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DEZOITO
Enquanto parava diante da entrada principal de Easterly, Lane pisou tão fundo no freio que os pedriscos do caminho voaram com ele até o Porsche parar. Não desligou o motor, simplesmente saiu do carro e voou escada acima, passando pelas portas duplas tal qual uma ventania.
Não prestou atenção em absolutamente nada ao entrar na mansão – nem na criada que limpava o vestíbulo, no mordomo que se dirigiu a ele… nem mesmo em sua Lizzie, que parou em seu caminho como se estivesse aguardando sua chegada.
Em vez disso, saiu da casa pela porta da sala de jantar e avançou a passos largos até o centro de negócios, atravessando as mesas redondas bem arrumadas debaixo da tenda e se esquivando dos funcionários da manutenção que estavam pendurando cordões de luzes entre as árvores em flor.
O local de trabalho do pai tinha um terraço com uma série de portas francesas, e ele seguiu para o par que ficava na extrema esquerda. Quando chegou, não se deu ao trabalho de experimentar a maçaneta, porque a porta estaria trancada.
Bateu no vidro. Com força.
E não parou. Nem quando sentiu a mão úmida, o que indicava que ele devia ter quebrado alguma coisa…
Na verdade, ele estilhaçou a vidraça da primeira porta do escritório do pai, e partiu para a seguinte.
A boa notícia, pensou, era que havia muitas outras.
– Lane! O que você está fazendo?
Ele parou e se virou para Lizzie. Numa voz que não reconheceu, ele disse: – Preciso encontrar o meu pai.
A extremamente profissional assistente executiva de William Baldwine correu para dentro do escritório e arfou em alto e bom som ao ver o vidro quebrado.
– Você está sangrando! – a mulher exclamou.
– Onde está o meu pai?
A senhora Petersberd destrancou a porta e a abriu.
– Ele não está aqui, senhor Baldwine, ele ficará em Cleveland o dia inteiro. Acabou de sair e não sei bem quando retornará. O senhor precisa de algo?
Quando os olhos dela se fixaram nas juntas sanguinolentas da mão dele, ele soube que ela estava querendo dizer algo como “Que tal uma toalha, talvez?", mas ele pouco se importava se suas veias se esvaziassem naquele lugar.
– Quem contou ao meu pai que Gin tinha saído? – ele exigiu saber. – Quem ligou para ele? Foi você? Ou um espião na casa…
– Do que está falando?
– Ou você ligou para a polícia e mandou que eles prendessem a minha irmã? Tenho certeza absoluta de que meu pai não sabe apertar as teclas 190 sozinho, mesmo que tenham me dito que foi isso o que ele fez.
Os olhos da mulher se dilataram e depois ela sussurrou:
– Ele me disse que ela acabaria fazendo mal a si mesma. Que ela tentaria sair hoje de manhã e que eu teria que fazer o que fosse necessário para impedi-la. Ele disse que ela precisa de ajuda…
– Lane!
Ele virou a cabeça na direção de Lizzie bem quando tudo ficou fora dos eixos, seu corpo pendendo para um dos lados.
Com toda a força, Lizzie o sustentou e impediu que ele caísse no chão.
– Venha. Vamos voltar para casa.
Enquanto ele se deixava manobrar, sangue pingou no piso de pedra do terraço, manchando o cinza de vermelho. Fitando a assistente, ele ordenou: – Diga ao meu pai que eu o estou aguardando.
– Não sei quando ele volta.
Até parece, ele pensou. A mulher chegava a agendar as pausas para William ir ao banheiro.
Havia tanta raiva dentro dele que ele estava cego ao que o cercava enquanto Lizzie o guiava. A fúria era por causa de Edward. De Gin. De sua mãe.
De Max…
– Quando foi a última vez que você comeu alguma coisa? – Lizzie perguntou ao empurrá-lo pela porta de Easterly.
Por um instante, ele pensou estar alucinando. Mas logo percebeu que os homens e mulheres de branco eram chefs, e que ele e Lizzie estavam na cozinha.
– Desculpe, o que disse? – murmurou.
– Comida. Quando?
Ele abriu a boca. Fechou. Franziu o cenho.
– Meio-dia de ontem?
A senhorita Aurora entrou no campo de visão dele.
– Lands… O que há de errado com você, menino?
Houve algum tipo de conversa em seguida, nada que ele compreendesse. Em seguida, um curativo na sua mão, ao qual ele não deu atenção. E mais conversa.
Ele não voltou a sintonizar apropriadamente até estar sentado na sala de descanso dos chefs, à mesa, com um prato de ovos mexidos, seis fatias de bacon e quatro torradas diante de si.
Seu estômago roncou e ele piscou. Sua cabeça continuava uma confusão, mas sua mão pegou o garfo e começou a cavar.
Lizzie se sentou diante dele, a cadeira rangendo sobre o piso de madeira.
– Você está bem?
Ele fixou o olhar além dela, na senhorita Aurora, parada à porta como se estivesse prestes a sair.
– O meu pai é um homem mau.
– Ele tem o seu próprio conjunto de valores.
Que era o mais próximo que ela chegaria de condenar alguém.
– Ele está tentando vender a minha irmã. – Bufou. – É como se isso fosse… uma novela ruim.
Estava prestes a contar tudo quando o celular tocou; assim que viu quem era, atendeu.
– Samuel, em que pé estamos?
Samuel T. teve que erguer a voz acima das conversas ao fundo.
– Setenta e cinco mil para a fiança, foi o melhor que consegui. Assim que você trouxer o cheque, pode vir buscá-la.
– Já vou cuidar disso. Você vai embora?
– Só depois que ela sair. Ela tem o direito de se consultar com seu advogado, portanto, enquanto eu estiver por perto, ela não terá que voltar para aquela cela sozinha, ou que Deus não permita, com outra pessoa.
– Obrigado.
Assim que ele encerrou a ligação, a senhorita Aurora saiu para acompanhar o trabalho dos chefs, e ele se voltou para Lizzie.
– Vou ter que ir atrás do dinheiro da fiança dela agora. Depois disso, não sei mais.
Ela esticou a mão e a apoiou no braço dele.
– Como eu já disse antes: tem alguma coisa que eu possa fazer para ajudar?
Foi como um raio. Num minuto, ele estava normal, como qualquer outro homem numa situação como aquela. No seguinte? A luxúria bombeava em suas veias, excitando-o, desviando a loucura em sua cabeça para algo verdadeiramente insano.
Abaixando as pálpebras, murmurou:
– Tem certeza de que quer que eu responda?
Lizzie engoliu em seco e olhou para o ponto em que o tocava. Quando não disse nada, mas também não se afastou, ele se inclinou na direção dela e levantou seu queixo com o indicador. Travando os olhos nos lábios dela, beijou-a mentalmente, com imagens de si mergulhando a cabeça e colando a boca na dela. Empurrando-a no encosto da cadeira. Enfiando-se debaixo das roupas dela enquanto se ajoelhava entre suas pernas com…
– Ai… Deus… – ela sussurrou, os olhos evitando os dele.
Mas, ainda assim, ela não se afastou.
Lane lambeu os lábios. Depois abaixou a mão e saiu de perto dela.
– É melhor você ir. Ou vou fazer uma coisa que você vai se arrepender.
– E você? – ela sussurrou. – Você vai se arrepender?
– De te beijar? Nunca. – Meneou a cabeça, reconhecendo que suas emoções estavam à flor da pele… completamente descontroladas. – Mas não vou tocar em você até que me peça. Isso eu consigo prometer.
Depois de um instante, ela se levantou sem a sua elegância costumeira, a cadeira na qual estivera sentada deslizando pelo piso, seus pés trôpegos. Ele lhe deu tempo suficiente para sair da sala de descanso e avançar pelo corredor antes de ele mesmo sair.
Caso ficasse muito próximo dela, era bem possível que a agarrasse e a colocasse sobre a mesa, procurando o alívio que os dois tanto necessitavam.
Porque ela o desejava. Ele tinha acabado de ver.
Não que fosse ficar pensando nisso.
Ele precisava fazer com que o pai pagasse a fiança. Não que ele mesmo não tivesse aquela quantia. Tinha lucrado bastante na mesa de pôquer e, diferentemente da irmã, aos trinta e seis anos, já tinha acesso à primeira parte dos seus fundos. Mas William Baldwine criara aquela confusão, e o fato de o homem estar fora da cidade tornaria mais fácil pegar um cheque e levar ao banco para que o autorizassem.
Um minuto depois, Lane estava diante do escritório da controller, mas não se deu ao trabalho de bater, avançando direto para a maçaneta.
Trancada.
Assim como fizera com a porta de vidro do pai, socou a porta de carvalho… com a mão machucada.
– Ela não está? – o senhor Harris perguntou da soleira da sua suíte.
– Onde está a chave dessa porta?
– Não tenho permissão para…
Lane se virou.
– Pegue a porra dessa chave ou vou acabar derrubando a maldita porta.
E vejam só, uma fração de segundo depois, o mordomo se aproximou com um molho de chaves.
– Permita-me, senhor Baldwine.
Só que a chave não os levou a parte alguma. Ela entrou na fechadura, mas foi impossível girá-la.
– Lamento muitíssimo – disse o mordomo enquanto forçava a fechadura.
– Tem certeza de que é a chave certa?
– Está marcado aqui. – O homem mostrou a etiquetinha pendurada na ponta ornamentada. – Talvez ela volte logo.
– Deixe-me tentar.
Lane afastou o pinguim para o lado, mas também não teve sucesso. Perdendo a paciência, empurrou a porta com o ombro e…
O estalido da madeira se rompendo abafou seu grito de raiva, e ele teve que se segurar nos painéis quando eles se movimentaram de volta na sua direção.
– Mas que diabos! – exclamou, dando uma de Drácula e se afastando do fedor.
Enquanto o senhor Harris começava a tossir, tendo que cobrir o rosto com a lapela do terno, outra pessoa disse: – Ai, meu Deus, isso é…
– Tire todos do corredor – Lane ordenou ao mordomo. – E faça com que fiquem afastados.
– Sim, sim, claro, senhor Baldwine.
Lane ergueu o antebraço e respirou na manga da camisa ao se inclinar para dentro. O escritório estava um breu, as cortinas pesadas haviam sido fechadas, impedindo a entrada da luz solar, e o ar-condicionado sobre uma das janelas também estava desligado. Tateando ao redor da soleira com a mão livre, ele tinha a nítida impressão do que estava para encontrar e não conseguia acreditar.
Clique.
Rosalinda Freeland estava sentada numa poltrona estofada no canto oposto, o rosto congelado num sorriso repulsivo, os dedos acinzentados enterrados em almofadas de chintz, os olhos inertes fitando alguma versão da vida após a morte com que se deparou.
– Jesus… – Lane sussurrou.
O profissional conjunto de saia e terninho estava perfeitamente arrumado, os óculos de leitura, pendurados numa corrente de ouro sobre a blusa de seda, o coque primoroso, um tanto grisalho, ainda estava arrumado. Mas os sapatos não faziam sentido algum. Não eram os de couro que ela sempre calçava, mas um par de tênis Nike, como se ela estivesse prestes a sair para uma corrida.
Merda, pensou ele.
Enfiando a mão no bolso, pegou o celular e discou para a única pessoa que conseguiu pensar. Enquanto chamava, olhou ao redor. Não havia bagunça em parte alguma, o que era típico desta mulher que trabalhou em Easterly por trinta anos. Não havia mais nada sobre o tampo da mesa além do computador e do abajur com cúpula verde. As estantes escondiam discretamente todos os demais equipamentos de escritório, e os arquivos estavam tão em ordem quanto livros numa biblioteca.
– Alô? – respondeu a voz no celular.
– Mitch – disse Lane.
– Você está vindo com o cheque da fiança?
– Tenho um problema.
– O que posso fazer?
Lane fechou os olhos e perguntou como foi ter tanta sorte por ter aquele cara do outro lado da linha.
– Estou olhando para o cadáver da controller da minha família.
No mesmo instante, o tom do delegado baixou uma oitava.
– Onde?
– Em seu escritório em Easterly. Acho que ela pode ter se suicidado… Acabei de derrubar a porta.
– Já ligou para a emergência?
– Ainda não.
– Quero que ligue agora enquanto sigo para aí, só para que fique registrado e a polícia metropolitana possa ir para aí. Eles têm jurisdição.
– Obrigado, cara.
– Não toque em nada.
– Só toquei no interruptor ao entrar.
– E não deixe ninguém entrar no cômodo. Chego em cinco minutos.
Assim que Lane encerrou a ligação e discou para a emergência, seus olhos tracejaram as prateleiras. Ele pensou em todo o trabalho feito por aquela mulher naquele pequenino escritório.
– Sim, meu nome é Lane Baldwine. Estou ligando de Easterly. – A mansão não tinha número. – Houve uma morte na casa… Sim, tenho certeza de que ela não está mais viva.
Ele andou ao redor enquanto respondia a algumas perguntas, confirmou seu número de celular e depois desligou de novo.
Encarando a mesa, respeitou as ordens de Mitch, mas tinha que pegar o talão de cheques. Com cadáver ou sem, ele ainda tinha que tirar Gin da prisão.
Pegou o lenço do bolso e caminhou por cima do tapete oriental. Estava para puxar a gaveta estreita no centro da mesa quando algo chamou sua atenção. Bem no meio do mata-borrão de couro, perfeitamente alinhado como se fosse uma régua… havia um pen drive.
– Senhor Baldwine? Devo fazer alguma coisa? – o senhor Harris o chamou.
Lane relanceou para o corpo.
– A polícia está a caminho. Não podemos mexer em nada, por isso já vou sair.
Apanhou o que Rosalinda evidentemente deixara para quem a encontrasse. Depois abriu a gaveta e surrupiou o talão de cheques, enfiando-o no cós da calça na parte de trás, cobrindo-o com a camisa.
Virou-se para a controller. A expressão no rosto dela era como a do Coringa, um sorriso torto e horrível que apareceria nos seus pesadelos por um bom tempo.
– O que foi que o meu pai fez agora… – sussurrou no ar maculado pela morte.
DEZENOVE
Lizzie estava na estufa ao telefone com a empresa de aluguel quando percebeu o SUV do delegado do Condado de Washington avançando pela entrada da frente de Easterly.
Já estariam entregando os papéis do divórcio para Chantal? Puxa…
– Desculpe – disse, voltando a se concentrar. – O que disse?
– A conta está atrasada – o representante comercial repetiu. – Portanto não podemos aceitar nenhuma encomenda.
– Atrasada? – Isso era tão inconcebível quanto a Casa Branca deixar de pagar a conta de luz. – Não, não, pagamos o montante total da tenda ontem. Portanto, não é possível que…
– Veja bem, vocês são um dos nossos melhores clientes, queremos continuar trabalhando com vocês. Eu não sabia que a conta estava atrasada até o dono me contar. Enviei todos os materiais que pude, mas ele me impediu de mandar mais até que o saldo seja quitado.
– Quanto devemos?
– Cinco mil, setecentos e oitenta e cinco e cinquenta e dois centavos.
– Isso não será um problema. Eu mesma levarei o cheque agora, você pode nos…
– Não temos mais nada em estoque. Não temos nada para alugar, já que todas as festas na cidade acontecem este fim de semana. Liguei para Rosalinda na semana passada e deixei três recados sobre o saldo a pagar. Ela não retornou as ligações. Segurei o restante do pedido o máximo que pude porque queria cuidar da conta de vocês. Mas não tive notícias, e havia outros pedidos a serem atendidos.
Lizzie inspirou fundo.
– Ok, obrigada. Não sei o que está acontecendo, mas vou dar um jeito. Farei com que recebam.
– Lamento muito.
Quando encerrou a ligação, recostou-se na parede de vidro para tentar ver o veículo do delegado.
– … a emprresa falou?
Virou-se para Greta, que estava borrifando os últimos arranjos de mesa com preservativo floral.
– Desculpe, o que… ah, há um problema com o pagamento da conta.
– Então vamos ou não receberr as quinhentas taças de champanhe que faltam?
– Não. – Lizzie partiu para a porta que dava para a casa. – Vou falar com Rosalinda e depois dar a bela notícia ao senhor Harris. Ele vai ficar uma arara, mas pelos menos temos as tendas, as mesas e as cadeiras. Podemos lavar os copos conforme eles forem sendo usados, a família deve ter uma centena de taças na casa.
Greta a fitou através dos óculos de armação de casco de tartaruga.
– Terremos quase setecentas pessoas amanhã. Acha mesmo que conseguirremos darr conta? Com apenas quinhentas taças?
– Você não está ajudando.
Saindo da estufa, atravessou a sala de jantar e foi para a ala dos empregados. Quando empurrou a porta, parou de pronto. Havia três empregadas em uniformes cinza e branco bem juntinhas, falando agitadamente, mas num tom bem baixo, como se fosse um programa de televisão no volume mínimo. A senhorita Aurora estava ao lado delas, com os braços cruzados sobre o peito, e Beatrix Mollie, a governanta-chefe, estava ao seu lado. O senhor Harris estava no meio do corredor, seu corpo diminuto bloqueando o caminho até a cozinha.
Lizzie franziu a testa e se aproximou do mordomo. E foi nesse momento que sentiu o cheiro que, como fazendeira, conhecia com certa familiaridade.
Um homem afro-americano com uniforme de delegado saiu do escritório de Rosalinda junto de Lane.
– O que está acontecendo? – Lizzie perguntou, um calafrio percorrendo o seu peito.
Bom Deus, será que Rosalinda…
Era por isso que o corredor estava com um cheiro tão ruim de manhã, pensou, com o coração aos pulos.
– Houve um contratempo – disse o senhor Harris. – E ele já está sendo solucionado apropriadamente.
Lane se deparou com os olhos dela enquanto falava com o delegado e fez um aceno com a cabeça.
A senhora Mollie fez o sinal da cruz.
– São três de cada vez. A morte sempre vem em três.
– Tolice – murmurou a senhorita Aurora, como se a mulher a estivesse entediando com aquela linha de pensamento. – Os desígnios de Deus servem a todos. Não fique contando na ponta dos dedos.
– Três. Sempre em três.
Voltando para a estufa, Lizzie fechou a porta atrás de si e olhou ao redor, para os arranjos de flores creme e rosa.
– O que aconteceu? – Greta perguntou. – Ficou faltando mais alguma coisa do pedido…
– Acho que Rosalinda está morta.
Houve um barulho quando o spray escorregou da mão de Greta e quicou no chão, molhando os sapatos da mulher.
– O quê?
– Não sei nada.
Enquanto uma torrente de alemão jorrava da sua companheira, Lizzie murmurou: – É, não é? Não consigo acreditar.
– Quando? Como?
– Não sei, mas o delegado está lá. E não chamaram uma ambulância.
– Oh, mein Gott… das ist ja schrecklich!19
Xingando, Lizzie andou até a janela com vista para o jardim e fitou o gramado verde e resplandecente, e a elegante estrutura da festa. Já haviam concluído setenta e cinco por cento das tarefas e tudo estava realmente belo, ainda mais com as flores brancas que ela e Greta plantaram debaixo das árvores frutíferas.
– Estou com uma sensação muito ruim a respeito disso tudo – ouviu-se dizer.
Uma hora depois da chegada da polícia metropolitana, Lane teve permissão para deixar a cena por um curto período. Ele queria falar com Lizzie para informá-la sobre tudo o que estava acontecendo, mas primeiro tinha que cuidar de Gin.
O dinheiro da família Bradford era administrado pela Companhia de Fundos Prospect, uma empresa privada de bilhões de dólares em ativos e com todos os milionários de Charlemont na sua carteira de clientes. Contudo, como não eram um banco tradicional, as contas da família eram da filial local do PNC, e era de lá o talão de cheques que ele tirara da mesa de Rosalinda.
Parando no estacionamento de um prédio elegante, fez um cheque no valor de setenta e cinco mil dólares, falsificou a assinatura do pai e o endereçou à cadeia do Condado de Washington.
Assim que entrou no saguão bege e branco, foi interceptado por uma jovem num terno azul-marinho e com joias discretas.
– Senhor Baldwine, como tem passado?
Acabei de encontrar um cadáver. Obrigado por perguntar.
– Bem, preciso de uma autorização para sacar este cheque.
– Claro. Venha até o meu escritório. – Conduzindo-o até uma saleta envidraçada, ela fechou a porta e se sentou atrás de uma mesa organizada. – É sempre um prazer ajudar a sua família.
Ele escorregou o cheque por cima do mata-borrão e se sentou.
– Agradeço por isso.
O som das unhas batendo nas teclas do computador era um pouco incômodo, mas ele tinha problemas maiores.
– Hum… – A gerente pigarreou. – Senhor Baldwine, lamento, mas não há fundos suficientes na conta para compensá-lo.
Ele pegou o celular.
– Sem problemas, vou telefonar para a Fundos Prospect e solicitar a transferência. Quanto devemos?
– Bem, senhor, a conta está com um saldo devedor de vinte e sete mil, quatrocentos e oitenta e nove dólares e vinte e dois centavos. No entanto, o limite está cobrindo isso.
– Dê-me um minuto. – Ele procurou em seus contatos o número do administrador do CFP responsável pelos investimentos da família. – Farei a transferência.
Um evidente alívio tomou o rosto dela.
– Vou lhe dar um pouco de privacidade. Estarei no saguão quando estiver pronto. Leve o tempo que precisar.
– Obrigado.
Enquanto esperava a ligação completar, Lane bateu o sapato no piso de mármore.
– Hum, olá, Connie, como está? Aqui é Lane Baldwine. Bem. Sim, estou na cidade para o Derby. – Entre outras coisas. – Escute, preciso que transfira certa quantia para a conta-corrente da família no PNC.
Houve uma pausa. Em seguida, a voz serena e profissional da mulher se tornou tensa.
– Eu faria isso com prazer, senhor Baldwine, mas não tenho mais acesso às suas contas. O senhor deixou a Fundos Prospect no ano passado.
– Estou me referindo à conta do meu pai. Ou da minha mãe.
Outra pausa.
– Lamento, mas o senhor não tem autorização para transferir fundos dessa natureza. Vou precisar falar com o seu pai. Existe um modo de o senhor pedir para que ele nos telefone?
Não se quisesse aquele dinheiro. Considerando o que seu velho e bom papai estava tentando arrancar de Gin, de jeito nenhum o grandioso e glorioso William Baldwine facilitaria a soltura dela.
– O meu pai está fora da cidade e não será possível entrar em contato com ele. E se eu colocar a minha mãe na linha? – Por certo conseguiria acordá-la e mantê-la consciente por tempo suficiente para que ela pedisse a transferência de 125 mil para a conta-corrente da casa.
Connie pigarreou da mesma forma como a gerente do banco.
– Sinto muito, mas… não será o bastante.
– Se a conta é dela? Como não?
– Senhor Baldwine… não gostaria de me precipitar…
– Parece-me que é melhor falar de uma vez.
– Poderia aguardar um instante?
Enquanto uma música suave tocava em seu ouvido, Lane saltou da cadeira dura e começou a andar entre um vaso de planta num canto, que descobriu ser de plástico quando tocou numa folha, e as janelas que subiam até o teto, com vista para a rodovia de quatro pistas ao longe.
Houve um bipe e logo uma voz masculina entrou na linha.
– Senhor Baldwine? Aqui é Ricardo Monteverdi, como tem passado?
Maravilha, o CEO da empresa. O que significava que ele havia tropeçado numa “situação delicada”.
– Escute, só preciso de cento e vinte e cinco mil dólares em dinheiro, ok? Nada demais…
– Senhor Baldwine, como o senhor sabe, na Fundos Prospect, nós levamos a nossa responsabilidade fiduciária e os nossos clientes muito a sério…
– Pode parar já com o discurso de abertura. Conte-me por que a palavra da minha mãe não é o suficiente para sacar o próprio dinheiro dela, ou desligue logo.
Fez-se um silêncio.
– O senhor não me deixa escolha.
– O quê? Pelo amor de Deus, o que foi?
O período seguinte de silêncio foi tão longo e denso que ele afastou o aparelho da orelha para ver se a linha tinha caído.
– Alô?
Mais pigarreios.
– No início deste ano, o seu pai declarou que a sua mãe é mentalmente incompetente para administrar o fundo. A opinião de dois neurologistas qualificados é de que ela é incapaz de tomar quaisquer decisões. Portanto, se necessita de fundos de qualquer uma dessas contas, teremos o maior prazer em atendê-lo, desde que o pedido venha do seu pai em pessoa. Espero que entenda que estou numa situação delicada e que…
– Vou ligar para ele neste mesmo instante e farei com que ele telefone.
Lane encerrou a ligação e ficou olhando para o trânsito. Depois, seguiu até a porta e a abriu. Sorrindo para a gerente, disse: – Meu pai fará com que a transferência seja feita pela Prospect. Voltarei mais tarde.
– Estaremos abertos até as cinco, senhor.
– Obrigado.
De volta ao sol ofuscante, manteve o celular na mão ao atravessar o estacionamento escaldante, mas não o usou. Também não percebeu que estava dirigindo de volta para casa.
Que diabos ele faria agora?
Quando chegou a Easterly, havia outras duas viaturas próximas à garagem e alguns policiais uniformizados parados diante da porta da frente. Estacionou o Porsche em seu lugar costumeiro, à esquerda da entrada principal, e saiu.
– Senhor Baldwine – um dos policiais o cumprimentou quando Lane se aproximou.
– Cavalheiros.
A sensação de olhos o seguindo fez com que ele quisesse mandar o grupo para longe da sua casa. Tinha a sensação paranoica de que havia coisas acontecendo por trás das cortinas, sem que ele soubesse, e preferia encontrar algum esqueleto no armário primeiro sem testemunhas, sem o benefício dos olhares curiosos da polícia metropolitana.
Subindo os degraus até o segundo andar, foi para o próprio quarto e fechou a porta, trancando-a. Perto da cama, pegou o telefone da casa, apertou o número nove para conseguir uma linha externa, e depois pressionou *67 para que o número para o qual telefonava não ficasse registrado no identificador de chamadas. Quando deu linha, ele compôs uma sequência de quatro números.
Pigarreou quando ouviu um toque. Dois…
– Bom dia, aqui é do escritório do senhor William Baldwine. Como posso ajudá-lo?
Imitando o tom firme e profissional do pai, ele disse:
– Ligue-me com Monteverdi da Prospect agora mesmo.
– Sim, senhor Baldwine. Imediatamente.
Lane pigarreou uma vez mais enquanto uma música clássica se fazia ouvir. A boa notícia era que o pai era antissocial, exceto se a interação humana o beneficiasse nos negócios, portanto era muito improvável que os dois homens tivessem se falado recentemente, o que revelaria o seu engodo.
– Senhor Baldwine, o senhor Monteverdi está na linha.
Depois de um clique, Monteverdi começou a falar.
– Obrigado por finalmente retornar a minha ligação.
Lane baixou seu tom de voz e enfatizou o sotaque sulista.
– Preciso de cento e vinte e cinco mil na conta-corrente da casa…
– William, eu já lhe disse, não posso fazer mais adiantamentos, simplesmente não posso. Agradeço os negócios da sua família e estou comprometido em ajudá-lo a sair dessa situação antes que o nome Bradford se depare com dificuldades, mas as minhas mãos estão atadas. Tenho responsabilidades para com o Conselho, e você me disse que o dinheiro que pegou emprestado seria devolvido até a reunião anual, que acontecerá em duas semanas. O fato de necessitar de mais recursos, sendo um montante assim pequeno, já não me deixa mais tão confiante.
Mas que diabos?!
– Qual o total devido? – ele perguntou, carregando no forte sotaque da Virgínia.
– Eu lhe disse da última vez que deixei recado – Monteverdi se mostrou irritado. – Cinquenta e três milhões. Você tem duas semanas, William. Suas alternativas são: devolver o montante ou procurar o JP Morgan Chase e pedir um empréstimo contra o fundo primário da sua esposa. Ela tem mais de cem milhões só naquela conta, portanto o perfil de empréstimos deles será atendido. Eu lhe enviei a documentação num e-mail particular, você só precisa assinar os papéis e isso não nos afetará mais. Mas permita que eu seja bem franco: estou exposto nesta situação e não permitirei que isso prossiga assim. Existem medidas que eu poderia acionar, que seriam muito desagradáveis para você, e eu as usarei antes que alguma coisa me afete pessoalmente.
Puta.
Merda.
– Voltarei a falar com você – Lane disse com voz arrastada e desligou.
Por um instante, só conseguiu ficar olhando para o telefone. Literalmente não conseguia conectar dois pensamentos com coerência.
Em seguida, veio o vômito.
Numa ânsia súbita, dobrou-se ao meio, mal conseguindo apanhar o cesto de papéis a tempo.
Tudo o que comera na sala de descanso dos funcionários subiu.
Depois que o acesso passou, seu sangue correu gelado, a sensação de que nada era como deveria ser fazendo-o imaginar – e depois rezar – que aquilo fosse uma espécie de pesadelo.
Mas não podia se dar ao luxo de não fazer nada, ou pior, de desmoronar. Tinha que lidar com a polícia. Com a irmã. E com o que mais estivesse por vir…
Deus, desejou que Edward ainda estivesse por perto.
“Meu Deus, isso é mesmo terrível!”
VINTE
Uma hora mais tarde, Gin deslizou pelo banco do Porsche cinza-escuro do irmão, fechou os olhos e balançou a cabeça.
– Estas foram as piores seis horas da minha vida.
Lane emitiu uma espécie de grunhido, que poderia significar muitas coisas, mas que certamente estava bem longe do “Ah, Deus, não consigo imaginar o que você teve que suportar” que ela esperava ouvir.
– Desculpe – ela explodiu –, mas eu acabei de sair da cadeia…
– Estamos com problemas, Gin.
Ela deu de ombros.
– Conseguimos a fiança, e Samuel T. vai garantir que isso fique longe da imprensa…
– Gin. – O irmão a encarou quando saiu para o trânsito. – Estamos com graves problemas.
Mais tarde, ah, muito mais tarde, ela ainda se lembraria desse instante em que seus olhares se encontraram no interior do carro, indicando o início da derrocada, o primeiro dominó caindo, que fez com que todos os outros também caíssem com tamanha velocidade que ficou impossível deter a sequência.
– Do que está falando? – ela perguntou com suavidade. – Você está me assustando.
– A nossa família está devendo uma quantia enorme.
Ela revirou os olhos e balançou a mão no ar.
– Sério, Lane? Tenho problemas piores…
– E Rosalinda se matou na nossa casa. Em algum momento dos últimos dois dias.
Gin levou a mão à boca. Lembrou-se de ter telefonado para a mulher sem obter nenhuma resposta apenas algumas horas antes.
– Está morta?
– Morta. No escritório dela.
Foi impossível não ficar toda arrepiada quando visualizou o telefone tocando ao lado do cadáver da controller.
– Meu Deus…
Lane praguejou, olhando pelo retrovisor e mudando de faixa rapidamente.
– A conta-corrente da casa está com saldo devedor, e nosso pai de algum modo conseguiu um empréstimo de cinquenta e três milhões da Companhia de Fundos Prospect para fazer só Deus sabe o quê. E a pior parte? Não sei qual o fim disso e não sei se quero descobrir.
– O que você… desculpe, não estou entendendo…
Ele repetiu, mas isso não a ajudou muito.
Depois que o irmão se calou, ela ficou olhando pelo para-brisa, vendo a estrada fazer a curva ao redor do rio Ohio.
– Papai pode simplesmente pagar o empréstimo – disse ela, emburrada. – Ele paga e tudo acaba.
– Gin, se foi necessário pegar uma quantia dessas emprestada, é por que a pessoa está com problemas muito, muito sérios. E se essa pessoa ainda não pagou é porque não tem como.
– Mas mamãe tem dinheiro. Ela tem muito…
– Não sei se podemos nos fiar nisso.
– Então onde você conseguiu o dinheiro da fiança para me soltar?
– Tenho um pouco guardado e também o meu fundo, que desatrelei do fundo da família. Mas esses dois não são suficientes para cuidar de Easterly, e esqueça a possibilidade de pagar esse empréstimo ou de manter a Bourbon Bradford a salvo, se precisarmos.
Ela olhou para as unhas estragadas, concentrando-se na dizimação do que estava perfeito quando acordara naquela manhã.
– Obrigada por me tirar de lá.
– De nada.
– Vou devolver o seu dinheiro.
Como? Seu pai cortara todos os seus privilégios. E, pior de tudo, e se não restasse mais dinheiro para a sua mesada?
– Isso não pode ser possível – disse ela. – Só pode ser um mal-entendido. Um tipo de… falha de comunicação.
– Não acredito.
– Você tem que pensar positivo, Lane.
– Entrei no escritório de uma mulher morta há umas duas horas e isso foi antes de eu descobrir sobre a dívida. Posso lhe garantir que falta de otimismo não é o problema aqui.
– Você acha que… – Gin arquejou. – Acha que ela roubou de nós?
– Cinquenta e três milhões de dólares? Ou apenas uma parte? Não, porque, nesse caso, por que cometer suicídio? Se ela desfalcou os fundos, o mais inteligente seria fugir e trocar de identidade. E não se matar na casa do seu empregador.
– E se ela foi assassinada?
Lane abriu a boca para dizer “de jeito nenhum”. Mas voltou a fechá-la, como se estivesse pensando a respeito.
– Bem, ela o amava.
Gin ficou com o queixo caído.
– Rosalinda? Papai?
– Ah, o que é isso, Gin? Todos sabem disso.
– Rosalinda? A coisa mais selvagem nela era prender aquele coque um pouquinho mais pra baixo.
– Reprimida ou não, ela estava com ele.
– Na casa da nossa mãe?
– Não seja ingênua.
Muito bem, era a primeira vez que era acusada disso. E, de repente, aquela lembrança de tantos anos antes, daquele Ano-Novo, voltou… De quando vira o pai saindo do escritório da mulher.
Mas isso fora décadas atrás, em outra era.
Ou, talvez não.
Lane pressionou o freio num farol vermelho próximo ao posto de gasolina que ela parara naquela manhã.
– Pense no lugar onde ela morava. A casa colonial de quatro quartos em Rolling Meadows custa muito mais do que ela poderia pagar com seu salário de controller. Quem você acha que pagou?
– Ela não tem filhos.
– Que a gente saiba.
Gin apertou os olhos enquanto o irmão voltava a acelerar.
– Acho que vou enjoar.
– Quer que eu encoste?
– Quero que pare de me dizer essas coisas.
Houve um longo silêncio… e em meio ao vácuo, ela continuou voltando para a visão do pai saindo daquele escritório, amarrando o cinto do roupão.
No fim, o irmão balançou a cabeça.
– A ignorância não vai mudar nada. Precisamos descobrir o que está acontecendo. Preciso chegar à verdade de alguma maneira.
– Como você… como você descobriu isso tudo?
– Isso importa?
Quando contornaram a última curva na estrada River antes de Easterly, ela olhou para o alto à direita, para a colina. A mansão da sua família estava no mesmo lugar de sempre, seu tamanho e elegância incríveis dominando o horizonte, a famosa construção branca fazendo-a pensar em todas as garrafas de bourbon que traziam um desenho dela gravado em seus rótulos.
Até aquele momento, acreditou que a posição da família estivesse gravada em pedra.
Agora, temia que fosse em areia.
– Ok, estamos todos prontos aqui – Lizzie avançou entre as fileiras de mesas redondas debaixo da grande tenda. – As cadeiras já estão bem arrumadas.
– Ja20 – concordou Greta ao dar uma puxadinha numa das toalhas de mesa.
As duas continuaram, inspecionando todos os setecentos lugares, verificando novamente os candelabros de cristal que pendiam em três pontos da tenda, puxando um pouco mais os tecidos rosa-claro e brancos.
Quando terminaram, acompanharam a extensão de cordões verdes serpenteando pela parte externa, fornecendo eletricidade para os oito ventiladores gigantes que garantiriam a circulação de ar.
Ainda tinham umas boas cinco horas de trabalho até que escurecesse e, de maneira inédita, Lizzie achou que tinham concluído todas as prioridades. Os arranjos florais estavam prontos. Os canteiros de flores estavam impecáveis. Vasos na entrada e na saída da tenda combinavam à perfeição com as plantas e os botões suplementares. Até mesmo as estações de comida nas tendas adjuntas já haviam sido organizadas, seguindo as instruções da senhorita Aurora.
Até onde Lizzie sabia, a comida estava pronta e a bebida entregue. Os garçons e os barmen contratados estavam sob a batuta de Reginald, e ele não era de deixar nenhum fio solto. A segurança que garantiria que a imprensa ficaria ao largo era composta por policiais de folga da polícia metropolitana, e estavam todos prontos para trabalhar.
Ela quis ter alguma coisa com que ocupar seu tempo. O nervosismo a deixara mais produtiva do que de costume, e agora estava sem nada para fazer além de pensar que havia uma investigação criminal acontecendo a cinquenta metros dela.
Rosalinda.
Seu celular vibrou no quadril, sobressaltando-a. Ao pegá-lo, suspirou.
– Graças a Deus! Alô? Lane? Você está bem? Sim. – Franziu o cenho enquanto Greta a espiava. – Na verdade, eu o deixei no carro, mas posso ir pegá-lo agora. Sim, sim, claro. Onde você está? Tudo bem. Já vou levar para você.
Quando ela desligou, Greta lhe disse:
– O que está acontecendo?
– Não sei. Ele disse que precisa de um computador.
– Deve haverr uma dúzia deles na casa.
– Depois do que aconteceu hoje cedo, acha que vou discutir com o cara?
– Muito justo. – Embora a expressão da mulher berrasse seu desapontamento. – Vou darr uma olhada nos canteirros e vasos da frrente da casa, e confirrmarr se os manobristas chegarrão no horrárrio.
– Oito da manhã?
– Oito da manhã. E depois, não sei. Pensei em ir parra casa. Estou ficando com enxaqueca, e amanhã serrá um longo dia.
– Isso é horrível! Vá mesmo e volte com força total.
Antes que Lizzie se virasse, sua velha amiga lhe lançou um olhar sério através dos óculos pesados.
– Você está bem?
– Ah, sim. Absolutamente.
– Tem muito Lane por aqui. É porr isso que estou perrguntando.
Lizzie olhou para a casa.
– Ele vai se divorciar.
– Mesmo?
– É o que ele disse.
Greta cruzou os braços sobre o peito e seu sotaque alemão ficou mais evidente.
– Com dois anos de atrraso…
– Ele não é de todo ruim, sabe.
– O que disse? Isso… nein, você não pode estarr falando a verrdade.
– Ele não sabia que Chantal estava grávida, está bem?
Greta lançou as mãos para o alto.
– Ah, bem, isso muda tudo, então, ja? Então ele se prrontificou de livrre e espontânea vontade a se casarr enquanto estava com você. Perrfeito.
– Por favor, não faça isso. – Lizzie esfregou os olhos doloridos. – Ele…
– Ele te pegou de novo, não? Ligou parra você, veio te prrocurrarr, alguma coisa assim.
– E se ele fez? Isso é assunto meu.
– Passei um ano inteirro ligando parra você, parra que você saísse daquela sua fazenda, garrantindo que você virria parra o trabalho. Fiquei ao seu lado, me prreocupei com você, limpei o estrrago que ele deixou. Porr isso, não me diga que não posso exprressarr uma reação quando ele vem sussurrarr no seu ouvido…
Lizzie ergueu a mão diante do rosto da mulher.
– Chega. Não vamos mais falar disso. Nos vemos pela manhã.
Saiu marchando, e xingou baixinho no trajeto inteiro até o carro. Depois que pegou o laptop, seguiu apressada para a casa. Deliberadamente evitando a cozinha e a estufa, porque não queria encontrar Greta enquanto ela se preparava para sair, entrou na biblioteca e, sem pensar, tomou o corredor que dava para as escadas dos empregados e a cozinha. Não foi muito longe. Bem quando fazia a curva, foi parada por dois policiais, e foi então que ela viu o cadáver sendo levado numa maca com rodinhas.
Os restos mortais de Rosalinda Freeland foram colocados num saco branco com um zíper de 1,5 metro que, ainda bem, estava fechado.
– Senhora – um dos policiais disse –, vou ter que lhe pedir que abra o caminho.
– Sim, sim, desculpe. – Abaixando os olhos e refreando a onda de náusea, deu meia-volta, tentando não pensar no que acabara de ver.
E falhou.
Ela tinha dado seu nome à polícia, assim como o restante dos empregados, e fizera um relato breve de onde estivera a manhã toda e os últimos dias. Quando lhe perguntaram a respeito da controller, não teve muito a dizer. Não conhecia Rosalinda melhor do que os outros; a mulher era muito reservada e profissional, e só.
Lizzie sequer sabia se existia algum familiar para ser avisado.
Usar a escada principal era uma violação da etiqueta de Easterly, mas, levando-se em consideração que havia um carro mortuário estacionado e uma cena de crime no corredor dos funcionários, ela estava confiante de que poderia deixar o protocolo de lado. Já no segundo andar, avançou sobre o tapete claro, passando por quadros a óleo e alguns objetos que reluziam com sua antiguidade e manufatura superior.
Ao chegar à porta de Lane, não conseguia se lembrar da última vez que ela e Greta discutiram sobre alguma coisa. Deus, queria ligar para a mulher… Mas o que poderia dizer?
Deixe o laptop e saia, ordenou a si mesma. Só isso.
Lizzie bateu à porta.
– Lane?
– Pode entrar.
Empurrando a porta, ela o encontrou parado diante das janelas, com um pé plantado no peitoril, e um braço sobre o joelho erguido. Ele não se virou para vê-la entrar. Não disse nada.
– Lane? – Ela observou ao redor. Não havia ninguém com ele. – Olha só, vou deixar o laptop aqui e…
– Preciso da sua ajuda.
Inspirando fundo, ela disse:
– Ok.
Mas ele permaneceu em silêncio enquanto fitava o jardim. E que Deus a ajudasse, foi impossível desviar os olhos dele. Disse a si mesma que estava procurando sinais de cansaço… e não medindo os ombros musculosos. O cabelo curto na base da nuca. Os bíceps que marcavam as mangas curtas da camisa polo.
Ele tinha trocado de roupa. Tinha tomado um banho também. Ela sentia o perfume do sabonete e do shampoo.
– Sinto muito por Rosalinda – sussurrou. – Foi um choque.
– Hum.
– Quem a encontrou?
– Eu.
Lizzie fechou os olhos e abraçou o laptop junto ao peito.
– Ah, meu Deus.
De repente, ele enfiou a mão no bolso da frente da calça e tirou um objeto.
– Pode ficar comigo enquanto abro isto?
– O que é?
– Uma coisa que ela deixou para trás. – Ele mostrou o pen drive preto. – Encontrei sobre a escrivaninha dela.
– É um… bilhete suicida?
– Não acredito que seja isso. – Ele se sentou na cama e apontou para o laptop dela. – Se importa se eu…
– Ah, sim… aqui está. – Juntou-se a ele e levantou a tela do Lenovo, apertando o botão de liga/desliga. – Tenho Microsoft Office, então documentos de Word não devem ser um problema.
– Não acho que seja isso.
Colocou a senha e passou o computador para ele.
– Pronto.
Ele inseriu o pen drive e aguardou. A tela se acedeu com várias opções, e ele apertou em “abrir arquivos”.
Só havia um, intitulado “William Baldwine”.
Lizzie esfregou a testa com o polegar.
– Tem certeza de que quer que eu veja isso?
– Tenho certeza de que não posso ver isso sem você aqui.
Lizzie se viu esticando a mão e apoiando-a no ombro dele.
– Não vou te deixar.
Por algum motivo, ela lembrou da lingerie cor de pêssego que encontrara na cama do pai dele. Dificilmente era algo que Rosalinda vestiria; um tom de cinza-claro foi o mais próximo que a controller chegara a revelar do seu guarda-roupa. Mas, pensando bem, quem é que poderia saber o que a mulher escondia debaixo das saias e jaquetas decorosas?
Lane clicou no arquivo, e Lizzie percebeu que seu coração batia tão rápido quanto se tivesse acabado de correr meio quilômetro a toda velocidade.
E ele estava certo. Aquilo não era nenhuma carta de amor, tampouco um bilhete suicida. Era uma planilha repleta de números e datas e descrições breves, que Lizzie, por estar longe demais, não conseguia ler.
– O que é tudo isso? – perguntou.
– Cinquenta e três milhões de dólares – ele murmurou, descendo a tela. – Aposto como são cinquenta e três milhões de dólares.
– O que está dizendo? Espere… está sugerindo que ela roubou isso? – Não, mas acho que ela ajudou o meu pai a roubar.
– O quê?
Ele voltou-se para ela.
– Acho que, finalmente, meu pai tem sangue nas mãos. Ou, pelo menos, sangue que conseguimos ver.
“Sim.”
VINTE E UM
Voltando a se concentrar no laptop sobre o colo, Lane desceu pela planilha de Excel, localizando as entradas e tentando fazer uma somatória geral. Mas nem precisava ter se dado ao trabalho. Rosalinda somara por ele ao fim da página, numa célula em negrito à extrema direita de todas as colunas.
Na verdade, o total não era de 53 milhões de dólares.
Não, era de 68 milhões, 489 mil, 242 dólares e 65 centavos.
US$ 68.489.242,65.
As descrições para as retiradas variavam desde Cartier e Tiffany até a Aviação Bradford Ltda., que era a empresa que administrava todas as aeronaves e pilotos, e a folha de pagamento da Recursos Humanos Bradford, responsável, muito provavelmente, pelos salários de todos os empregados da casa. No entanto, havia uma descrição repetida que ele não reconhecia. Holding WWB.
Holding William Wyatt Baldwine.
Só podia ser.
Mas o que seria?
O montante maior tinha sido para eles.
– Acho que o meu pai… – Olhou para Lizzie. – Não sei, mas a companhia e fundos disse que ele se colocou, ou ele colocou a família, imagino, numa montanha de dívidas. Por quê? Mesmo com todos estes gastos, deveria haver muito dinheiro vindo da Cia. Bourbon Bradford para os acionistas, dos quais somos os majoritários.
– A empresa de aluguel… – Lizzie murmurou.
– O que foi?
– A empresa de aluguel não recebeu o pagamento, o financeiro deles telefonou para Rosalinda na semana passada e ela não retornou a ligação.
– Me pergunto para quem mais estamos devendo…
– Como posso ajudar?
Ele a fitou, a cabeça pensando, pensando.
– Me deixar ver este arquivo foi um bom começo.
– O que mais?
Deus, que olhos azuis, ele pensou. E os lábios, aqueles lábios naturalmente rubros tão perfeitamente moldados.
Ela falava com ele, mas Lane não conseguia ouvir. Era como se um silenciador o tivesse envolvido, impossibilitando-o de perceber qualquer som ao seu redor. Logo o computador em seu colo e todos os seus segredos também desapareceram, de forma que nem o brilho da tela nem o desenho de colunas e números e letras podia ser percebido.
– Lizzie – ele disse, interrompendo-a.
– Sim?
– Preciso de você – ele se ouviu dizer, rouco.
– Sim, claro, o que posso…
Inclinou-se e encostou os lábios nos dela, resvalando-os rapidamente.
Ela arfou e se afastou.
Lane esperou que ela se levantasse. Que lhe dissesse poucas e boas. Talvez voltasse ao século passado e o esbofeteasse.
Em vez disso, ela levantou os dedos e tocou a própria boca. Depois fechou os olhos.
– Eu queria que você não tivesse feito isso.
Merda.
– Desculpe. – Passou uma mão pelos cabelos. – Não estou com a cabeça no lugar.
Ela concordou.
– Sim.
Perfeito, pensou ele. A vida dele estava em labaredas em tantas frentes, por que não, então, atear mais um pouco de fogo? Sabe, só para piorar aquele inferno.
– Sinto muito – disse. – Eu deveria ter…
Ela se lançou sobre ele com um movimento tão rápido que ele quase caiu. O que o salvou foi o desejo… a necessidade feroz que ele sempre sentira por ela e que estivera represada durante todo o tempo em que ficaram afastados.
Lizzie disse ao encontro da boca dele:
– Também não estou com a cabeça no lugar.
Soltando uma imprecação, passou os braços ao redor dela e a trouxe para o colo, derrubando o computador sobre o carpete grosso. Queria se esquecer do dinheiro, do pai, de Rosalinda… mesmo que apenas por um momento.
– Desculpe – ele disse ao empurrá-la para o colchão. – Preciso de você. Eu só… preciso estar dentro de você…
Toc, toc, toc.
Os dois ficaram parados, os olhos presos um no outro.
– O que foi? – ele perguntou, irritado.
Uma voz feminina e abafada comentou algo sobre toalhas, e só o que Lane pensava era que a porta não estava trancada.
– Não, obrigado.
Lizzie saiu de baixo dele, e ele se moveu para que ela pudesse ficar de pé. Nesse meio-tempo, a criada continuou falando.
– Não preciso de toalhas, obrigado – repetiu com aspereza.
Seus olhos acompanharam as mãos de Lizzie, que ajeitavam a camisa e alisavam os cabelos.
– Lizzie… – sussurrou.
Ela apenas balançou a cabeça, andando em círculos, parecendo considerar saltar pela janela como estratégia de fuga.
Mais palavras por parte da criada, e ele perdeu a cabeça. Explodindo sobre os pés, foi até a porta e a abriu, bloqueando a entrada para o quarto. A loira de uns vinte e cinco anos do outro lado era a mesma que estava no corredor quando ele e Chantal discutiram.
– Ah, olá. – Ela lhe sorriu. – Como está?
– Não preciso de nada. Obrigado – disse, seco.
Quando se voltou para fechar, ela o segurou pelo braço.
– Sou Tiphanii, com “ph” e dois “is” no fim.
– Prazer em conhecê-la. Se me der licença…
– Eu só preciso entrar para ver como está o seu banheiro.
O sorriso a entregou. Isso e aquela pequena mudança de postura; ela inclinou o quadril na direção dele e suas pernas se esticaram, como se ela estivesse usando saltos altos em vez de Crocs.
Lane revirou os olhos, não conseguindo evitar. A mulher que desejava tinha acabado de sair de baixo dele e aquela bajuladorazinha achava que tinha algo a lhe oferecer?
– Obrigado, mas não. Não estou interessado.
Fechou a porta na cara dela porque não tinha energia para ser agradável e não queria dizer algo que acabasse lamentando mais tarde.
Girando, encontrou Lizzie do lado oposto do quarto, perto de uma janela. Ela estava deliberadamente mais para o lado, como se não quisesse ser vista, e seus braços estavam cruzados sobre o peito.
– Você pareceu bem sincero – ela comentou com secura.
– Quando estou com você, eu sou…
– Agora, com a criada.
– E por que eu não deveria?
– Sabe o que eu odeio mesmo?
– Só posso imaginar – ele murmurou.
– Como ela se ofereceu para você… E, mesmo assim, eu só consigo ficar pensando em arrancar as suas roupas. Como se fosse um brinquedinho que estou disputando com ela.
A ereção dele ficou mais apertada dentro da calça.
– Não existe disputa alguma… Eu sou seu. Se você quiser, aqui e agora. Ou mais tarde. Daqui uma semana, um mês, daqui a vários anos.
Cale a boca, sua ereção comandou. Apenas cale a boca, amigo, pare com essa coisa de futuro.
– Não vou voltar para você, Lane. Não vou.
– Você me disse isso pelo telefone.
Lizzie assentiu e desviou o olhar do jardim. Enquanto a luz começava a sumir do céu, ela marchou pelo quarto, evidentemente seguindo para a porta.
Maldição…
Não para a porta.
Na verdade, ela não foi para a porta.
Lizzie parou diante dele e deixou que os dedos completassem o trajeto, caminhando pelo seu rosto, trazendo a boca dele para a sua.
– Lizzie… – ele gemeu, lambendo a boca dela.
O beijo ficou rapidamente descontrolado, e ele não estava disposto a perder a chance com ela. Virando-a, empurrou-a contra a parede, acertando o quadro a óleo ao lado deles com tanta força que ele acabou soltando do prego e caindo no chão. Ele nem ligou. Suas mãos foram para baixo das roupas dela, encontraram a pele, subiram na direção dos seios.
Ele pensara que nunca faria aquilo de novo, e por mais que quisesse algo mais lento e demorado, não conseguia. Estava desesperado.
Foi rude com o cós dos shorts dela, arrancando o botão, descendo o zíper e fazendo-o escorregar pelas pernas dela. Em seguida, passou a mão entre as coxas dela, afastando a calcinha de algodão…
Lizzie exclamou seu nome numa voz rouca que quase o fez gozar ali mesmo, naquele instante. E quando os dedos dela se cravaram nos seus ombros, ele a afagou com mais intensidade.
– Pode me machucar – ele grunhiu quando ela o apertou com mais força. – Me faça sangrar.
Ele queria dor junto do prazer, pois tudo o que vinha acontecendo com o pai e a família deixava-o em carne viva, muito próximo de um lado sombrio… a ponto de ele pensar vagamente se não fora aquilo que norteara o irmão Max. Ficara sabendo das coisas que Maxwell fizera… ou rumores a respeito.
Talvez aquele fosse o motivo. Ele sentia como se precisasse arrancar a escuridão do seu íntimo ou acabaria sendo consumido por ela.
Suspendendo Lizzie do chão, deliciou-se com o modo como ela se grudou a ele com braços fortes. Um puxão no zíper da calça, e sua ereção estava pronta para seguir em frente. Rasgou a calcinha dela e…
O rugido que ela emitiu junto ao pescoço dele foi como o de um animal, mas ele não prestou atenção. A pegada escorregadia do sexo dela foi uma sensação que ele sentiu no corpo inteiro, e ele chegou ao orgasmo de imediato. Tanto tempo… Por tanto tempo ele sonhara com ela, lamentando o que tinha acontecido, querendo fazer as coisas de uma maneira diferente. E agora ele estava onde rezara: a cada bombeada dentro dela, ele voltava no tempo, consertando as coisas, reparando seus erros.
Ele queria estar com ela para, por um tempo, se afastar do presente. Mas, no fim, aquela experiência foi muito mais do que isso. Muito, muito mais.
Mas sempre fora verdadeiro com Lizzie. Fizera sexo muitas vezes no decorrer da vida.
No entanto, nada daquilo tivera importância… Até ele estar com ela.
Lizzie não tivera a intenção de ir tão longe.
Enquanto Lane chegava ao orgasmo dentro dela, foi alçada junto com ele, o seu orgasmo ecoando o dele. Rápido, tão rápido, tudo foi muito veloz, furioso, o ato chegou ao fim em questão de minutos, e os dois permaneceram unidos quando a onda inicial foi sumindo.
Tinham mesmo feito aquilo?, ela se perguntou.
Bem, tinham, ela concluiu quando ele se mexeu dentro dela.
E foi então que ela percebeu que… Ah, Deus, o cheiro dele era o mesmo. E os cabelos também, incrivelmente macios.
E o corpo continuava tão forte quanto ela se lembrava.
Lágrimas surgiram em seus olhos, mas ela escondeu o rosto no ombro dele. Não queria que ele percebesse suas emoções. Já estava com bastante dificuldade para reconhecer aquela confusão.
Apenas sexo, disse para si mesma. Era apenas desejo físico de ambas as partes. E Deus bem sabia, luxúria nunca fora um problema para eles. Desde o instante em que o vira no dia anterior, aquela conexão entre eles borbulhou até a superfície da pele dela.
E debaixo da pele dele também.
Ok. Sem problemas. Não conseguiu dizer não naquela situação específica, quando claramente deveria ter dito.
Quer fosse um erro ou não, dependia de como ela lidaria com as coisas dali por diante.
Recobrando o controle, afastou-se um pouco dos braços dele, muito ciente de que ainda estavam conectados.
Ficou com a respiração presa ao ver a expressão no rosto dele, quando ele fez um carinho em sua face.
Ele parecia tão vulnerável.
Contudo, antes que ela fizesse algum comentário calmo e sensato, ele começou a se mover dentro dela de novo. Lenta, ah… tão lentamente… para dentro e para fora. Para dentro e para fora. Em reação, os olhos dela se fecharam e ela ficou toda maleável, os braços dele sustentando-a, a parede nas suas costas apoiando-a ao encontro dele. Uma parte de si ainda estava presente, cada movimento sendo registrado com a claridade de um raio, a respiração pesada no peito e a fervura em seu sangue assumindo o controle de tudo.
A outra parte estava fugindo.
Ah, Deus, a sensação da mão dele agarrando seus cabelos, a boca beijando a sua com sofreguidão, os quadris se curvando e retraindo. Era como voltar ao lar de todas as maneiras que seu corpo desejava havia muito tempo.
E isso não podia ser bom.
– Lizzie – ele disse com uma voz entrecortada. – Senti saudade, Lizzie. Tanta saudade que chegava a doer.
Não pense nisso, ela disse a si mesma. Não preste atenção.
O nome dele escapou dos seus lábios uma vez mais, o estalido do prazer fazendo seu sexo se contrair ao redor da ereção enquanto ele se movia dentro dela, empurrando-a contra a parede, com tamanho ímpeto que a fez bater a cabeça.
Quando ficaram imóveis a não ser pela respiração, ela se deixou cair sobre ele.
– Esta não pode ser a última vez – ele grunhiu, como se soubesse o que ela estava pensando. – Não pode.
– Como você sabia…
– Não te culpo. – Ele se afastou, e seus olhos semicerrados a queimaram. – Só não quero que isso…
– Lane…
A batida à porta a sobressaltou. E ele praguejou.
– Mas que porra! – ele ralhou.
E considerando-se que ele não era de ficar falando palavrão, ela teve que dar um sorriso.
– O que foi? – ele berrou.
– Senhor Baldwine – era a voz do mordomo –, o senhor Lodge está aqui e gostaria de vê-lo.
Lane franziu o cenho.
– Diga a ele que estou ocupado…
– Ele disse que é urgente.
Lizzie balançou a cabeça e se afastou dos braços dele pela segunda vez. Quando seus pés tocaram o chão silenciosamente, ela se deu conta de que não haviam usado preservativo.
Isso mesmo. E tudo ficou bem real quando ela suspendeu os shorts e saiu apressada para o banheiro. Limpou-se o melhor que pôde enquanto Lane falava com o inglês pela porta. E quando ela voltou, ele já havia subido as calças e andava de um lado para o outro.
Ela levantou a palma antes que ele conseguisse comentar qualquer coisa.
– Vá lá ver o que ele quer.
– Lizzie…
– Se um quarto do que o preocupa for verdade, você vai precisar dele.
– Aonde você vai?
– Não sei. Acho que terminamos até amanhã de manhã.
O que era verdade em relação a tantas outras coisas.
– Você não pode ficar? – ele disse num ímpeto.
As sobrancelhas dela se ergueram.
– Ficar? Está querendo que eu passe a noite aqui? Isso é loucura.
Numa casa onde, tecnicamente, não podia usar metade das portas, acordar na cama do filho mais novo e continuar trabalhando em Easterly não era uma opção.
Ah, sim, pensou ela. Os bons e velhos tempos, quando tinham que manter tudo em segredo.
– Em qualquer lugar – ele disse. – Num dos chalés. Não faz diferença.
– Lane. Preste atenção, não é… Não vamos voltar ao que tínhamos antes, lembra? Não sei por que fiz o que fiz, mas isso não significa…
Ele se aproximou e a atraiu para um beijo, a língua invadindo a boca dela. Que Deus a ajudasse, pois, depois de um instante, ela retribuiu o beijo.
– Isso é importante – ele disse ao encontro dos lábios dela. – Isso é mais importante para mim do que a minha família. Você entende, Lizzie? Você sempre foi e sempre será importante para mim, a coisa mais importante.
Dito isso, ele se afastou e foi para a porta, olhando para ela por sobre o ombro – um olhar que era uma espécie de juramento, e que ela jamais vira antes.
Sentando no pé da cama dele, olhou para a parede onde tinham acabado de fazer sexo. O quadro no chão estava arruinado, a tela estava arranhada e torta, mas ela não queria avaliar o estrago. Apenas continuou sentada, tentando convencer a si mesma de que aquilo não era um sinal enviado por Deus.
Demorou um pouco para sair do quarto, atenta junto à porta, prestando atenção a vozes e passos antes de entreabrir a porta e espiar. Quando não havia mais nada além de silêncio, ela praticamente saltou para o meio do corredor e começou a andar apressada.
O quarto de Chantal ficava do outro lado do corredor, um pouco mais para a frente e, quando passou diante dele, sentiu a fragrância do perfume caro dela.
Um lembrete e tanto – não que ela precisasse – do por que deveria ter saído do quarto após a primeira interrupção.
Em vez de ter seguido em frente a toda velocidade.
Ela só podia culpar a si mesma.
VINTE E DOIS
Enquanto trotava escada abaixo, só o que Lane conseguia pensar era no quanto queria ter um drinque na mão. A boa notícia, e provavelmente a única que receberia, era que, quando chegou à sala de estar, Samuel T. já estava se servindo do Reserva de Família, o som do gelo a tilintar no copo atiçando a vontade de Lane como a ânsia de um viciado.
– Gostaria de partilhar da sua fortuna? – ele murmurou enquanto deslizava as portas de madeira dos dois lados da sala.
Havia muitas coisas que ele não queria que outros ouvissem.
– O prazer é meu. – Samuel o presenteou com um drinque igual ao seu num copo baixo de cristal. – Dia longo, não?
– Você não faz ideia. – Lane bateu um copo no outro. – O que posso fazer por você?
Samuel T. tomou seu bourbon e voltou para o bar.
– Fiquei sabendo sobre a controller. Meus pêsames.
– Obrigado.
– Foi você quem a encontrou?
– Sim.
– Já passei por isso. – O advogado voltou para perto e sacudiu a cabeça. – Dureza.
Você não sabe da missa a metade.
– Olha só, não quero te apressar, mas…
– Falou sério quanto ao divórcio?
– Claro.
– Tem um acordo pré-nupcial?
Quando Lane meneou a cabeça, Samuel xingou.
– Alguma possibilidade de ela ter te traído?
Lane esfregou as têmporas, tentando arrancar o que tinha acabado de acontecer com Lizzie… e o que vira naquele laptop. Queria pedir a Samuel T. que deixassem aquela conversa para o dia seguinte, mas seus problemas com Chantal estariam esperando, quer a sua família se afundasse em problemas financeiros ou não.
Na verdade, devia ser melhor dar sequência àquilo em vez de esperar, considerando toda aquela situação com o pai. Quanto mais rápido a tirasse daquela casa, menos informações ela teria para vender para os tabloides.
Não que não conseguisse vê-la falando pelos cotovelos com qualquer um, se o pior acontecesse com os Bradford.
– Desculpe – disse entredentes. – Qual foi mesmo a pergunta?
– Ela te traiu?
– Não que eu saiba. Ela passou os dois últimos anos nesta casa, vivendo à custa da minha família, fazendo a manicure.
– Uma pena.
Lane ergueu uma sobrancelha.
– Eu não sabia que via o matrimônio com tanto preconceito.
– Se ela tiver te traído, isso pode ser usado para reduzir a pensão. O Kentucky é um Estado que não exige admissão de culpa para conceder o divórcio, mas casos extraconjugais e maus tratos podem ser usados para mediar a pensão.
– Não estive com ninguém. – A não ser com Lizzie, havia pouco no quarto, e umas milhares de vezes antes em sua mente.
– Isso não importa, a menos que você queira pedir pensão a Chantal.
– Até parece. Livrar-me dela de uma vez por todas é só o que quero daquela mulher.
– Ela sabe que isso vai acontecer?
– Contei para ela.
– Mas ela sabe?
– Já está com os papéis para eu assinar? – Quando o advogado assentiu, Lane deu de ombros. – Bem, ela vai entender que eu estava falando sério quando receber os documentos.
– Assim que eu conseguir a sua assinatura, vou direto para o centro da cidade para dar entrada no divórcio. O tribunal terá que entender que o casamento está irrevogavelmente terminado, mas acho que, como faz dois anos que vocês moram em casas diferentes, não será um problema. Já vou avisando: acho que ela não vai abrir mão da pensão. E existe uma possibilidade de sair caro para você, ainda mais porque o padrão de vida dela foi bem alto nesta casa. Deduzo que alguns dos seus fundos foram liberados?
– A primeira parte. A segunda será liberada só quando eu completar quarenta anos.
– Qual a sua renda anual?
– Isso inclui os ganhos no pôquer?
– Ela está ciente deles? Você os declara no imposto de renda?
– Não e não.
– Então vamos deixar isso de fora. Qual o montante?
– Não sei. Nada ridículo, talvez um milhão, mais ou menos. Deve ser um quinto da renda gerada pelo acervo fiduciário.
– Ela vai atrás disso.
– Mas não ao acervo, correto? Acho que existe uma cláusula quanto ao excesso de gastos.
– Se estiver no Termo Irrevogável da Família Bradford de 1968, e eu acredito que esteja, pois foi meu pai quem redigiu os termos, pode apostar a sua melhor garrafa que sua iminente-ex-mulher não vai pôr a mão em nada disso. Vou precisar de uma cópia dos documentos, claro.
– A Fundos Prospect está com tudo.
Samuel T. tratou dos vários “arquivar isso”, “argumentar aquilo”, “divulgar sei lá o que”, mas Lane não estava mais prestando atenção. Em sua mente, estava no andar de cima, em seu quarto, com a porta trancada e Lizzie toda nua na sua cama. Ele a cobria com mãos e boca, diminuindo a distância dos anos e voltando ao ponto antes de Chantal aparecer em roupas de maternidade de grife.
O que quer que tivesse que enfrentar em relação ao pai e à dívida seria muito mais fácil se Lizzie estivesse ao seu lado, e não apenas sexualmente.
Amigos podiam se ajudar, certo?
– Tudo bem assim?
Lane voltou a se fixar no advogado.
– Sim. Quanto tempo vai demorar?
– Como já disse, vou entregar tudo ainda hoje a um juiz “amigável” que me deve um ou dois favores. E Mitch Ramsey concordou em disponibilizar a petição para ela imediatamente. Depois só vai faltar rascunhar o acordo do divórcio, e o meu palpite é que ela vá atrás de um tremendo advogado de família, que você vai ter que pagar. Vocês têm vivido separados há mais de sessenta dias, mas ela vai ter que sair desta casa o mais rápido possível, caso você tenha a intenção de ficar. Não quero que isso atrase o processo em dois meses, graças a uma possível alegação de coabitação da parte dela. O meu palpite é que ela contestará tudo, porque vai querer o máximo de dinheiro que puder de você. O meu objetivo é tirá-la da sua vida com apenas as roupas do corpo e aquele anel de um quarto de milhão de dólares que você lhe deu, e só.
– Parece-me uma excelente ideia. – Ainda mais porque ele não sabia se existia um centavo a mais para gastar em algum lugar que não fosse nas suas contas. – Onde assino?
Samuel apresentou diversos papéis para que fossem assinados. Tudo acabou antes que Lane terminasse seu primeiro copo de bourbon.
– Quer que eu te dê um adiantamento? – perguntou, ao devolver a Montblanc ao advogado.
Samuel T. terminou o drinque, depois se serviu de mais gelo e de mais uma dose do Reserva de Família.
– Fica por conta da casa.
Lane se retraiu.
– Que é isso, cara? Não posso deixar que faça assim. Deixe que eu…
– Não. Sério, não gosto dela, e ela não pertence a esta família. Encaro esse divórcio como parte da manutenção da casa. Uma vassoura para jogar o lixo fora.
– Eu não sabia que você a detestava tanto assim.
Samuel T. apoiou as mãos no quadril e baixou o olhar para o tapete oriental.
– Vou ser totalmente franco.
Lane já tinha entendido qual seria o assunto, pela maneira como o advogado contraía o maxilar.
– Vá em frente.
– Uns seis meses depois que você foi embora, Chantal ligou para mim. Pediu que eu viesse para cá, e quando eu me neguei, ela apareceu na minha casa. Ela estava querendo um “amigo”, como ela mesma disse, depois enfiou a mão dentro das minhas calças e se ofereceu para ficar de joelhos. Disse a ela que ela era louca. Mesmo se eu estivesse atraído por ela, o que nunca foi o caso, a sua família e a minha são amigas há gerações. Eu jamais ficaria com uma esposa sua, divorciada, separada ou casada. Além disso, a Virgínia é uma boa faculdade para se frequentar, mas eu não me casaria com uma moça de lá, e era exatamente isso que ela pretendia.
Caramba, às vezes ele odiava ter razão quanto àquela vadia, odiava mesmo.
– Não estou surpreso, mas fico contente que tenha me contado. – Lane levantou a mão. – Um dia vou retribuir o favor.
O advogado aceitou o que lhe era oferecido, depois se curvou de leve, e partiu com o copo.
– Você pode ser preso por beber na rua – Lane exclamou. – Para a sua informação.
– Só se eu for apanhado – Samuel T. exclamou de volta.
– Louco – murmurou Lane ao terminar o próprio drinque.
Quando foi se servir de outra dose, seu olhar recaiu sobre a pintura a óleo acima da cornija da lareira. Era um retrato de Elijah Bradford, o primeiro membro da família a ter dinheiro o bastante para se sobressair de seus pares, posando para um artista americano de renome.
Será que ele estava se revirando no túmulo àquela altura?
Ou isso aconteceria depois… quando o fedor piorasse?
Gin sentiu uma onda de pânico ao descer a escadaria principal de Easterly.
Assim que viu o Jaguar vintage diante da casa, tirou as roupas que usara na cadeia, pelo amor de Deus, e colocara um vestido de seda com barra bem acima dos joelhos. Borrifou um pouco de perfume. Calçou sapatos que deixavam seus tornozelos mais finos do que nunca.
A julgar pelas portas fechadas da sala de estar, ela sabia que o irmão estava falando com Samuel T. a respeito da Situação. Ou das Situações.
Deixou-os à vontade.
Em vez de entrar na sala, foi para a porta da frente e esperou ao lado do conversível antigo. A temperatura devia estar nos vinte e poucos graus, apesar de o sol já estar se pondo, e havia certa umidade no ar – ou talvez fossem seus nervos fora de controle. Para aproveitar um pouco de sombra, foi para debaixo de uma das magnólias que cresciam próximas à casa.
Enquanto olhava para o carro, lembrou-se das vezes que esteve nele com Samuel T., do vento noturno em seus cabelos, da mão dele entre suas pernas enquanto ele os conduzia pelas estradas cheias de curvas da sua fazenda.
O conversível fora comprado por Samuel T. pai, no dia do nascimento daquele que acabou sendo o único herdeiro do homem. E foi dado ao jovem Samuel T. em seu décimo oitavo aniversário, com instruções precisas de que ele não se matasse nessa coisa.
E, engraçado, as instruções deram resultado: só quando estava atrás daquele volante é que aquele homem era cuidadoso. Gin suspeitava de que ele sabia que se algo lhe acontecesse, sua árvore genealógica chegaria ao fim.
Ele era o único membro da sua geração que sobrevivera.
Foram muitas tragédias.
Que, até aquele exato instante, não lhe interessaram muito.
Enquanto aguardava, seu coração batia rápido, e a agitação em seu peito a deixava tonta. Ou talvez fosse o calor…
Samuel T. parou diante da porta da frente e saiu de Easterly com um copo de cristal na mão. Ele formava uma figura impressionante com o terno cortado sob medida, seu lindo rosto e a maleta com monograma. Estava usando óculos de sol com armação dourada, e os cabelos escuros e espessos estavam penteados para trás, com um topete que parecia ter sido milimetricamente arrumado, mas que, na verdade, nunca requeria isso.
Ele parou quando a viu. Depois disse em sua fala arrastada: – Veio me agradecer por te salvar?
– Preciso falar com você.
– É mesmo? Vai tentar negociar um adiantamento que não envolva dinheiro? – Bebeu todo o líquido e deixou o copo no primeiro degrau, como só alguém que sempre teve empregados faria. – Estou aberto a sugestões.
Ela avaliou cada passo que ele deu na direção dela e do carro. Conhecia muito bem aquele corpo forte e musculoso, que denunciava o fazendeiro que era no fundo de sua alma, debaixo de todas aquelas roupas elegantes de advogado.
Amelia seria alta como ele. E também era inteligente como ele.
Infelizmente, a menina era boba como a mãe, ainda que talvez um dia pudesse superá-lo.
– E então? – incitou-a ao colocar a maleta no banco. – Posso escolher como vai pagar a sua conta?
Mesmo através das lentes escuras, sentia o olhar dele. Ele a desejava, sempre a desejou, e às vezes, ele a detestava por isso: não era um homem que apreciava restrições, mesmo as autoimpostas.
Ela também era assim.
Samuel T. meneou a cabeça.
– Não me diga que o gato comeu a sua deliciosa língua. Seria uma pena tremenda ficar sem essa parte da sua anatomia…
– Samuel.
No instante em que ele ouviu o tom de voz dela, franziu o cenho e tirou os óculos escuros.
– O que aconteceu?
– Eu…
– Alguém a destratou na cadeia? Porque vou pessoalmente até lá e…
– Case comigo.
Ele parou no ato, tudo congelou: a expressão dele, a respiração, talvez até mesmo o coração. Depois ele gargalhou.
– Certo, certo, certo. Claro que você…
– Estou falando sério.
A porta do carro se abriu silenciosamente, um testemunho dos cuidados que ele tinha com o carro.
– O dia que você se assentar com qualquer homem será o dia do Segundo Advento.
– Samuel, eu te amo.
Ele lhe lançou um olhar sardônico.
– Ora, por favor…
– Preciso de você.
– A cadeia mexeu mesmo com você, não mexeu? – Ele se acomodou no banco do motorista e ficou olhando para o capô por um instante. – Olha aqui, Gin, não se sinta mal por ter parado lá, ok? Consegui apagar qualquer rastro, então a sua ficha vai ficar limpa. Ninguém vai saber de nada.
– Não é esse o motivo. Eu só… Vamos nos casar. Por favor.
Olhando para ela, ele franziu tanto o cenho que suas sobrancelhas se uniram.
– Você parece estar falando sério.
– Estou mesmo. – Ela não era idiota. Ela lhe contaria sobre Amelia mais tarde, quando fosse mais difícil para ele escapar, quando houvessem documentos que os unissem, até que ele superasse o que ela lhe fizera. – Você e eu nascemos para ficar juntos. Você sabe disso. Eu sei. Estamos dando voltas neste nosso relacionamento a vida toda, mais até. Você sai com garçonetes, manicures e massagistas porque elas não são eu. Você compara cada uma dessas mulheres ao meu padrão e todas elas perdem. Você é obcecado por mim, assim como eu sou por você. Não vamos mais mentir, vamos fazer o que é certo.
Ele voltou o olhar para o capô e escorregou as belas mãos sobre o volante de madeira.
– Deixe eu te perguntar uma coisa.
– Qualquer coisa.
– Para quantos homens você já disse isso? – Voltou a olhar para ela. – Hein? Quantos, Gin? Quantas vezes você usou essas frases?
– É a verdade – ela disse numa voz entrecortada.
– Você também tentou esse tom de súplica com eles, Gin? Bateu os cílios para eles?
– Não seja cruel.
Depois de um longo silêncio, ele meneou a cabeça.
– Você se lembra da minha festa de trigésimo aniversário? Aquela que aconteceu na minha fazenda?
– Isso não tem nada a ver com…
– Foi uma bela surpresa. Eu não fazia a mínima ideia de que vocês estariam lá esperando por mim. Entrei na minha casa e… surpresa! Todas aquelas pessoas gritando, e eu procurei por você…
Ela levantou as mãos.
– Isso aconteceu cinco anos atrás, Samuel! Foi…
– Na verdade, foi o resumo do nosso relacionamento, Gin. Eu procurei por você… percorri os olhos pela multidão, fui atrás de você…
– Aquilo não foi importante. Nenhum deles importou…
– … porque, como você mesma disse, sou um tolo e você foi a única mulher que eu quis de verdade. E eu te encontrei… transando com aquele jogador de polo argentino, hóspede de Edward, na minha cama.
– Samuel…
– Na minha cama! – ele esbravejou, batendo com o punho no painel. – Na porra da minha cama, Gin!
– Tudo bem! E o que foi que você fez? – Ela empinou o quadril e apontou o dedo na direção dele. – O que foi que você fez? Você pegou a minha colega de quarto da faculdade e a irmã dela e transou com as duas na piscina.
Ele praguejou alto.
– O que eu deveria ter feito? Deixar que você me pisoteasse? Sou homem, não um dos seus amigos coloridos patéticos! Eu não vou…
– Fiquei com o jogador de polo porque na semana anterior você dormiu com Catherine! Eu era amiga dela desde os dois anos, Samuel. Tive que ficar ouvindo-a contar e repetir que você lhe deu os melhores orgasmos da vida dela no banco de trás do seu carro. Depois de ter ficado comigo na noite anterior! Então, não venha me dizer que você foi o…
– Chega. – De repente, ele correu os dedos pelos cabelos. – Já chega, pare. Não vamos mais fazer isso, Gin. Temos as mesmas discussões desde que éramos adolescentes…
– Brigamos porque gostamos um do outro e somos orgulhosos demais para admitir isso. – Quando ele se calou de novo, ela teve esperança de que ele estivesse repensando. – Samuel, você é o único homem que eu amei. O mesmo acontece com você. É simples assim. Se precisamos parar de fazer alguma coisa, é de brigar e de nos magoar. Somos dois teimosos e orgulhosos demais para o nosso próprio bem.
Houve um longo silêncio.
– Por que agora, Gin…
– Porque… chegou a hora.
– Tudo isso só por causa da revista íntima das dez da manhã?
– Você precisa mesmo falar assim?
Samuel T. balançou a cabeça.
– Não sei se você está falando sério ou não, mas não é problema meu. Deixe-me ser bem claro.
– Samuel – ela o interrompeu –, eu te amo.
E ela estava falando sério. Ela estava abrindo a alma. A terrível convicção de que as coisas ficariam ruins para a família se enraizara e se espalhara, trazendo com ela uma certeza que ela nunca teve antes.
Ou talvez houvesse mais por trás – uma coragem que antes lhe faltara. Em todos aqueles anos juntos, ela nunca lhe dissera o que sentia verdadeiramente. Ela só se preocupava em manter a pose e dizer a última palavra. Bem, e criar a filha dele… não que ele soubesse disso ainda.
– Eu te amo – sussurrou.
– Não. – Ele abaixou a cabeça e apertou o volante como se buscasse forças dentro dele mesmo. – Não… Você não pode fazer isso, Gin. Não comigo. Não tente levar a farsa tão a fundo. Não é saudável para você. E eu acho que eu não sobreviveria, ok? Preciso funcionar… minha família precisa de mim. Não vou permitir que enlouqueça minha cabeça tanto assim…
– Samuel…
– Não! – ele exclamou.
Depois ele a encarou, os olhos azuis frios e agudos, como se estivesse diante de um inimigo.
– Primeiro, não acredito em você, ok? Acho que está mentindo para me manipular. Segundo? Jamais permitirei que uma esposa minha me desrespeite da maneira como você desrespeitará o seu marido. Você é fundamentalmente incapaz de ser monógama e, indo direto ao ponto, você se entedia rápido demais para valorizar um relacionamento durável. Você e eu podemos nos divertir de vez em quando, mas eu jamais honraria uma puta como você com o meu sobrenome. Você menospreza as garçonetes? Tudo bem. Mas eu preferiria que alguém assim tivesse a minha aliança no dedo do que uma menina mimada e desleal como você.
Ele deu a partida no carro, e o cheiro doce da gasolina e de óleo fugazmente se espalhou pelo ar quente.
– Eu te procuro da próxima vez que tiver vontade de cuidar de um assunto do qual prefiro não cuidar sozinho. Até então, divirta-se com o resto da população.
Gin levou as duas mãos sobre a boca quando ele deu marcha ré, e o carro desapareceu pelo caminho, colina abaixo.
Conforme ele sumia, lágrimas caíram dos olhos dela, borrando o rímel e, de maneira inédita, ela não se importou.
Dera seu único lance.
E fracassara.
Aquele era o seu pior pesadelo se concretizando.
VINTE E TRÊS
– Hum, Lisa?
Lizzie ficou estática assim que ouviu o sotaque sulista arrastado se infiltrando na estufa, o que foi estranho porque estava desmontando as mesas que usaram para os arranjos florais e uma delas ficou equilibrada apenas em uma perna.
– Lisa?
Ao erguer o olhar, Lizzie viu a esposa de Lane parada à porta como se estivesse posando para uma câmera, com uma mão no quadril e a outra jogando os cabelos para trás. Vestia calças de seda cor-de-rosa Mary Tyler Moore da Laurie Petrie e uma blusa com decote baixo num tom laranja pôr do sol. Os sapatos eram de bico fino, com saltos pequenos e, para completar, uma echarpe dramática e transparente em tons cítricos de amarelo e verde envolvia seus ombros, amarrada diante dos seios perfeitos.
Levando-se tudo em consideração, a composição criava uma impressão de Frescor, Amabilidade e Tentação, fazendo que alguém que estava Cansada, Ansiosa e Estressada se sentisse ainda mais deficiente – não apenas com relação ao penteado e à vestimenta, mas até à genética molecular.
– Pois não? – Lizzie disse enquanto prosseguia batendo numa das pernas.
– Poderia parar de fazer isso? É muito barulhento.
– Será um prazer – Lizzie disse entredentes.
Por algum motivo, enquanto a mulher brincava com as mechas loiras, o brilho do diamante em sua mão esquerda foi como se alguém lançasse uma maldita bomba repetidamente.
Chantal sorriu.
– Preciso da sua ajuda para uma festa.
Podemos apenas terminar a de amanhã primeiro?
– Será um prazer.
– É uma festa para dois. – Chantal sorriu ao soltar a echarpe e avançar um pouco mais. – Puxa, como está quente aqui. Não pode fazer nada a respeito?
– As plantas gostam mais do calor.
– Oh. – Tirou a echarpe e a deixou ao lado de um buquê que seria colocado num dos ambientes sociais da casa. – Bem.
– Você dizia?
Aquele sorriso retornou.
– Logo será nosso aniversário de casamento, meu e de Lane, e eu gostaria de preparar algo especial.
Lizzie engoliu em seco, e ficou se perguntando se aquele seria algum tipo de jogo doentio. Será que a mulher ouvira alguma coisa lá no segundo andar através das paredes?
– Pensei que tivessem se casado em julho.
– Quanta gentileza sua se lembrar. Você é tão atenciosa. – Chantal inclinou a cabeça para o lado e fixou o olhar no seu, como se estivessem partilhando um momento especial. – Sim, nos casamos em julho, mas tenho uma novidade muito especial para contar para ele, e pensei em comemorar um pouco antes.
– No que pensou?
Lizzie não acompanhou muito bem enquanto ela falava. As únicas coisas que captou foi “romântico” e “reservado”. Como se Chantal estivesse planejando presentear o marido com uma dança íntima.
– Lisa? Você está escrevendo tudo isso?
Bem, não, porque estou sem caneta e papel, não é? E P.S.: acho que vou vomitar.
– Ficarei contente em planejar o que quer que tenha em mente.
– Você é tão prestativa. – A mulher acenou para a tenda e para o jardim do lado de fora. – Sei que tudo ficará lindo amanhã.
– Obrigada.
– Podemos conversar mais a respeito depois. Mas repito, estou pensando num jantar romântico numa suíte do Cambridge Hotel. Você poderá providenciar as flores e a decoração especial. Quero que tudo seja coberto com panos a fim de criar um lugar exótico, apenas para nós dois.
– Tudo bem.
Será que Lane tinha mentido? E se tinha… bem, isso faria com que Greta cuidasse de tudo durante o Brunch do Derby, enquanto ela ficaria na fazenda se ocupando de um galão de sorvete de chocolate.
Só que ela e sua colega de trabalho não estavam conversando mais.
Fantástico.
– Você é a melhor. – Chantal consultou o relógio de diamantes. – Já está na hora de você voltar para casa, não está? Grande dia amanhã… Você vai precisar do seu sono de beleza. Tchauzinho por enquanto.
Quando Lizzie se viu só novamente, sentou-se num dos baldes virados para baixo e apoiou as mãos sobre os joelhos, esfregando-os para cima e para baixo.
Respire, ela se ordenou. Apenas respire.
Greta estava certa. Ela não estava no nível daquelas pessoas, e não só por ser apenas uma jardineira. Eles jogavam um jogo do qual ela só sairia perdendo.
Hora de ir embora, resolveu. O sono de beleza não iria acontecer, mas, pelo menos, ela poderia tentar e seguir em frente, antes que a bomba estourasse no dia seguinte.
Levantou-se, e já estava para sair quando viu a echarpe. A última coisa que queria era ter que entregar o pedaço de seda para Chantal, como se fosse um labrador devolvendo uma bola de tênis para seu dono. Mas aquela coisa estava bem ao lado de todos aqueles buquês e, conhecendo sua sorte, algo poderia vazar e cair em cima do pano, e ela teria que poupar três meses de salário para comprar um novo.
O guarda-roupa de Chantal era mais caro que bairros inteiros de Charlemont.
Pegando a peça, pensou onde a mulher poderia ter ido com aqueles estúpidos saltos finos.
Não seria difícil localizá-la.
Gin ainda estava debaixo da magnólia onde Samuel T. a deixara quando um veículo veio subindo pela entrada da frente. Foi só quando o SUV parou diante dela que ela percebeu que era da delegacia do Condado de Washington. Bom Deus, quais seriam as alegações do pai para prendê-la desta vez? Graças ao horrendo trajeto daquela manhã até o centro da cidade, seu primeiro instinto foi o de correr, mas estava com saltos, e se queria mesmo fugir do policial, teria que escapar por uma moita de flores.
Quebrar a perna não a ajudaria em nada na prisão.
O delegado Mitchell Ramsey saiu com um maço de papéis na mão.
– Senhorita – ele a cumprimentou com um aceno. – Como está?
Ele não tirou algemas do bolso. Não mostrava nenhum interesse nela além de uma mera educação.
– Veio aqui por minha causa? – ela perguntou de repente.
– Não. – Os olhos dele se estreitaram. – A senhorita está bem?
Não, nem um pouco, delegado.
– Sim, obrigada.
– Se me der licença…
– Então, não veio atrás de mim?
– Não, senhorita. – Ele andou até a porta e tocou a campainha. – Não vim.
Talvez estivesse relacionado à Rosalinda?
– Por aqui – ela disse, passando por ele. – Entre. Está procurando pelo meu irmão?
– Não, Chantal Baldwine está em casa?
– É bem provável. – Ela abriu a porta principal, e o delegado tirou o chapéu ao entrar. – Deixe-me encontrar… ah, senhor Harris. Pode, por favor, conduzir este cavalheiro até a minha cunhada?
– Será um prazer – disse o mordomo, curvando-se. – Por aqui, senhor. Acredito que ela esteja na estufa.
– Senhorita… – o delegado murmurou na direção dela, antes de seguir o inglês.
– Vejamos, isso deve ser bem interessante – disse uma voz na sala de estar.
Ela se virou.
– Lane?
O irmão estava diante do quadro de Elijah Bradford, e ergueu um copo baixo.
– Ao meu divórcio!
– Mesmo? – Gin andou e se ocupou no bar porque não queria que Lane se concentrasse nos seus olhos vermelhos e no seu rosto inchado. – Bem, pelo menos eu não terei mais que tirar as joias de mamãe do pescoço dela. Já vai tarde, mas estou surpresa que você não queira apreciar o espetáculo.
– Tenho problemas mais importantes.
Gin levou seu bourbon com soda para o sofá e, com um chute, tirou os sapatos. Enfiando as pernas debaixo do corpo, encarou o irmão.
– Você está horrível – ela disse. Tão péssimo quanto ela, na verdade.
Ele se sentou diante dela.
– Isso vai ser difícil, Gin. A situação financeira. Acho que é bem séria.
– Talvez possamos vender ações. Quero dizer, você pode fazer isso, não? Eu não faço ideia de como funciona.
E, pela primeira vez na vida, desejou saber.
– É complicado por conta da situação dos fundos.
– Hum… nós vamos ficar bem. – Quando o irmão não disse nada, ela franziu o cenho. – Certo? Lane?
– Eu não sei, Gin. Não sei mesmo.
– Sempre tivemos dinheiro.
– Sim, isso era verdade.
– Você faz com que isso pareça pertencer ao passado.
– Não se engane, Gin.
Curvando o pescoço para trás, ela ficou olhando para o teto, imaginando a mãe deitada na cama. Qual seria o futuro dela? Será que um dia ela se recolheria e puxaria as cortinas a fim de viver num torpor induzido pelas drogas?
Por certo, isso lhe parecia atraente agora.
Deus, Samuel T. tinha mesmo recusado seu pedido?
– Gin, você andou chorando?
– Não – ela disse com suavidade. – É apenas uma alergia, meu querido irmão. Apenas alergia causada pela primavera…
VINTE E QUATRO
Lizzie se apressou para fora da estufa com a echarpe perfumada de Chantal, e toda aquela fragrância emanando do tecido pesava em seu nariz, fazendo-a querer espirrar. Engraçado, conseguia ficar rodeada por milhares de flores de verdade, mas aquela coisa fabricada, artificial e forte bastava para mandá-la atrás de um Claritin.
Ao longe, ouviu o inconfundível sotaque arrastado típico da Virgínia de Chantal e seguiu na direção da sala de jantar para…
– O que é isso? – Chantal exigiu saber.
Lizzie parou de repente e espiou ao redor da arcada pesada de gesso.
Na ponta oposta da longa mesa lustrada, Chantal estava diante de um delegado uniformizado que, aparentemente, lhe entregara um maço de papéis.
– A senhora recebeu sua petição. – O delegado assentiu. – Passe bem.
– O que quer dizer com “petição”? O que quer… Não, você não vai embora até eu abrir isso. – Ela rasgou o envelope. – Fique aqui até eu…
Os papéis saíram do envelope num maço dobrado em três, e quando a mulher os esticou, o coração de Lizzie bateu forte.
– Divórcio? – Chantal disse. – Divórcio?
Lizzie voltou para trás e se encostou na parede. Fechando os olhos, odiou o alívio que sentiu, odiou mesmo. Só que ela não tinha como fingir que não era algo bom.
– Esta é uma petição de divórcio! – A voz de Chantal ficou mais aguda. – Por que está fazendo isso?
– Senhora, o meu trabalho é apenas entregar os papéis. Agora que os recebeu…
– Eu não os recebi! – Houve um farfalhar como se, de fato, ela tivesse jogado os papéis na direção do homem. – Pode pegar isso de volta!
– Senhora – o policial rugiu –, vou aconselhá-la a pegar esses papéis do chão. Ou não. O problema é seu. Mas se continuar agindo assim, vou ter que levá-la para a cadeia amarrada no teto da minha viatura por se mostrar agressiva com um oficial da justiça. Estamos entendidos?
Então, veio uma cascata.
Entre fungadas e o que deviam ter sido arquejos, Chantal mudou de atitude rapidamente.
– O meu marido me ama. Ele não está falando sério. Ele…
– Senhora, nada disso é da minha conta. Passe bem.
Passadas pesadas ecoaram e se afastaram.
– Maldição, Lane! – a mulher sibilou com uma dicção perfeita.
Pelo visto a atuação só acontecia quando havia uma plateia.
Sem aviso, um toc-toc-toc daqueles saltos atravessou o cômodo indo na direção de Lizzie. Merda, não havia tempo de sair dali…
Chantal fazia a curva e se sobressaltou ao ver Lizzie.
Embora a mulher tivesse aberto a torneira para o delegado, seus olhos estavam límpidos, e a maquiagem não estava nem um pouco borrada.
Ódio. Imediato.
– O que está fazendo? – Chantal berrou, o corpo trêmulo. – Ouvindo atrás das portas?
Lizzie estendeu a echarpe.
– Eu estava trazendo isto para você…
Chantal agarrou o tecido.
– Saia daqui. Saia! Saia imediatamente!
Não precisa pedir duas vezes, Lizzie pensou ao virar e seguir para o jardim.
Ao passar por baixo da tenda, serpenteando entre as mesas e cadeiras, pegou o telefone e mandou uma mensagem de texto para Lane, uma que apenas explicava que estava indo para casa após o longo dia de trabalho.
Deus bem sabia que o homem teria trabalho assim que Chantal o encontrasse.
A boa notícia, pelo menos para Lizzie?
Nada de festa de aniversário de casamento para planejar.
Lane não tinha mentido.
Foi difícil conter o sorriso que surgiu em seus lábios. E quando ele se recusou a ir embora, ela deixou que ele ficasse bem onde estava.
O telefone de Lane emitiu um bipe bem quando Chantal marchava pela sala de estar, gritando o nome dele enquanto partia em direção às escadas. Ele não denunciou seu paradeiro, simplesmente deixou que ela seguisse para o andar de cima, e fizesse o escândalo que planejava diante da porta fechada do seu quarto.
Engraçado, meras horas atrás, o fato de ela estar preparando uma guerra era um problema para ele. Mas agora? Aquilo estava tão embaixo na sua lista de prioridades…
– Preciso ir ver Edward – Lane disse, sem se importar em ver quem lhe mandara uma mensagem.
Gin levantou a cabeça.
– Eu não faria isso. Ele não está bem, e a notícia que você tem só pode piorar a situação.
Ela tinha razão. Edward já odiava o pai deles, que dirá a ideia de que o homem tivesse roubado dos fundos.
Gin levantou e foi até o bar para se servir novamente.
– Amanhã ainda está de pé?
– O Brunch? – Ele deu de ombros. – Não sei como impedir isso. Além do mais, já está tudo praticamente pago. A comida, a bebida, as coisas alugadas.
Ele sentia vergonha da outra motivação do evento: a ideia de que o mundo tivesse sequer uma pista dos problemas que sua família enfrentava lhe era inaceitável.
O som de alguém descendo os degraus acarpetados em disparada fez com que Gin erguesse uma sobrancelha.
– Parece que você vai ter um momento conjugal.
– Só se ela me encontrar…
Chantal apareceu na porta da sala de estar, com o rosto normalmente pálido e tranquilo tão rosado quanto o de um carvão em brasa numa churrasqueira.
– Como ousa? – a esposa exigiu saber.
– Imagino que esteja indo preparar as malas, querida – Gin disse com um sorriso digno da manhã de Natal. – Devo chamar o mordomo? Acho que podemos lhe fazer essa última cortesia. Considere como um presente de despedida.
– Não vou sair desta casa – Chantal ignorou Gin. – Você me entendeu, Lane?
Ele girou o gelo no copo com o indicador.
– Gin, pode nos dar um pouco de privacidade, por favor?
Com um aceno, a irmã foi para a porta e, ao passar por Chantal, parou e olhou para trás na direção dele.
– Certifique-se de que o mordomo verifique a bagagem dela, para garantir que ela não leve nenhuma joia.
– Você não presta – Chantal sibilou.
– Não mesmo. – Gin deu de ombros como se a mulher mal merecesse suas palavras. – Mas tenho o direito ao nome Bradford e a este legado. Você não. Tchauzinho.
Enquanto Gin acenava remexendo os dedos, Lane se adiantou e se colocou entre as duas a fim de impedir um momento Alexis/Krystle.21 Depois foi para frente e fechou as portas, mesmo não desejando estar a sós com a esposa.
– Não vou embora. – Chantal girou na direção dele. – E isso não vai acontecer.
Enquanto ela jogava os papéis do divórcio aos pés dele, Lane só conseguia pensar que não tinha tempo para aquilo.
– Escute aqui, Chantal, podemos fazer isso do jeito fácil ou do jeito difícil, a escolha é sua. Mas se escolher a última opção, vou atrás não só de você, mas da sua família também. Como acha que os seus pais batistas se sentiriam se recebessem uma cópia dos seus registros médicos em casa? Não creio que eles sejam favoráveis ao aborto, certo?
– Você não pode fazer isso!
– Não seja idiota, Chantal. Existem inúmeras pessoas para quem posso ligar, pessoas que devem à minha família e que ficariam muito contentes em pagar essa dívida. – Voltou ao bar e se serviu de mais Reserva de Família. – Ou, que tal assim: e se esses registros médicos caíssem nas mãos da imprensa implacável, talvez na internet? As pessoas entenderiam o motivo de eu querer me divorciar, e você teria muita, mas muita dificuldade para encontrar outro marido. Diferentemente do que acontece no norte, os homens sulistas têm padrões de comportamento para suas esposas, que não incluem o aborto.
Houve um momento prolongado de silêncio. Em seguida, o sorriso que ela lançou na direção dele foi inexplicável, tão confiante e calmo que ele teve que se perguntar se ela não havia enlouquecido de vez naqueles dois últimos anos.
– Você tem mais motivos para ficar quietinho do que eu – ela disse com suavidade.
– Tenho? – Ele sorveu um gole grande. – Por que acha isso? Só o que fiz foi correr de uma mulher que eu, supostamente, engravidei. De todo modo, quem pode garantir que era meu?
Ela apontou para a papelada.
– Você vai dar um jeito de fazer isso desaparecer. Vai permitir que eu continue aqui pelo tempo que eu quiser. E vai me acompanhar às festividades do Derby amanhã.
– Em qual universo paralelo?
A mão dela desceu para o ventre.
– Estou grávida.
Lane gargalhou.
– Você já tentou isso antes, minha cara. E todos nós sabemos como terminou.
– A sua irmã estava errada.
– Quanto a você roubar joias? Talvez. Veremos.
– Não. Sobre eu não ter o direito de ficar aqui. Assim como o meu filho. A bem da verdade, o meu filho tem tanto direito ao legado Bradford quanto você e Gin.
Lane abriu a boca para dizer alguma coisa, mas logo voltou a fechá-la.
– Do que está falando?
– Lamento dizer, mas o seu pai é um marido tão ruim quanto você.
Um tinido subiu do copo e, quando ele olhou para baixo, notou de uma vasta distância que sua mão tremia, fazendo o gelo se agitar.
– Isso mesmo – Chantal disse, com voz muito calma. – E acho que você está ciente da condição delicada da sua mãe. Como ela se sentiria se soubesse que o marido dela não só foi infiel, mas que logo terá um filho? Acha que ela vai tomar ainda mais daquelas pílulas das quais já é tão dependente? Provavelmente. Sim, tenho certeza de que ela tomaria.
– Sua vadia – ele sussurrou.
Em sua mente, viu-se colocando as mãos ao redor do pescoço da mulher, apertando, apertando com tanta força que ela começaria a se debater enquanto seu rosto ficaria roxo e a boca se abriria.
– Por outro lado – Chantal murmurou –, sua mãe não adoraria saber que seria avó pela segunda vez? Não seria motivo de comemoração?
– Ninguém acreditaria – ele se ouviu dizer.
– Ah, acreditaria, sim. Ele vai ser igualzinho a você… E tenho ido a Manhattan com bastante regularidade, para trabalhar no nosso relacionamento. Todos sabem disso.
– Você está mentindo. Nunca vi você.
– Nova York é uma cidade grande. Fiz questão que todos ficassem sabendo que me encontrei com você e que aproveitei a sua companhia. Também mencionei às meninas no clube, aos maridos delas nas festas, à minha família… Todos têm demonstrado tanto apoio para nós.
Enquanto ele permanecia em silêncio, ela sorriu com doçura.
– Portanto, você pode ver que esses papéis de divórcio não serão necessários. E você não dirá nada a respeito do que aconteceu entre nós e o nosso primeiro bebê. Se fizer isso, vou ter que contar tudo a respeito da sua família e envergonhá-lo diante desta comunidade, da sua cidade, do seu Estado. E então veremos quanto tempo vai levar para que você vista um terno de enterro. A sua mãe está meio fora de si, mas não está completamente isolada, e aquela enfermeira lê o jornal todas as manhãs ao lado da cama dela.
Com uma expressão de imensa satisfação, Chantal se virou e escancarou a porta, batendo os saltos no vestíbulo de mármore, mais uma vez senhora do prazer com seu sorriso de Monalisa.
O corpo inteiro de Lane tremia, os músculos gritavam pedindo ação, vingança, sangue… Mas a ira não estava mais direcionada à esposa.
Estava toda direcionada ao seu pai.
Chifrado. Ele acreditava que essa era a palavra adequada para descrever aquele tipo de situação.
Fora chifrado pelo próprio pai.
Quando é que a merda deste dia vai acabar?, ele se perguntou.
Alexis e Krystle são personagens antagonistas da série televisiva americana Dinastia (1981-1989). (N.T.)
VINTE E CINCO
Lizzie disse a si mesma que não olharia para o celular. Não olhou ao tirá-lo da bolsa e ao transferi-lo para seu bolso de trás assim que entrou pela porta da frente da sua casa de fazenda. Nem quando, quinze minutos mais tarde, se certificou de que o aparelho não estava no silencioso. E nem quando, dez minutos depois disso, destravou a tela só para ver se não havia nenhuma chamada perdida, nem mensagens de texto.
Nada.
Lane não telefonara para saber se ela tinha chegado em casa. Não respondera à sua mensagem. Mas, convenhamos, ele devia estar bem ocupado no momento.
Puxa.
Mesmo assim, estava ansiosa, andando de um lado para outro. A cozinha estava imaculada, o que era uma pena, porque bem que gostaria de ter alguma coisa para limpar. A mesma coisa com o banheiro no andar de cima. Caramba, até a cama estava arrumada. E ela tinha lavado a roupa na noite anterior. A única coisa que encontrou fora do lugar foi a toalha que usara pela manhã para ser secar após o banho. Deixara-a pendurada sobre a cortina do box, e já que ainda estava dentro dos dois dias de uso antes de colocá-la no cesto de roupa suja, a única coisa que podia fazer era dobrá-la e recolocá-la no porta-toalhas afixado à parede.
Graças basicamente ao dia desprovido de nuvens, a casa estava quente no segundo andar e ela foi abrindo todas as janelas. Uma brisa trouxe o odor da campina que circundava a propriedade, livrando a casa do abafado.
Se ao menos pudesse fazer o mesmo com a sua cabeça… Imagens do dia a bombardeavam: ela e Lane rindo assim que ela chegara para trabalhar; ela e Lane olhando para aquela planilha no laptop; ela e Lane…
Com a cabeça cheia, Lizzie voltou para a cozinha e abriu a geladeira. Nada de mais ali. Certamente nada que tivesse interesse em comer.
Quando a necessidade de verificar o celular surgiu de novo, ela se obrigou a resistir. Chantal sabia ser um problema num dia bom. Tinha recebido a papelada do divórcio, e ainda por cima a cena foi vista por um dos empregados…
O som de passos na varanda da frente chamou sua atenção.
Franzindo o cenho, fechou a porta da geladeira e seguiu até a sala de estar. Não se deu ao trabalho de ver quem era. Só havia duas opções: o vizinho da esquerda, que morava uns sete quilômetros estrada abaixo e tinha vacas que, com frequência, quebravam a cerca e vagavam pelos campos de Lizzie; ou o da direita, que ficava a meio quilômetro, e cujos cachorros costumavam se afastar para espiar as vacas soltas.
Começou a cumprimentar antes mesmo de abrir a porta.
– Oi, tudo…
Não era nenhum vizinho vindo se desculpar por invasões bovinas nem caninas.
Lane estava na varanda, com o cabelo pior do que de manhã, as ondas escuras espetadas como se ele tivesse tentado arrancar os fios.
Ele estava cansado demais para sorrir.
– Pensei em ver, pessoalmente, se você tinha chegado bem em casa.
– Oi, nossa, entre.
Encontraram-se na metade do caminho, corpo a corpo, e ela o abraçou com força. Seu cheiro era de ar fresco, e, por cima do ombro, ela viu que o Porsche estava com a capota abaixada.
– Você está bem? – ela perguntou.
– Melhor agora. A propósito, estou meio bêbado.
– E veio dirigindo? Isso foi idiotice e perigoso.
– Eu sei. É por isso que estou confessando.
Ela recuou e deixou que ele entrasse.
– Eu ia comer alguma coisa agora.
– Tem o bastante para dois?
– Ainda mais se for pra te deixar sóbrio. – Sacudiu a cabeça. – Chega de beber e dirigir. Acha que está com problemas agora? Tente acrescentar embriaguez ao volante à sua lista.
– Você tem razão. – Olhou ao redor, e depois foi até o piano dela e descansou as mãos sobre a tampa suave do teclado. – Deus, nada mudou aqui.
Ela pigarreou.
– Bem, estive bastante ocupada no trabalho…
– Isso é bom. Maravilhoso.
A nostalgia estampada em seu rosto enquanto continuava olhando para as ferramentas antigas, as colchas de retalhos penduradas e o sofá simples era melhor do que qualquer palavra que ele pudesse proferir.
– Comida? – ela sugeriu.
– Sim, por favor.
Na cozinha, ele foi direto para a mesinha e se sentou. E, de repente, foi como se nunca tivesse se ausentado.
Cuidado com isso, ela se reprimiu.
– Então, você gostaria de… – Vasculhou o conteúdo da despensa e da geladeira. – Bem, que tal uma lasanha que eu congelei uns seis meses atrás? Com nachos como acompanhamento, de um pacote que abri ontem, terminando com o bom e velho sorvete de menta?
Os olhos de Lane, concentrados nela, ficaram com as pupilas dilatadas.
Tuuuudo bemmmm. Evidentemente, ele planejava outra coisa para a sobremesa, e enquanto o corpo dela se aquecia de dentro para fora, tudo parecia mais que bem para ela.
Caramba, ela não estava nem aí para o bom senso. Livrar-se da esposa dele era apenas a ponta do iceberg, e ela precisava se lembrar disso.
– Essa me parece a melhor refeição do mundo.
Lizzie cruzou os braços e se recostou na geladeira.
– Posso ser franca?
– Sempre.
– Sei que Chantal recebeu a papelada do divórcio. Acabei presenciando sem querer. Não tive a intenção de ver o delegado fazendo aquilo.
– Eu te disse que estava pondo um fim nisso.
Ela esfregou a testa.
– Uns dois minutos antes, ela foi me procurar para planejar um jantar de comemoração do aniversário de casamento de vocês.
Houve um xingamento baixinho.
– Sinto muito. Mas estou te garantindo agora: não há futuro para mim e para ela.
Lizzie o encarou com firmeza por um bom tempo e, em resposta, ele não se moveu, não piscou, não disse nenhuma palavra mais. Só ficou ali sentado… deixando que as ações falassem por ele.
Maldição, ela pensou. Ela não precisava mesmo, de jeito nenhum, voltar a se apaixonar por ele.
Enquanto a noite caía sobre os estábulos, Edward se viu voltando à sua rotina noturna. Copo com gelo? Confere. Bebida? Confere – gim, aquela noite. Poltrona? Confere.
Só que, quando se acomodou e se viu diante daquelas provisões, dedilhou sobre o encosto da poltrona, em vez de colocar os dedos em uso para abrir o lacre da garrafa.
– Vamos lá – disse a si mesmo –, siga com o programado.
Mas não. Por algum motivo, a porta do chalé conversava com ele mais do que o Beefeater, no que se referia a coisas que precisavam ser abertas.
O dia fora bem longo. Ele tinha ido até Steeplehill Downs para dar uma olhada nos seus dois cavalos e dar telefonemas, tanto para o veterinário quanto para o treinador, porque Bouncing Baby Boy teria que ser deixado de lado por conta de um problema no tendão. Em seguida, voltara para lá, para verificar cinco das suas éguas que estavam prenhas, e para revisar os livros contábeis com Moe. Pelo menos as notícias eram boas nessa frente. Pelo segundo mês consecutivo, a operação não apenas se autossustentava, como gerava lucros. Se aquilo se mantivesse, ele poria um fim nas transferências do fundo fiduciário da mãe, que vinham fornecendo uma injeção de caixa nos negócios desde os anos 1980.
Ele queria ser totalmente independente da família.
Na verdade, uma das primeiras coisas que tinha feito quando saíra da reabilitação foi recusar a distribuição dos seus fundos. Ele não queria ter nada a ver com fundos que, mesmo que remotamente, estivessem relacionados com a Cia. Bourbon Bradford, e a totalidade da primeira e da segunda retirada estava ligada diretamente à CBB. Na verdade, só descobrira as transferências do fundo da sua mãe para o Haras Vermelho & Preto uns seis meses após a sua chegada e, naquele tempo, ele mal era capaz de se levantar pela manhã e ir até os estábulos. Se os tivesse recusado naquele tempo, a operação toda teria ido para o buraco.
Fazia muito tempo desde que alguém com um mínimo de perspicácia para os negócios fora até o haras e, a despeito das suas fraquezas atuais, sua habilidade para fazer dinheiro permanecia intocada.
Mais um mês. E então estaria livre.
Deus, estava mais exausto do que de costume. Mais dolorido também. Ou talvez as duas coisas estivessem unidas inextricavelmente.
Mesmo assim, não conseguia pegar a garrafa.
Em vez disso, pôs-se de pé com a ajuda da bengala e claudicou até as cortinas, que permaneciam fechadas desde o dia em que se mudara para lá. Estava um breu do lado de fora, somente as luzes de sódio nas entradas dos estábulos lançavam um brilho cor de pêssego na escuridão.
Xingando baixinho, foi para a porta da frente e a abriu. Parou um instante. Coxeou na escuridão.
Edward atravessou o gramado num andar desigual, e disse a si mesmo que estava indo dar uma olhada na égua que estava com problemas. Sim. Era isso o que iria fazer.
Não iria ver como estava Shelby Landis. Nada disso. Ele não estava, por exemplo, preocupado por não tê-la visto sair da fazenda o dia inteiro, o que provavelmente significava que ela não devia ter comida naquele apartamento.Tampouco iria verificar se, por acaso, ela dispunha de água quente, porque depois de um dia inteiro carregando carrinhos de mão, sacos de grãos do tamanho da picape dela e fardos pinicantes de feno, ela devia estar dolorida e necessitando de uma bela chuveirada.
Ele, positiva e absolutamente, iria…
– Merda.
Sem nem ter se dado conta, fora parar na porta lateral do Estábulo B – a que dava para o escritório, bem como para o lance de escadas que o levaria até os aposentos dela.
Ora, uma vez que já estava ali… ele bem que poderia ver como ela estava. Claro que em lealdade ao pai dela.
Não passou a mão pelos cabelos antes de pousá-la na maçaneta… Tudo bem, talvez tivesse feito isso só um pouquinho, mas apenas porque estava precisando cortar os cabelos e eles tinham caído nos seus olhos.
Luzes detetoras de movimento se acenderam assim que ele chegou ao escritório, e todos aqueles degraus até a parte superior pairavam acima dele como uma montanha que ele teria que se esforçar para escalar. E, vejam só, seu pessimismo tinha razão de ser: ele teve que parar para tomar fôlego na metade do caminho. E outra vez assim que chegou ao alto.
E foi por isso que ouviu as risadas.
De um homem. De uma mulher. Vindas do apartamento de Moe.
Franzindo o cenho, Edward olhou para baixo pela porta de Shelby. Aproximou-se e encostou a orelha na porta. Nada.
Quando fez a mesma coisa na porta de Moe? Ouviu os dois, a fala arrastada sulista de um e de outro como o som de um banjo de uma banda de jazz.
Fechou os olhos por um instante e se recostou na porta fechada.
Em seguida, aprumou-se e, com o auxílio da bengala, desceu todos aqueles degraus, foi para o gramado e voltou ao próprio chalé.
Dessa vez, não teve nenhum problema para abrir a garrafa ou colocar uma dose no copo.
Foi durante a segunda dose que ele por fim se deu conta de que era sexta-feira. Noite de sexta-feira.
Puxa, se isso não era um golpe de sorte.
E ele até tinha um encontro.
VINTE E SEIS
Sutton Smythe olhou para a multidão que lotava a galeria principal do Museu de Arte de Charlemont. Ela reconhecia tantos rostos, tanto pessoalmente quanto dos noticiários, da TV e da tela grande. Muitas pessoas acenavam para ela ao encontrar o seu olhar, e ela foi bastante cordial, erguendo a mão em retribuição.
Tinha esperanças que ninguém se aproximasse.
Não estava interessada em ter que cumprimentar alguém com um beijo no rosto e fazer perguntas educadas a respeito de um cônjuge, tampouco queria ser apresentada à companhia de alguém por aquela noite. Também não queria receber nenhum agradecimento – mais um – pela sua generosa doação de 10 milhões de dólares, feita no mês anterior, que marcou o início da campanha de levantamento de fundos para a expansão do museu. Muito menos queria ter que ouvir falar do empréstimo permanente do Rembrandt e do ovo Fabergé que o pai fizera em homenagem à querida esposa falecida.
Sutton queria ser deixada em paz para vasculhar a multidão em busca do único rosto que queria ver.
O único rosto que queria… que precisava ver.
Mas Edward Baldwine, mais uma vez, não viria. E ela sabia disso, não por ter estado ali nas sombras pela última hora e meia enquanto os convidados da festa que ela oferecia em nome da família chegavam, mas porque insistira em ver uma cópia da lista do RSVP uma vez por semana, e depois diariamente, quando o dia do evento se aproximou.
Ele simplesmente não tinha respondido. Nada de “Sim, irei à festa com prazer”, nem de “Lamento, mas não poderei ir”.
Será que podia mesmo ficar surpresa?
Ainda assim, isso a magoou. Na verdade, o único motivo pelo qual comparecera ao jantar de William Baldwine na noite anterior fora por ter esperanças de ver Edward em sua própria casa. Depois que ele não retornara as suas ligações por dias, meses e agora anos, ela pensou que talvez ele aparecesse à mesa do pai e eles poderiam, de maneira muito natural, se reconectar.
Mas não. Edward também não estivera lá.
– Senhorita Smythe, estamos prontos para iniciar o jantar, se for conveniente para a senhorita. As saladas já foram servidas.
Sutton sorriu para a mulher com uma prancheta na mão e um fone no ouvido.
– Sim, vamos diminuir as luzes. Farei minhas considerações assim que eles estiverem sentados.
– Pois não, senhorita Smythe.
Sutton respirou fundo e observou o caro rebanho fazer o que lhe era orientado e encontrar seus lugares em todas aquelas mesas redondas com arranjos elaborados, pratos dourados e menus impressos sobre guardanapos de linho.
Antes da tragédia, Edward sempre frequentara aquele tipo de evento, lançando sorrisos sardônicos quando outra pessoa surgia pedindo dinheiro para as suas causas. Convidando-a para dançar, como se fosse uma manobra de salvamento, quando ela se via acuada por um convidado conversador. Olhando para ela e piscando… como só ele conseguia fazer.
Eram amigos desde a escola preparatória em Charlemont. Oponentes nos negócios desde que ele se formara em Wharton e ela conquistara seu MBA na Universidade de Chicago. Companheiros sociais desde que ambos ingressaram no circuito de jantares beneficentes depois do falecimento da mãe dela e a dele passara a ficar cada vez mais tempo em seus aposentos.
Nunca foram amantes.
Ela queria que tivessem sido. Muito provavelmente, desde que o conhecera. Edward, contudo, mantivera-se afastado, permanecera distante, até mesmo arrumara encontros para ela.
O coração dela sempre estivera à disposição, mas ela jamais tivera coragem de atravessar aquela fronteira que ele, com tanta determinação, estabelecera entre eles.
E então… Dois anos atrás aquilo aconteceu. Bom Deus, quando ficara sabendo que ele iria mais uma vez para a América do Sul numa daquelas viagens de negócios, teve uma premonição, um alerta, uma sensação ruim. Mas não telefonara para ele. Não tentara falar com ele para tentar convencê-lo a levar mais seguranças ou algo assim.
Portanto, de certa forma, sentia-se parcialmente responsável. Talvez se tivesse…
Mas a quem tentava enganar? Ele não teria deixado de viajar por outro motivo que não condições climáticas adversas. Edward fora um verdadeiro adversário na indústria de bebidas, o óbvio herdeiro da Cia. Bourbon Bradford não apenas pelo direito de nascença, mas pelas suas incríveis ética profissional e astúcia.
Depois do sequestro e do pedido de resgate, o pai dele, William, esforçara-se para libertá-lo, negociando com os sequestradores, trabalhando em conjunto com a embaixada norte-americana. Tudo fracassara até que, no fim, uma equipe especial foi enviada para resgatar Edward.
Não conseguia sequer imaginar o que haviam feito com ele.
E aquele era o aniversário do dia em que fora emboscado durante a viagem.
Tudo aquilo era simplesmente uma tragédia. A América do Sul era um dos lugares mais lindos do planeta com sua comida deliciosa, cenários fantásticos e história fascinante; ela e Edward frequentemente brincavam dizendo que, quando se aposentassem, iriam para lá, para morar em propriedades vizinhas. O sequestro de executivos com exigência de resgate eram um dos pontos perigosos em certas áreas, mas não era muito diferente de atravessar o Central Park às três da manhã. Maus elementos podem ser encontrados em qualquer parte, e não havia motivos para condenar um continente inteiro por conta de uma minoria de bandidos.
Infelizmente, Edward se tornara uma das vítimas.
Depois de todo aquele tempo, ela só queria vê-lo com seus próprios olhos. Algumas fotos desfocadas foram publicadas pela imprensa, e elas, por certo, não a tranquilizaram. Ele sempre aparentava estar muito mais magro, com o corpo encurvado, o rosto sempre abaixado, desviando das lentes.
Para ela, contudo, ele ainda era lindo.
– Senhorita Smythe, está pronta?
Voltando ao presente, Sutton viu que havia mil pessoas sentadas, comendo suas saladas, prontas para ouvi-la discursar.
Sem aviso algum, uma repentina onda de energia ruim bombeou dentro dela, fazendo-a suar no peito, na testa, debaixo dos braços. Enquanto o coração batia descompassado, ondas de tontura fizeram-na esticar a mão para se equilibrar na parede.
O que havia de errado com ela?
– Senhorita Smythe?
– Não consigo – ouviu-se dizer.
– O que disse?
Pressionou os cartões que escrevera com tanto cuidado nas mãos da assistente.
– Outra pessoa terá que…
– O quê? Espere, onde a senhorita…
Ela levantou as palmas e recuou.
– … fazer o discurso.
– Senhorita Smythe, a senhorita é a única que pode…
– Ligo na segunda-feira. Sinto muito. Não consigo.
Sutton não fazia a mínima ideia de onde estava indo enquanto seus saltos finos ressoavam no piso de mármore. Na verdade, foi só quando uma lufada de calor a atingiu que ela percebeu que havia saído do prédio pela saída de incêndio e aparecera na ala oeste do complexo, no ar úmido noturno.
Bem longe do estacionamento onde seu chofer a aguardava.
Caindo de encontro à parede de gesso do museu, inspirou fundo algumas vezes, mas isso não ajudou a aliviar a sensação de sufocamento.
Não poderia ficar ali a noite toda. Mais especificamente, queria sair correndo, ir para longe, correr até que a sensação de terror saísse do seu corpo. Mas isso seria loucura. Certo?
Deus, estava perdendo a cabeça. Finalmente, tudo a estava alcançando.
Ou talvez fosse, mais uma vez e sempre, Edward Baldwine.
Hora de seguir em frente. Aquilo era ridículo.
Tirando os sapatos e segurando-os pelas tiras, começou a andar sobre a grama, se aproximando dos fachos de iluminação das luzes de segurança. Depois do que lhe pareceu uma eternidade, o estacionamento que procurava apareceu quando ela dobrou mais uma esquina, só que, nessa hora, ficou confusa pela quantidade de limusines estacionadas a céu aberto.
Onde estava…
Por pura sorte, o Mercedes C63 a encontrou, e o enorme sedã surgiu à sua frente. A janela do passageiro se abaixou sem emitir nenhum som.
– Senhorita Smythe? – seu chofer disse em tom alarmado. – A senhorita está se sentindo bem?
– Preciso do carro. – Sutton deu a volta, os faróis eram muito claros contra seu vestido de gala prata e seus diamantes. – Preciso do carro, preciso…
– Senhorita? – O homem uniformizado saiu de trás do volante. – Posso levá-la para onde quiser ir…
Ela pegou uma nota de cem dólares da minúscula bolsa de festa.
– Tome. Pegue um táxi, ou ligue para alguém. Sinto muito. Sinto muito, muito, mas preciso ir…
Ele meneou a cabeça ao ver a nota.
– Senhorita, posso levá-la a qualquer lugar…
– Por favor. Preciso do carro.
Houve uma ligeira pausa.
– Muito bem. Sabe como dirigir este…
– Dou um jeito. – Colocou o dinheiro na palma da mão dele e a fechou. – Fique com isso. Vou ficar bem.
– Eu preferiria dirigir.
– Aprecio a sua consideração, de verdade. – Fechou-se dentro do carro, subiu a janela, e olhou ao redor à procura do câmbio ou…
À batida no vidro escuro, ela voltou a abaixá-lo.
– Está ali, ao lado do volante – instruiu o chofer. – A marcha a ré, e ali para a frente. Pronto, assim. E as setas ficam… isso, isso mesmo. A senhorita não deve precisar dos limpadores de para-brisa, e as luzes já estão acesas. Boa sorte.
Ele recuou, do mesmo modo que fazemos quando estamos prestes a acender um fósforo para acionar fogos de artifício. Ou uma bomba.
Sutton pressionou o acelerador, e o potente sedã se lançou para a frente como se tivesse o motor de um jato debaixo do capô. Nos recessos da sua mente, ela fez um cálculo rápido de quantos anos fazia que não dirigia… E a resposta não foi nada encorajadora.
Mas, assim como tudo em sua vida, ela acabaria descobrindo… Ou morreria tentando.
– Importa-se se eu repetir?
Lizzie lhe lançou um olhar de encorajamento e Lane se levantou e foi para a geladeira. A comida estava ajudando a clarear a sua mente, ou talvez fosse a companhia dela.
Provavelmente era mais por estar na presença dela.
– Está muito bom – ele disse ao abrir o congelador e pegar mais uma porção.
A risada dela o fez parar e fechar os olhos, a fim de que o som pudesse inundá-lo ainda mais.
– Você só está sendo gentil – ela murmurou.
– É a mais pura verdade.
Levando o prato ao micro-ondas, ajustou-o para seis minutos e ficou olhando o bloco congelado girar e girar.
– Então, eu vou ter que ir procurar Edward – ouviu-se dizer.
– Quando foi a última vez que o viu?
Ele pigarreou. Sentiu uma tremenda necessidade de beber alguma coisa.
– Foi em…
Por um instante, ficou perdido em pensamentos, tentando encontrar um modo de perguntar se ela tinha alguma bebida em casa.
– Tanto tempo assim?
– Na verdade, eu estava pensando em outra coisa. – Ou seja, que era inteiramente possível que ele tivesse problemas com bebida. – Mas, pensando bem, depois de um dia como o de hoje, quem não seria alcoólatra?
– O que disse?
Ai, merda, falara em voz alta?
– Desculpe, a minha cabeça está a maior confusão.
– Eu queria poder fazer alguma coisa.
– Você já está fazendo.
– Então, quando foi que viu Edward pela última vez?
Lane voltou a fechar os olhos. Mas, em vez de fazer cálculos mentais que revelariam a soma do quanto deixava a desejar como irmão, voltou no tempo para aquela noite de Ano-Novo quando Edward apanhara pelo restante deles.
Ele e Maxwell haviam permanecido no salão de baile, silenciosos e trêmulos, enquanto o pai forçava Edward a subir. À medida que eles subiam a grande escadaria, Lane gritava a plenos pulmões… mas apenas internamente.
Era covarde demais para sair de lá e pôr um fim à mentira que salvara seu irmão e ele mesmo.
– Eu deveria ir lá – disse quando um tempo se passou.
– Mas o que você pode fazer? – Max sussurrou. – Nada pode deter papai.
– Eu poderia…
Só que Maxwell estava certo. Edward mentira, e o pai o estava fazendo pagar por uma transgressão que não era dele. Se Lane contasse a verdade agora… O pai simplesmente surraria todos eles. Pelo menos se ele e Maxwell ficassem quietos, poderiam evitar….
Não, aquilo era errado. Era uma desonra.
– Vou até lá. – Antes que Maxwell conseguisse dizer qualquer coisa, Lane agarrou o braço do irmão. – E você vem comigo.
A consciência de Max também o devia estar incomodando, porque em vez de discutir, como sempre discutia sobre tudo, seguiu-o mudo pela escada principal. Quando chegaram ao topo, o corredor estava deserto a não ser pela moldura de gesso, pelos retratos, e pelas flores sobre mesinhas e aparadores antigos.
– Temos que impedir – Lane sibilou.
Um atrás do outro, seguiram rapidamente sobre o tapete… até o quarto do pai.
Do lado oposto da porta, os sons do açoite eram agudos e altos, vindos do couro de encontro à pele nua de seu irmão, e dos grunhidos do pai, que empregava força nos golpes.
Edward estava em silêncio.
E, nesse meio-tempo, os dois apenas permaneceram ali, silenciosos e petrificados. Lane só conseguia pensar que nem ele nem Max tinham metade da coragem dele. Os dois acabaram chorando.
– Vamos embora – disse baixinho, coberto de vergonha.
Mais uma vez, Max não discutiu. Obviamente, ele também era um covarde.
O quarto que partilhavam ficava no fim do corredor, e foi Lane quem abriu a porta. Havia quartos de sobra para que dormissem separados, mas quando Maxwell começara a ter pesadelos alguns anos antes, acabaram colegas de quarto sem querer. Max começara a entrar sorrateiramente no quarto de Lane e despertava ali pela manhã. Depois de um tempo, a senhorita Aurora instalara outra cama lá e assim ficou resolvido.
O banheiro era conjugado, e o quarto do lado oposto era o de Edward.
Max foi para a cama e fitou o teto.
– A gente não devia ter descido. A culpa é minha.
– É de nós dois. – Olhou para Max. – Fique aqui. Vou esperar por ele.
Enquanto seguia para o banheiro, fechou a porta atrás de si e rezou para que Max seguisse suas ordens. Tinha uma sensação ruim quanto à condição em que Edward estaria quando o pai finalmente acabasse o castigo.
Ah, como Lane gostaria de poder voltar no tempo e refazer a decisão de ir para a sala de estar.
Abaixando a tampa do vaso, ficou sentado e atento às batidas do seu coração. Mesmo não conseguindo mais ouvir as chibatadas do cinto, isso não tinha relevância. Ele sabia o que estava acontecendo do outro lado do corredor.
Por algum motivo, ficou olhando para as três escovas de dente enfiadas dentro de um copo de prata, ao lado das toalhas de mão dobradas sobre a pia. A vermelha era de Edward, porque ele era o mais velho e sempre podia escolher antes. A de Max era verde, porque era a mais varonil que restava. Lane acabava tendo que ficar com a amarela, que odiava.
Ninguém queria a azul da uk.
Um clique suave e um empurrão de uma porta sendo aberta quebrou o silêncio. Lane esperou o segundo clique e depois se pôs de pé, espiando o quarto de Edward.
Na escuridão, Edward caminhava em direção ao banheiro, todo encurvado, com um braço ao redor do abdômen, e outro estendido para se equilibrar na cômoda, nas paredes, na mesa.
Lane se apressou e segurou a cintura do irmão.
– Enjoado – Edward grunhiu. – Vou vomitar.
Ah, Deus, ele estava sangrando no rosto, devido ao corte causado pelo anel de sinete do pai quando ele lhe desferiu aquele tapa.
– Eu te levo – Lane murmurou. – Vou cuidar de você.
O avanço foi lento, as pernas de Edward tinham dificuldade para sustentar o tronco ereto. Parte da camisa do pijama ficara presa no cós depois da surra, e Lane só conseguia pensar no que havia por baixo. Nos vergões, no sangue, no inchaço.
Edward mal chegou a tempo ao vaso, e Lane ficou junto dele durante todo o tempo. Quando terminou de vomitar, Lane pegou a escova vermelha e colocou pasta de dente nela. Depois, ajudou o irmão a ir até a cama.
– Por que você não chora? – Lane perguntou com uma voz rouca enquanto o irmão se acomodava no colchão como se todo o seu corpo doesse. – É só você chorar. Ele para assim que você chorar.
Era sempre assim quando ele e Max levavam uma surra.
– Vá para a cama, Lane.
A voz de Edward pareceu exausta.
– Sinto muito.
– Está tudo bem. Só vá para cama.
Foi difícil sair, mas ele já tinha causado confusão demais por aquela noite, e vejam o que tinha acontecido.
De volta ao seu quarto, enfiou-se entre os lençóis e ficou olhando para o teto.
– Ele está bem? – Max perguntou.
Por algum motivo, as sombras em seu quarto eram completamente assustadoras, pareciam monstros que se moviam e rastejavam pelos cantos.
– Lane?
– Sim – mentiu. – Ele está bem…
– Lane?
Ele voltou ao presente e olhou sobre o ombro.
– O que foi?
Lizzie apontou para o micro-ondas.
– Está pronto?
Bipe…
Bipe…
Ele apenas ficou ali, piscando, tentando voltar do passado.
– Sim, sim, desculpe.
De volta à mesa, depositou o prato fumegante e se sentou de novo… só para descobrir que tinha perdido o apetite. Quando Lizzie estendeu o braço e apoiou a mão na dele, ele a aceitou e a levou aos lábios para um beijo.
– No que está pensando? – Lizzie perguntou.
– Quer mesmo saber?
– Sim.
Ora, ora, se ele não tinha uma bela seleção de coisas para escolher.
Enquanto ela esperava por uma resposta, ele ficou olhando para seu rosto por um bom tempo. E então teve que sorrir.
– Agora, neste exato instante… estou pensando que, se tiver uma chance com você, Lizzie King, vou aceitar.
O rubor que atingiu o rosto dela foi encoberto quando ela levantou as mãos.
– Ai, meu Deus…
Ele deu uma risada leve.
– Quer que eu mude de assunto?
– Sim – disse ela por trás do seu esconderijo.
Ele não a culpava.
– Tudo bem, estou muito feliz de ter vindo para cá. Easterly é como uma corda no meu pescoço agora.
Lizzie esfregou os olhos e abaixou as mãos.
– Sabe, custo a acreditar no que Rosalinda fez.
– Foi simplesmente horrível. – Ele se recostou na cadeira, respeitando a necessidade dela de mudarem de assunto. – E, escuta essa. Sabe Mitch Ramsey, o delegado? Ele me ligou enquanto eu vinha para cá. O exame médico legal preliminar indica traços de cicuta.
– Cicuta?
– O rosto dela… – Ele circundou a face com a mão. – Aquele sorriso horrendo? Foi provocado por algum tipo de paralisia facial, o que, aparentemente, é bem documentado como sendo causado por uma variedade de venenos. Caramba, vou te contar, vai demorar bastante tempo para eu me esquecer da aparência dela.
– Existe a possibilidade de ela ter sido morta?
– Eles acham que não. É preciso uma bela dose de cicuta para ter o resultado desejado, portanto, é mais provável que ela mesma tenha feito isso. Além do mais, aqueles Nikes eram novinhos e havia grama nas solas.
– Nikes? Ela só usa sapatos sem salto.
– Exatamente, mas ela foi encontrada com tênis próprios para corrida, que, evidentemente, acabara de comprar, e os usou para andar no jardim. Pelo que Mitch disse, na época dos romanos, as pessoas costumavam beber veneno e depois perambular para que ele agisse com mais rapidez. Portanto, isso mais uma vez indica que ela causou a própria morte.
– Que… horrível.
– A pergunta é: por quê? E, infelizmente, acho que nós sabemos a resposta.
– O que vai fazer agora?
Ele ficou em silêncio por um tempo e depois ergueu os olhos para ela.
– Para começar, pensei em te levar para cima.
Lizzie corou de novo.
– E o que vai fazer comigo no segundo andar?
– Vou te ajudar a dobrar a roupa limpa.
Ela deu uma gargalhada.
– Detesto te desapontar, mas já fiz isso.
– Arrumar a sua cama?
– Lamento. Já está arrumada.
– Mas você tinha que ser tão organizada? Cerzir as suas meias? Precisa pregar algum botão?
– Está sugerindo que é bom com linha e agulha?
– Aprendo rápido. Então… quer costurar comigo?
– Acho que não tenho nada que precise desse tipo de cuidado.
– Existe alguma coisa na qual posso te ajudar, então? – ele perguntou num tom baixo. – Alguma dor que eu possa aplacar? Algum fogo que eu possa extinguir? Com a boca, talvez?
Lizzie fechou os olhos, e mudou de posição na cadeira.
– Ai, Deus…
– Espere, já sei. Que tal se eu te levar para o segundo andar e nós bagunçarmos a sua cama? Daí, então, vamos poder arrumá-la de novo.
Quando, por fim, ela voltou a olhar para ele, seus olhos estavam pesados e sensuais.
– Sabe, esse parece um plano perfeito.
– Adoro quando estamos de acordo.
Levantaram-se ao mesmo tempo, e antes que ela conseguisse detê-lo, ele se inclinou e a pegou no colo.
– O que você está fazendo? – Empurrou-o e começou a gargalhar. – Lane…
– O que parece? – E saiu da cozinha. – Estou te carregando lá para cima.
– Espera. Espera. Sou muito pesada…
– Ora, por favor!
– Não, é verdade… Não sou como aquelas mulherzinhas delicadas…
– Exato. Você é uma mulher de verdade. – Chegou à escada e seguiu em frente. – E é por essas que homens de verdade ficam atraídos. Confie em mim.
Deixou a cabeça pender no ombro dele, e quando Lane sentiu o olhar dela em seu rosto, pensou no que Chantal fizera com o seu pai. Ou, pelo menos, no que ela disse ter feito com ele.
Lizzie nunca o traíra. Nem em pensamento, nem em ações.
Ela simplesmente não tinha isso dentro dela.
O que a tornava uma mulher de verdade, e não só por não ser socialmente anoréxica.
– Não, você não tem que dizer isso – ele murmurou quando os degraus antigos rangeram debaixo dos seus pés.
– Dizer o quê?
