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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


OS SETE MINUTOS / Irving Wallace
OS SETE MINUTOS / Irving Wallace

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

OS SETE MINUTOS

Primeira Parte

 

Lá pelas onze da manhã, o Sol já tinha saído, e agora as mulheres de Oakwood, na maioria donas-de-casa em trajes de Verão e quase todas ao volante dos próprios carros, convergiam para a zona comercial, a fazer compras.

No trânsito subitamente engarrafado, o Ford cupé verde de duas portas, bem amachucado no guarda-lamas da frente, viu-se afinal obrigado a reduzir a marcha.

Jogado com brusquidão contra o encosto do assento da direcção, Otto Kellog resmungou contrariado, endireitando-se logo para verificar, impaciente, onde estavam. Indignava-se com atrasos numa hora dessas, quando se sentia ansioso por resolver aquele assunto. Queria terminar em seguida com aquilo, o mais depressa possível.

Iverson, que guiava o carro, soltou um berro, travando com toda a força.

- Malditas mulheres - exclamou entre dentes.

- Pois é - concordou Kellog. - Oxalá que andem depressa.

No assento de trás, Eubank, o terceiro ocupante do cupé, mais velho, mais tolerante, exposto ao mundo exterior com menos frequência que os companheiros, parecia estar a gostar do intervalo. Aproximara-se do encosto da frente para espiar pelo pára-brisas, por cima do ombro de Iverson.

- Então isto é Oakwood - comentou. - Simpático. Não sei quantas vezes já passei por aqui, mas acho que, antes, nunca prestei muita atenção.

- Nada de maior - retrucou Iverson, levantando o pé do travão. - Continua a ser o Município de Los Angeles.

- Sim, mas parece mais próspero e sossegado - disse Eubank.

- Talvez não por muito tempo - disse Iverson. - Hoje vamos abalar um pouco este pessoal- olhou para Kellog e sorriu. - Como está, Otto? Pronto prà acção?

- Sim - respondeu Kellog -, desde que a gente chegue lá depressa.

Olhou de soslaio pelos óculos escuros.

- Third Street é a próxima. Volte à direita na outra esquina.

- Eu sei - disse Iverson.

O trânsito recomeçou a andar, mais livre, e o cupé verde avançou pelo Center Boulevard, voltando depois abruptamente para entrar na Third Street.

Na rua transversal, o número de carros e pedestres era menor. O homem do volante suspirou aliviado.

- É ali, no meio do quarteirão - anunciou. - Vejam o letreiro que vem depois de Acme, Joalheiros. Estão a ver? Empório de Livros Fremont. Que tal o nome? Empório.

- Parece que há bastante lugar para estacionar - disse Eubank. - Estava com medo de que não houvesse vaga por aqui perto.

- Sempre há lugar de sobra depois que a gente sai do Center Boulevard - declarou Iverson.

Girou as rodas do carro para o meio-fio até detê-lo com habilidade em frente à joalharia. Quando ia desligar o motor, viu uma garota loura de suéter e short apertados, parada diante do carro, pronta para atravessar a rua. Iverson soltou um assobio baixinho.

- Olá, pessoal, admirem bem aquelas tetas.

Seguiu a loura com os olhos, enquanto ela se apressava em alcançar a outra calçada.

- Até que o conjunto não é nada mau, mas para mim o que vale são as tetas. Gosto delas bem grandes e saltitantes.

Buscou apoio no companheiro de assento.

- E você, Otto?

De momento, Kellog não estava interessado na opinião do amigo sobre as mulheres. Habituado a ocupar-se com uma ideia de cada vez, já tinha o pensamento completamente tomado. A mão direita apalpou por dentro o paletó desportivo xadrez, tocando-o por baixo do braço esquerdo. Por fim, satisfeito, ergueu a cabeça, revelando tensão e seriedade no rosto afilado.

- Estou bem? - perguntou para Iverson, fechando o botão do meio do paletó e compondo o colarinho da camisa desportiva de gola aberta. - Não está a aparecer?

- Nem se nota - respondeu Iverson. - Você está com cara de parvo. Não, estou a brincar. Está óptimo, Otto... até parece um contabilista ou agente de seguros que reservou a manhã para fazer compras para a mulher.

- Assim seja.

- Não se preocupe.

- Que horas são?

- Onze... onze e catorze.

- É melhor eu ir já - virou-se para o assento de trás. - Tudo pronto aí, Tony?

- Tudo preparado para rodar.

Kellog voltou a sua atenção para o motorista.

- Não saia daqui, hem?

- Só arredo pé quando você mandar.

- Está bem - disse Kellog. - Não demoro mais que dez minutos.

Abriu a porta que ficava a seu lado, levantando-se firme do carro, fechou-a e permaneceu um instante imóvel na calçada, arranjando o paletó. Depois, com o ar mais natural, passou pela joalharia, aproximou-se da livraria, parando diante da entrada, e foi postar-se em frente da vitrina. No canto direito havia uma reprodução de Pégaso, tendo em baixo, com letra caprichada, cheia de arabescos, os dizeres: “Empório de Livros Ben Fremont, Fundado em 1947”. No canto oposto da mesma vitrina, preso com fita durex e à altura da vista, estava colado o anúncio de página inteira de jornal de um novo romance.

Kellog deslocou-se para perto do anúncio. Analisou o cabeçalho em negrito:

 

PREPAREM-SE PARA O ACONTECIMENTO EDITORIAL DA PRÓXIMA SEMANA!

Os olhos de Kellog percorreram rapidamente o resto do texto.

 

Após 35 anos de proibição, o romance mais injuriado e elogiado de todos os tempos - escrito por um americano expatriado - será finalmente entregue ao público.

 

É preciso ler:

“Nunca houve na história da literatura outra obra mais condenável do que esta.”

Osservatore Romano, Roma É preciso ler:

“O livro mais pornográfico que foi escrito depois que Gutenberg inventou a imprensa... Fascinante como revelação íntima, mas imperdoável como confissão pública.”

Le Figaro, Paris É preciso ler:

“Uma das obras de arte mais francas, sensíveis e ilustres criadas na moderna literatura ocidental.”

Sir Esmond Ingram, London Times

 

COM LEGITIMO ORGULHO A EDITORA SANFORD HOUSE OFERECE

A AMÉRICA E AO MUNDO

A VERSÃO ORIGINAL, SEM CORTES,

DE UM CLÁSSICO CLANDESTINO MODERNO

OS SETE MINUTOS de J J JADWAY

 

Kellog percebeu ainda que havia mais, mas não se deu ao trabalho de ler. Já tinha lido tudo no jornal de domingo.

Desviou o olhar para o que estava exposto na vitrina. Apesar de atulhada com três altas pirâmides de volumes, continha apenas um único livro, ostentando o mesmo título inconfundível. Cada exemplar apresentava sobrecapa branca, em cuja cobertura se via o desenho delicado da silhueta de uma mulher nua, deitada de costas, com os joelhos erguidos e bem abertos. Por cima, em letras vermelhas, imitando artisticamente uma caligrafia, vinha o título: Os Sete Minutos e, logo abaixo, “de J J Jadway”.

J, sem ponto, J, sem ponto, Jadway.

Pois é.

 

Kellog enfiou a mão direita no paletó, tacteou por baixo do braço, apalpou a frieza metálica e julgou chegado o momento oportuno.

Entrou depressa na loja. Era uma livraria clara, alegre, cheia de desordem. No centro da parte inferior havia mesas rectangulares, com pilhas de edições recentes. Parado junto da que ficava mais próxima, repleta de exemplares de Os Sete Minutos, Kellog examinou o ambiente. Viu duas pessoas ao fundo, pelo jeito fregueses: um senhor de idade a vasculhar as prateleiras sob um cartaz que indicava BROCHURAS e uma mulher baixa, provavelmente com os filhos, a ler títulos perto de uma tabuleta que dizia LIVROS INFANTIS. A curta distância de ambos, uma gorda, de avental, tirava volumes de uma caixa de papelão, colocando-os em cima de uma mesa.

Depois Kellog pressentiu outra pessoa no recinto. À esquerda, a uns cinco metros de onde se encontrava, as estantes formavam uma espécie de nicho na parede, cuja parte aberta era barricada por um balcão, sobre o qual havia uma caixa registadora e outra pilha de exemplares de Os Sete Minutos. Atrás, instalado num banquinho, folheando facturas, estava um homem de constituição magra que teria, no máximo, quarenta anos. Para compensar o cabelo ralo no topo do crânio, tinha hirsutas suíças castanhas. Usava óculos de lentes grossas, de aro metálico, que lhe desfiguravam os olhos. O nariz era em bico, o queixo prognato e a pele de um rosa descorado. Abotoara o suéter castanho nas casas trocadas.

Kellog nunca o tinha visto antes, mas Iverson sim, e dera-lhe a descrição completa.

Kellog suspendeu a respiração e dirigiu-se rigidamente à caixa registadora. Soltou o fôlego.

- Olá! - disse o agente de seguros, que reservara a manhã para fazer compras para a esposa.

O homem franzino e míope levantou os olhos, já com um sorriso preparado para agradar ao comprador.

- Bom dia - respondeu cortês. Desceu do banquinho, pondo as facturas de lado. - Tem algum livro em vista ou prefere dar uma olhadela por sua conta?

- Mr. Fremont, Ben Fremont... ele está?

- Sou eu.

- Ah, que bom encontrá-lo. Estava a procurar lembrar-me se tinha estado antes aqui alguma vez. Muito simpático. Eu devia arranjar mais tempo para a leitura, mas vivo ocupado de mais com esta vida de correr o tempo todo na rua. Lá em casa a leitora da família é a patroa. Compra sempre aqui na loja. Quero dizer, de vez em quando passa por aqui.

- Óptimo - disse Ben Fremont. - Então devo conhecê-la de nome...

- Não. Ela só vem uma vez por outra. Pois é. E eu não gosto que ela faça muita despesa. Sabe como são as mulheres.

- Claro, é lógico.

- Em todo o caso, vim cá a pedido dela. Parece que teve um ataque de cálculo renal. Agora passou; ela já está melhor mas ainda continua no Hospital São João e quer ler um pouco. A gente acaba por se cansar de assistir só à televisão.

- As pessoas estão a ler livros mais do que nunca, graças à televisão - concordou Fremont, muito sério. - Não há nada que se compare com a experiência de um bom livro, como decerto sua esposa sabe.

- Um bom livro - repetiu Kellog. - Sim, é isso que eu quero levar-lhe.

- Bem, olhe, nós temos algo para contentar todos os gostos. Se puder dar-me uma ideia...

Keilog aproximou-se mais do proprietário da livraria.

- A velha lê de tudo. Até sobre história. Mas a maior parte acho que é ficção, romances. Em todo o caso, para o hospital, não creio que precise ser profundo ou triste de mais. Talvez qualquer coisa rápida e fácil de ler, qualquer coisa que seja animada. E recente, tem que ser novidade, para eu não levar nada que ela já tenha lido emprestado. Ontem, à noite, eu perguntei o que é que ela gostaria... mas apenas respondeu: “Otto, faz-me uma surpresa. E se de facto não conseguires lembrar-te de nada, passa lá pelo Ben Fremont e vê o que ele aconselha.” Por isso eu vim.

- Ora, então, tenho a certeza de que se pode encontrar...

- Lógico - interrompeu Keilog, debruçando-se no balcão e baixando a voz -, não creio que ela se importe de que o livro tenha um pouco de realismo. Sabe como é, algo com um pouco de... ora...

- Ah, sim, claro, eu entendo.

- Não me leve a mal. Ela também gosta de coisa difícil, intelectual, mas divertiu-se a valer com o tal Lady Chatterley. Olhe, é este o tipo de assunto estimulante, de verdade mesmo, sabe o que quero dizer? E no entanto era um clássico, só que pelo menos não era uma chatice. Pois lá está ela no hospital e se tiver alguma coisa que seja quase tão boa e recém-publicada...

- Quase tão boa? - Fremont interessou-se logo. - No momento em que descreveu sua esposa, eu ia sugerir uma coisa. Olhe, tenho um livro recém-publicado, uma novidade óptima, que ainda nem foi lançado oficialmente e é dez vezes melhor que Lady Chatterley ou outro clássico no género. Talvez mil vezes melhor. Vivo repetindo isto a cada mulher que entra aqui na loja, e não é qualquer livro que eu recomendo. Daqui a duas semanas, sou capaz de apostar, todas as leitoras de Oakwood, de Los Angeles inteira, estarão encantadas com o livro. Fremont apanhou um volume na pilha ao lado da registadora. - Ei-lo. Ela está no hospital? Pois é exactamente o que o médico recomenda.

Kellog começou a tirar os óculos escuros.

- Que é que diz aqui na capa?

Fremont apontou o dedo para o título na sobrecapa.

- Os Sete Minutos, de J J Jadway. Isto é uma coisa que nenhuma mulher jamais há-de esquecer. Vai deixar sua esposa empolgada, totalmente empolgada... e, no entanto, tem valor literário.

- Ah, tem valor literário. Bom. Eu não sei, talvez não seja exactamente...

- Desculpe. Eu confundi-o com essa expressão. Só queria dizer que não é leitura de envergonhar quem está habituado a ler, uma leitora esclarecida como sua esposa. Muita gente, não sendo esclarecida, não passando de ignorante ou puritana, seria capaz de se indignar com o assunto. Mas quando se conhece a vida, só se pode gostar de um romance como este. Na minha opinião, qualquer obra de Cleland, D. H. Lawrence, Frank Harris, Henry Miller fica parecendo água com açúcar comparada a Jadway. Eles não sabem absolutamente nada de sexo, aliás, ninguém sabia, até que Jadway aparecesse. Foi ele quem inventou. Inventou pr'Os Sete Minutos, com a diferença de que é um assunto autêntico, que tem mais realidade do que tudo quanto já li.

- O senhor leu o livro?

- Duas vezes. A primeira em Paris. Na edição Étoile. Os franceses não queriam que fosse publicado em francês, e os Estados Unidos e a Grã-Bretanha não queriam que fosse publicado em inglês, de forma que só havia aquela pequena edição especial para turistas em Paris. Depois li esta primeira edição pública, a primeiríssima para o público em geral. Não viu o anúncio grande no jornal de domingo? O livro mais proibido de todos os tempos.

- Porque é que Os Sete Minutos foi assim tão proibido? - quis saber Kellog. - Por ser imoral? É esse o motivo?

Fremont franziu a cara.

- O livro foi proibido porque... sim, creio que se pode dizer que foi proibido em todos os países do mundo por ter sido considerado imoral. Até que um grande editor de Nova Iorque teve finalmente a coragem de afirmar: O mundo talvez já cresceu um pouco, ao menos certas pessoas, e já esteja na hora de publicá-lo... porque, seja qual for o epíteto que deram a este livro, imoral ou sei lá o quê, não impede que seja uma obra-prima.

- Como pode um livro ser imoral e, ao mesmo tempo, obra-prima?

- Este é. As duas coisas.

- O senhor considera-o imoral, Mr. Fremont?

- Quem sou eu para opinar? Trata-se apenas de uma palavra como outra qualquer. O que para muita gente é palavrão, outros acham bonito. Vá lá entender-se! Certas pessoas, a maioria talvez, dirão que é imoral, mas haverá uma porção que achará que vale a pena.

- Leitores esclarecidos, quer dizer.

- Exactamente. Que estão a lixar-se para a imoralidade se no fim for boa leitura que lhes dê novos esclarecimentos e compreensão da natureza humana.

- E este livro dá? - perguntou Kellog.

- Sem dúvida nenhuma.

- Apesar dessas proibições? O que é que ele tem? Quero dizer, de que se trata?

- Simples, simplíssimo, como toda a grande arte - respondeu Fremont. - Uma garota, uma moça, deitada na cama, pensando no amor. Em resumo é isto.

- Tanta celeuma só por causa disso? - estranhou Kellog. - Já estava quase a interessar-me, mas explicado desse modo... parece bem chato.

- Chato? Espere aí, ouça o resto. Eu disse que ela está deitada na cama, lógico, mas enquanto fica deitada está a copular, a copular mesmo. E durante o tempo todo ela fica deitada de costas, a pensar, e Jadway mostra à gente o que se passa na ideia dela a respeito do que lhe está a acontecer lá por baixo, e o que ela pensa dos outros homens que teve ou gostaria de ter tido. O modo de descrever... já dá para deixar a gente maluco.

Kellog sorriu.

- Agora melhorou muito. Parece mais plausível. E o senhor acha que é o tipo de coisa que minha mulher vai gostar?

Fremont retribuiu o sorriso.

- Ela nem vai ter tempo de se lembrar da pedra nos rins.

- Qual é o preço?

- Seis dólares e noventa e cinco cêntimos.

- Apre, é caro como burro. Um livrinho tão fino.

- A dinamite também se vende em pequenas embalagens- replicou Fremont. - Isto aqui é dinamite, garantido. O livro nem sequer estará à venda oficialmente antes da semana que vem. Nós recebemos as nossas encomendas aqui na Costa mais cedo e, por isso, tivemos de abrir os caixotes e expor logo os exemplares, devido à enorme procura depois do anúncio antecipado. Jadway já encabeça a nossa lista de mais vendidos.

- Pode embrulhar. O senhor convenceu-me. - Kellog puxou a carteira. - Tem troco para dez?

- Sem dúvida.

Kellog ficou aguardando enquanto Ben Fremont registava na caixa, lhe dava o troco e colocava a nota e o exemplar de Os Sete Minutos num saco de papel listrado.

- Desculpe a maçada - disse Kellog.

Fremont sorriu, entregando-lhe o saco listrado por cima do balcão.

- Gosto de compradores exigentes. E aprecio uma boa discussão. É bom para manter a forma. E não se preocupe com o livro. Vai até ajudar a convalescença de sua esposa, pode crer. Passe bem.

No momento em que se viu de novo na calçada, Kellog meteu a mão no paletó desportivo e desligou o botão da caixa debaixo do braço. Dirigiu-se rapidamente ao Ford coupê que o esperava, levantando ao mesmo tempo o saco de papel listrado acima da cabeça. Ike Iverson saltou imediatamente do carro, com um saco semelhante e apressou o passo para se encontrarem diante da joalharia.

- Como se saiu Eubank no banco de trás? - perguntou Kellog.

- O som estava perfeitamente nítido - respondeu Iverson. -Safa, como você se demorou lá dentro!

- Estas conversas literárias não são sopa - explicou Kellog, piscando o olho e sacudindo a compra. - Mas está no papo. Duncan vai ficar contente. Bom. Convém a gente comparar depressa.

Keltog tirou o seu exemplar de Os Sete Minutos do saco listrado. Abriu o livro, achou o papel solto nas primeiras páginas, apoiou a caneta e assinou-o cuidadosamente com as suas iniciais e a data. Quando terminou, Iverson estava a seu lado, segurando também um exemplar de Os Sete Minutos.

- Pronto? Então acabemos já com isto - disse Iverson. - Capa e título conferem, certo?

- Certo.

- Mesmo editor, data de publicação, direitos reservados, certo?

- Certo.

- Mesmo número de páginas impressas, certo?

- Exactamente, certo.

- Vamos comparar os trechos marcados no meu livro com as mesmas páginas do volume que você acaba de comprar.

- Está bem - concordou Kellog. Em poucos instantes, os dois compararam meia dúzia de páginas.

- Os mesmos - concluiu Iverson. - Bem, Otto, os livros são idênticos, confere?

- Confere.

- Acho melhor a gente fazer outra visita a Mr. Fremont.

- Pois é - disse Kellog, guardando de novo o exemplar no saco.

- Otto, não se esqueça de ligar o aparelho.

Kellog pôs a mão por dentro do paletó desportivo, apalpou o microfone do gravador portátil Fargo F-600 e comprimiu o botão.

- Já liguei.

Em passo animado e certo, voltaram ao Empório de Livros Fremont e entraram na loja.

Já no interior da livraria, Kellog viu que Ben Fremont continuava atrás do balcão, ao lado da registadora, ocupado em despejar uma coca-cola num copo grande de papel. Kellog tomou a dianteira, com Iverson no seu encalço.

Fremont acabava de aproximar o refrigerante dos lábios quando reconheceu Keilog.

- Oh!, olá, de novo por aqui...

- Mr. Fremont - disse Kellog -... o senhor é Ben Fremont, proprietário do Empório de Livros Fremont não é?

- Como assim? Claro que sou. O senhor bem sabe.

- Mr. Fremont, nós temos de nos apresentar oficialmente. Eu sou o sargento Kellog, funcionário do Departamento de Costumes da Delegacia Municipal de Los Angeles - mostrou o emblema e depois guardou-o no bolso. - O meu colega aqui é o agente Iverson, também do Departamento de Costumes da mesma Delegacia. O livreiro parecia atónito.

- Eu... eu não entendo - disse, deixando cair o copo e derramando a coca-cola no balcão. - Que aconteceu com...?

- Ben Fremont - continuou Kellog -, considere-se preso por infracção do 2º parágrafo do artigo 311 do Código Penal da Califórnia. O Código declara que toda a pessoa que se encarrega intencionalmente de distribuir qualquer matéria obscena comete uma contravenção. De acordo com a alínea a do parágrafo 2º, “obscenidade” significa que, para a pessoa média, aplicados os critérios da comunidade contemporânea, o principal atractivo da obra em questão, tomada em conjunto, é o interesse libidinoso. O que equivale a dizer que a obra ultrapassa os limites costumeiros de franqueza e é totalmente destituída de importância social compensatória. O Promotor Público acredita que o livro Os Sete Minutos de J J Jadway seria considerado obsceno se fosse levado aos tribunais, e por conseguinte o senhor está preso por vender tal livro.

Ben Fremont, boquiaberto, lívido, agarrou-se à beira do balcão, procurando encontrar palavras.

- Espere aí, ora esta, vocês não podem prender-me. Sou apenas um sujeito que vende livros. Existem milhares iguais a mim. Vocês não podem...

- Mr. Fremont - continuou Kellog -, considere-se preso, sem discussão. Para seu próprio bem, não crie complicações. Entregue-nos todas as facturas que a Sanford House lhe enviou pelos exemplares comprados deste livro. Precisamos de confiscar cada volume de Os Sete Minutos nas dependências da livraria e torná-los sob nossa custódia. Temos também de tirar aquele anúncio da vitrina, bem como qualquer outro material de publicidade referente à obra.

- E eu?

- Pensei que o senhor se lembrasse da maneira de proceder. Não faz mal. Estamos com o carro da Polícia lá fora. Terá de nos acompanhar para ser identificado na Delegacia de West Temple Street.

- Na Delegacia da Polícia? A propósito de quê... a propósito, que diabo, não sou nenhum criminoso!

Kellog ficou subitamente impaciente.

- Por vender uma obra obscena. O senhor mesmo não disse há dez ou quinze minutos...

Iverson adiantou-se à pressa, segurando Kellog pelo ombro.

- Um momento, Otto. Deixe-me explicar ao cavalheiro os direitos que lhe assistem - dirigiu-se ao livreiro. - Mr. Fremont, tudo o que o senhor disse antes de ser preso e tudo o que o senhor está dizendo agora está a ser registado por um rádio transmissor de que é portador o sargento Kellog e ligado a um gravador de fita magnética que se acha lá fora, no carro da Polícia. O senhor não precisava de ser notificado das suas prerrogativas antes da voz de prisão. Agora, que já se acha preso, cumpro o meu dever de adverti-lo de que não precisa de responder a nenhuma pergunta, que tem direito a permanecer calado, que tem direito à presença de um representante legal. Portanto, agora já sabe. Se quiser fazer alguma pergunta ou responder, é problema exclusivamente seu.

- Não direi mais palavra a nenhum de vocês dois! Que merda! - esbravejou Fremont. - Não direi nada antes de consultar o meu advogado!

- Pode telefonar-lhe - avisou Kellog, controlado. - Pode chamar o seu advogado e pedir que vá procurá-lo na sede da delegacia.

A fúria de Fremont desapareceu como por encanto, restando apenas medo.

- Eu... eu não tenho advogado. Quero dizer, nem sequer conheço um. Tenho só contabilista. Não passo de um...

- Bom, o tribunal pode nomear... - começou Kellog.

- Não, não, esperem - interrompeu Fremont. - Agora me lembrei. O representante da editora, o distribuidor local da Sanford House, quando me vendeu os livros disse-me... disse-me que se houvesse qualquer encrenca, era para o chamar no mesmo instante, porque eles iam defender o livro, e o filho de Sanford. o editor, intercederia, conseguindo representante legal para qualquer livreiro. Vou ligar para o distribuidor. Posso?

- Pode ligar para quem quiser- respondeu Kellog. - Mas ande depressa.

Fremont estendeu a mão para o telefone. Mas antes de discar o número, olhou fixamente para os dois agentes. Parecia que uma nova ideia lhe passara pela cabeça e reflectia sobre a conveniência de revelá-la. Resolveu falar.

- Escutem cá - disse, com voz trémula -, será que vocês sabem o que estão a fazer? Pensam que não é nada, não é? Que estão só a prender um pobre livreiro anónimo e que a coisa vai ficar por isso mesmo. Pois talvez se enganem. Sabem o que estão realmente a fazer? Prendendo um escritor já falecido e o livro dele... prendendo um livro. Algo que um homem tinha que dizer. Estão a prender e a tomar as impressões digitais de uma liberdade, uma das nossas liberdades democráticas, e se julgam que não é nada, então esperem para ver o que vai acontecer...

 

Foi no percurso do Wilshire Boulevard, a meio caminho entre a banca de advocacia em Beverly Hills, que acabava de deixar para sempre, e o seu apartamento de três peças, em Brentwood, que a compreensão absoluta do que havia acontecido atingiu Mike Barrett com impacto total.

Depois de todos aqueles anos de lutas, libertara-se.

Lograra a independência económica. Estava feito.

Pelo rabo do olho. podia ver a caixa de papelão a seu lado no assento. Uma hora antes, enchera-a de documentos e objectos pessoais acumulados na escrivaninha de nogueira da firma - a escrivaninha que lhe servira de mesa de trabalho durante dois anos de serviço. O conteúdo da caixa, de certo modo, representava o saldo de uma carreira legal decepcionante, frustrada e de segunda categoria, abrangendo uma década dos seus trinta e seis anos de vida. A própria caixa, o simples acto de trazê-la, simbolizava uma vitória que (na mais negra das noites insones e de ódio de si mesmo) tinha quase perdido as esperanças de algum dia obter.

Aquilo pedia comemoração, desfile triunfal, um arco - ao menos uma grinalda. Pois nada disso lhe faltava - estavam ali presentes, na imaginação e no coração. Mas mesmo assim, requeria algum festejo exterior de independência ganha e êxito conseguido. Mantendo firme o volante do carro, com a mão livre desfez o nó da gravata e arrancou-a do pescoço. A seguir, o colarinho da camisa. Desabotoou-o, abrindo bem as pontas. Sem gravata, em plena hora de almoço de um dia de trabalho. Crime de lesa majestade no reino da Ordem dos Advogados Americanos, a não ser que se seja a própria majestade. Então lembrou-se da frase latina: Rex non potes peccare. Ao rei tudo é permitido.

Deus, que dia lindo. O sol, que beleza. A Cidade dos Anjos, que beleza. O povo nas ruas, seus vassalos, que beleza. Osborn Enterprises, Inc., que beleza. Faye Osborn, que beleza. Todos os amigos, que bei... Não, talvez nem todos... não Abe Zelkin. Abe, que beleza, sim, a amizade de ambos, sim, isso também, excepto que possivelmente já não existiria dentro de algumas horas. Sentiu-se culpado, e uma súbita mancha empanou o rosto da alegria.

Deu-se conta de que Westwood passava do lado de fora do seu Pontiac descapotável, de capota baixa, e de que havia gente nas ruas, as calçadas estavam apinhadas, mas não eram seus súbditos, aplaudindo-o neste grande dia. Eram Abe Zelkin, recriminando-o pela traição.

O Honesto Abe. Que diabo, quem necessita de consciência incómoda quando tem um amigo como o Honesto Abe?

No entanto, por incrível que pareça, a verdade é que fora Abe Zelkin quem plantara a semente que hoje frutificava, a cisão entre Zelkin & Barrett, a união de Osborn & Barrett. Buscou na lembrança as origens, reavivando-as aos poucos, para completar o sumário antes de pleitear o seu caso perante Zelkin, à hora do almoço.

Onde começara tudo? Na Universidade de Harvard? Não. Lá tinha sido a amizade com Phil Sanford, ao ocuparem o mesmo quarto. Não, em Harvard não, mas algum tempo depois, em Nova Iorque. Não naquele escritório jurídico imenso, mais semelhante a uma fábrica, onde se iniciara, porque não gostava daquela firma, ainda estava interessado em defender os direitos humanos e não os direitos de propriedade, em retrospecto um imaturo idealista, obtuso rústico forense, com uma mecha de cabelo em vez de cérebro. Fora no lugar subsequente, aquela estufa para flores geradas pela jurisprudência, o Instituto de Utilidade Pública, em Park Avenue, onde o seu salário consistia em remendos de cotovelo para paletós puídos e citações de Cardozo e Holmes sobre a alta finalidade da lei. O Instituto de Utilidade Pública, fundação mantida por vinte grandes corporações industriais como lenitivo para as suas consciências pesadas, onde cada causa decorria da superabundância da União das Liberdades Civis Americanas e onde cada constituinte era o eterno oprimido. Seis anos daquilo, de vida apertada, porque você achava que estava a corrigir alguns males e muitos erros, iludido na ideia de que eram os verdadeiros inimigos, até aprender que não passavam de moinhos de vento artificiais para o conservar entretido em montar um espectáculo de relações públicas para os fundadores do Instituto. Seis anos para descobrir a identidade dos verdadeiros inimigos, para descobrir que o seu trabalho era uma fraude, que a benemerência era um embuste. Seis anos para descobrir a verdade sobre o modo de ser manipulado pelos poderosos. Quando ele e Abe Zelkin finalmente descobriram, retiraram-se da firma.

Tinham-se demitido com um mês de intervalo entre si. Barrett foi o primeiro. O seu desencanto com o Instituto atingiu o auge quando a mãe morreu. Verificou que o novo medicamento administrado para a salvar apressara-lhe realmente a morte. E, como possuía faro canino, não tardou em tomar conhecimento de outras mortes prematuras de anemia aplástica, um efeito secundário ocasionado por esse mesmo medicamento. Indignado, Barrett preparou o esquema de caso legal, encontrou um reclamante adequado e finalmente apresentou um memorando ao director-administrativo do Instituto. Nele acusava um dos laboratórios farmacêuticos mais famosos da América, solicitando fundos para uma investigação exaustiva e insistia, se porventura os resultados confirmassem as suas suspeitas, em processar legalmente a fábrica de remédios ou marcar audiência perante a Administração Federal de Comestíveis e Medicamentos. Estava certo de que seria encorajado a prosseguir.

Finalmente o director do Instituto mandou chamar Barrett para uma entrevista particular. O director falou e Barrett ouviu, assombrado. O seu pedido para se iniciar uma investigação, a ser continuada por acção judicial ou audiência, fora rejeitado pela junta administrativa. As provas tinham sido consideradas demasiado inconsistentes e, ademais - oh, ademais, simplesmente não era a espécie de caso bem definido em que o Instituto desejasse ver-se envolvido. A incredulidade e espanto de Barrett duraram apenas quarenta e oito horas. Por fim, após discretas averiguações, descobriu a verdade. Um dos grandes patrocinadores e principais contribuintes do Instituto era o próprio laboratório farmacêutico que tentara denunciar.

No dia seguinte, Mike Barrett pedia a demissão do quadro de funcionários do Instituto de Utilidade Pública.

Abe Zelkin, que sofrera decepção semelhante, demitia-se pouco tempo depois.

E então cada um deles tivera de fazer a sua escolha. Barrett lembrava-se perfeitamente. Zelkin foi o primeiro: mudou-se para a Califórnia, sendo admitido na Ordem, e ocupando um cargo na sucursal de Los Angeles da União de Liberdades Civis Americanas.

Barrett, porém, tornara-se cínico de mais pelas realidades da vida, para seguir o exemplo de Zelkin. De modo que optou por algo bastante diverso. Quando não se pode lutar, a gente alia-se. Aliou-se ao mundo do poder, dos grandes negócios, das grandes administrações. Se queria continuar como benemérito, iria concentrar-se em praticar o bem de uma só pessoa: ele mesmo. O nome do jogo dos adultos era “dinheiro”. Também seria adulto. Significava dizer adeus a todos os salários de oito mil dólares anuais e às gratificações de seja-fiel-a-si-mesmo. E dar boas-vindas a uma nova vida de dezoito mil dólares anuais e a um objectivo diferente, que era: tornar-se, por todos os meios - por osmose, por prática, por associação - um dos Tais, um dos poderosos.

A vida nova começou com um cargo de sócio secundário de uma vasta banca de advocacia na Madison Avenue - uma colmeia de quarenta advogados - especialistas em tratar de sociedades anónimas. Tinham sido dois anos tediosos. O trabalho era técnico, pesado, monótono. Raramente encontrava oportunidade de falar com um constituinte e nunca entrara numa sala de tribunal, a arena que tanto apreciara em seus dias de Instituto. Esperavam que aplicasse as suas horas livres em participar de actividades cívicas e culturais nova-iorquinas. como prescreviam os decanos da firma. As oportunidades de progresso económico significativo eram escassas. E como se sentia miserável, irrequieto e mal-humorado, levava também uma vida social limitada e pobre. Tivera duas relações amorosas, a primeira com uma bonita morena divorciada, a segunda com uma ruiva inteligente, manequim de modas, e embora ambas houvessem sido fisicamente satisfatórias, não o satisfizeram em nenhum outro sentido. Como se entediava consigo mesmo, entediava-se também na companhia alheia.

A sua situação começou a ficar mais clara. Tentara passar para o outro lado - para parar de os combater, para se aliar a eles - para se transformar num deles. Ah, eles acolhiam cada Fausto de braços abertos, aliciando com deslumbrantes promessas, permitindo que todos comessem brioches em lugar de pão - e depois designavam-nos para trabalhos forçados na masmorra da lei das sociedades anónimas, consolidações de empresas e arrecadações de impostos; e jogavam a chave longe. Sim, ficou mais clara. Podia servir os poderosos, mas não era fácil aliar-se a eles-porque não havia lugar suficiente lá em cima. porque alguém tinha de os servir e porque a magia que irradiavam era realmente inassimilável. Ou pelo menos assim parecia a Barrett, no auge do desespero, naquela época.

Precisava de uma mudança drástica e, um dia, a possibilidade de mudar apresentou-se. Numa das cartas que lhe escrevia mensalmente, Abe Zelkin mencionou os vários cargos bem remunerados que se ofereciam a advogados hábeis e experientes em Los Angeles. O próprio Zelkin recebera diversas propostas, sem aceitar nenhuma, embora reconhecesse que uma ou duas tinham sido magníficas e até fascinantes. A sedução da Califórnia, a partir de então, cresceu na imaginação de Barrett e, pouco tempo depois, tomava a decisão e fazia as malas.

Aprovado no exame da Ordem da Califórnia, em questão de meses encontrava-se instalado num pequeno, mas esplendidamente decorado gabinete, como um dos catorze advogados que trabalhavam para o êxito da firma de administração de empresas de Thayer e Turner, em Rodeo Drive, Beverly Hills. Todos os clientes eram célebres ou ricos, ou as duas coisas juntas, e a proximidade do êxito mais uma vez deixou Barrett com esperanças de ganhar dinheiro a rodo. Contudo, depois de quase dois anos de trabalho duro, extenuante, no seu escritório, na biblioteca legal da firma, nos tribunais e nos gabinetes de constituintes opulentos - durante os quais se especializou gradativamente em leis de arrecadação tributária, Barrett chegou, aos poucos, à conclusão de que não pertencia ao número dos que estavam marcados para vencer na vida.

Possuía vários predicados e mostrava-se friamente objectivo sobre eles. Não era bonito na acepção clássica do termo, certo, mas tinha um rosto másculo, rude. Descendente de polacos, irlandeses e galeses, tinha a cara áspera, marcada apenas por rugas severas, leves resquícios de cenhos franzidos e olhos espremidos, frutos de pessimismo e desenganos (como os de um ágil pugilista meio-pesado, ligeiramente envelhecido, que começasse a ser esmurrado com maior frequência e ainda estivesse nas semifinais). O cabelo era preto, emaranhado e fosco, os olhos inquietos e errantes, o nariz curto e recto, as faces cavas, o queixo quadrado. Media pouco menos de metro e oitenta, com ombros flexíveis e caídos, o corpo rijo de um nadador. De aspecto descontraído, negligente e despreocupado, representava a própria imagem da indolência, mas. como todo o homem, sabia que havia outro por dentro: alerta, tenso, agachado, um corredor à espera do tiro de partida. Só que o tiro nunca vinha.

 

No trabalho, Barrett era sério, esforçado, calmo, perseverante. Quando queria, sabia ser simpático (quando não carrancudo), pois era dotado de razoável senso do ridículo e com forte tendência para o humor sardónico, além de ter um instinto infalível para perceber as reacções alheias e compreender os móveis dos seus comportamentos. Falava com facilidade e fluência, se o assunto lhe interessava, o que já não acontecia com frequência. Em matéria de cultura, ultrapassava o nível do leitor comum de Sir William Blackstone. Pretendera formar-se em literatura inglesa, mas também se inclinava para o lado prático, e o direito oferecia horizonte mais amplo. Aliás, possuía duas qualidades raras, de grande utilidade no exercício da profissão jurídica. A primeira consistia numa memória quase anormal. A exemplo de predecessores mais ilustres, como o rabino Elias, da Lituânia, que decorou o texto completo de dois mil e quinhentos volumes eruditos, inclusive o Talmude e a Bíblia, e o Cardeal Mezzofanti, conservador da Biblioteca do Vaticano no século XIX, que aprendeu 186 idiomas e setenta e dois dialectos, o ofho de Barrett parecia uma câmara escura, captando para sempre o sagrado e o profano, o importante e o trivial, e registando-os no cérebro, guardados ali para referência e lembrança imediatas. Podia, se lhe pedissem, recitar a maior parte do Código de Hamurabi, a sentença de Dred Scott, o testamento de Shakespeare e o epitáfio de Sir John Strange (“Aqui jaz um advogado honesto, o que não deixa de ser estranho”) ('). A segunda qualidade era um espírito ávido, ardiloso, que apreciava mistérios, charadas, jogos, todos os fenómenos inextricáveis de Charles Fort. Sabia-se talhado para a profissão jurídica e sentia-se estimulado pela promessa de reptos imprevistos. Comparada ao direito, a literatura servia apenas de derivativo, um degelo do passado.

No entanto, embora os predicados superficiais fossem evidentes, as carências ocultas, ou certas deficiências, também o eram, sem discussão, sem sombra de dúvida, sobretudo quando reflectia, a esse respeito, às três da madrugada. Ele tinha talento para as funções que exercia, faltava-lhe, porém, agressividade económica e social. Apesar de criativo, não sabia impor-se com a autopromoção suficiente para reclamar os louros que lhe eram devidos. Tinha excesso de solicitude e inteligência, talvez até em detrimento próprio, para se definir publicamente como pessoa ou no papel que desempenhava. Nem extrovertido nem introvertido, mas ambivertido, revelava-se ao mesmo tempo intrépido e empreendedor, indeciso e retraído. Presumia que a queda que sofrera da sua árvore genealógica o deixara com a vaidade ferida.

Barrett duvidava de que os decanos da firma, Thayer & Turner, alguma vez o tivessem considerado como personalidade notável, como indivíduo insubstituível. E o pior - sim, o pior de tudo, o seu segredo íntimo - era que não acreditava no que fazia. Não acreditava que fosse importante (além do sustento confortável que lhe proporcionava), e, secreta ou não, essa ausência de compromisso talvez houvesse sido captada pelos radares invisíveis dos empregadores. Era como se - ora, que inferno, como se Henry David Thoreau tivesse, finalmente, aceite um emprego de advogado em questões fiscais. Era exactamente isso. Assim mesmo.

Chegara à conclusão, há alguns meses, de que se achava num beco sem saída. O trabalho tornara-se tão cansativo e rotineiro como acordar todas as manhãs, e Los Angeles era, como alguma alma gémea certa vez definira, apenas uma maldita sequência ininterrupta de dias bonitos. Em desespero de causa, passou até quatro sessões consecutivas de cinquenta minutos cada uma no divã de um psicanalista, sem conseguir dissipar a sensação de futilidade. Não estava interessado em discutir a mãe e o pai já falecidos, nem tão-pouco esmiuçar o Id e o Ego feridos, e cancelou a quinta hora marcada.

Depois, da noite para o dia, como se o nevoeiro se houvesse desfeito para revelar um pote de esperança na ponta de um arco-íris, ocorreu um pequeno milagre. E, ao cabo de poucas semanas, surgiu uma revelação mais espantosa, um milagre ainda maior, e o pote de esperança transformou-se em mina de ouro.

O primeiro, a esperança, viera de Abe Zelkin. A essa altura, Zelkin já era elemento conhecido na comunidade local, com relações influentes, tendo decidido demitir-se da União de Liberdades Civis Americanas e abrir escritório por conta própria em Los Angeles. Havia promessa certa de constituintes, o tipo de constituintes como Scopes e Vanzetti com que ele e Barrett outrora sonhavam, e casos que enriqueceriam suas vidas, embora não as carteiras, oportunidades importantes e inacabáveis de enfrentar a injustiça, a impiedade e a intolerância. Para abrir escritório, Zelkin precisava de um sócio. E escolheu Barrett.

 

A oferta para voltar a ser jovem, fazer boas obras, encher cada dia de significado empolgara Barrett. Seria independente. Estaria vivo. Ajudaria o próximo. Teria tudo - menos o que durante tanto tempo julgara prezar acima de tudo: a riqueza, que também se traduz por poder.

Barrett mostrou-se interessado, muito interessado, mas ficou hesitante. Precisava de reflectir. Não queria mais dar passos em falso e não podia enganar-se. No entanto, sim. a ideia de Zelkin & Barrett era boa. Zelkin & Barrett, Consultores Jurídicos, Especialistas em Idealismo - não custava tentar. Zelkin disse-lhe que não havia pressa, porque devia ainda liquidar uma série de causas. Quando estivessem solucionadas, perguntaria a Barrett de novo, e se Barrett aceitasse, mandariam fazer a plaquinha.

Este foi o pote de esperança de Zelkin. E quatro semanas depois, como uma visão inesperada, surgiu a mina de ouro de Osborn. Só então Barrett percebeu que triunfara finalmente.

Com surpresa, acordou das lembranças do seu passado recente, para descobrir que virara automaticamente a esquina do Wilshire Boulevard e entrara no San Vicente Boulevard, estando já quase em casa. Na Barrington Avenue, dirigiu o descapotável, rumo ao Torcello (o proprietário jamais conseguira esquecer aquela lua-de-mel na Itália), o prédio de seis andares construído ao redor de um pátio espanhol com piscina, onde tinha alugado um apartamento de três peças depois do primeiro ano em Los Angeles.

Chegando ao prédio, Barrett desviou o carro para a cavernosa abertura ao lado do caminho de entrada e desceu à garagem subterrânea. Faltava ainda uma hora para o encontro com Abe Zelkin. Dava tempo de sobra para tomar outro banho, vestir um fato mais leve e ensaiar o que pretendia dizer a Zelkin.

Desceu do carro, abaixou-se e tirou a pesada caixa de papelão que continha o seu passado e, com passo rápido, encaminhou-se para o elevador. Viu-se levado suavemente ao terceiro andar do Torcello. Cruzou o corredor, abriu a porta do seu apartamento, guardou a caixa num canto escuro do armário de hóspedes e depois ligou para a telefonista.

As persianas da sala estavam fechadas para não entrar sol, formando um ambiente agradável. O quarto parecia menos seu e menos confortável do que já fora, embora tivesse de reconhecer que ficara mais elegante. Por obra de Faye. Como tantas mulheres ricas com tempo para perder, dedicava-se à decoração de interiores. Quando pusera os olhos pela primeira vez naquele apartamento mobilado, estremecera. “O gosto que estes senhorios têm. Que nome deram a este estilo? San Fernando Valley primitivo?” Não tardou muito, o sofá sem graça, almofadado, do proprietário, foi substituído pela reprodução cara de um austero Chippendale com encosto que lembrava o dorso de um camelo. As paredes também foram revestidas de sisalt a iluminação ficou indirecta, e uma escrivaninha de tampo corrediço dos últimos anos da era vitoriana, junto com uma cadeira rústica francesa, de nogueira e bambu, dominavam um recanto. Depois da primeira investida, a invasão do bom gosto continuara. Sujeitara-se a uma mesa de café de vidro-e-aço, baixa de mais para ter qualquer espécie de utilidade, a não ser como um objecto propício a esfolar-lhe as canelas e terminar de acordá-lo por completo de manhã. Em data mais recente, o telefone, de maneira totalmente inconveniente, sumira-se da vista, dissimulado por um escrínio de madeira entalhada que a Alameda dos Decoradores do Robertson Boulevard conseguira importar da Swiss Village em Paris. Em cima do escrínio havia um abajur e duas frágeis figurinhas de Limoges. Sempre que ficava sozinho, Barrett invertia a posição das estatuetas e do telefone.

Tirando o telefone do escrínio, Barrett substituiu-o pelas estatuetas, deixando-o encostado ao braço redondo do sofá, e discou para a telefonista da portaria.

- É Mike Barrett. Alguém ligou para mim?

- Ah, ainda bem que o senhor chegou. Mr. Barrett. Houve dois telefonemas interurbanos, urgentes, na última meia hora. Ambos da mesma pessoa. Um tal Mr. Philip Sanford, de Nova Iorque, Ele queria que o senhor ligasse para lá assim que chegasse. Deixou o número do escritório e o da residência.

- Vejamos. São apenas três e vinte em Nova Iorque. Experimente o do escritório.

Levantando-se do sofá, despindo a camisa e atirando-a de lado, foi preparar um sumo de frutas na pequena cozinha. Enquanto enchia o copo, pôs-se a pensar em Phil Sanford. Estranhava duas coisas nos dois telefonemas consecutivos. Sanford passava muito tempo sem comunicar com ele, e quando o chamava, poucas vezes por ano, era sempre à noite. Além disso, as ligações eram sempre despreocupadas, sem pressa: a necessidade de um amigo solitário de estabelecer contacto numa reafirmação de amizade. O pobre Sanford contava com um mínimo de carinho da mulher e absolutamente nenhum do pai tirânico. Mas os telefonemas desta manhã, pelo visto, não tinham sido por cortesia social. Diziam-se urgentes. E agora Barrett perguntava-se porquê.

Tomando o sumo de frutas, Barrett pensou no velho amigo e na amizade que os unia, amizade mais antiga, mas menos agradável do que a que tinha por Abe Zelkin. Depois de Harvard, quando tanto ele como Philip Sanford tinham ido para Nova Iorque, ele para se transformar num benemérito desiludido, Sanford para se dedicar à famosa editora paterna, os dois ex-colegas de quarto costumavam encontrar-se com regularidade. Não só simpatizava com Phil como lhe devia muitos favores, por tudo que fizera durante o ano em que Barrett passara dificuldades com a mãe. Mesmo após o casamento de Phil Sanford, Barrett continuou a ver o amigo uma vez por semana, quando almoçavam juntos no Baroque Restaurant ou iam assistir, ocasionalmente, a algum acontecimento desportivo no Madison Square Garden. Mudando-se para a Califórnia, Barrett, desde então, encontrara-se com Sanford apenas meia dúzia de vezes. Essas ocasiões não lhe haviam causado nenhum prazer. Phil Sanford parecia sempre taciturno quando falava sobre a mulher e os dois filhos. Mostrava-se desalentado com a Sanford House, que o pai dirigia com mão de ferro.

Mas a última vez que Barrett conversara com Phil Sanford, há apenas três meses, mais ou menos, quando tivera de tomar o avião para Nova Iorque para tratar de um negócio urgente e os dois tinham jantado juntos no Salão de Carvalho, no Plaza, o encontro tornara-se mais alegre do que de costume. A vida de Sanford mudara radicalmente nos meses que antecederam essa reunião com Barrett. Pela primeira vez, viera-lhe uma oportunidade de provar o seu valor. Embora estivesse cheio de angústias, estava também cheio de entusiasmo.

Aquele gigante da publicidade, Wesley R. Sanford, pai de Philip, fora vitimado por um ataque súbito. Embora não houvesse sido violento, servira de advertência suficientemente forte para o obrigar a aposentar-se. Aos olhos do colosso grisalho abatido, a Sanford House, por tanto tempo descobridora e incentivadora de escritores agraciados com o Prémio Nobel de literatura, com o Prémio Pulitzer, o Prix Goncourt, era agora uma editora acéfala. Phil Sanford, o único herdeiro, fora sempre tratado com condescendência, e até desdém, pelo poderoso pai. Era como se o gigante que se fizera por si mesmo sempre houvesse sabido que não poderia engendrar outro à própria imagem e semelhança. Considerava o filho como um pigmeu, pusilânime e incompetente, um fracasso total. Essa fora a Cruz de Phil, e o facto de ter sofrido semelhante tratamento durante tanto tempo sem tomar a iniciativa de se estabelecer por conta própria acabara por contagiar a esposa, que também passara a considerá-lo pusilânime e covarde.

O rumor de que Wesley R. Sanford deixara um próspero negócio editorial, sem herdeiro satisfatório, espalhou-se rapidamente pelos círculos editoriais até chegar aos ouvidos de Wall Street. Grandes complexos de comunicações, conglomerados em busca da diversificação dos seus valores mobiliários, mostraram interesse em comprar a firma, com o seu valioso acervo de autores e nome de prestígio. Restabelecendo-se apenas em parte do ataque, Wesley R. Sanford, segundo se dizia, estava disposto a vendê-la. Foi então que o filho se aproximou da cabeceira do pai e, pela primeira vez, implorou uma oportunidade. Seja porque a doença privara o gigante convalescente de firmeza de ânimo ou seja porque estivera à espera de que o herdeiro fizesse um apelo desse género e ficara impressionado. Wesley R. Sanford prometeu, em termos ásperos, conceder a oportunidade pedida.

Philip Sanford recebeu dois anos de prazo para provar que era editor capaz e independente. Se nesse período mantivesse a firma solvente, conservando e expandindo o seu prestígio, ela continuaria pertencendo à família, com Philip no cargo de presidente e eventual proprietário. No entanto, se a sua orientação se manifestasse defeituosa, seria destituído da directoria, e a casa editora vendida por completo, inclusive o acervo existente, a uma das indústrias de comunicações que a cobiçavam.

Desacostumado de tomar decisões e impor autoridade, Philip Sanford começou mal. Dos vinte livros iniciais publicados sob a sua direcção no primeiro ano, a maioria foi um fracasso, e o resto apenas deu para cobrir as despesas ou render um lucro irrisório. Nenhum podia alegar qualquer mérito nem figurar na lista dos mais vendidos. Nenhum provocaria uma grande venda subsidiária capaz de atrair os clubes literários ou as reedições de bolso. Finalmente, com a coragem oriunda do puro desespero, Philip Sanford fez um esforço para fugir à sombra paterna e tornar-se dono do próprio nariz. Resolveu publicar o que lhe agradava e não o que julgava que o pai publicaria. Adquiriu os direitos de um romance que lera e admirara durante uma travessia marítima entre Le Havre e Nova Iorque, um livro que nunca tinha recebido licença para ser publicado abertamente em qualquer nação de língua inglesa no mundo. Era uma obra chamada Os Sete Minutos e da publicação e êxito desse romance dependia todo o futuro de Philip Sanford.

Quando Barrett jantara em sua companhia em Nova Iorque aquela última vez, Sanford mostrara-se maníaco sobre as possibilidades do livro. Pela primeira vez na história da literatura moderna, insistia, havia clima propício à aparição de tal obra. Um mundo ocidental que finalmente aceitara O Amante de Lady Chatterley e Fanny Hill estava suficientemente maduro para aceitar Os Sete Minutos. O livro já se achava no prelo. O interesse das livrarias crescia cada vez mais. Prometia ser um êxito louco. E então Sanford teria a sua casa editora, o seu refúgio, o seu futuro e seria, enfim, dono do próprio nariz. A maior parte da noitada fora consagrada a discutir a sobrevivência de Phil. Só nos últimos dez minutos é que se interessou pela vida de Barrett. Queixara-se da carreira rastejante que tinha com Thayer & Turner. E mencionara como únicos paliativos a proposta de Abe Zelkin e a afeição que sentia pela filha de Willard Osborn.

E agora, de repente. Philip Sanford queria falar-lhe urgentemente. Levando em conta o que sabia da vida de Sanford, que poderia haver de urgente que lhe pudesse dizer respeito?

O telefone a seu lado começou a tocar.

Tirou-o do descanso.

- Alô?

- Mike? - era a voz de Sanford. Nenhuma secretária ocupara antes a linha, o que indicava urgência. - É você. Mike?

- Quem mais havia de ser? Como vai, Phil? Desculpe por não me ter encontrado. Cheguei mesmo agora. Como vão as coisas?

- Se você se refere à família, tudo na mesma, como sempre. Trata-se de algo diferente. É assunto de negócios. Mike. Não imagina o meu alívio por ter ligado em seguida.

Barrett notou logo o tom da voz de Sanford: nervoso, aflito.

- Você dá-me a impressão de que aconteceu qualquer coisa de grave. Se houver algo que eu possa...

- Pode, sim. Você pode ajudar-me.

- Então, fale.

- Mike, lembra-se quando esteve aquí a última vez e eu disse que me estava a sair mal com a primeira lista de livros, os livros meus, não as sobras de estoque de Wesley R.?

Barrett lembrava-se de que Sanford sempre se referira ao pai, Wesley R. Sanford, como Welsley R. Jamais conseguira chamá-lo papá.

- Sim, mas você mostrou-se optimista...

- Exacto. Por causa de um livro que eu tinha no prelo. Os Sete Minutos, de J J Jadway. Estava a arriscar tudo nele. Tudo ou nada. Lembra-se?

Barrett fez que sim ao telefone.

- Perfeitamente. O romance que ninguém se atreveu a publicar durante trinta e cinco anos. Vi o anúncio de lançamento no domingo passado. Tremendo.

A voz de Sanford tornou-se ansiosa.

- Você viu o livro, não foi? Mandei-lhe um dos primeiros exemplares por via aérea.

Com ar culpado, os olhos de Barrett percorreram rápido o quarto de dormir. Ele tinha recebido o exemplar antecipado de cortesia há cerca de três semanas e o livro continuava fechado em cima da mesa-de-cabeceira da cama de casal. Tencionava lê-lo, a fim de poder escrever ao amigo um bilhete de agradecimento e estímulo, mas tanta coisa se passara desde então que nunca chegou a fazê-lo. As eternas boas intenções.

- Recebi, sim, Phil. Está do lado da minha cama. Cada dia que passa prometo-me escrever para lhe agradecer, desejar felicidades, mas ando atolado num milhão de coisas. Li tudo meio à pressa, e acho que o livro é exactamente o que você disse. O assunto é brutal, vai ter um êxito doido.

- Vai mesmo - afirmou Sanford. entusiasmado. - Está a preparar-se para ser o maior êxito do ano, talvez da década inteira. Você não faz ideia, do que está a acontecer com os distribuidores e as livrarias. Faltam ainda vários dias para a publicação oficial e já estamos a tirar uma segunda edição. Temos duzentos mil exemplares no prelo e já despachámos cento e trinta mil. Compreende o que isso significa. Míke? Que diabo, você entende de sobra do comércio de livros de tanto me ouvir falar no assunto. Veja, por exemplo, o romance comum. Se for livro de estreia, e o de Jadway é-o, foi o único que ele escreveu, aliás, bem, talvez se imprimam quatro mil exemplares para começar, e talvez os distribuidores consigam colocar dois mil antes de a obra ser publicada, sendo despachados em consignação... se não forem vendidos, podem ser devolvidos... e talvez dentro de seis meses ou um ano a gente acabe por vender setecentos e cinquenta exemplares. Este é um aspecto do comércio de livros, por trás do alarido dos críticos e dos anúncios de que o público nem toma conhecimento. Mas de vez em quando, de tantos em tantos anos, se a gente tem sorte, pega-se num negócio de arromba, um romance de estreia que sai a chispar que nem avião a jacto. É o caso de Os Sete Minutos. Claro que já vinha com toda a propulsão preparada. Aquela série de proibições sem fim. Essa conversa de ser imoral, o que ele não é. Agora, pela primeira vez em trinta e cinco anos, as pessoas poderão constatar por si mesmas. Portanto, temos encomendas para cento e trinta mil exemplares e esperamos receber para o resto dos duzentos mil. uma semana depois que o livro tiver saído. E isto é apenas o começo, Mike. Quando estiver exposto em toda a parte. e à venda, e as pessoas passarem a comentar, a discutir, a propaganda de boca fará o negócio pegar fogo. Pode-se chegar a trezentos ou quatrocentos mil exemplares em poucos meses. E isso ainda não é nada. Vamos abrir concorrência para as reedições de bolso. Depois de o tornarmos respeitável, mostrando que foi aceite, vão disputar os direitos de reimpressão como se fosse leilão. O que talvez signifique um milhão de dólares para iniciar, sem contar as futuras vendas e direitos autorais, e não esqueça que Sanford House, a editora, fica com cinquenta por cento da renda das edições de bolso. Entende o que quero dizer, Mike? Não há limite. Você sabe quanto já rendeu O Amante de Lady Chatterley, segundo as últimas estimativas? Encadernado e em brochura, já se venderam mais de seis milhões de exemplares, e decerto anda próximo dos sete milhões nesta altura. Pois é o que temos nas mãos agora, talvez até mais, muito mais, com Os Sete Minutos. E você conhece a minha situação, Mike. Isto fará com que Wes-ley R. não se levante da cama, doente como está, e nunca mais interfira nos meus negócios. Sabe o que isso significa para mim, Mike. Fora da minha família não há ninguém que saiba disso melhor do que você.

A torrente quase histérica de palavras parou abruptamente. Ouvia-se apenas a respiração ofegante do outro lado do telefone transcontinental.

- Sei, sim - disse Barrett. Depois ficou em dúvida. - Parece que você está com um êxito certo nas mãos.

- E estou mesmo, Mike... se nada sair errado.

Sem reflectir, quase automaticamente, Barrett começou:

- Mas o que poderia eu...

- A censura - interrompeu Sanford. - Perco tudo, se a Polícia não deixar as livrarias venderem o livro, nem as pessoas comprarem. Se isso acontecer, não só não terei um êxito como será um desastre completo. Wesley R. chutar-me-á daqui nessa mesma hora e a minha querida Betty fará o mesmo. Perderei o negócio e os meus filhos. Não ficarei com coisa alguma, salvo o fundo de garantia que minha mãe me deixou e que não dá para manter um homem vivo, pode crer, Mike. Não dá.

Barrett começou a ficar levemente irritado com os presságios do amigo.

