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VINTE E OITO
O dia do Derby amanheceu limpo e claro, mas, mesmo se houvessem raios e trovões e ventos provocados por ciclones, Lizzie ainda estaria sorrindo durante todo o trajeto até Charlemont.
Lane e ela disputaram no pedra, papel e tesoura para decidir quem iria na frente, e apesar de ele ter vencido três vezes consecutivas, resolveram, no fim, que ela sairia antes. Primeiro porque ela tinha muitas coisas para fazer, e depois porque ele não tinha pressa para ir a parte alguma.
Toda vez que ela piscava, o via deitado em seus lençóis, com o peito nu exposto e o resto do corpo meio encoberto.
Nunca se sentira tão descansada após não ter dormido praticamente nada a noite toda.
Passando pela entrada principal de Easterly, teve que sacudir a cabeça. Você nunca sabe onde vai parar, não é verdade?
Aquele era o fim do acordo “apenas amigos”.
Dando a volta na estrada de funcionários, teve que pisar no freio de repente e aguardar numa longa fila de caminhões de entrega. Ficou aliviada ao ver tantos, considerando o problema que tiveram com a empresa de aluguel, mas ficou apreensiva ao pensar como Lane e a família dele pagariam por todos aqueles adicionais, dada a situação atual.
Quando conseguiu chegar ao estacionamento, teve que apertar seu Yaris numa vaguinha nos fundos. Havia uma centena de garçons e garçonetes chegando para servir na festa, e todos aqueles veículos teriam que caber em algum lugar. Dentro de uma hora, a estradinha de baixo estaria tomada por vans, motos e uma dúzia de modelos diferentes de sedãs.
Saindo do carro, juntou-se ao desfile que seguia para a casa pelo caminho de trás. Ninguém dizia nada, e ela não via nenhum problema nisso. Já estava fazendo uma lista mental das coisas que queria fazer antes que os portões se abrissem e mais de seiscentas das pessoas mais importantes da cidade passassem pela entrada de Easterly para ver as corridas.
O número um dessa lista?
Greta.
Ela tinha que encontrar um modo de se acertar com Greta, porque teriam que trabalhar em equipe a fim de sobreviverem às quatro horas seguintes.
Observou a estufa do lado oposto do jardim, e preparou-se. Sua colega já devia estar ali, sem dúvida vistoriando os buquês, certificando-se de que nenhuma pétala ou folha murcha maculasse a apresentação perfeita antes que eles fossem levados para as mesas.
Ela devia ter chegado lá pelas 6h45.
Assim como Lizzie deveria ter feito.
E teria feito, se não tivesse acontecido aquela coisa envolvendo Lane na sua cama.
– Sou uma mulher adulta – disse a si mesma. – Eu decido com quem, eu decido quando, eu decido…
Maravilha. Estava citando Uma linda mulher.
O problema era que, se sua colega lhe perguntasse por que se atrasara, a situação iria de mal a pior. Ela mentia muito mal, e ficaria vermelha como um tomate antes que conseguisse cuspir uma não resposta que a denunciaria como um outdoor em letras piscantes: PASSEI A NOITE INTEIRA TRANSANDO COM LANE BALDWINE.
Ou qualquer outra frase em alemão que chegasse perto disso.
Aprumando os ombros, Lizzie ajeitou a bolsa no ombro e marchou pelas portas duplas.
Ao abri-las e adentrar no ar perfumado e pesado da estufa, resolveu que lidaria com…
– Você é uma mulherr adulta – Greta disse, assim que levantou o olhar de um dos arranjos. – Me desculpe. Eu não tinha o dirreito de… Você já é crrescida e tem o dirreito de tomarr as prróprrias decisões. Sinto muito.
Lizzie soltou o ar que estava prendendo.
– Também sinto muito.
Greta empurrou os óculos até o alto do nariz.
– Por quê? Você não fez nada errrado. Eu só… Veja bem, sou dez anos mais velha que você. Isso querr dizerr que tenho não só mais rrugas no rosto e mais cansaço no corrpo, mas também sinto que prreciso cuidarr de você. Você não pediu, e prrovavelmente nem prrecisa, mas é assim que eu…
– Greta, sério. Não precisa se desculpar. Nós duas estamos sob forte pressão e…
– Além disso, fiquei sabendo que ela recebeu o pedido de divórrcio ontem.
– As notícias voam. – Apoiou a bolsa numa mesa. – Como ficou sabendo?
– Uma das crriadas viu quando ela jogou os papéis em cima do delegado. – Greta meneou a cabeça. – Quanta classe.
– Eu disse a ele que não fizesse isso por minha causa.
– Bem, quaisquerr que sejam os motivos dele, ele foi em frrente. – Greta voltou ao trabalho, inclinando-se sobre as mesas. – Só me prrometa uma coisa. Tome cuidado. Esta família, eles têm um histórrico de trratarr as pessoas como descarrtáveis, e isso nunca terrmina bem parra o brrinquedo da vez.
Lizzie apoiou as mãos nos quadris e ficou olhando para as botas, que calçara diante de Lane, oferecendo-lhe um espetáculo que ele apreciou muito.
Puxa, pensou. Seu peito doeu ao se lembrar de que, mesmo retomando o relacionamento físico entre eles, as coisas não tinham mudado muito. Não tinham mudado nada, na verdade.
– Só não querro que se magoe de novo. – Greta pigarreou para afastar a emoção contida na voz. – Agorra, vamos trabalharr.
– Ele não é como a família dele. Não é.
Greta fez uma pausa e ficou olhando para o jardim. Depois de um instante, balançou a cabeça.
– Lizzie, está no sangue dele. Ele não tem como impedirr.
Quando Lane voltou a Easterly, estacionou o Porsche na lateral, na sombra do caminho asfaltado que conduzia até a garagem dos fundos.
– Já estou em casa – disse ao telefone. – Quer que eu suba para explicar de novo o plano?
Sua irmã demorou um pouco para responder, e ele conseguiu visualizar Gin balançando a cabeça enquanto jogava o cabelo para trás do ombro.
– Não, acho que você já disse tudo – ela disse.
Ele ajustou o boné da Universidade de Charlemont na cabeça e fitou o céu. Abaixara a capota ao sair da casa de Lizzie e o vento lhe dera a ilusão da liberdade que tanto queria.
Deus, Lizzie… O único motivo pelo qual conseguiria sobreviver àquele dia em forma meio que decente seria por causa da noite que passara com ela. Tinham feito amor por horas… E depois, enquanto ela dormia, ele ficara olhando para o teto do quarto, tentando descobrir, passo a passo, como deveria proceder.
– Vai falar com ele hoje? – Gin lhe perguntou.
Pela primeira vez, esse “ele” não se referia a Edward.
– Quero falar. – Lane cerrou os molares. – Mas não hoje. Não vou dizer nada ao nosso pai antes de saber mais. Se eu tiver essa conversa antes de ter provas, ele vai simplesmente queimar e destruir tudo o que existir.
– Então quando vai confrontá-lo?
Ele franziu o cenho.
– Gin, não diga nada. Estamos entendidos? Não diga nenhuma maldita palavra… especialmente para nosso pai.
– Eu o odeio.
– Então pense a longo prazo. Se quer que ele pague, tem que deixar que ele mesmo se enforque. Entende o que quero dizer? Se o confrontar, na verdade o estará ajudando. Vou cuidar disso, mas existe um processo. Gin? Você está me ouvindo?
Depois de um instante, ouviu uma risada leve.
– Você está parecendo Edward. Como ele costumava ser.
Por uma fração de segundo, ele sentiu uma pontada de orgulho. Em retrospecto, todos eles sempre admiraram e se espelharam em Edward.
– É a coisa mais gentil que você já me disse – ele murmurou, rouco.
– Estou falando sério.
– Então, silêncio a partir de hoje, Gin. E depois eu te conto os nossos progressos.
– Ok, tudo bem.
– Boa menina. Eu te amo. Vou cuidar de nós. De todos nós.
– Também te amo, Lane.
Lane encerrou a ligação e continuou fitando as nuvens. Ao longe, ouvia conversas, e quando abaixou o olhar para a garagem, viu um grupo de garçons uniformizados agrupados próximos a Reginald, recebendo ordens.
É melhor Gin ficar de bico fechado, pensou.
William Badwine já estaria de sobreaviso por causa da morte de Rosalinda. Se Lane ou, que Deus não permitisse, Gin, com aquela boca grande dela, fossem atrás dele, ele esconderia tudo, faria registros desaparecerem, destruiria detalhes.
Imaginando que ainda houvesse algo.
Lane pendeu a cabeça para o lado a fim de fixar o olhar em Easterly. Quanto daquilo restaria?
Deus! Jamais imaginou que um pensamento semelhante passasse pela sua cabeça.
Bem, uma coisa estava clara: o reinado de William Baldwine estava chegando ao fim. Quer fosse retribuição pelo que o homem fizera a Edward durante todos aqueles anos, quer pelo fato de a mãe ter sido desrespeitada, ou mesmo por Rosalinda muito provavelmente ter acabado com a própria vida por causa dele…
Engraçado, aquela coisa com a sua esposa era a última coisa a deixá-lo furioso agora.
Será que Chantal tinha mesmo atacado seu pai? Estaria mesmo grávida?
Inacreditável.
Isso fez com que ele pensasse em dar uma palavrinha de alerta com seu advogado. Uma mulher capaz de algo assim seria capaz de armar qualquer coisa…
Espere. Samuel T. não disse que adultério poderia ser motivo para a redução da pensão?
– Senhor? Gostaria que eu estacionasse o carro?
Lane olhou para o manobrista uniformizado que se aproximava. Apesar dos cinquenta manobristas na base da colina, só havia um deles ali em cima, e seu único propósito era cuidar do carro do treinador da equipe masculina de basquete de Charlemont. Ah, e direcionar os carros dos presidentes e governadores, bem como as SUVS que subissem.
Mas o sedã do treinador era sua prioridade primária e mais importante.
– Não, obrigado. – Tirou o boné e esfregou os cabelos. – Vou deixá-lo…
– Ah, senhor Baldwine, eu não sabia que era o senhor.
– E por que saberia? – Lane saiu e estendeu a mão. – Obrigado por nos ajudar hoje.
O rapaz encarou a mão que lhe era oferecida por um instante, e depois se moveu devagar, como se não quisesse estragar tudo dando uma de idiota.
– Muito obrigado, senhor.
Lane deu um tapa no ombro do manobrista.
– Vou deixá-lo aqui, ok? Não sei se vou para a pista ou não.
– Sim, senhor. Ele é uma beleza!
– É. É mesmo.
Assim que Lane passou na frente do carro, aquele mordomo inglês avançou com uma expressão séria no rosto, como se já tivesse mandado diversas pessoas embora. Mas a postura mudou de imediato ao ver quem era.
– Senhor, como tem passado?
– Bem o bastante. Tenho um pedido a fazer.
– Como posso ajudá-lo?
– Preciso de um terno…
– Tomei a liberdade de encomendar um azul, com camisa branca, colarinho e punhos franceses, e uma gravata borboleta cor-de-rosa com lenço de bolso. Foi entregue ontem à tarde e ajustado com as especificações que Richardson tinha em seus registros. Se necessitar de outros ajustes no paletó ou na calça, mandarei uma criada aos seus aposentos. Há meias cor-de-rosa e um par de sapatos sociais.
Quem haveria de acreditar? Aquela eficiência toda podia ser mais do que mera ilusão.
– Muito obrigado. – Embora não precisasse disso para o Derby, e era no que o mordomo estava pensando. – Eu…
O som de uma batida pesada à porta fez com que ambos virassem para trás.
– Pode deixar, senhor.
Lane deu de ombros e seguiu para a escada. Era hora de dar uma espiada naquela sua cômoda e trocar de roupa…
– Os funcionários contratados para o Brunch devem se utilizar da porta dos fundos – o mordomo disse num tom empertigado. – O senhor deve…
– Vim falar com William Baldwine.
Lane parou ao reconhecer a voz.
– Isso não será possível. O senhor Baldwine não está recebendo visitas… Lane se virou e se retraiu ante a visão do homem magro de cabelos escuros, em roupas desgrenhadas e botas de couro caras.
– Mack?
– … deve se retirar imediatamente da…
Interrompendo o mordomo, Lane se aproximou do homem que havia crescido com ele.
– Mack, você está bem?
Ok, a resposta para aquela pergunta evidentemente era “não”. O Mestre Destilador da Bradford estava com uma péssima aparência; seus olhos normalmente aguçados estavam cercados por duas manchas escuras e havia um vestígio de barba por fazer naquele seu rosto belo como o pecado.
– O seu pai está arruinado a empresa – Mack proferiu numa série de palavras arrastadas.
– Pode deixar comigo – Lane disse, dispensando o mordomo e sustentando o destilador por debaixo do braço. – Venha comigo.
Arrastou o homem embriagado pela escada principal e depois foi empurrando-o pelo corredor até o seu quarto. Uma vez ali dentro, levou Mack até a cama, sentou-o e se virou para fechar a porta.
O baque de um peso morto caindo no chão ressoou em todo o quarto.
Com uma imprecação, Lane voltou para a cama e levantou-o, recolocando-o sobre o colchão. Mack tagarelava a respeito da integridade do processo de fabricação do bourbon, da importância da tradição, da ausência de reverência que a administração demonstrava pelo produto, de como alguém poderia ser cretino a ponto de…
Eles não chegariam a parte alguma com aquilo.
– Hora de se levantar – Lane anunciou ao recolocar o velho camarada de pé. – Vamos lá, meu velho.
Mack estivera na casa inúmeras vezes, mas nunca embriagado daquela maneira. Bem, não desde a sua passagem para a vida adulta. Unindo isso às informações de Rosalinda e ao fato de o destilador acreditar que William estava arruinando a companhia…
Mais uma peça no quebra-cabeça, Lane pensou. Só podia ser.
No banheiro de mármore, abriu a torneira e enfiou Mack debaixo do jato de água fria com roupa e tudo.
O berro do homem foi alto o bastante para estilhaçar um vidro, mas, pelo menos, o choque fez com que ele ficasse de pé sozinho.
Deixando-o debaixo do chuveiro, Lane foi para junto do armarinho para preparar um desjejum e ligou a cafeteira.
– Acordou, Mack? – perguntou ao levar uma xícara com o brasão dos Bradford até o banheiro. – Ou seria melhor colocar um pouco de gelo na mistura?
Mack o encarou com raiva, com o cabelo molhado, debaixo do jato d’água.
– Eu deveria te dar um soco.
Lane abriu a porta de vidro.
– Quantos de mim você está vendo?
– Dois. – O homem aceitou a xícara com as mãos molhadas. – Mas antes eram quatro e meio.
– Então está funcionando.
Mack tomou um gole da bebida preta ao mesmo tempo em que virava a torneira marcada com o Q.
– O café não está ruim.
– Você saberia diferenciá-lo de diluente de tinta?
– Provavelmente não.
Lane apontou para o quarto.
– Vou estar ali, te esperando. O roupão está pendurado atrás da porta. Faça-me o favor de não me aparecer pelado.
– Você não saberia o que fazer comigo.
– Exato.
Fechando a porta, Lane foi para o closet, trocou de roupa e se acomodou onde Mack não conseguira se sustentar ereto. Pouco depois, o Mestre Destilador fez a sua grande entrada.
Os dois tinham jogado juntos no time de basquete na escola preparatória de Charlemont antes de irem para a faculdade, e o cara continuava tão atlético como sempre, sem nenhum grama de gordura e a estrutura delgada de um homem que sabia jogar golfe como um profissional, correr uma maratona melhor do que idiotas dez anos mais jovens do que ele, e ainda arrasar numa quadra de basquete.
Ah, e não havia nada de bobo naqueles olhos castanhos. Num romance, os olhos de Mack seriam descritos como “uísque” ou algo semelhante, mas não foi a cor incomum que fez com que tantas mulheres fossem para a cama com ele.
Não, havia muito mais por trás.
E as pessoas me chamavam de mulherengo?, Lane pensou consigo. Edwin MacAllan era muito pior.
– Você tem mais disso? – Mack ergueu a xícara. – Acho que mais um litro deve dar conta.
– Sirva-se. A máquina prepara uma xícara de cada vez ali.
O cara relanceou para a porta aberta da pequena cozinha.
– Certo, eu faço bourbon. Acho que sei fazer café.
– Deixa que eu mesmo preparo. Também estou precisando, e incendiar a casa hoje de manhã não seria nada bom.
Os dois acabaram como duas velhinhas, em espreguiçadeiras próximas às janelas, cada um com sua xícara. Duas velhinhas que precisavam se barbear.
– Fale comigo. – Lane apoiou os cotovelos nos joelhos. – O que está acontecendo com a empresa?
Mack sacudiu a cabeça.