– Que não significa nada comparado a outras coisas. Sei que me quer só como amigo e aceito isso. Você só precisa saber de uma coisa.
– O que seria? – ela suspirou.
Ele fez uma voz mais grave.
– Estou preparado para ser um homem muito paciente no que se refere a você. Vou seduzi-la pelo tempo que for necessário, vou lhe dar todo o espaço que precisar, ou seguir seus passos como a luz do sol sobre seus ombros, se você deixar. – Seus olhos se fixaram nos dela. – Perdi minha chance com você uma vez, Lizzie King, e isso não vai se repetir.
VINTE E SETE
Sentado em sua poltrona, Edward flanava numa nuvem de gim Beefeater; seu corpo estava tão entorpecido que ele conseguia manter uma fantasia de força e flexibilidade. Na verdade, conseguia imaginar que ficar de pé podia ser fácil, apenas uma mudança de localização descomplicada e inconsciente que necessitava de um pensamento fugidio e músculos nas coxas. Músculos esses que ficariam contentes – e seriam perfeitamente capazes – de executar tal tarefa.
No entanto, não estava embriagado o suficiente para tentar.
O som de uma batida à porta fez com que levantasse a cabeça.
Ora, ora, ora. Não estava preparado para aquela coisa de ficar na vertical, mas pelo menos a recém-chegada poderia lhe oferecer uma realidade alternativa para ele experimentar.
E ele não recusaria.
Com um grunhido, tentou ficar um pouco mais ereto na poltrona. Não conseguiria abrir a porta para a mulher e sentiu-se mal por isso. Um cavalheiro sempre deveria fazer tal gentileza a um membro do sexo frágil, e ele não se importava que a sua convidada fosse uma prostituta, uma mulher merecia ser tratada com respeito.
– Entre – disse em voz alta, mas arrastada. – Pode entrar.
A porta se abriu devagar… E o que viu do outro lado, bem debaixo da soleira, era…
O coração de Edward parou de bater. E depois começou a martelar.
– Eles acertaram – sussurrou. – Finalmente. Beau acertou em cheio.
A mulher piscou.
– Perdão – ela disse, rouca. – O que disse?
A voz era igualzinha. Como tinham conseguido acertar?
– Entre – ele respondeu, gesticulando com a mão que não segurava o copo. – Por favor.
E não tenha medo, ele pensou consigo.
Afinal, ele estava sentado no escuro, e a iluminação dos incontáveis troféus sobre as prateleiras não alcançavam seu rosto e seu corpo. O que era proposital, claro. Não gostava de olhar para si mesmo, não havia motivo para dificultar o trabalho da prostituta forçando-a a vê-lo com nitidez.
– Edward?
Em seu torpor ébrio, ele só conseguiu fechar os olhos e relaxar o corpo. Ficou duro num lugar bem crucial.
– A sua voz… é tão bela quanto nas minhas lembranças.
Não ouvia a voz de Sutton Smythe em pessoa desde antes da sua viagem e, depois que retornara, não foi capaz de ouvir quaisquer das suas mensagens.
A ponto de ter se livrado tanto do aparelho quanto daquele número.
– Ah, Edward…
Bom Deus, havia sofrimento naquela voz. Como se a mulher estivesse olhando para a sua alma e reagindo ao emaranhado de angústia que ele carregava desde que lhe informaram que ele sobreviveria.
E, de fato, era quase isso o que ouvia na voz de Sutton. Engraçado, durante seu período no cativeiro, desmaiara três vezes durante os oito dias em que o mantiveram preso. Todas as vezes, enquanto perdia a consciência, Sutton fora a última coisa em seus pensamentos, a última coisa a ver, a ouvir, a lamentar a perda. E não a sua família. Não o seu tão amado trabalho. Não a casa em que crescera, tampouco a fortuna e as coisas que deixaria inacabadas.
Sutton Smythe.
Na terceira vez, quando já não conseguia ver nada, quando já não sabia distinguir se era suor ou sangue em sua pele, quando a tortura o levara a um lugar onde o botão de sobrevivência fora desligado e ele já não rezava para ser resgatado, a não ser pela morte…
Sutton Smythe, uma vez mais, estivera em seus pensamentos.
– Edward…
– Não. – Levantou a mão. – Não diga mais nada.
A mulher estava se saindo tão bem. Não queria que continuasse e estragasse tudo.
– Venha aqui – sussurrou. – Quero tocar em você.
Abrindo os olhos, embeveceu-se com a aproximação dela. Ah, que vestido prateado perfeito, a barra arrastando pelo chão, as joias surpreendentemente de bom gosto reluzindo apesar de a luz estar atrás dela. E ela também trazia o mesmo tipo de bolsa de festa que Sutton sempre levava aos eventos formais, um quadrado forrado com seda da mesma cor do vestido – ainda que, como ela mesma dizia, “combinar tudo era tão anos cinquenta”.
– Edward?
Havia tanta confusão quanto um anseio em seu nome.
– Por favor – ele se viu implorando. – Não fale mais. Só quero tocar você. Por favor.
Enquanto o corpo dela tremia diante dele, Edward sentiu a realidade mudar e se permitiu seguir o ardil, acompanhando a fantasia de que aquela era de fato Sutton, que ela fora procurá-lo, e que, finalmente, ficariam juntos.
Mesmo ele estando arruinado.
Deus, isso bastava para deixá-lo emocionado. Mas não durou muito… porque ela tropeçou e seus olhos ficaram muito arregalados.
O que significava que tinha visto seu rosto.
– Não olhe para mim – disse ele. – Não sou mais o mesmo. É por isso que as luzes estão tão fracas.
Edward estendeu os braços e mostrou as mãos.
– Mas estas… não estão marcadas. E, ao contrário de outras partes, ainda funcionam muito bem. Me deixe… tocar você. Vou ser cuidadoso… mas você vai ter que se ajoelhar. Já não fico muito bem de pé, e tenho que confessar que estou embriagado.
A prostituta tremia dos pés à cabeça quando começou a se abaixar, e ele se sentou mais para a frente da poltrona, oferecendo-lhe o braço como se ela fosse uma dama saindo de um carro, em vez de uma trabalhadora permitindo que um aleijado fizesse sexo com ela por mil dólares.
Quando voltou a se recostar, uma súbita onda de vertigem o assolou, enquanto mais álcool bombeava em seu sistema. Como com todos os bêbados, contudo, ele sabia que era apenas algo temporário, que logo se autorregularia.
Ainda mais considerando tudo em que ele tinha que se concentrar: mesmo com a visão embaçada, mesmo com a penumbra, mesmo estando muito bêbado… estava maravilhado.
Ela era muito linda, quase linda demais para que ele a tocasse.
– Ah, olhe só para você… – sussurrou, esticando a mão para tocar seu rosto.
Os olhos dela reluziram de novo, ou, pelo menos, ele acreditou nisso; talvez estivesse apenas imaginando coisas por causa do modo como ela inspirou fundo. Era difícil saber, era complicado acompanhar o que estava acontecendo… A realidade estava muito distorcida agora, girando ao seu redor até ele não ter mais certeza se a prostituta se parecia mesmo com Sutton ou se era mera projeção dele, por causa dos cabelos negros e compridos, das sobrancelhas arqueadas, da boca perfeita, como a de Grace Kelly.
O cabelo da mulher estava solto, bem como havia solicitado, e ele passou as mãos pelas ondas até alcançar a curva do ombro.
– Seu cheiro é tão bom. Exatamente como eu me lembrava.
E logo ele tocou mais, os dedos viajando pela clavícula, sobre o colar de diamantes, descendo pela curva do decote. Em resposta, ela começou a arfar, o movimento dos pulmões aproximando seus seios das mãos dele.
– Adoro esse vestido – ele sussurrou.
O vestido de noite era bem ao estilo dos de Sutton: muito elegante, feito sob medida para o corpo dela, de chiffon tão cinzento quanto uma pomba.
Sentando-se mais para frente, aproximou seu peito diminuto do dela, que era magnífico, e passou as mãos para trás, a fim de encontrar o zíper embutido. Enquanto o abria, o som produzido pareceu-lhe alto demais.
Ele podia jurar que ela arfava como se a tivesse chocado. E foi… ah, tão perfeito. Exatamente o que Sutton teria feito.
E, em seguida, sim… ah, sim… a prostituta retribuiu a sua exploração, as mãos trêmulas subindo pelos seus braços finos. Deus, ele odiou todo aquele tremor por parte dela, mas, sem dúvida, devia ser difícil fazer sexo com ele.
Pelo menos como ele se encontrava agora.
– Eu queria ter feito isto antes – disse numa voz entrecortada. – No passado, valia a pena ver o meu corpo. Eu deveria ter… deveria ter tentado conquistá-la antes, mas era covarde demais. Era um covarde arrogante, mas a verdade é que eu poderia ter suportado qualquer coisa, menos uma recusa sua.
– Edward…
Interrompeu-a colando a boca na dela.
Ah, ela era boa. Tão boa quanto ele imaginava, a sensação da sua língua escorregando para dentro dela e a maneira como ela gemeu, como se tivesse esperado a vida toda pela oportunidade de fazê-lo se esquecer do que ele se tornara…
O vestido derreteu, escorrendo do corpo dela como se aquiescesse, como se estivesse reagindo para que tudo acontecesse mais rápido. E ele tirou vantagem da pele que agora estava à mostra, beijando uma trilha até os seios perfeitos, sugando os mamilos, ficando ganancioso muito rapidamente. Que Deus abençoasse o pobre coração daquela mulher, ela conseguia fingir tão bem, as mãos se perderam em seus cabelos como se ela o desejasse, como se ela estivesse trazendo-o para mais perto, mesmo ele não sendo o que ela deveria querer.
Tentou não ser rude, mas Deus, ficou tão excitado de repente.
– Suba no meu colo – grunhiu. – Você vai ter que subir no meu colo.
Era a única posição em que conseguia fazer sexo. Ainda mais por não querer sujeitar nenhum deles dois ao embaraço de ter que pedir ajuda para se levantar do chão, quando tudo tivesse terminado.
– Tem certeza? – ela perguntou, rouca. – Edward…
– Preciso ter você. Esperei tempo demais. Quase morri. Preciso disso.
Houve um segundo de pausa. Logo ela se moveu com admirável rapidez, levantando-se do chão, chutando o vestido, revelando… Ah, Jesus, ela estava com uma calcinha e nada mais, nada de meias de seda, nada de cinta-liga. E em vez de perder tempo tirando-a, ela a afastou de lado enquanto ele se confundia com o próprio cinto, impedindo que suas calças caíssem do quadril ossudo.
A despeito de todo o resto dele, que definhara, seu pênis ainda era grosso, comprido e rijo como antes, e ele ficou estranhamente grato por ser a única coisa que não era absolutamente humilhante para ele.
Empurrando os apoios de braço com as mãos, deslizou ainda mais para a frente, e ela se contorceu, montando nele com uma coordenação invejável.
A ereção dele a penetrou profundamente, e a firmeza com que ela o prendeu fez com que ele chegasse ao orgasmo de imediato. Mas isso não foi o mais incrível. Aparentemente, e por algum milagre, o mesmo aconteceu com ela.
Enquanto ela gritava seu nome, pareceu também chegar ao clímax.
Ou isso, ou ela não escutara seu chamado pois teria recebido o Oscar de melhor atriz.
Antes de perceber o que estava fazendo, Edward começou a se movimentar. Foi um movimento fraco, quase patético, mas ela seguiu, aquele primeiro orgasmo logo sendo eclipsado por outro ainda mais potente para ambos. Estremecendo, balançando, se retesando, ela se agarrou nele como se disso dependesse a sua vida, o cabelo cobrindo o dele, os seios pressionados contra ele, o corpo levando-o para uma viagem que ele nunca tinha experimentado.
O sexo pareceu durar para sempre.
Quando, por fim, tudo terminou, depois de um terceiro orgasmo, Edward se prostrou na poltrona e ofegou.
– Vou precisar de você de novo.
– Ah, Edward…
– Diga a Beau… semana que vem. Mesmo dia, mesmo horário.
– O quê?
Ele deixou a cabeça pender para o lado.
– O dinheiro está ali. Só você. Só quero você de novo.
De repente, provavelmente por ter se cansado mais nos vinte minutos do que nos doze meses anteriores, começou a se sentir fraco e, de fato, parecia apropriado que desmaiasse e deixasse que a prostituta saísse com tranquilidade.
Assim, ele conseguiria sustentar a fantasia por mais tempo.
– Mil… ao lado da porta – murmurou. – Pegue. A gorjeta…
Edward teve a intenção de dizer “A gorjeta vem depois, vou fazer com que alguém deixe com Beau mais tarde” ou algo do gênero. Mas a consciência era um luxo ao qual ele já não conseguia se dar… E se deixou cair no esquecimento.
Mais uma vez, pensando apenas em Sutton Smythe.
Sutton saiu cambaleando do chalé de Edward. Estava descalça, segurando os sapatos pelas tiras, mas ao contrário da sua outra caminhada pela grama ao redor do museu, as tábuas da varanda e os pedriscos machucaram suas solas.
Não que ela estivesse prestando atenção.
Ao partir para o Mercedes, ela era um misto de contradições; seu cérebro, uma confusão emaranhada. Mas seu corpo estava maleável e relaxado.
Edward pensou que ela fosse uma prostituta?
Por que outro motivo ele teria falado de dinheiro e de um homem chamado Beau? Semana que vem?
Ah, Deus, fizeram sexo…
Como chegaram àquilo? Como ela permitira que…
Bom Deus, o pobre rosto dele, o corpo…
Esses pensamentos entravam e saíam da sua cabeça, girando com alguma força centrífuga, tudo se revolvendo a não ser pelo fato de que Edward já não era mais o mesmo de antes. Sua linda aparência já não existia mais, as cicatrizes no rosto, sobre o nariz e na testa, deixavam virtualmente impossível reconstruir por lembranças a perfeição que antes existira ali.
Ela sabia que ele havia sido maltratado. Os noticiários e os artigos nos jornais foram suas únicas fontes de informação porque ele tinha se recusado a ver qualquer pessoa, e detalharam a duração da sua estada no hospital e da subsequente reabilitação. Esse tipo de tratamento longo não acontecia sem motivos trágicos. Mas vê-lo em pessoa fora um choque.
Antes do sequestro, ele era jogador de polo. Saltou com cavalos em apresentações. Correu. Jogou basquete, tênis e squash. Nadou. Edward fora um garoto dourado não apenas nos negócios, mas em todos os outros aspectos da sua vida, ele sempre se excedera em tudo.
Eu queria ter feito isso antes. No passado, valia a pena ver o meu corpo.
Sutton teve dificuldades para abrir a porta do carro, a mão escorregava como se ela estivesse tendo um ataque e seus dedos já não funcionassem direito. E quando, por fim, conseguiu abrir e entrar, ficou sem forças e deixou-se cair no assento.
Eu deveria ter tentado conquistá-la antes, mas era covarde demais. Era um covarde arrogante, mas a verdade é que eu poderia ter suportado qualquer coisa, menos uma recusa sua.
O que ele dissera? E para quem achou que estava dizendo? O coração dela se partiu com a ideia de que ele estivesse apaixonado por alguém daquela maneira.
Ele estava tão embriagado. Tanto que, antes de sair apressadamente, ela voltou para ver se o coração dele ainda estava batendo, se ele ainda estava respirando… Sim, porque a ideia de que talvez o tivesse matado por causa do que haviam…
– Bom Deus.
Como era possível que, depois de anos pensando nisso, eles, finalmente, tivessem feito sexo? E só porque ele acreditava que ela fosse uma prostituta cujos serviços ele encomendara em algum lugar?
Ah, não… Não tinham usado proteção.
Fabuloso. A reviravolta daquela noite toda era simplesmente fabulosa. Ainda mais porque, mesmo ele estando bêbado… mesmo ela estando meio fora do seu juízo completo… e apesar das condições físicas dele… o sexo tinha sido incrível. Talvez por causa de toda a imaginação acumulada, ou talvez fosse compatibilidade, ou quem sabe fosse apenas uma experiência única, do tipo que acontece quando certas estrelas estão alinhadas.
Independentemente dos motivos, ele tinha feito os poucos homens com quem ela estivera sumirem.
Impedindo que qualquer outro chegasse até ela, Sutton temeu.
Esticando o braço, procurou o botão de partida, e quando o motor roncou e os faróis se acenderam, ela entrou em pânico. Havia outras pessoas na propriedade – só podia haver –, e a última coisa que ela queria era ser pega em flagrante. Teria que encontrar uma maneira de lidar com a situação, e boatos se espalhando não faziam parte da sua estratégia, muito obrigada…
Neste mesmo instante, outro carro surgiu na alameda e, em vez de seguir para um dos estábulos ou construções externas, parou bem ao lado do seu.
A mulher que saiu era… alta, morena e usava um vestido longo.
E franziu o cenho ao ver o Mercedes.
Ela se aproximou.
Sutton abaixou o vidro. O que mais poderia fazer? Ao mesmo tempo, também começou a tatear à procura do câmbio, ou botão, ou sabe-se lá o que colocaria o sedã em marcha a ré.
– Pensei que eu estava escalada para esta noite – a mulher disse, num tom agradável.
– Eu… hum… – Enquanto gaguejava, sentiu-se corar. – Ah…
– Você é uma das garotas novas que Beau mencionou? Sou Delilah.
Sutton apertou a mão que lhe foi oferecida.
– Como tem passado?
– Ah, mas você parece tão chique! – A mulher sorriu. – Então, cuidou bem dele?
– Hum…
– Tudo bem se você cuidou. Às vezes essas coisas acontecem, e eu tenho outros dois chamados para esta noite. – Levantou a mão e puxou o que, no fim, era uma peruca. – Pelo menos me livro disto. Ele está bem?
– O que disse?
A mulher esfregou o cabelo loiro curto ao acenar na direção do chalé.
– Ele. Todas nós cuidamos dele, pobrezinho. Beau não nos diz quem é, mas deve ser alguém importante. É sempre tão generoso, e nos trata muito bem. É um caso bem triste, para falar a verdade.
– Sim. Muito triste.
– Bem, está na minha hora. Quer que eu avise Beau que está tudo bem?
– Hum…
– Fico com a semana que vem, então.
– Não – Sutton se ouviu dizer. – Ele me disse… o homem me disse que quer me ver de novo.
– Ah, ok, sem problemas. Eu aviso.
– Muito obrigada. Muito obrigada mesmo.
Talvez aquele fosse algum tipo de alucinação bizarra causada por uma febre.
Enquanto Sutton voltava a procurava a manopla, a prostituta se inclinou para baixo.
– Está procurando a ré?
– Ah, sim, estou.
– É essa aí na direita. Mexa-a para trás. Para baixo do drive e, para estacionar, você empurra até o fim.
– Obrigada. Que difícil.
– Um dos meus fregueses regulares tem esse mesmo modelo. É uma beleza! Dirija com cuidado.
Produzindo um som sem sentido, Sutton manobrou para trás com cuidado, ciente de que a mulher estava bem perto com aquela peruca morena na mão.
Seguindo na direção da estrada principal, resolveu que aquilo só podia ser resultado de um resfriado, de uma alucinação. A qualquer instante agora, ela despertaria…
Era isso.
Só podia ser.
Puxa vida, como foi que tudo foi acontecer?
CONTINUA
DEZOITO
Enquanto parava diante da entrada principal de Easterly, Lane pisou tão fundo no freio que os pedriscos do caminho voaram com ele até o Porsche parar. Não desligou o motor, simplesmente saiu do carro e voou escada acima, passando pelas portas duplas tal qual uma ventania.
Não prestou atenção em absolutamente nada ao entrar na mansão – nem na criada que limpava o vestíbulo, no mordomo que se dirigiu a ele… nem mesmo em sua Lizzie, que parou em seu caminho como se estivesse aguardando sua chegada.
Em vez disso, saiu da casa pela porta da sala de jantar e avançou a passos largos até o centro de negócios, atravessando as mesas redondas bem arrumadas debaixo da tenda e se esquivando dos funcionários da manutenção que estavam pendurando cordões de luzes entre as árvores em flor.
O local de trabalho do pai tinha um terraço com uma série de portas francesas, e ele seguiu para o par que ficava na extrema esquerda. Quando chegou, não se deu ao trabalho de experimentar a maçaneta, porque a porta estaria trancada.
Bateu no vidro. Com força.
E não parou. Nem quando sentiu a mão úmida, o que indicava que ele devia ter quebrado alguma coisa…
Na verdade, ele estilhaçou a vidraça da primeira porta do escritório do pai, e partiu para a seguinte.
A boa notícia, pensou, era que havia muitas outras.
– Lane! O que você está fazendo?
Ele parou e se virou para Lizzie. Numa voz que não reconheceu, ele disse: – Preciso encontrar o meu pai.
A extremamente profissional assistente executiva de William Baldwine correu para dentro do escritório e arfou em alto e bom som ao ver o vidro quebrado.
– Você está sangrando! – a mulher exclamou.
– Onde está o meu pai?
A senhora Petersberd destrancou a porta e a abriu.
– Ele não está aqui, senhor Baldwine, ele ficará em Cleveland o dia inteiro. Acabou de sair e não sei bem quando retornará. O senhor precisa de algo?
Quando os olhos dela se fixaram nas juntas sanguinolentas da mão dele, ele soube que ela estava querendo dizer algo como “Que tal uma toalha, talvez?", mas ele pouco se importava se suas veias se esvaziassem naquele lugar.
– Quem contou ao meu pai que Gin tinha saído? – ele exigiu saber. – Quem ligou para ele? Foi você? Ou um espião na casa…
– Do que está falando?
– Ou você ligou para a polícia e mandou que eles prendessem a minha irmã? Tenho certeza absoluta de que meu pai não sabe apertar as teclas 190 sozinho, mesmo que tenham me dito que foi isso o que ele fez.
Os olhos da mulher se dilataram e depois ela sussurrou:
– Ele me disse que ela acabaria fazendo mal a si mesma. Que ela tentaria sair hoje de manhã e que eu teria que fazer o que fosse necessário para impedi-la. Ele disse que ela precisa de ajuda…
– Lane!
Ele virou a cabeça na direção de Lizzie bem quando tudo ficou fora dos eixos, seu corpo pendendo para um dos lados.
Com toda a força, Lizzie o sustentou e impediu que ele caísse no chão.
– Venha. Vamos voltar para casa.
Enquanto ele se deixava manobrar, sangue pingou no piso de pedra do terraço, manchando o cinza de vermelho. Fitando a assistente, ele ordenou: – Diga ao meu pai que eu o estou aguardando.
– Não sei quando ele volta.
Até parece, ele pensou. A mulher chegava a agendar as pausas para William ir ao banheiro.
Havia tanta raiva dentro dele que ele estava cego ao que o cercava enquanto Lizzie o guiava. A fúria era por causa de Edward. De Gin. De sua mãe.
De Max…
– Quando foi a última vez que você comeu alguma coisa? – Lizzie perguntou ao empurrá-lo pela porta de Easterly.
Por um instante, ele pensou estar alucinando. Mas logo percebeu que os homens e mulheres de branco eram chefs, e que ele e Lizzie estavam na cozinha.
– Desculpe, o que disse? – murmurou.
– Comida. Quando?
Ele abriu a boca. Fechou. Franziu o cenho.
– Meio-dia de ontem?
A senhorita Aurora entrou no campo de visão dele.
– Lands… O que há de errado com você, menino?
Houve algum tipo de conversa em seguida, nada que ele compreendesse. Em seguida, um curativo na sua mão, ao qual ele não deu atenção. E mais conversa.
Ele não voltou a sintonizar apropriadamente até estar sentado na sala de descanso dos chefs, à mesa, com um prato de ovos mexidos, seis fatias de bacon e quatro torradas diante de si.
Seu estômago roncou e ele piscou. Sua cabeça continuava uma confusão, mas sua mão pegou o garfo e começou a cavar.
Lizzie se sentou diante dele, a cadeira rangendo sobre o piso de madeira.
– Você está bem?
Ele fixou o olhar além dela, na senhorita Aurora, parada à porta como se estivesse prestes a sair.
– O meu pai é um homem mau.
– Ele tem o seu próprio conjunto de valores.
Que era o mais próximo que ela chegaria de condenar alguém.
– Ele está tentando vender a minha irmã. – Bufou. – É como se isso fosse… uma novela ruim.
Estava prestes a contar tudo quando o celular tocou; assim que viu quem era, atendeu.
– Samuel, em que pé estamos?
Samuel T. teve que erguer a voz acima das conversas ao fundo.
– Setenta e cinco mil para a fiança, foi o melhor que consegui. Assim que você trouxer o cheque, pode vir buscá-la.
– Já vou cuidar disso. Você vai embora?
– Só depois que ela sair. Ela tem o direito de se consultar com seu advogado, portanto, enquanto eu estiver por perto, ela não terá que voltar para aquela cela sozinha, ou que Deus não permita, com outra pessoa.
– Obrigado.
Assim que ele encerrou a ligação, a senhorita Aurora saiu para acompanhar o trabalho dos chefs, e ele se voltou para Lizzie.
– Vou ter que ir atrás do dinheiro da fiança dela agora. Depois disso, não sei mais.
Ela esticou a mão e a apoiou no braço dele.
– Como eu já disse antes: tem alguma coisa que eu possa fazer para ajudar?
Foi como um raio. Num minuto, ele estava normal, como qualquer outro homem numa situação como aquela. No seguinte? A luxúria bombeava em suas veias, excitando-o, desviando a loucura em sua cabeça para algo verdadeiramente insano.
Abaixando as pálpebras, murmurou:
– Tem certeza de que quer que eu responda?
Lizzie engoliu em seco e olhou para o ponto em que o tocava. Quando não disse nada, mas também não se afastou, ele se inclinou na direção dela e levantou seu queixo com o indicador. Travando os olhos nos lábios dela, beijou-a mentalmente, com imagens de si mergulhando a cabeça e colando a boca na dela. Empurrando-a no encosto da cadeira. Enfiando-se debaixo das roupas dela enquanto se ajoelhava entre suas pernas com…
– Ai… Deus… – ela sussurrou, os olhos evitando os dele.
Mas, ainda assim, ela não se afastou.
Lane lambeu os lábios. Depois abaixou a mão e saiu de perto dela.
– É melhor você ir. Ou vou fazer uma coisa que você vai se arrepender.
– E você? – ela sussurrou. – Você vai se arrepender?
– De te beijar? Nunca. – Meneou a cabeça, reconhecendo que suas emoções estavam à flor da pele… completamente descontroladas. – Mas não vou tocar em você até que me peça. Isso eu consigo prometer.
Depois de um instante, ela se levantou sem a sua elegância costumeira, a cadeira na qual estivera sentada deslizando pelo piso, seus pés trôpegos. Ele lhe deu tempo suficiente para sair da sala de descanso e avançar pelo corredor antes de ele mesmo sair.
Caso ficasse muito próximo dela, era bem possível que a agarrasse e a colocasse sobre a mesa, procurando o alívio que os dois tanto necessitavam.
Porque ela o desejava. Ele tinha acabado de ver.
Não que fosse ficar pensando nisso.
Ele precisava fazer com que o pai pagasse a fiança. Não que ele mesmo não tivesse aquela quantia. Tinha lucrado bastante na mesa de pôquer e, diferentemente da irmã, aos trinta e seis anos, já tinha acesso à primeira parte dos seus fundos. Mas William Baldwine criara aquela confusão, e o fato de o homem estar fora da cidade tornaria mais fácil pegar um cheque e levar ao banco para que o autorizassem.
Um minuto depois, Lane estava diante do escritório da controller, mas não se deu ao trabalho de bater, avançando direto para a maçaneta.
Trancada.
Assim como fizera com a porta de vidro do pai, socou a porta de carvalho… com a mão machucada.
– Ela não está? – o senhor Harris perguntou da soleira da sua suíte.
– Onde está a chave dessa porta?
– Não tenho permissão para…
Lane se virou.
– Pegue a porra dessa chave ou vou acabar derrubando a maldita porta.
E vejam só, uma fração de segundo depois, o mordomo se aproximou com um molho de chaves.
– Permita-me, senhor Baldwine.
Só que a chave não os levou a parte alguma. Ela entrou na fechadura, mas foi impossível girá-la.
– Lamento muitíssimo – disse o mordomo enquanto forçava a fechadura.
– Tem certeza de que é a chave certa?
– Está marcado aqui. – O homem mostrou a etiquetinha pendurada na ponta ornamentada. – Talvez ela volte logo.
– Deixe-me tentar.
Lane afastou o pinguim para o lado, mas também não teve sucesso. Perdendo a paciência, empurrou a porta com o ombro e…
O estalido da madeira se rompendo abafou seu grito de raiva, e ele teve que se segurar nos painéis quando eles se movimentaram de volta na sua direção.
– Mas que diabos! – exclamou, dando uma de Drácula e se afastando do fedor.
Enquanto o senhor Harris começava a tossir, tendo que cobrir o rosto com a lapela do terno, outra pessoa disse: – Ai, meu Deus, isso é…
– Tire todos do corredor – Lane ordenou ao mordomo. – E faça com que fiquem afastados.
– Sim, sim, claro, senhor Baldwine.
Lane ergueu o antebraço e respirou na manga da camisa ao se inclinar para dentro. O escritório estava um breu, as cortinas pesadas haviam sido fechadas, impedindo a entrada da luz solar, e o ar-condicionado sobre uma das janelas também estava desligado. Tateando ao redor da soleira com a mão livre, ele tinha a nítida impressão do que estava para encontrar e não conseguia acreditar.
Clique.
Rosalinda Freeland estava sentada numa poltrona estofada no canto oposto, o rosto congelado num sorriso repulsivo, os dedos acinzentados enterrados em almofadas de chintz, os olhos inertes fitando alguma versão da vida após a morte com que se deparou.
– Jesus… – Lane sussurrou.
O profissional conjunto de saia e terninho estava perfeitamente arrumado, os óculos de leitura, pendurados numa corrente de ouro sobre a blusa de seda, o coque primoroso, um tanto grisalho, ainda estava arrumado. Mas os sapatos não faziam sentido algum. Não eram os de couro que ela sempre calçava, mas um par de tênis Nike, como se ela estivesse prestes a sair para uma corrida.
Merda, pensou ele.
Enfiando a mão no bolso, pegou o celular e discou para a única pessoa que conseguiu pensar. Enquanto chamava, olhou ao redor. Não havia bagunça em parte alguma, o que era típico desta mulher que trabalhou em Easterly por trinta anos. Não havia mais nada sobre o tampo da mesa além do computador e do abajur com cúpula verde. As estantes escondiam discretamente todos os demais equipamentos de escritório, e os arquivos estavam tão em ordem quanto livros numa biblioteca.
– Alô? – respondeu a voz no celular.
– Mitch – disse Lane.
– Você está vindo com o cheque da fiança?
– Tenho um problema.
– O que posso fazer?
Lane fechou os olhos e perguntou como foi ter tanta sorte por ter aquele cara do outro lado da linha.
– Estou olhando para o cadáver da controller da minha família.
No mesmo instante, o tom do delegado baixou uma oitava.
– Onde?
– Em seu escritório em Easterly. Acho que ela pode ter se suicidado… Acabei de derrubar a porta.
– Já ligou para a emergência?
– Ainda não.
– Quero que ligue agora enquanto sigo para aí, só para que fique registrado e a polícia metropolitana possa ir para aí. Eles têm jurisdição.
– Obrigado, cara.
– Não toque em nada.
– Só toquei no interruptor ao entrar.
– E não deixe ninguém entrar no cômodo. Chego em cinco minutos.
Assim que Lane encerrou a ligação e discou para a emergência, seus olhos tracejaram as prateleiras. Ele pensou em todo o trabalho feito por aquela mulher naquele pequenino escritório.
– Sim, meu nome é Lane Baldwine. Estou ligando de Easterly. – A mansão não tinha número. – Houve uma morte na casa… Sim, tenho certeza de que ela não está mais viva.
Ele andou ao redor enquanto respondia a algumas perguntas, confirmou seu número de celular e depois desligou de novo.
Encarando a mesa, respeitou as ordens de Mitch, mas tinha que pegar o talão de cheques. Com cadáver ou sem, ele ainda tinha que tirar Gin da prisão.
Pegou o lenço do bolso e caminhou por cima do tapete oriental. Estava para puxar a gaveta estreita no centro da mesa quando algo chamou sua atenção. Bem no meio do mata-borrão de couro, perfeitamente alinhado como se fosse uma régua… havia um pen drive.
– Senhor Baldwine? Devo fazer alguma coisa? – o senhor Harris o chamou.
Lane relanceou para o corpo.
– A polícia está a caminho. Não podemos mexer em nada, por isso já vou sair.
Apanhou o que Rosalinda evidentemente deixara para quem a encontrasse. Depois abriu a gaveta e surrupiou o talão de cheques, enfiando-o no cós da calça na parte de trás, cobrindo-o com a camisa.
Virou-se para a controller. A expressão no rosto dela era como a do Coringa, um sorriso torto e horrível que apareceria nos seus pesadelos por um bom tempo.
– O que foi que o meu pai fez agora… – sussurrou no ar maculado pela morte.
DEZENOVE
Lizzie estava na estufa ao telefone com a empresa de aluguel quando percebeu o SUV do delegado do Condado de Washington avançando pela entrada da frente de Easterly.
Já estariam entregando os papéis do divórcio para Chantal? Puxa…
– Desculpe – disse, voltando a se concentrar. – O que disse?
– A conta está atrasada – o representante comercial repetiu. – Portanto não podemos aceitar nenhuma encomenda.
– Atrasada? – Isso era tão inconcebível quanto a Casa Branca deixar de pagar a conta de luz. – Não, não, pagamos o montante total da tenda ontem. Portanto, não é possível que…
– Veja bem, vocês são um dos nossos melhores clientes, queremos continuar trabalhando com vocês. Eu não sabia que a conta estava atrasada até o dono me contar. Enviei todos os materiais que pude, mas ele me impediu de mandar mais até que o saldo seja quitado.
– Quanto devemos?
– Cinco mil, setecentos e oitenta e cinco e cinquenta e dois centavos.
– Isso não será um problema. Eu mesma levarei o cheque agora, você pode nos…
– Não temos mais nada em estoque. Não temos nada para alugar, já que todas as festas na cidade acontecem este fim de semana. Liguei para Rosalinda na semana passada e deixei três recados sobre o saldo a pagar. Ela não retornou as ligações. Segurei o restante do pedido o máximo que pude porque queria cuidar da conta de vocês. Mas não tive notícias, e havia outros pedidos a serem atendidos.
Lizzie inspirou fundo.
– Ok, obrigada. Não sei o que está acontecendo, mas vou dar um jeito. Farei com que recebam.
– Lamento muito.
Quando encerrou a ligação, recostou-se na parede de vidro para tentar ver o veículo do delegado.
– … a emprresa falou?
Virou-se para Greta, que estava borrifando os últimos arranjos de mesa com preservativo floral.
– Desculpe, o que… ah, há um problema com o pagamento da conta.
– Então vamos ou não receberr as quinhentas taças de champanhe que faltam?
– Não. – Lizzie partiu para a porta que dava para a casa. – Vou falar com Rosalinda e depois dar a bela notícia ao senhor Harris. Ele vai ficar uma arara, mas pelos menos temos as tendas, as mesas e as cadeiras. Podemos lavar os copos conforme eles forem sendo usados, a família deve ter uma centena de taças na casa.
Greta a fitou através dos óculos de armação de casco de tartaruga.
– Terremos quase setecentas pessoas amanhã. Acha mesmo que conseguirremos darr conta? Com apenas quinhentas taças?
– Você não está ajudando.
Saindo da estufa, atravessou a sala de jantar e foi para a ala dos empregados. Quando empurrou a porta, parou de pronto. Havia três empregadas em uniformes cinza e branco bem juntinhas, falando agitadamente, mas num tom bem baixo, como se fosse um programa de televisão no volume mínimo. A senhorita Aurora estava ao lado delas, com os braços cruzados sobre o peito, e Beatrix Mollie, a governanta-chefe, estava ao seu lado. O senhor Harris estava no meio do corredor, seu corpo diminuto bloqueando o caminho até a cozinha.
Lizzie franziu a testa e se aproximou do mordomo. E foi nesse momento que sentiu o cheiro que, como fazendeira, conhecia com certa familiaridade.
Um homem afro-americano com uniforme de delegado saiu do escritório de Rosalinda junto de Lane.
– O que está acontecendo? – Lizzie perguntou, um calafrio percorrendo o seu peito.
Bom Deus, será que Rosalinda…
Era por isso que o corredor estava com um cheiro tão ruim de manhã, pensou, com o coração aos pulos.
– Houve um contratempo – disse o senhor Harris. – E ele já está sendo solucionado apropriadamente.
Lane se deparou com os olhos dela enquanto falava com o delegado e fez um aceno com a cabeça.
A senhora Mollie fez o sinal da cruz.
– São três de cada vez. A morte sempre vem em três.
– Tolice – murmurou a senhorita Aurora, como se a mulher a estivesse entediando com aquela linha de pensamento. – Os desígnios de Deus servem a todos. Não fique contando na ponta dos dedos.
– Três. Sempre em três.
Voltando para a estufa, Lizzie fechou a porta atrás de si e olhou ao redor, para os arranjos de flores creme e rosa.
– O que aconteceu? – Greta perguntou. – Ficou faltando mais alguma coisa do pedido…
– Acho que Rosalinda está morta.
Houve um barulho quando o spray escorregou da mão de Greta e quicou no chão, molhando os sapatos da mulher.
– O quê?
– Não sei nada.
Enquanto uma torrente de alemão jorrava da sua companheira, Lizzie murmurou: – É, não é? Não consigo acreditar.
– Quando? Como?
– Não sei, mas o delegado está lá. E não chamaram uma ambulância.
– Oh, mein Gott… das ist ja schrecklich!19
Xingando, Lizzie andou até a janela com vista para o jardim e fitou o gramado verde e resplandecente, e a elegante estrutura da festa. Já haviam concluído setenta e cinco por cento das tarefas e tudo estava realmente belo, ainda mais com as flores brancas que ela e Greta plantaram debaixo das árvores frutíferas.
– Estou com uma sensação muito ruim a respeito disso tudo – ouviu-se dizer.
Uma hora depois da chegada da polícia metropolitana, Lane teve permissão para deixar a cena por um curto período. Ele queria falar com Lizzie para informá-la sobre tudo o que estava acontecendo, mas primeiro tinha que cuidar de Gin.
O dinheiro da família Bradford era administrado pela Companhia de Fundos Prospect, uma empresa privada de bilhões de dólares em ativos e com todos os milionários de Charlemont na sua carteira de clientes. Contudo, como não eram um banco tradicional, as contas da família eram da filial local do PNC, e era de lá o talão de cheques que ele tirara da mesa de Rosalinda.
Parando no estacionamento de um prédio elegante, fez um cheque no valor de setenta e cinco mil dólares, falsificou a assinatura do pai e o endereçou à cadeia do Condado de Washington.
Assim que entrou no saguão bege e branco, foi interceptado por uma jovem num terno azul-marinho e com joias discretas.
– Senhor Baldwine, como tem passado?
Acabei de encontrar um cadáver. Obrigado por perguntar.
– Bem, preciso de uma autorização para sacar este cheque.
– Claro. Venha até o meu escritório. – Conduzindo-o até uma saleta envidraçada, ela fechou a porta e se sentou atrás de uma mesa organizada. – É sempre um prazer ajudar a sua família.
Ele escorregou o cheque por cima do mata-borrão e se sentou.
– Agradeço por isso.
O som das unhas batendo nas teclas do computador era um pouco incômodo, mas ele tinha problemas maiores.
– Hum… – A gerente pigarreou. – Senhor Baldwine, lamento, mas não há fundos suficientes na conta para compensá-lo.
Ele pegou o celular.
– Sem problemas, vou telefonar para a Fundos Prospect e solicitar a transferência. Quanto devemos?
– Bem, senhor, a conta está com um saldo devedor de vinte e sete mil, quatrocentos e oitenta e nove dólares e vinte e dois centavos. No entanto, o limite está cobrindo isso.
– Dê-me um minuto. – Ele procurou em seus contatos o número do administrador do CFP responsável pelos investimentos da família. – Farei a transferência.
Um evidente alívio tomou o rosto dela.
– Vou lhe dar um pouco de privacidade. Estarei no saguão quando estiver pronto. Leve o tempo que precisar.
– Obrigado.
Enquanto esperava a ligação completar, Lane bateu o sapato no piso de mármore.
– Hum, olá, Connie, como está? Aqui é Lane Baldwine. Bem. Sim, estou na cidade para o Derby. – Entre outras coisas. – Escute, preciso que transfira certa quantia para a conta-corrente da família no PNC.
Houve uma pausa. Em seguida, a voz serena e profissional da mulher se tornou tensa.
– Eu faria isso com prazer, senhor Baldwine, mas não tenho mais acesso às suas contas. O senhor deixou a Fundos Prospect no ano passado.
– Estou me referindo à conta do meu pai. Ou da minha mãe.
Outra pausa.
– Lamento, mas o senhor não tem autorização para transferir fundos dessa natureza. Vou precisar falar com o seu pai. Existe um modo de o senhor pedir para que ele nos telefone?
Não se quisesse aquele dinheiro. Considerando o que seu velho e bom papai estava tentando arrancar de Gin, de jeito nenhum o grandioso e glorioso William Baldwine facilitaria a soltura dela.
– O meu pai está fora da cidade e não será possível entrar em contato com ele. E se eu colocar a minha mãe na linha? – Por certo conseguiria acordá-la e mantê-la consciente por tempo suficiente para que ela pedisse a transferência de 125 mil para a conta-corrente da casa.
Connie pigarreou da mesma forma como a gerente do banco.
– Sinto muito, mas… não será o bastante.
– Se a conta é dela? Como não?
– Senhor Baldwine… não gostaria de me precipitar…
– Parece-me que é melhor falar de uma vez.
– Poderia aguardar um instante?
Enquanto uma música suave tocava em seu ouvido, Lane saltou da cadeira dura e começou a andar entre um vaso de planta num canto, que descobriu ser de plástico quando tocou numa folha, e as janelas que subiam até o teto, com vista para a rodovia de quatro pistas ao longe.
Houve um bipe e logo uma voz masculina entrou na linha.
– Senhor Baldwine? Aqui é Ricardo Monteverdi, como tem passado?
Maravilha, o CEO da empresa. O que significava que ele havia tropeçado numa “situação delicada”.
– Escute, só preciso de cento e vinte e cinco mil dólares em dinheiro, ok? Nada demais…
– Senhor Baldwine, como o senhor sabe, na Fundos Prospect, nós levamos a nossa responsabilidade fiduciária e os nossos clientes muito a sério…
– Pode parar já com o discurso de abertura. Conte-me por que a palavra da minha mãe não é o suficiente para sacar o próprio dinheiro dela, ou desligue logo.
Fez-se um silêncio.
– O senhor não me deixa escolha.
– O quê? Pelo amor de Deus, o que foi?
O período seguinte de silêncio foi tão longo e denso que ele afastou o aparelho da orelha para ver se a linha tinha caído.
– Alô?
Mais pigarreios.
– No início deste ano, o seu pai declarou que a sua mãe é mentalmente incompetente para administrar o fundo. A opinião de dois neurologistas qualificados é de que ela é incapaz de tomar quaisquer decisões. Portanto, se necessita de fundos de qualquer uma dessas contas, teremos o maior prazer em atendê-lo, desde que o pedido venha do seu pai em pessoa. Espero que entenda que estou numa situação delicada e que…
– Vou ligar para ele neste mesmo instante e farei com que ele telefone.
Lane encerrou a ligação e ficou olhando para o trânsito. Depois, seguiu até a porta e a abriu. Sorrindo para a gerente, disse: – Meu pai fará com que a transferência seja feita pela Prospect. Voltarei mais tarde.
– Estaremos abertos até as cinco, senhor.
– Obrigado.
De volta ao sol ofuscante, manteve o celular na mão ao atravessar o estacionamento escaldante, mas não o usou. Também não percebeu que estava dirigindo de volta para casa.
Que diabos ele faria agora?
Quando chegou a Easterly, havia outras duas viaturas próximas à garagem e alguns policiais uniformizados parados diante da porta da frente. Estacionou o Porsche em seu lugar costumeiro, à esquerda da entrada principal, e saiu.
– Senhor Baldwine – um dos policiais o cumprimentou quando Lane se aproximou.
– Cavalheiros.
A sensação de olhos o seguindo fez com que ele quisesse mandar o grupo para longe da sua casa. Tinha a sensação paranoica de que havia coisas acontecendo por trás das cortinas, sem que ele soubesse, e preferia encontrar algum esqueleto no armário primeiro sem testemunhas, sem o benefício dos olhares curiosos da polícia metropolitana.
Subindo os degraus até o segundo andar, foi para o próprio quarto e fechou a porta, trancando-a. Perto da cama, pegou o telefone da casa, apertou o número nove para conseguir uma linha externa, e depois pressionou *67 para que o número para o qual telefonava não ficasse registrado no identificador de chamadas. Quando deu linha, ele compôs uma sequência de quatro números.
Pigarreou quando ouviu um toque. Dois…
– Bom dia, aqui é do escritório do senhor William Baldwine. Como posso ajudá-lo?
Imitando o tom firme e profissional do pai, ele disse:
– Ligue-me com Monteverdi da Prospect agora mesmo.
– Sim, senhor Baldwine. Imediatamente.
Lane pigarreou uma vez mais enquanto uma música clássica se fazia ouvir. A boa notícia era que o pai era antissocial, exceto se a interação humana o beneficiasse nos negócios, portanto era muito improvável que os dois homens tivessem se falado recentemente, o que revelaria o seu engodo.
– Senhor Baldwine, o senhor Monteverdi está na linha.
Depois de um clique, Monteverdi começou a falar.
– Obrigado por finalmente retornar a minha ligação.
Lane baixou seu tom de voz e enfatizou o sotaque sulista.
– Preciso de cento e vinte e cinco mil na conta-corrente da casa…
– William, eu já lhe disse, não posso fazer mais adiantamentos, simplesmente não posso. Agradeço os negócios da sua família e estou comprometido em ajudá-lo a sair dessa situação antes que o nome Bradford se depare com dificuldades, mas as minhas mãos estão atadas. Tenho responsabilidades para com o Conselho, e você me disse que o dinheiro que pegou emprestado seria devolvido até a reunião anual, que acontecerá em duas semanas. O fato de necessitar de mais recursos, sendo um montante assim pequeno, já não me deixa mais tão confiante.
Mas que diabos?!
– Qual o total devido? – ele perguntou, carregando no forte sotaque da Virgínia.
– Eu lhe disse da última vez que deixei recado – Monteverdi se mostrou irritado. – Cinquenta e três milhões. Você tem duas semanas, William. Suas alternativas são: devolver o montante ou procurar o JP Morgan Chase e pedir um empréstimo contra o fundo primário da sua esposa. Ela tem mais de cem milhões só naquela conta, portanto o perfil de empréstimos deles será atendido. Eu lhe enviei a documentação num e-mail particular, você só precisa assinar os papéis e isso não nos afetará mais. Mas permita que eu seja bem franco: estou exposto nesta situação e não permitirei que isso prossiga assim. Existem medidas que eu poderia acionar, que seriam muito desagradáveis para você, e eu as usarei antes que alguma coisa me afete pessoalmente.
Puta.
Merda.
– Voltarei a falar com você – Lane disse com voz arrastada e desligou.
Por um instante, só conseguiu ficar olhando para o telefone. Literalmente não conseguia conectar dois pensamentos com coerência.
Em seguida, veio o vômito.
Numa ânsia súbita, dobrou-se ao meio, mal conseguindo apanhar o cesto de papéis a tempo.
Tudo o que comera na sala de descanso dos funcionários subiu.
Depois que o acesso passou, seu sangue correu gelado, a sensação de que nada era como deveria ser fazendo-o imaginar – e depois rezar – que aquilo fosse uma espécie de pesadelo.
Mas não podia se dar ao luxo de não fazer nada, ou pior, de desmoronar. Tinha que lidar com a polícia. Com a irmã. E com o que mais estivesse por vir…
Deus, desejou que Edward ainda estivesse por perto.
“Meu Deus, isso é mesmo terrível!”
VINTE
Uma hora mais tarde, Gin deslizou pelo banco do Porsche cinza-escuro do irmão, fechou os olhos e balançou a cabeça.
– Estas foram as piores seis horas da minha vida.
Lane emitiu uma espécie de grunhido, que poderia significar muitas coisas, mas que certamente estava bem longe do “Ah, Deus, não consigo imaginar o que você teve que suportar” que ela esperava ouvir.
– Desculpe – ela explodiu –, mas eu acabei de sair da cadeia…
– Estamos com problemas, Gin.
Ela deu de ombros.
– Conseguimos a fiança, e Samuel T. vai garantir que isso fique longe da imprensa…
– Gin. – O irmão a encarou quando saiu para o trânsito. – Estamos com graves problemas.
Mais tarde, ah, muito mais tarde, ela ainda se lembraria desse instante em que seus olhares se encontraram no interior do carro, indicando o início da derrocada, o primeiro dominó caindo, que fez com que todos os outros também caíssem com tamanha velocidade que ficou impossível deter a sequência.
– Do que está falando? – ela perguntou com suavidade. – Você está me assustando.
– A nossa família está devendo uma quantia enorme.
Ela revirou os olhos e balançou a mão no ar.
– Sério, Lane? Tenho problemas piores…
– E Rosalinda se matou na nossa casa. Em algum momento dos últimos dois dias.
Gin levou a mão à boca. Lembrou-se de ter telefonado para a mulher sem obter nenhuma resposta apenas algumas horas antes.
– Está morta?
– Morta. No escritório dela.
Foi impossível não ficar toda arrepiada quando visualizou o telefone tocando ao lado do cadáver da controller.
– Meu Deus…
Lane praguejou, olhando pelo retrovisor e mudando de faixa rapidamente.
– A conta-corrente da casa está com saldo devedor, e nosso pai de algum modo conseguiu um empréstimo de cinquenta e três milhões da Companhia de Fundos Prospect para fazer só Deus sabe o quê. E a pior parte? Não sei qual o fim disso e não sei se quero descobrir.
– O que você… desculpe, não estou entendendo…
Ele repetiu, mas isso não a ajudou muito.
Depois que o irmão se calou, ela ficou olhando pelo para-brisa, vendo a estrada fazer a curva ao redor do rio Ohio.
– Papai pode simplesmente pagar o empréstimo – disse ela, emburrada. – Ele paga e tudo acaba.
– Gin, se foi necessário pegar uma quantia dessas emprestada, é por que a pessoa está com problemas muito, muito sérios. E se essa pessoa ainda não pagou é porque não tem como.
– Mas mamãe tem dinheiro. Ela tem muito…
– Não sei se podemos nos fiar nisso.
– Então onde você conseguiu o dinheiro da fiança para me soltar?
– Tenho um pouco guardado e também o meu fundo, que desatrelei do fundo da família. Mas esses dois não são suficientes para cuidar de Easterly, e esqueça a possibilidade de pagar esse empréstimo ou de manter a Bourbon Bradford a salvo, se precisarmos.
Ela olhou para as unhas estragadas, concentrando-se na dizimação do que estava perfeito quando acordara naquela manhã.
– Obrigada por me tirar de lá.
– De nada.
– Vou devolver o seu dinheiro.
Como? Seu pai cortara todos os seus privilégios. E, pior de tudo, e se não restasse mais dinheiro para a sua mesada?
– Isso não pode ser possível – disse ela. – Só pode ser um mal-entendido. Um tipo de… falha de comunicação.
– Não acredito.
– Você tem que pensar positivo, Lane.
– Entrei no escritório de uma mulher morta há umas duas horas e isso foi antes de eu descobrir sobre a dívida. Posso lhe garantir que falta de otimismo não é o problema aqui.
– Você acha que… – Gin arquejou. – Acha que ela roubou de nós?
– Cinquenta e três milhões de dólares? Ou apenas uma parte? Não, porque, nesse caso, por que cometer suicídio? Se ela desfalcou os fundos, o mais inteligente seria fugir e trocar de identidade. E não se matar na casa do seu empregador.
– E se ela foi assassinada?
Lane abriu a boca para dizer “de jeito nenhum”. Mas voltou a fechá-la, como se estivesse pensando a respeito.
– Bem, ela o amava.
Gin ficou com o queixo caído.
– Rosalinda? Papai?
– Ah, o que é isso, Gin? Todos sabem disso.
– Rosalinda? A coisa mais selvagem nela era prender aquele coque um pouquinho mais pra baixo.
– Reprimida ou não, ela estava com ele.
– Na casa da nossa mãe?
– Não seja ingênua.
Muito bem, era a primeira vez que era acusada disso. E, de repente, aquela lembrança de tantos anos antes, daquele Ano-Novo, voltou… De quando vira o pai saindo do escritório da mulher.
Mas isso fora décadas atrás, em outra era.
Ou, talvez não.
Lane pressionou o freio num farol vermelho próximo ao posto de gasolina que ela parara naquela manhã.
– Pense no lugar onde ela morava. A casa colonial de quatro quartos em Rolling Meadows custa muito mais do que ela poderia pagar com seu salário de controller. Quem você acha que pagou?
– Ela não tem filhos.
– Que a gente saiba.
Gin apertou os olhos enquanto o irmão voltava a acelerar.
– Acho que vou enjoar.
– Quer que eu encoste?
– Quero que pare de me dizer essas coisas.
Houve um longo silêncio… e em meio ao vácuo, ela continuou voltando para a visão do pai saindo daquele escritório, amarrando o cinto do roupão.
No fim, o irmão balançou a cabeça.
– A ignorância não vai mudar nada. Precisamos descobrir o que está acontecendo. Preciso chegar à verdade de alguma maneira.
– Como você… como você descobriu isso tudo?
– Isso importa?
Quando contornaram a última curva na estrada River antes de Easterly, ela olhou para o alto à direita, para a colina. A mansão da sua família estava no mesmo lugar de sempre, seu tamanho e elegância incríveis dominando o horizonte, a famosa construção branca fazendo-a pensar em todas as garrafas de bourbon que traziam um desenho dela gravado em seus rótulos.
Até aquele momento, acreditou que a posição da família estivesse gravada em pedra.
Agora, temia que fosse em areia.
– Ok, estamos todos prontos aqui – Lizzie avançou entre as fileiras de mesas redondas debaixo da grande tenda. – As cadeiras já estão bem arrumadas.
– Ja20 – concordou Greta ao dar uma puxadinha numa das toalhas de mesa.
As duas continuaram, inspecionando todos os setecentos lugares, verificando novamente os candelabros de cristal que pendiam em três pontos da tenda, puxando um pouco mais os tecidos rosa-claro e brancos.
Quando terminaram, acompanharam a extensão de cordões verdes serpenteando pela parte externa, fornecendo eletricidade para os oito ventiladores gigantes que garantiriam a circulação de ar.
Ainda tinham umas boas cinco horas de trabalho até que escurecesse e, de maneira inédita, Lizzie achou que tinham concluído todas as prioridades. Os arranjos florais estavam prontos. Os canteiros de flores estavam impecáveis. Vasos na entrada e na saída da tenda combinavam à perfeição com as plantas e os botões suplementares. Até mesmo as estações de comida nas tendas adjuntas já haviam sido organizadas, seguindo as instruções da senhorita Aurora.
Até onde Lizzie sabia, a comida estava pronta e a bebida entregue. Os garçons e os barmen contratados estavam sob a batuta de Reginald, e ele não era de deixar nenhum fio solto. A segurança que garantiria que a imprensa ficaria ao largo era composta por policiais de folga da polícia metropolitana, e estavam todos prontos para trabalhar.
Ela quis ter alguma coisa com que ocupar seu tempo. O nervosismo a deixara mais produtiva do que de costume, e agora estava sem nada para fazer além de pensar que havia uma investigação criminal acontecendo a cinquenta metros dela.
Rosalinda.
Seu celular vibrou no quadril, sobressaltando-a. Ao pegá-lo, suspirou.
– Graças a Deus! Alô? Lane? Você está bem? Sim. – Franziu o cenho enquanto Greta a espiava. – Na verdade, eu o deixei no carro, mas posso ir pegá-lo agora. Sim, sim, claro. Onde você está? Tudo bem. Já vou levar para você.
Quando ela desligou, Greta lhe disse:
– O que está acontecendo?
– Não sei. Ele disse que precisa de um computador.
– Deve haverr uma dúzia deles na casa.
– Depois do que aconteceu hoje cedo, acha que vou discutir com o cara?
– Muito justo. – Embora a expressão da mulher berrasse seu desapontamento. – Vou darr uma olhada nos canteirros e vasos da frrente da casa, e confirrmarr se os manobristas chegarrão no horrárrio.
– Oito da manhã?
– Oito da manhã. E depois, não sei. Pensei em ir parra casa. Estou ficando com enxaqueca, e amanhã serrá um longo dia.
– Isso é horrível! Vá mesmo e volte com força total.
Antes que Lizzie se virasse, sua velha amiga lhe lançou um olhar sério através dos óculos pesados.
– Você está bem?
– Ah, sim. Absolutamente.
– Tem muito Lane por aqui. É porr isso que estou perrguntando.
Lizzie olhou para a casa.
– Ele vai se divorciar.
– Mesmo?
– É o que ele disse.
Greta cruzou os braços sobre o peito e seu sotaque alemão ficou mais evidente.
– Com dois anos de atrraso…
– Ele não é de todo ruim, sabe.
– O que disse? Isso… nein, você não pode estarr falando a verrdade.
– Ele não sabia que Chantal estava grávida, está bem?
Greta lançou as mãos para o alto.
– Ah, bem, isso muda tudo, então, ja? Então ele se prrontificou de livrre e espontânea vontade a se casarr enquanto estava com você. Perrfeito.
– Por favor, não faça isso. – Lizzie esfregou os olhos doloridos. – Ele…
– Ele te pegou de novo, não? Ligou parra você, veio te prrocurrarr, alguma coisa assim.
– E se ele fez? Isso é assunto meu.
– Passei um ano inteirro ligando parra você, parra que você saísse daquela sua fazenda, garrantindo que você virria parra o trabalho. Fiquei ao seu lado, me prreocupei com você, limpei o estrrago que ele deixou. Porr isso, não me diga que não posso exprressarr uma reação quando ele vem sussurrarr no seu ouvido…
Lizzie ergueu a mão diante do rosto da mulher.
– Chega. Não vamos mais falar disso. Nos vemos pela manhã.
Saiu marchando, e xingou baixinho no trajeto inteiro até o carro. Depois que pegou o laptop, seguiu apressada para a casa. Deliberadamente evitando a cozinha e a estufa, porque não queria encontrar Greta enquanto ela se preparava para sair, entrou na biblioteca e, sem pensar, tomou o corredor que dava para as escadas dos empregados e a cozinha. Não foi muito longe. Bem quando fazia a curva, foi parada por dois policiais, e foi então que ela viu o cadáver sendo levado numa maca com rodinhas.
Os restos mortais de Rosalinda Freeland foram colocados num saco branco com um zíper de 1,5 metro que, ainda bem, estava fechado.
– Senhora – um dos policiais disse –, vou ter que lhe pedir que abra o caminho.
– Sim, sim, desculpe. – Abaixando os olhos e refreando a onda de náusea, deu meia-volta, tentando não pensar no que acabara de ver.
E falhou.
Ela tinha dado seu nome à polícia, assim como o restante dos empregados, e fizera um relato breve de onde estivera a manhã toda e os últimos dias. Quando lhe perguntaram a respeito da controller, não teve muito a dizer. Não conhecia Rosalinda melhor do que os outros; a mulher era muito reservada e profissional, e só.
Lizzie sequer sabia se existia algum familiar para ser avisado.
Usar a escada principal era uma violação da etiqueta de Easterly, mas, levando-se em consideração que havia um carro mortuário estacionado e uma cena de crime no corredor dos funcionários, ela estava confiante de que poderia deixar o protocolo de lado. Já no segundo andar, avançou sobre o tapete claro, passando por quadros a óleo e alguns objetos que reluziam com sua antiguidade e manufatura superior.
Ao chegar à porta de Lane, não conseguia se lembrar da última vez que ela e Greta discutiram sobre alguma coisa. Deus, queria ligar para a mulher… Mas o que poderia dizer?
Deixe o laptop e saia, ordenou a si mesma. Só isso.
Lizzie bateu à porta.
– Lane?
– Pode entrar.
Empurrando a porta, ela o encontrou parado diante das janelas, com um pé plantado no peitoril, e um braço sobre o joelho erguido. Ele não se virou para vê-la entrar. Não disse nada.
– Lane? – Ela observou ao redor. Não havia ninguém com ele. – Olha só, vou deixar o laptop aqui e…
– Preciso da sua ajuda.
Inspirando fundo, ela disse:
– Ok.
Mas ele permaneceu em silêncio enquanto fitava o jardim. E que Deus a ajudasse, foi impossível desviar os olhos dele. Disse a si mesma que estava procurando sinais de cansaço… e não medindo os ombros musculosos. O cabelo curto na base da nuca. Os bíceps que marcavam as mangas curtas da camisa polo.
Ele tinha trocado de roupa. Tinha tomado um banho também. Ela sentia o perfume do sabonete e do shampoo.
– Sinto muito por Rosalinda – sussurrou. – Foi um choque.
– Hum.
– Quem a encontrou?
– Eu.
Lizzie fechou os olhos e abraçou o laptop junto ao peito.
– Ah, meu Deus.
De repente, ele enfiou a mão no bolso da frente da calça e tirou um objeto.
– Pode ficar comigo enquanto abro isto?
– O que é?
– Uma coisa que ela deixou para trás. – Ele mostrou o pen drive preto. – Encontrei sobre a escrivaninha dela.
– É um… bilhete suicida?
– Não acredito que seja isso. – Ele se sentou na cama e apontou para o laptop dela. – Se importa se eu…
– Ah, sim… aqui está. – Juntou-se a ele e levantou a tela do Lenovo, apertando o botão de liga/desliga. – Tenho Microsoft Office, então documentos de Word não devem ser um problema.
– Não acho que seja isso.
Colocou a senha e passou o computador para ele.
– Pronto.
Ele inseriu o pen drive e aguardou. A tela se acedeu com várias opções, e ele apertou em “abrir arquivos”.
Só havia um, intitulado “William Baldwine”.
Lizzie esfregou a testa com o polegar.
– Tem certeza de que quer que eu veja isso?
– Tenho certeza de que não posso ver isso sem você aqui.
Lizzie se viu esticando a mão e apoiando-a no ombro dele.
– Não vou te deixar.
Por algum motivo, ela lembrou da lingerie cor de pêssego que encontrara na cama do pai dele. Dificilmente era algo que Rosalinda vestiria; um tom de cinza-claro foi o mais próximo que a controller chegara a revelar do seu guarda-roupa. Mas, pensando bem, quem é que poderia saber o que a mulher escondia debaixo das saias e jaquetas decorosas?
Lane clicou no arquivo, e Lizzie percebeu que seu coração batia tão rápido quanto se tivesse acabado de correr meio quilômetro a toda velocidade.
E ele estava certo. Aquilo não era nenhuma carta de amor, tampouco um bilhete suicida. Era uma planilha repleta de números e datas e descrições breves, que Lizzie, por estar longe demais, não conseguia ler.
– O que é tudo isso? – perguntou.
– Cinquenta e três milhões de dólares – ele murmurou, descendo a tela. – Aposto como são cinquenta e três milhões de dólares.
– O que está dizendo? Espere… está sugerindo que ela roubou isso? – Não, mas acho que ela ajudou o meu pai a roubar.
– O quê?
Ele voltou-se para ela.
– Acho que, finalmente, meu pai tem sangue nas mãos. Ou, pelo menos, sangue que conseguimos ver.
“Sim.”
VINTE E UM
Voltando a se concentrar no laptop sobre o colo, Lane desceu pela planilha de Excel, localizando as entradas e tentando fazer uma somatória geral. Mas nem precisava ter se dado ao trabalho. Rosalinda somara por ele ao fim da página, numa célula em negrito à extrema direita de todas as colunas.
Na verdade, o total não era de 53 milhões de dólares.
Não, era de 68 milhões, 489 mil, 242 dólares e 65 centavos.
US$ 68.489.242,65.
As descrições para as retiradas variavam desde Cartier e Tiffany até a Aviação Bradford Ltda., que era a empresa que administrava todas as aeronaves e pilotos, e a folha de pagamento da Recursos Humanos Bradford, responsável, muito provavelmente, pelos salários de todos os empregados da casa. No entanto, havia uma descrição repetida que ele não reconhecia. Holding WWB.
Holding William Wyatt Baldwine.
Só podia ser.
Mas o que seria?
O montante maior tinha sido para eles.
– Acho que o meu pai… – Olhou para Lizzie. – Não sei, mas a companhia e fundos disse que ele se colocou, ou ele colocou a família, imagino, numa montanha de dívidas. Por quê? Mesmo com todos estes gastos, deveria haver muito dinheiro vindo da Cia. Bourbon Bradford para os acionistas, dos quais somos os majoritários.
– A empresa de aluguel… – Lizzie murmurou.
– O que foi?
– A empresa de aluguel não recebeu o pagamento, o financeiro deles telefonou para Rosalinda na semana passada e ela não retornou a ligação.
– Me pergunto para quem mais estamos devendo…
– Como posso ajudar?
Ele a fitou, a cabeça pensando, pensando.
– Me deixar ver este arquivo foi um bom começo.
– O que mais?
Deus, que olhos azuis, ele pensou. E os lábios, aqueles lábios naturalmente rubros tão perfeitamente moldados.
Ela falava com ele, mas Lane não conseguia ouvir. Era como se um silenciador o tivesse envolvido, impossibilitando-o de perceber qualquer som ao seu redor. Logo o computador em seu colo e todos os seus segredos também desapareceram, de forma que nem o brilho da tela nem o desenho de colunas e números e letras podia ser percebido.
– Lizzie – ele disse, interrompendo-a.
– Sim?
– Preciso de você – ele se ouviu dizer, rouco.
– Sim, claro, o que posso…
Inclinou-se e encostou os lábios nos dela, resvalando-os rapidamente.
Ela arfou e se afastou.
Lane esperou que ela se levantasse. Que lhe dissesse poucas e boas. Talvez voltasse ao século passado e o esbofeteasse.
Em vez disso, ela levantou os dedos e tocou a própria boca. Depois fechou os olhos.
– Eu queria que você não tivesse feito isso.
Merda.
– Desculpe. – Passou uma mão pelos cabelos. – Não estou com a cabeça no lugar.
Ela concordou.
– Sim.
Perfeito, pensou ele. A vida dele estava em labaredas em tantas frentes, por que não, então, atear mais um pouco de fogo? Sabe, só para piorar aquele inferno.
– Sinto muito – disse. – Eu deveria ter…
Ela se lançou sobre ele com um movimento tão rápido que ele quase caiu. O que o salvou foi o desejo… a necessidade feroz que ele sempre sentira por ela e que estivera represada durante todo o tempo em que ficaram afastados.
Lizzie disse ao encontro da boca dele:
– Também não estou com a cabeça no lugar.
Soltando uma imprecação, passou os braços ao redor dela e a trouxe para o colo, derrubando o computador sobre o carpete grosso. Queria se esquecer do dinheiro, do pai, de Rosalinda… mesmo que apenas por um momento.
– Desculpe – ele disse ao empurrá-la para o colchão. – Preciso de você. Eu só… preciso estar dentro de você…
Toc, toc, toc.
Os dois ficaram parados, os olhos presos um no outro.
– O que foi? – ele perguntou, irritado.
Uma voz feminina e abafada comentou algo sobre toalhas, e só o que Lane pensava era que a porta não estava trancada.
– Não, obrigado.
Lizzie saiu de baixo dele, e ele se moveu para que ela pudesse ficar de pé. Nesse meio-tempo, a criada continuou falando.
– Não preciso de toalhas, obrigado – repetiu com aspereza.
Seus olhos acompanharam as mãos de Lizzie, que ajeitavam a camisa e alisavam os cabelos.
– Lizzie… – sussurrou.
Ela apenas balançou a cabeça, andando em círculos, parecendo considerar saltar pela janela como estratégia de fuga.
Mais palavras por parte da criada, e ele perdeu a cabeça. Explodindo sobre os pés, foi até a porta e a abriu, bloqueando a entrada para o quarto. A loira de uns vinte e cinco anos do outro lado era a mesma que estava no corredor quando ele e Chantal discutiram.
– Ah, olá. – Ela lhe sorriu. – Como está?
– Não preciso de nada. Obrigado – disse, seco.
Quando se voltou para fechar, ela o segurou pelo braço.
– Sou Tiphanii, com “ph” e dois “is” no fim.
– Prazer em conhecê-la. Se me der licença…
– Eu só preciso entrar para ver como está o seu banheiro.
O sorriso a entregou. Isso e aquela pequena mudança de postura; ela inclinou o quadril na direção dele e suas pernas se esticaram, como se ela estivesse usando saltos altos em vez de Crocs.
Lane revirou os olhos, não conseguindo evitar. A mulher que desejava tinha acabado de sair de baixo dele e aquela bajuladorazinha achava que tinha algo a lhe oferecer?
– Obrigado, mas não. Não estou interessado.
Fechou a porta na cara dela porque não tinha energia para ser agradável e não queria dizer algo que acabasse lamentando mais tarde.
Girando, encontrou Lizzie do lado oposto do quarto, perto de uma janela. Ela estava deliberadamente mais para o lado, como se não quisesse ser vista, e seus braços estavam cruzados sobre o peito.
– Você pareceu bem sincero – ela comentou com secura.
– Quando estou com você, eu sou…
– Agora, com a criada.
– E por que eu não deveria?
– Sabe o que eu odeio mesmo?
– Só posso imaginar – ele murmurou.
– Como ela se ofereceu para você… E, mesmo assim, eu só consigo ficar pensando em arrancar as suas roupas. Como se fosse um brinquedinho que estou disputando com ela.
A ereção dele ficou mais apertada dentro da calça.
– Não existe disputa alguma… Eu sou seu. Se você quiser, aqui e agora. Ou mais tarde. Daqui uma semana, um mês, daqui a vários anos.
Cale a boca, sua ereção comandou. Apenas cale a boca, amigo, pare com essa coisa de futuro.
– Não vou voltar para você, Lane. Não vou.
– Você me disse isso pelo telefone.
Lizzie assentiu e desviou o olhar do jardim. Enquanto a luz começava a sumir do céu, ela marchou pelo quarto, evidentemente seguindo para a porta.
Maldição…
Não para a porta.
Na verdade, ela não foi para a porta.
Lizzie parou diante dele e deixou que os dedos completassem o trajeto, caminhando pelo seu rosto, trazendo a boca dele para a sua.
– Lizzie… – ele gemeu, lambendo a boca dela.
O beijo ficou rapidamente descontrolado, e ele não estava disposto a perder a chance com ela. Virando-a, empurrou-a contra a parede, acertando o quadro a óleo ao lado deles com tanta força que ele acabou soltando do prego e caindo no chão. Ele nem ligou. Suas mãos foram para baixo das roupas dela, encontraram a pele, subiram na direção dos seios.
Ele pensara que nunca faria aquilo de novo, e por mais que quisesse algo mais lento e demorado, não conseguia. Estava desesperado.
Foi rude com o cós dos shorts dela, arrancando o botão, descendo o zíper e fazendo-o escorregar pelas pernas dela. Em seguida, passou a mão entre as coxas dela, afastando a calcinha de algodão…
Lizzie exclamou seu nome numa voz rouca que quase o fez gozar ali mesmo, naquele instante. E quando os dedos dela se cravaram nos seus ombros, ele a afagou com mais intensidade.
– Pode me machucar – ele grunhiu quando ela o apertou com mais força. – Me faça sangrar.
Ele queria dor junto do prazer, pois tudo o que vinha acontecendo com o pai e a família deixava-o em carne viva, muito próximo de um lado sombrio… a ponto de ele pensar vagamente se não fora aquilo que norteara o irmão Max. Ficara sabendo das coisas que Maxwell fizera… ou rumores a respeito.
Talvez aquele fosse o motivo. Ele sentia como se precisasse arrancar a escuridão do seu íntimo ou acabaria sendo consumido por ela.
Suspendendo Lizzie do chão, deliciou-se com o modo como ela se grudou a ele com braços fortes. Um puxão no zíper da calça, e sua ereção estava pronta para seguir em frente. Rasgou a calcinha dela e…
O rugido que ela emitiu junto ao pescoço dele foi como o de um animal, mas ele não prestou atenção. A pegada escorregadia do sexo dela foi uma sensação que ele sentiu no corpo inteiro, e ele chegou ao orgasmo de imediato. Tanto tempo… Por tanto tempo ele sonhara com ela, lamentando o que tinha acontecido, querendo fazer as coisas de uma maneira diferente. E agora ele estava onde rezara: a cada bombeada dentro dela, ele voltava no tempo, consertando as coisas, reparando seus erros.
Ele queria estar com ela para, por um tempo, se afastar do presente. Mas, no fim, aquela experiência foi muito mais do que isso. Muito, muito mais.
Mas sempre fora verdadeiro com Lizzie. Fizera sexo muitas vezes no decorrer da vida.
No entanto, nada daquilo tivera importância… Até ele estar com ela.
Lizzie não tivera a intenção de ir tão longe.
Enquanto Lane chegava ao orgasmo dentro dela, foi alçada junto com ele, o seu orgasmo ecoando o dele. Rápido, tão rápido, tudo foi muito veloz, furioso, o ato chegou ao fim em questão de minutos, e os dois permaneceram unidos quando a onda inicial foi sumindo.
Tinham mesmo feito aquilo?, ela se perguntou.
Bem, tinham, ela concluiu quando ele se mexeu dentro dela.
E foi então que ela percebeu que… Ah, Deus, o cheiro dele era o mesmo. E os cabelos também, incrivelmente macios.
E o corpo continuava tão forte quanto ela se lembrava.
Lágrimas surgiram em seus olhos, mas ela escondeu o rosto no ombro dele. Não queria que ele percebesse suas emoções. Já estava com bastante dificuldade para reconhecer aquela confusão.
Apenas sexo, disse para si mesma. Era apenas desejo físico de ambas as partes. E Deus bem sabia, luxúria nunca fora um problema para eles. Desde o instante em que o vira no dia anterior, aquela conexão entre eles borbulhou até a superfície da pele dela.
E debaixo da pele dele também.
Ok. Sem problemas. Não conseguiu dizer não naquela situação específica, quando claramente deveria ter dito.
Quer fosse um erro ou não, dependia de como ela lidaria com as coisas dali por diante.
Recobrando o controle, afastou-se um pouco dos braços dele, muito ciente de que ainda estavam conectados.
Ficou com a respiração presa ao ver a expressão no rosto dele, quando ele fez um carinho em sua face.
Ele parecia tão vulnerável.
Contudo, antes que ela fizesse algum comentário calmo e sensato, ele começou a se mover dentro dela de novo. Lenta, ah… tão lentamente… para dentro e para fora. Para dentro e para fora. Em reação, os olhos dela se fecharam e ela ficou toda maleável, os braços dele sustentando-a, a parede nas suas costas apoiando-a ao encontro dele. Uma parte de si ainda estava presente, cada movimento sendo registrado com a claridade de um raio, a respiração pesada no peito e a fervura em seu sangue assumindo o controle de tudo.
A outra parte estava fugindo.
Ah, Deus, a sensação da mão dele agarrando seus cabelos, a boca beijando a sua com sofreguidão, os quadris se curvando e retraindo. Era como voltar ao lar de todas as maneiras que seu corpo desejava havia muito tempo.
E isso não podia ser bom.
– Lizzie – ele disse com uma voz entrecortada. – Senti saudade, Lizzie. Tanta saudade que chegava a doer.
Não pense nisso, ela disse a si mesma. Não preste atenção.
O nome dele escapou dos seus lábios uma vez mais, o estalido do prazer fazendo seu sexo se contrair ao redor da ereção enquanto ele se movia dentro dela, empurrando-a contra a parede, com tamanho ímpeto que a fez bater a cabeça.
Quando ficaram imóveis a não ser pela respiração, ela se deixou cair sobre ele.
– Esta não pode ser a última vez – ele grunhiu, como se soubesse o que ela estava pensando. – Não pode.
– Como você sabia…
– Não te culpo. – Ele se afastou, e seus olhos semicerrados a queimaram. – Só não quero que isso…
– Lane…
A batida à porta a sobressaltou. E ele praguejou.
– Mas que porra! – ele ralhou.
E considerando-se que ele não era de ficar falando palavrão, ela teve que dar um sorriso.
– O que foi? – ele berrou.
– Senhor Baldwine – era a voz do mordomo –, o senhor Lodge está aqui e gostaria de vê-lo.
Lane franziu o cenho.
– Diga a ele que estou ocupado…
– Ele disse que é urgente.
Lizzie balançou a cabeça e se afastou dos braços dele pela segunda vez. Quando seus pés tocaram o chão silenciosamente, ela se deu conta de que não haviam usado preservativo.
Isso mesmo. E tudo ficou bem real quando ela suspendeu os shorts e saiu apressada para o banheiro. Limpou-se o melhor que pôde enquanto Lane falava com o inglês pela porta. E quando ela voltou, ele já havia subido as calças e andava de um lado para o outro.
Ela levantou a palma antes que ele conseguisse comentar qualquer coisa.
– Vá lá ver o que ele quer.
– Lizzie…
– Se um quarto do que o preocupa for verdade, você vai precisar dele.
– Aonde você vai?
– Não sei. Acho que terminamos até amanhã de manhã.
O que era verdade em relação a tantas outras coisas.
– Você não pode ficar? – ele disse num ímpeto.
As sobrancelhas dela se ergueram.
– Ficar? Está querendo que eu passe a noite aqui? Isso é loucura.
Numa casa onde, tecnicamente, não podia usar metade das portas, acordar na cama do filho mais novo e continuar trabalhando em Easterly não era uma opção.
Ah, sim, pensou ela. Os bons e velhos tempos, quando tinham que manter tudo em segredo.
– Em qualquer lugar – ele disse. – Num dos chalés. Não faz diferença.
– Lane. Preste atenção, não é… Não vamos voltar ao que tínhamos antes, lembra? Não sei por que fiz o que fiz, mas isso não significa…
Ele se aproximou e a atraiu para um beijo, a língua invadindo a boca dela. Que Deus a ajudasse, pois, depois de um instante, ela retribuiu o beijo.
– Isso é importante – ele disse ao encontro dos lábios dela. – Isso é mais importante para mim do que a minha família. Você entende, Lizzie? Você sempre foi e sempre será importante para mim, a coisa mais importante.
Dito isso, ele se afastou e foi para a porta, olhando para ela por sobre o ombro – um olhar que era uma espécie de juramento, e que ela jamais vira antes.
Sentando no pé da cama dele, olhou para a parede onde tinham acabado de fazer sexo. O quadro no chão estava arruinado, a tela estava arranhada e torta, mas ela não queria avaliar o estrago. Apenas continuou sentada, tentando convencer a si mesma de que aquilo não era um sinal enviado por Deus.
Demorou um pouco para sair do quarto, atenta junto à porta, prestando atenção a vozes e passos antes de entreabrir a porta e espiar. Quando não havia mais nada além de silêncio, ela praticamente saltou para o meio do corredor e começou a andar apressada.
O quarto de Chantal ficava do outro lado do corredor, um pouco mais para a frente e, quando passou diante dele, sentiu a fragrância do perfume caro dela.
Um lembrete e tanto – não que ela precisasse – do por que deveria ter saído do quarto após a primeira interrupção.
Em vez de ter seguido em frente a toda velocidade.
Ela só podia culpar a si mesma.
VINTE E DOIS
Enquanto trotava escada abaixo, só o que Lane conseguia pensar era no quanto queria ter um drinque na mão. A boa notícia, e provavelmente a única que receberia, era que, quando chegou à sala de estar, Samuel T. já estava se servindo do Reserva de Família, o som do gelo a tilintar no copo atiçando a vontade de Lane como a ânsia de um viciado.
– Gostaria de partilhar da sua fortuna? – ele murmurou enquanto deslizava as portas de madeira dos dois lados da sala.
Havia muitas coisas que ele não queria que outros ouvissem.
– O prazer é meu. – Samuel o presenteou com um drinque igual ao seu num copo baixo de cristal. – Dia longo, não?
– Você não faz ideia. – Lane bateu um copo no outro. – O que posso fazer por você?
Samuel T. tomou seu bourbon e voltou para o bar.
– Fiquei sabendo sobre a controller. Meus pêsames.
– Obrigado.
– Foi você quem a encontrou?
– Sim.
– Já passei por isso. – O advogado voltou para perto e sacudiu a cabeça. – Dureza.
Você não sabe da missa a metade.
– Olha só, não quero te apressar, mas…
– Falou sério quanto ao divórcio?
– Claro.
– Tem um acordo pré-nupcial?
Quando Lane meneou a cabeça, Samuel xingou.
– Alguma possibilidade de ela ter te traído?
Lane esfregou as têmporas, tentando arrancar o que tinha acabado de acontecer com Lizzie… e o que vira naquele laptop. Queria pedir a Samuel T. que deixassem aquela conversa para o dia seguinte, mas seus problemas com Chantal estariam esperando, quer a sua família se afundasse em problemas financeiros ou não.
Na verdade, devia ser melhor dar sequência àquilo em vez de esperar, considerando toda aquela situação com o pai. Quanto mais rápido a tirasse daquela casa, menos informações ela teria para vender para os tabloides.
Não que não conseguisse vê-la falando pelos cotovelos com qualquer um, se o pior acontecesse com os Bradford.
– Desculpe – disse entredentes. – Qual foi mesmo a pergunta?
– Ela te traiu?
– Não que eu saiba. Ela passou os dois últimos anos nesta casa, vivendo à custa da minha família, fazendo a manicure.
– Uma pena.
Lane ergueu uma sobrancelha.
– Eu não sabia que via o matrimônio com tanto preconceito.
– Se ela tiver te traído, isso pode ser usado para reduzir a pensão. O Kentucky é um Estado que não exige admissão de culpa para conceder o divórcio, mas casos extraconjugais e maus tratos podem ser usados para mediar a pensão.
– Não estive com ninguém. – A não ser com Lizzie, havia pouco no quarto, e umas milhares de vezes antes em sua mente.
– Isso não importa, a menos que você queira pedir pensão a Chantal.
– Até parece. Livrar-me dela de uma vez por todas é só o que quero daquela mulher.
– Ela sabe que isso vai acontecer?
– Contei para ela.
– Mas ela sabe?
– Já está com os papéis para eu assinar? – Quando o advogado assentiu, Lane deu de ombros. – Bem, ela vai entender que eu estava falando sério quando receber os documentos.
– Assim que eu conseguir a sua assinatura, vou direto para o centro da cidade para dar entrada no divórcio. O tribunal terá que entender que o casamento está irrevogavelmente terminado, mas acho que, como faz dois anos que vocês moram em casas diferentes, não será um problema. Já vou avisando: acho que ela não vai abrir mão da pensão. E existe uma possibilidade de sair caro para você, ainda mais porque o padrão de vida dela foi bem alto nesta casa. Deduzo que alguns dos seus fundos foram liberados?
– A primeira parte. A segunda será liberada só quando eu completar quarenta anos.
– Qual a sua renda anual?
– Isso inclui os ganhos no pôquer?
– Ela está ciente deles? Você os declara no imposto de renda?
– Não e não.
– Então vamos deixar isso de fora. Qual o montante?
– Não sei. Nada ridículo, talvez um milhão, mais ou menos. Deve ser um quinto da renda gerada pelo acervo fiduciário.
– Ela vai atrás disso.
– Mas não ao acervo, correto? Acho que existe uma cláusula quanto ao excesso de gastos.
– Se estiver no Termo Irrevogável da Família Bradford de 1968, e eu acredito que esteja, pois foi meu pai quem redigiu os termos, pode apostar a sua melhor garrafa que sua iminente-ex-mulher não vai pôr a mão em nada disso. Vou precisar de uma cópia dos documentos, claro.
– A Fundos Prospect está com tudo.
Samuel T. tratou dos vários “arquivar isso”, “argumentar aquilo”, “divulgar sei lá o que”, mas Lane não estava mais prestando atenção. Em sua mente, estava no andar de cima, em seu quarto, com a porta trancada e Lizzie toda nua na sua cama. Ele a cobria com mãos e boca, diminuindo a distância dos anos e voltando ao ponto antes de Chantal aparecer em roupas de maternidade de grife.
O que quer que tivesse que enfrentar em relação ao pai e à dívida seria muito mais fácil se Lizzie estivesse ao seu lado, e não apenas sexualmente.
Amigos podiam se ajudar, certo?
– Tudo bem assim?
Lane voltou a se fixar no advogado.
– Sim. Quanto tempo vai demorar?
– Como já disse, vou entregar tudo ainda hoje a um juiz “amigável” que me deve um ou dois favores. E Mitch Ramsey concordou em disponibilizar a petição para ela imediatamente. Depois só vai faltar rascunhar o acordo do divórcio, e o meu palpite é que ela vá atrás de um tremendo advogado de família, que você vai ter que pagar. Vocês têm vivido separados há mais de sessenta dias, mas ela vai ter que sair desta casa o mais rápido possível, caso você tenha a intenção de ficar. Não quero que isso atrase o processo em dois meses, graças a uma possível alegação de coabitação da parte dela. O meu palpite é que ela contestará tudo, porque vai querer o máximo de dinheiro que puder de você. O meu objetivo é tirá-la da sua vida com apenas as roupas do corpo e aquele anel de um quarto de milhão de dólares que você lhe deu, e só.
– Parece-me uma excelente ideia. – Ainda mais porque ele não sabia se existia um centavo a mais para gastar em algum lugar que não fosse nas suas contas. – Onde assino?
Samuel apresentou diversos papéis para que fossem assinados. Tudo acabou antes que Lane terminasse seu primeiro copo de bourbon.
– Quer que eu te dê um adiantamento? – perguntou, ao devolver a Montblanc ao advogado.
Samuel T. terminou o drinque, depois se serviu de mais gelo e de mais uma dose do Reserva de Família.
– Fica por conta da casa.
Lane se retraiu.
– Que é isso, cara? Não posso deixar que faça assim. Deixe que eu…
– Não. Sério, não gosto dela, e ela não pertence a esta família. Encaro esse divórcio como parte da manutenção da casa. Uma vassoura para jogar o lixo fora.
– Eu não sabia que você a detestava tanto assim.
Samuel T. apoiou as mãos no quadril e baixou o olhar para o tapete oriental.
– Vou ser totalmente franco.
Lane já tinha entendido qual seria o assunto, pela maneira como o advogado contraía o maxilar.
– Vá em frente.
– Uns seis meses depois que você foi embora, Chantal ligou para mim. Pediu que eu viesse para cá, e quando eu me neguei, ela apareceu na minha casa. Ela estava querendo um “amigo”, como ela mesma disse, depois enfiou a mão dentro das minhas calças e se ofereceu para ficar de joelhos. Disse a ela que ela era louca. Mesmo se eu estivesse atraído por ela, o que nunca foi o caso, a sua família e a minha são amigas há gerações. Eu jamais ficaria com uma esposa sua, divorciada, separada ou casada. Além disso, a Virgínia é uma boa faculdade para se frequentar, mas eu não me casaria com uma moça de lá, e era exatamente isso que ela pretendia.
Caramba, às vezes ele odiava ter razão quanto àquela vadia, odiava mesmo.
– Não estou surpreso, mas fico contente que tenha me contado. – Lane levantou a mão. – Um dia vou retribuir o favor.
O advogado aceitou o que lhe era oferecido, depois se curvou de leve, e partiu com o copo.
– Você pode ser preso por beber na rua – Lane exclamou. – Para a sua informação.
– Só se eu for apanhado – Samuel T. exclamou de volta.
– Louco – murmurou Lane ao terminar o próprio drinque.
Quando foi se servir de outra dose, seu olhar recaiu sobre a pintura a óleo acima da cornija da lareira. Era um retrato de Elijah Bradford, o primeiro membro da família a ter dinheiro o bastante para se sobressair de seus pares, posando para um artista americano de renome.
Será que ele estava se revirando no túmulo àquela altura?
Ou isso aconteceria depois… quando o fedor piorasse?
Gin sentiu uma onda de pânico ao descer a escadaria principal de Easterly.
Assim que viu o Jaguar vintage diante da casa, tirou as roupas que usara na cadeia, pelo amor de Deus, e colocara um vestido de seda com barra bem acima dos joelhos. Borrifou um pouco de perfume. Calçou sapatos que deixavam seus tornozelos mais finos do que nunca.
A julgar pelas portas fechadas da sala de estar, ela sabia que o irmão estava falando com Samuel T. a respeito da Situação. Ou das Situações.
Deixou-os à vontade.
Em vez de entrar na sala, foi para a porta da frente e esperou ao lado do conversível antigo. A temperatura devia estar nos vinte e poucos graus, apesar de o sol já estar se pondo, e havia certa umidade no ar – ou talvez fossem seus nervos fora de controle. Para aproveitar um pouco de sombra, foi para debaixo de uma das magnólias que cresciam próximas à casa.
Enquanto olhava para o carro, lembrou-se das vezes que esteve nele com Samuel T., do vento noturno em seus cabelos, da mão dele entre suas pernas enquanto ele os conduzia pelas estradas cheias de curvas da sua fazenda.
O conversível fora comprado por Samuel T. pai, no dia do nascimento daquele que acabou sendo o único herdeiro do homem. E foi dado ao jovem Samuel T. em seu décimo oitavo aniversário, com instruções precisas de que ele não se matasse nessa coisa.
E, engraçado, as instruções deram resultado: só quando estava atrás daquele volante é que aquele homem era cuidadoso. Gin suspeitava de que ele sabia que se algo lhe acontecesse, sua árvore genealógica chegaria ao fim.
Ele era o único membro da sua geração que sobrevivera.
Foram muitas tragédias.
Que, até aquele exato instante, não lhe interessaram muito.
Enquanto aguardava, seu coração batia rápido, e a agitação em seu peito a deixava tonta. Ou talvez fosse o calor…
Samuel T. parou diante da porta da frente e saiu de Easterly com um copo de cristal na mão. Ele formava uma figura impressionante com o terno cortado sob medida, seu lindo rosto e a maleta com monograma. Estava usando óculos de sol com armação dourada, e os cabelos escuros e espessos estavam penteados para trás, com um topete que parecia ter sido milimetricamente arrumado, mas que, na verdade, nunca requeria isso.
Ele parou quando a viu. Depois disse em sua fala arrastada: – Veio me agradecer por te salvar?
– Preciso falar com você.
– É mesmo? Vai tentar negociar um adiantamento que não envolva dinheiro? – Bebeu todo o líquido e deixou o copo no primeiro degrau, como só alguém que sempre teve empregados faria. – Estou aberto a sugestões.
Ela avaliou cada passo que ele deu na direção dela e do carro. Conhecia muito bem aquele corpo forte e musculoso, que denunciava o fazendeiro que era no fundo de sua alma, debaixo de todas aquelas roupas elegantes de advogado.
Amelia seria alta como ele. E também era inteligente como ele.
Infelizmente, a menina era boba como a mãe, ainda que talvez um dia pudesse superá-lo.
– E então? – incitou-a ao colocar a maleta no banco. – Posso escolher como vai pagar a sua conta?
Mesmo através das lentes escuras, sentia o olhar dele. Ele a desejava, sempre a desejou, e às vezes, ele a detestava por isso: não era um homem que apreciava restrições, mesmo as autoimpostas.
Ela também era assim.
Samuel T. meneou a cabeça.
– Não me diga que o gato comeu a sua deliciosa língua. Seria uma pena tremenda ficar sem essa parte da sua anatomia…
– Samuel.
No instante em que ele ouviu o tom de voz dela, franziu o cenho e tirou os óculos escuros.
– O que aconteceu?
– Eu…
– Alguém a destratou na cadeia? Porque vou pessoalmente até lá e…
– Case comigo.
Ele parou no ato, tudo congelou: a expressão dele, a respiração, talvez até mesmo o coração. Depois ele gargalhou.
– Certo, certo, certo. Claro que você…
– Estou falando sério.
A porta do carro se abriu silenciosamente, um testemunho dos cuidados que ele tinha com o carro.
– O dia que você se assentar com qualquer homem será o dia do Segundo Advento.
– Samuel, eu te amo.
Ele lhe lançou um olhar sardônico.
– Ora, por favor…
– Preciso de você.
– A cadeia mexeu mesmo com você, não mexeu? – Ele se acomodou no banco do motorista e ficou olhando para o capô por um instante. – Olha aqui, Gin, não se sinta mal por ter parado lá, ok? Consegui apagar qualquer rastro, então a sua ficha vai ficar limpa. Ninguém vai saber de nada.
– Não é esse o motivo. Eu só… Vamos nos casar. Por favor.
Olhando para ela, ele franziu tanto o cenho que suas sobrancelhas se uniram.
– Você parece estar falando sério.
– Estou mesmo. – Ela não era idiota. Ela lhe contaria sobre Amelia mais tarde, quando fosse mais difícil para ele escapar, quando houvessem documentos que os unissem, até que ele superasse o que ela lhe fizera. – Você e eu nascemos para ficar juntos. Você sabe disso. Eu sei. Estamos dando voltas neste nosso relacionamento a vida toda, mais até. Você sai com garçonetes, manicures e massagistas porque elas não são eu. Você compara cada uma dessas mulheres ao meu padrão e todas elas perdem. Você é obcecado por mim, assim como eu sou por você. Não vamos mais mentir, vamos fazer o que é certo.
Ele voltou o olhar para o capô e escorregou as belas mãos sobre o volante de madeira.
– Deixe eu te perguntar uma coisa.
– Qualquer coisa.
– Para quantos homens você já disse isso? – Voltou a olhar para ela. – Hein? Quantos, Gin? Quantas vezes você usou essas frases?
– É a verdade – ela disse numa voz entrecortada.
– Você também tentou esse tom de súplica com eles, Gin? Bateu os cílios para eles?
– Não seja cruel.
Depois de um longo silêncio, ele meneou a cabeça.
– Você se lembra da minha festa de trigésimo aniversário? Aquela que aconteceu na minha fazenda?
– Isso não tem nada a ver com…
– Foi uma bela surpresa. Eu não fazia a mínima ideia de que vocês estariam lá esperando por mim. Entrei na minha casa e… surpresa! Todas aquelas pessoas gritando, e eu procurei por você…
Ela levantou as mãos.
– Isso aconteceu cinco anos atrás, Samuel! Foi…
– Na verdade, foi o resumo do nosso relacionamento, Gin. Eu procurei por você… percorri os olhos pela multidão, fui atrás de você…
– Aquilo não foi importante. Nenhum deles importou…
– … porque, como você mesma disse, sou um tolo e você foi a única mulher que eu quis de verdade. E eu te encontrei… transando com aquele jogador de polo argentino, hóspede de Edward, na minha cama.
– Samuel…
– Na minha cama! – ele esbravejou, batendo com o punho no painel. – Na porra da minha cama, Gin!
– Tudo bem! E o que foi que você fez? – Ela empinou o quadril e apontou o dedo na direção dele. – O que foi que você fez? Você pegou a minha colega de quarto da faculdade e a irmã dela e transou com as duas na piscina.
Ele praguejou alto.
– O que eu deveria ter feito? Deixar que você me pisoteasse? Sou homem, não um dos seus amigos coloridos patéticos! Eu não vou…
– Fiquei com o jogador de polo porque na semana anterior você dormiu com Catherine! Eu era amiga dela desde os dois anos, Samuel. Tive que ficar ouvindo-a contar e repetir que você lhe deu os melhores orgasmos da vida dela no banco de trás do seu carro. Depois de ter ficado comigo na noite anterior! Então, não venha me dizer que você foi o…
– Chega. – De repente, ele correu os dedos pelos cabelos. – Já chega, pare. Não vamos mais fazer isso, Gin. Temos as mesmas discussões desde que éramos adolescentes…
– Brigamos porque gostamos um do outro e somos orgulhosos demais para admitir isso. – Quando ele se calou de novo, ela teve esperança de que ele estivesse repensando. – Samuel, você é o único homem que eu amei. O mesmo acontece com você. É simples assim. Se precisamos parar de fazer alguma coisa, é de brigar e de nos magoar. Somos dois teimosos e orgulhosos demais para o nosso próprio bem.
Houve um longo silêncio.
– Por que agora, Gin…
– Porque… chegou a hora.
– Tudo isso só por causa da revista íntima das dez da manhã?
– Você precisa mesmo falar assim?
Samuel T. balançou a cabeça.
– Não sei se você está falando sério ou não, mas não é problema meu. Deixe-me ser bem claro.
– Samuel – ela o interrompeu –, eu te amo.
E ela estava falando sério. Ela estava abrindo a alma. A terrível convicção de que as coisas ficariam ruins para a família se enraizara e se espalhara, trazendo com ela uma certeza que ela nunca teve antes.
Ou talvez houvesse mais por trás – uma coragem que antes lhe faltara. Em todos aqueles anos juntos, ela nunca lhe dissera o que sentia verdadeiramente. Ela só se preocupava em manter a pose e dizer a última palavra. Bem, e criar a filha dele… não que ele soubesse disso ainda.
– Eu te amo – sussurrou.
– Não. – Ele abaixou a cabeça e apertou o volante como se buscasse forças dentro dele mesmo. – Não… Você não pode fazer isso, Gin. Não comigo. Não tente levar a farsa tão a fundo. Não é saudável para você. E eu acho que eu não sobreviveria, ok? Preciso funcionar… minha família precisa de mim. Não vou permitir que enlouqueça minha cabeça tanto assim…
– Samuel…
– Não! – ele exclamou.
Depois ele a encarou, os olhos azuis frios e agudos, como se estivesse diante de um inimigo.
– Primeiro, não acredito em você, ok? Acho que está mentindo para me manipular. Segundo? Jamais permitirei que uma esposa minha me desrespeite da maneira como você desrespeitará o seu marido. Você é fundamentalmente incapaz de ser monógama e, indo direto ao ponto, você se entedia rápido demais para valorizar um relacionamento durável. Você e eu podemos nos divertir de vez em quando, mas eu jamais honraria uma puta como você com o meu sobrenome. Você menospreza as garçonetes? Tudo bem. Mas eu preferiria que alguém assim tivesse a minha aliança no dedo do que uma menina mimada e desleal como você.
Ele deu a partida no carro, e o cheiro doce da gasolina e de óleo fugazmente se espalhou pelo ar quente.
– Eu te procuro da próxima vez que tiver vontade de cuidar de um assunto do qual prefiro não cuidar sozinho. Até então, divirta-se com o resto da população.
Gin levou as duas mãos sobre a boca quando ele deu marcha ré, e o carro desapareceu pelo caminho, colina abaixo.
Conforme ele sumia, lágrimas caíram dos olhos dela, borrando o rímel e, de maneira inédita, ela não se importou.
Dera seu único lance.
E fracassara.
Aquele era o seu pior pesadelo se concretizando.
VINTE E TRÊS
– Hum, Lisa?
Lizzie ficou estática assim que ouviu o sotaque sulista arrastado se infiltrando na estufa, o que foi estranho porque estava desmontando as mesas que usaram para os arranjos florais e uma delas ficou equilibrada apenas em uma perna.
– Lisa?
Ao erguer o olhar, Lizzie viu a esposa de Lane parada à porta como se estivesse posando para uma câmera, com uma mão no quadril e a outra jogando os cabelos para trás. Vestia calças de seda cor-de-rosa Mary Tyler Moore da Laurie Petrie e uma blusa com decote baixo num tom laranja pôr do sol. Os sapatos eram de bico fino, com saltos pequenos e, para completar, uma echarpe dramática e transparente em tons cítricos de amarelo e verde envolvia seus ombros, amarrada diante dos seios perfeitos.
Levando-se tudo em consideração, a composição criava uma impressão de Frescor, Amabilidade e Tentação, fazendo que alguém que estava Cansada, Ansiosa e Estressada se sentisse ainda mais deficiente – não apenas com relação ao penteado e à vestimenta, mas até à genética molecular.
– Pois não? – Lizzie disse enquanto prosseguia batendo numa das pernas.
– Poderia parar de fazer isso? É muito barulhento.
– Será um prazer – Lizzie disse entredentes.
Por algum motivo, enquanto a mulher brincava com as mechas loiras, o brilho do diamante em sua mão esquerda foi como se alguém lançasse uma maldita bomba repetidamente.
Chantal sorriu.
– Preciso da sua ajuda para uma festa.
Podemos apenas terminar a de amanhã primeiro?
– Será um prazer.
– É uma festa para dois. – Chantal sorriu ao soltar a echarpe e avançar um pouco mais. – Puxa, como está quente aqui. Não pode fazer nada a respeito?
– As plantas gostam mais do calor.
– Oh. – Tirou a echarpe e a deixou ao lado de um buquê que seria colocado num dos ambientes sociais da casa. – Bem.
– Você dizia?
Aquele sorriso retornou.
– Logo será nosso aniversário de casamento, meu e de Lane, e eu gostaria de preparar algo especial.
Lizzie engoliu em seco, e ficou se perguntando se aquele seria algum tipo de jogo doentio. Será que a mulher ouvira alguma coisa lá no segundo andar através das paredes?
– Pensei que tivessem se casado em julho.
– Quanta gentileza sua se lembrar. Você é tão atenciosa. – Chantal inclinou a cabeça para o lado e fixou o olhar no seu, como se estivessem partilhando um momento especial. – Sim, nos casamos em julho, mas tenho uma novidade muito especial para contar para ele, e pensei em comemorar um pouco antes.
– No que pensou?
Lizzie não acompanhou muito bem enquanto ela falava. As únicas coisas que captou foi “romântico” e “reservado”. Como se Chantal estivesse planejando presentear o marido com uma dança íntima.
– Lisa? Você está escrevendo tudo isso?
Bem, não, porque estou sem caneta e papel, não é? E P.S.: acho que vou vomitar.
– Ficarei contente em planejar o que quer que tenha em mente.
– Você é tão prestativa. – A mulher acenou para a tenda e para o jardim do lado de fora. – Sei que tudo ficará lindo amanhã.
– Obrigada.
– Podemos conversar mais a respeito depois. Mas repito, estou pensando num jantar romântico numa suíte do Cambridge Hotel. Você poderá providenciar as flores e a decoração especial. Quero que tudo seja coberto com panos a fim de criar um lugar exótico, apenas para nós dois.
– Tudo bem.
Será que Lane tinha mentido? E se tinha… bem, isso faria com que Greta cuidasse de tudo durante o Brunch do Derby, enquanto ela ficaria na fazenda se ocupando de um galão de sorvete de chocolate.
Só que ela e sua colega de trabalho não estavam conversando mais.
Fantástico.
– Você é a melhor. – Chantal consultou o relógio de diamantes. – Já está na hora de você voltar para casa, não está? Grande dia amanhã… Você vai precisar do seu sono de beleza. Tchauzinho por enquanto.
Quando Lizzie se viu só novamente, sentou-se num dos baldes virados para baixo e apoiou as mãos sobre os joelhos, esfregando-os para cima e para baixo.
Respire, ela se ordenou. Apenas respire.
Greta estava certa. Ela não estava no nível daquelas pessoas, e não só por ser apenas uma jardineira. Eles jogavam um jogo do qual ela só sairia perdendo.
Hora de ir embora, resolveu. O sono de beleza não iria acontecer, mas, pelo menos, ela poderia tentar e seguir em frente, antes que a bomba estourasse no dia seguinte.
Levantou-se, e já estava para sair quando viu a echarpe. A última coisa que queria era ter que entregar o pedaço de seda para Chantal, como se fosse um labrador devolvendo uma bola de tênis para seu dono. Mas aquela coisa estava bem ao lado de todos aqueles buquês e, conhecendo sua sorte, algo poderia vazar e cair em cima do pano, e ela teria que poupar três meses de salário para comprar um novo.
O guarda-roupa de Chantal era mais caro que bairros inteiros de Charlemont.
Pegando a peça, pensou onde a mulher poderia ter ido com aqueles estúpidos saltos finos.
Não seria difícil localizá-la.
Gin ainda estava debaixo da magnólia onde Samuel T. a deixara quando um veículo veio subindo pela entrada da frente. Foi só quando o SUV parou diante dela que ela percebeu que era da delegacia do Condado de Washington. Bom Deus, quais seriam as alegações do pai para prendê-la desta vez? Graças ao horrendo trajeto daquela manhã até o centro da cidade, seu primeiro instinto foi o de correr, mas estava com saltos, e se queria mesmo fugir do policial, teria que escapar por uma moita de flores.
Quebrar a perna não a ajudaria em nada na prisão.
O delegado Mitchell Ramsey saiu com um maço de papéis na mão.
– Senhorita – ele a cumprimentou com um aceno. – Como está?
Ele não tirou algemas do bolso. Não mostrava nenhum interesse nela além de uma mera educação.
– Veio aqui por minha causa? – ela perguntou de repente.
– Não. – Os olhos dele se estreitaram. – A senhorita está bem?
Não, nem um pouco, delegado.
– Sim, obrigada.
– Se me der licença…
– Então, não veio atrás de mim?
– Não, senhorita. – Ele andou até a porta e tocou a campainha. – Não vim.
Talvez estivesse relacionado à Rosalinda?
– Por aqui – ela disse, passando por ele. – Entre. Está procurando pelo meu irmão?
– Não, Chantal Baldwine está em casa?
– É bem provável. – Ela abriu a porta principal, e o delegado tirou o chapéu ao entrar. – Deixe-me encontrar… ah, senhor Harris. Pode, por favor, conduzir este cavalheiro até a minha cunhada?
– Será um prazer – disse o mordomo, curvando-se. – Por aqui, senhor. Acredito que ela esteja na estufa.
– Senhorita… – o delegado murmurou na direção dela, antes de seguir o inglês.
– Vejamos, isso deve ser bem interessante – disse uma voz na sala de estar.
Ela se virou.
– Lane?
O irmão estava diante do quadro de Elijah Bradford, e ergueu um copo baixo.
– Ao meu divórcio!
– Mesmo? – Gin andou e se ocupou no bar porque não queria que Lane se concentrasse nos seus olhos vermelhos e no seu rosto inchado. – Bem, pelo menos eu não terei mais que tirar as joias de mamãe do pescoço dela. Já vai tarde, mas estou surpresa que você não queira apreciar o espetáculo.
– Tenho problemas mais importantes.
Gin levou seu bourbon com soda para o sofá e, com um chute, tirou os sapatos. Enfiando as pernas debaixo do corpo, encarou o irmão.
– Você está horrível – ela disse. Tão péssimo quanto ela, na verdade.
Ele se sentou diante dela.
– Isso vai ser difícil, Gin. A situação financeira. Acho que é bem séria.
– Talvez possamos vender ações. Quero dizer, você pode fazer isso, não? Eu não faço ideia de como funciona.
E, pela primeira vez na vida, desejou saber.
– É complicado por conta da situação dos fundos.
– Hum… nós vamos ficar bem. – Quando o irmão não disse nada, ela franziu o cenho. – Certo? Lane?
– Eu não sei, Gin. Não sei mesmo.
– Sempre tivemos dinheiro.
– Sim, isso era verdade.
– Você faz com que isso pareça pertencer ao passado.
– Não se engane, Gin.
Curvando o pescoço para trás, ela ficou olhando para o teto, imaginando a mãe deitada na cama. Qual seria o futuro dela? Será que um dia ela se recolheria e puxaria as cortinas a fim de viver num torpor induzido pelas drogas?
Por certo, isso lhe parecia atraente agora.
Deus, Samuel T. tinha mesmo recusado seu pedido?
– Gin, você andou chorando?
– Não – ela disse com suavidade. – É apenas uma alergia, meu querido irmão. Apenas alergia causada pela primavera…
VINTE E QUATRO
Lizzie se apressou para fora da estufa com a echarpe perfumada de Chantal, e toda aquela fragrância emanando do tecido pesava em seu nariz, fazendo-a querer espirrar. Engraçado, conseguia ficar rodeada por milhares de flores de verdade, mas aquela coisa fabricada, artificial e forte bastava para mandá-la atrás de um Claritin.
Ao longe, ouviu o inconfundível sotaque arrastado típico da Virgínia de Chantal e seguiu na direção da sala de jantar para…
– O que é isso? – Chantal exigiu saber.
Lizzie parou de repente e espiou ao redor da arcada pesada de gesso.
Na ponta oposta da longa mesa lustrada, Chantal estava diante de um delegado uniformizado que, aparentemente, lhe entregara um maço de papéis.
– A senhora recebeu sua petição. – O delegado assentiu. – Passe bem.
– O que quer dizer com “petição”? O que quer… Não, você não vai embora até eu abrir isso. – Ela rasgou o envelope. – Fique aqui até eu…
Os papéis saíram do envelope num maço dobrado em três, e quando a mulher os esticou, o coração de Lizzie bateu forte.
– Divórcio? – Chantal disse. – Divórcio?
Lizzie voltou para trás e se encostou na parede. Fechando os olhos, odiou o alívio que sentiu, odiou mesmo. Só que ela não tinha como fingir que não era algo bom.
– Esta é uma petição de divórcio! – A voz de Chantal ficou mais aguda. – Por que está fazendo isso?
– Senhora, o meu trabalho é apenas entregar os papéis. Agora que os recebeu…
– Eu não os recebi! – Houve um farfalhar como se, de fato, ela tivesse jogado os papéis na direção do homem. – Pode pegar isso de volta!
– Senhora – o policial rugiu –, vou aconselhá-la a pegar esses papéis do chão. Ou não. O problema é seu. Mas se continuar agindo assim, vou ter que levá-la para a cadeia amarrada no teto da minha viatura por se mostrar agressiva com um oficial da justiça. Estamos entendidos?
Então, veio uma cascata.
Entre fungadas e o que deviam ter sido arquejos, Chantal mudou de atitude rapidamente.
– O meu marido me ama. Ele não está falando sério. Ele…
– Senhora, nada disso é da minha conta. Passe bem.
Passadas pesadas ecoaram e se afastaram.
– Maldição, Lane! – a mulher sibilou com uma dicção perfeita.
Pelo visto a atuação só acontecia quando havia uma plateia.
Sem aviso, um toc-toc-toc daqueles saltos atravessou o cômodo indo na direção de Lizzie. Merda, não havia tempo de sair dali…
Chantal fazia a curva e se sobressaltou ao ver Lizzie.
Embora a mulher tivesse aberto a torneira para o delegado, seus olhos estavam límpidos, e a maquiagem não estava nem um pouco borrada.
Ódio. Imediato.
– O que está fazendo? – Chantal berrou, o corpo trêmulo. – Ouvindo atrás das portas?
Lizzie estendeu a echarpe.
– Eu estava trazendo isto para você…
Chantal agarrou o tecido.
– Saia daqui. Saia! Saia imediatamente!
Não precisa pedir duas vezes, Lizzie pensou ao virar e seguir para o jardim.
Ao passar por baixo da tenda, serpenteando entre as mesas e cadeiras, pegou o telefone e mandou uma mensagem de texto para Lane, uma que apenas explicava que estava indo para casa após o longo dia de trabalho.
Deus bem sabia que o homem teria trabalho assim que Chantal o encontrasse.
A boa notícia, pelo menos para Lizzie?
Nada de festa de aniversário de casamento para planejar.
Lane não tinha mentido.
Foi difícil conter o sorriso que surgiu em seus lábios. E quando ele se recusou a ir embora, ela deixou que ele ficasse bem onde estava.
O telefone de Lane emitiu um bipe bem quando Chantal marchava pela sala de estar, gritando o nome dele enquanto partia em direção às escadas. Ele não denunciou seu paradeiro, simplesmente deixou que ela seguisse para o andar de cima, e fizesse o escândalo que planejava diante da porta fechada do seu quarto.
Engraçado, meras horas atrás, o fato de ela estar preparando uma guerra era um problema para ele. Mas agora? Aquilo estava tão embaixo na sua lista de prioridades…
– Preciso ir ver Edward – Lane disse, sem se importar em ver quem lhe mandara uma mensagem.
Gin levantou a cabeça.
– Eu não faria isso. Ele não está bem, e a notícia que você tem só pode piorar a situação.
Ela tinha razão. Edward já odiava o pai deles, que dirá a ideia de que o homem tivesse roubado dos fundos.
Gin levantou e foi até o bar para se servir novamente.
– Amanhã ainda está de pé?
– O Brunch? – Ele deu de ombros. – Não sei como impedir isso. Além do mais, já está tudo praticamente pago. A comida, a bebida, as coisas alugadas.
Ele sentia vergonha da outra motivação do evento: a ideia de que o mundo tivesse sequer uma pista dos problemas que sua família enfrentava lhe era inaceitável.
O som de alguém descendo os degraus acarpetados em disparada fez com que Gin erguesse uma sobrancelha.
– Parece que você vai ter um momento conjugal.
– Só se ela me encontrar…
Chantal apareceu na porta da sala de estar, com o rosto normalmente pálido e tranquilo tão rosado quanto o de um carvão em brasa numa churrasqueira.
– Como ousa? – a esposa exigiu saber.
– Imagino que esteja indo preparar as malas, querida – Gin disse com um sorriso digno da manhã de Natal. – Devo chamar o mordomo? Acho que podemos lhe fazer essa última cortesia. Considere como um presente de despedida.
– Não vou sair desta casa – Chantal ignorou Gin. – Você me entendeu, Lane?
Ele girou o gelo no copo com o indicador.
– Gin, pode nos dar um pouco de privacidade, por favor?
Com um aceno, a irmã foi para a porta e, ao passar por Chantal, parou e olhou para trás na direção dele.
– Certifique-se de que o mordomo verifique a bagagem dela, para garantir que ela não leve nenhuma joia.
– Você não presta – Chantal sibilou.
– Não mesmo. – Gin deu de ombros como se a mulher mal merecesse suas palavras. – Mas tenho o direito ao nome Bradford e a este legado. Você não. Tchauzinho.
Enquanto Gin acenava remexendo os dedos, Lane se adiantou e se colocou entre as duas a fim de impedir um momento Alexis/Krystle.21 Depois foi para frente e fechou as portas, mesmo não desejando estar a sós com a esposa.
– Não vou embora. – Chantal girou na direção dele. – E isso não vai acontecer.
Enquanto ela jogava os papéis do divórcio aos pés dele, Lane só conseguia pensar que não tinha tempo para aquilo.
– Escute aqui, Chantal, podemos fazer isso do jeito fácil ou do jeito difícil, a escolha é sua. Mas se escolher a última opção, vou atrás não só de você, mas da sua família também. Como acha que os seus pais batistas se sentiriam se recebessem uma cópia dos seus registros médicos em casa? Não creio que eles sejam favoráveis ao aborto, certo?
– Você não pode fazer isso!
– Não seja idiota, Chantal. Existem inúmeras pessoas para quem posso ligar, pessoas que devem à minha família e que ficariam muito contentes em pagar essa dívida. – Voltou ao bar e se serviu de mais Reserva de Família. – Ou, que tal assim: e se esses registros médicos caíssem nas mãos da imprensa implacável, talvez na internet? As pessoas entenderiam o motivo de eu querer me divorciar, e você teria muita, mas muita dificuldade para encontrar outro marido. Diferentemente do que acontece no norte, os homens sulistas têm padrões de comportamento para suas esposas, que não incluem o aborto.
Houve um momento prolongado de silêncio. Em seguida, o sorriso que ela lançou na direção dele foi inexplicável, tão confiante e calmo que ele teve que se perguntar se ela não havia enlouquecido de vez naqueles dois últimos anos.
– Você tem mais motivos para ficar quietinho do que eu – ela disse com suavidade.
– Tenho? – Ele sorveu um gole grande. – Por que acha isso? Só o que fiz foi correr de uma mulher que eu, supostamente, engravidei. De todo modo, quem pode garantir que era meu?
Ela apontou para a papelada.
– Você vai dar um jeito de fazer isso desaparecer. Vai permitir que eu continue aqui pelo tempo que eu quiser. E vai me acompanhar às festividades do Derby amanhã.
– Em qual universo paralelo?
A mão dela desceu para o ventre.
– Estou grávida.
Lane gargalhou.
– Você já tentou isso antes, minha cara. E todos nós sabemos como terminou.
– A sua irmã estava errada.
– Quanto a você roubar joias? Talvez. Veremos.
– Não. Sobre eu não ter o direito de ficar aqui. Assim como o meu filho. A bem da verdade, o meu filho tem tanto direito ao legado Bradford quanto você e Gin.
Lane abriu a boca para dizer alguma coisa, mas logo voltou a fechá-la.
– Do que está falando?
– Lamento dizer, mas o seu pai é um marido tão ruim quanto você.
Um tinido subiu do copo e, quando ele olhou para baixo, notou de uma vasta distância que sua mão tremia, fazendo o gelo se agitar.
– Isso mesmo – Chantal disse, com voz muito calma. – E acho que você está ciente da condição delicada da sua mãe. Como ela se sentiria se soubesse que o marido dela não só foi infiel, mas que logo terá um filho? Acha que ela vai tomar ainda mais daquelas pílulas das quais já é tão dependente? Provavelmente. Sim, tenho certeza de que ela tomaria.
– Sua vadia – ele sussurrou.
Em sua mente, viu-se colocando as mãos ao redor do pescoço da mulher, apertando, apertando com tanta força que ela começaria a se debater enquanto seu rosto ficaria roxo e a boca se abriria.
– Por outro lado – Chantal murmurou –, sua mãe não adoraria saber que seria avó pela segunda vez? Não seria motivo de comemoração?
– Ninguém acreditaria – ele se ouviu dizer.
– Ah, acreditaria, sim. Ele vai ser igualzinho a você… E tenho ido a Manhattan com bastante regularidade, para trabalhar no nosso relacionamento. Todos sabem disso.
– Você está mentindo. Nunca vi você.
– Nova York é uma cidade grande. Fiz questão que todos ficassem sabendo que me encontrei com você e que aproveitei a sua companhia. Também mencionei às meninas no clube, aos maridos delas nas festas, à minha família… Todos têm demonstrado tanto apoio para nós.
Enquanto ele permanecia em silêncio, ela sorriu com doçura.
– Portanto, você pode ver que esses papéis de divórcio não serão necessários. E você não dirá nada a respeito do que aconteceu entre nós e o nosso primeiro bebê. Se fizer isso, vou ter que contar tudo a respeito da sua família e envergonhá-lo diante desta comunidade, da sua cidade, do seu Estado. E então veremos quanto tempo vai levar para que você vista um terno de enterro. A sua mãe está meio fora de si, mas não está completamente isolada, e aquela enfermeira lê o jornal todas as manhãs ao lado da cama dela.
Com uma expressão de imensa satisfação, Chantal se virou e escancarou a porta, batendo os saltos no vestíbulo de mármore, mais uma vez senhora do prazer com seu sorriso de Monalisa.
O corpo inteiro de Lane tremia, os músculos gritavam pedindo ação, vingança, sangue… Mas a ira não estava mais direcionada à esposa.
Estava toda direcionada ao seu pai.
Chifrado. Ele acreditava que essa era a palavra adequada para descrever aquele tipo de situação.
Fora chifrado pelo próprio pai.
Quando é que a merda deste dia vai acabar?, ele se perguntou.
Alexis e Krystle são personagens antagonistas da série televisiva americana Dinastia (1981-1989). (N.T.)
VINTE E CINCO
Lizzie disse a si mesma que não olharia para o celular. Não olhou ao tirá-lo da bolsa e ao transferi-lo para seu bolso de trás assim que entrou pela porta da frente da sua casa de fazenda. Nem quando, quinze minutos mais tarde, se certificou de que o aparelho não estava no silencioso. E nem quando, dez minutos depois disso, destravou a tela só para ver se não havia nenhuma chamada perdida, nem mensagens de texto.
Nada.
Lane não telefonara para saber se ela tinha chegado em casa. Não respondera à sua mensagem. Mas, convenhamos, ele devia estar bem ocupado no momento.
Puxa.
Mesmo assim, estava ansiosa, andando de um lado para outro. A cozinha estava imaculada, o que era uma pena, porque bem que gostaria de ter alguma coisa para limpar. A mesma coisa com o banheiro no andar de cima. Caramba, até a cama estava arrumada. E ela tinha lavado a roupa na noite anterior. A única coisa que encontrou fora do lugar foi a toalha que usara pela manhã para ser secar após o banho. Deixara-a pendurada sobre a cortina do box, e já que ainda estava dentro dos dois dias de uso antes de colocá-la no cesto de roupa suja, a única coisa que podia fazer era dobrá-la e recolocá-la no porta-toalhas afixado à parede.
Graças basicamente ao dia desprovido de nuvens, a casa estava quente no segundo andar e ela foi abrindo todas as janelas. Uma brisa trouxe o odor da campina que circundava a propriedade, livrando a casa do abafado.
Se ao menos pudesse fazer o mesmo com a sua cabeça… Imagens do dia a bombardeavam: ela e Lane rindo assim que ela chegara para trabalhar; ela e Lane olhando para aquela planilha no laptop; ela e Lane…
Com a cabeça cheia, Lizzie voltou para a cozinha e abriu a geladeira. Nada de mais ali. Certamente nada que tivesse interesse em comer.
Quando a necessidade de verificar o celular surgiu de novo, ela se obrigou a resistir. Chantal sabia ser um problema num dia bom. Tinha recebido a papelada do divórcio, e ainda por cima a cena foi vista por um dos empregados…
O som de passos na varanda da frente chamou sua atenção.
Franzindo o cenho, fechou a porta da geladeira e seguiu até a sala de estar. Não se deu ao trabalho de ver quem era. Só havia duas opções: o vizinho da esquerda, que morava uns sete quilômetros estrada abaixo e tinha vacas que, com frequência, quebravam a cerca e vagavam pelos campos de Lizzie; ou o da direita, que ficava a meio quilômetro, e cujos cachorros costumavam se afastar para espiar as vacas soltas.
Começou a cumprimentar antes mesmo de abrir a porta.
– Oi, tudo…
Não era nenhum vizinho vindo se desculpar por invasões bovinas nem caninas.
Lane estava na varanda, com o cabelo pior do que de manhã, as ondas escuras espetadas como se ele tivesse tentado arrancar os fios.
Ele estava cansado demais para sorrir.
– Pensei em ver, pessoalmente, se você tinha chegado bem em casa.
– Oi, nossa, entre.
Encontraram-se na metade do caminho, corpo a corpo, e ela o abraçou com força. Seu cheiro era de ar fresco, e, por cima do ombro, ela viu que o Porsche estava com a capota abaixada.
– Você está bem? – ela perguntou.
– Melhor agora. A propósito, estou meio bêbado.
– E veio dirigindo? Isso foi idiotice e perigoso.
– Eu sei. É por isso que estou confessando.
Ela recuou e deixou que ele entrasse.
– Eu ia comer alguma coisa agora.
– Tem o bastante para dois?
– Ainda mais se for pra te deixar sóbrio. – Sacudiu a cabeça. – Chega de beber e dirigir. Acha que está com problemas agora? Tente acrescentar embriaguez ao volante à sua lista.
– Você tem razão. – Olhou ao redor, e depois foi até o piano dela e descansou as mãos sobre a tampa suave do teclado. – Deus, nada mudou aqui.
Ela pigarreou.
– Bem, estive bastante ocupada no trabalho…
– Isso é bom. Maravilhoso.
A nostalgia estampada em seu rosto enquanto continuava olhando para as ferramentas antigas, as colchas de retalhos penduradas e o sofá simples era melhor do que qualquer palavra que ele pudesse proferir.
– Comida? – ela sugeriu.
– Sim, por favor.
Na cozinha, ele foi direto para a mesinha e se sentou. E, de repente, foi como se nunca tivesse se ausentado.
Cuidado com isso, ela se reprimiu.
– Então, você gostaria de… – Vasculhou o conteúdo da despensa e da geladeira. – Bem, que tal uma lasanha que eu congelei uns seis meses atrás? Com nachos como acompanhamento, de um pacote que abri ontem, terminando com o bom e velho sorvete de menta?
Os olhos de Lane, concentrados nela, ficaram com as pupilas dilatadas.
Tuuuudo bemmmm. Evidentemente, ele planejava outra coisa para a sobremesa, e enquanto o corpo dela se aquecia de dentro para fora, tudo parecia mais que bem para ela.
Caramba, ela não estava nem aí para o bom senso. Livrar-se da esposa dele era apenas a ponta do iceberg, e ela precisava se lembrar disso.
– Essa me parece a melhor refeição do mundo.
Lizzie cruzou os braços e se recostou na geladeira.
– Posso ser franca?
– Sempre.
– Sei que Chantal recebeu a papelada do divórcio. Acabei presenciando sem querer. Não tive a intenção de ver o delegado fazendo aquilo.
– Eu te disse que estava pondo um fim nisso.
Ela esfregou a testa.
– Uns dois minutos antes, ela foi me procurar para planejar um jantar de comemoração do aniversário de casamento de vocês.
Houve um xingamento baixinho.
– Sinto muito. Mas estou te garantindo agora: não há futuro para mim e para ela.
Lizzie o encarou com firmeza por um bom tempo e, em resposta, ele não se moveu, não piscou, não disse nenhuma palavra mais. Só ficou ali sentado… deixando que as ações falassem por ele.
Maldição, ela pensou. Ela não precisava mesmo, de jeito nenhum, voltar a se apaixonar por ele.
Enquanto a noite caía sobre os estábulos, Edward se viu voltando à sua rotina noturna. Copo com gelo? Confere. Bebida? Confere – gim, aquela noite. Poltrona? Confere.
Só que, quando se acomodou e se viu diante daquelas provisões, dedilhou sobre o encosto da poltrona, em vez de colocar os dedos em uso para abrir o lacre da garrafa.
– Vamos lá – disse a si mesmo –, siga com o programado.
Mas não. Por algum motivo, a porta do chalé conversava com ele mais do que o Beefeater, no que se referia a coisas que precisavam ser abertas.
O dia fora bem longo. Ele tinha ido até Steeplehill Downs para dar uma olhada nos seus dois cavalos e dar telefonemas, tanto para o veterinário quanto para o treinador, porque Bouncing Baby Boy teria que ser deixado de lado por conta de um problema no tendão. Em seguida, voltara para lá, para verificar cinco das suas éguas que estavam prenhas, e para revisar os livros contábeis com Moe. Pelo menos as notícias eram boas nessa frente. Pelo segundo mês consecutivo, a operação não apenas se autossustentava, como gerava lucros. Se aquilo se mantivesse, ele poria um fim nas transferências do fundo fiduciário da mãe, que vinham fornecendo uma injeção de caixa nos negócios desde os anos 1980.
Ele queria ser totalmente independente da família.
Na verdade, uma das primeiras coisas que tinha feito quando saíra da reabilitação foi recusar a distribuição dos seus fundos. Ele não queria ter nada a ver com fundos que, mesmo que remotamente, estivessem relacionados com a Cia. Bourbon Bradford, e a totalidade da primeira e da segunda retirada estava ligada diretamente à CBB. Na verdade, só descobrira as transferências do fundo da sua mãe para o Haras Vermelho & Preto uns seis meses após a sua chegada e, naquele tempo, ele mal era capaz de se levantar pela manhã e ir até os estábulos. Se os tivesse recusado naquele tempo, a operação toda teria ido para o buraco.
Fazia muito tempo desde que alguém com um mínimo de perspicácia para os negócios fora até o haras e, a despeito das suas fraquezas atuais, sua habilidade para fazer dinheiro permanecia intocada.
Mais um mês. E então estaria livre.
Deus, estava mais exausto do que de costume. Mais dolorido também. Ou talvez as duas coisas estivessem unidas inextricavelmente.
Mesmo assim, não conseguia pegar a garrafa.
Em vez disso, pôs-se de pé com a ajuda da bengala e claudicou até as cortinas, que permaneciam fechadas desde o dia em que se mudara para lá. Estava um breu do lado de fora, somente as luzes de sódio nas entradas dos estábulos lançavam um brilho cor de pêssego na escuridão.
Xingando baixinho, foi para a porta da frente e a abriu. Parou um instante. Coxeou na escuridão.
Edward atravessou o gramado num andar desigual, e disse a si mesmo que estava indo dar uma olhada na égua que estava com problemas. Sim. Era isso o que iria fazer.
Não iria ver como estava Shelby Landis. Nada disso. Ele não estava, por exemplo, preocupado por não tê-la visto sair da fazenda o dia inteiro, o que provavelmente significava que ela não devia ter comida naquele apartamento.Tampouco iria verificar se, por acaso, ela dispunha de água quente, porque depois de um dia inteiro carregando carrinhos de mão, sacos de grãos do tamanho da picape dela e fardos pinicantes de feno, ela devia estar dolorida e necessitando de uma bela chuveirada.
Ele, positiva e absolutamente, iria…
– Merda.
Sem nem ter se dado conta, fora parar na porta lateral do Estábulo B – a que dava para o escritório, bem como para o lance de escadas que o levaria até os aposentos dela.
Ora, uma vez que já estava ali… ele bem que poderia ver como ela estava. Claro que em lealdade ao pai dela.
Não passou a mão pelos cabelos antes de pousá-la na maçaneta… Tudo bem, talvez tivesse feito isso só um pouquinho, mas apenas porque estava precisando cortar os cabelos e eles tinham caído nos seus olhos.
Luzes detetoras de movimento se acenderam assim que ele chegou ao escritório, e todos aqueles degraus até a parte superior pairavam acima dele como uma montanha que ele teria que se esforçar para escalar. E, vejam só, seu pessimismo tinha razão de ser: ele teve que parar para tomar fôlego na metade do caminho. E outra vez assim que chegou ao alto.
E foi por isso que ouviu as risadas.
De um homem. De uma mulher. Vindas do apartamento de Moe.
Franzindo o cenho, Edward olhou para baixo pela porta de Shelby. Aproximou-se e encostou a orelha na porta. Nada.
Quando fez a mesma coisa na porta de Moe? Ouviu os dois, a fala arrastada sulista de um e de outro como o som de um banjo de uma banda de jazz.
Fechou os olhos por um instante e se recostou na porta fechada.
Em seguida, aprumou-se e, com o auxílio da bengala, desceu todos aqueles degraus, foi para o gramado e voltou ao próprio chalé.
Dessa vez, não teve nenhum problema para abrir a garrafa ou colocar uma dose no copo.
Foi durante a segunda dose que ele por fim se deu conta de que era sexta-feira. Noite de sexta-feira.
Puxa, se isso não era um golpe de sorte.
E ele até tinha um encontro.
VINTE E SEIS
Sutton Smythe olhou para a multidão que lotava a galeria principal do Museu de Arte de Charlemont. Ela reconhecia tantos rostos, tanto pessoalmente quanto dos noticiários, da TV e da tela grande. Muitas pessoas acenavam para ela ao encontrar o seu olhar, e ela foi bastante cordial, erguendo a mão em retribuição.
Tinha esperanças que ninguém se aproximasse.
Não estava interessada em ter que cumprimentar alguém com um beijo no rosto e fazer perguntas educadas a respeito de um cônjuge, tampouco queria ser apresentada à companhia de alguém por aquela noite. Também não queria receber nenhum agradecimento – mais um – pela sua generosa doação de 10 milhões de dólares, feita no mês anterior, que marcou o início da campanha de levantamento de fundos para a expansão do museu. Muito menos queria ter que ouvir falar do empréstimo permanente do Rembrandt e do ovo Fabergé que o pai fizera em homenagem à querida esposa falecida.
Sutton queria ser deixada em paz para vasculhar a multidão em busca do único rosto que queria ver.
O único rosto que queria… que precisava ver.
Mas Edward Baldwine, mais uma vez, não viria. E ela sabia disso, não por ter estado ali nas sombras pela última hora e meia enquanto os convidados da festa que ela oferecia em nome da família chegavam, mas porque insistira em ver uma cópia da lista do RSVP uma vez por semana, e depois diariamente, quando o dia do evento se aproximou.
Ele simplesmente não tinha respondido. Nada de “Sim, irei à festa com prazer”, nem de “Lamento, mas não poderei ir”.
Será que podia mesmo ficar surpresa?
Ainda assim, isso a magoou. Na verdade, o único motivo pelo qual comparecera ao jantar de William Baldwine na noite anterior fora por ter esperanças de ver Edward em sua própria casa. Depois que ele não retornara as suas ligações por dias, meses e agora anos, ela pensou que talvez ele aparecesse à mesa do pai e eles poderiam, de maneira muito natural, se reconectar.
Mas não. Edward também não estivera lá.
– Senhorita Smythe, estamos prontos para iniciar o jantar, se for conveniente para a senhorita. As saladas já foram servidas.
Sutton sorriu para a mulher com uma prancheta na mão e um fone no ouvido.
– Sim, vamos diminuir as luzes. Farei minhas considerações assim que eles estiverem sentados.
– Pois não, senhorita Smythe.
Sutton respirou fundo e observou o caro rebanho fazer o que lhe era orientado e encontrar seus lugares em todas aquelas mesas redondas com arranjos elaborados, pratos dourados e menus impressos sobre guardanapos de linho.
Antes da tragédia, Edward sempre frequentara aquele tipo de evento, lançando sorrisos sardônicos quando outra pessoa surgia pedindo dinheiro para as suas causas. Convidando-a para dançar, como se fosse uma manobra de salvamento, quando ela se via acuada por um convidado conversador. Olhando para ela e piscando… como só ele conseguia fazer.
Eram amigos desde a escola preparatória em Charlemont. Oponentes nos negócios desde que ele se formara em Wharton e ela conquistara seu MBA na Universidade de Chicago. Companheiros sociais desde que ambos ingressaram no circuito de jantares beneficentes depois do falecimento da mãe dela e a dele passara a ficar cada vez mais tempo em seus aposentos.
