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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


SEM TEMPO PARA CHORAR / Cynthía Freeman
SEM TEMPO PARA CHORAR / Cynthía Freeman

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio "SEBO"

 

 

 

  

                                             Capítulo um

O inverno era um tempo que inspirava medo; significava fome e ociosidade. Era como uma peste, um castigo por todos os pecados cometidos durante cinco mil anos. Será que Deus os perdoaria? Com o tempo, sim, mesmo que o homem nunca perdoasse.

A chuva torrencial que havia caído nos últimos cinco dias deixara profundas fendas na terra, além de um rio de lama que só estaria seco na primavera. Em breve chegaria a neve do inverno e a lama se congelaria. Mas finalmente, e talvez por compaixão, os elementos lhes tinham dado um descanso. Os céus haviam se acalmado agora, pois a chuva tinha parado, e a pequena aldeia que ficava ao sul de Odessa dormia.

Estavam amontoados em cima de esteiras, como uma ferragem humana, junto ao fogão. Aquilo que eles não encontravam para aquecer os estômagos vazios era substituído pela proximidade mútua. Destacando-se no céu ameaçador, enormes colunas de fumaça negra erguiam-se em espiral das chaminés. Na aldeia não havia iluminação, com exceção do lampião a querosene, que ardia com luz difusa no interior da casa dos Rabinskys.

Essa situação tinha começado com as chuvas. Chavala, porém, a mais velha de cinco irmãos, tinha pouco tempo para se preocupar com o que havia acontecido além dos limites dos três cômodos que lhes serviam de casa. Durante os últimos cinco dias e noites vivera um tormento, observando a mãe enfrentar as dores do parto. Passava o tempo entre o pequeno quarto e a cozinha, onde o caldeirão de água fervia sem parar. Enquanto rasgava lençóis, proferia vitupérios contra os elementos, que tinham feito com que Leah, a parteira, adoecesse, sendo obrigada a ficar acamada, com pleurisia e um resfriado tão violento que chegava às vezes a tossir sangue.

Foi um grito terrível que a fez esquecer Leah e voltar correndo para junto da mãe.

 

 

 

 

— Chavala! Como estão os outros? — perguntou a mãe, mal podendo proferir essas palavras.

 

Chavala tomou as mãos da mãe e segurou-as suavemente. Desde que mandara o irmão, Moishe, e as três irmãs, Sheine, Raizel e Dvora para a casa da sra. Greenblatt, que morava na parte mais distante da aldeia, não tivera mais notícias deles nem os havia visto. Chavala queria poupar-lhes aquele espetáculo que ela testemunhava.

 

— As crianças estão bem; não precisa se preocupar com elas — respondeu.

 

A mãe deu outro grito e ficou prostrada, banhada de suor.

 

A própria Chavala respirava com dificuldade, amedrontada, enquanto uma voz dentro dela sussurrava: ”Meu Deus, ajuda-nos; eu Te suplico. Eu Te imploro”. E Deus deve tê-la ouvido. Depois de cinco dias de agonia, a mãe de Chavala deu à luz a filha que concebera aos cinqüenta anos de idade.

 

Rapidamente Chavala cortou o cordão umbilical, tirou a criancinha da placenta, segurou-a de cabeça para baixo e deu-lhe uma palmada, para que chorasse. A criança, porém, não chorou. Chavala deu outra palmada, com mais força desta vez, mas a recém-nascida não emitiu sequer um murmúrio. Irritada, Chavala gritou:

 

— Chora! Chora!

 

A criança continuava silenciosa, embora Chavala sentisse as fracas batidas do coração e a respiração lenta, como se fossem parar a qualquer momento.

 

— Viva!... Está ouvindo?... Viva! — continuou Chavala, pondo sua boca sobre a da criança, na tentativa de transmitir-lhe vida. Mas foi em vão. Chavala olhou para a mãe e viu que os olhos estavam fechados, a cabeça inclinada para um lado, sem vida. Por incrível que parecesse, a mãe estava morta. Por mais que Chavala lamentasse, repreendesse Deus e chorasse, não havia tempo para lágrimas. Ela sentia, em seus braços, o corpo quase sem vida do bebê.

 

Correu para a cozinha e enfiou o bebê numa banheira de água quente, a uma temperatura suportável, e depois em água fria... Até que, algum tempo depois, um novo grito se fez ouvir no mundo. Segurando aquele bebê magrelo e vermelho, olhou para o rosto enrugado e, depois, levou ao peito o corpo emaciado.

 

— Você é minha... você foi entregue aos meus cuidados... Chia. a vida de mamãe será perpetuada através de você.

 

Ao envolver a criança num cobertor, Chavala levantou os olhos e viu o pai, que estava na porta, com os olhos vermelhos e inchados. Ela não percebera sua chegada, mas pela expressão de agonia que havia em seu rosto, certamente já tinha visto a mulher.

 

Sentou-se pesadamente à mesa da cozinha.

 

— Eu não devia ter-lhe dado ouvidos, Chavala. Eu devia ter ficado aqui — disse ele.

 

Ela sentiu pena dele. Havia passado por tantas tristezas e alegrias com sua amada. Casara com Rivka quando ambos tinham dezessete anos de idade. Tinham ficado muito tempo sem ter filhos, e então ocorreu um milagre em suas vidas, quando nasceu Chavala. Depois, com intervalos de dois anos, vieram os outros filhos... Uma sucessão de milagres. O pai era um homem bom, cortês, dedicado. Sua grande tristeza era não poder proporcionar uma vida melhor à família... isso o deixava realmente triste. Mas o que ele não podia lhes dar em bens terrenos, compensava com amor. Afinal de contas, os milagres tinham o seu valor.

 

Na esperança de poupar-lhe a dor, Chavala o havia mandado para outro lugar. Agora ela sentia o peso da decisão.

 

— Eu sei, papai... mas achei que os outros precisavam de você.

 

— Ah, Chavala... meu lugar era aqui.

 

Engolindo em seco, ela olhou para o pai nesse momento de desolação e angústia.

 

— Se existe algum pecado, esse pecado é meu, papai.

 

— Não, é meu... Eu devia ter ficado. Devia ter sido mais forte do que você, e não ter deixado que me afastasse daqui. Ela era minha mulher... minha vida. Que Deus me perdoe; eu poderia, pelo menos, ter-lhe segurado a mão, enquanto ela passava para o vale da...

 

Não terminou a frase em voz alta, mas baixinho, enquanto as lágrimas lhe enchiam os olhos. Chavala também chorou, em silêncio, mas nessa hora teve medo de suas emoções. Se ela cedesse por um momento sequer, seria impossível superar o sofrimento. Ela é que tinha de ser forte. Dela dependiam muita gente e muitas coisas. Que o pai desabafasse; esse era o único consolo para ele. Todos os fracassos de sua vida o oprimiam agora. Desde o começo de sua luta pela vida, seu grande desejo fora ser rabino, dedicar a vida ao serviço de Deus e viver em paz na terra de seus antepassados, Eretz Yisroel. Toda vez que um patrício ia à Palestina, ele pedia que lhe trouxesse um punhado de terra. Aqueles saquinhos de terra vinda de Eretz Yisroel eram o mais precioso bem que ele possuía. Mas a vida o havia renegado, privado de seus sonhos. Ele se tornara o shochet da aldeia, trabalho que não lhe agradava, mas uma pessoa não está destinada a gostar de seu trabalho nem a questionar a vontade de Deus. Avrum Rabinsky foi obrigado a aceitar seu destino. Deixou de lado seus anseios e proporcionou à família uma vida simples. Agora, ficava sem sua mulher Rivka, e isso era demais para ele suportar. No entanto, mesmo nessa hora de dor, não pedia explicações a Deus; mas, dentro dele, havia algo irremediavelmente desfeito. No momento em que ele precisava da força de sua fé, não podia invocar o Todo-Poderoso para curar suas feridas. Ele se admoestava e sentia-se envergonhado e culpado. A confusão que havia em sua mente estava estampada no rosto; por isso, não foi difícil, para Chavala, perceber o que ele sentia. Ele bradava do fundo de seu ser. Ela ajeitou-lhe nos braços a recém-nascida, na esperança de amenizar-lhe a dor, mas por um momento ele hesitou em pegar a criança; ela lhe lembrava dolorosamente demais sua perda. Depois recebeu-a lentamente e segurou-a apertado, enquanto engolia as lágrimas que lhe escorriam até a boca.

 

— Papai, o bebê precisa ser alimentado. Vou chamar Manya — disse Chavala, com voz suave.

 

Ele permaneceu sentado, olhando para a pequena criatura sem mãe, que seria alimentada com o leite de outra mulher. Nunca conheceria o amor e o consolo materno que uma criança recebe ao sugar, contente, o leite da mãe. Essa criança seria alimentada e Manya receberia seus poucos copeques como pagamento. Ela não era paga para amar, ralhou o pai consigo mesmo. Deus era onisciente e não podia ser contestado. Deus sabia tudo, e a vida do homem estava predestinada desde o berço até a sepultura. Avrum Rabinsky devia agradecer a Deus por ter Manya. Sem ela, a criança também morreria...

 

Pondo o xale, Chavala passou para o cômodo onde estava o corpo sem vida da mãe. O corpo inerte estava coberto com um lençol manchado. Chavala engoliu em seco para conter as lágrimas, fechou a porta e saiu rapidamente para o frio da manhã. Por um momento procurou firmar-se no parapeito da varanda, respirando profundamente para não desmaiar. Ao recuperar a tranqüilidade, deixou a casa, andando pela lama.

 

Do outro lado da rua, Dovid Landau estava sentado em seu banco de sapateiro, observando pela janela enquanto Chavala tentava, com dificuldade, caminhar pela lama. Por que ele a amava tanto? Ela sempre fora tão distante, tão indiferente! Havia imaginado que Chavala mostraria um pouco de gratidão por ele ter construído o pequeno cômodo onde ela podia costurar, mas isso não aconteceu. Não houve agradecimento nem nada. Tudo o que disse, quando ele concluiu o trabalho que levara meio verão, foi: ”Não é um palácio, mas serve”. Mas ela lhe havia feito um favor, dando-lhe a grande honra de colaborar com aquele trabalho para que ela pudesse ganhar a vida. No entanto, ao observá-la andando com dificuldade pela lama, sentiu vergonha de seu aborrecimento. Por que se queixava dela assim? Chavala nunca fora uma criança. Podia se recordar de que ela tinha assumido as responsabilidades da família. Ele jamais conseguia imaginá-la sem uma irmã nos braços ou segurando-lhe a saia. Era como se a mãe tivesse dado à luz os filhos e Chavala herdasse a obrigação de criá-los. Ele tampouco se recordava dela passeando de barco ou no prado, em companhia das outras crianças. Ela não tinha tempo para essas frivolidades. Pobre Chavala, bela Chavala, cujos cabelos castanhos cairiam até a cintura se ela não os usasse trançados e enrolados na cabeça, o que a fazia parecer mais velha do que era, aos dezesseis anos. A bela Chavala, cujos lábios ele tanto desejava beijar. Rapidamente cuspiu os pregos que tinha na boca, deixou o martelo e foi abrir a porta.

 

— Chavala! — chamou.

 

— Hein? — respondeu ela, com voz morta, virando a cabeça na direção do sapateiro.

 

— Está frio. O que você está fazendo aí fora tão cedo?

 

Engolindo em seco, ela respondeu:

 

— Tenho que chamar Manya.

 

Os olhos de Dovid Landau estreitaram-se. Manya?... Manya era a ama-de-leite. Ela sempre era chamada quando... Ele afastou aquele pensamento. No entanto...

 

— Por que Manya? — perguntou.

 

Chavala ficou calada por algum tempo. Falar, nesse momento, provocaria lágrimas, e ela não podia arriscar-se a isso... Mordeu o lábio inferior com força e depois disse, com voz firme, para disfarçar a dor:

 

— Minha mãe morreu hoje de manhã.

 

Dovid ficou como que engasgado, como se fosse ele quem tivesse perdido a mãe. Sentiu a dor de Chavala como se fosse uma facada. A sra. Rabinsky tinha sido como uma mãe para ele, quando a sua morrera de tuberculose. Pouco depois, ele assistia ao enterro do pai. Isso fora antes do nascimento de Chavala, quando ele tinha apenas seis anos de idade. Ele recordava muito bem como Rivka o havia levado para casa, abraçando-o com carinho e consolando-o com suas canções de ninar. Ela havia improvisado uma cama com tábuas, cadeiras e uma esteira, e o cobrira com o casaco de inverno de Avrum. Ficara sentada ao lado dele até que adormecesse. No dia seguinte, preparou uma refeição especial de latkes, sal e pimenta. Mas ele mal conseguiu comer; e perguntou:

 

”Por que ela morreu?”

 

”Era a vontade de Deus, Dovid. Somos apenas mortais e não podemos questionar Deus. Ele sabe o que é melhor. Devemos confiar em Suas decisões.”

 

Mas por que Deus havia tomado tal decisão? Quem era Deus para tirar-lhe a mãe? Ele não gostava de Deus. Não, ele jamais gostaria de Deus. Mas sempre amaria Rivka Rabinsky... Agora, porém, não era a hora de recordações tão dolorosas. Apanhou o casaco que estava no gancho da porta, vestiu-o e juntou-se a Chavala.

 

—vou buscar Manya com você —- disse ele.

 

— Obrigada, mas posso ir sozinha.

 

— Não fique tentando mostrar que é forte. Você é humana, Chavala. Não é um carvalho.

 

— Quero fazer isso sozinha — respondeu ela, sem rancor. Ele sabia que não era a teimosia de Chavala que falava, mas sua coragem. Discutir com ela de nada adiantaria. Tomando-a nos braços, caminhou desajeitadamente na lama, que lhe chegava aos tornozelos.

 

Chavala não resistiu; estava cansada demais. Na verdade, havia um pouco de gratidão nessa atitude dela, embora não o dissesse.

 

Quando chegaram à cabana de Manya, Dovid subiu os arrebentados degraus de madeira e pôs Chavala no chão. Olhou-a nos olhos, que não estavam vermelhos nem inchados, mas sabia que sua dor estava reprimida. Ela devia, pelo menos, dar mostras de seu desespero, livrar-se do tormento que sofria em silêncio. Isso seria um grande consolo para ela.

 

Se fizesse isso, porém, revelaria sua fraqueza, e ela nunca se sujeitaria a tanto. Chavala, não. Sofreria sozinha. Não lhe agradeceu por sua ajuda e interesse; ao invés disso, voltou-se e bateu na porta.

 

Quando, finalmente, Manya abriu a porta e viu os dois em pé ali, compreendeu logo a razão da visita de Chavala. Seu volumoso corpo estremeceu um instante, e então ela os convidou a entrar, mas Dovid recusou.

 

— Tenho que ir à Chevra Kadisha.

 

Manya sacudiu a cabeça. O pobre Dovid é que tinha ficado com a incumbência de informar a casa funerária da morte de sua querida Rivka Rabinsky. Manya também sabia que, com a morte de Rivka, Dovid perdia uma mãe que havia nutrido sua alma e alimentado seu corpo. Ele a amava muito. Ela fora a pessoa a quem ele havia confidenciado seu grande amor por Chavala, as frustrações da masculinidade, bem como sua desilusão com Deus. Nem sequer uma vez ela o havia censurado ou o proibira de blasfemar em sua casa. Ao invés disso, tentava explicar, com jeito, dizendo:

 

”Dovid, se você abandonar a Deus, onde irá procurar ajuda e consolo? Nenhum mortal abrirá a porta para você. Sabe, meu filho, sem o amor de Deus estamos perdidos. Quando nos falta coragem, Ele está presente; basta invocá-Lo”.

 

Ele não a contradizia, mas não mudava de opinião. Achava que não precisava do amor de Deus, enquanto a porta de Rivka estivesse aberta. Mas agora essa porta estava fechada para sempre.

 

Manya pôs o xale, disse ao marido que cuidasse do filho e desceu os degraus, acompanhada de Chavala, para a rua lamacenta.

 

Chavala escorregou e caiu de bruços na lama.

 

Rapidamente Dovid ajudou-a a levantar-se.

 

— Você está bem, Chavala? — perguntou.

 

— Estou bem, solte meu braço, por favor — apressou-se ela a responder, lançando a cabeça para trás.

 

Ao soltar o braço de Chavala, ele compreendeu que o aborrecimento dela não era dirigido contra ele. Era o mesmo aborrecimento que ele sentira quando sua mãe morrera e que lhe dera vontade de reduzir o mundo a pedaços. Mas ele tivera a felicidade de encontrar Rivka para guiá-lo através das dificuldades da vida. Agora ele queria, desesperadamente, manter Chavala junto a si, para que ela também conhecesse o poder curativo do amor. Talvez o fogo do aborrecimento e da dor de Chavala se dissipasse como fumaça. Mas era inútil tentar... Chavala alimentaria sua dor... era assim que Chavala protegia sua alma ferida contra os sentimentos demasiado intensos. Ele observou as duas mulheres descerem a rua desajeitadamente; e quando elas entraram na casa de Chavala e fecharam a porta atrás de si, ele se dirigiu para a Chevra Kadisha, na outra extremidade da aldeia, balançando a cabeça de tristeza por aquela perda, que era sua também.

 

Manya tomou o bebê de Avrum. Sem dizer uma palavra, ele se levantou, vacilante, foi para o quarto e fechou a porta atrás de si.

 

Chavala observava, enquanto a recém-nascida sugava avidamente o seio de Manya. Quando a frágil criança se saciou e adormeceu, Manya entregou-a a Chavala, e as duas mulheres ficaram em silêncio, cada qual com seus pensamentos.

 

— O que aconteceu? — perguntou Manya, não tanto por curiosidade, mas porque achava que Chavala precisava conversar.

 

As palavras pareciam não querer sair da garganta de Chavala, mas ela conseguiu dizer, com voz quase inaudível:

 

— Leah estava doente... A esta altura ela poderia estar morta também. Por que nós somos tão amaldiçoados? Por quê, Manya? O que foi que fizemos para ofender a Deus a ponto de Ele nos fazer sofrer desse modo?

 

Manya engoliu em seco.

 

— Eu não sei as respostas para os enigmas da vida. Sei somente que Deus não tem culpa. Sua mãe... que ela descanse em paz... teria dito o mesmo a você...

 

— Minha mãe era uma santa. Eu não sou. Acho que odeio o mundo, Manya. Quando entro em Odessa e vejo como vivem os judeus ricos e os goyim, tenho vontade de cuspir. Por que Deus foi tão bom para eles? Por que são tão privilegiados, tendo tanta coisa, enquanto nós não temos uma côdea de pão? E minha querida mãe morreu por negligência... onde estava Deus?

 

— Deus estava aqui, Chavala. Isso não é vingança de Deus.

 

— Então de quem é? Que significa todo esse barulho dos judeus devotos que correm para a shul e oram tão alto que Deus poderia ouvi-los? É muito fácil para eles orar com o estômago cheio, e depois ir para uma casa quente onde seus criados russos lhes servem chá e olham para nós com desprezo. Não precisam esperar que uma Leah faça o parto de suas mulheres. Os médicos ricos de Odessa cuidam de sua sobrevivência. Seus armazéns estão cheios de cereais, enquanto nós passamos fome. Onde está a justiça, Manya? Onde? Nós vivemos nossos poucos anos na miséria, e quem é que vem ajudar? Não é estranho que Deus passe pelas casas desses privilegiados de Odessa? Não, Manya, parece que não há ajuda para nós.

 

— Por favor, Chavala, não diga essas coisas. É pecado falar assim.

 

— A verdade nunca é pecado. Pelo menos não deveria ser. Minha mãe está morta por causa dos pecados dos outros... porque somos forçados a viver como animais nocivos. Onde estava Deus hoje de manhã, quando eu Lhe pedi ajuda? Será que minha voz estava tão fraca que não foi ouvida? Não, Manya, minha mãe morreu porque os ouvidos de Deus estavam voltados para outro lugar.

 

Manya levantou-se e olhou para Chavala. Seu volumoso corpo tremia. Ela não continuaria ouvindo. Já era o bastante.

 

— Apronte o bebê para eu levá-lo para casa... Eu volto aqui — disse ela, e saiu com sentimentos conflitantes de afronta e compaixão.

 

Agora Chavala fitava a criança em seus braços.

 

— Eu juro a você, minha pequena Chia, que sua vida será diferente da minha. Eu juro, prometo.

 

Chavala estava tão absorta em seus pensamentos, que não percebeu a chegada de Dovid, que estava na porta. Quando ela levantou os olhos e o viu, compreendeu que o carro funerário havia chegado para levar o corpo da mãe. Ela nem saiu da cadeira enquanto as vozes e os passos abafados entravam e saíam do quarto. Ouvia também o próprio coração batendo como um tambor. Após entregar a pequena Chia a Dovid, correu para o balde e vomitou. Por um momento, ficou parada junto ao escorredor de louça, vacilante e respirando com dificuldade. Depois agarrou o pesado xale, envolveu-se nele e saiu correndo atrás do carro fúnebre, que rumava para a Chevra Kadisha. Quando o carro parou, ficou como que plantada na lama, observando o corpo da mãe ser levado para dentro da funerária. Em breve, as mulheres estariam preparando o corpo, envolvendo-o na mortalha branca. Aquela visão era quase insuportável para ela. Não percebeu quanto tempo havia permanecido ali fora, mas alguma coisa dentro dela fê-la despertar abruptamente ao se lembrar das outras crianças.

 

Voltou-se lentamente e afastou-se. Quando chegou à casa da sra. Greenblatt, a porta estava aberta, e os olhos da mulher fitaram o rosto triste de Chavala. Não havia necessidade de palavras.

 

A notícia da morte de Rivka Rabinsky levou pouco tempo para se espalhar pela pequena aldeia. A sra. Greenblatt estendeu os braços e puxou Chavala, apertando-a contra si.

 

— É a vida, Chavala. Devemos aprender a aceitar o fato de que somos todos mortais. Os anos de nossas vidas estão contados, e devemos compreender isso — disse ela, finalmente, afagando o lindo cabelo do bebê.

 

Essas bem-intencionadas palavras traziam pouco conforto a Chavala. Há séculos os judeus vinham aceitando seu destino com resignação. Mas Chavala, não. No fundo, ela se perguntava: Quem tramara esse plano? Deus? O que a mãe, com sua alma devota, tinha feito que pudesse ofender alguém, quanto mais a Deus? Por que tivera de ser levada tão rapidamente? Ela deveria continuar vivendo, para ver os filhos crescerem. Não; não havia justiça. Como Chavala podia ser consolada, diante de uma divindade tão cruel, tão indiferente? Chavala soltou-se do abraço.

 

— Obrigada pela sua gentileza. Agora preciso levar as crianças para casa — disse ela, seguindo a sra. Greenblatt para a cozinha, onde seus irmãos estavam sentados à mesa, em absoluto silêncio.

 

Vendo a expressão de assombro no rosto dos irmãos, Chavala ficou ainda mais revoltada com a desgraça que lhes havia acontecido. Uma injustiça.

 

Todos se levantaram ao mesmo tempo e abraçaram Chavala, enquanto as lágrimas lhes rolavam dos olhos. Falavam ao mesmo tempo, com os lábios trêmulos de medo.

 

— Mamãe está morta, Chavala — disse Moishe.

 

— O que vai acontecer conosco? — perguntou Sheine, de doze anos de idade.

 

Dvora, de dez anos, olhava para Chavala como se assim pudesse encontrar forças para se consolar.

 

— Por que mamãe foi embora, Chavala? — perguntou Raizel, a mais nova, de oito anos, que não tinha idéia do que fosse morrer

 

Apesar do esforço que Chavala fazia para consolá-los, ainda estava amargurada.

 

— Foi porque Deus achou que precisa de mamãe mais do que nós... agora enxuguem as lágrimas. Eu vim buscar vocês. Vocês devem ser fortes. Papai precisa de nós — respondeu Chavala, ajeitando a boneca de Raizel, e acrescentou: — Vocês têm uma irmã. Sim, crianças, fiquem alegres. A pequena Chia é um presente que a mamãe nos deu... agora vamos.

 

Como Deus exigia rápido o que lhe pertencia! O que tinha vindo da terra era devolvido à terra, pensou Chavala.

 

Segundo a lei judaica, o sepultamento devia ser realizado o mais cedo possível, o que foi feito. Dispensava qualquer ostentação, preferindo o despojamento dos ritos fúnebres. Era uma tradição milenar que todo judeu fosse sepultado num caixão de pinho sem enfeites, com o corpo envolto numa mortalha de linho branco. Não se tratava apenas de um mitzvah, mas era dever de toda a aldeia assistir ao sepultamento como uma só família. Isso era quase um mandamento. No caso da morte de Rivka Rabinsky, porém, os conterrâneos não apenas deram os pêsames, mas também lamentaram seu passamento. Ficaram na chuva, observando o caixão ser baixado para a sepultura fria, e, nesse momento, soluços fizeram-se ouvir através do ar da manhã.

 

Muitos estavam cientes de que aquilo que estavam presenciando aconteceria com eles próprios, que seus dias também estavam contados e que, finalmente, todos os caminhos levavam à sepultura. Como era importante que os mortais fossem humildes perante Deus!... Não se esqueça disso...

 

Avrum curvou-se e pôs um saquinho da antiga terra santa em cima do caixão, enquanto as lágrimas rolavam por seu rosto enrugado.

 

— Durma em paz, minha bela Rivka... meus dias serão vividos na dor, até que eu me deite lado a lado com você.

 

As crianças agrupavam-se em torno de Chavala, enquanto observavam o que se passava. Aquela lugubridade no pequeno cemitério, a solenidade com que o rabino entoava o louvor perturbariam os seus sonhos durante longas, longas noites no futuro.

 

Enquanto cada enlutado jogava um punhado de terra encharcada na sepultura, reinava o silêncio.

 

Dovid segurou o braço de Chavala, ao vê-la vacilar por um momento. Depois Avrum e as crianças saíram lentamente do cemitério.

 

Os sete dias seguintes foram de lamentação, com os homens sentados no chão, recitando os antigos salmos pela alma da falecida, enquanto as mulheres da aldeia prestavam homenagem aos Rabinskys enlutados, compartilhando com eles o pouco alimento de que dispunham.

 

Fazia um mês que Rivka morrera, e Avrum passava quase todo o seu tempo, agora, no quarto que havia dividido com sua amada. Por trás da porta fechada, ele orava em silêncio, de pé. Seu pesar era tão grande que Chavala mal podia olhá-lo, sentado à mesa da ceia, calado, em companhia dos filhos. Ele se alimentava tão pouco que se podia ver o quanto havia emagrecido; os sulcos do rosto aprofundaram-se tanto que ele estava quase irreconhecível. Seu cabelo parecia ter embranquecido quase que da noite para o dia. Os ombros estavam encurvados. Os olhos, perdidos, e o pouco que ele falava era praticamente incompreensível.

 

Nessa manhã, Chavala teve dificuldade com seu trabalho de costura. Sua mente estava confusa. Parou de pedalar e ficou olhando pela janela. Havia começado a nevar durante a noite, e tanto aquela paisagem como seus pensamentos a deprimiam. Parecia que o pai nunca se recuperaria de sua perda; parecia que ele nunca mais seria um pai em quem as crianças pudessem achar proteção; parecia incapaz, agora, de proporcionar à família sequer a vida pobre a que estavam acostumados. Seu único consolo parecia ser o tempo que passava orando em seu quarto solitário. Passava os dias na sinagoga orando para expiar todos os seus pecados, e quando voltava para casa de noite parecia esquecido de tudo. Nada que Chavala pudesse dizer o ajudava. Mas eles precisavam de um pai, e não de uma figura sombria que vivia na dor.

 

Chavala sabia o que tinha que ser feito. Interrompendo seus pensamentos, levantou-se e foi à cozinha.

 

As crianças estavam estudando. Moishe parou de ler e viu Chavala pondo o xale.

 

— Aonde você vai?

 

— Tenho de providenciar uma coisa — respondeu ela com tranqüilidade, e saiu sem dizer mais nada.

 

Atravessou a rua devagar, em direção à casa de Dovid. Tremendo de frio, esperou que ele abrisse a porta. Por um momento, ele não conseguiu falar; depois, recuperou-se o bastante para dizer:

 

— Entre, e sente-se.vou buscar uma xícara de chá para você.

 

— Não, obrigada — recusou ela, batendo os dentes de frio. — Eu não vim fazer uma visita.

 

— Veio para quê, então? Respirando fundo, ela disse:

 

Neste sábado, depois do shabbes, nós vamos nos casar.

 

Dito isso, ela voltou-se e dirigiu-se para a porta. com a mão na maçaneta, voltou-se novamente e encarou Dovid, que ficou em estado de choque, o que não era de surpreender.

 

— Esteja pronto. Tomarei todas as providências.

 

Ele apenas sacudiu a cabeça, vendo a porta fechar-se atrás de Chavala.

 

Atravessando a neve, ela amaldiçoava o inverno russo. Como se não bastasse o seu sofrimento, Deus ainda os sujeitava a esse inferno branco. Esbaforida, bateu na porta de Manya. Precisava muito ver o bebê.

 

— Entre, entre, senão você morre de frio aí fora — disse Manya.

 

Chavala aqueceu as mãos com o hálito quente, depois esfregou-as uma na outra.

 

— Sente-se, Chavala. Vou buscar um pouco de chá.

 

Ao sentar-se, Chavala sentiu o estômago virar. A casa estava silenciosa. Desde a morte da mãe, tudo parecia ter assumido um ar agourento,

 

— Onde estão seus filhos, Manya?

 

— Mandei-os para a casa de minha irmã. Mendel está com um resfriado muito forte, e as crianças o deixam nervoso com os gritos e as brigas.

 

— Se os russos não nos matarem, o inverno o fará. Manya suspirou:

 

— Que podemos fazer? Eles dizem que nós nascemos para sofrer.

 

Novamente a aceitação, o estoicismo, a capitulação. Nascemos para sofrer. Por quê? Por qual lei divina? - pensou Chavala.

 

— Posso ver o bebê?

 

— Pode, vou buscá-lo — respondeu Manya, entrando no quarto desarrumado.

 

Em um canto, havia dois berços improvisados, feitos de caixotes; no outro, o marido de Manya achava-se deitado num colchão de palha. Aproximando-se do marido, ela curvou-se e pôs-lhe a mão na testa. Estava queimando de febre. Enxugou-lhe a testa com um pano úmido, cobrindo-o depois com outro casaco.

 

— Descanse — disse ela. — Descanse. Vou trazer um pouco de canja para você, daqui a pouco. A comida vai deixá-lo forte em pouco tempo; você vai viver.

 

Os olhos do homem estavam vidrados, e ele mal ouvia. Sacudindo a cabeça, Manya levantou-se e foi até os berços. Primeiro, deu uma olhada em seu próprio filho adormecido; depois apanhou a pequena Chia. Voltou para onde estava Chavala, e entregou-lhe a criança. Ao olhar para a criaturinha, Chavala tornou a questionar em silêncio: Por que, em nome de Deus, traziam crianças ao mundo? Em nome de Deus, com certeza. A pobre Manya mal conseguia alimento, e no entanto ainda podia falar de suas oito bênçãos, suas jóias, sua vida.

 

Chavala a admirava, mas ela só veio reformar sua decisão... nunca teria mais filhos do que pudesse. Como fazer isso não sabia, mas iria dirigir, planejar sua vida. De algum modo ela faria o impossível.

 

Manya olhou por cima da mesa, compreendendo os anseios da maternidade nos olhos de Chavala.

 

— Sei como você se sente, segurando o bebê nos braços. Isso é bom. Mesmo que não tenhamos outra coisa, Deus nos deu as alegrias de uma família. Como nossas vidas seriam vazias sem ela! Foi para isso que toda mulher foi posta neste mundo...

 

Mas Manya tinha interpretado mal a expressão dos olhos de Chavala. Explicar seria inútil.

 

— Manya, euvou casar com Dovid — disse com voz firme, apanhando uma pedra de açúcar e prendendo-a entre os dentes. Depois tomou um gole de chá.

 

Entusiasmada, Manya disse:

 

— Mazel tov, quando foi que seu pai falou com ele?

 

— Ele não falou. Eu é que pedi.

 

Por um momento, Manya pensou que tivesse ouvido mal.

 

— Você pediu?

 

— Pedi.

 

— Como você pôde ser tão sem-vergonha assim? Estou até com medo de perguntar, mas seu pai sabe disso?

 

— Não.

 

Manya balançou a cabeça.

 

— Você quer dizer que realmente foi procurar Dovid sem o consentimento de seu pai?

 

— Não preciso do consentimento de ninguém... afinal de contas, não tenho dote.

 

— E o que isso tem a ver? Você ofendeu seu pai. Como chefe da família, ele tem o direito de providenciar o casamento. Você sabe disso, Chavala.

 

— Sei, sim. Mas sei também que meu pai não é mais o chefe da família. Sinto muito lhe dizer isso, mas ele nem sequer entende o que digo, quando falo com ele. Depois da morte de mamãe, ele parou de se preocupar com qualquer coisa. Parece ter renunciado à vida. Diga-me uma coisa, faz muito tempo que ele não vê o bebê? Sabe, eu duvido que ele sequer se lembre dele.

 

Manya baixou os olhos e ficou brincando com as migalhas de pão que estavam em cima da mesa.

 

— Você não deve dizer isso. Ele é um homem amargurado; ver a criança o magoa...

 

— Eu sei, mas preciso de um homem forte, alguém que seja um verdadeiro pai para as crianças.

 

— Bem... Não posso dizer que você esteja errada. Sei que vocês estão passando por um momento terrível. E, além disso, é maravilhoso poder casar com alguém por amor. Mas, Chavala, pelo menos dê a seu pai a honra de deixar Dovid pedir sua mão em casamento.

 

— Não creio que ele me entenda, se eu lhe disser isso. Além disso, não é por amor que vou casar com Dovid. Eu gostaria que fosse, mas... escolhi Dovid porque é a escolha certa; ele é da família. Sei que será bom para as crianças e as protegerá. E é disso que eu preciso, que eles precisam.

 

— Você fala como se estivesse comprando um cavalo.

 

— Talvez. Mas será que isso é diferente da maioria dos casamentos?

 

E você, Manya, até que ponto você conhecia Mendel antes de casar com ele?

 

— O quê? Ah, eu o conhecia havia um mês.

 

— Quantas vezes você o tinha visto antes?

 

— Uma vez. Para que teria que vê-lo mais?

 

— Eu não estou criticando, Manya. Mendel é um homem muito bom. Mas que teria acontecido se ele não fosse bom, cortês? Pelo menos eu conheço Dovid. Melhor um homem de minha escolha do que ser negociada para casar com algum velho com nove filhos para criar.

 

— Está bem. Ótimo. Que adianta ficar falando? Ninguém consegue discutir com você, Chavala. Mas é contra nossa tradição...

 

— A tradição não nos protegerá dos pogroms. Nunca protegeu. Manya achava que nada do que Chavala dizia era certo.

 

— Não sei, talvez seu pai não se ofenda... Dovid é como um filho, é verdade. De qualquer modo, faremos um bom casamento para você — disse Manya, sorrindo e abraçando a menina.

 

Chavala ficou realmente comovida.

 

— Eu ficaria muito contente, Manya. E agradeço a você, minha querida; mas vamos casar neste sábado, depois do shabbes.

 

Manya abriu a boca, mas as palavras não saíram. E quando saíram, foram cheias de contrariedade.

 

— Você não pode fazer isso. Faz um mês que sua mãe morreu. Você ainda está de luto por onze meses. Todo mundo vai criticar isso. Ninguém sequer assistirá ao casamento.

 

— Eu sei. Mas não posso ficar me preocupando com o que as pessoas dizem. Tenho de fazer o que tenho de fazer.

 

— Você sabe que é um pecado o que vai fazer; um pecado contra a memória de sua mãe.

 

— Creio que minha mãe me perdoará; ela saberá que estou fazendo o que devo fazer. Eu não estaria querendo casar se as coisas tivessem sido diferentes. Eu não precisaria ser desrespeitosa. Pelo menos uma vez, Deus vai ter que compreender. Dizem que Ele sabe todas as coisas. Vou contar com isso.

 

O casamento apressado de Chavala levou-a à shul do rabino Gottlieb. Os argumentos do rabino foram quase os mesmos de Manya, com exceção da leitura de longas passagens da Bíblia para provar que o rompimento de Chavala com os velhos costumes ia contra tudo o que era sagrado na tradição judaica. Quando ele terminou de falar, Chavala ficou quieta, olhando-o diretamente nos olhos. com os braços cruzados, pediu a ele que perguntasse a si próprio se a tradição não era contra, também, a sua convivência com Dovid, em pecado, pela qual ele seria responsável caso se recusasse a realizar o casamento. Por fim o rabino barbudo resolveu dizer-lhe que os documentos de casamento seriam redigidos para que todos assinassem. Ele se voltou e deixou-a de pé no pequeno shul frio.

 

Avrum estava absorto em orações quando Chavala chegou a casa. Ela ficou parada por um momento junto à porta do quarto; depois criou coragem para bater. A resposta foi tão baixa que era quase inaudível. Quando entrou, ele a olhou distraído e, depois, como se um véu fosse tirado de seus olhos, disse:

 

— Chavala?

 

— Sim, papai. Venha sentar-se. Preciso falar com você.

 

Ele fechou a Bíblia e sentou-se ao lado dela, dócil como uma criança. Tomando-lhe as mãos, ela disse:

 

— Papai, Dovid e eu vamos casar, depois do shabbes.

 

Ele franziu a testa, como se tivesse dificuldade em entender.

 

— Você e Dovid?

 

— Sim, papai.

 

Então o velho falou como se estivesse procurando lembrar-se de algo.

 

— Eu falei com ele?

 

— Não.

 

— Não estou entendendo...

 

— Papai, você precisa ouvir-me. Se as coisas tivessem sido diferentes, eu teria feito tudo aquilo que se espera de mim, como boa filha. Você deve saber que eu o amo e respeito. Mas precisamos de Dovid. Ele é muito importante para nós, papai.

 

O velho sacudiu a cabeça, reconhecendo sua incapacidade mais do que ela pensava. Nesse momento em que o passado voltou rapidamente à sua lembrança, ele não pensou em tradição... Quantas vezes ele e Rivka tinham sonhado com o dia em que estariam debaixo do chuppah, o dossel nupcial, em companhia de Chavala, devidamente vestida de noiva! Tinha orado para que Chavala tomasse Dovid como marido. Toda a aldeia ficaria contente e cantaria, mas agora toda a alegria desaparecera de suas vidas; em seu lugar, estava a lamentação. A lamentação do pai. O mundo de Avrum Rabinsky estava sepultado nas neves que cobriam a terra onde jazia sua amada Rivka. A pobre Chavala seria privada desse momento supremo. Não haveria alegria nem recordações, nem mãe que se ocupasse dela enquanto ela se preparava para encontrar-se com o noivo, em união gloriosa. Seus olhos encheram-se de lágrimas.

 

— Eu lhe dou minha bênção, minha filha. Espero que você tenha, como melhor presente, as alegrias que tive com sua mãe.

 

Chavala abraçou o pai calorosamente.

 

— Obrigada, papai. Esse é o maior presente que você poderia ter-me dado. Ficará debaixo do chuppah comigo?

 

— Não, Chavala. Não posso. Nem mesmo por você. Para mim, seria errado ir contra minhas crenças. Minha dor não passará mesmo depois do luto.

 

Que Deus o ajudasse, pensou Chavala. Isso foi tanto um pedido como uma prece. Se alguém precisava da ajuda de Deus, esse alguém era seu pai.

 

Na sexta-feira, Chavala e as crianças fizeram uma faxina completa na casa. Depois, ela e Moishe estenderam uma corda de um canto a outro e penduraram um cobertor, a fim de separar a área de dormir. Ela pôs no chão a esteira que compartilharia com Dovid em seu recanto nupcial, depois preparou a refeição do shabbes para dois dias. Nessa noite ela acenderia as velas. Ao colocar os candelabros de prata na mesa, compreendeu que, no dia seguinte, se tornaria verdadeiramente a matriarca, o cabeça de sua família, e Dovid estaria sentado à cabeceira da mesa.

 

Às três horas, foi aos banhos rituais, a fim de se preparar para o casamento. Iria para o marido purificada.

 

Após uma noite de insônia quase total, chegou finalmente o sábado; mas o dia parecia arrastar-se, sem fim. Finalmente, graças a Deus, o dia de descanso terminou, e Dovid bateu à porta. Sem dizer uma palavra, Chavala pôs o pesado xale sobre a cabeça e os ombros, e os dois dirigiram-se à shul.

 

Tremendo de frio no santuário, eles ficaram juntos, enquanto o rabino entoava as bênçãos em seu favor. Na verdade, a mão de Chavala tremia quando Dovid pôs em seu dedo o largo anel de ouro da mãe. Não se abraçaram; apenas olharam um para o outro. Os olhos de Dovid expressavam amor, sem sombra de dúvida; os de Chavala expressavam decisão. Dovid não esperava que fosse de outra maneira, mas estava convencido de que, com paciência e compreensão, ela acabaria demonstrando a afeição que, sabia, ela sentia por ele. Quando saíam do santuário, o tninyan de homens fez sua saudação de mazel tov, recitando as preces vespertinas. Era um começo.

 

Naquela noite, depois que os outros adormeceram, eles se despiram no escuro e deitaram-se lado a lado. Dovid aproximou-se de Chavala. Estendendo o braço para abraçá-la, sussurrou:

 

— Você me fez muito feliz, meu bem.

 

Ela ficou olhando para o teto, no escuro. Que podia dizer a ele? Que tinha casado com ele por necessidade? Era seu marido, com todos os direitos que ela se comprometera a conceder-lhe. No entanto, ela não podia submeter-se aos desejos dele. Nessa noite não. Ainda não. Ela simplesmente não estava preparada para isso, apesar de sua decisão.

 

— Obrigada — agradeceu ela, e essa resposta tanto a deixou embaraçada como decepcionou o marido.

 

A respiração irregular de Dovid a assustou.

 

— Venha para mim — disse ele, puxando-a para mais perto de si.

 

Ela se afastou.

 

— Não, Dovid. Sinto muito; hoje não... as crianças vão ouvir.

 

Uma bela desculpa. A tradição devia fazê-la sentir vontade de ter um filho...

 

— Eles ouvirão amanhã também. Eu sou seu marido, Chavala. Nãovou pedir novamente. Isso é errado... — disse ele, com um aborrecimento compreensível, retirando os braços.

 

Bruscamente, ele se voltou para o outro lado, afastando-se o máximo que podia.

 

E, nesse momento, Dovid conseguiu conquistar a afeição de Chavala. Ele não era o menino submisso que ela sempre pensara que fosse. Quando criança, ele havia cedido a todos os seus caprichos; mas como ela conhecia pouco esse homem! Pouco se conhecia uma pessoa, até que se compartilhasse a intimidade com ela... Ela teria apostado que ele seria passivo, esperara isso; mas Dovid, ao que parecia, era um marido, e ela descobriu que gostava dele... não, era mais do que isso. À sua maneira, ela sentia que o amava. Agora ela queria ser abraçada, na longa noite de inverno. Mas pedir isso seria admitir que ela o havia enganado, e seu orgulho não lhe permitia fazer isso. Ainda não. Na manhã seguinte, ela esperava, o aborrecimento de Dovid já teria passado. Ela lhe agradaria, preparando um café muito especial, em sinal de desculpa, e, de noite, seria sua mulher...

 

Mas quando acordou, de manhãzinha, após uma noite de sono inesperadamente pacífico, viu que o lugar ao seu lado estava vazio... tão vazio quanto ela própria. E de repente sentiu-se tomada de um tipo de medo diferente... talvez Dovid nunca mais voltasse. O que tinha feito, recusando-o, dava-lhe todo o direito de pedir a anulação do casamento. Era pecado uma mulher negar o que, por direito, pertencia ao seu marido. Se ele submetesse o caso ao rabino, de acordo com a lei judaica, o casamento perderia a validade. Ela se vestiu rapidamente e, nervosa, pôs-se a preparar o café. Ao acender o fogo, assustou-se com a voz de Moishe.

 

— Onde está Dovid? — perguntou ele.

 

— Ele... ele teve que ir preparar um par de botas para... para... reb Bernstein. Agora, pare de fazer perguntas. Vá se vestir, e lave as orelhas.

 

— Por que ele não ficou para tomar café?

 

— Já lhe disse. Pare de fazer perguntas. Faça o que lhe digo.

 

— Por que você está zangada?

 

— Eu não estou zangada. Vá acordar papai.

 

Moishe encolheu os ombros. Quando Chavala estava contrariada, não adiantava tentar falar com ela.

 

Ela passou o dia inteiro costurando desesperadamente, e, enquanto pedalava, prestava atenção na porta, rezando para que Dovid voltasse e pedisse desculpas por não ter compreendido, para dar a ela uma segunda chance. Mas, embora desejasse isso ardentemente, sabia que ele não o faria. Chegou o crepúsculo, e seu estômago estava virando. Após alimentar os outros, encheu uma tigela de sopa, enrolou-a no xale e atravessou a rua, em direção à choupana de Dovid. Enquanto ela esperava que ele abrisse a porta, seu hálito quente fumegava no ar terrivelmente frio, mas ele não atendeu. Finalmente ela chamou.

 

— Dovid, estou morrendo de frio. Abra a porta. Não houve resposta.

 

Frustrada, bateu com força na porta, depois deu-lhe um pontapé tão forte que a fez estremecer. Finalmente a porta abriu-se. Quando ela entrou, encontrou Dovid em seu banco de trabalho, consertando uma bota; ele não ergueu os olhos. Bem, pelo menos o que ela dissera a Moishe era verdade.

 

Tentando controlar sua irritação e frustração, agora que ela estava ali não sabia bem o que dizer. O silêncio de Dovid não ajudava. Se ao menos ele dissesse alguma coisa. Tremendo de frio, conseguiu reunir coragem suficiente para deixar de lado seu orgulho e dizer, com voz vacilante:

 

— Dovid... eu quero... eu vim aqui para... O jantar está pronto.

 

Sua intenção era dizer que sentia muito, pedir desculpas, mas as palavras não saíram.

 

Ele continuou trabalhando, o que não era de surpreender. Ela teve vontade de tomar-lhe o martelo e jogá-lo pela janela.

 

— Dovid, estou falando com você. Ele ignorou-a.

 

— Venha para casa. Dovid, o jantar...

 

— Estou em casa.

 

— Aqui não é mais sua casa. Estamos casados, e seu lugar é a meu lado.

 

Pela primeira vez, ele ergueu a vista.

 

— Você devia ter-se lembrado disso ontem à noite. Não sou seu marido.

 

— Você está agindo como uma criança burra.

 

— Como uma criança burra, não é? Bem, vou lhe mostrar como você está errada — disse ele, e, repentinamente, tomou-a nos braços e levou-a para o quarto.

 

Jogando-a em cima da cama de madeira, ele rasgou-lhe o vestido, despiu-se e imprensou-a contra o frio colchão de palha, dizendo:

 

— Agora vou lhe mostrar como é um homem. — E sem dizer mais nada passou suas pernas longas e fortes por cima dela.

 

Após um grito de dor abafado, Chavala ficou quieta, enquanto Dovid a penetrava profundamente. Ela sentiu, de modo extraordinário, a intensidade de sua própria paixão. Foi dominada por todos os desejos da feminilidade. Agora que ele a fizera conhecer esses desejos, ela queria que ele a segurasse e a amasse como uma mulher; mas, ao invés disso, ele se vestiu e saiu do quarto sem dizer uma só palavra. Depois saiu de casa, batendo a porta atrás de si.

 

Ela sacudiu a cabeça e, apesar de estar um pouco aborrecida, deitou-se de costas languidamente. Afinal de contas, não era tão mau ser mulher. Não era tão mau... A partida de Dovid não lhe tirava o que ela estava sentindo agora. Além disso, talvez ele só tivesse feito isso por consideração, deixando-a sozinha com seus novos pensamentos. Sim, ela estava feliz por ter escolhido Dovid como marido. Sabia que ele voltaria para ela. Esses prazeres não podiam ser recusados, nem por ele nem por ela. E, absorta nesses pensamentos, caiu num sono profundo, doce...

 

Ao acordar, estremeceu, vendo que já havia escurecido. Ficou mais decepcionada do que assustada ao ver que Dovid não estava a seu lado. Suas fantasias se transformaram em maus pressentimentos. Em sua ingenuidade, havia pensado que Dovid ficaria impressionado com o que eles haviam compartilhado... o que, naturalmente, tornaria impossível, para ele, resistir a ela. Dovid estaria a seu lado, observando-a dormir, esperando que ela acordasse, enquanto lhe afagava os cabelos e beijava os lábios. Ela ficou pensando como seriam seus beijos... nos momentos absurdos da descoberta, ele não a tinha beijado... Sentindo-se frustrada e incompleta, ela se vestiu rapidamente... e notando a falta dos botões do corpete, sorriu; depois corou, recordando a maneira como Dovid a tinha despido. Cobrindo-se com o xale, saiu e atravessou a rua...

 

A manhã passava, e Dovid não voltava para casa. As fantasias de Chavala apagavam-se aos poucos. Aparentemente, fazer dela uma mulher não era um sinal de paixão do marido, mas sim de sua masculinidade. Não havia dúvida de que os homens e as mulheres eram complicados. Ela realmente não conhecia Dovid. Teria jurado que o que se passara entre eles os aproximaria mais; porém estava enganada. Toda a afeição que ele havia demonstrado quando eram crianças não passava do amor que existe entre crianças; não era o amor de um homem e uma mulher. Na verdade, quanto mais ela pensava nisso, tanto mais se convencia de que ele concordara em casar-se com ela pelo amor que sentia por sua falecida mãe. Sim, devia ser isso. Do contrário, ele não a teria deixado assim. Não, Dovid não a amava; e, no fundo, ela chorava em silêncio...

 

Naturalmente, o raciocínio de Chavala não podia ter sido mais errôneo.

 

Quando Dovid a deixara, saíra caminhando pela neve profunda até não poder mais. Cheio de sentimentos de culpa, repreendia a si próprio por ter violentado Chavala... que coisa terrível ele havia feito com a moça! Se Chavala fosse ao rabino e lhe dissesse que o marido a tinha violentado, não havia dúvida de que obteria o divórcio. Odiava a si mesmo pelo que tinha feito. Agora, estava deitado na cama de madeira no quarto escuro, também chorando em silêncio. O único consolo que encontrou foi uma garrafa de vodca, que bebeu até ficar num estado de esquecimento total...

 

Dois dias depois, acordou confuso. A barba de dois dias irritava-lhe o rosto, mas esse desconforto era insignificante, em comparação com a sua tristeza... Chavala nunca lhe perdoaria, disso tinha certeza. No entanto, ele a amava muito, e o pensamento de que havia cometido um ato daqueles era mais do que ele podia suportar. Levantou-se vacilante, meteu a cabeça numa bacia de água fria, tentando eliminar os restos do seu entorpecimento. Bem, não havia mais discussão. Ele sabia o que devia ser feito. Paga-se caro pelo orgulho. Ele pediria, suplicaria, faria qualquer coisa que fosse preciso para redimir-se aos olhos de Chavala, para persuadi-la a perdoar-lhe. Vestiu-se e atravessou a rua.

 

Diante da porta de Chavala, esperou um pouco, antes de bater. Depois de respirar fundo, bateu finalmente. com muita força.

 

O coração de Chavala quase parou de palpitar quando ouviu a batida na porta. Moishe já ia atender, mas Chavala o deteve...

 

— Euvou — disse ela, nervosa; tentando controlar a respiração, abriu um pouco a porta.

 

Por um momento nenhum dos dois falou. Suas esperanças eram as mesmas, mas não eram reveladas pelas expressões faciais. Finalmente, Dovid disse:

 

— Chavala, venha para minha casa, por favor. Quero falar com você.

 

O coração de Chavala bateu forte. Dovid ia dizer a ela que a união deles estava terminada. Por qual outra razão tinha ficado ausente durante dois dias? O divórcio era uma coisa desonrosa e não devia ser pedido levianamente; mas a decisão de Dovid devia ser final.

 

Dovid esperou do lado de fora, na noite gelada, enquanto Chavala foi apanhar o xale.

 

Quando chegaram à casa, ela se sentou rígida, enquanto ele punha alguns gravetos no fogo. Não acendeu o lampião a querosene. Toda a iluminação do aposento vinha do fogo.

 

Após algum tempo de silêncio intolerável, ambos falaram ao mesmo tempo.

 

— Dovid...

 

— Chavala... Silêncio novamente.

 

Então Dovid tentou outra vez.

 

— Chavala, não fale; deixe-me terminar... Eu sei que você não liga para mim... Acho que sempre soube disso, mas por causa de sua querida mãe, que ela descanse em paz, eu lhe peço perdão.

 

Chavala sentiu-se grata pela falta de iluminação. Pelo menos impedia que Dovid visse as lágrimas que se haviam formado nos cantos de seus olhos. As palavras simplesmente não saíram.

 

Seu silêncio era a resposta que Dovid esperava. Ele a tinha perdido; não havia dúvida.

 

— Não posso culpar você, Chavala, pelos seus sentimentos. Não quero me atravessar em seu caminho. Você é livre para fazer o que quiser.

 

Ao dizer isso, ele desejava morrer. com voz quase imperceptível, ela disse:

 

— Quero ser sua mulher, Dovid.

 

Ele levou um momento para compreender o que ela dizia. Depois, com uma espécie de reverência, ele a abraçou carinhosamente.

 

Lentamente, Chavala pôs os braços em torno dele; e, juntos, foram novamente para o quarto, onde finalmente encontraram a beleza de seus sentimentos honestamente reconhecidos.

 

Chavala estava sentada na cozinha mal-iluminada, com um cesto de costura no colo. De vez em quando, levantava os olhos para ver as crianças em torno de Dovid, à mesa da cozinha. Por mais de uma vez, ela havia se beliscado para ver se realmente ele estava ali, seu marido. Ela se admirava de como tinha sido cega a respeito de Dovid... de como não lhe dera o devido valor. Agora, porém, ela não apenas o amava, mas quase tinha medo dele. Dovid não era apenas simpático, mas seu espírito e seu conhecimento a surpreendiam. Apesar de ter sido sua amiga durante toda a sua vida, não o conhecia realmente. Ele sempre fora o jovem protegido de sua mãe... um sapateiro, um vizinho. Se não fossem os acontecimentos dolorosos que os haviam unido, nunca teria sabido o quanto tinha perdido. Ele contribuíra tanto para o bem de todos! Até seu pai, Avrum, parecia estar mais tranqüilo. Visto que Dovid agora cuidava da família, ele podia dedicar seu tempo à leitura de seus queridos livros. Avrum sentia que Deus tinha enviado Dovid; queria-lhe como se fosse seu próprio filho.

 

Para as crianças, Dovid tinha aberto um mundo cujas fronteiras se estendiam muito além da pequena aldeia. Ele as entusiasmava e encantava. Até então eles tinham vivido simplesmente aprendendo salmos e mandamentos. Dovid explorava o magnífico potencial de sua antiga herança. Inspirava-lhes um orgulho pelo que eram que superava a tradição.

 

Moishe escutava atentamente todas as palavras de Dovid, quando este recontava as histórias de grandes e corajosos guerreiros de tempos passados, de como eles haviam rechaçado todos os adversários, embora fossem em número menor. A maior de todas as histórias era a de Massada, e as crianças ficavam sentadas, escutando em silêncio, com os olhos arregalados, enquanto Dovid contava-lhes aqueles momentos heróicos da história.

 

— Depois que Jerusalém caiu nas mãos dos romanos — começava ele —, numa batalha que lhes custou milhares e milhares de legionários, formou-se um grupo de zelotes. Eleazar se tornou seu líder; ele foi herói de uma causa pela qual morreria. Foi para Massada que o pequeno grupo de judeus se retirou, a fim de resistir em favor da liberdade e da fé. Massada — continuava ele — era uma enorme montanha que se achava em meio à solidão das colinas da Judéia, um imenso rochedo erigido pelo rei Herodes, o Grande, que não podia ter previsto, no momento de sua morte, que Massada tinha sido criada como um monumento à vontade de Deus. Os zelotes subiram a mais de trezentos metros acima do mar Morto e encontraram refúgio no topo. Lá embaixo estavam as poderosas legiões dos romanos. Imaginem só: desafiar a potência que era o Império Romano... Durante três anos, e sem grandes chances, conseguiram resistir aos romanos. Quando perceberam, finalmente, que o fim estava próximo e que não poderiam resistir mais aos inimigos, o líder Eleazar reuniu todas as suas tribos e falou-lhes. Cabia a eles, a cada um deles, decidir se deviam viver como escravos ou morrer como homens livres. Eles preferiram morrer. Eleazar falou a todos os que haviam lutado com tanta bravura. De pé no meio deles, examinou todos os rostos. Por um momento, sondou seu coração e, depois, disse sem hesitação: ”Meus leais amigos, vocês me seguiram até este lugar abandonado, sabendo o que iria acontecer: a chegada do dia em que tudo isso acabaria. Esse dia é hoje. Mas nós decidimos que não serviríamos nem aos romanos nem a qualquer outro povo, que não serviríamos a homem algum, somente a Deus. Já fomos dispersados e continuamos a existir, até que nossas algemas nos foram tiradas. Foi então que iniciamos nosso êxodo do Egito. Temos vivido de acordo com as leis de Moisés, e agora chegou o momento que nos obriga a afirmar nosso amor por Deus, através de nossos feitos. Nunca nos submetemos espontaneamente à escravidão, muito embora tenhamos sido escravizados. Fomos os primeiros, entre todos os homens, a nos revoltar, e seremos os últimos a desistir da luta. Acredito que foi Deus quem nos deu esse privilégio, essa escolha. A vida sem liberdade é vida de trevas. O raiar do dia trará o fim da nossa existência, mas ainda somos livres para escolher uma morte honrosa com nossos entes queridos. Nossos inimigos não podem impedir isso, por mais que tentem prender-nos vivos”. Eleazar fez uma pausa e, novamente, olhou para os rostos que aprendera a conhecer e amar. ”Que nossas mulheres morram sem serem violentadas, e que nossos filhos não conheçam a escravidão. Depois nos eliminaremos uns aos outros. Mas, antes, que as chamas consumam nossos pertences e toda a fortaleza. Será um golpe terrível para os romanos encontrarnos além de seu alcance e sem nada que possam aproveitar. Deixemos nossa despensa como prova de que não morremos de fome, mas sim porque resolvemos, por unanimidade, escolher a morte em lugar da escravidão.” Depois que a parede interna se queimou, Eleazar reuniu os dez homens que a comunidade tinha escolhido para tomar decisões. Era um sinal para que todos voltassem para suas casas, onde morreriam. Espontaneamente, os maridos abraçavam as mulheres e os filhos e, depois, os ofereciam para serem mortos pelo encarregado de executar a tarefa. Depois que os dez homens cumpriram sua missão, foram tirando sua própria vida, até que o último homem atravessou o próprio corpo com a espada e caiu com os outros irmãos. A lenda de Massada tornou-se uma chama de coragem, uma inspiração, transmitida, através dos séculos, aos judeus de toda parte — concluiu Dovid.

 

Naquela cozinha mal-iluminada, em Odessa, o pequeno grupo mantinha um silêncio fora do comum. Finalmente Dovid falou de novo, olhando para cada uma das crianças e depois para Chavala.

 

— Sempre devemos recordar essa história. A mensagem é ”Nunca mais Massada”. É nosso compromisso.

 

Moishe estava sentado, perplexo, tentando entender o significado das palavras de Dovid, repetindo para si mesmo: ”Nunca mais Massada”... Mas como isso se aplicaria a ele? À sua família? As histórias dos bravos guerreiros eram belas, mas Odessa não era Massada...

 

Vendo a confusão no rosto de Moishe, Dovid lhe perguntou o que havia.

 

— Que vamos fazer, Dovid? A mesma coisa que Eleazar pediu que os zelotes de Massada fizessem? Ficar deitados e morrer, quando os pogroms começarem?

 

— Não. Na verdade, é o contrário disso. A história que eu contei tem uma única mensagem para nós... devemos sobreviver até que possamos resgatar nossa terra. A mensagem de Massada é coragem. Está gravada em nossas almas, para que, apesar dos pogroms, ninguém vença nossa decisão de sermos livres. É difícil entender, eu sei, porque vivemos oprimidos, mas um dia Eretz Yisroel se levantará; e nesse dia teremos nossa vingança de toda a tirania e injustiça perpetradas contra nós.

 

Moishe continuava olhando para Dovid, confuso.

 

— Como vamos fazer isso, Dovid?

 

— Através do sionismo.

 

— Sionismo? Que é isso?

 

— Está ficando tarde. Amanhã eu lhes falarei de um homem chamado Theodor Herzl. Ele dedicou sua vida a esse único sonho. Há muita coisa que quero contar a vocês. Em breve virá de Eretz Yisroel um professor, um bilu, que, como Moisés, nos ajudará a encontrar a Terra Prometida novamente.

 

— Quando é que ele vem? — perguntou Moishe.

 

— Em breve, muito breve.

 

Chavala estivera escutando com uma certa irritação. Acreditando que não havia esperança de eles irem para lugar algum, achava que não adiantaria lembrar Dovid daqueles que tinham ido para Eretz Yisroel, mas acabaram voltando desiludidos. Não era a terra do leite e do mel. Ela se lembrava bem das histórias daqueles que haviam morrido de malária e de fome, e nos pântanos. Se havia alguma chance de mudar suas vidas, era, ela estava convencida, na América; disso ela estava convencida. Essa era a nova terra. Ali é que havia igualdade e liberdade. As pessoas viviam de modo decente, não na miséria. Ela sonhava com a América, sonhava com chegar lá e ver a formosa terra dourada da oportunidade. Ali é que a esperança se transformava em realidade; nisso ela acreditava firmemente. Mas, por enquanto, guardaria silêncio. Que o pai tivesse seus sonhos, e Dovid, suas esperanças.

 

Moishe interrompeu seus pensamentos.

 

— Você me leva para ouvir mais a esse respeito?

