Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites
PARAÍSO DAS TREVAS
Primeira Parte
Ouvia os cães ao longe, latindo sem parar, perseguindo sem parar, como a morte persegue a vida.
A morte.
Deus, ia morrer. A ideia deixava-a incrédula. Por qualquer razão, nunca acreditara que esse momento havia de chegar. Algures na sua mente, estivera sempre presente a ideia de que havia de conseguir enganar a sinistra ceifeira, de que seria capaz de fugir ao inevitável. Sempre fora jogadora. Duma maneira ou doutra, sempre batera as probabilidades. Sentiu o coração palpitar e a garganta apertar-se perante a ideia de não as vencer daquela vez.
A própria noção da sua mortalidade deixou-a petrificada, desejando poder olhar para si mesma, como numa experiência extracorporal, como se aquela pessoa que corria fosse alguém que ela conhecesse apenas de vista. Mas não podia parar. O som dos cães impelia-a para a frente e o instinto de autopreservação instigava-a a manter os pés em movimento.
Atirou-se para a encosta do monte, tropeçando em raízes expostas e ramos caídos, com os arbustos a prenderem-lhe a roupa e a arranharem-lhe a cara ensanguentada como dedos curvos e descarnados. O tapete de matéria em decomposição no solo da floresta abatia de vez em quando, fazendo-lhe perder preciosos centímetros, em vez de lhe permitir avanÇar. Sentiu uma dor aguda ao bater com o cotovelo numa pedra semienterrada no chão lamacento. Levantou-se, com o braço apertado de encontro ao corpo, e continuou a correr.
Soluços de frustração e medo prendiam-se-lhe na garganta, sufocando-a. As lágrimas toldavam-lhe a pouca visibilidade
da noite enluarada. Tinha o nariz partido e a latejar, o que a obrigava a respirar apenas pela boca, tentando absorver o fresco ar da noite em grandes haustos. Os pulmões ardiam-lhe, como se cada inspiração transportasse ácido em vez de oxigénio. O fogo espalhava-se-lhe pelos braços e pernas, membros que mais pareciam de chumbo quando os obrigava a funcionar para além das suas capacidades.
Devia ter deixado de fumar. Pensamento ridículo. Não eram os cigarros que iam matá-la. Num recanto isolado da sua mente, onde residia uma estranha calma, viu-se a parar e a sentar-se num tronco caído para fumar o cigarro final. Seria como uma daquelas noites depois da aula de aeróbica, em que a primeira coisa que fazia ao sair do ginásio era acender um cigarro. Nada como as primeiras fumaças depois dum exercício físico. Deu uma gargalhada, à beira da histeria, e depois soluçou, continuando aos tropeções.
Os cães estavam a aproximar-se. Sentiam o cheiro do sangue que corria do profundo golpe que a faca lhe fizera na cara.
Não tinha para quem fugir, quem a salvasse, e sabia-o. À sua frente, o terreno era cada vez mais difícil, íngreme e bravio. Não havia pessoas nem estradas. Não havia qualquer esperança.
Sentiu o coração despedaçado com essa certeza. Nenhuma esperança. Sem esperança, nada restava. Tudo o mais começava a falhar.
Saiu da floresta, tropeçando numa clareira. Não conseguia correr mais um pouco. Sentia tonturas e tinha a cabeça a latejar. As pernas dobraram-se-lhe debaixo do corpo e fizeram-na avançar como um bêbedo para o prado descoberto. Os comandos do cérebro fraquejaram e acabaram por parar completamente, quando a vontade se desfez.
Sufocada pelo desespero, pelo sabor do próprio sangue, caiu de joelhos na erva macia e ficou a olhar para o enorme disco brilhante da Lua, percebendo pela primeira vez na vida como era insignificante. Ia morrer ali naquele descampado, com o cheiro das flores selvagens no ar, e o mundo continuaria a girar sem uma pausa. Era nada, apenas mais uma vítima de mais uma caçada. Ninguém sentiria a sua falta.
A sensação de pura solidão que esse pensamento lhe transmitiu deixou-a completamente estarrecida.