Nunca foram amantes.
Ela queria que tivessem sido. Muito provavelmente, desde que o conhecera. Edward, contudo, mantivera-se afastado, permanecera distante, até mesmo arrumara encontros para ela.
O coração dela sempre estivera à disposição, mas ela jamais tivera coragem de atravessar aquela fronteira que ele, com tanta determinação, estabelecera entre eles.
E então… Dois anos atrás aquilo aconteceu. Bom Deus, quando ficara sabendo que ele iria mais uma vez para a América do Sul numa daquelas viagens de negócios, teve uma premonição, um alerta, uma sensação ruim. Mas não telefonara para ele. Não tentara falar com ele para tentar convencê-lo a levar mais seguranças ou algo assim.
Portanto, de certa forma, sentia-se parcialmente responsável. Talvez se tivesse…
Mas a quem tentava enganar? Ele não teria deixado de viajar por outro motivo que não condições climáticas adversas. Edward fora um verdadeiro adversário na indústria de bebidas, o óbvio herdeiro da Cia. Bourbon Bradford não apenas pelo direito de nascença, mas pelas suas incríveis ética profissional e astúcia.
Depois do sequestro e do pedido de resgate, o pai dele, William, esforçara-se para libertá-lo, negociando com os sequestradores, trabalhando em conjunto com a embaixada norte-americana. Tudo fracassara até que, no fim, uma equipe especial foi enviada para resgatar Edward.
Não conseguia sequer imaginar o que haviam feito com ele.
E aquele era o aniversário do dia em que fora emboscado durante a viagem.
Tudo aquilo era simplesmente uma tragédia. A América do Sul era um dos lugares mais lindos do planeta com sua comida deliciosa, cenários fantásticos e história fascinante; ela e Edward frequentemente brincavam dizendo que, quando se aposentassem, iriam para lá, para morar em propriedades vizinhas. O sequestro de executivos com exigência de resgate eram um dos pontos perigosos em certas áreas, mas não era muito diferente de atravessar o Central Park às três da manhã. Maus elementos podem ser encontrados em qualquer parte, e não havia motivos para condenar um continente inteiro por conta de uma minoria de bandidos.
Infelizmente, Edward se tornara uma das vítimas.
Depois de todo aquele tempo, ela só queria vê-lo com seus próprios olhos. Algumas fotos desfocadas foram publicadas pela imprensa, e elas, por certo, não a tranquilizaram. Ele sempre aparentava estar muito mais magro, com o corpo encurvado, o rosto sempre abaixado, desviando das lentes.
Para ela, contudo, ele ainda era lindo.
– Senhorita Smythe, está pronta?
Voltando ao presente, Sutton viu que havia mil pessoas sentadas, comendo suas saladas, prontas para ouvi-la discursar.
Sem aviso algum, uma repentina onda de energia ruim bombeou dentro dela, fazendo-a suar no peito, na testa, debaixo dos braços. Enquanto o coração batia descompassado, ondas de tontura fizeram-na esticar a mão para se equilibrar na parede.
O que havia de errado com ela?
– Senhorita Smythe?
– Não consigo – ouviu-se dizer.
– O que disse?
Pressionou os cartões que escrevera com tanto cuidado nas mãos da assistente.
– Outra pessoa terá que…
– O quê? Espere, onde a senhorita…
Ela levantou as palmas e recuou.
– … fazer o discurso.
– Senhorita Smythe, a senhorita é a única que pode…
– Ligo na segunda-feira. Sinto muito. Não consigo.
Sutton não fazia a mínima ideia de onde estava indo enquanto seus saltos finos ressoavam no piso de mármore. Na verdade, foi só quando uma lufada de calor a atingiu que ela percebeu que havia saído do prédio pela saída de incêndio e aparecera na ala oeste do complexo, no ar úmido noturno.
Bem longe do estacionamento onde seu chofer a aguardava.
Caindo de encontro à parede de gesso do museu, inspirou fundo algumas vezes, mas isso não ajudou a aliviar a sensação de sufocamento.
Não poderia ficar ali a noite toda. Mais especificamente, queria sair correndo, ir para longe, correr até que a sensação de terror saísse do seu corpo. Mas isso seria loucura. Certo?
Deus, estava perdendo a cabeça. Finalmente, tudo a estava alcançando.
Ou talvez fosse, mais uma vez e sempre, Edward Baldwine.
Hora de seguir em frente. Aquilo era ridículo.
Tirando os sapatos e segurando-os pelas tiras, começou a andar sobre a grama, se aproximando dos fachos de iluminação das luzes de segurança. Depois do que lhe pareceu uma eternidade, o estacionamento que procurava apareceu quando ela dobrou mais uma esquina, só que, nessa hora, ficou confusa pela quantidade de limusines estacionadas a céu aberto.
Onde estava…
Por pura sorte, o Mercedes C63 a encontrou, e o enorme sedã surgiu à sua frente. A janela do passageiro se abaixou sem emitir nenhum som.
– Senhorita Smythe? – seu chofer disse em tom alarmado. – A senhorita está se sentindo bem?
– Preciso do carro. – Sutton deu a volta, os faróis eram muito claros contra seu vestido de gala prata e seus diamantes. – Preciso do carro, preciso…
– Senhorita? – O homem uniformizado saiu de trás do volante. – Posso levá-la para onde quiser ir…
Ela pegou uma nota de cem dólares da minúscula bolsa de festa.
– Tome. Pegue um táxi, ou ligue para alguém. Sinto muito. Sinto muito, muito, mas preciso ir…
Ele meneou a cabeça ao ver a nota.
– Senhorita, posso levá-la a qualquer lugar…
– Por favor. Preciso do carro.
Houve uma ligeira pausa.
– Muito bem. Sabe como dirigir este…
– Dou um jeito. – Colocou o dinheiro na palma da mão dele e a fechou. – Fique com isso. Vou ficar bem.
– Eu preferiria dirigir.
– Aprecio a sua consideração, de verdade. – Fechou-se dentro do carro, subiu a janela, e olhou ao redor à procura do câmbio ou…
À batida no vidro escuro, ela voltou a abaixá-lo.
– Está ali, ao lado do volante – instruiu o chofer. – A marcha a ré, e ali para a frente. Pronto, assim. E as setas ficam… isso, isso mesmo. A senhorita não deve precisar dos limpadores de para-brisa, e as luzes já estão acesas. Boa sorte.
Ele recuou, do mesmo modo que fazemos quando estamos prestes a acender um fósforo para acionar fogos de artifício. Ou uma bomba.
Sutton pressionou o acelerador, e o potente sedã se lançou para a frente como se tivesse o motor de um jato debaixo do capô. Nos recessos da sua mente, ela fez um cálculo rápido de quantos anos fazia que não dirigia… E a resposta não foi nada encorajadora.
Mas, assim como tudo em sua vida, ela acabaria descobrindo… Ou morreria tentando.
– Importa-se se eu repetir?
Lizzie lhe lançou um olhar de encorajamento e Lane se levantou e foi para a geladeira. A comida estava ajudando a clarear a sua mente, ou talvez fosse a companhia dela.
Provavelmente era mais por estar na presença dela.
– Está muito bom – ele disse ao abrir o congelador e pegar mais uma porção.
A risada dela o fez parar e fechar os olhos, a fim de que o som pudesse inundá-lo ainda mais.
– Você só está sendo gentil – ela murmurou.
– É a mais pura verdade.
Levando o prato ao micro-ondas, ajustou-o para seis minutos e ficou olhando o bloco congelado girar e girar.
– Então, eu vou ter que ir procurar Edward – ouviu-se dizer.
– Quando foi a última vez que o viu?
Ele pigarreou. Sentiu uma tremenda necessidade de beber alguma coisa.
– Foi em…
Por um instante, ficou perdido em pensamentos, tentando encontrar um modo de perguntar se ela tinha alguma bebida em casa.
– Tanto tempo assim?
– Na verdade, eu estava pensando em outra coisa. – Ou seja, que era inteiramente possível que ele tivesse problemas com bebida. – Mas, pensando bem, depois de um dia como o de hoje, quem não seria alcoólatra?
– O que disse?
Ai, merda, falara em voz alta?
– Desculpe, a minha cabeça está a maior confusão.
– Eu queria poder fazer alguma coisa.
– Você já está fazendo.
– Então, quando foi que viu Edward pela última vez?
Lane voltou a fechar os olhos. Mas, em vez de fazer cálculos mentais que revelariam a soma do quanto deixava a desejar como irmão, voltou no tempo para aquela noite de Ano-Novo quando Edward apanhara pelo restante deles.
Ele e Maxwell haviam permanecido no salão de baile, silenciosos e trêmulos, enquanto o pai forçava Edward a subir. À medida que eles subiam a grande escadaria, Lane gritava a plenos pulmões… mas apenas internamente.
Era covarde demais para sair de lá e pôr um fim à mentira que salvara seu irmão e ele mesmo.
– Eu deveria ir lá – disse quando um tempo se passou.
– Mas o que você pode fazer? – Max sussurrou. – Nada pode deter papai.
– Eu poderia…
Só que Maxwell estava certo. Edward mentira, e o pai o estava fazendo pagar por uma transgressão que não era dele. Se Lane contasse a verdade agora… O pai simplesmente surraria todos eles. Pelo menos se ele e Maxwell ficassem quietos, poderiam evitar….
Não, aquilo era errado. Era uma desonra.
– Vou até lá. – Antes que Maxwell conseguisse dizer qualquer coisa, Lane agarrou o braço do irmão. – E você vem comigo.
A consciência de Max também o devia estar incomodando, porque em vez de discutir, como sempre discutia sobre tudo, seguiu-o mudo pela escada principal. Quando chegaram ao topo, o corredor estava deserto a não ser pela moldura de gesso, pelos retratos, e pelas flores sobre mesinhas e aparadores antigos.
– Temos que impedir – Lane sibilou.
Um atrás do outro, seguiram rapidamente sobre o tapete… até o quarto do pai.
Do lado oposto da porta, os sons do açoite eram agudos e altos, vindos do couro de encontro à pele nua de seu irmão, e dos grunhidos do pai, que empregava força nos golpes.
Edward estava em silêncio.
E, nesse meio-tempo, os dois apenas permaneceram ali, silenciosos e petrificados. Lane só conseguia pensar que nem ele nem Max tinham metade da coragem dele. Os dois acabaram chorando.
– Vamos embora – disse baixinho, coberto de vergonha.
Mais uma vez, Max não discutiu. Obviamente, ele também era um covarde.
O quarto que partilhavam ficava no fim do corredor, e foi Lane quem abriu a porta. Havia quartos de sobra para que dormissem separados, mas quando Maxwell começara a ter pesadelos alguns anos antes, acabaram colegas de quarto sem querer. Max começara a entrar sorrateiramente no quarto de Lane e despertava ali pela manhã. Depois de um tempo, a senhorita Aurora instalara outra cama lá e assim ficou resolvido.
O banheiro era conjugado, e o quarto do lado oposto era o de Edward.
Max foi para a cama e fitou o teto.
– A gente não devia ter descido. A culpa é minha.
– É de nós dois. – Olhou para Max. – Fique aqui. Vou esperar por ele.
Enquanto seguia para o banheiro, fechou a porta atrás de si e rezou para que Max seguisse suas ordens. Tinha uma sensação ruim quanto à condição em que Edward estaria quando o pai finalmente acabasse o castigo.
Ah, como Lane gostaria de poder voltar no tempo e refazer a decisão de ir para a sala de estar.
Abaixando a tampa do vaso, ficou sentado e atento às batidas do seu coração. Mesmo não conseguindo mais ouvir as chibatadas do cinto, isso não tinha relevância. Ele sabia o que estava acontecendo do outro lado do corredor.
Por algum motivo, ficou olhando para as três escovas de dente enfiadas dentro de um copo de prata, ao lado das toalhas de mão dobradas sobre a pia. A vermelha era de Edward, porque ele era o mais velho e sempre podia escolher antes. A de Max era verde, porque era a mais varonil que restava. Lane acabava tendo que ficar com a amarela, que odiava.
Ninguém queria a azul da uk.
Um clique suave e um empurrão de uma porta sendo aberta quebrou o silêncio. Lane esperou o segundo clique e depois se pôs de pé, espiando o quarto de Edward.
Na escuridão, Edward caminhava em direção ao banheiro, todo encurvado, com um braço ao redor do abdômen, e outro estendido para se equilibrar na cômoda, nas paredes, na mesa.
Lane se apressou e segurou a cintura do irmão.
– Enjoado – Edward grunhiu. – Vou vomitar.
Ah, Deus, ele estava sangrando no rosto, devido ao corte causado pelo anel de sinete do pai quando ele lhe desferiu aquele tapa.
– Eu te levo – Lane murmurou. – Vou cuidar de você.
O avanço foi lento, as pernas de Edward tinham dificuldade para sustentar o tronco ereto. Parte da camisa do pijama ficara presa no cós depois da surra, e Lane só conseguia pensar no que havia por baixo. Nos vergões, no sangue, no inchaço.
Edward mal chegou a tempo ao vaso, e Lane ficou junto dele durante todo o tempo. Quando terminou de vomitar, Lane pegou a escova vermelha e colocou pasta de dente nela. Depois, ajudou o irmão a ir até a cama.
– Por que você não chora? – Lane perguntou com uma voz rouca enquanto o irmão se acomodava no colchão como se todo o seu corpo doesse. – É só você chorar. Ele para assim que você chorar.
Era sempre assim quando ele e Max levavam uma surra.
– Vá para a cama, Lane.
A voz de Edward pareceu exausta.
– Sinto muito.
– Está tudo bem. Só vá para cama.
Foi difícil sair, mas ele já tinha causado confusão demais por aquela noite, e vejam o que tinha acontecido.
De volta ao seu quarto, enfiou-se entre os lençóis e ficou olhando para o teto.
– Ele está bem? – Max perguntou.
Por algum motivo, as sombras em seu quarto eram completamente assustadoras, pareciam monstros que se moviam e rastejavam pelos cantos.
– Lane?
– Sim – mentiu. – Ele está bem…
– Lane?
Ele voltou ao presente e olhou sobre o ombro.
– O que foi?
Lizzie apontou para o micro-ondas.
– Está pronto?
Bipe…
Bipe…
Ele apenas ficou ali, piscando, tentando voltar do passado.
– Sim, sim, desculpe.
De volta à mesa, depositou o prato fumegante e se sentou de novo… só para descobrir que tinha perdido o apetite. Quando Lizzie estendeu o braço e apoiou a mão na dele, ele a aceitou e a levou aos lábios para um beijo.
– No que está pensando? – Lizzie perguntou.
– Quer mesmo saber?
– Sim.
Ora, ora, se ele não tinha uma bela seleção de coisas para escolher.
Enquanto ela esperava por uma resposta, ele ficou olhando para seu rosto por um bom tempo. E então teve que sorrir.
– Agora, neste exato instante… estou pensando que, se tiver uma chance com você, Lizzie King, vou aceitar.
O rubor que atingiu o rosto dela foi encoberto quando ela levantou as mãos.
– Ai, meu Deus…
Ele deu uma risada leve.
– Quer que eu mude de assunto?
– Sim – disse ela por trás do seu esconderijo.
Ele não a culpava.
– Tudo bem, estou muito feliz de ter vindo para cá. Easterly é como uma corda no meu pescoço agora.
Lizzie esfregou os olhos e abaixou as mãos.
– Sabe, custo a acreditar no que Rosalinda fez.
– Foi simplesmente horrível. – Ele se recostou na cadeira, respeitando a necessidade dela de mudarem de assunto. – E, escuta essa. Sabe Mitch Ramsey, o delegado? Ele me ligou enquanto eu vinha para cá. O exame médico legal preliminar indica traços de cicuta.
– Cicuta?
– O rosto dela… – Ele circundou a face com a mão. – Aquele sorriso horrendo? Foi provocado por algum tipo de paralisia facial, o que, aparentemente, é bem documentado como sendo causado por uma variedade de venenos. Caramba, vou te contar, vai demorar bastante tempo para eu me esquecer da aparência dela.
– Existe a possibilidade de ela ter sido morta?
– Eles acham que não. É preciso uma bela dose de cicuta para ter o resultado desejado, portanto, é mais provável que ela mesma tenha feito isso. Além do mais, aqueles Nikes eram novinhos e havia grama nas solas.
– Nikes? Ela só usa sapatos sem salto.
– Exatamente, mas ela foi encontrada com tênis próprios para corrida, que, evidentemente, acabara de comprar, e os usou para andar no jardim. Pelo que Mitch disse, na época dos romanos, as pessoas costumavam beber veneno e depois perambular para que ele agisse com mais rapidez. Portanto, isso mais uma vez indica que ela causou a própria morte.
– Que… horrível.
– A pergunta é: por quê? E, infelizmente, acho que nós sabemos a resposta.
– O que vai fazer agora?
Ele ficou em silêncio por um tempo e depois ergueu os olhos para ela.
– Para começar, pensei em te levar para cima.
Lizzie corou de novo.
– E o que vai fazer comigo no segundo andar?
– Vou te ajudar a dobrar a roupa limpa.
Ela deu uma gargalhada.
– Detesto te desapontar, mas já fiz isso.
– Arrumar a sua cama?
– Lamento. Já está arrumada.
– Mas você tinha que ser tão organizada? Cerzir as suas meias? Precisa pregar algum botão?
– Está sugerindo que é bom com linha e agulha?
– Aprendo rápido. Então… quer costurar comigo?
– Acho que não tenho nada que precise desse tipo de cuidado.
– Existe alguma coisa na qual posso te ajudar, então? – ele perguntou num tom baixo. – Alguma dor que eu possa aplacar? Algum fogo que eu possa extinguir? Com a boca, talvez?
Lizzie fechou os olhos, e mudou de posição na cadeira.
– Ai, Deus…
– Espere, já sei. Que tal se eu te levar para o segundo andar e nós bagunçarmos a sua cama? Daí, então, vamos poder arrumá-la de novo.
Quando, por fim, ela voltou a olhar para ele, seus olhos estavam pesados e sensuais.
– Sabe, esse parece um plano perfeito.
– Adoro quando estamos de acordo.
Levantaram-se ao mesmo tempo, e antes que ela conseguisse detê-lo, ele se inclinou e a pegou no colo.
– O que você está fazendo? – Empurrou-o e começou a gargalhar. – Lane…
– O que parece? – E saiu da cozinha. – Estou te carregando lá para cima.
– Espera. Espera. Sou muito pesada…
– Ora, por favor!
– Não, é verdade… Não sou como aquelas mulherzinhas delicadas…
– Exato. Você é uma mulher de verdade. – Chegou à escada e seguiu em frente. – E é por essas que homens de verdade ficam atraídos. Confie em mim.
Deixou a cabeça pender no ombro dele, e quando Lane sentiu o olhar dela em seu rosto, pensou no que Chantal fizera com o seu pai. Ou, pelo menos, no que ela disse ter feito com ele.
Lizzie nunca o traíra. Nem em pensamento, nem em ações.
Ela simplesmente não tinha isso dentro dela.
O que a tornava uma mulher de verdade, e não só por não ser socialmente anoréxica.
– Não, você não tem que dizer isso – ele murmurou quando os degraus antigos rangeram debaixo dos seus pés.
– Dizer o quê?
– Que não significa nada comparado a outras coisas. Sei que me quer só como amigo e aceito isso. Você só precisa saber de uma coisa.
– O que seria? – ela suspirou.
Ele fez uma voz mais grave.
– Estou preparado para ser um homem muito paciente no que se refere a você. Vou seduzi-la pelo tempo que for necessário, vou lhe dar todo o espaço que precisar, ou seguir seus passos como a luz do sol sobre seus ombros, se você deixar. – Seus olhos se fixaram nos dela. – Perdi minha chance com você uma vez, Lizzie King, e isso não vai se repetir.
VINTE E SETE
Sentado em sua poltrona, Edward flanava numa nuvem de gim Beefeater; seu corpo estava tão entorpecido que ele conseguia manter uma fantasia de força e flexibilidade. Na verdade, conseguia imaginar que ficar de pé podia ser fácil, apenas uma mudança de localização descomplicada e inconsciente que necessitava de um pensamento fugidio e músculos nas coxas. Músculos esses que ficariam contentes – e seriam perfeitamente capazes – de executar tal tarefa.
No entanto, não estava embriagado o suficiente para tentar.
O som de uma batida à porta fez com que levantasse a cabeça.
Ora, ora, ora. Não estava preparado para aquela coisa de ficar na vertical, mas pelo menos a recém-chegada poderia lhe oferecer uma realidade alternativa para ele experimentar.
E ele não recusaria.
Com um grunhido, tentou ficar um pouco mais ereto na poltrona. Não conseguiria abrir a porta para a mulher e sentiu-se mal por isso. Um cavalheiro sempre deveria fazer tal gentileza a um membro do sexo frágil, e ele não se importava que a sua convidada fosse uma prostituta, uma mulher merecia ser tratada com respeito.
– Entre – disse em voz alta, mas arrastada. – Pode entrar.
A porta se abriu devagar… E o que viu do outro lado, bem debaixo da soleira, era…
O coração de Edward parou de bater. E depois começou a martelar.
– Eles acertaram – sussurrou. – Finalmente. Beau acertou em cheio.
A mulher piscou.
– Perdão – ela disse, rouca. – O que disse?
A voz era igualzinha. Como tinham conseguido acertar?
– Entre – ele respondeu, gesticulando com a mão que não segurava o copo. – Por favor.
E não tenha medo, ele pensou consigo.
Afinal, ele estava sentado no escuro, e a iluminação dos incontáveis troféus sobre as prateleiras não alcançavam seu rosto e seu corpo. O que era proposital, claro. Não gostava de olhar para si mesmo, não havia motivo para dificultar o trabalho da prostituta forçando-a a vê-lo com nitidez.
– Edward?
Em seu torpor ébrio, ele só conseguiu fechar os olhos e relaxar o corpo. Ficou duro num lugar bem crucial.
– A sua voz… é tão bela quanto nas minhas lembranças.
Não ouvia a voz de Sutton Smythe em pessoa desde antes da sua viagem e, depois que retornara, não foi capaz de ouvir quaisquer das suas mensagens.
A ponto de ter se livrado tanto do aparelho quanto daquele número.
– Ah, Edward…
Bom Deus, havia sofrimento naquela voz. Como se a mulher estivesse olhando para a sua alma e reagindo ao emaranhado de angústia que ele carregava desde que lhe informaram que ele sobreviveria.
E, de fato, era quase isso o que ouvia na voz de Sutton. Engraçado, durante seu período no cativeiro, desmaiara três vezes durante os oito dias em que o mantiveram preso. Todas as vezes, enquanto perdia a consciência, Sutton fora a última coisa em seus pensamentos, a última coisa a ver, a ouvir, a lamentar a perda. E não a sua família. Não o seu tão amado trabalho. Não a casa em que crescera, tampouco a fortuna e as coisas que deixaria inacabadas.
Sutton Smythe.
Na terceira vez, quando já não conseguia ver nada, quando já não sabia distinguir se era suor ou sangue em sua pele, quando a tortura o levara a um lugar onde o botão de sobrevivência fora desligado e ele já não rezava para ser resgatado, a não ser pela morte…
Sutton Smythe, uma vez mais, estivera em seus pensamentos.
– Edward…
– Não. – Levantou a mão. – Não diga mais nada.
A mulher estava se saindo tão bem. Não queria que continuasse e estragasse tudo.
– Venha aqui – sussurrou. – Quero tocar em você.
Abrindo os olhos, embeveceu-se com a aproximação dela. Ah, que vestido prateado perfeito, a barra arrastando pelo chão, as joias surpreendentemente de bom gosto reluzindo apesar de a luz estar atrás dela. E ela também trazia o mesmo tipo de bolsa de festa que Sutton sempre levava aos eventos formais, um quadrado forrado com seda da mesma cor do vestido – ainda que, como ela mesma dizia, “combinar tudo era tão anos cinquenta”.
– Edward?
Havia tanta confusão quanto um anseio em seu nome.
– Por favor – ele se viu implorando. – Não fale mais. Só quero tocar você. Por favor.
Enquanto o corpo dela tremia diante dele, Edward sentiu a realidade mudar e se permitiu seguir o ardil, acompanhando a fantasia de que aquela era de fato Sutton, que ela fora procurá-lo, e que, finalmente, ficariam juntos.
Mesmo ele estando arruinado.
Deus, isso bastava para deixá-lo emocionado. Mas não durou muito… porque ela tropeçou e seus olhos ficaram muito arregalados.
O que significava que tinha visto seu rosto.
– Não olhe para mim – disse ele. – Não sou mais o mesmo. É por isso que as luzes estão tão fracas.
Edward estendeu os braços e mostrou as mãos.
– Mas estas… não estão marcadas. E, ao contrário de outras partes, ainda funcionam muito bem. Me deixe… tocar você. Vou ser cuidadoso… mas você vai ter que se ajoelhar. Já não fico muito bem de pé, e tenho que confessar que estou embriagado.
A prostituta tremia dos pés à cabeça quando começou a se abaixar, e ele se sentou mais para a frente da poltrona, oferecendo-lhe o braço como se ela fosse uma dama saindo de um carro, em vez de uma trabalhadora permitindo que um aleijado fizesse sexo com ela por mil dólares.
Quando voltou a se recostar, uma súbita onda de vertigem o assolou, enquanto mais álcool bombeava em seu sistema. Como com todos os bêbados, contudo, ele sabia que era apenas algo temporário, que logo se autorregularia.
Ainda mais considerando tudo em que ele tinha que se concentrar: mesmo com a visão embaçada, mesmo com a penumbra, mesmo estando muito bêbado… estava maravilhado.
Ela era muito linda, quase linda demais para que ele a tocasse.
– Ah, olhe só para você… – sussurrou, esticando a mão para tocar seu rosto.
Os olhos dela reluziram de novo, ou, pelo menos, ele acreditou nisso; talvez estivesse apenas imaginando coisas por causa do modo como ela inspirou fundo. Era difícil saber, era complicado acompanhar o que estava acontecendo… A realidade estava muito distorcida agora, girando ao seu redor até ele não ter mais certeza se a prostituta se parecia mesmo com Sutton ou se era mera projeção dele, por causa dos cabelos negros e compridos, das sobrancelhas arqueadas, da boca perfeita, como a de Grace Kelly.
O cabelo da mulher estava solto, bem como havia solicitado, e ele passou as mãos pelas ondas até alcançar a curva do ombro.
– Seu cheiro é tão bom. Exatamente como eu me lembrava.
E logo ele tocou mais, os dedos viajando pela clavícula, sobre o colar de diamantes, descendo pela curva do decote. Em resposta, ela começou a arfar, o movimento dos pulmões aproximando seus seios das mãos dele.
– Adoro esse vestido – ele sussurrou.
O vestido de noite era bem ao estilo dos de Sutton: muito elegante, feito sob medida para o corpo dela, de chiffon tão cinzento quanto uma pomba.
Sentando-se mais para frente, aproximou seu peito diminuto do dela, que era magnífico, e passou as mãos para trás, a fim de encontrar o zíper embutido. Enquanto o abria, o som produzido pareceu-lhe alto demais.
Ele podia jurar que ela arfava como se a tivesse chocado. E foi… ah, tão perfeito. Exatamente o que Sutton teria feito.
E, em seguida, sim… ah, sim… a prostituta retribuiu a sua exploração, as mãos trêmulas subindo pelos seus braços finos. Deus, ele odiou todo aquele tremor por parte dela, mas, sem dúvida, devia ser difícil fazer sexo com ele.
Pelo menos como ele se encontrava agora.
– Eu queria ter feito isto antes – disse numa voz entrecortada. – No passado, valia a pena ver o meu corpo. Eu deveria ter… deveria ter tentado conquistá-la antes, mas era covarde demais. Era um covarde arrogante, mas a verdade é que eu poderia ter suportado qualquer coisa, menos uma recusa sua.
– Edward…
Interrompeu-a colando a boca na dela.
Ah, ela era boa. Tão boa quanto ele imaginava, a sensação da sua língua escorregando para dentro dela e a maneira como ela gemeu, como se tivesse esperado a vida toda pela oportunidade de fazê-lo se esquecer do que ele se tornara…
O vestido derreteu, escorrendo do corpo dela como se aquiescesse, como se estivesse reagindo para que tudo acontecesse mais rápido. E ele tirou vantagem da pele que agora estava à mostra, beijando uma trilha até os seios perfeitos, sugando os mamilos, ficando ganancioso muito rapidamente. Que Deus abençoasse o pobre coração daquela mulher, ela conseguia fingir tão bem, as mãos se perderam em seus cabelos como se ela o desejasse, como se ela estivesse trazendo-o para mais perto, mesmo ele não sendo o que ela deveria querer.
Tentou não ser rude, mas Deus, ficou tão excitado de repente.
– Suba no meu colo – grunhiu. – Você vai ter que subir no meu colo.
Era a única posição em que conseguia fazer sexo. Ainda mais por não querer sujeitar nenhum deles dois ao embaraço de ter que pedir ajuda para se levantar do chão, quando tudo tivesse terminado.
– Tem certeza? – ela perguntou, rouca. – Edward…
– Preciso ter você. Esperei tempo demais. Quase morri. Preciso disso.
Houve um segundo de pausa. Logo ela se moveu com admirável rapidez, levantando-se do chão, chutando o vestido, revelando… Ah, Jesus, ela estava com uma calcinha e nada mais, nada de meias de seda, nada de cinta-liga. E em vez de perder tempo tirando-a, ela a afastou de lado enquanto ele se confundia com o próprio cinto, impedindo que suas calças caíssem do quadril ossudo.
A despeito de todo o resto dele, que definhara, seu pênis ainda era grosso, comprido e rijo como antes, e ele ficou estranhamente grato por ser a única coisa que não era absolutamente humilhante para ele.
Empurrando os apoios de braço com as mãos, deslizou ainda mais para a frente, e ela se contorceu, montando nele com uma coordenação invejável.
A ereção dele a penetrou profundamente, e a firmeza com que ela o prendeu fez com que ele chegasse ao orgasmo de imediato. Mas isso não foi o mais incrível. Aparentemente, e por algum milagre, o mesmo aconteceu com ela.
Enquanto ela gritava seu nome, pareceu também chegar ao clímax.
Ou isso, ou ela não escutara seu chamado pois teria recebido o Oscar de melhor atriz.
Antes de perceber o que estava fazendo, Edward começou a se movimentar. Foi um movimento fraco, quase patético, mas ela seguiu, aquele primeiro orgasmo logo sendo eclipsado por outro ainda mais potente para ambos. Estremecendo, balançando, se retesando, ela se agarrou nele como se disso dependesse a sua vida, o cabelo cobrindo o dele, os seios pressionados contra ele, o corpo levando-o para uma viagem que ele nunca tinha experimentado.
O sexo pareceu durar para sempre.
Quando, por fim, tudo terminou, depois de um terceiro orgasmo, Edward se prostrou na poltrona e ofegou.
– Vou precisar de você de novo.
– Ah, Edward…
– Diga a Beau… semana que vem. Mesmo dia, mesmo horário.
– O quê?
Ele deixou a cabeça pender para o lado.
– O dinheiro está ali. Só você. Só quero você de novo.
De repente, provavelmente por ter se cansado mais nos vinte minutos do que nos doze meses anteriores, começou a se sentir fraco e, de fato, parecia apropriado que desmaiasse e deixasse que a prostituta saísse com tranquilidade.
Assim, ele conseguiria sustentar a fantasia por mais tempo.
– Mil… ao lado da porta – murmurou. – Pegue. A gorjeta…
Edward teve a intenção de dizer “A gorjeta vem depois, vou fazer com que alguém deixe com Beau mais tarde” ou algo do gênero. Mas a consciência era um luxo ao qual ele já não conseguia se dar… E se deixou cair no esquecimento.
Mais uma vez, pensando apenas em Sutton Smythe.
Sutton saiu cambaleando do chalé de Edward. Estava descalça, segurando os sapatos pelas tiras, mas ao contrário da sua outra caminhada pela grama ao redor do museu, as tábuas da varanda e os pedriscos machucaram suas solas.
Não que ela estivesse prestando atenção.
Ao partir para o Mercedes, ela era um misto de contradições; seu cérebro, uma confusão emaranhada. Mas seu corpo estava maleável e relaxado.
Edward pensou que ela fosse uma prostituta?
Por que outro motivo ele teria falado de dinheiro e de um homem chamado Beau? Semana que vem?
Ah, Deus, fizeram sexo…
Como chegaram àquilo? Como ela permitira que…
Bom Deus, o pobre rosto dele, o corpo…
Esses pensamentos entravam e saíam da sua cabeça, girando com alguma força centrífuga, tudo se revolvendo a não ser pelo fato de que Edward já não era mais o mesmo de antes. Sua linda aparência já não existia mais, as cicatrizes no rosto, sobre o nariz e na testa, deixavam virtualmente impossível reconstruir por lembranças a perfeição que antes existira ali.
Ela sabia que ele havia sido maltratado. Os noticiários e os artigos nos jornais foram suas únicas fontes de informação porque ele tinha se recusado a ver qualquer pessoa, e detalharam a duração da sua estada no hospital e da subsequente reabilitação. Esse tipo de tratamento longo não acontecia sem motivos trágicos. Mas vê-lo em pessoa fora um choque.
Antes do sequestro, ele era jogador de polo. Saltou com cavalos em apresentações. Correu. Jogou basquete, tênis e squash. Nadou. Edward fora um garoto dourado não apenas nos negócios, mas em todos os outros aspectos da sua vida, ele sempre se excedera em tudo.
Eu queria ter feito isso antes. No passado, valia a pena ver o meu corpo.
Sutton teve dificuldades para abrir a porta do carro, a mão escorregava como se ela estivesse tendo um ataque e seus dedos já não funcionassem direito. E quando, por fim, conseguiu abrir e entrar, ficou sem forças e deixou-se cair no assento.
Eu deveria ter tentado conquistá-la antes, mas era covarde demais. Era um covarde arrogante, mas a verdade é que eu poderia ter suportado qualquer coisa, menos uma recusa sua.
O que ele dissera? E para quem achou que estava dizendo? O coração dela se partiu com a ideia de que ele estivesse apaixonado por alguém daquela maneira.
Ele estava tão embriagado. Tanto que, antes de sair apressadamente, ela voltou para ver se o coração dele ainda estava batendo, se ele ainda estava respirando… Sim, porque a ideia de que talvez o tivesse matado por causa do que haviam…
– Bom Deus.
Como era possível que, depois de anos pensando nisso, eles, finalmente, tivessem feito sexo? E só porque ele acreditava que ela fosse uma prostituta cujos serviços ele encomendara em algum lugar?
Ah, não… Não tinham usado proteção.
Fabuloso. A reviravolta daquela noite toda era simplesmente fabulosa. Ainda mais porque, mesmo ele estando bêbado… mesmo ela estando meio fora do seu juízo completo… e apesar das condições físicas dele… o sexo tinha sido incrível. Talvez por causa de toda a imaginação acumulada, ou talvez fosse compatibilidade, ou quem sabe fosse apenas uma experiência única, do tipo que acontece quando certas estrelas estão alinhadas.
Independentemente dos motivos, ele tinha feito os poucos homens com quem ela estivera sumirem.
Impedindo que qualquer outro chegasse até ela, Sutton temeu.
Esticando o braço, procurou o botão de partida, e quando o motor roncou e os faróis se acenderam, ela entrou em pânico. Havia outras pessoas na propriedade – só podia haver –, e a última coisa que ela queria era ser pega em flagrante. Teria que encontrar uma maneira de lidar com a situação, e boatos se espalhando não faziam parte da sua estratégia, muito obrigada…
Neste mesmo instante, outro carro surgiu na alameda e, em vez de seguir para um dos estábulos ou construções externas, parou bem ao lado do seu.
A mulher que saiu era… alta, morena e usava um vestido longo.
E franziu o cenho ao ver o Mercedes.
Ela se aproximou.
Sutton abaixou o vidro. O que mais poderia fazer? Ao mesmo tempo, também começou a tatear à procura do câmbio, ou botão, ou sabe-se lá o que colocaria o sedã em marcha a ré.
– Pensei que eu estava escalada para esta noite – a mulher disse, num tom agradável.
– Eu… hum… – Enquanto gaguejava, sentiu-se corar. – Ah…
– Você é uma das garotas novas que Beau mencionou? Sou Delilah.
Sutton apertou a mão que lhe foi oferecida.
– Como tem passado?
– Ah, mas você parece tão chique! – A mulher sorriu. – Então, cuidou bem dele?
– Hum…
– Tudo bem se você cuidou. Às vezes essas coisas acontecem, e eu tenho outros dois chamados para esta noite. – Levantou a mão e puxou o que, no fim, era uma peruca. – Pelo menos me livro disto. Ele está bem?
– O que disse?
A mulher esfregou o cabelo loiro curto ao acenar na direção do chalé.
– Ele. Todas nós cuidamos dele, pobrezinho. Beau não nos diz quem é, mas deve ser alguém importante. É sempre tão generoso, e nos trata muito bem. É um caso bem triste, para falar a verdade.
– Sim. Muito triste.
– Bem, está na minha hora. Quer que eu avise Beau que está tudo bem?
– Hum…
– Fico com a semana que vem, então.
– Não – Sutton se ouviu dizer. – Ele me disse… o homem me disse que quer me ver de novo.
– Ah, ok, sem problemas. Eu aviso.
– Muito obrigada. Muito obrigada mesmo.
Talvez aquele fosse algum tipo de alucinação bizarra causada por uma febre.
Enquanto Sutton voltava a procurava a manopla, a prostituta se inclinou para baixo.
– Está procurando a ré?
– Ah, sim, estou.
– É essa aí na direita. Mexa-a para trás. Para baixo do drive e, para estacionar, você empurra até o fim.
– Obrigada. Que difícil.
– Um dos meus fregueses regulares tem esse mesmo modelo. É uma beleza! Dirija com cuidado.
Produzindo um som sem sentido, Sutton manobrou para trás com cuidado, ciente de que a mulher estava bem perto com aquela peruca morena na mão.
Seguindo na direção da estrada principal, resolveu que aquilo só podia ser resultado de um resfriado, de uma alucinação. A qualquer instante agora, ela despertaria…
Era isso.
Só podia ser.
Puxa vida, como foi que tudo foi acontecer?
CONTINUA
DEZOITO
Enquanto parava diante da entrada principal de Easterly, Lane pisou tão fundo no freio que os pedriscos do caminho voaram com ele até o Porsche parar. Não desligou o motor, simplesmente saiu do carro e voou escada acima, passando pelas portas duplas tal qual uma ventania.
Não prestou atenção em absolutamente nada ao entrar na mansão – nem na criada que limpava o vestíbulo, no mordomo que se dirigiu a ele… nem mesmo em sua Lizzie, que parou em seu caminho como se estivesse aguardando sua chegada.
Em vez disso, saiu da casa pela porta da sala de jantar e avançou a passos largos até o centro de negócios, atravessando as mesas redondas bem arrumadas debaixo da tenda e se esquivando dos funcionários da manutenção que estavam pendurando cordões de luzes entre as árvores em flor.
O local de trabalho do pai tinha um terraço com uma série de portas francesas, e ele seguiu para o par que ficava na extrema esquerda. Quando chegou, não se deu ao trabalho de experimentar a maçaneta, porque a porta estaria trancada.
Bateu no vidro. Com força.
E não parou. Nem quando sentiu a mão úmida, o que indicava que ele devia ter quebrado alguma coisa…
Na verdade, ele estilhaçou a vidraça da primeira porta do escritório do pai, e partiu para a seguinte.
A boa notícia, pensou, era que havia muitas outras.
– Lane! O que você está fazendo?
Ele parou e se virou para Lizzie. Numa voz que não reconheceu, ele disse: – Preciso encontrar o meu pai.
A extremamente profissional assistente executiva de William Baldwine correu para dentro do escritório e arfou em alto e bom som ao ver o vidro quebrado.
– Você está sangrando! – a mulher exclamou.
– Onde está o meu pai?
A senhora Petersberd destrancou a porta e a abriu.
– Ele não está aqui, senhor Baldwine, ele ficará em Cleveland o dia inteiro. Acabou de sair e não sei bem quando retornará. O senhor precisa de algo?
Quando os olhos dela se fixaram nas juntas sanguinolentas da mão dele, ele soube que ela estava querendo dizer algo como “Que tal uma toalha, talvez?", mas ele pouco se importava se suas veias se esvaziassem naquele lugar.
– Quem contou ao meu pai que Gin tinha saído? – ele exigiu saber. – Quem ligou para ele? Foi você? Ou um espião na casa…
– Do que está falando?
– Ou você ligou para a polícia e mandou que eles prendessem a minha irmã? Tenho certeza absoluta de que meu pai não sabe apertar as teclas 190 sozinho, mesmo que tenham me dito que foi isso o que ele fez.
Os olhos da mulher se dilataram e depois ela sussurrou:
– Ele me disse que ela acabaria fazendo mal a si mesma. Que ela tentaria sair hoje de manhã e que eu teria que fazer o que fosse necessário para impedi-la. Ele disse que ela precisa de ajuda…
– Lane!
Ele virou a cabeça na direção de Lizzie bem quando tudo ficou fora dos eixos, seu corpo pendendo para um dos lados.
Com toda a força, Lizzie o sustentou e impediu que ele caísse no chão.
– Venha. Vamos voltar para casa.
Enquanto ele se deixava manobrar, sangue pingou no piso de pedra do terraço, manchando o cinza de vermelho. Fitando a assistente, ele ordenou: – Diga ao meu pai que eu o estou aguardando.
– Não sei quando ele volta.
Até parece, ele pensou. A mulher chegava a agendar as pausas para William ir ao banheiro.
Havia tanta raiva dentro dele que ele estava cego ao que o cercava enquanto Lizzie o guiava. A fúria era por causa de Edward. De Gin. De sua mãe.
De Max…
– Quando foi a última vez que você comeu alguma coisa? – Lizzie perguntou ao empurrá-lo pela porta de Easterly.
Por um instante, ele pensou estar alucinando. Mas logo percebeu que os homens e mulheres de branco eram chefs, e que ele e Lizzie estavam na cozinha.
– Desculpe, o que disse? – murmurou.
– Comida. Quando?
Ele abriu a boca. Fechou. Franziu o cenho.
– Meio-dia de ontem?
A senhorita Aurora entrou no campo de visão dele.
– Lands… O que há de errado com você, menino?
Houve algum tipo de conversa em seguida, nada que ele compreendesse. Em seguida, um curativo na sua mão, ao qual ele não deu atenção. E mais conversa.
Ele não voltou a sintonizar apropriadamente até estar sentado na sala de descanso dos chefs, à mesa, com um prato de ovos mexidos, seis fatias de bacon e quatro torradas diante de si.
Seu estômago roncou e ele piscou. Sua cabeça continuava uma confusão, mas sua mão pegou o garfo e começou a cavar.
Lizzie se sentou diante dele, a cadeira rangendo sobre o piso de madeira.
– Você está bem?
Ele fixou o olhar além dela, na senhorita Aurora, parada à porta como se estivesse prestes a sair.
– O meu pai é um homem mau.
– Ele tem o seu próprio conjunto de valores.
Que era o mais próximo que ela chegaria de condenar alguém.
– Ele está tentando vender a minha irmã. – Bufou. – É como se isso fosse… uma novela ruim.
Estava prestes a contar tudo quando o celular tocou; assim que viu quem era, atendeu.
– Samuel, em que pé estamos?
Samuel T. teve que erguer a voz acima das conversas ao fundo.
– Setenta e cinco mil para a fiança, foi o melhor que consegui. Assim que você trouxer o cheque, pode vir buscá-la.
– Já vou cuidar disso. Você vai embora?
– Só depois que ela sair. Ela tem o direito de se consultar com seu advogado, portanto, enquanto eu estiver por perto, ela não terá que voltar para aquela cela sozinha, ou que Deus não permita, com outra pessoa.
– Obrigado.
Assim que ele encerrou a ligação, a senhorita Aurora saiu para acompanhar o trabalho dos chefs, e ele se voltou para Lizzie.
– Vou ter que ir atrás do dinheiro da fiança dela agora. Depois disso, não sei mais.
Ela esticou a mão e a apoiou no braço dele.
– Como eu já disse antes: tem alguma coisa que eu possa fazer para ajudar?
Foi como um raio. Num minuto, ele estava normal, como qualquer outro homem numa situação como aquela. No seguinte? A luxúria bombeava em suas veias, excitando-o, desviando a loucura em sua cabeça para algo verdadeiramente insano.
Abaixando as pálpebras, murmurou:
– Tem certeza de que quer que eu responda?
Lizzie engoliu em seco e olhou para o ponto em que o tocava. Quando não disse nada, mas também não se afastou, ele se inclinou na direção dela e levantou seu queixo com o indicador. Travando os olhos nos lábios dela, beijou-a mentalmente, com imagens de si mergulhando a cabeça e colando a boca na dela. Empurrando-a no encosto da cadeira. Enfiando-se debaixo das roupas dela enquanto se ajoelhava entre suas pernas com…
– Ai… Deus… – ela sussurrou, os olhos evitando os dele.
Mas, ainda assim, ela não se afastou.
Lane lambeu os lábios. Depois abaixou a mão e saiu de perto dela.
– É melhor você ir. Ou vou fazer uma coisa que você vai se arrepender.
– E você? – ela sussurrou. – Você vai se arrepender?
– De te beijar? Nunca. – Meneou a cabeça, reconhecendo que suas emoções estavam à flor da pele… completamente descontroladas. – Mas não vou tocar em você até que me peça. Isso eu consigo prometer.
Depois de um instante, ela se levantou sem a sua elegância costumeira, a cadeira na qual estivera sentada deslizando pelo piso, seus pés trôpegos. Ele lhe deu tempo suficiente para sair da sala de descanso e avançar pelo corredor antes de ele mesmo sair.
Caso ficasse muito próximo dela, era bem possível que a agarrasse e a colocasse sobre a mesa, procurando o alívio que os dois tanto necessitavam.
Porque ela o desejava. Ele tinha acabado de ver.
Não que fosse ficar pensando nisso.
Ele precisava fazer com que o pai pagasse a fiança. Não que ele mesmo não tivesse aquela quantia. Tinha lucrado bastante na mesa de pôquer e, diferentemente da irmã, aos trinta e seis anos, já tinha acesso à primeira parte dos seus fundos. Mas William Baldwine criara aquela confusão, e o fato de o homem estar fora da cidade tornaria mais fácil pegar um cheque e levar ao banco para que o autorizassem.
Um minuto depois, Lane estava diante do escritório da controller, mas não se deu ao trabalho de bater, avançando direto para a maçaneta.
Trancada.
Assim como fizera com a porta de vidro do pai, socou a porta de carvalho… com a mão machucada.
– Ela não está? – o senhor Harris perguntou da soleira da sua suíte.
– Onde está a chave dessa porta?
– Não tenho permissão para…
Lane se virou.
– Pegue a porra dessa chave ou vou acabar derrubando a maldita porta.
E vejam só, uma fração de segundo depois, o mordomo se aproximou com um molho de chaves.
– Permita-me, senhor Baldwine.
Só que a chave não os levou a parte alguma. Ela entrou na fechadura, mas foi impossível girá-la.
– Lamento muitíssimo – disse o mordomo enquanto forçava a fechadura.
– Tem certeza de que é a chave certa?
– Está marcado aqui. – O homem mostrou a etiquetinha pendurada na ponta ornamentada. – Talvez ela volte logo.
– Deixe-me tentar.
Lane afastou o pinguim para o lado, mas também não teve sucesso. Perdendo a paciência, empurrou a porta com o ombro e…
O estalido da madeira se rompendo abafou seu grito de raiva, e ele teve que se segurar nos painéis quando eles se movimentaram de volta na sua direção.
– Mas que diabos! – exclamou, dando uma de Drácula e se afastando do fedor.
Enquanto o senhor Harris começava a tossir, tendo que cobrir o rosto com a lapela do terno, outra pessoa disse: – Ai, meu Deus, isso é…
– Tire todos do corredor – Lane ordenou ao mordomo. – E faça com que fiquem afastados.
– Sim, sim, claro, senhor Baldwine.
Lane ergueu o antebraço e respirou na manga da camisa ao se inclinar para dentro. O escritório estava um breu, as cortinas pesadas haviam sido fechadas, impedindo a entrada da luz solar, e o ar-condicionado sobre uma das janelas também estava desligado. Tateando ao redor da soleira com a mão livre, ele tinha a nítida impressão do que estava para encontrar e não conseguia acreditar.
Clique.
Rosalinda Freeland estava sentada numa poltrona estofada no canto oposto, o rosto congelado num sorriso repulsivo, os dedos acinzentados enterrados em almofadas de chintz, os olhos inertes fitando alguma versão da vida após a morte com que se deparou.
– Jesus… – Lane sussurrou.
O profissional conjunto de saia e terninho estava perfeitamente arrumado, os óculos de leitura, pendurados numa corrente de ouro sobre a blusa de seda, o coque primoroso, um tanto grisalho, ainda estava arrumado. Mas os sapatos não faziam sentido algum. Não eram os de couro que ela sempre calçava, mas um par de tênis Nike, como se ela estivesse prestes a sair para uma corrida.
Merda, pensou ele.
Enfiando a mão no bolso, pegou o celular e discou para a única pessoa que conseguiu pensar. Enquanto chamava, olhou ao redor. Não havia bagunça em parte alguma, o que era típico desta mulher que trabalhou em Easterly por trinta anos. Não havia mais nada sobre o tampo da mesa além do computador e do abajur com cúpula verde. As estantes escondiam discretamente todos os demais equipamentos de escritório, e os arquivos estavam tão em ordem quanto livros numa biblioteca.
– Alô? – respondeu a voz no celular.
– Mitch – disse Lane.
– Você está vindo com o cheque da fiança?
– Tenho um problema.
– O que posso fazer?
Lane fechou os olhos e perguntou como foi ter tanta sorte por ter aquele cara do outro lado da linha.
– Estou olhando para o cadáver da controller da minha família.
No mesmo instante, o tom do delegado baixou uma oitava.
– Onde?
– Em seu escritório em Easterly. Acho que ela pode ter se suicidado… Acabei de derrubar a porta.
– Já ligou para a emergência?
– Ainda não.
– Quero que ligue agora enquanto sigo para aí, só para que fique registrado e a polícia metropolitana possa ir para aí. Eles têm jurisdição.
– Obrigado, cara.
– Não toque em nada.
– Só toquei no interruptor ao entrar.
– E não deixe ninguém entrar no cômodo. Chego em cinco minutos.
Assim que Lane encerrou a ligação e discou para a emergência, seus olhos tracejaram as prateleiras. Ele pensou em todo o trabalho feito por aquela mulher naquele pequenino escritório.
– Sim, meu nome é Lane Baldwine. Estou ligando de Easterly. – A mansão não tinha número. – Houve uma morte na casa… Sim, tenho certeza de que ela não está mais viva.
Ele andou ao redor enquanto respondia a algumas perguntas, confirmou seu número de celular e depois desligou de novo.
Encarando a mesa, respeitou as ordens de Mitch, mas tinha que pegar o talão de cheques. Com cadáver ou sem, ele ainda tinha que tirar Gin da prisão.
Pegou o lenço do bolso e caminhou por cima do tapete oriental. Estava para puxar a gaveta estreita no centro da mesa quando algo chamou sua atenção. Bem no meio do mata-borrão de couro, perfeitamente alinhado como se fosse uma régua… havia um pen drive.
– Senhor Baldwine? Devo fazer alguma coisa? – o senhor Harris o chamou.
Lane relanceou para o corpo.
– A polícia está a caminho. Não podemos mexer em nada, por isso já vou sair.
Apanhou o que Rosalinda evidentemente deixara para quem a encontrasse. Depois abriu a gaveta e surrupiou o talão de cheques, enfiando-o no cós da calça na parte de trás, cobrindo-o com a camisa.
Virou-se para a controller. A expressão no rosto dela era como a do Coringa, um sorriso torto e horrível que apareceria nos seus pesadelos por um bom tempo.
– O que foi que o meu pai fez agora… – sussurrou no ar maculado pela morte.
DEZENOVE
Lizzie estava na estufa ao telefone com a empresa de aluguel quando percebeu o SUV do delegado do Condado de Washington avançando pela entrada da frente de Easterly.
Já estariam entregando os papéis do divórcio para Chantal? Puxa…
– Desculpe – disse, voltando a se concentrar. – O que disse?
– A conta está atrasada – o representante comercial repetiu. – Portanto não podemos aceitar nenhuma encomenda.
– Atrasada? – Isso era tão inconcebível quanto a Casa Branca deixar de pagar a conta de luz. – Não, não, pagamos o montante total da tenda ontem. Portanto, não é possível que…
– Veja bem, vocês são um dos nossos melhores clientes, queremos continuar trabalhando com vocês. Eu não sabia que a conta estava atrasada até o dono me contar. Enviei todos os materiais que pude, mas ele me impediu de mandar mais até que o saldo seja quitado.
– Quanto devemos?
– Cinco mil, setecentos e oitenta e cinco e cinquenta e dois centavos.
– Isso não será um problema. Eu mesma levarei o cheque agora, você pode nos…
– Não temos mais nada em estoque. Não temos nada para alugar, já que todas as festas na cidade acontecem este fim de semana. Liguei para Rosalinda na semana passada e deixei três recados sobre o saldo a pagar. Ela não retornou as ligações. Segurei o restante do pedido o máximo que pude porque queria cuidar da conta de vocês. Mas não tive notícias, e havia outros pedidos a serem atendidos.
Lizzie inspirou fundo.
– Ok, obrigada. Não sei o que está acontecendo, mas vou dar um jeito. Farei com que recebam.
– Lamento muito.
Quando encerrou a ligação, recostou-se na parede de vidro para tentar ver o veículo do delegado.
– … a emprresa falou?
Virou-se para Greta, que estava borrifando os últimos arranjos de mesa com preservativo floral.
– Desculpe, o que… ah, há um problema com o pagamento da conta.
– Então vamos ou não receberr as quinhentas taças de champanhe que faltam?
– Não. – Lizzie partiu para a porta que dava para a casa. – Vou falar com Rosalinda e depois dar a bela notícia ao senhor Harris. Ele vai ficar uma arara, mas pelos menos temos as tendas, as mesas e as cadeiras. Podemos lavar os copos conforme eles forem sendo usados, a família deve ter uma centena de taças na casa.
Greta a fitou através dos óculos de armação de casco de tartaruga.
– Terremos quase setecentas pessoas amanhã. Acha mesmo que conseguirremos darr conta? Com apenas quinhentas taças?
– Você não está ajudando.
Saindo da estufa, atravessou a sala de jantar e foi para a ala dos empregados. Quando empurrou a porta, parou de pronto. Havia três empregadas em uniformes cinza e branco bem juntinhas, falando agitadamente, mas num tom bem baixo, como se fosse um programa de televisão no volume mínimo. A senhorita Aurora estava ao lado delas, com os braços cruzados sobre o peito, e Beatrix Mollie, a governanta-chefe, estava ao seu lado. O senhor Harris estava no meio do corredor, seu corpo diminuto bloqueando o caminho até a cozinha.
Lizzie franziu a testa e se aproximou do mordomo. E foi nesse momento que sentiu o cheiro que, como fazendeira, conhecia com certa familiaridade.
Um homem afro-americano com uniforme de delegado saiu do escritório de Rosalinda junto de Lane.
– O que está acontecendo? – Lizzie perguntou, um calafrio percorrendo o seu peito.
Bom Deus, será que Rosalinda…
Era por isso que o corredor estava com um cheiro tão ruim de manhã, pensou, com o coração aos pulos.
– Houve um contratempo – disse o senhor Harris. – E ele já está sendo solucionado apropriadamente.
Lane se deparou com os olhos dela enquanto falava com o delegado e fez um aceno com a cabeça.
A senhora Mollie fez o sinal da cruz.
– São três de cada vez. A morte sempre vem em três.
– Tolice – murmurou a senhorita Aurora, como se a mulher a estivesse entediando com aquela linha de pensamento. – Os desígnios de Deus servem a todos. Não fique contando na ponta dos dedos.
– Três. Sempre em três.
Voltando para a estufa, Lizzie fechou a porta atrás de si e olhou ao redor, para os arranjos de flores creme e rosa.
– O que aconteceu? – Greta perguntou. – Ficou faltando mais alguma coisa do pedido…
– Acho que Rosalinda está morta.
Houve um barulho quando o spray escorregou da mão de Greta e quicou no chão, molhando os sapatos da mulher.
– O quê?
– Não sei nada.
Enquanto uma torrente de alemão jorrava da sua companheira, Lizzie murmurou: – É, não é? Não consigo acreditar.
– Quando? Como?
– Não sei, mas o delegado está lá. E não chamaram uma ambulância.
– Oh, mein Gott… das ist ja schrecklich!19
Xingando, Lizzie andou até a janela com vista para o jardim e fitou o gramado verde e resplandecente, e a elegante estrutura da festa. Já haviam concluído setenta e cinco por cento das tarefas e tudo estava realmente belo, ainda mais com as flores brancas que ela e Greta plantaram debaixo das árvores frutíferas.
– Estou com uma sensação muito ruim a respeito disso tudo – ouviu-se dizer.
Uma hora depois da chegada da polícia metropolitana, Lane teve permissão para deixar a cena por um curto período. Ele queria falar com Lizzie para informá-la sobre tudo o que estava acontecendo, mas primeiro tinha que cuidar de Gin.
O dinheiro da família Bradford era administrado pela Companhia de Fundos Prospect, uma empresa privada de bilhões de dólares em ativos e com todos os milionários de Charlemont na sua carteira de clientes. Contudo, como não eram um banco tradicional, as contas da família eram da filial local do PNC, e era de lá o talão de cheques que ele tirara da mesa de Rosalinda.
Parando no estacionamento de um prédio elegante, fez um cheque no valor de setenta e cinco mil dólares, falsificou a assinatura do pai e o endereçou à cadeia do Condado de Washington.
Assim que entrou no saguão bege e branco, foi interceptado por uma jovem num terno azul-marinho e com joias discretas.
– Senhor Baldwine, como tem passado?
Acabei de encontrar um cadáver. Obrigado por perguntar.
– Bem, preciso de uma autorização para sacar este cheque.
– Claro. Venha até o meu escritório. – Conduzindo-o até uma saleta envidraçada, ela fechou a porta e se sentou atrás de uma mesa organizada. – É sempre um prazer ajudar a sua família.
Ele escorregou o cheque por cima do mata-borrão e se sentou.
– Agradeço por isso.
O som das unhas batendo nas teclas do computador era um pouco incômodo, mas ele tinha problemas maiores.
– Hum… – A gerente pigarreou. – Senhor Baldwine, lamento, mas não há fundos suficientes na conta para compensá-lo.
Ele pegou o celular.
– Sem problemas, vou telefonar para a Fundos Prospect e solicitar a transferência. Quanto devemos?
– Bem, senhor, a conta está com um saldo devedor de vinte e sete mil, quatrocentos e oitenta e nove dólares e vinte e dois centavos. No entanto, o limite está cobrindo isso.
– Dê-me um minuto. – Ele procurou em seus contatos o número do administrador do CFP responsável pelos investimentos da família. – Farei a transferência.
Um evidente alívio tomou o rosto dela.
– Vou lhe dar um pouco de privacidade. Estarei no saguão quando estiver pronto. Leve o tempo que precisar.
– Obrigado.
Enquanto esperava a ligação completar, Lane bateu o sapato no piso de mármore.
– Hum, olá, Connie, como está? Aqui é Lane Baldwine. Bem. Sim, estou na cidade para o Derby. – Entre outras coisas. – Escute, preciso que transfira certa quantia para a conta-corrente da família no PNC.
Houve uma pausa. Em seguida, a voz serena e profissional da mulher se tornou tensa.
– Eu faria isso com prazer, senhor Baldwine, mas não tenho mais acesso às suas contas. O senhor deixou a Fundos Prospect no ano passado.
– Estou me referindo à conta do meu pai. Ou da minha mãe.
Outra pausa.
– Lamento, mas o senhor não tem autorização para transferir fundos dessa natureza. Vou precisar falar com o seu pai. Existe um modo de o senhor pedir para que ele nos telefone?
Não se quisesse aquele dinheiro. Considerando o que seu velho e bom papai estava tentando arrancar de Gin, de jeito nenhum o grandioso e glorioso William Baldwine facilitaria a soltura dela.
– O meu pai está fora da cidade e não será possível entrar em contato com ele. E se eu colocar a minha mãe na linha? – Por certo conseguiria acordá-la e mantê-la consciente por tempo suficiente para que ela pedisse a transferência de 125 mil para a conta-corrente da casa.
Connie pigarreou da mesma forma como a gerente do banco.
– Sinto muito, mas… não será o bastante.
– Se a conta é dela? Como não?
– Senhor Baldwine… não gostaria de me precipitar…
– Parece-me que é melhor falar de uma vez.
– Poderia aguardar um instante?
Enquanto uma música suave tocava em seu ouvido, Lane saltou da cadeira dura e começou a andar entre um vaso de planta num canto, que descobriu ser de plástico quando tocou numa folha, e as janelas que subiam até o teto, com vista para a rodovia de quatro pistas ao longe.
Houve um bipe e logo uma voz masculina entrou na linha.
– Senhor Baldwine? Aqui é Ricardo Monteverdi, como tem passado?
Maravilha, o CEO da empresa. O que significava que ele havia tropeçado numa “situação delicada”.
– Escute, só preciso de cento e vinte e cinco mil dólares em dinheiro, ok? Nada demais…
– Senhor Baldwine, como o senhor sabe, na Fundos Prospect, nós levamos a nossa responsabilidade fiduciária e os nossos clientes muito a sério…
– Pode parar já com o discurso de abertura. Conte-me por que a palavra da minha mãe não é o suficiente para sacar o próprio dinheiro dela, ou desligue logo.
Fez-se um silêncio.
– O senhor não me deixa escolha.
– O quê? Pelo amor de Deus, o que foi?
O período seguinte de silêncio foi tão longo e denso que ele afastou o aparelho da orelha para ver se a linha tinha caído.
– Alô?
Mais pigarreios.
– No início deste ano, o seu pai declarou que a sua mãe é mentalmente incompetente para administrar o fundo. A opinião de dois neurologistas qualificados é de que ela é incapaz de tomar quaisquer decisões. Portanto, se necessita de fundos de qualquer uma dessas contas, teremos o maior prazer em atendê-lo, desde que o pedido venha do seu pai em pessoa. Espero que entenda que estou numa situação delicada e que…
– Vou ligar para ele neste mesmo instante e farei com que ele telefone.
Lane encerrou a ligação e ficou olhando para o trânsito. Depois, seguiu até a porta e a abriu. Sorrindo para a gerente, disse: – Meu pai fará com que a transferência seja feita pela Prospect. Voltarei mais tarde.
– Estaremos abertos até as cinco, senhor.
– Obrigado.
De volta ao sol ofuscante, manteve o celular na mão ao atravessar o estacionamento escaldante, mas não o usou. Também não percebeu que estava dirigindo de volta para casa.
Que diabos ele faria agora?
Quando chegou a Easterly, havia outras duas viaturas próximas à garagem e alguns policiais uniformizados parados diante da porta da frente. Estacionou o Porsche em seu lugar costumeiro, à esquerda da entrada principal, e saiu.
– Senhor Baldwine – um dos policiais o cumprimentou quando Lane se aproximou.
– Cavalheiros.
A sensação de olhos o seguindo fez com que ele quisesse mandar o grupo para longe da sua casa. Tinha a sensação paranoica de que havia coisas acontecendo por trás das cortinas, sem que ele soubesse, e preferia encontrar algum esqueleto no armário primeiro sem testemunhas, sem o benefício dos olhares curiosos da polícia metropolitana.
Subindo os degraus até o segundo andar, foi para o próprio quarto e fechou a porta, trancando-a. Perto da cama, pegou o telefone da casa, apertou o número nove para conseguir uma linha externa, e depois pressionou *67 para que o número para o qual telefonava não ficasse registrado no identificador de chamadas. Quando deu linha, ele compôs uma sequência de quatro números.
Pigarreou quando ouviu um toque. Dois…
– Bom dia, aqui é do escritório do senhor William Baldwine. Como posso ajudá-lo?
Imitando o tom firme e profissional do pai, ele disse:
– Ligue-me com Monteverdi da Prospect agora mesmo.
– Sim, senhor Baldwine. Imediatamente.
Lane pigarreou uma vez mais enquanto uma música clássica se fazia ouvir. A boa notícia era que o pai era antissocial, exceto se a interação humana o beneficiasse nos negócios, portanto era muito improvável que os dois homens tivessem se falado recentemente, o que revelaria o seu engodo.
– Senhor Baldwine, o senhor Monteverdi está na linha.
Depois de um clique, Monteverdi começou a falar.
– Obrigado por finalmente retornar a minha ligação.
Lane baixou seu tom de voz e enfatizou o sotaque sulista.
– Preciso de cento e vinte e cinco mil na conta-corrente da casa…
– William, eu já lhe disse, não posso fazer mais adiantamentos, simplesmente não posso. Agradeço os negócios da sua família e estou comprometido em ajudá-lo a sair dessa situação antes que o nome Bradford se depare com dificuldades, mas as minhas mãos estão atadas. Tenho responsabilidades para com o Conselho, e você me disse que o dinheiro que pegou emprestado seria devolvido até a reunião anual, que acontecerá em duas semanas. O fato de necessitar de mais recursos, sendo um montante assim pequeno, já não me deixa mais tão confiante.
Mas que diabos?!
– Qual o total devido? – ele perguntou, carregando no forte sotaque da Virgínia.
– Eu lhe disse da última vez que deixei recado – Monteverdi se mostrou irritado. – Cinquenta e três milhões. Você tem duas semanas, William. Suas alternativas são: devolver o montante ou procurar o JP Morgan Chase e pedir um empréstimo contra o fundo primário da sua esposa. Ela tem mais de cem milhões só naquela conta, portanto o perfil de empréstimos deles será atendido. Eu lhe enviei a documentação num e-mail particular, você só precisa assinar os papéis e isso não nos afetará mais. Mas permita que eu seja bem franco: estou exposto nesta situação e não permitirei que isso prossiga assim. Existem medidas que eu poderia acionar, que seriam muito desagradáveis para você, e eu as usarei antes que alguma coisa me afete pessoalmente.
Puta.
Merda.
– Voltarei a falar com você – Lane disse com voz arrastada e desligou.
Por um instante, só conseguiu ficar olhando para o telefone. Literalmente não conseguia conectar dois pensamentos com coerência.
Em seguida, veio o vômito.
Numa ânsia súbita, dobrou-se ao meio, mal conseguindo apanhar o cesto de papéis a tempo.
Tudo o que comera na sala de descanso dos funcionários subiu.
Depois que o acesso passou, seu sangue correu gelado, a sensação de que nada era como deveria ser fazendo-o imaginar – e depois rezar – que aquilo fosse uma espécie de pesadelo.
Mas não podia se dar ao luxo de não fazer nada, ou pior, de desmoronar. Tinha que lidar com a polícia. Com a irmã. E com o que mais estivesse por vir…
Deus, desejou que Edward ainda estivesse por perto.
“Meu Deus, isso é mesmo terrível!”
VINTE
Uma hora mais tarde, Gin deslizou pelo banco do Porsche cinza-escuro do irmão, fechou os olhos e balançou a cabeça.
– Estas foram as piores seis horas da minha vida.
Lane emitiu uma espécie de grunhido, que poderia significar muitas coisas, mas que certamente estava bem longe do “Ah, Deus, não consigo imaginar o que você teve que suportar” que ela esperava ouvir.
– Desculpe – ela explodiu –, mas eu acabei de sair da cadeia…
– Estamos com problemas, Gin.
Ela deu de ombros.
– Conseguimos a fiança, e Samuel T. vai garantir que isso fique longe da imprensa…
– Gin. – O irmão a encarou quando saiu para o trânsito. – Estamos com graves problemas.
Mais tarde, ah, muito mais tarde, ela ainda se lembraria desse instante em que seus olhares se encontraram no interior do carro, indicando o início da derrocada, o primeiro dominó caindo, que fez com que todos os outros também caíssem com tamanha velocidade que ficou impossível deter a sequência.
– Do que está falando? – ela perguntou com suavidade. – Você está me assustando.
– A nossa família está devendo uma quantia enorme.
Ela revirou os olhos e balançou a mão no ar.
– Sério, Lane? Tenho problemas piores…
– E Rosalinda se matou na nossa casa. Em algum momento dos últimos dois dias.
Gin levou a mão à boca. Lembrou-se de ter telefonado para a mulher sem obter nenhuma resposta apenas algumas horas antes.
– Está morta?
– Morta. No escritório dela.
Foi impossível não ficar toda arrepiada quando visualizou o telefone tocando ao lado do cadáver da controller.
– Meu Deus…
Lane praguejou, olhando pelo retrovisor e mudando de faixa rapidamente.
– A conta-corrente da casa está com saldo devedor, e nosso pai de algum modo conseguiu um empréstimo de cinquenta e três milhões da Companhia de Fundos Prospect para fazer só Deus sabe o quê. E a pior parte? Não sei qual o fim disso e não sei se quero descobrir.
– O que você… desculpe, não estou entendendo…
Ele repetiu, mas isso não a ajudou muito.
Depois que o irmão se calou, ela ficou olhando pelo para-brisa, vendo a estrada fazer a curva ao redor do rio Ohio.
– Papai pode simplesmente pagar o empréstimo – disse ela, emburrada. – Ele paga e tudo acaba.
– Gin, se foi necessário pegar uma quantia dessas emprestada, é por que a pessoa está com problemas muito, muito sérios. E se essa pessoa ainda não pagou é porque não tem como.
– Mas mamãe tem dinheiro. Ela tem muito…
– Não sei se podemos nos fiar nisso.
– Então onde você conseguiu o dinheiro da fiança para me soltar?
– Tenho um pouco guardado e também o meu fundo, que desatrelei do fundo da família. Mas esses dois não são suficientes para cuidar de Easterly, e esqueça a possibilidade de pagar esse empréstimo ou de manter a Bourbon Bradford a salvo, se precisarmos.
Ela olhou para as unhas estragadas, concentrando-se na dizimação do que estava perfeito quando acordara naquela manhã.
– Obrigada por me tirar de lá.
– De nada.
– Vou devolver o seu dinheiro.
Como? Seu pai cortara todos os seus privilégios. E, pior de tudo, e se não restasse mais dinheiro para a sua mesada?
– Isso não pode ser possível – disse ela. – Só pode ser um mal-entendido. Um tipo de… falha de comunicação.
– Não acredito.
– Você tem que pensar positivo, Lane.
– Entrei no escritório de uma mulher morta há umas duas horas e isso foi antes de eu descobrir sobre a dívida. Posso lhe garantir que falta de otimismo não é o problema aqui.
– Você acha que… – Gin arquejou. – Acha que ela roubou de nós?
– Cinquenta e três milhões de dólares? Ou apenas uma parte? Não, porque, nesse caso, por que cometer suicídio? Se ela desfalcou os fundos, o mais inteligente seria fugir e trocar de identidade. E não se matar na casa do seu empregador.
– E se ela foi assassinada?
Lane abriu a boca para dizer “de jeito nenhum”. Mas voltou a fechá-la, como se estivesse pensando a respeito.
– Bem, ela o amava.
Gin ficou com o queixo caído.
– Rosalinda? Papai?
– Ah, o que é isso, Gin? Todos sabem disso.
– Rosalinda? A coisa mais selvagem nela era prender aquele coque um pouquinho mais pra baixo.
– Reprimida ou não, ela estava com ele.
– Na casa da nossa mãe?
– Não seja ingênua.
Muito bem, era a primeira vez que era acusada disso. E, de repente, aquela lembrança de tantos anos antes, daquele Ano-Novo, voltou… De quando vira o pai saindo do escritório da mulher.
Mas isso fora décadas atrás, em outra era.
Ou, talvez não.
Lane pressionou o freio num farol vermelho próximo ao posto de gasolina que ela parara naquela manhã.
– Pense no lugar onde ela morava. A casa colonial de quatro quartos em Rolling Meadows custa muito mais do que ela poderia pagar com seu salário de controller. Quem você acha que pagou?
– Ela não tem filhos.
– Que a gente saiba.
Gin apertou os olhos enquanto o irmão voltava a acelerar.
– Acho que vou enjoar.
– Quer que eu encoste?
– Quero que pare de me dizer essas coisas.
Houve um longo silêncio… e em meio ao vácuo, ela continuou voltando para a visão do pai saindo daquele escritório, amarrando o cinto do roupão.
No fim, o irmão balançou a cabeça.
– A ignorância não vai mudar nada. Precisamos descobrir o que está acontecendo. Preciso chegar à verdade de alguma maneira.
– Como você… como você descobriu isso tudo?
– Isso importa?
Quando contornaram a última curva na estrada River antes de Easterly, ela olhou para o alto à direita, para a colina. A mansão da sua família estava no mesmo lugar de sempre, seu tamanho e elegância incríveis dominando o horizonte, a famosa construção branca fazendo-a pensar em todas as garrafas de bourbon que traziam um desenho dela gravado em seus rótulos.
Até aquele momento, acreditou que a posição da família estivesse gravada em pedra.
Agora, temia que fosse em areia.
– Ok, estamos todos prontos aqui – Lizzie avançou entre as fileiras de mesas redondas debaixo da grande tenda. – As cadeiras já estão bem arrumadas.
– Ja20 – concordou Greta ao dar uma puxadinha numa das toalhas de mesa.
As duas continuaram, inspecionando todos os setecentos lugares, verificando novamente os candelabros de cristal que pendiam em três pontos da tenda, puxando um pouco mais os tecidos rosa-claro e brancos.
Quando terminaram, acompanharam a extensão de cordões verdes serpenteando pela parte externa, fornecendo eletricidade para os oito ventiladores gigantes que garantiriam a circulação de ar.
Ainda tinham umas boas cinco horas de trabalho até que escurecesse e, de maneira inédita, Lizzie achou que tinham concluído todas as prioridades. Os arranjos florais estavam prontos. Os canteiros de flores estavam impecáveis. Vasos na entrada e na saída da tenda combinavam à perfeição com as plantas e os botões suplementares. Até mesmo as estações de comida nas tendas adjuntas já haviam sido organizadas, seguindo as instruções da senhorita Aurora.
Até onde Lizzie sabia, a comida estava pronta e a bebida entregue. Os garçons e os barmen contratados estavam sob a batuta de Reginald, e ele não era de deixar nenhum fio solto. A segurança que garantiria que a imprensa ficaria ao largo era composta por policiais de folga da polícia metropolitana, e estavam todos prontos para trabalhar.
Ela quis ter alguma coisa com que ocupar seu tempo. O nervosismo a deixara mais produtiva do que de costume, e agora estava sem nada para fazer além de pensar que havia uma investigação criminal acontecendo a cinquenta metros dela.
Rosalinda.
Seu celular vibrou no quadril, sobressaltando-a. Ao pegá-lo, suspirou.
– Graças a Deus! Alô? Lane? Você está bem? Sim. – Franziu o cenho enquanto Greta a espiava. – Na verdade, eu o deixei no carro, mas posso ir pegá-lo agora. Sim, sim, claro. Onde você está? Tudo bem. Já vou levar para você.
Quando ela desligou, Greta lhe disse:
– O que está acontecendo?
– Não sei. Ele disse que precisa de um computador.
– Deve haverr uma dúzia deles na casa.
– Depois do que aconteceu hoje cedo, acha que vou discutir com o cara?
– Muito justo. – Embora a expressão da mulher berrasse seu desapontamento. – Vou darr uma olhada nos canteirros e vasos da frrente da casa, e confirrmarr se os manobristas chegarrão no horrárrio.
– Oito da manhã?
– Oito da manhã. E depois, não sei. Pensei em ir parra casa. Estou ficando com enxaqueca, e amanhã serrá um longo dia.
– Isso é horrível! Vá mesmo e volte com força total.
Antes que Lizzie se virasse, sua velha amiga lhe lançou um olhar sério através dos óculos pesados.
– Você está bem?
– Ah, sim. Absolutamente.
– Tem muito Lane por aqui. É porr isso que estou perrguntando.
Lizzie olhou para a casa.
– Ele vai se divorciar.
– Mesmo?
– É o que ele disse.
Greta cruzou os braços sobre o peito e seu sotaque alemão ficou mais evidente.
– Com dois anos de atrraso…
– Ele não é de todo ruim, sabe.
– O que disse? Isso… nein, você não pode estarr falando a verrdade.
– Ele não sabia que Chantal estava grávida, está bem?
Greta lançou as mãos para o alto.
– Ah, bem, isso muda tudo, então, ja? Então ele se prrontificou de livrre e espontânea vontade a se casarr enquanto estava com você. Perrfeito.
– Por favor, não faça isso. – Lizzie esfregou os olhos doloridos. – Ele…
– Ele te pegou de novo, não? Ligou parra você, veio te prrocurrarr, alguma coisa assim.
– E se ele fez? Isso é assunto meu.
– Passei um ano inteirro ligando parra você, parra que você saísse daquela sua fazenda, garrantindo que você virria parra o trabalho. Fiquei ao seu lado, me prreocupei com você, limpei o estrrago que ele deixou. Porr isso, não me diga que não posso exprressarr uma reação quando ele vem sussurrarr no seu ouvido…
Lizzie ergueu a mão diante do rosto da mulher.
– Chega. Não vamos mais falar disso. Nos vemos pela manhã.
Saiu marchando, e xingou baixinho no trajeto inteiro até o carro. Depois que pegou o laptop, seguiu apressada para a casa. Deliberadamente evitando a cozinha e a estufa, porque não queria encontrar Greta enquanto ela se preparava para sair, entrou na biblioteca e, sem pensar, tomou o corredor que dava para as escadas dos empregados e a cozinha. Não foi muito longe. Bem quando fazia a curva, foi parada por dois policiais, e foi então que ela viu o cadáver sendo levado numa maca com rodinhas.
Os restos mortais de Rosalinda Freeland foram colocados num saco branco com um zíper de 1,5 metro que, ainda bem, estava fechado.
– Senhora – um dos policiais disse –, vou ter que lhe pedir que abra o caminho.
– Sim, sim, desculpe. – Abaixando os olhos e refreando a onda de náusea, deu meia-volta, tentando não pensar no que acabara de ver.
E falhou.
Ela tinha dado seu nome à polícia, assim como o restante dos empregados, e fizera um relato breve de onde estivera a manhã toda e os últimos dias. Quando lhe perguntaram a respeito da controller, não teve muito a dizer. Não conhecia Rosalinda melhor do que os outros; a mulher era muito reservada e profissional, e só.
Lizzie sequer sabia se existia algum familiar para ser avisado.
Usar a escada principal era uma violação da etiqueta de Easterly, mas, levando-se em consideração que havia um carro mortuário estacionado e uma cena de crime no corredor dos funcionários, ela estava confiante de que poderia deixar o protocolo de lado. Já no segundo andar, avançou sobre o tapete claro, passando por quadros a óleo e alguns objetos que reluziam com sua antiguidade e manufatura superior.
Ao chegar à porta de Lane, não conseguia se lembrar da última vez que ela e Greta discutiram sobre alguma coisa. Deus, queria ligar para a mulher… Mas o que poderia dizer?
Deixe o laptop e saia, ordenou a si mesma. Só isso.
Lizzie bateu à porta.
– Lane?
– Pode entrar.
Empurrando a porta, ela o encontrou parado diante das janelas, com um pé plantado no peitoril, e um braço sobre o joelho erguido. Ele não se virou para vê-la entrar. Não disse nada.
– Lane? – Ela observou ao redor. Não havia ninguém com ele. – Olha só, vou deixar o laptop aqui e…
– Preciso da sua ajuda.
Inspirando fundo, ela disse:
– Ok.
Mas ele permaneceu em silêncio enquanto fitava o jardim. E que Deus a ajudasse, foi impossível desviar os olhos dele. Disse a si mesma que estava procurando sinais de cansaço… e não medindo os ombros musculosos. O cabelo curto na base da nuca. Os bíceps que marcavam as mangas curtas da camisa polo.
Ele tinha trocado de roupa. Tinha tomado um banho também. Ela sentia o perfume do sabonete e do shampoo.
– Sinto muito por Rosalinda – sussurrou. – Foi um choque.
– Hum.
– Quem a encontrou?
– Eu.
Lizzie fechou os olhos e abraçou o laptop junto ao peito.
– Ah, meu Deus.
De repente, ele enfiou a mão no bolso da frente da calça e tirou um objeto.
– Pode ficar comigo enquanto abro isto?
– O que é?
– Uma coisa que ela deixou para trás. – Ele mostrou o pen drive preto. – Encontrei sobre a escrivaninha dela.
– É um… bilhete suicida?
– Não acredito que seja isso. – Ele se sentou na cama e apontou para o laptop dela. – Se importa se eu…
– Ah, sim… aqui está. – Juntou-se a ele e levantou a tela do Lenovo, apertando o botão de liga/desliga. – Tenho Microsoft Office, então documentos de Word não devem ser um problema.
– Não acho que seja isso.
Colocou a senha e passou o computador para ele.
– Pronto.
Ele inseriu o pen drive e aguardou. A tela se acedeu com várias opções, e ele apertou em “abrir arquivos”.
Só havia um, intitulado “William Baldwine”.
Lizzie esfregou a testa com o polegar.
– Tem certeza de que quer que eu veja isso?
– Tenho certeza de que não posso ver isso sem você aqui.
Lizzie se viu esticando a mão e apoiando-a no ombro dele.
– Não vou te deixar.
Por algum motivo, ela lembrou da lingerie cor de pêssego que encontrara na cama do pai dele. Dificilmente era algo que Rosalinda vestiria; um tom de cinza-claro foi o mais próximo que a controller chegara a revelar do seu guarda-roupa. Mas, pensando bem, quem é que poderia saber o que a mulher escondia debaixo das saias e jaquetas decorosas?
Lane clicou no arquivo, e Lizzie percebeu que seu coração batia tão rápido quanto se tivesse acabado de correr meio quilômetro a toda velocidade.
E ele estava certo. Aquilo não era nenhuma carta de amor, tampouco um bilhete suicida. Era uma planilha repleta de números e datas e descrições breves, que Lizzie, por estar longe demais, não conseguia ler.
– O que é tudo isso? – perguntou.
– Cinquenta e três milhões de dólares – ele murmurou, descendo a tela. – Aposto como são cinquenta e três milhões de dólares.
– O que está dizendo? Espere… está sugerindo que ela roubou isso? – Não, mas acho que ela ajudou o meu pai a roubar.
– O quê?
Ele voltou-se para ela.
– Acho que, finalmente, meu pai tem sangue nas mãos. Ou, pelo menos, sangue que conseguimos ver.
“Sim.”
VINTE E UM
Voltando a se concentrar no laptop sobre o colo, Lane desceu pela planilha de Excel, localizando as entradas e tentando fazer uma somatória geral. Mas nem precisava ter se dado ao trabalho. Rosalinda somara por ele ao fim da página, numa célula em negrito à extrema direita de todas as colunas.
Na verdade, o total não era de 53 milhões de dólares.
Não, era de 68 milhões, 489 mil, 242 dólares e 65 centavos.
US$ 68.489.242,65.
As descrições para as retiradas variavam desde Cartier e Tiffany até a Aviação Bradford Ltda., que era a empresa que administrava todas as aeronaves e pilotos, e a folha de pagamento da Recursos Humanos Bradford, responsável, muito provavelmente, pelos salários de todos os empregados da casa. No entanto, havia uma descrição repetida que ele não reconhecia. Holding WWB.
Holding William Wyatt Baldwine.
Só podia ser.
Mas o que seria?
O montante maior tinha sido para eles.
– Acho que o meu pai… – Olhou para Lizzie. – Não sei, mas a companhia e fundos disse que ele se colocou, ou ele colocou a família, imagino, numa montanha de dívidas. Por quê? Mesmo com todos estes gastos, deveria haver muito dinheiro vindo da Cia. Bourbon Bradford para os acionistas, dos quais somos os majoritários.
– A empresa de aluguel… – Lizzie murmurou.
– O que foi?
– A empresa de aluguel não recebeu o pagamento, o financeiro deles telefonou para Rosalinda na semana passada e ela não retornou a ligação.
– Me pergunto para quem mais estamos devendo…
– Como posso ajudar?
Ele a fitou, a cabeça pensando, pensando.
– Me deixar ver este arquivo foi um bom começo.
– O que mais?
Deus, que olhos azuis, ele pensou. E os lábios, aqueles lábios naturalmente rubros tão perfeitamente moldados.
Ela falava com ele, mas Lane não conseguia ouvir. Era como se um silenciador o tivesse envolvido, impossibilitando-o de perceber qualquer som ao seu redor. Logo o computador em seu colo e todos os seus segredos também desapareceram, de forma que nem o brilho da tela nem o desenho de colunas e números e letras podia ser percebido.
– Lizzie – ele disse, interrompendo-a.
– Sim?
– Preciso de você – ele se ouviu dizer, rouco.
– Sim, claro, o que posso…
Inclinou-se e encostou os lábios nos dela, resvalando-os rapidamente.
Ela arfou e se afastou.
Lane esperou que ela se levantasse. Que lhe dissesse poucas e boas. Talvez voltasse ao século passado e o esbofeteasse.
Em vez disso, ela levantou os dedos e tocou a própria boca. Depois fechou os olhos.
– Eu queria que você não tivesse feito isso.
Merda.
– Desculpe. – Passou uma mão pelos cabelos. – Não estou com a cabeça no lugar.
Ela concordou.
– Sim.
Perfeito, pensou ele. A vida dele estava em labaredas em tantas frentes, por que não, então, atear mais um pouco de fogo? Sabe, só para piorar aquele inferno.
– Sinto muito – disse. – Eu deveria ter…
Ela se lançou sobre ele com um movimento tão rápido que ele quase caiu. O que o salvou foi o desejo… a necessidade feroz que ele sempre sentira por ela e que estivera represada durante todo o tempo em que ficaram afastados.
Lizzie disse ao encontro da boca dele:
– Também não estou com a cabeça no lugar.
Soltando uma imprecação, passou os braços ao redor dela e a trouxe para o colo, derrubando o computador sobre o carpete grosso. Queria se esquecer do dinheiro, do pai, de Rosalinda… mesmo que apenas por um momento.
– Desculpe – ele disse ao empurrá-la para o colchão. – Preciso de você. Eu só… preciso estar dentro de você…
Toc, toc, toc.
Os dois ficaram parados, os olhos presos um no outro.
– O que foi? – ele perguntou, irritado.
Uma voz feminina e abafada comentou algo sobre toalhas, e só o que Lane pensava era que a porta não estava trancada.
– Não, obrigado.
Lizzie saiu de baixo dele, e ele se moveu para que ela pudesse ficar de pé. Nesse meio-tempo, a criada continuou falando.
– Não preciso de toalhas, obrigado – repetiu com aspereza.
Seus olhos acompanharam as mãos de Lizzie, que ajeitavam a camisa e alisavam os cabelos.
– Lizzie… – sussurrou.
Ela apenas balançou a cabeça, andando em círculos, parecendo considerar saltar pela janela como estratégia de fuga.
Mais palavras por parte da criada, e ele perdeu a cabeça. Explodindo sobre os pés, foi até a porta e a abriu, bloqueando a entrada para o quarto. A loira de uns vinte e cinco anos do outro lado era a mesma que estava no corredor quando ele e Chantal discutiram.
– Ah, olá. – Ela lhe sorriu. – Como está?
– Não preciso de nada. Obrigado – disse, seco.
Quando se voltou para fechar, ela o segurou pelo braço.
– Sou Tiphanii, com “ph” e dois “is” no fim.
– Prazer em conhecê-la. Se me der licença…
– Eu só preciso entrar para ver como está o seu banheiro.
O sorriso a entregou. Isso e aquela pequena mudança de postura; ela inclinou o quadril na direção dele e suas pernas se esticaram, como se ela estivesse usando saltos altos em vez de Crocs.
Lane revirou os olhos, não conseguindo evitar. A mulher que desejava tinha acabado de sair de baixo dele e aquela bajuladorazinha achava que tinha algo a lhe oferecer?
– Obrigado, mas não. Não estou interessado.
Fechou a porta na cara dela porque não tinha energia para ser agradável e não queria dizer algo que acabasse lamentando mais tarde.
Girando, encontrou Lizzie do lado oposto do quarto, perto de uma janela. Ela estava deliberadamente mais para o lado, como se não quisesse ser vista, e seus braços estavam cruzados sobre o peito.
– Você pareceu bem sincero – ela comentou com secura.
– Quando estou com você, eu sou…
– Agora, com a criada.
– E por que eu não deveria?
– Sabe o que eu odeio mesmo?
– Só posso imaginar – ele murmurou.
– Como ela se ofereceu para você… E, mesmo assim, eu só consigo ficar pensando em arrancar as suas roupas. Como se fosse um brinquedinho que estou disputando com ela.
A ereção dele ficou mais apertada dentro da calça.
– Não existe disputa alguma… Eu sou seu. Se você quiser, aqui e agora. Ou mais tarde. Daqui uma semana, um mês, daqui a vários anos.
Cale a boca, sua ereção comandou. Apenas cale a boca, amigo, pare com essa coisa de futuro.
– Não vou voltar para você, Lane. Não vou.
– Você me disse isso pelo telefone.
Lizzie assentiu e desviou o olhar do jardim. Enquanto a luz começava a sumir do céu, ela marchou pelo quarto, evidentemente seguindo para a porta.
Maldição…
Não para a porta.
Na verdade, ela não foi para a porta.
Lizzie parou diante dele e deixou que os dedos completassem o trajeto, caminhando pelo seu rosto, trazendo a boca dele para a sua.
– Lizzie… – ele gemeu, lambendo a boca dela.
O beijo ficou rapidamente descontrolado, e ele não estava disposto a perder a chance com ela. Virando-a, empurrou-a contra a parede, acertando o quadro a óleo ao lado deles com tanta força que ele acabou soltando do prego e caindo no chão. Ele nem ligou. Suas mãos foram para baixo das roupas dela, encontraram a pele, subiram na direção dos seios.
Ele pensara que nunca faria aquilo de novo, e por mais que quisesse algo mais lento e demorado, não conseguia. Estava desesperado.
Foi rude com o cós dos shorts dela, arrancando o botão, descendo o zíper e fazendo-o escorregar pelas pernas dela. Em seguida, passou a mão entre as coxas dela, afastando a calcinha de algodão…
Lizzie exclamou seu nome numa voz rouca que quase o fez gozar ali mesmo, naquele instante. E quando os dedos dela se cravaram nos seus ombros, ele a afagou com mais intensidade.
– Pode me machucar – ele grunhiu quando ela o apertou com mais força. – Me faça sangrar.
Ele queria dor junto do prazer, pois tudo o que vinha acontecendo com o pai e a família deixava-o em carne viva, muito próximo de um lado sombrio… a ponto de ele pensar vagamente se não fora aquilo que norteara o irmão Max. Ficara sabendo das coisas que Maxwell fizera… ou rumores a respeito.
Talvez aquele fosse o motivo. Ele sentia como se precisasse arrancar a escuridão do seu íntimo ou acabaria sendo consumido por ela.
Suspendendo Lizzie do chão, deliciou-se com o modo como ela se grudou a ele com braços fortes. Um puxão no zíper da calça, e sua ereção estava pronta para seguir em frente. Rasgou a calcinha dela e…
O rugido que ela emitiu junto ao pescoço dele foi como o de um animal, mas ele não prestou atenção. A pegada escorregadia do sexo dela foi uma sensação que ele sentiu no corpo inteiro, e ele chegou ao orgasmo de imediato. Tanto tempo… Por tanto tempo ele sonhara com ela, lamentando o que tinha acontecido, querendo fazer as coisas de uma maneira diferente. E agora ele estava onde rezara: a cada bombeada dentro dela, ele voltava no tempo, consertando as coisas, reparando seus erros.
Ele queria estar com ela para, por um tempo, se afastar do presente. Mas, no fim, aquela experiência foi muito mais do que isso. Muito, muito mais.
Mas sempre fora verdadeiro com Lizzie. Fizera sexo muitas vezes no decorrer da vida.
No entanto, nada daquilo tivera importância… Até ele estar com ela.
Lizzie não tivera a intenção de ir tão longe.
Enquanto Lane chegava ao orgasmo dentro dela, foi alçada junto com ele, o seu orgasmo ecoando o dele. Rápido, tão rápido, tudo foi muito veloz, furioso, o ato chegou ao fim em questão de minutos, e os dois permaneceram unidos quando a onda inicial foi sumindo.
Tinham mesmo feito aquilo?, ela se perguntou.
Bem, tinham, ela concluiu quando ele se mexeu dentro dela.
E foi então que ela percebeu que… Ah, Deus, o cheiro dele era o mesmo. E os cabelos também, incrivelmente macios.
E o corpo continuava tão forte quanto ela se lembrava.
Lágrimas surgiram em seus olhos, mas ela escondeu o rosto no ombro dele. Não queria que ele percebesse suas emoções. Já estava com bastante dificuldade para reconhecer aquela confusão.
Apenas sexo, disse para si mesma. Era apenas desejo físico de ambas as partes. E Deus bem sabia, luxúria nunca fora um problema para eles. Desde o instante em que o vira no dia anterior, aquela conexão entre eles borbulhou até a superfície da pele dela.
E debaixo da pele dele também.
Ok. Sem problemas. Não conseguiu dizer não naquela situação específica, quando claramente deveria ter dito.
Quer fosse um erro ou não, dependia de como ela lidaria com as coisas dali por diante.
Recobrando o controle, afastou-se um pouco dos braços dele, muito ciente de que ainda estavam conectados.
Ficou com a respiração presa ao ver a expressão no rosto dele, quando ele fez um carinho em sua face.
Ele parecia tão vulnerável.
Contudo, antes que ela fizesse algum comentário calmo e sensato, ele começou a se mover dentro dela de novo. Lenta, ah… tão lentamente… para dentro e para fora. Para dentro e para fora. Em reação, os olhos dela se fecharam e ela ficou toda maleável, os braços dele sustentando-a, a parede nas suas costas apoiando-a ao encontro dele. Uma parte de si ainda estava presente, cada movimento sendo registrado com a claridade de um raio, a respiração pesada no peito e a fervura em seu sangue assumindo o controle de tudo.
A outra parte estava fugindo.
Ah, Deus, a sensação da mão dele agarrando seus cabelos, a boca beijando a sua com sofreguidão, os quadris se curvando e retraindo. Era como voltar ao lar de todas as maneiras que seu corpo desejava havia muito tempo.
E isso não podia ser bom.
– Lizzie – ele disse com uma voz entrecortada. – Senti saudade, Lizzie. Tanta saudade que chegava a doer.
Não pense nisso, ela disse a si mesma. Não preste atenção.
O nome dele escapou dos seus lábios uma vez mais, o estalido do prazer fazendo seu sexo se contrair ao redor da ereção enquanto ele se movia dentro dela, empurrando-a contra a parede, com tamanho ímpeto que a fez bater a cabeça.
Quando ficaram imóveis a não ser pela respiração, ela se deixou cair sobre ele.
– Esta não pode ser a última vez – ele grunhiu, como se soubesse o que ela estava pensando. – Não pode.
– Como você sabia…
– Não te culpo. – Ele se afastou, e seus olhos semicerrados a queimaram. – Só não quero que isso…
– Lane…
A batida à porta a sobressaltou. E ele praguejou.
– Mas que porra! – ele ralhou.
E considerando-se que ele não era de ficar falando palavrão, ela teve que dar um sorriso.
– O que foi? – ele berrou.
– Senhor Baldwine – era a voz do mordomo –, o senhor Lodge está aqui e gostaria de vê-lo.
Lane franziu o cenho.
– Diga a ele que estou ocupado…
– Ele disse que é urgente.
Lizzie balançou a cabeça e se afastou dos braços dele pela segunda vez. Quando seus pés tocaram o chão silenciosamente, ela se deu conta de que não haviam usado preservativo.
Isso mesmo. E tudo ficou bem real quando ela suspendeu os shorts e saiu apressada para o banheiro. Limpou-se o melhor que pôde enquanto Lane falava com o inglês pela porta. E quando ela voltou, ele já havia subido as calças e andava de um lado para o outro.
Ela levantou a palma antes que ele conseguisse comentar qualquer coisa.
– Vá lá ver o que ele quer.
– Lizzie…
– Se um quarto do que o preocupa for verdade, você vai precisar dele.
– Aonde você vai?
– Não sei. Acho que terminamos até amanhã de manhã.
O que era verdade em relação a tantas outras coisas.
– Você não pode ficar? – ele disse num ímpeto.
As sobrancelhas dela se ergueram.
– Ficar? Está querendo que eu passe a noite aqui? Isso é loucura.
Numa casa onde, tecnicamente, não podia usar metade das portas, acordar na cama do filho mais novo e continuar trabalhando em Easterly não era uma opção.
Ah, sim, pensou ela. Os bons e velhos tempos, quando tinham que manter tudo em segredo.
– Em qualquer lugar – ele disse. – Num dos chalés. Não faz diferença.
– Lane. Preste atenção, não é… Não vamos voltar ao que tínhamos antes, lembra? Não sei por que fiz o que fiz, mas isso não significa…
Ele se aproximou e a atraiu para um beijo, a língua invadindo a boca dela. Que Deus a ajudasse, pois, depois de um instante, ela retribuiu o beijo.
– Isso é importante – ele disse ao encontro dos lábios dela. – Isso é mais importante para mim do que a minha família. Você entende, Lizzie? Você sempre foi e sempre será importante para mim, a coisa mais importante.
Dito isso, ele se afastou e foi para a porta, olhando para ela por sobre o ombro – um olhar que era uma espécie de juramento, e que ela jamais vira antes.
Sentando no pé da cama dele, olhou para a parede onde tinham acabado de fazer sexo. O quadro no chão estava arruinado, a tela estava arranhada e torta, mas ela não queria avaliar o estrago. Apenas continuou sentada, tentando convencer a si mesma de que aquilo não era um sinal enviado por Deus.
Demorou um pouco para sair do quarto, atenta junto à porta, prestando atenção a vozes e passos antes de entreabrir a porta e espiar. Quando não havia mais nada além de silêncio, ela praticamente saltou para o meio do corredor e começou a andar apressada.
O quarto de Chantal ficava do outro lado do corredor, um pouco mais para a frente e, quando passou diante dele, sentiu a fragrância do perfume caro dela.
Um lembrete e tanto – não que ela precisasse – do por que deveria ter saído do quarto após a primeira interrupção.
Em vez de ter seguido em frente a toda velocidade.
Ela só podia culpar a si mesma.
VINTE E DOIS
Enquanto trotava escada abaixo, só o que Lane conseguia pensar era no quanto queria ter um drinque na mão. A boa notícia, e provavelmente a única que receberia, era que, quando chegou à sala de estar, Samuel T. já estava se servindo do Reserva de Família, o som do gelo a tilintar no copo atiçando a vontade de Lane como a ânsia de um viciado.
– Gostaria de partilhar da sua fortuna? – ele murmurou enquanto deslizava as portas de madeira dos dois lados da sala.
Havia muitas coisas que ele não queria que outros ouvissem.
– O prazer é meu. – Samuel o presenteou com um drinque igual ao seu num copo baixo de cristal. – Dia longo, não?
– Você não faz ideia. – Lane bateu um copo no outro. – O que posso fazer por você?
Samuel T. tomou seu bourbon e voltou para o bar.
– Fiquei sabendo sobre a controller. Meus pêsames.
– Obrigado.
– Foi você quem a encontrou?
– Sim.
– Já passei por isso. – O advogado voltou para perto e sacudiu a cabeça. – Dureza.
Você não sabe da missa a metade.
– Olha só, não quero te apressar, mas…
– Falou sério quanto ao divórcio?
– Claro.
– Tem um acordo pré-nupcial?
Quando Lane meneou a cabeça, Samuel xingou.
– Alguma possibilidade de ela ter te traído?
Lane esfregou as têmporas, tentando arrancar o que tinha acabado de acontecer com Lizzie… e o que vira naquele laptop. Queria pedir a Samuel T. que deixassem aquela conversa para o dia seguinte, mas seus problemas com Chantal estariam esperando, quer a sua família se afundasse em problemas financeiros ou não.
Na verdade, devia ser melhor dar sequência àquilo em vez de esperar, considerando toda aquela situação com o pai. Quanto mais rápido a tirasse daquela casa, menos informações ela teria para vender para os tabloides.
Não que não conseguisse vê-la falando pelos cotovelos com qualquer um, se o pior acontecesse com os Bradford.
– Desculpe – disse entredentes. – Qual foi mesmo a pergunta?
– Ela te traiu?
– Não que eu saiba. Ela passou os dois últimos anos nesta casa, vivendo à custa da minha família, fazendo a manicure.
– Uma pena.
Lane ergueu uma sobrancelha.
– Eu não sabia que via o matrimônio com tanto preconceito.
– Se ela tiver te traído, isso pode ser usado para reduzir a pensão. O Kentucky é um Estado que não exige admissão de culpa para conceder o divórcio, mas casos extraconjugais e maus tratos podem ser usados para mediar a pensão.
– Não estive com ninguém. – A não ser com Lizzie, havia pouco no quarto, e umas milhares de vezes antes em sua mente.
– Isso não importa, a menos que você queira pedir pensão a Chantal.
– Até parece. Livrar-me dela de uma vez por todas é só o que quero daquela mulher.
– Ela sabe que isso vai acontecer?
– Contei para ela.
– Mas ela sabe?
– Já está com os papéis para eu assinar? – Quando o advogado assentiu, Lane deu de ombros. – Bem, ela vai entender que eu estava falando sério quando receber os documentos.
– Assim que eu conseguir a sua assinatura, vou direto para o centro da cidade para dar entrada no divórcio. O tribunal terá que entender que o casamento está irrevogavelmente terminado, mas acho que, como faz dois anos que vocês moram em casas diferentes, não será um problema. Já vou avisando: acho que ela não vai abrir mão da pensão. E existe uma possibilidade de sair caro para você, ainda mais porque o padrão de vida dela foi bem alto nesta casa. Deduzo que alguns dos seus fundos foram liberados?
– A primeira parte. A segunda será liberada só quando eu completar quarenta anos.
– Qual a sua renda anual?
– Isso inclui os ganhos no pôquer?
– Ela está ciente deles? Você os declara no imposto de renda?
– Não e não.
– Então vamos deixar isso de fora. Qual o montante?
– Não sei. Nada ridículo, talvez um milhão, mais ou menos. Deve ser um quinto da renda gerada pelo acervo fiduciário.
– Ela vai atrás disso.
– Mas não ao acervo, correto? Acho que existe uma cláusula quanto ao excesso de gastos.
– Se estiver no Termo Irrevogável da Família Bradford de 1968, e eu acredito que esteja, pois foi meu pai quem redigiu os termos, pode apostar a sua melhor garrafa que sua iminente-ex-mulher não vai pôr a mão em nada disso. Vou precisar de uma cópia dos documentos, claro.
– A Fundos Prospect está com tudo.
Samuel T. tratou dos vários “arquivar isso”, “argumentar aquilo”, “divulgar sei lá o que”, mas Lane não estava mais prestando atenção. Em sua mente, estava no andar de cima, em seu quarto, com a porta trancada e Lizzie toda nua na sua cama. Ele a cobria com mãos e boca, diminuindo a distância dos anos e voltando ao ponto antes de Chantal aparecer em roupas de maternidade de grife.
O que quer que tivesse que enfrentar em relação ao pai e à dívida seria muito mais fácil se Lizzie estivesse ao seu lado, e não apenas sexualmente.
Amigos podiam se ajudar, certo?
– Tudo bem assim?
Lane voltou a se fixar no advogado.
– Sim. Quanto tempo vai demorar?
– Como já disse, vou entregar tudo ainda hoje a um juiz “amigável” que me deve um ou dois favores. E Mitch Ramsey concordou em disponibilizar a petição para ela imediatamente. Depois só vai faltar rascunhar o acordo do divórcio, e o meu palpite é que ela vá atrás de um tremendo advogado de família, que você vai ter que pagar. Vocês têm vivido separados há mais de sessenta dias, mas ela vai ter que sair desta casa o mais rápido possível, caso você tenha a intenção de ficar. Não quero que isso atrase o processo em dois meses, graças a uma possível alegação de coabitação da parte dela. O meu palpite é que ela contestará tudo, porque vai querer o máximo de dinheiro que puder de você. O meu objetivo é tirá-la da sua vida com apenas as roupas do corpo e aquele anel de um quarto de milhão de dólares que você lhe deu, e só.
– Parece-me uma excelente ideia. – Ainda mais porque ele não sabia se existia um centavo a mais para gastar em algum lugar que não fosse nas suas contas. – Onde assino?
Samuel apresentou diversos papéis para que fossem assinados. Tudo acabou antes que Lane terminasse seu primeiro copo de bourbon.
– Quer que eu te dê um adiantamento? – perguntou, ao devolver a Montblanc ao advogado.
Samuel T. terminou o drinque, depois se serviu de mais gelo e de mais uma dose do Reserva de Família.
– Fica por conta da casa.
Lane se retraiu.
– Que é isso, cara? Não posso deixar que faça assim. Deixe que eu…
– Não. Sério, não gosto dela, e ela não pertence a esta família. Encaro esse divórcio como parte da manutenção da casa. Uma vassoura para jogar o lixo fora.
– Eu não sabia que você a detestava tanto assim.
Samuel T. apoiou as mãos no quadril e baixou o olhar para o tapete oriental.
– Vou ser totalmente franco.
Lane já tinha entendido qual seria o assunto, pela maneira como o advogado contraía o maxilar.
– Vá em frente.
– Uns seis meses depois que você foi embora, Chantal ligou para mim. Pediu que eu viesse para cá, e quando eu me neguei, ela apareceu na minha casa. Ela estava querendo um “amigo”, como ela mesma disse, depois enfiou a mão dentro das minhas calças e se ofereceu para ficar de joelhos. Disse a ela que ela era louca. Mesmo se eu estivesse atraído por ela, o que nunca foi o caso, a sua família e a minha são amigas há gerações. Eu jamais ficaria com uma esposa sua, divorciada, separada ou casada. Além disso, a Virgínia é uma boa faculdade para se frequentar, mas eu não me casaria com uma moça de lá, e era exatamente isso que ela pretendia.
Caramba, às vezes ele odiava ter razão quanto àquela vadia, odiava mesmo.
– Não estou surpreso, mas fico contente que tenha me contado. – Lane levantou a mão. – Um dia vou retribuir o favor.
O advogado aceitou o que lhe era oferecido, depois se curvou de leve, e partiu com o copo.
– Você pode ser preso por beber na rua – Lane exclamou. – Para a sua informação.
– Só se eu for apanhado – Samuel T. exclamou de volta.
– Louco – murmurou Lane ao terminar o próprio drinque.
Quando foi se servir de outra dose, seu olhar recaiu sobre a pintura a óleo acima da cornija da lareira. Era um retrato de Elijah Bradford, o primeiro membro da família a ter dinheiro o bastante para se sobressair de seus pares, posando para um artista americano de renome.
Será que ele estava se revirando no túmulo àquela altura?
Ou isso aconteceria depois… quando o fedor piorasse?
Gin sentiu uma onda de pânico ao descer a escadaria principal de Easterly.
Assim que viu o Jaguar vintage diante da casa, tirou as roupas que usara na cadeia, pelo amor de Deus, e colocara um vestido de seda com barra bem acima dos joelhos. Borrifou um pouco de perfume. Calçou sapatos que deixavam seus tornozelos mais finos do que nunca.
A julgar pelas portas fechadas da sala de estar, ela sabia que o irmão estava falando com Samuel T. a respeito da Situação. Ou das Situações.
Deixou-os à vontade.
Em vez de entrar na sala, foi para a porta da frente e esperou ao lado do conversível antigo. A temperatura devia estar nos vinte e poucos graus, apesar de o sol já estar se pondo, e havia certa umidade no ar – ou talvez fossem seus nervos fora de controle. Para aproveitar um pouco de sombra, foi para debaixo de uma das magnólias que cresciam próximas à casa.
Enquanto olhava para o carro, lembrou-se das vezes que esteve nele com Samuel T., do vento noturno em seus cabelos, da mão dele entre suas pernas enquanto ele os conduzia pelas estradas cheias de curvas da sua fazenda.
O conversível fora comprado por Samuel T. pai, no dia do nascimento daquele que acabou sendo o único herdeiro do homem. E foi dado ao jovem Samuel T. em seu décimo oitavo aniversário, com instruções precisas de que ele não se matasse nessa coisa.
E, engraçado, as instruções deram resultado: só quando estava atrás daquele volante é que aquele homem era cuidadoso. Gin suspeitava de que ele sabia que se algo lhe acontecesse, sua árvore genealógica chegaria ao fim.
Ele era o único membro da sua geração que sobrevivera.
Foram muitas tragédias.
Que, até aquele exato instante, não lhe interessaram muito.
Enquanto aguardava, seu coração batia rápido, e a agitação em seu peito a deixava tonta. Ou talvez fosse o calor…
Samuel T. parou diante da porta da frente e saiu de Easterly com um copo de cristal na mão. Ele formava uma figura impressionante com o terno cortado sob medida, seu lindo rosto e a maleta com monograma. Estava usando óculos de sol com armação dourada, e os cabelos escuros e espessos estavam penteados para trás, com um topete que parecia ter sido milimetricamente arrumado, mas que, na verdade, nunca requeria isso.
Ele parou quando a viu. Depois disse em sua fala arrastada: – Veio me agradecer por te salvar?
– Preciso falar com você.
– É mesmo? Vai tentar negociar um adiantamento que não envolva dinheiro? – Bebeu todo o líquido e deixou o copo no primeiro degrau, como só alguém que sempre teve empregados faria. – Estou aberto a sugestões.
Ela avaliou cada passo que ele deu na direção dela e do carro. Conhecia muito bem aquele corpo forte e musculoso, que denunciava o fazendeiro que era no fundo de sua alma, debaixo de todas aquelas roupas elegantes de advogado.
Amelia seria alta como ele. E também era inteligente como ele.
Infelizmente, a menina era boba como a mãe, ainda que talvez um dia pudesse superá-lo.
– E então? – incitou-a ao colocar a maleta no banco. – Posso escolher como vai pagar a sua conta?
Mesmo através das lentes escuras, sentia o olhar dele. Ele a desejava, sempre a desejou, e às vezes, ele a detestava por isso: não era um homem que apreciava restrições, mesmo as autoimpostas.
Ela também era assim.
Samuel T. meneou a cabeça.
– Não me diga que o gato comeu a sua deliciosa língua. Seria uma pena tremenda ficar sem essa parte da sua anatomia…
– Samuel.
No instante em que ele ouviu o tom de voz dela, franziu o cenho e tirou os óculos escuros.
– O que aconteceu?
– Eu…
– Alguém a destratou na cadeia? Porque vou pessoalmente até lá e…
– Case comigo.
Ele parou no ato, tudo congelou: a expressão dele, a respiração, talvez até mesmo o coração. Depois ele gargalhou.
– Certo, certo, certo. Claro que você…
– Estou falando sério.
A porta do carro se abriu silenciosamente, um testemunho dos cuidados que ele tinha com o carro.
– O dia que você se assentar com qualquer homem será o dia do Segundo Advento.
– Samuel, eu te amo.
Ele lhe lançou um olhar sardônico.
– Ora, por favor…
– Preciso de você.
– A cadeia mexeu mesmo com você, não mexeu? – Ele se acomodou no banco do motorista e ficou olhando para o capô por um instante. – Olha aqui, Gin, não se sinta mal por ter parado lá, ok? Consegui apagar qualquer rastro, então a sua ficha vai ficar limpa. Ninguém vai saber de nada.
– Não é esse o motivo. Eu só… Vamos nos casar. Por favor.
Olhando para ela, ele franziu tanto o cenho que suas sobrancelhas se uniram.
– Você parece estar falando sério.
– Estou mesmo. – Ela não era idiota. Ela lhe contaria sobre Amelia mais tarde, quando fosse mais difícil para ele escapar, quando houvessem documentos que os unissem, até que ele superasse o que ela lhe fizera. – Você e eu nascemos para ficar juntos. Você sabe disso. Eu sei. Estamos dando voltas neste nosso relacionamento a vida toda, mais até. Você sai com garçonetes, manicures e massagistas porque elas não são eu. Você compara cada uma dessas mulheres ao meu padrão e todas elas perdem. Você é obcecado por mim, assim como eu sou por você. Não vamos mais mentir, vamos fazer o que é certo.
Ele voltou o olhar para o capô e escorregou as belas mãos sobre o volante de madeira.
– Deixe eu te perguntar uma coisa.
– Qualquer coisa.
– Para quantos homens você já disse isso? – Voltou a olhar para ela. – Hein? Quantos, Gin? Quantas vezes você usou essas frases?
– É a verdade – ela disse numa voz entrecortada.
– Você também tentou esse tom de súplica com eles, Gin? Bateu os cílios para eles?
– Não seja cruel.
Depois de um longo silêncio, ele meneou a cabeça.
– Você se lembra da minha festa de trigésimo aniversário? Aquela que aconteceu na minha fazenda?
– Isso não tem nada a ver com…
– Foi uma bela surpresa. Eu não fazia a mínima ideia de que vocês estariam lá esperando por mim. Entrei na minha casa e… surpresa! Todas aquelas pessoas gritando, e eu procurei por você…
Ela levantou as mãos.
– Isso aconteceu cinco anos atrás, Samuel! Foi…
– Na verdade, foi o resumo do nosso relacionamento, Gin. Eu procurei por você… percorri os olhos pela multidão, fui atrás de você…
– Aquilo não foi importante. Nenhum deles importou…
– … porque, como você mesma disse, sou um tolo e você foi a única mulher que eu quis de verdade. E eu te encontrei… transando com aquele jogador de polo argentino, hóspede de Edward, na minha cama.
– Samuel…
– Na minha cama! – ele esbravejou, batendo com o punho no painel. – Na porra da minha cama, Gin!
– Tudo bem! E o que foi que você fez? – Ela empinou o quadril e apontou o dedo na direção dele. – O que foi que você fez? Você pegou a minha colega de quarto da faculdade e a irmã dela e transou com as duas na piscina.
Ele praguejou alto.
– O que eu deveria ter feito? Deixar que você me pisoteasse? Sou homem, não um dos seus amigos coloridos patéticos! Eu não vou…
– Fiquei com o jogador de polo porque na semana anterior você dormiu com Catherine! Eu era amiga dela desde os dois anos, Samuel. Tive que ficar ouvindo-a contar e repetir que você lhe deu os melhores orgasmos da vida dela no banco de trás do seu carro. Depois de ter ficado comigo na noite anterior! Então, não venha me dizer que você foi o…
– Chega. – De repente, ele correu os dedos pelos cabelos. – Já chega, pare. Não vamos mais fazer isso, Gin. Temos as mesmas discussões desde que éramos adolescentes…
– Brigamos porque gostamos um do outro e somos orgulhosos demais para admitir isso. – Quando ele se calou de novo, ela teve esperança de que ele estivesse repensando. – Samuel, você é o único homem que eu amei. O mesmo acontece com você. É simples assim. Se precisamos parar de fazer alguma coisa, é de brigar e de nos magoar. Somos dois teimosos e orgulhosos demais para o nosso próprio bem.
Houve um longo silêncio.
– Por que agora, Gin…
– Porque… chegou a hora.
– Tudo isso só por causa da revista íntima das dez da manhã?
– Você precisa mesmo falar assim?
Samuel T. balançou a cabeça.
– Não sei se você está falando sério ou não, mas não é problema meu. Deixe-me ser bem claro.
– Samuel – ela o interrompeu –, eu te amo.
E ela estava falando sério. Ela estava abrindo a alma. A terrível convicção de que as coisas ficariam ruins para a família se enraizara e se espalhara, trazendo com ela uma certeza que ela nunca teve antes.
Ou talvez houvesse mais por trás – uma coragem que antes lhe faltara. Em todos aqueles anos juntos, ela nunca lhe dissera o que sentia verdadeiramente. Ela só se preocupava em manter a pose e dizer a última palavra. Bem, e criar a filha dele… não que ele soubesse disso ainda.
– Eu te amo – sussurrou.
– Não. – Ele abaixou a cabeça e apertou o volante como se buscasse forças dentro dele mesmo. – Não… Você não pode fazer isso, Gin. Não comigo. Não tente levar a farsa tão a fundo. Não é saudável para você. E eu acho que eu não sobreviveria, ok? Preciso funcionar… minha família precisa de mim. Não vou permitir que enlouqueça minha cabeça tanto assim…
– Samuel…
– Não! – ele exclamou.
Depois ele a encarou, os olhos azuis frios e agudos, como se estivesse diante de um inimigo.
– Primeiro, não acredito em você, ok? Acho que está mentindo para me manipular. Segundo? Jamais permitirei que uma esposa minha me desrespeite da maneira como você desrespeitará o seu marido. Você é fundamentalmente incapaz de ser monógama e, indo direto ao ponto, você se entedia rápido demais para valorizar um relacionamento durável. Você e eu podemos nos divertir de vez em quando, mas eu jamais honraria uma puta como você com o meu sobrenome. Você menospreza as garçonetes? Tudo bem. Mas eu preferiria que alguém assim tivesse a minha aliança no dedo do que uma menina mimada e desleal como você.
Ele deu a partida no carro, e o cheiro doce da gasolina e de óleo fugazmente se espalhou pelo ar quente.
– Eu te procuro da próxima vez que tiver vontade de cuidar de um assunto do qual prefiro não cuidar sozinho. Até então, divirta-se com o resto da população.
Gin levou as duas mãos sobre a boca quando ele deu marcha ré, e o carro desapareceu pelo caminho, colina abaixo.
Conforme ele sumia, lágrimas caíram dos olhos dela, borrando o rímel e, de maneira inédita, ela não se importou.
Dera seu único lance.
E fracassara.
Aquele era o seu pior pesadelo se concretizando.
VINTE E TRÊS
– Hum, Lisa?
Lizzie ficou estática assim que ouviu o sotaque sulista arrastado se infiltrando na estufa, o que foi estranho porque estava desmontando as mesas que usaram para os arranjos florais e uma delas ficou equilibrada apenas em uma perna.
– Lisa?
Ao erguer o olhar, Lizzie viu a esposa de Lane parada à porta como se estivesse posando para uma câmera, com uma mão no quadril e a outra jogando os cabelos para trás. Vestia calças de seda cor-de-rosa Mary Tyler Moore da Laurie Petrie e uma blusa com decote baixo num tom laranja pôr do sol. Os sapatos eram de bico fino, com saltos pequenos e, para completar, uma echarpe dramática e transparente em tons cítricos de amarelo e verde envolvia seus ombros, amarrada diante dos seios perfeitos.
Levando-se tudo em consideração, a composição criava uma impressão de Frescor, Amabilidade e Tentação, fazendo que alguém que estava Cansada, Ansiosa e Estressada se sentisse ainda mais deficiente – não apenas com relação ao penteado e à vestimenta, mas até à genética molecular.
– Pois não? – Lizzie disse enquanto prosseguia batendo numa das pernas.
– Poderia parar de fazer isso? É muito barulhento.
– Será um prazer – Lizzie disse entredentes.
Por algum motivo, enquanto a mulher brincava com as mechas loiras, o brilho do diamante em sua mão esquerda foi como se alguém lançasse uma maldita bomba repetidamente.
Chantal sorriu.
– Preciso da sua ajuda para uma festa.
Podemos apenas terminar a de amanhã primeiro?
– Será um prazer.
– É uma festa para dois. – Chantal sorriu ao soltar a echarpe e avançar um pouco mais. – Puxa, como está quente aqui. Não pode fazer nada a respeito?
– As plantas gostam mais do calor.
– Oh. – Tirou a echarpe e a deixou ao lado de um buquê que seria colocado num dos ambientes sociais da casa. – Bem.
– Você dizia?
Aquele sorriso retornou.
– Logo será nosso aniversário de casamento, meu e de Lane, e eu gostaria de preparar algo especial.
Lizzie engoliu em seco, e ficou se perguntando se aquele seria algum tipo de jogo doentio. Será que a mulher ouvira alguma coisa lá no segundo andar através das paredes?
– Pensei que tivessem se casado em julho.
– Quanta gentileza sua se lembrar. Você é tão atenciosa. – Chantal inclinou a cabeça para o lado e fixou o olhar no seu, como se estivessem partilhando um momento especial. – Sim, nos casamos em julho, mas tenho uma novidade muito especial para contar para ele, e pensei em comemorar um pouco antes.
– No que pensou?
Lizzie não acompanhou muito bem enquanto ela falava. As únicas coisas que captou foi “romântico” e “reservado”. Como se Chantal estivesse planejando presentear o marido com uma dança íntima.
– Lisa? Você está escrevendo tudo isso?
Bem, não, porque estou sem caneta e papel, não é? E P.S.: acho que vou vomitar.
– Ficarei contente em planejar o que quer que tenha em mente.
– Você é tão prestativa. – A mulher acenou para a tenda e para o jardim do lado de fora. – Sei que tudo ficará lindo amanhã.
– Obrigada.
– Podemos conversar mais a respeito depois. Mas repito, estou pensando num jantar romântico numa suíte do Cambridge Hotel. Você poderá providenciar as flores e a decoração especial. Quero que tudo seja coberto com panos a fim de criar um lugar exótico, apenas para nós dois.
– Tudo bem.
Será que Lane tinha mentido? E se tinha… bem, isso faria com que Greta cuidasse de tudo durante o Brunch do Derby, enquanto ela ficaria na fazenda se ocupando de um galão de sorvete de chocolate.
Só que ela e sua colega de trabalho não estavam conversando mais.
Fantástico.
– Você é a melhor. – Chantal consultou o relógio de diamantes. – Já está na hora de você voltar para casa, não está? Grande dia amanhã… Você vai precisar do seu sono de beleza. Tchauzinho por enquanto.
Quando Lizzie se viu só novamente, sentou-se num dos baldes virados para baixo e apoiou as mãos sobre os joelhos, esfregando-os para cima e para baixo.
Respire, ela se ordenou. Apenas respire.
Greta estava certa. Ela não estava no nível daquelas pessoas, e não só por ser apenas uma jardineira. Eles jogavam um jogo do qual ela só sairia perdendo.
Hora de ir embora, resolveu. O sono de beleza não iria acontecer, mas, pelo menos, ela poderia tentar e seguir em frente, antes que a bomba estourasse no dia seguinte.
Levantou-se, e já estava para sair quando viu a echarpe. A última coisa que queria era ter que entregar o pedaço de seda para Chantal, como se fosse um labrador devolvendo uma bola de tênis para seu dono. Mas aquela coisa estava bem ao lado de todos aqueles buquês e, conhecendo sua sorte, algo poderia vazar e cair em cima do pano, e ela teria que poupar três meses de salário para comprar um novo.
O guarda-roupa de Chantal era mais caro que bairros inteiros de Charlemont.
Pegando a peça, pensou onde a mulher poderia ter ido com aqueles estúpidos saltos finos.
Não seria difícil localizá-la.
Gin ainda estava debaixo da magnólia onde Samuel T. a deixara quando um veículo veio subindo pela entrada da frente. Foi só quando o SUV parou diante dela que ela percebeu que era da delegacia do Condado de Washington. Bom Deus, quais seriam as alegações do pai para prendê-la desta vez? Graças ao horrendo trajeto daquela manhã até o centro da cidade, seu primeiro instinto foi o de correr, mas estava com saltos, e se queria mesmo fugir do policial, teria que escapar por uma moita de flores.
Quebrar a perna não a ajudaria em nada na prisão.
O delegado Mitchell Ramsey saiu com um maço de papéis na mão.
– Senhorita – ele a cumprimentou com um aceno. – Como está?
Ele não tirou algemas do bolso. Não mostrava nenhum interesse nela além de uma mera educação.
– Veio aqui por minha causa? – ela perguntou de repente.
– Não. – Os olhos dele se estreitaram. – A senhorita está bem?
Não, nem um pouco, delegado.
– Sim, obrigada.
– Se me der licença…
– Então, não veio atrás de mim?
– Não, senhorita. – Ele andou até a porta e tocou a campainha. – Não vim.
Talvez estivesse relacionado à Rosalinda?
– Por aqui – ela disse, passando por ele. – Entre. Está procurando pelo meu irmão?
– Não, Chantal Baldwine está em casa?
– É bem provável. – Ela abriu a porta principal, e o delegado tirou o chapéu ao entrar. – Deixe-me encontrar… ah, senhor Harris. Pode, por favor, conduzir este cavalheiro até a minha cunhada?
– Será um prazer – disse o mordomo, curvando-se. – Por aqui, senhor. Acredito que ela esteja na estufa.
– Senhorita… – o delegado murmurou na direção dela, antes de seguir o inglês.
– Vejamos, isso deve ser bem interessante – disse uma voz na sala de estar.
Ela se virou.
– Lane?
O irmão estava diante do quadro de Elijah Bradford, e ergueu um copo baixo.
– Ao meu divórcio!
– Mesmo? – Gin andou e se ocupou no bar porque não queria que Lane se concentrasse nos seus olhos vermelhos e no seu rosto inchado. – Bem, pelo menos eu não terei mais que tirar as joias de mamãe do pescoço dela. Já vai tarde, mas estou surpresa que você não queira apreciar o espetáculo.
– Tenho problemas mais importantes.
Gin levou seu bourbon com soda para o sofá e, com um chute, tirou os sapatos. Enfiando as pernas debaixo do corpo, encarou o irmão.
– Você está horrível – ela disse. Tão péssimo quanto ela, na verdade.
Ele se sentou diante dela.
– Isso vai ser difícil, Gin. A situação financeira. Acho que é bem séria.
– Talvez possamos vender ações. Quero dizer, você pode fazer isso, não? Eu não faço ideia de como funciona.
E, pela primeira vez na vida, desejou saber.
– É complicado por conta da situação dos fundos.
– Hum… nós vamos ficar bem. – Quando o irmão não disse nada, ela franziu o cenho. – Certo? Lane?
– Eu não sei, Gin. Não sei mesmo.
– Sempre tivemos dinheiro.
– Sim, isso era verdade.
– Você faz com que isso pareça pertencer ao passado.
– Não se engane, Gin.
Curvando o pescoço para trás, ela ficou olhando para o teto, imaginando a mãe deitada na cama. Qual seria o futuro dela? Será que um dia ela se recolheria e puxaria as cortinas a fim de viver num torpor induzido pelas drogas?
Por certo, isso lhe parecia atraente agora.
Deus, Samuel T. tinha mesmo recusado seu pedido?
– Gin, você andou chorando?
– Não – ela disse com suavidade. – É apenas uma alergia, meu querido irmão. Apenas alergia causada pela primavera…
VINTE E QUATRO
Lizzie se apressou para fora da estufa com a echarpe perfumada de Chantal, e toda aquela fragrância emanando do tecido pesava em seu nariz, fazendo-a querer espirrar. Engraçado, conseguia ficar rodeada por milhares de flores de verdade, mas aquela coisa fabricada, artificial e forte bastava para mandá-la atrás de um Claritin.
Ao longe, ouviu o inconfundível sotaque arrastado típico da Virgínia de Chantal e seguiu na direção da sala de jantar para…
– O que é isso? – Chantal exigiu saber.
Lizzie parou de repente e espiou ao redor da arcada pesada de gesso.
Na ponta oposta da longa mesa lustrada, Chantal estava diante de um delegado uniformizado que, aparentemente, lhe entregara um maço de papéis.
– A senhora recebeu sua petição. – O delegado assentiu. – Passe bem.
– O que quer dizer com “petição”? O que quer… Não, você não vai embora até eu abrir isso. – Ela rasgou o envelope. – Fique aqui até eu…
Os papéis saíram do envelope num maço dobrado em três, e quando a mulher os esticou, o coração de Lizzie bateu forte.
– Divórcio? – Chantal disse. – Divórcio?
Lizzie voltou para trás e se encostou na parede. Fechando os olhos, odiou o alívio que sentiu, odiou mesmo. Só que ela não tinha como fingir que não era algo bom.
– Esta é uma petição de divórcio! – A voz de Chantal ficou mais aguda. – Por que está fazendo isso?
– Senhora, o meu trabalho é apenas entregar os papéis. Agora que os recebeu…
– Eu não os recebi! – Houve um farfalhar como se, de fato, ela tivesse jogado os papéis na direção do homem. – Pode pegar isso de volta!
– Senhora – o policial rugiu –, vou aconselhá-la a pegar esses papéis do chão. Ou não. O problema é seu. Mas se continuar agindo assim, vou ter que levá-la para a cadeia amarrada no teto da minha viatura por se mostrar agressiva com um oficial da justiça. Estamos entendidos?
Então, veio uma cascata.
Entre fungadas e o que deviam ter sido arquejos, Chantal mudou de atitude rapidamente.
– O meu marido me ama. Ele não está falando sério. Ele…
– Senhora, nada disso é da minha conta. Passe bem.
Passadas pesadas ecoaram e se afastaram.
– Maldição, Lane! – a mulher sibilou com uma dicção perfeita.
Pelo visto a atuação só acontecia quando havia uma plateia.
Sem aviso, um toc-toc-toc daqueles saltos atravessou o cômodo indo na direção de Lizzie. Merda, não havia tempo de sair dali…
Chantal fazia a curva e se sobressaltou ao ver Lizzie.
Embora a mulher tivesse aberto a torneira para o delegado, seus olhos estavam límpidos, e a maquiagem não estava nem um pouco borrada.
Ódio. Imediato.
– O que está fazendo? – Chantal berrou, o corpo trêmulo. – Ouvindo atrás das portas?
Lizzie estendeu a echarpe.
– Eu estava trazendo isto para você…
Chantal agarrou o tecido.
– Saia daqui. Saia! Saia imediatamente!
Não precisa pedir duas vezes, Lizzie pensou ao virar e seguir para o jardim.
Ao passar por baixo da tenda, serpenteando entre as mesas e cadeiras, pegou o telefone e mandou uma mensagem de texto para Lane, uma que apenas explicava que estava indo para casa após o longo dia de trabalho.
Deus bem sabia que o homem teria trabalho assim que Chantal o encontrasse.
A boa notícia, pelo menos para Lizzie?
Nada de festa de aniversário de casamento para planejar.
Lane não tinha mentido.
Foi difícil conter o sorriso que surgiu em seus lábios. E quando ele se recusou a ir embora, ela deixou que ele ficasse bem onde estava.
O telefone de Lane emitiu um bipe bem quando Chantal marchava pela sala de estar, gritando o nome dele enquanto partia em direção às escadas. Ele não denunciou seu paradeiro, simplesmente deixou que ela seguisse para o andar de cima, e fizesse o escândalo que planejava diante da porta fechada do seu quarto.
Engraçado, meras horas atrás, o fato de ela estar preparando uma guerra era um problema para ele. Mas agora? Aquilo estava tão embaixo na sua lista de prioridades…
– Preciso ir ver Edward – Lane disse, sem se importar em ver quem lhe mandara uma mensagem.
Gin levantou a cabeça.
– Eu não faria isso. Ele não está bem, e a notícia que você tem só pode piorar a situação.
Ela tinha razão. Edward já odiava o pai deles, que dirá a ideia de que o homem tivesse roubado dos fundos.
Gin levantou e foi até o bar para se servir novamente.
– Amanhã ainda está de pé?
– O Brunch? – Ele deu de ombros. – Não sei como impedir isso. Além do mais, já está tudo praticamente pago. A comida, a bebida, as coisas alugadas.
Ele sentia vergonha da outra motivação do evento: a ideia de que o mundo tivesse sequer uma pista dos problemas que sua família enfrentava lhe era inaceitável.
O som de alguém descendo os degraus acarpetados em disparada fez com que Gin erguesse uma sobrancelha.
– Parece que você vai ter um momento conjugal.
– Só se ela me encontrar…
Chantal apareceu na porta da sala de estar, com o rosto normalmente pálido e tranquilo tão rosado quanto o de um carvão em brasa numa churrasqueira.
– Como ousa? – a esposa exigiu saber.
– Imagino que esteja indo preparar as malas, querida – Gin disse com um sorriso digno da manhã de Natal. – Devo chamar o mordomo? Acho que podemos lhe fazer essa última cortesia. Considere como um presente de despedida.
– Não vou sair desta casa – Chantal ignorou Gin. – Você me entendeu, Lane?
Ele girou o gelo no copo com o indicador.
– Gin, pode nos dar um pouco de privacidade, por favor?
Com um aceno, a irmã foi para a porta e, ao passar por Chantal, parou e olhou para trás na direção dele.
– Certifique-se de que o mordomo verifique a bagagem dela, para garantir que ela não leve nenhuma joia.
– Você não presta – Chantal sibilou.
– Não mesmo. – Gin deu de ombros como se a mulher mal merecesse suas palavras. – Mas tenho o direito ao nome Bradford e a este legado. Você não. Tchauzinho.
Enquanto Gin acenava remexendo os dedos, Lane se adiantou e se colocou entre as duas a fim de impedir um momento Alexis/Krystle.21 Depois foi para frente e fechou as portas, mesmo não desejando estar a sós com a esposa.
– Não vou embora. – Chantal girou na direção dele. – E isso não vai acontecer.
Enquanto ela jogava os papéis do divórcio aos pés dele, Lane só conseguia pensar que não tinha tempo para aquilo.
– Escute aqui, Chantal, podemos fazer isso do jeito fácil ou do jeito difícil, a escolha é sua. Mas se escolher a última opção, vou atrás não só de você, mas da sua família também. Como acha que os seus pais batistas se sentiriam se recebessem uma cópia dos seus registros médicos em casa? Não creio que eles sejam favoráveis ao aborto, certo?
