vontade de me autoproclamar cristão.

– E se eu não te quiser mais? O que vai fazer, então?

– Está me dizendo que isso é verdade?

– Talvez.

Ele fechou os olhos.

– Então, eu vou recuar. Isso vai acabar comigo… mas vou embora.

Mais silêncio. Que ele passou bebendo da garrafa.

– Amigos – ela disse por fim. – Só vou até aí. É só isso que consigo fazer.

– Ok. Respeito isso.

Ele conseguiu ouvir o alívio na voz dela.

– Obrigada.

– Mas – ele a interrompeu – o que, exatamente, isso quer dizer?

– Como é?

– Bem, amizade… Como é isso? Posso te telefonar, certo? Amigos podem comer juntos de vez em quando, só para se manterem a par das novidades, não é? Você sabe, divórcio, planos de mudança, novas direções, esse tipo de coisa.

– Lane.

Ele sorriu.

– Adoro quando você diz meu nome desse jeito.

– Quando estou irritada?

– É sexy.

Lizzie pigarreou.

– Essa palavra não cabe numa amizade, ok?

– Eu apenas constatei um fato.

– Uma opinião.

– Fato.

– Lane, estou te avisando, você precisa…

Enquanto ela prosseguia, falando à sua maneira tipicamente franca e sem rodeios, ele fechou os olhos e prestou atenção às ordens dela, deixando que seu tom de voz o envolvesse. Bem no íntimo, aquele desejo velho e tão conhecido despertou, como um dragão adormecido… e o ímpeto foi tão forte que ele quis entrar no carro e atravessar as pontes até Indiana.

– Ainda está aí? – ela perguntou, brava.

– Ah, estou. – Arrumando a ereção dentro das calças, refreou um gemido. – Estou, sim.

– O que está fazendo?

Ele afastou a mão para longe, bem longe do marco zero.

– Nada.

– E então? – disse ela. – Está ou não?

– Estou o quê?

– Dormindo enquanto fala comigo.

– Muito pelo contrário – ele murmurou.

Houve uma leve pausa e depois:

– Ah…!

Como se ela o tivesse compreendido.

– Melhor eu desligar – ele disse, rouco. – Cuide-se. Nos falamos amanhã.

Só que ela não parecia querer que ele desligasse… e seu pau ficou todo lépido e faceiro.

– Quer dizer que você vai ficar? – ela perguntou.

Podemos falar sobre outro assunto?, sua ereção pensou.

Sossegue, garoto.

– Sim, vou. – Quando ele mudou de posição no chão duro, tentou ignorar o modo como o zíper resvalou. – Tenho que me encontrar com Samuel T. para falar do divórcio.

– Então, você vai mesmo…

– Vou – ele disse. – Imediatamente. E não, não é só por sua causa. Cometi um erro, e vou consertar isso para o bem de todo mundo.

– Tudo bem. – Ela pigarreou. – Ok.

– Só estou seguindo em frente, Lizzie.

– Se é o que você diz. Bem, tchau…

– Não – ele a interrompeu. – Assim não. Nós dizemos boa noite, está bem? E não tchau, a menos que você queira que eu apareça na soleira da sua porta como um cachorro sem dono.

– Está bem.

Antes que ela desligasse, ele formou um “eu te amo” com os lábios.

– Boa noite, Lizzie.

– Boa noite… Lane.

Encerrando a ligação, Lane deixou o braço cair, e o aparelho bateu no piso de concreto com um baque.

– Eu te amo, Lizzie – disse em voz alta.

Tomando mais um gole da garrafa, pensou em como era conveniente que a fortuna da família se baseasse em algo com o qual ele poderia se embebedar. Se fosse uma enormidade de outros produtos de consumo – canetas, baterias de carro, band-aids, chicletes –, nada poderia ajudá-lo na sua atual situação.

Quando o telefone voltou a tocar, ele o atendeu de pronto. Mas não era Lizzie.

– Jeff – ele disse, mesmo não querendo conversar com mais ninguém.

A voz do seu anfitrião nova-iorquino soou seca.

– Você ainda está vivo.

– Basicamente. – Levou a garrafa de volta à boca. – E você, como é que você está?

– Está bebendo?

– Isso mesmo. No 15. Eu dividiria com você, se estivesse aqui.

– Um cavalheiro sulista, sem dúvida. – Seu amigo praguejou. – Lane, onde você está?

– Em casa.

Houve tempo suficiente para grilos cantarem na conexão.

– Você está se referindo a…

– Isso mesmo.

– Charlemont?

– Nascido e criado eu fui, e ao lar regressei. – Puxa. Devia estar ficando bêbado, estava parecendo um sulista de verdade. – Assim como você e o Upper East Side, só que nós temos miúdos de porco e frango frito.

– Que diabos você está fazendo aí?

– A minha… – Pigarreou. – Uma pessoa muito importante para mim adoeceu. Tive que voltar.

– Quem?

– A mulher que me criou. A minha… bem, a minha mãe. Mesmo ela não sendo a minha mãe biológica. Ela ficou doente alguns anos atrás, mas sabe como são essas coisas. Elas podem voltar. Ela diz que vai ficar bem, então estou me apegando a isso.

– Quando vai voltar?

Lane tomou mais um gole.

– Já te contei que me casei?

– O quê?

– Foi um pouco antes de eu ir para o norte e acabar no seu sofá. Vou ficar aqui até a senhorita Aurora ficar bem e, assim, vou poder cuidar dessa outra coisa idiota. Além disso… é que… tem essa outra mulher.

– Espera um minuto. Cacete. Espera aí…

Houve uma espécie de farfalhar, seguindo de um clic, clic, clic como se alguém estivesse tentando acender um isqueiro… e depois uma baforada.

– Vou precisar de um cubano para ouvir isso. Então, você tem uma esposa?

– Eu te disse que não era gay.

– Foi por isso que você não ficou com ninguém aqui?

– Não, foi por causa da outra mulher. Aquela com quem não me casei. Aquela que é naturalmente bonita e boa demais para mim.

– Vou precisar de um diagrama de Venn – o cara murmurou. – Cacete, por que não me contou nada disso?

Lane balançou a cabeça, mesmo que o amigo não pudesse vê-lo.

– Eu estava no modo de fuga. – Caramba, odiou o fato de Chantal estar certa. – Tudo estava barulhento demais dentro da minha cabeça. A coisa toda. Então, como é que você está?

– Você joga isso tudo em cima de mim e termina querendo saber como é que eu estou?

– Tenho que voltar a beber. Conversar está me retardando, mas estou disposto a ouvir. – Tomou um gole grande. – E aí? Alguma novidade?

– Estou bem, você sabe, as coisas de sempre no trabalho. Dez mil amplificadores ligados, um chefe que não sai do meu rabo e dezesseis comprimidos de Motrin por dia para impedir que a minha cabeça exploda. O mesmo de sempre. Pelo menos ainda tem dinheiro… ainda mais agora que você não está me arrancando um quarto de milhão de dólares todas as semanas no feltro verde.

Conversaram um pouco mais sobre nada em especial. Jogos de pôquer, Wall Street, a mulher com quem Jeff andava transando… E mesmo que Lane não fosse muito de ficar conversando ao telefone, percebeu que estava com saudades do cara. Acostumara-se à troca rápida, às sacadas inteligentes e, em especial, àquele sotaque de Jersey nos fim das frases e no uso de algumas outras palavras.

– Então, acho que é adeus por ora – seu antigo colega de classe disse.

Lane franziu o cenho e visualizou Lizzie. Ouviu a voz dela. Lembrou-se da cautela dela.

Depois rearranjou sua ereção persistente.

Ficou se perguntando se existia a mínima possibilidade de voltar para Nova York.

Pensando bem, seria melhor não se adiantar. No que se referia a reconquistar Lizzie, dependia de duas pessoas. Só porque estava pronto para retomar o relacionamento deles não significava que ela se apressaria. E também havia a sua família. Como se ele conseguisse se imaginar voltando a viver em Easterly… Mesmo que a senhorita Aurora ficasse bem de saúde e que ele e Lizzie se acertassem, a ideia de coexistir com o pai bastava para ele contemplar a fronteira canadense com carinho. E nem isso seria longe o suficiente.

– Não sei se vou ficar de vez.

– Você sempre pode voltar. O meu sofá já está com saudades de você… e ninguém joga Texas Hold’em como você.

Os dois desligaram depois de se despedirem, e enquanto Lane mais uma vez largava o braço e deixava o aparelho cair, concentrou-se na antiga destilaria do lado oposto. O lugar fora usado por décadas na virada do século, e agora era visitado por dezenas de milhares de turistas que vinham conhecer o Antigo Silo durante todo o ano.

Por algum motivo, percebeu que nunca tivera um emprego. A extensão dos seus “empenhos profissionais” era evitar os paparazzi, o que era mais uma questão de sobrevivência do que algo relacionado a uma carreira. Graças ao seu fundo fiduciário, não sabia o que eram chefes ou colegas de cubículo chatos, nem trajetos ruins para o trabalho e de volta para casa. Não se preocupava em estar em algum lugar num determinado horário, ou em concluir relatórios, nem tinha dores de cabeça devido às tantas horas passadas diante da tela do computador.

Engraçado, nunca antes considerara o fato de ter tanto em comum com Chantal. A única diferença entre eles era que o dinheiro da família dela não bastava para sustentar o estilo de vida a que se acostumara, motivo pelo qual tivera que se casar com ele.

E lá estava Lizzie, trabalhando duro, pagando aquela fazenda. Conhecendo-a como a conhecia, ela já devia estar chegando ao seu objetivo.

O que o fazia respeitá-la ainda mais.

E também o fazia se questionar exatamente o que tinha para oferecer a uma mulher de substância. Dois anos atrás, estivera todo excitado e metido no drama familiar, ávido por ela fisicamente, e tão cativado por ela mentalmente que nunca olhara para si mesmo segundo o ponto de vista dela. Todo o seu dinheiro e a sua posição social só tinham valor para pessoas como Chantal. Lizzie queria mais, merecia mais.

Ela queria a realidade.

Talvez, no fim das contas, ele não estivesse tão acima daquela sua esposa.

Ex-esposa, corrigiu-se, enquanto continuava a beber.

 

CATORZE

– A que devo a honra?

O pai de Gin falava, e seu tom era de afirmação, não de pergunta, e sugeria que o fato de ela estar parada na porta do quarto dele era uma invasão.

Que pena, ela pensou com ironia.

– Quero saber que diabos aprontou com Richard Pford.

O pai não demonstrou nenhuma reação, parado diante da cômoda, prosseguindo com o ato de retirar as abotoaduras de ouro. O paletó do smoking preto tinha sido dobrado uma vez e estava ao pé de uma chaise longue, e os suspensórios preto e vermelho haviam sido retirados dos ombros e estavam pendurados na cintura como duas fitas.

– Pai – ela rugiu. – O que você fez?

Ele a deixou esperando até tirar a gravata borboleta, puxando-a do colarinho.

– Está na hora de você se assentar…

– Você dificilmente está em posição de defender o matrimônio.

– … e Richard é um marido perfeito.

– Não para mim.

– Isso ainda veremos. – Virou-se na direção dela, os olhos frios, o belo rosto impassível. – E não se engane, você se casará com ele.

– Como ousa! Não estamos na virada do século. As mulheres não são bens, podemos ter propriedades, as nossas próprias contas bancárias, podemos até votar! E, com certeza, podemos decidir se queremos ou não atravessar a nave de uma igreja… E eu não vou, de modo algum, sair com aquele homem, quanto menos me casar com ele! Ainda mais se isso beneficiar você de algum modo.

– Sim, você vai. – Por uma fração de segundo, o olhar dele se desviou para cima do ombro dela e ele meneou a cabeça como se estivesse dispensando alguém no corredor. – E fará isso o mais rápido possível.

Gin se virou, esperando ver alguém atrás de si na soleira da porta. Não havia ninguém ali.

Voltou a se concentrar nele.

– Você vai ter que apontar uma arma na minha cabeça.

– Não será preciso. Você fará isso por sua própria escolha.

– Não.

– Sim, você vai.

No silêncio que se seguiu, o coração dela deixou de bater algumas vezes. Durante toda a vida, aprendera a odiar e a temer o pai. E naquele silêncio tenso, de ar estagnado entre eles, ela se perguntou, e não pela primeira vez, do que ele seria verdadeiramente capaz.

– Você pode escolher brigar – disse ele com suavidade. – Ou pode ser eficaz em relação ao assunto. Você só vai acabar se ferindo se não fizer isso pela família. Agora, se me permite, vou me recolher…

– Você não pode me tratar dessa maneira. – Ela forçou um pouco a voz. – Não sou um executivo da empresa que você pode empregar e demitir. E não pode me dar ordens, não quando se trata de arruinar a minha vida.

– A sua vida já está arruinada. Você teve uma filha aos dezessete anos, aqui, nesta mesma casa, pelo amor de Deus, e deu seguimento a isso com o comportamento promíscuo tipicamente reservado para as strippers de Las Vegas. Quase não se formou na Sweet Briar por causa do affair com o professor de inglês, que era casado e, assim que voltou a morar aqui, deitou-se com o chofer. Você é a desgraça da família. E pior, tenho a distinta impressão de que parte da sua diversão nessas suas aventuras é a vergonha que provoca em sua mãe e em mim.

– Talvez se eu tivesse um bom exemplo masculino para admirar, eu não considerasse os homens tão universalmente desagradáveis.

– Antes você os considerasse mesmo desagradáveis. No entanto, esse parece não ser o seu problema. Por algum motivo, Richard não se intimidou com a sua reputação, um erro de julgamento que, por certo, ele vai acabar lamentando. Ainda bem que não é problema meu.

– Eu te odeio – ela sibilou.

– O mais triste, minha querida, é que lhe falta suficiente profundidade para tal nível de inimizade. Se fosse minimamente inteligente, perceberia que Richard Pford será capaz de mantê-la no estilo de vida que você necessita, tanto quanto precisa do ar para respirar, pelo resto dos seus dias. E você estará garantindo a continuação do sucesso e da saúde financeira da família que lhe deu essa bela ossatura e essa adorável coloração facial. Essa será, depois de tudo, a sua única contribuição ao nome “Bradford”.

Gin mal percebia que estava respirando superficialmente.

– Algum dia, você vai pagar pelos seus pecados.

– Está se tornando religiosa agora? Acredito que qualquer tipo de conversão para você será difícil, até por alguém como Jesus.

– Como pode ser tão odioso? Nunca conheci ninguém tão cruel quanto você…

– Só estou cuidando de você do único modo que sei. Estou lhe dando uma fortuna, um nome honrado, e você poderá levar Amelia com você, se desejar. Ou ela pode ficar aqui.

– Como se ela não passasse de uma maleta? – Balançou a cabeça. – Você é um depravado. Absolutamente depravado…

Ele avançou e a agarrou pelo braço, permitindo que alguma emoção escapasse por baixo da máscara aristocrática de autossegurança.

– Você não faz a mínima ideia do que é necessário para manter esta família. Nenhuma ideia. A sua tarefa diária mais complexa é priorizar o que fazer antes: unhas ou cabelos. Portanto, não ouse falar de depravação quando estou resolvendo o problema de todos os sanguessugas debaixo deste teto. Os termos favoráveis de Richard Pford continuarão a nos permitir isso. – Balançou a saia do vestido de gala dela. – E isso… – Apontou para o colar no seu pescoço. – E todas as outras coisas das quais você tira vantagem diariamente sem parar para ponderar, nem que seja por um instante, como chegaram até você e a que custo. Casar-se com aquele homem é a única coisa que já lhe pediram em troca pela sua boa estrela ao nascer e pela sua liberdade de cobiça. Você é uma Bradford dos pés à cabeça, capaz apenas de consumir, mas, às vezes, um pagamento deve ser feito. Portanto, sim – ele enfatizou –, posso lhe garantir que você será a deveras feliz e contente senhora Richard Pford. Você lhe dará filhos e será fiel a ele, ou, que Deus me ajude, eu a surrarei como a garotinha de cinco anos que você ainda é. Estamos entendidos? Ou quem sabe você vai preferir fazer um curso intensivo para tentar ser como as pessoas que lavam os seus carros, preparam a sua comida, limpam o seu quarto e passam as suas roupas? Talvez você goste de saber como é difícil trabalhar para se sustentar.

– Eu te desprezo – ela disse, trêmula dos pés à cabeça.

O pai também arfava, e tossiu no punho cerrado.

– Como se me importasse. Vá em frente, faça o seu escândalo, esperneie e grite, só provará o quanto estou certo. Se for uma mulher de fato, em vez de apenas uma criança mimada e malcriada, acordará pela manhã e cumprirá o seu dever pela primeira vez em sua vida.

– Eu seria capaz de te matar neste mesmo instante!

– Mas, para isso, você teria que carregar uma arma, não é? Não é algo que possa pedir a uma criada, desde que, claro, não queira ser descoberta.

– Não me subestime…

– Visto o baixo padrão que estabeleceu para si mesma, isso seria algo muito difícil de fazer.

Girando sobre os calcanhares, ela saiu do quarto aos tropeções, e correu pelo corredor até a sua suíte. Lançando-se pela porta, trancou-se e ofegou.

Ah, inferno, não, não, jurou. Você não vai fazer isso comigo.

Se ele achava que antes ela era um problema, ele que esperasse pelo que ela aprontaria em seguida.

Enquanto marchava do quarto para o banheiro, planos reviravam em sua cabeça, muitos dos quais envolviam crimes contra o pai. No fim, teve que tirar o vestido, e o deixou cair no chão, livrando-se da seda antes de continuar andando de um lado para o outro apenas de bustiê e saltos e aqueles diamantes que a vadia da esposa do irmão tentara pôr as mãos.

Fervendo, só conseguia pensar na primeira vez em que odiara o pai…

Tinha seis, talvez sete anos, quando aconteceu. Noite de Ano-Novo. Acordara por causa dos fogos, que explodiam ao longe sobre o centro da cidade. Assustada, fora à procura de Lane, aquele com quem sempre se sentia amparada… encontrando-o na sala de estar com Max.

Gin insistira em ficar com os irmãos e fazer o que quer que estivessem fazendo. Na época, era a história da sua vida, sempre correndo para acompanhá-los, conseguir alguma atenção, estar no radar de alguma pessoa. Os empregados da casa faziam o que os pais queriam e cuidavam dos irmãos. Ela era uma nota de rodapé, uma reflexão tardia, o tapete no qual tropeçavam a caminho da porta quando iam fazer algo melhor, mais interessante, mais importante.

Não quisera beber aquela coisa da garrafa. O cheiro do bourbon era ruim, e ela sabia que era proibido, mas se Max e Lane iam tomar um pouco, então ela também tomaria.

E assim foram apanhados.

Não uma vez, mas duas.

Assim que entrara na sala, Edward ordenara que ela voltasse para a cama, e ela saíra pelos fundos como ele lhe dissera. Depois de passar pelo corredor dos empregados, porém, ouvira vozes e tivera que se esconder nas sombras a fim de não ser flagrada… quando o pai saíra do escritório de Rosalinda Freeland.

Ele estava usando seu roupão, amarrando as duas pontas do cinto ao sair de lá, e seus olhos estavam arregalados, como se estivesse com raiva, mas não havia como ele ter ouvido suas vozes lá na sala de estar. O primeiro instinto de Gin fora o de correr para a frente da casa e alertar os irmãos. No entanto, o medo a detivera… E, em seguida, a senhora Freeland saíra também, agarrando o pai pelo braço.

Sua mente infantil se perguntara por que a blusa da moça do escritório estava desabotoada, e os cabelos, sempre bem penteados e presos, estavam meio desarrumados.

Os dois discutiram em tons sussurrados, dizendo coisas que ela não conseguiu entreouvir acima das batidas do seu coração. Em seguida, o pai saiu de lá e a senhora Freeland voltou para o escritório, fechando a porta.

Gin permanecera ali pelo que lhe pareceu um ano, temendo sair, caso a senhora Freeland voltasse. Só que ela também temia que o pai voltasse por aquele caminho e a encontrasse.

Ele não devia estar ali com aquela mulher.

Ele não ficaria feliz por ela tê-lo visto.

Descalça, apressou-se pelas escadas dos empregados, colando na parede de gesso conforme subia. Já no segundo andar, paralisou quando uma segunda rodada de fogos se iniciou e, assim que terminaram de explodir, ela se abrigou na porta aberta de um dos quartos de hóspedes, desejando ter algum lugar seguro para ir.

Voltar sozinha para o quarto parecia-lhe aterrorizante. E se, além disso, o pai estivesse procurando por ela?

Sentando-se encolhida, enfiou as pernas junto do corpo e abraçou os joelhos. O pai devia ter encontrado os irmãos. Não havia como o homem não os ter visto, se tivesse usado as escadas da frente.

E isso a assustava mais do que o barulho do lado de fora.

Momentos depois, Edward surgiu no alto da escadaria, com o pai logo atrás, pairando como um monstro. Por algum motivo, o andar do irmão estava trôpego e a pele do rosto estava pálida. O pai lhe pareceu tão inflexível e reprovador quanto um banco de igreja.

Onde estariam os outros dois?

Nada foi dito enquanto eles prosseguiam até a porta do quarto do pai. E quando chegaram ao destino, Edward ficou de lado e depois tropeçou para dentro do cômodo escuro assim que a porta lhe foi aberta.

– Sabe onde estão os cintos.

Foi tudo o que o pai disse.

Não, não, ela pensou. Aquilo não era justo, Edward não estava envolvido! Por que ele…

A porta se fechou num baque, e ela estremeceu ante o que estava para acontecer.

Como esperado, um estalido foi seguido por um grunhido.

De novo.

E mais uma vez.

Edward nunca chorava. Nunca praguejava.

Já ouvira aquilo vezes demais para saber disso.

Gin abaixou a cabeça sobre os braços finos e cerrou os olhos. Não sabia por que o pai odiava tanto Edward. O homem desgostava do resto deles, mas Edward o deixava furioso.

Edward nunca chorava.

Por isso, chorou por ele… E resolveu, dali por diante, que se o pai podia odiar Edward, dois poderiam jogar aquele jogo.

E ela escolheu o que segurava o cinto naquele minuto.

Odiaria o pai dali por diante.

Voltando a se concentrar, Gin descobriu-se sentada na cama, com os joelhos ao encontro do peito, os braços ao seu redor, como se estivesse, uma vez mais, sentada dentro daquele quarto de hóspedes com apenas a camisola para aquecê-la, e o que acontecia no quarto do pai a aterrorizava em seu íntimo.

Sim, fora assim que tudo começara para ela, e William Baldwine nunca lhe dera motivos para reconsiderar o seu ódio. Aquele acordo com Richard Pford era apenas mais um item numa longa lista.

Mas não era o pior.

Não, a pior coisa que o homem fizera foi algo que ela apenas suspeitava, algo que ninguém mencionara, quer sob o teto de Easterly, quer nos jornais.

Estava convencida de que o pai era o sequestrador de Edward.

O irmão ia com frequência à América do Sul, e assim como outros executivos de sua posição, sempre viajava acompanhado de seguranças contratados pela CBB. Com esse tipo de proteção, ninguém deveria ter sido capaz de se aproximar. No entanto, seu irmão fora levado… Não numa estrada, nem mesmo numa localização remota.

Mas da sua suíte no hotel.

Como foi que aquilo pôde acontecer?

A primeira coisa que ela pensou, quando lhe contaram, foi que ali havia dedo do seu pai.

Tinha provas? Não, não tinha. Mas passara a infância inteira vendo o homem observando Edward como se menosprezasse o ar que o garoto respirava. E mais tarde, quando Edward passara a trabalhar na empresa, teve a impressão de que o relacionamento daqueles dois esfriara ainda mais, visto que o Comitê dos Curadores passara a dar mais e mais responsabilidades a Edward.

Haveria um modo melhor de se livrar de um rival do que matá-lo no exterior? De uma maneira que faria William Baldwine parecer vítima por ser um pai “em luto”?

Deus, Edward quase fora enterrado lá. E quando finalmente regressara? Estava em péssimas condições. Nesse meio-tempo, o pai se colocara diante da mídia, dos curadores, da família, mas nunca, sequer uma vez, fora visitar o filho.

Vergonhoso. E na cabeça dela era uma confirmação de que William Baldwine tentara se livrar de uma ameaça corporativa que não podia demitir.

Não era de se admirar que ela não confiasse nos homens.

Não era de se admirar que nunca fosse se casar.

Quanto menos para fazer o pai feliz.

 

QUINZE

Quando chegou a Easterly na manhã seguinte, Lizzie precisou manobrar o Yaris duas vezes para conseguir estacioná-lo direito, o que revelava o quão lamentável era seu estado mental, considerando-se que o carro era do tamanho de uma bicicleta. Saindo dele, pegou desajeitada a bolsa e a deixou cair. E quando se abaixou para pegar o protetor solar no asfalto já quente, percebeu que tinha esquecido de trazer o almoço.

Fechou os olhos.

– Maldição…

– Tudo bem, menina?

Lizzie se endireitou e se virou na direção de Gary McAdams. O chefe da manutenção da propriedade vinha andando pelo gramado, o leve claudicar não o fazia diminuir o ritmo, com o rosto envelhecido pelo tempo crispado em sinal de preocupação, como se estivesse avaliando um trator com eixo solto.

Será que sua aparência estava tão ruim assim?, perguntou-se.

Pensando bem, não dormira praticamente nada.

– Ah, sim, estou bem. – Ela forçou um sorriso. – Ótima.

– Tem certeza disso?

Não.

– Sim. Como vai a sua equipe?

– Já terminaram de cortar a grama e de aparar as trepadeiras, e vou fazer com que limpem o terraço depois das dez. – Porque só então eles tinham permissão para fazer barulho perto da casa. – As tendas foram erguidas, a parte do buffet já está pronta com as grelhas no lugar, mas tem um probleminha.

Lizzie acomodou a bolsa no ombro e pensou que já estava pronta para lidar com qualquer problema que pudesse solucionar.

– O que foi?

– Aquele senhor Harris está querendo falar com você. Tem algo com as taças de champanhe.

– Com a disposição delas nas mesas? – Fechou a porta do carro. – Pensei que elas seriam distribuídas durante a festa.

– Não, só chegou metade do pedido. Ele acha que você mudou a quantidade.

– O q… Por que eu faria isso?

– Ele disse que você é a única pessoa com acesso ao pessoal do aluguel.

– Encomendei as tendas, só isso. É ele quem tem que cuidar da louça, dos talheres e dos copos… Desculpe, estou gritando? Sinto como se estivesse gritando.

Ele apoiou sua grande mão sobre o ombro dela.

– Não se preocupe com isso, menina. O senhor Harry também me deixa doido.

– É senhor Harris.

– Eu sei.

Ela teve que gargalhar.

– Vou lá falar com ele.

– Quando ficar cansada dele, eu tenho uma pá e um ancinho. E muita área verde livre lá na minha casa.

– Você é um cavalheiro.

– Nem perto disso. Me dá a sua bolsa, menina. Vou com você.

– Ela não pesa nada. Pode deixar comigo. – Começou a andar pelo caminho que levava até a ala dos empregados. – Além disso, posso precisar dela para bater na cabeça dele.

– Lembre-se do meu ancinho – ele disse.

– Sempre.

A cada passo sobre as pedras, seu peito se contraía, e a sensação de sufocamento piorava conforme a vastidão da mansão branca surgia ao longe.

Depois de passar a madrugada olhando para o teto, não chegou a conclusão nenhuma sobre ela e Lane. O que ela guardara para si? O som da voz dele no fim do telefonema. Lembrou-se daquele tom sexy que costumava significar que ele encontraria um modo de ficar sozinho com ela, despida, o mais rápido possível.

Pareceu-lhe uma traição total que seu corpo não fosse nada além de um simples “ah, sim, pode vir” – como se sua libido desejasse o retorno do seu mestre. Afinal, ela era muito mais do que apenas um ou dois orgasmos roubados com um homem que ela deveria estar manuseando com pinças de churrasco e um extintor de incêndio.

Loucura.

Quando, por fim, chegou à casa, passou pela entrada lateral do jardim e atravessou a porta dos fundos da cozinha só para se certificar de que tudo o que preparara para a festa ainda estava onde havia deixado na noite anterior.

O que era tolice. Como se um punhado de elfos tivesse entrado ali e bagunçado tudo à luz do luar.

Entrou pela porta de empregados e cruzou a imensa cozinha que, naquele momento, estaria limpa, fria e vazia, apenas à espera dos chefs que estavam escalados para trabalhar das oito às oito. Só que o cômodo não estava completamente deserto. A senhorita Aurora estava diante do fogão industrial, com uma panela de ferro cheia de bacon estalando à esquerda, uma segunda à direita tomada de ovos mexidos. Quatro pratos estavam dispostos na bancada de aço inoxidável da ilha principal, junto de tigelas com framboesas e mirtilos frescos, um açucareiro, um pote com creme de leite e café sobre uma bandeja, sem falar de uma seleção de pãezinhos doces caseiros.

– Senhorita Aurora?

A mulher olhou por sobre o ombro.

– Ah, aí está ela. Como está? Já comeu?

– Sim, senhora.

– Não o bastante. Você e Lane, magrinhos demais. – A cozinheira se voltou para os ovos e os virou com uma espátula vermelha. – Você deveria deixar que eu te alimentasse.

– Não quero causar problemas. – Houve um grunhido de desaprovação, e antes que a discussão de sempre começasse, Lizzie a interrompeu. – A senhora me parece bem.

– Eu disse praquele mordomo que não precisava de nenhuma ambulância.

– Pelo visto, a senhora tinha razão. – E Lane devia estar muito aliviado. – Viu o senhor Harris?

– No escritório dele. Quer que eu vá com você?

– Então ficou sabendo do “champanhegate”?

– Fui eu que mandei Gary te avisar. Eu sabia que ele ia te ver quando você chegasse. Não quis que você viesse pra cá sem ter sido avisada antes.

– Não mudei o pedido.

– Claro que não. – A senhorita Aurora levantou uma frigideira de uns sete quilos como se não pesasse mais que um prato de papel. Enquanto distribuía os ovos, balançava a cabeça. – Existe uma explicação perfeitamente boa.

– Qual?

– Não é da minha conta.

– Tuuudo bem. – Lizzie deu um tempo para que a cozinheira se explicasse, mas ela não o fez. – Bem, de toda forma, vou cuidar disso. Estou muito feliz que esteja bem e de pé, senhorita Aurora.

– Você é uma boa menina, Lizzie. Mas seria ainda melhor se me deixasse te oferecer o café da manhã.

– Talvez na próxima vida.

– Só se tem direito a uma. Depois, a gente vai pro céu.

– É o que o meu pai sempre me dizia.

– O meu também.

Andando sobre o piso de azulejos, Lizzie empurrou as portas duplas e seguiu pelo corredor dos empregados. O escritório do senhor Harris ficava bem diante do de Rosalinda, e ela bateu à porta do mordomo. E mais uma vez. Na terceira, achou que estava esfolando os nós dos dedos à toa.

Fungando no ar, fez uma careta e considerou que o corredor precisava ser arejado urgentemente. Mas, pensando bem, os Bradford se recusavam a instalar ar-condicionado ou aquecimento naquela parte da casa. Afinal, os empregados que se virassem.

Seguindo até a porta envernizada de Rosalinda, também bateu ali, mesmo que a organizadora da família fosse rígida em seu horário de trabalho das nove às cinco, com trinta minutos de almoço precisamente ao meio-dia e dois intervalos de quinze minutos às 10h30 e às 15 horas. A agenda controlada lhe parecera bizarra a princípio, mas, alguns anos mais tarde, já era somente mais uma das muitas regras e regulamentos de Easterly. E fazia sentido, uma mulher que não fazia nada além de pagar contas e somar e subtrair números provavelmente tinha uma régua de cálculo nas veias e sérios problemas de controle.

Daí, então, seu título.

Pousando as mãos nos quadris, Lizzie sabia que o mordomo muito provavelmente estaria servindo a família na sala de jantar íntima. Inclusive Lane.

Consultou as horas no relógio de pulso. Não ficaria esperando pelo senhor Harris e, de jeito nenhum teria aquele confronto diante dos outros. Além disso, ela tinha trabalho a fazer: não terminara os arranjos florais na noite anterior.

Seguindo para a estufa pelo caminho dos fundos, deixou de lado sua confusão mental e se concentrou no que tinha para fazer. Depois que terminasse os arranjos, disporia as toalhas de mesa, já que não havia probabilidade de chuva e de vento forte antes do Brunch da manhã seguinte. E estava encarregada de colocar todos os pratos e copos onde precisavam ficar: junto aos bares e estações de serviço espalhados pelos jardins. Greta deveria chegar em…

– Bom dia.

Lizzie parou com a mão na maçaneta da estufa.

Relanceando por cima do ombro, deparou-se com os olhos de Lane. Ele estava sentado numa espreguiçadeira lateral, com as pernas dobradas na altura dos joelhos, os cotovelos nos apoios de braço, os dedos longos cruzados diante do peito. Usava as mesmas roupas da noite anterior e o cabelo estava uma bagunça completa, como se ele não tivesse dormido em sua cama.

– Esperando por mim? – ouviu-se dizer enquanto seu coração batia forte.

Em seu quarto, Gin amarrotava uma blusa Prada e a enfiava num dos cantos da sua mala Louis Vuitton de rodinha.

– Lenço de papel… era para você colocar lenço de papel aí. Onde ele está…

Começando a procurar, encontrou as folhas cor-de-rosa clarinhas com suas iniciais estampadas numa gaveta ampla dentro de seu guarda-roupa. De volta para onde estava arrumando a mala, lambeu o dedo e tirou uma das folhas, sendo atingida pela fragrância suave de Coco, porque a empregada borrifava cada um dos lenços individualmente assim que eram entregues na casa. Colocando o papel delicado ao redor do bolinho de seda, cobriu tudo com uma saia McQueen.

Repetindo o processo até ter quatro conjuntos completos ali, inclinou-se para trás para dar uma olhada no trabalho. Horrível. Nada parecido com o que Blanche fazia para ela, mas não pretendia esperar até que a mulher chegasse para o seu turno ao meio-dia.

Gin estava fechando a mala quando percebeu que não tinha separado roupas íntimas, sapatos e tampouco os artigos de higiene.

Pegou outra mala LV e dispensou o lenço de papel.

De toda forma, o que importava? Acabaria simplesmente comprando tudo que precisasse.

Quando terminou, levantou o telefone ao lado da cama e ligou para o escritório de Rosalinda, sem acreditar quando a secretária eletrônica pediu que deixasse um recado.

– Onde diabos essa mulher foi…

Uma olhada rápida para o relógio Cartier sobre a mesa e ela descobriu que ainda eram 8h30. Deus, há quanto tempo não se levantava cedo assim?

Arranjos para o uso dos jatinhos também podiam ser feitos por meio da assistente executiva do pai, e aquele robô estava sempre junto à sua escrivaninha. Mas Gin só queria que ele soubesse que ela estava partindo quando estivesse na metade do caminho até a Califórnia e, sem dúvida, seu buldogue de saia atacaria o telefone para avisá-lo assim que ela a acionasse.

Deus, aquela expressão no rosto dele na noite anterior fez seu sangue gelar. Nunca o vira tão furioso.

Mas, em retrospecto, ela era mesmo filha do seu pai: assim como no jogo do ódio, dois podiam jogar aquele novo jogo.

Dez minutos mais tarde, Gin puxou as alças da bagagem e as rolou até o corredor, tropeçando sobre as malditas malas. Com a bolsa de monograma combinando com a bagagem batendo na lateral do corpo, empinou um dos saltos Louboutin para fechar a porta, e praguejou contra a falta de um carregador.

Mas também não confiava no mordomo.

A bem da verdade, não confiava em ninguém naquela casa.

Antes de tomar o elevador até o porão, foi até o quarto de Amelia e abriu a porta.

Pela primeira vez, percebeu a decoração.

A cama de dossel branca e rosa era queen size, apesar de a filha pesar pouco mais que um travesseiro, e não havia nenhum pôster da Taylor Swift ou do One Direction nas paredes. A penteadeira era francesa e antiga, o banheiro acoplado era de mármore e latão, e tinha mais de sessenta anos, e o candelabro Baccarat no meio do quarto era suspenso por uma corrente coberta por seda, e debaixo dele havia um medalhão de ouro feito à mão.

Parecia mais o quarto de uma senhora de cinquenta anos do que de alguém de quinze.

Dezesseis, a partir da noite anterior, Gin se lembrou.

Andando na ponta dos pés sobre o tapete bordado à mão, ela apanhou seu retrato predileto da menininha de cabelos negros, que agora já não eram mais tão escuros já que ela estava fazendo luzes a cada seis semanas, e tampouco era tão pequenina, pois já estava no segundo ano em Hotchkiss.

Só de pensar na filha, a ideia de sair de Easterly lhe parecia cada vez mais acertada. Ela tinha duas amigas esperando por ela em Montecito, e ficaria lá até que o pai entendesse que podia muito bem administrar uma empresa bilionária, mas que não mandava nela. E depois disso? Voltaria para lá com certa regularidade, só para ele ver que cometera um erro.

De novo no corredor, refreou os xingamentos ao se arrastar até o elevador e entrar. Quebrou uma unha ao apertar repetidamente o botão para fechar a porta, e quase quebrou um dos saltos quando pisou no chão da adega, puxando as malas para fora.

Não fazia a mínima ideia de onde ir. Onde ficava a garagem. Como se orientar no andar subterrâneo.

Levou quase vinte minutos para encontrar o túnel que levava até a frota da família, e quando emergiu na garagem para dez carros, sentia-se como se tivesse não só acabado de correr uma maratona, mas vencido.

Só que estava sem as chaves dos carros. Nada no Bentley. Nem do Drophead. E não pegaria nem o Porsche GTS, nem a Ferrari, tampouco o Jaguar antigo que se parecia com o de Samuel T., porque todos eles tinham câmbio manual e ela não sabia dirigir modelos assim. O mesmo acontecia com os 911 e o Spyker.

E os sedãs Mercedes não eram bons o bastante para ela.

– Maldição! – Quando bateu o pé no chão, uma das malas de rodinha caiu como se tivesse desmaiado. – Onde estão as chaves?

Abandonando a bagagem, marchou até o escritório. Trancado. Assim como as portas da garagem.

Aquilo era totalmente inaceitável.

Pegou o celular, estava prestes a telefonar – bem, não sabia exatamente para quem, mas para alguém –, quando um armarinho pendurado na parede chamou sua atenção. Indo na direção da portinha de metal de 0,3 por 0,9 metros, deu um puxão na alça, e não se surpreendeu quando a porta não cedeu.

A boa notícia? Ela estava com muita vontade de bater em alguma coisa.

Olhando ao redor, não viu nada fora do lugar. Desde lonas para cobrir os carros, até pneus sobressalentes e material de limpeza, tudo estava organizado numa parede com precisão militar em prateleiras, ganchos, e caixas tampadas.

Exceto pelo pé de cabra, que encontrou encostado numa pilha de panos limpos com o brasão da família bordado.

Gin sorriu ao caminhar do alto dos seus saltos, erguendo a peça de metal. De volta ao armário, arqueou o objeto acima da cabeça e bateu na caixa onde estavam as chaves como se aquilo fosse a cabeça do pai. Bateu, bateu, bateu e bateu, o som metálico agudo ecoando em seus ouvidos.

Apesar de já estar quase sem unhas quando concluiu a tarefa, a porta estava pendurada no que restava das suas dobradiças.

O Bentley, decidiu.

Não, o Rolls. Custava mais caro.

Levando a bagagem até o Phantom Drophead, abriu a porta que se abria ao contrário, enfiou as malas no banco de trás e se pôs atrás do volante. Afundou o sapato de salto no freio, apertou o botão da ignição e o motor rugiu a vida com um rosnado latente.

Esticando a mão na direção do espelho retrovisor, apertou todos os botões até a porta da frente se erguer.

E partiu.

A raiva dentro dela fez com que quisesse passar pelo caminho frontal só para desfilar diante dos cômodos particulares da família; mas era mais importante sair da propriedade sem que ninguém soubesse, por isso contentou-se em levantar o dedo médio para Easterly pelo espelho retrovisor enquanto usava o caminho dos empregados.

Quando chegou à estrada River, virou à esquerda, verificou as horas e pegou o telefone. Rosalinda já deveria ter chegado àquela altura, e ela poderia finalmente cuidar dos arranjos para o jatinho, o que não deveria ser um problema. Gin pedia o avião pelo menos uma vez por semana.

Caixa postal. De novo.

O maldito Brunch. Esquecera-se dele. Todos os funcionários estavam distraídos.

Mas ela tinha necessidades.

Gin ligou para outro número, um que tinha apenas um dígito diferente do de Rosalinda. Ao terceiro toque, ela estava quase desistindo quando ouviu o inconfundível sotaque britânico daquele mordomo.

– Senhor Harris falando, como posso ajudar?

– Preciso de um avião e não consigo falar com a Rosalinda. Você vai ter que providenciá-lo para mim. Decolando neste instante para o aeroporto de Los Angeles.

O mordomo limpou a garganta.

– Senhorita Baldwine, perdoe-me…

– Não venha me dizer que está ocupado demais. Você pode ligar diretamente para o piloto, já fez isso antes, e depois pode voltar para qualquer uma das suas incumbências idiotas do Brunch…

– Lamento, senhorita Baldwine, mas não haverá um avião disponível para a senhorita.

– Você só pode estar brincando. – Sem dúvida era por causa daqueles convidados corporativos que estavam chegando para o Derby. Mas ela era da família, pelo amor de Deus. – Tudo bem, apenas atrase alguém e eu…

– Não será possível.

– Eu sou prioridade! – O Phantom ganhou velocidade quando ela apertou o acelerador, pelo menos até quase acertar o carro na frente dela. – Isso é inaceitável. Ligue para aquela torre de controle, ou para aquela lista de pilotos ou… para quem quer que me coloque num maldito avião para a costa oeste!

Houve uma longa pausa.

– Sinto muito, senhorita Baldwine, mas não poderei mais fazer esse tipo de serviço para a senhorita.

Um alerta gélido apertou a sua nuca.

– Que tal mais tarde, ainda esta manhã?

– Não será possível.

– À tarde.

– Lamento, senhorita Baldwine.

– O que o meu pai lhe disse?

– Não cabe a mim comentar o que…

– Que porra que ele te disse? – ela berrou ao telefone.

A respiração que o homem soltou era o mais próximo que ele chegaria a uma imprecação em voz alta.

– Esta manhã, recebi um memorando dirigido à organizadora e a mim, indicando que os recursos da família não estariam mais disponíveis para a senhorita.

– Recursos…?