- Phil, você está com um óptimo negócio nas mãos. portanto para que antecipar desastre quando não há a mínima possibilidade de haver nenhum? Censura? Duvido. Estamos vivendo hoje numa época diferente. Tudo é feito às claras, em cima da mesa. Toda a gente sabe que a Rainha tem pernas. Para dizer a verdade, eles sabem que ela tem muito mais do que isso. Você pode comprar Fanny Hill em qualquer prateleira de drogaria. Lembra-se quando alugávamos cópias mimeografadas no colégio? Lembra-se daquele trecho que dizia “essa deliciosa fenda de carne, onde se avolumavam agradáveis tufos de cabelo, repartindo-se e apresentando a mais sedutora abertura”? E Lady Chatterley, lembra-se de Connie “envolvendo as estreitas nádegas brancas do amante com os braços e atraindo-o para ela, de modo que os seios salientes, balouçantes, tocassem a ponta do falo excitado, erecto”? E disso venderam-se - quanto foi que você disse? - seis a sete milhões de exemplares. Hoje o negócio é assim e assim será durante muito tempo, talvez para sempre, a não ser que as pessoas se cansem da verdade e a gente retroceda à época do asterisco outra vez. Mas não agora. As pessoas não se assustam tanto com o sexo, especialmente quando é apresentado com talento...

- O livro de Jadway não foi proibido só por causa de sexo - interrompeu Sanford. - É que certas passagens fortes são sacrílegas.

- Se são ou não são, pouco me interessa - retorquiu Barrett. - Uma porção de gente que entende do assunto e leu o livro em segredo proclamou publicamente que é obra de arte. Não crie problemas que não existem.

- Espere aí, Mike, é justamente sobre isso que eu quero falar. Foi por isso que andei atrás de você. Imagine que...

Uma súbita desconfiança se apossou de Barrett. O seu amigo costumava viver no futuro, prevendo êxito futuro, problemas futuros, talvez aconteça isto, talvez aconteça aquilo, tal como muita gente vive no passado. Era um dos defeitos mais irritantes de Sanford, pois o impedia de falar francamente sobre o presente.

- Um momento, Phil - atalhou Barrett. - Você esteve a repetir, sem parar, que a coisa ia ser um estouro, se nada atrapalhasse.

Fez uma pausa.

- Há alguma coisa que atrapalhe? Houve um silêncio curtíssimo.

- Há-'respondeu Sanford.

- Porque é que não disse logo?

- Eu estava a procurar explicar como tudo isso é importante para mim.

- O que aconteceu? - quis saber Barrett.

- Um dono de livraria aí em Los Angeles foi preso há duas horas, porque vendeu Os Sete Minutos, Talvez eu esteja a exagerar e a fazer estardalhaço, de puro nervosismo. Provavelmente é uma coisa sem importância. Mas gostaria de me certificar de que é só isso e mais nada.

- Está bem. Conte.

- O nosso distribuidor aí na Costa recebeu um telefonema desesperado de um dono de livraria... deixe-me ver, tenho tudo anotado aqui... um tal Ben Fremont, proprietário do Empório de Livros Fremont em Oakwood, sei lá onde fica isto.

- Oakwood é um bairro residencial de classe média superior, mais ou menos grande, na parte oeste de Los Angeles, entre Westwood e Brentwood, e a cidade de Santa Mónica, a cerca de dez minutos daqui. Não está incorporado, nem faz parte da cidade, mas pertence ao município. Muito bem, que mais aconteceu?

- Fremont tem um bom contabilista, mas a livraria é modesta e ele não possui advogado. Por isso, telefonou ao nosso distribuidor para pedir ajuda, em busca de protecção e naturalmente temos de dá-la. O distribuidor ligou para mim e eu para você. Parece que lá em Oakwood existe um grupo chamado LFD, a Liga da Força pela Decência... um desses nomes farisaicos... cujo presidente, uma tal Mrs. St. Clair, leu o livro e apresentou queixa imediata ao Promotor Público de Los Angeles. Acho que pertence à jurisdição dele...

- Exacto. A Promotoria Pública e a Delegacia de Polícia de Los Angeles estão encarregadas das regiões não incorporadas.

- Pois o Promotor recebeu o protesto de Mrs. St. Clair e, por sua vez, mandou uma carta ao Delegado a solicitar investigação imediata e, depois que reuniu todos os dados, preparou a sua acusação criminal e pediu que dois agentes da Polícia de Costumes fossem prender Ben Fremont hoje pela manhã. Eles confiscaram todos os exemplares de Os Sete Minutos que Fremont ainda tinha à mão. Oitenta, mais ou menos.

- Continue. Houve mais alguma coisa?

Sanford recapitulou rapidamente os poucos factos esparsos sobre a prisão que Fremont transmitira ao distribuidor da companhia.

- Há já várias horas que Fremont está na cadeia, à espera do pagamento da fiança - prosseguiu Sanford. - Farei tudo para que seja paga imediatamente. Pretendemos cobrir todas as despesas que surgirem. Eu poderia mandar um dos nossos advogados até aí, mas isso demora e, além do mais, eles não conhecem as leis da Califórnia. Preciso de alguém em Los Angeles que possa agir sem demora e que conheça os expedientes locais. E que compreenda o risco que estou a correr. Mike, não posso permitir que uma ninharia dessas atinja proporções calamitosas. Quero resolver tudo discretamente e sem perda de tempo. Depois o comércio de livros ficará a saber que defenderemos cada livreiro e cada exemplar. Aí então ninguém mais hesitará, vendendo o livro sem preocupações. Talvez ocorram mais uma ou duas prisões parecidas. O que nós temos de fazer é dar ao livro uma possibilidade de começar a vender-se nas grandes livrarias e filiais das maiores cidades. Depois de algumas semanas ou meses, quando já tiver ampla aceitação pública, nenhuma intervenção para obrigar o cumprimento da lei se preocupará em nos atrapalhar. Ficaremos garantidos. É por isso que eu quero anular as pequenas prisões incómodas logo de início, antes que as principais livrarias entrem em pânico. Quero resolver isso de imediato, discretamente, com a menor repercussão possível pelos jornais. Lógico que pensei em você, Mike. Sei que tem um emprego, mas se pudesse...

- Larguei Thayer & Turner hoje de manhã, Phil. Ando com algo muito maior em vista. Noutra ocasião, pô-lo-ei a par. Acontece apenas que estou livre. E gostaria de deitar mãos à obra.

- Óptimo! Que bom, Mike. Precisava de alguém em quem pudesse confiar, alguém que compreenda a importância que o negócio tem para mim. Estou certo de que você resolve esse problema da noite para o dia.

Barrett tinha encontrado a caneta e um bloco de rascunhos.

- Você diz que o tal Ben Fremont está preso na cadeia do centro? Teremos de levantar a fiança para o tirar ainda hoje. O que é que pretende alegar?

- Quer dizer, culpado ou inocente?

- É. Se ele alegar inocência, isso implica um processo.

- Santo Deus, não. Quero tirá-lo da enrascada o mais depressa possível, com a maior discrição, para que os outros livreiros tenham a certeza de não precisarem de preocupar-se, e ao mesmo tempo evitar ao máximo qualquer tipo de publicidade.

- Então alegaremos que ele é culpado. Agora, ao que me lembro, quando se é condenado por distribuir material pornográfico na Califórnia, e se trata de primeiro delito, pratica-se uma mera contravenção. Pode-se ser multado em mil dólares, mais cinco dólares por unidade de material apreendido. Fremont tinha oitenta livros, o que portanto representa outros quatrocentos... mil e quatrocentos dólares. E ainda se pode apanhar seis meses de cadeia. A reincidência já implica em crime... dois mil dólares de multa, mais os quatrocentos, e ficar na prisão por um ano. É o primeiro delito de Fremont?

- O segundo, Mike, o segundo. Ele já foi preso uma vez... não sei há quantos anos, nem ele mesmo se lembra bem... quando tinha uma livraria menor, no centro de Los Angeles. Creio que era coisa de revista então. Se isso agora é crime, significa um ano inteiro na cadeia? Eu não posso deixar que um livreiro que venda o nosso livro fique preso assim tanto tempo.

- Olhe, é isso ou alegar que ele está inocente e enfrentar julgamento público - disse Barrett.

Sanford gemeu:

- Pior a emenda que o soneto.

- Existe outra possibilidade - disse Barrett. - Se essa prisão não tiver excesso de publicidade...

- Não acredito que venha a ter.

- Pois se não tiver, posso solucionar o negócio todo com rapidez e discrição. Entro com a confissão de culpa, pago a muita e dou um jeito para suspender a sentença.

- Seria perfeito!

- Acho que se pode arranjar. Temos um Promotor Público aqui, agora, chamado Elmo Duncan... que é o tipo de pessoa decente, muito correcto. Mas também é realista. Sabe onde ceder e onde exigir, e por isso tenho a impressão de que é a espécie de homem com quem se pode falar. Conheço-o socialmente. Encontrei-o duas ou três vezes em festas em casa de Willard Osborn. Se o procurasse, ele lembrar-se-ia de mim. Como também se lembraria de que ando com a filha de Osborn. Creio que posso convencê-lo a ser razoável.

- Mike, não imagina quanto eu apreciaria esse favor...

Barrett sentiu vontade de interromper e dizer a Sanford que não se tratava de favor mas de mero e mínimo pagamento de uma dívida há muito tempo contraída, da qual se não esquecera. Mas não disse nada. Deixou que Sanford prosseguisse.

- ...porque estava realmente preocupado com o caso, mas agora já me sinto melhor, muito melhor. Mike, você é um sujeito miraculoso.

- Calma - replicou Barrett, irónico. - Ainda falta conseguir a cooperação do nosso Promotor Público. Acho que posso dar um jeito. Veja o que eu vou fazer. Telefonarei para Elmo Duncan, para ver se marco uma entrevista para agora de tarde. Depois procuro um prestador de fianças que conheço em Hill Street, para soltar o seu livreiro. Aí então terei uma conversa com... - estava tomando anotações no bloco de notas a essa altura - ... Ben Fremont, em Oakwood, não é isso... para ver se apuro exactamente o que aconteceu, o que foi que ele disse, e tratarei de acalmá-lo. Por fim, se tiver sorte, falarei com o Promotor Público. Assim que souber qualquer coisa definida da parte dele, ligo-lhe para aí. Talvez não antes de amanhã.

- Você é quem manda, Mike. Contento-me em saber que você se encarrega da história.

- Já me encarreguei. Daqui a quarenta e oito horas poderemos conversar sobre outros assuntos.

- Obrigado, Mike.

- Espere o meu telefonema - disse Barrett.

Depois de desligar, terminou pensativo o seu sumo de frutas. Pondo de lado o copo vazio, percebeu que estava com fome. Então lembrou-se do almoço combinado com Abe Zelkin, Deviam encontrar-se no Browrd Derby, em Beverly Hills, uma conveniência para ambos, pois ficava a vinte minutos do apartamento de Barrett e apenas a quinze do novo escritório de Zelkin, um conjunto de salas num edifício altíssimo, recém-inaugurado, na parte leste de Beverly Hills.

Antes de telefonar ao fiador e ao Promotor Público, Barrett resolveu ligar para a secretária de Zelkin. Pediria que ela fizesse Zelkin adiar o almoço para meia hora mais tarde e trouxesse junto uma fotocópia do artigo do Código Penal da Califórnia que tratava da distribuição de material obsceno. Pelo menos dar-lhe-ia o pretexto de conversar sobre outra coisa com Zelkin, antes de enfrentar o momento da verdade. Ia ser duro esse encontro. Gostaria de poder explicar simplesmente a realidade da vida a Zelkin: Abe, ouça, ser honesto e pobre é bom, muito bom, mas ponha-se no meu lugar. Abe, ser honesto e rico é melhor, muito melhor.

Ficou a imaginar se Zelkin seria capaz de compreender - ou, ao menos, de perdoar.

Estavam sentados num confortável reservado semicircular, debaixo das caricaturas de personalidades artísticas, terminando as suas bebidas e sem ter conversado muito ainda. O Brown Derby estava apinhado e barulhento, e eles pertenciam à minoria silenciosa.

Mike Barrett, fingindo reler a fotocópia do artigo referente a censura no Código Penal da Califórnia, podia ver Abe Zelkin do lado oposto da mesa, saboreando um martini, absorto na vasta ementa. Parecia calmo e confiante, o que aumentou o sentimento de culpa de Barrett. Naturalmente, sabia que Zelkin sempre parecia calmo e confiante, com cara de inocente-o que era puro engano, pois dissimulava um tigre, quando recolhia provas para um caso em que fizesse fé. Certa vez Barrett comparara, e agora recordava-se, a cabeça de Abe Zelkin a uma minúscula abóbora satisfeita, se a abóbora fosse enfeitada com um tufo de cabelo preto rebelde, e um nariz que se assemelhasse a um ovinho, sobre o qual se empoleiravam óculos bifocais imensos, de aros negros. Baixo e barrigudo, trazia sempre traços de cinza de charuto nas lapelas. Despertava o instinto de protecção dos homens altos e o maternal nas mulheres avantajadas, inconscientes de que essa criatura do tamanho de um brinquedo tinha um cérebro misto de previsor de mísseis e lançador de foguetes.

Zelkin possuía duas excentricidades e uma obsessão. As excentricidades eram: honestidade absoluta - com os outros, consigo mesmo - a despeito de quaisquer consequências. e pureza total de linguagem; raramente praguejava (quando tirado do juízo, preferia recorrer a maldições rebuscadas da literatura barata). A sua obsessão fundamental era a Lei dos Direitos Humanos da Constituição dos Estados Unidos, e os abusos que vinha sofrendo. Gostava de ecoar os sentimentos do ministro do Supremo Warren, que certa vez comentou que se essa Lei fosse apresentada hoje como projecto legislativo, dificilmente seria homologada pelo Congresso.

Um criado aproximou-se.

- Os senhores já escolheram? Zelkin baixou a ementa.

- E você, Mike? Quer outra bebida?

Barrett cobriu o copo de uísque e soda com a mão.

- Para mim basta, Vamos comer. O que vai pedir?

- Se dependesse de mim, bem que eu sabia - contemplou pesaroso o ventre saliente. - Mas ontem de noite a minha filha mais nova subiu para o meu colo, espetou o dedo na minha barriga e perguntou: “Papá, está grávido?” Onde diabo aprendeu ela esta palavra... jardins da infância progressistas ou televisão, naturalmente... mas eu percebi o que ela quis dizer.

Acenou com os ombros para o criado.

- Um bife na grelha, mais ou menos bem passado, sem batatas, sem nada. E um pouco de café.

- O café pode ser para dois - disse Barrett. - E uma salada especial para mim. Com molho francês.

O criado afastou-se. Ficaram sozinhos, E Barrett ainda não estava preparado para a verdade. Mencionara o telefonema de Philip Sanford, e a prisão de Ben Fremont continuava a fornecer assunto para cómoda tergiversação. Levantou as fotocópias de Zelkin.

- Esta definição estatutária de obscenidade é de deixar qualquer um zonzo. Não há directriz nítida.

Zelkin sorriu.

- Richard Kuh... um assistente de promotor público em Nova Iorque... certa vez observou que tentar definir a obscenidade é tão impossível como pregar uma torta de creme em árvores. E o juiz Curtis Bok disse que era o mesmo que tentar segurar um porco besuntado de graxa. Mas eu ainda prefiro a do ministro Stewart, que disse qualquer coisa no sentido de que talvez não pudesse defini-la mas, por Deus. não tinha o menor problema em identificá-la quando a encontrava pela frente.

- Olhe, pode ser - retrucou Barrett, em dúvida. - Eu, por minha vez, prefiro a de Havelock Ellis... como definir uma noção tão nebulosa que reside não na coisa contemplada, mas no espírito de quem a contempla? Você mostra o retrato de uma mulher nua a um homem e ele diz que é Arte. faz o mesmo com outro e ele diz que é Postal Imoral.

- Meu caro Michael. mulher nua sempre é Arte. Barrett riu.

- Essa resolveu você. Quem dera que fosse tão simples assim com um livro. Aqui você tem Sanford, por exemplo, que apesar do seu interesse comercial, realmente acredita que esse romance de Jadway é a essência da pureza e aqui tem Elmo Duncan, guardião da segurança pública, que pelo seu próprio acto de hoje de manhã declara o mesmo romance indecente. De um lado. Sanford afirmando que o livro possui importância social, e do outro. Duncan. insistindo que o seu apelo é exclusivamente orientado.., onde está aquela definição?... sim, por um “interesse vergonhoso e mórbido- por nudez e sexo e “completamente destituído de qualquer importância social compensatória”. E com aquele pobre livreiro sem defesa entre dois fogos!

Zelkin terminou o seu martini.

- Pois às vezes um bom processo... e as apelações que pode acarretar... é bem capaz de ser um passo decisivo na procura de uma definição mais satisfatória.

- Desta vez não-objectou Barrett. - Eu sei que Sanford não quer o processo, mas tão-pouco aprova a confissão de culpa. Ele quer apenas que a história toda seja abafada discretamente. Acho que ele tem razão. Seja como for, marquei uma entrevista com o nosso Promotor Público para as três e meia - fez uma pausa. -Espero que ele se mostre tão simpático por trás da escrivaninha como num jantar de cerimónia.

- Você conhece-o bem? - perguntou Zelkin.

- Não nos tratamos pelo nome próprio, nem nada parecido. Ele foi várias vezes convidado para casa dos Osborn quando eu estava lá com a Faye.

- Isso não o prejudicará a você?

- Não... não, creio que não. - Barrett olhou-o fixamente do outro lado da mesa. - E você, conhece-o bem?

- Duncan? Ah, mais ou menos. Não somos exactamente amigos do coração, mas depois que ele foi eleito, quando eu ainda estava na União das Liberdades Civis, tive várias ocasiões de o encontrar, dentro e fora do tribunal.

Zelkín desdobrou o guardanapo e estendèu-o no coto.

- Eu gosto dele. Não sei se estou em condições De lhe contar qualquer coisa útil. Você quer a ficha do sujeito? Herói do Vietname, duplamente condecorado por bravura. Trinta e dois anos de idade. Só vive para a família. Quatro filhos- Advogado competente, honesto, decente, convencional. Orador público dinâmico, maravilhosa personalidade na televisão, não brilhante, porém directo e convincente. Mas uma criatura política, por instinto. Ele sabe que é um vitorioso. Quando foi eleito promotor público, teve a maior avalancha de votos na história do eleitorado local. Elmo Duncan sabe que o seu cargo actual é insuficiente. Só que correm boatos que alguém mais. alguém que pesa na balança, também sabe. Já ouviu falar em Luther Yerkes?

- O sujeito das Indústrias Global? Aviões e electrónica. Claro. Li uma vez a respeito dele na revista Fortune, Não havia grande coisa sobre ele. era mais sobre as acções que possuía e o quanto valia em matéria de dinheiro... milhões, biliões, algo parecido. Não sabia que ele morava por aqui.

- Mora, sim - disse Zelkin. -Luther Yerkes tem uma casa em Malibu, um bangaló de trinta peças em Bel-Air, e um apartamento em Palm Springs. Você não sabia de nada disso porque Yerkes não gosta de publicidade. Ele gosta é de dinheiro. De poder. Pouco se importa com a fama. O que não deixa de ter certa lógica. Em todo o caso, segundo fontes seguras, Yerkes quer ter em Washington um senador escolhido por ele... não um senador que defenda os interesses da Califórnia, mas os do próprio Yerkes. Como você sabe, o nosso titular actual, senador Walter Nickels, breve terá de ser reeleito. O senador Nickels está em maus lençóis com o milionário Yerkes. Parece que o senador Nickels andou fazendo pressão para que o Congresso iniciasse uma investigação nas indústrias de aviação que. segundo se afirma, houvessem concorrido para cobrar de mais e ludibriar, de qualquer outro modo, Tio Sam em contratos governamentais excessivamente operosos. E Luther Yerkes tem mais contratos governamentais do que ninguém. E não gosta de arranjar encrenca com nenhum legislador irritadiço. Portanto, como impedir que se instaure uma investigação dessas? Eliminando o seu precursor, lógico. Livrando-se dele. Para servir de advertência às suas coortes do que lhes pode acontecer se saírem da linha. Portanto, como livrar-se do Precursor dentro das devidas formalidades? Simplesmente encontrando alguém mais atraente, e emprestando-lhe o maior apoio para concorrer contra Nickels e derrotá-lo nas eleições. Quem é esse alguém? Você adivinhou. Elmo Duncan, o jovem Promotor Público de Los Angeles de brilhante futuro. Não tenho fotografias para provar. Baseio-me só em boatos. E note-se que o nosso Promotor Público desabrochou subitamente como uma autoridade em tudo quanto é assunto, de A até Z. Nestes últimos meses, sempre que se ouve falar em que alguém vai fazer discurso em público, pode-se ter a certeza de que é Elmo Duncan. Em suma, Mike, o nosso Elmo Duncan está empenhado actualmente em ser amado por toda a gente, especialmente pelos que pesam na balança. O seu amigo Willard Osborn II, por exemplo. E Faye Osborn é filha dele. E você está noivo de Faye. Agora quer um pequeno favor de Elmo Duncan. Na minha opinião, vai consegui-lo. Portanto descanse.

- Já me estou a sentir melhor - disse Barrett.

Zelkin tinha tirado os óculos e estava a limpá-los com o guardanapo.

- De certo modo é uma lástima - resmungou - que você tenha de abafar a prisão de Ben Fremont. Se ao menos se pudesse levá-lo a julgamento, seria o caso perfeito para Barrett & Zelkin começarem a sua sociedade. É o tipo de coisa que nos convém, Mike, uma causa digna, um desafio, um “tiro e queda” publicitário, tudo. Mas que importa, não nos faltarão outros casos.

Zelkin tornou a enfiar os óculos e franziu os olhos para Barrett..- Você vai largar Thayer & Turner, não vai?

Barrett sentiu um nó na garganta. Engoliu em seco.

- Já larguei, Abe. Demiti-me hoje de manhã.

Zelkin bateu palmas.

- Óptimo! - exclamou. - Apre, porque é que você me deixou em suspenso? Porque não disse logo?

Barrett sentiu um calor na testa. Procurou não se remexer no assento.

- Olhe, Abe, primeiro deixe que lhe conte, deixe que lhe explique...

- Com licença, senhores.

Era o criado, aproximando o carrinho com os pratos do almoço.

- Desculpem a demora. O bife leva tempo. Está tudo aqui, bem quente; talvez até a salada especial também esteja.

Zelkin pôs o guardanapo de lado e começou a levantar-se.

- Espere aí, Mike - disse, com desenvoltura. – Antes de me contar a história, preciso de ir à casa de banho. Já volto. Quero saber tudo o que aconteceu.

Com ar desconsolado, Barrett acompanhou com os olhos até vê-lo sumir com passo firme em direcção ao bar no fundo da sala.

Ignorando o criado que arrumava os pratos, Barrett recostou-se no assento estofado, fechou os olhos e tentou recapitular o que acontecera e avaliar o efeito que teria em seu amigo - ou ex-amigo.

Tudo começara com a conta de Osborn.

Willard Osborn II, presidente das Empresas Osborn. S. A., possuía ou controlava a maioria das acções de catorze emissoras de televisão e rádio em Los Angeles, Phoenix, Las Vegas, São Francisco, Seattle, Denver, e outras cidades do Oeste. Só os seus interesses nessas estações, sem incluir investimentos adicionais em companhias cinematográficas, fábricas de fitas de gravação, centros de diversões, hotéis, atingiam quarenta e dois milhões de dólares. Embora não fosse nenhum Luther Yerkes, nenhum super-magnata, Osborn vivia, como se diz, folgadamente. Também era ambicioso. Persistindo em montar um império, envolvera-se num negócio intrincado em torno de uma nova e imensa aquisição possível. A transacção parara porque o novo negócio apresentava um problema fiscal complicado. Num esforço para verificar se o problema podia ser resolvido, Osborn solicitara os serviços de administração de empresas de Thayer & Turner. E Thayer & Turner, como de costume, fragmentaram vários aspectos do difícil empecilho tributário, distribuindo essas partes entre os elementos mais jovens. Entre quantos, Mike não sabia, excepto que fora um dos designados para devotar tempo integral a um programa gigantesco, destinado a criar uma estrutura fiscal que tornasse praticável as negociações de Osborn.

O trabalho havia sido quase esmagador de tão difícil. Dias sem horário, fins-de-semana sem descanso, um projecto de vergar as costas e quebrar a cabeça. Do mesmo modo que viera a detestar a legislação fiscal, Barrett apaixonou-se pelo projecto Osborn. E apaixonou-se porque o aproximava da dissecação da anatomia do poder. Pelo menos uma vez tinha oportunidade de vé-lo de perto - de maneira que os precedentes legais e as cifras de negócios se traduziam em mansões principescas e jardins opulentos - o que o deixava intrigado e lhe acicatava a criatividade. Mostrou-se relutante em ceder os papéis das suas descobertas, pesquisas e sugestões e voltar a viver no meio de pessoas e problemas inferiores, até que finalmente entregou a parte que lhe coubera no trabalho.

Só ouviu falar de novo no projecto de Osborn vários meses mais tarde, há cerca de quatro meses, quando o velho Thayer anunciou em assembleia geral que os seus relatórios haviam proporcionado às Empresas Osborn o bom termo de uma transacção multimilionária, fadada a converter-se num marco da história das comunicações. Agora Thayer, em nome de si mesmo e de Turner, queria agradecer a cada elemento da firma que participara desse dedicado esforço conjunto.

Três dias depois dessa assembleia, o velho Thayer mandou que Mike Barrett comparecesse sozinho no seu gabinete: Ofereceu-lhe xerez. Era de estranhar. Por fim disse que Willard Osborn desejava falar rapidamente com Barrett naquela mesma tarde. Não, não no Edifício-Torre Osborn mas na sua residência, ao norte do Sunset Boulevard, em Holmby Hills. Quando Barrett perguntou por que motivo, Thayer hesitou, respondendo então que Osborn queria simplesmente conversar com ele. “Acho que vai achar interessante”, acrescentou com leve sorriso.

Findo o almoço, Barrett foi de carro à residência de Osborn na encosta de uma colina. Ainda que estivesse preparado para a opulência, pelos comentários de colegas que tinham tido a sorte de serem convidados para a mansão, a hacienda espanhola superou todas as suas expectativas. Sabia que Osborn a reformara para a tornar parecida com o Palácio Liria, a casa da cidade de Alba, próxima à Plaza de Espana em Madrid. Barrett havia visto fotografias do original, e a réplica em ponto menor era igualmente impressionante. Jardins pitorescos ladeavam o sinuoso caminho de acesso. e sob o telhado as fachadas de tijolos crus estavam guarnecidas por colunas dóricas na frente de imponentes pilastras.

Pasmado, Barrett deixou-se conduzir por uma criada imaculadamente uniformizada, através do vasto átrio de entrada, passando por longo e amplo corredor, até chegar à biblioteca de altos muros. Ali, rodeado por pinturas flamengas, e com um magnífico quadro a óleo de Goya como pano de fundo, esperava-o Willard Osborn II, reclinado num sofá, perto da sumptuosa escrivaninha, brincando com um dócil cão pastor, quando Barrett apareceu. Osborn levantou-se imediatamente - era alto, curvado, aristocrático, de cabelo esbranquiçado, olhos de pálpebras caídas e feições angulosas - e apertou a mão de Barrett. Convidou-o a instalar-se no sofá e depois sentou-se a seu lado.

Virou-se lentamente para Barrett e analisou-o.

- Bem, Mr. Barrett - disse, após uma pausa -, o senhor talvez esteja intrigado com o pedido que fiz a Thayer ;para mandá-lo vir aqui. Por um lado. queria agradecer-lhe pessoalmente. Por outro, queria ver de perto o jovem que me fez economizar dois milhões de dólares em impostos,

As sobrancelhas de Barrett arquearam-se ao ouvir a cifra. Osborn não dissimulou um sorriso.

- é a pura verdade, Mr. Barrett - continuou. - Ah, não foi fácil apurar quem merecia o crédito. Thayer & Turner gostariam de ficar com as honras, ou tergiversar com trabalho de equipa, mas eu não quis saber de tolices. Apertei com eles. Resultou que, das muitas ideias propostas, a sua era a mais inédita e praticável, e fora em torno dela que tinham montado o esquema - fez uma pausa. - Um expediente legal inteligente... um recurso de rara imaginação. Numa época de mediocridades, não é frequente ter-se a boa sorte de encontrar alguém como o senhor. Eu ficaria fascinado em saber exactamente como foi que concebeu todo o arcabouço da ideia. Mas antes, não aceita uma xícara de café?

Durante o café uma terceira pessoa se juntou a eles. Fayee Osborn, a filha única do anfitrião, recém-chegada dos campos de ténis, enfiara a cabeça na porta da biblioteca para lembrar ao pai um compromisso social qualquer. Tinha sido apresentada a Barrett. Travando conhecimento com ele e sabedora da sua proeza, perguntou se não podia tomar café em companhia de ambos.

Durante a meia hora seguinte, tornou-se cada vez mais difícil para Barrett concentrar-se em questões fiscais. Os olhos de Faye não o abandonavam nunca. Ela parecia examiná-lo com a fria objectividade de uma amazona que analisa um cavalo vencedor de corridas prestes a ser leiloado como garanhão. Quanto a Barrett. distraía-se constantemente com a gélida beleza do rosto e a perfeição do corpo de Faye, Os cabelos louros descorados pelo sol estavam repuxados com firmeza para a nuca, presos por uma fita vermelha. As feições eram belas, perfeitas, gregas. A blusa branca, aberta na gola, oferecia relances dos declives dos seios protuberantes. As pernas graciosamente cruzadas eram longas e esculturais. Teria no máximo vinte e oito anos, calculou Barrett. Terminando o colégio na Suíça, talvez. E mimada, com toda a certeza.

Quando o café e a conversa acabaram, foi ela quem o acompanhou até à porta.

- Convidei um grupo interessante para um jantar informal no sábado à noite - disse-lhe. - Gostaria muito que você viesse.

- Com todo o prazer,

- Óptimo - olhou fixamente para ele. -Não tem ninguém que quisesse trazer consigo?

- De modo especial, não.

- Então venha mesmo sozinho. Cancelarei o meu par Não se importa de assumir o posto?

- Estava à espera disso.

E assim foi. Durante os dois meses seguintes, Mike Barrett passou a frequentar a mansão dos Osborn com regularidade, sempre como par de Faye. Uma noite, ao voltarem do Auditório da Filarmónica para Holmby Hills. Faye pediu para ver o seu apartamento. Depois de duas bebidas, toda aninhada nele, disse que o amava. Ele confessou que também a amava.

- Porque não demonstrou? - sussurrou ela.

- Como assim?

- Você nunca me convidou para vir cá. E ainda não vi O quarto de dormir.

- Eu estava com medo. Você tem dinheiro de mais. Cria uma situação de inferioridade.

- E se eu fosse caixeira de uma loja ou secretária de alguém?

- Ter-lhe-ia tirado a roupa na primeira vez que saíssemos juntos.

A mão dela acariciou-lhe a coxa.

- Mike, seu veado esnobe, tire a minha roupa, por favor. A partir dessa noite, começou a encontrar-se com Faye quatro ou cinco vezes por semana. As vezes Willard Osborn II estava presente, e Barrett em geral sentia que o velho lhe avaliava a capacidade. Frequentemente, na monotonia do trabalho jurídico, Barrett surpreendia-se sonhando de olhos abertos com o que talvez fosse possível. Eram esses sonhos, exclusivamente, que o tinham feito hesitar quando Abe Zelkín queria saber se ele já se decidira a respeito da sociedade, A princípio Barrett resolvera desistir da-febre da ganância e unir-se ao amigo. Agora hesitava. Podia ser que ele não passasse de um mero capricho de Faye e que estivesse equivocado sobre o interesse do velho Osborn por ele. Os sonhos de olhos abertos, porém, continuavam. Desculpara-se com Zelkin, dizendo que estava sobrecarregado de serviço no escritório. Havia também boas perspectivas de aumento e ainda não tinha a certeza se devia largar o emprego. Abe não podia esperar mais um pouco?

- Um pouco, mas não muito, Mike. Quanto a mim, não posso esperar. Já dei aviso prévio à ULCA. Vou largar tudo e montar o meu próprio escritório. E não posso fazer isso sozinho. Conheço vários sujeitos óptimos que querem ficar comigo, mas nenhum deles se compara a você, Mike. Olhe, arcarei com o peso durante um mês e deixarei a sua mesa pronta, à espera. Aí então conto com você. Fico aguardando o seu telefonema.

Barrett tinha continuado a protelar o tal telefonema. Mas três dias antes chegara quase a decidir que, embora a sua relação com Faye fosse para valer, as esperanças que alimentava em torno do pai dela eram algo bem diferente e totalmente fantasiosas, e que devia ligar para Zelkin e aceitar a sociedade. Depois, no dia seguinte, Faye telefonara-lhe. O pai queria vê-lo na mesma noite, em seguida ao jantar. para tratar de negócios.

De negócios. A sua esperança bailou, até que a agarrou e a trancou no fundo da consciência.

E lá estavam, naquela noite, outra vez na biblioteca, ele e Wiilard Osborn I!.

- Michael - disse Osborn -, acho que você é bastante perspicaz para saber que o venho observando há certo tempo. Estava à espera do momento oportuno para tocar neste assunto. Agora a oportunidade surgiu e tomei a minha resolução. Tenho a certeza de que você me ouviu discutir aquela rede de televisão do meio-este que vai ser posta à venda. Posso ficar com ela, se conseguir resolver alguns problemas fiscais. Preciso do homem indicado para fazer isso. Tive de escolher entre a promoção de um dos meus elementos mais antigos ou a nomeação de alguém totalmente novo. Optei pela última. Existe apenas uma condição. Esse novo elemento precisa estar disponível para assumir o cargo no princípio da semana que vem. Michael, você não gostaria de ser vice-presidente das Empresas Osborn, com um salário anual de setenta e cinco mil, para começar?

A mina de ouro, até que enfim!

Naquela noite, de pura agitação, hão conseguiu dormir. A sua cabeça transformou-se num frenético Carnaval, perturbado apenas por um demónio bem real. Estava a trabalhar num projecto que talvez levasse semanas a resolver. Prometera aos chefes que não o abandonaria sem seu consentimento. Na véspera, de manhã, tinha ido bem cedo Para o escritório, para esperar a chegada de Thayer. Entrou para falar com ele, e, impulsivamente, revelou a fantástica proposta de Osborn. Thayer escutou, carrancudo. Quando terminou, Barrett sentiu que podia contar com resistência. Mas o velho Thayer limitou-se a endireitar a postura na cadeira e disse:

- Vou mandar Magill procurá-lo a você. Explique-lhe o projecto e ele se encarregará de tudo. Amanhã de manhã você já estará dispensado. Felicidades. O nosso lema é nunca atrapalhar a vida de ninguém.

Pela ênfase que Thayer deu à -vida de ninguém”, Barrett percebeu que o velho não se referia à sua, mas à de Osborn. E hoje de manhã ficara livre.

Pensou em telefonar logo a Faye e depois ao pai, oficializando a decisão. Em vez disso, ligara para Abe Zelkin, marcando encontro à hora do almoço, sem ter coragem de lhe contar pelo telefone o que havia acontecido. Mesmo assim, queria telefonar aos Osborn, mas o senso da ordem, da cronologia, de dar prioridade às coisas importantes, terminou por vencer. Precisava de falar antes com Zelkin, liquidar aquela penosa obrigação, proceder a uma limpeza geral, para então se sentir verdadeiramente livre.

E aqui estava com Abe Zelkin.

Barrett abriu lentamente os olhos para o presente e, surpreso, deparou-se-lhe Zelkin, sentado à sua frente, sorrindo-lhe.

- Estava curioso de ver quando é que você sairia do transe - disse Zelkin. - Para um sujeito que só tem boas notícias para dar, não há dúvida que você parece acabrunhado. Ou era meditação ioga, uma expressão de êxtase? Pois vou dizer-lhe uma coisa, Mike: estou-me sentindo óptimo.

Pegou na faca e no garfo e atacou o bife.

- Apre, como a gente levou tempo para se encontrar, hem?

- Abe, deixe eu...

- Está bem, desculpe. Você ia contar-me como -foi o negócio.

- Sim, deixe que eu lhe conte desde o início - remexeu a salada sem comer. - Tudo começou no dia em que conheci Faye Osborn. Lembra-se? Acho que lhe falei.

- Moça notável, a Faye.

- Sim, mas a história não é essa. É sobre o pai dela. Agora não interrompa, Abe. Deixe-me contar-lhe tudo, porque foi para isso que aqui vim.

Cuidadosamente, seleccionando e colocando em ordem os acontecimentos que acabara de recapitular de memória, Barrett começou a narrar o desenvolvimento da sua relação com Willard Osborn II. Aos poucos, chegou ao ponto em que Faye lhe dissera que o pai queria falar com ele a sós. Depois, pôs-se a descrever o encontro com Osborn na biblioteca na ante-véspera, esforçando-se por não olhar para Zelkin ao mencionar a proposta de Willard Osborn para o cargo de vice-presidente com salário de setenta e cinco mil dólares anuais.

Procurou não olhar, mas não pôde deixar de perceber a cabeça de abóbora de Zelkin a levantar a vista do bife e ficar tensa sob a gordura. Parara de comer.

Não adiantava evitar os olhos feridos. Barrett encarou-os.

- Vou falar com Osborn amanhã à noite. Aceitei o cargo. Desculpe, Abe, mas tenho de aceitar. Acho que não há outra solução. Eu queria muito entrar como seu sócio, mas uma coisa como esta do Osborn só acontece uma vez na vida. Não posso deixar escapar uma oportunidade semelhante. Preciso aproveitar. Eu... eu espero que você compreenda.

Num gesto distraído, Zelkin levou o guardanapo à boca.

- Ora, que diabo, que posso dizer? Não vou pretender que o que eu lhe ofereci seja melhor sob o ponto de vista material. Afinal, o nosso escritório de advocacia só lhe daria migalhas, em comparação. Você é capaz de trabalhar trinta anos sem nunca receber setenta e cinco mil dólares em três anos, que fará num. E embora eu tenha arranjado umas salas bem bonitas, pareceriam quartos de depósito em relação às que Osborn lhe pode dar. E em matéria de constituintes... bem, você sabe, teríamos os desvalidos e os refugos perto dos maiorais que você irá encontrar daqui para a frente. O problema é... o que você quer.

Barrett não se permitiu fraquejar.

- Eu sei o que quero, Abe.

- Sabe mesmo? Nunca achei que você tivesse a certeza, mesmo depois que largou o Instituto de Utilidade Pública para brincar de Enriquecer-Logo. Afinal de contas, Você chegou a pensar em se associar comigo.

- Cheguei, sim. Fui sincero. Mas isso foi antes de surgir este cargo com Osborn. Há anos que eu esperava por uma oportunidade destas.

Zelkin sacudiu a cabeça.

- Ainda não estou convencido de que seja o que você quer. Esquecer a parte benemérita que você tem. rigor, também pode fazer bem aos ricos. A. J. Liebling uma vez disse a respeito do colunista Westbrook Pegler: “Pegler é um valente defensor das minorias - por exemplo, da gente que paga muito imposto de renda.” Desculpe, Mike. Não disse isto para chatear. É que acho engraçado. Só que saiu meio cáustico. Deixe explicar-lhe melhor, Mike. Você é um advogado e o que vai fazer não é jurídico, é negócio. Vai-se converter num homem de negócios. Digamos que, na opinião do mundo, você tenha um êxito enorme. Mas na sua, Mike, terá de ver, mais cedo ou mais tarde, que os desafios não serão iguais aos que está acostumado. As pessoas não terão a mesma realidade, e não precisarão do tipo de auxílio que só você é capaz de proporcionar aos constituintes que nos procurariam. O que -é que espera conseguir com isso?

- Dinheiro - respondeu Barrett, sem pestanejar. Ninguém, nem sequer Zelkin, ia obrigá-lo a fazer o papel de um mísero Benedict Arnold. - Dinheiro honesto, honestamente ganho. Como Milton disse: “O dinheiro traz honra, amigos, vitória e reinos.” Está no Paraíso Recuperado. Vem a calhar.

- Pois, como disse Thackeray - replicou Zelkin em voz baixa -”Às vezes paga-se um preço muito caro pelo dinheiro”.

De repente Barrett perdeu a paciência.

- Abe, para não citar ninguém a não ser eu mesmo, por favor, não me venha mais com essa baboseira. Deixe-me dizer-lhe uma coisa, uma coisa que nunca contei certo. Minha mãe economizou e guardou cada tostão, privando-se de tudo para que eu fosse para Harvard, para a Faculdade de Direito. Ela e o velho vieram em navios de imigrantes em terceira classe, quando eram crianças, e cresceram assustados e sozinhos, e tinham de aguentar tudo por serem pobres. Depois que se conheceram e casaram em Chicago, meu pai trabalhava vinte e cinco horas por dia para manter a cabeça à tona d'água e poupar um dinheirinho para um aperto. E quando ele esticou a canela, havia aquela soma no banco, uma soma irrisória a nosso ver, para sustentar minha mãe e eu.

- Mike, eu conheço essas coisas - disse Zelkin. - Lá em casa não foi muito diferente.

- Está bem, então deve ser mais fácil para você compreender o resto. Porque quando eu terminei o curso secundário, minha mãe não quis arriscar o pouco dinheiro que tinha. Ela sabia o que o que valia na mirífica América.

O dinheiro fala, e se a gente quer aprender a linguagem, convém frequentar o colégio, de preferência o melhor que houver. E depois, vencer na vida, ser alguém e ser independente, sem que ninguém tire vantagem da gente. Por isso ela aplicou todas as economias na educação do filho, para que ele pudesse frequentar Harvard e vencer. Até aí, tudo bem, e muita coisa você já sabia.

- Claro que sei, e posso avaliar...

- Você não pode avaliar completamente o que estou a dizer, Abe, porque há uma coisa que não sabe. E depois que souber, Abe, não me venha com tolices freudianas a respeito de mães e filhos, e porque é que minha mãe fez isso, e o efeito que causou em mim, e essas asneiras todas. Olhe, sou tão adulto como você e também acho o Freud o máximo, mas estou farto de uma geração inteira de gente pretensiosa que diz que se é uma espécie de louco neurótico quando se fala qualquer coisa de bom sobre a nossa mãe, ou se se defende, ou se diz que se lhe deve algo. Ora, porra, eu repito as palavras de Confúcio, devo-Lhe muita coisa a ela. Ela não me fez nada, à espera de retribuição. Fez pelo prazer de saber que eu poderia ser mais do que ela e meu pai tinham sido, segundo o ponto de vista da sociedade. Mas eu devia-lhe uma porção de coisas e quando chegou a hora de retribuir, quando ela se achava necessitada, não pude pagar-lhe, porque não dispunha da moeda legal do reino. Tinha apenas a cédula falsa do idealismo.

- Mike, eu não pretendia...

- Deixe-me terminar - cortou Barrett, com dureza. - Serei rápido e ressentido. Depois da faculdade, perdi algumas boas oportunidades de aceitar aquele emprego no Instituto e tornar o mundo mais humano para a humanidade. Foi mais ou menos na época em que o conheci a você. Minha mãe apareceu com uma doença grave, realmente grave. Poupo-lhe os pormenores médicos. Para continuar viva, precisava dos melhores cirurgiões, do melhor tratamento, tudo o que havia de melhor. Precisava de dinheiro. Onde encontrá-lo? O fundo para a hora de aperto tinha acabado. Fora aplicado em mim. E eu andava ocupado de mais em praticar o bem para poder economizar um tostão.

- Você andava ocupado em praticar o que devia praticar, começando a vida. Estava apenas no início.

- Abe, não me venha com desculpas pré-fabricadas para os meus erros. Eu estava a alienar-me, virando as costas à realidade e às responsabilidades, gratificando a minha pequena anarquia e fingindo que não havia um desmedido mundo verdadeiro lá fora, o qual tinha de ser enfrentado. Olhe, Abe, o que houve foi o seguinte: eu precisava de dinheiro e não o tinha. Eu tinha elogios e medalhas de mérito, mas que não serviam de moeda legal. Dinheiro era moeda legal, e resolvi consegui-lo. Sabe onde fui ver se cavava?

- Não tenho a mínima ideia, Mike- respondeu Zelkin em voz baixa.

- Eu só tinha uma ligação com o mundo da riqueza: Phil Sanford. Procurei-o. Muito antes disso, uma vez, ele convídou-me a ingressar na casa editora da família dele. junto com ele, para ganhar dinheiro, de facto, e eu reagi como se tivesse sido convidado a trabalhar num antro de perdição. Eu era advogado e pertencia ao lado de fora, ocupado em advogar. Agora, eis que eu aparecia, de chapéu na mão. dizendo que havia mudado de ideia, e não me importava de aceitar um emprego mais bem remunerado na Sanford House. Bom, sempre hei-de ser reconhecido a Phil pelo que fez naquele dia. Ele pode ser leviano e insensível para certas coisas, mas, naquele dia que o procurei, ele estava com as antenas ligadas e com um poder de percepção infalível. Sentiu que havia algum problema e insistiu em saber o motivo dessa mudança radical de ideia na escolha da minha carreira. A princípio eu não quis revelar-lhe mas depois que saímos e enxugámos uns copos, desabafei tudo, contando tintim por tintim. Pois ele não quis que eu abandonasse a minha profissão por falta de recursos. “Ora, é apenas dinheiro”, disse ele.,, apenas dinheiro... e forçou-me a aceitar a quantia de que eu precisava. Um empréstimo. Com ele paguei aos melhores cirurgiões e eles salvaram minha mãe, e com ele pude dar-lhe o melhor tratamento possível para o resto da sua vida. Eu devia ter aprendido a lição. O dinheiro fala. O dinheiro salva. O dinheiro deixa a gente livre. Mas quando a gente é moço, uma única lição não basta. Foi só quando a minha mãe teve outra crise... e essa parte você conhece-a... e começaram a tratá-la com aquele remédio que, depois descobrimos, devia ter sido proibido, que aprendi a segunda lição. Quando o remédio a matou, aprendi que os beneméritos não praticariam o bem se tivessem de combater uma das fontes do seu rendimento. E, só então, recebi a lição número dois e entendi tudo. Foi quando fiz um juramento. Sou um escravo, disse para mim mesmo, e só o dinheiro pode libertar-me, e se a Grande Sorte um dia vier, juro que me aproveitarei. É por isso que tenho de entrar para as Empresas Osborn.

 

Zelkin mantinha-se completamente imóvel, fitando a xícara de café vazia. Finalmente acenou com a cabeça.

- Entendo - disse. - Quero dizer, chega para entender.

- Só para me certificar de que você entendeu - continuou Barrett -, deixe-me acrescentar uma última coisa. Conheci o pessoal de Hollywood, e eles têm uma expressão popular, que é vulgar, mas que diz tudo numa única frase: “Você está com tudo quando tem dinheiro para mandar os outros levar no rabo.” Está aí, em poucas palavras. Quando você tem bastante dinheiro para dizer: “Foda-se, velhão” para qualquer filho da puta deste planeta, então e só então você o dono do seu próprio nariz. E essa é a minha meta.

Zelkin sorriu desanimado.

- Eu compreendo-o perfeitamente, Mike, só que... só que existem várias maneiras de ser dono do próprio nariz.

- Exacto - Barrett tirou o cartão de crédito da carteira e colocou-o em cima da nota do restaurante. - Deixe que eu pago, Abe. Afinal de contas, vou ser vice-presidente.

- Está bem. A próxima vez é minha. De repente Barrett sentiu-se melhor.

- Ainda bem que você disse “a próxima vez”. Estava à espera que o dissesse. Eu não queria que isso prejudicasse a nossa amizade.

- Não se preocupe - retorquiu Zelkin. - Também gosto de amigos ricos.

Barrett assinou o canhoto, acrescentou uma gorjeta e consultou o relógio de pulso.

- Tenho de sair a correr. Só disponho de meia hora para chegar até ao centro do Palácio da Justiça, e falar com o nosso Mr. Duncan. Você não repara na pressa, não é, Abe? Lembre-se, é o meu espectáculo de despedida como benemérito... um benemérito que também quer liquidar a sua última dívida.

Faltavam três minutos para a hora marcada, quando Mike Barrett se aproximou do prédio de meio século onde o promotor público Elmo Duncan tinha o seu centro de operações e exercia o controlo de 260 advogados em seu departamento. Acima da ampla entrada em arco. talhadas em pedra, estavam as intimidantes palavras PALÁCIO DA JUSTIÇA.

Empurrando uma das portas giratórias, Barrett desceu rapidamente o curto lance de degraus, atravessando a familiar galeria do átrio com as suas inúmeras máquinas automáticas de lanches-e-bebidas, e tomou o elevador. No sexto andar, encontrou o moderno balcão de recepção, em forma de S, e foi encaminhado directamente para uma passagem que ligava com outro amplo corredor. Do lado oposto à sala de imprensa, deparou-se-lhe a porta de letras pintadas na parte envidraçada: “Elmo Duncan, Promotor Público.”

No interior havia uma saleta com duas escrivaninhas. Na que ficava à esquerda lia-se numa placa: -Ten. Hogan”, que Barrett sabia ser o motorista e guarda-costas do Promotor Público. A cadeira dessa escrivaninha estava desocupada. Do outro lado da sala, após uma série de cadeiras extras e junto de uma máquina copiadora, havia outra escrivaninha, com aspecto de grande actividade e que se achava ocupada. Somente quando Barrett chegou perto da ruidosa máquina de escrever foi que a recepcionista lhe notou a presença. Ergueu os olhos com ar humilde enquanto ele se identificava. Consultando rapidamente a folha de entrevistas, acenou com a cabeça e disse que o promotor Duncan estava à sua espera no gabinete de Mr. Victor Rodriguez, seu assistente especial e chefe do Departamento de Apelações. O gabinete de Mr. Rodriguez ficava no extremo oposto do corredor. Ela ia tocar a campainha para avisar o Promotor de que Mr. Barrrett estava a caminho.

Refazendo o mesmo trajecto, Barrett percorreu o corredor até chegar ao Departamento de Apelações. Ao entrar, a única ocupante da sala, uma bonita moça de cabelos castanhos, parou de dactilografar e levantou-se.

- Mr. Barrett? Por aqui, por favor. O Promotor já vai atendê-lo.

Segurou a porta aberta de outra sala. Barrett agradeceu e passou por ela. Encontrou dois homens em pé junto de uma mesa encostada a uma escrivaninha, absortos em conversa. Barrett logo reconheceu Elmo Duncan. Era o mais alto dos dois e tinha, no mínimo, um metro e oitenta. O cabelo era liso e louro, tinha pequenos olhos azuis, nariz fino e queixo fendido. A pele era clara e levemente sardenta. Vestia-se elegantemente, com um fato de alpaca azul feito sob medida e camisa listrada azul e branco. O seu companheiro, mais atarracado, tinha cabelo crespo bem preto, o rosto moreno e um nariz proeminente sobre o bigode aparado mas basto.

No momento em que a porta se fechou atrás de Barrett. Duncan olhou, interrompeu a conversa e aproximou-se com vasto sorriso e a mão estendida.

- Prazer em vê-lo, Mr. Barrett. Desculpe tê-lo feito caminhar tanto. Só consigo fazer alguma coisa quando fujo do meu gabinete. Victor e eu... Ah, talvez vocês dois não se conheçam. Este é Victor Rodriguez, meu assistente.

Victor, apresento-lhe Mike Barrett, um dos nossos advogados de maior êxito.

Barrett apertou a mão de Rodriguez enquanto Duncan permanecia ao lado deles.

- Mr. Rodriguez já estava de saída... ele tem um compromisso na rua... a não ser que o senhor precise dele - disse Duncan. - O senhor disse que queria discutir o... o... como era o nome?

- Ben Fremont - respondeu Rodriguez.

- Sim, Fremont - disse Duncan. - Pois Victor Rodriguez é o encarregado dos nossos casos de pornografia. Naturalmente, como tudo mais. eu reviso-os, mas se prefere que Mr. Rodriguez presencie o que tem a dizer...

- Não é necessário - retrucou Barrett.

Rodriguez despediu-se à pressa. Duncan indicou duas poltronas de couro diante da escrivaninha.

- Sente-se. Fique à vontade.

Barrett dirigiu-se para uma das poltronas e, afastando-a das prateleiras de livros jurídicos, aproximou-se da escrivaninha. Duncan passara para trás da escrivaninha coberta de vidro e instalara-se na cadeira giratória. Ofereceu uma jarra de água, mas Barrett sacudiu a cabeça, recusando também o maço de cigarros que lhe foi estendido.

- Prefiro o meu cachimbo, se não leva a mal - disse. Duncan acendeu um cigarro, enquanto Barrett se ocupava em encher o seu cachimbo decorado com urze branca inglesa, e depois riscou um fósforo.

- Creio que é a primeira vez que nos encontramos fora do pequeno palácio de Willard Osborn - comentou Duncan. - Como vai ele? Não tenho tempo para assistir à televisão, mas como toda a gente assiste, imagino que esteja passando bem.

Barrett sorriu.

- Eu diria que o único problema dele é o Imposto de Renda.

- Quem dera que eu pudesse dizer o mesmo - comentou Duncan, bem-humorado. - Sabe, Willard Osborn é um dos raros homens ricos que conheço com quem eu simpatizaria ainda que fosse pobre. É inteligentíssimo e muito divertido.

Barrett concordou. Sentia-se tentado a comunicar ao Promotor Público que, breve, seria o vice-presidente de uma das Empresas Osborn. para o impressionar ainda mais. Mas, à medida que Duncan prosseguia, Barrett percebeu que não havia necessidade de salientar a sua ligação com Osborn. Elmo Duncan encarregara-se de fazer isso por ele. O Promotor Público relembrava diversos jantares na mansão a que Barrett comparecera e não poupava elogios a Faye. Depois mudou de assunto, contando uma longa anedota a respeito de uma acção legal em que Osborn estivera envolvido e que constituía um exemplo perfeito da astúcia do milionário.

O tempo foi passando e, de repente, Elmo Duncan parou, acendeu outro cigarro na ponta do anterior, puxou a cadeira giratória para mais perto da escrivaninha e disse:

- Chega de conversa. Tenho a certeza de que o senhor quer entrar já no assunto. Em que posso servi-lo, Mr. Barrett?

Barrett tirou o cachimbo da boca, esvaziando-o no cinzeiro da escrivaninha.

- O senhor pode fazer-me um favor - disse.

- Diga qual é. Qualquer coisa... desde que seja razoável.

- Não vim aqui em nome de Willard Osborn. Estou representando outro constituinte, um velho amigo meu de Nova Iorque. Philip Sanford, o director da Sanford House, editora de Os Sete Minutos, aquele livro...

- Eu sei, A questão Ben Fremont.

- Exactamente -Barrett analisou o belo louro atrás da escrivaninha. - Mr. Duncan, posso perguntar-lhe se já leu o livro?

- Para ser completamente franco... não.

- Nem eu tão-pouco - disse Barrett. - Mas uma quantidade de críticos e professores de renome leu e escreveu sobre ele muito antes que fosse publicado pela primeira vez nos Estados Unidos, encontrando consideráveis méritos nele. Não se trata de nenhuma obra de pornografia barata, feita com intuito comercial e jogada às drogarias e livrarias por algum reles tipógrafo de imoralidades lá por Reseda ou Van Nuys. É o único romance escrito por uma figura lendária da década de trinta, e está sendo editado por uma das firmas mais afamadas e influentes do comércio de livros, Essa pequena medida policial de hoje de manhã causou certo constrangimento ao meu constituinte e pode causar-lhe consideráveis prejuízos financeiros. Portanto, achei conveniente vir aqui e...

- Deixe-me ver - disse Elmo Duncan, erguendo um maço de pastas de arquivo da beira da escrivaninha. - Deixe-me ver bem como foi a história toda.

Pôs-se a verificar os indicadores das pastas.

- Cá está, “Fremont, Ben. Artigo 311”.

Separou a pasta e pôs as outras de lado. Antes de abri-la, disse:

- Naturalmente, o senhor há de compreender que não efectuamos essas prisões sem reflectir. São sempre precedidas por cuidadosa investigação. Sei inclusive que depois de recebida a queixa, Rodriguez e seu ajudante... que é Pete Lucas, especialista em pornografia, além de excelente advogado criminalista... leram o livro em questão com a maior atenção. Bem, vejamos.

Abriu a pasta, começando a examinar e a virar as páginas que continha.

Barrett manteve-se calado, ocupado em tornar a encher e acender o cachimbo. E esperou, fumando tranquilamente.

Por fim, Duncan terminou a pasta. Colocou-a em cima da escrivaninha e esfregou o queixo.

- Pois muito bem. O que lhe vou dizer agora é com carácter extra-oficial, mas acho que se resume no seguinte. Mrs. Olivia St. Clair, presidente da L. F. D. em Oakwood, registou a queixa. Pete Lucas, e depois Victor Rodriguez, como eu disse, leram o romance. E não hesitaram em classificá-lo como pornográfico. O único problema foi determinar se era legalmente obsceno do ponto de vista da comunidade contemporânea.

- Desde que o livro foi apreendido que eu queria tocar nesse ponto - apressou-se a atalhar Barrett. - Uma vez, na época de Flaubert, Madame Bovary foi considerado obsceno. Hoje é apenas a história triste e inofensiva de uma esposa infiel. Ora, há bem pouco tempo, li as memórias dignamente publicadas de um cavalheiro anónimo da era vitoriana... chamava-se Minha Vida Secreta... nas quais o autor descreve minuciosamente como fodeu... a palavra é dele... mil e duzentas mulheres de vinte e sete países e oitenta nacionalidades. A única que lhe escapou, creio eu, foi uma lapónia.

Duncan estivera a remexer-se inquieto, mas agora soltou uma risada amarela.

- Isso mesmo - disse Barrett. - Quando esse vitoriano escreveu o livro, não conseguiu publicá-lo. Agora, na nossa época, converteu-se em best seller e não creio que tenha escandalizado nenhum leitor. Porquê? Porque os tempos mudaram. O jogo agora é outro. Como um professor frisou, a actividade sexual deixou de ser contrária à ética predominante. Portanto, porque não escrever sobre sexo de modo tão franco quanto se pratica? Acho que foi Anatole France quem disse... de todas as aberrações sexuais, a castidade é a mais estranha.

Duncan teve um leve sorriso mas não fez comentários. Esperou.

Como ainda continuava com a palavra, Barrett decidiu aproveitar-se da situação.

- Não acho também que essa franqueza em torno do sexo tenha prejudicado algum habitante do nosso país. O Dr. Steven Marcus certa vez escreveu sobre essa nova tolerância: “Para mim ela não indica lassidão moral, nem cansaço ou decadência por parte da sociedade. Sugere antes que a pornografia perdeu o perigo, a força que possuía antigamente.” Concordo plenamente.

O Promotor Público agitou-se na cadeira.

