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OS SETE MINUTOS - p.2 / Irving Wallace
OS SETE MINUTOS - p.2 / Irving Wallace

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

OS SETE MINUTOS

Segunda Parte 

 

MIKE BARRETT dirigiu o seu descapotável para a entrada do parque de estacionamento atrás do Hospital Monte Sinai, parou o carro para colocar uma moeda de 25 cents no parquímetro, esperou que o portão listrado se abrisse com um rangido e depois entrou no estacionamento. Era a hora de visitas à tarde, e o local estava quase totalmente lotado. Bem no fim da pista, Barrett viu um carro a recuar, rumou a toda a velocidade para lá e acomodou o descapotável no lugar vazio.

O relógio do painel de instrumentos marcava três e dez. Não tinha pressa. Havia bastante tempo para saber mais pormenores sobre Sheri Moore, a vítima do estupro, que continuava em estado de coma num leito do quinto andar do hospital.

Barrett queria um intervalo para se concentrar. Tirou o cachimbo do bolso, encheu-o de tabaco, acendeu-o e permaneceu sentado ao volante, fumando, pensando, à procura de um pouco de optimismo. Enquanto o seu espírito voltava à noite anterior, a sensação de tristeza permanecia imutável. A perda de Christian Leroux fora um golpe terrível, do qual ainda não se tinha restabelecido. Como ninguém, aliás.

Em geral, a manhã de um novo dia sempre lhe trazia a promessa de alguma esperança alegre e animada. Mas se tivesse sido despertado de madrugada pelo Dr. Pangloss e Mr. MicawberO juntos, importunando-o com comprimidos

O O Dr. Pangloss, professor de Cândido no romance de Voltaire. e Wtr. Micawber, personagem de David Copperfield, de Dickens, são dois protótipos estimulantes, sabia que não teria melhorado de disposição. O seu estado de espírito, como o próprio dia gélido, estava sombrio e anuviado. O jornal da manhã pouco contribuíra para erguer-lhe o ânimo. Havia um artigo de primeira página, comentando o discurso de Duncan e a sensacional revelação de Mrs. St. Clair, além de notícias mais recentes: Leroux chegaria de França amanhã para aguardar a sua aparição como testemunha do Estado.

No escritório não se tinham registado ideias nem indícios novos. Prosseguindo nos esforços para averiguar algo de proveitoso sobre o autor de Os Sete Minutos, Kimura comunicara que continuava no encalço de Norman C. Quandt, o especialista em pornografia que adquirira de Leroux os direitos de publicação do romance, revendendo-os a Phil Sanford. Apesar de ciente de que Òuandt se estabelecera ao sul da Califórnia, Kimura não lograra descobrir mais nada a seu respeito.

O almoço fora melhor. Para Barrett, havia imprimido ao dia, senão esperança, pelo menos um sentido.

Tinha comido no restaurante Bistro, fervilhante e repleto de celebridades, em Beverly Hills, em companhia do Dr. Yale Finegood, psiquiatra jovem e vivaz que já pertencera ao Centro de Puericultura Reiss-Davis; porém agora mantinha consultório particular. Finegood, especialista dos problemas de angústia da adolescência, era de opinião que não havia nenhuma relação entre a leitura de um livro ou a visão de um filme e a prática de um acto de violência. De facto, frisara, muitos dos seus colegas atribuíam aos livros pornográficos a repressão do índice do crime, pois a leitura fornecia vazão, em forma de fantasias dos desejos sexuais que de outro modo talvez precisassem de expressão concreta. O Dr. Finegood citou a análise empreendida por um casal de criminologistas dedicado à pesquisa, Eleanor e Sheldon Glueck, uma análise de mil rapazes delinquentes na cidade e nos arredores de Boston. Os Glueck descobriram que os verdadeiros factores que contribuíam para a delinquência dos jovens analisados eram os desentendimentos familiares, a falta de instrução, conflitos com a cultura dominante, problemas psicológicos intrínsecos, e maus hábitos sociais, tais como o vício de entorpecentes, o consumo de álcool e a promiscuidade sexual. A leitura de pornografia não constituía factor significativo.

- O que é que pode levar, especificamente, um rapaz quieto, tímido, de vinte e um anos, pertencente a uma família de classe superior, à violência sexual? - repetira o Dr. Fine-good, ecoando a pergunta de Barrett. - Isso varia, conforme cada caso individual, mas a violência sexual, de modo geral, é um reflexo da incompetência sexual. O estupro afasta o constante complexo de inferioridade do estuprador. Um rapaz saído da classe média ou superior, que comete estupro, pode estar simplesmente a rebelar-se contra anos e anos de ressentimento recalcado contra a mãe ou o pai. É bem provável que o estuprador tenha tido um pai ou pais dominadores, ou, vice-versa, pode ter tido um pai ou pais indiferentes ou ineptos. Mostre-me um garoto que se tornou submisso a um pai prepotente e eu mostrar-lhe-ei um rapaz com o potencial para se afirmar futuramente através de um acto de violência em que possa degradar a vítima.

Quando o almoço terminou e saíam do Bistro, o Dr. Finegood deu um último conselho a Barrett:

- Posso avaliar a importância da informação sobre Jadway prò seu caso. Ao mesmo tempo, não menospreze a importância dos participantes desse caso de estupro. Sei que fracassaram os seus esforços no sentido de obter maiores pormenores a respeito de Jerry Griffith, da família dele, dos amigos. Apesar disso, eu aconselhá-lo-ia a redobrar de pertinácia para conseguir mais informações. Se lograr êxito, tenho a certeza de que há-de descobrir outros motivos prò comportamento de Jerry... e, aí então, talvez possa convencer o júri de que o livro de Jadway não foi a força motriz do impulso criminoso do rapaz. E eu, no seu lugar, iria ainda mais longe. Trataria logo, sem perda de tempo, de averiguar algo sobre a vítima, essa moça de dezoito anos que Jerry desflorou. Ficaria assombrado com as revelações que surgem na investigação de um caso de estupro. Não estou a vaticinar que isso levaria a alguma coisa. Aconselho-o apenas a não deixar pedra sobre pedra. Bem, felicidades. Mantenha-me sempre informado de tudo, por favor. Não chega a hora de prestar depoimento neste processo, embora, ao que me conste, a acusação conte com um psiquiatra famoso como o Dr". Roger Trimble para me contradizer. Mas creio que não farei má figura.

Depois do almoço, Barrett resolveu seguir o conselho do Dr. Flnegood. Efectuaria um rápido exame à vida e ocupações dessa moça, Sheri Moore, de dezoito anos. Duvidava de que chegasse a algum resultado mas precisava ver o que havia debaixo daquela pedra.

O arquivo de recortes de jornal do escritório forneceu - lhe apenas informações esquemáticas sobre a vítima. Sherí Moore era a mais nova de uma família de cinco filhos. Os pais tinham-se divorciado há muito tempo. O pai, Howard Moore, trabalhava como engenheiro na North American Rockwell Corporation e residia em Santa Mónica. Sheri era caloira na faculdade local. Dividia um apartamento com outra amiga, Darlens Nelson, no Doheny Drive, em West Hollywood. Os dois últimos factos, por si só, intrigaram Barrett. Porque morava ela em West Hollywood se frequentava a faculdade em Santa Mónica? Era uma longa viagem de ida e volta para ser feita diariamente, sobretudo para uma moça que não possuía automóvel. A solução do mistério, assim como maiores minúcias biográficas, talvez se encontrasse na própria faculdade. E Barrett, portanto, dis-pôs-se a ir até lá.

Houve apenas uma única surpresa, procedente da folha de registo no departamento administrativo. Apesar do que a imprensa publicara, Sheri Moore deixara de ser uma aluna que gozava das boas graças da faculdade. Depois de aprovada no primeiro semestre do seu primeiro ano de curso, tornara-se cada vez mais omissa no comparecimento regular às aulas e na prestação de trabalhos, e durante o segundo período lectivo as provas que fizera, consequentemente, haviam sido péssimas. Um mês antes do estupro, abandonara por completo a Faculdade de Santa Mónica.

Barrett fora apresentado a uma dúzia de ex-colegas de Sheri, rapazes e moças reunidos em barulhentos grupos, conversando no bar da faculdade, à porta da biblioteca, ou lagarteando ao sol sobre o relvado espalhado pelo campus. Nenhuma das suas perguntas obtivera resposta objectiva ou pormenorizada. Uma aluna, premiada com distinção, lembrava-se de que Sheri se aborrecia na escola e falara em seguir a carreira de manequim ou actriz, e que depois tinha deixado a faculdade para se mudar para West Hollywood, onde esperava encontrar emprego de meio turno que a ajudasse a pagar futuras aulas de interpretação. Um jogador de futebol resmungava qualquer coisa a respeito de Sheri ser “amiga da farra, da agitação”. Mas se fosse levar em conta o que diziam os outros estudantes, seria capaz de pensar que se referiam a Joana D'Arc. O facto de uma colega ter sido vítima de um crime, estar gravemente ferida e ainda em situação crítica, parecia causar na maioria o efeito de falar dela com veneração, exaltando-lhe as virtudes. Talvez, disse Barrett consigo mesmo ao Ir-se embora do campus, estivesse sendo injustamente cínico. Talvez Sheri Moore fosse, realmente, a personificação de todas as virtudes.

Agora, na etapa final das investigações sobre a vida e ocupações de Sheri Moore, chegava ao Hospital Monte Sinai.

Depois de trancar a porta do descapotável, Barrett atravessou o parque de estacionamento, subiu rapidamente a escada e entrou no corredor da parte do fundo que conduzia ao átrio térreo e aos elevadores. Tomou o que servia o quinto andar e encaminhou-se directamente ao balcão das enfermeiras.

Uma enfermeira preta atendeu-o.

- Queria saber notícias de Sheri Moore - explicou Barrett. - Sou amigo dela.

- Ela está a passar relativamente bem- respondeu a enfermeira. - Continua em estado de coma.

Por um momento, procurou o diagrama, mas logo desistiu.

- Ela teve uma noite tranquila. O senhor quer vê-la? Porque nesse caso devo dizer-lhe que as visitas estão restritas a uma lista de nomes que o médico deixou. Quer que eu verifique se o seu está incluído?

- Não, obrigado. Só queria saber como é que ela ia - hesitou. - Tem muita gente na lista?

. Desta vez foi a enfermeira quem hesitou. -O senhor não é da imprensa, é?

- Da Imprensa? Que lembrança! Sou um amigo que...

- Todo o cuidado é pouco. Os jornalistas não arredam pé do hospital. Bom, creio que não há nada de mal em lhe dizer que só os parentes e a única amiga íntima de Sheri têm permissão para a visitar. Por sinal que o pai e aquela moça que morava com ela, Darlene Nelson, estão agora mesmo no quarto.

- Ah - fez Barrett. - Será possível avisar-me quando Miss Nelson sair? Vou sentar-me na sala de espera.

- Olhe, nem é preciso. Darlene está lá sem nada que fazer. Posso perfeitamente ir chamá-la, Mr... - Ela sublinhou o "Mister”, transformando-o num ponto de interrogação.

- Barrett - completou ele. - Mr. Barrett. Fico-lhe muitíssimo grato.

Passou pelo corredor e entrou na sala de espera das visitas, pequeno quarto com móveis de chita e vime e um aparelho de televisão. Não havia ninguém. Barrett parou diante de um cinzeiro, esvaziou o cachimbo, tornou a enchê-lo, e pôs-se a andar de um lado para outro, fumando e recapitulando a ligação de Darlene Nelson com o caso de estupro. Fora ela, lembrava-se, que regressara ao apartamento em Doheny Drive e encontrara Sheri Moore estendida no soalho do quarto, ensanguentada e quase inconsciente. Só então Darlene ouvira Sheri murmurar que tinha sido violentada, desmaiando logo em seguida. E fora Darlene quem mandara chamar a ambulância e a Polícia.

Do recanto da sala de espera, Barrett ouviu duas vozes femininas, cada vez mais próximas. Girou nos calcanhares a tempo de ver a enfermeira e uma moça de corte de cabelo masculino com as pontas da blusa a saírem das calças de algodão. As duas estavam absortas no diálogo.

- Apre, como te invejo, Darlene - dizia a enfermeira. - O Locomotiva Clandestina é o meu ponto de diversão favorito, sempre que estou de folga. Não sei o que não daria para estar lá nessa estreia.

- Aquilo vai estar uma loucura esta semana e a outra, de modo que qualquer noite há-de ser tão boa como a de hoje. Pena é que a coitada da Sheri ainda não esteja boa. O conjunto de que ela mais gosta vai lá tocar. Ela tem todos os álbuns do grupo.

- Não demora que ela fique boa.

- Tomara!

A enfermeira retirou-se e Darlene Nelson aproximou-se de Barrett com uma expressão intrigada.

- O meu nome é Darlene Nelson - disse. -O senhor queria falar comigo?

- Exacto. Eu...

- Nós conhecemo-nos?

Ela tinha o tique nervoso de passar a mão pelo pescoço como se quisesse afastar o cabelo do ombro, gesto inútil, pois estava cortado curto. Talvez o penteado fosse ideia recente, pensou Barrett.

- O meu nome é Michael Barrett - explicou, sem causar a menor reacção. - O advogado que representa Ben Fre-mont, o proprietário da livraria que...

Identificação instantânea.

- O livro imoral - disse ela. Tomou um ar de desconfiança. - O que é que o senhor quer de mim?

- Apenas respostas a uma ou outra pergunta - respondeu Barrett. -Não quer sentar-se?

Ela não se mexeu. As mãos afastaram o cabelo invisível.

- Que perguntas?

- Bem, por um lado, se Miss Moore ou a menina, qualquer das duas, conhecia Jerry Griffith antes da noite em que ele...?

- Não - respondeu.

- Muito bem - disse Barrett. - E os amigos de Jerry? Conhecia algum?

- Como posso conhecer? Mesmo que por acaso conhecesse, não saberia se era amigo dele.

- Bem, Miss Nelson, estou a pensar num determinado amigo que estuda na UCLA e mora em Westwood. O nome dele é George Perkins. Nunca ouviu Miss Moore...' Sheri... falar nele?

- Não.

- E a menina? Conhece George Perkins?

- Não. Não conheço, não.

- Há outra coisa que eu esperava que me pudesse dizer. Na noite em que encontrou Sheri...

- Mr. Barrett, creio que não devo falar com o senhor. Não posso dizer-lhe coisa nenhuma. Aliás, não há nada para dizer. Já disse tudo à Polícia e saiu tudo deturpado nos jornais. Acho melhor ir-me embora. Com licença.

Aos poucos, Darlene Nelson fora recuando. De repente, saiu a correr da sala.

Barrett encolheu os ombros e esvaziou o cachimbo. Guardando-o no bolso, dirigiu-se ao elevador.

Minutos mais tarde, descia a escada das traseiras do hospital e chegava ao parque de estacionamento. Ao encaminhar-se para o seu carro, escutou um tropel de passos nas suas costas.

Virou-se e deparou-se-lhe um sujeito moreno, de corpo atarracado, mais velho do que ele, de cabeça grande e quase sem pescoço, que se apressava para o alcançar. O sujeito chegou perto, todo ofegante, com a cara lívida e os punhos cerrados.

- É você que é o tal Barrett? - indagou. - O advogado que está a defender aquele livro miserável?

Retrocedendo diante da fúria do indivíduo, momentaneamente estupefacto, Barrett confirmou com a cabeça.

- Sim, eu...

- Então ouça o que lhe vou dizer! - vociferou o sujeito, atirando as mãos para a frente e agarrando com raiva as lapelas do paletó de Barrett. - Ouça bem o que lhe vou dizer, seu filho da puta de uma figa. Fique sabendo de uma coisa...

E então puxou Barrett contra ele. Para se defender, Barrett esmurrou-lhe os braços, tentando desenvencilhar-se. Por um breve instante, ficaram separados, mas logo em seguida o agressor, possesso, atacou de novo. Barrett empurrou-o para longe, mantendo-o a distância, mas o outro armou um violentíssimo soco com a direita, fazendo mira contra o rosto da vítima. Barrett saltou para a retaguarda, procurando desviar-se daquele punho que avançava em arco, raspando-lhe pelo queixo. Sentiu os dentes rangerem, perdeu o equilíbrio e acabou por rolar de costas, e cair no chão.

O imprevisto da agressão, mais do que a força empregada, deixou-o aturdido por alguns instantes. Ficou sentado sobre o asfalto do parque de estacionamento, esfregando o queixo. Parecia um paraplégico, impotente para se pôr de pé. Curvada sobre ele, assomava a cara intumescida do agressor.

- Fique sabendo de uma coisa, seu sacana - bufava o homem, com os punhos ainda cerrados. - Sou o pai de Sheri, entendeu?... O meu nome é Howard Moore... e isto foi só uma amostra, está entendendo? Foi só para começar. Assim talvez aprenda a não meter esse maldito bedelho na vida alheia. A pobre da minha filha está numa situação desesperadora, e tudo por culpa de um canalhinha de merda que ficou todo assanhado por causa daquele maldito livro de bandalheira... e quem se mete também a defender aquela imundície vai ter de se haver comigo. Portanto não se esqueça, seu fulano... não enfie esse nariz ranhento onde não é chamado... afaste-se do meu caminho... senão da próxima vez eu deixo-o todo moído de pancada, em pior estado do que agora está a coitada da minha filha. Estou a preveni-lo!

E virando as costas, Howard Moore afastou-se com passo enérgico.

Já com as ideias mais claras, Mike Barrett procurou levantar-se. Indignado com a agressão, com a total iniquidade e injustiça de que fora vítima, trémulo de alto a baixo, só sentia vontade de sair a correr atrás de Moore e retribuir na mesma moeda. Depois, porém, contemplando aquela figura patética que diminuía o passo à porta do hospital, vendo o homem mais velho pender por um momento a cabeça e apoiá-la à parede, a raiva de Barrett transformou-se numa onda de piedade e compreensão. Aquele pobre coitado era um pai indefeso, e cinco andares acima estava a sua filha, a garotinha que tinha criado desde pequena, agora estuprada e inconsciente. Ora que diabo, era natural que sentisse ganas de esmurrar alguma coisa, alguém.

Barrett puxou o lenço e passou-o de leve pela boca. Uma mancha quase imperceptível de sangue apareceu no linho branco. A parte interna do lábio inferior estava ferida. Bem, paciência.

Caminhando devagar, limpando a poeira da roupa, dirigiu-se ao carro.

Somente uma hora depois, quando já se achava mais seguro no escritório e Donna voltara da farmácia do andar térreo do edifício, trazendo um desinfectante, foi que lhe fez a pergunta que esperava fazer-lhe na primeira oportunidade. Lembrava-se da conversa que tinha ouvido entre Darlene Nelson e a enfermeira negra no corredor do hospital, e eis aqui Donna, uma secretária sempre ávida pela leitura das páginas de diversões e das colunas de mexericos, esforçando-se ao máximo por permanecer jovem e mantendo-se em dia com o que se publicava a respeito das actividades da juventude.

- Donna, meu amorzinho, parece que já ouvi qualquer coisa, mas simplesmente não consigo lembrar-me bem onde... sem falar na Guerra Civil, quero dizer, actualmente, agora, hoje... que lugar é esse chamado Locomotiva Clandestina?

- Eh, chefe, que coisa mais devagar. É o lugar mais falado da geração jovem. Fica lá no Melrose. Só dá conjunto de rock, dança e bebida sem álcool.

- Soube que hoje à noite estreia lá um novo grupo.

- Ora viva, até não é assim tão devagar. O Cântico Gregoriano.

- Gregoriano? Não estou a falar de música nem de coro de igreja medieval. Eu refiro-me a...

- Eh, já ficou devagar de novo, chefe. Cântico Gregoriano. Eles chamavam-se A Melopeia dos Esquis antes de se associarem aos Quentes de Los Angeles. É o grupo de rock mais falado actualmente no país. Vão estrear-se no Locomotiva às sete da noite. Que é que quer fazer?

- Diminuir a brecha entre as gerações. Diga-me uma coisa, Donna. Qual é o contrário de ser devagar? Ser ligeiro?

- Não. Ser prà frente.

- Pois é o que eu vou ser logo, às sete e meia. Mesmo na escuridão do parque de estacionamento, atrás da gigantesca loja de ferragens convertida em santuário da música jovem, Mike Barrett podia ouvir a cacofonia incessante que retumbava de cada janela e parede do Locomotiva Clandestina.

Ao parar debaixo do lampião da Melrose Avenue, verificou a hora no relógio de pulso. Eram sete e vinte. Do outro lado da rua havia outros dois bares de garotada, um chamado O Limbo e o outro O flock Rasgado, mas hoje à noite estavam praticamente desertos. A verdadeira explosão demográfica ocorria a trinta passos de Barrett, onde duas filas disciplinadas de adolescentes, com os trajes mais bizarros, avançavam firmes para o Locomotiva Clandestina.

Barrett aproximou-se e entrou no fim de uma delas, sentindo alívio por ter seguido o conselho de Donna e não ter vindo de paletó e gravata. Para ser franco, aquele pulôver de algodão sem gola e as calças côtelé eram ainda bastante conservadores para o classificar -, ah, ele andara a pesquisar por contra própria - pelo menos como antiquado até certo ponto. Mas o facto é que sabia que não era o traje que o deixava constrangido, mas a idade: pela primeira vez achou que metade de toda a população da América tinha menos de vinte e cinco anos.

Acompanhando a fila sinuosa de jovens em direcção à exígua entrada de madeira rústica, ficou contente por não ter dito a Faye aonde ia. Ela haveria de querer vir juntamente com ele, como se vai ao zoológico, e aí então seria de rachar. Esta era uma das noites em que tinha compromisso de sair com Faye, a mais especial da semana, a da relação física, e não achara coragem para a cancelar ou adiar. Em vez disso, telefonara-lhe para explicar que teriam de sacrificar o jantar habitual, por causa de uma pista promissora que surgira. Prometera esperá-la no apartamento às onze horas.

Claro que não havia pista promissora nenhuma. O que acontecia era que hoje havia noite de alegria e confusão no Locomotiva Clandestina, onde Darlene Nelson certamente estaria presente, sendo provável que um dos happenings fosse George Perkins. Mero palpite, nada mais. Caso George aparecesse, teria amigos que podiam, também, ser amigos de Jerry Griffith. E quanto maior a lista de amigos de Jerry, melhor para Barrett.

- Pode largar a massa, camarada - ouviu alguém dizer-lhe acima da cabeça e percebeu que o dono da voz (que seria extremamente parecido com Lincoln, se Lincoln tivesse sido negro) estava à porta, cobrando o dinheiro da entrada. Entregou-lhe dois dólares e foi entrando.

Viu-se imediatamente cercado por um enxame de pessoas que tagarelavam e cantavam, todas à procura de mesa, e então sentiu-se perdido.

Tentou orientar-se no meio daquela balbúrdia e ajustar-se ao ambiente. À sua frente estendia-se uma espécie de manicómio de mesas, apinhadas de “amantes da música”. Depois avistou a pista de dança, movimentada como um balde cheio de minhocas a retorcerem-se em frente da plataforma dos músicos, sob a luz de um gigantesco calidoscópio que girava no tecto sem parar. Mais além havia outra série de mesas.

A iluminação que caía do alto produzia um arco-íris de cores psicadélicas que varria a sala de ponta a ponta. Os dançarinos, moças e rapazes, brancos, pretos, mulatos, amarelos, vestidos de mini-saia, capas, fardas de hussardo, não estabeleciam relacionamento mútuo mas sim com a música dissonante, fazendo ondulações frenéticas extremamente individuais. Um movimento único, entretanto, obedecia ao rito tribal: cada nativo contorcia o pélvis e o torso, e cada nativa impelia o busto para diante, requebrando as cadeiras, prestando homenagem às vozes ululantes e às guitarras eléctricas do Cântico Gregoriano.

Barrett concentrou a atenção no conjunto instalado sobre a plataforma dos músicos. Era composto por quatro rapazes com trajes de escravos colhedores de algodão, sendo a parte gregoriana, presumivelmente, formada por três brancos de cabeleira felpuda, mais ou menos independentes, que dedilhavam as guitarras e de vez em quando entravam em coro com o solista, jovem negro gordo a quem chamavam Cântico.

Encurralado por todos os cantos, Barrett começou a sentir-se tonto. Os seus tímpanos quase rebentavam. E o coração implorava pela doce segurança de Dave Brubeck, Gerry Mulligan e Davey Pell.

Precisava de um posto de observação mais isolado. Então deparou-se-lhe o longo bar de madeira de carvalho, à esquerda, do outro lado do corredor. Ali estaria relativamente livre da humanidade. Virando-se, empurrando, desculpando-se, aos poucos conseguiu aproximar-se do balcão e, ao cabo de alguns minutos, alcançou-o.

- Uísque com soda - pediu ofegante.

- Desculpe, moço - respondeu o rapaz de grande bigodeira que atendia o bar. - Só temos bebidas sem álcool. Pode pedir qualquer refrigerante.

Barrett tinha esquecido a observação de Donna.

- Está bem, dê-me um então.

Enquanto o rapaz foi buscar o refrigerante, Barrett examinou a cena. O conjunto atacara novo número, menos dissonante, menos onomatopaico, menos atordoante, menos estridente. Parecia ter saído ; directamente da música étnica de Bessie Smith, uma espécie de lamento e cântico religioso negro, meio misturado com música caipira. Era triste e tinha mensagem: ecoava a desilusão, a cepticismo, a protesto de toda uma geração, pedindo que o homem amasse o seu semelhante. E Barrett logo acolheu de bom grado aqueles sons e visões de crianças amorosas perdidas na pista. Havia lido, não se lembrava onde, a explicação de Bob Dylan: a única beleza é a feiura, camarada. Sim. Mas mesmo assim era beleza, uma beleza toda especial.

Estendeu a mão para o copo. Bebeu devagar, ergueu os olhos para os imensos cartazes na parede do bar - Harriet Beecher Stowe, o cadáver de John Brown, Dred Scott - e ficou a ouvir a música.

Depois de breve pausa, largando o copo sobre o balcão, examinou outra vez toda a sala, resolvido a procurar a sua presa. Em poucos instantes percebeu que empreendera uma tarefa impossível. O número de rapazes era simplesmente excessivo, a maioria parecida com o barbudo George Perkins e nenhum dava para identificar como o próprio George.

Decidiu-se a esquadrinhar a boìte pela última vez, da entrada até aos últimos confins da sala. Os seus olhos desviaram-se para a porta, onde, para sua surpresa, estava parado de pé um recém-chegado que identificou em seguida.

O recém-chegado era um rapaz magro, desfigurado, bem penteado, pele macilenta e traços estiolados, de paletó, camisa desportiva e calças passadas a ferro. Barrett nunca o encontrara pessoalmente, mas já o conhecia bem pelos numerosos retratos publicados nos jornais. Cheio de espanto, tolhido pela confusão, Barrett olhou-o fixamente. Ali, ao alcance da sua voz, estava Jerry Griffith, passando a boìte em revista, tal como ele mesmo fizera momentos antes. Barrett pôs-se a imaginar. Que diabo viera fazer aquele rapaz, apesar da liberdade sob fiança, a um lugar público como este? Não podia supor que Maggie Russell, e muito menos Frank Griffith, lhe permitissem sair de casa para vir até ali. Ou será que não sabiam? Teria Jerry escapado às escondidas?

Eis a oportunidade perfeita para o abordar, falar-lhe com simpatia, interrogá-lo. E no entanto Barrett não se movia. Como pessoa, conservava-se em seu canto por uma espécie de decoro, e como advogado, sentia-se retido por um instinto que farejava a boa sorte possível. Continuou a observar Jerry Griffith com indefinível expectativa.

Barrett tentou decifrar o olhar do rapaz. A princípio era furtivo e receoso, como o de um foragido com medo de ser reconhecido. Depois, como se percebesse que aquela aglomeração de gente lhe dava segurança, confundindo-se com a massa, perdeu o medo e transformou-se mais no de caçador do que no de acossado. Estava, evidentemente, à procura de alguém, de alguma determinada pessoa.

Colocado na ponta dos pés, examinava os ocupantes de cada mesa. De repente, teve um movimento brusco de reconhecimento e pôs-se a acenar com a mão, mas logo, pelo jeito, mudou de ideia. Toda a sua expressão se alterou por completo, ganhando um objectivo. Tinha encontrado quem procurava.

Começou a vir na direcção de Barrett, desviando abruptamente de rumo entre duas mesas e depois, com presteza, abriu caminho no meio de outros frequentadores sentados, rumo ao seu objectivo. Prosseguindo em frente, diminuiu a marcha e parou numa mesa de três rapazes e duas moças. Estendeu a mão para o rapaz de ombros largos que estava de costas para ele, e bateu-lhe no ombro. O rapaz virou a cabeça, e o perfil barbudo revelou que era George Perkins.

Franzindo a vista na luz sempre cambiante, Barrett tentou verificar a reacção de George. Ao todo houve três, cada uma a seguir-se à outra com rapidez assombrosa. Primeira, de surpresa. Segunda, de inquietação. Terceira, de contrariedade.

Da distância do bar, Barrett continuou a acompanhar aquele drama mudo.

Jerry procurava falar com George Perkins. E George não queria nada com ele. Jerry segurou George pelo ombro diversas vezes, cochichando-lhe, mas George sempre se desenvencilhava. Finalmente, a insistência de Jerry acabou por vencer: George pôs-se de pé, furioso, e avolumando-se ao lado do amigo, sacudiu a cabeça, recusando-se a dar-lhe mais atenção. Mesmo assim, Jerry continuou a lutar por se fazer ouvir acima do alarido, até que, afinal, exasperado, George concordou com um aceno e olhou em torno. No momento exacto em que a música parou e um membro do conjunto anunciou o intervalo, George apontou ao longe para um par que saía da pista de dança, dirigindo-se a uma mesa da ponta do corredor.

A atenção de Barrett foi automaticamente desviada para o par. Por um instante, o rapaz impedia a visão da sua acompanhante. Estava bem barbeado, tinha suíças longas e era corpulento. Depois, a moça ficou visível. Era nada menos que Darlene Nelson, ainda com as mesmas calças de algodão e a blusa de pontas soltas da sua visita ao hospital.

Depois, uma terceira figura invadiu subitamente o ângulo de visão. Era Jerry Griffith outra vez, quase derrubando os frequentadores ao esforçar-se por abrir caminho entre os casais que voltavam à pista de dança, lutando para alcançar Darlene Nelson. Quando ela já se aproximava da cadeira à sua espera, Jerry Griffith interceptou-a.

De novo, para Barrett, um espectáculo de pantomima.

Jerry, diante da cadeira, parecia estar a apresentar-se à jovem, procurando dirigir-lhe a palavra. O descontentamento de Darlene foi ainda mais flagrante que o de George Perkins instantes atrás. Tentou ignorar Jerry, empurrá-lo para o lado e chegar à cadeira, mas ele persistia em impedi-la de avançar enquanto não escutasse o que tinha para lhe dizer. Num derradeiro esforço, ela passou na sua frente. Ele dispôs-se a segui-la, sempre falando. Então ela estacou e virou-se. Parecia que estava a dizer qualquer coisa áspera, cortante, em voz baixa, com o rosto bem perto do dele. Fosse lá o que fosse, causou o efeito de uma bofetada. Jerry primeiro recuou, com ar ferido. Depois tentou articular uma frase quando ela se sentou, mas pelo modo não encontrava palavras. Em vez disso, fez apenas uma espécie de esgar mudo, gesticulando por falta de melhor meio para se exprimir.

De repente deu a impressão de estar paralisado, com os traços lívidos. Ficou a olhar para ela, que recomeçara a conversar alegremente com os companheiros. Por um segundo, Barrett chegou a pensar que Jerry seria capaz de agredi-la ou estrangulá-la, mas o rapaz não fez nada disso. Baixou os braços devagar. A sua fisionomia murchou. O corpo parecia ter encolhido. Atónito, retrocedeu, virou as costas, meteu-se pela passagem entre as mesas, até que, aparentemente, atinou com o lugar onde estava e quem ele era.

Depois, como que galvanizado, de súbito lançando-se contra uma série de recém-chegados, arremessou-se para a saída e desapareceu.

Observando a partida frenética de Jerry, Barrett permaneceu pregado ao seu lugar no bar. Uma coisa era óbvia. O amigo de Jerry, George, conhecia Darlene, pelo menos de vista. Jerry, em compensação, evidentemente que jamais vira a amiga de Sheri. Mas o que lhe teria dito e a resposta que recebera indignaram-no tanto, a ponto de ficar arrasado e sair a correr da boìte? Nesse momento, Barrett decidiu que precisava de descobrir. Uma confrontação com Jerry não se fazia apenas necessária: era essencial.

Afastou-se do bar, mas antes de dar três passos viu-se detido por uma ruidosa aglomeração de adolescentes que acabava de entrar. Apanhado no laço, não foi fácil escapar. Ainda por cima, uma loura de short e camisa olímpica, que lembrava uma boneca de celulóide, tinha-o descoberto.

Puxou-o pelo braço.

- Meninas - gritou, estridente -, olhem só o que eu achei... o autêntico homem milenar, o elo que faltava! Não é uma graça? -e pregou-lhe um beijo no queixo, implorando:-'Vem dançar comigo, elo, anda, vem dançar.

- Meu bem, eu ia agora à retrete - protestou Barrett.

- Tem dó.

Ela sorriu.

- Você prefere ir lá a ficar comigo? - soltou-o. - Bom, na sua idade, parece que sim.

Barrett afastou-se. Quando chegou à calçada, ofegante, sabia que tinha perdido cinco minutos. Olhou para todos os lados na Melrose, mas não viu ninguém que se parecesse com Jerry Griffith. A fila de jovens continuava firme, esperando para entrar. Barrett aproximou-se deles. Explicou aos primeiros da fila que andava à procura de alguém que saíra da boìte há poucos minutos. Tentou descrever Jerry Griffith. Percebeu que não era nada fácil. O único traço marcante que ele possuía talvez fosse o cabelo bem penteado. Mas mesmo isso não ajudou a identificá-lo.

- Bem, ele saiu a correr da boìte - acrescentou Barrett.

- Isso não lhe diz nada?

- Ele estava a correr? - chilreou uma garota de trança comprida. - É, 'steve um garotão que saiu desabalado, ainda me lembro que disse: “Parece que levou um susto com o Cântico”. - A gente da fila pôs-se a rir e a garota disse a Barrett:- Acho que ele foi por ali. - E apontou para o oeste, como fazem nas fitas de far-west, e os outros riram ainda mais. Barrett agradeceu-lhe e começou a subir a Mel-rose, rumo ao La Cienega Boulevard.

Caminhou e caminhou, espiando no interior das lojas abertas, cruzando a rua a cada instante, mas não encontrou rastro de Jerry Griffith. Depois de quinze minutos, estava de volta ao ponto de partida.

Desolado, confessou-se vencido. Dirigiu-se para a escuridão do sujo parque de estacionamento. Já perto do descapotável, deu conta de que, na sua frustração e pressa, se esquecera da pista mais óbvia do paradeiro de Jerry: o próprio parque de estacionamento. Se Jerry não tivesse deixado as cercanias à pressa, o seu carro ainda devia estar guardado ali quando Barrett saíra da boìte. Ele poderia ter esperado à entrada do parque de estacionamento até que Jerry viesse buscar o carro e se fosse embora para casa. A esta altura provavelmente já há bastante tempo que isso acontecera.

Mas sabe-se lá, a esperança é a última coisa que morre, talvez o carro do rapaz continuasse ali estacionado. Barrett tentou lembrar-se da marca do veículo. Tinha-a visto anotada na pasta de arquivo do escritório referente ao filho de Griffith. Era um automóvel inglês. Positivamente. De repente lembrou-se. Um Rover sedan branco do último modelo.

Parou e olhou em torno. Havia um Thunderbird cinzento, um velho e imundo Jaguar branco e um Rover sedan branco do último modelo. As suas esperanças cresceram. Decerto existiam dúzias de Rovers sedans brancos novinhos a circular esta noite em Los Angeles. De qualquer maneira, aquele talvez fosse o de Jerry.

Barrett aproximou-se do carro. Ao chegar pela retaguarda, mesmo neste recanto mal iluminado do parque de estacionamento, pôde ver que havia alguém no banco da direcção. Deu a volta com o máximo cuidado, para a eventualidade de que fossem duas pessoas e estivessem a copular.

Espiando pelo vidro fechado da porta da frente, verificou que havia apenas uma. Era um rapaz, caído sobre o volante, completamente imóvel, como se estivesse adormecido. O cabelo, o perfil foram suficientes: era Jerry Griffith.

Primeiro Barrett hesitou; depois, uma ideia terrível passou-lhe pela cabeça, e não vacilou mais. Bateu no vidro. A figura agarrada ao volante não se mexeu.

Experimentou a porta da frente. O trinco cedeu, ela abriu-se, e a forma inerte de Jerry Gríffith desencostou-se do volante e começou a escorregar de lado. Barrett amparou-o e, com esforço, empurrou-o de novo para o assento. Inconsciente, de olhos fechados, o rapaz estava com o rosto pálido como a máscara da morte.

- Jerry - sussurrou Barrett-. Jerry, está-me a ouvir?

Não obteve resposta.

A forma inerte permaneceu sem vida.

Barrett curvou-se e entrou no carro, procurando verificar se o rapaz estava a respirar e se o pulso continuava a bater. Ao fazer isso, percebeu que a porta aberta iluminara o interior do carro, e pela primeira vez pôde ver o que havia no banco da direcção ao lado de Jerry: um frasco de comprimidos vazio. No chão do carro, a garrafa de mineral, também vazia, que ajudara a ingeri-los.

Jerry Griffith tentara suicidar-se.

Teria conseguido?

Ainda na dúvida. Barrett encostou o ouvido ao peito de Jerry para escutar se o coração estava a bater. Não distinguiu nada além dos sons de Mr. Tambourine Man, de Bob Dylan, provenientes das traseiras do Locomotiva Clandestina. Barrett concentrou-se de novo no pulso. A princípio, os seus dedos não registaram nada, mas depois sentiu uma leve vibração, e não soube dizer se vinha da pulsação do rapaz ou das extremidades nervosas dos seus próprios dedos.

O cérebro de Barrett recebeu e escolheu instantaneamente as alternativas para o seu próximo acto. Podia chamar o Corpo de Bombeiros ou tentar reanimar o rapaz pessoalmente, erguendo-o de pé e provocando-lhe o vómito, ou então sair com ele a toda a velocidade, em busca de um médico particular.

Cada possibilidade envolvia um risco. O Corpo de Bombeiros oferecia o socorro mais eficiente - e a garantia de um segundo escândalo a desabar sobre o rapaz, uma segunda morte em vida, presumindo-se que ainda estivesse vivo. A tentativa de reanimá-lo pessoalmente era o tipo de primeiro socorro mais rápido, mas também o mais amadorístico e inadequado. O médico particular, embora mais lenta, seria a solução mais segura - e Barrett optou logo por esta, lembrando-se de um clínico que morava perto e resolveria o caso. O Dr. Guigley, o seu próprio médico particular desde que se mudara para Los Angeles, residia em North Arden Drive, em Beverly Hill Is, a curta distância dali. Telefonara-lhe há apenas uma semana, combinando um jantar, pois queria fazer-lhe algumas perguntas acerca da patologia do estupro. Guigley marcara a data, embora andasse muito ocupado, trabalhando até altas horas numa tese profissional que precisava de apresentar brevemente. Era bem provável que o encontrasse em casa. E, acontecesse o que acontecesse, mostrar-se-ia discreto.