Ninguém sentiria a sua falta. Ninguém choraria a sua perda.
A sua vida não tinha qualquer significado.
Ouviu os estalidos na floresta atrás de si, o som de cascos, o relinchar dum cavalo, os cães a latir. Ouviu também o próprio coração a bater, prestes a explodir.
Mas não chegou a ouvir o tiro.
-Começou como um daqueles dias em que o cabelo está horrível, e depois só piorou - disse Marilee Jennings em voz alta ao atravessar a fronteira para o montana no Honda, Deu uma última fumaça no cigarro e apagou a beata no cinzeiro entre a dúzia que já lá estava.
Era uma piada que Lucy e ela costumavam usar desde que se tinham tornado amigas. Sempre que alguma delas começava a conversa com aquela frase, a outra devia oferecer um cigarro, uma piza e um ombro onde chorar. Acabavam sempre num estado de comiseração.
Tinham-se conhecido num curso de controlo de tensão para estenógrafas judiciais. Depois de duas horas a serem aconselhadas a não tentar resolver tensões com cigarros, álcool e conversa profissional, saíram da sala e Lucy voltou-se para ela com um sorriso azedo e um maço de cigarros na Mão, perguntando:
-Apetece-lhe uma cerveja?
O laço fora instantâneo e forte. Não duma amizade peganhenta, mas uma relação com base em pontos comuns e sentido de humor. Ambas trabalhavam por conta própria, tentando obter contratos governamentais e tendo como clientes um grupo de advogados; registavam declarações e faziam o aborrecido trabalho das transcrições e intimações, ao mesmo tempo que se defendiam dos avanços amorosos do pessoal masculino ardoroso. Ambas viam a espécie de baixeza a que as pessoas chegavam em disputas laborais e registavam no código secreto da sua profissão relatos directos de tudo, desde o absurdo das batalhas de divórcio até às atrocidades dos assassínios. Compartilhavam os problemas da profissão - a tensão dum trabalho que exigia perfeição, as dores de cabeça de lidar com advogados arrogantes que queriam tudo menos a conta em vinte e quatro horas e depois levavam meses sem se preocupar em pagá-la. No entanto, em muitas coisas, eram tão diferentes como a noite do dia.
Lucy gostava do encanto ligado às pessoas para quem trabalhava. Adorava intrigas e pintava o cabelo em tons diferentes de loiro de seis em seis meses, porque a monotonia a aborrecia. Via o mundo com os olhos semicerrados duma divertida cínica. Tinha lampejos agudos como um estilete e uma língua semelhante. Era ambiciosa, impiedosa e irónica. Adorava a luz da ribalta e ansiava por uma vida de luxo.
Mari ainda abrigava a ténue esperança de que as pessoas fossem essencialmente boas, apesar de já ter visto que muitas não o eram. As aparências raramente a impressionavam, porque tinha crescido num meio onde as palavras «muito estilo e nenhuma substância» descreviam perfeitamente a maioria das mulheres que corriam para os seus BMWs de cartão de crédito na mão para mais uns saldos. Não tinha aspirações de fama ou fortuna, e sonhava sobretudo com um lugar tranquilo onde pudesse encaixar-se sem dar nas vistas.
Essas diferenças só tinham servido para equilibrar o relacionamento. Muita coisa fora compartilhada em sessões nocturnas de cerveja e conversa fiada. Depois, Lucy recebera um dinheiro, deixando o trabalho e mudando-se para o montana e, embora o laço existente entre elas não tivesse sido quebrado, encontrava-se bastante débil.
Desde então, o ano decorrido tinha sido longo e Mari sentira a falta da amiga. Nenhuma delas era grande coisa a escrever cartas e o tempo ia passando entre os telefonemas. Mas sabia que a amizade ainda lá estava. Lucy ia recebê-la com a mesma casualidade divertida com que encarava todos os aspectos da vida. Bastava Mari sair do carro, encolher os ombros e dizer: «Começou como um daqueles dias em que o cabelo está horrível, e depois só piorou.»