 

— Levo — respondeu Dovid. — Mas ninguém precisa saber disso; seria muito perigoso para todos nós se fôssemos descobertos. Os Amantes de Sião são uma sociedade secreta...

 

— Nãovou contar a ninguém, Dovid, nunca.

 

Tampouco os outros contariam; prometeram solenemente.

 

Então Chavala obrigou-os a irem dormir, dizendo que já tinham ouvido histórias bastantes para aquele dia.

 

Moishe adormeceu pensando no que Dovid tinha dito, visualizando imagens no escuro, imaginando a figura heróica de Dovid seguindo as pegadas de... como era o nome?... Eleazar...

 

Sentada à mesa do chá, Chavala disse:

 

— Dovid, por favor, não leve Moishe à sua reunião.

 

— Por quê? Ele já tem idade suficiente.

 

— Mas ele se impressiona com facilidade e fica romantizando tudo...

 

— Pode ser, mas é importante que os judeus saibam quem são, de onde vieram. E, além disso, que há de errado em ter sonhos, esperanças?

 

— Nada. Se os sonhos puderem tornar-se realidade.

 

— E onde é que está escrito que não podem, Chavala? Eu me lembro de que você tinha um sonho: se eu construísse um galpão para criar uma cabra, ela daria leite, e você poderia trazer sua irmãzinha mais nova para casa. Estou certo?

 

— Está — respondeu ela sorrindo.

 

— Bem, agora seu sonho é realidade. Amanhã poderemos ir à casa de Manya buscar a pequena Chia, para que ocupe o seu lugar.

 

Apesar de todos os obstáculos, Dovid tinha concluído o galpão. A primeira dificuldade fora conseguir a madeira; ele a conseguiu; depois havia a neve. dia após dia, ele chegava a casa tão congelado que nem sequer uma bacia de água quente o degelava direito.

 

— Ah, Dovid, era com razão que mamãe gostava tanto de você!

 

— Sua mãe? Que ela gostava de mim, eu sei. E quanto a você?

 

— Eu também, Dovid. Ah, eu também.

 

O inverno já não parecia tão terrível. A pequena Chia tinha trazido luz e alegria, o que compensava todas as tristezas. Era um raio de sol que nuvem alguma conseguia encobrir. As crianças se revezavam, alimentando-a com uma mamadeira de garrafa de vinho que Chavala havia guardado desde o Chanukah. Dovid tinha feito o bico da mamadeira com o dedo de uma luva de borracha, prendendo-o à boca da garrafa com elásticos.

 

Aos quatro meses de idade, Chia tinha-se transformado de um montinho de ossos emaciados em uma criança rechonchuda que balbuciava e esperneava vigorosamente. De noite, dormia ao lado dos outros, no pequeno berço que Dovid e Chavala haviam improvisado. A habilidade de Dovid em encontrar solução para tudo era motivo de admiração para Chavala... mesmo quando ele chegava a casa apenas com um saco de carvão e alguns ovos, Chavala costurava, sempre com o bebê a seu lado, e Dovid trabalhava no outro lado da rua com mais entusiasmo do que nunca, fazendo pares de botas, um atrás do outro. Nesse verão, ele e Chavala levariam suas mercadorias para Odessa, e seus esforços conjugados iriam satisfazer suas necessidades para o inverno seguinte. Como era bom, pensava ele, ter uma mulher como a sua... E, enquanto trabalhava, seus pensamentos dirigiam-se para a casa do outro lado da rua, para a mulher que ali estava. Pensava na mudança ocorrida em sua mulher, que deixara de ser a menina difícil que ele conhecera em outros tempos para ser a mulher compreensiva que se dava tão espontaneamente. Que mais poderia querer?

 

Por causa do amor e admiração que sentia por Dovid, Moishe chegou à conclusão de que, se a profissão de sapateiro que seu mentor havia escolhido era nobre, então ele seguiria o seu exemplo. Trabalhava com Dovid, que ele considerava o melhor sapateiro de Odessa. Talvez de toda a Rússia, pensava. Ele vendia sua mercadoria às pessoas ricas da cidade, recusando-se a aceitar menos do que pedia por ela. Quando se é mestre num ofício, pode-se exigir o que se quiser como pagamento. Ele sabia o que valia. Trabalhar com Dovid dava a Moishe um prazer ainda maior... podia fazer mil e uma perguntas a Dovid... Seu desejo de conhecer o mundo era insaciável. Na verdade, ele quase não pensava em outra coisa, desde que havia assistido pela primeira vez à reunião dos Amantes de Sião. Tinha ficado muito impressionado, sentado com os homens, na sala escura de reb Kaufman; e, embora sua voz não fosse ouvida, o simples fato de ele estar presente nos grandes relatos dava-lhe estatura. Escutou atentamente todas as palavras que o enorme chalutz barbudo da Palestina dizia. Os argumentos voavam, e Dovid sempre insistia na causa do sionismo. Para ele, estava claro que os sonhos de Herzl eram sua salvação; e no entanto havia, entre eles, aqueles que discordavam e se opunham firmemente a todas as novas propostas. Dovid, porém, continuou batendo na mesma tecla, e Moishe ficou muito orgulhoso quando Dovid se pôs diante do pequeno auditório, desabafando:

 

— Seus tolos! Vocês discutem e duvidam de que o sionismo seja nossa salvação, enquanto nossos inimigos cospem em nós. Se não defendermos o nosso direito inato a Eretz Yisroel, então onde é que poderemos ser homens livres, capazes de dirigir seu próprio destino? Durante milhares de anos, sofremos nas terras da Diáspora. Nossos filhos morrem de fome, e vivemos sem esperança. Até nossos suseranos russos libertaram seus servos. Mas nossos judeus ainda vivem sem esperança, apesar do fato de que se está desenrolando uma revolução russa no momento... em todas as aldeias, em todos os povoados, espalha-se o ódio pelos czaristas. Mas se vocês acham que a salvação está na revolução deles, estão enganados. Por mais que tentem cooperar, no fim os revolucionários se voltarão contra vocês. Observem bem, nossa única esperança de redenção está na terra que nos foi tirada. E não serão Deus, nem os ensinamentos da Tora, nem o Talmude que nos salvarão da espada, como acreditam muitos fanáticos religiosos, entre vocês, mas sim a terra que é nossa e que devemos reivindicar. Nenhum judeu, onde quer que esteja, será salvo enquanto não tivermos um país que seja nosso. Então, e somente então, o mundo se levantará e nos respeitará. Vivamos em paz. Nós somos instrumentos usados à vontade por nossos opressores. Eu me pergunto como podem ser tão cegos, todos vocês que vivem em tamanha miséria! Vocês, que são tão religiosos, devem lembrar-se desta passagem: ”Se eu te esquecer, ó Jerusalém, que minha mão direita esqueça sua habilidade... que minha língua se cole ao céu da boca, se eu não preferir Jerusalém acima de qualquer coisa!” Vocês podem esquecer isso? As pedras brancas das colinas da Judéia estão misturadas com o sangue de cinco mil anos. Acaso não significam nada as vidas daqueles que lutaram durante gerações? Vocês podem esquecer isso? Eu digo, levantemo-nos, do contrário pereceremos, que é o que merecemos por não termos aprendido a lição de Massada.

 

Dovid sentou-se e enxugou o suor da testa. Por acaso um macabeu poderia ter-se levantado e falado com mais convicção do que Dovid? Ele se havia erguido como um Davi bíblico, o guerreiro. Sim, pensava Moishe, seu ídolo tinha recebido o nome certo.

 

Embora parecesse que o longo inverno não fosse dar lugar à primavera, a neve finalmente derreteu e, mais uma vez, a aldeia se mostrou cheia de vida.

 

O ruído das rodas da frágil carroça de leite de Yankel podia ser ouvido, enquanto ele dava o giro matutino. De vez em quando esse ruído era substituído por suas imprecações, quando ele tentava soltar a carroça que ficara com a roda traseira atolada.

 

Itzik, o vendedor de manteiga e ovos, deu uma risada ao passar cautelosamente por Yankel, dando graças a Deus porque sua mercadoria podia ser carregada nas costas. Mas sua alegria logo terminou, quando ele escorregou no barro. Deus está em toda parte, e isso é castigo, pensou Itzik, caído de bruços e coberto de lama da cabeça aos pés, vendo todos os ovos quebrados.

 

— Isso é para você deixar de rir dos outros — disse Yankel.

 

Dovid olhou pela janela, sentado em seu banco de sapateiro, com Moishe a seu lado, considerando-se feliz... pelo menos, ele podia ganhar a vida trabalhando dentro de casa durante todo o inverno.

 

Nessa manhã, Chavala sentia uma grande alegria ao perceber os primeiros sinais da primavera. A cerejeira que havia no quintal estava pronta para florescer. Como gostava da primavera! A renovação da vida! Vendo a maravilha da natureza, lembrou-se de outros tempos felizes, como se fosse ontem. Lembrou-se de como a mãe colhia os belos frutos, apanhava o cântaro, punha bastante açúcar e, depois, álcool puro. Chavala tinha o privilégio de colocar as cerejas dentro do cântaro, uma por uma. Depois, o cântaro era guardado no celeiro, de onde era tirado por ocasião do Chanukah. Era um tempo de alegria, quando a mãe servia os latkes de batatas, e o pai dava a cada um deles um copo de vinho preparado pela mãe. Mas era das cerejas misturadas com conhaque que Chavala mais gostava. Agora ela ria, recordando como tinha ido ao celeiro, um dia, e destampado o cântaro, às escondidas... Devia ter comido umas duas dúzias, quando se sentiu tonta. Compreendendo que a mãe daria por falta das cerejas, colocou mais álcool no cântaro. Seu sentimento de culpa fez com que confessasse seu grande pecado na véspera do Chanukah. E, para sua surpresa, a mãe simplesmente deu uma risada e disse: ”Se você não contar a seu pai, por mim ele não saberá. Além disso, acrescentando algumas gotas do meu slivovitz, ninguém perceberá a diferença”.

 

Agora as semanas pareciam dias, pois aquela bela estação do ano estava de volta. O entusiasmo permeava o ar na pequena aldeia, enquanto as mulheres se preparavam para o Pessach.

 

Chavala tirou os pratos do Pessach para lavar. As crianças lavavam as paredes e o chão, como se estivessem exorcizando as tristes recordações do inverno.

 

Chavala poliu os candelabros de prata até ficarem brilhando. Eram os objetos de que a mãe mais gostava... Sua presença seria sentida.

 

Dovid, homem milagroso que era, chegou a casa com um caixote de ovos e um saco de cebolas; depois foi ao mercado, em companhia da mulher. As mulheres da aldeia trocavam olhares de incredulidade, enquanto Dovid arrumava os sacos de alimentos em seu carrinho de mão. Que marido fazia aquilo?

 

Na barraca do reb Levi, ouviram Manya dizendo que os frangos estavam bons para os goyim, mas não prestavam para ser comidos pelos porcos.

 

O reb Levi suportava esse abuso de Manya todos os sbabbes; por isso, não ligava, atendia-a normalmente. Essa era sua maneira de intimidá-lo, pondo defeito na mercadoria, para poder comprar mais barato. Ele já conhecia Manya. Ela era famosa por suas pechinchas.

 

— Eu não posso fazer desconto de um centavo — dizia ele.

 

— Eu pedi algum? Simplesmente quero tudo aquilo que estou pagando.

 

— Faça-me um favor, minha senhora, vá para outro lugar. Não quero aborrecimento com a senhora.

 

— Aborrecimento comigo? Se seus frangos fossem tão grandes como sua boca, eu não me queixaria.

 

— Oy vey, essa mulher ainda me mata do coração... Está bem, aqui está um capão pelo mesmo preço.

 

Manya examinou bem o capão branco. Estava bastante gordo.

 

— E quanto é que o senhor quer por esse grande favor?

 

— Por dois copeques ele é da senhora.

 

— Por um.

 

Era um chutzpa, mas Manya ganharia a questão.

 

— Euvou lhe fazer uma caridade para a shul — disse o feirante, perdendo a paciência.

 

Ao sair, Manya viu Chavala e Dovid. Não era de admirar que Chavala tivesse resolvido casar-se com ele tão de repente. Ele era tão alto, simpático e viril! Cabeleira espessa e negra, profundos olhos azuis, e aqueles lábios que deviam ter gosto de vinho doce. Mas, por que ele estava ali com ela, no meio da manhã? Parecia tão fora de lugar! Só podia haver uma razão. Os olhos de Manya dirigiram-se para a barriga de Chavala. Afinal, já fazia seis meses completos. Bem, magra como era Chavala, a barriga não aparecia muito. Ao contrário dela, que ainda estava no terceiro mês e parecia já estar no sexto.

 

Após os costumeiros cumprimentos, despediram-se, desejando uma à outra o mais feliz dos Pessachs e que todos fossem abençoados com boa saúde, acima de tudo...

 

— Um pouco de prosperidade não faria mal... — completou Manya.

 

Em casa, Chavala sentiu os olhos e o nariz encherem-se de lágrimas, ao ralar as raízes de rábano picante para misturar com polpa de beterraba, açúcar e vinagre de vinho. Apertando a rolha do frasco, ela riu. Era tão forte que, se alguma coisa pudesse afastar mau-olhado, essa coisa seria seguramente o rábano picante. Depois ela começou a fazer a mistura de peixe numa grande tigela de madeira; e, ao fazer isso, lembrou-se da mãe... Entre os legados da mãe, estava a receita que deixara para Chavala, mas somente transmitida por palavras. Nada por escrito. Sim, o gefilte fish da mãe era invejado na aldeia.

 

Sheine fazia as almôndegas de matzoh, enquanto Chavala untava os frangos com manteiga; depois, as duas irmãs, juntas, puseram-se a fazer os bolos de massa levedada. Sheine batia a clara de ovos e Chavala, as gemas.

 

Finalmente o trabalho de cozinha foi concluído, e como o Pessach só começava na sexta-feira, Chavala foi ao mikvah às três da tarde.

 

No momento preciso em que o sol se punha, a família estava sentada em torno da mesa. À cabeceira, achava-se o pai em sua poltrona, cercado de almofadas de penas de ganso. À sua direita estava Dovid, e depois, Sheine. A proximidade de Dovid fez o pulso de Sheine bater rápido. Esse era um lugar em que ela preferiria não estar, Sheine ainda guardava o seu terrível segredo... estava tão apaixonada por Dovid, que, na maioria das vezes, não conseguia suportar com tranqüilidade a presença do rapaz. E era nesses momentos, quando ele estava perto dela, que se mostrava mal-humorada e retraída. De noite, ficava acordada, escutando os gemidos de amor do outro lado do cobertor que servia de parede divisória. E temendo que seus soluços fossem ouvidos, enfiava a cabeça no travesseiro. Estar tão apaixonada pelo marido da irmã lhe causava dor e vergonha, magoava-lhe o coração. Gostaria de poder trocar seu lugar à mesa com Dvora, que estava ao seu lado. Mas era assim que eles sempre se sentavam, com Moishe diante do pai. Chavala estava em pé na outra extremidade da mesa, usando o vestido de seda preta da mãe, com a gola de renda e o xale na cabeça; estava iniciando o ritual de acender as velas. Mas, ao invés de prestar atenção à mensagem inspirada do skabbes, Sheine pensava em outras coisas, tomada de inveja da irmã. A mãe tinha deixado para Chavala os pequenos brincos de brilhantes, porque Chavala tinha a sorte de ser a mais velha. Usava também o par de pulseiras de ouro que tinham sido da mãe de Dovid. Vendo como brilhavam à luz das velas, Sheine achou Chavala parecida com uma rainha. Ela é que parecia uma camponesa. Inclinou a cabeça, não em reverência, mas porque a visão de Chavala ao lado de Dovid era excessiva para ela.

 

O se der durou horas; nem sequer uma passagem foi excluída; todos os cantos foram entoados.

 

Avrum Rabinsky poderia ter contado a história do Pessach sem a ajuda do Haggadah. Era uma história que ardia em sua mente, de modo que, mesmo que fosse cego, poderia contá-la. Descobrindo os matzobs e suspendendo o prato para que todos o vissem, ele recitou: ”Este é o pão da aflição que nossos pais comeram na terra do Egito. Todos os que tiverem fome venham e celebrem o Pessach conosco. Agora estamos aqui, mas que estejamos na terra de Israel no próximo ano. Agora somos escravos, mas que sejamos livres no próximo ano”.

 

Moishe olhou para o outro lado da mesa, onde o olhar de Dovid encontrou o seu, e a mensagem foi claramente entendida pelos dois.

 

Então o prato foi posto novamente na mesa e coberto com um guardanapo especial. Encheu-se uma segunda taça de vinho. Era privilégio de Raizel, sendo a mais nova à mesa, fazer as quatro perguntas antigas que começavam com: ”Por que esta noite é diferente das outras?”

 

Embora fosse Avrum que respondesse, Dovid acrescentou, em silêncio: ”Por causa de Chavala; por causa da bênção e da alegria que ela trouxe à minha existência que esta noite é diferente...”

 

Quando Avrum entoou orgulhosamente a reafirmação: ”No próximo ano em Jerusalém”, Moishe e Dovid assentiram com a cabeça.

 

Chavala, porém, rezava para que, no ano seguinte, eles estivessem na terra das pessoas livres, no lar dos bravos... a América. Os judeus daquela grande terra cheia de oportunidades não tinham necessidade de voltar para a Rússia, uns com o corpo lesado e muitos com o espírito corrompido, vindos dos pântanos infestados de malária da Palestina. Por amor ao pai e ao marido e, agora, ao irmão Moishe, Chavala dava graças a Deus por seus pensamentos não poderem ser lidos.

 

Ela e Sheine tiraram a mesa; depois, foram trazidos os bolos, e Dvora serviu pequenas tigelas de compota.

 

Avrum correu os olhos pelos filhos em volta da mesa, olhando especialmente para o pequeno, e dirigiu-se em silêncio à sua Rivka. Minha querida, você me deixou com tanta coisa! Lamento que você não possa partilhar isto comigo. No entanto, você não está longe. Sei que seu espírito está presente em todos os dias de minha vida...

 

No domingo, Chavala preparou uma travessa de mingau de matzoh e, quando terminou a suntuosa refeição, deixou os trabalhos de cozinha para as meninas e voltou a costurar, enquanto Dovid voltava para sua oficina.

 

A pequena aldeia fervilhava com a animação do mercado. Os domingos sempre eram especiais. As mulheres não apenas reabasteciam suas despensas como também faziam da praça um ponto de encontro, onde tagarelavam enquanto os maridos tratavam de ganhar a vida.

 

Os jovens da yeshwa ficavam sentados, curvando-se sobre seus trechos da Tora, enquanto os mais idosos, vestidos com seus casacos pretos e longos e usando chapéus de castor largos, debatiam a interpretação da Lei e dos Profetas.

 

Nas barracas, as mães conversavam enquanto compravam peito de boi e beterraba para fazer borscht. Lá fora, as crianças divertiam-se com bastões e uma bola. Havia mães sentadas em um banco, amamentando os bebês. Essa cena da tarde de domingo do Pessach era a mesma havia um século. Era um dia bom, um dia feliz para os judeus, em sua pequena aldeia.

 

Mas para os cristãos da cidade de Odessa desenrolava-se um drama bem diferente. Logo que os sinos repicaram, chamando os fiéis para a adoração, o fervor religioso foi esquecido quando se sentaram nos bancos das igrejas. Vestido com sua túnica, o sacerdote barbudo olhou para o seu rebanho por um momento de silêncio, depois começou:

 

— Este é um dia trágico. Um terrível ato foi perpetrado contra um de nossos queridos filhos. Na madrugada de hoje, uma criança inocente foi encontrada assassinada, bem na porta deste lugar santo. Somos pessoas civilizadas, e vivemos para a fraternidade do homem e para o reino dos céus. Pregamos e ensinamos amor, mas nossas palavras não são ouvidas. Quem, nesta terra, poderia ser tão vil a ponto de violar esse anjo? Quem poderia ser tão perverso a ponto de querer o sangue desse cordeiro precioso? Em nome do nosso Salvador, a vida dessa criança deve ser vingada.

 

Antes que o sacerdote terminasse de falar, um clamor público se fez ouvir em todo o santuário. Em uma só voz, todos disseram:

 

— MATEM os JUDEUS, MATEM os JUDEUS... MORTE PARA os JUDEUS! — Os paroquianos saíram correndo da igreja, as mulheres e as crianças receberam ordens de ir para casa, e os homens foram selar seus cavalos...

 

Moishe voltava para casa, corado de entusiasmo, sentindo no bolso os copeques. Tinha vendido três pares de botas. Ficaria só com uma pequena parte e daria o resto a Dovid. Ao se aproximar da porta, parou um momento, depois olhou para as colinas distantes. Viu as tochas fumegantes e os cavalos que desciam as colinas a galope. Um exército de estudantes tinha-se juntado à cruzada. Embora a gritaria ainda não fosse compreensível, ele entendeu. Rapidamente, entrou em casa e ficou parado diante de Chavala...

 

— Pogrom, pogrom... — disse ele.

 

Chavala pôs a mão no coração, mas sabia que não devia entrar em pânico. Naquele momento, mais do que nunca, precisava se manter lúcida. Chamou Moishe para a cozinha, a fim de abrir o alçapão que dava para a adega, que ficava oculta debaixo de uma pesada cristaleira removível. Depois que os dois conseguiram abrir a passagem, ela foi chamar o pai.

 

— Começaram, papai... Estão vindo para matar-nos — disse ela sem rodeios.

 

Apanhando seus livros sagrados, ele obedeceu.

 

Quando todas as crianças estavam reunidas, ela mandou-as descer. Dvora levaria a lata de água; Sheine, os matzobs e Raizel, a garrafa de leite de cabra. Sentiam-se novamente no Egito. Mas aqui não havia Moisés para guiá-los através do mar e afogar seus opressores. Entregando a pequena Chia a Moishe, Chavala disse:

 

— Pronto, estamos seguros. Acenda as velas.

 

Depois fez uma pausa e entregou-lhe as pílulas da morte. Moishe olhava para ela, perplexo.

 

— Lembre-se de Massada — disse ela.

 

— E você, Chavala? — perguntou ele.

 

—Vou chamar Dovid. Com a ajuda de Deus, voltaremos. Depois de empurrar a cristaleira com todas as suas forças, dirigiu-se para a porta da frente, mas recuou até a parede quando a porta se abriu com violência. E então faltou-lhe coragem; um medo terrível apossou-se dela. Sabia que esses seriam seus últimos momentos. Ficou como que plantada no chão, mal conseguindo respirar. Seu medo aumentou ainda mais quando ouviu o barulho de mobília arremessada contra as paredes. O ruído mais terrível de todos era o de vidros quebrados. Eles deviam ter passado pelo quarto de seu pai, e evidentemente nada tinham encontrado, pois ouvia o ruído de botas pesadas que entravam em seu quarto de costura. Os brincos de brilhantes da mãe, as pulseiras de ouro que Dovid lhe tinha dado no dia do casamento, o pequeno broche de brilhantes e ametistas que pertencera a sua avó, tudo isso não importava. Ela só rezava para que Dovid estivesse escondido num lugar seguro. Até então, Chavala achara inútil pedir a ajuda de Deus, mas nesse momento...

 

”Por favor, meu Deus, não deixe que Dovid venha para casa agora, mantenha-o em segurança, embora eu saiba que sou indigna, eu Lhe suplico.”

 

O restante de sua prece ficou em silêncio, enquanto ela ouvia o barulho de sua máquina de costura sendo arremessada contra a parede. O pão que eles comiam vinha do trabalho feito com aquela máquina. Ouvindo os gritos e lamentos em outros lugares, ela compreendeu que a onda de terror havia caído sobre o seu povo. Ele estava sendo torturado, espancado, arrastado de seus esconderijos nas adegas, nos sótãos, e assassinado. Fumaça saía das casas em chamas; e, como os ventos mudaram de direção, sentiu-se sufocada e cobriu o rosto com um trapo, a fim de impedir que sua tosse fosse ouvida.

 

De repente seu medo passou, dando lugar a um ódio terrível. Quanto tempo se passaria até que esse monstro a descobrisse? Não apenas a ela, mas a sua preciosa família presa na adega? A mãe não tinha dado sua vida para que as vidas de seus filhos terminassem num massacre. Se fosse para morrer, ela morreria, mas só depois que matasse aquele diabo louco. Seus olhos fitaram a enorme faca de açougueiro. Estendeu a mão e apanhou-a, e depois deslocou-se ao longo da parede, até chegar junto ao seu quarto de costura. Seu coração batia como um tambor. O quarto parecia silencioso demais. Espiou por uma fresta entre as ripas. Ele estava de costas para a entrada, revistando seu cesto de costura. Santo Deus! Agora estava mexendo nas pulseiras de ouro e pondo-as no bolso. Ela tirou os sapatos, entrou no quarto sem fazer barulho e meteu-lhe a faca entre as omoplatas. Como que aturdida, apanhou a perna de metal que fora arrancada da máquina e, com todas as forças que tinha, desferiu um golpe na cabeça do invasor. Este caiu com tamanho peso que as tábuas do piso estremeceram. Por um momento, o intruso, ou melhor, o corpo estremeceu, e um último hálito de vida se dissipou. Chavala ficou parada, trêmula. Apoiou-se na parede, ao sentir que suas pernas iam ceder. Vendo o corpo caído, sentiu-se tomada de um medo ainda maior. E se esse demônio fosse encontrado ali assim? Oh, Deus, o que adviria à sua família, em conseqüência de sua vingança? Por que ela não o havia deixado matá-la? Esse ato tão violento que ela cometera... mas apesar de seus temores criou coragem... Tinham que lidar com eles como havia lidado com esse monstro... Rapidamente cobriu o corpo com panos velhos e objetos destruídos. Limpou o chão ensangüentado e fechou a porta. Voltou para a cozinha e sentou-se à mesa, com o rosto entre as mãos. Dovid, onde estaria Dovid? Novamente foi tomada de medo. Dovid estava morto, tinha certeza disso. Só a morte o teria mantido ausente. Devia ir procurar o marido? E os outros que se achavam amontoados na adega? Rezou para que Moishe sobrevivesse. Ele seria o único a proteger a família, se acontecesse alguma coisa a Dovid e a ela. Apesar do estado confuso de sua mente, percebeu, de repente, que o barulho na aldeia diminuía cada vez mais. seria possível que a onda de horror já houvesse passado? Ela receava ter essa esperança, mas na verdade o horror parecia estar diminuindo. Aguçou os ouvidos. Não ouviu mais os gritos de ”MATEM os JUDEUS”. Olhou para a cristaleira que ocultava o alçapão, como que indagando por que Deus havia poupado aquela casa. Nunca saberia a resposta; pela primeira vez desde a morte da mãe, as lágrimas correram-lhe pelo rosto.

 

Levantou-se vacilante, passou junto à porta fechada de seu quarto de costura, e depois pela porta do quarto do pai, que estava quebrada, no chão. Chegando ao vão da porta, respirou fundo; então, sem hesitação, apoiou-se na parede da varanda.

 

Seu choque foi grande. A maior parte da aldeia estava em chamas. Tudo o que ela ouvia eram gritos lamentosos de agonia dos que estavam vivos. Por que razão o Anjo da Morte poupara aquela casa? Por que Deus os havia escolhido para serem salvos? Por quê? Então lembrou-se de Dovid. Conseguiu reunir forças para atravessar a rua. Todo o seu temor era fundamentado. Dovid jazia no chão, numa poça de sangue. Mãos e pés estavam amarrados com uma corda. O rosto estava quase irreconhecível. Ela se ajoelhou a seu lado. Ao puxá-lo para si, sentiu sua respiração fraca. Estava vivo. Segurando-o como se ele fosse uma criança, ela sussurrou:

 

— Meu querido Dovid, não morra. Não me deixe. Eu amo você, meu bem...

 

Em algum ponto da consciência de Dovid sua percepção vibrava. No entanto, ele sabia que estava morto. Chavala também. Estavam juntos. Mas se estava morto, por que a dor era tão grande? Será que sofremos na morte como na vida? A voz doce de Chavala o acalmou.

 

— Meu querido, eu volto já, para levar você para casa. Está me ouvindo, meu bem?

 

Os olhos de Dovid agitaram-se, como que respondendo que sim. Ela ajeitou suavemente o travesseiro debaixo de sua cabeça, cobriu-o com um cobertor e levou uma xícara de água a seus lábios, que estavam inchados demais para que ele conseguisse tomá-la. Após dar-lhe um beijo, ela atravessou a rua correndo.

 

Quando os outros saíram do esconderijo escuro e viram Chavala, abraçaram-na, como se ela tivesse abarcado a todos eles com asas de águia, tentando desfazer os seus temores. Quando se sentaram à mesa, ela serviu leite em canecas e o bolo de massa levedada. Depois que terminaram, ela pediu a Sheine que fosse vigiar Dovid, e fez sinal para que o irmão a seguisse.

 

No quarto de costura, ela suspendeu os trapos e expôs o... a criatura.

 

Moishe recuou, horrorizado, olhando para a enorme faca de açougueiro coberta de sangue coagulado.

 

— O que foi que aconteceu?

 

Chavala explicou com o mínimo de detalhes possível. Havia tanta coisa a fazer!

 

— Se ele for encontrado aqui, nós sabemos o que acontecerá. Temos de enterrá-lo tão fundo que os cães não consigam farejá-lo. Comece a cavar junto à cerejeira, enquanto eu o enrolo com estes panos velhos. Depois euvou ajudar vocês.

 

Quando terminaram de cavar, Chavala derramou álcool sobre o corpo e os dois o arrastaram para o pequeno pomar. Ficaram observando enquanto ele caía no buraco de dois metros de profundidade. Terminado o enterro, afastaram-se, respirando com dificuldade.

 

No escuro, Chavala disse:

 

— Venha, vamos lavar as mãos para purificá-las.

 

com a ajuda de todos, Dovid foi levado para casa e posto na cama de Avrum. Chavala sentiu-se gratificada por saber que o vinho de cereja era suficientemente forte para embotar-lhe os sentidos, a fim de que ele não sentisse muito aquela curta viagem. Lavou-lhe o corpo com uma esponja, deu-lhe caldo e passou aquela noite ao seu lado, numa esteira.

 

Na manhã seguinte, Dovid acordou totalmente consciente, o que, para Chavala, parecia um milagre incontestável. Ela não perguntaria o que havia acontecido; isso não importava. Deixando-o aos cuidados de Sheine, ela e Moishe foram ver o que podiam fazer em socorro dos despojados. com exceção de algumas casas, tudo tinha sido incendiado. A Chevra Kadisha, os banhos rituais, a yeshiva e a shul estavam em cinzas. O cemitério tinha sido profanado; muitos cadáveres haviam sido desenterrados e espalhados. Os feridos jaziam nas ruas e nos becos. Yankel, o leiteiro, e seus filhos estavam empilhando os mortos em sua carroça, para levá-los para as colinas. Era uma devastação terrível. Nem mesmo o Diabo poderia ter inventado semelhante vingança. Toda a família de Manya tinha perecido. Seus olhos tinham sido arrancados, e seus dois bebês mais novos, jogados do sótão ao chão. A barba do rabino Gottlieb fora arrancada do seu rosto. Ele havia sido espancado até ficar irreconhecível. Os poucos que restaram ajudavam a sepultar os mortos, fossem seus ou não, como se eles pertencessem a todos, como, de fato, pertenciam. A terra de Canaã, de onde todos tinham saído, unia-os formando um círculo sem começo nem fim.

 

Depois, os que tinham sobrevivido rasgaram as roupas, sentaram-se no chão e recitaram o kaddish, lamentando os mortos e, ao mesmo tempo, louvando a Deus...

 

                                             Capítulo dois

As apreensões de Chavala aumentavam. Esperava que os gafanhotos viessem à procura dos defuntos, mas não chorava diante de Dovid. Ele estava recuperando a saúde, e fora graças à sua força inerente que sobrevivera ao espancamento. Seu Dovid era um leão.

 

Nessa manhã, ela não podia mais deixar de falar-lhe do grande perigo que pairava sobre suas vidas. Sentada na beira da cama, tomou-lhe as mãos.

 

— Dovid, tenho de lhe contar uma coisa; é algo que eu nunca imaginei fosse capaz de fazer. No dia do pogrom... eu matei um homem... — disse ela, contando-lhe todos os detalhes, até o momento em que ela e Moishe haviam enterrado o corpo. — Não podemos ficar aqui... Só quero que você esteja com forças suficientes para viajar.

 

Mais tarde, ele tentaria absorver o que ela lhe havia contado. Não era uma coisa agradável de saber sobre uma esposa... uma mulher diferente das outras, não havia dúvida quanto a isso.

 

— Como eu poderia ser diferente com uma mulher que me mima como se eu fosse a pequena Chia?

 

— Eu sei que devemos partir. Um dia sentirão sua falta e voltarão para procurá-lo.

 

— Está bem, querida, mas ir daqui à Palestina não é coisa fácil.

 

Palestina? Chavala não estava pensando em ir para a Palestina. Por que ela pensava que o que ela tanto queria fosse tudo o que Dovid também queria?... Por isso, manteve em segredo seu sonho de ir para a América. Sabia que o desejo de seu pai sempre fora morrer em Eretz Yisroel. Por isso, teria que pôr de lado suas esperanças... mas, depois que ele morresse e ela tivesse cumprido seu dever, então se sentiria livre para desabafar. Entretanto, sabia que não adiantaria nada opor-se à ida para a Palestina, enquanto estivessem em Odessa. Agora Dovid dedicava-se totalmente ao sionismo. Tinha certeza — e esperança — de que, uma vez que descobrisse a realidade daquela terra, ele desejaria ir para a América tanto quanto ela. Ela acreditava honestamente que Dovid estava sendo seduzido por um sonho impossível. Ele teria que ver que...

 

— No momento não há maneira de irmos...

 

— Há, sim... nós temos o dinheiro. Ele olhou para ela.

 

— Temos o dinheiro? Que dinheiro?

 

— Dos brincos de brilhantes de minha mãe.

 

— Não. Os brincos são o legado dela para você. Eu é que tenho a obrigação de providenciar isso. Sou seu marido.

 

Ela não queria discutir, mas esse assunto afetava suas vidas.

 

— Escute, Dovid. Eu sei que eles voltarão; e não consigo comer nem dormir só de pensar nisso. Mesmo que não voltem por causa dele, voltarão por outros motivos. Por favor, não devemos estar aqui quando os pogroms começarem de novo. Você sabe o que aconteceu em Kíev, na Ucrânia e nas colônias; você sabe da violência dos incêndios que estão ocorrendo. Não, Dovid, não podemos ficar esperando. Da próxima vez poderemos não ter tanta sorte. É um milagre você estar vivo.

 

Dovid olhou para a mulher. Na realidade, há muito tempo desejava isso, e era Chavala quem o estava tornando possível, insistindo em que esse desejo fosse realizado. Ele só esperava que pudesse corresponder às suas expectativas.

 

— Chavala, eu nunca pensei que um homem pudesse ter tanta sorte. Você, meu bem, é uma mulher extraordinária.

 

— Quanto a senhora quer por isto? — perguntou o joalheiro, em Odessa.

 

Chavala sentiu-se nervosa, enquanto o joalheiro examinava os pequenos brincos de brilhantes, curioso por saber como aquelas gemas tinham chegado às mãos de uma camponesa. Eram pequenas, mas perfeitas, de um branco azulado.

 

— Então, quanto a senhora quer?

 

Quanto? Rapidamente Chavala tentou imaginar de quanto precisariam para chegar à Palestina.

 

— Diga-me o que valem para o senhor. Se o preço for bom, eu o aceitarei. Senão, irei a outro lugar.

 

O joalheiro examinou novamente as jóias.

 

— Dez rublos.

 

— Eu agradeço sua gentileza, mas devolva-me os brincos...

 

— Quinze. Eu devia oferecer apenas doze, mas... por um belo...

 

— Não devia aceitar menos de cinqüenta, mas dê-me quarenta, e eles serão seus.

 

Ele achou graça.

 

— A senhora está louca... Posso comprá-los no mercado por...

 

— Obrigada, mas eles são muito valiosos. Sei o que valem. Mas ela não sabia coisa alguma.

 

— Minha última oferta é de vinte e cinco.

 

— Trinta — pediu ela, com fogo nos olhos e terror no coração. O homem riu e sacudiu a cabeça. Contando o dinheiro, disse:

 

— A senhora devia ser comerciante de jóias. Sabe negociar muito bem.

 

Com os rublos na mão, ela disse:

 

— E o senhor sabe trapacear.

 

Girando nos calcanhares, dirigiu-se para a saída, cheia de dignidade, batendo a porta atrás de si.

 

Enquanto caminhava pela rua, o eco das palavras do gonif ressoava em seus ouvidos: ”A senhora devia ser comerciante de jóias”. Era uma possibilidade. Bem, com um pequeno par de brincos estava comprando sua liberdade. Jóias significavam dinheiro, e dinheiro significava liberdade, o poder de ser livre, pelo menos de desafiar o mundo. Essas palavras ela não esqueceria... ”A senhora devia ser comerciante de jóias.” Se tinham conseguido escapar à tirania e à morte, algumas semanas atrás, qualquer coisa seria possível.

 

Quando voltou para casa, levava as passagens de navio de que precisavam para viajar. Mas seu maior prazer seria entregar a Dovid um napoleão de ouro que conseguira comprar com os rublos que sobraram, depois de adquiridas as passagens.

 

Chavala reconheceu que, pelo menos geograficamente, estavam no lugar certo. Odessa estava ao alcance de uma caminhada e à margem do mar Negro. Visto que os judeus nunca puderam ter propriedades, este era um problema que não tinham... não havia nada de que se desfazer. Como sempre, os judeus partiam somente com aquilo que podiam carregar.

 

Assim, no dia 22 de maio de 1906, a família Rabinsky Landau fechou as portas atrás de si. Não havia nada que recordar com saudade, com exceção, talvez, daquele pequeno santuário delimitado por um cobertor, o universo de Chavala e Dovid.

 

Moishe empurrava o carrinho de mão de Dovid, carregado de roupas, utensílios de cozinha e o berço da pequena Chia. Raizel levava um cesto de alimentos e Dvora, outro. Sheine insistiu em cuidar de seus próprios pertences, que havia embalado cuidadosamente em uma caixa de papelão.

 

Dovid e Chavala andavam lado a lado, ela com o bebê nos braços e Dovid puxando a cabra por uma corda.

 

Avrum ia abraçado com seus livros sagrados.

 

Logo o pequeno grupo perdeu-se de vista, enquanto Yankel enxugava as lágrimas e assoava o nariz em um trapo que havia tirado do bolso. Continuou parado no meio da rua, mesmo depois que os retirantes desapareceram, desejando que essa jornada fosse a sua.

 

Quando chegaram ao porto de Odessa, não estavam sós, em absoluto. Sua partida não era a única. Nas pequenas cidades e aldeias da Ucrânia e das partes da Polônia controladas pelos russos, centenas de jovens empacotavam seus magros pertences e, despedindo-se dos pais com lágrimas nos olhos, partiam para algo melhor, segundo esperavam. Alguns simplesmente fugiam de casa quando os pais os acusavam de heresia. O sionismo era uma doutrina proibida entre muitos dos rabinos e entre os mais devotos. Sua partida era acompanhada de advertências da família... ”Deus enviará o Messias” era a divisa que se fazia ouvir entre os religiosos do shtetl, ”aguardem, aguardem”. Mas a juventude daquele tempo era como a de qualquer outro... Não podia mais aderir aos tolos rabinos nem às devoções de seus pais. Um novo tempo estava próximo, e os jovens acompanhavam os tempos. Se o Messias não os havia redimido em dois milênios, então eles mesmos se redimiriam, através do sionismo.

 

Partiam de Odessa em navios enferrujados, danificados. Alguns embarcavam em Trieste, Constantinopla ou Port Said, onde faziam baldeação para navios cargueiros com destino à Terra Prometida. O destino do velho navio em que ia o clã Rabinsky Landau era Jaffa.

 

Chavala e as crianças encontraram lugar sob o convés, onde prepararam sua cama no chão, enquanto Dovid foi providenciar um lugar para a cabra. Avrum subiu para o convés, apanhou o tallis, enrolou-se nele e, balançando-se para a frente e para trás no ritmo tradicional, entoou:

 

”Ouve-me, ó Jacó.

Israel, a quem chamei:

Eu sou aquele.

O começo e o fim.

Minha própria mão fundou a terra

e espalhou os céus.

Assim diz o Eterno.

Que criou os céus e os estendeu.

Que fez a terra e tudo o que

nela cresce, que dá fôlego a

seu povo e ânimo àqueles

que andam nela”.

 

O alimento era racionado por Chavala. O bebê teve cólica... porque o leite da cabra tinha azedado. Dvora teve disenteria. Raizel parecia suportar o desconforto sem se queixar, e Sheine conheceu um judeu da Galícia, de quem Dovid desconfiava quase tanto quanto dos mujiques russos. Na sua opinião, os galicianos eram gonifs egoístas.

 

Vendo como as coisas eram difíceis para Chavala, Dovid relutava em mencionar a mudança ocorrida em Sheine; por isso, assumiu um papel paternal por conta própria.

 

— Sheine, quero que você se afaste desse chaver. Não gostei da liberdade que ele tomou no convés, ontem à noite, pondo o braço em torno de você...

 

— Você não é meu pai. Não tenho que lhe dar ouvidos.

 

Seus olhos mostravam que ela estava furiosa, embora, naturalmente, fosse amor o que ela queria mostrar. Ela deixara o galiciano abraçá-la propositadamente, para que Dovid visse, para ele saber como ela era desejável a um homem. Chavala não era a única. Se ela tivesse as jóias que ele tinha dado à sua mulher, e o vestido de seda preta com gola de renda branca, ela também pareceria uma rainha...

 

— Sheine, você está tão mudada, eu quase não a reconheço — disse ele, balançando a cabeça.

 

— Ah, você notou minha mudança? Notou, Dovid?... Bem, ótimo. Eu sou uma mulher, tenho treze anos e...

 

— Eu sei que você é uma mulher, Sheine. Correndo o risco de parecer desagradável, devo lhe dizer que ser uma mulher não faz da pessoa uma dama...

 

— Você já tem uma dama na família. Eu quero ser uma mulher.

 

Está falando como uma verdadeira menina de treze anos, pensou ele.

 

Ela se voltou e correu até chegar ao lugar que a conduzia a seu abrigo, onde se deitou e chorou até ficar exausta.

 

Quando entraram no Mediterrâneo, as pessoas decidiram, finalmente, sair para o tombadilho. Havia música; tocavam concertina e violino, e alguém batia num pandeiro. A dança foi até de madrugada. Para Dovid, porém, aquela noite parecia insuportável. Sua preocupação com o futuro parecia consumi-lo, e as festividades que se desenrolavam na coberta do navio apenas o deixavam nervoso.

 

Quando se aproximavam da Palestina, o mar acalmou-se e o ar ficou quase sufocante. Embora ele nunca tivesse mencionado isso, suas costelas estavam longe de estar curadas, apesar dos cuidados de Chavala; e agora sentia muitas dores. Observou sua mulher sentada em companhia das outras mulheres, com Chia no colo.

 

Por que ela ainda não tinha concebido? Passou pela sua mente um pensamento sombrio. Ela parecia ter a mesma natureza da mãe, sua querida Rivka, que havia concebido com idade já avançada. E, lembrando-se de Rivka e de sua morte horrível, desejou que ele e Chavala não tivessem filhos. Afinal, tinham de criar as crianças, que eram como se fossem seus próprios filhos. A pequena Chia o consideraria um tateh, e... seus pensamentos foram interrompidos quando um jovem sentou-se a seu lado, tirou o lenço e enxugou a testa. Dovid achou que tinham a mesma idade, embora o cabelo deixasse dúvida.

 

— Dentro de poucos dias estaremos em Eretz Yisroel. Que acha disso? — perguntou o estranho.

 

— O que você acha? Eu acho que é um milagre...

 

— Ah... o milagre começou. De onde você é? O estranho era baixo, rechonchudo.

 

— De perto de Odessa. E você?

 

— Plonsk. O que você faz na vida?

 

— Faço botas. E você? O outro riu.

 

— Eu sou uma espécie de construtor. de sonhos... que algumas pessoas chamam de visões.

 

Dovid olhou cuidadosamente para o outro.

 

— Como é o seu nome?

 

— David Grien.

 

— O meu é Dovid Landau.

 

Trocaram um aperto de mão, e Dovid, curioso, quis saber mais sobre a vida do outro.

 

A mãe de David Grien morrera quando ele ainda era muito jovem. Depois disso, ele e o pai passaram a se desentender quanto às suas crenças. Finalmente, David desafiou o pai e anunciou, sem rodeios, sua partida para a Palestina. David só quis falar isso. Era como se o resto de seu passado não existisse, não tivesse importância.

 

— O passado é o prólogo, como disse Shakespeare; eu venho para este velho mundo, aliás novo mundo, trazendo pouca coisa e ao mesmo tempo muita. Trago braços jovens e sadios para a Palestina. O amor pelo trabalho, a aspiração à liberdade de viver na terra de nossos pais e a disposição de ser econômico. Para sermos redimidos, a Palestina tem que ser construída com nossas mãos. Aí criaremos uma sociedade modelo, baseada na abundância econômica. Mas, acima de tudo, na igualdade política.

 

Ele continuou falando, como um missionário. com uma paixão que parecia, a Dovid, estar plantada em sua alma; como disse o jovem, um dia os judeus se levantariam, não com armas, não com violência, mas com uma voz universal.. ”Deixe meu povo ir, para que viva e se multiplique na terra de sua herança. A terra que foi sua quando o rei Davi trouxe a Arca para Jerusalém...” Não havia dúvida de que o homem era um mago da palavra, totalmente convencido. e convincente.

 

Os dois ficaram sentados em silêncio, olhando para o céu da meia-noite, pensando no futuro...

 

— Bem, tenho de ir agora para junto de minha mulher, mas desejo-lhe felicidades. Espero que nos encontremos novamente — disse Dovid ao jovem de rosto cheio.

 

— Espero também, chaver.

 

Os dois trocaram um aperto de mão.

 

— Se você for a Petah Tikva, pergunte por David ben Gurion, não David Grien. Deixei esse nome para trás, no gueto de Plonsk. Agora. shalom...

 

                                                   Capítulo três

O velho navio estava ancorado além de Jaffa. Era de manhã, e um nevoeiro branco dificultava a visibilidade, mas todo mundo se achava junto à amurada do convés. Finalmente eles estavam em casa. À medida que o nevoeiro se dissipava, podia-se ver o litoral de Jaffa.

 

O céu azul-rosado parecia abraçar as águas verdes do Mediterrâneo; era como se a beleza e a esperança estivessem próximas. De repente, os passageiros tiveram uma sensação inexprimível. Foi como se todas as suas vidas se resumissem nesse momento... esse momento de salvação. Avrum tocou com os lábios as franjas de seu tallis, e depois se enrolou nele, Sentiu como se os braços de Deus o estivessem envolvendo. Ouvia-se um canto alegre. Estranhos abraçavam-se, mãos reuniam-se, as pessoas ligavam-se umas às outras, amarrando tiras de couro no braço direito. Puseram na testa a minúscula caixa de couro que continha a Lei, e entoaram o primeiro dia da Criação, como estava escrito. ”Haja luz..” E agora havia luz. Chavala mantinha-se junto a Dovid enquanto esperavam o que, para ele, seria o Éden e, para ela, não passava de uma viagem. Ela estendeu o olhar para longe... seu Éden era a América; ela esperaria.

 

Moishe não conseguia falar, mas tudo se desenrolava em sua mente. a terra boa e rica onde havia de tudo: laranjas, melões, doces deliciosos como o mel, amêndoas e uvas. Haveria trigo, cevada, milho. Eles nunca mais passariam fome.

 

Sheine estava parada, observando Chavala e Dovid, depois olhou diretamente para Motel, o rapaz da Galícia. Este lhe devolveu o olhar.

 

— A gente se vê de novo?

 

Sheine encolheu os ombros. Ela só tinha usado o chalutz para chamar a atenção de Dovid.

 

— Quem sabe? Talvez...

 

Seu diálogo foi interrompido de repente, quando um grupo de pessoas gritou:

 

— Olhe lá. estão vindo ao nosso encontro.

 

Bem perto, podiam-se ver pequenos barcos. Os chalutzitn remavam com rapidez e decisão, tentando vencer os árabes, que roubariam os pertences dos judeus e exigiriam, furiosos: ”Bakshish, bakshisb...” Roubariam qualquer coisa em que pudessem pôr as mãos.

 

As crianças corriam para a amurada, enquanto os oficiais turcos subiam a bordo, pedindo documentos. A contragosto Dovid mostrou os seus a um turco que os pegou com violência. O turco, falando russo, queria saber por que eles tinham vindo como peregrinos religiosos, para orar no Muro das Lamentações.

 

Visto que a lei não permitia que judeus imigrassem para a Palestina, Dovid respondia a cada pergunta com muito cuidado, enquanto o restante da família permanecia de pé, assustado.

 

O oficial perguntou quanto tempo ficariam.

 

— Apenas três semanas — respondeu Dovid, esperando que, dentro de três semanas, conseguissem subornar os turcos, e então sua família desapareceria na região, como centenas de outros refugiados já tinham feito. Respondidas todas as perguntas do turco, empurraram nas mãos de Dovid os cartões vermelhos destinados a todos os peregrinos. Mas seus documentos foram confiscados. Santo Deus, que vamos fazer?, pensou Chavala. Quando o oficial de cinta vermelha se afastou, Chavala perguntou:

 

— Que nos acontecerá sem os documentos?

 

Os passageiros corriam precipitadamente, uns mergulhando na água, outros jogando seus pertences ao mar e pulando atrás.

 

— Não temos tempo para pensar nisso — respondeu Dovid; — pelo menos temos os cartões vermelhos.

 

Agora o barco a remo já estava junto ao navio, balançando na água.

 

— Saltem! — berrou o enorme cbalutz.

 

Embora ninguém soubesse nadar, tinham de saltar; caso contrário, seriam hostilizados, ou mesmo mortos, pelos árabes, que estavam subindo para o convés por uma corda.

 

Dovid disse a Chavala que rasgasse a saia em tiras, o que ela fez sem hesitação, visto que toda a família estava envolvida. Logo as tiras foram emendadas e atadas ao cesto de Chia, que foi baixado até que o chalutz pôde pegá-lo. Quando Dovid viu que o bebê estava em segurança, disse a Chavala que pulasse.

 

Cheia de medo, ela saltou para o mar. Quando voltou à superfície, um dos três chalutzim já estava na água, ajudando-a a entrar no barco. Ela tremia, encharcada. Depois os outros saltaram, um após o outro, e foram todos acomodados no pequeno barco.

 

— Shalom! — saudou o enorme chalutz, sorrindo. — Sejam bem-vindos a Eretz Yisroel.

 

— Shalom! Graças a Deus que você veio dar-nos mais do que as boas-vindas — disse Dovid.

 

— O que acontecerá com nossos pertences e documentos? — perguntou Chavala.

 

— Não se preocupem, com dinheiro vocês terão suas coisas de volta.

 

— Mas não temos muito.

 

— E quem tem? — interrompeu o chalutz. — A Agência de Sião cuidará disso. A única coisa com que podemos contar, como judeus, é com a caridade entre nós mesmos. De que outra maneira temos sobrevivido todos esses anos?

 

Quando Avrum viu as areias da praia que se estendia logo adiante, pulou do barco e se dirigiu para a praia. Chegando lá, curvou-se e beijou o solo. As gotas que caíam do casaco preto formavam pequenos fios de água na areia. De joelhos, ele disse:

 

— Esta casa é apenas uma centelha, que foi salva daquele grande incêndio por um milagre. Guardada sempre por nossos pais sobre seus altares. Tu nos trouxeste em segurança à praia.

 

Como uma pequena armada, outros barcos estavam tentando aproximar-se do desembarcadouro. E, enquanto os chalutzim ajudavam as pessoas a desembarcarem, houve uma torrente de choro e abraços com seus chaverim, seus patrícios judeus.

 

Chavala também chorou, ouvindo as vozes alegres e vendo aqueles rostos. Tinham vindo como estranhos, tinham chegado juntos, e partilhavam, pelo menos nesse momento, um destino comum. Chavala sentia, acima de tudo, a presença dos seus entes queridos, ali reunidos. Pelo menos nessa hora, ela se sentia unida a Dovid e a todos os outros, em favor da nova Sião. Talvez isso não durasse, mas nesse momento precioso tinham entrado em acordo com seus desejos. A América estaria lá quando chegasse aquele momento; mas esse momento supremo pertencia aos seus amados, àqueles por quem ela teria dado a vida de bom grado.

 

Dovid viu um dos membros do escritório sionista falando com um oficial turco, e pôde imaginar de que se tratava. Nenhum oficial turco estava acima da corrupção. Por uma recompensa, eles podiam fechar os olhos para praticamente qualquer coisa, esquecer qualquer coisa. A corrupção estava no próprio núcleo do moribundo Império Otomano.

 

O membro do yishuv estava negociando com o oficial turco para obter de volta os pertences e os documentos dos judeus. De posse do dinheiro, comunicaram aos recém-chegados que logo receberiam de volta suas coisas.

 

Enquanto esperavam, Avrum Rabinsky disse, furioso:

 

— Até aqui, em nossa própria Eretz Yisroel, estamos sujeitos à chantagem? Será que não basta termos pago na Rússia o direito de vir para cá?...

 

Um veterano barbudo suspirou, balançando a cabeça.

 

— A questão é que não temos o direito de estar aqui. Pelo menos segundo os turcos. E, segundo o mundo, não deveríamos existir de modo algum. Pensando bem, isso é um milagre. Mas não desanime amigo, eles nunca conseguirão acabar conosco, por mais que tentem. Ainda continuamos aqui nestas praias, mesmo depois de os cruzados terem se transformado em pó, e estaremos aqui quando os turcos tiverem ido para o inferno.

 

Certas ou erradas, essas palavras pareciam tornar a situação mais suportável, enquanto Avrum aguardava com a família, sob o sol ardente do meio-dia. Depois do que pareceu um século, eles estavam novamente de posse dos seus pertences e documentos, inclusive da cabra de Chavala. milagre dos milagres. Apanhando suas trouxas, dispuseram-se a atravessar as congestionadas ruas estreitas de Jaffa. Nos becos, a imundície era demais. Não era isso o que Avrum havia esperado; tinham vivido a sonhar com a dignidade, imaginando que, algum dia, estaria sentado debaixo de sua própria figueira. Jaffa parecia pior do que qualquer shtetl na Rússia, mas ele se consolou com o pensamento de que, afinal, era uma cidade árabe; e durante milhares de anos, os árabes tinham vivido no atraso. As coisas seriam diferentes quando ele saísse dali e, finalmente, chegasse ao seu lugar de descanso. Jerusalém.

 

Mesmo que Dovid estivesse decepcionado, não deixava transparecer isso no rosto. Entretanto, Chavala sabia que essa não era a terra da liberdade, do leite e do mel, nem tampouco da beleza e da abundância, de que os judeus falavam, em suas mensagens de esperança e promessa, nos porões, sótãos e quartos de fundos de Kíev, Ucrânia e Odessa. Chavala achava que Dovid ficara chocado ao perceber isso. Quanto a ela, não tinha ido para Eretz Yisroel com ilusão alguma, nem com o desejo de reivindicar a terra. Seu sonho era a América, e, já que nada esperava daquele lugar, não se queixava.

 

Mas para o pobre pai, que tinha vivido com essa fantasia, o golpe devia ser esmagador. Ela achava que podia ler seus pensamentos. Não tinham vindo preparados para isso. Onde estavam as colinas verdes, as flores silvestres? Onde estavam as rosas de Sharon. as árvores, os relvados onde pastavam as ovelhas de Davi? Onde estava a árvore frondosa debaixo da qual qualquer pessoa podia descansar em paz? Pelo menos ela e o resto da família eram jovens; a vida podia mudar. Ir para Eretz Yisroel não era como um casamento, que une o homem e a mulher para sempre. Aquele era apenas um lugar de pousada para ela. O pai, porém, tinha ido para terminar seus dias ali, com o sonho de herdar a terra. Afinal de contas, ele era um manso, não havia dúvida disso. Mas a terra a que ele aspirava tinha sido profanada por aqueles pagãos. Não havia terra fértil em que pisar; somente areia mais areia, que se estendia até onde a vista alcançava. Não, aquele não era o lugar que Dovid tinha prometido e que o pai esperara encontrar. Era uma rede de humanidade fervilhante que subsistia nos becos estreitos. Era preciso passar por cima do lixo. Junto às paredes havia montes de peixes mortos. Crianças árabes perambulavam nuas, com rostos inexpressivos, olhos fundos e barrigas grandes. Crianças que ainda não tinham a idade de Dvora já eram mendigos profissionais e ladrões. As mulheres vestiam farrapos, e as crianças ficavam sentadas nas portas de seus casebres. Eretz Yisroel era um pequeno agrupamento de casas feitas de barro e arenito, empoleiradas em montes de areia desiguais. Esse lugar onde eles se achavam era tido como uma das mais antigas regiões habitadas da Terra. Bem... em dois mil anos, nada tinha mudado.

 

Chavala olhou para o pai, que estava com os olhos cheios de lágrimas. Em voz baixa, ele perguntava o que tinham feito... o que tinham feito para profanar a terra santa de Deus. Seus lábios mal se moviam. Ele se perguntava se o mesmo tinha acontecido com Jerusalém, sua querida cidade.

 

Chavala pôs o braço em torno dele.

 

— Está tudo bem, papai. Lembre-se de que esta cidade é árabe. Jerusalém será como você espera.

 

— Então, por favor. por favor, vamos para Jerusalém.

 

— Devemos deixar Dovid fazer os planos. Venha, papai. Somente quando chegaram à parte judaica de Jaffa foi que Avrum recuperou um pouco de sua esperança.

 

As crianças não ficaram tão abatidas, ao conhecer o lugar. Na verdade, estavam muito entusiasmadas. De olhos arregalados, percorriam as fileiras de barracas cheias de peças de seda e algodão oriental coloridas, de pulseiras e contas... Foi dessa barraca que Sheine mais gostou. Ela experimentou os anéis de harém, as pulseiras, pôs nas orelhas um par de brincos dourados que pareciam renda de filigrana. A loja de sandálias, onde Sheine tinha certeza de que as atendentes eram moças de harém, deixou-a intrigada. ela teria dado a vida por um par daquelas sandálias.

 

Os gostos de Dvora inclinavam-se para coisas menos emocionantes. Imagine, cozinhar kasha em panelas de barro!

 

E Raizel parecia estar se divertindo com o passeio.

 

As crianças deram uma gargalhada quando Moishe experimentou um capacete tropical trazido por peregrinos cristãos; depois um fez vermelho com uma borla preta. Enrolou no pescoço um cachecol árabe, pôs uma faixa colorida na cintura e meteu na cinta um punhal ornado de jóias. Fazendo um esforço para não rir, perguntou:

 

— Será que eu poderia passar por turco?

 

— É meio difícil. com esse cabelo ruivo — disse Sheine. De pé do lado de fora da barraca, Avrum disse:

 

— Basta, meninos... já vi o bastante. Vamos sair desta Gomorra.

 

Sheine olhou para as pulseiras, para as sandálias que ela gostaria de ter, mas nada adiantaria pedir. Eles tinham tão pouco dinheiro! Mas algum dia ela voltaria.

 

Dovid levou-os para fora do mercado e, apesar da insistência de Avrum para que fossem para Jerusalém, decidiu que passariam a noite em Jaffa. Seria penoso demais viajarem naquele mesmo dia.

 

O hotel de Isaac Hirsch era um verdadeiro lar judaico. O cheiro do pão fresco de Frieda Hirsch vindo da cozinha impregnava o ar. Depois de limpar as mãos no avental branco, ela cumprimentou os hóspedes como se eles fossem primos que há muito tempo não via, vindos de Minsk.

 

— Shalom, bem-vindos à minha casa. Somos uma grande família. Não hesitem em pedir qualquer coisa de que precisem. Agora Isaac vai mostrar a vocês onde ficam seus aposentos. Descansem um pouco antes da ceia — disse Frieda, acariciando a pequena Chia no queixo. — Que coisinha linda! Acho que tenho um biscoitinho para ela.

 

Quando a família já estava acomodada e Avrum finalmente conformado, Dovid foi à Agência da Colônia Sionista, como os demais. De repente, ele viu o homem baixo, rechonchudo, com o halo de cabelo castanho.

 

— Shalom, Ben Gurion.

 

— Shalom, Dovid Landau, como correram as coisas?

 

— Hoje de manhã, quando chegamos, estavam um pouco confusas, como você deve ter notado. Mas acho que, daqui para a frente, estamos prontos para qualquer coisa.

 

Ben Gurion riu.

 

— Para onde vocês vão?

 

— Para Jerusalém. Vim saber se podemos conseguir transporte.

 

— Transporte? Você terá sorte se conseguir dois jumentos.

 

—Vou ver se consigo. Temos uma família grande e um longo caminho a percorrer.

 

— Todos nós temos um grande caminho a percorrer, meu amigo, mas conseguiremos. Vou sugerir que, de agora em diante, você fale hebraico. Quando nos tornarmos um país, deveremos ter um idioma.

 

Dovid sacudiu a cabeça.

 

— Talvez você seja capaz de falar hebraico, mas não tem um sogro como o meu. Falar na língua da Tora seria rebaixar a Palavra de Deus. Receio que em minha casa se venha a falar o iídiche.

 

— Então você terá que se impor como chefe da família. Ben Yehudah quase foi morto por inventar o hebraico moderno. Durante

três semanas ele não falou com a mulher, por causa de sua resistência. Até quando uma mulher pode ser ignorada? Ela cedeu. Eu me pergunto se ele é mais feliz agora. Sei que as mulheres falam um bocado. Os dois riram.

 

— Onde você está hospedado aqui em Jaffa? — perguntou Dovid.