- Bem, há boa dose de verdade em quase tudo o que o senhor diz, mas não posso concordar inteiramente. Talvez uma certa pornografia tenha perdido o perigo antigo, porém não toda, acho eu. Poderíamos passar um dia, e até uma semana, discutindo esse complicadíssimo problema.

- Desculpe - disse Barrett. - Eu não pretendia falar tanto como falei. Nós todos às vezes deixamo-nos arrastar pelo entusiasmo. Tencionava restringir-me ao livro de Jadway. Reconheço que nas décadas de trinta, quarenta e cinquenta. Os Sete Minutos seria talvez considerado obsceno. Mas hoje...? Mr. Duncan, o senhor tem ido ao cinema ultimamente? Não viu. pessoalmente, na tela, não só o acto da cópula, como também masturbação feminina, homossexualismo, ora, sei lá mais o quê? Sustento apenas que hoje, para pessoa média, do ponto de vista da comunidade contemporânea, o livro de Jadway não é nem mais nem menos explícito do que outras obras de mérito artístico muito inferior. Portanto, porquê a prisão?

- Sim, bem, de facto, esse era o ponto discutível. Mas o nosso pessoal chegou finalmente à decisão que tomou por dois motivos. Um numeroso grupo de mulheres tipicamente médias, que reflecte o espírito da comunidade, registou a queixa, demonstrando, por conseguinte, que esse livro ultrapassara o que é aceitável do ponto de vista contemporâneo...

- O senhor considera como médio o tipo de mulheres que organiza uma legião de decência? - perguntou Barrett causticamente.

- Naturalmente que considero - respondeu Duncan, surpreso. - Elas não diferem das outras. Casam, têm filhos, fazem o serviço doméstico, cozinham, recebem visitas, lêem livros. Não há dúvida que não podem ser mais médias. Barrett sentiu vontade de desafiar o Promotor Público nessa questão, mas percebeu que Duncan estava sendo sincero - Abe Zelkin não o chamara de “honesto” e "convencional”?- e não lucraria nada em contrariá-lo. Barrett preferiu manter a paz.

- E se senhoras como essas, uma organização enorme, das maiores... -prosseguiu Duncan.

Uma organização enorme traduzida numa porção de votos, pensou Barrett, lembrando-se que Zelkin também chamara ao Promotor Público “político”.

- ... sentem-se perturbadas com esse livro, isso revela que talvez haja mais pessoas em Oakwood com altos padrões de decência do que se evidencia pelas multidões que assistem aos filmes que o senhor mencionou. Foi a primeira coisa que levámos em conta. A segunda, mais importante, foi que nós achámos que toda essa enxurrada de literatura escandalosa, desse lodo repugnante sadoma-soquista, estava aumentando e precisava de ser detida, sobretudo precisava de ser detida para não ficar ao alcance da juventude e das pessoas impressionáveis. Talvez, como o senhor disse, os tempos tenham mudado, as fronteiras da moralidade se tenham expandido, permitindo maior franqueza e tolerância. Mesmo assim existem limites, tem de haver um paradeiro em algum lugar. Talvez, como exprimiu tão bem um pastor congregacionalista, este país esteja padecendo de uma orgia de compreensão. Lembro-me de que escutei um discurso pronunciado no Leste pelo ministro Michael Musmanno, do Supremo Tribunal da Pensilvânia. Nesse discurso dizia ele: “Um vasto rio de imundícies está alastrando-se por toda a nação, enlameando as margens e espalhando por terra o seu fedor nauseabundo. Mas o que mais impressiona em tudo isso é que as pessoas cujos narizes deviam ser especialmente sensíveis a esse assalto ao olfacto não notam absolutamente nada. Refiro-me aos Promotores Públicos e seus representantes no país inteiro.” Pois bem, Mr. Barrett. Nunca esqueci estas palavras. Pretendo ser um dos Promotores Públicos que realmente notam o fedor.

- Certamente - concordou Barrett. - Não há quem não queira exterminar o cheiro da pornografia barata comercializada...

Duncan levantou a mão.

- Não. Os reles vendedores de pornografia barata dos becos não são os que nos devem preocupar. O que nos preocupa é que esse mesmo tipo de material obsceno adquira respeitabilidade através de editoras ilustres como a Sanford House e se encontre à venda em qualquer livraria. É justamente devido à reputação de Sanford que escolhemos esse livro de Jadway, para prevenir os grandes editores de que a coisa passou dos limites e tem de acabar. Pois bem, foi esse o motivo da prisão de hoje de manhã. Mas na verdade, Mr. Barrett, não quero exagerar a importância do caso nem da minha opinião a esse respeito. Quero dizer, especificamente na questão de Ben Fremont, a minha posição não é assim tão radical. Ela é radical em relação à tendência em peso da literatura e dos filmes deste país, porém não tive intenção de transformar o processo do Estado contra Ben Fremont em uma cause célebre. Não. Temos crimes mais importantes em nossa agenda de investigações e no calendário do tribunal. Ela é, relativamente, uma coisa insignificante.

- Bem, então...

- São essas mulheres de Oakwood. Elas estavam a fazer pressão sobre nós, com certa justificação, e tivemos de atendê-las. Tenho a certeza de que o senhor compreende isso.

- E com a prisão de Fremont, foram atendidas - retorquiu Barrett.

- Exacto - disse Duncan. - Cumprimos o nosso dever. Mas agora, também, o senhor tem um constituinte e um dever a cumprir. Estou disposto a prestar cooperação, dentro dos limites do que já aconteceu. A prisão foi efectuada. O acusado já está identificado. O senhor retirou-o da cadeia mediante fiança. Qual é a próxima providência que pretende tomar?

Barrett deu uma baforada no cachimbo e ficou a olhar a espiral de fumo que levantou. Por fim encostou-se à escrivaninha.

- Eu também quero ser razoável, Mr. Duncan. Acho que o meu constituinte se contentaria com o seguinte. Gostaria que Ben Fremont se confessasse culpado, pagando a multa de dois mil e quatrocentos dólares, mas, em compensação, a sentença de um ano de prisão ficaria suspensa. Contentar-nos-íamos com essa permuta, se fosse possível.

- Hum. Bem, se isso for possível, o senhor compreende que entrar com uma confissão de culpa equivale a banir Os Sete Minutos por completo em Oakwood. Todas as outras livrarias locais ficariam com medo da LFD e também de serem processadas por nós.

- Estamo-nos lixando para Oakwood - disse Barrett. - Que não fique à venda lá. Desse modo, vocês contentavam a LFD naquela comunidade. Uma vez que Oakwood não está incorporada no Município de Los Angeles, sendo área separada, muito embora pertença à sua jurisdição, isso significa que o livro seria proibido lá mas continuaria a ser vendido nas outras partes do Município de Los Angeles.

- Precisamente.

- Muito bem. O meu constituinte está interessado no resto do Município de Los Angeles e no efeito que qualquer medida repressiva sobre os livreiros locais possa ter sobre as demais cidades grandes do país. Se o livro pode permanecer à venda na maioria do Município de Los Angeles, isso é o que interessa. Quanto a Oakwood, nenhum habitante daquela comunidade será mais ultrajado pela presença do livro lá. E quem quiser comprá-lo, é só ir de carro a alguns quarteirões de distância, em Brentwood ou Westwood, ou qualquer bairro próximo de Los Angeles onde poderá fazê-lo. A questão resume-se nisso. E dentro de uma semana ou duas o livro será posto à venda em todas as principais cidades do país, dentro da mais absoluta normalidade. O escândalo ficará atenuado pela aceitação geral, não havendo nenhum problema posterior em relação a ele. Eis tudo, Mr. Duncan.

Barrett esperou.

Elmo Duncan esmagou a ponta do cigarro, pôs-se em pé, pensativo, enfiou as mãos nos bolsos das calças e caminhou lentamente no espaço entre a cadeira giratória e as prateleiras de grossos volumes jurídicos que forravam a parede.

De repente parou.

- Mr. Barrett, o que o senhor sugere parece-me bastante razoável.

- Óptimo.

- Contentaremos aquelas senhoras. Quanto a Lucas e Rodriguez, andam tão imersos nessa espécie de coisa que às vezes me inclino a crer que eles sejam hipersensíveis a cada palavra que lêem. É compreensível, claro. Têm de atender queixas praticamente diárias. Precisam de responder-lhes, como à do grupo em Oakwood, por exemplo. Mas sei que posso moderar os meus assistentes. Para dizer a verdade, eu poderia chegar a um acordo com o senhor desde já no sentido de reduzir as acusações. Só que devo aos meus auxiliares a cortesia de discutir o assunto antes com eles, uma vez que dedicaram tanto tempo ao caso. Porém concordo plenamente. Trata-se de um aborrecimento, de uma questão de rotina e que deve ser tratada de forma rotineira. Portanto, vamos esperar até amanhã, Mr. Barrett. Deixe-me acalmar qualquer ânimo contrariado, e quando tiver feito isso, o senhor poderá entrar com a sua alegação de culpa, e prometo-lhe interceder junto do juiz para que o resultado se limite à multa e uma suspensão da sentença de prisão. Não lhe parece justo? Barrett levantou-se.

- Parece, sim.

O Promotor Público contornou rapidamente a escrivaninha, apertou a mão de Barrett e levou-o até à porta.

- Não se esqueça de me telefonar amanhã mais ou menos a esta hora.

- Não se preocupe. Não me esqueço, não.

Ao abrir a porta, Duncan pareceu lembrar-se de alguma coisa.

- E, a propósito, quando falar com Willard Osborn...

- Vou jantar com ele amanhã à noite.

- Então não se esqueça de dizer que esteve comigo e que lhe mando lembranças e agradeço o tempo e atenção que a rede de televisão dele me vem dedicando ultimamente. Pode dizer-lhe que me sinto extremamente grato.

É assim, pensou Barrett, que se age nos mercados de toda a parte.

- Fique descansado que direi - retrucou. Duncan estava a olhar para o relógio na parede.

- Agora acho bom pôr mãos à obra. Estou com a tarde toda tomada e a noite pior ainda.

Apesar do dia de Verão ter sido agradável, à chegada da noite, os ventos do oeste começaram a dar vergastadas e quando ficou bem escuro o tempo, já estava bastante frio. Sobretudo nessa estrada à beira-mar.

Tiritando de leve com essa mudança brusca. Elmo Duncan encolheu-se a um canto do assento traseiro do Cadillac que Luther Yerkes enviara para ír buscá-lo depois do jantar. Olhou as janelas para ver se os vidros estavam completamente fechados. Estavam. Pensou em pedir ao motorista para ligar a calefacção, mas logo percebeu pelos marcos de referência que faltavam apenas cinco minutos para chegar à colónia de MaNbu e em breve ficaria isolado do vento e do frio.

Após um dia interminável, exaustivo, que mal lhe deixara tempo suficiente para conversar com a esposa, dar atenção às crianças ou comer em paz, esse percurso entre a sua nova residência no bairro de Los Felices e a casa de praia de Yerkes parecia duplamente cansativo. Gostaria que Yerkes usasse outra moradia mais acessível, o vasto chalé de estilo rústico francês em Bel-AIr, para essas conferências. Ou, ao menos, que as realizasse na casa do deserto em Palm Springs - nos fins-de-semana, quando a distância não importava - porque a atmosfera era mais calma. No entanto, apesar da irritação, compreendia a prudência de usar a casa da praia. Ficava retirada. Yerkes dava muita importância ao seu direito de retraimento pessoal, ainda mais quando não queria que as suas actividades de bastidores se achassem expostas ao conhecimento e especulação públicos.

Estes encontros periódicos entre o Promotor Público de Los Angeles e um dos mais ricos industriais da Califórnia, que podiam ser considerados como suspeitos por muita gente, haviam começado alguns meses atrás como conferências semanais, mas agora que Harvey Underwood e Irwin Blair tinham sido contratados, passando a participar das entrevistas, efectuavam-se duas e até três vezes por semana. Mais tarde a aliança entre Duncan e Yerkes teria de ser revelada. Por enquanto ainda era muito cedo, e uma táctica fundamental consistia em manter a oposição, a organização política do senador Nickels, na ignorância e, portanto, desprevenida. Nesta noite, além das que Duncan ia encontrar, apenas duas pessoas sabiam do seu paradeiro. Uma era sua esposa e a outra, o delegado de Polícia.

Ao contemplar despreocupadamente os chalés da praia que desfilavam rentes à Rodovia da Costa do Pacífico, ocorreu-lhe a ideia - como tantas vezes sucedia neste trecho da estrada - da extraordinária sorte que tivera em ser incluído nos grandes planos de um fazedor de reis. Muitas dessas casas de praia eram segundos lares, os lares de veraneio dos opulentos. Seria óptimo ter um para a sua família. Seria óptimo ter muito mais do que isso. Melhor ainda, seria maravilhoso dispor de poder.

Elmo Duncan crescera em Glendale, em estrita classe média inferior, sem pobreza nem autênticas privações, mas também sem regalias ou privilégios. As pessoas mais velhas no sistema de castas da sua juventude tinham-no prevenido: nunca ultrapasse o orçamento, e conheça o seu lugar. Bom, talvez viver com essa ideia tivesse representado uma vantagem em si. Fermentara-lhe a rebeldia contra uma vida que girava em torno da poupança (pensava-se em dinheiro antes de mais nada, porque se era obrigado] e contra uma vida que exigia humildade (tinha-se de escutar as pessoas economicamente superiores, ao passo que elas nunca escutavam o que se queria dizer). Pensando bem, percorrera longo caminho. A noite em que soube que fora eleito Promotor Público por surpreendente maioria, julgara ter alcançado o pináculo absoluto do êxito. Somente depois de dois dramáticos casos de julgamento, em que actuara com grande intensidade e proficiência, e que tornaram o seu nome conhecido em todos os lares de Los Angeles, ouvira os primeiros rumores do que era possível. Mesmo após descobrir que havia culminâncias além da já atingida, não se julgava capaz de galgar uma dessas posições altaneiras. Isto é, não se julgava antes que o fabuloso Luther Yerkes lhe estendesse a mão para sagrá-lo cavaleiro. E até Elmo Duncan sabia que Yerkes jamais escolhia perdedores.

Rememorando aquele fim-de-semana de ouro - tinha sido no último Inverno, no refúgio de Luther Yerkes no deserto em Palm Springs. - Duncan sentiu-se novamente reconfortado e liberto do cansaço. Quando chegara numa noite de sexta-feira para aquele fim-de-semana, Duncan tentara especular sobre o propósito dissimulado no convite. Yerkes não precisava de favores de um mero promotor público. Yerkes não tinha interesse em coleccionar nomes. Portanto só podia haver um motivo por trás do convite, e não podia ser social. No entanto, à medida que sexta-feira cedeu lugar ao sábado, e o sábado passou, e a maior parte do domingo, também, sem que o anfitrião fizesse nenhuma insinuação, as esperanças de Duncan esvaíram-se por completo.

Lembrava-se de que antes do jantar, naquele último dia no deserto - ele seria conduzido a Los Angeles logo em seguida - se odiara por ter sido visionariamente ambicioso, e detestara Yerkes por tê-lo feito servir de palhaço a seus próprios olhos. Lembrava-se da primeira impressão que o milionário lhe causara. Fora de desagrado, uma heresia perante um fazedor de reis, que não confessaria a si mesmo antes do início da derradeira noite, quando o seu desencanto começara a manifestar-se gradativamente.

Luther Yerkes tinha a insignificância de um metro e meio de altura, porém pesava 90 quilos. A cabeça era redonda, coroada por uma desconcertante peruca ruiva, e o rosto gordo, flácido, impassível, quase afável à primeira vista. Duncan achava que o aspecto roliço e as várias papadas, além dos acessórios externos de poder, contribuíam para ludibriar o visitante da corte. Mas depois de o conhecer melhor, surpreendendo-o a controlar as cotações da bolsa pela fita do telégrafo, presenciar um dos seus telefonemas, conversar com ele, os óculos de lentes azuis que sempre usava dentro de casa já não escondiam os pequenos olhos insensíveis, e o flácido rosto rechonchudo deixava de servir de máscara para o homem astuto, vaidoso e arrogante que realmente era. As mãos femininas cobertas de jóias e o passo afectado também eram mentiras, porque as mãos disfarçavam floridamente dedos de ferro e podiam assinar sentenças de morte, e o passo permitia-lhe manter o equilíbrio mesmo quando caminhava por cima de cabeças alheias.

Na última noite daquele fim-de-semana de Inverno no deserto, jantaram a sós. No momento seguinte ao prato de entrada, Luther Yerkes principiara a falar naquela voz incisiva, ligeiramente rouca e, salvo para engolir uma garfada de comida, não parara mais durante quase meia hora. Tinha convidado Duncan ali porque ouvira muitas coisas favoráveis a seu respeito. Antes de convidá-lo, investigara-lhe a vida e a carreira, passadas e presentes, inclusive da sua família, parentes afastados e amigos. Portanto já conhecia Duncan. Sabia de tudo a seu respeito. Mas não o vira em pessoa, em acção, nem escutara a sua voz. E nisso empregara a noite de sexta-feira, o sábado e a maior parte do domingo. Em formar uma opinião sobre ele.

Agora queria dizer-lhe que já formara, e Duncan servia. Servia para quê? Ora, para ocupar o cargo de próximo senador dos Estados Unidos pela Califórnia. O senador Nickels? Certamente se candidataria à reeleição. Porém não adiantava. O sucesso subira-lhe à cabeça. Podia ser derrotado. Mas só pelo homem certo. Yerkes tinha decidido que Elmo Duncan era o homem certo. Se fosse suficientemente grande para aceitar orientação, seria suficientemente grande para o Senado dos Estados Unidos. Duncan sempre tivera inteligência aguda, e compreendeu que “orientação” significava que, caso aceitasse e atingisse um dos maiores postos do país, esperavam que se lembrasse de quem o colocara no alto.

Duncan sempre sentira grande consideração, e orgulho, pela própria integridade. A vida também lhe ensinara que quem quer ser político precisa lembrar-se dos amigos e comprometer-se em ninharias, a fim de atingir os melhores objectivos. E de certo modo, a integridade pessoal permanece intacta, ao menos a maior parte, o que já basta. E percebeu que Luther Yerkes sentia e suspeitava até que ponto ele estaria disposto a ser seu representante. Aos olhos de Duncan, Yerkes sofrera uma nova metamorfose. Yerkes era generoso, inteligente, bonito e paternal. E quando chegou a hora de Yerkes o acompanhar até ao carro, Duncan concordou em aceitar a orientação. Yerkes seria seu mentor e patrocinador.

Durante a viagem de três horas de retorno a Los Angeles, Elmo Duncan cantarolou em voz alta, radiante de alegria.

Somente mais tarde, poucos dias depois, resolveu investigar o seu protector tal como o seu protector o investigara. Duncan sempre soubera que Yerkes era rico e poderoso. Agora, porque estava curioso e a sua esposa também, decidiu descobrir a extensão das riquezas e do poder de Yerkes. Thelma, a esposa de Duncan, encarregou-se da pesquisa. As acções aeroespaciais e electrónicas de Luther Yerkes eram demasiado vastas e intrincadas para a compreensão de um leigo. Ele possuía o Centro de Acessórios Espaciais, avaliado em cinquenta milhões de dólares, empregando sete mil operários e técnicos, perto de São Diego. O seu Departamento de Propulsão Aérea, nos arredores de Pasadena, rendera um bilião de dólares no ano anterior. A sua Companhia Recomm, em Dállas, cobrira os lances da Lockheed Aircraft, Boeing e Douglas com a sua proposta de estrutura aérea para um novo avião supersó-nico de passageiros, de 290 toneladas, o que resultou num contrato que podia, com o tempo, dar-lhe vinte e sete biliões de dólares de vendas potenciais. Num lugar qualquer, exercia o controlo de um Departamento de Sistemas de Dados que fabricava computadores fiscalizadores de sistemas. Associara-se a firmas estrangeiras para financiar projectos no Oriente Médio e na América Latina.

Yerkes tinha sessenta anos de idade e nunca mais se casara, após um divórcio há quase quarenta anos. Em matéria de desportos, dedicava-se à pesca do macaíra e a um importante grupo de basebol de que era proprietário. Os seus passatempos consistiam em coleccionar impressionistas franceses e arcaicos Rolls-Royces e Bentleys. O seu interesse pela política nunca se tornara público. Porém havia indícios de que apoiara financeiramente quatro candidatos à presidência, seis candidatos à senadoria e três candidatos a governador, e sempre contra adversários cujas plataformas ameaçavam os seus bens. Cada candidato que Yerkes apoiara, na medida em que Duncan conseguira apurar, fora eleito para o cargo. A obsessão de Yerkes era o dinheiro. Em matéria de política não se filiava em nenhum partido, apenas na sua obsessão; e a sua única plataforma parecia ser: derrotar todo aquele que já impediu ou visa impedir o progresso da livre iniciativa privada.

Elmo Duncan teve uma sensação vertiginosa ao saber que Luther Yerkes estava a tomar não só interesse financeiro como também pessoal, ao prepará-lo como candidato ao Senado.

- Cá estamos, senhor - anunciou o motorista. Duncan percebeu que se tinham desviado da Rodovia da Costa do Pacífico e entrado no portão contíguo à prisão militar da colónia de Malibu, e aproximavam-se agora da frente da extensa casa de praia de Yerkes.

Quando a limusina parou, Duncan, sem esperar ajuda, abriu a porta do carro e pisou as lajes do passeio. O vento tempestuoso despenteou-lhe o cabelo louro e enroscou-lhe o impermeável nas pernas. Premiu a campainha e poucos segundos depois o mordomo escocês fazia-o entrar, segurando-lhe o impermeável.

- Estão à sua espera no salão de bilhar, Mr. Duncan.

- Obrigado.

Cruzou rapidamente a passagem gradeada, com a piscina térmica do feitio de rim a um lado, um par de vestiários e banhos de sauna no outro. Já dentro de casa, passou pelo piano de cauda do salão e desceu os três degraus que levavam à confortável sala de jogo, dominada não por uma mesa de bilhar, mas por uma imensa e ornamentada mesa antiga de bilhar inglês.

Harvey Underwood, que se assemelhava a uma garça pensativa, ostentando o costumeiro olhar contemplativo e o inevitável tweed inglês, dispunha de três bolas na mesa, enquanto Irwin Blair, com o cabelo crespo desgrenhado e o fato de dacron bege folgado, passava giz no taco e anunciava que só podia repetir a façanha em cada três jogadas. Luther Yerkes metia uma pastilha de hortelã na boca (deixara de fumar recentemente), observando-os com desinteresse. Yerkes trajava camisa desportiva xadrez, calças cor de barro e ridículas botas de camurça índia que lhe davam pelo tornozelo. Para um olho crítico, parecia o irmão gémeo de Hetty Green, caso ela tivesse irmão gémeo. Para Duncan, no entanto, parecia sensacional.

Duncan passou o pente no cabelo, guardou-o e depois tossiu teatralmente. Yerkes levantou a cabeça, olhou pelos óculos azulados e veio imediatamente ao seu encontro.

- Elmo, até que enfim que chegou.

- Fomos retidos pelo trânsito no Sunset - disse Duncan. - Detestei ter de fazê-lo esperar.

Os outros dois cumprimentaram-no e ele ergueu cordialmente a mão.

- Olá Harvey... Irwin.

- Vamos para o living tratar já do assunto - sugeriu Yerkes. - São dez e cinco. Não podemos perder a noite inteira.

O expressivo rosto marcado de espinhas de Blair mostrou-se consternado.

- Ei, não querem ver esta tacada de mestre?

- Sim - respondeu Yerkes com uma pitada de sarcasmo- , mas quero vê-lo dar uma no seu trabalho, não aqui. Ande, vamos.

Como um Polichinelo dançarino, Yerkes conduziu a procissão degraus acima até o imenso living, cuja amplidão ficava asfixiada pela dispendiosa mobília antiga de estilo barroco, espelhos dourados e mesas, cadeiras esculpidas, uma velha escrivaninha deslumbrantemente marchetada de madrepérola. Os sons abafados das ondas, quebrando na areia lá fora, eram uma incongruência nesta sala repleta de tais móveis.

Havia duas poltronas fundas em frente de um sofá de três metros, com uma mesa baixa no meio que parecia uma arca de Sendai tolhida. Yerkes dirigiu-se a uma das poltronas, indicando a outra para Duncan, Underwood e Blair ocuparem automaticamente os seus lugares no sofá. Só então Duncan notou que Underwood sobraçava uma pasta de couro quase tão fina como uma hóstia e da qual retirava agora um maço de folhas amarelas.

O mordomo escocês entrou silenciosamente com uma bandeja de bebidas. Já conhecia as preferências dos hóspedes. Distribuiu os copos: uma pequena dose de conhaque armagnac para Yerkes; outra idêntica para Duncan, que pedira armagnac por ocasião da primeira visita só por espírito de imitação de Yerkes, com a diferença de que a sua dose tinha um copo de água ao lado; uísque JB com gelo para Underwood; Coca-Cola para Blair.

O ritual constava de um gole para cada um, e a reunião podia então começar. Yerkes pegou no seu armagnac e os outros estenderam a mão para as respectivas bebidas.

Duncan degustou a tepidez do conhaque e observou a dupla no sofá. Não havia dois homens mais diferentes. Underwood era calmo, positivo, o perfeito produto matemático de uma era de comunicações. Blair, extrovertido, estridente, vivia cheio de fantasias exageradas, o perfeito artífice de imagens para a mesma época. Factos e cifras proporcionavam a exacta informação semanal a respeito daquilo em que as pessoas lá fora estavam interessadas e preocupadas, informação que podia ser catalisada por fantasias e invenções para impingir às pessoas lá fora uma aproximação do que queriam. Os dois eram sócios. Representavam o cérebro de Underwood & Cia. Underwood era um dos directores mais respeitados de levantamentos particulares de opinião pública contratados por políticos e industriais da América. Fundara Underwood & Cia. Mais tarde, compreendendo que o negócio precisava de um adjunto que implementasse os seus achados, proporcionando assim um serviço completo à rica clientela, tomara Irwin Blair por sócio.

Blair tinha começado como agente de publicidade em Hollywood, mas possuía demasiado talento e criatividade para se confinar no mundo artístico. Quando um actor para quem trabalhava resolveu candidatar-se à Câmara de Deputados a despeito da zombaria dos colegas, Blair mostrou-se à altura do desafio. Como o actor era galã e bonito, um actor, Blair expô-lo a uma série interminável de aparições públicas e apertos de mão, e tendo o espírito lerdo e mal informado, de actor, Biair proibiu-o de abrir a boca, a não ser para sorrir. Blair havia inventado meia dúzia de divisas simplificadas, atribuindo-as ao candidato nos anúncios, panfletos e cartazes. Depois dedicou-se a destruir o adversário do cliente, adoptando técnicas brilhantes já usadas por uma firma conhecida como Campanhas, S.A., enquanto fora dirigida pela engenhosa equipa marido-e-mulher de Ciem Whitaker e Leone Baxter, que Blair idolatrava. Whitaker & Baxter tinha sido contratada para derrotar Upton Sinclair, quando ele se candidatou a governador da Califórnia. Procuraram desviar a atenção do bonito programa de Sinclair, preferindo concentrar-se no que conseguiram apresentar como ameaças aparentes em suas obras publicadas há vários anos. Contrataram um humorista para desenhar trinta caricaturas, mostrando os aspectos mais atraentes do Estado da Califórnia; depois fizeram-no pingar uma gota de tinta preta em cima, cobrindo parte de cada uma das agradáveis cenas da vida americana, e dentro de cada mancha encaixaram uma citação truncada de Upton Sinclair que o transformava num monstro e anarquista. Upton Sinclair foi derrotado. Imitando Whitaker & Baxter, Irwin Blair demoliu o adversário do ex-actor, que se tornou congressista por um sufrágio total de três a um. A partir de então, Blair largou o emprego de agente de publicidade para personalidades do mundo artístico, promovendo-se a consultor de relações-públicas de políticos. Não tardou muito em associar-se com Harvey Underwood.

Há três meses, em troca de honorários astronómicos, Luther Yerkes contratara os serviços de Underwood & Blair, no interesse da candidatura de Elmo Duncan.

Observando-os agora, Duncan sentiu-se novamente inquieto, como sempre ficava desde o dia em que Yerkes os contratara. Detestava a manipulação de si mesmo por outras pessoas. Estes homens dedicavam-se a testar os sentimentos e desejos do público para depois explorá-los, e nessa conspiração Duncan desempenhava apenas o papel de instrumento. A manobra não era desonesta mas dava a impressão de o ser. Ele detestava-a mas concordava em participar, porque até a própria esposa dizia que estava sendo reaccionário de mais, como sempre, e porque queria ser algo mais que um mero promotor de comarca.

Underwood folheava as folhas amarelas, um prelúdio de leitura dos resultados das averiguações classificadas dos seus experientes entrevistadores que, por todo o Estado, questionavam milhares de pessoas - um mostruário estratificado, feito a esmo, cientificamente baseado no sexo. idade, religião, raça e ocupação de cada indivíduo interrogado. Nesses levantamentos de opinião popular, os quatro procuravam achar problemas que interessassem ao povo e aos quais Duncan pudesse devotar-se tanto no cargo actual como nos compromissos, cada vez mais frequentes, de discursar às multidões. Quando concordavam em determinado ponto, tentavam resolver a maneira de Duncan fazer bom uso dele. Depois disso, cabia a Blair tornar o público ciente de que os interesses de Duncan coincidiam com a vontade geral e de que ele estava pronto a defendê-los e a solucionar os seus problemas.

O primeiro objectivo, lembrado por Yerkes três meses atrás, era tornar o nome de Elmo Duncan conhecido de todo o eleitorado estadual. Precisava de ficar tão popular como o adversário, o senador Nickels. Uma vez obtido isso, o trabalho resumir-se-ia em tornar a sua imagem mais atraente e a do actual titular menos. Mas a ampla divulgação do nome de Duncan continuava sendo o problema fundamental. Ele era relativamente ilustre no sul da Califórnia, em grande parte devido ao último caso de homicídio em que actuara de modo tão brilhante. Porém continuava sendo uma figura local, um “herói municipal”, como dissera Yerkes. Devia converter-se em herói estadual, tão conhecido e idolatrado em Fresno, São Francisco, Sacramento, em Salinas, Sonora e Eureca, quanto o era em Los Angeles.

- Elmo precisa de um julgamento que faça bastante barulho, que tome conta de todas as parangonas- ouvia agora Yerkes frisar a Underwood, repetindo o que vinha afirmando há semanas a fio. - Vocês têm de encontrar alguma coisa, Harvey, algo que seja verdadeiro e funcional.

Quando viu Duncan sacudir a cabeça, concordando. Um grande julgamento, em torno de uma questão vital. Eis o ponto cruciante.

Underwood consultou mais uma vez as folhas amarelas.

- Não posso alterar os factos, Mr. Yerkes. Tenho aqui o nosso último levantamento. Ainda não estamos a interrogar o público a respeito de problemas internacionais. Estamos a limitar-nos ao que os eleitores registados neste Estado consideram de interesse doméstico. E devo comunicar novamente que a maior preocupação do povo, sem sombra de dúvida... numa percentagem superior a trinta por cento em relação aos impostos e à educação... é a violência nas ruas. Quer dizer, o povo está preocupado com a anarquia, o perigo, o tumulto, não só racial, não só do crime organizado, mas com a violência provocada pela juventude descontrolada. Não estou generalizando. O senhor sabe que nunca generalizo. As nossas perguntas secundárias sobre essa preocupação com a violência tentam apurar os motivos pelos quais'os nossos entrevistados acham que esta situação existe. E continuamos a obter os mesmos motivos. Já nos concentrámos em dois deles, sem conseguir desenvolver uma plataforma significativa para Mr. Duncan. Há duas semanas escolhemos um terceiro, a opinião de que grande parte dessa violência e ameaça da juventude provém da franca libertinagem ou é estimulada por ela no material de leitura e nos filmes exibidos em cinemas ou televisão. Pois bem. Concordámos em que essa ameaça pertencia à jurisdição de Elmo, sendo uma coisa que ele poderia desenvolver, e a nossa discussão coincidiu com a aparição daquele livro que foi levado à atenção de Elmo. Depois combinámos que ele deveria forçar o cumprimento do Código Penal da Califórnia na parte referente à censura, usar o livro como pretexto para criar um caso de repercussão estadual em que ele combateria a ...a...

- A Mafia editorial de moral subversiva - sugeriu Irwin Blair.

- é - disse Underwood -, e por esse acto e pelo possível processo subsequente, ele ficaria conhecido como o protector da mocidade e da velhice, e inimigo da literatura que incita à violência. Concordámos em procurar...

- Nós não concordámos - interrompeu Duncan. - Vocês três concordaram. Eu fui contra desde o início.

- Você aceitou - lembrou Yerkes, em tom brando, a Duncan. - No fim você concordou em tentar.

- Bom, naturalmente, mas... - protestou Duncan.

- E agora, ao que me consta, você realmente tentou - prosseguiu Underwood. - Mr. Yerkes disse-me que hoje de manhã, afinal, efectuou uma prisão. Você não acha que, antes de discutirmos quaisquer novas providências, se devia esperar que...

- Não - respondeu Duncan, categórico. - Vim aqui justamente para tratar desse aspecto da censura, e quero tratar disso de uma vez. Repito, não gostei da ideia desde o início, e continuo a não gostar. Agora a reacção da imprensa mostrou que eu tinha razão. Todos nós precisamos de nos convencer de que essa história é um fracasso. Portanto coloquemos uma pedra em cima e estudemos outra mais promissora.

Irwin Blair sacudiu a mão.

- Espere aí, Elmo. Você não está a ser um pouco, impaciente? Talvez esse truque do Artigo 311 acabe por dar certo. Reconheço que não partiu como um foguete, mas...

- Foi um fracasso, um fiasco e falhou mesmo - replicou Duncan com ênfase, levantando-se automaticamente, porque sempre era mais loquaz quando falava de pé. - Em matéria de factos, Harvey, você é fantástico. Ora, eu também sou. Acusamos um livro de ser obsceno e prendemos um livreiro, de acordo com o Artigo 311, por distribuir uma obra imoral. Dos quatro jornais que eu vi desde hoje de manhã, três mal mencionaram a prisão, enquanto um nem se dignou fazê-lo. Dos três que a mencionaram, um publicou dois parágrafos na página seis e os outros um parágrafo num canto qualquer, perto dos anúncios classificados ou das notas necrológicas.

Irwin Blair deu um passo à frente com tal rapidez que tropeçou diante do sofá.

- Olhe, se você pensa que a culpa foi minha - disse, defensivo -, devo frisar que fiz tudo o que pude. Alertei a imprensa. Eles prometeram publicar com destaque. Eu não posso controlar o que finalmente se passa na redacção. Deve ter sido cortada ou preterida por notícias mais urgentes. Mas dois cronistas, no mínimo, falaram sobre o caso na televisão.

- Calma, Irwin - disse Yerkes. - Ninguém está a culpá-lo pela falta de atenção que deram ao caso. Nem Elmo, nem eu. Não percamos tempo e energias com brigas pessoais. Elmo tem razão. Temos de nos restringir aos factos.

Blair voltou a sentar-se descontente. Elmo Duncan passou por trás da poltrona que ocupara e depois virou-se para os outros.

- Sim, factos, senhores. O duro facto é que a censura não é um problema dramático, porque o homem médio, ainda que resmungue sobre os perigos da bandalheira provocante, tem dificuldade em relacionar um livro com os crimes que ocorrem nas ruas. Um livro é um objecto inanimado. Para começar, poucas pessoas conhecem ou lêem livros. E quando lêem. dificilmente percebem que as páginas impressas podem, de algum modo, ameaçar-lhes a segurança ou a vida pessoal. Para dizer a verdade, há os que talvez até se indignem com a nossa interferência no seu direito de ler o que bem entendem ou de ficarem excitados com o que lêem. Interferindo desse modo, contentamos apenas um punhado de puritanos e retrógrados que não exercem a menor influência nos resultados de uma eleição. Olhe, acredito piamente que boa parte da libidinagem que se encontra hoje nos livros com a desculpa de literatura seja nociva e corrupta, e o meu departamento esforça-se por esmagar o que ela tem de pior. Mas o que eu acredito não tem nada que ver com a possibilidade de transformar a censura, a censura de um livro, num problema de magna importância que apaixone a opinião pública. Além do mais, iniciar essa espécie de denúncia dificilmente propicia a criação de uma imagem. No máximo, o que se consegue? Colocar o Promotor Público de uma grande cidade contra um reles livreiro qualquer e contra uma série de obscuras palavras impressas que nem sequer uma pessoa entre mil jamais lerá ou ouvirá falar a seu respeito. Senhores, a desproporção é enorme, e deixa-me com cara de tirano. Felizmente, muita gente nem vai tomar conhecimento, porque foi uma notícia insípida de mais para ganhar destaque. Afirmo que enfrentávamos um problema que já nasceu morto, e sugiro que o enterremos o mais depressa possível. Para ser franco, eu praticamente prometi ao advogado do tal livreiro que encerraria o caso com rapidez e discrição. Senhores, acreditem em mim, ninguém vai empolgar milhões de eleitores com a ideia de que um livro é capaz de lhe causar grave dano.

- Mas um livro pode causar grave dano.

Era Harvey Underwood, falando da extremidade oposta do sofá. Duncan olhou bruscamente para ele e os outros dois logo prestaram atenção. Underwood passou a mão pela sobrancelha cerrada.

- Eu estava a pensar - continuou. - Enquanto você falava, Elmo, fiquei a pensar em livros que provocaram verdadeiros terremotos, deslocando massas humanas e civilizações inteiras para a prática do mal, para criar mudanças radicais, para fazer o bem. Quantos milhões não morreram por causa de um livro chamado Meín Kampf, de Adolf Hitler? Quantas pessoas morreram ou foram escravizadas por causa de um livro chamado Das Kapital, de Karl Marx? Quanta violência foi instigada, para melhor ou para pior, por um panfleto ou livro chamado O Bom Senso, de Thomas Paine; por um ensaio contido num volume chamado Desobediência Civil, de Henry Thoreau; por um romance chamado A Cabana de Pai Tomás, de Harriet Beecher Stowe? - Fez uma pausa. - Elmo. não menospreze o poder incendiário de um livro.

Duncan franziu a cara, crispando os dedos no encosto da poltrona.

- Não vou discutir com você a respeito desses livros, a respeito de certos livros. No entanto, você esquece-se de um factor. Esses livros que mencionou... mostraram-se eficazes para criar ou ajudar a criar violência, revoluções, guerras, protestos, porque cada um deles se ligava directamente a uma necessidade imediata no seio das massas. Esses livros preencheram uma finalidade, agitaram ou inflamaram povos inteiros porque visavam problemas vivos. O livro de Hitler revelou aos alemães a origem das suas dificuldades, indicando-lhes uma saída. O de Marx deu a uma Rússia faminta, madura para a revolução, uma receita para comer novamente. Os escritos de Thoreau forneceram a Gandhi uma arma nova, mais forte do que as inglesas, e libertou a sua pátria, e esse mesmo ensaio de Thoreau deu à juventude americana a mesma arma para usar na resistência contra a facção militarista nos Estados Unidos. Lógico que um livro explosivo pode ser usado como bomba de dinamite. Mas com o que estamos lidando? Que temos nas mãos? Um romance sexual obsceno, escrito por um autor que já morreu há muito tempo. Uma nação cheia de gente que teme por suas vidas por causa da anarquia e da violência. Podemos dizer-lhes: Vamos condenar este livro e outros congéneres, e depois que estiverem banidos, todos os temores de vocês hão-de desaparecer, pelo menos a maioria, porque vocês ficarão mais seguros? Claro que podemos dizer isso e em parte seria provavelmente verdade, porém garanto-lhes que ninguém iria acreditar. E quando não se tem crentes, não se forma uma cruzada. E sem uma cruzada, não existem heróis. - Duncan voltou lentamente à mesa baixa e parou. - É para isso que estamos aqui, não é? - perguntou, meio na brincadeira, para diminuir o seu constrangimento. - Para transformar Elmo Duncan em herói, não é?

- Elmo, sente-se - pediu Luther Yerkes. - Você já disse o que tinha que dizer. Agora sente-se, termine a sua bebida e deixe-me falar.

Tirou os óculos azulados devagar e franziu os olhos para os outros.

- Eu escutei o ponto de vista de vocês, Harvey e Irwin. Também escutei o seu, Elmo. Estou, portanto, em condições de julgar - dirigiu-se directamente à dupla no sofá. - Elmo Duncan fez tudo o que pedimos que fizesse. Cooperou connosco. Sugerimos que iniciasse a questão da censura como uma espécie de balão de ensaio, para ver se a coisa pegava. Na qualidade de Promotor Público, Elmo agiu. Mas ficou seriamente tolhido, num sentido de relações públicas, pelo nosso Código Penal. Ele estava atirando contra um livro pornográfico, um livro de sucesso; porém a lei forçou-o a fazer mira contra o vendedor do livro, caça de menor importância. Os jornais não se impressionaram. Mesmo aquelas duas referências à prisão transmitidas pela televisão... para ser sincero, fui eu quem conseguiu uma, deixando um recado pessoal com a secretária de Willard Osborn, no sentido de que gostaria que uma das emissoras dele divulgasse o facto. Quase mais nada, especialmente que tivesse um cunho espontâneo, aconteceu. Na minha ponderada opinião, o nosso Promotor Público está com a razão absoluta no assunto. Um ponto vulnerável numa campanha é como uma acção de valor inseguro. Não insista. Desfaça-se dela. Aceite o prejuízo provisório e troque por outra.

- Já que o senhor o diz, Mr. Yerkes - retorquiu Underwood.

- Digo, sim - afirmou Yerkes. - Devemo-nos guiar pelo instinto de Elmo. Ele é um político nato, e todo o político nato possui um instinto certo sobre o que lhe convém ou não, e esse instinto é mais útil para a compreensão do eleitorado do que qualquer computador deste planeta. Elmo acha que temos de desistir da história, encontrar algo que obrigue milhões de pessoas a prestar atenção, e eu concordo. O que despertará a atenção geral? Não um livro, sabemos. O quê, então? Agora me lembro de uma coisa que um escritor escreveu há tempo, não sei onde. Talvez seja esta a resposta. O tal escritor dizia que os romances policiais são populares e fascinam toda a gente porque o homicídio é o único crime irremediável. O homicídio é definitivo. Podem-se recuperar as jóias mas nunca a vida de um ser humano. De certo modo, isso também se aplica a nós. O Elmo, aqui presente, é um político e o nosso Promotor Público. Ele precisa de um problema público que possa ser dramatizado numa acusação pública. Precisa de um crime importante, irremediável, que pela sua própria natureza afecte e perturbe o homem na rua e a mulher na cozinha. Um crime semelhante ao homicídio. Sob esse aspecto, a censura de um livro constitui um crime insignificante e contingente, como o roubo de algumas jóias, afectando poucas pessoas, mas sem atingir, absolutamente, as massas. O nosso problema, hoje à noite, é encontrar a grande questão. Concordam comigo?

Duncan e Underwood acenaram com a cabeça.

- Voltemos de novo ao trabalho - propôs Irwin Blair.

- Muito bem - disse Yerkes.

Ergueu o copo e sacudiu delicadamente o conhaque no fundo. Por fim continuou:

- O último levantamento de Harvey torna a sublinhar que a principal preocupação do povo é a violência nas ruas, as actividades e a péssima situação da juventude, e a inquietação que isso está criando entre os pais. Perfeitamente. Temos aqui uma cidade descomunal, onde fervilham todas as espécies e tipos de gente possíveis, e, como Elmo pode atestar, não se passa um minuto sem que um distúrbio, conflito, ou crime de violência aconteça. Quais foram as últimas estatísticas do FBI? Um estupro em cada trinta minutos nestes Estados Unidos. Isto para falar de um género de crime. Só Deus sabe quantos outros não ocorrem cada minuto, que dirá cada trinta. E esses crimes continuam a acontecer a todo o instante, agora mesmo, sem parar. Devemos concentrar o nosso ataque no que nos convém e no momento exacto. Agarrar o incidente, entregá-lo a Elmo, e dizer: transforme isto num caso e nós torná-lo-emos a você famoso de ponta a ponta do Estado. Portanto, Harvey, queremos saber, com minúcias, os resultados do último levantamento que fez. Depois necessitaremos de imaginação e senso prático, simultaneamente, para determinar um acto isolado que esteja a ocorrer Lá longe, esta noite, na cidade distante, que valha a pena ser tomado e convertido numa causa para o nosso Promotor Público de Los Angeles e numa demonstração para o próximo representante da Califórnia no Senado Norte-Americano. Um acto violento, na categoria de homicídio e não de roubo de jóias, é tudo o que precisamos...

Deus do céu, pensou ele, se alguém chegasse a saber a verdade, se alguém chegasse a descobrir, ele matar-se-ia.

Queria matar-se agora mesmo, neste instante.

 

Havia três horas que acontecera, e George tinha-se enganado, achando que ele logo se sentiria melhor, porque nada havia adiantado. A passagem do tempo não havia adiantado. O haxixe não havia adiantado. Ficar junto com os outros não havia adiantado. Nada. Excepto, talvez, que agora estava menos nervoso e trémulo da cabeça aos pés. Agora sentia um entorpecimento completo, com aquela sensação de náusea no intestino e nos testículos que dava até vontade de chorar, e queria o esquecimento absoluto, a inconsciência, adeus e nenhuma recordação.

Desviou os olhos da rua em frente para as suas mãos brancas, pregadas que nem ganchos brancos ao volante do Rover sedan.

Ouviu a voz de George Perkins no assento ao lado.

- Ei, tem a certeza de que você 'stá bem?

- Acho que 'stou - respondeu Jerry Griffith. - Acho que agora ‘stou.

- Pois não parece. 'Stá com cara de enterro.

- Estou bem - insistiu Jerry Griffith.

Virou o carro para o quarteirão leste da Kelton Avenue, bem perto do campus da Universidade, onde o seu amigo George dividia o apartamento com dois outros indivíduos.

- Não há motivo para se preocupar- disse George, coçando por baixo da barba. - Não pense mais naquilo. Faça como se nunca tivesse acontecido. Se nunca aconteceu, então não aconteceu. Pense noutra coisa, como se estivesse a praticar ioga ou coisa parecida. Sabe como é?

- Estou bem - repetiu Jerry Griffith.

- Ei, calma, velhão, você já passou da minha casa. Jerry pisou fundo no travão com o que parecia mais um tronco de árvore do que um pé, e a brusquidão da paragem fez-lhe bater o peito no volante. Mas não doeu.

- Desculpe - disse, enquanto George recuava do painel de instrumentos.

Esperou que George saísse do carro, mas George continuou no mesmo lugar. Notou que olhava fixamente para ele. George alisava as longas suíças ruivas e a barba, sem tirar os olhos dele.

- Jerry, velhão, só mais uma coisa... - dizia George. Esperou para ouvir que coisa era.

- É como eu lhe 'stou a dizer a noite toda. Não precisa de ter medo, você 'stá livre. Ninguém sabe que você 'steve lá.

- Ela sabe.

- Ela não sabe o seu nome.

- Esqueci-me.

- Portanto, você 'stá livre - repetiu George. - Mas há uma coisa. Se houver confusão...

- Você disse que não ia haver.

- E não vai mesmo, basta você não deixar - frisou George. - É como eu sempre lhe digo, você é o pior inimigo de você mesmo. Essa coisa de morar com a família, por exemplo.

- George, você sabe...

- Claro, eu sei de tudo sobre o seu velho e você. É a única coisa que me preocupa. Você vai chegar lá com essa cara de doido, e ele vai fazer que você se cague de medo até descobrir o que é que você andou a fazer. E aquele pedaço de mulher que você chama prima... aquela tal Maggie...

- Pare de chatear, George.

- Eu preciso dizer-lhe o que 'stou a pensar. Você meteu-se numa enrascada, mas se confiar nela, é melhor ir já cavando a sepultura.

- Já lhe disse que isto vai ficar só entre nós dois.

- Então não se esqueça - advertiu George. - Porque se não ficar, e der chatice, lembre-se de uma coisa... você esteve lá sozinho. Eu não fui juntamente. Só você é que lá esteve. Porque, se algum dia você disser que eu estive lá, vou considerar um acto de traição, e terei de lhes dizer que foi você quem a feriu. De propósito ou não, foi você.

Portanto a nossa combinação é esta. Eu não estive lá. Assim nunca posso dizer que você esteve. Compreendeu?

- Okay, George.

George Perkins abriu a porta, depois hesitou e mostrou-se amigo de novo.

- Mas como lhe disse, não há nada para se preocupar. Não aconteceu nada.

- Okay.

- Fique só com a boa recordação, como eu. Você tem de reconhecer que foi uma grande foda.

- É.

- E agradeça-me por tê-la aberto para você. 'Stava mais apertada que uma concha quando eu meti. Mas depois que entrou, foi o mesmo que escorregar num trenó cheio de graxa, e com ela a esganiçar-se, a morder e a bater o tempo todo, quase gozei no mesmo instante. Foi bárbaro.

- 'É, foi bárbaro - concordou Jerry. - Só que...

- Esqueça o resto-atalhou George. - Você sabe qual é a minha filosofia. Fique com as boas recordações e deite o lixo fora. Lembre-se disso, velhão.

- Okay.

- Vá direito para casa!

- Vou.

- Então até amanhã. Eu falo-lhe quando você sair da aula de Literatura do Knight.

- Chau.

George Perkins saiu do carro, subiu os degraus do prédio de apartamentos de dois em dois e desapareceu no interior.

Jerry Griffith tirou o pé entorpecido do travão e pisou o arranque. Conduziu o rover em direcção à Veteran Avenue para tomar o Sunset Boulevard e rumar para casa, em Pacific Palisades.

Era o caminho mais curto, e ele queria chegar o mais depressa possível, porque estava sozinho e não suportava a solidão durante muito tempo. Especialmente hoje à noite, do jeito que se sentia, pior do que nunca e ainda por cima com tendências suicidas.

Mas ao alcançar o Sunset Boulevard, esperando que o sinal abrisse, e virando o carro à esquerda, rumo a Palisades, percebeu outra coisa.

Não estava sozinho.

Levava a garota com ele, aquela garota que se esganiçava toda, aquela Sheri Moore de dezoito anos.

Só que agora não se esganiçava, não. Estava imóvel, feita um cadáver, sem emitir um som, o menor movimento.

Jerry considerava-se um sujeito de memória visual, porque tudo o que imaginava ou lembrava ocorria de forma puramente visual, em quadros gráficos, não numa série de diálogos palavrosos, como acontece com outras pessoas. Bem que gostaria de estar sozinho agora, mas não estava. Bem que gostaria de não possuir memória visual, mas possuía.

Lá estava aquele único quadro, continuando a projectar-se na tela do seu cérebro.

O único quadro que a memória registara antes de se vir embora, antes que George de lá o arrastasse.

A garota deitada de costas, completamente nua, sobre o tapete ao lado da cama. Estendida de pernas abertas, livres, as coxas carnudas e brancas afastadas e imóveis, de modo que o que mais se notava era aquela saliência cortada ao meio, à mostra entre os pêlos púbicos, que parecia o talho dos lábios franzidos de uma mulher. E com a mão encostada à mesa-de-cabeceira e a outra pousada no umbigo, os pequenos seios leitosos achatados, como se estivessem vazios, a boca caída, os olhos fechados, o sangue vermelho a escorrer da nuca e do cabelo emaranhado.

O quadro era este.

Tentou arrancá-lo da lembrança, e durante algum tempo conseguiu-o, mas logo outros se insinuavam, por ele ser tão visual.

Podia ver os dois, George e ele, com as suas Cocas, no Locomotiva Clandestina, o ponto onde costumavam dançar na Melrose Avenue, e George ouvindo a garota dizer para alguém que gostaria de encontrar uma boleia para voltar para casa, e George a puxar conversa e a dizer que o seu amigo tinha carro e onde é que ela morava, porque se não fosse longe de mais seria um prazer levá-la. Chamava-se Sheri e morava num apartamento com outra moça, Darlene; era logo acima do Santa Monica Boulevard, em Doheny Drive, de modo que não ficava longe.

Outro quadro. O carro estacionado diante do prédio, ela no banco de trás, com George, que não parava de apalpá-la, e a coxa dela a aparecer onde o vestido de algodão repuxara, e Jerry só a pensar em rasgar-lhe a roupa toda e copular a noite inteira, imaginando como seria, tudo visual, quando de repente George desce do carro e ela também, e George faz-lhe sinal a ele, dizendo que vão provar que são cavalheiros, acompanhando-a até à porta do apartamento.

Outro quadro, lá em cima, dentro de casa. Ela levanta-se para ir ao quarto de banho, que fica ao lado do dormitório. George a piscar-lhe o olho e a bater no pénis, dizendo que não há dúvida que ela quer, mesmo que não saiba, está na altura, assim talvez seja melhor esperar por ela já no quarto, e depois que ele acabar, então passa para Jerry.

Outro quadro, a porta do quarto a fechar-se nas costas de George. E ele a beber uma daquelas cervejas enlatadas que ela trouxe da cozinha. Dali a pouco a porta entreabre-se, e George ali parado, sem um fiapo de roupa no corpo, grandathão e cabeludo, com aquela pica enorme caída no meio das pernas, George sorrindo e dizendo “É só para você saber que ainda 'stou à espera para lhe fazer a ela uma pequena surpresa”. No mesmo instante, a voz dela, e George a entrar depressa no quarto, a voz dela protestando, dizendo qualquer coisa a respeito de Darlene, a companheira de apartamento, e barulho de luta. E depois ele próprio a pôr-se em pé e fechando bem a porta para não ouvir mais nada.

Outro quadro, confuso. Só que lá está ela, agora na cama, e ele nu, e a humidade no meio das coxas dela e a mão dele a tapar-lhe a boca.

E depois o quadro em que ele se levanta, pegando nas cuecas e nas calças, e ela corre atrás dele, que larga as roupas e tenta espancá-la, e ela a recuar num salto, o tapete a escorregar sob os seus pés, e ela caindo, esborrachando a cabeça contra a quina pontiaguda da mesa-de-cabeceira, encolhendo-se, resvalando no chão, procurando erguer-se de novo e rolando de costas.

E depois a montagem de vários quadros, desta vez com diálogo. George entrando a correr no quarto, dizendo para que diabo você foi fazer isso, e ele gaguejando, balbuciante, que foi um acidente. George dizendo para ele se vestir depressa. George debruçando-se sobre ela e dizendo que complicação e ela desmaiou mas graças a Deus está viva e respirando. Ele vestindo-se e querendo chamar um médico. George arrancando-lhe o telefone das mãos e perguntando se ele 'stá doido, arriscar cadeia certa para os dois. Ele insistindo num telefonema anónimo para um médico e George teimando que não, obrigando-o a terminar de se vestir, dizendo-lhe que a outra moça vai voltar a qualquer instante e chamará o médico e que a garota está bem e vamos sair fora daqui enquanto é tempo.

O primeiro quadro de novo. Contemplando mais uma vez o corpo nu, as pernas abertas.

O resto dos quadros sumindo-se aos poucos, cada vez menos nítidos. Quase só fragmentos de diálogo, com pedaços e trechos visuais. Já no carro, George dirigindo, e George dizendo que você não 'stá em condições de ir para casa ainda, vamos lá à garagem, que de facto era uma garagem que George e a turma alugara e decorara como uma espécie de clube para a gente se reunir e fumar uma erva, e ele respondendo que tudo o que George quiser fazer ele aceita. Caminhando a pé para a garagem e George dizendo que decerto não ia acontecer nada de maior, porque se Sheri estava arrombada, sem piores consequências, não daria um pio, senão teria de explicar como aceitara o convite, pois afinal de contas não havia indícios de que alguém tivesse invadido o apartamento para violentá-la, e se o ferimento era sério ou coisa pior ainda, então ela não estaria em condições de falar e portanto ponto final. Na garagem havia três sujeitos e duas garotas, gente da casa, e erva à farta, e apesar do incenso, o cheiro estava forte de mais, mas ninguém fazia caso e até ele puxou um cigarro, tragando fundo, retendo o fumo e acalmara-se um pouco, só um pouco, mas não o bastante- Depois, ele e George foram dar outra longa caminhada, até que pudesse assumir a direcção sozinho, e fez questão de mostrar que já se achava melhor e então levou George de carro até ao apartamento dele.

Um último quadro, de novo, de novo, o primeiro. A garota deitada de costas no chão, completamente nua sobre o tapete, ao lado da cama, com a saliência vaginal húmida e o cabelo manchado de sangue na cabeça.

Precisava de controlar-se, senão estaria a procurar sarna para se coçar. Olhou o relógio no painel de instrumentos. Quase meia-noite. A mãe e o pai já deviam estar a dormir. Maggie, provavelmente, também. Estava salvo.

Girou o volante ao chegar à bomba de gasolina da esquina e saiu do Sunset Boulevard, acelerando o carro, ladeira acima, até chegar ao caminho de entrada da casa. Deslizando entre as sebes, apagou os faróis e rumou lentamente para a ampla área de estacionamento de chão acimentado em frente ao abrigo de automóveis. O Bentley S3 do pai já estava no lugar do costume. Encostou o seu carro ao lado.

Só quando se afastou do abrigo, dirigindo-se à entrada da casa, foi que percebeu que havia luz por trás das cortinas do living. A mãe, que era inválida, podia estar a dormir, mas, no mínimo, o pai recebia alguns amigos. O mais provável é que fosse Maggie, que tivesse ficado acordada, a ler. Precisava de estar preparado para tudo. Teria de mostrar-se calmo e natural.

Os quadros haviam-se sumido da sua lembrança e sentiu-se mais seguro, mais garantido.

Alcançando a porta da rua, guardou as chaves do carro no bolso do sobretudo e remexeu nas calças à procura do chaveiro de prata com a placa que tinha o seu nome gravado, presente de Maggie no último aniversário. Tinha as chaves do carro e da casa em chaveiros separados, pois dividia o Rover com Maggie e ela esquecia-se sempre das suas nalgum lugar e pedia-lhe emprestado as dele.

Parado na porta, Jerry esmiuçou o fundo do bolso à procura do chaveiro. Não estava ali. Experimentou o outro bolso. Tão-pouco. Preocupado, revistou o paletó. Nada do chaveiro. Um calafrio de apreensão gelou-lhe o peito, e então sentiu pânico.

Ouviu um roçar de folhagem na sebe à direita e, de repente, o foco claro de uma lanterna iluminou-lhe o rosto e um guarda alto fardado agigantou-se a seu lado.

Com a mão livre, o guarda segurava uma placa brilhante de prata da qual pendia uma corrente, um aro de metal e um conjunto de chaves.

- Era isto que você estava a procurar, rapaz? - perguntou o guarda.

O foco da lanterna desceu para a placa e o aro, que tinha agora na concha da mão. Jerry pestanejou ao ver o seu nome gravado em arabescos na placa.