– O que inclui dinheiro vivo, contas bancárias, viagens e acomodações em hotéis, e acesso às demais propriedades dos Bradford ao redor do mundo.

Nessa hora o pé dela escorregou do acelerador, e quando o carro atrás dela buzinou, ela foi para o acostamento.

– Gostaria de poder fazer algo – ele disse num tom neutro que indicava que isso não era verdade. – Mas, como já disse, estou impossibilitado de ajudá-la.

– O que devo fazer?

– Talvez voltar para casa seja o melhor. Acabei de vê-la saindo no Rolls-Royce.

– Não vou me casar com Richard Pford – ela disse e depois encerrou a ligação.

Quando olhou pelo retrovisor, os arranha-céus denteados do centro da cidade pareceram assustadores pela primeira vez em sua vida. Nunca antes se impressionara com a cidade de Charlemont, tendo dado a volta ao mundo diversas vezes. Mas todas essas viagens aconteceram enquanto ela tinha recursos ilimitados ao seu dispor.

Com a mão trêmula, pegou a carteira e levantou o fecho. Ela tinha cinco notas de cem dólares e algumas de vinte… e sete cartões de crédito, inclusive um Amex Centurion. Estava sem a habilitação porque sempre andava com motorista particular. Também não tinha o cartão do seguro de saúde porque fazia uso dos serviços dos médicos afiliados à Cia. Bourbon Bradford. Não estava nem com o passaporte, apesar de não ter planejado sair do país.

Duzentos metros mais adiante, havia um posto de gasolina, e ela voltou a acionar o Phantom, seguindo o fluxo do trânsito. Quando chegou ao símbolo da Shell, cortou caminho diante de um caminhão que vinha na direção oposta e parou junto a algumas bombas de abastecimento.

Quando saiu, não foi para abastecer o carro. O tanque estava cheio.

Sacou um cartão Visa qualquer e colocou-o no leitor. Em seguida, apertou as teclas que compunham a sua senha. Esperou para ver se a transação hipotética seria aceita.

Não aprovado.

Tentou o Amex e recebeu a mesma resposta da máquina. Quando outros dois Visas não funcionaram, ela desistiu.

Ele bloqueara os seus cartões.

De volta ao volante, tudo ficou embaçado. Tinha investimentos por toda parte, dinheiro que lhe pertencia… mas só dali a dois anos, quando completasse trinta e cinco, e nenhum dia antes disso – algo que descobrira quando num impulso tentara comprar uma casa em Londres no ano passado e tivera esse desejo negado pelo pai. Pouco importou o quanto tivesse gritado com a empresa do seu fundo, eles se recusaram a lhe entregar o dinheiro, declarando que ela não tinha permissão para acessá-lo até que atingisse a idade estipulada.

Só havia um lugar para onde poderia ir.

Odiava implorar, mas isso era muito melhor que se casar, ou admitir uma derrota ao pai.

Colocando o câmbio mais uma vez no drive, enfiou-se no trânsito e tomou a direção da qual viera. No entanto, não retornaria a Easterly. Iria para…

De repente, o carro morreu. Tudo parou: o motor, o ar-condicionado, as luzes do painel. As únicas coisas que funcionavam eram o volante e o freio.

Enquanto pressionava o botão da ignição, viu suas ações frenéticas e impotentes de longe, notando, sem dar muita atenção, como suas unhas estavam arruinadas, as pontas cortadas, o esmalte vermelho-cereja lascado. Tendo que admitir que o motor não voltaria a funcionar, foi para o acostamento da estrada para não acabar numa colisão e…

Sirenes soaram ao longe e ela olhou pelo espelho retrovisor.

Uma viatura da Polícia Metropolitana de Charlemont encostou atrás dela com as luzes acionadas. E depois uma segunda unidade se pôs à frente até que o Phantom ficasse bloqueado.

Os dois policiais se aproximaram dela com as mãos sobre as pistolas presas ao coldre, como se não tivessem certeza se precisariam das armas.

– Saia do veículo, senhora – o mais alto deles disse com voz autoritária.

– Este carro é meu! – ela exclamou ao abaixar o vidro. – Vocês não têm o direito de…

– Esse veículo pertence a William Baldwine, e a senhora não tem autorização para usá-lo.

– Ah, meu Deus… – ela sussurrou.

– Saia do carro, senhora…

Merda, estava sem a habilitação.

– Sou filha dele!

– Senhora, estou ordenando que destrave as portas e saia do veículo. Se não fizer isso, vou autuá-la por resistir à prisão. Além de dirigir um veículo roubado.

 

DEZESSEIS

– Claro que eu estava à sua espera. – Assim que Lane falou, levantou as mãos, num gesto de quem pedia para aguardar. – Mas apenas como amigo. Queria me certificar de que chegou bem ao trabalho.

Maldição, ela estava linda. Mais uma vez, com a camisa polo preta do uniforme de Easterly e shorts cáqui, o cabelo puxado para trás, preso num rabo de cavalo… De alguma forma, parecia exoticamente bela.

Pensando bem, já fazia mais de doze horas que não a via.

Uma vida inteira, de fato.

Enquanto ela revirava os olhos, ele a flagrou tentando esconder um sorriso.

– Já fiz esse trajeto algumas vezes, sabe – ela disse.

– E como foi esta manhã?

Houve uma pausa, e então algo mágico aconteceu. Lizzie explodiu numa gargalhada.

Cobrindo a boca, ela meneou a cabeça.

– Desculpe, mas você está horrível. O seu cabelo está todo… – ela mexeu a mão ao redor da cabeça dele – … está uma bagunça, seus olhos mal conseguem ficar abertos. Sabia que está balançando para a frente e para trás apesar de estar sentado?

Ele deu um sorriso largo.

– Você precisava ver o outro cara.

– Ele era durão?

– Agora, em vez de usar capuz ele usa brinco. – Lane levantou um braço e flexionou o bíceps. – Homem pra valer este aqui…

Ouviram um par de passadas vindo na direção deles, então Lane espiou por cima do ombro dela e murmurou alguma coisa bem baixinho.

Era o mordomo inglês seguindo direto para ela, só que parou quando viu Lane.

– Com licença, Lane – Lizzie disse baixinho. – Tenho um assunto de trabalho para resolver agora.

– O que foi? – ele perguntou ao mordomo.

O inglês sorriu, parecendo um manequim de loja.

– Nada com que tenha que se preocupar, senhor Baldwine. Senhorita King, poderia fazer a gentileza de vir até o meu escritório quando tiver terminado de…

– O que houve? – Lane exigiu saber.

– Apenas um mal-entendido – Lizzie murmurou.

– Sobre o quê?!

Lizzie se concentrou no senhor Mais Sagrado Que o Senhor.

– O pedido das taças de champanhe alugadas foi reduzido, e ele acha que eu telefonei para Mackenzie para mudar a quantidade, mas não fiz isso. Ficarei feliz em poder organizar tudo quando os copos e os pratos chegarem, mas não sou responsável por coordenar nada que se refira aos pedidos. As tendas e as mesas são de minha responsabilidade, e elas estão exatamente onde deveriam estar.

Os olhos do senhor Harris se estreitaram.

– Esta conversa deve ser conduzida em meu…

– Então, não tem nada a ver com ela. – Lane sorriu para o mordomo com frieza. – E seu assunto aqui terminou.

Lizzie pôs uma mão no braço dele, e o contato foi uma surpresa tamanha, que de fato o calou.

– Está tudo bem. Repito, ficarei feliz em fazer o que puder para ajudar. Senhor Harris, quer que eu fale com Mackenzie e tente encontrar um modo de solucionar o caso?

O mordomo olhou de um a outro.

– Sei o que encomendei. O que não sei explicar é como apenas metade disso foi entregue.

– Veja bem, não quero lhe ensinar o seu trabalho – Lizzie disse. – Mas erros da parte deles já aconteceram antes. O que precisamos fazer é descobrir o que mais está faltando e ligar para eles para alertá-los. Isso não deve ser um problema. O senhor fez o pedido pessoalmente ou foi por intermédio de Rosalinda?

– Usei os serviços da senhora Freeland, e lhe entreguei os números corretos.

Lizzie franziu o cenho.

– Ela sabe o quanto pedir. Fez isso por anos a fio.

– Ela me garantiu que tomaria conta da questão. Deduzi que outra pessoa com acesso à conta tivesse reduzido a quantidade.

– Vá procurá-la, e eu encontrarei Greta para contar tudo o que foi entregue. Vamos resolver. Pelo menos, descobrimos hoje e não amanhã de manhã.

Houve um instante de constrangimento no qual o mordomo nada disse, e Lane se perguntou o quanto daquele plano sensato ele teria que enfiar goela abaixo do ditadorzinho.

– Muito bem – disse o mordomo. – A sua assistência será muito bem-vinda.

Enquanto o senhor Harris se afastava, Lizzie inspirou fundo.

– E assim entramos na contagem regressiva das vinte e quatro horas.

– Ninguém da equipe pode fazer essa contagem? Esse problema não é seu.

– Está tudo bem. Pelo menos se Greta e eu fizermos isso, saberei que está tudo certo. Além disso, todos em Easterly estão com trabalho até as orelhas, e os chefs auxiliares não poderão dispensar…

O telefone de Lane começou a tocar, e ele o tirou do bolso para silenciar o barulho.

– Quem diabos pode ser? – perguntou, quando viu o código de área local.

Ela riu de novo.

– Você pode descobrir se… prepare-se… atender!

– Está pegando no meu pé?

– Alguém tem que fazer isso.

Lane sorriu tão amplamente que suas bochechas começaram a doer.

– Ok, vamos lançar os dados e ver quem é. – Apertou o botão verde e disse em sua voz mais arrastada: – Vocccccêêêê ligoooouu paaaara…

– Lane! Ah, meu Deus, Lane, preciso da sua ajuda.

– Gin? – Ele se endireitou na espreguiçadeira. – Gin, você está bem?

– Estou no centro da cidade, na cadeia de Washington County. Você tem que vir aqui pagar a minha fiança…

– Que diabos? O que você…

– Preciso de um advogado…

– Ok, ok, ok, devagar. – Ele se pôs de pé. – Você está falando rápido demais e não estou entendendo.

Sua irmã fez uma pausa e depois disse quatro frases completas que o deixaram sem chão.

– Está bem – disse ele com seriedade. – Estou indo para aí agora mesmo. Sim. Certo. Ok. Fique aí.

Quando desligou, só o que ele conseguiu fazer foi procurar o rosto de Lizzie.

– O que foi? – ela perguntou.

– O meu pai mandou prenderem Gin. Tenho que, literalmente, ir até a cadeia e pagar a fiança dela.

Lizzie cobriu a boca com a mão num sinal de choque.

– Posso fazer alguma coisa?

– Não. Vou lá cuidar dela. Mas obrigado.

Ele precisou de todo o seu autocontrole para não se inclinar e beijá-la como costumava fazer. Em vez disso, contentou-se em esticar a mão e afagá-la no rosto, saindo antes que ela pudesse dizer que “amigos não fazem isso”.

Inferno, o que o seu pai estaria aprontando agora?

Na época em que fora fumante, Edward frequentemente acordava de manhã já esticando o braço para pegar o maço de Dunhill Reds antes de estar plenamente consciente de sequer ter rolado de lado.

Hoje em dia ele fazia o mesmo, só que para pegar o frasco de Advil.

Colocando quatro cápsulas de gel na palma trêmula, levou-as à boca e as engoliu com o que restava da vodca que levara para a cama. Fazendo uma careta enquanto essa sua versão de desjejum descia até o estômago, deitou-se de novo sobre o travesseiro.

Tinha parado de fumar durante a recuperação. Na verdade, o sequestro fora o primeiro passo para que abandonasse o vício.

Ironicamente, o fato de quase ter morrido foi o responsável por ajudá-lo a ter uma vida mais longa.

Saudou com a garrafa no ar.

– Gracias, muchachos.18

Antes que seu cérebro entrasse no looping infindável da sequência horrenda do Dia Em Que Tudo Aconteceu, virou as pernas para o chão e se sentou. Não olhou para a coxa e para a panturrilha direitas. Primeiro porque as cicatrizes tortas da sua pele à la Frankenstein estavam gravadas em sua mente. Segundo porque ele já não dormia mais nu, por isso elas não estavam aparecendo.

A bengala era necessária para que ele se levantasse, e seu equilíbrio não estava muito bom não só por causa dos ferimentos, mas pela falta de sono e pelo fato de ainda estar meio embriagado. Mancando até o banheiro, deixou as luzes apagadas, de modo que o espelho não foi um problema, e usou o vaso, lavou as mãos, o rosto e escovou os dentes.

A confirmação de que Deus ainda o odiava veio quando ele saiu do chalé uns dez minutos depois e foi ofuscado pela luz brilhante do sol e pela dor de cabeça causada pela ressaca.

Que horas são?, perguntou-se.

Já estava na metade do caminho até o Estábulo B quando percebeu que levara a garrafa junto. Como se fosse o seu brinquedinho predileto.

Revirando os olhos, seguiu em frente. A senhorita Nada de Praguejar Perto de Mim poderia muito bem se acostumar com ele e sua bebida; não havia motivos para apresentar-lhe uma ilusão diurna de abstinência que só a perturbaria no futuro. Se ela não conseguisse lidar com esse seu hábito, ela podia muito bem ir embora no primeiro dia.

O som de pneus cantando fez sua cabeça girar para a direita, e na fração de segundo seguinte, Shelby apareceu na ponta oposta do estábulo, o corpo encurvado na cintura ao empurrar uma tremenda carga de esterco de cavalo dentro de uma velha carreta enferrujada.

Pelo visto, Moe já a colocara para trabalhar.

– Ei – ele a chamou.

Sem diminuir o passo, ela acenou por sobre o ombro e seguiu em frente com o esterco para trás da construção mais próxima.

Enquanto a observava, invejou o corpo forte dela, talvez notando, sem nem se dar conta, que o sol fazia com que as mechas loiras dela parecessem quase brancas. Ela estava usando uma camiseta azul-marinho, um par de jeans escuros e as mesmas botas resistentes da noite anterior. Depois de desaparecer atrás da curva do prédio, reapareceu duas vezes mais rápido do que deveria, considerando a quantidade de esterco que teve que descarregar.

Portanto, ela também era eficiente.

Ao se aproximar, seus olhos estavam claros e alertas, o rosto corado pelo esforço.

– Quase terminando. Depois vou pro C.

– Jesus, Moe fez com que você… desculpe – disse antes que ela o corrigisse. – Maldição, Moe já te colocou pra trabalhar? E não venha me dizer que não posso usar “maldição”. Deixo de mencionar Deus e Jesus Cristo, mas só vou até aí.

Ela deixou os pés do carrinho encostarem na grama aparada.

– Suco de laranja.

– O que disse?

A filha de Jeb Landis acenou para a garrafa.

– Pode ficar com “maldição”, mas eu gostaria de ver você com outra coisa que…

– Você sempre julgou tanto assim?

– … não fosse vodca tão cedo assim. E não estou te julgando.

– Então por que quer mudar os hábitos de um desconhecido?

– Você não é um desconhecido. – Enxugou a testa com o antebraço. – Não são nem nove da manhã. Fico me perguntando por que você precisa beber tão cedo assim.

– Eu estava meio desidratado.

– Não tem água encanada na sua casa? Ontem tinha.

Ele balançou a garrafa.

– Isto aqui está servindo bastante bem. Pense que é a minha versão da vitamina C.

Ela resmungou alguma coisa ao se abaixar para pegar as alças.

– O que disse? – ele exigiu saber.

– Você me ouviu.

– Não, não ouvi, não. – O que não era exatamente a verdade.

Shelby só deu de ombros e seguiu em frente, aquele seu corpo se movendo debaixo das roupas, executando a tarefa sem nenhum esforço aparente.

E foi nessa hora que algo lhe ocorreu.

– Shelby?

Ela parou e olhou por cima do ombro.

– Pois não?

– Você disse que cuidou de todos os cavalos.

– Cuidei.

– Nos Estábulos A e B.

– Isso mesmo.

Ele se apressou e a agarrou pelo braço.

– Eu te disse. Uma regra. Não chegue perto daquele garanhão.

– A baia não ia se limpar sozinha…

A mão dele se apertou por vontade própria.

– Ele matou um ajudante de estábulo no ano passado. Foi pisoteado até morrer ali. Nunca mais faça isso.

Aqueles olhos azuis dela ficaram arregalados.

– Ele se portou bem comigo.

– Só eu chego perto dele. Estamos entendidos? Faça isso mais uma vez e eu faço as suas malas – ele disse firmemente – e te mando de volta para o lugar de onde veio.

– Sim, senhor.

Ele se afastou e tentou não cambalear.

– Muito bem, então.

– Está certo.

Ela soprou o cabelo para longe do rosto e voltou a andar, com os ombros tensos.

Tirando a tampa da vodca, Edward deu um trago longo e, provavelmente, deveria ter parado quando percebeu que a bebida já não ardia mais.

Mas essa era outra coisa sobre a qual não queria pensar.

Assim como não queria pensar no que poderia acontecer com a filha de Jeb Landis enquanto ela estivesse sob a sua proteção.

Maldição.


“Obrigado, meninos.”

 

DEZESSETE

A cadeia e o Tribunal do Condado de Washington formavam um complexo de edifícios modernos que ocupava dois quarteirões inteiros no centro da cidade, cujas instalações se comunicavam por meio de passarelas que se estendiam acima do trânsito da rua logo abaixo. Havia certa quantidade de entradas e, enquanto Lane encostava o Porsche, inúmeras pessoas entravam e saíam; eram homens e mulheres em ternos subindo e descendo os degraus de mármore, policiais dentro de suas viaturas, delegados estacionando suas SUVS e saindo de vagas reservadas, pessoas em roupas desgastadas fumando pelos cantos.

O seu 911 Turbo emitiu uma tossida baixa quando ele desacelerou e se dirigiu para os prédios imponentes. Não havia nenhum layout lógico que ele conseguisse distinguir. Tampouco um endereço.

Como se, caso tivesse que perguntar para onde deveria ir, ficaria com a sensação de que aquele não era o seu lugar…

Até que, de repente, um afro-americano uniformizado surgiu bem diante do seu carro.

– Droga! – Lane afundou o pé no freio. – Mas que diabos! Mitch?

O delegado Mitchel Ramsay não respondeu. Apenas indicou uma vaga livre bem atrás dele.

Lane estacionou com uma baliza perfeita, ciente de que o delegado estava bem ao lado do seu para-choque, os braços grossos como uma corda náutica cruzados sobre seu peito de jogador de futebol americano. Seus olhos negros estavam escondidos atrás de óculos Ray Ban, e a cabeça raspada fazia com que seu pescoço e seus ombros parecessem ainda maiores do que eram de fato.

Lane saiu do carro esportivo.

– Ei, sabe onde a minha irmã…

– Pode deixar.

Os dois bateram palmas e deram um abraço forte. Enquanto permaneciam peito contra peito, Lane foi transportado para quase dois anos atrás, para a pista de pouso particular a oeste da cidade. Para a noite em que Edward finalmente retornava do cativeiro.

Mitch o trouxera de volta aos Estados Unidos. De volta para a família.

Só Deus sabia como. Ninguém perguntara os detalhes, e Lane sempre ficou com a impressão de que o antigo soldado do Exército não teria partilhado os “como” e os “quem”, de todo modo.

– Ela não está muito bem – comentou Mitch.

– Não me surpreende.

Lane seguiu o delegado, subindo os cinquenta degraus até uma das portas giratórias. Quando terminaram de subir, Mitch desviou para uma porta demarcada com SOMENTE POLICIAIS e depois os fez passar pela segurança, de onde outros policiais acenaram em sinal de respeito.

– Agi o mais rápido que pude assim que vi o nome – disse Mitch enquanto suas passadas se uniam a todas as outras, ecoando no vestíbulo principal, com pé direito alto. – Ela foi presa por furto de veículo, por dirigir sem habilitação, por não apresentar o seguro…

– Como diabos isso foi acontecer?

– … e por resistir à prisão. Já isolei o incidente, mas não vou conseguir mantê-lo fora dos registros policiais indefinidamente.

– Espere. – Lane fez o homem parar. – Minha irmã roubou um carro?

– Um Rolls-Royce. Registrado no nome da Cia. Bourbon Bradford.

– Está se referindo… ao nosso Rolls. O Phantom Drophead?

– O seu pai telefonou pessoalmente para a Polícia Metropolitana e pediu que fossem atrás dela, alegando que ela não tinha permissão para dirigir o veículo.

– Você não pode estar falando sério. – Lane enfiou a mão nos cabelos. – Quero dizer, é claro que ele pode fazer isso. Já fez coisa pior.

– Você chamou um advogado?

– Samuel T. deve chegar aqui em…

– Lane!

Samuel T. avançou em meio a um grupo de pessoas, destacando-se por inúmeros motivos. Primeiro, seu terno de risca de giz azul e branco fazia com que ele parecesse pertencer a uma varanda da casa grande de uma fazenda, sorvendo um julepo de menta com um par de cães de caça aos seus pés. Segundo, ele era belo demais para estar entre os mortais.

– Obrigado por vir tão rápido – Lane disse ao apertarem as mãos. – Você conhece Mitch.

– Certamente. Delegado.

– Senhor Lodge.

Encerrando os cumprimentos, os três seguiram para as escadas rolantes que levavam ao segundo andar.

– Ela está numa cela. – Mitch os conduziu por uma das passarelas. – Mas removi qualquer tipo de retardo para a audiência da fiança. Assim que estiver pronto, senhor Lodge…

– Pode me chamar de Samuel ou de Sam.

– Samuel. – Mitch assentiu. – Assim que estiver pronto. Farei com que ela se apresente diante do juiz McQuaid. Já conversei com o promotor público. As mãos dele estão atadas, visto que o senhor Baldwine está pressionando. A única coisa que posso fazer é apressar, apressar, apressar.

Lane cerrou os molares. Gin dava trabalho e, evidentemente, o pai já estava farto disso, mas aquilo tudo era exposição demais.

– Vou ficar te devendo essa, Mitch.

– Não se preocupe.

O delegado os fez passar por vários pontos de controle de segurança, até adentrarem o complexo. Embora Lane tivesse aprontado sua porção de infrações quando era mais jovem, todas as suas transgressões foram discretamente “resolvidas”. Portanto, aquela era a primeira vez que ia para a cadeia, e não poderia dizer que estava com pressa para voltar lá algum dia.

A sala de espera tinha paredes creme. Piso creme. Cadeira plástica laranja, amarela e vermelha. O cheiro no ar era de suor e de roupas sujas, e de desinfetante em spray.

Graças a Mitch, passaram ao largo do balcão de registros com as divisórias de vidro à prova de balas e da fila de policiais com a pescaria do dia. Isso sim era um chamado para a realidade da outra parte da população. Homens sujos e rapazes estranhos… moças quase despidas… mulheres mais velhas com aspecto cansado… Todos eles de pé ou cambaleando, acompanhados dos policiais que os prenderam, seus rostos revelando as marcas da vida dura que levavam.

– Por aqui, delegado Ramsey – alguém o chamou ao lado de uma porta reforçada.

Depois de passar por mais um ponto de segurança, cruzaram com diversas salas de reunião com luzes vermelhas acesas sobre as portas e grades diante das janelas protegidas por telas.

– Se esperarem aqui – o policial disse, na frente de uma das salas –, eu a trago já.

– Obrigado, Stu. – Mitch abriu a porta e se colocou de lado. – Fico esperando do lado de fora.

– Muito obrigado. – Lane bateu no ombro do homem. – E, provavelmente, ainda vamos precisar da sua ajuda.

– Estou aqui para o que precisarem.

Samuel T. parou ao lado do delegado.

– Alguém já falou com a imprensa?

– Nós não – Mitch respondeu. – E quero que continue assim.

– A minha irmã não tem a melhor das reputações. – Lane meneou a cabeça. – Quanto menos pessoas souberem, melhor.

Mitch os deixou ali na sala. Embora houvesse quatro cadeiras presas ao chão junto a uma mesa de aço também presa, Lane não conseguiu ficar sentado. Samuel T., por sua vez, pôs a velha maleta ao seu lado e cruzou as mãos.

O advogado balançou a cabeça.

– Ela vai ficar louca quando souber que você me chamou.

– E quem mais eu poderia chamar? – Lane esfregou os olhos doloridos. – E depois disso, você vai me ajudar com o meu divórcio, certo?

– Apenas mais uma manhã atarefada com os Bradford…

Pelo menos deixaram que ela permanecesse com as próprias roupas, Gin pensou, enquanto era conduzida por outro corredor de concreto pintado com a vichyssoise do mês.

Ficara aterrorizada com a perspectiva de se despir diante de uma guarda feminina de peito cabeludo para depois ser violada por uma mão com uma luva antes de ser enfiada dentro de um macacão laranja do tamanho de uma tenda de circo. Quando isso não aconteceu, ficara obsessiva com a possibilidade de ser trancafiada numa cela horrorosa e suja com um punhado de prostitutas viciadas em drogas tossindo o vírus da AIDS em cima dela.

Em vez disso, fora colocada numa cela sozinha. Uma cela fria, com apenas um banco e um vaso sanitário de aço sem assento nem papel higiênico.

Não que um dia ela fosse fazer uso daquilo.

Seus brincos de diamante foram retirados, assim como o relógio Chanel, juntamente com as malas LV, o celular, aquelas notas de quinhentos dólares e os cartões de crédito inúteis que tinha na carteira.

Um telefonema. Foi só o que lhe concederam, bem como nos filmes.

– Por aqui – disse o guarda, parando diante de um homem afro-americano uniformizado, e em seguida abrindo uma porta pesada.

– Lane…! – Só que ela parou de correr na direção do irmão assim que viu quem estava sentado à mesa. – Ah, Deus. Ele não.

Lane a abraçou com força depois que a porta se fechou.

– Você precisa de um advogado.

– Estou livre – Samuel T. disse com a fala arrastada. – Relativamente livre.

– Não vou falar na frente dele. – Ela cruzou os braços diante do peito. – Nenhuma palavra.

– Gin…

Samuel T. interrompeu o irmão dela.

– Eu te disse. Acho melhor pegar as minhas coisas e ir embora.

– Sentem-se – Lane ordenou. – Os dois.

Houve um instante de silêncio, que Gin entendeu como sinal de que Samuel T. estava tão surpreso pelo tom de comando quanto ela. Lane sempre fora, dentre os quatro irmãos Baldwine, aquele que seguia conforme a maré. Agora, ele parecia Edward.

Ou como Edward costumava ser.

Depois que se sentou desajeitada numa cadeira tão dura e fria quanto um bloco de gelo, Lane apontou um dedo na direção dela.

– O que você aprontou?

– Como é? – ela disse, se retraindo. – Por que é culpa minha? Por que acha que fui eu quem…

– Porque normalmente é o que acontece, Gin. – Ele cortou o ar com a mão quando ela começou a discutir. – Nem comece, eu te conheço há tempo demais. O que fez desta vez para irritá-lo? Vou tirar você daqui, mas tenho que saber com o que estou lidando.

Enquanto Gin encarava o irmão, quis mais do que nunca mandá-lo se foder. Mas só conseguia pensar na imagem dos seus cartões sendo negados no mostrador digital da bomba do posto de gasolina. Quem mais poderia ajudá-la?

Olhou para Samuel T. Ele não a encarava, e seu rosto estava impassível, mas a desaprovação altiva que ele emanava era tão evidente quanto sua colônia no ar.

– E então? – Lane inquiriu.

Pesando as opções, percebeu que estava completamente desconfortável com essa coisa de enfrentar situações difíceis. Com dinheiro suficiente e uma amnésia conveniente, não existia nada que ela não pudesse evitar, quer isso envolvesse suborno ou teimosia.

Infelizmente, as infindáveis opções estavam fundamentadas num estilo de vida que apenas parecia ser dela. Mas, na verdade, era de outra pessoa. Só não sabia disso até aquela manhã.

Pigarreou.

– Samuel T., você pode… me dar um momento a sós com o meu irmão? – Ela avançou a mão sobre a mesa. – Não estou dizendo que não pode ser o meu advogado, só preciso de um pouco de privacidade com ele. Por favor.

Samuel T. curvou uma sobrancelha.

– É a primeira vez que a ouço dizer essas palavras. Pelo menos estando vestida.

– Cuidado, Lodge – Lane rosnou. – Ela é minha irmã.

O homem se recompôs, como se tivesse se esquecido de que não estava sozinho com ela.

– Perdão. Isso foi inapropriado.

– Não vá para longe. – Lane começou a andar pela sala, puxando os cabelos negros e curtos com a mão. – Pelo amor de Deus, vamos precisar de uma boa representação.

Enquanto seu advogado, amante e pai da sua filha saía – ainda que ele desconhecesse essa última identidade –, Gin mirou os sapatos de salto de seda. A ponta do esquerdo tinha se sujado quando ela foi colocada no banco de trás da viatura.

Houve um clique, indicando que a porta tinha sido fechada atrás de Samuel T. Ela não precisou ser encorajada a falar.

– Ele quer que eu me case com Richard Pford.

– Richard… Desculpe, o que você disse?

– Você ouviu muito bem. Papai vai cortar todos os meus recursos a menos que eu me case com aquele homem. Ele disse que é por causa daquela maldita empresa de distribuição que nos dará melhores taxas ou algo assim.

– Ele ficou louco? – Lane inspirou.

– Você quis saber por que peguei o carro. É por isso, e é por isso que papai chamou a polícia. – Levantou o olhar para o irmão. – Não vou me casar com Richard. Não importa o que o nosso pai faça comigo. É com isso que você vai lidar.

Levantando-se, ela foi até a porta e a abriu.

– Pode voltar.

– Quanta honra – murmurou Samuel T.

Enquanto seu advogado voltava a se acomodar, ela disse: – Então, o que faço para sair daqui?

– Você paga a fiança – Samuel T. respondeu. – E depois tentamos fazer com que as acusações sejam retiradas. Você pode fazer um apelo ou seu pai pode perdoar o que quer que você tenha feito.

– Qual seria o montante da fiança? – Lane perguntou.

– Sem antecedentes, isso vai a favor dela, mas o risco de fugir não. Acho que no máximo cinquenta mil. McQuaid é um juiz amigável para pessoas como nós, por isso o valor não será muito alto.

50 mil dólares. De fato, a quantia nunca lhe parecera muito antes. Apenas mais um pulinho à loja Chanel em Chicago.

Pensou no pouco que tinha na carteira.

– Não tenho essa quantia.

Samuel T. gargalhou.

– Claro que tem.

– Farei com que seja pago – Lane o interrompeu.

Samuel T. abriu a maleta e tirou alguns papéis.

– Você me autoriza a representá-la nessa questão, Virginia?

Desde quando ele a chamava por algo que não fosse o apelido? Pensando bem, talvez ele só não quisesse que seu irmão o esmurrasse no piso de concreto por ter demonstrado familiaridade demais.

– Sim.

Os olhos dele, aqueles olhos cinzentos e aguçados, sustentaram o olhar dela.

– Assine aqui. – Depois de ela ter assinado, murmurou: – Não se preocupe, eu vou tirar você daqui.

A respiração dela vacilou quando ela expirou.

– Mas e depois?

O que, exatamente, seria diferente do outro lado de tudo aquilo? Era muito improvável que seu pai virasse a página subitamente. Edward mal sobrevivera à decisão de William Baldwine de escolher os negócios em detrimento dos filhos.

– Primeiro, te tiramos daqui – Lane disse. – Depois lidamos com o resto.

Voltando-se para o irmão, ela percebeu que nunca o vira tão sério. Recostado à parede nua do cubículo horrendo, ele parecia muito mais velho do que quando partira, dois anos antes. Parecia no comando das coisas.

Ela crescera esperando encontrar autoridade em Edward, e nunca em Lane, o playboy.

– Ele vai ganhar – ela se ouviu dizer. – Papai sempre vence.

– Não desta vez – Lane disse entredentes.

– Que diabos está acontecendo aqui? – perguntou Samuel T.

Lane apenas meneou a cabeça.

– Resolva isso, Samuel. Apenas tire a minha irmã daqui. Eu cuido do resto.

Deus, como ela queria que fosse verdade. Porque, evidentemente, a sua tentativa de irritar o pai não dera muito certo.

 

CONTINUA

DEZ

Claro que era uma ideia muito idiota.

Contudo, enquanto Lizzie retribuía o beijo, foi como se ela estivesse afunilando dois anos de raiva, frustração e dor diretamente dentro dele. E que ele fosse para o inferno, mas seu sabor era de bourbon, de desespero e de sexo selvagem… e ela gostava disso.

Ela sentia falta disso.

O que a deixou ainda mais enfurecida. Ela queria dizer que aquilo era horrível. Que era contra a sua vontade. Uma violação.

Mas não era verdade. Foi ela quem enfiou a língua na boca dele, e foi ela quem enterrou os dedos nos ombros dele, e foi ela quem, que Deus a ajudasse, aproximou o corpo, colando-se nele.

Para poder sentir a ereção dele.

Seu corpo não mudara no tempo em que ficaram afastados; ele era todo feito de músculos rijos e membros delgados. E ele beijava como antes, com aspereza e avidez, apesar de ter sido criado como um cavalheiro. E seu calor continuava o mesmo.

E então, para piorar ainda mais as coisas, memórias dos dois juntos, pele contra pele, se chocando, se balançando, ondulando, a assaltaram, enterrando toda a mágoa e o sentimento de traição debaixo de uma avalanche de lembranças eróticas.

Por uma fração de segundo, percebeu que acabaria fazendo sexo com ele ali mesmo, naquele instante.

Sim, claro, porque era uma maneira eficaz de mostrar que estava falando sério.

Um verdadeiro momento Gloria Steinem.17

Em vez disso, algo foi derrubado na mesa e o barulho interrompeu o silêncio; em seguida, um esguicho molhou o quadril e a coxa dela num choque de água fria. Dando um salto, ela o empurrou com força, e Lane tropeçou e caiu para trás, aterrissando no piso de ladrilhos.

Com um movimento brusco do braço, ela limpou a boca.

– Que diabos você estava fazendo?

Pergunta idiota. O mais adequado seria: O que ela estava fazendo?

Ele se pôs de pé na próxima batida de coração.

– Quis te beijar desde que voltei.

– O sentimento não é mútuo…

– Até parece. – Pegou o copo e sorveu um grande gole. – Você ainda me deseja…

– Saia!

– Está me expulsando da minha própria estufa?

– Ou você sai ou saio eu – ela rebateu. – Essas flores não vão parar nos vasos sozinhas. A menos que queira metade das mesas vazias na sua festa do Derby?

– Não estou nem aí com elas. Ou com essa maldita festa. Ou com nada disso… – Ele gesticulou, e teria sido mais convincente caso não estivesse segurando um bourbon da família naquele copo. – Deixei tudo isso para trás, Lizzie. Já estou farto mesmo.

Motrin. Era disso que ela precisava.

Menos Lane e mais analgésicos.

– Eu desisto – murmurou ela. – Você venceu. Vou eu.

Quando ela se virou para ir embora, ele a segurou e a girou, arrastando-a para junto de si. Foi nesse momento que ela notou o quanto ele envelhecera desde a última vez que o vira. Seu rosto estava mais magro, o olhar mais cínico, os pés de galinha mais acentuados nos cantos dos olhos.

Infelizmente, só o tornava mais belo.

– Nada dessa história horrível com Chantal é como você pensa – ele disse sombriamente.

– Mesmo que seja apenas metade…

– Você não entende…

– Eu estava apaixonada por você. – Sua voz se partiu, e ela o empurrou. – Eu não achava que a gente fosse se casar necessariamente, mas não pensei que você estivesse a caminho do altar com outra mulher. Que estava grávida… e que ainda por cima engravidou enquanto você estava comigo.

– Eu tinha terminado com ela, Lizzie. Antes de voltar para cá naquele mês de abril, eu disse para ela que estava acabado.

– Mas não foi bem assim, não é?

– Ela estava grávida de três meses quando fiquei sabendo, Lizzie. Faça as contas comigo. Estive com Chantal pela última antes de vir para cá, no aniversário da minha mãe, no fim de março. Você e eu… ficamos juntos em maio, e no fim de junho eu fiquei sabendo da gravidez. Se você se lembrar bem, não saí de Easterly durante todo aquele tempo. Você sabia onde eu estava todos os dias e todas as noites porque eu estava com você. – Ele a encarou do alto. – Três meses. Não dois, nem um. Três meses, Lizzie.

Ela levou as mãos ao rosto, lutando contra a lógica.

– Por favor, pare de fazer isso.

– Isso o quê?

– Dizer meu nome. Isso lhe dá a ilusão da credibilidade.

– Não estou mentindo. E faz quase dois anos que quero esclarecer a situação. – Ele praguejou novamente. – Tem mais coisas, mas não quero entrar nessa parte. E não afeta o que existe entre mim e você.

Antes que ela percebesse o próprio movimento, descobriu-se sentada no banco de rodinhas que estivera usando antes. Olhando para as mãos, flexionou os dedos, sentindo a rigidez das juntas e, por algum motivo, pensou nas unhas perfeitas de Chantal, em suas palmas lisas e sem marcas. Falando em opostos… As mãos que ela fitava eram as de uma trabalhadora, que tinha arranhões nos dorsos provocados por espinhos de rosa perdidos, e terra debaixo das unhas, que ela só conseguiria limpar depois que chegasse em casa. Também havia pintas, por ter cavado a terra sem a proteção de luvas e, definitiva e positivamente, não havia nenhum diamante de um milhão de dólares em seu dedo.

– Casei com Chantal no cartório depois que você me deixou – ele continuou com severidade. – O bebê não tinha culpa, e por eu ter crescido sem meus pais, não queria fazer o mesmo com um filho meu, a despeito dos meus sentimentos pela mãe dele. Mas eu tinha que sair da cidade. Chantal não admitia que o casamento fosse apenas no papel. Por isso fui para o norte, ficar em Nova York com um amigo dos tempos da Universidade da Virgínia. Foi pouco depois que Chantal me ligou para falar que tinha perdido o bebê.

A amargura em sua voz fez ele falar tão baixinho que ela mal ouviu.

– Ela também não me ama – ele murmurou. – Não amava na época e não ama hoje.

– Como você pode ter certeza? – Lizzie se ouviu dizer.

– Pode confiar em mim quanto a isso.

– Ela pareceu bem contente em ter você de volta.

– Não voltei por causa dela e deixei bem claro. Essa mulher só é capaz de se afeiçoar a uma refeição grátis.

– Pensei que ela tivesse dinheiro.

– Nada comparado ao que eu tenho.

Sim, ela imaginou que devia ser verdade. Existiam países com menos renda anual do que a dos Bradford.

– Você é o amor da minha vida, quer esteja comigo ou não. – Quando ela ergueu o olhar, ele apenas encolheu os ombros. – Não posso mudar o que aconteceu e sei que não há como voltar… Só o que peço é que não acredite nas aparências, ok? Você está há dez anos com esta família, mas estou com eles e com pessoas que os cercam minha vida inteira. É por isso que é você quem eu quero. Você é real. Não é como eles e isso é uma coisa muito, muito boa.

Ela esperou que ele fosse expressar mais alguma coisa, e quando ele não o fez, ela voltou a fitar as mãos.

Por algum motivo, seu coração batia forte, como se ela estivesse próxima demais de um penhasco. Pensando bem, imaginou que era isso mesmo, porque as palavras dele estavam entrando em sua cabeça e embaralhando seus pensamentos.

De um jeito que não a ajudava em nada.

– Tenho muito medo de você – sussurrou.

– Por quê?

Porque queria acreditar no que ele dizia com o desespero de um viciado.

– Não tenha – ele disse quando ela não respondeu. – Nunca quis que nada assim acontecesse. E faz muito tempo que eu queria acertar as contas com você.

Parecia apropriado que estivessem cercados por tantos vasos de flores. A prova do seu trabalho, de seu único objetivo ali na propriedade, era um lembrete do divisor que sempre os distanciaria.

Ela se forçou a se lembrar daquela fotografia e do artigo no Charlemont Herald sobre o casamento, sobre os dois grandes legados sulistas se unindo num arranjo feudal. Também se lembrou dos dias e das noites logo depois que ficou sabendo de Chantal, de todas aquelas horas de sofrimento até que pensou estar à beira da morte.

Mas as palavras dele exprimiam verdade sobre uma coisa. O orgulho fez com que ela continuasse a trabalhar em Easterly. Assim, estivera presente na propriedade todos os dias, exceto aos domingos, pelos últimos vinte e quatro meses. E Lane não voltara. Durante dois anos… ele não voltara para ver Chantal.

Não era lá um grande casamento.

– Deixe que as minhas ações falem por si mesmas. Deixe que eu prove para você que estou dizendo a verdade.

Em sua mente, ela ouviu seu celular tocando insistentemente. Logo após o rompimento, ele lhe telefonara no mínimo uma centena de vezes, deixando mensagens que ela nunca ouvira. Ela tirara duas semanas de férias assim que soube de tudo, fugindo para a fazenda em Indiana, voltando para Plattsburgh no nordeste, para o pomar de maçãs da sua juventude. Seus pais ficaram felizes em vê-la, e ela passara aqueles dias a cuidar das árvores McIntosh junto aos outros trabalhadores.

Quando regressara, ele já tinha ido embora.

Os telefonemas cessaram depois de um tempo. E, no fim, ela parou de ter sobressaltos toda vez que um carro parava na porta da frente.

– Por favor, Lizzie… diga alguma coisa. Mesmo que não seja o que quero ouvir…

O som da risada de uma mulher o interrompeu com suavidade e fez com que ambos olhassem para as portas que se abriam para o jardim. Quando Greta saíra, um dos painéis não se fechara por completo, e através da abertura, Lizzie viu duas pessoas andando pelo caminho de pedras em direção à piscina no extremo oposto.

Mesmo sob a iluminação fraca do paisagismo, ficou claro que o vestido de gala da mulher era vermelho rubi, suas saias volumosas se arrastando atrás dela. Ao seu lado, um homem alto de terno lhe ofereceu o braço num galanteio e a encarava com o tipo de atenção que se reserva a um lauto banquete.

– Minha irmã – Lane disse, sem necessidade.

– Aquele é Samuel T.? – Lizzie perguntou.

– Quem se importa…

Ela voltou a olhar para Lane.

– Você partiu o meu coração.

– Eu sinto muito. Não foi minha intenção, Lizzie, de modo nenhum. Juro por Deus.

– Pensei que você fosse ateu.

Ele ficou calado um instante, os olhos vasculhando suas feições.

– Eu me batizaria mil vezes, se necessário. Posso memorizar a Bíblia, beijar o anel do papa… faço qualquer coisa que você quiser… mas, por favor…

– Não posso voltar no tempo, Lane. Sinto muito. Não consigo.