Barrett revistou à pressa os bolsos do paletó do rapaz inerte, até achar finalmente a chave do carro. Afastou rápido o corpo de Jerry do volante para o lado oposto do assento. Assim que ele tombou pesadamente de encontro à porta, Barrett instalou-se na direcção e ligou o motor.

Foi só ao sair do sujo parque de estacionamento e tomar a Melrose que Barrett começou a pensar se não estaria a levar um cadáver para o Dr. Guigley - ou uma testemunha estrelar ressuscitada para o promotor público Duncan.

Tinham-se passado quarenta minutos desde que Barrett e o Dr. Guigley haviam transportado o corpo de Jerry Griffith para o interior da casa do médico em North Arden Drive. Barrett explicou em que circunstâncias encontrara Jerry, e o médico não fez nenhum comentário.

Após deixar o rapaz no divã do gabinete, Barrett mostrou o frasco de comprimidos vazio.

O Dr. Guigley deu uma olhadela.

- Nembutal - murmurou.

Pegou na maleta preta ao lado da escrivaninha e puxou uma cadeira para perto do rapaz.

- Ele está vivo, doutor? - perguntou Barrett. O Dr. Guigley não levantou a cabeça.

- Veremos. Pode esperar no living, Mike.

Isto fora há quarenta minutos, e Barrett, sentado tenso no sofá, a folhear sempre a mesma revista que tentava ler, sem êxito, deduziu que. a demora era bom sinal. Se Jerry estivesse morto ao chegar, já teria sido informado há muito tempo. A demora significava que o doutor estava a trabalhar para salvar o paciente.

Barrett procurou concentrar-se de novo na leitura. Ouviu então a tosse do Dr. Guigley. Levantou-se quando o médico, ainda de roupão azul, entrou cansado na sala, tirando os óculos e esfregando os olhos.

- Ele está bem, Mike - anunciou.

- Graças a Deus... e ao senhor.

- Os soporíferos que tomou davam para matar um batalhão. Você deve tê-lo encontrado no momento exacto em que ele perdeu os sentidos. Foi uma sorte tê-lo trazido em seguida. Mais cinco minutos e estaria morto. Apliquei um antídoto forte. Ele reagiu e agora já deitou tudo para fora.

- Voltou a si?

- Completamente. Mas está fraco, muito fraco. Em todo o caso, a hospitalização não será necessária. Especialmente em vista da sua situação actual. Acho que pode ser levado para casa daqui a uma hora, mais ou menos. Uma noite bem dormida, um pouco de repouso amanhã, e ficará completamente curado. Esta rapaziada tem um poder de recuperação extraordinário.

Enfiou a mão no bolso do paletó e tirou um papel de receita.

- Aqui tem um número para você chamar. Ele diz que a única pessoa que ele quer que saiba o que aconteceu é uma prima chamada... está escrito aqui... Maggie Russell

- entregou o papel a Barrett, acrescentando:-Este é o número do telefone dela, um número particular que ela tem no quarto de dormir. Jerry disse que é para insistir até ela atender. Disse que ela virá buscá-lo.

- Deixe por minha conta.

- Muito bem. Acho melhor eu voltar para o meu paciente - hesitou. - Frank Griffith deve-lhe um favor enorme, Mike. Pode contar com a gratidão dele.

- Ele nunca ficará a saber - retrucou Barrett. - De qualquer maneira, o meu único interesse é o rapaz.

- Como queira - o médico tossiu na palma da mão.

- Há uma extensão na sala de jantar.

O Dr. Guigley retirou-se. Barrett foi à sala de jantar; acendeu a luz do tecto, tirou o telefone de cima da tampa de mármore do aparador e levou-o para a mesa de refeições. Colocou o papel da receita ao lado do aparelho, examinou-o e depois discou o número particular de Maggie Russell.

O telefone tocou várias vezes, sem que ninguém atendesse. Resolveu esperar alguns segundos para depois tentar de novo. Mais cedo ou mais tarde ela teria de voltar ao quarto. Enquanto escutava, o sinal contínuo de repente parou. Uma voz feminina e ofegante atendeu.

- Alô?

- Miss Russell?

- Ela mesma.

- É Mike Barrett. Desculpe incomodá-la, mas...

- Já não lhe disse que não quero mais falar com o senhor?

- Espere. Não fui eu quem quis telefonar. Foi a pedido de Jerry.

- De Jerry?

- Do seu primo. Estou aqui com ele agora. Eu...

- Não compreendo. Não pode ser. Ele está proibido de sair de casa.

- Sejam quais forem as ordens que lhe deram, o facto é que ele saiu logo no começo da noite. Para não perder tempo, deixe-me explicar-lhe o que aconteceu. Mas antes seria bom que me dissesse se alguém pode escutar o que se fala nesta linha.

- Não... não, é só minha - a voz estava ansiosa. - O que aconteceu? Houve alguma coisa?

- Jerry já está bem, mas a coisa esteve por um fio durante certo tempo. Vou resumir. Pouco depois das sete horas, eu tive de passar por um bar de adolescentes na Melrose Avenue...

Descreveu em poucas palavras a chegada de Jerry ao Locomotiva Clandestina, o que testemunhara das confrontações de Jerry com George Perkins e Darlene Nelson, e a sua descoberta do corpo desfalecido de Jerry dentro do Rover. Depois deu-lhe as boas novas do Dr. Ouigley.

- Jerry queria que alguém entrasse em contacto com a menina. Não queria que ninguém mais soubesse.

- Ninguém pode ficar a saber - replicou logo, nervosa. - Mas ele está bem, mesmo. O médico disse que estava, não disse?

- Totalmente. Quando chegar aqui, Jerry já poderá acompanhá-la de volta para casa.

- Irei em seguida.

- Tome nota do endereço. Disse-lhe qual era, e depois desligou.

Devolvendo o telefone ao aparador, Barrett ficou a pensar se lhe convinha esperar pela chegada de Maggie Russell. Não havia motivo senão o de tornar a vê-la e insinuar-se em suas boas graças. A ideia desagradou-lhe. Tão-pouco desejava embaraçá-la ainda mais com a sua presença. Apesar do que fizera pelos Griffith nesta noite, continuava sendo o inimigo.

Então lembrou-se do processo iminente. Havia tanto que fazer e o tempo era tão curto. Faye Osborn só chegaria ao apartamento às onze. Restava-lhe um período de várias horas úteis, durante as quais poderia pesquisar os precedentes legais em julgamentos de censura anteriores.

Avisaria o Dr. Guigley de que Maggie Russell viria dentro de poucos minutos e que ele estaria à disposição do médico em seu escritório para qualquer eventualidade. Aí então, depois de chamar um táxi para o levar de volta ao parque de estacionamento onde deixara o seu carro, pôr-se-ia a caminho.

Na quietude nocturna do escritório, Mike Barrett tinha-se dedicado, não ao estudo da jurisprudência em processos anteriores de censura, mas a uma pasta que continha artigos e ensaios sobre o assunto, publicados em revistas americanas e inglesas durante os últimos doze anos. Eram, na maioria, escritos por autores, críticos, editores e autoridades no assunto, coleccionados por Leo Kimura, para lhe dar e a Zelkin um panorama actualizado dos argumentos sobre censura no campo literário.

Tinha lido nove ou dez desses artigos e estava a passar os olhos por um, da autoria de Maurice Girodias para a publicação londrina Encounter, quando um determinado parágrafo lhe chamou a atenção. Girodias dizia que quase todos os seres humanos nasciam de um acto de luxúria pouco romântico, que a espécie ainda continuava a propagar-se através da luxúria, e que quase todos os seres humanos viviam tão preocupados com o sexo como com a comida e o sono; no entanto, embora o sexo fosse fundamental para a vida de cada indivíduo, a sua prática tornara-se complicada e a sua imagem distorcida pela hipocrisia convencional. Para ser franco, prosseguia Girodias, todo o homem e toda a mulher se envolvem diariamente em actos de estupro. Foi esse parágrafo que Barrett releu com a maior atenção.

“O estupro”, escrevia Girodias, “é considerado a forma de agressão mais incivilizada ao recato de uma pessoa. E no entanto, o pacato homem de família, o marido cordato e fiel cuja única conquista feminina memorável se efectua através do casamento, geralmente estupra dezenas de raparigas por dia. A posse, naturalmente, é apenas visual; um rápido olhar de admiração, eis no que se resume esse micro-estupro, sempre furtivo, e muitas vezes até insciente. Mas a acção está aí mesmo e de facto fornece uma dose mínima de satisfação sexual... Quanto à esposa fiel do mesmo indivíduo, ela recorre à moda, jóias e perfumes, para seduzir o próprio marido? Absolutamente: ela usa todos esses artefactos porque quer oferecer-se a toda a espécie de machos, seduzir e ser violentada por todos - visualmente, lógico. Os vestígios dos impulsos do homem pré-histórico ainda estão em funcionamento.”

Como isto é verdade, pensou Barrett.

Os seus próprios sentimentos o atestavam. Possuía uma mulher em todos os sentidos, menos legalmente: Faye. No entanto, ontem o bárbaro íntimo, culto por baixo do verniz civilizado, forçara-o a cometer estupro pelo menos duas vezes - primeiro contra uma moça de biquini que saía da piscina do Beverly Hills Hotel, e mais tarde contra uma bela mulher chamada Maggie Russell, que tinha seguido até ao bar do Beverly Hilton Hotel. A única diferença entre ele e Jerry Griffith, entre Jerry e a maioria dos homens, era que Jerry tinha violado uma mulher à força com o pénis, ao passo que Barrett e os outros violavam com os olhos. O acto de Jerry era criminoso, ao passo que o seu era inofensivo, não resta dúvida. Mas ambos os tipos de estupro inspiravam-se no mesmo ímpeto selvagem e natural. A diferença residia apenas no facto de que Jerry se vira impotente para controlar o próprio impulso, enquanto a vasta maioria dos homens era bastante racional para canalizar esse impulso de uma ou de outra maneira socialmente aceitável. O que importava é que nenhum homem podia julgar-se superior aos seus semelhantes na sua atitude perante o sexo, ou acreditar que estivesse totalmente isento de culpa.

Quantos estupros visuais não cometeria Elmo Duncan, o protector da moral pública, cada dia, todas as semanas?

Sacudindo a cabeça, Barrett retomou a leitura. Terminado o artigo, já se preparava para iniciar o seguinte, quando o telefone tocou a seu lado.

Atendeu.

Era Maggie Russell.

- Esperava encontrá-lo quando cheguei a casa do Dr. Quigley - disse ela. - Ele contou-me que o senhor tinha ido prò seu escritório.

- Ficou tudo resolvido?

- Jerry já está bem. Entrei em casa com ele sem ninguém notar. Deixei-o a dormir. Eu... eu gostaria de saber se poderia falar-lhe por um instante pessoalmente.

- Pois não - concordou Barrett com evidente entusiasmo. - Só que não há necessidade de vir tão longe até este lugar abafado. Para falar a verdade, eu ia voltar daqui a pouco prò meu apartamento, e pensei em parar em West-wood para comer uma sanduíche e tomar uma xícara de café. Acha que pode encontrar-se lá comigo?

- No lugar que o senhor quiser. Não tomarei muito tempo.

- Deixe-me ver. Eu conheço... bem perto do Westwood Boulevard há um restaurante, onde servem café com sanduíches, chamado Ell's. Fica a...

- Sei qual é.

- Então, digamos, dentro de quinze minutos. Dezasseis minutos mais tarde, precisamente, Mike

Barrett encostava o carro no posto de gasolina ao lado do Ell's. Deu instruções para que enchessem o tanque e pusessem um quarto de óleo, se fosse preciso, e apressou-se a entrar no restaurante.

Ela já tinha chegado. Estava sentada a uma mesa ao fundo, a fumar pensativa, e não o viu entrar.

Passando pelas banquetas do balcão, Barrett aproximou-se, sem despregar os olhos dela. Os cabelos escuros, luzidios, os olhos cinza-esverdeados bem separados, sedutores, o lábio grosso inferior continuavam mais atraentes do que nunca. Tudo o que conseguia enxergar do trajo por cima da mesa era a diáfana blusa de seda branca que Maggie vestia, colada, provocante, aos seios pontiagudos, deixando entrever os contornos do soutien.

Outro estupro, pensou. E não pôde evitar um sorriso.

Mas depois, chegando ao lado da mesa, viu como ela estava séria e, lembrando-se do que sucedera no início da noite, e o quanto aquilo devia tê-la afectado, também ficou sério. Vindo aqui, não especulara muito sobre o motivo que ela teria para querer falar-lhe, embora adivinhasse. E segundos após cumprimentá-la, ocupando a cadeira vazia no lado oposto da mesa e pedindo sanduíches de queijo quente e café para ambos, Maggie confirmou o que ele adivinhara.

- Precisava falar com o senhor, desculpar-me por ter sido tão rude ao telefone - disse ela -, e agradecer-lhe, coisa que na ocasião me esqueci de fazer, pelo que fez por Jerry e... por mim. Não sei como poderemos algum dia retribuir-lhe.

- Miss Russell, eu apenas fiz o que qualquer outra pessoa no meu lugar teria feito.

- Qualquer outra pessoa não, e ainda mais um advogado - insistiu. - Tenho a certeza de que existe uma porção de colegas seus, desonestos, que desviariam os olhos noutra direcção, deixando uma testemunha da oposição morrer numa situação semelhante, só porque reforçaria a posição deles no tribunal. Aposto que há uma porção desse género.

- Miss Russell, a menina está a falar de criaturas, sub-humanas. Eu estava a falar de gente.

Sim - disse ela, esperando que a criada servisse o café, depois continuou: - De qualquer modo, peço-lhe perdão pelo meu comportamento ao telefone. Meti-me num táxi para ir a casa do Dr. Guigley e no caminho dei conta da frieza com que o tratara. Esperava encontrá-lo lá para lhe pedir desculpas e revelar a minha gratidão pessoalmente. O Dr. Guigley disde-me que o senhor tinha ido prò escritório. Por isso, depois de levar Jerry, sem ninguém ver, prà cama, tomei coragem, e olhe que não foi fácil, para lhe telefonar.

- Foi bom que telefonasse. Já lhe contei o que vi no Locomotiva Clandestina. Ainda não sei o que fez Jerry sair a correr daquela maneira. Ele não disse nada?

- Não. Estava muito doente e cansado para dizer coisa alguma. Duvido que tocasse no assunto comigo. Só sei que não lhe vou perguntar nada.

- Não quis insinuar isso. Mas é que se trata de um assunto muito sério. Quando um rapaz tenta matar-se, acho que convém descobrir o motivo. Suponho que ele tão-pouco disse qualquer coisa sobre isso?

- Não disse nada. Nem sequer explicou como conseguiu os comprimidos.

- Pode ser que as qomplicações e problemas dele tivessem atingido um ponto de ebulição e terminassem por explodir. Eu só queria saber o que teria provocado essa explosão. A maneira com que George Perkins o tratou? Alguma coisa dita por Darlene Nelson? Ou algo que aconteceu durante o dia, de manhã, ou de tarde?

- Não sei - replicou Maggie. Os olhos de ambos cruzaram-se por um momento e depois ela pousou os seus na mesa. - Ou talvez saiba. Houve uma coisa que aconteceu hoje. Creio que devia contar-lhe. O senhor interessou-se o suficiente por Jerry para.., para salvá-lo, portanto acho que merece saber. Mas antes, eu... eu tenho uma pergunta para lhe fazer.

- Diga.

- Gostaria de saber porque é que o senhor foi àquela boìte, com tanto lugar para ir. Andava a seguir Jerry... a sombra dele? Suponho que seja uma das coisas que os advogados têm de fazer para obter provas.

- Não acredite em tudo o que vê na televisão, Miss Russell.

- Não, mas...

- Para ser franco, eu não andava a seguir Jerry. Nunca me passou pela cabeça que ele fosse atrever-se a sair de casa enquanto estivesse em liberdade sob fiança. Eu andava a seguir outra pessoa. Ou, antes, procurava encontrar outra pessoa. Soube que Jerry tinha um amigo chamado George Perkíns. Cheguei até a falar com ele. Eu esperava encontrá-lo com alguns amigos, que contava que fossem também amigos de Jerry. Soube que o Locomotiva Clandestina era o lugar favorito da maioria da garotada. Hoje à noite era lá dia de grande estreia. Achei que George Perkins talvez se interessasse. Como de facto aconteceu. Nunca imaginei que também pudesse atrair Jerry Griffith. Quando ele apareceu, eu... eu nem me aproximei de Jerry... resolvi não importuná-lo até àquela pequena cena incrível com Darlene, quando ele me deu a impressão de ter ficado arrasado, antes de sair a correr. Depois decidi que seria melhor ir atrás dele, para ver o que estava a acontecer. Bem, não há dúvida de que o encontrei.

- Graças a Deus - murmurou ela.

- Satisfeita com a explicação. Miss Russell?

- Desculpe. Não tencionava exigir-lhe explicações. Há-de pensar que desconfio de cada movimento que faz. Ontem, à noite, eu desconfiava. Mas pode crer, Mr. Barrett, hoje, já não desconfio.

- Óptimo.

A criada trouxe as sanduíches. Depois que ela se retirou, Barrett começou a comer. Erguendo os olhos, percebeu que Maggie Russell não tinha tocado em nada à sua frente.

Olhava para ele, preocupada.

- Prometi contar-lhe algo que aconteceu hoje e que podia ter... bem, podia ter abalado Jerry sem motivo.

- Não precisa de contar-me coisa alguma. Miss Russell.

- Não me considero desleal por lhe falar nisso. De todas as maneiras, terminará por saber mesmo, e talvez forneça uma explicação para o comportamento de Jerry hoje à noite. Mr. Yerkes, Luther Yerkes... não sei como ele se imiscuiu nos nossos problemas, a não ser que seja pelo facto de ser um dos maiores clientes de meu tio, mas desconfio de que ele possui certo interesse político em apoiar o Promotor Público para um cargo mais elevado,, e acha que Jerry possa ser uma testemunha importante contra Os Sete Minutos... pois bem, ele esteve lá em casa diversas vezes, e hoje, logo depois do meio-dia, foi até lá, levando consigo o psicanalista que o advogado de meu tio, Mr. Polk, havia sugerido. O Dr. Roger Trímble. -Luther Yerkes a visitar os Griffith - Barrett estalou a língua. - Bom, eu não me devia admirar. É lógico. Até agora sabia só de boatos, sem confirmação, de que Yerkes apoiava Duncan pró Seriado. O que me está a dizer parece confirmá-lo. Também explica a quantidade de publicidade que Duncan está a receber antes do julgamento. Desculpe a interrupção. Continue, por favor.

- Jerry devia iniciar tratamento com o Dr. Trimble, contra sua vontade. A primeira sessão foi hoje, lá em cima, no quarto de Jerry, só com o Dr. Trimble e ele. Mais ou menos uma hora depois, o Dr. Trimble desceu e fez uma espécie de diagnóstico do estado de Jerry. Sem entrar em pormenores, não me importo de repetir o seguinte. Ele disse que Jerry andava extremamente perturbado. Disse que Jerry se mostrava completamente ambivalente a respeito do estupro. Por um lado, detestava comentar o incidente. Por outro, quando comentava, revelava certo orgulho pela façanha. Ele disse que Jerry sofre de um impulso de autodestruição, possivelmente real, mas sendo mais plausível que fosse fantasia. Julgava que Jerry precisava de submeter-se ao menor número de imposições possível. Aí então Mr. Yerkes quis saber como Jerry reagiria se fosse chamado a depor pela acusação contra o livro. O Dr. Trimble tergiversou. Achou que era cedo de mais para opinar. Era verdade que Jerry se considerava vítima do livro, e se conservasse essa atitude, podia ser uma testemunha de peso, articulada. Ao mesmo tempo, Jerry estava assustado e apreensivo com a ideia de falar em público, e se se retraísse ainda mais, tornar-se-ia inútil para a acusação. Depois o Dr. Trimble prometeu a Mr. Yerkes e ao Tio Frank que tentaria conversar uma hora diariamente com Jerry, até ao início e durante o julgamento. Nenhum deles parecia compreender, como eu compreendo, o estado de nervosismo de Jerry por ter de ser examinado por um psicanalista. Ele deseja apenas que o deixem em paz... apesar da louca incursão em público que fez hoje à noite... e ofende-se com qualquer intro-metímento médico na sua vida íntima. Sou bastante objectiva para reconhecer que ele realmente necessita de tratamento. Só que o momento me não parece apropriado.

- Tenho a certeza de que o Dr. Trimble já percebeu isso - afirmou Barrett. - Creio que o auxílio dele será sobretudo uma espécie de apoio, para dar forças a Jerry de enfrentar o julgamento.

Maggie Russell mordiscou a sanduíche, tornando a largá-la no prato e afastando-a para o lado.

- É, suponho que sim. Se fosse só o Dr. Trimble, não me preocuparia. O que me preocupa é essa pressão toda que Mr. Yerkes e Tio Frank estão a exercer sobre Jerry. O senhor devia ter visto o que aconteceu depois que o Dr. Trimble se foi embora. Mal ele virou as costas, Mr. Yerkes anunciou que tínhamos sorte em que a imprensa e o pessoal da televisão estivessem tão interessados em Jerry. Mr. Yerkes acha que eles precisam de ser cortejados, porque dará ao público uma oportunidade de ver, ouvir e ler em primeira mão a respeito dos perigos que um livro pornográfico pode ter sobre um adolescente, o que criaria simpatia em torno de Jerry. Mr. Yerkes disse que havia tomado a liberdade de convidar Merle Reid para entrevistar Jerry. E de facto, Merle Reid já estava à espera do lado de fora.

- Reid? - perguntou Barrett. Estivera a tomar o café. Baixou a xícara. - Refere-se àquele comentarista da televisão?

- O que tem programa todas as noites, de costa à costa.

- É nojento. Uma coisa pior que novela. Outra noite assisti à entrevista que ele fez com um condenado à cadeira eléctrica. Dava a impressão de que estava num bate-papo de baile de formatura.

- Ainda bem que concordamos. Porque aquele cretino insensível também me deixa doente. Mr. Yerkes foi buscá-lo lá fora, junto com dois técnicos, um carregado de uma câmara manual e o outro dos reflectores. Tio Frank pediu-me que trouxesse Jerry à sala. Recusei-me. E Tia Ethel apoiou-me. Será preciso dizer mais? Jerry ficou feito um pobre cachorrinho encolhido de medo. E quando Merle Reid, com aquela câmara de televisão a zumbir, lhe perguntou qual fora exactamente o trecho de Os Sete Minutos que o levara a sair correndo para violentar a moça... meu Deus, foi uma coisa horrível. Jerry teve simplesmente uma crise, começou a soluçar, e eu. sem ligar ao que pudessem dizer mais tarde, arranquei-o no mesmo instante daquela sala. Ninguém tentou impedir-me. Mas Luther Yerkes pôs-se a festejar o acontecimento como se tivesse sido um triunfo. Repetia sem parar a Reid: - “Está a ver? Viu o que um livro imoral pode causar a um rapaz?” E o burro do Reid só dizia: - “A cena em que ele não aguentou mais foi sensacional, absolutamente formidável.” E continuaram deste modo, como se estivessem a referir-se a um autómato. Seja como for, Mr. Barrett, basta para fazer uma ideia da situação emocional de Jerry antes de se escapulir de casa.

Parecia aliviada por se ter livrado de um peso, e terminou o café com mais calma.

Barrett olhou-a pensativo durante alguns segundos. Finalmente falou.

- Sabe, Miss Russell? Eu tenho de facto a impressão de que toda a gente naquela casa tem medo de Frank Griffith. Acertei?

Ela franziu as sobrancelhas e contemplou a xícara vazia.

- Eu... eu realmente não saberia dizer. Mesmo que soubesse, não diria. Talvez eu já lhe tenha dito mais do que devia. Mas se me tivesse calado, não seria justo.

- Muito bem, Só me admiro que Mr. Griffith, conhecendo as condições precárias do filho, lhe faça tantas exigências.

- Ele não faz por mal, tenho a certeza. Acho que procura realmente ajudar Jerry... mas à maneira dele.

Barrett concordou com a cabeça.

- É possível. Prometo não lhe fazer mais perguntas sobre os Griffith. No entanto, preciso de mais uma resposta, esta já em terreno pessoal, se não se importa.

- Depende.

- A menina é bonita, jovem, inteligente. O tipo de pessoa que conseguiria tudo o que quisesse tentar, E mesmo assim, confinou-se à casa dos Griffith, a um trabalho que não lhe exige muito. Parece meio limitado para uma jovem com os seus predicados. Já me perguntei porquê. Agora reuni coragem para lhe perguntar. Porquê, Miss Russell?

- Não há nenhum mistério. É bem simples. Estou a fazer o que gosto de fazer,

- Não posso crer que a explicação seja assim tão simples.

Mostrou-lhe um sorriso hesitante.

- Agora é o senhor que está a ser desconfiado - voltou a ficar séria. - Sim, suponho que o motivo seja mais complicado. Deixe-me ver. Para começar, sempre senti necessidade de possuir uma família, ter alguém perto de mim. Os meus pais morreram quando eu era muito criança. Havia uma porção de parentes, e fui passando de um para outro, mas sempre com a sensação de ser uma estranha no ambiente. Quando completei a maioridade, fugi e tratei de ter vida própria. Primeiro fui prà Universidade de Boston. Foi lá que me formei.

- Em quê?

- Psicologia. Fiz também um curso de literatura inglesa. Mas nada disso interessa. Todas as jovens só pensam numa espécie de formatura... o casamento.

- Já foi casada?

- Não. Andava muito ocupada em busca de mim mesma para me preocupar com a procura de outra pessoa.

- Isso ainda vale para hoje em dia?

- Mais ou menos. O senhor está a ser curioso de mais, Mr, Barrett. De qualquer modo, voltando à odisseia que me trouxe a Los Angeles. Minha mãe tinha sido. sempre mais apegada à sua irmã mais velha, Ethel... Ethel Griffith... e Tia Ethel gostava muito da mamã e, consequentemente, sentia certa responsabilidade por mim. Vivia sempre a mandar dinheiro, o que me ajudava a pagar o colégio. Sem ela, provavelmente, nunca me teria formado.

O pensamento de Barrett voltou à sua relação com Phil Sanford e ao teorema que daí tirara. Toda a gente deve algo a alguém. Toda a gente se endivida. Toda a gente, cedo ou tarde, tem de ressarcir a dívida. Não existe homem livre em parte alguma. A linha da vida de toda a gente não era infinita mas um círculo, um círculo fechado, com uma jaula.

Olhou para Maggie Russell.

- Por isso achou que tinha de reembolsá-la?

- Não só isso. Foi também por necessidade de um convívio familiar. Eu queria conhecer a Tia Ethel e descobrir como seria transformar-me em membro da família. Assim, quando me ofereceu um emprego de secretária social e dama de companhia, aceitei logo. Além do mais, fiquei empolgada com a ideia de conhecer Los Angeles. Para falar a verdade, nunca pensei em ficar mais do que um ano em companhia de meus tios. Vim com essa condição. Mas tornei-me parte da família e, quando vi até que ponto a Tia Ethel necessitava de mim, e Jerry também dependia de mim, bem, simplesmente fui ficando. O que me traz à segunda, e principal, razão de morar com os Griffith. Conforme já lhe disse ontem, é Jerry. Gosto imensamente dele, É muito meu amigo. Admira a minha parca independência. E na fase transitória de crescimento em que está, acho que significo muito para ele. E agora, naturalmente, confia em mim mais do que em qualquer outra pessoa. Não sei se me fiz entender.

- Sim, entendo perfeitamente porque vive lá. E deixe-me reiterar-lhe uma coisa: Yerkes, Duncan, Frank Griffith, todos me colocaram no papel de inimigo de Jerry, por defender o livro que eles supõem que o arruinou. Mas, torno a repetir-lhe, esse papel não me serve. Sinto pena de Jerry. Não pode imaginar a pena enorme que ele me deu há horas atrás. Era como se fosse meu próprio filho ou irmão mais novo. Seria incapaz de fazer qualquer coisa neste mundo para prejudicá-lo. Pode crer quando digo que não estaria a defender Os Sete Minutos, se julgasse que este houvesse sido responsável pela desintegração de Jerry. Jamais pensei numa coisa dessas. Acho que se trata de um livro excelente e muito bonito.

O seu olhar cruzou-se com o dele, e depois declarou calmamente:

- Eu também acho.

- Quer dizer que o leu?

- Li.

- E gostou?

- Adorei. Comovi-me com cada palavra. Não faça essa cara de espanto. Não há nenhuma incongruência. As pessoas possuem estruturas neuróticas diferentes. Podemos ser postos diante de um determinado objecto, que alguns acharão bonito e outros feio. Achei o romance bonito. Jerry achou-o feio, e por ser ele do modo que é, comoveu-o de uma maneira terrível. Mas isso não influencia a minha opinião literária sobre o livro. Apenas prova que as pessoas são diferentes e reagem à mesma coisa de modo diverso. Eu quero crer que seja verdade o que o senhor estava a dizer, que Os Sete Minutos não é responsável pelo crime de Jerry. Porque concordo com o senhor a respeito do livro e da censura em geral. Ao mesmo tempo, o que o senhor diz não ficou comprovado. E a única evidência que tenho é a palavra de Jerry de que o livro o abalou. Se isso for um facto, então a minha opinião sobre o livro não tem a mínima importância. Se ele prejudicou Jerry e, por intermédio de Jerry, Sheri Moore, se pode prejudicar outros, qualquer pessoa, seja lá quem for, então deve ser condenado e suprimido. Sei que isso está confuso, Mr. Barrett, mas como posso explicar os meus sentimentos de outra forma? Deixe ver se consigo colocá-los em outros termos. Sou a favor do livro, porém contra tudo ou quem quer que seja que possa causar mal a Jerry. Se o livro lhe causou algum dano, então tenho de modificar ficar a minha crença estética nele. Então quero que seja retirado imediatamente da circulação.

Curvando-se para a frente, Barrett disse seriamente: - Miss Russel, se um livro é capaz de levar um indivíduo à violência, então eu também quero que o retirem da circulação. Esse foi o único critério que o Juiz Curtis Bok estabeleceu no caso Roth. “Um livro somente pode ser constitucionalmente condenado como obsceno quando existe causa razoável e demonstrável para acreditar-se que um crime... tenha sido cometido... como resultado palpável da publicação e distribuição da matéria escrita em questão.” A União de Liberdades Civis Americanas fixou o mesmo critério: “Toda a restrição ou punição governamental de qualquer forma de expressão sob o pretexto de obscenidade requer prova que elimine qualquer dúvida em contrário de que essa expressão seja capaz de provocar directamente num adulto normal uma conduta que possa ser considerada validamente como criminosa por lei.” Nós dois concordamos com isso. A questão é: pode um livro pornográfico levar uma pessoa a cometer um crime sexual? Quase todos os psiquiatras afirmam que não. Eles dizem que os delinquentes sexuais já padecem de outras enfermidades antes mesmo de pegar num livro pornográfico. O Dr. Wardell Pomeroy,, sucessor de Kinsey no Instituto de Pesquisa Sexual, fez um estudo de delinquentes sexuais, e concluiu: “Não há nenhuma evidência de que a pornografia instigue actividades anti-sociais."

“Desculpe-me estar a falar que nem um advogado, mas acontece que é o que eu sou. E devo frisar que Mrs. St. Clair, da LFD, leu Os Sete Minutos. Não ficou corrompida por isso. Elmo Duncan leu o livro. E não se depravou. A menina também leu, Miss Russell, e não vejo nenhum acto anti-social que tenha cometido. Portanto porque será que somente Jerry foi influenciado? Não, Miss Russel!, nada me há-de convencer, nem mesmo o próprio Jerry, de que esse livro o incitasse a cometer um acto criminoso. E compreenda o seguinte... não ando atrás de Jerry ou de sua credibilidade como testemunha. Ando atrás da verdade a respeito de Jerry. atrás das verdadeiras causas do seu comportamento. Quero saber quais foram os outros factores da vida dele que contribuíram para fazer esse rapaz quieto, decente, correr feito louco pelas ruas à procura da primeira jovem que pudesse violar. Quero a verdade a respeito das motivações mais profundas que impelem a juventude à violência. Nós sabemos que existem inúmeras causas. Uma delas é a família, as relações familiares, ou a falta dessas relações. São esses os factos de que eu ando à procura. Se puder achá-los, não só provarei que o livro está inocente desse crime, como ainda prestarei um serviço a Jerry e a todo o garoto como ele, expondo os autênticos culpados responsáveis pelas explosões de violência que sentiram.

Ela conservou-se calada um instante. Depois perguntou:

- Ainda não encontrou nada?

- Nos antecedentes de Jerry? Pistas, talvez. Nenhuma prova. Nada que pudesse ter serventia num tribunal de justiça.

- Mas se encontrasse algo... além do livro, digo... que explicasse a conduta de Jerry, isso não prejudicaria o próprio caso dele?

- Miss Russell, isso só poderia ajudar o caso dele. Quando chegar a hora em que ele for receber a sentença, talvez fornecesse circunstâncias atenuantes mais humanas e compreensíveis do que a influência perniciosa da página impressa. Creio que aí então o juiz ver-se-ia obrigado a impor sentença mais leve.

- Acredita mesmo que sim?

- Com toda a sinceridade.

- Bem... - disse ela, e parou, analisando-lhe o rosto.

- Talvez eu esteja a começar acreditando no que o senhor diz. Ou talvez seja uma tonta, deixando-me lograr. Porém...

- hesitou. - Embora me pareça que não deva dar-lhe informações pessoais directamente, é possível que haja outras pessoas dispostas a falar com mais liberdade. Quer conhecer os antecedentes de Jerry?

- Quero.

- Sabe, antes de eu vir para cá, minha Tia Ethel tinha outra mulher que estava com ela havia um ano ou dois. Servia-lhe apenas de dama de companhia e como uma espécie de enfermeira eventual, que não se envolvia em nenhum trabalho de secretariado como eu. Depois que se foi embora, ou foi despedida, ou sei lá o que aconteceu, é que minha tia me propôs o emprego. Ela talvez pudesse esclarecer-lhe alguma coisa.

- Como se chama?

- Mrs. Isabel Vogler. Acho que morava em Van Nuys. É o máximo que posso oferecer-lhe para demonstrar gratidão pelo que fez hoje à noite.

- Obrigado.

Ela apanhou a bolsa.

- O senhor esteve a fazer-me perguntas, Mr. Barrett. Eu também tenho algumas, sabe?, que gostaria de lhe fazer.

- Porque não faz? Gosto muito de falar de mim mesmo.

- Não. Pensando bem, prefiro não fazer. E aliás agora já é muito tarde. Tenho de dormir um pouco, se pretendo tomar conta de Jerry.

- Nem ao menos uma?

- Ia perguntar-lhe a respeito de Faye Osborn. Conheço-a ligeiramente. Agora conheço-o um pouco também. Fiquei meramente curiosa.

- Sobre o que ela vê em mim, ou vice-versa?

- Essa pergunta foi sua, Mr. Barrett, não minha. Sobre o vice-versa, sinto-me curiosa mas não é por maldade. Não, eu estava apenas curiosa por saber como se conheceram e tudo o mais. Mas isso pode esperar - ergueu-se. - Agora preciso de ir a correr.

Barrett pôs-se de pé.

- A menina disse que a sua pergunta ou perguntas podiam esperar. Quer dizer que está disposta a encontrar-se de novo comigo?

- Ah, eu não pretendi...

- Pois então eu pretendo. Eu gostaria de vê-la outra vez. Não para me intrometer, prometo-lhe. Estritamente social.

- Não me tente, Mr. Barrett. Mas receio que seja impossível. Se fôssemos vistos juntos em público e a família viesse a saber que ando a encontrar-me com o senhor, interpretariam mal. Não, deixemos as coisas do jeito que estão. Mas se... se eu puder auxiliá-lo de alguma maneira, seja qual for, quero dizer, de maneira que não prejudique a minha relação com a família, bem, nesse caso o senhor tem o número do meu telefone particular.

- Não esquecerei.

Aprontou-se para sair da mesa e, quando ele se levantou para acompanhá-la, ela estendeu-lhe a mão.

- Não, acho mais prudente que me vá embora sozinha. Boa noite, e obrigada pelo convite.

- Boa noite, Miss Russell.

Observou-a até que desapareceu e, depois, ao apanhar a conta, viu ao lado o guardanapo onde rabiscara o nome da antiga empregada de Griffith, Mrs. Isabel Vogler, de Van Nuys.

Uma possível fresta para espreitar o passado dos Griffith.

A dádiva de gratidão de Maggie Russell.

Era uma autêntica pista e, apesar da hora tardia, decidiu segui-la imediatamente. Deixando a gorjeta, foi até à caixa, pagou a conta e depois voltou ao posto de gasolina. Entregou o seu cartão de crédito ao encarregado e perguntou se não havia uma cabina telefónica. O homem mostrou onde era.Ao ver-se no interior da cabina, Barrett ligou para o número de informações e teve o alívio de saber que existia uma Mrs. Isabel Vogler na lista de Van Nuys. Separou logo o troco, depositou as moedas necessárias e discou o número que lhe fora dado.

O receptor foi retirado ruidosamente do descanso em Van Nuys. Ouviu-se aguda, a voz sonolenta de um garotinho:

- Alô?

- É aí que mora Mrs. Isabel Vogler?

- É. Mas a mamã não 'stá em casa. Foi à vizinha. Ela disse-me para receber os recados. Disse para ver quem era e tudo o mais. O senhor 'stá a telefonar porque tem um emprego prà mamã?

O motivo por que estava a telefonar a Mrs. Vogler seria complicado de mais para explicar a uma criança. Resolveu simplificar o recado.

- Sim, é sobre um emprego. Você tem lápis e papel? Diga-lhe que quem telefonou foi um senhor chamado Mike Barrett - soletrou devagar o nome. - Compreendeu? Barrett.

- Sim, senhor.

- Diga a sua mãe que eu gostaria de entrevistá-la amanhã às dez horas a respeito de um emprego. Vou dar-lhe o meu endereço, e se ela não puder vir na hora marcada eu deixo o meu número de telefone - ditou cuidadosamente o endereço, o número do apartamento e o do telefone.'-Diga a sua mãe que eu espero que ela possa vir. E diga-lhe que pagarei a passagem de ónibus.

- Eu digo, Mr. Barrid.

- Barrett. Com dois tês. -Soletrou o nome de novo. - Compreendeu agora?

Saindo da cabina, Barrett parou para assinar o canhoto da conta e recolher o cartão de crédito. Dirigindo-se ao descapotável, surpreendeu-se a pensar em Maggie Russell. Delictou-se com a visão que a memória lhe trazia: os lábios húmidos entreabertos quando ela escutava, o movimento dos seios por baixo da blusa quando se animava, o meneio das coxas ágeis quando caminhava. Sim, estupro visual. Sentiu-se fraco.

De pé, ao lado do carro, pôs-se a imaginar as perguntas que ela realmente pretendera fazer-lhe a propósito de Faye.

Faye.