 

— Num buraco miserável em que eu não passaria uma só noite. Plonsk era bonita, em comparação com este lugar. Assim que eu receber meus documentos, irei para Petah Tikva.

 

— Você quer dizer. hoje?

 

— Hoje.

 

— Bem, mazel tov. Até a noite.

 

A estrada para Jerusalém era praticamente uma pista de corrida com obstáculos... Saqueadores árabes ficavam de emboscada para atacar os viajantes que iam para a Cidade Santa. Os pertences eram roubados, e as vidas corriam grande risco. A estrada era estreita, e era preciso remover enormes pedras para se poder passar. Somente depois que atravessaram a garganta de Bab el-Uad é que puderam se sentir em segurança.

 

Tinham viajado durante três dias e três noites, descansando nas colônias. Agora que estavam a alguns quilômetros de distância da Cidade Santa, Sheine caía de cansaço.

 

— Não agüento mais — disse.

 

Ela odiava aquele lugar e, pelo menos nesse momento, até mesmo Dovid, por querer ir para lá. Ele tinha feito belas descrições de Eretz Yisroel, mas o que eles tinham visto até então fora sujeira, areia e mosquitos que a tinham picado de tal modo que deixaram vergões em seus braços e pernas. Por que não tinham ido para a América, como Chavala queria, ao invés de irem para aquele inferno? Sheine esquecera, momentaneamente, o pogrom do qual tinham fugido. Olhou para Chavala, que, durante a maior parte do caminho, viera montada no jumento, porque segurava o bebê, a pequena Chia. Só os deixava montar de vez em quando. O pai era um ancião; por isso ela não se importava de que ele fosse montado, mas Chavala! O que a fazia melhor do que os outros? Aquele bebê era tão deles quanto dela. Como ela ousava agir como se fosse sua própria filha? Seus pensamentos mesquinhos foram interrompidos por Dovid:

 

— Por que não falou, antes, que seus pés estavam sangrando?

 

— Porque vocês todos estão tão ansiosos para chegar a Jerusalém hoje.

 

— Sim. E a razão é que não temos lugar seguro para descanso daqui até Jerusalém.

 

— O que teria acontecido se tivéssemos ficado mais um dia em Jaffa? — rebateu Sheine. — Pelo menos haveria um pouco de animação. Você acha que o céu teria caído, se tivéssemos ficado mais um dia? Odeio este lugar. Quem dera eu nunca tivesse vindo!

 

Avrum Rabinsky olhou para a filha por um instante doloroso.

 

— Temo por você, Sheine. Acho que há um dybbuk em você. Como é possível que, entre seis crianças nascidas de sua santa mãe, haja uma como você?

 

Sheine sentiu a culpa que lhe era atribuída. Ela amava o pai e o tinha ofendido. Mas ele não a compreendia, não sabia o que a obcecava dia após dia, o que não a deixava dormir à noite. Dovid. ah, se ela pudesse reprimir o seu amor, sua obsessão por ele! Tudo o que esse amor lhe causava era dor.

 

— Perdão, papai. Estou muito cansada. Perdoe-me, por favor — disse ela, levantando-se.

 

Dovid agarrou Sheine.

 

— Vamos. Eu carrego você.

 

— Não preciso de favores.

 

Sem dar ouvido ao que ela dizia, ele suspendeu-a nos braços; e, quando recomeçaram a caminhada em direção à Cidade Santa, ela relaxou em seus braços. Era tão bom; ele era tão forte! Era difícil lembrar que ele era marido de Chavala, principalmente quando ela não queria. agarrando-se a ele, tentou imaginar como seria se ele fosse seu marido, como seria deitar-se ao lado dele de noite, envolvida em seus braços, sentindo seu calor. E possuí-lo como uma mulher possui um homem. Fechou os olhos e deu livre curso à imaginação. Pelo menos, ele era seu naquele momento.

 

Quando se aproximavam do topo das colinas, pouco antes de descer para a Cidade Santa, a família parou e ficou em silêncio. Juntos, avistaram Jerusalém pela primeira vez. Acima do muro antigo, podia-se ver a cúpula dourada do santuário muçulmano. Mais adiante estava o monte das Oliveiras e, bem acima, o monte Scopus, onde os fiéis estavam sendo chamados à adoração; os sinos dobravam no silêncio do crepúsculo.

 

Chavala olhou para o calcário branco das colinas da Judéia. Quantos milhões de vidas tinham sido reduzidas a pó.

 

Finalmente, chegaram aos portões de Damasco, que conduziam à Cidade Antiga, e passaram por eles.

 

Quando Avrum Rabinsky viu o Muro das Lamentações, começou a tremer, certo de que seu coração tinha parado de bater. Sonhara por tanto tempo que não podia acreditar que o milagre tivesse realmente se concretizado. Adiantou-se aos outros com a mão no coração e, quando finalmente se viu diante do muro, caiu de joelhos e beijou a terra. Para ele não importavam os maus tratos que a terra sofrera. Ele estava ali. Levantando-se, beijou a pedra e, com dedos trêmulos, passou as mãos pela superfície áspera, repetindo a oração: ”Ouve, ó Israel: o Senhor é nosso Deus, o Senhor é o único. Louvado seja Seu nome, cujo glorioso reino dura para sempre”. E então entoou: ”Ó Senhor nosso Deus, ajuda-nos a deitarmo-nos em paz todas as noites e a despertarmos todas as manhãs para renovar a vida e a energia. Espalha sobre nós o tabernáculo da Tua paz. Ajuda-nos a ordenar nossas vidas pelo Teu conselho e leva-nos pelos caminhos da justiça. Sê Tu um escudo ao nosso redor, protegendo-nos do ódio e da guerra, da pestilência e da dor. Impede também, em nós, a inclinação para o mal e abriga-nos debaixo de Tuas asas. Guarda nossa saída e entrada na vida, e que haja paz doravante e para sempre”.

 

Agradeceu ao Supremo por ter-lhe permitido ir para aquele lugar, por deixá-lo ser parte daqueles que se haviam ido antes dele, dos dois mil anos que haviam antecedido aquele momento.

 

Vendo o pai abraçar as antigas pedras, apalpar os tufos de musgo que cresciam nas fendas, Chavala compreendeu que ele, pelo menos, tinha chegado à sua terra finalmente. Sentia-se grata a si mesma por não ter deixado que seus desejos egoístas privassem o pai daquilo. Naquelas noites passadas no convés do navio, sentira-se muito descontente em seu íntimo. Lembrava-se de ter olhado para o céu azul da meia-noite, repreendendo a si própria por não ter insistido em ir para a América. Ninguém sabia com que demônios interiores tinha lutado. Às vezes sua ira era quase impossível de ocultar. o sentimento de que ela devia ter falado francamente, em sua infelicidade. Ousara perguntar, em silêncio, por que tinha de se sacrificar por um velho; ele teria terminado seus dias na aldeia onde nascera se os russos não tivessem aparecido. Tentara convencer-se de que, na América, com os estômagos cheios, os pés calçados, com um teto sobre a cabeça e dinheiro no bolso, o sonho que o pai tinha de morrer na pátria desapareceria, com certeza. Mas, parada ali, observando o velho pai, Chavala compreendeu que tais pensamentos tinham sido uma mentira, um engano a si própria, para que ela conseguisse o que queria. Lembrou-se de que uns deviam aos outros. As obrigações eram o núcleo do amor, e pela primeira vez Chavala sentiu-se em paz, aceitando como certa aquela situação. As necessidades e os desejos do pai eram maiores do que os seus; então abraçou o pai como uma mãe abraçaria um filho.

 

— Venha, papai, temos de acomodar-nos — disse ela, com voz sussurrada. — Você tem toda a vida para voltar aqui.

 

A habitação que fora providenciada para eles era uma choupana de pedras, vinte e quatro degraus acima do nível da rua. Ficava num beco úmido, cercada de outras choupanas que pareciam ter mil anos de existência.

 

Naquela noite, cearam na cozinha sombria. Nos outros três cômodos, havia camas improvisadas em que finalmente se deitaram.

 

No dia seguinte, Chavala, Dovid e as crianças foram explorar aquele mundo. A pobreza parecia ainda maior do que na pequena aldeia ao sul de Odessa. Tampouco as ruas dali pareciam melhores do que as de Jaffa. E, ao passarem pelas barracas cheias de gente, o ruído era ensurdecedor. Pare com isso, pensou Chavala, como que ralhando consigo mesma. Lembre-se do motivo pelo qual você está aqui. Lembre-se do que você enterrou junto àquela árvore florida, em Odessa, e lembre-se dos temores que forçaram você e sua família a fugir. Seja grata. seja humilde, Chavala. Entretanto, mesmo contra sua vontade, a batalha continuou em sua mente.

 

A pobreza era grande em toda parte, mas ali na Cidade Antiga os judeus tinham sido reduzidos a condições de vida quase desumanas. Era um modo de vida aceito e esperado. Viviam e morriam da dádiva enviada desde a Diáspora.

 

Nem Chavala nem qualquer outro membro da família jamais tinham visto judeus mendigando nas ruas. Isso era vergonhoso. Crianças estendendo mãos emaciadas e sujas passavam despercebidas, enquanto os anciãos devotos apressavam-se em ir para os lugares de oração. Tinham uma palidez doentia... há muitas gerações moravam nas choupanas e nos becos escuros, amontoados. Parecia que a natureza os tinha criado de modo que coubessem em seus aposentos desconfortáveis. Os homens eram pequenos em comparação a Dovid e Moishe, que tinha apenas quinze anos. Tinham os ombros arredondados, de tanto ficarem encurvados sobre seus livros e rolos de papel. Os Rabinskys podiam ter sido pobres na Rússia, mas lá isso não parecia tão desolador, tão deprimente. Por mais miserável que fosse sua vida, os judeus tentavam. Sim, havia caridade. Em todas as casas havia, pregada na parede, a pequena lata de estanho azul e branca, onde se colocava uma moeda. Aqueles que não podiam ganhar a vida obtinham ajuda; os pobres davam aos pobres, e os mais pobres, àqueles que eram ainda mais infelizes. Na sua pequena aldeia havia um senso de comunidade... Na primavera, eles faziam piqueniques nos prados, junto à cerejeira. Parecia, às vezes, quando os deixavam viver em paz, que a vida era até bastante suave. Talvez fosse por causa do cheiro da comida deliciosa que a mãe preparava, mas, levando em conta o pouco que eles tinham, não podia ser por isso. Achou que era porque as pessoas sentiam falta das coisas que conheceram quando crianças. Fosse o que fosse. havia algo em suas vidas que ela não sentia ali, ali no mais sagrado dos lugares.

 

O que mais a irritava era que o alimento que vinha à sua mesa era devido à caridade, e ela fez um pacto consigo mesma de que sua família não viveria sem dignidade; e a dignidade teria de ser adquirida com o trabalho de suas mãos e com os seus cérebros. Nada seria demasiado indigno desde que resultasse de um dia de trabalho honesto. Ela lhes inculcaria determinação. Se ela possuía um pouco de força, eles não seriam colocados nas fileiras dos desprezados e esquecidos. Sua família não viveria na imundície, nem vestiria farrapos. A sua, não.

 

Chavala contou algumas moedas e as deu a Moishe, para comprar sabão, uma vassoura e três escovões de faxina. Quando ele voltou, ela reuniu as meninas. Cada uma recebeu uma lição de limpeza. Aqui se falava muito de religião, mas se alguma coisa estava próxima à devoção, essa coisa era a limpeza. Lavaram religiosamente os pisos, as paredes e o teto, até ficarem imaculados. A própria Chavala lavava tudo o que via até ficar com as mãos doloridas.

 

Dovid estendeu uma corda, presa sob o telhado plano; depois ajudou Chavala a carregar o fardo. Quando Chavala viu a roupa de cama drapeando à brisa, esqueceu sua própria fadiga e os braços doloridos. era um bom dia de trabalho e, da próxima vez, ela economizaria dinheiro, fazendo seu próprio sabão.

 

Sheine, porém, não sentia a mesma satisfação. Ela achava que Chavala estava obcecada por limpeza. Agora insistia em lavar a varanda e a escada.

 

— Há um limite para a resistência de uma pessoa no trabalho; não somos mulas.

 

— Talvez não! — rebateu Chavala. — Mas também não somos porcos. Há um século que este lugar não conhece limpeza. E, se você pensa que vou deixar minha família viver como os outros, está enganada..

 

— O que faz você pensar que somos diferentes dos outros, como você diz? Por mais que você limpe este lugar, continuará sendo um gueto.

 

— Mas pelo menos estará limpo.

 

— Grande coisa vai adiantar isso!

 

Sheine saiu correndo e desceu a escada, onde quase se chocou com Dovid. com a respiração acelerada, ela olhou para ele e não pôde deixar de pensar como era estranho que os homens não tivessem que trabalhar, somente as mulheres. O pai ia à sinagoga e ao Muro das Lamentações todos os dias. E Dovid? Que fazia ele com seu tempo? Se perguntasse a Moishe, ele lhe diria que Dovid passava o tempo no café, no velho mercado de escravos, debatendo assuntos muito importantes com os Amantes de Sião, como a melhor maneira de corrigir aqueles judeus ignorantes que se achavam no país antigo.

 

— Aonde você ia com tanta pressa? — perguntou Dovid.

 

— Sair — respondeu ela, fitando-o.

 

— Eu sei, mas para onde?

 

— Para onde eu quiser.

 

— Mas por que essa raiva toda?

 

— Pergunte à sua mulher. Ela é uma tirana; quer nos transformar em escravos, e eu estou farta disso. Tudo o que ela quer que façamos é limpar. Para quê? Olhe para minhas mãos.

 

Ele suspirou, ao ver Sheine tentando reter as lágrimas, aborrecida.

 

— Chavala está querendo tornar a situação um pouco melhor.

 

— Melhor do que o quê? Estamos cercados de imundície. Odeio este lugar...

 

— Isso não vai durar para sempre, Sheine.

 

— Eu sei, Dovid; assim que o Messias chegar, nós não precisaremos mais dos Amantes de Sião.

 

— Por favor, Sheine, não fique tão amargurada, e procure não se zangar com Chavala. Ela está tentando fazer um lar para nós. Agora, venha comigo.

 

Chavala. sempre Chavala. Chavala, a rainha. Chavala, a professora.

 

— Não, obrigada; eu volto mais tarde.

 

— Mas já está quase na hora da ceia e o pai vai ficar.

 

— De que você está com medo, Dovid? Quer dizer que, se eu deixasse este lugar santo e fosse para o outro lado do portão de Jaffa, poderia ser apanhada pelos árabes e ficaria sendo uma mulher má? Ah, não se preocupe comigo. Vá ver sua mulher imaculada.

 

Dovid ficou olhando, até que ela desapareceu no estreito beco de pedras arredondadas. Ficou parado, sentindo que a responsabilidade da profunda mágoa de Sheine caía sobre seus ombros. Lembrou-se daquelas noites em que ficavam sentados na cozinha mal iluminada, falando das glórias que encontrariam em Eretz Yisroel. Na verdade, as coisas não eram como ele tinha esperado; mas sua própria devoção e sua decisão ainda estavam de pé. Sim. se ele soubesse da realidade, teria preparado a família de modo diferente. Se não tivesse sido tão ingênuo, teria compreendido. teria feito os outros compreenderem. que a ida para lá era apenas um começo, não a realização do objetivo. Ele se havia perdido tanto na idéia de construir uma nova vida para todos os judeus que se havia iludido. A verdade é que ele não estava bem informado, e agora seus temores eram tão grandes como os de Sheine. Durante mais de uma semana, tinha vagado pelas ruas, convencendo-se de que nunca encontraria o que estava procurando em Jerusalém. Agora sabia que Eretz Yisroel só significava Jerusalém para Avrum, e que tirar Chavala dali seria uma tarefa quase impossível. Mas o que ele poderia fazer para ganhar a vida ali? Lentamente subiu para a varanda, onde Chavala o esperava.

 

Avrum voltou para casa, depois de passar o dia em oração; lavou bem as mãos para chegar limpo à mesa de Deus. Quando Chavala trazia a refeição, Avrum olhou em torno e viu que Sheine não estava presente. Franziu a testa e já ia perguntar onde ela estava, quando Sheine entrou na sala, beijou-o no rosto e se sentou ao lado de Moishe.

 

Houve um silêncio longo e constrangedor, enquanto Avrum olhava para a filha.

 

— Onde esteve, Sheine?

 

— Eu a mandei ao mercado para comprar. — começou Chavala, mas foi interrompida por Sheine.

 

— Eu posso falar por mim mesma — disse, contrariada com a intervenção de Chavala, que a tratava como se ela fosse uma criança. Não precisava da proteção de Chavala. — Eu queria ver a cidade fora dos muros; há alguma coisa de errado nisso, papai?

 

Falara com mais atrevimento do que tencionava. Era seu aborrecimento com Chavala que tinha falado, e não ela...

 

Avrum olhou para Sheine. Não, ela não era como os outros. Era rebelde, arrogante. Uma filha não falava assim com o pai.

 

— Sim, Sheine. Isso está errado. Uma menina não sai sozinha. Proíbo-a de fazer isso; está me ouvindo?

 

— Estou, papai. Mas por que você é contra? Fora dos muros também é Jerusalém.

 

— Para minhas filhas, Jerusalém não passa dos portões de Damasco. De agora em diante, você não poderá ir além da Cidade Antiga.

 

Sheine permaneceu sentada com a cabeça baixa, mordendo o lábio inferior. Aquela humilhação era demais. na frente dos outros. O pai nunca havia tratado os filhos com tanta raiva. A culpa era de Chavala. Era em Chavala que ela punha a culpa. Esperou acalmar-se um pouco; depois desculpou-se e retirou-se para seu quarto. Fechando a porta atrás de si, deitou-se e chorou lágrimas amargas. Estava convencida de que ninguém a amava, de fato. Estava sozinha, sempre estaria.

 

Quando ouviu a porta abrir-se, enxugou os olhos rapidamente e voltou-os para a parede.

 

— Sheine. posso falar com você? — Era Chavala.

 

Sheine não se mexeu.

 

— Sheine, por favor. perdoe-me. Eu sabia que era de mim que você estava querendo fugir. Eu fui dura demais com você.

 

Lentamente Sheine voltou-se para Chavala, com os olhos frios como aço.

 

— Que gentileza a sua! Por que essa preocupação repentina comigo? Está se sentindo culpada pelo que papai me disse? Isso devia ter deixado você muito feliz.

 

— Ah, Sheine, por favor. Não vamos brigar. Nossas vidas já são difíceis demais. Tudo o que temos somos nós mesmos. Eu amo você, Sheine. Você é minha irmã... Espero que você me ame também.

 

Estendeu os braços e pegou Sheine pelos ombros, dando-lhe um abraço apertado.

 

Nesse momento, o aborrecimento desapareceu e as duas irmãs choraram nos braços uma da outra. Chavala porque esperava que as duas se sentissem mais próximas uma da outra. Sheine porque sabia que sempre teria ciúmes do amor de Dovid por Chavala, e não por ela. Desejou ser diferente, mas não podia. Talvez houvesse realmente um dybbuk nela. Que Deus a ajudasse.

 

                                         Capítulo quatro

Avrum estivera tão preocupado com Deus que não percebera as grandes mudanças ocorridas nos filhos.

 

Moishe e Dovid abandonavam, pouco a pouco, a tradição do vestuário e não participavam das orações matutinas. Avrum havia esperado que eles se apegassem à fé, agora que se achavam naquele lugar santo, mas percebia então que Eretz Yisroel não era para Moishe e Dovid um lugar onde pudessem saciar a sede da alma, como o era para ele. Ele sentia que, de algum modo, havia fracassado. Seus filhos pareciam afastar-se cada vez mais das tradições de sua fé; e, por mais doloroso que fosse, receava que, na liberdade de sua esperança recém-encontrada, estivessem se tornando incrédulos. Sentiu o coração partir-se quando repreendeu Moishe por tê-lo enganado, ao descobrir que o filho não estava freqüentando a yeshiva.

 

— Papai, eu lhe peço que compreenda — disse Moishe. — Continuo amando a Deus do mesmo modo que antes, mas você precisa compreender que, se uma pessoa nasce para ser livre, deve seguir sua religião de acordo com seu tempo e suas necessidades. Seguirei a religião, mas não à sua maneira. Não posso ir à yeshiva, porque isso significa viver de caridade, e é algo que eu não suporto. Eu acho, papai, que chegou a hora de eu ser um homem e de contribuir para o sustento da família tanto quanto os outros homens. Arranjei um emprego de cortador de pedras em Mea Shearim.

 

Avrum cerrou os punhos, procurando evitar agredir o filho. Porém, mais do que sua raiva, ele realmente temia que a ira de Deus descesse sobre o seu filho. Onde foi que errei como pai? pensava ele. E em que ponto ele tinha falhado, não podendo deter Dovid? O uso que Dovid fazia das palavras sagradas da Tora era algo que ele não podia tolerar. As palavras de Dovid ressoavam em seus ouvidos: ”Para sermos uma nação temos que falar uma língua comum. Hoje Eretz Yisroel é como a Torre de Babel; inúmeras línguas são faladas aqui...”

 

— Se Deus quisesse que disséssemos palavras sagradas uns aos outros, isso estaria escrito no texto sagrado. Eu proíbo isso, está-me ouvindo, Dovid? Proíbo.

 

Ao dizer essas palavras Avrum percebeu o quanto ele também havia mudado, desde que haviam chegado a Eretz Yisroel. Nunca teria imaginado que sentia tamanha raiva dos filhos, ou de Dovid. Afinal de contas, ele sempre fora um homem manso. Mas os filhos estavam exigindo dele coisas que ele simplesmente não podia tolerar. Não tinha ido para Eretz Yisroel a fim de alterar a Palavra de Deus. Fora a fim de fazer a vontade de Deus... a fim de viver e ser sepultado na terra santa.

 

Chavala sabia que nada que Dovid dissesse convenceria o pai. De fato, eles falavam uma língua diferente, resultado da vida no gueto, uma mistura de alemão com russo, um jargão em que era quase impossível comunicar-se. Mas Avrum não cedia.

 

Dovid tentava novamente. Dizia que o hebraico fora a língua de seus pais, há dois mil anos, e devia ter sido como mel em sua boca; mas Avrum sacudia a cabeça e se dedicava ainda mais a Deus, através de suas orações, rezando também pela salvação de Dovid e seus filhos. A casa de Avrum Rabinsky tinha se tornado uma casa dividida.

 

Deitada ao lado de Dovid, Chavala disse:

 

— Não fique zangado com papai, Dovid. Lembre-se de que ele é um velho que só tem uma razão para viver sua fé. Não discuta mais com ele.

 

— Eu não discuto com ele, Chavala; eu tento explicar. Está bem, vou tentar evitar isso. Mas nós temos que tentar realizar-nos também. Temos direito a nossos sonhos.

 

— Eu sei, Dovid; os sonhos são bons, como eu já disse há muito tempo, mas não devemos realizar nossos sonhos à custa dos outros — disse ela, rindo suavemente. —vou lhe dizer agora qual é o meu grande sonho. é ter uma máquina de costura.

 

— Ora, isso não é um sonho difícil. Para isso, só precisamos de dinheiro.

 

Lembrando-se do pequeno broche de ametista que pertencera à avó de Dovid, Chavala achou que tinha mais necessidade de uma máquina. Suas irmãs deviam vestir-se decentemente.

 

— Eu tenho o dinheiro, Dovid.

 

— Como foi que conseguiu o dinheiro?

 

— Do meu dote — respondeu ela, e, não querendo agravar a discussão, aconchegou-se aos braços de Dovid, sussurrando: — Temos estado tão sérios, Dovid. Há tanto tempo você não faz amor comigo. Será que você ainda sabe fazer?

 

— Ainda sei — sussurrou ele, colocando os lábios sobre os dela.

 

E felizmente não houve mais conversa aquela noite.

 

Dovid comprou uma velha máquina de costura de um alfaiate árabe, em Jerusalém, o que animou Chavala consideravelmente. No mercado, ela comprou fazenda e pôs-se a fazer saias e blusas de camponesa, como as que eram usadas na sua aldeia natal. Fez uma muito bonita para Sheine. Ao admirar o trabalho feito, teve um pensamento repentino. por que não montava uma barraca para vender roupa?... Só de pensar nisso, sentiu-se entusiasmada, e ainda mais quando imaginou Dovid dividindo a barraca com ela. Ali estavam eles, ambos fortes, cada um com uma ocupação, e Dovid parecia vagar sem rumo. Santo Deus! Por que não havia pensado nisso antes? Ela mal podia esperar que Dovid voltasse para casa.

 

Quando ele chegou, houve uma troca de palavras ásperas entre eles, pela primeira vez desde seu casamento.

 

— Eu não vim para Eretz Yisroel para ser sapateiro de gueto. Chavala parou de pedalar a máquina e olhou para onde Dovid estava sentado, numa velha cadeira.

 

— Você não vai ser sapateiro? O que vai ser, então? Médico? Ele ignorou o sarcasmo.

 

— Chavala, nós dois sabemos que não foi para isso que viemos para Eretz Yisroel.

 

— Pensei que tivéssemos vindo para cá a fim de escapar dos pogroms.

 

— E foi por isso mesmo. Mas nossas vidas devem ter um significado mais profundo. Sobreviver não basta.

 

— Não ser morta tem bastante significado para mim. Pelo menos os turcos não nos massacram.

 

— Chavala, vamos deixar esta discussão. Nós não fugimos para nos acomodar num gueto. Veja como estamos vivendo.

 

Essas palavras lhe deram esperança, fazendo seu pulso bater mais rápido. Talvez Dovid estivesse desiludido com Eretz Yisroel, afinal.

 

— Então não era isso o que você esperava?

 

— Exatamente. Não vim aqui para orar junto ao Muro das Lamentações. Você sabe o que quero.

 

Claro. Por um momento, ela pensara que ele tivesse mudado de idéia; que escolheria a América, como ela. Ela sabia o que ele queria. Viver no deserto, em algum kibutz abandonado por Deus; mas, se ela cedesse, poderia desistir de algum dia sair da Palestina. Ela se oporia a ele quando chegasse o momento certo. Ela também tinha algo a realizar. seu sonho de ir para a América.

 

— Não vejo nada de errado na maneira como vivemos. Se você quisesse ganhar a vida trabalhando, poderia.

 

— Eu sei. Poderia ser sapateiro. Mas não quero, Chavala...

 

Nem mesmo por você. O que eu quero é ajudar a construir uma terra...

 

— Na América, você não precisaria construir uma terra. Ela já está construída.

 

— Mas a América não é nosso país; este aqui é.

 

— É? Desculpe, mas este país pertence aos turcos e beduínos. à ruína, à podridão e à pestilência. Por favor, Dovid. Deixe os Amantes de Sião com suas fantasias. Receio que os judeus nunca terão um país. Nós sempre seremos os intrusos, implorando ao mundo que nos deixe sobreviver. Somente na América, Dovid, é que você e eu podemos ser realmente livres.

 

— Não. Este país pertence a nós por direito; e um dia, Chavala, nós o teremos.

 

— Você ainda está vivendo lá no porão do reb Kaufman, escutando aquele grande sábio, o bilu que veio da Palestina para salvar-nos. Para construir um país. Mas como se pode construir um país quando nem sequer se pode comprar terra?

 

— Legalmente, como indivíduos, não. Mas, apesar de tudo, ainda se compra terra e se estabelecem colônias.

 

Chavala amava tanto o marido que achava quase impossível contestá-lo. Mas por que era sempre ela que tinha de ceder?

 

— E meu pai? — perguntou ela. — Você sabe que ele nunca deixaria Jerusalém.

 

— Já pensei nisso. Sheine já tem idade suficiente para cuidar dele. Não é que eu não goste dele, Chavala; eu gosto. Mas você e eu temos nossa vida para viver.

 

— E o resto da família? Já pensou neles também?

 

— Já. Quem quiser poderá vir. Cabe a eles escolher. Mas você, a pequena Chia e eu partiremos.

 

— Eu não disse que partiria.

 

— Estou lhe pedindo, Chavala. Se quisermos encontrar uma vida, não será aqui em Jerusalém.

 

Mas tudo o que ela pôde dizer foi que pensaria no assunto.

 

Nessa noite, eles dormiram de costas um para o outro.

 

Na manhã seguinte, enquanto observava Dovid sair aborrecido, Chavala lembrou-se de outro dia, um dia que parecia tão distante... o dia de seu casamento. Mas pelo menos isso servia para lembrá-la de que Dovid Landau não era um homem que se deixava enganar. Apesar de toda a sua bondade e de seu amor, ele esperava que a mulher o amasse o suficiente para acompanhá-lo. Ela era sua mulher; e, desde os dias de Rute, a mulher acompanhava o marido aonde ele fosse. Ele não disse quando voltaria, e seu coração batia rapidamente, enquanto ela tentava conter as lágrimas.

 

Dovid tinha viajado até as colinas de Metullah, evitando os beduínos saqueadores, levado pela esperança de encontrar terra onde se estabelecer. Mas essa esperança logo foi desfeita, quando descobriu que na colônia do barão de Rothschild só se empregavam árabes. Nem um judeu sequer trabalhava a terra. era mais barato contratar feias. Os únicos judeus que havia ali eram administradores e supervisores, que tinham sido trazidos da França, como acontecia também com os agricultores que ensinavam os árabes a cultivar a terra.

 

Sentia-se ludibriado, enganado pelos Amantes de Sião, que haviam enchido sua cabeça e a de muitos outros com visões de uma utopia judaica.

 

Furioso, frustrado, partiu de volta a Jerusalém.

 

Em Mea Shearim, Dovid encontrou emprego como cortador de pedras, trabalhando com seu cunhado Moishe. Enquanto cortava pedras, ia pensando que pelo menos isso era melhor do que ser sapateiro. David ben Gurion lhe havia dito naquela noite: ”Sou construtor, um construtor de sonhos”. Ali, cortando pedra, pelo menos de certo modo estava ajudando a reconstruir a terra. Essa pedra iria para novas habitações, para a construção de um país.

 

Quando voltou para casa naquela noite, sua decepção por não poder trabalhar nos campos era tão grande que ele nada disse sobre o trabalho para o iemenita em Mea Shearim.

 

Chavala, porém, dificilmente deixaria de perceber suas mãos arranhadas e calosas. Mas já que Dovid nada lhe dissera, ela não perguntaria por que ele estivera ausente, ou onde tinha estado. Nem sequer lhe diria que tinha sentido sua falta. Santo Deus, como havia sentido sua falta.

 

Aquela noite era apenas um prelúdio para a semana que se iniciava. Todo dia de manhã ele partia para Mea Shearim, e voltava calado, retraído.

 

Uma semana depois, Chavala não agüentava mais aquilo. Naquela noite, aproximou-se do marido e esperou que ele se voltasse para ela. Ele simplesmente permaneceu quieto, rígido, de costas para a mulher.

 

Chavala levantou-se e começou a andar de um lado para outro do quarto. Sua raiva tinha-se transformado em mágoa, e a mágoa finalmente virará culpa. Ele era seu marido, e depois de certo tempo não importava mais quem estava certo e quem estava errado.

 

— Dovid, quanto tempo vai durar isso? — perguntou, mas não houve resposta. — Dovid, por favor, fale comigo.

 

Ele voltou-se e olhou para ela.

 

— Não sei como resolver este problema. Não sei. Novamente o silêncio.

 

— Dovid, tem que haver uma solução. Vamos tentar encontrá-la.

 

— Você acha que pode suportar a verdade?

 

— Qual é a verdade, Dovid?

 

— É que você é minha mulher e seu lugar é ao meu lado. Você sabe por que vim. Minhas razões são as mesmas.

 

— Mas e a família? Como posso deixá-la?

 

— Que diabo! Eu os amo também. mas será que não temos direito a nossa vida? Talvez tenha sido bobagem, mas eu honestamente acreditava que, quando seu pai estivesse acomodado, nós estaríamos livres para deixar Jerusalém. Fui até bobo o bastante para acreditar que, depois de tudo o que passamos na Rússia, você também veria que nossa única esperança de sobrevivência seria uma Eretz Yisroel restaurada. Eu me enganei. Não a estou culpando. Você simplesmente não sente o que eu sinto.

 

— E eu lamento muito isso, Dovid. Lamento realmente. Então, o que faremos?

 

— Chavala, por mais que eu ame você e a família, não posso ficar aqui, apodrecendo. desistir de minha ilusão. Quando duas pessoas não podem partilhar das mesmas necessidades e esperanças. bem, eu acho que você deve fazer o que achar melhor. Nãovou mendigar mais. A decisão é sua, mas uma coisa eu lhe digo: tenho que sair daqui, do contrário, eu simplesmente deixarei de existir.

 

Essas palavras atingiram Chavala como uma faca. Se ela não acompanhasse Dovid, ela o perderia; e, se o acompanhasse, poderia perder a família, especialmente o pai. Tentou analisar as coisas. No fundo, sabia a solução. Seu lugar era ao lado do marido.

 

— Está bem, Dovid. Você já decidiu para onde quer ir?

 

— Já. Para a Galiléia.

 

Ela nunca tinha ouvido falar desse lugar.

 

— É muito longe?

 

— De Jerusalém, sim.

 

— Não seria possível encontrar uma colônia mais perto de Jerusalém, onde você pudesse sentir-se feliz?

 

— Eu gostaria que você tivesse dito nós, ao invés de não faz mal. A maioria das colônias está fracassando, Chavala; mas pelo menos há esperança na Galiléia.

 

Ele passou a explicar que, recentemente, um agrônomo de fama mundial chamado Aaron Aaronson tinha descoberto uma variedade de trigo. Por recomendação sua, um efêndi árabe que vivia luxuosamente em Beirute havia mandado comprar um pedaço de terra. A descoberta poderia transformar a Galiléia na área agrícola mais produtiva de Eretz Yisroel. Fora feito contato com cinco judeus americanos ricos. Sua lealdade ao renascimento da Palestina era tão profunda e sólida como a daqueles que haviam habitado a terra durante séculos. Eles também tinham fugido, em outros tempos, dos guetos da Rússia e da Polônia. Foi fácil persuadi-los. O dinheiro foi enviado para a Agência da Colônia Sionista, em Jaffa, e cinco mil dunams de terra pertenciam-lhes agora.

 

Quando o efêndi transferiu a propriedade, ele examinou os documentos e achou que os judeus tinham sido bobos, como sempre. Haviam comprado um pedaço de terra pantanosa e infestada de malária, que nunca poderia ser aproveitada. Na verdade, era um lugar onde nem as aves de rapina jamais se aventuravam a ir. Mas os judeus eram filhos da terra, e ele havia se livrado daquele flagelo inabitável, daquele câncer abominável na terra, vendendo-o para o mais inferior dos parasitas humanos.

 

Vinte e cinco homens, uma mulher solteira e quatro casais com filhos pequenos aceitaram o desafio. Essa colônia seria organizada por judeus para judeus. E quando valorizassem a terra, como estavam decididos a fazer, seria graças ao suor e ao trabalho de suas mãos. Não deveriam nada a ninguém. Não haveria administrador estrangeiro nem barão. Seria uma comuna baseada na igualdade social, na justiça democrática. Seriam juizes de si mesmos. O casamento e o divórcio, a instrução e a criação de filhos seriam realizados com o consentimento de todos. E assim esse pequeno grupo de gente dispôs-se a provar ao mundo que eles eram mais do que sonhadores idealistas.

 

Era uma história comovente, mas Chavala ainda estava extremamente infeliz com a escolha que havia feito. Como resolver a situação do pai? Mas concluiu, finalmente, que seu lugar era ao lado de Dovid. A discussão estava acabada.

 

— Resolvi ir; mas como vamos dizer isso a papai?

 

— Ele confia em você, Chavala. Se você pudesse convencê-lo a ir conosco.

 

— Ah, Dovid, você sabe que ele nunca faria isso. Para ele Eretz Yisroel significa Jerusalém.

 

Dovid sabia que Chavala tinha razão.

 

— Faremos o que pudermos. Chavala, eu tentarei fazê-la feliz. Eu a amo muito...

 

Ela pôs a cabeça em seu ombro.

 

— Eu também amo você, Dovid. muito mais do que você possa imaginar, principalmente se levarmos em conta a maneira como eu ajo às vezes — concluiu ela, com um sorriso.

 

Na noite seguinte, após a ceia, com a família ainda reunida em torno da mesa, Chavala sentia-se quase sem coragem de explicar as razões pelas quais tinham de partir. E Dovid sentiu-se agradecido e culpado ao mesmo tempo.

 

— Por favor, papai, eu lhe suplico que venha conosco.

 

As mãos de Avrum tremiam levemente, quando ele abraçou seus livros sagrados.

 

— Nunca. — disse o ancião, sentado com a cabeça inclinada; depois olhou para Dovid. — E você, que eu considerei um filho, me abandona. deu ouvidos aos falsos profetas... Eu conheço os seus sionistas, e a eles eu posso. Eu vim para este lugar porque está escrito que da semente de Abraão.

 

Dovid não quis ouvir o resto da citação.

 

Moishe relembrou os dias em que, pela primeira vez, ouvira falar dos Amantes de Sião, e sabia que seus sentimentos eram iguais aos de Dovid. Ele também não devia curvar-se à vontade do pai. Seu pai era um velho que tinha tomado a decisão férrea de terminar seus dias como achava que devia. Bem, Moishe faria a mesma coisa que Dovid.

 

— Papai, por favor, tente lembrar que eu amo você, mas devo ir com Dovid e Chavala.

 

O ancião balançou a cabeça lentamente. Esse era um mundo novo em que não tinha mais importância mostrar honra e respeito por um pai. Ele estava perdendo seus filhos.

 

Como que lendo seus pensamentos, Moishe disse:

 

— Papai, se você ama Eretz Yisroel como diz, deve ver o quanto isso é importante para nós. Em outros tempos, fomos uma grande nação, e devemos ser uma grande nação novamente. Cabe a nós, papai, fazer o mundo conhecer a grandeza de nosso povo.

 

O ancião não estava escutando. Ao que parecia, todos os seus filhos tinham sido encantados pelo Diabo.

 

— E você, Dvora, que diz?

 

— Por favor, papai, perdoe-me, mas eu quero ir com os outros — respondeu ela, abraçando o pai, com lágrimas nos olhos.

 

Ele se soltou suavemente.

 

— É melhor você pedir a Deus que lhe perdoe. E você Sheine, vai também?

 

— Não. Eu nunca deixarei você. Eles podem ir, nós podemos passar sem eles. Parece que não precisam de nós nem nos querem.

 

— Que absurdo, Sheine — disse Chavala.

 

— Eu acho que o que vocês estão fazendo é vergonhoso. abandonando o pai. As famílias não se separam. Mas não se preocupe, Chavala. Não vamos morrer, só porque você e Dovid vão embora. Talvez a vida aqui seja difícil demais para vocês. Sabe, Chavala, você acha que, se não fossem vocês, o mundo inteiro viria abaixo..

 

A fúria de Chavala inflamou-se, e ela chegou a esbofetear a irmã; mas logo passou, enquanto ela tomava a irmã nos braços, tentando consolá-la com beijos.

 

— Perdão. Este é um momento de muita emoção, Sheine. Sheine afastou-se de Chavala e levantou-se.

 

— Bem, eu acho que você vai se recuperar, afinal, Chavala. Você deve ir para onde seu marido for. Agora, acho que os outros devem tomar uma decisão. E você Raizel?

 

Para Raizel, aquilo era como cortá-la em duas. Uma parte queria ficar com o pai, a outra queria ir com Chavala. Ela também desejava muito ter flores, campos verdes e ovelhas. Gostava muito dos quadros de pastores com seus rebanhos, e odiava aqueles becos de pedras, estreitos e cheios de gente, onde as crianças tinham que brincar. Não havia sol ali, e ela queria ver céu azul. Eles raramente saíam dos limites do lugar onde viviam. A única vez que Raizel vira algo de belo fora quando ficou em cima de uma cadeira e olhou para o monte das Oliveiras. E agora, ser separada de Chavala. Afinal de contas, Chavala é que praticamente a tinha criado. Entretanto, ela amava o pai também. E, vendo-o naquela aflição, ela o abraçou e disse:

 

— Eu fico.

 

Nenhum deles dormiu naquela noite. Na manhã seguinte, Dovid foi até a carroça. A mula que devia transportá-los parecia doente, mas Dovid não podia queixar-se, uma vez que ela lhe havia sido emprestada pelo judeu sefardita de Mea Shearim, que não era mais seu patrão. Já era muito que o homem tivesse confiado na devolução do animal.

 

Visto que não havia bagagem a transportar, com exceção de roupas e pertences de cama, a carroça era suficiente para eles. Dovid amarrou a máquina de costura na lateral da carroça, e a cabra atrás, pensando se não seria melhor inverter a posição dos animais, pois a cabra parecia mais forte que a mula.

 

Chavala, acotovelando-se com Moishe, observava Dovid, enquanto este segurava as rédeas de pé, com o rosto iluminado de esperança. Sentiu uma dor no coração, ao se lembrar das lágrimas que haviam corrido pelo rosto do pai. Como ele parecia velho e patético, ali em pé, com Sheine de um lado e Raizel do outro, observando-os desaparecerem da cidade! E Sheine, apesar de toda a sua resistência, acabara cedendo e abraçara Dovid soluçando. A pobre Sheine, que sempre tinha medo de mostrar seus verdadeiros sentimentos, que sempre resistia aos temores de deixar alguém saber das mágoas por ela sofridas. Naturalmente ela se apegara a Dovid. Ele era como um irmão, alguém com quem ela havia compartilhado sua infância preciosa, embora breve demais, como acontecera com os outros; mas agora ele era também seu protetor, tinha-se tornado sua força, ela devia estar se sentindo muito abandonada.

 

E quanto a ela?... Bem, ela amava Dovid, mas também estava contrariada com ele nesse momento, porque achava que ele os estava mandando para o exílio, e acaso os judeus já não estavam fartos disso? Pelo menos quando viviam como uma família unida, a vida parecia suportável, mas agora.

 

Os quatro dias seguintes quase esgotaram a capacidade de resistência de Chavala.

Pernoitavam nas aldeias, ao longo do caminho. Após uma refeição de sopa de cevada rala com pão e uma xícara de chá de trigo, Chavala se sentia muito feliz em ir para a tenda com a pequena Chia. Parecia que a única alegria que ela experimentava vinha do bebê. Tinha ficado tão bela que Chavala mal podia acreditar que aquela bonequinha encolhida já estivesse completando dez meses. Ao invés de as dificuldades a tornarem irritadiça, pareciam animá-la. Era quase como se ela compreendesse todas as razões pelas quais devia cooperar.

 

Chavala adormecia com a criança agasalhada no colo. Dovid, por outro lado, ficava acordado até tarde discutindo, debatendo e conversando com os chalutzim. A capacidade de resistência dessa gente era inacreditável. Trabalhavam nos campos desde manhãzinha e, quando o sol esquentava demais, abrigavam-se no único prédio construído na comuna, onde consertavam ferramentas, faziam cadeiras e mesas, para que, quando chegasse a época e eles tivessem moradia, estivessem preparados.

 

Chavala nunca sabia a que horas Dovid iria deitar-se ao seu lado na cama improvisada; mas sabia muito bem que, às quatro e meia da madrugada, já estaria de pé, com os chaverim, fazendo o costumeiro desjejum de pepino, tomate, pão preto e chá.

 

Nessa manhã, a refeição foi especial. Os chalutzim só comiam ovo uma vez por semana, e os Landaus foram afortunados o bastante para estar presentes nesse dia. Depois, entre alegres despedidas, puseram-se novamente a caminho, aproximando-se cada vez mais do seu destino. As esperanças da manhã, que havia começado com as delícias de um ovo, acabaram quando a mula parou, deitou-se no chão e morreu. Dovid não se surpreendeu; na verdade, ele se considerava feliz por ter o animal resistido até ali. Chavala não apenas ficou descontente com o estoicismo ou fatalismo?. de Dovid, mas também estava preocupada com a pequena Chia, por causa do calor brutal proveniente do sol abrasador. Chia estava com erupções na pele, da cabeça aos pés, devido ao calor. Irritada e como que para mostrar sua irritação, Chavala perguntou ao marido, em iídiche, sabendo que ia constrangê-lo:

 

— Diga-me, reb Landau, como é que você pretende levar-nos a essa medína dourada?

 

— Chavala você não deve preocupar-se. Deixe isso comigo - respondeu ele, em hebraico, propositadamente. — Eu lhe garanto que chegaremos lá.

 

— Disso não tenho dúvida; mas eu me pergunto como.

 

— Isso, minha querida, não é problema. Moishe, você pega uma trave da carroça e eu pego a outra.

 

— Quer dizer que vocês vão substituir a mula? Vão puxar...

 

— Moishe, venha ajudar a tirar as rédeas da mula.

 

Santo Deus, desse jeito nós só vamos chegar lá no próximo Chanukah, pensou Chavala.

 

O cálculo de Chavala estava um pouco exagerado. Após um dia exaustivo, ao cair da tarde, Dovid interrompeu a marcha e tirou Chavala da carroça. Tomando-a nos braços, beijou-a, enquanto o suor descia pelo seu corpo.

 

— Veja, Chavala, lá embaixo, o nosso mar da Galiléia. Já viu uma coisa mais linda? — disse ele, e depois chamou: — Venham aqui, Dvora, Moishe, quero que vocês recordem este momento para o resto da vida.

 

A vista era realmente magnífica. O sol se refletia dourado nas ondulações suaves do mar. No ar, pairava um nevoeiro diáfano. A água parecia tão tranqüila, tão bela, brilhando, esperando, convidando.

 

A descida era tão íngreme e as estradas tão estreitas que Dovid teve medo de que a carroça virasse. Por isso, já que cabras eram animais que se adaptavam bem às montanhas, ele atrelou a cabra de Chavala à carroça. Desamarrando a máquina de costura e deixando-a na estrada, Moishe foi conduzindo o animal montanha abaixo. Dovid ajudou Chavala, que levava o bebê no braço esquerdo. Dvora seguia atrás. Cansados, mas gratificados por terem chegado, ficaram parados por um momento, recuperando as forças.

 

Mas quando Chavala olhou em torno, a realidade substituiu a ilusão. A magnífica bruma que pairava sobre a Galiléia, vista de cima, era agora quase grotesca. O que eles tinham visto era um nevoeiro que se erguia acima dos pântanos. As colinas, descobertas e desagregadas, pareciam estar chorando. Os campos eram juncados de pedras até onde a vista alcançava; a terra era estéril, graças a mil anos de violação, durante os quais estivera em mãos de invasores que a tinham devastado e abandonado.

 

Chavala não imaginava quais eram as reações de Dovid. Se eram iguais às suas, ele as escondia muito bem. Bem demais, até... Chavala o seguiu, até que finalmente chegaram à colônia... Consistia em um frágil prédio erigido à margem do pântano e em algumas tendas.

 

Entretanto, foram bem recebidos, e foi-lhes destinada uma tenda.

 

Naquela noite, Chavala ficou acordada tentando, desesperadamente justificar a decisão de Dovid de levá-los para aquele lugar esquecido, não escolhido... por Deus... Lembrando-se do pai, sentiu-se culpada por tê-lo deixado, e isso era um tormento para ela. Ela e Sheine tinham-se despedido sem expressões de amor; e a pobre Raizel estava perdendo toda a sua infância. Adormeceu de cansaço, com o rosto ainda molhado de lágrimas.

 

Na manhã seguinte, Moishe e Dovid partiram para o trabalho, em companhia dos outros chaverim E nos dias que se seguiram, trabalharam de sol a sol, tentando ganhar terra dos pântanos. Centenas de eucaliptos australianos chegaram, através da América, para serem plantados ali, a fim de secarem as águas estagnadas. Pouco a pouco, cavavam-se valas de drenagem. O trabalho era quase sobre-humano. Trabalhavam metidos na lama até a cintura, debaixo do terrível calor do verão e do frio abominável do inverno. As pedras tinham de ser arrastadas por parelhas de jumentos. As moitas eram cortadas e queimadas. O alimento era pouco. Tudo o que possuíam era o que levavam às costas, e a força de trabalho era sempre escassa, com muita gente acometida de malária...

 

Entre eles, Dovid; estava de cama, tendo convulsões. Seu estado era tão grave que Chavala chegou a duvidar de sua recuperação. Dia e noite, ela ficava a seu lado, ministrando-lhe quinino, enxugando-lhe o corpo e dando graças a Deus por ter Dvora para tomar conta da pequena Chia, e por Moishe já se ter recuperado da terrível doença. Fraco como estava, Moishe voltou ao trabalho, embora ela insistisse em que ele descansasse por mais alguns dias. Ele encolheu os ombros e disse:

 

— Quando tivermos um verdadeiro kibutz, eu me lembrarei do que custou.

 

Chavala olhou para ele, engolindo em seco. Percebia que Moishe estava orgulhoso por ser parte da terra agora, e fazia de sua doença um estímulo.

 

Finalmente, Dovid recuperou-se, e sua atitude foi semelhante à de Moishe... voltou para os pântanos, logo que pôde levantar-se.

 

Enquanto o trabalho se desenrolava nos campos, foram construídos três galpões de tábuas. Um era o refeitório comunal, que servia também de lugar de reunião; o outro, o depósito de ferramentas e celeiro; e o terceiro, o alojamento. Embora houvesse finos tabiques para separar os casais, para que tivessem um pouco de privacidade, todos dormiam debaixo do mesmo teto e usavam banheiros comuns.

 

No dia em que foram concluídos os galpões, comemoraram com uma festa, pois estavam muito necessitados disso.

 

Havia poucas coisas, mas mesmo assim eles se divertiram. De noite fizeram uma fogueira e dançaram a hora até de madrugada. Na verdade eles se regozijavam. O prazer de Chavala era, como sempre, temperado pelo seu desejo de ter uma família; mas quando confidenciou isso às outras mulheres, elas quase riram de seu sentimentalismo. Diziam que o problema de Chavala era viver demasiadamente no passado. Ela realmente não tinha escapado ao shtetl... seu problema não era seu anseio e amor pelo velho lugar, mas sim seu sentimento de culpa.

 

— Acorde para o dia de hoje — disse uma delas. — Fomos condicionados por obrigações de família; isso se tornou uma doença judaica. Enquanto você tiver o gueto em sua mente, não haverá esperança de se realizar em Eretz Yisroel.

 

Não. Chavala não achava consolo nelas. Na verdade, ela se sentia alienada dessas mulheres, que pareciam deleitar-se com o pensamento de que, finalmente, tinham alcançado os mesmos direitos dos homens, trabalhando lado a lado com eles nos campos; arando a terra, drenando os pântanos, removendo as pedras e recusando-se a ser tratadas como mulheres. Sônia Chernik vivia abertamente com Yudel Leibowitz, sem se envergonhar. Chavala achava difícil aceitar essas coisas. As tradições eram rejeitadas, postas de lado...

 

Quando terminaram de desmontar as tendas e mudaram-se para os alojamentos, realizaram uma reunião. Leah Abramowitz e o marido entraram no salão de reuniões e sentaram-se ao lado das outras quatro mulheres casadas. Quando começou a reunião, Leah, que fora nomeada líder das mulheres, pôs-se diante da assembléia vestida com as calças de trabalho do marido.

 

— Nós, as mulheres desta comunidade, queremos expressar nossa discordância. Visto que fazemos trabalho de homens, esperamos que vocês, homens, partilhem do trabalho que temos de fazer só por sermos mulheres.

 

— O que vocês não querem aceitar? — perguntou Yudel Leibowitz, o chefe do comitê.

 

— Toda a responsabilidade pelos trabalhos de cozinha, manutenção da casa e criação dos filhos.

 

Houve mais que um murmúrio de discordância entre os homens solteiros.

 

Sônia Chernik, a segunda pessoa na direção dos trabalhos, impôs a ordem:

 

— Esta reunião será realizada com decência. Qualquer pessoa que queira debater terá sua oportunidade. Mas a camarada Leah será ouvida.

 

Sabendo que Sônia seria solidária à sua petição, Leah fez um sinal de assentimento com a cabeça e começou seu discurso.

 

— A partir de hoje, insisto em que haja revezamento no trabalho.

 

Os homens devem assumir a responsabilidade da cozinha pelo mesmo período de tempo que as mulheres, cozinhando e cuidando das crianças, uma vez que esta é a responsabilidade de toda a comunidade, e não somente nossa por sermos mulheres e esposas. Do fundo do salão, um chalutz furioso falou:

 

— Você se esqueceu de dizer uma coisa, camarada Leah; nós teremos que dar à luz também?

 

Assobios e expressões de zombaria ecoaram no salão. Mas a ordem foi restaurada num instante.

 

— Esta é uma reunião democrática — disse Yudel. — Vocês ouviram dizer que cada um terá oportunidade de se expressar. Agora peço silêncio.

 

Correu o olhar pelo auditório e pediu a Leah que concluísse.

 

— Eu gostaria muito de concluir — disse ela —, mas, antes, tenho uma resposta à pergunta do camarada Shmuel. Sim. Vocês também poderão dar à luz quando forem iguais às mulheres e puderem suportar a dor.

 

Três mulheres casadas aplaudiram. Leah fez um sinal de agradecimento.

 

— Agora, peço que se realize a votação.

 

Os doze membros do comitê apanharam as cédulas e escreveram seus nomes. Depois, Sônia os leu em voz alta.

 

— Oito contra. Quatro a favor. Agora é a vez do auditório, visto que não houve unanimidade no comitê. Querem ter a bondade de levantar as mãos?

 

Dos catorze membros, Dovid votou com os nove chalutzim restantes.

 

Leah levantou-se rapidamente e soltou uma verdadeira descarga de palavras.

 

— Não aceitamos isso! Faremos valer nossos direitos...

 

— E quais são esses direitos? — perguntou Sônia, carrancuda.

 

— A greve! Saibam que, nesta comuna, não há servos. O silêncio reinou no recinto.

 

Chavala olhou para Dovid. Visto que ele era contra a proposta, e já que o comitê dissera que era permitido o debate, ela levantou a mão.

 

Yudel deu-lhe a palavra:

 

— Você tem três minutos.

 

Não era justo. Leah tinha falado durante dez minutos.

 

— Eu não quero trabalhar nos campos. Mas assumirei a responsabilidade da cozinha. com a ajuda de minha irmã, Dvora, tomaremos conta das crianças também.

 

Chavala não percebia bem que, com estas palavras, ela havia perdido o apoio das outras mulheres. Sônia ficou tão furiosa que se esqueceu de sua posição imparcial de vice-presidente.

 

— Você, Chavala, não soube cooperar desde que chegou. Não passa de uma judia de gueto... com a mentalidade de uma judia de gueto, e acho que é isso o que você sempre vai ser.

 

Chavala replicou à altura.

 

— E você só é democrática enquanto ninguém discorda de você. Eu tenho tanto direito aos meus sentimentos quanto você aos seus...

 

Yudel restaurou a ordem, dizendo:

 

— Você pode se sentar.

 

— E a votação de minha petição?

 

— Sente-se.

 

Os homens solteiros assobiaram e aplaudiram Chavala. Uma mulher era uma mulher, e o lugar da mulher era na cozinha, mesmo que trabalhasse nos campos. Ainda não eram capazes de fazer o trabalho de um homem; era ridículo pensar de outra maneira. Que tipo de homem saberia cuidar de uma casa, e quanto mais de crianças?

 

Dovid falou em defesa de sua mulher.

 

— Creio que a reunião de hoje foi unilateral e cheia de preconceitos. Um membro da comunidade fez uma ofensa pessoal que nada tem a ver com a petição. Os membros femininos, todos eles, têm direito à petição, mas foi feita uma votação e a petição foi recusada...

 

Leah se levantou imediatamente, balançando o punho para Dovid.

 

— A partir deste momento, camaradas, estou em greve.

 

E todas as quatro mulheres saíram, em companhia de Sônia.

 

Dvora olhou para Chavala. Sim, ela amava a irmã de todo o coração; mas isso era diferente, não tinha nada a ver com lealdade e amor; tinha a ver com... bem... o que era justo. Ela sabia que Chavala não era uma judia de gueto, mas sabia também que Chavala tinha tentado seguir o exemplo da mãe. Ela queria ser como a mãe e levar avante um lar tradicional; mas aqui ela simplesmente não podia fazer isso. Dvora teve que admitir que ela própria não era inteiramente como Chavala. Seus sentimentos eram muito semelhantes aos das outras mulheres. Ela queria trabalhar nos campos e não ficar confinada numa cozinha. Queria a liberdade de que os homens tinham o privilégio, como Moishe. Teve vontade de sair com as outras, achando que a greve era justificada, e diria isso a Chavala...

 

Após passar uma semana cozinhando para a comunidade inteira, mesmo com a ajuda relutante de Dvora, Chavala não agüentou, o que não era de surpreender. Deitada na cama, com Dovid segurando sua mão, ela olhou para ele e disse:

 

— Acho que meu espírito foi mais forte do que meu corpo. Achei que conseguiria fazer isso, Dovid... sinceramente.

 

— Eu sei. E amo você porque se esforçou muito; mas como você conseguiria fazer o trabalho de cinco mulheres? Agora, eu faço questão de que você descanse.

 

Sem Chavala, e com as outras mulheres em greve, os homens compreenderam que sua causa estava perdida. Se quisessem comer, teriam que aprender a cozinhar.

 

— Então? Isso só prova que os homens são o sexo frágil — disse Leah às mulheres vitoriosas, rindo. — Nós realmente só precisamos deles se quisermos ter filhos. Fora isso... eles não sabem sequer preparar um ovo mexido. Nós não apenas sabemos fazer ovos mexidos, mas também podemos perpetuar a raça, sabemos limpar os campos, etc., etc.

 

Os homens cederam. Não tinham alternativa a não ser morrer de fome. Chavala, porém, ainda se ressentia de que suas vidas quase pertencessem à comunidade... Sentia muita falta de um lar próprio; recordava muito bem aquele primeiro seder que ela e as irmãs haviam preparado, após a morte da mãe. Apesar de ter que ser contra as outras, sentiu-se como uma mulher, e para ela uma mulher era uma coisa muito especial. Sim, admitiu que sentia falta daquela pequena choupana. Viverem juntos naqueles aposentos comunais apertados era asfixiante. Tudo era posto diante do corpo dirigente. Até a roupa que usavam pertencia à comunidade. Agora, até Dvora tinha se afastado de Chavala, trabalhando nos campos com as outras mulheres. Ela se sentia mais solitária do que nunca. Não tinha ninguém com quem conversar, nem mesmo Dovid, porque ela não queria aumentar os fardos da vida dele.

 

No outono daquele ano, Sônia anunciou que ia ter um filho; sem mais rodeios, seu casamento foi sancionado por consentimento comum do comitê. Foi apresentada uma petição. Visto que o filho de Sônia seria o primeiro nascido na comunidade, ela decidiu que havia um modo mais vantajoso de acomodar os pais que trabalhavam... O plano não visava a ignorar as necessidades das crianças, mas sim a dar-lhes um maior senso de segurança, porque toda a comunidade assumiria a responsabilidade por seu bem-estar. Para crescerem seguros num país que vivia todos os dias à beira do perigo, era importante que fossem criadas independentemente de seus pais. Se essas crianças fossem privadas de uma família, seria menos difícil aceitar a perda. Foi sugerido que se construísse uma creche. Fez-se uma votação, e a maioria concordou.

 

Chavala ficou aturdida de incredulidade. Nunca teria acreditado que mães judias renunciassem à criação dos filhos. Ela havia perdido a mãe, e a dor fora grande; mas tinha sobrevivido. Na realidade, Chavala receava que Sônia tivesse feito essa proposta porque, para ela, ter um filho era um fardo. Ela não sabia se ia gostar dessa nova espécie de judeus...

 

Os temores de Chavala aumentavam à medida que ela via a creche ser construída. Quando a construção foi concluída, a pequena Chia, que já tinha um ano e meio, foi instalada em companhia das outras crianças. Chavala ficou fora de si. Na manhã seguinte, foi ver Chia, mas soube que, para a criança se adaptar àquele novo ambiente, os privilégios de visitas teriam de ser limitados a determinadas horas do dia. Chavala já estava farta. Apanhou a pequena Chia e saiu sem dizer uma palavra.

 

Leah e Sônia trocaram um olhar.

 

— Você tem razão, Sônia — disse Leah. — Ela tem a mentalidade de uma judia de gueto. Obviamente isso será levado ao conhecimento do comitê.

 

Sônia assentiu.

 

— Desde o começo, ela foi um problema... uma inadaptada... Dovid encontrou Chavala esperando em seu cubículo; e antes que ele pudesse abrir a boca, ela já estava falando e chorando ao mesmo tempo.

 

— Eu tentei, Dovid... realmente tentei, mas simplesmente não consigo continuar vivendo desse jeito. Não tenho ninguém aqui, nem mesmo você. É muito raro passarmos um momento juntos. Nossas vidas pertencem à comunidade. Sinto muito, mas nosso filho vai ser criado em um lar, nosso lar, com uma mãe e um pai...

 

— Nosso filho?... Há quanto tempo você sabe?

 

— Você não escutou o que eu disse, Dovid. Eu disse que me recuso a continuar assim...

 

— Eu ouvi. Mas faz quanto tempo que você sabe que está grávida?

 

— Há um mês...

 

Desde o começo de seu casamento ele se resignara à incapacidade de Chavala para conceber. Agora...

 

— Não tenho palavras para lhe dizer o que estou sentindo — disse ele, abraçando-a calorosamente, afagando-lhe os cabelos.

 

— Ah, Chavala, que posso dizer?

 

Ela se afastou e olhou diretamente para ele. Não tenha medo de falar, pensou ela.

 

— Você pode dizer que partiremos — respondeu ela. Dovid sabia que a razão estava com ela. Tinha sido egoísta, pensando somente no que ele queria. Como um avestruz, havia metido a cabeça na areia durante um ano. Mas não podia mais fazer isso. Ela era sua mulher; sem ela, não haveria nada...

 

— Partiremos, querida. Lembra-se da colônia onde ficamos?...