– É bem ruim. Estou bêbado há dois dias.
– Como se isso já o tivesse detido antes. A gente saiu junto nas folgas da faculdade, lembra? Seis vezes. E só duas dessas folgas faziam parte do calendário escolar.
Mack sorriu, mas a expressão não se sustentou.
– Olha só, guardei minha opinião a respeito do seu pai só para mim…
– Pode parar com isso agora. Acha que eu não sei como ele é?
Houve uma longa pausa.
– Não sei de onde veio esse memorando. Pensei que talvez fosse de um dos engravatados, mas estava errado. Andei perguntando. Foi uma ordem direta do seu pai. Quero dizer, o homem administra um negócio de um bilhão de dólares. Por que se importaria com…
– Você tem que recuar um pouco nessa história. Não estou entendendo nada do que você está dizendo.
– Ele me fez parar. Está parando a produção.
Lane se moveu para a frente.
– O quê?
– Recebi um memorando anteontem, estava na minha mesa. Não tenho mais permissão para comprar milho. Sem milho, sem mistura. Sem mistura, nada de bourbon. – Deu de ombros e sorveu mais um gole de café. – Fechei os silos. Pela primeira vez desde a mudança para o Canadá durante a Proibição… Parei tudo. Sim, claro, ainda tenho alguns silos cheios, mas não vou fazer nada. Não até falar com o seu pai e descobrir que porra ele está pensando. Quero dizer, é a diretoria que está por trás disso? Eles vão nos vender para a China e querem que a situação pareça melhor na contabilidade cortando despesas? Mesmo isso não faz nenhum sentido… Querem que a gente atrase a produção em seis meses bem durante o boom de bourbon que o país está vivendo? Lane ficou calado, todo tipo de cálculo rodando em sua mente.
– Eu queria que Edward estivesse aqui. – Mack balançou a cabeça. – Edward nunca permitiria que isso acontecesse.
Lane esfregou a cabeça, que latejava sem trégua. Engraçado, ele também pensava assim.
– Bem, mas ele não está.
– Então, se você não se importar em me emprestar umas roupas secas, vou ver se encontro seu pai. Ao inferno com aquele buldogue inglês lá de baixo! William Baldwine vai ter que me receber…
– Mack.
– … e explicar por que…
– Mack. – Lane encarou o amigo com determinação. – Posso confiar em você?
O destilador franziu o cenho.
– Claro que pode.
– Preciso entrar no sistema da empresa. Preciso ter acesso às finanças, detalhes das contas, relatórios anuais. E você não pode mencionar isso a ninguém.
– O que você… por quê?
– Pode me ajudar?
Mack abaixou a xícara.
– No que eu puder. Sim, claro.
– Te encontro no seu carro. – Lane se pôs de pé. – Eu dirijo. Pegue qualquer coisa do armário, menos o terno azul de risca de giz.
– Lane, que diabos está acontecendo aqui?
– Existe uma possibilidade de que essa interrupção não seja uma estratégia de negócios.
Mack fechou a cara, como se Lane estivesse falando numa língua estrangeira.
– Não entendi. O que você disse?
Lane olhou pela janela, para o jardim, para a tenda. Visualizou as pessoas que estariam ali em menos de duas horas, todas elas se deleitando com a fortuna e a glória da grande família Bradford.
– Se você abrir o bico sobre isso com alguém…
– Mesmo? Acha que precisa me dar esse tipo de aviso?
Lane voltou a olhar para o amigo.
– Pode ser que estejamos sem dinheiro.
Mack piscou.
– Não é possível.
Partindo para a porta, Lane disse por cima do ombro.
– Veremos. Lembre-se, qualquer coisa menos o terno.
VINTE E NOVE
A primeira coisa que Edward fez ao abrir os olhos foi praguejar. A cabeça latejava. O corpo era uma colcha de retalhos de dores, náusea, rigidez. A mente estava…
Surpreendentemente clara como água.
E, pela primeira vez, isso não era algo ruim.
Ao juntar forças para se levantar, deixou que as imagens da mulher da noite anterior penetrassem em sua mente. Ainda estava embriagado – ou melhor, inebriado –, por isso era capaz de imergir totalmente nas lembranças, sensações, sabores, fragrâncias. O contexto pode ter sido fabricado, algo programado e pago, mas a experiência em si foi…
Bela. Ele pensou que a palavra correta era essa.
Ajeitando-se dentro das calças, agarrou a bengala, esforçou-se para ficar de pé, e cambaleou. O banheiro estava uns dez quilômetros naquela direção, e ele…
Quando deu o primeiro passo, chutou alguma coisa no chão.
– Mas que diabos…? – Franzindo a testa, inclinou-se para baixo, equilibrando-se na bengala para não acabar se tornando outro tapete naquele piso.
Era uma bolsa de festa.
Uma daquelas caixinhas quadradas cobertas de seda com uma pedra falsa como fecho.
A mulher estava com aquela bolsa. Lembrava-se vagamente de pensar que era o exato tipo de bolsa que Sutton usaria.
Tomou cuidado ao se inclinar para apanhar o objeto. Só Deus sabia o que havia ali dentro.
Retornando para a poltrona, pegou o telefone na mesinha lateral. Ligou para Beau enquanto fitava o relógio do lado oposto. Sete e meia. O cafetão deveria estar acordado ainda, encerrando os trabalhos da noite anterior.
– Alô? – uma voz rouca disse. – Edward?
– A mulher deixou uma coisa na minha casa. Uma bolsa.
– Tem certeza?
– Como assim?
– É que, veja bem, eu ia mesmo te ligar. A sua garota, a que eu enviei, disse que já havia alguém saindo da sua casa quando ela chegou…
Edward franziu a testa, pensando que talvez não estivesse tão bem como acreditara.
– Como assim? – repetiu, porque era a única coisa que lhe vinha à mente.
– A garota que eu mandei. Ela chegou na sua casa às dez horas, mas tinha outra mulher saindo. Disse que já tinha cuidado de você e que voltaria na semana que vem. Não sei qual das minhas garotas foi. Você pode abrir a bolsa e me dizer quem era?
Uma sobriedade total e clínica assolou Edward como se alguém tivesse virado um balde de gelo na sua cabeça.
– Sim, claro.
Segurando o telefone com o ombro, abriu o fecho da bolsa, e um tubinho de batom caiu e rolou nas tábuas do chão. Havia três cartões ali dentro; ele deixou de lado o cartão de crédito Amex e o cartão de seguro de saúde para pegar a habilitação.
Sutton Smythe.
Com o endereço da propriedade da família dela.
– Edward? Oi? Você ainda está aí, chere?
Ele deve ter gemido ou algo assim.
– Não era uma das suas garotas.
– Não?
– Não. Era… – O amor da minha vida. A mulher dos meus sonhos. A única pessoa que eu jurei nunca mais ver. – Era uma antiga amiga me pregando uma peça.
– Ah, que engraçado. – Beau riu. – Bem, ainda vai querer alguém na sexta que vem?
– Depois eu falo com você. Obrigado.
Edward encerrou a ligação e olhou por cima do ombro para a mesa ao lado da porta. E, bem como esperava, lá estavam os mil dólares, exatamente onde os deixara.
– Ai, cacete… – sussurrou, fechando os olhos.
Depois que Gin desligou o telefone, não após falar com o irmão, mas com a pessoa para quem telefonou assim que terminou com Lane, sentou-se à penteadeira, com a cabeça entre as mãos, por bastante tempo. Só conseguia pensar que queria voltar no tempo para a penúltima noite, quando estivera ao telefone com aquele idiota da empresa de advocacia de Samuel T., dando corda para ele enquanto pessoas cuidavam dos seus cabelos e lhe traziam diamantes.
Se pelo menos não tivesse pegado o Phantom. Aquele fora o dominó que desencadeara a queda de todos os outros.
Pensando bem, o pai ainda estaria tentando obrigá-la a se casar com alguém que odiava, e ainda estaria fazendo sabe-se lá o que com o dinheiro, e Rosalinda ainda teria se matado.
Portanto, na verdade, tentar escapar voltando no tempo não mudaria nada.
53 milhões de dólares seria muito dinheiro? De certa forma, sim, claro que sim. Era muito mais do que a maioria das pessoas via em uma vida inteira, em muitas vidas, numa centena de vidas. Mas na sua família, seria aquilo apenas um pontinho? Ou uma cratera?
Ou um Grand Canyon?
Não conseguia. Simplesmente não conseguia se imaginar vivendo uma vida das nove às cinco. Não compreendia orçamentos. Economias. Privações.
E era isso o que tinha acontecido com um ramo do clã Bradford. Lá pelos anos 1980, pouco antes da quebra da bolsa, a família de uma tia da sua mãe adquirira um punhado de tecnologias ruins e apostara as suas ações da Bradford nisso. Quando os “investimentos” se revelaram apenas um buraco sem fundo, eles acabaram perdendo tudo.
Foi uma história preventiva, sussurrada entre os adultos quando eles achavam que as crianças não estavam prestando atenção.
Colocou-se de pé, o roupão de seda deslizou até o chão, e Gin deixou-o lá. Em seu closet, andou ao redor, olhando para centenas de milhares de dólares, para os tecidos brilhantes e as pequenas extravagâncias penduradas em cabides de cristal com almofadas perfumadas para que os ombros dos vestidos e das blusas não perdessem a forma.
Escolheu um vestido vermelho. Vermelho sangue. Para lutar. Pelos Águias de Charlemont.
Escolheu um conjunto completo de lingerie.
E também se certificou de que o cabelo estivesse deslumbrante, compensando a vivacidade e a exuberância que faltava ao seu estado de ânimo.
Quando ouviu a batida que estava aguardando, ela já estava no quarto, sentada à mesa francesa.
– Entre – disse.
Enquanto Richard Pford entrava, o perfume dele o precedeu, e Gin se ateve ao fato de que pelo menos seu cheiro era agradável. O restante dele a deixava gelada, contudo. Embora o terno azul-claro fosse feito do mais elegante dos tecidos, a gravata borboleta estivesse perfeitamente ajustada, o chapéu em sua mão e os sapatos fossem artesanais, ele era Ichabod Crane.22
Pensando bem, comparado com Samuel T., até Joe Manganiello precisaria de melhorias.
– Permita-me ser bem clara – ela disse quando ele fechou a porta, deixando-os a sós ali dentro. – Não estou fazendo isso pelo meu pai. Nada disso. Mas espero que dê os termos favoráveis à Cia. Bourbon Bradford, conforme vocês combinaram.
– Foi o meu acordo com ele.
– O seu acordo agora é comigo. – Ela alisou os cabelos. – Vamos morar aqui. Aqui é o lar de Amelia, e há um quarto de hóspedes anexo a esta suíte.
– Isso é aceitável.
– Estou preparada para agir como sua esposa em eventos sociais. Se for se envolver em casos extraconjugais, e espero que o faça, por favor, seja discreto.
– Eu não terei nenhum caso extraconjugal. – A voz dele se tornou mais grave. – E nem você.
Gin deu de ombros. Considerando como estavam as coisas, ela não esperava encontrar nenhum homem de seu interesse num futuro próximo.
– Você me ouviu, Gin? – Richard atravessou o quarto e se assomou sobre ela. – Você não vai gostar do que acontecerá se me desrespeitar nessa questão.
Gin revirou os olhos. Há anos enganava namorados e nenhum deles nunca descobriu nada, a menos que ela quisesse que eles descobrissem. Se ficasse com vontade, não tinha a mínima intenção de se negar tal prazer.
– Gin.
– Sim, sim, tudo bem. Onde está o anel?
Richard colocou a mão no bolso e tirou uma caixinha de veludo azul-marinho. Ao abri-la, um diamante com corte de esmeralda brilhou e reluziu.
Pelo menos ele não mentira quanto a isso. Era enorme, na escala dos de Elizabeth Taylor.
– Já rascunhei o anúncio – ele disse. – O meu representante o passará para a imprensa assim que eu mandar. O casamento acontecerá o mais rápido possível.
Ela ia pegar o anel, mas ele fechou a caixa com brusquidão.
– Só há mais um detalhe.
– O que é?
Ele esticou a mão e tocou em seu ombro.
– Acho que você sabe. E não me diga para esperarmos até que o juiz de paz chegue. Não considero isso aceitável.
Gin saltou da cadeira.
– Não tenho a mínima intenção de me deitar com…
Richard a agarrou pelos cabelos e a puxou para si.
– E eu não tenho intenção alguma de comprar uma Ferrari só para ficar olhando para ela na minha garagem.
– Tire as suas mãos de mim.
– A intimidade é uma parte sagrada do casamento. – Os lábios dele se fixaram nos seus. – E algo que estou preparado para apreciar…
– Saia de perto de mim!
Ele começou a arrastá-la para a cama.
– … mesmo que você não esteja.
– Richard! – Ela o socou nos ombros e no peito. – Richard, o que você está fazendo? Eu não quero…
Ele pôs a mão sobre a boca dela e a empurrou, com o sorriso de um predador.
– Como é que você sabia que eu gosto de sexo violento? Viu, somos compatíveis, no fim das contas…
O que aconteceu em seguida foi algo inimaginável. Por mais que ela se debatesse, por mais magro que ela acreditasse que ele fosse, Richard conseguiu subir as saias dela e empurrar a calcinha para o lado.
E a penetrou numa estocada só.
Uma onda de náusea a acometeu, mas ela não se rebaixaria demonstrando qualquer sinal de fraqueza diante dele. Concentrou-se no teto, deixou que ele grunhisse e a penetrasse, a sensação de queimação em seu íntimo fazendo-a pensar na cor do seu vestido.
Na metade de tudo aquilo, ela cerrou os punhos na colcha e se retraiu.
– Diga que me ama – Richard rosnou em seu ouvido.
– Eu não…
Richard arqueou e colocou uma mão ao redor do pescoço dela. Quando apertou, ela começou a ofegar.
– Diga!
– Não!
Uma raiva negra estreitou os olhos dele e ele mudou a pegada, levantando a mão direita.
– Se me esbofetear, as pessoas vão comentar – ela escarneceu. – Eu não vou conseguir cobrir a mancha e tenho que ir para o Brunch. A minha ausência será notada.
O lábio superior dele se retraiu, mas ele abaixou a mão. E a penetrou com tamanha violência que a cabeceira bateu na parede.
Quando terminou, saiu de dentro dela com um safanão.
– Quero que troque de roupa. Vermelho é vulgar.
– Não vou…
Com um movimento ágil, ele agarrou a saia dela e a rasgou ao meio, bem na frente. Depois, apontou o dedo na direção dela.
– Apareça vestindo outra peça vermelha ou vai se ver comigo. Faça um teste, se quiser.
Saiu a passos largos e fechou a porta atrás de si com um baque proposital.
Foi só então que Gin começou a tremer, o corpo sacudindo com violência, especialmente suas coxas ainda afastadas. Sentando-se, sentiu um inchaço entre as pernas.
E foi aí que ela começou a vomitar.
Esvaziou o estômago na saia arruinada – não que tivesse comido muito nas últimas vinte e quatro horas. Limpando a boca com o dorso da mão, sentiu os olhos arderem, mas afastou-se do precipício.
Em sua mente, ouviu seu pai lhe dizendo que ela era uma inútil. Que se casar com Richard Pford era a única coisa que ela poderia fazer pela família.
Não estava fazendo aquilo pela família.
Como sempre, tinha tomado uma decisão em proveito próprio.
Depois de muita introspecção, passou a reconhecer uma verdade fundamental sobre si mesma: ela não conseguiria sobreviver em outro mundo. E Richard poderia lhe dar o estilo de vida que ela necessitava, quando sua família já não conseguisse mais fazê-lo.
Pelo visto, sairia muito caro. Mas ela tinha perdido seu amor-próprio há muito tempo.
Sacrificar seu corpo no altar em troca de dinheiro?
Tudo bem. Faria o que tinha que fazer.
Ichabod Crane, personagem da história A lenda do cavaleiro sem cabeça, é descrito como magro, esguio e supersticioso. O conto de 1820 de Washington Irving foi adaptado para o cinema por Tim Burton, em 1999. (N.T.)
TRINTA
Em retrospecto, aquele era o melhor dos dias para bancar um dos Hardy Boys com um computador no Antigo Silo.
Lane estacionou a picape de Mack atrás da construção de duzentos anos, com seus vários celeiros e depósito, e não havia ninguém por perto. Nenhum administrador. Nenhum funcionário da fábrica. Ninguém recebendo entregas. Tampouco turistas.
– Aquele café ajudou – disse Mack quando ambos saíram.
– Que bom.
– Quer um pedaço desta barrinha de cereal?
– Não sem uma arma apontada para a minha cabeça.