Deus do céu, quase a esquecera. Consultou o relógio de pulso. Passavam dezoito minutos das onze. Faye estaria à espera meia hora antes que chegasse ao apartamento. Não estava acostumada a esperar e criaria problemas. Precisava inventar um pretexto plausível para explicar o atraso. Sem mencionar Maggie Russell, lógico. Uma testemunha, uma testemunha masculina, de quem precisara seguir o rasto e entrevistas. Talvez servisse.

Mas talvez não houvesse necessidade de nenhuma desculpa imediata. Porque, na sua irritação, era bem provável que Faye tivesse saído a bater com a porta do apartamento e ido para casa. Depois percebeu que essa hipótese não tinha cabimento. Esta era a noite da semana que ela chamava de sua “noite de gueixa”. Jamais permitiria que não se consumasse. Ela adorava aquilo. E ele geralmente também a antecipava com ansiedade, só que hoje estava exausto. Já tivera uma mulher. Não se achava com disposição para outra. Entretanto teriam de ser duas.

Entrou no carro. Já vou indo, Faye. Partiu rápido, para aderir à noite de gueixa.

Ela engoliu a desculpa e não criou o menor problema. Durante a primeira meia hora em que ficaram juntos, preparou duas bebidas para ele e duas para ela e depois recostou-se no seu braço no sofá. tagarelando sem pressa, provocando-o com beijos e fazendo tudo para o deixar contente. E não demorou muito que se mostrasse impaciente em ir para a cama.

Agora, pouco depois da meia-noite, ele estava de pé, descalço, ao lado da cama, tirando a camisa e as calças. Estava só de cuecas quando a ouviu sair da casa de banho.

Faye Osborn foi ao gira-discos portátil e encontrou a sua música de alcova favorita: A Dança Ritual do Fogo. de Manuel de Falia. Colocou o disco no prato, ligou o aparelho, deixando em volume baixo. Observando-a a ouvir a música, ondulante, depois deslizando para o lado oposto da cama, Barrett novamente deu conta de como se tornava muito mais suave e atraente quando despia os trajes de rua. Como sempre, vestia apenas um négligé transparente, desta vez cor-de-rosa, atado frouxamente ao pescoço. Os cabelos louros estavam soltos, arredondando-lhe as angulosas feições do rosto, e o ténue négligé revelava os mamilos escuros dos seios em forma de lua e o umbigo cravado no ventre recto e o osso pélvico triangular que apontava para baixo, para a estreita parte vaginal.

O seu desejo aumentou, e começou a tirar as cuecas antes de se sentar na beira da cama.

- Mike, você deixa sempre isso do lado da cabeceira como se fosse a Bíblia? - perguntou ela, em tom despreocupado.

Ele olhou por cima do ombro.

- O quê?

Ela levantou o exemplar de Os Sete Minutos.

- Isto. Estava bem aqui, debaixo do abajur.

- Deixo sempre à mão. Consulto a toda a hora. Faz parte da preparação do julgamento. E, para ser franco, nunca me canso de lê-lo - atirou as cuecas para uma cadeira e meteu-se na cama. - Meu bem, eu também acho que você devia ler o volume que lhe dei.

Ela largou o livro em cima da mesa e depois reclinou-se sobre a cama, ajeitando o négligé enquanto se acomodava no travesseiro. Virou a cabeça para ele e disse com doçura:

- Eu li, Mike. Terminei de ler ontem à noite.

- Então porque não disse logo? - rolou para o lado dela e apoiou-se ao cotovelo. - Pois agora que você já leu, não concorda com a minha opinião?

Ela estendeu a mão e tocou-lhe no peito nu.

- Mike, deitados assim aqui, é o tipo da hora em que a gente deve ser completamente sincero um com o outro, não é?

- Sinceros a respeito de quê? Refere-se ao livro?

- Sim, porque...

- Meu amor, isso não pode ficar para depois? Depois a gente conversa. Agora...

Começou a abraçá-la com o braço livre, mas ela levantou a mão para o impedir.

- Não, por favor, Mike. Agora, só por um instantinho, quero conversar. Porque o livro está ligado com... com tudo o mais que se relaciona connosco. Você não se importa?

O seu desejo sumira-se. A raiva começou a tomar o lugar da paixão.

- Importar-me? Ora, porquê? - tentou eliminar a irritação do tom da sua voz. - Você quer conversar primeiro, portanto vamos conversar. O plenário cede a palavra a Faye Osborn, a deslumbrante, irresistível...

- Mike, eu estou a falar sério. Ele sacudiu a cabeça solenemente.

- Sou todo ouvidos.

- Você não concorda que devemos ser completamente sinceros?

- Completamente sinceros.

- Muito bem. Então, Míke, vou dizer-lhe o que penso do seu precioso livro. Não, não acho que você tenha razão Acho que você está enganado - pegou-lhe pelo ombro. - Mike, sejamos honestos, vamos falar claro. Eu li o livro. Detestei-o. É uma verdadeira droga, um lixo, vulgar, indescritivelmente nojento e totalmente desonesto. E eu sei que no fundo, bem no fundo, você concorda comigo. Aqui não há ninguém a escutar. Esqueça o seu compromisso com o caso. é ou não é um facto, Mike?

Ele sentou-se na cama, inflamado.

- Não, porra, não é um facto, não. Foi a beleza do livro que me fez aceitar o caso e não o contrário, como você parece pensar. O que é que está a dizer, Faye? Não posso acreditar no que estou a ouvir. Não posso mesmo. Como é que você disse que o livro era?

- Eu !i, e depois tive vontade de me lavar toda com água e sabão. Disse que ele é vulgar, nojento, desonesto, um lixo. Se soubesse como era, nunca teria permitido que você se expusesse a defender em público uma indecência dessas. Você concordou em que podíamos ser sinceros, Mike. Eu estou a sê-lo.

- Okay, você está a sê-lo. Mas eu estou a procurar entendê-la. O que é que você leu n'Os Sete Minutos que seja diferente do que nós fazemos todas as semanas e que estávamos prestes a fazer esta noite? Você considera vulgar e nojento o que fazemos?

Ela endireitou imediatamente o corpo.

- Mike, como é que ousa estabelecer uma comparação dessas! O que fazemos é decente. A nossa linguagem é decente. O nosso amor é sincero. Mas. mesmo assim, não creio que o que fazemos na intimidade precise de ser alardeado em público. O sexo deve ser uma questão privada.

- Talvez ele tenha sido mantido privado de mais por um tempo excessivamente longo, e que seja por isso que tanta gente se aflige a esse respeito - retrucou Barrett.

E quanto. ao nosso amor ser sincero, muito bem... mas porque é que o amor no livro há-de ser menos sincero?

- Porque é falso - insistiu Faye. - A heroína. Cathleen... todos aqueles pensamentos que ela tem durante a cópula foram imaginados apenas para excitar. Não têm nada que ver com a realidade. Quando na vida real uma mulher está a fazer amor, não é assim que ela pensa e sente. Isso é só a maneira que o autor, um homem, acha que uma mulher sente ou deve sentir. Até o Dr. Kinsey apoiaria o que estou a dizer. Você está sempre a lançar-me especialistas em rosto. Deixe que eu lance o Dr. Kinsey no seu. Ele diz que as mulheres desses livros pornográficos exaltam sempre o tamanho genital e a capacidade copulativa do macho, e que esses livros exageram sempre a reacção e a insaciedade sexual feminina. No entanto, essa espécie de heroína retrata apenas o tipo de fêmea que a maioria dos homens gostaria que todas as mulheres fossem. Na vida real, porém... e agora não estou a citar ninguém a não ser eu, Mike... as mulheres não pensam nem sentem assim. Nunca. Só os Jadways. É ridículo e degradante. Mike, vá por mim, eu sei. Sou mulher.

O seu pensamento voltara-se para Maggie, uma mulher que ele também conhecia.

- Você é uma espécie de mulher, Faye - disse -, e sabe como se sente quando está a fazer amor. Mas há outras que talvez sintam de modo diferente, muito diferente.

- Que nem essa puta do livro?

- Que nem essa mulher decente do livro, cujas lembranças, desejos, pensamentos, sentimentos provavelmente se aproximam de uma reprodução do que quase todas as mulheres pensam e sentem no íntimo, mas têm medo de confessar.

- Nenhuma mulher respeitável sobre a face da terra jamais permitiria que essa espécie de lixo lhe enchesse a cabeça. E nenhuma mulher sobre a face da terra, a não ser talvez uma prostituta de rua, imaginaria ou usaria semelhante linguagem.

- Que linguagem? A que linguagem você está a referir-se?

- Estou a referir-me a palavras. Todas aquelas palavras. Como a que ela usa para descrever quando se sente sensual, prostituta ou seja lá o que for, a palavra que ela usa para aquilo e para... pràs partes íntimas dela.

- Que palavra? - perguntou ele. - Qual é a palavra tão repulsiva assim?

- Por favor, Mike, você sabe que eu não posso usar uma palavra dessas. Eu detesto... é indecente.

- Você quer dizer quando Cathleen faia que se sente como uma cona de alto a baixo?

- Mike.

- É isso, não é? A palavra “cona”?

- Mike, pare com isso.

- Escute uma coisa, meu bem. Essa palavra existe desde a Idade Média. É uma palavra que corresponde ao cunnu latino, que significa fenda ou vulva. Jadway não foi o primeiro a usá-la. Geoffrey Chaucer usou o seu equivalente em inglês medieval. Laurence Sterne usou-a. John Fietcher usou-a. D. H. Lawrence usou-a. Claro que é uma expressão de baixo calão, mas é um termo que uma infinidade de homens utiliza coloquialmente e uma porção de mulheres tem na cabeça. Que há de mal em que um escritor tenha a coragem de descrever o que se passa realmente na cabeça de uma mulher? - tentou acalmar-se, mantendo a discussão num plano de sensatez. -Faye. essa palavra está n'Os Contos de Canterbury. A esposa de Bath diz: - “Então com licença, velho gaga. Logo mais cona não lhe faltará”. Só que Chaucer usou a grafia medieval (2). Você expulsaria Chaucer das escolas e bibliotecas por tê-la usado?

A indignação de Faye não diminuiu.

- Mike, eu não sou criança. Não me venha com aulas, nem tente desarmar-me com pedantismos. Estou simplesmente a dizer que sou uma mulher, parecida com a maioria, e sei o que me escandaliza. Pouco me interessa quem usou a palavra... Chaucer, Lawrence, qualquer deles... a palavra continua nojenta, É desonesta e todo o escritor que a emprega não conhece nada sobre as mulheres, é hostil com elas, quer degradá-las e prega o desrespeito feminino em cada leitor masculino, moço ou velho. Não adianta você torcer o nariz, Mike. Sei quando estou certa e você está errado. Abomino essa espécie de linguagem e não quero que tome parte nessa imundície. Agora vejo como o Papá tinha razão em querer afastá-lo desse tipo de caso. Ele sabia que corromperia e deformaria quem se envolvesse nele. E já está a fazê-lo você dizer e fazer

 

(*) A grafia moderna dessa palavra em inglês é cunt. No texto de Chaucer está queynte.

 

coisas que sei que são contrárias à sua verdadeira natureza. A referência ao pai tornou a desanimá-lo. Os últimos resquícios de raiva bateram em retirada, e só sobrou uma pequena parcela de ressentimento.

- Pois eu continuo no caso e não pretendo sair dele

- afirmou, com voz tensa. - Quanto ao julgamento de Jadway, ou meu mesmo, sobre o que ocorre secretamente no espírito das mulheres, talvez nós dois estejamos enganados. É possível que nunca se venha a saber. E que as próprias mulheres o não saibam. Mas ao menos, estejamos certos ou errados, o emprego de determinada linguagem como recurso literário para mostrar os mistérios do subconsciente talvez constitua defesa suficiente dessas expressões de baixo calão.

Durante estas últimas frases, a cabeça dela entortou um pouco para o lado enquanto o escutava, observando-o

- tentando avaliar o seu grau de aborrecimento, calculou ele-e agora estava sorridente, abrandando-se, pronta a chegar a um compromisso. A sua mão primeiro tocou e depois cobriu a dele.

- Ainda bem que você compreende um pouco o meu ponto de vista. Tentarei compreender o seu. Sei apenas que sou mulher e rebelo-me contra tudo o que me degrada. Sou mulher e quero respeito e amor. Você sabe disso. Mike.

- Claro que sei.

A mão de Faye subiu-lhe pelo braço e, à medida que ela tombava lentamente sobre o travesseiro, puxava-o delicadamente para baixo até que ele se deitou a seu lado. Correu-lhe os dedos pelo cabelo.

- Desculpe, Mike - disse baixinho. - Não quero brigar por causa de toda essa parvoiçada. Quero amá-lo a você.

Aproximou-se ainda mais, encostando-lhe a cabeça ao peito.

- E eu sei o que me passou pela ideia nestes últimos minutos. Não era nenhum palavrão. Apenas uma palavra: “amor”. Não paro de pensar no quanto lhe quero e preciso de você, e como só desejo o que for melhor para você e para nós dois.

- Sim - disse ele.

Corneille sugeriu-lhe a próxima deixa: “Oh céus, quantas virtudes me fazes odiar.” Guardou-a para si mesmo.

- Não seja frio, Mike, não me castigue – continuou ela, com voz abafada -, ainda mais quando eu lhe quero tanto assim.

Abraçou-a com mais força, estendendo a mão para o seio e acariciando-o por baixo da roupa.

- Eu também te quero.

- Então esquece os livros e o faz-de-conta - sussurrou ela -, e entreguemo-nos ao amor.

Mas embora continuasse a acariciá-la, não fez nenhum outro gesto. Um rancor persistente contra a atitude dela, contra a sua hipocrisia, pairava entre ambos como uma ténue cortina, separando-os, e ele não conseguia forçar-se a empurrar a cortina para o lado para encontrar o desejo.

Sentiu-lhe os longos dedos gélidos a percorrerem-lhe as costelas, descendo até aos quadris e depois passando pelo meio das pernas, tocando no que ainda estava flácido. Os dedos crisparam-se em torno, dedicando-se a uma massagem; a respiração e roucas palavras dela penetraram a ténue cortina.

- Eu amo-te aqui em baixo. Mike, eu amo-o... faz com que ele me ame... não o retenhas... fá-lo crescer, quero senti-lo ficar grande.

Quis resistir, mas a resistência enfraqueceu e sumiu-se enquanto aquilo aumentava cada vez mais na mão dela.

- 'Stá bem - gemeu -, 'stá bem. E a cortina rompeu-se.

Ela desprendeu a fita que segurava o négligé, e agora a vestimenta desligava-se do corpo, os seios tremiam e o torso contorcia-se enquanto ele passava por cima dela e lhe beijava os seios, fechando os lábios sobre os rígidos mamilos, indo com a boca de um para o outro.

Sentiu a perna esquerda dela deslizar por baixo do seu corpo, enquanto a mão fria lhe afastava a cabeça dos seios, e ouviu-a dizer:

- Vem, querido. Agora. Vem.

No curto momento em que ficaram separados, ele recuando, ajoelhado, ela arqueando as pernas longas e mantendo-as bem abertas, lembrou-se como Faye sempre resistia ao ardor dos preparativos prolongados, incitando-o a introduzir o membro assim que notava que estava em erecção. Sentiu a momentânea tentação de modificar aquilo, de alongar o prelúdio do amor, provocando-lhe uma paixão comparável à sua, forçando uma entrega e desejo animal à altura dos seus, porém hesitou o tempo suficiente para mais uma vez se curvar à sua vontade.

Aquelas mãos firmes apertavam-lhe as costas, os dedos cravados na carne, obrigando-o a abaixar-se sobre ela, a aproximar-se do meio das suas pernas. Apoiou-se aos cotovelos, até tocar os mamilos com o peito, cingindo os quadris na parte interna das coxas, e a sua rígida dureza, novamente orientada pela mão dela, penetrou devagar as dobras da fenda macia, cálida, húmida - a sua parte mais cálida, a ideia ia-lhe e vinha-lhe, mais cálida, mais cálida. E agora estava bem no fundo, dentro dela, e quase fora, e de novo bem no fundo, e para a frente e para trás e em torno, em torno. E sentia-lhe os lábios na orelha, a respiração ofegante, e quis que ela gemesse e se entregasse, abrindo-se mais, vibrando, mas ela permanecia imóvel e sem reacção, excepto em baixo, onde as nádegas respondiam ao ritmo dos movimentos dele, não desvairada nem totalmente, mas agradável e correcto como numa dança de salão, apenas isso, aquele movimento de resposta que fazia parte de um ritual e nada mais.

Se ela não podia, então talvez ele pudesse, talvez finalmente pudesse trazer a paixão dela à intensidade da sua. Introduziu com mais força e rapidez como que tentando consolidar ambos num só, e a pelve dela erguia-se e tombava junto com ele, e girava com ele, e mais nada.

Aos poucos começou a diminuir o movimento. Ouviu-a murmurar:

- Que é, querido?

- Quero demorar mais. Quero dar-te uma oportunidade de...

Ela agarrou-se a ele.

- Não... não... não demores. Goza agora, goza de uma vez.

E cravou-lhe os dedos nos ombros, apertando as coxas com força em torno dele, espremendo-se contra o seu corpo. No mesmo instante ficou reestimulado e já sem controlo da situação.

- Assim, sim, querido, melhorou - ouviu-a dizer baixinho. E depois: - Está contente, querido? Está contente? Está a gostar?

Depois não ouviu mais nada, porque estava a dizer-lhe lá dentro como é que era, estava a explodir dentro dela, estremecendo, explodindo, irrompendo, sufocando-a com a sua nudez.

Tinha acabado e continuava dentro dela, mas a santidade já estava a voltar e em breve estaria pronto para a realidade.

Abriu os olhos e olhou-a. Continuava imperturbável, equilibrada, sorrindo calmamente, como se satisfeita com o prazer dele e consigo mesma pelo que fizera por ele. A comissura dos lábios anunciava que se sentia orgulhosa de tê-lo servido e, ao mesmo tempo, humilhado por poder prosseguir, mantendo uma atitude que ultrapassava por completo essa cópula mesquinha, acima desse acto necessário que somente podia ser descrito em livros mediante o emprego de palavrões.

E de repente a cortina que ele tinha rompido, tentando afastar há pouco, tornava a surgir. Através dela, enxergou-a com maior nitidez, com maior franqueza. E o que viu foi o que ela guardava com inabalável orgulho num recanto do cérebro: que fazer amor, para ela, era uma coisa que se fazia por ser uma maneira biológica de verificar a própria saúde e normalidade, e a que se submetia porque no fim lhe proporcionava uma vantagem. Tinham feito amor e, por trás da cortina invisível, ela emergia da fornicação tão ilesa e imaculada como se houvesse sido espectadora num circo sexual, a circunstante, a observadora, alguém superior ao ridículo, indefeso, descontrolado, ofegante espécime masculino que precisava de indulgência nessa função. Como sempre, sobrevivera à imundície para conservar na fronte a tiara do pudor e da dignidade civilizados.

E não foi só isso que Barrett percebeu da sua mentalidade secreta nesses momentos fugazes. Não havia apenas o aspecto moral do triunfo, havia também o comercial. Ela pouco investira na sua actuação, e no entanto lucrara muitíssimo. Não tivera a mínima ideia de transacção justa. Era o sistema paterno de fazer negócios. Descobria-se o ponto fraco ou susceptível dos outros, tomava-se conta deles, absorvendo-os, oferecendo-lhes praticamente nada, apenas o bastante para retê-los pelas próprias carências, e depois assumia-se o controlo e o poder da sociedade. Era, em suma, digna do pai. E ele tornar-se-ia o complemento indispensável à filha.

Nunca percebera com tanta clareza o que se passava na mentalidade de Faye. Mas agora sabia como era, tinha uma nova percepção, pois lera Os Sete Minutos, tal como ela, e isso transformara-se no papel de tornassol que revelava a verdade na sua verdadeira cor. Contudo, apesar da descoberta, sentia-se desamparado. Ficou consciente da carne exposta de ambos, à qual faltava beleza e romantismo nesta noite. Servira de garanhão para a realeza. A sua recompensa seria uma minúscula fatia do império. E essa recompensa era a mais intrigante de todas as seduções.

- Então, Mike? - estava a perguntar-lhe. - Você realmente gostou?

- Bem sabe que sim.

- Eu sempre gosto quando me ama. Você ama-me?

- Mostrei-lhe como me sentia, não mostrei? Não se pode chamar a obrigação ao que eu estava a fazer.

- Escute, Mike... Será que já chega? As minhas pernas estão a começar a doer. Você não se importa?

Ele retirou o membro, e no momento da separação as pernas dela abriram-se bem e o que pôde ver era a única coisa que ela tinha de suave, cálida, sincera e natural. As pernas abaixadas cobriram rapidamente a visão do que possuía de válido, puxando logo o cobertor para tapá-la até aos seios. O melhor ficou escondido, guardado longe dos olhos por outra semana, restando apenas a elegante cabeça desapaixonada e o sorridente rosto glacial, não-participante.

Os lábios incrustados no rosto da cabeça desapaixonada moveram-se.

- Está a ver, Mike? O amor pode ser decente e limpo. Agora vê, não é?

Ele via, sim. Ele via. Com a mais absoluta nitidez. A sua memória evocava quadros projectados por J J Jadway e Geoffrey Chaucer, e todos revelavam Faye Osborn na sua essência mais simples, evidente e sem retoques.

Cona, mostravam eles.

Por dentro e por fora. Cona. Nada mais, nada menos.

A clareza dos quadros, a nítida exposição assustaram-no. Ali estava a realeza, e os pensamentos dele eram sediciosos. Caiu de costas sobre o travesseiro. Expulsar a sedição. No entanto, a que Faye chamara puta, Cathleen, a Cathleen de Jadway, também estava ali, olhando-o, e o seu rosto lembrava estranhamente o de uma moça chamada Maggie. Expulsar a sedição, expulsá-la.

E conseguiu. Evocou à força outros quadros, dos bons tempos de segurança que tinha pela frente, vislumbres da casa imponente em Bel-Air, o corpo de empregados domésticos, o Bentley com motorista, o jacto Lear particular, a vila em Cap Ferrat, as celebridades, as temporadas sociais, Faye tão majestosa, tão bonita, tão complementar a seu lado. A vida cauterizada de toda a mesquinhez e livre de vulgaridades. A boa vida. A melhor.

Que mais podia querer?

Virou a cabeça no travesseiro e também sorriu para Faye.

- Amo-te, querida - disse.

NA manhã seguinte, às dez em ponto, a campainha da porta tocou. Mike Barrett atendeu e conduziu Mrs. Isabel Vogler ao interior do seu apartamento.

Ela mostrou ser uma mulher corpulenta, à beira provavelmente dos cinquenta, e usava na cabeça grisalha um chapéu domingueiro, guarnecido de flácidas flores artificiais. Os olhos eram vincados por duas bochechas gordas, que caíam sobre o lábio superior, e tinha papada ou bócio, mas o vestido preto estava novo e limpo, e ela locomovia-se com notável agilidade para uma pessoa tão obesa.

Plantou-se no meio do livíng, examinando tudo rapidamente.

- Bem, não me parece um emprego muito complicado - disse. -Acho que não vai haver problema. Como eu disse no anúncio que deitei no jornal, tenho longa experiência como arrumadeira. Quantas peças tem o senhor?

- Fora esta, há o quarto e a casa de banho - explicou Barrett.

- Podia mostrar-me?

- Depois - respondeu Barrett, fazendo um gesto para que se sentasse.

Mrs. Vogler instalou-se na poltrona com um resmungo.

- Até que eu gosto de me sentar quando encontro uma oportunidade - disse. - Quando se faz o que eu faço, passando o dia todo de pé, sentar é o mesmo que tirar férias.

Barrett ocupou um canto do sofá diante dela e pegou no cachimbo de cima do cinzeiro.

- Não a incomoda?

- Absolutamente. Mr. Vogler, que a terra lhe seja leve, fumava cachimbo, mas o cheiro horrível do sabugo de milho dele era preferível a esses homens que fumam charutos. Pode fumar o seu cachimbo à vontade, Mr. Barrett. Não se preocupe comigo. O cachimbo fica bem ao homem, ainda que deixe uma porção de buracos na mobília.

Barrett acendeu o cachimbo. Pela porta entreaberta do quarto, podia ver a cama ainda desfeita que Faye deixara às duas da madrugada, depois de lhe arrancar a promessa de que jantariam juntos à noite. Voltou a atenção para Isabel Vogler. Não tinha a certeza sobre a melhor forma de proceder com essa possível testemunha sugerida por Maggie Russell, uma vez que atraíra Mrs. Vogler à entrevista sob falso pretexto.

- Encontrou dificuldade para obter transporte de Van Nuys para West Los Angeles? - inquiriu.

- Nenhuma. Tenho o meu próprio calhambeque... meu filho não lhe disse? Estas crianças, quando estão em frente do espelho de televisão, não se lembram de coisa alguma.

- Pois achei que o seu garoto se saiu muito bem ao telefone. Agora, quanto ao anúncio que a senhora pôs, Mrs. Vogler. Não se importaria de fornecer-mais pormenores?

- Em que sentido...?

- No sentido de me proporcionar mais informações sobre o que lhe interessa fazer e onde já trabalhou.

- Conforme lhe disse, tenho um bocado de experiência e sou de toda a confiança, se é a isso que o senhor se refere - respondeu Isabel Vogler. - Desde que Mr. Vogler me deixou viúva e sem vintém, há oito anos, com um filho para criar, tenho trabalhado praticamente sem parar. De arrumadeira. Mas também sei cozinhar, se não for de grandes exigências. Quando o meu filho era menor, eu concordava em morar no emprego, arranjando alguém para cuidar dele, mas depois da última família para quem trabalhei, uma vez que o garoto estava a crescer, achei que ele pelo menos devia saber que tinha lar, por isso passei a aceitar só serviço avulso. Mas assim não é tão bom, porque não se tem regularidade. Quero um emprego onde sei que posso vir três ou quatro vezes por semana ou, melhor até, a semana inteira, das nove às cinco, e contar com uma renda mais ou menos certa. Ando a fazer o possível por economizar um pouco.

- Precisa de dinheiro, então?

- Tenho um pequeno depósito no banco, mas quero mais para facilitar o futuro. Porque no ano que vem, talvez, ou no outro, quero ter o suficiente para voltar prà cidade do onde vim, onde tenho amigos e parentes, e posso encontrar colocação melhor para mim e para o meu filho. Fica em Topeka... no Kansas... estou a pensar em voltar para lá, e se algum dia conseguir fazer isso como quero, vou precisar de dinheiro para roupas, passagens e o tempo que leva prà gente se instalar. De modo que é disso que eu ando à procura, Mr. Barrett. Um emprego, regular.

- O que eu tenho na ideia é capaz de lhe proporcionar uma boa soma de dinheiro prò seu depósito no banco - disse Barrett. - Diga-me uma coisa. A senhora falou no último emprego em que morava na casa. Quando foi isso?

- Há um ano e meio, acho eu.

- Quem era o seu patrão na época?

O rosto dela deu a impressão de se afundar na papada ou bócio.

- Era Mr. Griffith... Mr. Frank Griffith.

- O nome é-me familiar - retrucou Barrett.

- Ele é muito conhecido. Tem essas agências de publicidade, e...

- Sim, claro, Frank Griffith. Quanto tempo a senhora ficou lá empregada, Mrs. Vogler?

- Quase dois anos.

- O que já é boa referência. A senhora tem alguma carta de recomendação dele, ou crê que possa consegui-la?

O semblante de Mrs. Vogler adquiriu uma expressão lamentável. Retorceu as mãos gordas.

- Não, não tenho nenhuma recomendação dele, nem posso consegui-la. Tem sido o meu problema desde então, o que me parece muito injusto. Toda a vez que digo Isso a quem me propõe emprego... bem, eles ficam a olhar para mim como se eu fosse mentirosa, assim como quem diz, quem é que vai acreditar na palavra de uma pobre criada contra a de um homem importante como Mr. Griffith. Mas o senhor pode crer, Mr. Barrett, juro pelo meu filho único que não estou a mentir de maneira nenhuma.

- Mentir a propósito de quê?

- A propósito de Mr. Griffith me despedir sem justa causa e se recusar a dar referências minhas ou qualquer outro tipo de recomendação. Não há direito. E só me tem arranjado complicações desde então.

Barrett acendeu o cachimbo de novo. Agora estava a chegar mais perto, a aproximar-se do fim do seu subterfúgio.

- Asseguro-lhe, Mrs. Vogler, que o facto de ter sido despedida sem referências não me predispõe contra a senhora. Em todo o caso, fico curioso por saber o que foi que houve. Estou inteiramente pronto a ouvir a sua versão da história - fez uma pausa. - Espere aí, lembrei-me agora de uma coisa. Frank Griffith. É aquele cujo filho é comentado a toda a hora na televisão e mencionado em tudo quanto é jornal?

As feições suínas de Mrs. Vogler sacudiram-se como geleia, confirmando a identificação de Barrett.

- Ele mesmo - afirmou -, e o filho chama-se Jerry. 'Stá aí uma coisa que não vou conseguir entender nem daqui a cem anos. Nunca. Porque eu conheço aquele rapaz como se fosse meu filho. Ou pelo menos conhecia, mas não há tanto tempo assim, e ninguém me venha dizer que a natureza humana muda em ano e meio. Ele era um bom menino, a pessoa mais simpática de toda a casa, muito parecido com a mãe, embora ela fosse meio horripilante. O velho é que era impossível. Isso é do que ninguém fala. Se as pessoas ao menos soubessem...

- Soubessem o quê, Mrs. Vogler?

- Mr. Barrett, não vá imaginar que sou dessas que andam por aí com mexericos, falando mal dos meus antigos patrões, mas esse tal Mr, Griffith, aquele homem, é simplesmente de morte. O modo com que ele mandava dentro daquela casa, e isso embora não andasse muito por lá, mas mandando na mulher quando aparecia, deixava a gente com vontade de subir pelas paredes, mandando no filho e em mim, tratando-me como se eu fosse uma vagabunda ou coisa parecida. Mas o que mais me irritava era a maneira como ele esmigalhava o rapaz. Aquilo incomodava-me o tempo todo, mas tinha de me controlar, lembrando a minha posição e tentando não me meter, até que um dia não aguentei mais e disse o que tinha de dizer, e o senhor pode apostar que Mr. Griffith não estava acostumado com gente respondona. e então pôs-se a falar e dali a uma hora eu fiquei no olho da rua como se nunca tivesse trabalhado lá tanto tempo. E recomendação, bem, como é que eu ia arranjar uma?

- Não a podia conseguir de Mrs. Griffith?

- Ela não teria coragem. Concorda com tudo o que o marido faz, queira ou não queira.

Barrett conservou-se um instante calado, tirando baforadas do cachimbo. O próximo lance seria crucial. Precisava de encontrar a deixa adequada.

- Hum, Mrs. Vogler, até agora não vejo o menor problema em aceitar a sua palavra de que foi tratada injustamente. No entanto, para usar de toda a franqueza, isso não combina com a reputação pública de Frank Griffith... que é das melhores, absolutamente impecável... as queixas que tem contra ele talvez não se apoiem em nenhum facto real. Não me leve a mal. Sinto-me disposto a aceitar a sua palavra contra a dele, porém receio que terei de saber um pouco mais de pormenores - observou uma pausa e depois continuou, enfático:-Olhe, de um lado, temos um famoso campeão olímpico, publicitário conhecido no país inteiro, figura cívica de projecção. Do outro, temos a senhora, com a sua declaração de que esse homem não é nada do que se imagina. Agora, qual...?

- Ele não é o que aparenta! - exclamou Mrs. Vogler. quase derrubando a cadeira ao deslocar, agitada, o próprio peso. - Mr. Barrett, quando o senhor quiser saber exactamente como uma pessoa é, devia trabalhar na casa dele. Só então é que a gente descobre o que ninguém enxerga do lado de fora. Esse tal Frank Griffith não é o que o senhor talvez pense que ele seja. Ele bebe, bebe sem parar a noite inteira, e não existe nada mais desagradável do que um bêbedo mesquinho. E o filho dele, em geral, Frank Griffith nem lhe liga, mas já o vi esbofetear o rapaz, imagine, um rapaz daquele tamanho. E também o vi ser muito duro com a mulher, principalmente levando-se em conta que é uma inválida que sofre permanentemente de reumatismo articular crónico, e ele com aquelas violências, maltratando-a, e o que é pior... humilhando-a sempre do jeito mais vergonhoso. Quer saber de uma coisa? Ele não tem relações com a mulher, nem nunca teve, mesmo antes de ela ficar doente, porque ele tinha uma secretária à-toa qualquer no escritório, se é que o senhor entende. Podia contar-lhe muitas coisas mais, mas já dá para fazer uma ideia, e não estou inventando nada, posso até provar se o senhor quiser.

Estava sem fôlego, e recostou-se na cadeira, ajeitando o chapéu de flores na cabeça.

- Não sou de mexericos, Mr. Barrett, mas o senhor queria saber como é que podia aceitar a minha palavra contra a dele, por isso soltei a língua. Em geral não falo assim tanto. Mas aquele homem custou-me caro e tenho o direito de me defender. Tomara que não pense que fiz mal em fazer isso, e tomara que não tenha prejudicado a minha possibilidade de arranjar o emprego.

Barrett olhou-a bem nos olhos. Ela era ouro puro. Exactamente o que a mísera defesa precisava. Seria tiro e queda, uma pobre coitada de quem o júri se apiedaria. Devia ser prudente e tratá-la como convinha. Não podia dar-se ao luxo de perdê-la. Mas a verdade tinha de vir à tona.

- O emprego - disse ele. - Mrs. Vogler, não tenho nenhum emprego para lhe oferecer, no sentido que a senhora esperava. Mas há outra coisa que lhe posso propor. Posso oferecer-lhe dinheiro - levantou-se. - Eu sei. A senhora está perplexa. Pensa que fiquei maluco. Deixe-me explicar, porém. Vou demonstrar como a senhora pode servir-me de ajuda, e como posso retribuir-lhe. Em primeiro lugar, sou o advogado de defesa do livro supostamentte imoral que tanto Jerry como Frank Griffith responsabilizam pela desgraça de Jerry. Pois muito bem...

Durante cinco minutos, de pé a seu lado, Barrett descreveu a uma Mrs. Vogler, a princípio atónita e depois fascinada, toda a história da iminente batalha judicial e os meios pelos quais o Promotor Público contava usar o crime de Jerry Griffith como uma denúncia de Os Sete Minutos. Simplificando a gíria psiquiátrica e sociológica ao máximo, procurando traduzi-lo em voglerês, Barrett tentou explicar como a vida de Jerry no lar dos Griffith, aliada a outros factos externos, podia ter contribuído para influenciá-lo e impeli-lo a um acto anti-social, ao invés de qualquer leitura que pudesse ter feito. Barrett esforçou-se muito, pois a não ser que essa ideia fosse entendida por Mrs. Vogler, ela não teria nenhuma compreensão do que ele queria saber e da serventia que poderia ter para ele no julgamento.

Quando terminou, procurou no rosto suíno algum sinal de entendimento.

Respirou aliviado. Ela havia compreendido.

Agora o último passo.

De repente, ela sorriu com largueza e sacudiu a cabeça.

- Mrs. Vogler, a senhora sabe do que eu ando à procura. Quero a sua cooperação. Preciso do seu depoimento no banco das testemunhas. Tudo o que espero da senhora é a verdade a respeito do que viu e ouviu pessoalmente durante o tempo em que esteve empregada na casa dos Griffith. Quero que vá ao tribunal, não em busca de vingança pessoal mas para me auxiliar a fazer justiça com a exposição dos factos verdadeiros. Pagar-lhe-emos pelo seu tempo e informação, lógico. Embora não seja uma fortuna, certamente será o equivalente do que poderia ganhar em três ou quatro meses de serviço avulso. O bastante para levá-la um pouco mais perto de Topeka. Que lhe parece? Quer ajudar-me?

- Antes acho bom perquntar... a minha aparição lá não me vai meter nalguma espécie de apuro?

- Não, se a senhora se limitar a contar a verdade. Não, Mrs. Vogler, o pior que lhe pode acontecer é que Frank Griffith jamais pensará provavelmente em torná-la de novo como empregada.

Ela soltou uma sonora gargalhada, sacudindo bochechas e papadas.

- Essa é muito boa! - pôs-se de pé, o rosto corado de entusiasmo. - Estou a gostar dessa história, Mr. Barrett. Não tem dúvida de que lhe servirei de testemunha. Estaria até pronta a fazê-lo de graça, mas a questão é que preciso de dinheiro. Mal posso esperar para fazer o meu discurso em público sobre o que aquele santarrão do Griffith fez com o filho dele. Para mim será um grande dia.

- Óptimo, Mrs. Vogler. A senhora não se há-de arrepender- tomou-a pelo braço roliço. - Vou levá-la ao elevador. Neste meio tempo, como já lhe disse, o julgamento está para começar. Portanto seria melhor marcarmos um encontro, para combinar tudo bem, por uma ou duas horas, amanhã ou depois de amanhã. Eu telefono-lhe antes para ver se a senhora está em casa. A senhora estará, Mrs. Vogler?

- Só terei de sair uma vez, Mr. Barrett. Tenho de comprar um chapéu novo prà minha primeira aparição em público. Vou à loja do Ohrbach procurar o chapéu mais honesto que até hoje foi feito.

Logo após à saída de isabel Vogler, Mike Barrett apressou-se a voltar ao apartamento e ao telefone do living. Sentia vontade de cantar. Pela primeira vez em vários dias, tinha motivo para optimismo. Agora estava ansioso por transmitir a notícia do recrutamento de Mrs. Vogler a Abe Zelkin, cujo estado de ânimo andava a precisar de incentivo.

Ligou para o escritório e quando pediu para falar com urgência com Zelkin reparou no assombro de Donna.

- Mr. Barrett, onde está a sua memória? - perguntou ela. - Já se esqueceu? Mr. Zelkin foi prò Tribunal de Justiça... Sala 101 do Supremo Tribunal... gabinete do juiz Nathaniel Upshaw. Eles andavam a proceder à escolha do júri através de sorteio. Mr. Zelkin telefonou para cá durante o último intervalo e pediu para que eu não me esquecesse de o informar de que está tudo a correr bem. Ele acha que terão a lista e o compromisso de todos os jurados amanhã à tardinha, o que significa que o julgamento começará segunda de manhã.

É claro que Barrett se esquecera. Ele e Zelkin tinham passado uma longa reunião a debater as vantagens de dispensar um júri e deixar que o caso todo dependesse de uma audiência e decisão do juiz. No fim, ambos concordaram que teriam melhores possibilidades se apresentassem a questão perante doze homens e mulheres diferentes e não a um único indivíduo, porque dessa maneira se tornava possível um veredicto suplementar. Com um juiz haveria a possibilidade de apenas uma sentença alternativa, inocente ou culpado. Com um júri de doze cidadãos, não só havia a possibilidade dessas duas como também de uma terceira, a da discórdia - um júri dividido, de que certo modo representaria uma vitória para a defesa.

Tornando a prestar atenção a Donna, à medida que ela relatava os telefonemas, cartas e visitantes da manhã, Barrett percebeu que a sua carga de trabalho praticamente duplicara. Nos próximos dias, além das suas, teria de cumprir as obrigações de Abe Zelkin. Talvez pudesse repartir uma parte com Kimura, mas não muita, pois Kimura já tinha bastante com que se preocupar.

Então escutou Donna mencionar o nome de Kimura.