Olhou para o espelho retrovisor sem querer, sentindo a depressão a ameaçá-la de novo. Franziu a testa, ao reparar no estado do cabelo frisado com madeixas loiras. Quem é que estava a tentar enganar? Toda a sua vida fora uma sucessão de dias em que o cabelo estava horrível.
Enquanto as suas duas irmãs tinham herdado a cabeleira acetinada e platinada da mãe, Mari recebera uma juba emaranhada com raizes escuras e pontas quase brancas. Era impossível de domar e usava-a cortada logo acima dos ombros num estilo que nunca chegava a ser «clássico» ou «elegante». Havia muito que decidira que aquele cabelo era uma metáfora da sua vida: mais selvagem do que devia ser, não se ajustava ao resto da família e nunca correspondia às suas expectativas.
-Não faz mal, Marilee - declarou, inclinando-se para colocar uma cassete na aparelhagem e aumentar o volume do som. - Já estás no montana.
Sacramento era apenas um ponto no mapa atrás de si. A sua vida lá ficara no passado. Oficialmente, estava num intervalo, sem planos, perspectivas ou ideias para o futuro, para além de passar uma semana ou três com a sua velha amiga. Umas férias para aclarar as ideias e tratar dum coração ferido. Uma pausa na corrente da vida para fazer um balanço, reflectir e queimar a pilha de fatos de cidade que trazia no banco de trás do Honda.
Abriu as janelas e inspirou o ar fresco e perfumado. Sentiu-se cheia duma maravilhosa onda de libertação e antecipação, com o vento a agitar-lhe o cabelo, e Mary-Chapin Carpenter proclamava sentir-se afortunada, apesar de tudo. A vida começava de novo, precisamente naquele instante. Olhou para baixo e pescou o maço de cigarros dentre o monte de guias de viagem no banco ao seu lado, mas parou quando estava a sacudí-lo para tirar um cigarro. A vida começava de novo. Naquele preciso momento. Sorridente, atirou o maço pela janela, carregou no acelerador e começou a cantar em coro com a música, numa quente voz de contralto.
Os montes a ocidente tinham-se tornado avermelhados quando o Sol se escondera atrás da sua enorme massa. O céu acima deles continuava da cor das chamas - vibrante e ardente. Do lado oposto, outra cordilheira ostentava os esplendorosos picos cobertos de neve e as encostas eram um mar de pinheiros. À frente dela, estendia-se um vale, na sua vastidão e verdura. Do lado direito, uma pequena manada de alces pastava pacificamente junto a um riacho.
Tudo aquilo fez a adrenalina e o entusiasmo correr por ela. A mudança da quase depressão para a euforia deixou-a tonta. Imaginou-se a largar a infelicidade como uma pele velha e a chegar àquele novo lugar nua e limpa.
Aquilo era o paraíso. O éden. Um lugar para começar de novo.
Era noite quando Mari encontrou finalmente o caminho para casa de Lucy com a ajuda do mapa que esta lhe mandara na primeira carta. O seu «esconderijo», como lhe chamara. O céu imenso, negro como veludo, estava salpicado com as lantejoulas de mais estrelas do que alguma vez imaginara. De repente, o mundo parecia-lhe um vasto deserto vazio, e decidiu parar na estrada da pequena propriedade, perguntando a si própria se uma chegada de surpresa seria afinal boa ideia. Não viu luzes de boas-vindas nas janelas da bonita casa de toros, e a porta da garagem estava fechada.
Saiu do Honda e espreguiçou-se, sentindo-se exausta e amarrotada. As duas últimas semanas tinham-lhe esgotado as forças, com as decisões tomadas a gastarem um pouco de cada vez. A viagem de Sacramento até ali fora feita numa maratona de vinte e quatro horas com paragens apenas para ir à casa de banho e comer alguma coisa em tascos à beira da estrada, e a tensão física pesava-lhe finalmente como uma âncora.