- O seu nome é Jerry Griffith, não é?

- Sim.

Começou a tremer, descontrolado, estendendo a mão para apanhar as chaves, mas o guarda cerrou o punho. Jerry levantou a cabeça.

- Onde... onde estavam?

- Nós encontrámo-las, Jerry. Encontrámos há duas horas. Estavam caídas no chão de um quarto de dormir em Doheny, bem perto do corpo da moça que você é suspeito de ter violado hoje à noite. Essa foi dura, Jerry.

- Não violei ninguém!

- Ah não? Pois a companheira de apartamento encontrou Miss Moore, e depois de telefonar, pedindo uma ambulância, Moore recobrou os sentidos por meio minuto e contou à amiga que ela tinha sido violentada, estuprada. Levaram-na em estado de coma para o hospital. Fractura de crânio. Ela está muito mal, Jerry.

- Foi acidente - deixou escapar Jerry. - Ela escorregou, caiu e bateu com a cabeça...

- Ou, quem sabe, alguém bateu na cabeça dela quando quis resistir, nem, Jerry? Não estou a perguntar nada. Você não precisa de responder enquanto os seus advogados não estiverem presentes.

O guarda olhou por cima de Jerry que ouviu então os passos de outra pessoa no cimento das imediações.

- Nat-chamou o guarda -, o rapaz está aqui. É melhor revistá-lo.

Os passos aproximaram-se por trás dele e depois um par de mãos começou a percorrer-lhe habilmente os bolsos.

O foco da lanterna caiu-lhe de novo em cheio sobre o rosto.

- Você estava sozinho? - perguntou o guarda.

- Eu... eu... Sim, estava. Olhe, deixe eu... O guarda olhava de novo por cima dele.

- Que é que você achou, Nat?

- Carteira. Troco miúdo. Outro jogo de chaves. Canivete de mola.

O guarda da lanterna sacudiu a cabeça.

- Canivete. É, já estava à espera de algo nessa base. Eles costumam andar sempre com uma coisa dessas quando querem violar uma mulher sozinha.

Jerry corou e sentiu uma fraqueza nas pernas.

- Escutem... não... esse canivete é uma lembrança da Suíça, quando eu estive... Está cheio de macetes... tesouras e...

- E lâminas? - completou o guarda. - Para que serve o outro jogo de chaves?

- Prò... prò... prò carro. Prò meu carro.

- Ouviu, Nat? É bom revistar bem o carro dele. Agora vou levá-lo lá para dentro. Nat, você procure-nos lá dentro depois de revistar o carro. - Agarrou Jerry pelo braço. - Vamos entrar, Jerry.

- Não!

- Chega de encrenca, rapaz. Você já 'stá atolado para o resto da vida. A sua família está reunida aí dentro à espera de você e do advogado. Vamos depressa. Quando a acusação é de estupro, agravado por injúrias corporais, você precisa de todo o auxílio que puder obter. Portanto, entre já, Jerry. Para dentro.

 

Luther Yerkes abriu o fecho do pesado Rolex de ouro no pulso, tirou o relógio com a mão afectada e aproximou-o dos óculos de cor.

- Meia-noite e meia - anunciou. - Não pensei que fosse tão tarde. Acho que fizemos o máximo que se podia fazer numa só reunião.

Elmo Duncan pôs-se em pé, espreguiçando-se e bocejando.

- Estou esfalfado.

Underwood já guardara os papéis na pasta de couro.

- Bem, espero que tenhamos chegado a algum resultado.

- Porque é que a gente não se reúne de novo daqui a uns dias?- sugeriu Irwin Blair, levantando-se todo animado. - Há uma lista bastante grande de ideias novas que se podiam desenvolver.

- Estou zonzo de mais para saber se encontramos algo de aproveitável!- replicou Duncan. - Mas fico contente por ver como todos estamos a esforçar-nos.

Yerkes virou o último trago do seu terceiro armagnac.

- Nós não vamos desistir, Elmo. De repente, empinou a cabeça.

- É o telefone que está a tocar a esta hora? Ouviu-se uma campainha distante, vinda da sala de bilhar, e depois o som abafado da voz do mordomo.

- No mínimo, é a minha mulher - disse Duncan, com uma risadinha. - Bem, senhores, acho bom eu...

O mordomo escocês apareceu à porta.

- Telefone prò senhor, Mr. Duncan.

- Viu? Que foi que eu disse? - comentou Duncan.

- É o Delegado Patterson que quer falar com o senhor, Mr. Duncan.

- Então é pior - suspirou Duncan. - É trabalho.

- Querendo poupar a caminhada, Elmo, pode atender aqui mesmo. A não ser que seja particular. Nós instalámos um microfone e altifalante para as nossas ligações durante as conferências.

Yerkes apontou duas pequenas caixas verdes, com as habituais perfurações para microfone e amplificador, pousadas em cima da mesa entre as poltronas.

- Não deve ser particular. Ligue prà gente ver, Luther.

Yerkes curvou-se e calcou um botão. Duncan agradeceu com um aceno de cabeça e depois falou ao microfone.

- Oi, Tim. é o Elmo. Que foi que houve?

A resposta veio como descarga através do altifalante.

- Não queria incomodá-lo, Elmo. Realmente, nada fora do comum. Estupro em Doheny, em West Hollywood. A vítima sofreu ferimentos na cabeça, está em estado de coma, foi levada prò Monte Sinai. Praticamente coisa de rotina, só que há gente importante envolvida; por isso, quando os guardas comunicaram a ocorrência achei que você talvez gostasse de saber.

- Que gente importante, Tim?

- Bem, esse garoto de vinte e um anos que violou a garota... confessou tudo, quanto a isso não há problema... mas ele é filho do... O pai dele é Frank Griffith.

- O das agências de publicidade? - perguntou Duncan.

- O próprio.

Luther Yerkes, de salto, pôs-se em pé, fazendo sinal com a mão para Duncan.

- Elmo, pergunte ao Delegado se ele tem a certeza absoluta. A Griffith Publicidade faz-me uma porção de anúncios. Conheço Frank Griffith. É impossível que seja ele...

Duncan virou-se de novo para o microfone.

- Era Mr. Yerkes que estava a falar, Tim. Você ouviu? O altifalante estalou de novo.

- Ouvi. Sim, é o próprio Frank Griffith, cujo filho...

- Não posso crer - retrucou Yerkes. - Você sabe quem é Frank Griffith? Está no mesmo plano de Benton & Bowles, Young & Rubicam e Doyie Dane Bernach. Possui uma das melhores reputações do mundo. Não se lembra? Foi campeão olímpico de decatlo há alguns anos. Hoje é um dos homens mais respeitados da comunidade. Como podia o filho dele... não é possível.

Duncan debruçou-se sobre o microfone. -Você ouviu, Tim? Tem a certeza de que é o filho de Griffith?

A voz do Delegado voltou.

- Os meus agentes prenderam o rapaz quando ele'chegou a casa. Frank Griffith estava lá e mandou chamar Ralph Polk, o advogado da família. E, como eu disse, o rapaz confessou o estupro.

Duncan olhou para Yerkes, depois para o amplificador.

- Confessou? Óptimo. Alguma prova circunstancial?

- A vítima foi uma tal Miss Sheri Moore, de dezoito anos. A moça que mora com ela tinha saído, e quando voltou encontrou-a semiconsciente, dizendo que havia sido violada e a outra então chamou a Polícia. Jerry Griffith... é o nome do rapaz... as chaves dele, com uma placa com o nome, estavam perto da vítima. Ele disse que fez tudo sozinho. Achámos um canivete com ele, portanto talvez seja verdade. Recebemos um relatório do hospital. Os testes revelam que ela foi desflorada, sem sombra de dúvida. Revistou-se o carro do rapaz depois que o prendemos. Havia uma ponta de cigarro com marca de bâton... o laboratório fará a análise amanhã de manhã... e, deixe ver... ah, sim, quatro livros na mala traseira, três de textos de aula e o quarto, encontrado debaixo do pneu sobressalente... um livro de libertinagem... até parece incrível, o mesmo que nos levou a prender aquele livreiro em Oakwood hoje de manhã... que diabo, como era o título?... ah, é, Os Sete Minutos... que estava lá, e depois havia...

- Tim, quer dizer que você achou esse livro no carro do filho de Griffith?

- Com certeza. Escondido por baixo do pneu sobressalente. Em todo o caso, julguei...

Avançando como uma flecha, Yerkes estendeu a mão e segurou Duncan pelo ombro.

- Elmo, até logo, despeça-se, diga-lhe que liga depois -cochichou ansioso. - Deixe desligar esse maldito aparelho.

Obedecendo, Duncan falou:

- Está bem, Tim. Obrigado pelo aviso. Contactarei com você. Muito obrigado.

Libertou-se da mão de Yerkes e desligou o microfone. Yerkes, que se comportava como se estivesse com a dança-de-são-vito. empurrava Underwood e Blair para a frente, um de cada lado. E agora olhava para Duncan, estranhamente agitado.

- Elmo, Elmo, você ainda não percebeu? - perguntou Yerkes.

- Creio que sim. O livro... o rapaz... mas não estou seguro se poderemos...

- Tenho a certeza! Absoluta! - bradou Yerkes. - O filho de Griffith, aquele pobre rapaz, não cometeu estupro com graves danos corporais. Não cometeu nem é responsável. Sabe quem é o responsável? Sabe quem foi o verdadeiro criminoso? Aquele livro imundo, só de bandalheira. Os Sete Minutos. Eis aí o verdadeiro criminoso, o que incitou um rapaz decente, de boa família, a cometer estupro. Aí está a prova insofismável do tipo de coisa que está a deixar essa rapaziada alucinada, saindo pelas ruas como hordas de animais selvagens, perpetrando a pior espécie de ataques criminosos. Esse livro depravado, Elmo... eis aí o estuprador! Underwood e Blair meneavam a cabeça, concordando hipnotizados, e Duncan, quando viu, também fazia o mesmo, com fervor.

- Santo Deus, Luther, tem razão, você tem toda a razão - exclamou, com a voz entrecortada. - Acho que é possível...

Yerkes tirou os óculos de cor, mostrando os olhinhos fanáticos.

- timo - disse ele, baixando a voz -, aquela prisão por causa da censura hoje de manhã... já não é roubo de jóias... você sabe o que é?... É o homicídio irremediável... o próprio acto capaz de sublevar milhões, não só no Estado como em todo o país. Elmo, esqueça o sono e a cautela. Corra já a casa de Frank Griffith e assuma pessoalmente o controlo da situação. Porque sabe de uma coisa... nós finalmente encontrámos o trunfo que andávamos a procurar... o caso sensacional, o grande problema, o fantástico criador de imagem, o maior possível. Agarre-se a ele com unhas e dentes. Reduza a pó esses estupradores. Proteja o público desses livros de libertinagem que levam ao terror. Faça isso e o triunfo é certo... o triunfo de todos nós, senador Elmo-Duncan!

 

SONHOU que estava a lagartear-se ao sol da Riviera, no tombadilho do seu iate branco ancorado ao largo de Cannes. De repente, uma explosão desfez o sonho em pedaços, dissolvendo-o, e atirando-o de volta à sua cama em West Los Angeles.

De olhos cerrados, podia ainda ouvir os reflexos da explosão, próximos, mas em volume mais baixo.

A cabeça desanuviou, o som tornou-se mais nítido. Percebeu que era a campainha do telefone.

Abriu os olhos, virou a cabeça no travesseiro, e viu a hora: sete da manhã. Apoiou-se no cotovelo, e mais para silenciar a maldita persistência do telefone do que para atender a chamada, estendeu a mão para o aparelho e aproximou o auscultador do ouvido. Se fosse número errado, alguém sofreria as consequências.

Era o número certo.

- Mr. Michael Barrett?

Uma voz feminina, de secretária, distante. - Sim - resmungou em tom gutural de quem está em jejum.

- Mr. Philip Sanford, de Nova Iorque, quer falar com o senhor. Um momento, por favor.

Segurando o auscultador, atirou longe o cobertor e sentou-se à beira da cama.

Philip Sanford entrou na linha.

- Mike, desculpe acordá-lo. Esperei o máximo que pude.

Parecia agitado. Barrett ficou a imaginar vagamente porquê.

- Não faz mal, Phil. O que foi que...?

- Não sabe o que aconteceu aí ontem à noite? Já viu as primeiras páginas dos jornais de hoje?

- Não, ainda não.

- Deixe-me ler-lhe uma das parangonas. Não é a principal, mas saiu na primeira página, o que é já bastante ruim. Cá está. - Sanford deu a impressão de reter a respiração, e depois leu em voz alta: -Filho de Conhecido Publicitário Confessa Estupro: Atribui Culpa a Livro Pornográfico.” Você ouviu isto? É o nosso livro que ele culpa!

Agora Barrett estava bem acordado.

- Que história é essa?

- Todos os jornais deram um destaque enorme. E estou com a televisão ligada. Todos os principais locutores já comentaram o facto. Até parece que é o primeiro estupro cometido em todos os tempos.

- Phil, você quer fazer o favor de me explicar?

- Desculpe. Ontem, eu pensei que estava preocupado, mas depois de um azar danado destes! Um rapaz aí arranjou uma garota de dezoito anos e deu-lhe uma boleia até ao apartamento dela, e depois foi atrás, ameaçou-a com um canivete e violentou-a. Consta que ela tentou resistir e ele bateu com a cabeça dela contra alguma coisa. A moça sofreu comoção cerebral e agora está no hospital, em estado de coma. Caiu qualquer coisa do bolso do rapaz quando ele estava a vestir-se, a Polícia localizou a pista e prendeu-o. Adivinhe o que acharam escondido no carro do garoto? Pois é. Um exemplar da nossa edição de Os Sete Minutos. Depois o rapaz confessou o estupro e deitou toda a culpa sobre o livro. Num dos telegramas... onde foi que eu o meti?... Bom, não interessa, citavam as palavras dele: “Eu li e fiquei todo excitado. Aí então não sei que ideia me deu e acho que endoideci de vez.” E depois acrescentava: “Sim, aquele romance, foi aquilo que me incitou a fazer o que fiz."

- Essas últimas palavras, tenho a certeza de que não são dele - observou Barrett. - “Incitou” não é termo do rapaz. É linguagem usada pela Polícia ou por agente de publicidade. Está-me a parecer que o garoto foi ensaiado.

- Mas o facto é que ele cometeu a coisa, quanto a isso não há dúvida, e lá estava o nosso livro no carro dele.

- Não estou a contestar isso. Referia-me a outra coisa. À maneira como os factos estão a ser tratados. Não tem importância. Seja como for...

- Mike, acho que estamos fritos. Estou preocupado. A publicidade prò livro até é boa. Que diabo, preciso dela. Mas não dessa espécie. Toda a gente vai ficar contra nós.

Wesley R. tem procurado falar comigo pelo telefone a manhã inteira. Uma das raras vezes que meu... meu... meu pai se lembrou de que estou vivo. Não atendo. Mando dizer que saí.

- O rapaz, o tal que violentou a moça, que nível de instrução tem?

- Nível ideal, o melhor tipo de educação possível. Quer que eu leia os artigos?

- Acho bom. Pelo menos os telegramas principais. Durante os cinco minutos seguintes, com a voz trémula,

Sanford leu as notícias dos jornais a Barrett. Quando terminou, disse:

- Pronto, agora já sabe. Não atino com o motivo do destaque que estão a dar, a não ser talvez porque se trata do filho de Frank Griffith... família importante.

- Não - replicou Barrett -, não é isso. É a coincidência de um estupro logo após a prisão de um livreiro que distribuiu um livro pornográfico. Cada acto separado não seria notícia. Justapostos, ligados, parecem constituir matéria de sensação e refutar a famosa frase do prefeito James J. Walker.

- Que é que você quer dizer?

- Consta que Jimmy Walker certa vez disse: “Nunca soube que livro engravidasse mulher.” Para falar a verdade, acho que a versão literal era: “Nunca soube de nenhuma mulher que ficasse desonrada com um livro."

- Sim, eu já conhecia.

- Pois aqui parece haver uma situação real que refuta essa frase. A imprensa criou um caso. Muito bem arrumado. A causa, um livro incita um rapaz a atacar uma moça. O efeito, uma moça desonrada por um livro. Isso é notícia.

Sanford mostrava-se cada vez mais agitado.

- A única coisa que me interessa é a repercussão que terá sobre o livro. Que vai acontecer com aquela prisão de Ben Fremont que você ia solucionar? Já falou com o Promotor Público, não falou?

- Falei, mas não faça duas perguntas ao mesmo tempo - respondeu Barrett calmamente.

Procurou raciocinar.

- Em primeiro lugar, quanto à repercussão que isso terá sobre os nossos esforços em relação a Ben Fremont e ao livro. Eu dizia há pouco que a imprensa estava a tentar juntar dois factos distintos para apresentá-los como um só. Disse que é isso que o torna notícia. Exacto, E notícia mas não é prova. Um crime não tem nada que ver com o outro, no sentido estritamente legal. Esqueça a imprensa.

Preocupemo-nos com a lei. Ben Fremont foi preso por fornecer material de leitura obsceno. Isto é uma coisa. Jerry Griffith foi preso por estupro e danos corporais infligidos a uma moça. Isso é outra. Segundo a lei, os hábitos de leitura de Jerry Griffith nada têm que ver com as acusações contra Fremont. O facto de Griffith ter lido Os Sete Minutos possui apenas interesse libidinoso e, portanto, transgride o Artigo 311 do Código Penal da Califórnia. O caso Fremont será julgado por seus próprios méritos, no que toca à lei.

- Mas nós não estamos a enfrentar unicamente a lei -protestou Sanford. -Que me diz da opinião pública?

Ali estava a grande pergunta, Barrett sabia, e já a considerara e antecipara. Mas era cedo de mais para atendê-la. Talvez tivesse de responder mais tarde, ainda hoje, mas por enquanto não estava com a resposta engatilhada.

- Não ponha o carro à frente dos bois - retorquiu. - De momento, conservemo-nos no terreno da lei, que é o que vamos ter de enfrentar. Isso traz-me à segunda pergunta que você fez há pouco. Se eu falei com o promotor público Elmo Duncan sobre o caso Fremont? Falei, Phil. Ele mostrou-se amável e compreensivo. Concordou em que essa história toda de censura e prisão era uma maçada, e deixou claro que tinha tão pouco interesse como nós num processo dispendioso que representava pura perda de tempo. Ele quis saber com o que nos contentaríamos, e eu disse. Considerou viável o nosso pedido. Deveríamos fazer com que Ben Fremont se confessasse culpado e depois dar um jeito para que ele seja multado em dois mil e quatrocentos dólares e receba pena de um ano, que termina por ficar suspensa. O seu livro não seria vendido em Oakwood, que é área não incorporada no Município de Los Angeles, mas você teria a liberdade de colocá-lo à venda em qualquer outro lugar de Los Angeles.

- Ficou combinado, então?

- Não, não totalmente. Foi por isso que adiei o meu telefonema para você. Eu queria ter a certeza. Está praticamente resolvido. Quando me despedi do Promotor Público, ele apenas solicitou um prazo para discutir, o que acertámos com os auxiliares dele, por mero gesto de cortesia. Pediu-me que lhe telefonasse hoje, quando tornaria o compromisso oficial. É nesse pé que as coisas estão.

- Ponha no passado, Mike - corrigiu Sanford. - Estavam... ontem. Talvez hoje as coisas tenham mudado.

- PhilIP só posso repetir: segundo a lei, nada mudou de ontem para cá. Duncan é certamente um advogado tão esperto como eu, quem sabe se não mais ainda. Não ignora que um caso de estupro é absolutamente irrelevante à acusação do 311 contra Fremont. Ele vai tratar do caso de Fremont de acordo com os méritos da questão. E se for assim, como eu acredito que seja, há-de respeitar o nosso acordo de ontem. Tenho bastante confiança nisso.

Ouviu-se um escape de ar no receptor do telefone. Sanford, evidentemente, soltara um suspiro de alívio.

- Obrigado, Mike. Sinto-me muito melhor... Só mais uma coisa. A minha secretária não pára de me esfregar memorandos no nariz. O nosso departamento de vendas está a começar a receber uma enxurrada de pedidos de informação de todo o país, perguntando o que pretendemos fazer sobre essa denúncia contra o livro. Eu gostaria de lhes dizer que não há motivo para preocupações, que libertámos Fremont sem problemas e que agora toda a gente pode continuar a vender o livro. Quanto mais depressa se puder dizer isto, melhor. Dá tempo para você resolver este assunto ainda hoje?

- É o que tenciono-”- respondeu Barrett. - Eu devia telefonar prò Promotor Público. Acho que seria melhor ir de carro à cidade e falar com ele pessoalmente por alguns minutos. Aliás, também me convém liquidar este assunto o mais rápido possível. Eu disse-lhe ontem que larguei Thayer & Turner e que tinha algo muito mais importante em vista. Pois bem, é uma vice-presidência nas Empresas Osborn.

- Ena, que sensacional, Mike! Parabéns.

- Obrigado. Seja como for, fiquei de decidir até hoje à noite, e parte da proposta é que tenho de assumir o novo cargo imediatamente. Portanto, tenho tanto interesse como você em terminar já com esta maçada da censura. E espero conseguir. Telefono mais tarde, assim que tudo fique solucionado.

 

Desde que viera morar com os Griffith na Califórnia, Maggie Russell tinha a impressão de que o mundo parara de girar no seu eixo. Parecia-lhe que tudo quanto era vivo se imobilizara por completo. Os dias sucediam-se com tamanha rapidez e suavidade, sem a menor alteração, cada um perfeitamente idêntico ao anterior, que mal se sentia a passagem de um mês ou a entrada de uma estação. Embora não significasse viver verdadeiramente, suspeitava ela, era um modo tranquilo de existir, bem-vindo nessa fase da sua mocidade. Depois do frenesi e insegurança dos primeiros anos, perdendo primeiro o pai e mudando de Minnesota, depois perdendo a mãe e mudando de Ohio, e depois morando com parentes no Alabama, e, por fim, procurando emprego que a pudessem manter e ainda dar-lhe tempo de frequentar o colégio na Carolina do Norte e em Massachussetts, foi maravilhoso encontrar um refúgio onde havia rotina, regularidade e os dias sucediam-se como manchas imprecisas, podendo acordar e dormir tranquilamente.

Era isso que tornava o choque mais forte, reflectiu Maggie, sentada discretamente no banco da varanda fechada do living dos Griffith, observando a actividade e tensão que ocorriam diante dos seus olhos.

A mudança brusca, imprevista, na rotina e na vida da casa tinham-na apanhado de surpresa. Não que lhe tivesse sido sempre fácil adaptar-se aos outros, mesmo parentes, especialmente a alguém tão respeitado e exigente como seu Tio Frank (embora a Tia Ethel e o primo Jerry fossem modelos de amabilidade, por quem sentia uma afeição inabalável), mas em matéria de lares, pelo que ela conhecia, este havia sido um confortável casulo, com cada dia risonho tão previsível como o próximo. E, no entanto, de uma hora para a outra, este mundo virara do avesso, começando a girar descontrolado.

Ontem, a esta hora, reinava calma e sossego naquele living. Hoje, transformara-se num hospício em miniatura, sobrecarregado de emoção e perigo.

Pôs-se a pensar se não teria sido sempre assim, pelo menos potencialmente, e se não fechara os olhos e o espírito à realidade, querendo que tudo fosse perfeito?

Além dela, havia cinco pessoas no living, sentadas num círculo desigual, conversando sem parar. Um pouco afastado, ao pé da escada e perto do elevador da casa, instalado há vários anos, depois que a Tia Ethel não pôde mais caminhar, via-se a cadeira de rodas vazia. Maggie deu graças a Deus que estivesse vazia e pelo facto de o médico ter mandado a tia deitar-se com forte dose de sedativos. Ela teria ficado ainda mais perturbada com esta cena - a noite precedente, com a Polícia, depois com o Promotor Público, já bastara - do que a própria Maggie, ao ver Jerry, tão inquieto e assustado, no meio de todos aqueles homens, voltando da primeira citação quinze minutos antes.

Maggie Russel analisou minuciosamente os homens presentes na sala.

Dois ela não conhecia, embora um tivesse um nome que já vira diversas vezes impresso e ouvira o tio mencionar. Fora apresentada a ambos logo que entraram, mas esta era a primeira vez que via qualquer um deles nesta casa. Um dos dois estranhos, cujo nome lhe era familiar, chamava-se Luther Yerkes. Ficara fascinada por aquela figura bizarra, que se vestia de modo tão extravagante'- e pela auréola de lenda que trazia. Notou, também, a importância que o tio lhe atribuía pela forma com que Frank Griffith, geralmente brusco, autoritário e prepotente, agora mostrava deferência pelo industrial. Tentou avaliar os motivos por trás daquela subserviência. Seria porque Yerkes era um dos maiores clientes da Publicidade Griffith? Ou porque um homem de tanta riqueza e influência se apressara a prestar apoio a um amigo de negócios numa hora de aflição?

Para Maggie, que não tinha nada de Poliana, Luther Yerkes podia ser filantropo com o seu dinheiro, mas não parecia o tipo que fosse também filantropo com o seu tempo. No entanto ouvira-o dizer, há menos de dez minutos, que estava decidido a fazer tudo o que pudesse pelo filho de Frank Griffith e para denunciar o verdadeiro criminoso

- ou seja, o tal livro indecente.

Sentado ao lado de Yerkes, sem pronunciar palavra mas tomando anotações numa agenda de capa preta, estava aquele que fora apresentado como o consultor de relações públicas de Yerkes. Ela não entendera o seu primeiro nome

- julgava que fosse Irving ou Irvin, ou talvez Irwin - mas lembrava-se do sobrenome: Blair. O cabelo assemelhava-se a uma venda de liquidação. A voz era idêntica a um trombone. Era o outro estranho, e ela não lograva atinar com o papel exacto que ali desempenhava.

Ao centro estava alguém que já tinha visto antes, de vez em quando: o advogado da família, Ralph Polk, que andava sempre de chapéu de feltro na Califórnia!), de gravata borboleta e colarinho duro, mostrando-se reservado e superconservador.

Depois havia o Tio Frank, geralmente um dínamo, agora estranhamente quieto, mascando com firmeza a ponta do charuto apagado. Frank Griffith intimidara-a desde o primeiro dia em que pusera os pés naquela casa. Não se tratava apenas de respeito pelo seu triunfo na vida. Na família Russell - a Tia Ethel era Russell, sendo irmã da mãe de Maggie - sabía-se que Frank Griffith se lançara à estrada do sucesso com as economias bem investidas da noiva. Maggie há muito adivinhara que as economias da sua própria mãe tinham sido esbanjadas pelo pai, e o aue sobrara fora mal aplicado, e quando Maggie ficou órfã a família Griffith teve de contribuir para as despesas do enterro materno. Mas Frank Griffith empregara bem o dinheiro da esposa, acumulando-o e capitalizando a sua fama de campeão olímpico para subir na vida e estabelecer a agência de publicidade que agora possuía sede principal na Madison Avenue e prósperas sucursais em Chicago e Los Angeles. Embora as funções de Maggie se limitassem praticamente a servir de secretária e companhia social à tia, de vez em quando batia à máquina, altas horas, para o tio, e sabia que a sua agência recebia anúncios de valor superior a oitenta milhões de dólares anuais, sete dos quais provinham da conta de Yerkes.

Não era esse o aspecto de Frank Griffith, que intimidara Maggie desde o início. Era aquela energia hercúlea e a incrível segurança (ele podia convencê-lo a você de que tinha razão mesmo quando você soubesse que ele estava enganado). No seu ginásio particular, entre fotografias e trofeus que atestavam antigas proezas físicas, possuía conjuntos de halteres aos quais se dedicava religiosamente todas as manhãs. Depois havia o golfe, o ténis, os cavalos no rancho perto de Victorvitle e o avião Lear a jacto particular. E um movimento constante: clube, banquetes e jantares sociais em Los Angeles, além de viagens permanentes a Chicago, Nova Iorque e Londres.

Já bastava para reduzir qualquer mortal, reflectiu Maggie, à estatura insignificante de um Toulouse-Lautrec. Pelo menos fisicamente.

Observava-o agora, a basta cabeleira recém-aparada, o rosto musculoso e corado ainda rijo, o corpo forte num fato escuro de flanela leve, as mãos enormes, ostentando um anel de sinete de ouro. Ei-lo ali, o feitor severo e violento do seu próprio negócio, o proeminente cidadão de espírito cívico. A visão ideal que todo o mundo tem do homem que venceu por si mesmo, marido perfeito, pai exemplar.

Ei-lo ali, humilhado, contido, rebaixado por um herdeiro que se mostrara anómalo e pusilânime, comprometendo, não só a si mesmo, como todo o prestígio social da família. Agora Frank Griffith era a própria imagem do acabrunhamento, e Maggie colocou a si própria certas perguntas socráticas: Estaria ele dominado por uma confusão de pai sobre o que havia de errado na educação que proporcionara ao filho? Ou seria uma preocupação pragmática, concentrada apenas nas prováveis consequências que o escândalo acarretaria para os seus negócios e a sua posição no país? Ou seria, enfim, um interesse puramente paternal e protector pelo destino do único herdeiro?

Maggie conhecia-o bem mas não intimamente, e jamais o vira em crise, de modo que não podia saber a resposta exacta.

E, finalmente, restava alguém sobre quem ela não formulara nenhuma pergunta.

O herdeiro.

Jerry, o Griffith que conhecia melhor e mais lhe importava, absorvia-lhe agora toda a atenção. Estava sentado numa cadeira à parte, perto da escada, ansioso e nervoso, cruzando e descruzando as pernas. Parecia tão lamentavelmente jovem e perdido. Ela sabia os dados, mas os dados mentiam. Jerry tinha vinte e um e ela vinte e quatro, mas para ela, ele era sempre dez anos mais moço e ela dez anos mais velha. Para ela, ele era um menino e ela uma mulher. Ele era inteligente mas tímido e reservado. Um labirinto de incertezas e problemas (como a maioria dos seus contemporâneos, costumava ela supor). A mãe dedicava-se de mais à própria doença e sofrimento, o pai vivia muito ocupado, os amigos eram volúveis, ninguém lhe proporcionava a confiança de que necessitava. Como Maggie era calma, compreensiva, tolerante, às vezes criteriosa e sempre pronta a festejar o seu estilo autodepreciativo e irónico senso de humor, tornara-se sua confidente e maior amiga. Para dizer a verdade, não apenas amiga, uma espécie de mãe-pai, conselheira e caixa de ressonância.

Ela tinha julgado que o conhecia pelo avesso, melhor do que qualquer outra pessoa da face da terra, e no entanto achava-se totalmente desprevenida para o seu comportamento na véspera. Embora soubesse dos seus problemas, continuava sem poder imaginá-lo a brutalizar uma garota. Não que fosse um aborto da natureza, psicótico ou repugnante ao sexo feminino. Tinha um metro e setenta e três de altura e compleição franzina - dando a impressão de ser menor do que realmente era, em comparação com os gigantescos rapazes bronzeados do sul da Califórnia, seus colegas de escola - mas, mesmo assim, podia ser considerado atraente.

Continuou a analisá-lo. O cabelo castanho estava mais bem repartido do que nunca. O melancólico rosto ascético parecia agora mais pálido e definhado que de costume, consumido pela angústia. Mas podia ser considerado atraente, e realmente saía com garotas, em geral acompanhados de outro par. Portanto não era isso. Que espírito diabólico o possuíra para agredir aquela criatura insignificante? Fora o livro, vociferara o pai na véspera. Fora o livro, concordara o Promotor Público na véspera. E Jerry finalmente confessara: o livro provocara-lhe fantasias libidinosas.

Era-lhe difícil crer que um livro, fosse qual fosse, mas especialmente esse, pudesse ser um Frankenstein, criador de tanta maldade. Havia, porém, o facto de Jerry ter lido o livro e admitido que o deixara superexcitado, e somente ele se encontrava em condições de saber a verdade nesse sentido. Assim, acreditava nele. Além do mais, a certa altura da reunião ficou patente que a influência do livro sobre Jerry seria capaz de lhe criar um clima favorável e atenuar a pena. Para Maggie, isso descartava todas as outras motivações possíveis e dissipava quaisquer dúvidas. Sentia dó de Jerry. Mas também sentia dó do livro que traíra ambos.

Olhou bem para Jerry e continuou incrédula. Estupradores têm cara de estupradores, ela sempre deduzira das notícias de jornal e das fotografias granuladas. Um estuprador devia parecer-o quê? - miserável, sórdido, doente, pervertido. No entanto Jerry ainda parecia o mesmo Jerry com quem se divertira em tantas brincadeiras domésticas e com quem lera e discutira Alice no País das Maravilhas, Herman Hesse e Vivekananda. Uma noite tinham discutido Thoreau e o não-conformismo, e Jerry citara de cor: “Se um homem não acerta o passo com os seus companheiros, talvez seja porque escuta um tambor diferente.” Contudo, se não em suas conversas particulares, pelo menos em seu procedimento público, Jerry nunca dera mostras de escutar um tambor diferente. Então, que tambor escutara ontem à noite? Um tambor chamado J J Jadway, dissera Jerry. Era esse o tambor.

Pobre Sheri não-sei-de-quê, pobre Sheri no hospital. E pobre Jerry, pobre Jerry.

Aquele era um caso sem criminosos. Só vítimas.

Ficou a pensar no que lhe aconteceria a ele, e então percebeu que se pusera a imaginar porque ouvira alguém na sala a especular sobre isso com uma pergunta retórica.

Era Ratph Polk, o advogado da família, quem falava. Maggie prestou a máxima atenção.

- Deixem-me resumir mais uma vez a situação – dizia Polk. - Ontem à noite, quando fomos à delegacia, Jerry foi identificado e pagou-se a fiança. Agora, a despeito de tudo o que ele disse até o presente momento em circunstâncias de intensa emoção, Jerry continua inocente até prova em contrário. O que estou a querer dizer é que a lei ainda nos faculta opções, escolhas, e que pretendo tirar partido disso e tomar todas as providências necessárias, antes de se ter a certeza absoluta de que Jerry quer, realmente, declarar-se culpado.

- Você está a dizer que ele ainda pode declarar-se inocente? - perguntou Frank Griffith.

- Perfeitamente. Eu explico. Em casos como este, existe uma primeira citação. Graças aos préstimos do nosso obsequioso Promotor Público, conseguimos isso hoje de manhã. Vimos o que aconteceu. O representante da Promotoria leu as acusações contra Jerry, e marcou data para a audiência preliminar. Ora, a finalidade desse próximo passo, a audiência preliminar, é para o tribunal decidir se a instauração do processo dispõe de elementos suficientes contra o réu para justificar a-sua presença num julgamento. Se tomarmos esse passo, o Promotor Público apresentará uma parte das provas que possui contra Jerry, trazendo certos factos, provas circunstanciais, testemunhas, e assim por diante. Eu teria o direito de interrogar essas testemunhas se quisesse. Ora, nessa audiência, caso o juiz se declare satisfeito com as provas apresentadas, remeterá Jerry a julgamento. O terceiro passo seria uma segunda citação. Perguntariam a Jerry se ele se declara culpado ou inocente. Declarando-se culpado, recebe a sentença várias semanas depois. Declarando-se inocente, o caso entra na agenda do tribunal, aguardando julgamento. Como sabem, declarando-se culpado, a sentença pode variar de três anos de encarceramento à prisão perpétua, em penitenciária estadual. Nesse ponto o juiz dispõe de considerável margem de arbítrio. Em determinadas circunstâncias, a sentença pode ser mínima. Noutras, digamos na eventualidade de que a moça, Miss Moore, sofra lesões permanentes, a sentença, a pena, poderá ser máxima. Ora, então...

- Não farei isso! - gritou Jerry Griffith. - De que adiantaria? Eu já disse que fiz o que fiz!

Frank Griffith virou-se irritado para o filho.

- Quer fazer o favor de calar a boca? Não interrompa. Maggie pusera-se de pé, numa necessidade instintiva de intervir entre os dois, proteger Jerry, mas depois viu que ele olhava ofegante para o pai, os outros e finalmente recuperava o controlo de si mesmo.

Polk voltou-se um pouco na cadeira e começou a dirigir-se a Jerry, embora também parecesse abranger o carrancudo Luther Yerkes.

- Eu já ia explicar, como agora farei, porque havia sugerido que tirássemos partido de todas as medidas que nos estão abertas. Sei que a situação é difícil, Jerry, mas tenho motivos para proceder assim. Sou o advogado do seu pai, e agora seu, e quero fazer tudo o que puder para ajuda-lo. Deixe-me elaborar a minha estratégia. Em primeiro lugar, como advogado, já estive envolvido numa série inacabável de casos para não ignorar que o constituinte, no período de tensão que se segue logo a um acto aparentemente criminoso, movido pela confusão e pelo remorso, é capaz de confessar qualquer coisa e insistir que é culpado. Porém, quando recupera a calma, o constituinte sente-se frequentemente menos seguro ou chega até a perceber que não teve culpa. Então há uma possibilidade de...

- Eu tive culpa e disse que sou culpado - teimou Jerry.

- Jerry, eu estou a avisá-lo, se você não calar a boca... -começou Frank Griffith.

- Não tem importância, Frank-afirmou Polk, paciente. - Deixe-me procurar fazê-lo entender. - Agora falava directamente para Jerry. - Sim, Jerry, boa parte do que estamos a discutir pode parecer uma tolice, que nem jogar uma partida perdida. Não estou a dizer que vamos declarar que você esteja inocente para o colocar em julgamento. Estava a tentar frisar que existe a opção e que vale a pena considerá-la. O Promotor Público também não quer o julgamento. Ele acha-se sobrecarregado de trabalho, e um julgamento significaria perda de tempo para ele e despesa prós contribuintes. Mas nós podemos aproveitar-nos dessa situação, fazendo-o crer que aceitaríamos o julgamento de bom grado, o que nos deixaria em melhor posição para negociar uma sentença mais branda. Sim, eu concordo com você que, no pé em que estão as coisas, declarar-se inocente não só seria desonesto como inútil. Um julgamento seria puro desperdício e eu não o exporia a isso se não houvesse a possibilidade de ganhar. A verdade é... e isso cá entre nós... que tenciono declará-lo culpado na segunda citação. Porque a verdadeira razão para delongar a situação, fazendo que você enfrente uma audiência, baseia-se em estratégia completamente diferente, que surgiu de uma rápida conversa particular que tive ontem à noite com o Promotor Duncan e outra que tive com Mr. Yerkes hoje de manhã. E isso... isso é importante.

Yerkes acenou com a cabeça.

- É para seu próprio bem, Jerry. Seria bom que você escutasse.

- Sejamos francos - disse Polk. - Por trás de portas fechadas, o Promotor Público pode exercer grande influência sobre o juiz que emitir a sentença depois de uma declaração culposa de estupro. Ora, o Promotor Duncan e Mr. Yerkes são da mesma opinião... que você foi vitimado pela lascívia de Os Sete Minutos. Eles consideram que o verdadeiro criminoso é o livro, a influência que exerce sobre leitores jovens impressionáveis. Estão a processar este romance segundo a lei estadual da Califórnia. Acham que o público será capaz de verificar que, se livros dessa espécie não estivessem ao alcance de pessoas moças como você, muitos actos de violência, como esse estupro, talvez jamais fossem cometidos. Em suma, você ficou temporariamente inflamado, incitado, por aquele livro. Ora, precisamos de tempo para que o público compreenda isso. Se compreender, criar-lhe-á uma atmosfera bem mais favorável e podemos alimentar esperanças de que venha a influenciar o juiz a emitir uma sentença mais branda em seu caso. É por isso que eu quero que você se submeta a uma audiência preliminar e a uma segunda citação... para nos ajudar a ganhar tempo.

Jerry endireitou o corpo e sacudiu a cabeça, sem parar.

- Mr. Polk... Mr. Polk, pouco se me dá a sentença ou o que acontecer comigo. Já não me importo mais.

Polk sorriu, compreensivo.

- Eu compreendo, Jerry. Você passou por uma dura experiência, e é natural que se sinta assim por enquanto - virou-se para Frank Griffith. - O que nos traz a outra questão, Frank. Considerando a disposição de ânimo de Jerry, eu recomendaria... oh, nós podemos deixar Jerry auxiliar-nos a decidir sobre isso, mas eu recomendaria que acrescentássemos mais um aspecto ao caso, para abrandar qualquer sentença futura. Eu gostaria de alegar que esse acto criminoso foi totalmente contrário à natureza de seu filho. Por. conseguinte, eu gostaria de oferecer, como defesa, que Jerry não estava legalmente são quando supostamente cometeu o crime. Isto vai requerer os serviços de um grande psiquiatra... alguém como o Dr. Roger Trimble.

- Faremos tudo para ajudar o meu filho - declarou Frank Griffith. - Você acha que pode dar um jeito para o Dr. Trimble o examinar?

- O Dr. Trimble é amigo meu e de Mr. Yerkes. Creio que...

- Não! - era Jerry, desta vez de pé, trémulo. - Talvez eu concorde com o resto, mas não vou deixar nenhum médico de hospício...

Griffith levantou-se logo, aniquilando o filho com a sua altura imponente.

Ao ver isso, Maggie sentiu-se horrorizada. Mas, para sua surpresa, o tom de Griffith, pela primeira vez, era conciliatório.

- Jerry, nós estamos aqui para ajudá-lo de todas as maneiras humanamente possíveis - afirmou ele. - Estou decidido a tirar partido de tudo o que possa melhorar a sua situação.

- Sim, eu sei, papá, mas não posso...

- Ralph Polk conhece a lei. Se ele diz que consultar um psiquiatra pode ajudá-lo com o juiz...

Polk também se pusera de pé.

- Pode, Jerry - disse rapidamente. - O juiz levará em consideração o facto de que você nunca esteve anteriormente envolvido em qualquer tipo de crime. Portanto ele designará um funcionário encarregado de esmiuçar o seu passado, obter toda a espécie de informação que puder a seu respeito, através de sua família, amigos, professores. Quando esse funcionário comunicar que o Dr. Trimble está a tratar de você... um analista com a fama que ele tem... isso aplainaria uma série de dificuldades e influenciaria o relatório do funcionário.

Jerry tornou a sacudir a cabeça.

- Não, Mr. Polk... Eu não posso... Não quero nenhum psicanalista. Pense o que quiser, mas não sou louco. Foi só uma... coisa passageira. O próprio Promotor Público admitiu isso ontem à noite. Ele concordou que tinha sido por causa do livro, mais nada.

Polk encolheu os ombros.

- Naturalmente, ninguém pode forçá-lo a consultar um analista, Jerry. Mas acho que seria uma medida inteligente.

Frank Griffith aproximou-se do filho, passando-lhe o braço pelos ombros enquanto se dirigia a Polk.

- Não se preocupe, Ralph. Tenho a certeza de que Jerry terminará compreendendo o que lhe convém. Procure entrar em contacto com o Dr. Trimble e combine tudo da melhor maneira. Agora, Jerry, acho que já aguentou que chegue. Porque não vai lá para cima e se deita um pouco? Tome um sedativo e descanse. Nós saberemos fazer o que ainda é preciso ser feito sem o sujeitar a novos incómodos.

Jerry olhou fixamente para o pai, de repente afastou-se, e sem qualquer palavra para mais ninguém saiu à pressa da sala, em direcção à escadaria.

O olhar de Maggie seguiu-o. Enquanto os demais presentes recomeçavam a acomodar-se em suas cadeiras, acendendo cigarros e charutos, Maggie esgueirou-se discretamente para o vestíbulo. Assim que ficou fora da vista, subiu os degraus o mais depressa possível.

Alcançou Jerry no patamar do andar superior.

- Jerry...

Ele esperou, tentou sorrir, não conseguiu.

- ...sinto muito que eles o tenham exposto a isso. Ele conservou-se calado.

- Estou certa de que estavam apenas a procurar ser úteis à maneira deles - continuou.

As mãos de Jerry repuxaram, nervosas, o suéter.

- Não me interessa se alguém quer ser útil. Fiz uma coisa errada, louca, e mereço ser punido; portanto que me punam. Mas não quero sofrer torturas extras além disso. Não quero ir mais a nenhum tribunal... hoje de manhã já chegou, foi a última vez... e aguentar advogados e juizes, expondo-me em raio-X prò mundo inteiro, e não quero nenhum psiquiatra a remexer no que me resta de cérebro. Só quero que me deixem em paz.

- Está bem, Jerry.

- Aquelas coisas... é o mesmo que obrigar-me a abrir a braguilha em público.

- Eu sei.

- Errei, portanto castiguem-me e deixem-me em paz. Só quero que me deixem em paz. Não me refiro a você, Maggie, mas a todos os outros. Quero apenas que me deixem em paz e me dêem o castigo que mereço - o!hou-a bem e depois disse: - Você entende. Seria capaz de fazê-los entender, Maggie?

- Eu... eu posso experimentar. Vou tentar. Talvez não hoje. Mas na hora exacta.

- Obrigado... Acho que estou a sentir-me mal. Talvez fosse melhor deitar-me um pouco.

- Okay.

Virou as costas e caminhou para o quarto. Depois que entrou, Maggie voltou à escada. Lenta, pensativa, desceu.

Em baixo, podia ouvir a conversa que continuava no living. Viu-se atraída pelas vozes. Dirigiu-se na ponta dos pés ao limiar da sala e ficou parada, escutando. Achavam-se absortos de mais para notar a sua presença.

Ralph Polk sacudia a cabeça, concordando com alguma coisa que Luther Yerkes tinha dito, e depois Polk retrucou:

- Sim, Mr. Yerkes, não há a mínima dúvida. Esse livro pornográfico é o argumento mais eloquente que temos para a defesa de Jerry. Constitui, como o senhor observou, o factor principal desse caso. Só por isso, se não houvesse outros motivos, eu já insistiria em pôr o rapaz em tratamento com o Dr. Trimble. Em poucas sessões, tenho quase a certeza, o Dr. Trimble descobriria e classificaria o trauma que Jerry sofreu durante a leitura de Os Sete Minutos e depois. O que seria precioso para nós - sorriu rapidamente para Yerkes. - E estou seguro de que seria precioso para o nosso Promotor Público, caso denunciasse o livro.

Os olhos de Yerkes estavam dissimulados pelos óculos azuis, e o rosto rechonchudo permaneceu impassível.

- Talvez tenha razão, mas não faço a mínima ideia do que Elmo Duncan planeia fazer. Em todo o caso - levantou-se, sendo imediatamente imitado por Blair -, posso dizer-lhe o que eu planeio fazer. Estando aqui nesta casa, vendo com os meus próprios olhos a devastação e a ruína que podem desmoronar sobre um adolescente, sobre uma família honrada, sobre a comunidade, por um punhado de lama disfarçado de literatura, convenci-me, mais do que nunca, a dedicar-me de corpo e alma à proposição de que necessitamos ter censura neste país, se não quisermos mergulhar no caos e na crescente violência. Conto com a sua garantia de que se aliará a nós nessa luta, não apenas porque é benéfica ao seu próprio caso, mas porque é benéfica ao futuro da nossa sociedade e à causa da justiça.

- Conte com a minha palavra - declarou Griffith com ardor.

- E você com a minha - retorquiu Yerkes. - Deste momento em diante, vou devotar toda a energia e recursos à minha disposição para livrar a nossa comunidade e o país desses mascates da imoralidade corruptora do espírito e destruidora da alma. Sabe o que faremos juntos? Atiraremos o livro sobre eles... o próprio livro deles... e expulsaremos os contratadores gananciosos e propiciadores de estupros para sempre do templo!

 

De certo modo, Mike Barrett não se admirou de que o Promotor Público estivesse ocupado de mais para recebê-lo e que a entrevista seria curta e simples.

Elmo Duncan estabelecera claramente o limite de tempo poucos segundos atrás, ao tocar a campainha e avisar a secretária para protelar todas as chamadas durante três ou quatro minutos, dizendo às pessoas à sua espera que teriam de aguardar alguns instantes.

Rumando de carro para o Palácio da Justiça, Barrett sentira-se reanimado por uma vaga esperança, justificando o seu optimismo com Sanford no telefonema interurbano de horas antes. Confiava que Duncan mantivesse a promessa da véspera, e que os novos acontecimentos em torno de Os Sete Minutos não influenciassem a atitude flexível que o Promotor demonstrara anteriormente em relação à instauração do processo contra o best-seller.

Barrett fora conduzido da sala da recepcionista, através da cozinha privativa do Promotor Público, até ao gabinete onde a secretária particular de Duncam o esperava. Ela fê-lo passar ao escritório espaçoso, claro e moderno de Duncan. Barrett tinha reparado que a porta que comunicava com a confortável saleta de descanso da Promotoria se achava aberta, e pôs-se a imaginar se Duncan não o convidaria para conversarem ali. Em vez disso, Duncan apontou para uma das duas poltronas de couro em frente à ampla e bela escrivaninha sueca. O Promotor não pretendia perder tempo com muita conversa. Nada de cortesias. As esperanças de Barrett começaram a vacilar e a apagar-se.

Agora Barrett podia ver perfeitamente que aquele não era o mesmo homem que o recebera tão amável na véspera. As feições de Duncan estavam tensas, como se reprimissem a impaciência. A bandeira americana desfraldada de um mastro atrás da cadeira giratória de encosto alto parecia brotar directamente da sua cabeça.

Nervoso, o Promotor Público remexeu em alguns papéis em cima da escrivaninha, olhou de relance para o telefone e a garrafa de água a seu lado, depois para os livros magnificamente encadernados que se enfileiravam nas estantes mais além, e, finalmente, com relutância, concentrou a atenção em Barrett.

- Não esperava que viesse pessoalmente - explicou. - Pensei que fosse telefonar. Eu... eu creio que estou com o tempo um pouco tomado.

E não proferiu mais nada. Esperou.

- Julguei que assim ficasse mais fácil - retrucou Barrett. - Serei breve. Nós íamos resolver a questão de Ben Fremont.

- Sim.

O Promotor Público não estava a facilitar a situação e Barrett percebeu que teria de comentar os novos acontecimentos, tocando no assunto sem subterfúgios.

- Eu, naturalmente, li os jornais. A respeito do filho de Griffith. E do livro de Jadway. As notícias são exactas? Foi isso que aconteceu?

- São exactas.

- Compreendo. Pelo tom adoptado pela imprensa, podia deduzir-se que o fantasma J J Jadway tivesse cometido o estupro.

Duncan achou um abridor de cartas espanhol na escrivaninha e pegou nele. Contemplou-o. Tinha o formato de um sabre. Sem levantar os olhos, disse:

- Nesta repartição, estamos a tratar do caso Fremont e do caso Griffith como questões à parte. Não é a imprensa que está a julgar estes casos, Mr. Barrett. Somos nós.

Barrett permaneceu cauteloso.

- Quer dizer, então, que a seu ver um não tem relação com o outro e que o senhor continua tão objectivo sobre a questão de Fremont como ontem?

A lâmina de Toledo do abridor de cartas cintilou ao girar lentamente na mão do Promotor Público.

- Não quero dizer nada disso - respondeu Duncan. - Estou a dizer-lhe que, segundo a lei, estamos a tratar cada caso separadamente e julgando cada um de acordo com as provas apresentadas. Sabemos perfeitamente que são questões diferentes. Reciprocamente, sabemos também que no tribunal da opinião pública podem transformar-se numa só.

- O senhor está a insinuar que a opinião pública possa prejudicar o tratamento desses casos como casos independentes?

Duncan inclinou-se para a frente, apoiando os cotovelos no mata-borrão da escrivaninha. Franziu os olhos.

- Mr. Barrett, deste lado, nós temos denúncias contra um rapaz que cometeu estupro e infligiu graves injúrias físicas e cujo acto criminoso foi incitado pela leitura do mesmíssimo livro. A reacção pública a este facto, não apenas local como nacional, foi instantânea e apaixonada. Embora um organismo executante da lei não precise mostrar-se sensível a todos os caprichos do povo, ele pode sê-lo quando as exigências populares coincidem com as suas próprias actividades. O senhor nunca deve esquecer, Mr. Barrett, que a lei é um instrumento do público, criada pelo público para se proteger. Eu posso ser tudo o que o senhor quiser, Mr. Barrett, mas sou um servidor público.

Barrett ficou sentado, completamente imóvel. A prelecção, que lhe foi administrada como se fosse um colegial, tinha sido pretensiosa e até condescendente. Dissimulava qualquer motivo político possível. Era pura conversa fiada.

Barrett não se sentiu disposto a ser simpático.

- Ontem, Mr. Duncan, actuando como servidor público, prontificou-se a servir a lei e o público; tratando as denúncias contra Ben Fremont como uma infracção menor, e mesmo discutível, da lei. O senhor praticamente me garantiu que se eu entrasse com uma declaração de culpabilidade em nome de Fremont, faria tudo para que ele fosse posto em liberdade com multa e suspensão de sentença, e que deixaria as coisas nesse plano. Precisava apenas de tempo para explicar a situação aos seus auxiliares, por uma questão de cortesia. Agora vim aqui para ouvir a sua decisão oficial. Uma multa e uma suspensão de sentença. É essa ainda a sua intenção?

O Promotor Público largou o abridor com feitio de sabre.

- Temo que não - respondeu. - Consultei os meus auxiliares. Desde ontem, colhemos novos indícios contra Os Sete Minutos. Examinei o livro mais detidamente e a acusação específica, iluminada como o foi por esses novos indícios, e fiquei convencido de que não estamos a tratar de um mero delito mas de um crime que pode ter vasto efeito, pondo em perigo a segurança pública.

- Refere-se a um vasto surto de estupros? - perguntou Barrett com ironia.

Duncan não achou graça.

- Refiro-me à distribuição de uma obra imoral e perniciosa intitulada Os Sete Minutos - contemplou-o friamente. - O senhor pode informar o seu constituinte que, se declararem Ben Fremont inocente, nós processaremos o réu até aos últimos limites da nossa capacidade. Iremos a julgamento e empregaremos todos os recursos à nossa disposição para provar ser o réu e o livro, se quiser, culpados da acusação. Entretanto, se preferirem entrar com uma declaração de culpabilidade, o réu então receberá a máxima pena possível por seu delito... a multa, bem como os doze meses de cadeia. Nada de acordos, nem compromissos, Mr. Barrett.

E tão-pouco qualquer medo da sua amizade com Willard Osborn II, pensou Barrett. O Promotor Público falava alicerçado no poder. Obviamente, dispunha de protector mais rico, influente e forte do que Osborn.

- E os dois casos - disse Barrett -, pretende ainda-tratá-los separadamente?

- São casos separados-frisou Duncan, numa demonstração espectacular de cândida inocência. - Naturalmente

- acrescentou -, se formos a julgamento por causa do livro, talvez sejamos forçados a chamar Jerry Griffith como testemunha circunstancial.

- Testemunha circunstancial, Mr. Duncan?

- Quando um rapaz em idade imatura é, por sua própria confissão, levado a cometer um crime atroz por causa do conteúdo de um livro que acaba de ler, eu considero isso relevante à nossa asserção de que o livro é nocivo e deve ser banido, e que distribuir um livro desse tipo constitui acto criminoso. Ah, sim, eu creio que tudo o que Jerry Griffith possa declarar sobre esse livro, o efeito que teve sobre ele, é perfeitamente relevante para o nosso caso.

Sem querer, Barrett sacudiu a cabeça. Sentiu vontade de protestar, mas não se encontrava num tribunal de justiça. E o Promotor Público, por meio de um circunlóquio, apresentava-lhe dois casos independentes que agora pareciam um só. Um servidor público, pensou Barrett caustica-mente, atendendo a vontade do povo, Ou, possivelmente, a de Luther Yerkes. Não, resolveu Barrett, ele não ia dar ao Promotor Público essa oportunidade de destorcer a lei em qualquer tribunal.

- Quer dizer, então, que essa é a sua última palavra?

- perguntou Barrett.

- Sim - respondeu Duncan. Mas não fez nenhum movimento para se levantar. - E agora eu gostaria de saber qual é a sua, Mr. Barrett. Que declaração o senhor pretende apresentar... culpado ou inocente?

- Se a decisão dependesse unicamente de mim, poderia torná-la agora mesmo - Barrett pôs-se de pé. - Mas tenho de consultar o meu constituinte em Nova Iorque. Levantando-se, Duncan disse calmamente:

- Estou certo de que o senhor há-de esclarecê-lo de que não pode haver compromisso. Se alegarem culpabilidade, Fremont apanha um ano de cadeia e o livro é condenado, não podendo ser vendido em Oakwood... para começar. Se alegarem inocência, então terão a única oportunidade de libertar o livreiro e... - frisou cuidadosamente- ...o livro. Mas, para isso, precisarão arriscar-se a enfrentar o tribunal.

- Não se preocupe - replicou Barrett. Aqui, oh, pensou, vou ser pedante para convencer Phil Sanford a dar a esses sacanas a oportunidade de fazer um carnaval e montar um circo de publicidade à nossa custa. Dirigiu-se à porta e abriu-a. - Mais logo telefono-lhe.

Parado de pé, atrás da escrivaninha, agora mais tranquilo, Elmo Duncan sorriu pela primeira vez.

- Ficarei à espera - disse.

Como não havia tempo a perder e como Phil Sanford estava à espera de suas notícias, Mike Barrett resolveu ligar logo para Nova Iorque. Não querendo confiar nos telefones do Palácio da Justiça, subiu rapidamente a Temple Street até chegar ao magnífico Arquivo Público e encontrar uma cabina vazia.

Embora não houvesse demora para completar a chamada interurbana e informassem Sanford imediatamente, o editor levou uma eternidade para atender. O tratamento moroso de um telefonema que Sanford antes considerara tão importante, primeiro desconcertou e depois irritou Barrett. Quando Sanford, afinal, pegou no auscultador do outro lado, desculpando-se distraidamente por fazer o amigo esperar e explicando que o seu escritório se tornara mais movimentado que a Grand Central Station, Barrett interrompeu-o, entrando directo no assunto.

Mal permitindo que Sanford atalhasse com perguntas ou comentários, Barrett lançou-se a um monólogo, comunicando os pormenores da conversa mantida com o Promotor Público e a perfídia da completa reviravolta de Duncan. Mais explicitamente que o próprio Duncan talvez houvesse esperado, Barrett articulou as alternativas e consequências legais das declarações de culpa e inocência.

Enclausurado na cabina telefónica, Barrett falou vários minutos sem parar e ainda estava longe de terminar.