- Ele telefonou, pedindo-lhe prò avisar que se hoje o senhor não viesse ao escritório, nem mesmo na hora do almoço, então ele queria saber onde poderia encontrá-lo em caso de urgência.

- Ele descobriu alguma coisa?

- Parece que está na pista. Não disse do quê.

- Bom, daqui a pouco estarei aí. Vou almoçar no escritório.

- Mais uma coisa, Mr. Barrett. Miss Osborn ligou para cá há uns quinze minutos. Pediu que telefonasse para ela assim que ficasse livre.

- Está bem. Vou ligar agora. Depois sigo para aí.

Ao desligar, ficou a imaginar porque Faye lhe teria telefonado. Tencionava ligar para ela a fim de adiar o jantar combinado. Com Zelkin ocupado em eliminar jurados suspeitos, com o julgamento cada vez mais próximo, teria de passar as noites a trabalhar, hoje, amanhã e todo o fim-de-semana.

Discou o número da residência de Osborn, e foi Faye quem atendeu a chamada.

- Eu sabia que andava ocupado, mas só queria ouvir a sua voz, Mike.

- A minha voz? Será que pretende aproveitar-me para alguma audição?

- Não, sério, querido, eu apenas queria ver se você estava com um tom zangado. Quero dizer, por causa daquelas coisas que eu disse ontem à noite sobre o tal livro.

- Toda a gente tem o direito de dizer o que bem entende sobre qualquer livro.

- Esse é especial, e trata-se de nós dois. Talvez eu tenha escolhido a hora errada e me tenha expressado com excesso de rigor. Sobretudo, quando você se acha envolvido de maneira tão emocional nessa maldita questão. Fiquei com medo de o ter aborrecido. Mas depois eu compensei-o, não foi, meu bem?

- Não fiquei aborrecido - mentiu.

- Mas eu demonstrei que o amo, não foi? Você pode ver que o que eu sinto a respeito do livro nada tem que ver com a minha opinião sobre fazer amor-baixou a voz. - Talvez hoje à noite possa provar isso de novo.

Ele lembrou-se do motivo do telefonema.

- Você é um encanto, Faye, mas receio que vá ter de ficar para outro dia. Abe está preso no tribunal, escolhendo o júri, e eu sinto-me como se estivesse enterrado por uma avalancha. Só há papelada, entrevistas, telefonemas. A minha líbido vai ficar inteiramente tomada por Assuntos Legais, hoje e durante as próximas noites. Você perdoa-me? Tentarei compensar na semana que vem.

Na outra extremidade da linha fez-se silêncio. Depois Faye falou:

- Eu estava apenas a pensar se você não estaria a querer faltar ao encontro marcado hoje por causa do seu trabalho ou porque estivesse irritado com a minha opinião crítica a respeito de Jadway.

- Meu bem, já esqueci a nossa discussão. É trabalho, acredite. Posso dizer, felizmente, que as perspectivas estão mais animadoras. Hoje de manhã conseguimos uma testemunha de arromba, um verdadeiro êxito, alguém que pode ser de grande serventia para neutralizar a alegação de Duncan de que o livro foi o único responsável pelo acto de violência do filho de Griffith.

- Fico contente por sua causa, Mike, porém não compreendo. Que outra coisa pode ser dita para explicar porque Jerry Griffith cometeu aquele estupro? Ele próprio disse que foi o livro.

- Isso não prova absolutamente nada, Faye. A maioria dos homens não chega a entender bem as influências que os arrastam numa ou noutra direcção. Eles podem pensar que sabem, mas são apenas causas superficiais. As verdadeiras influências permanecem sufocadas no fundo do subconsciente. Olhe, meu bem, eu ando ocupado de mais para lhe explicar Freud de momento. Basta dizer que surgiu alguém do meio da embrulhada... da própria embrulhada dos Griffith, note-se... com provas directas de que Frank Griffith é tudo menos um paradigma de virtudes no lar. O velhote é bem capaz de ter causado involuntariamente mais dano a Jerry do que uma dúzia de livros pornográficos. Sei que Griffith é amigo de seu pai, porém, garanto-lhe que nem seu pai, nem qualquer outra pessoa possui a mínima ideia de como Frank Griffith é na intimidade.

- Parece horrível. Quem teria tais pensamentos e a ousadia de fazer intrigas sobre a família? Só pode ser aquela Maggie Russell. É ela a sua testemunha vira-casacas? Deve ser. Não existe mais ninguém que passe o tempo todo na casa.

Tornou a aborrecer-se com ela.

- Porque é que está a meter Miss Russell no meio da história? Claro que não foi ela. Outras mulheres moraram na casa antes dela. Como Isabel Vogler, por exemplo.

- Aquela gorda? Lembro-me de a ter visto por lá há uns dois anos. Livra, mas que mexeriqueira!

- Toda a pessoa que, para variar, tem alguma verdade a revelar, a meu ver não se pode chamar mexeriqueira. Você pode crer que não serão as nossas testemunhas que irão esgotar as possibilidades do mercado em matéria de mexeriquice. Espere para ver os tipos que o nosso impoluto Elmo Duncan apresentará ao público na semana que vem.

- Você é capaz de confiar numa pessoa dessa laia?

- Refere-se a Mrs. Vogler? Porque não? Tanto como em qualquer outra testemunha. Ela sabe que estará sob juramento. Uma só mentira e podem processá-la por perjúrio.

- Mentiras não, mas...

- Exageros? Não se preocupe, Faye. O nosso Promotor Público está tão interessado em descobrir a verdade, quando lhe convém, como eu. E tanto quanto você está neste momento, para ser franco. Porquê esse súbito interesse pela minha testemunha, Faye? Você teme que o desmascaramento do verdadeiro Frank Griffith vá afligir seu pai ou abalar os alicerces das instituições públicas?

- Não seja antipático, Mike. Não é nada disso e você bem sabe. É você, o tipo de pessoa desagradável em quem se está a transformar, cada vez mais envolvido com uma ralé ordinária que não merece a sua atenção. Pronto, lá recomeço eu. Desculpe, mas estou apenas preocupada com você... e connosco. Não suporto vê-lo, logo você, atolado nesse chiqueiro e rodeado por essa escória miserável da humanidade.

Ele conteve a irritação.

- Faye, não existe nada que me contamine. Mas obrigado pelo seu interesse.

- Lá vem você. Estou sentindo no ar. Ah, meu bem, por favor, vamos parar com essas picuinhas. Porque não pode ser como era antes que esse maldito livro se intrometesse na nossa vida? Mike, eu precisava tanto de falar com você hoje à noite. Sei que nós dois nos vamos sentir muito melhor depois de estarmos juntos.

- Faye, sinceramente, não posso. Agora tenho de ir prò escritório. Tentarei ligar-lhe mais tarde. Amanhã sem falta.

A crescente irritação que sentia por Faye não lhe deu-trégua durante o percurso até ao escritório. Espantava-se com o facto de que a aparição de um único objecto nas suas vidas - no caso actual, um simples livro - tivesse deixado à mostra, de maneira tão flagrante, a diferença dos seus temperamentos. Até então, sempre considerara Faye e ele mesmo como compatíveis, com um tipo de relação harmoniosa. Os dois representavam a propaganda viva do lugar-comum de que haviam sido feitos um para o outro. Mas recentemente, e com maior segurança na noite anterior e agora de manhã, mostrava-se bem menos certo disso.

Ao volante do carro, continuou a ruminar sobre a questão de Faye e ele. Ela amava-o ou julgava amá-lo. Era mais provável que não conseguisse amar nenhum outro homem mais do que o próprio pai, e depois de uma série de tentativas, enquanto experimentava vários candidatos, optara por Barrett como o único por quem poderia sentir afeição (o ponto culminante da sua paixão jamais ultrapassava a afeição) e o melhor capacitado para reunir (como marido) as necessidades restantes que completavam a sua vida. Quanto a Barrett, ele amava-a ou julgava amá-la. Era mais provável que, posto que as suas relações com as mulheres tivessem sido até então superficiais e instáveis, fosse capaz de gostar mais dela do que tinha gostado das anteriores e de amar certas coisas que Faye encarnava: posição, cultura, riqueza e todos os outros estúpidos bezerros de ouro, diante de quem ele se ajoelhara durante a sua transição da pobreza à opulência.

Era estranho, pensou, como o livro de Jadway, que para muitos não passava de uma insignificante centelha erótica, se tornara para ele uma luz tão intensa para ajudar o exame de consciência e revelação de si mesmo. Sob o seu clarão impiedoso, nenhuma ilusão íntima podia dissimular a verdade. Para Faye, decerto desmascarara pela primeira vez a sua incapacidade de dar amor. Incapaz de enfrentar essa verdade, ela voltara-se contra o instrumento de desmascaramento e repudiara-o como defeituoso e deformado. Para Barrett, revelara a terrível verdade de que em Faye ele não procurara amor, mas êxito, e a verdade ainda mais terrível de que o seu objectivo na vida era inválido e que ao atingi-lo não encontraria nada que pudesse sustentá-lo com dignidade até ao fim da vida. Ao contrário de Faye, fora capaz de enfrentar as suas verdades, porém não tomara nenhuma das providências que exigiam.

Maldito livro filho-da-mãe, pensou, não é que era pernicioso mesmo! Pelo menos para a paz de espírito. Se um homem não tem licença para ignorar certas verdades, e viver certas mentiras, onde irá encontrar essa paz de espírito? Justamente o que Mike Barrett queria, acima de tudo, encontrar neste dia.

Demorou no mínimo uma hora, após chegar ao escritório e instalar-se à escrivaninha, para ficar, finalmente, bastante absorvido pelo trabalho e esconjurar os incómodos espectros de amor por Faye e ódio de si mesmo.

Estava mergulhado numa súmula jurídica quando a campainha insistente de Donna o tirou da concentração, devolvendo-o ao mundo quotidiano da comunicação.

Quem o procurava era Leo Kimura. A falta de exactidão na sua maneira de falar traía um entusiasmo fora do normal.

- Boas notícias, Mr. Barrett, muito boas notícias - dizia Kimura. - Encontrei o homem. Localizei Norman C. Quandt.

- Quandt? - repetiu Barrett, a cabeça ainda cheia da súmula jurídica que andara a estudar. Depois lembrou-se. Quandt tinha sido o editor de pornografia barata por reembolso postal, o sujeito que adquirira os direitos originais de Os Sete Minutos, de Christian Leroux, revendendo-os mais tarde a Phil Sanford. Após ter sido processado e condenado por remessa de matéria obscena pelo correio, Quandt escapara de uma sentença de prisão quando o Supremo Tribunal devolvera a decisão à primeira instância. A partir de então desaparecera por completo, até Kimura descobrir que se dedicava actualmente à indústria cinematográfica no sul da Califórnia. As suas esperanças estavam em que Quandt pudesse fornecer alguma informação de valor a respeito do carácter de Jadway e do motivo por que escrevera o romance. E agora Quandt fora encontrado.

- Leo - disse Barrett -, quer dizer que você sabe onde ele está?

- Acabo de falar com ele - respondeu Kimura, triunfante. - Procurei a correr o primeiro posto de gasolina para ligar para aí. Ele dirige uma organização chamada Companhia Cinematográfica de Artes e Ciências. Que tal a pompa?

- De se tirar o chapéu.

- É, mas não se deixe enganar - continuou Kimura. - Este imponente eufemismo esconde uma fábrica que roda filmes de baixo orçamento só de garotas... todas em pêlo. O nome de Quandt não está publicamente associado à companhia. Encontrei por acaso o nome dele no registo da escritura do prédio onde fica situado o estúdio. Ele é, de facto, o proprietário da firma. Tivemos uma entrevista e não posso dizer que me tenha recebido de boa vontade. Quando comecei a explicar o motivo da minha visita, Quandt não se mostrou nada solícito. Era óbvio que queria a mínima publicidade ou divulgação pública possível das suas actividades ou mesmo da sua ligação com o negócio. Admitiu com toda a franqueza que caso mencionássemos o nome dele no tribunal, o Promotor Público mandaria agentes para vigiar qualquer movimento que fizesse a partir daquela data. Não queria ter nada que ver com o julgamento. Apesar disso, não parei um só instante de falar e, quando menos esperava, Quandt mostrou-se interessado.

- Que é que você lhe disse, Leo?

- Disse que não pretendíamos envolvê-lo de forma alguma, nem através de referências nem para lhe pedir que aparecesse pessoalmente. Quando Quandt percebeu que não o queríamos como testemunha e que não tínhamos a menor intenção de andar a ventilar o nome dele, ficou logo mais camarada. Resultou daí que ele detesta a tal Mrs. St. Clair e a LFD em peso, assim como Elmo Duncan e o departamento dele, e está disposto a ajudar qualquer pessoa que se prontifique a combater essa gente. Concordou em falar com o senhor, Mr. Barrett, mas com tempo limitado e em absoluto sigilo. Não se cansava de protestar que dirige um negócio legal, que os seus filmes de mulheres são suficientemente decentes para serem exibidos em duzentos cinemas espalhados por todo o país, mas que mesmo assim precisava de tomar cuidado, porque a lei e as pessoas retrógradas gostam de perseguir homens como ele, que já tinha ido ao Supremo Tribunal para derrotar os seus censores. Cá entre nós, o meu palpite é que ele está louco por manter sigilo por um motivo bem diferente. Esses filmes de nudismo que ele faz são perfeitamente legais, embora escapando por um triz, mas não creio que seja o que lhe dá o verdadeiro lucro. Tenho o palpite de que servem de camuflagem para outra espécie de actividade a que ele se dedica de portas fechadas.

- Por exemplo?

- Filmes só para homens, talvez. Sei lá. Eu disse que era palpite.

- Pelos vistos, o nosso Mr. Quandt não é flor que se cheire - opinou Barrett.

- Sim, mas bem que nos pode salvar - contrapôs Kimura. - Porque ele está pronto a informá-lo sobre tudo o que sabe a respeito de Leroux e do livro de Jadway. Não tenho a mínima ideia até que ponto essa informação poderá ser útil. Sei apenas que ele é a única pessoa com quem o senhor queria falar, e agora tem essa oportunidade.

- Quando?

- Não acabo de lhe dizer, Mr. Barrett? Agora, neste instante. O senhor tem de ir imediatamente se quiser apanhá-lo. A partir de amanhã ele vai passar cinco semanas fora do país. Portanto tem de ser já. Mr. Quandt sabe que o senhor vai lá e já está à sua espera.

Barrett empurrou o trabalho para o lado e pegou no lápis e no bloco.

- Okay, Leo, dê-me o endereço. Se a coisa se gorar, pelo menos terei uma oportunidade de ver como são feitos esses tais filmes de nudismo.

 

O endereço da Companhia Cinematográfica de Artes e Ciências ficava num prédio de apartamentos de dois andares, castigado pela acção do tempo, no quarteirão da Ver-mont Avenue entre os Boulevards Olympic e Pico.

Intrigado, Barrett parou ao lado do cartaz rasgado “Não há vagas”, perto da entrada e examinou a fachada de estuque. O nome da firma não figurava em parte alguma, nem havia o menor indício do estúdio de cinema de Quandt. Barrett pôs-se a imaginar se não teria anotado o endereço errado.

Retrocedeu um pouco para averiguar se o negócio não estava localizado ao lado do prédio. A direita, um chalé abrigava uma escola de dança, e à esquerda a entrada para automóveis conduzia aparentemente a uma garagem nas traseiras, onde os inquilinos do prédio guardavam os seus carros. No lado oposto dessa passagem, via-se a loja vazia que recentemente servira de escritório a um corretor de imóveis.

Barrett, resolveu que seria melhor telefonar a Kimura e conferir de novo o endereço, mas depois ocorreu-lhe que um dos locatários do prédio talvez conhecesse a Companhia Cinematográfica de Artes e Ciências.

Entrando no vestíbulo central, deparou-se-lhe um aviso de papelão pregado ao corrimão da escada que levava ao segundo andar. Dizia INFORMAÇÕES, com uma seta a designar uma porta comum perto da escada.

Cruzou o vestíbulo e bateu na porta.

- Pode entrar! - gritou uma voz de homem.

Barrett abriu a.porta e achou-se num cubículo escuro e sem janelas, à excepção de uma pequena lâmpada que projectava um raio de luz sobre um rapaz pálido, ocupado em dactilografar uma carta, pelo sistema de catar-milho, numa daquelas máquinas manuais antigas. A mesa ao lado estava coberta com o que pareciam ser catálogos para reembolso postal. O rapaz não levantou os olhos antes de terminar a linha que estava a bater. Ao retirar a folha da máquina, acolheu o visitante com um sorriso de dentes serreados.

- Desculpe - disse. Pondo-se em pé, largando a carta em cima da mesa, analisou Barrett cuidadosamente. - Em que lhe posso ser útil?

- Ando à procura de uma firma chamada Companhia Cinematográfica de Artes e Ciências. Um amigo deu-me este endereço, mas acho que se enganou. Julguei que talvez alguém aqui no prédio pudesse orientar-me.

- Depende. Posso saber do que se trata?

- Tenho um encontro marcado com o director da companhia que mencionei... Mr. Norman C. Quandt. O meu nome é Michael Barrett.

Os dentes serreados voltaram a surgir.

- Talvez possa ajudá-lo. Trouxe alguma identificação? Cada vez mais curioso, pensou Barrett.

- Claro.

, Tirou a carteira do bolso e mostrou a licença de motorista.

O rapaz examinou-a, coçando o queixo, e depois sacudiu a cabeça.

- Creio que está em ordem. Todo o cuidado é pouco - foi ao telefone. - Vou avisar Mr. Quandt de que o senhor chegou.

Só então Barrett compreendeu. Há filmes e filmes, dissera Kimura dias atrás. Há filmes autênticos e há - a imaginação de Barrett grifou a palavra - filmes artísticos. Para determinados filmes, feitos a preços de uva mijona, não havia necessidade de estúdio nem de publicidade. O prédio de estuque de apartamentos servia de fachada de Potemkin para Norman C. Quandt.

- É, isso mesmo. Creio - disse o rapaz ao telefone. - Vou levá-lo.

Desligou e encaminhou-se para a porta.

- Mr. Quandt irá recebê-lo neste instante. Ele está a assistir a uma filmagem e disse que é para levar o senhor até lá. Venha comigo, por favor.

Foram ao vestíbulo, depois contornaram a escada e passaram por um corredor mal iluminado. Nas traseiras do prédio, a porta que comunicava com o vestíbulo estava aberta. O rapaz empurrou a tela e apontou para baixo.

- Cuidado.

Havia três degraus de madeira, e o do meio estava quebrado. Barrett desceu com toda a cautela. Havia um pequeno quintal, com duas laranjeiras, cercado por um muro alto coberto de hera que lhe resguardava a intimidade. O guia de Barrett tomou a dianteira e dirigiu-se ao que parecia ser a garagem de quatro carros, embora não houvesse nenhum à vista porque as portas achavam-se fechadas. O rapaz abriu uma porta lateral, acolchoada.

- Vou deixá-lo aqui. Pode entrar. Mr. Quandt é o que está a fumar charuto.

- Obrigado.

Barrett entrou. A porta acolchoada fechou-se nas suas costas. A princípio a brusca mudança da luz solar para a escuridão fê-lo pestanejar. Tentou habituar os olhos. Em poucos segundos recobrou o senso de direcção e viu que o interior da garagem tinha sido transformado numa cópia barata de palco de filmagens. As janelas e as paredes eram revestidas de estofo coberto de lona e folhas de material perfurado à prova de som. Quase perdidos na penumbra, viam-se utensílios de uso doméstico e pilhas de cenários teatrais. Traçando uma diagonal a partir do ponto em que se encontrava até o canto mais afastado, havia um quadrado brilhantemente iluminado.

Avançando naquela direcção, Barrett pôde distinguir as luzes dos reflectores e uma câmara surpreendentemente pequena colocada no alto de um tripé com rodas que corria por cima de trilhos. Ao lado da câmara, três homens confabulavam- um puxando uma pala sobre os olhos, outro amarrando o roupão; e o terceiro acendendo o charuto com um isqueiro. Atrás deles, dentro do quadrado iluminado pelos reflectores, havia um cenário mobilado como se fosse um grande dormitório atapetado.

- Tudo entendido, então? - perguntava o gordo do charuto. - Vamos deixar de perder tempo e tocar o barco prà frente. Harry, não se esqueça de passar espuma no rosto de novo. Onde diabo se meteram essas malditas mulheres? Ainda estão na latrina? Vá até lá e arraste-as para fora, nem que seja à força. Será que não tinham outra hora para ficar com diarreia, Santo Deus? Ande depressa... mexa-se!

Com as mãos nos quadris, virou as costas repugnado, e então percebeu a presença do visitante. Adiantou-se.

- Barrett?

- Sim, eu... Estendeu a mão.

- Sou Norman Quandt.

Apertaram-se as mãos. De estatura pouco abaixo da mediana, atarracado e musculoso, Quandt vestia camisa desportiva xadrez e calças de couro de corça. Por trás da calvície incipiente, os cabelos restantes estavam fortemente besuntados num esforço infrutífero para mantê-los lisos no lugar. Dava a impressão geral de ser todo maciço e nodoso. A testa era larga, os olhos quase unidos sobre o nariz achatado e curto. Dos lábios grossos escorria um pouco de saliva do canto da boca que prendia o charuto. O queixo saliente precisava de ser barbeado. Aparentava pouco mais de quarenta anos.

Quando Quandt tornou a falar, Barrett notou que o homem tinha o hábito de não olhar para o interlocutor e que a sua voz possuía uma aspereza que irritava os nervos, semelhando uma unha a riscar o quadro-negro.

- Hoje não tenho muito tempo para ver ninguém - dizia ele -, mas aquele japonês vivaço forçou-me a marcar uma entrevista com o senhor, e eu aceitei porque qualquer sujeito que pretende dar um pontapé nos colhões daquele ordinário do Duncan merece ao menos dez minutos do meu tempo.

- Fico-lhe grato, Mr. Quandt.

- É. Bom, assim que acabar esta interrupção a gente conversa - examinou o cenário. - Nunca assistiu às filmagens de um destes curta-metragens de nudismo?

- Creio que não.

- Iria assombrar-se com o mercado que existe para isso. Há talvez uns duzentos cinemas públicos onde nós os passamos. Nada de imoralidade, se é o que o senhor está a pensar. Só esse negócio de exploração sexual pràs plateias que gostam de ver mulher boa nua. Estamos também a fazer fitas com as mulheres de pernas abertas... sabe como é, quase só primeiros-planos de putinhas a retorcerem-se... que são a coqueluche dos bares e boîtes de todo o país. Existe um grande público, já pronto à espera, gente respeitável, portanto, porque não dar ao público o que ele quer? Não há nada de mal nisso, há?

- Claro que não.

- Sempre procuro fazer os meus filmes com um pouco mais de classe do que os meus concorrentes. Não poupo despesas. Estes curta-metragens de vinte minutos levam no máximo cinco dias a filmar, e o orçamento fica por volta de vinte mil dólares cada um. Nós filmamos em dezasseis milímetros, o que já dá prò gasto, e tentamos obter um som de excelente qualidade. A maioria dos "nossos rivais não cuida do aspecto e as histórias não têm o mínimo enredo. Mas nós usamos gravador eléctrico e eu escrevo sempre uma espécie de argumento com antecedência. Rende mais na bilheteira.

- Deve render, mesmo.

- Rende, sim - limpou a saliva do canto da boca e olhou em torno. - Onde diabo andam essas malditas mulheres? Apre, até que enfim, aí vêm elas. Agora vai ver o que entendo por não poupar despesas, Barrett. Certos concorrentes meus usam umas prostitutas a cair aos pedaços, com cada cara de meter medo, com as tetas caídas, nádegas achatadas e varizes nas pernas, só para não terem de pagar muito. Eu não. Não, Norman C. Quandt. Eu guio-me pelo meu gosto em matéria de mulher. Gosto de mulher alinhada, da cabeça aos pés. Escolho o elenco baseado unicamente no meu pau. Se chega uma boneca que é um verdadeiro estouro e eu sinto alguma coisa no pau, então já sei que é assim que toda gente na plateia se vai sentir. É o que me serve. A maioria das minhas garotas ambiciona ser modelo de modas ou estrelinha. Uma porção delas são adolescentes ou têm pouco mais de vinte anos, recém-saídas do colégio ou trabalhando para pagar a universidade, e tão limpas que até dá para comer - soltou uma gargalhada vulgar. - E às vezes eu como mesmo.

Barrett não fez comentários. A sua reacção inicial ao produtor tinha-se solidificado. Decididamente não simpatizava com Norman C. Quandt.

- Veja estas duas mulheres - disse Quandt. -Pago cento e vinte e cinco dólares por dia a cada uma delas. Cite qualquer outra mulher que ganhe isso só para tirar a roupa durante seis horas. - Usou a mão como megafone - Nancy! Linda! - gritou. - Os lugares de vocês já estão marcados a giz. Comece exactamente do momento em que você chega. Linda! 'Stá bom, Sim, pode rodar!

A atenção de Barrett fixou-se no cenário. Uma moça alta, madura, de cabelo preto despenteado e feições arrogantes, vestindo camisola curta com folhos, entrou em cena, parando diante de um espelho de toucador, onde se espreguiçou com indolência. Logo após uma loura baixinha e roliça, mais jovem e voluptuosa, envergando o uniforme tradicional de camareira francesa, com saia curta preta, própria para ballet, apareceu por trás da morena, trazendo uma caixa de uma loja que, pelo jeito, acabava de lhe ser entregue. A patroa, sempre na frente do espelho, disse à criadinha que pusesse a encomenda em cima da cama, e depois a ajudasse a vestir-se. A lourinha largou a caixa na cama, saindo rápida da cena, fora do alcance da câmara, e voltou com a raqueta e a roupa de ténis. Languidamente, a patroa baixou as mãos, puxou para cima a camisola, e com extrema lentidão tirou-a pela cabeça.

Barrett escutou a seu lado a câmara aproximar-se mais da cena, enquanto a estrela nua se virava de perfil, pondo as mãos em concha por baixo dos pequenos seios rijos. Em seguida, ela disse qualquer coisa à criada, que lhe deu o saiote de ténis. A morena vestiu o saiote, e depois, tomando a raqueta da empregada sopesou-a, chegando ainda mais perto da câmara e, de seios de fora, começou a praticar saques e golpes. Por fim, trocou a raqueta por um colete, enfiou-o, pedindo à empregada que arrumasse as novas compras, e retirou-se à pressa.

A voluptuosa camareira esperou que a patroa saísse e depois foi rapidamente até à cama, abrindo a caixa que acabava de ser entregue. Levantou três pares de calcinhas e deteve-se a admirá-las. Estendeu-as, relutante, em cima da cama e depois foi buscar o aspirador de pó. Ligou-o na tomada, passando-o pelo tapete em direcção à câmara e em seguida empurrou-o para trás, de costas voltadas para a objectiva, curvada para remover o saco colector. Ao abaixar-se, a saia curta arregaçou bruscamente, revelando as róseas nádegas nuas.

Barrett notou que Quandt virara a cabeça por cima do ombro para lhe piscar o olho. Tentou retribuir com um fraco sorriso de aprovação.

A cena continuou. A camareira loura, novamente atraída pelas recentes compras da patroa expostas na cama, segurava um par de calcinhas contra o peito. De repente resolveu experimentá-las. Com dedos ágeis, correu o fecho do uniforme, despindo as mangas da roupa e baixando-a pelos quadris até cair no chão. Livre dela, ficou alguns segundos imóvel, nua em pêlo, cobrindo habilmente com a mão a vagina raspada. Depois, de perfil para a câmara, pegou nas calcinhas e vestiu-as. Aí então, imitando a morena, colocou-se diante do espelho e desfilou pelo cenário enquanto a câmara se aproximava cada vez mais. As sumárias calcinhas pretas acentuavam a brancura dos seios redondos, enormes e oscilantes. À medida que fazia a sua pantomina pelo quarto, irrompia o patrão com o rosto coberto de espuma, pincel da barba na mão, esperando encontrar a esposa e deparando-se-lhe ao invés o agradável espectáculo. Recuando um pouco, deteve-se a observá-la com olhar lúbrico. A camareira, sempre dançando, viu-se subitamente cara a cara com o dono da casa. Cobriu a boca aberta com as mãos, que em seguida desceram para as calcinhas, os seios a estremecerem sem parar. Assustada, correu a empurrar de novo o aspirador de pó com uma das mãos, ao mesmo tempo que se punha a baixar as calcinhas e a enfiar outra vez a roupa de empregada.

- Corta! - berrou Quandt. - 'Stá óptimo! Os críticos do país em peso vão dar cotação de quatro pontos. Okay, pessoal. Cinco minutos de intervalo e depois a gente continua. Tenho de tratar de um negócio, mas volto já.

Agarrou Barrett pelo braço.

- Venha, vamos tomar um pouco de sol.

Saíram da garagem para a luz do dia. Quandt apontou em direcção à mesa esmaltada de branco no pátio, toda enferrujada, com diversas cadeiras de lona ao redor, colocada entre dois pés de laranjeira.

- Nada mau, hem? - disse Quandt quando se sentaram.

- Sim, para quem gosta de mulher, como eu - concordou Barrett, pondo os óculos escuros e tirando o cachimbo do bolso.

- Bom, O que é que você quer saber? - perguntou Quandt, lançando fora o toco do charuto e tirando o celofane de outro. - Como foi que Os Sete Minutos veio parar às minhas mãos, não é isso?

- É, principalmente isso. Já ouvi a versão de Philip Sanford.

- Quem é esse diabo de Philip Sanford?

- O editor a quem o senhor acabou por revender o romance, e a quem eu defendo no...

- Ah, é, sim, agora me lembro. Aquele boa pinta diplomado, todo cheio de nove horas.

- Hoje dirige a Sanford House.

- Grande vantagem - rosnou Quandt, mascando o charuto. - Deixe ver. É. Já há um bom tempo. Naquela época eu estava a apurar um lucro firme com as minhas edições de bolso. Eu nunca tinha ido à Europa, por isso resolvi tirar um mês de férias e dar uma olhadela no panorama. Não quero dizer à Torre Eiffel e àquela asneirada toda, meu caro. O que eu pretendia era passar uma revista em regra às prostitutas francesas e italianas de que a gente vivia por aí a falar.

Teve um sorriso, tirou o charuto do meio dos dentes e limpou o canto da boca.

- Vou-lhe contar, só depois que uma mulher de Paris cai de boca na vara da gente é que se fica sabendo o que é cama. Aquelas franguinhas de lá são de gritos! Mas do que é que eu estava a falar?

- Estava a falar em “broche” - retorquiu Barrett secamente.

Quandt lançou-lhe uma mirada penetrante e depois continuou.

- Ah é, o tal livro. Então achei que se eu queria descontar a viagem no imposto de renda, convinha provar que tinha sido para tratar de negócios. Assim parei a perguntar a toda a gente se não havia algum livro do meu género. E o porteiro de não sei que hotel disse-me que conhecia um editor francês, famoso antigamente pelos livros de libertinagem que publicava, e que se aposentara há poucos anos. Era o tal Christian Leroux. Fui procurar o tipo. Quase tudo o que ele me ofereceu era droga, não valia nada, tudo cheio de palavras difíceis, frases muito compridas, uma chatice. Mas no meio tinha Os Sete Minutos, que logo me pareceu um negócio. Então fiz uma proposta a Leroux. Quem sabe, setecentos e cinquenta cruzeiros pelos direitos mundiais? Ele aceitou. 'Stava nas lonas, fingindo que 'stava por cima, mas não chegava para disfarçar os buracos na roupa puída e que não tinha que comer. Enquanto ele fazia corpo mole, como quem pretende regatear, vi logo que aceitaria a minha proposta e de facto foi o que aconteceu. Quando falei com ele de novo, o contrato estava pronto para assinar, o que se fez na Embaixada Americana, para ficar logo registado com firma reconhecida. 'Stá aí a história toda.

- Como é que era esse tal Leroux?

- Um sapo como outro qualquer. Bem, talvez um pouquinho melhor. Dava a impressão de ser um sujeito que já tivesse andado de monóculo e polainas. Sabe como é, desses de rabo apertado. Vasta cabeleira grisalha. Nariz de tucano. Com um inglês muito bom. Chiava um pouco, asmático. Só conversei com ele duas vezes.

- Ele nunca falou sobre o autor de Os Sete Minutos... sobre J J Jadway?

Quandt puxou pela memória. Segurou o charuto no ar.

- Uma vez. É, uma vez. Foi quando me entregou o contrato original. Não estava assinado por Jadway mas por uma mulher chamada Cassie McGraw, eu até perguntei quem era a diaba. Leroux disse, bom, ele disse, para falar a verdade, que nunca tinha tratado pessoalmente com o autor, Jadaway era tímido e não gostava de falar com ninguém.., sabe como são esses escritores amalucados... ainda mais a respeito de negócios, e que por isso tinha entregue tudo a essa mulher com quem vivia, essa tal Cassie McGraw, uma moça americana, e ela assinou o contrato, recebeu o dinheiro e coisa e.tal porque tinha procuração dele para tratar da venda. De modo que quando eu verifiquei que o contrato antigo estava cem por cento, aceitei o novo.

- Mas Leroux chegou a dizer-lhe que nunca falara pessoalmente com Jadway?

- Olhe, para ser franco, não tenho a certeza. Talvez tivesse falado com ele uma ou duas vezes, mas foi só.

- E essa Cassie? Tem a certeza de que Leroux lhe contou que ela era amante de Jadway?

- Sim, lembro-me disso. Ele disse... não com estas palavras... que Jadway tinha encontrado a tal americana em Paris e já andava enrolado com ela há um ano ou até mais. Porque me lembro que Leroux disse que essa McGraw era um espectáculo de mulher e que Jadway havia tido uma sorte danada. E acho que Jadway a empregou como modelo dessa assanhada do livro dele, porque me recordo de ter lido numa das cartas de Jadway que ele devia a sua heroína à única mulher que tinha amado na vida.

- Cartas - disse Barrett, endireitando bruscamente o corpo.'-Cartas de Jadway? Quer dizer que chegou a ler cartas escritas pelo próprio Jadway?

- Sim, lógico, não mencionei já? Vou-lhe contar como foi. Mais ou menos um ano ou ano e pouco depois que comprei Os Sete Minutos, achei que, cortando os trechos mais chatos, deixando só a parte de sexo, o negócio ia ser uma loucura. Então comecei a pensar em publicar o livro em edição de bolso. Aí percebi que tinha de pôr alguma coisa na contracapa sobre Jadway e não tinha porra nenhuma. Eu precisava de certos dados prà publicidade, sabe como é. De modo que escrevi a Leroux, pedindo informações. Sabe o que aquele pica de sapo fez? Respondeu-me dizendo que tinha um pequeno arquivo com alguns recortes sobre o livro de Jadway, quando tinha sido publicado e que possuía três ou quatro cartas de Jadway onde ele contava um pouco sobre a sua vida de escritor em Paris... como ele escreveu o romance, qual era a sua intenção, coisas que havia incluído a pedido de Leroux e que tinham sido entregues em mão pela tal Cassie McGraw. Leroux disse que eu podia ficar com a papelada toda, mas que primeiro teria de pagar. Pagar? Que sacana de merda. Que tal esta? Deu-me gana de o mandar levar no rabo... mas eu precisava daquele negócio. Então o que foi que fiz? Ofereci-lhe vinte cruzeiros, e ele aceitou. Mandei-lhe um cheque e ele enviou-me o arquivo com os recortes e as cartas de Jadway.

Um frémito de expectativa correu pelo corpo de Barrett. De repente, o rosto de Quandt parecia-lhe um mapa da Terra Prometida.

- Mr. Quandt, essas cartas, poderia mostrar-mas? Quandt mexeu-se com um jeito contrafeito.

- Olhe, vou-lhe contar o que houve com as tais cartas - disse ele. - Quando vendi o livro ao Sanford, esqueci-me de lhas entregar. E quando me mudei para cá, depois da minha encrenca com o tribunal, tirei os meus arquivos do depósito e pedi que mos mandassem de Filadélfia. Num deles estava uma pasta com as tais cartas. Bom, não me preocupei mais com aquilo, tinha mais que fazer. Aí então, há poucas semanas, quando esse miserável Promotor Público fodido prendeu o tal livreiro por tentar ganhar a vida à custa do livro, e aquele fedelho meio-amalucado desflorou a tal pequena, de uma hora para a outra o livro e Jadway saíram em tudo quanto foi jornal e televisão, e houve toda aquela publicidade sobre Jadway e o mistério de Jadway, aí então me lembrei das cartas. Depois lembrei-me de outra coisa... um camarada de Nova Iorque que andava sempre a deitar anúncio no New York Times dizendo que se alguém tinha cartas autênticas, autografadas, de figuras históricas ou famosas para vender, ele pagaria muito bem. Então pensei e disse comigo mesmo, arre de vida, esse Jadway deve ser uma celebridade, não custa nada ver se as cartas valem alguma coisa. Afinal, não sou um sujeito rico. Um dinheirinho extra nunca é de mais. De modo que me meti a procurar as cartas, tive um trabalhão danado para as encontrar, mas no fim encontrei. Aí escrevi ao tal comprador de autógrafos, contando o que eu tinha, e recebi um telegrama a dizer que queria comprar tudo e mandava-me o preço. Não valiam grande coisa, mas sempre dava para tapar um buraco. Terminei por mandar tudo e recebi um cheque.

Barrett ficou de cara no chão.

- Não estão em seu poder? Nem sequer tirou fotocópias?

- Ora, que é que eu ia fazer com fotocópias? Simplesmente mandei o pacote, peguei na massa e arranquei.

- Quando foi isso?

- Há uma semana, talvez... não, há quase dez dias, É.

- O que é que estava escrito nas cartas? - perguntou Barrett ansioso - Não se lembra de nada?

- Rapaz, tenho até vergonha de confessar, mas nunca me dei ao trabalho de lê-las, a não ser para verificar se estavam assinadas, “Atentamente J J Jadway”, o que estavam. Não vê que quando as recebi de Leroux, já havia começado aquela minha encrenca com a justiça. O que significa que nunca cheguei a publicar o livro de Jadway'. já andava frito que chegava. Só pensava no meu julgamento perante o tribunal de justiça federal e mais tarde no recurso ao Supremo Tribunal e depois em procurar uma nova maneira de ganhar a vida. Portanto quando eu tinha as cartas, elas não me interessavam e simplesmente deixei tudo guardado. Quando comecei a remexer nelas há poucas semanas, antes de escrever prò tal comprador de autógrafos, estava com uma pressa danada e só verifiquei se tinham a assinatura de Jadway, quantas páginas havia, o que já dava para escrever ao homem. De modo que não sei de nada. Porque está a fazer essa cara de enterro? Aquelas cartas interessavam-lhe?

- Sim, Mr. Quandt, como o senhor nem faz ideia. Leroux está na cidade para depor no julgamento e pronto para declarar ao tribunal que Os Sete Minutos é pura pornografia barata, escrita por um autor pornográfico que só queria ganhar dinheiro com o livro. Por outras palavras, a imoralidade pela imoralidade. Aquelas cartas podiam desmentir o testemunho dele. Tenho a certeza disso. Serviriam de ponta-de-lança prà nossa defesa contra a acusação pública, Mr. Quandt.

- Quer dizer, contra aquele crápula do Elmo Duncan?

- Exactamente.

Quandt cerrou os punhos.