Parecera-lhe essencial chegar ali o mais depressa possível, como se tivesse medo de perder a coragem e sucumbir ao infindável descontentamento da sua vida na Califórnia se não fugisse imediatamente. A excitação das suas emoções acabara por deixá-la esgotada e atordoada. Tinha contado com os cuidados de Lucy a partir do momento em que saísse do carro, mas ela parecia não estar em casa, e o desapontamento voltou a fazer-se sentir.
Disparate, realmente, disse para consigo, afastando as lágrimas prestes a saltarem-lhe dos olhos e dirigindo-se para a entrada da casa. Não podia esperar que Lucy soubesse da sua chegada, já que lhe faltara a coragem para a avisar. Um telefonema teria significado uma explicação de tudo o que se passara nas duas últimas semanas, e isso era melhor ser feito pessoalmente.
Um gato malhado observava a sua aproximação de cima do parapeito da varanda da frente, mas saltou para o chão e fugiu quando ela começou a subir os degraus, arranhando o chão de madeira com as unhas ao dobrar a esquina da casa antes de desaparecer. O vento soprava do monte e uivava em redor das pequenas construções junto à casa, trazendo consigo uma sensação de isolamento e de vaga deserção, que Mari tentou afastar levantando a mão e batendo à porta.
As luzes continuaram ausentes das janelas e nenhuma voz lhe disse que tivesse calma.
A combinação de desapontamento e desconforto apertou-lhe a garganta, fazendo-a engolir em seco. Contra vontade, deu uma rápida vista de olhos pelo pátio apenas iluminado pela luz da Lua e pelas colinas mais adiante. Aquilo era completamente isolado. Tinha atravessado a pequena cidade de New Eden e depois quilómetros desertos, passando apenas por duas outras casas - e essas a uma grande distância.
Tornou a bater, mas não esperou por uma resposta, experimentando a porta. Lucy tinha mencionado vida selvagem nas suas poucas cartas. Do género de quatro patas e com pulgas.
- Ursos, lembro-me de qualquer coisa a respeito de ursos - murmurou ela, sentindo os nervos na nuca darem um esticão com a possibilidade de uma dúzia deles estar a observá-la no escuro, avaliando-a com os olhos redondos e os estômagos a grunhir. - Se não te importas, Luce, preferia não encontrar um de caras enquanto tu andas por aí a dançar com algum vaqueiro.
Entrando, apalpou a parede à procura do interruptor e depois piscou os olhos com o brilho de uma dúzia de lâmpadas artisticamente dispostas num lustre feito duma armaÇão de veado. O seu primeiro pensamento foi que as terríveis qualidades de dona de casa de Lucy estavam cada vez piores. A casa era uma autêntica zona de calamidade, com tudo espalhado, livros, jornais, papel e roupa.
Avançou para a grande divisão que ocupava a maior parte da área do rés-do-chão, tentando dar sentido às informações contraditórias que o seu cérebro ia recebendo. A casa pouco mais tinha do que um ano e era uma mistura de tradicional do Oeste com pormenores arquitectónicos contemporâneos. Lucy contratara um decorador para conseguir esse tipo de mescla no interior, mas as aguarelas nas paredes estavam às três pancadas e as almofadas arrancadas dos pesados cadeirões. O assento do sofá de cabedal vermelho fora cortado dum lado ao outro e o enchimento saía do rasgão aos tufos. Candeeiros e peças de loiça partidas cobriam o caro tapete berbere. Uma enorme planta fora arrancada do vaso e espalhada aos bocados pelo tapete, assemelhando-se a fitas verdes.
Nem mesmo Lucy era assim tão desmazelada. Mari sentiu o pulso acelerado de medo.
- Lucy! - chamou, com a voz a tremer e os braços cobertos de pele de galinha. A única resposta que obteve foi o lúgubre silêncio que lhe fez vibrar os tímpanos.
Passou por cima duma almofada esventrada, evitou um vaso de terracota partido e espreitou para a cozinha às escuras. A porta do frigorífico estava aberta, com a luz interior acesa, numa promessa de oiro dentro dum baú de tesouro. O cheiro, no entanto, prometia qualquer coisa menos agradável.