 

— Eu não quero viver numa colônia, Dovid. Não me adapto a esse tipo de vida. Sente-se, Dovid — pediu ela, sentando-se ao lado dele, na beira da cama. — Você quer ser agricultor, todos vocês querem ser agricultores; mas como conseguirão isso, se nenhum sabe usar um arado? Querido, você não distingue uma galinha de um galo. Tudo o que ouvi no ano passado foi que, quando a terra estiver limpa, o plantio começará. Nada parece ter sentido. Talvez eu deva até agradecer às mulheres por terem me ignorado... Aprendi muitas coisas com os chalutzitn, entre elas que seu ídolo Aaron Aaronson tem uma fazenda de treinamento em Athlit e que há uma aldeia chamada Zichron Yaakov. Lembro-me do dia em que Aaronson entrou na colônia, montado naquele garanhão branco. Ele é um grande homem, Dovid, e um grande professor... Você será mais do que um agricultor. com a ajuda dele, você poderia tornar-se... como é mesmo o nome?... um agrônomo. Tenha sonhos grandes, Dovid...

 

No dia seguinte, Dovid apresentou-se ao comitê e disse que ele e Chavala iam partir.

 

Sônia fez uma careta, pondo a mão na barriga. Ela continuava a trabalhar nos campos com o marido, embora estivesse esperando o filho nascer a qualquer momento. Mas Chavala era, naturalmente, uma camponesa com mentalidade de gueto. Ela devia ter ficado no sbtetl, a comunidade estaria livre dela. O fato de Dovid, Moishe e Dvora terem trabalhado tanto quanto os outros era irrelevante. Essa comuna só tinha lugar para aqueles que eram completamente dedicados.

 

Dovid saiu e olhou para a terra que ele ajudara a limpar. Tinha dado sua contribuição e sentia uma profunda tristeza ao imaginar que não estaria ali quando fosse feita a primeira colheita. Rapidamente, voltou, reuniu a família e partiu.

 

Chavala mal podia conter sua felicidade, enquanto o carro rumava lentamente de volta a Jerusalém. No último ano, não havia passado um só dia sem que ela sonhasse com esse momento.

 

Quando finalmente eles chegaram, ela praticamente subiu correndo o longo lanço de escada de pedra e abriu a porta com um forte empurrão. Ao ver o pai, não conseguiu reter as lágrimas. Abraçando apertado o corpo franzino, ficou surpresa com a mudança ocorrida nele... tinha envelhecido tanto! Recuando para olhar e sorrir para ele, viu que seu rosto estava sulcado de inúmeras rugas. As costas estavam mais curvadas, as mãos, ásperas devido à artrite.

 

— Você voltou para casa, Chavala... meus filhos voltaram para casa; minhas orações foram ouvidas...

 

Chavala engoliu em seco, sabendo que eles não tinham voltado somente por ele... mas por ela... e que, em breve, partiriam novamente...

 

Sheine olhava para Chavala com conhecimento de causa e não pôde deixar de sentir um certo prazer, ao perceber que a irmã tinha dolorosos sentimentos de culpa... Sabia que eles iriam para Zichron. Chavala tinha mencionado isso em uma carta que chegara há quatro dias.

 

— É verdade. Papai tem orado muito. Seja bem-vinda ao lar — disse, sorrindo. — E Dovid... você está preto como um árabe. Mas olhe para você, Moishe. Quando saiu era um menino; agora é um homem...

 

— Você é a única que não mudou, Sheine — disse Dvora, meio zangada. ”Está rancorosa como sempre. Você não nos perdoou por termos partido”, pensou ela, com vontade de gritar esse pensamento; mas conteve-se, por amor ao pai.

 

Raizel poderia ter dito a Dvora que ela estava enganada, que Sheine tinha mudado, de fato, mais que qualquer um deles... Por acaso, Raizel havia encontrado um diário de Sheine, e, embora ela soubesse que era errado invadir a intimidade dos outros, uma vez que começou, foi impossível parar. Páginas e páginas estavam cheias de seu amor e anseio por Dovid... Como ela sonhava com ele lhe fazendo amor de noite! Somente ela conhecia e entendia a causa da amargura de Sheine. Por isso, procurava agradar e até apaziguar sua pobre irmã atormentada. Não havia dúvida de que Sheine vinha sofrendo há muito, a seu modo, mais do que qualquer um deles.

 

A separação da semana seguinte foi ainda mais traumática do que a primeira. Avrum chorou inconsolavelmente. Abraçou os filhos com surpreendente vigor... vigor conferido pelo medo profundo... Será que ele ainda viveria o bastante para ver o neto? Somente Deus sabia disso ao certo. Pelo menos Avrum, em sua ignorância mortal, podia ter esperança.

 

                                             Capítulo cinco

Embora não fosse a América, pelo menos Zichron Yaakov era uma aldeia que Chavala podia entender. De fato, aqueles pioneiros tinham vindo de outra parte da Europa, mas a colônia parecia transplantada no shtetl que ela deixara em Odessa. Era um agrupamento de pequenas casas de pedra, cada uma com sua própria horta, a paisagem salpicada de palmeiras. Havia feira na praça e bancos onde as mulheres se sentavam para tagarelar. Os banhos rituais e a shul fizeram Chavala pensar que estivesse realmente em sua aldeia natal. Se tivesse visto esse lugar vinte e cinco anos antes, sua desilusão naturalmente teria sido igual à dos pioneiros.

 

Os fundadores originais de Zichron Yaakov, um punhado de comerciantes, tinham vindo em grupo da Romênia, em 1882, e, entre eles, os pais de Aaron Aaronson; este desempenharia um papel importante não apenas na vida da nação judaica mas também na vida de Dovid e Chavala. Conheciam pouco a Palestina. O que encontraram foi uma província asiática abandonada no vasto Império Otomano. Nada sabiam de agricultura ou colonização. Não conheciam sequer uma das línguas faladas na Palestina. Mas tinham vindo por amor à terra de Israel, por um desejo de reivindicar e enriquecer suas vidas e as vidas de seus filhos.

 

Quando o navio entrou no porto de Haifa, viram-se diante deste recém-emitido edito: ”Os imigrantes judeus estão proibidos de desembarcar no litoral da Síria e terminantemente proibidos de viver na Palestina. Esta proibição é definitiva; qualquer infração desta lei resultará em prisão, e os intrusos serão despojados de todo o dinheiro e dos bens pessoais”.

 

O sultão, desconfiado dos ”filantropos” europeus (especialmente os ingleses), que tentavam comprar grandes extensões de terra na Palestina, alegando destiná-las a colônias judaicas, achava que as potências européias estavam simplesmente usando os judeus como testas-de-ferro para tomar pé na Palestina. Naturalmente, ele estava certo quanto a isso. Mas esse punhado de peregrinos judeus pouco sabia de tais jogos políticos. Eles eram sinceros, decididos, e agora a porta da Palestina estava fechada para eles. Ficaram parados no convés, calados e aturdidos. Parecia não haver outra coisa a fazer senão voltar para a Romênia.

 

Mas Ephraim Aaronson pensava de outra maneira. Ele era um homem grande, e tinha um poder de decisão que combinava com o seu tamanho. ”Nós não viajamos tanto nem fizemos tanto sacrifício para voltar derrotados.” O governo turco, oficialmente, mantinha suas restrições; mas alguns, inclusive os Aaronsons e seus amigos, entraram na Palestina e, finalmente, chegaram a Zichron, um lugar que se achava mergulhado na doença e no esquecimento há séculos. Os únicos sinais de vida humana nas colinas eram umas dez cabanas ocupadas pelos feias árabes, que, sozinhos, cultivavam somente o necessário para a subsistência.

 

No começo, os judeus, como os árabes, moravam em choupanas feitas de ramos e barro, cobertas de palha. Suas primeiras casas de pedra permanentes tiveram que ser construídas furtivamente, com a ajuda de discretos subornos, visto que era contra a lei otomana que indivíduos não considerados cidadãos construíssem casas. Mas isso era apenas o início de seus problemas.

 

A terra comprada para eles era rochosa e árida, impossível de cultivar, e a planície que se estendia entre o monte Carmelo e a costa não passava de pântanos, fonte de malária. As verbas prometidas pela Romênia desapareceram quando aqueles que pretendiam seguir souberam da hostilidade do governo turco. Os pioneiros de Zichron viram-se forçados a lutar sozinhos contra um governo corrupto e hostil.

 

Naquele primeiro ano, tiveram tudo contra eles. As restrições turcas obrigavam a subornos e mais subornos. Os poucos bens que ainda possuíam estavam quase esgotados. Não tinham mais nem as alianças de ouro. As rações de alimento tornaram-se mais restritas, e a pequena quantia de dinheiro que vinha da Romênia era insuficiente para saciar o enorme apetite por bakshish que os turcos demonstravam.

 

As magras safras perdiam-se, a malária exigia seu tributo, e, por mais convencido que Ephraim Aaronson estivesse de que a colônia algum dia seria autônoma, sabia que a única possibilidade de sobrevivência estava nas mãos do filantropo francês barão de Rothschild, cujas plantações já estavam estabelecidas na Palestina. No momento, era amargo engolir o orgulho, mas isso era melhor do que aceitar a morte certa.

 

Aaron Aaronson tinha seis anos quando os pais chegaram à Palestina. Zvi, Shmuel Alex e as duas meninas, Sarah e Rivka, haviam nascido em Zichron, que na época era colonizada por cem famílias.

 

Os Aaronsons eram considerados a família líder... na verdade, havia um mistério estranho em torno dessa família, apesar de sua simpatia. Seu estilo de vida era diferente de qualquer outro em Zichron. Eles viviam numa bela habitação de pedra de dois andares, com uma varanda em volta. Enormes palmeiras protegiam a casa do sol ardente. Nas janelas, havia cortinas de renda e persianas de madeira.

 

Em Zichron, Malka Aaronson criou uma cultura própria para sua enorme família. Num lugar de honra, havia um piano de cauda com que as duas filhas divertiam a família cantando os duetos que ela lhes havia ensinado. As estantes de livros continham volumes de Shakespeare, e a biblioteca especial de Aaron consistia nas edições mais antigas e mais recentes sobre agricultura, biologia, latim e botânica.

 

Os Aaronsons cresciam em sua colina, dedicando-se apaixonadamente uns aos outros e ao país que se tornara parte deles. Inspirados pela Bíblia e pelos ideais de seus pais, criaram um mundo isolado da triste realidade que os cercava. Eles não se viam como filhos de fazendeiros lutadores que viviam num Império Otomano decadente, mas sim como herdeiros de um povo antigo e de uma herança nobre. Suas ambições não eram para si, mas para o futuro da Palestina.

 

Aaron era o ídolo da família, e seu gênio foi reconhecido muito cedo, aos dez anos de idade. Sua curiosidade era insaciável; o mundo inteiro tinha segredos que ele sentia necessidade de explorar. Aos doze anos, já era capaz de identificar todas as plantas. Seu ouvido sensível captava o eco dos antigos nomes hebraicos que os árabes usavam. Aos catorze, Aaron era o jovem mais extraordinário de Zichron. Sua personalidade, mesmo nessa idade, era poderosa, e o barão voltou sua atenção para ele. Aos dezoito anos, sob os auspícios de seu mentor, o barão, ele foi mandado para a França a fim de estudar agronomia. Grignon era como um céu para Aaron, um lugar onde adquiriu os conhecimentos que lhe permitiriam criar novos métodos agrícolas na Palestina. Dois anos mais tarde, voltou para Zichron formado com especialização em agricultura, botânica e geologia. Foi então mandado como estagiário para a nova colônia do barão em Metullah, nas colinas agrestes da Galiléia. Aos vinte anos, Aaron sabia que era uma oportunidade que poucos podiam ter. Mas logo percebeu que os instrutores agrícolas que o barão tinha contratado eram tipos arrogantes, vindos de suas colônias franco-africanas, com a mente fechada para todo o conhecimento. Aaron conhecia o país melhor do que eles, bem como a maioria do povo que ali vivia. Não podia ficar tranqüilo diante do desprezo que aqueles homens tinham pelos colonos judeus, diante de sua indiferença à Palestina e de sua incompreensão das necessidades da região. Inevitavelmente, foi demitido e até denunciado como ladrão. Correram boatos de que havia roubado grande parte dos dados científicos que alegava serem seus. Entretanto, os anos que se seguiram foram o tempo de suas maiores descobertas, as quais atraíram a atenção internacional. Foi nomeado inspetor agrícola pelo paxá. Podia então dedicar seu tempo aos novos colonos, e tentou trabalhar com eles, mas havia poucos capazes de apreciar e tirar proveito de seus conhecimentos e experiência. Além disso, um cientista era uma excentricidade num movimento em que figuravam filósofos, teólogos e escritores. Cada líder era pelo menos jornalista, se não escritor; e todos eram oradores idealistas. As reuniões e conferências eram o pão de cada dia do movimento, e conseguir qualquer concordância antes de haver uma resolução era uma grande vitória. Aaron chamava isso de ”a doença do comitê”. Seu enfoque era diferente do dos intelectuais que tinham vindo da Rússia e da Europa. Atrasada como era a Palestina, no começo do século, pelo menos era uma terra de grandes espaços. Aaron pensava como os grandes pioneiros americanos, cuja visão e ambição tinham construído estradas de ferro através de regiões montanhosas e transformado desertos em cidades. Os levantamentos que ele fizera dos recursos naturais da Palestina podiam ser utilizados nos planos de desenvolvimento do país. Falava abertamente contra os líderes que só pensavam em termos de comprar extensões de terra e construir algumas casas.

 

Outra imigração... Os intelectuais russos, homens e mulheres jovens que vinham criar, com seu próprio trabalho, uma nova sociedade na Palestina. Tinham assistido ao movimento revolucionário da Rússia. Muitos deles haviam participado da primeira tentativa frustrada, e não acreditavam mais, como muitos dos seus camaradas que haviam ficado na Rússia, que a derrubada do regime czarista viesse melhorar a posição dos judeus. Agora eles estavam convencidos de que o problema dos judeus era de âmbito mundial, e só poderia ser resolvido quando o povo judeu estivesse enraizado novamente na Palestina, como um povo agrícola.

 

Deveria ter havido um laço entre Aaron e esse povo jovem; mas, na maioria das vezes, o que havia era uma lacuna intransponível. Embora eles se chamassem de ”os trabalhadores” e fossem conhecidos como ”os descalços”, estavam longe de ser humildes. Estavam mergulhados na nova ideologia socialista, convencidos de que eles, e somente eles, conheciam as soluções e deviam controlar os meios de construção da pátria dos judeus. Acreditavam, acima de tudo, que os judeus não deviam ser dependentes do trabalho nativo, como os colonos franceses na Argélia e os ingleses. Toda a estrutura econômica tinha que ser alterada, bem como a psicologia do velho yishuv. Tinham que se tornar trabalhadores em todos os ramos da economia nacional, sem terem que depender do trabalho dos outros, mas sim do seu. Cada colônia conduziria seu próprio destino. As velhas colônias, como Zichron, que tinham crescido com a ajuda generosa do barão, sintetizavam os males da sociedade antiga. Não permitiriam mais que as colônias se mantivessem à custa da mão-de-obra árabe barata. O mais franco era o informal amigo de Dovid, David ben Gurion, que em poucos anos tornara-se o porta-voz do movimento dos trabalhadores. Seus objetivos e os de Aaron Aaronson eram os mesmos, mas seus métodos eram muito diferentes. Aaron continuava acreditando que a única maneira de organizar o país era por meio do trabalho apoiado numa base científica; mas ele também não podia ignorar o crescente movimento do socialismo e viu-se desviado para esse movimento. O que ele mais admirava na gente de Ben Gurion era sua harmonia. Mas, para que uma unidade nacional se tornasse realidade, as duas facções teriam de trabalhar juntas. com a ciência e o trabalho judeus, eles teriam sucesso; com essa combinação, Aaron voltou-se para a América, em busca de ajuda financeira.

 

A fim de levar avante seus objetivos, Aaron conseguiu fundos através de americanos ricos como Samuel Fels, Julius Rosenwald, Jacob H. Schiff e Nathan Straus, por recomendação indireta do próprio Theodore Roosevelt. O presidente ficara impressionado com o jovem cientista, que fora à América a convite do Departamento de Agricultura norte-americano. A estação de Aaron em Athlit estava sob a proteção do governo americano, e ele transmitia os resultados de suas experiências ao Departamento de Agricultura dos Estados Unidos.

 

O sucesso de Aaron em Athlit foi tão grande que o sultão Abdul Hamid II chegou à conclusão de que seria melhor o Império Otomano tirar proveito dele, fosse ele judeu ou não, e conferiu-lhe uma medalha de ouro, garantindo-lhe: ”Agora você é otomano; as portas do império estão abertas para você”.

 

Aos trinta e um anos de idade, Aaron era, de certo modo, uma espécie de príncipe judeu fundador. A estação agrícola experimental judaica que desenvolveu durante os quatro anos seguintes era sem igual no Oriente Médio, e, para seus campos experimentais, selecionou uma região conhecida em todo o país por sua esterilidade... Athlit... situada na planície costeira de Sharon, ao sopé do monte Carmelo, onde dunas de areia se alternavam com pântanos maláricos. Mas, ao redor, havia sinais de populações que não podiam ter existido, se a terra não tivesse sido capaz de sustentá-los. No litoral viam-se as ruínas de um grande castelo medieval, último posto avançado dos cruzados na Palestina. No continente havia um outeiro arredondado que fora uma cidade, quando o porto de Athlit era um ponto de comércio e de negócios marítimos, há mais de dois mil anos. A cidade romana de Cesaréia estendia-se debaixo das dunas de areia, ao longo da costa, para o sul da estação. E o porto fenício de Por ficava nessa região. Do outro lado, nas vertentes do Carmelo, havia cavernas pré-históricas; e escavações posteriores provaram que seus habitantes tinham sido os mais antigos agricultores conhecidos, provavelmente os primeiros a cultivar o trigo silvestre na Palestina, uns oito mil anos antes.

 

Aaron escolheu esse lugar porque queria provar que não havia essa coisa chamada solo estéril, cansado. Sua estação era como um Jardim do Éden... Durante o ano inteiro, havia frutos e flores. com seca ou com chuvas, seus campos de trigo, aveia e cevada floresciam, produzindo muito mais do que os de seus vizinhos, embora ele não utilizasse fertilizantes nem os instrumentos usados pelos agricultores árabes. O segredo de Aaron era nada mais nada menos que a aplicação racional das técnicas do cultivo seco. Aaron reuniu em torno de si um pequeno grupo de jovens discípulos dedicados para trabalharem com ele em sua estação; e um deles, Absalom Feinberg, o favorito de Aaron, tinha também um grande cérebro. Absalom era maior do que a vida... alto, simpático, ardente, poeta, amante da música, sensato, inteligente, bom atirador, bom cavaleiro e tão destemido que os árabes o haviam adotado, dando-lhe o nome de xeque Salim.

 

Absalom nascera na Palestina. Seus pais eram intelectuais russos que tinham ido para aquele país com o primeiro grupo organizado de pioneiros, em 1882, no mesmo ano que os zichronitas. Fixaram-se em Rishon-le-Zion, a primeira colônia judaica do sul, entre Jerusalém e Jaffa, uma das colônias que o barão de Rothschild havia adotado, e, como acontecia em Zichron, um grupo de administradores tirânicos dirigia os negócios da aldeia e as vidas dos colonizadores.

 

Israel Feinberg, pai de Absalom, recusou-se a ser dominado, e seu grande senso de independência levou-o a um protesto tão violento contra as autoridades, que sua família foi forçada a mudar-se, fixando-se, finalmente, em Hadera. A instrução de Absalom nunca foi interrompida. com o avô ele aprendeu os ensinamentos da Bíblia, mas o pai, Israel, que compreendia que o estudo da Bíblia compensava espiritualmente, concluiu que um dia os judeus herdariam sua terra, mas somente se chegassem a conhecer e entender os árabes. Por isso, mandou Absalom para Jaffa, onde ele estudou a língua árabe e o Alcorão; assim, quando concluísse os estudos, poderia ler árabe tão bem quanto qualquer árabe. Por tradição de família, Absalom era um judeu dedicado, impregnado do romantismo russo e da cultura francesa. Israel Feinberg observava cuidadosamente as mudanças operadas em seu filho. Notou uma certa melancolia que, às vezes, se tornava quase mórbida... seria a tristeza do povo judeu? As injustiças cometidas contra eles? Sua perpétua falta de lar tornou-se o ultraje e o desafio da vida de Absalom. E seu ódio pelos turcos era tão grande que ele formou uma sociedade secreta chamada Os Porta-Bandeiras de Sião. O pai de Absalom achou que o filho precisava ser afastado dali para seu próprio bem. Seu desejo de ajudar o seu povo poderia provocar a ira dos turcos. Apesar das dificuldades, Israel Feinberg mandou o filho único para a França, onde ele passaria quase quatro anos. Isso não dissipou as idéias que Absalom tinha sobre obter direitos nacionais para os judeus. Em uma carta à família, escreveu: ”Estamos tão longe disso! Por que todo mundo tem uma nação, e nós, que já demos tanto, não podemos sequer obter um alvará dos malditos turcos? A Palestina não significa nada para eles, que têm um vasto império; mas eles a recusam a nós, só porque somos judeus”.

 

Quando voltou para casa, seus sentimentos eram ainda mais belicosos do que quando partira. Os turcos eram bárbaros, e ele jurou que, quando chegasse o dia do julgamento final, estaria preparado. O pensamento de rebelião não lhe saía da mente. Falou com Aaron acerca desse descontentamento ardente, mas a esperança e a fé de Aaron eram maiores e menos amargas do que as de Absalom.

 

”Com a ajuda da Providência e o auxílio da América, alcançaremos nossos objetivos”, dizia ele, mas Absalom não acreditava muito nisso.

 

Aaron estava tão absorto em seu trabalho que nunca lhe ocorreu apresentar Absalom à sua irmã Sarah, embora ele falasse dela com bastante freqüência. Eles tiveram que se conhecer por acaso, num encontro social, e, quando terminaram as festividades, Sarah e Absalom já tinham percebido que sentiam algo um pelo outro. Ela era tudo o que Absalom queria numa mulher... bonita, alta e de um vigor e uma bondade que pareciam emanar de seu rosto extraordinário, aumentados por belos olhos azuis. Eles não só se sentiam atraídos fisicamente, mas eram ambos apaixonados por poesia, literatura, pela exploração do mundo. Ela estivera na Alemanha, na Suíça e na Itália, e Aaron queria que suas irmãs vissem e conhecessem o mundo. Mas como acontecia com Absalom, a Palestina era o único lugar no mundo em que Sarah se sentia contente. Em casa...

 

Quando Absalom foi transferido, para assumir a nova estação que Aaron havia construído em Hadera, Dovid ocupou o seu lugar em Athlit, e, como o barão fizera outrora, reconhecendo o valor de Aaron, percebeu também o valor de Dovid, observando sua paixão e sua mente inquisitiva, seu sentimento pela terra e seu cultivo. Dovid era um agrônomo inato, e Aaron via-o como um extraordinário cientista do futuro. De sapateiro a agrônomo... tal era o potencial de mudança naqueles dias maravilhosos. Mudança e crescimento...

 

Pela primeira vez desde a chegada a Eretz Yisroel, Chavala sentiu-se realizada, o mesmo acontecendo com Dovid. Ela se ajustou à vida de Zichron. A aldeia... parecia transplantada da que ela tinha deixado, exceto que sua pequena casa de pedra era melhor e mais luxuosa. A cozinha tornou-se o centro da casa e havia três cômodos, o que era uma felicidade. E quando Dovid tivesse tempo, construiria um quarto de costura; e novamente ela assumiria seu lugar de cabeça da pequena família.

 

Por mais desolada e remota que fosse a aldeia, assim não parecia a Chavala. O trabalho doméstico não era uma labuta enfadonha para ela e para Dvora. Lavava o piso de pedra e limpava com areia e água as mesas e os bancos de madeira. Ela se alegrava em ver a família tomar as refeições que ela preparava no fogão de ferro que ficava num canto da cozinha. Aceitava, com orgulho, os elogios que lhe eram feitos quando levava para a mesa pães, bolos e salgadinhos. Seu primeiro seder foi agridoce, sem a presença do pai e das irmãs; mas, quando viu Dovid sentado à cabeceira da mesa, pensou que chegaria um dia em que toda a família estaria reunida. A família...

 

com batik árabe, Chavala fez colchas e almofadas coloridas. No mercado árabe de Haifa, comprou panos. Pouco a pouco, aquilo ia-se tornando um lar que, mesmo em seus sonhos mais extravagantes, ela nunca imaginara que pudesse ter. A Rússia parecia muito distante agora, e o sonho com a América tornava-se cada vez menos urgente. Sim, ela havia se recusado a trabalhar nos campos da Galiléia, mas sentia-se muito contente plantando sua própria horta. com a pequena Chia a seu lado, plantava as sementes que Dovid lhe trouxera. O crescimento de suas plantas se assemelhava ao de algo que sentia crescer em seu útero. Quando apareceram os primeiros brotos, riu satisfeita; e quando sua pequena horta já estava pronta, sentiu os olhos encherem-se de lágrimas. Sua cerejeira completava o quadro com perfeição. Dovid plantou também uma palmeira, três oliveiras e algumas videiras, com cujos frutos ela faria vinho. A vida de Chavala estava cheia de contentamento.

 

De tarde, quando o trabalho já estava terminado, Dvora e Chavala trocavam de roupa e iam dar um passeio pela praça da aldeia, com a pequena Chia. Ao contrário das outras mulheres com quem fizera amizade, as roupas de Chavala e Dvora tinham um pouco de estilo e cor. Certo dia, quando Sarah e Rivka Aaronson davam também seu passeio vespertino, pararam para admirar a roupa folgada de Chavala, a qual ocultava a pequena saliência da barriga. Sarah tinha voltado de Paris várias semanas antes, com as últimas revistas de moda. Disse a Chavala que ficaria mais do que feliz se ela quisesse vê-las. Sarah e Rivka eram excelentes; belas, elegantes, e a verdade era que Chavala era respeitada por elas. Ela nunca tinha visto judeus assim... Haviam estado na França, na Suíça e na Itália. Para Chavala, a vida tinha-se tornado suave.

 

Às quatro da madrugada, Dovid já a encontrava pronta para servir o café a ele e a Moishe. Depois ela os acompanhava até a porta, e ficava em pé na varanda, observando-os subir no carro que ia para Athlit. Quando eles voltavam à noite, Dovid logo esquecia o cansaço ao ver o rosto contente de Chavala, e a barriga grande. Após a ceia, ele lia os livros sobre agronomia e agricultura que havia conseguido na biblioteca de Aaronson. Às vezes, ele levantava a vista e olhava para Chavala, uma mulher além de qualquer coisa que ele imaginara que pudesse ter. E sua gratidão pela sabedoria dela, ao insistir em que deixassem a Galiléia e fossem para lá, era algo quase indescritível.

 

Tudo parecia tão bom! Mas ele pensou: Cuidado, nada dura para sempre, como um judeu deve saber...

 

                                             Capítulo seis

Chavala interrompeu a faxina, levantou-se e, esfregando as costas, sentiu os sinais do parto. Foi para a cozinha e sentou-se. Agarrou-se à mesa e viu a água jorrar de seu útero, como se uma represa tivesse estourado. Ao chamar Dvora, não sentia medo. Mas a menina, vinda do quarto, ficou como que petrificada ao ver o chão coberto de água. A terrível lembrança da morte de sua mãe quase a paralisou... e se Chavala morresse? Meu Deus, por favor, não deixe Chavala morrer também.

 

Percebendo o medo da irmã, Chavala disse:

 

— Não se assuste, Dvora. Sou jovem e forte, e logo teremos a bênção que mamãe pediu a Deus que nos desse. Acredite, Dvora. Agora, minha irmã, leve Chia para a sra. Bronusky e diga à sra. Lieberman para trazer o banco de parto. Depois vá até Athlit e diga a Dovid que estou precisando dele aqui — disse Chavala, mas Dvora não conseguia mexer-se. — Não há nada a temer, Dvora. Agora faça o que lhe disse.

 

Sem dizer uma palavra, Dvora apanhou Chia e saiu apressada.

 

Enquanto Chavala esperava, o pensamento sombrio voltou-lhe à mente... via o rosto do pai tão claramente como no dia em que ele ficara parado na porta... quando sua mãe morrera... ”Você não devia ter-me afastado, Chavala; eu devia estar aqui para segurar a mão dela, quando ela morreu”... Ela não deixaria que Dovid se sentisse tão torturado, se fosse a vontade de Deus que ela tivesse o mesmo fim. Mas, no fundo, sabia que nada disso aconteceria. Entretanto, estendeu a mão para o Todo-Poderoso. Manya tinha razão; Deus não tinha culpa das injustiças do homem. Dera ao homem uma mente que sabia o que era certo e o que era errado. Qualquer caminho que ele seguisse era escolha sua. Nesse dia, Chavala sentiu a presença de Deus...

 

Chavala cerrou os punhos e mordeu um pedaço de pano, enquanto a sra. Lieberman lhe enxugava o suor. Não. Ela não gritaria. Queria que o filho nascesse num mundo alegre. Não haveria lágrimas. Toda vez que a dor se apoderava de seu corpo, fechava os olhos e acreditava que a mãe estava conversando com ela... ”Vai passar logo, e você terá nos braços o filho que foi concebido com amor...” E Chavala dizia: ”É, mamãe, uma bela menina e, novamente, você estará conosco, você nascerá de novo, e eu terei você, mamãe querida. Verei minha pequena Rivkala. Você está me ajudando, mamãe. Ajude-me, mama...”

 

Enquanto Chavala se deixava cair de costas, exausta, a sra. Lieberman observava, pensando que, em todos os seus anos como parteira, nunca tinha visto tanta coragem. Estava assustada por ver Chavala suportar tanta dor em silêncio. Por que a moça não gritava? De onde vinha sua força?

 

Quando Chavala agarrou a beira da cama, a sra. Lieberman olhou debaixo da coberta e viu o começo de vida. Aproximando mais o banco de parto, procurou ajudar Chavala a sair da cama, mas Chavala protestou.

 

— Não... Esta criança só vai nascer quando Dovid chegar.

 

— Chavala, você ficou louca, a criança está pronta...

 

— Sóvou ter esta criança quando Dovid chegar. Reclinando-se, Chavala mordeu o pano e cravou os dedos no colchão. Não tinha outro pensamento senão o de que Dovid veria a filha nascendo... Deus, ajude-me... mamãe, afaste a dor... encha minha mente de pensamentos de quando você estava conosco... aqueles dias eram doces como o mel, e nós éramos felizes e sua beleza brilhava como... eu amo você, mamãe... Dovid vai chegar logo...

 

As horas passaram, e finalmente Dovid chegou. Foi para o lado de Chavala e tomou-lhe as mãos suadas. Beijou-lhe as palmas das mãos e, depois, os lábios. Justamente naquele dia ele fora mandado a Jaffa, para buscar equipamento, e Dvora ficara esperando, nervosa, durante horas. Quando voltou, parecia uma eternidade o tempo que levara para chegar às colinas de Zichron Yaakov. A sra. Lieberman o afastou e ajudou Chavala a sentar-se no banco de parto. Respirando com dificuldade, Chavala encontrou, finalmente, o abençoado alívio de sua agonia, quando a parteira lhe puxou lentamente a criança do útero. Dovid apanhou sua mulher e a pôs na cama.

 

— Meu Dovid, quero dividir este momento com você...

 

— Eu sei, meu amor — disse ele com lágrimas nos olhos.

 

— Você não deve chorar, Dovid. Nosso povo já chorou lágrimas suficientes para encher um oceano. Fique feliz, querido, nós temos uma filha...

 

— Não, vocês têm um filho — corrigiu a sra. Lieberman.

 

— Um filho?

 

— Sim. Um belo filho. Ouça-o chorar.

 

Chavala tivera muita vontade de usar o nome da mãe novamente, mas...

 

— Traga-o para mim.

 

O recém-nascido foi colocado nos braços da mãe. Chavala contou os dez dedos das mãos e os dos pés, olhou o rostinho. Era a cara de Dovid.

 

— Olhe seu filho, Dovid. Não ligue para o que eu disse. Foi bom ele ter nascido em Eretz Yisroel.

 

Chavala conhecia o amor... pela família, por Dovid... Mas o amor pelo filho era totalmente diferente. As palavras de Manya ressoaram em seus ouvidos, falando de tais bênçãos. Olhando para a criança em seus braços, deu graças a Deus por não ter sido castigada pelos pensamentos que tivera outrora...

 

Chavala lembrou-se de que os judeus davam aos filhos os nomes dos falecidos, a fim de perpetuarem a vida após a morte. Por isso, Reuven Landau tornou-se o espírito vivo de sua avó Rivka. Chavala tinha mandado uma carta para o pai, quase suplicando a ele, Sheine e Raizel que fossem para Zichron. Ela tomaria as providências. Sheine, porém, respondeu dizendo que o pai não estava muito bem, e a viagem seria demasiado difícil para ele. Haviam sofrido tanto!... Por isso Chavala ficou decepcionada de que não pudessem partilhar daquela bênção; mas a vida tinha de continuar, e as lágrimas secaram...

 

Em Zichron Yaakov o bris de Reuven Landau foi celebrado com o entusiasmo e a alegria de que desfrutavam todas as crianças nascidas em Eretz Yisroel. Nascer naquela terra de seus pais era um grande mitzvah. Essas crianças saberiam o que é a liberdade. Finalmente, depois de muito tempo, cresceriam com honra e com orgulho de sua herança. Tornar-se-iam os verdadeiros construtores de Eretz Yisroel. Para elas, o gueto estaria morto.

 

Durante todo o dia, chegaram aldeões à casa de Chavala e Dovid. Houve festa, e até os Aaronsons prestaram sua homenagem.

 

Chavala chegou a pensar cada vez menos nas praias douradas da América. Mas o que a deixava triste era o fato de o pai e as irmãs não poderem partilhar da sua vida. Invejava a união dos Aaronsons. Bem, na semana seguinte sua família iria a Jerusalém. Apanhou a carta que o pai lhe havia escrito, dizendo como se sentia orgulhoso e com que ansiedade esperava o momento em que tomaria seu neto nos braços, diante do grande muro.

 

Quando eles entraram na Cidade Antiga de Jerusalém, o coração de Chavala começou a bater rápido, cheio de expectativa. Ela mal podia esperar.

 

Subiu a escada correndo; mas, quando entrou, o abraço de Raizel não foi de alegria, mas de lágrimas. Olhou para Sheine, cujos olhos estavam vermelhos e inchados de tanto chorar.

 

— Onde está papai? — perguntou Chavala, apreensiva e com a respiração entrecortada.

 

Houve um longo silêncio, depois Sheine respondeu:

 

— Ele morreu... anteontem...

 

Aquilo era um pesadelo, tinha que ser... A carta não mencionava que ele estava doente.

 

— Não pode ser verdade...

 

— É verdade, é verdade — repetiu Sheine.

 

— O que aconteceu?

 

— Ele foi à shul de manhã e, quando o trouxeram, já estava morto.

 

”Meu querido pai; eu nem sequer estava aqui no fim”, pensou Chavala.

 

— Mas por que você não me avisou que ele estava doente?

 

— Ele não estava doente... já disse... chegou a sua hora. Chavala olhou para o filho de três semanas. Deus tomava e Deus dava. Se ao menos ela estivesse presente para assistir ao enterro! Lembrou-se do cemitério de sua aldeia na Rússia, lembrou-se da mãe, que deveria estar lado a lado com ele, os dois reunidos na morte...

 

— Dovid, quero ver o túmulo do meu pai.

 

Ele assentiu, e a família saiu, dirigindo-se para o monte das Oliveiras...

 

Durante a manhã, falou-se muito pouco, e o tempo tinha passado.

 

— Amanhã voltaremos para Zichron — disse Dovid. Sheine olhou primeiro para Dovid, depois para Chavala. Seu amor por Dovid, ao invés de diminuir, chegara às raias da irrealidade. Suas fantasias eram tão exageradas, que, de noite, ela só pensava em como seria ter um filho de Dovid. Em seu delírio, chegava a ver Chavala morta e Dovid, naturalmente, procurando consolo nela. Ela se castigava por esses maus pensamentos, pedia que nada acontecesse à irmã; mas estava obcecada. Por fim, chegou à conclusão de que, se não se separasse da família, poderia ficar louca.

 

— Euvou ficar em Jerusalém — disse ela.

 

— com a morte de papai, não há mais necessidade de continuar aqui, Sheine.

 

— Há uma necessidade para mim. Eu nãovou morar numa aldeia. O que iria fazer lá? Trabalhar nos campos, como uma daquelas chalutzim de pés descalços? Tornar-me uma chavera?

 

— Lá em Zichron não é assim.

 

— Talvez não. Mas nãovou mais ficar vivendo de caridade.

 

— Você não vai viver de caridade, Sheine; todos nós viveremos juntos, colaborando. E Zichron não é como a Cidade Antiga de Jerusalém. É bela. Quero que você a veja, e nossa casinha também. Por favor, Sheine, venha conosco.

 

Sheine fitou Chavala, que continuou falando como se não tivesse ouvido uma palavra.

 

— Você me assusta, Chavala. O que aconteceu com aquele espírito pioneiro? E sua decisão de ir para a América? Lembra-se de quando me disse que, quando papai morresse, nada deteria você? Nem mesmo Dovid... Você disse que ele a amava tanto, que não iria fazer nada, nem mesmo desistir...

 

— As coisas mudam. Agora isso não parece tão importante...

 

— Não? É chocante ouvir isso de você. Você que, mais do que qualquer um de nós, despreza a pobreza. Mas eu sei o que aconteceu. Você passou a ser a mulher camponesa de Dovid... o que você realmente quer é um fogão, uma cabana e um pedaço de terra para plantar uma horta. Sim. Você é uma camponesa; é isso o que você sempre será. Bem, esperei muito tempo para sair daqui e estar livre de todas as suas crenças, suas e de Dovid. Eu não preciso de vocês — concluiu, e saiu da sala correndo, histérica.

 

Enquanto o resto da família ficava perplexo, Dovid levantou-se e seguiu a menina. Sentado na beira da cama, tentou segurar-lhe a mão, mas ela se afastou, voltando o rosto para a parede.

 

— Sheine, o que aconteceu com você? — perguntou com voz suave. — Por favor, fale comigo.

 

”Você tem razão; meu amor por você é tão doloroso, que estar tão próximo assim é uma agonia”, pensou ela.

 

— Diga-me, Sheine. Seja o que for que você sinta, eu compreenderei.

 

Ela se voltou lentamente para ele; e então, finalmente, disse:

 

— Eu amo você, Dovid...

 

— E eu amo você também, Sheine. E quero ajudá-la. É por isso que quero que venha conosco para Zichron...

 

— Você não ouviu o que eu disse, Dovid. Eu amo você.

 

O impacto do verdadeiro sentimento dela por ele atingiu-o como um raio.

 

— Sheine, você não deve dizer isso. Não é verdade... Eu sou casado com sua irmã...

 

— Sei disso muito bem. Mas você perguntou, e agora, mesmo que eu não tenha nenhum orgulho, pelo menos me sinto livre. Dovid, eu não sou descarada... Amo Chavala também, mas não posso deixar de ter estes sentimentos... Pelo menos, agora você sabe por que eu nunca poderei viver com vocês.

 

Dovid pôs o rosto nas mãos. Como poderia ajudar Sheine?

 

Ela nunca acreditaria que isso era apenas uma paixão de menina que, algum dia, ela recordaria como apenas uma fase infantil.

 

— Você não pode viver sozinha, Sheine. Já pensou nisso?

 

— Já. Mas não pretendo viver sozinha. Vou ser enfermeira. Pelo menos agora que ele sabia a causa, podia compreender o comportamento de Sheine. Gostaria de tomá-la nos braços e dizer-lhe que compreendia; mas, naquelas circunstâncias, isso seria demasiado cruel. Após um longo silêncio, disse:

 

— Venha, Sheine. Partiremos em breve. Venha falar com Chavala. Não quero partir sem ver vocês duas unidas novamente como irmãs.

 

Ela saiu da cama, olhou novamente para Dovid; depois, sem dizer uma palavra, foi para perto de Chavala. Ficaram sentadas juntas, encabuladas; depois Sheine disse:

 

— Por favor, perdoe-me, Chavala, se puder.

 

— Não há nada a perdoar, Sheine. Eu sei como a vida tem sido dura para você, sem papai. Você só tem tido preocupação e responsabilidade... Mas não quer tentar, pelo menos, arriscar... vir conosco?

 

Sheine tomou as mãos de Chavala nas suas.

 

— Obrigada por me querer, mas sinto muito. Tenho outras idéias...vou ser enfermeira...

 

— Quando foi que resolveu isso?

 

— Há muito tempo que penso nisso. Chavala olhou para as mãos da irmã.

 

— Faz tanto tempo que somos uma família! Não quer, pelo menos, viver conosco por algum tempo?

 

— Não, Chavala. Já fui aceita como estudante de enfermagem. Nada podia fazer Sheine mudar de idéia.

 

— Você escreve para a gente? — perguntou Chavala, com lágrimas nos olhos. — Vamos ficar preocupados com você...

 

— Claro que escrevo; e, por favor, não se preocupem comigo. Sei, pela primeira vez, o que quero fazer da minha vida. E... Eu amo vocês todos.

 

E nesse momento especial, estava sendo realmente sincera.

 

                                                  Capítulo sete

Para não ficar louca, Sheine tinha planejado sua vida com muito cuidado. Sempre que podia, escapava da Cidade Antiga, vagava pelas colinas até chegar ao hospital alemão, onde ficava sentada num banco, encostada à parede. Observava as enfermeiras com seus farfalhantes uniformes brancos, enquanto elas cuidavam meticulosamente de seu trabalho. No fim do longo corredor, havia sempre um pequeno grupo de médicos jovens e simpáticos, escutando, como discípulos, o Herr Professor explicar as novidades dos casos examinados naquela manhã. Aquele era um mundo especial, um mundo branco, imaculado, do qual ansiava fazer parte. Mas como? Conscientizou-se de sua condição de judia. Pela primeira vez essa condição tornou-se um obstáculo, algo indesejável. Esta era sua primeira aventura no mundo dos não-judeus, e a sensação de diferença, de estar apartada, veio como um choque. Eles tinham a pele clara, olhos azuis e cabelos louros. Nomes que ela nunca tinha ouvido antes soavam melodicamente em seus ouvidos... Christine, Helga, Greta, Gretchen... E o alemão que ela ouvia era suave, não gutural. E, conhecendo o iídiche, podia entender grande parte do que ouvia. Comparado com o alemão, o iídiche era... grosseiro, com jeito de gueto. Levantou-se, infeliz, e deixou aquele ambiente a que ela sabia nunca poder pertencer.

 

De volta a casa, sentia-se tão desolada e derrotada que até pensou em pôr fim à própria vida, por lhe parecer inútil. Mas depois pensou em tudo o que conseguira atravessar até então; e resolveu deixar de lado a autocompaixão e solucionar sua vida, ao invés de destruí-la. Que fazer, se tinha nascido Sheine Rabinsky? Isso podia ser mudado. Mas e o seu cabelo negro, os olhos castanho-escuros e a pele cor de oliva? O pai não tinha permitido imagens gravadas nem espelhos em sua casa, mas ela conseguira manter um pedaço de espelho escondido debaixo de seu colchão. Olhando-se no espelho, achou que tinha uma certa beleza... Da mãe havia herdado os traços delicados e a pele lisa e sem manchas. Ora, poderia passar por alguma daquelas francesas que vira em Odessa, que se tinham casado com russos nobres. Fechou os olhos, tentando imaginar-se vestida com roupas finas, e essa imagem tornou-se viva. Se ela mudasse o nome, talvez... De repente lembrou-se da enorme placa de bronze que havia na entrada do hospital, na qual estavam os nomes dos fundadores daquela instituição, e ficou pensando no nome ”professor Beck”. Por quê? Quem sabia? Mas nesse momento Sheine Rabinsky tornou-se ”Elsa Beck”. Mas, e a cor da pele? A mãe era francesa e o pai, alemão. Onde tinha nascido? Isso era algo que se podia verificar com facilidade. Pensaria nisso mais tarde... Já tinha avançado bastante em sua transformação. Teria que absorvê-la, tentar ajustar-se a ela...

 

Tirou parte dos donativos que o pai tinha recebido e escondeu o dinheiro até que tivesse o suficiente para comprar um livro elementar de língua alemã. Foi adquirindo, pouco a pouco, livros usados sobre anatomia, latim e as técnicas de enfermagem.

 

Quando chegasse o momento de solicitar admissão como estudante de enfermagem, não apenas seria Elsa Beck, nascida na África equatorial francesa, mas também falaria fluentemente o alemão, e seu conhecimento de enfermagem seria igual ao de uma estudante de medicina. Em dois anos já havia aprendido anatomia e sabia a maioria dos nomes genéricos em latim. Estava tão obcecada com a tarefa a que se havia dedicado como estivera por Dovid. Não perdia um só momento. Enquanto fazia limpeza e cozinhava, tinha a cabeça cheia das lições que estava procurando dominar. Havia uma espécie de diálogo constante... ela fazia as perguntas e ela própria respondia a elas. Sheine sabia que um engano criava outro, mas achava que pelo menos Chavala deveria saber.

 

Por isso, depois de um dia horrível, escreveu para Zichron.

 

Chavala ficou sentada por um longo tempo, tentando ver se aquilo tinha sentido. Por que Sheine fizera uma coisa tão incrível!? Não havia resposta. Certa vez o pai tinha falado que havia um dybbuk em Sheine, mas quem saberia o que a tinha levado a tais extremos? Tudo o que Chavala sabia com certeza era que havia fracassado. Olhou a carta novamente... ”Assim, eu lhe peço, Chavala, que explique aos outros que, quando escreverem, e se escreverem, tem que ser para Elsa Beck. Tente entender, por favor, se puder. E tente não me julgar. Todos nós, cada um à sua maneira, devemos encontrar nossas soluções e nossa salvação...”

 

Chavala simplesmente não conseguia aceitar aquilo; agora não. Sheine estava perdida para eles; tão perdida como se tivesse morrido. E, de certo modo, ela havia morrido.

 

Para Elsa Beck a vida começava às cinco da manhã. A disciplina era rígida, exigente. Se um canto da cama tivesse uma pequena prega, a enfermeira-chefe Holstein desfazia tudo; a estudante era castigada e perdia algum privilégio. No caso de Elsa Beck, não havia essas punições. Elsa era, de fato, a estudante mais precisa, cuidadosa e diligente que a enfermeira Holstein já tinha encontrado. E, por essa razão, havia conquistado a admiração não apenas da enfermeira Holstein, mas de toda a equipe. Sua disciplina e devoção, no entanto, não a faziam estimada por suas colegas. Mas isso não incomodava Elsa Beck. Havia-se tornado enfermeira para sua própria sobrevivência. Não confraternizava com ninguém e era considerada uma reclusa, o que não era de admirar.

 

Formou-se com muita distinção, e estava pronta para se tornar membro legítimo da elite. E, de fato, a primeira vez que a enfermeira Beck entrou na sala de operações, vestida de uniforme cirúrgico, compreendeu que, em breve, o título de enfermeira-chefe da cirurgia seria seu.

 

Viva Elsa Beck!

 

Para trás, Sheine Rabínsky.

 

                                                     Capítulo oito

Era 1908.

 

— Nada mudou realmente, Moishe — disse Dovid. — Foi apenas aparência. Qual era a situação dos servos, quando foram libertados? Encontraram liberdade e igualdade? Não. Acaso os negros ficaram realmente livres, quando foi abolida a escravidão na América? E esta nova rebelião dos turcos?... Você acha mesmo que eles darão a nós liberdade e igualdade? Uma revolução não vai alterar o ódio que sentem pelos judeus. Esse ódio existe há mais de dois mil anos.

 

— Mas o yisbuv parece ter muita esperança de que esses jovens turcos tenham mais simpatia por nossa tradição...

 

— Espero que tenha razão; mas Chaim Weizmann não está tão otimista.

 

— É porque ele é a favor dos ingleses...

 

— E ele tem razão para isso. A Grã-Bretanha é a única nação que lhe deu ouvidos.

 

— E os alemães? Os maiores cientistas e médicos do mundo são judeus alemães. Quando o cáiser veio à Palestina, falou com Herzl e disse que era a favor de uma pátria judaica...

 

— Eu sei; mas você vê que ainda não a temos; e, além disso, a Alemanha tem um tratado com os turcos. Não. Sou da mesma opinião que Jacobinsky. Essa tal de rebelião foi só uma manobra política que fizeram para ganhar o poder e não para realizar qualquer mudança na Palestina em benefício dos judeus. Aaron pensa do mesmo modo que Weizmann; mas não está em condições de falar abertamente. Durante anos ele trabalhou em estreita cooperação com os turcos, na esperança de que um dia o sultão concedesse um alvará à Palestina. Ele pode ser um sonhador, mas ainda tem esperança.

 

Para Chavala, política era um assunto em que os homens não paravam de falar. Sua vida, ali em Zichron, não seria afetada por nenhuma rebelião. Para ela havia um único lugarzinho sagrado, que parecia impenetrável... seu lar e sua família.

 

Chia já estava uma menina gorducha, de três anos de idade; tinha o rosto corado, os olhos azuis e o cabelo louro. Era alegre, precoce, estava sempre fazendo perguntas. Sua curiosidade e dedicação para com o bebê Reuven eram óbvios quando ela ficava sentada, com os olhos arregalados, observando Chavala amamentálo. Naturalmente considerava Reuven seu irmão, muito mais do que Moishe, e Chavala era a mãe que ela nunca conhecera.

 

Raizel tinha crescido em graça e beleza. Não havia nada difícil demais para ela fazer, pois sempre assumia responsabilidades incompatíveis com seus onze anos de idade. Dvora, por outro lado, era uma grande alma, que nunca se esquecera da Galiléia e sentia um desejo profundo de voltar para lá. Durante semanas, ela se debateu consigo mesma; depois criou coragem para dizer a Chavala e a Dovíd que iria partir para se unir a um grupo de jovens que se formava na Galiléia... numa fazenda de treinamento de moças, fundada recentemente, graças à decisão da dra. Ruth Levy, que também era membro da segunda Aliyah. Ela concebera a idéia de uma fazenda onde as moças aprenderiam, além do trabalho doméstico, horticultura, avicultura e pecuária.

 

com essa decisão de Dvora, o mundo de Chavala parecia ameaçado. Não conseguia partilhar do entusiasmo de Dvora. Sabia que suas razões eram egoístas, mas já havia perdido Sheine e agora tentava, por todos os meios, manter a família unida.

 

Dvora, sabendo que Dovid compreendia melhor, falou com ele.

 

— Dovid, você deve me ajudar a fazer com que Chavala compreenda que eu não sou mais uma criança. Isso significa muito para mim... significa tudo. Zichron é bom para Chavala, mas eu não sou ela.

 

— Deixe Dvora ir — disse Dovid à mulher. — Ela está certa. Privá-la disso só iria deixá-la triste, e você também acabaria ficando triste.

 

— Pouco a pouco, nós os estamos perdendo, não é, Dovid? Primeiro foi Sheine, agora é Dvora...

 

— Eles cresceram, Chavala. Dê-lhe sua bênção, para que ela não fique com sentimento de culpa.

 

E Chavala o fez; mas no dia em que Dvora partiu, sentiu-se como se tivesse perdido um pedaço de si.

 

Dvora adaptou-se imediatamente à vida na Galiléia. De manhã, bem cedo, acordava com uma animação especial; vestia-se e saía silenciosamente, enquanto os outros dormiam, para poder ver o nascer do sol. Inalava o perfume do ar da aurora, observava e sentia a natureza ao seu redor. Achava que a terra em que pisava revelaria, em breve, todos os seus segredos. Levantou a vista, para ver os pássaros em vôo. E com tudo isso... havia um sonho que se achava adormecido dentro dela e que em breve despertaria...

 

Três anos antes, um grupo chamado Haikkar Hatzair, ”O Jovem Agricultor”, fora formado, nos Estados Unidos, por doze estudantes da faculdade de agronomia judaica, em Woodbine, Nova Jersey. Esse grupo estava se preparando para viver da terra, na Palestina. Após deixar a faculdade, cada membro do grupo adquiria experiência prática num ramo específico de agricultura, antecipando o sistema que foi adotado, mais tarde, pelos chalutzttn. com cinco mil dólares eles fizeram um apelo à Companhia de Desenvolvimento da Terra da Palestina para que assumisse o controle da fazenda, juntamente com o gado e o equipamento, por um ano. As duas colônias de jovens ficavam perto; e, quando uma ou outra precisava de um determinado equipamento, prontamente compartilhavam aquilo de que dispunham...

 

Dvora acabara de sair do galpão de ordenha, quando viu ao longe um jovem carregando uma pequena incubadora. Olhando na direção dela, ele a cumprimentou:

 

— Shalom!

 

— Shalom!

 

Quando se aproximaram um do outro, Dvora teve uma sensação nova para ela, mas antiga para as mulheres de sua idade e mais velhas... agora que ela estava face a face com o jovem chalutz, a sensação era assustadora e estimulante, ao mesmo tempo. Sentindo-se desajeitada, ela desviou o olhar, quando ele falou.

 

— Eu sou do Haikkar Hatzair, e vim trazer isto. A propósito, meu nome é Ari ben Levi.

 

— E o meu é Dvora Rabinsky — disse ela, com tanta rapidez que ele mal entendeu.

 

Enquanto os dois se dirigiam para o prédio principal, Ari perguntou:

 

— Há quanto tempo você está aqui?

 

— Há um mês. E você?

 

— Cheguei da América há três dias.

 

— Da América?

 

— Não se trata da Lua.

 

— Não é isso o que estou querendo dizer. Você não vai rir, se eu lhe contar uma coisa?

 

— Prometo.

 

— Eu estava apenas pensando em minha irmã, que sempre quis ir para a América, e você vem para Eretz Yisroel... Acho que isso tem muito sentido — disse, rindo, apreensiva.

 

— Tem muito sentido. Minha família escapou dos guetos da Polônia e não conseguiu entender o fato de eu deixar a boa vida para vir trabalhar aqui. Isso simplesmente mostra como o mundo dá voltas.

 

— Seu hebraico é perfeito; pensei que você tivesse nascido aqui. Acho que ainda falo com sotaque iídiche. Seu nome é mesmo Ari ben Levi?

 

— Meu nome de nascimento era Richard Levi. Nada mais. Uma geração retirada do gueto. Mas não é mais Richard Levi; é Richard Lee. Isso é o que se chama de americanização.... Bem, foi um prazer conhecer você, Dvora — disse ele, quando chegaram à seção de criação de aves.

 

Durante o resto daquele dia, Dvora ficou pensando em Ari ben Levi e em nada mais, além de pensar que morreria, se ele não voltasse em breve... Muito breve.

 

No domingo ele voltou. Levantando a vista do tamborete de ordenha, ela o viu na porta. Podia ouvir seu coração bater. As palmas de suas mãos estavam molhadas. Ele era mais simpático do que ela recordava.

 

— Shalom — cumprimentou ele, sorrindo, e estendeu a mão. — Acho que sou o que você chama de americano agressivo. Gostaria de me encontrar com você hoje,..

 

— Dentro de uma hora mais ou menos eu termino — disse ela, engolindo em seco.

 

— Não precisa pressa... eu espero.

 

E esse americano agressivo esperou durante uma semana, antes de reunir coragem para voltar; fora uma semana em que ele quase só pensara em Dvora. Ela era absolutamente a coisa mais bela que ele já tinha visto... O cabelo era da cor de melaço castanho e os olhos, uma espécie de âmbar. Tinha a cintura fina, e o busto arredondado o bastante para excitá-lo. Ari achava que isso era amor à primeira vista, se é que havia isso. E que amor!...

 

Quando Dvora terminou seus afazeres, vestiu sborts brancos, pôs um xale de tricô na cabeça, abotoou as sandálias e olhou-se no espelho. Seu rosto estava corado, apesar do bronzeado. Passou um pente no cabelo e saiu do pequeno bangalô que ela dividia com outras três ckaverot.

 

A princípio, eles simplesmente ficaram ali parados; depois Ari disse:

 

— Já que você conhece o lugar melhor do que eu, o que sugere?

 

— Vamos até o alto da colina. A vista de lá é muito bonita.

 

Quando chegaram ao alto e olharam em torno, houve um silêncio que parecia aproximá-los... como se fossem as duas únicas pessoas no mundo. Olharam para o pico do monte Hermon, coberto de neve. Nuvens brancas e rosadas flutuavam languidamente no céu azul; e lá embaixo via-se o mar da Galiléia. Agora que ela estava ali em pé com Ari, o mar parecia ainda mais belo do que da primeira vez que ela o vira, quando Dovid dissera: ”Venha, Dvora, quero que você veja isto e recorde durante o resto de sua vida”. Ela o recordaria, e recordaria esse momento ainda mais. Nenhum dos dois falou. Não havia necessidade de palavras.

 

Sentaram-se debaixo de alfarrobeiras, e Dvora abriu o pequeno pacote de lanche que havia trazido. Quando terminaram de comer, deitaram-se de costas e ficaram olhando o céu, que aparecia entre os ramos.

 

Lentamente, a mão de Ari tocou a de Dvora; e, no silêncio daquela tarde ociosa, ele disse:

 

— Eu amo você, Dvora. Aconteceu no momento em que a vi pela primeira vez. Estou falando sério. Não importa que seja tão de repente...

 

— Acredito, Ari. Principalmente porque a mesma coisa acontece comigo...

 

Não houve embaraço nem hesitação alguma, quando ele se voltou para abraçá-la e beijar-lhe os lábios. Para eles, aquilo era mais do que um beijo, era uma promessa de vida. Tão duradoura, para eles, como essa terra a que ambos dedicariam suas vidas...

 

                                            Capítulo nove

Por volta de 1914, a Palestina era uma terra muito diferente daquela que Chavala e Dovid tinham encontrado, quando lá chegaram.

 

Agora o número de judeus era de aproximadamente oitenta e cinco mil. O velho yishuv, que já estava no país antes da imigração sionista, ainda se concentrava nas quatro cidades e ainda vivia, em grande parte, das contribuições que chegavam do exterior. Estava alheio à nova vida que se desenrolava na Palestina e via-a com apatia e até hostilidade.

 

Sua oposição baseava-se, em parte, em razões religiosas, mas ainda mais no medo de que os fundos de fora fossem destinados, cada vez mais, à construção de colônias modernas, o que faria com que sua fonte de renda se esgotasse. A influência das novas colônias de trabalhadores quase não afetava Jerusalém e Hebron. Os trabalhadores geralmente encontravam emprego nas aldeias da baixa Galiléia. Tibério transformara-se num centro comercial, e a população judaica de Haifa e Jaffa devia o seu desenvolvimento mais às forças econômicas do que às associações históricas e religiosas. A abertura de novos portos e a construção de estradas de ferro entre Jaffa, Jerusalém e Haifa aumentariam o crescimento econômico. Jaffa era o principal porto da Palestina, bem como o centro das colônias da Judéia. Jaffa tornou-se também o centro cultural do yishuv. Lá é que foram abertas as primeiras escolas hebraicas; as instituições sionistas e as federações de trabalhadores tinham seus escritórios lá; e era ali que estava sendo construída a primeira cidade judaica: Tel Aviv. As antigas colônias eram substituídas pelos kibutzim, que se tornavam, pouco a pouco, a coluna vertebral do yishuv.

 

Quando eclodiu a Primeira Guerra Mundial, o yishuv era numericamente mais forte e mais bem-organizado do que no início das colônias sionistas. Tinha progredido enormemente, desde a união dos partidos da classe operária. Na Judéia e na Galiléia foram fundadas federações de trabalhadores agrícolas, que eram administradas por um órgão eleito, o Merkaz Chaklai. Mas, apesar de tudo o que já fora realizado, muita coisa ainda dependia dos judeus da Diáspora.

 

A Turquia não entrou na guerra imediatamente, mas suas inclinações pró-Alemanha eram óbvias. Era apenas uma questão de tempo... Foi proclamado um estado de emergência em todo o Império Otomano, e começou uma mobilização geral em favor da ”neutralidade” turca. Os embarques turcos no mar Negro e no mar Egeu foram suspensos. O Bósforo e o Dardanelos foram fechados para navios estrangeiros. O Egito declarou guerra à Alemanha e ficou sob a proteção dos ingleses, cujos navios não mais podiam usar os portos da Palestina.

 

Em setembro, os estrangeiros passaram para a jurisdição dos tribunais turcos. Perderam também suas instalações postais; por isso, sua correspondência estava sujeita a ser violada. E assim os judeus imigrantes da Palestina ficariam isolados dos países de onde tinham emigrado.

 

Enquanto o antigo ytshuv, dividido como fora em facções e comunidades, ficou estagnado, surgiu o novo yishuv. Seu centro era Tel Aviv. Apenas alguns dias após o começo da guerra, foi criado um comitê de emergência.

 

Apesar de todos os esforços feitos na Palestina para enfrentar as dificuldades, os judeus teriam sucumbido se não fosse a ajuda da América. O navio de guerra americano North Carolina chegou a Jaffa com cinqüenta mil dólares. Mais tarde, outros navios entraram em águas palestinas. Essa prova do interesse da América pelo destino do yishuv não apenas mostrava aos judeus que eles tinham um amigo, mas também elevou sua posição, aos olhos da população não-judaica e das autoridades turcas locais. Quem tivesse amigos ricos na América poderia valer uma pequena extorsão.

 

Por ordem dos doadores americanos, foi estabelecido um comitê central para supervisionar a distribuição dos fundos de ajuda. A Palestina foi dividida em regiões: Jerusalém, Haifa, Galiléia, Samaria e Judéia. A Organização Sionista Americana decidiu qual seria o destino dos fundos. Toda essa ajuda americana foi especialmente oportuna quando, em 31 de outubro de 1914, a Turquia entrou na guerra e foi lançado um apelo ao mundo islâmico para unir-se numa guerra santa contra os Aliados.