- Que merda. Para que é que eu fui desistir delas? No mínimo, agora, o senhor comprá-las-ia pelo dobro do preço.

- Nem tem dúvida - afirmou Barrett. - Só que... - hesitou. - Escute... o senhor disse que vendeu as cartas a um comprador de autógrafos muito conhecido em Nova Iorque, não foi? Pois o que é que ele havia de querer com as tais cartas senão colocá-las no mercado, revendendo-as com lucro? Claro. E se até agora não as vendeu a nenhum coleccionador... o senhor mesmo disse que há apenas dez dias que as mandou... então ainda posso dar um jeito para as recuperar. Como é o nome dele?

- Do comprador de autógrafos?

- Sim.

Quandt bateu na testa com os nós dos dedos.

- O nome dele, o nome dele? Meu Deus do céu, que memória danada... 'Spere aí. Lá em cima devo ter alguma coisa. O anúncio que recortei ou a cópia da carta que lhe escrevi, oferecendo a correspondência de Jadway. O meu arquivo de cartas fica lá em cima, na sala de reembolso postal. Vamos até lá para ver se a gente encontra.

Deixaram o quintal. Barrett seguiu Quandt pela porta de serviço do prédio de apartamentos, cruzando o corredor até ao vestíbulo de entrada, onde subiram a escada que conduzia ao segundo andar.

Parando diante de uma porta nas traseiras, Quandt anunciou por cima do ombro:

- A sala é esta aqui.

Abriu a porta e entrou, com Barrett logo atrás. A primeira coisa que Barrett viu deixou-o pregado no chão. Esbugalhou os olhos. Não podia acreditar.

Deitada de costas, numa cama bege encostada à parede oposta, estava uma ninfa completamente nua, que tinha, no máximo, vinte anos de idade, de cabelo ruivo-dourado, seios fartos de mamilos rubros protuberantes, corpo e pernas esguios e sinuosos, e que se retorcia de prazer. Com uma das mãos entre as pernas, estimulava evidentemente o clitóris, de olhos fechados e com um esgar de êxtase masturbatório no rosto.

No mesmo instante apareceu outra moça, totalmente vestida com blusa branca colante e saia curta pregueada, caminhando entre Barrett e a que se retorcia nua em pleno onanismo estendida na cama. A recém-chegada usava uma franja lisa, carrapito severo, óculos de aros grossos, e trazia lápis e bloco de taquigrafia. Enquanto passava, notou de repente a actividade que havia na cama. Parou, tão espantada que deixou cair o bloco e o lápis no chão. Ao ajoelhar-se para apanhá-los, mirou, fascinada, a moça a seu lado. Deixando o bloco e o lápis no chão, tirou os óculos devagar, rastejando para mais perto da cama, e curvou-se, colocando os lábios abertos num dos mamilos vermelhos da beldade de cabelos ruivos. A que ficara deitada de costas abriu os olhos, cessou a actividade, e abraçou fervorosamente a secretária totalmente vestida.

- Que merda - resmungou Guandt -, esqueci-me de que hoje o escritório estava a servir de cenário.

Pela primeira vez, Barrett desviou a vista da cena que tinha diante de si, e então, à direita, enxergou a câmara de filmagem sobre um tripé, tendo atrás um velhote barrigudo, de olho grudado à objectiva, concentrado na tomada. A seu lado, um reflector poderosíssimo reforçava as lâmpadas do tecto do escritório para iluminar a cena.

Quandt lançou uma mirada de esguelha para Barrett.

- Adivinhou - murmurou com voz rouca, justificando-se. - É um filme só para homens, um ramo subsidiário das minhas actividades, do qual não faço publicidade.

Barrett sacudiu a cabeça, estupidificado.

- Nós produzimos estes filmes mudos de mil e duzentos metros, dando para fazer um por dia e são bons como burro - explicou, ainda na defensiva. - Temos uma clientela que é o fino... organizações patrióticas, grupos de veteranos, até universidades, o que você quiser... e eles gostam de coisa de bom gosto, que é o que a gente fornece.

Franziu o cenho para Barrett, pronto para reagir a qualquer sintoma de censura, porém Barrett sabia que uma expressão impassível lhe petrificara o rosto.

- Estão a usar o meu escritório para este filme, e aquilo ali atrás da escrivaninha da secretária é o meu arquivo, mas não convém aproximar-me antes que a cena termine - avançou um passo. - Deixe ver se ainda falta muito.

A atenção de Barrett voltara-se para a acção em frente da câmara.

A moça nua em cima da cama havia desabotoado a blusa colante da secretária, que agora, de joelhos, já se desenvencilhara da blusa, atirando-a para longe, erguendo-se de pé, desabotoando e puxando o fecho da saia, e pondo-a de lado. Com dedos ágeis, abriu os grampos do soutien, chutando fora as chinelas de salto alto, tirando a alça das ligas, das meias e das calcinhas. Depois começou a fazer piruetas diante da moça do sofá e da câmara,, enquanto desfazia o carrapicho e soltava o cabelo sobre os ombros num gesto de libertação e abandono. Os seios em forma de pêra arfavam, as grandes nádegas, onde se via um sinal que parecia um morango, tremiam, e quando ela passou perto, de novo, deslizou a mão por baixo da cicatriz do apêndice e pôs-se a traçar círculos provocantes em torno da parte escura da saliência vaginal.

Completando o segundo círculo, olhou para o cineasta, que levantou a mão, indicando-lhe o sofá. Ela fez um aceno imperceptível. Num segundo, abraçava a moça de cabelos ruivos, de Vez em quando parando para beijar os seios ofegantes e a barriga contorcida da outra, prolongando ao máximo esses preâmbulos do orgasmo.

O alvo dessas homenagens amorosas usava agora as mãos para orientar a cabeça da parceira, e ao fazer isso fechou bem os olhos e começou a suspirar. Barrett ficou a imaginar se ela estaria representando ou a tornar-se de facto sexualmente excitada. Chegou à conclusão de que mulheres daquele tipo não seriam capazes de representar de modo algum, e que o caso era para valer. E, seja como for, que espécie de mulher eram elas?

Virou-se para Quandt e notou que a testa larga do pornógrafo reluzia, os olhos muito unidos faiscavam, enquanto ele não parava de mascar, com o charuto apagado e a saliva a escorrer do canto da boca. A sua concentração era intensa e absoluta. Meu Deus, pensou Barrett, ele está-se a refastelar com este espectáculo. Meteu-se neste negócio por amor e dinheiro, o voyeur profissional, autêntico, que sente prazer em olhar os órgãos e actos sexuais alheios. Que festança a Associação de Psiquiatras Americanos não faria com um indivíduo deste tipo. Segundo certos psicanalistas, os homens escolhem as suas carreiras por motivos inconfessáveis e ocultos. O cirurgião que toda a gente considera um benemérito, esconde subconscientemente o sádico que descobriu uma solução no bisturi. O dedicado assistente social, a benfeitora de liga feminina e o santo da igreja escoram subconscientemente os seus sentimentos neuróticos de inferioridade na conquista da dependência alheia, e assim se proporcionam sensações compensatórias de superioridade. O próprio psicanalista, ouvinte circunspecto do paciente mentalmente enfermo no divã, seria, em algum recesso sombrio do seu ego, um voyeur e nada mais. Portanto que impulso desconhecido teria levado Quandt a dedicar-se a esse mórbido e estranho comércio clandestino de promover a excitação sexual por intermédio de uma fita de celulóide? E, realmente, pensou Barrett, porque diabo também tinha permanecido nesta sala, assistindo ao que devia ser um acto íntimo, encenado sob a luz dos reflectores por motivos comerciais?

Impossível deixar de ver, mais uma vez, o que estava a ocorrer na cama. A moça de cabelos ruivos, deitada de costas, prendendo os seios com os dedos, o torso retesado em arco no ar, aguardava ansiosa a consumação, enquanto a outra mulher nua, no meio das suas pernas e debruçada sobre ela, a acariciava com um falo duro de borracha de vinte e cinco centímetros, a versão manufacturada do pénis artificial de milhões de imaginações. Quando a moça ajoelhada se achava prestes a amarrar o falo na devida posição, Barrett notou a presença de um terceiro actor, na sala. Um sujeito possante, o protótipo do estivador, com um pouco mais de trinta anos, visivelmente contrafeito no seu fato de corte conservador, estava a tirar o chapéu-de-coco e a observar a cena com evidente aborrecimento. As moças subitamente haviam notado a sua presença e parado com a actuação, ficando intimidadas com a sua indignação. Ele apontava para o relógio na parede.

Barrett ouviu Quandt abafar uma risadinha ao lado. Quandt curvou-se, ainda a rir, e cochichou:

- Um pequeno toque que eu acrescentei. O chefe chega ao trabalho, encontra as duas secretárias de rabo de fora, afagando-se voluptuosamente no sofá e a única coisa que reclama é que elas estão a perder tempo em vez de trabalhar. Nada mau, hem? Espie só.

Barrett espiou. Furioso, o chefe lançara o chapéu numa cadeira, aproximando-se das moças aterrorizadas e arrancando o falo das suas mãos. Fez um gesto de desprezo e depois apertou-o contra as calças, indicando que não se comparava com o verdadeiro. De repente, convidou-as a escolher o que preferiam. O medo histriónico de ambas transformou-se em alegria: enquanto o chefe largava o falo e o paletó no chão, a moça ajoelhada estendeu o braço para ajudá-lo a tirar as calças.

Quandt soltou uma gargalhada, que logo procurou reprimir, e no mesmo instante a cena inteira parou. O actor, que ficara só de cuecas, virou-se ao ouvir a gargalhada, e olhava para Quandt com exasperação.

- Meu Deus, Norman, como é que você espera que eu vá...?-começou a queixar-se.

- Desculpe, Gil, desculpe. Não foi por mal, muito pelo contrário. Não pare por minha causa. Nós vamos lá pra fora. Continue, continue, não interrompa a cena, não podemos perder tempo.

Tomando Barrett pelo braço, Quandt empurrou-o para fora do escritório, rumo ao corredor, fechando a porta de mansinho e sacudindo a cabeça.

- Gil é um desses tipos que desistem se há alguém a olhar. Muito temperamental. Agora ele já se acostumou com o cineasta e nem se incomoda. Mas se houver na sala uma pessoa que não faça parte do elenco, ele desiste. Mas eu gosto de o empregar. Já o usei em dez fitas. Se o talento se medisse em termos de erecção, Gil já devia ter ganho mais de dez prémios da Academia. Quando aquelas sirigaitas terminarem de se esfregar nele, o instrumento de interpretação do Gil vai deixar aquele consolador parecer um substituto ridículo. Que pau... deixa o da gente com cara de palito. - Olhou bem para Barrett. - É a primeira vez que assiste a uma coisa destas?

- Bom, é a primeira vez que assisto a uma filmagem. Quando eu era mais moço, na faculdade, vi alguns filmes de libertinagem no nosso grémio, mas foi só-'disse Barrett.

- Mas nunca viu uma filmagem? Então o que achou?

- Cada qual com a sua mania - replicou Barrett. - Não é o tipo de coisa de que eu gosto.

- Quer dizer que acha anormal - retrucou Quandt com um resquício de malevolência na voz.

- Não foi isso que eu disse-contrapôs logo Barrett.

- Olhe, vou-lhe dizer uma coisa que talvez lhe ensine um pouco da vida com a experiência que tenho neste negócio. E com o que leio, também. Eu leio como burro. Chego até a ler esses livros do Kinsey. O senhor talvez não leia, mas eu sim. E sabe uma coisa? Naquelas entrevistas ficou provado que setenta e sete por cento dos machos que eles testaram haviam tido tesão com fotografias de actividade sexual. E quanto às mulheres, trinta por cento delas chegaram a confessar que os filmes de libertinagem e fotografias comuns as deixavam no cio. O que eu estou a dizer é que há uma necessidade saudável pra este tipo de estimulante, compreende? Nunca viu reproduções daqueles frisos de escultura nos templos sagrados da índia, feitos há nove séculos? Aquilo era pura bandalheira e estava lá porque eles tinham necessidade disso. Este filme que estou a fazer lá dentro da sala de reembolso postal. A Secretária Modelo, para quem o senhor acha que é? Para mim, para me dar tesão? Nada. É para as festas dos melhores grémios universitários, e tudo quanto é espécie de sociedade, Legião Americana, Rotary, Kiwanis, onde respeitáveis homens de negócios se reúnem para uma noitada de descanso. É preferível que eles se excitem sem compromisso do que sair por aí para arranjarem prostituta na rua e apanharem gonorreia. Mas não é só isso. Eu não faço estas fitas para divertir. Também faço por motivos científicos, para as grandes universidades que guardam colecções eróticas para mostrar todos os aspectos da vida na nossa época. Sabia que o Instituto Kinsey de Pesquisa Sexual na Universidade de Indiana tem uma colecção de filmes de libertinagem que abrange mais de meio século? O nosso melhor freguês é um professor da Faculdade Reardon em Wisconsin, o Dr. Ro!f Lagergren, especialista em pesquisa sexual...

- Sim - interrompeu Barrett. - Falei com ele pelo telefone. Ele há-de vir cá para servir de testemunha.

- Ah é? Pois pode apostar como ele passará por aqui para visitar o estúdio. Ele e os outros professores são capazes de pagar cinquenta a cem cruzeiros por cópia de um desses mil metros de bandalheira e ficam felizes por conseguir esse preço, porque é para fins científicos. Como é que vão conseguir um material desses prà ciência, se não houver alguém que faça esse tipo de coisas? Agora diga-me o que é que isso tem de mal.

Embora ele fosse um advogado da liberdade em todas as artes, Barrett sentiu vontade de dizer uma porção de coisas sobre o que aquilo tinha de mal; porém sabia que se o fizesse seria um desastre. Não devia ofender Quandt de modo algum, e sabia disso. Esquivou-se à pergunta agressiva, procurando distraí-lo com uma manifestação de interesse simulado.

- Os filmes de garotas ou nudismo que o senhor está a fazer lá em baixo, acho fácil compreendê-los - disse Barrett. - é uma coisa legal e fácil...

- E ideal para deixar o sujeito nas lonas - replicou Quandt. - Não há bastante lucro, considerando-se o investimento. Os de libertinagem são mais fáceis e não falham e, além disso, não oferecem risco. A plateia é seleccionada. São vendidos e exibidos em sigilo. De modo que não há protestos públicos. E a renda é garantida. Se a gente quer continuar no ramo, com leis idiotas ou não, tem de se fazer os de libertinagem também.

- Mas como faz para conseguir os... actores para esse tipo de filme?

- Nada mais fácil. Há tanta mulher moça actualmente que anda a dá-lo de graça que chega um dia em que ficam espertas e vêem que podem ganhar dinheiro fazendo a mesma coisa. Claro que nós usamos algumas prostitutas, mas só as novatas, que ainda são bonitinhas. Na maior parte, conseguimos as garotas que não têm sorte nos grandes estúdios, mesmo nos sofás de quem escolhe o elenco, e alguns modelos de modas, que são mal pagas, e algumas garotas da vizinhança, que ficam todas excitadas por se despirem diante de milhares de homens de todo o país. Aquelas duas que estão lá dentro, pago eu cento e cinquenta cruzeiros a cada uma, só pelo episódio de hoje. E Gil, esse mantém a sua condição de amador, representa de graça. Ele gosta de copular. E porque não? O único defeito dele é o pénis. Grande de mais. Muita gente na plateia não gosta, dá complexo de inferioridade. Eu gosto que os meus actores não ultrapassem uns treze centímetros... para que o público possa identificar-se. Mas Gil é um grande fodedor, quando representa é a valer, por isso é que o emprego. Em todo o caso, um dia gostaria de conseguir alguém que se tornasse um nome importante em show business. Aí então a gente pode tornar a exibir o mesmo filme, especialmente alugado, durante anos. Como aquele produtor lá do sudoeste, que agarrou aquela famosa dançarina de strip-tease, aquela do busto enorme, conhece, Candy Barr. Pegou nela no começo da carreira, há uns vinte anos, lançou-a num filme de libertinagem chamado O Vivaldino, filmado num motel do Texas a preço de uva mijona, e depois Candy ficou famosa e o tal filme passa todos os anos. - Quandt fez uma pausa, consultou o relógio. - Hei! não tenho mais tempo. Vamos ver se eles já terminaram lá dentro. Se não, bem, vou procurar o nome daquele negociante de autógrafos e depois mando-lhe pelo correio.

- Mr. Quandt, eu daria tudo para conseguir isso ainda hoje. O julgamento está a começar e qualquer arma que tivermos contra Duncan...

Entraram, Para alívio de Barrett, a cena já tinha acabado. As duas moças estavam sentadas no sofá-cama, uma acendendo um cigarro, a outra enxugando-se com uma toalha. O actor enfiava as calças. O cineasta aproximou-se, dizendo:

- Assim que o senhor estiver livre, dir-lhe-ei o que vamos filmar agora. É aquela em que Gil tenta fechar negócio com o grande comprador do Texas.

Barrett ficou para trás, enquanto Quandt atravessava a sala, dizendo qualquer coisa à moça de cabelos ruivos e batendo de leve no mamilo escuro da que usava franja, que sufocou um risinho. Nervoso, Barrett esperou que Quandt abrisse uma gaveta do arquivo e corresse o dedo pelas pastas de manilha. Por fim, tirou uma e pôs-se a examinar o que continha. Devolveu a pasta ao arquivo.

De repente, assustadoramente, ouviu-se um zumbido agudo e estranho na sala. Uma luz vermelha em cima do relógio começou a acender e a apagar, e Quandt fechou a gaveta do arquivo com estrondo, gritando:

- O alarme, puta de merda! Vocês sabem o que têm que fazer!

Barrett não só ficou espantado com o alarme como também com o pandemónio que se formou no escritório. A porta atrás dele foi escancarada, e dois homens baixos e morenos entraram a correr. Uma parede corrediça junto do sofá-cama também se abriu e as moças nuas passaram apressadas por ela, seguidas pelo cineasta com o seu equipamento, enquanto os dois morenos pegavam no reflector e nos outros vestígios de filmagem. No meio disto tudo, dirigindo os movimentos, Quandt examinava a sala para ver se tudo estava em ordem. Em questão de poucos segundos, o cenário cinematográfico convertera-se, mais uma vez, em escritório de reembolso postal.

Barrett viu que Quandt vinha na sua direcção, com o semblante e os punhos crispados de raiva.

- Seu filho da puta - rosnou para Barrett -, foi você quem...!

- Não sei do que está a falar. Que está a acontecer?

- Não é um aviso lá de baixo. A Polícia 'stá aí a perguntar por mim. Provavelmente os guarda-costas à paisana do Promotor Público. Foi você quem deu à dica...

- Ficou maluco, Quandt? Você leu nos jornais. Eu estou do outro lado.

- Pois esta é a primeira vez que eles aparecem por aqui, e, puta de merda, é uma coincidência danada que você também esteja aqui. Até agora eles nem sequer sabiam que eu era do ramo... Ocorreu uma ideia a Barrett.

- Escute, Quandt, preste atenção e acredite em mim. Aquele sacana do Duncan mandou certamente alguém seguir-me e eles vieram até cá. Mas não é atrás de você que eles andam. É de mim! Eu sou o inimigo agora. E se eles me encurralarem no seu estúdio... com os filmes de bandalheira... os nus... eu, o grande defensor da arte, ligado a pornógrafos ilegais... pode imaginar o Carnaval que não fariam pela televisão e pelos jornais?... difamando-me antes de eu aparecer no tribunal...

Quandt olhou freneticamente para os lados.

- Sei lá. Talvez você esteja a ser sincero comigo, talvez não. Mas acho que está contra Duncan, e tenho de aceitar o que diz. Okay, siga-me. Há uma saída pelas traseiras, que passa por baixo da garagem. Uma das pequenas vai-lhe mostrar. Você dará o fora sem o menor perigo.

Estendeu a mão para a parede ao lado do sofá, tocou no painel, e a parede corrediça abriu-se de novo, revelando uma passagem estreita.

- Suma-se daqui - mandou Quandt -, e nunca mais apareça perto deste lugar.

- Não se preocupe - retrucou Barrett. Meteu-se pelo túnel. Viu Quandt estender o braço para fechar a parede. - Mr. Quandt...

- Não tenho tempo para nada. Preciso de ir falar com aqueles polícias lá em baixo.

- Mr. Quandt - tornou a chamar Barrett, o negociante de autógrafos, aquele a quem o senhor vendeu as cartas de Jadway...

A parede já estava a ser corrida.

Foi então que Barrett ouviu a voz de Quandt.

- Olin Adams Autógrafos... Olin Adams... Rua Cinquenta e Cinco... Nova Iorque.

A parede fechou-se e Barrett virou as costas. Ao longe, finalmente, avistou uma claridade.

 

Hora e meia mais tarde, na acolhedora segurança do seu consultório jurídico, Mike Barrett tinha recém-terminado de contar a sua aventura com Norman C. Quandt. Abe Zelkin caminhava de um lado para o outro diante da escrivaninha.

- E o tal Quandt fumava um charuto igual ao que você está a fumar - acrescentou Barrett. -Só que você não se baba todo como ele.

Zelkin olhou para o charuto.

- Não tenho nenhum motivo para me babar. Ele sim.

- Que sujeito horrível! - Barrett sacudiu a cabeça. - Que negócio nojento. Close-ups de “broche”, cunnilingus, coito, sodomia, orgasmos, sem falar nos falos de borracha, É tudo em nome da liberdade sexual e da exaltação da ciência. Pode ser que esses filmes de libertinagem não prejudiquem mais do que os filmes ou livros concebidos e executados honestamente, mas há qualquer coisa sobre os homens que os produzem, os Quandt deste mundo, que me deixa doente. Talvez pareça incongruente, Abe, mas não deviam deixar que um sujeito como Norman C. Quandt continuasse no ramo.

- Se chegarem a prendê-lo, apanha cinco anos.

- Ninguém o apanhará. Ele é viscoso e escorregadio de mais. Estes são os tipos que transformam o sexo em palavrão, e tornam a coisa difícil para gente como nós. Eu fico danado... isso é que é triste, Abe... quando defendemos a liberdade de expressão e a liberdade da imprensa, também defendemos os direitos de toda uma comunidade subterrânea de répteis, de gente como Quandt. Eles não prestam porque são desonestos. No entanto somos forçados a tê-los no nosso batalhão. Se a gente é contra a censura, fica obrigado a ser contra toda a espécie de censura. Eu só queria que houvesse uma forma de traçar um limite, de seleccionar os que merecem ser defendidos daqueles que não o merecem. Mas quem fará a selecção, quem há-de separar os que têm mérito dos que são meretrícios? Onde encontrar esse supremo árbitro e juiz?

Zelkin tinha parado de caminhar. A cara de abóbora estava grave.

- Deixe isso para lá, Mike. Não estamos a defender Quandt. Estamos a defender Jadway. Sem querer, é possível que Quandt tenha servido a causa da liberdade, por mais pomposo que soe. Ele deu-lhe o nome do tal negociante de autógrafos... Olin Adams, não é?... muito bem, isso talvez seja o nosso maior trunfo contra Duncan até agora. E bem na hora. Antes do tribunal suspender a sessão hoje, concordámos em oito jurados. Ficaram mais quatro para se resolver amanhã. Se conseguirmos, estaremos prontos para começar segunda. Por um lado, dou graças a Deus por este novo adiamento. E por a Polícia não o ter encontrado em companhia de Quandt e de todas aquelas garotas nuas.

- Tem toda a razão. Já pensou nas parangonas? “Advogado de Defesa Surpreendido em Orgia Sexual com Belezas Sem Nada em Cima... e Sem Nada em Baixo...” Isso significaria o fim para nós, sem apelação.

A campainha do telefone tocou e Barrett levantou o auscultador. Era Donna.

- Consegui Nova Iorque, Mr. Barrett. Por sorte apanhámos OMn Adams no momento exacto em que encerrava o expediente por hoje. Ele está na linha. Na primeira.

- Obrigado, Donna. Caso a nossa sorte continue, verifique os próximos voos para Nova Iorque - ergueu os olhos para Zelkin. - Estamos com Olin Adams na linha, Abe. Cruze os dedos.

Barrett accionou a tecla acesa.

- Mr. Olin Adams?

A voz era distante e amável.

- Sim. Em que lhe posso ser útil, Mr. Barrett?

- Soube que o senhor adquiriu um maço de cartas autênticas de cerca de dez anos... escritas na década de 30 por J J Jadway, o autor de Os Sete Minutos. Fui informado disso hoje pela pessoa que as vendeu ao senhor.

- As cartas de Jadway. Sim, lembro-me. O senhor acertou.

- Ainda as tem à venda? - perguntou Barrett, e depois esperou ansioso.

- Se as tenho? Ah, claro que sim. Mal tive tempo de as desempacotar, para colocá-las em ordem e incluí-las no meu próximo catálogo. Temos andado ocupados, examinando duas grandes colecções, uma de manuscritos de Walt Whitman e a outra da correspondência de Martin Luther King, que chegaram antes do material de Jadway.

Fazendo um rápido sinal de vitória com os dedos para Zelkin, Barrett voltou a concentrar-se na conversa.

- Mr. Adams, folgo muito em saber que o senhor ainda está de posse do material de Jadway, pois estou interessado em adquiri-lo. Pode dizer-me exactamente em que consiste?

- De momento não, Mr. Barrett. As cartas ficam trancadas no cofre durante a noite. Eu estava mesmo a sair neste instante para ir para casa. Quem sabe, amanhã...

- Bem, quem sabe se não podia dar-me uma ideia geral, de memória?

- Como já disse, desembrulhei a pasta que as continha há uma ou duas semanas, e só tive tempo de autenticar as cartas. Se me lembro bem, havia quatro, três do próprio punho, assinadas por Jadway, e outra dactilografada, com a assinatura de Jadway batida à máquina, cujo verso trazia a firma reconhecida de uma tal Miss McGraw, a apaixonada de Jadway, segundo sei. Ao todo, mais ou menos nove páginas de texto.

- E o que diziam, Mr. Adams?

- De momento não me recordo. Mal passei os olhos pelo texto. É quase tudo sobre literatura... comentários sobre o modo dele escrever o romance e um punhado de dados autobiográficos destinados à contracapa de um livro. É difícil lembrar-me de tudo, com esta história de Walt Whitman e...

- Mr. Adams, eu gostaria de comprar o material de Jadway à vista, mesmo sem ver como é.

- Eu não queria que o senhor fizesse isso. Seria muito imprudente.

- Pouco importa. Preciso das cartas. O senhor pode dizer-me o preço?

- Bem, eu não tive tempo de avaliar...

- Estipule uma quantia, e se cobrar de mais por elas. prometo não reclamar.

- Hummm. Assim é difícil, Mr. Barrett. Estas são as primeiras cartas de Jadway que aparecem em circulação, ao que me consta, e não houve nenhum leilão do conjunto até agora.

- Mas o senhor deve ter alguma ideia, Mr. Adams - insistiu Barrett, contendo a impaciência. - Diga um preço que sabe que o contentaria.

Fez-se um silêncio e depois tornou a ouvir-se a voz do negociante.

- Olhe, nós cobramos cinquenta dólares por uma carta de Sinclair Lewis e às vezes duzentos e cinquenta por uma de Whitman, e apesar de Jadway não ser nenhum dos dois, sempre é uma raridade, e a sua fama recente talvez um dia empreste interesse especial a certos coleccionadores. É remotamente possível que o nosso maço de Jadway possa algum dia valer, hummm, digamos talvez, talvez até oitocentos dólares.

- Negócio fechado - replicou Barrett imediatamente. Do outro lado da linha fez-se novo silêncio, e quando

Olin Adams recuperou a voz, parecia confuso. ~-Eu... o senhor disse...?

- Disse que compro as cartas de Jadway por oitocentos dólares. O senhor está satisfeito com o negócio?

- Pois... pois já que o senhor quer... sim.

- Quero, sim.

- Muito bem, Mr. Barrett, óptimo. São suas. Se o senhor mandar um cheque com essa importância pelo correio e puder esperar que seja descontado, enviar-lhe-ei as cartas por via aérea.

- Não. Preciso delas com a maior urgência, Mr. Adams. Hoje à noite vou tomar o avião para Nova Iorque. A que horas o senhor abre o expediente de manhã?

- Às nove.

- Passarei pela sua loja entre as nove e as dez. Não haverá cheque a descontar. Pagarei à vista. Não se esqueça de deixá-las à mão.

- Estarão à sua disposição, Mr. Barrett. E obrigado, muito obrigado.

- Até amanhã, então.

Barrett colocou o telefone no descanso e sorriu radiante para Zelkin.

- Excelente - disse Zelkin, esfregando as mãos. - Agora conseguimos algo. Jadway a falar do túmulo, talvez para refutar a afirmativa de Leroux de que ele só visava o lucro e a pornografia. Isabel Vogler para refutar o testemunho de Jerry Griffith de que foi o livro sozinho que o transtornou. As coisas estão a melhorar.

- Ah, por falar nisso, Abe, não não seria bom você ligar para Mrs. Vogler dizendo que estou de partida para Nova Iorque, mas que lhe telefonarei assim que voltar amanhã à noite? Preciso de falar com ela amanhã sem falta. Peça-lhe que me espere.

- Deixe por minha conta.

A campainha tocou outra vez. Era Donna.

- Duas coisas, Mr. Barrett. As suas reservas de passagem para Nova Iorque. Fiz duas, em voos que saem do Internacional às oito e às nove. Com este último, o senhor vai chegar muito tarde a Kennedy.

- Não posso arriscar-me. Marque no das oito. E ligue de novo prò interurbano e fale com o Plaza. Preciso de um quarto de solteiro para logo.

- A outra coisa, Mr. Barrett. Enquanto o senhor estava ao telefone com Mr. Adams, houve uma chamada de Miss Osborn. Ela disse que era urgente e quer que o senhor lhe ligue já.

- Urgente? Está bem. Disque para lá antes de fazer o resto - levantou os olhos para Zelkin. - Tenho de falar com Faye. Qualquer coisa urgente, não sei o que será.

- Eu deixo-o - disse Zelkin. - Estarei no meu gabinete, para telefonar a Mrs. Vogler. Procure por mim antes de se ir embora.

Momentos após a saída de Zelkin, Barrett falava ao telefone com Faye Osborn.

A tensão da voz dela tornou-se imediatamente evidente.

- Mike, eu sei que cancelou o encontro que tinha comigo hoje à noite porque está cheio de trabalho, mas preciso de lhe falar. É tremendamente importante.

- Faye, sinto muito, agora não é apenas trabalho... é trabalho em Nova Iorque. Vou tomar o avião das oito. Mas amanhã estou de volta.

- Mike, simplesmente não posso esperar. Preciso de falar com você hoje à noite.

- Mas já lhe disse... - hesitou. - Não pode falar agora? Sobre o que é?

- Não, agora não pode ser.

- Então a caminho do aeroporto. Você pode levar-me de carro.

- Não. Mike. Isso requer um lugar tranquilo, e não sei quanto tempo vai levar. Talvez necessitemos de umas duas horas. - Depois, com ênfase, acrescentou: - Mike, trata-se de todo o seu futuro, do seu e do meu.

Aquilo parecia urgente e perturbou-o.

- Bem, já que é assim, façamos uma coisa. Donna pode trocar a minha reserva, tentando conseguir-me o voo que parte do Internacional à meia-noite, e eu posso dormir um pouco a bordo. Levarei a maleta de mão no carro, e talvez seja melhor deixar uma margem de uma hora para ir da cidade ao aeroporto. Quer encontrar-se comigo às oito e meia ou às nove?

- Preciso de tempo para falar com o Papá antes de me encontrar com você. Deixemos para as nove. Onde?

- Digamos no Century Plaza. Há uma sala de visitas no andar térreo. O Granada Bar. Quer encontrar-se lá comigo?

- Às nove em ponto - concordou Faye. - Lá estarei. E desligou.

Barrett ficou sentado, pensando.

Faye havia dito, "Trata-se de todo o seu futuro, do seu e do meu.” E também: "Preciso de tempo para falar com o Papá antes de me encontrar com você."

 

Completamente enigmático, e, no entanto, vagamente ameaçador.

Após alguns instantes, ainda inquieto, tocou a campainha para pedir a Donna que trocasse a reserva da passagem.

 

Ele conseguiu uma mesa nos fundos do Granada Bar. À sua frente tinha o uísque com gelo em que ainda não tocara. O bar do hotel estava por metade, mas ele mal dava conta da ininterrupta tagarelice dos turistas e caixeiros-viajantes em trânsito. Estava preparado para Olin Adams em Nova Iorque. Deixara a maleta de mão no carro e os oitocentos dólares em cédulas num sobrescrito no bolso interno do paletó, junto com a carteira. Não estava preparado para Faye Osborn. Chegara finalmente à conclusão de que ela havia adiado a sua partida por algum motivo pessoal e frívolo, e sentia-se levemente ressentido.

Ainda por cima estava atrasada e ele achava-se impaciente.

Após quinze minutos de espera, quando já começava a tomar o uísque, viu-a chegar. Vestia o casaco bege-claro de seda. Enquanto procurava localizá-lo no meio dos frequentadores do longo balcão do bar, ele levantou-se um pouco, acenando, tentando chamar-lhe a atenção, e por fim conseguiu. Faye encaminhou-se rapidamente para ele, que terminou por se levantar por completo para recebê-la.

- Querida - saudou.

Ela ofereceu a face que ele beijou, e depois ela esgueirou-se por trás da mesa e ele instalou-se a seu lado.

- Quer que vá guardar o seu casaco? - perguntou.

- Não, vou ficar com ele nos ombros.

Ajudou-a a despi-lo e ajeitá-lo em torno dos ombros. O vestido de seda para cocktail era novo.

- Bonito vestido - comentou.

- Obrigada, Mike - disse ela, mas sem lhe dar nenhum sorriso de reconhecimento. O rosto estava magro e contraído, quase tenso. -O que é que está a tomar? Uísque? Não, obrigada. Vou beber uma menta.

A criada de uniforme mostrou-se alegre e graciosa, e ele pediu a menta e outro uísque.

- Desculpe a demora - disse ela. - Tive de falar com o Papá de novo e ele chegou tarde não sei de onde, e conversámos durante todo o jantar e até depois ainda, e por isso não deu para saír tão cedo como eu pretendia.

Mais enigma, pensou Mike.

- Temos tempo de sobra - disse ele.

- Porque é que vai a Nova Iorque assim de repente?

- Ando na pista do passado de Jadway. Talvez haja lá alguma informação vital que possa ser útil no tribunal.

- Julguei que talvez tivesse encontrado outra testemunha. "

- Não, desta vez não. A não ser que surja algum imprevisto, acho que temos todas as testemunhas necessárias...

Ela ia dizer algo mas esperou que a criada terminasse de servir as bebidas e colocasse o prato de castanhas em cima da mesa.

- Mike... - disse ela.

Barrett já havia levantado o novo uisque.

- À nossa.

- Sim à nossa -repetiu, erguendo a bebida verde e sorvendo de leve nos dois canudos curtos espetados no gelo moído. E pousando o copo, acrescentou:- Pelo menos, espero.

- Espera o quê?

- Que continuemos alegres... depois desta conversa.

- Faye, eu gostaria de que você dissesse já do que se trata.

Ela virou-se para o encarar.

- É sobre as suas testemunhas - disse. - Pelo menos, uma delas.

- Como assim?

- Quando conversámos hoje à tarde, ou seja lá quando foi, lembra-se?... você disse-me que tinha descoberto uma nova testemunha para defesa. A tal mulher, Isabel Vogler. que já trabalhou prà família Griffith.

- Exacto.

- E estava todo entusiasmado porque aquela mulher horrorosa ia aparecer no banco das testemunhas e provar... como foi mesmo que você disse?... que Mr. Griffith podia -ser tudo menos um paradigma de virtudes” e que prejudicara o filho mais do que uma dúzia de livros. Creio que foi isso que você disse.

- Sem tirar nem pôr.

- E você disse qualquer coisa mais ou menos assim, que nem o Papá nem eu fazíamos a menor ideia de como Frank Griffith era na vida íntima.

- E você considerou Isabel Vogler uma delatora por expor os factos a respeito do ex-patrão no banco das testemunhas.

- Mais do que delatora. Completamente imoral e ordinária.

- Ao passo que não acha imoral nem ordinário que o promotor público Duncan faça desfilar testemunhas que difamarão um autor morto que não pode defender-se pessoalmente- revidou cáustico -, e não vê mal nenhum em proporcionar diversão pública em levar ao banco das testemunhas um rapaz perturbado emocionalmente, que nada tem que fazer neste julgamento, mas está a ser usado da mesma maneira que Hitler usou aquele pobre holandesinho demente, van der Lubbe, para alcançar poder político pessoal - fez um esforço para se controlar. - Você considera isso moral e decente?

- Mike, por favor, pare com isso - disse Faye exasperada. - Porque é que você faz sempre isso? Não suporto esse seu hábito de reduzir sempre tudo o que a gente diz a argumentos de advogado, obscurecendo constantemente a verdade com cortinas de fumo de frases de duplo sentido. Será que você não pode, ao menos uma vez, deixar o seu diploma de direito no escritório e falar comigo como um ser humano? O expediente já encerrou, sabe? Se quer dobrar-me com o seu argumento, nada mais fácil. Esse tal escritor de que você vive a falar, o Jadway, está morto e enterrado, e nada do que Duncan disser pode prejudicá-lo. E quanto a Jerry, ele é um tarado confesso, ficou arruinado e irá prà cadeia, e tudo o que Duncan fizer com ele não poderá causar-lhe dano maior. Mas você, recorrer a alguém como Isabel Vogler... que pode ser nociva a uma pessoa viva, cuja reputação é impecável... Como toda a pessoa de vida pública, Frank Griffith expõe-se a um ataque de mentiras. A sua reputação e negócios são capazes de se danificarem sem remédio por uma vulgar doméstica que ele se viu na obrigação de despedir e que agora encontra oportunidade para se vingar. Essa mulher é má. Eu admiro-me de que você tolere e, o que é pior, apoie e estimule que ela profira essas falsidades. E a troco de quê? Eu sei, eu sei. Para provar um pormenor qualquer no tribunal, que talvez não tenha sido aquele livro abjecto o culpado do acto de Jerry, que talvez, pelo contrário, fosse culpa do pai. Francamente, Mike, conhecendo-o como eu o conheço; preocupando-me por você como me preocupo, custa-me acreditar que seja você quem esteja a fazer uma coisa dessas.

- Custa a acreditar? - repetiu irritado.

- Custa. Porque você vale mais do que isso. Ah, que inferno, vamos mudar de assunto. Parece que ultimamente só vivemos a brigar, e não quero saber mais de discussões- inclinou a cabeça e sorveu um gole de menta. - Como foi que desviámos deste jeito o fio da conversa?

- Será que desviámos mesmo, Faye? - retrucou ele mais calmo.

Ela olhou-o demoradamente nos olhos e depois franziu a testa.