Seguindo para o chalé de madeira completamente remodelado, Lane ficou de lado enquanto Mack passava seu cartão pelo leitor e abria a porta. O interior reluzia com a madeira antiga e muito bem cuidada, a luz de fora entrando pelos vidros com bolhinhas, acrescentados no fim dos anos 1800. Poltronas rústicas providenciavam assentos, e uma mesa de vime repleta de equipamentos modernos de escritório era onde a assistente de Mack passava seu tempo.
– Quanto tempo faz que não vem aqui? – perguntou o Mestre Destilador ao acender a luz.
– Na verdade, uns dois dias. – Quando o outro o fitou sem entender, Lane deu de ombros. – Eu precisava de um lugar para pensar, por isso vim para cá. Usei o código de acesso antigo.
– Ah, eu também faço isso de vez em quando.
– Não me ajudou em nada.
– Também não me ajuda, mas, quem sabe um dia? – Mack acenou para a parte atrás da recepção. – Ainda fico ali no fundo.
O escritório do destilador ocupava boa parte do interior do chalé e, por um instante, enquanto Lane entrava no espaço, fechou os olhos e inspirou fundo. O Mestre Destilador da Cia. Bourbon Bradford era quase uma figura religiosa, não apenas dentro da organização, mas em todo o Estado do Kentucky, e isso tornava sagrado aquele lugar. As paredes eram forradas do chão ao teto com rótulos da empresa desde meados de 1800 até o início dos anos 2000.
– Deus, está tudo igualzinho. – Lane olhou ao redor, acompanhando as evidências da história da sua família. – O meu avô costumava me trazer aqui quando eles estavam transformando isso num local turístico. Eu devia ter uns cinco ou seis anos, e ele só trazia eu. Acho que é porque ele queria que eu fosse o arquiteto da família, e sabia que Edward estava comprometido com a empresa, e Max não daria em nada.
– O que você acabou fazendo da sua vida? – Mack se sentou atrás da mesa e ligou o computador. – A última notícia que ouvi foi que você estava em Nova York.
– Pôquer.
– Como é?
Lane pigarreou e se sentiu inadequado.
– Eu… ah, jogo pôquer. Ganhei mais dinheiro do que se tivesse arranjado um trabalho burocrático, já que me formei em psicologia e nunca trabalhei.
– Então, você é bom nas cartas.
– Muito bom. – Mudou de assunto apontando para as paredes. – Onde estão os seus rótulos?
O computador emitiu um bipe, e depois Mack entrou com sua senha na tela.
– Não colei nenhum.
– Ah, como assim?
– O trigésimo quinto Reserva de Família do meu pai está bem ali, à direita – ele apontou para um canto perto do chão –, e foi o último.
Lane pegou uma cadeira da sala de reuniões e a arrastou pelas tábuas nuas e bem polidas.
– Você precisa contar os seus lotes.
– Aham. – Mack se recostou no grande trono de couro. – Então, do que precisa? O que posso tentar encontrar para você?
Lane se aproximou do amigo e se concentrou no brilho azul-esverdeado da tela do computador.
– Finanças. Preciso de relatórios de lucro e prejuízo dos últimos anos, balancetes, registros de transferência.
Mack assobiou baixinho.
– Isso está muito acima da minha alçada. A corporação é quem tem tudo isso… Espere, tem o livro do Conselho.
– O que é isso? – Jesus, ele não deveria saber disso?
Mack começou a procurar em meio aos arquivos do sistema, abrindo documentos e apertando a tecla de impressão.
– São os materiais que nos entregam antes das reuniões de Fundos. A administração sênior os recebe, e eu também. Claro, a coisa para valer acontece atrás de portas fechadas, com os executivos do comitê uma hora antes da abertura da sessão, e não há anotações sobre isso. Mas deve lhe dar uma noção da companhia, ou pelo menos, do que eles têm contado ao Comitê.
Enquanto o homem começava a pegar página atrás de página da impressora, Lane franziu a testa.
– O que, exatamente, acontece no comitê executivo?
– Eles debatem vários assuntos, bem como outras coisas que não querem que ninguém saiba. Acho que nem escrevem atas.
– Quem participa?
– O seu pai. – Mais duas páginas. – O Conselho geral da empresa. O presidente do Conselho e o vice-presidente. O diretor financeiro, o diretor de operações. E também alguns convidados especiais, dependendo dos assuntos a serem tratados. Uma vez fui chamado, quando eles falaram sobre uma mudança na fórmula do no 15. Acabei com essa brilhante ideia e eles devem ter concordado comigo, porque essa idiotice nunca mais foi mencionada. Só fiquei na sala pelo tempo que foi necessário para que me ouvissem, depois me acompanharam até a saída.
– Sabe se existe uma agenda programada?
– Acredito que sim. Quando fui, havia outras quatro pessoas esperando no corredor comigo, por isso acho que eles estavam seguindo algum tipo de programa. Tudo isso acontece no escritório do seu pai, lá na sua casa.
Lane deu uma folheada nos papéis que ainda estavam quentes por terem acabado de sair da impressora. Atas de reuniões antigas. Atualizações sobre operações que ele não compreendia.
Ele precisava de um tradutor.
Alguém em quem pudesse confiar.
E que tivesse mais acesso.
Mack imprimiu materiais das últimas três reuniões do Conselho. Grampeou-os e colocou-os em pastas.
– Preciso da sua picape emprestada – Lane disse ao olhar para a pilha.
– Deixe-me em casa e ela é toda sua. De qualquer jeito, é melhor eu terminar de ficar sóbrio.
– Estou te devendo uma.
– Apenas salve esta empresa. E estaremos mais do que quites.
Quando Mack estendeu a mão, Lane a apertou. Com força.
– Farei o que for necessário. Não importa quem venha a sofrer com isso.
O Mestre Destilador fechou os olhos.
– Obrigado, Deus.
Era como observar animais exóticos num zoológico, Lizzie pensou.
Parada numa das extremidades da tenda, observava o grupo reluzente ir de uma mesa à outra que ela e Greta haviam preparado. A conversa era alta, o perfume pungente, as joias cintilantes. Todas as mulheres usavam chapéus e sapatos baixos. Os homens, ternos claros e alguns, gravatas e chapéus-coco.
Era uma espécie de vida dos sonhos que muitos acreditavam querer viver.
Ela, no entanto, conhecia a verdade. Depois de tantos anos trabalhando em Easterly, sabia muito bem que os ricos não eram imunes a tragédias.
O casulo de luxo deles os fazia acreditar que eram.
Deus, aquelas planilhas que Rosalinda deixara…
– Uma vista e tanto, não acha?
Lizzie desviou o olhar.
– Senhorita Aurora! Não acredito que tenha saído. A senhora nunca sai da cozinha durante os Brunchs.
Os olhos cansados da mulher perpassaram os convidados, a disposição das mesas, os garçons uniformizados segurando bandejas de prata com as quais serviam julepos de menta.
– Estão aproveitando a minha comida.
– Claro que estão. O seu cardápio é delicioso.
– Está dando tudo certo com as taças de champanhe?
Lizzie assentiu e voltou a se concentrar nos convidados.
– Temos uma centena reservada no momento. Os garçons estão fazendo um trabalho excelente.
– Onde está…?
Por uma fração de segundo, ela quase atualizou a mulher quanto ao paradeiro de Lane. O que era loucura – e ao mesmo tempo não importaria muito. Ela sabia que ele tinha saído com Edwin MacAllan, o Mestre Destilador, cerca de uma hora trás. Ou já fazia duas horas?
– Greta está ali. – Ela apontou para o canto oposto. – Está acompanhando o fluxo de taças. Ela disse que encontrar as usadas deixadas de lado é como uma caça aos ovos de Páscoa movida a esteroides. Ou acho que foi o que ela disse. O último relatório foi em alemão, e isso normalmente não é um bom sinal.
A senhorita Aurora sacudiu a cabeça.
– Não era dela que eu estava perguntando. Foi bom ver você e Lane de novo no mesmo cômodo.
– Ah… – Lizzie pigarreou. – Não sei bem o que dizer a respeito disso.
– Ele é um bom menino. Sabe disso, não?
– Veja bem, senhorita Aurora, não há nada entre a gente. – À parte as oito horas de sexo da noite anterior. – Ele é casado.
– Por enquanto. Aquela mulher não presta.
Não tenho como discordar, Lizzie pensou.
– Bem…
– Lizzie, ele vai precisar de você.
Lizzie levantou as mãos, tentando pôr um fim naquela conversa.
– Senhorita Aurora, a gente…
– Você vai precisar ficar ao lado dele. Muita coisa vai cair sobre os ombros dele.
– Então a senhora sabe? Sobre… tudo?
– Ele vai precisar de alguém com a cabeça no lugar para ficar ao lado dele. – O rosto da senhorita Aurora ficou sério. – Ele é um bom homem, mas vai ser testado de uma maneira que nunca foi antes. Ele vai precisar de você.
– O que Rosalinda lhe disse?
Antes que a senhorita Aurora conseguisse responder, uma linda morena alta se aproximou do grupo. E em vez de passar por elas, parou e estendeu a mão para Lizzie.
– Lizzie King, meu nome é Sutton Smythe.
Lizzie se retraiu, mas, em seguida, seguiu com as boas maneiras e apertou a mão dela.
– Sei quem você é.
– Só queria lhe dizer o quanto estes jardins são incríveis. Maravilhosos! Você e a senhora von Schlieber são verdadeiras artistas.
Não havia nada por trás da expressão franca da mulher, nenhuma falsidade, nenhum motivo escondido. E isso fez Lizzie pensar nos falsos artifícios femininos de Chantal.
– É muita gentileza sua.
Sutton sorveu um gole da sua taça de julepo, e um imenso anel de rubi no dedo da mão direita reluziu.
– Eu adoraria tê-la na minha propriedade, mas sei que não posso cobiçá-la, respeito esses limites. Contudo, tinha que lhe dizer o quanto admiro o seu talento.
– Obrigada.
– De nada.
Sutton sorriu e se afastou, ou, pelo menos, tentou. Não conseguiu ir muito longe, pois pessoas logo a cercaram, conversando com ela; mulheres mediram suas roupas, homens, seus bens não financeiros.
– Sabe – Lizzie disse –, ela parece ser uma boa pessoa.
Quando não recebeu nenhuma resposta, olhou para o lado. Mas a senhorita Aurora já estava voltando para a cozinha, com o caminhar um pouco lento e desigual, como se seus pés estivessem doendo. E como não estariam? Além disso, ela não estivera no pronto-socorro alguns dias antes?
Lizzie ficou contente porque a cozinheira saiu pelo menos uma vez para ver o grand finale do esforço conjunto. Quem sabe, no ano seguinte, conseguiriam fazer com que ela ficasse um pouco mais?
Do lado oposto da tenda, Chantal estava sentada em uma mesa com outras sete mulheres, versões dela própria, ou seja, passarinhos coloridos e dispendiosos, exibindo suas plumagens para os homens em suas vidas. Dali a vinte anos, depois que seus filhos tivessem crescido e saído dos ninhos, elas pareceriam modelos de cera de si mesmas, com a pele levantada, esticada e preenchida.
Na verdade, elas trabalhavam muito: suas profissões eram a de matrizes procriadoras, cuja função era se manterem belas e atraentes para seus maridos.
Bem parecidas com as éguas que pariam os cavalos puro-sangue que correriam nas pistas em poucas horas.
Lizzie pensou em sua fazenda, que pagara sozinha. Ninguém poderia tirá-la dela; ela a conquistara com os seus esforços.
Muito melhor do que ser uma eterna sanguessuga.
Ao pegar o celular para ver se Lane tinha mandado alguma mensagem, comentou consigo que as coisas eram diferentes entre Lane e ela porque não precisava do dinheiro dele, não se importava com a posição social dele e não queria que ninguém lhe dissesse o que fazer.
Quando viu que não havia nada, uma sensação pungente a atingiu no peito, uma sensação que ela ignorou ao guardar o celular.
Eram diferentes entre ela e Lane…
Droga. Por que estava pensando como se estivessem juntos novamente?
TRINTA E UM
Samuel T. não entrou atrás da fila de carneirinhos na base da colina de Easterly, avançando com seu Jaguar ao longo de Mercedes, Audis, Porsches e limusines, e acenando para os manobristas que tentavam impedi-lo de prosseguir.
Nada disso. Ele não andava em vans com o populacho. E maldito fosse se deixasse seu querido nas mãos de algum rapazola de dezesseis anos, que seria muito capaz de acabar com o câmbio quando estacionasse num pântano às margens da estrada.
Ao chegar ao topo da colina, dispensou outro manobrista solitário e nem concedeu um olhar às pessoas que saíam de uma van parada diante da entrada principal da casa. Seguindo para a garagem, estacionou na lateral leste da mansão e desligou o motor. Imediatamente, ouviu os sons da festa do outro lado do muro do jardim, as vozes formando um som de múltiplas camadas, como o preâmbulo de um solo dramático e imponente numa sinfonia.
Demorou um pouco para sair do carro.
Eu te amo, Samuel T. É assim que nós somos, desde que éramos adolescentes.
Ou algo parecido. Não se recordava das palavras exatas de Gin porque, enquanto ela falava, ele se ocupou tentando não perder a cabeça.
Deus, as situações pelas quais passara com aquela mulher. Todos aqueles anos de revides. E ela estava certa, claro que estava. Ele saía com garçonetes e cabeleireiras porque não eram como ela. E sim, ele comparava cada um dessas mulheres com Gin, e todas elas saíam perdendo.
Não dormira mais do que uma ou duas horas, com aquela conversa passando e repassando em sua cabeça repetidas vezes.
No fim, o que mais se sobressaiu estava ligado ao passado. No decorrer dos anos, ele vira Gin em milhares de estados de humor diferentes, mas ela só tinha chorado uma vez. Uns quinze anos atrás, quando ele estava no terceiro ano da Universidade da Virgínia e ela era caloura na Sweet Briar. Ele voltara para casa para o recesso da Páscoa, em grande parte por causa dos pais, só um pouco por causa de Gin. Naturalmente, encontraram-se.
O mundo era pequeno. Especialmente quando você se põe no caminho de alguém em Charlemont, Kentucky.
E, por mais estranho que pudesse parecer, foi o que teve que fazer. Gin não compareceu às festas de seu grupo. Ele teve que inventar um jogo de basquete com os irmãos dela como desculpa – não que tivesse desperdiçado qualquer tempo na quadra atrás da garagem. Largou Max e Lane assim que pisou na propriedade, e encontrou-a na piscina, de camiseta e shorts. Sua aparência era péssima, e ela lhe contou que tiraria uma folga da Sweet Briar, voltando para casa por um tempo. Disse que não gostava da faculdade. Que só queria descansar.
Não era nenhuma surpresa. Irascível como era, seria muito difícil imaginá-la aderir a qualquer grade horária por livre escolha, quer isso fizesse parte de uma graduação em Língua Inglesa ou de um trabalho. Ela estava muito mais talhada ao trabalho para o qual nascera: ser a dona de uma mansão.
Acabaram discutindo. Sempre acabavam discutindo.
E ele saiu voando dali.
Tivera a intenção de deixá-la lá, mas, como de costume, não conseguiu terminar de vez. Antes de passar pelo portão que dava para o jardim, olhou na sua direção.
Gin tinha a cabeça escondida entre as mãos e estava chorando.
Ele então voltou para junto dela, mas Gin correu de volta para a casa e chegou a trancar as portas francesas atrás de si.
Não se encontrou com ela durante um ano depois disso. Em grande parte porque, apesar da idade ridícula de apenas vinte anos, tinha reconhecido que os dois não prestavam um para o outro. No entanto, não conseguiu fazer com que aquela separação durasse. Nunca conseguira fazê-lo.
Pensou no que ela dissera no dia anterior… nas lágrimas dela.
E se… e se ela não o estivesse manipulando?
Por algum motivo, isso o aterrorizou.
E o mais chocante? Descobriu-se pronto para encerrar todas aquelas brigas com ela. Por muito tempo, seu orgulho exigira reações para tudo o que ela fazia, com quem fazia… Mas não era uma derrota se a outra pessoa abaixa a espada na mesma hora em que você solta a sua.
A verdade? Estaria tentando se enganar se acreditasse existir outra pessoa no planeta para ele além daquela mulher teimosa, mimada e pé no saco.
Ela tinha seu coração na palma da mão desde o primeiro dia em que colocara os olhos nela.
Saiu do carro, afastou os cabelos para trás, abotoou o paletó esportivo azul, amarelo e rosa claro. Depois, se inclinou e pegou o chapéu de palha derby do banco do passageiro e ajeitou-o na cabeça.
Utilizando o portão mais próximo para o jardim, entrou na festa.
– Aí está o homem!
– Samuel T.!
– Julepo de menta para você!