Ele se calou. E depois de um longo instante, assentiu.

– Tudo bem, mas posso pedir uma coisa?

Não.

– Sim.

– Não me odeie mais. Eu já faço muito isso sozinho.

O jardim estava perfumado como uma mulher recém-saída do banho, tão arrumado quanto a sala de estar, e tão reservado quanto a biblioteca de uma universidade.

O que significava de fato que era semirreservado. As várias janelas de Easterly davam para as moitas de flores brancas e creme, todas elas bem cuidadas e discretamente iluminadas.

Felizmente, Gin não tinha problemas quanto a fazer sexo em público.

Enquanto se pendurava no braço forte de Samuel Theodore Lodge III, não se deu ao trabalho de esconder seu sorriso.

– Há quanto tempo está com ela?

– Desde quando chegamos. Uma hora?

Ela gargalhou.

– Ora, ora, meu caro Samuel, por que você perde tempo com mulheres como ela?

– Existe outro tipo?

Era difícil saber quem conduzia quem até os recessos escuros do canto mais afastado, onde o muro de tijolos se encontrava com os fundos da casa, onde ficava a piscina. Era para lá que ambos se dirigiam.

– Eu não sabia que você vinha – ela disse, erguendo a mão para tocar os diamantes pendurados no pescoço… e depois deslizar os dedos pelo corpete do vestido. – Eu teria me dado ao trabalho de vestir uma calcinha.

– Nova mania, então?

– Gosto quando você as arranca do meu corpo. Especialmente quando você se frustra e as rasga.

– Mas eu não faço parte de um clube exclusivo, não é mesmo?

– Não seja grosseiro.

– Foi você quem tocou no assunto da lingerie. E também foi você quem quis sair comigo. A menos que, para variar, precise mesmo de um pouco de ar fresco?

Gin estreitou o olhar nele.

– Você é um bastardo.

– Não de acordo com o dicionário. Meus pais estavam muito bem casados quando nasci. – Ele ergueu uma sobrancelha. – E creio que você não possa dizer o mesmo da sua filha, não é mesmo?

Ela parou, a maré virando numa direção que ela não previra.

– Está passando dos limites, Samuel. E você sabe disso.

– É um pouco estranho quando você fala de decoro. Você não está transando com aquele advogado casado da minha empresa? Acho que ouvi alguma coisa a esse respeito.

Ah, então era por isso que ele estava agindo daquela maneira.

– Está com ciúmes? – ela pronunciou de maneira arrastada, o sorriso retornando às suas feições.

– Ele não consegue te satisfazer. Não por muito tempo, e não como eu consigo.

Quando ele a agarrou, ela deixou, adorando o modo como as mãos dele seguraram sua cintura e a boca se afundou na sua. Não demorou muito para que ele erguesse sua saia até as coxas, mantendo-a ali apesar de toda a armação do vestido.

Pensando bem, ele vinha se metendo debaixo de tecidos finos e delicados desde os catorze anos, quando passara a frequentar os bailes da sociedade.

Samuel T. gemeu ao descobrir que ela não estava mentindo quando disse não ter nada debaixo daquele vestido, e seus dedos foram rudes ao penetrá-la. O fogo e o desejo que sentiu foram um tremendo alívio para os assuntos em que ela não queria pensar, o sexo lavando todos os seus arrependimentos e sua tristeza, dando-lhe nada além de prazer.

Não havia motivos para fingir o orgasmo que teve de fato, as unhas se enterrando nos ombros macios do smoking enquanto arquejava, a antiquada colônia Bay Rum tão atávica que fazia com que ele fosse um homem à frente do seu tempo.

Enquanto se entregava, pensava que ele era o único homem que já tinha amado – e o único que jamais teria verdadeiramente. Samuel T. era muito parecido com ela, só que pior: uma alma que nunca se assentaria enquanto estivesse passeando pelos caminhos de tijolos da expectativa social.

– Me come – ela exigiu ao encontro dos lábios dele.

Ele arfava, seu corpo estava rijo debaixo do smoking caro, pronto para ela… Mas em vez de lhe dar o que ela tanto queria, ele recuou um passo, abaixando a saia e fitando-a de longe.

– Samuel? – ela inquiriu.

Com uma lentidão deliberada, ele levou os dedos até a boca e os lambeu. Depois passou a língua para cima e para baixo, entre eles, lambendo a essência dela em sua pele.

– Não – ele disse. – Acho que não.

– O quê?

Samuel se inclinou na direção dela.

– Vou voltar para a festa do seu pai e vou me sentar à mesa dele. Adiantei-me e troquei a disposição dos lugares, de modo que Veronica estará sentada ao meu lado. E você vai saber quando eu colocar a minha mão entre as pernas dela, você vai vê-la se empertigar e tentar manter a compostura enquanto faço com ela o que acabei de fazer com você. Observe o rosto dela, Gin. E saiba que, assim que eu sair, vou transar com ela no banco da frente do meu Jaguar.

– Você não ousaria.

– Como acabei de dizer, preste atenção, Gin.

Ele se virou para se afastar, e ela quis jogar alguma coisa na cabeça dele. E vez disso, disse entre dentes cerrados: – O nome dela não é Savannah?

Ele relanceou por sobre o ombro.

– E eu me importo com o nome dela? A única coisa relevante é: ela não é você.

Dito isso, ele se afastou a passos largos naqueles elegantes sapatos de couro que ecoaram nos tijolos, com os ombros retos e a cabeça erguida.

Envolvendo-se com os braços, ela percebeu pela primeira vez que a noite estava fria. Embora fizesse 26°C.

Concluiu que deveria ter lhe contado a respeito do advogado. Em retrospecto, escolhera o homenzinho grudento exatamente porque sabia que cedo ou tarde Samuel T. descobriria.

Pelo menos uma coisa era certa: Samuel T. voltaria. Por algum motivo, os dois não conseguiam ficar longe um do outro por muito tempo.

E, no fim, ela acabaria tendo que lhe contar a respeito de Amelia, pensou. Mas não hoje. Nem… tão cedo.

Se aquele homem descobrisse que ela lhe escondera a filha por todos aqueles anos?

Ele seria capaz de matá-la.


Gloria Steinem, famosa feminista, é uma jornalista americana, célebre por seu engajamento com o feminismo e sua atuação como escritora e palestrante, principalmente durante a década de 1960. (N.T.)

 

ONZE

Depois que Lane saiu da estufa, a perspectiva de retornar para a festa do pai era extremamente desagradável, ainda mais depois de ouvir o gongo que anunciava que o jantar estava sendo servido. Mas, considerando-se que a outra alternativa seria ir ver Edward, ele…

– Lane?

Concentrando-se, olhou além do arco da sala de jantar. Uma morena alta num vestido cinza-claro estava parada diante dos antigos espelhos venezianos, a visão dos ombros nus tão adorável de trás quanto de frente.

Falando no diabo, ele pensou. Mas sorriu ao se aproximar e beijá-la no rosto macio.

– Sutton, como está?

Mas quis dizer: Que diabos você está fazendo aqui? Ela e a família eram o “inimigo”, proprietários da Destilaria Sutton, produtores do famoso bourbon Sutton e de outras bebidas – mas isso não significava que ele tivesse algo particularmente contra a mulher. Tradicionalmente, porém, pessoas da linhagem dela eram persona non grata em Easterly… em conversas… nas orações noturnas.

E eram fãs da UK. Portanto, eram azuis nos jogos, e não vermelhos.

Isso era algo que poderia irritá-lo.

Quando se abraçaram, seu perfume refletiu a mulher rica que era, sua fragrância delicada preencheram as narinas dele mesmo quando se afastou; assim como seu corpo perfeito e bem vestido, surgindo novamente em seus olhos quando ele piscou.

Mas não era por isso que estava atraído por ela. Aquilo era o mesmo que admirar uma pintura num museu ou um automóvel Duesenberg.

– Eu não sabia que você viria este final de semana. – Ela sorriu. – É bom te ver depois de tanto tempo. Você me parece bem.

Isso foi engraçado, porque ele se sentia uma merda.

– E você, bela como sempre.

– Vai ficar para o Derby?

Por cima do ombro de Sutton, ele viu que Chantal entrava na sala de jantar, o longo vestido amarelo se arrastando junto com a sua postura de inocente.

Só até eu preencher a papelada do divórcio, ele pensou.

– Lane? – Sutton o chamou.

– Desculpe. Na verdade, tenho que voltar logo para Nova York. – Afinal, aquelas partidas de pôquer precisavam dele lá. – Estou contente em ver você. Surpreso por vê-la no jantar do meu pai, mas contente.

Sutton assentiu.

– Também é uma surpresa e tanto para mim.

– Veio a negócios?

Ela sorveu um gole da taça de vinho.

– Hummm.

– Era para ser uma piada.

– Me diga uma coisa, você tem visto…

Ela deixou a frase inacabada, sem mencionar o nome, pois não havia motivos para que ela pronunciasse “Edward”. Por muitos motivos.

– Ainda não o vi. Mas vou até a fazenda.

– Sabe, Edward nunca vem à cidade. – Sutton tomou mais um gole da taça de borda fina. – Eu costumava vê-lo com bastante frequência antes que ele… Bem, fazíamos parte do conselho da Universidade de Charlemont, mesmo eu sendo fã da UK, e…

Enquanto a mulher prosseguia, ele ficou com a sensação de que ela não estava lhe informando fatos que ele já sabia, mas que revivia um período da vida cuja perda ela lamentava. Não pela primeira vez, ele ficou se perguntando o que realmente acontecera entre o garoto de ouro da família e a adorável filha do concorrente deles.

– Ora, se o filho pródigo não retornou…

O som da voz do pai foi um alerta que o atingiu tal qual uma flecha, e Lane encobriu seu dissabor ao tomar um gole de bourbon.

– Pai.

William Baldwine era quase tão alto quanto ele, tinha os mesmos cabelos negros e olhos azuis, o mesmo maxilar, os mesmos ombros. As diferenças eram a idade, o grisalho nas têmporas, os óculos bifocais de aro de casco de tartaruga, a ruga entre as sobrancelhas causada pelos muitos anos de semblante fechado. De algum modo, porém, todos aqueles sinais do passar dos anos não diminuíam a estatura do pai. De fato, apenas serviam de contraponto para uma aura de poder.

– Tenho que mandar arranjarem um lugar para você. – Por trás daqueles óculos, os olhos do pai encararam as roupas de Lane com um desdém apropriado para as fezes de um cachorro no meio de uma sala de estar. – Ou está de saída?

– Deixe-me pensar… – Lane estreitou o olhar. – Por mais que eu aprecie degradar a sua mesa com esta minha camisa, eu teria que ficar na sua presença durante uma refeição de, no mínimo, três pratos. Portanto, acho que vou embora.

Lane colocou seu Reserva de Família na mesinha de apoio mais próxima e se curvou para Sutton, que parecia preferir ir com ele em vez de ficar ali.

– Sutton, é sempre um prazer. – Olhou para o pai. – Pai, vá se foder.

Lançou essa granada e seguiu em meio à multidão, acenando para políticos e socialites, para aqueles dois atores da série da HBO na qual estava viciado e para Samuel T. e sua namorada do momento.

Chegou ao vestíbulo de entrada, e estava quase na porta da frente quando um par de saltos agulha se aproximou por trás.

– Aonde você vai? – Chantal sibilou ao agarrar o braço dele. – E por que não está vestido?

– Não é da sua conta. – Soltou-se dela. – Nos dois casos.

– Lane, é inaceitável…

– Essas palavras jamais deveriam passar pelos seus lábios, mulher.

Chantal fechou a boca muito bem delineada. Em seguida, inspirou fundo, como se estivesse com dificuldade para aplacar a raiva.

– Eu gostaria de passar um tempo com você esta noite, para conversar e discutir… nosso futuro.

– O único futuro em que você precisa pensar é quantas malas Vuitton vai precisar para a sua mudança.

Chantal ergueu o queixo.

– Você não faz ideia do que está falando.

Ele se inclinou na direção dela e abaixou a voz até um sussurro.

– Sei o que você fez. Sei que não “perdeu” o bebê. Se queria manter o aborto em segredo, não deveria ter pedido a um dos motoristas da família que a levasse para aquela clínica em Cincinnati.

Quando ela empalideceu, ele se lembrou exatamente onde estava quando o homem que a levara lá titubeou para lhe dar a informação.

– Não tem resposta? Não vai negar? – Lane a repreendeu. – Ou isso virá quando a surpresa por ter sido descoberta passar?

Houve um instante de silêncio, e ele sabia que ela estava pesando suas opções, tentando descobrir como abordá-lo de um jeito favorável.

– O que eu deveria ter feito? – disse ela por fim, baixinho. – Você me abandonou sem explicações, sem apoio, sem dinheiro, sem um modo de entrar em contato com você.

Ele fez um gesto abarcando as pinturas a óleo e os tapetes orientais.

– Sim, porque você ficou num lugarzinho bem largado no meio da selva.

– Você me abandonou!

– Por isso a solução foi se recompor para tentar seduzir outro homem, certo? Estou deduzindo que foi o que fez, já que você precisava caber de novo no manequim 38, não é? Minha querida esposa.

– Lane, você está dizendo coisas que não quer…

– Você matou um inocente…

Reginald veio da sala de estar com uma bandeja de prata com copos usados, deu uma olhada nos dois e voltou para trás, desaparecendo de novo no cômodo agora vazio.

Ah, sim, a vida em Easterly… Onde a privacidade era menos comum que diamantes e distribuída em termos relativos. Pelo menos sabia que podia confiar naquele homem mais do que em sua própria família.

Não que isso significasse muito.

– Não vou ficar aqui discutindo com você – Lane disse, ríspido. – E você vai sair desta casa. Assim que o Derby acabar, a sua estada grátis já era.

Chantal arqueou uma das sobrancelhas perfeitas.

– Peça o divórcio se quiser, mas não vou a parte alguma.

– Você não terá mais o direito de ficar sob este teto depois que essa aliança sair do seu dedo.

O sorriso que ela lhe lançou foi gélido.

– É o que vamos ver. – Acenou com a cabeça para a porta da frente. – Vá para onde quiser, fuja… É isso o que você faz, não é? Mas tenha certeza que: eu estarei aqui quando você voltar.

Lane estreitou os olhos. Chantal era muitas coisas, mas não era uma maluca. Ela se autopromovia demais para tanto.

E o encarava como se soubesse de algo que ele não sabia.

Que diabos aconteceu enquanto ele se manteve afastado?

No Vermelho & Preto, Edward estava sentado numa antiga poltrona de couro diante de uma televisão tão velha que ainda tinha antenas saindo da tela em forma de caixa. O cômodo estava na penumbra, mas reluzia por causa dos inúmeros troféus de corrida abarrotando as estantes até o teto do lado oposto.

O chalé do haras tinha um quarto, um banheiro com banheira com pés em forma de garras, uma cozinha pequena e aquela área, que era um misto de biblioteca, escritório, sala de estar e de jantar. Não havia segundo andar, apenas um sótão cheio de recordações de velhas corridas de cavalo, e também não havia garagem. A área era menor do que a sala de jantar de Easterly e, desde que se mudara para lá, ele aprendera a apreciar o valor de ter um lugar pequeno o bastante para poder ouvir e ver quase tudo. Lá na mansão, nunca se sabia quem mais estava na gigantesca casa, onde estavam, o que estavam fazendo.

Para alguém como ele, cuja única amante eram os terrores noturnos e cujo principal trabalho era impedir que seu cérebro se canibalizasse, os aposentos apertados eram algo muito mais fácil de lidar, ainda mais naquela época do ano. Pena que a sua ida à América do Sul, quando fora sequestrado, tivesse acontecido pouco antes do Derby. O aniversário da sua captura arruinara o que sempre fora um fim de semana agradável.

Consultou o relógio e praguejou. Agora que o sol tinha se posto, as horas se apresentavam numa confusão nebulosa, minutos se tornando séculos e um segundo ao mesmo tempo. O seu trabalho noturno? Chegar, de algum modo, ao nascer do sol sem gritar.

Junto ao cotovelo, havia uma garrafa de vodca quase vazia. Começara a beber com cinco cubos de gelo num copo alto, que já estava derretido havia um tempo, e ele agora sorvia a bebida pura. Na noite anterior, fora gim. Na de antes, tomara três garrafas de vinho, duas de tinto e uma de branco.

Durante a fase inicial e aguda da sua “recuperação”, aprendera todos os estágios da administração da dor, aprendera como espaçar os analgésicos e a comida a fim de fazer com que os impulsos nevrálgicos do seu corpo arruinado não fossem piores do que a tortura que suportara quando aquelas feridas foram provocadas. Mais tarde, o mestrado em Gerenciamento de Medicação se traduziu muito bem na segunda parte – a parte crônica, a da “recuperação”. Graças às tentativas e aos erros adquiridos com os analgésicos, ele conseguia distribuir tudo para otimizar o efeito sedativo: todas as tardes, por volta das quatro horas, comia alguma coisa; às seis, quando os funcionários liberavam os estábulos, ele podia começar a beber estando, basicamente, de estômago vazio.

Nada o irritava mais do que alguém se metendo no meio do seu torpor…

Quando uma batida se fez à porta, apanhou a pistola ao lado da garrafa Grey Goose e tentou se lembrar que dia da semana era. O Derby aconteceria dali a dois dias… Então era quinta-feira. Era quinta-feira, algumas horas depois do pôr do sol.

Portanto, não era uma das prostitutas que ele pagava para vir servi-lo. Elas vinham às sextas-feiras. A menos que tivesse chamado duas pelo preço de uma aquela semana, mas não havia pedido aquilo.

Certo. Ou havia?

Apanhando a bengala, suspendeu-se da poltrona e claudicou até a janela da frente. Afastou as cortinas, com a pistola firme numa mão, mas o coração batia descompassado. Mesmo ciente de que, pela lógica, não existiam mercenários no Condado Ogden à sua procura, que estava seguro atrás das travas e do sistema de segurança que instalara, apesar da quarenta milímetros em suas mãos… seu cérebro continuava eletrizado.

Quando viu quem era, franziu o cenho e abaixou a arma. Seguindo até a porta, retirou a corrente, destrancou as três travas e abriu a porta, as dobradiças rangendo como camundongos. Outro mecanismo de alerta para ele.

– Cliente errado – murmurou com secura para a loira baixinha que vestia jeans e camiseta justa. – Eu só peço morenas. Em vestidos de gala.

Por um motivo que preferia guardar para si.

Ela franziu a testa.

– O que disse?

– Só aceito morenas. E elas têm que estar adequadamente vestidas.

Ele queria cabelos longos curvados nas pontas, um vestido que se arrastasse pelo chão, e elas tinham que estar usando Must da Cartier. Ah, e tinham que ficar de boca fechada. Não tinham permissão para falar com ele enquanto estivessem transando. Ainda que as putas conseguissem representar bem o exterior, a ilusão frágil seria rompida no instante em que as vozes delas não fossem a da mulher que desejava, mas que não podia ter.

Ele já tinha bastante dificuldade para manter a ereção daquele modo; na verdade, a única maneira de fazer seu pau subir era se conseguisse acreditar na mentira pelo tempo necessário até chegar ao orgasmo.

A mulher em sua soleira pousou as mãos nos quadris.

– Acho que não sei do que está falando. Mas sei que estou no lugar certo. Você é Edward Baldwine, e este é o Vermelho & Preto.

– E você quem é?

– Filha de Jeb Landis. Shelby. Shelby Landis.

Edward fechou os olhos.

– Maldito seja Ele.

– Eu agradeceria se não usasse o nome de Deus em vão na minha presença. Obrigada.

Ele levantou as pálpebras.

– O que você quer?

– O meu pai morreu.

Edward se concentrou num ponto acima da cabeça dela, na lua que crescia acima do Estábulo C.

– Quer entrar?

– Se guardar arma, sim.

Ele enfiou a pistola no cós do jeans e recuou.

– Quer beber alguma coisa?

Quando ela entrou, ele percebeu o quanto ela era baixinha. E devia pesar só uns 45 quilos, isso se estivesse ensopada segurando um fardo de feno.

– Não, obrigada. Não bebo álcool. Mas eu gostaria de usar o seu banheiro. A viagem foi longa.

– É por ali.

– Muito obrigada.

Ele se recostou na porta. A picape na qual ela evidentemente chegara sabe lá Deus de onde estava estacionada à esquerda, o motor ainda estalava debaixo do capô.

Depois de fechá-la e trancar tudo de volta, ouviu a descarga nos fundos da casa. Um momento mais tarde, a moça voltou e olhou para os troféus.

Edward seguiu para a poltrona, fazendo uma careta de dor ao se acomodar.

– Quando? – ele perguntou ao se servir do resto da vodca.

– Uma semana atrás – ela respondeu sem olhar para ele.

– Como?

– Pisoteado. Bem, os médicos disseram que o coração dele não aguentou, mas a causa foi o pisoteamento. Foi assim que você se machucou?

– Não. – Ele sorveu um longo gole. – Então, o que você faz aqui?

Dessa vez ela se virou.

– O meu pai sempre disse pra eu vir para cá pra encontrar você se alguma coisa acontecesse com ele. Ele disse que você lhe devia uma. Nunca perguntei o quê.

Edward a encarou demoradamente.

– Quantos anos você tem? Doze?

– Vinte e dois.

– Jesus, como você é nova…

– Cuidado com o que diz perto de mim.

Ele teve que sorrir.

– Você é igualzinha ao seu velho, sabia disso?

– É o que dizem. – Ela voltou a apoiar as mãos nos quadris. – Não quero esmola. Preciso de um lugar pra ficar e de um trabalho. Sou boa com cavalos, assim como o meu pai era, e ruim com pessoas… Por isso, considere-se avisado. Não tenho dinheiro, mas tenho costas fortes e não tenho medo de nada. Quando posso começar?

– Quem disse que estou procurando ajuda?

Ela franziu o cenho.

– O meu pai disse que você precisaria. Disse que você precisaria de mais mãos.

O Vermelho & Preto era uma grande operação, e sempre havia vagas. Mas Jeb Landis era uma lembrança complicada do passado… e a família dele estava contaminada por associação.

Mesmo assim…

– O que sabe fazer?

– Limpar estábulos e manter os cavalos em ordem não é física nuclear…

Ele dispensou as palavras dela com a mão.

– Tudo bem, tudo bem, está contratada. E só estou sendo um cretino porque, assim como você, não me dou bem com as pessoas. Tem um apartamento vazio ao lado do apartamento de Moe, sobre o Estábulo B. Pode se mudar para lá.

– Mostre o caminho.

Edward grunhiu ao voltar a ficar de pé e carregou o copo consigo de propósito ao conduzi-la até a porta.

– Não quer saber do salário?

– Você vai ser justo. O meu pai disse que desonestidade não faz parte do seu caráter.

– Ele foi generoso ao dizer isso.

– Duvido. Ele conhecia homens e cavalos.

Enquanto Edward voltava a destrancar tudo, conseguia senti-la observando-o e odiou isso. Seus ferimentos eram o resultado de um inferno que ele preferia manter escondido do mundo.

Antes de deixá-la sair do chalé, olhou-a fixamente.

– Só há uma regra.

– Qual?

Por algum motivo, ele se deteve nas feições dela. Ela não se parecia fisicamente em nada com o pai – bem, desconsiderando-se a altura. Shelby, ou qualquer que fosse seu nome, tinha olhos claros, e não negros. E sua pele não tinha a consistência de couro, embora isso ainda pudesse mudar.

A voz dela, porém, era como a de Jeb: aquele sotaque arrastado tinha um fundo de solidez.

– Você não vai chegar perto daquele garanhão – Edward avisou. – Ele é malvado até os ossos.

– Nebekanzer.

– Você o conhece.

– Meu pai costumava dizer que aquele cavalo tinha gasolina nas veias e ácido nos olhos.

– Então você já conhece o meu cavalo. Não se aproxime dele. Não vai limpar a baia dele, não vai chegar perto dele se ele estiver no pasto e nunca, jamais, vai colocar qualquer coisa sobre a porta da baia dele se quiser conservá-la. E isso inclui a sua cabeça.

– Quem cuida dele?

– Eu. – Edward claudicou noite afora, o ar úmido e pesado fazendo com que ele pensasse que não conseguiria respirar. – E ninguém mais.

Enquanto tentava respirar fundo, perguntou-se se todos aqueles médicos tinham deixado passar algum ferimento interno. Pensando bem, talvez a sensação de sufocamento fosse causada pela imagem daquela moça perto do maldito garanhão negro. Ele só conseguia pensar no que Neb poderia fazer com ela.

Ela se colocou na frente e pegou a mochila sobre o banco do passageiro.

– Então você é o encarregado aqui.

– Não, Moe Brown é. Você vai conhecê-lo pela manhã. Ele será o seu chefe. – Edward seguiu na direção dos estábulos. – Como já disse, o apartamento ao lado do dele está mobiliado, mas não sei quando o último a morar lá saiu.

– Já dormi em baias e em bancos de praça. Ter um telhado sobre a cabeça já basta.

Ele olhou na direção dela.

– O seu pai… era um bom homem.

– Não era nem melhor nem pior do que qualquer outra pessoa.

Era impossível não pensar em quem devia ser a mãe dela – ou em como alguém poderia ter suportado tempo suficiente ao lado de Jeb até ter uma filha com ele. Jeb Landis era uma lenda na indústria, tinha uma lista de cavalos vencedores maior do que qualquer outro, vivo ou morto. Também fora um alcoólatra filho da puta, com um vício por jogo ainda pior do que a sua veia misógina.

Uma coisa com a qual Edward não tinha que se preocupar era se Shelby saberia tomar conta de si mesma. Se conseguira sobreviver tendo vivido com Jeb, trabalhar num turno de dezoito horas numa fazenda criadora de cavalos seria fácil, fácil.

Quando chegaram ao Estábulo B, as luzes detectoras de movimento se acenderam e os cavalos se movimentaram lá dentro, batendo os cascos e relinchando. Entraram pela porta lateral, passaram pelo escritório de Moe e pelo depósito de suprimentos, e Edward a levou até o lance de escadas que antes conduzia ao palheiro, cobrindo toda a extensão do telhado. Em algum momento nos anos 1970, o lugar fora convertido em dois apartamentos, e Moe morava no da frente, que dava para a passagem de carros.

– Vá na frente e espere por mim ali em cima – disse com os dentes cerrados. – Eu demoro um pouco para subir.

Shelby Landis subiu os degraus rapidamente no compasso que ele costumava usar, mas que agora já não apreciava mais, e sentiu como se tivesse uma centena de anos ao se juntar a ela no andar superior.

Àquela altura, já estava tão sem fôlego que chiava como um pneu murchando.

Afastando-se dela, viu que não havia nenhuma luz por baixo da porta de Moe, mas, de todo modo, não teriam incomodado o homem. Com o Derby em menos de quarenta e oito horas, se estivesse em casa, o homem já devia estar dormindo a sono solto.

Ainda mais se considerasse que um dos seus dois cavalos poderia acabar excluído da corrida.

Enquanto Edward seguia em frente e girava a maçaneta do apartamento seguinte, percebeu que não sabia o que faria caso a porta estivesse trancada. Não fazia ideia de onde as chaves poderiam estar…

A porta se abriu, lembrando-o de que ele estava em meio a uma minoria de paranoicos ali naquela fazenda. O interruptor ficava à esquerda na parede e, quando ele o apertou, ficou aliviado em ver que o lugar não estava muito empoeirado e que, de fato, havia um sofá, uma cadeira, uma mesa e uma cozinha minúscula que, em comparação, fazia com que a sua parecesse industrial.

– O seu pai nunca mencionou o motivo de eu estar em débito com ele? – perguntou, mancando até o corredor escuro.

– Não, mas Jeb não era de falar muito.

Apertando o segundo interruptor, viu que o quarto e o banheiro também estavam organizados.

– Eis o que você tem aqui – disse ele, exausto só de ver a distância até a porta.

Quatro metros e meio.

Era como se fossem quilômetros.

Ela se aproximou.

– Obrigada pela oportunidade.

Ofereceu a mão e o fitou nos olhos e, por um instante, ele sentiu uma emoção diferente da raiva que ardia e queimava em seu íntimo nos últimos dois anos. Não sabia como defini-la, e o triste era que não sabia se a mudança era bem-vinda.

Havia uma certa claridade em ter um princípio de operação unilateralmente hostil.

Deixou a mão dela pendurada no ar enquanto arrastava o corpo de volta até a saída.

– Veremos se, mais tarde, você vai me agradecer.

De repente, lembrou-se de toda aquela coisa de não praguejar e não beber álcool.

– Ah, e mais uma coisa. Se a cortina do meu chalé estiver fechada, não me incomode.

– Sim, senhor.

Ele assentiu e fechou a porta. Depois, muito lenta e cuidadosamente, começou a descer.

A verdade era que Jeb Landis fora o responsável pela sua recuperação. Sem o chute que o homem deu no seu traseiro, só Deus sabia se Edward ainda estaria naquele planeta. Deus, ainda se lembrava com nitidez quando o treinador viera visitá-lo no centro de reabilitação. Apesar da regra explícita de Edward de não receber visitantes, Jeb passara pela estação da enfermagem e marchara para dentro do seu quarto.

Eles já se conheciam havia uma década. O interesse de Edward por cavalos de corrida, e sua subsequente posse, aliado ao compromisso prévio de ser o melhor em tudo o que fazia, significava que ele só aceitaria um homem treinando os seus cavalos.

No entanto, jamais previra que o homem seria um tipo de salvador.

O esporro de Jeb fora breve e direto, mas mais eficiente do que todos os argumentos e apoio emocional que recebeu de outras pessoas. E, um ano após sua mudança para lá, tendo jogado fora todos os seus ternos e decidido que aquela seria a sua vida, Jeb lhe disse que estava deixando o Vermelho & Preto rumo à Califórnia.

Provavelmente porque alguns agentes de apostas de Chicago estavam atrás de um pedaço do traseiro dele.

Em todos aqueles anos, antes e depois do sequestro, o fato de Jeb ter uma filha jamais viera à baila. Mas, sim, ele abrigaria a filha do homem. Claro.

E, felizmente, ela parecia ser capaz de cuidar de si mesma.

Portanto, o pagamento do débito teria um custo baixo.

Pelo menos, foi o que ele disse a si mesmo naquela primeira noite.

Só que aquilo não foi bem verdade… nem de longe.

 

DOZE

– Paguei cem mil dólares para me sentar ao seu lado.

Gin ergueu o garfo Tiffany com desenho de crisântemo para mexer na comida, mal ouvindo as palavras ditas junto ao seu ouvido. Estava ocupada demais se concentrando no arranjo floral diante dela. Samuel T. estava mais à esquerda, e a partir daquele ponto focal florido, sua visão periférica permitia que ela o acompanhasse ao lado da namoradinha, Veronica/Savannah.

– Por isso, você poderia pelo menos conversar comigo.

Voltando a se concentrar, fitou o odioso Richard Pford IV. O homem era só uma versão do jovem que um dia fora: alto e magro, com um olhar capaz de cortar vidro e uma natureza suspeita que contrastava com a sua posição invejável na hierarquia social de Charlemont. Filho de Richard Pford III, era o único herdeiro da Distribuidora de Bebidas Pford, uma cadeia nacional que distribuía vinhos, cerveja, bourbon, gim, vodca, champanhe, uísque etc. nas prateleiras e nos negócios do país inteiro.

O que significava que ele podia bancar um valor de seis dígitos para garantir um assento todas as noites da semana e duas vezes aos domingos.

Ele nadava em milhões, e seus familiares nem tinham começado a morrer ainda.

– Os assuntos do meu pai não me interessam – ela rebateu. – Portanto, parece que desperdiçou o seu dinheiro.

Ele tomou um gole de vinho.

– E pensar que ele foi para o programa de basquete da UC.

– Não sabia que você era fã deles.

– Não sou.

– Não é de se admirar que não nos damos bem. – UK. Ela devia ter desconfiado. – Além disso, não ouvi dizer que você estava para se casar?

– Os boatos quanto ao meu noivado foram exagerados.

– Difícil de acreditar, com todas as suas qualidades.

À esquerda, Veronica/Savannah deu um salto na cadeira, os cílios postiços flanaram, o garfo bateu no prato. Enquanto as lentes coloridas se voltavam para Samuel T., o maldito limpava casualmente a boca com o guardanapo damasco.

Samuel T., no entanto, não estava olhando para a namorada. Não, ele casualmente fitava o buquê de flores bem na frente de Gin.

O filho da puta.

Deliberadamente, Gin se virou para Richard e sorriu.

– Bem, estou encantada com a sua companhia.

Richard assentiu e voltou a cortar o seu filé mignon.

– Assim é muito melhor. Por favor, não pare.

Gin falou com suavidade, ainda que não fizesse ideia do que estava saindo da sua boca. Mas Richard assentia mais e mais, e respondia, por isso ela deduziu que estava se saindo bem com suas habilidades sociais. Mas, pensando melhor, quer se tratasse de conversas que não a interessavam ou orgasmos com homens com os quais não se importava, ela tinha bastante prática em fingir.

E, mesmo assim, estava ciente do que Samuel T. estava fazendo. Dolorosamente ciente.

Os olhos dele queimavam, cravados nela. E, nesse meio-tempo, bem como ele lhe prometera, a vadia ao lado dele começou a se esforçar para manter a compostura.

– … me resguardei para você – Richard declarou.

Gin franziu o cenho, captando aquela combinação de palavras, a despeito da sua preocupação.

– O que disse?

– Eu estava determinado a me casar, mas entrei num acordo com o seu pai. Foi por isso que pus fim ao noivado.

– Entrou num acordo com o meu pai? Do que está falando?

Richard sorriu com frieza.

– O seu pai e eu chegamos a um acordo quanto ao futuro. Em contrapartida por se casar comigo, estou disposto a conceder algumas vantagens à Cia. Bourbon Bradford.

Gin piscou. Depois balançou a cabeça.

– Não estou ouvindo muito bem.

– Sim, sim, você está. E já lhe comprei o anel de diamantes.

– Não, não, não… Espere um minuto. – Jogou o guardanapo na mesa mesmo sem terminar de jantar, assim como as outras trinta e uma pessoas. – Não vou me casar nem com você nem com ninguém.

– Mesmo?

– Tenho certeza de que “comprou” o seu lugar nesta mesa. Mas ninguém me obriga a fazer porra nenhuma, e isso inclui o meu pai.

Pensou que era uma tristeza não ter questionado a possibilidade do seu bom e velho pai a vender em favor do preço das ações da empresa.

Richard deu de ombros debaixo do terno elegante.

– Se é o que você diz.

Gin olhou para a cabeceira da mesa onde William Baldwine estava sentado em comando total, como se estivesse em um trono suspenso, mantendo-o acima dos seus súditos.

O homem não percebeu o olhar letal e, portanto, não sabia que a bomba tinha sido lançada. Ou talvez, quem sabe, ele tivesse planejado dessa forma, sabendo que Richard seria incapaz de ficar calado, e que ela não poderia provocar um escândalo por causa das testemunhas.

E, maldição, seu pai tinha razão quanto a isso. Por mais que desejasse dar um pulo e começar a berrar, ela não rebaixaria o nome Bradford dessa maneira, certamente não com Sutton Smythe e o pai dela, Reynolds, no mesmo cômodo.

À esquerda, um gemido foi encoberto por uma tossidela fraca.

Gin desviou a atenção do pai para Samuel T., ao que o advogado ergueu uma sobrancelha… e lançou um beijo no ar na sua direção.

– Sim, pode levar o prato dela. – Ela ouviu Richard dizer para o garçom uniformizado. – Ela já terminou.

– O que disse? – Gin se virou para Richard. – Mas você não tem o direito de…

– Aprovo a sua falta de apetite, mas não vamos nos arriscar, certo? – Richard acenou para o garçom. – E ela também não vai comer a sobremesa.

Gin se inclinou para o homem e lhe sorriu. Num sussurro, disse: – Não dê o passo maior que a perna. Eu ainda me lembro da época em que você enchia a sua saqueira com meias. Dois pares, porque um não adiantava muita coisa.

Richard a encarou. Num tom igualmente baixo, respondeu:

– Não faça de conta que tem algum poder de decisão.

– Espere e verá.

– É você quem mal pode esperar para ver. – Ele se recostou e lançou-lhe o olhar satisfeito de um homem que tem um royal flush nas mãos. – Mas não demore muito. O peso dos quilates do seu anel diminui a cada hora.

Eu vou te matar, ela pensou consigo mesma enquanto olhava para o pai. Que Deus me ajude, mas eu vou te matar.

Quando Lizzie fez a curva na estradinha secundária, a faixa de terra para a qual se dirigiu dividia terrenos com plantações de milho e só era larga o bastante para a passagem do seu Yaris. Havia árvores em ambos os lados, não de maneira organizada, mas num padrão casual, arranjado pela natureza, e não pela enxada de um paisagista. Acima, galhos grossos se uniam formando um dossel de verde brilhante na primavera, esmeralda no verão, amarelo e laranja no outono e esquelético no inverno.

Normalmente, aquela procissão de meio quilômetro até sua fazenda era o início do seu relaxamento, uma câmara de descompressão que ela acreditava ser o único motivo pelo qual conseguia dormir depois de um dia de problemas em Easterly.

Não naquela noite.

De fato, ela queria olhar por sobre o ombro só para se certificar de que não havia ninguém com ela no banco de trás do carro. Não que coubesse alguém de mais de doze anos ali, mas, mesmo assim… Sentia-se perseguida. Caçada. Assaltada. Ainda que sua carteira continuasse dentro da bolsa e ela estivesse, de fato, sozinha em seu carro.

A casa da fazenda era uma clássica casa americana, exatamente o que se veria num filme da Lifetime que se passasse num fim de semana de quatro de julho: branca com uma varanda, com vasos de amor-perfeito, uma cadeira de balanço e um banco suspenso em um dos lados. Tanto a indispensável chaminé de tijolos vermelhos quanto o telhado pontudo com telhas cinza eram originais, da época da sua construção em meados de 1833. E o coup de grâce? Um bordo imenso que oferecia abrigo para o calor do verão e para o vento frio do inverno.

Estacionou debaixo da árvore, que era o que de mais próximo a uma garagem que ela tinha, e saiu do carro. Mesmo que Charlemont dificilmente fosse Manhattan, a diferença no nível de barulho era impressionante. Naquelas partes, havia sapos, vagalumes que não tinham nada a dizer, e uma coruja que começara a montar guarda num velho celeiro uns dois anos antes. Nenhum murmúrio da autoestrada. Nenhuma sirene de ambulância. Nenhum acorde de jazz ou blues vindos do parque às margens do rio.

Fechando a porta, o som foi amplificado pela escuridão, e ela se viu aliviada quando caminhou e as luzes ativadas pelo movimento, colocadas em ambos os lados da entrada, foram ativadas. As botas rasparam nos cinco degraus que rangeram, e a porta de tela a acolheu com o resmungo das dobradiças. A fechadura era de latão, relativamente nova. Fora instalada em 1942.

Do lado de dentro, tudo estava escuro, e quando ela confrontou o vazio, desejou ter um cachorro. Um gato. Um peixinho dourado.

Apertando o interruptor, piscou quando seu lar doce lar se iluminou com a suave luz amarela. A decoração não se parecia em nada com a dos Bradford. Na sua casa, se havia algo antigo, era por ser útil e por ter sido feito por algum artesão do Kentucky: uma velha cesta de vime, um par de colchas de retalhos gastos pendurado nas paredes, uma cadeira de balanço, um banco de pinho debaixo da janela, cabeças de enxadas e pás que encontrara nos campos e que ela mesma emoldurara, para depois pendurar na parede. Também tinha uma coleção de instrumentos musicais, inclusive diversos violinos, muitas canecas, algumas tábuas de lavar roupa, e o maior dos seus tesouros: seu piano Price & Teeple de 1907. Feito de carvalho, com dobradiças incríveis de cobre, pedais e outras partes metálicas, ela o encontrara apodrecendo num celeiro, na porção oeste da propriedade, e o restaurara com muito amor.

A mãe chamava sua casa de museu do folclore, e Lizzie concluiu que isso devia ser bem verdade. Para ela, não existia conforto maior do que se ligar a gerações de homens e de mulheres que trabalharam na terra, esculpiram suas vidas e transmitiram seu conhecimento de vida para as gerações seguintes.

Agora? Tudo era 3G, 4G, LTE, e os computadores e smartphones eram cada vez menores e mais rápidos.

Sim, porque esse sim era um legado de honra e de perseverança para deixar aos seus filhos: como se esforçar para ficar na fila por vinte e seis minutos a fim de adquirir um novo iPhone, com um copo do Starbucks numa mão e um blog a respeito de alguma inutilidade na outra para passar o tempo.

De volta à sua cozinha anos 1940 – o estilo não era importado da Ikea ou Williams-Sonoma com suas réplicas, mas sim o original, de quando ela comprara a casa sete anos atrás –, abriu a geladeira e encarou as sobras da torta de frango que fizera na segunda à noite.

Aquilo era tão inspirador quanto a ideia de comer lascas de tinta esquentadas numa frigideira.

Quando seu celular começou a tocar, olhou por sobre o ombro, para a bolsa que largara no corredor.

Deixe para lá, ela se ordenou. Apenas deixe…

Esperou até que o aparelho silenciasse, e esperou mais para ver se haveria outra chamada – caso fosse uma emergência com a mãe, outra ligação se seguiria. Ou pelo menos haveria um toque alertando a chegada de uma mensagem.

Quando nenhum dos dois aconteceu, ela foi até o corredor e apanhou a bolsa. Nenhuma mensagem. Não reconheceu o número, mas conhecia o código de área: 917.

Cidade de Nova York. Celular.

Tinha amigos que ligavam para ela daquela área.

Suas mãos tremiam ao abrir a lista de chamadas recebidas e apertar o último número.

Foi atendida antes que o primeiro toque terminasse.

– Lizzie?

Seus olhos se fecharam quando a voz de Lane entrou em seu ouvido e em todo o seu corpo.

– Alô? – ele disse. – Lizzie?

Havia muitos lugares para sentar em sua sala ou na cozinha – cadeiras, sofás, até mesmo a mesinha de centro era robusta o suficiente. Em vez de usar qualquer um desses móveis, recostou-se contra a parede e deixou o traseiro escorregar até o chão.

– Lizzie? Você está aí?

– Sim. – Apoiou a testa na mão. – Estou aqui. Por que está ligando?

– Eu só queria me certificar de que você chegou bem em casa.

Sem nenhum motivo, lágrimas surgiram em seus olhos. Ele sempre agia assim. No tempo em que estiveram juntos, não importava que horas ela saía, ele lhe telefonava assim que ela passasse pela porta. Como se tivesse um timer no telefone.