- Portanto, em que pé ficamos? - perguntou Barrett, colocando a questão quase como se procurasse esclarecê-la para si mesmo. - Eu vou explicar, Phil, e dar-lhe um bom conselho. Duncan estava praticamente a babar-se todo para que eu lhe dissesse que iríamos alegar inocência e enfrentar julgamento. Ele quer transformar o tribunal num palco onde possa dramatizar o problema e inculcar no público a sua imagem de paladino da justiça. E já tem até o texto pronto. Um texto de enorme sedução para as massas. Não estou a dizer que Duncan seja apenas um impostor e mais nada. Quero ser justo com ele. Evidentemente é sincero em sua opinião de que um romance como Os Sete Minutos pode causar danos incalculáveis. É verdade que ontem não achava assim tanto. Mas ele considera o estupro praticado por Griffith uma demonstração prática da conduta anti-social capaz de ser provocada por um simples livro. Tenho a certeza de que acredita piamente nisso. Só Deus sabe como ele se julga íntegro. Ao mesmo tempo, você conhece o meu cinismo a respeito dessas integridades. Examine bem qualquer santo e no fundo você encontra interesse pessoal. O que não há dúvida é que, contando com o filho de Griffith como testemunha estrelar, Duncan dispõe de um julgamento que transcende o plano literário e intelectual para se converter num carnaval de emoções de vasto apelo popular. Ele pode transformar-se num nome famoso em todo o país com a sua actuação na sala do tribunal, se conseguir o que quer. E ele está certo de que conseguirá. E, para usar de franqueza, sinto-me inclinado a concordar com ele.

- Que é que você está a dizer, Mike? Quer dizer que você acha que ele pode ganhar?

Barrett falou ainda mais perto do bocal do telefone.

- Vou ser indelicado com você. Sim, baseado no pouco que sabemos por enquanto, as possibilidades inclí-nam-se fortemente a favor da acusação. Eu sei que hoje de manhã lhe disse que estávamos a lidar com um caso, um caso de censura, e que o estupro cometido pelo Griffith nada tinha que ver com isso do ponto de vista legal. O que continua a valer. Duncan reconhece. Mas esta entrevista que acabo de ter com ele fez-me compreender até que grau existem outras forças em acção... opinião e pressão públicas... a determinação de introduzir o filho de Griffith no caso pela porta lateral, como testemunha... as ambições políticas do Promotor Público ou dos seus patronos. Neste clima, poderiam provavelmente conseguir juntar os dois casos num só. Se conseguissem, seria quase impossível obter veredicto de inocência de um juiz ou de um júri. Como é que se pode, pelo amor de Deus, defender um caso assim? Você diz que o tal livro é obra de arte e invoca a Constituição e a liberdade da imprensa para a obra de arte. Por sua vez, eles limitam-se a apontar para aquela moça patética, em estado de coma no hospital, estuprada por alguém que afirma que foi levado ao crime pela obra de arte. Como é que você iria julgar esses argumentos? Aceite o meu conselho. Você não pode, de modo nenhum, alegar inocência e arriscar um julgamento. A publicidade desfavorável e a perda quase inevitável da causa farão com que o livro seja proibido em todas as principais cidades da América. Você ficará liquidado, Phil...

- Espere aí, Mike, ouça, eu...

- Deixe-me terminar-cortou Barrett, incisivo. -Faça o que lhe digo. Explique a situação a Ben Fremont. Ele compreenderá. Não há-de querer passar por todas as preliminares do julgamento com a agitação e a notoriedade que o acompanham. Ele sair-se-á dez vezes melhor se se declarar culpado. Pagaremos a multa. E um ano na cadeia, ora, não é divertido, mas tão-pouco é a guilhotina e você pode compensar isso de uma maneira qualquer. Depois de apresentá-lo como culpado, desaba o toldo do circo de Duncan e garante-se algum futuro para o livro. A sentença de Fremont será comentada durante certo tempo pela imprensa, mas sem nada de novo para mantê-la à vista do público, ficará sepultada para sempre. Se ocorrerem outras acusações longe daqui, pelo menos não estarão relacionadas com estupro. Quando você tiver acabado com todas, poderá recomeçar a vender o livro em tudo quanto é lugar, menos em Oakwood. Tenho a certeza de que concorda comigo. É preciso que se alegue culpabilidade. Dá-me licença que eu telefone agora mesmo ao Duncan, comunicando a nossa decisão?

- Mike...

- Dá?

Ouviu-se um silêncio aparentemente interminável. Barrett ficou à escuta. Só podia distinguir a respiração pesada de Sanford, a mais de quatro mH quilómetros de distância.

Por fim, Sanford falou.

- É... é tarde de mais, Mike. Era isso que eu estava a procurar dizer-lhe. É tarde de mais.

- O que é que você está a dizer?

- Fiz uma declaração pública do que íamos fazer. Anunciei que alegaríamos inocência. Que iríamos aos tribunais defender Ben Fremont e... e Os Sete Minutos, Pronto. Está feito.

Num gesto involuntário de descrença no que tinha escutado, Barrett tirou o auscultador do ouvido, olhou para ele, e aproximou-o de novo da orelha.

- Será que ouvi bem? Você não está a brincar, por acaso? Olhe que o caso é sério.

- Fiz uma declaração pública há menos de uma hora. Nós vamos aos tribunais, Mike, e precisamos de todas as...

- Quer saber a minha opinião? O que você precisa é de uma camisa-de-forças e de uma dúzia de psiquiatras.

- Mike, você não me deixa falar. Não sabe o que está a acontecer aqui, do contrário compreenderia - queixou-se Sanford. - Depois que lhe telefonei hoje de manhã, vi-me cercado de telegramas e telefonemas dos quatro cantos do país. Têm chovido telegramas. De todo o mundo. Da maioria dos nossos principais fregueses de livraria. De alguns dos maiores armazenistas... Baker & Taylor, A. C. McCIurg, American News, Raymar, Dimondstein, Bookazine, nem sei mais quem... e tudo se resume na mesma pergunta. Que vamos fazer com Ben Fremont? Ninguém teve papas na língua. Se recuássemos no caso de Ben, significaria que recuávamos n'Os Sete Minutos. Se reconhecêssemos que Ben estava culpado e merecia ir para a cadeia sem resistência nenhuma, então pareceria que estávamos a reconhecer que o livro é obsceno e não merece ser posto à venda. Para dizer a verdade, o facto de não apoiarmos Ben Fremont redunda em expor cada livreiro, cada vendedor de livros, a novas prisões sem a mínima garantia de protecção. É como se a Associação de Livreiros Americanos me falasse em uníssono. Combata já os censores e impeça a disseminação da censura, ou esqueça o livro. Porque, se a Sanford House não lutar agora, ninguém se atreverá a tocar no livro.

“Olhe, nós sabemos o que aconteceu numa situação semelhante, Mike. Disseram-me que quando a Grove Press editou o Trópico de Câncer, de Henry Miller, houve mais de sessenta acções penais e cíveis instauradas contra livreiros. E apesar de que os editores concordaram em defender ou apoiar a defesa desses livreiros, outros ficaram suficientemente apavorados para devolver... devolver, mandar de volta, você está a ouvir?... setecentos e cinquenta mil exemplares dos dois milhões publicados. Quando editou Fanny Hill, não deram nenhuma garantia de protecção aos livreiros. Mas depois que viram a quantidade descomunal de proibições e interditos que se estava aproximando, compreenderam que poucos livreiros se arriscariam a vender o livro a não ser que ele fosse defendido. Assim escolheram três cidades chaves onde ele havia sido atacado... Hackensack, Boston, Nova Iorque... e lutaram contra os censores. O resultado foi que o livro e a liberdade de vendê-lo, e lê-lo, sobreviveram. Em certo sentido, tivemos mais sorte, Mike. Até agora só deparámos com um caso imediato de censura instaurado contra o nosso livro, apenas um, talvez mais difícil e sensacional do que os outros, mas um caso que, se lutarmos e vencermos, desencorajará qualquer acção posterior, penal ou cível. Mas não tentar combatê-la? Ora, os armazenistas e proprietários de livrarias despejariam imediatamente milhares e milhares de exemplares de volta no meu colo. O nosso livro estaria morto antes de nascer. Foi o que me deram a entender hoje.

“Que escolha tinha eu, Mike? Fiquei desesperado. Tão desesperado que, finalmente, atendi as chamadas de Wesley R. Você sabe o que ele disse? Sabe porque me telefonou depois de ler as parangonas? Só para dizer que sempre soubera que eu era um parvo, mas agora vinha a confirmação alheia... não só era parvo como ainda por cima idiota por editar o Jadway. E quanto a dar-me qualquer ajuda, qualquer conselho paternal, sabe o que ele deu? Uma receita. “Frite-se na sua própria banha”, disse. E depois que eu estivesse frito, acrescentou, esperava que sobrasse o suficiente da firma para vendê-la a alguém que soubesse dirigi-la. Portanto lá fiquei eu, sozinho, na panela de pressão, com todo o comércio editorial à espera da minha resposta. Ora, esperei quanto pude, contando que você entrasse num acordo com o Promotor Público; porém, sabendo que mesmo que entrasse já era tarde de mais, tarde de mais para alegar que o nosso livro fosse culpado do estupro. Por isso, finalmente, telefonei para meio mundo e redigimos uma minuta da declaração a ser telegrafada aos principais distribuidores e armazenistas e também publicada pela imprensa. Reafirmámos a nossa crença na honestidade e no valor literário de Os Sete Minutos. Comprometemo-nos a defender o livro contra as forças da hipocrisia. Anunciámos que apoiaríamos Ben Fremont e o livro de Jadway, e que alegaríamos inocência, recorrendo aos tribunais para provar a nossa afirmativa à população de Los Angeles, do país, do mundo inteiro. Dei a minha palavra... que havemos de combater com todos os recursos de que dispomos.

- Foi exactamente o que o Promotor Público acaba de me dizer, as próprias palavras que ele usou.

- O quê?

- Que havia de o combater a você com todos os recursos à disposição dele.

- Eu... eu já esperava por essa - disse Sanford, hesitante. - Você não estava a falar sério, há pouco, quando disse que não teríamos nenhuma possibilidade no tribunal, estava, Mike?

Barrett sentiu subitamente pena do amigo.

- Talvez fosse exagero meu. O que devia ter dito é que detesto ver qualquer pessoa exposta a julgamento. Esses processos são confusos, custam caro e podem ficar maldosos. Às vezes, quando terminam, é difícil dizer quem ganhou ou quem perdeu, porque toda a gente fica com cara de derrotada. E esse caso é especialmente difícil. A acusação tem armas poderosíssimas. Claro que entre hoje e a data do julgamento podem-se conseguir também algumas defesas impressionantes.

Barrett começava a deixar-se vencer pelo cansaço.

- Bom, acho melhor eu telefonar prò Promotor Público para o avisar de que você quer que Fremont se declare inocente. É o tipo da coisa que me desagrada, mas tenho a impressão de que você nos deixou sem alternativa.

- Eu não tive outra - insistiu Sanford. - Se virasse as costas ao caso, isso abriria as comportas do dique. E causaria o fim da liberdade de expressão neste país.

- Era isso que o estava a preocupar, Phil?... A liberdade de expressão?

- Está bem, seu sacana. E a minha própria sorte. Isso também pesou na balança.

Barrett não pôde evitar um sorriso.

- Agora sim. Pois se você está preocupado com a sua sorte, deixe-me dar-lhe um conselho, e desta vez siga-o. Você está na linha de fogo. Precisa do melhor atirador que existe. Por outras palavras, precisa do melhor advogado de defesa de todos os Estados Unidos. Trate de consegui-lo.

- Mas eu já o consegui.

- Ah, já? Óptimo. Quem é?

- Você, Mike. Eu contratei-o ontem. Não se lembra?

- Ah não, nada disso, Phil - retrucou Barrett, com franqueza. - Fui apenas um quebra-galho provisório para um editor em apuros. Tratava-se só de uma rápida alegação de culpa e depois pano rápido. Julgamento é assunto completamente diferente. Pode levar semanas ou meses e já estou comprometido.

- Você disse que largou Thayer & Turner. Eu não insistiria se você não estivesse livre.

- Phil. eu não estou livre-insistiu Barrett, exasperado. - Não ouviu quando lhe disse, não apenas uma, mas duas vezes, que larguei a firma para assumir um novo emprego nas Empresas Osborn? Uma oportunidade única na vida. E uma das condições do novo cargo é que tenho de começar em seguida. Eu disse-lhe isso hoje de manhã.

Mas então percebeu que teria de repetir tudo ao amigo, e com maiores e mais convincentes minúcias. Tentando dissimular o cansaço, tornou a contar toda a aventura com Osborn e a oportunidade que lhe tinha sido oferecida.

- Agora sabe porque não posso ser seu advogado - concluiu.

Sanford permaneceu inflexível.

- Você pode procurar Osborn e dizer-lhe que assumirá o cargo depois de o julgamento terminar.

- Não me vejo a fazer exigências a Osborn. Posso dar graças a Deus por me ter oferecido o cargo. Olhe, Phil, há trezentos mil advogados nos Estados Unidos e há, no mínimo, duzentos mil que adorariam aceitar o seu caso e que seriam muito melhores do que eu. Que diabo, Phil. Eu nunca tratei de um caso de censura.

- Você tratou de uma porção de casos amparados nas garantias da Primeira Emenda quando trabalhava para o Instituto de Utilidade Pública. Ora, este é um caso de Primeira Emenda, sem tirar nem pôr. Qual a diferença, se a questão é política ou literária? O que se continua a defender é o direito de liberdade...

Claro que ele sabia o que se ia defender. Sabia o que estava em jogo. Num relance, o cartaz dependurado no seu velho escritório no Instituto, citando um credo da União de Liberdades Civis Americanas, passou-lhe pelos olhos. Era uma advertência de que, numa sociedade viva, os princípios muitas vezes entram em conflito. Sobre certas coisas não podia haver conflito. Um homem não pode ter liberdade de ferir outras pessoas, caluniar, incitar a acção subversiva, criar o perigo de conduta sexual ilícita, revolução ou sabotagem. Mas, agora lembrava-se com nitidez: "Dentro desses limites, todos têm o direito de dizer o que quiserem, por mais impopular, por mais irresponsável que seja. Do contrário, nunca se sabe quando a maioria é capaz de decidir que as nossas ideias, também, são ofensivas.” Esse fora o seu critério ao defender aquelas opiniões políticas manifestas e Sanford tinha razão. Era também o critério aplicável à liberdade de escrever, falar e ler o que bem se entende. Havia adoptado a táctica errada com Sanford e tornara-se vulnerável.

- Admitamos, Phil - disse. - Digamos que eu esteja habilitado. Isso não impede que eu não esteja disponível. Repito, você pode achar um advogado, toda uma bateria de causídicos, não só habilitados como também disponíveis e ansiosos por ajudar. Portanto seja razoável. Deixe que eu lhe encontre alguém.

- Não - recusou Sanford categoricamente. -Você é o único em quem eu apostaria todo o meu futuro. Só você me conhece bem. Só você sabe o que está em jogo. Você interessar-se-ia. Defender-me-ia como se fosse a própria vida. Interessar-se-ia por mim como amigo e não como mero constituinte. Você entende tanto do mundo editorial de Nova Iorque quanto de leis californianas. E você entende de livros, é o único advogado que até hoje encontrei que gosta tanto de literatura como de direito.

Houve uma pausa significativa e depois Sanford acrescentou:

- Mike, você deve isso a si mesmo... e a mim. Barrett hesitou. O seu amigo interpolara a palavra “deve”. Barrett sabia perfeitamente as definições da palavra “deve”. “Contrair dívidas... Ter obrigação com alguém...” Sempre sofrera o peso da dívida não saldada com Sanford. Os anos tinham passado, mas a lembrança e a obrigação não se apagaram com o tempo. Quando ficara desesperado para salvar a mãe, somente uma pessoa se prontificara a socorrê-lo. Há muito tempo reembolsara Sanford do dinheiro que lhe devia. Porém nunca pagara os juros, que só se pagam na moeda da amizade, um favor pelo outro. Ninguém sobre a face da terra ajuda o próximo por puro altruísmo. Toda a gente espera uma retribuição qualquer, seja amor ou lealdade- ou conselho legal.

Mesmo assim, Barrett não se resignara a capitular. Sanford dissera que devia aceitar o caso tanto por si mesmo como em nome da sua amizade. Significando, talvez, que devia lutar por boa causa. Ou então, o que seria mais plausível, que devia auxiliar um amigo encurralado, mero eufemismo para atenuar uma dura imposição. Mas Barrett também sabia o que devia a si mesmo: o direito de ser dono do próprio nariz, de uma vez por todas, para se libertar de qualquer sentimento de culpa e repudiar juros fraudulentos reclamados por dívidas não saldadas. Devia rejeitar Sanford, tal como na véspera rejeitara Zelkin, e aderir a Willard Osborn II. Não se arriscava a pôr em perigo a situação oferecida por Osborn. Ao mesmo tempo, não podia, pelo menos de momento, romper com um amigo.

Percebeu que Sanford estivera a falar-lhe, perguntando:

- Você ainda está aí, Mike?

- Estou sim. Estava a tentar reflectir.

A voz de Nova Iorque tinha-se tornado ferida e aduladora.

- Mike. você não me pode decepcionar numa crise destas. Eu preciso de você.

- Você está a colocar-me numa posição difícil, Phil - replicou. - Mas deixe-me ver o que posso fazer. Façamos o seguinte. Vou experimentar o que me sugeriu. Hoje à noite tenho de falar com Osborn. Tenciono dizer-lhe que aceito a proposta para a vice-presidência. Ao mesmo tempo, pedirei um prazo. Explicarei o que se passa consigo, a nossa amizade, e a necessidade do julgamento, e depois, bem, depois espero que dê certo. Mas tem uma coisa, Phil. Se ele se recusar a conceder-me um prazo, aceitarei o cargo de qualquer maneira. Tentarei encontrar-lhe um advogado de primeira. Se tiver de ser outra pessoa, sei que compreenderá.

- Compreenderei apenas uma coisa - retrucou Sanford, recorrendo à tirania dos fracos. - Que a amizade tem precedência sobre todo o resto. Se você estivesse a afogar-se e necessitasse do meu auxílio, eu não hesitaria. Faria qualquer sacrifício para lhe estender a mão.

Aquilo irritou Barrett. Procurou conter o ressentimento que sentia.

- Sabe perfeitamente que eu faria tudo para ajudá-lo, dentro do razoável. Eu disse que tentaria. E tentarei hoje à noite. A única coisa que não posso fazer, se não houver outro remédio, é deitar todo o meu futuro a perder. Se não compreende isso, Phil, sinto muito.

- Ficarei aguardando o seu telefonema - disse Sanford e desligou.

Furioso, Barrett pôs o auscultador no descanso. Queria fugir daquela cabina, cena da cilada. Mas faltava-lhe cumprir ainda um dever.

Depositando outra moeda, discou o número da Promotoria Pública. Pelos vistos, a chamada já era esperada. Ligaram para Elmo Duncan quase imediatamente.

Contou-lhe que discutira o assunto com o seu constituinte em Nova Iorque e que tinham chegado a uma decisão a respeito do que iriam alegar, e que agora rumaria para Oakwood a fim de informar o réu.

- Vamos entrar com uma declaração de inocência- anunciou Barrett.

- Inocência? Óptimo, não podia ser melhor - exclamou Duncan, entoando as palavras como se fossem uma alegre canção de Natal. - Então, até ao tribunal.

Barrett sentiu vontade de responder que o Promotor Público encontraria alguém no tribunal, mas que era pouco provável que fosse ele.

- Até ao tribunal - ecoou.

Saindo da cabina, quase aderia a que Wiliard Osborn lhe não concedesse nenhum adiamento para assumir a defesa do caso.

Para a defesa, num processo como aquele, o tribunal era um campo de batalha perdido, um cemitério indefensável.

Passara a vida inteira para escapar de emboscadas.

Não podia arcar com um Littie Big Hom. [2)

Barrett fora convidado a jantar cedo na mansão de Osborn, pois ia levar Faye ao Music Center, no centro de Los Angeles, para assistir ao corpo de dançarinos do Bolshol numa récita de A Bela Adormecida, de Tchaikovsky.

A refeição na elegante sala de jantar, quase rústica, com as suas toscas vigas de madeira no tecto e os ladrilhos hexagonais no pavimento, tinha sido muito saborosa. Agora retiravam-se os últimos pratos servidos sobre a toalha castanha mexicana, tecida à mão, até que apenas o candelabro antigo, de ferro batido, permaneceu no meio da mesa. Um criado entrou com uma caixa de charutos aberta. Wiliard Osborn tirou um, mas Barrett recusou, indicando o cachimbo, que começou a encher com o tabaco do saquinho de couro.

Do outro lado da mesa, Faye enfiava novo cigarro na boquilha de ouro. Os cabelos louros repuxados para o alto acentuavam os fios de pérola em torno do alvo pescoço. Os seus olhos cruzaram com os de Barrett e piscaram, inclinando a cabeça ligeiramente para o pai, como para garantir a Barrett que o momento era propício. Barrett desviou a vista na direcção de Wiliard Osborn, sentado à cabeceira.

 

(*) Rio ao sul do Estado de Montana, cenário da histórica derrota do General Custer.

 

Osborn cortara a ponta do charuto e esperava que o criado o acendesse.

Finalmente os três ficaram sozinhos. Durante todo o jantar, a conversa, orientada por Faye, girara principalmente em torno de mexericos sociais e arte em geral. Nada de negócios. Barrett contava, até certo ponto, que o assunto da sua posição seria tratado enquanto comiam. Mas fora intencionalmente evitado por Willard Osborn. Barrett, por fim, compreendeu que, segundo o código de Osborn, comida e negócios não se misturam, por uma questão de boas maneiras.

Agora o jantar terminara, e dali a vinte minutos ele e Faye teriam de sair para assistir ao espectáculo de ballet.

Willard Osborn endireitou a magra silhueta e pôs-se a fitar Barrett por baixo das pálpebras caídas.

- Ora, muito bem - disse -, já falámos de tudo quanto foi assunto e agora eu diria que não há mais nada a comentar excepto o assunto mais importante de todos... o das vice-presidéncias. Presumo que esteja preparado para me dizer, Michael, se já tomou uma decisão e, caso seja favorável, se conseguiu largar o emprego actual. Está pronto para isso?

Barrett sorriu.

- Estava só à espera que o senhor perguntasse. Claro que a minha decisão é favorável. Foi favorável desde o momento em que me fez a proposta. O problema era Thayer & Turner. Folgo em dizer que consegui solucionar tudo. Demiti-me ontem.

- Que maravilha, Mike! - exclamou Faye, radiante.

- A única coisa...

- Estou absolutamente encantado - interrompeu Willard Osborn. - Sabia que você havia de encontrar um meio de resolver tudo. Óptimo. Agora podemos prosseguir conforme planeámos. Segunda-feira o escritório lá estará à sua espera. Quero que vá até lá, se familiarize com os arquivos; trave relações com os seus colegas e dentro de uma semana já se achará em condições de levar a nossa pequena legião de funcionários a Chicago para começar as negociações sobre aquela rede de televisão.

Incapaz de refrear o entusiasmo de Osborn, Barrett escutou tudo com uma sensação de naufrágio. Precisava de falar antes que o anfitrião continuasse.

- Há só um empecilho a atrapalhar, Willard.

- Atrapalhar o quê?

- Que eu comece a trabalhar já para você. Sabe, um amigo meu, um dos meus melhores amigos, quer que eu o represente num julgamento que será efectuado em breve em Los Angeles. Não pude convencê-lo a contratar outro advogado. Ele acha que, para esse tipo de caso, precisa de alguém que o conheça bem, alguém em quem possa confiar. Eu nem levaria a proposta em consideração, só que o homem é meu amigo, sempre foi leal comigo, e devo-lhe uma série de coisas.

Osborn abaixou o charuto e aproximou-se mais da mesa.

- Acho que não estou a entender bem, Michael. Não posso imaginar que isso seja tão importante para permitir a espécie de prazo de que está a falar. O que é que esse caso tem de tão especial que só você, e mais ninguém, seja capaz de resolver?

- Bom... - Barrett retorceu-se, contrafeito, no assento. - É o tipo de caso... bem, toda a futura carreira do meu amigo depende do seu desfecho. Antes de entrar no assunto, bem, se não me leva a mal, acho conveniente explicar primeiro a espécie de relação que tenho com esse meu amigo.

Pousando os olhos no cachimbo frio que mantinha na mão, sem o levantar sequer uma vez, Barrett começou a contar em frases apressadas e curtas como conhecera Philip Sanford, os anos passados juntos no colégio, a assistência que recebera dele quando a mãe ficara gravemente enferma, as dificuldades do amigo com o pai célebre, a oportunidade que tivera de assumir a direcção da Sanford House em fase de experiência para provar a sua capacidade. Depois, ainda mais rapidamente, Barrett intercalou Os Sete Minutos na narrativa, descrevendo a prisão de Ben Fremont e a determinação de Phil Sanford em defender tanto o livreiro como o romance nos tribunais.

- Hoje fiz o que ele me pediu e o que talvez fosse necessário - acrescentou Barrett. - Informei o Promotor Público de que íamos entrar com uma declaração de inocência. Prometi a Phil que tentaria, dentro do humanamente possível, representar a defesa.

Ao acabar de falar, ergueu os olhos para Faye, sentada ã sua frente. Mas só pôde vê-la de perfil. Tinha o rosto Inquieto virado para o pai. Barrett forçou-se a desviar a vista para Osborn.

Se o semblante de um homem pode ser resumido numa só palavra, então as feições de Willard Osborn seriam sinónimo de “estarrecidas”. A fisionomia aristocrática, geralmente pálida, estava espantada, consternada, aflita e levemente afogueada.

- Aquele livro - retorquiu Osborn, pronunciando “livro” como se fosse um palavrão escatológico. - Você pretende defender aquele livro infame? Não é possível que esteja a falar a sério!

Barrett sentiu-se abespinhado.

- Não tenho a menor ideia se o livro é ou não é infame. Foi só o nosso Promotor Público que disse que ele era infame. A outra parte ainda não foi ouvida. Não li o livro, mas mesmo assim ele merece...

- Não merece coisíssima nenhuma - atalhou Osborn. - Merece ser rasgado em frangalhos e lançado na lata do lixo. Você não tem a menor ideia se o livro é infame? Estou realmente surpreendido que um homem da sua inteligência faça uma observação como essa, Michael. Não é preciso ler um livro para saber que é infame. Sente-se pelo cheiro. Eu, por exemplo, sei o que é. Há indícios suficientes para emitir uma opinião. Conheço o nosso Promotor Público. Você mesmo já o encontrou nesta casa. É um homem honesto, um homem decente, e certamente nada puritano. Se ele julgou que Os Sete Minutos devia ser processado por obscenidade, eu confiaria no julgamento dele. Como se isso não bastasse, pense um pouco nos antecedentes desse livro. Os jornais publicaram fartamente hoje de manhã. Com excepção de uma mísera tipografia clandestina em Paris, nenhuma editora de nenhum país durante mais de três décadas achou que esse livro devia ser publicado. E quanto a esse seu pretenso amigo, cuja moralidade ficou evidentemente deformada pelo ressentimento psicótico contra o próprio pai... quando o seu amigo resolveu, oportunistamente, editar o livro, qual foi a primeira coisa que aconteceu? O livro terminou por cair nas mãos do jovem filho de Frank Griffith, libertando as suas inibições anormais e provocando-lhe um acto de violência.

- Quanto a isso, contamos apenas com a palavra do rapaz - objectou Barrett, abalado pela veemência de Osborn.

- Para mim basta - afirmou Osborn. - Michael, tem de compreender o seguinte. Não sou nenhum estranho à família Griffith. Seguramente conheço bem Frank Griffith há muitos anos. Já me comprou uma quantidade infinita de horas de televisão para os seus numerosos clientes. A clientela dele é formada pelos maiores homens de negócios da América, e isso porque soube merecer-lhes o respeito. É destacado cidadão público e criou o filho à sua própria imagem. Nada podia ter corrompido o espírito de um rapaz como aquele a não ser uma obra criminosamente pornográfica. Você já me conhece um pouco, Michael- Dificilmente me chamaria puritano. Deve saber que sou contra quem restringe as nossas liberdades. Oponho-me a seus esforços diariamente na interminável batalha do nosso mundo de televisão. Mas até a liberdade precisa ter limites. Do contrário, os gananciosos, os corruptos hão-de usá-la contra nós mesmos e destruí-la, assim como destroem os nossos jovens e inocentes. Eu digo que se deve abrir a porta à nova franqueza realista quando ela é honesta e arejada, mas digo que se deve fechá-la na cara hedionda de um monstro como Os Sete Minutos. Para seu próprio bem, Michael, sem falar no nosso futuro juntos, mas sobretudo para seu próprio bem, só espero que você não esteja a falar a sério quando diz que pretende defender esse livro.

Enquanto ouvia, Barrett ficava cada vez mais apavorado. O seu medo não era um medo de Willard Osborn, mas da raiva temerária que sentia crescer no íntimo e que triunfaria sobre a razão, dominando-o e dando vazão a sentimentos há muito esquecidos que destruiriam o seu prodigioso futuro. Não sabia o que dizer, mas, felizmente, não precisava dizer nada por enquanto, pois Faye estava a dirigir-se ao pai.

- Papá, não discordo do que o senhor disse, mas acho realmente que o senhor não está a entender o que Mike está a procurar explicar-lhe. Mike pode estar a falar sério a respeito de defender esse livro e pode não estar, mas a questão é que ele frisou desde o início que, se por acaso o defendesse, seria devido à lealdade a um velho amigo. Ele tentou explicar que está a pensar em tratar do caso por causa de Mr. Sanford, não por causa de Os Sete Minutos.

- Bom, pode ser, mas a simples ideia de Michael ficar envolvido... - Osborn virou-se mais uma vez para Barrett. - Quanto à lealdade entre amigos, compreendo perfeitamente. É uma coisa admirável. Contudo, por longa experiência, também sei que não se deve permitir que se torne avassaladora. Quase todos nós pagamos o nosso tributo à amizade. Mas nunca ao ponto de causar a nossa própria ruína. Não se esqueça disso, Michael. - Pegou no charuto e acendeu-o com um isqueiro de mesa. - Agora, pois, voltemos ao seu lugar nas Empresas Osborn. Eu disse que precisamos de você em seguida. É possível que se possa chegar a um meio-termo. Quanto tempo é que teria de consagrar a esse.,, esse julgamento de que falou?

- Por enquanto ainda não posso saber - respondeu Barrett. - Diria que talvez um mês. Talvez um pouco mais.

Osborn sacudiu a cabeça.

- Impossível. Creio que você está a pedir de mais. Não posso deixar o cargo vago por um período assim tão longo. Teria de encontrar outra pessoa. Ademais, para ser absolutamente sincero, há outro aspecto do seu envolvimento com Sanford que seria desagradável. Isso está com aspecto de se tornar um julgamento sensacionalista e sórdido. Um pouco dessa sordidez ficar-lhe-ia automaticamente ligada, e, se você viesse a ocupar uma das nossas vice-presidências, ficaria, por sua vez, ligada às Empresas Osborn. Deixaria você e a companhia mal vistos pelos conservadores mais impertinentes que anunciam nas nossas estações. Eu acharia extremamente difícil justificar a sua função num julgamento desses e, até mesmo, o facto de lhe ter entregue um cargo tão responsável numa companhia envolvida em comunicações que influenciam tanto a juventude como a velhice.

De repente esmigalhou o charuto no cinzeiro.

- Ora que diabo. Você sabe aonde eu quero chegar. É bastante inteligente para isso. Por isso é que me interessa que trabalhe connosco.

Osborn levantou-se da cadeira e empurrou-a para o canto. Parecia mais uma vez à vontade e afável. Sorriu de leve para a filha e depois concedeu um sorriso ainda mais amplo a Barrett.

- Sei que posso confiar no seu senso de valores, Michael - disse. - Pensando bem, esse julgamento não ocuparia o menor lugar no seu sumário de realizações. Há assuntos mais vitais, e mais atraentes, para se interessar. O meu conselho é: esqueça essa digressão de tribunal. Pode explicar ao seu amigo Sanford que fez uma tentativa em defesa dele, mas que eu fiquei totalmente irredutível. Pode dizer que não pude descobrir nenhum meio de o dispensar e que você teve de honrar o seu compromisso anterior com as Empresas Osborn. Depois de lhe explicar isso, e ele perceber que você está a falar sério, desistirá de qualquer novo esforço para se aproveitar da situação. Fará o que deveria ter feito logo. Tratará de achar o tipo de advogado de segunda classe que se especializa em defender o que é imoral e licencioso, alguém que tenha menos integridade do que você.

Quanto a você, Michael, quero-o na nossa equipa, entre homens de categoria, onde é o seu lugar. Entre homens de futuro. Conto vê-lo segunda-feira de manhã bem cedo e animado. Portanto, rua com os dois, e divirtam-se. Afinal, vocês têm muita coisa para festejar.

O ballet russo terminou com doze chamadas do público aos bailarinos em cena, antes das onze horas. Houve a enervante espera habitual para sair do parque de estacionamento e o costumeiro congestionamento de trânsito nas pistas, mas depois que Barrett conseguiu subir a ladeira pôde correr mais. Agora, à medida que o descapotável avançava por Sunset Strip, já eram onze' e quinze.

Faye Osborn recomeçou a comentar A Bela Adormecida e a exaltar as maravilhas do conjunto Bolshoi. Ele notou que pouco se lembrava do que ela estava a descrever. Durante todo o bailado, mantivera-se desatento. Enquanto o corps de ballet dava saltos de incrível leveza e traçava piruetas pelo palco, o pensamento de Barrett estivera repleto de imagens mais pesadas, mais inquietantes que faziam cabriolas e saltitavam na sua cabeça.

- Aquela nova bailarina - dizia Faye -, a que interpretou a Princesa Aurora... nunca consigo decorar esses horríveis nomes russos... você lembra-se como ela se chama, Mike?

- Não.

- Seja como for, creio que nunca vi desempenho mais maravilhoso. O programa dizia que é o papel que tornou Ulanova famosa da noite para o dia. Pois eu creio que esta moça vai ficar ainda mais famosa, não acha, Mike?

- Sim.

- Uma coisa positivamente estimulante. Deixa a gente com vontade de voar ou, pelo menos, dançar... Tem um Whisky a Go Go ali adiante. Você não está com disposição, Mike?

- Quê? Disposição para quê?

- Dançar. Você nem sequer ouviu o que eu disse. Acho que não está com vontade.

- Não, hoje de noite, não, meu bem. Na próxima vez. Tinham entrado em Beverly Hills e ele mergulhou em silêncio.

Ela estendeu a mão e apertou-lhe o braço.

- Mike, querido...

Olhou para ela. A testa perfeita de Faye estava enrugada de preocupação, estranha, como um delicado prato de porcelana rachada.

- Mike, o que é? Você passou a noite inteira fechado em si mesmo. Que é que o preocupa? É o Papá? Ele aborreceu-o?

Era filha de Osborn, e ele sempre fora prudente ao referir-se ao pai. Não que tivesse muito motivo para criticá-lo anteriormente. Willard Osborn sempre o tratara de maneira simpática. Mas, num plano pessoal, conhecia Osborn apenas como o pai da noiva, o anfitrião, o benfeitor da sua carreira. O resto de Osborn, o Osborn humano, somente o vislumbrara através do fio condutor que era Faye. Às vezes - raramente, mas acontecia - ficava a pensar. Porque talvez não fosse Osborn mas apenas Faye. Era difícil separar uma linha consanguínea em duas identidades. Por isso, nas poucas ocasiões em que Faye fizera comentários ou demonstrara preconceitos que o incomodaram, não fornecendo nenhum indício que revelasse se a prevenção era dela ou provinha do pai, ele sempre se mostrara cauteloso.

Mas nesta noite ele tivera Osborn presente o tempo todo, sem diminuir o seu ressentimento. Queria dizer o que pensava, livrar-se daquele peso, e resolveu fazê-lo nesse instante. Não seria imprudente. Seria simplesmente franco. Afinal, existia uma intimidade entre Faye e ele, mesmo que ainda não fosse estreita. A intimidade sempre vale para alguma coisa.

- Então, ele aborreceu-o? - insistiu Faye. -É isso que o preocupa?

- Sim, acho que é - respondeu. - Acho que estive a pensar no que ele disse depois do jantar. E isso fez-me pensar noutras coisas. Portanto, não se trata apenas de seu pai.

- Bem, que tem ele?

- Creio que não esperava aquela espécie de ultimato. Ou você concorda ou senão, fim. Quando revelei todo o meu dilema, a minha amizade e dívida com Phil Sanford, julguei que ele compreenderia a minha situação. Mas não compreendeu. Ou pelo menos preferiu não compreender.

- Seja justo, Mike. Eu estava presente. Apesar da opinião dele sobre o tal livro, sobre o julgamento, sobre a pena que sentia de Frank Griffith, o Papá encarou com simpatia o seu problema. Mostrou-se pronto a moderar as condições, a ceder um pouco. Isso porque ele gosta de você e quer vê-lo alcançar o sucesso que merece. Mike, ele de facto perguntou quanto tempo é que você precisava prò julgamento.

- Era exactamente o que eu queria dizer - retrucou Barrett. - Ele prontificou-se a conceder-me somente o tempo que ele achava que eu precisava. Se o julgamento versasse sobre outro assunto qualquer, tenho a certeza de que se mostraria mais flexível. Como era este processo, sobre este livro, ele traçou um limite à sua magnanimidade. Fez o gesto. Mas tornou as condições tão inaceitáveis quanto tinham sido desde o início. Ele sabia muito bem que não se pode preparar um processo, ir prò tribunal e liquidar tudo em questão de poucos dias ou de uma semana. Sabia que eu necessitaria de um mês ou mais. Quando eu disse isso, ele recuou e disse não. Porquê? Se realmente precisasse de mim na segunda-feira, e em Chicago uma semana depois, não me poderia dispensar absolutamente das negociações. Acontece que ele sabia, como eu sei, que não se promove um homem a vice-presidente simplesmente por causa de um projecto imediato. Se um homem é realmente valioso, então continua a sê-lo anos a fio, a vida inteira, leva-se tudo em consideração. É por isso que digo que se lhe tivesse pedido um prazo para ajudar um amigo sobre qualquer questão cível, uma acção fiscal, uma causa de direito comercial, qualquer litígio limpo, prático, viril, petulantemente americano, ele teria demonstrado consideração e ter-me-ia dado uma oportunidade. O que ele não gostou foi da questão em que eu queria envolver-me. Assim tornou impossível que eu contestasse essa questão... a não ser que eu estivesse pronto a desistir do cargo que me ofereceu.

Faye escutou tudo, mordendo o lábio inferior, e quando ele terminou, disse assim:

- Mike, você está agitado, e, portanto, com raiva, o que faz com que destorça a coisa toda. Ninguém conhece o Papá melhor do que eu. Pode acreditar, ele não estava a tentar obrigá-lo a respeitar o que ele respeita. Estava a pensar em você, no seu futuro. Ele sabe como as pessoas usam as outras e pode ser mais objectivo do que você, vendo nitidamente como Sanford está a aproveitar-se da situação. Não quer que você prejudique a sua reputação, permitindo associar o seu nome ao daquele livro indecente.

- Ora, eu não estou...

Cuidado, Barrett, cuidado, pensou consigo mesmo,, você já disse tudo o que queria. Agora prudência.

- Bem, talvez você tenha razão, Faye. Não é justo especular sobre os motivos alheios. Digamos que o que me incomodou foi o forte preconceito de seu pai contra um livro que ele nunca leu, não sabe nada a seu respeito, excepto o que o nosso Promotor Público, louco por publicidade, achou conveniente declarar à imprensa.

- E você, Mike? Você confessou que não tinha lido o livro, e, no entanto, está emitindo uma opinião preconcebida sobre ele, não está? Emitindo uma opinião preconcebida a seu favor.

Tirou-lhe um chapéu imaginário.

- Acertou em cheio, meu bem. Retiro o que disse, embora apenas em parte. Seja como for, seu pai não conhece nada do livro, e por intermédio de Phil Sanford eu, ao menos, estou familiarizado com...

- Mike, ter ou não ter lido o livro não devia ser o problema. Estou admirada de você. A gente sabe de certas coisas ou pela reputação que as precede ou porque as pessoas em quem confiamos nos previnem que não prestam. Se as pessoas informadas colocam um rótulo de “Veneno” numa garrafa, isso não basta? Será que toda a gente tem de provar o veneno para ficar convencida que não deve chegar perto dela?

- Não é a mesma coisa- replicou Barrett. -O veneno pode ser testado cientificamente e classificado como perigoso de antemão. Uma obra de literatura não pode, pelo menos, não de maneira tão simples.

- Ora, Mike, por favor. Esse livro corrompido foi testado cientificamente debaixo dos nossos próprios narizes. Utilizaram uma cobaia humana na experiência. Jerry Griffith. E ele ficou envenenado.

- Você diz Jerry Griffith. Vamos dar uma olhadela mais minuciosa em Jerry Griffith. Eu sou advogado, Faye. Aprendi a não me fiar no que as pessoas aparentam ou fazem. A gente examina, interroga, e na maioria das vezes encontra motivos bem diferentes dos que parecem à primeira vista. Talvez Os Sete Minutos tenha sido o único responsável pelo crime de Jerry. Mas talvez haja também outros motivos para a sua conduta e o livro fosse apenas o impulso final que accionasse o gatilho. À falta dele, qualquer outra coisa serviria para disparar o tiro. Como é que podemos saber, como é que o próprio Jerry sabe, a não ser que examinemos mais fundo? Não me sinto preparado para julgar o livro, condená-lo, devido exclusivamente a esse único indício. E o que me surpreende, e aborrece, é a quantidade de pessoas cultas, como seu pai, você mesma, e milhares de habitantes espalhados por esta cidade, que estão prontos a reprimir a liberdade de expressão sem prova concludente.

Faye tirou da bolsa a boquilha de ouro e um cigarro.

- Olhe, se você está surpreendido connosco, francamente, Mike, eu estou surpreendida com você. Julguei que o seu motivo principal para defender aquele livreco indecente fosse prestar favor a um velho amigo. Isso poderia eu compreender. Agora, de uma hora prà outra, não se trata já de amizade, mas de liberdade de expressão.

- Tenho a impressão de que me inflamei hoje à noite. Há muito tempo que me esquecera de que já fui idealista. Não acreditava que ainda tivesse esses sentimentos.

- Pois eu gostaria que você os aproveitasse para algo mais digno, que valesse mais a pena. Não com um pedaço de lixo incendiário - ergueu a boquilha. - Já sei, já sei, não posso falar nisso antes de provar o veneno.

Ele tentou conter o ressentimento.

- Ou ao menos antes de ficar segura, Faye querida, de que não trocaram o rótulo da garrafa.

Um tom cáustico infiltrara-se na sua voz e apressou-se a adoçá-lo com sensatez.

- Faye, de uma coisa não resta dúvida. Como você mesma frisou, nenhum de nós leu o livro. Você não leu. Seu pai não leu. Portanto nenhum de nós sabe directamente se é uma obra de pornografia barata ou de arte erótica. Portanto, como se pode continuar a discussão?

- Uma obra de arte! Pois sim. Se você quiser, leia. Eu não. Leia e depois conte-me. Assunto encerrado. O ballet foi mais divertido.

Reclinou-se no fundo do assento, fumando. Mas quando Barrett desviou o carro do Sunset Boulevard, Faye de repente espichou o pescoço e endireitou o corpo.

- Ei, aonde é que me leva, Mike? -Para casa.

Virou-se para ele.

- Que novidade é esta? Não íamos prò seu apartamento? Não vai dizer-me que ficou zangado comigo só porque discordei de você.

- Claro que não. Você sabe perfeitamente, Faye.

- Então porque não ficamos mais tempo juntos?

- Porque hoje de noite tenho outra companhia. Hoje de noite vou prà cama... com um livro - meteu o carro na alameda dos Osborn. - Vou praticar o que andei pregando. Vou averiguar se trocaram o rótulo do veneno ou não.

- Bom, se é só isso - parecia aliviada, e subitamente alegre. - Lembre-se apenas de que, se ficar excitado de mais, não saia por aí a galope para atacar de surpresa e violar uma pobre garota qualquer. Estou sempre pronta, disposta e disponível.

- Lembrar-me-ei.

Aproximou o carro da magnífica estrutura espanhola, pôs a mudança em “ponto morto”, pisou no freio de emergência, mas não desligou o motor. Estava prestes a sair para acompanhá-la até à porta quando ela o deteve com uma pergunta.

- Mike, será que você pensa em rejeitar a proposta do Papá para aceitar o caso de Sanford?

- Não sei o que penso. Não, tudo indica que não vou sacrificar o cargo que o seu pai me ofereceu. Provavelmente não teria coragem para tanto. E aliás, não havia de querer perder a oportunidade de a manter a você no padrão a que se acostumou.

- Mas você ainda não recusou o convite de Sanford. E vai ler o livro.

- Exactamente, meu bem - reconheceu. - Porque não quero ficar rico, gordo e velho a carregar sempre o mesquinho e talvez romântico arrependimento de que uma vez não fiz algo importante que deveria ter feito. Como disse um sábio há muito tempo, não há nada mais fútil do que o arrependimento. Outro sábio, ou seja eu, diz que não há carga mais pesada do que o remorso. Eu pretendo antecipar-me, derrubando esse albatroz, e juntando-me à equipa na segunda-feira de manhã, com a alma leve e vigorosa.

- Seu tonto - riu ela, e depois, voltando ao normal: - Não, falando sério, Mike...

- Muito bem, falando sério. Creio que não tenho grande escolha. Mesmo assim, existe um pedacinho da minha consciência, amedrontada em tenra idade por Clarence Darrow, que exige explicações minhas para certos actos que pratico. Não é vociferante o tal pedacinho, porém existe, e incomoda. Antes de recusar o convite de Phil Sanford amanhã, antes de encerrar por completo o assunto daquele livro, acho que ele merece uma leitura, uma ocasião de se defender, uma oportunidade de ser julgado com justiça. Então o meu pedaço de consciência ficará contente por eu ter concedido processo merecido ao réu.

Depois de eu ter lido Os Sete Minutos hoje à noite e ficar convencido de que é realmente pornográfico, escrito com o mero propósito de explorar a obscenidade e mais nada... quando chegar a essa conclusão, não terei dificuldade em rejeitar Phil Sanford.

- E se achar que se trata de algo mais que pornografia?

- Não deixarei que isso aconteça - sorriu. - Caso contrário, hei-de lutar com o meu pedaço de consciência e tentar ver se dá para fechar-lhe a boca.

Saiu do carro, passando rapidamente para o outro lado, e ajudou Faye a descer. Ela tomou-lhe a mão e caminharam em silêncio até à imponente porta de carvalho. Ela procurou a chave, entreabriu a porta, depois soltou-a e virou-se de frente para ele.

- Mike, estou certa de que não fará nenhuma asneira por causa daquele livro. Mas se... se por algum motivo irracional... não puder vencer o seu sentimento de culpa por não socorrer Sanford, se tiver de lutar com o seu pedaço de consciência e sair perdendo... bem, acho melhor deixá-lo prevenido, ficarei a seu lado - os braços dela enlaçaram-no e a cabeça pendeu contra o seu peito. - Sempre dou um jeito para forçar o Papá a fazer o que quero. Se eu tiver de fazer isso, posso forçá-lo a manter aquela vice-presidência vaga para você... até que termine o julgamento.

Beijou-a e ouviu as batidas do seu coração, aumentando-lhe o próprio desejo. Separou-se logo, sussurrando:

- Obrigado, querida.

Depois voltou-a em direcção à porta e incitou-a a entrar.

Quando a porta se fechou e ele se viu sozinho, hesitou um pouco, erguendo o olhar para a noite azulada, aquele céu iluminado por uma infinidade de estrelas, brilhando como jóias, tão deslumbrantes como os prismas puros cristalinos de um candelabro inestimável. Lá em cima, nalguma parte, nasciam todos os pedaços de consciência. Em sua viagem vertical até este habitat do homem, tornavam-se frágeis e a armadura de protecção que envergavam era de carne tão fraca e delicada, e tão susceptível à extinção, que constituía um autêntico milagre que sobrevivesse qualquer pedaço de consciência humana sobre a face da terra.

Levara um choque nesta noite, ao descobrir que a pequena voz emudecida da consciência sobrevivente pudesse reclamar tempo igual às ambições mais fortes e dominadoras. E levara um choque ao reconhecer que cedera às reclamações daquele fragmento esganiçado de consciência.

Prometera-lhe uma audiência, que agora precisava de ser efectuada.

Barrett encaminhou-se para o carro.

Leria o maldito livro e liquidaria logo com aquilo, de uma vez por todas.

O relógio eléctrico na mesa-de-cabeceira marcava quatro da madrugada e Mike Barrett tinha quase terminado a leitura.

De pijama e roupão de flanela, recostado a dois grandes travesseiros, Barrett virou a última página de Os Sete Minutos, leu o parágrafo final e fechou o livro devagar. Ficou a olhar incredulamente o volume durante alguns momentos e depois, relutante, largou-o em cima do cobertor.

Sentia-se profundamente abalado. Só se lembrava de uma única vez em que ficara impressionado a tal ponto por um livro, e mesmo assim havia sido por uma obra que não era de ficção. Quando adolescente, no colégio, lera Uma Introdução Geral à Psicanálise, de Sigmund Freud, e apesar de não compreender todas as palavras do livro, compreendera o suficiente para saber que sofrera uma revelação. Até então, Barrett aceitara a atitude dos contemporâneos mais conservadores de Freud, no sentido de que existia qualquer coisa de ligeiramente vergonhoso e indecente em torno do sexo. De um golpe só, ao abrir-lhe o entendimento, Freud quase conseguira libertá-lo de sentimentos neuróticos a respeito do sexo. Na ocasião, fora incapaz de definir exactamente o que tinha aprendido. Apenas mais tarde, num estudo de antropologia social feito por H. R. Hays, foi que se esclareceu a revelação juvenil: “Uma sociedade que cobria as pernas de pianos por pudor, aprenderia com Freud que a inocência das crianças e a pureza das mulheres, dois dos seus mitos prediletos, eram pura ilusão. Essa descoberta foi tão chocante como a invasão do Jardim do Éden feita por Darwin”.

Agora, nestas horas matutinas, pela segunda vez na sua vida, outro livro criava um abalo sísmico nas convicções de Mike Barrett a respeito de sexo.

Permaneceu imóvel, recostado nos travesseiros, procurando avaliar as suas emoções. Uma predominava entre todas. Ardia de desejo. Um desejo de correr pelas ruas em busca da primeira mulher que pudesse encontrar. A necessidade que sentia não era carnal, de satisfação da luxúria, porém de confessar e expiar a pecaminosa insensibilidade que a maioria dos homens adopta em suas relações com todas as mulheres. Queria proclamar-lhe que havia lido um livro e visto uma luz que iluminava por completo o verdadeiro espírito e coração femininos, uma luz que talvez lhe desse a ele e a outros homens uma nova percepção do sexo oposto. No clarão dessa impiedosa luz de purificação, os vermes da vergonha e do medo, da culpa e da ignorância, correriam a refugiar-se novamente nas trevas primitivas, incapazes de corroer por mais tempo as raízes expostas das relações humanas.

Ah, nesta noite, as suas ideias e esperanças eram imensas.

E todo esse desejo de espalhar a notícia da descoberta crescera nestas últimas horas, com aquele livro extraordinário. Não era o estilo do autor, nem os personagens, nem a história do romance que o impeliam a uma reacção de fervor evangélico. Era a compreensão que lançava no seio mais profundo, onde se originava o comportamento humano, e a fraqueza nua e crua do livro em expor cada aspecto da evolução desse comportamento.

Tentou controlar-se, recorrendo às suas faculdades críticas para definir o que tanto o impressionara. Afinal, era apenas um romance que tinha lido. Não era nenhum estudo profundo, filosófico ou psicológico, da humanidade. Simplesmente uma obra curta de ficção, escrita com o coração, não com o intelecto. E, se não fosse considerada em conjunto, mas trecho por trecho, se pudesse ser decomposta em pedaços, não deixava de apresentar inúmeras falhas. Evidentemente que, para os bravos caçadores brancos, os caçadores do obsceno, havia caça abundante- os palavrões, as frases grosseiras, as passagens de sexo anormal e sacrílego. Tomado, porém, como um todo, o livro não era pornográfico. Tinha beleza, a beleza da verdade que torna possível a descoberta e o conhecimento de nós mesmos.

Em resumo, Os Sete Minutos era - e por favor me perdoe, Faye - uma obra de arte.

Com respeito e carinho, Mike Barrett pegou no livro outra vez. Para a mão, parecia mais substancial que o seu tamanho sugeria. Consistia em apenas 171 páginas impressas.

Abriu o volume e examinou as guardas do livro. A parte interna da encadernação e a página oposta estavam ilustradas com uma reprodução fotográfica do rosto da edição parisiense original. Antes não havia lido, mas agora leu:

OS SETE MINUTOS de

J J JADWAY

Editora L'Étoile 18, rue de Berri Copyright 1935

da

Editora L'Étoile Paris

Impresso na França Todos os direitos reservados

Paris

Comparando com o rosto mais atraente da edição americana, Barrett notou que só as letras e a informação editorial eram diferentes. O mesmo título, o mesmo autor, excepto que agora o nome do editor era Sanford House, Editores, Nova Iorque, e o ano de publicação o actual.

Não havia nenhuma indicação de outras obras de J J Jadway Então Barrett lembrou-se de que a quarta contracapa explicava que este extraordinário tour de force tinha sido o primeiro e último romance do autor, e que uma carreira extremamente promissora terminara abruptamente com a morte prematura do escritor num acidente nos arredores de Paris. Jadway morrera com a idade de vinte e sete anos. O livro não trazia mais pistas sobre a vida do romancista.

A dedicatória resultava ainda mais enigmática. Compunha-se de apenas duas palavras:

Para Cassie

 

A epígrafe na página seguinte, Barrett sabia, proporcionara ao autor a estrutura do romance. Releu o parágrafo:

Embora houvesse grande variedade de reacções, a maioria das mulheres que tinham orgasmo, seja provocado manualmente, oralmente ou através do coito, atingia a fase climática em sete minutos.

- O Estudo Collingwood de 100 mulheres, de 18 a 45 anos de idade (Londres, 1931)

Esses sete minutos, Barrett agora sabia, tinham sido representados por sete capítulos no livro de Jadway, cada um, por sua vez, representando um minuto no espírito de uma mulher deitada na cama, tendo relações sexuais com um homem anónimo, invisível. O romance todo era narrado através dos pensamentos dessa mulher, os seus sentimentos, as suas recordações, os seus sonhos, durante os sete minutos da cópula.

Essa era a estrutura e o método de Os Sete Minutos.

De repente Barrett pôs-se a imaginar se Jadway conhecera ou ao menos encontrara James Joyce durante os últimos anos de Joyce em Paris. E se lera a edição do Ulisses da Odyssey Press, que andava a circular por Paris naquela época. Jadway lera certamente o romance de Joyce, ou pelo menos a parte final de 25 000 palavras, a parte triste e alegre e supostamente lúbrica que compunha o brilhante monólogo interior de Molly Bloom.

As descrições dos sete minutos sensuais e reveladores no espírito da Cathleen de Jadway apresentavam certa semelhança com o encadeamento de ideias no espírito da Molly Bloom de Joyce. Teria Jadway baseado o seu livro em Joyce? Barrett ficou logo curioso.

Pulou da cama e correu de pés descalços à estante de livros, correndo os olhos pelos títulos, e em poucos segundos tinha Ulisses nas mãos. Folheou as páginas até encontrar a Molly de Joyce na cama, deitada ali, “satisfeita, recostada, cheia de esperma”.

Leu mais adiante, acompanhando Molly que, deitada na cama, pensava em Blazes Boylan, no jovem Stephen Dedalus, no marido, Leopold Bloom, nos amantes que tivera e nos amantes que queria ter, no passado e no futuro.

O devaneio de Molly:

“Vou pôr a minha melhor roupa de baixo e calcinhas e deixá-lo com cada olho deste tamanho até ficar de pau duro aí eu conto-lhe que se era isso que ele queria que a mulher dele fosse fodida é isto mesmo e fodida para caralho até ao pescoço não por ele 5 ou 6 vezes uma atrás da outra olha ali a marca da porra dele no lençol limpo imagina se vou abalar-me para a tirar a ferro essa devia convencê-lo se você não acredita apalpe a minha barriga.a não ser que eu o fizesse ficar ali parado de pé e o deitasse dentro de mim estou com vontade de lhe contar tintim por tintim e obrigá-lo a ouvir de frente para mim bem como a culpa é toda dele se sou uma adúltera..."

Mas no fim, o pensamento festivo de Molly:

“Quando eu puser a rosa no meu cabelo que nem as moças andaluzas ou será que vou pôr uma vermelha sim e como ele me beijou ao pé da parede mourisca e eu pensei ora tanto faz ele como outro qualquer e então pedi com os olhos que ele pedisse de novo e então ele perguntou-me se eu diria sim dizer sim minha flor montanhesa e primeiro passei os braços pela cintura dele sim e puxei-o para baixo para que ele sentisse os meus seios bem perfumados sim e o coração dele batia feito louco e sim eu disse sim eu quero sim.”

Distraído, Barrett devolveu Molly Bloom à estante de livros e dirigiu-se de novo para a cama. Agora tinha menos a certeza de que Cathleen, a heroína de Jadway, fosse baseada, em qualquer sentido, na Molly de Joyce. Talvez, talvez, mas não fazia mal. Do que tinha a certeza absoluta era que Jadway não colhera praticamente nada no texto original de Joyce. Esse lembrete fez Barrett pensar no fluxo ininterrupto de raciocínio com suas impressões calidoscópicas sempre mutáveis- de Joyce, como o jurisconsulto Woolsey definira, em suas frases amontoadas e sem pontuação, nas palavras compostas e no obscuro uso do inglês, na poesia, na paródia, e no ouvido que Joyce tinha para o cómico. Os Sete Minutos de Jadway reflectia pouco dessas inovações e propensões. Contudo, de certo-modo, Jadway empreendera uma tarefa da mesma dificuldade. Pois, embora o seu romance inteiro fosse um monólogo interior, embora houvesse ocasionalmente trechos eficazes de livre associação de palavras, a maior parte do livro era controlada e formal em seu emprego da estrutura de frase convencional, e desenvolvia-se em ordem cronológica até atingir uma revelação dramática da trama. Enquanto Joyce procurara reproduzir o ponto de vista do personagem, tentando reproduzir os meandros disformes do pensamento de uma pessoa, Jadway procurara o do leitor, que sonda o espírito do personagem e traduz as eventuais acrobacias verbais do pensamento do personagem para a linguagem mais compreensível da fala convencional.

Barrett sentou-se na cama. Estendendo a mão para a mesa, apanhou a garrafa de conhaque e serviu-se de uma última dose antes de dormir. Saboreando a bebida, Barrett tentou descobrir por que motivo se dera ao trabalho de comparar J J Jadway com James Joyce. Encontrou logo. Não tinha sido um exercício literário, afinal de contas, e sim legal. A obra de Joyce fora publicada em Paris em 1922, e desde então ficara sistematicamente proibida nos Estados Unidos como obscena, até ser levada a julgamento pelo Tribunal Regional de Nova Iorque, presidido pelo Juiz John Woolsey. Em 1933, Woolsey anunciava que, apesar da “insólita franqueza (do livro), não vejo em parte alguma o olho lúbrico do libertino. Considero, portanto, que não é pornográfico.” E em 1934, o Juiz Augustus Hand, do Tribunal de Recursos, ratificava a mesma opinião.