Amigos seus, cavalheiros que conhecia desde o jardim de infância, aproximaram-se, deram-lhe as mãos, começaram a discutir as possibilidades da corrida, perguntaram sobre as festas que se seguiriam, à noite e no domingo de manhã. Ele respondia evasivamente, os olhos vasculhando o lugar.
– Podem me dar licença um segundo? – pediu.
Não esperou que lhe dessem permissão, apenas avançou pelo espaço coberto pela tenda, passando por garçons com bandejas, mais pessoas que o abordaram e muitas mulheres ansiosas para travar contato com ele.
Por fim, encontrou-a, parada sozinha, com o olhar fixo no rio.
Conforme se aproximava, admirou as linhas elegantes da silhueta de Gin, demorando-se no modo como os ombros estavam expostos pelo vestido de seda. Por algum motivo, ela tinha uma echarpe comprida ao redor do pescoço, as pontas soltas flanando com o vento produzido pelos ventiladores, descendo na direção daquelas pernas inacreditáveis.
Odiou o modo como seu coração bateu forte dentro do peito. Desprezou o fato de ter que, subitamente, enxugar as palmas no paletó. Rezou para que sua interpretação tivesse sido correta… e que ela, por fim, estivesse sendo sincera quando disse que estavam prontos para ficarem juntos de uma vez por todas.
– Gin?
Quando ela não se virou e continuou a mirar o rio, ele pousou uma mão no seu braço.
Ela se virou tão rápido que o julepo esparramou em sua jaqueta, deixando uma mancha úmida bem no meio.
Não que ele se importasse com isso.
– Assustadinha? – disse, arrastado, tentando recobrar parte da sua sedução.
– Desculpe. – Ela esticou o braço com um guardanapo com monograma. – Ah, eu estraguei o…
– Por favor. Tenho um reserva no porta-malas.
Basicamente porque sempre suava nos boxes da corrida e de jeito nenhum passaria o resto da noite todo grudento.
– Então, pronto para o grande dia? – ela perguntou quando ele tirou o paletó.
Ele estava dobrando o casaco sobre o braço quando percebeu que ela não o fitava nos olhos.
– Então? – ela insistiu. – O meu irmão tem um cavalo na corrida. Talvez dois. Filhos daquele danado do Nebekanzer.
Ainda nenhum contato visual.
Baixinho, ele murmurou:
– Detesto saltar de aviões.
Isso chamou a atenção dela. Mas apenas por um momento.
– O que disse?
Quando aqueles olhos azuis se voltaram para o rio novamente, ele praguejou.
– Escute, Gin…
Ela estava tão imóvel, ele pensou. E muito menor do que ele. Engraçado, nunca notara a diferença de altura quando estavam mandando ver… Quase cinquenta quilos e uns quinze centímetros a menos não significavam nada quando aquela boca estava ocupada.
Inspirou fundo.
– Então, andei pensando no que você me disse ontem. E francamente… você está certa. Absolutamente certa. A respeito de tudo.
Ele não sabia o que esperar como resposta, mas certamente não era os ombros dela pendendo para baixo. Ela parecia tão… tão arrasada.
– Não sou muito melhor nisso do que você – prosseguiu. – Mas eu quero… ora, maldição… Gin, eu amo…
– Pare – ela o interrompeu de pronto. – Não diga isso. Por favor… agora não. Não…
– Bom dia, Samuel T. Como tem passado?
A aparição de uma terceira pessoa teria sido percebida tanto quanto uma casa voadora.
Exceto quando Richard Pford passou o braço ao redor da cintura de Gin e o manteve ali.
– Já contou a grande novidade para ele, querida?
Pela primeira vez na vida, Samuel T. sentiu uma onda gélida de horror. O que, considerando as coisas que fizera nas últimas duas décadas, era bem significante.
– E o que seria? – ele se forçou a perguntar com casualidade. – Vocês dois estão abrindo um negócio lucrativo de venda de órgãos pela internet?
Os grandes olhos arredondados de Pford mostraram-se desagradáveis.
– Você tem uma imaginação muito boa. Deve ajudar os seus clientes, sem dúvida.
– Com o seu senso de ética nos negócios, eu não estaria lançando pedras em telhados de vidro, Pford. – Samuel T. se concentrou em Gin, seu peito endurecendo como pedra. – Então, você tem alguma coisa para me contar?
À guisa de resposta, Pford pegou a mão esquerda dela a levantou.
– Vamos nos casar. Na segunda-feira, na verdade.
Samuel T. piscou uma vez. Mas logo sorriu.
– Que notícia maravilhosa. De verdade. E, Richard, permita-me ser o primeiro a parabenizá-lo. Ela fode como um animal selvagem, ainda mais por trás, mas tenho certeza de que já sabe disso. Metade do país sabe.
Enquanto Richard começava a gaguejar coisas, Samuel T. se inclinou e beijou Gin no rosto.
– Você venceu – sussurrou ao seu ouvido.
Afastou-se do casal feliz e voltou para junto dos amigos. Apanhou duas taças de julepo de uma bandeja que passava. Bebeu como se fossem copos d’água.
– O que tem no seu rosto? – alguém perguntou.
– O que foi?
– Você está vazando.
Passou uma mão sobre o olho que ardia e franziu a testa ao perceber a umidade.
– Fui atingido por um drinque ali ao lado.
Um dos seus amigos de fraternidade gargalhou.
– Alguma fêmea finalmente o acertou na cara? Já era hora!
– Recebi o que merecia, isso é certo – disse, entorpecido, ao apanhar o terceiro julepo. – Mas não temam, cavalheiros. Vou voltar a subir no cavalo.
A mesa rugiu, os homens bateram em suas costas, alguém puxou uma mulher e a empurrou na sua direção. Quando ela passou os braços ao redor do pescoço dele e se inclinou no seu corpo, ele aceitou o que lhe era oferecido, beijou-a com avidez e a apalpou, apesar de estarem em público.
– Ah, Samuel T. – ela sussurrou ao encontro da sua boca. – Esperei a vida toda por você.
– Eu também, querida, eu também.
Ela não o conhecia bem o bastante para reconhecer o tom morto em sua voz. E ele não podia se importar menos com o entusiasmo na dela.
De algum modo, ele tinha que recuperar seu orgulho… Ou não conseguiria viver dentro da própria pele por sequer um minuto mais.
Gin era muito melhor naquele jogo do que ele. Se ela não tivesse acabado de ser tão bem-sucedida em estilhaçar seu coração em milhares de pedaços, ele a teria parabenizado.
Enquanto Lane passava pelos pilares de pedra do Haras Vermelho & Preto, a alameda diante dele parecia ter uma centena de quilômetros de distância; era como se o aglomerado de estábulos e construções fosse tão longínquo que bem poderiam estar em outro Estado.
Avançando, uma nuvem de poeira se ergueu atrás dele na luz matutina.
Sabia disso porque ficava sempre olhando pelo retrovisor para se certificar de não ter sido seguido.
A passagem de pedras circundava o estábulo maior, e ele estacionou meio de lado, metade da picape sobre a grama. Não precisava trancar nada ao sair. Diabos, até deixou a chave na ignição.
Respirou fundo e então regressou à sua infância, quando ia até ali para limpar as baias durante as férias de verão. Os avós acreditavam em instilar uma boa e velha ética profissional. Seus pais preocuparam-se menos com isso.
Seguindo na direção do chalé do administrador, foi difícil acreditar que seu irmão de fato vivia em alojamentos tão modestos. Edward sempre fora uma fonte de energia no mundo, sempre em movimento, um conquistador sempre à procura de uma vitória, quer fosse nos esportes, nos negócios ou com as mulheres.
E agora… Aquela pequena construção? Era só aquilo mesmo?
Quando Lane chegou à porta, bateu na moldura de tela.
– Edward? Você está aí, Edward?
Como se ele pudesse estar em qualquer outro lugar.
Tum, tum, tum.
– Edward? Sou eu…
– Lane? – disse uma voz abafada.
Ele pigarreou.
– Sim, sou eu. Preciso falar com você.
– Espere um instante.
Quando a porta por fim se abriu, Lane viu o avô parado diante dele, e não o seu irmão: Edward estava tão magro que seus jeans pendiam do quadril, e ele estava levemente encurvado, como se o sofrimento a que fora submetido tivesse dobrado sua coluna definitivamente numa posição fetal.
– Edward…
Recebeu um grunhido como resposta e uns movimentos da mão que indicavam que ele mesmo deveria abrir a tela e entrar.
– Me desculpe por voltar a me sentar – Edward disse, seguindo para a poltrona em que, evidentemente, estivera antes. – Ficar de pé não é confortável.
O gemido foi quase abafado quando ele se acomodou.
Lane fechou a porta. Enfiou as mãos nos bolsos das calças. Tentou não encarar o rosto arruinado do irmão.
– Então…
– Por favor, não se dê ao trabalho de comentar a minha aparência.
– Eu…
– Na verdade, vamos apenas acenar e você já pode ir. Sem dúvida, a senhorita Aurora o obrigou a vir aqui para poder atestar o fato de que ainda estou respirando.
– Ela não está bem.
A informação prendeu a atenção do seu irmão.
– Como assim?
A história foi toda resumida rapidamente: pronto-socorro, seguido de uma aparente boa disposição, e o trabalho no Brunch.
Edward desviou o olhar.
– Essa é ela mesmo, com certeza. Ela vai viver mais do que todos nós.
– Acho que ela gostaria de te ver.
– Nunca vou voltar para aquela casa.
– Ela poderia vir até aqui.
Depois de um longo momento, Edward o encarou.
– Acha, honestamente, que faria algum bem a ela me ter por perto? – Antes que Lane pudesse comentar, ele continuou: – Além disso, não sou dado a visitas. Falando em diversões, por que você não está no Brunch do Derby? Recebi um convite, o que considerei um tanto irônico. Não me dei ao trabalho de responder, o que foi uma tremenda falta de boas maneiras, mas, nesta minha nova encarnação, jovialidades e anacronismos sociais pertencem a outra vida.
Lane andou ao redor, olhando para os troféus.
– O que está pensando? – Edward perguntou. – Você nunca fica sem palavras.
– Não sei como contar.
– Tente um substantivo primeiro. Um nome próprio, desde que não seja “Edward”. Garanto que não estou interessado em conselhos sobre como devo colocar a minha vida em ordem.
Lane se virou de frente para o irmão.
– É sobre o nosso pai.
As pálpebras de Edward se abaixaram.
– O que tem ele?
A imagem de Rosalinda na poltrona foi precedida pela repetição da voz de Chantal lhe contando que estava grávida e que não sairia da mansão.
Os lábios de Lane se curvaram, revelando os dentes.
– Eu o odeio. Odeio mais que tudo. Ele arruinou todos nós.
Antes que ele conseguisse começar a contar tudo, Edward levantou a mão e emitiu um longo suspiro.
– Você não tem que me dizer nada. O que quero saber é como descobriu.
Lane franziu o cenho.
– Espere, você sabe?
– Claro que sei. Eu estava lá.
Não, não, Lane pensou, em estado de choque. Edward não poderia estar envolvido nos prejuízos, nas dívidas, na possível fraude. O homem não era apenas brilhante nos negócios, ele era tão honesto quanto um escoteiro.
– Você não poderia… não. – Lane sacudiu a cabeça. – Por favor, me diga que você não…
– Não seja ingênuo, Lane…
– Rosalinda está morta, Edward. Ela se matou no escritório ontem.
Foi a vez de Edward parecer surpreso.
– O quê? Por quê?
Lane ergueu as mãos.
– Você não achou que isso fosse afetá-la?
Edward franziu a testa.
– Do que diabos você está falando?
– Do dinheiro, Edward. Jesus Cristo, não banque o desenten…
– Por que o fato de o nosso pai não ter pagado o resgate a afetaria?
Lane parou de respirar.
– O que você acabou de dizer?
Edward esfregou os olhos como se o crânio inteiro doesse. Depois apanhou a garrafa de Beefeater ao seu lado e deu uma golada direto do gargalo.
– Temos mesmo que fazer isso?
– Ele não pagou para que você fosse libertado?
– Claro que não. Ele sempre me odiou. Eu não desconsideraria a possibilidade de ele ter orquestrado o sequestro.
Lane só conseguiu ficar parado, piscando, enquanto sua cabeça parecia atravessar o horário de pico no trânsito.
– Mas… ele disse à imprensa… ele disse para nós… que estava negociando com eles.
– E eu ouvi tudo do outro lado da linha. Não foi o que aconteceu. Além do mais, posso te garantir, houve… repercussões… pelo fato de ele não ter cooperado.
O estômago de Lane começou a queimar.
– Eles poderiam ter te matado.
Depois de erguer a garrafa uma vez mais, Edward deixou a cabeça pender no encosto da poltrona.
– Mas você não sabe, irmão? Eles me mataram. Agora, diga, do que você estava falando?
TRINTA E DOIS
Estava num estranho torpor, Gin concluiu ao caminhar junto do noivo em meio aos convidados da família, acenando para os que mantinham contato visual, falando quando era necessário.
A sensação que uma nuvem de algodão e lã a envolvia era um meio-termo entre embriaguez e Xanax; o mundo externo chegava até ela através de um filtro que desacelerava o tempo, espessava o ar, deixando-o sólido, e removia qualquer sensação térmica da sua pele.
Richard, por sua vez, parecia bem alerta ao contar a todos sobre o noivado deles, o orgulho em seu rosto semelhante ao de um homem que acabava de adquirir uma casa nova em Vail, ou quem sabe um iate. Ele não parecia notar a surpresa sutil que rapidamente era escondida nas expressões das pessoas, ou talvez ele simplesmente não se importasse.
Você venceu.
Ouvindo a voz de Samuel em sua mente, inspirou fundo.
Timing, timing, ela pensou. A capacidade de fazer a coisa certa no momento certo era tudo.
Isso e dinheiro.
Samuel T. e sua família eram muito ricos, segundo qualquer padrão, mas eles não tinham cinquenta ou sessenta milhões sobrando para tapar a dívida absurda da contabilidade da sua família. Somente tipos como Richard Pford tinham, e Gin estava preparada para usar a sua mais nova situação de esposa desse cretino para ajudar a salvar sua família.
Mas isso teria que esperar até que ela colocasse uma aliança no dedo dele.
Uma pegada em seu cotovelo fez com que ela se virasse.
Richard se inclinou na direção dela.
– Eu disse por aqui.
– Vou entrar um instante.
– Não, você vai ficar ao meu lado.
Encarando-o, ela respondeu:
– Estou sangrando entre as pernas, e você sabe por quê. Não é algo que eu possa ignorar.
Uma expressão tanto de choque quanto de desgosto contraiu as feições que ela já estava aprendendo a odiar.
– Sim, vá cuidar disso.
Como se seu corpo fosse um carro com um amassado que precisava ser reparado.
Afastando-se, descobriu que a proximidade com os grupos de pessoas que falavam e riam alto demais lhe provocava ansiedade. E essa sensação não diminuiu quando entrou no interior fresco de Easterly.
Tinha sangrado depois do que Richard lhe fizera. Mas cuidara desse assunto usando um absorvente diário.
Quis voltar à casa por um motivo totalmente diferente.
E sabia exatamente para onde ir.
A última vez que fizera sexo naquela casa, excluindo o breve encontro do outro dia no jardim e o que acabara de acontecer em seu quarto, fora bem uns dois anos atrás. Tinha colocado um fim às escapulidas em Easterly assim que Amelia atingiu idade para saber o que era uma vadia.
Não havia motivos para a pobre menina testemunhar com seus próprios olhos o que outros lhe diriam a respeito da mãe. Pelo menos, desse modo, Gin sempre pensou, sua mamãe poderia negar com alguma credibilidade.
Mas, há dois anos, numa noite qualquer de quinta-feira, depois de um jantar formal sem importância, ela se viu escorregando.
Na adega de vinhos.
Seguindo pelo corredor dos empregados, passou pelas portas dos escritórios de Rosalinda e do senhor Harris – melhor dizendo, onde o mordomo ainda ficava e onde a controller costumava ficar – e abriu uma porta larga que revelava uma escada para o porão.
Não ficou nem um pouco surpresa ao ver uma luz brilhando no fundo.
Só havia um motivo para ela estar acesa, ainda mais que todo o bourbon, champanhe e chardonnay estavam lá no jardim – e, de toda forma, nenhuma garrafa da coleção particular da família jamais seria usada numa ocasião daquelas.
Sua descida foi silenciosa, a sequência de tábuas que rangiam memorizada havia muito tempo, quando, ainda adolescente, descia às profundezas para roubar algumas garrafas. Ao chegar ao último degrau, tirou os sapatos e os deixou de lado. O piso desigual de concreto foi um alívio para as solas dos seus pés, e o nariz ameaçou um espirro quando o ar abafado foi percebido pelas suas narinas.