– Não estou ouvindo a festa – comentou. – Ao fundo.

– Não estou em casa.

– Onde você está?

– No Antigo Silo. No armazém de barris. – Ela ouviu um barulho, como se ele também estivesse se sentando no chão. – Faz muito tempo que não venho aqui. O cheiro é o mesmo. A aparência também.

– Nunca fui aí.

– Você gostaria daqui. É o seu tipo de lugar, tudo muito simples e funcional e feito à mão.

Ela relanceou para a sala de estar e se concentrou na primeira pá que encontrara nos campos onde plantava milho todos os anos. O objeto era velho e enferrujado e, para ela, belo.

O silêncio que se seguiu fez parecer como se ele estivesse na sala junto dela.

– Estou feliz que não tenha desligado – Lane disse por fim.

– Eu queria poder desligar.

– Eu sei.

Ela pigarreou.

– Pensei em tudo o que me disse, no caminho para casa. Pensei em como você estava enquanto conversava comigo. Pensei… em como as coisas eram.

– E?

– Lane, mesmo que eu conseguisse superar tudo, e não estou dizendo que consigo, o que, exatamente, você quer de mim?

– Qualquer coisa que você me der.

Ela gargalhou num acesso tenso.

– Isso foi bem franco.

– Tenho outra chance com você? Porque vou te dizer isso agora, neste instante, se houver a mínima chance de você me aceitar, eu…

– Pare – ela inspirou fundo. – Apenas… pare.

Quando ele parou, ela ficou puxando e puxando o cabelo, com tanta força que seus olhos ficaram ainda mais marejados. Ou talvez isso estivesse acontecendo por outros motivos.

– Eu queria que você não tivesse voltado – ela se ouviu dizer. – Eu queria… Eu já estava te esquecendo, Lane. Estava recuperando o meu fôlego, a minha vida. Eu estava… e agora você está aqui, dizendo as coisas que quero ouvir, olhando para mim como se estivesse falando sério. Mas eu não quero voltar. Não posso.

– Então vamos em frente.

– A vida não é fácil assim.

– Não é. Mas é melhor do que nada.

Enquanto o silêncio se estendia uma vez mais, ela não sentiu necessidade de falar, de explicar mais coisas, de detalhar tudo. E enquanto as palavras martelavam em sua cabeça, ela desistiu de lutar.

– Não fiquei um dia, uma noite sem pensar em você, Lizzie.

O mesmo valia para ela, mas ela não queria lhe dar esse tipo de munição.

– O que você andou fazendo esse tempo todo lá?

– Nada. E estou falando sério. Fiquei com um amigo, o Jeff… bebi, joguei pôquer. Esperei, querendo ter uma oportunidade de falar com você.

– Por dois anos.

– Eu teria esperado uma dúzia.

Lizzie parou de puxar o cabelo.

– Por favor, não faça isso…

– Eu quero você, Lizzie.

Enquanto assimilava as palavras, seu coração batia tão forte que ela conseguiu sentir o aumento na pressão sanguínea no peito e no rosto.

– Nunca deixei de te querer, Lizzie. De pensar em você. De desejar que você estivesse comigo. Diabos, sinto como se estivesse num relacionamento com um fantasma. Eu te vejo nas ruas de Nova York sem parar, em alguma loira passando por mim numa calçada, talvez no modo como ela penteia os cabelos, ou por causa dos óculos, ou pela cor das calças jeans… Eu te vejo nos meus sonhos todas as noites; você é tão real que consigo te tocar, te sentir, estar com você.

– Você tem que parar.

– Não consigo. Lizzie… eu não consigo.

Fechando os olhos, ela começou a chorar baixinho na solidão da sua casa tão modesta, aquela que ela mesma comprara e que estava quase acabando de pagar, o maior símbolo da razão pela qual não precisava de um homem em sua vida, nem agora, nem nunca.

– Você está chorando? – ele sussurrou.

– Não – respondeu depois de um instante, num soluço. – Não estou.

– Está mentindo?

– Sim, estou.

 

TREZE

Lane olhava para o lado oposto do Antigo Silo construído por um dos seus ancestrais, sabendo que estava dentro do limite legal de álcool para poder dirigir, e que isso não duraria muito. Tinha uma garrafa de no 15 contra o quadril, que surrupiara de uma caixa pronta para ser despachada, e apesar de ainda não ter rompido o lacre, tinha toda intenção de secar a garrafa.

Em toda a sua volta, o Antigo Silo estava deserto, e surpreendeu-se ao perceber que o código de acesso do sistema de alarme ainda era o mesmo de antes.

Sabia que deveria deixar Lizzie em paz.

– Sinto muito – murmurou. – Quero dizer todas as coisas certas, fazer as coisas certas, e sei que não estou cumprindo esses objetivos. Maldição, Lizzie…

Inclinou a cabeça para o lado e segurou o telefone entre o ombro e a orelha. Pegando o bourbon, abriu a garrafa e a levou até a boca.

A ideia de tê-la feito chorar de novo o comia vivo.

– Você está bebendo? – ela perguntou.

– Ou faço isso ou bato a cabeça na parede até sangrar.

Enquanto ela exalava fundo, ele deu mais um gole. E um terceiro.

Quando terminou de engolir e a queimação na garganta cessou, ele fez a pergunta cuja resposta tanto temia: – Você está com alguém?

Ela demorou bastante para responder.

– Não.

Foi sua vez de exalar fundo.

– Não acredito em Deus, mas, neste instante, estou com vontade de me autoproclamar cristão.

– E se eu não te quiser mais? O que vai fazer, então?

– Está me dizendo que isso é verdade?

– Talvez.

Ele fechou os olhos.

– Então, eu vou recuar. Isso vai acabar comigo… mas vou embora.

Mais silêncio. Que ele passou bebendo da garrafa.

– Amigos – ela disse por fim. – Só vou até aí. É só isso que consigo fazer.

– Ok. Respeito isso.

Ele conseguiu ouvir o alívio na voz dela.

– Obrigada.

– Mas – ele a interrompeu – o que, exatamente, isso quer dizer?

– Como é?

– Bem, amizade… Como é isso? Posso te telefonar, certo? Amigos podem comer juntos de vez em quando, só para se manterem a par das novidades, não é? Você sabe, divórcio, planos de mudança, novas direções, esse tipo de coisa.

– Lane.

Ele sorriu.

– Adoro quando você diz meu nome desse jeito.

– Quando estou irritada?

– É sexy.

Lizzie pigarreou.

– Essa palavra não cabe numa amizade, ok?

– Eu apenas constatei um fato.

– Uma opinião.

– Fato.

– Lane, estou te avisando, você precisa…

Enquanto ela prosseguia, falando à sua maneira tipicamente franca e sem rodeios, ele fechou os olhos e prestou atenção às ordens dela, deixando que seu tom de voz o envolvesse. Bem no íntimo, aquele desejo velho e tão conhecido despertou, como um dragão adormecido… e o ímpeto foi tão forte que ele quis entrar no carro e atravessar as pontes até Indiana.

– Ainda está aí? – ela perguntou, brava.

– Ah, estou. – Arrumando a ereção dentro das calças, refreou um gemido. – Estou, sim.

– O que está fazendo?

Ele afastou a mão para longe, bem longe do marco zero.

– Nada.

– E então? – disse ela. – Está ou não?

– Estou o quê?

– Dormindo enquanto fala comigo.

– Muito pelo contrário – ele murmurou.

Houve uma leve pausa e depois:

– Ah…!

Como se ela o tivesse compreendido.

– Melhor eu desligar – ele disse, rouco. – Cuide-se. Nos falamos amanhã.

Só que ela não parecia querer que ele desligasse… e seu pau ficou todo lépido e faceiro.

– Quer dizer que você vai ficar? – ela perguntou.

Podemos falar sobre outro assunto?, sua ereção pensou.

Sossegue, garoto.

– Sim, vou. – Quando ele mudou de posição no chão duro, tentou ignorar o modo como o zíper resvalou. – Tenho que me encontrar com Samuel T. para falar do divórcio.

– Então, você vai mesmo…

– Vou – ele disse. – Imediatamente. E não, não é só por sua causa. Cometi um erro, e vou consertar isso para o bem de todo mundo.

– Tudo bem. – Ela pigarreou. – Ok.

– Só estou seguindo em frente, Lizzie.

– Se é o que você diz. Bem, tchau…

– Não – ele a interrompeu. – Assim não. Nós dizemos boa noite, está bem? E não tchau, a menos que você queira que eu apareça na soleira da sua porta como um cachorro sem dono.

– Está bem.

Antes que ela desligasse, ele formou um “eu te amo” com os lábios.

– Boa noite, Lizzie.

– Boa noite… Lane.

Encerrando a ligação, Lane deixou o braço cair, e o aparelho bateu no piso de concreto com um baque.

– Eu te amo, Lizzie – disse em voz alta.

Tomando mais um gole da garrafa, pensou em como era conveniente que a fortuna da família se baseasse em algo com o qual ele poderia se embebedar. Se fosse uma enormidade de outros produtos de consumo – canetas, baterias de carro, band-aids, chicletes –, nada poderia ajudá-lo na sua atual situação.

Quando o telefone voltou a tocar, ele o atendeu de pronto. Mas não era Lizzie.

– Jeff – ele disse, mesmo não querendo conversar com mais ninguém.

A voz do seu anfitrião nova-iorquino soou seca.

– Você ainda está vivo.

– Basicamente. – Levou a garrafa de volta à boca. – E você, como é que você está?

– Está bebendo?

– Isso mesmo. No 15. Eu dividiria com você, se estivesse aqui.

– Um cavalheiro sulista, sem dúvida. – Seu amigo praguejou. – Lane, onde você está?

– Em casa.

Houve tempo suficiente para grilos cantarem na conexão.

– Você está se referindo a…

– Isso mesmo.

– Charlemont?

– Nascido e criado eu fui, e ao lar regressei. – Puxa. Devia estar ficando bêbado, estava parecendo um sulista de verdade. – Assim como você e o Upper East Side, só que nós temos miúdos de porco e frango frito.

– Que diabos você está fazendo aí?

– A minha… – Pigarreou. – Uma pessoa muito importante para mim adoeceu. Tive que voltar.

– Quem?

– A mulher que me criou. A minha… bem, a minha mãe. Mesmo ela não sendo a minha mãe biológica. Ela ficou doente alguns anos atrás, mas sabe como são essas coisas. Elas podem voltar. Ela diz que vai ficar bem, então estou me apegando a isso.

– Quando vai voltar?

Lane tomou mais um gole.

– Já te contei que me casei?

– O quê?

– Foi um pouco antes de eu ir para o norte e acabar no seu sofá. Vou ficar aqui até a senhorita Aurora ficar bem e, assim, vou poder cuidar dessa outra coisa idiota. Além disso… é que… tem essa outra mulher.

– Espera um minuto. Cacete. Espera aí…

Houve uma espécie de farfalhar, seguindo de um clic, clic, clic como se alguém estivesse tentando acender um isqueiro… e depois uma baforada.

– Vou precisar de um cubano para ouvir isso. Então, você tem uma esposa?

– Eu te disse que não era gay.

– Foi por isso que você não ficou com ninguém aqui?

– Não, foi por causa da outra mulher. Aquela com quem não me casei. Aquela que é naturalmente bonita e boa demais para mim.

– Vou precisar de um diagrama de Venn – o cara murmurou. – Cacete, por que não me contou nada disso?

Lane balançou a cabeça, mesmo que o amigo não pudesse vê-lo.

– Eu estava no modo de fuga. – Caramba, odiou o fato de Chantal estar certa. – Tudo estava barulhento demais dentro da minha cabeça. A coisa toda. Então, como é que você está?

– Você joga isso tudo em cima de mim e termina querendo saber como é que eu estou?

– Tenho que voltar a beber. Conversar está me retardando, mas estou disposto a ouvir. – Tomou um gole grande. – E aí? Alguma novidade?

– Estou bem, você sabe, as coisas de sempre no trabalho. Dez mil amplificadores ligados, um chefe que não sai do meu rabo e dezesseis comprimidos de Motrin por dia para impedir que a minha cabeça exploda. O mesmo de sempre. Pelo menos ainda tem dinheiro… ainda mais agora que você não está me arrancando um quarto de milhão de dólares todas as semanas no feltro verde.

Conversaram um pouco mais sobre nada em especial. Jogos de pôquer, Wall Street, a mulher com quem Jeff andava transando… E mesmo que Lane não fosse muito de ficar conversando ao telefone, percebeu que estava com saudades do cara. Acostumara-se à troca rápida, às sacadas inteligentes e, em especial, àquele sotaque de Jersey nos fim das frases e no uso de algumas outras palavras.

– Então, acho que é adeus por ora – seu antigo colega de classe disse.

Lane franziu o cenho e visualizou Lizzie. Ouviu a voz dela. Lembrou-se da cautela dela.

Depois rearranjou sua ereção persistente.

Ficou se perguntando se existia a mínima possibilidade de voltar para Nova York.

Pensando bem, seria melhor não se adiantar. No que se referia a reconquistar Lizzie, dependia de duas pessoas. Só porque estava pronto para retomar o relacionamento deles não significava que ela se apressaria. E também havia a sua família. Como se ele conseguisse se imaginar voltando a viver em Easterly… Mesmo que a senhorita Aurora ficasse bem de saúde e que ele e Lizzie se acertassem, a ideia de coexistir com o pai bastava para ele contemplar a fronteira canadense com carinho. E nem isso seria longe o suficiente.

– Não sei se vou ficar de vez.

– Você sempre pode voltar. O meu sofá já está com saudades de você… e ninguém joga Texas Hold’em como você.

Os dois desligaram depois de se despedirem, e enquanto Lane mais uma vez largava o braço e deixava o aparelho cair, concentrou-se na antiga destilaria do lado oposto. O lugar fora usado por décadas na virada do século, e agora era visitado por dezenas de milhares de turistas que vinham conhecer o Antigo Silo durante todo o ano.

Por algum motivo, percebeu que nunca tivera um emprego. A extensão dos seus “empenhos profissionais” era evitar os paparazzi, o que era mais uma questão de sobrevivência do que algo relacionado a uma carreira. Graças ao seu fundo fiduciário, não sabia o que eram chefes ou colegas de cubículo chatos, nem trajetos ruins para o trabalho e de volta para casa. Não se preocupava em estar em algum lugar num determinado horário, ou em concluir relatórios, nem tinha dores de cabeça devido às tantas horas passadas diante da tela do computador.

Engraçado, nunca antes considerara o fato de ter tanto em comum com Chantal. A única diferença entre eles era que o dinheiro da família dela não bastava para sustentar o estilo de vida a que se acostumara, motivo pelo qual tivera que se casar com ele.

E lá estava Lizzie, trabalhando duro, pagando aquela fazenda. Conhecendo-a como a conhecia, ela já devia estar chegando ao seu objetivo.

O que o fazia respeitá-la ainda mais.

E também o fazia se questionar exatamente o que tinha para oferecer a uma mulher de substância. Dois anos atrás, estivera todo excitado e metido no drama familiar, ávido por ela fisicamente, e tão cativado por ela mentalmente que nunca olhara para si mesmo segundo o ponto de vista dela. Todo o seu dinheiro e a sua posição social só tinham valor para pessoas como Chantal. Lizzie queria mais, merecia mais.

Ela queria a realidade.

Talvez, no fim das contas, ele não estivesse tão acima daquela sua esposa.

Ex-esposa, corrigiu-se, enquanto continuava a beber.

 

CATORZE

– A que devo a honra?

O pai de Gin falava, e seu tom era de afirmação, não de pergunta, e sugeria que o fato de ela estar parada na porta do quarto dele era uma invasão.

Que pena, ela pensou com ironia.

– Quero saber que diabos aprontou com Richard Pford.

O pai não demonstrou nenhuma reação, parado diante da cômoda, prosseguindo com o ato de retirar as abotoaduras de ouro. O paletó do smoking preto tinha sido dobrado uma vez e estava ao pé de uma chaise longue, e os suspensórios preto e vermelho haviam sido retirados dos ombros e estavam pendurados na cintura como duas fitas.

– Pai – ela rugiu. – O que você fez?

Ele a deixou esperando até tirar a gravata borboleta, puxando-a do colarinho.

– Está na hora de você se assentar…

– Você dificilmente está em posição de defender o matrimônio.

– … e Richard é um marido perfeito.

– Não para mim.

– Isso ainda veremos. – Virou-se na direção dela, os olhos frios, o belo rosto impassível. – E não se engane, você se casará com ele.

– Como ousa! Não estamos na virada do século. As mulheres não são bens, podemos ter propriedades, as nossas próprias contas bancárias, podemos até votar! E, com certeza, podemos decidir se queremos ou não atravessar a nave de uma igreja… E eu não vou, de modo algum, sair com aquele homem, quanto menos me casar com ele! Ainda mais se isso beneficiar você de algum modo.

– Sim, você vai. – Por uma fração de segundo, o olhar dele se desviou para cima do ombro dela e ele meneou a cabeça como se estivesse dispensando alguém no corredor. – E fará isso o mais rápido possível.

Gin se virou, esperando ver alguém atrás de si na soleira da porta. Não havia ninguém ali.

Voltou a se concentrar nele.

– Você vai ter que apontar uma arma na minha cabeça.

– Não será preciso. Você fará isso por sua própria escolha.

– Não.

– Sim, você vai.

No silêncio que se seguiu, o coração dela deixou de bater algumas vezes. Durante toda a vida, aprendera a odiar e a temer o pai. E naquele silêncio tenso, de ar estagnado entre eles, ela se perguntou, e não pela primeira vez, do que ele seria verdadeiramente capaz.

– Você pode escolher brigar – disse ele com suavidade. – Ou pode ser eficaz em relação ao assunto. Você só vai acabar se ferindo se não fizer isso pela família. Agora, se me permite, vou me recolher…

– Você não pode me tratar dessa maneira. – Ela forçou um pouco a voz. – Não sou um executivo da empresa que você pode empregar e demitir. E não pode me dar ordens, não quando se trata de arruinar a minha vida.

– A sua vida já está arruinada. Você teve uma filha aos dezessete anos, aqui, nesta mesma casa, pelo amor de Deus, e deu seguimento a isso com o comportamento promíscuo tipicamente reservado para as strippers de Las Vegas. Quase não se formou na Sweet Briar por causa do affair com o professor de inglês, que era casado e, assim que voltou a morar aqui, deitou-se com o chofer. Você é a desgraça da família. E pior, tenho a distinta impressão de que parte da sua diversão nessas suas aventuras é a vergonha que provoca em sua mãe e em mim.

– Talvez se eu tivesse um bom exemplo masculino para admirar, eu não considerasse os homens tão universalmente desagradáveis.

– Antes você os considerasse mesmo desagradáveis. No entanto, esse parece não ser o seu problema. Por algum motivo, Richard não se intimidou com a sua reputação, um erro de julgamento que, por certo, ele vai acabar lamentando. Ainda bem que não é problema meu.

– Eu te odeio – ela sibilou.

– O mais triste, minha querida, é que lhe falta suficiente profundidade para tal nível de inimizade. Se fosse minimamente inteligente, perceberia que Richard Pford será capaz de mantê-la no estilo de vida que você necessita, tanto quanto precisa do ar para respirar, pelo resto dos seus dias. E você estará garantindo a continuação do sucesso e da saúde financeira da família que lhe deu essa bela ossatura e essa adorável coloração facial. Essa será, depois de tudo, a sua única contribuição ao nome “Bradford”.

Gin mal percebia que estava respirando superficialmente.

– Algum dia, você vai pagar pelos seus pecados.

– Está se tornando religiosa agora? Acredito que qualquer tipo de conversão para você será difícil, até por alguém como Jesus.

– Como pode ser tão odioso? Nunca conheci ninguém tão cruel quanto você…

– Só estou cuidando de você do único modo que sei. Estou lhe dando uma fortuna, um nome honrado, e você poderá levar Amelia com você, se desejar. Ou ela pode ficar aqui.

– Como se ela não passasse de uma maleta? – Balançou a cabeça. – Você é um depravado. Absolutamente depravado…

Ele avançou e a agarrou pelo braço, permitindo que alguma emoção escapasse por baixo da máscara aristocrática de autossegurança.

– Você não faz a mínima ideia do que é necessário para manter esta família. Nenhuma ideia. A sua tarefa diária mais complexa é priorizar o que fazer antes: unhas ou cabelos. Portanto, não ouse falar de depravação quando estou resolvendo o problema de todos os sanguessugas debaixo deste teto. Os termos favoráveis de Richard Pford continuarão a nos permitir isso. – Balançou a saia do vestido de gala dela. – E isso… – Apontou para o colar no seu pescoço. – E todas as outras coisas das quais você tira vantagem diariamente sem parar para ponderar, nem que seja por um instante, como chegaram até você e a que custo. Casar-se com aquele homem é a única coisa que já lhe pediram em troca pela sua boa estrela ao nascer e pela sua liberdade de cobiça. Você é uma Bradford dos pés à cabeça, capaz apenas de consumir, mas, às vezes, um pagamento deve ser feito. Portanto, sim – ele enfatizou –, posso lhe garantir que você será a deveras feliz e contente senhora Richard Pford. Você lhe dará filhos e será fiel a ele, ou, que Deus me ajude, eu a surrarei como a garotinha de cinco anos que você ainda é. Estamos entendidos? Ou quem sabe você vai preferir fazer um curso intensivo para tentar ser como as pessoas que lavam os seus carros, preparam a sua comida, limpam o seu quarto e passam as suas roupas? Talvez você goste de saber como é difícil trabalhar para se sustentar.

– Eu te desprezo – ela disse, trêmula dos pés à cabeça.

O pai também arfava, e tossiu no punho cerrado.

– Como se me importasse. Vá em frente, faça o seu escândalo, esperneie e grite, só provará o quanto estou certo. Se for uma mulher de fato, em vez de apenas uma criança mimada e malcriada, acordará pela manhã e cumprirá o seu dever pela primeira vez em sua vida.

– Eu seria capaz de te matar neste mesmo instante!

– Mas, para isso, você teria que carregar uma arma, não é? Não é algo que possa pedir a uma criada, desde que, claro, não queira ser descoberta.

– Não me subestime…

– Visto o baixo padrão que estabeleceu para si mesma, isso seria algo muito difícil de fazer.

Girando sobre os calcanhares, ela saiu do quarto aos tropeções, e correu pelo corredor até a sua suíte. Lançando-se pela porta, trancou-se e ofegou.

Ah, inferno, não, não, jurou. Você não vai fazer isso comigo.

Se ele achava que antes ela era um problema, ele que esperasse pelo que ela aprontaria em seguida.

Enquanto marchava do quarto para o banheiro, planos reviravam em sua cabeça, muitos dos quais envolviam crimes contra o pai. No fim, teve que tirar o vestido, e o deixou cair no chão, livrando-se da seda antes de continuar andando de um lado para o outro apenas de bustiê e saltos e aqueles diamantes que a vadia da esposa do irmão tentara pôr as mãos.

Fervendo, só conseguia pensar na primeira vez em que odiara o pai…

Tinha seis, talvez sete anos, quando aconteceu. Noite de Ano-Novo. Acordara por causa dos fogos, que explodiam ao longe sobre o centro da cidade. Assustada, fora à procura de Lane, aquele com quem sempre se sentia amparada… encontrando-o na sala de estar com Max.

Gin insistira em ficar com os irmãos e fazer o que quer que estivessem fazendo. Na época, era a história da sua vida, sempre correndo para acompanhá-los, conseguir alguma atenção, estar no radar de alguma pessoa. Os empregados da casa faziam o que os pais queriam e cuidavam dos irmãos. Ela era uma nota de rodapé, uma reflexão tardia, o tapete no qual tropeçavam a caminho da porta quando iam fazer algo melhor, mais interessante, mais importante.

Não quisera beber aquela coisa da garrafa. O cheiro do bourbon era ruim, e ela sabia que era proibido, mas se Max e Lane iam tomar um pouco, então ela também tomaria.

E assim foram apanhados.

Não uma vez, mas duas.

Assim que entrara na sala, Edward ordenara que ela voltasse para a cama, e ela saíra pelos fundos como ele lhe dissera. Depois de passar pelo corredor dos empregados, porém, ouvira vozes e tivera que se esconder nas sombras a fim de não ser flagrada… quando o pai saíra do escritório de Rosalinda Freeland.

Ele estava usando seu roupão, amarrando as duas pontas do cinto ao sair de lá, e seus olhos estavam arregalados, como se estivesse com raiva, mas não havia como ele ter ouvido suas vozes lá na sala de estar. O primeiro instinto de Gin fora o de correr para a frente da casa e alertar os irmãos. No entanto, o medo a detivera… E, em seguida, a senhora Freeland saíra também, agarrando o pai pelo braço.

Sua mente infantil se perguntara por que a blusa da moça do escritório estava desabotoada, e os cabelos, sempre bem penteados e presos, estavam meio desarrumados.

Os dois discutiram em tons sussurrados, dizendo coisas que ela não conseguiu entreouvir acima das batidas do seu coração. Em seguida, o pai saiu de lá e a senhora Freeland voltou para o escritório, fechando a porta.

Gin permanecera ali pelo que lhe pareceu um ano, temendo sair, caso a senhora Freeland voltasse. Só que ela também temia que o pai voltasse por aquele caminho e a encontrasse.

Ele não devia estar ali com aquela mulher.

Ele não ficaria feliz por ela tê-lo visto.

Descalça, apressou-se pelas escadas dos empregados, colando na parede de gesso conforme subia. Já no segundo andar, paralisou quando uma segunda rodada de fogos se iniciou e, assim que terminaram de explodir, ela se abrigou na porta aberta de um dos quartos de hóspedes, desejando ter algum lugar seguro para ir.

Voltar sozinha para o quarto parecia-lhe aterrorizante. E se, além disso, o pai estivesse procurando por ela?

Sentando-se encolhida, enfiou as pernas junto do corpo e abraçou os joelhos. O pai devia ter encontrado os irmãos. Não havia como o homem não os ter visto, se tivesse usado as escadas da frente.

E isso a assustava mais do que o barulho do lado de fora.

Momentos depois, Edward surgiu no alto da escadaria, com o pai logo atrás, pairando como um monstro. Por algum motivo, o andar do irmão estava trôpego e a pele do rosto estava pálida. O pai lhe pareceu tão inflexível e reprovador quanto um banco de igreja.

Onde estariam os outros dois?

Nada foi dito enquanto eles prosseguiam até a porta do quarto do pai. E quando chegaram ao destino, Edward ficou de lado e depois tropeçou para dentro do cômodo escuro assim que a porta lhe foi aberta.

– Sabe onde estão os cintos.

Foi tudo o que o pai disse.

Não, não, ela pensou. Aquilo não era justo, Edward não estava envolvido! Por que ele…

A porta se fechou num baque, e ela estremeceu ante o que estava para acontecer.

Como esperado, um estalido foi seguido por um grunhido.

De novo.

E mais uma vez.

Edward nunca chorava. Nunca praguejava.

Já ouvira aquilo vezes demais para saber disso.

Gin abaixou a cabeça sobre os braços finos e cerrou os olhos. Não sabia por que o pai odiava tanto Edward. O homem desgostava do resto deles, mas Edward o deixava furioso.

Edward nunca chorava.

Por isso, chorou por ele… E resolveu, dali por diante, que se o pai podia odiar Edward, dois poderiam jogar aquele jogo.

E ela escolheu o que segurava o cinto naquele minuto.

Odiaria o pai dali por diante.

Voltando a se concentrar, Gin descobriu-se sentada na cama, com os joelhos ao encontro do peito, os braços ao seu redor, como se estivesse, uma vez mais, sentada dentro daquele quarto de hóspedes com apenas a camisola para aquecê-la, e o que acontecia no quarto do pai a aterrorizava em seu íntimo.

Sim, fora assim que tudo começara para ela, e William Baldwine nunca lhe dera motivos para reconsiderar o seu ódio. Aquele acordo com Richard Pford era apenas mais um item numa longa lista.

Mas não era o pior.

Não, a pior coisa que o homem fizera foi algo que ela apenas suspeitava, algo que ninguém mencionara, quer sob o teto de Easterly, quer nos jornais.

Estava convencida de que o pai era o sequestrador de Edward.

O irmão ia com frequência à América do Sul, e assim como outros executivos de sua posição, sempre viajava acompanhado de seguranças contratados pela CBB. Com esse tipo de proteção, ninguém deveria ter sido capaz de se aproximar. No entanto, seu irmão fora levado… Não numa estrada, nem mesmo numa localização remota.

Mas da sua suíte no hotel.

Como foi que aquilo pôde acontecer?

A primeira coisa que ela pensou, quando lhe contaram, foi que ali havia dedo do seu pai.

Tinha provas? Não, não tinha. Mas passara a infância inteira vendo o homem observando Edward como se menosprezasse o ar que o garoto respirava. E mais tarde, quando Edward passara a trabalhar na empresa, teve a impressão de que o relacionamento daqueles dois esfriara ainda mais, visto que o Comitê dos Curadores passara a dar mais e mais responsabilidades a Edward.

Haveria um modo melhor de se livrar de um rival do que matá-lo no exterior? De uma maneira que faria William Baldwine parecer vítima por ser um pai “em luto”?

Deus, Edward quase fora enterrado lá. E quando finalmente regressara? Estava em péssimas condições. Nesse meio-tempo, o pai se colocara diante da mídia, dos curadores, da família, mas nunca, sequer uma vez, fora visitar o filho.

Vergonhoso. E na cabeça dela era uma confirmação de que William Baldwine tentara se livrar de uma ameaça corporativa que não podia demitir.

Não era de se admirar que ela não confiasse nos homens.

Não era de se admirar que nunca fosse se casar.

Quanto menos para fazer o pai feliz.

 

QUINZE

Quando chegou a Easterly na manhã seguinte, Lizzie precisou manobrar o Yaris duas vezes para conseguir estacioná-lo direito, o que revelava o quão lamentável era seu estado mental, considerando-se que o carro era do tamanho de uma bicicleta. Saindo dele, pegou desajeitada a bolsa e a deixou cair. E quando se abaixou para pegar o protetor solar no asfalto já quente, percebeu que tinha esquecido de trazer o almoço.

Fechou os olhos.

– Maldição…

– Tudo bem, menina?

Lizzie se endireitou e se virou na direção de Gary McAdams. O chefe da manutenção da propriedade vinha andando pelo gramado, o leve claudicar não o fazia diminuir o ritmo, com o rosto envelhecido pelo tempo crispado em sinal de preocupação, como se estivesse avaliando um trator com eixo solto.

Será que sua aparência estava tão ruim assim?, perguntou-se.

Pensando bem, não dormira praticamente nada.

– Ah, sim, estou bem. – Ela forçou um sorriso. – Ótima.

– Tem certeza disso?

Não.

– Sim. Como vai a sua equipe?

– Já terminaram de cortar a grama e de aparar as trepadeiras, e vou fazer com que limpem o terraço depois das dez. – Porque só então eles tinham permissão para fazer barulho perto da casa. – As tendas foram erguidas, a parte do buffet já está pronta com as grelhas no lugar, mas tem um probleminha.

Lizzie acomodou a bolsa no ombro e pensou que já estava pronta para lidar com qualquer problema que pudesse solucionar.

– O que foi?

– Aquele senhor Harris está querendo falar com você. Tem algo com as taças de champanhe.

– Com a disposição delas nas mesas? – Fechou a porta do carro. – Pensei que elas seriam distribuídas durante a festa.

– Não, só chegou metade do pedido. Ele acha que você mudou a quantidade.

– O q… Por que eu faria isso?

– Ele disse que você é a única pessoa com acesso ao pessoal do aluguel.

– Encomendei as tendas, só isso. É ele quem tem que cuidar da louça, dos talheres e dos copos… Desculpe, estou gritando? Sinto como se estivesse gritando.

Ele apoiou sua grande mão sobre o ombro dela.

– Não se preocupe com isso, menina. O senhor Harry também me deixa doido.

– É senhor Harris.

– Eu sei.

Ela teve que gargalhar.

– Vou lá falar com ele.

– Quando ficar cansada dele, eu tenho uma pá e um ancinho. E muita área verde livre lá na minha casa.

– Você é um cavalheiro.

– Nem perto disso. Me dá a sua bolsa, menina. Vou com você.

– Ela não pesa nada. Pode deixar comigo. – Começou a andar pelo caminho que levava até a ala dos empregados. – Além disso, posso precisar dela para bater na cabeça dele.

– Lembre-se do meu ancinho – ele disse.

– Sempre.

A cada passo sobre as pedras, seu peito se contraía, e a sensação de sufocamento piorava conforme a vastidão da mansão branca surgia ao longe.

Depois de passar a madrugada olhando para o teto, não chegou a conclusão nenhuma sobre ela e Lane. O que ela guardara para si? O som da voz dele no fim do telefonema. Lembrou-se daquele tom sexy que costumava significar que ele encontraria um modo de ficar sozinho com ela, despida, o mais rápido possível.

Pareceu-lhe uma traição total que seu corpo não fosse nada além de um simples “ah, sim, pode vir” – como se sua libido desejasse o retorno do seu mestre. Afinal, ela era muito mais do que apenas um ou dois orgasmos roubados com um homem que ela deveria estar manuseando com pinças de churrasco e um extintor de incêndio.

Loucura.

Quando, por fim, chegou à casa, passou pela entrada lateral do jardim e atravessou a porta dos fundos da cozinha só para se certificar de que tudo o que preparara para a festa ainda estava onde havia deixado na noite anterior.

O que era tolice. Como se um punhado de elfos tivesse entrado ali e bagunçado tudo à luz do luar.

Entrou pela porta de empregados e cruzou a imensa cozinha que, naquele momento, estaria limpa, fria e vazia, apenas à espera dos chefs que estavam escalados para trabalhar das oito às oito. Só que o cômodo não estava completamente deserto. A senhorita Aurora estava diante do fogão industrial, com uma panela de ferro cheia de bacon estalando à esquerda, uma segunda à direita tomada de ovos mexidos. Quatro pratos estavam dispostos na bancada de aço inoxidável da ilha principal, junto de tigelas com framboesas e mirtilos frescos, um açucareiro, um pote com creme de leite e café sobre uma bandeja, sem falar de uma seleção de pãezinhos doces caseiros.

– Senhorita Aurora?

A mulher olhou por sobre o ombro.

– Ah, aí está ela. Como está? Já comeu?

– Sim, senhora.

– Não o bastante. Você e Lane, magrinhos demais. – A cozinheira se voltou para os ovos e os virou com uma espátula vermelha. – Você deveria deixar que eu te alimentasse.

– Não quero causar problemas. – Houve um grunhido de desaprovação, e antes que a discussão de sempre começasse, Lizzie a interrompeu. – A senhora me parece bem.

– Eu disse praquele mordomo que não precisava de nenhuma ambulância.

– Pelo visto, a senhora tinha razão. – E Lane devia estar muito aliviado. – Viu o senhor Harris?

– No escritório dele. Quer que eu vá com você?

– Então ficou sabendo do “champanhegate”?

– Fui eu que mandei Gary te avisar. Eu sabia que ele ia te ver quando você chegasse. Não quis que você viesse pra cá sem ter sido avisada antes.

– Não mudei o pedido.

– Claro que não. – A senhorita Aurora levantou uma frigideira de uns sete quilos como se não pesasse mais que um prato de papel. Enquanto distribuía os ovos, balançava a cabeça. – Existe uma explicação perfeitamente boa.

– Qual?

– Não é da minha conta.

– Tuuudo bem. – Lizzie deu um tempo para que a cozinheira se explicasse, mas ela não o fez. – Bem, de toda forma, vou cuidar disso. Estou muito feliz que esteja bem e de pé, senhorita Aurora.

– Você é uma boa menina, Lizzie. Mas seria ainda melhor se me deixasse te oferecer o café da manhã.

– Talvez na próxima vida.

– Só se tem direito a uma. Depois, a gente vai pro céu.

– É o que o meu pai sempre me dizia.

– O meu também.

Andando sobre o piso de azulejos, Lizzie empurrou as portas duplas e seguiu pelo corredor dos empregados. O escritório do senhor Harris ficava bem diante do de Rosalinda, e ela bateu à porta do mordomo. E mais uma vez. Na terceira, achou que estava esfolando os nós dos dedos à toa.

Fungando no ar, fez uma careta e considerou que o corredor precisava ser arejado urgentemente. Mas, pensando bem, os Bradford se recusavam a instalar ar-condicionado ou aquecimento naquela parte da casa. Afinal, os empregados que se virassem.

Seguindo até a porta envernizada de Rosalinda, também bateu ali, mesmo que a organizadora da família fosse rígida em seu horário de trabalho das nove às cinco, com trinta minutos de almoço precisamente ao meio-dia e dois intervalos de quinze minutos às 10h30 e às 15 horas. A agenda controlada lhe parecera bizarra a princípio, mas, alguns anos mais tarde, já era somente mais uma das muitas regras e regulamentos de Easterly. E fazia sentido, uma mulher que não fazia nada além de pagar contas e somar e subtrair números provavelmente tinha uma régua de cálculo nas veias e sérios problemas de controle.

Daí, então, seu título.

Pousando as mãos nos quadris, Lizzie sabia que o mordomo muito provavelmente estaria servindo a família na sala de jantar íntima. Inclusive Lane.

Consultou as horas no relógio de pulso. Não ficaria esperando pelo senhor Harris e, de jeito nenhum teria aquele confronto diante dos outros. Além disso, ela tinha trabalho a fazer: não terminara os arranjos florais na noite anterior.

Seguindo para a estufa pelo caminho dos fundos, deixou de lado sua confusão mental e se concentrou no que tinha para fazer. Depois que terminasse os arranjos, disporia as toalhas de mesa, já que não havia probabilidade de chuva e de vento forte antes do Brunch da manhã seguinte. E estava encarregada de colocar todos os pratos e copos onde precisavam ficar: junto aos bares e estações de serviço espalhados pelos jardins. Greta deveria chegar em…

– Bom dia.

Lizzie parou com a mão na maçaneta da estufa.

Relanceando por cima do ombro, deparou-se com os olhos de Lane. Ele estava sentado numa espreguiçadeira lateral, com as pernas dobradas na altura dos joelhos, os cotovelos nos apoios de braço, os dedos longos cruzados diante do peito. Usava as mesmas roupas da noite anterior e o cabelo estava uma bagunça completa, como se ele não tivesse dormido em sua cama.

– Esperando por mim? – ouviu-se dizer enquanto seu coração batia forte.

Em seu quarto, Gin amarrotava uma blusa Prada e a enfiava num dos cantos da sua mala Louis Vuitton de rodinha.

– Lenço de papel… era para você colocar lenço de papel aí. Onde ele está…

Começando a procurar, encontrou as folhas cor-de-rosa clarinhas com suas iniciais estampadas numa gaveta ampla dentro de seu guarda-roupa. De volta para onde estava arrumando a mala, lambeu o dedo e tirou uma das folhas, sendo atingida pela fragrância suave de Coco, porque a empregada borrifava cada um dos lenços individualmente assim que eram entregues na casa. Colocando o papel delicado ao redor do bolinho de seda, cobriu tudo com uma saia McQueen.

Repetindo o processo até ter quatro conjuntos completos ali, inclinou-se para trás para dar uma olhada no trabalho. Horrível. Nada parecido com o que Blanche fazia para ela, mas não pretendia esperar até que a mulher chegasse para o seu turno ao meio-dia.

Gin estava fechando a mala quando percebeu que não tinha separado roupas íntimas, sapatos e tampouco os artigos de higiene.

Pegou outra mala LV e dispensou o lenço de papel.

De toda forma, o que importava? Acabaria simplesmente comprando tudo que precisasse.

Quando terminou, levantou o telefone ao lado da cama e ligou para o escritório de Rosalinda, sem acreditar quando a secretária eletrônica pediu que deixasse um recado.

– Onde diabos essa mulher foi…

Uma olhada rápida para o relógio Cartier sobre a mesa e ela descobriu que ainda eram 8h30. Deus, há quanto tempo não se levantava cedo assim?

Arranjos para o uso dos jatinhos também podiam ser feitos por meio da assistente executiva do pai, e aquele robô estava sempre junto à sua escrivaninha. Mas Gin só queria que ele soubesse que ela estava partindo quando estivesse na metade do caminho até a Califórnia e, sem dúvida, seu buldogue de saia atacaria o telefone para avisá-lo assim que ela a acionasse.

Deus, aquela expressão no rosto dele na noite anterior fez seu sangue gelar. Nunca o vira tão furioso.

Mas, em retrospecto, ela era mesmo filha do seu pai: assim como no jogo do ódio, dois podiam jogar aquele novo jogo.

Dez minutos mais tarde, Gin puxou as alças da bagagem e as rolou até o corredor, tropeçando sobre as malditas malas. Com a bolsa de monograma combinando com a bagagem batendo na lateral do corpo, empinou um dos saltos Louboutin para fechar a porta, e praguejou contra a falta de um carregador.

Mas também não confiava no mordomo.

A bem da verdade, não confiava em ninguém naquela casa.

Antes de tomar o elevador até o porão, foi até o quarto de Amelia e abriu a porta.

Pela primeira vez, percebeu a decoração.

A cama de dossel branca e rosa era queen size, apesar de a filha pesar pouco mais que um travesseiro, e não havia nenhum pôster da Taylor Swift ou do One Direction nas paredes. A penteadeira era francesa e antiga, o banheiro acoplado era de mármore e latão, e tinha mais de sessenta anos, e o candelabro Baccarat no meio do quarto era suspenso por uma corrente coberta por seda, e debaixo dele havia um medalhão de ouro feito à mão.

Parecia mais o quarto de uma senhora de cinquenta anos do que de alguém de quinze.

Dezesseis, a partir da noite anterior, Gin se lembrou.

Andando na ponta dos pés sobre o tapete bordado à mão, ela apanhou seu retrato predileto da menininha de cabelos negros, que agora já não eram mais tão escuros já que ela estava fazendo luzes a cada seis semanas, e tampouco era tão pequenina, pois já estava no segundo ano em Hotchkiss.

Só de pensar na filha, a ideia de sair de Easterly lhe parecia cada vez mais acertada. Ela tinha duas amigas esperando por ela em Montecito, e ficaria lá até que o pai entendesse que podia muito bem administrar uma empresa bilionária, mas que não mandava nela. E depois disso? Voltaria para lá com certa regularidade, só para ele ver que cometera um erro.

De novo no corredor, refreou os xingamentos ao se arrastar até o elevador e entrar. Quebrou uma unha ao apertar repetidamente o botão para fechar a porta, e quase quebrou um dos saltos quando pisou no chão da adega, puxando as malas para fora.

Não fazia a mínima ideia de onde ir. Onde ficava a garagem. Como se orientar no andar subterrâneo.