 

Começaram, então, dificuldades sem precedentes para o yishuv. Sua própria existência estava em perigo, agora. A princípio, a Turquia ordenara que todos os inimigos nacionais fossem transferidos da Palestina para o interior do Império Otomano. Mas, graças aos embaixadores americano e alemão, os judeus pelo menos tiveram permissão para optar por naturalizar-se turcos ou ficar na Palestina. Aqueles que não fizessem essa escolha tinham de deixar o país. Os judeus não estavam felizes com as alternativas, mas a salvação do yishuv dependia disso. Quanto ao serviço militar, os cristãos podiam comprar a dispensa, mas os judeus tinham de servir, e muitos deles eram recrutados para batalhões de trabalho, onde morriam de doenças e inanição.

 

Jamal Paxá, comandante da 4.a Unidade do Exército, foi nomeado governador supremo da Síria e da Arábia, e tinha um tenente adequado na pessoa de Baha al-Din, que havia adquirido experiência prática na arte de destruir grupos inteiros de minorias na Armênia. Os sionistas e as instituições judaicas eram considerados, por Jamal Paxá e seus lacaios, inimigos reais da Turquia. As primeiras medidas tomadas contra eles, em outubro de 1914, eram a proibição, por exemplo, do uso do idioma hebraico em Tel Aviv. Todas as inscrições tinham que ser feitas em turco ou árabe, abaixo das quais o hebraico poderia aparecer em caracteres pequenos. Tel Aviv foi cercada por tropas. Faziam-se buscas nas casas dos líderes sionistas; muitos de seus documentos eram confiscados, presumivelmente para expor os objetivos do sionismo. Vários sionistas foram presos e condenados à expatriação. O uso e a posse de selos JNF eram punidos com sentença de morte. Os judeus não podiam proteger os subúrbios judeus nem as colônias da Judéia. Era proibido o uso da língua e da escrita hebraicas na correspondência. A bandeira sionista e as instituições administrativas foram declaradas ilegais. Foi proibida a transferência de terras para judeus, e as autoridades tentaram apossar-se das escrituras de terras já em mãos dos judeus.

 

Ao meio-dia de 17 de dezembro de 1914, Baha al-Din emitiu uma ordem: todos os estrangeiros tinham de partir. Um navio aportaria em Jaffa às quatro horas da tarde. Soldados e policiais prendiam judeus (homens, mulheres, velhos e crianças) nas ruas e os punham na cadeia. De noite eram empurrados para o cais e postos em barcos, que os levavam para o navio. Maridos eram separados das mulheres; pais eram separados dos filhos. Começaram a ser feitos julgamentos, condenando sionistas preeminentes, entre os quais Yitzchak ben Zui e David ben Gurion, que a essa altura ocupavam altas posições no movimento trabalhista. A punição de Ben Zui foi trabalho forçado, por causa de um artigo que descrevia a brutalidade usada durante as deportações. Ben Gurion foi acusado de subversivo... ”Seu desejo é estabelecer um Estado judaico na Palestina. Decreto que deixe o país... Entrementes você será preso.”

 

A princípio, a Galiléia sofreu menos do que a Judéia; mas não por muito tempo. Intensificaram-se as requisições. Animais de tiro, instrumentos agrícolas e armazéns de cereais eram confiscados para o exército. As colônias eram forçadas a fornecer homens, cavalos e carroças para o trabalho nas instituições militares em Beersheba, e muitos morriam de doenças contraídas em conseqüência do trabalho árduo, em condições miseráveis.

 

A situação de Dovid era um tanto especial. Trabalhar em Athlit tinha suas vantagens. Nos anos em que tinha trabalhado com Aaronson, o relacionamento entre os dois consolidara-se; Dovid tinha mostrado grande potencial, e seus esforços não ficaram sem recompensa. Visto que Aaron tinha trabalhado em estreita colaboração com o governo turco, resolvendo problemas agrícolas, e se tornado um cientista de renome, o paxá quase esqueceu — nunca perdoou — que ele era judeu. Ele podia interceder junto ao paxá em favor de Dovid, lembrando-lhe que os homens de Athlit eram mais valiosos para o governo com seu conhecimento de agricultura do que na limpeza de estradas. O paxá concordou, não por caridade, mas porque a Turquia precisava, com urgência, de alimentos para o exército.

 

A posição de Moishe era mais complicada. Apesar de seu ódio pelo governo turco, não tinha escolha senão alistar-se ou ser deportado; por isso, despediu-se da irmã Chavala com um beijo, dizendo que voltaria para Jaffa, a fim de aguardar ordens. Quando chegou a Jaffa, viu-se repentinamente no meio da tempestade de prisões. Os judeus eram empurrados ao longo das ruas. Seguiu a torrente de judeus aterrorizados e confusos, nenhum dos quais estava mais aturdido do que ele.

 

Moishe estava na estrada que ligava Haifa a Jaffa, enquanto Baha al-Din assinava as ordens de expulsão. Viu anciões de barba grisalha, de casacos e chapéus de aba larga, carregando nos braços tudo o que possuíam. A multidão crescia e os clamores também...

 

— O que foi que fizemos?...

 

— Por que estão fazendo isso conosco?...

 

— O que fizemos?...

 

— Para onde estão nos mandando?... Morreremos no deserto...

 

Quando o grupo de judeus desalojados foi lançado na casa de detenção, as celas já estavam lotadas. Famílias eram separadas...

 

— Onde está você, Isaac?... Meu nenê, meu Deus, onde está meu nenê?...

 

Moishe não conseguiu mais conter a raiva.

 

— Exijo que me levem a seu comandante. A resposta foi uma coronhada na cabeça.

 

Moishe cambaleou, pôs a mão na cabeça, sentindo o sangue correr. Sacudindo a cabeça para clarear as idéias, gritou novamente:

 

— Eu vim para me alistar no exército... O soldado riu.

 

— Na Rússia você se alista.

 

As pessoas eram empurradas para dentro de um salão, e recebiam ordens para entregar o dinheiro que tinham. Depois que todos os pertences eram tomados, eram arrebanhadas para as docas e, no meio de toda aquela loucura, atravessavam uma plataforma para entrar num navio malconservado que foi posto à deriva para encontrar seu caminho de volta à Rússia.

 

No convés, Moishe tomou a decisão de não voltar... preferia morrer... Nesse momento, percebeu a presença de um chalutz ao seu lado. Olharam um para o outro, e então, sem qualquer necessidade de falar, cada um pareceu ler o pensamento do outro.

 

— Você sabe nadar? — perguntou o estranho, com voz sussurrada.

 

— Não. Mas se você tiver algum plano, eu aprendo rápido.

 

— Eu tenho uma bússola. Sei onde podemos saltar do navio e, com muita sorte, chegar ao Cairo... Pelo que ouvi dizer, Trumpeldor está tentando convencer os ingleses de que os judeus sabem combater.

 

— Não dou nada pelos ingleses. Não são melhores do que os turcos; mas para a Rússia eu nãovou voltar.

 

— Ótimo. De noite saltaremos... A propósito, meu nome é Nathan Zalman.

 

Os dois trocaram um aperto de mão.

 

— Se não conseguirmos, nossos nomes não importam; mas, só por precaução, meu nome é Moishe Rabinsky.

 

Moishe, que nunca havia nadado, saltou e ficou surpreso de ver que, de algum modo, tinha voltado à superfície. Por um momento, chapinhou na água. Seu progresso era mais lento do que o de Nathan, mas sua decisão fez com que ficasse quase lado a lado com seu novo camarada...

 

Quando finalmente chegaram à praia, deitaram-se de costas, completamente exaustos e incrédulos. Se tinham podido realizar aquela façanha, conseguiriam viver o bastante para ver o Messias.

 

Chavala ficou preocupadíssima porque Moishe não voltou aquela noite. As tentativas de Dovid de acalmar seus temores não adiantaram. Ficou acordada até de madrugada, convencida de que algo terrível tinha acontecido ao irmão.

 

Quando Dovid acordou na manhã seguinte, encontrou Chavala de pé junto à janela. Pondo o braço em torno dela, disse:

 

— Temos de esperar o melhor, não o pior, querida. Moishe é forte, ele...

 

— Eu não sou criança, Dovid. Você sabe tão bem quanto eu que deve ter acontecido alguma coisa. Ele não levou suas coisas; ia voltar depois de se alistar. O que vamos fazer?

 

— Aaronson tem ligações nesse meio. Se alguém pode descobrir o que aconteceu, esse alguém é ele..

 

Chavala esperou, e sua ansiedade cresceu. Finalmente, no terceiro dia, quando Dovid voltou para casa, ela compreendeu que ele tinha confirmado o pior. Leu-o na expressão de seu rosto. Moishe estava morto.

 

Tomando-a nos braços, ele disse:

 

— Moishe está em Alexandria, com Trumpeldor. Aaronson recebeu esta mensagem. aqui está, veja você mesma. Ele está em Alexandria.

 

Com as lágrimas correndo-lhe pelo rosto, ela olhou para Dovid.

 

— Ele está em segurança. graças a Deus. Está em segurança.

 

Sim, mas por quanto tempo? - pensou Dovid.

 

O mundo de Chavala, que pouco antes parecia tão seguro e sereno, estava se desmoronando. Sheine fora chamada para trabalhar na frente de batalha, perto da fronteira síria, numa unidade hospitalar. Moishe estava vivo, mas por quanto tempo? Talvez não fosse considerado um soldado, mas os encarregados das mulas corriam tanto risco de vida quanto qualquer combatente. E agora Dvora viera a Zichron para anunciar seu casamento com Ari.

 

Recordando aquele breve espaço de tempo que passara em Zichron, viu como era presunçoso achar que se podia controlar a própria vida, quanto mais a vida dos entes queridos. Então Dvora ia casar. Olhando para a irmã, Chavala recordou como havia planejado fazer o enxoval, quando as irmãs casassem. Ela e Dovid entrariam no chuppah, cada um por sua vez... Agora esse sonho estava destruído; não havia jeito de convencer Dvora.

 

— Espere até a guerra acabar, por favor, Dvora. Eu oro para que Ari volte. mas, querida, se o pior tivesse de acontecer..

 

— Daqui até lá nosso filho já terá nascido. Naturalmente. Dvora já era mulher, e Chavala nem sequer tinha notado.

 

— Você está grávida dele?

 

— Estou, e me orgulho disso. Eu o amo, Chavala, como você ama Dovid. E, aconteça o que acontecer, terei de aceitar.

 

Chavala concordou com a cabeça.

 

— Quando é que você quer casar?

 

— Imediatamente.

 

Depois que Dvora saiu, Chavala ficou sentada na sombra, e começou a cair em si; começou a ver que sofria de uma doença muito grave: autocompaixão. Era o bastante. Outras pessoas tinham seus problemas também, muitos dos quais maiores do que os seus... e lembrou-se de Sarah Aaronson..

 

Somente Deus sabia como Sarah devia ter sofrido, quando renunciou ao homem que tanto amava em favor de Rivka. (Não lhe ocorreu a ligação entre ela, Dovid e Sheine, o que não era de surpreender.) Sarah era uma mulher de grande beleza e força de vontade, cheia de alegria de viver, e sempre estivera pronta para aventuras. Mas Rivka era diferente, talvez o oposto. Era sempre a irmãzinha adorada, doce, maliciosa e vulnerável. Vivendo como ela vivia, perto de pessoas tão vigorosas como Sarah, Alex e Aaron, adquiriu um sentimento de inferioridade, que Sarah não só compreendia, mas de que também se culpava. Rivka parecia ter passado quase despercebida. Podia ter sido muito adorada, mas ainda assim não podia competir com as outras. Embora tivesse recebido numerosas propostas, tinha recusado todas, por causa de seu errôneo sentimento de indignidade. Sarah concluiu, mais uma vez, que era ela quem estava atrapalhando a vida de Rivka. O amor da irmã por Absalom era intenso, tão completo, que não havia dúvida de que não se casaria com outro. Sarah os tinha visto juntos; tinha visto não apenas a maneira como Rivka olhava para Absalom, mas como ela o olhava de baixo para cima. E ela não se enganara. O homem era sem igual, maravilhoso. Afinal, ela se havia apaixonado por ele, não era verdade? Bem, já basta de pensar naquilo. O que tinha de decidir era se ela era suficientemente forte para renunciar a esse homem pela felicidade da irmã, por sua vida, realmente. uma vida que tantas vezes fora limitada e frustrada, como achara Sarah, por causa de suas próprias ações e pela ação dos outros membros de sua família. Ela pensava, sacudindo a cabeça pela ironia da coincidência, em Aaron e em como ele estava sozinho agora por causa de uma mulher que não podia ter, uma mulher casada com um de seus amigos mais íntimos. Aaron conseguira negá-lo a si mesmo, em favor de outra pessoa... Será que ela era capaz de fazer o mesmo pela própria irmã? De algum modo, tinha de fazê-lo, mas como suportaria? Por um momento pensou em mudar-se para outro lugar, para que Rivka ficasse livre para desfrutar de seu amor por Absalom, um amor que ela acalentara por muito tempo. Mas isso seria covardia demais, e Sarah não era covarde. Que fazer então?

 

A melhor coisa que ela poderia fazer seria uma campanha... e estremeceu ao pensar nisso... Fazer Absalom cansar-se dela. E começou a pôr em prática essa idéia quando ele a pediu em casamento, com uma expressão um tanto lânguida.

 

— Não sejamos impetuosos.

 

Absalom não era um homem que se deixasse pôr de lado com facilidade; não pelos turcos ou judeus de pouca visão que não conseguiam ver que seu futuro estava na posse de sua própria terra. nem pela mulher com quem ele tinha decidido passar a vida. Que diabo ela estava querendo dizer? Por que aquela súbita mudança? Visto que ele não era bem seguro de si quando se tratava da atração que exercia sobre as mulheres, começou a imaginar que ela tivesse encontrado ou preferido outro. Perguntou-lhe.

 

Sarah começou a inventar uma história que, esperava, fosse mais convincente do que pensava.

 

— Absalom, por favor, tente perdoar-me. Eu amava você realmente, mas ultimamente tenho percebido que somos muito semelhantes, que o casamento simplesmente agravaria a situação, e acabaríamos ficando amargurados.

 

Ele ficou perplexo, embora parecesse que ela estava dizendo aquilo que ele mais temia.

 

— Então você encontrou outro?

 

— Encontrei; mas, por favor, tente recordar as coisas boas de que partilhamos. Tenho certeza de que sempre as recordarei.

 

”Maravilhoso”, pensou ele. ”Viver de recordações. Para o diabo!”

 

Sentiu-se magoado, zangado; e não visitaria mais a casa dos Aaronsons.

 

Naturalmente, a família de Sarah ficou confusa. Sarah tentou explicar a situação ao pai, dizendo que seu amor não era suficiente, que ela queria um lar e filhos, e não um poeta, que Absalom nunca se fixaria num lugar, pois era um espírito livre; uma boa pessoa, mas com um estilo de vida que acabaria tornando impossível a vida em comum, e assim por diante. Ela ia passando a acreditar em si mesma, à medida que prosseguia na mentira.

 

Ephraim estava muito angustiado. Aaron tinha sido forçado a viver na solidão, e agora Sarah.

 

— Sarah, você tem certeza de que não vai se arrepender disso? Ela apenas sacudiu a cabeça; não tinha coragem para falar mais nada.

 

Bem, poderia haver um homem adequado para Sarah, e onde é que Ephraim poderia encontrar outro como aquele? Um homem que ocupasse o lugar de Absalom?

 

De fato, ele não encontrou outro Absalom, mas encontrou um homem, um jovem muito rico, um comerciante de Constantinopla. Aquele verão foi, naturalmente, como um pesadelo sem fim. O que Sarah dissera a Absalom a respeito de ser forte e independente era irrelevante somente para Absalom. Para esse outro homem, aquilo era como uma sentença. Ela crescera como uma mulher de mente independente, na atmosfera livre de Zichron. Ali estava sujeita a um mundo de estilo oriental, onde a atitude do marido em relação à mulher era ditada pela conveniência dele, pelas necessidades dele.

 

Na realidade, ele gostava muito de Sarah, mas fora criado dentro das regras alemãs convencionais, rígidas e antiquadas que sua família levara de Berlim. Como sua mulher, Sarah nunca poderia sair de casa sozinha. Ela estava abrigada, isolada. Bem, isso era uma espécie de expiação por tudo o que havia negado a Rivka no passado. Pelo menos estavam quites. Esperava que Rivka e Absalom. Ah, vamos parar com isso, pensou. Não era tão nobre assim! Tinha feito o que achara certo. Mas não era nenhuma santa. Era uma mulher, e sentiu-se como qualquer outra mulher que tivesse perdido seu homem.

 

Era a ocasião perfeita para Rivka procurá-lo, ajudá-lo a superar suas dificuldades. Ela mostrou ter uma doçura, uma serenidade de que ele parecia precisar muito, depois do namoro tumultuoso e do posterior rompimento com Sarah. Rivka era como um bálsamo curativo.

 

Em pouco tempo, estavam casados, o que não foi surpresa para ninguém.

 

Como acontecia com Sarah, Absalom esforçava-se para manter seu casamento em harmonia; mas ele ainda amava Sarah. Ao casar com ele, Rivka sabia que ele não a amava; mas, como aconteceu com milhões de mulheres antes dela, tinha esperança de que, com o tempo, ele pudesse amá-la.

 

Isso não aconteceu. Era óbvio para todo mundo que eles não podiam sequer manter as aparências; e então Ephraim compreendeu que Sarah se havia sacrificado, um sacrifício que derrotara a si próprio. Ele só lamentava o sofrimento das pessoas envolvidas; não culpava ninguém. Mas ao ver Rivka tão taciturna que dava pena, compreendeu que tinha que tomar uma atitude imediatamente. Rivka foi mandada para a América, onde se esperava que esquecesse Absalom e encontrasse algo novo e melhor, junto aos parentes de San Francisco.

 

As cartas de Sarah tocaram diretamente o coração de Absalom..

 

”Querido Absalom, não se passa um só dia sem que eu pense em meu enorme egoísmo. Eu não apenas destruí o que tínhamos, mas tornei as coisas até piores para Rivka. Espero que a América possa compensar parte do que ela perdeu...”

 

E Absalom escreveu:

 

”Sua bondade, minha querida Sarah, é tão grande como sua coragem. Você não deve continuar recriminando-se. É verdade, foi-se uma parte de mim, quando você foi embora. Fiquei magoado, zangado. Mas nós dois estamos juntos, mesmo longe um do outro. O amor que há entre nós não é limitado pela geografia nem pelo tempo. Admito que me sinto tentado a voltar para você, mas isso nunca daria certo. Você está casada, e eu tenho de fazer certas coisas que nos obrigariam a ficar mais afastados do que estamos agora. Por favor, tente pensar em mim, de vez em quando. Penso em você de manhã à noite, e é assim que vai ser pelo resto de minha vida”.

 

                                               Capítulo dez

Moishe e Nathan Zalman foram apanhados na praia por uma patrulha inglesa e jogados num caminhão. Para onde eles iam não sabiam; mas não ficariam surpresos se fossem enforcados como espiões. Sem documentos, como poderiam defender-se?

 

Ao passar pelo porto de Alexandria, Moishe ficou maravilhado com uma visão que, momentaneamente, afastou seus temores. Ancorada no porto, estava uma unidade da gigantesca armada inglesa, o encouraçado Queen Elizabeth, tão majestático quanto a rainha que lhe emprestara o nome. O cruzador russo Askold estava próximo, com suas cinco chaminés destacando-se no horizonte egípcio. Havia navios de guerra, cruzadores, contratorpedeiros, navios de transporte e embarcações francesas menores. Era uma pena que não tivessem vindo para livrar seu povo da servidão, para enfrentar o desafio de libertar a Palestina. Na realidade eles estavam do lado da maioria das potências mundiais, e ninguém ligava. Somente os judeus é que podiam salvar a si mesmos, particularmente esses dois judeus.

 

Quando, finalmente, foram deixados no pavilhão de refugiados de Mafruza, Moishe ficou chocado ao ver que o recinto estava lotado de jovens judeus, que estavam indubitavelmente refletindo sobre seu destino, do mesmo modo que ele. E como Moishe, eles não sabiam que seu destino estava nas mãos de homens em cujos nomes nunca tinham ouvido falar, se bem que, em breve, conheceriam.

 

Vladimir Jabotinsky era considerado um gênio aos dezessete anos de idade. Sua prosa e sua filosofia estavam sendo lidas na terra de Tolstói, Górki e Dostoiévski. Era um lingüista nato, tendo traduzido Shakespeare para o russo e Guerra e paz para o inglês. Aos trinta anos, seu nome já estava na enciclopédia russa. Se ele fosse russo, sua vida teria sido muito diferente; mas era judeu e, por isso, seu destino era ser odiado e discriminado. Sua inteligência e seus talentos podiam ser raros, mas sentia profundamente a miséria de seu povo e a compartilhava com o mais humilde compatriota.

 

Achou-se apanhado numa luta que o forçava a reexaminar sua própria posição. vivia ele como russo, isolado de seu povo, ou como judeu? Só havia uma resposta para esta pergunta depois que ele presenciara os pogroms de Kichinev em 1903.

 

Jabotinsky rejeitou o enfoque revolucionário, doutrinário, da inteligência russo-judaica. Foi para o gueto, a fim de explorar seu interior, entender suas mágoas, aprender sua língua. Tornou-se um sionista consumado, um convertido a Herzl e ao seu sonho de um Estado judaico. Depois de visitar as sedes da Organização Sionista Mundial espalhadas por toda a Europa, partiu para a França, no verão de 1914.

 

Certa noite, andando pelas ruas de Paris, parou na praça onde Dreyfus fora acusado de traição, e onde Theodor Herzl estivera no mesmo dia, sob a chuva torrencial, quando ouvira o terrível grito: ”Matem os judeus!”

 

Jabotinsky estava ciente dos ecos desse grito, os quais lhe davam o seu mais forte senso de ligação com seu povo.

 

Na manhã seguinte, a França estava em guerra. E, depois que Bruxelas rendeu-se ao exército alemão e o Império Otomano declarou guerra aos Aliados, Jabotinsky compreendeu que, após quatrocentos longos anos de tirania, os turcos davam o passo final para sua própria morte. Isso só beneficiaria os judeus.

 

Ele via claramente o seu caminho. Herzl tentara a diplomacia e, apesar de todo o seu esforço, fracassara. A filantropia de Rothschild não fora suficiente, e os revolucionários judeus da Rússia tinham fracassado. Agora, com o Império Otomano prestes a desmoronar, Jabotinsky compreendeu que os judeus tinham de participar ativa e diretamente do combate, em favor de sua libertação e de seu destino. O tempo de contar com amigos e doutrinas estrangeiras tinha passado. Uma unidade militar composta exclusivamente de judeus estava à mão. Os judeus lutariam do lado dos Aliados. E essa estrada conduziria à Palestina.

 

Naquela mesma noite, fez sua bagagem e partiu para o Egito.

 

Em Alexandria, no campo de refugiados, Mafruza, Jabotinsky encontrou o grande oficial russo judeu Joseph Trumpeldor. Quando Jabotinsky viu o oficial, de um braço só, sentado a uma tosca mesa de madeira, mal pôde conter a raiva contra os ingleses, por mostrarem tão pouco respeito por aquele homem. Afinal, a Grã-Bretanha e a Rússia eram aliadas, e esse extraordinário oficial tinha alcançado uma posição, no exército russo, que nenhum outro judeu jamais conseguira alcançar.

 

Jabotinsky lembrou-se das origens de Trumpeldor. Ao contrário de Jabotinsky, cuja família era rica, Trumpeldor vinha de berço humilde. Seu pai tinha servido no exército por vinte e cinco anos como conscrito, no reinado do czar Nicolau I. Sendo judeu, Xrumpeldor não pudera freqüentar uma universidade. Aprendeu odontologia. Quando eclodiu a guerra entre a Rússia e o Japão, foi recrutado para o exército e mandado para Port Arthur, na Manchúria. Por esse sacrifício e bravura durante o cerco de um ano, foi condecorado com a Ordem de São Jorge, a mais alta honra conferida a qualquer oficial. Depois da guerra, recebeu um posto de oficial da reserva, o que finalmente lhe deu o direito de freqüentar uma universidade e concluir seus estudos anteriores de direito. Entretanto, apesar das honras, Trumpeldor era um judeu na Rússia, sem futuro algum. Partiu para a Palestina, onde trabalhou cultivando o solo. E com as deportações dos judeus, entrou em ação. Sabia o que aconteceria a esses judeus se eles fossem mandados de volta para a Rússia. E se chegassem vivos ao Egito, o cônsul Petrov exigiria a deportação de todos os varões palestinos. Trumpeldor decidiu tentar sua capacidade de persuasão em Petrov. Iria a Alexandria, como um dos primeiros expatriados.

 

Quando seu navio chegou a Alexandria, Trumpeldor já tinha reunido um grupo de jovens discípulos que o seguiriam até os confins da terra.

 

Agora Trumpeldor estava sentado a uma mesa improvisada, fazendo planos para seu exército de judeus, que ele pretendia apresentar aos ingleses. Teriam que reconhecer o quanto os judeus tinham em jogo nessa guerra. Uma legião de judeus seria a unidade mais dedicada, leal e eficaz que os Aliados poderiam ter. Homens obcecados por um sonho que lhes fora negado desde há muito tempo. Lutariam até a morte.

 

Parando por um momento para ordenar os pensamentos, levantou a vista e viu Jabotinsky na porta. Não era preciso apresentação alguma; Trumpeldor reconheceu o famoso jornalista e escritor de perfis que já tinha visto. Estendeu-lhe a mão e disse:

 

— Não estou surpreso de que tenha vindo. Se precisavam de você em algum lugar, esse lugar é aqui. Dizem que a palavra é mais poderosa do que a espada.

 

— Somente em certos casos. Talvez no caso de Zola, em que Dreyfus estava envolvido; mas para nossa causa, somente um exército servirá — disse Jabotinsky.

 

Daquele momento em diante, esses dois homens estariam ligados por um elo comum; seus objetivos eram idênticos. Após o jantar, foram para o hotel de Jabotinsky e este leu o memorando que Trumpeldor havia preparado para apresentar ao alto comando inglês.

 

— Suponho que nada disso tenha sido discutido com os ingleses.

 

— Não. Mas antes que seja apresentada qualquer coisa, obviamente isso tem de ser traduzido para o inglês, e é aí que você entra, meu amigo.

 

— Estou mais preocupado com números — disse Jabotinsky. — Se pudéssemos apresentar aos ingleses um regimento de voluntários, então teríamos uma verdadeira chance de sucesso. Quantos homens você acha que poderiam ser reunidos?

 

Trumpeldor disse-lhe que, no momento, havia duzentos homens robustos, e que, a cada dia, novos refugiados engrossavam as fileiras. Tinham fugido da Palestina em qualquer embarcação que pudesse deslocar-se na água, e a única coisa que se podia esperar era que os turcos continuassem a expulsá-los. Se os judeus egípcios pudessem ser tirados de sua letargia, haveria uma possibilidade de pelo menos mil homens. Estaria garantido um regimento.

 

Jabotinsky assentiu.

 

— Você tem razão, mas temos ainda que convencer esses judeus egípcios de que a Palestina é mais importante do que o Cairo. Esses judeus, que outrora foram escravos do faraó, são senhores de servos egípcios agora. Os tempos mudaram. Não estou querendo dizer que os judeus egípcios não estejam conosco, mas eles não viveram sujeitos aos turcos, e os ingleses estão aqui para protegê-los.

 

— São apenas uma pequena parte dos judeus do Egito. Os soldados estão passando fome e não perderiam a oportunidade de ganhar cama e mesa, além de rações diárias. Já os vi com fome, vagando pelas ruas de Alexandria.

 

— Eu sei; mas o poder da comunidade judaica aqui são os sefarditas ricos, influentes. Qualquer medida que tomarmos deverá incluí-los. Teremos que cultivar sua amizade.

 

O nome Vladimir Jabotinsky abrira as portas certas, e ele trouxera Trumpeldor. As senhoras ficaram fascinadas com o herói de um só braço. Certamente elas usariam sua influência nos lugares certos para ajudá-lo a recrutar jovens judeus egípcios. Os líderes sefarditas foram convencidos, pela eloqüência de Jabotinsky, de que a Grã-Bretanha devia aceitar as exigências de uma legião combatente judaica na frente palestina, para a libertação de Eretz Yisroel, e prometeram seu apoio.

 

Agora Trumpeldor estava pronto para apresentar-se às autoridades inglesas. Quando ele apareceu. Alto, de ombros largos, esbelto, com a educação de um oficial e a dignidade de um cavalheiro (até inglês), não deixou de impressionar Ronald Graham, ministro do Interior para o Egito. Este prometeu fazer tudo o que pudesse. Enquanto esperava uma resposta, Trumpeldor abriu um escritório de recrutamento. Eram escritos nomes em hebraico, iídiche e russo.

 

Em Londres, o general Sir John Maxwell andava de um lado para outro de seu majestoso gabinete, com uma petição nas mãos.

 

Aqueles judeus sanguinários eram uns idiotas, pensando que podiam escolher a guerra que queriam fazer. Como ousaram propor uma coisa esquisita daquelas? Não tinha havido nenhuma ofensiva contra a Palestina. Os ingleses não estavam naquele negócio para conseguir qualquer terra que fosse para os judeus. Que coragem inexplicável essa deles de achar que podiam tornar-se aliados legítimos do exército inglês! Serviu-se de uma bebida, sentou-se e ficou bebericando. No entanto, talvez houvesse algo que esses judeus pudessem fazer, ainda que fossem inoportunos. Não como soldados do reino, mas como, digamos, ajudantes de caça. Afinal, isso era tradição britânica. Na índia, no Sudão, os nativos eram usados e sempre tinham sido muito úteis. Recordou nostalgicamente como na Guerra dos Bôeres seu próprio criado particular o havia acompanhado, carregando seus uniformes feitos sob medida e suas esporas de prata genuína. Aquela tinha sido uma guerra de cavalheiros. Naturalmente, todas as guerras eram diferentes. Havia necessidade de homens para o transporte. O terreno poderia ser. acidentado. Bem, poderia ser difícil subir as colinas de Galípoli.

 

Assim o secretário do general preparou uma resposta. Os voluntários seriam bem-vindos ao exército de Sua Majestade, na qualidade de unidade de mulas de transporte. Essa unidade especial levaria até armas.

 

Quando Trumpeldor leu a resposta, tentou, sem sucesso, engolir a irritação. Não iriam dar aos judeus a honra de combater como homens. Os jovens que o cercavam viviam dessa única esperança; e, com um mês de treinamento, demonstravam ser soldados muito bons. Agora como diabos ele iria dizer-lhes isso?

 

Quando Jabotinsky soube, explodiu.

 

— Deixe isso para os ingleses. Eles nos insultaram, deram-nos uma bofetada no rosto. Santo Deus, Joseph, você não vai aceitar isso, vai?

 

Trumpeldor replicou com a mesma fúria.

 

— Que escolha temos? Mulas, tropas de transporte. que importa? O essencial é que os ingleses vençam; e quando os turcos forem expulsos, os homens esquecerão que foram carregadores de água e munição. Na guerra vale tudo. Pelo menos isso dará ao mundo uma oportunidade de saber quem são os judeus.

 

Quando os homens souberam da notícia, seus rostos ficaram sombrios; os ingleses estavam, simplesmente, usando-os; eles se recusariam a ser tratados como os animais que os conduziriam à batalha.

 

Trumpeldor esperou, depois disse:

 

— Um soldado é um soldado, quer use uma arma ou conduza uma mula. No exército, isso não faz diferença. O importante é lembrar que esta será uma unidade judaica, com sua própria insígnia, a estrela-de-davi: A primeira unidade combatente em mil e oitocentos anos. — E depois de fazer uma pausa, concluiu: — Fiquem orgulhosos; vocês são soldados. Debandar!

 

Entre aqueles que ouviam Jabotinsky, com ceticismo a princípio, estava Moishe, que havia escapado do laço da forca exclusivamente graças ao progresso que Jabotinsky, e especialmente Trumpeldor, tinham feito no sentido de conseguir um certo status para os judeus entre os militares, mesmo que somente como unidade de mulas. Portanto, os judeus estavam pelo menos um passo à frente nas lições tomadas com a corda no pescoço.

 

Os dias anteriores tinham sido difíceis... Os ingleses eram quase tão incivilizados quanto os russos e os turcos, embora falassem, às vezes, com sotaques impecáveis, enquanto praticavam abusos. Na prisão dirigida pelos ingleses em Alexandria, a terra dos faraós, havia uma disciplina despótica, lixo e imundície. Tudo era lavado e polido, inclusive as botas engraxadas dos guardas — em que se podia ver claramente o rosto magro de um judeu, como num espelho —, mas por trás do brilho estava a sujeira. Diziam que o sol nunca se punha no império britânico. Também nunca nascia para aqueles que acabavam atrás dos muros de suas prisões. No dia em que libertaram Moishe. Nunca mais encontrara seu amigo. ele pensou que, com certeza, aquele seria o último. As conversas sobre forca, dos guardas que o cutucavam com fuzis, eram calculadas para mantê-lo nessa expectativa. Transportados num caminhão como gado, Moishe e outros foram levados para um alojamento primitivo. Puderam tomar seu primeiro banho em várias semanas; depois seguiram, limpos, para ouvir seu grande líder. Imagine sua surpresa, quando, ao invés de falar com sotaque inglês, o líder falou como judeu, que era de fato, além de ser um oficial. Incrível! Está bem. puxariam mulas, mas pelo menos seriam mulas judaicas. Desde quando os judeus conseguiam fazer progresso depressa?

 

Quando Trumpeldor voltou para seu alojamento, Jabotinsky estava à sua espera.

 

— Bem, como receberam a notícia?

 

— Do mesmo modo que você, mas irão em frente.

 

— Neste caso, vou partir para Londres. Você tinha razão; às vezes, a palavra pode ser mais forte do que a espada. Usarei as palavras na luta por uma unidade militar composta exclusivamente de judeus, com o mesmo status de qualquer soldado britânico.

 

Na manhã seguinte, enquanto Trumpeldor dava instruções a mil homens do Destacamento de Mulas de Sião, um oficial britânico os observava de perto. Aquilo era um verdadeiro espetáculo. Guerreiros judeus orgulhosos, tão orgulhosos de serem judeus como ele de ser irlandês.

 

Trumpeldor fez os homens permanecerem em posição de sentido e, com a ajuda de um oficial do exército regular, que servia de intérprete, o tenente-coronel John Henry Patterson foi apresentado em hebraico, iídiche e ladino:

 

— Quero que vocês saibam — disse ele — que considero uma honra ter sido designado para suas fileiras. Ao olhar para vocês, vejo o espírito que inspirou seu grande general Bar-Kochba. Esse espírito ergueu-se novamente dentro de suas fileiras. Serei seu oficial comandante, mas somente com a colaboração do capitão Trumpeldor. Estou orgulhoso de estar entre vocês.

 

Patterson havia liderado tropas na África e na índia; e, se um soldado como ele se sentia honrado em comandar uma tropa de transporte, não havia nada de que se envergonhar. Eles decidiram.

 

Ver aqueles jovens com a estrela-de-davi nos quepes suscitava grande orgulho em Trumpeldor e Patterson. Ordenaram aos homens que se retirassem. Era hora de provar o que realmente eram.

 

Todos de uniformes, com mochilas nas costas, Moishe e seus colegas de destacamento marcharam pelas ruas de Alexandria. Que espetáculo! com a estrela-de-davi nos quepes, eles seguravam os antigos fuzis ao ombro, com orgulho. Os meninos judeus e egípcios acompanhavam a marcha, aplaudindo. Os judeus, jovens e velhos, aplaudiam. e Moishe viu mais de um limpando lágrimas dos olhos. Mulheres e meninas jogavam flores no caminho. Pararam junto à grande sinagoga e foram abençoados pelo rabino-chefe em hebraico.

 

Os homens tinham setecentas e cinqüenta mulas. Havia vinte cavalos para os oficiais. Além de Trumpeldor foram nomeados cinco oficiais britânicos e oito judeus, estes com o soldo quarenta por cento inferior ao daqueles, mas pelo menos as ordens eram dadas de modo igual. em hebraico e em inglês.

 

As mulas, escolhidas de acordo com o tamanho, estavam sendo levadas para os navios de transporte, às vezes escoiceando e zurrando. um contraste estranho com o toque estridente das gaitas escocesas que vinha de outro navio de transporte de tropas. Depois, acompanhados pelos apitos dos navios e sob o comando de cornetas, os homens embarcaram. As mulas antes dos homens.

 

Moishe havia aberto caminho com os cotovelos a fim de ficar junto à amurada, para observar o que se passava. Até onde sua vista alcançava, havia navios. Obviamente ele fazia parte de uma grande operação, que superava a visão impressionante que tivera ao observar os navios no porto de Alexandria, no dia de sua chegada. Compreendeu que naquela ocasião ele tinha visto apenas uma pequena parte da enorme armada que ocupava o estreito mar entre a Europa e a Ásia.

 

Naquela tarde de domingo, 17 de abril de 1915, o Destacamento de Mulas de Sião partiu de Alexandria com destino a Galípoli, sob a escolta de navios de guerra britânicos. A uma certa distância, a banda do USS Tennessee;, que por acaso se achava no porto, tocava uma marcha de despedida. E de repente ecoou uma canção no porto egípcio ensolarado, entre os mastros dos barcos pesqueiros, entre as chaminés dos transatlânticos, entre as torres e a superestrutura dos vasos de guerra britânicos. Era uma canção cheia de tristeza, dignidade e grande esperança também, destinada a tornar-se o hino de uma nação que renasceria uns trinta anos mais tarde. O Hatikvah.

 

A viagem até a ilha grega de Lemnos, no mar Egeu, que era um trampolim para a invasão de Galípoli, levou dois dias e foi calma. Mas, assim que entraram na foz do Dardanelos, os ingleses dispararam um fogo maciço de canhões. Moishe estremeceu ao ouvir aquilo, pôs as mãos nos ouvidos e lembrou-se da morte. Estava diante dela, com medo... e começou a se perguntar que tipo de combatente judeu ele era. Talvez, se estivesse lutando pela Palestina, mas ali estava, num navio que pertencia a estranhos, comandado por estranhos, com destino a lugares onde ele conduziria suas mulas em trincheiras alheias. E, mesmo que os ingleses vencessem, não havia garantia de que ele voltaria para sua pátria histórica. Nesse momento, Moishe precisava com urgência de um elo entre o sonho, seu e de Dovid, de uma pátria e a realidade de sua situação imediata. Bem, Trumpeldor tinha dito: ”Todos os caminhos levam a Sião”. Apegou-se a esse pensamento. Sião era mais do que uma palavra. era um propósito. Levantou a vista e viu as línguas de fogo vermelhas que cruzavam o céu; seu medo diminuiu. O fato de a enorme montanha que se achava diante dele não ser o monte Carmelo não importava tanto. Ele compreendia o que Trumpeldor havia dito sobre lutar por um país que havia aniquilado seu próprio povo e por um czar que o havia perdoado. A causa pela qual ele e os outros lutavam era maior. e ele lutava não como russo, não pela causa da Rússia, mas pelo seu próprio bem como judeu, por todos os judeus. Trumpeldor acabara de voltar para Alexandria, quando lhes disse para se orgulharem e que eles tinham que mostrar o que eram, mesmo como condutores de mulas. Era um primeiro passo importante...

 

A certa altura, ocorreu uma grande agitação, pois estavam a 25 de abril, data marcada para a invasão de Galípoli. Quando se aproximavam do destino, encontraram o inimigo pronto e esperando-os logo acima da fortificação de Achi Baba. A armada britânica ficou sufocada. A passagem era estreita demais para permitir a aproximação de todas as embarcações. Entretanto, foi dada a ordem, e os homens saltaram para a água. De repente subiram à superfície centenas de senegaleses, australianos, neozelandeses, irlandeses, galeses e ingleses, agarrados em seus fuzis e dirigindo-se para a praia. Havia carnificina por toda parte. Aqueles que tinham chegado à praia saíam da água arrastando-se como ouriços-do-mar. Havia corpos flutuando de bruços, muitos ainda com a arma presa nas mãos, sem terem tido chance de disparar um só tiro.

 

Foi dada uma ordem para inverter posições e, finalmente, uma parte da praia ficou sob controle. Os homens de Sião poderiam ter desembarcado, só que não havia barcas. Do parapeito, Patterson gritava para os homens das barcas que pousavam no mar:

 

— Vocês têm que me desembarcar, seus idiotas. Sou dono de sua água. Se vocês não morrerem pelas balas, morrerão de sede.

 

Nenhuma embarcação diminuiu a marcha. Patterson resolveu tomar medidas. Simplesmente requisitou as barcas que voltaram da batalha com os mutilados e feridos, no momento em que eram desocupadas. Os mortos e feridos não precisavam mais dessas barcas; os seus homens, sim.

 

Finalmente os homens de Sião e suas mulas puderam desembarcar. As barcas foram amarradas umas às outras, formando um pontão que se estendia até a cabeça-de-praia. Trumpeldor dispunha os homens em linha reta sobre as pranchas e os apressava.

 

Quando as mulas eram conduzidas, sob constante bombardeio, as amarras entre as barcas soltaram-se e os animais caíram na água, arrastando consigo seus tratadores. Moishe saltou para trás, agarrou-se a uma corda e a um animal assustado. A maioria deles corria em desordem, mordendo e dando coices.

 

Os turcos eram mais previsíveis do que o tempo. Uma tempestade acompanhada de um terrível tufão surgiu no mar. Caixões, latas, caixas de munições, voavam pelo ar como pipas, indo cair na praia. Durou dois dias e duas noites. Os homens amontoavam-se debaixo de qualquer abrigo que pudessem encontrar. Quando passou a tempestade, o Destacamento de Mulas recebeu ordens de Trumpeldor para salvar o que pudesse. Moishe ficou pensativo. como é que se podia pôr ordem num caos daqueles. as tendas levadas pelo vento, a praia numa desordem total... O trabalho foi até de madrugada. Depois que se conseguiu restaurar parcialmente a ordem, os homens simplesmente deixaram-se cair na terra lamacenta e adormeceram, exaustos.

 

Moishe acordou tonto e desorientado. A terrível dor de cabeça que sentia foi ignorada quando ouviu a ordem urgente para levar à praia rações e munições. Naquela confusão toda, ele quase se esquecera de que as mulas tinham sido levadas para um recanto abrigado por Trumpeldor, no terreno acidentado, sob um fogo cruzado que o deixara incerto quanto ao número de mulas que havia morrido. Na realidade, as baixas, surpreendentemente, tinham sido muito poucas. Nos dias seguintes, não tiveram tanta sorte com a intensificação da ação, muitos dos homens do esquadrão de Moishe foram feridos. O sol intenso ajudava o inimigo a fazer deles alvos claros. Uma bomba explodiu, e as mulas dispersaram-se, arrastando consigo seus tratadores, por cima de pedras e destroços.

 

Como o tenente-coronel Patterson, irlandês, tinha previsto, os combatentes judeus e seus oficiais britânicos achavam-se cada vez mais em conflito, devido à falta de treinamento adequado, o que não era culpa deles, mas da falta de comunicação. Finalmente, a terceira e quarta tropas do Destacamento de Mulas foram mandadas de volta a Alexandria, o que naturalmente era uma vergonha para eles. Patterson estava mais do que indignado. Durante um encontro com o oficial-comandante britânico, em sua tenda, ouviu a acusação de que os judeus tinham-se tornado insubordinados, recusavam-se a cumprir ordens, e por isso não havia outra solução senão mandar alguns deles de volta a Alexandria, além de prender e desmobilizar outros. Suas mulas foram entregues aos australianos, ”que eram reconhecidamente bárbaros, mas pelo menos falavam a mesma língua”. Patterson disse ao oficial que ele era um tremendo idiota, que um mês de treinamento não era suficiente para preparar tropas; de fato, eles não falavam bem o inglês, mas não era com a língua que eles tinham que descarregar caixas de munição e controlar uma tropa de mulas assustadas. Até a língua materna poderia confundir uma maldita mula apavorada com o fogo.

 

Quando Patterson e Trumpeldor voltaram para Alexandria, a fim de tentar conseguir mais voluntários, souberam a história dos maus-tratos praticados pelos ingleses contra o Destacamento de Mulas. Os homens não tinham permissão para fazer nada, senão cuidar de munições e viver com mulas, quer fosse num barco quer em terra. Obviamente alguém não aprovava o Destacamento de Mulas de Sião. Quando chegaram de volta a Alexandria não puderam sequer desembarcar para ver parentes e amigos. Sim, alguns deles rebelaram-se e foram presos imediatamente. Suas mulheres nunca tinham tido apoio; as viúvas não recebiam as pensões. Os homens exigiam a condição de soldados, e que fossem tratados como soldados. Patterson fez uma tentativa de elevar-lhes o status, mas não foi atendido pelas autoridades britânicas. Então um grupo entrou em greve de fome. Os soldados britânicos passaram a espancar aqueles considerados desordeiros, homens acusados de incitar os outros a se recusarem a voltar para Galípoli. Após o espancamento, eram amarrados a uma roda de carroça durante cinco horas, e mantidos a pão e água durante três dias.

 

Trumpeldor ficou furioso com o tratamento dispensado a seus homens, mas pouca coisa podia fazer. Ele também era um soldado, e não estava totalmente de acordo com a falta de cumprimento das ordens, sabendo que qualquer exército tinha de ter disciplina. Mas esses homens não eram criminosos. As coisas tinham ido longe demais. Tentou transmitir seus sentimentos a Patterson, mas na tradução suas palavras ficaram muito truncadas, a ponto de irritar o oficial irlandês.

 

— Maldição, Trumpeldor — disse Patterson, quando eles se encontraram. — Eu não sou um monstro. Tenho tanta consideração por esses homens como você. Mas isto é um exército, e estamos em guerra. Se alguém se recusa a voltar para Galípoli, essa atitude mina o moral e a disciplina de toda a unidade.

 

Novamente a tradução foi o maior inimigo entre os dois. Trumpeldor entendeu que Patterson responsabilizava-o pessoalmente por não ser exigente com os homens e por encorajá-los a ser indisciplinados. A seguir, Trumpeldor disse a Patterson, através do intérprete, que não ia se deixar intimidar por ameaças; que, se Patterson o queria fora da unidade, que o dispensasse. E Patterson fez exatamente isso.

 

No fim, Patterson mandou chamar Trumpeldor, pediu-lhe desculpas e disse que ele, como irlandês, também tinha o mesmo tipo de problema com os ingleses. Ainda achava que Trumpeldor, às vezes, era um pouco displicente com os homens, mas ele compreendia as razões e respeitava seu trabalho.

 

— Estou lhe pedindo que fique e esqueça o que aconteceu. Trumpeldor já esperava essas palavras e logo concordou em voltar. E, quando suas tropas souberam que Patterson tinha pedido desculpas, voltaram com ele para Galípoli. A essa altura, o combate intensificara-se. Aumentaram as baixas no Destacamento de Mulas. Os turcos tornavam-se cada vez mais teimosos. Moishe, que se desdobrara durante todo esse tempo, já era um veterano endurecido pelos combates, em comparação com os que voltaram e os novos recrutas de Alexandria. Mas isso pouco lhe valeu, quando, ao descarregar os suprimentos, uma bomba explodiu a poucos metros dele, fazendo-o cair inconsciente na lama.

 

Quando recuperou os sentidos, sentia-se como se sua cabeça tivesse sido apertada num torno. Não conseguia mover a perna esquerda, ferida pela granada.

 

Bem, pelo menos estava vivo, e seu ferimento lhe valeu uma viagem de volta a Alexandria, juntamente com outros feridos.

 

Entretanto, houve algumas recompensas pelo sangue judeu que fora e estava sendo derramado.

 

A desorganizada campanha de Galípoli chegava ao fim. Em novembro, o coronel Patterson adoeceu gravemente, transferiu seu comando para Trumpeldor e voltou para Alexandria e, depois, para a Inglaterra. No fim desse mês, a nevasca chegou, acompanhada de um frio cortante. Os judeus iam em frente, entregavam suas cargas e retornavam à base com seus animais, muitas vezes sem casaco nem botas. Como recompensa, um mês mais tarde, chegou a ordem de debandar. A península estava sendo evacuada. Antes de embarcarem, muitos foram despedir-se de seus irmãos, que seriam deixados nessa terra estrangeira, nas sepulturas marcadas com a estrela-de-davi, feitas de madeira. Cantaram o kaddish, prece em memória dos mortos, e depois marcharam, como bons soldados, para o barco que os levaria de volta para Alexandria, no início do novo ano de 1916.

 

Tinha sido uma derrota militar; mas, mesmo assim, uma certa vitória para os judeus. Afinal, eles estavam acostumados a não vencer. Pelo menos tinham dado uma contribuição importante a uma luta que, para eles, estava apenas no começo. o reavivamento de uma pátria. Sim, todos os caminhos levavam a Sião, inclusive o caminho da derrota temporária.

 

A mão de Chavala tremeu, quando ela pegou o envelope e olhou para o selo. Tinha chegado via Suíça. Hesitou em abri-lo, receosa de seu conteúdo; depois abriu-o rapidamente. Essa era a primeira vez que recebia notícias diretamente de Moishe; e ao ler a carta, chorou de alegria e alívio, por saber que ele estava vivo.

 

               ”Minha querida família:

Como vêem, somente agora é que consegui fazer uma carta chegar até vocês; e isso era algo de muita importância para mim. Espero que recebam esta. Quero que saibam que não se passou um só dia sem que eu pensasse em vocês. Mesmo na batalha, foi sua presença que me manteve firme.

Por favor, não ria, querida Chavala. Meu objetivo não era tentar derrotar os turcos; era pelo cheiro maravilhoso de sua comida que eu lutava. Eu mal consigo esperar para provar seus bolos e salgadinhos. Mesmo neste momento, seus strudel e mandelbrot me dão água na boca, e os tzimmes de cenoura me levam para mais perto de casa.

Como já deve ser do conhecimento de vocês, a Batalha de Galípoli terminou. Os ingleses poderiam ter vencido, mas são uns idiotas muito pomposos. Se tivéssemos mil e quinhentos homens, poderíamos ter vencido. O problema é que eles não entendem de montanhas como nós. Bem, pelo menos isso já passou.

Tenho muita coisa a contar, as cartas não são como as conversas que costumávamos ter, sentados um ao lado do outro. Mas logo estaremos juntos. Tenho que acreditar nisso. Só espero que tudo esteja bem aí com vocês, e que todos estejam em segurança.

Trumpeldor aconselhou-nos a ficarmos juntos, mesmo que os combatentes da unidade tenham debandado. Agora ele está a caminho da Inglaterra, porque parece que Jabotinsky está progredindo em suas negociações com os ingleses. Chaim Weizmann está ajudando, porque agora ele também acredita que devemos ter uma força militar composta exclusivamente de judeus. A bravura do Destacamento de Mulas foi evidentemente mais impressionante do que pensávamos. Corre o boato de que qualquer dia seremos mandados para Londres. Se isso acontecer, terei de desistir do peito de boi assado que você prepara e daqueles latkes de batata que derretiam em minha boca.

A propósito, sofri um leve ferimento na perna esquerda. Mas não fique preocupada, Chavala, foi apenas uma pequena granada; por isso, fui mandado de volta para Alexandria. Foi coisa de pouca importância e, na verdade, tenho descansado bastante. As enfermeiras têm feito com que eu me sinta em férias, apesar da situação. Elas não apenas são ternas, mas também muito bonitas. Não há nada como uma mulher bonita para ajudar a curar as feridas, especialmente uma que parece gostar de mim. Mas não se preocupe, Chavala. Não voltarei para casa com uma noiva shikse.

Novamente, cuide-se bem, por favor, e saiba que amo muito você. Beije o pequeno Reuven por mim e abrace-o bem apertado para que eu sinta o seu calor.

Amo você mais do que minhas palavras podem dizer.

                     Seu irmão Moishe.”

 

Era bom que Chavala nunca soubesse como ele se sentia. Pensando nisso, fechou a carta, levantou-se desajeitadamente da cama para sentar-se na cadeira de rodas e rumou para o vestíbulo.

 

                                               Capítulo onze

Primavera de 1916. Uma praga de gafanhotos. Uma oportunidade para o yishuv, mas especialmente para o cientista, e sionista secreto, Aaron Aaronson. Ele viajou para o sul, a fim de ensinar os agricultores e camponeses a combater a praga. Nomeou um de seus altos associados, Dovid Landau, supervisor da Galiléia.

 

Quando a praga já estava sob controle, Jamal Paxá decidiu, à sua maneira, que era tempo de pôr em prática a eliminação do yishuv. Todos os súditos otomanos não residentes, todos os judeus, tinham que deixar Jaffa e as colônias que ficavam na vizinhança. A ordem de evacuar Jaffa e Tel Aviv permaneceu em vigor, embora não valessem mais as considerações de estratégia que a tinham suscitado, devido à derrota dos ingleses perto de Gaza.

 

A evacuação dos judeus de Jaffa foi apenas o prelúdio de uma nova onda de perseguição.

 

Cada dia surgia uma nova crise. Agora o Mediterrâneo estava bloqueado, e esse bloqueio impedia a passagem de fundos de ajuda, ouro e gêneros alimentícios procedentes do Atlântico. Agora tinham que ser enviados pela organização sionista americana, pela JNF e outros órgãos sionistas, em forma de ordens de pagamento, através de bancos da Suíça.

 

Mas as autoridades turcas confiscavam todo o ouro em que conseguiam pôr as mãos. Na ausência de ouro, o mercado foi inundado de papel-moeda turco, que circulava em quantidade tão grande que seu valor caiu em cinqüenta por cento. A situação financeira tornou-se tão ameaçadora que o yishuv estava à beira da ruína.

 

Os ativistas assumiram a direção, mas não conseguiram proteger suas aldeias contra os beduínos saqueadores e assassinos. Tinham formado um comitê de ação política. Pretendiam comprar armas e treinar meninos para o serviço no exército. O grupo de Jaffa começou a armazenar armas em lugares secretos, e o treino de jovens era feito nos kibutzim, às escondidas, para que os turcos não descobrissem.

 

Os turcos sentiram o clima de insurreição. Membros do yishuv foram detidos e rigorosamente interrogados. Entre eles estavam Dovid e Absalom. Este, ainda triste pelo fracasso de seu casamento com Rivka, mas também, para ser franco, aliviado por ter ela partido para a América, recebeu o desafio como um alvo para suas energias e paixões. Dovid, embora fosse também um homem de talento científico, como o provara em sua associação com Aaron Aaronson, no trabalho de recuperação da terra e de eliminação dos terríveis gafanhotos, cuja conseqüência foi a fome e a doença, nunca havia desistido nem recuado em sua opinião de que os judeus deveriam ter sua própria pátria, que o perigo... e até a morte... acompanhava o seu sonho. e que um sonho, após algum tempo, era medido pela sua proximidade à realidade. Ele, pessoalmente, tinha contrabandeado armas e as mantinha no kibutz. Tinha até sido baleado uma vez e tivera que se tratar em segredo, tentando, ao mesmo tempo, acalmar Chavala, pois ela temia por suas ações e pelo que significariam para ela e sua família, para seu filhinho Reuven e para Chia.

 

— Meu Deus, Dovid, nossa família mudou. Parece que não somos mais judeus. Moishe foi ferido, e só nos resta esperar que ele se recupere de seus serviços como soldado. Eu sei quanto você tem trabalhado e se arriscado por aquilo em que acredita. Respeito sua atitude, embora eu tenha outros sonhos, como você sabe. Mas, Dovid, você nos deve algo. a você próprio, a mim. Por favor.

 

Dovid tinha entendido os temores de Chavala, mas era levado também por necessidades que estavam além de seu controle. Quando ele e Absalom foram detidos e conduzidos como criminosos, sob o cano das armas dos soldados do paxá, não sabiam se sobreviveriam por um minuto ou uma hora nem se estariam, em breve, pendurados na ponta de uma corda. Suas preocupações não eram infundadas nem melodramáticas. Foi a intervenção de Aaron junto ao paxá que os livrou da forca, mas não das indignidades que os soldados lhes infligiam, a seu modo. Uma vez, Dovid havia ignorado a ameaça de uma arma e da forca, voltando-se de repente e esbofeteando o guarda que escarnecia dele de modo obsceno. E não se surpreendeu ao receber uma coronhada no estômago, que o fez cair, sentindo também um joelho atingir-lhe a virilha — os guardas tinham muita experiência em métodos de castigar que não deixavam marcas, mas que podiam matar um homem por dentro. Absalom, que se achava numa cela sozinho, pensou em protestar, mas desistiu, pois compreendeu que isso só iria agravar a situação dele e de Dovid.

 

Quando Aaron foi a Beirute para falar com o governador do território, estava muito confiante em que o suborno garantiria que pelo menos seus amigos fossem alimentados decentemente e não sofressem abusos. Mas, ao entregar as moedas de ouro ao governador, compreendeu, pela expressão de seu rosto, que isso era apenas o começo da extorsão. Não havia outra solução senão ir diretamente a Jamal Paxá.

 

No gabinete do paxá, Aaron foi logo ao assunto:

 

— O senhor sabe que, em Athlit, meus homens provaram sua lealdade a este governo. Quero que seja suspensa a punição. com a contribuição valiosa que deram à guerra, não se pode deixar que passem a vida presos.

 

— Não todos os seus homens, Aaron, mas reconheço que você e outros mostraram o seu valor. Garanto-lhe que eu não sabia que seus homens estavam sendo presos — o que não era bem o caso — e dou-lhe minha palavra de que cuidarei do assunto..

 

Foi mais ou menos a essa hora que Dovid acordou com um nó no estômago, devido ao golpe que recebera. Foi incrível sua surpresa, e de Absalom também, quando os guardas apareceram, não para castigá-los, mas para escoltá-los, entre pragas e ameaças, até um hotel em Jaffa. A princípio, ficaram imaginando se aquilo não seria uma manobra para fazê-los pensar que estavam sendo salvos, de alguma maneira, para depois serem levados à forca. O sadismo dos turcos poderia chegar a esse ponto. Somente quando lhes foi servido algum alimento foi que eles chegaram à conclusão de que mesmo os turcos não iriam ao extremo na arte da tortura, e de que sua libertação era real, pelo menos dessa vez.

 

— Sabe, ou Aaron é um homem de grande importância para o paxá ou passou para o lado inimigo — disse Absalom deitado em sua cama, próxima à de Dovid. — Melhor dizendo, acho que foi esta última alternativa que nos salvou.

 

— É — concordou Dovid. — E precisamos tirar proveito disso, e não apenas ficarmos satisfeitos por estarmos vivos. Pode acreditar que o paxá ainda não nos mandou enforcar somente porque ele acha que vai precisar de nós. Não podemos continuar contando com isso para sempre, mesmo com a influência de Aaron. E se os gafanhotos não vierem? Parece que é preciso haver um desastre, para que sejamos dignos de continuar vivos.

 

— Concordo, vamos destruí-los de uma vez por todas.

 

— Qual é o seu plano?

 

— A rebelião declarada. Sem usar mais a cobertura do exército britânico...

 

— Não. isso seria suicídio. E nós, judeus, já o fizemos vezes demais. Isso praticamente nos levaria à forca. E a troco de quê? Algumas caixas de munição. Estou cansado de causas perdidas. Vamos ganhar, para variar.

 

— Ótimo. O que você sugere? — perguntou Absalom, baixando a voz.

 

— Espionagem — respondeu Dovid num sussurro.

 

— Espionagem? E você diz que a revolta declarada seria suicídio.

 

— Absalom. podemos fornecer informações importantes aos ingleses, informações que eles não têm e nunca poderiam conseguir. Eles perceberiam.

 

— Não concordo. A única coisa que eles perceberiam seria uma força de combate judaica dentro da Palestina.

 

— Talvez, mas continuo achando que isso seria suicídio para nós. Quero ver cortadas as gargantas dos turcos, não as nossas. Nós dois queremos a mesma coisa, Absalom. É apenas uma questão de saber a melhor maneira de conseguir isso.

 

A tensão entre os dois homens passou quando Aaron entrou no quarto do hotel. Seus cumprimentos foram breves. Só voltaram a falar quando chegaram à casa de Aaron, em Zichron.

 

Os dois homens expuseram as idéias que haviam desenvolvido no quarto de hotel, em Jaffa.

 

— A única maneira pela qual podemos acelerar a libertação da Palestina é através da rebelião. — disse Absalom, sem rodeios.

 

Aaron ficou chocado com a sugestão. Ele não gostava dos turcos, mas a idéia de insurreição parecia-lhe vazia e errada.

 

— Não, Absalom. Os ingleses têm as armas para a libertação da Palestina.

 

— É nosso dever nacional organizarmo-nos para nosso próprio bem.

 

— Creio que sou mais um cientista do que um ativista político. Mas você conhece minhas opiniões e minha utilidade. Não foram as rebeliões abertas que salvaram você e Dovid da forca.

 

Os olhos de Absalom chame aram de raiva.

 

— Você é um cientista, e Dovid acredita na ajuda aos ingleses, que nos trataram como mulas. Ao diabo vocês dois. Quando acharem que já tiveram castigo bastante, avisem-me. - disse ele, e, sem acrescentar mais nada, retirou-se, batendo a porta atrás de si.

 

Aaron e Dovid ficaram sentados, em meio a um silêncio constrangedor, mas sabiam que a fúria de Absalom, embora sincera, era passageira.

 

— Vocês devem ter trocado idéias naquele quarto de hotel — disse Aaron. — Tenho a impressão, Dovid, de que você gostaria de me dizer o que tem em mente.

 

— Certo, e vou ser diplomático. Bem, você pode ser um cientista e não querer se envolver. e disse também que sou capaz de fazer alguma coisa nesse sentido. Mas, quer queira quer não, está envolvido nisso tanto quanto Absalom e eu. Devido à posição que ocupa dentro do governo turco, você é a chave que vai abrir as portas para nós, Aaron. Bem, Absalom tem razão para estar furioso, e eu também. Só diferimos nos meios. Não queremos esperar que os ingleses nos libertem por sua própria conta. O que Absalom quer é uma revolta, e discordo disso. Acho que a melhor maneira de usarmos nossas vantagens e os ingleses... é colher informações para apoiar o esforço britânico contra nossos inimigos. Não penso, nem por um minuto, que os ingleses sejam nossos amigos. Eles estão nos usando, e nós pensamos que estamos sendo beneficiados. Bem, se é assim, vamos ajudá-los a usar-nos mais. para conseguirmos o que queremos. Controlemos nosso destino, manipulando os ingleses, para variar.