Passando pelo abrigo antiaéreo construído em ângulos precisos na década de 1940 a partir de vigas de aço, ela seguiu em frente, envolvendo o corpo com os braços, embora fosse apenas um reflexo, algo feito porque deveria sentir frio ali embaixo.
Mas ela não sentia nada.
A adega de vinhos ficava separada do restante do porão por um vidro à prova de balas, emoldurado por ripas de madeira lustrada e uma porta com um código de acesso. No interior, o cômodo coberto com painéis de mogno reluzente estava equipado, do teto ao chão, com prateleiras de vinho customizadas, milhares de lotes inestimáveis, champanhe e outras bebidas alcoólicas protegidas tanto das mudanças de temperatura quanto de ladrões de toda variedade.
Também havia uma mesa de degustação no centro, cercada por poltronas capitonê. E, sim, ela estava certa, o móvel estava sendo usado.
Havia uma espécie de degustação acontecendo naquele instante.
O cordeiro sacrificatório de Samuel T. estava estendido sobre a superfície lustrosa, com os cabelos loiros espalhados na ponta oposta da mesa, e o corpo nu iluminado pela luz baixa das luminárias de latão. Ela estava completamente nua, o vestido cor de pêssego jogado sem o menor cuidado sobre uma das poltronas, e a cabeça de Samuel T. estava entre as coxas dela, as mãos segurando-a pelo quadril enquanto a preparava.
Recuando para um canto escuro, Gin assistiu enquanto ele terminava o que estava fazendo e depois se afastava da mulher. Com mãos rudes, liberou a ereção e montou sobre ela.
A mulher gritou alto o bastante para que a voz rouca se fizesse ouvir do outro lado da divisória de vidro.
De maneira inédita, Gin não se colocou no lugar da mulher.
Já o vira fazendo sexo inúmeras vezes – às vezes sem que ele soubesse, outras não – e, inevitavelmente, seu corpo sempre reagia como se fosse ela debaixo dele, em cima dele, pressionada contra uma parede.
Hoje não.
Isso seria sofrido demais.
Porque sabia que nunca mais o teria novamente.
Você venceu.
Depois de anos de disputa, abaixara suas armas primeiro, e ele não acreditara. E quando, por fim, ele a levou a sério, os eventos conspiraram contra eles.
Ele não participaria mais daquele jogo com ela. Gin percebera indícios dessa decisão quando ele descartara a sua declaração de amor no dia anterior, e o último prego no caixão foi colocado no jardim.
Estava feito.
Gin ficou onde estava enquanto ele chegava ao orgasmo, e teve que piscar para afastar as lágrimas quando ele curvou as costas, o pescoço se contraindo, o corpo bombeando quatro vezes mais. Talvez de modo não tão surpreendente, o rosto não dava indícios do prazer; o clímax, pelo visto, foi apenas algo gerado pelo seu corpo.
Durante todo o ato sexual, ele permaneceu tão sombrio quanto ela o sentia, com a expressão impassível, e os olhos semiabertos, sem foco algum.
Entretanto, nesse meio-tempo, a mulher teve espasmos feios demais para serem fabricados: sem dúvida a bela moça teria preferido impressioná-lo com expressões artificiais de paixão, na esperança de começar algo mais, mas era difícil manter as poses de estrela pornô quando Samuel T. estava dentro de você.
Gin se afastou ainda mais, até que a parede úmida e fria a informasse que não havia mais para onde recuar.
Ela sabia que ele sairia rapidamente.
E foi o que ele fez.
Momentos depois, a tranca foi desativada e a porta se abriu. Gin se curvou sobre si mesma, abaixando o olhar, sem respirar.
– Claro – Samuel T. disse num tom sem inflexão. – Eu adoraria.
– Pode me ajudar a subir o zíper do vestido?
– Você alcança. – Ele já estava de saída. – Venha, temos que voltar.
– Espere! Espere por mim!
Risadinhas. Reboladas também, sem dúvida, a julgar pelo som dos saltos ecoando pelo concreto enquanto a mulher se apressava para alcançá-lo.
– Vai segurar minha mão? – ela pediu.
– Sim. Eu adoraria.
Houve um estalo quando dois pares de lábios se encontraram e o som das passadas sobre o concreto se distanciaram.
Depois de um tempo, Gin saiu das sombras. A luz foi deixada acesa na adega de vinhos, o que não era o estilo de Samuel T. O que a maioria das pessoas não sabia sobre ele era que ele era escravo da necessidade compulsiva de ter tudo em ordem. A despeito do fato de ser um verdadeiro playboy, ele não suportava nada fora do lugar. Tudo, desde o terno que vestia até os carros que mantinha, do escritório de advocacia até seus estábulos, do quarto até a cozinha e os banheiros, ele era um homem com problemas de controle.
Mas ela conhecia a verdade. Vira-o estagnado em alguns rituais, teve que convencê-lo a sair daquele estado de tempos em tempos.
Estava disposta a apostar a vida da sua filha que ele não partilhava essa intimidade com ninguém mais…
Foi então que estremeceu. E não por causa do ar frio e úmido.
A sensação inescapável de ter, completa e absolutamente, arruinado uma coisa roubou-lhe o fôlego. Abraçando-se, recuou contra a parede de vidro da adega, deslizou para o piso de concreto… e chorou.
TRINTA E TRÊS
Depois que Edward ouviu atentamente o relato de Lane quanto às finanças da família e à subsequente novidade de que a mãe deles tinha sido declarada incapaz, e por fim, depois de ouvir os detalhes do suicídio por cicuta, ele se viu… curiosamente afastado de toda aquela história.
Não que não se importasse.
Sempre se preocupara com os irmãos, e esse tipo de cuidado não desaparecia simplesmente, mesmo depois de tudo pelo que ele passara.
Mas a sucessão de más notícias pareceu uma série de explosões acontecendo muito longe, perto do horizonte; as luzes e os estampidos longínquos chamavam sua atenção, mas não o afetavam o bastante para que se levantasse da cadeira – literal e figurativamente.
– Portanto, preciso da sua ajuda – Lane concluiu.
Edward levou a garrafa de gim de volta aos lábios. Dessa vez, não bebeu. Voltou a abaixá-la.
– Com o quê, precisamente?
– Preciso ter acesso aos arquivos financeiros da CBB, os verdadeiros, que não foram maquiados para o Conselho nem para a imprensa.
– Eu não trabalho mais para a empresa, Lane.
– Não me diga que você não consegue entrar no servidor se, de fato, quiser.
Lane estava certo quanto a isso. Edward tinha sido o responsável pela implantação dos sistemas de computador.
Houve um longo silêncio, e depois Edward deu seguimento à golada de bebida interrompida.
– Ainda existe dinheiro, mais que suficiente. Você tem seus fundos, Max tem os dele e Gin só precisa esperar um ou dois anos para…
– Aquele empréstimo de cinquenta e três milhões de dólares com a Fundos Prospect está para vencer. Em duas semanas, Edward.
Edward encolheu os ombros e disse:
– Não deve estar coberto pelo seguro. De outro modo, Monteverdi não estaria tão preocupado. Portanto, é improvável que eles queiram a casa para quitar a dívida.
– Monteverdi vai procurar a imprensa.
– Não, não vai. Se concedeu um empréstimo dessa magnitude sem usar um seguro, através da Fundos Prospect, ele teria que fazer tal coisa pelas costas do Conselho, violando as leis das companhias federais de fundos. Se a dívida não for quitada no prazo, a única coisa que vai acontecer publicamente é o anúncio de que Monteverdi está se aposentando antes para passar mais tempo com a família. – Edward meneou a cabeça. – Entendo a sua necessidade de saber mais, mas não sei bem onde você acha que isso vai levar. Você mora em Manhattan agora. Por que esse repentino interesse pelas pessoas que moram em Easterly?
– Elas são a nossa família, Edward.
– E daí?
Lane franziu o cenho.
– Entendo que não se sinta filho de William Baldwine. Depois da maneira como ele o tratou durante todos esses anos, como poderia? Mas e quanto a casa? As terras? A companhia? E mamãe?
– A Cia. Bourbon Bradford tem uma receita bruta anual de um bilhão de dólares. Mesmo que considere o lucro líquido desse montante, quer a dívida pessoal seja de cinquenta ou até de cem milhões, isso não é um evento catastrófico, levando-se em consideração a quantidade de ações possuídas pela família. Bancos emprestarão de sessenta a setenta por cento do valor contra um portfólio de investimento, você mesmo poderia financiar o pagamento dessa quantia apenas com os seus recursos.
– Mas e se não foi só isso? Papai não deveria ser responsabilizado? E mais uma vez eu pergunto: e a nossa mãe?
– Se eu me enfiasse nessa ilusão de querer algum tipo de justiça contra nosso pai, eu estaria completamente louco. E, pelo que ouvi, nossa mãe não sai da cama a não ser para tomar banho há três anos. Seja em Easterly ou numa casa de repouso, ela não vai notar a diferença. – Enquanto Lane praguejava, Edward voltava a menear a cabeça. – O meu conselho para você é: siga o meu exemplo e fique afastado. Eu deveria ir até mais longe, na verdade, mas pelo menos você tem Nova York.
– Mas…
– Não se engane, Lane: eles vão te comer vivo, ainda mais se você seguir esse caminho de vingança. – Quando se calou, ele sentiu uma pontada de medo surgindo. – Você não vai ganhar, Lane. Existem coisas… que foram feitas no passado contra pessoas que tentaram deixar certos assuntos às claras. E algumas delas contra membros da família.
Ele deveria saber.
Lane se aproximou da janela, olhando através dela como se as cortinas não estivessem fechadas.
– O que está me dizendo é que não vai me ajudar.
– Estou aconselhando que o caminho de menor oposição será o melhor para a sua saúde mental. – E física também. – Deixe estar, Lane. Esqueça e siga em frente. O que não pode ser alterado deve ser aceito.
Houve mais um silêncio e depois Lane olhou do outro lado do cômodo em meio à atmosfera pesada.
– Não posso fazer isso, Edward.
– Então será o seu funeral…
– Minha esposa está grávida.
– De novo? Parabéns.
– Estou pedindo o divórcio.
Edward ergueu uma sobrancelha.
– Não é a reação esperada de um futuro pai. Ainda mais se levarmos em consideração o quanto terá que pagar de pensão alimentícia.
– O bebê não é meu.
– Ah, isso explica tudo.
– Ela me disse que é do nosso pai.
Quando seus olhares se encontraram, Edward estava completamente imóvel.
– Desculpe, o que foi que você disse?
– Você ouviu. Ela disse que vai contar para a mamãe. E que não vai sair de Easterly. – Houve uma pausa. – Claro, se houver problemas financeiros no futuro, então não terei que me preocupar com a possibilidade do bastardo do nosso pai morar na casa da família. Chantal irá para outro lugar para encontrar algum outro idiota rico no qual se agarrar.
Quando uma antiga dor subiu pelo braço de Edward, ele olhou para a mão. Interessante. De alguma forma, se agarrou à garrafa de Beefeater com tanta força que os nós dos dedos estavam quase rompendo a pele fina.
– Ela está mentindo? – ouviu-se perguntar.
– Se ela tivesse apontado qualquer outra pessoa no lugar de papai, eu diria que seria uma possibilidade. Mas não, não creio que esteja mentindo.
Enquanto Samuel T. saía da adega de vinhos e se afastava, percebeu que ignorar a mulher com quem acabara de transar era uma questão de sobrevivência. A voz dela era um sugador de energias; caso prestasse atenção, ele provavelmente entraria em coma.
– … e depois podemos ir ao clube! Todos vão estar lá, e nós podemos…
Pensando bem, a exaustão que sentia provavelmente não fora provocada por ela. Era muito possível que fosse o resultado de ter abaixado as armas numa batalha de décadas de duração.
O que estava claro para ele era que precisava trepar com alguém naquela mesa. Era a sua maneira de passar uma borracha, apagando metaforicamente a última lembrança de ter estado dentro de Gin naquela casa. E nos outros lugares onde estivera com ela, quer fosse na sua fazenda, em hotéis internacionais, lá no sul em Vail ou no norte no Michigan. Ele voltaria a todos esses lugares também, até que cobrisse cada uma dessas lembranças com outra mulher.
– … no Memorial Day? Podemos ir para a adorável propriedade dos meus pais no Vale do Loire, sabe, para dar uma fugida…
Enquanto a tagarelice continuava, Samuel T. se lembrou por que preferia se deitar com mulheres casadas. Quando transava com alguém que tinha um marido para se preocupar, não existia a expectativa de um relacionamento.
Não podia subir depressa demais a escada que levava ao andar de cima. Mesmo pronto para subir dois degraus de cada vez, a fim de deixar a tagarela para trás, era cavalheiro o bastante para deixar que ela subisse primeiro.
– Ah, obrigada – ela disse quando passou por ele.
Já estava prestes a segui-la quando notou algo colorido no chão.
Um par de sapatos femininos.
Claros, feitos de cetim. Louboutins.
Girou a cabeça e perscrutou ao redor, por onde ele e a mulher tinham vindo.
– Samuel T.? – ela o chamou do alto. – Você vem?
Eram os sapatos de Gin. Ela estava ali embaixo. Descera ali para… olhar?
Bem, com certeza ela não os impedira.
Seu primeiro impulso foi o de sorrir e ir atrás dela, mas esse era só um reflexo da maneira com a qual se relacionavam… havia quanto tempo?
Para se lembrar de que as coisas tinham mudado, só o que ele precisava fazer era se lembrar daquele anel de noivado no dedo dela. E do homem parado ao seu lado. A novidade logo se espalharia pelo país.
Engraçado, nunca se importara com os outros homens com quem Gin ficava. Talvez fosse algum tipo de vingança por conta do número igualmente alto de mulheres com quem ele se relacionava… ou talvez fosse alguma excentricidade sua em desejá-la mais ao saber que ela transava com outros homens, chupava outros homens… ele não sabia.
O que ele sabia?
Richard Pford era agora fonte de extremo ciúme. Na verdade, Samuel precisou de cada pedacinho de autocontrole para não direcionar àquele desperdício de homem um olhar penetrante que o deixaria com um buraco atrás do crânio.
– Samuel T.? Algo errado?
Ele olhou para o alto das escadas. A luz vinda de trás da mulher fazia com que ela não passasse de uma silhueta escura, reduzindo-a a um conjunto de curvas, não mais que um fantasma.
Por algum motivo, quis pegar os sapatos de Gin, mas os deixou para trás, permitindo que sua subida respondesse à pergunta da mulher em questão.
Quando chegou ao térreo, pigarreou.
– Eu encontro com você lá.
O sorriso dela arrefeceu.
– Pensei que iríamos juntos à corrida.
Corrida?
Ah, sim. Era o dia do Derby.
– Tenho que cuidar de uns assuntos. Eu te vejo lá.
– Para onde vai?
A pergunta o fez perceber que estava indo na direção da cozinha, e não da festa.
– Como já disse, cuidar de uns assuntos.
– Em qual box você vai estar?
– Eu te acho – ele disse já de longe.
– Promete?
Afastando-se, sentia que ela o observava, e estava disposto a apostar que ela rezava para Mary Sue, a padroeira das debutantes, para que ele se virasse, voltasse e se tornasse o acompanhante que ela queria que ele fosse graças à transa subterrânea.
Mas Samuel T. não olhou para trás e nem reconsiderou. E não prestou atenção a nenhum dos chefs na cozinha da senhorita Aurora.
Na verdade, não estava ciente de nada até pisar do lado de fora.
Fechando a porta da entrada dos fundos, inspirou profundamente e se recostou contra as placas de madeira brancas e quentes. Outro dia escaldante, o que não era nenhuma surpresa. Pensando bem, nada era mais surpreendente do que o clima em Charlemont.
Se você não estava gostando do tempo, só o que precisava fazer era esperar quinze minutos.
Portanto, chuva de granizo no Derby também era possível.
Deus, como estava cansado.
Não. Estava se sentindo velho…
Um ronco engasgado soou à esquerda, mas não era um carro esportivo. Era uma picape antiga que subia pelo caminho dos funcionários.
Pobre coitado, quem quer que fosse. Nenhum empregado tinha permissão para estacionar perto da casa num dia como aquele. Quem estivesse atrás do volante estava se prontificando a levar um soco proverbial na garganta.
Mas ele tinha seus próprios problemas com os quais se preocupar. Colocou a mão no bolso para pegar a chave do carro, e seguiu na direção em que havia deixado o seu Jaguar.
Não chegou até lá.
Pelo para-brisa da velha picape, reconheceu um rosto familiar.
– Lane?
Quando a picape parou na entrada dos fundos do centro de negócios, ele foi até lá.
– Lane? – chamou. – Já está recuperando o seu estilo de vida antes mesmo que Chantal nos dê uma resposta?
A janela do motorista se abaixou e o homem fez um gesto cortante na altura da garganta.