Levou quase vinte minutos para encontrar o túnel que levava até a frota da família, e quando emergiu na garagem para dez carros, sentia-se como se tivesse não só acabado de correr uma maratona, mas vencido.

Só que estava sem as chaves dos carros. Nada no Bentley. Nem do Drophead. E não pegaria nem o Porsche GTS, nem a Ferrari, tampouco o Jaguar antigo que se parecia com o de Samuel T., porque todos eles tinham câmbio manual e ela não sabia dirigir modelos assim. O mesmo acontecia com os 911 e o Spyker.

E os sedãs Mercedes não eram bons o bastante para ela.

– Maldição! – Quando bateu o pé no chão, uma das malas de rodinha caiu como se tivesse desmaiado. – Onde estão as chaves?

Abandonando a bagagem, marchou até o escritório. Trancado. Assim como as portas da garagem.

Aquilo era totalmente inaceitável.

Pegou o celular, estava prestes a telefonar – bem, não sabia exatamente para quem, mas para alguém –, quando um armarinho pendurado na parede chamou sua atenção. Indo na direção da portinha de metal de 0,3 por 0,9 metros, deu um puxão na alça, e não se surpreendeu quando a porta não cedeu.

A boa notícia? Ela estava com muita vontade de bater em alguma coisa.

Olhando ao redor, não viu nada fora do lugar. Desde lonas para cobrir os carros, até pneus sobressalentes e material de limpeza, tudo estava organizado numa parede com precisão militar em prateleiras, ganchos, e caixas tampadas.

Exceto pelo pé de cabra, que encontrou encostado numa pilha de panos limpos com o brasão da família bordado.

Gin sorriu ao caminhar do alto dos seus saltos, erguendo a peça de metal. De volta ao armário, arqueou o objeto acima da cabeça e bateu na caixa onde estavam as chaves como se aquilo fosse a cabeça do pai. Bateu, bateu, bateu e bateu, o som metálico agudo ecoando em seus ouvidos.

Apesar de já estar quase sem unhas quando concluiu a tarefa, a porta estava pendurada no que restava das suas dobradiças.

O Bentley, decidiu.

Não, o Rolls. Custava mais caro.

Levando a bagagem até o Phantom Drophead, abriu a porta que se abria ao contrário, enfiou as malas no banco de trás e se pôs atrás do volante. Afundou o sapato de salto no freio, apertou o botão da ignição e o motor rugiu a vida com um rosnado latente.

Esticando a mão na direção do espelho retrovisor, apertou todos os botões até a porta da frente se erguer.

E partiu.

A raiva dentro dela fez com que quisesse passar pelo caminho frontal só para desfilar diante dos cômodos particulares da família; mas era mais importante sair da propriedade sem que ninguém soubesse, por isso contentou-se em levantar o dedo médio para Easterly pelo espelho retrovisor enquanto usava o caminho dos empregados.

Quando chegou à estrada River, virou à esquerda, verificou as horas e pegou o telefone. Rosalinda já deveria ter chegado àquela altura, e ela poderia finalmente cuidar dos arranjos para o jatinho, o que não deveria ser um problema. Gin pedia o avião pelo menos uma vez por semana.

Caixa postal. De novo.

O maldito Brunch. Esquecera-se dele. Todos os funcionários estavam distraídos.

Mas ela tinha necessidades.

Gin ligou para outro número, um que tinha apenas um dígito diferente do de Rosalinda. Ao terceiro toque, ela estava quase desistindo quando ouviu o inconfundível sotaque britânico daquele mordomo.

– Senhor Harris falando, como posso ajudar?

– Preciso de um avião e não consigo falar com a Rosalinda. Você vai ter que providenciá-lo para mim. Decolando neste instante para o aeroporto de Los Angeles.

O mordomo limpou a garganta.

– Senhorita Baldwine, perdoe-me…

– Não venha me dizer que está ocupado demais. Você pode ligar diretamente para o piloto, já fez isso antes, e depois pode voltar para qualquer uma das suas incumbências idiotas do Brunch…

– Lamento, senhorita Baldwine, mas não haverá um avião disponível para a senhorita.

– Você só pode estar brincando. – Sem dúvida era por causa daqueles convidados corporativos que estavam chegando para o Derby. Mas ela era da família, pelo amor de Deus. – Tudo bem, apenas atrase alguém e eu…

– Não será possível.

– Eu sou prioridade! – O Phantom ganhou velocidade quando ela apertou o acelerador, pelo menos até quase acertar o carro na frente dela. – Isso é inaceitável. Ligue para aquela torre de controle, ou para aquela lista de pilotos ou… para quem quer que me coloque num maldito avião para a costa oeste!

Houve uma longa pausa.

– Sinto muito, senhorita Baldwine, mas não poderei mais fazer esse tipo de serviço para a senhorita.

Um alerta gélido apertou a sua nuca.

– Que tal mais tarde, ainda esta manhã?

– Não será possível.

– À tarde.

– Lamento, senhorita Baldwine.

– O que o meu pai lhe disse?

– Não cabe a mim comentar o que…

– Que porra que ele te disse? – ela berrou ao telefone.

A respiração que o homem soltou era o mais próximo que ele chegaria a uma imprecação em voz alta.

– Esta manhã, recebi um memorando dirigido à organizadora e a mim, indicando que os recursos da família não estariam mais disponíveis para a senhorita.

– Recursos…?

– O que inclui dinheiro vivo, contas bancárias, viagens e acomodações em hotéis, e acesso às demais propriedades dos Bradford ao redor do mundo.

Nessa hora o pé dela escorregou do acelerador, e quando o carro atrás dela buzinou, ela foi para o acostamento.

– Gostaria de poder fazer algo – ele disse num tom neutro que indicava que isso não era verdade. – Mas, como já disse, estou impossibilitado de ajudá-la.

– O que devo fazer?

– Talvez voltar para casa seja o melhor. Acabei de vê-la saindo no Rolls-Royce.

– Não vou me casar com Richard Pford – ela disse e depois encerrou a ligação.

Quando olhou pelo retrovisor, os arranha-céus denteados do centro da cidade pareceram assustadores pela primeira vez em sua vida. Nunca antes se impressionara com a cidade de Charlemont, tendo dado a volta ao mundo diversas vezes. Mas todas essas viagens aconteceram enquanto ela tinha recursos ilimitados ao seu dispor.

Com a mão trêmula, pegou a carteira e levantou o fecho. Ela tinha cinco notas de cem dólares e algumas de vinte… e sete cartões de crédito, inclusive um Amex Centurion. Estava sem a habilitação porque sempre andava com motorista particular. Também não tinha o cartão do seguro de saúde porque fazia uso dos serviços dos médicos afiliados à Cia. Bourbon Bradford. Não estava nem com o passaporte, apesar de não ter planejado sair do país.

Duzentos metros mais adiante, havia um posto de gasolina, e ela voltou a acionar o Phantom, seguindo o fluxo do trânsito. Quando chegou ao símbolo da Shell, cortou caminho diante de um caminhão que vinha na direção oposta e parou junto a algumas bombas de abastecimento.

Quando saiu, não foi para abastecer o carro. O tanque estava cheio.

Sacou um cartão Visa qualquer e colocou-o no leitor. Em seguida, apertou as teclas que compunham a sua senha. Esperou para ver se a transação hipotética seria aceita.

Não aprovado.

Tentou o Amex e recebeu a mesma resposta da máquina. Quando outros dois Visas não funcionaram, ela desistiu.

Ele bloqueara os seus cartões.

De volta ao volante, tudo ficou embaçado. Tinha investimentos por toda parte, dinheiro que lhe pertencia… mas só dali a dois anos, quando completasse trinta e cinco, e nenhum dia antes disso – algo que descobrira quando num impulso tentara comprar uma casa em Londres no ano passado e tivera esse desejo negado pelo pai. Pouco importou o quanto tivesse gritado com a empresa do seu fundo, eles se recusaram a lhe entregar o dinheiro, declarando que ela não tinha permissão para acessá-lo até que atingisse a idade estipulada.

Só havia um lugar para onde poderia ir.

Odiava implorar, mas isso era muito melhor que se casar, ou admitir uma derrota ao pai.

Colocando o câmbio mais uma vez no drive, enfiou-se no trânsito e tomou a direção da qual viera. No entanto, não retornaria a Easterly. Iria para…

De repente, o carro morreu. Tudo parou: o motor, o ar-condicionado, as luzes do painel. As únicas coisas que funcionavam eram o volante e o freio.

Enquanto pressionava o botão da ignição, viu suas ações frenéticas e impotentes de longe, notando, sem dar muita atenção, como suas unhas estavam arruinadas, as pontas cortadas, o esmalte vermelho-cereja lascado. Tendo que admitir que o motor não voltaria a funcionar, foi para o acostamento da estrada para não acabar numa colisão e…

Sirenes soaram ao longe e ela olhou pelo espelho retrovisor.

Uma viatura da Polícia Metropolitana de Charlemont encostou atrás dela com as luzes acionadas. E depois uma segunda unidade se pôs à frente até que o Phantom ficasse bloqueado.

Os dois policiais se aproximaram dela com as mãos sobre as pistolas presas ao coldre, como se não tivessem certeza se precisariam das armas.

– Saia do veículo, senhora – o mais alto deles disse com voz autoritária.

– Este carro é meu! – ela exclamou ao abaixar o vidro. – Vocês não têm o direito de…

– Esse veículo pertence a William Baldwine, e a senhora não tem autorização para usá-lo.

– Ah, meu Deus… – ela sussurrou.

– Saia do carro, senhora…

Merda, estava sem a habilitação.

– Sou filha dele!

– Senhora, estou ordenando que destrave as portas e saia do veículo. Se não fizer isso, vou autuá-la por resistir à prisão. Além de dirigir um veículo roubado.

 

DEZESSEIS

– Claro que eu estava à sua espera. – Assim que Lane falou, levantou as mãos, num gesto de quem pedia para aguardar. – Mas apenas como amigo. Queria me certificar de que chegou bem ao trabalho.

Maldição, ela estava linda. Mais uma vez, com a camisa polo preta do uniforme de Easterly e shorts cáqui, o cabelo puxado para trás, preso num rabo de cavalo… De alguma forma, parecia exoticamente bela.

Pensando bem, já fazia mais de doze horas que não a via.

Uma vida inteira, de fato.

Enquanto ela revirava os olhos, ele a flagrou tentando esconder um sorriso.

– Já fiz esse trajeto algumas vezes, sabe – ela disse.

– E como foi esta manhã?

Houve uma pausa, e então algo mágico aconteceu. Lizzie explodiu numa gargalhada.

Cobrindo a boca, ela meneou a cabeça.

– Desculpe, mas você está horrível. O seu cabelo está todo… – ela mexeu a mão ao redor da cabeça dele – … está uma bagunça, seus olhos mal conseguem ficar abertos. Sabia que está balançando para a frente e para trás apesar de estar sentado?

Ele deu um sorriso largo.

– Você precisava ver o outro cara.

– Ele era durão?

– Agora, em vez de usar capuz ele usa brinco. – Lane levantou um braço e flexionou o bíceps. – Homem pra valer este aqui…

Ouviram um par de passadas vindo na direção deles, então Lane espiou por cima do ombro dela e murmurou alguma coisa bem baixinho.

Era o mordomo inglês seguindo direto para ela, só que parou quando viu Lane.

– Com licença, Lane – Lizzie disse baixinho. – Tenho um assunto de trabalho para resolver agora.

– O que foi? – ele perguntou ao mordomo.

O inglês sorriu, parecendo um manequim de loja.

– Nada com que tenha que se preocupar, senhor Baldwine. Senhorita King, poderia fazer a gentileza de vir até o meu escritório quando tiver terminado de…

– O que houve? – Lane exigiu saber.

– Apenas um mal-entendido – Lizzie murmurou.

– Sobre o quê?!

Lizzie se concentrou no senhor Mais Sagrado Que o Senhor.

– O pedido das taças de champanhe alugadas foi reduzido, e ele acha que eu telefonei para Mackenzie para mudar a quantidade, mas não fiz isso. Ficarei feliz em poder organizar tudo quando os copos e os pratos chegarem, mas não sou responsável por coordenar nada que se refira aos pedidos. As tendas e as mesas são de minha responsabilidade, e elas estão exatamente onde deveriam estar.

Os olhos do senhor Harris se estreitaram.

– Esta conversa deve ser conduzida em meu…

– Então, não tem nada a ver com ela. – Lane sorriu para o mordomo com frieza. – E seu assunto aqui terminou.

Lizzie pôs uma mão no braço dele, e o contato foi uma surpresa tamanha, que de fato o calou.

– Está tudo bem. Repito, ficarei feliz em fazer o que puder para ajudar. Senhor Harris, quer que eu fale com Mackenzie e tente encontrar um modo de solucionar o caso?

O mordomo olhou de um a outro.

– Sei o que encomendei. O que não sei explicar é como apenas metade disso foi entregue.

– Veja bem, não quero lhe ensinar o seu trabalho – Lizzie disse. – Mas erros da parte deles já aconteceram antes. O que precisamos fazer é descobrir o que mais está faltando e ligar para eles para alertá-los. Isso não deve ser um problema. O senhor fez o pedido pessoalmente ou foi por intermédio de Rosalinda?

– Usei os serviços da senhora Freeland, e lhe entreguei os números corretos.

Lizzie franziu o cenho.

– Ela sabe o quanto pedir. Fez isso por anos a fio.

– Ela me garantiu que tomaria conta da questão. Deduzi que outra pessoa com acesso à conta tivesse reduzido a quantidade.

– Vá procurá-la, e eu encontrarei Greta para contar tudo o que foi entregue. Vamos resolver. Pelo menos, descobrimos hoje e não amanhã de manhã.

Houve um instante de constrangimento no qual o mordomo nada disse, e Lane se perguntou o quanto daquele plano sensato ele teria que enfiar goela abaixo do ditadorzinho.

– Muito bem – disse o mordomo. – A sua assistência será muito bem-vinda.

Enquanto o senhor Harris se afastava, Lizzie inspirou fundo.

– E assim entramos na contagem regressiva das vinte e quatro horas.

– Ninguém da equipe pode fazer essa contagem? Esse problema não é seu.

– Está tudo bem. Pelo menos se Greta e eu fizermos isso, saberei que está tudo certo. Além disso, todos em Easterly estão com trabalho até as orelhas, e os chefs auxiliares não poderão dispensar…

O telefone de Lane começou a tocar, e ele o tirou do bolso para silenciar o barulho.

– Quem diabos pode ser? – perguntou, quando viu o código de área local.

Ela riu de novo.

– Você pode descobrir se… prepare-se… atender!

– Está pegando no meu pé?

– Alguém tem que fazer isso.

Lane sorriu tão amplamente que suas bochechas começaram a doer.

– Ok, vamos lançar os dados e ver quem é. – Apertou o botão verde e disse em sua voz mais arrastada: – Vocccccêêêê ligoooouu paaaara…

– Lane! Ah, meu Deus, Lane, preciso da sua ajuda.

– Gin? – Ele se endireitou na espreguiçadeira. – Gin, você está bem?

– Estou no centro da cidade, na cadeia de Washington County. Você tem que vir aqui pagar a minha fiança…

– Que diabos? O que você…

– Preciso de um advogado…

– Ok, ok, ok, devagar. – Ele se pôs de pé. – Você está falando rápido demais e não estou entendendo.

Sua irmã fez uma pausa e depois disse quatro frases completas que o deixaram sem chão.

– Está bem – disse ele com seriedade. – Estou indo para aí agora mesmo. Sim. Certo. Ok. Fique aí.

Quando desligou, só o que ele conseguiu fazer foi procurar o rosto de Lizzie.

– O que foi? – ela perguntou.

– O meu pai mandou prenderem Gin. Tenho que, literalmente, ir até a cadeia e pagar a fiança dela.

Lizzie cobriu a boca com a mão num sinal de choque.

– Posso fazer alguma coisa?

– Não. Vou lá cuidar dela. Mas obrigado.

Ele precisou de todo o seu autocontrole para não se inclinar e beijá-la como costumava fazer. Em vez disso, contentou-se em esticar a mão e afagá-la no rosto, saindo antes que ela pudesse dizer que “amigos não fazem isso”.

Inferno, o que o seu pai estaria aprontando agora?

Na época em que fora fumante, Edward frequentemente acordava de manhã já esticando o braço para pegar o maço de Dunhill Reds antes de estar plenamente consciente de sequer ter rolado de lado.

Hoje em dia ele fazia o mesmo, só que para pegar o frasco de Advil.

Colocando quatro cápsulas de gel na palma trêmula, levou-as à boca e as engoliu com o que restava da vodca que levara para a cama. Fazendo uma careta enquanto essa sua versão de desjejum descia até o estômago, deitou-se de novo sobre o travesseiro.

Tinha parado de fumar durante a recuperação. Na verdade, o sequestro fora o primeiro passo para que abandonasse o vício.

Ironicamente, o fato de quase ter morrido foi o responsável por ajudá-lo a ter uma vida mais longa.

Saudou com a garrafa no ar.

– Gracias, muchachos.18

Antes que seu cérebro entrasse no looping infindável da sequência horrenda do Dia Em Que Tudo Aconteceu, virou as pernas para o chão e se sentou. Não olhou para a coxa e para a panturrilha direitas. Primeiro porque as cicatrizes tortas da sua pele à la Frankenstein estavam gravadas em sua mente. Segundo porque ele já não dormia mais nu, por isso elas não estavam aparecendo.

A bengala era necessária para que ele se levantasse, e seu equilíbrio não estava muito bom não só por causa dos ferimentos, mas pela falta de sono e pelo fato de ainda estar meio embriagado. Mancando até o banheiro, deixou as luzes apagadas, de modo que o espelho não foi um problema, e usou o vaso, lavou as mãos, o rosto e escovou os dentes.

A confirmação de que Deus ainda o odiava veio quando ele saiu do chalé uns dez minutos depois e foi ofuscado pela luz brilhante do sol e pela dor de cabeça causada pela ressaca.

Que horas são?, perguntou-se.

Já estava na metade do caminho até o Estábulo B quando percebeu que levara a garrafa junto. Como se fosse o seu brinquedinho predileto.

Revirando os olhos, seguiu em frente. A senhorita Nada de Praguejar Perto de Mim poderia muito bem se acostumar com ele e sua bebida; não havia motivos para apresentar-lhe uma ilusão diurna de abstinência que só a perturbaria no futuro. Se ela não conseguisse lidar com esse seu hábito, ela podia muito bem ir embora no primeiro dia.

O som de pneus cantando fez sua cabeça girar para a direita, e na fração de segundo seguinte, Shelby apareceu na ponta oposta do estábulo, o corpo encurvado na cintura ao empurrar uma tremenda carga de esterco de cavalo dentro de uma velha carreta enferrujada.

Pelo visto, Moe já a colocara para trabalhar.

– Ei – ele a chamou.

Sem diminuir o passo, ela acenou por sobre o ombro e seguiu em frente com o esterco para trás da construção mais próxima.

Enquanto a observava, invejou o corpo forte dela, talvez notando, sem nem se dar conta, que o sol fazia com que as mechas loiras dela parecessem quase brancas. Ela estava usando uma camiseta azul-marinho, um par de jeans escuros e as mesmas botas resistentes da noite anterior. Depois de desaparecer atrás da curva do prédio, reapareceu duas vezes mais rápido do que deveria, considerando a quantidade de esterco que teve que descarregar.

Portanto, ela também era eficiente.

Ao se aproximar, seus olhos estavam claros e alertas, o rosto corado pelo esforço.

– Quase terminando. Depois vou pro C.

– Jesus, Moe fez com que você… desculpe – disse antes que ela o corrigisse. – Maldição, Moe já te colocou pra trabalhar? E não venha me dizer que não posso usar “maldição”. Deixo de mencionar Deus e Jesus Cristo, mas só vou até aí.

Ela deixou os pés do carrinho encostarem na grama aparada.

– Suco de laranja.

– O que disse?

A filha de Jeb Landis acenou para a garrafa.

– Pode ficar com “maldição”, mas eu gostaria de ver você com outra coisa que…

– Você sempre julgou tanto assim?

– … não fosse vodca tão cedo assim. E não estou te julgando.

– Então por que quer mudar os hábitos de um desconhecido?

– Você não é um desconhecido. – Enxugou a testa com o antebraço. – Não são nem nove da manhã. Fico me perguntando por que você precisa beber tão cedo assim.

– Eu estava meio desidratado.

– Não tem água encanada na sua casa? Ontem tinha.

Ele balançou a garrafa.

– Isto aqui está servindo bastante bem. Pense que é a minha versão da vitamina C.

Ela resmungou alguma coisa ao se abaixar para pegar as alças.

– O que disse? – ele exigiu saber.

– Você me ouviu.

– Não, não ouvi, não. – O que não era exatamente a verdade.

Shelby só deu de ombros e seguiu em frente, aquele seu corpo se movendo debaixo das roupas, executando a tarefa sem nenhum esforço aparente.

E foi nessa hora que algo lhe ocorreu.

– Shelby?

Ela parou e olhou por cima do ombro.

– Pois não?

– Você disse que cuidou de todos os cavalos.

– Cuidei.

– Nos Estábulos A e B.

– Isso mesmo.

Ele se apressou e a agarrou pelo braço.

– Eu te disse. Uma regra. Não chegue perto daquele garanhão.

– A baia não ia se limpar sozinha…

A mão dele se apertou por vontade própria.

– Ele matou um ajudante de estábulo no ano passado. Foi pisoteado até morrer ali. Nunca mais faça isso.

Aqueles olhos azuis dela ficaram arregalados.

– Ele se portou bem comigo.

– Só eu chego perto dele. Estamos entendidos? Faça isso mais uma vez e eu faço as suas malas – ele disse firmemente – e te mando de volta para o lugar de onde veio.

– Sim, senhor.

Ele se afastou e tentou não cambalear.

– Muito bem, então.

– Está certo.

Ela soprou o cabelo para longe do rosto e voltou a andar, com os ombros tensos.

Tirando a tampa da vodca, Edward deu um trago longo e, provavelmente, deveria ter parado quando percebeu que a bebida já não ardia mais.

Mas essa era outra coisa sobre a qual não queria pensar.

Assim como não queria pensar no que poderia acontecer com a filha de Jeb Landis enquanto ela estivesse sob a sua proteção.

Maldição.


“Obrigado, meninos.”

 

DEZESSETE

A cadeia e o Tribunal do Condado de Washington formavam um complexo de edifícios modernos que ocupava dois quarteirões inteiros no centro da cidade, cujas instalações se comunicavam por meio de passarelas que se estendiam acima do trânsito da rua logo abaixo. Havia certa quantidade de entradas e, enquanto Lane encostava o Porsche, inúmeras pessoas entravam e saíam; eram homens e mulheres em ternos subindo e descendo os degraus de mármore, policiais dentro de suas viaturas, delegados estacionando suas SUVS e saindo de vagas reservadas, pessoas em roupas desgastadas fumando pelos cantos.

O seu 911 Turbo emitiu uma tossida baixa quando ele desacelerou e se dirigiu para os prédios imponentes. Não havia nenhum layout lógico que ele conseguisse distinguir. Tampouco um endereço.

Como se, caso tivesse que perguntar para onde deveria ir, ficaria com a sensação de que aquele não era o seu lugar…

Até que, de repente, um afro-americano uniformizado surgiu bem diante do seu carro.

– Droga! – Lane afundou o pé no freio. – Mas que diabos! Mitch?

O delegado Mitchel Ramsay não respondeu. Apenas indicou uma vaga livre bem atrás dele.

Lane estacionou com uma baliza perfeita, ciente de que o delegado estava bem ao lado do seu para-choque, os braços grossos como uma corda náutica cruzados sobre seu peito de jogador de futebol americano. Seus olhos negros estavam escondidos atrás de óculos Ray Ban, e a cabeça raspada fazia com que seu pescoço e seus ombros parecessem ainda maiores do que eram de fato.

Lane saiu do carro esportivo.

– Ei, sabe onde a minha irmã…

– Pode deixar.

Os dois bateram palmas e deram um abraço forte. Enquanto permaneciam peito contra peito, Lane foi transportado para quase dois anos atrás, para a pista de pouso particular a oeste da cidade. Para a noite em que Edward finalmente retornava do cativeiro.

Mitch o trouxera de volta aos Estados Unidos. De volta para a família.

Só Deus sabia como. Ninguém perguntara os detalhes, e Lane sempre ficou com a impressão de que o antigo soldado do Exército não teria partilhado os “como” e os “quem”, de todo modo.

– Ela não está muito bem – comentou Mitch.

– Não me surpreende.

Lane seguiu o delegado, subindo os cinquenta degraus até uma das portas giratórias. Quando terminaram de subir, Mitch desviou para uma porta demarcada com SOMENTE POLICIAIS e depois os fez passar pela segurança, de onde outros policiais acenaram em sinal de respeito.

– Agi o mais rápido que pude assim que vi o nome – disse Mitch enquanto suas passadas se uniam a todas as outras, ecoando no vestíbulo principal, com pé direito alto. – Ela foi presa por furto de veículo, por dirigir sem habilitação, por não apresentar o seguro…

– Como diabos isso foi acontecer?

– … e por resistir à prisão. Já isolei o incidente, mas não vou conseguir mantê-lo fora dos registros policiais indefinidamente.

– Espere. – Lane fez o homem parar. – Minha irmã roubou um carro?

– Um Rolls-Royce. Registrado no nome da Cia. Bourbon Bradford.

– Está se referindo… ao nosso Rolls. O Phantom Drophead?

– O seu pai telefonou pessoalmente para a Polícia Metropolitana e pediu que fossem atrás dela, alegando que ela não tinha permissão para dirigir o veículo.

– Você não pode estar falando sério. – Lane enfiou a mão nos cabelos. – Quero dizer, é claro que ele pode fazer isso. Já fez coisa pior.

– Você chamou um advogado?

– Samuel T. deve chegar aqui em…

– Lane!

Samuel T. avançou em meio a um grupo de pessoas, destacando-se por inúmeros motivos. Primeiro, seu terno de risca de giz azul e branco fazia com que ele parecesse pertencer a uma varanda da casa grande de uma fazenda, sorvendo um julepo de menta com um par de cães de caça aos seus pés. Segundo, ele era belo demais para estar entre os mortais.

– Obrigado por vir tão rápido – Lane disse ao apertarem as mãos. – Você conhece Mitch.

– Certamente. Delegado.

– Senhor Lodge.

Encerrando os cumprimentos, os três seguiram para as escadas rolantes que levavam ao segundo andar.

– Ela está numa cela. – Mitch os conduziu por uma das passarelas. – Mas removi qualquer tipo de retardo para a audiência da fiança. Assim que estiver pronto, senhor Lodge…

– Pode me chamar de Samuel ou de Sam.

– Samuel. – Mitch assentiu. – Assim que estiver pronto. Farei com que ela se apresente diante do juiz McQuaid. Já conversei com o promotor público. As mãos dele estão atadas, visto que o senhor Baldwine está pressionando. A única coisa que posso fazer é apressar, apressar, apressar.

Lane cerrou os molares. Gin dava trabalho e, evidentemente, o pai já estava farto disso, mas aquilo tudo era exposição demais.

– Vou ficar te devendo essa, Mitch.

– Não se preocupe.

O delegado os fez passar por vários pontos de controle de segurança, até adentrarem o complexo. Embora Lane tivesse aprontado sua porção de infrações quando era mais jovem, todas as suas transgressões foram discretamente “resolvidas”. Portanto, aquela era a primeira vez que ia para a cadeia, e não poderia dizer que estava com pressa para voltar lá algum dia.

A sala de espera tinha paredes creme. Piso creme. Cadeira plástica laranja, amarela e vermelha. O cheiro no ar era de suor e de roupas sujas, e de desinfetante em spray.

Graças a Mitch, passaram ao largo do balcão de registros com as divisórias de vidro à prova de balas e da fila de policiais com a pescaria do dia. Isso sim era um chamado para a realidade da outra parte da população. Homens sujos e rapazes estranhos… moças quase despidas… mulheres mais velhas com aspecto cansado… Todos eles de pé ou cambaleando, acompanhados dos policiais que os prenderam, seus rostos revelando as marcas da vida dura que levavam.

– Por aqui, delegado Ramsey – alguém o chamou ao lado de uma porta reforçada.

Depois de passar por mais um ponto de segurança, cruzaram com diversas salas de reunião com luzes vermelhas acesas sobre as portas e grades diante das janelas protegidas por telas.

– Se esperarem aqui – o policial disse, na frente de uma das salas –, eu a trago já.

– Obrigado, Stu. – Mitch abriu a porta e se colocou de lado. – Fico esperando do lado de fora.

– Muito obrigado. – Lane bateu no ombro do homem. – E, provavelmente, ainda vamos precisar da sua ajuda.

– Estou aqui para o que precisarem.

Samuel T. parou ao lado do delegado.

– Alguém já falou com a imprensa?

– Nós não – Mitch respondeu. – E quero que continue assim.

– A minha irmã não tem a melhor das reputações. – Lane meneou a cabeça. – Quanto menos pessoas souberem, melhor.

Mitch os deixou ali na sala. Embora houvesse quatro cadeiras presas ao chão junto a uma mesa de aço também presa, Lane não conseguiu ficar sentado. Samuel T., por sua vez, pôs a velha maleta ao seu lado e cruzou as mãos.

O advogado balançou a cabeça.

– Ela vai ficar louca quando souber que você me chamou.

– E quem mais eu poderia chamar? – Lane esfregou os olhos doloridos. – E depois disso, você vai me ajudar com o meu divórcio, certo?

– Apenas mais uma manhã atarefada com os Bradford…

Pelo menos deixaram que ela permanecesse com as próprias roupas, Gin pensou, enquanto era conduzida por outro corredor de concreto pintado com a vichyssoise do mês.

Ficara aterrorizada com a perspectiva de se despir diante de uma guarda feminina de peito cabeludo para depois ser violada por uma mão com uma luva antes de ser enfiada dentro de um macacão laranja do tamanho de uma tenda de circo. Quando isso não aconteceu, ficara obsessiva com a possibilidade de ser trancafiada numa cela horrorosa e suja com um punhado de prostitutas viciadas em drogas tossindo o vírus da AIDS em cima dela.

Em vez disso, fora colocada numa cela sozinha. Uma cela fria, com apenas um banco e um vaso sanitário de aço sem assento nem papel higiênico.

Não que um dia ela fosse fazer uso daquilo.

Seus brincos de diamante foram retirados, assim como o relógio Chanel, juntamente com as malas LV, o celular, aquelas notas de quinhentos dólares e os cartões de crédito inúteis que tinha na carteira.

Um telefonema. Foi só o que lhe concederam, bem como nos filmes.

– Por aqui – disse o guarda, parando diante de um homem afro-americano uniformizado, e em seguida abrindo uma porta pesada.

– Lane…! – Só que ela parou de correr na direção do irmão assim que viu quem estava sentado à mesa. – Ah, Deus. Ele não.

Lane a abraçou com força depois que a porta se fechou.

– Você precisa de um advogado.

– Estou livre – Samuel T. disse com a fala arrastada. – Relativamente livre.

– Não vou falar na frente dele. – Ela cruzou os braços diante do peito. – Nenhuma palavra.

– Gin…

Samuel T. interrompeu o irmão dela.

– Eu te disse. Acho melhor pegar as minhas coisas e ir embora.

– Sentem-se – Lane ordenou. – Os dois.

Houve um instante de silêncio, que Gin entendeu como sinal de que Samuel T. estava tão surpreso pelo tom de comando quanto ela. Lane sempre fora, dentre os quatro irmãos Baldwine, aquele que seguia conforme a maré. Agora, ele parecia Edward.

Ou como Edward costumava ser.

Depois que se sentou desajeitada numa cadeira tão dura e fria quanto um bloco de gelo, Lane apontou um dedo na direção dela.

– O que você aprontou?

– Como é? – ela disse, se retraindo. – Por que é culpa minha? Por que acha que fui eu quem…

– Porque normalmente é o que acontece, Gin. – Ele cortou o ar com a mão quando ela começou a discutir. – Nem comece, eu te conheço há tempo demais. O que fez desta vez para irritá-lo? Vou tirar você daqui, mas tenho que saber com o que estou lidando.

Enquanto Gin encarava o irmão, quis mais do que nunca mandá-lo se foder. Mas só conseguia pensar na imagem dos seus cartões sendo negados no mostrador digital da bomba do posto de gasolina. Quem mais poderia ajudá-la?

Olhou para Samuel T. Ele não a encarava, e seu rosto estava impassível, mas a desaprovação altiva que ele emanava era tão evidente quanto sua colônia no ar.

– E então? – Lane inquiriu.

Pesando as opções, percebeu que estava completamente desconfortável com essa coisa de enfrentar situações difíceis. Com dinheiro suficiente e uma amnésia conveniente, não existia nada que ela não pudesse evitar, quer isso envolvesse suborno ou teimosia.

Infelizmente, as infindáveis opções estavam fundamentadas num estilo de vida que apenas parecia ser dela. Mas, na verdade, era de outra pessoa. Só não sabia disso até aquela manhã.

Pigarreou.

– Samuel T., você pode… me dar um momento a sós com o meu irmão? – Ela avançou a mão sobre a mesa. – Não estou dizendo que não pode ser o meu advogado, só preciso de um pouco de privacidade com ele. Por favor.

Samuel T. curvou uma sobrancelha.

– É a primeira vez que a ouço dizer essas palavras. Pelo menos estando vestida.

– Cuidado, Lodge – Lane rosnou. – Ela é minha irmã.

O homem se recompôs, como se tivesse se esquecido de que não estava sozinho com ela.

– Perdão. Isso foi inapropriado.

– Não vá para longe. – Lane começou a andar pela sala, puxando os cabelos negros e curtos com a mão. – Pelo amor de Deus, vamos precisar de uma boa representação.

Enquanto seu advogado, amante e pai da sua filha saía – ainda que ele desconhecesse essa última identidade –, Gin mirou os sapatos de salto de seda. A ponta do esquerdo tinha se sujado quando ela foi colocada no banco de trás da viatura.

Houve um clique, indicando que a porta tinha sido fechada atrás de Samuel T. Ela não precisou ser encorajada a falar.

– Ele quer que eu me case com Richard Pford.

– Richard… Desculpe, o que você disse?

– Você ouviu muito bem. Papai vai cortar todos os meus recursos a menos que eu me case com aquele homem. Ele disse que é por causa daquela maldita empresa de distribuição que nos dará melhores taxas ou algo assim.

– Ele ficou louco? – Lane inspirou.

– Você quis saber por que peguei o carro. É por isso, e é por isso que papai chamou a polícia. – Levantou o olhar para o irmão. – Não vou me casar com Richard. Não importa o que o nosso pai faça comigo. É com isso que você vai lidar.

Levantando-se, ela foi até a porta e a abriu.

– Pode voltar.

– Quanta honra – murmurou Samuel T.

Enquanto seu advogado voltava a se acomodar, ela disse: – Então, o que faço para sair daqui?

– Você paga a fiança – Samuel T. respondeu. – E depois tentamos fazer com que as acusações sejam retiradas. Você pode fazer um apelo ou seu pai pode perdoar o que quer que você tenha feito.

– Qual seria o montante da fiança? – Lane perguntou.

– Sem antecedentes, isso vai a favor dela, mas o risco de fugir não. Acho que no máximo cinquenta mil. McQuaid é um juiz amigável para pessoas como nós, por isso o valor não será muito alto.

50 mil dólares. De fato, a quantia nunca lhe parecera muito antes. Apenas mais um pulinho à loja Chanel em Chicago.

Pensou no pouco que tinha na carteira.

– Não tenho essa quantia.

Samuel T. gargalhou.

– Claro que tem.

– Farei com que seja pago – Lane o interrompeu.

Samuel T. abriu a maleta e tirou alguns papéis.

– Você me autoriza a representá-la nessa questão, Virginia?

Desde quando ele a chamava por algo que não fosse o apelido? Pensando bem, talvez ele só não quisesse que seu irmão o esmurrasse no piso de concreto por ter demonstrado familiaridade demais.

– Sim.

Os olhos dele, aqueles olhos cinzentos e aguçados, sustentaram o olhar dela.

– Assine aqui. – Depois de ela ter assinado, murmurou: – Não se preocupe, eu vou tirar você daqui.

A respiração dela vacilou quando ela expirou.

– Mas e depois?

O que, exatamente, seria diferente do outro lado de tudo aquilo? Era muito improvável que seu pai virasse a página subitamente. Edward mal sobrevivera à decisão de William Baldwine de escolher os negócios em detrimento dos filhos.

– Primeiro, te tiramos daqui – Lane disse. – Depois lidamos com o resto.

Voltando-se para o irmão, ela percebeu que nunca o vira tão sério. Recostado à parede nua do cubículo horrendo, ele parecia muito mais velho do que quando partira, dois anos antes. Parecia no comando das coisas.

Ela crescera esperando encontrar autoridade em Edward, e nunca em Lane, o playboy.

– Ele vai ganhar – ela se ouviu dizer. – Papai sempre vence.

– Não desta vez – Lane disse entredentes.

– Que diabos está acontecendo aqui? – perguntou Samuel T.

Lane apenas meneou a cabeça.

– Resolva isso, Samuel. Apenas tire a minha irmã daqui. Eu cuido do resto.

Deus, como ela queria que fosse verdade. Porque, evidentemente, a sua tentativa de irritar o pai não dera muito certo.

 

CONTINUA

DEZ

Claro que era uma ideia muito idiota.

Contudo, enquanto Lizzie retribuía o beijo, foi como se ela estivesse afunilando dois anos de raiva, frustração e dor diretamente dentro dele. E que ele fosse para o inferno, mas seu sabor era de bourbon, de desespero e de sexo selvagem… e ela gostava disso.

Ela sentia falta disso.

O que a deixou ainda mais enfurecida. Ela queria dizer que aquilo era horrível. Que era contra a sua vontade. Uma violação.

Mas não era verdade. Foi ela quem enfiou a língua na boca dele, e foi ela quem enterrou os dedos nos ombros dele, e foi ela quem, que Deus a ajudasse, aproximou o corpo, colando-se nele.

Para poder sentir a ereção dele.

Seu corpo não mudara no tempo em que ficaram afastados; ele era todo feito de músculos rijos e membros delgados. E ele beijava como antes, com aspereza e avidez, apesar de ter sido criado como um cavalheiro. E seu calor continuava o mesmo.

E então, para piorar ainda mais as coisas, memórias dos dois juntos, pele contra pele, se chocando, se balançando, ondulando, a assaltaram, enterrando toda a mágoa e o sentimento de traição debaixo de uma avalanche de lembranças eróticas.

Por uma fração de segundo, percebeu que acabaria fazendo sexo com ele ali mesmo, naquele instante.

Sim, claro, porque era uma maneira eficaz de mostrar que estava falando sério.

Um verdadeiro momento Gloria Steinem.17

Em vez disso, algo foi derrubado na mesa e o barulho interrompeu o silêncio; em seguida, um esguicho molhou o quadril e a coxa dela num choque de água fria. Dando um salto, ela o empurrou com força, e Lane tropeçou e caiu para trás, aterrissando no piso de ladrilhos.

Com um movimento brusco do braço, ela limpou a boca.

– Que diabos você estava fazendo?

Pergunta idiota. O mais adequado seria: O que ela estava fazendo?

Ele se pôs de pé na próxima batida de coração.

– Quis te beijar desde que voltei.

– O sentimento não é mútuo…

– Até parece. – Pegou o copo e sorveu um grande gole. – Você ainda me deseja…

– Saia!

– Está me expulsando da minha própria estufa?

– Ou você sai ou saio eu – ela rebateu. – Essas flores não vão parar nos vasos sozinhas. A menos que queira metade das mesas vazias na sua festa do Derby?

– Não estou nem aí com elas. Ou com essa maldita festa. Ou com nada disso… – Ele gesticulou, e teria sido mais convincente caso não estivesse segurando um bourbon da família naquele copo. – Deixei tudo isso para trás, Lizzie. Já estou farto mesmo.

Motrin. Era disso que ela precisava.

Menos Lane e mais analgésicos.

– Eu desisto – murmurou ela. – Você venceu. Vou eu.

Quando ela se virou para ir embora, ele a segurou e a girou, arrastando-a para junto de si. Foi nesse momento que ela notou o quanto ele envelhecera desde a última vez que o vira. Seu rosto estava mais magro, o olhar mais cínico, os pés de galinha mais acentuados nos cantos dos olhos.

Infelizmente, só o tornava mais belo.

– Nada dessa história horrível com Chantal é como você pensa – ele disse sombriamente.

– Mesmo que seja apenas metade…

– Você não entende…

– Eu estava apaixonada por você. – Sua voz se partiu, e ela o empurrou. – Eu não achava que a gente fosse se casar necessariamente, mas não pensei que você estivesse a caminho do altar com outra mulher. Que estava grávida… e que ainda por cima engravidou enquanto você estava comigo.

– Eu tinha terminado com ela, Lizzie. Antes de voltar para cá naquele mês de abril, eu disse para ela que estava acabado.

– Mas não foi bem assim, não é?

– Ela estava grávida de três meses quando fiquei sabendo, Lizzie. Faça as contas comigo. Estive com Chantal pela última antes de vir para cá, no aniversário da minha mãe, no fim de março. Você e eu… ficamos juntos em maio, e no fim de junho eu fiquei sabendo da gravidez. Se você se lembrar bem, não saí de Easterly durante todo aquele tempo. Você sabia onde eu estava todos os dias e todas as noites porque eu estava com você. – Ele a encarou do alto. – Três meses. Não dois, nem um. Três meses, Lizzie.

Ela levou as mãos ao rosto, lutando contra a lógica.

– Por favor, pare de fazer isso.

– Isso o quê?

– Dizer meu nome. Isso lhe dá a ilusão da credibilidade.

– Não estou mentindo. E faz quase dois anos que quero esclarecer a situação. – Ele praguejou novamente. – Tem mais coisas, mas não quero entrar nessa parte. E não afeta o que existe entre mim e você.

Antes que ela percebesse o próprio movimento, descobriu-se sentada no banco de rodinhas que estivera usando antes. Olhando para as mãos, flexionou os dedos, sentindo a rigidez das juntas e, por algum motivo, pensou nas unhas perfeitas de Chantal, em suas palmas lisas e sem marcas. Falando em opostos… As mãos que ela fitava eram as de uma trabalhadora, que tinha arranhões nos dorsos provocados por espinhos de rosa perdidos, e terra debaixo das unhas, que ela só conseguiria limpar depois que chegasse em casa. Também havia pintas, por ter cavado a terra sem a proteção de luvas e, definitiva e positivamente, não havia nenhum diamante de um milhão de dólares em seu dedo.