 

Aaron sacudiu a cabeça.

 

— Vocês dois estão com nossa salvação prontinha. Mas recuso-me a me envolver em qualquer dos seus planos. Pois bem, não me leve a mal por dizer isto, mas acho que é hora de você voltar para casa, para junto de Chavala.

 

Quando Chavala viu Dovid atravessar a porta da frente, a profunda ansiedade que ela sentira nos últimos dias pouco diminuiu, pois via a expressão estampada no seu rosto. Teve pena dele. Aproximou-se tranqüilamente e abraçou-o.

 

— Meu querido, deve ter sido terrível. Graças a Deus que você voltou.

 

— Sim. Graças a Deus e a Aaron.

 

No tom de voz de Dovid havia algo que contradizia suas palavras. Ele não parecia satisfeito. O que ela captou em sua voz foi raiva tanto contra Deus como contra Aaron. Bem, não o questionaria naquele momento.

 

— Venha, Dovid, vou preparar alguma coisa para você comer — disse ela tranqüilamente. Essa era a segunda maior oferta que uma mulher podia fazer.

 

Nesse momento, não era de alimento que ele precisava para compensar sua frustração.

 

— Não, Chavala, estou sem fome.

 

— Então vou preparar um banho para você.

 

— É bom. Obrigado.

 

Depois do banho, Dovid deitou-se e Chavala deitou-se a seu lado. Colada a ele, sentia que as tensões não tinham diminuído.

 

— Dovid, eu sei das dificuldades que você tem enfrentado, das coisas por que você passou na prisão; mas sei também que há alguma coisa mais. o que é?..

 

— Não é nada. ou talvez seja tudo. Não sei, Chavala; acho que o que estou tentando dizer é que talvez me sentisse melhor se me unisse aos ingleses no combate, como Moishe..

 

— Ah, Dovid querido, cada um luta à sua maneira. Você foi ferido, pelo amor de Deus... e olhe o que Aaron foi capaz de realizar..

 

Os músculos do maxilar de Dovid se retesaram.

 

— Ele chamou a minha atenção para isso. Mas o fato é que, enquanto os turcos estão destruindo todo o yishuv, estamos aqui, em Zichron, em segurança.

 

— Dovid, todos vocês estão fazendo o melhor que podem. Os problemas são enormes. não se pode esperar que Aaron seja o Messias. Tenho certeza de que ele está fazendo o que acha certo.

 

— Tenho certeza disso.

 

Chavala abraçou o marido, compreendendo que não era hora de discutir com ele.

 

Bem, ela ainda era uma mulher. Sabia como dar aquela contribuição. E deu...

 

Na semana seguinte, Dovid deu uma volta pelas colônias. As queixas não eram diferentes das que tinha ouvido desde o começo da guerra. Os turcos estavam requisitando seu trigo e seus animais; e o que os turcos não tomavam os árabes roubavam.

 

Rumou para o norte. Os soldados judeus do batalhão do porto estavam limpando as estradas, debaixo do calor terrível do sol do meio-dia. Seus lábios estavam ressequidos por falta de água. Muitos levavam marcas de chicote nas costas, devidas à lentidão com que trabalhavam. Em seus rostos estavam também as cicatrizes da brutalidade. Aqueles que caíam de cansaço eram acorrentados a uma árvore e espancados.

 

Dovid já tinha visto essas atrocidades antes e odiava a si próprio por não ser capaz de impedi-las. Naquele momento, porém, sua raiva era maior do que nunca... A cidade de Tibério estava fervilhando de soldados turcos que abusavam dos velhos que iam fazer suas orações. Importunavam-nos puxando-lhes as orelhas e as franjas dos tallisim, que eles usavam por baixo dos longos casacos pretos. Um ancião que protestou foi derrubado, chutado e deixado no pó, machucado e sangrando.

 

Dovid teve que fazer um grande esforço para não correr atrás do soldado turco e se arriscar a ser morto, juntamente com o velho. Mas conseguiu se conter, afastou-se dali e voltou para Zichron, onde foi diretamente procurar Aaron.

 

Ainda cheio de raiva, relatou as atrocidades que havia presenciado. Disse a Aaron que, se nada fosse feito, os grupos dissidentes resolveriam tomar medidas por conta própria, e isso poria todo o yishuv em perigo ainda maior.

 

Aaron sabia que a lógica estava com Dovid. Não lhe agradava a idéia de os judeus se envolverem em espionagem, mas pelo menos isso era melhor do que as idéias suicidas de Absalom, de revolta declarada..

 

— Está bem. Convoque a reunião; mas você, Dovid, é que vai assumir a posição-chave — preveniu Aaron, após respirar fundo.

 

— Eu não me importo; fico satisfeito. Além disso, com as relações que você tem com os turcos, é melhor não se arriscar.

 

A notícia se espalhou e, na noite seguinte, sigilosamente, os homens-chave do Hashomer, do Grupo de Jaffa, os gedeonistas e os de Athlit foram convocados a se reunir no laboratório de Aaron.

 

Dovid estava de pé, olhando para o grupo.

 

— Obrigado a todos vocês por terem vindo. No passado, tivemos nossos desentendimentos, mas agora devemos esquecê-los em favor da sobrevivência de nosso povo. Vocês sabem que o que estamos prestes a fazer é perigoso. Subestimar isso seria imbecilidade e desonestidade. Devem saber que serão considerados inimigos do país e que, se forem apanhados, serão enforcados. Aqueles dentre vocês que têm famílias devem considerar o que isso significaria para sua segurança. Se algum de vocês estiver indeciso quanto a isso, a hora de recuar é agora.

 

Fez uma pausa, dando aos homens algum tempo para pensar. Mas todos estavam de acordo. Suas vidas já estavam em perigo, de um modo ou de outro. Era preciso tomar medidas radicais, fossem quais fossem as conseqüências.

 

Dovid olhou para Aaron, que fez um sinal de concordância com a cabeça. Depois Dovid continuou:

 

— Acredito que os kibutzim e o yishuv não precisarão saber coisa alguma de nossas atividades, para seu próprio bem e para o nosso. Porém, aqui em Zichron é um pouco diferente. Obviamente, a aldeia não saberá das atividades que se desenrolarão; mas os homens-chave que trabalham em Athlit devem, pouco a pouco, levar os filhos e as mulheres para um lugar mais seguro. Qualquer mudança rápida, em massa, causaria suspeita. Passo-lhes agora a palavra.

 

Cada um dos homens passou a expor suas opiniões. Yitzchak Lavinsky falou pelo Grupo de Jaffa.

 

— Poderíamos formar um exército de trezentos homens, já treinado e equipado com armas. Sua missão seria mandar pelos ares as instalações turcas.

 

— E isso provocaria represálias dos turcos contra o yishuv — opinou Herman Belkind. — Sendo um shomer, espera-se que meu trabalho seja proteger o yishuv.

 

— Então, o que você quer que nós façamos? Que contratemos um exército e enfrentemos os turcos num combate conjunto? — apressou-se a dizer Asher Meged, dos gedeonistas. Absalom levantou-se.

 

— Na verdade, isso está mais adiantado do que eu esperava. Porém, sou a favor de um combate. Sugiro que se opere em conexão com os ingleses. Eles acabarão tendo que atravessar o Sinai para tomar a Palestina e a Síria. Se nós, judeus, os ajudássemos daqui, isso poderia ser feito mais cedo. Trabalharíamos com os gedeonistas, o Grupo de Jaffa e o Hashomer. Mobilizaríamos todos num ponto estratégico, e o litoral seria tomado. Nossa bandeira com a estrela-de-davi seria içada e se declararia guerra contra o Império Otomano, em nome do Estado judaico. Obviamente, a ação deveria ser coordenada com a chegada da frota britânica e o desembarque de seu exército. Apoiado desse modo, creio que esse plano não fracassaria... o inimigo seria expulso, como aconteceu quando atacou Suez. E os ingleses receberiam bem essa estratégia, visto que lhes pouparia a travessia do deserto, vindo do norte.

 

— E em que parte da costa eles poderiam desembarcar, sendo ela patrulhada como é? — perguntou Moses Bartov, o sbomer da Galiléia.

 

— É aí que está a questão — disse Absalom. — A Palestina nunca estará em melhor posição. Jamal Paxá mandou o exército principal para Galípoli, deixando apenas uma força pequena aqui. Uma pequena unidade britânica poderia partir ao meio o exército turco. Enquanto mantivéssemos a costa sob controle, os ingleses poderiam desembarcar. Athlit daria cobertura à costa, atrás das ruínas de Cesaréia. Algumas centenas de seus homens poderiam garantir nossa posição contra um exército aqui na Palestina.

 

— Não é tão simples assim, se permite a opinião militar de um cientista — disse Aaron. — Os bancos de areia de Athlit e Cesaréia impediriam os desembarques, mesmo os pequenos como você sugere. A área entre a praia e o ponto de desembarque nunca poderia ser tomada. Simplesmente não acho que seria aconselhável uma ação militar no momento.

 

— Então, vamos ficar sentados, esperando que os turcos façam conosco o que fizeram com os armênios? — perguntou Moses Bartov. — Os pogroms que sofremos não eram nada em comparação com isso. Perdemos algumas aldeias. Mas sobrevivemos. comparados com esses bárbaros, os russos eram civilizados. Eles acabaram com os armênios. Capturaram o povo, cidade após cidade, aldeia após aldeia, casa após casa. Vocês acham que foi para matar uns poucos? Não. foi para eliminar um povo inteiro. Nem um só homem, nem uma só criança devia ser poupada. Levaram-nos para a floresta, as mulheres e as crianças, e os deixaram morrer de inanição. Diziam aos homens que eles iriam para o exército. — Moses cuspiu. — Levaram-nos para o exército... para o exército da morte. Mataram todos. O pior massacre da história do mundo, e não foi feita coisa alguma para impedir. Se as nações podem ficar indiferentes e deixar que um povo inteiro seja massacrado como carneiros, então podem ter certeza de que nós seremos os próximos. Jamal Paxá não esconde que, onde quer que eles governem, só querem turcos, sua religião, sua língua... Bem, todo mundo tem que morrer, mas morrerei como um homem, não como um animal levado ao massacre. Morrerei com uma arma na mão. Sou a favor do plano de Absalom.

 

Moses sentou-se, sabendo que tinha tocado o grupo. Aaron também foi afetado, mas ele tinha que lembrá-los de que palavras eloqüentes não resolveriam o problema das pedras e dos bancos de areia que impediam qualquer desembarque em grande escala.

 

Aaron tinha tirado a animação dos homens... E então Dovid levantou-se.

 

— Eu gostaria de fazer uma pergunta, Aaron, já que você é quem se movimenta mais livremente entre os oficiais do governo turco.

 

— Pois não, Dovid.

 

— Bem... Depois que fracassou o contra-ataque turco em Suez, os turcos foram derrotados e retiraram-se para a Palestina. Eu esperava que os ingleses tirassem proveito disso, fazendo um grande avanço. Não o fizeram. O que você acha que aconteceu? — perguntou.

 

Aaron sabia muito bem a resposta, mas deixou que Dovid mesmo a desse.

 

— Eu lhe direi, Aaron... Os ingleses carecem de uma rede de espionagem na Palestina e na Síria para informá-los da situação no campo inimigo. Creio que agora eles vêem que perderam uma grande vantagem, quando estavam na ofensiva em Suez, por falta de um serviço de informação dentro da Palestina e da Síria. Não perderiam a chance de trabalhar conosco. Conhecemos este país. Eles aceitarão nosso plano, Aaron. Como não aceitariam? Podemos oferecer aos ingleses uma rede de vigilância..

 

Nachman Shamir o interrompeu:

 

— Você se refere a espionagem... Por que não fala claro, Dovid? E o que vamos fazer enquanto isso? Poderíamos esperar meses para colher o tipo de informações em que você está pensando.

 

— Você está errado, todos nós dispomos de mais informações do que os ingleses. O verdadeiro problema é manter as coisas em segredo, de modo a não pôr o yishuv em perigo. Por isso, não estou pedindo a vocês que fiquem girando os polegares. Podemos fazer duas coisas ao mesmo tempo. Enquanto colhemos informações, vocês podem adquirir todas as armas que puderem e treinar tantos homens quantos puderem. Podem crer que aqueles que tanto querem pegar em armas terão a oportunidade de fazê-lo. no momento certo. Os turcos perderão; e, se os ingleses aceitarem essa proposta, isso acontecerá mais cedo do que vocês pensam.

 

Apesar de sua relutância anterior em se envolver, Aaron concordou.

 

— Bem, já é muito tarde. Nós nos reuniremos amanhã.

 

Eram quatro horas da manhã quando Dovid voltou para casa. Entrou sem fazer barulho, esperando não acordar Chavala, mas ela estava à sua espera. Ela acendeu a lâmpada a querosene e olhou-o de perto.

 

— O que era tão importante? Alguma coisa está acontecendo, eu sei disso, sinto. Você não tem o costume de ficar discutindo sobre trigo e aveia até as quatro da manhã.

 

Como ia dizer-lhe? Não apenas que agora ele era um espião, mas também que ia mandá-la para outro lugar?

 

— Dovid?

 

Ele ficou parado um momento, depois disse:

 

— Já é tarde. É uma longa história; não sei por onde começar...

 

— Pela verdade.

 

Ele lhe contou o mínimo possível, mas como poderia deixar de falar-lhe de seu próprio envolvimento? Devia-lhe essa explicação. O mais difícil era dizer que ela e as famílias dos outros líderes teriam de se mudar de Zichron. isso era o mais difícil. Calmamente expôs o plano. Não haveria partida em massa. Partiriam sob o pretexto de visitas familiares, de doença.

 

— Dovid. o que está me dizendo. Você vai ser um espião dos ingleses? Meu Deus... Que acontecerá se você for apanhado?

 

— Você poderia ser envolvida. É por isso que quanto menos você e as outras souberem tanto melhor.

 

— Envolvida? — perguntou ela, com riso triste. — Eu sou sua mulher. Estou envolvida. Dovid, você deve sair disso, antes que seja tarde demais.

 

— Não posso fazer isso, Chavala. Você se lembra da noite em que voltei da prisão? Lembra-se da maneira como agi quando você me fez perguntas? Bem, eu não podia dizer-lhe realmente o que pensava, porque não tinha o apoio de ninguém. Agora tenho. Você disse, naquela noite, que cada um luta à sua maneira. Bem, esta é a minha maneira de lutar, a única maneira. Fui eu que arquitetei este plano. Peço-lhe que compreenda como é importante...

 

— Pouco estou ligando. Suponho que eu seja uma mulher egoísta que não pode ver outra coisa além do fato de o marido ter sido poupado. Não tenho grande visão, Dovid. Só quero que você viva. Eu quero você. Quero estar com você. Não quero ser mandada para outro lugar.

 

— Por favor, Chavala, não torne as coisas mais difíceis do que já são.

 

— Sheine tinha razão. Eu devia ter-me oposto a você, Dovid; devia ter insistido em ir para a América. Meu Deus, é a única ação sensata na terra. É por isso que eles não estão nesta guerra.

 

Dovid sabia que, apesar de toda aquela mostra de decisão, Chavala estava chorando por dentro. Mas ele não podia recuar.

 

— Mas estamos aqui, e nada pode mudar isso, a não ser tentarmos acabar com esse horror o mais rápido possível.

 

— E mandar-me para outro lugar vai trazer a paz mais rápido?

 

— Não, mas será mais seguro.

 

— Dovid, por favor. eu lhe suplico mais uma vez, diga a Aaron e aos outros que você.

 

— Não, Chavala. Estou fazendo isso tanto por mim mesmo, admito, como por Sião. Do contrário, nunca poderei encarar meu filho nem ficar com a consciência tranqüila, nem ser digno de você.

 

Dovid ficou sentado na beira da cama, exausto.

 

Já era madrugada; Chavala olhou para o pequeno quintal e viu as palmeiras destacadas contra o céu da Palestina.

 

São estranhas as coisas que as pessoas pensam em momentos assim. Dovid tinha plantado aquela árvore pouco antes do nascimento de seu filho. Isso fora há nove anos. As árvores tinham dado os frutos de seu trabalho. Acaso Dovid viveria o suficiente para ver sua semente chegar à maturidade?

 

— Para onde você vai nos levar? — perguntou ela tranqüilamente.

 

— Para Jerusalém, para a Cidade Antiga. Não há lugar seguro, mas pelo menos os turcos deixam os santuários em paz.

 

Chavala ajoelhou-se diante do marido e pôs a cabeça em seu colo.

 

— O que faremos sem você? Na guerra as famílias ficam separadas.

 

Chavala tentou recordar os anos que eles tinham vivido ali em Zichron. dias felizes, danças e cantos nos terreiros da aldeia, em noites claras e quentes, após as colheitas, os piqueniques e banhos de mar nos antigos portos de Cesaréia. Ela costumava observar Raizel sair, em companhia de outros jovens, para festas em outras colônias. E Dvora correndo na frente, rindo, enquanto seu longo cabelo se agitava ao vento. Agora tinham ido embora. Nada restava. Nada mais a dizer, exceto..

 

— Quando é que eu vou?

 

— Mais tarde — disse ele. Estava agradecido por vê-la tornar a situação mais fácil do que ele esperava. Mais fácil para ele; mas sabia o que estava se passando dentro dela, além das palavras.

 

— Venha, deite-se ao meu lado, preciso de você. Adormeceram abraçados, como que tentando recusar a separação iminente.

 

Quando Chavala e Dovid subiram a escada de pedra que levava à velha casa em Jerusalém e pararam no meio da sala, nenhum dos dois sabia bem o que dizer.

 

Dovid apanhou o filho, olhou-o nos olhos castanhos, tentando recordar todas as coisas boas. Como o menino ficava feliz, quando ele o levava para Athlit! Tinha gostado mais do laboratório. Dovid ajustara as lentes do microscópio e Reuven sorria ao ver as maravilhas do mundo que ele assim descobria.

 

— Euvou ser um cientista como você, abba. Quando eu crescer...

 

Quando ele crescesse?... Que tipo de mundo seria? Dovid só esperava que o que ele estava fazendo agora tornasse esse mundo um lugar mais seguro, melhor para seu filho. E para o filho de seu filho...

 

Voltou-se para Raizel. Não havia percebido como tinha ficado bonita. Não era possível que todos aqueles anos tivessem passado tão rápido. Ele podia recordar os primeiros minutos de vida da menina, e agora ela era uma moça. De quase vinte anos. Raizel era como a mãe. Sensata mas tímida. Abnegada, não tinha ido para a Galiléia quando quisera tanto ir. O pai veio primeiro, e por três vezes ela se recusara a casar-se, porque sentia que Chavala ainda precisava dela. Era como se estivesse compreendendo a dor de Sheine e a surpresa do casamento e da partida de Dvora... e amenizando o terrível medo causado pela ausência de Moishe, que estava na guerra, ferido. E a pequena Chia, para quem eles tinham construído um galpão, a fim de abrigar a cabra. Agora ela estava com quase onze anos. Tinha acontecido tanta coisa a eles, naquele breve período de tempo! Tinham conhecido a morte e a fome, o amor e momentos alegres, e agora aquela guerra. Chia o segurava firme, dizendo abba, como sempre.

 

—Vou sentir falta de você, abba. Abraçando-a, ele forçou um sorriso.

 

— Virei aqui tantas vezes que você não vai ter tempo para isso.

 

Chavala escutava aquela mentira carinhosa, desejando que fosse verdade...

 

Sua despedida foi tão dolorosa que as palavras não podiam expressar o que um e outro sentiam. Exceto que, no fundo, Chavala tinha um medo que não conseguia esquecer...

 

Estavam na encruzilhada de suas vidas.

 

                                         Capítulo doze

Graças a seu grande sucesso na destruição dos gafanhotos que ameaçavam as colheitas, Aaron Aaronson recebeu autorização de Jamal Paxá para deslocar-se para qualquer lugar onde houvesse, a seu critério, necessidade de seus serviços. Ele e seus associados designados de Athlit tiveram permissão para entrar na maioria das áreas militares secretas. Como fora combinado, Aaron procurava manter-se sempre acima de suspeitas. A importância de seu trabalho lhe dava acesso a qualquer área, mas também o tornava um alvo mais visado. Ademais, se houvesse necessidade de que ele deixasse o país por qualquer razão, era importante que Dovid e Absalom se mantivessem em contato com Jamal Paxá, para dar continuação ao serviço.

 

Dovid e Absalon estiveram com Aaron várias vezes, a fim de falar com Jamal Paxá, e o turco parecia simpatizar mais com a atitude reservada de Dovid do que com o tom extrovertido de Absalom. Não que o paxá não gostasse de Absalom, mas Aaron sentia que, nas visitas que os dois tinham feito a Damasco, a mentalidade oriental do paxá havia mostrado um pouco de resistência, e até ressentimento, à autoconfiança e ao comportamento jocoso de Absalom. Visto que o estado de ânimo estava mais do que receptivo nesses dias, devido à produção de trigo, Aaron achou melhor que Dovid assumisse a missão. E Dovid concordou.

 

Na estrada de Damasco, Dovid observava de perto as fortificações, a quantidade de suprimentos para os soldados e civis, o tamanho do exército e sua disposição. Através de contatos nas cidades, soube da quantidade de material que havia no país, de quantas unidades do exército estavam sendo utilizadas e do contato em Gilboa. Descobriu o número aproximado de pilotos, bem como os dias em que realizariam os vôos.

 

Quando chegou a Damasco, foi para o hotel, tomou um banho e barbeou-se, procurando eliminar o cansaço de dois dias. Após vestir uma aba limpa e ajustar o kaffiyeh branco na cabeça, olhou-se no espelho e teve que rir. Lembrou-se de um pequeno sbtetl, de um jovem sentado num banco de sapateiro. Agora, vestido como Lawrence da Arábia, ia visitar uma das autoridades mais influentes do Império Otomano. Fazia muito tempo desde aquela manhã em que eles se dirigiam ao porto de Odessa, conduzindo uma cabra e arrastando todo tipo de trouxas.

 

Enquanto esperava Jamal Paxá, sentado em seu gabinete, Dovid correu os olhos por alguns documentos que havia sobre a mesa. A tentação era quase irresistível. Ele compreendia as conseqüências do que aconteceria, se Jamal Paxá entrasse. mas ousaria arriscar? Ele nunca teria uma oportunidade como aquela... não ousaria arriscar? Levantou-se e curvou-se sobre a mesa. Santo Deus, aquilo parecia um plano de batalha. quantidade de suprimentos, unidades de exército, inúmeros pilotos alemães, planos para um segundo ataque a Suez. Era coisa demais para guardar na memória. Seu coração batia aceleradamente, quando puxou o caderno preto que usava para fazer seus relatórios a Jamal Paxá. Escreveu; o mais rápido possível. Acabara de fazer as anotações e colocar o caderno no bolso, quando a porta se abriu e o paxá entrou. Sua cabeça latejava como se fosse explodir. O paxá não era idiota; subestimá-lo seria um grande erro. Poderia até ter deixado os planos ali de propósito, para testá-lo. O melhor era bancar o inocente.

 

O paxá olhou para Dovid, depois desviou o olhar para os planos que se achavam na mesa. Era ridículo demais. ele tivera necessidade de aliviar-se, pois aquela mulher idiota exigira que ele lhe desse atenção, ali mesmo, em seu ambiente de trabalho. Esse chamado da natureza era responsável pela sua falta de prudência em deixar Landau sozinho ali com os planos. Até que ponto chegava a lealdade de Landau? Até agora, não tivera razão para não confiar naquele homem; Landau tivera acesso a muitas coisas, mas até agora, não se descobrira nenhuma cooperação dele com os ingleses. Landau, porém, era judeu. Examinou cuidadosamente o rosto de Landau, para ver se descobria algum sinal de culpa ou mesmo de inquietação. O rosto não revelava nada, mas talvez a voz o traísse.

 

— Então, Landau, que acha do plano? — perguntou com um sorriso. Ele achava que um movimento frontal poderia afetar uma consciência culpada.

 

— Eu sou agrônomo, não estrategista militar; realmente não posso dar uma opinião — respondeu Dovid, esperando desarmar, assim, a convicção do outro.

 

— Você está se subestimando. Dovid sorriu.

 

— Obrigado, mas eu não subestimo nosso governo. Olhe o fracasso dos ingleses em Galípoli. Eles achavam que bastavam alguns dias e a batalha estaria acabada. O leão britânico saiu com o rabo entre as pernas. E não está se saindo bem na Europa. Os alemães o mantêm assustado. Nós venceremos; não tenho dúvida disso. Jamal Paxá ficou satisfeito.

 

— Bem, para um cientista, você é um analista militar astuto, Landau.

 

— Não tão astuto. Simplesmente tenho muita confiança em nossa força.

 

— Isso é tranqüilizador, especialmente quando muitos de vocês já passaram para o lado dos Aliados. Naturalmente eu não aprovava, mas entendo que o Destacamento de Mulas foi de ajuda para os ingleses. Pena que tenha sido desperdiçado assim.

 

Aquele canalha estava brincando com ele. Ele é que os havia deportado. A granada que havia ferido Moishe era sua.

 

— Você tem razão. Sinto ter que dizer que nem todos nós temos a mesma lealdade.

 

O paxá girou o lápis na mão e tornou a olhar para Dovid. Se o judeu estava mentindo, era por demais convincente. Jamal Paxá quase acreditou nele. Acaso ele teria alternativa, se quisesse continuar usando seus valiosos serviços? Parecia um risco bem calculado.

 

— Bem, como está a produção dos kibutzim?

 

Dovid puxou o caderno de notas e leu as quantidades de trigo, cevada e forragem, bem como dos outros produtos essenciais. Quando terminou, estava com a boca seca. Mentir, mesmo que fosse para aquela criatura, não era fácil.

 

— Tivemos que nos esforçar muito para alcançar essa produção. Espero e acredito que possamos até aumentá-la.

 

— Ótimo — disse Jamal Paxá, acendendo um cigarro turco e oferecendo outro a Dovid. — Sabendo como os judeus roubam e escondem o que produzem para o governo, devo felicitá-lo por eles terem retido tão pouco.

 

Dovid teria cortado a garganta do outro, com satisfação. Os judeus estavam passando fome; o pouco de que dispunham mal dava para se manterem vivos. Mas ele recebeu o elogio com um sorriso...

 

Jamal Paxá ficou olhando pela janela, enquanto Dovid se retirava. Era possível tirar muitas conclusões, observando os passos de uma pessoa, a voz, a expressão dos olhos, e ele novamente certificou-se de que, no comportamento de Landau, nada havia que indicasse que ele tivesse mostrado sequer curiosidade pelos planos que se achavam sobre a mesa... Entretanto, de qualquer maneira, tinha sido um imbecil, ao deixá-los ali expostos. Mas como poderia saber que Dovid chegaria no momento em que estava esvaziando a bexiga? Bem, procuraria evitar que fosse apanhado com as calças na mão novamente. Quase sorriu, ao pensar nisso.

 

As suspeitas de Jamal Paxá eram as mesmas de Dovid. Quando se sentiu seguro, parou junto a um pé de eucalipto e enxugou o suor do rosto. Idiota! Tinha sido um idiota. Tinha corrido o risco de destruir toda a operação e de ser enforcado por tão pouco.

 

                                                Capítulo treze

No laboratório, em Athlit, uma tensão especial pairava no ar, enquanto os homens estavam sentados em torno da mesa, na sala mal-iluminada.

 

Os olhos e pensamentos de Dovid estavam concentrados em Absalom, cujas palavras boas e generosas se dirigiam a ele.

 

— A mim pouco importa de quem tomamos os planos; ninguém precisa de uma medalha para destruir os turcos. Dovid e eu somos irmãos. Nós dois enfrentamos a morte juntos. Se a maioria acha que o plano de Dovid é melhor do que o meu, que seja. Tudo o que peço é que, quando chegar a hora, eu tenha o prazer de estar puxando a corda que enforcará Jamal Paxá.

 

As palavras de Aaron interromperam os pensamentos de Dovid.

 

— Como todos vocês sabem, no começo eu me opus à idéia. Agora, porém, estou envolvido e desejo dar a César o que é de César. O plano que aceitamos foi o de Dovid. Ele já começou a executá-lo com grande risco pessoal. Acho que a direção desta reunião deve ser passada para ele.

 

Dovid ficou surpreso; procurou ordenar os pensamentos.

 

— Só gostaria de lembrá-los de que, em certas circunstâncias, os homens mais corajosos são destruídos. Ninguém pode estar seguro de sua capacidade de resistir, enquanto não tiver passado pelo interrogatório brutal de que os turcos são capazes. Seu barbarismo só é entendido depois de experimentado. No caso de qualquer de vocês ser apanhado, estará sozinho. Não esperem ajuda nenhuma. À medida que eu chamar os seus nomes, vocês farão o juramento de que seus lábios estarão selados e de que ninguém denunciará o outro para se salvar. Estão de acordo?

 

— Estamos — responderam os homens em uníssono. Dovid correu o olhar pelos rostos desses homens corajosos que se achavam em torno da mesa, sabendo ser demais o que se exigia deles, mas isso tinha de ser feito. Eles eram apenas humanos, e ninguém conhece a própria resistência enquanto não chega o momento em que a dor se torna impossível de suportar. A vida é um dom precioso, ao qual todo mortal se apega. Entretanto, o juramento poderia ser recordado, se chegasse a hora... com a Bíblia na mão, falou:

 

— Chaim Lazarus... com a mão no coração e a outra na Bíblia, você jura silêncio?

 

— Juro.

 

— Lieb Schacham, você faz o juramento?

 

— Faço.

 

Samuel Guri, Zalman Kishon, Nachman Shamir, Eliave Yitzchak, Alex Aaronson, Absalom Feinberg e Aaron Aaronson também fizeram o juramento. Foi tirada uma gota de sangue do dedo de cada um deles.

 

— Agora somos irmãos. Vou ler as seguintes palavras da Bíblia: ”Netzah Yisrael Lo leshaker”. ”A eternidade de Israel não morrerá.” Agora somos membros do NILI. — Foi entregue um pequeno copo de vinho a cada um dos homens. — Bebemos à salvação de nosso povo e à sua sobrevivência pacífica. Esperemos que, quando as gerações futuras ouvirem a palavra NILI, saibam que a causa pela qual lutamos também é sua.

 

— Shalom — disseram eles, saudando Dovid. Com o copo erguido, Dovid respondeu à saudação.

 

— Shalom.

 

Depois os homens receberam suas instruções. Sua missão começaria na manhã seguinte.

 

Ao passar pela Estação Samech, devidamente disfarçado e completamente aterrorizado, Chaim Lazarus observou o material bélico que chegava...

 

Na Estação Fuleh, Lieb Schacham calculou as unidades de exército e o número de oficiais que eram despachados.

 

Em Gilboa, Samuel Guri, metido num uniforme roubado por um soldado teutônico mais interessado em ouro do que na pátria, bebia em companhia de pilotos alemães. Depois que o vinho e a cerveja lhes afrouxaram as línguas, eles começaram a soltar informações sobre ataques aéreos planejados.

 

Aaron, o famoso cientista, foi colher informações sobre o exército turco no norte. Tudo era escrito em código num pequeno caderno de notas. Não havia palavras, somente números em grupos de cinco. Mesmo que as anotações fossem tomadas, os turcos nunca conseguiriam decifrá-las, por mais que quebrassem a cabeça tentando.

 

Absalom viajou por Tiro e Acre. Em Rosh-Pina, descobriu um centro militar e uma escola local que servia de posto de suprimento e munições. Ao que parecia, os turcos tinham decidido construir, com o equipamento de que dispunham, uma nova estrada, que serviria de via militar. Ele sugeriria que os ingleses despachassem aviões com bombas para o local, durante a inauguração da estrada...

 

Após a visita a Jamal Paxá, Dovid foi a Jaffa; depois seguiu para Tibério e Beirute. Descobriu que os turcos estavam planejando atacar o Canal de Suez novamente. De fato, o comandante alemão Kers von Kerstein havia deixado o Canal de Suez em meados de abril. Parecia que esse segundo ataque a Suez estava próximo, pois os esquadrões de pilotos alemães estavam estacionados em Dagania. Gaza tinha sido reforçada com artilharia pesada.

 

com sua enorme carga de informações, os homens reuniram-se novamente em Athlit.

 

— Para citar Herzl: ”Se vocês quiserem, isso não precisa ser apenas um sonho” — disse Dovid. — Agora temos algo para apresentar aos ingleses.

 

— Está bem, mas como vamos criar uma ligação entre nós e os quartéis-generais britânicos no Egito? — perguntou Aaron, e os outros estavam com a mesma pergunta no pensamento.

 

— Você tem que fazer contato, Aaron. com sua credibilidade, eles lhe darão ouvidos — disse Dovid.

 

— Eu já lhe disse que, se eu sair daqui, isso despertará suspeitas. Não. O mais indicado para esta missão é Absalom.

 

— Por que eu? Como já foi frisado, não sou um diplomata.

 

— É verdade... mas você fará esforços especiais... Além disso, o que é mais importante, você é capaz de imitar as maneiras de um cavalheiro, o que impressionará os ingleses. E o seu inglês é impecável. É por isso.

 

— E comovou fazer isso? A nado ou de barco a remo?

 

— Nem um nem outro... Você irá clandestinamente a bordo de um navio de guerra americano, cuja missão de misericórdia é evacuar todos os cidadãos neutros. Detalhes depois... — respondeu Aaron, dando a entender que era necessário o máximo de sigilo, mesmo naquele grupo selecionado.

 

De volta a Zichron, Aaron sugeriu a Dovid que aproveitasse as interrupções de suas atividades para passar algum tempo com Chavala.

 

— Está bem, Aaron... Estou mesmo sentindo muita falta dela.

 

— Posso imaginar. Ela é uma mulher muito especial, Dovid. De certo modo, ela me faz lembrar Sarah. A mesma combinação de beleza e vigor. Ela está recebendo alimentos?

 

— Está, graças a Deus.

 

— Graças a Deus mesmo. Quem sabe quando os árabes começarão suas pilhagens. A propósito, eu tenho um saco de amêndoas e uma caixa de frutas secas; gostaria que você os levasse para o pequeno Reuven. Ele é um agrônomo nato, Dovid, pode acreditar.

 

— Eu sei, e ele pensa que eu sou cientista.

 

— Quem disse que você não é?

 

— Os diplomas que eu não tenho.

 

— Nem sempre os diplomas fazem de alguém um cientista. Certos homens nascem com uma mente original e se entregam àquilo em que acreditam, seja o que for. Você, meu amigo, é um deles...

 

Quando Dovid voltou para sua casa, em Jerusalém, Chavala quase não acreditou. Por um momento, ela mal conseguiu tomar fôlego, ao recebê-lo. Depois correu para seus braços estendidos, e então abraçaram-se como se nunca mais fossem soltar-se.

 

— Ah, meu Deus... É você, Dovid... Obrigada por ter vindo. — disse ela, recuando um pouco, para ajeitar o cabelo e alisar o vestido. — Estou embaraçada pelo jeito que estou. Isto não é maneira de receber um marido. meu vestido está todo molhado... ah, meu Deus. Estou tão nervosa de ver você, que até esqueci de perguntar se já almoçou. Venha, sente-se. Não, vá ver Reuven, enquanto troco de roupa. — Tomou o rosto do marido nas mãos, acrescentando: — Estou agindo como uma menina aluada. Ah, querido, como posso dizer-lhe o que estou sentindo? As palavras só servem para atrapalhar...

 

Naquela noite, após dar vazão à paixão fremente, ficaram deitados, sentindo a proximidade um do outro. Depois, Dovid abraçou a mulher novamente, dessa vez sem pressa. Naquela doçura, não havia guerra nem ódio, nada além das paredes protetoras, só amor. O mundo parou...

 

No breve espaço de tempo que tinham para ficar juntos, não disseram uma palavra sobre como Chavala tinha sobrevivido, sobre o medo e a ansiedade que ela sentira, em todos os momentos, pela segurança de Dovid. Nem sobre aquela solidão dilacerante. Tampouco ela falou de Zichron; na verdade, não queria saber como estava.

 

Na véspera da partida do marido, ela preparou um jantar muito especial, e não se preocupou em pensar no amanhã. A vida não era feita de dias, meses ou anos. O que contava eram os momentos, somente os momentos.

 

Quando ele se preparava para partir, de manhã, ela sorriu como se ele fosse voltar de noite.

 

Despediu-se dele, dando-lhe uma caixa de marmelada, bolos e salgadinhos.

 

— E dê esta caixa a Aaron. Agradeça a ele pelo presente que mandou.

 

A despedida foi rápida. sem lágrimas. Naqueles preciosos momentos que passavam juntos, não havia tempo para lágrimas.

 

Em julho, Absalom conseguiu deixar Beirute num navio de guerra americano. Provido de um passaporte espanhol (os sefarditas eram úteis, ainda que esnobes), passou pelos portos e os postos de fronteiras sem maiores incidentes, embora quase esquecesse, em certo momento, de não falar inglês mas somente as palavras espanholas que ele havia praticado com cuidado. Finalmente, chegou a Alexandria, mas foi impedido de desembarcar pelas autoridades britânicas, que questionaram seu passaporte.

 

Absalom concluiu que a melhor solução era falar com franqueza. Solicitou que fosse levado imediatamente à sede do serviço de informações britânico, para que pudesse identificar-se. Os oficiais do porto não se impressionaram. O inglês do homem era bom, mas sua história era duvidosa. Resolveu, então, voltar à Grécia e tentar novamente. Quando andava desolado pelo convés, encontrou um estudante judeu, a quem disse seu nome verdadeiro.

 

— Eles vão deixar você desembarcar? — perguntou Absalom.

 

— Sim... e você?

 

— Os ingleses me negaram entrada. Tenho que entrar no país. Gostaria que você me fizesse um favor.

 

— Se eu puder.

 

— Pode, sim. Vou escrever um bilhete para você levar para o gerente do Banco Anglo-Palestino em Alexandria. Ele poderá identificar-me.

 

Dito e feito; o bilhete surtiu efeito. Na realidade, a ligação fora estabelecida através de um cientista judeu importante na América, o qual tinha ficado impressionado com as pesquisas de Aaron e a quem Aaron recorrera em busca de ajuda. Por sua vez, ele entrou em contato com um colega inglês, que era irmão do gerente do Banco Anglo-Palestino. Pouco depois, Absalom recebia permissão para desembarcar.

 

Não foi muito bem sucedido em despertar a boa vontade dos ingleses. Outra vez a arrogância deles prevaleceu sobre seus interesses.

 

Absalom voltou ao hotel, à noite, frustrado e aborrecido. Após meditar durante metade da noite, concluiu que a única maneira de chamar a atenção dos ingleses era publicando uma nota no jornal deles. Talvez acreditassem no que era seu.

 

Passou o resto da noite escrevendo; depois apressou-se a ir à Gazette egípcia com o artigo, assinado ”Anônimo”, sobre a fraqueza do regime turco e de suas forças armadas. Juntamente com detalhes provocantes sobre o tamanho de seu exército.

 

Na tarde seguinte, esperou que o jornal saísse, comprou um exemplar e dirigiu-se apressadamente ao Pharaoh Café, onde pediu café e examinou o jornal. E lá estava:

 

”Parece ridículo que um povo que diz que o sol nunca se põe em seu império desconhecesse o fato de que o exército turco era quase inexistente na Palestina e na Síria durante a campanha de Galípoli, uma vez que a maioria de suas unidades era utilizada para defender Achi Bala e Constantinopla. Somente uma pequena guarnição fora deixada para defender a Palestina e a Síria. Se os ingleses estivessem menos preocupados com a tradição do chá das quatro horas, aquele pequeno pedaço de terra poderia ter sido tomado com pouco ou nenhum esforço.

 

Mas o que se podia esperar quando uma nação considerada forte, como a Grã-Bretanha, não tomava a ofensiva durante o ataque ao Canal de Suez? Durante aquela retirada desordenada, os turcos quase passavam uns por cima dos outros. Era esse o momento para ser tomada a iniciativa.

 

Isso nos leva a perguntar onde estava o serviço britânico de informações quando os turcos estavam construindo a nova estrada militar ao longo da Faixa de Gaza, bem debaixo de seu nariz. Como teria sido simples despachar um pequeno esquadrão de aviões para bombardear o local! Imaginem a surpresa que os turcos teriam se tivessem visto um pequeno grupo de aviões a sobrevoálos durante a inauguração da estrada.

 

Parece que em breve vai ocorrer um segundo ataque a Suez. Talvez a providência tenha dado aos ingleses outra chance para mostrarem o que são. Talvez ainda não seja tarde demais, se os ingleses consultarem e considerarem a sabedoria daqueles cujo conhecimento pode, para dizer o mínimo, suplementar o seu.”

 

Este foi o primeiro de uma série de artigos com que ele bombardeou os ingleses. Para sua satisfação os artigos provocaram a reação desejada. Finalmente, os ingleses estavam reconhecendo-o...

 

No dia 8 de agosto, quase um mês após sua chegada, Absalom finalmente encontrou-se com o major Niecomb no gabinete deste.

 

— Bem, o senhor tem sido um tanto importuno com seus artigos. Confesso que eles nos causaram embaraço; e, para ser honesto, não entendo quais são suas razões, nem como elas podem beneficiá-lo.

 

— Major Niecomb, a verdade é que elas podem beneficiar tanto a mim como aos senhores.

 

— De que maneira?

 

— Os senhores fracassaram na campanha de Suez porque não tinham um serviço de informações na Palestina ou na Síria. Se tivessem, teria sido relativamente fácil avançar.

 

Niecomb fez uma careta, sabendo que havia uma certa verdade naquela afirmação.

 

— Então, o que o senhor sugere?

 

— Major, nós formamos uma rede de espionagem na Palestina, e ela pode ser posta à disposição da Grã-Bretanha.

 

— Da Grã-Bretanha? Sem qualquer outra razão?

 

— Naturalmente. Quanto mais informações os senhores obtiverem, tanto mais rápido poderão agir na Palestina. E nós, judeus, naturalmente nos beneficiaremos com isso.

 

Niecomb acendeu um cigarro.

 

— E o que teríamos de pagar por essas informações?

 

— Major Niecomb, eu não vim aqui para lhe contar segredos. Vim em nome de meu povo; nós acreditamos que, ajudando a Grã-Bretanha, estaremos ajudando a nós mesmos. Não sou mercenário; tampouco essa oferta está sendo feita por altruísmo. Temos algo que pode ser de grande ajuda para os senhores.

 

— E qual é a extensão dessa rede?

 

— É pequena e secreta, mas muito eficaz.

 

Pequena... e secreta... e sem recompensa. Niecomb não ficou impressionado com Absalom, que ele considerou um romântico judeu radical, um tipo perigoso, agitador, que procurava alguma aventura. Bem, ele não seria enrolado por esse hebreu fanático. Céus, essa gente era mesmo impetuosa... realmente levavam a sério aquela bobagem de ser o Povo Escolhido.

 

Ordenou que Absalom deixasse o Egito, imediatamente, e deu um telefonema que resultou, vinte e quatro horas depois, na demissão do gerente do Banco Anglo-Palestino.

 

Dovid e Aaron esperavam, com ansiedade, a volta de Absalom ou uma mensagem sua a respeito da ligação com a sede do serviço britânico de informações.

 

As semanas passavam sem que chegasse qualquer notícia.

 

Dovid ficou muito impaciente.

 

— Tenho certeza de que Absalom encontrou alguma dificuldade para voltar... Bem, não podemos esperar mais. Isso é muito importante; Vou procurar um modo de chegar ao Egito.

 

— Creio que essa é a única solução — disse Aaron, balançando a cabeça. — Bem, que itinerário você pensa seguir? Se for por terra, isso significará atravessar o Sinai. Além de levar tempo, é perigoso.

 

— Isso nos deixa a alternativa do mar...

 

Dovid desconhecia que essa passagem era parte dos planos de Absalom; mas, naturalmente, sem ter recebido notícias de Absalom, ele não podia saber se o plano tivera sucesso.

 

Em Haifa, um árabe cristão, Tioufit Butaj, que tinha menos amor pelos judeus do que medo de seus patrícios, mas que havia achado sensato apoiar os judeus, que de algum modo poderiam ser úteis na salvação de seu pescoço, expressou sua disposição de levar Dovid ao Egito em seu pequeno barco, alugado, é claro. Salvar o pescoço de alguém não excluía o comércio. Mas o bloqueio britânico logo tornou inviável essa transação; assim, não restava outra coisa a Dovid senão fazer contatos com americanos, mais uma vez, a fim de conseguir passagem em um navio de guerra americano despachado para evacuar pessoas da zona de guerra. Foram preparados os documentos necessários, e Dovid embarcou no navio.

 

Ao chegar ao Egito, foi falar com o presidente do Banco AngloPalestino, pois o gerente (graças a Absalom) estava comprometido, aparentemente, por ter colaborado com os judeus; mas o presidente ainda estava acima de suspeita. Na realidade, ele aproveitou a oportunidade de recuperar o terreno perdido para os ingleses; e os ingleses, à sua maneira, nunca poderiam imaginar que um judeu, elevado a uma posição tão importante, de presidente de um banco associado à Inglaterra, iria pôr em perigo a si próprio ou à sua posição, agindo contra os desejos britânicos. Depois que Dovid identificou-se através de uma carta escrita por Aaron, Joseph Neiman mostrou-se muito receptivo. Aaron via em Neiman a última ligação restante entre Athlit e o Cairo.

 

Quando os dois estavam sentados no gabinete de Neiman, Dovid disse:

 

— É imperativo que eu me encontre com o oficial inglês de mais alta patente em seu serviço de informações.

 

Judeu egípcio nato e ocupando o cargo que ele ocupava, Neiman conhecia praticamente todas as pessoas de posições elevadas.

 

— Creio que se pode providenciar isso. Farei o contato para você. Onde vai ficar hospedado?

 

— No Royal Hotel. Estou registrado com o nome de David Nadar.

 

Os dois despediram-se com um aperto de mão.

 

— Estarei em contato com você — disse Neiman.

 

No dia seguinte, Dovid foi a Alexandria, onde tentou descobrir alguma coisa sobre Absalom. O máximo que conseguiu saber foi que Absalom estava tentando voltar para a Palestina, mas sem sucesso, até o momento. Era uma notícia nada estimulante e tampouco esclarecedora.

 

Dovid apressou-se então em voltar ao Cairo, para esperar lá, sem ousar sair do quarto. Finalmente o telefone tocou. Era Joseph Neiman.

 

— Acho que localizei seu homem. Vá ao quartel-general britânico amanhã, às dez horas da manhã. Pode perguntar pelo tenente Wooly.

 

Desligou sem esperar resposta de Dovid.

 

Dovid estava com mais sorte do que Absalom, embora não soubesse. Fazia apenas uma semana que o tenente Wooly havia substituído o major Niecomb.

 

Quando Dovid foi levado à presença do tenente Wooly, achou-o, na aparência e na atitude, a epítome do oficial britânico. E falava como tal, com uma certa desconfiança de Dovid.

 

— Pelo que sei, o senhor está querendo falar comigo.

 

— Exatamente. E vou direto ao assunto, senhor. Na Palestina temos colhido uma quantidade muito grande de informações que acreditamos possam ser utilizadas pelos senhores.

 

Dovid puxou um pequeno caderno de notas preto e entregou-o a Wooly. Este mal podia acreditar no que estava vendo. Movimentos turcos e alemães na Síria, evacuação de forças e equipamentos, um levantamento em profundidade dos preços de suprimentos, tamanho das safras, planos militares dos turcos, inclusive o que Dovid tinha visto na mesa de Jamal Paxá.

 

Wooly manteve a tradicional tranqüilidade britânica com muita dificuldade.

 

— Isso é extraordinário. Diga-me, como conseguiu colher tantas informações?

 

Dovid não deixou de perceber, na voz do outro, uma mistura de esperança reservada e ceticismo. Contou a história, desde o juramento do NILI; e o envolvimento de Aaron Aaronson, com sua reputação, dava-lhe credibilidade. Entretanto, somente depois de duas horas de interrogatório foi que Wooly se convenceu da legitimidade de Dovid e, conseqüentemente, da de seu material.

 

— Tudo o que posso dizer, sr. Landau, é que isso é verdadeiramente extraordinário. Vou submeter essas notas ao alto comando em Londres. Obrigado por ter vindo falar comigo; estaremos em contato.

 

Dovid esperou durante dois dias angustiantes, até ser chamado à presença de Wooly novamente. Dessa vez ele foi cumprimentado com todo o entusiasmo.

 

—- Bem, senhor. Creio que posso dizer que estamos de acordo — disse o tenente Wooly. — Mas acho que devemos discutir a maneira pela qual faremos contato.

 

Numa sala de arquivo, com a presença de outros quatro oficiais do serviço de informações, Dovid começou:

 

— O porto de Athlit recebe embarcações pequenas. Acredito que as informações poderiam ser entregues aos ingleses por nossos homens do NILI, os quais as decifrarão. E sugiro que usemos sinais luminosos. São simples e rápidos.

 

A discussão prolongou-se até altas horas da noite. Finalmente, quando tudo já estava combinado, Dovid foi mandado de volta à Palestina numa pequena embarcação pertencente aos ingleses, disfarçada com uma insígnia árabe.

 

Era meia-noite quando o barco entrou lentamente numa enseada, além dos enormes bancos de areia de Athlit. O tenente Wooly, em pé junto à amurada, trocou um aperto de mão com Dovid. Este desceu para o pequeno bote, que foi posto em movimento na velocidade considerada segura; depois tirou a roupa, colocou-a dentro de um saco à prova d’água, e pulou no mar gelado. Nadou até chegar às pedras mais do que conhecidas. Uma enorme onda cobriulhe a cabeça; as pedras estavam escorregadias, cobertas de musgo verde, mas ele conseguiu subir e ficar de pé.

 

Estava em casa.

 

Tremendo por causa do frio que lhe penetrava até a medula dos ossos, vestiu a roupa e foi andando furtivamente através da noite. Ouvia os passos dos soldados nas estradas. Ouviu suas risadas e ficou deitado no capim, contendo a respiração. Dando pequenas carreiras de um lugar para outro, conseguiu chegar às colinas de Zichron, e daí, à porta de Aaron.

 

Aaron olhou para Dovid, que estava todo molhado, com um largo sorriso no rosto.

 

— Meu Deus. Dovid, você conseguiu?

 

— Consegui, sim. consegui! Abraçando Dovid, Aaron disse:

 

— Agora vá trocar de roupa; vista um de meus roupões. Vou preparar um café.

 

Quando os dois homens estavam sentados à mesa da cozinha de Aaron, este fez questão de que Dovid contasse tudo, desde o começo.

 

— Tudo ocorreu nas duas semanas em que estive ausente. e antes que eu comece diga-me, você teve notícias de Absalom?

 

— Ele está em casa. Depois eu lhe conto tudo. Continue, por favor, Dovid.

 

— Tenho de dar a César o que é de César. Tive uma sorte extraordinária. Esse tenente Wooly estava mais ansioso por trabalhar conosco, se isso é possível, do que nós por fazer contato. Ficou combinado que os contatos serão feitos através de um navio e que usaremos sinais luminosos. Um barco aportará junto ao Castelo dos Cruzados e de lá o material será recolhido. Agora, acho que devemos decidir como serão divididos os nossos papéis. Aaron, você escolhe os homens que achar mais indicados para colher informações. Eu gostaria de trabalhar com Lieb Schacham; ele nada muito bem, o que seria de extrema utilidade para um marinheiro de primeira viagem.

 

A data da chegada do primeiro contato por mar tinha sido marcada quando Dovid ainda estava em Alexandria.

 

Na noite combinada, Dovid e Absalom esperaram, mas o navio não chegou.

 

— O que você acha que aconteceu, Dovid?

 

— Talvez tenham sido localizados. De uma coisa sabemos: se eles não vieram até agora, não virão mais. Já é quase madrugada.

 

Noite após noite, ficaram escondidos no mato, esperando. Na quarta noite, ouviram o suave ruído de um navio que passava; mas ele não podia aproximar-se o suficiente para ancorar, por causa do nevoeiro. E, durante as quatro noites seguintes, o navio não pôde aproximar-se, por causa das chuvas torrenciais.

 

Ao que parecia, a viagem de Dovid ao Egito fora em vão. O que ele não podia aceitar. Iria ao Egito novamente.

 

Dovid reuniu-se com Aaron e Absalom no laboratório, em Athlit.

 

— Que tal atravessar o Sinai numa hégira, Absalom?

 

— Já que sou praticamente árabe, eu poderia também... Afinal, eu sou quase um especialista nisso. A maneira como sobrevivi e voltei ao Egito é que me desanima. Os ingleses podem dizer que são contra os árabes e os turcos; mas o verdadeiro inimigo. Pelo menos foi isso que me fizeram sentir. São os judeus — disse Absalom.

 

Ele havia deleitado Aaron e Dovid com relatos angustiantes de sua longa viagem de volta, inclusive o encontro que tivera com um árabe e sua mulher, de que ele se recusava a falar, salvo que, na ocasião, ficou imaginando se valia a pena o preço da sobrevivência.

 

— Qual é o seu plano, Dovid?

 

— Temos de fazer contato. Não importa o que pensamos dos ingleses, eles são a única esperança que temos. Temos que ir a eles com nossas informações.

 

— Dovid, como você vai passar pela patrulha de fronteira? — perguntou Aaron.

 

— Não há outra saída. A esta altura, todas as escoltas americanas já devem ter resgatado os cidadãos neutros. Não há alternativa. Mas com o conhecimento que Absalom tem do deserto e com sua habilidade em falar a língua, temos uma boa chance de conseguir. Concorda, Absalom?

 

— Concordo.

 

Disfarçados de beduínos, eles deixaram Zichron. Vendo seus dois melhores amigos partir, Aaron rezou para que eles conseguissem realizar sua missão em segurança. Uma perda desse tipo era quase o limite que um homem podia suportar.

 

Em Chan-Hunes, foram detidos e interrogados. Absalom explicou que eram representantes de fazendas experimentais em Hadera e Athlit, e que estavam procurando as origens dos gafanhotos.

 

O comandante local do exército aceitou sua explicação e até ofereceu o uso de um telégrafo.

 

Dovid telegrafou para Aaron: ”Os gafanhotos ainda não foram localizados”.

 

Aaron logo compreendeu o significado duplo.

 

Agora a fronteira estava tão próxima, que Dovid e Absalom acharam que conseguiriam passar com facilidade. Seu entusiasmo não durou muito.

 

Perto de El-Katharan, a apenas algumas horas de caminho da linha de frente que separava os turcos dos ingleses, foram presos por um guarda de fronteira. Cada um foi submetido a uma torrente de perguntas. Que os interrogadores soubessem, não havia gafanhotos naquela área; e, se eles fossem as autoridades sobre gafanhotos que alegavam ser, por que não estavam equipados com um vasika, uma autorização de acesso livre?

 

Não adiantava contar histórias nem dar desculpas, e eles foram transferidos para Beersheba, para mais interrogatórios. Quando chegaram, as autoridades alemãs também não se deixaram convencer, e eles foram levados para o cárcere.

 

Estava claro que as autoridades tinham grandes suspeitas de que eles fossem espiões; e, novamente, a ponta de uma corda parecia ser um fim inevitável.

 

Dentro do yishuv, havia olhos e ouvidos em toda parte; mas para salvá-los seriam necessárias medidas imediatas. Max ben Eliezer, um shomer em Ruhama, a aldeia mais meridional do país, tornou-se o mensageiro entre Dovid e Salomon Bartov. com risco de vida, Bartov ia, todos os dias, recolher as notas e tiras de papel que Dovid jogava pela janela, através das grades. De suas mãos, as notas foram passadas para Nathan Eliav, que foi até Zichron, onde Aaron finalmente soube da prisão.

 

Os homens foram interrogados separadamente, durante horas a fio. Quando insistiram em sua história, começaram as torturas.

 

Dovid foi surrado na sola dos pés, depois arrastado pelo corredor de pedras para uma cela sem janela, e com a porta aferrolhada.

 

Absalom passou pelos mesmos horrores, mas pelo menos não teve um ataque violento de malária, como aconteceu com Dovid. No meio da noite, bateu na parede que separava as duas celas. Não obteve resposta. Indagava a si próprio se Dovid ainda estava vivo. Deixando-se cair no frio chão de pedra, não tinha outra coisa a fazer senão pensar em seu triste futuro. O que o enfurecia mais não era morrer, mas sim morrer sem ter visto Sarah.

 

Só pensava nela. Enquanto pudesse manter-se vivo, ela era sua ponte para a sanidade mental.

 

                                          Capítulo catorze

Sarah, sentada à cabeceira da mesa, na imponente sala de jantar da casa de seu marido, estava magnífica em seu vestido de brocado dourado; suas jóias de esmeralda e seus brilhantes judeus cintilavam à luz da vela. O brilho estava deslumbrando o general Von Himmelstein. Essa judia era encantadora; como podia estar casada com um homem tão rústico? Comparada às outras mulheres, fazia que essas parecessem pálidas em todos os aspectos.

 

— Que tal viver em Constantinopla?

 

— Acho fascinante, e o senhor?

 

— Não é como Berlim. mas na guerra a gente se contenta com menos.

 

— Posso imaginar.

 

— Então a senhora já esteve lá?

 

— Já, uma vez, com meu irmão.

 

— Então sabe o que quero dizer.

 

— Naturalmente — confirmou ela, sorrindo, mas quase não estava escutando.

 

Aqui ela vivia no luxo, enquanto seu povo passava fome. E, apesar de todas as indulgências de seu marido, ele não havia mandado uma só moeda para a Palestina. com a guerra, ele enriquecia cada vez mais, e não se lembrava do sofrimento dos outros. Ele era praticamente um alcoviteiro dos turcos.

 

A repugnância que ela sentia por ele aumentara a tal ponto que nem sequer se importava mais em viver com ele. Embora tivesse casado sem amor, isso lhe parecera ter importância, no começo. Havia se sacrificado pelo que acreditava honestamente ser a felicidade de Rivka; esse homem gostava dela realmente, e isso bastava. Os filhos, a quem poderia dar seu amor e dedicação, teriam compensado tudo aquilo a que tinha renunciado; mas logo compreendeu que ele era incapaz de lhe dar o filho há muito desejado. Agora estava contente por não ter nenhum.

 

Foi tirada do seu devaneio pelo marido, que lhe fez um sinal com a cabeça, do outro lado da mesa, dando a entender que as damas deviam retirar-se para a sala de visitas, para que os homens pudessem fumar seus longos charutos negros e tomar suas bebidas, enquanto conversavam a portas fechadas sobre como ludibriar o governo com material destinado ao exército.

 

Sarah, sentada no divã, servia o cafezinho às damas, que discutiam as últimas modas. Pena que Paris fosse parte da França. Que vergonha os alemães ainda não terem conquistado a França. Naturalmente, esses comerciantes locais que se davam o nome de couturiers gostavam demais de falar. Mas, afinal, estavam em guerra, e era preciso suportar os inconvenientes. Sarah pensou nas colinas de Zichron, nas cartas vagas que recebia de Aaron; de Absalom não recebia nada.

 

Depois que os convidados saíram, Sarah foi para o quarto, um tanto indisposta. Despiu-se, pôs o roupão, sentou-se à penteadeira e começou a escovar o cabelo. Viu o reflexo do marido, enquanto ele lhe falava, tirando a roupa.

 

— Meu bem, hoje você foi realmente uma preciosidade para mim. Von Himmelstein ficou encantado com você.

 

— E isso lhe agradou?

 

— Claro. Como a esmeralda em seu pescoço, uma mulher bonita pode ser inestimável. Seu encanto dificilmente embaraça minha posição. No caso de Von Himmelstein, foi realmente muito importante.

 

— Verdade? Em que sentido?

 

— Ele admira mulheres bonitas.

 

— E isso não o ofende de modo algum? A maioria dos maridos ficaria ressentida de ver outro homem expressar seus pensamentos tão abertamente.

 

— Mas não no caso de Von Himmelstein.

 

Ela estava sendo pesada. como o ouro do marido. •— O que faz dele uma exceção.

 

— Todas as encomendas do governo têm que ser aprovadas por ele.

 

— Compreendo. E vocês dois procuram, secretamente, ludibriar o governo. Ao invés de dez dólares por um determinado artigo, o preço cobrado do governo é vinte, e você e o general.

 

Ele riu.

 

— Você é inteligente demais para uma mulher.

 

Após uma noite de insônia, Sarah esperava, com impaciência, que o marido saísse. Naquela manhã, sentou-se em frente dele à mesa, como uma mulher submissa. Fez todas as cortesias costumeiras, servindo o café, passando manteiga na torrada, enquanto ele ficava sentado como um potentado satisfeito.

 

Limpando o bigode e dobrando o guardanapo, ele disse:

 

— Hoje você vai usar o sari escarlate, com os rubis, meu bem. Teremos o prazer de receber uma autoridade turca muito importante.

 

— Você acha que ele também vai ficar encantado comigo?

 

— Ora, Sarah. Bem, eu tenho que sair. Lembre-se de ser atenciosa para com a mulher do governador, hoje na hora do chá, sim?

 

— Eu me lembro sempre de todas as palavras que você diz. Quando afinal ele saiu, Sarah apoiou-se tristemente na porta.

 

Depois, dirigiu-se rapidamente ao banheiro. Sua criada já tinha preparado o banho e a roupa. Seguiu toda a rotina da manhã, com uma variação: escreveu um bilhete para o marido. Não havia saudação:

 

”Estarei ausente quando você ler isto. Não há no mundo jóias suficientes para me fazerem viver com um homem desprezível como você. Se tentar vir atrás de mim, exporei seus negócios ilícitos. Berlim veria isso com olhos muito desfavoráveis. Para uma mulher, sou realmente muito inteligente, e meu irmão tem influência”.