- Não, talvez não. Muito bem. Vou dizer porque precisava de falar com você. Hoje de tarde você ligou de novo para mim e mencionou Isabel Vogler. Ora, o Papá estava em casa e talvez tenha escutado por acaso parte da nossa conversa, antes de eu lhe contar a ele a respeito da última testemunha que você conseguiu. Achei que devia falar, pois queria saber a opinião dele sobre o assunto. Você sabe perfeitamente que o Papá e Frank Griffith vêm mantendo uma longa e compensatória relação de negócios. Respeitam-se mutuamente e gostam muito um do outro, e Mr. Griffith é responsável pela colocação de uma vasta quantidade de anúncios dos seus clientes no horário nobre das estações de televisão do Papá. Portanto, naturalmente, você há-de compreender como o Papá se sentiu quando soube que você ia usar uma testemunha para caluniar Frank Griffith.

- E como foi que o Papá se sentiu? - perguntou ele, arremedando-a.

As feições dela alteraram-se.

- Você está a ser sarcástico?

Eh, a filhinha do papá, pensou. Mexera no ninho de vespas. Mudou de tom.

- Só quero saber qual foi a opinião do seu pai,

- Ainda bem. Vou dizer-lhe o que ele achou. Ficou tão preocupado que saiu à procura de Mr. Griffith, para lhe participar o que você pretendia fazer... para prevenir um amigo, para deixá-lo de sobreaviso contra qualquer injúria que Mrs. Vogler seja capaz de proferir contra ele. Depois o Papá telefonou-me do escritório de Griffith, frisando que Griffith estava furioso com Mrs. Vogler e com você também por pensar sequer em usar aquela megera publicamente no tribunal. O Papá está convencido, depois da conversa que teve com Frank Griffith, que Mrs. Vogler é uma mentirosa psicopática, uma pessoa verdadeiramente perigosa para se ter perto... indigna de confiança, zaragateira, encrenqueira, ressentida contra qualquer patrão que a tenha despedido por causa desses defeitos, e que, a exemplo de todas essas domésticas que estão sempre a queixar-se da sua falta de sorte na vida, é uma paranóica que só quer tirar desforra de gente de categoria superior à dela.

- Entendo - disse Barrett. Começava a entender uma porção de coisas, inclusive a importância deste encontro com Faye. - Quer dizer que seu pai acredita em Frank Griffith e você também, não é?

- E você não, depois de tudo o que acabo de contar? Quando se trata da palavra daquela infeliz contra a de uma" pessoa da integridade de Mr. Griffith, pode haver dúvida?

- Só porque ele pertence a uma categoria superior à dela?

- O que foi que disse, Mike? Não ouvi bem.

- Nada. Não era nada.

- Seja como for, depois que o Papá falou com Mr. Griffith e ligou para mim, ele pediu-me que lhe telefonasse. Queria que eu lhe contasse a história toda. Aí, então, quando tornei a ligar para ele, dizendo-lhe que você tinha concordado em adiar a viagem para se encontrar comigo, o Papá disse que precisávamos de conversar antes de eu me encontrar com você. De modo que isso aconteceu durante o jantar e mais tarde, e por isso me atrasei.

- E agora contou-me - completou Barrett.

- Não exactamente, Mike. Ainda não contei tudo. Falta dizer-lhe o que o Papá discutiu comigo durante o jantar.

Barrett pegou no seu uísque, quase esvaziando o copo e preparou-se.

- Muito bem. Pode dizer.

Ela sentou-se perfeitamente erecta, com um ar muito prático, idêntico ao que Willard Osborn II costumava adoptar.

- Mike, nós somos íntimos de mais para andar com rodeios. Sempre fui totalmente franca com você, e presumo que você sempre se tenha portado da mesma forma comigo. Portanto direi simplesmente o que vim aqui para dizer, e sei que aceitará isso com a intenção com que é dito, porque sei que é intrinsecamente responsável e tem um forte sentido da decência. E sei que posso falar com toda a franqueza, porque o Papá simpatiza com você, eu gosto de você, e nós acreditamos que você sinta a mesma coisa por nós.

Nós. Ele ouviu o nós. Muito bem, nós, desembuche depressa.

- O que é que me quer dizer, Faye?

Ela mexeu os canudos ao redor do gelo moído que se derretia na bebida.

- Resume-se no seguinte - disse ela. - O Papá quer que eu lhe diga que qualquer ideia de usar Isabel Vogler como testemunha está fora de cogitação. Ele simplesmente não pode permitir que você continue com esse plano, não só por causa de Mr. Griffith mas por causa de você mesmo. Ele disse que tinha a certeza de que você haveria de compreender, e eu prometi-lhe que faria tudo para que você compreendesse. O Papá achou que, ao concordar com ele, você estaria a fazer apenas o menor compromisso, do tipo que as pessoas metidas em grandes negócios estão acostumadas a fazer a toda a hora, diariamente. Quando a gente ocupa a direcção, são os outros que fazem concessões. Quando a gente não ocupa, então é a nossa vez de se curvar. Tudo faz parte do mesmo jogo de conseguir as coisas com jeito, e tocar o barco prà frente. Isso faz parte do negócio, disse ele, e em breve você será uma peça importante da organização, e, portanto, tem toda a vantagem em não hostilizar, e muito menos crucificar, um amigo de cuja boa vontade você e Papá tantas vezes hão-de depender. O Papá tinha a certeza de que você se mostraria razoável a esse respeito, e eu garanti-lhe que assim que eu falasse com você não haveria mais problemas.

Pronto.

E agora que fazer?

A memória levava-o de volta ao segundo ano da faculdade, quando coleccionava epigramas, aforismos, citações, achados inteligentes para o aconselhar, orientar e tornar mais criterioso. Sentira um prenúncio de realidade ao anotar, tomando de empréstimo a Juvenal, que a integridade recebe elogios mas passa fome. E tinha havido uma compreensão final de si mesmo ao perceber que, tal como o Velho Marinheiro de Coleridge, ele era

Como aquele, que numa estrada solitária,

Caminha com medo e temor,

E depois de voltar-se uma vez, segue em frente,

E nunca mais vira a cabeça,

Porque sabe que um inimigo terrível

Lhe acompanha os passos de perto.

Finalmente avistava o inimigo. Mais uma vez, como há tanto tempo, caminhava com medo e temor. Ousaria seguir adiante, certo de que nunca, nunca mais tornaria a virar a cabeça?

Olhou fixamente para ela. O rosto calmo e presunçoso dos superiores. Recordou a sua ordem, a ordem da filhinha de papá, de que usar Isabel Vogler como testemunha estava fora de cogitação. O Papá tinha a certeza de que ele se mostraria razoável. A filhinha havia garantido ao papá que não haveria mais problemas.

- Mas há um problema, Faye - replicou. - Então, feito o Velho Marinheiro, seguiu em frente e não virou mais a cabeça. - Porque sabe de uma coisa? Vou pôr Isabel Vogler no banco das testemunhas.

Um pequeno abalo, um ligeiro tremor, e a compostura artificial de Faye partiu-se ao meio.

- Mike, você não pode estar a falar a sério, não, depois do que acabo de lhe dizer. O Papá frisou que isso está fora de cogitação. Ele não quer aquela mulher no banco das testemunhas.

- Mas eu quero.

O sismógrafo dos superiores oscilou, e a fenda na compostura de Faye transformou-se em franca incredulidade.

- Você está a provocar-me, não está? Se estiver, é uma crueldade, mas basta dizer que é brincadeira para lhe perdoar. Isso é sério, Mike. Você não imagina quanto.

- É por isso que estou a falar a sério.

- Mike, você tem uma dúzia de testemunhas para aquele julgamento... todas as de que precisa, como você mesmo o disse. Porque é que lhe é tão importante tentar opor-se ao Papá e destruir Mr. Griffith? Aquela bruxa de faxineira não é digna disso.

- Mas a verdade é, a verdade é digna disso, especialmente neste julgamento.

- Este julgamento - repetiu, com raiva impotente. - Estou para além de farta desse julgamento, desse livro, do que eles fizeram de você. Estou farta, entendeu? - agarrou-o pela manga. - Mike, escute uma coisa, porque é a última vez que direi isto. Desde o início o Papá mostrou-se totalmente contrário a que você se envolvesse no caso. Simplesmente ele não queria. E sei que ele tinha razão. Ele sempre está com a razão em assuntos dessa espécie. No entanto, fiquei tolhida no meio dos dois, e embora soubesse que era um erro, quis ajudá-lo a você. Foi por isso que convenci o Papá a deixar a vice-presidência aberta e permitir que você cumprisse o compromisso de defender o livro de seu amigo editor. Agora arrependo-me. Concordando com você, simplesmente deixei que se afundasse cada vez mais na lama. Eu devia ter batido o pé desde o início, concordado com o Papá e teríamos impedido todo este desgaste, e toda a gente estaria mais contente. Mas ainda é tempo. Não posso viver em paz comigo mesma se não agir por sua conta. Mike, por favor, faça o que lhe peço. Não deixe que se cometa esse assassínio moral de Frank Griffith. Ponha de lado a tal Vogler e eu prometo-lhe que tudo continuará como antes entre você e o Papá.

Continuou a olhar fixamente para ela. Quando afinal falou, as suas palavras foram medidas.

- Fico-lhe grato pelo que quer fazer por mim, Faye. Compreendo o motivo por que seu pai quer que me force a recuar em relação a Griffith. Mas creio que ele está, enganado... sei que ele está... e acho que você também está. Não vou subverter a verdade para dar auxílio e alívio a dois parceiros de negócios, nem tão-pouco aderir a qualquer cabala para solapar uma defesa da liberdade de expressão.

O rosto dela tinha avermelhado.

- Odeio quando se põe a falar como escuteiro, alardeando medalhas de mérito. Não gosto do jeito depreciativo com que se referiu a meu pai e a Mr. Griffith.

- Isso é problema seu, Faye, a opinião que você tem a respeito de seu pai.

- E o seu é a opinião dele a seu respeito, quando eu parar de o defender a você. E é o que vou fazer a partir deste momento, Mike. Você acaba de sair do escutismo, e seria melhor preparar-se para o que existe lá fora, no mundo dos adultos. Caso não saiba, posso informá-lo, porque me força a ser rude. Vou-lhe contar o que me contive para não dizer até agora. E que é o resto do que o Papá me disse hoje à noite.

- Você podia poupar-me isso.

- Não lhe vou poupar coisa alguma - retrucou Faye. ~- O Papá disse-me que se você se recusasse a mostrar-se sensato e cooperante sobre a questão da Vogler, então não seria o tipo de pessoa indicada pràs Empresas Osborn "-fez uma pausa significativa. - Desta vez, Mike, concordo com ele.

O medo passara. Tinha deixado o inimigo ao longe.

- Talvez eu não seja a espécie de pessoa que devesse envolver-se jamais com as Empresas Osborn - disse calmamente.

- Mike, avalia o que está a dizer e a fazer? Se você for suficientemente cabeçudo para repudiar o pedido do Papá, para lançar fora a posição que ele lhe reservou, então não há dúvida de que também me repudia. Está a tornar impossível a nossa relação, e qualquer futuro que pudéssemos ter juntos. Se você quer ser teimoso e repelir o Papá e Mr. Griffith, então é melhor eu avisá-lo de que faço parte daquele todo. Simplesmente, não poderia continuar com você.

- Sempre julguei que tinha uma namorada e não uma namorada juntamente com o pai.

- Estou a falar a sério. Não poderia continuar com você.

- Pois eu sentiria muito, Faye.

- Então você recusa-se a mudar de ideia?

- Recuso-me a ser coagido. Se eu abrir mão da minha independência, do meu privilégio de pensar e agir como creio que devo nas presentes circunstâncias, se eu fizer qualquer concessão para agradar a você e ao seu pai neste momento, não farei outra coisa pelo resto da vida. Não seria muito honroso para um homem, não acha?

Faye ficara lívida.

- Para um homem? Você considera-se homem? Ora, você está-se a portar como um idiota, como uma criança, um pateta, e perdeu toda a graça que tinha para mim. Mas mesmo assim não desisto. Não posso acreditar que você seja capaz de sacrificar tudo para defender a sua pequena editora de imundície e lodo. Eu não aceito.

- Pois devia, porque é assim que vai ser. Não posso concordar com as suas condições, Faye.

- Você é um idiota - recolheu a bolsa e as luvas. - Se você rompeu com o Papá, eu rompo com você. E você não vai ganhar aquele processo, sabe? Vai ficar sem nada. Será apenas um pobre advogado de causas insignificantes e de punhos puídos, que uma vez, quando teve oportunidade, a deixou passar por falta de coragem e imaginação. Nunca vi nada semelhante, mas estou a ver agora. Você é de segunda categoria, Míke, e eu só tenho tempo para quem é de primeira.

Levantou-se, porém não se foi embora. Baixou os olhos para ele.

- Vou-me embora, Mike. Depois que eu tiver ido, nunca mais hei-de voltar. Se você quer ter uma última oportunidade de vir comigo, eu talvez lha dê. Não estou muito segura de lha dar, mas é possível que dê. Tem mais alguma coisa que me queira dizer?

Ele soergueu-se e fez uma reverência de menosprezo.

- Querida, a defesa nada mais tem que dizer.

Mais tarde, depois de tomar mais uma bebida como despedida, e pagar a conta, percebeu pela primeira vez como se sentia completamente livre, livre e aliviado. Graças a Deus, rompera com Faye. Quanto às Empresas Osborn e ao seu futuro abortado, tinha menos certeza. Mas de uma coisa não lhe restava a mínima dúvida. Já não sentia medo.

Havia voltado a cabeça.

O inimigo tinha-se sumido.

Estava preparado para Nova Iorque e para tudo o que o futuro lhe reservava.

 

DEPOIS, à medida que continuava a percorrer a Quinta Avenida, preso entre as sombras dos gigantescos arranha-céus, acotovelado, detido, apressado e retardado pelo frenético movimento do trânsito de pedestres e veículos, Mike Barrett compreendeu o que estava a acontecer-lhe.

Fora definido por Emerson, que nem sequer havia visto o imenso edifício da General Motors, o da Seagram, o Rockefeller Center, ou os táxis inclinados, os autocarros a soltarem fumo e o aperto dos transeuntes apressados. Emerson descrevendo aquilo. As cidades grandes provocam-nos choques, e uma cidade como Nova iorque faz um homem deixar de ser tolo. Foi nesse momento que Nova Iorque fez com que Mike Barrett deixasse de ser tolo.

E foi então que o impacto de Manhattan o atingiu por completo, como que pela retaguarda, catapultando-o com rumo ao seu destino na Rua Cinquenta e Cinco, impelindo-o a apressar o passo e alertar os sentidos, revitalizando-o com a apreensão do significado da sua missão imediata.

Desde o instante, na noite anterior, em que Faye Osborn o deixara para sempre, sentira-se livre, mas apenas para flutuar num vácuo interior.

Durante a maior parte da longa noite escura, reclinado no assento do avião a jacto que o arremessava de Los Angeles, recente centro da esperança, para Nova iorque, velho cenário do fracasso, reconsiderara o seu comportamento com Faye e Willard Osborn II, perguntando-se se não fora precipitado. Claro que sempre haveria a tabuleta com os dizeres: “Zelkin & Barrett, Consultores Jurídicos”, mas a promessa daquela carreira tremulava baixinho e oferecia pouquíssima luz para um futuro mais luminoso.

Faye não estava indicada para ele, sabia subconscientemente disso, pelo menos não de uma maneira perfeita, porém havia sido estimulante, encantadora, divertida, a própria presença dela na sua vida constituíra uma lisonja, e habituara-se a ela e ao róseo paraíso que simbolizava. E agora também a perdera. E não possuía nenhum antídoto contra a solidão. Naquelas horas a bordo do avião, pensara em Maggie Russell, naturalmente, sentindo prazer em visualizá-la, embora não lograsse apossar-se por completo da sua lembrança. Ela mostrara-se reservada, esquiva, recusando-se a aceitar-lhe a companhia, voltando sempre ao campo inimigo, onde estava proibido de entrar. Imaginou que decerto toscanejara no avião, já que evocara todas essas imagens confusas e incertas.

Mas a questão era que, durante o voo inteiro, não pensara sequer uma vez no objectivo da sua missão nem no julgamento do tribunal em que devia desempenhar papel preponderante.

No táxi que o levou do Aeroporto Kennedy ao Hotel Plaza, sentira-se incapaz de reflectir sobre o processo. Estava sonolento, lógico, mas mesmo a luz do dia matutina e a vitalidade da cidade acordando em seu redor não o tinham despertado. Tomara o elevador do Plaza para subir ao sétimo andar, dirigira-se ao seu quarto, tirara a roupa, marcara a hora no despertador e caíra na cama feito um poste. Talvez a campainha houvesse tocado, ou se esquecesse de dar corda ao relógio. O facto é que não escutara nada e dormira além da conta. Pretendia dormitar um pouco e chegar à loja de autógrafos de Olin Adams às nove horas, mas terminou por acordar poucos minutos depois das dez.

Debaixo do chuveiro, disse consigo mesmo que não havia motivo para ter pressa. Tinha comprado as cartas de Jadway, e poderia lê-las com calma durante a viagem de volta a Los Angeles mais tarde. Só que ele queria regressar ao campo de batalha quanto antes, para dispor de bastante tempo para conversar com Isabel Vogler e para os preparativos finais do julgamento em companhia de Abe Zelkin durante o fim-de-semana, antes que o juiz Nathaniel Upshaw e o oficial de diligências instaurassem o julgamento na segun-da-feira de manhã. Em todo o caso, indo para o Oeste, teria a vantagem de recuperar três horas perdidas. E assim, mais descansado após o duche, barbeado e vestido, descera ao átrio, comprara o New York Times na banca de revistas, e entrara na Sala Eduardiana para uma rápida colação de sumo de laranja, torrada com manteiga e café. A sua única concessão à pressa foi sacrificar o habitual presunto com ovos.

Correra os olhos pelo jornal, lendo minuciosamente apenas a história publicada em destaque na terceira página, que descrevia a escolha do júri no caso do estado da Califórnia contra Ben Fremont, e que resumia as questões em jogo no caso e trazia o seu próprio nome mal escrito duas vezes. O que mais o consternara não fora a menção textual de Christian Leroux a respeito do afã pecuniário de Jadway, nem a de Frank Griffith sobre a necessidade de se resguardarem jovens impressionáveis, como o seu filho, da literatura perniciosa, e sim o facto de que não havia nenhuma citação de Zelkin ou dele mesmo. Essa omissão, que reflectia a sua carência de testemunhas importantes de defesa, estava manifesta nos noticiários menores. No entanto, Bar-rett lembrava-se de que dispunham de uma arma que havia permanecido sigilosa, sem divulgação. Agora contavam com Isabel Vogler para contrapor ao filho de Griffith - e com Jadway a falar por si mesmo no maço de cartas, a cinco quarteirões de distância. Apesar dessas reflexões, quando chegou à página desportiva o julgamento não tinha mais realidade do que um sonho. Entre o cartaz dos jogos de basebol da véspera, distinguia apenas a ruína em que se transformara a sua Grande Oportunidade e um futuro de pagamentos a prazo de empréstimos, terminando sempre em quarto lugar no bridge.

A um quarto para as onze, saíra do Plaza para a humidade singularmente sufocante desta cidade hostil e dirigira-se à Quinta Avenida, a fim de percorrê-la até chegar aonde pretendia ir.

E foi então que o impacto de Nova Iorque o atingiu. A própria qualidade do lugar, que a princípio, como via de regra, lhe parecera opressiva - o excesso de tudo, a indiferença geral, a desumanidade reinante - que de repente o reavivava e estimulava, Esta era a outra singularidade de Nova Iorque, o seu milagre, finalmente. Que aqui, no auge do dia, não houvesse tempo para tolices, trivialidades nem introspecção. Para sobreviver àquela enorme frieza, tinha-se de se mexer, ir, conseguir. Se não se ficasse atento, combatendo a cidade, até dominá-la, elevando-se à altura da sua imensidade, ficar-se-ia soterrado e perdido. Já conhecia essa experiência. Agora sabia como superá-la. Subitamente, reagira ao desafio e libertara-se de todas as espécies de tolice. Era um homem com identidade, objectivo, com uma causa e sabia aonde tinha de ir.

Em breve abandonava a Quinta Avenida e encaminhava-se energicamente para a loja que abrigava os Autógrafos Olin Adams. A partir dali, armado com o seu tesouro, ir-se-ia embora para casa para enfrentar uma luta, uma batalha em que seria observado pelos milhões de habitantes da terra, numa luta justa contra os cavaleiros negros da opressão. Era um futuro e um compromisso. Faye, o seu róseo paraíso e o seu curto período de luto tinham desaparecido.

Sentia-se vivo e empolgado.

Em largas passadas pela Rua Cinquenta e Cinco, contando os números das lojas e prédios comerciais, percebeu que o seu destino ficava a um quarteirão de distância. Atravessou rapidamente a Madison Avenue antes que o semáforo mudasse e prosseguiu adiante até chegar, inúmeras portas antes da Park Avenue, a uma vitrina que exibia o letreiro em caracteres alongados: AUTÓGRAFOS OLIN ADAMS. FUNDADO EM 1921, COMPRAM-SE E VENDEM-SE. A vitrina estava repleta de cartas hológrafas, manuscritos e outras miudezas de celebridades, em atraentes molduras, mas ele não perdeu tempo em examiná-las. Estava ansioso de mais por Jadway.

Abriu a porta e uma campainha tilintou ao alto. Entrou na ampla sala que parecia a reprodução em miniatura de um departamento de manuscritos do Museu Britânico. Por todos os cantos havia mostruários cobertos de vidro e atrás deles as paredes estavam cobertas por cartas originais autografadas, fotografias ou retratos dos autores daquela correspondência. Cada carta ficava ao lado do retrato do autor, pendurados em moldura dupla. Um cartaz azul dizia: “Os exemplares expostos estão à venda. Queiram ter a bondade de se informar sobre os preços.” Numa mesa rectangular, autêntica antiguidade, uma jovem atarracada, que parecia ter frequentado Vassar e se tinha destacado em iacrosse, O concentrava-se em separar uma pilha de cartas raras, fechando cada uma numa pasta individual de acetato transparente.

Barrett dirigiu-se a ela.

- Desculpe, Mr. Olin Adams está? Ele já sabe que eu vinha.

- Creio que ainda está ao telefone. Deixe-me ver.

 

(') Jogo de origem índia, semelhante ao hóquei e que consiste em dois grupos de doze jogadores que usam raquetas de cabo longo.

 

Entrou rapidamente por uma porta que revelava um canto de escritório espaçoso, embora o próprio Olin Adams não estivesse visível. Barrett esperou que voltasse.

- Ele está a terminar - anunciou a jovem, indicando uma cadeira de encosto de bambu. - Esteja à vontade.

- Obrigado.

Mas Barrett sentia-se irrequieto de mais para permanecer sentado. Perambulou pela sala do mostruário, ficando logo absorto nos exemplares emoldurados ao longo das paredes. Ao pé de cada quadro havia uma tira de papel escrita à máquina, descrevendo a raridade à venda. Tinha um “Ken-nedy, John F., T. L. s, 1 p., 4to; Congresso dos Estados Unidos, Câmara dos Deputados, Washington, 12 de Dezembro de 1951. Ao Oficial Administrativo do Consulado Americano em Hong-Kong”. Ao lado, um “Douglass, Frederick, A. M.s, 1 p., 8vo; escritor e conferencista negro americano. Washington, 20 de Outubro de 1883.” Depois, “Toulouse-Lautrec, Henri de, A. L. S. em francês, a lápis, 2 pgs., 8vo; pintor francês, Paris, 11 de Novembro de 1899”. Havia também um cheque autêntico, de cinquenta libras, em favor de Leigh Hunt, assinado por Percy Bysshe Shelley em 1817, uma receita em alemão, de Viena, datada de 1909, trazendo a assinatura, “Dr. Sigmund Freud”, um manuscrito em papel azul, da pena de Alexandre Dumas Pai, em 1858, uma carta sem data, indecifrável, rabiscada por Sir Walter Scott, um documento assinado “A. Lincoln”, um poema-autógrafo de S. Scott Fitzgerald, o fragmento de um manuscrito de Jean-Jacques Rousseau e parte de uma composição anónima, mas atribuída a Ludwig van Beethoven.

Para Mike Barrett, a experiência era nova e electrizante. Sabia que manuscritos, documentos, cartas, escritos ou assinados por homens e mulheres célebres em todos os tempos da civilização tinham sido coleccionados e preservados nos recessos remotos de intimidantes bibliotecas e museus. E embora tivesse ouvido falar em coleccionadores particulares e negociantes de autógrafos, jamais pensara na possibilidade que os preciosos papéis de presidentes e reis, autores e pintores, cientistas e sábios estivessem sendo negociados como Kleenex, cigarros ou ervilhas enlatadas. No entanto, cá estavam eles, ao alcance de qualquer, numa loja pública da Rua Cinquenta e Cinco, onde podiam ser adquiridos e realmente levados para casa em troca de modesto pagamento. Se alguém quisesse a companhia de Paul Gouguin, Johann Wolfgang Goethe ou Henrique VIII, nada mais fácil do que ter aquela intimidade de outrora, só para si e em seu próprio lar. Era incrível, e. mais incrível ainda é que, nesta loja, ele pudesse apalpar a história, e saber que fora verdade.

Havia qualquer coisa de inacreditável a respeito de heróis, governantes, criadores artísticos e mártires de outros séculos. Pareciam invenções do folclore, mitos sem atributos humanos próprios; e, embora as suas histórias fossem conhecidas e divulgadas, era como se os compêndios, biografias e museus os houvessem simplesmente mumificado e solidificado em lenda. Mas aqui nestas paredes, eles tinham carne - a palavra mal escrita, a página manchada de tinta, a inserção de última hora, o grito de angústia - e, fossem do punho de Lord Byron ou da mão de Sarah Ber-nhardt, constatava-se, finalmente, que a história não se compunha de monumentos e estátuas mas de gente tão frágil como nós mesmos.

E naquele momento, nesse panteão de comércio, a pessoa de J J Jadway tornou-se realidade para Barrett pela primeira vez em todas aquelas semanas. Dali a pouco veria o que a própria mão de Jadway confiara às folhas de papel( e seguraria essas folhas, escutando a própria voz de Jadwaye tocando-o através do papel que ele tinha tocado, e Jadway seria transformado em testemunho vivo, pronto para defender Os Sete Minutos perante o cepticismo do mundo.

Virou as costas, mais ansioso do que nunca por encontrar Jadway, e deparou-se-lhe um típico, e desengonçado habitante da Nova Inglaterra, surgindo do escritório do fundo e aproximando-se. O cabelo grisalho do proprietário estava arrepiado como uma crista de galo, os olhos eram de um cinzento aquoso e o nariz era comprido. Usava colete, corrente de relógio e tinha um ar de tímida cortesia.

O proprietário esboçou um sorriso.

- Meu nome é Olin Adams - disse, com voz mais apropriada para uma alcova. - A minha assistente disse que o senhor desejava falar comigo. Tem alguma coisa que...?

- Sim, eu telefonei-lhe ontem da Costa Ocidental. Discutimos as cartas de J J Jadway que o senhor adquiriu recentemente. Combinámos que as venderia por oitocentos dólares e eu prometi passar por aqui para levá-las hoje de manhã. Michael Barrett, lembra-se?

Os olhos aquosos de Olin Adams vacilaram, confusos. Abriu a boca, sem emitir palavra, parecendo um peixe fora de água.

- Como foi que o senhor disse...? - perguntou.

- O meu nome é Michael Barrett e acabo de chegar de avião de Los Angeles. Tenho a certeza de que o senhor se lembra da nossa conversa sobre as cartas de Jadway.

- Sim, naturalmente, mas...

Barrett estendeu a mão cordialmente e sorriu.

- Pois cá estou eu para as levar.

O negociante de autógrafos tentou encontrar o foco no meio do nevoeiro.

- Mas, meu senhor, Mr. Barrett já veio buscá-las.

- Mr. Barrett já veio...? - agora era a vez de Mike Barrett ficar confuso. - Não estou a compreender.

- Meu senhor, um cavalheiro chegou aqui um ou dois minutos depois que abrimos a loja às nove horas e levou as cartas.

- O senhor deve estar enganado. Eu vou explicar-lhe. Ontem eu telefonei para cá...

- Eu recordo-me perfeitamente. Mr. Barrett telefonou de Los Angeles, dizendo que tinha tomado conhecimento por intermédio de Mr. Quandt de que eu possuía as cartas de Jadway. Pedi oitocentos dólares por elas e Mr. Barrett respondeu que estaria em Nova Iorque e passaria por aqui para buscá-las entre as nove e as dez horas da manhã. Hoje, quando cheguei, deixei as cartas prontas. Depois, antes de sair para o café, preveni Mildred... a minha assistente... que Mr. Michael Barrett ficara de vir, e que ela lhe entregasse as cartas em troca do pagamento de oitocentos dólares à vista. Fui para o café, e vinte minutos mais tarde, ao voltar, Mildred disse que Mr. Barrett tinha vindo, pago e ido embora.

Durante toda a última parte, Barrett pôs-se a sacudir a cabeça como se tivesse sido acometido por algum ataque.

- Mas não pode ser! - exclamou. - Posso provar quem eu sou! Veja!

Puxou a carteira do bolso e mostrou a sua carteira de identidade ao atónito negociante de autógrafos e em seguida abriu o sobrescrito que trouxera junto, com oito notas de cem dólares novinhas em folha.

- Agora o senhor acredita-me, Mr. Adams? O homem não sabia que fazer.

- Acredito, sim, Mr. Barrett, porém... mas, que diabo, então quem foi que veio cá e levou a sua encomenda hoje de manhã?

- É isso que eu quero que o senhor me diga. Quem foi?

- Eu... eu não tenho a mínima ideia. Nenhuma. Sei tanto como o senhor. Foi apenas uma coisa natural, do jeito que aconteceu. Nós esperávamos que um tal Mr. Barrett viesse buscar o material de Jadway. Chegou um cavalheiro, disse que era Mr. Barrett, pediu a encomenda, pagou a importância, pegou no embrulho e foi-se embora. Não havia motivo para desconfiar de que se tratava de um impostor.

- Que aspecto tinha ele? - perguntou Barrett. - Parecia-se comigo?

Olin Adams virou-se.

- Mildred, você viu o freguês...

A jovem com pernas de jogadora de lacrosse já estava ao lado de ambos.

- Não se parecia nada com o senhor - afirmou. - Era bem mais alto e cerimonioso, todo digno. Não prestei muita atenção. Há tanta gente que entra e sai sem comprar nada. Ele vestia um fato castanho... uma espécie de gabar-dina... lembro-me. Acho que tudo não levou mais de um minuto.Ele entrou e disse qualquer coisa assim: “Creio que tem umas cartas autografadas para mim. São de J J Jadway. Gostaria de levá-las agora. O meu nome é Mr. Barrett”. Ora, eu já tinha as cartas prontas numa caixa e ele nem se preocupou em examiná-las. Disse que estava com pressa. Pagou, apanhou a caixa e saiu logo. Não tenho a certeza, mas acho que havia um carro à espera dele, em estacionamento duplo, e que não era táxi, mas carro particular. É só do que me lembro. Como podia eu saber que não era ele o verdadeiro comprador?

- Evidente, a menina não tem culpa - concordou Barrett.

Olin Adams fez sinal para a jovem se afastar.

- Isto jamais aconteceu em todos os meus anos de experiência neste ramo.

- Como foi que ele pagou as cartas, Mr. Adams? Será que possivelmente não teria sido em cheque?

- Não, foi à vista. Quando voltei do café, Mildred mostrou-me o dinheiro na gaveta.

Barrett sacudiu a cabeça, penalizado.

- Não me admiro. Qualquer pessoa que soubesse que eu tinha combinado a compra das cartas de Jadway e que tencionava vir aqui hoje de manhã cedo, pronto para pagar oitocentos dólares por elas, também saberia que eu pretendia pagar à vista. Aliás, quem quisesse fingir que era eu, obviamente não poderia pagar em cheque.

- Gostaria de poder fazer algo pelo senhor, Mr. Barrett- retrucou Adams. E deu de ombros. - Mas creio que não adianta. Apenas posso prometer-lhe que, se aparecer mais material desse autor, já sei a quem avisar e oferecer.

- Não vai aparecer mais nenhum material de Jadway, Mr. Adams.

- Compreendo o que está a sentir, Mr. Barrett. Sei perfeitamente o interesse que os coleccionadores têm por cada aquisição. Mas, se me permite, posso dizer-lhe que não precisa de ficar muito desiludido com essa perda. Não discuto o gosto dos meus fregueses, mas neste caso devo dizer que Jadway, como figura literária, ainda permanece uma incógnita e é bem possível que nunca ultrapasse a sua condição de escritor de um único livro, autor de uma obra que representou mera curiosidade e alcançou notoriedade efémera. O senhor poderia empregar a mesma quantia que destinava a Jadway mais proveitosamente em.., bem, se o seu interesse é por autores americanos da década de 30. eu recomendaria as cartas e souvenirs de Faulkner, Heming-way e talvez Fitzgerald. Creio que o senhor encontrará, como coleccionador...

- Mr. Adams, eu não sou coleccionador. Não estou interessado em coleccionar Jadway. Estou apenas interessado em defendê-lo. Sou o advogado que representa a San-ford House e Ben Fremont...

Olin Adams tornou a abrir a boca como um peixe.

- Meu Deus - exclamou.

- Exactamente. Portanto a perda é irremediável. Não sabemos quase nada a respeito de Jadway, e essas cartas poderiam ter... -fez uma pausa. - Mr. Adams, ontem eu perguntei-lhe sobre o conteúdo delas. O senhor não sabia porque não havia tido tempo de lê-las. Será que, por acaso, hoje de manhã...?

O negociante de autógrafos sacudiu tristemente a cabeça.

- Sinto muito, mas não. Abri a loja e separei o pacote, para a eventualidade de que o senhor passasse por aqui antes que eu voltasse do café. Se ainda não tivesse passado no momento que eu chegasse, pretendia dar uma olhadela nelas.

- Mas tem a certeza de que eram autênticas, mesmo apesar de nunca ter visto antes a caligrafia de Jadway?

- Eu já a tinha visto antes, Mr. Barrett. Antes de receber as cartas de Mr. Quandt, eu adquirira cópias fotostáticas das guardas de vários exemplares da primeira edição de Os Sete Minutos, que Jadway inscrevera em Paris. As inscrições não traziam nada de significativo, eram uma simples saudação ou assinatura, porém suficientes para que eu pudesse reconhecer a autenticidade da correspondência. Sim, aquelas cartas eram do próprio punho de Jadway - o semblante de Olin Adams parecia a própria imagem da tristeza. - Que lástima, especialmente porque me sinto solidário com o caso legal. Não lhe servi para nada. E peço-Lhe desculpas por não ter reconhecido o seu nome nem ontem nem hoje.

- Em compensação, há gente de mais que sabe quem eu sou... e as actividades que exerço - comentou Barrett causticamente. - E alguém parece inclinado a frustrar todos os esforços da defesa. Simplesmente não entendo como conseguiram aplicar este golpe.

- O senhor tem a certeza de que não falou com ninguém sobre a sua tentativa de adquirir as tais cartas de Jadway?

- Com excepção de Quandt, que foi quem me faiou no senhor, os meus sócios e a secretária, ninguém, que eu me lembre, sabia disso.

Então ocorreu-lhe outra ideia. O seu cérebro estava a funcionar com mais clareza, agora que o choque inicial da perda começava a decrescer. Tomou-se novamente de um propósito desesperado.

- É o senhor, Mr. Adams? Pense um pouco. Falou a alguém, além de mim, a respeito dessas cartas de Jadway?

- Sim, lógico. Nós mantemos um ficheiro dos fregueses habituais, das suas especialidades e interesses. Quando adquiri as cartas de Jadway... não esqueça que isso foi há dez, onze dias... Mildred revisou a lista. Havia um senhor, uma espécie de poeta, que costumava passar por aqui de vez em quando, dar uma olhadela, conversar um pouco, no fundo mais para tentar vender alguns de seus própios manuscritos originais, que não possuíam o mínimo valor, já que ele não tinha fama nenhuma. Mas Mildred lembrou-me que, certa ocasião, no meio de reminiscência sobre a sua juventude, o tal sujeito falou que já tinha sido um expatriado literário em Paris, onde havia conhecido JJ Jadway. Isso não me causou a menor impressão, porque naquela época o nome de Jadway era praticamente desconhecido, a não ser entre os coleccionadores de erotismo. Quando foi que isso aconteceu, Mildred?

- Há mais de um ano - respondeu ela. - Talvez quase dois anos, quando comecei a trabalhar aqui.

- É - concordou Olin Adams. - De qualquer maneira, quando adquiri as cartas de Jadway, o nome do autor tinha-se tornado mais famoso, e Mildred lembrou-se do tal poeta que havia conhecido Jadway. Na hipótese remota de que esse poeta pudesse ter melhorado de vida, e de que talvez estivesse interessado em possuir o material, entrei em contacto com ele. Recebi de volta um lacónico postal que dizia apenas o seguinte: “Muito caro para mim.” Depois... Deus do céu, já tinha quase esquecido... ontem, depois que o senhor telefonou, Mr. Barrett, esse mesmo sujeito ligou para cá. Eu já estava de saída, na porta da rua, mas voltei para atender a chamada. Ele disse que havia conseguido um pouco de dinheiro e achava-se interessado nas cartas, para que passassem a fazer parte da sua colecção, não sei em que universidade. Eu respondi que sentia muito, mas que" por cinco minutos ele chegara tarde de mais. Expliquei que acabara de vendê-las a outro coleccionador de Jadway, um tal Mr. Michael Barrett, de Los Angeles, e que de facto Mr. Barrett iria chegar de manhã a Nova Iorque, para as buscar. O nosso poeta ficou desapontado e obrigou-me a prometer-lhe que se o senhor não viesse buscar as cartas ou mudasse de ideia, eu o avisaria.

- Esse poeta - disse Barrett, encontrando a agenda e o lápis -, como é o nome dele?

- Hum, deixe-me ver... irlandês... ah, sim... Mr. Sean O’Flanagan. Isso mesmo. Barrett anotou o nome.

- O número do telefone dele?

- Ele não tem telefone.

- O endereço, então. Gostaria de lhe fazer uma visita.

- Também não sei onde mora. Sempre usei o da Posta Restante, Queens, correio central. Foi assim que entrei em contacto com ele. Se acha que ele pode ajudá-lo, não custa mandar-lhe um bilhete para lá.

- Sou bem capaz - disse Barrett, guardando a agenda no bolso. Olhou por cima do ombro de Adams para a jovem chamada Mildred. -Mildred, o sujeito que veio buscar as cartas hoje de manhã, usando o meu nome, tem a certeza de que não era esse tal Sean O'Flanagan?

Ela sacudiu vigorosamente a cabeça.

- De modo nenhum. Eu conheço o nosso Sean. Ele anda mal vestido, parece tão suspeito como um vagabundo de Bowery e cheira a uísque. O que esteve aqui hoje... nunca se sabe, mas parecia um homem de respeito.

- Depois houve outro telefonema - lembrou-se Adams de repente. - Começo a achar que a minha memória anda fraca. Hoje de manhã, quando abri a loja, o telefone estava a tocar... foi pouco antes de eu ir tomar café. Era alguém que disse que soubera, por intermédio de Mr Quandt, que eu tinha algumas cartas de Jadway à venda. Respondi que não, que já haviam sido vendidas. Ele praguejou contra o seu azar, pois fora avisado das cartas ontem e não conseguira falar comigo antes daquele momento. Aí então desligou. Não disse o nome, nem nada.

- Era ligação interurbana?