Agora Os Sete Minutos deveria passar por julgamento semelhante, e talvez mais difícil.

Um juiz ou um júri não o considerariam pornográfico?

Ou seria condenado como absolutamente imoral?

Tentou resumir a história para si mesmo, colocando-se na posição da “pessoa média, segundo os critérios da comunidade contemporânea”. Recapitulou rapidamente as linhas gerais.

Começava dentro do pensamento dessa moça, Cathleen, deitada de costas, nua, na cama de um lugar ignorado. Começava com os seus raciocínios e sentimentos, enquanto o companheiro de leito, também nu, se introduzia nela e se punha lentamente a fazer-lhe amor. À medida que o acto sexual progredia, o espírito de Cathleen reagia à cópula em dois planos distintos. O primeiro registava as sensações físicas imediatas. O segundo, inspirado pela paixão cada vez mais intensa, recordava-lhe fragmentos de experiências sensuais da juventude, projectando depois essas lembranças em fantasias violentamente eróticas de amores que não tinha experimentado mas procurava imaginar. A sua imaginação criava cenas de amor físico com Jesus, Júlio César, Shakespeare, Chopin, Galileu, Byron, Washington, Parnell. De permeio com essas fantasias, imaginava-se a fornicar com um negro africano, um asiático e um índio americano.

Evocando esses nítidos quadros mentais, revivia também momentos carnais com três homens que haviam sido seus amantes. Os três variavam grandemente em matéria de dotes e proezas físicas, assim como nas suas atitudes em relação a mulheres e ao amor. Cada um oferecera-lhe, ensinara-lhe algo, e as experiências com todos os três juntavam-se para torná-la uma mulher completa. E a única história existente no livro descrevia a decisão de Cathleen em tomar um desses homens seu companheiro para o resto da vida, o que levara para a cama naquela noite, o mesmo que a possuía durante os sete minutos do título. Somente na última página, ao ofegar de amor por ele no paroxismo final do orgasmo, é que exclamava o nome, revelando o escolhido.

Eis, em linhas sumaríssimas, o livro que Barrett acabava de ler.

Ainda na posição do “leitor mediano” e “segundo os critérios da comunidade contemporânea”, Barrett teve a certeza de que o resumo, em si, não podia ser considerado obsceno sob o ponto de vista legal, posto que o acto sexual, em si, não é legalmente obsceno.

Mas então percebeu que não analisara o livro de uma perspectiva totalmente honesta. Substituíra eufemismos nela linguagem realista de cama que Jadway havia empregado. Ao esquematizar o fio da história essencial de Os Sete Minutos fora desonesto com o espírito de verdade de Jadway.

A seu ver, Cathleen entregara-se a relações sexuais, cópula, coito, fornicação, fazer amor.

No entender da Cathleen de Jadway, ela simplesmente fodera.

O velho palavrão, de per si, já não podia predispor um juiz ou um júri contra a obra de arte. O seu uso na literatura moderna era frequente e constante. A palavra, automaticamente, não tornava pornográfica a obra literária.

Conquistara o seu lugar natural durante uma discussão histórica que movimentara o Julgamento de Ulisses.

Barrett lembrava-se.

Debatia-se a linguagem do romance de James Joyce. E, em boa parte, o uso que ele fazia da palavra “foda”.

O advogado de Joyce disse ao juiz Woolsey:

“Meritíssimo, quanto à palavra "foder", um dicionário atribui a raiz etimológica ao facere latino... fazer... Isso, Meritíssimo, tem mais integridade do que um eufemismo usado diariamente em tudo quanto é romance moderno para descrever exactamente o mesmo acto.

“- Qual?-perguntou o juiz Woolsey.

- Ora... "Eles dormiram juntos" - respondeu o advogado de Joyce. - Significa a mesma coisa.”

O juiz Woolsey sorrira.

“-Mas, Doutor, em geral isso nem sequer é verdade!”

Naquela discussão, foder” fora admitido na página impressa.

Não, não era a linguagem de Os Sete Minutos que talvez criasse problemas perante um júri de cidadãos comuns. Era o contexto em que ela se inseria. Para Molíy Bloom, foder com um chamado Boylan era uma coisa. Para a Cathleen de Jadway, imaginar uma foda com o Pai da Pátria ou com o Filho de Deus - talvez fosse algo bem diferente.

Depois havia outro problema: o problema do sexo explícito, de cenas que "Ultrapassavam, substancialmente, os limites habituais de franqueza ao descrever ou representar esses assuntos... assunto totalmente destituído de importância social compensatória”.

Tinha deixado um exemplar de O Amante de Lady Chatterley e da edição inglesa de O Processo de Lady Chatterley na mesa-de-cabeceira, esperando passar de novo os olhos por eles depois de terminar a leitura do romance de Jadway. Agora já era tarde, mas não pôde resistir à tentação de pegar em O Amante de Lady Chatterley e folheá-lo. Procurou certos trechos, até se concentrar num. Mellors estava fazendo amor com a Lady. Desculpe, Mr. Joyce. Mellors estava fodendo a Lady. Leu o trecho:

“... e o contorno dos quadris dele pareceu-lhe ridículo, e a espécie de ansiedade do pénis em atingir a curta crise ejaculatória chegava a ser cómica. Sim, aquilo era o amor, esse ridículo vaivém das nádegas, e o amolecimento do pobre, insignificante, pequeno pénis húmido, era aquilo o divino amor!”

Barrett foi mais adiante, e aqui “ele apalpava de leve o declive sedoso das suas ancas, descendo cada vez mais, até chegar ao meio da cálida maciez das nádegas”, e ali “Ternura, mesmo - ternura de cona -, vulva, e ainda, -ela segurou-lhe o pénis delicadamente na mão”.

Barrett fechou o volume, colocou-o sobre a mesa-de-cabeceira e pegou no relatório do julgamento londrino. Abrindo-o, deparou-se-lhe um professor de Cambridge, biógrafo de D. H. Lawrence, que declarou ao tribunal:

“- Creio que os trechos sexuais que causaram protestos não tomam mais de trinta páginas do livro inteiro-que possui cerca de trezentas... Nenhum homem em seu juízo perfeito se dá ao trabalho de escrever um livro de trezentas páginas como mero enchimento para trinta páginas de assunto sexual.”

Apenas trinta páginas de assunto sexual e 270 e tantas de outros assuntos. E no entanto a Lady de Lawrence provocara décadas de furor. Teriam os outros assuntos suficiente importância social para compensar as cenas sexuais explícitas? Barrett voltou às páginas da exposição inicial da defesa:

“- Deduz-se claramente do livro, que o autor também teve em mira certos aspectos da nossa sociedade - isto é, da nossa sociedade como era na época, na década de vinte, nos anos da depressão - que ele desaprovava por completo... Julgou... que os males de que ela padecia não seriam curados pela acção política; e que o remédio consistia na restauração de relações justas entre os seres humanos, e especialmente na união entre homens e mulheres. Uma das coisas mais importantes da vida, a seu ver, era a relação de duas criaturas apaixonadas, e a união física de ambos formava uma parte essencial de uma relação normal e saudável e não algo de que deviam envergonhar-se, algo que podia ser discutido franca e abertamente.”

Importância social compensatória. E de cada dez páginas, apenas uma dedicada ao sexo explícito.

Entretanto, cá estava Os Sete Minutos de Jadway, um livro em que não apenas uma página em dez, mas, antes, página por página, 171 ao todo, dedicadas às relações sexuais. Mas ora, que diabo, não era apenas disso que se tratava, apenas de fodas animalescas, mas também como se sentira tão purificado como pessoa, tão esclarecido em relação às mulheres, ao terminar o livro? A relação sexual prolongada tinha sido bela, e um artifício que servia para discorrer sobre a compreensão entre os sexos, sobre o amor, a compaixão, a ternura, os sonhos, o significado da vida e da morte. A conduta de Cathleen não carecia de nenhuma compensação, mas se a lei exigisse que o retrato da sua paixão traçado por Jadway contivesse importância social compensatória, ora, ali estava, página após página.

Mesmo assim, percebeu Barrett, existiam outros problemas, inúmeros, inclusive o motivo e a intenção do autor. Como seria bom que Jadway estivesse vivo, para explicar não só porque escrevera o livro mas para solucionar vários mistérios em suas páginas. Mas restava apenas a herança de Jadway, o livro, para interceder por ele no julgamento. Sim, existiam sérios problemas, mas se o romance era obscenidade ou literatura não era um deles. Pelo menos para Barrett.

Se o livro não era imoral, tinha de haver alguém que se levantasse para protegê-lo. Tal como tinha de haver alguém para se levantar e proteger a Constituição e a Lei dos Direitos Civis contra os que zombavam das suas garantias.

Lembrou-se da obsessão de Zelkin e da preocupação do ministro Warren do Supremo Tribunal, ambos temendo que a Lei dos Direitos Civis - inclusive a parte da Primeira Emenda: “O Congresso não aprovará nenhuma lei que restrinja a liberdade de expressão ou de imprensa” - se fosse apresentada hoje talvez não viesse a ser aprovada. Depois lembrou-se do que outro advogado, Edward Bennett Wiliams, ilustre causídico, escrevera certa vez a este respeito. Williams achava não somente que a Lei dos Direitos Civis não seria aprovada actualmente, como também nem sequer chegaria a entrar em votação no Congresso, não passando da comissão do projecto.

“Nós permitimos que ocorresse um desgaste na independência e na liberdade individuais nas últimas três décadas”, declarara Williams, “não resultante do excesso de intromissão de governo autoritário, nem decorrente de agressões premeditadas de que foram vítimas a liberdade e a independência durante a última década, mas sim proveniente da letargia colectiva e de uma atitude sobranceira de desinteresse. Creio que efectuámos uma substituição na nossa hierarquia de valores nacionais - uma substituição gradativa que só agora atinge o seu clímax. Nós colocámos a segurança em posição de primazia e subordinámos-lhe a liberdade individual.”

Se hoje em dia não se podia falar em sexo, então no futuro não se poderia falar em religião, política, instituições públicas, pobreza, igualdade racial, representantes do povo e justiça. E então todos ficariam emudecidos. A Lei dos Direitos Civis seria suprimida, abolida e considerada sediciosa.

Podia começar com um livro.

Abalado, Barrett fitou Os Sete Minutos.

Tomara uma resolução.

Olhou para o relógio da cabeceira. Eram três horas mais tarde em Nova Iorque. Seriam sete e meia na casa de Philip Sanford.

Phil já estaria acordado, e talvez à espera do seu telefonema.

Barrett tirou o auscultador do descanso, discou o número de código da zona de Sanford e depois o da residência.

Sanford estava bem acordado, mas com a voz quase inaudível de tanta ansiedade.

- Não sei como vou arranjar-me com Osborn - disse Barrett -, mas cheguei a uma opinião sobre Os Sete Minutos. Acabei de ler o livro agora mesmo Phil, e ele merece ser defendido. Não tenho a mínima ideia do que acontecerá com ele ou connosco, mas nós precisamos levantar-nos e enfrentar a acusação. Se nos curvamos desta vez, erguendo a bandeira branca prós censores, então não há futuro para a liberdade de expressão. Liquidarão com a gente. Ficaremos calados para sempre. O momento é este, e sejam quais forem as consequências, estou pronto a ir até ao fim.

- Mike, eu gosto de você!

- Daqui para a frente, ou ficamos lado a lado ou nos separamos... portanto, apronte a mala. Conto com a sua presença aqui dentro de uma semana. De hoje em diante, está declarada a guerra.

Desligando o telefone, não se arrependeu. Talvez lhe custasse a grande oportunidade com Osborn. Mas era possível que não, pois Faye apoiava-o e prometera-lhe encarregar-se do pai. Assim, provavelmente, não se tratava de tanto sacrifício e não seria o advogado corajoso que imaginava. Porém estava a fazer o que queria. E, para variar, sentia-se bem.

Pegou no relógio e marcou o despertador. Sabia que dormiria bem esta noite e que acordaria descansado e forte, mesmo com apenas quatro horas de sono. Levantar-se-ia cedo porque precisava de fazer outro telefonema: para Abe Zelkin, anunciando-lhe que contava com um sócio, ainda que só para uma causa importante.

Em sentido figurado e efémero, haveria uma tabuleta: Barrett & Zelkin, Consultores Jurídicos e Benfeitores.

 

QUANDO Mike Barrett voltou ao Beverly Hilts Hotel, acompanhado por Abe Zelkin, Philip Sanford já os aguardava no agradável vestíbulo. Como Zelkin e Sanford tinham conversado várias vezes pelo telefone interurbano nos últimos dez dias, Barrett não precisou de apresentá-los formalmente. Apertaram-se as mãos com cordialidade e passaram logo a tratar-se pelo primeiro nome.

- Leo Kimura chamou de Westwood - explicou Barrett ao editor. - Chegará com alguns minutos de atraso. Eu disse que estaríamos na piscina.

Depois, enquanto os três se dirigiam para a piscina do hotel, acrescentou:

- Abe e eu sentimos maior segurança, quando Leo chega atrasado. Significa que encontrou uma pista. Não poderíamos, de modo nenhum, ter feito os preparativos do processo em tão pouco tempo sem um sujeito como ele.

- Contar com Kimura do nosso lado equivale a ter uma matilha de sabujos, só que todos eles juntos não se comparam com Leo - disse Zelkin com satisfação.

- E eu que pensava que a maioria dos japoneses na Califórnia fosse jardineiro ou proprietário de restaurante - comentou Sanford.

- Os pais dele eram - retrucou Zelkin. - Também fizeram parte dos cento e dez mil cidadãos americanos internados em campos de concentração depois de Pearl Harbor. A nossa pequena experiência nacional no género. O pai de Kimura ficou preso no Centro de Redistribuição de Tule Lake. E ainda se fala em justiça, hem? Pois a nossa geração de mísseis não se esqueceu disso. Em todo o caso, Leo Kimura pelo menos nunca se esqueceu, e tratou de providenciar para que nenhuma injustiça como aquela tornasse a acontecer. Trabalhou para pagar os estudos até se formar pela Faculdade de Direito da Universidade da Califórnia Meridional. No momento em que comecei a entrevistá-lo, logo que abri o meu escritório, percebi que era ele que me convinha. Sabe, metade dos casos jurídicos que vão a julgamento são ganhos ou perdidos numa biblioteca jurídica ou na cidade, onde se faz o serviço de rua. Para você, eu estou encarregado da biblioteca e Kimura do serviço de rua. E aqui o nosso Mike faz um pouco de tudo, inclusive poupando as suas cordas vocais para o tribunal.

Desceram em fila para a piscina do hotel. Fazia um dia ameno, sem vento, e muitos dos hóspedes, evidentemente ricos, estavam sentados ao redor da água em traje de passeio ou roupa de banho, e da meia dúzia de pessoas que nadavam, três eram lindas garotas de biquini. Embora Barrett usasse fato de linho listrado, sentiu-se vestido de mais. Mas afinal, lembrou-se, não se demoraria muito. Hoje, como vinha sendo a regra há mais de uma semana, teria um dia carregado de serviço.

Percebeu que Sanford e Zelkin iam sendo conduzidos à mesa reservada, um pouco afastada da piscina, protegida por um guarda-sol amarelo. Lado a lado, Sanford e Zelkin formavam um par incongruente. Zelkin era Zelkin - a cabeça de abóbora animada, por baixo da qual pendiam o paletó desportivo esverdeado, demasiado grande para ele, e calças sem friso. Philip Sanford era a alegria dos alfaiates, e até a roupa de veraneio que passara a usar depois de chegar do aeroporto - paletó de linho para praia, bermudas, sapatos sem salto feitos na Itália - tinha uma elegância impecável. Sanford regulava em estatura com Barrett, porém era mais magro, estritamente género clube atlético, mas toda essa robustez aparente se via debilitada pelo cabelo liso, sem brilho, e pela pele muito branca, que parecia eliminar a individualidade dos traços, dominados por uma permanente expressão de angústia.

Barrett alcançou os companheiros, aproximando-se da mesa a tempo de pedir a sua bebida. Preveniram o criado de que decidiriam sobre o almoço quando chegasse o quarto membro do grupo. Essa referência ao retardatário Kimura provocou uma nova série de perguntas nervosas de Sanford sobre os progressos realizados nos últimos dez dias, depois que Ben Fremont ingressara com uma contestação de inocência e Barrett, junto com Zelkin, assumira o caso, fixando a data para o início do julgamento. Entusiasmado, Zelkin começou a expor em linhas gerais alguns dos preparativos da defesa.

Barrett enfiou os óculos escuros e ficou a contemplar fixamente a piscina. Teve a atenção fugazmente atraída por uma garota magra, angulosa, tipicamente californiana, que devia ter, no máximo, vinte anos, e estava a sair da água. Uma tira do soutien do biquini retinha apenas uma parte dos seios abundantes, e Barrett tinha a certeza de que iam saltar fora a qualquer instante. Porém não saltaram e, parada de pé à beira da piscina, escorrendo água, endireitando triunfalmente o soutien, ela sorriu para Barrett, que retribuiu meio acanhado, fingindo-se atento à conversa da mesa.

- Assim, como vê, Phil, o principal problema é tempo - dizia Zelkin, todo sério. -Você logrou-nos em matéria de tempo. Eu entendo a necessidade disso, mas...

Os gim-tónicos começaram a ser servidos. Barrett pegou no seu copo e afastou ligeiramente a cadeira para apanhar um pouco de sol. Depois, sorvendo devagar a bebida, reclinou a cabeça para trás, deixando o sol banhá-la. Fechou os olhos.

Sabia que o problema era tempo, ou melhor, a falta de tempo nessa fase crítica de pré-julgamento. Tocara anteriormente no assunto com Sanford no aeroporto, mas não insistira por motivos completamente egoístas.

Já se encontrava no Aeroporto Internacional, uma hora antes do horário previsto para a chegada matutina de Phil Sanford de Nova Iorque. O que fora sorte, pois o jacto de passageiros pousara com catorze minutos de antecedência. Barrett não perdera um segundo a expor o problema, exclusivamente porque Abe Zelkin lhe implorara que o fizesse.

O carregador depositara a bagagem de Sanford na calçada de cimento diante da terminal e os dois estavam à espera de que o encarregado do serviço de estacionamento trouxesse o carro de Barrett, quando este tocou no assunto.

- Phil, o julgamento está a assumir uma proporção fenomenal e Duncan, ou alguém que não sei quem é, está a fazer tudo para que fique mais sensacional ainda... para que se transforme num carnaval semelhante aos julgamentos de Scopes ou de Bruno Hauptmann - começou Barrett.

- É incrível como a coisa pegou - disse Sanford com indisfarçável prazer. - Não só no Leste, em todos os jornais americanos, como no estrangeiro, na Inglaterra, França, Alemanha, Itália, em toda a parte. Nós assinámos um serviço de recortes, e...

- Eu sei o que está a acontecer, e isso é outro aspecto que também me preocupa - atalhou Barrett. -Como se não bastasse a desvantagem de lidar com um caso complicado, é infinitamente pior quando a maioria dos jornais, televisão e meios radiofónicos o transformam num acontecimento espectacular. Por isso, o que comecei a dizer é que vamos entrar nisso com pouco menos de duas semanas de preparativos. A única coisa que possibilita uma defesa é que estamos a trabalhar redobrado. Assim, talvez tenhamos o equivalente de quatro semanas de preparo antes de ir prò tribunal. Levando-se em conta o que está em jogo, podíamos facilmente empregar doze a dezasseis semanas.

- O Promotor Público dispõe do mesmo tempo que vocês - protestou Sanford-e ele parece ansioso por que o julgamento comece.

- À acusação sempre fica mais ansiosa de começar do que a defesa. O Estado é o agressor. Neste caso, a Promotoria estava agindo, preparando o ataque ao livro, antes que soubéssemos que haveria uma prisão. E já contam com uma testemunha estrelar. Ela tem toda a vantagem em montar o espectáculo agora, enquanto a opinião pública está do seu lado, enquanto continua a crescer a histeria em torno do estupro e do tal livro. Cada manhã somos saudados por um boletim médico de Monte Sinai, comunicando-nos a situação crítica de Sheri Moore, o seu prolongado estado de coma, e cada boletim vem acompanhado de uma reiteração do que a levou àquele hospital - não Jerry Griffth, mas J J Jadway. Porém, como Zelkin não se cansa de me lembrar, é a defesa que tradicionalmente luta para conseguir mais tempo, pretextos, não só para permitir o arrefecimento de qualquer clima de histeria, como também para ganhar prazo para preparativos integrais. Quanto à defesa, estamos a um passo atrás. Estamos contra-atacando, e precisamos de tempo para diminuir a diferença e então tomar a iniciativa. Se houvesse menos pressão interna, poderíamos solicitar um adiamento atrás do outro, armar uma teia de requerimentos e petições antes do julgamento, atrasando a confrontação para daqui a seis meses ou mesmo um ano. Abe pediu-me que toque mais uma vez neste assunto. Você não concordaria em que tentássemos adiar o processo?

- Impossível - respondeu Sanford. - Qualquer adiamento prolongado seria tão desastroso como perder o próprio processo. Todos os exemplares do livro já foram distribuídos. Que fariam as livrarias com eles? Sentiriam medo de colocá-los à venda. Não teriam espaço para guardá-los se o desfecho do julgamento ficasse muito tempo em dúvida e tornasse a medida necessária. A maioria dos livreiros provavelmente entraria em pânico, devolvendo-nos todas as remessas. Daqui a um ano, é inverosímil que pudéssemos ressuscitar um cadáver. Não, a despeito do risco, teremos de seguir por diante.

Então o carro de Barrett aparecera e, enquanto a bagagem de Sanford era colocada no porta-bagagem, Barrett ficara a pensar como eram verdadeiras as razões invocadas por Sanford para querer um julgamento rápido. Ocorreu-lhe que Sanford, tanto quanto Elmo Duncan, queria tirar partido da publicidade que o livro e o caso estavam a receber.

Depois, ao instalar-se no assento da direcção, Barrett percebera que parte da culpa era sua. Servira de emissário verbal ao desejo de Zelkin de obter um adiamento. Não fora mais persuasivo sobre a transferência de data, por motivos pessoais e egoístas. Faye, de facto, conseguira levar o pai a deixar a vice-presidência vaga por mais um mês. Barrett tinha ainda outra opção para um futuro de sucesso. Não se atrevia a deixá-la expirar.

Contudo, à medida que o carro rumava para a pista de alta velocidade, sentia a consciência perturbada. Comprometera-se a defender um livro em que acreditava. Ao mesmo tempo, era tão responsável como o seu constituinte, Phil Sanford, por não dar à sua parte os dias e semanas necessários à preparação de uma defesa inexpugnável e bem armada. A sua posição não era apenas arriscada, mas positivamente perigosa.

Foi como se Phil Sanford adivinhasse o seu pensamento. Sanford estivera a meditar em silêncio, e quando se encontraram na rodovia de San Diego exprimiu o que o inquietava.

- Mike, você deixou-me meio nervoso com o que disse ainda há pouco. Parecia quase pessimista.

- Sou tudo, menos pessimista - replicara Barrett. - Estou resolvido a ganhar este desafio. Todos nós estamos. Só me preocupa ir prò combate com um rifle quando, se houvesse mais tempo, poderia ser um lançador de foguetes.

- Sempre que eu lhe telefonava ou a Abe, vocês davam a impressão de estar muito ocupados, como se estivessem a conseguir grandes canhões prò nosso lado.

- E estamos, sim, mas quero apenas ter a certeza de que são suficientemente grandes e os melhores que existem. De facto, antes de nos reunirmos prò almoço, convém deixá-lo actualizado.

Enquanto deslizavam pela rodovia, Barrett citara os nomes das testemunhas de defesa já arroladas. Começavam por Sir Esmond Ingram, o idoso, excêntrico e famoso ex-catedrático de Oxford, que anos atrás saudara Os Sete Minutos como “uma das obras de arte mais francas, sensíveis e extraordinárias criadas pela moderna literatura ocidental”, elogio que a Sanford House usara extensivamente na publicidade.

Ao aposentar-se, Sir Esmond dedicara-se a três casamentos e divórcios, com moças inglesas que tinham metade da sua idade. Empregara a sua energia em fundações que patrocinavam um calendário mundial, uma língua universal e uma cruzada vegetariana. Fora preso duas vezes, por pouco tempo, por se deitar na calçada do número 10 da Downing Street em protesto contra o armamento atómico. Devido à sua reputação cada vez maior de excêntrico, Barrett receara que o mérito da defesa que Sir Esmond faria do livro de Jadway perdesse todo o valor. Zelkin, porém, ressaltara que o velho inglês sempre fora considerado extravagante pelos americanos, e que um sotaque britânico no banco das testemunhas sempre era impressionante e eficaz, tendendo a intimidar o júri, e, ademais, que diabo, quem é que jamais elogiara o livro e que tivesse tamanha reputação?

Sim. Esmond, localizado por telefone transatlântico no seu chaié em Sussex, mostrara-se mais entusiasmado pelo livro (embora Barrett alimentasse uma vaga suspeita de que o sábio inglês julgasse que estavam a falar sobre O Amante de Lady Chatterley) do que nunca. Sim, ficaria encantado em cooperar contra “os queimadores de livros”, desde que os seus patrocinadores pudessem convencer os agentes da imigração dos Estados Unidos de que ele não era um anarquista. Zelkin conseguira dar conta do recado, e Sir Esmond Ingram seria uma das suas principais testemunhas.

Barrett tranquilizara Sanford. Havia outras que estavam sendo convocadas com finalidades diferentes. Guy Collins, o popular expoente do romance naturalista, que tantas vezes escrevera sobre a forte influência que recebera do livro de Jadway, acedera em ser testemunha de defesa. Realizavam-se esforços para obter o apoio de dois ou três outros especialistas literários que admiravam Os Sete Minutos. Depois, antecipando-se à intenção do Promotor Público, que pretendia provar, por meio de Jerry Griffth e testemunhas secundárias, que o atractivo libidinoso do livro ameaçava a juventude americana, Barrett e Zelkin procuraram testemunhas que contrabalançassem essa acusação. Para a defesa, contrataram os serviços do Dr. Yale Finegood, autoridade psiquiátrica em violência e delinquência juvenis, e do Dr. Rolf Lagergren, especialista sueco em pesquisas sexuais, cujas descobertas lhe tinham granjeado renome internacional e um convite para leccionar no Reardon College em Wisconsin. Tanto Finegood como Lagergren atribuíam o crime juvenil a causas alheias à literatura pornográfica e ao cinema, e a adesão de ambos ao lado da defesa constituía motivo para certo optimismo.

- Mas não se engane a respeito de uma coisa - advertira Barrett, guiando o carro na pista que se desviava do Sunset Boulevard. - O verdadeiro réu neste julgamento não será Ben Fremont, mas J J Jadway. Em todo o caso importante deste género, sempre tem sido um problema fundamental o motivo e a intenção do autor ao escrever o livro, porque isso ajuda a estabelecer se a obra teve determinada importância social. Ora, trata-se de um terreno perigoso e nós precisamos de resolver se nos atreveremos a atravessá-lo ou se convém tomar outro rumo, A escolha é nossa. Tal como a que enfrenta o Promotor Público. Cada lado tem de decidir como tenciona proceder, antes de começar o barulho.

- O que é que você está a querer dizer exactamente, Mike?

- Se não dispusermos de provas suficientes de que Jadway teve uma intenção irrepreensível ao escrever Os Sete Minutos, seria melhor afirmar que isso nada tem que ver com obscenidade, o que já foi feito com êxito anteriormente. Podemos defender-nos com a discórdia do ministro Douglas do Supremo Tribunal no caso Ginzburg. Douglas sustentou: “Um livro deve ser considerado pelos seus próprios méritos, independente dos motivos pelos quais foi escrito ou dos expedientes usados para vendê-lo”. Mesmo que nos agarremos a esse argumento, ainda podemos ser talvez atirados àquele terreno perigoso pela acusação. Se tal acontecer, sempre se pode recorrer ao ponto de vista expresso por Charles Rembar numa das apelações de Fanny Hilí. Veja que, quando Rembar defendeu Lady Chatteríey num processo anterior, não encontrou nenhum problema para provar que as intenções de Lawrence eram as melhores possíveis. Mas ao defender Fanny Hill, ele passou trabalho, porque o único Indício a respeito das intenções do autor demonstrou que ele tinha escrito o livro cinicamente, por motivos bem comerciais.

Lembra-se? John Cleland estava preso por dívidas. Precisava de dinheiro para sair da prisão. O editor procurou-o e ofereceu-lhe vinte guinéus, o suficiente para tirá-lo da cadeia, se ele escrevesse um romance pornográfico sob encomenda, que tivesse possibilidades de venda. Assim, presume-se, Cleland escreveu Fanny Hill por esse motivo, para conseguir dinheiro para ser posto em liberdade. Foi solto e o editor ganhou dez mil libras de lucros com as vendas posteriores.

- Exacto - disse Sanford. -E que explicação deu o advogado de defesa?

- Rembar explicou tudo da maneira mais sensata. Insistiu que os motivos de Cleland eram um problema de crítica literária, não de direito. Conforme Rembar definiu: “Os tribunais simplesmente não podem decidir, dois séculos e um quarto mais tarde, sobre o que passou pela cabeça de Cleland.” O que interessava era o resultado final, o livro, as suas ideias, a sua visão da vida, e não as razões pessoais que levaram o autor a escrevê-lo. Aliás, argumentou Rembar: “Seria não só fútil como inconveniente... que os tribunais indagassem as diversas causas do esforço artístico. O registo indigente que existe de artistas que fizeram críticas das suas próprias obras... as absurdas verbalizações que às vezes se escutam de gente talentosa em artes não-verbais... mostram que os planos que tiveram não têm a mínima importância. O que eles criaram é que importa”.

- Qual foi o veredicto final dos juizes?

- Negativo. Disseram que a defesa era admirável mas não suficiente - respondeu Barrett, mal-humorado. - Os juizes votaram três a dois, a favor da proibição, porque geralmente não aceitavam os argumentos de Rembar.

- Você entretanto disse que temos outra escolha.

- Temos: é enfrentar o que der e vier. A opinião legal em peso sustenta que o motivo e a intenção de um autor é uma das questões principais, ao julgar a obscenidade de um livro. Veja, por exemplo, o juiz Woolsey no julgamento de Ulisses. Ele observou: “Em qualquer caso em que se pretenda que um livro é imoral, precisa-se, em primeiro lugar, determinar se foi escrito com o que se chama, segundo o termo costumeiro, intenção pornográfica... isto é, com o propósito de explorar a imoralidade.” Mais tarde, o juiz van Pelt Bryan, num dos processos contra Lady Chatterley, acrescentou: “A sinceridade e a honestidade de propósitos de um autor, tal como vêm expressas no modo como um livro é escrito e como o seu tema e ideias são desenvolvidos, exercem extrema importância para determinar se possui mérito literário e intelectual. Aqui, como no caso de Ulisses, não há dúvida sobre a honestidade e sinceridade de propósitos de Lawrence, sobre a sua integridade artística e falta de intenção em apelar para o interesse libidinoso.”

Barrett fizera uma pausa e olhara de relance para o perfil preocupado de Sanford.

- Esse é o nosso problema, Phil. Jadway escreveu o livro honesta, sinceramente, com integridade artística? Eis a pergunta a que temos de responder pela afirmativa e sem reserva. É uma pergunta que estará na mente de cada jurado. Ou nós pisamos de leve e recuamos, ou nos dispomos a provar, sem a menor sombra de dúvida, que Jadway não escreveu Os Sete Minutos por motivos comerciais, mas artísticos e morais, de maneira que ele possui aquela importância social necessária. Seja como for, Abe e eu já decidimos. Tentaremos provar as boas intenções de Jadway.

Sanford soltara um gemido.

- Como é que vão conseguir provar uma coisa dessas? Jadway morreu há um milhão de anos. Era moço, um pobre diabo, praticamente desconhecido, quando morreu. Não resta nada que prove as boas intenções dele. Você sabe quanto lutei para descobrir qualquer coisa do meu lado. Não consegui encontrar coisa nenhuma. Ele não deixou nada e não nos pode dizer nada. Os mortos, para usar de uma expressão conhecida, não falam.

- Mas os fantasmas sempre causam uma certa impressão - retrucara Barrett calmamente. Apontara para a direita. - A propósito aquilo ali é o campus da UCLA. A faculdade de Jerry Griffth. Acho que convinha fazer um pouco de pesquisa por lá.

Sanford não demonstrara nenhum interesse pela sede da Universidade da Califórnia em Los Angeles.

- Que quer você dizer com o fantasma de Jadway?

- São raras as pessoas que morrem sem deixar herança. Talvez seja apenas alguma coisa de si mesmas que revelam ou legam a amigos ou conhecidos. Estivemos a gastar um pouco da verba que você nos deu com investigadores europeus. Há uma porção deles que percorre Paris de ponta a ponta, e agora também outros lugares. Queremos ver se conjuramos o fantasma de Jadway. Descobriu-se a existência de um pintor italiano, chamado Da Vecchi, que sempre andava pelos cafés parisienses que Jadway frequentou na década de trinta. Sabe-se que está vivo e que certa vez pintou o retrato de Jadway. Se for assim, será a primeira representação pictórica que já apareceu dele. De qualquer maneira, estamos a tentar localizar o pintor. Depois andamos no rastro de uma tal Condessa Daphne Orson. É uma mulher de Dállas que casou com um conde italiano rico. Logo depois que Jadway publicou o livro, passou férias em Veneza, e a Condessa, que tinha ouvido falar no romance “safado” que ele escrevera, convidou-o para um baile de máscaras em seu palazzo. Actualmente ela vive na Espanha, parece que numa propriedade que comprou na Costa Brava. Mas para conjurar o bom fantasma, a nossa maior esperança continua concentrada no francês que publicou a versão clandestina de Os Sete Minutos...

- Christian Leroux - interrompeu Sanford. - Você soube de mais alguma coisa?

- Só as mesmas notícias que lhe dei há poucos dias. A Étoile Press já não existe, mas Leroux ainda continua perfeitamente vivo. Enquanto ele estiver vivo, podemos ressuscitar a sombra de Jadway. Se conseguirmos deitar mão ao editor francês, teremos também a nossa testemunha estrelar, de que precisamos para contrabalançar o depoimento do filho de Griffith. Afinal de contas, Leroux realmente publicou Os Sete Minutos, Deve ter acreditado no livro e conhecido o autor bastante bem. O nosso homem é ele. Estamos na pista dele e a ficar cada vez mais próximos. Kimura esperava descobrir algo a seu respeito ainda hoje.

- Temos de conseguir Leroux de quafquer modo - dísse Sanford.

- Como se eu não soubesse - bufou Barrett. Poucos minutos mais tarde, deixava Phil Sanford no

Beverly Hills Hotef, onde Sanford reservara um bangaló, e depois Barrett dirigiu-se ao escritório no Wilshire Bou-levard. Passou duas horas a conferenciar com Zelkín, fazendo telefonemas e ditando para Donna Novika, a secretária que atendia a ambos. Gostava de trabalhar com Donna. Era um monstro de feia, com cabelo cor de rena, olhos estreitos, rosto inchado, com excesso de pó-de-arroz, roupas deselegantes num corpo sem graça, mas um encanto de pessoa, digna de confiança como uma santa, ardentemente dedicada e leal, e com dotes tão espantosos nas máquinas de estenografia, de escrever eléctrica e de calcular, que Barrett às vezes chegava a pensar que ela mesma estava ligada a uma tomada de electricidade.

Depois que Kimura telefonou, avisando que chegaria atrasado, Barrett falou pelo intercomunicador com Zelkin, saindo finalmente juntos para o encontro com Philip Sanford, à hora do almoço.

E cá estavam agora. Barrett sentiu a testa ardente ao sol. O copo, na sua mão, ficara vazio. Zelkin apresentara Sanford a Leo Kimura. Puxando a cadeira para a sombra do guarda-sol, Barrett cumprimentou Kimura com uma reverência brincalhona, retribuída seriamente. Em seguida o nissei (*) ocupou o lugar que lhe fora reservado. Equilibrando a bojuda pasta de couro nos joelhos, já estava a abrir os fechos.

- Você quer uma bebida ou está esfaimado? - perguntou Barrett

- Esfaimado - respondeu Kimura. - Seria capaz de comer todos os pratos da ementa de uma vez só.

Mas logo adoptou uma atitude humilde, como um empregado que houvesse pensado antes na própria conveniência do que na do patrão.

- Posso esperar, se preferem conversar primeiro. Barrett sentia grande afeição pelo advogado nissei.

Kimura usava o cabelo à escovinha, tendo um rosto cor de açafrão com traços aparentemente impassíveis, e o aspecto frio e elástico do tipo de pessoa que disparam da boca de canhões.

- Preferimos comer e conversar - retrucou Barrett.

Zelkin fizera um sinal para que trouxessem as ementas, e depois que vieram, fizeram parcimoniosamente os pedidos.

Assim que o criado se afastou, todos se concentraram em Kimura.

- Então - perguntou Zelkin -, quais são as novidades, Leo?

Kimura acabava de tirar os papéis da pasta. Fechando-a, e escorando-a contra a cadeira, colocou o maço sobre a mesa e levantou os olhos.

- Acho que fizemos alguns progressos. Vou deixar o melhor prò fim. Em primeiro lugar, Norman C. Quandt.

Dirigiu-se ao novo constituinte da firma.

- Mr. Sanford, tenho aqui a informação, ditada pelo

 

(*) Filho de pais japoneses nascido no Brasil. Também apresenta a forma "nisei”.

 

senhor, da maneira como adquiriu os direitos de Os Sete Minutos das mãos de Mr. Quandt. Agora que está aqui, pessoalmente, na minha frente, aproveito a oportunidade para lhe perguntar se não omitiu algum pormenor. Valeria a pena recapitular os factos da aquisição mais uma vez?

Sanford encolheu os ombros.

- Duvido que haja qualquer coisa a acrescentar. Em todo o caso, terei prazer em repassar tudo de novo. Há dois anos, meu pai mandou-me como seu representante à Feira de Livros de Francforte. Uma noite, fui convidado para jantar com um velho amigo de meu pai, Herr Karl Graeber, que possui uma editora importante e muito conhecida em Munique. Começámos a comentar a nova liberdade de escrever e publicar, e Graeber disse que era uma boa coisa, porque em breve uma série de obras que mereciam publicação há anos poderiam ser entregues ao público. Mencionou diversas, mas a que ele mais admirava, acima de todas, era uma chamada Os Sete Minutos. Já quase a editara pessoalmente, exactamente no período em que Hitler estava a subir ao poder, mas fora impossível e tivera a sorte de escapar com vida. Uma vez que se restabelecera na Alemanha, perguntei-lhe porque não tentava de novo. Ele respondeu que a essa altura já se achava velho de mais para começar uma luta contra os espíritos conservadores de Bona e que, aliás, agora se especializava em livros técnicos e religiosos, e um romance como o de Jadway no seu catálogo talvez prejudicasse o resto da lista. Graeber era da opinião que existia uma liberdade bem maior na América, e por conseguinte seria mais plausível que o livro fizesse a sua primeira aparição pública no nosso país. Também julgava que a chancela de meu pai daria uma certa protecção à obra. Eu perguntei quem possuía os direitos de Os Sete Minutos. Graeber disse que sabia que Leroux vendera os direitos a um editor qualquer, muito discutível, de Nova Iorque, chamado Norman C. Quandt. Graeber localizou um exemplar da edição Étoile e pediu que eu o mostrasse a Wesley R., meu pai. Eu já trazia uma porção de livros novos da Feira de Francforte, e assim juntei o de Jadway ao resto. Tomei o navio de volta, e como dispunha de tempo de sobra para ler a bordo e o que Graeber me contara sobre o romance me deixara muito interessado, li-o. Mesmo antes de terminar a leitura, vi que não poderia mostrá-lo a meu pai. Não era, simplesmente, o tipo de literatura dele. Por isso mostrei-lhe todos os outros livros que encontrara, menos esse. Depois, no ano passado, como vocês sabem, o meu pai adoeceu e fiquei provisoriamente encarregado da San-ford House. Estava ansioso por descobrir algo fora do comum, provocante. Então lembrei-me do livro de Jadway. Achei a ocasião propícia. Foi então que procurei Norman C. Quandt.

- Ele estava em Nova Iorque? - perguntou Kimura, empunhando uma caneta esferográfica.

- Tinha escritório na Rua Quarenta e Quatro. Foi lá que falei com ele. Quandt não passava de um editor de pornografia barata vendida por reembolso postal, brochuras originais que se especializavam em sadismo e masoquismo. E encontrava-se em apuros. Acabava de ser processado por um tribunal regional dos Estados Unidos, por uma acusação apresentada pelo Director-Geral dos Correios de que ele andava a despachar material obsceno por via postal. E fora considerado culpado. Estava a apelar da sentença de primeira instância e esperava levar o caso até ao Supremo Tribunal. Precisava de dinheiro para continuar com a causa e ficou felicíssimo quando me vendeu os direitos de Os Sete Minutos. Em três dias, os contratos estavam prontos e assinados, e eu comprava o livro de Jadway por cinco mil dólares. É tudo de que posso informá-lo, Leo. Creio que não adiantei nada de novo.

Kimura tinha estado a conferir a narração de Sanford com as páginas à sua frente.

- E depois disso, nunca mais tornou a ver Quandt?

- Nunca - respondeu Sanford. - Acompanhei o recurso que apresentou ao Supremo, naturalmente. Como sabemos, o Supremo, baseado puramente num pormenor técnico, devolveu a questão ao tribunal inferior por uma votação de cinco a quatro. Quandt foi absolvido. Claro que ele levou uma surra horrível nas apelações. Ficou evidente que dirigia um negócio reles, servindo de instrumento às inclinações mais anormais, e creio que a lição serviu para nunca mais se meter com autoridades postais. Seja como for, quando eu estava a aprontar-me para publicar Os Sete Minutos, e precisávamos de maiores informações sobre Jadway para incluir na capa, fichei que Quandt talvez nos pudesse auxiliar. Vocês sabem, eu julguei que ele poderia ter apurado alguma coisa por intermédio de Leroux. Por isso telefonei a Quandt. Não tinha já o escritório no mesmo lugar. Foi então que descobri que desistira de editar livros e se mudara para Pittsburgh...

- Aqui diz Filadélfia - observou Kimura.

- Desculpe. Sim, Filadélfia. Lá tão-pouco se conseguiu localizá-lo, e eu não tinha a mínima ideia da actividade dele na época.

- Ele anda agora metido em cinema e mora no sul da Califórnia - informou Kimura.

Barrett endireitou-se na cadeira.

- Está a brincar, Leo? Quando foi que descobriu isso?

- Hoje. Mas infelizmente não há nenhum Quandt na lista telefónica local.

- Se ele anda metido em cinema, não deve ser difícil encontrá-lo - opinou Zelkin.

Pela primeira vez, Kimura sorriu ligeiramente.

- Mr. Zelkin, existem filmes e filmes. Em todo o caso, temos certas pistas e espero que uma delas acabe por nos levar a Mr. Quandt.

Sanford virou-se preocupado para Barrett.

- Mike, você não está a pensar em pôr esse Quandt no banco de testemunhas caso o encontre, está?

- Deus me livre - respondeu Barrett. -Não. Mas ele pode dar-nos alguma informação essencial sobre a vida de Jadway. Até mesmo a própria informação que você esperava obter dele anteriormente, alguma coisa que ele talvez apurasse por intermédio de Leroux.

Barrett voltou a dirigir-se a Kimura.

- O que nos traz à testemunha mais importante. Quais são as notícias sobre Leroux?

- Christian Leroux - disse Kimura, caprichando na pronúncia. - Deixei-o por último de propósito. - Baralhou as notas, até localizar o que procurava. - Christian Leroux. As notícias são optimistas. Acabo de recebê-las do nosso agente em Paris. Ele localizou Leroux num apartamento da Margem Esquerda. Uma gorjeta de cem francos à zeladora produziu a informação de que Leroux acaba de partir prà Riviera, tendo feito reserva no Hotel Balmoral em Monte Carlo. Devia chegar lá a qualquer... bem, já deve ter chegado. O nosso agente de Paris contratou um detective particular em Nice, um tal Monsieur Dubois, e deu-lhe todas as instruções. Esse Dubois foi de carro para Monte Carlo. Estará no Hotel Balmoral à espera de Leroux na portaria.

- Muito eficiente - comentou Barrett. - E muito optimistas, Leo, como você disse.

- Formidável, formidável - exclamou Sanford, tirando um cigarro do bolsinho do paletó de linho.

Kimura havia separado dos outros papéis um maço de notas presas por um clipe.

- Quanto à família Griffith, não consegui acrescentar nada de substancialmente novo à documentação que já havia. Alguns factos a mais sobre os antecedentes de Frank Griffith e da mulher dele, Ethel Griffith. Nenhum dado inédito a respeito da sobrinha que mora com eles, Margaret ou Maggie Russell. Nenhuma fenda na armadura familiar... por enquanto.

- E quanto ao rapaz - indagou Zelkin.

- Já ia chegar a ele - disse Kimura, folheando as páginas. -Acho que precisamos insistir mais nas investigações. Tenho uma pista...

- Uma pista? - gemeu Zelkin. - Dentro de dois dias os jurados estarão escolhidos. No momento em que o júri estiver arrolado, e prestar juramento, o julgamento começa.

- Sem pista não se chega a lugar nenhum - retorquiu Kimura. - Desculpe, mas não é fácii fazer sindicâncias sobre alguém ainda em idade de frequentar o colégio. Uma vida curta não possui história longa. Certos factos já nós sabemos. Jerry Griffith concluiu com distinção o curso secundário. Agora está no terceiro ano da faculdade e com resultados bem menos brilhantes. Hoje estive na UCLA. Lembrei-me que há mentores para os alunos. Consegui encontrar a mentora de Jerry Griffith. Ela disse-me que não podia discutir a conduta dele... existe uma cláusula que proíbe o fornecimento de qualquer informação sobre alunos, a não ser que haja permissão superior. Assim passei por todas as formalidades regulamentares e finalmente obtive a tal permissão do Reitor da Faculdade de Ciências e Letras. A mentora foi notificada de que podia discutir Jerry com qualquer pessoa do nosso escritório. Daí partiu a minha pista.

A descrição laboriosa, pormenorizada, de Kimura começou a deixar Barrett impaciente.

- Que foi que ela disse, Leo?

- Depois que veio a permissão, ela mostrou-se ansiosa por cooperar em todos os sentidos. Contou que teve diversas entrevistas com Jerry e estava impressionadíssima com o que ele tinha feito. Como dispomos de fontes de informação muito escassas sobre Jerry, achei que ela era importante de mais para ser interrogada por mim. Seria preferível que o senhor, ou Mr. Zelkin, falasse com ela. Chama-se Mrs. Henrietta Lott. Marquei hora para ela se encontrar com qualquer dos dois, hoje à tarde. Mrs. Lott estará extremamente ocupada durante o resto da semana; portanto pareceu-me que se devia aproveitar a boa vontade dela em discutir hoje o assunto de Jerry.

- O nome, número do telefone do escritório... o departamento de mentores académicos fica no Edifício da Administração... e a hora do encontro. Espero que um dos senhores...

Barrett apanhou a tira de papel.

- Deixe que eu vou - disse a Zelkin. - De qualquer modo, pretendia mesmo passar pela UCLA no fim da tarde. Eles têm um Departamento de Inglês competente e quero ver se algum membro da faculdade compreende bem o livro para falar dele com simpatia no tribunal. Antes, porém, vou procurar Ben Fremont.

- E eu também vou andar a bater a perna por aí - disse Zelkin.

- Leo - aconselhou Barrett a Kimura -, seria bom que ficasse no escritório ou, caso precise de sair, informasse Donna sobre o seu paradeiro, para a gente não perder aquele telefonema de Monte Carlo. Depois de conseguirmos o tal editor francês, a nossa sorte há-de mudar. Aí vem o almoço... Então, Phil, meu caro, como está a sentir-se em pleno centro da acção?

Sanford espreguiçou-se e sorriu.

- Estou a começar a sentir-me bem, agora que posso ver o que está a fazer-se. Vou-lhe dizer uma coisa, se aquele Promotor Público... Duncan... se Duncan soubesse da metade do que estamos a fazer, desistiria da luta.

Barrett tirou os óculos escuros e fez uma cara irónica.

- Não tenha tanta certeza. Se nós soubéssemos o que ele está a fazer, talvez nos quiséssemos matar. Uma coisa pode você apostar. Elmo Duncan não está a coçar os tomates.

Para Elmo Duncan, o telefonema e o convite recebidos de manhã cedo tinham sido inesperados, e a sua presença aqui. neste início da tarde, no gabinete do famoso prelado, possuía um ar estranho e misterioso.

Aguardando agora no gabinete do Palácio do Arcebispado pela aparição de Sua Eminência, o Cardeal MacManus, o Promotor Público tornou-se de novo consciente da cadeira de veludo desocupada diante da fotografia do Papa pendurada na parede inteiramente nua. Quando o secretário cardinalício o acompanhara até à sala, Duncan soube que todo o príncipe da Igreja possuía uma cadeira semelhante debaixo de um retrato papal, sempre pronto para a eventualidade de Sua Santidade algum dia fazer uma visita imprevista em carne e osso. Tradição.

Elmo Duncan continuou a inspeccionar o gabinete do Arcebispado. Cada decoração dava a impressão de antiguidade e continuidade veneráveis. De novo a tradição. Opulentas cortinas de damasco emolduravam as janelas. A lareira estava tostada, enegrecida por anos de fornecimento de calor. Sobre a velha escrivaninha, em cima de um pedestal, erguia-se um crucifixo de madeira escura, amparando o corpo suspenso do Salvador, um crucifixo que podia ter sido carregado por Junípero Serra nas suas andanças pela Califórnia.

Apenas um objecto destoava do conjunto. Achava-se também sobre a escrivaninha do príncipe da Igreja. Um flamante ditafone do último modelo. Idêntico ao que Duncan tinha no seu próprio escritório.

Apesar de um pouco tranquilizado por esse indício de que ele e o Cardeal talvez tivessem mais coisas em comum do que pensara, Duncan ainda se sentia contrafeito. Ansiava por um cigarro. Mas como protestante no recinto da sede da diocese da Igreja Católica em Los Angeles, não tinha a mínima ideia das restrições ou, decerto, das idiossincrasias do Cardeal. Preferiu não arriscar.

E mais uma vez especulou sobre o convite matutino.

O telefonema fora dado pelo Reverendíssimo Monsenhor Voorhes.

- É o promotor público Duncan? - Monsenhor Voorhes apresentara-se rapidamente. -Sou o secretário de Sua Eminência, o Cardeal MacManus, Arcebispo de Los Angeles. Estou a telefonar-lhe a pedido pessoal do cardeal MacManus. É a respeito de um assunto pelo qual Sua Eminência tem um interesse considerável.

- Sim?

- Refiro-me ao iminente processo legal em torno do livro Os Sete Minutos, e a acusação que o senhor fará contra a obra. O Cardeal crê que o seu departamento cívico e a Igreja talvez tenham um objectivo comum no caso e possam beneficiar de uma cooperação mútua.

- Bem, eu... eu certamente aceitaria de bom grado qualquer espécie de cooperação. Mas não entendo muito bem o que o senhor, ou melhor, Sua Eminência tem em vista.

- A Igreja gostaria de que essa obra fosse eliminada.

 

O Cardeal acha que ele pode conseguir essa finalidade, tornando-se útil à sua causa.

- O senhor tem alguma coisa específica em vista?

- Sim. Foi por isso que lhe telefonei, Mr. Duncan. Sua Eminência gostaria de falar com o senhor no primeiro momento que o senhor tivesse disponível, a fim de explicar.

- Teria o máximo prazer em falar com ele hoje.

- Excelente. Talvez fosse mais aconselhável que a entrevista se realizasse no gabinete do cardeal MacManus no Palácio do Arcebispado. Fica localizado no número 1519 da West 9th Street, perto do centro de Los Angeles. Poderia vir às duas da tarde?

- Darei um jeito. Diga a Sua Eminência que estarei aí às duas. E não se esqueça de lhe comunicar o quanto aprecio o seu... o seu interesse pelo caso.

Mais tarde, quando se encontrara com Luther Yerkes, Harvey Underwood e Irwin Blair para um almoço a fim de tratar de negócios no átrio do palacete de Yerkes, em Bel-Air, Duncan tocara no assunto do curioso telefonema, conjecturando sobre o que significaria.

Yerkes prevenira-o imediatamente de que não esperasse nenhum auxílio concreto do cardeal MacManus.

- A Igreja tem um interesse permanente na censura - afirmara Yerkes -, portanto, ele há-de garantir-lhe provavelmente que você terá a protecção do Senhor. Não espere mais do que isso.

Depois a questão da entrevista de Duncan com o cardeal MacManus fora posta de lado porque havia trabalho Importante a ser feito. Nessa mesma noite uma festa para arrecadar fundos, patrocinada pela Liga da Força da Decência, estaria a ser efectuada no grande salão de baile do Beverly Hilton Hotel. O principal orador, por obra de Irwin Blair, seria o promotor público Elmo Duncan. O título do seu discurso? A Liberdade para Corromper. Os quatro consagraram o resto do almoço a revisar e reforçar o discurso programado.

E agora Elmo Duncan achava-se de pé, no gabinete da sede da diocese de Los Angeles, esperando para saber o que o Cardeal teria, para oferecer que pudesse ser “útil” ao seu caso. Seria a oferta, tal como Yerkes sugerira cinicamente, das bênçãos do Senhor? Ou algo mais substancial?

- Mr. Duncan, desculpe a demora. O senhor foi amabilíssimo em vir.

A voz partira do outro lado do gabinete, e Duncan virou-se para ver o cardeal MacManus a fechar uma porta atrás de si enquanto erguia a mão em boas-vindas. Duncan já vira o retrato do Cardeal frequentemente nos jornais, e nessas fotografias demonstrara sempre a idade que tinha, setenta e oito anos. Agora, apesar do colarinho romano e fato preto em vez da elaborada vestimenta cerimonial, parecia-se com o rosto clerical das fotos - o mesmo.cabelo branco como algodão, os olhos empapuçados, a pele enrugada, as costas vergadas. O que não era igual, e ficava evidente quando visto em pessoa, era a vivacidade do prelado. Embora mancasse, cruzou rapidamente a sala, os olhos a brilhar, sumidos, uma mão ossuda a escovar vigorosamente a penugem do paletó preto, e a outra estendida. Duncan apertou-lhe a mão.

- Cardeal MacManus, que prazer..

- O prazer é meu, Promotor. O senhor foi muito amável em me poupar, vindo aqui tão longe. Não foi a idade nem qualquer doença que me impediram de ir procurá-lo. Foi, realmente, a certeza de que não convém... podendo, até, ser mal interpretada em certos círculos... que a Igreja e o Estado fiquem associados na opinião pública, a despeito do truísmo de que o religioso e o secular podem ter um objectivo comum.

- Entendo perfeitamente, Eminência - disse Duncan.

- Fique à vontade - disse o Cardeal, encaminhando-o para o longo sofá castanho.

Cortês, Duncan esperou que o prelado se instalasse para então se sentar a poucos passos de distância.

- Não farei rodeios - anunciou o Cardeal. A voz era áspera e frágil, e soava como papel de embrulho ao ser amarrotado e transformado numa bola na mão. - Quando a gente é velho como eu, ou jovem como o senhor, aprende-se a não perder tempo nem palavras com intermináveis rapapés sociais. O meu secretário informou-o sobre o meu interesse no processo que o senhor vai encetar e sobre o desejo de a Igreja o auxiliar da melhor maneira possível.

- De facto, foi o que ele me disse, e nada mais. Portanto, não tenho muita certeza sobre o que...

- Sobre o que esperar, não? O senhor talvez esteja em dúvida sobre a espécie de auxílio que lhe posso prestar, e se for assim, é compreensível. Talvez pense que pedi que viesse aqui apenas para abençoar a sua cruzada e prometer-lhe as minhas orações. Pois bem. Abençoo, realmente, o seu empreendimento e penhoro-lhe as minhas orações. Nós temos uma bastante boa em prol da literatura decente, uma que recebeu o imprimatur do Arcebispo de Cincinnati.

Imediatamente, de olhos voltados para o alto, as bochechas trémulas, pôs-se a recitar com voz grave e vibrante:

- ”Oh Deus, Tu que disseste: "Deixai vir a Mim os inocentes", protege e abençoa os nossos esforços para despertar a opinião pública, a fim de que possamos eliminar a literatura obscena e imoral das estantes de livros e das bancas de jornais. Que a Tua Divina Providência faça com que as leis sejam aplicadas para que esse tipo de literatura não possa mais existir no nosso país e no mundo inteiro.”

Tomou a respiração, ofegou, asmaticamente, e continuou:

- “Virgem Maria, cuja vida é a inspiração de todos nós, zelai por nós e intercedei por nós, a fim de que os nossos esforços alcancem êxito, por Jesus Cristo, Nosso Senhor, Amém.”

Cheio de reverência, Duncan sussurrou:

- Obrigado, Eminência.

- Se fosse só isso o que tenho para lhe oferecer, o senhor não teria motivo para me agradecer. Não é só isso o que tenho para lhe oferecer. Tenho mais, muito mais.

Coçou a parte interna do colarinho duro, e a grande jóia engastada no grosso anel cintilou no dedo, ao recostar-se no assento, imerso em pensamentos, durante certo tempo. Depois cruzou os braços, contemplou o tecto e começou a falar tranquilamente:

- Eu disse que temos uma causa em comum. E de facto temos. Os nossos inimigos gostariam de crer que o único interesse da Igreja é a moralidade e a religião, à custa da liberdade de expressão. Não é verdade. Vivemos numa sociedade organizada. Para mantê-la em ordem e civilizada -, precisamos de autoridade e determinadas restrições. Sem restrições, não teríamos mais nenhuma liberdade democrática depois de certo tempo. Teríamos uma sociedade ateia, pagã, onde reinaria a anarquia e somente o direito da força. A Igreja quer a liberdade de expressão. Nós desejamos coibir apenas os que exorbitam dessa liberdade. Como um editor católico já observou, não pedimos o excesso de pudor mas somente a prudência. Não estamos, como esse editor reconheceu, a tentar impor-nos como árbitros do gosto nacional em matéria da liberdade de escolha de um adulto, mas apenas interessados em refrear a franca imoralidade, impedindo que corrompa a juventude. Somos os defensores da autêntica literatura, e até mesmo da literatura vulgar, se possui valor social e é sincera. Somos só adversários da pornografia, da pornografia que se disfarça em literatura, mas cujo fito é arrastar a mocidade para a vida de pecado. É contra isso que a Igreja se levanta. Não posso acreditar que o seu departamento, cumpridor da lei do Estado, pense de modo diferente. Não foi um padre, pronunciando um sermão no púlpito, mas um porta-voz do Departamento da Polícia de Chicago que fez a declaração: “A literatura obscena é devassa, depravada, nauseante, desprezível, desmoraliza-dora, destrutiva e capaz de envenenar qualquer espírito em qualquer idade. As publicações imorais zombam dos votos nupciais, escarnecem a castidade e a fidelidade, e glorificam o adultério, a fornicação, a prostituição e as relações sexuais anormais.” Presumo, portanto, Mr. Duncan, que compartilhamos da mesma opinião sobre livros como Os Sete Minutos!