– Você não pode fazer isso!
– Não seja idiota, Chantal. Existem inúmeras pessoas para quem posso ligar, pessoas que devem à minha família e que ficariam muito contentes em pagar essa dívida. – Voltou ao bar e se serviu de mais Reserva de Família. – Ou, que tal assim: e se esses registros médicos caíssem nas mãos da imprensa implacável, talvez na internet? As pessoas entenderiam o motivo de eu querer me divorciar, e você teria muita, mas muita dificuldade para encontrar outro marido. Diferentemente do que acontece no norte, os homens sulistas têm padrões de comportamento para suas esposas, que não incluem o aborto.
Houve um momento prolongado de silêncio. Em seguida, o sorriso que ela lançou na direção dele foi inexplicável, tão confiante e calmo que ele teve que se perguntar se ela não havia enlouquecido de vez naqueles dois últimos anos.
– Você tem mais motivos para ficar quietinho do que eu – ela disse com suavidade.
– Tenho? – Ele sorveu um gole grande. – Por que acha isso? Só o que fiz foi correr de uma mulher que eu, supostamente, engravidei. De todo modo, quem pode garantir que era meu?
Ela apontou para a papelada.
– Você vai dar um jeito de fazer isso desaparecer. Vai permitir que eu continue aqui pelo tempo que eu quiser. E vai me acompanhar às festividades do Derby amanhã.
– Em qual universo paralelo?
A mão dela desceu para o ventre.
– Estou grávida.
Lane gargalhou.
– Você já tentou isso antes, minha cara. E todos nós sabemos como terminou.
– A sua irmã estava errada.
– Quanto a você roubar joias? Talvez. Veremos.
– Não. Sobre eu não ter o direito de ficar aqui. Assim como o meu filho. A bem da verdade, o meu filho tem tanto direito ao legado Bradford quanto você e Gin.
Lane abriu a boca para dizer alguma coisa, mas logo voltou a fechá-la.
– Do que está falando?
– Lamento dizer, mas o seu pai é um marido tão ruim quanto você.
Um tinido subiu do copo e, quando ele olhou para baixo, notou de uma vasta distância que sua mão tremia, fazendo o gelo se agitar.
– Isso mesmo – Chantal disse, com voz muito calma. – E acho que você está ciente da condição delicada da sua mãe. Como ela se sentiria se soubesse que o marido dela não só foi infiel, mas que logo terá um filho? Acha que ela vai tomar ainda mais daquelas pílulas das quais já é tão dependente? Provavelmente. Sim, tenho certeza de que ela tomaria.
– Sua vadia – ele sussurrou.
Em sua mente, viu-se colocando as mãos ao redor do pescoço da mulher, apertando, apertando com tanta força que ela começaria a se debater enquanto seu rosto ficaria roxo e a boca se abriria.
– Por outro lado – Chantal murmurou –, sua mãe não adoraria saber que seria avó pela segunda vez? Não seria motivo de comemoração?
– Ninguém acreditaria – ele se ouviu dizer.
– Ah, acreditaria, sim. Ele vai ser igualzinho a você… E tenho ido a Manhattan com bastante regularidade, para trabalhar no nosso relacionamento. Todos sabem disso.
– Você está mentindo. Nunca vi você.
– Nova York é uma cidade grande. Fiz questão que todos ficassem sabendo que me encontrei com você e que aproveitei a sua companhia. Também mencionei às meninas no clube, aos maridos delas nas festas, à minha família… Todos têm demonstrado tanto apoio para nós.
Enquanto ele permanecia em silêncio, ela sorriu com doçura.
– Portanto, você pode ver que esses papéis de divórcio não serão necessários. E você não dirá nada a respeito do que aconteceu entre nós e o nosso primeiro bebê. Se fizer isso, vou ter que contar tudo a respeito da sua família e envergonhá-lo diante desta comunidade, da sua cidade, do seu Estado. E então veremos quanto tempo vai levar para que você vista um terno de enterro. A sua mãe está meio fora de si, mas não está completamente isolada, e aquela enfermeira lê o jornal todas as manhãs ao lado da cama dela.
Com uma expressão de imensa satisfação, Chantal se virou e escancarou a porta, batendo os saltos no vestíbulo de mármore, mais uma vez senhora do prazer com seu sorriso de Monalisa.
O corpo inteiro de Lane tremia, os músculos gritavam pedindo ação, vingança, sangue… Mas a ira não estava mais direcionada à esposa.
Estava toda direcionada ao seu pai.
Chifrado. Ele acreditava que essa era a palavra adequada para descrever aquele tipo de situação.
Fora chifrado pelo próprio pai.
Quando é que a merda deste dia vai acabar?, ele se perguntou.
Alexis e Krystle são personagens antagonistas da série televisiva americana Dinastia (1981-1989). (N.T.)
VINTE E CINCO
Lizzie disse a si mesma que não olharia para o celular. Não olhou ao tirá-lo da bolsa e ao transferi-lo para seu bolso de trás assim que entrou pela porta da frente da sua casa de fazenda. Nem quando, quinze minutos mais tarde, se certificou de que o aparelho não estava no silencioso. E nem quando, dez minutos depois disso, destravou a tela só para ver se não havia nenhuma chamada perdida, nem mensagens de texto.
Nada.
Lane não telefonara para saber se ela tinha chegado em casa. Não respondera à sua mensagem. Mas, convenhamos, ele devia estar bem ocupado no momento.
Puxa.
Mesmo assim, estava ansiosa, andando de um lado para outro. A cozinha estava imaculada, o que era uma pena, porque bem que gostaria de ter alguma coisa para limpar. A mesma coisa com o banheiro no andar de cima. Caramba, até a cama estava arrumada. E ela tinha lavado a roupa na noite anterior. A única coisa que encontrou fora do lugar foi a toalha que usara pela manhã para ser secar após o banho. Deixara-a pendurada sobre a cortina do box, e já que ainda estava dentro dos dois dias de uso antes de colocá-la no cesto de roupa suja, a única coisa que podia fazer era dobrá-la e recolocá-la no porta-toalhas afixado à parede.
Graças basicamente ao dia desprovido de nuvens, a casa estava quente no segundo andar e ela foi abrindo todas as janelas. Uma brisa trouxe o odor da campina que circundava a propriedade, livrando a casa do abafado.
Se ao menos pudesse fazer o mesmo com a sua cabeça… Imagens do dia a bombardeavam: ela e Lane rindo assim que ela chegara para trabalhar; ela e Lane olhando para aquela planilha no laptop; ela e Lane…
Com a cabeça cheia, Lizzie voltou para a cozinha e abriu a geladeira. Nada de mais ali. Certamente nada que tivesse interesse em comer.
Quando a necessidade de verificar o celular surgiu de novo, ela se obrigou a resistir. Chantal sabia ser um problema num dia bom. Tinha recebido a papelada do divórcio, e ainda por cima a cena foi vista por um dos empregados…
O som de passos na varanda da frente chamou sua atenção.
Franzindo o cenho, fechou a porta da geladeira e seguiu até a sala de estar. Não se deu ao trabalho de ver quem era. Só havia duas opções: o vizinho da esquerda, que morava uns sete quilômetros estrada abaixo e tinha vacas que, com frequência, quebravam a cerca e vagavam pelos campos de Lizzie; ou o da direita, que ficava a meio quilômetro, e cujos cachorros costumavam se afastar para espiar as vacas soltas.
Começou a cumprimentar antes mesmo de abrir a porta.
– Oi, tudo…
Não era nenhum vizinho vindo se desculpar por invasões bovinas nem caninas.
Lane estava na varanda, com o cabelo pior do que de manhã, as ondas escuras espetadas como se ele tivesse tentado arrancar os fios.
Ele estava cansado demais para sorrir.
– Pensei em ver, pessoalmente, se você tinha chegado bem em casa.
– Oi, nossa, entre.
Encontraram-se na metade do caminho, corpo a corpo, e ela o abraçou com força. Seu cheiro era de ar fresco, e, por cima do ombro, ela viu que o Porsche estava com a capota abaixada.
– Você está bem? – ela perguntou.
– Melhor agora. A propósito, estou meio bêbado.
– E veio dirigindo? Isso foi idiotice e perigoso.
– Eu sei. É por isso que estou confessando.
Ela recuou e deixou que ele entrasse.
– Eu ia comer alguma coisa agora.
– Tem o bastante para dois?
– Ainda mais se for pra te deixar sóbrio. – Sacudiu a cabeça. – Chega de beber e dirigir. Acha que está com problemas agora? Tente acrescentar embriaguez ao volante à sua lista.
– Você tem razão. – Olhou ao redor, e depois foi até o piano dela e descansou as mãos sobre a tampa suave do teclado. – Deus, nada mudou aqui.
Ela pigarreou.
– Bem, estive bastante ocupada no trabalho…
– Isso é bom. Maravilhoso.
A nostalgia estampada em seu rosto enquanto continuava olhando para as ferramentas antigas, as colchas de retalhos penduradas e o sofá simples era melhor do que qualquer palavra que ele pudesse proferir.
– Comida? – ela sugeriu.
– Sim, por favor.
Na cozinha, ele foi direto para a mesinha e se sentou. E, de repente, foi como se nunca tivesse se ausentado.
Cuidado com isso, ela se reprimiu.
– Então, você gostaria de… – Vasculhou o conteúdo da despensa e da geladeira. – Bem, que tal uma lasanha que eu congelei uns seis meses atrás? Com nachos como acompanhamento, de um pacote que abri ontem, terminando com o bom e velho sorvete de menta?
Os olhos de Lane, concentrados nela, ficaram com as pupilas dilatadas.
Tuuuudo bemmmm. Evidentemente, ele planejava outra coisa para a sobremesa, e enquanto o corpo dela se aquecia de dentro para fora, tudo parecia mais que bem para ela.
Caramba, ela não estava nem aí para o bom senso. Livrar-se da esposa dele era apenas a ponta do iceberg, e ela precisava se lembrar disso.
– Essa me parece a melhor refeição do mundo.
Lizzie cruzou os braços e se recostou na geladeira.
– Posso ser franca?
– Sempre.
– Sei que Chantal recebeu a papelada do divórcio. Acabei presenciando sem querer. Não tive a intenção de ver o delegado fazendo aquilo.
– Eu te disse que estava pondo um fim nisso.
Ela esfregou a testa.
– Uns dois minutos antes, ela foi me procurar para planejar um jantar de comemoração do aniversário de casamento de vocês.
Houve um xingamento baixinho.
– Sinto muito. Mas estou te garantindo agora: não há futuro para mim e para ela.
Lizzie o encarou com firmeza por um bom tempo e, em resposta, ele não se moveu, não piscou, não disse nenhuma palavra mais. Só ficou ali sentado… deixando que as ações falassem por ele.
Maldição, ela pensou. Ela não precisava mesmo, de jeito nenhum, voltar a se apaixonar por ele.
Enquanto a noite caía sobre os estábulos, Edward se viu voltando à sua rotina noturna. Copo com gelo? Confere. Bebida? Confere – gim, aquela noite. Poltrona? Confere.
Só que, quando se acomodou e se viu diante daquelas provisões, dedilhou sobre o encosto da poltrona, em vez de colocar os dedos em uso para abrir o lacre da garrafa.
– Vamos lá – disse a si mesmo –, siga com o programado.
Mas não. Por algum motivo, a porta do chalé conversava com ele mais do que o Beefeater, no que se referia a coisas que precisavam ser abertas.
O dia fora bem longo. Ele tinha ido até Steeplehill Downs para dar uma olhada nos seus dois cavalos e dar telefonemas, tanto para o veterinário quanto para o treinador, porque Bouncing Baby Boy teria que ser deixado de lado por conta de um problema no tendão. Em seguida, voltara para lá, para verificar cinco das suas éguas que estavam prenhas, e para revisar os livros contábeis com Moe. Pelo menos as notícias eram boas nessa frente. Pelo segundo mês consecutivo, a operação não apenas se autossustentava, como gerava lucros. Se aquilo se mantivesse, ele poria um fim nas transferências do fundo fiduciário da mãe, que vinham fornecendo uma injeção de caixa nos negócios desde os anos 1980.
Ele queria ser totalmente independente da família.
Na verdade, uma das primeiras coisas que tinha feito quando saíra da reabilitação foi recusar a distribuição dos seus fundos. Ele não queria ter nada a ver com fundos que, mesmo que remotamente, estivessem relacionados com a Cia. Bourbon Bradford, e a totalidade da primeira e da segunda retirada estava ligada diretamente à CBB. Na verdade, só descobrira as transferências do fundo da sua mãe para o Haras Vermelho & Preto uns seis meses após a sua chegada e, naquele tempo, ele mal era capaz de se levantar pela manhã e ir até os estábulos. Se os tivesse recusado naquele tempo, a operação toda teria ido para o buraco.
Fazia muito tempo desde que alguém com um mínimo de perspicácia para os negócios fora até o haras e, a despeito das suas fraquezas atuais, sua habilidade para fazer dinheiro permanecia intocada.
Mais um mês. E então estaria livre.
Deus, estava mais exausto do que de costume. Mais dolorido também. Ou talvez as duas coisas estivessem unidas inextricavelmente.
Mesmo assim, não conseguia pegar a garrafa.
Em vez disso, pôs-se de pé com a ajuda da bengala e claudicou até as cortinas, que permaneciam fechadas desde o dia em que se mudara para lá. Estava um breu do lado de fora, somente as luzes de sódio nas entradas dos estábulos lançavam um brilho cor de pêssego na escuridão.
Xingando baixinho, foi para a porta da frente e a abriu. Parou um instante. Coxeou na escuridão.
Edward atravessou o gramado num andar desigual, e disse a si mesmo que estava indo dar uma olhada na égua que estava com problemas. Sim. Era isso o que iria fazer.
Não iria ver como estava Shelby Landis. Nada disso. Ele não estava, por exemplo, preocupado por não tê-la visto sair da fazenda o dia inteiro, o que provavelmente significava que ela não devia ter comida naquele apartamento.Tampouco iria verificar se, por acaso, ela dispunha de água quente, porque depois de um dia inteiro carregando carrinhos de mão, sacos de grãos do tamanho da picape dela e fardos pinicantes de feno, ela devia estar dolorida e necessitando de uma bela chuveirada.
Ele, positiva e absolutamente, iria…
– Merda.
Sem nem ter se dado conta, fora parar na porta lateral do Estábulo B – a que dava para o escritório, bem como para o lance de escadas que o levaria até os aposentos dela.
Ora, uma vez que já estava ali… ele bem que poderia ver como ela estava. Claro que em lealdade ao pai dela.
Não passou a mão pelos cabelos antes de pousá-la na maçaneta… Tudo bem, talvez tivesse feito isso só um pouquinho, mas apenas porque estava precisando cortar os cabelos e eles tinham caído nos seus olhos.
Luzes detetoras de movimento se acenderam assim que ele chegou ao escritório, e todos aqueles degraus até a parte superior pairavam acima dele como uma montanha que ele teria que se esforçar para escalar. E, vejam só, seu pessimismo tinha razão de ser: ele teve que parar para tomar fôlego na metade do caminho. E outra vez assim que chegou ao alto.
E foi por isso que ouviu as risadas.
De um homem. De uma mulher. Vindas do apartamento de Moe.
Franzindo o cenho, Edward olhou para baixo pela porta de Shelby. Aproximou-se e encostou a orelha na porta. Nada.
Quando fez a mesma coisa na porta de Moe? Ouviu os dois, a fala arrastada sulista de um e de outro como o som de um banjo de uma banda de jazz.
Fechou os olhos por um instante e se recostou na porta fechada.
Em seguida, aprumou-se e, com o auxílio da bengala, desceu todos aqueles degraus, foi para o gramado e voltou ao próprio chalé.
Dessa vez, não teve nenhum problema para abrir a garrafa ou colocar uma dose no copo.
Foi durante a segunda dose que ele por fim se deu conta de que era sexta-feira. Noite de sexta-feira.
Puxa, se isso não era um golpe de sorte.
E ele até tinha um encontro.
VINTE E SEIS
Sutton Smythe olhou para a multidão que lotava a galeria principal do Museu de Arte de Charlemont. Ela reconhecia tantos rostos, tanto pessoalmente quanto dos noticiários, da TV e da tela grande. Muitas pessoas acenavam para ela ao encontrar o seu olhar, e ela foi bastante cordial, erguendo a mão em retribuição.
Tinha esperanças que ninguém se aproximasse.
Não estava interessada em ter que cumprimentar alguém com um beijo no rosto e fazer perguntas educadas a respeito de um cônjuge, tampouco queria ser apresentada à companhia de alguém por aquela noite. Também não queria receber nenhum agradecimento – mais um – pela sua generosa doação de 10 milhões de dólares, feita no mês anterior, que marcou o início da campanha de levantamento de fundos para a expansão do museu. Muito menos queria ter que ouvir falar do empréstimo permanente do Rembrandt e do ovo Fabergé que o pai fizera em homenagem à querida esposa falecida.
Sutton queria ser deixada em paz para vasculhar a multidão em busca do único rosto que queria ver.
O único rosto que queria… que precisava ver.
Mas Edward Baldwine, mais uma vez, não viria. E ela sabia disso, não por ter estado ali nas sombras pela última hora e meia enquanto os convidados da festa que ela oferecia em nome da família chegavam, mas porque insistira em ver uma cópia da lista do RSVP uma vez por semana, e depois diariamente, quando o dia do evento se aproximou.
Ele simplesmente não tinha respondido. Nada de “Sim, irei à festa com prazer”, nem de “Lamento, mas não poderei ir”.
Será que podia mesmo ficar surpresa?
Ainda assim, isso a magoou. Na verdade, o único motivo pelo qual comparecera ao jantar de William Baldwine na noite anterior fora por ter esperanças de ver Edward em sua própria casa. Depois que ele não retornara as suas ligações por dias, meses e agora anos, ela pensou que talvez ele aparecesse à mesa do pai e eles poderiam, de maneira muito natural, se reconectar.
Mas não. Edward também não estivera lá.
– Senhorita Smythe, estamos prontos para iniciar o jantar, se for conveniente para a senhorita. As saladas já foram servidas.
Sutton sorriu para a mulher com uma prancheta na mão e um fone no ouvido.
– Sim, vamos diminuir as luzes. Farei minhas considerações assim que eles estiverem sentados.
– Pois não, senhorita Smythe.
Sutton respirou fundo e observou o caro rebanho fazer o que lhe era orientado e encontrar seus lugares em todas aquelas mesas redondas com arranjos elaborados, pratos dourados e menus impressos sobre guardanapos de linho.
Antes da tragédia, Edward sempre frequentara aquele tipo de evento, lançando sorrisos sardônicos quando outra pessoa surgia pedindo dinheiro para as suas causas. Convidando-a para dançar, como se fosse uma manobra de salvamento, quando ela se via acuada por um convidado conversador. Olhando para ela e piscando… como só ele conseguia fazer.
Eram amigos desde a escola preparatória em Charlemont. Oponentes nos negócios desde que ele se formara em Wharton e ela conquistara seu MBA na Universidade de Chicago. Companheiros sociais desde que ambos ingressaram no circuito de jantares beneficentes depois do falecimento da mãe dela e a dele passara a ficar cada vez mais tempo em seus aposentos.
Nunca foram amantes.
Ela queria que tivessem sido. Muito provavelmente, desde que o conhecera. Edward, contudo, mantivera-se afastado, permanecera distante, até mesmo arrumara encontros para ela.
O coração dela sempre estivera à disposição, mas ela jamais tivera coragem de atravessar aquela fronteira que ele, com tanta determinação, estabelecera entre eles.
E então… Dois anos atrás aquilo aconteceu. Bom Deus, quando ficara sabendo que ele iria mais uma vez para a América do Sul numa daquelas viagens de negócios, teve uma premonição, um alerta, uma sensação ruim. Mas não telefonara para ele. Não tentara falar com ele para tentar convencê-lo a levar mais seguranças ou algo assim.
Portanto, de certa forma, sentia-se parcialmente responsável. Talvez se tivesse…
Mas a quem tentava enganar? Ele não teria deixado de viajar por outro motivo que não condições climáticas adversas. Edward fora um verdadeiro adversário na indústria de bebidas, o óbvio herdeiro da Cia. Bourbon Bradford não apenas pelo direito de nascença, mas pelas suas incríveis ética profissional e astúcia.
Depois do sequestro e do pedido de resgate, o pai dele, William, esforçara-se para libertá-lo, negociando com os sequestradores, trabalhando em conjunto com a embaixada norte-americana. Tudo fracassara até que, no fim, uma equipe especial foi enviada para resgatar Edward.
Não conseguia sequer imaginar o que haviam feito com ele.
E aquele era o aniversário do dia em que fora emboscado durante a viagem.
Tudo aquilo era simplesmente uma tragédia. A América do Sul era um dos lugares mais lindos do planeta com sua comida deliciosa, cenários fantásticos e história fascinante; ela e Edward frequentemente brincavam dizendo que, quando se aposentassem, iriam para lá, para morar em propriedades vizinhas. O sequestro de executivos com exigência de resgate eram um dos pontos perigosos em certas áreas, mas não era muito diferente de atravessar o Central Park às três da manhã. Maus elementos podem ser encontrados em qualquer parte, e não havia motivos para condenar um continente inteiro por conta de uma minoria de bandidos.
Infelizmente, Edward se tornara uma das vítimas.
Depois de todo aquele tempo, ela só queria vê-lo com seus próprios olhos. Algumas fotos desfocadas foram publicadas pela imprensa, e elas, por certo, não a tranquilizaram. Ele sempre aparentava estar muito mais magro, com o corpo encurvado, o rosto sempre abaixado, desviando das lentes.
Para ela, contudo, ele ainda era lindo.
– Senhorita Smythe, está pronta?
Voltando ao presente, Sutton viu que havia mil pessoas sentadas, comendo suas saladas, prontas para ouvi-la discursar.
Sem aviso algum, uma repentina onda de energia ruim bombeou dentro dela, fazendo-a suar no peito, na testa, debaixo dos braços. Enquanto o coração batia descompassado, ondas de tontura fizeram-na esticar a mão para se equilibrar na parede.
O que havia de errado com ela?
– Senhorita Smythe?
– Não consigo – ouviu-se dizer.
– O que disse?
Pressionou os cartões que escrevera com tanto cuidado nas mãos da assistente.
– Outra pessoa terá que…
– O quê? Espere, onde a senhorita…
Ela levantou as palmas e recuou.
– … fazer o discurso.
– Senhorita Smythe, a senhorita é a única que pode…
– Ligo na segunda-feira. Sinto muito. Não consigo.
Sutton não fazia a mínima ideia de onde estava indo enquanto seus saltos finos ressoavam no piso de mármore. Na verdade, foi só quando uma lufada de calor a atingiu que ela percebeu que havia saído do prédio pela saída de incêndio e aparecera na ala oeste do complexo, no ar úmido noturno.
Bem longe do estacionamento onde seu chofer a aguardava.
Caindo de encontro à parede de gesso do museu, inspirou fundo algumas vezes, mas isso não ajudou a aliviar a sensação de sufocamento.
Não poderia ficar ali a noite toda. Mais especificamente, queria sair correndo, ir para longe, correr até que a sensação de terror saísse do seu corpo. Mas isso seria loucura. Certo?
Deus, estava perdendo a cabeça. Finalmente, tudo a estava alcançando.
Ou talvez fosse, mais uma vez e sempre, Edward Baldwine.
Hora de seguir em frente. Aquilo era ridículo.
Tirando os sapatos e segurando-os pelas tiras, começou a andar sobre a grama, se aproximando dos fachos de iluminação das luzes de segurança. Depois do que lhe pareceu uma eternidade, o estacionamento que procurava apareceu quando ela dobrou mais uma esquina, só que, nessa hora, ficou confusa pela quantidade de limusines estacionadas a céu aberto.
Onde estava…
Por pura sorte, o Mercedes C63 a encontrou, e o enorme sedã surgiu à sua frente. A janela do passageiro se abaixou sem emitir nenhum som.
– Senhorita Smythe? – seu chofer disse em tom alarmado. – A senhorita está se sentindo bem?
– Preciso do carro. – Sutton deu a volta, os faróis eram muito claros contra seu vestido de gala prata e seus diamantes. – Preciso do carro, preciso…
– Senhorita? – O homem uniformizado saiu de trás do volante. – Posso levá-la para onde quiser ir…
Ela pegou uma nota de cem dólares da minúscula bolsa de festa.
– Tome. Pegue um táxi, ou ligue para alguém. Sinto muito. Sinto muito, muito, mas preciso ir…
Ele meneou a cabeça ao ver a nota.
– Senhorita, posso levá-la a qualquer lugar…
– Por favor. Preciso do carro.
Houve uma ligeira pausa.
– Muito bem. Sabe como dirigir este…
– Dou um jeito. – Colocou o dinheiro na palma da mão dele e a fechou. – Fique com isso. Vou ficar bem.
– Eu preferiria dirigir.
– Aprecio a sua consideração, de verdade. – Fechou-se dentro do carro, subiu a janela, e olhou ao redor à procura do câmbio ou…
À batida no vidro escuro, ela voltou a abaixá-lo.
– Está ali, ao lado do volante – instruiu o chofer. – A marcha a ré, e ali para a frente. Pronto, assim. E as setas ficam… isso, isso mesmo. A senhorita não deve precisar dos limpadores de para-brisa, e as luzes já estão acesas. Boa sorte.
Ele recuou, do mesmo modo que fazemos quando estamos prestes a acender um fósforo para acionar fogos de artifício. Ou uma bomba.
Sutton pressionou o acelerador, e o potente sedã se lançou para a frente como se tivesse o motor de um jato debaixo do capô. Nos recessos da sua mente, ela fez um cálculo rápido de quantos anos fazia que não dirigia… E a resposta não foi nada encorajadora.
Mas, assim como tudo em sua vida, ela acabaria descobrindo… Ou morreria tentando.
– Importa-se se eu repetir?
Lizzie lhe lançou um olhar de encorajamento e Lane se levantou e foi para a geladeira. A comida estava ajudando a clarear a sua mente, ou talvez fosse a companhia dela.
Provavelmente era mais por estar na presença dela.
– Está muito bom – ele disse ao abrir o congelador e pegar mais uma porção.
A risada dela o fez parar e fechar os olhos, a fim de que o som pudesse inundá-lo ainda mais.
– Você só está sendo gentil – ela murmurou.
– É a mais pura verdade.
Levando o prato ao micro-ondas, ajustou-o para seis minutos e ficou olhando o bloco congelado girar e girar.
– Então, eu vou ter que ir procurar Edward – ouviu-se dizer.
– Quando foi a última vez que o viu?
Ele pigarreou. Sentiu uma tremenda necessidade de beber alguma coisa.
– Foi em…
Por um instante, ficou perdido em pensamentos, tentando encontrar um modo de perguntar se ela tinha alguma bebida em casa.
– Tanto tempo assim?
– Na verdade, eu estava pensando em outra coisa. – Ou seja, que era inteiramente possível que ele tivesse problemas com bebida. – Mas, pensando bem, depois de um dia como o de hoje, quem não seria alcoólatra?
– O que disse?
Ai, merda, falara em voz alta?
– Desculpe, a minha cabeça está a maior confusão.
– Eu queria poder fazer alguma coisa.
– Você já está fazendo.
– Então, quando foi que viu Edward pela última vez?
Lane voltou a fechar os olhos. Mas, em vez de fazer cálculos mentais que revelariam a soma do quanto deixava a desejar como irmão, voltou no tempo para aquela noite de Ano-Novo quando Edward apanhara pelo restante deles.
Ele e Maxwell haviam permanecido no salão de baile, silenciosos e trêmulos, enquanto o pai forçava Edward a subir. À medida que eles subiam a grande escadaria, Lane gritava a plenos pulmões… mas apenas internamente.
Era covarde demais para sair de lá e pôr um fim à mentira que salvara seu irmão e ele mesmo.
– Eu deveria ir lá – disse quando um tempo se passou.
– Mas o que você pode fazer? – Max sussurrou. – Nada pode deter papai.
– Eu poderia…
Só que Maxwell estava certo. Edward mentira, e o pai o estava fazendo pagar por uma transgressão que não era dele. Se Lane contasse a verdade agora… O pai simplesmente surraria todos eles. Pelo menos se ele e Maxwell ficassem quietos, poderiam evitar….
Não, aquilo era errado. Era uma desonra.
– Vou até lá. – Antes que Maxwell conseguisse dizer qualquer coisa, Lane agarrou o braço do irmão. – E você vem comigo.
A consciência de Max também o devia estar incomodando, porque em vez de discutir, como sempre discutia sobre tudo, seguiu-o mudo pela escada principal. Quando chegaram ao topo, o corredor estava deserto a não ser pela moldura de gesso, pelos retratos, e pelas flores sobre mesinhas e aparadores antigos.
– Temos que impedir – Lane sibilou.
Um atrás do outro, seguiram rapidamente sobre o tapete… até o quarto do pai.
Do lado oposto da porta, os sons do açoite eram agudos e altos, vindos do couro de encontro à pele nua de seu irmão, e dos grunhidos do pai, que empregava força nos golpes.
Edward estava em silêncio.
E, nesse meio-tempo, os dois apenas permaneceram ali, silenciosos e petrificados. Lane só conseguia pensar que nem ele nem Max tinham metade da coragem dele. Os dois acabaram chorando.
– Vamos embora – disse baixinho, coberto de vergonha.
Mais uma vez, Max não discutiu. Obviamente, ele também era um covarde.
O quarto que partilhavam ficava no fim do corredor, e foi Lane quem abriu a porta. Havia quartos de sobra para que dormissem separados, mas quando Maxwell começara a ter pesadelos alguns anos antes, acabaram colegas de quarto sem querer. Max começara a entrar sorrateiramente no quarto de Lane e despertava ali pela manhã. Depois de um tempo, a senhorita Aurora instalara outra cama lá e assim ficou resolvido.
O banheiro era conjugado, e o quarto do lado oposto era o de Edward.
Max foi para a cama e fitou o teto.
– A gente não devia ter descido. A culpa é minha.
– É de nós dois. – Olhou para Max. – Fique aqui. Vou esperar por ele.
Enquanto seguia para o banheiro, fechou a porta atrás de si e rezou para que Max seguisse suas ordens. Tinha uma sensação ruim quanto à condição em que Edward estaria quando o pai finalmente acabasse o castigo.
Ah, como Lane gostaria de poder voltar no tempo e refazer a decisão de ir para a sala de estar.
Abaixando a tampa do vaso, ficou sentado e atento às batidas do seu coração. Mesmo não conseguindo mais ouvir as chibatadas do cinto, isso não tinha relevância. Ele sabia o que estava acontecendo do outro lado do corredor.
Por algum motivo, ficou olhando para as três escovas de dente enfiadas dentro de um copo de prata, ao lado das toalhas de mão dobradas sobre a pia. A vermelha era de Edward, porque ele era o mais velho e sempre podia escolher antes. A de Max era verde, porque era a mais varonil que restava. Lane acabava tendo que ficar com a amarela, que odiava.
Ninguém queria a azul da uk.
Um clique suave e um empurrão de uma porta sendo aberta quebrou o silêncio. Lane esperou o segundo clique e depois se pôs de pé, espiando o quarto de Edward.
Na escuridão, Edward caminhava em direção ao banheiro, todo encurvado, com um braço ao redor do abdômen, e outro estendido para se equilibrar na cômoda, nas paredes, na mesa.
Lane se apressou e segurou a cintura do irmão.
– Enjoado – Edward grunhiu. – Vou vomitar.
Ah, Deus, ele estava sangrando no rosto, devido ao corte causado pelo anel de sinete do pai quando ele lhe desferiu aquele tapa.
– Eu te levo – Lane murmurou. – Vou cuidar de você.
O avanço foi lento, as pernas de Edward tinham dificuldade para sustentar o tronco ereto. Parte da camisa do pijama ficara presa no cós depois da surra, e Lane só conseguia pensar no que havia por baixo. Nos vergões, no sangue, no inchaço.
Edward mal chegou a tempo ao vaso, e Lane ficou junto dele durante todo o tempo. Quando terminou de vomitar, Lane pegou a escova vermelha e colocou pasta de dente nela. Depois, ajudou o irmão a ir até a cama.
– Por que você não chora? – Lane perguntou com uma voz rouca enquanto o irmão se acomodava no colchão como se todo o seu corpo doesse. – É só você chorar. Ele para assim que você chorar.
Era sempre assim quando ele e Max levavam uma surra.
– Vá para a cama, Lane.
A voz de Edward pareceu exausta.
– Sinto muito.
– Está tudo bem. Só vá para cama.
Foi difícil sair, mas ele já tinha causado confusão demais por aquela noite, e vejam o que tinha acontecido.
De volta ao seu quarto, enfiou-se entre os lençóis e ficou olhando para o teto.
– Ele está bem? – Max perguntou.
Por algum motivo, as sombras em seu quarto eram completamente assustadoras, pareciam monstros que se moviam e rastejavam pelos cantos.
– Lane?
– Sim – mentiu. – Ele está bem…
– Lane?
Ele voltou ao presente e olhou sobre o ombro.
– O que foi?
Lizzie apontou para o micro-ondas.
– Está pronto?
Bipe…
Bipe…
Ele apenas ficou ali, piscando, tentando voltar do passado.
– Sim, sim, desculpe.
De volta à mesa, depositou o prato fumegante e se sentou de novo… só para descobrir que tinha perdido o apetite. Quando Lizzie estendeu o braço e apoiou a mão na dele, ele a aceitou e a levou aos lábios para um beijo.
– No que está pensando? – Lizzie perguntou.
– Quer mesmo saber?
– Sim.
Ora, ora, se ele não tinha uma bela seleção de coisas para escolher.
Enquanto ela esperava por uma resposta, ele ficou olhando para seu rosto por um bom tempo. E então teve que sorrir.
– Agora, neste exato instante… estou pensando que, se tiver uma chance com você, Lizzie King, vou aceitar.
O rubor que atingiu o rosto dela foi encoberto quando ela levantou as mãos.
– Ai, meu Deus…
Ele deu uma risada leve.
– Quer que eu mude de assunto?
– Sim – disse ela por trás do seu esconderijo.
Ele não a culpava.
– Tudo bem, estou muito feliz de ter vindo para cá. Easterly é como uma corda no meu pescoço agora.
Lizzie esfregou os olhos e abaixou as mãos.
– Sabe, custo a acreditar no que Rosalinda fez.
– Foi simplesmente horrível. – Ele se recostou na cadeira, respeitando a necessidade dela de mudarem de assunto. – E, escuta essa. Sabe Mitch Ramsey, o delegado? Ele me ligou enquanto eu vinha para cá. O exame médico legal preliminar indica traços de cicuta.
– Cicuta?
– O rosto dela… – Ele circundou a face com a mão. – Aquele sorriso horrendo? Foi provocado por algum tipo de paralisia facial, o que, aparentemente, é bem documentado como sendo causado por uma variedade de venenos. Caramba, vou te contar, vai demorar bastante tempo para eu me esquecer da aparência dela.
– Existe a possibilidade de ela ter sido morta?
– Eles acham que não. É preciso uma bela dose de cicuta para ter o resultado desejado, portanto, é mais provável que ela mesma tenha feito isso. Além do mais, aqueles Nikes eram novinhos e havia grama nas solas.
– Nikes? Ela só usa sapatos sem salto.
– Exatamente, mas ela foi encontrada com tênis próprios para corrida, que, evidentemente, acabara de comprar, e os usou para andar no jardim. Pelo que Mitch disse, na época dos romanos, as pessoas costumavam beber veneno e depois perambular para que ele agisse com mais rapidez. Portanto, isso mais uma vez indica que ela causou a própria morte.
– Que… horrível.
– A pergunta é: por quê? E, infelizmente, acho que nós sabemos a resposta.
– O que vai fazer agora?
Ele ficou em silêncio por um tempo e depois ergueu os olhos para ela.
– Para começar, pensei em te levar para cima.
Lizzie corou de novo.
– E o que vai fazer comigo no segundo andar?
– Vou te ajudar a dobrar a roupa limpa.
Ela deu uma gargalhada.
– Detesto te desapontar, mas já fiz isso.
– Arrumar a sua cama?
– Lamento. Já está arrumada.
– Mas você tinha que ser tão organizada? Cerzir as suas meias? Precisa pregar algum botão?
– Está sugerindo que é bom com linha e agulha?
– Aprendo rápido. Então… quer costurar comigo?
– Acho que não tenho nada que precise desse tipo de cuidado.
– Existe alguma coisa na qual posso te ajudar, então? – ele perguntou num tom baixo. – Alguma dor que eu possa aplacar? Algum fogo que eu possa extinguir? Com a boca, talvez?
Lizzie fechou os olhos, e mudou de posição na cadeira.
– Ai, Deus…
– Espere, já sei. Que tal se eu te levar para o segundo andar e nós bagunçarmos a sua cama? Daí, então, vamos poder arrumá-la de novo.
Quando, por fim, ela voltou a olhar para ele, seus olhos estavam pesados e sensuais.
– Sabe, esse parece um plano perfeito.
– Adoro quando estamos de acordo.
Levantaram-se ao mesmo tempo, e antes que ela conseguisse detê-lo, ele se inclinou e a pegou no colo.
– O que você está fazendo? – Empurrou-o e começou a gargalhar. – Lane…
– O que parece? – E saiu da cozinha. – Estou te carregando lá para cima.
– Espera. Espera. Sou muito pesada…
– Ora, por favor!
– Não, é verdade… Não sou como aquelas mulherzinhas delicadas…
– Exato. Você é uma mulher de verdade. – Chegou à escada e seguiu em frente. – E é por essas que homens de verdade ficam atraídos. Confie em mim.
Deixou a cabeça pender no ombro dele, e quando Lane sentiu o olhar dela em seu rosto, pensou no que Chantal fizera com o seu pai. Ou, pelo menos, no que ela disse ter feito com ele.
Lizzie nunca o traíra. Nem em pensamento, nem em ações.
Ela simplesmente não tinha isso dentro dela.
O que a tornava uma mulher de verdade, e não só por não ser socialmente anoréxica.
– Não, você não tem que dizer isso – ele murmurou quando os degraus antigos rangeram debaixo dos seus pés.
– Dizer o quê?
– Que não significa nada comparado a outras coisas. Sei que me quer só como amigo e aceito isso. Você só precisa saber de uma coisa.
– O que seria? – ela suspirou.
Ele fez uma voz mais grave.
– Estou preparado para ser um homem muito paciente no que se refere a você. Vou seduzi-la pelo tempo que for necessário, vou lhe dar todo o espaço que precisar, ou seguir seus passos como a luz do sol sobre seus ombros, se você deixar. – Seus olhos se fixaram nos dela. – Perdi minha chance com você uma vez, Lizzie King, e isso não vai se repetir.
VINTE E SETE
Sentado em sua poltrona, Edward flanava numa nuvem de gim Beefeater; seu corpo estava tão entorpecido que ele conseguia manter uma fantasia de força e flexibilidade. Na verdade, conseguia imaginar que ficar de pé podia ser fácil, apenas uma mudança de localização descomplicada e inconsciente que necessitava de um pensamento fugidio e músculos nas coxas. Músculos esses que ficariam contentes – e seriam perfeitamente capazes – de executar tal tarefa.
No entanto, não estava embriagado o suficiente para tentar.
O som de uma batida à porta fez com que levantasse a cabeça.
Ora, ora, ora. Não estava preparado para aquela coisa de ficar na vertical, mas pelo menos a recém-chegada poderia lhe oferecer uma realidade alternativa para ele experimentar.
E ele não recusaria.
Com um grunhido, tentou ficar um pouco mais ereto na poltrona. Não conseguiria abrir a porta para a mulher e sentiu-se mal por isso. Um cavalheiro sempre deveria fazer tal gentileza a um membro do sexo frágil, e ele não se importava que a sua convidada fosse uma prostituta, uma mulher merecia ser tratada com respeito.
– Entre – disse em voz alta, mas arrastada. – Pode entrar.
A porta se abriu devagar… E o que viu do outro lado, bem debaixo da soleira, era…
O coração de Edward parou de bater. E depois começou a martelar.
– Eles acertaram – sussurrou. – Finalmente. Beau acertou em cheio.
A mulher piscou.
– Perdão – ela disse, rouca. – O que disse?
A voz era igualzinha. Como tinham conseguido acertar?
– Entre – ele respondeu, gesticulando com a mão que não segurava o copo. – Por favor.
E não tenha medo, ele pensou consigo.
Afinal, ele estava sentado no escuro, e a iluminação dos incontáveis troféus sobre as prateleiras não alcançavam seu rosto e seu corpo. O que era proposital, claro. Não gostava de olhar para si mesmo, não havia motivo para dificultar o trabalho da prostituta forçando-a a vê-lo com nitidez.
– Edward?
Em seu torpor ébrio, ele só conseguiu fechar os olhos e relaxar o corpo. Ficou duro num lugar bem crucial.
– A sua voz… é tão bela quanto nas minhas lembranças.
Não ouvia a voz de Sutton Smythe em pessoa desde antes da sua viagem e, depois que retornara, não foi capaz de ouvir quaisquer das suas mensagens.
A ponto de ter se livrado tanto do aparelho quanto daquele número.
– Ah, Edward…
Bom Deus, havia sofrimento naquela voz. Como se a mulher estivesse olhando para a sua alma e reagindo ao emaranhado de angústia que ele carregava desde que lhe informaram que ele sobreviveria.
E, de fato, era quase isso o que ouvia na voz de Sutton. Engraçado, durante seu período no cativeiro, desmaiara três vezes durante os oito dias em que o mantiveram preso. Todas as vezes, enquanto perdia a consciência, Sutton fora a última coisa em seus pensamentos, a última coisa a ver, a ouvir, a lamentar a perda. E não a sua família. Não o seu tão amado trabalho. Não a casa em que crescera, tampouco a fortuna e as coisas que deixaria inacabadas.
Sutton Smythe.
Na terceira vez, quando já não conseguia ver nada, quando já não sabia distinguir se era suor ou sangue em sua pele, quando a tortura o levara a um lugar onde o botão de sobrevivência fora desligado e ele já não rezava para ser resgatado, a não ser pela morte…
Sutton Smythe, uma vez mais, estivera em seus pensamentos.
– Edward…
– Não. – Levantou a mão. – Não diga mais nada.
A mulher estava se saindo tão bem. Não queria que continuasse e estragasse tudo.
– Venha aqui – sussurrou. – Quero tocar em você.
Abrindo os olhos, embeveceu-se com a aproximação dela. Ah, que vestido prateado perfeito, a barra arrastando pelo chão, as joias surpreendentemente de bom gosto reluzindo apesar de a luz estar atrás dela. E ela também trazia o mesmo tipo de bolsa de festa que Sutton sempre levava aos eventos formais, um quadrado forrado com seda da mesma cor do vestido – ainda que, como ela mesma dizia, “combinar tudo era tão anos cinquenta”.
– Edward?
Havia tanta confusão quanto um anseio em seu nome.
– Por favor – ele se viu implorando. – Não fale mais. Só quero tocar você. Por favor.
Enquanto o corpo dela tremia diante dele, Edward sentiu a realidade mudar e se permitiu seguir o ardil, acompanhando a fantasia de que aquela era de fato Sutton, que ela fora procurá-lo, e que, finalmente, ficariam juntos.
Mesmo ele estando arruinado.
Deus, isso bastava para deixá-lo emocionado. Mas não durou muito… porque ela tropeçou e seus olhos ficaram muito arregalados.
O que significava que tinha visto seu rosto.
– Não olhe para mim – disse ele. – Não sou mais o mesmo. É por isso que as luzes estão tão fracas.
Edward estendeu os braços e mostrou as mãos.
– Mas estas… não estão marcadas. E, ao contrário de outras partes, ainda funcionam muito bem. Me deixe… tocar você. Vou ser cuidadoso… mas você vai ter que se ajoelhar. Já não fico muito bem de pé, e tenho que confessar que estou embriagado.
A prostituta tremia dos pés à cabeça quando começou a se abaixar, e ele se sentou mais para a frente da poltrona, oferecendo-lhe o braço como se ela fosse uma dama saindo de um carro, em vez de uma trabalhadora permitindo que um aleijado fizesse sexo com ela por mil dólares.
Quando voltou a se recostar, uma súbita onda de vertigem o assolou, enquanto mais álcool bombeava em seu sistema. Como com todos os bêbados, contudo, ele sabia que era apenas algo temporário, que logo se autorregularia.
Ainda mais considerando tudo em que ele tinha que se concentrar: mesmo com a visão embaçada, mesmo com a penumbra, mesmo estando muito bêbado… estava maravilhado.
Ela era muito linda, quase linda demais para que ele a tocasse.
– Ah, olhe só para você… – sussurrou, esticando a mão para tocar seu rosto.
Os olhos dela reluziram de novo, ou, pelo menos, ele acreditou nisso; talvez estivesse apenas imaginando coisas por causa do modo como ela inspirou fundo. Era difícil saber, era complicado acompanhar o que estava acontecendo… A realidade estava muito distorcida agora, girando ao seu redor até ele não ter mais certeza se a prostituta se parecia mesmo com Sutton ou se era mera projeção dele, por causa dos cabelos negros e compridos, das sobrancelhas arqueadas, da boca perfeita, como a de Grace Kelly.
O cabelo da mulher estava solto, bem como havia solicitado, e ele passou as mãos pelas ondas até alcançar a curva do ombro.
– Seu cheiro é tão bom. Exatamente como eu me lembrava.
E logo ele tocou mais, os dedos viajando pela clavícula, sobre o colar de diamantes, descendo pela curva do decote. Em resposta, ela começou a arfar, o movimento dos pulmões aproximando seus seios das mãos dele.
– Adoro esse vestido – ele sussurrou.
O vestido de noite era bem ao estilo dos de Sutton: muito elegante, feito sob medida para o corpo dela, de chiffon tão cinzento quanto uma pomba.
Sentando-se mais para frente, aproximou seu peito diminuto do dela, que era magnífico, e passou as mãos para trás, a fim de encontrar o zíper embutido. Enquanto o abria, o som produzido pareceu-lhe alto demais.
Ele podia jurar que ela arfava como se a tivesse chocado. E foi… ah, tão perfeito. Exatamente o que Sutton teria feito.
E, em seguida, sim… ah, sim… a prostituta retribuiu a sua exploração, as mãos trêmulas subindo pelos seus braços finos. Deus, ele odiou todo aquele tremor por parte dela, mas, sem dúvida, devia ser difícil fazer sexo com ele.
Pelo menos como ele se encontrava agora.
– Eu queria ter feito isto antes – disse numa voz entrecortada. – No passado, valia a pena ver o meu corpo. Eu deveria ter… deveria ter tentado conquistá-la antes, mas era covarde demais. Era um covarde arrogante, mas a verdade é que eu poderia ter suportado qualquer coisa, menos uma recusa sua.
– Edward…
Interrompeu-a colando a boca na dela.
Ah, ela era boa. Tão boa quanto ele imaginava, a sensação da sua língua escorregando para dentro dela e a maneira como ela gemeu, como se tivesse esperado a vida toda pela oportunidade de fazê-lo se esquecer do que ele se tornara…
O vestido derreteu, escorrendo do corpo dela como se aquiescesse, como se estivesse reagindo para que tudo acontecesse mais rápido. E ele tirou vantagem da pele que agora estava à mostra, beijando uma trilha até os seios perfeitos, sugando os mamilos, ficando ganancioso muito rapidamente. Que Deus abençoasse o pobre coração daquela mulher, ela conseguia fingir tão bem, as mãos se perderam em seus cabelos como se ela o desejasse, como se ela estivesse trazendo-o para mais perto, mesmo ele não sendo o que ela deveria querer.
Tentou não ser rude, mas Deus, ficou tão excitado de repente.
– Suba no meu colo – grunhiu. – Você vai ter que subir no meu colo.
Era a única posição em que conseguia fazer sexo. Ainda mais por não querer sujeitar nenhum deles dois ao embaraço de ter que pedir ajuda para se levantar do chão, quando tudo tivesse terminado.
– Tem certeza? – ela perguntou, rouca. – Edward…
– Preciso ter você. Esperei tempo demais. Quase morri. Preciso disso.
Houve um segundo de pausa. Logo ela se moveu com admirável rapidez, levantando-se do chão, chutando o vestido, revelando… Ah, Jesus, ela estava com uma calcinha e nada mais, nada de meias de seda, nada de cinta-liga. E em vez de perder tempo tirando-a, ela a afastou de lado enquanto ele se confundia com o próprio cinto, impedindo que suas calças caíssem do quadril ossudo.
A despeito de todo o resto dele, que definhara, seu pênis ainda era grosso, comprido e rijo como antes, e ele ficou estranhamente grato por ser a única coisa que não era absolutamente humilhante para ele.
Empurrando os apoios de braço com as mãos, deslizou ainda mais para a frente, e ela se contorceu, montando nele com uma coordenação invejável.
A ereção dele a penetrou profundamente, e a firmeza com que ela o prendeu fez com que ele chegasse ao orgasmo de imediato. Mas isso não foi o mais incrível. Aparentemente, e por algum milagre, o mesmo aconteceu com ela.
Enquanto ela gritava seu nome, pareceu também chegar ao clímax.
Ou isso, ou ela não escutara seu chamado pois teria recebido o Oscar de melhor atriz.
Antes de perceber o que estava fazendo, Edward começou a se movimentar. Foi um movimento fraco, quase patético, mas ela seguiu, aquele primeiro orgasmo logo sendo eclipsado por outro ainda mais potente para ambos. Estremecendo, balançando, se retesando, ela se agarrou nele como se disso dependesse a sua vida, o cabelo cobrindo o dele, os seios pressionados contra ele, o corpo levando-o para uma viagem que ele nunca tinha experimentado.
O sexo pareceu durar para sempre.
Quando, por fim, tudo terminou, depois de um terceiro orgasmo, Edward se prostrou na poltrona e ofegou.
– Vou precisar de você de novo.
– Ah, Edward…
– Diga a Beau… semana que vem. Mesmo dia, mesmo horário.
– O quê?
Ele deixou a cabeça pender para o lado.
– O dinheiro está ali. Só você. Só quero você de novo.
De repente, provavelmente por ter se cansado mais nos vinte minutos do que nos doze meses anteriores, começou a se sentir fraco e, de fato, parecia apropriado que desmaiasse e deixasse que a prostituta saísse com tranquilidade.
Assim, ele conseguiria sustentar a fantasia por mais tempo.
– Mil… ao lado da porta – murmurou. – Pegue. A gorjeta…
Edward teve a intenção de dizer “A gorjeta vem depois, vou fazer com que alguém deixe com Beau mais tarde” ou algo do gênero. Mas a consciência era um luxo ao qual ele já não conseguia se dar… E se deixou cair no esquecimento.
Mais uma vez, pensando apenas em Sutton Smythe.
Sutton saiu cambaleando do chalé de Edward. Estava descalça, segurando os sapatos pelas tiras, mas ao contrário da sua outra caminhada pela grama ao redor do museu, as tábuas da varanda e os pedriscos machucaram suas solas.
Não que ela estivesse prestando atenção.
Ao partir para o Mercedes, ela era um misto de contradições; seu cérebro, uma confusão emaranhada. Mas seu corpo estava maleável e relaxado.
Edward pensou que ela fosse uma prostituta?
Por que outro motivo ele teria falado de dinheiro e de um homem chamado Beau? Semana que vem?
Ah, Deus, fizeram sexo…
Como chegaram àquilo? Como ela permitira que…
Bom Deus, o pobre rosto dele, o corpo…
Esses pensamentos entravam e saíam da sua cabeça, girando com alguma força centrífuga, tudo se revolvendo a não ser pelo fato de que Edward já não era mais o mesmo de antes. Sua linda aparência já não existia mais, as cicatrizes no rosto, sobre o nariz e na testa, deixavam virtualmente impossível reconstruir por lembranças a perfeição que antes existira ali.
Ela sabia que ele havia sido maltratado. Os noticiários e os artigos nos jornais foram suas únicas fontes de informação porque ele tinha se recusado a ver qualquer pessoa, e detalharam a duração da sua estada no hospital e da subsequente reabilitação. Esse tipo de tratamento longo não acontecia sem motivos trágicos. Mas vê-lo em pessoa fora um choque.
Antes do sequestro, ele era jogador de polo. Saltou com cavalos em apresentações. Correu. Jogou basquete, tênis e squash. Nadou. Edward fora um garoto dourado não apenas nos negócios, mas em todos os outros aspectos da sua vida, ele sempre se excedera em tudo.
Eu queria ter feito isso antes. No passado, valia a pena ver o meu corpo.
Sutton teve dificuldades para abrir a porta do carro, a mão escorregava como se ela estivesse tendo um ataque e seus dedos já não funcionassem direito. E quando, por fim, conseguiu abrir e entrar, ficou sem forças e deixou-se cair no assento.
Eu deveria ter tentado conquistá-la antes, mas era covarde demais. Era um covarde arrogante, mas a verdade é que eu poderia ter suportado qualquer coisa, menos uma recusa sua.
O que ele dissera? E para quem achou que estava dizendo? O coração dela se partiu com a ideia de que ele estivesse apaixonado por alguém daquela maneira.
Ele estava tão embriagado. Tanto que, antes de sair apressadamente, ela voltou para ver se o coração dele ainda estava batendo, se ele ainda estava respirando… Sim, porque a ideia de que talvez o tivesse matado por causa do que haviam…
– Bom Deus.
Como era possível que, depois de anos pensando nisso, eles, finalmente, tivessem feito sexo? E só porque ele acreditava que ela fosse uma prostituta cujos serviços ele encomendara em algum lugar?
Ah, não… Não tinham usado proteção.
Fabuloso. A reviravolta daquela noite toda era simplesmente fabulosa. Ainda mais porque, mesmo ele estando bêbado… mesmo ela estando meio fora do seu juízo completo… e apesar das condições físicas dele… o sexo tinha sido incrível. Talvez por causa de toda a imaginação acumulada, ou talvez fosse compatibilidade, ou quem sabe fosse apenas uma experiência única, do tipo que acontece quando certas estrelas estão alinhadas.
Independentemente dos motivos, ele tinha feito os poucos homens com quem ela estivera sumirem.
Impedindo que qualquer outro chegasse até ela, Sutton temeu.
Esticando o braço, procurou o botão de partida, e quando o motor roncou e os faróis se acenderam, ela entrou em pânico. Havia outras pessoas na propriedade – só podia haver –, e a última coisa que ela queria era ser pega em flagrante. Teria que encontrar uma maneira de lidar com a situação, e boatos se espalhando não faziam parte da sua estratégia, muito obrigada…
Neste mesmo instante, outro carro surgiu na alameda e, em vez de seguir para um dos estábulos ou construções externas, parou bem ao lado do seu.
A mulher que saiu era… alta, morena e usava um vestido longo.
E franziu o cenho ao ver o Mercedes.
Ela se aproximou.
Sutton abaixou o vidro. O que mais poderia fazer? Ao mesmo tempo, também começou a tatear à procura do câmbio, ou botão, ou sabe-se lá o que colocaria o sedã em marcha a ré.
– Pensei que eu estava escalada para esta noite – a mulher disse, num tom agradável.
– Eu… hum… – Enquanto gaguejava, sentiu-se corar. – Ah…
– Você é uma das garotas novas que Beau mencionou? Sou Delilah.
Sutton apertou a mão que lhe foi oferecida.
– Como tem passado?
– Ah, mas você parece tão chique! – A mulher sorriu. – Então, cuidou bem dele?
– Hum…
– Tudo bem se você cuidou. Às vezes essas coisas acontecem, e eu tenho outros dois chamados para esta noite. – Levantou a mão e puxou o que, no fim, era uma peruca. – Pelo menos me livro disto. Ele está bem?
– O que disse?
A mulher esfregou o cabelo loiro curto ao acenar na direção do chalé.
– Ele. Todas nós cuidamos dele, pobrezinho. Beau não nos diz quem é, mas deve ser alguém importante. É sempre tão generoso, e nos trata muito bem. É um caso bem triste, para falar a verdade.
– Sim. Muito triste.
– Bem, está na minha hora. Quer que eu avise Beau que está tudo bem?
– Hum…
– Fico com a semana que vem, então.
– Não – Sutton se ouviu dizer. – Ele me disse… o homem me disse que quer me ver de novo.
– Ah, ok, sem problemas. Eu aviso.
– Muito obrigada. Muito obrigada mesmo.
Talvez aquele fosse algum tipo de alucinação bizarra causada por uma febre.
Enquanto Sutton voltava a procurava a manopla, a prostituta se inclinou para baixo.
– Está procurando a ré?
– Ah, sim, estou.
– É essa aí na direita. Mexa-a para trás. Para baixo do drive e, para estacionar, você empurra até o fim.
– Obrigada. Que difícil.
– Um dos meus fregueses regulares tem esse mesmo modelo. É uma beleza! Dirija com cuidado.
Produzindo um som sem sentido, Sutton manobrou para trás com cuidado, ciente de que a mulher estava bem perto com aquela peruca morena na mão.
Seguindo na direção da estrada principal, resolveu que aquilo só podia ser resultado de um resfriado, de uma alucinação. A qualquer instante agora, ela despertaria…
Era isso.
Só podia ser.
Puxa vida, como foi que tudo foi acontecer?
CONTINUA
DEZOITO
Enquanto parava diante da entrada principal de Easterly, Lane pisou tão fundo no freio que os pedriscos do caminho voaram com ele até o Porsche parar. Não desligou o motor, simplesmente saiu do carro e voou escada acima, passando pelas portas duplas tal qual uma ventania.
Não prestou atenção em absolutamente nada ao entrar na mansão – nem na criada que limpava o vestíbulo, no mordomo que se dirigiu a ele… nem mesmo em sua Lizzie, que parou em seu caminho como se estivesse aguardando sua chegada.
Em vez disso, saiu da casa pela porta da sala de jantar e avançou a passos largos até o centro de negócios, atravessando as mesas redondas bem arrumadas debaixo da tenda e se esquivando dos funcionários da manutenção que estavam pendurando cordões de luzes entre as árvores em flor.
O local de trabalho do pai tinha um terraço com uma série de portas francesas, e ele seguiu para o par que ficava na extrema esquerda. Quando chegou, não se deu ao trabalho de experimentar a maçaneta, porque a porta estaria trancada.
Bateu no vidro. Com força.
E não parou. Nem quando sentiu a mão úmida, o que indicava que ele devia ter quebrado alguma coisa…
Na verdade, ele estilhaçou a vidraça da primeira porta do escritório do pai, e partiu para a seguinte.
A boa notícia, pensou, era que havia muitas outras.
– Lane! O que você está fazendo?
Ele parou e se virou para Lizzie. Numa voz que não reconheceu, ele disse: – Preciso encontrar o meu pai.
A extremamente profissional assistente executiva de William Baldwine correu para dentro do escritório e arfou em alto e bom som ao ver o vidro quebrado.
– Você está sangrando! – a mulher exclamou.
– Onde está o meu pai?
A senhora Petersberd destrancou a porta e a abriu.
– Ele não está aqui, senhor Baldwine, ele ficará em Cleveland o dia inteiro. Acabou de sair e não sei bem quando retornará. O senhor precisa de algo?
Quando os olhos dela se fixaram nas juntas sanguinolentas da mão dele, ele soube que ela estava querendo dizer algo como “Que tal uma toalha, talvez?", mas ele pouco se importava se suas veias se esvaziassem naquele lugar.
– Quem contou ao meu pai que Gin tinha saído? – ele exigiu saber. – Quem ligou para ele? Foi você? Ou um espião na casa…
– Do que está falando?
– Ou você ligou para a polícia e mandou que eles prendessem a minha irmã? Tenho certeza absoluta de que meu pai não sabe apertar as teclas 190 sozinho, mesmo que tenham me dito que foi isso o que ele fez.
Os olhos da mulher se dilataram e depois ela sussurrou:
– Ele me disse que ela acabaria fazendo mal a si mesma. Que ela tentaria sair hoje de manhã e que eu teria que fazer o que fosse necessário para impedi-la. Ele disse que ela precisa de ajuda…
– Lane!
Ele virou a cabeça na direção de Lizzie bem quando tudo ficou fora dos eixos, seu corpo pendendo para um dos lados.
Com toda a força, Lizzie o sustentou e impediu que ele caísse no chão.
– Venha. Vamos voltar para casa.
Enquanto ele se deixava manobrar, sangue pingou no piso de pedra do terraço, manchando o cinza de vermelho. Fitando a assistente, ele ordenou: – Diga ao meu pai que eu o estou aguardando.
– Não sei quando ele volta.
Até parece, ele pensou. A mulher chegava a agendar as pausas para William ir ao banheiro.
Havia tanta raiva dentro dele que ele estava cego ao que o cercava enquanto Lizzie o guiava. A fúria era por causa de Edward. De Gin. De sua mãe.
De Max…
– Quando foi a última vez que você comeu alguma coisa? – Lizzie perguntou ao empurrá-lo pela porta de Easterly.
Por um instante, ele pensou estar alucinando. Mas logo percebeu que os homens e mulheres de branco eram chefs, e que ele e Lizzie estavam na cozinha.
– Desculpe, o que disse? – murmurou.
– Comida. Quando?
Ele abriu a boca. Fechou. Franziu o cenho.
– Meio-dia de ontem?
A senhorita Aurora entrou no campo de visão dele.
– Lands… O que há de errado com você, menino?
Houve algum tipo de conversa em seguida, nada que ele compreendesse. Em seguida, um curativo na sua mão, ao qual ele não deu atenção. E mais conversa.
Ele não voltou a sintonizar apropriadamente até estar sentado na sala de descanso dos chefs, à mesa, com um prato de ovos mexidos, seis fatias de bacon e quatro torradas diante de si.
Seu estômago roncou e ele piscou. Sua cabeça continuava uma confusão, mas sua mão pegou o garfo e começou a cavar.
Lizzie se sentou diante dele, a cadeira rangendo sobre o piso de madeira.
– Você está bem?
Ele fixou o olhar além dela, na senhorita Aurora, parada à porta como se estivesse prestes a sair.
– O meu pai é um homem mau.
– Ele tem o seu próprio conjunto de valores.
Que era o mais próximo que ela chegaria de condenar alguém.
– Ele está tentando vender a minha irmã. – Bufou. – É como se isso fosse… uma novela ruim.
Estava prestes a contar tudo quando o celular tocou; assim que viu quem era, atendeu.
– Samuel, em que pé estamos?
Samuel T. teve que erguer a voz acima das conversas ao fundo.
– Setenta e cinco mil para a fiança, foi o melhor que consegui. Assim que você trouxer o cheque, pode vir buscá-la.
– Já vou cuidar disso. Você vai embora?
– Só depois que ela sair. Ela tem o direito de se consultar com seu advogado, portanto, enquanto eu estiver por perto, ela não terá que voltar para aquela cela sozinha, ou que Deus não permita, com outra pessoa.
– Obrigado.
Assim que ele encerrou a ligação, a senhorita Aurora saiu para acompanhar o trabalho dos chefs, e ele se voltou para Lizzie.
– Vou ter que ir atrás do dinheiro da fiança dela agora. Depois disso, não sei mais.
Ela esticou a mão e a apoiou no braço dele.
– Como eu já disse antes: tem alguma coisa que eu possa fazer para ajudar?
Foi como um raio. Num minuto, ele estava normal, como qualquer outro homem numa situação como aquela. No seguinte? A luxúria bombeava em suas veias, excitando-o, desviando a loucura em sua cabeça para algo verdadeiramente insano.
Abaixando as pálpebras, murmurou:
– Tem certeza de que quer que eu responda?
Lizzie engoliu em seco e olhou para o ponto em que o tocava. Quando não disse nada, mas também não se afastou, ele se inclinou na direção dela e levantou seu queixo com o indicador. Travando os olhos nos lábios dela, beijou-a mentalmente, com imagens de si mergulhando a cabeça e colando a boca na dela. Empurrando-a no encosto da cadeira. Enfiando-se debaixo das roupas dela enquanto se ajoelhava entre suas pernas com…
– Ai… Deus… – ela sussurrou, os olhos evitando os dele.
Mas, ainda assim, ela não se afastou.
Lane lambeu os lábios. Depois abaixou a mão e saiu de perto dela.
– É melhor você ir. Ou vou fazer uma coisa que você vai se arrepender.
– E você? – ela sussurrou. – Você vai se arrepender?
– De te beijar? Nunca. – Meneou a cabeça, reconhecendo que suas emoções estavam à flor da pele… completamente descontroladas. – Mas não vou tocar em você até que me peça. Isso eu consigo prometer.
Depois de um instante, ela se levantou sem a sua elegância costumeira, a cadeira na qual estivera sentada deslizando pelo piso, seus pés trôpegos. Ele lhe deu tempo suficiente para sair da sala de descanso e avançar pelo corredor antes de ele mesmo sair.
Caso ficasse muito próximo dela, era bem possível que a agarrasse e a colocasse sobre a mesa, procurando o alívio que os dois tanto necessitavam.
Porque ela o desejava. Ele tinha acabado de ver.
Não que fosse ficar pensando nisso.
Ele precisava fazer com que o pai pagasse a fiança. Não que ele mesmo não tivesse aquela quantia. Tinha lucrado bastante na mesa de pôquer e, diferentemente da irmã, aos trinta e seis anos, já tinha acesso à primeira parte dos seus fundos. Mas William Baldwine criara aquela confusão, e o fato de o homem estar fora da cidade tornaria mais fácil pegar um cheque e levar ao banco para que o autorizassem.
Um minuto depois, Lane estava diante do escritório da controller, mas não se deu ao trabalho de bater, avançando direto para a maçaneta.
Trancada.
Assim como fizera com a porta de vidro do pai, socou a porta de carvalho… com a mão machucada.
– Ela não está? – o senhor Harris perguntou da soleira da sua suíte.
– Onde está a chave dessa porta?
– Não tenho permissão para…
Lane se virou.
– Pegue a porra dessa chave ou vou acabar derrubando a maldita porta.
E vejam só, uma fração de segundo depois, o mordomo se aproximou com um molho de chaves.
– Permita-me, senhor Baldwine.
Só que a chave não os levou a parte alguma. Ela entrou na fechadura, mas foi impossível girá-la.
– Lamento muitíssimo – disse o mordomo enquanto forçava a fechadura.
– Tem certeza de que é a chave certa?
– Está marcado aqui. – O homem mostrou a etiquetinha pendurada na ponta ornamentada. – Talvez ela volte logo.
– Deixe-me tentar.
Lane afastou o pinguim para o lado, mas também não teve sucesso. Perdendo a paciência, empurrou a porta com o ombro e…
O estalido da madeira se rompendo abafou seu grito de raiva, e ele teve que se segurar nos painéis quando eles se movimentaram de volta na sua direção.
– Mas que diabos! – exclamou, dando uma de Drácula e se afastando do fedor.
Enquanto o senhor Harris começava a tossir, tendo que cobrir o rosto com a lapela do terno, outra pessoa disse: – Ai, meu Deus, isso é…
– Tire todos do corredor – Lane ordenou ao mordomo. – E faça com que fiquem afastados.
– Sim, sim, claro, senhor Baldwine.
Lane ergueu o antebraço e respirou na manga da camisa ao se inclinar para dentro. O escritório estava um breu, as cortinas pesadas haviam sido fechadas, impedindo a entrada da luz solar, e o ar-condicionado sobre uma das janelas também estava desligado. Tateando ao redor da soleira com a mão livre, ele tinha a nítida impressão do que estava para encontrar e não conseguia acreditar.
Clique.
Rosalinda Freeland estava sentada numa poltrona estofada no canto oposto, o rosto congelado num sorriso repulsivo, os dedos acinzentados enterrados em almofadas de chintz, os olhos inertes fitando alguma versão da vida após a morte com que se deparou.
– Jesus… – Lane sussurrou.
O profissional conjunto de saia e terninho estava perfeitamente arrumado, os óculos de leitura, pendurados numa corrente de ouro sobre a blusa de seda, o coque primoroso, um tanto grisalho, ainda estava arrumado. Mas os sapatos não faziam sentido algum. Não eram os de couro que ela sempre calçava, mas um par de tênis Nike, como se ela estivesse prestes a sair para uma corrida.
Merda, pensou ele.
Enfiando a mão no bolso, pegou o celular e discou para a única pessoa que conseguiu pensar. Enquanto chamava, olhou ao redor. Não havia bagunça em parte alguma, o que era típico desta mulher que trabalhou em Easterly por trinta anos. Não havia mais nada sobre o tampo da mesa além do computador e do abajur com cúpula verde. As estantes escondiam discretamente todos os demais equipamentos de escritório, e os arquivos estavam tão em ordem quanto livros numa biblioteca.
– Alô? – respondeu a voz no celular.
– Mitch – disse Lane.
– Você está vindo com o cheque da fiança?
– Tenho um problema.
– O que posso fazer?
Lane fechou os olhos e perguntou como foi ter tanta sorte por ter aquele cara do outro lado da linha.
– Estou olhando para o cadáver da controller da minha família.
No mesmo instante, o tom do delegado baixou uma oitava.
– Onde?
– Em seu escritório em Easterly. Acho que ela pode ter se suicidado… Acabei de derrubar a porta.
– Já ligou para a emergência?
– Ainda não.
– Quero que ligue agora enquanto sigo para aí, só para que fique registrado e a polícia metropolitana possa ir para aí. Eles têm jurisdição.
– Obrigado, cara.
– Não toque em nada.
– Só toquei no interruptor ao entrar.
– E não deixe ninguém entrar no cômodo. Chego em cinco minutos.
Assim que Lane encerrou a ligação e discou para a emergência, seus olhos tracejaram as prateleiras. Ele pensou em todo o trabalho feito por aquela mulher naquele pequenino escritório.
– Sim, meu nome é Lane Baldwine. Estou ligando de Easterly. – A mansão não tinha número. – Houve uma morte na casa… Sim, tenho certeza de que ela não está mais viva.
Ele andou ao redor enquanto respondia a algumas perguntas, confirmou seu número de celular e depois desligou de novo.
Encarando a mesa, respeitou as ordens de Mitch, mas tinha que pegar o talão de cheques. Com cadáver ou sem, ele ainda tinha que tirar Gin da prisão.
Pegou o lenço do bolso e caminhou por cima do tapete oriental. Estava para puxar a gaveta estreita no centro da mesa quando algo chamou sua atenção. Bem no meio do mata-borrão de couro, perfeitamente alinhado como se fosse uma régua… havia um pen drive.
– Senhor Baldwine? Devo fazer alguma coisa? – o senhor Harris o chamou.
Lane relanceou para o corpo.
– A polícia está a caminho. Não podemos mexer em nada, por isso já vou sair.
Apanhou o que Rosalinda evidentemente deixara para quem a encontrasse. Depois abriu a gaveta e surrupiou o talão de cheques, enfiando-o no cós da calça na parte de trás, cobrindo-o com a camisa.
Virou-se para a controller. A expressão no rosto dela era como a do Coringa, um sorriso torto e horrível que apareceria nos seus pesadelos por um bom tempo.
– O que foi que o meu pai fez agora… – sussurrou no ar maculado pela morte.
DEZENOVE
Lizzie estava na estufa ao telefone com a empresa de aluguel quando percebeu o SUV do delegado do Condado de Washington avançando pela entrada da frente de Easterly.
Já estariam entregando os papéis do divórcio para Chantal? Puxa…
– Desculpe – disse, voltando a se concentrar. – O que disse?
– A conta está atrasada – o representante comercial repetiu. – Portanto não podemos aceitar nenhuma encomenda.
– Atrasada? – Isso era tão inconcebível quanto a Casa Branca deixar de pagar a conta de luz. – Não, não, pagamos o montante total da tenda ontem. Portanto, não é possível que…
– Veja bem, vocês são um dos nossos melhores clientes, queremos continuar trabalhando com vocês. Eu não sabia que a conta estava atrasada até o dono me contar. Enviei todos os materiais que pude, mas ele me impediu de mandar mais até que o saldo seja quitado.
– Quanto devemos?
– Cinco mil, setecentos e oitenta e cinco e cinquenta e dois centavos.
– Isso não será um problema. Eu mesma levarei o cheque agora, você pode nos…
– Não temos mais nada em estoque. Não temos nada para alugar, já que todas as festas na cidade acontecem este fim de semana. Liguei para Rosalinda na semana passada e deixei três recados sobre o saldo a pagar. Ela não retornou as ligações. Segurei o restante do pedido o máximo que pude porque queria cuidar da conta de vocês. Mas não tive notícias, e havia outros pedidos a serem atendidos.
Lizzie inspirou fundo.
– Ok, obrigada. Não sei o que está acontecendo, mas vou dar um jeito. Farei com que recebam.
– Lamento muito.
Quando encerrou a ligação, recostou-se na parede de vidro para tentar ver o veículo do delegado.
– … a emprresa falou?
Virou-se para Greta, que estava borrifando os últimos arranjos de mesa com preservativo floral.
– Desculpe, o que… ah, há um problema com o pagamento da conta.
– Então vamos ou não receberr as quinhentas taças de champanhe que faltam?
– Não. – Lizzie partiu para a porta que dava para a casa. – Vou falar com Rosalinda e depois dar a bela notícia ao senhor Harris. Ele vai ficar uma arara, mas pelos menos temos as tendas, as mesas e as cadeiras. Podemos lavar os copos conforme eles forem sendo usados, a família deve ter uma centena de taças na casa.
Greta a fitou através dos óculos de armação de casco de tartaruga.
– Terremos quase setecentas pessoas amanhã. Acha mesmo que conseguirremos darr conta? Com apenas quinhentas taças?
– Você não está ajudando.
Saindo da estufa, atravessou a sala de jantar e foi para a ala dos empregados. Quando empurrou a porta, parou de pronto. Havia três empregadas em uniformes cinza e branco bem juntinhas, falando agitadamente, mas num tom bem baixo, como se fosse um programa de televisão no volume mínimo. A senhorita Aurora estava ao lado delas, com os braços cruzados sobre o peito, e Beatrix Mollie, a governanta-chefe, estava ao seu lado. O senhor Harris estava no meio do corredor, seu corpo diminuto bloqueando o caminho até a cozinha.
Lizzie franziu a testa e se aproximou do mordomo. E foi nesse momento que sentiu o cheiro que, como fazendeira, conhecia com certa familiaridade.
Um homem afro-americano com uniforme de delegado saiu do escritório de Rosalinda junto de Lane.
– O que está acontecendo? – Lizzie perguntou, um calafrio percorrendo o seu peito.
Bom Deus, será que Rosalinda…
Era por isso que o corredor estava com um cheiro tão ruim de manhã, pensou, com o coração aos pulos.
– Houve um contratempo – disse o senhor Harris. – E ele já está sendo solucionado apropriadamente.
Lane se deparou com os olhos dela enquanto falava com o delegado e fez um aceno com a cabeça.
A senhora Mollie fez o sinal da cruz.
– São três de cada vez. A morte sempre vem em três.
– Tolice – murmurou a senhorita Aurora, como se a mulher a estivesse entediando com aquela linha de pensamento. – Os desígnios de Deus servem a todos. Não fique contando na ponta dos dedos.
– Três. Sempre em três.
Voltando para a estufa, Lizzie fechou a porta atrás de si e olhou ao redor, para os arranjos de flores creme e rosa.
– O que aconteceu? – Greta perguntou. – Ficou faltando mais alguma coisa do pedido…
– Acho que Rosalinda está morta.
Houve um barulho quando o spray escorregou da mão de Greta e quicou no chão, molhando os sapatos da mulher.
– O quê?
– Não sei nada.
Enquanto uma torrente de alemão jorrava da sua companheira, Lizzie murmurou: – É, não é? Não consigo acreditar.
– Quando? Como?
– Não sei, mas o delegado está lá. E não chamaram uma ambulância.
– Oh, mein Gott… das ist ja schrecklich!19
Xingando, Lizzie andou até a janela com vista para o jardim e fitou o gramado verde e resplandecente, e a elegante estrutura da festa. Já haviam concluído setenta e cinco por cento das tarefas e tudo estava realmente belo, ainda mais com as flores brancas que ela e Greta plantaram debaixo das árvores frutíferas.
– Estou com uma sensação muito ruim a respeito disso tudo – ouviu-se dizer.
Uma hora depois da chegada da polícia metropolitana, Lane teve permissão para deixar a cena por um curto período. Ele queria falar com Lizzie para informá-la sobre tudo o que estava acontecendo, mas primeiro tinha que cuidar de Gin.
O dinheiro da família Bradford era administrado pela Companhia de Fundos Prospect, uma empresa privada de bilhões de dólares em ativos e com todos os milionários de Charlemont na sua carteira de clientes. Contudo, como não eram um banco tradicional, as contas da família eram da filial local do PNC, e era de lá o talão de cheques que ele tirara da mesa de Rosalinda.
Parando no estacionamento de um prédio elegante, fez um cheque no valor de setenta e cinco mil dólares, falsificou a assinatura do pai e o endereçou à cadeia do Condado de Washington.
Assim que entrou no saguão bege e branco, foi interceptado por uma jovem num terno azul-marinho e com joias discretas.
– Senhor Baldwine, como tem passado?
Acabei de encontrar um cadáver. Obrigado por perguntar.
– Bem, preciso de uma autorização para sacar este cheque.
– Claro. Venha até o meu escritório. – Conduzindo-o até uma saleta envidraçada, ela fechou a porta e se sentou atrás de uma mesa organizada. – É sempre um prazer ajudar a sua família.
Ele escorregou o cheque por cima do mata-borrão e se sentou.
– Agradeço por isso.
O som das unhas batendo nas teclas do computador era um pouco incômodo, mas ele tinha problemas maiores.
– Hum… – A gerente pigarreou. – Senhor Baldwine, lamento, mas não há fundos suficientes na conta para compensá-lo.
Ele pegou o celular.
– Sem problemas, vou telefonar para a Fundos Prospect e solicitar a transferência. Quanto devemos?
– Bem, senhor, a conta está com um saldo devedor de vinte e sete mil, quatrocentos e oitenta e nove dólares e vinte e dois centavos. No entanto, o limite está cobrindo isso.
– Dê-me um minuto. – Ele procurou em seus contatos o número do administrador do CFP responsável pelos investimentos da família. – Farei a transferência.
Um evidente alívio tomou o rosto dela.
– Vou lhe dar um pouco de privacidade. Estarei no saguão quando estiver pronto. Leve o tempo que precisar.
– Obrigado.
Enquanto esperava a ligação completar, Lane bateu o sapato no piso de mármore.
– Hum, olá, Connie, como está? Aqui é Lane Baldwine. Bem. Sim, estou na cidade para o Derby. – Entre outras coisas. – Escute, preciso que transfira certa quantia para a conta-corrente da família no PNC.
Houve uma pausa. Em seguida, a voz serena e profissional da mulher se tornou tensa.
– Eu faria isso com prazer, senhor Baldwine, mas não tenho mais acesso às suas contas. O senhor deixou a Fundos Prospect no ano passado.
– Estou me referindo à conta do meu pai. Ou da minha mãe.
Outra pausa.
– Lamento, mas o senhor não tem autorização para transferir fundos dessa natureza. Vou precisar falar com o seu pai. Existe um modo de o senhor pedir para que ele nos telefone?
Não se quisesse aquele dinheiro. Considerando o que seu velho e bom papai estava tentando arrancar de Gin, de jeito nenhum o grandioso e glorioso William Baldwine facilitaria a soltura dela.
– O meu pai está fora da cidade e não será possível entrar em contato com ele. E se eu colocar a minha mãe na linha? – Por certo conseguiria acordá-la e mantê-la consciente por tempo suficiente para que ela pedisse a transferência de 125 mil para a conta-corrente da casa.
Connie pigarreou da mesma forma como a gerente do banco.
– Sinto muito, mas… não será o bastante.
– Se a conta é dela? Como não?
– Senhor Baldwine… não gostaria de me precipitar…
– Parece-me que é melhor falar de uma vez.
– Poderia aguardar um instante?
Enquanto uma música suave tocava em seu ouvido, Lane saltou da cadeira dura e começou a andar entre um vaso de planta num canto, que descobriu ser de plástico quando tocou numa folha, e as janelas que subiam até o teto, com vista para a rodovia de quatro pistas ao longe.
Houve um bipe e logo uma voz masculina entrou na linha.
– Senhor Baldwine? Aqui é Ricardo Monteverdi, como tem passado?
Maravilha, o CEO da empresa. O que significava que ele havia tropeçado numa “situação delicada”.
– Escute, só preciso de cento e vinte e cinco mil dólares em dinheiro, ok? Nada demais…
– Senhor Baldwine, como o senhor sabe, na Fundos Prospect, nós levamos a nossa responsabilidade fiduciária e os nossos clientes muito a sério…
– Pode parar já com o discurso de abertura. Conte-me por que a palavra da minha mãe não é o suficiente para sacar o próprio dinheiro dela, ou desligue logo.
Fez-se um silêncio.
– O senhor não me deixa escolha.
– O quê? Pelo amor de Deus, o que foi?
O período seguinte de silêncio foi tão longo e denso que ele afastou o aparelho da orelha para ver se a linha tinha caído.
– Alô?
Mais pigarreios.
– No início deste ano, o seu pai declarou que a sua mãe é mentalmente incompetente para administrar o fundo. A opinião de dois neurologistas qualificados é de que ela é incapaz de tomar quaisquer decisões. Portanto, se necessita de fundos de qualquer uma dessas contas, teremos o maior prazer em atendê-lo, desde que o pedido venha do seu pai em pessoa. Espero que entenda que estou numa situação delicada e que…
– Vou ligar para ele neste mesmo instante e farei com que ele telefone.
Lane encerrou a ligação e ficou olhando para o trânsito. Depois, seguiu até a porta e a abriu. Sorrindo para a gerente, disse: – Meu pai fará com que a transferência seja feita pela Prospect. Voltarei mais tarde.
– Estaremos abertos até as cinco, senhor.
– Obrigado.
De volta ao sol ofuscante, manteve o celular na mão ao atravessar o estacionamento escaldante, mas não o usou. Também não percebeu que estava dirigindo de volta para casa.
Que diabos ele faria agora?
Quando chegou a Easterly, havia outras duas viaturas próximas à garagem e alguns policiais uniformizados parados diante da porta da frente. Estacionou o Porsche em seu lugar costumeiro, à esquerda da entrada principal, e saiu.
– Senhor Baldwine – um dos policiais o cumprimentou quando Lane se aproximou.
– Cavalheiros.
A sensação de olhos o seguindo fez com que ele quisesse mandar o grupo para longe da sua casa. Tinha a sensação paranoica de que havia coisas acontecendo por trás das cortinas, sem que ele soubesse, e preferia encontrar algum esqueleto no armário primeiro sem testemunhas, sem o benefício dos olhares curiosos da polícia metropolitana.
Subindo os degraus até o segundo andar, foi para o próprio quarto e fechou a porta, trancando-a. Perto da cama, pegou o telefone da casa, apertou o número nove para conseguir uma linha externa, e depois pressionou *67 para que o número para o qual telefonava não ficasse registrado no identificador de chamadas. Quando deu linha, ele compôs uma sequência de quatro números.
Pigarreou quando ouviu um toque. Dois…
– Bom dia, aqui é do escritório do senhor William Baldwine. Como posso ajudá-lo?
Imitando o tom firme e profissional do pai, ele disse:
– Ligue-me com Monteverdi da Prospect agora mesmo.
– Sim, senhor Baldwine. Imediatamente.
Lane pigarreou uma vez mais enquanto uma música clássica se fazia ouvir. A boa notícia era que o pai era antissocial, exceto se a interação humana o beneficiasse nos negócios, portanto era muito improvável que os dois homens tivessem se falado recentemente, o que revelaria o seu engodo.
– Senhor Baldwine, o senhor Monteverdi está na linha.
Depois de um clique, Monteverdi começou a falar.
– Obrigado por finalmente retornar a minha ligação.
Lane baixou seu tom de voz e enfatizou o sotaque sulista.
– Preciso de cento e vinte e cinco mil na conta-corrente da casa…
– William, eu já lhe disse, não posso fazer mais adiantamentos, simplesmente não posso. Agradeço os negócios da sua família e estou comprometido em ajudá-lo a sair dessa situação antes que o nome Bradford se depare com dificuldades, mas as minhas mãos estão atadas. Tenho responsabilidades para com o Conselho, e você me disse que o dinheiro que pegou emprestado seria devolvido até a reunião anual, que acontecerá em duas semanas. O fato de necessitar de mais recursos, sendo um montante assim pequeno, já não me deixa mais tão confiante.
Mas que diabos?!
– Qual o total devido? – ele perguntou, carregando no forte sotaque da Virgínia.
– Eu lhe disse da última vez que deixei recado – Monteverdi se mostrou irritado. – Cinquenta e três milhões. Você tem duas semanas, William. Suas alternativas são: devolver o montante ou procurar o JP Morgan Chase e pedir um empréstimo contra o fundo primário da sua esposa. Ela tem mais de cem milhões só naquela conta, portanto o perfil de empréstimos deles será atendido. Eu lhe enviei a documentação num e-mail particular, você só precisa assinar os papéis e isso não nos afetará mais. Mas permita que eu seja bem franco: estou exposto nesta situação e não permitirei que isso prossiga assim. Existem medidas que eu poderia acionar, que seriam muito desagradáveis para você, e eu as usarei antes que alguma coisa me afete pessoalmente.
Puta.
Merda.
– Voltarei a falar com você – Lane disse com voz arrastada e desligou.
Por um instante, só conseguiu ficar olhando para o telefone. Literalmente não conseguia conectar dois pensamentos com coerência.
Em seguida, veio o vômito.
Numa ânsia súbita, dobrou-se ao meio, mal conseguindo apanhar o cesto de papéis a tempo.
Tudo o que comera na sala de descanso dos funcionários subiu.
Depois que o acesso passou, seu sangue correu gelado, a sensação de que nada era como deveria ser fazendo-o imaginar – e depois rezar – que aquilo fosse uma espécie de pesadelo.
Mas não podia se dar ao luxo de não fazer nada, ou pior, de desmoronar. Tinha que lidar com a polícia. Com a irmã. E com o que mais estivesse por vir…
Deus, desejou que Edward ainda estivesse por perto.
“Meu Deus, isso é mesmo terrível!”
VINTE
Uma hora mais tarde, Gin deslizou pelo banco do Porsche cinza-escuro do irmão, fechou os olhos e balançou a cabeça.
– Estas foram as piores seis horas da minha vida.
Lane emitiu uma espécie de grunhido, que poderia significar muitas coisas, mas que certamente estava bem longe do “Ah, Deus, não consigo imaginar o que você teve que suportar” que ela esperava ouvir.
– Desculpe – ela explodiu –, mas eu acabei de sair da cadeia…
– Estamos com problemas, Gin.
Ela deu de ombros.
– Conseguimos a fiança, e Samuel T. vai garantir que isso fique longe da imprensa…
– Gin. – O irmão a encarou quando saiu para o trânsito. – Estamos com graves problemas.
Mais tarde, ah, muito mais tarde, ela ainda se lembraria desse instante em que seus olhares se encontraram no interior do carro, indicando o início da derrocada, o primeiro dominó caindo, que fez com que todos os outros também caíssem com tamanha velocidade que ficou impossível deter a sequência.
– Do que está falando? – ela perguntou com suavidade. – Você está me assustando.
– A nossa família está devendo uma quantia enorme.
Ela revirou os olhos e balançou a mão no ar.
– Sério, Lane? Tenho problemas piores…
– E Rosalinda se matou na nossa casa. Em algum momento dos últimos dois dias.
Gin levou a mão à boca. Lembrou-se de ter telefonado para a mulher sem obter nenhuma resposta apenas algumas horas antes.
– Está morta?
– Morta. No escritório dela.
Foi impossível não ficar toda arrepiada quando visualizou o telefone tocando ao lado do cadáver da controller.
– Meu Deus…
Lane praguejou, olhando pelo retrovisor e mudando de faixa rapidamente.
– A conta-corrente da casa está com saldo devedor, e nosso pai de algum modo conseguiu um empréstimo de cinquenta e três milhões da Companhia de Fundos Prospect para fazer só Deus sabe o quê. E a pior parte? Não sei qual o fim disso e não sei se quero descobrir.
– O que você… desculpe, não estou entendendo…
Ele repetiu, mas isso não a ajudou muito.
Depois que o irmão se calou, ela ficou olhando pelo para-brisa, vendo a estrada fazer a curva ao redor do rio Ohio.
– Papai pode simplesmente pagar o empréstimo – disse ela, emburrada. – Ele paga e tudo acaba.
– Gin, se foi necessário pegar uma quantia dessas emprestada, é por que a pessoa está com problemas muito, muito sérios. E se essa pessoa ainda não pagou é porque não tem como.
– Mas mamãe tem dinheiro. Ela tem muito…
– Não sei se podemos nos fiar nisso.
– Então onde você conseguiu o dinheiro da fiança para me soltar?
– Tenho um pouco guardado e também o meu fundo, que desatrelei do fundo da família. Mas esses dois não são suficientes para cuidar de Easterly, e esqueça a possibilidade de pagar esse empréstimo ou de manter a Bourbon Bradford a salvo, se precisarmos.
Ela olhou para as unhas estragadas, concentrando-se na dizimação do que estava perfeito quando acordara naquela manhã.
– Obrigada por me tirar de lá.
– De nada.
– Vou devolver o seu dinheiro.
Como? Seu pai cortara todos os seus privilégios. E, pior de tudo, e se não restasse mais dinheiro para a sua mesada?
– Isso não pode ser possível – disse ela. – Só pode ser um mal-entendido. Um tipo de… falha de comunicação.
– Não acredito.
– Você tem que pensar positivo, Lane.
– Entrei no escritório de uma mulher morta há umas duas horas e isso foi antes de eu descobrir sobre a dívida. Posso lhe garantir que falta de otimismo não é o problema aqui.
– Você acha que… – Gin arquejou. – Acha que ela roubou de nós?
– Cinquenta e três milhões de dólares? Ou apenas uma parte? Não, porque, nesse caso, por que cometer suicídio? Se ela desfalcou os fundos, o mais inteligente seria fugir e trocar de identidade. E não se matar na casa do seu empregador.
– E se ela foi assassinada?
Lane abriu a boca para dizer “de jeito nenhum”. Mas voltou a fechá-la, como se estivesse pensando a respeito.
– Bem, ela o amava.
Gin ficou com o queixo caído.
– Rosalinda? Papai?
– Ah, o que é isso, Gin? Todos sabem disso.
– Rosalinda? A coisa mais selvagem nela era prender aquele coque um pouquinho mais pra baixo.
– Reprimida ou não, ela estava com ele.
– Na casa da nossa mãe?
– Não seja ingênua.
Muito bem, era a primeira vez que era acusada disso. E, de repente, aquela lembrança de tantos anos antes, daquele Ano-Novo, voltou… De quando vira o pai saindo do escritório da mulher.
Mas isso fora décadas atrás, em outra era.
Ou, talvez não.
Lane pressionou o freio num farol vermelho próximo ao posto de gasolina que ela parara naquela manhã.
– Pense no lugar onde ela morava. A casa colonial de quatro quartos em Rolling Meadows custa muito mais do que ela poderia pagar com seu salário de controller. Quem você acha que pagou?
– Ela não tem filhos.
– Que a gente saiba.
Gin apertou os olhos enquanto o irmão voltava a acelerar.
– Acho que vou enjoar.
– Quer que eu encoste?
– Quero que pare de me dizer essas coisas.
Houve um longo silêncio… e em meio ao vácuo, ela continuou voltando para a visão do pai saindo daquele escritório, amarrando o cinto do roupão.
No fim, o irmão balançou a cabeça.
– A ignorância não vai mudar nada. Precisamos descobrir o que está acontecendo. Preciso chegar à verdade de alguma maneira.
– Como você… como você descobriu isso tudo?
– Isso importa?
Quando contornaram a última curva na estrada River antes de Easterly, ela olhou para o alto à direita, para a colina. A mansão da sua família estava no mesmo lugar de sempre, seu tamanho e elegância incríveis dominando o horizonte, a famosa construção branca fazendo-a pensar em todas as garrafas de bourbon que traziam um desenho dela gravado em seus rótulos.
Até aquele momento, acreditou que a posição da família estivesse gravada em pedra.
Agora, temia que fosse em areia.
– Ok, estamos todos prontos aqui – Lizzie avançou entre as fileiras de mesas redondas debaixo da grande tenda. – As cadeiras já estão bem arrumadas.
– Ja20 – concordou Greta ao dar uma puxadinha numa das toalhas de mesa.
As duas continuaram, inspecionando todos os setecentos lugares, verificando novamente os candelabros de cristal que pendiam em três pontos da tenda, puxando um pouco mais os tecidos rosa-claro e brancos.
Quando terminaram, acompanharam a extensão de cordões verdes serpenteando pela parte externa, fornecendo eletricidade para os oito ventiladores gigantes que garantiriam a circulação de ar.
Ainda tinham umas boas cinco horas de trabalho até que escurecesse e, de maneira inédita, Lizzie achou que tinham concluído todas as prioridades. Os arranjos florais estavam prontos. Os canteiros de flores estavam impecáveis. Vasos na entrada e na saída da tenda combinavam à perfeição com as plantas e os botões suplementares. Até mesmo as estações de comida nas tendas adjuntas já haviam sido organizadas, seguindo as instruções da senhorita Aurora.
Até onde Lizzie sabia, a comida estava pronta e a bebida entregue. Os garçons e os barmen contratados estavam sob a batuta de Reginald, e ele não era de deixar nenhum fio solto. A segurança que garantiria que a imprensa ficaria ao largo era composta por policiais de folga da polícia metropolitana, e estavam todos prontos para trabalhar.
Ela quis ter alguma coisa com que ocupar seu tempo. O nervosismo a deixara mais produtiva do que de costume, e agora estava sem nada para fazer além de pensar que havia uma investigação criminal acontecendo a cinquenta metros dela.
Rosalinda.
Seu celular vibrou no quadril, sobressaltando-a. Ao pegá-lo, suspirou.
– Graças a Deus! Alô? Lane? Você está bem? Sim. – Franziu o cenho enquanto Greta a espiava. – Na verdade, eu o deixei no carro, mas posso ir pegá-lo agora. Sim, sim, claro. Onde você está? Tudo bem. Já vou levar para você.
Quando ela desligou, Greta lhe disse:
– O que está acontecendo?
– Não sei. Ele disse que precisa de um computador.
– Deve haverr uma dúzia deles na casa.
– Depois do que aconteceu hoje cedo, acha que vou discutir com o cara?
– Muito justo. – Embora a expressão da mulher berrasse seu desapontamento. – Vou darr uma olhada nos canteirros e vasos da frrente da casa, e confirrmarr se os manobristas chegarrão no horrárrio.
– Oito da manhã?
– Oito da manhã. E depois, não sei. Pensei em ir parra casa. Estou ficando com enxaqueca, e amanhã serrá um longo dia.
– Isso é horrível! Vá mesmo e volte com força total.
Antes que Lizzie se virasse, sua velha amiga lhe lançou um olhar sério através dos óculos pesados.
– Você está bem?
– Ah, sim. Absolutamente.
– Tem muito Lane por aqui. É porr isso que estou perrguntando.
Lizzie olhou para a casa.
– Ele vai se divorciar.
– Mesmo?
– É o que ele disse.
Greta cruzou os braços sobre o peito e seu sotaque alemão ficou mais evidente.
– Com dois anos de atrraso…
– Ele não é de todo ruim, sabe.
– O que disse? Isso… nein, você não pode estarr falando a verrdade.
– Ele não sabia que Chantal estava grávida, está bem?
Greta lançou as mãos para o alto.
– Ah, bem, isso muda tudo, então, ja? Então ele se prrontificou de livrre e espontânea vontade a se casarr enquanto estava com você. Perrfeito.
– Por favor, não faça isso. – Lizzie esfregou os olhos doloridos. – Ele…
– Ele te pegou de novo, não? Ligou parra você, veio te prrocurrarr, alguma coisa assim.
– E se ele fez? Isso é assunto meu.
– Passei um ano inteirro ligando parra você, parra que você saísse daquela sua fazenda, garrantindo que você virria parra o trabalho. Fiquei ao seu lado, me prreocupei com você, limpei o estrrago que ele deixou. Porr isso, não me diga que não posso exprressarr uma reação quando ele vem sussurrarr no seu ouvido…
Lizzie ergueu a mão diante do rosto da mulher.
– Chega. Não vamos mais falar disso. Nos vemos pela manhã.
Saiu marchando, e xingou baixinho no trajeto inteiro até o carro. Depois que pegou o laptop, seguiu apressada para a casa. Deliberadamente evitando a cozinha e a estufa, porque não queria encontrar Greta enquanto ela se preparava para sair, entrou na biblioteca e, sem pensar, tomou o corredor que dava para as escadas dos empregados e a cozinha. Não foi muito longe. Bem quando fazia a curva, foi parada por dois policiais, e foi então que ela viu o cadáver sendo levado numa maca com rodinhas.
Os restos mortais de Rosalinda Freeland foram colocados num saco branco com um zíper de 1,5 metro que, ainda bem, estava fechado.
– Senhora – um dos policiais disse –, vou ter que lhe pedir que abra o caminho.
– Sim, sim, desculpe. – Abaixando os olhos e refreando a onda de náusea, deu meia-volta, tentando não pensar no que acabara de ver.
E falhou.
Ela tinha dado seu nome à polícia, assim como o restante dos empregados, e fizera um relato breve de onde estivera a manhã toda e os últimos dias. Quando lhe perguntaram a respeito da controller, não teve muito a dizer. Não conhecia Rosalinda melhor do que os outros; a mulher era muito reservada e profissional, e só.
Lizzie sequer sabia se existia algum familiar para ser avisado.
Usar a escada principal era uma violação da etiqueta de Easterly, mas, levando-se em consideração que havia um carro mortuário estacionado e uma cena de crime no corredor dos funcionários, ela estava confiante de que poderia deixar o protocolo de lado. Já no segundo andar, avançou sobre o tapete claro, passando por quadros a óleo e alguns objetos que reluziam com sua antiguidade e manufatura superior.
Ao chegar à porta de Lane, não conseguia se lembrar da última vez que ela e Greta discutiram sobre alguma coisa. Deus, queria ligar para a mulher… Mas o que poderia dizer?
Deixe o laptop e saia, ordenou a si mesma. Só isso.
Lizzie bateu à porta.
– Lane?
– Pode entrar.
Empurrando a porta, ela o encontrou parado diante das janelas, com um pé plantado no peitoril, e um braço sobre o joelho erguido. Ele não se virou para vê-la entrar. Não disse nada.
– Lane? – Ela observou ao redor. Não havia ninguém com ele. – Olha só, vou deixar o laptop aqui e…
– Preciso da sua ajuda.
Inspirando fundo, ela disse:
– Ok.
Mas ele permaneceu em silêncio enquanto fitava o jardim. E que Deus a ajudasse, foi impossível desviar os olhos dele. Disse a si mesma que estava procurando sinais de cansaço… e não medindo os ombros musculosos. O cabelo curto na base da nuca. Os bíceps que marcavam as mangas curtas da camisa polo.
Ele tinha trocado de roupa. Tinha tomado um banho também. Ela sentia o perfume do sabonete e do shampoo.
– Sinto muito por Rosalinda – sussurrou. – Foi um choque.
– Hum.
– Quem a encontrou?
– Eu.
Lizzie fechou os olhos e abraçou o laptop junto ao peito.
– Ah, meu Deus.
De repente, ele enfiou a mão no bolso da frente da calça e tirou um objeto.
– Pode ficar comigo enquanto abro isto?
– O que é?
– Uma coisa que ela deixou para trás. – Ele mostrou o pen drive preto. – Encontrei sobre a escrivaninha dela.
– É um… bilhete suicida?
– Não acredito que seja isso. – Ele se sentou na cama e apontou para o laptop dela. – Se importa se eu…
– Ah, sim… aqui está. – Juntou-se a ele e levantou a tela do Lenovo, apertando o botão de liga/desliga. – Tenho Microsoft Office, então documentos de Word não devem ser um problema.
– Não acho que seja isso.
Colocou a senha e passou o computador para ele.
– Pronto.
Ele inseriu o pen drive e aguardou. A tela se acedeu com várias opções, e ele apertou em “abrir arquivos”.
Só havia um, intitulado “William Baldwine”.
Lizzie esfregou a testa com o polegar.
– Tem certeza de que quer que eu veja isso?
– Tenho certeza de que não posso ver isso sem você aqui.
Lizzie se viu esticando a mão e apoiando-a no ombro dele.
– Não vou te deixar.
Por algum motivo, ela lembrou da lingerie cor de pêssego que encontrara na cama do pai dele. Dificilmente era algo que Rosalinda vestiria; um tom de cinza-claro foi o mais próximo que a controller chegara a revelar do seu guarda-roupa. Mas, pensando bem, quem é que poderia saber o que a mulher escondia debaixo das saias e jaquetas decorosas?
Lane clicou no arquivo, e Lizzie percebeu que seu coração batia tão rápido quanto se tivesse acabado de correr meio quilômetro a toda velocidade.
E ele estava certo. Aquilo não era nenhuma carta de amor, tampouco um bilhete suicida. Era uma planilha repleta de números e datas e descrições breves, que Lizzie, por estar longe demais, não conseguia ler.
– O que é tudo isso? – perguntou.
– Cinquenta e três milhões de dólares – ele murmurou, descendo a tela. – Aposto como são cinquenta e três milhões de dólares.
– O que está dizendo? Espere… está sugerindo que ela roubou isso? – Não, mas acho que ela ajudou o meu pai a roubar.
– O quê?
Ele voltou-se para ela.
– Acho que, finalmente, meu pai tem sangue nas mãos. Ou, pelo menos, sangue que conseguimos ver.
“Sim.”
VINTE E UM
Voltando a se concentrar no laptop sobre o colo, Lane desceu pela planilha de Excel, localizando as entradas e tentando fazer uma somatória geral. Mas nem precisava ter se dado ao trabalho. Rosalinda somara por ele ao fim da página, numa célula em negrito à extrema direita de todas as colunas.
Na verdade, o total não era de 53 milhões de dólares.
Não, era de 68 milhões, 489 mil, 242 dólares e 65 centavos.
US$ 68.489.242,65.
As descrições para as retiradas variavam desde Cartier e Tiffany até a Aviação Bradford Ltda., que era a empresa que administrava todas as aeronaves e pilotos, e a folha de pagamento da Recursos Humanos Bradford, responsável, muito provavelmente, pelos salários de todos os empregados da casa. No entanto, havia uma descrição repetida que ele não reconhecia. Holding WWB.
Holding William Wyatt Baldwine.
Só podia ser.
Mas o que seria?
O montante maior tinha sido para eles.
– Acho que o meu pai… – Olhou para Lizzie. – Não sei, mas a companhia e fundos disse que ele se colocou, ou ele colocou a família, imagino, numa montanha de dívidas. Por quê? Mesmo com todos estes gastos, deveria haver muito dinheiro vindo da Cia. Bourbon Bradford para os acionistas, dos quais somos os majoritários.
– A empresa de aluguel… – Lizzie murmurou.
– O que foi?
– A empresa de aluguel não recebeu o pagamento, o financeiro deles telefonou para Rosalinda na semana passada e ela não retornou a ligação.
– Me pergunto para quem mais estamos devendo…
– Como posso ajudar?
Ele a fitou, a cabeça pensando, pensando.
– Me deixar ver este arquivo foi um bom começo.
– O que mais?
Deus, que olhos azuis, ele pensou. E os lábios, aqueles lábios naturalmente rubros tão perfeitamente moldados.
Ela falava com ele, mas Lane não conseguia ouvir. Era como se um silenciador o tivesse envolvido, impossibilitando-o de perceber qualquer som ao seu redor. Logo o computador em seu colo e todos os seus segredos também desapareceram, de forma que nem o brilho da tela nem o desenho de colunas e números e letras podia ser percebido.
– Lizzie – ele disse, interrompendo-a.
– Sim?
– Preciso de você – ele se ouviu dizer, rouco.
– Sim, claro, o que posso…
Inclinou-se e encostou os lábios nos dela, resvalando-os rapidamente.
Ela arfou e se afastou.
Lane esperou que ela se levantasse. Que lhe dissesse poucas e boas. Talvez voltasse ao século passado e o esbofeteasse.
Em vez disso, ela levantou os dedos e tocou a própria boca. Depois fechou os olhos.
– Eu queria que você não tivesse feito isso.
Merda.
– Desculpe. – Passou uma mão pelos cabelos. – Não estou com a cabeça no lugar.
Ela concordou.
– Sim.
Perfeito, pensou ele. A vida dele estava em labaredas em tantas frentes, por que não, então, atear mais um pouco de fogo? Sabe, só para piorar aquele inferno.
– Sinto muito – disse. – Eu deveria ter…
Ela se lançou sobre ele com um movimento tão rápido que ele quase caiu. O que o salvou foi o desejo… a necessidade feroz que ele sempre sentira por ela e que estivera represada durante todo o tempo em que ficaram afastados.
Lizzie disse ao encontro da boca dele:
– Também não estou com a cabeça no lugar.
Soltando uma imprecação, passou os braços ao redor dela e a trouxe para o colo, derrubando o computador sobre o carpete grosso. Queria se esquecer do dinheiro, do pai, de Rosalinda… mesmo que apenas por um momento.
– Desculpe – ele disse ao empurrá-la para o colchão. – Preciso de você. Eu só… preciso estar dentro de você…
Toc, toc, toc.
Os dois ficaram parados, os olhos presos um no outro.
– O que foi? – ele perguntou, irritado.
Uma voz feminina e abafada comentou algo sobre toalhas, e só o que Lane pensava era que a porta não estava trancada.
– Não, obrigado.
Lizzie saiu de baixo dele, e ele se moveu para que ela pudesse ficar de pé. Nesse meio-tempo, a criada continuou falando.
– Não preciso de toalhas, obrigado – repetiu com aspereza.
Seus olhos acompanharam as mãos de Lizzie, que ajeitavam a camisa e alisavam os cabelos.
– Lizzie… – sussurrou.
Ela apenas balançou a cabeça, andando em círculos, parecendo considerar saltar pela janela como estratégia de fuga.
Mais palavras por parte da criada, e ele perdeu a cabeça. Explodindo sobre os pés, foi até a porta e a abriu, bloqueando a entrada para o quarto. A loira de uns vinte e cinco anos do outro lado era a mesma que estava no corredor quando ele e Chantal discutiram.
– Ah, olá. – Ela lhe sorriu. – Como está?
– Não preciso de nada. Obrigado – disse, seco.
Quando se voltou para fechar, ela o segurou pelo braço.
– Sou Tiphanii, com “ph” e dois “is” no fim.
– Prazer em conhecê-la. Se me der licença…
– Eu só preciso entrar para ver como está o seu banheiro.
O sorriso a entregou. Isso e aquela pequena mudança de postura; ela inclinou o quadril na direção dele e suas pernas se esticaram, como se ela estivesse usando saltos altos em vez de Crocs.
Lane revirou os olhos, não conseguindo evitar. A mulher que desejava tinha acabado de sair de baixo dele e aquela bajuladorazinha achava que tinha algo a lhe oferecer?
– Obrigado, mas não. Não estou interessado.
Fechou a porta na cara dela porque não tinha energia para ser agradável e não queria dizer algo que acabasse lamentando mais tarde.
Girando, encontrou Lizzie do lado oposto do quarto, perto de uma janela. Ela estava deliberadamente mais para o lado, como se não quisesse ser vista, e seus braços estavam cruzados sobre o peito.
– Você pareceu bem sincero – ela comentou com secura.
– Quando estou com você, eu sou…
– Agora, com a criada.
– E por que eu não deveria?
– Sabe o que eu odeio mesmo?
– Só posso imaginar – ele murmurou.
– Como ela se ofereceu para você… E, mesmo assim, eu só consigo ficar pensando em arrancar as suas roupas. Como se fosse um brinquedinho que estou disputando com ela.
A ereção dele ficou mais apertada dentro da calça.
– Não existe disputa alguma… Eu sou seu. Se você quiser, aqui e agora. Ou mais tarde. Daqui uma semana, um mês, daqui a vários anos.
Cale a boca, sua ereção comandou. Apenas cale a boca, amigo, pare com essa coisa de futuro.
– Não vou voltar para você, Lane. Não vou.
– Você me disse isso pelo telefone.
Lizzie assentiu e desviou o olhar do jardim. Enquanto a luz começava a sumir do céu, ela marchou pelo quarto, evidentemente seguindo para a porta.
Maldição…
Não para a porta.
Na verdade, ela não foi para a porta.
Lizzie parou diante dele e deixou que os dedos completassem o trajeto, caminhando pelo seu rosto, trazendo a boca dele para a sua.
– Lizzie… – ele gemeu, lambendo a boca dela.
O beijo ficou rapidamente descontrolado, e ele não estava disposto a perder a chance com ela. Virando-a, empurrou-a contra a parede, acertando o quadro a óleo ao lado deles com tanta força que ele acabou soltando do prego e caindo no chão. Ele nem ligou. Suas mãos foram para baixo das roupas dela, encontraram a pele, subiram na direção dos seios.
Ele pensara que nunca faria aquilo de novo, e por mais que quisesse algo mais lento e demorado, não conseguia. Estava desesperado.
Foi rude com o cós dos shorts dela, arrancando o botão, descendo o zíper e fazendo-o escorregar pelas pernas dela. Em seguida, passou a mão entre as coxas dela, afastando a calcinha de algodão…
Lizzie exclamou seu nome numa voz rouca que quase o fez gozar ali mesmo, naquele instante. E quando os dedos dela se cravaram nos seus ombros, ele a afagou com mais intensidade.
– Pode me machucar – ele grunhiu quando ela o apertou com mais força. – Me faça sangrar.
Ele queria dor junto do prazer, pois tudo o que vinha acontecendo com o pai e a família deixava-o em carne viva, muito próximo de um lado sombrio… a ponto de ele pensar vagamente se não fora aquilo que norteara o irmão Max. Ficara sabendo das coisas que Maxwell fizera… ou rumores a respeito.
Talvez aquele fosse o motivo. Ele sentia como se precisasse arrancar a escuridão do seu íntimo ou acabaria sendo consumido por ela.
Suspendendo Lizzie do chão, deliciou-se com o modo como ela se grudou a ele com braços fortes. Um puxão no zíper da calça, e sua ereção estava pronta para seguir em frente. Rasgou a calcinha dela e…
O rugido que ela emitiu junto ao pescoço dele foi como o de um animal, mas ele não prestou atenção. A pegada escorregadia do sexo dela foi uma sensação que ele sentiu no corpo inteiro, e ele chegou ao orgasmo de imediato. Tanto tempo… Por tanto tempo ele sonhara com ela, lamentando o que tinha acontecido, querendo fazer as coisas de uma maneira diferente. E agora ele estava onde rezara: a cada bombeada dentro dela, ele voltava no tempo, consertando as coisas, reparando seus erros.
Ele queria estar com ela para, por um tempo, se afastar do presente. Mas, no fim, aquela experiência foi muito mais do que isso. Muito, muito mais.
Mas sempre fora verdadeiro com Lizzie. Fizera sexo muitas vezes no decorrer da vida.
No entanto, nada daquilo tivera importância… Até ele estar com ela.
Lizzie não tivera a intenção de ir tão longe.
Enquanto Lane chegava ao orgasmo dentro dela, foi alçada junto com ele, o seu orgasmo ecoando o dele. Rápido, tão rápido, tudo foi muito veloz, furioso, o ato chegou ao fim em questão de minutos, e os dois permaneceram unidos quando a onda inicial foi sumindo.
Tinham mesmo feito aquilo?, ela se perguntou.
Bem, tinham, ela concluiu quando ele se mexeu dentro dela.
E foi então que ela percebeu que… Ah, Deus, o cheiro dele era o mesmo. E os cabelos também, incrivelmente macios.
E o corpo continuava tão forte quanto ela se lembrava.
Lágrimas surgiram em seus olhos, mas ela escondeu o rosto no ombro dele. Não queria que ele percebesse suas emoções. Já estava com bastante dificuldade para reconhecer aquela confusão.
Apenas sexo, disse para si mesma. Era apenas desejo físico de ambas as partes. E Deus bem sabia, luxúria nunca fora um problema para eles. Desde o instante em que o vira no dia anterior, aquela conexão entre eles borbulhou até a superfície da pele dela.
E debaixo da pele dele também.
Ok. Sem problemas. Não conseguiu dizer não naquela situação específica, quando claramente deveria ter dito.
Quer fosse um erro ou não, dependia de como ela lidaria com as coisas dali por diante.
Recobrando o controle, afastou-se um pouco dos braços dele, muito ciente de que ainda estavam conectados.
Ficou com a respiração presa ao ver a expressão no rosto dele, quando ele fez um carinho em sua face.
Ele parecia tão vulnerável.
Contudo, antes que ela fizesse algum comentário calmo e sensato, ele começou a se mover dentro dela de novo. Lenta, ah… tão lentamente… para dentro e para fora. Para dentro e para fora. Em reação, os olhos dela se fecharam e ela ficou toda maleável, os braços dele sustentando-a, a parede nas suas costas apoiando-a ao encontro dele. Uma parte de si ainda estava presente, cada movimento sendo registrado com a claridade de um raio, a respiração pesada no peito e a fervura em seu sangue assumindo o controle de tudo.
A outra parte estava fugindo.
Ah, Deus, a sensação da mão dele agarrando seus cabelos, a boca beijando a sua com sofreguidão, os quadris se curvando e retraindo. Era como voltar ao lar de todas as maneiras que seu corpo desejava havia muito tempo.
E isso não podia ser bom.
– Lizzie – ele disse com uma voz entrecortada. – Senti saudade, Lizzie. Tanta saudade que chegava a doer.
Não pense nisso, ela disse a si mesma. Não preste atenção.
O nome dele escapou dos seus lábios uma vez mais, o estalido do prazer fazendo seu sexo se contrair ao redor da ereção enquanto ele se movia dentro dela, empurrando-a contra a parede, com tamanho ímpeto que a fez bater a cabeça.
Quando ficaram imóveis a não ser pela respiração, ela se deixou cair sobre ele.
– Esta não pode ser a última vez – ele grunhiu, como se soubesse o que ela estava pensando. – Não pode.
– Como você sabia…
– Não te culpo. – Ele se afastou, e seus olhos semicerrados a queimaram. – Só não quero que isso…
– Lane…
A batida à porta a sobressaltou. E ele praguejou.
– Mas que porra! – ele ralhou.
E considerando-se que ele não era de ficar falando palavrão, ela teve que dar um sorriso.
– O que foi? – ele berrou.
– Senhor Baldwine – era a voz do mordomo –, o senhor Lodge está aqui e gostaria de vê-lo.
Lane franziu o cenho.
– Diga a ele que estou ocupado…
– Ele disse que é urgente.
Lizzie balançou a cabeça e se afastou dos braços dele pela segunda vez. Quando seus pés tocaram o chão silenciosamente, ela se deu conta de que não haviam usado preservativo.
Isso mesmo. E tudo ficou bem real quando ela suspendeu os shorts e saiu apressada para o banheiro. Limpou-se o melhor que pôde enquanto Lane falava com o inglês pela porta. E quando ela voltou, ele já havia subido as calças e andava de um lado para o outro.
Ela levantou a palma antes que ele conseguisse comentar qualquer coisa.
– Vá lá ver o que ele quer.
– Lizzie…
– Se um quarto do que o preocupa for verdade, você vai precisar dele.
– Aonde você vai?
– Não sei. Acho que terminamos até amanhã de manhã.
O que era verdade em relação a tantas outras coisas.
– Você não pode ficar? – ele disse num ímpeto.
As sobrancelhas dela se ergueram.
– Ficar? Está querendo que eu passe a noite aqui? Isso é loucura.
Numa casa onde, tecnicamente, não podia usar metade das portas, acordar na cama do filho mais novo e continuar trabalhando em Easterly não era uma opção.
Ah, sim, pensou ela. Os bons e velhos tempos, quando tinham que manter tudo em segredo.
– Em qualquer lugar – ele disse. – Num dos chalés. Não faz diferença.
– Lane. Preste atenção, não é… Não vamos voltar ao que tínhamos antes, lembra? Não sei por que fiz o que fiz, mas isso não significa…
Ele se aproximou e a atraiu para um beijo, a língua invadindo a boca dela. Que Deus a ajudasse, pois, depois de um instante, ela retribuiu o beijo.
– Isso é importante – ele disse ao encontro dos lábios dela. – Isso é mais importante para mim do que a minha família. Você entende, Lizzie? Você sempre foi e sempre será importante para mim, a coisa mais importante.
Dito isso, ele se afastou e foi para a porta, olhando para ela por sobre o ombro – um olhar que era uma espécie de juramento, e que ela jamais vira antes.
Sentando no pé da cama dele, olhou para a parede onde tinham acabado de fazer sexo. O quadro no chão estava arruinado, a tela estava arranhada e torta, mas ela não queria avaliar o estrago. Apenas continuou sentada, tentando convencer a si mesma de que aquilo não era um sinal enviado por Deus.
Demorou um pouco para sair do quarto, atenta junto à porta, prestando atenção a vozes e passos antes de entreabrir a porta e espiar. Quando não havia mais nada além de silêncio, ela praticamente saltou para o meio do corredor e começou a andar apressada.
O quarto de Chantal ficava do outro lado do corredor, um pouco mais para a frente e, quando passou diante dele, sentiu a fragrância do perfume caro dela.
Um lembrete e tanto – não que ela precisasse – do por que deveria ter saído do quarto após a primeira interrupção.
Em vez de ter seguido em frente a toda velocidade.
Ela só podia culpar a si mesma.
VINTE E DOIS
Enquanto trotava escada abaixo, só o que Lane conseguia pensar era no quanto queria ter um drinque na mão. A boa notícia, e provavelmente a única que receberia, era que, quando chegou à sala de estar, Samuel T. já estava se servindo do Reserva de Família, o som do gelo a tilintar no copo atiçando a vontade de Lane como a ânsia de um viciado.
– Gostaria de partilhar da sua fortuna? – ele murmurou enquanto deslizava as portas de madeira dos dois lados da sala.
Havia muitas coisas que ele não queria que outros ouvissem.
– O prazer é meu. – Samuel o presenteou com um drinque igual ao seu num copo baixo de cristal. – Dia longo, não?
– Você não faz ideia. – Lane bateu um copo no outro. – O que posso fazer por você?
Samuel T. tomou seu bourbon e voltou para o bar.
– Fiquei sabendo sobre a controller. Meus pêsames.
– Obrigado.
– Foi você quem a encontrou?
– Sim.
– Já passei por isso. – O advogado voltou para perto e sacudiu a cabeça. – Dureza.
Você não sabe da missa a metade.
– Olha só, não quero te apressar, mas…
– Falou sério quanto ao divórcio?
– Claro.
– Tem um acordo pré-nupcial?
Quando Lane meneou a cabeça, Samuel xingou.
– Alguma possibilidade de ela ter te traído?
Lane esfregou as têmporas, tentando arrancar o que tinha acabado de acontecer com Lizzie… e o que vira naquele laptop. Queria pedir a Samuel T. que deixassem aquela conversa para o dia seguinte, mas seus problemas com Chantal estariam esperando, quer a sua família se afundasse em problemas financeiros ou não.
Na verdade, devia ser melhor dar sequência àquilo em vez de esperar, considerando toda aquela situação com o pai. Quanto mais rápido a tirasse daquela casa, menos informações ela teria para vender para os tabloides.
Não que não conseguisse vê-la falando pelos cotovelos com qualquer um, se o pior acontecesse com os Bradford.
– Desculpe – disse entredentes. – Qual foi mesmo a pergunta?
– Ela te traiu?
– Não que eu saiba. Ela passou os dois últimos anos nesta casa, vivendo à custa da minha família, fazendo a manicure.
– Uma pena.
Lane ergueu uma sobrancelha.
– Eu não sabia que via o matrimônio com tanto preconceito.
– Se ela tiver te traído, isso pode ser usado para reduzir a pensão. O Kentucky é um Estado que não exige admissão de culpa para conceder o divórcio, mas casos extraconjugais e maus tratos podem ser usados para mediar a pensão.
– Não estive com ninguém. – A não ser com Lizzie, havia pouco no quarto, e umas milhares de vezes antes em sua mente.
– Isso não importa, a menos que você queira pedir pensão a Chantal.
– Até parece. Livrar-me dela de uma vez por todas é só o que quero daquela mulher.
– Ela sabe que isso vai acontecer?
– Contei para ela.
– Mas ela sabe?
– Já está com os papéis para eu assinar? – Quando o advogado assentiu, Lane deu de ombros. – Bem, ela vai entender que eu estava falando sério quando receber os documentos.
– Assim que eu conseguir a sua assinatura, vou direto para o centro da cidade para dar entrada no divórcio. O tribunal terá que entender que o casamento está irrevogavelmente terminado, mas acho que, como faz dois anos que vocês moram em casas diferentes, não será um problema. Já vou avisando: acho que ela não vai abrir mão da pensão. E existe uma possibilidade de sair caro para você, ainda mais porque o padrão de vida dela foi bem alto nesta casa. Deduzo que alguns dos seus fundos foram liberados?
– A primeira parte. A segunda será liberada só quando eu completar quarenta anos.
– Qual a sua renda anual?
– Isso inclui os ganhos no pôquer?
– Ela está ciente deles? Você os declara no imposto de renda?
– Não e não.
– Então vamos deixar isso de fora. Qual o montante?
– Não sei. Nada ridículo, talvez um milhão, mais ou menos. Deve ser um quinto da renda gerada pelo acervo fiduciário.
– Ela vai atrás disso.
– Mas não ao acervo, correto? Acho que existe uma cláusula quanto ao excesso de gastos.
– Se estiver no Termo Irrevogável da Família Bradford de 1968, e eu acredito que esteja, pois foi meu pai quem redigiu os termos, pode apostar a sua melhor garrafa que sua iminente-ex-mulher não vai pôr a mão em nada disso. Vou precisar de uma cópia dos documentos, claro.
– A Fundos Prospect está com tudo.
Samuel T. tratou dos vários “arquivar isso”, “argumentar aquilo”, “divulgar sei lá o que”, mas Lane não estava mais prestando atenção. Em sua mente, estava no andar de cima, em seu quarto, com a porta trancada e Lizzie toda nua na sua cama. Ele a cobria com mãos e boca, diminuindo a distância dos anos e voltando ao ponto antes de Chantal aparecer em roupas de maternidade de grife.
O que quer que tivesse que enfrentar em relação ao pai e à dívida seria muito mais fácil se Lizzie estivesse ao seu lado, e não apenas sexualmente.
Amigos podiam se ajudar, certo?
– Tudo bem assim?
Lane voltou a se fixar no advogado.
– Sim. Quanto tempo vai demorar?
– Como já disse, vou entregar tudo ainda hoje a um juiz “amigável” que me deve um ou dois favores. E Mitch Ramsey concordou em disponibilizar a petição para ela imediatamente. Depois só vai faltar rascunhar o acordo do divórcio, e o meu palpite é que ela vá atrás de um tremendo advogado de família, que você vai ter que pagar. Vocês têm vivido separados há mais de sessenta dias, mas ela vai ter que sair desta casa o mais rápido possível, caso você tenha a intenção de ficar. Não quero que isso atrase o processo em dois meses, graças a uma possível alegação de coabitação da parte dela. O meu palpite é que ela contestará tudo, porque vai querer o máximo de dinheiro que puder de você. O meu objetivo é tirá-la da sua vida com apenas as roupas do corpo e aquele anel de um quarto de milhão de dólares que você lhe deu, e só.
– Parece-me uma excelente ideia. – Ainda mais porque ele não sabia se existia um centavo a mais para gastar em algum lugar que não fosse nas suas contas. – Onde assino?
Samuel apresentou diversos papéis para que fossem assinados. Tudo acabou antes que Lane terminasse seu primeiro copo de bourbon.
– Quer que eu te dê um adiantamento? – perguntou, ao devolver a Montblanc ao advogado.
Samuel T. terminou o drinque, depois se serviu de mais gelo e de mais uma dose do Reserva de Família.
– Fica por conta da casa.
Lane se retraiu.
– Que é isso, cara? Não posso deixar que faça assim. Deixe que eu…
– Não. Sério, não gosto dela, e ela não pertence a esta família. Encaro esse divórcio como parte da manutenção da casa. Uma vassoura para jogar o lixo fora.
– Eu não sabia que você a detestava tanto assim.
Samuel T. apoiou as mãos no quadril e baixou o olhar para o tapete oriental.
– Vou ser totalmente franco.
Lane já tinha entendido qual seria o assunto, pela maneira como o advogado contraía o maxilar.
– Vá em frente.
– Uns seis meses depois que você foi embora, Chantal ligou para mim. Pediu que eu viesse para cá, e quando eu me neguei, ela apareceu na minha casa. Ela estava querendo um “amigo”, como ela mesma disse, depois enfiou a mão dentro das minhas calças e se ofereceu para ficar de joelhos. Disse a ela que ela era louca. Mesmo se eu estivesse atraído por ela, o que nunca foi o caso, a sua família e a minha são amigas há gerações. Eu jamais ficaria com uma esposa sua, divorciada, separada ou casada. Além disso, a Virgínia é uma boa faculdade para se frequentar, mas eu não me casaria com uma moça de lá, e era exatamente isso que ela pretendia.
Caramba, às vezes ele odiava ter razão quanto àquela vadia, odiava mesmo.
– Não estou surpreso, mas fico contente que tenha me contado. – Lane levantou a mão. – Um dia vou retribuir o favor.
O advogado aceitou o que lhe era oferecido, depois se curvou de leve, e partiu com o copo.
– Você pode ser preso por beber na rua – Lane exclamou. – Para a sua informação.
– Só se eu for apanhado – Samuel T. exclamou de volta.
– Louco – murmurou Lane ao terminar o próprio drinque.
Quando foi se servir de outra dose, seu olhar recaiu sobre a pintura a óleo acima da cornija da lareira. Era um retrato de Elijah Bradford, o primeiro membro da família a ter dinheiro o bastante para se sobressair de seus pares, posando para um artista americano de renome.
Será que ele estava se revirando no túmulo àquela altura?
Ou isso aconteceria depois… quando o fedor piorasse?
Gin sentiu uma onda de pânico ao descer a escadaria principal de Easterly.
Assim que viu o Jaguar vintage diante da casa, tirou as roupas que usara na cadeia, pelo amor de Deus, e colocara um vestido de seda com barra bem acima dos joelhos. Borrifou um pouco de perfume. Calçou sapatos que deixavam seus tornozelos mais finos do que nunca.
A julgar pelas portas fechadas da sala de estar, ela sabia que o irmão estava falando com Samuel T. a respeito da Situação. Ou das Situações.
Deixou-os à vontade.
Em vez de entrar na sala, foi para a porta da frente e esperou ao lado do conversível antigo. A temperatura devia estar nos vinte e poucos graus, apesar de o sol já estar se pondo, e havia certa umidade no ar – ou talvez fossem seus nervos fora de controle. Para aproveitar um pouco de sombra, foi para debaixo de uma das magnólias que cresciam próximas à casa.
Enquanto olhava para o carro, lembrou-se das vezes que esteve nele com Samuel T., do vento noturno em seus cabelos, da mão dele entre suas pernas enquanto ele os conduzia pelas estradas cheias de curvas da sua fazenda.
O conversível fora comprado por Samuel T. pai, no dia do nascimento daquele que acabou sendo o único herdeiro do homem. E foi dado ao jovem Samuel T. em seu décimo oitavo aniversário, com instruções precisas de que ele não se matasse nessa coisa.
E, engraçado, as instruções deram resultado: só quando estava atrás daquele volante é que aquele homem era cuidadoso. Gin suspeitava de que ele sabia que se algo lhe acontecesse, sua árvore genealógica chegaria ao fim.
Ele era o único membro da sua geração que sobrevivera.
Foram muitas tragédias.
Que, até aquele exato instante, não lhe interessaram muito.
Enquanto aguardava, seu coração batia rápido, e a agitação em seu peito a deixava tonta. Ou talvez fosse o calor…
Samuel T. parou diante da porta da frente e saiu de Easterly com um copo de cristal na mão. Ele formava uma figura impressionante com o terno cortado sob medida, seu lindo rosto e a maleta com monograma. Estava usando óculos de sol com armação dourada, e os cabelos escuros e espessos estavam penteados para trás, com um topete que parecia ter sido milimetricamente arrumado, mas que, na verdade, nunca requeria isso.
Ele parou quando a viu. Depois disse em sua fala arrastada: – Veio me agradecer por te salvar?
– Preciso falar com você.
– É mesmo? Vai tentar negociar um adiantamento que não envolva dinheiro? – Bebeu todo o líquido e deixou o copo no primeiro degrau, como só alguém que sempre teve empregados faria. – Estou aberto a sugestões.
Ela avaliou cada passo que ele deu na direção dela e do carro. Conhecia muito bem aquele corpo forte e musculoso, que denunciava o fazendeiro que era no fundo de sua alma, debaixo de todas aquelas roupas elegantes de advogado.
Amelia seria alta como ele. E também era inteligente como ele.
Infelizmente, a menina era boba como a mãe, ainda que talvez um dia pudesse superá-lo.
– E então? – incitou-a ao colocar a maleta no banco. – Posso escolher como vai pagar a sua conta?
Mesmo através das lentes escuras, sentia o olhar dele. Ele a desejava, sempre a desejou, e às vezes, ele a detestava por isso: não era um homem que apreciava restrições, mesmo as autoimpostas.
Ela também era assim.
Samuel T. meneou a cabeça.
– Não me diga que o gato comeu a sua deliciosa língua. Seria uma pena tremenda ficar sem essa parte da sua anatomia…
– Samuel.
No instante em que ele ouviu o tom de voz dela, franziu o cenho e tirou os óculos escuros.
– O que aconteceu?
– Eu…
– Alguém a destratou na cadeia? Porque vou pessoalmente até lá e…
– Case comigo.
Ele parou no ato, tudo congelou: a expressão dele, a respiração, talvez até mesmo o coração. Depois ele gargalhou.
– Certo, certo, certo. Claro que você…
– Estou falando sério.
A porta do carro se abriu silenciosamente, um testemunho dos cuidados que ele tinha com o carro.
– O dia que você se assentar com qualquer homem será o dia do Segundo Advento.
– Samuel, eu te amo.
Ele lhe lançou um olhar sardônico.
– Ora, por favor…
– Preciso de você.
– A cadeia mexeu mesmo com você, não mexeu? – Ele se acomodou no banco do motorista e ficou olhando para o capô por um instante. – Olha aqui, Gin, não se sinta mal por ter parado lá, ok? Consegui apagar qualquer rastro, então a sua ficha vai ficar limpa. Ninguém vai saber de nada.
– Não é esse o motivo. Eu só… Vamos nos casar. Por favor.
Olhando para ela, ele franziu tanto o cenho que suas sobrancelhas se uniram.
– Você parece estar falando sério.
– Estou mesmo. – Ela não era idiota. Ela lhe contaria sobre Amelia mais tarde, quando fosse mais difícil para ele escapar, quando houvessem documentos que os unissem, até que ele superasse o que ela lhe fizera. – Você e eu nascemos para ficar juntos. Você sabe disso. Eu sei. Estamos dando voltas neste nosso relacionamento a vida toda, mais até. Você sai com garçonetes, manicures e massagistas porque elas não são eu. Você compara cada uma dessas mulheres ao meu padrão e todas elas perdem. Você é obcecado por mim, assim como eu sou por você. Não vamos mais mentir, vamos fazer o que é certo.
Ele voltou o olhar para o capô e escorregou as belas mãos sobre o volante de madeira.
– Deixe eu te perguntar uma coisa.
– Qualquer coisa.
– Para quantos homens você já disse isso? – Voltou a olhar para ela. – Hein? Quantos, Gin? Quantas vezes você usou essas frases?
– É a verdade – ela disse numa voz entrecortada.
– Você também tentou esse tom de súplica com eles, Gin? Bateu os cílios para eles?
– Não seja cruel.
Depois de um longo silêncio, ele meneou a cabeça.
– Você se lembra da minha festa de trigésimo aniversário? Aquela que aconteceu na minha fazenda?
– Isso não tem nada a ver com…
– Foi uma bela surpresa. Eu não fazia a mínima ideia de que vocês estariam lá esperando por mim. Entrei na minha casa e… surpresa! Todas aquelas pessoas gritando, e eu procurei por você…
Ela levantou as mãos.
– Isso aconteceu cinco anos atrás, Samuel! Foi…
– Na verdade, foi o resumo do nosso relacionamento, Gin. Eu procurei por você… percorri os olhos pela multidão, fui atrás de você…
– Aquilo não foi importante. Nenhum deles importou…
– … porque, como você mesma disse, sou um tolo e você foi a única mulher que eu quis de verdade. E eu te encontrei… transando com aquele jogador de polo argentino, hóspede de Edward, na minha cama.
– Samuel…
– Na minha cama! – ele esbravejou, batendo com o punho no painel. – Na porra da minha cama, Gin!
– Tudo bem! E o que foi que você fez? – Ela empinou o quadril e apontou o dedo na direção dele. – O que foi que você fez? Você pegou a minha colega de quarto da faculdade e a irmã dela e transou com as duas na piscina.
Ele praguejou alto.