– Casei com Chantal no cartório depois que você me deixou – ele continuou com severidade. – O bebê não tinha culpa, e por eu ter crescido sem meus pais, não queria fazer o mesmo com um filho meu, a despeito dos meus sentimentos pela mãe dele. Mas eu tinha que sair da cidade. Chantal não admitia que o casamento fosse apenas no papel. Por isso fui para o norte, ficar em Nova York com um amigo dos tempos da Universidade da Virgínia. Foi pouco depois que Chantal me ligou para falar que tinha perdido o bebê.

A amargura em sua voz fez ele falar tão baixinho que ela mal ouviu.

– Ela também não me ama – ele murmurou. – Não amava na época e não ama hoje.

– Como você pode ter certeza? – Lizzie se ouviu dizer.

– Pode confiar em mim quanto a isso.

– Ela pareceu bem contente em ter você de volta.

– Não voltei por causa dela e deixei bem claro. Essa mulher só é capaz de se afeiçoar a uma refeição grátis.

– Pensei que ela tivesse dinheiro.

– Nada comparado ao que eu tenho.

Sim, ela imaginou que devia ser verdade. Existiam países com menos renda anual do que a dos Bradford.

– Você é o amor da minha vida, quer esteja comigo ou não. – Quando ela ergueu o olhar, ele apenas encolheu os ombros. – Não posso mudar o que aconteceu e sei que não há como voltar… Só o que peço é que não acredite nas aparências, ok? Você está há dez anos com esta família, mas estou com eles e com pessoas que os cercam minha vida inteira. É por isso que é você quem eu quero. Você é real. Não é como eles e isso é uma coisa muito, muito boa.

Ela esperou que ele fosse expressar mais alguma coisa, e quando ele não o fez, ela voltou a fitar as mãos.

Por algum motivo, seu coração batia forte, como se ela estivesse próxima demais de um penhasco. Pensando bem, imaginou que era isso mesmo, porque as palavras dele estavam entrando em sua cabeça e embaralhando seus pensamentos.

De um jeito que não a ajudava em nada.

– Tenho muito medo de você – sussurrou.

– Por quê?

Porque queria acreditar no que ele dizia com o desespero de um viciado.

– Não tenha – ele disse quando ela não respondeu. – Nunca quis que nada assim acontecesse. E faz muito tempo que eu queria acertar as contas com você.

Parecia apropriado que estivessem cercados por tantos vasos de flores. A prova do seu trabalho, de seu único objetivo ali na propriedade, era um lembrete do divisor que sempre os distanciaria.

Ela se forçou a se lembrar daquela fotografia e do artigo no Charlemont Herald sobre o casamento, sobre os dois grandes legados sulistas se unindo num arranjo feudal. Também se lembrou dos dias e das noites logo depois que ficou sabendo de Chantal, de todas aquelas horas de sofrimento até que pensou estar à beira da morte.

Mas as palavras dele exprimiam verdade sobre uma coisa. O orgulho fez com que ela continuasse a trabalhar em Easterly. Assim, estivera presente na propriedade todos os dias, exceto aos domingos, pelos últimos vinte e quatro meses. E Lane não voltara. Durante dois anos… ele não voltara para ver Chantal.

Não era lá um grande casamento.

– Deixe que as minhas ações falem por si mesmas. Deixe que eu prove para você que estou dizendo a verdade.

Em sua mente, ela ouviu seu celular tocando insistentemente. Logo após o rompimento, ele lhe telefonara no mínimo uma centena de vezes, deixando mensagens que ela nunca ouvira. Ela tirara duas semanas de férias assim que soube de tudo, fugindo para a fazenda em Indiana, voltando para Plattsburgh no nordeste, para o pomar de maçãs da sua juventude. Seus pais ficaram felizes em vê-la, e ela passara aqueles dias a cuidar das árvores McIntosh junto aos outros trabalhadores.

Quando regressara, ele já tinha ido embora.

Os telefonemas cessaram depois de um tempo. E, no fim, ela parou de ter sobressaltos toda vez que um carro parava na porta da frente.

– Por favor, Lizzie… diga alguma coisa. Mesmo que não seja o que quero ouvir…

O som da risada de uma mulher o interrompeu com suavidade e fez com que ambos olhassem para as portas que se abriam para o jardim. Quando Greta saíra, um dos painéis não se fechara por completo, e através da abertura, Lizzie viu duas pessoas andando pelo caminho de pedras em direção à piscina no extremo oposto.

Mesmo sob a iluminação fraca do paisagismo, ficou claro que o vestido de gala da mulher era vermelho rubi, suas saias volumosas se arrastando atrás dela. Ao seu lado, um homem alto de terno lhe ofereceu o braço num galanteio e a encarava com o tipo de atenção que se reserva a um lauto banquete.

– Minha irmã – Lane disse, sem necessidade.

– Aquele é Samuel T.? – Lizzie perguntou.

– Quem se importa…

Ela voltou a olhar para Lane.

– Você partiu o meu coração.

– Eu sinto muito. Não foi minha intenção, Lizzie, de modo nenhum. Juro por Deus.

– Pensei que você fosse ateu.

Ele ficou calado um instante, os olhos vasculhando suas feições.

– Eu me batizaria mil vezes, se necessário. Posso memorizar a Bíblia, beijar o anel do papa… faço qualquer coisa que você quiser… mas, por favor…

– Não posso voltar no tempo, Lane. Sinto muito. Não consigo.

Ele se calou. E depois de um longo instante, assentiu.

– Tudo bem, mas posso pedir uma coisa?

Não.

– Sim.

– Não me odeie mais. Eu já faço muito isso sozinho.

O jardim estava perfumado como uma mulher recém-saída do banho, tão arrumado quanto a sala de estar, e tão reservado quanto a biblioteca de uma universidade.

O que significava de fato que era semirreservado. As várias janelas de Easterly davam para as moitas de flores brancas e creme, todas elas bem cuidadas e discretamente iluminadas.

Felizmente, Gin não tinha problemas quanto a fazer sexo em público.

Enquanto se pendurava no braço forte de Samuel Theodore Lodge III, não se deu ao trabalho de esconder seu sorriso.

– Há quanto tempo está com ela?

– Desde quando chegamos. Uma hora?

Ela gargalhou.

– Ora, ora, meu caro Samuel, por que você perde tempo com mulheres como ela?

– Existe outro tipo?

Era difícil saber quem conduzia quem até os recessos escuros do canto mais afastado, onde o muro de tijolos se encontrava com os fundos da casa, onde ficava a piscina. Era para lá que ambos se dirigiam.

– Eu não sabia que você vinha – ela disse, erguendo a mão para tocar os diamantes pendurados no pescoço… e depois deslizar os dedos pelo corpete do vestido. – Eu teria me dado ao trabalho de vestir uma calcinha.

– Nova mania, então?

– Gosto quando você as arranca do meu corpo. Especialmente quando você se frustra e as rasga.

– Mas eu não faço parte de um clube exclusivo, não é mesmo?

– Não seja grosseiro.

– Foi você quem tocou no assunto da lingerie. E também foi você quem quis sair comigo. A menos que, para variar, precise mesmo de um pouco de ar fresco?

Gin estreitou o olhar nele.

– Você é um bastardo.

– Não de acordo com o dicionário. Meus pais estavam muito bem casados quando nasci. – Ele ergueu uma sobrancelha. – E creio que você não possa dizer o mesmo da sua filha, não é mesmo?

Ela parou, a maré virando numa direção que ela não previra.

– Está passando dos limites, Samuel. E você sabe disso.

– É um pouco estranho quando você fala de decoro. Você não está transando com aquele advogado casado da minha empresa? Acho que ouvi alguma coisa a esse respeito.

Ah, então era por isso que ele estava agindo daquela maneira.

– Está com ciúmes? – ela pronunciou de maneira arrastada, o sorriso retornando às suas feições.

– Ele não consegue te satisfazer. Não por muito tempo, e não como eu consigo.

Quando ele a agarrou, ela deixou, adorando o modo como as mãos dele seguraram sua cintura e a boca se afundou na sua. Não demorou muito para que ele erguesse sua saia até as coxas, mantendo-a ali apesar de toda a armação do vestido.

Pensando bem, ele vinha se metendo debaixo de tecidos finos e delicados desde os catorze anos, quando passara a frequentar os bailes da sociedade.

Samuel T. gemeu ao descobrir que ela não estava mentindo quando disse não ter nada debaixo daquele vestido, e seus dedos foram rudes ao penetrá-la. O fogo e o desejo que sentiu foram um tremendo alívio para os assuntos em que ela não queria pensar, o sexo lavando todos os seus arrependimentos e sua tristeza, dando-lhe nada além de prazer.

Não havia motivos para fingir o orgasmo que teve de fato, as unhas se enterrando nos ombros macios do smoking enquanto arquejava, a antiquada colônia Bay Rum tão atávica que fazia com que ele fosse um homem à frente do seu tempo.

Enquanto se entregava, pensava que ele era o único homem que já tinha amado – e o único que jamais teria verdadeiramente. Samuel T. era muito parecido com ela, só que pior: uma alma que nunca se assentaria enquanto estivesse passeando pelos caminhos de tijolos da expectativa social.

– Me come – ela exigiu ao encontro dos lábios dele.

Ele arfava, seu corpo estava rijo debaixo do smoking caro, pronto para ela… Mas em vez de lhe dar o que ela tanto queria, ele recuou um passo, abaixando a saia e fitando-a de longe.

– Samuel? – ela inquiriu.

Com uma lentidão deliberada, ele levou os dedos até a boca e os lambeu. Depois passou a língua para cima e para baixo, entre eles, lambendo a essência dela em sua pele.

– Não – ele disse. – Acho que não.

– O quê?

Samuel se inclinou na direção dela.

– Vou voltar para a festa do seu pai e vou me sentar à mesa dele. Adiantei-me e troquei a disposição dos lugares, de modo que Veronica estará sentada ao meu lado. E você vai saber quando eu colocar a minha mão entre as pernas dela, você vai vê-la se empertigar e tentar manter a compostura enquanto faço com ela o que acabei de fazer com você. Observe o rosto dela, Gin. E saiba que, assim que eu sair, vou transar com ela no banco da frente do meu Jaguar.

– Você não ousaria.

– Como acabei de dizer, preste atenção, Gin.

Ele se virou para se afastar, e ela quis jogar alguma coisa na cabeça dele. E vez disso, disse entre dentes cerrados: – O nome dela não é Savannah?

Ele relanceou por sobre o ombro.

– E eu me importo com o nome dela? A única coisa relevante é: ela não é você.

Dito isso, ele se afastou a passos largos naqueles elegantes sapatos de couro que ecoaram nos tijolos, com os ombros retos e a cabeça erguida.

Envolvendo-se com os braços, ela percebeu pela primeira vez que a noite estava fria. Embora fizesse 26°C.

Concluiu que deveria ter lhe contado a respeito do advogado. Em retrospecto, escolhera o homenzinho grudento exatamente porque sabia que cedo ou tarde Samuel T. descobriria.

Pelo menos uma coisa era certa: Samuel T. voltaria. Por algum motivo, os dois não conseguiam ficar longe um do outro por muito tempo.

E, no fim, ela acabaria tendo que lhe contar a respeito de Amelia, pensou. Mas não hoje. Nem… tão cedo.

Se aquele homem descobrisse que ela lhe escondera a filha por todos aqueles anos?

Ele seria capaz de matá-la.


Gloria Steinem, famosa feminista, é uma jornalista americana, célebre por seu engajamento com o feminismo e sua atuação como escritora e palestrante, principalmente durante a década de 1960. (N.T.)

 

ONZE

Depois que Lane saiu da estufa, a perspectiva de retornar para a festa do pai era extremamente desagradável, ainda mais depois de ouvir o gongo que anunciava que o jantar estava sendo servido. Mas, considerando-se que a outra alternativa seria ir ver Edward, ele…

– Lane?

Concentrando-se, olhou além do arco da sala de jantar. Uma morena alta num vestido cinza-claro estava parada diante dos antigos espelhos venezianos, a visão dos ombros nus tão adorável de trás quanto de frente.

Falando no diabo, ele pensou. Mas sorriu ao se aproximar e beijá-la no rosto macio.

– Sutton, como está?

Mas quis dizer: Que diabos você está fazendo aqui? Ela e a família eram o “inimigo”, proprietários da Destilaria Sutton, produtores do famoso bourbon Sutton e de outras bebidas – mas isso não significava que ele tivesse algo particularmente contra a mulher. Tradicionalmente, porém, pessoas da linhagem dela eram persona non grata em Easterly… em conversas… nas orações noturnas.

E eram fãs da UK. Portanto, eram azuis nos jogos, e não vermelhos.

Isso era algo que poderia irritá-lo.

Quando se abraçaram, seu perfume refletiu a mulher rica que era, sua fragrância delicada preencheram as narinas dele mesmo quando se afastou; assim como seu corpo perfeito e bem vestido, surgindo novamente em seus olhos quando ele piscou.

Mas não era por isso que estava atraído por ela. Aquilo era o mesmo que admirar uma pintura num museu ou um automóvel Duesenberg.

– Eu não sabia que você viria este final de semana. – Ela sorriu. – É bom te ver depois de tanto tempo. Você me parece bem.

Isso foi engraçado, porque ele se sentia uma merda.

– E você, bela como sempre.

– Vai ficar para o Derby?

Por cima do ombro de Sutton, ele viu que Chantal entrava na sala de jantar, o longo vestido amarelo se arrastando junto com a sua postura de inocente.

Só até eu preencher a papelada do divórcio, ele pensou.

– Lane? – Sutton o chamou.

– Desculpe. Na verdade, tenho que voltar logo para Nova York. – Afinal, aquelas partidas de pôquer precisavam dele lá. – Estou contente em ver você. Surpreso por vê-la no jantar do meu pai, mas contente.

Sutton assentiu.

– Também é uma surpresa e tanto para mim.

– Veio a negócios?

Ela sorveu um gole da taça de vinho.

– Hummm.

– Era para ser uma piada.

– Me diga uma coisa, você tem visto…

Ela deixou a frase inacabada, sem mencionar o nome, pois não havia motivos para que ela pronunciasse “Edward”. Por muitos motivos.

– Ainda não o vi. Mas vou até a fazenda.

– Sabe, Edward nunca vem à cidade. – Sutton tomou mais um gole da taça de borda fina. – Eu costumava vê-lo com bastante frequência antes que ele… Bem, fazíamos parte do conselho da Universidade de Charlemont, mesmo eu sendo fã da UK, e…

Enquanto a mulher prosseguia, ele ficou com a sensação de que ela não estava lhe informando fatos que ele já sabia, mas que revivia um período da vida cuja perda ela lamentava. Não pela primeira vez, ele ficou se perguntando o que realmente acontecera entre o garoto de ouro da família e a adorável filha do concorrente deles.

– Ora, se o filho pródigo não retornou…

O som da voz do pai foi um alerta que o atingiu tal qual uma flecha, e Lane encobriu seu dissabor ao tomar um gole de bourbon.

– Pai.

William Baldwine era quase tão alto quanto ele, tinha os mesmos cabelos negros e olhos azuis, o mesmo maxilar, os mesmos ombros. As diferenças eram a idade, o grisalho nas têmporas, os óculos bifocais de aro de casco de tartaruga, a ruga entre as sobrancelhas causada pelos muitos anos de semblante fechado. De algum modo, porém, todos aqueles sinais do passar dos anos não diminuíam a estatura do pai. De fato, apenas serviam de contraponto para uma aura de poder.

– Tenho que mandar arranjarem um lugar para você. – Por trás daqueles óculos, os olhos do pai encararam as roupas de Lane com um desdém apropriado para as fezes de um cachorro no meio de uma sala de estar. – Ou está de saída?

– Deixe-me pensar… – Lane estreitou o olhar. – Por mais que eu aprecie degradar a sua mesa com esta minha camisa, eu teria que ficar na sua presença durante uma refeição de, no mínimo, três pratos. Portanto, acho que vou embora.

Lane colocou seu Reserva de Família na mesinha de apoio mais próxima e se curvou para Sutton, que parecia preferir ir com ele em vez de ficar ali.

– Sutton, é sempre um prazer. – Olhou para o pai. – Pai, vá se foder.

Lançou essa granada e seguiu em meio à multidão, acenando para políticos e socialites, para aqueles dois atores da série da HBO na qual estava viciado e para Samuel T. e sua namorada do momento.

Chegou ao vestíbulo de entrada, e estava quase na porta da frente quando um par de saltos agulha se aproximou por trás.

– Aonde você vai? – Chantal sibilou ao agarrar o braço dele. – E por que não está vestido?

– Não é da sua conta. – Soltou-se dela. – Nos dois casos.

– Lane, é inaceitável…

– Essas palavras jamais deveriam passar pelos seus lábios, mulher.

Chantal fechou a boca muito bem delineada. Em seguida, inspirou fundo, como se estivesse com dificuldade para aplacar a raiva.

– Eu gostaria de passar um tempo com você esta noite, para conversar e discutir… nosso futuro.

– O único futuro em que você precisa pensar é quantas malas Vuitton vai precisar para a sua mudança.

Chantal ergueu o queixo.

– Você não faz ideia do que está falando.

Ele se inclinou na direção dela e abaixou a voz até um sussurro.

– Sei o que você fez. Sei que não “perdeu” o bebê. Se queria manter o aborto em segredo, não deveria ter pedido a um dos motoristas da família que a levasse para aquela clínica em Cincinnati.

Quando ela empalideceu, ele se lembrou exatamente onde estava quando o homem que a levara lá titubeou para lhe dar a informação.

– Não tem resposta? Não vai negar? – Lane a repreendeu. – Ou isso virá quando a surpresa por ter sido descoberta passar?

Houve um instante de silêncio, e ele sabia que ela estava pesando suas opções, tentando descobrir como abordá-lo de um jeito favorável.

– O que eu deveria ter feito? – disse ela por fim, baixinho. – Você me abandonou sem explicações, sem apoio, sem dinheiro, sem um modo de entrar em contato com você.

Ele fez um gesto abarcando as pinturas a óleo e os tapetes orientais.

– Sim, porque você ficou num lugarzinho bem largado no meio da selva.

– Você me abandonou!

– Por isso a solução foi se recompor para tentar seduzir outro homem, certo? Estou deduzindo que foi o que fez, já que você precisava caber de novo no manequim 38, não é? Minha querida esposa.

– Lane, você está dizendo coisas que não quer…

– Você matou um inocente…

Reginald veio da sala de estar com uma bandeja de prata com copos usados, deu uma olhada nos dois e voltou para trás, desaparecendo de novo no cômodo agora vazio.

Ah, sim, a vida em Easterly… Onde a privacidade era menos comum que diamantes e distribuída em termos relativos. Pelo menos sabia que podia confiar naquele homem mais do que em sua própria família.

Não que isso significasse muito.

– Não vou ficar aqui discutindo com você – Lane disse, ríspido. – E você vai sair desta casa. Assim que o Derby acabar, a sua estada grátis já era.

Chantal arqueou uma das sobrancelhas perfeitas.

– Peça o divórcio se quiser, mas não vou a parte alguma.

– Você não terá mais o direito de ficar sob este teto depois que essa aliança sair do seu dedo.

O sorriso que ela lhe lançou foi gélido.

– É o que vamos ver. – Acenou com a cabeça para a porta da frente. – Vá para onde quiser, fuja… É isso o que você faz, não é? Mas tenha certeza que: eu estarei aqui quando você voltar.

Lane estreitou os olhos. Chantal era muitas coisas, mas não era uma maluca. Ela se autopromovia demais para tanto.

E o encarava como se soubesse de algo que ele não sabia.

Que diabos aconteceu enquanto ele se manteve afastado?

No Vermelho & Preto, Edward estava sentado numa antiga poltrona de couro diante de uma televisão tão velha que ainda tinha antenas saindo da tela em forma de caixa. O cômodo estava na penumbra, mas reluzia por causa dos inúmeros troféus de corrida abarrotando as estantes até o teto do lado oposto.

O chalé do haras tinha um quarto, um banheiro com banheira com pés em forma de garras, uma cozinha pequena e aquela área, que era um misto de biblioteca, escritório, sala de estar e de jantar. Não havia segundo andar, apenas um sótão cheio de recordações de velhas corridas de cavalo, e também não havia garagem. A área era menor do que a sala de jantar de Easterly e, desde que se mudara para lá, ele aprendera a apreciar o valor de ter um lugar pequeno o bastante para poder ouvir e ver quase tudo. Lá na mansão, nunca se sabia quem mais estava na gigantesca casa, onde estavam, o que estavam fazendo.

Para alguém como ele, cuja única amante eram os terrores noturnos e cujo principal trabalho era impedir que seu cérebro se canibalizasse, os aposentos apertados eram algo muito mais fácil de lidar, ainda mais naquela época do ano. Pena que a sua ida à América do Sul, quando fora sequestrado, tivesse acontecido pouco antes do Derby. O aniversário da sua captura arruinara o que sempre fora um fim de semana agradável.

Consultou o relógio e praguejou. Agora que o sol tinha se posto, as horas se apresentavam numa confusão nebulosa, minutos se tornando séculos e um segundo ao mesmo tempo. O seu trabalho noturno? Chegar, de algum modo, ao nascer do sol sem gritar.

Junto ao cotovelo, havia uma garrafa de vodca quase vazia. Começara a beber com cinco cubos de gelo num copo alto, que já estava derretido havia um tempo, e ele agora sorvia a bebida pura. Na noite anterior, fora gim. Na de antes, tomara três garrafas de vinho, duas de tinto e uma de branco.

Durante a fase inicial e aguda da sua “recuperação”, aprendera todos os estágios da administração da dor, aprendera como espaçar os analgésicos e a comida a fim de fazer com que os impulsos nevrálgicos do seu corpo arruinado não fossem piores do que a tortura que suportara quando aquelas feridas foram provocadas. Mais tarde, o mestrado em Gerenciamento de Medicação se traduziu muito bem na segunda parte – a parte crônica, a da “recuperação”. Graças às tentativas e aos erros adquiridos com os analgésicos, ele conseguia distribuir tudo para otimizar o efeito sedativo: todas as tardes, por volta das quatro horas, comia alguma coisa; às seis, quando os funcionários liberavam os estábulos, ele podia começar a beber estando, basicamente, de estômago vazio.

Nada o irritava mais do que alguém se metendo no meio do seu torpor…

Quando uma batida se fez à porta, apanhou a pistola ao lado da garrafa Grey Goose e tentou se lembrar que dia da semana era. O Derby aconteceria dali a dois dias… Então era quinta-feira. Era quinta-feira, algumas horas depois do pôr do sol.

Portanto, não era uma das prostitutas que ele pagava para vir servi-lo. Elas vinham às sextas-feiras. A menos que tivesse chamado duas pelo preço de uma aquela semana, mas não havia pedido aquilo.

Certo. Ou havia?

Apanhando a bengala, suspendeu-se da poltrona e claudicou até a janela da frente. Afastou as cortinas, com a pistola firme numa mão, mas o coração batia descompassado. Mesmo ciente de que, pela lógica, não existiam mercenários no Condado Ogden à sua procura, que estava seguro atrás das travas e do sistema de segurança que instalara, apesar da quarenta milímetros em suas mãos… seu cérebro continuava eletrizado.

Quando viu quem era, franziu o cenho e abaixou a arma. Seguindo até a porta, retirou a corrente, destrancou as três travas e abriu a porta, as dobradiças rangendo como camundongos. Outro mecanismo de alerta para ele.

– Cliente errado – murmurou com secura para a loira baixinha que vestia jeans e camiseta justa. – Eu só peço morenas. Em vestidos de gala.

Por um motivo que preferia guardar para si.

Ela franziu a testa.

– O que disse?

– Só aceito morenas. E elas têm que estar adequadamente vestidas.

Ele queria cabelos longos curvados nas pontas, um vestido que se arrastasse pelo chão, e elas tinham que estar usando Must da Cartier. Ah, e tinham que ficar de boca fechada. Não tinham permissão para falar com ele enquanto estivessem transando. Ainda que as putas conseguissem representar bem o exterior, a ilusão frágil seria rompida no instante em que as vozes delas não fossem a da mulher que desejava, mas que não podia ter.

Ele já tinha bastante dificuldade para manter a ereção daquele modo; na verdade, a única maneira de fazer seu pau subir era se conseguisse acreditar na mentira pelo tempo necessário até chegar ao orgasmo.

A mulher em sua soleira pousou as mãos nos quadris.

– Acho que não sei do que está falando. Mas sei que estou no lugar certo. Você é Edward Baldwine, e este é o Vermelho & Preto.

– E você quem é?

– Filha de Jeb Landis. Shelby. Shelby Landis.

Edward fechou os olhos.

– Maldito seja Ele.

– Eu agradeceria se não usasse o nome de Deus em vão na minha presença. Obrigada.

Ele levantou as pálpebras.

– O que você quer?

– O meu pai morreu.

Edward se concentrou num ponto acima da cabeça dela, na lua que crescia acima do Estábulo C.

– Quer entrar?

– Se guardar arma, sim.

Ele enfiou a pistola no cós do jeans e recuou.

– Quer beber alguma coisa?

Quando ela entrou, ele percebeu o quanto ela era baixinha. E devia pesar só uns 45 quilos, isso se estivesse ensopada segurando um fardo de feno.

– Não, obrigada. Não bebo álcool. Mas eu gostaria de usar o seu banheiro. A viagem foi longa.

– É por ali.

– Muito obrigada.

Ele se recostou na porta. A picape na qual ela evidentemente chegara sabe lá Deus de onde estava estacionada à esquerda, o motor ainda estalava debaixo do capô.

Depois de fechá-la e trancar tudo de volta, ouviu a descarga nos fundos da casa. Um momento mais tarde, a moça voltou e olhou para os troféus.

Edward seguiu para a poltrona, fazendo uma careta de dor ao se acomodar.

– Quando? – ele perguntou ao se servir do resto da vodca.

– Uma semana atrás – ela respondeu sem olhar para ele.

– Como?

– Pisoteado. Bem, os médicos disseram que o coração dele não aguentou, mas a causa foi o pisoteamento. Foi assim que você se machucou?

– Não. – Ele sorveu um longo gole. – Então, o que você faz aqui?

Dessa vez ela se virou.

– O meu pai sempre disse pra eu vir para cá pra encontrar você se alguma coisa acontecesse com ele. Ele disse que você lhe devia uma. Nunca perguntei o quê.

Edward a encarou demoradamente.

– Quantos anos você tem? Doze?

– Vinte e dois.

– Jesus, como você é nova…

– Cuidado com o que diz perto de mim.

Ele teve que sorrir.

– Você é igualzinha ao seu velho, sabia disso?

– É o que dizem. – Ela voltou a apoiar as mãos nos quadris. – Não quero esmola. Preciso de um lugar pra ficar e de um trabalho. Sou boa com cavalos, assim como o meu pai era, e ruim com pessoas… Por isso, considere-se avisado. Não tenho dinheiro, mas tenho costas fortes e não tenho medo de nada. Quando posso começar?

– Quem disse que estou procurando ajuda?

Ela franziu o cenho.

– O meu pai disse que você precisaria. Disse que você precisaria de mais mãos.

O Vermelho & Preto era uma grande operação, e sempre havia vagas. Mas Jeb Landis era uma lembrança complicada do passado… e a família dele estava contaminada por associação.

Mesmo assim…

– O que sabe fazer?

– Limpar estábulos e manter os cavalos em ordem não é física nuclear…

Ele dispensou as palavras dela com a mão.

– Tudo bem, tudo bem, está contratada. E só estou sendo um cretino porque, assim como você, não me dou bem com as pessoas. Tem um apartamento vazio ao lado do apartamento de Moe, sobre o Estábulo B. Pode se mudar para lá.

– Mostre o caminho.

Edward grunhiu ao voltar a ficar de pé e carregou o copo consigo de propósito ao conduzi-la até a porta.

– Não quer saber do salário?

– Você vai ser justo. O meu pai disse que desonestidade não faz parte do seu caráter.

– Ele foi generoso ao dizer isso.

– Duvido. Ele conhecia homens e cavalos.

Enquanto Edward voltava a destrancar tudo, conseguia senti-la observando-o e odiou isso. Seus ferimentos eram o resultado de um inferno que ele preferia manter escondido do mundo.

Antes de deixá-la sair do chalé, olhou-a fixamente.

– Só há uma regra.

– Qual?

Por algum motivo, ele se deteve nas feições dela. Ela não se parecia fisicamente em nada com o pai – bem, desconsiderando-se a altura. Shelby, ou qualquer que fosse seu nome, tinha olhos claros, e não negros. E sua pele não tinha a consistência de couro, embora isso ainda pudesse mudar.

A voz dela, porém, era como a de Jeb: aquele sotaque arrastado tinha um fundo de solidez.

– Você não vai chegar perto daquele garanhão – Edward avisou. – Ele é malvado até os ossos.

– Nebekanzer.

– Você o conhece.

– Meu pai costumava dizer que aquele cavalo tinha gasolina nas veias e ácido nos olhos.

– Então você já conhece o meu cavalo. Não se aproxime dele. Não vai limpar a baia dele, não vai chegar perto dele se ele estiver no pasto e nunca, jamais, vai colocar qualquer coisa sobre a porta da baia dele se quiser conservá-la. E isso inclui a sua cabeça.

– Quem cuida dele?

– Eu. – Edward claudicou noite afora, o ar úmido e pesado fazendo com que ele pensasse que não conseguiria respirar. – E ninguém mais.

Enquanto tentava respirar fundo, perguntou-se se todos aqueles médicos tinham deixado passar algum ferimento interno. Pensando bem, talvez a sensação de sufocamento fosse causada pela imagem daquela moça perto do maldito garanhão negro. Ele só conseguia pensar no que Neb poderia fazer com ela.

Ela se colocou na frente e pegou a mochila sobre o banco do passageiro.

– Então você é o encarregado aqui.

– Não, Moe Brown é. Você vai conhecê-lo pela manhã. Ele será o seu chefe. – Edward seguiu na direção dos estábulos. – Como já disse, o apartamento ao lado do dele está mobiliado, mas não sei quando o último a morar lá saiu.

– Já dormi em baias e em bancos de praça. Ter um telhado sobre a cabeça já basta.

Ele olhou na direção dela.

– O seu pai… era um bom homem.

– Não era nem melhor nem pior do que qualquer outra pessoa.

Era impossível não pensar em quem devia ser a mãe dela – ou em como alguém poderia ter suportado tempo suficiente ao lado de Jeb até ter uma filha com ele. Jeb Landis era uma lenda na indústria, tinha uma lista de cavalos vencedores maior do que qualquer outro, vivo ou morto. Também fora um alcoólatra filho da puta, com um vício por jogo ainda pior do que a sua veia misógina.

Uma coisa com a qual Edward não tinha que se preocupar era se Shelby saberia tomar conta de si mesma. Se conseguira sobreviver tendo vivido com Jeb, trabalhar num turno de dezoito horas numa fazenda criadora de cavalos seria fácil, fácil.

Quando chegaram ao Estábulo B, as luzes detectoras de movimento se acenderam e os cavalos se movimentaram lá dentro, batendo os cascos e relinchando. Entraram pela porta lateral, passaram pelo escritório de Moe e pelo depósito de suprimentos, e Edward a levou até o lance de escadas que antes conduzia ao palheiro, cobrindo toda a extensão do telhado. Em algum momento nos anos 1970, o lugar fora convertido em dois apartamentos, e Moe morava no da frente, que dava para a passagem de carros.

– Vá na frente e espere por mim ali em cima – disse com os dentes cerrados. – Eu demoro um pouco para subir.

Shelby Landis subiu os degraus rapidamente no compasso que ele costumava usar, mas que agora já não apreciava mais, e sentiu como se tivesse uma centena de anos ao se juntar a ela no andar superior.

Àquela altura, já estava tão sem fôlego que chiava como um pneu murchando.

Afastando-se dela, viu que não havia nenhuma luz por baixo da porta de Moe, mas, de todo modo, não teriam incomodado o homem. Com o Derby em menos de quarenta e oito horas, se estivesse em casa, o homem já devia estar dormindo a sono solto.

Ainda mais se considerasse que um dos seus dois cavalos poderia acabar excluído da corrida.

Enquanto Edward seguia em frente e girava a maçaneta do apartamento seguinte, percebeu que não sabia o que faria caso a porta estivesse trancada. Não fazia ideia de onde as chaves poderiam estar…

A porta se abriu, lembrando-o de que ele estava em meio a uma minoria de paranoicos ali naquela fazenda. O interruptor ficava à esquerda na parede e, quando ele o apertou, ficou aliviado em ver que o lugar não estava muito empoeirado e que, de fato, havia um sofá, uma cadeira, uma mesa e uma cozinha minúscula que, em comparação, fazia com que a sua parecesse industrial.

– O seu pai nunca mencionou o motivo de eu estar em débito com ele? – perguntou, mancando até o corredor escuro.

– Não, mas Jeb não era de falar muito.

Apertando o segundo interruptor, viu que o quarto e o banheiro também estavam organizados.

– Eis o que você tem aqui – disse ele, exausto só de ver a distância até a porta.

Quatro metros e meio.

Era como se fossem quilômetros.

Ela se aproximou.

– Obrigada pela oportunidade.

Ofereceu a mão e o fitou nos olhos e, por um instante, ele sentiu uma emoção diferente da raiva que ardia e queimava em seu íntimo nos últimos dois anos. Não sabia como defini-la, e o triste era que não sabia se a mudança era bem-vinda.

Havia uma certa claridade em ter um princípio de operação unilateralmente hostil.

Deixou a mão dela pendurada no ar enquanto arrastava o corpo de volta até a saída.

– Veremos se, mais tarde, você vai me agradecer.

De repente, lembrou-se de toda aquela coisa de não praguejar e não beber álcool.

– Ah, e mais uma coisa. Se a cortina do meu chalé estiver fechada, não me incomode.

– Sim, senhor.

Ele assentiu e fechou a porta. Depois, muito lenta e cuidadosamente, começou a descer.

A verdade era que Jeb Landis fora o responsável pela sua recuperação. Sem o chute que o homem deu no seu traseiro, só Deus sabia se Edward ainda estaria naquele planeta. Deus, ainda se lembrava com nitidez quando o treinador viera visitá-lo no centro de reabilitação. Apesar da regra explícita de Edward de não receber visitantes, Jeb passara pela estação da enfermagem e marchara para dentro do seu quarto.

Eles já se conheciam havia uma década. O interesse de Edward por cavalos de corrida, e sua subsequente posse, aliado ao compromisso prévio de ser o melhor em tudo o que fazia, significava que ele só aceitaria um homem treinando os seus cavalos.

No entanto, jamais previra que o homem seria um tipo de salvador.

O esporro de Jeb fora breve e direto, mas mais eficiente do que todos os argumentos e apoio emocional que recebeu de outras pessoas. E, um ano após sua mudança para lá, tendo jogado fora todos os seus ternos e decidido que aquela seria a sua vida, Jeb lhe disse que estava deixando o Vermelho & Preto rumo à Califórnia.

Provavelmente porque alguns agentes de apostas de Chicago estavam atrás de um pedaço do traseiro dele.

Em todos aqueles anos, antes e depois do sequestro, o fato de Jeb ter uma filha jamais viera à baila. Mas, sim, ele abrigaria a filha do homem. Claro.

E, felizmente, ela parecia ser capaz de cuidar de si mesma.

Portanto, o pagamento do débito teria um custo baixo.

Pelo menos, foi o que ele disse a si mesmo naquela primeira noite.

Só que aquilo não foi bem verdade… nem de longe.

 

DOZE

– Paguei cem mil dólares para me sentar ao seu lado.

Gin ergueu o garfo Tiffany com desenho de crisântemo para mexer na comida, mal ouvindo as palavras ditas junto ao seu ouvido. Estava ocupada demais se concentrando no arranjo floral diante dela. Samuel T. estava mais à esquerda, e a partir daquele ponto focal florido, sua visão periférica permitia que ela o acompanhasse ao lado da namoradinha, Veronica/Savannah.

– Por isso, você poderia pelo menos conversar comigo.

Voltando a se concentrar, fitou o odioso Richard Pford IV. O homem era só uma versão do jovem que um dia fora: alto e magro, com um olhar capaz de cortar vidro e uma natureza suspeita que contrastava com a sua posição invejável na hierarquia social de Charlemont. Filho de Richard Pford III, era o único herdeiro da Distribuidora de Bebidas Pford, uma cadeia nacional que distribuía vinhos, cerveja, bourbon, gim, vodca, champanhe, uísque etc. nas prateleiras e nos negócios do país inteiro.

O que significava que ele podia bancar um valor de seis dígitos para garantir um assento todas as noites da semana e duas vezes aos domingos.

Ele nadava em milhões, e seus familiares nem tinham começado a morrer ainda.

– Os assuntos do meu pai não me interessam – ela rebateu. – Portanto, parece que desperdiçou o seu dinheiro.

Ele tomou um gole de vinho.

– E pensar que ele foi para o programa de basquete da UC.

– Não sabia que você era fã deles.

– Não sou.

– Não é de se admirar que não nos damos bem. – UK. Ela devia ter desconfiado. – Além disso, não ouvi dizer que você estava para se casar?

– Os boatos quanto ao meu noivado foram exagerados.

– Difícil de acreditar, com todas as suas qualidades.

À esquerda, Veronica/Savannah deu um salto na cadeira, os cílios postiços flanaram, o garfo bateu no prato. Enquanto as lentes coloridas se voltavam para Samuel T., o maldito limpava casualmente a boca com o guardanapo damasco.

Samuel T., no entanto, não estava olhando para a namorada. Não, ele casualmente fitava o buquê de flores bem na frente de Gin.

O filho da puta.

Deliberadamente, Gin se virou para Richard e sorriu.

– Bem, estou encantada com a sua companhia.

Richard assentiu e voltou a cortar o seu filé mignon.

– Assim é muito melhor. Por favor, não pare.

Gin falou com suavidade, ainda que não fizesse ideia do que estava saindo da sua boca. Mas Richard assentia mais e mais, e respondia, por isso ela deduziu que estava se saindo bem com suas habilidades sociais. Mas, pensando melhor, quer se tratasse de conversas que não a interessavam ou orgasmos com homens com os quais não se importava, ela tinha bastante prática em fingir.

E, mesmo assim, estava ciente do que Samuel T. estava fazendo. Dolorosamente ciente.

Os olhos dele queimavam, cravados nela. E, nesse meio-tempo, bem como ele lhe prometera, a vadia ao lado dele começou a se esforçar para manter a compostura.

– … me resguardei para você – Richard declarou.

Gin franziu o cenho, captando aquela combinação de palavras, a despeito da sua preocupação.

– O que disse?

– Eu estava determinado a me casar, mas entrei num acordo com o seu pai. Foi por isso que pus fim ao noivado.

– Entrou num acordo com o meu pai? Do que está falando?

Richard sorriu com frieza.

– O seu pai e eu chegamos a um acordo quanto ao futuro. Em contrapartida por se casar comigo, estou disposto a conceder algumas vantagens à Cia. Bourbon Bradford.

Gin piscou. Depois balançou a cabeça.

– Não estou ouvindo muito bem.

– Sim, sim, você está. E já lhe comprei o anel de diamantes.

– Não, não, não… Espere um minuto. – Jogou o guardanapo na mesa mesmo sem terminar de jantar, assim como as outras trinta e uma pessoas. – Não vou me casar nem com você nem com ninguém.

– Mesmo?

– Tenho certeza de que “comprou” o seu lugar nesta mesa. Mas ninguém me obriga a fazer porra nenhuma, e isso inclui o meu pai.

Pensou que era uma tristeza não ter questionado a possibilidade do seu bom e velho pai a vender em favor do preço das ações da empresa.

Richard deu de ombros debaixo do terno elegante.

– Se é o que você diz.

Gin olhou para a cabeceira da mesa onde William Baldwine estava sentado em comando total, como se estivesse em um trono suspenso, mantendo-o acima dos seus súditos.

O homem não percebeu o olhar letal e, portanto, não sabia que a bomba tinha sido lançada. Ou talvez, quem sabe, ele tivesse planejado dessa forma, sabendo que Richard seria incapaz de ficar calado, e que ela não poderia provocar um escândalo por causa das testemunhas.

E, maldição, seu pai tinha razão quanto a isso. Por mais que desejasse dar um pulo e começar a berrar, ela não rebaixaria o nome Bradford dessa maneira, certamente não com Sutton Smythe e o pai dela, Reynolds, no mesmo cômodo.

À esquerda, um gemido foi encoberto por uma tossidela fraca.

Gin desviou a atenção do pai para Samuel T., ao que o advogado ergueu uma sobrancelha… e lançou um beijo no ar na sua direção.

– Sim, pode levar o prato dela. – Ela ouviu Richard dizer para o garçom uniformizado. – Ela já terminou.

– O que disse? – Gin se virou para Richard. – Mas você não tem o direito de…

– Aprovo a sua falta de apetite, mas não vamos nos arriscar, certo? – Richard acenou para o garçom. – E ela também não vai comer a sobremesa.

Gin se inclinou para o homem e lhe sorriu. Num sussurro, disse: – Não dê o passo maior que a perna. Eu ainda me lembro da época em que você enchia a sua saqueira com meias. Dois pares, porque um não adiantava muita coisa.

Richard a encarou. Num tom igualmente baixo, respondeu:

– Não faça de conta que tem algum poder de decisão.

– Espere e verá.

– É você quem mal pode esperar para ver. – Ele se recostou e lançou-lhe o olhar satisfeito de um homem que tem um royal flush nas mãos. – Mas não demore muito. O peso dos quilates do seu anel diminui a cada hora.

Eu vou te matar, ela pensou consigo mesma enquanto olhava para o pai. Que Deus me ajude, mas eu vou te matar.

Quando Lizzie fez a curva na estradinha secundária, a faixa de terra para a qual se dirigiu dividia terrenos com plantações de milho e só era larga o bastante para a passagem do seu Yaris. Havia árvores em ambos os lados, não de maneira organizada, mas num padrão casual, arranjado pela natureza, e não pela enxada de um paisagista. Acima, galhos grossos se uniam formando um dossel de verde brilhante na primavera, esmeralda no verão, amarelo e laranja no outono e esquelético no inverno.

Normalmente, aquela procissão de meio quilômetro até sua fazenda era o início do seu relaxamento, uma câmara de descompressão que ela acreditava ser o único motivo pelo qual conseguia dormir depois de um dia de problemas em Easterly.

Não naquela noite.

De fato, ela queria olhar por sobre o ombro só para se certificar de que não havia ninguém com ela no banco de trás do carro. Não que coubesse alguém de mais de doze anos ali, mas, mesmo assim… Sentia-se perseguida. Caçada. Assaltada. Ainda que sua carteira continuasse dentro da bolsa e ela estivesse, de fato, sozinha em seu carro.