- Realmente - concordou Duncan, com convicção. - Não queremos enfraquecer a liberdade mas antes fortalecê-la pela eliminação dos que a desejam corromper.

- Muito bem. Ora, em 1938, os bispos católicos dos Estados Unidos, incluindo-se na lista também os líderes de muitas outras fés, fundaram a ONLD... a Organização Nacional em prol da Literatura Decente... e assim procederam, conforme declararam: “para pôr em movimento as forças morais do país inteiro... contra o tipo lascivo de literatura que ameaça a vida moral, social e nacional”. Normalmente, numa acção comunitária local, seria da sucessora da ONLD, a CLD... Cidadãos em prol da Literatura Decente... que o senhor podia esperar a cooperação da Igreja. No entanto, como a Igreja considera Os Sete Minutos uma força extraordinariamente perniciosa, como o seu caso contra esse livro ultrapassa as nossas fronteiras, assumindo importância internacional, e como a Igreja está em situação privilegiada para lhe prestar apoio nesse processo, ela julgou por bem oferecer-lhe cooperação do mais alto nível.

- Do mais alto...? - repetiu Duncan, atónito.

- Do próprio Vaticano. Recebi instruções do cardeal que exerce a presidência da Sagrada Congregação para a Doutrina da Fé no Vaticano. Mr. Duncan, é atendendo a solicitação pessoal de Sua Santidade, o Papa, que a Sagrada Congregação coloca espontaneamente todos os recursos de que dispõe para serem usados no interesse do seu caso.

A confusão de Duncan foi total.

- O senhor quer dizer que o Papa... Sua Santidade... ouviu falar do nosso processo? Estou surpreendido... encantado, que ele esteja interessado, naturalmente... mas não posso compreender por que ele...

- Já explico - disse o cardeal MacManus. - E depois pretendo ajudá-lo.

- Por gentileza, sim? - perguntou Duncan.

- Para elucidar, para explicar quando foi implantada a semente do nosso interesse por um caso como o seu, devo começar bem do início. Logo depois que Gutenberg tornou possível o aparecimento de livros em grandes quantidades na Europa Ocidental... isto é, depois de 1454... o Vaticano percebeu que precisava de se adaptar ao novo fenómeno. O púlpito, até então, fora o meio primordial pelo qual o padre disseminava conhecimentos e fé. Agora os livros ofereciam-se para se transformarem num agente maior de transmissão do bem. Ao mesmo tempo, o Vaticano adquiriu consciência do poder que tinham os livros para espalhar o mal, subverter o espírito e o coração dos homens, provocando-lhes uma conduta perniciosa à sociedade e à religião. Em 1557, sob a orientação do Papa Paulo IV, a Igreja entrou em acção. Organizou uma lista de livros condenados por motivos de sensualidade, misticismo ou ideias heréticas, e publicou-a como o primeiro Index Librorum Expurgatorius, Durante os quatro séculos subsequentes à publicação inicial, o Index tem sido actualizado e reeditado periodicamente. O senhor nunca viu um exemplar?

- Não - disse Duncan.

- Vou mostrar-lhe uma edição recente. - O Cardeal levantou-se, foi mancando até à escrivaninha, apanhou uma pequena brochura de capa cinzenta, e voltou com ela ao sofá. - Cá está. Quinhentas e dez páginas, com a lista de mais ou menos cinco mil livros condenados, figurando cada título no índice na língua em que foi originariamente escrito.

Abriu o Index.

- Permita-me traduzir-lhe alguns comentários de um prefácio preparado para a edição de 1929, incluído nesta, mais recente, que apareceu em 1946. Começa assim. - O Cardeal traduziu lentamente: - “Durante toda a sua existência, a Igreja sempre sofreu tremendas perseguições de tudo quanto foi espécie, enquanto o número dos seus heróis e mártires crescia constantemente. Hoje, porém, existe uma ameaça muito mais perigosa, proveniente do inferno: a imprensa imoral. Não há maior perigo do que esse e por conseguinte a Igreja nunca cessa de prevenir os fiéis contra ele."

O cardeal MacManus parou, leu em voz baixa para si mesmo e depois continuou;

- Três ou quatro parágrafos adiante, o prefácio esclarece a posição da Igreja. “Seria erro dizer que a condenação de maus livros é uma violação da liberdade humana, pois está claro, acima de tudo, que a Igreja ensina que o Homem é dotado de liberdade por seu Criador e que a Igreja sempre defendeu essa doutrina contra todo aquele que ousou negá-la. Somente os que padecem dessa praga chamada liberalismo podem dizer que essas restrições, impostas por um poder legítimo, constituem limitações ao livre arbítrio do Homem: como se o Homem, por possuir livre arbítrio, estivesse consequentemente autorizado a fazer sempre tudo o que quer.” Depois o parágrafo seguinte. “Está claro, portanto, que as autoridades da Igreja, ao impedir por meio de leis a difusão de equívocos, ao procurar retirar da circulação aqueles livros capazes de corromper a moral e a Fé, não fazem mais do que salvar a frágil natureza humana desses pecados em que, por sua própria fraqueza, pode facilmente cair.”

Ergueu a cabeça.

- Até 1917, a autoridade para tratar da proibição de livros pertencia à Congregação do Index. A partir de então, essas funções foram assumidas pelo departamento da Cúria conhecido como a Secção da Censura de Livros, sob a autoridade da Suprema Congregação do Santo Ofício. Mas como o Santo Ofício esteve durante longo tempo associado no espírito de muitos à Inquisição, e a fim de apaziguar os nossos irmãos Protestantes, foi abolido em 1965 pelo Papa Paulo VI. O trabalho do index ficou então entregue à menos conservadora Sagrada Congregação para a Doutrina da Fé, e é desse departamento que estamos tratando. O senhor entendeu perfeitamente o que acabo de explicar?

- Entendi, Eminência.

- Mr. Duncan, existem dois motivos fundamentais para que um livro possa ser condenado pela Igreja e deste modo incluído no Index. Já em 1399, um manuscrito era proibido se ensinasse ou contasse histórias “sensuais ou relacionadas com assuntos carnais”, se “designado à destruição dos princípios básicos da religião” ou se “atacasse ou ridicularizasse os dogmas ou a hierarquia católica”. Em suma, até hoje, um livro pode ser condenado sob a alegação de imoralidade ou de heresia. Por causa de imoralidade, o senhor encontrará- nas páginas do Index autores como Casanova, por suas Memórias, e Gustave Flaubert. por sua Madame Bovary, assim como Balzac, D'Annunzio, Dumas père e fils por seus romances sensuais, e em data mais recente, 1952, Alberto Moravia por seus livros obscenos. Devido ao seu anticlericalismo, teologia malsã, franca heresia, o senhor encontrará no índex autores como Laurence Sterne por Uma Viagem Sentimental pela França e Itália, Edward Gibbon por A Decadência e Queda do Império Romano, Bergson, Croce, Spinoza, Kant, Zola, e mais recentemente, Jean-Paul Sartre, por seus comentários, histórias e filosofias irreligiosas. Mas pouquíssimos autores têm sido condenados por imoralidade e heresia ao mesmo tempo. Um dos únicos foi André Gide.

O Cardeal começou a folhear o exemplar do Index.

- E outro, um romancista cuja obra foi originariamente publicada em língua inglesa. Ele foi o segundo romancista inglês a figurar no Index... o primeiro, por falar nisso, foi Samuel Richardson por Pamela, proscrito pelo Vaticano em 1744... mas o segundo romancista em língua inglesa a ser condenado por inclusão no Index, e que foi condenado tanto por imoralidade como por heresia, foi... bem, cá está, o senhor pode ver com os seus próprios olhos.

Duncan tomou o índex e seguiu o dedo do Cardeal até ao pé da página 239, e ali, entre “Ittigius, Thomas” e “Juénin, Gaspar”, via-se o nome “Jadway, J J” e logo após o seguinte: “Os Sete Minutos. Decr. S. Of. 19 apri. 1937.”

Duncan ergueu os olhos, admirado.

- Mas é mesmo, Jadway está incluído aqui. O cardeal MacManus concordou com a cabeça.

- De facto, está. O senhor não sabia?

- Tinha visto qualquer coisa... Em nossa exposição de motivos a respeito do autor, tenho a certeza de que existe uma referência... mas na ocasião não prestei muita atenção ao facto. Eu possuía poucos conhecimentos sobre o Index, embora me lembre que encarreguei o meu assistente de pesquisar mais nesse sentido, e não estava seguro de que isso teria grande relevância num tribunal. Julguei que faria uma rápida menção ao facto, depois de me certificar de que o Index ainda existia.

- Agora o senhor sabe que existe - retrucou o Cardeal. - E permita-me explicar-lhe porque Os Sete Minutos está condenado nestas páginas. Eu disse que ele era um livro proibido por causa da sua imoralidade e atitude herética em relação à fé cristã. Mas por volta da década de 30, a obscenidade sozinha não teria feito a Igreja condenar Os Sete Minutos, especialmente uma vez que a publicação obscura, a aparição num país que não era o mesmo do autor, e a proibição imediata lhe proporcionaram apenas uma circulação limitada. Se o senhor percorrer estas páginas, não encontrará nenhuma referência à edição da Obelisk Press de Fanny Hill, de John Cleland, ou aos livros escritos por James Joyce, Henry Miller e William Burroughs. Não, foi necessário mais que uma simples acusação de obscenidade para merecer a condenação do Index em tempos recentes. Assim como o Decameron, de Boccacio, não foi colocado no Índex apenas por sua indecência, por sua imoralidade. Sob essa alegação, o Decameron talvez escapasse à censura. Foi a blasfémia de Boccacio, os seus ataques ao clero, combinados com a obscenidade, que lhe granjearam um lugar no Index. Realmente, quando o Decameron foi reeditado, com os monges e freiras pecaminosos substituídos por nobres e damas, o Concílio de Trento contentou-se com o expurgo da blasfémia. Sua Santidade, então, decidiu retirar a obra de Boccacio do Index. Portanto, o senhor vê, Mr. Duncan, não é a imoralidade sozinha, mas a fusão da imoralidade com a blasfémia que provoca fatalmente a condenação da Igreja. É essa fusão de licenciosidade com heresia que forçou o Santo Ofício a proscrever Os Sete Minutos, Sim, eu li o romance de Jadway, e não me sinto capaz de repetir o que senti a respeito do trecho em que o autor apresenta a sua heroína... heroína! prostituta ateia, eu devia dizer... pecadora., a sonhar com Nosso Senhor e com os santos mártires da igreja, invocando o Seu nome e os deles em vão. Uma obra inspirada pelo Demónio, nada menos.

Respirando pelo nariz, o Cardeal tentou recobrar a compostura.

- Mas, apesar de infame, Os Sete Minutos talvez houvesse permanecido como uma relíquia nas listas do Index, esgotadas e esquecidas, sem maiores cuidados para a Igreja. Na época, em consequência do índex, ficou proibido em todos os países católicos, e, devido ao conteúdo obsceno, em outras nações também. Desfrutou do seu único momento de maldade e deixou de existir. No entanto, quando uma editora de Nova Iorque, até então conceituada, determinou ressuscitá-lo, a hierarquia da Igreja alarmou-se. Não posso afirmar que a Igreja teria agido sozinha. Talvez não o tivéssemos feito, por receio de provocar velhos ressentimentos em muitos lugares sobre a nossa suposta acção repressora em séculos passados. Felizmente, um homem, um instrumento do Estado, e alheio à nossa fé, teve a coragem de levantar-se acima do medo e atacar a horrenda besta, solta pelos vendilhões de Nova Iorque. O senhor foi e é esse homem, Mr. Duncan, e sentimo-nos orgulhosos em apoiar a sua valente cruzada.

Duncan ficou radiante.

- Obrigado, Eminência. Estou comovido com as suas palavras.

- Prometo-lhe mais do que simples palavras - retrucou o cardeal MacManus. - Prometo-lhe auxílio.

- Tudo o que o senhor puder oferecer será bem-vindo.

- O Santo Padre autorizou-me a oferecer-lhe os préstimos do padre Sarfatti... um dos dois sacerdotes directamente incumbidos do Index no Vaticano... como uma testemunha principal da acusação. Antes de banir Os Sete Minutos, os membros da Santa Ordem investigaram minuciosamente o autor, J J Jadway, enquanto ainda era vivo. Os achados de três décadas e meia atrás encontram-se em mãos do padre Sarfatti. Fui autorizado a informá-lo que o padre Sarfatti está pronto a tornar público, em prol da sua acusação, não só a experiência pessoal que teve com Jadway, como também todas as informações classificadas que a Igreja possui sobre o abominável livro e o seu igualmente abominável autor.

- Quanto a essa informação - interrompeu Duncan, ansioso - estou curioso por saber se o senhor não me poderia dar uma ideia da sua...

- Sabia que o autor, JJ Jadway, era católico quando escreveu o livro? Sabia que foi excomungado antes da sua morte por produzir essa obra? Sabia que a morte dele -, seguindo-se à excomunhão, não foi acidental, como disseram as notícias dos jornais, mas que morreu por suas próprias mãos, como suicida?

O queixo de Duncan caiu. Sentou-se aturdido no sofá.

- Jadway matou-se?

- Depois que o livro apareceu, suicidou-se e os seus restos foram cremados.

Duncan levantou-se, contorcendo as feições, enquanto os seus dedos procuravam, distraidamente, um cigarro.

- Não... eu não sabia nada disso. Fora desta sala, ninguém nos Estados Unidos sabe disso. Porém deveriam saber. Toda a gente deveria saber.

Com um grunhido, o cardeal MacManus ergueu-se do sofá.

- É a pura verdade. Há mais ainda. O senhor quer o padre Sarfatti como testemunha de acusação?

- Se quero? Sim, mil vezes sim, eu preciso dele.

- Quando quer que ele venha a Los Angeles?

- Dentro de três dias, quatro no máximo, se possível.

- É possível. Notificarei o Vaticano. O padre Sarfatti estará aqui. E o Senhor abençoará a sua causa. Temos sempre presente a recomendação de Santo Agostinho: “Aquele que nos criou sem nosso auxílio não nos salvará sem o nosso consentimento.” Queremos que a América seja salva, e o senhor nos ajudará a obter o consentimento dos nossos. cidadãos. Obrigado, Mr. Duncan.

- Eu é que agradeço, Eminência.

 

Saindo do Empório de Livros de Ben Fremont, Mike Barrett resolveu caminhar a pé os três quarteirões até à Biblioteca Regional de Oakwood.

Depois de colocar outra moeda no parquímetro, deixou o carro e saiu andando. Como Oakwood ficava mais perto da praia do que de Beverly Hills, onde terminara o almoço há menos de uma hora, o ar era mais puro, menos abafado, mais revigorante e inalou-o profundamente enquanto passava pelo distrito comercial.

Barrett recapitulou a conversa que acabara de ter com Ben Fremont. Divertira-se com o facto de que o livreiro magro e míope estivesse agora menos desamparado do que no primeiro encontro que haviam tido, na tarde da prisão. Na ocasião, Fremont contraíra-se de medo e a sua fala ficara reduzida a um balbucio. Mas a atenção que recebera subsequentemente tinha-o envaidecido. Gostou de receber a solidariedade daquela minoria de compradores, amigos e concorrentes que o consideravam um mártir heróico. Deliciou-se ainda mais com o súbito papel de famigerado joguete de Satanás que lhe fora atribuído pela LFD e pelos sensacionalistas da imprensa e da televisão. Pelo seu tom de voz, Barrett notou um vago ressentimento por J J Jadway e Os Sete Minutos estarem a obter maiores atenções do que ele próprio. A certa altura, Fremont confessara timidamente que a sua esposa estava a coleccionar um álbum de recortes. Além disso, o seu porte tornara-se mais erecto, a maneira de falar mais autoritária, e as lamúrias e adulações tinham praticamente desaparecido. Barrett compreendeu e simpatizou com ele. A maioria dos homens, mesmo daqueles que passam a vida em calmo desespero, recebem apenas duas vezes o reconhecimento público: na participação de nascimento e na nota necrológica, nenhuma das quais chegam a ler. A vida tinha dado a esse livreiro obscuro um bónus inesperado. Ele era, inacreditavelmente, de modo fugaz, uma figura pública.

Mas sempre que Barrett falava com ele, Fremont, no fim, mostrava-se realista a respeito da situação. Ele era o réu, sob acusação penal. Havia a possibilidade de encarceramento. E assim, quando Barrrett aparecia, Fremont mostrava-se solícito e logo realista, tal como se portara durante a última meia hora.

Barrett tinha chegado armado de perguntas. A Polícia confiscara oitenta exemplares de Os Sete Minutos, e as contas do departamento de vendas da Sanford House demonstravam que uma encomenda de cem exemplares fora remetida ao Empório de Livros Fremont. Essas cifras estavam certas? “Sim senhor, Mr. Barrett.” Quer dizer então que Fremont vendera vinte exemplares antes de ser preso? “Sim senhor, só que, espere, não, eu tinha um volume em casa, que minha mulher andava a ler. Isso significa, portanto, que vendi dezanove, sendo dois aos agentes da Polícia que me prenderam.” Não possuía nenhuma ficha dos outros dezassete compradores que haviam comprado o livro? “Só dos que mandaram pôr na conta, e isso leva algum tempo para verificar. A maioria dos compradores pagam à vista.” Será que não se poderiam verificar as fichas de débito que abrangessem o curto período entre o recebimento da remessa e a prisão, ficando de sobreaviso para o nome de Jerry Griffith? “A essa pergunta posso responder imediatamente, Mr. Barrett. Nenhum dos Griffith mantém conta nesta livraria.” Quem sabe se Jerry viera e comprara o livro à vista? “Duvido. Tenho boa memória para nomes e rostos. O retrato do rapaz saiu em todos os jornais, e não me recordo de jamais tê-lo visto na loja. Naturalmente, há uma centena de livrarias por toda Los Angeles onde ele poderia ter conseguido um exemplar.” Sim, Barrett sabia, e já pusera Kimura e vários auxiliares a esmiuçar as outras lojas com fotografias de Jerry Griffith na mão. “Ena, como invejo essas outras livrarias, Mr. Barrett. Devem estar a vender exemplares como burro, e tudo por minha causa.” Barrett duvidara que muitas lojas fora de Oakwood ousassem expor o livro. A maioria estava à espera do desfecho do julgamento. “Nem todas, Mr. Barrett” - retorquiu Fremont, com conhecimento de causa.

A afirmação fizera Barrett pensar. Olhara fixamente para o livreiro. Fremont quereria dizer que alguns dos seus colegas estariam a vender o livro às escondidas? “Alguns, alguns.” Lembrava-se do conselho anterior de Barrett? “Qual

era ele? Ah, sim, agora me recordo, o senhor quer dizer que era para eu não tentar vender às escondidas? Não se preocupe. Não há perigo. Aliás, onde iria conseguir exemplares? Só Deus sabe como eu gostaria de poder vender o livro. Não faz ideia da quantidade de telefonemas que recebo diariamente, perguntando se está à venda. Olhe, sabe quem ligou para cá hoje de manhã? Rachel Hoyt. Moça sensacional. Não conhece? Pois devia. É a directora da Biblioteca Regional de Oakwood. Corajosa, que só vendo. Ela levantou-se contra Mrs. St. Clair e a LFD durante dois anos. Está absolutamente indignada com a minha prisão e essa tentativa de proibir Os Sete Minutos. Ela acha que esse é que é o verdadeiro crime. Está tão irritada que não quer sequer esperar para encomendar o livro através do departamento municipal de aquisições. Quer comprar pessoalmente um volume e colocá-lo logo nas prateleiras franqueadas ao público e ter um ajuste de contas com a LFD. Foi por isso que me telefonou, tentando conseguir um exemplar. Fiquei com medo de lhe dar o que a minha mulher está a ler. Mas a Rachel vai acabar por descobrir um exemplar nalgum lugar.”

E agora Mike Barrett tinha chegado à moderna estrutura térrea que servia para Biblioteca Regional de Oakwood e dava entrada no prédio, decidido a falar com Rachel Hoyt, a bibliotecária.

Havia muito tempo que ele não entrava numa biblioteca pública, e o aspecto físico do interior do prédio, assim como a atmosfera reinante, tomou-o de surpresa. As suas recordações juvenis de bibliotecas estavam associadas a palavras como “escuras”, “mofadas”, “calmas”, “silenciosas”. A Biblioteca Regional de Oakwood era clara, nova, arejada e palco de contida vivacidade. Diversos rapazes e moças em Idade escolar achavam-se reunidos" em torno da mesa de Guias Periódicos, conversando em voz baixa, mas animada, e procurando abafar o riso. Outros visitantes estavam confortavelmente sentados em mesas longas, lendo sossegados ou tomando anotações. Um par romântico saiu das estantes bem iluminadas, o braço livre dele a levá-la pela cintura, e os dela carregados de livros. Perto da entrada, havia uma prateleira que ostentava um cartaz: NOVIDADES, assim como uma tábua de cortiça que exibia as capas das aquisições mais recentes. Barrett examinou rapidamente os títulos de ficção. Os Sete Minutos ainda não se encontrava incluído.

No balcão de informações, Barrett perguntou por Miss Rachel Hoyt, dando o seu nome e profissão. A pequena funcionária fitou-o com os olhos esbugalhados e depois disparou por uma porta ao fundo.

Quando voltou, Rachel Hoyt vinha logo atrás dela e Barrett teve uma segunda surpresa. Como a maioria dos adultos, a sua lembrança das bibliotecárias que tinham povoado os seus anos escolares confundira-se com o tempo, numa única bibliotecária estereotipada. Esse estereótipo possuía carrapito, óculos sem aro, nariz pontiagudo e desaprovador, e lábios finos, quase invisíveis. O estereótipo de uma afectada insensível, eficiente, sossegada, sem humor, ressequida.

E ali estava Rachel Hoyt, bibliotecária regional, linda como um quadro de Marie Laurencin, e no entanto tão colorida quanto um cartaz psicadélico. Trazia o cabelo repuxado suavemente para trás, preso à nuca por uma travessa laqueada. Um bâton vivo pintava os lábios húmidos e uma blusa cor-de-rosa estava unida por um cinto grosso a uma mini-saia de lã cinza. Era baixa, compacta, bem feita, com uma expressão insolente e uma espécie de vitalidade explosiva. Devia andar provavelmente mais perto da casa dos quarenta que dos trinta, mas aparentava menos. Barrett não teve dúvida de que ela possuía uma inteligência infernal. E também que não permitia que isso interferisse na sua vida social.

- A senhora é a directora da biblioteca? - perguntou ele.

- Eu mesma - respondeu Rachel Hoyt, puxando uma colecção de pulseiras para cima do antebraço gracioso. Piscou-lhe um olho malicioso. - Que esperava... Minnie Mouse ou uma criatura do tempo da onça? Há anos que deitaram fora esse modelo. Mas lá por isso, Mr. Barrett, o senhor também não parece um desses advogados crimina-listas que a gente lê nos romances ou vê na televisão. Nem um desses camaradas astutos que gostam de estalar os suspensórios ou que são bêbedos maravilhosos que resmungam enquanto defendem os oprimidos. Não se parece com Darrow ou Rogers... nem tão-pouco com Howe ou Hummel, para usar de franqueza.

- Não? - queixou-se Barrett com mágoa fingida. - Porque não?

- Muito elegante e queixudo de mais. Os seus olhos nem sequer estão ligeiramente injectados. A sua gravata é cara. Charles Darnay, talvez. Sydney Carton, não.

- Se a senhora soubesse o que sacrifiquei para aceitar este caso, diria Sydney Carton, e olhe lá.

Rachel Hoyt soltou uma risada.

- 'Stá bom, Sydney. Pode entrar.

Ele contornou o balcão de informações e seguiu-a até um escritório tão bem arrumado e exposto como a sua própria personalidade, excepto a mesa central que lhe servia de escrivaninha, atulhada de livros novos, e pilhas de Library Journal, Top of the News e Wilson Library Bulletin. Havia também em cima da mesa punhados de recortes três-por-cinco, presos por elásticos de borracha, um copo para lápis, um filtrador de café borbulhante e um prato de papel com um pedaço de sanduíche.

- Não se importa que eu termine o meu misto e o meu café? - perguntou ela, passando para trás da mesa e enchendo um copo de papel com café. - Quer um pouco?

- Não, obrigado.

- Então puxe uma cadeira e fique à vontade.

Era o que Barrett ia fazer quando um grande cartaz na parede lhe chamou a atenção. Trazia os dizeres: BIBLIOTECA LEI DOS DIREITOS CIVIS. Fora preparado pelo Conselho da Associação de Bibliotecas Americanas.

- Os nossos seis mandamentos - proclamou Rachel Hoyt. - Veja o terceiro e o quarto.

E!e olhou o terceiro. Dizia: “A censura de livros, exigida ou praticada por árbitros voluntários da moral ou da opinião pública, ou por organizações que estabeleçam um conceito coercitivo de americanismo, deve ser contestada por bibliotecas em defesa da sua responsabilidade de proporcionar conhecimentos e instrução ao público através da palavra impressa.”

Desviou os olhos para o quarto: “As bibliotecas deveriam recrutar a cooperação de grupos aliados nos sectores da ciência, da educação e da publicação de livros para resistir a todo o cerceamento do acesso livre a ideias e à total liberdade de expressão que constituem a tradição do património dos Estados Unidos.”

Virou-se e aproximou a cadeira para uma posição defronte dela do outro lado da mesa.

- Acho que isso praticamente resume a questão - disse ele.

Ela terminou a última dentada na sanduíche.

- Nem tanto - objectou. - Eu diria que quase todo o bibliotecário adopta essas duas medidas, de facto todas as seis. Onde diferimos é na interpretação do que é ou não é  “instrução através da palavra impressa”. Conscientemente ou não, o presidente Eisenhower certa vez destacou o problema num esplêndido discurso que pronunciou no Colégio Dartmouth há vários anos. “Não se aliem aos queimadores de livros -, recomendou ele à plateia. Ele achava que não se podem dissimular erros, escondendo a prova de que existem. Não devíamos ter medo de ir a uma biblioteca e ler todo o livro que lá haja; desde que as nossas próprias ideias de decência não sejam ofendidas. “Essa deveria ser a única censura”, disse Eisenhower. Engoliu o café à pressa.

- Três vivas a Ike. Mas, realmente, o que deveria ser a única censura? Ora, aquilo que fere as nossas ideias de decência, lógico. Contudo, ideias de quem, exactamente? Tome um livro qualquer. Talvez um Eisenhower diga que é indecente, um ministro Warren do Supremo diga o contrário. Tome outro livro. Um comunista americano diz que, politicamente, é decente, um membro da Sociedade John Birch diz que é indecente. Tome Os Sete Minutos. O senhor e eu dizemos que é decente, mas Elmo Duncan e Frank Griffith gritam que é indecente. Sim, tome o próprio livro de Jadway. Eu digo que ele tem valor social e mérito literário, e tenciono comprá-lo e expô-lo nas prateleiras da Biblioteca Regional de Oakwood. Simultaneamente, os bibliotecários reunidos para escolherem livros na Biblioteca Livre de Filadélfia, Pensilvânia, podem achar que o livro possui atractivo libidinoso, além de estilo literário inferior, e talvez se recusem a comprá-lo e distribuí-lo. O director de uma biblioteca pública qualquer no Alabama pode achar que o livro tem importância social, mas, com medo de alguma organização como a DAR (*), fará a censura prévia do romance, não permitindo que bibliotecários dele o comprem- O que nos traz de volta à mesma pergunta... de quem seria a ideia de decência a seguir? Ser bibliotecário hoje em dia é uma posição quase tão delicada como a do político. É uma das ocupações mais arriscadas da face da terra. Não há lugar para ratinhos. Ah, isso não impede que ainda os haja, aos montes, na profissão. Mas existem mais tigres nestas abençoadas salas de leitura, muito mais, pode crer. E esta sua criada é um deles. Hei-de rugir, ficar de atalaia e lutar até à morte para proteger a minha ninhada, a minha colecção de livros, as minhas estantes livres e abertas. E agora, Mr. Barrett, que diabo o senhor veio fazer aqui?

 

(*) DAR - Daughters of the American Revolution.

 

- Miss Hoyt, vim pedir-lhe um favor. Não compre nem exponha Os Sete Minutos.

Ela arqueou logo as sobrancelhas,

- O senhor... a pedir-me isso? Está a brincar?

- Estou a falar absolutamente sério.

- Eu quero que esse livro fique ao alcance de quem quiser lê-lo.

- Não. Ainda é cedo para isso.

- Porquê?

Barrett remexeu no cachimbo.

- Eu explico. Nós já temos uma pessoa a reivindicar o direito de expor Os Sete Minutos. E perante a lei. Temos o nosso mártir. Dois já seriam de mais. É como se, bem, digamos, dois Cristos diferentes houvessem sido julgados por Pilatos e houvesse dois Messias crucificados aquele dia no Gólgota. Os cristãos poderiam inspirar-se em dois martírios? O cristianismo teria resultado disso?

- A analogia não convence - replicou Rachel Hoyt. - Quando se está a defender um baluarte da liberdade sitiado, a gente recorre a todos os voluntários disponíveis. Na minha opinião, quantos mais, senhor.

- Outra analogia mal escolhida - observou Barrett. - Olhe, um judeu é perseguido e trancado na ilha do Diabo, e pode-se bradar "J'accuse!" e sublevar o mundo inteiro por causa de uma única injustiça. O mundo pode identificar-se com um mártir desamparado. Mas seis milhões de judeus foram perseguidos e assassinados na Alemanha e o mundo fica perturbado intelectualmente mas emocionalmente calmo, tratando da sua própria vida, porque, ora, que diabo, quem é que pode identificar-se com seis milhões de mortos?

Miss Hoyt brindou com o copo de papel. Depois amassou-o.

- Sim, compreendo - disse ela. - O que é que devo fazer exactamente?

- Deve dizer-me que está disposta a ser uma testemunha de defesa especializada em literatura. Não quer?

- Nem com metralhadora o senhor conseguiria manter-me afastada do banco das testemunhas.

- Óptimo. Então já está na lista. Imagino que tenha lido o livro de Jadway, não?

- Três vezes. Parece mentira, hem? A primeira foi há uns seis anos, Eu estava num desses voos especiais de turismo. Acho até que o avião descolou impulsionado por elásticos de borracha... nós, as bibliotecárias, não ganhamos salários que permitam extravagâncias, sabe. Era uma espécie de excursão para visitar museus de arte, e depois de três dias no Louvre tive um dia livre. Comecei a dar uma olhadela pelas bancas de livros na margem do Sena e deparou-se-me um exemplar velho e estragado da edição Étoile de Os Sete Minutos. Ouvira falar muito nele, fiquei curiosa, sentei-me num café e passei a manhã a ler. Pela primeira vez compreendi como era excelente ser mulher. Depois, quando soube pelo Publisher's Weekly que a Sanford House publicaria o livro aqui, entusiasmei-me. Pensei, meu Deus, este velho país de pão-de-milho ficou adulto. Quando cheguei a casa, reli a antiga edição parisiense. A história continuava tão sensacional como da primeira vez. Aí então, quando Ben Fremont foi preso, eu sabia que tinha de tomar uma decisão como bibliotecária responsável. Assim li pela terceira vez, com olho atento, sob a perspectiva da bibliotecária.

- E o que lhe disse ele?

- Sem pestanejar, confirmou que as duas primeiras reacções estavam certas. O livro pertencia às prateleiras abertas, e sem tardar, ao menos para mostrar aos caçadores de feiticeiras que Ben Fremont não se achava sozinha. Agora o senhor convenceu-me a adiar esse gesto. Mas, seja como for, terei oportunidade de dizer ao mundo qual é a posição de uma bibliotecária inteligente.

- Já pensou nas consequências?

- Mr. Barrett, se eu me inquietasse com as consequências, nunca teria aceite este maldito cargo. Quando me olho no espelho todas as noites, não quero sentir vergonha do que vejo. Portanto, prò inferno com as consequências. O senhor faz ideia do que a bibliotecária comum precisa de enfrentar cada dia, não uma vez por mês ou por ano... não as grandes questões espalhafatosas, mas os problemas mesquinhos contra os quais ela luta todos os dias, todos os anos? Não estou a falar da mocidade. Os jovens são óptimos. São a nossa única esperança de salvar da extinção total esta bola de lama em que vivemos. São os pais e parentes deles. Os experientes, os mais velhos, que pretendem ter respostas para o que está certo e errado e que eles chamam de “senso prático”. E que vem a ser o senso prático? Uma conglomeração de folclore, fábulas e preconceitos herdados de seus pais e parentes, e um montão de experiências, observações e pensamentos estreitos e mal assimilados. São os pais que surgem nas bibliotecas, públicas e escolares, para protestar contra o modo como estamos a destruir os seus filhos com este ou aquele livro, pouco percebendo que são eles que subvertem a própria prole, por terem assumido a paternidade com crostas em torno dos cérebros. Essa gente está simplesmente com medo de tudo o que é novo.

- Sei perfeitamente como eles são - disse Barrett.

- Claro que sabe. No entanto temos de viver com eles, lidar com eles, e o senhor e eu conhecemos a sufocante limitação que resulta quando a sociedade espera que todo o livro satisfaça os critérios comunitários contemporâneos. A maioria das obras verdadeiramente grandes tornou-se grande porque uma vez desafiou ou ultrapassou a fórmula, a banalidade, a tradição da comunidade. Foram esses os livros que ousaram dizer algo novo ou dizê-lo de uma maneira nova. As obras de Copérnico, Newton, Paine, Freud, Darwin, Boas, Spengler, em ensaios, e de AHstófanes, Rabe-lais, Voltaire, Heine, Whitman, Shaw, Joyce, na ficção. Esses foram os livros cheios de ideias meditas, às vezes chocantes. E hoje nós devemos apoiar textos semelhantes, custe o que custar. Mas como? Um director de biblioteca achou que deveríamos defender o critério de selecção, em oposição à censura... selecção dos melhores livros, baseada sobretudo na suposta intenção do autor e na sua sinceridade de objectivo. A selecção, disse ele, começa com um pressuposto em favor do controlo do pensamento.

Rachel Hoyt fez uma pausa, como se quisesse conter a indignação, e depois continuou mais calma.

- O senhor crê que alguma dessas pessoas que têm medo que o barco vire de uma hora para 'a outra compreende uma coisa dessas? Que esperança. Nós lutamos pela selecção, e elas pela censura. Precisava de ouvir as queixas diárias que presencio. Vêm de puritanos e fanáticos de toda a laia.

- Que espécie de queixas, por exemplo?

- Por exemplo, pediram-me que retirasse da circulação A Letra Escarlate, de Hawthorne, porque mostrava comportamento licencioso, A Boa Terra, de Pearl Buck, porque descrevia um parto. Crime e Castigo, de Dostoievski, porque continha blasfémias, e até E Tudo o Vento Levou, de Margaret Mitchell, por causa da conduta imoral de Scarlett. Li não sei onde que uma associação de pais e mestres queria excluir os Mitos Clássicos das prateleiras porque tratava de incesto... incesto entre os deuses. Os deuses! Em Cleveland, objectaram contra O Asno de Ouro, de Apuleio, por causa do título depravado H. e noutro lugar qualquer objectaram contra A Outra Volta do Parafuso, de Henry James, por motivos óbvios (3). Mas o cúmulo do absurdo foi praticamente atingido em Dowey, Califórnia, quando alguns vigilantes literários tentaram tirar o Tarzan, de Edgar Rice Burroughs, das estantes da biblioteca porque achavam que Tarzan e Jane nunca tinham casado e estavam a viver em pecado mortal. Pode imaginar uma coisa dessas?

Barrett sacudiu a cabeça.

- Oh, não.

- Oh, sim. E não pense por um minuto que sejam só os analfabetos, excêntricos e fanáticos que não nos dão trégua. Muita gente... Isto é, gente supostamente normal... quer instintivamente que todo o mundo se conforme com as suas próprias ideias sobre o que está certo e errado. E uma vez que a maioria... como foi mesmo que Freud definiu?... se perturba com tudo o que lhe recorde inequivocamente a própria natureza animal, ela fica inquieta com a franqueza literária e procura impor a sua inquietação aos outros. Assim temos o nosso quinhão de pessoas com diploma de normalidade que vêm aqui para nos dar trabalho. Até gente perfeitamente respeitável se mete nisso. Veja, por exemplo, os líderes da nossa comunidade... um homem como Frank Griffith, que anda agora a declarar pela imprensa que foi J J Jadway e não Jerry quem desflorou aquela pobre garota. Nem Jadway nem Jerry foram responsáveis pelo crime. Foi um homem como Griffith.

Barrett endireitou o corpo.

- Griffith? Porque diz isso? A senhora conhece-o?

- Não, agradeço - respondeu Rachel Hoyt. - Só falei com ele uma vez e bastou. Jerry, o filho, sempre vinha aqui para buscar livros ou usar a nossa secção de consulta. Cheguei a conhecê-lo ligeiramente. Um rapaz inteligente, calmo, muito simpático, mas reduzido a uma espécie de gago ambulante por um pai prepotente e metido a sabichão. A última vez que vi Jerry, talvez há um ano ou mais, tinha ele vindo fazer uma consulta qualquer sobre um trabalho que estava a preparar para uma aula de Literatura Americana. Estava a ter dificuldade para encontrar o que queria, e procurou-me. Eu sabia exactamente qual

 

Trocadilhos intraduzíveis. O Asno de Ouro (The Golden Ass} também significa O Cu de Ouro.

(3) A Outra Volta do Parafuso (Tum of the Screw) podia ser livremente traduzido por A Vez da Pica.

 

era o livro que podia ajudá-lo: o Dicionário de Gíria Americana, aquele publicado por Crowell. Como já era tarde e Jerry não tivera tempo de procurar o que precisava, deixei que levasse o livro de consulta para casa por vinte e quatro horas. Quando vim, no outro dia de manhã, Frank Griffith estava ao telefone, chamando-me de tudo.

- Frank Griffith telefonou-lhe?

- E como!

- Que foi que ele disse?

- Ficou apopléctico. Como é que eu me atrevia a recomendar um livro daqueles ao filho dele? Respondi que o livro não tinha nada de mal... era um dicionário de referência comum, que vinha sendo usado há anos. Pois não para Frank Griffith, não senhor. Griffith disse que conhecia muito bem aquele livro imoral. Era um que, em 1963, um deputado estadual de San Diego chamara “imundo” e que o nosso Secretário de Educação tachara de “manual prático de perversão sexual”, provavelmente porque continha definição de várias palavras fortes anglo-saxónicas. Griffith queria que o dicionário fosse retirado das prateleiras, e eu recusei-me, dizendo que não podia privar os estudantes de um instrumento de consulta respeitável e erudito. Ele então respondeu que, se tivesse tempo, havia de me meter numa enrascada por causa daquilo, mas como não tinha, só queria advertir-me para nunca mais recomendar nada duvidoso ao filho dele. Do contrário, prometia fazer-me perder o emprego. Infelizmente, jamais tive oportunidade de recomendar outra coisa a Jerry, porque ele nunca mais apareceu por aqui. Mandou um amigo devolver o livro, com agradecimentos e desculpas pelo que acontecera. Acho que ficou vexado de mais para devolver o dicionário pessoalmente, ou para vir aqui de novo. Sem dúvida que tem usado as facilidades da biblioteca da UCLA deste então. Que tal esta?

- O amigo de Jerry - disse Barrett, subitamente alerta. - Lembra-se do nome dele?

- Do amigo? Não tenho a certeza. Sabe, Jerry andava muito sozinho, com um amigo ou outro, mas esse rapaz barbudo foi o único que vi com ele mais de uma vez - fez uma pausa. - Crê que seja importante, Mr. Barrett?

- Não sei. Talvez seja. Ela pôs-se de pé.

- Deixe ver se descubro.

Saiu apressada pela porta, chamando:

- Mary...

Barrett levantou-se, e mal enchera o cachimbo quando Rachel Hoyt voltou.

- Teve sorte? - perguntou ele.

- Tive. Uma das funcionárias lembrava-se do amigo de Jerry. O nome dele é George Perkins. Também estuda na UCLA. ~~-Barrett tomou nota e guardou a agenda no bolso.

- Obrigado. Talvez seja útil. E agradeço-lhe por se alistar entre as testemunhas de defesa. Falarei com a senhora antes de chegar a sua vez de depor. Não se importa de repetir esse pequeno incidente com Frank Griffith no tribunal?

- Nada me agradaria mais.

- Miss Hoyt, em nome de Sydney Carton...

- Deixemo-nos de cerimónias. Eu, Jane. Você, Tarzan. Ele sorriu.

- 'Stá bom. Eu, Tarzan, agradeço-lhe, Jane.

 

A Sala de Conselho que estavam a utilizar ficava situada no Prédio da Administração no campus da UCLA. Não passava de um cubículo vazio, à excepção da cadeira giratória, uma escrivaninha simples de aço com uma pasta de arquivo, telefone e uma planta verde, e duas cadeiras comuns para visitas. Mike Barrett achou-a lúgubre como uma sala de exame médico. Estava a entrevistar Mrs. Henrietta Lott há quinze minutos e o recinto tornava-se cada vez mais claustrofóbico e opressivo. Imaginou que talvez fosse devido à sessão com Mrs. Lott - até agora improfícua.

Henrietta Lott era uma mulher amável, de meia idade. tristonha, sobrecarregada de serviço, que parecia mais à vontade quando matraqueava informações sobre o currículo da Faculdade de Ciências e Letras. A percepção que tinha dos alunos, pelo que Barrett pôde verificar, era superficial. A sua maior virtude era, provavelmente, uma falta de qualquer noção de vício. E a sua seriedade também. Estava designada para mentora dos futuros bacharéis, cujo sobrenome figurasse entre as letras G e J. Griffith era G, portanto ela servia-lhe de mentora. Encontrara-o quatro vezes. A não ser pelo que constava da ficha que trouxera junto, não possuía nenhum conhecimento profundo de Jerry nem qualquer ideia nítida e imediata sobre ele (de per si um comentário, percebeu Barrett). Pediu desculpas da ignorância, mas é que havia tantos, tantos alunos, quinze mil só na Faculdade de Ciências e Letras.

Falara com Jerry nessa data, naquele dia, depois de novo. e ainda outra vez. As entrevistas tinham sido consagradas a conversas exclusivamente académicas, a respeito de uma mudança de aulas, de notas e do ROTC (*). Uma ocasião, quando Jerry precisou de uma informação sobre o seu regimento em relação ao recrutamento, ela encaminhou-o ao Departamento de Serviços Especiais.

- Oxalá houvesse mais alguma coisa que eu lhe pudesse dizer - comentou Mrs. Lott com pesar -, mas creio que não me lembro de mais nada.

Barrett resolveu reformular uma pergunta que já fizera duas vezes.

- A senhora não tem nenhuma opinião sobre a personalidade de Jerry Griffith?

- Olhe, acho que ele era muito sério e meio retraído - contemplou vagamente a ficha que segurava na. mão, e depois a pasta aberta em cima da escrivaninha. - E... creio que posso dizer que ele carecia um pouco de estímulo, como a maioria dos adolescentes de hoje. Comparado com muitos alunos que vejo diariamente, posso dizer que Jerry era mais retrógrado do que os rapazes da mesma faixa etária.

- Nunca o ouviu falar da família, Mrs. Lott?

- Não, De facto, não. Bom, espere, houve uma única vez - agora parecia mais satisfeita. - Uma vez ele indagou a respeito do programa desportivo interno. É, lembro-me. O pai dele tinha sido uma espécie de campeão olímpico... ou será que eu só li sobre isso nos jornais?... seja como for, o pai dele queria que praticasse desporto, achava que seria bom para ele apanhar ar puro e exercitar-se e não ser apenas um estudante aplicado e rato de biblioteca. Então Jerry achou que devia informar-se a esse respeito. Disse que não era muito bom em matéria de desporto, mas creio que disse qualquer coisa sobre umas lições de ténis que tivera durante o curso secundário. Quanto a clubes, pertencia a uma espécie de clube de bridge... ou seria de xadrez?... não, tenho a certeza que era de bridge... uma espécie de clube de bridge em Westwood.

- Soube que Jerry frequentou um curso de Literatura

 

(*) Reserve Officers' Training Corp (Centro Preparatório de Oficiais de Reserva).

 

Americana há um ano mais ou menos. A senhora não podia fornecer-me alguns pormenores? Mrs. Lott curvou-se para a pasta.

- Para ser franca - disse -, aqui tem uma nota que diz que ele fez sete cursos de literatura... ou, melhor, fez cinco e agora está a fazer mais dois, ou estava, antes de ser... quando ele se retirou da universidade. Quer o nome das matérias e dos professores?

Leu devagar, enquanto Barrett anotava tudo na agenda. Depois que ela terminou, Barrett levantou a cabeça.

- Esse último curso- disse -, Literatura de Expatriados Americanos, leccionado pelo Prof. Hugo Knight. Parece promissor. De que se trata?

Mrs. Lott agora estava no seu elemento, e de repente mais senhora da situação.

- É um curso muito popular, e o Prof. Knight ensina com grande entusiasmo. Sim, Jerry inscreveu-se nele, estava a acompanhar as aulas, até surgir o problema. É uma lástima que não pudesse continuar até o exame final, para receber o diploma.

- Em que temas se concentra o Prof Knight para dar as aulas?

- O sistema dele é muito interessante. O Prof. Knight faz conferências em que demonstra a experiência do expatriado, a sensação de alienação e também a assimilação de costumes e tradições estrangeiras, e como o facto de viver e criar no exterior influenciou a principal corrente da literatura americana, desde Nathaniel Hawthorne até Henry James e Ernest Herningway. Os alunos parece que gostam, pelo que deduzo de minhas conversas com eles, porque o Prof. Knight menciona com bastante coragem a história e influências desses autores que eram de vanguarda e realistas de mais para serem publicados na sua América natal. Em vez disso, foram editados em Paris pela Obefisk Press de Jack Kahane, entre 1931 e 1939, e pela Olympia Press que o filho dele, Maurice Girodias, fundou em 1953. Os dois publicaram Frank Harris, Radclyffe Hall, Henry Miller, Lawrence Durrell, James Hanley, Jean Genet, William Burroughs, tudo numa época em que ninguém ousava publicá-los. O Prof. Knight, naturalmente, detém-se mais nos escritores americanos.

- A senhora por acaso não sabe se o professor inclui a Edições Étoile, fundada por Christian Leroux, e o livro que eu represento, Os Sete Minutos de J J Jadway, em suas aulas?

- Não vejo como poderia deixar de mencionar Jadway, pelo menos de passagem. O senhor realmente devia fazer essa pergunta ao Prof. Knight pessoalmente. Estou certa de que ele estaria disposto a cooperar. Posso marcar-lhe uma hora para conversar com ele no horário do expediente.

- Poderia ser hoje, talvez, Mrs. Lott? De tarde, enquanto estou na universidade? Tudo indica que o Prof. Knight tem todos os elementos para ser uma excelente testemunha.

Quase com alívio, Mrs. Lott estendeu a mão para o telefone, mas logo mudou de ideia.

- Preciso deixar a linha livre para uma ligação de que estou à espera - levantou-se da cadeira giratória e apressou-se a ir até à porta. - Não demoro nada. Vou ligar para a sala do Prof. Knight.

Barrett pôs-se de pé, fez massagem nas costas e esperou.

Em menos de um minuto, Mrs. Lott estava de volta.

- O senhor está com sorte, Mr. Barrett. Ele vai ficar livre dentro de meia hora. Expliquei-lhe quem o senhor era e o que desejava saber, e ele disse que teria prazer em dedicar-lhe o intervalo entre as aulas. Espere aí, vou anotar onde fica a sala dele e farei um desenho para indicar o caminho mais curto até lá.

Enquanto escrevia e desenhava as indicações, ocorreu outra ideia a Barrett. Esperou que ela lhe estendesse o pedaço de papel.

- Só mais uma coisa, Mrs. Lott - disse ele. - Há outra pessoa com quem eu gostaria de falar, se possível... um académico, amigo íntimo de Jerry Griffith. Se ele estiver na universidade, e eu pudesse descobrir onde, gostaria de conversar com ele na meia hora que falta para o Prof. Knight ficar livre ou então logo após. O nome do rapaz é George Perkins. Fico com pena de a incomodar, mas...

- Não é incómodo nenhum - afirmou Henrietta Lott- Deixe ver o que posso averiguar.

Voltou com a notícia de que George Perkins, como Jerry, era caloiro, estudante de Geologia e tinha aula naquele momento. Se estivesse a assistir a ela, seria fácil encontrá-lo. Mrs. Lott escreveu um bilhete ao professor da matéria, solicitando que pedisse a George Perkins para esperar no fim da aula, e sugeriu enviar o recado através de uma secretária, que traria o rapaz à presença de Barrett.

Quinze minutos mais tarde, Barrett, parado à beira da Dickson Plaza, o pátio quadrangular a oeste do velho prédio da biblioteca da UCLA, dominando o declive aparentemente interminável de degraus de tijolos que levava aos pavilhões desportivos, tentava permanecer indiferente às garotas animadas e saudáveis que desfilavam, requebrando-se, enquanto ele se mantinha à espreita da volta da sua guia, na esperança de enxergar George Perkins.

De repente notou que a secretária subia pelo passeio de desenho decorativo antes do Royce Hall e, a seu lado num passo indolente, vinha um enorme rapaz desajeitado, com o cabelo ruivo muito crespo e um tufo de barba, vestido de suéter de gola roulé, calças de veludo e botinas militares de campanha. A moça parou e Barrett percebeu que o indicava ao rapaz. O rapaz fez que sim com a cabeça. Então ela abanou a sua para Barrett, que retribuiu, enquanto ela se afastava à pressa.

O rapaz atravessou pesadamente o pátio quadrangular, dirigindo-se para Barrett. Mudou os livros de aula de um braço para outro, e ao aproximar-se mais Barrett notou que o rosto apático estava intrigado.

- Oi - saudou. - O meu nome é George Perkins. Disseram-me que alguém queria falar comigo. Não me disseram sobre o que era.

- Eu chamo-me Michael Barrett. Já lhe explico do que se trata - à menção do nome de Barrett, George franziu a testa, como se tentasse localizá-lo na memória. - Talvez tenha visto o meu nome nos jornais - continuou Barrett. - Sou o advogado de Ben Fremont, o livreiro que foi preso por vender Os Sete Minutos.

- Ah, é - murmurou George Perkins. - Pois bem... Mas qualquer coisa lhe passara pela ideia, e a expressão ficou desconfiada.

- O que é que o senhor me quer?

- Respostas a algumas perguntas, nada mais. Julguei que talvez pudesse ajudar-me a esclarecer uma coisa. Estou a tentar preencher uma lacuna nos antecedentes de Jerry Griffith. Disseram-me que você é amigo dele.

- Tanto quanto uma porção de outros - replicou George, com um gesto precavido, desconfiado. - Conheço-o muito pouco. Quando aparece por aqui, a gente conversa um pouco. Já me deu boleia para voltar para casa. Mas é só isso.

- Soube que vocês dois eram íntimos.

- Pois informaram-no mal. Nada. Sinto muito - olhou de soslaio para o outro lado. - Bem, agora vai-me dar licença, as pessoas que me dão boleia estão à espera. Tenho de arrancar.

George Perkins começou a descer os degraus de tijolos que levavam à rua interna ao longo dos campos de atletismo, mas Barrett alcançou-o e depois manteve o passo a seu lado.

- Não se importa que o acompanhe? - perguntou Barrett. - Talvez possa dar-me alguma informação.

- Não perca o seu tempo.

- Bom, o tempo é meu, posso perdê-lo - retorquiu Barrett jovialmente, começando a descer a escada junto com George Perkins. - Quer dizer então que você conhece Jerry pelo menos um pouco. Nunca falou com ninguém da família dele?

- Não.

- Nunca ouviu Jerry discutir com o pai? -Que esperança!

- Sobre o que é que Jerry costuma conversar? Tem algum assunto ou interesse favorito?

- Nada de especial. Ele só escuta. Todos nós só escutamos. Não sabia, moço? Somos a geração que fica a tirar uma linha do que as pessoas andam a dizer, só para ver o que se não deve fazer - lançou um olhar de troça para Barrett. - A gente deixa os outros falarem sozinhos.

Barrett sacudiu a cabeça, bem-humorado.

- Rendo-me. Mas talvez quem escute também leia. Soube que Jery Griffith vive a ler.

- Toda a gente tem que ler se quiser continuar na escola.

- Nunca viu Jerry a ler ou a comentar Os Sete Minutos?

- Pode ser. Não me lembro. Ele é barra em Hesse, o Hermann. Mas esse assunto do Jadway saiu há pouco, não é? Acho até que não vi mais o Jerry depois que o livro saiu, portanto como é que vou saber se ele o comentou? O jornal disse que ele leu, de modo que o senhor sabe tanto como eu.

- Quando foi a última vez que falou com ele? George Perkins desceu o lance de escada restante em silêncio. Por fim respondeu.

- Mais ou menos uma semana antes de ele bater naquela mulher.

- Depois não falou mais com ele, George?

- Não. E também não andava muito interessado.

- Porquê?

- Porque ele se desmoralizou com esse negócio de sexo. Que espécie de sujeito... com tanta rapariga fácil por aí... vai tentar fazer a coisa em moça da sua classe?

- Isso é o que deixou muita gente intrigada.

- Pois olhe, eu tenho de concordar com o que Jerry disse. Ele disse que aquele tal livro de que o senhor falou o pôs em órbita. Oh, as pessoas 'stão sempre a envaidecer-se com o poder da imprensa, muito berrii 'stá aí o poder. Pelo jeito o tal livro é melhor que LSD pró/ sujeito descolar numa óptima viagem.

Tinham chegado ao pé da escada. Barrett percebeu que era inútil continuar com a conversa.

- Acho que é só, George. Obrigado pela ajuda.

- Está a gozar-me? Que ajuda?

- Agora pelo menos eu sei que Jerry não tem amigos.

- Ah!

- Talvez um dos professores tenha mais para contar. Soube que ele assistia ao curso do Prof. Knight. Que tal é o Knigth?

- Efeminado. E chato, ainda por cima.

- Como é que a gente vai até à sala dele?

George Perkins assestou o polegar por cima do ombro.

- Pelo mesmo caminho que o senhor veio. Só que desta vez tem que subir. Acho bom depois tirar um cardiograma.

- Não se preocupe. Obrigado pelo incómodo, George.

- Olhe, espere aí... Barrett hesitou.

- Que é?

- O senhor fez uma porção de perguntas. Acho que eu também devia fazer uma ou duas. Por exemplo, quem foi que disse que eu e Jerry Griffith éramos amigos do coração? Foi o próprio Jerry?

- Não. Nunca falei com Jerry. Nem o conheço pessoalmente. Soube por intermédio de uma funcionária da Biblioteca de Oakwood, que o viu a você várias vezes em companhia dele.

George pareceu logo aliviado e pela primeira vez afável.

- Ah, então foi isso. Bem, assim fica explicado. Mas ela enganou-se. Olhe, desculpe a perda de tempo, mas em todo o caso boa sorte.

Barrett ficou a olhar enquanto ele se afastava naquele gingar indolente ao longo do ginásio masculino, chegando à conclusão de que não conseguiria apurar grande coisa a respeito de Jerry através dos seus amigos. Para alguém como ele, a União da Juventude sempre continuaria de portas fechadas. Contemplou desolado o Everest de degraus que se perdia nas alturas à sua frente. Valeria a pena procurar um efeminado chamado Prof. Hugo Knight? Ora, não viera à UCLA em busca de conhecimentos de nível superior? Portanto compensava fazer, ao menos, mais um esforço académico. Começou a subir penosamente a íngreme escada de tijolos.

Uma hora e meia mais tarde, Mike Barrett chegava ao seu escritório provisório no conjunto de salas alugado por Abe Zelkin. Ficava no quinto andar de um arranha-céu recentemente construído, situado entre o Robertson Boulevard e o La Cinega, pouco antes do Miracle Mile no Wilshire Boulevard.

O gabinete de esquina de Barrett, todo atapetado, dava uma sensação estimulante de coisa desocupada - ainda se sentia o cheiro da tinta fresca verde-clara nas paredes - e Barrett gostava da descomunal escrivaninha de carvalho, colocada próximo da ampla janela panorâmica, das esparsas cadeiras novas forradas de couro e, um pouco mais afastado, do sofá de almofadas com as duas clássicas poltronas cercando a vasta tampa circular de uma mesa baixa. Ainda não havia nenhum quadro com diplomas de formatura, condecorações cívicas, reproduções de pintores impressionistas ou fotografias de celebridades nas paredes. Perto da escrivaninha, porém, mandara pendurar quatro citações emolduradas, tendo pago a um estudante de belas-artes para copiar em escrita cursiva. Figuravam entre as suas favoritas de longa data. A primeira servia para lembrar-lhe o inimigo externo: “A aplicação da injustiça está sempre nas mãos justas. - STANISLAUS LEC.” As duas seguintes eram amuletos contra a vaidade. Numa lia-se: “Abstenha-se de julgar, porque somos todos pecadores. - SHAKESPEARE.” A outra dizia: “Talvez com o tempo, o que hoje chamamos Idade-Média inclua também a nossa era. -GEORG C. LICHTENBERG.” A última, redigida recentemente, era para lhe lembrar o problema básico e insolúvel de toda a censura: -Quem montará guarda aos próprios guardas? - JUVENAL.”

Três portas quebravam a verde monocromia das paredes. Uma abria para o corredor que lhe trazia visitantes da espaçosa sala de recepção de Donna Novik. Outra conduzia a uma parte comum, abrangida por casa de banho com duche, pequena copa e pequena cozinha. A terceira comunicava com a sala de conferências, que também tinha ligação com o gabinete de Zelkin, além da qual ficavam as dependências de Kimura, a biblioteca jurídica de Zelkin e um quarto extra utilizado como depósito.