– O que eu deveria ter feito? Deixar que você me pisoteasse? Sou homem, não um dos seus amigos coloridos patéticos! Eu não vou…
– Fiquei com o jogador de polo porque na semana anterior você dormiu com Catherine! Eu era amiga dela desde os dois anos, Samuel. Tive que ficar ouvindo-a contar e repetir que você lhe deu os melhores orgasmos da vida dela no banco de trás do seu carro. Depois de ter ficado comigo na noite anterior! Então, não venha me dizer que você foi o…
– Chega. – De repente, ele correu os dedos pelos cabelos. – Já chega, pare. Não vamos mais fazer isso, Gin. Temos as mesmas discussões desde que éramos adolescentes…
– Brigamos porque gostamos um do outro e somos orgulhosos demais para admitir isso. – Quando ele se calou de novo, ela teve esperança de que ele estivesse repensando. – Samuel, você é o único homem que eu amei. O mesmo acontece com você. É simples assim. Se precisamos parar de fazer alguma coisa, é de brigar e de nos magoar. Somos dois teimosos e orgulhosos demais para o nosso próprio bem.
Houve um longo silêncio.
– Por que agora, Gin…
– Porque… chegou a hora.
– Tudo isso só por causa da revista íntima das dez da manhã?
– Você precisa mesmo falar assim?
Samuel T. balançou a cabeça.
– Não sei se você está falando sério ou não, mas não é problema meu. Deixe-me ser bem claro.
– Samuel – ela o interrompeu –, eu te amo.
E ela estava falando sério. Ela estava abrindo a alma. A terrível convicção de que as coisas ficariam ruins para a família se enraizara e se espalhara, trazendo com ela uma certeza que ela nunca teve antes.
Ou talvez houvesse mais por trás – uma coragem que antes lhe faltara. Em todos aqueles anos juntos, ela nunca lhe dissera o que sentia verdadeiramente. Ela só se preocupava em manter a pose e dizer a última palavra. Bem, e criar a filha dele… não que ele soubesse disso ainda.
– Eu te amo – sussurrou.
– Não. – Ele abaixou a cabeça e apertou o volante como se buscasse forças dentro dele mesmo. – Não… Você não pode fazer isso, Gin. Não comigo. Não tente levar a farsa tão a fundo. Não é saudável para você. E eu acho que eu não sobreviveria, ok? Preciso funcionar… minha família precisa de mim. Não vou permitir que enlouqueça minha cabeça tanto assim…
– Samuel…
– Não! – ele exclamou.
Depois ele a encarou, os olhos azuis frios e agudos, como se estivesse diante de um inimigo.
– Primeiro, não acredito em você, ok? Acho que está mentindo para me manipular. Segundo? Jamais permitirei que uma esposa minha me desrespeite da maneira como você desrespeitará o seu marido. Você é fundamentalmente incapaz de ser monógama e, indo direto ao ponto, você se entedia rápido demais para valorizar um relacionamento durável. Você e eu podemos nos divertir de vez em quando, mas eu jamais honraria uma puta como você com o meu sobrenome. Você menospreza as garçonetes? Tudo bem. Mas eu preferiria que alguém assim tivesse a minha aliança no dedo do que uma menina mimada e desleal como você.
Ele deu a partida no carro, e o cheiro doce da gasolina e de óleo fugazmente se espalhou pelo ar quente.
– Eu te procuro da próxima vez que tiver vontade de cuidar de um assunto do qual prefiro não cuidar sozinho. Até então, divirta-se com o resto da população.
Gin levou as duas mãos sobre a boca quando ele deu marcha ré, e o carro desapareceu pelo caminho, colina abaixo.
Conforme ele sumia, lágrimas caíram dos olhos dela, borrando o rímel e, de maneira inédita, ela não se importou.
Dera seu único lance.
E fracassara.
Aquele era o seu pior pesadelo se concretizando.
VINTE E TRÊS
– Hum, Lisa?
Lizzie ficou estática assim que ouviu o sotaque sulista arrastado se infiltrando na estufa, o que foi estranho porque estava desmontando as mesas que usaram para os arranjos florais e uma delas ficou equilibrada apenas em uma perna.
– Lisa?
Ao erguer o olhar, Lizzie viu a esposa de Lane parada à porta como se estivesse posando para uma câmera, com uma mão no quadril e a outra jogando os cabelos para trás. Vestia calças de seda cor-de-rosa Mary Tyler Moore da Laurie Petrie e uma blusa com decote baixo num tom laranja pôr do sol. Os sapatos eram de bico fino, com saltos pequenos e, para completar, uma echarpe dramática e transparente em tons cítricos de amarelo e verde envolvia seus ombros, amarrada diante dos seios perfeitos.
Levando-se tudo em consideração, a composição criava uma impressão de Frescor, Amabilidade e Tentação, fazendo que alguém que estava Cansada, Ansiosa e Estressada se sentisse ainda mais deficiente – não apenas com relação ao penteado e à vestimenta, mas até à genética molecular.
– Pois não? – Lizzie disse enquanto prosseguia batendo numa das pernas.
– Poderia parar de fazer isso? É muito barulhento.
– Será um prazer – Lizzie disse entredentes.
Por algum motivo, enquanto a mulher brincava com as mechas loiras, o brilho do diamante em sua mão esquerda foi como se alguém lançasse uma maldita bomba repetidamente.
Chantal sorriu.
– Preciso da sua ajuda para uma festa.
Podemos apenas terminar a de amanhã primeiro?
– Será um prazer.
– É uma festa para dois. – Chantal sorriu ao soltar a echarpe e avançar um pouco mais. – Puxa, como está quente aqui. Não pode fazer nada a respeito?
– As plantas gostam mais do calor.
– Oh. – Tirou a echarpe e a deixou ao lado de um buquê que seria colocado num dos ambientes sociais da casa. – Bem.
– Você dizia?
Aquele sorriso retornou.
– Logo será nosso aniversário de casamento, meu e de Lane, e eu gostaria de preparar algo especial.
Lizzie engoliu em seco, e ficou se perguntando se aquele seria algum tipo de jogo doentio. Será que a mulher ouvira alguma coisa lá no segundo andar através das paredes?
– Pensei que tivessem se casado em julho.
– Quanta gentileza sua se lembrar. Você é tão atenciosa. – Chantal inclinou a cabeça para o lado e fixou o olhar no seu, como se estivessem partilhando um momento especial. – Sim, nos casamos em julho, mas tenho uma novidade muito especial para contar para ele, e pensei em comemorar um pouco antes.
– No que pensou?
Lizzie não acompanhou muito bem enquanto ela falava. As únicas coisas que captou foi “romântico” e “reservado”. Como se Chantal estivesse planejando presentear o marido com uma dança íntima.
– Lisa? Você está escrevendo tudo isso?
Bem, não, porque estou sem caneta e papel, não é? E P.S.: acho que vou vomitar.
– Ficarei contente em planejar o que quer que tenha em mente.
– Você é tão prestativa. – A mulher acenou para a tenda e para o jardim do lado de fora. – Sei que tudo ficará lindo amanhã.
– Obrigada.
– Podemos conversar mais a respeito depois. Mas repito, estou pensando num jantar romântico numa suíte do Cambridge Hotel. Você poderá providenciar as flores e a decoração especial. Quero que tudo seja coberto com panos a fim de criar um lugar exótico, apenas para nós dois.
– Tudo bem.
Será que Lane tinha mentido? E se tinha… bem, isso faria com que Greta cuidasse de tudo durante o Brunch do Derby, enquanto ela ficaria na fazenda se ocupando de um galão de sorvete de chocolate.
Só que ela e sua colega de trabalho não estavam conversando mais.
Fantástico.
– Você é a melhor. – Chantal consultou o relógio de diamantes. – Já está na hora de você voltar para casa, não está? Grande dia amanhã… Você vai precisar do seu sono de beleza. Tchauzinho por enquanto.
Quando Lizzie se viu só novamente, sentou-se num dos baldes virados para baixo e apoiou as mãos sobre os joelhos, esfregando-os para cima e para baixo.
Respire, ela se ordenou. Apenas respire.
Greta estava certa. Ela não estava no nível daquelas pessoas, e não só por ser apenas uma jardineira. Eles jogavam um jogo do qual ela só sairia perdendo.
Hora de ir embora, resolveu. O sono de beleza não iria acontecer, mas, pelo menos, ela poderia tentar e seguir em frente, antes que a bomba estourasse no dia seguinte.
Levantou-se, e já estava para sair quando viu a echarpe. A última coisa que queria era ter que entregar o pedaço de seda para Chantal, como se fosse um labrador devolvendo uma bola de tênis para seu dono. Mas aquela coisa estava bem ao lado de todos aqueles buquês e, conhecendo sua sorte, algo poderia vazar e cair em cima do pano, e ela teria que poupar três meses de salário para comprar um novo.
O guarda-roupa de Chantal era mais caro que bairros inteiros de Charlemont.
Pegando a peça, pensou onde a mulher poderia ter ido com aqueles estúpidos saltos finos.
Não seria difícil localizá-la.
Gin ainda estava debaixo da magnólia onde Samuel T. a deixara quando um veículo veio subindo pela entrada da frente. Foi só quando o SUV parou diante dela que ela percebeu que era da delegacia do Condado de Washington. Bom Deus, quais seriam as alegações do pai para prendê-la desta vez? Graças ao horrendo trajeto daquela manhã até o centro da cidade, seu primeiro instinto foi o de correr, mas estava com saltos, e se queria mesmo fugir do policial, teria que escapar por uma moita de flores.
Quebrar a perna não a ajudaria em nada na prisão.
O delegado Mitchell Ramsey saiu com um maço de papéis na mão.
– Senhorita – ele a cumprimentou com um aceno. – Como está?
Ele não tirou algemas do bolso. Não mostrava nenhum interesse nela além de uma mera educação.
– Veio aqui por minha causa? – ela perguntou de repente.
– Não. – Os olhos dele se estreitaram. – A senhorita está bem?
Não, nem um pouco, delegado.
– Sim, obrigada.
– Se me der licença…
– Então, não veio atrás de mim?
– Não, senhorita. – Ele andou até a porta e tocou a campainha. – Não vim.
Talvez estivesse relacionado à Rosalinda?
– Por aqui – ela disse, passando por ele. – Entre. Está procurando pelo meu irmão?
– Não, Chantal Baldwine está em casa?
– É bem provável. – Ela abriu a porta principal, e o delegado tirou o chapéu ao entrar. – Deixe-me encontrar… ah, senhor Harris. Pode, por favor, conduzir este cavalheiro até a minha cunhada?
– Será um prazer – disse o mordomo, curvando-se. – Por aqui, senhor. Acredito que ela esteja na estufa.
– Senhorita… – o delegado murmurou na direção dela, antes de seguir o inglês.
– Vejamos, isso deve ser bem interessante – disse uma voz na sala de estar.
Ela se virou.
– Lane?
O irmão estava diante do quadro de Elijah Bradford, e ergueu um copo baixo.
– Ao meu divórcio!
– Mesmo? – Gin andou e se ocupou no bar porque não queria que Lane se concentrasse nos seus olhos vermelhos e no seu rosto inchado. – Bem, pelo menos eu não terei mais que tirar as joias de mamãe do pescoço dela. Já vai tarde, mas estou surpresa que você não queira apreciar o espetáculo.
– Tenho problemas mais importantes.
Gin levou seu bourbon com soda para o sofá e, com um chute, tirou os sapatos. Enfiando as pernas debaixo do corpo, encarou o irmão.
– Você está horrível – ela disse. Tão péssimo quanto ela, na verdade.
Ele se sentou diante dela.
– Isso vai ser difícil, Gin. A situação financeira. Acho que é bem séria.
– Talvez possamos vender ações. Quero dizer, você pode fazer isso, não? Eu não faço ideia de como funciona.
E, pela primeira vez na vida, desejou saber.
– É complicado por conta da situação dos fundos.
– Hum… nós vamos ficar bem. – Quando o irmão não disse nada, ela franziu o cenho. – Certo? Lane?
– Eu não sei, Gin. Não sei mesmo.
– Sempre tivemos dinheiro.
– Sim, isso era verdade.
– Você faz com que isso pareça pertencer ao passado.
– Não se engane, Gin.
Curvando o pescoço para trás, ela ficou olhando para o teto, imaginando a mãe deitada na cama. Qual seria o futuro dela? Será que um dia ela se recolheria e puxaria as cortinas a fim de viver num torpor induzido pelas drogas?
Por certo, isso lhe parecia atraente agora.
Deus, Samuel T. tinha mesmo recusado seu pedido?
– Gin, você andou chorando?
– Não – ela disse com suavidade. – É apenas uma alergia, meu querido irmão. Apenas alergia causada pela primavera…
VINTE E QUATRO
Lizzie se apressou para fora da estufa com a echarpe perfumada de Chantal, e toda aquela fragrância emanando do tecido pesava em seu nariz, fazendo-a querer espirrar. Engraçado, conseguia ficar rodeada por milhares de flores de verdade, mas aquela coisa fabricada, artificial e forte bastava para mandá-la atrás de um Claritin.
Ao longe, ouviu o inconfundível sotaque arrastado típico da Virgínia de Chantal e seguiu na direção da sala de jantar para…
– O que é isso? – Chantal exigiu saber.
Lizzie parou de repente e espiou ao redor da arcada pesada de gesso.
Na ponta oposta da longa mesa lustrada, Chantal estava diante de um delegado uniformizado que, aparentemente, lhe entregara um maço de papéis.
– A senhora recebeu sua petição. – O delegado assentiu. – Passe bem.
– O que quer dizer com “petição”? O que quer… Não, você não vai embora até eu abrir isso. – Ela rasgou o envelope. – Fique aqui até eu…
Os papéis saíram do envelope num maço dobrado em três, e quando a mulher os esticou, o coração de Lizzie bateu forte.
– Divórcio? – Chantal disse. – Divórcio?
Lizzie voltou para trás e se encostou na parede. Fechando os olhos, odiou o alívio que sentiu, odiou mesmo. Só que ela não tinha como fingir que não era algo bom.
– Esta é uma petição de divórcio! – A voz de Chantal ficou mais aguda. – Por que está fazendo isso?
– Senhora, o meu trabalho é apenas entregar os papéis. Agora que os recebeu…
– Eu não os recebi! – Houve um farfalhar como se, de fato, ela tivesse jogado os papéis na direção do homem. – Pode pegar isso de volta!
– Senhora – o policial rugiu –, vou aconselhá-la a pegar esses papéis do chão. Ou não. O problema é seu. Mas se continuar agindo assim, vou ter que levá-la para a cadeia amarrada no teto da minha viatura por se mostrar agressiva com um oficial da justiça. Estamos entendidos?
Então, veio uma cascata.
Entre fungadas e o que deviam ter sido arquejos, Chantal mudou de atitude rapidamente.
– O meu marido me ama. Ele não está falando sério. Ele…
– Senhora, nada disso é da minha conta. Passe bem.
Passadas pesadas ecoaram e se afastaram.
– Maldição, Lane! – a mulher sibilou com uma dicção perfeita.
Pelo visto a atuação só acontecia quando havia uma plateia.
Sem aviso, um toc-toc-toc daqueles saltos atravessou o cômodo indo na direção de Lizzie. Merda, não havia tempo de sair dali…
Chantal fazia a curva e se sobressaltou ao ver Lizzie.
Embora a mulher tivesse aberto a torneira para o delegado, seus olhos estavam límpidos, e a maquiagem não estava nem um pouco borrada.
Ódio. Imediato.
– O que está fazendo? – Chantal berrou, o corpo trêmulo. – Ouvindo atrás das portas?
Lizzie estendeu a echarpe.
– Eu estava trazendo isto para você…
Chantal agarrou o tecido.
– Saia daqui. Saia! Saia imediatamente!
Não precisa pedir duas vezes, Lizzie pensou ao virar e seguir para o jardim.
Ao passar por baixo da tenda, serpenteando entre as mesas e cadeiras, pegou o telefone e mandou uma mensagem de texto para Lane, uma que apenas explicava que estava indo para casa após o longo dia de trabalho.
Deus bem sabia que o homem teria trabalho assim que Chantal o encontrasse.
A boa notícia, pelo menos para Lizzie?
Nada de festa de aniversário de casamento para planejar.
Lane não tinha mentido.
Foi difícil conter o sorriso que surgiu em seus lábios. E quando ele se recusou a ir embora, ela deixou que ele ficasse bem onde estava.
O telefone de Lane emitiu um bipe bem quando Chantal marchava pela sala de estar, gritando o nome dele enquanto partia em direção às escadas. Ele não denunciou seu paradeiro, simplesmente deixou que ela seguisse para o andar de cima, e fizesse o escândalo que planejava diante da porta fechada do seu quarto.
Engraçado, meras horas atrás, o fato de ela estar preparando uma guerra era um problema para ele. Mas agora? Aquilo estava tão embaixo na sua lista de prioridades…
– Preciso ir ver Edward – Lane disse, sem se importar em ver quem lhe mandara uma mensagem.
Gin levantou a cabeça.
– Eu não faria isso. Ele não está bem, e a notícia que você tem só pode piorar a situação.
Ela tinha razão. Edward já odiava o pai deles, que dirá a ideia de que o homem tivesse roubado dos fundos.
Gin levantou e foi até o bar para se servir novamente.
– Amanhã ainda está de pé?
– O Brunch? – Ele deu de ombros. – Não sei como impedir isso. Além do mais, já está tudo praticamente pago. A comida, a bebida, as coisas alugadas.
Ele sentia vergonha da outra motivação do evento: a ideia de que o mundo tivesse sequer uma pista dos problemas que sua família enfrentava lhe era inaceitável.
O som de alguém descendo os degraus acarpetados em disparada fez com que Gin erguesse uma sobrancelha.
– Parece que você vai ter um momento conjugal.
– Só se ela me encontrar…
Chantal apareceu na porta da sala de estar, com o rosto normalmente pálido e tranquilo tão rosado quanto o de um carvão em brasa numa churrasqueira.
– Como ousa? – a esposa exigiu saber.
– Imagino que esteja indo preparar as malas, querida – Gin disse com um sorriso digno da manhã de Natal. – Devo chamar o mordomo? Acho que podemos lhe fazer essa última cortesia. Considere como um presente de despedida.
– Não vou sair desta casa – Chantal ignorou Gin. – Você me entendeu, Lane?
Ele girou o gelo no copo com o indicador.
– Gin, pode nos dar um pouco de privacidade, por favor?
Com um aceno, a irmã foi para a porta e, ao passar por Chantal, parou e olhou para trás na direção dele.
– Certifique-se de que o mordomo verifique a bagagem dela, para garantir que ela não leve nenhuma joia.
– Você não presta – Chantal sibilou.
– Não mesmo. – Gin deu de ombros como se a mulher mal merecesse suas palavras. – Mas tenho o direito ao nome Bradford e a este legado. Você não. Tchauzinho.
Enquanto Gin acenava remexendo os dedos, Lane se adiantou e se colocou entre as duas a fim de impedir um momento Alexis/Krystle.21 Depois foi para frente e fechou as portas, mesmo não desejando estar a sós com a esposa.
– Não vou embora. – Chantal girou na direção dele. – E isso não vai acontecer.
Enquanto ela jogava os papéis do divórcio aos pés dele, Lane só conseguia pensar que não tinha tempo para aquilo.
– Escute aqui, Chantal, podemos fazer isso do jeito fácil ou do jeito difícil, a escolha é sua. Mas se escolher a última opção, vou atrás não só de você, mas da sua família também. Como acha que os seus pais batistas se sentiriam se recebessem uma cópia dos seus registros médicos em casa? Não creio que eles sejam favoráveis ao aborto, certo?
– Você não pode fazer isso!
– Não seja idiota, Chantal. Existem inúmeras pessoas para quem posso ligar, pessoas que devem à minha família e que ficariam muito contentes em pagar essa dívida. – Voltou ao bar e se serviu de mais Reserva de Família. – Ou, que tal assim: e se esses registros médicos caíssem nas mãos da imprensa implacável, talvez na internet? As pessoas entenderiam o motivo de eu querer me divorciar, e você teria muita, mas muita dificuldade para encontrar outro marido. Diferentemente do que acontece no norte, os homens sulistas têm padrões de comportamento para suas esposas, que não incluem o aborto.
Houve um momento prolongado de silêncio. Em seguida, o sorriso que ela lançou na direção dele foi inexplicável, tão confiante e calmo que ele teve que se perguntar se ela não havia enlouquecido de vez naqueles dois últimos anos.
– Você tem mais motivos para ficar quietinho do que eu – ela disse com suavidade.
– Tenho? – Ele sorveu um gole grande. – Por que acha isso? Só o que fiz foi correr de uma mulher que eu, supostamente, engravidei. De todo modo, quem pode garantir que era meu?
Ela apontou para a papelada.
– Você vai dar um jeito de fazer isso desaparecer. Vai permitir que eu continue aqui pelo tempo que eu quiser. E vai me acompanhar às festividades do Derby amanhã.
– Em qual universo paralelo?
A mão dela desceu para o ventre.
– Estou grávida.
Lane gargalhou.
– Você já tentou isso antes, minha cara. E todos nós sabemos como terminou.
– A sua irmã estava errada.
– Quanto a você roubar joias? Talvez. Veremos.
– Não. Sobre eu não ter o direito de ficar aqui. Assim como o meu filho. A bem da verdade, o meu filho tem tanto direito ao legado Bradford quanto você e Gin.
Lane abriu a boca para dizer alguma coisa, mas logo voltou a fechá-la.
– Do que está falando?
– Lamento dizer, mas o seu pai é um marido tão ruim quanto você.
Um tinido subiu do copo e, quando ele olhou para baixo, notou de uma vasta distância que sua mão tremia, fazendo o gelo se agitar.
– Isso mesmo – Chantal disse, com voz muito calma. – E acho que você está ciente da condição delicada da sua mãe. Como ela se sentiria se soubesse que o marido dela não só foi infiel, mas que logo terá um filho? Acha que ela vai tomar ainda mais daquelas pílulas das quais já é tão dependente? Provavelmente. Sim, tenho certeza de que ela tomaria.
– Sua vadia – ele sussurrou.
Em sua mente, viu-se colocando as mãos ao redor do pescoço da mulher, apertando, apertando com tanta força que ela começaria a se debater enquanto seu rosto ficaria roxo e a boca se abriria.
– Por outro lado – Chantal murmurou –, sua mãe não adoraria saber que seria avó pela segunda vez? Não seria motivo de comemoração?
– Ninguém acreditaria – ele se ouviu dizer.
– Ah, acreditaria, sim. Ele vai ser igualzinho a você… E tenho ido a Manhattan com bastante regularidade, para trabalhar no nosso relacionamento. Todos sabem disso.
– Você está mentindo. Nunca vi você.
– Nova York é uma cidade grande. Fiz questão que todos ficassem sabendo que me encontrei com você e que aproveitei a sua companhia. Também mencionei às meninas no clube, aos maridos delas nas festas, à minha família… Todos têm demonstrado tanto apoio para nós.
Enquanto ele permanecia em silêncio, ela sorriu com doçura.
– Portanto, você pode ver que esses papéis de divórcio não serão necessários. E você não dirá nada a respeito do que aconteceu entre nós e o nosso primeiro bebê. Se fizer isso, vou ter que contar tudo a respeito da sua família e envergonhá-lo diante desta comunidade, da sua cidade, do seu Estado. E então veremos quanto tempo vai levar para que você vista um terno de enterro. A sua mãe está meio fora de si, mas não está completamente isolada, e aquela enfermeira lê o jornal todas as manhãs ao lado da cama dela.
Com uma expressão de imensa satisfação, Chantal se virou e escancarou a porta, batendo os saltos no vestíbulo de mármore, mais uma vez senhora do prazer com seu sorriso de Monalisa.
O corpo inteiro de Lane tremia, os músculos gritavam pedindo ação, vingança, sangue… Mas a ira não estava mais direcionada à esposa.
Estava toda direcionada ao seu pai.
Chifrado. Ele acreditava que essa era a palavra adequada para descrever aquele tipo de situação.
Fora chifrado pelo próprio pai.
Quando é que a merda deste dia vai acabar?, ele se perguntou.
Alexis e Krystle são personagens antagonistas da série televisiva americana Dinastia (1981-1989). (N.T.)
VINTE E CINCO
Lizzie disse a si mesma que não olharia para o celular. Não olhou ao tirá-lo da bolsa e ao transferi-lo para seu bolso de trás assim que entrou pela porta da frente da sua casa de fazenda. Nem quando, quinze minutos mais tarde, se certificou de que o aparelho não estava no silencioso. E nem quando, dez minutos depois disso, destravou a tela só para ver se não havia nenhuma chamada perdida, nem mensagens de texto.
Nada.
Lane não telefonara para saber se ela tinha chegado em casa. Não respondera à sua mensagem. Mas, convenhamos, ele devia estar bem ocupado no momento.
Puxa.
Mesmo assim, estava ansiosa, andando de um lado para outro. A cozinha estava imaculada, o que era uma pena, porque bem que gostaria de ter alguma coisa para limpar. A mesma coisa com o banheiro no andar de cima. Caramba, até a cama estava arrumada. E ela tinha lavado a roupa na noite anterior. A única coisa que encontrou fora do lugar foi a toalha que usara pela manhã para ser secar após o banho. Deixara-a pendurada sobre a cortina do box, e já que ainda estava dentro dos dois dias de uso antes de colocá-la no cesto de roupa suja, a única coisa que podia fazer era dobrá-la e recolocá-la no porta-toalhas afixado à parede.
Graças basicamente ao dia desprovido de nuvens, a casa estava quente no segundo andar e ela foi abrindo todas as janelas. Uma brisa trouxe o odor da campina que circundava a propriedade, livrando a casa do abafado.
Se ao menos pudesse fazer o mesmo com a sua cabeça… Imagens do dia a bombardeavam: ela e Lane rindo assim que ela chegara para trabalhar; ela e Lane olhando para aquela planilha no laptop; ela e Lane…
Com a cabeça cheia, Lizzie voltou para a cozinha e abriu a geladeira. Nada de mais ali. Certamente nada que tivesse interesse em comer.
Quando a necessidade de verificar o celular surgiu de novo, ela se obrigou a resistir. Chantal sabia ser um problema num dia bom. Tinha recebido a papelada do divórcio, e ainda por cima a cena foi vista por um dos empregados…
O som de passos na varanda da frente chamou sua atenção.
Franzindo o cenho, fechou a porta da geladeira e seguiu até a sala de estar. Não se deu ao trabalho de ver quem era. Só havia duas opções: o vizinho da esquerda, que morava uns sete quilômetros estrada abaixo e tinha vacas que, com frequência, quebravam a cerca e vagavam pelos campos de Lizzie; ou o da direita, que ficava a meio quilômetro, e cujos cachorros costumavam se afastar para espiar as vacas soltas.
Começou a cumprimentar antes mesmo de abrir a porta.
– Oi, tudo…
Não era nenhum vizinho vindo se desculpar por invasões bovinas nem caninas.
Lane estava na varanda, com o cabelo pior do que de manhã, as ondas escuras espetadas como se ele tivesse tentado arrancar os fios.
Ele estava cansado demais para sorrir.
– Pensei em ver, pessoalmente, se você tinha chegado bem em casa.
– Oi, nossa, entre.
Encontraram-se na metade do caminho, corpo a corpo, e ela o abraçou com força. Seu cheiro era de ar fresco, e, por cima do ombro, ela viu que o Porsche estava com a capota abaixada.
– Você está bem? – ela perguntou.
– Melhor agora. A propósito, estou meio bêbado.
– E veio dirigindo? Isso foi idiotice e perigoso.
– Eu sei. É por isso que estou confessando.
Ela recuou e deixou que ele entrasse.
– Eu ia comer alguma coisa agora.
– Tem o bastante para dois?
– Ainda mais se for pra te deixar sóbrio. – Sacudiu a cabeça. – Chega de beber e dirigir. Acha que está com problemas agora? Tente acrescentar embriaguez ao volante à sua lista.
– Você tem razão. – Olhou ao redor, e depois foi até o piano dela e descansou as mãos sobre a tampa suave do teclado. – Deus, nada mudou aqui.
Ela pigarreou.
– Bem, estive bastante ocupada no trabalho…
– Isso é bom. Maravilhoso.
A nostalgia estampada em seu rosto enquanto continuava olhando para as ferramentas antigas, as colchas de retalhos penduradas e o sofá simples era melhor do que qualquer palavra que ele pudesse proferir.
– Comida? – ela sugeriu.
– Sim, por favor.
Na cozinha, ele foi direto para a mesinha e se sentou. E, de repente, foi como se nunca tivesse se ausentado.
Cuidado com isso, ela se reprimiu.
– Então, você gostaria de… – Vasculhou o conteúdo da despensa e da geladeira. – Bem, que tal uma lasanha que eu congelei uns seis meses atrás? Com nachos como acompanhamento, de um pacote que abri ontem, terminando com o bom e velho sorvete de menta?
Os olhos de Lane, concentrados nela, ficaram com as pupilas dilatadas.
Tuuuudo bemmmm. Evidentemente, ele planejava outra coisa para a sobremesa, e enquanto o corpo dela se aquecia de dentro para fora, tudo parecia mais que bem para ela.
Caramba, ela não estava nem aí para o bom senso. Livrar-se da esposa dele era apenas a ponta do iceberg, e ela precisava se lembrar disso.
– Essa me parece a melhor refeição do mundo.
Lizzie cruzou os braços e se recostou na geladeira.
– Posso ser franca?
– Sempre.
– Sei que Chantal recebeu a papelada do divórcio. Acabei presenciando sem querer. Não tive a intenção de ver o delegado fazendo aquilo.
– Eu te disse que estava pondo um fim nisso.
Ela esfregou a testa.
– Uns dois minutos antes, ela foi me procurar para planejar um jantar de comemoração do aniversário de casamento de vocês.
Houve um xingamento baixinho.
– Sinto muito. Mas estou te garantindo agora: não há futuro para mim e para ela.
Lizzie o encarou com firmeza por um bom tempo e, em resposta, ele não se moveu, não piscou, não disse nenhuma palavra mais. Só ficou ali sentado… deixando que as ações falassem por ele.
Maldição, ela pensou. Ela não precisava mesmo, de jeito nenhum, voltar a se apaixonar por ele.
Enquanto a noite caía sobre os estábulos, Edward se viu voltando à sua rotina noturna. Copo com gelo? Confere. Bebida? Confere – gim, aquela noite. Poltrona? Confere.
Só que, quando se acomodou e se viu diante daquelas provisões, dedilhou sobre o encosto da poltrona, em vez de colocar os dedos em uso para abrir o lacre da garrafa.
– Vamos lá – disse a si mesmo –, siga com o programado.
Mas não. Por algum motivo, a porta do chalé conversava com ele mais do que o Beefeater, no que se referia a coisas que precisavam ser abertas.
O dia fora bem longo. Ele tinha ido até Steeplehill Downs para dar uma olhada nos seus dois cavalos e dar telefonemas, tanto para o veterinário quanto para o treinador, porque Bouncing Baby Boy teria que ser deixado de lado por conta de um problema no tendão. Em seguida, voltara para lá, para verificar cinco das suas éguas que estavam prenhas, e para revisar os livros contábeis com Moe. Pelo menos as notícias eram boas nessa frente. Pelo segundo mês consecutivo, a operação não apenas se autossustentava, como gerava lucros. Se aquilo se mantivesse, ele poria um fim nas transferências do fundo fiduciário da mãe, que vinham fornecendo uma injeção de caixa nos negócios desde os anos 1980.
Ele queria ser totalmente independente da família.
Na verdade, uma das primeiras coisas que tinha feito quando saíra da reabilitação foi recusar a distribuição dos seus fundos. Ele não queria ter nada a ver com fundos que, mesmo que remotamente, estivessem relacionados com a Cia. Bourbon Bradford, e a totalidade da primeira e da segunda retirada estava ligada diretamente à CBB. Na verdade, só descobrira as transferências do fundo da sua mãe para o Haras Vermelho & Preto uns seis meses após a sua chegada e, naquele tempo, ele mal era capaz de se levantar pela manhã e ir até os estábulos. Se os tivesse recusado naquele tempo, a operação toda teria ido para o buraco.
Fazia muito tempo desde que alguém com um mínimo de perspicácia para os negócios fora até o haras e, a despeito das suas fraquezas atuais, sua habilidade para fazer dinheiro permanecia intocada.
Mais um mês. E então estaria livre.
Deus, estava mais exausto do que de costume. Mais dolorido também. Ou talvez as duas coisas estivessem unidas inextricavelmente.
Mesmo assim, não conseguia pegar a garrafa.
Em vez disso, pôs-se de pé com a ajuda da bengala e claudicou até as cortinas, que permaneciam fechadas desde o dia em que se mudara para lá. Estava um breu do lado de fora, somente as luzes de sódio nas entradas dos estábulos lançavam um brilho cor de pêssego na escuridão.
Xingando baixinho, foi para a porta da frente e a abriu. Parou um instante. Coxeou na escuridão.
Edward atravessou o gramado num andar desigual, e disse a si mesmo que estava indo dar uma olhada na égua que estava com problemas. Sim. Era isso o que iria fazer.
Não iria ver como estava Shelby Landis. Nada disso. Ele não estava, por exemplo, preocupado por não tê-la visto sair da fazenda o dia inteiro, o que provavelmente significava que ela não devia ter comida naquele apartamento.Tampouco iria verificar se, por acaso, ela dispunha de água quente, porque depois de um dia inteiro carregando carrinhos de mão, sacos de grãos do tamanho da picape dela e fardos pinicantes de feno, ela devia estar dolorida e necessitando de uma bela chuveirada.
Ele, positiva e absolutamente, iria…
– Merda.
Sem nem ter se dado conta, fora parar na porta lateral do Estábulo B – a que dava para o escritório, bem como para o lance de escadas que o levaria até os aposentos dela.
Ora, uma vez que já estava ali… ele bem que poderia ver como ela estava. Claro que em lealdade ao pai dela.
Não passou a mão pelos cabelos antes de pousá-la na maçaneta… Tudo bem, talvez tivesse feito isso só um pouquinho, mas apenas porque estava precisando cortar os cabelos e eles tinham caído nos seus olhos.
Luzes detetoras de movimento se acenderam assim que ele chegou ao escritório, e todos aqueles degraus até a parte superior pairavam acima dele como uma montanha que ele teria que se esforçar para escalar. E, vejam só, seu pessimismo tinha razão de ser: ele teve que parar para tomar fôlego na metade do caminho. E outra vez assim que chegou ao alto.
E foi por isso que ouviu as risadas.
De um homem. De uma mulher. Vindas do apartamento de Moe.
Franzindo o cenho, Edward olhou para baixo pela porta de Shelby. Aproximou-se e encostou a orelha na porta. Nada.
Quando fez a mesma coisa na porta de Moe? Ouviu os dois, a fala arrastada sulista de um e de outro como o som de um banjo de uma banda de jazz.
Fechou os olhos por um instante e se recostou na porta fechada.
Em seguida, aprumou-se e, com o auxílio da bengala, desceu todos aqueles degraus, foi para o gramado e voltou ao próprio chalé.
Dessa vez, não teve nenhum problema para abrir a garrafa ou colocar uma dose no copo.
Foi durante a segunda dose que ele por fim se deu conta de que era sexta-feira. Noite de sexta-feira.
Puxa, se isso não era um golpe de sorte.
E ele até tinha um encontro.
VINTE E SEIS
Sutton Smythe olhou para a multidão que lotava a galeria principal do Museu de Arte de Charlemont. Ela reconhecia tantos rostos, tanto pessoalmente quanto dos noticiários, da TV e da tela grande. Muitas pessoas acenavam para ela ao encontrar o seu olhar, e ela foi bastante cordial, erguendo a mão em retribuição.
Tinha esperanças que ninguém se aproximasse.
Não estava interessada em ter que cumprimentar alguém com um beijo no rosto e fazer perguntas educadas a respeito de um cônjuge, tampouco queria ser apresentada à companhia de alguém por aquela noite. Também não queria receber nenhum agradecimento – mais um – pela sua generosa doação de 10 milhões de dólares, feita no mês anterior, que marcou o início da campanha de levantamento de fundos para a expansão do museu. Muito menos queria ter que ouvir falar do empréstimo permanente do Rembrandt e do ovo Fabergé que o pai fizera em homenagem à querida esposa falecida.
Sutton queria ser deixada em paz para vasculhar a multidão em busca do único rosto que queria ver.
O único rosto que queria… que precisava ver.
Mas Edward Baldwine, mais uma vez, não viria. E ela sabia disso, não por ter estado ali nas sombras pela última hora e meia enquanto os convidados da festa que ela oferecia em nome da família chegavam, mas porque insistira em ver uma cópia da lista do RSVP uma vez por semana, e depois diariamente, quando o dia do evento se aproximou.
Ele simplesmente não tinha respondido. Nada de “Sim, irei à festa com prazer”, nem de “Lamento, mas não poderei ir”.
Será que podia mesmo ficar surpresa?
Ainda assim, isso a magoou. Na verdade, o único motivo pelo qual comparecera ao jantar de William Baldwine na noite anterior fora por ter esperanças de ver Edward em sua própria casa. Depois que ele não retornara as suas ligações por dias, meses e agora anos, ela pensou que talvez ele aparecesse à mesa do pai e eles poderiam, de maneira muito natural, se reconectar.
Mas não. Edward também não estivera lá.
– Senhorita Smythe, estamos prontos para iniciar o jantar, se for conveniente para a senhorita. As saladas já foram servidas.
Sutton sorriu para a mulher com uma prancheta na mão e um fone no ouvido.
– Sim, vamos diminuir as luzes. Farei minhas considerações assim que eles estiverem sentados.
– Pois não, senhorita Smythe.
Sutton respirou fundo e observou o caro rebanho fazer o que lhe era orientado e encontrar seus lugares em todas aquelas mesas redondas com arranjos elaborados, pratos dourados e menus impressos sobre guardanapos de linho.
Antes da tragédia, Edward sempre frequentara aquele tipo de evento, lançando sorrisos sardônicos quando outra pessoa surgia pedindo dinheiro para as suas causas. Convidando-a para dançar, como se fosse uma manobra de salvamento, quando ela se via acuada por um convidado conversador. Olhando para ela e piscando… como só ele conseguia fazer.
Eram amigos desde a escola preparatória em Charlemont. Oponentes nos negócios desde que ele se formara em Wharton e ela conquistara seu MBA na Universidade de Chicago. Companheiros sociais desde que ambos ingressaram no circuito de jantares beneficentes depois do falecimento da mãe dela e a dele passara a ficar cada vez mais tempo em seus aposentos.
Nunca foram amantes.
Ela queria que tivessem sido. Muito provavelmente, desde que o conhecera. Edward, contudo, mantivera-se afastado, permanecera distante, até mesmo arrumara encontros para ela.
O coração dela sempre estivera à disposição, mas ela jamais tivera coragem de atravessar aquela fronteira que ele, com tanta determinação, estabelecera entre eles.
E então… Dois anos atrás aquilo aconteceu. Bom Deus, quando ficara sabendo que ele iria mais uma vez para a América do Sul numa daquelas viagens de negócios, teve uma premonição, um alerta, uma sensação ruim. Mas não telefonara para ele. Não tentara falar com ele para tentar convencê-lo a levar mais seguranças ou algo assim.
Portanto, de certa forma, sentia-se parcialmente responsável. Talvez se tivesse…
Mas a quem tentava enganar? Ele não teria deixado de viajar por outro motivo que não condições climáticas adversas. Edward fora um verdadeiro adversário na indústria de bebidas, o óbvio herdeiro da Cia. Bourbon Bradford não apenas pelo direito de nascença, mas pelas suas incríveis ética profissional e astúcia.
Depois do sequestro e do pedido de resgate, o pai dele, William, esforçara-se para libertá-lo, negociando com os sequestradores, trabalhando em conjunto com a embaixada norte-americana. Tudo fracassara até que, no fim, uma equipe especial foi enviada para resgatar Edward.
Não conseguia sequer imaginar o que haviam feito com ele.
E aquele era o aniversário do dia em que fora emboscado durante a viagem.
Tudo aquilo era simplesmente uma tragédia. A América do Sul era um dos lugares mais lindos do planeta com sua comida deliciosa, cenários fantásticos e história fascinante; ela e Edward frequentemente brincavam dizendo que, quando se aposentassem, iriam para lá, para morar em propriedades vizinhas. O sequestro de executivos com exigência de resgate eram um dos pontos perigosos em certas áreas, mas não era muito diferente de atravessar o Central Park às três da manhã. Maus elementos podem ser encontrados em qualquer parte, e não havia motivos para condenar um continente inteiro por conta de uma minoria de bandidos.
Infelizmente, Edward se tornara uma das vítimas.
Depois de todo aquele tempo, ela só queria vê-lo com seus próprios olhos. Algumas fotos desfocadas foram publicadas pela imprensa, e elas, por certo, não a tranquilizaram. Ele sempre aparentava estar muito mais magro, com o corpo encurvado, o rosto sempre abaixado, desviando das lentes.
Para ela, contudo, ele ainda era lindo.
– Senhorita Smythe, está pronta?
Voltando ao presente, Sutton viu que havia mil pessoas sentadas, comendo suas saladas, prontas para ouvi-la discursar.
Sem aviso algum, uma repentina onda de energia ruim bombeou dentro dela, fazendo-a suar no peito, na testa, debaixo dos braços. Enquanto o coração batia descompassado, ondas de tontura fizeram-na esticar a mão para se equilibrar na parede.
O que havia de errado com ela?
– Senhorita Smythe?
– Não consigo – ouviu-se dizer.
– O que disse?
Pressionou os cartões que escrevera com tanto cuidado nas mãos da assistente.
– Outra pessoa terá que…
– O quê? Espere, onde a senhorita…
Ela levantou as palmas e recuou.
– … fazer o discurso.
– Senhorita Smythe, a senhorita é a única que pode…
– Ligo na segunda-feira. Sinto muito. Não consigo.
Sutton não fazia a mínima ideia de onde estava indo enquanto seus saltos finos ressoavam no piso de mármore. Na verdade, foi só quando uma lufada de calor a atingiu que ela percebeu que havia saído do prédio pela saída de incêndio e aparecera na ala oeste do complexo, no ar úmido noturno.
Bem longe do estacionamento onde seu chofer a aguardava.
Caindo de encontro à parede de gesso do museu, inspirou fundo algumas vezes, mas isso não ajudou a aliviar a sensação de sufocamento.
Não poderia ficar ali a noite toda. Mais especificamente, queria sair correndo, ir para longe, correr até que a sensação de terror saísse do seu corpo. Mas isso seria loucura. Certo?
Deus, estava perdendo a cabeça. Finalmente, tudo a estava alcançando.
Ou talvez fosse, mais uma vez e sempre, Edward Baldwine.
Hora de seguir em frente. Aquilo era ridículo.
Tirando os sapatos e segurando-os pelas tiras, começou a andar sobre a grama, se aproximando dos fachos de iluminação das luzes de segurança. Depois do que lhe pareceu uma eternidade, o estacionamento que procurava apareceu quando ela dobrou mais uma esquina, só que, nessa hora, ficou confusa pela quantidade de limusines estacionadas a céu aberto.
Onde estava…
Por pura sorte, o Mercedes C63 a encontrou, e o enorme sedã surgiu à sua frente. A janela do passageiro se abaixou sem emitir nenhum som.
– Senhorita Smythe? – seu chofer disse em tom alarmado. – A senhorita está se sentindo bem?
– Preciso do carro. – Sutton deu a volta, os faróis eram muito claros contra seu vestido de gala prata e seus diamantes. – Preciso do carro, preciso…
– Senhorita? – O homem uniformizado saiu de trás do volante. – Posso levá-la para onde quiser ir…
Ela pegou uma nota de cem dólares da minúscula bolsa de festa.
– Tome. Pegue um táxi, ou ligue para alguém. Sinto muito. Sinto muito, muito, mas preciso ir…
Ele meneou a cabeça ao ver a nota.
– Senhorita, posso levá-la a qualquer lugar…
– Por favor. Preciso do carro.
Houve uma ligeira pausa.
– Muito bem. Sabe como dirigir este…
– Dou um jeito. – Colocou o dinheiro na palma da mão dele e a fechou. – Fique com isso. Vou ficar bem.
– Eu preferiria dirigir.
– Aprecio a sua consideração, de verdade. – Fechou-se dentro do carro, subiu a janela, e olhou ao redor à procura do câmbio ou…
À batida no vidro escuro, ela voltou a abaixá-lo.
– Está ali, ao lado do volante – instruiu o chofer. – A marcha a ré, e ali para a frente. Pronto, assim. E as setas ficam… isso, isso mesmo. A senhorita não deve precisar dos limpadores de para-brisa, e as luzes já estão acesas. Boa sorte.
Ele recuou, do mesmo modo que fazemos quando estamos prestes a acender um fósforo para acionar fogos de artifício. Ou uma bomba.
Sutton pressionou o acelerador, e o potente sedã se lançou para a frente como se tivesse o motor de um jato debaixo do capô. Nos recessos da sua mente, ela fez um cálculo rápido de quantos anos fazia que não dirigia… E a resposta não foi nada encorajadora.
Mas, assim como tudo em sua vida, ela acabaria descobrindo… Ou morreria tentando.
– Importa-se se eu repetir?
Lizzie lhe lançou um olhar de encorajamento e Lane se levantou e foi para a geladeira. A comida estava ajudando a clarear a sua mente, ou talvez fosse a companhia dela.
Provavelmente era mais por estar na presença dela.
– Está muito bom – ele disse ao abrir o congelador e pegar mais uma porção.
A risada dela o fez parar e fechar os olhos, a fim de que o som pudesse inundá-lo ainda mais.
– Você só está sendo gentil – ela murmurou.
– É a mais pura verdade.
Levando o prato ao micro-ondas, ajustou-o para seis minutos e ficou olhando o bloco congelado girar e girar.
– Então, eu vou ter que ir procurar Edward – ouviu-se dizer.
– Quando foi a última vez que o viu?
Ele pigarreou. Sentiu uma tremenda necessidade de beber alguma coisa.
– Foi em…
Por um instante, ficou perdido em pensamentos, tentando encontrar um modo de perguntar se ela tinha alguma bebida em casa.
– Tanto tempo assim?
– Na verdade, eu estava pensando em outra coisa. – Ou seja, que era inteiramente possível que ele tivesse problemas com bebida. – Mas, pensando bem, depois de um dia como o de hoje, quem não seria alcoólatra?
– O que disse?
Ai, merda, falara em voz alta?
– Desculpe, a minha cabeça está a maior confusão.
– Eu queria poder fazer alguma coisa.
– Você já está fazendo.
– Então, quando foi que viu Edward pela última vez?
Lane voltou a fechar os olhos. Mas, em vez de fazer cálculos mentais que revelariam a soma do quanto deixava a desejar como irmão, voltou no tempo para aquela noite de Ano-Novo quando Edward apanhara pelo restante deles.
Ele e Maxwell haviam permanecido no salão de baile, silenciosos e trêmulos, enquanto o pai forçava Edward a subir. À medida que eles subiam a grande escadaria, Lane gritava a plenos pulmões… mas apenas internamente.
Era covarde demais para sair de lá e pôr um fim à mentira que salvara seu irmão e ele mesmo.
– Eu deveria ir lá – disse quando um tempo se passou.
– Mas o que você pode fazer? – Max sussurrou. – Nada pode deter papai.
– Eu poderia…
Só que Maxwell estava certo. Edward mentira, e o pai o estava fazendo pagar por uma transgressão que não era dele. Se Lane contasse a verdade agora… O pai simplesmente surraria todos eles. Pelo menos se ele e Maxwell ficassem quietos, poderiam evitar….
Não, aquilo era errado. Era uma desonra.
– Vou até lá. – Antes que Maxwell conseguisse dizer qualquer coisa, Lane agarrou o braço do irmão. – E você vem comigo.
A consciência de Max também o devia estar incomodando, porque em vez de discutir, como sempre discutia sobre tudo, seguiu-o mudo pela escada principal. Quando chegaram ao topo, o corredor estava deserto a não ser pela moldura de gesso, pelos retratos, e pelas flores sobre mesinhas e aparadores antigos.
– Temos que impedir – Lane sibilou.
Um atrás do outro, seguiram rapidamente sobre o tapete… até o quarto do pai.
Do lado oposto da porta, os sons do açoite eram agudos e altos, vindos do couro de encontro à pele nua de seu irmão, e dos grunhidos do pai, que empregava força nos golpes.
Edward estava em silêncio.
E, nesse meio-tempo, os dois apenas permaneceram ali, silenciosos e petrificados. Lane só conseguia pensar que nem ele nem Max tinham metade da coragem dele. Os dois acabaram chorando.
– Vamos embora – disse baixinho, coberto de vergonha.
Mais uma vez, Max não discutiu. Obviamente, ele também era um covarde.
O quarto que partilhavam ficava no fim do corredor, e foi Lane quem abriu a porta. Havia quartos de sobra para que dormissem separados, mas quando Maxwell começara a ter pesadelos alguns anos antes, acabaram colegas de quarto sem querer. Max começara a entrar sorrateiramente no quarto de Lane e despertava ali pela manhã. Depois de um tempo, a senhorita Aurora instalara outra cama lá e assim ficou resolvido.
O banheiro era conjugado, e o quarto do lado oposto era o de Edward.
Max foi para a cama e fitou o teto.
– A gente não devia ter descido. A culpa é minha.
– É de nós dois. – Olhou para Max. – Fique aqui. Vou esperar por ele.
Enquanto seguia para o banheiro, fechou a porta atrás de si e rezou para que Max seguisse suas ordens. Tinha uma sensação ruim quanto à condição em que Edward estaria quando o pai finalmente acabasse o castigo.
Ah, como Lane gostaria de poder voltar no tempo e refazer a decisão de ir para a sala de estar.
Abaixando a tampa do vaso, ficou sentado e atento às batidas do seu coração. Mesmo não conseguindo mais ouvir as chibatadas do cinto, isso não tinha relevância. Ele sabia o que estava acontecendo do outro lado do corredor.
Por algum motivo, ficou olhando para as três escovas de dente enfiadas dentro de um copo de prata, ao lado das toalhas de mão dobradas sobre a pia. A vermelha era de Edward, porque ele era o mais velho e sempre podia escolher antes. A de Max era verde, porque era a mais varonil que restava. Lane acabava tendo que ficar com a amarela, que odiava.
Ninguém queria a azul da uk.
Um clique suave e um empurrão de uma porta sendo aberta quebrou o silêncio. Lane esperou o segundo clique e depois se pôs de pé, espiando o quarto de Edward.
Na escuridão, Edward caminhava em direção ao banheiro, todo encurvado, com um braço ao redor do abdômen, e outro estendido para se equilibrar na cômoda, nas paredes, na mesa.
Lane se apressou e segurou a cintura do irmão.
– Enjoado – Edward grunhiu. – Vou vomitar.
Ah, Deus, ele estava sangrando no rosto, devido ao corte causado pelo anel de sinete do pai quando ele lhe desferiu aquele tapa.
– Eu te levo – Lane murmurou. – Vou cuidar de você.
O avanço foi lento, as pernas de Edward tinham dificuldade para sustentar o tronco ereto. Parte da camisa do pijama ficara presa no cós depois da surra, e Lane só conseguia pensar no que havia por baixo. Nos vergões, no sangue, no inchaço.
Edward mal chegou a tempo ao vaso, e Lane ficou junto dele durante todo o tempo. Quando terminou de vomitar, Lane pegou a escova vermelha e colocou pasta de dente nela. Depois, ajudou o irmão a ir até a cama.
– Por que você não chora? – Lane perguntou com uma voz rouca enquanto o irmão se acomodava no colchão como se todo o seu corpo doesse. – É só você chorar. Ele para assim que você chorar.
Era sempre assim quando ele e Max levavam uma surra.
– Vá para a cama, Lane.
A voz de Edward pareceu exausta.
– Sinto muito.
– Está tudo bem. Só vá para cama.
Foi difícil sair, mas ele já tinha causado confusão demais por aquela noite, e vejam o que tinha acontecido.
De volta ao seu quarto, enfiou-se entre os lençóis e ficou olhando para o teto.
– Ele está bem? – Max perguntou.
Por algum motivo, as sombras em seu quarto eram completamente assustadoras, pareciam monstros que se moviam e rastejavam pelos cantos.
– Lane?
– Sim – mentiu. – Ele está bem…
– Lane?
Ele voltou ao presente e olhou sobre o ombro.
– O que foi?
Lizzie apontou para o micro-ondas.
– Está pronto?
Bipe…
Bipe…
Ele apenas ficou ali, piscando, tentando voltar do passado.
– Sim, sim, desculpe.
De volta à mesa, depositou o prato fumegante e se sentou de novo… só para descobrir que tinha perdido o apetite. Quando Lizzie estendeu o braço e apoiou a mão na dele, ele a aceitou e a levou aos lábios para um beijo.
– No que está pensando? – Lizzie perguntou.
– Quer mesmo saber?
– Sim.
Ora, ora, se ele não tinha uma bela seleção de coisas para escolher.
Enquanto ela esperava por uma resposta, ele ficou olhando para seu rosto por um bom tempo. E então teve que sorrir.
– Agora, neste exato instante… estou pensando que, se tiver uma chance com você, Lizzie King, vou aceitar.
O rubor que atingiu o rosto dela foi encoberto quando ela levantou as mãos.
– Ai, meu Deus…
Ele deu uma risada leve.
– Quer que eu mude de assunto?
– Sim – disse ela por trás do seu esconderijo.
Ele não a culpava.
– Tudo bem, estou muito feliz de ter vindo para cá. Easterly é como uma corda no meu pescoço agora.
Lizzie esfregou os olhos e abaixou as mãos.
– Sabe, custo a acreditar no que Rosalinda fez.
– Foi simplesmente horrível. – Ele se recostou na cadeira, respeitando a necessidade dela de mudarem de assunto. – E, escuta essa. Sabe Mitch Ramsey, o delegado? Ele me ligou enquanto eu vinha para cá. O exame médico legal preliminar indica traços de cicuta.
– Cicuta?
– O rosto dela… – Ele circundou a face com a mão. – Aquele sorriso horrendo? Foi provocado por algum tipo de paralisia facial, o que, aparentemente, é bem documentado como sendo causado por uma variedade de venenos. Caramba, vou te contar, vai demorar bastante tempo para eu me esquecer da aparência dela.
– Existe a possibilidade de ela ter sido morta?
– Eles acham que não. É preciso uma bela dose de cicuta para ter o resultado desejado, portanto, é mais provável que ela mesma tenha feito isso. Além do mais, aqueles Nikes eram novinhos e havia grama nas solas.
– Nikes? Ela só usa sapatos sem salto.
– Exatamente, mas ela foi encontrada com tênis próprios para corrida, que, evidentemente, acabara de comprar, e os usou para andar no jardim. Pelo que Mitch disse, na época dos romanos, as pessoas costumavam beber veneno e depois perambular para que ele agisse com mais rapidez. Portanto, isso mais uma vez indica que ela causou a própria morte.
– Que… horrível.
– A pergunta é: por quê? E, infelizmente, acho que nós sabemos a resposta.
– O que vai fazer agora?
Ele ficou em silêncio por um tempo e depois ergueu os olhos para ela.
– Para começar, pensei em te levar para cima.
Lizzie corou de novo.
– E o que vai fazer comigo no segundo andar?
– Vou te ajudar a dobrar a roupa limpa.
Ela deu uma gargalhada.
– Detesto te desapontar, mas já fiz isso.
– Arrumar a sua cama?
– Lamento. Já está arrumada.
– Mas você tinha que ser tão organizada? Cerzir as suas meias? Precisa pregar algum botão?
– Está sugerindo que é bom com linha e agulha?
– Aprendo rápido. Então… quer costurar comigo?
– Acho que não tenho nada que precise desse tipo de cuidado.
– Existe alguma coisa na qual posso te ajudar, então? – ele perguntou num tom baixo. – Alguma dor que eu possa aplacar? Algum fogo que eu possa extinguir? Com a boca, talvez?
Lizzie fechou os olhos, e mudou de posição na cadeira.
– Ai, Deus…
– Espere, já sei. Que tal se eu te levar para o segundo andar e nós bagunçarmos a sua cama? Daí, então, vamos poder arrumá-la de novo.
Quando, por fim, ela voltou a olhar para ele, seus olhos estavam pesados e sensuais.
– Sabe, esse parece um plano perfeito.
– Adoro quando estamos de acordo.
Levantaram-se ao mesmo tempo, e antes que ela conseguisse detê-lo, ele se inclinou e a pegou no colo.
– O que você está fazendo? – Empurrou-o e começou a gargalhar. – Lane…
– O que parece? – E saiu da cozinha. – Estou te carregando lá para cima.
– Espera. Espera. Sou muito pesada…
– Ora, por favor!
– Não, é verdade… Não sou como aquelas mulherzinhas delicadas…
– Exato. Você é uma mulher de verdade. – Chegou à escada e seguiu em frente. – E é por essas que homens de verdade ficam atraídos. Confie em mim.
Deixou a cabeça pender no ombro dele, e quando Lane sentiu o olhar dela em seu rosto, pensou no que Chantal fizera com o seu pai. Ou, pelo menos, no que ela disse ter feito com ele.
Lizzie nunca o traíra. Nem em pensamento, nem em ações.
Ela simplesmente não tinha isso dentro dela.
O que a tornava uma mulher de verdade, e não só por não ser socialmente anoréxica.
– Não, você não tem que dizer isso – ele murmurou quando os degraus antigos rangeram debaixo dos seus pés.
– Dizer o quê?
– Que não significa nada comparado a outras coisas. Sei que me quer só como amigo e aceito isso. Você só precisa saber de uma coisa.
– O que seria? – ela suspirou.
Ele fez uma voz mais grave.
– Estou preparado para ser um homem muito paciente no que se refere a você. Vou seduzi-la pelo tempo que for necessário, vou lhe dar todo o espaço que precisar, ou seguir seus passos como a luz do sol sobre seus ombros, se você deixar. – Seus olhos se fixaram nos dela. – Perdi minha chance com você uma vez, Lizzie King, e isso não vai se repetir.
VINTE E SETE
Sentado em sua poltrona, Edward flanava numa nuvem de gim Beefeater; seu corpo estava tão entorpecido que ele conseguia manter uma fantasia de força e flexibilidade. Na verdade, conseguia imaginar que ficar de pé podia ser fácil, apenas uma mudança de localização descomplicada e inconsciente que necessitava de um pensamento fugidio e músculos nas coxas. Músculos esses que ficariam contentes – e seriam perfeitamente capazes – de executar tal tarefa.
No entanto, não estava embriagado o suficiente para tentar.
O som de uma batida à porta fez com que levantasse a cabeça.
Ora, ora, ora. Não estava preparado para aquela coisa de ficar na vertical, mas pelo menos a recém-chegada poderia lhe oferecer uma realidade alternativa para ele experimentar.
E ele não recusaria.
Com um grunhido, tentou ficar um pouco mais ereto na poltrona. Não conseguiria abrir a porta para a mulher e sentiu-se mal por isso. Um cavalheiro sempre deveria fazer tal gentileza a um membro do sexo frágil, e ele não se importava que a sua convidada fosse uma prostituta, uma mulher merecia ser tratada com respeito.
– Entre – disse em voz alta, mas arrastada. – Pode entrar.
A porta se abriu devagar… E o que viu do outro lado, bem debaixo da soleira, era…
O coração de Edward parou de bater. E depois começou a martelar.
– Eles acertaram – sussurrou. – Finalmente. Beau acertou em cheio.
A mulher piscou.
– Perdão – ela disse, rouca. – O que disse?
A voz era igualzinha. Como tinham conseguido acertar?
– Entre – ele respondeu, gesticulando com a mão que não segurava o copo. – Por favor.
E não tenha medo, ele pensou consigo.
Afinal, ele estava sentado no escuro, e a iluminação dos incontáveis troféus sobre as prateleiras não alcançavam seu rosto e seu corpo. O que era proposital, claro. Não gostava de olhar para si mesmo, não havia motivo para dificultar o trabalho da prostituta forçando-a a vê-lo com nitidez.
– Edward?
Em seu torpor ébrio, ele só conseguiu fechar os olhos e relaxar o corpo. Ficou duro num lugar bem crucial.
– A sua voz… é tão bela quanto nas minhas lembranças.
Não ouvia a voz de Sutton Smythe em pessoa desde antes da sua viagem e, depois que retornara, não foi capaz de ouvir quaisquer das suas mensagens.
A ponto de ter se livrado tanto do aparelho quanto daquele número.
– Ah, Edward…
Bom Deus, havia sofrimento naquela voz. Como se a mulher estivesse olhando para a sua alma e reagindo ao emaranhado de angústia que ele carregava desde que lhe informaram que ele sobreviveria.
E, de fato, era quase isso o que ouvia na voz de Sutton. Engraçado, durante seu período no cativeiro, desmaiara três vezes durante os oito dias em que o mantiveram preso. Todas as vezes, enquanto perdia a consciência, Sutton fora a última coisa em seus pensamentos, a última coisa a ver, a ouvir, a lamentar a perda. E não a sua família. Não o seu tão amado trabalho. Não a casa em que crescera, tampouco a fortuna e as coisas que deixaria inacabadas.
Sutton Smythe.
Na terceira vez, quando já não conseguia ver nada, quando já não sabia distinguir se era suor ou sangue em sua pele, quando a tortura o levara a um lugar onde o botão de sobrevivência fora desligado e ele já não rezava para ser resgatado, a não ser pela morte…
Sutton Smythe, uma vez mais, estivera em seus pensamentos.
– Edward…
– Não. – Levantou a mão. – Não diga mais nada.
A mulher estava se saindo tão bem. Não queria que continuasse e estragasse tudo.
– Venha aqui – sussurrou. – Quero tocar em você.
Abrindo os olhos, embeveceu-se com a aproximação dela. Ah, que vestido prateado perfeito, a barra arrastando pelo chão, as joias surpreendentemente de bom gosto reluzindo apesar de a luz estar atrás dela. E ela também trazia o mesmo tipo de bolsa de festa que Sutton sempre levava aos eventos formais, um quadrado forrado com seda da mesma cor do vestido – ainda que, como ela mesma dizia, “combinar tudo era tão anos cinquenta”.
– Edward?
Havia tanta confusão quanto um anseio em seu nome.
– Por favor – ele se viu implorando. – Não fale mais. Só quero tocar você. Por favor.
Enquanto o corpo dela tremia diante dele, Edward sentiu a realidade mudar e se permitiu seguir o ardil, acompanhando a fantasia de que aquela era de fato Sutton, que ela fora procurá-lo, e que, finalmente, ficariam juntos.
Mesmo ele estando arruinado.
Deus, isso bastava para deixá-lo emocionado. Mas não durou muito… porque ela tropeçou e seus olhos ficaram muito arregalados.
O que significava que tinha visto seu rosto.
– Não olhe para mim – disse ele. – Não sou mais o mesmo. É por isso que as luzes estão tão fracas.
Edward estendeu os braços e mostrou as mãos.
– Mas estas… não estão marcadas. E, ao contrário de outras partes, ainda funcionam muito bem. Me deixe… tocar você. Vou ser cuidadoso… mas você vai ter que se ajoelhar. Já não fico muito bem de pé, e tenho que confessar que estou embriagado.
A prostituta tremia dos pés à cabeça quando começou a se abaixar, e ele se sentou mais para a frente da poltrona, oferecendo-lhe o braço como se ela fosse uma dama saindo de um carro, em vez de uma trabalhadora permitindo que um aleijado fizesse sexo com ela por mil dólares.
Quando voltou a se recostar, uma súbita onda de vertigem o assolou, enquanto mais álcool bombeava em seu sistema. Como com todos os bêbados, contudo, ele sabia que era apenas algo temporário, que logo se autorregularia.
Ainda mais considerando tudo em que ele tinha que se concentrar: mesmo com a visão embaçada, mesmo com a penumbra, mesmo estando muito bêbado… estava maravilhado.
Ela era muito linda, quase linda demais para que ele a tocasse.
– Ah, olhe só para você… – sussurrou, esticando a mão para tocar seu rosto.
Os olhos dela reluziram de novo, ou, pelo menos, ele acreditou nisso; talvez estivesse apenas imaginando coisas por causa do modo como ela inspirou fundo. Era difícil saber, era complicado acompanhar o que estava acontecendo… A realidade estava muito distorcida agora, girando ao seu redor até ele não ter mais certeza se a prostituta se parecia mesmo com Sutton ou se era mera projeção dele, por causa dos cabelos negros e compridos, das sobrancelhas arqueadas, da boca perfeita, como a de Grace Kelly.
O cabelo da mulher estava solto, bem como havia solicitado, e ele passou as mãos pelas ondas até alcançar a curva do ombro.
– Seu cheiro é tão bom. Exatamente como eu me lembrava.
E logo ele tocou mais, os dedos viajando pela clavícula, sobre o colar de diamantes, descendo pela curva do decote. Em resposta, ela começou a arfar, o movimento dos pulmões aproximando seus seios das mãos dele.
– Adoro esse vestido – ele sussurrou.
O vestido de noite era bem ao estilo dos de Sutton: muito elegante, feito sob medida para o corpo dela, de chiffon tão cinzento quanto uma pomba.
Sentando-se mais para frente, aproximou seu peito diminuto do dela, que era magnífico, e passou as mãos para trás, a fim de encontrar o zíper embutido. Enquanto o abria, o som produzido pareceu-lhe alto demais.
Ele podia jurar que ela arfava como se a tivesse chocado. E foi… ah, tão perfeito. Exatamente o que Sutton teria feito.
E, em seguida, sim… ah, sim… a prostituta retribuiu a sua exploração, as mãos trêmulas subindo pelos seus braços finos. Deus, ele odiou todo aquele tremor por parte dela, mas, sem dúvida, devia ser difícil fazer sexo com ele.
Pelo menos como ele se encontrava agora.
– Eu queria ter feito isto antes – disse numa voz entrecortada. – No passado, valia a pena ver o meu corpo. Eu deveria ter… deveria ter tentado conquistá-la antes, mas era covarde demais. Era um covarde arrogante, mas a verdade é que eu poderia ter suportado qualquer coisa, menos uma recusa sua.
– Edward…
Interrompeu-a colando a boca na dela.
Ah, ela era boa. Tão boa quanto ele imaginava, a sensação da sua língua escorregando para dentro dela e a maneira como ela gemeu, como se tivesse esperado a vida toda pela oportunidade de fazê-lo se esquecer do que ele se tornara…
O vestido derreteu, escorrendo do corpo dela como se aquiescesse, como se estivesse reagindo para que tudo acontecesse mais rápido. E ele tirou vantagem da pele que agora estava à mostra, beijando uma trilha até os seios perfeitos, sugando os mamilos, ficando ganancioso muito rapidamente. Que Deus abençoasse o pobre coração daquela mulher, ela conseguia fingir tão bem, as mãos se perderam em seus cabelos como se ela o desejasse, como se ela estivesse trazendo-o para mais perto, mesmo ele não sendo o que ela deveria querer.
Tentou não ser rude, mas Deus, ficou tão excitado de repente.
– Suba no meu colo – grunhiu. – Você vai ter que subir no meu colo.
Era a única posição em que conseguia fazer sexo. Ainda mais por não querer sujeitar nenhum deles dois ao embaraço de ter que pedir ajuda para se levantar do chão, quando tudo tivesse terminado.
– Tem certeza? – ela perguntou, rouca. – Edward…
– Preciso ter você. Esperei tempo demais. Quase morri. Preciso disso.
Houve um segundo de pausa. Logo ela se moveu com admirável rapidez, levantando-se do chão, chutando o vestido, revelando… Ah, Jesus, ela estava com uma calcinha e nada mais, nada de meias de seda, nada de cinta-liga. E em vez de perder tempo tirando-a, ela a afastou de lado enquanto ele se confundia com o próprio cinto, impedindo que suas calças caíssem do quadril ossudo.
A despeito de todo o resto dele, que definhara, seu pênis ainda era grosso, comprido e rijo como antes, e ele ficou estranhamente grato por ser a única coisa que não era absolutamente humilhante para ele.
Empurrando os apoios de braço com as mãos, deslizou ainda mais para a frente, e ela se contorceu, montando nele com uma coordenação invejável.
A ereção dele a penetrou profundamente, e a firmeza com que ela o prendeu fez com que ele chegasse ao orgasmo de imediato. Mas isso não foi o mais incrível. Aparentemente, e por algum milagre, o mesmo aconteceu com ela.
Enquanto ela gritava seu nome, pareceu também chegar ao clímax.
Ou isso, ou ela não escutara seu chamado pois teria recebido o Oscar de melhor atriz.
Antes de perceber o que estava fazendo, Edward começou a se movimentar. Foi um movimento fraco, quase patético, mas ela seguiu, aquele primeiro orgasmo logo sendo eclipsado por outro ainda mais potente para ambos. Estremecendo, balançando, se retesando, ela se agarrou nele como se disso dependesse a sua vida, o cabelo cobrindo o dele, os seios pressionados contra ele, o corpo levando-o para uma viagem que ele nunca tinha experimentado.
O sexo pareceu durar para sempre.
Quando, por fim, tudo terminou, depois de um terceiro orgasmo, Edward se prostrou na poltrona e ofegou.
– Vou precisar de você de novo.
– Ah, Edward…
– Diga a Beau… semana que vem. Mesmo dia, mesmo horário.
– O quê?
Ele deixou a cabeça pender para o lado.
– O dinheiro está ali. Só você. Só quero você de novo.
De repente, provavelmente por ter se cansado mais nos vinte minutos do que nos doze meses anteriores, começou a se sentir fraco e, de fato, parecia apropriado que desmaiasse e deixasse que a prostituta saísse com tranquilidade.
Assim, ele conseguiria sustentar a fantasia por mais tempo.
– Mil… ao lado da porta – murmurou. – Pegue. A gorjeta…
Edward teve a intenção de dizer “A gorjeta vem depois, vou fazer com que alguém deixe com Beau mais tarde” ou algo do gênero. Mas a consciência era um luxo ao qual ele já não conseguia se dar… E se deixou cair no esquecimento.
Mais uma vez, pensando apenas em Sutton Smythe.
Sutton saiu cambaleando do chalé de Edward. Estava descalça, segurando os sapatos pelas tiras, mas ao contrário da sua outra caminhada pela grama ao redor do museu, as tábuas da varanda e os pedriscos machucaram suas solas.
Não que ela estivesse prestando atenção.
Ao partir para o Mercedes, ela era um misto de contradições; seu cérebro, uma confusão emaranhada. Mas seu corpo estava maleável e relaxado.
Edward pensou que ela fosse uma prostituta?
Por que outro motivo ele teria falado de dinheiro e de um homem chamado Beau? Semana que vem?
Ah, Deus, fizeram sexo…
Como chegaram àquilo? Como ela permitira que…
Bom Deus, o pobre rosto dele, o corpo…
Esses pensamentos entravam e saíam da sua cabeça, girando com alguma força centrífuga, tudo se revolvendo a não ser pelo fato de que Edward já não era mais o mesmo de antes. Sua linda aparência já não existia mais, as cicatrizes no rosto, sobre o nariz e na testa, deixavam virtualmente impossível reconstruir por lembranças a perfeição que antes existira ali.
Ela sabia que ele havia sido maltratado. Os noticiários e os artigos nos jornais foram suas únicas fontes de informação porque ele tinha se recusado a ver qualquer pessoa, e detalharam a duração da sua estada no hospital e da subsequente reabilitação. Esse tipo de tratamento longo não acontecia sem motivos trágicos. Mas vê-lo em pessoa fora um choque.
Antes do sequestro, ele era jogador de polo. Saltou com cavalos em apresentações. Correu. Jogou basquete, tênis e squash. Nadou. Edward fora um garoto dourado não apenas nos negócios, mas em todos os outros aspectos da sua vida, ele sempre se excedera em tudo.
Eu queria ter feito isso antes. No passado, valia a pena ver o meu corpo.
Sutton teve dificuldades para abrir a porta do carro, a mão escorregava como se ela estivesse tendo um ataque e seus dedos já não funcionassem direito. E quando, por fim, conseguiu abrir e entrar, ficou sem forças e deixou-se cair no assento.
Eu deveria ter tentado conquistá-la antes, mas era covarde demais. Era um covarde arrogante, mas a verdade é que eu poderia ter suportado qualquer coisa, menos uma recusa sua.
O que ele dissera? E para quem achou que estava dizendo? O coração dela se partiu com a ideia de que ele estivesse apaixonado por alguém daquela maneira.
Ele estava tão embriagado. Tanto que, antes de sair apressadamente, ela voltou para ver se o coração dele ainda estava batendo, se ele ainda estava respirando… Sim, porque a ideia de que talvez o tivesse matado por causa do que haviam…
– Bom Deus.
Como era possível que, depois de anos pensando nisso, eles, finalmente, tivessem feito sexo? E só porque ele acreditava que ela fosse uma prostituta cujos serviços ele encomendara em algum lugar?
Ah, não… Não tinham usado proteção.
Fabuloso. A reviravolta daquela noite toda era simplesmente fabulosa. Ainda mais porque, mesmo ele estando bêbado… mesmo ela estando meio fora do seu juízo completo… e apesar das condições físicas dele… o sexo tinha sido incrível. Talvez por causa de toda a imaginação acumulada, ou talvez fosse compatibilidade, ou quem sabe fosse apenas uma experiência única, do tipo que acontece quando certas estrelas estão alinhadas.
Independentemente dos motivos, ele tinha feito os poucos homens com quem ela estivera sumirem.
Impedindo que qualquer outro chegasse até ela, Sutton temeu.
Esticando o braço, procurou o botão de partida, e quando o motor roncou e os faróis se acenderam, ela entrou em pânico. Havia outras pessoas na propriedade – só podia haver –, e a última coisa que ela queria era ser pega em flagrante. Teria que encontrar uma maneira de lidar com a situação, e boatos se espalhando não faziam parte da sua estratégia, muito obrigada…
Neste mesmo instante, outro carro surgiu na alameda e, em vez de seguir para um dos estábulos ou construções externas, parou bem ao lado do seu.
A mulher que saiu era… alta, morena e usava um vestido longo.
E franziu o cenho ao ver o Mercedes.
Ela se aproximou.
Sutton abaixou o vidro. O que mais poderia fazer? Ao mesmo tempo, também começou a tatear à procura do câmbio, ou botão, ou sabe-se lá o que colocaria o sedã em marcha a ré.
– Pensei que eu estava escalada para esta noite – a mulher disse, num tom agradável.
– Eu… hum… – Enquanto gaguejava, sentiu-se corar. – Ah…
– Você é uma das garotas novas que Beau mencionou? Sou Delilah.
Sutton apertou a mão que lhe foi oferecida.
– Como tem passado?
– Ah, mas você parece tão chique! – A mulher sorriu. – Então, cuidou bem dele?
– Hum…
– Tudo bem se você cuidou. Às vezes essas coisas acontecem, e eu tenho outros dois chamados para esta noite. – Levantou a mão e puxou o que, no fim, era uma peruca. – Pelo menos me livro disto. Ele está bem?
– O que disse?
A mulher esfregou o cabelo loiro curto ao acenar na direção do chalé.
– Ele. Todas nós cuidamos dele, pobrezinho. Beau não nos diz quem é, mas deve ser alguém importante. É sempre tão generoso, e nos trata muito bem. É um caso bem triste, para falar a verdade.
– Sim. Muito triste.
– Bem, está na minha hora. Quer que eu avise Beau que está tudo bem?
– Hum…
– Fico com a semana que vem, então.
– Não – Sutton se ouviu dizer. – Ele me disse… o homem me disse que quer me ver de novo.
– Ah, ok, sem problemas. Eu aviso.
– Muito obrigada. Muito obrigada mesmo.
Talvez aquele fosse algum tipo de alucinação bizarra causada por uma febre.
Enquanto Sutton voltava a procurava a manopla, a prostituta se inclinou para baixo.
– Está procurando a ré?
– Ah, sim, estou.
– É essa aí na direita. Mexa-a para trás. Para baixo do drive e, para estacionar, você empurra até o fim.
– Obrigada. Que difícil.
– Um dos meus fregueses regulares tem esse mesmo modelo. É uma beleza! Dirija com cuidado.
Produzindo um som sem sentido, Sutton manobrou para trás com cuidado, ciente de que a mulher estava bem perto com aquela peruca morena na mão.
Seguindo na direção da estrada principal, resolveu que aquilo só podia ser resultado de um resfriado, de uma alucinação. A qualquer instante agora, ela despertaria…
Era isso.
Só podia ser.
Puxa vida, como foi que tudo foi acontecer?
CONTINUA
DEZOITO
Enquanto parava diante da entrada principal de Easterly, Lane pisou tão fundo no freio que os pedriscos do caminho voaram com ele até o Porsche parar. Não desligou o motor, simplesmente saiu do carro e voou escada acima, passando pelas portas duplas tal qual uma ventania.
Não prestou atenção em absolutamente nada ao entrar na mansão – nem na criada que limpava o vestíbulo, no mordomo que se dirigiu a ele… nem mesmo em sua Lizzie, que parou em seu caminho como se estivesse aguardando sua chegada.
Em vez disso, saiu da casa pela porta da sala de jantar e avançou a passos largos até o centro de negócios, atravessando as mesas redondas bem arrumadas debaixo da tenda e se esquivando dos funcionários da manutenção que estavam pendurando cordões de luzes entre as árvores em flor.
O local de trabalho do pai tinha um terraço com uma série de portas francesas, e ele seguiu para o par que ficava na extrema esquerda. Quando chegou, não se deu ao trabalho de experimentar a maçaneta, porque a porta estaria trancada.
Bateu no vidro. Com força.
E não parou. Nem quando sentiu a mão úmida, o que indicava que ele devia ter quebrado alguma coisa…
Na verdade, ele estilhaçou a vidraça da primeira porta do escritório do pai, e partiu para a seguinte.
A boa notícia, pensou, era que havia muitas outras.
– Lane! O que você está fazendo?
Ele parou e se virou para Lizzie. Numa voz que não reconheceu, ele disse: – Preciso encontrar o meu pai.
A extremamente profissional assistente executiva de William Baldwine correu para dentro do escritório e arfou em alto e bom som ao ver o vidro quebrado.
– Você está sangrando! – a mulher exclamou.
– Onde está o meu pai?
A senhora Petersberd destrancou a porta e a abriu.
– Ele não está aqui, senhor Baldwine, ele ficará em Cleveland o dia inteiro. Acabou de sair e não sei bem quando retornará. O senhor precisa de algo?
Quando os olhos dela se fixaram nas juntas sanguinolentas da mão dele, ele soube que ela estava querendo dizer algo como “Que tal uma toalha, talvez?", mas ele pouco se importava se suas veias se esvaziassem naquele lugar.
– Quem contou ao meu pai que Gin tinha saído? – ele exigiu saber. – Quem ligou para ele? Foi você? Ou um espião na casa…
– Do que está falando?
– Ou você ligou para a polícia e mandou que eles prendessem a minha irmã? Tenho certeza absoluta de que meu pai não sabe apertar as teclas 190 sozinho, mesmo que tenham me dito que foi isso o que ele fez.
Os olhos da mulher se dilataram e depois ela sussurrou:
– Ele me disse que ela acabaria fazendo mal a si mesma. Que ela tentaria sair hoje de manhã e que eu teria que fazer o que fosse necessário para impedi-la. Ele disse que ela precisa de ajuda…
– Lane!
Ele virou a cabeça na direção de Lizzie bem quando tudo ficou fora dos eixos, seu corpo pendendo para um dos lados.
Com toda a força, Lizzie o sustentou e impediu que ele caísse no chão.
– Venha. Vamos voltar para casa.
Enquanto ele se deixava manobrar, sangue pingou no piso de pedra do terraço, manchando o cinza de vermelho. Fitando a assistente, ele ordenou: – Diga ao meu pai que eu o estou aguardando.
– Não sei quando ele volta.
Até parece, ele pensou. A mulher chegava a agendar as pausas para William ir ao banheiro.
Havia tanta raiva dentro dele que ele estava cego ao que o cercava enquanto Lizzie o guiava. A fúria era por causa de Edward. De Gin. De sua mãe.
De Max…
– Quando foi a última vez que você comeu alguma coisa? – Lizzie perguntou ao empurrá-lo pela porta de Easterly.
Por um instante, ele pensou estar alucinando. Mas logo percebeu que os homens e mulheres de branco eram chefs, e que ele e Lizzie estavam na cozinha.
– Desculpe, o que disse? – murmurou.
– Comida. Quando?
Ele abriu a boca. Fechou. Franziu o cenho.
– Meio-dia de ontem?
A senhorita Aurora entrou no campo de visão dele.
– Lands… O que há de errado com você, menino?
Houve algum tipo de conversa em seguida, nada que ele compreendesse. Em seguida, um curativo na sua mão, ao qual ele não deu atenção. E mais conversa.
Ele não voltou a sintonizar apropriadamente até estar sentado na sala de descanso dos chefs, à mesa, com um prato de ovos mexidos, seis fatias de bacon e quatro torradas diante de si.
Seu estômago roncou e ele piscou. Sua cabeça continuava uma confusão, mas sua mão pegou o garfo e começou a cavar.
Lizzie se sentou diante dele, a cadeira rangendo sobre o piso de madeira.
– Você está bem?
Ele fixou o olhar além dela, na senhorita Aurora, parada à porta como se estivesse prestes a sair.
– O meu pai é um homem mau.
– Ele tem o seu próprio conjunto de valores.
Que era o mais próximo que ela chegaria de condenar alguém.
– Ele está tentando vender a minha irmã. – Bufou. – É como se isso fosse… uma novela ruim.
Estava prestes a contar tudo quando o celular tocou; assim que viu quem era, atendeu.
– Samuel, em que pé estamos?
Samuel T. teve que erguer a voz acima das conversas ao fundo.
– Setenta e cinco mil para a fiança, foi o melhor que consegui. Assim que você trouxer o cheque, pode vir buscá-la.
– Já vou cuidar disso. Você vai embora?
– Só depois que ela sair. Ela tem o direito de se consultar com seu advogado, portanto, enquanto eu estiver por perto, ela não terá que voltar para aquela cela sozinha, ou que Deus não permita, com outra pessoa.
– Obrigado.
Assim que ele encerrou a ligação, a senhorita Aurora saiu para acompanhar o trabalho dos chefs, e ele se voltou para Lizzie.
– Vou ter que ir atrás do dinheiro da fiança dela agora. Depois disso, não sei mais.
Ela esticou a mão e a apoiou no braço dele.
– Como eu já disse antes: tem alguma coisa que eu possa fazer para ajudar?
Foi como um raio. Num minuto, ele estava normal, como qualquer outro homem numa situação como aquela. No seguinte? A luxúria bombeava em suas veias, excitando-o, desviando a loucura em sua cabeça para algo verdadeiramente insano.
Abaixando as pálpebras, murmurou:
– Tem certeza de que quer que eu responda?
Lizzie engoliu em seco e olhou para o ponto em que o tocava. Quando não disse nada, mas também não se afastou, ele se inclinou na direção dela e levantou seu queixo com o indicador. Travando os olhos nos lábios dela, beijou-a mentalmente, com imagens de si mergulhando a cabeça e colando a boca na dela. Empurrando-a no encosto da cadeira. Enfiando-se debaixo das roupas dela enquanto se ajoelhava entre suas pernas com…
– Ai… Deus… – ela sussurrou, os olhos evitando os dele.
Mas, ainda assim, ela não se afastou.
Lane lambeu os lábios. Depois abaixou a mão e saiu de perto dela.
– É melhor você ir. Ou vou fazer uma coisa que você vai se arrepender.
– E você? – ela sussurrou. – Você vai se arrepender?
– De te beijar? Nunca. – Meneou a cabeça, reconhecendo que suas emoções estavam à flor da pele… completamente descontroladas. – Mas não vou tocar em você até que me peça. Isso eu consigo prometer.
Depois de um instante, ela se levantou sem a sua elegância costumeira, a cadeira na qual estivera sentada deslizando pelo piso, seus pés trôpegos. Ele lhe deu tempo suficiente para sair da sala de descanso e avançar pelo corredor antes de ele mesmo sair.
Caso ficasse muito próximo dela, era bem possível que a agarrasse e a colocasse sobre a mesa, procurando o alívio que os dois tanto necessitavam.
Porque ela o desejava. Ele tinha acabado de ver.
Não que fosse ficar pensando nisso.
Ele precisava fazer com que o pai pagasse a fiança. Não que ele mesmo não tivesse aquela quantia. Tinha lucrado bastante na mesa de pôquer e, diferentemente da irmã, aos trinta e seis anos, já tinha acesso à primeira parte dos seus fundos. Mas William Baldwine criara aquela confusão, e o fato de o homem estar fora da cidade tornaria mais fácil pegar um cheque e levar ao banco para que o autorizassem.
Um minuto depois, Lane estava diante do escritório da controller, mas não se deu ao trabalho de bater, avançando direto para a maçaneta.
Trancada.
Assim como fizera com a porta de vidro do pai, socou a porta de carvalho… com a mão machucada.
– Ela não está? – o senhor Harris perguntou da soleira da sua suíte.
– Onde está a chave dessa porta?
– Não tenho permissão para…
Lane se virou.
– Pegue a porra dessa chave ou vou acabar derrubando a maldita porta.
E vejam só, uma fração de segundo depois, o mordomo se aproximou com um molho de chaves.
– Permita-me, senhor Baldwine.
Só que a chave não os levou a parte alguma. Ela entrou na fechadura, mas foi impossível girá-la.
– Lamento muitíssimo – disse o mordomo enquanto forçava a fechadura.
– Tem certeza de que é a chave certa?
– Está marcado aqui. – O homem mostrou a etiquetinha pendurada na ponta ornamentada. – Talvez ela volte logo.
– Deixe-me tentar.
Lane afastou o pinguim para o lado, mas também não teve sucesso. Perdendo a paciência, empurrou a porta com o ombro e…
O estalido da madeira se rompendo abafou seu grito de raiva, e ele teve que se segurar nos painéis quando eles se movimentaram de volta na sua direção.
– Mas que diabos! – exclamou, dando uma de Drácula e se afastando do fedor.
Enquanto o senhor Harris começava a tossir, tendo que cobrir o rosto com a lapela do terno, outra pessoa disse: – Ai, meu Deus, isso é…
– Tire todos do corredor – Lane ordenou ao mordomo. – E faça com que fiquem afastados.
– Sim, sim, claro, senhor Baldwine.
Lane ergueu o antebraço e respirou na manga da camisa ao se inclinar para dentro. O escritório estava um breu, as cortinas pesadas haviam sido fechadas, impedindo a entrada da luz solar, e o ar-condicionado sobre uma das janelas também estava desligado. Tateando ao redor da soleira com a mão livre, ele tinha a nítida impressão do que estava para encontrar e não conseguia acreditar.
Clique.
Rosalinda Freeland estava sentada numa poltrona estofada no canto oposto, o rosto congelado num sorriso repulsivo, os dedos acinzentados enterrados em almofadas de chintz, os olhos inertes fitando alguma versão da vida após a morte com que se deparou.
– Jesus… – Lane sussurrou.
O profissional conjunto de saia e terninho estava perfeitamente arrumado, os óculos de leitura, pendurados numa corrente de ouro sobre a blusa de seda, o coque primoroso, um tanto grisalho, ainda estava arrumado. Mas os sapatos não faziam sentido algum. Não eram os de couro que ela sempre calçava, mas um par de tênis Nike, como se ela estivesse prestes a sair para uma corrida.
Merda, pensou ele.
Enfiando a mão no bolso, pegou o celular e discou para a única pessoa que conseguiu pensar. Enquanto chamava, olhou ao redor. Não havia bagunça em parte alguma, o que era típico desta mulher que trabalhou em Easterly por trinta anos. Não havia mais nada sobre o tampo da mesa além do computador e do abajur com cúpula verde. As estantes escondiam discretamente todos os demais equipamentos de escritório, e os arquivos estavam tão em ordem quanto livros numa biblioteca.
– Alô? – respondeu a voz no celular.
– Mitch – disse Lane.
– Você está vindo com o cheque da fiança?
– Tenho um problema.
– O que posso fazer?
Lane fechou os olhos e perguntou como foi ter tanta sorte por ter aquele cara do outro lado da linha.
– Estou olhando para o cadáver da controller da minha família.
No mesmo instante, o tom do delegado baixou uma oitava.
– Onde?
– Em seu escritório em Easterly. Acho que ela pode ter se suicidado… Acabei de derrubar a porta.
– Já ligou para a emergência?
– Ainda não.
– Quero que ligue agora enquanto sigo para aí, só para que fique registrado e a polícia metropolitana possa ir para aí. Eles têm jurisdição.
– Obrigado, cara.
– Não toque em nada.
– Só toquei no interruptor ao entrar.
– E não deixe ninguém entrar no cômodo. Chego em cinco minutos.
Assim que Lane encerrou a ligação e discou para a emergência, seus olhos tracejaram as prateleiras. Ele pensou em todo o trabalho feito por aquela mulher naquele pequenino escritório.
– Sim, meu nome é Lane Baldwine. Estou ligando de Easterly. – A mansão não tinha número. – Houve uma morte na casa… Sim, tenho certeza de que ela não está mais viva.
Ele andou ao redor enquanto respondia a algumas perguntas, confirmou seu número de celular e depois desligou de novo.
Encarando a mesa, respeitou as ordens de Mitch, mas tinha que pegar o talão de cheques. Com cadáver ou sem, ele ainda tinha que tirar Gin da prisão.
Pegou o lenço do bolso e caminhou por cima do tapete oriental. Estava para puxar a gaveta estreita no centro da mesa quando algo chamou sua atenção. Bem no meio do mata-borrão de couro, perfeitamente alinhado como se fosse uma régua… havia um pen drive.
– Senhor Baldwine? Devo fazer alguma coisa? – o senhor Harris o chamou.
Lane relanceou para o corpo.
– A polícia está a caminho. Não podemos mexer em nada, por isso já vou sair.
Apanhou o que Rosalinda evidentemente deixara para quem a encontrasse. Depois abriu a gaveta e surrupiou o talão de cheques, enfiando-o no cós da calça na parte de trás, cobrindo-o com a camisa.
Virou-se para a controller. A expressão no rosto dela era como a do Coringa, um sorriso torto e horrível que apareceria nos seus pesadelos por um bom tempo.
– O que foi que o meu pai fez agora… – sussurrou no ar maculado pela morte.
DEZENOVE
Lizzie estava na estufa ao telefone com a empresa de aluguel quando percebeu o SUV do delegado do Condado de Washington avançando pela entrada da frente de Easterly.
Já estariam entregando os papéis do divórcio para Chantal? Puxa…
– Desculpe – disse, voltando a se concentrar. – O que disse?
– A conta está atrasada – o representante comercial repetiu. – Portanto não podemos aceitar nenhuma encomenda.
– Atrasada? – Isso era tão inconcebível quanto a Casa Branca deixar de pagar a conta de luz. – Não, não, pagamos o montante total da tenda ontem. Portanto, não é possível que…
– Veja bem, vocês são um dos nossos melhores clientes, queremos continuar trabalhando com vocês. Eu não sabia que a conta estava atrasada até o dono me contar. Enviei todos os materiais que pude, mas ele me impediu de mandar mais até que o saldo seja quitado.
– Quanto devemos?
– Cinco mil, setecentos e oitenta e cinco e cinquenta e dois centavos.
– Isso não será um problema. Eu mesma levarei o cheque agora, você pode nos…
– Não temos mais nada em estoque. Não temos nada para alugar, já que todas as festas na cidade acontecem este fim de semana. Liguei para Rosalinda na semana passada e deixei três recados sobre o saldo a pagar. Ela não retornou as ligações. Segurei o restante do pedido o máximo que pude porque queria cuidar da conta de vocês. Mas não tive notícias, e havia outros pedidos a serem atendidos.
Lizzie inspirou fundo.
– Ok, obrigada. Não sei o que está acontecendo, mas vou dar um jeito. Farei com que recebam.
– Lamento muito.
Quando encerrou a ligação, recostou-se na parede de vidro para tentar ver o veículo do delegado.
– … a emprresa falou?
Virou-se para Greta, que estava borrifando os últimos arranjos de mesa com preservativo floral.
– Desculpe, o que… ah, há um problema com o pagamento da conta.
– Então vamos ou não receberr as quinhentas taças de champanhe que faltam?
– Não. – Lizzie partiu para a porta que dava para a casa. – Vou falar com Rosalinda e depois dar a bela notícia ao senhor Harris. Ele vai ficar uma arara, mas pelos menos temos as tendas, as mesas e as cadeiras. Podemos lavar os copos conforme eles forem sendo usados, a família deve ter uma centena de taças na casa.
Greta a fitou através dos óculos de armação de casco de tartaruga.
– Terremos quase setecentas pessoas amanhã. Acha mesmo que conseguirremos darr conta? Com apenas quinhentas taças?
– Você não está ajudando.
Saindo da estufa, atravessou a sala de jantar e foi para a ala dos empregados. Quando empurrou a porta, parou de pronto. Havia três empregadas em uniformes cinza e branco bem juntinhas, falando agitadamente, mas num tom bem baixo, como se fosse um programa de televisão no volume mínimo. A senhorita Aurora estava ao lado delas, com os braços cruzados sobre o peito, e Beatrix Mollie, a governanta-chefe, estava ao seu lado. O senhor Harris estava no meio do corredor, seu corpo diminuto bloqueando o caminho até a cozinha.
Lizzie franziu a testa e se aproximou do mordomo. E foi nesse momento que sentiu o cheiro que, como fazendeira, conhecia com certa familiaridade.
Um homem afro-americano com uniforme de delegado saiu do escritório de Rosalinda junto de Lane.
– O que está acontecendo? – Lizzie perguntou, um calafrio percorrendo o seu peito.
Bom Deus, será que Rosalinda…
Era por isso que o corredor estava com um cheiro tão ruim de manhã, pensou, com o coração aos pulos.
– Houve um contratempo – disse o senhor Harris. – E ele já está sendo solucionado apropriadamente.
Lane se deparou com os olhos dela enquanto falava com o delegado e fez um aceno com a cabeça.
A senhora Mollie fez o sinal da cruz.
– São três de cada vez. A morte sempre vem em três.
– Tolice – murmurou a senhorita Aurora, como se a mulher a estivesse entediando com aquela linha de pensamento. – Os desígnios de Deus servem a todos. Não fique contando na ponta dos dedos.
– Três. Sempre em três.
Voltando para a estufa, Lizzie fechou a porta atrás de si e olhou ao redor, para os arranjos de flores creme e rosa.
– O que aconteceu? – Greta perguntou. – Ficou faltando mais alguma coisa do pedido…
– Acho que Rosalinda está morta.
Houve um barulho quando o spray escorregou da mão de Greta e quicou no chão, molhando os sapatos da mulher.
– O quê?
– Não sei nada.
Enquanto uma torrente de alemão jorrava da sua companheira, Lizzie murmurou: – É, não é? Não consigo acreditar.
– Quando? Como?
– Não sei, mas o delegado está lá. E não chamaram uma ambulância.
– Oh, mein Gott… das ist ja schrecklich!19
Xingando, Lizzie andou até a janela com vista para o jardim e fitou o gramado verde e resplandecente, e a elegante estrutura da festa. Já haviam concluído setenta e cinco por cento das tarefas e tudo estava realmente belo, ainda mais com as flores brancas que ela e Greta plantaram debaixo das árvores frutíferas.
– Estou com uma sensação muito ruim a respeito disso tudo – ouviu-se dizer.
Uma hora depois da chegada da polícia metropolitana, Lane teve permissão para deixar a cena por um curto período. Ele queria falar com Lizzie para informá-la sobre tudo o que estava acontecendo, mas primeiro tinha que cuidar de Gin.
O dinheiro da família Bradford era administrado pela Companhia de Fundos Prospect, uma empresa privada de bilhões de dólares em ativos e com todos os milionários de Charlemont na sua carteira de clientes. Contudo, como não eram um banco tradicional, as contas da família eram da filial local do PNC, e era de lá o talão de cheques que ele tirara da mesa de Rosalinda.
Parando no estacionamento de um prédio elegante, fez um cheque no valor de setenta e cinco mil dólares, falsificou a assinatura do pai e o endereçou à cadeia do Condado de Washington.
Assim que entrou no saguão bege e branco, foi interceptado por uma jovem num terno azul-marinho e com joias discretas.
– Senhor Baldwine, como tem passado?
Acabei de encontrar um cadáver. Obrigado por perguntar.
– Bem, preciso de uma autorização para sacar este cheque.
– Claro. Venha até o meu escritório. – Conduzindo-o até uma saleta envidraçada, ela fechou a porta e se sentou atrás de uma mesa organizada. – É sempre um prazer ajudar a sua família.
Ele escorregou o cheque por cima do mata-borrão e se sentou.
– Agradeço por isso.
O som das unhas batendo nas teclas do computador era um pouco incômodo, mas ele tinha problemas maiores.
– Hum… – A gerente pigarreou. – Senhor Baldwine, lamento, mas não há fundos suficientes na conta para compensá-lo.
Ele pegou o celular.
– Sem problemas, vou telefonar para a Fundos Prospect e solicitar a transferência. Quanto devemos?
– Bem, senhor, a conta está com um saldo devedor de vinte e sete mil, quatrocentos e oitenta e nove dólares e vinte e dois centavos. No entanto, o limite está cobrindo isso.
– Dê-me um minuto. – Ele procurou em seus contatos o número do administrador do CFP responsável pelos investimentos da família. – Farei a transferência.
Um evidente alívio tomou o rosto dela.
– Vou lhe dar um pouco de privacidade. Estarei no saguão quando estiver pronto. Leve o tempo que precisar.
– Obrigado.
Enquanto esperava a ligação completar, Lane bateu o sapato no piso de mármore.
– Hum, olá, Connie, como está? Aqui é Lane Baldwine. Bem. Sim, estou na cidade para o Derby. – Entre outras coisas. – Escute, preciso que transfira certa quantia para a conta-corrente da família no PNC.
Houve uma pausa. Em seguida, a voz serena e profissional da mulher se tornou tensa.
– Eu faria isso com prazer, senhor Baldwine, mas não tenho mais acesso às suas contas. O senhor deixou a Fundos Prospect no ano passado.
– Estou me referindo à conta do meu pai. Ou da minha mãe.
Outra pausa.
– Lamento, mas o senhor não tem autorização para transferir fundos dessa natureza. Vou precisar falar com o seu pai. Existe um modo de o senhor pedir para que ele nos telefone?
Não se quisesse aquele dinheiro. Considerando o que seu velho e bom papai estava tentando arrancar de Gin, de jeito nenhum o grandioso e glorioso William Baldwine facilitaria a soltura dela.
– O meu pai está fora da cidade e não será possível entrar em contato com ele. E se eu colocar a minha mãe na linha? – Por certo conseguiria acordá-la e mantê-la consciente por tempo suficiente para que ela pedisse a transferência de 125 mil para a conta-corrente da casa.
Connie pigarreou da mesma forma como a gerente do banco.
– Sinto muito, mas… não será o bastante.
– Se a conta é dela? Como não?
– Senhor Baldwine… não gostaria de me precipitar…
– Parece-me que é melhor falar de uma vez.
– Poderia aguardar um instante?
Enquanto uma música suave tocava em seu ouvido, Lane saltou da cadeira dura e começou a andar entre um vaso de planta num canto, que descobriu ser de plástico quando tocou numa folha, e as janelas que subiam até o teto, com vista para a rodovia de quatro pistas ao longe.
Houve um bipe e logo uma voz masculina entrou na linha.
– Senhor Baldwine? Aqui é Ricardo Monteverdi, como tem passado?
Maravilha, o CEO da empresa. O que significava que ele havia tropeçado numa “situação delicada”.
– Escute, só preciso de cento e vinte e cinco mil dólares em dinheiro, ok? Nada demais…
– Senhor Baldwine, como o senhor sabe, na Fundos Prospect, nós levamos a nossa responsabilidade fiduciária e os nossos clientes muito a sério…
– Pode parar já com o discurso de abertura. Conte-me por que a palavra da minha mãe não é o suficiente para sacar o próprio dinheiro dela, ou desligue logo.
Fez-se um silêncio.
– O senhor não me deixa escolha.
– O quê? Pelo amor de Deus, o que foi?
O período seguinte de silêncio foi tão longo e denso que ele afastou o aparelho da orelha para ver se a linha tinha caído.
– Alô?
Mais pigarreios.
– No início deste ano, o seu pai declarou que a sua mãe é mentalmente incompetente para administrar o fundo. A opinião de dois neurologistas qualificados é de que ela é incapaz de tomar quaisquer decisões. Portanto, se necessita de fundos de qualquer uma dessas contas, teremos o maior prazer em atendê-lo, desde que o pedido venha do seu pai em pessoa. Espero que entenda que estou numa situação delicada e que…
– Vou ligar para ele neste mesmo instante e farei com que ele telefone.
Lane encerrou a ligação e ficou olhando para o trânsito. Depois, seguiu até a porta e a abriu. Sorrindo para a gerente, disse: – Meu pai fará com que a transferência seja feita pela Prospect. Voltarei mais tarde.
– Estaremos abertos até as cinco, senhor.
– Obrigado.
De volta ao sol ofuscante, manteve o celular na mão ao atravessar o estacionamento escaldante, mas não o usou. Também não percebeu que estava dirigindo de volta para casa.
Que diabos ele faria agora?
Quando chegou a Easterly, havia outras duas viaturas próximas à garagem e alguns policiais uniformizados parados diante da porta da frente. Estacionou o Porsche em seu lugar costumeiro, à esquerda da entrada principal, e saiu.
– Senhor Baldwine – um dos policiais o cumprimentou quando Lane se aproximou.
– Cavalheiros.
A sensação de olhos o seguindo fez com que ele quisesse mandar o grupo para longe da sua casa. Tinha a sensação paranoica de que havia coisas acontecendo por trás das cortinas, sem que ele soubesse, e preferia encontrar algum esqueleto no armário primeiro sem testemunhas, sem o benefício dos olhares curiosos da polícia metropolitana.
Subindo os degraus até o segundo andar, foi para o próprio quarto e fechou a porta, trancando-a. Perto da cama, pegou o telefone da casa, apertou o número nove para conseguir uma linha externa, e depois pressionou *67 para que o número para o qual telefonava não ficasse registrado no identificador de chamadas. Quando deu linha, ele compôs uma sequência de quatro números.
Pigarreou quando ouviu um toque. Dois…
– Bom dia, aqui é do escritório do senhor William Baldwine. Como posso ajudá-lo?
Imitando o tom firme e profissional do pai, ele disse:
– Ligue-me com Monteverdi da Prospect agora mesmo.
– Sim, senhor Baldwine. Imediatamente.
Lane pigarreou uma vez mais enquanto uma música clássica se fazia ouvir. A boa notícia era que o pai era antissocial, exceto se a interação humana o beneficiasse nos negócios, portanto era muito improvável que os dois homens tivessem se falado recentemente, o que revelaria o seu engodo.
– Senhor Baldwine, o senhor Monteverdi está na linha.
Depois de um clique, Monteverdi começou a falar.
– Obrigado por finalmente retornar a minha ligação.
Lane baixou seu tom de voz e enfatizou o sotaque sulista.
– Preciso de cento e vinte e cinco mil na conta-corrente da casa…
– William, eu já lhe disse, não posso fazer mais adiantamentos, simplesmente não posso. Agradeço os negócios da sua família e estou comprometido em ajudá-lo a sair dessa situação antes que o nome Bradford se depare com dificuldades, mas as minhas mãos estão atadas. Tenho responsabilidades para com o Conselho, e você me disse que o dinheiro que pegou emprestado seria devolvido até a reunião anual, que acontecerá em duas semanas. O fato de necessitar de mais recursos, sendo um montante assim pequeno, já não me deixa mais tão confiante.
Mas que diabos?!
– Qual o total devido? – ele perguntou, carregando no forte sotaque da Virgínia.
– Eu lhe disse da última vez que deixei recado – Monteverdi se mostrou irritado. – Cinquenta e três milhões. Você tem duas semanas, William. Suas alternativas são: devolver o montante ou procurar o JP Morgan Chase e pedir um empréstimo contra o fundo primário da sua esposa. Ela tem mais de cem milhões só naquela conta, portanto o perfil de empréstimos deles será atendido. Eu lhe enviei a documentação num e-mail particular, você só precisa assinar os papéis e isso não nos afetará mais. Mas permita que eu seja bem franco: estou exposto nesta situação e não permitirei que isso prossiga assim. Existem medidas que eu poderia acionar, que seriam muito desagradáveis para você, e eu as usarei antes que alguma coisa me afete pessoalmente.
Puta.
Merda.
– Voltarei a falar com você – Lane disse com voz arrastada e desligou.
Por um instante, só conseguiu ficar olhando para o telefone. Literalmente não conseguia conectar dois pensamentos com coerência.
Em seguida, veio o vômito.
Numa ânsia súbita, dobrou-se ao meio, mal conseguindo apanhar o cesto de papéis a tempo.
Tudo o que comera na sala de descanso dos funcionários subiu.
Depois que o acesso passou, seu sangue correu gelado, a sensação de que nada era como deveria ser fazendo-o imaginar – e depois rezar – que aquilo fosse uma espécie de pesadelo.
Mas não podia se dar ao luxo de não fazer nada, ou pior, de desmoronar. Tinha que lidar com a polícia. Com a irmã. E com o que mais estivesse por vir…
Deus, desejou que Edward ainda estivesse por perto.
“Meu Deus, isso é mesmo terrível!”
VINTE
Uma hora mais tarde, Gin deslizou pelo banco do Porsche cinza-escuro do irmão, fechou os olhos e balançou a cabeça.
– Estas foram as piores seis horas da minha vida.
Lane emitiu uma espécie de grunhido, que poderia significar muitas coisas, mas que certamente estava bem longe do “Ah, Deus, não consigo imaginar o que você teve que suportar” que ela esperava ouvir.
– Desculpe – ela explodiu –, mas eu acabei de sair da cadeia…
– Estamos com problemas, Gin.
Ela deu de ombros.
– Conseguimos a fiança, e Samuel T. vai garantir que isso fique longe da imprensa…
– Gin. – O irmão a encarou quando saiu para o trânsito. – Estamos com graves problemas.
Mais tarde, ah, muito mais tarde, ela ainda se lembraria desse instante em que seus olhares se encontraram no interior do carro, indicando o início da derrocada, o primeiro dominó caindo, que fez com que todos os outros também caíssem com tamanha velocidade que ficou impossível deter a sequência.
– Do que está falando? – ela perguntou com suavidade. – Você está me assustando.
– A nossa família está devendo uma quantia enorme.
Ela revirou os olhos e balançou a mão no ar.
– Sério, Lane? Tenho problemas piores…
– E Rosalinda se matou na nossa casa. Em algum momento dos últimos dois dias.
Gin levou a mão à boca. Lembrou-se de ter telefonado para a mulher sem obter nenhuma resposta apenas algumas horas antes.
– Está morta?
– Morta. No escritório dela.
Foi impossível não ficar toda arrepiada quando visualizou o telefone tocando ao lado do cadáver da controller.
– Meu Deus…
Lane praguejou, olhando pelo retrovisor e mudando de faixa rapidamente.
– A conta-corrente da casa está com saldo devedor, e nosso pai de algum modo conseguiu um empréstimo de cinquenta e três milhões da Companhia de Fundos Prospect para fazer só Deus sabe o quê. E a pior parte? Não sei qual o fim disso e não sei se quero descobrir.
– O que você… desculpe, não estou entendendo…
Ele repetiu, mas isso não a ajudou muito.
Depois que o irmão se calou, ela ficou olhando pelo para-brisa, vendo a estrada fazer a curva ao redor do rio Ohio.
– Papai pode simplesmente pagar o empréstimo – disse ela, emburrada. – Ele paga e tudo acaba.
– Gin, se foi necessário pegar uma quantia dessas emprestada, é por que a pessoa está com problemas muito, muito sérios. E se essa pessoa ainda não pagou é porque não tem como.
– Mas mamãe tem dinheiro. Ela tem muito…
– Não sei se podemos nos fiar nisso.
– Então onde você conseguiu o dinheiro da fiança para me soltar?
– Tenho um pouco guardado e também o meu fundo, que desatrelei do fundo da família. Mas esses dois não são suficientes para cuidar de Easterly, e esqueça a possibilidade de pagar esse empréstimo ou de manter a Bourbon Bradford a salvo, se precisarmos.
Ela olhou para as unhas estragadas, concentrando-se na dizimação do que estava perfeito quando acordara naquela manhã.
– Obrigada por me tirar de lá.
– De nada.
– Vou devolver o seu dinheiro.
Como? Seu pai cortara todos os seus privilégios. E, pior de tudo, e se não restasse mais dinheiro para a sua mesada?
– Isso não pode ser possível – disse ela. – Só pode ser um mal-entendido. Um tipo de… falha de comunicação.
– Não acredito.
– Você tem que pensar positivo, Lane.
– Entrei no escritório de uma mulher morta há umas duas horas e isso foi antes de eu descobrir sobre a dívida. Posso lhe garantir que falta de otimismo não é o problema aqui.
– Você acha que… – Gin arquejou. – Acha que ela roubou de nós?
– Cinquenta e três milhões de dólares? Ou apenas uma parte? Não, porque, nesse caso, por que cometer suicídio? Se ela desfalcou os fundos, o mais inteligente seria fugir e trocar de identidade. E não se matar na casa do seu empregador.
– E se ela foi assassinada?
Lane abriu a boca para dizer “de jeito nenhum”. Mas voltou a fechá-la, como se estivesse pensando a respeito.
– Bem, ela o amava.
Gin ficou com o queixo caído.
– Rosalinda? Papai?
– Ah, o que é isso, Gin? Todos sabem disso.
– Rosalinda? A coisa mais selvagem nela era prender aquele coque um pouquinho mais pra baixo.
– Reprimida ou não, ela estava com ele.
– Na casa da nossa mãe?
– Não seja ingênua.
Muito bem, era a primeira vez que era acusada disso. E, de repente, aquela lembrança de tantos anos antes, daquele Ano-Novo, voltou… De quando vira o pai saindo do escritório da mulher.
Mas isso fora décadas atrás, em outra era.
Ou, talvez não.
Lane pressionou o freio num farol vermelho próximo ao posto de gasolina que ela parara naquela manhã.
– Pense no lugar onde ela morava. A casa colonial de quatro quartos em Rolling Meadows custa muito mais do que ela poderia pagar com seu salário de controller. Quem você acha que pagou?
– Ela não tem filhos.
– Que a gente saiba.
Gin apertou os olhos enquanto o irmão voltava a acelerar.
– Acho que vou enjoar.
– Quer que eu encoste?
– Quero que pare de me dizer essas coisas.
Houve um longo silêncio… e em meio ao vácuo, ela continuou voltando para a visão do pai saindo daquele escritório, amarrando o cinto do roupão.
No fim, o irmão balançou a cabeça.
– A ignorância não vai mudar nada. Precisamos descobrir o que está acontecendo. Preciso chegar à verdade de alguma maneira.
– Como você… como você descobriu isso tudo?
– Isso importa?
Quando contornaram a última curva na estrada River antes de Easterly, ela olhou para o alto à direita, para a colina. A mansão da sua família estava no mesmo lugar de sempre, seu tamanho e elegância incríveis dominando o horizonte, a famosa construção branca fazendo-a pensar em todas as garrafas de bourbon que traziam um desenho dela gravado em seus rótulos.
Até aquele momento, acreditou que a posição da família estivesse gravada em pedra.
Agora, temia que fosse em areia.
– Ok, estamos todos prontos aqui – Lizzie avançou entre as fileiras de mesas redondas debaixo da grande tenda. – As cadeiras já estão bem arrumadas.
– Ja20 – concordou Greta ao dar uma puxadinha numa das toalhas de mesa.
As duas continuaram, inspecionando todos os setecentos lugares, verificando novamente os candelabros de cristal que pendiam em três pontos da tenda, puxando um pouco mais os tecidos rosa-claro e brancos.
Quando terminaram, acompanharam a extensão de cordões verdes serpenteando pela parte externa, fornecendo eletricidade para os oito ventiladores gigantes que garantiriam a circulação de ar.
Ainda tinham umas boas cinco horas de trabalho até que escurecesse e, de maneira inédita, Lizzie achou que tinham concluído todas as prioridades. Os arranjos florais estavam prontos. Os canteiros de flores estavam impecáveis. Vasos na entrada e na saída da tenda combinavam à perfeição com as plantas e os botões suplementares. Até mesmo as estações de comida nas tendas adjuntas já haviam sido organizadas, seguindo as instruções da senhorita Aurora.
Até onde Lizzie sabia, a comida estava pronta e a bebida entregue. Os garçons e os barmen contratados estavam sob a batuta de Reginald, e ele não era de deixar nenhum fio solto. A segurança que garantiria que a imprensa ficaria ao largo era composta por policiais de folga da polícia metropolitana, e estavam todos prontos para trabalhar.
Ela quis ter alguma coisa com que ocupar seu tempo. O nervosismo a deixara mais produtiva do que de costume, e agora estava sem nada para fazer além de pensar que havia uma investigação criminal acontecendo a cinquenta metros dela.
Rosalinda.
Seu celular vibrou no quadril, sobressaltando-a. Ao pegá-lo, suspirou.
– Graças a Deus! Alô? Lane? Você está bem? Sim. – Franziu o cenho enquanto Greta a espiava. – Na verdade, eu o deixei no carro, mas posso ir pegá-lo agora. Sim, sim, claro. Onde você está? Tudo bem. Já vou levar para você.
Quando ela desligou, Greta lhe disse:
– O que está acontecendo?
– Não sei. Ele disse que precisa de um computador.
– Deve haverr uma dúzia deles na casa.
– Depois do que aconteceu hoje cedo, acha que vou discutir com o cara?
– Muito justo. – Embora a expressão da mulher berrasse seu desapontamento. – Vou darr uma olhada nos canteirros e vasos da frrente da casa, e confirrmarr se os manobristas chegarrão no horrárrio.
– Oito da manhã?
– Oito da manhã. E depois, não sei. Pensei em ir parra casa. Estou ficando com enxaqueca, e amanhã serrá um longo dia.
– Isso é horrível! Vá mesmo e volte com força total.
Antes que Lizzie se virasse, sua velha amiga lhe lançou um olhar sério através dos óculos pesados.
– Você está bem?
– Ah, sim. Absolutamente.
– Tem muito Lane por aqui. É porr isso que estou perrguntando.
Lizzie olhou para a casa.
– Ele vai se divorciar.
– Mesmo?
– É o que ele disse.
Greta cruzou os braços sobre o peito e seu sotaque alemão ficou mais evidente.
– Com dois anos de atrraso…
– Ele não é de todo ruim, sabe.
– O que disse? Isso… nein, você não pode estarr falando a verrdade.
– Ele não sabia que Chantal estava grávida, está bem?
Greta lançou as mãos para o alto.
– Ah, bem, isso muda tudo, então, ja? Então ele se prrontificou de livrre e espontânea vontade a se casarr enquanto estava com você. Perrfeito.
– Por favor, não faça isso. – Lizzie esfregou os olhos doloridos. – Ele…
– Ele te pegou de novo, não? Ligou parra você, veio te prrocurrarr, alguma coisa assim.
– E se ele fez? Isso é assunto meu.
– Passei um ano inteirro ligando parra você, parra que você saísse daquela sua fazenda, garrantindo que você virria parra o trabalho. Fiquei ao seu lado, me prreocupei com você, limpei o estrrago que ele deixou. Porr isso, não me diga que não posso exprressarr uma reação quando ele vem sussurrarr no seu ouvido…
Lizzie ergueu a mão diante do rosto da mulher.
– Chega. Não vamos mais falar disso. Nos vemos pela manhã.
Saiu marchando, e xingou baixinho no trajeto inteiro até o carro. Depois que pegou o laptop, seguiu apressada para a casa. Deliberadamente evitando a cozinha e a estufa, porque não queria encontrar Greta enquanto ela se preparava para sair, entrou na biblioteca e, sem pensar, tomou o corredor que dava para as escadas dos empregados e a cozinha. Não foi muito longe. Bem quando fazia a curva, foi parada por dois policiais, e foi então que ela viu o cadáver sendo levado numa maca com rodinhas.
Os restos mortais de Rosalinda Freeland foram colocados num saco branco com um zíper de 1,5 metro que, ainda bem, estava fechado.
– Senhora – um dos policiais disse –, vou ter que lhe pedir que abra o caminho.
– Sim, sim, desculpe. – Abaixando os olhos e refreando a onda de náusea, deu meia-volta, tentando não pensar no que acabara de ver.
E falhou.
Ela tinha dado seu nome à polícia, assim como o restante dos empregados, e fizera um relato breve de onde estivera a manhã toda e os últimos dias. Quando lhe perguntaram a respeito da controller, não teve muito a dizer. Não conhecia Rosalinda melhor do que os outros; a mulher era muito reservada e profissional, e só.
Lizzie sequer sabia se existia algum familiar para ser avisado.
Usar a escada principal era uma violação da etiqueta de Easterly, mas, levando-se em consideração que havia um carro mortuário estacionado e uma cena de crime no corredor dos funcionários, ela estava confiante de que poderia deixar o protocolo de lado. Já no segundo andar, avançou sobre o tapete claro, passando por quadros a óleo e alguns objetos que reluziam com sua antiguidade e manufatura superior.
Ao chegar à porta de Lane, não conseguia se lembrar da última vez que ela e Greta discutiram sobre alguma coisa. Deus, queria ligar para a mulher… Mas o que poderia dizer?
Deixe o laptop e saia, ordenou a si mesma. Só isso.
Lizzie bateu à porta.
– Lane?
– Pode entrar.
Empurrando a porta, ela o encontrou parado diante das janelas, com um pé plantado no peitoril, e um braço sobre o joelho erguido. Ele não se virou para vê-la entrar. Não disse nada.
– Lane? – Ela observou ao redor. Não havia ninguém com ele. – Olha só, vou deixar o laptop aqui e…
– Preciso da sua ajuda.
Inspirando fundo, ela disse:
– Ok.
Mas ele permaneceu em silêncio enquanto fitava o jardim. E que Deus a ajudasse, foi impossível desviar os olhos dele. Disse a si mesma que estava procurando sinais de cansaço… e não medindo os ombros musculosos. O cabelo curto na base da nuca. Os bíceps que marcavam as mangas curtas da camisa polo.
Ele tinha trocado de roupa. Tinha tomado um banho também. Ela sentia o perfume do sabonete e do shampoo.
– Sinto muito por Rosalinda – sussurrou. – Foi um choque.
– Hum.
– Quem a encontrou?
– Eu.
Lizzie fechou os olhos e abraçou o laptop junto ao peito.
– Ah, meu Deus.
De repente, ele enfiou a mão no bolso da frente da calça e tirou um objeto.
– Pode ficar comigo enquanto abro isto?
– O que é?
– Uma coisa que ela deixou para trás. – Ele mostrou o pen drive preto. – Encontrei sobre a escrivaninha dela.
– É um… bilhete suicida?
– Não acredito que seja isso. – Ele se sentou na cama e apontou para o laptop dela. – Se importa se eu…
– Ah, sim… aqui está. – Juntou-se a ele e levantou a tela do Lenovo, apertando o botão de liga/desliga. – Tenho Microsoft Office, então documentos de Word não devem ser um problema.
– Não acho que seja isso.
Colocou a senha e passou o computador para ele.
– Pronto.
Ele inseriu o pen drive e aguardou. A tela se acedeu com várias opções, e ele apertou em “abrir arquivos”.
Só havia um, intitulado “William Baldwine”.
Lizzie esfregou a testa com o polegar.
– Tem certeza de que quer que eu veja isso?
– Tenho certeza de que não posso ver isso sem você aqui.
Lizzie se viu esticando a mão e apoiando-a no ombro dele.
– Não vou te deixar.
Por algum motivo, ela lembrou da lingerie cor de pêssego que encontrara na cama do pai dele. Dificilmente era algo que Rosalinda vestiria; um tom de cinza-claro foi o mais próximo que a controller chegara a revelar do seu guarda-roupa. Mas, pensando bem, quem é que poderia saber o que a mulher escondia debaixo das saias e jaquetas decorosas?
Lane clicou no arquivo, e Lizzie percebeu que seu coração batia tão rápido quanto se tivesse acabado de correr meio quilômetro a toda velocidade.
E ele estava certo. Aquilo não era nenhuma carta de amor, tampouco um bilhete suicida. Era uma planilha repleta de números e datas e descrições breves, que Lizzie, por estar longe demais, não conseguia ler.
– O que é tudo isso? – perguntou.
– Cinquenta e três milhões de dólares – ele murmurou, descendo a tela. – Aposto como são cinquenta e três milhões de dólares.
– O que está dizendo? Espere… está sugerindo que ela roubou isso? – Não, mas acho que ela ajudou o meu pai a roubar.
– O quê?
Ele voltou-se para ela.
– Acho que, finalmente, meu pai tem sangue nas mãos. Ou, pelo menos, sangue que conseguimos ver.
“Sim.”
VINTE E UM
Voltando a se concentrar no laptop sobre o colo, Lane desceu pela planilha de Excel, localizando as entradas e tentando fazer uma somatória geral. Mas nem precisava ter se dado ao trabalho. Rosalinda somara por ele ao fim da página, numa célula em negrito à extrema direita de todas as colunas.
Na verdade, o total não era de 53 milhões de dólares.
Não, era de 68 milhões, 489 mil, 242 dólares e 65 centavos.
US$ 68.489.242,65.
As descrições para as retiradas variavam desde Cartier e Tiffany até a Aviação Bradford Ltda., que era a empresa que administrava todas as aeronaves e pilotos, e a folha de pagamento da Recursos Humanos Bradford, responsável, muito provavelmente, pelos salários de todos os empregados da casa. No entanto, havia uma descrição repetida que ele não reconhecia. Holding WWB.
Holding William Wyatt Baldwine.
Só podia ser.
Mas o que seria?
O montante maior tinha sido para eles.
– Acho que o meu pai… – Olhou para Lizzie. – Não sei, mas a companhia e fundos disse que ele se colocou, ou ele colocou a família, imagino, numa montanha de dívidas. Por quê? Mesmo com todos estes gastos, deveria haver muito dinheiro vindo da Cia. Bourbon Bradford para os acionistas, dos quais somos os majoritários.
– A empresa de aluguel… – Lizzie murmurou.
– O que foi?
– A empresa de aluguel não recebeu o pagamento, o financeiro deles telefonou para Rosalinda na semana passada e ela não retornou a ligação.
– Me pergunto para quem mais estamos devendo…
– Como posso ajudar?
Ele a fitou, a cabeça pensando, pensando.
– Me deixar ver este arquivo foi um bom começo.
– O que mais?
Deus, que olhos azuis, ele pensou. E os lábios, aqueles lábios naturalmente rubros tão perfeitamente moldados.
Ela falava com ele, mas Lane não conseguia ouvir. Era como se um silenciador o tivesse envolvido, impossibilitando-o de perceber qualquer som ao seu redor. Logo o computador em seu colo e todos os seus segredos também desapareceram, de forma que nem o brilho da tela nem o desenho de colunas e números e letras podia ser percebido.
– Lizzie – ele disse, interrompendo-a.
– Sim?
– Preciso de você – ele se ouviu dizer, rouco.
– Sim, claro, o que posso…
Inclinou-se e encostou os lábios nos dela, resvalando-os rapidamente.
Ela arfou e se afastou.
Lane esperou que ela se levantasse. Que lhe dissesse poucas e boas. Talvez voltasse ao século passado e o esbofeteasse.
Em vez disso, ela levantou os dedos e tocou a própria boca. Depois fechou os olhos.
– Eu queria que você não tivesse feito isso.
Merda.
– Desculpe. – Passou uma mão pelos cabelos. – Não estou com a cabeça no lugar.
Ela concordou.
– Sim.
Perfeito, pensou ele. A vida dele estava em labaredas em tantas frentes, por que não, então, atear mais um pouco de fogo? Sabe, só para piorar aquele inferno.
– Sinto muito – disse. – Eu deveria ter…
Ela se lançou sobre ele com um movimento tão rápido que ele quase caiu. O que o salvou foi o desejo… a necessidade feroz que ele sempre sentira por ela e que estivera represada durante todo o tempo em que ficaram afastados.
Lizzie disse ao encontro da boca dele:
– Também não estou com a cabeça no lugar.
Soltando uma imprecação, passou os braços ao redor dela e a trouxe para o colo, derrubando o computador sobre o carpete grosso. Queria se esquecer do dinheiro, do pai, de Rosalinda… mesmo que apenas por um momento.
– Desculpe – ele disse ao empurrá-la para o colchão. – Preciso de você. Eu só… preciso estar dentro de você…
Toc, toc, toc.
Os dois ficaram parados, os olhos presos um no outro.
– O que foi? – ele perguntou, irritado.
Uma voz feminina e abafada comentou algo sobre toalhas, e só o que Lane pensava era que a porta não estava trancada.
– Não, obrigado.
Lizzie saiu de baixo dele, e ele se moveu para que ela pudesse ficar de pé. Nesse meio-tempo, a criada continuou falando.
– Não preciso de toalhas, obrigado – repetiu com aspereza.
Seus olhos acompanharam as mãos de Lizzie, que ajeitavam a camisa e alisavam os cabelos.
– Lizzie… – sussurrou.
Ela apenas balançou a cabeça, andando em círculos, parecendo considerar saltar pela janela como estratégia de fuga.
Mais palavras por parte da criada, e ele perdeu a cabeça. Explodindo sobre os pés, foi até a porta e a abriu, bloqueando a entrada para o quarto. A loira de uns vinte e cinco anos do outro lado era a mesma que estava no corredor quando ele e Chantal discutiram.
– Ah, olá. – Ela lhe sorriu. – Como está?
– Não preciso de nada. Obrigado – disse, seco.
Quando se voltou para fechar, ela o segurou pelo braço.
– Sou Tiphanii, com “ph” e dois “is” no fim.
– Prazer em conhecê-la. Se me der licença…
– Eu só preciso entrar para ver como está o seu banheiro.
O sorriso a entregou. Isso e aquela pequena mudança de postura; ela inclinou o quadril na direção dele e suas pernas se esticaram, como se ela estivesse usando saltos altos em vez de Crocs.
Lane revirou os olhos, não conseguindo evitar. A mulher que desejava tinha acabado de sair de baixo dele e aquela bajuladorazinha achava que tinha algo a lhe oferecer?
– Obrigado, mas não. Não estou interessado.
Fechou a porta na cara dela porque não tinha energia para ser agradável e não queria dizer algo que acabasse lamentando mais tarde.
Girando, encontrou Lizzie do lado oposto do quarto, perto de uma janela. Ela estava deliberadamente mais para o lado, como se não quisesse ser vista, e seus braços estavam cruzados sobre o peito.
– Você pareceu bem sincero – ela comentou com secura.
– Quando estou com você, eu sou…
– Agora, com a criada.
– E por que eu não deveria?
– Sabe o que eu odeio mesmo?
– Só posso imaginar – ele murmurou.
– Como ela se ofereceu para você… E, mesmo assim, eu só consigo ficar pensando em arrancar as suas roupas. Como se fosse um brinquedinho que estou disputando com ela.
A ereção dele ficou mais apertada dentro da calça.
– Não existe disputa alguma… Eu sou seu. Se você quiser, aqui e agora. Ou mais tarde. Daqui uma semana, um mês, daqui a vários anos.
Cale a boca, sua ereção comandou. Apenas cale a boca, amigo, pare com essa coisa de futuro.
– Não vou voltar para você, Lane. Não vou.
– Você me disse isso pelo telefone.
Lizzie assentiu e desviou o olhar do jardim. Enquanto a luz começava a sumir do céu, ela marchou pelo quarto, evidentemente seguindo para a porta.
Maldição…
Não para a porta.
Na verdade, ela não foi para a porta.
Lizzie parou diante dele e deixou que os dedos completassem o trajeto, caminhando pelo seu rosto, trazendo a boca dele para a sua.
– Lizzie… – ele gemeu, lambendo a boca dela.
O beijo ficou rapidamente descontrolado, e ele não estava disposto a perder a chance com ela. Virando-a, empurrou-a contra a parede, acertando o quadro a óleo ao lado deles com tanta força que ele acabou soltando do prego e caindo no chão. Ele nem ligou. Suas mãos foram para baixo das roupas dela, encontraram a pele, subiram na direção dos seios.
Ele pensara que nunca faria aquilo de novo, e por mais que quisesse algo mais lento e demorado, não conseguia. Estava desesperado.
Foi rude com o cós dos shorts dela, arrancando o botão, descendo o zíper e fazendo-o escorregar pelas pernas dela. Em seguida, passou a mão entre as coxas dela, afastando a calcinha de algodão…
Lizzie exclamou seu nome numa voz rouca que quase o fez gozar ali mesmo, naquele instante. E quando os dedos dela se cravaram nos seus ombros, ele a afagou com mais intensidade.
– Pode me machucar – ele grunhiu quando ela o apertou com mais força. – Me faça sangrar.
Ele queria dor junto do prazer, pois tudo o que vinha acontecendo com o pai e a família deixava-o em carne viva, muito próximo de um lado sombrio… a ponto de ele pensar vagamente se não fora aquilo que norteara o irmão Max. Ficara sabendo das coisas que Maxwell fizera… ou rumores a respeito.
Talvez aquele fosse o motivo. Ele sentia como se precisasse arrancar a escuridão do seu íntimo ou acabaria sendo consumido por ela.
Suspendendo Lizzie do chão, deliciou-se com o modo como ela se grudou a ele com braços fortes. Um puxão no zíper da calça, e sua ereção estava pronta para seguir em frente. Rasgou a calcinha dela e…
O rugido que ela emitiu junto ao pescoço dele foi como o de um animal, mas ele não prestou atenção. A pegada escorregadia do sexo dela foi uma sensação que ele sentiu no corpo inteiro, e ele chegou ao orgasmo de imediato. Tanto tempo… Por tanto tempo ele sonhara com ela, lamentando o que tinha acontecido, querendo fazer as coisas de uma maneira diferente. E agora ele estava onde rezara: a cada bombeada dentro dela, ele voltava no tempo, consertando as coisas, reparando seus erros.
Ele queria estar com ela para, por um tempo, se afastar do presente. Mas, no fim, aquela experiência foi muito mais do que isso. Muito, muito mais.
Mas sempre fora verdadeiro com Lizzie. Fizera sexo muitas vezes no decorrer da vida.
No entanto, nada daquilo tivera importância… Até ele estar com ela.
Lizzie não tivera a intenção de ir tão longe.
Enquanto Lane chegava ao orgasmo dentro dela, foi alçada junto com ele, o seu orgasmo ecoando o dele. Rápido, tão rápido, tudo foi muito veloz, furioso, o ato chegou ao fim em questão de minutos, e os dois permaneceram unidos quando a onda inicial foi sumindo.
Tinham mesmo feito aquilo?, ela se perguntou.
Bem, tinham, ela concluiu quando ele se mexeu dentro dela.
E foi então que ela percebeu que… Ah, Deus, o cheiro dele era o mesmo. E os cabelos também, incrivelmente macios.
E o corpo continuava tão forte quanto ela se lembrava.
Lágrimas surgiram em seus olhos, mas ela escondeu o rosto no ombro dele. Não queria que ele percebesse suas emoções. Já estava com bastante dificuldade para reconhecer aquela confusão.
Apenas sexo, disse para si mesma. Era apenas desejo físico de ambas as partes. E Deus bem sabia, luxúria nunca fora um problema para eles. Desde o instante em que o vira no dia anterior, aquela conexão entre eles borbulhou até a superfície da pele dela.
E debaixo da pele dele também.
Ok. Sem problemas. Não conseguiu dizer não naquela situação específica, quando claramente deveria ter dito.
Quer fosse um erro ou não, dependia de como ela lidaria com as coisas dali por diante.
Recobrando o controle, afastou-se um pouco dos braços dele, muito ciente de que ainda estavam conectados.
Ficou com a respiração presa ao ver a expressão no rosto dele, quando ele fez um carinho em sua face.
Ele parecia tão vulnerável.
Contudo, antes que ela fizesse algum comentário calmo e sensato, ele começou a se mover dentro dela de novo. Lenta, ah… tão lentamente… para dentro e para fora. Para dentro e para fora. Em reação, os olhos dela se fecharam e ela ficou toda maleável, os braços dele sustentando-a, a parede nas suas costas apoiando-a ao encontro dele. Uma parte de si ainda estava presente, cada movimento sendo registrado com a claridade de um raio, a respiração pesada no peito e a fervura em seu sangue assumindo o controle de tudo.
A outra parte estava fugindo.
Ah, Deus, a sensação da mão dele agarrando seus cabelos, a boca beijando a sua com sofreguidão, os quadris se curvando e retraindo. Era como voltar ao lar de todas as maneiras que seu corpo desejava havia muito tempo.
E isso não podia ser bom.
– Lizzie – ele disse com uma voz entrecortada. – Senti saudade, Lizzie. Tanta saudade que chegava a doer.
Não pense nisso, ela disse a si mesma. Não preste atenção.
O nome dele escapou dos seus lábios uma vez mais, o estalido do prazer fazendo seu sexo se contrair ao redor da ereção enquanto ele se movia dentro dela, empurrando-a contra a parede, com tamanho ímpeto que a fez bater a cabeça.
Quando ficaram imóveis a não ser pela respiração, ela se deixou cair sobre ele.
– Esta não pode ser a última vez – ele grunhiu, como se soubesse o que ela estava pensando. – Não pode.
– Como você sabia…
– Não te culpo. – Ele se afastou, e seus olhos semicerrados a queimaram. – Só não quero que isso…
– Lane…
A batida à porta a sobressaltou. E ele praguejou.