- Acho que não. Creio que foi local. Naturalmente é difícil dizer nesta época de discagem directa.

- Bom. Tudo o que nós sabemos é que houve um verdadeiro rebuliço em torno das tais cartas depois que eu julguei que as tinha comprado. Talvez Quandt tivesse espalhado a notícia, logo que me contou. Embora eu não atine com nenhum motivo para ele fazer uma coisa dessas. - Barrett estendeu a mão e apertou a do negociante de autógrafos. - Em todo o caso, obrigado e desculpe o incómodo. A você também, Mildred.

Olin Adams acompanhou-o até à porta.

- Sinto intensamente, Mr. Barrett. Felicidades. Novamente na Rua Cinquenta e Cinco, Barrett consultou o relógio de pulso. Faltavam ainda duas horas para a partida do avião e sentia-se muito deprimido para voltar ao hotel. Resolveu dar uma caminhada, para ver se o movimento da cidade poderia, mais uma vez, revigorar-lhe a disposição abatida.

Pretendia ir ao Museu de Arte Moderna, mas verificou que não estava com ânimo para contemplar esculturas e abstracções quando os seus próprios negócios se achavam em tal confusão. Sem rumo, tomou a direcção oposta, cruzando a Park Avenue, prosseguindo até a Lexington e finalmente, dobrando à direita, desceu a Rua Cinquenta e Quatro e adjacentes.

Olhou distraído as vitrinas, andando sem parar. Tentava solucionar o mistério dessa nova derrota matutina. Riscar Faye, a impossível, de sua vida era uma coisa. Não dispor de meios de conseguir Maggie, a intocável, era outra. Mas ver Jadway, a testemunha de além-túmulo, arrebatado por um ladrão de cadáveres, constituía o pior e mais espantoso de todos os fracassos, quase que a última gota, pois equivalia praticamente a perder a própria esperança.

Procurou desenvencilhar-se da ideia de desespero, e tornou a olhar as vitrinas. Havia um mostruário de roupas infantis. Outro de porcelanas de Dresden. E um de rádios e engenhocas electrónicas, onde se via um imenso cartaz de propaganda. Passou a vista por este último sem se fixar, mas logo foi obrigado a concentrar-se nele de novo, lendo-o uma, duas e três vezes. Havia qualquer coisa com aquele cartaz. Retrocedeu devagar e parou diante da vitrina.

O cartaz dizia:

O SHERLOCK ELECTRÓNICO QUE ESCUTA SEM NINGUÉM SABER!

IDEAL PARA HOMENS DE NEGÓCIO, INVESTIGADORES E ADVOGADOS!

UM MONITOR PARTICULAR QUE PODE SER ADAPTADO A QUALQUER TELEFONE!

Instale este transmissor invisível, menor que um dedal, em qualquer telefone. Ele retira a sua energia do próprio telefone. Fica imperceptível à vista. Colocado dentro do receptor, irradiará cada palavra pronunciada no aparelho, inclusive do interlocutor, transmitindo essas conversas a outro receptor de frequência modulada, situado do lado oposto da cidade, onde podem ser gravadas. Preço a retalho, $350.

Como num transe hipnótico, Barrett ficou com os olhos pregados no cartaz.

Aos poucos, afastou-se da vitrina. A sua cabeça parecia uma roda gigante, girando sem cessar, carregando os seus pensamentos para cima e para baixo, e depois, abruptamente, parando e descarregando um só. De uma hora para a outra compreendia tudo. Tinha a certeza. Os mistérios das últimas semanas, as frustrações e desapontamentos, finalmente se explicavam.

Na sua imaginação, como um fortíssimo olho de Cíclope interno, podia visualizar o telefone preto na escrivaninha do seu escritório em Los Angeles. Fora nele que escutara o relatório de Kimura a respeito do esconderijo de Christian Leroux em Antíbes. E depois, por coincidência, alguém se aproximara de Leroux e desaparecera com ele. Fora nele que soubera onde Norman C. Quandt estava secretamente localizado e à sua espera. E depois, por coincidência, alguém alertara a Polícia para fazer uma batida no local enquanto se achava lá. Fora nele que comprara a Olin Adams as preciosas cartas de Jadway e informara a hora em que passaria pela loja para buscá-las. E, por coincidência, alguém visitara Adams primeiro, arrebatando essas cartas à defesa.

Coincidência? Uma merda!

Microfone electrónico - isso sim!

Como não lhe ocorrera antes essa explicação tão flagrante? Ele podia ser tudo, menos burro. E no entanto lá pensara nisso, pelo menos reconhecera anteriormente essa possibilidade, só que havia sido há muito tempo, e fora isso que o apanhara desprevenido. Agora lembrava-se do momento exacto em que o transmissor lhe fora mencionado pela primeira vez: na manhã em que visitara o conjunto de salas alugado por Zelkin, Abe mostrara-lhe todas as dependências e, ao chegarem à imponente sala destinada a servir de escritório a Barrett, Zelkin, com satisfação idêntica à do Cortez de Keats num pico em Darién, anunciara: “Cá está, Mike, toda sua... novinha em folha, pintada de fresco, repleta de dispositivos electrónicos, tudo em ordem. Olhe, chegámos até a contratar os serviços de um equipamento para localizar microfones ocultos. De facto, passaram metade de um dia a verificar o conjunto inteiro, a fim de descobrir qualquer aparelho transmissor. Toda a segurança é pouca, você sabe. A melhor ofensiva é uma boa defesa.”

Essa precaução inicial desarmara Barrett. Tinha imaginado que uma vez que estavam protegidos, a intimidade deles ficara garantida para sempre daquela data em diante. Esquecera-se de que os microfones dissimulados podiam ser instalados secretamente em ocasião posterior.

Sim, apostava que havia sido um transmissor electrónico. Mas usado por quem, exactamente?

Não podia tratar-se de uma autorização pessoal de Elmo Duncan, quanto a isso tinha a certeza. Duncan não só era o Promotor Público, como também o mais retrógrado dos retrógrados. Um entusiasta do Matriarcado, da Torta de Maçãs e da Minha Pátria. Acima de Tudo, não se entrega à gravação ilícita de conversas telefónicas. Ainda que Duncan sentisse vontade de fazer isso, não se arriscaria a tanto. Não era meramente um oficial encarregado da execução da; lei. Era um político em perspectiva. Não se atreveria a ser desmascarado.

Não, Duncan não, mas alguém que sabia o que convinha a Duncan, e que pudesse sentir-se livre para agir em seu nome sem conhecimento de Duncan. Alguém que sabia a respeito de espionagem industrial e aparelhagem elèctrónica moderna. Alguém que estivesse apostando tudo em transformar Duncan num vitorioso. Alguém que se colocasse acima da lei ordinária e da moralidade. Alguém que estava nos bastidores.

O Richelieu e Rasputin de Duncan.

Por outras palavras - Luther Yerkes.

Barrett olhou em torno e concentrou-se na placa da rua. Estava na esquina da Lexington Avenue com a Rua Cinquenta e Dois. Conhecia Nova Iorque e sabia onde encontrar uma cabina telefónica.

Dobrando a Rua Cinquenta e Dois e avançando em direcção da Park Avenue, Mike Barrett caminhou rapidamente até metade do quarteirão e entrou no Restaurante Four Seasons.

Junto à parede da direita do vasto átrio havia uma fileira de cabinas telefónicas. Barrett fechou-se na primeira e fez uma ligação a cobrar em Los Angeles.

Na outra extremidade da linha, Donna, que estava a trabalhar durante todo o fim-de-semana, atendeu, ansiosa por saber o conteúdo das cartas de Jadway.

- Não há nenhuma carta de Jadway - respondeu Barrett -, e não quero entrar agora nesse assunto. Informe Abe e Leo, e diga-lhes que explicarei tudo quando chegar aí dentro de seis horas.

- Um lembrete, chefe. O senhor ia procurar Isabel Vogler assim que descesse do avião.

- É o que farei. Vou explicar, porque telefonei, Donna. Tenho uma pergunta a fazer. Ouça bem, por favor. Depois que eu comecei a trabalhar com Abe neste caso do Fre-mont... de qualquer forma, desde que o telefone particular do meu escritório foi instalado... não esteve aí nenhum funcionário a consertar o seu ou o meu?

- No meu não esteve nenhum. No do senhor... um momento, vou dar uma olhadela nas minhas anotações. - Donna saiu da linha, mas menos de um minuto depois já estava de volta. - Para falar verdade, sim, chefe. Aqui diz que no mesmo dia em que o senhor foi ao Aeroporto Internacional para buscar Philip Sanford, dois homens da Telefónica vieram examinar o seu aparelho. Lembro-me deles. Disseram que um cliente qualquer se queixara de que não conseguia ligação para cá, e por isso queriam passar uma vistoria ao seu telefone.

- Você ficou junto deles, Donna, enquanto estiveram a examiná-lo?

- Não, não tive tempo, chefe. Precisava de cuidar da minha mesa. Dei só uma espreitadela para perguntar se estava tudo em ordem. Eles haviam tirado a tampa plástica debaixo do aparelho e disseram que tinham encontrado e consertado o defeito. De modo que deixei que terminassem o serviço.

- Quanto tempo levaram para consertar?

- É difícil lembrar-me. Não foi muito. Dez minutos, talvez. Até menos. Porquê? Que foi que houve?

- Houve uma porção de coisas, e não só com o meu telefone. Está bem. Você já me disse o que eu queria saber. Agora vou-lhe dizer uma coisa, e nada de perguntas, por favor, até eu voltar. Depois lhe darei todos os pormenores. Nestas próximas horas faça apenas o que eu mandar, Donna-É uma ordem. Ninguém, mas ninguém mesmo, deverá fazer qualquer chamada para fora ou atender a campainha do telefone no meu escritório antes da minha chegada. Compreendeu? Se você, Abe ou Leo estiverem lá por acaso quando o telefone tocar, não mexam nele. Atendam noutro aparelho. Se Phil Sanford aparecer por aí e quiser usar a minha sala...

- Ele está em Washington, D. C, a assistir à convenção da Associação de Livreiros Americanos no Shoreham.

- Ah, é isso. Perfeito. Nada de tocar no meu telefone hoje, e isso também vale para qualquer funcionário da Telefónica que possa aparecer de novo.

- Okay, chefe. A sua sala hoje à tarde é território proibido.

- Falarei com você no fim do dia, Donna.

- Quer dizer então que quer que eu fique aqui até que o senhor volte? Por mim, não faz diferença.

- Esqueci-me. Tenho de visitar Mrs. Vogler. Não, você não precisa de ficar aí até à noite. Vou chegar muito tarde. Já basta o seu sacrifício, acorrentada à escrivaninha o dia inteiro, sábado e domingo, para eu lhe exigir coisa pior. Não, quando terminar o expediente vá para casa. Deixe os recados que houver em cima da minha mesa. Passarei por aí antes de ir prò apartamento. Uma última coisa. Dê-me o endereço de Mrs. Vogler de novo.

Anotou-o e depois desligou.

Saindo da cabina, ficou tentado a desistir da comida do avião e entrar no salão de refeições do Four Seasons e almoçar ao lado do espectacular chafariz interno. Aquilo era sempre um estímulo - dispendioso, mas que deixava a gente com uma sensação de superioridade. E era o que ele Precisava naquele instante. Porém constatou que lhe sobrava pouco tempo. Ainda tinha de ir até ao Plaza, arrumar a mala, pagar a conta e fazer o longo percurso do Aeroporto Kennedy. Mal dava para chegar à hora do avião descolar. O almoço podia esperar. Tinha muita coisa mais para digerir.

Mike Barrett estava de volta a Los Angeles, mas bem mais tarde do que pretendia, e a maior parte do dia havia sido desperdiçada.

Tinha ocorrido um contratempo no Aeroporto Kennedy, quando um dos motores a jacto do avião causara certa preocupação, tendo de ser inspeccionado de novo, e a partida sofrera um atraso de quase uma hora. O voo de costa a costa fora completado nas cinco horas e meia previstas. Depois Barrett encontrou o seu descapotável, que deixara no parque de estacionamento do Aeroporto Internacional, inclinado para um lado. O pneu vazio levara meia hora a consertar.

Depois disso, o trânsito congestionara-se na Rodovia de San Diego em toda a extensão norte do Vale, e só ao desviar pela rampa de Van Nuys foi que recobrou a marcha normal.

Agora, ao parar diante do modesto bangaló cinzento que Mrs. Vogler alugara, faltavam dez para as seis. Desligando o motor, pisou a calçada e dirigiu-se à porta de entrada. Rezava para que ela estivesse em casa. Não tivera tempo de lhe telefonar para justificar o seu atraso. Provavelmente devia estar em casa, decidiu, pois já era quase hora de jantar e ela realmente possuía um filho de dez anos para alimentar.

Na varanda, premiu a campainha. Ouviu alguém a correr lá dentro, a porta escancarou-se e um garotinho com capacete de astronauta encostou-se à parede do alpendre.

- Olá, muito bem - saudou Barrett -, quando é que vamos para a Lua? Que capacete mais bonito tens!

- Isto não é nada - esganiçou-se o menino em êxtase. - Precisava de ver o que a mamã me comprou hoje. Até uma arma aérea e três jogos para brincar.

- Que beleza - disse Barrett. - A tua mãe está em casa?

- Em casa não. Nas traseiras.

- Como é que faço para...? - olhou para o lado. - A entrada da garagem é por ali?

- Por ali o senhor vai zunindo prò Cabo Kennedy. É por ali, sim.

- Obrigado, astronauta Vogler.

Barrett desceu os degraus, atravessou a relva mal cuidada e caminhou pela superfície de cimento rachada em direcção ao velho Ford estacionado diante da garagem em ruínas. Espremeu-se entre o lado do carro e as sebes da passagem, abaixando-se para não esbarrar na roupa pendurada no varal, e deparou-se-lhe Isabel Vogler.

A princípio não podia vê-lo. Estava com o rosto coberto por uma caixa de papelão - atulhada de roupas na maior desordem - que havia tirado da garagem e carregava na direcção de várias outras, cheias de touca e acessórios domésticos, empilhadas perto da porta das traseiras. Viu-a gingar até ao lado oposto do quintal, baixar a caixa de papelão e equilibrá-la em cima de outra. Só quando ela se virou para refazer o caminho foi que o enxergou.

Pôs a mão em pala na testa e entrecerrou os olhos.

Ele percorreu rapidamente a distância que os separava. Mrs. Vogler estava com a testa e o buço a gotejarem suor. Secou as mãos roliças no avental já sujo. Não parecia tê-lo reconhecido.

- Lembra-se de mim? - perguntou. - Mike Barrett Eu disse que vinha hoje falar com a senhora. Desculpe o atraso. Barrett, lembra-se?

- Ah, é. Como vai? Alguém deixou ontem de tarde um recado a meu filho de que o senhor ia aparecer. Se tivesse deixado o número do telefone, eu teria ligado para lá.

- Ligado para lá? - repetiu Barrett. - Para que é que a senhora queria ligar para lá, Mrs. Vogler?

- Para saber se o senhor tinha tido tempo de pensar melhor sobre o emprego que me ofereceu. Porque agora já não pode ser. Acabei com esse negócio de trabalhar a dias ou morar no serviço. Deixei de ser criada, graças a Deus.

Mais perplexo do que nunca, Barrett retrucou:

- A senhora entendeu mal, Mrs. Vogler. Jamais pensei em pedir-lhe que fosse minha empregada. Será que...

- Ah, eu sei que o senhor não pensou - atalhou ela, beligerante, com as mãos nos quadris. - Sem referências, nada de emprego, eu não me esqueci. Mas achei que talvez tivesse mudado de ideia, só isso. Se não mudou, veio fazer aqui, afinal?

Teria ficado amnésica? Ou simplesmente enlouquecera?

- Mrs. Vogler, pelos vistos a senhora esqueceu-se, e depois que me procurou para aquela entrevista... Espere, a senhora lembra-se bem de que nós conversámos ontem de manhã no meu apartamento, não se lembra?

- Foi justamente o que eu disse. Mas como o senhor não me queria dar emprego sem referências, a coisa ficou nisso.

Decidiu que estava completamente doida. Ou então aquilo era um pesadelo.

- Mrs. Vogler, não é possível que se tenha esquecido. Nós falámos sobre Frank Griffith, o último patrão que a senhora teve com carácter permanente. A senhora disse que havia tido uma briga com ele, e que ele a despediu, negando-se a dar-lhe uma recomendação depois disso. Eu contei-lhe que não estava interessado em empregá-la como doméstica, mesmo que tivesse referência. Queria utilizá-la como testemunha de defesa no nosso julgamento e pretendia recompensá-la por isso. A senhora ia testemunhar sobre a espécie de canalha que. Frank Griffith realmente é, e como o tipo de ambiente que ele proporcionava ao filho podia tê-lo prejudicado mais do que o livro que eu represento. Lembra-se, agora?

Ela ficou parada, sólida como o Rochedo de Gibraltar.

- Lembro-me que lhe contei que tinha trabalhado para Griffith, sim, e que ele nunca foi muito de dar recomendações por escrito, mas não me recordo de nenhuma outra palavra do que o senhor está a dizer, porque nada disso é verdade. Onde é que o senhor arranjou essa história? Deus do céu, à saúde do que é que eu ia algum dia testemunhar contra um homem tão bom e direito como Frank Griffith? Ele foi sempre bom para mim e eu só saí de lá porque Mrs. Griffith queria que a sobrinha se mudasse para Los Angeles para lhe fazer companhia, mais nada. Ele não queria que eu me fosse embora de modo nenhum. Sempre o tive na maior consideração, como o homem mais bondoso com a esposa, o filho e toda a gente. Jamais tive um patrão que fosse mais amável ou generoso.

Olhou boquiaberto para Isabel Vogler, estupefacto. Tinha a impressão de haver caído na toca do coelho e de se ter encontrado frente a frente com o Chapeleiro Louco.

- Escute, Mrs. Vogler...

- O senhor é que vai escutar. É preciso muito atrevimento para vir aqui e tentar meter-me nas suas trapacices de advogado, fazendo tudo para pôr os amigos de Frank Griffith contra ele. Sabe que mais? Estou até a pensar em telefonar prà Polícia a seu respeito. Deixe Frank Griffith em paz, é um conselho que lhe dou. Ele é um homem bom, e ainda que tenha as suas esquisitices, como não dar referências para ex-empregados, sempre esteve pronto a ajudar qualquer um deles numa hora de aperto. Assim como eu. Ele soube que eu estava a ver-me mal, procurando criar o meu filho. Então sabe o que aquele homem bom fez? Ele não telefonou, nem mandou alguém aqui, mas veio pessoalmente falar comigo hoje de manhã, hoje de manhã mesmo. E sabe a primeira coisa que ele me disse? “Isabel”, disse-me, “ouvi dizer que você anda meio atrapalhada. O que é, afinal? Vim cá para ajudar uma velha amiga”. E quando lhe contei os meus problemas, não hesitou em me ajudar. O senhor pode ver com os seus próprios olhos, estou a arrumar tudo para me ir embora. Mr. Griffith disse que eu sempre havia merecido um prémio, e que agora ele me dava para eu poder voltar com o meu filho para Topeka, de onde nunca devia ter saído. Nós vamo-nos embora na segunda-feira.

Barrett continuava boquiaberto, mas não era de espanto, apenas de surpresa.

A vida imitava a arte. Lembrou-se de uma história desconcertante e aterradora que lhe tinham contado na juventude. Era a respeito de uma senhora idosa que viajava com a filha desde Bombaim, via Paris, para a sua aldeia natal na Inglaterra. O modelo original de todas as damas desaparecidas. Como por passe de mágica. A velha e a filha tomaram acomodações no Hotel Crillon, em Paris, para passar a noite. Como a mãe se sentisse mal, a filha tivera de ir a um bairro distante para comprar um remédio especial numa farmácia. Isso acontecera em 1890, na época da Exposição Mundial em Paris, e as ruas fervilhavam de gente, e a moça encontrara uma série de obstáculos pela frente. Finalmente, após uma demora de quatro ou cinco horas, regressou com o medicamento. Na portaria, o funcionário não a reconheceu. Não havia nenhuma senhora registada no hotel que correspondesse àquela descrição, afirmou ele. Ninguém no hotel, na Embaixada Britânica, na Sureté pôde ajudá-la. A tal senhora não existia. Como por passe de mágica.

Ontem, de manhã, Barrett tinha conhecido Isabel Vogler, inimiga de Frank Griffith, amiga da defesa. Hoje, de tarde, essa Isabel Vogler havia desaparecido, e em seu lugar surgia Isabel Vogler, defensora de Frank Griffith, inimiga da defesa.

Barrett lembrava-se de que tinha havido, eventualmente, uma solução para o mistério da senhora inglesa que desaparecera do Crillon em 1890: morrera de peste bubónica, e se a causa da sua morte fosse divulgada, mesmo à própria filha, e se tornasse do conhecimento público, não só o hotel ficaria arruinado como a fantástica Exposição teria terminado e Paris ter-se-ia convertido numa cidade fantasma. Por isso precisaram de abafar a verdade, redecorando o quarto com papel novo em questão de horas, e toda a gente negou a existência da referida senhora.

De modo que houvera explicação para aquilo, e Barrett sabia que agora também devia haver uma. O desaparecimento da Isabel Vogler que ele tinha encontrado e conhecido podia ser um passe de mágica para os membros da plateia. Mas não para os participantes dos bastidores, cientes do arsenal de truques do mágico.

Frank Griffith primeiro tentara fazer desaparecer a mulher da maneira mais fácil. Pedira a Willard Osborn II para convencer Faye a pressionar Barrett até que ele desistisse dessa testemunha hostil. Barrett recusara-se. Frank Griffith então resolveu eliminá-la por um processo mais arriscado. Procurou-a pessoalmente sob o pretexto de ajudá-la. Depois de diagnosticar as suas dificuldades ofereceu-se para remediá-las. Hoje de manhã, operara uma lobotomía financeira. Os lobos pré-frontais tinham sido cortados. Sob a mão habilidosa do cirurgião, a hostilidade fora extirpada, e o que restava era doçura e reconhecimento. Por Frank Griffith, bem entendido. Até segunda-feira, o dia do julgamento, a operação já estaria encerrada. A testemunha desapareceria por completo do cenário de Los Angeles. Um quarto do passado havia sido redecorado e forrado com papel novo.

- Mrs. Vogler - disse Barrett, desesperado -, eu sei o que a senhora me prometeu ontem e sei o que está a dizer agora. Para mim é óbvio o que aconteceu nesse meio tempo. Mas ainda que Frank Griffith tenha procurado suborná-la...

As feições suínas pareceram inchar.

- Não me fale desse modo! Seja lá o que está a querer inventar, já lhe disse tudo o que tinha a dizer.

- Mrs. Vogler, eu podia intimar a senhora - advertiu débilmente.

- Que história é essa?

- Fazer o tribunal intimar a senhora, o que a obrigaria a aparecer em juízo no banco de testemunhas e contar o que sabe a respeito de Frank Griffith.

Pois então experimente - retrucou ela. E acrescentou com ar finório: - Porque tudo o que eu diria sobre Mr. Griffith e o modo como ele educou o filho ser-lhe-ia favorável, totalmente favorável.

Barrett suspirou e sacudiu a cabeça.

- A senhora ganhou, Mrs. Vogler. Reconheço, quando sou derrotado.

- Ainda bem que tem um pouco de juízo, moço.

- E faço votos para que tenha uma boa viagem - disse ele. Fez menção de se ir embora e depois perguntou: - Onde é que eu posso encontrar um telefone na vizinhança?

- Se está a referir-se ao meu, prefiro não emprestá-lo. Tem um na drogaria da esquina. E, Mr. Barrett, quanto a Frank Griffith, eu, se fosse o senhor, não perdia mais tempo com ele, porque o senhor não vai encontrar nada contra ele.

Conselho de amigo, pensou ele, e dirigiu-se à drogaria da esquina.

Ali, perto do balcão de sorvetes, havia um telefone público pendurado na parede.

Em poucos instantes, Maggie Russell atendia no seu número particular. Reconheceu-lhe a voz, ficando um tanto surpreendida.

- Maggie - disse, percebendo depois que no seu novo mundo sem Faye era a primeira vez que a chamava pelo nome de baptismo. - Preciso de conversar com você umas coisas. Talvez mas possa esclarecer.

- Não pode dar-me uma ideia?

- Frank Griffith, por exemplo.

- Entendo. Certos assuntos são difíceis de conversar pelo telefone.

- Então que tal se a gente se encontrasse? -Eu... eu não sei.

- Maggie, eu conheço as regras. Mas preciso de falar consigo. Tenho algumas perguntas para lhe fazer. Talvez me possa dar as respostas, talvez não. Só conversar comigo já me ajudaria bastante. Não lhe quero causar problemas. Mesmo assim, se pudéssemos jantar sossegados logo mais...

- Hoje? Bem... -a palavra pairou no ar e em seguida ela continuou:-Acho que pode ser. É só questão de negócios... ou também de prazer?

- Em parte, de negócios, mas apenas vê-la já é um prazer.

- Faye Osborn não se vai importar?

- Que Faye Osborn? Não, aquilo já acabou. ''

- Ah... Onde é que você está agora?

- Em Van Nuys, mas vou prò escritório. Tenho de verificar lá uma coisa. Faz parte da história.

- Encontrar-me-ei com você no seu escritório - disse ela. - Às oito horas, está bem?

- Estarei à espera, Maggie.

Agora já era noite e faltavam vinte e cinco minutos para as oito quando Mike Barrett entrou no imponente edifício do Wilshire Boulevard. Dirigindo-se aos elevadores, escutou o eco dos próprios passos naquela caverna futurística.

Sendo sexta-feira, tudo estava deserto, à excepção dos zeladores esparsos, perdidos em algum lugar bem acima do andar térreo. As paredes de mármore pareciam gélidas e indiferentes. Nos elevadores não havia ascensoristas.

Dali a pouco, consolou-se, Maggie Russell chegaria, trazendo-lhe humanidade e calor.

Dentro do elevador, premiu o botão do quinto andar e foi levado vagarosamente para cima. A perda das cartas de Jadway, logo seguida pela de Isabel Vogler representavam um golpe tremendo. Pôs-se a imaginar porque se lembrara instintivamente de Maggie Russell. Ao falar com ela, dera a impressão de que tinha um problema específico que talvez pudesse auxiliá-lo a resolver. No entanto, na realidade, não estava bem seguro do que queria dela. Talvez fosse que o verdadeiro inimigo, para ele invisível, não tivesse segredos para ela, que poderia oferecer-lhe algum esclarecimento sem necessidade de comprometer a sua lealdade. Isso era a parte de negócios. Talvez fosse apenas o facto de ela ser quem era. E isso equivalia à parte de prazer.

O elevador parou aos poucos, as portas abriram-se sem ruído e Barrett saiu, caminhando pelo corredor.

A medida seguinte seria a primeira na sua contra-ofensiva à oposição escondida. As constantes frustrações, somadas à descoberta fortuita de transmissores electrónicos e à informação de que “funcionários da companhia” lhe tinham desmantelado o telefone, enquanto se encontrava fora do escritório, levavam-no agora a buscar a confirmação final da devastadora espionagem do inimigo. Precisava de examinar o aparelho. Se estivesse de facto ligado a um microfone oculto, então revelaria essa descoberta sensacional à imprensa e ao público. Ao desmascarar, não denunciaria ninguém pelo próprio nome. As implicações, contudo, ficariam absolutamente claras. Seria o início de uma conquista da opinião pública, alertando-a contra a natureza implacável das forças da acusação, talvez até mesmo uma conquista da solidariedade pública em prol da defesa, e o início do contra-ataque da defesa na arena crítica longe do tribunal. Muito embora, conforme sabia, a revelação possivelmente chegasse tarde de mais.

Barrett enfiou a chave na fechadura, abriu a porta do gabinete escuro de Donna e acendeu a luz do tecto. Deixando aberta a porta da sala de recepção para Maggie, foi até à escrivaninha de Donna. Não havia nenhum recado. A máquina de escrever eléctrica IBNA achava-se coberta com a capa cinzenta. O ditafone descansava em silêncio.

Sentiu logo vontade de examinar o telefone do seu escritório.

Cruzou o corredor interno, abriu a porta da sala sem luz, entrou e apalpou com a mão esquerda, à procura do interruptor. De súbito, ouviu um estalo, um movimento, uma respiração atrás de si, e o calafrio que no mesmo instante o envolveu paralisou-lhe os dedos acima do interruptor.

Havia alguém.

Começava a virar-se quando subitamente um braço o agarrou pela frente, fechando-se sobre o seu pescoço. Sufocado, levantou as mãos para se desenvencilhar daquele abraço estrangulador, para se libertar. Um torno apertava-Lhe a garganta, enquanto cravava as unhas no braço, e a sala escura se enchia de loucos pontos luminosos, meteoros e estrelas.

Ferozmente, ofegante como um animal encurralado, libertou-se do laço musculoso e tentava retorcer-se para pegar no agressor invisível pela frente, quando um punho cerrado lhe desfechou um murro na parte lateral do crânio, e os joelhos vergaram. A mão estendida encontrou a escrivaninha e impediu-o de cair por completo e depois, desesperadamente, arquejando, conseguiu erguer-se vacilante, investindo contra o vulto gigantesco que enfrentava. Agora agarrava-se ao assaltante, tentando sujeitar aqueles braços de malho e punhos de martelo, lutando por derrubar o monstro no chão. Os braços do outro, porém, tomaram um impulso para cima, rompendo o jugo de Barret e obrigando-o a recuar, cambaleante, de encontro à escrivaninha.

A negra silhueta avançou e Barrett deu-lhe um pontapé, errando o alvo. Procurou esgueirar-se ao longo da escrivaninha. O vulto prosseguiu, sem oferecer trégua, e de repente encontrou voz.

- Agarra nele - rosnou.

Instintivamente, Barrett quis virar-se, para se proteger do desconhecido nas suas costas. Nessa fracção de segundo, notou outra massa volumosa que levantava o braço e lhe desferia uma cutilada. Tentou desesperada-mente desviar-se, enquanto a coronha de um revólver lhe passava a raspar pelo rosto, tingindo-o em pleno peito.

A dor abriu-se como um guarda-chuva por todo o corpo e foi refugiar-se no alto da cabeça. Tudo começou a girar, os joelhos amoleceram e, ao ver a sombra do braço de novo erguer-se, caindo sobre ele, fez o que pôde para proteger a cabeça, mas um peso esmigalhou-a e ele mergulhou de cara no chão.

Sentiu a felpa áspera do tapete no rosto, um córrego pegajoso deslizou-lhe pela face, cores vivas rodopiaram atrás das pálpebras cerradas, e vagamente, distante, ouviu uma voz esganiçada a repetir: vamos embora, vamos embora, vamos embora.

As cores dissolveram-se. A vida morreu.

Escuridão. Vácuo absoluto.

O cérebro despertou num mundo caliginoso, tentando livrar-se do fundo daquele lago infernal e gradativamente, com exasperante lentidão, flutuou até à superfície.

Uma frieza húmida banhava-lhe a testa e o rosto. Por fim, o ar refrescante e a fragrância de perfume.

Inalando profundamente, abriu os olhos a medo.

Havia um rosto debruçado sobre o seu, indistinto, trémulo, que aos poucos se foi definindo. Cabelos negros sedosos, olhos verdes e lábios vermelhos.

- Maggie - murmurou.

- Sim, Mike.

- O que é que você está...?

Para certificar-se de que não era sonho, desviou o olhar para a guarnição do tecto e em seguida para o sofá da sala, as poltronas, a porta aberta. E voltou a fixá-lo em Maggie. Tinha a cabeça reclinada no colo dela. Estava sem paletó e sem camisa, estendido no soalho. Ela, sentada sobre as próprias pernas em cima do tapete, amparava-lhe a cabeça, acariciando-lhe a testa com uma das mãos enquanto a outra segurava um lenço húmido manchado de sangue.

- Você está bem, Mike? - perguntou, ansiosa. - Sente-se melhor?

- Não sei. Acho que sim - aproximou a mão da têmpora. - Parece até que alguém andou a fincar uma estaca de construção aqui em cima e contra o meu peito.

- Não me admiro. Você ficou com um galo do tamanho de um ovo na nuca. E quando cheguei aqui, o seu pescoço sangrava. Agora já limpei. A pele estava arranhada, um pouco dilacerada. Tirei-lhe a camisa. A outra coisa que pude encontrar foi uma escoriação feia nas costelas. Quer que chame um médico?

- Não... não... Acho que não é preciso. Espere, deixe-me levantar.

Fez esforço, auxiliado por ela. Ao pôr-se de pé, o cérebro ficou confuso e a vista turvou-se novamente, mas, depois, em seguida, começou a melhorar, recuperando a clareza de raciocínio e visão.

- Que foi que houve, Mike? Cheguei há cinco minutos. Encontrei a porta do escritório escancarada e luz na sala de recepção. Todas as outras lâmpadas estavam apagadas. Não sei o que se passou. Chamei por você. Não tive resposta. Depois escutei o que me parecia ser um gemido. Vinha daqui. Então entrei, acendi as luzes e deparou-se-me você. Foi uma coisa horrível. Ia telefonar para pedir uma ambulância, mas logo achei que primeiro devia ver como é que você estava. Tem a certeza de que se sente melhor?

- O pior já passou. Acho que uma codeína resolve o resto.

- Você tem cá?

- Na casa de banho. Eu vou buscar...

- Deixe que eu vou.

Ela pôs-se de pé, num salto, olhou em redor e seguindo a direcção indicada, desapareceu na casa de banho.

Após um instante, Mike Barrett conseguiu levantar-se. Quando Maggie Russell voltou com o comprimido branco e um copo de água, ele engoliu tudo logo.

- Obrigado, Maggie.

- Agora lembra-se do que aconteceu? Lembrava-se nitidamente.

- Depois de lhe telefonar, vim de carro lá do Vale. Subi até aqui, e no momento em que entrei na minha sala, antes que pudesse acender a luz, um sujeito enorme saltou nas minhas costas. Consegui soltar-me dele, mas depois ele gritou para outro, de modo que estavam dois.

Esse outro começou a bater-me com o revólver. Eu caí e acho que ouvi dizerem que era melhor fugir depressa. Aí então parece que desmaiei.

- Mas quem foi? E porquê?

- Não sei quem foi. Estava escuro. Entrei e não deu tempo de acostumar os olhos. Calculo, porém, quem esteja por trás de tudo isto e talvez até porquê.

O telefone.

Virou-se. A escrivaninha dava a impressão de ter sido varrida por um pequeno tufão. O tapete estava coberto de papéis e havia uma cadeira virada no chão. O telefone continuava no lugar de sempre, porém com a parte de baixo desmantelada e o revestimento removido, deixando exposto o mecanismo interno.

Com a cabeça ainda dolorida, o peito latejante, aproximou-se penosamente da escrivaninha e examinou o aparelho.

- Conseguiram o que queriam - disse por fim.

- O que era?

- Eu vim cá porque tencionava certificar-me e agora tenho a certeza, a não ser que a Companhia Telefónica esteja a oferecer um novo serviço de judo aos seus usuários. Alguém instalou um monitor no meu telefone, e depois decerto descobriram que eu sabia... o que significa que o telefone da minha secretária também foi controlado, porque eu insinuei sobre o assunto com muita insistência quando liguei de Nova Iorque-... de forma que eles voltaram depois do expediente para eliminar as provas. Por acaso, deparei com eles - apontou para o telefone. - Desmontaram isso aí, tiraram o dispositivo, mas eu cheguei antes que pudessem remontar tudo de novo.

- Mas quem havia de...? Você devia chamar a Polícia.

- A Polícia?

Ela pareceu ficar intrigada com o seu tom, mas logo uma vaga compreensão lhe passou pela fisionomia.

- Ah - fez ela.

- Daqui a pouco já lhe explico tudo - prometeu Barrett. - Mas primeiro acho bom avisar o meu sócio.

Dirigiu-se à sala de recepção, mas antes de discar o número examinou o telefone de Donna. Passou a unha do polegar pelo revestimento. Estava frouxo. Sim, eles tinham vindo logo depois de Donna se ter ido embora - decerto haviam esperado que ela saísse, o que pelos vistos fora bem tarde- e aí então retiraram o microfone electrónico do telefone dela antes de começarem a trabalhar no seu.

Levantou o auscultador e discou o número da casa de Abe Zelkin

Mal terminara de dizer alô quando Zelkin perguntou inquieto:

- Mike, que negócio é esse que Donna me contou? Ficámos sem as cartas de Jadway?

- Abe, é uma história muito comprida, mas vou resumi-la, deixando os pormenores para amanhã.

Descrevendo o que acontecera na loja de autógrafos de Olin Adams, apressou-se a explicar como não haviam notado o que era óbvio desde o momento em que tinham perdido Christian Leroux para a oposição. Finalmente Barrett relatou o assalto que sofrera no seu escritório, e o estado do seu telefone.

- Isso não tem importância - retorquiu Zelkin. - Quero saber sobre o seu estado. Tem a certeza de que se está a sentir bem?

A codeína começava a surtir efeito.

- Estou a sentir-me óptimo, Abe. Amanhã de manhã é que eu vou ver. Talvez vá consultar o Dr. Guigley. Que dia é amanhã? Sábado. Passarei por casa dele.

- É preciso que você esteja em plena forma prò julgamento na segunda-feira de manhã.

- Hei-de estar - disse Barrett, soturno. - Talvez o nosso caso não esteja, mas eu estarei. Por falar nisso, lembrei-me agora de outra má notícia. Fui directamente do aeroporto para Van Nuys. Abe, dá-me raiva contar uma coisa destas, mas nós perdemos Mrs. Vogler.

Pôde ouvir a brusca falta de fôlego de Zelkin.

- Não brinque. Como foi que aconteceu? O transmissor do telefone de novo?

- Não, desta vez o dispositivo foi outro. Chama-se o Estratagema de Osborn. Para lhe dar uma ideia rápida...

Narrou que fizera a Faye, de passagem, uma referência a Mrs. Vogler. Que diabo, quando a gente está de namoro firme com uma garota, é normal que se pense que ela seja capaz de guardar um segredo. Enganara-se com Faye. Subestimará os seus laços de fixação paterna. Ela havia sido o dispositivo pelo qual a sua intenção de Usar Mrs. Vogler fora transmitida ao pai, que, por sua Vez, passara a informação a Frank Griffith. E depois, simplesmente, descreveu a cena com Faye na noite anterior, quando se recusara a participar do jogo de Osborn. Em consequência, perdera Faye e, como o dinheiro geralmente corrompe os princípios, fracassara em reter Isabel Vogler.

- Portanto, Abe, acho que na segunda-feira teremos de enfrentar um obuseiro, munidos com um arco, apenas um arco, sem as flechas.

- Não se preocupe com isso. Faremos o possível - Zelkin hesitou ao telefone. - Quanto a você e Faye, é uma pena.

- Faye é o menos. Não ia dar certo. Eu já o pressentia. Quanto à vice-presidência... sejamos francos... eu ficaria horrível em traje de iate. Uma vez sofri enjoo só de ler As Vinte Mil Léguas Submarinas. Ademais, recebi uma proposta de sociedade permanente de um amigo chamado Abe Zelkin. Vou escrever-lhe e perguntar-lhe se ainda está de pé a proposta.

- Pare com isso. Se eu não estivesse tão preocupado por sua causa, este seria um dos momentos mais felizes da minha vida.