Franziu o nariz e piscou os olhos, incomodada com o cheiro a azedo, enquanto acendia a luz. A iluminação mostrou-lhe uma mistura nojenta de comida estragada e cerveja entornada. No chão de mosaicos mexicanos, viu uma poça de leite e o respectivo pacote deitado ao seu lado. As moscas pareciam pequenos abutres por cima de todo aquele lixo.
-Meu Deus, Lucy, que género de festa é que deste aqui? - murmurou Mari.
E onde diabo te meteste?
As portas do armário de pinho estavam abertas e o conteúdo espalhado, loiça partida por todo o lado, a condizer com a macabra refeição servida no chão.
Mari recuou lentamente e estendeu a mão trémula para as costas da única cadeira de pé junto da comprida mesa de pinho. Apertou o lábio inferior com os dentes e ficou a olhar fixamente com os olhos cheios de lágrimas. Trabalhara em demasiados crimes para não ver o que aquilo significava. A casa tinha sido saqueada. O motivo podia ter sido o roubo, mas a destruição também podia ser o resultado de alguma coisa pior ainda.
- Lucy! - chamou ela de novo, sentindo o coração pesado como uma pedra, com a certeza de não receber resposta. O olhar dirigiu-se-lhe para a escada que levava aos quartos e depois para o telefone arrancado da parede da cozinha e pendurado por alguns fios.
Sentiu o coração a bater com mais força e as palmas das mãos húmidas.
- Lucy!
- Está morta.
As palavras soaram como dois disparos de caçadeira no silêncio da casa. Mari deu meia volta, com um grito a formar-se-lhe na garganta, mesmo por detrás do coração. Ele estava de pé junto da outra ponta da mesa, um metro e oitenta de granito com calças de ganga desbotadas e uma camisa de algodão azul-claro. Como é que uma coisa daquele tamanho podia ter aparecido sem ela dar por isso era incompreensível. O medo fez com que os ombros dele lhe parecessem do tamanho do monte para lá da propriedade. O homem continuou imóvel, a observá-la por debaixo da aba dum Stetson preto coberto de poeira, os olhos semicerrados, avaliando-a, e a boca apertada num trejeito amargo. A mão direita - grande e com dedos rombos - pendia-lhe junto ao coldre com um revólver que parecia suficientemente grande para abater um búfalo.
Tornou a falar, com uma voz baixa e rouca, e a pergunta fê-la dar um salto, como se tivesse sido espicaçada. -Quem é você?
-Quem sou eu? - explodiu Mari. - Quem porra é você?
O olhar dele pareceu ficar mais ameaçador perante aquela linguagem, mas ela pouco queria saber de decoro naquele momento. Pelo canto do olho, descobriu um pesado castiçal de latão tombado sobre a mesa. Aproximou disfarçadamente a mão que tinha apoiada na cadeira, até agarrar o frio metal, sempre de olhar fixo no desconhecido.
-Que é que você fez à Lucy?
- Nada - respondeu ele, encolhendo o queixo.
-Acho melhor que saiba que não estou aqui sozinha continuou Mari, com toda a valentia que conseguiu reunir. Bruno... o meu marido... está lá fora a passar revista aos anexos.
- Você veio sozinha - disse ele lentamente. - Eu vi-a da colina.
Tinha-a visto. Estava à espreita. Um homem com uma arma à espreita e a observá-la. Os dedos de Mari apertaram o castiçal. As primeiras palavras do homem soaram-lhe novamente na confusão do cérebro. Está morta. O terror apertou-lhe a garganta como uma mão invisível. Lucy. Ele matara-a.
Com um grito estrangulado, atirou-lhe o castiçal e correu para a porta, tropeçando numa planta arrancada do vaso. Ouviu-o gemer e praguejar ao ser atingido pelo míssil. O castiçal fez um estrondo como um sino de catedral ao cair no chão de madeira. E as botas dele fizeram o ruído duma manada de cavalos a correr atrás dela. Sempre a olhar para a porta da rua, Mari sentia os braços e as pernas pesadas que nem chumbo, como num pesadelo. O ar à sua volta parecia pesado, prejudicando-lhe a velocidade. Correu, tropeçou, estendeu os braços, com os soluços a prenderem-se-lhe na garganta, sufocando-a.