– Mas que porra! – ele ralhou.
E considerando-se que ele não era de ficar falando palavrão, ela teve que dar um sorriso.
– O que foi? – ele berrou.
– Senhor Baldwine – era a voz do mordomo –, o senhor Lodge está aqui e gostaria de vê-lo.
Lane franziu o cenho.
– Diga a ele que estou ocupado…
– Ele disse que é urgente.
Lizzie balançou a cabeça e se afastou dos braços dele pela segunda vez. Quando seus pés tocaram o chão silenciosamente, ela se deu conta de que não haviam usado preservativo.
Isso mesmo. E tudo ficou bem real quando ela suspendeu os shorts e saiu apressada para o banheiro. Limpou-se o melhor que pôde enquanto Lane falava com o inglês pela porta. E quando ela voltou, ele já havia subido as calças e andava de um lado para o outro.
Ela levantou a palma antes que ele conseguisse comentar qualquer coisa.
– Vá lá ver o que ele quer.
– Lizzie…
– Se um quarto do que o preocupa for verdade, você vai precisar dele.
– Aonde você vai?
– Não sei. Acho que terminamos até amanhã de manhã.
O que era verdade em relação a tantas outras coisas.
– Você não pode ficar? – ele disse num ímpeto.
As sobrancelhas dela se ergueram.
– Ficar? Está querendo que eu passe a noite aqui? Isso é loucura.
Numa casa onde, tecnicamente, não podia usar metade das portas, acordar na cama do filho mais novo e continuar trabalhando em Easterly não era uma opção.
Ah, sim, pensou ela. Os bons e velhos tempos, quando tinham que manter tudo em segredo.
– Em qualquer lugar – ele disse. – Num dos chalés. Não faz diferença.
– Lane. Preste atenção, não é… Não vamos voltar ao que tínhamos antes, lembra? Não sei por que fiz o que fiz, mas isso não significa…
Ele se aproximou e a atraiu para um beijo, a língua invadindo a boca dela. Que Deus a ajudasse, pois, depois de um instante, ela retribuiu o beijo.
– Isso é importante – ele disse ao encontro dos lábios dela. – Isso é mais importante para mim do que a minha família. Você entende, Lizzie? Você sempre foi e sempre será importante para mim, a coisa mais importante.
Dito isso, ele se afastou e foi para a porta, olhando para ela por sobre o ombro – um olhar que era uma espécie de juramento, e que ela jamais vira antes.
Sentando no pé da cama dele, olhou para a parede onde tinham acabado de fazer sexo. O quadro no chão estava arruinado, a tela estava arranhada e torta, mas ela não queria avaliar o estrago. Apenas continuou sentada, tentando convencer a si mesma de que aquilo não era um sinal enviado por Deus.
Demorou um pouco para sair do quarto, atenta junto à porta, prestando atenção a vozes e passos antes de entreabrir a porta e espiar. Quando não havia mais nada além de silêncio, ela praticamente saltou para o meio do corredor e começou a andar apressada.
O quarto de Chantal ficava do outro lado do corredor, um pouco mais para a frente e, quando passou diante dele, sentiu a fragrância do perfume caro dela.
Um lembrete e tanto – não que ela precisasse – do por que deveria ter saído do quarto após a primeira interrupção.
Em vez de ter seguido em frente a toda velocidade.
Ela só podia culpar a si mesma.
VINTE E DOIS
Enquanto trotava escada abaixo, só o que Lane conseguia pensar era no quanto queria ter um drinque na mão. A boa notícia, e provavelmente a única que receberia, era que, quando chegou à sala de estar, Samuel T. já estava se servindo do Reserva de Família, o som do gelo a tilintar no copo atiçando a vontade de Lane como a ânsia de um viciado.
– Gostaria de partilhar da sua fortuna? – ele murmurou enquanto deslizava as portas de madeira dos dois lados da sala.
Havia muitas coisas que ele não queria que outros ouvissem.
– O prazer é meu. – Samuel o presenteou com um drinque igual ao seu num copo baixo de cristal. – Dia longo, não?
– Você não faz ideia. – Lane bateu um copo no outro. – O que posso fazer por você?
Samuel T. tomou seu bourbon e voltou para o bar.
– Fiquei sabendo sobre a controller. Meus pêsames.
– Obrigado.
– Foi você quem a encontrou?
– Sim.
– Já passei por isso. – O advogado voltou para perto e sacudiu a cabeça. – Dureza.
Você não sabe da missa a metade.
– Olha só, não quero te apressar, mas…
– Falou sério quanto ao divórcio?
– Claro.
– Tem um acordo pré-nupcial?
Quando Lane meneou a cabeça, Samuel xingou.
– Alguma possibilidade de ela ter te traído?
Lane esfregou as têmporas, tentando arrancar o que tinha acabado de acontecer com Lizzie… e o que vira naquele laptop. Queria pedir a Samuel T. que deixassem aquela conversa para o dia seguinte, mas seus problemas com Chantal estariam esperando, quer a sua família se afundasse em problemas financeiros ou não.
Na verdade, devia ser melhor dar sequência àquilo em vez de esperar, considerando toda aquela situação com o pai. Quanto mais rápido a tirasse daquela casa, menos informações ela teria para vender para os tabloides.
Não que não conseguisse vê-la falando pelos cotovelos com qualquer um, se o pior acontecesse com os Bradford.
– Desculpe – disse entredentes. – Qual foi mesmo a pergunta?
– Ela te traiu?
– Não que eu saiba. Ela passou os dois últimos anos nesta casa, vivendo à custa da minha família, fazendo a manicure.
– Uma pena.
Lane ergueu uma sobrancelha.
– Eu não sabia que via o matrimônio com tanto preconceito.
– Se ela tiver te traído, isso pode ser usado para reduzir a pensão. O Kentucky é um Estado que não exige admissão de culpa para conceder o divórcio, mas casos extraconjugais e maus tratos podem ser usados para mediar a pensão.
– Não estive com ninguém. – A não ser com Lizzie, havia pouco no quarto, e umas milhares de vezes antes em sua mente.
– Isso não importa, a menos que você queira pedir pensão a Chantal.
– Até parece. Livrar-me dela de uma vez por todas é só o que quero daquela mulher.
– Ela sabe que isso vai acontecer?
– Contei para ela.
– Mas ela sabe?
– Já está com os papéis para eu assinar? – Quando o advogado assentiu, Lane deu de ombros. – Bem, ela vai entender que eu estava falando sério quando receber os documentos.
– Assim que eu conseguir a sua assinatura, vou direto para o centro da cidade para dar entrada no divórcio. O tribunal terá que entender que o casamento está irrevogavelmente terminado, mas acho que, como faz dois anos que vocês moram em casas diferentes, não será um problema. Já vou avisando: acho que ela não vai abrir mão da pensão. E existe uma possibilidade de sair caro para você, ainda mais porque o padrão de vida dela foi bem alto nesta casa. Deduzo que alguns dos seus fundos foram liberados?
– A primeira parte. A segunda será liberada só quando eu completar quarenta anos.
– Qual a sua renda anual?
– Isso inclui os ganhos no pôquer?
– Ela está ciente deles? Você os declara no imposto de renda?
– Não e não.
– Então vamos deixar isso de fora. Qual o montante?
– Não sei. Nada ridículo, talvez um milhão, mais ou menos. Deve ser um quinto da renda gerada pelo acervo fiduciário.
– Ela vai atrás disso.
– Mas não ao acervo, correto? Acho que existe uma cláusula quanto ao excesso de gastos.
– Se estiver no Termo Irrevogável da Família Bradford de 1968, e eu acredito que esteja, pois foi meu pai quem redigiu os termos, pode apostar a sua melhor garrafa que sua iminente-ex-mulher não vai pôr a mão em nada disso. Vou precisar de uma cópia dos documentos, claro.
– A Fundos Prospect está com tudo.
Samuel T. tratou dos vários “arquivar isso”, “argumentar aquilo”, “divulgar sei lá o que”, mas Lane não estava mais prestando atenção. Em sua mente, estava no andar de cima, em seu quarto, com a porta trancada e Lizzie toda nua na sua cama. Ele a cobria com mãos e boca, diminuindo a distância dos anos e voltando ao ponto antes de Chantal aparecer em roupas de maternidade de grife.
O que quer que tivesse que enfrentar em relação ao pai e à dívida seria muito mais fácil se Lizzie estivesse ao seu lado, e não apenas sexualmente.
Amigos podiam se ajudar, certo?
– Tudo bem assim?
Lane voltou a se fixar no advogado.
– Sim. Quanto tempo vai demorar?
– Como já disse, vou entregar tudo ainda hoje a um juiz “amigável” que me deve um ou dois favores. E Mitch Ramsey concordou em disponibilizar a petição para ela imediatamente. Depois só vai faltar rascunhar o acordo do divórcio, e o meu palpite é que ela vá atrás de um tremendo advogado de família, que você vai ter que pagar. Vocês têm vivido separados há mais de sessenta dias, mas ela vai ter que sair desta casa o mais rápido possível, caso você tenha a intenção de ficar. Não quero que isso atrase o processo em dois meses, graças a uma possível alegação de coabitação da parte dela. O meu palpite é que ela contestará tudo, porque vai querer o máximo de dinheiro que puder de você. O meu objetivo é tirá-la da sua vida com apenas as roupas do corpo e aquele anel de um quarto de milhão de dólares que você lhe deu, e só.
– Parece-me uma excelente ideia. – Ainda mais porque ele não sabia se existia um centavo a mais para gastar em algum lugar que não fosse nas suas contas. – Onde assino?
Samuel apresentou diversos papéis para que fossem assinados. Tudo acabou antes que Lane terminasse seu primeiro copo de bourbon.
– Quer que eu te dê um adiantamento? – perguntou, ao devolver a Montblanc ao advogado.
Samuel T. terminou o drinque, depois se serviu de mais gelo e de mais uma dose do Reserva de Família.
– Fica por conta da casa.
Lane se retraiu.
– Que é isso, cara? Não posso deixar que faça assim. Deixe que eu…
– Não. Sério, não gosto dela, e ela não pertence a esta família. Encaro esse divórcio como parte da manutenção da casa. Uma vassoura para jogar o lixo fora.
– Eu não sabia que você a detestava tanto assim.
Samuel T. apoiou as mãos no quadril e baixou o olhar para o tapete oriental.
– Vou ser totalmente franco.
Lane já tinha entendido qual seria o assunto, pela maneira como o advogado contraía o maxilar.
– Vá em frente.
– Uns seis meses depois que você foi embora, Chantal ligou para mim. Pediu que eu viesse para cá, e quando eu me neguei, ela apareceu na minha casa. Ela estava querendo um “amigo”, como ela mesma disse, depois enfiou a mão dentro das minhas calças e se ofereceu para ficar de joelhos. Disse a ela que ela era louca. Mesmo se eu estivesse atraído por ela, o que nunca foi o caso, a sua família e a minha são amigas há gerações. Eu jamais ficaria com uma esposa sua, divorciada, separada ou casada. Além disso, a Virgínia é uma boa faculdade para se frequentar, mas eu não me casaria com uma moça de lá, e era exatamente isso que ela pretendia.
Caramba, às vezes ele odiava ter razão quanto àquela vadia, odiava mesmo.
– Não estou surpreso, mas fico contente que tenha me contado. – Lane levantou a mão. – Um dia vou retribuir o favor.
O advogado aceitou o que lhe era oferecido, depois se curvou de leve, e partiu com o copo.
– Você pode ser preso por beber na rua – Lane exclamou. – Para a sua informação.
– Só se eu for apanhado – Samuel T. exclamou de volta.
– Louco – murmurou Lane ao terminar o próprio drinque.
Quando foi se servir de outra dose, seu olhar recaiu sobre a pintura a óleo acima da cornija da lareira. Era um retrato de Elijah Bradford, o primeiro membro da família a ter dinheiro o bastante para se sobressair de seus pares, posando para um artista americano de renome.
Será que ele estava se revirando no túmulo àquela altura?
Ou isso aconteceria depois… quando o fedor piorasse?
Gin sentiu uma onda de pânico ao descer a escadaria principal de Easterly.
Assim que viu o Jaguar vintage diante da casa, tirou as roupas que usara na cadeia, pelo amor de Deus, e colocara um vestido de seda com barra bem acima dos joelhos. Borrifou um pouco de perfume. Calçou sapatos que deixavam seus tornozelos mais finos do que nunca.
A julgar pelas portas fechadas da sala de estar, ela sabia que o irmão estava falando com Samuel T. a respeito da Situação. Ou das Situações.
Deixou-os à vontade.
Em vez de entrar na sala, foi para a porta da frente e esperou ao lado do conversível antigo. A temperatura devia estar nos vinte e poucos graus, apesar de o sol já estar se pondo, e havia certa umidade no ar – ou talvez fossem seus nervos fora de controle. Para aproveitar um pouco de sombra, foi para debaixo de uma das magnólias que cresciam próximas à casa.
Enquanto olhava para o carro, lembrou-se das vezes que esteve nele com Samuel T., do vento noturno em seus cabelos, da mão dele entre suas pernas enquanto ele os conduzia pelas estradas cheias de curvas da sua fazenda.
O conversível fora comprado por Samuel T. pai, no dia do nascimento daquele que acabou sendo o único herdeiro do homem. E foi dado ao jovem Samuel T. em seu décimo oitavo aniversário, com instruções precisas de que ele não se matasse nessa coisa.
E, engraçado, as instruções deram resultado: só quando estava atrás daquele volante é que aquele homem era cuidadoso. Gin suspeitava de que ele sabia que se algo lhe acontecesse, sua árvore genealógica chegaria ao fim.
Ele era o único membro da sua geração que sobrevivera.
Foram muitas tragédias.
Que, até aquele exato instante, não lhe interessaram muito.
Enquanto aguardava, seu coração batia rápido, e a agitação em seu peito a deixava tonta. Ou talvez fosse o calor…
Samuel T. parou diante da porta da frente e saiu de Easterly com um copo de cristal na mão. Ele formava uma figura impressionante com o terno cortado sob medida, seu lindo rosto e a maleta com monograma. Estava usando óculos de sol com armação dourada, e os cabelos escuros e espessos estavam penteados para trás, com um topete que parecia ter sido milimetricamente arrumado, mas que, na verdade, nunca requeria isso.
Ele parou quando a viu. Depois disse em sua fala arrastada: – Veio me agradecer por te salvar?
– Preciso falar com você.
– É mesmo? Vai tentar negociar um adiantamento que não envolva dinheiro? – Bebeu todo o líquido e deixou o copo no primeiro degrau, como só alguém que sempre teve empregados faria. – Estou aberto a sugestões.
Ela avaliou cada passo que ele deu na direção dela e do carro. Conhecia muito bem aquele corpo forte e musculoso, que denunciava o fazendeiro que era no fundo de sua alma, debaixo de todas aquelas roupas elegantes de advogado.
Amelia seria alta como ele. E também era inteligente como ele.
Infelizmente, a menina era boba como a mãe, ainda que talvez um dia pudesse superá-lo.
– E então? – incitou-a ao colocar a maleta no banco. – Posso escolher como vai pagar a sua conta?
Mesmo através das lentes escuras, sentia o olhar dele. Ele a desejava, sempre a desejou, e às vezes, ele a detestava por isso: não era um homem que apreciava restrições, mesmo as autoimpostas.
Ela também era assim.
Samuel T. meneou a cabeça.
– Não me diga que o gato comeu a sua deliciosa língua. Seria uma pena tremenda ficar sem essa parte da sua anatomia…
– Samuel.
No instante em que ele ouviu o tom de voz dela, franziu o cenho e tirou os óculos escuros.
– O que aconteceu?
– Eu…
– Alguém a destratou na cadeia? Porque vou pessoalmente até lá e…
– Case comigo.
Ele parou no ato, tudo congelou: a expressão dele, a respiração, talvez até mesmo o coração. Depois ele gargalhou.
– Certo, certo, certo. Claro que você…
– Estou falando sério.
A porta do carro se abriu silenciosamente, um testemunho dos cuidados que ele tinha com o carro.
– O dia que você se assentar com qualquer homem será o dia do Segundo Advento.
– Samuel, eu te amo.
Ele lhe lançou um olhar sardônico.
– Ora, por favor…
– Preciso de você.
– A cadeia mexeu mesmo com você, não mexeu? – Ele se acomodou no banco do motorista e ficou olhando para o capô por um instante. – Olha aqui, Gin, não se sinta mal por ter parado lá, ok? Consegui apagar qualquer rastro, então a sua ficha vai ficar limpa. Ninguém vai saber de nada.
– Não é esse o motivo. Eu só… Vamos nos casar. Por favor.
Olhando para ela, ele franziu tanto o cenho que suas sobrancelhas se uniram.
– Você parece estar falando sério.
– Estou mesmo. – Ela não era idiota. Ela lhe contaria sobre Amelia mais tarde, quando fosse mais difícil para ele escapar, quando houvessem documentos que os unissem, até que ele superasse o que ela lhe fizera. – Você e eu nascemos para ficar juntos. Você sabe disso. Eu sei. Estamos dando voltas neste nosso relacionamento a vida toda, mais até. Você sai com garçonetes, manicures e massagistas porque elas não são eu. Você compara cada uma dessas mulheres ao meu padrão e todas elas perdem. Você é obcecado por mim, assim como eu sou por você. Não vamos mais mentir, vamos fazer o que é certo.
Ele voltou o olhar para o capô e escorregou as belas mãos sobre o volante de madeira.
– Deixe eu te perguntar uma coisa.
– Qualquer coisa.
– Para quantos homens você já disse isso? – Voltou a olhar para ela. – Hein? Quantos, Gin? Quantas vezes você usou essas frases?
– É a verdade – ela disse numa voz entrecortada.
– Você também tentou esse tom de súplica com eles, Gin? Bateu os cílios para eles?
– Não seja cruel.
Depois de um longo silêncio, ele meneou a cabeça.
– Você se lembra da minha festa de trigésimo aniversário? Aquela que aconteceu na minha fazenda?
– Isso não tem nada a ver com…
– Foi uma bela surpresa. Eu não fazia a mínima ideia de que vocês estariam lá esperando por mim. Entrei na minha casa e… surpresa! Todas aquelas pessoas gritando, e eu procurei por você…
Ela levantou as mãos.
– Isso aconteceu cinco anos atrás, Samuel! Foi…
– Na verdade, foi o resumo do nosso relacionamento, Gin. Eu procurei por você… percorri os olhos pela multidão, fui atrás de você…
– Aquilo não foi importante. Nenhum deles importou…
– … porque, como você mesma disse, sou um tolo e você foi a única mulher que eu quis de verdade. E eu te encontrei… transando com aquele jogador de polo argentino, hóspede de Edward, na minha cama.
– Samuel…
– Na minha cama! – ele esbravejou, batendo com o punho no painel. – Na porra da minha cama, Gin!
– Tudo bem! E o que foi que você fez? – Ela empinou o quadril e apontou o dedo na direção dele. – O que foi que você fez? Você pegou a minha colega de quarto da faculdade e a irmã dela e transou com as duas na piscina.
Ele praguejou alto.
– O que eu deveria ter feito? Deixar que você me pisoteasse? Sou homem, não um dos seus amigos coloridos patéticos! Eu não vou…
– Fiquei com o jogador de polo porque na semana anterior você dormiu com Catherine! Eu era amiga dela desde os dois anos, Samuel. Tive que ficar ouvindo-a contar e repetir que você lhe deu os melhores orgasmos da vida dela no banco de trás do seu carro. Depois de ter ficado comigo na noite anterior! Então, não venha me dizer que você foi o…
– Chega. – De repente, ele correu os dedos pelos cabelos. – Já chega, pare. Não vamos mais fazer isso, Gin. Temos as mesmas discussões desde que éramos adolescentes…
– Brigamos porque gostamos um do outro e somos orgulhosos demais para admitir isso. – Quando ele se calou de novo, ela teve esperança de que ele estivesse repensando. – Samuel, você é o único homem que eu amei. O mesmo acontece com você. É simples assim. Se precisamos parar de fazer alguma coisa, é de brigar e de nos magoar. Somos dois teimosos e orgulhosos demais para o nosso próprio bem.
Houve um longo silêncio.
– Por que agora, Gin…
– Porque… chegou a hora.
– Tudo isso só por causa da revista íntima das dez da manhã?
– Você precisa mesmo falar assim?
Samuel T. balançou a cabeça.
– Não sei se você está falando sério ou não, mas não é problema meu. Deixe-me ser bem claro.
– Samuel – ela o interrompeu –, eu te amo.
E ela estava falando sério. Ela estava abrindo a alma. A terrível convicção de que as coisas ficariam ruins para a família se enraizara e se espalhara, trazendo com ela uma certeza que ela nunca teve antes.
Ou talvez houvesse mais por trás – uma coragem que antes lhe faltara. Em todos aqueles anos juntos, ela nunca lhe dissera o que sentia verdadeiramente. Ela só se preocupava em manter a pose e dizer a última palavra. Bem, e criar a filha dele… não que ele soubesse disso ainda.
– Eu te amo – sussurrou.
– Não. – Ele abaixou a cabeça e apertou o volante como se buscasse forças dentro dele mesmo. – Não… Você não pode fazer isso, Gin. Não comigo. Não tente levar a farsa tão a fundo. Não é saudável para você. E eu acho que eu não sobreviveria, ok? Preciso funcionar… minha família precisa de mim. Não vou permitir que enlouqueça minha cabeça tanto assim…
– Samuel…
– Não! – ele exclamou.
Depois ele a encarou, os olhos azuis frios e agudos, como se estivesse diante de um inimigo.
– Primeiro, não acredito em você, ok? Acho que está mentindo para me manipular. Segundo? Jamais permitirei que uma esposa minha me desrespeite da maneira como você desrespeitará o seu marido. Você é fundamentalmente incapaz de ser monógama e, indo direto ao ponto, você se entedia rápido demais para valorizar um relacionamento durável. Você e eu podemos nos divertir de vez em quando, mas eu jamais honraria uma puta como você com o meu sobrenome. Você menospreza as garçonetes? Tudo bem. Mas eu preferiria que alguém assim tivesse a minha aliança no dedo do que uma menina mimada e desleal como você.
Ele deu a partida no carro, e o cheiro doce da gasolina e de óleo fugazmente se espalhou pelo ar quente.
– Eu te procuro da próxima vez que tiver vontade de cuidar de um assunto do qual prefiro não cuidar sozinho. Até então, divirta-se com o resto da população.
Gin levou as duas mãos sobre a boca quando ele deu marcha ré, e o carro desapareceu pelo caminho, colina abaixo.
Conforme ele sumia, lágrimas caíram dos olhos dela, borrando o rímel e, de maneira inédita, ela não se importou.
Dera seu único lance.
E fracassara.
Aquele era o seu pior pesadelo se concretizando.
VINTE E TRÊS
– Hum, Lisa?
Lizzie ficou estática assim que ouviu o sotaque sulista arrastado se infiltrando na estufa, o que foi estranho porque estava desmontando as mesas que usaram para os arranjos florais e uma delas ficou equilibrada apenas em uma perna.
– Lisa?
Ao erguer o olhar, Lizzie viu a esposa de Lane parada à porta como se estivesse posando para uma câmera, com uma mão no quadril e a outra jogando os cabelos para trás. Vestia calças de seda cor-de-rosa Mary Tyler Moore da Laurie Petrie e uma blusa com decote baixo num tom laranja pôr do sol. Os sapatos eram de bico fino, com saltos pequenos e, para completar, uma echarpe dramática e transparente em tons cítricos de amarelo e verde envolvia seus ombros, amarrada diante dos seios perfeitos.
Levando-se tudo em consideração, a composição criava uma impressão de Frescor, Amabilidade e Tentação, fazendo que alguém que estava Cansada, Ansiosa e Estressada se sentisse ainda mais deficiente – não apenas com relação ao penteado e à vestimenta, mas até à genética molecular.
– Pois não? – Lizzie disse enquanto prosseguia batendo numa das pernas.
– Poderia parar de fazer isso? É muito barulhento.
– Será um prazer – Lizzie disse entredentes.
Por algum motivo, enquanto a mulher brincava com as mechas loiras, o brilho do diamante em sua mão esquerda foi como se alguém lançasse uma maldita bomba repetidamente.
Chantal sorriu.
– Preciso da sua ajuda para uma festa.
Podemos apenas terminar a de amanhã primeiro?
– Será um prazer.
– É uma festa para dois. – Chantal sorriu ao soltar a echarpe e avançar um pouco mais. – Puxa, como está quente aqui. Não pode fazer nada a respeito?
– As plantas gostam mais do calor.
– Oh. – Tirou a echarpe e a deixou ao lado de um buquê que seria colocado num dos ambientes sociais da casa. – Bem.
– Você dizia?
Aquele sorriso retornou.
– Logo será nosso aniversário de casamento, meu e de Lane, e eu gostaria de preparar algo especial.
Lizzie engoliu em seco, e ficou se perguntando se aquele seria algum tipo de jogo doentio. Será que a mulher ouvira alguma coisa lá no segundo andar através das paredes?
– Pensei que tivessem se casado em julho.
– Quanta gentileza sua se lembrar. Você é tão atenciosa. – Chantal inclinou a cabeça para o lado e fixou o olhar no seu, como se estivessem partilhando um momento especial. – Sim, nos casamos em julho, mas tenho uma novidade muito especial para contar para ele, e pensei em comemorar um pouco antes.
– No que pensou?
Lizzie não acompanhou muito bem enquanto ela falava. As únicas coisas que captou foi “romântico” e “reservado”. Como se Chantal estivesse planejando presentear o marido com uma dança íntima.
– Lisa? Você está escrevendo tudo isso?
Bem, não, porque estou sem caneta e papel, não é? E P.S.: acho que vou vomitar.
– Ficarei contente em planejar o que quer que tenha em mente.
– Você é tão prestativa. – A mulher acenou para a tenda e para o jardim do lado de fora. – Sei que tudo ficará lindo amanhã.
– Obrigada.
– Podemos conversar mais a respeito depois. Mas repito, estou pensando num jantar romântico numa suíte do Cambridge Hotel. Você poderá providenciar as flores e a decoração especial. Quero que tudo seja coberto com panos a fim de criar um lugar exótico, apenas para nós dois.
– Tudo bem.
Será que Lane tinha mentido? E se tinha… bem, isso faria com que Greta cuidasse de tudo durante o Brunch do Derby, enquanto ela ficaria na fazenda se ocupando de um galão de sorvete de chocolate.
Só que ela e sua colega de trabalho não estavam conversando mais.
Fantástico.
– Você é a melhor. – Chantal consultou o relógio de diamantes. – Já está na hora de você voltar para casa, não está? Grande dia amanhã… Você vai precisar do seu sono de beleza. Tchauzinho por enquanto.
Quando Lizzie se viu só novamente, sentou-se num dos baldes virados para baixo e apoiou as mãos sobre os joelhos, esfregando-os para cima e para baixo.
Respire, ela se ordenou. Apenas respire.
Greta estava certa. Ela não estava no nível daquelas pessoas, e não só por ser apenas uma jardineira. Eles jogavam um jogo do qual ela só sairia perdendo.
Hora de ir embora, resolveu. O sono de beleza não iria acontecer, mas, pelo menos, ela poderia tentar e seguir em frente, antes que a bomba estourasse no dia seguinte.
Levantou-se, e já estava para sair quando viu a echarpe. A última coisa que queria era ter que entregar o pedaço de seda para Chantal, como se fosse um labrador devolvendo uma bola de tênis para seu dono. Mas aquela coisa estava bem ao lado de todos aqueles buquês e, conhecendo sua sorte, algo poderia vazar e cair em cima do pano, e ela teria que poupar três meses de salário para comprar um novo.
O guarda-roupa de Chantal era mais caro que bairros inteiros de Charlemont.
Pegando a peça, pensou onde a mulher poderia ter ido com aqueles estúpidos saltos finos.
Não seria difícil localizá-la.
Gin ainda estava debaixo da magnólia onde Samuel T. a deixara quando um veículo veio subindo pela entrada da frente. Foi só quando o SUV parou diante dela que ela percebeu que era da delegacia do Condado de Washington. Bom Deus, quais seriam as alegações do pai para prendê-la desta vez? Graças ao horrendo trajeto daquela manhã até o centro da cidade, seu primeiro instinto foi o de correr, mas estava com saltos, e se queria mesmo fugir do policial, teria que escapar por uma moita de flores.
Quebrar a perna não a ajudaria em nada na prisão.
O delegado Mitchell Ramsey saiu com um maço de papéis na mão.
– Senhorita – ele a cumprimentou com um aceno. – Como está?
Ele não tirou algemas do bolso. Não mostrava nenhum interesse nela além de uma mera educação.
– Veio aqui por minha causa? – ela perguntou de repente.
– Não. – Os olhos dele se estreitaram. – A senhorita está bem?
Não, nem um pouco, delegado.
– Sim, obrigada.
– Se me der licença…
– Então, não veio atrás de mim?
– Não, senhorita. – Ele andou até a porta e tocou a campainha. – Não vim.
Talvez estivesse relacionado à Rosalinda?
– Por aqui – ela disse, passando por ele. – Entre. Está procurando pelo meu irmão?
– Não, Chantal Baldwine está em casa?
– É bem provável. – Ela abriu a porta principal, e o delegado tirou o chapéu ao entrar. – Deixe-me encontrar… ah, senhor Harris. Pode, por favor, conduzir este cavalheiro até a minha cunhada?
– Será um prazer – disse o mordomo, curvando-se. – Por aqui, senhor. Acredito que ela esteja na estufa.
– Senhorita… – o delegado murmurou na direção dela, antes de seguir o inglês.
– Vejamos, isso deve ser bem interessante – disse uma voz na sala de estar.
Ela se virou.
– Lane?
O irmão estava diante do quadro de Elijah Bradford, e ergueu um copo baixo.
– Ao meu divórcio!
– Mesmo? – Gin andou e se ocupou no bar porque não queria que Lane se concentrasse nos seus olhos vermelhos e no seu rosto inchado. – Bem, pelo menos eu não terei mais que tirar as joias de mamãe do pescoço dela. Já vai tarde, mas estou surpresa que você não queira apreciar o espetáculo.
– Tenho problemas mais importantes.
Gin levou seu bourbon com soda para o sofá e, com um chute, tirou os sapatos. Enfiando as pernas debaixo do corpo, encarou o irmão.
– Você está horrível – ela disse. Tão péssimo quanto ela, na verdade.
Ele se sentou diante dela.
– Isso vai ser difícil, Gin. A situação financeira. Acho que é bem séria.
– Talvez possamos vender ações. Quero dizer, você pode fazer isso, não? Eu não faço ideia de como funciona.
E, pela primeira vez na vida, desejou saber.
– É complicado por conta da situação dos fundos.
– Hum… nós vamos ficar bem. – Quando o irmão não disse nada, ela franziu o cenho. – Certo? Lane?
– Eu não sei, Gin. Não sei mesmo.
– Sempre tivemos dinheiro.
– Sim, isso era verdade.
– Você faz com que isso pareça pertencer ao passado.
– Não se engane, Gin.
Curvando o pescoço para trás, ela ficou olhando para o teto, imaginando a mãe deitada na cama. Qual seria o futuro dela? Será que um dia ela se recolheria e puxaria as cortinas a fim de viver num torpor induzido pelas drogas?
Por certo, isso lhe parecia atraente agora.
Deus, Samuel T. tinha mesmo recusado seu pedido?
– Gin, você andou chorando?
– Não – ela disse com suavidade. – É apenas uma alergia, meu querido irmão. Apenas alergia causada pela primavera…
VINTE E QUATRO
Lizzie se apressou para fora da estufa com a echarpe perfumada de Chantal, e toda aquela fragrância emanando do tecido pesava em seu nariz, fazendo-a querer espirrar. Engraçado, conseguia ficar rodeada por milhares de flores de verdade, mas aquela coisa fabricada, artificial e forte bastava para mandá-la atrás de um Claritin.
Ao longe, ouviu o inconfundível sotaque arrastado típico da Virgínia de Chantal e seguiu na direção da sala de jantar para…
– O que é isso? – Chantal exigiu saber.
Lizzie parou de repente e espiou ao redor da arcada pesada de gesso.
Na ponta oposta da longa mesa lustrada, Chantal estava diante de um delegado uniformizado que, aparentemente, lhe entregara um maço de papéis.
– A senhora recebeu sua petição. – O delegado assentiu. – Passe bem.
– O que quer dizer com “petição”? O que quer… Não, você não vai embora até eu abrir isso. – Ela rasgou o envelope. – Fique aqui até eu…
Os papéis saíram do envelope num maço dobrado em três, e quando a mulher os esticou, o coração de Lizzie bateu forte.
– Divórcio? – Chantal disse. – Divórcio?
Lizzie voltou para trás e se encostou na parede. Fechando os olhos, odiou o alívio que sentiu, odiou mesmo. Só que ela não tinha como fingir que não era algo bom.
– Esta é uma petição de divórcio! – A voz de Chantal ficou mais aguda. – Por que está fazendo isso?
– Senhora, o meu trabalho é apenas entregar os papéis. Agora que os recebeu…
– Eu não os recebi! – Houve um farfalhar como se, de fato, ela tivesse jogado os papéis na direção do homem. – Pode pegar isso de volta!
– Senhora – o policial rugiu –, vou aconselhá-la a pegar esses papéis do chão. Ou não. O problema é seu. Mas se continuar agindo assim, vou ter que levá-la para a cadeia amarrada no teto da minha viatura por se mostrar agressiva com um oficial da justiça. Estamos entendidos?
Então, veio uma cascata.
Entre fungadas e o que deviam ter sido arquejos, Chantal mudou de atitude rapidamente.
– O meu marido me ama. Ele não está falando sério. Ele…
– Senhora, nada disso é da minha conta. Passe bem.
Passadas pesadas ecoaram e se afastaram.
– Maldição, Lane! – a mulher sibilou com uma dicção perfeita.
Pelo visto a atuação só acontecia quando havia uma plateia.
Sem aviso, um toc-toc-toc daqueles saltos atravessou o cômodo indo na direção de Lizzie. Merda, não havia tempo de sair dali…
Chantal fazia a curva e se sobressaltou ao ver Lizzie.
Embora a mulher tivesse aberto a torneira para o delegado, seus olhos estavam límpidos, e a maquiagem não estava nem um pouco borrada.
Ódio. Imediato.
– O que está fazendo? – Chantal berrou, o corpo trêmulo. – Ouvindo atrás das portas?
Lizzie estendeu a echarpe.
– Eu estava trazendo isto para você…
Chantal agarrou o tecido.
– Saia daqui. Saia! Saia imediatamente!
Não precisa pedir duas vezes, Lizzie pensou ao virar e seguir para o jardim.
Ao passar por baixo da tenda, serpenteando entre as mesas e cadeiras, pegou o telefone e mandou uma mensagem de texto para Lane, uma que apenas explicava que estava indo para casa após o longo dia de trabalho.
Deus bem sabia que o homem teria trabalho assim que Chantal o encontrasse.
A boa notícia, pelo menos para Lizzie?
Nada de festa de aniversário de casamento para planejar.
Lane não tinha mentido.
Foi difícil conter o sorriso que surgiu em seus lábios. E quando ele se recusou a ir embora, ela deixou que ele ficasse bem onde estava.
O telefone de Lane emitiu um bipe bem quando Chantal marchava pela sala de estar, gritando o nome dele enquanto partia em direção às escadas. Ele não denunciou seu paradeiro, simplesmente deixou que ela seguisse para o andar de cima, e fizesse o escândalo que planejava diante da porta fechada do seu quarto.
Engraçado, meras horas atrás, o fato de ela estar preparando uma guerra era um problema para ele. Mas agora? Aquilo estava tão embaixo na sua lista de prioridades…
– Preciso ir ver Edward – Lane disse, sem se importar em ver quem lhe mandara uma mensagem.
Gin levantou a cabeça.
– Eu não faria isso. Ele não está bem, e a notícia que você tem só pode piorar a situação.
Ela tinha razão. Edward já odiava o pai deles, que dirá a ideia de que o homem tivesse roubado dos fundos.
Gin levantou e foi até o bar para se servir novamente.
– Amanhã ainda está de pé?
– O Brunch? – Ele deu de ombros. – Não sei como impedir isso. Além do mais, já está tudo praticamente pago. A comida, a bebida, as coisas alugadas.
Ele sentia vergonha da outra motivação do evento: a ideia de que o mundo tivesse sequer uma pista dos problemas que sua família enfrentava lhe era inaceitável.
O som de alguém descendo os degraus acarpetados em disparada fez com que Gin erguesse uma sobrancelha.
– Parece que você vai ter um momento conjugal.
– Só se ela me encontrar…
Chantal apareceu na porta da sala de estar, com o rosto normalmente pálido e tranquilo tão rosado quanto o de um carvão em brasa numa churrasqueira.
– Como ousa? – a esposa exigiu saber.
– Imagino que esteja indo preparar as malas, querida – Gin disse com um sorriso digno da manhã de Natal. – Devo chamar o mordomo? Acho que podemos lhe fazer essa última cortesia. Considere como um presente de despedida.
– Não vou sair desta casa – Chantal ignorou Gin. – Você me entendeu, Lane?
Ele girou o gelo no copo com o indicador.
– Gin, pode nos dar um pouco de privacidade, por favor?
Com um aceno, a irmã foi para a porta e, ao passar por Chantal, parou e olhou para trás na direção dele.
– Certifique-se de que o mordomo verifique a bagagem dela, para garantir que ela não leve nenhuma joia.
– Você não presta – Chantal sibilou.
– Não mesmo. – Gin deu de ombros como se a mulher mal merecesse suas palavras. – Mas tenho o direito ao nome Bradford e a este legado. Você não. Tchauzinho.
Enquanto Gin acenava remexendo os dedos, Lane se adiantou e se colocou entre as duas a fim de impedir um momento Alexis/Krystle.21 Depois foi para frente e fechou as portas, mesmo não desejando estar a sós com a esposa.
– Não vou embora. – Chantal girou na direção dele. – E isso não vai acontecer.
Enquanto ela jogava os papéis do divórcio aos pés dele, Lane só conseguia pensar que não tinha tempo para aquilo.
– Escute aqui, Chantal, podemos fazer isso do jeito fácil ou do jeito difícil, a escolha é sua. Mas se escolher a última opção, vou atrás não só de você, mas da sua família também. Como acha que os seus pais batistas se sentiriam se recebessem uma cópia dos seus registros médicos em casa? Não creio que eles sejam favoráveis ao aborto, certo?
– Você não pode fazer isso!
– Não seja idiota, Chantal. Existem inúmeras pessoas para quem posso ligar, pessoas que devem à minha família e que ficariam muito contentes em pagar essa dívida. – Voltou ao bar e se serviu de mais Reserva de Família. – Ou, que tal assim: e se esses registros médicos caíssem nas mãos da imprensa implacável, talvez na internet? As pessoas entenderiam o motivo de eu querer me divorciar, e você teria muita, mas muita dificuldade para encontrar outro marido. Diferentemente do que acontece no norte, os homens sulistas têm padrões de comportamento para suas esposas, que não incluem o aborto.
Houve um momento prolongado de silêncio. Em seguida, o sorriso que ela lançou na direção dele foi inexplicável, tão confiante e calmo que ele teve que se perguntar se ela não havia enlouquecido de vez naqueles dois últimos anos.
– Você tem mais motivos para ficar quietinho do que eu – ela disse com suavidade.
– Tenho? – Ele sorveu um gole grande. – Por que acha isso? Só o que fiz foi correr de uma mulher que eu, supostamente, engravidei. De todo modo, quem pode garantir que era meu?
Ela apontou para a papelada.
– Você vai dar um jeito de fazer isso desaparecer. Vai permitir que eu continue aqui pelo tempo que eu quiser. E vai me acompanhar às festividades do Derby amanhã.
– Em qual universo paralelo?
A mão dela desceu para o ventre.
– Estou grávida.
Lane gargalhou.
– Você já tentou isso antes, minha cara. E todos nós sabemos como terminou.
– A sua irmã estava errada.
– Quanto a você roubar joias? Talvez. Veremos.
– Não. Sobre eu não ter o direito de ficar aqui. Assim como o meu filho. A bem da verdade, o meu filho tem tanto direito ao legado Bradford quanto você e Gin.
Lane abriu a boca para dizer alguma coisa, mas logo voltou a fechá-la.
– Do que está falando?
– Lamento dizer, mas o seu pai é um marido tão ruim quanto você.
Um tinido subiu do copo e, quando ele olhou para baixo, notou de uma vasta distância que sua mão tremia, fazendo o gelo se agitar.
– Isso mesmo – Chantal disse, com voz muito calma. – E acho que você está ciente da condição delicada da sua mãe. Como ela se sentiria se soubesse que o marido dela não só foi infiel, mas que logo terá um filho? Acha que ela vai tomar ainda mais daquelas pílulas das quais já é tão dependente? Provavelmente. Sim, tenho certeza de que ela tomaria.
– Sua vadia – ele sussurrou.
Em sua mente, viu-se colocando as mãos ao redor do pescoço da mulher, apertando, apertando com tanta força que ela começaria a se debater enquanto seu rosto ficaria roxo e a boca se abriria.
– Por outro lado – Chantal murmurou –, sua mãe não adoraria saber que seria avó pela segunda vez? Não seria motivo de comemoração?
– Ninguém acreditaria – ele se ouviu dizer.
– Ah, acreditaria, sim. Ele vai ser igualzinho a você… E tenho ido a Manhattan com bastante regularidade, para trabalhar no nosso relacionamento. Todos sabem disso.
– Você está mentindo. Nunca vi você.
– Nova York é uma cidade grande. Fiz questão que todos ficassem sabendo que me encontrei com você e que aproveitei a sua companhia. Também mencionei às meninas no clube, aos maridos delas nas festas, à minha família… Todos têm demonstrado tanto apoio para nós.
Enquanto ele permanecia em silêncio, ela sorriu com doçura.
– Portanto, você pode ver que esses papéis de divórcio não serão necessários. E você não dirá nada a respeito do que aconteceu entre nós e o nosso primeiro bebê. Se fizer isso, vou ter que contar tudo a respeito da sua família e envergonhá-lo diante desta comunidade, da sua cidade, do seu Estado. E então veremos quanto tempo vai levar para que você vista um terno de enterro. A sua mãe está meio fora de si, mas não está completamente isolada, e aquela enfermeira lê o jornal todas as manhãs ao lado da cama dela.
Com uma expressão de imensa satisfação, Chantal se virou e escancarou a porta, batendo os saltos no vestíbulo de mármore, mais uma vez senhora do prazer com seu sorriso de Monalisa.
O corpo inteiro de Lane tremia, os músculos gritavam pedindo ação, vingança, sangue… Mas a ira não estava mais direcionada à esposa.
Estava toda direcionada ao seu pai.
Chifrado. Ele acreditava que essa era a palavra adequada para descrever aquele tipo de situação.
Fora chifrado pelo próprio pai.
Quando é que a merda deste dia vai acabar?, ele se perguntou.
Alexis e Krystle são personagens antagonistas da série televisiva americana Dinastia (1981-1989). (N.T.)
VINTE E CINCO
Lizzie disse a si mesma que não olharia para o celular. Não olhou ao tirá-lo da bolsa e ao transferi-lo para seu bolso de trás assim que entrou pela porta da frente da sua casa de fazenda. Nem quando, quinze minutos mais tarde, se certificou de que o aparelho não estava no silencioso. E nem quando, dez minutos depois disso, destravou a tela só para ver se não havia nenhuma chamada perdida, nem mensagens de texto.
Nada.
Lane não telefonara para saber se ela tinha chegado em casa. Não respondera à sua mensagem. Mas, convenhamos, ele devia estar bem ocupado no momento.
Puxa.
Mesmo assim, estava ansiosa, andando de um lado para outro. A cozinha estava imaculada, o que era uma pena, porque bem que gostaria de ter alguma coisa para limpar. A mesma coisa com o banheiro no andar de cima. Caramba, até a cama estava arrumada. E ela tinha lavado a roupa na noite anterior. A única coisa que encontrou fora do lugar foi a toalha que usara pela manhã para ser secar após o banho. Deixara-a pendurada sobre a cortina do box, e já que ainda estava dentro dos dois dias de uso antes de colocá-la no cesto de roupa suja, a única coisa que podia fazer era dobrá-la e recolocá-la no porta-toalhas afixado à parede.
Graças basicamente ao dia desprovido de nuvens, a casa estava quente no segundo andar e ela foi abrindo todas as janelas. Uma brisa trouxe o odor da campina que circundava a propriedade, livrando a casa do abafado.
Se ao menos pudesse fazer o mesmo com a sua cabeça… Imagens do dia a bombardeavam: ela e Lane rindo assim que ela chegara para trabalhar; ela e Lane olhando para aquela planilha no laptop; ela e Lane…
Com a cabeça cheia, Lizzie voltou para a cozinha e abriu a geladeira. Nada de mais ali. Certamente nada que tivesse interesse em comer.
Quando a necessidade de verificar o celular surgiu de novo, ela se obrigou a resistir. Chantal sabia ser um problema num dia bom. Tinha recebido a papelada do divórcio, e ainda por cima a cena foi vista por um dos empregados…
O som de passos na varanda da frente chamou sua atenção.
Franzindo o cenho, fechou a porta da geladeira e seguiu até a sala de estar. Não se deu ao trabalho de ver quem era. Só havia duas opções: o vizinho da esquerda, que morava uns sete quilômetros estrada abaixo e tinha vacas que, com frequência, quebravam a cerca e vagavam pelos campos de Lizzie; ou o da direita, que ficava a meio quilômetro, e cujos cachorros costumavam se afastar para espiar as vacas soltas.
Começou a cumprimentar antes mesmo de abrir a porta.
– Oi, tudo…
Não era nenhum vizinho vindo se desculpar por invasões bovinas nem caninas.
Lane estava na varanda, com o cabelo pior do que de manhã, as ondas escuras espetadas como se ele tivesse tentado arrancar os fios.
Ele estava cansado demais para sorrir.
– Pensei em ver, pessoalmente, se você tinha chegado bem em casa.
– Oi, nossa, entre.
Encontraram-se na metade do caminho, corpo a corpo, e ela o abraçou com força. Seu cheiro era de ar fresco, e, por cima do ombro, ela viu que o Porsche estava com a capota abaixada.
– Você está bem? – ela perguntou.
– Melhor agora. A propósito, estou meio bêbado.
– E veio dirigindo? Isso foi idiotice e perigoso.
– Eu sei. É por isso que estou confessando.
Ela recuou e deixou que ele entrasse.
– Eu ia comer alguma coisa agora.
– Tem o bastante para dois?
– Ainda mais se for pra te deixar sóbrio. – Sacudiu a cabeça. – Chega de beber e dirigir. Acha que está com problemas agora? Tente acrescentar embriaguez ao volante à sua lista.
– Você tem razão. – Olhou ao redor, e depois foi até o piano dela e descansou as mãos sobre a tampa suave do teclado. – Deus, nada mudou aqui.
Ela pigarreou.
– Bem, estive bastante ocupada no trabalho…
– Isso é bom. Maravilhoso.
A nostalgia estampada em seu rosto enquanto continuava olhando para as ferramentas antigas, as colchas de retalhos penduradas e o sofá simples era melhor do que qualquer palavra que ele pudesse proferir.
– Comida? – ela sugeriu.
– Sim, por favor.
Na cozinha, ele foi direto para a mesinha e se sentou. E, de repente, foi como se nunca tivesse se ausentado.
Cuidado com isso, ela se reprimiu.
– Então, você gostaria de… – Vasculhou o conteúdo da despensa e da geladeira. – Bem, que tal uma lasanha que eu congelei uns seis meses atrás? Com nachos como acompanhamento, de um pacote que abri ontem, terminando com o bom e velho sorvete de menta?
Os olhos de Lane, concentrados nela, ficaram com as pupilas dilatadas.
Tuuuudo bemmmm. Evidentemente, ele planejava outra coisa para a sobremesa, e enquanto o corpo dela se aquecia de dentro para fora, tudo parecia mais que bem para ela.
Caramba, ela não estava nem aí para o bom senso. Livrar-se da esposa dele era apenas a ponta do iceberg, e ela precisava se lembrar disso.
– Essa me parece a melhor refeição do mundo.
Lizzie cruzou os braços e se recostou na geladeira.
– Posso ser franca?
– Sempre.
– Sei que Chantal recebeu a papelada do divórcio. Acabei presenciando sem querer. Não tive a intenção de ver o delegado fazendo aquilo.
– Eu te disse que estava pondo um fim nisso.
Ela esfregou a testa.
– Uns dois minutos antes, ela foi me procurar para planejar um jantar de comemoração do aniversário de casamento de vocês.
Houve um xingamento baixinho.
– Sinto muito. Mas estou te garantindo agora: não há futuro para mim e para ela.
Lizzie o encarou com firmeza por um bom tempo e, em resposta, ele não se moveu, não piscou, não disse nenhuma palavra mais. Só ficou ali sentado… deixando que as ações falassem por ele.
Maldição, ela pensou. Ela não precisava mesmo, de jeito nenhum, voltar a se apaixonar por ele.
Enquanto a noite caía sobre os estábulos, Edward se viu voltando à sua rotina noturna. Copo com gelo? Confere. Bebida? Confere – gim, aquela noite. Poltrona? Confere.
Só que, quando se acomodou e se viu diante daquelas provisões, dedilhou sobre o encosto da poltrona, em vez de colocar os dedos em uso para abrir o lacre da garrafa.
– Vamos lá – disse a si mesmo –, siga com o programado.
Mas não. Por algum motivo, a porta do chalé conversava com ele mais do que o Beefeater, no que se referia a coisas que precisavam ser abertas.
O dia fora bem longo. Ele tinha ido até Steeplehill Downs para dar uma olhada nos seus dois cavalos e dar telefonemas, tanto para o veterinário quanto para o treinador, porque Bouncing Baby Boy teria que ser deixado de lado por conta de um problema no tendão. Em seguida, voltara para lá, para verificar cinco das suas éguas que estavam prenhas, e para revisar os livros contábeis com Moe. Pelo menos as notícias eram boas nessa frente. Pelo segundo mês consecutivo, a operação não apenas se autossustentava, como gerava lucros. Se aquilo se mantivesse, ele poria um fim nas transferências do fundo fiduciário da mãe, que vinham fornecendo uma injeção de caixa nos negócios desde os anos 1980.
Ele queria ser totalmente independente da família.
Na verdade, uma das primeiras coisas que tinha feito quando saíra da reabilitação foi recusar a distribuição dos seus fundos. Ele não queria ter nada a ver com fundos que, mesmo que remotamente, estivessem relacionados com a Cia. Bourbon Bradford, e a totalidade da primeira e da segunda retirada estava ligada diretamente à CBB. Na verdade, só descobrira as transferências do fundo da sua mãe para o Haras Vermelho & Preto uns seis meses após a sua chegada e, naquele tempo, ele mal era capaz de se levantar pela manhã e ir até os estábulos. Se os tivesse recusado naquele tempo, a operação toda teria ido para o buraco.
Fazia muito tempo desde que alguém com um mínimo de perspicácia para os negócios fora até o haras e, a despeito das suas fraquezas atuais, sua habilidade para fazer dinheiro permanecia intocada.
Mais um mês. E então estaria livre.
Deus, estava mais exausto do que de costume. Mais dolorido também. Ou talvez as duas coisas estivessem unidas inextricavelmente.
Mesmo assim, não conseguia pegar a garrafa.
Em vez disso, pôs-se de pé com a ajuda da bengala e claudicou até as cortinas, que permaneciam fechadas desde o dia em que se mudara para lá. Estava um breu do lado de fora, somente as luzes de sódio nas entradas dos estábulos lançavam um brilho cor de pêssego na escuridão.
Xingando baixinho, foi para a porta da frente e a abriu. Parou um instante. Coxeou na escuridão.
Edward atravessou o gramado num andar desigual, e disse a si mesmo que estava indo dar uma olhada na égua que estava com problemas. Sim. Era isso o que iria fazer.
Não iria ver como estava Shelby Landis. Nada disso. Ele não estava, por exemplo, preocupado por não tê-la visto sair da fazenda o dia inteiro, o que provavelmente significava que ela não devia ter comida naquele apartamento.Tampouco iria verificar se, por acaso, ela dispunha de água quente, porque depois de um dia inteiro carregando carrinhos de mão, sacos de grãos do tamanho da picape dela e fardos pinicantes de feno, ela devia estar dolorida e necessitando de uma bela chuveirada.
Ele, positiva e absolutamente, iria…
– Merda.
Sem nem ter se dado conta, fora parar na porta lateral do Estábulo B – a que dava para o escritório, bem como para o lance de escadas que o levaria até os aposentos dela.
Ora, uma vez que já estava ali… ele bem que poderia ver como ela estava. Claro que em lealdade ao pai dela.
Não passou a mão pelos cabelos antes de pousá-la na maçaneta… Tudo bem, talvez tivesse feito isso só um pouquinho, mas apenas porque estava precisando cortar os cabelos e eles tinham caído nos seus olhos.
Luzes detetoras de movimento se acenderam assim que ele chegou ao escritório, e todos aqueles degraus até a parte superior pairavam acima dele como uma montanha que ele teria que se esforçar para escalar. E, vejam só, seu pessimismo tinha razão de ser: ele teve que parar para tomar fôlego na metade do caminho. E outra vez assim que chegou ao alto.
E foi por isso que ouviu as risadas.
De um homem. De uma mulher. Vindas do apartamento de Moe.
Franzindo o cenho, Edward olhou para baixo pela porta de Shelby. Aproximou-se e encostou a orelha na porta. Nada.
Quando fez a mesma coisa na porta de Moe? Ouviu os dois, a fala arrastada sulista de um e de outro como o som de um banjo de uma banda de jazz.
Fechou os olhos por um instante e se recostou na porta fechada.
Em seguida, aprumou-se e, com o auxílio da bengala, desceu todos aqueles degraus, foi para o gramado e voltou ao próprio chalé.
Dessa vez, não teve nenhum problema para abrir a garrafa ou colocar uma dose no copo.
Foi durante a segunda dose que ele por fim se deu conta de que era sexta-feira. Noite de sexta-feira.
Puxa, se isso não era um golpe de sorte.
E ele até tinha um encontro.
VINTE E SEIS
Sutton Smythe olhou para a multidão que lotava a galeria principal do Museu de Arte de Charlemont. Ela reconhecia tantos rostos, tanto pessoalmente quanto dos noticiários, da TV e da tela grande. Muitas pessoas acenavam para ela ao encontrar o seu olhar, e ela foi bastante cordial, erguendo a mão em retribuição.
Tinha esperanças que ninguém se aproximasse.
Não estava interessada em ter que cumprimentar alguém com um beijo no rosto e fazer perguntas educadas a respeito de um cônjuge, tampouco queria ser apresentada à companhia de alguém por aquela noite. Também não queria receber nenhum agradecimento – mais um – pela sua generosa doação de 10 milhões de dólares, feita no mês anterior, que marcou o início da campanha de levantamento de fundos para a expansão do museu. Muito menos queria ter que ouvir falar do empréstimo permanente do Rembrandt e do ovo Fabergé que o pai fizera em homenagem à querida esposa falecida.
Sutton queria ser deixada em paz para vasculhar a multidão em busca do único rosto que queria ver.
O único rosto que queria… que precisava ver.
Mas Edward Baldwine, mais uma vez, não viria. E ela sabia disso, não por ter estado ali nas sombras pela última hora e meia enquanto os convidados da festa que ela oferecia em nome da família chegavam, mas porque insistira em ver uma cópia da lista do RSVP uma vez por semana, e depois diariamente, quando o dia do evento se aproximou.
Ele simplesmente não tinha respondido. Nada de “Sim, irei à festa com prazer”, nem de “Lamento, mas não poderei ir”.
Será que podia mesmo ficar surpresa?
Ainda assim, isso a magoou. Na verdade, o único motivo pelo qual comparecera ao jantar de William Baldwine na noite anterior fora por ter esperanças de ver Edward em sua própria casa. Depois que ele não retornara as suas ligações por dias, meses e agora anos, ela pensou que talvez ele aparecesse à mesa do pai e eles poderiam, de maneira muito natural, se reconectar.
Mas não. Edward também não estivera lá.
– Senhorita Smythe, estamos prontos para iniciar o jantar, se for conveniente para a senhorita. As saladas já foram servidas.
Sutton sorriu para a mulher com uma prancheta na mão e um fone no ouvido.
– Sim, vamos diminuir as luzes. Farei minhas considerações assim que eles estiverem sentados.
– Pois não, senhorita Smythe.
Sutton respirou fundo e observou o caro rebanho fazer o que lhe era orientado e encontrar seus lugares em todas aquelas mesas redondas com arranjos elaborados, pratos dourados e menus impressos sobre guardanapos de linho.
Antes da tragédia, Edward sempre frequentara aquele tipo de evento, lançando sorrisos sardônicos quando outra pessoa surgia pedindo dinheiro para as suas causas. Convidando-a para dançar, como se fosse uma manobra de salvamento, quando ela se via acuada por um convidado conversador. Olhando para ela e piscando… como só ele conseguia fazer.
Eram amigos desde a escola preparatória em Charlemont. Oponentes nos negócios desde que ele se formara em Wharton e ela conquistara seu MBA na Universidade de Chicago. Companheiros sociais desde que ambos ingressaram no circuito de jantares beneficentes depois do falecimento da mãe dela e a dele passara a ficar cada vez mais tempo em seus aposentos.
Nunca foram amantes.
Ela queria que tivessem sido. Muito provavelmente, desde que o conhecera. Edward, contudo, mantivera-se afastado, permanecera distante, até mesmo arrumara encontros para ela.
O coração dela sempre estivera à disposição, mas ela jamais tivera coragem de atravessar aquela fronteira que ele, com tanta determinação, estabelecera entre eles.
E então… Dois anos atrás aquilo aconteceu. Bom Deus, quando ficara sabendo que ele iria mais uma vez para a América do Sul numa daquelas viagens de negócios, teve uma premonição, um alerta, uma sensação ruim. Mas não telefonara para ele. Não tentara falar com ele para tentar convencê-lo a levar mais seguranças ou algo assim.
Portanto, de certa forma, sentia-se parcialmente responsável. Talvez se tivesse…
Mas a quem tentava enganar? Ele não teria deixado de viajar por outro motivo que não condições climáticas adversas. Edward fora um verdadeiro adversário na indústria de bebidas, o óbvio herdeiro da Cia. Bourbon Bradford não apenas pelo direito de nascença, mas pelas suas incríveis ética profissional e astúcia.
Depois do sequestro e do pedido de resgate, o pai dele, William, esforçara-se para libertá-lo, negociando com os sequestradores, trabalhando em conjunto com a embaixada norte-americana. Tudo fracassara até que, no fim, uma equipe especial foi enviada para resgatar Edward.
Não conseguia sequer imaginar o que haviam feito com ele.
E aquele era o aniversário do dia em que fora emboscado durante a viagem.
Tudo aquilo era simplesmente uma tragédia. A América do Sul era um dos lugares mais lindos do planeta com sua comida deliciosa, cenários fantásticos e história fascinante; ela e Edward frequentemente brincavam dizendo que, quando se aposentassem, iriam para lá, para morar em propriedades vizinhas. O sequestro de executivos com exigência de resgate eram um dos pontos perigosos em certas áreas, mas não era muito diferente de atravessar o Central Park às três da manhã. Maus elementos podem ser encontrados em qualquer parte, e não havia motivos para condenar um continente inteiro por conta de uma minoria de bandidos.
Infelizmente, Edward se tornara uma das vítimas.
Depois de todo aquele tempo, ela só queria vê-lo com seus próprios olhos. Algumas fotos desfocadas foram publicadas pela imprensa, e elas, por certo, não a tranquilizaram. Ele sempre aparentava estar muito mais magro, com o corpo encurvado, o rosto sempre abaixado, desviando das lentes.
Para ela, contudo, ele ainda era lindo.
– Senhorita Smythe, está pronta?
Voltando ao presente, Sutton viu que havia mil pessoas sentadas, comendo suas saladas, prontas para ouvi-la discursar.
Sem aviso algum, uma repentina onda de energia ruim bombeou dentro dela, fazendo-a suar no peito, na testa, debaixo dos braços. Enquanto o coração batia descompassado, ondas de tontura fizeram-na esticar a mão para se equilibrar na parede.
O que havia de errado com ela?
– Senhorita Smythe?
– Não consigo – ouviu-se dizer.
– O que disse?
Pressionou os cartões que escrevera com tanto cuidado nas mãos da assistente.
– Outra pessoa terá que…
– O quê? Espere, onde a senhorita…
Ela levantou as palmas e recuou.
– … fazer o discurso.
– Senhorita Smythe, a senhorita é a única que pode…
– Ligo na segunda-feira. Sinto muito. Não consigo.
Sutton não fazia a mínima ideia de onde estava indo enquanto seus saltos finos ressoavam no piso de mármore. Na verdade, foi só quando uma lufada de calor a atingiu que ela percebeu que havia saído do prédio pela saída de incêndio e aparecera na ala oeste do complexo, no ar úmido noturno.
Bem longe do estacionamento onde seu chofer a aguardava.
Caindo de encontro à parede de gesso do museu, inspirou fundo algumas vezes, mas isso não ajudou a aliviar a sensação de sufocamento.
Não poderia ficar ali a noite toda. Mais especificamente, queria sair correndo, ir para longe, correr até que a sensação de terror saísse do seu corpo. Mas isso seria loucura. Certo?
Deus, estava perdendo a cabeça. Finalmente, tudo a estava alcançando.
Ou talvez fosse, mais uma vez e sempre, Edward Baldwine.
Hora de seguir em frente. Aquilo era ridículo.
Tirando os sapatos e segurando-os pelas tiras, começou a andar sobre a grama, se aproximando dos fachos de iluminação das luzes de segurança. Depois do que lhe pareceu uma eternidade, o estacionamento que procurava apareceu quando ela dobrou mais uma esquina, só que, nessa hora, ficou confusa pela quantidade de limusines estacionadas a céu aberto.
Onde estava…
Por pura sorte, o Mercedes C63 a encontrou, e o enorme sedã surgiu à sua frente. A janela do passageiro se abaixou sem emitir nenhum som.
– Senhorita Smythe? – seu chofer disse em tom alarmado. – A senhorita está se sentindo bem?
– Preciso do carro. – Sutton deu a volta, os faróis eram muito claros contra seu vestido de gala prata e seus diamantes. – Preciso do carro, preciso…
– Senhorita? – O homem uniformizado saiu de trás do volante. – Posso levá-la para onde quiser ir…
Ela pegou uma nota de cem dólares da minúscula bolsa de festa.
– Tome. Pegue um táxi, ou ligue para alguém. Sinto muito. Sinto muito, muito, mas preciso ir…
Ele meneou a cabeça ao ver a nota.
– Senhorita, posso levá-la a qualquer lugar…
– Por favor. Preciso do carro.
Houve uma ligeira pausa.
– Muito bem. Sabe como dirigir este…
– Dou um jeito. – Colocou o dinheiro na palma da mão dele e a fechou. – Fique com isso. Vou ficar bem.
– Eu preferiria dirigir.
– Aprecio a sua consideração, de verdade. – Fechou-se dentro do carro, subiu a janela, e olhou ao redor à procura do câmbio ou…
À batida no vidro escuro, ela voltou a abaixá-lo.
– Está ali, ao lado do volante – instruiu o chofer. – A marcha a ré, e ali para a frente. Pronto, assim. E as setas ficam… isso, isso mesmo. A senhorita não deve precisar dos limpadores de para-brisa, e as luzes já estão acesas. Boa sorte.
Ele recuou, do mesmo modo que fazemos quando estamos prestes a acender um fósforo para acionar fogos de artifício. Ou uma bomba.
Sutton pressionou o acelerador, e o potente sedã se lançou para a frente como se tivesse o motor de um jato debaixo do capô. Nos recessos da sua mente, ela fez um cálculo rápido de quantos anos fazia que não dirigia… E a resposta não foi nada encorajadora.
Mas, assim como tudo em sua vida, ela acabaria descobrindo… Ou morreria tentando.
– Importa-se se eu repetir?
Lizzie lhe lançou um olhar de encorajamento e Lane se levantou e foi para a geladeira. A comida estava ajudando a clarear a sua mente, ou talvez fosse a companhia dela.
Provavelmente era mais por estar na presença dela.
– Está muito bom – ele disse ao abrir o congelador e pegar mais uma porção.
A risada dela o fez parar e fechar os olhos, a fim de que o som pudesse inundá-lo ainda mais.
– Você só está sendo gentil – ela murmurou.
– É a mais pura verdade.
Levando o prato ao micro-ondas, ajustou-o para seis minutos e ficou olhando o bloco congelado girar e girar.
– Então, eu vou ter que ir procurar Edward – ouviu-se dizer.
– Quando foi a última vez que o viu?
Ele pigarreou. Sentiu uma tremenda necessidade de beber alguma coisa.
– Foi em…
Por um instante, ficou perdido em pensamentos, tentando encontrar um modo de perguntar se ela tinha alguma bebida em casa.
– Tanto tempo assim?
– Na verdade, eu estava pensando em outra coisa. – Ou seja, que era inteiramente possível que ele tivesse problemas com bebida. – Mas, pensando bem, depois de um dia como o de hoje, quem não seria alcoólatra?
– O que disse?
Ai, merda, falara em voz alta?
– Desculpe, a minha cabeça está a maior confusão.
– Eu queria poder fazer alguma coisa.
– Você já está fazendo.
– Então, quando foi que viu Edward pela última vez?
Lane voltou a fechar os olhos. Mas, em vez de fazer cálculos mentais que revelariam a soma do quanto deixava a desejar como irmão, voltou no tempo para aquela noite de Ano-Novo quando Edward apanhara pelo restante deles.
Ele e Maxwell haviam permanecido no salão de baile, silenciosos e trêmulos, enquanto o pai forçava Edward a subir. À medida que eles subiam a grande escadaria, Lane gritava a plenos pulmões… mas apenas internamente.
Era covarde demais para sair de lá e pôr um fim à mentira que salvara seu irmão e ele mesmo.
– Eu deveria ir lá – disse quando um tempo se passou.
– Mas o que você pode fazer? – Max sussurrou. – Nada pode deter papai.
– Eu poderia…
Só que Maxwell estava certo. Edward mentira, e o pai o estava fazendo pagar por uma transgressão que não era dele. Se Lane contasse a verdade agora… O pai simplesmente surraria todos eles. Pelo menos se ele e Maxwell ficassem quietos, poderiam evitar….
Não, aquilo era errado. Era uma desonra.
– Vou até lá. – Antes que Maxwell conseguisse dizer qualquer coisa, Lane agarrou o braço do irmão. – E você vem comigo.
A consciência de Max também o devia estar incomodando, porque em vez de discutir, como sempre discutia sobre tudo, seguiu-o mudo pela escada principal. Quando chegaram ao topo, o corredor estava deserto a não ser pela moldura de gesso, pelos retratos, e pelas flores sobre mesinhas e aparadores antigos.
– Temos que impedir – Lane sibilou.
Um atrás do outro, seguiram rapidamente sobre o tapete… até o quarto do pai.
Do lado oposto da porta, os sons do açoite eram agudos e altos, vindos do couro de encontro à pele nua de seu irmão, e dos grunhidos do pai, que empregava força nos golpes.
Edward estava em silêncio.
E, nesse meio-tempo, os dois apenas permaneceram ali, silenciosos e petrificados. Lane só conseguia pensar que nem ele nem Max tinham metade da coragem dele. Os dois acabaram chorando.
– Vamos embora – disse baixinho, coberto de vergonha.
Mais uma vez, Max não discutiu. Obviamente, ele também era um covarde.
O quarto que partilhavam ficava no fim do corredor, e foi Lane quem abriu a porta. Havia quartos de sobra para que dormissem separados, mas quando Maxwell começara a ter pesadelos alguns anos antes, acabaram colegas de quarto sem querer. Max começara a entrar sorrateiramente no quarto de Lane e despertava ali pela manhã. Depois de um tempo, a senhorita Aurora instalara outra cama lá e assim ficou resolvido.
O banheiro era conjugado, e o quarto do lado oposto era o de Edward.
Max foi para a cama e fitou o teto.
– A gente não devia ter descido. A culpa é minha.
– É de nós dois. – Olhou para Max. – Fique aqui. Vou esperar por ele.
Enquanto seguia para o banheiro, fechou a porta atrás de si e rezou para que Max seguisse suas ordens. Tinha uma sensação ruim quanto à condição em que Edward estaria quando o pai finalmente acabasse o castigo.
Ah, como Lane gostaria de poder voltar no tempo e refazer a decisão de ir para a sala de estar.
Abaixando a tampa do vaso, ficou sentado e atento às batidas do seu coração. Mesmo não conseguindo mais ouvir as chibatadas do cinto, isso não tinha relevância. Ele sabia o que estava acontecendo do outro lado do corredor.
Por algum motivo, ficou olhando para as três escovas de dente enfiadas dentro de um copo de prata, ao lado das toalhas de mão dobradas sobre a pia. A vermelha era de Edward, porque ele era o mais velho e sempre podia escolher antes. A de Max era verde, porque era a mais varonil que restava. Lane acabava tendo que ficar com a amarela, que odiava.
Ninguém queria a azul da uk.
Um clique suave e um empurrão de uma porta sendo aberta quebrou o silêncio. Lane esperou o segundo clique e depois se pôs de pé, espiando o quarto de Edward.
Na escuridão, Edward caminhava em direção ao banheiro, todo encurvado, com um braço ao redor do abdômen, e outro estendido para se equilibrar na cômoda, nas paredes, na mesa.
Lane se apressou e segurou a cintura do irmão.
– Enjoado – Edward grunhiu. – Vou vomitar.
Ah, Deus, ele estava sangrando no rosto, devido ao corte causado pelo anel de sinete do pai quando ele lhe desferiu aquele tapa.
– Eu te levo – Lane murmurou. – Vou cuidar de você.
O avanço foi lento, as pernas de Edward tinham dificuldade para sustentar o tronco ereto. Parte da camisa do pijama ficara presa no cós depois da surra, e Lane só conseguia pensar no que havia por baixo. Nos vergões, no sangue, no inchaço.
Edward mal chegou a tempo ao vaso, e Lane ficou junto dele durante todo o tempo. Quando terminou de vomitar, Lane pegou a escova vermelha e colocou pasta de dente nela. Depois, ajudou o irmão a ir até a cama.
– Por que você não chora? – Lane perguntou com uma voz rouca enquanto o irmão se acomodava no colchão como se todo o seu corpo doesse. – É só você chorar. Ele para assim que você chorar.
Era sempre assim quando ele e Max levavam uma surra.
– Vá para a cama, Lane.
A voz de Edward pareceu exausta.
– Sinto muito.
– Está tudo bem. Só vá para cama.
Foi difícil sair, mas ele já tinha causado confusão demais por aquela noite, e vejam o que tinha acontecido.
De volta ao seu quarto, enfiou-se entre os lençóis e ficou olhando para o teto.
– Ele está bem? – Max perguntou.
Por algum motivo, as sombras em seu quarto eram completamente assustadoras, pareciam monstros que se moviam e rastejavam pelos cantos.
– Lane?
– Sim – mentiu. – Ele está bem…
– Lane?
Ele voltou ao presente e olhou sobre o ombro.
– O que foi?
Lizzie apontou para o micro-ondas.
– Está pronto?
Bipe…
Bipe…
Ele apenas ficou ali, piscando, tentando voltar do passado.
– Sim, sim, desculpe.
De volta à mesa, depositou o prato fumegante e se sentou de novo… só para descobrir que tinha perdido o apetite. Quando Lizzie estendeu o braço e apoiou a mão na dele, ele a aceitou e a levou aos lábios para um beijo.
– No que está pensando? – Lizzie perguntou.
– Quer mesmo saber?
– Sim.
Ora, ora, se ele não tinha uma bela seleção de coisas para escolher.
Enquanto ela esperava por uma resposta, ele ficou olhando para seu rosto por um bom tempo. E então teve que sorrir.
– Agora, neste exato instante… estou pensando que, se tiver uma chance com você, Lizzie King, vou aceitar.
O rubor que atingiu o rosto dela foi encoberto quando ela levantou as mãos.
– Ai, meu Deus…
Ele deu uma risada leve.
– Quer que eu mude de assunto?
– Sim – disse ela por trás do seu esconderijo.
Ele não a culpava.
– Tudo bem, estou muito feliz de ter vindo para cá. Easterly é como uma corda no meu pescoço agora.
Lizzie esfregou os olhos e abaixou as mãos.
– Sabe, custo a acreditar no que Rosalinda fez.
– Foi simplesmente horrível. – Ele se recostou na cadeira, respeitando a necessidade dela de mudarem de assunto. – E, escuta essa. Sabe Mitch Ramsey, o delegado? Ele me ligou enquanto eu vinha para cá. O exame médico legal preliminar indica traços de cicuta.
– Cicuta?
– O rosto dela… – Ele circundou a face com a mão. – Aquele sorriso horrendo? Foi provocado por algum tipo de paralisia facial, o que, aparentemente, é bem documentado como sendo causado por uma variedade de venenos. Caramba, vou te contar, vai demorar bastante tempo para eu me esquecer da aparência dela.
– Existe a possibilidade de ela ter sido morta?
– Eles acham que não. É preciso uma bela dose de cicuta para ter o resultado desejado, portanto, é mais provável que ela mesma tenha feito isso. Além do mais, aqueles Nikes eram novinhos e havia grama nas solas.
– Nikes? Ela só usa sapatos sem salto.
– Exatamente, mas ela foi encontrada com tênis próprios para corrida, que, evidentemente, acabara de comprar, e os usou para andar no jardim. Pelo que Mitch disse, na época dos romanos, as pessoas costumavam beber veneno e depois perambular para que ele agisse com mais rapidez. Portanto, isso mais uma vez indica que ela causou a própria morte.
– Que… horrível.
– A pergunta é: por quê? E, infelizmente, acho que nós sabemos a resposta.
– O que vai fazer agora?
Ele ficou em silêncio por um tempo e depois ergueu os olhos para ela.
– Para começar, pensei em te levar para cima.
Lizzie corou de novo.
– E o que vai fazer comigo no segundo andar?
– Vou te ajudar a dobrar a roupa limpa.
Ela deu uma gargalhada.
– Detesto te desapontar, mas já fiz isso.
– Arrumar a sua cama?
– Lamento. Já está arrumada.
– Mas você tinha que ser tão organizada? Cerzir as suas meias? Precisa pregar algum botão?
– Está sugerindo que é bom com linha e agulha?
– Aprendo rápido. Então… quer costurar comigo?
– Acho que não tenho nada que precise desse tipo de cuidado.
– Existe alguma coisa na qual posso te ajudar, então? – ele perguntou num tom baixo. – Alguma dor que eu possa aplacar? Algum fogo que eu possa extinguir? Com a boca, talvez?
Lizzie fechou os olhos, e mudou de posição na cadeira.
– Ai, Deus…
– Espere, já sei. Que tal se eu te levar para o segundo andar e nós bagunçarmos a sua cama? Daí, então, vamos poder arrumá-la de novo.
Quando, por fim, ela voltou a olhar para ele, seus olhos estavam pesados e sensuais.
– Sabe, esse parece um plano perfeito.
– Adoro quando estamos de acordo.
Levantaram-se ao mesmo tempo, e antes que ela conseguisse detê-lo, ele se inclinou e a pegou no colo.
– O que você está fazendo? – Empurrou-o e começou a gargalhar. – Lane…
– O que parece? – E saiu da cozinha. – Estou te carregando lá para cima.
– Espera. Espera. Sou muito pesada…
– Ora, por favor!
– Não, é verdade… Não sou como aquelas mulherzinhas delicadas…
– Exato. Você é uma mulher de verdade. – Chegou à escada e seguiu em frente. – E é por essas que homens de verdade ficam atraídos. Confie em mim.
Deixou a cabeça pender no ombro dele, e quando Lane sentiu o olhar dela em seu rosto, pensou no que Chantal fizera com o seu pai. Ou, pelo menos, no que ela disse ter feito com ele.
Lizzie nunca o traíra. Nem em pensamento, nem em ações.
Ela simplesmente não tinha isso dentro dela.
O que a tornava uma mulher de verdade, e não só por não ser socialmente anoréxica.
– Não, você não tem que dizer isso – ele murmurou quando os degraus antigos rangeram debaixo dos seus pés.
– Dizer o quê?
– Que não significa nada comparado a outras coisas. Sei que me quer só como amigo e aceito isso. Você só precisa saber de uma coisa.
– O que seria? – ela suspirou.
Ele fez uma voz mais grave.
– Estou preparado para ser um homem muito paciente no que se refere a você. Vou seduzi-la pelo tempo que for necessário, vou lhe dar todo o espaço que precisar, ou seguir seus passos como a luz do sol sobre seus ombros, se você deixar. – Seus olhos se fixaram nos dela. – Perdi minha chance com você uma vez, Lizzie King, e isso não vai se repetir.
VINTE E SETE
Sentado em sua poltrona, Edward flanava numa nuvem de gim Beefeater; seu corpo estava tão entorpecido que ele conseguia manter uma fantasia de força e flexibilidade. Na verdade, conseguia imaginar que ficar de pé podia ser fácil, apenas uma mudança de localização descomplicada e inconsciente que necessitava de um pensamento fugidio e músculos nas coxas. Músculos esses que ficariam contentes – e seriam perfeitamente capazes – de executar tal tarefa.
No entanto, não estava embriagado o suficiente para tentar.
O som de uma batida à porta fez com que levantasse a cabeça.
Ora, ora, ora. Não estava preparado para aquela coisa de ficar na vertical, mas pelo menos a recém-chegada poderia lhe oferecer uma realidade alternativa para ele experimentar.
E ele não recusaria.
Com um grunhido, tentou ficar um pouco mais ereto na poltrona. Não conseguiria abrir a porta para a mulher e sentiu-se mal por isso. Um cavalheiro sempre deveria fazer tal gentileza a um membro do sexo frágil, e ele não se importava que a sua convidada fosse uma prostituta, uma mulher merecia ser tratada com respeito.
– Entre – disse em voz alta, mas arrastada. – Pode entrar.
A porta se abriu devagar… E o que viu do outro lado, bem debaixo da soleira, era…
O coração de Edward parou de bater. E depois começou a martelar.
– Eles acertaram – sussurrou. – Finalmente. Beau acertou em cheio.
A mulher piscou.
– Perdão – ela disse, rouca. – O que disse?
A voz era igualzinha. Como tinham conseguido acertar?
– Entre – ele respondeu, gesticulando com a mão que não segurava o copo. – Por favor.
E não tenha medo, ele pensou consigo.
Afinal, ele estava sentado no escuro, e a iluminação dos incontáveis troféus sobre as prateleiras não alcançavam seu rosto e seu corpo. O que era proposital, claro. Não gostava de olhar para si mesmo, não havia motivo para dificultar o trabalho da prostituta forçando-a a vê-lo com nitidez.
– Edward?
Em seu torpor ébrio, ele só conseguiu fechar os olhos e relaxar o corpo. Ficou duro num lugar bem crucial.
– A sua voz… é tão bela quanto nas minhas lembranças.
Não ouvia a voz de Sutton Smythe em pessoa desde antes da sua viagem e, depois que retornara, não foi capaz de ouvir quaisquer das suas mensagens.
A ponto de ter se livrado tanto do aparelho quanto daquele número.
– Ah, Edward…
Bom Deus, havia sofrimento naquela voz. Como se a mulher estivesse olhando para a sua alma e reagindo ao emaranhado de angústia que ele carregava desde que lhe informaram que ele sobreviveria.
E, de fato, era quase isso o que ouvia na voz de Sutton. Engraçado, durante seu período no cativeiro, desmaiara três vezes durante os oito dias em que o mantiveram preso. Todas as vezes, enquanto perdia a consciência, Sutton fora a última coisa em seus pensamentos, a última coisa a ver, a ouvir, a lamentar a perda. E não a sua família. Não o seu tão amado trabalho. Não a casa em que crescera, tampouco a fortuna e as coisas que deixaria inacabadas.
Sutton Smythe.
Na terceira vez, quando já não conseguia ver nada, quando já não sabia distinguir se era suor ou sangue em sua pele, quando a tortura o levara a um lugar onde o botão de sobrevivência fora desligado e ele já não rezava para ser resgatado, a não ser pela morte…
Sutton Smythe, uma vez mais, estivera em seus pensamentos.
– Edward…
– Não. – Levantou a mão. – Não diga mais nada.
A mulher estava se saindo tão bem. Não queria que continuasse e estragasse tudo.
– Venha aqui – sussurrou. – Quero tocar em você.
Abrindo os olhos, embeveceu-se com a aproximação dela. Ah, que vestido prateado perfeito, a barra arrastando pelo chão, as joias surpreendentemente de bom gosto reluzindo apesar de a luz estar atrás dela. E ela também trazia o mesmo tipo de bolsa de festa que Sutton sempre levava aos eventos formais, um quadrado forrado com seda da mesma cor do vestido – ainda que, como ela mesma dizia, “combinar tudo era tão anos cinquenta”.
– Edward?
Havia tanta confusão quanto um anseio em seu nome.
– Por favor – ele se viu implorando. – Não fale mais. Só quero tocar você. Por favor.
Enquanto o corpo dela tremia diante dele, Edward sentiu a realidade mudar e se permitiu seguir o ardil, acompanhando a fantasia de que aquela era de fato Sutton, que ela fora procurá-lo, e que, finalmente, ficariam juntos.
Mesmo ele estando arruinado.
Deus, isso bastava para deixá-lo emocionado. Mas não durou muito… porque ela tropeçou e seus olhos ficaram muito arregalados.
O que significava que tinha visto seu rosto.
– Não olhe para mim – disse ele. – Não sou mais o mesmo. É por isso que as luzes estão tão fracas.
Edward estendeu os braços e mostrou as mãos.
– Mas estas… não estão marcadas. E, ao contrário de outras partes, ainda funcionam muito bem. Me deixe… tocar você. Vou ser cuidadoso… mas você vai ter que se ajoelhar. Já não fico muito bem de pé, e tenho que confessar que estou embriagado.
A prostituta tremia dos pés à cabeça quando começou a se abaixar, e ele se sentou mais para a frente da poltrona, oferecendo-lhe o braço como se ela fosse uma dama saindo de um carro, em vez de uma trabalhadora permitindo que um aleijado fizesse sexo com ela por mil dólares.
Quando voltou a se recostar, uma súbita onda de vertigem o assolou, enquanto mais álcool bombeava em seu sistema. Como com todos os bêbados, contudo, ele sabia que era apenas algo temporário, que logo se autorregularia.
Ainda mais considerando tudo em que ele tinha que se concentrar: mesmo com a visão embaçada, mesmo com a penumbra, mesmo estando muito bêbado… estava maravilhado.
Ela era muito linda, quase linda demais para que ele a tocasse.
– Ah, olhe só para você… – sussurrou, esticando a mão para tocar seu rosto.
Os olhos dela reluziram de novo, ou, pelo menos, ele acreditou nisso; talvez estivesse apenas imaginando coisas por causa do modo como ela inspirou fundo. Era difícil saber, era complicado acompanhar o que estava acontecendo… A realidade estava muito distorcida agora, girando ao seu redor até ele não ter mais certeza se a prostituta se parecia mesmo com Sutton ou se era mera projeção dele, por causa dos cabelos negros e compridos, das sobrancelhas arqueadas, da boca perfeita, como a de Grace Kelly.
O cabelo da mulher estava solto, bem como havia solicitado, e ele passou as mãos pelas ondas até alcançar a curva do ombro.
– Seu cheiro é tão bom. Exatamente como eu me lembrava.
E logo ele tocou mais, os dedos viajando pela clavícula, sobre o colar de diamantes, descendo pela curva do decote. Em resposta, ela começou a arfar, o movimento dos pulmões aproximando seus seios das mãos dele.
– Adoro esse vestido – ele sussurrou.
O vestido de noite era bem ao estilo dos de Sutton: muito elegante, feito sob medida para o corpo dela, de chiffon tão cinzento quanto uma pomba.
Sentando-se mais para frente, aproximou seu peito diminuto do dela, que era magnífico, e passou as mãos para trás, a fim de encontrar o zíper embutido. Enquanto o abria, o som produzido pareceu-lhe alto demais.
Ele podia jurar que ela arfava como se a tivesse chocado. E foi… ah, tão perfeito. Exatamente o que Sutton teria feito.
E, em seguida, sim… ah, sim… a prostituta retribuiu a sua exploração, as mãos trêmulas subindo pelos seus braços finos. Deus, ele odiou todo aquele tremor por parte dela, mas, sem dúvida, devia ser difícil fazer sexo com ele.
Pelo menos como ele se encontrava agora.
– Eu queria ter feito isto antes – disse numa voz entrecortada. – No passado, valia a pena ver o meu corpo. Eu deveria ter… deveria ter tentado conquistá-la antes, mas era covarde demais. Era um covarde arrogante, mas a verdade é que eu poderia ter suportado qualquer coisa, menos uma recusa sua.
– Edward…
Interrompeu-a colando a boca na dela.
Ah, ela era boa. Tão boa quanto ele imaginava, a sensação da sua língua escorregando para dentro dela e a maneira como ela gemeu, como se tivesse esperado a vida toda pela oportunidade de fazê-lo se esquecer do que ele se tornara…
O vestido derreteu, escorrendo do corpo dela como se aquiescesse, como se estivesse reagindo para que tudo acontecesse mais rápido. E ele tirou vantagem da pele que agora estava à mostra, beijando uma trilha até os seios perfeitos, sugando os mamilos, ficando ganancioso muito rapidamente. Que Deus abençoasse o pobre coração daquela mulher, ela conseguia fingir tão bem, as mãos se perderam em seus cabelos como se ela o desejasse, como se ela estivesse trazendo-o para mais perto, mesmo ele não sendo o que ela deveria querer.
Tentou não ser rude, mas Deus, ficou tão excitado de repente.
– Suba no meu colo – grunhiu. – Você vai ter que subir no meu colo.
Era a única posição em que conseguia fazer sexo. Ainda mais por não querer sujeitar nenhum deles dois ao embaraço de ter que pedir ajuda para se levantar do chão, quando tudo tivesse terminado.
– Tem certeza? – ela perguntou, rouca. – Edward…
– Preciso ter você. Esperei tempo demais. Quase morri. Preciso disso.
Houve um segundo de pausa. Logo ela se moveu com admirável rapidez, levantando-se do chão, chutando o vestido, revelando… Ah, Jesus, ela estava com uma calcinha e nada mais, nada de meias de seda, nada de cinta-liga. E em vez de perder tempo tirando-a, ela a afastou de lado enquanto ele se confundia com o próprio cinto, impedindo que suas calças caíssem do quadril ossudo.
A despeito de todo o resto dele, que definhara, seu pênis ainda era grosso, comprido e rijo como antes, e ele ficou estranhamente grato por ser a única coisa que não era absolutamente humilhante para ele.
Empurrando os apoios de braço com as mãos, deslizou ainda mais para a frente, e ela se contorceu, montando nele com uma coordenação invejável.
A ereção dele a penetrou profundamente, e a firmeza com que ela o prendeu fez com que ele chegasse ao orgasmo de imediato. Mas isso não foi o mais incrível. Aparentemente, e por algum milagre, o mesmo aconteceu com ela.
Enquanto ela gritava seu nome, pareceu também chegar ao clímax.
Ou isso, ou ela não escutara seu chamado pois teria recebido o Oscar de melhor atriz.
Antes de perceber o que estava fazendo, Edward começou a se movimentar. Foi um movimento fraco, quase patético, mas ela seguiu, aquele primeiro orgasmo logo sendo eclipsado por outro ainda mais potente para ambos. Estremecendo, balançando, se retesando, ela se agarrou nele como se disso dependesse a sua vida, o cabelo cobrindo o dele, os seios pressionados contra ele, o corpo levando-o para uma viagem que ele nunca tinha experimentado.
O sexo pareceu durar para sempre.
Quando, por fim, tudo terminou, depois de um terceiro orgasmo, Edward se prostrou na poltrona e ofegou.
– Vou precisar de você de novo.
– Ah, Edward…
– Diga a Beau… semana que vem. Mesmo dia, mesmo horário.
– O quê?
Ele deixou a cabeça pender para o lado.
– O dinheiro está ali. Só você. Só quero você de novo.
De repente, provavelmente por ter se cansado mais nos vinte minutos do que nos doze meses anteriores, começou a se sentir fraco e, de fato, parecia apropriado que desmaiasse e deixasse que a prostituta saísse com tranquilidade.
Assim, ele conseguiria sustentar a fantasia por mais tempo.
– Mil… ao lado da porta – murmurou. – Pegue. A gorjeta…
Edward teve a intenção de dizer “A gorjeta vem depois, vou fazer com que alguém deixe com Beau mais tarde” ou algo do gênero. Mas a consciência era um luxo ao qual ele já não conseguia se dar… E se deixou cair no esquecimento.
Mais uma vez, pensando apenas em Sutton Smythe.
Sutton saiu cambaleando do chalé de Edward. Estava descalça, segurando os sapatos pelas tiras, mas ao contrário da sua outra caminhada pela grama ao redor do museu, as tábuas da varanda e os pedriscos machucaram suas solas.
Não que ela estivesse prestando atenção.
Ao partir para o Mercedes, ela era um misto de contradições; seu cérebro, uma confusão emaranhada. Mas seu corpo estava maleável e relaxado.
Edward pensou que ela fosse uma prostituta?
Por que outro motivo ele teria falado de dinheiro e de um homem chamado Beau? Semana que vem?
Ah, Deus, fizeram sexo…
Como chegaram àquilo? Como ela permitira que…
Bom Deus, o pobre rosto dele, o corpo…
Esses pensamentos entravam e saíam da sua cabeça, girando com alguma força centrífuga, tudo se revolvendo a não ser pelo fato de que Edward já não era mais o mesmo de antes. Sua linda aparência já não existia mais, as cicatrizes no rosto, sobre o nariz e na testa, deixavam virtualmente impossível reconstruir por lembranças a perfeição que antes existira ali.
Ela sabia que ele havia sido maltratado. Os noticiários e os artigos nos jornais foram suas únicas fontes de informação porque ele tinha se recusado a ver qualquer pessoa, e detalharam a duração da sua estada no hospital e da subsequente reabilitação. Esse tipo de tratamento longo não acontecia sem motivos trágicos. Mas vê-lo em pessoa fora um choque.
Antes do sequestro, ele era jogador de polo. Saltou com cavalos em apresentações. Correu. Jogou basquete, tênis e squash. Nadou. Edward fora um garoto dourado não apenas nos negócios, mas em todos os outros aspectos da sua vida, ele sempre se excedera em tudo.
Eu queria ter feito isso antes. No passado, valia a pena ver o meu corpo.
Sutton teve dificuldades para abrir a porta do carro, a mão escorregava como se ela estivesse tendo um ataque e seus dedos já não funcionassem direito. E quando, por fim, conseguiu abrir e entrar, ficou sem forças e deixou-se cair no assento.
Eu deveria ter tentado conquistá-la antes, mas era covarde demais. Era um covarde arrogante, mas a verdade é que eu poderia ter suportado qualquer coisa, menos uma recusa sua.
O que ele dissera? E para quem achou que estava dizendo? O coração dela se partiu com a ideia de que ele estivesse apaixonado por alguém daquela maneira.
Ele estava tão embriagado. Tanto que, antes de sair apressadamente, ela voltou para ver se o coração dele ainda estava batendo, se ele ainda estava respirando… Sim, porque a ideia de que talvez o tivesse matado por causa do que haviam…
– Bom Deus.
Como era possível que, depois de anos pensando nisso, eles, finalmente, tivessem feito sexo? E só porque ele acreditava que ela fosse uma prostituta cujos serviços ele encomendara em algum lugar?
Ah, não… Não tinham usado proteção.
Fabuloso. A reviravolta daquela noite toda era simplesmente fabulosa. Ainda mais porque, mesmo ele estando bêbado… mesmo ela estando meio fora do seu juízo completo… e apesar das condições físicas dele… o sexo tinha sido incrível. Talvez por causa de toda a imaginação acumulada, ou talvez fosse compatibilidade, ou quem sabe fosse apenas uma experiência única, do tipo que acontece quando certas estrelas estão alinhadas.
Independentemente dos motivos, ele tinha feito os poucos homens com quem ela estivera sumirem.
Impedindo que qualquer outro chegasse até ela, Sutton temeu.
Esticando o braço, procurou o botão de partida, e quando o motor roncou e os faróis se acenderam, ela entrou em pânico. Havia outras pessoas na propriedade – só podia haver –, e a última coisa que ela queria era ser pega em flagrante. Teria que encontrar uma maneira de lidar com a situação, e boatos se espalhando não faziam parte da sua estratégia, muito obrigada…
Neste mesmo instante, outro carro surgiu na alameda e, em vez de seguir para um dos estábulos ou construções externas, parou bem ao lado do seu.
A mulher que saiu era… alta, morena e usava um vestido longo.
E franziu o cenho ao ver o Mercedes.
Ela se aproximou.
Sutton abaixou o vidro. O que mais poderia fazer? Ao mesmo tempo, também começou a tatear à procura do câmbio, ou botão, ou sabe-se lá o que colocaria o sedã em marcha a ré.
– Pensei que eu estava escalada para esta noite – a mulher disse, num tom agradável.
– Eu… hum… – Enquanto gaguejava, sentiu-se corar. – Ah…
– Você é uma das garotas novas que Beau mencionou? Sou Delilah.
Sutton apertou a mão que lhe foi oferecida.
– Como tem passado?
– Ah, mas você parece tão chique! – A mulher sorriu. – Então, cuidou bem dele?
– Hum…
– Tudo bem se você cuidou. Às vezes essas coisas acontecem, e eu tenho outros dois chamados para esta noite. – Levantou a mão e puxou o que, no fim, era uma peruca. – Pelo menos me livro disto. Ele está bem?
– O que disse?
A mulher esfregou o cabelo loiro curto ao acenar na direção do chalé.
– Ele. Todas nós cuidamos dele, pobrezinho. Beau não nos diz quem é, mas deve ser alguém importante. É sempre tão generoso, e nos trata muito bem. É um caso bem triste, para falar a verdade.
– Sim. Muito triste.
– Bem, está na minha hora. Quer que eu avise Beau que está tudo bem?
– Hum…
– Fico com a semana que vem, então.
– Não – Sutton se ouviu dizer. – Ele me disse… o homem me disse que quer me ver de novo.
– Ah, ok, sem problemas. Eu aviso.
– Muito obrigada. Muito obrigada mesmo.
Talvez aquele fosse algum tipo de alucinação bizarra causada por uma febre.
Enquanto Sutton voltava a procurava a manopla, a prostituta se inclinou para baixo.
– Está procurando a ré?
– Ah, sim, estou.
– É essa aí na direita. Mexa-a para trás. Para baixo do drive e, para estacionar, você empurra até o fim.
– Obrigada. Que difícil.
– Um dos meus fregueses regulares tem esse mesmo modelo. É uma beleza! Dirija com cuidado.
Produzindo um som sem sentido, Sutton manobrou para trás com cuidado, ciente de que a mulher estava bem perto com aquela peruca morena na mão.
Seguindo na direção da estrada principal, resolveu que aquilo só podia ser resultado de um resfriado, de uma alucinação. A qualquer instante agora, ela despertaria…
Era isso.
Só podia ser.
Puxa vida, como foi que tudo foi acontecer?
CONTINUA
DEZOITO
Enquanto parava diante da entrada principal de Easterly, Lane pisou tão fundo no freio que os pedriscos do caminho voaram com ele até o Porsche parar. Não desligou o motor, simplesmente saiu do carro e voou escada acima, passando pelas portas duplas tal qual uma ventania.
Não prestou atenção em absolutamente nada ao entrar na mansão – nem na criada que limpava o vestíbulo, no mordomo que se dirigiu a ele… nem mesmo em sua Lizzie, que parou em seu caminho como se estivesse aguardando sua chegada.
Em vez disso, saiu da casa pela porta da sala de jantar e avançou a passos largos até o centro de negócios, atravessando as mesas redondas bem arrumadas debaixo da tenda e se esquivando dos funcionários da manutenção que estavam pendurando cordões de luzes entre as árvores em flor.
O local de trabalho do pai tinha um terraço com uma série de portas francesas, e ele seguiu para o par que ficava na extrema esquerda. Quando chegou, não se deu ao trabalho de experimentar a maçaneta, porque a porta estaria trancada.
Bateu no vidro. Com força.
E não parou. Nem quando sentiu a mão úmida, o que indicava que ele devia ter quebrado alguma coisa…
Na verdade, ele estilhaçou a vidraça da primeira porta do escritório do pai, e partiu para a seguinte.
A boa notícia, pensou, era que havia muitas outras.
– Lane! O que você está fazendo?
Ele parou e se virou para Lizzie. Numa voz que não reconheceu, ele disse: – Preciso encontrar o meu pai.
A extremamente profissional assistente executiva de William Baldwine correu para dentro do escritório e arfou em alto e bom som ao ver o vidro quebrado.
– Você está sangrando! – a mulher exclamou.
– Onde está o meu pai?
A senhora Petersberd destrancou a porta e a abriu.
– Ele não está aqui, senhor Baldwine, ele ficará em Cleveland o dia inteiro. Acabou de sair e não sei bem quando retornará. O senhor precisa de algo?
Quando os olhos dela se fixaram nas juntas sanguinolentas da mão dele, ele soube que ela estava querendo dizer algo como “Que tal uma toalha, talvez?", mas ele pouco se importava se suas veias se esvaziassem naquele lugar.
– Quem contou ao meu pai que Gin tinha saído? – ele exigiu saber. – Quem ligou para ele? Foi você? Ou um espião na casa…
– Do que está falando?
– Ou você ligou para a polícia e mandou que eles prendessem a minha irmã? Tenho certeza absoluta de que meu pai não sabe apertar as teclas 190 sozinho, mesmo que tenham me dito que foi isso o que ele fez.
Os olhos da mulher se dilataram e depois ela sussurrou:
– Ele me disse que ela acabaria fazendo mal a si mesma. Que ela tentaria sair hoje de manhã e que eu teria que fazer o que fosse necessário para impedi-la. Ele disse que ela precisa de ajuda…
– Lane!
Ele virou a cabeça na direção de Lizzie bem quando tudo ficou fora dos eixos, seu corpo pendendo para um dos lados.
Com toda a força, Lizzie o sustentou e impediu que ele caísse no chão.
– Venha. Vamos voltar para casa.
Enquanto ele se deixava manobrar, sangue pingou no piso de pedra do terraço, manchando o cinza de vermelho. Fitando a assistente, ele ordenou: – Diga ao meu pai que eu o estou aguardando.
– Não sei quando ele volta.
Até parece, ele pensou. A mulher chegava a agendar as pausas para William ir ao banheiro.
Havia tanta raiva dentro dele que ele estava cego ao que o cercava enquanto Lizzie o guiava. A fúria era por causa de Edward. De Gin. De sua mãe.
De Max…
– Quando foi a última vez que você comeu alguma coisa? – Lizzie perguntou ao empurrá-lo pela porta de Easterly.
Por um instante, ele pensou estar alucinando. Mas logo percebeu que os homens e mulheres de branco eram chefs, e que ele e Lizzie estavam na cozinha.
– Desculpe, o que disse? – murmurou.
– Comida. Quando?
Ele abriu a boca. Fechou. Franziu o cenho.
– Meio-dia de ontem?
A senhorita Aurora entrou no campo de visão dele.
– Lands… O que há de errado com você, menino?
Houve algum tipo de conversa em seguida, nada que ele compreendesse. Em seguida, um curativo na sua mão, ao qual ele não deu atenção. E mais conversa.
Ele não voltou a sintonizar apropriadamente até estar sentado na sala de descanso dos chefs, à mesa, com um prato de ovos mexidos, seis fatias de bacon e quatro torradas diante de si.
Seu estômago roncou e ele piscou. Sua cabeça continuava uma confusão, mas sua mão pegou o garfo e começou a cavar.
Lizzie se sentou diante dele, a cadeira rangendo sobre o piso de madeira.
– Você está bem?
Ele fixou o olhar além dela, na senhorita Aurora, parada à porta como se estivesse prestes a sair.
– O meu pai é um homem mau.
– Ele tem o seu próprio conjunto de valores.
Que era o mais próximo que ela chegaria de condenar alguém.
– Ele está tentando vender a minha irmã. – Bufou. – É como se isso fosse… uma novela ruim.
Estava prestes a contar tudo quando o celular tocou; assim que viu quem era, atendeu.
– Samuel, em que pé estamos?
Samuel T. teve que erguer a voz acima das conversas ao fundo.
– Setenta e cinco mil para a fiança, foi o melhor que consegui. Assim que você trouxer o cheque, pode vir buscá-la.
– Já vou cuidar disso. Você vai embora?
– Só depois que ela sair. Ela tem o direito de se consultar com seu advogado, portanto, enquanto eu estiver por perto, ela não terá que voltar para aquela cela sozinha, ou que Deus não permita, com outra pessoa.
– Obrigado.
Assim que ele encerrou a ligação, a senhorita Aurora saiu para acompanhar o trabalho dos chefs, e ele se voltou para Lizzie.
– Vou ter que ir atrás do dinheiro da fiança dela agora. Depois disso, não sei mais.
Ela esticou a mão e a apoiou no braço dele.
– Como eu já disse antes: tem alguma coisa que eu possa fazer para ajudar?
Foi como um raio. Num minuto, ele estava normal, como qualquer outro homem numa situação como aquela. No seguinte? A luxúria bombeava em suas veias, excitando-o, desviando a loucura em sua cabeça para algo verdadeiramente insano.
Abaixando as pálpebras, murmurou:
– Tem certeza de que quer que eu responda?
Lizzie engoliu em seco e olhou para o ponto em que o tocava. Quando não disse nada, mas também não se afastou, ele se inclinou na direção dela e levantou seu queixo com o indicador. Travando os olhos nos lábios dela, beijou-a mentalmente, com imagens de si mergulhando a cabeça e colando a boca na dela. Empurrando-a no encosto da cadeira. Enfiando-se debaixo das roupas dela enquanto se ajoelhava entre suas pernas com…
– Ai… Deus… – ela sussurrou, os olhos evitando os dele.
Mas, ainda assim, ela não se afastou.
Lane lambeu os lábios. Depois abaixou a mão e saiu de perto dela.
– É melhor você ir. Ou vou fazer uma coisa que você vai se arrepender.
– E você? – ela sussurrou. – Você vai se arrepender?
– De te beijar? Nunca. – Meneou a cabeça, reconhecendo que suas emoções estavam à flor da pele… completamente descontroladas. – Mas não vou tocar em você até que me peça. Isso eu consigo prometer.
Depois de um instante, ela se levantou sem a sua elegância costumeira, a cadeira na qual estivera sentada deslizando pelo piso, seus pés trôpegos. Ele lhe deu tempo suficiente para sair da sala de descanso e avançar pelo corredor antes de ele mesmo sair.
Caso ficasse muito próximo dela, era bem possível que a agarrasse e a colocasse sobre a mesa, procurando o alívio que os dois tanto necessitavam.
Porque ela o desejava. Ele tinha acabado de ver.
Não que fosse ficar pensando nisso.
Ele precisava fazer com que o pai pagasse a fiança. Não que ele mesmo não tivesse aquela quantia. Tinha lucrado bastante na mesa de pôquer e, diferentemente da irmã, aos trinta e seis anos, já tinha acesso à primeira parte dos seus fundos. Mas William Baldwine criara aquela confusão, e o fato de o homem estar fora da cidade tornaria mais fácil pegar um cheque e levar ao banco para que o autorizassem.
Um minuto depois, Lane estava diante do escritório da controller, mas não se deu ao trabalho de bater, avançando direto para a maçaneta.
Trancada.
Assim como fizera com a porta de vidro do pai, socou a porta de carvalho… com a mão machucada.
– Ela não está? – o senhor Harris perguntou da soleira da sua suíte.
– Onde está a chave dessa porta?
– Não tenho permissão para…
Lane se virou.
– Pegue a porra dessa chave ou vou acabar derrubando a maldita porta.
E vejam só, uma fração de segundo depois, o mordomo se aproximou com um molho de chaves.
– Permita-me, senhor Baldwine.
Só que a chave não os levou a parte alguma. Ela entrou na fechadura, mas foi impossível girá-la.
– Lamento muitíssimo – disse o mordomo enquanto forçava a fechadura.
– Tem certeza de que é a chave certa?
– Está marcado aqui. – O homem mostrou a etiquetinha pendurada na ponta ornamentada. – Talvez ela volte logo.
– Deixe-me tentar.
Lane afastou o pinguim para o lado, mas também não teve sucesso. Perdendo a paciência, empurrou a porta com o ombro e…
O estalido da madeira se rompendo abafou seu grito de raiva, e ele teve que se segurar nos painéis quando eles se movimentaram de volta na sua direção.
– Mas que diabos! – exclamou, dando uma de Drácula e se afastando do fedor.
Enquanto o senhor Harris começava a tossir, tendo que cobrir o rosto com a lapela do terno, outra pessoa disse: – Ai, meu Deus, isso é…
– Tire todos do corredor – Lane ordenou ao mordomo. – E faça com que fiquem afastados.
– Sim, sim, claro, senhor Baldwine.
Lane ergueu o antebraço e respirou na manga da camisa ao se inclinar para dentro. O escritório estava um breu, as cortinas pesadas haviam sido fechadas, impedindo a entrada da luz solar, e o ar-condicionado sobre uma das janelas também estava desligado. Tateando ao redor da soleira com a mão livre, ele tinha a nítida impressão do que estava para encontrar e não conseguia acreditar.
Clique.
Rosalinda Freeland estava sentada numa poltrona estofada no canto oposto, o rosto congelado num sorriso repulsivo, os dedos acinzentados enterrados em almofadas de chintz, os olhos inertes fitando alguma versão da vida após a morte com que se deparou.
– Jesus… – Lane sussurrou.
O profissional conjunto de saia e terninho estava perfeitamente arrumado, os óculos de leitura, pendurados numa corrente de ouro sobre a blusa de seda, o coque primoroso, um tanto grisalho, ainda estava arrumado. Mas os sapatos não faziam sentido algum. Não eram os de couro que ela sempre calçava, mas um par de tênis Nike, como se ela estivesse prestes a sair para uma corrida.
Merda, pensou ele.
Enfiando a mão no bolso, pegou o celular e discou para a única pessoa que conseguiu pensar. Enquanto chamava, olhou ao redor. Não havia bagunça em parte alguma, o que era típico desta mulher que trabalhou em Easterly por trinta anos. Não havia mais nada sobre o tampo da mesa além do computador e do abajur com cúpula verde. As estantes escondiam discretamente todos os demais equipamentos de escritório, e os arquivos estavam tão em ordem quanto livros numa biblioteca.
– Alô? – respondeu a voz no celular.
– Mitch – disse Lane.
– Você está vindo com o cheque da fiança?
– Tenho um problema.
– O que posso fazer?
Lane fechou os olhos e perguntou como foi ter tanta sorte por ter aquele cara do outro lado da linha.
– Estou olhando para o cadáver da controller da minha família.
No mesmo instante, o tom do delegado baixou uma oitava.
– Onde?
– Em seu escritório em Easterly. Acho que ela pode ter se suicidado… Acabei de derrubar a porta.
– Já ligou para a emergência?
– Ainda não.
– Quero que ligue agora enquanto sigo para aí, só para que fique registrado e a polícia metropolitana possa ir para aí. Eles têm jurisdição.
– Obrigado, cara.
– Não toque em nada.
– Só toquei no interruptor ao entrar.
– E não deixe ninguém entrar no cômodo. Chego em cinco minutos.
Assim que Lane encerrou a ligação e discou para a emergência, seus olhos tracejaram as prateleiras. Ele pensou em todo o trabalho feito por aquela mulher naquele pequenino escritório.
– Sim, meu nome é Lane Baldwine. Estou ligando de Easterly. – A mansão não tinha número. – Houve uma morte na casa… Sim, tenho certeza de que ela não está mais viva.
Ele andou ao redor enquanto respondia a algumas perguntas, confirmou seu número de celular e depois desligou de novo.
Encarando a mesa, respeitou as ordens de Mitch, mas tinha que pegar o talão de cheques. Com cadáver ou sem, ele ainda tinha que tirar Gin da prisão.
Pegou o lenço do bolso e caminhou por cima do tapete oriental. Estava para puxar a gaveta estreita no centro da mesa quando algo chamou sua atenção. Bem no meio do mata-borrão de couro, perfeitamente alinhado como se fosse uma régua… havia um pen drive.
– Senhor Baldwine? Devo fazer alguma coisa? – o senhor Harris o chamou.
Lane relanceou para o corpo.
– A polícia está a caminho. Não podemos mexer em nada, por isso já vou sair.
Apanhou o que Rosalinda evidentemente deixara para quem a encontrasse. Depois abriu a gaveta e surrupiou o talão de cheques, enfiando-o no cós da calça na parte de trás, cobrindo-o com a camisa.
Virou-se para a controller. A expressão no rosto dela era como a do Coringa, um sorriso torto e horrível que apareceria nos seus pesadelos por um bom tempo.
– O que foi que o meu pai fez agora… – sussurrou no ar maculado pela morte.
DEZENOVE
Lizzie estava na estufa ao telefone com a empresa de aluguel quando percebeu o SUV do delegado do Condado de Washington avançando pela entrada da frente de Easterly.
Já estariam entregando os papéis do divórcio para Chantal? Puxa…
– Desculpe – disse, voltando a se concentrar. – O que disse?
– A conta está atrasada – o representante comercial repetiu. – Portanto não podemos aceitar nenhuma encomenda.
– Atrasada? – Isso era tão inconcebível quanto a Casa Branca deixar de pagar a conta de luz. – Não, não, pagamos o montante total da tenda ontem. Portanto, não é possível que…
– Veja bem, vocês são um dos nossos melhores clientes, queremos continuar trabalhando com vocês. Eu não sabia que a conta estava atrasada até o dono me contar. Enviei todos os materiais que pude, mas ele me impediu de mandar mais até que o saldo seja quitado.
– Quanto devemos?
– Cinco mil, setecentos e oitenta e cinco e cinquenta e dois centavos.
– Isso não será um problema. Eu mesma levarei o cheque agora, você pode nos…
– Não temos mais nada em estoque. Não temos nada para alugar, já que todas as festas na cidade acontecem este fim de semana. Liguei para Rosalinda na semana passada e deixei três recados sobre o saldo a pagar. Ela não retornou as ligações. Segurei o restante do pedido o máximo que pude porque queria cuidar da conta de vocês. Mas não tive notícias, e havia outros pedidos a serem atendidos.
Lizzie inspirou fundo.
– Ok, obrigada. Não sei o que está acontecendo, mas vou dar um jeito. Farei com que recebam.
– Lamento muito.
Quando encerrou a ligação, recostou-se na parede de vidro para tentar ver o veículo do delegado.
– … a emprresa falou?
Virou-se para Greta, que estava borrifando os últimos arranjos de mesa com preservativo floral.
– Desculpe, o que… ah, há um problema com o pagamento da conta.
– Então vamos ou não receberr as quinhentas taças de champanhe que faltam?
– Não. – Lizzie partiu para a porta que dava para a casa. – Vou falar com Rosalinda e depois dar a bela notícia ao senhor Harris. Ele vai ficar uma arara, mas pelos menos temos as tendas, as mesas e as cadeiras. Podemos lavar os copos conforme eles forem sendo usados, a família deve ter uma centena de taças na casa.
Greta a fitou através dos óculos de armação de casco de tartaruga.
– Terremos quase setecentas pessoas amanhã. Acha mesmo que conseguirremos darr conta? Com apenas quinhentas taças?
– Você não está ajudando.
Saindo da estufa, atravessou a sala de jantar e foi para a ala dos empregados. Quando empurrou a porta, parou de pronto. Havia três empregadas em uniformes cinza e branco bem juntinhas, falando agitadamente, mas num tom bem baixo, como se fosse um programa de televisão no volume mínimo. A senhorita Aurora estava ao lado delas, com os braços cruzados sobre o peito, e Beatrix Mollie, a governanta-chefe, estava ao seu lado. O senhor Harris estava no meio do corredor, seu corpo diminuto bloqueando o caminho até a cozinha.
Lizzie franziu a testa e se aproximou do mordomo. E foi nesse momento que sentiu o cheiro que, como fazendeira, conhecia com certa familiaridade.
Um homem afro-americano com uniforme de delegado saiu do escritório de Rosalinda junto de Lane.
– O que está acontecendo? – Lizzie perguntou, um calafrio percorrendo o seu peito.
Bom Deus, será que Rosalinda…
Era por isso que o corredor estava com um cheiro tão ruim de manhã, pensou, com o coração aos pulos.
– Houve um contratempo – disse o senhor Harris. – E ele já está sendo solucionado apropriadamente.
Lane se deparou com os olhos dela enquanto falava com o delegado e fez um aceno com a cabeça.
A senhora Mollie fez o sinal da cruz.
– São três de cada vez. A morte sempre vem em três.
– Tolice – murmurou a senhorita Aurora, como se a mulher a estivesse entediando com aquela linha de pensamento. – Os desígnios de Deus servem a todos. Não fique contando na ponta dos dedos.
– Três. Sempre em três.
Voltando para a estufa, Lizzie fechou a porta atrás de si e olhou ao redor, para os arranjos de flores creme e rosa.
– O que aconteceu? – Greta perguntou. – Ficou faltando mais alguma coisa do pedido…
– Acho que Rosalinda está morta.
Houve um barulho quando o spray escorregou da mão de Greta e quicou no chão, molhando os sapatos da mulher.
– O quê?
– Não sei nada.
Enquanto uma torrente de alemão jorrava da sua companheira, Lizzie murmurou: – É, não é? Não consigo acreditar.
– Quando? Como?
– Não sei, mas o delegado está lá. E não chamaram uma ambulância.
– Oh, mein Gott… das ist ja schrecklich!19
Xingando, Lizzie andou até a janela com vista para o jardim e fitou o gramado verde e resplandecente, e a elegante estrutura da festa. Já haviam concluído setenta e cinco por cento das tarefas e tudo estava realmente belo, ainda mais com as flores brancas que ela e Greta plantaram debaixo das árvores frutíferas.
– Estou com uma sensação muito ruim a respeito disso tudo – ouviu-se dizer.
Uma hora depois da chegada da polícia metropolitana, Lane teve permissão para deixar a cena por um curto período. Ele queria falar com Lizzie para informá-la sobre tudo o que estava acontecendo, mas primeiro tinha que cuidar de Gin.
O dinheiro da família Bradford era administrado pela Companhia de Fundos Prospect, uma empresa privada de bilhões de dólares em ativos e com todos os milionários de Charlemont na sua carteira de clientes. Contudo, como não eram um banco tradicional, as contas da família eram da filial local do PNC, e era de lá o talão de cheques que ele tirara da mesa de Rosalinda.
Parando no estacionamento de um prédio elegante, fez um cheque no valor de setenta e cinco mil dólares, falsificou a assinatura do pai e o endereçou à cadeia do Condado de Washington.
Assim que entrou no saguão bege e branco, foi interceptado por uma jovem num terno azul-marinho e com joias discretas.
– Senhor Baldwine, como tem passado?
Acabei de encontrar um cadáver. Obrigado por perguntar.
– Bem, preciso de uma autorização para sacar este cheque.
– Claro. Venha até o meu escritório. – Conduzindo-o até uma saleta envidraçada, ela fechou a porta e se sentou atrás de uma mesa organizada. – É sempre um prazer ajudar a sua família.
Ele escorregou o cheque por cima do mata-borrão e se sentou.
– Agradeço por isso.
O som das unhas batendo nas teclas do computador era um pouco incômodo, mas ele tinha problemas maiores.
– Hum… – A gerente pigarreou. – Senhor Baldwine, lamento, mas não há fundos suficientes na conta para compensá-lo.
Ele pegou o celular.
– Sem problemas, vou telefonar para a Fundos Prospect e solicitar a transferência. Quanto devemos?
– Bem, senhor, a conta está com um saldo devedor de vinte e sete mil, quatrocentos e oitenta e nove dólares e vinte e dois centavos. No entanto, o limite está cobrindo isso.
– Dê-me um minuto. – Ele procurou em seus contatos o número do administrador do CFP responsável pelos investimentos da família. – Farei a transferência.
Um evidente alívio tomou o rosto dela.
– Vou lhe dar um pouco de privacidade. Estarei no saguão quando estiver pronto. Leve o tempo que precisar.
– Obrigado.
Enquanto esperava a ligação completar, Lane bateu o sapato no piso de mármore.
– Hum, olá, Connie, como está? Aqui é Lane Baldwine. Bem. Sim, estou na cidade para o Derby. – Entre outras coisas. – Escute, preciso que transfira certa quantia para a conta-corrente da família no PNC.
Houve uma pausa. Em seguida, a voz serena e profissional da mulher se tornou tensa.
– Eu faria isso com prazer, senhor Baldwine, mas não tenho mais acesso às suas contas. O senhor deixou a Fundos Prospect no ano passado.
– Estou me referindo à conta do meu pai. Ou da minha mãe.
Outra pausa.
– Lamento, mas o senhor não tem autorização para transferir fundos dessa natureza. Vou precisar falar com o seu pai. Existe um modo de o senhor pedir para que ele nos telefone?
Não se quisesse aquele dinheiro. Considerando o que seu velho e bom papai estava tentando arrancar de Gin, de jeito nenhum o grandioso e glorioso William Baldwine facilitaria a soltura dela.
– O meu pai está fora da cidade e não será possível entrar em contato com ele. E se eu colocar a minha mãe na linha? – Por certo conseguiria acordá-la e mantê-la consciente por tempo suficiente para que ela pedisse a transferência de 125 mil para a conta-corrente da casa.
Connie pigarreou da mesma forma como a gerente do banco.
– Sinto muito, mas… não será o bastante.
– Se a conta é dela? Como não?
– Senhor Baldwine… não gostaria de me precipitar…
– Parece-me que é melhor falar de uma vez.
– Poderia aguardar um instante?
Enquanto uma música suave tocava em seu ouvido, Lane saltou da cadeira dura e começou a andar entre um vaso de planta num canto, que descobriu ser de plástico quando tocou numa folha, e as janelas que subiam até o teto, com vista para a rodovia de quatro pistas ao longe.
Houve um bipe e logo uma voz masculina entrou na linha.
– Senhor Baldwine? Aqui é Ricardo Monteverdi, como tem passado?
Maravilha, o CEO da empresa. O que significava que ele havia tropeçado numa “situação delicada”.
– Escute, só preciso de cento e vinte e cinco mil dólares em dinheiro, ok? Nada demais…
– Senhor Baldwine, como o senhor sabe, na Fundos Prospect, nós levamos a nossa responsabilidade fiduciária e os nossos clientes muito a sério…
– Pode parar já com o discurso de abertura. Conte-me por que a palavra da minha mãe não é o suficiente para sacar o próprio dinheiro dela, ou desligue logo.
Fez-se um silêncio.
– O senhor não me deixa escolha.
– O quê? Pelo amor de Deus, o que foi?
O período seguinte de silêncio foi tão longo e denso que ele afastou o aparelho da orelha para ver se a linha tinha caído.
– Alô?
Mais pigarreios.
– No início deste ano, o seu pai declarou que a sua mãe é mentalmente incompetente para administrar o fundo. A opinião de dois neurologistas qualificados é de que ela é incapaz de tomar quaisquer decisões. Portanto, se necessita de fundos de qualquer uma dessas contas, teremos o maior prazer em atendê-lo, desde que o pedido venha do seu pai em pessoa. Espero que entenda que estou numa situação delicada e que…
– Vou ligar para ele neste mesmo instante e farei com que ele telefone.
Lane encerrou a ligação e ficou olhando para o trânsito. Depois, seguiu até a porta e a abriu. Sorrindo para a gerente, disse: – Meu pai fará com que a transferência seja feita pela Prospect. Voltarei mais tarde.
– Estaremos abertos até as cinco, senhor.
– Obrigado.
De volta ao sol ofuscante, manteve o celular na mão ao atravessar o estacionamento escaldante, mas não o usou. Também não percebeu que estava dirigindo de volta para casa.
Que diabos ele faria agora?
Quando chegou a Easterly, havia outras duas viaturas próximas à garagem e alguns policiais uniformizados parados diante da porta da frente. Estacionou o Porsche em seu lugar costumeiro, à esquerda da entrada principal, e saiu.
– Senhor Baldwine – um dos policiais o cumprimentou quando Lane se aproximou.
– Cavalheiros.
A sensação de olhos o seguindo fez com que ele quisesse mandar o grupo para longe da sua casa. Tinha a sensação paranoica de que havia coisas acontecendo por trás das cortinas, sem que ele soubesse, e preferia encontrar algum esqueleto no armário primeiro sem testemunhas, sem o benefício dos olhares curiosos da polícia metropolitana.
Subindo os degraus até o segundo andar, foi para o próprio quarto e fechou a porta, trancando-a. Perto da cama, pegou o telefone da casa, apertou o número nove para conseguir uma linha externa, e depois pressionou *67 para que o número para o qual telefonava não ficasse registrado no identificador de chamadas. Quando deu linha, ele compôs uma sequência de quatro números.
Pigarreou quando ouviu um toque. Dois…
– Bom dia, aqui é do escritório do senhor William Baldwine. Como posso ajudá-lo?
Imitando o tom firme e profissional do pai, ele disse:
– Ligue-me com Monteverdi da Prospect agora mesmo.
– Sim, senhor Baldwine. Imediatamente.
Lane pigarreou uma vez mais enquanto uma música clássica se fazia ouvir. A boa notícia era que o pai era antissocial, exceto se a interação humana o beneficiasse nos negócios, portanto era muito improvável que os dois homens tivessem se falado recentemente, o que revelaria o seu engodo.
– Senhor Baldwine, o senhor Monteverdi está na linha.
Depois de um clique, Monteverdi começou a falar.
– Obrigado por finalmente retornar a minha ligação.
Lane baixou seu tom de voz e enfatizou o sotaque sulista.
– Preciso de cento e vinte e cinco mil na conta-corrente da casa…
– William, eu já lhe disse, não posso fazer mais adiantamentos, simplesmente não posso. Agradeço os negócios da sua família e estou comprometido em ajudá-lo a sair dessa situação antes que o nome Bradford se depare com dificuldades, mas as minhas mãos estão atadas. Tenho responsabilidades para com o Conselho, e você me disse que o dinheiro que pegou emprestado seria devolvido até a reunião anual, que acontecerá em duas semanas. O fato de necessitar de mais recursos, sendo um montante assim pequeno, já não me deixa mais tão confiante.
Mas que diabos?!
– Qual o total devido? – ele perguntou, carregando no forte sotaque da Virgínia.
– Eu lhe disse da última vez que deixei recado – Monteverdi se mostrou irritado. – Cinquenta e três milhões. Você tem duas semanas, William. Suas alternativas são: devolver o montante ou procurar o JP Morgan Chase e pedir um empréstimo contra o fundo primário da sua esposa. Ela tem mais de cem milhões só naquela conta, portanto o perfil de empréstimos deles será atendido. Eu lhe enviei a documentação num e-mail particular, você só precisa assinar os papéis e isso não nos afetará mais. Mas permita que eu seja bem franco: estou exposto nesta situação e não permitirei que isso prossiga assim. Existem medidas que eu poderia acionar, que seriam muito desagradáveis para você, e eu as usarei antes que alguma coisa me afete pessoalmente.
Puta.
Merda.
– Voltarei a falar com você – Lane disse com voz arrastada e desligou.
Por um instante, só conseguiu ficar olhando para o telefone. Literalmente não conseguia conectar dois pensamentos com coerência.
Em seguida, veio o vômito.
Numa ânsia súbita, dobrou-se ao meio, mal conseguindo apanhar o cesto de papéis a tempo.
Tudo o que comera na sala de descanso dos funcionários subiu.
Depois que o acesso passou, seu sangue correu gelado, a sensação de que nada era como deveria ser fazendo-o imaginar – e depois rezar – que aquilo fosse uma espécie de pesadelo.
Mas não podia se dar ao luxo de não fazer nada, ou pior, de desmoronar. Tinha que lidar com a polícia. Com a irmã. E com o que mais estivesse por vir…
Deus, desejou que Edward ainda estivesse por perto.
“Meu Deus, isso é mesmo terrível!”
VINTE
Uma hora mais tarde, Gin deslizou pelo banco do Porsche cinza-escuro do irmão, fechou os olhos e balançou a cabeça.
– Estas foram as piores seis horas da minha vida.
Lane emitiu uma espécie de grunhido, que poderia significar muitas coisas, mas que certamente estava bem longe do “Ah, Deus, não consigo imaginar o que você teve que suportar” que ela esperava ouvir.
– Desculpe – ela explodiu –, mas eu acabei de sair da cadeia…
– Estamos com problemas, Gin.
Ela deu de ombros.
– Conseguimos a fiança, e Samuel T. vai garantir que isso fique longe da imprensa…
– Gin. – O irmão a encarou quando saiu para o trânsito. – Estamos com graves problemas.
Mais tarde, ah, muito mais tarde, ela ainda se lembraria desse instante em que seus olhares se encontraram no interior do carro, indicando o início da derrocada, o primeiro dominó caindo, que fez com que todos os outros também caíssem com tamanha velocidade que ficou impossível deter a sequência.
– Do que está falando? – ela perguntou com suavidade. – Você está me assustando.
– A nossa família está devendo uma quantia enorme.
Ela revirou os olhos e balançou a mão no ar.
– Sério, Lane? Tenho problemas piores…
– E Rosalinda se matou na nossa casa. Em algum momento dos últimos dois dias.
Gin levou a mão à boca. Lembrou-se de ter telefonado para a mulher sem obter nenhuma resposta apenas algumas horas antes.
– Está morta?
– Morta. No escritório dela.
Foi impossível não ficar toda arrepiada quando visualizou o telefone tocando ao lado do cadáver da controller.
– Meu Deus…
Lane praguejou, olhando pelo retrovisor e mudando de faixa rapidamente.
– A conta-corrente da casa está com saldo devedor, e nosso pai de algum modo conseguiu um empréstimo de cinquenta e três milhões da Companhia de Fundos Prospect para fazer só Deus sabe o quê. E a pior parte? Não sei qual o fim disso e não sei se quero descobrir.
– O que você… desculpe, não estou entendendo…
Ele repetiu, mas isso não a ajudou muito.
Depois que o irmão se calou, ela ficou olhando pelo para-brisa, vendo a estrada fazer a curva ao redor do rio Ohio.
– Papai pode simplesmente pagar o empréstimo – disse ela, emburrada. – Ele paga e tudo acaba.
– Gin, se foi necessário pegar uma quantia dessas emprestada, é por que a pessoa está com problemas muito, muito sérios. E se essa pessoa ainda não pagou é porque não tem como.
– Mas mamãe tem dinheiro. Ela tem muito…
– Não sei se podemos nos fiar nisso.
– Então onde você conseguiu o dinheiro da fiança para me soltar?
– Tenho um pouco guardado e também o meu fundo, que desatrelei do fundo da família. Mas esses dois não são suficientes para cuidar de Easterly, e esqueça a possibilidade de pagar esse empréstimo ou de manter a Bourbon Bradford a salvo, se precisarmos.
Ela olhou para as unhas estragadas, concentrando-se na dizimação do que estava perfeito quando acordara naquela manhã.
– Obrigada por me tirar de lá.
– De nada.
– Vou devolver o seu dinheiro.
Como? Seu pai cortara todos os seus privilégios. E, pior de tudo, e se não restasse mais dinheiro para a sua mesada?
– Isso não pode ser possível – disse ela. – Só pode ser um mal-entendido. Um tipo de… falha de comunicação.
– Não acredito.
– Você tem que pensar positivo, Lane.
– Entrei no escritório de uma mulher morta há umas duas horas e isso foi antes de eu descobrir sobre a dívida. Posso lhe garantir que falta de otimismo não é o problema aqui.
– Você acha que… – Gin arquejou. – Acha que ela roubou de nós?
– Cinquenta e três milhões de dólares? Ou apenas uma parte? Não, porque, nesse caso, por que cometer suicídio? Se ela desfalcou os fundos, o mais inteligente seria fugir e trocar de identidade. E não se matar na casa do seu empregador.
– E se ela foi assassinada?
Lane abriu a boca para dizer “de jeito nenhum”. Mas voltou a fechá-la, como se estivesse pensando a respeito.
– Bem, ela o amava.
Gin ficou com o queixo caído.
– Rosalinda? Papai?
– Ah, o que é isso, Gin? Todos sabem disso.
– Rosalinda? A coisa mais selvagem nela era prender aquele coque um pouquinho mais pra baixo.
– Reprimida ou não, ela estava com ele.
– Na casa da nossa mãe?
– Não seja ingênua.
Muito bem, era a primeira vez que era acusada disso. E, de repente, aquela lembrança de tantos anos antes, daquele Ano-Novo, voltou… De quando vira o pai saindo do escritório da mulher.
Mas isso fora décadas atrás, em outra era.
Ou, talvez não.
Lane pressionou o freio num farol vermelho próximo ao posto de gasolina que ela parara naquela manhã.
– Pense no lugar onde ela morava. A casa colonial de quatro quartos em Rolling Meadows custa muito mais do que ela poderia pagar com seu salário de controller. Quem você acha que pagou?
– Ela não tem filhos.
– Que a gente saiba.
Gin apertou os olhos enquanto o irmão voltava a acelerar.
– Acho que vou enjoar.
– Quer que eu encoste?
– Quero que pare de me dizer essas coisas.
Houve um longo silêncio… e em meio ao vácuo, ela continuou voltando para a visão do pai saindo daquele escritório, amarrando o cinto do roupão.
No fim, o irmão balançou a cabeça.
– A ignorância não vai mudar nada. Precisamos descobrir o que está acontecendo. Preciso chegar à verdade de alguma maneira.
– Como você… como você descobriu isso tudo?
– Isso importa?
Quando contornaram a última curva na estrada River antes de Easterly, ela olhou para o alto à direita, para a colina. A mansão da sua família estava no mesmo lugar de sempre, seu tamanho e elegância incríveis dominando o horizonte, a famosa construção branca fazendo-a pensar em todas as garrafas de bourbon que traziam um desenho dela gravado em seus rótulos.
Até aquele momento, acreditou que a posição da família estivesse gravada em pedra.
Agora, temia que fosse em areia.
– Ok, estamos todos prontos aqui – Lizzie avançou entre as fileiras de mesas redondas debaixo da grande tenda. – As cadeiras já estão bem arrumadas.
– Ja20 – concordou Greta ao dar uma puxadinha numa das toalhas de mesa.
As duas continuaram, inspecionando todos os setecentos lugares, verificando novamente os candelabros de cristal que pendiam em três pontos da tenda, puxando um pouco mais os tecidos rosa-claro e brancos.
Quando terminaram, acompanharam a extensão de cordões verdes serpenteando pela parte externa, fornecendo eletricidade para os oito ventiladores gigantes que garantiriam a circulação de ar.
Ainda tinham umas boas cinco horas de trabalho até que escurecesse e, de maneira inédita, Lizzie achou que tinham concluído todas as prioridades. Os arranjos florais estavam prontos. Os canteiros de flores estavam impecáveis. Vasos na entrada e na saída da tenda combinavam à perfeição com as plantas e os botões suplementares. Até mesmo as estações de comida nas tendas adjuntas já haviam sido organizadas, seguindo as instruções da senhorita Aurora.
Até onde Lizzie sabia, a comida estava pronta e a bebida entregue. Os garçons e os barmen contratados estavam sob a batuta de Reginald, e ele não era de deixar nenhum fio solto. A segurança que garantiria que a imprensa ficaria ao largo era composta por policiais de folga da polícia metropolitana, e estavam todos prontos para trabalhar.
Ela quis ter alguma coisa com que ocupar seu tempo. O nervosismo a deixara mais produtiva do que de costume, e agora estava sem nada para fazer além de pensar que havia uma investigação criminal acontecendo a cinquenta metros dela.
Rosalinda.
Seu celular vibrou no quadril, sobressaltando-a. Ao pegá-lo, suspirou.
– Graças a Deus! Alô? Lane? Você está bem? Sim. – Franziu o cenho enquanto Greta a espiava. – Na verdade, eu o deixei no carro, mas posso ir pegá-lo agora. Sim, sim, claro. Onde você está? Tudo bem. Já vou levar para você.
Quando ela desligou, Greta lhe disse:
– O que está acontecendo?
– Não sei. Ele disse que precisa de um computador.
– Deve haverr uma dúzia deles na casa.
– Depois do que aconteceu hoje cedo, acha que vou discutir com o cara?
– Muito justo. – Embora a expressão da mulher berrasse seu desapontamento. – Vou darr uma olhada nos canteirros e vasos da frrente da casa, e confirrmarr se os manobristas chegarrão no horrárrio.
– Oito da manhã?
– Oito da manhã. E depois, não sei. Pensei em ir parra casa. Estou ficando com enxaqueca, e amanhã serrá um longo dia.
– Isso é horrível! Vá mesmo e volte com força total.
Antes que Lizzie se virasse, sua velha amiga lhe lançou um olhar sério através dos óculos pesados.
– Você está bem?
– Ah, sim. Absolutamente.
– Tem muito Lane por aqui. É porr isso que estou perrguntando.
Lizzie olhou para a casa.
– Ele vai se divorciar.
– Mesmo?
– É o que ele disse.
Greta cruzou os braços sobre o peito e seu sotaque alemão ficou mais evidente.