Samuel T. reparou ao seu redor. Não havia ninguém por perto. Os empregados estavam todos no interior da casa ou trabalhando na tenda e nos jardins. Os convidados não se dignariam a ir até onde os trabalhadores estariam. E não parecia provável que os passarinhos das árvores tivessem alguma opinião a respeito de dois humanos conversando.
Quando chegou à picape, inclinou-se para dentro.
– Você não precisa fazer isso para o seu divórcio…
Ficou calado assim que viu o homem sentado ao lado do seu cliente.
– Edward? – ele disse, com voz rouca.
– Que agradável vê-lo novamente, Samuel. – Só que o homem não olhou na sua direção. Seus olhos permaneceram fixos no painel diante dele. – Você está muito bem, como sempre.
Enquanto essas palavras eram ditas, foi simplesmente inevitável não olhar para o rosto dele… e para seu corpo.
Bom Deus… aquelas calças estavam sobrando demais nas coxas, que mais se pareciam com palitos de dente, e a jaqueta frouxa pendia de ombros que tinham a espessura de cabides.
Edward pigarreou e esticou a mão para apanhar um boné com o logo CBB de cima do painel. Enquanto o colocava na cabeça, afundando bem para cobrir o rosto, Samuel sentiu vergonha por ter encarado.
– É bom te ver de novo, Edward – disse de repente.
– Nada disso – Lane disse baixinho.
– O que disse?
– Você não o viu hoje aqui. – Os olhos de Lane o perfuraram. – Nem eu. Entendeu bem, doutor?
Samuel T. franziu a testa.
– Que diabos está acontecendo?
– Você não vai querer saber.
Samuel T. olhou de um para o outro. Como advogado, já tivera contato com muitos assuntos “cinzentos”, tanto por evitá-los quanto por lidar com eles deliberadamente. Também aprendera, com a passagem dos anos, que às vezes não valia a pena saber de certas coisas.
– Entendido – ele disse, inclinando a cabeça.
– Obrigado.
Antes que ele se afastasse, forçou um sorriso no rosto.
– Parabéns pela nova adição à família, a propósito.
Lane se retraiu.
– O que foi que você disse?
– Tenho quase certeza de que você não escolheria Richard Pford como cunhado, mas há que se ajustar quando o amor está no ar.
– De que diabos você está falando?
Samuel T. revirou os olhos, pensando que aquilo era bem típico de Gin.
– Quer dizer que você não sabe? Sua irmã está noiva de Richard Pford. Aproveitem o Derby, cavalheiros. Talvez eu veja vocês dois…
Mas, claro, não os dois.
– Ah, se qualquer um de vocês precisar de mim – ele acrescentou –, sabem onde me encontrar.
Que seria em qualquer lugar onde a irmã deles não estivesse, ele pensou, ao se afastar em direção ao seu Jaguar.
TRINTA E QUATRO
Momento ideal para uma invasão.
Edward saiu da picape do Mestre Destilador, enterrando ainda mais o boné na cabeça – se bem que, se a aba estivesse mais abaixada que isso, ele não conseguiria nem piscar.
Deus… Tinha mesmo voltado ali?
Sim, tinha. E se esquecera completamente do quanto Easterly era enorme. Mesmo apenas da entrada dos funcionários na parte dos fundos, a mansão era quase incompreensivelmente grande, com todas aquelas tábuas brancas e venezianas pretas elevando-se do gramado verde-esmeralda, numa declaração que confirmava os anos de posição privilegiada da família.
Sentiu vontade de vomitar.
Mas depois que ficou sabendo o que o pai fizera com a esposa de Lane… De jeito nenhum ele deixaria de fazer aquilo.
Ao fundo, conseguia ouvir que o Brunch do Derby estava a toda e sabia que aquela era a única oportunidade de entrar e sair do centro de negócios com as informações de que o irmão precisava. Com tantos convidados na casa, não havia a menor possibilidade de o pai estar em qualquer outra parte que não debaixo daquela tenda; ele era um depravado, mas os seus modos nunca puderam ser reprovados. Além disso, todos os funcionários da empresa tinham folga no dia do Derby, de modo que não havia sequer um “subalterno” à sua mesa.
Os pobres coitados podiam trabalhar no 4 de julho, no Dia de Ação de Graças, no Natal e na Páscoa, mas ali era o Kentucky. Ninguém trabalhava no dia do Derby.
Enquanto Lane dava a volta para segui-lo, ele ergueu a mão.
– Vou sozinho.
– Não posso permitir que você faça isso.
– Posso me dar ao luxo de ser flagrado. Você não. Fique aqui.
Edward não esperou pela resposta, apenas seguiu em frente, sabendo que depois de quase quarenta anos sendo o mais velho, suas palavras fariam com que Lane permanecesse bem onde estava.
Na entrada dos fundos do complexo do pai, apertou uma sequência do código de acesso que ele designara para um construtor terceirizado uns cinco anos antes, como parte da intensificação na segurança. Quando a luz vermelha ficou verde e a trava foi liberada, fechou os olhos brevemente.
E depois empurrou a porta.
Houve a tentação de parar um tempo para se preparar antes de entrar, mas não podia se dar a esse luxo, tanto por causa das suas forças como pelo tempo. Quando a porta se fechou atrás de si, a luz externa desapareceu, e levou um instante para que o interior fosse registrado por seus olhos.
Tudo estava igual. Tudo. Desde o grosso tapete castanho com as bordas douradas, até os artigos sobre a empresa, emoldurados e pendurados nas paredes forradas de seda, e o padrão de portas de vidro abertas a caminho da sala de espera central.
Estranho… Tinha imaginado que, só porque ele estava diferente, aquele lugar no qual passara tantas horas também estaria mudado.
Nenhum alarme disparou à medida que avançou pela construção, já que usou a senha correta, e foi atravessando a sala de jantar, as salas de reunião, que se pareciam com as salas de estar de Easterly, e ainda outros escritórios que tinham o luxo de uma empresa de advocacia de prestígio. Como sempre, todas as cortinas estavam fechadas para garantir total privacidade, e nada fora deixado sobre as mesas, tudo devidamente trancado.
A sala de espera era um espaço circular cujo centro era demarcado pelo tapete com o brasão da família. Disposta mais ao lado, num lugar de destaque, ladeada por uma bandeira americana, outra do Kentucky e dois banners da Cia. Bourbon Bradford, a mesa da recepcionista era tão majestosa quanto uma coroa, mas não chegava nem perto do trono do poder. Atrás dessa demonstração, havia um escritório de vidro, onde a assistente executiva ocupava seu lugar e, por fim, atrás da mesa da buldogue, havia uma porta marcada uma vez mais com o timbre da família em ouro reluzente.
O escritório do seu pai.
Edward olhou para as portas francesas que se abriam para o jardim. Graças a uma combinação de cortinas pesadas e de vidro triplo, não se ouvia um pio sequer das seiscentas ou setecentas pessoas ali. E não havia a mínima possibilidade de qualquer um dos convidados ir parar ali por acaso.
Edward claudicou até o escritório envidraçado e inseriu um código. Quando a porta se abriu, empurrou-a e deu a volta para se sentar ao computador. Acendeu as luzes. Não teria usado a cadeira atrás da mesa caso suas pernas fossem capazes de sustentar seu peso por um tempo mais demorado.
O computador estava ligado, bloqueado, e ele o acessou usando um conjunto de credenciais fantasmas que designara para si mesmo quando encomendou a expansão e o reforço da rede interna da empresa, três anos antes.
Fácil como tirar um doce de uma criança.
Mas e agora?
No trajeto até Easterly, ficou imaginando se seu cérebro voltaria a funcionar para algo como aquilo. Preocupara-se que os analgésicos, ou o próprio trauma, tivessem danificado sua massa cinzenta de uma maneira que não era relevante quando ele apenas bebia e limpava baias, mas que era importante quando se tentava funcionar num nível mais alto.
Não era o caso.
Embora sua circum-navegação entre os sistemas de documentos protegidos fosse lenta a princípio, em pouco tempo já estava se movendo entre os caches de informação, exportando o que era relevante para uma conta falsa que pareceria ser um e-mail válido da CBB, mas que, na verdade, não pertencia à rede.
Mais um fantasma.
E o melhor disso tudo? Se alguém investigasse aquela atividade, acabaria rastreando a assistente executiva buldogue do seu pai, apesar de ela desconhecer essa conta. Mas era o objetivo. Qualquer um na empresa que visse o nome da mulher em qualquer coisa recuaria sem dizer nada.
Enquanto vasculhava as finanças, concentrou-se exclusivamente nas informações ainda a serem “processadas” pelos contadores, e embora existisse a tentação de começar a analisar, o mais importante era capturar o máximo que conseguisse.
Até que as luzes na recepção se acenderam.
Levantando a cabeça, ficou paralisado.
Merda.
O telefone de Lizzie tocou bem quando os primeiros convidados começavam a se retirar. E ela quase o ignorou, ainda mais quando dois garçons se aproximaram para trazer uma série de exigências de uma mesa de jovens menores de idade alcoolizados.
– Não – ela disse, ao pegar o celular do bolso de trás e aceitar a ligação sem sequer ver quem era. – Existe um motivo para a bebida deles ter sido cortada pelos pais deles. Se esse bando de garotinhos mimados tem algum problema com o nosso serviço, diga-lhes para que reclamem com o papaizinho e a mamãezinha. – Levou o aparelho ao ouvido. – Pois não?
– Sou eu.
Lizzie fechou os olhos em sinal de alívio.
– Ai, meu Deus, Lane… Um instante, é melhor eu ir para um lugar mais tranquilo.
– Estou nos fundos, perto da garagem. Acha que consegue escapar um minuto?
– Estou a caminho.
Encerrando a ligação, chamou a atenção de Greta com o olhar e sinalizou que estaria saindo por um instante. Depois que a mulher assentiu, Lizzie seguiu apressadamente pelos cantos, trotando atrás das mesas do buffet onde garçons uniformizados serviam fatias de bife Angus da região.
Uns dois garçons levantaram as mãos tentando capturar a sua atenção, mas ela se esquivou, ciente que Greta cuidaria de tudo.
Entrando na casa pela porta da cozinha, abaixou a cabeça, tentando parecer ocupada com uma missão. E pensava estar mesmo. No canto oposto, próximo à despensa, havia outra porta que se abria numa antes-sala onde ficavam todos os casacos e bolsas, e depois de passar por eles, saiu ao lado da garagem.
Procurou pelo Porsche de Lane…
– Aqui – a voz dele anunciou.
Virando-se, ela se surpreendeu ao vê-lo recostado numa picape que devia ser tão velha quanto ela. Mas logo se recobrou e correu pelo caminho de pedra.
– Isso sim é mais o meu tipo – ela disse ao se aproximar dele.
Mesmo não mexendo nenhum músculo, os olhos de Lane trafegaram por toda ela, como se ele estivesse se aproveitando da sua presença para pôr os pés no chão.
– Posso te abraçar?
Ela relanceou ao redor, concentrando-se nas janelas da casa.
– Acho que é melhor não.
– Hum.
– Então… O que está fazendo aqui? Com essa F-150?
– Peguei emprestada com um amigo. Estou tentando não aparecer. Como está a festa?
– A sua esposa fica me olhando feio.
– Ex-esposa, lembra?
– Você vai… vai para o Brunch?
Ele sacudiu a cabeça.
– Estou ocupado.
Pausa. Constrangedora.
– Você está bem? – ela sussurrou. – Como está Edward?
– Posso passar a noite com você?
Lizzie moveu o peso para frente e para trás.
– Você não vai para o baile?
– Não.
– Bem, então… sim, eu gostaria disso. – Cruzou os braços, e tentou não sentir uma onda de felicidade que parecia inapropriada diante de tudo o que ele estava enfrentando. – Mas estou preocupada com você.
– Eu também. – Fitou a casa. – Eu queria te perguntar uma coisa.
– Qualquer coisa.
Demorou um pouco até ele voltar a falar.
– Se eu resolver ir embora… você consideraria a ideia de ir comigo?
Lizzie pensou em brincar com aquilo, fazer referências a Robinson Crusoé. Mas ele não estava rindo.
– É tão ruim assim? – sussurrou.
– Pior.
Lizzie não se deu ao trabalho de verificar se havia alguém olhando. Aproximou-se dele e passou os braços ao seu redor; a reação foi imediata, o corpo muito maior se curvou sobre o seu, segurando-a firme.
– Então? – ele disse junto aos cabelos dela. – Você iria embora comigo?
Ela pensou no seu trabalho, na sua fazenda, na sua vida… e no fato de que, apenas três dias antes, não se falavam havia quase dois anos.
– Lane…
– Isso é um sim ou um não?
Ela se afastou… e recuou.
– Lane, mesmo que nunca mais volte para cá, você não tem como se livrar deste lugar, destas pessoas. É a sua família, a sua essência.
– Vivi muito bem sem eles por dois anos.
– E a senhorita Aurora o trouxe de volta.
– Você poderia ter feito isso. Eu teria voltado por você.
Lizzie meneou a cabeça.
– Não faça planos. Há muitas coisas em suspenso ainda. – Pigarreou. – É melhor eu voltar. As pessoas estão começando a ir embora, mas devemos ter ainda umas belas quatrocentas pessoas aqui.
– Eu te amo, Lizzie.
Ela fechou os olhos e levou as mãos ao rosto.
– Não diga isso.
– Acabei de descobrir que o meu pai ia deixar aqueles assassinos ficarem com Edward.
– O quê? – Ela abaixou os braços. – Do que está falando?
– Ele se recusou a pagar o resgate de Edward quando ele foi sequestrado. Recusou. Ele ia deixar o meu irmão morrer lá. Na verdade, acho que ele queria que Edward morresse.
Lizzie cobriu a boca com a mão e fechou os olhos.
– Então você o viu.
– Vi.
– Como… como ele está?
Quando Lane mais uma vez evitou o assunto, ela não ficou nada surpresa.
– Sabe – ele disse –, sempre fiquei imaginando como o sequestro de Edward aconteceu. Agora eu sei.
– Mas por que alguém faria isso com o próprio filho?
– Porque é uma maneira eficiente de matar um rival sem ter que se preocupar em parar na cadeia por isso. Você faz com que assassinos o levem para a selva e depois se recusa a pagar o preço estipulado. Caixão para um, por favor. E depois é só bancar o pai sofrendo com o luto para cair nas graças da imprensa. Uma situação favorável de todos os lados.
– Lane… Ah, meu Deus.
– Por isso, quando perguntei sobre se iria embora comigo, não foi apenas uma fantasia romântica. – Balançou a cabeça com vagar. – Fico imaginando se o meu irmão já não estava desconfiado do meu pai. Assim, o grande William Baldwine poderia ter tentado se livrar dele.
Jesus, ela pensou, se fosse verdade, os Bradford elevavam a palavra “disfuncional” a outro patamar.
– O que Edward descobriu? – ela perguntou.
– Ele não toca no assunto. – Os olhos de Lane se estreitaram. – Contudo, está me ajudando a conseguir o que preciso.
Lizzie engoliu em seco, com a garganta apertada, e tentou não visualizar Lane como vítima de um “acidente”.
– Você está me assustando – sussurrou.
TRINTA E CINCO
Sutton piscou para se acostumar ao interior pouco iluminado do centro de negócios de William Baldwine.
– Estou surpreso que esteja se mostrando tão cavalheiro em relação a tudo isso.
William fechou-os ali dentro e acendeu as luzes.
– Somos concorrentes, mas não significa que não possamos ser vistos juntos.
Relanceando ao redor, chegou à conclusão de que a área circular da recepção definitivamente a lembrava do Salão Oval. E isso não era típico da arrogância do homem? Somente Baldwine rebaixaria um símbolo nacional a uma sala de espera.
– Devemos prosseguir para o meu escritório? – ele sugeriu, com um sorriso suave igual ao dos homens dos comerciais do Cialis na TV: mais velhos e mais grisalhos, mas ainda sensuais.
– Posso muito bem fazer aqui.
– Os papéis estão na minha mesa.
– Tudo bem.
Enquanto avançavam em direção à gaiola envidraçada da assistente executiva, Sutton se viu desejando não estar a sós com ele. Pensando bem, para aquilo, ambos precisariam de privacidade.
E logo chegaram ao espaço de William.
Que, bom Deus, fora decorado como o Palácio de Buckingham, com tantos tipos de tecido adamascado púrpura real, mesas e espelhos folheados a ouro e cadeiras em forma de trono que ela até se perguntou se o homem conseguia concluir algo num ambiente tão opulento.
– Importa-se se eu acender um charuto? – ele perguntou.
– Não, nem um pouco. – Olhou para trás e viu que a porta estava aberta, o que faria com que aquilo parecesse menos assustador, caso houvesse alguém por perto. – Então, onde estão os documentos?