A casa da fazenda era uma clássica casa americana, exatamente o que se veria num filme da Lifetime que se passasse num fim de semana de quatro de julho: branca com uma varanda, com vasos de amor-perfeito, uma cadeira de balanço e um banco suspenso em um dos lados. Tanto a indispensável chaminé de tijolos vermelhos quanto o telhado pontudo com telhas cinza eram originais, da época da sua construção em meados de 1833. E o coup de grâce? Um bordo imenso que oferecia abrigo para o calor do verão e para o vento frio do inverno.

Estacionou debaixo da árvore, que era o que de mais próximo a uma garagem que ela tinha, e saiu do carro. Mesmo que Charlemont dificilmente fosse Manhattan, a diferença no nível de barulho era impressionante. Naquelas partes, havia sapos, vagalumes que não tinham nada a dizer, e uma coruja que começara a montar guarda num velho celeiro uns dois anos antes. Nenhum murmúrio da autoestrada. Nenhuma sirene de ambulância. Nenhum acorde de jazz ou blues vindos do parque às margens do rio.

Fechando a porta, o som foi amplificado pela escuridão, e ela se viu aliviada quando caminhou e as luzes ativadas pelo movimento, colocadas em ambos os lados da entrada, foram ativadas. As botas rasparam nos cinco degraus que rangeram, e a porta de tela a acolheu com o resmungo das dobradiças. A fechadura era de latão, relativamente nova. Fora instalada em 1942.

Do lado de dentro, tudo estava escuro, e quando ela confrontou o vazio, desejou ter um cachorro. Um gato. Um peixinho dourado.

Apertando o interruptor, piscou quando seu lar doce lar se iluminou com a suave luz amarela. A decoração não se parecia em nada com a dos Bradford. Na sua casa, se havia algo antigo, era por ser útil e por ter sido feito por algum artesão do Kentucky: uma velha cesta de vime, um par de colchas de retalhos gastos pendurado nas paredes, uma cadeira de balanço, um banco de pinho debaixo da janela, cabeças de enxadas e pás que encontrara nos campos e que ela mesma emoldurara, para depois pendurar na parede. Também tinha uma coleção de instrumentos musicais, inclusive diversos violinos, muitas canecas, algumas tábuas de lavar roupa, e o maior dos seus tesouros: seu piano Price & Teeple de 1907. Feito de carvalho, com dobradiças incríveis de cobre, pedais e outras partes metálicas, ela o encontrara apodrecendo num celeiro, na porção oeste da propriedade, e o restaurara com muito amor.

A mãe chamava sua casa de museu do folclore, e Lizzie concluiu que isso devia ser bem verdade. Para ela, não existia conforto maior do que se ligar a gerações de homens e de mulheres que trabalharam na terra, esculpiram suas vidas e transmitiram seu conhecimento de vida para as gerações seguintes.

Agora? Tudo era 3G, 4G, LTE, e os computadores e smartphones eram cada vez menores e mais rápidos.

Sim, porque esse sim era um legado de honra e de perseverança para deixar aos seus filhos: como se esforçar para ficar na fila por vinte e seis minutos a fim de adquirir um novo iPhone, com um copo do Starbucks numa mão e um blog a respeito de alguma inutilidade na outra para passar o tempo.

De volta à sua cozinha anos 1940 – o estilo não era importado da Ikea ou Williams-Sonoma com suas réplicas, mas sim o original, de quando ela comprara a casa sete anos atrás –, abriu a geladeira e encarou as sobras da torta de frango que fizera na segunda à noite.

Aquilo era tão inspirador quanto a ideia de comer lascas de tinta esquentadas numa frigideira.

Quando seu celular começou a tocar, olhou por sobre o ombro, para a bolsa que largara no corredor.

Deixe para lá, ela se ordenou. Apenas deixe…

Esperou até que o aparelho silenciasse, e esperou mais para ver se haveria outra chamada – caso fosse uma emergência com a mãe, outra ligação se seguiria. Ou pelo menos haveria um toque alertando a chegada de uma mensagem.

Quando nenhum dos dois aconteceu, ela foi até o corredor e apanhou a bolsa. Nenhuma mensagem. Não reconheceu o número, mas conhecia o código de área: 917.

Cidade de Nova York. Celular.

Tinha amigos que ligavam para ela daquela área.

Suas mãos tremiam ao abrir a lista de chamadas recebidas e apertar o último número.

Foi atendida antes que o primeiro toque terminasse.

– Lizzie?

Seus olhos se fecharam quando a voz de Lane entrou em seu ouvido e em todo o seu corpo.

– Alô? – ele disse. – Lizzie?

Havia muitos lugares para sentar em sua sala ou na cozinha – cadeiras, sofás, até mesmo a mesinha de centro era robusta o suficiente. Em vez de usar qualquer um desses móveis, recostou-se contra a parede e deixou o traseiro escorregar até o chão.

– Lizzie? Você está aí?

– Sim. – Apoiou a testa na mão. – Estou aqui. Por que está ligando?

– Eu só queria me certificar de que você chegou bem em casa.

Sem nenhum motivo, lágrimas surgiram em seus olhos. Ele sempre agia assim. No tempo em que estiveram juntos, não importava que horas ela saía, ele lhe telefonava assim que ela passasse pela porta. Como se tivesse um timer no telefone.

– Não estou ouvindo a festa – comentou. – Ao fundo.

– Não estou em casa.

– Onde você está?

– No Antigo Silo. No armazém de barris. – Ela ouviu um barulho, como se ele também estivesse se sentando no chão. – Faz muito tempo que não venho aqui. O cheiro é o mesmo. A aparência também.

– Nunca fui aí.

– Você gostaria daqui. É o seu tipo de lugar, tudo muito simples e funcional e feito à mão.

Ela relanceou para a sala de estar e se concentrou na primeira pá que encontrara nos campos onde plantava milho todos os anos. O objeto era velho e enferrujado e, para ela, belo.

O silêncio que se seguiu fez parecer como se ele estivesse na sala junto dela.

– Estou feliz que não tenha desligado – Lane disse por fim.

– Eu queria poder desligar.

– Eu sei.

Ela pigarreou.

– Pensei em tudo o que me disse, no caminho para casa. Pensei em como você estava enquanto conversava comigo. Pensei… em como as coisas eram.

– E?

– Lane, mesmo que eu conseguisse superar tudo, e não estou dizendo que consigo, o que, exatamente, você quer de mim?

– Qualquer coisa que você me der.

Ela gargalhou num acesso tenso.

– Isso foi bem franco.

– Tenho outra chance com você? Porque vou te dizer isso agora, neste instante, se houver a mínima chance de você me aceitar, eu…

– Pare – ela inspirou fundo. – Apenas… pare.

Quando ele parou, ela ficou puxando e puxando o cabelo, com tanta força que seus olhos ficaram ainda mais marejados. Ou talvez isso estivesse acontecendo por outros motivos.

– Eu queria que você não tivesse voltado – ela se ouviu dizer. – Eu queria… Eu já estava te esquecendo, Lane. Estava recuperando o meu fôlego, a minha vida. Eu estava… e agora você está aqui, dizendo as coisas que quero ouvir, olhando para mim como se estivesse falando sério. Mas eu não quero voltar. Não posso.

– Então vamos em frente.

– A vida não é fácil assim.

– Não é. Mas é melhor do que nada.

Enquanto o silêncio se estendia uma vez mais, ela não sentiu necessidade de falar, de explicar mais coisas, de detalhar tudo. E enquanto as palavras martelavam em sua cabeça, ela desistiu de lutar.

– Não fiquei um dia, uma noite sem pensar em você, Lizzie.

O mesmo valia para ela, mas ela não queria lhe dar esse tipo de munição.

– O que você andou fazendo esse tempo todo lá?

– Nada. E estou falando sério. Fiquei com um amigo, o Jeff… bebi, joguei pôquer. Esperei, querendo ter uma oportunidade de falar com você.

– Por dois anos.

– Eu teria esperado uma dúzia.

Lizzie parou de puxar o cabelo.

– Por favor, não faça isso…

– Eu quero você, Lizzie.

Enquanto assimilava as palavras, seu coração batia tão forte que ela conseguiu sentir o aumento na pressão sanguínea no peito e no rosto.

– Nunca deixei de te querer, Lizzie. De pensar em você. De desejar que você estivesse comigo. Diabos, sinto como se estivesse num relacionamento com um fantasma. Eu te vejo nas ruas de Nova York sem parar, em alguma loira passando por mim numa calçada, talvez no modo como ela penteia os cabelos, ou por causa dos óculos, ou pela cor das calças jeans… Eu te vejo nos meus sonhos todas as noites; você é tão real que consigo te tocar, te sentir, estar com você.

– Você tem que parar.

– Não consigo. Lizzie… eu não consigo.

Fechando os olhos, ela começou a chorar baixinho na solidão da sua casa tão modesta, aquela que ela mesma comprara e que estava quase acabando de pagar, o maior símbolo da razão pela qual não precisava de um homem em sua vida, nem agora, nem nunca.

– Você está chorando? – ele sussurrou.

– Não – respondeu depois de um instante, num soluço. – Não estou.

– Está mentindo?

– Sim, estou.

 

TREZE

Lane olhava para o lado oposto do Antigo Silo construído por um dos seus ancestrais, sabendo que estava dentro do limite legal de álcool para poder dirigir, e que isso não duraria muito. Tinha uma garrafa de no 15 contra o quadril, que surrupiara de uma caixa pronta para ser despachada, e apesar de ainda não ter rompido o lacre, tinha toda intenção de secar a garrafa.

Em toda a sua volta, o Antigo Silo estava deserto, e surpreendeu-se ao perceber que o código de acesso do sistema de alarme ainda era o mesmo de antes.

Sabia que deveria deixar Lizzie em paz.

– Sinto muito – murmurou. – Quero dizer todas as coisas certas, fazer as coisas certas, e sei que não estou cumprindo esses objetivos. Maldição, Lizzie…

Inclinou a cabeça para o lado e segurou o telefone entre o ombro e a orelha. Pegando o bourbon, abriu a garrafa e a levou até a boca.

A ideia de tê-la feito chorar de novo o comia vivo.

– Você está bebendo? – ela perguntou.

– Ou faço isso ou bato a cabeça na parede até sangrar.

Enquanto ela exalava fundo, ele deu mais um gole. E um terceiro.

Quando terminou de engolir e a queimação na garganta cessou, ele fez a pergunta cuja resposta tanto temia: – Você está com alguém?

Ela demorou bastante para responder.

– Não.

Foi sua vez de exalar fundo.

– Não acredito em Deus, mas, neste instante, estou com vontade de me autoproclamar cristão.

– E se eu não te quiser mais? O que vai fazer, então?

– Está me dizendo que isso é verdade?

– Talvez.

Ele fechou os olhos.

– Então, eu vou recuar. Isso vai acabar comigo… mas vou embora.

Mais silêncio. Que ele passou bebendo da garrafa.

– Amigos – ela disse por fim. – Só vou até aí. É só isso que consigo fazer.

– Ok. Respeito isso.

Ele conseguiu ouvir o alívio na voz dela.

– Obrigada.

– Mas – ele a interrompeu – o que, exatamente, isso quer dizer?

– Como é?

– Bem, amizade… Como é isso? Posso te telefonar, certo? Amigos podem comer juntos de vez em quando, só para se manterem a par das novidades, não é? Você sabe, divórcio, planos de mudança, novas direções, esse tipo de coisa.

– Lane.

Ele sorriu.

– Adoro quando você diz meu nome desse jeito.

– Quando estou irritada?

– É sexy.

Lizzie pigarreou.

– Essa palavra não cabe numa amizade, ok?

– Eu apenas constatei um fato.

– Uma opinião.

– Fato.

– Lane, estou te avisando, você precisa…

Enquanto ela prosseguia, falando à sua maneira tipicamente franca e sem rodeios, ele fechou os olhos e prestou atenção às ordens dela, deixando que seu tom de voz o envolvesse. Bem no íntimo, aquele desejo velho e tão conhecido despertou, como um dragão adormecido… e o ímpeto foi tão forte que ele quis entrar no carro e atravessar as pontes até Indiana.

– Ainda está aí? – ela perguntou, brava.

– Ah, estou. – Arrumando a ereção dentro das calças, refreou um gemido. – Estou, sim.

– O que está fazendo?

Ele afastou a mão para longe, bem longe do marco zero.

– Nada.

– E então? – disse ela. – Está ou não?

– Estou o quê?

– Dormindo enquanto fala comigo.

– Muito pelo contrário – ele murmurou.

Houve uma leve pausa e depois:

– Ah…!

Como se ela o tivesse compreendido.

– Melhor eu desligar – ele disse, rouco. – Cuide-se. Nos falamos amanhã.

Só que ela não parecia querer que ele desligasse… e seu pau ficou todo lépido e faceiro.

– Quer dizer que você vai ficar? – ela perguntou.

Podemos falar sobre outro assunto?, sua ereção pensou.

Sossegue, garoto.

– Sim, vou. – Quando ele mudou de posição no chão duro, tentou ignorar o modo como o zíper resvalou. – Tenho que me encontrar com Samuel T. para falar do divórcio.

– Então, você vai mesmo…

– Vou – ele disse. – Imediatamente. E não, não é só por sua causa. Cometi um erro, e vou consertar isso para o bem de todo mundo.

– Tudo bem. – Ela pigarreou. – Ok.

– Só estou seguindo em frente, Lizzie.

– Se é o que você diz. Bem, tchau…

– Não – ele a interrompeu. – Assim não. Nós dizemos boa noite, está bem? E não tchau, a menos que você queira que eu apareça na soleira da sua porta como um cachorro sem dono.

– Está bem.

Antes que ela desligasse, ele formou um “eu te amo” com os lábios.

– Boa noite, Lizzie.

– Boa noite… Lane.

Encerrando a ligação, Lane deixou o braço cair, e o aparelho bateu no piso de concreto com um baque.

– Eu te amo, Lizzie – disse em voz alta.

Tomando mais um gole da garrafa, pensou em como era conveniente que a fortuna da família se baseasse em algo com o qual ele poderia se embebedar. Se fosse uma enormidade de outros produtos de consumo – canetas, baterias de carro, band-aids, chicletes –, nada poderia ajudá-lo na sua atual situação.

Quando o telefone voltou a tocar, ele o atendeu de pronto. Mas não era Lizzie.

– Jeff – ele disse, mesmo não querendo conversar com mais ninguém.

A voz do seu anfitrião nova-iorquino soou seca.

– Você ainda está vivo.

– Basicamente. – Levou a garrafa de volta à boca. – E você, como é que você está?

– Está bebendo?

– Isso mesmo. No 15. Eu dividiria com você, se estivesse aqui.

– Um cavalheiro sulista, sem dúvida. – Seu amigo praguejou. – Lane, onde você está?

– Em casa.

Houve tempo suficiente para grilos cantarem na conexão.

– Você está se referindo a…

– Isso mesmo.

– Charlemont?

– Nascido e criado eu fui, e ao lar regressei. – Puxa. Devia estar ficando bêbado, estava parecendo um sulista de verdade. – Assim como você e o Upper East Side, só que nós temos miúdos de porco e frango frito.

– Que diabos você está fazendo aí?

– A minha… – Pigarreou. – Uma pessoa muito importante para mim adoeceu. Tive que voltar.

– Quem?

– A mulher que me criou. A minha… bem, a minha mãe. Mesmo ela não sendo a minha mãe biológica. Ela ficou doente alguns anos atrás, mas sabe como são essas coisas. Elas podem voltar. Ela diz que vai ficar bem, então estou me apegando a isso.

– Quando vai voltar?

Lane tomou mais um gole.

– Já te contei que me casei?

– O quê?

– Foi um pouco antes de eu ir para o norte e acabar no seu sofá. Vou ficar aqui até a senhorita Aurora ficar bem e, assim, vou poder cuidar dessa outra coisa idiota. Além disso… é que… tem essa outra mulher.

– Espera um minuto. Cacete. Espera aí…

Houve uma espécie de farfalhar, seguindo de um clic, clic, clic como se alguém estivesse tentando acender um isqueiro… e depois uma baforada.

– Vou precisar de um cubano para ouvir isso. Então, você tem uma esposa?

– Eu te disse que não era gay.

– Foi por isso que você não ficou com ninguém aqui?

– Não, foi por causa da outra mulher. Aquela com quem não me casei. Aquela que é naturalmente bonita e boa demais para mim.

– Vou precisar de um diagrama de Venn – o cara murmurou. – Cacete, por que não me contou nada disso?

Lane balançou a cabeça, mesmo que o amigo não pudesse vê-lo.

– Eu estava no modo de fuga. – Caramba, odiou o fato de Chantal estar certa. – Tudo estava barulhento demais dentro da minha cabeça. A coisa toda. Então, como é que você está?

– Você joga isso tudo em cima de mim e termina querendo saber como é que eu estou?

– Tenho que voltar a beber. Conversar está me retardando, mas estou disposto a ouvir. – Tomou um gole grande. – E aí? Alguma novidade?

– Estou bem, você sabe, as coisas de sempre no trabalho. Dez mil amplificadores ligados, um chefe que não sai do meu rabo e dezesseis comprimidos de Motrin por dia para impedir que a minha cabeça exploda. O mesmo de sempre. Pelo menos ainda tem dinheiro… ainda mais agora que você não está me arrancando um quarto de milhão de dólares todas as semanas no feltro verde.

Conversaram um pouco mais sobre nada em especial. Jogos de pôquer, Wall Street, a mulher com quem Jeff andava transando… E mesmo que Lane não fosse muito de ficar conversando ao telefone, percebeu que estava com saudades do cara. Acostumara-se à troca rápida, às sacadas inteligentes e, em especial, àquele sotaque de Jersey nos fim das frases e no uso de algumas outras palavras.

– Então, acho que é adeus por ora – seu antigo colega de classe disse.

Lane franziu o cenho e visualizou Lizzie. Ouviu a voz dela. Lembrou-se da cautela dela.

Depois rearranjou sua ereção persistente.

Ficou se perguntando se existia a mínima possibilidade de voltar para Nova York.

Pensando bem, seria melhor não se adiantar. No que se referia a reconquistar Lizzie, dependia de duas pessoas. Só porque estava pronto para retomar o relacionamento deles não significava que ela se apressaria. E também havia a sua família. Como se ele conseguisse se imaginar voltando a viver em Easterly… Mesmo que a senhorita Aurora ficasse bem de saúde e que ele e Lizzie se acertassem, a ideia de coexistir com o pai bastava para ele contemplar a fronteira canadense com carinho. E nem isso seria longe o suficiente.

– Não sei se vou ficar de vez.

– Você sempre pode voltar. O meu sofá já está com saudades de você… e ninguém joga Texas Hold’em como você.

Os dois desligaram depois de se despedirem, e enquanto Lane mais uma vez largava o braço e deixava o aparelho cair, concentrou-se na antiga destilaria do lado oposto. O lugar fora usado por décadas na virada do século, e agora era visitado por dezenas de milhares de turistas que vinham conhecer o Antigo Silo durante todo o ano.

Por algum motivo, percebeu que nunca tivera um emprego. A extensão dos seus “empenhos profissionais” era evitar os paparazzi, o que era mais uma questão de sobrevivência do que algo relacionado a uma carreira. Graças ao seu fundo fiduciário, não sabia o que eram chefes ou colegas de cubículo chatos, nem trajetos ruins para o trabalho e de volta para casa. Não se preocupava em estar em algum lugar num determinado horário, ou em concluir relatórios, nem tinha dores de cabeça devido às tantas horas passadas diante da tela do computador.

Engraçado, nunca antes considerara o fato de ter tanto em comum com Chantal. A única diferença entre eles era que o dinheiro da família dela não bastava para sustentar o estilo de vida a que se acostumara, motivo pelo qual tivera que se casar com ele.

E lá estava Lizzie, trabalhando duro, pagando aquela fazenda. Conhecendo-a como a conhecia, ela já devia estar chegando ao seu objetivo.

O que o fazia respeitá-la ainda mais.

E também o fazia se questionar exatamente o que tinha para oferecer a uma mulher de substância. Dois anos atrás, estivera todo excitado e metido no drama familiar, ávido por ela fisicamente, e tão cativado por ela mentalmente que nunca olhara para si mesmo segundo o ponto de vista dela. Todo o seu dinheiro e a sua posição social só tinham valor para pessoas como Chantal. Lizzie queria mais, merecia mais.

Ela queria a realidade.

Talvez, no fim das contas, ele não estivesse tão acima daquela sua esposa.

Ex-esposa, corrigiu-se, enquanto continuava a beber.

 

CATORZE

– A que devo a honra?

O pai de Gin falava, e seu tom era de afirmação, não de pergunta, e sugeria que o fato de ela estar parada na porta do quarto dele era uma invasão.

Que pena, ela pensou com ironia.

– Quero saber que diabos aprontou com Richard Pford.

O pai não demonstrou nenhuma reação, parado diante da cômoda, prosseguindo com o ato de retirar as abotoaduras de ouro. O paletó do smoking preto tinha sido dobrado uma vez e estava ao pé de uma chaise longue, e os suspensórios preto e vermelho haviam sido retirados dos ombros e estavam pendurados na cintura como duas fitas.

– Pai – ela rugiu. – O que você fez?

Ele a deixou esperando até tirar a gravata borboleta, puxando-a do colarinho.

– Está na hora de você se assentar…

– Você dificilmente está em posição de defender o matrimônio.

– … e Richard é um marido perfeito.

– Não para mim.

– Isso ainda veremos. – Virou-se na direção dela, os olhos frios, o belo rosto impassível. – E não se engane, você se casará com ele.

– Como ousa! Não estamos na virada do século. As mulheres não são bens, podemos ter propriedades, as nossas próprias contas bancárias, podemos até votar! E, com certeza, podemos decidir se queremos ou não atravessar a nave de uma igreja… E eu não vou, de modo algum, sair com aquele homem, quanto menos me casar com ele! Ainda mais se isso beneficiar você de algum modo.

– Sim, você vai. – Por uma fração de segundo, o olhar dele se desviou para cima do ombro dela e ele meneou a cabeça como se estivesse dispensando alguém no corredor. – E fará isso o mais rápido possível.

Gin se virou, esperando ver alguém atrás de si na soleira da porta. Não havia ninguém ali.

Voltou a se concentrar nele.

– Você vai ter que apontar uma arma na minha cabeça.

– Não será preciso. Você fará isso por sua própria escolha.

– Não.

– Sim, você vai.

No silêncio que se seguiu, o coração dela deixou de bater algumas vezes. Durante toda a vida, aprendera a odiar e a temer o pai. E naquele silêncio tenso, de ar estagnado entre eles, ela se perguntou, e não pela primeira vez, do que ele seria verdadeiramente capaz.

– Você pode escolher brigar – disse ele com suavidade. – Ou pode ser eficaz em relação ao assunto. Você só vai acabar se ferindo se não fizer isso pela família. Agora, se me permite, vou me recolher…

– Você não pode me tratar dessa maneira. – Ela forçou um pouco a voz. – Não sou um executivo da empresa que você pode empregar e demitir. E não pode me dar ordens, não quando se trata de arruinar a minha vida.

– A sua vida já está arruinada. Você teve uma filha aos dezessete anos, aqui, nesta mesma casa, pelo amor de Deus, e deu seguimento a isso com o comportamento promíscuo tipicamente reservado para as strippers de Las Vegas. Quase não se formou na Sweet Briar por causa do affair com o professor de inglês, que era casado e, assim que voltou a morar aqui, deitou-se com o chofer. Você é a desgraça da família. E pior, tenho a distinta impressão de que parte da sua diversão nessas suas aventuras é a vergonha que provoca em sua mãe e em mim.

– Talvez se eu tivesse um bom exemplo masculino para admirar, eu não considerasse os homens tão universalmente desagradáveis.

– Antes você os considerasse mesmo desagradáveis. No entanto, esse parece não ser o seu problema. Por algum motivo, Richard não se intimidou com a sua reputação, um erro de julgamento que, por certo, ele vai acabar lamentando. Ainda bem que não é problema meu.

– Eu te odeio – ela sibilou.

– O mais triste, minha querida, é que lhe falta suficiente profundidade para tal nível de inimizade. Se fosse minimamente inteligente, perceberia que Richard Pford será capaz de mantê-la no estilo de vida que você necessita, tanto quanto precisa do ar para respirar, pelo resto dos seus dias. E você estará garantindo a continuação do sucesso e da saúde financeira da família que lhe deu essa bela ossatura e essa adorável coloração facial. Essa será, depois de tudo, a sua única contribuição ao nome “Bradford”.

Gin mal percebia que estava respirando superficialmente.

– Algum dia, você vai pagar pelos seus pecados.

– Está se tornando religiosa agora? Acredito que qualquer tipo de conversão para você será difícil, até por alguém como Jesus.

– Como pode ser tão odioso? Nunca conheci ninguém tão cruel quanto você…

– Só estou cuidando de você do único modo que sei. Estou lhe dando uma fortuna, um nome honrado, e você poderá levar Amelia com você, se desejar. Ou ela pode ficar aqui.

– Como se ela não passasse de uma maleta? – Balançou a cabeça. – Você é um depravado. Absolutamente depravado…

Ele avançou e a agarrou pelo braço, permitindo que alguma emoção escapasse por baixo da máscara aristocrática de autossegurança.

– Você não faz a mínima ideia do que é necessário para manter esta família. Nenhuma ideia. A sua tarefa diária mais complexa é priorizar o que fazer antes: unhas ou cabelos. Portanto, não ouse falar de depravação quando estou resolvendo o problema de todos os sanguessugas debaixo deste teto. Os termos favoráveis de Richard Pford continuarão a nos permitir isso. – Balançou a saia do vestido de gala dela. – E isso… – Apontou para o colar no seu pescoço. – E todas as outras coisas das quais você tira vantagem diariamente sem parar para ponderar, nem que seja por um instante, como chegaram até você e a que custo. Casar-se com aquele homem é a única coisa que já lhe pediram em troca pela sua boa estrela ao nascer e pela sua liberdade de cobiça. Você é uma Bradford dos pés à cabeça, capaz apenas de consumir, mas, às vezes, um pagamento deve ser feito. Portanto, sim – ele enfatizou –, posso lhe garantir que você será a deveras feliz e contente senhora Richard Pford. Você lhe dará filhos e será fiel a ele, ou, que Deus me ajude, eu a surrarei como a garotinha de cinco anos que você ainda é. Estamos entendidos? Ou quem sabe você vai preferir fazer um curso intensivo para tentar ser como as pessoas que lavam os seus carros, preparam a sua comida, limpam o seu quarto e passam as suas roupas? Talvez você goste de saber como é difícil trabalhar para se sustentar.

– Eu te desprezo – ela disse, trêmula dos pés à cabeça.

O pai também arfava, e tossiu no punho cerrado.

– Como se me importasse. Vá em frente, faça o seu escândalo, esperneie e grite, só provará o quanto estou certo. Se for uma mulher de fato, em vez de apenas uma criança mimada e malcriada, acordará pela manhã e cumprirá o seu dever pela primeira vez em sua vida.

– Eu seria capaz de te matar neste mesmo instante!

– Mas, para isso, você teria que carregar uma arma, não é? Não é algo que possa pedir a uma criada, desde que, claro, não queira ser descoberta.

– Não me subestime…

– Visto o baixo padrão que estabeleceu para si mesma, isso seria algo muito difícil de fazer.

Girando sobre os calcanhares, ela saiu do quarto aos tropeções, e correu pelo corredor até a sua suíte. Lançando-se pela porta, trancou-se e ofegou.

Ah, inferno, não, não, jurou. Você não vai fazer isso comigo.

Se ele achava que antes ela era um problema, ele que esperasse pelo que ela aprontaria em seguida.

Enquanto marchava do quarto para o banheiro, planos reviravam em sua cabeça, muitos dos quais envolviam crimes contra o pai. No fim, teve que tirar o vestido, e o deixou cair no chão, livrando-se da seda antes de continuar andando de um lado para o outro apenas de bustiê e saltos e aqueles diamantes que a vadia da esposa do irmão tentara pôr as mãos.

Fervendo, só conseguia pensar na primeira vez em que odiara o pai…

Tinha seis, talvez sete anos, quando aconteceu. Noite de Ano-Novo. Acordara por causa dos fogos, que explodiam ao longe sobre o centro da cidade. Assustada, fora à procura de Lane, aquele com quem sempre se sentia amparada… encontrando-o na sala de estar com Max.

Gin insistira em ficar com os irmãos e fazer o que quer que estivessem fazendo. Na época, era a história da sua vida, sempre correndo para acompanhá-los, conseguir alguma atenção, estar no radar de alguma pessoa. Os empregados da casa faziam o que os pais queriam e cuidavam dos irmãos. Ela era uma nota de rodapé, uma reflexão tardia, o tapete no qual tropeçavam a caminho da porta quando iam fazer algo melhor, mais interessante, mais importante.

Não quisera beber aquela coisa da garrafa. O cheiro do bourbon era ruim, e ela sabia que era proibido, mas se Max e Lane iam tomar um pouco, então ela também tomaria.

E assim foram apanhados.

Não uma vez, mas duas.

Assim que entrara na sala, Edward ordenara que ela voltasse para a cama, e ela saíra pelos fundos como ele lhe dissera. Depois de passar pelo corredor dos empregados, porém, ouvira vozes e tivera que se esconder nas sombras a fim de não ser flagrada… quando o pai saíra do escritório de Rosalinda Freeland.

Ele estava usando seu roupão, amarrando as duas pontas do cinto ao sair de lá, e seus olhos estavam arregalados, como se estivesse com raiva, mas não havia como ele ter ouvido suas vozes lá na sala de estar. O primeiro instinto de Gin fora o de correr para a frente da casa e alertar os irmãos. No entanto, o medo a detivera… E, em seguida, a senhora Freeland saíra também, agarrando o pai pelo braço.

Sua mente infantil se perguntara por que a blusa da moça do escritório estava desabotoada, e os cabelos, sempre bem penteados e presos, estavam meio desarrumados.

Os dois discutiram em tons sussurrados, dizendo coisas que ela não conseguiu entreouvir acima das batidas do seu coração. Em seguida, o pai saiu de lá e a senhora Freeland voltou para o escritório, fechando a porta.

Gin permanecera ali pelo que lhe pareceu um ano, temendo sair, caso a senhora Freeland voltasse. Só que ela também temia que o pai voltasse por aquele caminho e a encontrasse.

Ele não devia estar ali com aquela mulher.

Ele não ficaria feliz por ela tê-lo visto.

Descalça, apressou-se pelas escadas dos empregados, colando na parede de gesso conforme subia. Já no segundo andar, paralisou quando uma segunda rodada de fogos se iniciou e, assim que terminaram de explodir, ela se abrigou na porta aberta de um dos quartos de hóspedes, desejando ter algum lugar seguro para ir.

Voltar sozinha para o quarto parecia-lhe aterrorizante. E se, além disso, o pai estivesse procurando por ela?

Sentando-se encolhida, enfiou as pernas junto do corpo e abraçou os joelhos. O pai devia ter encontrado os irmãos. Não havia como o homem não os ter visto, se tivesse usado as escadas da frente.

E isso a assustava mais do que o barulho do lado de fora.

Momentos depois, Edward surgiu no alto da escadaria, com o pai logo atrás, pairando como um monstro. Por algum motivo, o andar do irmão estava trôpego e a pele do rosto estava pálida. O pai lhe pareceu tão inflexível e reprovador quanto um banco de igreja.

Onde estariam os outros dois?

Nada foi dito enquanto eles prosseguiam até a porta do quarto do pai. E quando chegaram ao destino, Edward ficou de lado e depois tropeçou para dentro do cômodo escuro assim que a porta lhe foi aberta.

– Sabe onde estão os cintos.

Foi tudo o que o pai disse.

Não, não, ela pensou. Aquilo não era justo, Edward não estava envolvido! Por que ele…

A porta se fechou num baque, e ela estremeceu ante o que estava para acontecer.

Como esperado, um estalido foi seguido por um grunhido.

De novo.

E mais uma vez.

Edward nunca chorava. Nunca praguejava.

Já ouvira aquilo vezes demais para saber disso.

Gin abaixou a cabeça sobre os braços finos e cerrou os olhos. Não sabia por que o pai odiava tanto Edward. O homem desgostava do resto deles, mas Edward o deixava furioso.

Edward nunca chorava.

Por isso, chorou por ele… E resolveu, dali por diante, que se o pai podia odiar Edward, dois poderiam jogar aquele jogo.

E ela escolheu o que segurava o cinto naquele minuto.

Odiaria o pai dali por diante.

Voltando a se concentrar, Gin descobriu-se sentada na cama, com os joelhos ao encontro do peito, os braços ao seu redor, como se estivesse, uma vez mais, sentada dentro daquele quarto de hóspedes com apenas a camisola para aquecê-la, e o que acontecia no quarto do pai a aterrorizava em seu íntimo.

Sim, fora assim que tudo começara para ela, e William Baldwine nunca lhe dera motivos para reconsiderar o seu ódio. Aquele acordo com Richard Pford era apenas mais um item numa longa lista.

Mas não era o pior.

Não, a pior coisa que o homem fizera foi algo que ela apenas suspeitava, algo que ninguém mencionara, quer sob o teto de Easterly, quer nos jornais.

Estava convencida de que o pai era o sequestrador de Edward.

O irmão ia com frequência à América do Sul, e assim como outros executivos de sua posição, sempre viajava acompanhado de seguranças contratados pela CBB. Com esse tipo de proteção, ninguém deveria ter sido capaz de se aproximar. No entanto, seu irmão fora levado… Não numa estrada, nem mesmo numa localização remota.

Mas da sua suíte no hotel.

Como foi que aquilo pôde acontecer?

A primeira coisa que ela pensou, quando lhe contaram, foi que ali havia dedo do seu pai.

Tinha provas? Não, não tinha. Mas passara a infância inteira vendo o homem observando Edward como se menosprezasse o ar que o garoto respirava. E mais tarde, quando Edward passara a trabalhar na empresa, teve a impressão de que o relacionamento daqueles dois esfriara ainda mais, visto que o Comitê dos Curadores passara a dar mais e mais responsabilidades a Edward.

Haveria um modo melhor de se livrar de um rival do que matá-lo no exterior? De uma maneira que faria William Baldwine parecer vítima por ser um pai “em luto”?

Deus, Edward quase fora enterrado lá. E quando finalmente regressara? Estava em péssimas condições. Nesse meio-tempo, o pai se colocara diante da mídia, dos curadores, da família, mas nunca, sequer uma vez, fora visitar o filho.

Vergonhoso. E na cabeça dela era uma confirmação de que William Baldwine tentara se livrar de uma ameaça corporativa que não podia demitir.

Não era de se admirar que ela não confiasse nos homens.

Não era de se admirar que nunca fosse se casar.

Quanto menos para fazer o pai feliz.

 

QUINZE

Quando chegou a Easterly na manhã seguinte, Lizzie precisou manobrar o Yaris duas vezes para conseguir estacioná-lo direito, o que revelava o quão lamentável era seu estado mental, considerando-se que o carro era do tamanho de uma bicicleta. Saindo dele, pegou desajeitada a bolsa e a deixou cair. E quando se abaixou para pegar o protetor solar no asfalto já quente, percebeu que tinha esquecido de trazer o almoço.

Fechou os olhos.

– Maldição…

– Tudo bem, menina?

Lizzie se endireitou e se virou na direção de Gary McAdams. O chefe da manutenção da propriedade vinha andando pelo gramado, o leve claudicar não o fazia diminuir o ritmo, com o rosto envelhecido pelo tempo crispado em sinal de preocupação, como se estivesse avaliando um trator com eixo solto.

Será que sua aparência estava tão ruim assim?, perguntou-se.

Pensando bem, não dormira praticamente nada.

– Ah, sim, estou bem. – Ela forçou um sorriso. – Ótima.

– Tem certeza disso?

Não.

– Sim. Como vai a sua equipe?

– Já terminaram de cortar a grama e de aparar as trepadeiras, e vou fazer com que limpem o terraço depois das dez. – Porque só então eles tinham permissão para fazer barulho perto da casa. – As tendas foram erguidas, a parte do buffet já está pronta com as grelhas no lugar, mas tem um probleminha.

Lizzie acomodou a bolsa no ombro e pensou que já estava pronta para lidar com qualquer problema que pudesse solucionar.

– O que foi?

– Aquele senhor Harris está querendo falar com você. Tem algo com as taças de champanhe.

– Com a disposição delas nas mesas? – Fechou a porta do carro. – Pensei que elas seriam distribuídas durante a festa.

– Não, só chegou metade do pedido. Ele acha que você mudou a quantidade.

– O q… Por que eu faria isso?

– Ele disse que você é a única pessoa com acesso ao pessoal do aluguel.

– Encomendei as tendas, só isso. É ele quem tem que cuidar da louça, dos talheres e dos copos… Desculpe, estou gritando? Sinto como se estivesse gritando.

Ele apoiou sua grande mão sobre o ombro dela.

– Não se preocupe com isso, menina. O senhor Harry também me deixa doido.

– É senhor Harris.

– Eu sei.

Ela teve que gargalhar.

– Vou lá falar com ele.

– Quando ficar cansada dele, eu tenho uma pá e um ancinho. E muita área verde livre lá na minha casa.

– Você é um cavalheiro.

– Nem perto disso. Me dá a sua bolsa, menina. Vou com você.

– Ela não pesa nada. Pode deixar comigo. – Começou a andar pelo caminho que levava até a ala dos empregados. – Além disso, posso precisar dela para bater na cabeça dele.

– Lembre-se do meu ancinho – ele disse.

– Sempre.

A cada passo sobre as pedras, seu peito se contraía, e a sensação de sufocamento piorava conforme a vastidão da mansão branca surgia ao longe.

Depois de passar a madrugada olhando para o teto, não chegou a conclusão nenhuma sobre ela e Lane. O que ela guardara para si? O som da voz dele no fim do telefonema. Lembrou-se daquele tom sexy que costumava significar que ele encontraria um modo de ficar sozinho com ela, despida, o mais rápido possível.

Pareceu-lhe uma traição total que seu corpo não fosse nada além de um simples “ah, sim, pode vir” – como se sua libido desejasse o retorno do seu mestre. Afinal, ela era muito mais do que apenas um ou dois orgasmos roubados com um homem que ela deveria estar manuseando com pinças de churrasco e um extintor de incêndio.

Loucura.

Quando, por fim, chegou à casa, passou pela entrada lateral do jardim e atravessou a porta dos fundos da cozinha só para se certificar de que tudo o que preparara para a festa ainda estava onde havia deixado na noite anterior.

O que era tolice. Como se um punhado de elfos tivesse entrado ali e bagunçado tudo à luz do luar.

Entrou pela porta de empregados e cruzou a imensa cozinha que, naquele momento, estaria limpa, fria e vazia, apenas à espera dos chefs que estavam escalados para trabalhar das oito às oito. Só que o cômodo não estava completamente deserto. A senhorita Aurora estava diante do fogão industrial, com uma panela de ferro cheia de bacon estalando à esquerda, uma segunda à direita tomada de ovos mexidos. Quatro pratos estavam dispostos na bancada de aço inoxidável da ilha principal, junto de tigelas com framboesas e mirtilos frescos, um açucareiro, um pote com creme de leite e café sobre uma bandeja, sem falar de uma seleção de pãezinhos doces caseiros.

– Senhorita Aurora?

A mulher olhou por sobre o ombro.

– Ah, aí está ela. Como está? Já comeu?

– Sim, senhora.

– Não o bastante. Você e Lane, magrinhos demais. – A cozinheira se voltou para os ovos e os virou com uma espátula vermelha. – Você deveria deixar que eu te alimentasse.

– Não quero causar problemas. – Houve um grunhido de desaprovação, e antes que a discussão de sempre começasse, Lizzie a interrompeu. – A senhora me parece bem.

– Eu disse praquele mordomo que não precisava de nenhuma ambulância.

– Pelo visto, a senhora tinha razão. – E Lane devia estar muito aliviado. – Viu o senhor Harris?

– No escritório dele. Quer que eu vá com você?

– Então ficou sabendo do “champanhegate”?

– Fui eu que mandei Gary te avisar. Eu sabia que ele ia te ver quando você chegasse. Não quis que você viesse pra cá sem ter sido avisada antes.

– Não mudei o pedido.

– Claro que não. – A senhorita Aurora levantou uma frigideira de uns sete quilos como se não pesasse mais que um prato de papel. Enquanto distribuía os ovos, balançava a cabeça. – Existe uma explicação perfeitamente boa.

– Qual?

– Não é da minha conta.

– Tuuudo bem. – Lizzie deu um tempo para que a cozinheira se explicasse, mas ela não o fez. – Bem, de toda forma, vou cuidar disso. Estou muito feliz que esteja bem e de pé, senhorita Aurora.

– Você é uma boa menina, Lizzie. Mas seria ainda melhor se me deixasse te oferecer o café da manhã.

– Talvez na próxima vida.

– Só se tem direito a uma. Depois, a gente vai pro céu.

– É o que o meu pai sempre me dizia.

– O meu também.

Andando sobre o piso de azulejos, Lizzie empurrou as portas duplas e seguiu pelo corredor dos empregados. O escritório do senhor Harris ficava bem diante do de Rosalinda, e ela bateu à porta do mordomo. E mais uma vez. Na terceira, achou que estava esfolando os nós dos dedos à toa.

Fungando no ar, fez uma careta e considerou que o corredor precisava ser arejado urgentemente. Mas, pensando bem, os Bradford se recusavam a instalar ar-condicionado ou aquecimento naquela parte da casa. Afinal, os empregados que se virassem.

Seguindo até a porta envernizada de Rosalinda, também bateu ali, mesmo que a organizadora da família fosse rígida em seu horário de trabalho das nove às cinco, com trinta minutos de almoço precisamente ao meio-dia e dois intervalos de quinze minutos às 10h30 e às 15 horas. A agenda controlada lhe parecera bizarra a princípio, mas, alguns anos mais tarde, já era somente mais uma das muitas regras e regulamentos de Easterly. E fazia sentido, uma mulher que não fazia nada além de pagar contas e somar e subtrair números provavelmente tinha uma régua de cálculo nas veias e sérios problemas de controle.

Daí, então, seu título.

Pousando as mãos nos quadris, Lizzie sabia que o mordomo muito provavelmente estaria servindo a família na sala de jantar íntima. Inclusive Lane.

Consultou as horas no relógio de pulso. Não ficaria esperando pelo senhor Harris e, de jeito nenhum teria aquele confronto diante dos outros. Além disso, ela tinha trabalho a fazer: não terminara os arranjos florais na noite anterior.