Ele apanhou-a por detrás, agarrando-lhe a camisola com uma mão, puxou-a e, passando-lhe o outro braço à volta da cintura, apertou-a de encontro à parede de pedra do seu corpo.
- Esteja quieta!
Mari deitou-lhe as unhas ao grosso braço que lhe espremia o ar dos pulmões. Da garganta, saíam-lhe frenéticos sons de animal assustado, enquanto lhe batia com os calcanhares nas canelas, acertando duas em três vezes com os sapatos de ténis nos ossos.
- Que raio, esteja quieta! - gritou ele, apertando-a mais. - Eu não a matei. Foi um acidente.
-Diga isso a um advogado! - conseguiu ela gritar, empurrando freneticamente a possante mão apertada sobre o seu diafragma, sem conseguir afastá-la. Também não conseguia magoá-lo. Estava presa. O pânico quase a sufocou.
- Oiça o que lhe digo - insistiu o homem, imperioso. Depois, falou num tom mais delicado, como que recordando algumas coisas duma vida anterior. Sabia que não devia combater o medo com a força.
- Tenha calma e oiça o que lhe digo - pediu, num tom tranquilizador que costumava usar com cavalos assustados. Oiça o que eu estou a dizer e tenha calma. Não estou aqui para lhe fazer mal.
- Não? Olhe que imita muito bem - explodiu ela, retorcendo-se. - Está a enfiar-me o braço pelos pulmões acima! Abrandou imediatamente a pressão, mas continuou a segurá-la com firmeza.
- Fique quieta e tenha calma.
Mari virou o pescoço para lhe observar os olhos. Os homens eram capazes de dizer fosse o que fosse, mas os olhos deles raramente mentiam, aprendera ela nos tribunais e nos escritórios de advogados sem conta. Anotara testemunhos palavra por palavra, mentiras e verdades, mas aprendera muito cedo a descobrir a verdade nos olhos das testemunhas. Os dois voltados para ela naquele momento surgiam sob uma testa inexpressiva. Eram da cor de nuvens de tempestade, ligeiramente semicerrados, como se estivessem permanentemente a defender-se do brilho do sol, olhos que pouco diziam do homem, mas que nada continham de mentira ou violência.
Descontraiu-se ligeiramente e ele recompensou-a deixando que os pés tocassem no chão. O ar voltou a entrar livremente nos pulmões de Mari, que o absorveu com ansiedade, tentando não se apoiar nele. Estava já demasiado consciente do corpo masculino, do seu tamanho e força, do seu calor. A mão esquerda do homem agarrava-lhe o braço e os nós dos dedos roçavam-lhe o seio. Os dedos da mão direita sobre o estômago tocavam na parte inferior do mesmo seio.
Cheirava a trabalho, a cabedal e a cavalos. Concentra-te nisso, Marilee. Ele cheira a cavalo.
Ao falar-lhe naquele tom suave e calmo, a sua respiraÇão acariciava-lhe a orelha e a face. Sentia o aroma de rebuçados de hortelã-pimenta. Não se lembrava dum único assassino psicopata que tivesse sido descrito como tendo um hálito a pastilhas de hortelã-pimenta.
- Vai ficar quieta? - perguntou ele, em tom suave. O corpo dela encontrava-se encostado ao dele, o que lhe lembrou como um corpo de mulher podia ser macio. Olhando para baixo, tinha uma vista desobstruída do arfar dos seios, tentando normalizar a respiração. O colete que trazia por cima da camisola de algodão escorregara durante a luta, e os contornos dum soutien de renda eram inconfundíveis, lembrando-lhe como a roupa interior feminina podia ser delicada.
Bastava-lhe virar ligeiramente a mão para sentir todo o peso dum seio dela. Apertou involuntariamente os dedos de encontro às costelas da rapariga.