– Com dois anos de atrraso…
– Ele não é de todo ruim, sabe.
– O que disse? Isso… nein, você não pode estarr falando a verrdade.
– Ele não sabia que Chantal estava grávida, está bem?
Greta lançou as mãos para o alto.
– Ah, bem, isso muda tudo, então, ja? Então ele se prrontificou de livrre e espontânea vontade a se casarr enquanto estava com você. Perrfeito.
– Por favor, não faça isso. – Lizzie esfregou os olhos doloridos. – Ele…
– Ele te pegou de novo, não? Ligou parra você, veio te prrocurrarr, alguma coisa assim.
– E se ele fez? Isso é assunto meu.
– Passei um ano inteirro ligando parra você, parra que você saísse daquela sua fazenda, garrantindo que você virria parra o trabalho. Fiquei ao seu lado, me prreocupei com você, limpei o estrrago que ele deixou. Porr isso, não me diga que não posso exprressarr uma reação quando ele vem sussurrarr no seu ouvido…
Lizzie ergueu a mão diante do rosto da mulher.
– Chega. Não vamos mais falar disso. Nos vemos pela manhã.
Saiu marchando, e xingou baixinho no trajeto inteiro até o carro. Depois que pegou o laptop, seguiu apressada para a casa. Deliberadamente evitando a cozinha e a estufa, porque não queria encontrar Greta enquanto ela se preparava para sair, entrou na biblioteca e, sem pensar, tomou o corredor que dava para as escadas dos empregados e a cozinha. Não foi muito longe. Bem quando fazia a curva, foi parada por dois policiais, e foi então que ela viu o cadáver sendo levado numa maca com rodinhas.
Os restos mortais de Rosalinda Freeland foram colocados num saco branco com um zíper de 1,5 metro que, ainda bem, estava fechado.
– Senhora – um dos policiais disse –, vou ter que lhe pedir que abra o caminho.
– Sim, sim, desculpe. – Abaixando os olhos e refreando a onda de náusea, deu meia-volta, tentando não pensar no que acabara de ver.
E falhou.
Ela tinha dado seu nome à polícia, assim como o restante dos empregados, e fizera um relato breve de onde estivera a manhã toda e os últimos dias. Quando lhe perguntaram a respeito da controller, não teve muito a dizer. Não conhecia Rosalinda melhor do que os outros; a mulher era muito reservada e profissional, e só.
Lizzie sequer sabia se existia algum familiar para ser avisado.
Usar a escada principal era uma violação da etiqueta de Easterly, mas, levando-se em consideração que havia um carro mortuário estacionado e uma cena de crime no corredor dos funcionários, ela estava confiante de que poderia deixar o protocolo de lado. Já no segundo andar, avançou sobre o tapete claro, passando por quadros a óleo e alguns objetos que reluziam com sua antiguidade e manufatura superior.
Ao chegar à porta de Lane, não conseguia se lembrar da última vez que ela e Greta discutiram sobre alguma coisa. Deus, queria ligar para a mulher… Mas o que poderia dizer?
Deixe o laptop e saia, ordenou a si mesma. Só isso.
Lizzie bateu à porta.
– Lane?
– Pode entrar.
Empurrando a porta, ela o encontrou parado diante das janelas, com um pé plantado no peitoril, e um braço sobre o joelho erguido. Ele não se virou para vê-la entrar. Não disse nada.
– Lane? – Ela observou ao redor. Não havia ninguém com ele. – Olha só, vou deixar o laptop aqui e…
– Preciso da sua ajuda.
Inspirando fundo, ela disse:
– Ok.
Mas ele permaneceu em silêncio enquanto fitava o jardim. E que Deus a ajudasse, foi impossível desviar os olhos dele. Disse a si mesma que estava procurando sinais de cansaço… e não medindo os ombros musculosos. O cabelo curto na base da nuca. Os bíceps que marcavam as mangas curtas da camisa polo.
Ele tinha trocado de roupa. Tinha tomado um banho também. Ela sentia o perfume do sabonete e do shampoo.
– Sinto muito por Rosalinda – sussurrou. – Foi um choque.
– Hum.
– Quem a encontrou?
– Eu.
Lizzie fechou os olhos e abraçou o laptop junto ao peito.
– Ah, meu Deus.
De repente, ele enfiou a mão no bolso da frente da calça e tirou um objeto.
– Pode ficar comigo enquanto abro isto?
– O que é?
– Uma coisa que ela deixou para trás. – Ele mostrou o pen drive preto. – Encontrei sobre a escrivaninha dela.
– É um… bilhete suicida?
– Não acredito que seja isso. – Ele se sentou na cama e apontou para o laptop dela. – Se importa se eu…
– Ah, sim… aqui está. – Juntou-se a ele e levantou a tela do Lenovo, apertando o botão de liga/desliga. – Tenho Microsoft Office, então documentos de Word não devem ser um problema.
– Não acho que seja isso.
Colocou a senha e passou o computador para ele.
– Pronto.
Ele inseriu o pen drive e aguardou. A tela se acedeu com várias opções, e ele apertou em “abrir arquivos”.
Só havia um, intitulado “William Baldwine”.
Lizzie esfregou a testa com o polegar.
– Tem certeza de que quer que eu veja isso?
– Tenho certeza de que não posso ver isso sem você aqui.
Lizzie se viu esticando a mão e apoiando-a no ombro dele.
– Não vou te deixar.
Por algum motivo, ela lembrou da lingerie cor de pêssego que encontrara na cama do pai dele. Dificilmente era algo que Rosalinda vestiria; um tom de cinza-claro foi o mais próximo que a controller chegara a revelar do seu guarda-roupa. Mas, pensando bem, quem é que poderia saber o que a mulher escondia debaixo das saias e jaquetas decorosas?
Lane clicou no arquivo, e Lizzie percebeu que seu coração batia tão rápido quanto se tivesse acabado de correr meio quilômetro a toda velocidade.
E ele estava certo. Aquilo não era nenhuma carta de amor, tampouco um bilhete suicida. Era uma planilha repleta de números e datas e descrições breves, que Lizzie, por estar longe demais, não conseguia ler.
– O que é tudo isso? – perguntou.
– Cinquenta e três milhões de dólares – ele murmurou, descendo a tela. – Aposto como são cinquenta e três milhões de dólares.
– O que está dizendo? Espere… está sugerindo que ela roubou isso? – Não, mas acho que ela ajudou o meu pai a roubar.
– O quê?
Ele voltou-se para ela.
– Acho que, finalmente, meu pai tem sangue nas mãos. Ou, pelo menos, sangue que conseguimos ver.
“Sim.”
VINTE E UM
Voltando a se concentrar no laptop sobre o colo, Lane desceu pela planilha de Excel, localizando as entradas e tentando fazer uma somatória geral. Mas nem precisava ter se dado ao trabalho. Rosalinda somara por ele ao fim da página, numa célula em negrito à extrema direita de todas as colunas.
Na verdade, o total não era de 53 milhões de dólares.
Não, era de 68 milhões, 489 mil, 242 dólares e 65 centavos.
US$ 68.489.242,65.
As descrições para as retiradas variavam desde Cartier e Tiffany até a Aviação Bradford Ltda., que era a empresa que administrava todas as aeronaves e pilotos, e a folha de pagamento da Recursos Humanos Bradford, responsável, muito provavelmente, pelos salários de todos os empregados da casa. No entanto, havia uma descrição repetida que ele não reconhecia. Holding WWB.
Holding William Wyatt Baldwine.
Só podia ser.
Mas o que seria?
O montante maior tinha sido para eles.
– Acho que o meu pai… – Olhou para Lizzie. – Não sei, mas a companhia e fundos disse que ele se colocou, ou ele colocou a família, imagino, numa montanha de dívidas. Por quê? Mesmo com todos estes gastos, deveria haver muito dinheiro vindo da Cia. Bourbon Bradford para os acionistas, dos quais somos os majoritários.
– A empresa de aluguel… – Lizzie murmurou.
– O que foi?
– A empresa de aluguel não recebeu o pagamento, o financeiro deles telefonou para Rosalinda na semana passada e ela não retornou a ligação.
– Me pergunto para quem mais estamos devendo…
– Como posso ajudar?
Ele a fitou, a cabeça pensando, pensando.
– Me deixar ver este arquivo foi um bom começo.
– O que mais?
Deus, que olhos azuis, ele pensou. E os lábios, aqueles lábios naturalmente rubros tão perfeitamente moldados.
Ela falava com ele, mas Lane não conseguia ouvir. Era como se um silenciador o tivesse envolvido, impossibilitando-o de perceber qualquer som ao seu redor. Logo o computador em seu colo e todos os seus segredos também desapareceram, de forma que nem o brilho da tela nem o desenho de colunas e números e letras podia ser percebido.
– Lizzie – ele disse, interrompendo-a.
– Sim?
– Preciso de você – ele se ouviu dizer, rouco.
– Sim, claro, o que posso…
Inclinou-se e encostou os lábios nos dela, resvalando-os rapidamente.
Ela arfou e se afastou.
Lane esperou que ela se levantasse. Que lhe dissesse poucas e boas. Talvez voltasse ao século passado e o esbofeteasse.
Em vez disso, ela levantou os dedos e tocou a própria boca. Depois fechou os olhos.
– Eu queria que você não tivesse feito isso.
Merda.
– Desculpe. – Passou uma mão pelos cabelos. – Não estou com a cabeça no lugar.
Ela concordou.
– Sim.
Perfeito, pensou ele. A vida dele estava em labaredas em tantas frentes, por que não, então, atear mais um pouco de fogo? Sabe, só para piorar aquele inferno.
– Sinto muito – disse. – Eu deveria ter…
Ela se lançou sobre ele com um movimento tão rápido que ele quase caiu. O que o salvou foi o desejo… a necessidade feroz que ele sempre sentira por ela e que estivera represada durante todo o tempo em que ficaram afastados.
Lizzie disse ao encontro da boca dele:
– Também não estou com a cabeça no lugar.
Soltando uma imprecação, passou os braços ao redor dela e a trouxe para o colo, derrubando o computador sobre o carpete grosso. Queria se esquecer do dinheiro, do pai, de Rosalinda… mesmo que apenas por um momento.
– Desculpe – ele disse ao empurrá-la para o colchão. – Preciso de você. Eu só… preciso estar dentro de você…
Toc, toc, toc.
Os dois ficaram parados, os olhos presos um no outro.
– O que foi? – ele perguntou, irritado.
Uma voz feminina e abafada comentou algo sobre toalhas, e só o que Lane pensava era que a porta não estava trancada.
– Não, obrigado.
Lizzie saiu de baixo dele, e ele se moveu para que ela pudesse ficar de pé. Nesse meio-tempo, a criada continuou falando.
– Não preciso de toalhas, obrigado – repetiu com aspereza.
Seus olhos acompanharam as mãos de Lizzie, que ajeitavam a camisa e alisavam os cabelos.
– Lizzie… – sussurrou.
Ela apenas balançou a cabeça, andando em círculos, parecendo considerar saltar pela janela como estratégia de fuga.
Mais palavras por parte da criada, e ele perdeu a cabeça. Explodindo sobre os pés, foi até a porta e a abriu, bloqueando a entrada para o quarto. A loira de uns vinte e cinco anos do outro lado era a mesma que estava no corredor quando ele e Chantal discutiram.
– Ah, olá. – Ela lhe sorriu. – Como está?
– Não preciso de nada. Obrigado – disse, seco.
Quando se voltou para fechar, ela o segurou pelo braço.
– Sou Tiphanii, com “ph” e dois “is” no fim.
– Prazer em conhecê-la. Se me der licença…
– Eu só preciso entrar para ver como está o seu banheiro.
O sorriso a entregou. Isso e aquela pequena mudança de postura; ela inclinou o quadril na direção dele e suas pernas se esticaram, como se ela estivesse usando saltos altos em vez de Crocs.
Lane revirou os olhos, não conseguindo evitar. A mulher que desejava tinha acabado de sair de baixo dele e aquela bajuladorazinha achava que tinha algo a lhe oferecer?
– Obrigado, mas não. Não estou interessado.
Fechou a porta na cara dela porque não tinha energia para ser agradável e não queria dizer algo que acabasse lamentando mais tarde.
Girando, encontrou Lizzie do lado oposto do quarto, perto de uma janela. Ela estava deliberadamente mais para o lado, como se não quisesse ser vista, e seus braços estavam cruzados sobre o peito.
– Você pareceu bem sincero – ela comentou com secura.
– Quando estou com você, eu sou…
– Agora, com a criada.
– E por que eu não deveria?
– Sabe o que eu odeio mesmo?
– Só posso imaginar – ele murmurou.
– Como ela se ofereceu para você… E, mesmo assim, eu só consigo ficar pensando em arrancar as suas roupas. Como se fosse um brinquedinho que estou disputando com ela.
A ereção dele ficou mais apertada dentro da calça.
– Não existe disputa alguma… Eu sou seu. Se você quiser, aqui e agora. Ou mais tarde. Daqui uma semana, um mês, daqui a vários anos.
Cale a boca, sua ereção comandou. Apenas cale a boca, amigo, pare com essa coisa de futuro.
– Não vou voltar para você, Lane. Não vou.
– Você me disse isso pelo telefone.
Lizzie assentiu e desviou o olhar do jardim. Enquanto a luz começava a sumir do céu, ela marchou pelo quarto, evidentemente seguindo para a porta.
Maldição…
Não para a porta.
Na verdade, ela não foi para a porta.
Lizzie parou diante dele e deixou que os dedos completassem o trajeto, caminhando pelo seu rosto, trazendo a boca dele para a sua.
– Lizzie… – ele gemeu, lambendo a boca dela.
O beijo ficou rapidamente descontrolado, e ele não estava disposto a perder a chance com ela. Virando-a, empurrou-a contra a parede, acertando o quadro a óleo ao lado deles com tanta força que ele acabou soltando do prego e caindo no chão. Ele nem ligou. Suas mãos foram para baixo das roupas dela, encontraram a pele, subiram na direção dos seios.
Ele pensara que nunca faria aquilo de novo, e por mais que quisesse algo mais lento e demorado, não conseguia. Estava desesperado.
Foi rude com o cós dos shorts dela, arrancando o botão, descendo o zíper e fazendo-o escorregar pelas pernas dela. Em seguida, passou a mão entre as coxas dela, afastando a calcinha de algodão…
Lizzie exclamou seu nome numa voz rouca que quase o fez gozar ali mesmo, naquele instante. E quando os dedos dela se cravaram nos seus ombros, ele a afagou com mais intensidade.
– Pode me machucar – ele grunhiu quando ela o apertou com mais força. – Me faça sangrar.
Ele queria dor junto do prazer, pois tudo o que vinha acontecendo com o pai e a família deixava-o em carne viva, muito próximo de um lado sombrio… a ponto de ele pensar vagamente se não fora aquilo que norteara o irmão Max. Ficara sabendo das coisas que Maxwell fizera… ou rumores a respeito.
Talvez aquele fosse o motivo. Ele sentia como se precisasse arrancar a escuridão do seu íntimo ou acabaria sendo consumido por ela.
Suspendendo Lizzie do chão, deliciou-se com o modo como ela se grudou a ele com braços fortes. Um puxão no zíper da calça, e sua ereção estava pronta para seguir em frente. Rasgou a calcinha dela e…
O rugido que ela emitiu junto ao pescoço dele foi como o de um animal, mas ele não prestou atenção. A pegada escorregadia do sexo dela foi uma sensação que ele sentiu no corpo inteiro, e ele chegou ao orgasmo de imediato. Tanto tempo… Por tanto tempo ele sonhara com ela, lamentando o que tinha acontecido, querendo fazer as coisas de uma maneira diferente. E agora ele estava onde rezara: a cada bombeada dentro dela, ele voltava no tempo, consertando as coisas, reparando seus erros.
Ele queria estar com ela para, por um tempo, se afastar do presente. Mas, no fim, aquela experiência foi muito mais do que isso. Muito, muito mais.
Mas sempre fora verdadeiro com Lizzie. Fizera sexo muitas vezes no decorrer da vida.
No entanto, nada daquilo tivera importância… Até ele estar com ela.
Lizzie não tivera a intenção de ir tão longe.
Enquanto Lane chegava ao orgasmo dentro dela, foi alçada junto com ele, o seu orgasmo ecoando o dele. Rápido, tão rápido, tudo foi muito veloz, furioso, o ato chegou ao fim em questão de minutos, e os dois permaneceram unidos quando a onda inicial foi sumindo.
Tinham mesmo feito aquilo?, ela se perguntou.
Bem, tinham, ela concluiu quando ele se mexeu dentro dela.
E foi então que ela percebeu que… Ah, Deus, o cheiro dele era o mesmo. E os cabelos também, incrivelmente macios.
E o corpo continuava tão forte quanto ela se lembrava.
Lágrimas surgiram em seus olhos, mas ela escondeu o rosto no ombro dele. Não queria que ele percebesse suas emoções. Já estava com bastante dificuldade para reconhecer aquela confusão.
Apenas sexo, disse para si mesma. Era apenas desejo físico de ambas as partes. E Deus bem sabia, luxúria nunca fora um problema para eles. Desde o instante em que o vira no dia anterior, aquela conexão entre eles borbulhou até a superfície da pele dela.
E debaixo da pele dele também.
Ok. Sem problemas. Não conseguiu dizer não naquela situação específica, quando claramente deveria ter dito.
Quer fosse um erro ou não, dependia de como ela lidaria com as coisas dali por diante.
Recobrando o controle, afastou-se um pouco dos braços dele, muito ciente de que ainda estavam conectados.
Ficou com a respiração presa ao ver a expressão no rosto dele, quando ele fez um carinho em sua face.
Ele parecia tão vulnerável.
Contudo, antes que ela fizesse algum comentário calmo e sensato, ele começou a se mover dentro dela de novo. Lenta, ah… tão lentamente… para dentro e para fora. Para dentro e para fora. Em reação, os olhos dela se fecharam e ela ficou toda maleável, os braços dele sustentando-a, a parede nas suas costas apoiando-a ao encontro dele. Uma parte de si ainda estava presente, cada movimento sendo registrado com a claridade de um raio, a respiração pesada no peito e a fervura em seu sangue assumindo o controle de tudo.
A outra parte estava fugindo.
Ah, Deus, a sensação da mão dele agarrando seus cabelos, a boca beijando a sua com sofreguidão, os quadris se curvando e retraindo. Era como voltar ao lar de todas as maneiras que seu corpo desejava havia muito tempo.
E isso não podia ser bom.
– Lizzie – ele disse com uma voz entrecortada. – Senti saudade, Lizzie. Tanta saudade que chegava a doer.
Não pense nisso, ela disse a si mesma. Não preste atenção.
O nome dele escapou dos seus lábios uma vez mais, o estalido do prazer fazendo seu sexo se contrair ao redor da ereção enquanto ele se movia dentro dela, empurrando-a contra a parede, com tamanho ímpeto que a fez bater a cabeça.
Quando ficaram imóveis a não ser pela respiração, ela se deixou cair sobre ele.
– Esta não pode ser a última vez – ele grunhiu, como se soubesse o que ela estava pensando. – Não pode.
– Como você sabia…
– Não te culpo. – Ele se afastou, e seus olhos semicerrados a queimaram. – Só não quero que isso…
– Lane…
A batida à porta a sobressaltou. E ele praguejou.
– Mas que porra! – ele ralhou.
E considerando-se que ele não era de ficar falando palavrão, ela teve que dar um sorriso.
– O que foi? – ele berrou.
– Senhor Baldwine – era a voz do mordomo –, o senhor Lodge está aqui e gostaria de vê-lo.
Lane franziu o cenho.
– Diga a ele que estou ocupado…
– Ele disse que é urgente.
Lizzie balançou a cabeça e se afastou dos braços dele pela segunda vez. Quando seus pés tocaram o chão silenciosamente, ela se deu conta de que não haviam usado preservativo.
Isso mesmo. E tudo ficou bem real quando ela suspendeu os shorts e saiu apressada para o banheiro. Limpou-se o melhor que pôde enquanto Lane falava com o inglês pela porta. E quando ela voltou, ele já havia subido as calças e andava de um lado para o outro.
Ela levantou a palma antes que ele conseguisse comentar qualquer coisa.
– Vá lá ver o que ele quer.
– Lizzie…
– Se um quarto do que o preocupa for verdade, você vai precisar dele.
– Aonde você vai?
– Não sei. Acho que terminamos até amanhã de manhã.
O que era verdade em relação a tantas outras coisas.
– Você não pode ficar? – ele disse num ímpeto.
As sobrancelhas dela se ergueram.
– Ficar? Está querendo que eu passe a noite aqui? Isso é loucura.
Numa casa onde, tecnicamente, não podia usar metade das portas, acordar na cama do filho mais novo e continuar trabalhando em Easterly não era uma opção.
Ah, sim, pensou ela. Os bons e velhos tempos, quando tinham que manter tudo em segredo.
– Em qualquer lugar – ele disse. – Num dos chalés. Não faz diferença.
– Lane. Preste atenção, não é… Não vamos voltar ao que tínhamos antes, lembra? Não sei por que fiz o que fiz, mas isso não significa…
Ele se aproximou e a atraiu para um beijo, a língua invadindo a boca dela. Que Deus a ajudasse, pois, depois de um instante, ela retribuiu o beijo.
– Isso é importante – ele disse ao encontro dos lábios dela. – Isso é mais importante para mim do que a minha família. Você entende, Lizzie? Você sempre foi e sempre será importante para mim, a coisa mais importante.
Dito isso, ele se afastou e foi para a porta, olhando para ela por sobre o ombro – um olhar que era uma espécie de juramento, e que ela jamais vira antes.
Sentando no pé da cama dele, olhou para a parede onde tinham acabado de fazer sexo. O quadro no chão estava arruinado, a tela estava arranhada e torta, mas ela não queria avaliar o estrago. Apenas continuou sentada, tentando convencer a si mesma de que aquilo não era um sinal enviado por Deus.
Demorou um pouco para sair do quarto, atenta junto à porta, prestando atenção a vozes e passos antes de entreabrir a porta e espiar. Quando não havia mais nada além de silêncio, ela praticamente saltou para o meio do corredor e começou a andar apressada.
O quarto de Chantal ficava do outro lado do corredor, um pouco mais para a frente e, quando passou diante dele, sentiu a fragrância do perfume caro dela.
Um lembrete e tanto – não que ela precisasse – do por que deveria ter saído do quarto após a primeira interrupção.
Em vez de ter seguido em frente a toda velocidade.
Ela só podia culpar a si mesma.
VINTE E DOIS
Enquanto trotava escada abaixo, só o que Lane conseguia pensar era no quanto queria ter um drinque na mão. A boa notícia, e provavelmente a única que receberia, era que, quando chegou à sala de estar, Samuel T. já estava se servindo do Reserva de Família, o som do gelo a tilintar no copo atiçando a vontade de Lane como a ânsia de um viciado.
– Gostaria de partilhar da sua fortuna? – ele murmurou enquanto deslizava as portas de madeira dos dois lados da sala.
Havia muitas coisas que ele não queria que outros ouvissem.
– O prazer é meu. – Samuel o presenteou com um drinque igual ao seu num copo baixo de cristal. – Dia longo, não?
– Você não faz ideia. – Lane bateu um copo no outro. – O que posso fazer por você?
Samuel T. tomou seu bourbon e voltou para o bar.
– Fiquei sabendo sobre a controller. Meus pêsames.
– Obrigado.
– Foi você quem a encontrou?
– Sim.
– Já passei por isso. – O advogado voltou para perto e sacudiu a cabeça. – Dureza.
Você não sabe da missa a metade.
– Olha só, não quero te apressar, mas…
– Falou sério quanto ao divórcio?
– Claro.
– Tem um acordo pré-nupcial?
Quando Lane meneou a cabeça, Samuel xingou.
– Alguma possibilidade de ela ter te traído?
Lane esfregou as têmporas, tentando arrancar o que tinha acabado de acontecer com Lizzie… e o que vira naquele laptop. Queria pedir a Samuel T. que deixassem aquela conversa para o dia seguinte, mas seus problemas com Chantal estariam esperando, quer a sua família se afundasse em problemas financeiros ou não.
Na verdade, devia ser melhor dar sequência àquilo em vez de esperar, considerando toda aquela situação com o pai. Quanto mais rápido a tirasse daquela casa, menos informações ela teria para vender para os tabloides.
Não que não conseguisse vê-la falando pelos cotovelos com qualquer um, se o pior acontecesse com os Bradford.
– Desculpe – disse entredentes. – Qual foi mesmo a pergunta?
– Ela te traiu?
– Não que eu saiba. Ela passou os dois últimos anos nesta casa, vivendo à custa da minha família, fazendo a manicure.
– Uma pena.
Lane ergueu uma sobrancelha.
– Eu não sabia que via o matrimônio com tanto preconceito.
– Se ela tiver te traído, isso pode ser usado para reduzir a pensão. O Kentucky é um Estado que não exige admissão de culpa para conceder o divórcio, mas casos extraconjugais e maus tratos podem ser usados para mediar a pensão.
– Não estive com ninguém. – A não ser com Lizzie, havia pouco no quarto, e umas milhares de vezes antes em sua mente.
– Isso não importa, a menos que você queira pedir pensão a Chantal.
– Até parece. Livrar-me dela de uma vez por todas é só o que quero daquela mulher.
– Ela sabe que isso vai acontecer?
– Contei para ela.
– Mas ela sabe?
– Já está com os papéis para eu assinar? – Quando o advogado assentiu, Lane deu de ombros. – Bem, ela vai entender que eu estava falando sério quando receber os documentos.
– Assim que eu conseguir a sua assinatura, vou direto para o centro da cidade para dar entrada no divórcio. O tribunal terá que entender que o casamento está irrevogavelmente terminado, mas acho que, como faz dois anos que vocês moram em casas diferentes, não será um problema. Já vou avisando: acho que ela não vai abrir mão da pensão. E existe uma possibilidade de sair caro para você, ainda mais porque o padrão de vida dela foi bem alto nesta casa. Deduzo que alguns dos seus fundos foram liberados?
– A primeira parte. A segunda será liberada só quando eu completar quarenta anos.
– Qual a sua renda anual?
– Isso inclui os ganhos no pôquer?
– Ela está ciente deles? Você os declara no imposto de renda?
– Não e não.
– Então vamos deixar isso de fora. Qual o montante?
– Não sei. Nada ridículo, talvez um milhão, mais ou menos. Deve ser um quinto da renda gerada pelo acervo fiduciário.
– Ela vai atrás disso.
– Mas não ao acervo, correto? Acho que existe uma cláusula quanto ao excesso de gastos.
– Se estiver no Termo Irrevogável da Família Bradford de 1968, e eu acredito que esteja, pois foi meu pai quem redigiu os termos, pode apostar a sua melhor garrafa que sua iminente-ex-mulher não vai pôr a mão em nada disso. Vou precisar de uma cópia dos documentos, claro.
– A Fundos Prospect está com tudo.
Samuel T. tratou dos vários “arquivar isso”, “argumentar aquilo”, “divulgar sei lá o que”, mas Lane não estava mais prestando atenção. Em sua mente, estava no andar de cima, em seu quarto, com a porta trancada e Lizzie toda nua na sua cama. Ele a cobria com mãos e boca, diminuindo a distância dos anos e voltando ao ponto antes de Chantal aparecer em roupas de maternidade de grife.
O que quer que tivesse que enfrentar em relação ao pai e à dívida seria muito mais fácil se Lizzie estivesse ao seu lado, e não apenas sexualmente.
Amigos podiam se ajudar, certo?
– Tudo bem assim?
Lane voltou a se fixar no advogado.
– Sim. Quanto tempo vai demorar?
– Como já disse, vou entregar tudo ainda hoje a um juiz “amigável” que me deve um ou dois favores. E Mitch Ramsey concordou em disponibilizar a petição para ela imediatamente. Depois só vai faltar rascunhar o acordo do divórcio, e o meu palpite é que ela vá atrás de um tremendo advogado de família, que você vai ter que pagar. Vocês têm vivido separados há mais de sessenta dias, mas ela vai ter que sair desta casa o mais rápido possível, caso você tenha a intenção de ficar. Não quero que isso atrase o processo em dois meses, graças a uma possível alegação de coabitação da parte dela. O meu palpite é que ela contestará tudo, porque vai querer o máximo de dinheiro que puder de você. O meu objetivo é tirá-la da sua vida com apenas as roupas do corpo e aquele anel de um quarto de milhão de dólares que você lhe deu, e só.
– Parece-me uma excelente ideia. – Ainda mais porque ele não sabia se existia um centavo a mais para gastar em algum lugar que não fosse nas suas contas. – Onde assino?
Samuel apresentou diversos papéis para que fossem assinados. Tudo acabou antes que Lane terminasse seu primeiro copo de bourbon.
– Quer que eu te dê um adiantamento? – perguntou, ao devolver a Montblanc ao advogado.
Samuel T. terminou o drinque, depois se serviu de mais gelo e de mais uma dose do Reserva de Família.
– Fica por conta da casa.
Lane se retraiu.
– Que é isso, cara? Não posso deixar que faça assim. Deixe que eu…
– Não. Sério, não gosto dela, e ela não pertence a esta família. Encaro esse divórcio como parte da manutenção da casa. Uma vassoura para jogar o lixo fora.
– Eu não sabia que você a detestava tanto assim.
Samuel T. apoiou as mãos no quadril e baixou o olhar para o tapete oriental.
– Vou ser totalmente franco.
Lane já tinha entendido qual seria o assunto, pela maneira como o advogado contraía o maxilar.
– Vá em frente.
– Uns seis meses depois que você foi embora, Chantal ligou para mim. Pediu que eu viesse para cá, e quando eu me neguei, ela apareceu na minha casa. Ela estava querendo um “amigo”, como ela mesma disse, depois enfiou a mão dentro das minhas calças e se ofereceu para ficar de joelhos. Disse a ela que ela era louca. Mesmo se eu estivesse atraído por ela, o que nunca foi o caso, a sua família e a minha são amigas há gerações. Eu jamais ficaria com uma esposa sua, divorciada, separada ou casada. Além disso, a Virgínia é uma boa faculdade para se frequentar, mas eu não me casaria com uma moça de lá, e era exatamente isso que ela pretendia.
Caramba, às vezes ele odiava ter razão quanto àquela vadia, odiava mesmo.
– Não estou surpreso, mas fico contente que tenha me contado. – Lane levantou a mão. – Um dia vou retribuir o favor.
O advogado aceitou o que lhe era oferecido, depois se curvou de leve, e partiu com o copo.
– Você pode ser preso por beber na rua – Lane exclamou. – Para a sua informação.
– Só se eu for apanhado – Samuel T. exclamou de volta.
– Louco – murmurou Lane ao terminar o próprio drinque.
Quando foi se servir de outra dose, seu olhar recaiu sobre a pintura a óleo acima da cornija da lareira. Era um retrato de Elijah Bradford, o primeiro membro da família a ter dinheiro o bastante para se sobressair de seus pares, posando para um artista americano de renome.
Será que ele estava se revirando no túmulo àquela altura?
Ou isso aconteceria depois… quando o fedor piorasse?
Gin sentiu uma onda de pânico ao descer a escadaria principal de Easterly.
Assim que viu o Jaguar vintage diante da casa, tirou as roupas que usara na cadeia, pelo amor de Deus, e colocara um vestido de seda com barra bem acima dos joelhos. Borrifou um pouco de perfume. Calçou sapatos que deixavam seus tornozelos mais finos do que nunca.
A julgar pelas portas fechadas da sala de estar, ela sabia que o irmão estava falando com Samuel T. a respeito da Situação. Ou das Situações.
Deixou-os à vontade.
Em vez de entrar na sala, foi para a porta da frente e esperou ao lado do conversível antigo. A temperatura devia estar nos vinte e poucos graus, apesar de o sol já estar se pondo, e havia certa umidade no ar – ou talvez fossem seus nervos fora de controle. Para aproveitar um pouco de sombra, foi para debaixo de uma das magnólias que cresciam próximas à casa.
Enquanto olhava para o carro, lembrou-se das vezes que esteve nele com Samuel T., do vento noturno em seus cabelos, da mão dele entre suas pernas enquanto ele os conduzia pelas estradas cheias de curvas da sua fazenda.
O conversível fora comprado por Samuel T. pai, no dia do nascimento daquele que acabou sendo o único herdeiro do homem. E foi dado ao jovem Samuel T. em seu décimo oitavo aniversário, com instruções precisas de que ele não se matasse nessa coisa.
E, engraçado, as instruções deram resultado: só quando estava atrás daquele volante é que aquele homem era cuidadoso. Gin suspeitava de que ele sabia que se algo lhe acontecesse, sua árvore genealógica chegaria ao fim.
Ele era o único membro da sua geração que sobrevivera.
Foram muitas tragédias.
Que, até aquele exato instante, não lhe interessaram muito.
Enquanto aguardava, seu coração batia rápido, e a agitação em seu peito a deixava tonta. Ou talvez fosse o calor…
Samuel T. parou diante da porta da frente e saiu de Easterly com um copo de cristal na mão. Ele formava uma figura impressionante com o terno cortado sob medida, seu lindo rosto e a maleta com monograma. Estava usando óculos de sol com armação dourada, e os cabelos escuros e espessos estavam penteados para trás, com um topete que parecia ter sido milimetricamente arrumado, mas que, na verdade, nunca requeria isso.
Ele parou quando a viu. Depois disse em sua fala arrastada: – Veio me agradecer por te salvar?
– Preciso falar com você.
– É mesmo? Vai tentar negociar um adiantamento que não envolva dinheiro? – Bebeu todo o líquido e deixou o copo no primeiro degrau, como só alguém que sempre teve empregados faria. – Estou aberto a sugestões.
Ela avaliou cada passo que ele deu na direção dela e do carro. Conhecia muito bem aquele corpo forte e musculoso, que denunciava o fazendeiro que era no fundo de sua alma, debaixo de todas aquelas roupas elegantes de advogado.
Amelia seria alta como ele. E também era inteligente como ele.
Infelizmente, a menina era boba como a mãe, ainda que talvez um dia pudesse superá-lo.
– E então? – incitou-a ao colocar a maleta no banco. – Posso escolher como vai pagar a sua conta?
Mesmo através das lentes escuras, sentia o olhar dele. Ele a desejava, sempre a desejou, e às vezes, ele a detestava por isso: não era um homem que apreciava restrições, mesmo as autoimpostas.
Ela também era assim.
Samuel T. meneou a cabeça.
– Não me diga que o gato comeu a sua deliciosa língua. Seria uma pena tremenda ficar sem essa parte da sua anatomia…
– Samuel.
No instante em que ele ouviu o tom de voz dela, franziu o cenho e tirou os óculos escuros.
– O que aconteceu?
– Eu…
– Alguém a destratou na cadeia? Porque vou pessoalmente até lá e…
– Case comigo.
Ele parou no ato, tudo congelou: a expressão dele, a respiração, talvez até mesmo o coração. Depois ele gargalhou.
– Certo, certo, certo. Claro que você…
– Estou falando sério.
A porta do carro se abriu silenciosamente, um testemunho dos cuidados que ele tinha com o carro.
– O dia que você se assentar com qualquer homem será o dia do Segundo Advento.
– Samuel, eu te amo.
Ele lhe lançou um olhar sardônico.
– Ora, por favor…
– Preciso de você.
– A cadeia mexeu mesmo com você, não mexeu? – Ele se acomodou no banco do motorista e ficou olhando para o capô por um instante. – Olha aqui, Gin, não se sinta mal por ter parado lá, ok? Consegui apagar qualquer rastro, então a sua ficha vai ficar limpa. Ninguém vai saber de nada.
– Não é esse o motivo. Eu só… Vamos nos casar. Por favor.
Olhando para ela, ele franziu tanto o cenho que suas sobrancelhas se uniram.
– Você parece estar falando sério.
– Estou mesmo. – Ela não era idiota. Ela lhe contaria sobre Amelia mais tarde, quando fosse mais difícil para ele escapar, quando houvessem documentos que os unissem, até que ele superasse o que ela lhe fizera. – Você e eu nascemos para ficar juntos. Você sabe disso. Eu sei. Estamos dando voltas neste nosso relacionamento a vida toda, mais até. Você sai com garçonetes, manicures e massagistas porque elas não são eu. Você compara cada uma dessas mulheres ao meu padrão e todas elas perdem. Você é obcecado por mim, assim como eu sou por você. Não vamos mais mentir, vamos fazer o que é certo.
Ele voltou o olhar para o capô e escorregou as belas mãos sobre o volante de madeira.
– Deixe eu te perguntar uma coisa.
– Qualquer coisa.
– Para quantos homens você já disse isso? – Voltou a olhar para ela. – Hein? Quantos, Gin? Quantas vezes você usou essas frases?
– É a verdade – ela disse numa voz entrecortada.
– Você também tentou esse tom de súplica com eles, Gin? Bateu os cílios para eles?
– Não seja cruel.
Depois de um longo silêncio, ele meneou a cabeça.
– Você se lembra da minha festa de trigésimo aniversário? Aquela que aconteceu na minha fazenda?
– Isso não tem nada a ver com…
– Foi uma bela surpresa. Eu não fazia a mínima ideia de que vocês estariam lá esperando por mim. Entrei na minha casa e… surpresa! Todas aquelas pessoas gritando, e eu procurei por você…
Ela levantou as mãos.
– Isso aconteceu cinco anos atrás, Samuel! Foi…
– Na verdade, foi o resumo do nosso relacionamento, Gin. Eu procurei por você… percorri os olhos pela multidão, fui atrás de você…
– Aquilo não foi importante. Nenhum deles importou…
– … porque, como você mesma disse, sou um tolo e você foi a única mulher que eu quis de verdade. E eu te encontrei… transando com aquele jogador de polo argentino, hóspede de Edward, na minha cama.
– Samuel…
– Na minha cama! – ele esbravejou, batendo com o punho no painel. – Na porra da minha cama, Gin!
– Tudo bem! E o que foi que você fez? – Ela empinou o quadril e apontou o dedo na direção dele. – O que foi que você fez? Você pegou a minha colega de quarto da faculdade e a irmã dela e transou com as duas na piscina.
Ele praguejou alto.
– O que eu deveria ter feito? Deixar que você me pisoteasse? Sou homem, não um dos seus amigos coloridos patéticos! Eu não vou…
– Fiquei com o jogador de polo porque na semana anterior você dormiu com Catherine! Eu era amiga dela desde os dois anos, Samuel. Tive que ficar ouvindo-a contar e repetir que você lhe deu os melhores orgasmos da vida dela no banco de trás do seu carro. Depois de ter ficado comigo na noite anterior! Então, não venha me dizer que você foi o…
– Chega. – De repente, ele correu os dedos pelos cabelos. – Já chega, pare. Não vamos mais fazer isso, Gin. Temos as mesmas discussões desde que éramos adolescentes…
– Brigamos porque gostamos um do outro e somos orgulhosos demais para admitir isso. – Quando ele se calou de novo, ela teve esperança de que ele estivesse repensando. – Samuel, você é o único homem que eu amei. O mesmo acontece com você. É simples assim. Se precisamos parar de fazer alguma coisa, é de brigar e de nos magoar. Somos dois teimosos e orgulhosos demais para o nosso próprio bem.
Houve um longo silêncio.
– Por que agora, Gin…
– Porque… chegou a hora.
– Tudo isso só por causa da revista íntima das dez da manhã?
– Você precisa mesmo falar assim?
Samuel T. balançou a cabeça.
– Não sei se você está falando sério ou não, mas não é problema meu. Deixe-me ser bem claro.
– Samuel – ela o interrompeu –, eu te amo.
E ela estava falando sério. Ela estava abrindo a alma. A terrível convicção de que as coisas ficariam ruins para a família se enraizara e se espalhara, trazendo com ela uma certeza que ela nunca teve antes.
Ou talvez houvesse mais por trás – uma coragem que antes lhe faltara. Em todos aqueles anos juntos, ela nunca lhe dissera o que sentia verdadeiramente. Ela só se preocupava em manter a pose e dizer a última palavra. Bem, e criar a filha dele… não que ele soubesse disso ainda.
– Eu te amo – sussurrou.
– Não. – Ele abaixou a cabeça e apertou o volante como se buscasse forças dentro dele mesmo. – Não… Você não pode fazer isso, Gin. Não comigo. Não tente levar a farsa tão a fundo. Não é saudável para você. E eu acho que eu não sobreviveria, ok? Preciso funcionar… minha família precisa de mim. Não vou permitir que enlouqueça minha cabeça tanto assim…
– Samuel…
– Não! – ele exclamou.
Depois ele a encarou, os olhos azuis frios e agudos, como se estivesse diante de um inimigo.
– Primeiro, não acredito em você, ok? Acho que está mentindo para me manipular. Segundo? Jamais permitirei que uma esposa minha me desrespeite da maneira como você desrespeitará o seu marido. Você é fundamentalmente incapaz de ser monógama e, indo direto ao ponto, você se entedia rápido demais para valorizar um relacionamento durável. Você e eu podemos nos divertir de vez em quando, mas eu jamais honraria uma puta como você com o meu sobrenome. Você menospreza as garçonetes? Tudo bem. Mas eu preferiria que alguém assim tivesse a minha aliança no dedo do que uma menina mimada e desleal como você.
Ele deu a partida no carro, e o cheiro doce da gasolina e de óleo fugazmente se espalhou pelo ar quente.
– Eu te procuro da próxima vez que tiver vontade de cuidar de um assunto do qual prefiro não cuidar sozinho. Até então, divirta-se com o resto da população.
Gin levou as duas mãos sobre a boca quando ele deu marcha ré, e o carro desapareceu pelo caminho, colina abaixo.
Conforme ele sumia, lágrimas caíram dos olhos dela, borrando o rímel e, de maneira inédita, ela não se importou.
Dera seu único lance.
E fracassara.
Aquele era o seu pior pesadelo se concretizando.
VINTE E TRÊS
– Hum, Lisa?
Lizzie ficou estática assim que ouviu o sotaque sulista arrastado se infiltrando na estufa, o que foi estranho porque estava desmontando as mesas que usaram para os arranjos florais e uma delas ficou equilibrada apenas em uma perna.
– Lisa?
Ao erguer o olhar, Lizzie viu a esposa de Lane parada à porta como se estivesse posando para uma câmera, com uma mão no quadril e a outra jogando os cabelos para trás. Vestia calças de seda cor-de-rosa Mary Tyler Moore da Laurie Petrie e uma blusa com decote baixo num tom laranja pôr do sol. Os sapatos eram de bico fino, com saltos pequenos e, para completar, uma echarpe dramática e transparente em tons cítricos de amarelo e verde envolvia seus ombros, amarrada diante dos seios perfeitos.
Levando-se tudo em consideração, a composição criava uma impressão de Frescor, Amabilidade e Tentação, fazendo que alguém que estava Cansada, Ansiosa e Estressada se sentisse ainda mais deficiente – não apenas com relação ao penteado e à vestimenta, mas até à genética molecular.
– Pois não? – Lizzie disse enquanto prosseguia batendo numa das pernas.
– Poderia parar de fazer isso? É muito barulhento.
– Será um prazer – Lizzie disse entredentes.
Por algum motivo, enquanto a mulher brincava com as mechas loiras, o brilho do diamante em sua mão esquerda foi como se alguém lançasse uma maldita bomba repetidamente.
Chantal sorriu.
– Preciso da sua ajuda para uma festa.
Podemos apenas terminar a de amanhã primeiro?
– Será um prazer.
– É uma festa para dois. – Chantal sorriu ao soltar a echarpe e avançar um pouco mais. – Puxa, como está quente aqui. Não pode fazer nada a respeito?
– As plantas gostam mais do calor.
– Oh. – Tirou a echarpe e a deixou ao lado de um buquê que seria colocado num dos ambientes sociais da casa. – Bem.
– Você dizia?
Aquele sorriso retornou.
– Logo será nosso aniversário de casamento, meu e de Lane, e eu gostaria de preparar algo especial.
Lizzie engoliu em seco, e ficou se perguntando se aquele seria algum tipo de jogo doentio. Será que a mulher ouvira alguma coisa lá no segundo andar através das paredes?
– Pensei que tivessem se casado em julho.
– Quanta gentileza sua se lembrar. Você é tão atenciosa. – Chantal inclinou a cabeça para o lado e fixou o olhar no seu, como se estivessem partilhando um momento especial. – Sim, nos casamos em julho, mas tenho uma novidade muito especial para contar para ele, e pensei em comemorar um pouco antes.
– No que pensou?
Lizzie não acompanhou muito bem enquanto ela falava. As únicas coisas que captou foi “romântico” e “reservado”. Como se Chantal estivesse planejando presentear o marido com uma dança íntima.
– Lisa? Você está escrevendo tudo isso?
Bem, não, porque estou sem caneta e papel, não é? E P.S.: acho que vou vomitar.
– Ficarei contente em planejar o que quer que tenha em mente.
– Você é tão prestativa. – A mulher acenou para a tenda e para o jardim do lado de fora. – Sei que tudo ficará lindo amanhã.
– Obrigada.
– Podemos conversar mais a respeito depois. Mas repito, estou pensando num jantar romântico numa suíte do Cambridge Hotel. Você poderá providenciar as flores e a decoração especial. Quero que tudo seja coberto com panos a fim de criar um lugar exótico, apenas para nós dois.
– Tudo bem.
Será que Lane tinha mentido? E se tinha… bem, isso faria com que Greta cuidasse de tudo durante o Brunch do Derby, enquanto ela ficaria na fazenda se ocupando de um galão de sorvete de chocolate.
Só que ela e sua colega de trabalho não estavam conversando mais.
Fantástico.
– Você é a melhor. – Chantal consultou o relógio de diamantes. – Já está na hora de você voltar para casa, não está? Grande dia amanhã… Você vai precisar do seu sono de beleza. Tchauzinho por enquanto.
Quando Lizzie se viu só novamente, sentou-se num dos baldes virados para baixo e apoiou as mãos sobre os joelhos, esfregando-os para cima e para baixo.
Respire, ela se ordenou. Apenas respire.
Greta estava certa. Ela não estava no nível daquelas pessoas, e não só por ser apenas uma jardineira. Eles jogavam um jogo do qual ela só sairia perdendo.
Hora de ir embora, resolveu. O sono de beleza não iria acontecer, mas, pelo menos, ela poderia tentar e seguir em frente, antes que a bomba estourasse no dia seguinte.
Levantou-se, e já estava para sair quando viu a echarpe. A última coisa que queria era ter que entregar o pedaço de seda para Chantal, como se fosse um labrador devolvendo uma bola de tênis para seu dono. Mas aquela coisa estava bem ao lado de todos aqueles buquês e, conhecendo sua sorte, algo poderia vazar e cair em cima do pano, e ela teria que poupar três meses de salário para comprar um novo.
O guarda-roupa de Chantal era mais caro que bairros inteiros de Charlemont.
Pegando a peça, pensou onde a mulher poderia ter ido com aqueles estúpidos saltos finos.
Não seria difícil localizá-la.
Gin ainda estava debaixo da magnólia onde Samuel T. a deixara quando um veículo veio subindo pela entrada da frente. Foi só quando o SUV parou diante dela que ela percebeu que era da delegacia do Condado de Washington. Bom Deus, quais seriam as alegações do pai para prendê-la desta vez? Graças ao horrendo trajeto daquela manhã até o centro da cidade, seu primeiro instinto foi o de correr, mas estava com saltos, e se queria mesmo fugir do policial, teria que escapar por uma moita de flores.
Quebrar a perna não a ajudaria em nada na prisão.
O delegado Mitchell Ramsey saiu com um maço de papéis na mão.
– Senhorita – ele a cumprimentou com um aceno. – Como está?
Ele não tirou algemas do bolso. Não mostrava nenhum interesse nela além de uma mera educação.
– Veio aqui por minha causa? – ela perguntou de repente.
– Não. – Os olhos dele se estreitaram. – A senhorita está bem?
Não, nem um pouco, delegado.
– Sim, obrigada.
– Se me der licença…
– Então, não veio atrás de mim?
– Não, senhorita. – Ele andou até a porta e tocou a campainha. – Não vim.
Talvez estivesse relacionado à Rosalinda?
– Por aqui – ela disse, passando por ele. – Entre. Está procurando pelo meu irmão?
– Não, Chantal Baldwine está em casa?
– É bem provável. – Ela abriu a porta principal, e o delegado tirou o chapéu ao entrar. – Deixe-me encontrar… ah, senhor Harris. Pode, por favor, conduzir este cavalheiro até a minha cunhada?
– Será um prazer – disse o mordomo, curvando-se. – Por aqui, senhor. Acredito que ela esteja na estufa.
– Senhorita… – o delegado murmurou na direção dela, antes de seguir o inglês.
– Vejamos, isso deve ser bem interessante – disse uma voz na sala de estar.
Ela se virou.
– Lane?
O irmão estava diante do quadro de Elijah Bradford, e ergueu um copo baixo.
– Ao meu divórcio!
– Mesmo? – Gin andou e se ocupou no bar porque não queria que Lane se concentrasse nos seus olhos vermelhos e no seu rosto inchado. – Bem, pelo menos eu não terei mais que tirar as joias de mamãe do pescoço dela. Já vai tarde, mas estou surpresa que você não queira apreciar o espetáculo.
– Tenho problemas mais importantes.
Gin levou seu bourbon com soda para o sofá e, com um chute, tirou os sapatos. Enfiando as pernas debaixo do corpo, encarou o irmão.
– Você está horrível – ela disse. Tão péssimo quanto ela, na verdade.
Ele se sentou diante dela.
– Isso vai ser difícil, Gin. A situação financeira. Acho que é bem séria.
– Talvez possamos vender ações. Quero dizer, você pode fazer isso, não? Eu não faço ideia de como funciona.
E, pela primeira vez na vida, desejou saber.
– É complicado por conta da situação dos fundos.
– Hum… nós vamos ficar bem. – Quando o irmão não disse nada, ela franziu o cenho. – Certo? Lane?
– Eu não sei, Gin. Não sei mesmo.
– Sempre tivemos dinheiro.
– Sim, isso era verdade.
– Você faz com que isso pareça pertencer ao passado.
– Não se engane, Gin.
Curvando o pescoço para trás, ela ficou olhando para o teto, imaginando a mãe deitada na cama. Qual seria o futuro dela? Será que um dia ela se recolheria e puxaria as cortinas a fim de viver num torpor induzido pelas drogas?
Por certo, isso lhe parecia atraente agora.
Deus, Samuel T. tinha mesmo recusado seu pedido?
– Gin, você andou chorando?
– Não – ela disse com suavidade. – É apenas uma alergia, meu querido irmão. Apenas alergia causada pela primavera…
VINTE E QUATRO
Lizzie se apressou para fora da estufa com a echarpe perfumada de Chantal, e toda aquela fragrância emanando do tecido pesava em seu nariz, fazendo-a querer espirrar. Engraçado, conseguia ficar rodeada por milhares de flores de verdade, mas aquela coisa fabricada, artificial e forte bastava para mandá-la atrás de um Claritin.
Ao longe, ouviu o inconfundível sotaque arrastado típico da Virgínia de Chantal e seguiu na direção da sala de jantar para…
– O que é isso? – Chantal exigiu saber.
Lizzie parou de repente e espiou ao redor da arcada pesada de gesso.
Na ponta oposta da longa mesa lustrada, Chantal estava diante de um delegado uniformizado que, aparentemente, lhe entregara um maço de papéis.
– A senhora recebeu sua petição. – O delegado assentiu. – Passe bem.
– O que quer dizer com “petição”? O que quer… Não, você não vai embora até eu abrir isso. – Ela rasgou o envelope. – Fique aqui até eu…
Os papéis saíram do envelope num maço dobrado em três, e quando a mulher os esticou, o coração de Lizzie bateu forte.
– Divórcio? – Chantal disse. – Divórcio?
Lizzie voltou para trás e se encostou na parede. Fechando os olhos, odiou o alívio que sentiu, odiou mesmo. Só que ela não tinha como fingir que não era algo bom.
– Esta é uma petição de divórcio! – A voz de Chantal ficou mais aguda. – Por que está fazendo isso?
– Senhora, o meu trabalho é apenas entregar os papéis. Agora que os recebeu…
– Eu não os recebi! – Houve um farfalhar como se, de fato, ela tivesse jogado os papéis na direção do homem. – Pode pegar isso de volta!
– Senhora – o policial rugiu –, vou aconselhá-la a pegar esses papéis do chão. Ou não. O problema é seu. Mas se continuar agindo assim, vou ter que levá-la para a cadeia amarrada no teto da minha viatura por se mostrar agressiva com um oficial da justiça. Estamos entendidos?
Então, veio uma cascata.
Entre fungadas e o que deviam ter sido arquejos, Chantal mudou de atitude rapidamente.
– O meu marido me ama. Ele não está falando sério. Ele…
– Senhora, nada disso é da minha conta. Passe bem.
Passadas pesadas ecoaram e se afastaram.
– Maldição, Lane! – a mulher sibilou com uma dicção perfeita.
Pelo visto a atuação só acontecia quando havia uma plateia.
Sem aviso, um toc-toc-toc daqueles saltos atravessou o cômodo indo na direção de Lizzie. Merda, não havia tempo de sair dali…
Chantal fazia a curva e se sobressaltou ao ver Lizzie.
Embora a mulher tivesse aberto a torneira para o delegado, seus olhos estavam límpidos, e a maquiagem não estava nem um pouco borrada.
Ódio. Imediato.
– O que está fazendo? – Chantal berrou, o corpo trêmulo. – Ouvindo atrás das portas?
Lizzie estendeu a echarpe.
– Eu estava trazendo isto para você…
Chantal agarrou o tecido.
– Saia daqui. Saia! Saia imediatamente!
Não precisa pedir duas vezes, Lizzie pensou ao virar e seguir para o jardim.
Ao passar por baixo da tenda, serpenteando entre as mesas e cadeiras, pegou o telefone e mandou uma mensagem de texto para Lane, uma que apenas explicava que estava indo para casa após o longo dia de trabalho.
Deus bem sabia que o homem teria trabalho assim que Chantal o encontrasse.
A boa notícia, pelo menos para Lizzie?
Nada de festa de aniversário de casamento para planejar.
Lane não tinha mentido.
Foi difícil conter o sorriso que surgiu em seus lábios. E quando ele se recusou a ir embora, ela deixou que ele ficasse bem onde estava.
O telefone de Lane emitiu um bipe bem quando Chantal marchava pela sala de estar, gritando o nome dele enquanto partia em direção às escadas. Ele não denunciou seu paradeiro, simplesmente deixou que ela seguisse para o andar de cima, e fizesse o escândalo que planejava diante da porta fechada do seu quarto.
Engraçado, meras horas atrás, o fato de ela estar preparando uma guerra era um problema para ele. Mas agora? Aquilo estava tão embaixo na sua lista de prioridades…
– Preciso ir ver Edward – Lane disse, sem se importar em ver quem lhe mandara uma mensagem.
Gin levantou a cabeça.
– Eu não faria isso. Ele não está bem, e a notícia que você tem só pode piorar a situação.
Ela tinha razão. Edward já odiava o pai deles, que dirá a ideia de que o homem tivesse roubado dos fundos.
Gin levantou e foi até o bar para se servir novamente.
– Amanhã ainda está de pé?
– O Brunch? – Ele deu de ombros. – Não sei como impedir isso. Além do mais, já está tudo praticamente pago. A comida, a bebida, as coisas alugadas.
Ele sentia vergonha da outra motivação do evento: a ideia de que o mundo tivesse sequer uma pista dos problemas que sua família enfrentava lhe era inaceitável.
O som de alguém descendo os degraus acarpetados em disparada fez com que Gin erguesse uma sobrancelha.
– Parece que você vai ter um momento conjugal.
– Só se ela me encontrar…
Chantal apareceu na porta da sala de estar, com o rosto normalmente pálido e tranquilo tão rosado quanto o de um carvão em brasa numa churrasqueira.
– Como ousa? – a esposa exigiu saber.
– Imagino que esteja indo preparar as malas, querida – Gin disse com um sorriso digno da manhã de Natal. – Devo chamar o mordomo? Acho que podemos lhe fazer essa última cortesia. Considere como um presente de despedida.
– Não vou sair desta casa – Chantal ignorou Gin. – Você me entendeu, Lane?
Ele girou o gelo no copo com o indicador.
– Gin, pode nos dar um pouco de privacidade, por favor?
Com um aceno, a irmã foi para a porta e, ao passar por Chantal, parou e olhou para trás na direção dele.
– Certifique-se de que o mordomo verifique a bagagem dela, para garantir que ela não leve nenhuma joia.
– Você não presta – Chantal sibilou.
– Não mesmo. – Gin deu de ombros como se a mulher mal merecesse suas palavras. – Mas tenho o direito ao nome Bradford e a este legado. Você não. Tchauzinho.
Enquanto Gin acenava remexendo os dedos, Lane se adiantou e se colocou entre as duas a fim de impedir um momento Alexis/Krystle.21 Depois foi para frente e fechou as portas, mesmo não desejando estar a sós com a esposa.
– Não vou embora. – Chantal girou na direção dele. – E isso não vai acontecer.
Enquanto ela jogava os papéis do divórcio aos pés dele, Lane só conseguia pensar que não tinha tempo para aquilo.
– Escute aqui, Chantal, podemos fazer isso do jeito fácil ou do jeito difícil, a escolha é sua. Mas se escolher a última opção, vou atrás não só de você, mas da sua família também. Como acha que os seus pais batistas se sentiriam se recebessem uma cópia dos seus registros médicos em casa? Não creio que eles sejam favoráveis ao aborto, certo?
– Você não pode fazer isso!
– Não seja idiota, Chantal. Existem inúmeras pessoas para quem posso ligar, pessoas que devem à minha família e que ficariam muito contentes em pagar essa dívida. – Voltou ao bar e se serviu de mais Reserva de Família. – Ou, que tal assim: e se esses registros médicos caíssem nas mãos da imprensa implacável, talvez na internet? As pessoas entenderiam o motivo de eu querer me divorciar, e você teria muita, mas muita dificuldade para encontrar outro marido. Diferentemente do que acontece no norte, os homens sulistas têm padrões de comportamento para suas esposas, que não incluem o aborto.
Houve um momento prolongado de silêncio. Em seguida, o sorriso que ela lançou na direção dele foi inexplicável, tão confiante e calmo que ele teve que se perguntar se ela não havia enlouquecido de vez naqueles dois últimos anos.
– Você tem mais motivos para ficar quietinho do que eu – ela disse com suavidade.
– Tenho? – Ele sorveu um gole grande. – Por que acha isso? Só o que fiz foi correr de uma mulher que eu, supostamente, engravidei. De todo modo, quem pode garantir que era meu?
Ela apontou para a papelada.
– Você vai dar um jeito de fazer isso desaparecer. Vai permitir que eu continue aqui pelo tempo que eu quiser. E vai me acompanhar às festividades do Derby amanhã.
– Em qual universo paralelo?
A mão dela desceu para o ventre.
– Estou grávida.
Lane gargalhou.
– Você já tentou isso antes, minha cara. E todos nós sabemos como terminou.
– A sua irmã estava errada.
– Quanto a você roubar joias? Talvez. Veremos.
– Não. Sobre eu não ter o direito de ficar aqui. Assim como o meu filho. A bem da verdade, o meu filho tem tanto direito ao legado Bradford quanto você e Gin.
Lane abriu a boca para dizer alguma coisa, mas logo voltou a fechá-la.
– Do que está falando?
– Lamento dizer, mas o seu pai é um marido tão ruim quanto você.
Um tinido subiu do copo e, quando ele olhou para baixo, notou de uma vasta distância que sua mão tremia, fazendo o gelo se agitar.
– Isso mesmo – Chantal disse, com voz muito calma. – E acho que você está ciente da condição delicada da sua mãe. Como ela se sentiria se soubesse que o marido dela não só foi infiel, mas que logo terá um filho? Acha que ela vai tomar ainda mais daquelas pílulas das quais já é tão dependente? Provavelmente. Sim, tenho certeza de que ela tomaria.
– Sua vadia – ele sussurrou.
Em sua mente, viu-se colocando as mãos ao redor do pescoço da mulher, apertando, apertando com tanta força que ela começaria a se debater enquanto seu rosto ficaria roxo e a boca se abriria.
– Por outro lado – Chantal murmurou –, sua mãe não adoraria saber que seria avó pela segunda vez? Não seria motivo de comemoração?
– Ninguém acreditaria – ele se ouviu dizer.
– Ah, acreditaria, sim. Ele vai ser igualzinho a você… E tenho ido a Manhattan com bastante regularidade, para trabalhar no nosso relacionamento. Todos sabem disso.
– Você está mentindo. Nunca vi você.
– Nova York é uma cidade grande. Fiz questão que todos ficassem sabendo que me encontrei com você e que aproveitei a sua companhia. Também mencionei às meninas no clube, aos maridos delas nas festas, à minha família… Todos têm demonstrado tanto apoio para nós.
Enquanto ele permanecia em silêncio, ela sorriu com doçura.
– Portanto, você pode ver que esses papéis de divórcio não serão necessários. E você não dirá nada a respeito do que aconteceu entre nós e o nosso primeiro bebê. Se fizer isso, vou ter que contar tudo a respeito da sua família e envergonhá-lo diante desta comunidade, da sua cidade, do seu Estado. E então veremos quanto tempo vai levar para que você vista um terno de enterro. A sua mãe está meio fora de si, mas não está completamente isolada, e aquela enfermeira lê o jornal todas as manhãs ao lado da cama dela.
Com uma expressão de imensa satisfação, Chantal se virou e escancarou a porta, batendo os saltos no vestíbulo de mármore, mais uma vez senhora do prazer com seu sorriso de Monalisa.
O corpo inteiro de Lane tremia, os músculos gritavam pedindo ação, vingança, sangue… Mas a ira não estava mais direcionada à esposa.
Estava toda direcionada ao seu pai.
Chifrado. Ele acreditava que essa era a palavra adequada para descrever aquele tipo de situação.
Fora chifrado pelo próprio pai.
Quando é que a merda deste dia vai acabar?, ele se perguntou.
Alexis e Krystle são personagens antagonistas da série televisiva americana Dinastia (1981-1989). (N.T.)
VINTE E CINCO
Lizzie disse a si mesma que não olharia para o celular. Não olhou ao tirá-lo da bolsa e ao transferi-lo para seu bolso de trás assim que entrou pela porta da frente da sua casa de fazenda. Nem quando, quinze minutos mais tarde, se certificou de que o aparelho não estava no silencioso. E nem quando, dez minutos depois disso, destravou a tela só para ver se não havia nenhuma chamada perdida, nem mensagens de texto.
Nada.
Lane não telefonara para saber se ela tinha chegado em casa. Não respondera à sua mensagem. Mas, convenhamos, ele devia estar bem ocupado no momento.
Puxa.
Mesmo assim, estava ansiosa, andando de um lado para outro. A cozinha estava imaculada, o que era uma pena, porque bem que gostaria de ter alguma coisa para limpar. A mesma coisa com o banheiro no andar de cima. Caramba, até a cama estava arrumada. E ela tinha lavado a roupa na noite anterior. A única coisa que encontrou fora do lugar foi a toalha que usara pela manhã para ser secar após o banho. Deixara-a pendurada sobre a cortina do box, e já que ainda estava dentro dos dois dias de uso antes de colocá-la no cesto de roupa suja, a única coisa que podia fazer era dobrá-la e recolocá-la no porta-toalhas afixado à parede.
Graças basicamente ao dia desprovido de nuvens, a casa estava quente no segundo andar e ela foi abrindo todas as janelas. Uma brisa trouxe o odor da campina que circundava a propriedade, livrando a casa do abafado.
Se ao menos pudesse fazer o mesmo com a sua cabeça… Imagens do dia a bombardeavam: ela e Lane rindo assim que ela chegara para trabalhar; ela e Lane olhando para aquela planilha no laptop; ela e Lane…
Com a cabeça cheia, Lizzie voltou para a cozinha e abriu a geladeira. Nada de mais ali. Certamente nada que tivesse interesse em comer.
Quando a necessidade de verificar o celular surgiu de novo, ela se obrigou a resistir. Chantal sabia ser um problema num dia bom. Tinha recebido a papelada do divórcio, e ainda por cima a cena foi vista por um dos empregados…
O som de passos na varanda da frente chamou sua atenção.
Franzindo o cenho, fechou a porta da geladeira e seguiu até a sala de estar. Não se deu ao trabalho de ver quem era. Só havia duas opções: o vizinho da esquerda, que morava uns sete quilômetros estrada abaixo e tinha vacas que, com frequência, quebravam a cerca e vagavam pelos campos de Lizzie; ou o da direita, que ficava a meio quilômetro, e cujos cachorros costumavam se afastar para espiar as vacas soltas.
Começou a cumprimentar antes mesmo de abrir a porta.
– Oi, tudo…
Não era nenhum vizinho vindo se desculpar por invasões bovinas nem caninas.
Lane estava na varanda, com o cabelo pior do que de manhã, as ondas escuras espetadas como se ele tivesse tentado arrancar os fios.
Ele estava cansado demais para sorrir.
– Pensei em ver, pessoalmente, se você tinha chegado bem em casa.
– Oi, nossa, entre.
Encontraram-se na metade do caminho, corpo a corpo, e ela o abraçou com força. Seu cheiro era de ar fresco, e, por cima do ombro, ela viu que o Porsche estava com a capota abaixada.
– Você está bem? – ela perguntou.
– Melhor agora. A propósito, estou meio bêbado.
– E veio dirigindo? Isso foi idiotice e perigoso.
– Eu sei. É por isso que estou confessando.
Ela recuou e deixou que ele entrasse.
– Eu ia comer alguma coisa agora.
– Tem o bastante para dois?
– Ainda mais se for pra te deixar sóbrio. – Sacudiu a cabeça. – Chega de beber e dirigir. Acha que está com problemas agora? Tente acrescentar embriaguez ao volante à sua lista.
– Você tem razão. – Olhou ao redor, e depois foi até o piano dela e descansou as mãos sobre a tampa suave do teclado. – Deus, nada mudou aqui.
Ela pigarreou.
– Bem, estive bastante ocupada no trabalho…
– Isso é bom. Maravilhoso.
A nostalgia estampada em seu rosto enquanto continuava olhando para as ferramentas antigas, as colchas de retalhos penduradas e o sofá simples era melhor do que qualquer palavra que ele pudesse proferir.
– Comida? – ela sugeriu.
– Sim, por favor.
Na cozinha, ele foi direto para a mesinha e se sentou. E, de repente, foi como se nunca tivesse se ausentado.
Cuidado com isso, ela se reprimiu.
– Então, você gostaria de… – Vasculhou o conteúdo da despensa e da geladeira. – Bem, que tal uma lasanha que eu congelei uns seis meses atrás? Com nachos como acompanhamento, de um pacote que abri ontem, terminando com o bom e velho sorvete de menta?
Os olhos de Lane, concentrados nela, ficaram com as pupilas dilatadas.
Tuuuudo bemmmm. Evidentemente, ele planejava outra coisa para a sobremesa, e enquanto o corpo dela se aquecia de dentro para fora, tudo parecia mais que bem para ela.
Caramba, ela não estava nem aí para o bom senso. Livrar-se da esposa dele era apenas a ponta do iceberg, e ela precisava se lembrar disso.
– Essa me parece a melhor refeição do mundo.
Lizzie cruzou os braços e se recostou na geladeira.
– Posso ser franca?
– Sempre.
– Sei que Chantal recebeu a papelada do divórcio. Acabei presenciando sem querer. Não tive a intenção de ver o delegado fazendo aquilo.
– Eu te disse que estava pondo um fim nisso.
Ela esfregou a testa.
– Uns dois minutos antes, ela foi me procurar para planejar um jantar de comemoração do aniversário de casamento de vocês.
Houve um xingamento baixinho.
– Sinto muito. Mas estou te garantindo agora: não há futuro para mim e para ela.
Lizzie o encarou com firmeza por um bom tempo e, em resposta, ele não se moveu, não piscou, não disse nenhuma palavra mais. Só ficou ali sentado… deixando que as ações falassem por ele.
Maldição, ela pensou. Ela não precisava mesmo, de jeito nenhum, voltar a se apaixonar por ele.
Enquanto a noite caía sobre os estábulos, Edward se viu voltando à sua rotina noturna. Copo com gelo? Confere. Bebida? Confere – gim, aquela noite. Poltrona? Confere.
Só que, quando se acomodou e se viu diante daquelas provisões, dedilhou sobre o encosto da poltrona, em vez de colocar os dedos em uso para abrir o lacre da garrafa.
– Vamos lá – disse a si mesmo –, siga com o programado.
Mas não. Por algum motivo, a porta do chalé conversava com ele mais do que o Beefeater, no que se referia a coisas que precisavam ser abertas.
O dia fora bem longo. Ele tinha ido até Steeplehill Downs para dar uma olhada nos seus dois cavalos e dar telefonemas, tanto para o veterinário quanto para o treinador, porque Bouncing Baby Boy teria que ser deixado de lado por conta de um problema no tendão. Em seguida, voltara para lá, para verificar cinco das suas éguas que estavam prenhas, e para revisar os livros contábeis com Moe. Pelo menos as notícias eram boas nessa frente. Pelo segundo mês consecutivo, a operação não apenas se autossustentava, como gerava lucros. Se aquilo se mantivesse, ele poria um fim nas transferências do fundo fiduciário da mãe, que vinham fornecendo uma injeção de caixa nos negócios desde os anos 1980.
Ele queria ser totalmente independente da família.
Na verdade, uma das primeiras coisas que tinha feito quando saíra da reabilitação foi recusar a distribuição dos seus fundos. Ele não queria ter nada a ver com fundos que, mesmo que remotamente, estivessem relacionados com a Cia. Bourbon Bradford, e a totalidade da primeira e da segunda retirada estava ligada diretamente à CBB. Na verdade, só descobrira as transferências do fundo da sua mãe para o Haras Vermelho & Preto uns seis meses após a sua chegada e, naquele tempo, ele mal era capaz de se levantar pela manhã e ir até os estábulos. Se os tivesse recusado naquele tempo, a operação toda teria ido para o buraco.
Fazia muito tempo desde que alguém com um mínimo de perspicácia para os negócios fora até o haras e, a despeito das suas fraquezas atuais, sua habilidade para fazer dinheiro permanecia intocada.
Mais um mês. E então estaria livre.
Deus, estava mais exausto do que de costume. Mais dolorido também. Ou talvez as duas coisas estivessem unidas inextricavelmente.
Mesmo assim, não conseguia pegar a garrafa.
Em vez disso, pôs-se de pé com a ajuda da bengala e claudicou até as cortinas, que permaneciam fechadas desde o dia em que se mudara para lá. Estava um breu do lado de fora, somente as luzes de sódio nas entradas dos estábulos lançavam um brilho cor de pêssego na escuridão.
Xingando baixinho, foi para a porta da frente e a abriu. Parou um instante. Coxeou na escuridão.
Edward atravessou o gramado num andar desigual, e disse a si mesmo que estava indo dar uma olhada na égua que estava com problemas. Sim. Era isso o que iria fazer.
Não iria ver como estava Shelby Landis. Nada disso. Ele não estava, por exemplo, preocupado por não tê-la visto sair da fazenda o dia inteiro, o que provavelmente significava que ela não devia ter comida naquele apartamento.Tampouco iria verificar se, por acaso, ela dispunha de água quente, porque depois de um dia inteiro carregando carrinhos de mão, sacos de grãos do tamanho da picape dela e fardos pinicantes de feno, ela devia estar dolorida e necessitando de uma bela chuveirada.
Ele, positiva e absolutamente, iria…
– Merda.
Sem nem ter se dado conta, fora parar na porta lateral do Estábulo B – a que dava para o escritório, bem como para o lance de escadas que o levaria até os aposentos dela.
Ora, uma vez que já estava ali… ele bem que poderia ver como ela estava. Claro que em lealdade ao pai dela.
Não passou a mão pelos cabelos antes de pousá-la na maçaneta… Tudo bem, talvez tivesse feito isso só um pouquinho, mas apenas porque estava precisando cortar os cabelos e eles tinham caído nos seus olhos.
Luzes detetoras de movimento se acenderam assim que ele chegou ao escritório, e todos aqueles degraus até a parte superior pairavam acima dele como uma montanha que ele teria que se esforçar para escalar. E, vejam só, seu pessimismo tinha razão de ser: ele teve que parar para tomar fôlego na metade do caminho. E outra vez assim que chegou ao alto.
E foi por isso que ouviu as risadas.
De um homem. De uma mulher. Vindas do apartamento de Moe.
Franzindo o cenho, Edward olhou para baixo pela porta de Shelby. Aproximou-se e encostou a orelha na porta. Nada.
Quando fez a mesma coisa na porta de Moe? Ouviu os dois, a fala arrastada sulista de um e de outro como o som de um banjo de uma banda de jazz.
Fechou os olhos por um instante e se recostou na porta fechada.
Em seguida, aprumou-se e, com o auxílio da bengala, desceu todos aqueles degraus, foi para o gramado e voltou ao próprio chalé.
Dessa vez, não teve nenhum problema para abrir a garrafa ou colocar uma dose no copo.
Foi durante a segunda dose que ele por fim se deu conta de que era sexta-feira. Noite de sexta-feira.
Puxa, se isso não era um golpe de sorte.
E ele até tinha um encontro.
VINTE E SEIS
Sutton Smythe olhou para a multidão que lotava a galeria principal do Museu de Arte de Charlemont. Ela reconhecia tantos rostos, tanto pessoalmente quanto dos noticiários, da TV e da tela grande. Muitas pessoas acenavam para ela ao encontrar o seu olhar, e ela foi bastante cordial, erguendo a mão em retribuição.
Tinha esperanças que ninguém se aproximasse.
Não estava interessada em ter que cumprimentar alguém com um beijo no rosto e fazer perguntas educadas a respeito de um cônjuge, tampouco queria ser apresentada à companhia de alguém por aquela noite. Também não queria receber nenhum agradecimento – mais um – pela sua generosa doação de 10 milhões de dólares, feita no mês anterior, que marcou o início da campanha de levantamento de fundos para a expansão do museu. Muito menos queria ter que ouvir falar do empréstimo permanente do Rembrandt e do ovo Fabergé que o pai fizera em homenagem à querida esposa falecida.
Sutton queria ser deixada em paz para vasculhar a multidão em busca do único rosto que queria ver.
O único rosto que queria… que precisava ver.
Mas Edward Baldwine, mais uma vez, não viria. E ela sabia disso, não por ter estado ali nas sombras pela última hora e meia enquanto os convidados da festa que ela oferecia em nome da família chegavam, mas porque insistira em ver uma cópia da lista do RSVP uma vez por semana, e depois diariamente, quando o dia do evento se aproximou.
Ele simplesmente não tinha respondido. Nada de “Sim, irei à festa com prazer”, nem de “Lamento, mas não poderei ir”.
Será que podia mesmo ficar surpresa?
Ainda assim, isso a magoou. Na verdade, o único motivo pelo qual comparecera ao jantar de William Baldwine na noite anterior fora por ter esperanças de ver Edward em sua própria casa. Depois que ele não retornara as suas ligações por dias, meses e agora anos, ela pensou que talvez ele aparecesse à mesa do pai e eles poderiam, de maneira muito natural, se reconectar.
Mas não. Edward também não estivera lá.
– Senhorita Smythe, estamos prontos para iniciar o jantar, se for conveniente para a senhorita. As saladas já foram servidas.
Sutton sorriu para a mulher com uma prancheta na mão e um fone no ouvido.
– Sim, vamos diminuir as luzes. Farei minhas considerações assim que eles estiverem sentados.
– Pois não, senhorita Smythe.
Sutton respirou fundo e observou o caro rebanho fazer o que lhe era orientado e encontrar seus lugares em todas aquelas mesas redondas com arranjos elaborados, pratos dourados e menus impressos sobre guardanapos de linho.
Antes da tragédia, Edward sempre frequentara aquele tipo de evento, lançando sorrisos sardônicos quando outra pessoa surgia pedindo dinheiro para as suas causas. Convidando-a para dançar, como se fosse uma manobra de salvamento, quando ela se via acuada por um convidado conversador. Olhando para ela e piscando… como só ele conseguia fazer.
Eram amigos desde a escola preparatória em Charlemont. Oponentes nos negócios desde que ele se formara em Wharton e ela conquistara seu MBA na Universidade de Chicago. Companheiros sociais desde que ambos ingressaram no circuito de jantares beneficentes depois do falecimento da mãe dela e a dele passara a ficar cada vez mais tempo em seus aposentos.
Nunca foram amantes.
Ela queria que tivessem sido. Muito provavelmente, desde que o conhecera. Edward, contudo, mantivera-se afastado, permanecera distante, até mesmo arrumara encontros para ela.
O coração dela sempre estivera à disposição, mas ela jamais tivera coragem de atravessar aquela fronteira que ele, com tanta determinação, estabelecera entre eles.
E então… Dois anos atrás aquilo aconteceu. Bom Deus, quando ficara sabendo que ele iria mais uma vez para a América do Sul numa daquelas viagens de negócios, teve uma premonição, um alerta, uma sensação ruim. Mas não telefonara para ele. Não tentara falar com ele para tentar convencê-lo a levar mais seguranças ou algo assim.
Portanto, de certa forma, sentia-se parcialmente responsável. Talvez se tivesse…
Mas a quem tentava enganar? Ele não teria deixado de viajar por outro motivo que não condições climáticas adversas. Edward fora um verdadeiro adversário na indústria de bebidas, o óbvio herdeiro da Cia. Bourbon Bradford não apenas pelo direito de nascença, mas pelas suas incríveis ética profissional e astúcia.
Depois do sequestro e do pedido de resgate, o pai dele, William, esforçara-se para libertá-lo, negociando com os sequestradores, trabalhando em conjunto com a embaixada norte-americana. Tudo fracassara até que, no fim, uma equipe especial foi enviada para resgatar Edward.
Não conseguia sequer imaginar o que haviam feito com ele.
E aquele era o aniversário do dia em que fora emboscado durante a viagem.
Tudo aquilo era simplesmente uma tragédia. A América do Sul era um dos lugares mais lindos do planeta com sua comida deliciosa, cenários fantásticos e história fascinante; ela e Edward frequentemente brincavam dizendo que, quando se aposentassem, iriam para lá, para morar em propriedades vizinhas. O sequestro de executivos com exigência de resgate eram um dos pontos perigosos em certas áreas, mas não era muito diferente de atravessar o Central Park às três da manhã. Maus elementos podem ser encontrados em qualquer parte, e não havia motivos para condenar um continente inteiro por conta de uma minoria de bandidos.
Infelizmente, Edward se tornara uma das vítimas.
Depois de todo aquele tempo, ela só queria vê-lo com seus próprios olhos. Algumas fotos desfocadas foram publicadas pela imprensa, e elas, por certo, não a tranquilizaram. Ele sempre aparentava estar muito mais magro, com o corpo encurvado, o rosto sempre abaixado, desviando das lentes.
Para ela, contudo, ele ainda era lindo.
– Senhorita Smythe, está pronta?
Voltando ao presente, Sutton viu que havia mil pessoas sentadas, comendo suas saladas, prontas para ouvi-la discursar.
Sem aviso algum, uma repentina onda de energia ruim bombeou dentro dela, fazendo-a suar no peito, na testa, debaixo dos braços. Enquanto o coração batia descompassado, ondas de tontura fizeram-na esticar a mão para se equilibrar na parede.
O que havia de errado com ela?
– Senhorita Smythe?
– Não consigo – ouviu-se dizer.
– O que disse?
Pressionou os cartões que escrevera com tanto cuidado nas mãos da assistente.
– Outra pessoa terá que…
– O quê? Espere, onde a senhorita…
Ela levantou as palmas e recuou.
– … fazer o discurso.
– Senhorita Smythe, a senhorita é a única que pode…
– Ligo na segunda-feira. Sinto muito. Não consigo.
Sutton não fazia a mínima ideia de onde estava indo enquanto seus saltos finos ressoavam no piso de mármore. Na verdade, foi só quando uma lufada de calor a atingiu que ela percebeu que havia saído do prédio pela saída de incêndio e aparecera na ala oeste do complexo, no ar úmido noturno.
Bem longe do estacionamento onde seu chofer a aguardava.
Caindo de encontro à parede de gesso do museu, inspirou fundo algumas vezes, mas isso não ajudou a aliviar a sensação de sufocamento.
Não poderia ficar ali a noite toda. Mais especificamente, queria sair correndo, ir para longe, correr até que a sensação de terror saísse do seu corpo. Mas isso seria loucura. Certo?
Deus, estava perdendo a cabeça. Finalmente, tudo a estava alcançando.
Ou talvez fosse, mais uma vez e sempre, Edward Baldwine.
Hora de seguir em frente. Aquilo era ridículo.
Tirando os sapatos e segurando-os pelas tiras, começou a andar sobre a grama, se aproximando dos fachos de iluminação das luzes de segurança. Depois do que lhe pareceu uma eternidade, o estacionamento que procurava apareceu quando ela dobrou mais uma esquina, só que, nessa hora, ficou confusa pela quantidade de limusines estacionadas a céu aberto.
Onde estava…
Por pura sorte, o Mercedes C63 a encontrou, e o enorme sedã surgiu à sua frente. A janela do passageiro se abaixou sem emitir nenhum som.
– Senhorita Smythe? – seu chofer disse em tom alarmado. – A senhorita está se sentindo bem?
– Preciso do carro. – Sutton deu a volta, os faróis eram muito claros contra seu vestido de gala prata e seus diamantes. – Preciso do carro, preciso…
– Senhorita? – O homem uniformizado saiu de trás do volante. – Posso levá-la para onde quiser ir…
Ela pegou uma nota de cem dólares da minúscula bolsa de festa.
– Tome. Pegue um táxi, ou ligue para alguém. Sinto muito. Sinto muito, muito, mas preciso ir…
Ele meneou a cabeça ao ver a nota.
– Senhorita, posso levá-la a qualquer lugar…
– Por favor. Preciso do carro.
Houve uma ligeira pausa.
– Muito bem. Sabe como dirigir este…
– Dou um jeito. – Colocou o dinheiro na palma da mão dele e a fechou. – Fique com isso. Vou ficar bem.
– Eu preferiria dirigir.
– Aprecio a sua consideração, de verdade. – Fechou-se dentro do carro, subiu a janela, e olhou ao redor à procura do câmbio ou…
À batida no vidro escuro, ela voltou a abaixá-lo.
– Está ali, ao lado do volante – instruiu o chofer. – A marcha a ré, e ali para a frente. Pronto, assim. E as setas ficam… isso, isso mesmo. A senhorita não deve precisar dos limpadores de para-brisa, e as luzes já estão acesas. Boa sorte.
Ele recuou, do mesmo modo que fazemos quando estamos prestes a acender um fósforo para acionar fogos de artifício. Ou uma bomba.
Sutton pressionou o acelerador, e o potente sedã se lançou para a frente como se tivesse o motor de um jato debaixo do capô. Nos recessos da sua mente, ela fez um cálculo rápido de quantos anos fazia que não dirigia… E a resposta não foi nada encorajadora.
Mas, assim como tudo em sua vida, ela acabaria descobrindo… Ou morreria tentando.
– Importa-se se eu repetir?
Lizzie lhe lançou um olhar de encorajamento e Lane se levantou e foi para a geladeira. A comida estava ajudando a clarear a sua mente, ou talvez fosse a companhia dela.
Provavelmente era mais por estar na presença dela.
– Está muito bom – ele disse ao abrir o congelador e pegar mais uma porção.
A risada dela o fez parar e fechar os olhos, a fim de que o som pudesse inundá-lo ainda mais.
– Você só está sendo gentil – ela murmurou.
– É a mais pura verdade.
Levando o prato ao micro-ondas, ajustou-o para seis minutos e ficou olhando o bloco congelado girar e girar.
– Então, eu vou ter que ir procurar Edward – ouviu-se dizer.
– Quando foi a última vez que o viu?
Ele pigarreou. Sentiu uma tremenda necessidade de beber alguma coisa.
– Foi em…
Por um instante, ficou perdido em pensamentos, tentando encontrar um modo de perguntar se ela tinha alguma bebida em casa.
– Tanto tempo assim?
– Na verdade, eu estava pensando em outra coisa. – Ou seja, que era inteiramente possível que ele tivesse problemas com bebida. – Mas, pensando bem, depois de um dia como o de hoje, quem não seria alcoólatra?
– O que disse?
Ai, merda, falara em voz alta?
– Desculpe, a minha cabeça está a maior confusão.
– Eu queria poder fazer alguma coisa.
– Você já está fazendo.
– Então, quando foi que viu Edward pela última vez?
Lane voltou a fechar os olhos. Mas, em vez de fazer cálculos mentais que revelariam a soma do quanto deixava a desejar como irmão, voltou no tempo para aquela noite de Ano-Novo quando Edward apanhara pelo restante deles.
Ele e Maxwell haviam permanecido no salão de baile, silenciosos e trêmulos, enquanto o pai forçava Edward a subir. À medida que eles subiam a grande escadaria, Lane gritava a plenos pulmões… mas apenas internamente.
Era covarde demais para sair de lá e pôr um fim à mentira que salvara seu irmão e ele mesmo.
– Eu deveria ir lá – disse quando um tempo se passou.
– Mas o que você pode fazer? – Max sussurrou. – Nada pode deter papai.
– Eu poderia…
Só que Maxwell estava certo. Edward mentira, e o pai o estava fazendo pagar por uma transgressão que não era dele. Se Lane contasse a verdade agora… O pai simplesmente surraria todos eles. Pelo menos se ele e Maxwell ficassem quietos, poderiam evitar….
Não, aquilo era errado. Era uma desonra.
– Vou até lá. – Antes que Maxwell conseguisse dizer qualquer coisa, Lane agarrou o braço do irmão. – E você vem comigo.
A consciência de Max também o devia estar incomodando, porque em vez de discutir, como sempre discutia sobre tudo, seguiu-o mudo pela escada principal. Quando chegaram ao topo, o corredor estava deserto a não ser pela moldura de gesso, pelos retratos, e pelas flores sobre mesinhas e aparadores antigos.
– Temos que impedir – Lane sibilou.
Um atrás do outro, seguiram rapidamente sobre o tapete… até o quarto do pai.
Do lado oposto da porta, os sons do açoite eram agudos e altos, vindos do couro de encontro à pele nua de seu irmão, e dos grunhidos do pai, que empregava força nos golpes.
Edward estava em silêncio.
E, nesse meio-tempo, os dois apenas permaneceram ali, silenciosos e petrificados. Lane só conseguia pensar que nem ele nem Max tinham metade da coragem dele. Os dois acabaram chorando.
– Vamos embora – disse baixinho, coberto de vergonha.
Mais uma vez, Max não discutiu. Obviamente, ele também era um covarde.
O quarto que partilhavam ficava no fim do corredor, e foi Lane quem abriu a porta. Havia quartos de sobra para que dormissem separados, mas quando Maxwell começara a ter pesadelos alguns anos antes, acabaram colegas de quarto sem querer. Max começara a entrar sorrateiramente no quarto de Lane e despertava ali pela manhã. Depois de um tempo, a senhorita Aurora instalara outra cama lá e assim ficou resolvido.
O banheiro era conjugado, e o quarto do lado oposto era o de Edward.
Max foi para a cama e fitou o teto.
– A gente não devia ter descido. A culpa é minha.
– É de nós dois. – Olhou para Max. – Fique aqui. Vou esperar por ele.
Enquanto seguia para o banheiro, fechou a porta atrás de si e rezou para que Max seguisse suas ordens. Tinha uma sensação ruim quanto à condição em que Edward estaria quando o pai finalmente acabasse o castigo.
Ah, como Lane gostaria de poder voltar no tempo e refazer a decisão de ir para a sala de estar.
Abaixando a tampa do vaso, ficou sentado e atento às batidas do seu coração. Mesmo não conseguindo mais ouvir as chibatadas do cinto, isso não tinha relevância. Ele sabia o que estava acontecendo do outro lado do corredor.
Por algum motivo, ficou olhando para as três escovas de dente enfiadas dentro de um copo de prata, ao lado das toalhas de mão dobradas sobre a pia. A vermelha era de Edward, porque ele era o mais velho e sempre podia escolher antes. A de Max era verde, porque era a mais varonil que restava. Lane acabava tendo que ficar com a amarela, que odiava.
Ninguém queria a azul da uk.
Um clique suave e um empurrão de uma porta sendo aberta quebrou o silêncio. Lane esperou o segundo clique e depois se pôs de pé, espiando o quarto de Edward.
Na escuridão, Edward caminhava em direção ao banheiro, todo encurvado, com um braço ao redor do abdômen, e outro estendido para se equilibrar na cômoda, nas paredes, na mesa.
Lane se apressou e segurou a cintura do irmão.
– Enjoado – Edward grunhiu. – Vou vomitar.
Ah, Deus, ele estava sangrando no rosto, devido ao corte causado pelo anel de sinete do pai quando ele lhe desferiu aquele tapa.
– Eu te levo – Lane murmurou. – Vou cuidar de você.
O avanço foi lento, as pernas de Edward tinham dificuldade para sustentar o tronco ereto. Parte da camisa do pijama ficara presa no cós depois da surra, e Lane só conseguia pensar no que havia por baixo. Nos vergões, no sangue, no inchaço.
Edward mal chegou a tempo ao vaso, e Lane ficou junto dele durante todo o tempo. Quando terminou de vomitar, Lane pegou a escova vermelha e colocou pasta de dente nela. Depois, ajudou o irmão a ir até a cama.
– Por que você não chora? – Lane perguntou com uma voz rouca enquanto o irmão se acomodava no colchão como se todo o seu corpo doesse. – É só você chorar. Ele para assim que você chorar.
Era sempre assim quando ele e Max levavam uma surra.
– Vá para a cama, Lane.
A voz de Edward pareceu exausta.
– Sinto muito.
– Está tudo bem. Só vá para cama.
Foi difícil sair, mas ele já tinha causado confusão demais por aquela noite, e vejam o que tinha acontecido.
De volta ao seu quarto, enfiou-se entre os lençóis e ficou olhando para o teto.
– Ele está bem? – Max perguntou.
Por algum motivo, as sombras em seu quarto eram completamente assustadoras, pareciam monstros que se moviam e rastejavam pelos cantos.
– Lane?
– Sim – mentiu. – Ele está bem…
– Lane?
Ele voltou ao presente e olhou sobre o ombro.
– O que foi?
Lizzie apontou para o micro-ondas.
– Está pronto?
Bipe…
Bipe…
Ele apenas ficou ali, piscando, tentando voltar do passado.
– Sim, sim, desculpe.
De volta à mesa, depositou o prato fumegante e se sentou de novo… só para descobrir que tinha perdido o apetite. Quando Lizzie estendeu o braço e apoiou a mão na dele, ele a aceitou e a levou aos lábios para um beijo.
– No que está pensando? – Lizzie perguntou.
– Quer mesmo saber?
– Sim.
Ora, ora, se ele não tinha uma bela seleção de coisas para escolher.
Enquanto ela esperava por uma resposta, ele ficou olhando para seu rosto por um bom tempo. E então teve que sorrir.
– Agora, neste exato instante… estou pensando que, se tiver uma chance com você, Lizzie King, vou aceitar.
O rubor que atingiu o rosto dela foi encoberto quando ela levantou as mãos.
– Ai, meu Deus…
Ele deu uma risada leve.
– Quer que eu mude de assunto?
– Sim – disse ela por trás do seu esconderijo.
Ele não a culpava.
– Tudo bem, estou muito feliz de ter vindo para cá. Easterly é como uma corda no meu pescoço agora.
Lizzie esfregou os olhos e abaixou as mãos.
– Sabe, custo a acreditar no que Rosalinda fez.
– Foi simplesmente horrível. – Ele se recostou na cadeira, respeitando a necessidade dela de mudarem de assunto. – E, escuta essa. Sabe Mitch Ramsey, o delegado? Ele me ligou enquanto eu vinha para cá. O exame médico legal preliminar indica traços de cicuta.
– Cicuta?
– O rosto dela… – Ele circundou a face com a mão. – Aquele sorriso horrendo? Foi provocado por algum tipo de paralisia facial, o que, aparentemente, é bem documentado como sendo causado por uma variedade de venenos. Caramba, vou te contar, vai demorar bastante tempo para eu me esquecer da aparência dela.
– Existe a possibilidade de ela ter sido morta?
– Eles acham que não. É preciso uma bela dose de cicuta para ter o resultado desejado, portanto, é mais provável que ela mesma tenha feito isso. Além do mais, aqueles Nikes eram novinhos e havia grama nas solas.
– Nikes? Ela só usa sapatos sem salto.
– Exatamente, mas ela foi encontrada com tênis próprios para corrida, que, evidentemente, acabara de comprar, e os usou para andar no jardim. Pelo que Mitch disse, na época dos romanos, as pessoas costumavam beber veneno e depois perambular para que ele agisse com mais rapidez. Portanto, isso mais uma vez indica que ela causou a própria morte.
– Que… horrível.
– A pergunta é: por quê? E, infelizmente, acho que nós sabemos a resposta.
– O que vai fazer agora?
Ele ficou em silêncio por um tempo e depois ergueu os olhos para ela.
– Para começar, pensei em te levar para cima.
Lizzie corou de novo.
– E o que vai fazer comigo no segundo andar?
– Vou te ajudar a dobrar a roupa limpa.
Ela deu uma gargalhada.
– Detesto te desapontar, mas já fiz isso.
– Arrumar a sua cama?
– Lamento. Já está arrumada.
– Mas você tinha que ser tão organizada? Cerzir as suas meias? Precisa pregar algum botão?
– Está sugerindo que é bom com linha e agulha?
– Aprendo rápido. Então… quer costurar comigo?
– Acho que não tenho nada que precise desse tipo de cuidado.
– Existe alguma coisa na qual posso te ajudar, então? – ele perguntou num tom baixo. – Alguma dor que eu possa aplacar? Algum fogo que eu possa extinguir? Com a boca, talvez?
Lizzie fechou os olhos, e mudou de posição na cadeira.
– Ai, Deus…
– Espere, já sei. Que tal se eu te levar para o segundo andar e nós bagunçarmos a sua cama? Daí, então, vamos poder arrumá-la de novo.
Quando, por fim, ela voltou a olhar para ele, seus olhos estavam pesados e sensuais.
– Sabe, esse parece um plano perfeito.
– Adoro quando estamos de acordo.
Levantaram-se ao mesmo tempo, e antes que ela conseguisse detê-lo, ele se inclinou e a pegou no colo.
– O que você está fazendo? – Empurrou-o e começou a gargalhar. – Lane…
– O que parece? – E saiu da cozinha. – Estou te carregando lá para cima.
– Espera. Espera. Sou muito pesada…
– Ora, por favor!
– Não, é verdade… Não sou como aquelas mulherzinhas delicadas…
– Exato. Você é uma mulher de verdade. – Chegou à escada e seguiu em frente. – E é por essas que homens de verdade ficam atraídos. Confie em mim.
Deixou a cabeça pender no ombro dele, e quando Lane sentiu o olhar dela em seu rosto, pensou no que Chantal fizera com o seu pai. Ou, pelo menos, no que ela disse ter feito com ele.
Lizzie nunca o traíra. Nem em pensamento, nem em ações.
Ela simplesmente não tinha isso dentro dela.
O que a tornava uma mulher de verdade, e não só por não ser socialmente anoréxica.
– Não, você não tem que dizer isso – ele murmurou quando os degraus antigos rangeram debaixo dos seus pés.
– Dizer o quê?
– Que não significa nada comparado a outras coisas. Sei que me quer só como amigo e aceito isso. Você só precisa saber de uma coisa.
– O que seria? – ela suspirou.
Ele fez uma voz mais grave.
– Estou preparado para ser um homem muito paciente no que se refere a você. Vou seduzi-la pelo tempo que for necessário, vou lhe dar todo o espaço que precisar, ou seguir seus passos como a luz do sol sobre seus ombros, se você deixar. – Seus olhos se fixaram nos dela. – Perdi minha chance com você uma vez, Lizzie King, e isso não vai se repetir.
VINTE E SETE
Sentado em sua poltrona, Edward flanava numa nuvem de gim Beefeater; seu corpo estava tão entorpecido que ele conseguia manter uma fantasia de força e flexibilidade. Na verdade, conseguia imaginar que ficar de pé podia ser fácil, apenas uma mudança de localização descomplicada e inconsciente que necessitava de um pensamento fugidio e músculos nas coxas. Músculos esses que ficariam contentes – e seriam perfeitamente capazes – de executar tal tarefa.
No entanto, não estava embriagado o suficiente para tentar.
O som de uma batida à porta fez com que levantasse a cabeça.
Ora, ora, ora. Não estava preparado para aquela coisa de ficar na vertical, mas pelo menos a recém-chegada poderia lhe oferecer uma realidade alternativa para ele experimentar.
E ele não recusaria.
Com um grunhido, tentou ficar um pouco mais ereto na poltrona. Não conseguiria abrir a porta para a mulher e sentiu-se mal por isso. Um cavalheiro sempre deveria fazer tal gentileza a um membro do sexo frágil, e ele não se importava que a sua convidada fosse uma prostituta, uma mulher merecia ser tratada com respeito.
– Entre – disse em voz alta, mas arrastada. – Pode entrar.
A porta se abriu devagar… E o que viu do outro lado, bem debaixo da soleira, era…
O coração de Edward parou de bater. E depois começou a martelar.
– Eles acertaram – sussurrou. – Finalmente. Beau acertou em cheio.
A mulher piscou.
– Perdão – ela disse, rouca. – O que disse?
A voz era igualzinha. Como tinham conseguido acertar?
– Entre – ele respondeu, gesticulando com a mão que não segurava o copo. – Por favor.
E não tenha medo, ele pensou consigo.
Afinal, ele estava sentado no escuro, e a iluminação dos incontáveis troféus sobre as prateleiras não alcançavam seu rosto e seu corpo. O que era proposital, claro. Não gostava de olhar para si mesmo, não havia motivo para dificultar o trabalho da prostituta forçando-a a vê-lo com nitidez.
– Edward?
Em seu torpor ébrio, ele só conseguiu fechar os olhos e relaxar o corpo. Ficou duro num lugar bem crucial.
– A sua voz… é tão bela quanto nas minhas lembranças.
Não ouvia a voz de Sutton Smythe em pessoa desde antes da sua viagem e, depois que retornara, não foi capaz de ouvir quaisquer das suas mensagens.
A ponto de ter se livrado tanto do aparelho quanto daquele número.
– Ah, Edward…
Bom Deus, havia sofrimento naquela voz. Como se a mulher estivesse olhando para a sua alma e reagindo ao emaranhado de angústia que ele carregava desde que lhe informaram que ele sobreviveria.
E, de fato, era quase isso o que ouvia na voz de Sutton. Engraçado, durante seu período no cativeiro, desmaiara três vezes durante os oito dias em que o mantiveram preso. Todas as vezes, enquanto perdia a consciência, Sutton fora a última coisa em seus pensamentos, a última coisa a ver, a ouvir, a lamentar a perda. E não a sua família. Não o seu tão amado trabalho. Não a casa em que crescera, tampouco a fortuna e as coisas que deixaria inacabadas.
Sutton Smythe.
Na terceira vez, quando já não conseguia ver nada, quando já não sabia distinguir se era suor ou sangue em sua pele, quando a tortura o levara a um lugar onde o botão de sobrevivência fora desligado e ele já não rezava para ser resgatado, a não ser pela morte…
Sutton Smythe, uma vez mais, estivera em seus pensamentos.
– Edward…
– Não. – Levantou a mão. – Não diga mais nada.
A mulher estava se saindo tão bem. Não queria que continuasse e estragasse tudo.
– Venha aqui – sussurrou. – Quero tocar em você.
Abrindo os olhos, embeveceu-se com a aproximação dela. Ah, que vestido prateado perfeito, a barra arrastando pelo chão, as joias surpreendentemente de bom gosto reluzindo apesar de a luz estar atrás dela. E ela também trazia o mesmo tipo de bolsa de festa que Sutton sempre levava aos eventos formais, um quadrado forrado com seda da mesma cor do vestido – ainda que, como ela mesma dizia, “combinar tudo era tão anos cinquenta”.
– Edward?
Havia tanta confusão quanto um anseio em seu nome.
– Por favor – ele se viu implorando. – Não fale mais. Só quero tocar você. Por favor.
Enquanto o corpo dela tremia diante dele, Edward sentiu a realidade mudar e se permitiu seguir o ardil, acompanhando a fantasia de que aquela era de fato Sutton, que ela fora procurá-lo, e que, finalmente, ficariam juntos.
Mesmo ele estando arruinado.
Deus, isso bastava para deixá-lo emocionado. Mas não durou muito… porque ela tropeçou e seus olhos ficaram muito arregalados.
O que significava que tinha visto seu rosto.
– Não olhe para mim – disse ele. – Não sou mais o mesmo. É por isso que as luzes estão tão fracas.
Edward estendeu os braços e mostrou as mãos.
– Mas estas… não estão marcadas. E, ao contrário de outras partes, ainda funcionam muito bem. Me deixe… tocar você. Vou ser cuidadoso… mas você vai ter que se ajoelhar. Já não fico muito bem de pé, e tenho que confessar que estou embriagado.
A prostituta tremia dos pés à cabeça quando começou a se abaixar, e ele se sentou mais para a frente da poltrona, oferecendo-lhe o braço como se ela fosse uma dama saindo de um carro, em vez de uma trabalhadora permitindo que um aleijado fizesse sexo com ela por mil dólares.
Quando voltou a se recostar, uma súbita onda de vertigem o assolou, enquanto mais álcool bombeava em seu sistema. Como com todos os bêbados, contudo, ele sabia que era apenas algo temporário, que logo se autorregularia.
Ainda mais considerando tudo em que ele tinha que se concentrar: mesmo com a visão embaçada, mesmo com a penumbra, mesmo estando muito bêbado… estava maravilhado.
Ela era muito linda, quase linda demais para que ele a tocasse.
– Ah, olhe só para você… – sussurrou, esticando a mão para tocar seu rosto.
Os olhos dela reluziram de novo, ou, pelo menos, ele acreditou nisso; talvez estivesse apenas imaginando coisas por causa do modo como ela inspirou fundo. Era difícil saber, era complicado acompanhar o que estava acontecendo… A realidade estava muito distorcida agora, girando ao seu redor até ele não ter mais certeza se a prostituta se parecia mesmo com Sutton ou se era mera projeção dele, por causa dos cabelos negros e compridos, das sobrancelhas arqueadas, da boca perfeita, como a de Grace Kelly.
O cabelo da mulher estava solto, bem como havia solicitado, e ele passou as mãos pelas ondas até alcançar a curva do ombro.
– Seu cheiro é tão bom. Exatamente como eu me lembrava.
E logo ele tocou mais, os dedos viajando pela clavícula, sobre o colar de diamantes, descendo pela curva do decote. Em resposta, ela começou a arfar, o movimento dos pulmões aproximando seus seios das mãos dele.
– Adoro esse vestido – ele sussurrou.
O vestido de noite era bem ao estilo dos de Sutton: muito elegante, feito sob medida para o corpo dela, de chiffon tão cinzento quanto uma pomba.
Sentando-se mais para frente, aproximou seu peito diminuto do dela, que era magnífico, e passou as mãos para trás, a fim de encontrar o zíper embutido. Enquanto o abria, o som produzido pareceu-lhe alto demais.
Ele podia jurar que ela arfava como se a tivesse chocado. E foi… ah, tão perfeito. Exatamente o que Sutton teria feito.
E, em seguida, sim… ah, sim… a prostituta retribuiu a sua exploração, as mãos trêmulas subindo pelos seus braços finos. Deus, ele odiou todo aquele tremor por parte dela, mas, sem dúvida, devia ser difícil fazer sexo com ele.
Pelo menos como ele se encontrava agora.
– Eu queria ter feito isto antes – disse numa voz entrecortada. – No passado, valia a pena ver o meu corpo. Eu deveria ter… deveria ter tentado conquistá-la antes, mas era covarde demais. Era um covarde arrogante, mas a verdade é que eu poderia ter suportado qualquer coisa, menos uma recusa sua.
– Edward…
Interrompeu-a colando a boca na dela.
Ah, ela era boa. Tão boa quanto ele imaginava, a sensação da sua língua escorregando para dentro dela e a maneira como ela gemeu, como se tivesse esperado a vida toda pela oportunidade de fazê-lo se esquecer do que ele se tornara…
O vestido derreteu, escorrendo do corpo dela como se aquiescesse, como se estivesse reagindo para que tudo acontecesse mais rápido. E ele tirou vantagem da pele que agora estava à mostra, beijando uma trilha até os seios perfeitos, sugando os mamilos, ficando ganancioso muito rapidamente. Que Deus abençoasse o pobre coração daquela mulher, ela conseguia fingir tão bem, as mãos se perderam em seus cabelos como se ela o desejasse, como se ela estivesse trazendo-o para mais perto, mesmo ele não sendo o que ela deveria querer.
Tentou não ser rude, mas Deus, ficou tão excitado de repente.
– Suba no meu colo – grunhiu. – Você vai ter que subir no meu colo.
Era a única posição em que conseguia fazer sexo. Ainda mais por não querer sujeitar nenhum deles dois ao embaraço de ter que pedir ajuda para se levantar do chão, quando tudo tivesse terminado.
– Tem certeza? – ela perguntou, rouca. – Edward…
– Preciso ter você. Esperei tempo demais. Quase morri. Preciso disso.
Houve um segundo de pausa. Logo ela se moveu com admirável rapidez, levantando-se do chão, chutando o vestido, revelando… Ah, Jesus, ela estava com uma calcinha e nada mais, nada de meias de seda, nada de cinta-liga. E em vez de perder tempo tirando-a, ela a afastou de lado enquanto ele se confundia com o próprio cinto, impedindo que suas calças caíssem do quadril ossudo.
A despeito de todo o resto dele, que definhara, seu pênis ainda era grosso, comprido e rijo como antes, e ele ficou estranhamente grato por ser a única coisa que não era absolutamente humilhante para ele.
Empurrando os apoios de braço com as mãos, deslizou ainda mais para a frente, e ela se contorceu, montando nele com uma coordenação invejável.
A ereção dele a penetrou profundamente, e a firmeza com que ela o prendeu fez com que ele chegasse ao orgasmo de imediato. Mas isso não foi o mais incrível. Aparentemente, e por algum milagre, o mesmo aconteceu com ela.
Enquanto ela gritava seu nome, pareceu também chegar ao clímax.
Ou isso, ou ela não escutara seu chamado pois teria recebido o Oscar de melhor atriz.
Antes de perceber o que estava fazendo, Edward começou a se movimentar. Foi um movimento fraco, quase patético, mas ela seguiu, aquele primeiro orgasmo logo sendo eclipsado por outro ainda mais potente para ambos. Estremecendo, balançando, se retesando, ela se agarrou nele como se disso dependesse a sua vida, o cabelo cobrindo o dele, os seios pressionados contra ele, o corpo levando-o para uma viagem que ele nunca tinha experimentado.
O sexo pareceu durar para sempre.
Quando, por fim, tudo terminou, depois de um terceiro orgasmo, Edward se prostrou na poltrona e ofegou.
– Vou precisar de você de novo.
– Ah, Edward…
– Diga a Beau… semana que vem. Mesmo dia, mesmo horário.
– O quê?
Ele deixou a cabeça pender para o lado.
– O dinheiro está ali. Só você. Só quero você de novo.
De repente, provavelmente por ter se cansado mais nos vinte minutos do que nos doze meses anteriores, começou a se sentir fraco e, de fato, parecia apropriado que desmaiasse e deixasse que a prostituta saísse com tranquilidade.
Assim, ele conseguiria sustentar a fantasia por mais tempo.
– Mil… ao lado da porta – murmurou. – Pegue. A gorjeta…
Edward teve a intenção de dizer “A gorjeta vem depois, vou fazer com que alguém deixe com Beau mais tarde” ou algo do gênero. Mas a consciência era um luxo ao qual ele já não conseguia se dar… E se deixou cair no esquecimento.
Mais uma vez, pensando apenas em Sutton Smythe.
Sutton saiu cambaleando do chalé de Edward. Estava descalça, segurando os sapatos pelas tiras, mas ao contrário da sua outra caminhada pela grama ao redor do museu, as tábuas da varanda e os pedriscos machucaram suas solas.
Não que ela estivesse prestando atenção.
Ao partir para o Mercedes, ela era um misto de contradições; seu cérebro, uma confusão emaranhada. Mas seu corpo estava maleável e relaxado.
Edward pensou que ela fosse uma prostituta?
Por que outro motivo ele teria falado de dinheiro e de um homem chamado Beau? Semana que vem?
Ah, Deus, fizeram sexo…
Como chegaram àquilo? Como ela permitira que…
Bom Deus, o pobre rosto dele, o corpo…
Esses pensamentos entravam e saíam da sua cabeça, girando com alguma força centrífuga, tudo se revolvendo a não ser pelo fato de que Edward já não era mais o mesmo de antes. Sua linda aparência já não existia mais, as cicatrizes no rosto, sobre o nariz e na testa, deixavam virtualmente impossível reconstruir por lembranças a perfeição que antes existira ali.
Ela sabia que ele havia sido maltratado. Os noticiários e os artigos nos jornais foram suas únicas fontes de informação porque ele tinha se recusado a ver qualquer pessoa, e detalharam a duração da sua estada no hospital e da subsequente reabilitação. Esse tipo de tratamento longo não acontecia sem motivos trágicos. Mas vê-lo em pessoa fora um choque.
Antes do sequestro, ele era jogador de polo. Saltou com cavalos em apresentações. Correu. Jogou basquete, tênis e squash. Nadou. Edward fora um garoto dourado não apenas nos negócios, mas em todos os outros aspectos da sua vida, ele sempre se excedera em tudo.
Eu queria ter feito isso antes. No passado, valia a pena ver o meu corpo.
Sutton teve dificuldades para abrir a porta do carro, a mão escorregava como se ela estivesse tendo um ataque e seus dedos já não funcionassem direito. E quando, por fim, conseguiu abrir e entrar, ficou sem forças e deixou-se cair no assento.
Eu deveria ter tentado conquistá-la antes, mas era covarde demais. Era um covarde arrogante, mas a verdade é que eu poderia ter suportado qualquer coisa, menos uma recusa sua.
O que ele dissera? E para quem achou que estava dizendo? O coração dela se partiu com a ideia de que ele estivesse apaixonado por alguém daquela maneira.
Ele estava tão embriagado. Tanto que, antes de sair apressadamente, ela voltou para ver se o coração dele ainda estava batendo, se ele ainda estava respirando… Sim, porque a ideia de que talvez o tivesse matado por causa do que haviam…
– Bom Deus.
Como era possível que, depois de anos pensando nisso, eles, finalmente, tivessem feito sexo? E só porque ele acreditava que ela fosse uma prostituta cujos serviços ele encomendara em algum lugar?
Ah, não… Não tinham usado proteção.
Fabuloso. A reviravolta daquela noite toda era simplesmente fabulosa. Ainda mais porque, mesmo ele estando bêbado… mesmo ela estando meio fora do seu juízo completo… e apesar das condições físicas dele… o sexo tinha sido incrível. Talvez por causa de toda a imaginação acumulada, ou talvez fosse compatibilidade, ou quem sabe fosse apenas uma experiência única, do tipo que acontece quando certas estrelas estão alinhadas.
Independentemente dos motivos, ele tinha feito os poucos homens com quem ela estivera sumirem.
Impedindo que qualquer outro chegasse até ela, Sutton temeu.
Esticando o braço, procurou o botão de partida, e quando o motor roncou e os faróis se acenderam, ela entrou em pânico. Havia outras pessoas na propriedade – só podia haver –, e a última coisa que ela queria era ser pega em flagrante. Teria que encontrar uma maneira de lidar com a situação, e boatos se espalhando não faziam parte da sua estratégia, muito obrigada…
Neste mesmo instante, outro carro surgiu na alameda e, em vez de seguir para um dos estábulos ou construções externas, parou bem ao lado do seu.
A mulher que saiu era… alta, morena e usava um vestido longo.
E franziu o cenho ao ver o Mercedes.
Ela se aproximou.
Sutton abaixou o vidro. O que mais poderia fazer? Ao mesmo tempo, também começou a tatear à procura do câmbio, ou botão, ou sabe-se lá o que colocaria o sedã em marcha a ré.
– Pensei que eu estava escalada para esta noite – a mulher disse, num tom agradável.
– Eu… hum… – Enquanto gaguejava, sentiu-se corar. – Ah…
– Você é uma das garotas novas que Beau mencionou? Sou Delilah.
Sutton apertou a mão que lhe foi oferecida.
– Como tem passado?
– Ah, mas você parece tão chique! – A mulher sorriu. – Então, cuidou bem dele?
– Hum…
– Tudo bem se você cuidou. Às vezes essas coisas acontecem, e eu tenho outros dois chamados para esta noite. – Levantou a mão e puxou o que, no fim, era uma peruca. – Pelo menos me livro disto. Ele está bem?
– O que disse?
A mulher esfregou o cabelo loiro curto ao acenar na direção do chalé.
– Ele. Todas nós cuidamos dele, pobrezinho. Beau não nos diz quem é, mas deve ser alguém importante. É sempre tão generoso, e nos trata muito bem. É um caso bem triste, para falar a verdade.
– Sim. Muito triste.
– Bem, está na minha hora. Quer que eu avise Beau que está tudo bem?
– Hum…
– Fico com a semana que vem, então.
– Não – Sutton se ouviu dizer. – Ele me disse… o homem me disse que quer me ver de novo.
– Ah, ok, sem problemas. Eu aviso.
– Muito obrigada. Muito obrigada mesmo.
Talvez aquele fosse algum tipo de alucinação bizarra causada por uma febre.
Enquanto Sutton voltava a procurava a manopla, a prostituta se inclinou para baixo.
– Está procurando a ré?
– Ah, sim, estou.
– É essa aí na direita. Mexa-a para trás. Para baixo do drive e, para estacionar, você empurra até o fim.
– Obrigada. Que difícil.
– Um dos meus fregueses regulares tem esse mesmo modelo. É uma beleza! Dirija com cuidado.
Produzindo um som sem sentido, Sutton manobrou para trás com cuidado, ciente de que a mulher estava bem perto com aquela peruca morena na mão.
Seguindo na direção da estrada principal, resolveu que aquilo só podia ser resultado de um resfriado, de uma alucinação. A qualquer instante agora, ela despertaria…
Era isso.
Só podia ser.
Puxa vida, como foi que tudo foi acontecer?
CONTINUA
DEZOITO
Enquanto parava diante da entrada principal de Easterly, Lane pisou tão fundo no freio que os pedriscos do caminho voaram com ele até o Porsche parar. Não desligou o motor, simplesmente saiu do carro e voou escada acima, passando pelas portas duplas tal qual uma ventania.
Não prestou atenção em absolutamente nada ao entrar na mansão – nem na criada que limpava o vestíbulo, no mordomo que se dirigiu a ele… nem mesmo em sua Lizzie, que parou em seu caminho como se estivesse aguardando sua chegada.
Em vez disso, saiu da casa pela porta da sala de jantar e avançou a passos largos até o centro de negócios, atravessando as mesas redondas bem arrumadas debaixo da tenda e se esquivando dos funcionários da manutenção que estavam pendurando cordões de luzes entre as árvores em flor.
O local de trabalho do pai tinha um terraço com uma série de portas francesas, e ele seguiu para o par que ficava na extrema esquerda. Quando chegou, não se deu ao trabalho de experimentar a maçaneta, porque a porta estaria trancada.
Bateu no vidro. Com força.
E não parou. Nem quando sentiu a mão úmida, o que indicava que ele devia ter quebrado alguma coisa…
Na verdade, ele estilhaçou a vidraça da primeira porta do escritório do pai, e partiu para a seguinte.
A boa notícia, pensou, era que havia muitas outras.
– Lane! O que você está fazendo?
Ele parou e se virou para Lizzie. Numa voz que não reconheceu, ele disse: – Preciso encontrar o meu pai.
A extremamente profissional assistente executiva de William Baldwine correu para dentro do escritório e arfou em alto e bom som ao ver o vidro quebrado.
– Você está sangrando! – a mulher exclamou.
– Onde está o meu pai?
A senhora Petersberd destrancou a porta e a abriu.
– Ele não está aqui, senhor Baldwine, ele ficará em Cleveland o dia inteiro. Acabou de sair e não sei bem quando retornará. O senhor precisa de algo?
Quando os olhos dela se fixaram nas juntas sanguinolentas da mão dele, ele soube que ela estava querendo dizer algo como “Que tal uma toalha, talvez?", mas ele pouco se importava se suas veias se esvaziassem naquele lugar.
– Quem contou ao meu pai que Gin tinha saído? – ele exigiu saber. – Quem ligou para ele? Foi você? Ou um espião na casa…
– Do que está falando?
– Ou você ligou para a polícia e mandou que eles prendessem a minha irmã? Tenho certeza absoluta de que meu pai não sabe apertar as teclas 190 sozinho, mesmo que tenham me dito que foi isso o que ele fez.
Os olhos da mulher se dilataram e depois ela sussurrou:
– Ele me disse que ela acabaria fazendo mal a si mesma. Que ela tentaria sair hoje de manhã e que eu teria que fazer o que fosse necessário para impedi-la. Ele disse que ela precisa de ajuda…
– Lane!
Ele virou a cabeça na direção de Lizzie bem quando tudo ficou fora dos eixos, seu corpo pendendo para um dos lados.
Com toda a força, Lizzie o sustentou e impediu que ele caísse no chão.
– Venha. Vamos voltar para casa.
Enquanto ele se deixava manobrar, sangue pingou no piso de pedra do terraço, manchando o cinza de vermelho. Fitando a assistente, ele ordenou: – Diga ao meu pai que eu o estou aguardando.
– Não sei quando ele volta.
Até parece, ele pensou. A mulher chegava a agendar as pausas para William ir ao banheiro.
Havia tanta raiva dentro dele que ele estava cego ao que o cercava enquanto Lizzie o guiava. A fúria era por causa de Edward. De Gin. De sua mãe.
De Max…
– Quando foi a última vez que você comeu alguma coisa? – Lizzie perguntou ao empurrá-lo pela porta de Easterly.
Por um instante, ele pensou estar alucinando. Mas logo percebeu que os homens e mulheres de branco eram chefs, e que ele e Lizzie estavam na cozinha.
– Desculpe, o que disse? – murmurou.
– Comida. Quando?
Ele abriu a boca. Fechou. Franziu o cenho.
– Meio-dia de ontem?
A senhorita Aurora entrou no campo de visão dele.
– Lands… O que há de errado com você, menino?
Houve algum tipo de conversa em seguida, nada que ele compreendesse. Em seguida, um curativo na sua mão, ao qual ele não deu atenção. E mais conversa.
Ele não voltou a sintonizar apropriadamente até estar sentado na sala de descanso dos chefs, à mesa, com um prato de ovos mexidos, seis fatias de bacon e quatro torradas diante de si.
Seu estômago roncou e ele piscou. Sua cabeça continuava uma confusão, mas sua mão pegou o garfo e começou a cavar.
Lizzie se sentou diante dele, a cadeira rangendo sobre o piso de madeira.
– Você está bem?
Ele fixou o olhar além dela, na senhorita Aurora, parada à porta como se estivesse prestes a sair.
– O meu pai é um homem mau.
– Ele tem o seu próprio conjunto de valores.
Que era o mais próximo que ela chegaria de condenar alguém.
– Ele está tentando vender a minha irmã. – Bufou. – É como se isso fosse… uma novela ruim.
Estava prestes a contar tudo quando o celular tocou; assim que viu quem era, atendeu.
– Samuel, em que pé estamos?
Samuel T. teve que erguer a voz acima das conversas ao fundo.
– Setenta e cinco mil para a fiança, foi o melhor que consegui. Assim que você trouxer o cheque, pode vir buscá-la.
– Já vou cuidar disso. Você vai embora?
– Só depois que ela sair. Ela tem o direito de se consultar com seu advogado, portanto, enquanto eu estiver por perto, ela não terá que voltar para aquela cela sozinha, ou que Deus não permita, com outra pessoa.
– Obrigado.
Assim que ele encerrou a ligação, a senhorita Aurora saiu para acompanhar o trabalho dos chefs, e ele se voltou para Lizzie.
– Vou ter que ir atrás do dinheiro da fiança dela agora. Depois disso, não sei mais.
Ela esticou a mão e a apoiou no braço dele.
– Como eu já disse antes: tem alguma coisa que eu possa fazer para ajudar?
Foi como um raio. Num minuto, ele estava normal, como qualquer outro homem numa situação como aquela. No seguinte? A luxúria bombeava em suas veias, excitando-o, desviando a loucura em sua cabeça para algo verdadeiramente insano.
Abaixando as pálpebras, murmurou:
– Tem certeza de que quer que eu responda?
Lizzie engoliu em seco e olhou para o ponto em que o tocava. Quando não disse nada, mas também não se afastou, ele se inclinou na direção dela e levantou seu queixo com o indicador. Travando os olhos nos lábios dela, beijou-a mentalmente, com imagens de si mergulhando a cabeça e colando a boca na dela. Empurrando-a no encosto da cadeira. Enfiando-se debaixo das roupas dela enquanto se ajoelhava entre suas pernas com…
– Ai… Deus… – ela sussurrou, os olhos evitando os dele.
Mas, ainda assim, ela não se afastou.
Lane lambeu os lábios. Depois abaixou a mão e saiu de perto dela.
– É melhor você ir. Ou vou fazer uma coisa que você vai se arrepender.
– E você? – ela sussurrou. – Você vai se arrepender?
– De te beijar? Nunca. – Meneou a cabeça, reconhecendo que suas emoções estavam à flor da pele… completamente descontroladas. – Mas não vou tocar em você até que me peça. Isso eu consigo prometer.
Depois de um instante, ela se levantou sem a sua elegância costumeira, a cadeira na qual estivera sentada deslizando pelo piso, seus pés trôpegos. Ele lhe deu tempo suficiente para sair da sala de descanso e avançar pelo corredor antes de ele mesmo sair.
Caso ficasse muito próximo dela, era bem possível que a agarrasse e a colocasse sobre a mesa, procurando o alívio que os dois tanto necessitavam.
Porque ela o desejava. Ele tinha acabado de ver.
Não que fosse ficar pensando nisso.
Ele precisava fazer com que o pai pagasse a fiança. Não que ele mesmo não tivesse aquela quantia. Tinha lucrado bastante na mesa de pôquer e, diferentemente da irmã, aos trinta e seis anos, já tinha acesso à primeira parte dos seus fundos. Mas William Baldwine criara aquela confusão, e o fato de o homem estar fora da cidade tornaria mais fácil pegar um cheque e levar ao banco para que o autorizassem.
Um minuto depois, Lane estava diante do escritório da controller, mas não se deu ao trabalho de bater, avançando direto para a maçaneta.
Trancada.
Assim como fizera com a porta de vidro do pai, socou a porta de carvalho… com a mão machucada.
– Ela não está? – o senhor Harris perguntou da soleira da sua suíte.
– Onde está a chave dessa porta?
– Não tenho permissão para…
Lane se virou.
– Pegue a porra dessa chave ou vou acabar derrubando a maldita porta.
E vejam só, uma fração de segundo depois, o mordomo se aproximou com um molho de chaves.
– Permita-me, senhor Baldwine.
Só que a chave não os levou a parte alguma. Ela entrou na fechadura, mas foi impossível girá-la.
– Lamento muitíssimo – disse o mordomo enquanto forçava a fechadura.
– Tem certeza de que é a chave certa?
– Está marcado aqui. – O homem mostrou a etiquetinha pendurada na ponta ornamentada. – Talvez ela volte logo.
– Deixe-me tentar.
Lane afastou o pinguim para o lado, mas também não teve sucesso. Perdendo a paciência, empurrou a porta com o ombro e…
O estalido da madeira se rompendo abafou seu grito de raiva, e ele teve que se segurar nos painéis quando eles se movimentaram de volta na sua direção.
– Mas que diabos! – exclamou, dando uma de Drácula e se afastando do fedor.
Enquanto o senhor Harris começava a tossir, tendo que cobrir o rosto com a lapela do terno, outra pessoa disse: – Ai, meu Deus, isso é…
– Tire todos do corredor – Lane ordenou ao mordomo. – E faça com que fiquem afastados.
– Sim, sim, claro, senhor Baldwine.
Lane ergueu o antebraço e respirou na manga da camisa ao se inclinar para dentro. O escritório estava um breu, as cortinas pesadas haviam sido fechadas, impedindo a entrada da luz solar, e o ar-condicionado sobre uma das janelas também estava desligado. Tateando ao redor da soleira com a mão livre, ele tinha a nítida impressão do que estava para encontrar e não conseguia acreditar.
Clique.
Rosalinda Freeland estava sentada numa poltrona estofada no canto oposto, o rosto congelado num sorriso repulsivo, os dedos acinzentados enterrados em almofadas de chintz, os olhos inertes fitando alguma versão da vida após a morte com que se deparou.
– Jesus… – Lane sussurrou.
O profissional conjunto de saia e terninho estava perfeitamente arrumado, os óculos de leitura, pendurados numa corrente de ouro sobre a blusa de seda, o coque primoroso, um tanto grisalho, ainda estava arrumado. Mas os sapatos não faziam sentido algum. Não eram os de couro que ela sempre calçava, mas um par de tênis Nike, como se ela estivesse prestes a sair para uma corrida.
Merda, pensou ele.
Enfiando a mão no bolso, pegou o celular e discou para a única pessoa que conseguiu pensar. Enquanto chamava, olhou ao redor. Não havia bagunça em parte alguma, o que era típico desta mulher que trabalhou em Easterly por trinta anos. Não havia mais nada sobre o tampo da mesa além do computador e do abajur com cúpula verde. As estantes escondiam discretamente todos os demais equipamentos de escritório, e os arquivos estavam tão em ordem quanto livros numa biblioteca.
– Alô? – respondeu a voz no celular.
– Mitch – disse Lane.
– Você está vindo com o cheque da fiança?
– Tenho um problema.
– O que posso fazer?
Lane fechou os olhos e perguntou como foi ter tanta sorte por ter aquele cara do outro lado da linha.
– Estou olhando para o cadáver da controller da minha família.
No mesmo instante, o tom do delegado baixou uma oitava.
– Onde?
– Em seu escritório em Easterly. Acho que ela pode ter se suicidado… Acabei de derrubar a porta.
– Já ligou para a emergência?
– Ainda não.
– Quero que ligue agora enquanto sigo para aí, só para que fique registrado e a polícia metropolitana possa ir para aí. Eles têm jurisdição.
– Obrigado, cara.
– Não toque em nada.
– Só toquei no interruptor ao entrar.
– E não deixe ninguém entrar no cômodo. Chego em cinco minutos.
Assim que Lane encerrou a ligação e discou para a emergência, seus olhos tracejaram as prateleiras. Ele pensou em todo o trabalho feito por aquela mulher naquele pequenino escritório.
– Sim, meu nome é Lane Baldwine. Estou ligando de Easterly. – A mansão não tinha número. – Houve uma morte na casa… Sim, tenho certeza de que ela não está mais viva.
Ele andou ao redor enquanto respondia a algumas perguntas, confirmou seu número de celular e depois desligou de novo.
Encarando a mesa, respeitou as ordens de Mitch, mas tinha que pegar o talão de cheques. Com cadáver ou sem, ele ainda tinha que tirar Gin da prisão.
Pegou o lenço do bolso e caminhou por cima do tapete oriental. Estava para puxar a gaveta estreita no centro da mesa quando algo chamou sua atenção. Bem no meio do mata-borrão de couro, perfeitamente alinhado como se fosse uma régua… havia um pen drive.
– Senhor Baldwine? Devo fazer alguma coisa? – o senhor Harris o chamou.
Lane relanceou para o corpo.
– A polícia está a caminho. Não podemos mexer em nada, por isso já vou sair.
Apanhou o que Rosalinda evidentemente deixara para quem a encontrasse. Depois abriu a gaveta e surrupiou o talão de cheques, enfiando-o no cós da calça na parte de trás, cobrindo-o com a camisa.
Virou-se para a controller. A expressão no rosto dela era como a do Coringa, um sorriso torto e horrível que apareceria nos seus pesadelos por um bom tempo.
– O que foi que o meu pai fez agora… – sussurrou no ar maculado pela morte.
DEZENOVE
Lizzie estava na estufa ao telefone com a empresa de aluguel quando percebeu o SUV do delegado do Condado de Washington avançando pela entrada da frente de Easterly.
Já estariam entregando os papéis do divórcio para Chantal? Puxa…
– Desculpe – disse, voltando a se concentrar. – O que disse?
– A conta está atrasada – o representante comercial repetiu. – Portanto não podemos aceitar nenhuma encomenda.
– Atrasada? – Isso era tão inconcebível quanto a Casa Branca deixar de pagar a conta de luz. – Não, não, pagamos o montante total da tenda ontem. Portanto, não é possível que…
– Veja bem, vocês são um dos nossos melhores clientes, queremos continuar trabalhando com vocês. Eu não sabia que a conta estava atrasada até o dono me contar. Enviei todos os materiais que pude, mas ele me impediu de mandar mais até que o saldo seja quitado.
– Quanto devemos?
– Cinco mil, setecentos e oitenta e cinco e cinquenta e dois centavos.
– Isso não será um problema. Eu mesma levarei o cheque agora, você pode nos…
– Não temos mais nada em estoque. Não temos nada para alugar, já que todas as festas na cidade acontecem este fim de semana. Liguei para Rosalinda na semana passada e deixei três recados sobre o saldo a pagar. Ela não retornou as ligações. Segurei o restante do pedido o máximo que pude porque queria cuidar da conta de vocês. Mas não tive notícias, e havia outros pedidos a serem atendidos.
Lizzie inspirou fundo.
– Ok, obrigada. Não sei o que está acontecendo, mas vou dar um jeito. Farei com que recebam.
– Lamento muito.
Quando encerrou a ligação, recostou-se na parede de vidro para tentar ver o veículo do delegado.
– … a emprresa falou?
Virou-se para Greta, que estava borrifando os últimos arranjos de mesa com preservativo floral.
– Desculpe, o que… ah, há um problema com o pagamento da conta.
– Então vamos ou não receberr as quinhentas taças de champanhe que faltam?
– Não. – Lizzie partiu para a porta que dava para a casa. – Vou falar com Rosalinda e depois dar a bela notícia ao senhor Harris. Ele vai ficar uma arara, mas pelos menos temos as tendas, as mesas e as cadeiras. Podemos lavar os copos conforme eles forem sendo usados, a família deve ter uma centena de taças na casa.
Greta a fitou através dos óculos de armação de casco de tartaruga.
– Terremos quase setecentas pessoas amanhã. Acha mesmo que conseguirremos darr conta? Com apenas quinhentas taças?
– Você não está ajudando.
Saindo da estufa, atravessou a sala de jantar e foi para a ala dos empregados. Quando empurrou a porta, parou de pronto. Havia três empregadas em uniformes cinza e branco bem juntinhas, falando agitadamente, mas num tom bem baixo, como se fosse um programa de televisão no volume mínimo. A senhorita Aurora estava ao lado delas, com os braços cruzados sobre o peito, e Beatrix Mollie, a governanta-chefe, estava ao seu lado. O senhor Harris estava no meio do corredor, seu corpo diminuto bloqueando o caminho até a cozinha.
Lizzie franziu a testa e se aproximou do mordomo. E foi nesse momento que sentiu o cheiro que, como fazendeira, conhecia com certa familiaridade.
Um homem afro-americano com uniforme de delegado saiu do escritório de Rosalinda junto de Lane.
– O que está acontecendo? – Lizzie perguntou, um calafrio percorrendo o seu peito.
Bom Deus, será que Rosalinda…
Era por isso que o corredor estava com um cheiro tão ruim de manhã, pensou, com o coração aos pulos.
– Houve um contratempo – disse o senhor Harris. – E ele já está sendo solucionado apropriadamente.
Lane se deparou com os olhos dela enquanto falava com o delegado e fez um aceno com a cabeça.
A senhora Mollie fez o sinal da cruz.
– São três de cada vez. A morte sempre vem em três.
– Tolice – murmurou a senhorita Aurora, como se a mulher a estivesse entediando com aquela linha de pensamento. – Os desígnios de Deus servem a todos. Não fique contando na ponta dos dedos.
– Três. Sempre em três.
Voltando para a estufa, Lizzie fechou a porta atrás de si e olhou ao redor, para os arranjos de flores creme e rosa.
– O que aconteceu? – Greta perguntou. – Ficou faltando mais alguma coisa do pedido…
– Acho que Rosalinda está morta.
Houve um barulho quando o spray escorregou da mão de Greta e quicou no chão, molhando os sapatos da mulher.
– O quê?
– Não sei nada.
Enquanto uma torrente de alemão jorrava da sua companheira, Lizzie murmurou: – É, não é? Não consigo acreditar.
– Quando? Como?
– Não sei, mas o delegado está lá. E não chamaram uma ambulância.
– Oh, mein Gott… das ist ja schrecklich!19
Xingando, Lizzie andou até a janela com vista para o jardim e fitou o gramado verde e resplandecente, e a elegante estrutura da festa. Já haviam concluído setenta e cinco por cento das tarefas e tudo estava realmente belo, ainda mais com as flores brancas que ela e Greta plantaram debaixo das árvores frutíferas.
– Estou com uma sensação muito ruim a respeito disso tudo – ouviu-se dizer.
Uma hora depois da chegada da polícia metropolitana, Lane teve permissão para deixar a cena por um curto período. Ele queria falar com Lizzie para informá-la sobre tudo o que estava acontecendo, mas primeiro tinha que cuidar de Gin.