De cima da imensa mesa, ele abriu uma caixa de mogno do qual tirou o que, sem dúvida, era um charuto cubano.
– Eu lhe ofereceria um, mas estes não são adequados para uma dama.
– Que bom que o meu dinheiro não usa saias, não? – Quando ele olhou em sua direção, ela sorriu com doçura. – Vamos assinar os papéis?
– Gostaria de ir à corrida comigo? A minha esposa não está se sentindo bem. – Cortou a ponta do charuto. – Por isso terá que ficar em casa.
– Vou acompanhar meu pai, mas obrigada.
Os olhos de William percorreram o corpo dela.
– Por que nunca se casou, Sutton?
Porque estou apaixonada pelo seu filho, pensou. Não que ele saiba disso.
– Estou comprometida com o meu trabalho e ele é um marido ciumento. É um conceito meio anos 1980, talvez, mas também é verdadeiro no que se refere a mim.
– Temos tanto em comum, sabia? – Apanhou um isqueiro de cristal e acendeu uma chama. – Somos responsáveis por tantas coisas.
– O meu pai ainda administra a Destilaria Sutton Corporation.
– Claro que sim. – William se inclinou em direção ao fogo e baforou. – Mas não vai durar muito tempo. Não com a doença dele. Não é?
Sutton permaneceu calada. A família ainda não estava preparada para anunciar a sua promoção à posição de presidente e CEO, mas Baldwine não estava errado. A doença de Parkinson do pai tinha sido controlada nos últimos três anos, mas vinha progredindo, e muito em breve os medicamentos e a precisão como escondiam os sintomas se tornariam uma máscara insuficiente. O mais triste era que a mente do pai estava mais aguçada do que nunca. No entanto, a força física estava deixando a desejar, e dirigir uma empresa como a Destilaria Sutton era um teste de resistência mesmo num dia bom.
– Nenhum comentário? – William perguntou.
Outra baforada azulada subiu acima da cabeça dele, o fedor forte de tabaco chegando às narinas dela e fazendo-a espirrar.
– Saúde.
Ela ignorou o chavão, bem ciente de que o maldito acendera o charuto precisamente por saber que a irritaria. Ele era o tipo de homem que explorava fraquezas em todos os níveis.
– William, se os papéis estiverem aqui, posso assiná-los agora. Se não, ligue para o meu escritório quando estiverem prontos.
O homem se curvou e abriu uma gaveta longa e baixa no meio da mesa.
– Estão aqui.
Jogando-os, o maço deslizou pelo mata-borrão – e o fato de ser detido por um porta-retratos contendo uma foto da Pequena V.E., a esposa dele, pareceu adequado.
– Acredito que encontrará tudo em ordem.
Sutton pegou o envelope. Revisou a primeira página, foi para a seguinte, para a terceira… e a cabeça dela se ergueu.
– Sei que não pode ser a sua mão na minha cintura.
A voz de William soou próxima ao seu ouvido.
– Sutton, você e eu temos tanto em comum.
Afastando-se, ela sorriu.
– Sim, você tem a mesma idade do meu pai.
– Mas não estou no mesmo estado que ele, estou?
Bem, isso lá era verdade. William vestia aquele terno melhor do que muitos homens décadas mais jovens.
– Quer terminar isso agora? – ela disse, afiada. – Ou prefere algum momento da semana que vem, com os meus advogados?
O modo como ele lhe sorriu fez parecer que ela o havia excitado.
– Sim, claro. Apenas negócios, como você mesma determinou.
Sutton deliberadamente se sentou numa cadeira encostada na parede e não cruzou as pernas. Uns dez minutos mais tarde, levantou a cabeça.
– Estou pronta para executar isso.
– Viu? Fiz todas as mudanças solicitadas. – Ele tossiu um pouco no punho. – Caneta? Ou insiste em usar a própria?
– Tenho a minha, obrigada. – Pegou uma dentro da bolsa e depois usou as coxas como apoio, assinando seu nome acima do testemunho do tabelião que já havia assinado. – E vou levar uma cópia disso comigo, obrigada.
– Como quiser.
Ela se levantou e atravessou a sala.
– Sua vez.
William pegou uma Montblanc do bolso interno do paletó azul-claro e assinou em outra página, acima de outro testemunho do tabelião.
– Depois de você – ele disse, indicando a saída com o braço. – A copiadora fica próxima à primeira sala de reuniões. Não uso essa máquina.
Claro que não usa, ela pensou. Porque, assim como cozinhar e limpar a casa, você acha que é serviço de mulher.
Ao pegar o documento da mão dele e cruzar a porta, um tremor lhe desceu pela espinha. Mas logo percebeu que havia mais uma coisa naquilo, ou seja, na transferência de fundos que somente ela poderia iniciar.
Por isso, não havia nada que ela pudesse temer em relação a ele.
Naquele momento.
Estava passando pela mesa da assistente executiva quando algo chamou sua atenção e a fez hesitar. Algo no chão, debaixo da lateral da mesa…
Um pedaço de tecido.
Não, era um punho… de uma manga de casaco.
– Algo errado? – William perguntou.
Sutton olhou por sobre o ombro com o coração aos saltos.
– Eu…
Não estamos sozinhos, pensou em pânico.
Da sua posição, encolhido no fundo da mesa, Edward soube o instante em que Sutton de alguma forma notou sua presença.
E quando a voz dela vacilou, ele praguejou em pensamento.
– O que foi? – o pai dele perguntou.
– Eu… – ela pigarreou – … estou um pouco tonta.
– Tenho conhaque no meu escritório.
– Suco. Preciso de… um suco de fruta. Gelado, por favor.
Houve uma pausa.
– Qualquer coisa para uma dama. Embora eu deva confessar que isso está consideravelmente além das minhas atribuições normais.
– Vou ficar aqui e me sentar.
Quando o pai se afastou, Edward ouviu os acessos de tosse diminuindo. Em seguida, ouviu a voz de Sutton, sussurrada, mas forte como aço.
– A minha arma está apontada para você, e eu estou preparada para apertar o gatilho. Mostre seu rosto agora.
Desmaiando, até parece, Edward pensou. Mas, pelo menos, ela mandara o pai dele executar uma tarefa antes.
Edward grunhiu e se inclinou para fora do seu esconderijo.
Sutton arfou e cobriu a boca com a mão livre.
– Se eu soubesse que nossos caminhos se cruzariam de novo – Edward disse com suavidade –, eu teria trazido a sua bolsa.
– O que está fazendo aqui? – ela sibilou, recolocando a pistola do tamanho da sua palma de volta na bolsa cor-de-rosa pastel, combinando com sua roupa para o Derby.
– E você? O que foi que você assinou?
Ela levantou a cabeça.
– Ele vai voltar a qualquer instante.
– E o que vai fazer a respeito?
– O que há de errado com vo… – Na mesma hora, ela se recompôs, gesticulando para que ele voltasse ao esconderijo. E assim que ele se acomodou, Sutton disse: – Ah, muito obrigada, William. Era disso mesmo que eu precisava.
Fazendo uma careta quando a sua perna ruim sofreu um espasmo, Edward rezou para que ela continuasse a protegê-lo. E também desejou que a tivesse cumprimentado sem fazer referência ao sexo da noite anterior, quando pensara que ela era uma prostituta pela qual tinha pagado por conta da sua necessidade de ter uma mulher parecida com a que não podia conquistar.
– Não, o de laranja é o melhor. – Houve um estalido quando uma tampa foi aberta. – Hum… muito bom.
O pai voltou a tossir.
– Melhor?
– Muito. Vamos até a copiadora, sim? – ela disse. – Só para o caso de eu precisar de ajuda.
– Será um prazer – William respondeu.
– Sabe – Sutton disse ao conduzi-lo para fora do escritório –, você não deveria fumar. Essa coisa ainda vai te matar.
Edward fechou os olhos.
– Ah, as luzes – murmurou ela. – Permita-me. Assim que fizermos a cópia, poderemos voltar para a festa.
– Muito ansiosa para degustar o bourbon que produzo melhor do que o seu produto?
Tudo ficou escuro.
– Sim, William, claro.
Enquanto os dois se afastavam, Edward ouvia a conversa, rezando para – pelo bem do pai – que o homem mantivesse as mãos longe de Sutton. Assistir ao showzinho junto à mesa exigiu um tipo de disciplina com a qual ele não se conectava havia bastante tempo.
Que tipo de negócios aqueles dois estavam travando?
Deus, jamais imaginou que pensaria assim, mas esperava que Sutton não estivesse fazendo um investimento na CBB, nem que estivesse tentando adquiri-la. Em caso positivo, ela bem que poderia estar jogando dinheiro dentro de um buraco negro.
Sim, porque mesmo antes de chegar aos relatórios mais recentes, Edward suspeitara o que o pai andava fazendo. Jamais entendera o motivo, mas sabia onde procurar, e sabia exatamente o que encontraria.
Alguns instantes mais tarde, ouviu Sutton dizer:
– Bem, acho que isso beneficia a nós dois. A primeira coisa que farei na segunda de manhã será a transferência.
– Gostaria de selar o acordo com um beijo?
Edward cerrou o punho e pensou no que o irmão dissera sobre Chantal.
– Obrigada, mas um aperto de mãos basta. E mesmo isso acho que não será necessário. Pode deixar que encontro a saída sozinha.
Uma porta se abriu e se fechou.
Então o pai voltou, as passadas pesadas vindo na direção de Edward, fazendo com que ele quisesse ter uma arma.
No entanto, Lane sabia onde ele estava. Se não saísse vivo dali, Lane saberia.
Mais perto…
Mais perto…
Só que o pai apenas passou pela mesa e foi para o próprio escritório, onde acendeu uma luz, puxou uma gaveta e guardou os papéis. Depois, fechou e deu umas baforadas no charuto, como se estivesse perdido em pensamentos.
Quando outro acesso de tosse se seguiu, Edward revirou os olhos. A vida toda o pai fora asmático. Por que alguém naquela condição fumava, mesmo que tivesse um caso leve como o de William, era um mistério.
Enquanto o homem pegava um lenço e cobria a boca, também pegava a bombinha de medicamento, rapidamente substituindo o charuto pelo remédio. Depois de umas sopradas, recolocou o charuto no lugar, apagou as luzes e…
… seguiu na direção da mesa da sua assistente.
Edward não se mexeu. Continuou prendendo a respiração. Esperou pelo som das portas francesas se abrindo e se fechando.
Nada daquilo tinha acontecido.
TRINTA E SEIS
Quando Lizzie ficou toda assustada diante dele, Lane desejou retirar o que tinha acabado de dizer. Quis voltar no tempo, quando eram apenas a sua família e a sua posição social, junto com sua futura ex-mulher mentirosa e assassina de bebês… que se colocavam entre eles.
Ah, sim, os bons e velhos tempos.
Só que não mais.
– Sinto muito – sussurrou. E isso era verdade em tantos níveis.
– Está tudo bem.
– Não, não está.
Quando se calaram, ele descobriu que o barulho da festa o irritava demais, ainda mais quando pensava em todo o dinheiro que o pai “pegara emprestado”. Não sabia exatamente quanto aquele Brunch tinha custado, mas podia fazer uns cálculos. Seiscentas, setecentas pessoas, bebidas de primeira qualidade, mesmo se compradas no atacado, e comida saída de um restaurante com três estrelas no guia Michelin? Com um número suficiente de manobristas e de garçons que seria suficiente para cuidar da cidade inteira de Charlemont?
Um quarto de milhão, pelo menos. E isso não incluía os boxes na pista de corridas. As mesas nas salas reservadas em Steeplehill Downs. O baile que a família patrocinaria em seguida.
Era um evento de um milhão de dólares, que durava menos de vinte e quatro horas.
– Escuta só, é melhor você voltar lá. – Ele não queria que ela visse Edward. Principalmente porque imaginava que Edward não queria ser visto. – Vou para sua casa, mesmo que não consiga passar a noite toda lá.
– Tudo bem. Estou preocupada com você. Tem muita coisa acontecendo…
Você nem imagina, ele pensou.
Ele se inclinou para beijá-la, mas ela desviou, o que, provavelmente, foi a coisa certa. Uns dois auxiliares da manutenção se aproximavam dos fundos da casa num carrinho de golfe, e ninguém precisava ver aquilo.
– Chego lá assim que puder – ele disse. E se inclinou de novo. – Saiba que estou te beijando agora. Mesmo que só na minha cabeça.
Ela corou.
– Eu… te vejo mais tarde. Hoje à noite. Vou deixar a porta destrancada, caso você chegue tarde.
– Eu te amo.
Quando se virou, ele não gostou da expressão no rosto dela. Era impossível esconder o fato de que ele queria desesperadamente que ela repetisse aquelas palavras, não por educação, mas porque era o que sentia.
Porque o coração dela estava exposto… assim como o seu.
Com seu mundo tão fora dos eixos, Lizzie King certamente parecia a única coisa segura e firme no horizonte.
O som da porta se abrindo atrás dele fez com que virasse a cabeça.
Não era Edward.
Nem. Perto. Disso.
Seu pai, e não seu irmão, saiu da porta dos fundos do centro de negócios, e Lane ficou estático.
A primeira coisa que fez foi olhar para as mãos do homem, esperando encontrar sangue nelas. Mas não. Na verdade, a única coisa que viu foi um lenço branco, que ele pressionava na boca para cobrir discretamente uma tossida.
Seu pai não olhava para a frente, mas não parecia estressado. Preocupado, sim. Estressado? Não.
E o maldito seguiu bem para a picape velha, a ausência de posição social associada a tal veículo colocando a F-150 e quem quer que fosse o proprietário ou passageiro ao seu lado invisível em seu radar.
– Eu sei o que você fez.
Lane não percebeu que estava falando até que as palavras saíram da sua boca. Seu pai parou e se virou imediatamente.
Conforme uma das portas da garagem começava a se erguer ao fundo, os olhos de William se estreitaram e ele enfiou o lenço dentro do paletó.
– O que disse? – o homem perguntou.
Lane diminuiu a distância entre eles e sustentou o olhar do pai. Mantendo um tom baixo, disse: – Você me ouviu. Sei exatamente o que você fez.
Era assustador o quanto aquele rosto se assemelhava ao seu. E era também estranho que nada nele tivesse se alterado. A expressão de William não mudou em nada.
– Você terá que ser mais específico, filho.
O tom frio sugeria que a última palavra podia ser substituída por “perda de tempo”, ou quem sabe algo mais coloquial como “cretino”.
Lane cerrou os dentes. Queria deixar tudo às claras, mas, a consciência de que seu irmão ainda estava no interior daquele centro de negócios – ou, pelo menos, esperava que ainda estivesse vivo ali dentro –, aliada ao fato de que o pai simplesmente redobraria seus esforços para encobrir seus passos, o deteve.
– Chantal me contou – Lane sussurrou.
William revirou os olhos.
– Contou o quê? As exigências dela em redecorar a suíte pela terceira vez? Ou a viagem que queria fazer a Nova York, de novo? Ela é sua mulher. Se ela quer esse tipo de coisa, precisa discutir com você.
Lane estreitou o olhar, perscrutando aquelas feições.
– Agora, se me der licença, Lane, eu vou…
– Você não sabe, não é mesmo?
O pai chamou com um gesto elegante o Rolls-Royce que estava sendo tirado da garagem.
– Vou chegar atrasado, e não gosto de adivinhações. Passar bem…
– Ela está grávida. – Quando a testa do pai se franziu, Lane se certificou de enunciar as palavras com bastante clareza. – Chantal está grávida, e ela alega que o filho é seu.
Ele esperou por um indício, por uma única demonstração de fraqueza, usando toda a sua experiência como jogador de pôquer para interpretar o homem diante de si.
E, subitamente, lá estava ela, a admissão sob a forma de num repuxão sutil debaixo do olho esquerdo.
– Pedi o divórcio – Lane disse, com suavidade. – Portanto, ela é toda sua, se a quiser. Mas o filho bastardo não vai morar debaixo do teto da minha mãe, entendeu? Você não a desrespeitará dessa maneira. Não vou permitir.
William tossiu algumas vezes, pegando novamente o lenço.
– Um pequeno conselho para você, filho. Mulheres como Chantal são tão confiáveis quanto fiéis. Nunca estive com a sua esposa. Pelo amor de Deus.
– Mulheres como ela não são as únicas que sabem mentir.
– Ah, sim, duplo sentido. Um refúgio conversacional para passivo-agressivos.
Que se foda, Lane pensou.
– Muito bem, também sei do seu caso com Rosalinda, e tenho quase certeza de que ela se matou por sua causa. Considerando que você se recusou a falar com a polícia, deduzo que saiba disso também, e está esperando que seus advogados lhe digam o que fazer.