Seguindo para a estufa pelo caminho dos fundos, deixou de lado sua confusão mental e se concentrou no que tinha para fazer. Depois que terminasse os arranjos, disporia as toalhas de mesa, já que não havia probabilidade de chuva e de vento forte antes do Brunch da manhã seguinte. E estava encarregada de colocar todos os pratos e copos onde precisavam ficar: junto aos bares e estações de serviço espalhados pelos jardins. Greta deveria chegar em…

– Bom dia.

Lizzie parou com a mão na maçaneta da estufa.

Relanceando por cima do ombro, deparou-se com os olhos de Lane. Ele estava sentado numa espreguiçadeira lateral, com as pernas dobradas na altura dos joelhos, os cotovelos nos apoios de braço, os dedos longos cruzados diante do peito. Usava as mesmas roupas da noite anterior e o cabelo estava uma bagunça completa, como se ele não tivesse dormido em sua cama.

– Esperando por mim? – ouviu-se dizer enquanto seu coração batia forte.

Em seu quarto, Gin amarrotava uma blusa Prada e a enfiava num dos cantos da sua mala Louis Vuitton de rodinha.

– Lenço de papel… era para você colocar lenço de papel aí. Onde ele está…

Começando a procurar, encontrou as folhas cor-de-rosa clarinhas com suas iniciais estampadas numa gaveta ampla dentro de seu guarda-roupa. De volta para onde estava arrumando a mala, lambeu o dedo e tirou uma das folhas, sendo atingida pela fragrância suave de Coco, porque a empregada borrifava cada um dos lenços individualmente assim que eram entregues na casa. Colocando o papel delicado ao redor do bolinho de seda, cobriu tudo com uma saia McQueen.

Repetindo o processo até ter quatro conjuntos completos ali, inclinou-se para trás para dar uma olhada no trabalho. Horrível. Nada parecido com o que Blanche fazia para ela, mas não pretendia esperar até que a mulher chegasse para o seu turno ao meio-dia.

Gin estava fechando a mala quando percebeu que não tinha separado roupas íntimas, sapatos e tampouco os artigos de higiene.

Pegou outra mala LV e dispensou o lenço de papel.

De toda forma, o que importava? Acabaria simplesmente comprando tudo que precisasse.

Quando terminou, levantou o telefone ao lado da cama e ligou para o escritório de Rosalinda, sem acreditar quando a secretária eletrônica pediu que deixasse um recado.

– Onde diabos essa mulher foi…

Uma olhada rápida para o relógio Cartier sobre a mesa e ela descobriu que ainda eram 8h30. Deus, há quanto tempo não se levantava cedo assim?

Arranjos para o uso dos jatinhos também podiam ser feitos por meio da assistente executiva do pai, e aquele robô estava sempre junto à sua escrivaninha. Mas Gin só queria que ele soubesse que ela estava partindo quando estivesse na metade do caminho até a Califórnia e, sem dúvida, seu buldogue de saia atacaria o telefone para avisá-lo assim que ela a acionasse.

Deus, aquela expressão no rosto dele na noite anterior fez seu sangue gelar. Nunca o vira tão furioso.

Mas, em retrospecto, ela era mesmo filha do seu pai: assim como no jogo do ódio, dois podiam jogar aquele novo jogo.

Dez minutos mais tarde, Gin puxou as alças da bagagem e as rolou até o corredor, tropeçando sobre as malditas malas. Com a bolsa de monograma combinando com a bagagem batendo na lateral do corpo, empinou um dos saltos Louboutin para fechar a porta, e praguejou contra a falta de um carregador.

Mas também não confiava no mordomo.

A bem da verdade, não confiava em ninguém naquela casa.

Antes de tomar o elevador até o porão, foi até o quarto de Amelia e abriu a porta.

Pela primeira vez, percebeu a decoração.

A cama de dossel branca e rosa era queen size, apesar de a filha pesar pouco mais que um travesseiro, e não havia nenhum pôster da Taylor Swift ou do One Direction nas paredes. A penteadeira era francesa e antiga, o banheiro acoplado era de mármore e latão, e tinha mais de sessenta anos, e o candelabro Baccarat no meio do quarto era suspenso por uma corrente coberta por seda, e debaixo dele havia um medalhão de ouro feito à mão.

Parecia mais o quarto de uma senhora de cinquenta anos do que de alguém de quinze.

Dezesseis, a partir da noite anterior, Gin se lembrou.

Andando na ponta dos pés sobre o tapete bordado à mão, ela apanhou seu retrato predileto da menininha de cabelos negros, que agora já não eram mais tão escuros já que ela estava fazendo luzes a cada seis semanas, e tampouco era tão pequenina, pois já estava no segundo ano em Hotchkiss.

Só de pensar na filha, a ideia de sair de Easterly lhe parecia cada vez mais acertada. Ela tinha duas amigas esperando por ela em Montecito, e ficaria lá até que o pai entendesse que podia muito bem administrar uma empresa bilionária, mas que não mandava nela. E depois disso? Voltaria para lá com certa regularidade, só para ele ver que cometera um erro.

De novo no corredor, refreou os xingamentos ao se arrastar até o elevador e entrar. Quebrou uma unha ao apertar repetidamente o botão para fechar a porta, e quase quebrou um dos saltos quando pisou no chão da adega, puxando as malas para fora.

Não fazia a mínima ideia de onde ir. Onde ficava a garagem. Como se orientar no andar subterrâneo.

Levou quase vinte minutos para encontrar o túnel que levava até a frota da família, e quando emergiu na garagem para dez carros, sentia-se como se tivesse não só acabado de correr uma maratona, mas vencido.

Só que estava sem as chaves dos carros. Nada no Bentley. Nem do Drophead. E não pegaria nem o Porsche GTS, nem a Ferrari, tampouco o Jaguar antigo que se parecia com o de Samuel T., porque todos eles tinham câmbio manual e ela não sabia dirigir modelos assim. O mesmo acontecia com os 911 e o Spyker.

E os sedãs Mercedes não eram bons o bastante para ela.

– Maldição! – Quando bateu o pé no chão, uma das malas de rodinha caiu como se tivesse desmaiado. – Onde estão as chaves?

Abandonando a bagagem, marchou até o escritório. Trancado. Assim como as portas da garagem.

Aquilo era totalmente inaceitável.

Pegou o celular, estava prestes a telefonar – bem, não sabia exatamente para quem, mas para alguém –, quando um armarinho pendurado na parede chamou sua atenção. Indo na direção da portinha de metal de 0,3 por 0,9 metros, deu um puxão na alça, e não se surpreendeu quando a porta não cedeu.

A boa notícia? Ela estava com muita vontade de bater em alguma coisa.

Olhando ao redor, não viu nada fora do lugar. Desde lonas para cobrir os carros, até pneus sobressalentes e material de limpeza, tudo estava organizado numa parede com precisão militar em prateleiras, ganchos, e caixas tampadas.

Exceto pelo pé de cabra, que encontrou encostado numa pilha de panos limpos com o brasão da família bordado.

Gin sorriu ao caminhar do alto dos seus saltos, erguendo a peça de metal. De volta ao armário, arqueou o objeto acima da cabeça e bateu na caixa onde estavam as chaves como se aquilo fosse a cabeça do pai. Bateu, bateu, bateu e bateu, o som metálico agudo ecoando em seus ouvidos.

Apesar de já estar quase sem unhas quando concluiu a tarefa, a porta estava pendurada no que restava das suas dobradiças.

O Bentley, decidiu.

Não, o Rolls. Custava mais caro.

Levando a bagagem até o Phantom Drophead, abriu a porta que se abria ao contrário, enfiou as malas no banco de trás e se pôs atrás do volante. Afundou o sapato de salto no freio, apertou o botão da ignição e o motor rugiu a vida com um rosnado latente.

Esticando a mão na direção do espelho retrovisor, apertou todos os botões até a porta da frente se erguer.

E partiu.

A raiva dentro dela fez com que quisesse passar pelo caminho frontal só para desfilar diante dos cômodos particulares da família; mas era mais importante sair da propriedade sem que ninguém soubesse, por isso contentou-se em levantar o dedo médio para Easterly pelo espelho retrovisor enquanto usava o caminho dos empregados.

Quando chegou à estrada River, virou à esquerda, verificou as horas e pegou o telefone. Rosalinda já deveria ter chegado àquela altura, e ela poderia finalmente cuidar dos arranjos para o jatinho, o que não deveria ser um problema. Gin pedia o avião pelo menos uma vez por semana.

Caixa postal. De novo.

O maldito Brunch. Esquecera-se dele. Todos os funcionários estavam distraídos.

Mas ela tinha necessidades.

Gin ligou para outro número, um que tinha apenas um dígito diferente do de Rosalinda. Ao terceiro toque, ela estava quase desistindo quando ouviu o inconfundível sotaque britânico daquele mordomo.

– Senhor Harris falando, como posso ajudar?

– Preciso de um avião e não consigo falar com a Rosalinda. Você vai ter que providenciá-lo para mim. Decolando neste instante para o aeroporto de Los Angeles.

O mordomo limpou a garganta.

– Senhorita Baldwine, perdoe-me…

– Não venha me dizer que está ocupado demais. Você pode ligar diretamente para o piloto, já fez isso antes, e depois pode voltar para qualquer uma das suas incumbências idiotas do Brunch…

– Lamento, senhorita Baldwine, mas não haverá um avião disponível para a senhorita.

– Você só pode estar brincando. – Sem dúvida era por causa daqueles convidados corporativos que estavam chegando para o Derby. Mas ela era da família, pelo amor de Deus. – Tudo bem, apenas atrase alguém e eu…

– Não será possível.

– Eu sou prioridade! – O Phantom ganhou velocidade quando ela apertou o acelerador, pelo menos até quase acertar o carro na frente dela. – Isso é inaceitável. Ligue para aquela torre de controle, ou para aquela lista de pilotos ou… para quem quer que me coloque num maldito avião para a costa oeste!

Houve uma longa pausa.

– Sinto muito, senhorita Baldwine, mas não poderei mais fazer esse tipo de serviço para a senhorita.

Um alerta gélido apertou a sua nuca.

– Que tal mais tarde, ainda esta manhã?

– Não será possível.

– À tarde.

– Lamento, senhorita Baldwine.

– O que o meu pai lhe disse?

– Não cabe a mim comentar o que…

– Que porra que ele te disse? – ela berrou ao telefone.

A respiração que o homem soltou era o mais próximo que ele chegaria a uma imprecação em voz alta.

– Esta manhã, recebi um memorando dirigido à organizadora e a mim, indicando que os recursos da família não estariam mais disponíveis para a senhorita.

– Recursos…?

– O que inclui dinheiro vivo, contas bancárias, viagens e acomodações em hotéis, e acesso às demais propriedades dos Bradford ao redor do mundo.

Nessa hora o pé dela escorregou do acelerador, e quando o carro atrás dela buzinou, ela foi para o acostamento.

– Gostaria de poder fazer algo – ele disse num tom neutro que indicava que isso não era verdade. – Mas, como já disse, estou impossibilitado de ajudá-la.

– O que devo fazer?

– Talvez voltar para casa seja o melhor. Acabei de vê-la saindo no Rolls-Royce.

– Não vou me casar com Richard Pford – ela disse e depois encerrou a ligação.

Quando olhou pelo retrovisor, os arranha-céus denteados do centro da cidade pareceram assustadores pela primeira vez em sua vida. Nunca antes se impressionara com a cidade de Charlemont, tendo dado a volta ao mundo diversas vezes. Mas todas essas viagens aconteceram enquanto ela tinha recursos ilimitados ao seu dispor.

Com a mão trêmula, pegou a carteira e levantou o fecho. Ela tinha cinco notas de cem dólares e algumas de vinte… e sete cartões de crédito, inclusive um Amex Centurion. Estava sem a habilitação porque sempre andava com motorista particular. Também não tinha o cartão do seguro de saúde porque fazia uso dos serviços dos médicos afiliados à Cia. Bourbon Bradford. Não estava nem com o passaporte, apesar de não ter planejado sair do país.

Duzentos metros mais adiante, havia um posto de gasolina, e ela voltou a acionar o Phantom, seguindo o fluxo do trânsito. Quando chegou ao símbolo da Shell, cortou caminho diante de um caminhão que vinha na direção oposta e parou junto a algumas bombas de abastecimento.

Quando saiu, não foi para abastecer o carro. O tanque estava cheio.

Sacou um cartão Visa qualquer e colocou-o no leitor. Em seguida, apertou as teclas que compunham a sua senha. Esperou para ver se a transação hipotética seria aceita.

Não aprovado.

Tentou o Amex e recebeu a mesma resposta da máquina. Quando outros dois Visas não funcionaram, ela desistiu.

Ele bloqueara os seus cartões.

De volta ao volante, tudo ficou embaçado. Tinha investimentos por toda parte, dinheiro que lhe pertencia… mas só dali a dois anos, quando completasse trinta e cinco, e nenhum dia antes disso – algo que descobrira quando num impulso tentara comprar uma casa em Londres no ano passado e tivera esse desejo negado pelo pai. Pouco importou o quanto tivesse gritado com a empresa do seu fundo, eles se recusaram a lhe entregar o dinheiro, declarando que ela não tinha permissão para acessá-lo até que atingisse a idade estipulada.

Só havia um lugar para onde poderia ir.

Odiava implorar, mas isso era muito melhor que se casar, ou admitir uma derrota ao pai.

Colocando o câmbio mais uma vez no drive, enfiou-se no trânsito e tomou a direção da qual viera. No entanto, não retornaria a Easterly. Iria para…

De repente, o carro morreu. Tudo parou: o motor, o ar-condicionado, as luzes do painel. As únicas coisas que funcionavam eram o volante e o freio.

Enquanto pressionava o botão da ignição, viu suas ações frenéticas e impotentes de longe, notando, sem dar muita atenção, como suas unhas estavam arruinadas, as pontas cortadas, o esmalte vermelho-cereja lascado. Tendo que admitir que o motor não voltaria a funcionar, foi para o acostamento da estrada para não acabar numa colisão e…

Sirenes soaram ao longe e ela olhou pelo espelho retrovisor.

Uma viatura da Polícia Metropolitana de Charlemont encostou atrás dela com as luzes acionadas. E depois uma segunda unidade se pôs à frente até que o Phantom ficasse bloqueado.

Os dois policiais se aproximaram dela com as mãos sobre as pistolas presas ao coldre, como se não tivessem certeza se precisariam das armas.

– Saia do veículo, senhora – o mais alto deles disse com voz autoritária.

– Este carro é meu! – ela exclamou ao abaixar o vidro. – Vocês não têm o direito de…

– Esse veículo pertence a William Baldwine, e a senhora não tem autorização para usá-lo.

– Ah, meu Deus… – ela sussurrou.

– Saia do carro, senhora…

Merda, estava sem a habilitação.

– Sou filha dele!

– Senhora, estou ordenando que destrave as portas e saia do veículo. Se não fizer isso, vou autuá-la por resistir à prisão. Além de dirigir um veículo roubado.

 

DEZESSEIS

– Claro que eu estava à sua espera. – Assim que Lane falou, levantou as mãos, num gesto de quem pedia para aguardar. – Mas apenas como amigo. Queria me certificar de que chegou bem ao trabalho.

Maldição, ela estava linda. Mais uma vez, com a camisa polo preta do uniforme de Easterly e shorts cáqui, o cabelo puxado para trás, preso num rabo de cavalo… De alguma forma, parecia exoticamente bela.

Pensando bem, já fazia mais de doze horas que não a via.

Uma vida inteira, de fato.

Enquanto ela revirava os olhos, ele a flagrou tentando esconder um sorriso.

– Já fiz esse trajeto algumas vezes, sabe – ela disse.

– E como foi esta manhã?

Houve uma pausa, e então algo mágico aconteceu. Lizzie explodiu numa gargalhada.

Cobrindo a boca, ela meneou a cabeça.

– Desculpe, mas você está horrível. O seu cabelo está todo… – ela mexeu a mão ao redor da cabeça dele – … está uma bagunça, seus olhos mal conseguem ficar abertos. Sabia que está balançando para a frente e para trás apesar de estar sentado?

Ele deu um sorriso largo.

– Você precisava ver o outro cara.

– Ele era durão?

– Agora, em vez de usar capuz ele usa brinco. – Lane levantou um braço e flexionou o bíceps. – Homem pra valer este aqui…

Ouviram um par de passadas vindo na direção deles, então Lane espiou por cima do ombro dela e murmurou alguma coisa bem baixinho.

Era o mordomo inglês seguindo direto para ela, só que parou quando viu Lane.

– Com licença, Lane – Lizzie disse baixinho. – Tenho um assunto de trabalho para resolver agora.

– O que foi? – ele perguntou ao mordomo.

O inglês sorriu, parecendo um manequim de loja.

– Nada com que tenha que se preocupar, senhor Baldwine. Senhorita King, poderia fazer a gentileza de vir até o meu escritório quando tiver terminado de…

– O que houve? – Lane exigiu saber.

– Apenas um mal-entendido – Lizzie murmurou.

– Sobre o quê?!

Lizzie se concentrou no senhor Mais Sagrado Que o Senhor.

– O pedido das taças de champanhe alugadas foi reduzido, e ele acha que eu telefonei para Mackenzie para mudar a quantidade, mas não fiz isso. Ficarei feliz em poder organizar tudo quando os copos e os pratos chegarem, mas não sou responsável por coordenar nada que se refira aos pedidos. As tendas e as mesas são de minha responsabilidade, e elas estão exatamente onde deveriam estar.

Os olhos do senhor Harris se estreitaram.

– Esta conversa deve ser conduzida em meu…

– Então, não tem nada a ver com ela. – Lane sorriu para o mordomo com frieza. – E seu assunto aqui terminou.

Lizzie pôs uma mão no braço dele, e o contato foi uma surpresa tamanha, que de fato o calou.

– Está tudo bem. Repito, ficarei feliz em fazer o que puder para ajudar. Senhor Harris, quer que eu fale com Mackenzie e tente encontrar um modo de solucionar o caso?

O mordomo olhou de um a outro.

– Sei o que encomendei. O que não sei explicar é como apenas metade disso foi entregue.

– Veja bem, não quero lhe ensinar o seu trabalho – Lizzie disse. – Mas erros da parte deles já aconteceram antes. O que precisamos fazer é descobrir o que mais está faltando e ligar para eles para alertá-los. Isso não deve ser um problema. O senhor fez o pedido pessoalmente ou foi por intermédio de Rosalinda?

– Usei os serviços da senhora Freeland, e lhe entreguei os números corretos.

Lizzie franziu o cenho.

– Ela sabe o quanto pedir. Fez isso por anos a fio.

– Ela me garantiu que tomaria conta da questão. Deduzi que outra pessoa com acesso à conta tivesse reduzido a quantidade.

– Vá procurá-la, e eu encontrarei Greta para contar tudo o que foi entregue. Vamos resolver. Pelo menos, descobrimos hoje e não amanhã de manhã.

Houve um instante de constrangimento no qual o mordomo nada disse, e Lane se perguntou o quanto daquele plano sensato ele teria que enfiar goela abaixo do ditadorzinho.

– Muito bem – disse o mordomo. – A sua assistência será muito bem-vinda.

Enquanto o senhor Harris se afastava, Lizzie inspirou fundo.

– E assim entramos na contagem regressiva das vinte e quatro horas.

– Ninguém da equipe pode fazer essa contagem? Esse problema não é seu.

– Está tudo bem. Pelo menos se Greta e eu fizermos isso, saberei que está tudo certo. Além disso, todos em Easterly estão com trabalho até as orelhas, e os chefs auxiliares não poderão dispensar…

O telefone de Lane começou a tocar, e ele o tirou do bolso para silenciar o barulho.

– Quem diabos pode ser? – perguntou, quando viu o código de área local.

Ela riu de novo.

– Você pode descobrir se… prepare-se… atender!

– Está pegando no meu pé?

– Alguém tem que fazer isso.

Lane sorriu tão amplamente que suas bochechas começaram a doer.

– Ok, vamos lançar os dados e ver quem é. – Apertou o botão verde e disse em sua voz mais arrastada: – Vocccccêêêê ligoooouu paaaara…

– Lane! Ah, meu Deus, Lane, preciso da sua ajuda.

– Gin? – Ele se endireitou na espreguiçadeira. – Gin, você está bem?

– Estou no centro da cidade, na cadeia de Washington County. Você tem que vir aqui pagar a minha fiança…

– Que diabos? O que você…

– Preciso de um advogado…

– Ok, ok, ok, devagar. – Ele se pôs de pé. – Você está falando rápido demais e não estou entendendo.

Sua irmã fez uma pausa e depois disse quatro frases completas que o deixaram sem chão.

– Está bem – disse ele com seriedade. – Estou indo para aí agora mesmo. Sim. Certo. Ok. Fique aí.

Quando desligou, só o que ele conseguiu fazer foi procurar o rosto de Lizzie.

– O que foi? – ela perguntou.

– O meu pai mandou prenderem Gin. Tenho que, literalmente, ir até a cadeia e pagar a fiança dela.

Lizzie cobriu a boca com a mão num sinal de choque.

– Posso fazer alguma coisa?

– Não. Vou lá cuidar dela. Mas obrigado.

Ele precisou de todo o seu autocontrole para não se inclinar e beijá-la como costumava fazer. Em vez disso, contentou-se em esticar a mão e afagá-la no rosto, saindo antes que ela pudesse dizer que “amigos não fazem isso”.

Inferno, o que o seu pai estaria aprontando agora?

Na época em que fora fumante, Edward frequentemente acordava de manhã já esticando o braço para pegar o maço de Dunhill Reds antes de estar plenamente consciente de sequer ter rolado de lado.

Hoje em dia ele fazia o mesmo, só que para pegar o frasco de Advil.

Colocando quatro cápsulas de gel na palma trêmula, levou-as à boca e as engoliu com o que restava da vodca que levara para a cama. Fazendo uma careta enquanto essa sua versão de desjejum descia até o estômago, deitou-se de novo sobre o travesseiro.

Tinha parado de fumar durante a recuperação. Na verdade, o sequestro fora o primeiro passo para que abandonasse o vício.

Ironicamente, o fato de quase ter morrido foi o responsável por ajudá-lo a ter uma vida mais longa.

Saudou com a garrafa no ar.

– Gracias, muchachos.18

Antes que seu cérebro entrasse no looping infindável da sequência horrenda do Dia Em Que Tudo Aconteceu, virou as pernas para o chão e se sentou. Não olhou para a coxa e para a panturrilha direitas. Primeiro porque as cicatrizes tortas da sua pele à la Frankenstein estavam gravadas em sua mente. Segundo porque ele já não dormia mais nu, por isso elas não estavam aparecendo.

A bengala era necessária para que ele se levantasse, e seu equilíbrio não estava muito bom não só por causa dos ferimentos, mas pela falta de sono e pelo fato de ainda estar meio embriagado. Mancando até o banheiro, deixou as luzes apagadas, de modo que o espelho não foi um problema, e usou o vaso, lavou as mãos, o rosto e escovou os dentes.

A confirmação de que Deus ainda o odiava veio quando ele saiu do chalé uns dez minutos depois e foi ofuscado pela luz brilhante do sol e pela dor de cabeça causada pela ressaca.

Que horas são?, perguntou-se.

Já estava na metade do caminho até o Estábulo B quando percebeu que levara a garrafa junto. Como se fosse o seu brinquedinho predileto.

Revirando os olhos, seguiu em frente. A senhorita Nada de Praguejar Perto de Mim poderia muito bem se acostumar com ele e sua bebida; não havia motivos para apresentar-lhe uma ilusão diurna de abstinência que só a perturbaria no futuro. Se ela não conseguisse lidar com esse seu hábito, ela podia muito bem ir embora no primeiro dia.

O som de pneus cantando fez sua cabeça girar para a direita, e na fração de segundo seguinte, Shelby apareceu na ponta oposta do estábulo, o corpo encurvado na cintura ao empurrar uma tremenda carga de esterco de cavalo dentro de uma velha carreta enferrujada.

Pelo visto, Moe já a colocara para trabalhar.

– Ei – ele a chamou.

Sem diminuir o passo, ela acenou por sobre o ombro e seguiu em frente com o esterco para trás da construção mais próxima.

Enquanto a observava, invejou o corpo forte dela, talvez notando, sem nem se dar conta, que o sol fazia com que as mechas loiras dela parecessem quase brancas. Ela estava usando uma camiseta azul-marinho, um par de jeans escuros e as mesmas botas resistentes da noite anterior. Depois de desaparecer atrás da curva do prédio, reapareceu duas vezes mais rápido do que deveria, considerando a quantidade de esterco que teve que descarregar.

Portanto, ela também era eficiente.

Ao se aproximar, seus olhos estavam claros e alertas, o rosto corado pelo esforço.

– Quase terminando. Depois vou pro C.

– Jesus, Moe fez com que você… desculpe – disse antes que ela o corrigisse. – Maldição, Moe já te colocou pra trabalhar? E não venha me dizer que não posso usar “maldição”. Deixo de mencionar Deus e Jesus Cristo, mas só vou até aí.

Ela deixou os pés do carrinho encostarem na grama aparada.

– Suco de laranja.

– O que disse?

A filha de Jeb Landis acenou para a garrafa.

– Pode ficar com “maldição”, mas eu gostaria de ver você com outra coisa que…

– Você sempre julgou tanto assim?

– … não fosse vodca tão cedo assim. E não estou te julgando.

– Então por que quer mudar os hábitos de um desconhecido?

– Você não é um desconhecido. – Enxugou a testa com o antebraço. – Não são nem nove da manhã. Fico me perguntando por que você precisa beber tão cedo assim.

– Eu estava meio desidratado.

– Não tem água encanada na sua casa? Ontem tinha.

Ele balançou a garrafa.

– Isto aqui está servindo bastante bem. Pense que é a minha versão da vitamina C.

Ela resmungou alguma coisa ao se abaixar para pegar as alças.

– O que disse? – ele exigiu saber.

– Você me ouviu.

– Não, não ouvi, não. – O que não era exatamente a verdade.

Shelby só deu de ombros e seguiu em frente, aquele seu corpo se movendo debaixo das roupas, executando a tarefa sem nenhum esforço aparente.

E foi nessa hora que algo lhe ocorreu.

– Shelby?

Ela parou e olhou por cima do ombro.

– Pois não?

– Você disse que cuidou de todos os cavalos.

– Cuidei.

– Nos Estábulos A e B.

– Isso mesmo.

Ele se apressou e a agarrou pelo braço.

– Eu te disse. Uma regra. Não chegue perto daquele garanhão.

– A baia não ia se limpar sozinha…

A mão dele se apertou por vontade própria.

– Ele matou um ajudante de estábulo no ano passado. Foi pisoteado até morrer ali. Nunca mais faça isso.

Aqueles olhos azuis dela ficaram arregalados.

– Ele se portou bem comigo.

– Só eu chego perto dele. Estamos entendidos? Faça isso mais uma vez e eu faço as suas malas – ele disse firmemente – e te mando de volta para o lugar de onde veio.

– Sim, senhor.

Ele se afastou e tentou não cambalear.

– Muito bem, então.

– Está certo.

Ela soprou o cabelo para longe do rosto e voltou a andar, com os ombros tensos.

Tirando a tampa da vodca, Edward deu um trago longo e, provavelmente, deveria ter parado quando percebeu que a bebida já não ardia mais.

Mas essa era outra coisa sobre a qual não queria pensar.

Assim como não queria pensar no que poderia acontecer com a filha de Jeb Landis enquanto ela estivesse sob a sua proteção.

Maldição.


“Obrigado, meninos.”

 

DEZESSETE

A cadeia e o Tribunal do Condado de Washington formavam um complexo de edifícios modernos que ocupava dois quarteirões inteiros no centro da cidade, cujas instalações se comunicavam por meio de passarelas que se estendiam acima do trânsito da rua logo abaixo. Havia certa quantidade de entradas e, enquanto Lane encostava o Porsche, inúmeras pessoas entravam e saíam; eram homens e mulheres em ternos subindo e descendo os degraus de mármore, policiais dentro de suas viaturas, delegados estacionando suas SUVS e saindo de vagas reservadas, pessoas em roupas desgastadas fumando pelos cantos.

O seu 911 Turbo emitiu uma tossida baixa quando ele desacelerou e se dirigiu para os prédios imponentes. Não havia nenhum layout lógico que ele conseguisse distinguir. Tampouco um endereço.

Como se, caso tivesse que perguntar para onde deveria ir, ficaria com a sensação de que aquele não era o seu lugar…

Até que, de repente, um afro-americano uniformizado surgiu bem diante do seu carro.

– Droga! – Lane afundou o pé no freio. – Mas que diabos! Mitch?

O delegado Mitchel Ramsay não respondeu. Apenas indicou uma vaga livre bem atrás dele.

Lane estacionou com uma baliza perfeita, ciente de que o delegado estava bem ao lado do seu para-choque, os braços grossos como uma corda náutica cruzados sobre seu peito de jogador de futebol americano. Seus olhos negros estavam escondidos atrás de óculos Ray Ban, e a cabeça raspada fazia com que seu pescoço e seus ombros parecessem ainda maiores do que eram de fato.

Lane saiu do carro esportivo.

– Ei, sabe onde a minha irmã…

– Pode deixar.

Os dois bateram palmas e deram um abraço forte. Enquanto permaneciam peito contra peito, Lane foi transportado para quase dois anos atrás, para a pista de pouso particular a oeste da cidade. Para a noite em que Edward finalmente retornava do cativeiro.

Mitch o trouxera de volta aos Estados Unidos. De volta para a família.

Só Deus sabia como. Ninguém perguntara os detalhes, e Lane sempre ficou com a impressão de que o antigo soldado do Exército não teria partilhado os “como” e os “quem”, de todo modo.

– Ela não está muito bem – comentou Mitch.

– Não me surpreende.

Lane seguiu o delegado, subindo os cinquenta degraus até uma das portas giratórias. Quando terminaram de subir, Mitch desviou para uma porta demarcada com SOMENTE POLICIAIS e depois os fez passar pela segurança, de onde outros policiais acenaram em sinal de respeito.

– Agi o mais rápido que pude assim que vi o nome – disse Mitch enquanto suas passadas se uniam a todas as outras, ecoando no vestíbulo principal, com pé direito alto. – Ela foi presa por furto de veículo, por dirigir sem habilitação, por não apresentar o seguro…

– Como diabos isso foi acontecer?

– … e por resistir à prisão. Já isolei o incidente, mas não vou conseguir mantê-lo fora dos registros policiais indefinidamente.

– Espere. – Lane fez o homem parar. – Minha irmã roubou um carro?

– Um Rolls-Royce. Registrado no nome da Cia. Bourbon Bradford.

– Está se referindo… ao nosso Rolls. O Phantom Drophead?

– O seu pai telefonou pessoalmente para a Polícia Metropolitana e pediu que fossem atrás dela, alegando que ela não tinha permissão para dirigir o veículo.

– Você não pode estar falando sério. – Lane enfiou a mão nos cabelos. – Quero dizer, é claro que ele pode fazer isso. Já fez coisa pior.

– Você chamou um advogado?

– Samuel T. deve chegar aqui em…

– Lane!

Samuel T. avançou em meio a um grupo de pessoas, destacando-se por inúmeros motivos. Primeiro, seu terno de risca de giz azul e branco fazia com que ele parecesse pertencer a uma varanda da casa grande de uma fazenda, sorvendo um julepo de menta com um par de cães de caça aos seus pés. Segundo, ele era belo demais para estar entre os mortais.

– Obrigado por vir tão rápido – Lane disse ao apertarem as mãos. – Você conhece Mitch.

– Certamente. Delegado.

– Senhor Lodge.

Encerrando os cumprimentos, os três seguiram para as escadas rolantes que levavam ao segundo andar.

– Ela está numa cela. – Mitch os conduziu por uma das passarelas. – Mas removi qualquer tipo de retardo para a audiência da fiança. Assim que estiver pronto, senhor Lodge…

– Pode me chamar de Samuel ou de Sam.

– Samuel. – Mitch assentiu. – Assim que estiver pronto. Farei com que ela se apresente diante do juiz McQuaid. Já conversei com o promotor público. As mãos dele estão atadas, visto que o senhor Baldwine está pressionando. A única coisa que posso fazer é apressar, apressar, apressar.

Lane cerrou os molares. Gin dava trabalho e, evidentemente, o pai já estava farto disso, mas aquilo tudo era exposição demais.

– Vou ficar te devendo essa, Mitch.

– Não se preocupe.

O delegado os fez passar por vários pontos de controle de segurança, até adentrarem o complexo. Embora Lane tivesse aprontado sua porção de infrações quando era mais jovem, todas as suas transgressões foram discretamente “resolvidas”. Portanto, aquela era a primeira vez que ia para a cadeia, e não poderia dizer que estava com pressa para voltar lá algum dia.

A sala de espera tinha paredes creme. Piso creme. Cadeira plástica laranja, amarela e vermelha. O cheiro no ar era de suor e de roupas sujas, e de desinfetante em spray.

Graças a Mitch, passaram ao largo do balcão de registros com as divisórias de vidro à prova de balas e da fila de policiais com a pescaria do dia. Isso sim era um chamado para a realidade da outra parte da população. Homens sujos e rapazes estranhos… moças quase despidas… mulheres mais velhas com aspecto cansado… Todos eles de pé ou cambaleando, acompanhados dos policiais que os prenderam, seus rostos revelando as marcas da vida dura que levavam.

– Por aqui, delegado Ramsey – alguém o chamou ao lado de uma porta reforçada.

Depois de passar por mais um ponto de segurança, cruzaram com diversas salas de reunião com luzes vermelhas acesas sobre as portas e grades diante das janelas protegidas por telas.

– Se esperarem aqui – o policial disse, na frente de uma das salas –, eu a trago já.

– Obrigado, Stu. – Mitch abriu a porta e se colocou de lado. – Fico esperando do lado de fora.

– Muito obrigado. – Lane bateu no ombro do homem. – E, provavelmente, ainda vamos precisar da sua ajuda.

– Estou aqui para o que precisarem.

Samuel T. parou ao lado do delegado.

– Alguém já falou com a imprensa?

– Nós não – Mitch respondeu. – E quero que continue assim.

– A minha irmã não tem a melhor das reputações. – Lane meneou a cabeça. – Quanto menos pessoas souberem, melhor.

Mitch os deixou ali na sala. Embora houvesse quatro cadeiras presas ao chão junto a uma mesa de aço também presa, Lane não conseguiu ficar sentado. Samuel T., por sua vez, pôs a velha maleta ao seu lado e cruzou as mãos.

O advogado balançou a cabeça.

– Ela vai ficar louca quando souber que você me chamou.

– E quem mais eu poderia chamar? – Lane esfregou os olhos doloridos. – E depois disso, você vai me ajudar com o meu divórcio, certo?

– Apenas mais uma manhã atarefada com os Bradford…

Pelo menos deixaram que ela permanecesse com as próprias roupas, Gin pensou, enquanto era conduzida por outro corredor de concreto pintado com a vichyssoise do mês.

Ficara aterrorizada com a perspectiva de se despir diante de uma guarda feminina de peito cabeludo para depois ser violada por uma mão com uma luva antes de ser enfiada dentro de um macacão laranja do tamanho de uma tenda de circo. Quando isso não aconteceu, ficara obsessiva com a possibilidade de ser trancafiada numa cela horrorosa e suja com um punhado de prostitutas viciadas em drogas tossindo o vírus da AIDS em cima dela.

Em vez disso, fora colocada numa cela sozinha. Uma cela fria, com apenas um banco e um vaso sanitário de aço sem assento nem papel higiênico.

Não que um dia ela fosse fazer uso daquilo.

Seus brincos de diamante foram retirados, assim como o relógio Chanel, juntamente com as malas LV, o celular, aquelas notas de quinhentos dólares e os cartões de crédito inúteis que tinha na carteira.

Um telefonema. Foi só o que lhe concederam, bem como nos filmes.

– Por aqui – disse o guarda, parando diante de um homem afro-americano uniformizado, e em seguida abrindo uma porta pesada.

– Lane…! – Só que ela parou de correr na direção do irmão assim que viu quem estava sentado à mesa. – Ah, Deus. Ele não.

Lane a abraçou com força depois que a porta se fechou.

– Você precisa de um advogado.

– Estou livre – Samuel T. disse com a fala arrastada. – Relativamente livre.

– Não vou falar na frente dele. – Ela cruzou os braços diante do peito. – Nenhuma palavra.

– Gin…

Samuel T. interrompeu o irmão dela.

– Eu te disse. Acho melhor pegar as minhas coisas e ir embora.

– Sentem-se – Lane ordenou. – Os dois.

Houve um instante de silêncio, que Gin entendeu como sinal de que Samuel T. estava tão surpreso pelo tom de comando quanto ela. Lane sempre fora, dentre os quatro irmãos Baldwine, aquele que seguia conforme a maré. Agora, ele parecia Edward.

Ou como Edward costumava ser.

Depois que se sentou desajeitada numa cadeira tão dura e fria quanto um bloco de gelo, Lane apontou um dedo na direção dela.

– O que você aprontou?

– Como é? – ela disse, se retraindo. – Por que é culpa minha? Por que acha que fui eu quem…

– Porque normalmente é o que acontece, Gin. – Ele cortou o ar com a mão quando ela começou a discutir. – Nem comece, eu te conheço há tempo demais. O que fez desta vez para irritá-lo? Vou tirar você daqui, mas tenho que saber com o que estou lidando.

Enquanto Gin encarava o irmão, quis mais do que nunca mandá-lo se foder. Mas só conseguia pensar na imagem dos seus cartões sendo negados no mostrador digital da bomba do posto de gasolina. Quem mais poderia ajudá-la?

Olhou para Samuel T. Ele não a encarava, e seu rosto estava impassível, mas a desaprovação altiva que ele emanava era tão evidente quanto sua colônia no ar.

– E então? – Lane inquiriu.

Pesando as opções, percebeu que estava completamente desconfortável com essa coisa de enfrentar situações difíceis. Com dinheiro suficiente e uma amnésia conveniente, não existia nada que ela não pudesse evitar, quer isso envolvesse suborno ou teimosia.

Infelizmente, as infindáveis opções estavam fundamentadas num estilo de vida que apenas parecia ser dela. Mas, na verdade, era de outra pessoa. Só não sabia disso até aquela manhã.

Pigarreou.

– Samuel T., você pode… me dar um momento a sós com o meu irmão? – Ela avançou a mão sobre a mesa. – Não estou dizendo que não pode ser o meu advogado, só preciso de um pouco de privacidade com ele. Por favor.

Samuel T. curvou uma sobrancelha.

– É a primeira vez que a ouço dizer essas palavras. Pelo menos estando vestida.

– Cuidado, Lodge – Lane rosnou. – Ela é minha irmã.

O homem se recompôs, como se tivesse se esquecido de que não estava sozinho com ela.

– Perdão. Isso foi inapropriado.

– Não vá para longe. – Lane começou a andar pela sala, puxando os cabelos negros e curtos com a mão. – Pelo amor de Deus, vamos precisar de uma boa representação.

Enquanto seu advogado, amante e pai da sua filha saía – ainda que ele desconhecesse essa última identidade –, Gin mirou os sapatos de salto de seda. A ponta do esquerdo tinha se sujado quando ela foi colocada no banco de trás da viatura.

Houve um clique, indicando que a porta tinha sido fechada atrás de Samuel T. Ela não precisou ser encorajada a falar.

– Ele quer que eu me case com Richard Pford.

– Richard… Desculpe, o que você disse?

– Você ouviu muito bem. Papai vai cortar todos os meus recursos a menos que eu me case com aquele homem. Ele disse que é por causa daquela maldita empresa de distribuição que nos dará melhores taxas ou algo assim.

– Ele ficou louco? – Lane inspirou.

– Você quis saber por que peguei o carro. É por isso, e é por isso que papai chamou a polícia. – Levantou o olhar para o irmão. – Não vou me casar com Richard. Não importa o que o nosso pai faça comigo. É com isso que você vai lidar.

Levantando-se, ela foi até a porta e a abriu.

– Pode voltar.

– Quanta honra – murmurou Samuel T.

Enquanto seu advogado voltava a se acomodar, ela disse: – Então, o que faço para sair daqui?

– Você paga a fiança – Samuel T. respondeu. – E depois tentamos fazer com que as acusações sejam retiradas. Você pode fazer um apelo ou seu pai pode perdoar o que quer que você tenha feito.

– Qual seria o montante da fiança? – Lane perguntou.

– Sem antecedentes, isso vai a favor dela, mas o risco de fugir não. Acho que no máximo cinquenta mil. McQuaid é um juiz amigável para pessoas como nós, por isso o valor não será muito alto.

50 mil dólares. De fato, a quantia nunca lhe parecera muito antes. Apenas mais um pulinho à loja Chanel em Chicago.

Pensou no pouco que tinha na carteira.

– Não tenho essa quantia.

Samuel T. gargalhou.

– Claro que tem.

– Farei com que seja pago – Lane o interrompeu.

Samuel T. abriu a maleta e tirou alguns papéis.

– Você me autoriza a representá-la nessa questão, Virginia?

Desde quando ele a chamava por algo que não fosse o apelido? Pensando bem, talvez ele só não quisesse que seu irmão o esmurrasse no piso de concreto por ter demonstrado familiaridade demais.

– Sim.

Os olhos dele, aqueles olhos cinzentos e aguçados, sustentaram o olhar dela.

– Assine aqui. – Depois de ela ter assinado, murmurou: – Não se preocupe, eu vou tirar você daqui.

A respiração dela vacilou quando ela expirou.

– Mas e depois?

O que, exatamente, seria diferente do outro lado de tudo aquilo? Era muito improvável que seu pai virasse a página subitamente. Edward mal sobrevivera à decisão de William Baldwine de escolher os negócios em detrimento dos filhos.

– Primeiro, te tiramos daqui – Lane disse. – Depois lidamos com o resto.

Voltando-se para o irmão, ela percebeu que nunca o vira tão sério. Recostado à parede nua do cubículo horrendo, ele parecia muito mais velho do que quando partira, dois anos antes. Parecia no comando das coisas.

Ela crescera esperando encontrar autoridade em Edward, e nunca em Lane, o playboy.

– Ele vai ganhar – ela se ouviu dizer. – Papai sempre vence.

– Não desta vez – Lane disse entredentes.

– Que diabos está acontecendo aqui? – perguntou Samuel T.

Lane apenas meneou a cabeça.

– Resolva isso, Samuel. Apenas tire a minha irmã daqui. Eu cuido do resto.

Deus, como ela queria que fosse verdade. Porque, evidentemente, a sua tentativa de irritar o pai não dera muito certo.

 

 

CONTINUA