O dinheiro da família Bradford era administrado pela Companhia de Fundos Prospect, uma empresa privada de bilhões de dólares em ativos e com todos os milionários de Charlemont na sua carteira de clientes. Contudo, como não eram um banco tradicional, as contas da família eram da filial local do PNC, e era de lá o talão de cheques que ele tirara da mesa de Rosalinda.
Parando no estacionamento de um prédio elegante, fez um cheque no valor de setenta e cinco mil dólares, falsificou a assinatura do pai e o endereçou à cadeia do Condado de Washington.
Assim que entrou no saguão bege e branco, foi interceptado por uma jovem num terno azul-marinho e com joias discretas.
– Senhor Baldwine, como tem passado?
Acabei de encontrar um cadáver. Obrigado por perguntar.
– Bem, preciso de uma autorização para sacar este cheque.
– Claro. Venha até o meu escritório. – Conduzindo-o até uma saleta envidraçada, ela fechou a porta e se sentou atrás de uma mesa organizada. – É sempre um prazer ajudar a sua família.
Ele escorregou o cheque por cima do mata-borrão e se sentou.
– Agradeço por isso.
O som das unhas batendo nas teclas do computador era um pouco incômodo, mas ele tinha problemas maiores.
– Hum… – A gerente pigarreou. – Senhor Baldwine, lamento, mas não há fundos suficientes na conta para compensá-lo.
Ele pegou o celular.
– Sem problemas, vou telefonar para a Fundos Prospect e solicitar a transferência. Quanto devemos?
– Bem, senhor, a conta está com um saldo devedor de vinte e sete mil, quatrocentos e oitenta e nove dólares e vinte e dois centavos. No entanto, o limite está cobrindo isso.
– Dê-me um minuto. – Ele procurou em seus contatos o número do administrador do CFP responsável pelos investimentos da família. – Farei a transferência.
Um evidente alívio tomou o rosto dela.
– Vou lhe dar um pouco de privacidade. Estarei no saguão quando estiver pronto. Leve o tempo que precisar.
– Obrigado.
Enquanto esperava a ligação completar, Lane bateu o sapato no piso de mármore.
– Hum, olá, Connie, como está? Aqui é Lane Baldwine. Bem. Sim, estou na cidade para o Derby. – Entre outras coisas. – Escute, preciso que transfira certa quantia para a conta-corrente da família no PNC.
Houve uma pausa. Em seguida, a voz serena e profissional da mulher se tornou tensa.
– Eu faria isso com prazer, senhor Baldwine, mas não tenho mais acesso às suas contas. O senhor deixou a Fundos Prospect no ano passado.
– Estou me referindo à conta do meu pai. Ou da minha mãe.
Outra pausa.
– Lamento, mas o senhor não tem autorização para transferir fundos dessa natureza. Vou precisar falar com o seu pai. Existe um modo de o senhor pedir para que ele nos telefone?
Não se quisesse aquele dinheiro. Considerando o que seu velho e bom papai estava tentando arrancar de Gin, de jeito nenhum o grandioso e glorioso William Baldwine facilitaria a soltura dela.
– O meu pai está fora da cidade e não será possível entrar em contato com ele. E se eu colocar a minha mãe na linha? – Por certo conseguiria acordá-la e mantê-la consciente por tempo suficiente para que ela pedisse a transferência de 125 mil para a conta-corrente da casa.
Connie pigarreou da mesma forma como a gerente do banco.
– Sinto muito, mas… não será o bastante.
– Se a conta é dela? Como não?
– Senhor Baldwine… não gostaria de me precipitar…
– Parece-me que é melhor falar de uma vez.
– Poderia aguardar um instante?
Enquanto uma música suave tocava em seu ouvido, Lane saltou da cadeira dura e começou a andar entre um vaso de planta num canto, que descobriu ser de plástico quando tocou numa folha, e as janelas que subiam até o teto, com vista para a rodovia de quatro pistas ao longe.
Houve um bipe e logo uma voz masculina entrou na linha.
– Senhor Baldwine? Aqui é Ricardo Monteverdi, como tem passado?
Maravilha, o CEO da empresa. O que significava que ele havia tropeçado numa “situação delicada”.
– Escute, só preciso de cento e vinte e cinco mil dólares em dinheiro, ok? Nada demais…
– Senhor Baldwine, como o senhor sabe, na Fundos Prospect, nós levamos a nossa responsabilidade fiduciária e os nossos clientes muito a sério…
– Pode parar já com o discurso de abertura. Conte-me por que a palavra da minha mãe não é o suficiente para sacar o próprio dinheiro dela, ou desligue logo.
Fez-se um silêncio.
– O senhor não me deixa escolha.
– O quê? Pelo amor de Deus, o que foi?
O período seguinte de silêncio foi tão longo e denso que ele afastou o aparelho da orelha para ver se a linha tinha caído.
– Alô?
Mais pigarreios.
– No início deste ano, o seu pai declarou que a sua mãe é mentalmente incompetente para administrar o fundo. A opinião de dois neurologistas qualificados é de que ela é incapaz de tomar quaisquer decisões. Portanto, se necessita de fundos de qualquer uma dessas contas, teremos o maior prazer em atendê-lo, desde que o pedido venha do seu pai em pessoa. Espero que entenda que estou numa situação delicada e que…
– Vou ligar para ele neste mesmo instante e farei com que ele telefone.
Lane encerrou a ligação e ficou olhando para o trânsito. Depois, seguiu até a porta e a abriu. Sorrindo para a gerente, disse: – Meu pai fará com que a transferência seja feita pela Prospect. Voltarei mais tarde.
– Estaremos abertos até as cinco, senhor.
– Obrigado.
De volta ao sol ofuscante, manteve o celular na mão ao atravessar o estacionamento escaldante, mas não o usou. Também não percebeu que estava dirigindo de volta para casa.
Que diabos ele faria agora?
Quando chegou a Easterly, havia outras duas viaturas próximas à garagem e alguns policiais uniformizados parados diante da porta da frente. Estacionou o Porsche em seu lugar costumeiro, à esquerda da entrada principal, e saiu.
– Senhor Baldwine – um dos policiais o cumprimentou quando Lane se aproximou.
– Cavalheiros.
A sensação de olhos o seguindo fez com que ele quisesse mandar o grupo para longe da sua casa. Tinha a sensação paranoica de que havia coisas acontecendo por trás das cortinas, sem que ele soubesse, e preferia encontrar algum esqueleto no armário primeiro sem testemunhas, sem o benefício dos olhares curiosos da polícia metropolitana.
Subindo os degraus até o segundo andar, foi para o próprio quarto e fechou a porta, trancando-a. Perto da cama, pegou o telefone da casa, apertou o número nove para conseguir uma linha externa, e depois pressionou *67 para que o número para o qual telefonava não ficasse registrado no identificador de chamadas. Quando deu linha, ele compôs uma sequência de quatro números.
Pigarreou quando ouviu um toque. Dois…
– Bom dia, aqui é do escritório do senhor William Baldwine. Como posso ajudá-lo?
Imitando o tom firme e profissional do pai, ele disse:
– Ligue-me com Monteverdi da Prospect agora mesmo.
– Sim, senhor Baldwine. Imediatamente.
Lane pigarreou uma vez mais enquanto uma música clássica se fazia ouvir. A boa notícia era que o pai era antissocial, exceto se a interação humana o beneficiasse nos negócios, portanto era muito improvável que os dois homens tivessem se falado recentemente, o que revelaria o seu engodo.
– Senhor Baldwine, o senhor Monteverdi está na linha.
Depois de um clique, Monteverdi começou a falar.
– Obrigado por finalmente retornar a minha ligação.
Lane baixou seu tom de voz e enfatizou o sotaque sulista.
– Preciso de cento e vinte e cinco mil na conta-corrente da casa…
– William, eu já lhe disse, não posso fazer mais adiantamentos, simplesmente não posso. Agradeço os negócios da sua família e estou comprometido em ajudá-lo a sair dessa situação antes que o nome Bradford se depare com dificuldades, mas as minhas mãos estão atadas. Tenho responsabilidades para com o Conselho, e você me disse que o dinheiro que pegou emprestado seria devolvido até a reunião anual, que acontecerá em duas semanas. O fato de necessitar de mais recursos, sendo um montante assim pequeno, já não me deixa mais tão confiante.
Mas que diabos?!
– Qual o total devido? – ele perguntou, carregando no forte sotaque da Virgínia.
– Eu lhe disse da última vez que deixei recado – Monteverdi se mostrou irritado. – Cinquenta e três milhões. Você tem duas semanas, William. Suas alternativas são: devolver o montante ou procurar o JP Morgan Chase e pedir um empréstimo contra o fundo primário da sua esposa. Ela tem mais de cem milhões só naquela conta, portanto o perfil de empréstimos deles será atendido. Eu lhe enviei a documentação num e-mail particular, você só precisa assinar os papéis e isso não nos afetará mais. Mas permita que eu seja bem franco: estou exposto nesta situação e não permitirei que isso prossiga assim. Existem medidas que eu poderia acionar, que seriam muito desagradáveis para você, e eu as usarei antes que alguma coisa me afete pessoalmente.
Puta.
Merda.
– Voltarei a falar com você – Lane disse com voz arrastada e desligou.
Por um instante, só conseguiu ficar olhando para o telefone. Literalmente não conseguia conectar dois pensamentos com coerência.
Em seguida, veio o vômito.
Numa ânsia súbita, dobrou-se ao meio, mal conseguindo apanhar o cesto de papéis a tempo.
Tudo o que comera na sala de descanso dos funcionários subiu.
Depois que o acesso passou, seu sangue correu gelado, a sensação de que nada era como deveria ser fazendo-o imaginar – e depois rezar – que aquilo fosse uma espécie de pesadelo.
Mas não podia se dar ao luxo de não fazer nada, ou pior, de desmoronar. Tinha que lidar com a polícia. Com a irmã. E com o que mais estivesse por vir…
Deus, desejou que Edward ainda estivesse por perto.
“Meu Deus, isso é mesmo terrível!”
VINTE
Uma hora mais tarde, Gin deslizou pelo banco do Porsche cinza-escuro do irmão, fechou os olhos e balançou a cabeça.
– Estas foram as piores seis horas da minha vida.
Lane emitiu uma espécie de grunhido, que poderia significar muitas coisas, mas que certamente estava bem longe do “Ah, Deus, não consigo imaginar o que você teve que suportar” que ela esperava ouvir.
– Desculpe – ela explodiu –, mas eu acabei de sair da cadeia…
– Estamos com problemas, Gin.
Ela deu de ombros.
– Conseguimos a fiança, e Samuel T. vai garantir que isso fique longe da imprensa…
– Gin. – O irmão a encarou quando saiu para o trânsito. – Estamos com graves problemas.
Mais tarde, ah, muito mais tarde, ela ainda se lembraria desse instante em que seus olhares se encontraram no interior do carro, indicando o início da derrocada, o primeiro dominó caindo, que fez com que todos os outros também caíssem com tamanha velocidade que ficou impossível deter a sequência.
– Do que está falando? – ela perguntou com suavidade. – Você está me assustando.
– A nossa família está devendo uma quantia enorme.
Ela revirou os olhos e balançou a mão no ar.
– Sério, Lane? Tenho problemas piores…
– E Rosalinda se matou na nossa casa. Em algum momento dos últimos dois dias.
Gin levou a mão à boca. Lembrou-se de ter telefonado para a mulher sem obter nenhuma resposta apenas algumas horas antes.
– Está morta?
– Morta. No escritório dela.
Foi impossível não ficar toda arrepiada quando visualizou o telefone tocando ao lado do cadáver da controller.
– Meu Deus…
Lane praguejou, olhando pelo retrovisor e mudando de faixa rapidamente.
– A conta-corrente da casa está com saldo devedor, e nosso pai de algum modo conseguiu um empréstimo de cinquenta e três milhões da Companhia de Fundos Prospect para fazer só Deus sabe o quê. E a pior parte? Não sei qual o fim disso e não sei se quero descobrir.
– O que você… desculpe, não estou entendendo…
Ele repetiu, mas isso não a ajudou muito.
Depois que o irmão se calou, ela ficou olhando pelo para-brisa, vendo a estrada fazer a curva ao redor do rio Ohio.
– Papai pode simplesmente pagar o empréstimo – disse ela, emburrada. – Ele paga e tudo acaba.
– Gin, se foi necessário pegar uma quantia dessas emprestada, é por que a pessoa está com problemas muito, muito sérios. E se essa pessoa ainda não pagou é porque não tem como.
– Mas mamãe tem dinheiro. Ela tem muito…
– Não sei se podemos nos fiar nisso.
– Então onde você conseguiu o dinheiro da fiança para me soltar?
– Tenho um pouco guardado e também o meu fundo, que desatrelei do fundo da família. Mas esses dois não são suficientes para cuidar de Easterly, e esqueça a possibilidade de pagar esse empréstimo ou de manter a Bourbon Bradford a salvo, se precisarmos.
Ela olhou para as unhas estragadas, concentrando-se na dizimação do que estava perfeito quando acordara naquela manhã.
– Obrigada por me tirar de lá.
– De nada.
– Vou devolver o seu dinheiro.
Como? Seu pai cortara todos os seus privilégios. E, pior de tudo, e se não restasse mais dinheiro para a sua mesada?
– Isso não pode ser possível – disse ela. – Só pode ser um mal-entendido. Um tipo de… falha de comunicação.
– Não acredito.
– Você tem que pensar positivo, Lane.
– Entrei no escritório de uma mulher morta há umas duas horas e isso foi antes de eu descobrir sobre a dívida. Posso lhe garantir que falta de otimismo não é o problema aqui.
– Você acha que… – Gin arquejou. – Acha que ela roubou de nós?
– Cinquenta e três milhões de dólares? Ou apenas uma parte? Não, porque, nesse caso, por que cometer suicídio? Se ela desfalcou os fundos, o mais inteligente seria fugir e trocar de identidade. E não se matar na casa do seu empregador.
– E se ela foi assassinada?
Lane abriu a boca para dizer “de jeito nenhum”. Mas voltou a fechá-la, como se estivesse pensando a respeito.
– Bem, ela o amava.
Gin ficou com o queixo caído.
– Rosalinda? Papai?
– Ah, o que é isso, Gin? Todos sabem disso.
– Rosalinda? A coisa mais selvagem nela era prender aquele coque um pouquinho mais pra baixo.
– Reprimida ou não, ela estava com ele.
– Na casa da nossa mãe?
– Não seja ingênua.
Muito bem, era a primeira vez que era acusada disso. E, de repente, aquela lembrança de tantos anos antes, daquele Ano-Novo, voltou… De quando vira o pai saindo do escritório da mulher.
Mas isso fora décadas atrás, em outra era.
Ou, talvez não.
Lane pressionou o freio num farol vermelho próximo ao posto de gasolina que ela parara naquela manhã.
– Pense no lugar onde ela morava. A casa colonial de quatro quartos em Rolling Meadows custa muito mais do que ela poderia pagar com seu salário de controller. Quem você acha que pagou?
– Ela não tem filhos.
– Que a gente saiba.
Gin apertou os olhos enquanto o irmão voltava a acelerar.
– Acho que vou enjoar.
– Quer que eu encoste?
– Quero que pare de me dizer essas coisas.
Houve um longo silêncio… e em meio ao vácuo, ela continuou voltando para a visão do pai saindo daquele escritório, amarrando o cinto do roupão.
No fim, o irmão balançou a cabeça.
– A ignorância não vai mudar nada. Precisamos descobrir o que está acontecendo. Preciso chegar à verdade de alguma maneira.
– Como você… como você descobriu isso tudo?
– Isso importa?
Quando contornaram a última curva na estrada River antes de Easterly, ela olhou para o alto à direita, para a colina. A mansão da sua família estava no mesmo lugar de sempre, seu tamanho e elegância incríveis dominando o horizonte, a famosa construção branca fazendo-a pensar em todas as garrafas de bourbon que traziam um desenho dela gravado em seus rótulos.
Até aquele momento, acreditou que a posição da família estivesse gravada em pedra.
Agora, temia que fosse em areia.
– Ok, estamos todos prontos aqui – Lizzie avançou entre as fileiras de mesas redondas debaixo da grande tenda. – As cadeiras já estão bem arrumadas.
– Ja20 – concordou Greta ao dar uma puxadinha numa das toalhas de mesa.
As duas continuaram, inspecionando todos os setecentos lugares, verificando novamente os candelabros de cristal que pendiam em três pontos da tenda, puxando um pouco mais os tecidos rosa-claro e brancos.
Quando terminaram, acompanharam a extensão de cordões verdes serpenteando pela parte externa, fornecendo eletricidade para os oito ventiladores gigantes que garantiriam a circulação de ar.
Ainda tinham umas boas cinco horas de trabalho até que escurecesse e, de maneira inédita, Lizzie achou que tinham concluído todas as prioridades. Os arranjos florais estavam prontos. Os canteiros de flores estavam impecáveis. Vasos na entrada e na saída da tenda combinavam à perfeição com as plantas e os botões suplementares. Até mesmo as estações de comida nas tendas adjuntas já haviam sido organizadas, seguindo as instruções da senhorita Aurora.
Até onde Lizzie sabia, a comida estava pronta e a bebida entregue. Os garçons e os barmen contratados estavam sob a batuta de Reginald, e ele não era de deixar nenhum fio solto. A segurança que garantiria que a imprensa ficaria ao largo era composta por policiais de folga da polícia metropolitana, e estavam todos prontos para trabalhar.
Ela quis ter alguma coisa com que ocupar seu tempo. O nervosismo a deixara mais produtiva do que de costume, e agora estava sem nada para fazer além de pensar que havia uma investigação criminal acontecendo a cinquenta metros dela.
Rosalinda.
Seu celular vibrou no quadril, sobressaltando-a. Ao pegá-lo, suspirou.
– Graças a Deus! Alô? Lane? Você está bem? Sim. – Franziu o cenho enquanto Greta a espiava. – Na verdade, eu o deixei no carro, mas posso ir pegá-lo agora. Sim, sim, claro. Onde você está? Tudo bem. Já vou levar para você.
Quando ela desligou, Greta lhe disse:
– O que está acontecendo?
– Não sei. Ele disse que precisa de um computador.
– Deve haverr uma dúzia deles na casa.
– Depois do que aconteceu hoje cedo, acha que vou discutir com o cara?
– Muito justo. – Embora a expressão da mulher berrasse seu desapontamento. – Vou darr uma olhada nos canteirros e vasos da frrente da casa, e confirrmarr se os manobristas chegarrão no horrárrio.
– Oito da manhã?
– Oito da manhã. E depois, não sei. Pensei em ir parra casa. Estou ficando com enxaqueca, e amanhã serrá um longo dia.
– Isso é horrível! Vá mesmo e volte com força total.
Antes que Lizzie se virasse, sua velha amiga lhe lançou um olhar sério através dos óculos pesados.
– Você está bem?
– Ah, sim. Absolutamente.
– Tem muito Lane por aqui. É porr isso que estou perrguntando.
Lizzie olhou para a casa.
– Ele vai se divorciar.
– Mesmo?
– É o que ele disse.
Greta cruzou os braços sobre o peito e seu sotaque alemão ficou mais evidente.
– Com dois anos de atrraso…
– Ele não é de todo ruim, sabe.
– O que disse? Isso… nein, você não pode estarr falando a verrdade.
– Ele não sabia que Chantal estava grávida, está bem?
Greta lançou as mãos para o alto.
– Ah, bem, isso muda tudo, então, ja? Então ele se prrontificou de livrre e espontânea vontade a se casarr enquanto estava com você. Perrfeito.
– Por favor, não faça isso. – Lizzie esfregou os olhos doloridos. – Ele…
– Ele te pegou de novo, não? Ligou parra você, veio te prrocurrarr, alguma coisa assim.
– E se ele fez? Isso é assunto meu.
– Passei um ano inteirro ligando parra você, parra que você saísse daquela sua fazenda, garrantindo que você virria parra o trabalho. Fiquei ao seu lado, me prreocupei com você, limpei o estrrago que ele deixou. Porr isso, não me diga que não posso exprressarr uma reação quando ele vem sussurrarr no seu ouvido…
Lizzie ergueu a mão diante do rosto da mulher.
– Chega. Não vamos mais falar disso. Nos vemos pela manhã.
Saiu marchando, e xingou baixinho no trajeto inteiro até o carro. Depois que pegou o laptop, seguiu apressada para a casa. Deliberadamente evitando a cozinha e a estufa, porque não queria encontrar Greta enquanto ela se preparava para sair, entrou na biblioteca e, sem pensar, tomou o corredor que dava para as escadas dos empregados e a cozinha. Não foi muito longe. Bem quando fazia a curva, foi parada por dois policiais, e foi então que ela viu o cadáver sendo levado numa maca com rodinhas.
Os restos mortais de Rosalinda Freeland foram colocados num saco branco com um zíper de 1,5 metro que, ainda bem, estava fechado.
– Senhora – um dos policiais disse –, vou ter que lhe pedir que abra o caminho.
– Sim, sim, desculpe. – Abaixando os olhos e refreando a onda de náusea, deu meia-volta, tentando não pensar no que acabara de ver.
E falhou.
Ela tinha dado seu nome à polícia, assim como o restante dos empregados, e fizera um relato breve de onde estivera a manhã toda e os últimos dias. Quando lhe perguntaram a respeito da controller, não teve muito a dizer. Não conhecia Rosalinda melhor do que os outros; a mulher era muito reservada e profissional, e só.
Lizzie sequer sabia se existia algum familiar para ser avisado.
Usar a escada principal era uma violação da etiqueta de Easterly, mas, levando-se em consideração que havia um carro mortuário estacionado e uma cena de crime no corredor dos funcionários, ela estava confiante de que poderia deixar o protocolo de lado. Já no segundo andar, avançou sobre o tapete claro, passando por quadros a óleo e alguns objetos que reluziam com sua antiguidade e manufatura superior.
Ao chegar à porta de Lane, não conseguia se lembrar da última vez que ela e Greta discutiram sobre alguma coisa. Deus, queria ligar para a mulher… Mas o que poderia dizer?
Deixe o laptop e saia, ordenou a si mesma. Só isso.
Lizzie bateu à porta.
– Lane?
– Pode entrar.
Empurrando a porta, ela o encontrou parado diante das janelas, com um pé plantado no peitoril, e um braço sobre o joelho erguido. Ele não se virou para vê-la entrar. Não disse nada.
– Lane? – Ela observou ao redor. Não havia ninguém com ele. – Olha só, vou deixar o laptop aqui e…
– Preciso da sua ajuda.
Inspirando fundo, ela disse:
– Ok.
Mas ele permaneceu em silêncio enquanto fitava o jardim. E que Deus a ajudasse, foi impossível desviar os olhos dele. Disse a si mesma que estava procurando sinais de cansaço… e não medindo os ombros musculosos. O cabelo curto na base da nuca. Os bíceps que marcavam as mangas curtas da camisa polo.
Ele tinha trocado de roupa. Tinha tomado um banho também. Ela sentia o perfume do sabonete e do shampoo.
– Sinto muito por Rosalinda – sussurrou. – Foi um choque.
– Hum.
– Quem a encontrou?
– Eu.
Lizzie fechou os olhos e abraçou o laptop junto ao peito.
– Ah, meu Deus.
De repente, ele enfiou a mão no bolso da frente da calça e tirou um objeto.
– Pode ficar comigo enquanto abro isto?
– O que é?
– Uma coisa que ela deixou para trás. – Ele mostrou o pen drive preto. – Encontrei sobre a escrivaninha dela.
– É um… bilhete suicida?
– Não acredito que seja isso. – Ele se sentou na cama e apontou para o laptop dela. – Se importa se eu…
– Ah, sim… aqui está. – Juntou-se a ele e levantou a tela do Lenovo, apertando o botão de liga/desliga. – Tenho Microsoft Office, então documentos de Word não devem ser um problema.
– Não acho que seja isso.
Colocou a senha e passou o computador para ele.
– Pronto.
Ele inseriu o pen drive e aguardou. A tela se acedeu com várias opções, e ele apertou em “abrir arquivos”.
Só havia um, intitulado “William Baldwine”.
Lizzie esfregou a testa com o polegar.
– Tem certeza de que quer que eu veja isso?
– Tenho certeza de que não posso ver isso sem você aqui.
Lizzie se viu esticando a mão e apoiando-a no ombro dele.
– Não vou te deixar.
Por algum motivo, ela lembrou da lingerie cor de pêssego que encontrara na cama do pai dele. Dificilmente era algo que Rosalinda vestiria; um tom de cinza-claro foi o mais próximo que a controller chegara a revelar do seu guarda-roupa. Mas, pensando bem, quem é que poderia saber o que a mulher escondia debaixo das saias e jaquetas decorosas?
Lane clicou no arquivo, e Lizzie percebeu que seu coração batia tão rápido quanto se tivesse acabado de correr meio quilômetro a toda velocidade.
E ele estava certo. Aquilo não era nenhuma carta de amor, tampouco um bilhete suicida. Era uma planilha repleta de números e datas e descrições breves, que Lizzie, por estar longe demais, não conseguia ler.
– O que é tudo isso? – perguntou.
– Cinquenta e três milhões de dólares – ele murmurou, descendo a tela. – Aposto como são cinquenta e três milhões de dólares.
– O que está dizendo? Espere… está sugerindo que ela roubou isso? – Não, mas acho que ela ajudou o meu pai a roubar.
– O quê?
Ele voltou-se para ela.
– Acho que, finalmente, meu pai tem sangue nas mãos. Ou, pelo menos, sangue que conseguimos ver.
“Sim.”
VINTE E UM
Voltando a se concentrar no laptop sobre o colo, Lane desceu pela planilha de Excel, localizando as entradas e tentando fazer uma somatória geral. Mas nem precisava ter se dado ao trabalho. Rosalinda somara por ele ao fim da página, numa célula em negrito à extrema direita de todas as colunas.
Na verdade, o total não era de 53 milhões de dólares.
Não, era de 68 milhões, 489 mil, 242 dólares e 65 centavos.
US$ 68.489.242,65.
As descrições para as retiradas variavam desde Cartier e Tiffany até a Aviação Bradford Ltda., que era a empresa que administrava todas as aeronaves e pilotos, e a folha de pagamento da Recursos Humanos Bradford, responsável, muito provavelmente, pelos salários de todos os empregados da casa. No entanto, havia uma descrição repetida que ele não reconhecia. Holding WWB.
Holding William Wyatt Baldwine.
Só podia ser.
Mas o que seria?
O montante maior tinha sido para eles.
– Acho que o meu pai… – Olhou para Lizzie. – Não sei, mas a companhia e fundos disse que ele se colocou, ou ele colocou a família, imagino, numa montanha de dívidas. Por quê? Mesmo com todos estes gastos, deveria haver muito dinheiro vindo da Cia. Bourbon Bradford para os acionistas, dos quais somos os majoritários.
– A empresa de aluguel… – Lizzie murmurou.
– O que foi?
– A empresa de aluguel não recebeu o pagamento, o financeiro deles telefonou para Rosalinda na semana passada e ela não retornou a ligação.
– Me pergunto para quem mais estamos devendo…
– Como posso ajudar?
Ele a fitou, a cabeça pensando, pensando.
– Me deixar ver este arquivo foi um bom começo.
– O que mais?
Deus, que olhos azuis, ele pensou. E os lábios, aqueles lábios naturalmente rubros tão perfeitamente moldados.
Ela falava com ele, mas Lane não conseguia ouvir. Era como se um silenciador o tivesse envolvido, impossibilitando-o de perceber qualquer som ao seu redor. Logo o computador em seu colo e todos os seus segredos também desapareceram, de forma que nem o brilho da tela nem o desenho de colunas e números e letras podia ser percebido.
– Lizzie – ele disse, interrompendo-a.
– Sim?
– Preciso de você – ele se ouviu dizer, rouco.
– Sim, claro, o que posso…
Inclinou-se e encostou os lábios nos dela, resvalando-os rapidamente.
Ela arfou e se afastou.
Lane esperou que ela se levantasse. Que lhe dissesse poucas e boas. Talvez voltasse ao século passado e o esbofeteasse.
Em vez disso, ela levantou os dedos e tocou a própria boca. Depois fechou os olhos.
– Eu queria que você não tivesse feito isso.
Merda.
– Desculpe. – Passou uma mão pelos cabelos. – Não estou com a cabeça no lugar.
Ela concordou.
– Sim.
Perfeito, pensou ele. A vida dele estava em labaredas em tantas frentes, por que não, então, atear mais um pouco de fogo? Sabe, só para piorar aquele inferno.
– Sinto muito – disse. – Eu deveria ter…
Ela se lançou sobre ele com um movimento tão rápido que ele quase caiu. O que o salvou foi o desejo… a necessidade feroz que ele sempre sentira por ela e que estivera represada durante todo o tempo em que ficaram afastados.
Lizzie disse ao encontro da boca dele:
– Também não estou com a cabeça no lugar.
Soltando uma imprecação, passou os braços ao redor dela e a trouxe para o colo, derrubando o computador sobre o carpete grosso. Queria se esquecer do dinheiro, do pai, de Rosalinda… mesmo que apenas por um momento.
– Desculpe – ele disse ao empurrá-la para o colchão. – Preciso de você. Eu só… preciso estar dentro de você…
Toc, toc, toc.
Os dois ficaram parados, os olhos presos um no outro.
– O que foi? – ele perguntou, irritado.
Uma voz feminina e abafada comentou algo sobre toalhas, e só o que Lane pensava era que a porta não estava trancada.
– Não, obrigado.
Lizzie saiu de baixo dele, e ele se moveu para que ela pudesse ficar de pé. Nesse meio-tempo, a criada continuou falando.
– Não preciso de toalhas, obrigado – repetiu com aspereza.
Seus olhos acompanharam as mãos de Lizzie, que ajeitavam a camisa e alisavam os cabelos.
– Lizzie… – sussurrou.
Ela apenas balançou a cabeça, andando em círculos, parecendo considerar saltar pela janela como estratégia de fuga.
Mais palavras por parte da criada, e ele perdeu a cabeça. Explodindo sobre os pés, foi até a porta e a abriu, bloqueando a entrada para o quarto. A loira de uns vinte e cinco anos do outro lado era a mesma que estava no corredor quando ele e Chantal discutiram.
– Ah, olá. – Ela lhe sorriu. – Como está?
– Não preciso de nada. Obrigado – disse, seco.
Quando se voltou para fechar, ela o segurou pelo braço.
– Sou Tiphanii, com “ph” e dois “is” no fim.
– Prazer em conhecê-la. Se me der licença…
– Eu só preciso entrar para ver como está o seu banheiro.
O sorriso a entregou. Isso e aquela pequena mudança de postura; ela inclinou o quadril na direção dele e suas pernas se esticaram, como se ela estivesse usando saltos altos em vez de Crocs.
Lane revirou os olhos, não conseguindo evitar. A mulher que desejava tinha acabado de sair de baixo dele e aquela bajuladorazinha achava que tinha algo a lhe oferecer?
– Obrigado, mas não. Não estou interessado.
Fechou a porta na cara dela porque não tinha energia para ser agradável e não queria dizer algo que acabasse lamentando mais tarde.
Girando, encontrou Lizzie do lado oposto do quarto, perto de uma janela. Ela estava deliberadamente mais para o lado, como se não quisesse ser vista, e seus braços estavam cruzados sobre o peito.
– Você pareceu bem sincero – ela comentou com secura.
– Quando estou com você, eu sou…
– Agora, com a criada.
– E por que eu não deveria?
– Sabe o que eu odeio mesmo?
– Só posso imaginar – ele murmurou.
– Como ela se ofereceu para você… E, mesmo assim, eu só consigo ficar pensando em arrancar as suas roupas. Como se fosse um brinquedinho que estou disputando com ela.
A ereção dele ficou mais apertada dentro da calça.
– Não existe disputa alguma… Eu sou seu. Se você quiser, aqui e agora. Ou mais tarde. Daqui uma semana, um mês, daqui a vários anos.
Cale a boca, sua ereção comandou. Apenas cale a boca, amigo, pare com essa coisa de futuro.
– Não vou voltar para você, Lane. Não vou.
– Você me disse isso pelo telefone.
Lizzie assentiu e desviou o olhar do jardim. Enquanto a luz começava a sumir do céu, ela marchou pelo quarto, evidentemente seguindo para a porta.
Maldição…
Não para a porta.
Na verdade, ela não foi para a porta.
Lizzie parou diante dele e deixou que os dedos completassem o trajeto, caminhando pelo seu rosto, trazendo a boca dele para a sua.
– Lizzie… – ele gemeu, lambendo a boca dela.
O beijo ficou rapidamente descontrolado, e ele não estava disposto a perder a chance com ela. Virando-a, empurrou-a contra a parede, acertando o quadro a óleo ao lado deles com tanta força que ele acabou soltando do prego e caindo no chão. Ele nem ligou. Suas mãos foram para baixo das roupas dela, encontraram a pele, subiram na direção dos seios.
Ele pensara que nunca faria aquilo de novo, e por mais que quisesse algo mais lento e demorado, não conseguia. Estava desesperado.
Foi rude com o cós dos shorts dela, arrancando o botão, descendo o zíper e fazendo-o escorregar pelas pernas dela. Em seguida, passou a mão entre as coxas dela, afastando a calcinha de algodão…
Lizzie exclamou seu nome numa voz rouca que quase o fez gozar ali mesmo, naquele instante. E quando os dedos dela se cravaram nos seus ombros, ele a afagou com mais intensidade.
– Pode me machucar – ele grunhiu quando ela o apertou com mais força. – Me faça sangrar.
Ele queria dor junto do prazer, pois tudo o que vinha acontecendo com o pai e a família deixava-o em carne viva, muito próximo de um lado sombrio… a ponto de ele pensar vagamente se não fora aquilo que norteara o irmão Max. Ficara sabendo das coisas que Maxwell fizera… ou rumores a respeito.
Talvez aquele fosse o motivo. Ele sentia como se precisasse arrancar a escuridão do seu íntimo ou acabaria sendo consumido por ela.
Suspendendo Lizzie do chão, deliciou-se com o modo como ela se grudou a ele com braços fortes. Um puxão no zíper da calça, e sua ereção estava pronta para seguir em frente. Rasgou a calcinha dela e…
O rugido que ela emitiu junto ao pescoço dele foi como o de um animal, mas ele não prestou atenção. A pegada escorregadia do sexo dela foi uma sensação que ele sentiu no corpo inteiro, e ele chegou ao orgasmo de imediato. Tanto tempo… Por tanto tempo ele sonhara com ela, lamentando o que tinha acontecido, querendo fazer as coisas de uma maneira diferente. E agora ele estava onde rezara: a cada bombeada dentro dela, ele voltava no tempo, consertando as coisas, reparando seus erros.
Ele queria estar com ela para, por um tempo, se afastar do presente. Mas, no fim, aquela experiência foi muito mais do que isso. Muito, muito mais.
Mas sempre fora verdadeiro com Lizzie. Fizera sexo muitas vezes no decorrer da vida.
No entanto, nada daquilo tivera importância… Até ele estar com ela.
Lizzie não tivera a intenção de ir tão longe.
Enquanto Lane chegava ao orgasmo dentro dela, foi alçada junto com ele, o seu orgasmo ecoando o dele. Rápido, tão rápido, tudo foi muito veloz, furioso, o ato chegou ao fim em questão de minutos, e os dois permaneceram unidos quando a onda inicial foi sumindo.
Tinham mesmo feito aquilo?, ela se perguntou.
Bem, tinham, ela concluiu quando ele se mexeu dentro dela.
E foi então que ela percebeu que… Ah, Deus, o cheiro dele era o mesmo. E os cabelos também, incrivelmente macios.
E o corpo continuava tão forte quanto ela se lembrava.
Lágrimas surgiram em seus olhos, mas ela escondeu o rosto no ombro dele. Não queria que ele percebesse suas emoções. Já estava com bastante dificuldade para reconhecer aquela confusão.
Apenas sexo, disse para si mesma. Era apenas desejo físico de ambas as partes. E Deus bem sabia, luxúria nunca fora um problema para eles. Desde o instante em que o vira no dia anterior, aquela conexão entre eles borbulhou até a superfície da pele dela.
E debaixo da pele dele também.
Ok. Sem problemas. Não conseguiu dizer não naquela situação específica, quando claramente deveria ter dito.
Quer fosse um erro ou não, dependia de como ela lidaria com as coisas dali por diante.
Recobrando o controle, afastou-se um pouco dos braços dele, muito ciente de que ainda estavam conectados.
Ficou com a respiração presa ao ver a expressão no rosto dele, quando ele fez um carinho em sua face.
Ele parecia tão vulnerável.
Contudo, antes que ela fizesse algum comentário calmo e sensato, ele começou a se mover dentro dela de novo. Lenta, ah… tão lentamente… para dentro e para fora. Para dentro e para fora. Em reação, os olhos dela se fecharam e ela ficou toda maleável, os braços dele sustentando-a, a parede nas suas costas apoiando-a ao encontro dele. Uma parte de si ainda estava presente, cada movimento sendo registrado com a claridade de um raio, a respiração pesada no peito e a fervura em seu sangue assumindo o controle de tudo.
A outra parte estava fugindo.
Ah, Deus, a sensação da mão dele agarrando seus cabelos, a boca beijando a sua com sofreguidão, os quadris se curvando e retraindo. Era como voltar ao lar de todas as maneiras que seu corpo desejava havia muito tempo.
E isso não podia ser bom.
– Lizzie – ele disse com uma voz entrecortada. – Senti saudade, Lizzie. Tanta saudade que chegava a doer.
Não pense nisso, ela disse a si mesma. Não preste atenção.
O nome dele escapou dos seus lábios uma vez mais, o estalido do prazer fazendo seu sexo se contrair ao redor da ereção enquanto ele se movia dentro dela, empurrando-a contra a parede, com tamanho ímpeto que a fez bater a cabeça.
Quando ficaram imóveis a não ser pela respiração, ela se deixou cair sobre ele.
– Esta não pode ser a última vez – ele grunhiu, como se soubesse o que ela estava pensando. – Não pode.
– Como você sabia…
– Não te culpo. – Ele se afastou, e seus olhos semicerrados a queimaram. – Só não quero que isso…
– Lane…
A batida à porta a sobressaltou. E ele praguejou.
– Mas que porra! – ele ralhou.
E considerando-se que ele não era de ficar falando palavrão, ela teve que dar um sorriso.
– O que foi? – ele berrou.
– Senhor Baldwine – era a voz do mordomo –, o senhor Lodge está aqui e gostaria de vê-lo.
Lane franziu o cenho.
– Diga a ele que estou ocupado…
– Ele disse que é urgente.
Lizzie balançou a cabeça e se afastou dos braços dele pela segunda vez. Quando seus pés tocaram o chão silenciosamente, ela se deu conta de que não haviam usado preservativo.
Isso mesmo. E tudo ficou bem real quando ela suspendeu os shorts e saiu apressada para o banheiro. Limpou-se o melhor que pôde enquanto Lane falava com o inglês pela porta. E quando ela voltou, ele já havia subido as calças e andava de um lado para o outro.
Ela levantou a palma antes que ele conseguisse comentar qualquer coisa.
– Vá lá ver o que ele quer.
– Lizzie…
– Se um quarto do que o preocupa for verdade, você vai precisar dele.
– Aonde você vai?
– Não sei. Acho que terminamos até amanhã de manhã.
O que era verdade em relação a tantas outras coisas.
– Você não pode ficar? – ele disse num ímpeto.
As sobrancelhas dela se ergueram.
– Ficar? Está querendo que eu passe a noite aqui? Isso é loucura.
Numa casa onde, tecnicamente, não podia usar metade das portas, acordar na cama do filho mais novo e continuar trabalhando em Easterly não era uma opção.
Ah, sim, pensou ela. Os bons e velhos tempos, quando tinham que manter tudo em segredo.
– Em qualquer lugar – ele disse. – Num dos chalés. Não faz diferença.
– Lane. Preste atenção, não é… Não vamos voltar ao que tínhamos antes, lembra? Não sei por que fiz o que fiz, mas isso não significa…
Ele se aproximou e a atraiu para um beijo, a língua invadindo a boca dela. Que Deus a ajudasse, pois, depois de um instante, ela retribuiu o beijo.
– Isso é importante – ele disse ao encontro dos lábios dela. – Isso é mais importante para mim do que a minha família. Você entende, Lizzie? Você sempre foi e sempre será importante para mim, a coisa mais importante.
Dito isso, ele se afastou e foi para a porta, olhando para ela por sobre o ombro – um olhar que era uma espécie de juramento, e que ela jamais vira antes.
Sentando no pé da cama dele, olhou para a parede onde tinham acabado de fazer sexo. O quadro no chão estava arruinado, a tela estava arranhada e torta, mas ela não queria avaliar o estrago. Apenas continuou sentada, tentando convencer a si mesma de que aquilo não era um sinal enviado por Deus.
Demorou um pouco para sair do quarto, atenta junto à porta, prestando atenção a vozes e passos antes de entreabrir a porta e espiar. Quando não havia mais nada além de silêncio, ela praticamente saltou para o meio do corredor e começou a andar apressada.
O quarto de Chantal ficava do outro lado do corredor, um pouco mais para a frente e, quando passou diante dele, sentiu a fragrância do perfume caro dela.
Um lembrete e tanto – não que ela precisasse – do por que deveria ter saído do quarto após a primeira interrupção.
Em vez de ter seguido em frente a toda velocidade.
Ela só podia culpar a si mesma.
VINTE E DOIS
Enquanto trotava escada abaixo, só o que Lane conseguia pensar era no quanto queria ter um drinque na mão. A boa notícia, e provavelmente a única que receberia, era que, quando chegou à sala de estar, Samuel T. já estava se servindo do Reserva de Família, o som do gelo a tilintar no copo atiçando a vontade de Lane como a ânsia de um viciado.
– Gostaria de partilhar da sua fortuna? – ele murmurou enquanto deslizava as portas de madeira dos dois lados da sala.
Havia muitas coisas que ele não queria que outros ouvissem.
– O prazer é meu. – Samuel o presenteou com um drinque igual ao seu num copo baixo de cristal. – Dia longo, não?
– Você não faz ideia. – Lane bateu um copo no outro. – O que posso fazer por você?
Samuel T. tomou seu bourbon e voltou para o bar.
– Fiquei sabendo sobre a controller. Meus pêsames.
– Obrigado.
– Foi você quem a encontrou?
– Sim.
– Já passei por isso. – O advogado voltou para perto e sacudiu a cabeça. – Dureza.
Você não sabe da missa a metade.
– Olha só, não quero te apressar, mas…
– Falou sério quanto ao divórcio?
– Claro.
– Tem um acordo pré-nupcial?
Quando Lane meneou a cabeça, Samuel xingou.
– Alguma possibilidade de ela ter te traído?
Lane esfregou as têmporas, tentando arrancar o que tinha acabado de acontecer com Lizzie… e o que vira naquele laptop. Queria pedir a Samuel T. que deixassem aquela conversa para o dia seguinte, mas seus problemas com Chantal estariam esperando, quer a sua família se afundasse em problemas financeiros ou não.
Na verdade, devia ser melhor dar sequência àquilo em vez de esperar, considerando toda aquela situação com o pai. Quanto mais rápido a tirasse daquela casa, menos informações ela teria para vender para os tabloides.
Não que não conseguisse vê-la falando pelos cotovelos com qualquer um, se o pior acontecesse com os Bradford.
– Desculpe – disse entredentes. – Qual foi mesmo a pergunta?
– Ela te traiu?
– Não que eu saiba. Ela passou os dois últimos anos nesta casa, vivendo à custa da minha família, fazendo a manicure.
– Uma pena.
Lane ergueu uma sobrancelha.
– Eu não sabia que via o matrimônio com tanto preconceito.
– Se ela tiver te traído, isso pode ser usado para reduzir a pensão. O Kentucky é um Estado que não exige admissão de culpa para conceder o divórcio, mas casos extraconjugais e maus tratos podem ser usados para mediar a pensão.
– Não estive com ninguém. – A não ser com Lizzie, havia pouco no quarto, e umas milhares de vezes antes em sua mente.
– Isso não importa, a menos que você queira pedir pensão a Chantal.
– Até parece. Livrar-me dela de uma vez por todas é só o que quero daquela mulher.
– Ela sabe que isso vai acontecer?
– Contei para ela.
– Mas ela sabe?
– Já está com os papéis para eu assinar? – Quando o advogado assentiu, Lane deu de ombros. – Bem, ela vai entender que eu estava falando sério quando receber os documentos.
– Assim que eu conseguir a sua assinatura, vou direto para o centro da cidade para dar entrada no divórcio. O tribunal terá que entender que o casamento está irrevogavelmente terminado, mas acho que, como faz dois anos que vocês moram em casas diferentes, não será um problema. Já vou avisando: acho que ela não vai abrir mão da pensão. E existe uma possibilidade de sair caro para você, ainda mais porque o padrão de vida dela foi bem alto nesta casa. Deduzo que alguns dos seus fundos foram liberados?
– A primeira parte. A segunda será liberada só quando eu completar quarenta anos.
– Qual a sua renda anual?
– Isso inclui os ganhos no pôquer?
– Ela está ciente deles? Você os declara no imposto de renda?
– Não e não.
– Então vamos deixar isso de fora. Qual o montante?
– Não sei. Nada ridículo, talvez um milhão, mais ou menos. Deve ser um quinto da renda gerada pelo acervo fiduciário.
– Ela vai atrás disso.
– Mas não ao acervo, correto? Acho que existe uma cláusula quanto ao excesso de gastos.
– Se estiver no Termo Irrevogável da Família Bradford de 1968, e eu acredito que esteja, pois foi meu pai quem redigiu os termos, pode apostar a sua melhor garrafa que sua iminente-ex-mulher não vai pôr a mão em nada disso. Vou precisar de uma cópia dos documentos, claro.
– A Fundos Prospect está com tudo.
Samuel T. tratou dos vários “arquivar isso”, “argumentar aquilo”, “divulgar sei lá o que”, mas Lane não estava mais prestando atenção. Em sua mente, estava no andar de cima, em seu quarto, com a porta trancada e Lizzie toda nua na sua cama. Ele a cobria com mãos e boca, diminuindo a distância dos anos e voltando ao ponto antes de Chantal aparecer em roupas de maternidade de grife.
O que quer que tivesse que enfrentar em relação ao pai e à dívida seria muito mais fácil se Lizzie estivesse ao seu lado, e não apenas sexualmente.
Amigos podiam se ajudar, certo?
– Tudo bem assim?
Lane voltou a se fixar no advogado.
– Sim. Quanto tempo vai demorar?
– Como já disse, vou entregar tudo ainda hoje a um juiz “amigável” que me deve um ou dois favores. E Mitch Ramsey concordou em disponibilizar a petição para ela imediatamente. Depois só vai faltar rascunhar o acordo do divórcio, e o meu palpite é que ela vá atrás de um tremendo advogado de família, que você vai ter que pagar. Vocês têm vivido separados há mais de sessenta dias, mas ela vai ter que sair desta casa o mais rápido possível, caso você tenha a intenção de ficar. Não quero que isso atrase o processo em dois meses, graças a uma possível alegação de coabitação da parte dela. O meu palpite é que ela contestará tudo, porque vai querer o máximo de dinheiro que puder de você. O meu objetivo é tirá-la da sua vida com apenas as roupas do corpo e aquele anel de um quarto de milhão de dólares que você lhe deu, e só.
– Parece-me uma excelente ideia. – Ainda mais porque ele não sabia se existia um centavo a mais para gastar em algum lugar que não fosse nas suas contas. – Onde assino?
Samuel apresentou diversos papéis para que fossem assinados. Tudo acabou antes que Lane terminasse seu primeiro copo de bourbon.
– Quer que eu te dê um adiantamento? – perguntou, ao devolver a Montblanc ao advogado.
Samuel T. terminou o drinque, depois se serviu de mais gelo e de mais uma dose do Reserva de Família.
– Fica por conta da casa.
Lane se retraiu.
– Que é isso, cara? Não posso deixar que faça assim. Deixe que eu…
– Não. Sério, não gosto dela, e ela não pertence a esta família. Encaro esse divórcio como parte da manutenção da casa. Uma vassoura para jogar o lixo fora.
– Eu não sabia que você a detestava tanto assim.
Samuel T. apoiou as mãos no quadril e baixou o olhar para o tapete oriental.
– Vou ser totalmente franco.
Lane já tinha entendido qual seria o assunto, pela maneira como o advogado contraía o maxilar.
– Vá em frente.
– Uns seis meses depois que você foi embora, Chantal ligou para mim. Pediu que eu viesse para cá, e quando eu me neguei, ela apareceu na minha casa. Ela estava querendo um “amigo”, como ela mesma disse, depois enfiou a mão dentro das minhas calças e se ofereceu para ficar de joelhos. Disse a ela que ela era louca. Mesmo se eu estivesse atraído por ela, o que nunca foi o caso, a sua família e a minha são amigas há gerações. Eu jamais ficaria com uma esposa sua, divorciada, separada ou casada. Além disso, a Virgínia é uma boa faculdade para se frequentar, mas eu não me casaria com uma moça de lá, e era exatamente isso que ela pretendia.
Caramba, às vezes ele odiava ter razão quanto àquela vadia, odiava mesmo.
– Não estou surpreso, mas fico contente que tenha me contado. – Lane levantou a mão. – Um dia vou retribuir o favor.
O advogado aceitou o que lhe era oferecido, depois se curvou de leve, e partiu com o copo.
– Você pode ser preso por beber na rua – Lane exclamou. – Para a sua informação.
– Só se eu for apanhado – Samuel T. exclamou de volta.
– Louco – murmurou Lane ao terminar o próprio drinque.
Quando foi se servir de outra dose, seu olhar recaiu sobre a pintura a óleo acima da cornija da lareira. Era um retrato de Elijah Bradford, o primeiro membro da família a ter dinheiro o bastante para se sobressair de seus pares, posando para um artista americano de renome.
Será que ele estava se revirando no túmulo àquela altura?
Ou isso aconteceria depois… quando o fedor piorasse?
Gin sentiu uma onda de pânico ao descer a escadaria principal de Easterly.
Assim que viu o Jaguar vintage diante da casa, tirou as roupas que usara na cadeia, pelo amor de Deus, e colocara um vestido de seda com barra bem acima dos joelhos. Borrifou um pouco de perfume. Calçou sapatos que deixavam seus tornozelos mais finos do que nunca.
A julgar pelas portas fechadas da sala de estar, ela sabia que o irmão estava falando com Samuel T. a respeito da Situação. Ou das Situações.
Deixou-os à vontade.
Em vez de entrar na sala, foi para a porta da frente e esperou ao lado do conversível antigo. A temperatura devia estar nos vinte e poucos graus, apesar de o sol já estar se pondo, e havia certa umidade no ar – ou talvez fossem seus nervos fora de controle. Para aproveitar um pouco de sombra, foi para debaixo de uma das magnólias que cresciam próximas à casa.
Enquanto olhava para o carro, lembrou-se das vezes que esteve nele com Samuel T., do vento noturno em seus cabelos, da mão dele entre suas pernas enquanto ele os conduzia pelas estradas cheias de curvas da sua fazenda.
O conversível fora comprado por Samuel T. pai, no dia do nascimento daquele que acabou sendo o único herdeiro do homem. E foi dado ao jovem Samuel T. em seu décimo oitavo aniversário, com instruções precisas de que ele não se matasse nessa coisa.
E, engraçado, as instruções deram resultado: só quando estava atrás daquele volante é que aquele homem era cuidadoso. Gin suspeitava de que ele sabia que se algo lhe acontecesse, sua árvore genealógica chegaria ao fim.
Ele era o único membro da sua geração que sobrevivera.
Foram muitas tragédias.
Que, até aquele exato instante, não lhe interessaram muito.
Enquanto aguardava, seu coração batia rápido, e a agitação em seu peito a deixava tonta. Ou talvez fosse o calor…
Samuel T. parou diante da porta da frente e saiu de Easterly com um copo de cristal na mão. Ele formava uma figura impressionante com o terno cortado sob medida, seu lindo rosto e a maleta com monograma. Estava usando óculos de sol com armação dourada, e os cabelos escuros e espessos estavam penteados para trás, com um topete que parecia ter sido milimetricamente arrumado, mas que, na verdade, nunca requeria isso.
Ele parou quando a viu. Depois disse em sua fala arrastada: – Veio me agradecer por te salvar?
– Preciso falar com você.
– É mesmo? Vai tentar negociar um adiantamento que não envolva dinheiro? – Bebeu todo o líquido e deixou o copo no primeiro degrau, como só alguém que sempre teve empregados faria. – Estou aberto a sugestões.
Ela avaliou cada passo que ele deu na direção dela e do carro. Conhecia muito bem aquele corpo forte e musculoso, que denunciava o fazendeiro que era no fundo de sua alma, debaixo de todas aquelas roupas elegantes de advogado.
Amelia seria alta como ele. E também era inteligente como ele.
Infelizmente, a menina era boba como a mãe, ainda que talvez um dia pudesse superá-lo.
– E então? – incitou-a ao colocar a maleta no banco. – Posso escolher como vai pagar a sua conta?
Mesmo através das lentes escuras, sentia o olhar dele. Ele a desejava, sempre a desejou, e às vezes, ele a detestava por isso: não era um homem que apreciava restrições, mesmo as autoimpostas.
Ela também era assim.
Samuel T. meneou a cabeça.
– Não me diga que o gato comeu a sua deliciosa língua. Seria uma pena tremenda ficar sem essa parte da sua anatomia…
– Samuel.
No instante em que ele ouviu o tom de voz dela, franziu o cenho e tirou os óculos escuros.
– O que aconteceu?
– Eu…
– Alguém a destratou na cadeia? Porque vou pessoalmente até lá e…
– Case comigo.
Ele parou no ato, tudo congelou: a expressão dele, a respiração, talvez até mesmo o coração. Depois ele gargalhou.
– Certo, certo, certo. Claro que você…
– Estou falando sério.
A porta do carro se abriu silenciosamente, um testemunho dos cuidados que ele tinha com o carro.
– O dia que você se assentar com qualquer homem será o dia do Segundo Advento.
– Samuel, eu te amo.
Ele lhe lançou um olhar sardônico.
– Ora, por favor…
– Preciso de você.
– A cadeia mexeu mesmo com você, não mexeu? – Ele se acomodou no banco do motorista e ficou olhando para o capô por um instante. – Olha aqui, Gin, não se sinta mal por ter parado lá, ok? Consegui apagar qualquer rastro, então a sua ficha vai ficar limpa. Ninguém vai saber de nada.
– Não é esse o motivo. Eu só… Vamos nos casar. Por favor.
Olhando para ela, ele franziu tanto o cenho que suas sobrancelhas se uniram.
– Você parece estar falando sério.
– Estou mesmo. – Ela não era idiota. Ela lhe contaria sobre Amelia mais tarde, quando fosse mais difícil para ele escapar, quando houvessem documentos que os unissem, até que ele superasse o que ela lhe fizera. – Você e eu nascemos para ficar juntos. Você sabe disso. Eu sei. Estamos dando voltas neste nosso relacionamento a vida toda, mais até. Você sai com garçonetes, manicures e massagistas porque elas não são eu. Você compara cada uma dessas mulheres ao meu padrão e todas elas perdem. Você é obcecado por mim, assim como eu sou por você. Não vamos mais mentir, vamos fazer o que é certo.
Ele voltou o olhar para o capô e escorregou as belas mãos sobre o volante de madeira.
– Deixe eu te perguntar uma coisa.
– Qualquer coisa.
– Para quantos homens você já disse isso? – Voltou a olhar para ela. – Hein? Quantos, Gin? Quantas vezes você usou essas frases?
– É a verdade – ela disse numa voz entrecortada.
– Você também tentou esse tom de súplica com eles, Gin? Bateu os cílios para eles?
– Não seja cruel.
Depois de um longo silêncio, ele meneou a cabeça.
– Você se lembra da minha festa de trigésimo aniversário? Aquela que aconteceu na minha fazenda?
– Isso não tem nada a ver com…
– Foi uma bela surpresa. Eu não fazia a mínima ideia de que vocês estariam lá esperando por mim. Entrei na minha casa e… surpresa! Todas aquelas pessoas gritando, e eu procurei por você…
Ela levantou as mãos.
– Isso aconteceu cinco anos atrás, Samuel! Foi…
– Na verdade, foi o resumo do nosso relacionamento, Gin. Eu procurei por você… percorri os olhos pela multidão, fui atrás de você…
– Aquilo não foi importante. Nenhum deles importou…
– … porque, como você mesma disse, sou um tolo e você foi a única mulher que eu quis de verdade. E eu te encontrei… transando com aquele jogador de polo argentino, hóspede de Edward, na minha cama.
– Samuel…
– Na minha cama! – ele esbravejou, batendo com o punho no painel. – Na porra da minha cama, Gin!
– Tudo bem! E o que foi que você fez? – Ela empinou o quadril e apontou o dedo na direção dele. – O que foi que você fez? Você pegou a minha colega de quarto da faculdade e a irmã dela e transou com as duas na piscina.
Ele praguejou alto.
– O que eu deveria ter feito? Deixar que você me pisoteasse? Sou homem, não um dos seus amigos coloridos patéticos! Eu não vou…
– Fiquei com o jogador de polo porque na semana anterior você dormiu com Catherine! Eu era amiga dela desde os dois anos, Samuel. Tive que ficar ouvindo-a contar e repetir que você lhe deu os melhores orgasmos da vida dela no banco de trás do seu carro. Depois de ter ficado comigo na noite anterior! Então, não venha me dizer que você foi o…
– Chega. – De repente, ele correu os dedos pelos cabelos. – Já chega, pare. Não vamos mais fazer isso, Gin. Temos as mesmas discussões desde que éramos adolescentes…
– Brigamos porque gostamos um do outro e somos orgulhosos demais para admitir isso. – Quando ele se calou de novo, ela teve esperança de que ele estivesse repensando. – Samuel, você é o único homem que eu amei. O mesmo acontece com você. É simples assim. Se precisamos parar de fazer alguma coisa, é de brigar e de nos magoar. Somos dois teimosos e orgulhosos demais para o nosso próprio bem.
Houve um longo silêncio.
– Por que agora, Gin…
– Porque… chegou a hora.
– Tudo isso só por causa da revista íntima das dez da manhã?
– Você precisa mesmo falar assim?
Samuel T. balançou a cabeça.
– Não sei se você está falando sério ou não, mas não é problema meu. Deixe-me ser bem claro.
– Samuel – ela o interrompeu –, eu te amo.
E ela estava falando sério. Ela estava abrindo a alma. A terrível convicção de que as coisas ficariam ruins para a família se enraizara e se espalhara, trazendo com ela uma certeza que ela nunca teve antes.
Ou talvez houvesse mais por trás – uma coragem que antes lhe faltara. Em todos aqueles anos juntos, ela nunca lhe dissera o que sentia verdadeiramente. Ela só se preocupava em manter a pose e dizer a última palavra. Bem, e criar a filha dele… não que ele soubesse disso ainda.
– Eu te amo – sussurrou.
– Não. – Ele abaixou a cabeça e apertou o volante como se buscasse forças dentro dele mesmo. – Não… Você não pode fazer isso, Gin. Não comigo. Não tente levar a farsa tão a fundo. Não é saudável para você. E eu acho que eu não sobreviveria, ok? Preciso funcionar… minha família precisa de mim. Não vou permitir que enlouqueça minha cabeça tanto assim…
– Samuel…
– Não! – ele exclamou.
Depois ele a encarou, os olhos azuis frios e agudos, como se estivesse diante de um inimigo.
– Primeiro, não acredito em você, ok? Acho que está mentindo para me manipular. Segundo? Jamais permitirei que uma esposa minha me desrespeite da maneira como você desrespeitará o seu marido. Você é fundamentalmente incapaz de ser monógama e, indo direto ao ponto, você se entedia rápido demais para valorizar um relacionamento durável. Você e eu podemos nos divertir de vez em quando, mas eu jamais honraria uma puta como você com o meu sobrenome. Você menospreza as garçonetes? Tudo bem. Mas eu preferiria que alguém assim tivesse a minha aliança no dedo do que uma menina mimada e desleal como você.
Ele deu a partida no carro, e o cheiro doce da gasolina e de óleo fugazmente se espalhou pelo ar quente.
– Eu te procuro da próxima vez que tiver vontade de cuidar de um assunto do qual prefiro não cuidar sozinho. Até então, divirta-se com o resto da população.
Gin levou as duas mãos sobre a boca quando ele deu marcha ré, e o carro desapareceu pelo caminho, colina abaixo.
Conforme ele sumia, lágrimas caíram dos olhos dela, borrando o rímel e, de maneira inédita, ela não se importou.
Dera seu único lance.
E fracassara.
Aquele era o seu pior pesadelo se concretizando.
VINTE E TRÊS
– Hum, Lisa?
Lizzie ficou estática assim que ouviu o sotaque sulista arrastado se infiltrando na estufa, o que foi estranho porque estava desmontando as mesas que usaram para os arranjos florais e uma delas ficou equilibrada apenas em uma perna.
– Lisa?
Ao erguer o olhar, Lizzie viu a esposa de Lane parada à porta como se estivesse posando para uma câmera, com uma mão no quadril e a outra jogando os cabelos para trás. Vestia calças de seda cor-de-rosa Mary Tyler Moore da Laurie Petrie e uma blusa com decote baixo num tom laranja pôr do sol. Os sapatos eram de bico fino, com saltos pequenos e, para completar, uma echarpe dramática e transparente em tons cítricos de amarelo e verde envolvia seus ombros, amarrada diante dos seios perfeitos.
Levando-se tudo em consideração, a composição criava uma impressão de Frescor, Amabilidade e Tentação, fazendo que alguém que estava Cansada, Ansiosa e Estressada se sentisse ainda mais deficiente – não apenas com relação ao penteado e à vestimenta, mas até à genética molecular.
– Pois não? – Lizzie disse enquanto prosseguia batendo numa das pernas.
– Poderia parar de fazer isso? É muito barulhento.
– Será um prazer – Lizzie disse entredentes.
Por algum motivo, enquanto a mulher brincava com as mechas loiras, o brilho do diamante em sua mão esquerda foi como se alguém lançasse uma maldita bomba repetidamente.
Chantal sorriu.
– Preciso da sua ajuda para uma festa.
Podemos apenas terminar a de amanhã primeiro?
– Será um prazer.
– É uma festa para dois. – Chantal sorriu ao soltar a echarpe e avançar um pouco mais. – Puxa, como está quente aqui. Não pode fazer nada a respeito?
– As plantas gostam mais do calor.
– Oh. – Tirou a echarpe e a deixou ao lado de um buquê que seria colocado num dos ambientes sociais da casa. – Bem.
– Você dizia?
Aquele sorriso retornou.
– Logo será nosso aniversário de casamento, meu e de Lane, e eu gostaria de preparar algo especial.
Lizzie engoliu em seco, e ficou se perguntando se aquele seria algum tipo de jogo doentio. Será que a mulher ouvira alguma coisa lá no segundo andar através das paredes?
– Pensei que tivessem se casado em julho.
– Quanta gentileza sua se lembrar. Você é tão atenciosa. – Chantal inclinou a cabeça para o lado e fixou o olhar no seu, como se estivessem partilhando um momento especial. – Sim, nos casamos em julho, mas tenho uma novidade muito especial para contar para ele, e pensei em comemorar um pouco antes.
– No que pensou?
Lizzie não acompanhou muito bem enquanto ela falava. As únicas coisas que captou foi “romântico” e “reservado”. Como se Chantal estivesse planejando presentear o marido com uma dança íntima.
– Lisa? Você está escrevendo tudo isso?
Bem, não, porque estou sem caneta e papel, não é? E P.S.: acho que vou vomitar.
– Ficarei contente em planejar o que quer que tenha em mente.
– Você é tão prestativa. – A mulher acenou para a tenda e para o jardim do lado de fora. – Sei que tudo ficará lindo amanhã.
– Obrigada.
– Podemos conversar mais a respeito depois. Mas repito, estou pensando num jantar romântico numa suíte do Cambridge Hotel. Você poderá providenciar as flores e a decoração especial. Quero que tudo seja coberto com panos a fim de criar um lugar exótico, apenas para nós dois.
– Tudo bem.
Será que Lane tinha mentido? E se tinha… bem, isso faria com que Greta cuidasse de tudo durante o Brunch do Derby, enquanto ela ficaria na fazenda se ocupando de um galão de sorvete de chocolate.
Só que ela e sua colega de trabalho não estavam conversando mais.
Fantástico.
– Você é a melhor. – Chantal consultou o relógio de diamantes. – Já está na hora de você voltar para casa, não está? Grande dia amanhã… Você vai precisar do seu sono de beleza. Tchauzinho por enquanto.
Quando Lizzie se viu só novamente, sentou-se num dos baldes virados para baixo e apoiou as mãos sobre os joelhos, esfregando-os para cima e para baixo.
Respire, ela se ordenou. Apenas respire.
Greta estava certa. Ela não estava no nível daquelas pessoas, e não só por ser apenas uma jardineira. Eles jogavam um jogo do qual ela só sairia perdendo.
Hora de ir embora, resolveu. O sono de beleza não iria acontecer, mas, pelo menos, ela poderia tentar e seguir em frente, antes que a bomba estourasse no dia seguinte.
Levantou-se, e já estava para sair quando viu a echarpe. A última coisa que queria era ter que entregar o pedaço de seda para Chantal, como se fosse um labrador devolvendo uma bola de tênis para seu dono. Mas aquela coisa estava bem ao lado de todos aqueles buquês e, conhecendo sua sorte, algo poderia vazar e cair em cima do pano, e ela teria que poupar três meses de salário para comprar um novo.
O guarda-roupa de Chantal era mais caro que bairros inteiros de Charlemont.
Pegando a peça, pensou onde a mulher poderia ter ido com aqueles estúpidos saltos finos.
Não seria difícil localizá-la.
Gin ainda estava debaixo da magnólia onde Samuel T. a deixara quando um veículo veio subindo pela entrada da frente. Foi só quando o SUV parou diante dela que ela percebeu que era da delegacia do Condado de Washington. Bom Deus, quais seriam as alegações do pai para prendê-la desta vez? Graças ao horrendo trajeto daquela manhã até o centro da cidade, seu primeiro instinto foi o de correr, mas estava com saltos, e se queria mesmo fugir do policial, teria que escapar por uma moita de flores.
Quebrar a perna não a ajudaria em nada na prisão.
O delegado Mitchell Ramsey saiu com um maço de papéis na mão.
– Senhorita – ele a cumprimentou com um aceno. – Como está?
Ele não tirou algemas do bolso. Não mostrava nenhum interesse nela além de uma mera educação.
– Veio aqui por minha causa? – ela perguntou de repente.
– Não. – Os olhos dele se estreitaram. – A senhorita está bem?
Não, nem um pouco, delegado.
– Sim, obrigada.
– Se me der licença…
– Então, não veio atrás de mim?
– Não, senhorita. – Ele andou até a porta e tocou a campainha. – Não vim.
Talvez estivesse relacionado à Rosalinda?
– Por aqui – ela disse, passando por ele. – Entre. Está procurando pelo meu irmão?
– Não, Chantal Baldwine está em casa?
– É bem provável. – Ela abriu a porta principal, e o delegado tirou o chapéu ao entrar. – Deixe-me encontrar… ah, senhor Harris. Pode, por favor, conduzir este cavalheiro até a minha cunhada?
– Será um prazer – disse o mordomo, curvando-se. – Por aqui, senhor. Acredito que ela esteja na estufa.
– Senhorita… – o delegado murmurou na direção dela, antes de seguir o inglês.
– Vejamos, isso deve ser bem interessante – disse uma voz na sala de estar.
Ela se virou.
– Lane?
O irmão estava diante do quadro de Elijah Bradford, e ergueu um copo baixo.
– Ao meu divórcio!
– Mesmo? – Gin andou e se ocupou no bar porque não queria que Lane se concentrasse nos seus olhos vermelhos e no seu rosto inchado. – Bem, pelo menos eu não terei mais que tirar as joias de mamãe do pescoço dela. Já vai tarde, mas estou surpresa que você não queira apreciar o espetáculo.
– Tenho problemas mais importantes.
Gin levou seu bourbon com soda para o sofá e, com um chute, tirou os sapatos. Enfiando as pernas debaixo do corpo, encarou o irmão.
– Você está horrível – ela disse. Tão péssimo quanto ela, na verdade.
Ele se sentou diante dela.
– Isso vai ser difícil, Gin. A situação financeira. Acho que é bem séria.
– Talvez possamos vender ações. Quero dizer, você pode fazer isso, não? Eu não faço ideia de como funciona.
E, pela primeira vez na vida, desejou saber.
– É complicado por conta da situação dos fundos.
– Hum… nós vamos ficar bem. – Quando o irmão não disse nada, ela franziu o cenho. – Certo? Lane?
– Eu não sei, Gin. Não sei mesmo.
– Sempre tivemos dinheiro.
– Sim, isso era verdade.
– Você faz com que isso pareça pertencer ao passado.
– Não se engane, Gin.
Curvando o pescoço para trás, ela ficou olhando para o teto, imaginando a mãe deitada na cama. Qual seria o futuro dela? Será que um dia ela se recolheria e puxaria as cortinas a fim de viver num torpor induzido pelas drogas?
Por certo, isso lhe parecia atraente agora.
Deus, Samuel T. tinha mesmo recusado seu pedido?
– Gin, você andou chorando?
– Não – ela disse com suavidade. – É apenas uma alergia, meu querido irmão. Apenas alergia causada pela primavera…
VINTE E QUATRO
Lizzie se apressou para fora da estufa com a echarpe perfumada de Chantal, e toda aquela fragrância emanando do tecido pesava em seu nariz, fazendo-a querer espirrar. Engraçado, conseguia ficar rodeada por milhares de flores de verdade, mas aquela coisa fabricada, artificial e forte bastava para mandá-la atrás de um Claritin.
Ao longe, ouviu o inconfundível sotaque arrastado típico da Virgínia de Chantal e seguiu na direção da sala de jantar para…
– O que é isso? – Chantal exigiu saber.
Lizzie parou de repente e espiou ao redor da arcada pesada de gesso.
Na ponta oposta da longa mesa lustrada, Chantal estava diante de um delegado uniformizado que, aparentemente, lhe entregara um maço de papéis.
– A senhora recebeu sua petição. – O delegado assentiu. – Passe bem.
– O que quer dizer com “petição”? O que quer… Não, você não vai embora até eu abrir isso. – Ela rasgou o envelope. – Fique aqui até eu…
Os papéis saíram do envelope num maço dobrado em três, e quando a mulher os esticou, o coração de Lizzie bateu forte.
– Divórcio? – Chantal disse. – Divórcio?
Lizzie voltou para trás e se encostou na parede. Fechando os olhos, odiou o alívio que sentiu, odiou mesmo. Só que ela não tinha como fingir que não era algo bom.
– Esta é uma petição de divórcio! – A voz de Chantal ficou mais aguda. – Por que está fazendo isso?
– Senhora, o meu trabalho é apenas entregar os papéis. Agora que os recebeu…
– Eu não os recebi! – Houve um farfalhar como se, de fato, ela tivesse jogado os papéis na direção do homem. – Pode pegar isso de volta!
– Senhora – o policial rugiu –, vou aconselhá-la a pegar esses papéis do chão. Ou não. O problema é seu. Mas se continuar agindo assim, vou ter que levá-la para a cadeia amarrada no teto da minha viatura por se mostrar agressiva com um oficial da justiça. Estamos entendidos?
Então, veio uma cascata.
Entre fungadas e o que deviam ter sido arquejos, Chantal mudou de atitude rapidamente.
– O meu marido me ama. Ele não está falando sério. Ele…
– Senhora, nada disso é da minha conta. Passe bem.
Passadas pesadas ecoaram e se afastaram.
– Maldição, Lane! – a mulher sibilou com uma dicção perfeita.
Pelo visto a atuação só acontecia quando havia uma plateia.
Sem aviso, um toc-toc-toc daqueles saltos atravessou o cômodo indo na direção de Lizzie. Merda, não havia tempo de sair dali…
Chantal fazia a curva e se sobressaltou ao ver Lizzie.
Embora a mulher tivesse aberto a torneira para o delegado, seus olhos estavam límpidos, e a maquiagem não estava nem um pouco borrada.
Ódio. Imediato.
– O que está fazendo? – Chantal berrou, o corpo trêmulo. – Ouvindo atrás das portas?
Lizzie estendeu a echarpe.
– Eu estava trazendo isto para você…
Chantal agarrou o tecido.
– Saia daqui. Saia! Saia imediatamente!
Não precisa pedir duas vezes, Lizzie pensou ao virar e seguir para o jardim.
Ao passar por baixo da tenda, serpenteando entre as mesas e cadeiras, pegou o telefone e mandou uma mensagem de texto para Lane, uma que apenas explicava que estava indo para casa após o longo dia de trabalho.
Deus bem sabia que o homem teria trabalho assim que Chantal o encontrasse.
A boa notícia, pelo menos para Lizzie?
Nada de festa de aniversário de casamento para planejar.
Lane não tinha mentido.
Foi difícil conter o sorriso que surgiu em seus lábios. E quando ele se recusou a ir embora, ela deixou que ele ficasse bem onde estava.
O telefone de Lane emitiu um bipe bem quando Chantal marchava pela sala de estar, gritando o nome dele enquanto partia em direção às escadas. Ele não denunciou seu paradeiro, simplesmente deixou que ela seguisse para o andar de cima, e fizesse o escândalo que planejava diante da porta fechada do seu quarto.
Engraçado, meras horas atrás, o fato de ela estar preparando uma guerra era um problema para ele. Mas agora? Aquilo estava tão embaixo na sua lista de prioridades…
– Preciso ir ver Edward – Lane disse, sem se importar em ver quem lhe mandara uma mensagem.
Gin levantou a cabeça.
– Eu não faria isso. Ele não está bem, e a notícia que você tem só pode piorar a situação.
Ela tinha razão. Edward já odiava o pai deles, que dirá a ideia de que o homem tivesse roubado dos fundos.
Gin levantou e foi até o bar para se servir novamente.
– Amanhã ainda está de pé?
– O Brunch? – Ele deu de ombros. – Não sei como impedir isso. Além do mais, já está tudo praticamente pago. A comida, a bebida, as coisas alugadas.
Ele sentia vergonha da outra motivação do evento: a ideia de que o mundo tivesse sequer uma pista dos problemas que sua família enfrentava lhe era inaceitável.
O som de alguém descendo os degraus acarpetados em disparada fez com que Gin erguesse uma sobrancelha.
– Parece que você vai ter um momento conjugal.
– Só se ela me encontrar…
Chantal apareceu na porta da sala de estar, com o rosto normalmente pálido e tranquilo tão rosado quanto o de um carvão em brasa numa churrasqueira.
– Como ousa? – a esposa exigiu saber.
– Imagino que esteja indo preparar as malas, querida – Gin disse com um sorriso digno da manhã de Natal. – Devo chamar o mordomo? Acho que podemos lhe fazer essa última cortesia. Considere como um presente de despedida.
– Não vou sair desta casa – Chantal ignorou Gin. – Você me entendeu, Lane?
Ele girou o gelo no copo com o indicador.
– Gin, pode nos dar um pouco de privacidade, por favor?
Com um aceno, a irmã foi para a porta e, ao passar por Chantal, parou e olhou para trás na direção dele.
– Certifique-se de que o mordomo verifique a bagagem dela, para garantir que ela não leve nenhuma joia.
– Você não presta – Chantal sibilou.
– Não mesmo. – Gin deu de ombros como se a mulher mal merecesse suas palavras. – Mas tenho o direito ao nome Bradford e a este legado. Você não. Tchauzinho.
Enquanto Gin acenava remexendo os dedos, Lane se adiantou e se colocou entre as duas a fim de impedir um momento Alexis/Krystle.21 Depois foi para frente e fechou as portas, mesmo não desejando estar a sós com a esposa.
– Não vou embora. – Chantal girou na direção dele. – E isso não vai acontecer.
Enquanto ela jogava os papéis do divórcio aos pés dele, Lane só conseguia pensar que não tinha tempo para aquilo.
– Escute aqui, Chantal, podemos fazer isso do jeito fácil ou do jeito difícil, a escolha é sua. Mas se escolher a última opção, vou atrás não só de você, mas da sua família também. Como acha que os seus pais batistas se sentiriam se recebessem uma cópia dos seus registros médicos em casa? Não creio que eles sejam favoráveis ao aborto, certo?
– Você não pode fazer isso!
– Não seja idiota, Chantal. Existem inúmeras pessoas para quem posso ligar, pessoas que devem à minha família e que ficariam muito contentes em pagar essa dívida. – Voltou ao bar e se serviu de mais Reserva de Família. – Ou, que tal assim: e se esses registros médicos caíssem nas mãos da imprensa implacável, talvez na internet? As pessoas entenderiam o motivo de eu querer me divorciar, e você teria muita, mas muita dificuldade para encontrar outro marido. Diferentemente do que acontece no norte, os homens sulistas têm padrões de comportamento para suas esposas, que não incluem o aborto.
Houve um momento prolongado de silêncio. Em seguida, o sorriso que ela lançou na direção dele foi inexplicável, tão confiante e calmo que ele teve que se perguntar se ela não havia enlouquecido de vez naqueles dois últimos anos.
– Você tem mais motivos para ficar quietinho do que eu – ela disse com suavidade.
– Tenho? – Ele sorveu um gole grande. – Por que acha isso? Só o que fiz foi correr de uma mulher que eu, supostamente, engravidei. De todo modo, quem pode garantir que era meu?
Ela apontou para a papelada.
– Você vai dar um jeito de fazer isso desaparecer. Vai permitir que eu continue aqui pelo tempo que eu quiser. E vai me acompanhar às festividades do Derby amanhã.
– Em qual universo paralelo?
A mão dela desceu para o ventre.
– Estou grávida.
Lane gargalhou.
– Você já tentou isso antes, minha cara. E todos nós sabemos como terminou.
– A sua irmã estava errada.
– Quanto a você roubar joias? Talvez. Veremos.
– Não. Sobre eu não ter o direito de ficar aqui. Assim como o meu filho. A bem da verdade, o meu filho tem tanto direito ao legado Bradford quanto você e Gin.
Lane abriu a boca para dizer alguma coisa, mas logo voltou a fechá-la.
– Do que está falando?
– Lamento dizer, mas o seu pai é um marido tão ruim quanto você.
Um tinido subiu do copo e, quando ele olhou para baixo, notou de uma vasta distância que sua mão tremia, fazendo o gelo se agitar.
– Isso mesmo – Chantal disse, com voz muito calma. – E acho que você está ciente da condição delicada da sua mãe. Como ela se sentiria se soubesse que o marido dela não só foi infiel, mas que logo terá um filho? Acha que ela vai tomar ainda mais daquelas pílulas das quais já é tão dependente? Provavelmente. Sim, tenho certeza de que ela tomaria.
– Sua vadia – ele sussurrou.
Em sua mente, viu-se colocando as mãos ao redor do pescoço da mulher, apertando, apertando com tanta força que ela começaria a se debater enquanto seu rosto ficaria roxo e a boca se abriria.
– Por outro lado – Chantal murmurou –, sua mãe não adoraria saber que seria avó pela segunda vez? Não seria motivo de comemoração?
– Ninguém acreditaria – ele se ouviu dizer.
– Ah, acreditaria, sim. Ele vai ser igualzinho a você… E tenho ido a Manhattan com bastante regularidade, para trabalhar no nosso relacionamento. Todos sabem disso.
– Você está mentindo. Nunca vi você.
– Nova York é uma cidade grande. Fiz questão que todos ficassem sabendo que me encontrei com você e que aproveitei a sua companhia. Também mencionei às meninas no clube, aos maridos delas nas festas, à minha família… Todos têm demonstrado tanto apoio para nós.
Enquanto ele permanecia em silêncio, ela sorriu com doçura.
– Portanto, você pode ver que esses papéis de divórcio não serão necessários. E você não dirá nada a respeito do que aconteceu entre nós e o nosso primeiro bebê. Se fizer isso, vou ter que contar tudo a respeito da sua família e envergonhá-lo diante desta comunidade, da sua cidade, do seu Estado. E então veremos quanto tempo vai levar para que você vista um terno de enterro. A sua mãe está meio fora de si, mas não está completamente isolada, e aquela enfermeira lê o jornal todas as manhãs ao lado da cama dela.
Com uma expressão de imensa satisfação, Chantal se virou e escancarou a porta, batendo os saltos no vestíbulo de mármore, mais uma vez senhora do prazer com seu sorriso de Monalisa.
O corpo inteiro de Lane tremia, os músculos gritavam pedindo ação, vingança, sangue… Mas a ira não estava mais direcionada à esposa.
Estava toda direcionada ao seu pai.
Chifrado. Ele acreditava que essa era a palavra adequada para descrever aquele tipo de situação.
Fora chifrado pelo próprio pai.
Quando é que a merda deste dia vai acabar?, ele se perguntou.
Alexis e Krystle são personagens antagonistas da série televisiva americana Dinastia (1981-1989). (N.T.)
VINTE E CINCO
Lizzie disse a si mesma que não olharia para o celular. Não olhou ao tirá-lo da bolsa e ao transferi-lo para seu bolso de trás assim que entrou pela porta da frente da sua casa de fazenda. Nem quando, quinze minutos mais tarde, se certificou de que o aparelho não estava no silencioso. E nem quando, dez minutos depois disso, destravou a tela só para ver se não havia nenhuma chamada perdida, nem mensagens de texto.
Nada.
Lane não telefonara para saber se ela tinha chegado em casa. Não respondera à sua mensagem. Mas, convenhamos, ele devia estar bem ocupado no momento.
Puxa.
Mesmo assim, estava ansiosa, andando de um lado para outro. A cozinha estava imaculada, o que era uma pena, porque bem que gostaria de ter alguma coisa para limpar. A mesma coisa com o banheiro no andar de cima. Caramba, até a cama estava arrumada. E ela tinha lavado a roupa na noite anterior. A única coisa que encontrou fora do lugar foi a toalha que usara pela manhã para ser secar após o banho. Deixara-a pendurada sobre a cortina do box, e já que ainda estava dentro dos dois dias de uso antes de colocá-la no cesto de roupa suja, a única coisa que podia fazer era dobrá-la e recolocá-la no porta-toalhas afixado à parede.
Graças basicamente ao dia desprovido de nuvens, a casa estava quente no segundo andar e ela foi abrindo todas as janelas. Uma brisa trouxe o odor da campina que circundava a propriedade, livrando a casa do abafado.
Se ao menos pudesse fazer o mesmo com a sua cabeça… Imagens do dia a bombardeavam: ela e Lane rindo assim que ela chegara para trabalhar; ela e Lane olhando para aquela planilha no laptop; ela e Lane…
Com a cabeça cheia, Lizzie voltou para a cozinha e abriu a geladeira. Nada de mais ali. Certamente nada que tivesse interesse em comer.
Quando a necessidade de verificar o celular surgiu de novo, ela se obrigou a resistir. Chantal sabia ser um problema num dia bom. Tinha recebido a papelada do divórcio, e ainda por cima a cena foi vista por um dos empregados…
O som de passos na varanda da frente chamou sua atenção.
Franzindo o cenho, fechou a porta da geladeira e seguiu até a sala de estar. Não se deu ao trabalho de ver quem era. Só havia duas opções: o vizinho da esquerda, que morava uns sete quilômetros estrada abaixo e tinha vacas que, com frequência, quebravam a cerca e vagavam pelos campos de Lizzie; ou o da direita, que ficava a meio quilômetro, e cujos cachorros costumavam se afastar para espiar as vacas soltas.
Começou a cumprimentar antes mesmo de abrir a porta.
– Oi, tudo…
Não era nenhum vizinho vindo se desculpar por invasões bovinas nem caninas.
Lane estava na varanda, com o cabelo pior do que de manhã, as ondas escuras espetadas como se ele tivesse tentado arrancar os fios.
Ele estava cansado demais para sorrir.
– Pensei em ver, pessoalmente, se você tinha chegado bem em casa.
– Oi, nossa, entre.
Encontraram-se na metade do caminho, corpo a corpo, e ela o abraçou com força. Seu cheiro era de ar fresco, e, por cima do ombro, ela viu que o Porsche estava com a capota abaixada.
– Você está bem? – ela perguntou.
– Melhor agora. A propósito, estou meio bêbado.
– E veio dirigindo? Isso foi idiotice e perigoso.
– Eu sei. É por isso que estou confessando.
Ela recuou e deixou que ele entrasse.
– Eu ia comer alguma coisa agora.
– Tem o bastante para dois?
– Ainda mais se for pra te deixar sóbrio. – Sacudiu a cabeça. – Chega de beber e dirigir. Acha que está com problemas agora? Tente acrescentar embriaguez ao volante à sua lista.
– Você tem razão. – Olhou ao redor, e depois foi até o piano dela e descansou as mãos sobre a tampa suave do teclado. – Deus, nada mudou aqui.
Ela pigarreou.
– Bem, estive bastante ocupada no trabalho…
– Isso é bom. Maravilhoso.
A nostalgia estampada em seu rosto enquanto continuava olhando para as ferramentas antigas, as colchas de retalhos penduradas e o sofá simples era melhor do que qualquer palavra que ele pudesse proferir.
– Comida? – ela sugeriu.
– Sim, por favor.
Na cozinha, ele foi direto para a mesinha e se sentou. E, de repente, foi como se nunca tivesse se ausentado.
Cuidado com isso, ela se reprimiu.
– Então, você gostaria de… – Vasculhou o conteúdo da despensa e da geladeira. – Bem, que tal uma lasanha que eu congelei uns seis meses atrás? Com nachos como acompanhamento, de um pacote que abri ontem, terminando com o bom e velho sorvete de menta?
Os olhos de Lane, concentrados nela, ficaram com as pupilas dilatadas.
Tuuuudo bemmmm. Evidentemente, ele planejava outra coisa para a sobremesa, e enquanto o corpo dela se aquecia de dentro para fora, tudo parecia mais que bem para ela.
Caramba, ela não estava nem aí para o bom senso. Livrar-se da esposa dele era apenas a ponta do iceberg, e ela precisava se lembrar disso.
– Essa me parece a melhor refeição do mundo.
Lizzie cruzou os braços e se recostou na geladeira.
– Posso ser franca?
– Sempre.
– Sei que Chantal recebeu a papelada do divórcio. Acabei presenciando sem querer. Não tive a intenção de ver o delegado fazendo aquilo.
– Eu te disse que estava pondo um fim nisso.
Ela esfregou a testa.
– Uns dois minutos antes, ela foi me procurar para planejar um jantar de comemoração do aniversário de casamento de vocês.
Houve um xingamento baixinho.
– Sinto muito. Mas estou te garantindo agora: não há futuro para mim e para ela.
Lizzie o encarou com firmeza por um bom tempo e, em resposta, ele não se moveu, não piscou, não disse nenhuma palavra mais. Só ficou ali sentado… deixando que as ações falassem por ele.
Maldição, ela pensou. Ela não precisava mesmo, de jeito nenhum, voltar a se apaixonar por ele.
Enquanto a noite caía sobre os estábulos, Edward se viu voltando à sua rotina noturna. Copo com gelo? Confere. Bebida? Confere – gim, aquela noite. Poltrona? Confere.
Só que, quando se acomodou e se viu diante daquelas provisões, dedilhou sobre o encosto da poltrona, em vez de colocar os dedos em uso para abrir o lacre da garrafa.
– Vamos lá – disse a si mesmo –, siga com o programado.
Mas não. Por algum motivo, a porta do chalé conversava com ele mais do que o Beefeater, no que se referia a coisas que precisavam ser abertas.
O dia fora bem longo. Ele tinha ido até Steeplehill Downs para dar uma olhada nos seus dois cavalos e dar telefonemas, tanto para o veterinário quanto para o treinador, porque Bouncing Baby Boy teria que ser deixado de lado por conta de um problema no tendão. Em seguida, voltara para lá, para verificar cinco das suas éguas que estavam prenhas, e para revisar os livros contábeis com Moe. Pelo menos as notícias eram boas nessa frente. Pelo segundo mês consecutivo, a operação não apenas se autossustentava, como gerava lucros. Se aquilo se mantivesse, ele poria um fim nas transferências do fundo fiduciário da mãe, que vinham fornecendo uma injeção de caixa nos negócios desde os anos 1980.
Ele queria ser totalmente independente da família.
Na verdade, uma das primeiras coisas que tinha feito quando saíra da reabilitação foi recusar a distribuição dos seus fundos. Ele não queria ter nada a ver com fundos que, mesmo que remotamente, estivessem relacionados com a Cia. Bourbon Bradford, e a totalidade da primeira e da segunda retirada estava ligada diretamente à CBB. Na verdade, só descobrira as transferências do fundo da sua mãe para o Haras Vermelho & Preto uns seis meses após a sua chegada e, naquele tempo, ele mal era capaz de se levantar pela manhã e ir até os estábulos. Se os tivesse recusado naquele tempo, a operação toda teria ido para o buraco.
Fazia muito tempo desde que alguém com um mínimo de perspicácia para os negócios fora até o haras e, a despeito das suas fraquezas atuais, sua habilidade para fazer dinheiro permanecia intocada.
Mais um mês. E então estaria livre.
Deus, estava mais exausto do que de costume. Mais dolorido também. Ou talvez as duas coisas estivessem unidas inextricavelmente.
Mesmo assim, não conseguia pegar a garrafa.
Em vez disso, pôs-se de pé com a ajuda da bengala e claudicou até as cortinas, que permaneciam fechadas desde o dia em que se mudara para lá. Estava um breu do lado de fora, somente as luzes de sódio nas entradas dos estábulos lançavam um brilho cor de pêssego na escuridão.
Xingando baixinho, foi para a porta da frente e a abriu. Parou um instante. Coxeou na escuridão.
Edward atravessou o gramado num andar desigual, e disse a si mesmo que estava indo dar uma olhada na égua que estava com problemas. Sim. Era isso o que iria fazer.
Não iria ver como estava Shelby Landis. Nada disso. Ele não estava, por exemplo, preocupado por não tê-la visto sair da fazenda o dia inteiro, o que provavelmente significava que ela não devia ter comida naquele apartamento.Tampouco iria verificar se, por acaso, ela dispunha de água quente, porque depois de um dia inteiro carregando carrinhos de mão, sacos de grãos do tamanho da picape dela e fardos pinicantes de feno, ela devia estar dolorida e necessitando de uma bela chuveirada.
Ele, positiva e absolutamente, iria…
– Merda.
Sem nem ter se dado conta, fora parar na porta lateral do Estábulo B – a que dava para o escritório, bem como para o lance de escadas que o levaria até os aposentos dela.
Ora, uma vez que já estava ali… ele bem que poderia ver como ela estava. Claro que em lealdade ao pai dela.
Não passou a mão pelos cabelos antes de pousá-la na maçaneta… Tudo bem, talvez tivesse feito isso só um pouquinho, mas apenas porque estava precisando cortar os cabelos e eles tinham caído nos seus olhos.
Luzes detetoras de movimento se acenderam assim que ele chegou ao escritório, e todos aqueles degraus até a parte superior pairavam acima dele como uma montanha que ele teria que se esforçar para escalar. E, vejam só, seu pessimismo tinha razão de ser: ele teve que parar para tomar fôlego na metade do caminho. E outra vez assim que chegou ao alto.
E foi por isso que ouviu as risadas.
De um homem. De uma mulher. Vindas do apartamento de Moe.
Franzindo o cenho, Edward olhou para baixo pela porta de Shelby. Aproximou-se e encostou a orelha na porta. Nada.
Quando fez a mesma coisa na porta de Moe? Ouviu os dois, a fala arrastada sulista de um e de outro como o som de um banjo de uma banda de jazz.
Fechou os olhos por um instante e se recostou na porta fechada.
Em seguida, aprumou-se e, com o auxílio da bengala, desceu todos aqueles degraus, foi para o gramado e voltou ao próprio chalé.
Dessa vez, não teve nenhum problema para abrir a garrafa ou colocar uma dose no copo.
Foi durante a segunda dose que ele por fim se deu conta de que era sexta-feira. Noite de sexta-feira.
Puxa, se isso não era um golpe de sorte.
E ele até tinha um encontro.
VINTE E SEIS
Sutton Smythe olhou para a multidão que lotava a galeria principal do Museu de Arte de Charlemont. Ela reconhecia tantos rostos, tanto pessoalmente quanto dos noticiários, da TV e da tela grande. Muitas pessoas acenavam para ela ao encontrar o seu olhar, e ela foi bastante cordial, erguendo a mão em retribuição.
Tinha esperanças que ninguém se aproximasse.
Não estava interessada em ter que cumprimentar alguém com um beijo no rosto e fazer perguntas educadas a respeito de um cônjuge, tampouco queria ser apresentada à companhia de alguém por aquela noite. Também não queria receber nenhum agradecimento – mais um – pela sua generosa doação de 10 milhões de dólares, feita no mês anterior, que marcou o início da campanha de levantamento de fundos para a expansão do museu. Muito menos queria ter que ouvir falar do empréstimo permanente do Rembrandt e do ovo Fabergé que o pai fizera em homenagem à querida esposa falecida.
Sutton queria ser deixada em paz para vasculhar a multidão em busca do único rosto que queria ver.
O único rosto que queria… que precisava ver.
Mas Edward Baldwine, mais uma vez, não viria. E ela sabia disso, não por ter estado ali nas sombras pela última hora e meia enquanto os convidados da festa que ela oferecia em nome da família chegavam, mas porque insistira em ver uma cópia da lista do RSVP uma vez por semana, e depois diariamente, quando o dia do evento se aproximou.
Ele simplesmente não tinha respondido. Nada de “Sim, irei à festa com prazer”, nem de “Lamento, mas não poderei ir”.
Será que podia mesmo ficar surpresa?
Ainda assim, isso a magoou. Na verdade, o único motivo pelo qual comparecera ao jantar de William Baldwine na noite anterior fora por ter esperanças de ver Edward em sua própria casa. Depois que ele não retornara as suas ligações por dias, meses e agora anos, ela pensou que talvez ele aparecesse à mesa do pai e eles poderiam, de maneira muito natural, se reconectar.
Mas não. Edward também não estivera lá.
– Senhorita Smythe, estamos prontos para iniciar o jantar, se for conveniente para a senhorita. As saladas já foram servidas.
Sutton sorriu para a mulher com uma prancheta na mão e um fone no ouvido.
– Sim, vamos diminuir as luzes. Farei minhas considerações assim que eles estiverem sentados.
– Pois não, senhorita Smythe.
Sutton respirou fundo e observou o caro rebanho fazer o que lhe era orientado e encontrar seus lugares em todas aquelas mesas redondas com arranjos elaborados, pratos dourados e menus impressos sobre guardanapos de linho.
Antes da tragédia, Edward sempre frequentara aquele tipo de evento, lançando sorrisos sardônicos quando outra pessoa surgia pedindo dinheiro para as suas causas. Convidando-a para dançar, como se fosse uma manobra de salvamento, quando ela se via acuada por um convidado conversador. Olhando para ela e piscando… como só ele conseguia fazer.
Eram amigos desde a escola preparatória em Charlemont. Oponentes nos negócios desde que ele se formara em Wharton e ela conquistara seu MBA na Universidade de Chicago. Companheiros sociais desde que ambos ingressaram no circuito de jantares beneficentes depois do falecimento da mãe dela e a dele passara a ficar cada vez mais tempo em seus aposentos.
Nunca foram amantes.
Ela queria que tivessem sido. Muito provavelmente, desde que o conhecera. Edward, contudo, mantivera-se afastado, permanecera distante, até mesmo arrumara encontros para ela.
O coração dela sempre estivera à disposição, mas ela jamais tivera coragem de atravessar aquela fronteira que ele, com tanta determinação, estabelecera entre eles.
E então… Dois anos atrás aquilo aconteceu. Bom Deus, quando ficara sabendo que ele iria mais uma vez para a América do Sul numa daquelas viagens de negócios, teve uma premonição, um alerta, uma sensação ruim. Mas não telefonara para ele. Não tentara falar com ele para tentar convencê-lo a levar mais seguranças ou algo assim.
Portanto, de certa forma, sentia-se parcialmente responsável. Talvez se tivesse…
Mas a quem tentava enganar? Ele não teria deixado de viajar por outro motivo que não condições climáticas adversas. Edward fora um verdadeiro adversário na indústria de bebidas, o óbvio herdeiro da Cia. Bourbon Bradford não apenas pelo direito de nascença, mas pelas suas incríveis ética profissional e astúcia.
Depois do sequestro e do pedido de resgate, o pai dele, William, esforçara-se para libertá-lo, negociando com os sequestradores, trabalhando em conjunto com a embaixada norte-americana. Tudo fracassara até que, no fim, uma equipe especial foi enviada para resgatar Edward.
Não conseguia sequer imaginar o que haviam feito com ele.
E aquele era o aniversário do dia em que fora emboscado durante a viagem.
Tudo aquilo era simplesmente uma tragédia. A América do Sul era um dos lugares mais lindos do planeta com sua comida deliciosa, cenários fantásticos e história fascinante; ela e Edward frequentemente brincavam dizendo que, quando se aposentassem, iriam para lá, para morar em propriedades vizinhas. O sequestro de executivos com exigência de resgate eram um dos pontos perigosos em certas áreas, mas não era muito diferente de atravessar o Central Park às três da manhã. Maus elementos podem ser encontrados em qualquer parte, e não havia motivos para condenar um continente inteiro por conta de uma minoria de bandidos.
Infelizmente, Edward se tornara uma das vítimas.
Depois de todo aquele tempo, ela só queria vê-lo com seus próprios olhos. Algumas fotos desfocadas foram publicadas pela imprensa, e elas, por certo, não a tranquilizaram. Ele sempre aparentava estar muito mais magro, com o corpo encurvado, o rosto sempre abaixado, desviando das lentes.
Para ela, contudo, ele ainda era lindo.
– Senhorita Smythe, está pronta?
Voltando ao presente, Sutton viu que havia mil pessoas sentadas, comendo suas saladas, prontas para ouvi-la discursar.
Sem aviso algum, uma repentina onda de energia ruim bombeou dentro dela, fazendo-a suar no peito, na testa, debaixo dos braços. Enquanto o coração batia descompassado, ondas de tontura fizeram-na esticar a mão para se equilibrar na parede.
O que havia de errado com ela?
– Senhorita Smythe?
– Não consigo – ouviu-se dizer.
– O que disse?
Pressionou os cartões que escrevera com tanto cuidado nas mãos da assistente.
– Outra pessoa terá que…
– O quê? Espere, onde a senhorita…
Ela levantou as palmas e recuou.
– … fazer o discurso.
– Senhorita Smythe, a senhorita é a única que pode…
– Ligo na segunda-feira. Sinto muito. Não consigo.
Sutton não fazia a mínima ideia de onde estava indo enquanto seus saltos finos ressoavam no piso de mármore. Na verdade, foi só quando uma lufada de calor a atingiu que ela percebeu que havia saído do prédio pela saída de incêndio e aparecera na ala oeste do complexo, no ar úmido noturno.
Bem longe do estacionamento onde seu chofer a aguardava.
Caindo de encontro à parede de gesso do museu, inspirou fundo algumas vezes, mas isso não ajudou a aliviar a sensação de sufocamento.
Não poderia ficar ali a noite toda. Mais especificamente, queria sair correndo, ir para longe, correr até que a sensação de terror saísse do seu corpo. Mas isso seria loucura. Certo?
Deus, estava perdendo a cabeça. Finalmente, tudo a estava alcançando.
Ou talvez fosse, mais uma vez e sempre, Edward Baldwine.
Hora de seguir em frente. Aquilo era ridículo.
Tirando os sapatos e segurando-os pelas tiras, começou a andar sobre a grama, se aproximando dos fachos de iluminação das luzes de segurança. Depois do que lhe pareceu uma eternidade, o estacionamento que procurava apareceu quando ela dobrou mais uma esquina, só que, nessa hora, ficou confusa pela quantidade de limusines estacionadas a céu aberto.
Onde estava…
Por pura sorte, o Mercedes C63 a encontrou, e o enorme sedã surgiu à sua frente. A janela do passageiro se abaixou sem emitir nenhum som.
– Senhorita Smythe? – seu chofer disse em tom alarmado. – A senhorita está se sentindo bem?
– Preciso do carro. – Sutton deu a volta, os faróis eram muito claros contra seu vestido de gala prata e seus diamantes. – Preciso do carro, preciso…
– Senhorita? – O homem uniformizado saiu de trás do volante. – Posso levá-la para onde quiser ir…
Ela pegou uma nota de cem dólares da minúscula bolsa de festa.
– Tome. Pegue um táxi, ou ligue para alguém. Sinto muito. Sinto muito, muito, mas preciso ir…
Ele meneou a cabeça ao ver a nota.
– Senhorita, posso levá-la a qualquer lugar…
– Por favor. Preciso do carro.
Houve uma ligeira pausa.
– Muito bem. Sabe como dirigir este…
– Dou um jeito. – Colocou o dinheiro na palma da mão dele e a fechou. – Fique com isso. Vou ficar bem.
– Eu preferiria dirigir.
– Aprecio a sua consideração, de verdade. – Fechou-se dentro do carro, subiu a janela, e olhou ao redor à procura do câmbio ou…
À batida no vidro escuro, ela voltou a abaixá-lo.
– Está ali, ao lado do volante – instruiu o chofer. – A marcha a ré, e ali para a frente. Pronto, assim. E as setas ficam… isso, isso mesmo. A senhorita não deve precisar dos limpadores de para-brisa, e as luzes já estão acesas. Boa sorte.
Ele recuou, do mesmo modo que fazemos quando estamos prestes a acender um fósforo para acionar fogos de artifício. Ou uma bomba.
Sutton pressionou o acelerador, e o potente sedã se lançou para a frente como se tivesse o motor de um jato debaixo do capô. Nos recessos da sua mente, ela fez um cálculo rápido de quantos anos fazia que não dirigia… E a resposta não foi nada encorajadora.
Mas, assim como tudo em sua vida, ela acabaria descobrindo… Ou morreria tentando.
– Importa-se se eu repetir?
Lizzie lhe lançou um olhar de encorajamento e Lane se levantou e foi para a geladeira. A comida estava ajudando a clarear a sua mente, ou talvez fosse a companhia dela.
Provavelmente era mais por estar na presença dela.
– Está muito bom – ele disse ao abrir o congelador e pegar mais uma porção.
A risada dela o fez parar e fechar os olhos, a fim de que o som pudesse inundá-lo ainda mais.
– Você só está sendo gentil – ela murmurou.
– É a mais pura verdade.
Levando o prato ao micro-ondas, ajustou-o para seis minutos e ficou olhando o bloco congelado girar e girar.
– Então, eu vou ter que ir procurar Edward – ouviu-se dizer.
– Quando foi a última vez que o viu?
Ele pigarreou. Sentiu uma tremenda necessidade de beber alguma coisa.
– Foi em…
Por um instante, ficou perdido em pensamentos, tentando encontrar um modo de perguntar se ela tinha alguma bebida em casa.
– Tanto tempo assim?
– Na verdade, eu estava pensando em outra coisa. – Ou seja, que era inteiramente possível que ele tivesse problemas com bebida. – Mas, pensando bem, depois de um dia como o de hoje, quem não seria alcoólatra?
– O que disse?
Ai, merda, falara em voz alta?
– Desculpe, a minha cabeça está a maior confusão.
– Eu queria poder fazer alguma coisa.
– Você já está fazendo.
– Então, quando foi que viu Edward pela última vez?
Lane voltou a fechar os olhos. Mas, em vez de fazer cálculos mentais que revelariam a soma do quanto deixava a desejar como irmão, voltou no tempo para aquela noite de Ano-Novo quando Edward apanhara pelo restante deles.
Ele e Maxwell haviam permanecido no salão de baile, silenciosos e trêmulos, enquanto o pai forçava Edward a subir. À medida que eles subiam a grande escadaria, Lane gritava a plenos pulmões… mas apenas internamente.
Era covarde demais para sair de lá e pôr um fim à mentira que salvara seu irmão e ele mesmo.
– Eu deveria ir lá – disse quando um tempo se passou.
– Mas o que você pode fazer? – Max sussurrou. – Nada pode deter papai.
– Eu poderia…
Só que Maxwell estava certo. Edward mentira, e o pai o estava fazendo pagar por uma transgressão que não era dele. Se Lane contasse a verdade agora… O pai simplesmente surraria todos eles. Pelo menos se ele e Maxwell ficassem quietos, poderiam evitar….
Não, aquilo era errado. Era uma desonra.
– Vou até lá. – Antes que Maxwell conseguisse dizer qualquer coisa, Lane agarrou o braço do irmão. – E você vem comigo.
A consciência de Max também o devia estar incomodando, porque em vez de discutir, como sempre discutia sobre tudo, seguiu-o mudo pela escada principal. Quando chegaram ao topo, o corredor estava deserto a não ser pela moldura de gesso, pelos retratos, e pelas flores sobre mesinhas e aparadores antigos.
– Temos que impedir – Lane sibilou.
Um atrás do outro, seguiram rapidamente sobre o tapete… até o quarto do pai.
Do lado oposto da porta, os sons do açoite eram agudos e altos, vindos do couro de encontro à pele nua de seu irmão, e dos grunhidos do pai, que empregava força nos golpes.
Edward estava em silêncio.
E, nesse meio-tempo, os dois apenas permaneceram ali, silenciosos e petrificados. Lane só conseguia pensar que nem ele nem Max tinham metade da coragem dele. Os dois acabaram chorando.
– Vamos embora – disse baixinho, coberto de vergonha.
Mais uma vez, Max não discutiu. Obviamente, ele também era um covarde.
O quarto que partilhavam ficava no fim do corredor, e foi Lane quem abriu a porta. Havia quartos de sobra para que dormissem separados, mas quando Maxwell começara a ter pesadelos alguns anos antes, acabaram colegas de quarto sem querer. Max começara a entrar sorrateiramente no quarto de Lane e despertava ali pela manhã. Depois de um tempo, a senhorita Aurora instalara outra cama lá e assim ficou resolvido.
O banheiro era conjugado, e o quarto do lado oposto era o de Edward.
Max foi para a cama e fitou o teto.
– A gente não devia ter descido. A culpa é minha.
– É de nós dois. – Olhou para Max. – Fique aqui. Vou esperar por ele.
Enquanto seguia para o banheiro, fechou a porta atrás de si e rezou para que Max seguisse suas ordens. Tinha uma sensação ruim quanto à condição em que Edward estaria quando o pai finalmente acabasse o castigo.
Ah, como Lane gostaria de poder voltar no tempo e refazer a decisão de ir para a sala de estar.
Abaixando a tampa do vaso, ficou sentado e atento às batidas do seu coração. Mesmo não conseguindo mais ouvir as chibatadas do cinto, isso não tinha relevância. Ele sabia o que estava acontecendo do outro lado do corredor.
Por algum motivo, ficou olhando para as três escovas de dente enfiadas dentro de um copo de prata, ao lado das toalhas de mão dobradas sobre a pia. A vermelha era de Edward, porque ele era o mais velho e sempre podia escolher antes. A de Max era verde, porque era a mais varonil que restava. Lane acabava tendo que ficar com a amarela, que odiava.
Ninguém queria a azul da uk.
Um clique suave e um empurrão de uma porta sendo aberta quebrou o silêncio. Lane esperou o segundo clique e depois se pôs de pé, espiando o quarto de Edward.
Na escuridão, Edward caminhava em direção ao banheiro, todo encurvado, com um braço ao redor do abdômen, e outro estendido para se equilibrar na cômoda, nas paredes, na mesa.
Lane se apressou e segurou a cintura do irmão.
– Enjoado – Edward grunhiu. – Vou vomitar.
Ah, Deus, ele estava sangrando no rosto, devido ao corte causado pelo anel de sinete do pai quando ele lhe desferiu aquele tapa.
– Eu te levo – Lane murmurou. – Vou cuidar de você.
O avanço foi lento, as pernas de Edward tinham dificuldade para sustentar o tronco ereto. Parte da camisa do pijama ficara presa no cós depois da surra, e Lane só conseguia pensar no que havia por baixo. Nos vergões, no sangue, no inchaço.
Edward mal chegou a tempo ao vaso, e Lane ficou junto dele durante todo o tempo. Quando terminou de vomitar, Lane pegou a escova vermelha e colocou pasta de dente nela. Depois, ajudou o irmão a ir até a cama.
– Por que você não chora? – Lane perguntou com uma voz rouca enquanto o irmão se acomodava no colchão como se todo o seu corpo doesse. – É só você chorar. Ele para assim que você chorar.
Era sempre assim quando ele e Max levavam uma surra.
– Vá para a cama, Lane.
A voz de Edward pareceu exausta.
– Sinto muito.
– Está tudo bem. Só vá para cama.
Foi difícil sair, mas ele já tinha causado confusão demais por aquela noite, e vejam o que tinha acontecido.
De volta ao seu quarto, enfiou-se entre os lençóis e ficou olhando para o teto.
– Ele está bem? – Max perguntou.
Por algum motivo, as sombras em seu quarto eram completamente assustadoras, pareciam monstros que se moviam e rastejavam pelos cantos.
– Lane?
– Sim – mentiu. – Ele está bem…
– Lane?
Ele voltou ao presente e olhou sobre o ombro.
– O que foi?
Lizzie apontou para o micro-ondas.
– Está pronto?
Bipe…
Bipe…
Ele apenas ficou ali, piscando, tentando voltar do passado.
– Sim, sim, desculpe.
De volta à mesa, depositou o prato fumegante e se sentou de novo… só para descobrir que tinha perdido o apetite. Quando Lizzie estendeu o braço e apoiou a mão na dele, ele a aceitou e a levou aos lábios para um beijo.
– No que está pensando? – Lizzie perguntou.
– Quer mesmo saber?
– Sim.
Ora, ora, se ele não tinha uma bela seleção de coisas para escolher.
Enquanto ela esperava por uma resposta, ele ficou olhando para seu rosto por um bom tempo. E então teve que sorrir.
– Agora, neste exato instante… estou pensando que, se tiver uma chance com você, Lizzie King, vou aceitar.
O rubor que atingiu o rosto dela foi encoberto quando ela levantou as mãos.
– Ai, meu Deus…
Ele deu uma risada leve.
– Quer que eu mude de assunto?
– Sim – disse ela por trás do seu esconderijo.
Ele não a culpava.
– Tudo bem, estou muito feliz de ter vindo para cá. Easterly é como uma corda no meu pescoço agora.
Lizzie esfregou os olhos e abaixou as mãos.
– Sabe, custo a acreditar no que Rosalinda fez.
– Foi simplesmente horrível. – Ele se recostou na cadeira, respeitando a necessidade dela de mudarem de assunto. – E, escuta essa. Sabe Mitch Ramsey, o delegado? Ele me ligou enquanto eu vinha para cá. O exame médico legal preliminar indica traços de cicuta.
– Cicuta?
– O rosto dela… – Ele circundou a face com a mão. – Aquele sorriso horrendo? Foi provocado por algum tipo de paralisia facial, o que, aparentemente, é bem documentado como sendo causado por uma variedade de venenos. Caramba, vou te contar, vai demorar bastante tempo para eu me esquecer da aparência dela.
– Existe a possibilidade de ela ter sido morta?
– Eles acham que não. É preciso uma bela dose de cicuta para ter o resultado desejado, portanto, é mais provável que ela mesma tenha feito isso. Além do mais, aqueles Nikes eram novinhos e havia grama nas solas.
– Nikes? Ela só usa sapatos sem salto.
– Exatamente, mas ela foi encontrada com tênis próprios para corrida, que, evidentemente, acabara de comprar, e os usou para andar no jardim. Pelo que Mitch disse, na época dos romanos, as pessoas costumavam beber veneno e depois perambular para que ele agisse com mais rapidez. Portanto, isso mais uma vez indica que ela causou a própria morte.
– Que… horrível.
– A pergunta é: por quê? E, infelizmente, acho que nós sabemos a resposta.
– O que vai fazer agora?
Ele ficou em silêncio por um tempo e depois ergueu os olhos para ela.
– Para começar, pensei em te levar para cima.
Lizzie corou de novo.
– E o que vai fazer comigo no segundo andar?
– Vou te ajudar a dobrar a roupa limpa.
Ela deu uma gargalhada.
– Detesto te desapontar, mas já fiz isso.
– Arrumar a sua cama?
– Lamento. Já está arrumada.
– Mas você tinha que ser tão organizada? Cerzir as suas meias? Precisa pregar algum botão?
– Está sugerindo que é bom com linha e agulha?
– Aprendo rápido. Então… quer costurar comigo?
– Acho que não tenho nada que precise desse tipo de cuidado.
– Existe alguma coisa na qual posso te ajudar, então? – ele perguntou num tom baixo. – Alguma dor que eu possa aplacar? Algum fogo que eu possa extinguir? Com a boca, talvez?
Lizzie fechou os olhos, e mudou de posição na cadeira.
– Ai, Deus…
– Espere, já sei. Que tal se eu te levar para o segundo andar e nós bagunçarmos a sua cama? Daí, então, vamos poder arrumá-la de novo.
Quando, por fim, ela voltou a olhar para ele, seus olhos estavam pesados e sensuais.
– Sabe, esse parece um plano perfeito.
– Adoro quando estamos de acordo.
Levantaram-se ao mesmo tempo, e antes que ela conseguisse detê-lo, ele se inclinou e a pegou no colo.
– O que você está fazendo? – Empurrou-o e começou a gargalhar. – Lane…
– O que parece? – E saiu da cozinha. – Estou te carregando lá para cima.
– Espera. Espera. Sou muito pesada…
– Ora, por favor!
– Não, é verdade… Não sou como aquelas mulherzinhas delicadas…
– Exato. Você é uma mulher de verdade. – Chegou à escada e seguiu em frente. – E é por essas que homens de verdade ficam atraídos. Confie em mim.
Deixou a cabeça pender no ombro dele, e quando Lane sentiu o olhar dela em seu rosto, pensou no que Chantal fizera com o seu pai. Ou, pelo menos, no que ela disse ter feito com ele.
Lizzie nunca o traíra. Nem em pensamento, nem em ações.
Ela simplesmente não tinha isso dentro dela.
O que a tornava uma mulher de verdade, e não só por não ser socialmente anoréxica.
– Não, você não tem que dizer isso – ele murmurou quando os degraus antigos rangeram debaixo dos seus pés.
– Dizer o quê?
– Que não significa nada comparado a outras coisas. Sei que me quer só como amigo e aceito isso. Você só precisa saber de uma coisa.
– O que seria? – ela suspirou.
Ele fez uma voz mais grave.
– Estou preparado para ser um homem muito paciente no que se refere a você. Vou seduzi-la pelo tempo que for necessário, vou lhe dar todo o espaço que precisar, ou seguir seus passos como a luz do sol sobre seus ombros, se você deixar. – Seus olhos se fixaram nos dela. – Perdi minha chance com você uma vez, Lizzie King, e isso não vai se repetir.
VINTE E SETE
Sentado em sua poltrona, Edward flanava numa nuvem de gim Beefeater; seu corpo estava tão entorpecido que ele conseguia manter uma fantasia de força e flexibilidade. Na verdade, conseguia imaginar que ficar de pé podia ser fácil, apenas uma mudança de localização descomplicada e inconsciente que necessitava de um pensamento fugidio e músculos nas coxas. Músculos esses que ficariam contentes – e seriam perfeitamente capazes – de executar tal tarefa.
No entanto, não estava embriagado o suficiente para tentar.
O som de uma batida à porta fez com que levantasse a cabeça.
Ora, ora, ora. Não estava preparado para aquela coisa de ficar na vertical, mas pelo menos a recém-chegada poderia lhe oferecer uma realidade alternativa para ele experimentar.
E ele não recusaria.
Com um grunhido, tentou ficar um pouco mais ereto na poltrona. Não conseguiria abrir a porta para a mulher e sentiu-se mal por isso. Um cavalheiro sempre deveria fazer tal gentileza a um membro do sexo frágil, e ele não se importava que a sua convidada fosse uma prostituta, uma mulher merecia ser tratada com respeito.
– Entre – disse em voz alta, mas arrastada. – Pode entrar.
A porta se abriu devagar… E o que viu do outro lado, bem debaixo da soleira, era…
O coração de Edward parou de bater. E depois começou a martelar.
– Eles acertaram – sussurrou. – Finalmente. Beau acertou em cheio.
A mulher piscou.
– Perdão – ela disse, rouca. – O que disse?
A voz era igualzinha. Como tinham conseguido acertar?
– Entre – ele respondeu, gesticulando com a mão que não segurava o copo. – Por favor.
E não tenha medo, ele pensou consigo.
Afinal, ele estava sentado no escuro, e a iluminação dos incontáveis troféus sobre as prateleiras não alcançavam seu rosto e seu corpo. O que era proposital, claro. Não gostava de olhar para si mesmo, não havia motivo para dificultar o trabalho da prostituta forçando-a a vê-lo com nitidez.
– Edward?
Em seu torpor ébrio, ele só conseguiu fechar os olhos e relaxar o corpo. Ficou duro num lugar bem crucial.
– A sua voz… é tão bela quanto nas minhas lembranças.
Não ouvia a voz de Sutton Smythe em pessoa desde antes da sua viagem e, depois que retornara, não foi capaz de ouvir quaisquer das suas mensagens.
A ponto de ter se livrado tanto do aparelho quanto daquele número.
– Ah, Edward…
Bom Deus, havia sofrimento naquela voz. Como se a mulher estivesse olhando para a sua alma e reagindo ao emaranhado de angústia que ele carregava desde que lhe informaram que ele sobreviveria.
E, de fato, era quase isso o que ouvia na voz de Sutton. Engraçado, durante seu período no cativeiro, desmaiara três vezes durante os oito dias em que o mantiveram preso. Todas as vezes, enquanto perdia a consciência, Sutton fora a última coisa em seus pensamentos, a última coisa a ver, a ouvir, a lamentar a perda. E não a sua família. Não o seu tão amado trabalho. Não a casa em que crescera, tampouco a fortuna e as coisas que deixaria inacabadas.
Sutton Smythe.
Na terceira vez, quando já não conseguia ver nada, quando já não sabia distinguir se era suor ou sangue em sua pele, quando a tortura o levara a um lugar onde o botão de sobrevivência fora desligado e ele já não rezava para ser resgatado, a não ser pela morte…
Sutton Smythe, uma vez mais, estivera em seus pensamentos.
– Edward…
– Não. – Levantou a mão. – Não diga mais nada.
A mulher estava se saindo tão bem. Não queria que continuasse e estragasse tudo.
– Venha aqui – sussurrou. – Quero tocar em você.
Abrindo os olhos, embeveceu-se com a aproximação dela. Ah, que vestido prateado perfeito, a barra arrastando pelo chão, as joias surpreendentemente de bom gosto reluzindo apesar de a luz estar atrás dela. E ela também trazia o mesmo tipo de bolsa de festa que Sutton sempre levava aos eventos formais, um quadrado forrado com seda da mesma cor do vestido – ainda que, como ela mesma dizia, “combinar tudo era tão anos cinquenta”.
– Edward?
Havia tanta confusão quanto um anseio em seu nome.
– Por favor – ele se viu implorando. – Não fale mais. Só quero tocar você. Por favor.
Enquanto o corpo dela tremia diante dele, Edward sentiu a realidade mudar e se permitiu seguir o ardil, acompanhando a fantasia de que aquela era de fato Sutton, que ela fora procurá-lo, e que, finalmente, ficariam juntos.
Mesmo ele estando arruinado.
Deus, isso bastava para deixá-lo emocionado. Mas não durou muito… porque ela tropeçou e seus olhos ficaram muito arregalados.
O que significava que tinha visto seu rosto.
– Não olhe para mim – disse ele. – Não sou mais o mesmo. É por isso que as luzes estão tão fracas.
Edward estendeu os braços e mostrou as mãos.
– Mas estas… não estão marcadas. E, ao contrário de outras partes, ainda funcionam muito bem. Me deixe… tocar você. Vou ser cuidadoso… mas você vai ter que se ajoelhar. Já não fico muito bem de pé, e tenho que confessar que estou embriagado.
A prostituta tremia dos pés à cabeça quando começou a se abaixar, e ele se sentou mais para a frente da poltrona, oferecendo-lhe o braço como se ela fosse uma dama saindo de um carro, em vez de uma trabalhadora permitindo que um aleijado fizesse sexo com ela por mil dólares.
Quando voltou a se recostar, uma súbita onda de vertigem o assolou, enquanto mais álcool bombeava em seu sistema. Como com todos os bêbados, contudo, ele sabia que era apenas algo temporário, que logo se autorregularia.
Ainda mais considerando tudo em que ele tinha que se concentrar: mesmo com a visão embaçada, mesmo com a penumbra, mesmo estando muito bêbado… estava maravilhado.
Ela era muito linda, quase linda demais para que ele a tocasse.
– Ah, olhe só para você… – sussurrou, esticando a mão para tocar seu rosto.
Os olhos dela reluziram de novo, ou, pelo menos, ele acreditou nisso; talvez estivesse apenas imaginando coisas por causa do modo como ela inspirou fundo. Era difícil saber, era complicado acompanhar o que estava acontecendo… A realidade estava muito distorcida agora, girando ao seu redor até ele não ter mais certeza se a prostituta se parecia mesmo com Sutton ou se era mera projeção dele, por causa dos cabelos negros e compridos, das sobrancelhas arqueadas, da boca perfeita, como a de Grace Kelly.
O cabelo da mulher estava solto, bem como havia solicitado, e ele passou as mãos pelas ondas até alcançar a curva do ombro.
– Seu cheiro é tão bom. Exatamente como eu me lembrava.
E logo ele tocou mais, os dedos viajando pela clavícula, sobre o colar de diamantes, descendo pela curva do decote. Em resposta, ela começou a arfar, o movimento dos pulmões aproximando seus seios das mãos dele.
– Adoro esse vestido – ele sussurrou.
O vestido de noite era bem ao estilo dos de Sutton: muito elegante, feito sob medida para o corpo dela, de chiffon tão cinzento quanto uma pomba.
Sentando-se mais para frente, aproximou seu peito diminuto do dela, que era magnífico, e passou as mãos para trás, a fim de encontrar o zíper embutido. Enquanto o abria, o som produzido pareceu-lhe alto demais.
Ele podia jurar que ela arfava como se a tivesse chocado. E foi… ah, tão perfeito. Exatamente o que Sutton teria feito.
E, em seguida, sim… ah, sim… a prostituta retribuiu a sua exploração, as mãos trêmulas subindo pelos seus braços finos. Deus, ele odiou todo aquele tremor por parte dela, mas, sem dúvida, devia ser difícil fazer sexo com ele.
Pelo menos como ele se encontrava agora.
– Eu queria ter feito isto antes – disse numa voz entrecortada. – No passado, valia a pena ver o meu corpo. Eu deveria ter… deveria ter tentado conquistá-la antes, mas era covarde demais. Era um covarde arrogante, mas a verdade é que eu poderia ter suportado qualquer coisa, menos uma recusa sua.
– Edward…
Interrompeu-a colando a boca na dela.
Ah, ela era boa. Tão boa quanto ele imaginava, a sensação da sua língua escorregando para dentro dela e a maneira como ela gemeu, como se tivesse esperado a vida toda pela oportunidade de fazê-lo se esquecer do que ele se tornara…
O vestido derreteu, escorrendo do corpo dela como se aquiescesse, como se estivesse reagindo para que tudo acontecesse mais rápido. E ele tirou vantagem da pele que agora estava à mostra, beijando uma trilha até os seios perfeitos, sugando os mamilos, ficando ganancioso muito rapidamente. Que Deus abençoasse o pobre coração daquela mulher, ela conseguia fingir tão bem, as mãos se perderam em seus cabelos como se ela o desejasse, como se ela estivesse trazendo-o para mais perto, mesmo ele não sendo o que ela deveria querer.
Tentou não ser rude, mas Deus, ficou tão excitado de repente.
– Suba no meu colo – grunhiu. – Você vai ter que subir no meu colo.
Era a única posição em que conseguia fazer sexo. Ainda mais por não querer sujeitar nenhum deles dois ao embaraço de ter que pedir ajuda para se levantar do chão, quando tudo tivesse terminado.
– Tem certeza? – ela perguntou, rouca. – Edward…
– Preciso ter você. Esperei tempo demais. Quase morri. Preciso disso.
Houve um segundo de pausa. Logo ela se moveu com admirável rapidez, levantando-se do chão, chutando o vestido, revelando… Ah, Jesus, ela estava com uma calcinha e nada mais, nada de meias de seda, nada de cinta-liga. E em vez de perder tempo tirando-a, ela a afastou de lado enquanto ele se confundia com o próprio cinto, impedindo que suas calças caíssem do quadril ossudo.
A despeito de todo o resto dele, que definhara, seu pênis ainda era grosso, comprido e rijo como antes, e ele ficou estranhamente grato por ser a única coisa que não era absolutamente humilhante para ele.
Empurrando os apoios de braço com as mãos, deslizou ainda mais para a frente, e ela se contorceu, montando nele com uma coordenação invejável.
A ereção dele a penetrou profundamente, e a firmeza com que ela o prendeu fez com que ele chegasse ao orgasmo de imediato. Mas isso não foi o mais incrível. Aparentemente, e por algum milagre, o mesmo aconteceu com ela.
Enquanto ela gritava seu nome, pareceu também chegar ao clímax.
Ou isso, ou ela não escutara seu chamado pois teria recebido o Oscar de melhor atriz.
Antes de perceber o que estava fazendo, Edward começou a se movimentar. Foi um movimento fraco, quase patético, mas ela seguiu, aquele primeiro orgasmo logo sendo eclipsado por outro ainda mais potente para ambos. Estremecendo, balançando, se retesando, ela se agarrou nele como se disso dependesse a sua vida, o cabelo cobrindo o dele, os seios pressionados contra ele, o corpo levando-o para uma viagem que ele nunca tinha experimentado.
O sexo pareceu durar para sempre.
Quando, por fim, tudo terminou, depois de um terceiro orgasmo, Edward se prostrou na poltrona e ofegou.
– Vou precisar de você de novo.
– Ah, Edward…
– Diga a Beau… semana que vem. Mesmo dia, mesmo horário.
– O quê?
Ele deixou a cabeça pender para o lado.
– O dinheiro está ali. Só você. Só quero você de novo.
De repente, provavelmente por ter se cansado mais nos vinte minutos do que nos doze meses anteriores, começou a se sentir fraco e, de fato, parecia apropriado que desmaiasse e deixasse que a prostituta saísse com tranquilidade.
Assim, ele conseguiria sustentar a fantasia por mais tempo.
– Mil… ao lado da porta – murmurou. – Pegue. A gorjeta…
Edward teve a intenção de dizer “A gorjeta vem depois, vou fazer com que alguém deixe com Beau mais tarde” ou algo do gênero. Mas a consciência era um luxo ao qual ele já não conseguia se dar… E se deixou cair no esquecimento.
Mais uma vez, pensando apenas em Sutton Smythe.
Sutton saiu cambaleando do chalé de Edward. Estava descalça, segurando os sapatos pelas tiras, mas ao contrário da sua outra caminhada pela grama ao redor do museu, as tábuas da varanda e os pedriscos machucaram suas solas.
Não que ela estivesse prestando atenção.
Ao partir para o Mercedes, ela era um misto de contradições; seu cérebro, uma confusão emaranhada. Mas seu corpo estava maleável e relaxado.
Edward pensou que ela fosse uma prostituta?
Por que outro motivo ele teria falado de dinheiro e de um homem chamado Beau? Semana que vem?
Ah, Deus, fizeram sexo…
Como chegaram àquilo? Como ela permitira que…
Bom Deus, o pobre rosto dele, o corpo…
Esses pensamentos entravam e saíam da sua cabeça, girando com alguma força centrífuga, tudo se revolvendo a não ser pelo fato de que Edward já não era mais o mesmo de antes. Sua linda aparência já não existia mais, as cicatrizes no rosto, sobre o nariz e na testa, deixavam virtualmente impossível reconstruir por lembranças a perfeição que antes existira ali.
Ela sabia que ele havia sido maltratado. Os noticiários e os artigos nos jornais foram suas únicas fontes de informação porque ele tinha se recusado a ver qualquer pessoa, e detalharam a duração da sua estada no hospital e da subsequente reabilitação. Esse tipo de tratamento longo não acontecia sem motivos trágicos. Mas vê-lo em pessoa fora um choque.
Antes do sequestro, ele era jogador de polo. Saltou com cavalos em apresentações. Correu. Jogou basquete, tênis e squash. Nadou. Edward fora um garoto dourado não apenas nos negócios, mas em todos os outros aspectos da sua vida, ele sempre se excedera em tudo.
Eu queria ter feito isso antes. No passado, valia a pena ver o meu corpo.
Sutton teve dificuldades para abrir a porta do carro, a mão escorregava como se ela estivesse tendo um ataque e seus dedos já não funcionassem direito. E quando, por fim, conseguiu abrir e entrar, ficou sem forças e deixou-se cair no assento.
Eu deveria ter tentado conquistá-la antes, mas era covarde demais. Era um covarde arrogante, mas a verdade é que eu poderia ter suportado qualquer coisa, menos uma recusa sua.
O que ele dissera? E para quem achou que estava dizendo? O coração dela se partiu com a ideia de que ele estivesse apaixonado por alguém daquela maneira.
Ele estava tão embriagado. Tanto que, antes de sair apressadamente, ela voltou para ver se o coração dele ainda estava batendo, se ele ainda estava respirando… Sim, porque a ideia de que talvez o tivesse matado por causa do que haviam…
– Bom Deus.
Como era possível que, depois de anos pensando nisso, eles, finalmente, tivessem feito sexo? E só porque ele acreditava que ela fosse uma prostituta cujos serviços ele encomendara em algum lugar?
Ah, não… Não tinham usado proteção.
Fabuloso. A reviravolta daquela noite toda era simplesmente fabulosa. Ainda mais porque, mesmo ele estando bêbado… mesmo ela estando meio fora do seu juízo completo… e apesar das condições físicas dele… o sexo tinha sido incrível. Talvez por causa de toda a imaginação acumulada, ou talvez fosse compatibilidade, ou quem sabe fosse apenas uma experiência única, do tipo que acontece quando certas estrelas estão alinhadas.
Independentemente dos motivos, ele tinha feito os poucos homens com quem ela estivera sumirem.
Impedindo que qualquer outro chegasse até ela, Sutton temeu.
Esticando o braço, procurou o botão de partida, e quando o motor roncou e os faróis se acenderam, ela entrou em pânico. Havia outras pessoas na propriedade – só podia haver –, e a última coisa que ela queria era ser pega em flagrante. Teria que encontrar uma maneira de lidar com a situação, e boatos se espalhando não faziam parte da sua estratégia, muito obrigada…
Neste mesmo instante, outro carro surgiu na alameda e, em vez de seguir para um dos estábulos ou construções externas, parou bem ao lado do seu.
A mulher que saiu era… alta, morena e usava um vestido longo.
E franziu o cenho ao ver o Mercedes.
Ela se aproximou.
Sutton abaixou o vidro. O que mais poderia fazer? Ao mesmo tempo, também começou a tatear à procura do câmbio, ou botão, ou sabe-se lá o que colocaria o sedã em marcha a ré.
– Pensei que eu estava escalada para esta noite – a mulher disse, num tom agradável.
– Eu… hum… – Enquanto gaguejava, sentiu-se corar. – Ah…
– Você é uma das garotas novas que Beau mencionou? Sou Delilah.
Sutton apertou a mão que lhe foi oferecida.
– Como tem passado?
– Ah, mas você parece tão chique! – A mulher sorriu. – Então, cuidou bem dele?
– Hum…
– Tudo bem se você cuidou. Às vezes essas coisas acontecem, e eu tenho outros dois chamados para esta noite. – Levantou a mão e puxou o que, no fim, era uma peruca. – Pelo menos me livro disto. Ele está bem?
– O que disse?
A mulher esfregou o cabelo loiro curto ao acenar na direção do chalé.
– Ele. Todas nós cuidamos dele, pobrezinho. Beau não nos diz quem é, mas deve ser alguém importante. É sempre tão generoso, e nos trata muito bem. É um caso bem triste, para falar a verdade.
– Sim. Muito triste.
– Bem, está na minha hora. Quer que eu avise Beau que está tudo bem?
– Hum…
– Fico com a semana que vem, então.
– Não – Sutton se ouviu dizer. – Ele me disse… o homem me disse que quer me ver de novo.
– Ah, ok, sem problemas. Eu aviso.
– Muito obrigada. Muito obrigada mesmo.
Talvez aquele fosse algum tipo de alucinação bizarra causada por uma febre.
Enquanto Sutton voltava a procurava a manopla, a prostituta se inclinou para baixo.
– Está procurando a ré?
– Ah, sim, estou.
– É essa aí na direita. Mexa-a para trás. Para baixo do drive e, para estacionar, você empurra até o fim.
– Obrigada. Que difícil.
– Um dos meus fregueses regulares tem esse mesmo modelo. É uma beleza! Dirija com cuidado.
Produzindo um som sem sentido, Sutton manobrou para trás com cuidado, ciente de que a mulher estava bem perto com aquela peruca morena na mão.
Seguindo na direção da estrada principal, resolveu que aquilo só podia ser resultado de um resfriado, de uma alucinação. A qualquer instante agora, ela despertaria…
Era isso.
Só podia ser.
Puxa vida, como foi que tudo foi acontecer?