Bolas. Já tinha passado muito tempo desde a última vez, isso era bem evidente. Não admitia desejar mulheres indiscriminadamente. Tinha demasiadas coisas importantes em que se concentrar. Nem devia ter considerado a hipótese daquela. Uma amiga de Lucy MacAdam. Não precisava de saber mais sobre ela para ter a certeza de que só podia causar problemas,
Tirou bruscamente a mão do estômago da rapariga e deu um passo para trás, afastando-se da tentação.
Mari voltou-se para ele, fazendo estalar os pedaços do que fora uma mesinha feita de ramos de árvore. Ainda a tremer, pôs uma mão na anca e, com a outra, retirou o cabelo embaraçado da testa, prendendo-o na nuca.
- Quem é você? - perguntou ela, em tom cansado.
- J. D. Rafferty. Moro ali na encosta - disse ele, baixando-se para apanhar o chapéu que perdera na luta, mas sem tirar os olhos dela.
-E costuma entrar assim nas casas das pessoas? -Não, minha senhora.
-Mas viu-me chegar e pensou: «Porque não hei-de ir ali pregar-lhe um valente cagaço?»
-Não, minha senhora - respondeu ele, apertando os olhos. - O advogado pediu-me que tratasse dos animais. Vi-a chegar e vi as luzes. Não queria chatices enquanto estivesse por aqui.
- Pois a mim parece que já houve chatice e bastante! disse Mari, olhando em volta, mais uma vez horrorizada pela destruição total.
- Garotos - murmurou ele, olhando para uma cadeira de baloiço partida. Detestava desperdício, e o vandalismo era isso mesmo: desperdício de tempo, de energia e de coisas. Desperdício e falta de respeito. - Garotos da cidade que bebem de mais e andam por aí, à procura de sarilhos. Geralmente não demoram a encontrá-los. Isto aconteceu há uma semana. Chamei o xerife. Veio cá um agente e tomou nota, se é que vai servir de alguma coisa.
Adiando o inevitável, Mari dirigiu-se à planta que a impedira de fugir e endireitou-a cuidadosamente, com gestos suaves, acariciando o tronco e tocando nas folhas murchas.
- Não ouvi o seu nome enquanto me punha as canelas negras - disse Rafferty em tom sardóníco.
- Marilee, Marilee Jennings.
- Mary lee...
- Não. Marilee, numa palavra só.
Ele olhou para ela, carrancudo, como se não confiasse numa pessoa com um nome daqueles. Mari quase sorriu. A mãe não devia gostar de J. D. Rafferty. Era demasiado rude. Bruto, diria ela. Abigail Falkner Jennings adorava coisas pretensiosas. Dera a todas as filhas nomes pretensiosos que só pessoas afectadas não estranhavam: Lisbeth, Annaliese, Marilee.
- Ela morreu - declarou ele abruptamente.
Mari preferia adiar um pouco mais o assunto, pensando em coisas sem importância durante uns momentos ainda. Apertou o tronco da planta, como se tentasse agarrar-se a algo que já lhe fugira.
-Aconteceu há uns dez dias...
Dez dias. Dez dias antes, estava ela a chorar por causa dum homem que não amava, a desistir duma carreira que nunca quisera, a quebrar laços com a família em que nunca encaixara. Enquanto Lucy morria.
Levou a mão à boca e comprimiu os lábios trémulos. Abanou a cabeça, em negação e desespero, com os olhos cheios de lágrimas. Lucy não podia ter morrido - era demasiado cínica, demasiado esperta. Só os bons morrem novos, Marilee. Parecia-lhe estar a ver a vivacidade da certeza e o humor cáustico nos olhos da amiga, ao dizer aquilo. Deus, Lucy devia ter vivido até aos cem anos.
-... acidente de caça...
As palavras de Rafferty mal penetraram no nevoeiro, parecendo chegar duma grande distância, e não duns centímetros.
Olhou para ele, com as defesas a erguerem escudos para rejeitar a dureza do assunto, concentrando-se em coisas menos importantes. O cabelo dele, curto e escuro, tinha um caracol à frente, sobre a testa alta. O bronzeado terminava numa linha feita pelo chapéu, o que o fazia parecer menos perigoso, por alguma razão, e também mais humano. A pele mais branca parecia macia e vulnerável. Termo estúpido para um homem com um revólver de seis tiros preso na anca... Vulnerável.