No escritório de Barrett, apenas a escrivaninha dava provas da actividade desenvolvida nesses últimos dias. Atulhada de pastas de arquivo cheias de notas e averiguações dactilografadas sobre o caso de Ben Fremont, representava o arsenal de documentos de defesa contra o ataque preparado pela acusação. Mas o que também emprestava à escrivaninha o aspecto de uma paisagem de montanha escarpada eram os traslados encadernados de casos prévios de censura inglesa e americana. Entre' esses, todos repletos de uma floresta de marcadores de páginas, figuravam a Rainha versus Hicklin, Londres, 1868; a acusação da Coroa contra O Poço da Solidão, Londres, 1928; o processo do Governo dos Estados Unidos contra Um Livro Intitulado Ulisses, 1934; o processo da Grove Press contra o Director dos Correios e Telégrafos Chris-tenberry por causa de O Amante de Lady Chatterley, 1959; o processo do Estado da Califórnia contra o livreiro Bradley Reed Smith por causa de Trópico de Câncer, 1962; o processo de Fanny Hill em Massachussetts, 1964. Depois, as sentenças e pareceres integrais do Supremo Tribunal dos Estados Unidos: Roth versus E. U.A., 1957; Jacobellis versus Ohio, 1964; Ginzburg versus E. U.A., 1966, e inúmeros outros. Perdidos no meio do panorama da escrivaninha estavam os autos das Audiências sobre o Controlo de Material Obsceno acumulados por uma subcomissão senatorial que investigara a delinquência juvenil em 1960.

Ao voltar da UCLA, Barrett encontrou, além dessa massa de matéria, diversos memorandos de Leo Kimura. Um era importante.

Havia chegado um telegrama de Monte Carlo, pedindo que Kimura telefonasse ao detective particular Dubois, no Hotel Gardiole, em Antibes, às cinco da tarde. Parecia enigmático, pois Dubois devia ter interceptado Leroux, o editor francês de Jadway, no Hotel Balmoral em Monte Carlo muito antes. Em seu memorando, Kimura não procurara especular sobre o significado do telegrama. Declarava apenas que estava de saída para ir falar com Philip Sanford, a quem queria formular algumas perguntas, mas que faria a ligação transoceânica do próprio quarto de Sanford no hotel, e no momento em que soubesse de qualquer novidade, boa ou má, entraria em contacto com Barrett.

Agora eram cinco horas, e Barrett resolveu ignorar o relógio e o suspense dos resultados do telefonema de Kimura para a Riviera, a fim de concluir o seu relatório verbal para Abe Zelkin. Durante os últimos quinze minutos, sentado à escrivaninha, tirando baforadas do cachimbo, Barrett pusera-se a resumir as entrevistas que efectuara à tarde para Zelkin, que caminhava de um lado para o outro diante dele. Barrett tinha recapitulado os seus encontros com Ben Fremont, Rachel Hoyt, Henrietta Lott, George Perkins e agora descrevia a entrevista com o Prof. Knight, do Departamento de Inglês da UCLA.

- Depois fiquei meio surpreendido quando o Dr. Knight me contou que Rodriguez, do escritório da Promotoria, já estivera lá à procura dele. Acho que foi ontem de tarde.

- Está a brincar? - disse Zelkin. - Irra, essa gente não dorme de touca. Imagino que Duncan queria o professor para testemunha.

- Bom, eles queriam descobrir qual era a atitude dele a respeito do livro - respondeu Barrett. - Rodriguez perguntou se o professor tinha lido o romance, o que achara dele, se havia encorajado os alunos a lê-lo. O Prof. Knight tinha lido, no exemplar do departamento de colecções especiais da biblioteca da UCLA. Nunca aconselhou os alunos a lê-lo porque, até Sanford decidir publicá-lo, não havia exemplares em circulação disponíveis. Quanto ao livro propriamente dito, o Prof, Knight tinha adorado. Portanto isso terminou todo o interesse que Rodriguez pudesse ter no professor como testemunha. Havia mais uma coisa. O Prof. Knight disse que Rodriguez não parava de insistir em ver se Jerry Griffith demonstrara interesse especial por Os Sete Minutos. O Prof. Knight explicou que às suas aulas iam assistir tantos alunos... mais de cem em cada uma... que muitas vezes ele nem os conhecia pelo nome. Só depois que o retrato de Jerry saiu nos jornais é que se lembrou vagamente dele como um dos seus alunos. Além disso, pelo que se recordava, Jerry nunca manifestara o mínimo interesse por aquele ou qualquer outro livro mencionado nas aulas. Pelo menos nunca levantara a mão ou se adiantara para fazer comentários. Seja como for, Rodriguez deixou claro que o escritório da Promotoria não tinha mais nenhum interesse nele.

Abe Zelkin, de mãos nos bolsos, parou ao lado de Barrett.

- E nós? Temos algum interesse no Prof. Knight? Parece que ele pode ser útil.

Barrett fez uma careta.

- Não sei. Aquele garoto, o George Perkins, tinha razão. O Dr. Hugo Knigth é um pouco chato. Eu quis saber o que é que ele diz sobre Os Sete Minutos nas aulas. Pelos modos, não diz quase nada. Apenas menciona o livro como mais um exemplo das grandes obras produzidas por escritores americanos expatriados. Mesmo assim, parece estar pessoalmente muito bem informado sobre Jadway e o romance. Por isso lhe perguntei: “O senhor sabe alguma coisa a respeito de Jadway que não tenha saído nos jornais ultimamente?” Ele respondeu: “Muito pouca gente conhece Jadway tão bem como eu. Sei tudo sobre ele.” Olhe. Abe, vou contar-lhe, as minhas esperanças dispararam que nem um foguete. Mas em questão de segundos caíram por terra. Resultou que ele sabia de tudo a propósito de Jadway simplesmente através de uma interpretação do livro. O nosso professor encarava o romance como uma obra-prima de alegoria. Talvez seja, embora eu ache difícil acreditar que os personagens daquele livro de facto sejam retratos alegóricos dos Sete Pecados Capitais.

- Ele disse isso?

- Isso e mais ainda. Acho até que Leda e o Cisne terminaram por entrar na dança.

Zelkin soltou uma gargalhada.

- Já estou a ver doze homens sérios e honrados num júri a engolir essa.

- E não foi a pior. Quando contestei o simbolismo, tentando convencer o professor a considerar o livro como obra de realismo, ele olhou-me como se eu fosse um absoluto cretino. Ficou todo desdenhoso e condescendente com a incapacidade de leigos ignorantes compreenderem as invenções artísticas utilizadas para revelar verdades intangíveis. Bem, aí desisti de discutir porque percebi que esses académicos pernósticos não vivem sem a sua pequena reserva particular de superioridade e que não se ganha nada em contestá-la.

- O que é que você resolveu fazer a respeito dele?

- Abe, para quem é pobre, qualquer esmola serve. Nós precisamos de testemunhas que achem Os Sete Minutos excelente em matéria de literatura. Resolvi que, fossem quais fossem os defeitos do Prof. Hugo Knight... uns maneirismos que talvez provoquem desagrado, uma predilecção por usar linguagem empolada... ele era um homem de óptimas credenciais que se entusiasmara com o livro. Perguntei-lhe se apareceria como testemunha de defesa. Ficou todo empolgado.

- Não me admiro - disse Zelkin. - O lema nas universidades sempre foi publicar ou perecer... agora parece que é depor ou definhar.

- A minha esperança é que se possa conversar bastante com ele antes do julgamento, para convencê-lo de que essa questão de simbolismo não funciona com o público...

A campainha tocou. Barrett encolheu os ombros para Zelkin e atendeu. Era Donna no intercomunicador. Philip Sanford estava na primeira linha.

Barrett calcou o botão aceso.

- Está, Phil.

- Boas novas, Mike! De primeira! Conseguimos a nossa testemunha estrelar, o velho editor de Jadway! Já está no papo! Não é sensacional?

- Conseguimos Christian Leroux como testemunha? - repetiu Barrett, radiante, virado para Zelkin. - Formidável. Agora o que foi que ele...

- Espere, vou passar prò Leo. Ele dará os pormenores. Eu apenas queria ser o primeiro a dar-lhe a notícia. Cá está o nosso genial investigador.

A voz de Kimura fez-se ouvir.

- Mr. Barrett...

- Estou aqui com Abe. Ele vai ouvir na extensão do outro lado da sala. Pronto, não deixe nada de fora, conte todos os pormenores.

- Não são muitos - retrucou Kimura com aquela dicção impecável. - O que há para contar é extremamente favorável. Agora mesmo falei com Dubois em Antibes. Ele estava à espera no átrio do Hotel Balmoral em Monte Carlo quando Christian Leroux chegou de Paris e se apresentou na portaria. O nosso homem imediatamente abordou Monsieur Leroux e explicou porque estava lá... a finalidade exacta do seu interesse. Monsieur Leroux deu logo a entender que lhe seria possível cooperar se dispusesse de informações mais amplas. Mas em seguida ficou evidente que o nosso editor francês não queria informações sobre o caso, e sim sobre o que estaríamos prontos a pagar-lhe para servir de testemunha. Leroux faliu há muitos anos, quando os livros pornográficos ou proibidos, que eram a sua especialidade, começaram a ser publicados abertamente pelas editoras importantes e autorizadas do mundo inteiro. Desde então, tem feito de tudo para voltar à actividade, levantar fundos suficientes para iniciar uma nova editora em Paris que apresentasse uma linha de clássicos imorais comentados. Dubois, para começar, fez-lhe a oferta que combinámos... passagens e despesas pagas, ida e volta, até Los Angeles, e mais três mil dólares. Leroux rejeitou, resmungando que o tempo dele valia mais do que isso. Dubois imediatamente subiu ao nosso preço máximo, viagem e despesas e cinco mil dólares em dinheiro. Assim a coisa mudou logo de figura e Leroux concordou em servir como nossa testemunha.

- Você fisgou um peixão - comentou Zelkin.

- Há uma coisa - interpôs Barrett. - Leroux não disse se o que ele vai depor é favorável a nós?

- Dizer não disse. Mas Dubois está certo de que ele entendeu muito bem o motivo do pagamento. Quis saber o que se esperava dele. Afinal de contas, disse ele a Dubois. há factos e factos, e a verdade tem muitos aspectos. Com isso, insinuou que podia incluir ou omitir factos, de acordo com as nossas conveniências. Então Dubois explicou-lhe, com os parcos elementos de que dispunha, o que queríamos. Contou que esperávamos provar que J J Jadway não tinha escrito Os Sete Minutos meramente com intuito comercial, como um pornógrafo à cata de dinheiro fácil, mas, antes, como um artista que escreve com honestidade e integridade. Ao que Leroux respondeu: “Voilà, nesse caso posso fazer o que vocês querem, porque eu fui o único editor dele, não fui? Fui o único que acreditou no livro além dele, não fui? Fornecerei à defesa tudo o que for preciso."

- Jadway - perguntou Barrett -, ele não disse nada sobre Jadway?

- Só que o conheceu intimamente...

- Fabuloso! - exclamou Zelkin.

- ...e que nos contaria tudo assim que chegasse a Los Angeles e recebesse o pagamento - disse Kimura. - Dubois achou a nossa testemunha mais esperta do que uma peixeira francesa.

- E depois? - perguntou Barrett.

- Sendo detective, Dubois é muito cauteloso, talvez mais do que o necessário. De qualquer maneira, como havia gente, amigos dele, que sabia que Leroux estava hospedado em Monte Carlo, Dubois resolveu tirá-lo de lá e escondê-lo noutra parte, num lugar em que ele fosse desconhecido. Assim Dubois convenceu-o a mudar-se para um hotel discreto, o Gardiole, em Antibes, e pediu que se registasse só para uma noite, sob o nome de Sabroux. Leroux concordou em permanecer fechado no quarto até que Dubois vá buscá-lo amanhã, entregando-lhe as passagens de ida e volta e a entrada do pagamento, colocando-o no Caravelle que parte de Nice para Paris e lá no avião que virá para Los Angeles. Dubois telegrafará a hora exacta em que deveremos apanhá-lo no Aeroporto Internacional. De modo que teremos a nossa testemunha estrelar depois de amanhã. Acho que tivemos uma sorte danada. Depois de desligar, Barrett pôs-se de pé e começou a dar murros de alegria em Zelkin.

- Ei, pára, calma - protestou Zelkin, com largo sorriso -, senão você fica sem parceiro para ajudar a ganhar a causa.

- Por Deus, Abe - exclamou Barrett -, esta é realmente a primeira vez que eu senti de facto que temos sorte.

- Sim, agora temos uma oportunidade. Temos também o nosso primeiro pretexto para festejar alguma coisa. O que acha em eu telefonar a Sarah e dizer-lhe que deite mais dois bifes na grelha e um pouco de champanhe nacional no gelo para dois convidados hoje à noite... Phil e você?

- Seria... -começou Barrett, mas logo se lembrou e parou. -Mas não é possível. Marquei encontro com Faye. Combinámos sair juntos. Quero dar uma olhadela pela festa beneficente que a LFD vai dar no Hilton. O orador principal da noite será o nosso caro adversário, Elmo Duncan. Abordará o tema A Liberdade de Corromper. Achei que devia tentar lá ir e sair sem ser notado. Julguei' que talvez fosse boa ideia inspeccionar o território inimigo. Poderia dar-nos uma previsão do teor do ataque inicial que ele desfechará no julgamento e uma noção do seu estilo oratório.

- Está bem. Os bifes ficarão no congelador até à chegada de Leroux.

- Enquanto isso - disse Barrett, voltando à escrivaninha -, vou dedicar a próxima hora a um pouco de composição criadora.

- Qual?

- Conseguimos o astro do espectáculo - respondeu Barrett. - Agora convém escrever um papel inesquecível para ele.

 

Estavam atrasados, e Mike Barrett ficou consternado.

O comício beneficente, patrocinado pela Liga da Força da Decência, fora marcado para as oito e meia da noite, e faltavam dez"minutos para as nove quando chegaram ao Beverly Hilton Hotel. Barrett tinha sido pontual, mas Faye, como de costume, ainda acabava de se vestir quando ele bateu na casa dos Osborn.

No Beverly Hilton, deixando o carro com os encarregados do estacionamento, Barrett empurrara Faye rapidamente pelas portas automáticas para entrar no imenso átrio. Na precipitação, fizera-a tropeçar, e agora, ao ampará-la com os braços, mostrava-se momentaneamente contrariada.

- Para quê esta maldita pressa? - reclamou ela. - Você não é propriamente o convidado de honra ou coisa parecida. Porque precisa ser sempre assim tão pontual?

- Não é isso... - começou a explicar mas não terminou, porque ela não compreenderia, e, ademais, não tinha importância. Chegar à hora hoje à noite não tinha nada que ver com a sua proverbial pontualidade. Queria chegar quando toda a gente estivesse também, para ficar perdido no meio da multidão e tornar mais discreta a sua entrada e presença. Afinal de contas, achava-se em território hostil, e para a LFD ele era o odioso adversário. A única esperança agora era que os membros da plateia estivessem absortos de mais nos discursos para prestar atenção aos retardatários.

Continuaram a avançar pelo átrio, caminhando rapidamente, com Faye meio passo à frente e tomando a dianteira, como se lhe quisesse indicar que compreendera e agora lamentava o desabafo. Percorreram o amplo corredor, passaram a farmácia do andar térreo, e finalmente alcançaram o vestíbulo e o bar localizados diante do Grande Salão de Baile.

- Não somos os últimos - disse Faye.

Com alívio, viu que ela tinha razão. Meia dúzia de pessoas no mínimo desfilavam lentamente pelas duas mesas de recolhimento de entradas onde estavam sentadas várias matronas imponentes. Quando chegou a vez de Barrett, ele explicou logo que não tivera tempo de remeter o cheque para os bilhetes, e disse que esperava que ainda houvesse lugares à venda. De facto havia e a sua nota de dez dólares foi aceite.

Enquanto ele e Faye seguiam os demais rumo à porta do salão de baile, uma série de outros convidados convergia para a entrada procedente do bar. Faye acenou para alguém.

- Há uma pessoa que eu conheço - afastou-se de Barrett. - Olá, Maggie. Que bom vè-la por aqui.

Estava a falar com uma morena espectacular, que trazia na mão uma bebida da cor de ameixa.

- Que prazer encontrá-la, Faye - disse a morena. Levantou o copo, constrangida. - Não vá pensar que gosto de beber sozinha. É que eu preciso de alguma coisa para aguentar discursos. Senão desidrato.

- Eu estava para lhe telefonar - explicou Faye. - Queria dizer-lhe como ficámos sentidos com o que aconteceu com o Jerry. Acho que o papá ligou prò seu tio. Em todo o caso, sentimos muito. Ah, desculpe... -tacteou à procura do braço de Barrett e puxou-o para perto delas. - Não sei se já conhece o meu noivo..”. Maggie Russell... Michael Barrett.

- Prazer em conhecê-la, Miss Russel! - disse Barrett.

- Como vai? - cumprimentou Maggie Russell, analisando-o friamente. - Bem que achei que o tinha reconhecido.

- Quer dizer que aqueles retratos horríveis que saíram nos jornais me fazem justiça? - perguntou Barrett.

- Não, quero dizer que houve uma porção deles - respondeu, sem sorrir. - E acontece que tenho um interesse especial no seu caso.

Antes que ele pudesse replicar, virou-se para Faye.

- Você está maravilhosa, Faye.

- Não é para menos - retorquiu Faye toda alegre, estendendo a mão para pegar na de Barrett.

Não sabia porquê, mas não lhe agradava a ideia de ter uma bandeira plantada nele nesse momento. Aceitou a mão de Faye, apertou-a de leve e soltou-a.

Faye e Maggie Russell foram na frente, devagar, conversando a meia voz, mas Barrett permaneceu onde estava, de olho fixo na bela morena. Inexplicavelmente, queria ficar a sós com ela, tentar fazê-la entender - e ao mesmo tempo sentia-se confuso. Fazê-la entender o quê? Porque defendia um livro que ajudara a destruir parentes seus? Ou para... entender porque se achava em companhia de Faye Osborn?

Continuou a olhar fixamente para Maggie Russell. Era diametralmente oposta a Faye. Faye era mais baixa, mais magra, talvez mais classicamente bonita, muito lourat angulosa, a gélida perfeição. Mas Maggie Russell, de certo modo, indefinivelmente, era mais atraente.

Desviou a sua atenção para o copo, procurando descobrir a fonte daquela atracção. Quando ela virou a cabeça, ele reparou que os cabelos pretos e brilhantes tinham um jeito desgrenhado, negligente, talvez porque estivessem penteados com as pontas-como era mesmo que diziam as revistas de moda feminina? Sim - com as pontas travessamente encaracoladas sobre as faces. Os olhos muito separados eram cinza-esverdeados e francos, o nariz pequeno e largo, a boca húmida e entreaberta, de lábio inferior carnudo. Os contornos do rosto e da silhueta eram suaves e sensuais, e o que acentuava a curva dos seios e a opulência das coxas era a cintura fina e as pernas esguias. Ao lado de Faye, ela agora virara-se de perfil na porta, e ele percebeu o vestido curto de jérsei que parecia tão colado ao corpo que o desenho das calças de baixo ficava ligeiramente visível.

Reparou que ela espiara de repente por cima do ombro e surpreendera o olhar dele. Depois desviou a vista para o outro lado, mantendo-a sempre em frente.

Embaraçado, com ar culpado, concentrou a atenção em Faye, que acabava de se virar para acenar-lhe.

- Mike, você não estava com pressa? Aumentando o passo, alcançou Faye, tornou-lhe o braço, e entraram juntos no Grande Salão de Baile, atrás de Maggie Russel. O vasto recinto estava em penumbra, para alívio de Barrett, e repleto de uma plateia que provavelmente atingia mil pessoas. Havia uma quantidade de cadeiras vazias dobradas ao fundo, e enquanto ele e Faye seguiam no encalço de Maggie Russell, pôs-se a imaginar se se sentariam lado a lado. Chegando, porém, a um corredor improvisado, Maggie encontrou um lugar desocupado na ponta de uma fila lotada. Decepcionado, Barrett levou Faye para um canto onde havia uma série de lugares vagos e dirigiu-a com firmeza para a segunda cadeira a partir do corredor, enquanto ele se sentava do lado de fora. Faye curvou-se para ele, pondo-lhe a mão em concha na orelha.

- Desculpe - sussurrou. - Eu não devia tê-lo apresentado, mas fi-lo sem pensar. Você ficou constrangido, não foi?

- Ora, porquê? - retrucou ele.

- Ela é sobrinha de Frank Griffith e muito íntima do rapaz.

- Tanto melhor - cochichou ele. - Talvez seja útil conhecer alguém que seja íntimo dele.

Faye tirou as luvas.

- Nem pensar - preveniu. - Você teve sorte em que ela não lhe cuspisse nos olhos.

Com esta, Faye recostou-se na cadeira e concentrou-se no palco. Pela primeira vez Barrett deu conta de que todos os olhares estavam fixados no orador.

Era a principal atracção da noite: o promotor público Elmo Duncan. teso e imponente na plataforma, com as mãos apoiadas ao atril e inclinado para o microfone para frisar um ponto. Barrett endireitou o corpo e prestou atenção.

- Portanto, não nos enganemos acerca do próprio termo “pornografia” - dizia Elmo Duncan. - Não nos esqueçamos da etimologia do vocábulo. Ele deriva da palavra grega pornographos, que significa “o que é escrito por devassos”. Significa qualquer trabalho escrito ou a descrição das vidas sexuais de devassos ou prostitutas, um género especial de estilo literário que se destinava a ser afrodisíaco no conteúdo. Ou, como definiu um comentarista contemporâneo, a pornografia, no início, era “a descrição da vida das meretrizes com a intenção de provocar a concupiscência masculina e fazer com que o homem fosse procurar uma meretriz”. Passaram-se os séculos, mas o termo “pornografia” não mudou de sentido. Afirmo isso embora as nossas cortes supremas tenham pedido que nós, que devemos aplicar as leis, acreditemos que nem todos os livros pornográficos sejam igualmente criminosos. Fomos informados de que um livro pornográfico que possua alguma narrativa não-erótica, certos trechos de pretenso valor social, precisa de ser tratado com maior tolerância e benevolência do que outro, cujo conteúdo erótico não seja interrompido por digressões morais. Do meu ponto de vista pessoal, é tolice jurídica, equivale a procurar agulha num palheiro, e é justamente o que tem retardado a aplicação de leis contra a obscenidade. A diluição do conceito de pornografia é o que faz os executantes da lei, para citar o ministro Black, do Supremo Tribunal, lutar desesperadamente num pântano.

“Eu, porém, amigos ouvintes, asseguro-lhes que não estou encurralado num pântano. Para mim, um livro sujo, ainda que finja expressar ideias ou mensagens sociais, não é menos repugnante do que um livro de absoluta obscenidade barata. De facto, muitos jurisconsultos afirmam que a qualidade literária de uma obra escrita torna o livro obsceno ainda mais pernicioso. Para mim, imundície é imundície, por mais que se tente camuflá-la. Sim, os gregos tinham um termo para isso, o termo exacto, que significava trabalhos que excitassem pensamentos lascivos e acções libidinosas. Como um promotor público extraordinário, especialista no ramo da obscenidade, certa vez declarou: “O único objectivo dos livros pornográficos é estimular reacção erótica. A pornografia encoraja o povo a chafurdar em fantasias mórbidas, de sadismo sexual...” E nós temos a prova, a prova concreta, de que a literatura pornográfica estimula mais do que fantasias. Agora sabemos que ela estimula crimes de violência.

“Os homens que mais convivem com o problema conhecem a verdade. Permitam-me citar-lhes o que disse o Dr. Frederic Wertham, antigo decano de psiquiatria no Hospital Bellevue de Nova Iorque e consultor psiquiátrico de uma subcomissão senatorial para o estudo do crime organizado. Segundo o Dr. Wertham, “as atitudes e subsequentes acções infantis são definitivamente influenciadas pela leitura sugestiva de uma combinação de sexo e violência. Estou convencido de que essa combinação está criando na mentalidade das crianças o ego ideal do bruto que, pela força física, executa a lei com as próprias mãos, estabelece as suas próprias regras e resolve todos os seus problemas pela força.” Em apoio dessa declaração, temos as estatísticas do nosso Bureau Federal de Investigações abrangendo um período recente de dez anos da nossa história, um período da maior produção de livros pornográficos, durante o qual o estupro aumentou em trinta e sete por cento nos Estados Unidos, e o nível de idade dos estupradores que mais cresceu foi o dos adolescentes.

“No entanto ainda há mais que temer. Desde a época daquele grande jurisconsulto inglês do século XVIII, Sír William Biackstone, até os dias actuais, temos sido advertidos de que a nossa sociedade pode sofrer uma morte espiritual, se os pornógrafos receberem licença ilimitada. Biackstone afirmou que punir escritos perigosos ou ofensivos “é indispensável à preservação da paz e ordem públicas, do governo e da religião, os únicos fundamentos sólidos da liberdade civil”. Agora, transcorridos duzentos anos, continuamos a ser lembrados do nosso dever. A antropóloga Margaret Mead revelou que toda a sociedade humana sobre a face da terra exerce alguma espécie de censura explícita sobre o comportamento, especialmente sobre o comportamento sexual. Na Inglaterra, Sir Patrick Devlin recomendou que não ousássemos tolerar a abertura total em relação à liberdade sexual. “Nenhuma sociedade”, disse ele, “pode dispensar a intolerância, a indignação e a repulsa; são as forças em que se escuda a lei moral.” O nosso próprio Juiz Thurman Arnold concordou e foi ao extremo de declarar: “O facto de que as leis contra a obscenidade não possuam base racional ou científica, mas antes simbolizem um tabu moral, não as torna menos necessárias. Elas são importantes porque os homens sentem que sem elas o estado carece de valores morais”. Em suma, haja ou não base científica para as nossas leis contra a obscenidade... e acontece que eu acredito que existe essa base... as leis devem ser observadas e aplicadas se quisermos que a nossa sociedade sobreviva aos efeitos corrosivos da imoralidade.

"Meus amigos, não tenhamos medo de sermos tachados de censores, e não tenhamos medo da censura justificada. A verdade é que a censura, tão antiga como a própria história, há muito que é reconhecidamente uma necessidade para o bem comum e a sobrevivência do homem civilizado. Já bem antes do nascimento de Cristo, o filósofo Platão fez a pergunta: “Permitiremos simplesmente, sem o menor cuidado, que as crianças ouçam qualquer história fortuita que possa ser inventada por qualquer espécie de pessoa, e recebam ideias, na maior parte exactamente opostas às que desejaríamos que tivessem quando crescerem?” E o próprio Platão deu a resposta da civilização: “Então a primeira medida a tomar será estabelecer uma censura dos escritores de ficção, e deixar os censores aceitarem toda a história de ficção que for boa, rejeitando as más; e façamos votos para que as mães e amas contem a seus filhos apenas as que tiverem sido autorizadas."

“Meus amigos, chegou a hora em que nós todos, individualmente, precisamos de enfrentar o facto de que a pornografia, seja qual for o disfarce que use, ainda continua a ser francamente obscena e uma ameaça para as nossas famílias, o nosso futuro e a pureza espiritual desta grande nação. Precisamos de dizer a nós mesmos, uns aos outros, ao país inteiro, que chegou a hora de resistir e deter a praga negra da pornografia. A hora chegou, a hora é agora, e, como concidadão e Promotor Público de todos vós, empenho todas as energias e recursos ao meu dispor para liderar esta cruzada!”

Elmo Duncan fez uma pausa, aguardando a reacção esperada, que veio numa trovoada de aplausos. Enquanto a aclamação continuava, Barrett olhou para Faye a seu lado.. De olhos brilhantes, fixos na figura no palco, batia palmas Perturbado, Barrett virou a cabeça e olhou para o outro lado do corredor. Maggie Russell, o rosto pensativo e pálido, continuava sentada, imóvel. Conservava as mãos pousadas no colo. Estranho, pensou Barrett, mas a voz grave do orador logo se intrometeu, e ele voltou a sua atenção para o palco.

- Desde o ano de 1821 - dizia Duncan -, quando os Estados Unidos tiveram o seu primeiro processo por obscenidade, ano em que Peter. Holmes foi considerado culpado por publicar As Memórias de uma Mulher de Prazer.. nada mais nada menos do que Fanny Hill... vários editores,, que recentemente se transformaram numa legião, se aproveitaram das nossas franquias e liberdades para zombar da Constituição e dos instrumentos de justiça. Como resultado, hoje a publicação de imoralidade tornou-se um negócio de dois biliões de dólares anuais.

“Culpo esses editores por apoiarem, e às vezes encorajarem, a produção de imundície, e culpo-os por promoverem a sua venda por todo o país em nome da literatura, quando a sua única fidelidade é para seus lucros. Culpo também os livreiros, por falta de fibra moral para rejeitar esse lixo, por pensarem em proveito próprio em vez do bem-estar público. E culpo também os escritores dessa sujeira. Que nenhum escape, muito menos os criadores, esses degradadores da liberdade de expressão que se escondem debaixo da saia da própria Musa que mancham e profanam.

Na plataforma, Elmo Duncan fez nova pausa, sacudindo a cabeça.

- Escritores... escritores - repetiu tristemente - que traem não só a si mesmos, como uns aos outros, em prol de Mamona, seu verdadeiro deus. Permitam-me citar-lhes as palavras de um célebre escritor: “Mas até eu censuraria a autêntica pornografia, com todo o rigor”, escreveu ele. “A pornografia é a tentativa de insultar o sexo, de cobri-lo de sujeira. Isso é imperdoável.” Imperdoável, realmente. E quem pronunciou essas palavras gloriosas? Já lhes digo. D. H. Lawrence, o autor daquele hino à pureza: O Amante de Lady Chatterley!

Prorromperam as risadas e aplausos, e Elmo Duncan recebeu-os com um sorriso e ergueu a mão.

- Ainda não terminei - disse. - Ouçam esta. Quando James Joyce publicou Ulisses, em Paris, quem foi um dos primeiros a qualificá-lo de obsceno e pedir que fosse proibido? Vocês já adivinharam. D. H. Lawrence, o autor de O Amante de Lady Chatterley e pseudo protector da moral pública... protegendo-a da pornografia alheia, bem entendido!

Uma estridente explosão de gargalhadas saudou a tirada do Promotor Público.

Duncan voltou a ficar sério.

- Mencionei o Ulisses, de Joyce, porque traz à lembrança uma coisa que há muito eu queria dizer. Há anos que nos ensurdecem com a bravura do juiz John M. Woolsey por ter deixado entrar aquela obra pornográfica em nossa terra, e há anos que nos ensurdecem com a coragem dos juizes Augustus e Learned Hand, que mantiveram o veredicto de primeira instância de Woolsey ao julgar o recurso de um juiz discordante. Mas, meus amigos, perdoem-me, nenhum Woolsey jamais conseguiu cegar os meus olhos, nenhum Hand jamais tapou os meus ouvidos, para impedir que eu reconhecesse e escutasse a única pessoa digna de crédito sobre todas as demais... porque a verdadeira bravura e coragem no caso de Ulisses foi a do único árbitro que discordou do veredicto de Hand naquele processo de apelação. Refiro-me ao juiz Martin Manton, há tanto tempo esquecido, e à sua discordância, que cada um de nós deveria trazer escrita em nossas bandeiras, nesta cruzada contra os corruptores da liberdade. “O Congresso aprovou esta lei estatutária contra a obscenidade para a grande massa do nosso povo”, escreveu o juiz Manton, acrescentando que só a pessoa fora do comum pensa que pode proteger-se sozinha. Depois o juiz Manton continuou: “O povo não existe a bem da literatura, para dar fama ao autor, riqueza ao editor, e mercado ao livro. Pelo contrário, a literatura existe para o bem do povo, para reanimar o exausto, consolar o triste, encorajar o apático e desiludido, aumentar o interesse do homem pelo mundo, a sua alegria de viver, e a sua solidariedade com todas as espécies e condições de seres humanos. A arte pela arte é desumana e logo deixa de ser arte; a arte para o mercado público não tem nada de arte, é apenas comércio; a arte ao serviço do público é um elemento nobre, vital e permanente da vida humana... As obras-primas nunca foram produzidas por homens dados à obscenidade ou a pensamentos libidinosos... homens sem Deus... O bom trabalho em literatura deixa marca permanente; como todo o bom trabalho, é nobre e duradouro. Requer um objectivo humano... animar, consolar, purificar ou enobrecer a vida do povo. Com esse objectivo, a literatura jamais errou uma flecha do alvo. É apenas através do bom trabalho que os homens de letras podem justificar o seu direito a um lugar no mundo.” Estas são as palavras que espero que a LFD continue a apoiar, e a comunidade comece a prestar atenção...

Estas as palavras do juiz Manton. Escutando-as, a massa cinzenta de Barrett pôs-se a funcionar, e por fim laçou o juiz Manton na memória e fixou. O moralista juiz Manton, poucos anos após propagar essas nobres palavras, fora preso como cúmplice de uma conspiração para impedir a justiça e terminara numa prisão federal por dezanove meses. Barrett ficou a pensar se não devia oferecer esse pós-escrito à deslumbrada Faye. Decidiu que não. Ela estava enlevada de mais pela retórica do Promotor Público. Barrett recostou-se para continuar a ouvir.

- ...sim, prestar atenção a estes sentimentos do juiz Manton - dizia o Promotor Público -, pois se tivessem sido o critério pelo qual um editor e um vendedor de livros se basearam nas semanas recentes, garanto-lhes que a nossa cidade teria conhecido menos violência e o nosso próximo sofrido menos desgostos.

Elmo Duncan fez uma pausa e a onda de aplausos foi instantânea em relação à sua primeira referência indirecta a Os Sete Minutos e ao caso de estupro que envolvia Jerry Griffith.

Mais uma vez Barrett pôde ver que Faye batia palmas com fervor e mais uma vez se voltou para observar Maggie Russell. Como antes, e como ele, abstinha-se de aplaudir. Pelo contrário, juntando o copo vazio e a bolsa, levantou-se abruptamente, cruzou o olhar com ele, depois tomou o caminho do corredor e dirigiu-se para a saída.

A sua súbita partida desnorteou Barrett. Era óbvio que ela viera a este comício porque se solidarizava com a LFD e Elmo Duncan, que estavam a procurar punir o livro que tinha, a seu ver, arrastado Jerry Griffith ao crime. E Jerry era parente próximo de Maggie Russell. Então porque, de súbito e sem finalidade aparente, resolvera ir-se embora antes que terminasse o discurso do Promotor Público?

Uma possibilidade remota passou pelo espírito de Barrett. Inexplicavelmente, essa moça virara as costas à acusação. Talvez, se tivesse uma oportunidade, se não virasse contra a defesa. Valia a pena tirar a limpo.

No palco, Duncan recomeçara a falar, e, ao lado de Barrett, Faye escutava com a máxima atenção. Barrett curvou-se para ela.

- Com licença, querida. Não demoro.

- Mike, aonde vai...?

- Ao lavabo - cochichou. - Preste atenção para depois me contar o que perdi.

Esgueirando-se da cadeira, subiu o corredor, passando por trás da última fila, e saiu.

No vestíbulo, viu Maggie Russel colocar o copo vazio no balcão do bar. Enquanto ela se encaminhava para o corredor do átrio, Barrett apressou-se a interceptar-lhe o passo.

- Miss Russel... - chamou.

Ela parou e esperou, sem surpresa. Alcançou-a.

- Já que tive esta oportunidade, gostaria de lhe falar. Continuou calada, esperando.

- É a respeito dos seus parentes, os Griffith. Soube que mora com a família.

- Sou secretária e dama de companhia de Mrs. Griffith.

- Faye mencionou a sua relação com Jerry.

- O que foi que ela disse?

- Que você era muito íntima do rapaz.

- Não somos apenas parentes, somos amigos - encarou Barrett e depois acrescentou, mordaz: - E estou pronta a defendê-lo contra qualquer pessoa que pretenda prejudicá-lo.

Barrett fez uma carranca.

- Se se refere a mim, está redondamente enganada. Não tenho nenhum motivo para querer prejudicar Jerry Griffith. Muito pelo contrário. Sinto pena dele e simpatizo com todos vocês. O único interesse que tenho por Jerry é profissional. Estou incumbido de defender um homem que vendeu um livro que Jerry afirma que o incitou ao crime. Pelo pouco que. conheço de delinquência juvenil, não estou convencido de que material de leitura sozinho... e até de qualquer outro modo... possa ser considerado responsável por actos anti-sociais. Há muitos outros factores que poderiam ser levados em conta mais seriamente, entre os quais a educação e a família de um rapaz. Eu estava interessado em que pudéssemos conversar sobre o assunto.

Os olhos cinza-esverdeados não pestanejaram. Analisou-o sem emoção.

- Estou admirada de mim mesma por lhe estar a dar atenção. O que o fez imaginar, por um momento sequer, que eu falaria com o senhor sobre as questões íntimas da minha família?

- Por um lado a sua conduta há pouco no salão - respondeu Barrett. - O seu comparecimento a esta reunião parecia perfeitamente natural. Mas quando foi a única pessoa, além de mim, a não aplaudir o amontoado de asneiras de Duncan, e se levantou para se retirar acintosamente, ocorreu-me que talvez não simpatizasse totalmente com o ponto de vista dele. Talvez eu tenha interpretado mal as suas acções mas foi o que me ocorreu. Por outro lado, só em observá-la, eu... Bem, a menina parece franca, directa e inteligente, o tipo de pessoa que talvez compreendesse que cooperar comigo não prejudicaria Jerry de modo algum. e talvez até. de certa maneira, fosse útil para ele.

Ela cruzou as mãos calmamente sobre a bolsa à sua frente.

- Mr, Barrett, para começar pelo fim, sou franca e directa, e portanto posso dizer-lhe que tenho bastante inteligência para saber que qualquer conversa que viesse a ter com o senhor constituiria um acto de deslealdade para com aqueles a quem tanto devo. Quanto a Mr. Duncan, não sinto o mínimo interesse pelas opiniões dele a respeito da censura em geral. A única coisa que me interessa de momento é proteger Jerry. Vim aqui hoje à noite para ver e ouvir a actuação do Promotor Público perante uma assistência, uma vez que ao atacar o seu livro no tribunal ele estará atacando a causa do problema de Jerry. Nesse sentido, Mr. Duncan estará a apoiar e a explicar Jerry, ajudando assim a mitigar a culpa do meu primo. Eu retirei-me porque tinha visto e ouvido o suficiente - fez uma pausa e depois prosseguiu, em tom mais sério do que nunca. - Mr. Barrett, não tenho a menor ideia sobre até que ponto a pornografia sozinha contribuí para a delinquência juvenil. Apenas sei que alguém que me é caro confessou que lhe causou dano. Fora disso, detesto todo o tipo de censura, especialmente como está sendo recomendado nesta noite. Tão-pouco me interesso pelo género de pessoas que a censura atrai ou pela atmosfera que ela cria. Mas sou a favor de restrições limitadas sobre o que os jovens podem ter permissão para ler, sobretudo restrições sobre livros libidinosos escritos ou manufacturados para vender ou excitar/Deploro qualquer censura de obras dignas, obras instrutivas, por mais palavrões que possam conter, por mais explícitas que sejam a respeito de sexo. Esses livros não podem prejudicar os jovens. Talvez os outros possam. E aí tem.

Barrett ficou suficientemente impressionado e encorajado com ela para formular a próxima pergunta.

- Muito bem, Miss Russel. Bastante razoável. Então pode dizer-me... supondo-se que tenha lido o livro... se considera Os Sete Minutos um livro digno ou um livro libidinoso?

Pronta para responder, ela hesitou e depois disse:

- Não sinto a menor vontade de discutir as minhas opiniões literárias com o senhor de momento.

- Mas eu tenho a certeza de que concorda que mesmo que Jerry ache que o livro influenciasse o comportamento dele, talvez sofresse outras influências, mais fortes, de que não se deu conta, que o perturbaram. Não concorda?

- Mr. Barrett, eu não sou psicanalista. Não sei. O que sei é que já lhe disse que não tenho intenção de discutir os meus parentes com o senhor ou com quem quer que seja.

- Bem, talvez haja certas pessoas chegadas a Jerry que achariam que revelar toda a verdade a seu respeito, em seu próprio benefício, no de todos nós, no fim representasse uma vantagem para ele. Suponho que seria tolice perguntar se Frank Griffith falaria comigo?

- Creio que Mr. Griffith consideraria o senhor como algo que saiu debaixo de uma pedra. Se ele pudesse, tenho a certeza de que o esmagaria com o pé.

- Ao que me consta, Mrs. Griffith é mais pacífica.

- Evidente que é. Mas nesse assunto dá essa impressão só porque é inválida. O senhor está a ser tolo, Mr. Barrett. Não somos uma família desunida. Estamos juntos no mesmo barco. Não sei o que o senhor anda à procura.

- Ando à procura de Jerry. Gostaria de falar com ele, porque acho que ele pode ajudar-me, e desse modo ajudar-se a si mesmo.

- Está a perder o seu tempo e o meu. Jerry não falaria com o senhor nem daqui a um milhão de anos, e ainda que quisesse, nenhum de nós o permitiria. Devo confessar, Mr. Barrett, que a sua insistência está a ficar importuna.

Barrett sorriu à guisa de desculpa.

- Sinto muito, realmente. Mas a menina podia ter-me repelido, não é? No entanto não o fez. Suportou o meu interrogatório. Porquê? Por questão de boa educação, Miss Russel?

Ela não achou graça.

- Por boa educação, não, Mr. Barrett. Só queria ver se o senhor era de facto o tipo do filho da puta que toda a gente diz que o senhor é.

- E... eu sou?

- Não tenho a certeza, mas. pelo que vi hoje à noite, desconfio de que seja desumano e ambicioso, com menos consideração pelos sentimentos alheios do que para ganhar um processo para si mesmo. Pois eu não quero ter nada que ver com o senhor nem com o seu processo, Mr. Barrett. Estou-me lixando prò seu caso, excepto no que se refere a Jerry. Portanto, se o senhor não for o que os outros dizem que o senhor é, pode prová-lo não me importunando novamente. Fim do interrogatório, Mr. Barrett. Boa noite.

E com esta, girou nos calcanhares e dirigiu-se rapidamente para o átrio.

Barrett seguiu-a com o olhar, e quando voltou outra vez para o salão de festas sentia apenas uma emoção por ela. Não de raiva. Nem de mágoa. Só de pena. Era uma pena que fosse tão linda - jamais encontrara mulher mais bela, excepto Faye, que era linda, mas não exactamente no mesmo sentido - e que a vida os tivesse colocado em campos opostos.

Regressou com tristeza ao salão de festas e ao seu lugar ao lado de Faye. Começou a desculpar-se, mas ela aproximou o indicador dos lábios e depois apontou para o palco. Ele olhou e percebeu que Elmo Duncan finalizava o seu discurso.

- E portanto, meus amigos - dizia o Promotor Público, recolhendo as folhas do texto -, nós sabemos que temos de lutar, e porque temos de lutar, e sabemos que só alcançaremos êxito se trabalharmos juntos, de mãos dadas. É enquanto nos empenhamos para atingir o nosso objectivo comum, lembremo-nos das palavras que Tocqueville pronunciou há tantos anos sobre a nossa pátria amada. “A América é grande”, disse ele, “porque é boa e quando a América deixar de ser boa, deixará de ser grande”. Dediquemo-nos novamente à bondade da América, para que a sua grandeza nunca, jamais, diminua. Muito obrigado.

Os mil participantes da assistência pareceram levantar-se ao mesmo tempo, como uma erupção gigantesca, batendo palmas em uníssono, aclamando, bradando de entusiasmo.

Barrett inquietou-se ao observar o número, a solidez, a paixão da oposição. Pensou: se um número equivalente de pessoas, multiplicado por cada comunidade americana, estivesse tão unido e determinado a erradicar o cancro, a pobreza, a desigualdade racial ou mesmo a guerra, em vez de impedir discussões francas em torno do sexo, a terra da liberdade seria verdadeiramente livre e boa. Mas lutar por outras causas é menos divertido, no sentido mórbido, e menos terapêutico para a náusea calvinística do que combater o sexo. Gente doida. Que se danem.

Os vivas e aplausos continuavam, e Barrett percebeu que só ele permanecia sentado. A fim de não chamar a atenção e acabar por ser linchado, apressou-se a levantar-se junto de Faye e os outros.

Notando que ele a observava, Faye parou de aplaudir.

- Creio que me deixo empolgar pela oratória - desculpou-se. - Você tem de concordar que, seja lá o que ele for, o nosso Elmo é bem eficiente, ainda que seja um agitador público. Mas quase todos os políticos têm de ser, não é assim? Não faça essa cara, Míke. Você é dez vezes mais esperto do que ele, e reduzi-lo-á a estilhas no tribunal. Eu quis apenas dizer que me surpreendeu o modo como se conduziu perante a assistência.

- A assistência já lhe pertencia antes que ele abrisse a boca - replicou Barrett. -Mesmo que tivesse a língua presa, tê-lo-iam aclamado como o próprio Demóstenes. Venha, vamos dar o fora.

Faye apontou para o palco.

- Espere aí, acho que vai haver mais alguma coisa. Elmo Duncan não descera da plataforma. Parado ao lado do átrio, prestava atenção a um homem moreno que surgira de um canto qualquer e que Barrett reconheceu. Era Victor Rodriguez, o assistente do Promotor Público. Ao lado de ambos havia uma mulher alta, com cara de cavalo, vestida com um traje cor de malva, caro, mas que não lhe ficava bem. Barrett supôs que fosse Mrs. Olivia St. Clair, presidente da LFD. Rodriguez entregara a Duncan uma folha de papel, e parecia explicar alguma coisa escrita nela. Depois a mulher com cara de cavalo fez uma pergunta a Duncan, respondida com vigoroso aceno de cabeça enquanto lhe passava o papel.

O barulho começou a diminuir, mas quando Elmo Duncan se preparava para deixar o palco, seguido por Rodriguez, irromperam novos aplausos. Duncan sorriu, radiante de gratidão, acenando e descendo do palco para ser tragado por uma massa de admiradores. Enquanto isto, a mulher com cara de cavalo encaminhou-se para o microfone. Ergueu os braços, pedindo silêncio, com o pedaço de papel ainda seguro na mão enluvada.

Para acalmar a assistência, a mulher gritou ao microfone:

- Atenção, por favor... peço-lhes um minuto apenas de silêncio... Acabamos de receber uma notícia sensacional... uma notícia que interessa a todos os presentes!

Num instante o salão de festas ficou quieto e uma tonalidade qualquer de triunfo na voz estridente da líder da LFD deu a Barrett uma vaga premonição de desastre.

- A notícia mais sensacional que possam imaginar! - vociferou a mulher ao microfone, brandindo a folha de papel com a mão que ficara erguida. - Antes de comunicá-la, senhoras e senhores, caros colegas da Liga da Força da Decência, quero falar-lhes como sua presidente, para todos vós...

Tratava-se, positivamente, da temível Mrs. St. Clair, tal como Barrett adivinhara. Tinha sido ela a instigadora das ocorrências que levaram à denúncia de Ben Fremont e de Os Sete Minutos. Barrett ficou a imaginar que espécie de calamidade estaria ela a preparar para desabar agora sobre ele.

- ...a fim de agradecer ao nosso ilustre e eminente Promotor Público pelo discurso edificante e inspirador que pronunciou aqui esta noite - continuou Mrs. St. Clair. - Com servidores públicos como Mr. Duncan para executar o nosso trabalho, sabemos que haveremos de obter vitória muito em breve. E agora...

Ela aproximou a folha de papel à altura do microfone.

- ...agora novos indícios vieram à tona, da maneira mais dramática, que reforçam a nossa campanha para aumentar cada vez mais a vigilância no controlo da matéria de leitura e que dão ao nosso Promotor Público a munição final de que necessita para derrotar as forças da pornografia.

Aproximou dos olhos a folha de papel, examinou-a, e depois levantou a cabeça.

- A rigor, trata-se de uma comunicação que merecia ser feita pelo nosso Promotor Público. Contudo, como se refere e afecta directamente a sua acusação de Os Sete Minutos, fui informada de que não seria ético para Mr. Duncan tecer qualquer comentário público sobre o julgamento antes que esteja concluído. Embora Mr. Duncan se tenha referido e pode continuar a referir-se ao próprio julgamento iminente, ele acha que não pode discutir factos que possam ser considerados como parte das provas desse julgamento. Por outro lado, uma vez que a LFD possui interesses idênticos aos da Promotoria Pública a respeito de pornografia de modo geral e de Os Sete Minutos de modo particular, sinto-me na obrigação, como presidente da LFD, de mantê-los informados sobre os mais recentes acontecimentos relacionados com a acusação de Os Sete Minutos.

O público no salão de festas permanecia de pé, e agora aguardava a comunicação de Mrs. St. Clair com discrição entremeada de curiosidade.

Barrett sentiu o coração bater, e também aguardou.

Mrs. St. Clair ergueu os olhos do papel que segurava na mão.

- Senhoras e senhores, caros colegas, como muitos de nós sabemos, o primeiro editor clandestino de Os Sete Minutos foi um francês, Christian Leroux, que conheceu o falecido J J Jadway pessoalmente e era o único homem sobre a face da terra que poderia, talvez, esclarecer várias perguntas que continuaram sem resposta a respeito desse livro e do seu autor. Todos nós nos interrogámos - que espécie de homem poderia escrever um livro como esse? Quais os motivos que o levaram a escrevê-lo? Que aconteceu com ele mais tarde? O que provocou a sua morte prematura? Hoje à noite finalmente temos as respostas, e directamente dos lábios de Christian Leroux, o editor francês de Jadway.

O coração de Barrett pulsou mais forte. Trocou um olhar mudo com Faye, dedicando depois toda a sua concentração ao palco.

- Há menos de uma hora, na França, Christian Leroux, após profunda meditação, saiu do seu esconderijo para oferecer os seus serviços ao povo da Califórnia, da América, do mundo, na acusação de Os Sete Minutos. Christian Leroux confessou o seu pecado original, que consistiu em publicar o livro infame. Foi, declarou, um erro composto de juventude, imaturidade e ganância. Agora, porém, para não ver o seu pecado repetido por outros que corromperiam a humanidade com essa obra maligna, preferiu expiá-lo, trabalhando para nós na tentativa de proibir Os Sete Minutos.

Uma chuva de aplausos tinha começado, mas Olivia St. Clair gesticulou para interrompê-la, a fim de se fazer ouvir.

- As perguntas sem resposta agora estão respondidas, e pela única pessoa sobre a face da terra que pode falar por J J Jadway. Segundo o editor francês, Jadway escreveu o livro porque andava desesperado com a falta de dinheiro. Jadway vivia uma vida dissoluta e imoral na Margem Esquerda de Paris, esbanjando as suas economias em bebidas, tóxicos e a sua amante mais recente. Sim, ele tinha amante, a quem só conseguia satisfazer com presentes. Segundo Leroux, o pornógrafo retribuiu-lhe os favores, utilizando-a como modelo para a heroína lasciva, indecente e descarada de Os Sete Minutos. O verdadeiro nome da infeliz criatura era Cassie McGraw, e ela converteu-se na Cathleen daquele romance imundo. Quando Jadway ficou totalmente na miséria, improvisou essa narrativa de ininterrupta devassidão para a editora clandestina, para deitar a mão a dinheiro rápido e fácil. Mas como possuía formação religiosa, depois que o livro foi publicado, percebeu o mal que estava a causar a pessoas inocentes. Por fim, compreendeu o abismo da sua depravação e a extensão do seu pecado mortal. E hoje à noite Christian Leroux confirmou o que o nosso Promotor Público já sabia por outra fonte fidedigna... que nos seus derradeiros momentos de lucidez J J Jadway se deu conta do pavoroso crime que cometera contra os seus semelhantes, e viu que a sua alma somente seria salva se renunciasse ao repugnante e perigoso livro. E assim, com o remorso pelo que havia feito, J J Jadway suicidou-se!

Irromperam exclamações de espanto e murmúrios por todo o salão de festas.

Mrs. St. Clair levantou ainda mais a voz:

- Se o autor do livro pôde matar-se de vergonha por tê-lo escrito, ele merece que dediquemos as nossas energias para exterminar essa obra monstruosa, a fim de lhe obter a salvação eterna. Para nos auxiliar nessa empresa, para auxiliar o nosso Promotor Público a fazer isso, Christian Leroux acha-se a caminho de Los Angeles para aparecer como testemunha de acusação. A sua coragem e a sua aparição garantem-nos uma vitória histórica no tribunal da justiça, e homenagearemos Mr. Leroux como orador especial do nosso próximo comício de vitória. Obrigada, amigos e colegas!

O salão de festas converteu-se numa balbúrdia de gritos e aclamações.

Mike Barrett escutara a comunicação completamente aturdido. Cada palavra das frases pronunciadas no palco caía sobre ele como o cutelo de um açougueiro. Agora, praticamente arrasado, descobriu o seu instinto de sobrevivência, escorando a sua resistência à comunicação, insinuando-lhe a impossibilidade de que fosse verdade. Mas precisava de saber com certeza. Agarrou Faye pelo braço.

- Venha - disse rudemente.

Abriram caminho entre a multidão aglomerada até saírem no vestíbulo.

- Aonde é que vamos?-quis saber Faye.

- Não posso acreditar no que ela disse - respondeu Barrett, arrastando Faye em direcção ao átrio. - Não é possível. Há seis horas tínhamos conseguido o auxílio de Christian Leroux como nossa testemunha, pronto a defender os motivos de Jadway e o livro, e de repente Duncan pretende tê-lo descoberto, para caluniar Jadway e o livro. Preciso de apurar a verdade.

Tinham chegado ao centro do átrio.

- Olhe, Faye - disse ele -, espere aqui, fume um cigarro, que eu volto já. Tenho de telefonar para Abe Zelkin. Ele é quem pode confirmar ou desmentir.

Barrett apressou-se à procura de uma cabina telefónica, e quando a encontrou, fechou-se por dentro, depositou as moedas necessárias e discou o número de Abe Zelkin.

- Eu estava acordado, à espera de que você chegasse a casa - respondeu Zelkin, com voz tão agitada como a do próprio Barrett. - Precisava de lhe falar. Acabamos de receber notícias daquele tal detective Dubois, de França. Ele há pouco ligou para cá. Sabe de uma coisa? A nossa testemunha estrelar, o nosso Christian Leroux, desapareceu. Ninguém sabe onde diabo se meteu.

Barrett fechou os olhos e apoiou-se à parede da cabina. Então era verdade.

- Abe, eu sei onde o sacana se meteu. Está a caminho daqui, para se encontrar com Elmo Duncan.

- Você está a brincar? Ah, não, não diga uma coisa dessas.

- Estou a dizer-lhe, Abe. Ainda estou aqui no Hilton. Sabe o que acabo de ouvir?

Com dor na alma, contou todos os pormenores da declaração pública de Olivia St. Clair. Ao terminar, acrescentou abatido:

- Não sei como foi que aconteceu uma coisa destas. Nós estávamos com o sujeito escondido, e sob outro nome, e ele concordara com as nossas condições. Só me ocorre uma possibilidade: A nossa oferta fez Leroux perceber o valor que tinha no mercado. No momento em que o nosso agente o deixou sozinho, Leroux provavelmente entrou em contacto com Duncan e ofereceu-se à venda pelo maior lance.

- Não, Mike. Dubois foi bastante esperto e logo se lembrou disso. Verificou com o porteiro do hotel, com a telefonista, com o gerente. Desde o momento em que Dubois o registou naquele hotel de Antibes, Leroux nunca saiu do quarto, não mandou nenhuma carta, recado, telegrama, não fez nem recebeu chamadas telefónicas. Tudo o que o hotel soube dizer foi que poucas horas antes de Dubois passar por lá para o ir buscar, um francês pediu para falar com Leroux no seu quarto. Logo depois disso, Leroux retirou-se do hotel, junto com o visitante, e desapareceu.

Barrett teve outra ideia.

- Então só há uma explicação: Dubois. O nosso detective particular. Ele sabia que havia mercadorias de valor. É capaz de nos ter traído.

- De modo nenhum, Mike - afirmou Zelkin. - Mencionei isso a Phil Sanford e a Leo, pouco antes de você ligar para cá. Os dois disseram que não. Sanford tinha-nos dado o nome do representante de seu pai em França e foi ele quem recomendou Dubois. Garantiu que o sujeito era de toda a confiança. Um homem de integridade de longa data. Incorruptível. Não, duvido que fosse Dubois.

- Foi alguém, alguma coisa - protestou Barrett. - Numa hora ele está lá. Um passo de mágico. E desfaz-se como fumo. Numa hora ele é nosso, na outra passa prò lado deles. Tem de haver uma explicação. Não me importo de lidar com ocorrências que posso ver e tocar... ganhar, perder ou empatar... mas sinto-me impotente quando tenho de lidar com fantasmas.

- Não vale a pena gastar energia em especulações. Não estou interessado no que aconteceu depois do facto. Aconteceu. Perdemos uma vaza.

- Mas essa vaza era fundamental, Abe.

- Não era, não. Vamos tratar de dormir um pouco e amanhã se vê o que se há-de fazer.

Quando Barrett voltou abatido para o átrio, Faye esmagou o cigarro e levantou-se do sofá para se reunir a ele. Olhou-o preocupada.

- A comunicação de Mrs. St. Clair era verdade, Mike?

- Era.

- Que lástima, Mike. É muito mau para você?

- Um desastre.

- Deixa sem esperanças o seu caso?

- Do modo que as coisas ficaram agora... sim... sim... creio que deixa.

Faye enfiou o braço no dele.

- Então, Mike? Você vai-me escutar? Sou a única pessoa que o pode ajudar. Por favor, ouça.

- O quê?

- São só três palavras - ela fez uma pausa. - Dê o fora.

Ele afastou-se e baixou os olhos na direcção dela.

- Dar o fora? Você quer dizer, desistir?

- Quero dizer: dê o fora enquanto é tempo. Sou mais capaz de admirar um homem que tem a sensatez de abandonar um navio que naufraga do que o que insiste cegamente que ele não está a afundar-se e depois vai ao fundo com ele. Você sabia desde o início que tanto o Papá como eu achávamos que você tomara o lado errado, imiscuindo-se com toda aquela publicidade suja e toda a espécie de gente pegajosa e sem princípios. Você não tem nada que fazer nesse género de casos. Eu queria, porém, que você saldasse a sua dívida, ficasse satisfeito, por isso me calei. Agora acho que já fez tudo o que podia fazer. Saldou a sua dívida com Sanford. Há um limite prò que você lhe deve. Não precisa de se suicidar por causa dele. Você mesmo reconhece que é um caso perdido. Portanto, por mim, pelo Papá, mostre que é homem bastante grande para saber quando deve repudiar uma causa irremediável. Prometa que fará isso, antes que comece esse horrível julgamento.

Olhou-a por um instante e depois disse:

- Não, Faye.

- Mas que teimosia mais absurda! Não ouviu o que eu disse? Você já pagou a sua dívida com Sanford...

- Pouco me importo com Sanford. É por causa de Jadway. Eu li o livro dele, entendeu? E sei que Jadway não pode ter sido todas essas coisas que Leroux diz que ele foi. Estou convencido de que Leroux é um impostor e mentiroso. Existe apenas um problema, minha querida. Como é que eu vou conseguir provar isso?

 

                                                                                CONTINUA

 

                      

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