- Então somos sócios, Abe. Daqui por diante, sucesso ou fracasso, vai ser Zelkin & Barrett.

- Barrett & Zelkin. Amanhã coloca-se a placa.

- Faremos questão de destaque. Então a primeira ordem do dia é a seguinte. Aqueles especialistas em eliminar microfones ocultos que você chamou logo no início, aquela equipa que localiza os tais transmissores minúsculos. Vale a pena mandá-los vir de novo?

- Claro que vale... vou mandar.

- Tem a certeza de que são bons?

- Mike, são o que há de melhor. Quando tiverem terminado, estaremos garantidos outra vez, com todos os microfones exterminados. Eles trazem duas coisas. Uma chamada Sentinela 101, que ligam em cada telefone, e o mostrador informa se existe alguma tomada. Depois utilizam outra, chamada a Vassoura. É uma caixa com antena e mostradores que indica qualquer equipamento transmissor escondido. E desta vez pediremos que coloquem um aparelho de interferência ao lado de cada receptor. Custam mais ou menos duzentos e cinquenta dólares, mas a gente pode alugá-los e são uma garantia para truncar qualquer tomada sem fio que seja posta no futuro.

- Formidável. Acho que o meu e o de Donna agora estão livres. Mas em todo o caso convinha mandar vasculhar o escritório inteiro. Inclusive o seu, a sala de Leo e até o apartamento de Phil Sanford no hotel. É preciso revistar tudo e eliminar os microfones ocultos. Poderia você conseguir a tal equipa para segunda?

- Vou pedir que venham no sábado.

- Não que ainda nos sobre algum segredo. Eu praticamente esgotei todas as pistas. Mas nunca se sabe o que pode acontecer. Se chegarmos a conseguir outra oportunidade, faço questão de ouvir primeiro no tribunal.

- Mike, você já pensou quem é que está atrás de tudo isso?

- Tenho um bom palpite. A gente fala sobre esse assunto sujo depois de passar a vistoria.

Concluído o telefonema a Zelkin, Mike Barrett voltou à sua sala.

Maggie Russell pusera tudo em ordem e estava a juntar o último papel do soalho. Observou-a em silêncio enquanto ela se levantava e ia até à escrivaninha. Tinha os cabelos desfeitos de modo atraente e meneava suavemente os quadris por baixo do vestido curto e ondulante de chiffon.

Surpreendeu-o de olhos fixos nela, e corou.

- Obrigado, Maggie - disse. - Bem, agora já estou pronto. Prometi que ia levá-la para jantar. Do que é que você gostaria?

Ela não respondeu logo.

- Mike - disse finalmente -, não fiz por querer, mas não pude deixar de ouvir parte da sua conversa ao telefone.

- Não havia nada íntimo.

- A parte sobre Faye Osborn.

- Eu já lhe tinha dito, não tinha?

- Julguei que fosse apenas parte do engodo. Para me convencer a encontrar-me com você e deixar-me mais à vontade.

- Eu jamais faria isso, Maggie.

- Não que Faye tenha alguma coisa que ver com o nosso... o nosso encontro para tratar de negócios. Só que, ora, se as coisas continuassem do jeito que estavam e alguém me visse a jantar com você, podia haver um mal-entendido. Quero dizer, as mulheres são muito possessivas... não sou excepção à regra... e eu não queria ser surpreendida em nada que fosse sórdido ou pérfido.

- Quando você falar em Faye, use o tempo pretérito.

- Bem... já que você o diz.

- Para ser franco, não falemos mais nela. Vamos falar sobre nós. Eu estou com fome, o que significa que me estou a sentir melhor. E você?

- Também estou.

- Ainda não conheço o seu gosto, Maggie. Cozinha francesa, italiana, mexicana, chinesa, vegetariana?

- Italiana.

- Perfeito. Que me diz de um lugar realmente óptimo? Já esteve no La Scala em Beverly Hills?

- Creio que não. Exigem traje a rigor?

- Exactamente como você está.

- Não me refiro a mim. Eu refiro-me a você. Mesmo sem camisa, não devia pôr gravata?

Ele olhou para o peito nu e os dois caíram na risada.

- Tenho uma camisa limpa no armário - disse ele. - Volto num instante.

Embora as duas salas de refeições do Restaurante La Scala fossem contíguas e os reservados e as mesas parecessem aglomerados, os casais e grupos de pessoas, jantando em recantos diferentes, não perturbavam a intimidade alheia. A atmosfera e o ambiente do restaurante eram de tal índole que um homem e uma mulher a jantarem juntos, cercados por outros comensais, podiam desfrutar de uma sensação de isolamento dos restantes.

Sentado perto de Maggie Russell, numa mesa de parede ao fundo, Mike Barrett prezava essa intimidade que não dependia de isolamento. A codeína fizera efeito, e as duas bebidas antes do jantar tinham ajudado. A garrafa média de chianti que viera após a sopa de minestrone, acompanhando o prato de fettuccine, estava quase vazia. Não sentia já dor.

Durante a comida, em resposta às perguntas de Maggie, Barrett repetira, em maiores pormenores, o que já tinha contado a Abe Zelkin uma hora antes. De olhos arregalados, Maggie Russell escutara atentamente a sua descrição do sumiço de Leroux em Antibes, os polícias à paisana que apareceram por coincidência no estúdio de filmes pornográficos de Quandt, as cartas de Jadway escamoteadas por um impostor, a estranha amnésia e mudança de opinião de Isabel Vogler em Van Nuys.

, Agora, concluída a descrição, Barrett pegou com o garfo no último talharim amanteigado e devorou-o.

Maggie pousou o copo de vinho na mesa.

- É inacreditável - disse ela. - É o tipo da coisa que a gente vê ou lê em histórias de mistério mas sabe que é ficção. Até quando se ouve falar nesses dispositivos electrónicos nos noticiários, é difícil aceitar a realidade de seres humanos como nós entrarem furtivamente em escritórios ou casas alheias e dissimularem esses aparelhos, enquanto alguém, noutro lugar qualquer, fica à escuta de conversas que deviam ser particulares. É difícil acreditar que isso realmente aconteça.

- Pois aconteceu- Não é apenas imoral mas indecente, tão indecente quanto um voyeur que se esconde de noite na janela de um quarto de dormir alheio para espiar um casal a copular na cama.

- O voyeur de que você fala age assim por próprio prazer sexual. Yerkes é sócio do Clube-do-Vale-Tudo, e age assim por questão de poder.

- O poder também pode proporcionar prazer sexual - disse Maggie. - Se você já tivesse visto Luther Yerkes, seria capaz de crer que é o único tipo de prazer sexual que ele conhece. Chego a ficar toda arrepiada. E ele nunca é tão óbvio como quando pensa que está a ser subtil. Precisava de ver o modo como manobra o Tio Frank. Você não ia acreditar, o jeito com que Tio Frank concorda com tudo o que Yerkes diz, julgando até que foi ele próprio quem teve a ideia de fazer coisas que Yerkes lhe sugeriu.

- Frank Griffith tem de acreditar em tudo que Yerkes aconselha. Afinal de contas, no mundo em que o seu tio vive, os valores e as regras que ele respeita atingem o seu ponto culminante na pessoa de um Yerkes. Para os meramente ricos, Luther Yerkes é um marajá.

- Mas você não acha que foi Yerkes quem subornou Isabel Vogler?

- Não - respondeu Barrett. - Para essa artimanha não era necessário o poder supremo. Foi exactamente Frank Griffith. Tenho quase a certeza.

- E não acha que o Promotor Público tomou parte nisso?

- Realmente, acho que não. Talvez eu tenha vocação de escuteiro, que nem disse à minha ex, ontem à noite, quando tivemos a menos doce das despedidas. Não, creio que Elmo Duncan não foi o instigador do que aconteceu. Pode ser que ele saiba do que se está a passar, consentindo em silêncio, e deste modo tornando-se cúmplice posterior ao facto. Mas tenho a certeza de que não é o instigador, apenas o beneficiário. Quando Elmo Duncan iniciar o seu bombardeio pesado na próxima segunda-feira, quase toda a gente vai pensar que foi ele quem nos reduziu a frangalhos. Ninguém saberá que é Yerkes quem dirige a linha de provisões, com a assistência de Willard Osborn, Frank Griffith e sabe Deus mais quem. Confesso que as nossas defesas estão danadas de fracas... especialmente depois de toda a sabotagem... para se levantarem contra uma frente única tão esmagadora como essa. Impulsivamente, Maggíe estendeu a mão e cobriu a de Barrett com a sua.

- Mike, não me inclua nessa frente única, mesmo sendo parenta de Frank Griffith.

- Você não é parenta consanguínea. Nem de longe tem qualquer coisa parecida com Griffith.

Sentiu vontade de pegar naquela mão macia, segurá-la, mas já havia sido retirada.

- Não tenho mesmo - concordou ela -, e consanguíneo ou não, tão-pouco o próprio filho se parece com ele. Já lhe disse antes que eu achava que não nos devíamos encontrar, porque não posso ser desleal às pessoas com quem moro ou a quem estou ligada. Reflecti sobre isso, e agora posso dar-lhe um quadro mais nítido do que sinceramente penso. Não é propriamente a família Griffith que me sinto na obrigação de proteger. É somente Jerry, apenas ele. É o único a quem devo lealdade. Tia Ethel...

,bem, ela não pode fazer nada e dá-me pena. Nada do que eu faça ou deixe de fazer pode causar-lhe qualquer dano. Quanto a Tio Frank... depois do modo como ele se portou e continua a portar-se, cada vez me interessa menos. Isso também não é lá muito verdadeiro. Interessar-se menos por alguém significa que a gente já se interessou antes em alguma ocasião. E eu nunca me interessei por ele de modo algum. Tenho-o tolerado, sobrevivido e, à minha maneira felina, protegido Jerry dele. Estou-me lixando para Frank Griffith. Tenho a certeza de que é um crápula hipócrita, tudo aquilo que Isabel Vogler disse antes que ele era, e muito mais ainda.

- Maggie, não há nenhuma necessidade de você...

- Deixe-me desabafar enquanto posso. Veja só um exemplo. Yerkes quer que Duncan use Jerry como testemunha contra o seu livro. Isso transformou-se num grande problema. E embora Jerry se negue a comentar a noite em que tentou matar-se, ele não pára de me dizer que tentará de novo antes de comparecer ao julgamento. A simples ideia o apavora. Jerry não é capaz de resistir ao pai, por isso só fala comigo e com o psicanalista a respeito do seu medo. E não pense que Tio Frank não sabe o que está a fazer com o rapaz. O Dr. Trimble já o preveniu de que a exibição pública num tribunal representaria uma provação para Jerry. E mesmo assim, Tio Frank continua inflexível. Ora que diabo, ele vive a repetir, seu filho vai portar-se como um adulto, aparecer lá como um homem e revelar ao mundo o que este seu livro fez com ele. Tio Frank finge que está exigindo isso de Jerry para salvar o rapaz da acusação de estupro. Mas eu acho que tudo o que Tio Frank anda a fazer, conscientemente ou não, é salvar a própria cara e imagem que criou de si mesmo, desviando a atenção de todos da sua responsabilidade pessoal pela conduta de Jerry. Acho que é um acto egoísta e não paternal. Ele sacrifica o próprio filho para se salvar. E eu simplesmente não posso permitir que isso aconteça.

- E como é que você o vai impedir, Maggie?

- Sei lá. Talvez encontre um jeito. Jerry não precisa de aparecer como testemunha se não quiser, precisa?

Barrett sacudiu a cabeça.

- Não. Oh, Duncan poderia intimá-lo. Mas não se arriscaria, se visse que Jerry não ia cooperar. Não, depende exclusivamente de Jerry se ele quer aparecer ou não.

- Não depende só dele. Depende do pai. E depende de mim fazer que o pai dele não o arraste a isso... e atém do limite da sanidade mental. Estive tentada a tomar as dores de Jerry uma dúzia de vezes durante os últimos dias. Senti medo, confesso. Medo de talvez pôr em perigo a minha própria segurança. Mas o que você me contou sobre a manipulação de Tio Frank com Isabel Vogler deixou-me furiosa. Estou quase disposta a dizer o que penso, sejam quais forem as consequências. Tomara que me embriague bastante uma noite para fazer isso. De quanto tempo disponho?

- Provavelmente até à metade da semana que vem.

- Eu ainda faço isso.

- Você acha que pode dizer alguma coisa que faça Frank Griffith mudar de ideia?

- Acho - fez uma pausa. - Contar que Jerry tentou suicidar-se, talvez adiante.

- Crê que podia contar isso a seu tio? - Barrett não dissimulou a dúvida.

- Eu... eu creio que sim. Não tenho a certeza. Só sei que se o Tio Frank soubesse e percebesse que a pressão que está a fazer pode levar Jerry a outra tentativa, talvez Parasse de insistir. A possibilidade de um escândalo desse género poderia sobrepujar seja lá o que for que o está levando a pôr o filho no banco das testemunhas. - Maggie, muito embora você esteja a fazer isso por Jerry... e eu também lucraria com o facto de Jerry não servir de testemunha contra nós... eu pensaria bem antes de me meter com Frank Griffith.

- Porquê?

- Porque, ganhando ou perdendo, você tornaria insustentável a sua própria posição em casa dele. E não tenho a certeza de que esteja pronta para sair de lá. Você mesma disse que precisava da família. É por isso que lá mora.

- Pois eu já não tenho tanta certeza de que preciso daquela espécie horrível de incubadora. Talvez esteja pronta a arriscar-me a voar sozinha. Estou aqui em público com você, não estou? Já é um passo. Um pequeno desafio. Um fiapo de coragem.

- Eu fiquei a pensar.

- Em quê?

- No motivo de você se ter arriscado.

- Você perguntou-me - respondeu simplesmente. Afastou dos olhos uma mecha de cabelo. -Gosto de você, esse foi o motivo principal.

- E eu interesso-me por você, Maggie. Isto já deve ser para lá de óbvio para você.

- Oh, isso. É que você levou o fora.

- Eu senti atracção por você antes de levar o fora.

- O polígamo - disse ela. Porém tinha sorrido. - Para que esconder? Estou contente por que tenha terminado com aquela outra mulher. E você, não?

- Se estou contente ou se terminei? Ambas as coisas. Sim, sobretudo contente por ter terminado. Já lhe pus uma pedra em cima.

Ela brincou com um anel no dedo indicador.

- Existe outro motivo para eu estar aqui. Apesar do que possa ter causado a Jerry... e, conforme você diz, não se pode ter a certeza de que fosse só isso... sou a favor de Jadway e a favor de Os Sete Minutos. Já lhe disse isso antes. Eu queria levantar-me com você em público e ser julgada.

Naquele momento ele sentiu vontade de dizer: Maggie, amo-te.

- Isso é maravilhoso da sua parte - disse.

- Agora que perdeu Mrs. Vogler, eu gostaria de encontrar outra pessoa que o ajudasse a provar que o livro sozinho não pode ser culpado pelo que Jerry fez. Mas não há mais ninguém que pudesse dizer a verdade... a não ser... eu mesma. E... e eu podia ir muito longe, mas não tanto assim, não até ao banco das testemunhas. Você compreende, não é?

- Eu não permitiria que fosse uma testemunha de defesa, mesmo que você quisesse.

- Acho insuportáveis as grosserias que ouço e leio contra o livro de Jadway. Penso o tempo todo na heroína, Cathleen, e na verdadeira mulher, a amante de Jadway, a que dizem que inspirou Cathleen...

- Cassie McGraw.

- Como a invejo por ter sido tão livre em relação ao amor, por ter conhecido uma liberdade tão grande a ponto de experimentar o amor absoluto. Quase todas as mulheres passam a vida inteira, até ao próprio túmulo, sem sequer saber como é o amor ou ter a capacidade de aceitar ou apreciar o pouco amor que recebem.

- E você, Maggie? - perguntou Barrett baixinho. - Sentiria por um homem o mesmo que Cassie sentiu... ou digamos, o mesmo que Cathleen sentiu na história?

Maggie desviou os olhos.

- Eu... eu não sei. Quando penso em Cathleen naquele livro, às vezes parece-me que talvez pudesse ser assim. Quero dizer, que eu possuo tudo trancado no meu íntimo e que poderia abrir e dar a alguém, ao parceiro certo, tudo o que tenho, da cabeça aos pés, e, em troca, ser capaz de aceitar e acolher o amor que me é dado. Espero que um dia possa ter os meus próprios sete minutos.

- Se você quiser mesmo esse amor, um dia o terá

- disse ele seriamente.

Ela encolheu os ombros, sem jeito.

- Veremos... Está a ver que horas são? Se tenciona estar em forma na segunda-feira, já deveria estar na cama há uma hora, especialmente levando em conta o que lhe aconteceu. Espero que tenha juízo e descanse amanhã.

- Receio que nem amanhã nem qualquer outro dia até o fim do julgamento. Conseguimos um pintor italiano, de Vecchi, que pretende ter conhecido Jadway e pintado um retrato dele, que vai chegar de Florença amanhã. E mais meia dúzia de testemunhas para interrogar.

- Então trate de descansar um pouco.

Barrett levantou-se e recuou a mesa para que ela pudesse sair.

- E pense bem antes de se meter com Frank Griffith

- disse ele.

- Só se ele der o braço a torcer - retrucou Maggie. - Talvez eu experimente primeiro com o Dr. Trimble. Meu Deus, como sou covarde. Mas alguma coisa tem de ser feita.

Barrett apanhou o troco e depois alcançou Maggie que já o esperava no corredor entre o bar e a saída. Tomou-a pelo braço e então notou que ela havia reconhecido alguém que estava no balcão.

Do meio do balcão cheio de gente, um rapaz de cabelo crespo desgrenhado que necessitava de uma visita ao barbeiro, mas vestindo um dispendioso fato de seda, acenava vigorosamente para Maggie.

- Olá, Miss Russell! - chamou.

Ela ergueu a mão enluvada, um pouco constrangida.

- Olá - respondeu sem entusiasmo.

Depois virou rapidamente as costas e desceu logo os degraus que os separavam da rua. Mais uma vez Barrett teve de correr para alcançá-la.

Na calçada em frente ao La Scala, Barrett examinou-a. Ela estava a morder o lábio inferior e o rosto empalidecera.

- Quem era aquele? - quis ele saber.

- Irwin Blair - respondeu ela. - É um relações-públicas. Pertence à equipa de Luther Yerkes e está a fazer um pouco da publicidade de Duncan.

Sorriu meio sem graça.

- Onde quer que Yerkes esteja, você pode ter a certeza de que Frank Griffith não anda longe.

- Lamento profundamente o que aconteceu, Maggie. Eu não devia tê-la trazido aqui - franziu a testa. - Será que vão incomodá-la por causa disso?

- Não sei e tanto se me dá.

Desta vez o sorriso foi amplo e verdadeiro. Tomou-lhe a mão.

- Aconteça o que acontecer, valeu a pena.

 

Era tarde, e Elmo Duncan já começava a pensar que essa era uma maneira infernal de passar uma noite de sexta-feira.

Pior, amanhã estaria mais ocupado ainda, e domingo não seria dia de descanso. Todo o fim-de-semana, de madrugada até altas horas da noite, Duncan efectuaria reuniões no Palácio da Justiça com os seus auxiliares, investigadores, Leroux e as outras testemunhas de acusação. Finalmente, com a chegada de segunda-feira de manhã, a roda da roleta começaria a girar e ele arriscaria a sua carreira e o seu futuro na sorte.

No entanto, muito embora estivesse agora exausto até à medula dos ossos, Elmo Duncan sabia que quando o juiz empunhasse o martelo segunda-feira de manhã, dando início ao julgamento, ele sentir-se-ia revigorado e forte. Sempre fora assim nas suas experiências anteriores. Toda a vez que entrava no tribunal, sofrendo cansaço mental e físico, bastava começar o julgamento para que tivesse a impressão de que uma espécie de reservatório oculto se pusesse a nutri-lo com o seu estoque de energia, revitalizando-o e reanimando-o. Boa parte disso, supunha, provinha do facto de ter uma plateia. Espectadores, a imprensa, o público anónimo além dos limites da sala do tribunal, sempre o estimulavam, e talvez nunca viesse a possuir uma plateia maior do que a de segunda-feira de manhã e dos dias subsequentes. Outra parte do processo de rejuvenescimento resultava do alvoroço do desafio, ao qual ele sempre reagia como se a sua preservação, a sua vida e a da família estivessem em jogo. Gostava de um adversário que ele pudesse ver e odiar, e atribuía a esse inimigo o papel de um assassino empenhado em destruí-lo, de modo que se via forçado a matar para não ser morto. Ultimamente começara a considerar Michael Barrett, o advogado de defesa, como esse inimigo. Uma terceira parte do vigor renovado de Duncan provinha de uma dedicação à própria causa. Precisava de acreditar que a acusação era justa, que a luta era sagrada, e que, se não vencesse, então a grande massa da população que dependia dele seria exterminada pelos bárbaros. Raramente acreditara antes de forma tão absoluta numa causa que representasse. Sabia que as- hordas inimigas da lascívia e da decadência tinham de ser detidas (era como se fosse o guardião das portas de Roma enquanto a devastadora cavalaria númida do exército cartaginês se aproximava), se a civilização, ou seja, a lei, a ordem e a moralidade quisessem ser preservadas.

Entretanto, acima de tudo, o que provocava a secreção das suas glândulas supra-renais, a faísca que lhe dava vida numa sala de tribunal, era a segurança de estar mais bem preparado e mais bem armado do que o inimigo. E nunca, em época alguma, se sentira tão seguro como nesta noite. Escaramuças fundamentais tinham sido vencidas antes que a batalha final sequer houvesse começado, e o exército inimigo ficaria seriamente enfraquecido, para não dizer dizimado. Registaram-se graves deserções do lado contrário. Por que meios, ele não sabia nem queria saber. Podia imaginar, mas não procuraria confirmação. Luther Yerkes era o protector da magia. Na guerra, como no amor, tudo é permitido, e estava em guerra, numa guerra pela sobrevivência. No livro-razão que guardava no cérebro, o inimigo não possuía testemunha estrelar. Ao passo que ele, Elmo Duncan, não só tinha uma como até duas: Christian Leroux e Jerry Griffith, o que equivalia a um excesso de riquezas.

Contudo, apesar dessas garantias de que estaria pronto e apto na segunda-feira, ainda era noite alta de sexta-feira e sentia-se exausto.

Distraíra-se, mas ao ouvir nova referência a Jerry Griffith no lado oposto da mesa baixa, Elmo Duncan procurou prestar a máxima atenção aos outros dois ocupantes das fundas poltronas. Lá estava Luther Yerkes, resplandecente como sempre com os seus óculos de lentes azuladas, seu plastrão e seu smoking, acariciando a peruca e depois gesticulando com a minúscula mão feminina para Frank Griffith. Lá estava Griffith, na poltrona em frente. o gordo semblante absorto e o corpo atlético apoiado ao lado da poltrona, a fim de não perder a mínima palavra que o seu superior lhe dirigia. Que Duncan soubesse, essa era a primeira vez que Griffith havia sido convidado a comparecer a uma reunião na casa de praia de Yerkes, na colónia de Malibu.

Horas antes, a outra dupla de frequentadores habituais estivera presente. Irwin Blair, o nervoso publicitário, pouco se demorara. Já completara a parte mais difícil do seu trabalho, fomentando o interesse local, estadual, nacional e finalmente mundial pelo próximo julgamento. Depois que fosse instaurado, a publicidade perpetuar-se-ía espontaneamente. Esta noite Blair aparecera só para constar e logo se escapulira para comparecer a um jantar em Beverly Hills em companhia de vários jornalistas recém-chegados de Nova Iorque e Londres, para dar cobertura ao processo. Harvey Underwood chegara antes dele e permanecera bastante tempo, combinando sobre pormenores do seu depoimento e as testemunhas-surpresas que ia apresentar. Fora-se embora há apenas trinta minutos. Agora restavam Yerkes, Griffith e ele, e Duncan pôs-se a especular até quando a conferência ainda continuaria.

Começou a sentir uma pontada nas costas, na região do sacrilíaco, e rezou para que não se transformasse num espasmo muscular antes de segunda-feira. Retesou-se à medida que a dor lhe subia pela espinha, e então lembrou-se de que (como a esposa sempre lhe fazia ver) era o sintoma que sempre se manifestava nessas ocasiões que precediam um julgamento. Depois que estivesse no tribunal, senhor da situação, as costas não o trairiam.

Yerkes e Griffith estavam entretidos na conversa. Duncan aproveitou a oportunidade para sair do centro do sofá de três metros e buscar apoio para o dorso dolorido. Ao levantar-se, ouviu um telefone a tocar noutra peça. Espreguiçou-se cuidadosamente, fazendo massagem nos músculos das-costas, e procurou uma cadeira de encosto recto. Nesse instante percebeu que o mordomo escocês de Yerkes estava na sala.

- Mr. Yerkes, com licença... -começou o mordomo. Yerkes ergueu a cabeça, ligeiramente aborrecido.

- Que é?

- Telefone prò senhor. Mr. Irwin Blair deseja falar-lhe.

- Blair? Não pode esperar que...' Ah, paciência, eu atendo. Desculpe, Frank. Vejamos o que é que Irwin pensa que é assim tão importante.

Yerkes afastou-se do fundo da poltrona, colocando-se diante das caixas verdes em cima da mesa e premiu o botão que ligava o telespeaker.

- É você, Irwin? - perguntou ao aparelho.

A voz de Irwin Blair grasnou pelo amplificador.

- Mr. Yerkes, desculpe interromper, mas acabo de ver uma coisa que achei que o senhor e Mr. Griffith, se ele ainda estiver aí, gostariam de saber.

- Mr. Griffith está aqui, sim. E Elmo Duncan também. Pode falar. Estamos a ouvir.

- Estou a telefonar do Restaurante La Scala em Beverly Hills - a voz de Blair assumiu o tom conspiratório de alguém prestes a transmitir um trecho escolhido de boato pernicioso. - Adivinhem quem eu vi aqui há poucos minutos? Eu estava sentado no bar, à espera daqueles jornalistas convidados, olhando para a porta para os ver quando entrassem, e nisto quem é que sai do salão de refeições senão Maggie Russell, a sobrinha de Mr. Griffith. Só que o que eu julguei que vocês deviam saber é que ela não se achava sozinha, não senhor. Miss Russell tinha um acompanhante. Preparem-se para a surpresa. Era nada mais nada menos que o nosso prezado membro da oposição, o advogado de defesa, o próprio Michael Barrett, em pessoa.

Ao ouvir isto, Elmo Duncan aproximou-se rapidamente de Yerkes, que se inclinou mais para o microfone.

- Miss Russell e Michael Barrett? - perguntou ele. - Tem a certeza de que estavam juntos?

- Absoluta - exultou Irwin Blair. - Creio que jantaram aqui e depois ela saiu do salão de refeições primeiro, e ele veio atrás. Chamei por Miss Russell para lhe dar um olá, ela reconheceu-me e cumprimentou-me. Não pareceu muito contente de me ver. E quem estava com ela era Michael Barrett. Eu não o conheço, mas já o encontrei por aí antes. Para me certificar de que não me enganara, procurei o maìtre depois que eles se foram embora e indaguei se tinha sido Michael Barrett, o advogado, e ele disse-me que era. De qualquer maneira, Miss Russell e Barrett deixaram o La Scala juntos, tal como se fossem velhos amigos.

Prestando atenção, Duncan percebeu Frank Griffith, a bater as mãos grandes nos joelhos, com ar apopléctico.

- Não posso acreditar! - exclamou Griffith.

- Você acaba de ouvir Mr. Griffith - informou Yerkes no amplificador. - Ele acha difícil de acreditar.

- Pois só sei que é a pura verdade - respondeu Blaír. Yerkes sacudiu a cabeça.

- Está bem, Irwin. Obrigado por ficar de sobreaviso. Depois a gente fala. Boa noite.

E desligou o telespeaker.

- Desgraçada! Que história agora é esta?-rosnou Griffith, levantando-se da poltrona.

Yerkes fitou demoradamente o especialista em publicidade.

- Você não sabia de nada, Frank? Tem a certeza de que isso não vinha acontecendo há mais tempo?

- Para mim é completa novidade. Eu não podia ficar mais abalado - cerrou o punho. - Maggie. Raio, como é que essa cretina se foi meter com Barrett? Logo quem...! Será que perdeu o juízo?

- Eu só quero saber de uma coisa - disse Yerkes calmamente. - Você conhece bem a moça? Há quanto tempo mora ela em sua casa?

- Há um ano e meio, talvez. Mais ou menos isso. Quando despedi a tal Vogler, minha mulher achou mais cómodo mandar buscar a sobrinha ao Leste, para lhe servir de dama de companhia e secretária. Confesso que a ideia de uma parenta a estorvar em casa não me agradava muito. É mais difícil dar ordens a parentes do que a estranhos. Mas Ethel alegou que, fazendo parte da família, Maggie pelo menos seria de confiança. Por isso concordei.

- E Maggie é de confiança? - quis saber Yerkes.

- Sempre acreditei que fosse, até este momento. Tem sido óptima para Ethel. Talvez exagere um pouco nos mimos que dá a Jerry. Mas nunca interferiu em nada. É eficiente, discreta e decorativa.

- Bastante decorativa, por sinal - observou Yerkes. Virou-se para Duncan. - Você não concorda, Elmo?

- Já notei - disse Duncan. - É bonita, sim.

- E uma moça bonita deve ter muitos namorados, não é? - retorquiu Yerkes. Voltou a dirigir-se a Griffith. - Que é que você me diz, Frank? Que é que sabe da vida particular dela?

- Olhe, nunca prestei muita atenção - confessou Griffith. - Ela tem a chave da casa e entra e sai à hora que bem entende. Fez um pequeno círculo de amigas e sempre a ouço falar em conferências, concertos, filmes. Creio que volta e meia sai com algum namorado. Quando a levam a casa, um ou outro é convidado a entrar. Mas não são muitos e não acontece com tanta frequência.

- E agora Michael Barrett - frisou Yerkes pensativo. - Elmo, o que é que você acha?

Duncan dedicara um pouco de reflexão ao caso.

- A explicação, a meu ver, é óbvia. A defesa está a ficar cada vez mais desesperada. Provavelmente andavam à procura de uma brecha nas nossas trincheiras. E encontraram essa possibilidade em Maggie Russell. Imagino que Barrett se tenha empenhado em travar relações com ela. É solteiro, bonitão, e lá estava essa moça, também solteira, talvez à espera de um pouco de diversão. Há-de ter sido isso que os aproximou. E pelos vistos com resultados positivos. Não imagino o que Maggie lhe possa ter contado. Ela já nos encontrou a todos em casa, provavelmente ouviu as nossas conversas e suponho que pode ter repetido certas coisas. Não estou a insinuar que fosse intencionalmente desleal. Mas é capaz de ter revelado, ou de vir a revelar, alguns dos nossos planos e tácticas. Mesmo sem querer. Barrett é esperto. Longe de mim subestimá-lo. Somando tudo, que resulta? Um perigo potencial, a meu ver.

Griffith, avermelhando-se, colocara-se entre Yerkes e o Promotor Público.

- Quero explicar-lhes o que resulta para mim. É o mesmo que ter um cavalo de Tróia em minha própria casa. E isso é uma coisa que não posso tolerar. Vou agora mesmo para lá, para pôr aquela pequena de joelhos e exigir uma confissão completa. Se eu verificar que a história de Blair é um facto, digo-lhe que se não pára de se encontrar com esse chicaneiro, ela vai prò olho da rua. Para ser franco, estou com vontade de expulsá-la de qualquer jeito.

- Espere aí, calma, Frank. - Yerkes abaixou-se e pegou no seu conhaque. - Que pressa é essa?

Sorveu pensativo o armagnac.

- Sejamos sensatos. Pesemos as consequências de uma acção semelhante. Vamos supor que a expulse de casa por andar de namoro com a oposição. Não creio que uma ruptura dessas fosse exactamente amigável.

- Pode ficar certo de que não seria mesmo.

- Você, portanto, ralha com Maggie, põe-na no olho da rua, e o que é que consegue? Lança uma nova antagonista ao colo da oposição, quer dizer, uma sua antagonista e da nossa causa. E o que é que calcula que aconteceria então? Toda a inibição que ela possa ter a respeito de ficar calada deixa de existir. E ainda mais: haveria de querer vingar-se de você. O que há de mais natural para ela do que aliar-se a esses piratas da defesa? Tornando-se uma testemunha deles contra nós? Fazendo vir a público... ora, qualquer pormenor íntimo sobre a sua vida e sobre a vida no seu lar.

- Não tenho segredos, nada a esconder- afirmou Griffith hipocritamente.

- Evidentemente que não, Frank, claro. Mas tem uma vida particular, uma vida íntima, como todos nós, como qualquer homem. Essa moça acompanhou-a de perto. Inúmeros actos inocentes que você praticou, os comentários desprevenidos que fez, isolados do contexto, são capazes de ser torcidos, exagerados, deturpados, podendo ser nocivos a você e a nós quando ditos no banco das testemunhas - observou uma pausa e os seus olhinhos arredondaram-se por trás dos óculos azulados. - Afinal, Frank, nós acabamos de passar pelo mesmo tipo de experiência com a tal Vogler. Veja as mentiras que ela estava pronta a inventar no tribunal. Por pura e simples vingança. Não há coisa mais infernal do que a fúria de uma mulher posta no olho da rua. A tal Mrs. Vogler achava-se preparada para ajudar Barrett, para o arruinar a você, até que ficasse... hum... em condições de atender as exigências dela. Felizmente que nos descartámos de Mrs. Vogler. E ninguém quer criar um obstáculo desse género na pessoa de Miss Russell. Percebe aonde quero chegar? Virou-se.

- Elmo, você percebe, não?

O respeito de Duncan pela argúcia de Yerkes ficara novamente reforçado.

- Tem toda a razão, Luther. Está tudo a ir tão bem até agora, na véspera do julgamento. Para que fornecer armas à oposição?

Griffith bufou.

- Está bem. Talvez vocês dois estejam com a razão. Mas isso não resolve nada. Não podemos ficar de braços cruzados enquanto a sobrinha de minha mulher, uma moça que faz parte da família, continua a encontrar-se com um advogado que só nos quer difamar e arruinar.

- Porque não? - retorquiu Yerkes de repente. - Porque não deixar que Maggie continue a encontrar-se com Michael Barrett? É o menor dos dois males. Talvez até se transforme numa vantagem para nós. Ouçam. Digamos que continuem amigos. Digamos que ele esteja a utilizá-la, embora não tenhamos a certeza disso. Francamente, o que é que ele pode ficar a saber por intermédio dela? Até agora, ela não viu nem ouviu nada de muita importância. Se você tomar cuidado na presença dela, se for prudente, precavido, pouco lhe restará para confiar a Barrett. Ao mesmo tempo, Frank, se você não ligar, permitindo simplesmente que ela continue a sair com ele, ou até reconhecendo que está ciente da história e mostrando a sua confiança e generosidade, não se intrometendo... de facto, subtilmente encorajando... tenho a certeza de que poderíamos tirar partido da situação.

- Tirar partido? - ecoou Griffith, incrédulo.

O próprio Duncan achava-se pessimista, mas conhecendo a inteligência de Yerkes, esperou pela continuação.

- Tirar partido, sim - insistiu Yerkes. - Repare. Em troca de uma brecha insignificante nas nossas trincheiras, conseguimos uma visão melhor do campo da defesa. Você bem sabe que isso nos faz falta. Não temos nenhuma. Acha que seria precioso para Elmo saber o que Barrett e Zelkin pretendem, nos bastidores, à medida que corre o julgamento. Sou como Elmo, nunca subestimo a oposição. Esse jovem Barrett não possui grande experiência, mas está disposto a criar fama e já provou que é bastante cheio de expediente, original e persistente. É bem capaz de surgir com alguma novidade no tribunal e não creio que nenhum de nós gostaria de surpresas. Com uma brecha na linha de defesa, não correríamos tal perigo. Ora, a sua bela sobrinha oferece um meio perfeito, mas só se for manobrada com cautela. Você entende desse negócio de manobrar produtos, Frank. De agora em diante trate Maggie como se fosse um artigo de consumo.

Começara a conversão de Frank Griffith. Mostrava-se mais calmo, interessado, embora ainda confuso.

- O que é que você sugere que eu faça com ela?

Yeikes terminou a bebida e afastou o cálice. Duncan percebeu que ele estava encantado com a situação.

- O que eu sugiro é o seguinte - respondeu Yerkes, - Amanhã... ou talvez depois de amanhã... com toda a naturalidade... diga a Maggie que você soube que ela foi vista em público com Barrett. Ela há-de contar com uma explosão. Em vez disso, terá uma manifestação de compreensão. Você será compreensivo ao máximo, o que a desarmará por completo, dócil à sua primeira chamada. Deixe que ela explique. Aceite a explicação. Convença-a de que não tenciona interferir na sua vida íntima, que realmente não se importa com quem ela saia, desde que proceda com discrição enquanto a família for alvo da curiosidade alheia... frise que ela deve proceder com extrema discrição durante o julgamento, a fim de proteger o futuro de Jerry.

Griffith concordou com a cabeça.

- Jerry. Sim, é uma boa ideia.

- Depois, sempre que surgir ocasião na próxima semana, no fim do dia, comente o processo com ela, o que aconteceu no tribunal e assim por diante. Nada mais natural. Se tiver sorte, ela é capaz de deixar escapar algumas das coisas que Barrett lhe contou, ou certas actividades da oposição que ela descobriu. Por outro lado, se percebermos que Barrett não lhe revelou grande coisa ou que ela se negue a dizer o que sabe, então restará outra alternativa, que podemos utilizar em caso de necessidade. Sempre haverá meio de você incutir uma informação falsa ou errónea em Maggie... por exemplo, permitindo que escute o que você diz ao telefone... ou esquecendo um memorando num canto qualquer da casa, a respeito de certa estratégia fictícia que Elmo estiver arquitectando, ou uma nova testemunha inexistente que irá depor no processo... informação que ela pode transmitir que irá depor no processo... informação que ela pode transmitir a Barrett, deixando-o na crença de que vamos fazer uma coisa que nunca nos passou pela ideia. Isso serviria para desequilibrá-lo. E ainda mais: depois de receber essa informação, Barrett seria capaz de confiar tanto em Maggie que terminaria por contar-lhe os verdadeiros planos da oposição. Eu creio realmente que vale a pena tentar, Frank. Você acha que dá conta do recado?

Nervoso, Frank Griffith manuseou o charuto no bolso interno do paletó.

- Não sei. Vou ver. Mas continuo a não gostar da ideia de ter alguém a morar em minha casa e que passe as noites com um advogado que está a tentar difamar-me... e não só a mim, você compreende, mas a meu filho, a meu filho também. Agora, se você e Elmo...

- Faça um esforço - disse Yerkes com firmeza. - Não se meta na vida amorosa de Maggie. Deixe que ela ajude a cavar o túmulo de Barrett. Aja a seu modo.

Duncan fez um aceno de admiração ao seu patrono e virou-se para Griffith.

- Eu aprovo, Frank. É a melhor técnica para você, para seu filho e prà nossa causa comum.

Frank Griffith recobrara a sua segurança de velho membro do clube.

- Muito bem, cavalheiros. Negócio fechado. Patrocinarei o programa de Romeu e Miss Judas.

 

                                                                               CONTINUA 

 

                      

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