 

Pôs o bilhete num envelope, fechou-o e o deixou em cima do estojo de barbear do marido; depois abriu o cofre, tirou o conteúdo e espalhou-o em cima da penteadeira. Com uma sensação de alívio, tirou a aliança e colocou-a em cima do estojo de jóias..

 

Chegada a hora de sair, entrou numa limusine, que a levou à mansão do governador. Ela era o modelo das boas maneiras e da cortesia que fariam o marido achar que seu investimento nela valia todas as suas jóias.

 

Mais tarde, Sarah passou pelas enormes portas de bronze que levavam à rua, onde seu motorista a esperava.

 

— Leve-me até Madame Armound’s.

 

Quando o carro parou para que saltasse, ela entrou no salão de cabeleireiro e esperou até que o motorista fosse estacionar o carro; depois saiu e atravessou a rua apressadamente na direção oposta. Quando chegou ao mercado, entrou na primeira loja e comprou uma roupa de viagem, um par de sapatos, lingerie e uma valise de viagem. Deixando a loja, tomou um táxi, que a levou à estação ferroviária.

 

Quando finalmente se encontrou dentro do vagão, reclinada no banco, sentiu que a tensão diminuía.

 

De Constantinopla ela foi a Damasco. A viagem foi um pesadelo. Os trens estavam sendo requisitados para os militares; as revistas eram constantes e os enguiços pareciam não ter fim.

 

Toda vez que isso ocorria, tinha de esperar durante horas, até que o conserto fosse feito. Depois do que pareceu um mês, chegou, finalmente, a Zichron. Em seu rosto, ainda havia sinais de tensão e cansaço, mas ela se recuperaria. estava em casa.

 

Quando parou e ficou olhando para o topo da colina, as lágrimas rolaram-lhe dos olhos. Esqueceu o cansaço e subiu o aclive correndo até que, esbaforida, abriu a porta de sua querida casa. Ecos de sua infância vieram aos seus ouvidos. imã. abba. sons de Clair de lune. uma valsa de Chopin. Emily Brontê. Rivka. vestidos brancos engomados. fitas de cabelo rosa. Aaron. o querido Aaron. o querido Absalom. E depois a mãe entrou na sala. Malka Aaronson ficou parada em silêncio por longo tempo. Aquilo era demais para ela. Depois abraçaram-se, enquanto suas palavras misturavam-se com as lágrimas.

 

— Sarah, você está em casa.

 

— É, imã...

 

— Meu Deus, não consigo acreditar; será que estou sonhando?

 

— Não, imã, não é sonho, não; eu voltei para casa, e você nunca mais vai me perder.

 

Agora Malka segurava a filha pelos braços, e em seus olhos via sofrimento, mas haveria tempo depois para conversar.

 

— Venha, Sarah, você deve descansar.

 

— Não, por favor, onde está abba?

 

— No parreiral. Agora vá lá em cima refrescar-se. Você o verá na hora do jantar, mas antes você vai ver Aaron.

 

Sarah atravessou o pátio, em direção à casa do irmão. Hesitou por um momento. O que ele diria? Será que Aaron ou seu pai... desaprovariam sua fuga de um marido que lhe tinha proporcionado todos os luxos? Para ser mais objetiva. casamento era um contrato tido como sagrado e indissolúvel. Será que ele compreenderia que ela tivera de partir para não ficar louca? Respirou fundo, abriu a porta e viu Aaron lendo.

 

Quando ele levantou os olhos, sua reação foi igual à da mãe, de choque. Lentamente ele se levantou da cadeira, sem acreditar muito que era ela que estava ali, e então tomou-a nos braços, apertando-a contra o peito. Naquele momento, Sarah compreendeu que havia voltado para eles. Estava em casa. Sem necessidade de explicação, ela via que Aaron a compreendia.

 

— Sarah, meu bem, você está em casa.

 

Tomou-lhe a mão e sentaram-se lado a lado no sofá. Sarah foi tomada de uma sensação de paz que não experimentava desde seu casamento. Ficaram sentados em silêncio, olhando para as colinas ondulantes do Carmelo, para o parreiral onde abba estava trabalhando o solo, entre as parreiras. As espirradeiras estavam em flor. Deus, pensou Sarah, aquele era o lar, e era quase o paraíso.

 

Então, voltou-se para ele e contou-lhe sua história. Falou de sua vida. Do marido. De sua insensibilidade..

 

— Eu me sentia como se estivesse me prostituindo, recebendo seus presentes, que tinham sido pagos com sangue. Em Constantinopla, sabíamos o que estava acontecendo com os armênios, e a vida continuava. Enquanto eu estava sentada à mesa farta de meu marido, posando de boa anfitriã, coberta de jóias, uma aldeia inteira de armênios estava sendo destruída. Enquanto eu tomava chá em companhia da mulher do governador, suas aldeias eram incendiadas. Um milhão de pessoas foram assassinadas. Será que isso não é demais para a compreensão humana? Aqui em Eretz Yisroel, vocês devem ter ouvido falar disso.

 

Aaron confirmou com a cabeça.

 

— Mas acho que ouvir dizer e ver são duas coisas diferentes. Algumas pessoas em Constantinopla até negavam isso, dizendo que era propaganda contra os turcos. Diziam que os provocadores de guerra estavam, propositadamente, espalhando histórias de horror, para inflamar a opinião pública. Mas onde estão as vozes civilizadas? Não ouvi clamores. Os turcos são tão bárbaros que deixam montes de cadáveres ao lado das estradas, esperando sepultamento. E as sepulturas dos que foram enterrados eram tão rasas que se podiam ver formas humanas aparecendo por baixo da terra solta. Crianças mortas, quase esqueletos, estavam espalhadas pelo chão. Mulheres eram violentadas uma centena de vezes, e depois deixadas para morrer de fome. Ouvi falar dessas barbaridades e cheguei a ver algumas, quando viajava, embora isso não fosse para se ver. O barulho das rodas do trem reverberava em meus ouvidos, como se fosse uma advertência: ”Os judeus serão os próximos”. Eu tapava os ouvidos com as mãos para não ouvir a profecia. Sim, Aaron, nós seremos os próximos, e o mundo não ouvirá nossos gritos. Temos de salvar a nós mesmos, Aaron. É preciso fazer alguma coisa, antes que seja tarde demais.

 

Sarah tremia tanto, que Aaron lhe deu uma bebida. Quando ela se acalmou um pouco, Aaron disse:

 

— Alguma coisa será feita, Sarah.

 

— Há tanto tempo que ouço isso. De onde virá nosso socorro?

 

— Eleazar fez essa pergunta em outro topo de colina. Quando ele se achava no templo de Herodes, em Massada, orando, encontrou a resposta. E nós estamos aqui em nossas colinas para encontrar a nossa resposta. Agora, meu bem, acho que imã está à nossa espera, para o jantar, e abba deve estar ansioso por ver você.

 

Sarah sentia uma estranheza. uma ambigüidade em Aaron. Em suas cartas também ela sentira isso. Era como se ele lhe quisesse falar algo, e não pudesse.

 

— Aaron. Há algo que você não quer me contar. O que é?

 

— Nada, Sarah, nada.

 

— Conheço você muito bem, Aaron. Seja o que for, quero ajudar.

 

Ele olhou para ela de perto. Ousaria pô-la ao corrente do NILI, sabendo o tipo de risco que isso significava? Acaso tinha ele o direito de recusar?

 

— O que é?

 

Então, calmamente, ele lhe falou do NILI, contando o que tinha acontecido.

 

Quando ele estava prestes a acabar, disse:

 

— O yishuv nada sabe sobre isso. Alguns dos shotnritn são contra nós. mas, acima de tudo, a aldeia não deve saber. Ninguém, além daqueles poucos envolvidos. Imã e abba não sabem, e nunca deverão descobrir.

 

— E nossos irmãos? Alex, Zvi e Shmuel, eles sabem?

 

— Somente Alex está envolvido. Acho que temos uma casa dividida. Zvi está no Neguev e Shmuel na Galiléia. É melhor assim; e eu desconfio dos sentimentos deles.

 

— E Absalom?

 

Aaron tentou fugir à pergunta.

 

— O que é, Aaron? Por favor, conte-me. Eu sou uma mulher, não uma criança que você tenha de proteger. Posso ajudar.

 

Houve uma longa pausa.

 

— Absalom está na prisão.

 

— Meu Deus, não! Onde?

 

— Em Beersheba.

 

— Por quê? Por que razão está detido?

 

— A culpa é minha, devia ter insistido em que era um risco grande demais.

 

E contou-lhe a história, desde o dia em que Dovid e Absalom haviam partido.

 

Sarah desconfiava de que havia mais alguma coisa.

 

-— Aaron, não esconda nada de mim. Ele hesitou; depois disse:

 

— Estou fazendo tudo o que posso. para salvá-los. Você precisa ser forte, Sarah. Tenho certeza de que você compreende.

 

— Está querendo dizer que eles poderiam ser. enforcados? Aaron confirmou com a cabeça, lentamente.

 

Por um momento, Sarah teve a impressão de que seus joelhos iam dobrar-se.

 

— Leve-me até ele, Aaron.

 

Aaron fitou os olhos da irmã. Negar-lhe isso era difícil, mas seria mais doloroso para ela ver Absalom nesse momento.

 

— Sarah, você disse que queria ajudar.

 

— Quero, sim. Esta causa é minha também.

 

— Sarah. Vou encontrar um modo de trazer Absalom de volta a você. Prometo. E você pode ser útil agora mesmo.

 

— Qualquer coisa, Aaron.

 

— Amanhã de manhã, quero que você vá a Jerusalém e traga Chavala de volta.

 

— Claro, Aaron. Irei. Mas você me garante que Dovid e Absalom voltarão em breve?

 

Ele olhou a irmã nos olhos.

 

— Prometo.

 

Ele quisera estar convencido do que tinha dito, mas se acontecesse algo a Absalom, haveria tempo suficiente para Sarah chorar.

 

Aaron nunca assumia uma questão com Jamal Paxá que pudesse ser tratada por outros. Mas nesse caso os alemães estavam envolvidos. Mesmo os subornos que eram recebidos não libertavam os homens. Quando Aaron se queixou a um subalterno turco, este encolheu os ombros e fez mais promessas, e mais bakshish foi extorquido. Mas as coisas corriam lentamente para Dovid e Absalom.

 

Dessa vez, como mostra de força, levou consigo dois dos principais agrônomos, Samuel Guri, de Athlit, e Zalman Kishon, de Hadera. Nesse momento, Aaron era valorizado por Jamal Paxá como nunca. Sua estrela estava bem alta, na órbita real. O celeiro turco estava abarrotado de cereais e forragem, que tinham sido entregues na semana anterior.

 

Jamal Paxá cumprimentou Aaron e os dois homens com exuberância oriental.

 

— Ah. meu prezado Aaronson. Aaronson respondeu ao cumprimento.

 

— O senhor já conhece meus agrônomos-chefes, sr. Kishon, de Hadera, e o sr. Guri, de Athlit?

 

O paxá olhou para os dois homens e percebeu que nunca os tinha visto antes; ou, se já os tinha visto, não se recordava.

 

— Já, naturalmente. Agora, sentem-se, por favor — respondeu Jamal, oferecendo uma caixa de cigarros a Aaron. — Estes são dos melhores; são feitos especialmente para mim. Uma mistura exclusiva, muito aromática.

 

Aaron não fumava, mas aceitou um cigarro por questão de educação, seguindo o exemplo de Kishon e Guri. Recusar seria uma violação grosseira da etiqueta.

 

— São maravilhosos, não acham?

 

— Maravilhosos — respondeu Aaron. — Bem... eu creio que...

 

Jamal o interrompeu; queria saborear o momento, sabendo que o melhor ainda estava por vir. Aaron lhe trazia boas notícias.

 

— Os senhores vieram de longe Vou mandar trazer um café.

 

— Seria ótimo.

 

Os três detestaram aquela bebida preta e amarga, mas as vidas de Absalom e Dovid certamente valiam um estômago azedo.

 

Após a hospitalidade ritual, os olhos de Jamal brilharam como se ele estivesse cobiçando uma mulher.

 

— Agora vamos ao motivo que os trouxe aqui. Quanto trigo, cevada e forragem desta vez?

 

— Nenhum — respondeu Aaron calmamente.

 

— Nenhum?. Será que ouvi direito?

 

— Ouviu. E quer saber por quê?

 

— Se eu quero saber por quê? — repetiu Jamal, levantando-se e começando a andar de um lado para outro da sala. — Por quê? — perguntou, voltando-se abruptamente.

 

— Porque o senhor continua com meus homens na prisão.

 

— Eu prendi seus homens? Seus homens nunca foram incomodados desde aquele pequeno incidente em Jaffa. Dei-lhes minha palavra de que aquilo nunca aconteceria de novo, e agora o senhor me vem com essa acusação?

 

— O administrador da estação de Hadera está detido em Beersheba, juntamente com meu agrônomo principal de Athlit. Só poderei entregar o que o senhor quer, se os homens. não me refiro aos feias. simples trabalhadores. Para conseguirmos a produção que o senhor quer, precisamos dos cérebros de homens como Guri, aqui. Samuel, quantas toneladas você conseguiu produzir da última vez?

 

— Cinco mil toneladas de cereais nesta primavera, com a alternação da safra no outono passado. O que não foi minha idéia, mas de Dovid.

 

— E qual foi sua produtividade, Zalman?

 

— Em Hadera, nossa produção superou o embarque anterior em três mil toneladas de forragem.

 

— Até que ponto foi sua a responsabilidade por essa produção?

 

— Bem, eu dei minha contribuição, mas, sem o conhecimento e a experiência de Absalom, isso nunca poderia ter acontecido.

 

— Aí está. Trabalhadores para arar, colher, ensacar, carregar e entregar nós podemos conseguir com facilidade. Mas sem homens como Landau e Feinberg, não teremos produção alguma.

 

Jamal franziu a testa. Landau e Feinberg? Esses dois judeus eram capazes de cultivar figos no deserto! Pouco importava que ele não gostasse deles; o mais importante era que eles eram os responsáveis por aquela produção. Judeus ou armênios, isso não fazia diferença. Quem quer que fosse capaz de produzir era vital para eles ganharem a guerra e para seu tesouro particular..

 

— Vamos começar de novo. Você disse que seus homens estão presos em Beersheba?

 

— Exatamente.

 

— Bem, você sabe que eu tenho um imenso país para dirigir. Nem todas as prisões são trazidas ao meu conhecimento. Por que eles estão lá?

 

— Por uma acusação inventada e sem fundamento de espionagem. Haverá coisa mais ridícula?

 

”Ou verdadeira?”, pensou Jamal. Lembrou-se dos planos que estiveram em cima da mesa. mas isso não tinha dado em nada; ele tinha observado cuidadosamente e esperado.

 

— Quem fez a acusação?

 

— Os alemães. com o devido respeito pela posição que eles têm como nossos aliados, eu não confiaria neles mais do que nos ingleses, franceses ou russos. Não devo lealdade nenhuma a eles. Minha lealdade é ao meu governo, ao Império Otomano e ao senhor, que provou sua amizade.

 

Jamal ficou satisfeito. Seu amor pelos alemães era quase tão grande quanto pelos ingleses.

 

— Sim, continue. A respeito dos alemães.

 

— Sei que eles se sentem superiores a nós, turcos. Têm os navios e o poder aéreo. Nós, infelizmente, não temos isso. São também arrogantes, e creio que gostariam muito de levar uma fatia grande do bolo, quando a guerra terminar.

 

Aquele judeu era mesmo inteligente. Aaronson estava expressando o mesmo pensamento que o acompanhava desde há muito tempo.

 

— O que você quer dizer com ”uma fatia grande”, Aaronson?

 

Aaron compreendeu que estava ganhando vantagem, ao explorar o antagonismo de Jamal Paxá em relação aos alemães. Ele sentia isso. E apressou-se em continuar.

 

— Eu me refiro à Palestina e à Síria.

 

Aaron estava certo em sua conclusão; ele entendia a mentalidade oriental e sabia que nada era mais tentador do que a ganância. Jamal Paxá ficou sentado com os olhos fixos, enquanto sua raiva crescia visivelmente. Ele podia visualizar-se sendo posto para fora de seu gabinete e substituído por algum alemão arrogante. Jawoht, mein Herr. Jamal Paxá preferia vê-los no inferno.

 

—... Enforcá-los...

 

— O quê, Aaronson? Eu me distraí um pouco. Você estava dizendo?

 

— Dizem que um exército luta apoiado no estômago. Foi por isso que mandei Landau e Feinberg, nossos principais agrônomos, fazerem um estudo sobre o cultivo de trigo no Neguev. Mas eles foram presos por suas patrulhas alemãs imbecis, desculpe-me a expressão. Essas patrulhas têm a mentalidade alemã; e como meus homens não apresentaram um ridículo cartão, foram presos como espiões. Agora eu lhe pergunto: que inteligência tem essa gente que prende, no deserto, cientistas capazes de ir aonde quer que se possa encontrar trigo para alimentar o exército? E para mostrar que estão fazendo um trabalho útil aqui, e impressionar o cáiser, estão prestes a enforcá-los.

 

O sangue subira ao rosto de Jamal Paxá. Alemães imbecis. Imbecis, com aquele andar de ganso, aquele cabelo louro de corte curto, aqueles olhos azul-pálidos e sem graça e aquelas caras ridículas de vikings. O exército otomano poderia morrer de fome, e o cáiser, com seu exército mutilado, não faria nada; dançaria uma valsa de Strauss em Damasco, se o império caísse. Ele estava de sobreaviso quanto a eles, e Aaronson também. Judeu inteligente.

 

Jamal chamou seu secretário imediatamente.

 

— Mande um telegrama. Beersheba. Absalom Feinberg e Dovid Landau devem ser postos em liberdade sem demora.

 

De Damasco, Aaron e os dois homens foram para Beersheba, onde os conduziram à cela de Absalom, por um frio e escuro corredor de pedra.

 

Quando a cela foi aberta, Absalom sentiu-se ofuscado, mesmo à luz difusa que havia ali. Parecia que estivera no escuro por muito tempo; e agora ele tinha certeza de que o fim tinha chegado. E depois. Será que estava imaginando coisas? Não. Era realmente a voz de Aaron. incrível.

 

— Shalom, estou contente por você ter passado por aqui — disse ele, com uma fanfarronice irônica.

 

Por dentro, Aaron ardia de raiva pelo estado em que Absalom se achava. Sua barba, normalmente bem-cuidada, estava emaranhada de saliva; os lábios, rachados por falta de água. Toda a provação por que passara estava estampada em seus olhos. Que bárbaros! Ele teria dado a vida para estrangular Jamal Paxá, ao ver Absalom tentando levantar-se.

 

— Graças a Deus que você está vivo. Vamos levá-lo para casa. Samuel, leve-o para a carroça, que eu cuido de Dovid. Depois volte.

 

— Eu consigo ir sozinho, Aaron...

 

— Você já fez o bastante. Agora, leve-o lá para fora. Aaron e Zalman encontraram Dovid caído num frio chão de pedra. Ele estava tremendo, com convulsões, acometido de malária. Não havia tomado quinino desde que adoecera. Seu estado era tão grave que ele não reconhecia ninguém. Quando o apanharam, ele mal podia falar.

 

— Desumanos. — disse Aaron. — Quando eu vim aqui, trouxe quinino, mas eles não lhe deram. Graças a Deus que trouxemos um pouco.

 

Quando Dovid já estava deitado ao lado de Absalom, na carroça, Aaron tomou as rédeas e fustigou o cavalo, para que trotasse mais depressa. Zalman estava sentado ao lado de Dovid, enxugando o suor que o banhava. Tentou tirar um pouco de água do cântaro, que quase lhe caiu da mão quando a roda da carroça entrou num sulco profundo da estrada. Finalmente, encheu a xícara novamente, abriu a boca de Dovid e pôs-lhe o quinino na língua, forçando-o a engolir. Os dentes de Dovid batiam tanto que ele não conseguia engolir. Zalman tentou novamente, até conseguir; depois cobriu-o com mais alguns cobertores.

 

— Graças a Deus que o quinino parece estar fazendo efeito — disse Zalman, enquanto observava Dovid cair num sono reparador.

 

— Como estão as coisas em casa? — perguntou Absalom, tranqüilamente.

 

— Há uma grande surpresa para você — disse Samuel.

 

— A única surpresa que eu sei é que eles não me enforcaram. O que mais poderia ser?

 

— Há alguém à sua espera em Zichron.

 

Absalom quase não tinha esperança, mas mesmo assim arriscou.

 

— Sarah?

 

— Mazel tov. Se você ainda pode pensar nela, acho que vai ficar bom — concluiu Samuel.

 

Eram duas horas da manhã, quando chegaram a Zichron. Na casa de Aaron, Absalom foi carregado para o andar de cima, onde Sarah quase desmaiou ao vê-lo.

 

— Aqui. Tragam-no para o antigo quarto de Aaron. Quando ficaram a sós, Sarah engoliu as lágrimas.

 

— Graças a Deus que você está em casa. Absalom sorriu.

 

— Minha Sarah? Eu devo estar sonhando. Deixe-me olhar para você. Não, não é sonho, não — disse Absalom, tomando-lhe a mão. — Tudo isso valeu a pena, se foi suficiente para trazer você de volta.

 

Quando Chavala ouviu o ruído da carroça no silêncio da manhã, levantou-se rapidamente. Agitada, vestiu o roupão, amarrou o cinto e saiu do quarto, correndo; desceu a escada e atravessou o pátio, em direção à casa de Aaron, onde Dovid tinha sido levado para a cama.

 

— Onde está ele? — perguntou a Aaron, abrindo a porta bruscamente.

 

— Em meu quarto

 

Ela não esperou as palavras de consolo, ao invés disso, precipitou se para onde estava Dovid. Quando viu o seu rosto, não se alarmou com o seu estado, o importante é que ele estava vivo E ela sabia que Deus o havia mandado de volta para ela.

 

Rapidamente, encheu uma bacia de água e a colocou na mesa, ao lado da cama. Afastando o cobertor, chamou Aaron, que entrou no quarto imediatamente.

 

— Ajude me a tirar a roupa dele, e traga-me quinino. Depois de lhe dar o remédio, ela lavou seu corpo trêmulo, trocou a roupa de cama, depois ficou sentada ao lado dele, segurando-lhe a mão. Tinha certeza de que estava sentindo a vida de Dovid apagar-se. Esse era o ataque mais grave que ele já tivera E seu estado tinha se agravado de tal modo que parecia impossível que ele resistisse.

 

Durante três dias e três noites ela mal dormiu e comeu, mas por fim, involuntariamente, seus olhos se fecharam, e ela cochilou. A voz de Dovid chegou até ela em um sonho Parecia dizer.

 

- Chavala, minha querida Chavala, eu devo ter resistido à morte só para poder ver seu rosto novamente.

 

Ela abriu os olhos. Não era sonho. A crise tinha passado, e agora ele estava tranqüilo Estendeu a mão enfraquecida para ela. Ajoelhada a seu lado, ela acariciou lhe o rosto.

 

— Estamos juntos, meu bem — disse repetidas vezes, com lágrimas de gratidão.

 

Durante a semana seguinte, Chavala cuidou dele como de uma criança. Prodigalizava seu amor por ele, cujo coração se nutria disso.

 

Pouco a pouco, ele foi recuperando as forças.

 

Quando caminhavam pelo parreiral, Dovid deteve se e olhou para a mulher.

 

— Senti tanta falta de você, Chavala! O mundo, a guerra terão que esperar. Amanhã vamos nos retirar por alguns dias.

 

— Sim, Dovid, mas você acha que já está em condições de viajar?

 

—- com você, perdoe a linguagem floreada, até o fim do mundo É bastante longe?

 

Na manhã seguinte, Dovid ajudou Chavala a entrar na carruagem preta, tomou as rédeas e partiram em direção às colinas de Haifa.

 

A estalagem moura que Dovid tinha escolhido abrigara, em outros tempos, o harém de um príncipe árabe, mas agora era propriedade de um judeu sefardita. ”De realeza para realeza”, pensou Dovid, sorrindo para si mesmo.

 

Mal Chavala atravessou o limiar, visualizou moças dançando. Fechando os olhos, ela quase podia ouvir os ruídos de pequenos sinos de ouro que as moças usavam nos tornozelos, com o olhar exótico atravessando os véus transparentes.

 

Da sacada dos quartos, podiam ver a cúpula dourada do santuário Bahai e os magníficos jardins que o cercavam. Mais além, a vista empolgante da cidade e do porto; do outro lado, a baía, a antiga cidade de Acre e as montanhas da Galiléia. O monte Hermon erguia-se majestosamente com sua coroa de neve.

 

Logo depois eles se deitaram na cama com dossel e entregaram-se alegremente à troca de amor e gratidão. Ficaram deitados juntos, como se fossem um só, numa espécie de suave exaltação. E continuaram abraçados, desejando poder excluir o resto do mundo para sempre. Que esse momento fosse o resto de suas vidas.

 

— Dovid, quem dera que não houvesse guerra, que pudéssemos voltar à vida de antes. Mas sei que isso é bobagem.

 

Naturalmente, ele tinha os mesmos anseios que ela; mas entregar-se a esses anseios agora só iria tornar as coisas mais dolorosas, quando esse idílio chegasse ao fim.

 

— Devemos desfrutar de nosso prazer onde e quando pudermos, Chavala. Um dia isso acaba. e você, eu e Reuven.

 

Por mais que ela tentasse esquecer o dia em que deixara o pequeno Reuven e Chia com Raizel, era impossível não ouvir a voz do filho dizendo novamente: ”Leve-me com você para ver abba, por favor”. mas como poderia ela fazer isso? Quando Sarah fora a Jerusalém, para trazê-la de volta a Zichron, ela nutria pouca esperança de ver Dovid vivo novamente. Queria poupar ao filho essa decepção cruel. Novamente ela podia ouvir as palavras de Sarah... ”Absalom e Dovid estão presos e poderiam...” Chavala procurou não recordar o resto. Rapidamente, voltou o corpo para o marido, e entregou-se a ele tão completamente quanto pôde.

 

Chavala sabia que se passaria muito tempo até que pudesse desfrutar de outro momento como aquele.

 

Os quatro dias passaram-se rapidamente, e nesse momento Dovid estava levando Chavala para Jerusalém.

 

Quando chegaram a casa, Dovid encontrou Reuven lendo tranqüilamente. Aquele era seu filho; e embora os outros, especialmente a pequena Chia, lhe fossem muito próximos, Reuven era diferente. Era de sua carne e da carne de Chavala. No mundo dilacerado pela guerra em que ele vivia, aquele era um fato central, unificador, para sua vida. Sobre todas as coisas, isso fazia sua vida parecer importante, justificava qualquer sacrifício pela sobrevivência.

 

Quando o menino o viu, não correu imediatamente ao seu encontro. O filho se mostrou tímido, como se não tivesse certeza de que aquele homem tenso fosse realmente seu pai. E, de certo modo, ele tinha razão. Não era o mesmo homem que havia deixado Jerusalém. Ninguém passa pela iminência da morte duas vezes e continua sendo a mesma pessoa. Meu Deus, haveria um cheiro de morte em torno dele, acompanhando-o? Ele esperava que não; esperava que fosse antes uma aura de sobrevivência, um desejo de sobreviver à morte que os turcos e alemães lhe tentassem infligir. Afinal, eles eram os últimos de uma longa fila que tentara extinguir os judeus da face da terra. Mas ninguém tinha conseguido isso. Dovid tencionava esforçar-se para conservar o recorde de sucesso incompleto.

 

Aproximou-se lentamente do menino, e ficou parado por um momento; depois estendeu a mão e desmanchou-lhe o cabelo. Então, somente então, foi que o menino se levantou e, lentamente, como se estivesse segurando a própria vida, pôs os braços em torno da cintura do pai e o apertou bem.

 

— Estou contente de ver você, abba. Eu estava preocupado. Imã foi embora tão de repente.

 

— Eu sei, eu sei, Reuven. Bem, como você está vendo, a preocupação foi em vão. Aqui estou eu e aqui está ela; e agora vamos ter muito tempo para ficar juntos, conversando e brincando. Em breve, todos nós estaremos juntos novamente, e não terei que ir embora.

 

Havia lágrimas nos olhos do menino, enquanto ele tentava ser mais maduro do que se sentia, ser corajoso. Ele entendia muito bem que seu pai poderia nunca mais voltar, quando partisse de novo; entendia isso melhor do que os pais podiam imaginar. Por isso, durante o resto daquele dia e o seguinte, eles viveram juntos, como se nunca tivessem estado separados, como se nunca mais precisassem separar-se uns dos outros. Cada um sabia da verdade; cada um, inclusive Reuven, desempenhava o seu papel. E quando Dovid teve que partir, ao enfrentar os dois, não houvera lágrimas. O amor que compartilhavam era o seu laço, seu ponto de apoio especial na vida, e cada um valorizava esse amor ao máximo, não só por si, mas pelos outros.

 

Quando Dovid voltou para Zichron, o zelador da casa de Aaron deu-lhe o recado de que ele tinha de ir a Athlit.

 

Na janela do laboratório de Aaron, a luz era difusa. Rapidamente, Dovid subiu a escada e encontrou Aaron sentado à longa mesa, em companhia de Absalom, Sarah e mais alguns homens do NILI.

 

O rosto de Aaron estava contraído; os olhos não podiam esconder a ansiedade.

 

— Dovid. estou contente por você ter voltado. Sente-se. Dovid juntou-se aos outros.

 

Aaron começou a falar:

 

— O contato foi rompido. Não há sinais; não há nada. Não temos maneira de saber por quê! — disse, batendo o punho na mesa. — E aqui estamos esperando, noite após noite. com mapas, planos e informações vitais escondidos numa galeria subterrânea com tudo o que reunimos, os ingleses já poderiam estar perto de Damasco a esta altura.

 

— Eu irei, Aaron — disse Absalom rapidamente.

 

— Não, não podemos arriscar que você seja preso novamente. Tenho outros planos para você.

 

— Eu sei que poderia conseguir Aaron. Conheço um velho árabe que tem um barco de pesca; estive falando com ele, e ele está de acordo. Eu poderia nadar até além dos recifes de Cesaréia, onde ele me apanharia.

 

— Lembre-se da última vez que tentamos isso. Joseph Lieberman nunca mais deu notícias. com todo o respeito por Joseph, seu trabalho aqui é valioso demais para se arriscar. As marés são imprevisíveis. Não, só há uma alternativa. Eu mesmo devo ir a Alexandria.

 

Dovid disse:

 

— Sua ausência, como você sabe, despertará suspeitas. Todo o ytshuv estaria em perigo; o Hashomer cairia em cima de nós. Além disso, como você chegaria lá?

 

— Há um encontro científico em Berlim. com a ganância de Jamal Paxá pela produção, eu teria pouca dificuldade em convencêlo da importância de minha ida a Berlim.

 

— E daí? Como é que isso levaria você ao Egito? — perguntou Absalom.

 

—vou chegar a isso — respondeu o outro. Absalom era sempre apressado. — De Berlim, irei assistir a uma conferência científica em Viena. Lá, então, encontrarei um modo de chegar à Inglaterra.

 

Sarah parecia perplexa.

 

— Por que Londres, Aaron? Não seria possível, se você conseguisse um contato, ir diretamente a Alexandria?

 

— Creio que minha melhor chance de chegar a Alexandria é através dos ingleses. em um de seus navios. Bem, pelo menos deve ser mais seguro do que em um barco a remo... ou tentando me disfarçar de árabe. Não tenho o gosto nem o talento para isso... Enquanto eu estiver ausente, Sarah, Dovid e Absalom assumirão o comando. E, naturalmente, todos vocês continuarão trabalhando como se eu estivesse aqui. Nada mudará em minha ausência.

 

                                            Capítulo quinze

Em Berlim, Aaron conheceu um cientista americano que fora enviado para lá sob os auspícios do Departamento de Agricultura dos Estados Unidos.

 

Visto que ele tinha trabalhado com Jerome Harris antes, num comitê patrocinador, Aaron sentiu que tinha um aliado. Mas abordar Harris era uma coisa, e garantir sua ajuda era outra.

 

Naquela noite, Jerome Harris jantou, a convite de Aaron Aaronson, no melhor restaurante de Berlim.

 

Após tomarem uma garrafa de vinho do Reno, que Aaron detestou, ele explicou a importância de sua ida a Londres. Harris não ficou curioso demais; queria ajudar o colega. Além disso, gostava desse agrônomo de outra cultura.

 

Levou Aaron ao seu camarote particular, no navio que retornava à América.

 

Uma vez a bordo, não foi difícil passar um telegrama para Londres, com a ajuda de Harris.

 

com os ingleses alertados, o navio americano foi detido sob o pretexto de inspeção rotineira do navio. Enquanto isso, Aaron desembarcou livremente em Londres.

 

Na capital inglesa, foi levado à sede do serviço de informações, onde passou a oferecer todos os detalhes a respeito do trabalho que fora feito atrás das linhas turcas.

 

Os ingleses, impressionados, não perderam tempo em mandá-lo para Alexandria.

 

Aaron estava ausente desde julho. Agora era setembro. Aqueles que haviam ficado em Athlit tinham os nervos abalados pela espera e preocupação. Além disso, como Aaron lhes dissera, continuaram suas atividades de espionagem, de modo que os homens estavam exaustos.

 

— Vocês não acham que seria bom darmos um pequeno descanso aos homens? — perguntou Sarah, dirigindo-se a Dovid e Absalom.

 

— Obviamente, é preciso continuarmos alerta para sinais na costa, mas concordo — respondeu Dovid.

 

Absalom também concordou.

 

Dovid estava especialmente satisfeito com a calma. Era uma oportunidade de ver Chavala e o filho; fazia muito tempo que ele não os via.

 

Ao subir as colinas em direção a Jerusalém, Dovid teve um pensamento chocante. De certo modo. bem, ele não tinha sentido falta dela. Havia tão pouco tempo para ficar sozinho. Isso não tinha nada a ver com seu amor por Chavala, mas a preocupação com suas atividades era tamanha que a emergência excluía as recordações. Naquele trabalho o indivíduo precisava de todos os seus pensamentos... ou então não tinha oportunidade para pensar. ou respirar.

 

Entretanto, ele tinha uma sensação de culpa a esse respeito; só esperava que Chavala compreendesse a falta de comunicação. Era preciso que ela entendesse..

 

Mas, apesar de tentar, Chavala não compreendia realmente. Ou, pelo menos, não podia aceitar isso. com toda a possibilidade que Dovid tinha de andar pelo país, parecia que ele evitava vir a Jerusalém. Até parecia ter esquecido aqueles quatro dias gloriosos que tinham passado juntos, nas colinas de Haifa. Chavala lembrava-se de todos os gestos, de todos os beijos, de todas as palavras sussurradas. E Dovid?... As longas cartas que ela recebera no começo de sua separação tornaram-se bilhetes breves. quando ela os recebia. ”Espero que você não esteja se sentindo muito solitária”. ”Saber que Raizel está com você torna mais fácil meu trabalho; dê um beijo na pequena Chia por mim”... ”Levarei mais algumas sementes para Reuven”. ”Fique tranqüila”.

 

Mas a vida de Chavala, ao contrário da de Dovid, transcorria no vazio. O pior eram as noites. Seus pesadelos tinham se tornado tão freqüentes que ela acordava no meio da noite encharcada de suor. Naqueles sonhos terríveis, via Dovid. e, às vezes, Moishe morto. Levava dias para se recuperar e apagar da mente a lembrança do sangue. Achava que, se não fossem as crianças e Raizel, já teria ficado louca.

 

E agora não tinha mais o consolo da irmã. Pelo menos essa perda era agridoce. Raizel tinha conhecido um jovem chasid que morava em Mea Shearim. Não era exatamente um casamento que alegrasse Chavala, embora ela gostasse do jovem. Ele era amável e gentil, com uma timidez agradável. Não era de admirar que Raizel se tivesse apaixonado tanto por ele. Ela não gostava. e sabia que era egoísmo. Era da perspectiva de Raizel passar o resto da vida morando em Mea Shearim, na maior pobreza. Mas quem era ela para tentar persuadir a irmã? Raizel tinha tão poucas necessidades! Seu amor a sustentaria. Mas quando Chavala viu Raizel e Lazarus ben Yehudah unidos, mesmo naquele momento solene, jurou que encontraria um modo de tirar a irmã daquela pobreza...

 

Fazia três dias que tinham casado, e a saudade que Chavala sentia de Raizel já era mais do que dolorosa. Em sua solidão, Chavala ocupava um mundo sombrio, vago. Seus pensamentos, voltados para si mesma, vacilavam entre amor e ódio, raiva e culpa. Nem sequer sabia mais o que sentia por Dovid. Se ao menos ele confiasse nela. Pelo menos ela não teria essa sensação de abandono. Apesar de seus esforços, os ressentimentos chegaram a tal ponto que começou a pensar que não seria capaz de encará-lo. E tais sentimentos a deixavam magoada e envergonhada ao mesmo tempo.

 

Quando Dovid chegou, não o recebeu como antes. Tinham se encontrado somente três vezes durante oito meses de separação.

 

Dessa vez, passaram pelo ato de amor quase mecanicamente. Apesar de tentar, ela simplesmente não conseguia reagir como da vez anterior.

 

Deitados lado a lado, Chavala não podia mais conter a mágoa, principalmente quando Dovid disse:

 

— Sarah mandou lembranças.

 

Chavala saiu da cama e olhou, pela janela, para o beco triste lá embaixo.

 

— Por que Sarah ainda está em Zichron? Acaso ela corre menos perigo do que eu correria?

 

Dovid estremeceu. Como ele poderia contar-lhe tudo, especialmente na ausência de Aaron? A presença de Sarah em Athlit era importantíssima.

 

— Bem, ela não tem filhos.

 

— Isso não responde à minha pergunta. Por que ela corre menos perigo do que eu correria?

 

— Não sei responder a isso, Chavala. Não posso falar pelos Aaronsons. É minha família que quero proteger.

 

Ela olhou Dovid de perto, cheia de dúvidas. Dúvidas terríveis, impossíveis. Seria possível? Dovid era um homem simpático, e Sarah, uma mulher bonita. Sabia que Absalom nem sempre estava lá; sentir-se-ia Dovid, sem se dar conta mais atraído por Sarah do que pensava? E acaso Sarah, em sua solidão, não estaria se aproximando dele?

 

— Dovid. por favor, seja honesto comigo. Isso pode parecer estranho, mas. bem, você ainda me ama?

 

Dovid olhou para ela, perplexo.

 

— Se ainda amo você? Meu Deus, como pode perguntar uma coisa dessas? Chavala, estamos em guerra, e não somos os únicos que estão separados.

 

— Sei disso, Dovid, mas fico em dúvida. mesmo que não queira. se não existirá algo mais que você não me contou. Quer dizer, Sarah podendo ficar em Zichron, e eu não.

 

— O que está realmente me perguntando, Chavala?

 

— Há alguma coisa entre você e Sarah?

 

Silêncio. Ele não podia deixar que isso acontecesse entre eles. Nenhuma consideração de segurança, nem qualquer outra coisa, valeria a pena. Respirou fundo.

 

— Sarah está em Zichron por causa de seu envolvimento no NILI. Na verdade, sua posição em Athlit, na ausência de Aaron, é tão importante, talvez até mais do que a minha.

 

Chavala sentiu-se envergonhada, mas também imensamente aliviada.

 

— Perdão, Dovid. Não sei mais o que dizer, senão que amo você...

 

E, sem dizer mais nada, ela o fez deitar-se novamente na cama e passou a mostrar-lhe como era capaz de...

 

Mas quando Dovid partiu, a solidão voltou a reinar. Ela se lembrou de Sheine.

 

Sentou-se e escreveu para a irmã:

 

                         ”Querida Sheine,

Lamento muito que por tanto tempo não tenhamos mantido contato. com o mundo desmoronando, parece uma loucura que permaneçamos como estranhas.

Sei que há muitas razões, em nossas vidas, que causaram nossa separação; mas nós somos irmãs, e há muita coisa que desejo compartilhar com você. Se você, por acaso, tiver um tempo, venha até aqui, por favor.

Isso pode parecer uma surpresa para você, mas estou novamente em Jerusalém, morando na mesma casa que partilhamos quando papai era vivo.

Por favor, mande notícias e acredite que amo você.

               Chavala.”

 

Ao endereçar a carta de Sheine à ”enfermeira Elsa Beck”, seus olhos se encheram de lágrimas. Mas não estava censurando Sheine. As pessoas eram diferentes.. inclusive irmãs. Sheine precisava escapar ao gueto de sua vida. E Chavala sabia, de certo modo, que nunca o tinha deixado realmente. Essa parte dela estava enterrada em um querido pedaço de terra, logo ao sul de Odessa. Mas estava com ela também.

 

Sheine percebeu um certo desespero nas palavras de Chavala. Ficou surpresa também... e satisfeita por ter crescido e já não precisar temer a visão de sua irmã. a pessoa que, em suas velhas fantasias, tinha lhe tirado Dovid.

 

Sentada na pequena e escura cozinha, em companhia da irmã, Sheine ficou pensando por que Chavala e Dovid haviam voltado para Jerusalém. Mas já que Chavala não dizia nada, não perguntaria. Ao invés disso, escutava, enquanto Chavala respondia a suas perguntas a respeito de Moishe.

 

— Ele foi ferido em Galípoli, e depois não tivemos notícias por muito tempo. mas conseguiu recuperar-se e chegar à Inglaterra. Acho que saiu clandestinamente, com a ajuda de alguns dos nossos. mas eles não me contam muita coisa. De qualquer maneira, espero que, algum dia, ele volte para casa. E você, teve notícias de Dvora?

 

— Tive. Ela escreveu para mim uma vez, dizendo que ia casar. Já deve estar casada.

 

— Está. Tem um filhinho de poucos meses.

 

Sheine sentiu-se magoada, por ninguém ter comunicado isso a ela.

 

— Como se chama ele?

 

— Zvi. E o marido está no Canadá, em sua unidade de voluntários. O mundo realmente mudou nossas vidas.

 

— É. Fale-me de Raizel.

 

— Ah, Sheine. nós realmente não temos tido contato uns com os outros, não acha? Raizel casou há duas semanas; está morando em Mea Shearim.

 

Sheine sacudiu a cabeça.

 

— Todos nós crescemos, não é, Chavala? E percorremos um longo caminho, desde aquele pequeno shtetl em Odessa.

 

— Você talvez mais do que eu. Não sei ao certo para onde nós vamos.

 

— Nós? — admirou-se Sheine, sentindo um arrepio. Percebia uma enorme solidão em Chavala. — Onde está Dovid? Quer dizer, por que vocês estão morando em Jerusalém?

 

Chavala sabia que não podia falar a Sheine das atividades de Dovid; por isso, inventou uma história..

 

— Bem, Dovid e eu estamos separados. não é definitivo, mas. Sheine, às vezes acontecem coisas num casamento..

 

Sheine permaneceu calada, incrédula. Houve um tempo em que ouvir isso teria sido sua felicidade total. Mas, nesse momento, sentia apenas compaixão.

 

— Não estou querendo forçar, mas se você quiser me contar...

 

Chavala engoliu em seco. Estava ficando numa situação difícil.

 

— Acho que fiquei um pouco exigente demais. você sabe, um homem se cansa de escutar as queixas da mulher. Você sabe que eu jamais gostei da Palestina. E os anos passados na aldeia, em Zichron, começaram a me deixar nervosa. Talvez eu já tenha superado essa vida de aldeia; talvez tenha começado a achar isso. bem, tedioso.

 

— Mas você parecia tão feliz e contente lá! O que foi que mudou?

 

— Todos nós mudamos. — Quanto menos falasse, melhor, pensou Chavala.

 

— Talvez seja a guerra. Suponho que você tenha razão. As pessoas mudam realmente. Bem. sei que eu mudei; e dou graças a Deus por certas mudanças. Conheci um homem de quem gosto. Tenho muita coisa em comum com ele.

 

— Fico muito feliz por você, Sheine! Está levando isso a sério?

 

— Estou. Na verdade, resolvemos nos casar. Chavala hesitou, e então disse:

 

— Ele é judeu?

 

— Não. Chavala. Isso pode chocar você, mas eu simplesmente não tenho um sentimento especial por nossa fé. Ele é de boa família. É um homem bom. Chama-se Gunter Hausman.

 

Como Chavala poderia condenar Sheine, quando ela mesma já deixara de lado sua religiosidade? Ainda assim, o grande reservatório de seu yiddishkeit, seu senso de judaísmo, era forte. Chavala ainda tinha tanta saudade da infância querida. das canções de ninar que a mãe cantava para ela, embalando-a nos braços. das velas do shabbes ardendo nos candelabros de prata. do gosto do vinho doce da Páscoa dos judeus. Sim... ela se apegava à essência da fé profunda e era capaz de separar isso dos ditames da vida. Não se sentia menos judia por isso.

 

Olhando para Sheine, Chavala teve um pensamento doloroso. Dava graças a Deus pelo fato de a mãe e o pai não estarem mais vivos, e não poderem ver a filha casar com um homem de outra fé.

 

— Sheine, minha querida irmã, sinto-me triste, mas não a critico por ver que você resolveu abandonar nossa herança. É tudo o que realmente temos.

 

— Também não nos trouxe nada, além de dor de cabeça e tristeza. Sei que você está decepcionada, Chavala, e sinto muito; mas, para mim, não importa que Gunter não seja judeu.

 

Chavala balançou a cabeça.

 

— Ele sabe de sua vida, quer dizer, que você é judia?

 

— Isso não teria importância.

 

Houve um momento de silêncio entre as duas, e depois um certo embaraço.

 

Como podia ter certeza de que Sheine Rabinsky fora vencida e de que Elsa Beck era a vitoriosa? Fosse como fosse, vendo a expressão de mágoa no rosto de Chavala, Sheine concluiu que tinha de retirar-se. Levantou-se.

 

— Estou feliz por termos passado essas horas juntas, Chavala, e espero que você e Dovid resolvam suas diferenças. Agora, realmente, tenho que ir.

 

Chavala pôs-se de pé também e olhou para a irmã; e então as duas se abraçaram.

 

— Desejo-lhe toda a felicidade, querida — disse Chavala, segurando a irmã bem apertado. — Você deve acreditar nisso. As coisas não podem sair sempre como queremos... Só espero que você nunca se sinta magoada.

 

Sheine simplesmente assentiu com a cabeça; saiu e fechou a porta atrás de si. Ou assim pensou.

 

Gunter estava esperando do lado de fora do café.

 

— Céus! Como senti falta de você! Sheine riu.

 

— É muito agradável ouvir isso. Imagine, trabalhamos juntos, e você sente minha falta.

 

— Se você fica longe de mim por um momento, Elsa, eu sinto sua falta.

 

Por um momento, Sheine ficou embaraçada; depois os dois entraram no café mal-iluminado. Ao olhar em torno, sentiu-se novamente embaraçada. De certa maneira, as palavras de Chavala não lhe davam sossego. ”Ele sabe de sua vida?” E sua resposta: ”Isso não tem importância”. Ou teria? Poderia ele realmente fazer um casamento baseado no engano? Talvez não amasse Gunter com a mesma paixão e obsessão que sentira, outrora, por Dovid, mas amava-o e se importava muito com ele...

 

A princípio, houvera só atração física; depois, à medida que trabalhavam juntos, ela se sentia cada vez mais atraída por ele. E ele se sentia cada vez mais atraído por ela. Agora ela atravessava aquela fina linha que separava o amor da afeição. Quem sabia onde um começava e o outro terminava?

 

Enquanto tomavam o Liebfraumilch, ela olhou por cima do copo, primeiro para Gunter, depois para as moças judias que estavam sentadas não apenas em companhia de oficiais alemães, mas também de turcos. A camaradagem com as outras nascera não da solidão, mas de sua necessidade de encher o estômago. de levar alimento para a família faminta.

 

Tal era o seu caso. O que iria acontecer, se, mais tarde, por alguma razão, ele descobrisse sua verdadeira identidade?

 

— Gunter — disse com voz suave.

 

— Quê?. Você parece hesitante, como se quisesse me contar uma coisa e não soubesse como. Por favor. fale de uma vez.

 

— Você tem razão. O medo é uma coisa ruim.

 

— Nunca vi você com medo de coisa alguma, Elsa. Tenho visto você calma, nas situações mais difíceis..

 

— Mas existem muitos tipos de medo.

 

— Então, querida, diga-me. o que a preocupa? Abruptamente. de que outra maneira poderia ser? - ela disse:

 

— Eu enganei você.

 

— Enganou-me? — admirou-se ele, rindo. — Será que você se apaixonou por algum de seus pacientes?

 

— Isso é sério.

 

— Então me conte. Eu amo você, Elsa.

 

— Espero que sim, Gunter. Espero que você me ame muito. Eu sou judia. Tenho pensado nisso e cheguei à conclusão de que não posso casar enganando você..

 

Por um momento, Gunter ficou calado. A princípio, sentiu-se aborrecido por ela tê-lo enganado. Mas, afinal, ele nunca tivera preconceitos. Por que teria agora? Não apenas tinha respeitado seus professores, mas também os reverenciava; e quase todos tinham sido judeus. Por que, então, estava com aquela sensação estranha de insegurança naquele momento?

 

Olhou para Elsa, do outro lado da mesa, procurando chegar ao fundo de seu próprio ser. Quanto mais pensava nisso, tanto mais se convencia de que não era a condição de judia de Elsa que o havia abalado, mas o fato de ela não lhe ter confidenciado isso logo no começo de seu relacionamento. O engano. Bem, ele a amava, não amava? Ela não deixara de ser a mulher excelente que o havia conquistado, certo?

 

Estendeu o braço e tomou-lhe a mão do outro lado da mesa.

 

— Minha querida Elsa, que diferença faria isso para mim? Mas por que era tão importante você não me contar isso antes?

 

Ela tentou contar-lhe sua vida, dizer-lhe da certeza que tinha de que nunca conseguiria entrar no mundo dele como judia.

 

— Meu bem, dói em mim saber o quanto você sofreu... — disse ele.

 

— Não sofro sozinha, Gunter. Meu povo sofre há cinco mil anos. Bem, agora já lhe contei tudo, exceto que meu nome verdadeiro é Sheine Rabinsky.

 

— Sheine significa ”bonito”. E você é bonita. Quero casar logo. Que tal amanhã?

 

Aquilo era mais do que ela ousara esperar.

 

— Está bem. Não vamos perder um momento. Afinal, ele poderia mudar de idéia, pensou.

 

                                                 Capítulo dezesseis

Sem notícias de Aaron, Absalom ficou impaciente. Sarah o observava, enquanto ele andava de um lado para outro como um leão enjaulado. Repentinamente, ele parou e olhou para ela.

 

— Resolvi voltar para o Egito.

 

— Já falou com Dovid a esse respeito?

 

— Não. E não quero que ele saiba, enquanto eu não tiver ido.

 

— Absalom, você deve discutir isso com ele!

 

— Não. Se eu lhe dissesse, ele seria contra. Nós dois sabemos disso.

 

— É por isso que estou lhe implorando para falar com ele. Você não está pensando nas conseqüências.

 

— Essa palavra é inadequada. Se não fizermos contato com Aaron, as conseqüências serão que nosso trabalho terá sido em vão.

 

Sarah estava fora de si:

 

— Da última vez você não conseguiu passar. Aaron conseguiu salvá-lo; mas agora ele não está aqui. Você não pode ter paciência e esperar? Se for apanhado desta vez, com certeza será enforcado.

 

— Não serei apanhado.

 

— Como pode ter tanta certeza?

 

— Porque tenho um plano diferente.

 

Sarah suspirou. Não havia maneira de convencer Absalom a não ir.

 

— Então diga-me qual é esse plano.

 

— Encontrei um beduíno que pode servir-me de guia; e vou levar Nachman Shamir comigo. Nós dois falamos árabe.

 

— Mas foi isso o que você fez da outra vez, só que não havia o guia nem Nachman. Você teve que atravessar o deserto. Por que desta vez é diferente?

 

— Porque desta vez nãovou ter que viajar até a fronteira. Os ingleses já estão na costa, perto de Rafa. Sarah, eu tenho o plano para a defesa de Gaza. Os alemães têm artilharia pesada lá, e os ingleses devem ser advertidos de que o ataque será feito através de Beersheba, e de que a defesa lá é muito fraca. Eles não devem fazer a tentativa de avançar por Gaza. Agora você entende por que nós não podemos esperar a volta de Aaron?

 

Ela entendia; mas ainda estava aterrorizada.

 

— Mesmo assim, quero que você fale com Dovid.

 

— Não, Sarah; desta vezvou fazer isso à minha maneira — recusou, olhando para ela. Tomando-a nos braços, ele a colocou suavemente na cama que eles compartilhavam. Esse pequeno quarto em Athlit tinha se tornado seu mundo particular. Deitado ao lado dela, ele disse:

 

— Sarah, meu bem, deixe-me abraçar você.

 

Sarah fez mais do que isso. Entregou-se a Absalom como nunca o havia feito. E, durante toda a noite, eles se mantiveram abraçados, envolvendo-se um no outro.

 

Na manhã seguinte, quando ela acordou, Absalom já estava vestido.

 

Quando ela já se dispunha a levantar-se, Absalom aproximou-se, sentou-se na beira da cama e tomou-lhe o rosto nas mãos.

 

— Não precisa descer comigo, Sarah. Quero recordá-la assim. Não houve adeus nem lágrimas, pelo menos enquanto Absalom não se retirou.

 

Disfarçados de beduínos, Absalom, o guia e Nachman viajaram para o sul, de camelo.

 

Na primeira noite, não encontraram dificuldade ao passar por Jaffa. Mas quando chegaram ao posto avançado turco, foram detidos por uma patrulha e interrogados a respeito do seu destino.

 

com o conhecimento que Absalom tinha do sotaque beduíno, seus olhos meditativos, vestido com a longa aba preta e com o kaffiyeh na cabeça, ele estava muito convincente; e assim puderam ir em frente, como se fossem nômades comuns.

 

Agora, viajavam principalmente à noite, não só por causa do sol ardente, mas para poupar a água que levavam.

 

No terceiro dia, já no crepúsculo, quando prosseguiam para o sul, apareceram de repente, na terra de ninguém entre os territórios turco e inglês, uns quarenta beduínos, descendo as dunas de areia. Pareciam vir do nada, como gafanhotos armados de fuzis.

 

O guia beduíno de Absalom prontamente dirigiu seu camelo para o norte, afastando-se com a maior rapidez de que o animal era capaz.

 

Absalom e Nachman saltaram ao chão, empunharam os fuzis e tentaram repelir os atacantes, mas foi inútil.

 

Absalom foi atingido e ficou caído, enquanto o sangue lhe corria da boca. Nachman tentou arrastar-se para junto dele, mas Absalom fez-lhe sinal para que fugisse, a fim de se salvar. E então a cabeça de Absalom pendeu para um lado. e ele ficou quieto, muito quieto.

 

Nachman realmente tentou correr, mas uma bala dilacerou seu ombro direito. Caiu inconsciente.

 

De manhã, quando Nachman recuperou os sentidos, encontrou-se na carroceria de um caminhão, a caminho de um hospital militar britânico. Tivera a sorte de ser apanhado por uma das patrulhas australianas da área.

 

Quando finalmente chegou a Alexandria, Nachman rezava para que Aaron tivesse conseguido executar o plano que tinha em mente ao partir para Berlim, de onde tentaria chegar a Alexandria via Londres. Ele nem sequer queria pensar em fracasso. especialmente depois do que tinha acontecido a Absalom. Nachman pediu aos australianos que tentassem localizar Aaron. Só esperava que as notícias de Aaron fossem melhores do que as suas.

 

Aaron realmente chegou a Alexandria através de Londres, mas o tenente Wooly, que fora tão receptivo a Dovid, tinha sido capturado pelos turcos. Agora era o capitão Lawrence que estava em seu lugar.

 

Lawrence tratou Aaron com muita indiferença. Na verdade, tinha se recusado a vê-lo durante várias semanas. Quando finalmente Aaron foi intimado. sim, é esta a palavra. teve que ficar esperando durante horas, antes de ser conduzido ao gabinete de Lawrence.

 

Lawrence, alto, ascético, não cumprimentou Aaron; ou melhor, ele mal tolerava sua presença estrangeira. Naturalmente Aaron já o desprezava e, além disso, via-o com muita desconfiança, visto que era bem sabido que o capitão Lawrence era francamente a favor dos árabes, a ponto de se tornar conhecido como Lawrence da Arábia. Aaron não era tolo o bastante para deixar de lado o fato de Lawrence ser também anti-semita. Conseguiu de Lawrence exatamente aquilo que esperava nada.

 

Mas pelo menos, se Lawrence não o tivesse feito esperar tanto, assim que ele chegara, Absalom não estaria morto agora. Essa terrível notícia tinha chegado até ele em seu quarto de hotel, somente algumas horas depois que Lawrence o havia liberado. Imediatamente foi ao hospital australiano, e pelo menos se sentiu agradecido por encontrar Nachman vivo.

 

Durante sete dias, manteve-se sentado em atitude shiva, recitando o kaddish.

 

Passado o período de luto, exigiu e obteve audiência com as autoridades mais altas do serviço militar britânico de informações.

 

Achava-se diante deles agora, mal podendo conter a raiva.

 

— Passei por muitas coisas em minha vida, encontrei muita gente, mas nunca fui tratado da maneira como o fizeram nestes meses que passei aqui. O seu capitão Lawrence punha um obstáculo após outro em meu caminho, enquanto eu tinha de esperar, de posse de informações vitais. Ao invés de mostrar interesse por nossas informações, para não dizer tentar entendê-las, ele achou conveniente interrogar-me a respeito do meu conhecimento geográfico do Sinai. Santo Deus! Se não tivesse havido todo esse insensato desperdício de tempo, se pelo menos o capitão me tivesse permitido mandar um sinal, Absalom Feinberg estaria vivo. Sim. Estou aqui em pé, acusando os senhores da negligência mais imperdoável. Quando Absalom Feinberg esteve aqui, os senhores lhe deram ouvidos? Não, duvidaram dele, e agora ele está enterrado nas areias do Sinai, porque tentou avisá-los de como a Palestina poderia ser invadida. Os senhores são responsáveis pela morte dele. E quanto ao capitão Lawrence, pouco importa que ele tenha tentado humilharme pessoalmente. O importante é que, recusando-se a reconhecer uma certa competência e reputação que os cientistas deste país e de outros acharam conveniente reconhecer, ele, os senhores e nós fomos prejudicados em nosso esforço comum. Agora eu digo que ou os senhores levam a sério a mim e a meu povo ou nós nos recusaremos a continuar com esta farsa.

 

Finalmente os ingleses ficaram impressionados. Foi discutido logo um plano de operação. O principal problema era como criar uma ligação entre a sede britânica no Egito e os homens de Athlit. Uma ligação que funcionasse, que fosse segura.

 

— O contato, obviamente, tem que ser feito por navio — disse Aaron. — Para camuflar nossas atividades, o navio terá um nome em código. eu sugiro Menagem. A bordo, estará Chaim Barash. Ele será o sinaleiro do NILI. A tripulação deve consistir em três marinheiros de Tiro, que, como os senhores sabem, trabalharam para o serviço de informações britânico e estão familiarizados com a costa. Sugiro que seu oficial de informações, lan M. Smith, participe e examine os relatórios de Athlit, assim que forem recebidos a bordo. Nosso pessoal do NILI ajudará a decodificar e traduzir as mensagens. Isso é aceitável para os senhores?

 

O capitão Trevor-Brown, percebendo o toque de amargura na voz de Aaron, assentiu.

 

— Está ótimo — disse, sorrindo e trocando um aperto de mão com Aaron. — Seja bem-vinto a bordo, senhor. É muito bom termos o senhor do nosso lado.

 

No dia 19 de fevereiro, o Menagem partiu de Port Said com destino a Athlit.

 

Aaron estava a bordo.

 

À meia-noite, o navio estava ancorado, fazendo sinais.

 

Dovid, que estivera estendido no chão frio, no meio do mato crescido, não podia acreditar no que estava vendo. A princípio, achou que os olhos o enganavam, mas o navio fez sinal novamente.

 

Meu Deus! Aaron tinha conseguido. Meio congelado e quase morto de cansaço respondeu ao sinal, de acordo com o que fora combinado com Aaron antes da sua partida de Athlit.

 

Quando Dovid finalmente viu Aaron, todo molhado, de pé diante dele, o efeito foi tremendo envergonhado ele abraçou Aaron.

 

— Graças a Deus que você voltou em segurança

 

— Sim, Voltei, mas receio que não por muito tempo. Vamos, preciso ver Sarah.

 

Quando entrou no pequeno quarto onde ela dormia, puxou uma cadeira e apenas ficou observando a por algum tempo.

 

Quando ela acordou, mal podia acreditar nos próprios olhos E, naturalmente, sua primeira preocupação foi ter notícias de Absalom. Foi para esse momento que ele tentara fortalecer se E, naturalmente, não conseguira. Aaron sabia que não havia palavras para consolá-la, mas afinal, era para isso que ele estava ali.