O fluxo de raiva que se ergueu acima do colarinho francês da camisa engomada e com monograma de seu pai foi de um cetim escarlate, que tornou a pele dele tão rubra quanto uma lona.
– É melhor repensar o que disse, rapaz.
– E sei o que fez com Edward. – A essa altura, sua voz se partiu. – Sei que se recusou a pagar o resgate, e tenho quase certeza de que orquestrou o sequestro. – Afastando-se dos assuntos financeiros, prosseguiu. – Você sempre o odiou. Não sei por quê, mas sempre o perseguiu. Só me resta deduzir que se cansou de brincar com ele e resolveu pôr um fim no jogo nos seus termos, de uma vez por todas.
Interessante. Durante todos esses anos, sempre se visualizou confrontando o pai, em diferentes cenários, com diversos discursos virtuosos e gritos violentos.
A realidade foi muito mais tranquila do que ele teria imaginado. E muito mais devastadora.
O Rolls-Royce parou ao lado deles, e o chofer uniformizado da família saiu.
– Senhor?
William tossiu no lenço, o anel de sinete reluziu na luz do sol.
– Passe bem, filho. Espero que aproveite a sua ficção. É mais fácil do que enfrentar a realidade… para os fracos.
Lane agarrou o braço do homem e o puxou.
– Você é um bastardo.
– Não – William disse com enfado. – Sei quem são meus pais, um detalhe bem importante na vida de uma pessoa. Pode ser muito determinante, não concorda?
William se livrou da mão dele e caminhou até o carro, e o chofer abriu a porta do banco de trás para que o homem entrasse. O Drophead se afastou um momento depois, e seu passageiro se manteve virado para a frente, composto, como se nada tivesse acontecido.
Mas Lane não se deixaria enganar.
O pai evidentemente não sabia da gravidez de Chantal… e estava muito, mas muito no páreo de ser apontado como responsável.
Devia estar na primeira posição.
Bom Deus.
Lane regressou para junto da picape de Mack, e voltou a esperar, como se não tivesse nada melhor para fazer do que ficar ali.
Em circunstâncias normais, provavelmente estaria explodindo em relação ao fato de que sua esposa e seu pai haviam consumado algum tipo de relacionamento.
Mas não se importava nem um pouco.
Concentrando-se na porta ainda fechada do centro de negócios, só rezava para que o irmão estivesse bem. E ficou se perguntando quanto tempo precisaria esperar antes de invadir o local.
Por algum motivo, ouvia a voz de Beatrix Mollie em sua cabeça, naquele dia em que a mulher ficara no corredor do lado de fora do escritório de Rosalinda.
Elas acontecem em três. A morte sempre vem em três.
Se fosse verdade, ele rezava para que o irmão não fosse o número dois… Mas tinha muita certeza de quem poderia recomendar para o Universo.
O corpo de Edward gritava quando ele ouviu, ao longe, a porta dos fundos se abrir e se fechar.
Apesar da dor, esperou mais uns dez minutos só para se certificar de que o escritório estava vazio.
Quando não ouviu mais nenhum som, tirou os pés debaixo da mesa com cuidado e mordeu o lábio inferior ao tentar endireitar as pernas, mover os braços, se esticar. E conseguiu chutar a cadeira de escritório para longe do seu caminho – graças a Deus a coisa tinha rodinhas.
Mas foi só isso.
Tentou ficar de pé. Uma vez e de novo. Grunhiu e praguejou, tentou toda estratégia concebível de voltar a ficar na vertical, quer se segurando na beirada da mesa e puxando, se apoiando nas mãos e empurrando e até se arrastando como um bebê.
Fez bem pouco progresso.
Era como estar preso no fundo de um poço com nove metros de profundidade.
E, para piorar a situação, estava sem um celular.
Mais xingamentos ecoaram em sua mente, criando crateras em seus padrões de pensamento. Mas, depois desse período, conseguiu pensar mais claramente. Esticando-se o máximo que conseguia, agarrou o fio do telefone que subia da parede até um buraco na escrivaninha.
Era um bom plano, a não ser pela trajetória, que estava ao contrário. Quando puxou, só conseguiu afastar ainda mais o aparelho.
Ele tinha que ligar para Lane, não só porque não conseguiria chegar à saída. Se não falasse logo com o irmão, o homem era bem capaz de se impacientar, derrubar a maldita porta e acabar com o plano deles.
Respirando fundo, Edward balançou para a frente uma vez, duas vezes…
Na terceira, suspendeu o tronco usando uma reserva de energia que nem sabia que tinha.
Foi feio. Seus ossos literalmente sacudiram debaixo da pele, batendo com força sem o amortecimento dos músculos, mas ele conseguiu tirar o fone do gancho e arrastar o aparelho pelo tampo da mesa até que aterrissasse em seu colo.
Suas mãos tremiam tanto que ele teve que discar algumas vezes porque ficava errando a sequência, e estava quase desmaiando quando, por fim, levou o fone ao ouvido.
Lane, ainda bem, atendeu ao primeiro toque.
– Alô? – ele disse.
– Você precisa vir me…
– Edward! Você está bem? Onde…
– Cala a boca e escute. – Passou a senha para o irmão e fez Lane repeti-la. – Estou atrás da mesa do escritório da assistente de papai.
Desligou, bateu o fone na base, fechou os olhos e se curvou ao encontro das gavetas. Engraçado, ele vinha trabalhando sob a falsa impressão de que varrer os corredores dos estábulos com regularidade significava que sua resistência e mobilidade tinham melhorado. Não era o caso. Pensando melhor, sua imitação de pretzel debaixo da mesa poderia ser um desafio para muitos.
Ao ouvir a porta dos fundos se abrir e se fechar pela segunda vez, sentiu uma súbita necessidade de tentar se colocar de pé de novo, só para que ele e Lane se poupassem do embaraço. Mas seu corpo não queria cooperar, mesmo que seu ego estivesse nas alturas.
Um momento depois, interrompeu Lane antes que o homem proferisse uma sílaba sequer.
– Consegui – disse com secura. – Consegui o que precisamos.
Ele tinha que salvar o seu orgulho de alguma maneira.
Os joelhos de Lane estalaram quando ele se agachou.
– Edward, o que acont…
– Me poupe. Só me leve até aquela cadeira. Preciso deslogar o computador ou estaremos comprometidos. Para onde foi papai? Sei que ele saiu pelos fundos.
– Saiu no carro com o motorista, eu o vi indo embora. Foi para a corrida.
– Graças a Deus. Agora me levante.
Mais uma coisa feia de se ver, Lane segurando-o por baixo das axilas como se ele fosse um cadáver e arrastando-o pelo carpete púrpura real. Quando, por fim, se viu sentado, uma repentina queda de pressão o deixou tonto, mas ele procurou aguentar e ligou o monitor.
– Vá até a mesa dele – ordenou a Lane. – Gaveta de cima no centro. Há um maço de papéis lá. Não se dê ao trabalho de lê-los, vá até a copiadora e tire uma cópia para nós. Ele acabou de assinar. – Quando Lane apenas ficou ali parado, como se precisasse chamar a emergência primeiro, Edward cortou o ar com a mão. – Vá! E recoloque-os exatamente onde estavam. Vá!
Quando Lane finalmente mexeu o traseiro, Edward voltou a se concentrar na tela do computador. Depois de transferir um documento final, começou a sair da rede com atenção, fechando tudo o que havia aberto.
Lane regressou apenas um segundo depois de ter terminado sua tarefa.
– Tire-me daqui – Edward disse com rispidez. – Mas antes coloque o telefone aqui na mesa.
Foi o ápice da impotência precisar que seu irmão caçula, forte e corpulento, recolocasse tudo em ordem e depois o suspendesse de pé para arrastá-lo para fora do escritório, como se ele estivesse na terceira idade.
Mas o pior foi quando chegaram ao tapete com o brasão da família, e Lane teve que parar de tentar ajudá-lo a caminhar.
– Vou ter que te levantar.
– Faça o que precisa fazer.
Edward virou o rosto no ombro do irmão quando seu peso foi suspenso do chão. O trajeto foi difícil, e seu nível de dor subiu e se propagou por tantos lugares novos… No entanto, o progresso foi melhor.
– O que era aquela papelada? – Edward exigiu saber ao passarem rapidamente pelo corredor das salas de reunião e escritórios.
– Você vai ter que andar quando chegarmos lá fora.
– Eu sei. E a papelada, o que era?
Lane apenas sacudiu a cabeça ao chegarem à porta dos fundos.
– Preciso te colocar no chão.
– Eu sei…
O grunhido de dor não foi algo que ele conseguiu abafar, por mais que tivesse preferido isso. E teve que esperar até ter certeza de que suas pernas sustentariam seu peso, com a mão agarrada ao braço de Lane enquanto usava o corpo do irmão para equilibrar o seu.
– Você está bem? – Lane perguntou. – Vai conseguir chegar até a picape?
Como se tivesse escolha.
Edward assentiu e empurrou o boné mais para baixo no rosto.
– Dê uma olhada primeiro.
Lane entreabriu a porta e se inclinou para fora.
– Ok, vou segurar o seu braço.
– Quanto cavalheirismo.
Maldição, mas Edward conseguiu que suas pernas se movessem na direção da picape como se o centro de negócios estivesse pegando fogo e aquela F-150 fosse o único abrigo disponível; não importava o quanto estivesse doendo, ele apenas cerrou os dentes e fez aquilo dar certo.
Quando, por fim, foi colocado no banco do passageiro com a porta fechada, seu estômago se revirava tanto que ele teve que fechar os olhos e respirar pela boca.
Lane saltou para o seu lado e ligou o motor. Houve um rangido de protesto debaixo do capô antes de o veículo começar a se mover, e logo eles…
Quando não avançaram, Edward olhou para ele.
– O que foi?
Num movimento lento, a cabeça do seu irmão se virou para ele, e uma circunspecção estranha cobria o belo rosto de Lane.
– O que aconteceu? – Edward exigiu saber. – Por que não está dirigindo?
Soltando o cinto de segurança, Lane disse:
– Tome, leia isto aqui. Eu já volto.
Os papéis se espalharam sobre o colo de Edward, e ele reclamou: – Aonde diabos você está indo?
Lane apontou para os papéis e saiu.
– Leia.
Quando a porta do motorista foi fechada na sua cara, Edward quis ter algo para jogar nele. O que, em nome de Deus, Lane estava pensando? Tinham acabado de invadir o escritório do pai…
Por algum motivo, relanceou para o que estava em seu colo.
E viu as palavras “instrumento” e “hipoteca”.
– Mas o quê…? – murmurou, juntando os papéis e colocando-os em ordem.
Quando terminou de ler, fechou os olhos e deixou a cabeça pender para trás. Em troca de “US$ 10.000.000,00 ou dez milhões de dólares” concedidos para a senhora Virginia Elizabeth Bradford Baldwine… Sutton Smythe receberia uma renda de 60 mil dólares mensais até que a soma total lhe fosse devolvida.
O pior, claro, era a cláusula referente à inadimplência: se os pagamentos mensais não fossem feitos no prazo, Sutton poderia executar a hipoteca de toda a propriedade Easterly.
Tudo, incluindo a mansão, as construções externas e as fazendas, seria dela.
Não era um investimento de risco, considerando que a última avaliação feita havia quatro anos estimava o valor da propriedade em cerca de 40 milhões de dólares.
Edward abriu os olhos novamente e os correu até a assinatura. Ela havia sido previamente reconhecida em cartório, uma prática costumeira na CBB, na surdina. E William Baldwine assinara na linha designada à Virginia Elizabeth Bradford Baldwine com sua própria assinatura, seguida por uma palavra: procurador.
Portanto, mesmo o nome da mãe sendo o único naquele acordo e, sem dúvida, sem ter ciência alguma dele e sem ver nenhum centavo daquele dinheiro, tudo estava muito bem legalizado.
Maldição.
Quando a porta da picape se abriu ao seu lado, ele praguejou e encarou Lane.
Só que não era seu irmão.
Não, Lane estava mais ao longe, debaixo de uma magnólia.
A senhorita Aurora tinha perdido peso, Edward pensou, meio entorpecido. O rosto dela era o mesmo, mas estava mais magro do que ele se recordava. Em retrospecto, isso valia para os dois.
Ele não conseguia fitá-la nos olhos.
Simplesmente não conseguia.
No entanto, olhou para as mãos dela, suas lindas mãos negras, que tremiam ao se erguerem para tocá-lo no rosto.
Abaixando as pálpebras, o coração dele trovejou quando sentiu o contato. E ele se preparou para algum comentário sobre a sua aparência horrível, ou alguma coisa num tom que lhe dissesse como ela estava mortificada pelo que ele se tornara.
Ela até chegou a tirar o seu boné.
Ele esperou, se preparando…
– Jesus te trouxe de volta para casa – ela disse, comovida, ao amparar seu rosto e beijá-lo na face. – Menino precioso, Ele te trouxe de volta para junto de nós.
Edward não conseguia respirar.
Menino precioso… era assim que ela sempre o chamara quando ele era pequeno. Menino precioso. Lane era o predileto, sempre fora, e Max era tolerado porque era o que ela tinha que fazer, mas a senhorita Aurora chamava-o, ele, Edward, de precioso.
Porque ela era da velha guarda e o primogênito era importante.
– Rezei por você – ela sussurrou. – Rezei para que Ele te trouxesse de volta para casa. E o milagre aconteceu por fim.
Em seguida, viu-se inclinar na direção dela, e ela o envolveu nos braços.
Muito mais tarde, quando tudo tivesse mudado e ele estivesse vivendo uma vida jamais imaginada, ele viria a reconhecer que… aquele exato momento, com sua cabeça entre as mãos da senhorita Aurora, com o coração dela batendo debaixo do seu ouvido, com a voz tão familiar apaziguando-o e o seu irmão assistindo a tudo de uma distância discreta, foi o início da sua verdadeira cura. Por um breve instante, uma fração de segundo, um único respiro, a sua luz piloto se acendeu. A centelha não durou muito, morrendo quando ela, por fim, recuou um passo.
Mas a ignição, de fato, ocorreu. E mudou tudo.
– Rezei todas as noites por você – ela disse, esfregando seu ombro. – Rezei e pedi para que você fosse salvo.
– Não acredito em Deus, senhorita Aurora.
– Nem o seu irmão. Mas eu digo para ele: Ele te ama mesmo assim.
– Sim, senhora. – O que mais ele poderia dizer?
– Obrigada. – Ela lhe tocou a cabeça, o maxilar. – Sei que não queria me ver…
Ele a segurou pela mão.
– Não, não é isso.
– Você não tem que explicar.
A ideia de que ela, de alguma forma, se sentisse cidadã de segunda classe foi como um tiro no seu peito.
– Eu não… não vejo mais ninguém. Não sou mais quem eu costumava ser.
Ela levantou o rosto dele.
– Olhe para mim, menino.
Ele teve que se forçar a enfrentar os olhos negros.
– Sim, senhora.
– Você é perfeito aos olhos de Deus. Você me entendeu? E também é perfeito para os meus olhos. Não importa a sua aparência.
– Senhorita Aurora… não é só o meu corpo que mudou.
– Isso está em suas mãos, menino. Você pode escolher afundar ou nadar, baseado no que aconteceu. Você vai se afogar? Seria uma burrice agora que você já voltou para terra firme.
Se qualquer outra pessoa tivesse dito aquela canastrice para ele, ele teria revirado os olhos e nunca mais pensado na frase. Mas conhecia o passado dela. Sabia mais do que Lane sobre sua vida pregressa antes de ela começar a trabalhar em Easterly.
Ela era uma sobrevivente.
E o convidava a se juntar ao clube.
Então era por isso que não queria vê-la, pensou. Não queria aquele confronto, aquele desafio que claramente lhe era lançado.
– Mas e se eu não conseguir chegar lá? – ele se viu perguntando numa voz emocionada.
– Você vai conseguir. – Ela se inclinou e sussurrou ao ouvido dele. – Você vai ter um anjo cuidando de você.
– Também não acredito em anjos.
– Isso não importa.
Endireitando-se, ela o fitou por um longo momento. Nada sugeria que ela notava o quanto ele tinha envelhecido e emagrecido.
– A senhora está bem? – ele perguntou de repente. – Fiquei sabendo que foi para…
– Estou ótima. Não se preocupe comigo.
– Sinto muito.
– Sobre o quê? – Antes que ele pudesse responder, ela o interrompeu com sua voz estridente, tão familiar: – Não peça desculpas por cuidar de si mesmo. Sempre estarei com você, mesmo quando não estiver.
Ela não disse adeus. Apenas acariciou seu rosto uma vez mais e depois se virou. E foi interessante. A imagem dela caminhando até Lane e os dois conversando próximos, debaixo da copa verdejante da magnólia, foi outra coisa que permaneceu em sua memória.
Só que não pelos motivos que ele imaginou.