 

— Sarah, este é o momento de maior provação. Peço-lhe que seja forte. Absalom está morto

 

Ela nada disse. Já esperava aquilo. O que sentia não podia ser expresso. Absalom, enterrado nas areias do Sinai. Nem mesmo o seu amor pudera impedi-lo de ir. Ela compreendeu que ele tinha um amor ainda maior, e havia morrido por esse amor. Bem, pelo menos tentaria não desonrar o sacrifício de Absalom com um desabafo indecoroso de autocompaixão. Suas perdas pessoais primeiro sua irmã Rivka, seu casamento fracassado, e agora o homem que era verdadeiramente o amor de sua vida permaneceriam pessoais

 

Aaron ajudou. Aconselhou a a tomar a coragem de Absalom como legado, a levar em frente o seu trabalho, a missão a que ele tinha dedicado a vida. Que a força de Sarah fosse um monumento ao nome de Absalom Que ela ajudasse a mostrar que ele não morrera em vão

 

— O que aconteceu com o corpo? — perguntou Sarah finalmente

 

— Ninguém sabe. foi enviada uma patrulha, mas ele não foi encontrado

 

Ela resistiria ao pranto

 

— Ele deve estar enterrado em alguma parte das areias do Sinai. Bem, foi do deserto de Canaã que nosso povo veio. Absalom voltou para nossa terra, afinal

 

”Descanse, meu Absalom, descanse, meu querido”, pensou ela

 

Aaron permaneceu somente alguns dias mais. Na véspera de sua partida, ele disse:

 

— Sarah, sinto muito, mas você deve compreender que ninguém deve saber das atividades de Absalom. Isso deve ser um segredo tão bem guardado quanto o próprio NILI. Se a verdade fosse descoberta, isso inevitavelmente enfraqueceria a vontade do resto dos homens do NILI. Absalom era muito importante e influente. Ele era nosso fogo, nosso espírito. Acima de tudo, se a notícia de sua morte chegasse aos ouvidos dos turcos, isso comprometeria toda a nossa missão.

 

Ela olhou para Aaron.

 

— Mais cedo ou mais tarde, o desaparecimento dele será percebido.

 

Dovíd, que estivera de pé ao lado deles, entrou na conversa.

 

— Você deve dizer que Absalom partiu para Londres, a fim de fazer um curso de pilotagem. Não queremos que seja investigado o mistério de sua ausência. Isso poderia afetar o relacionamento interno das facções com que trabalhamos.

 

Não disse o quanto desejava que fosse ele, e não Absalom, que tivesse assumido aquela missão. As próprias vantagens de Absalom. sua habilidade com as línguas, seu jeito para a encenação, também tendiam a torná-lo corajoso em demasia, a fazê-lo tomar menos precauções do que os outros, que não tinham sua capacidade. Suas vantagens foram sua desgraça.

 

Sarah fez sinal de que concordava com as palavras de Dovid.

 

À meia-noite, ela e Dovid observaram Aaron partir, em silêncio. Quem sabia qual deles estaria em maior perigo? Não havia lugar seguro, nem missão segura, para os fracos de coração.

 

A operação NiLi-britânica continuou entre Port Said e Athlit, nos meses de fevereiro e março. Foram designadas noites específicas para contato, de modo que os homens de Athlit sabiam, de antemão, da chegada do navio. Mas com as mudanças de tempo, a operação nem sempre podia ser levada a cabo. Às vezes, ondas enormes impediam o descarregamento do barco e seu acesso seguro à praia.

 

Mais da metade das viagens deu em nada. Cada fracasso deprimia os homens do NILI, que eram obrigados a ficar horas esperando na praia, escondidos dos guardas turcos, congelando no frio durante as noites de inverno, ou sofrendo picadas de mosquitos durante as noites de verão. Após um dia de trabalho, não conseguiam fechar os olhos, e, acima de tudo, preocupavam-se com a possibilidade de algum acidente com o navio.

 

O Menagem só podia operar nas noites sem lua. A coordenação entre o navio e o grupo era feita através de sinais luminosos, qUe eram alterados de vez em quando, a fim de não despertar suspeita. Ao chegar a Port Said, o Menagem dirigia-se, primeiramente, a Zichron Yaakov e Athlit, durante o dia. Do navio, podia-se ver claramente, com o auxílio de binóculos, uma certa casinha no parreiral. Se as persianas estavam abertas, isso significava que o caminho até Athlit estava livre; e se havia um lençol branco pendurado no parapeito, isso significava que o grupo do NILI estava aguardando e que o navio podia aproximar-se da praia. Para o encontro na praia, eles estabeleceram uma senha. Sarah pediu que fosse ”Absalom”.

 

                                           Capítulo dezessete

Apesar de todos os riscos e dificuldades, Aaron e Dovid acharam, finalmente, que seu trabalho com os ingleses tivera sucesso. Mas esse sucesso fora alcançado a grande custo.

 

Durante a segunda retirada desordenada das forças turcas da zona do Canal de Suez, milhares de judeus morreram de fome e doença. No dia 26 de março de 1917, começou a ofensiva britânica em Gaza. Dois dias depois, os anciãos e pessoas notáveis, judeus e não-judeus, foram convocados ao Soraya, em Jaffa, para ouvir a palavra de Jamal Paxá:

 

— Todos os cidadãos de Jaffa devem desocupar essa área, deixar suas casas e mudar-se para outra parte do país, exceto Jerusalém e Haifa.

 

Somente os camponeses árabes e os proprietários judeus de terras cultiváveis puderam permanecer, depois de muitos apelos, mas sem as famílias.

 

Nove mil judeus de Jaffa e Tel Aviv tiveram que ir para o exílio. O yishuv estava perdido; onde conseguiriam carroças para levar os velhos, as mulheres e as crianças? O que aconteceria com as propriedades?

 

Entretanto, a maré continuava. Os ingleses estavam trabalhando contra o tempo, para construir uma estrada de ferro costa acima, a fim de transportar canhões pesados. Estava sendo construído também um aqueduto para abastecer as tropas com água do Nilo. O Hashomer e outros grupos começaram a estocar armas, enquanto as fileiras do NILI cresciam cada vez mais. Estavam reunidos em Tel Aviv, fazendo novos planos, quando se ouviu um tiro de canhão. Nas ruas reinava o tumulto, com as pessoas correndo em todas as direções. Mas Dovid permaneceu sentado; ele percebera o que estava prestes a acontecer. Até sorriu, quando ouviu a explosão. A usina siderúrgica fora atingida. Sabia que aquilo por que eles tanto tinham trabalhado estava, finalmente, dando resultados.

 

Não era de admirar que tais resultados do NILI fizessem os turcos ficar extremamente nervosos. Foram impostas restrições mais brutais do que nunca; as cidades eram deixadas quase à míngua. Especialmente os judeus de Jerusalém. Todos os dias, centenas de pessoas ficavam sentadas junto à porta de Jaffa, pedindo esmolas. De noite, uma carroça do governo passava recolhendo os mortos.

 

Chavala esperava os gêneros alimentícios que Dovid enviava toda semana, mas já fazia duas semanas que não recebia nada. Não teve dúvidas de que o carregamento havia sido roubado no caminho. Dovid nunca deixaria sua família em necessidade. Pagou a Samuel Guri, um homem que ela sabia que trabalhava para Dovid, mesmo antes da guerra, para levar um bilhete a Dovid em Athlit.

 

Esperou durante dois dias. Quando Samuel Guri voltou com a notícia de que Dovid não estava em Athlit, ficou preocupada, mas o medo logo se transformou numa decisão férrea. Certa vez, ela havia encontrado coragem para matar um homem, a fim de sobreviver. Bem, tinha ouvido falar que os judeus da América haviam enviado um carregamento, e um dia ou outro ela voltaria para casa trazendo um saco de trigo.

 

Tomando Chia e Reuven pela mão, foi para Mea Shearim, às pressas. Rapidamente, subiu a escada de madeira rachada da pequena casa de Raizel.

 

Apesar da gravidez, Raizel parecia um esqueleto; os olhos estavam fundos, o rosto, chupado.

 

”Meu Deus”, pensou Chavala. Ela não ficaria parada, vendo a família morrer de fome.

 

— Raizel, quero que Lazarus venha comigo. Tenho que ir a Jaffa.

 

— Quando?

 

— Agora mesmo... hoje.

 

— Ah, Chavala. hoje é sábado.

 

Chavala já ia perguntar o que isso tinha a ver com o assunto, quando se lembrou do shabbes. Por que o marido de Raizel estava orando hoje? Para que Deus enviasse o maná do céu?

 

— Sinto muito. com tudo o que está acontecendo, parece que esqueci o santo sábado. Irei sozinha, então. Chia e Reuven ficam com você.

 

Os olhos de Raizel encheram-se de lágrimas.

 

— Você não deve ir sozinha, Chavala. É perigoso demais, principalmente para uma mulher.

 

”Passar fome também pode ser perigoso”, pensou Chavala.

 

— Não se preocupe. Encontrarei alguém para ir comigo — mentiu.

 

Ao olhar do pé da escada e ver Raizel com o sbeitel preto na cabeça, um pouco enviesado, ficou sem saber se ria ou chorava. Aquele costume ridículo de raspar a cabeça de uma mulher, antes do casamento, para que ela permanecesse casta. Teria sido melhor se o marido trabalhasse mais e rezasse menos, para poder conseguir comida para a mulher. Esse pensamento irreverente deixou-a, substituído pela esperança de que não chegaria tarde demais a Jaffa.

 

Da casa de Raizel, desceu para a ruazinha calçada de pedras arredondadas, onde sabia que seu pequeno amigo sefardita estava orando a Deus pelas mesmas razões que seu cunhado. Mas, visto que as mulheres não podiam descer para o setor dos homens, esperou que Deus interviesse. Suas orações foram ouvidas quando um boychik quase se chocou com ela. Ele chegara três minutos atrasado, e que Deus o castigasse com surdez, mudez e cegueira. Como era proibido também tocar uma mulher, mesmo por acidente, ficou corado e resmungou qualquer coisa. Quando ele se dispunha a entrar na shul, Chavala disse:

 

— Nunca pediria a Shimon Halevi para interromper seu davening no dia de sábado. Mas como você sabe, isso é permitido em caso de vida ou morte — disse ela, e o rapaz parou, lembrando-se do que o midrask dizia. — Bem, este é um caso de morte — continuou Chavala com voz trêmula. — Diga-lhe que estou esperando aqui fora.

 

Logo o pequeno Halevi estava diante dela, com a mão no coração.

 

— Alguém morreu?

 

— Muita gente morrerá. Se eu não conseguir sua carroça com o cavalo — disse ela.

 

Era sábado, e seria um pecado ficar zangado antes do pôr-do-sol. Por isso, ele disse calmamente:

 

— Por causa de minha carroça e meu cavalo, você me tira da shul?

 

— Por favor. Enquanto você está falando, há gente morrendo.

 

— Jávou buscar o cavalo. Eu nem devia estar pensando nessas coisas, e muito menos dizendo-as; mas você terá que pôr a sela e amarrar o cavalo à carroça.

 

— Que Deus o perdoe e abençoe — disse ela. ”Se ele não perdoar eu perdôo”, pensou.

 

Quando ela chegou a Jaffa, encontrou um tumulto horrível. Multidões esperando, clamando, gritando, abrindo caminho à força para chegar à Agência de Sião.

 

Chavala foi favorecida pelo seu tamanho. Encontrando uma abertura, ela forçou passagem por entre a multidão. Logo descobriu que precisava de um cartão para obter ração, mas não se deixou abater por isso. Ficou sabendo que os cereais estavam armazenados num prédio adjacente.

 

Rapidamente, voltou para a carroça e conduziu-a até a entrada do prédio. Ficou de um lado da porta, observando os homens anotarem os sacos. Se fosse possível roubar, não teria escrúpulos; mas os sacos eram pesados demais. A única esperança era mentir; e seu instinto era tudo com que ela podia contar.

 

Observava cuidadosamente cada homem. Qual deles poderia lhe dar atenção? Os mais velhos provavelmente não se deixariam enganar. Era possível que os chalutzim jovens fossem mais receptivos a uma ”viúva” jovem, vulnerável.

 

Aproximou-se de um chalutz louro, jovem.

 

— Por favor. você precisa me ajudar. Eu suplico. Perdi meu cartão, e eles não querem me dar outro.

 

O chalutz olhou para ela. As súplicas de Chavala não o impressionaram muito. Se ele fosse dar ouvido a todas as mulheres histéricas que suplicavam, não restaria nada no armazém. Tinha esquecido quantas já tinham tentado essa mesma tática nesse mesmo dia.

 

— Volte e espere como os outros, você receberá um cartão.

 

— Por favor... você tem que acreditar em mim... Já tentei, mas eles disseram que eu já tinha recebido minha parte. Mas, em nome de minha mãe, juro que não recebi.

 

Ele olhou desconfiado para ela; uma mulher faria qualquer coisa para conseguir o que queria.

 

— Não posso ajudar você.

 

— Por quê? A farinha não é sua. Isso não lhe custaria nada, e sou uma viúva com dois filhos passando fome. Tome isto; é seu. — disse ela, tirando o dinheiro do bolso.

 

— Por favor, não me incomode; estou ocupado..

 

— Se acontecer alguma coisa com meus filhos, a maldição cairá sobre você. Está ouvindo? Você ficaria amaldiçoado para o resto da vida.

 

Antes que ele pudesse responder, Chavala desmaiou. Era um ato convincente.

 

Rapidamente ele a apanhou e colocou em cima de um saco; depois ficou escutando sua respiração fraca.

 

Chavala contou lentamente até trinta. Seus olhos tremularam; e, quando ela os abriu, as lágrimas rolaram.

 

As lágrimas ajudaram, bem como o seu contato nos braços do rapaz, quando ele a apanhara do chão. Ela era bonita. Uma viúva jovem... O que ele tinha a perder, se lhe desse a farinha? Por outro lado, o que ele tinha a ganhar?

 

Seus pensamentos foram interrompidos quando Chavala murmurou:

 

— Por favor, me ajude. Desculpe ter incomodado você — disse ela, pondo-se de pé diante dele, vacilante. — Obrigada; agora preciso voltar para junto de meus filhos.

 

Dirigiu-se lentamente para a porta.

 

— Espere — disse ele.

 

Ela conteve a respiração. Teria seu fingimento surtido algum efeito?

 

— Sim?...

 

— Se eu lhe der a farinha, posso ver você novamente?

 

— Ah, pode. pode. Eu ficarei grata a você pelo resto de minha vida...

 

— Podemos nos encontrar hoje à noite?

 

O mundo estava numa confusão horrível; centenas de pessoas passando fome, e ele querendo. Aquilo era uma loucura total... mas...

 

— Podemos.

 

— Onde você mora?

 

— Em Tel Aviv.

 

— Em que lugar?

 

— Você não pode ir lá; eu tenho filhos. Mas juro que me encontrarei com você no parque, às oito da noite.

 

Ele olhou desconfiado para ela. Por outro lado, se ela quisesse mais farinha, estaria fazendo uma burrice em não cumprir o prometido.

 

— Está bem. hoje à noite, e esteja lá.

 

— Estarei; pode acreditar.

 

Depois de pôr o saco na carroça, ele a segurou apertado. Nesse momento nada importava para Chavala, desde que conseguisse o alimento para a família.

 

Quando subiu na carroça, ele apertou-lhe a mão com firmeza.

 

— Você não vai esquecer? Ela sacudiu a cabeça.

 

Quando ela já desaparecia ao longe, ele se lembrou de que nem tinha perguntado o seu nome.

 

Chavala seguiu a estrada longa e estreita que levava às colinas, na direção de Jerusalém, passando perto dos acampamentos do exército. Já caía o crepúsculo, e os soldados turcos estavam deitados pelo chão. Ela sentiu que eles a olhavam. com a cabeça erguida, fustigou o cavalo, até que, graças a Deus, deixou para trás as trincheiras.

 

Acabava de passar pela garganta de Bab el-Uad, quando deteve a carroça abruptamente.

 

Esperou. Ao longe, destacando-se contra o céu, um beduíno vestido de preto bloqueava a estrada com seu garanhão árabe branco.

 

Por um momento, Chavala ficou imóvel e lembrou-se, desesperada, do corpo que estava enterrado junto à cerejeira. Mas dessa vez ela não tinha arma. E como poderia vencer aquele gigante?

 

Ficou observando, enquanto ele desmontava e se dirigia lentamente para ela. Quando ele chegou ao lado da carroça, ela agarrou o chicote e deu-lhe uma chicotada.

 

Ele simplesmente riu; depois agarrou-a pelo cabelo e puxou-a brutalmente de cima da carroça e jogou-a ao chão.

 

No pesadelo que se seguiu, ele levantou-lhe o vestido e montou nela. Ela debatia-se, dava pontapés e arranhava-lhe o rosto.

 

Enquanto ele tirava a cinta, ela passou a mão pelo chão, à procura de uma pedra, até que a encontrou.

 

Quando ele já estava pronto para penetrá-la, ela reuniu todas as forças que lhe restavam e atingiu-o entre os olhos.

 

O golpe foi repentino, violento. Ele rolou para um lado, enquanto o sangue descia-lhe da cabeça.

 

Ela ergueu-se, procurando recuperar o fôlego, subindo o leve aclive. Como voltou à carroça ela não sabia... Ao subir para o assento, sentiu algo debaixo dos pés. Olhou para baixo e viu, no meio da sujeira, uma pequena bolsa marroquina, vermelha e dourada. Apanhou-a rapidamente, entrou na carroça, pegou as rédeas e fustigou o cavalo até chegar a Jerusalém.

 

Quando chegou a Mea Shearim, fez um esforço para subir a escada da casa de Raizel.

 

— Graças a Deus que você voltou para casa em segurança. Chavala estava cansada e aturdida demais para lhe contar qualquer coisa.

 

— Onde está seu marido?

 

— Descansando.

 

— Vá chamá-lo. se isso não o incomodar muito. Tenho um pesado saco de farinha na carroça. Talvez ele consiga suspendê-lo.

 

Enquanto esperavam que o homem da casa se mexesse, abraçou Reuven, que, depois de dizer-lhe como estava contente em vê-la, perguntou se iam para casa.

 

— Amanhã, querido.

 

O menininho ficou decepcionado, mas não protestou.

 

Quando o dedicado marido de Raizel finalmente apareceu para tirar o saco da carroça, Chavala abriu o saco, um tanto zangada, e tirou três conchas de farinha para si e sua família.

 

— Mas você está deixando para nós quase todo o saco. —. protestou Raizel.

 

— Não se preocupe, eu venho buscar mais. Volto amanhã de manhã.

 

Mal conseguindo subir a escada, quase não acreditava que tivesse chegado à porta de sua casa.

 

Quando atravessou o limiar, Chavala viu Dovid esperando e sentiu desmoronar sobre si tudo aquilo que ela havia feito naquele dia. Deixou-se cair nos braços do marido, e ficou imóvel, enquanto ele a levava para a cama. Ela não tinha forças nem para conversar. Dovid deitou-se ao seu lado e abraçou-a com carinho.

 

— Por que você veio hoje aqui? — perguntou ela finalmente.

 

— Quando voltei de Londres para Athlit, encontrei o bilhete que você mandou por Guri e vim o mais rápido que pude. Esperei-a quase o dia inteiro. Agora... conte-me... o que aconteceu?...

 

Dessa vez ela não conseguiu controlar as lágrimas. E, à medida que contava a Dovid o que lhe havia acontecido, ele se dava conta, amargurado, de que não a tinha protegido de modo algum, mandando-a para outro lugar. Nunca se podia proteger uma mulher como Chavala.

 

Quando ela terminou de contar a história, ele compreendeu onde era seu lugar, quer Aaron aprovasse quer não.

 

— Vamos voltar para Zichron — disse ele. — Precisamos um do outro, e as crianças precisam de nós. Seja qual for o futuro, pelo menos nós o encararemos juntos.

 

— Sim, Dovid. Obrigada... Vai ficar para passar a noite?

 

— Vou.

 

Chavala levantou-se da cama e foi preparar um banho. Ao tirar a roupa, a pequena bolsa de couro caiu. Apanhou-a e levou-a a Dovid.

 

— Nessa agitação toda, esqueci de falar disto — disse, entregando-lhe a bolsa.

 

Ele puxou os cordões e despejou o conteúdo em cima da cama. Ficaram surpresos. Mesmo naquele quarto mal-iluminado, as pedras brilhavam. Era incrível! Um punhado de pequenos rubis, esmeraldas, brilhantes, safiras e opalas. O mais provável era que o beduíno tivesse assaltado algum viajante.

 

— Você sabe o que isto significa, Dovid — disse ela. — Quando a guerra acabar, teremos dinheiro mais do que suficiente para ir para a América.

 

Ele não disse nada. Não a magoaria, não podia magoá-la nesse momento, dizendo-lhe que ele nunca poderia partir. Mais tarde, tentaria dizer-lhe por quê... Ao olhar para as pedras, o que mais sentia era culpa, pensando nas circunstâncias em que ela as tinha conseguido.

 

— Por enquanto, meu bem, vamos pensar apenas em estar juntos novamente.

 

Na manhã seguinte, passaram por Mea Shearim para apanhar as crianças e dizer a Raizel que iam partir, mas que ela não precisava preocupar-se. Chavala tomaria providências para que não lhes faltassem alimentos. As irmãs despediram-se com um forte abraço.

 

Quando Chavala atravessou o limiar de sua própria casa, com a família, teve vontade de se prostrar e dar graças por terem sobrevivido, milagrosamente, todos eles.

 

                                           Capítulo dezoito

A limusine de Robert Silverstein parou diante de sua joalheria, na Fifth Avenue. O motorista uniformizado abriu a porta para o sr. Silverstein saltar.

 

— Venha apanhar-me às quatro horas. A sra. Silverstein e eu vamos à ópera hoje à noite.

 

Desde que herdara o negócio do pai, aquela foi a primeira vez. em muitos anos, que ele não parou para olhar a placa onde se lia: ”Silverstein and Sons, Est., 1887”. Ao invés disso, comprou o jornal do jornaleiro que gritava: ”ESTADOS UNIDOS DECLARAM GUERRA À ALEMANHA!”

 

Incrédulo, leu a data, 6 de abril de 1917, em negrito. Essa noite não iria à ópera. No momento, ele só pensava nos três filhos.

 

No bonde, Mary Kelly ia para o trabalho, na casa da família Silverstein, para a qual trabalhava nos últimos sete anos, como cozinheira. Ficou trêmula, segurando o jornal contra o peito. Só pensava em seus queridos Sean e Patrick, um com dezoito, o outro com vinte anos. Estava com muito medo.

 

Em Londres, no solar de Sir Walter Collingsworth, os empregados estavam sentados em torno da mesa, em seus aposentos.

 

— O que significa isso, sr. Dalton. com os ianques do nosso lado? — perguntou a copeira ao mordomo. — O senhor acha que a guerra vai acabar logo?

 

O sr. Dalton encolheu os ombros, perguntando como diabos ele iria saber aquilo.

 

Em Berlim, Frieda Hockstein disse ao marido:

 

— Mein Gott, o que acontecerá?

 

— Acalme-se, Frieda. Ganharemos a guerra. Lembre-se: Deutschland über alies. Os americanos são dirigidos por judeus. Todo mundo sabe disso.

 

Em Damasco, Jamal Paxá andava de um lado para outro.

 

— Esses alemães burros. Como se já não tivéssemos bastantes aborrecimentos com os ingleses... Tinham que se envolver com os americanos malucos, com seu dinheiro, todos aqueles homens.

 

Em Alexandria, Aaron lia a notícia cuidadosamente. O envolvimento dos Estados Unidos obviamente significava o deslocamento de mais tropas britânicas para o Oriente Médio. A América lutaria na frente ocidental, tentando salvar os franceses.

 

Embora Aaron não tivesse ambições políticas, compreendeu que esta era uma oportunidade de fortalecer a posição do NILI. Via isso como uma espécie de catalisador para chamar a atenção do mundo para o problema de Eretz Yisroel.

 

Desde o exílio dos judeus de Jaffa e Tel Aviv, a situação no país tinha se tornado desesperadora. O ano tinha sido de fome e doença. Os gafanhotos haviam destruído as safras de tal modo que grande parte da terra estava alqueivada. E as magras safras que eram produzidas o exército confiscava. O comércio estava paralisado, e os turcos proibiam qualquer ajuda financeira aos judeus. Tudo isso fortalecia a resolução do NILI de tentar salvar o yishuv.

 

Em fins de abril, Aaron encontrou-se com Sir Marc Sykes, que se achava no Egito por acaso, e, através dele, enviou um telegrama à Organização Sionista Mundial, em Londres, para que se espalhasse a notícia da deportação dos judeus. No dia seguinte, Aaron telegrafou para o principal representante da Organização Sionista Americana, cujo apoio estava tentando conseguir. Justamente com essas atividades, Aaron fundou uma comissão especial para a coleta de fundos para Eretz Yisroel. Em poucos dias, foram enviados telegramas a todas as comunidades da Diáspora, e as medidas tomadas por Aaron começaram a dar resultados. Em princípios de maio, a Reuters publicou uma reportagem sobre a evacuação de Jaffa, e as outras agências de notícias copiaram o artigo e o divulgaram para o mundo inteiro. Realizavam-se concentrações de protesto. Os judeus temiam que o ocorrido com os compatriotas que se achavam sujeitos aos turcos pudesse acontecer aos armênios. A Organização Sionista Americana fez um apelo à Holanda, à Espanha e à Suíça, para que intendessem em Constantinopla, em favor dos judeus em Eretz Yisroel. Até na Alemanha, aliada dos turcos, realizavam-se manifestações de protesto. Em face de tudo isso, Jamal Paxá prometeu abrandar um pouco o tratamento dispensado aos judeus, se estes desmentissem os artigos anteriores, na imprensa. Os judeus do yishuv, conservadores, mostraram-se satisfeitos.

 

Embora o yishuv ainda desconhecesse as atividades de espionagem militar do NILI, as atividades sociais e nacionais levavam o nome sussurrado do NILI aos ouvidos de muitas pessoas que se sentiam agradecidas por sua coragem. Pouco a pouco, a influência do NILI sobre o yishuv e suas instituições foi crescendo, suscitando até uma nova onda de entusiasmo entre as atividades no yishuv. O número de membros do NILI crescia. O Hashomer, que estava a par das atividades de espionagem do NILI, ainda estava dividido. Metade dos seus membros ainda se via principalmente como protetores do yishuv e recusava-se a se envolver de outra maneira. A outra metade estava decidida a lutar ao lado do NILI até o fim...

 

Aaron voltou a Zichron, em segredo, como fizera nos últimos anos. Sua ausência do país chamaria a atenção e comprometeria a causa. Na verdade, nunca deixava de ir a Damasco, a fim de se encontrar com Jamal Paxá.

 

Agora, sentado à mesa defronte dele, notava uma expressão especial, quase impaciente, em seus olhos. Era 1918, e a guerra tinha se agravado. A perda de homens era enorme. O confisco de armas pelos ingleses ou sua recuperação pelos judeus era um golpe esmagador. Cada vez mais soldados turcos eram feitos prisioneiros de guerra pelos ingleses, que avançavam; muitos desertavam. E a produção de alimentos diminuía.

 

— Bem, qual é a sua desculpa desta vez, Aaronson? — perguntou, andando de um lado para outro. — Desta vez você não pode dizer que é porque prendi seus homens. Por que a produção diminuiu?

 

Aaron respondeu sem hesitação:

 

— Porque não se pode tirar sangue de um nabo... Ainda estamos afetados pela praga de gafanhotos. Vai-se passar pelo menos um ano, até que a safra que foi plantada esteja no ponto de colheita. A tensão no país tem sido devastadora e afeta as estações experimentais também.

 

— Desculpas. Estou farto de desculpas. Você é um judeu... desculpe, quero dizer, um cientista. por demais inteligente. Quero algumas respostas. Por exemplo, como alimentar um exército?

 

— Só há um modo: comprando alimentos dos países neutros.

 

— Então, o que é que você está esperando?

 

— Sua permissão para ir ao exterior.

 

— E em sua ausência quem vai assumir a direção em Athlit? Aquele traidor do Absalom Feinberg passou para o lado dos ingleses... É por isso que não estamos conseguindo a produção de Hadera. Eu deveria tê-lo enforcado.

 

Aaron teria ficado contente se pudesse acabar com a vida abominável de Jamal Paxá com as próprias mãos. Um método muito anticientífico. Fez um esforço para se controlar.

 

— Ninguém é indispensável. Tenho um homem em condições de substituí-lo. Esta situação é um pouco diferente de quando eu disse que eram necessários cérebros para produzir colheitas. Isso continua sendo verdade, mas não se pode lutar contra a natureza.

 

Jamal deixou-se cair na cadeira.

 

— Então, temos que comprar nos mercados estrangeiros. — disse, dando um suspiro profundo. — Está bem, você tem minha permissão, mas seja rápido.

 

Aaron nunca diria a Jamal Paxá que já havia um carregamento da Suíça, em andamento, que os contatos já tinham sido feitos semanas antes, que havia, na Grécia, na Espanha e na Itália, homens com instruções sobre os intervalos para a entrega das mercadorias.

 

Em Zichron, Aaron viu que Sarah tinha preparado o melhor jantar romeno que ele já comera desde a morte de sua mãe. Que Deus a protegesse; ele mal acreditava que já se tivesse passado um ano. Mas naquela noite Aaron estava em paz pela primeira vez em muito tempo. Queria recordar as alegrias que ela havia proporcionado à vida deles, ao invés de lamentar sua perda.

 

Sentado à mesa, olhou para os irmãos, Zvi e Shmuel, que tinham voltado para o aprisco, e depois para Alex. Seu coração estava cheio de alegria. E Sarah ainda tivera o cuidado de convidar Chavala, Dovid e as crianças. Por um momento, seu olhar parou em Reuven. Para onde tinham ido os anos? Recordou o dia em que ele presenciara o bris da criança, que agora já tinha dez anos. Parecia impossível.

 

— Bem, Reuven, você já está quase pronto para se tornar um cientista como seu pai.

 

— Espero ser tão bom como ele — disse Reuven, olhando para o pai.

 

— Não tenho dúvida. E você, Chia? O que você gostaria de ser?

 

Chia tinha quase treze anos.

 

— Acho que professora.

 

— Ótimo. É disso que precisamos. professores e cientistas. Bem, agora que já cuidamos do futuro, acho que todos nós devemos ir para a sala de estar, para ouvir um pouco de Chopin. Quer nos dar essa honra, Sarah?

 

— Se eu ainda souber tocar.

 

— Ainda sabe. E é disso também que precisamos... da música de Chopin..

 

Após o recital, Chavala e Sarah levaram as crianças para casa. Já tinha passado da hora de dormirem. Sarah ouviu a voz de Chavala:

 

— Durma bem, meu Reuven.

 

Em hebraico, a expressão soava diferente do iídiche. Sua mãe costumava pô-la para dormir dizendo: ”Schlaf mit gesund’heit, mein tayere kind”.

 

Chia beijou Sarah no rosto e agradeceu-lhe pela noitada.

 

— Eu me diverti muito. Você me ensina a tocar piano? Havia uma inocência pungente no rosto da criança. Sarah teve que conter as lágrimas. ”Quando haveria tempo?”, pensou.

 

— Ensino, Chia.

 

— Quando podemos começar?

 

— Em breve, meu bem... breve.

 

Sentada na sala de visitas, Sarah olhou em torno.

 

— É uma casinha tão bonita!, o que você fez com ela. Mas as crianças. Chavala, você é tão abençoada!. Se eu tivesse um filho — disse ela, mais para si mesma do que para Chavala. Pelo menos, ela podia falar como uma mulher fala a outra mulher... — Ainda sinto a perda de Absalom. Penso nele constantemente... Se eu tivesse um filho dele, a dor não seria tão grande. — continuou. Uma vez que ela começara, não podia parar. Aquela era a primeira vez que falava dele abertamente. — Mas tenho minhas recordações. Meu Deus, as coisas que fazíamos! Cavalgávamos, correndo como o vento, pelas colinas de Zichron, o amor entre nós. Ainda ouço a voz dele lendo suas poesias para mim. Ele era um bom poeta, você sabe. Um homem maravilhoso...

 

Chavala mal podia responder.

 

— É, eu sei.

 

Sarah ficou sentada, falando, com o pensamento em uma sepultura rasa no Sinai.

 

— Estou tão feliz de você ter voltado para Zichron, Chavala! — disse, levantando-se devagar.

 

E Chavala recordou que não quisera partir, mas respondeu:

 

— Eu também, Sarah, eu também.

 

De volta a casa, Sarah olhou a sala de estar, viu os homens reunidos e disse um rápido boa-noite. Nessa noite, ela queria ficar a sós com um único homem...

 

— Abba, achei que havia chegado a hora de lhe falar do NILI — continuou Aaron, depois que Sarah foi dormir. — Espero que você compreenda por que não lhe contei antes.

 

O ancião ainda estava incrédulo.

 

— Durante todos estes anos de guerra, ignorei a existência de espionagem e as suspeitas dos alemães de que havia espiões entre os judeus. Pensava que isso fosse uma acusação vil, anti-semita; mas como não consegui perceber que meus filhos estavam envolvidos, quando trabalhava nos campos de Athlit?

 

— Porque ninguém sabe além dos homens chave

 

— Continuo achando inacreditável que esse segredo tenha sido tão bem mantido e por tanto tempo

 

— Era para o bem do yishuv

 

— Mas se que Deus me perdoe se algum de vocês for apanhado, o yishuv sofrerá

 

— Não, abba, nós, membros do NILI, assumimos a responsabilidade e assumiremos a culpa sozinhos, se por acaso esse momento chegar

 

Ephraim Aaronson estava quase resmungando

 

— Eu ainda não consigo acreditar que, morando aqui em Zichron, não tenha sabido de nada. Por que você esperou até agora para me contar?

 

— Porque eu vou partir e só voltarei quando a guerra acabar. Você deve saber. Você está sujeito a ser interrogado

 

Ephraim fez um sinal de assentimento

 

— Como eu podia ser tão burro assim ou será que estou ficando senil. Absalom nunca teria deixado Sarah para ser piloto

 

— Exatamente, abba, mas isso é algo que só nós sabemos. Já houve suspeitas, mas as cartas que providenciamos para Sarah receber ajudam a tornar a história plausível

 

— Compreendo Bem, como posso ajudar?

 

— Sua ajuda consistirá em trabalhar com a comissão especial, na distribuição do dinheiro Temos nossos problemas aí também. Algumas das organizações sionistas não se mostram muito entusiasmadas com a transferência de fundos para o yishuv pelo NILI. Querem que a transferência de fundos seja feita através de sua própria comissão especial, no Cairo

 

— Quer dizer que vocês estão correndo os riscos, fazendo o trabalho, e eles estão lutando contra vocês? Por quê?

 

— Porque alguns deles têm medo de que Aaron se torne poderoso demais, abba

 

Ephraim ficou furioso

 

— Isso não é política. O único objetivo é colher informações para os ingleses. Como ousam acusar Aaron ou qualquer um de vocês de tais ambições? Bem, por hoje basta. Vá dormir, Aaron, acho que você precisa descansar. Tem uma longa viagem pela frente. Acho que todos nós temos

 

                                       Capítulo dezenove

À medida que a guerra recrudescia, era importante que as informações chegassem mais rapidamente ao serviço britânico de informações, em Alexandria.

 

Embora Port Said e Athlit fossem separadas somente por trezentas e vinte e cinco milhas náuticas, apresentavam os mesmos problemas que o NILI tivera, desde o começo do trabalho de espionagem. Somente nas noites sem lua é que o navio podia operar. Eram necessários também tempo bom e mar calmo. Por isso, era preciso encontrar algum outro meio de comunicação.

 

Zalman Kishon sugeriu uma ligação por rádio, mas seria arriscado demais, visto que os alemães eram muito hábeis em decodificação de mensagens. Dovid sugeriu que a ligação marítima fosse substituída por uma ligação aérea, mas isso também era arriscado demais, uma vez que a única pista de pouso que podia ser usada era muito bem patrulhada pelos turcos. Sarah sugeriu, com uma certa seriedade, que a ligação entre Alexandria e Athlit fosse feita por pombos-correio, e não por aviões.

 

Aaron consultou o major Malcolb, especialista em pombos-correio, e este disse que os pombos podiam voar a uma velocidade de mais de cento e cinqüenta quilômetros por hora, o que significava que a distância entre Athlit e Port Said poderia ser coberta em pouco menos de quatro horas. Malcolb comprometeu-se a treinar os pombos. Lentamente, eles foram aprendendo o seu trabalho, aumentando, ao mesmo tempo, a distância a que podiam se afastar do pombal e voltar.

 

Em meados de junho, alguns pombos foram postos em pombais, em Athlit e Zichron Yaakov. Três semanas depois, seis pombos foram soltos em Athlit, pela primeira vez; somente um deles chegou a seu destino, dessa vez sem mensagem. Dois meses depois, Sarah enviou cinco, com uma mensagem codificada, em que solicitava o despacho do navio Menagem no dia 10 de setembro. No dia seguinte, soltou mais cinco, com a mesma mensagem. Quatro chegaram ao destino; um foi apanhado no dia 3 de setembro no quintal do bei Ahmad, governador de Cesaréia.

 

Ao alimentar seus próprios pombos, ele viu um que não era de seu pombal. Notou também uma pena amarrada ao pé do pombo. Soltou a pena e encontrou a mensagem. Embora não soubesse que a mensagem estava em código, ficou entusiasmado com a descoberta. Imaginou que fosse obra de espiões e, imediatamente, entrou em contato com o governador de Haifa. A notícia logo se espalhou e, quando ela chegou a Athlit, os pombos foram mortos rapidamente.

 

No dia seguinte, as autoridades turcas trouxeram o pombo descoberto para Zichron Yaakov e o expuseram numa gaiola, no Graf Hotel. Fizeram isso na esperança de que alguém, vendo o pombo, abrisse a boca; mas isso não aconteceu.

 

O NILI estava com problemas ainda maiores que o maldito pombo. Lieb Schacham foi preso. Estivera espionando instalações militares turcas e o contra-ataque turco a Gaza, nos dias 10 e 15 daquele mês. Tentara voltar a Athlit, às pressas, dessa vez partindo de Petah Tikva em direção ao sul, a fim de evitar passar pelos guardas militares. Assim, não tinha seguido a costa, mas tentara atravessar o deserto. A sede tinha levado a melhor sobre ele, fazendo-o ceder; então foi atacado e surrado por árabes, que tomaram suas roupas e todos os seus pertences, inclusive os documentos vitais e as mensagens codificadas.

 

Foi encontrado por um soldado turco e, mais tarde, encarcerado em Beersheba.

 

No primeiro interrogatório, Lieb negou que tivesse qualquer ligação com espionagem.

 

O general Kers von Kerstein, ao saber que um espião judeu havia sido apanhado, ordenou que fosse enforcado imediatamente. Os turcos, porém, queriam investigar mais, esperando que, sob tortura, ele revelasse os nomes de seus cúmplices. Vendo que ele se recusava a falar, condenaram-no à morte por enforcamento.

 

No dia 16 de setembro, as autoridades turcas anunciaram que, na manhã seguinte, seria enforcado um espião judeu, em praça pública, e que o povo estava cordialmente convidado a assistir à execução. O enforcamento não ocorreu. A ameaça fora feita para que Lieb revelasse, finalmente, seus segredos. O que continuava recusando-se a fazer. Foi novamente torturado e jogado no calabouço, em Beersheba.

 

Naquela-noite, Zichron fervilhava de soldados. Guardas vigiavam todas as saídas da aldeia. O governador de Haifa, o bei Ahmad, reuniu os anciãos e lhes disse que havia sido descoberta uma rede de espionagem em Zichron; e, a menos que os nomes dos líderes fossem revelados imediatamente, os turcos executariam cem pessoas. Foi dado um ultimato de vinte e quatro horas. Se eles persistissem em sua obstinação, não ficaria de pé uma só casa em Zichron.

 

Aterrorizados pela ordem, os anciãos de Zichron discutiram o que deveria ser feito. Naturalmente, a verdade era que, até a descoberta do pombo, eles nada sabiam da tal rede de espiões.

 

O porta-voz jurou pela sepultura de sua mãe que ele não tinha conhecimento do assunto. O governador bei Ahmad chamou-o de ”mentiroso, de judeu embusteiro. Você nos dirá a verdade quando acabarmos com você”. O guarda foi chamado.

 

— Leve-o e espanque-o, até que ele suplique que o ouçamos condenar seu povo à morte.

 

Seu filho, que havia entrado no NILI recentemente, sabia que isso era apenas o começo do sofrimento do pai. Não podia pensar, nesse momento, em sua segurança, mas apenas na vida do pai. Foi às autoridades e entregou-se. Após um castigo que o levou a abandonar o silêncio que se impusera, revelou os nomes que conhecia. Sua recompensa foi uma bala na cabeça.

 

Agora que os turcos dispunham da informação, iniciaram um cerco sistemático. Os prisioneiros foram levados para Nazaré. Quinze anciãos foram forçados a acompanhar os prisioneiros do NILI, como reféns, a menos que fosse revelado o paradeiro de Aaron Aaronson e Dovíd Landau.

 

Até então, os prisioneiros nada tinham confessado, apesar das torturas, e eram de opinião que tinham de ser considerados inocentes, mesmo pelos turcos. mas nenhum ser humano poderia manter-se calado, sofrendo o castigo pelo qual tinham passado.

 

Dovid Landau era, agora, o líder do NILI mais procurado, tanto por sua própria posição como porque devia saber do paradeiro de Aaron Aaronson.

 

A aldeia foi revistada. Dovid não foi encontrado em lugar nenhum... Estava escondido nas galerias subterrâneas de Athlit, quase no nariz dos turcos, escutando os soldados quebrarem portas, armários, mobílias e vidros.

 

Depois que os turcos demoliram totalmente a estação experimental, desconfiaram de que ele houvesse fugido para as colinas, em companhia de muitos outros membros do NILI. Foi procurado, mas não foi encontrado.

 

Em última instância, Jamal Paxá despachou soldados para a casa de Dovid e Chavala, dessa vez com instruções para intimidá-la mas não hostilizá-la. Tinha certeza de que o marido acabaria tentando entrar em contato com ela. Após horas de intenso e exaustivo interrogatório, ela continuava negando.

 

— Eu já lhes disse repetidas vezes; não sei onde meu marido está; e, mesmo que soubesse, não diria. Podem torturar-me, matarme, mas não lhes direi nada.

 

Eles esperavam, conforme as instruções. Ainda precisavam dela viva, como isca para o marido.

 

Certo de que sua prisão era apenas uma questão de tempo, Dovid rezava para que continuasse vivo a fim de poder realizar aquela última missão. À meia-noite ele trabalhava febrilmente nas galerias subterrâneas, juntamente com Nachman, Shamir e Moses Bartov, carregando sacas de ouro através do túnel que ligava Athlit ao Castelo dos Cruzados. Quando terminaram, Dovid limpou o suor da testa com as costas da mão, depois olhou para os dois homens vestidos com uniformes turcos.

 

— Bem, parece ter passado muito tempo, desde que nos encontramos em Athlit pela primeira vez — disse ele. — Você, Nachman, quis saber, naquela noite, se ia ter que ficar girando os polegares.

 

Nachman conseguiu dar um sorriso.

 

— Eu me lembro, Dovid. Você disse que não teríamos tempo para isso, e tinha razão.

 

Dovid fez um movimento indicativo com a cabeça.

 

— E você, Moses Bartov, o sbomer da Galiléia. você foi um verdadeiro amigo. Agora, ponham o ouro na carroça. Vocês sabem em quais kibutzim ele deve ser escondido. Shalom.

 

Depois que os homens se foram, Dovid recordou aquela primeira reunião, maravilhando-se com o fato de que alguns deles tivessem sobrevivido. Afinal, era isso o que os judeus mais sabiam fazer...

 

Voltou arrastando-se pelo túnel, esperou na galeria, procurando ouvir qualquer ruído em cima. Não tinha maneira de saber quanto tempo havia passado; mas quando achou que talvez estivesse em segurança, afastou cuidadosamente o alçapão e deu uma espiada. Mesmo por aquela minúscula abertura, pôde ver que os turcos haviam estado ali; podia ver os sinais da devastação. Rapidamente, ele se ergueu e fechou bem o alçapão.

 

Não havia tempo para temores. Naquela noite tinha de entrar em contato com o Menagem. Arrastou-se pelo capim alto, depois seguiu o molhe até chegar ao lugar combinado. Tirou do bolso a pequena lanterna, deitou-se de bruços e fez o sinal codificado.

 

S-A-L-A-N-E-H I-S S-I-L-L-Y W-O-M-A-N S-H-E L-A-U-G-H-S.

 

Depois Continuou deitado, muito quieto, esperando que a mensagem fosse decifrada.

 

Chaim, com o rosto abatido de tristeza, entregou ao tenente lan Smith a tradução. ”Salaneh” era ”NILI”. ”Silly” significava ”exposto”... ”Wotnan” era ”capturado”... ”She laughs” era ”o ouro está seguro”. Houve um silêncio desolado a bordo, mas não era hora para lamentações.

 

Rapidamente, o motor foi posto em movimento, e o Menagem zarpou...

 

Dovid respirou fundo, ao ouvir o ruído do navio que se afastava. Depois, esperou um pouco e ouviu outro ruído. Isso havia acontecido tantas vezes, que ele quase podia prever a hora em que a patrulha turca passaria. Ouviu-a passar. Levantou-se e correu de pedra em pedra, até que chegou próximo ao Castelo dos Cruzados, onde, como esperado, foi capturado por quatro soldados turcos. Primeiro foi espancado a coronhadas, depois chutado, quando caiu ao chão. Ao diabo a dor; fez um esforço para levantar-se. O olho direito estava fechado de tão inchado. Sentia o sangue correrlhe pelo rosto. Mas pelo menos ia andando, enquanto era conduzido à prisão.

 

A pequena cela mal acomodava seu corpo. Ficou sentado, encostado à parede, sem poder esticar as pernas. Toda vez que mudava de posição, a dor que sentia na cabeça tornava-se intolerável, e o corpo, todo machucado, doía de modo insuportável. Sentado ali no escuro, ele nada podia fazer, a não ser pensar no que lhe aconteceria. Finalmente a pesada porta de metal se abriu.

 

— Levante-se.

 

Levantou-se, com muito esforço, e foi conduzido por um guarda pelos corredores estreitos, passando pelas celas, até chegarem a um portão de ferro, que foi destrancado por outro guarda. O barulho do velho ferrolho de metal pareceu a Dovid o som de gigantescos címbalos batidos um no outro. Teve vontade de pôr as mãos nos ouvidos, mas foi cutucado com a coronha de uma arma ao longo de outro corredor, em direção a uma sala de interrogatório.

 

O bei Ahmad fez sinal para o guarda, e Dovid foi empurrado para uma cadeira.

 

— O que você estava fazendo no Castelo dos Cruzados, hoje de manhã?

 

— Estava dando uma volta.

 

— Não fique bancando o herói comigo... Sei que você está aterrorizado. O que estava fazendo? Vou lhe dar um minuto para responder.

 

— Eu sou judeu; por que o senhor acreditaria em mim?

 

— Judeus são covardes. Você dá valor a sua vida, por menos que ela valha; e eu sei que você tem mulher e um filho. Agora, seu minuto está se esgotando.

 

— A verdade é que a noite foi um pouco agitada. Eu gosto de observar a água; isso me acalma..

 

— Basta de bobagem. Sei que você é o cabeça do NILI. Guarda, leve-o daqui

 

Dovid foi espancado e jogado outra vez na cela sem janelas. Novamente, ficou sentado no escuro. Lembrou-se dos dias em que se dedicara à sobrevivência de seu povo. Ouviu os ecos de sua própria voz, no laboratório de Aaron naquela noite, quando ele dissera: ”Todo mundo tem seu limite de resistência..” Até agora, graças a Deus, não tinha chegado ao limite da sua resistência; nem tampouco, pelo que sabia, os outros homens que haviam jurado sobre a Bíblia naquela noite. Orgulhava-se de ter feito parte daquele grupo, orgulhava-se dos recrutas, não menos dedicados, mas simplesmente menos preparados. Ele não culpava o jovem que havia quebrado seu juramento para salvar o pai. Como podia culpá-lo?

 

Novamente a pesada porta de ferro abriu-se, e novamente ele foi arrastado pelo corredor de pedra; mas, dessa vez, para a sala de espera. Empurrado para uma cadeira, olhou para o homem que se achava à mesa. Era Jamal Paxá, nada menos.

 

O paxá ignorou Dovid durante o que pareceu uma eternidade.

 

— Bem, encontramo-nos novamente, Landau, e em circunstâncias lamentáveis. Para você. Na última vez em que esteve em meu gabinete, fui muito hospitaleiro. Você fumou meus cigarros e tomou meu café. Teve também a oportunidade de olhar alguns planos muito importantes. Agora, depois de tudo isso, acho justo que você me faça o favor de dizer o paradeiro de Aaronson.

 

— Sei tanto quanto vocês.

 

Jamal Paxá recordava muito bem a maneira como havia sido enganado, deixando esse judeu em liberdade, subestimando-o.

 

— Isso é estranho, Landau, já que sei que você está sempre em contato com ele. Bem, como você sabe, sou um homem paciente... mas há um limite. Agora, mais uma vez eu lhe pergunto: onde está Aaronson?

 

— Repito que não sei.

 

Jamal Paxá encheu um copo de água de um cântaro, tomou um gole, depois deixou-o na mesa.

 

Fazia dois dias que Dovid não bebia nem comia. Nada disse.

 

— Onde está Aaronson? — Jamal Paxá tornou a perguntar. Dovid encolheu os ombros.

 

Jamal Paxá levantou-se e deu uma bofetada no rosto de Dovid com tanta força que a cadeira em que ele estava sentado quase tombou. Depois gritou:

 

— Guardas, tirem-no da minha vista. Landau, eu lhe garanto que vai chegar um momento em que você vai implorar que o matemos.

 

Tinha quase certeza disso.

 

A essa altura, toda Zichron estava de quarentena; e todos os homens, mulheres e crianças eram castigados. As rações eram uma xícara de água por pessoa por dia. Ninguém podia sair de casa, sob pena de morte...

 

Chavala foi recolhida, levada para a cadeia e torturada, ao recusar-se a falar do envolvimento de Dovid no NILI. Quando se recuperava um pouco, era interrogada novamente, repetidas vezes.

 

— Qual era a posição de seu marido? O que ele fazia? Quais eram seus planos?

 

Havia momentos em que quase vacilava; mas, de algum modo, sua mente dominava o corpo, enquanto ela pensava: ”Eles só podem me matar uma vez. somente uma vez, somente uma vez...”

 

De repente foi mandada para casa. Jamal Paxá tinha concluído que ela ainda era muito valiosa como meio para romper a resistência do marido. Não a mataria. Ainda não.

 

Lieb Schacham ia ser, finalmente, executado. Ainda não tinha falado. Quando estava no cadafalso, com a corda no pescoço, exclamou:

 

— NILI! Netzah Yisroel Lo Ishkahem! A perpetuidade de Israel nunca te esquecerá!

 

Nachman Shamir e Eliave Yitzchak foram escoltados até a praça principal de Damasco, onde a forca estava preparada. Nachman dirigiu-se à multidão:

 

— Vocês estão perto do fim; nós libertaremos nosso país. Não trairemos nossa pátria. Estamos libertando a Palestina. Muito breve vocês, turcos, serão expulsos de nossa terra. Nós, os homens do NILI, cavamos uma sepultura para vocês. Enquanto vocês estão enforcando o nosso povo, os ingleses entraram em nossa cidade santa de Jerusalém e o exército de vocês está sendo derrotado. No dia de minha morte, amaldiçôo vocês do fundo do coração. Malditos sejam para sempre...

 

Quando os guardas turcos foram buscar o pai e os irmãos de Sarah, ela os recebeu calmamente.

 

Forçaram-na a ver o velho Ephraim e seus irmãos serem surrados na sola dos pés. Quando ela sentiu que não suportava mais aquilo, disse:

 

— Fui eu. Fui eu que fundei o NILI. Sou sua verdadeira chefe. Eu o iniciei e eu o terminarei. Por favor.. se vocês têm um pouco de decência, em nome de seu Alá, soltem meu pai.

 

O ancião foi ”solto” da sala, para ser levado para a morte fora da vista de Sarah.

 

Sarah havia selado seu atestado de morte. Primeiro, foi espancada; suas unhas foram arrancadas; em suas axilas foram colocadas pedras quentes. Durante três dias e três noites, ficou gritando de dor na cela escura, sem janelas.

 

Quando finalmente a porta da cela se abriu, ela estava pronta. Na sua execução, disse:

 

— Nos países civilizados, é costume conceder ao prisioneiro seu último desejo. Vocês são gente civilizada.

 

— Qual é o seu pedido?

 

— Desejo ir para casa, mudar de roupa. Não quero encontrarme com meu Deus vestida deste jeito.

 

O inquisidor fez uma careta. Somente uma judia burra pensaria numa coisa dessas; mas como ela dissera, eles eram um pouco civilizados.

 

— Concedido.

 

Sarah foi conduzida, algemada, pelas ruas de Zichron. Quando chegaram a casa, ela teve permissão para entrar no quarto sozinha.

 

Trancou-se no quarto, abriu a gaveta da penteadeira e apanhou o pequeno revólver de cabo de madrepérola que tinha trazido de Constantinopla.

 

”Estranho que eu tenha trazido isto para minha proteção”, pensou. ”Bem, é para isso que será usado.” E, sem hesitação, meteu o cano do revólver na boca e puxou o gatilho.

 

Um soldado subiu a escada correndo e arrombou a porta, encontrando Sarah inconsciente. Ao lado dela, estava o pequeno revólver. Seu pulso ainda batia fracamente, quando o soldado o tomou. Olhou para o sangue que corria da boca de Sarah. Sabendo como Jamal Paxá ficaria furioso ao ver-se privado do prazer de enforcá-la, o soldado mandou chamar um médico imediatamente.

 

Após lhe ser ministrada uma injeção, ela recuperou os sentidos.

 

— Pelo amor de Deus, mate-me; não posso suportar mais.. Continuou implorando que lhe dessem um veneno. Amaldiçoou o comandante turco, o governador e, especialmente, o oficial de polícia, bei Osman, que a tinha torturado. Durante dois dias, ficou paralisada, mas semiconsciente.

 

Finalmente, a morte abençoada libertou-a.

 

                                           Capítulo vinte

Dovid estava deitado no chão de pedra. Chavala fora trazida para vê-lo, na esperança de que o seu pedido rompesse a resistência do marido. Quando foram deixados a sós por algum tempo, ela disse:

 

— Por favor, Dovid... O que adianta você não revelar, agora, onde Aaron está? Ele está em Alexandria, fora de alcance; por isso, você não o prejudicará. Por favor, Dovid. Salve-se.

 

— Chavala, não se deixe enganar pelos turcos. Mesmo que Aaron voltasse, eles me enforcariam. Pelo menos, posso morrer sabendo que não traí ninguém. Quero que nosso filho saiba e nunca se esqueça de que tive algo a ver com o milagre que aconteceu ao nosso povo aqui. Saiba que eu amo você, minha querida Chavala, desde o dia em que a conheci..

 

Quanto tempo fazia que ele conhecera Chavala e lhe dissera essas mesmas palavras?, pensou. Não tinha idéia. Não tinha idéia do dia nem da hora. Os espancamentos tinham parado, e agora os turcos estavam usando a fome como último recurso. Bem, em breve aquilo acabaria; ele quase ansiava pelo dia de sua execução. Só esperava ter forças para ir à forca, dizendo as palavras ”Netzah Yisroel Lo Yshaker”. A eternidade de Israel não morrerá. E depois gritar: ”Viva o NILI!”

 

Dovid não tinha maneira de saber que os ingleses, graças em parte às informações que ele lhes tinha fornecido, haviam avançado, rompendo e destruindo as linhas turcas. A ofensiva decisiva dos Aliados começara; e em duas semanas toda a parte norte da Palestina foi tomada dos turcos.

 

As prisões foram esvaziadas...

 

Quando a porta de ferro de sua cela foi aberta por um soldado vestido de calças curtas caqui, Dovid não acreditou no que viu. Tinha certeza de que estava tendo alucinações, deitado ali no canto da cela. com o olhar fixo e com medo de se mexer.

 

Mas o soldado, alucinação ou não, aproximou-se dele e ajudou-o a pôr-se de pé. Dovid esforçou-se para se levantar, apoiando-se na parede com dificuldade.

 

— Acabou, companheiro. Pode sair a qualquer hora que quiser. Boa sorte. Eu diria que chegamos aqui bem a tempo.

 

Ainda incapaz de acreditar, Dovid conseguiu perguntar

 

— O que aconteceu?

 

— Acabou, amigo; nós os derrotamos.

 

Dovid deixou-se deslizar ao longo da parede de pedra fria. Finalmente compreendeu que estava vivo. e que iria para casa, encontrar-se com Chavala.

 

Os padioleiros foram buscá-lo.

 

— Tudo bem, amigo velho; vamos mandar cuidar de você imediatamente. Ao que parece, há um século que não toma uma refeição decente.

 

Dovid ainda não conseguia acreditar. Tinha vivido no escuro e no medo por tanto tempo que continuava desconfiado.

 

— Para onde vão me levar?

 

— Fique deitado, simplesmente. Em pouco tempo estará novinho em folha. Vai gostar do hospital para onde está sendo levado.

 

— Quanto tempo acham que vou ter de ficar lá?

 

— Ah, talvez três ou quatro semanas.

 

— Que dia é hoje?

 

— Dia do Armistício, 11 de novembro; e, se estiver confuso quanto ao ano, estamos em 1918.

 

Chavala estava com um cesto de roupa nas mãos, quando olhou para a estrada e viu um homem aproximando-se.

 

Pela mudança que sofrerá, Dovid seria irreconhecível para qualquer outra pessoa; mas ela o reconheceu. Deixando o cesto no chão, correu ao seu encontro e, sem dizer palavra, abraçaram-se.

 

Naquela noite, deitada ao lado do marido, Chavala pensou que seu coração fosse partir-se, quando lhe tocou os membros, outrora fortes mas agora quase sem carne. Abraçou-o. Cuidaria bem dele, para devolver-lhe a saúde, a vida.

 

O mundo havia mudado de repente. Os combatentes de Sião estavam voltando e, uma semana depois, chegou Moishe, desaparecido durante tanto tempo que Chavala pensou que não mais o veria. Para ela, sua volta era o milagre dos milagres. Mas em seu olhar estavam as cicatrizes da guerra, além de uma nova amargura, tão estranha para o exuberante Moishe que ela conhecera e que partira para a guerra com tanto ânimo e otimismo.

 

Quando ela tentou falar-lhe a esse respeito, ele, de início, apenas sacudiu a cabeça, sem nada dizer. Não porque soubera que Aaron tinha estado em Londres e não o visitara. Ele ficara contrariado com isso por algum tempo, mas compreendeu, depois, que Aaron não tivera oportunidade de visitá-lo. Aaron recebera notícia de que ele estava se recuperando dos ferimentos, e o contato com os ingleses tinha prioridade, para o bem de todos eles. Não; era algo mais sutil e mais difícil de expressar ou mesmo entender direito. Ele era um jovem envelhecido precocemente. Fora tão dedicado e firme em sua missão quanto Dovid, mas era jovem demais para manter esse sentimento diante da violência e da morte. Era um romântico; e como a maioria dos românticos, fora afetado mais facilmente pela maneira revoltante como os homens podiam tratar uns aos outros. Não era realmente um inimigo. Não podia aceitar a hediondez com que os turcos, alemães e árabes tratavam os judeus. E especialmente os ingleses; tinha visto como eles tratavam os soldados judeus como ele, que, afinal, estavam do lado deles. Quem restava então? Onde? Recordou a conversa de Chavala sobre a América. Seria lá?...

 

O marido de Dvora, Ari, voltou. Mas Sheine tinha ido para Berlim.

 

A guerra exigira seu tributo de todos eles, pensou Chavala. Mas, graças a Deus, eles estavam vivos.

 

 

                                                               CONTINUA

 

 

                                         Capítulo vinte e um

A Liga das Nações daria aos ingleses o mandato de proteção da Palestina, e, pela primeira vez, o yishuv sentiu que se achava nas mãos de um amigo. Tinham lutado junto com os ingleses, tinham morrido com os ingleses; e agora seriam recompensados por eles. O sonho era continuar a reconstrução de suas vidas, em paz.

O grande sonho durou pouco. Sob o governo dos ingleses, os judeus ficaram sujeitos praticamente às mesmas restrições que haviam sofrido sob o governo dos turcos. Não eram os senhores cruéis que os turcos tinham sido, mas as restrições eram quase tão severas quanto antes. Na verdade, parecia que os ingleses favoreciam os árabes e fechavam os olhos para seus ataques aos judeus. Pior do que isso. Os judeus ainda não tinham permissão para portar armas; os árabes sim.

O mufti, Haj Amin el-Hussein, fora nomeado governador de Jerusalém, que, em importância, só era inferior a Meca e Medina como cidade santa muçulmana. Fora nomeado sob o pretexto de impedir uma guerra religiosa, visto que, segundo ele, os judeus iriam profanar os santuários da Jerusalém antiga.

Mais uma vez, os judeus estavam em perigo.

 

 

 

 

Quando Moishe chegou a casa, uma noite, após ser espancado numa emboscada dos árabes, Chavala decidiu-se. Dessa vez ela não ia ser retida.

— Dovid, já esperamos muito, muito mesmo. A guerra acabou. Lembre-se de que temos aquelas jóias. Está na hora, Dovid. Vamos para a América. Este é um país de bárbaros; não vou mais viver aqui. Não há mais razão para isso. Você já fez o seu sacrifício... Todos nós fizemos..

— Depois de tudo por que passamos, Chavala... pense bem... você pode mesmo abandonar o sonho de Eretz Yisroel, pelo qual todos nós fizemos sacrifício?

— Posso. Dovid, o que faremos aqui? Viver no kibutz? Zichron Yaakov não existe mais para mim. Ainda ouço as lamentações, os gritos. Aqui cheira a morte. Para onde iremos?

— Posso conseguir um emprego na Agência de Sião; a necessidade de trabalhar por nosso povo é ainda maior...

— A necessidade estará aqui durante mil anos, com ou sem a nossa presença. Não posso mais entregar minha vida a um sonho sem esperança. Não. E você também não deve fazer isso. Vamos para a América, onde poderemos viver como seres humanos, com nossa família.

Dovid ficou sentado, com o rosto nas mãos. Tinha chegado a hora, e não haveria adiamento. Mas devia haver uma razão para eles terem sobrevivido. E, no seu íntimo, ele sabia. como sempre soubera. que não podia abandonar aquela terra. Mas como poderia ficar sem Chavala? Ela também era sua vida... 

 

 

 

                      

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