- Caça?... - articulou ela, como se a palavra lhe fosse estranha.
Algo nele desejou confortá-la, mas achou parvoíce e pôs a ideia de lado. Não queria contacto com ela. Também não o quisera com Lucy, mas ela tinha-o envolvido na sua teia, qual viúva-negra. Queria a propriedade, isso sim, mas não queria aquilo. Pura e simplesmente, odiara Lucy MacAdam e não conseguia perceber como ninguém lhe ferrara um tiro anos antes. A mulher que tinha diante de si era amiga dela, outra estranha, o que a marcava por associação e circunstâncias. Quanto mais depressa se livrasse dela, melhor.
Endureceu-se contra as lágrimas e enfiou o chapéu na cabeça, insulto que ela provavelmente nem notaria.
- A Lucy não caçava - disse ela estupidamente.
- Foi um acidente. Um idiota qualquer da cidade disparou sem olhar.
Dez dias antes. Parecia-lhe impossível ter vivido dez dias desconhecendo a morte duma amiga. Morta a tiro. Céus! As pessoas mudavam-se para o campo para evitar que lhes dessem um tiro, para fugir à violência das cidades. Lucy tinha ido para o paraíso para afinal apanhar um tiro. Era ridículo.
Mari tornou a abanar a cabeça, tentando fazer desaparecer as vertigens, provocando exactamente o contrário.
-O... onde está ela?
- Com cinco palmos de terra em cima, acho eu - respondeu ele brutalmente. - Não faço ideia.
-Mas você era amigo dela...
- Não, minha senhora.
Aproximou-se dela lenta e deliberadamente, com uma expressão carregada. Aproximou-se demasiado. Tão perto que ela teve de inclinar a cabeça para trás para olhar para ele.
- O que havia entre nós era sexo. A amizade nunca foi para aí chamada - declarou ele claramente, num tom grave. Estendeu a mão e percorreu-lhe a face com o polegar, parando no canto da boca. - E você, Mary Lee? - sussurrou. - Quer dar uma corrida a um vaqueiro?
Sabia que estava a ser um estupor, mas estava-se nas tintas. Com alguma sorte, talvez a fizesse fugir dali.
-Que tal, Mary Lee? - insistiu. - Eu deixo-a ficar por cima.
- Seu filho da puta!
Sentindo-se sufocar de raiva, Mari deu-lhe um pontapé numa canela. Ele saltou para trás, a praguejar, com a cara roxa de dor e fúria. Tarde de mais, a rapariga pensou se devia ou não enfurecê-lo. Ele podia ter o que quisesse. Estavam no meio de nenhures. Ninguém sabia que ela tinha ido para o montana. Podia violá-la, assassiná-la e desfazer-se do corpo nos montes, para nunca ser encontrado. Deus, tanto quanto sabia, tinha assassinado Lucy. Mas estava feito. Não podia acobardar-se dele.
- Saia daqui! Saia já daqui! - gritou.
-Bastava dizer que não.
Inclinou o chapéu num gesto mais trocista do que delicado e Mari foi atrás dele, ficando a vê-lo montar um forte cavalo alazão que o esperara na mancha de luz ambarina vinda da casa.
-Há um motel à saída da cidade - informou ele, instalando-se na sela.--- Guie devagar na descida. Se atropela um alce com o raio desse carro japonês, não sobeja nem para uma lata de sardinha.
Mari cruzou os braços para se proteger do frio da noite e continuou a olhar para ele.
-Ao menos, podia dizer que lamenta - disse ela, em tom amargo.
-Mas não lamento - respondeu ele, afastando-se no cavalo.
Ficou a vê-lo trotar, na direcção oposta à propriedade e à estrada. A escuridão engoliu-o muito antes de deixar de ouvir o batuque dos cascos do cavalo.
-Filho da mãe - resmungou, voltando-se para tornar a entrar.
A adrenalina foi baixando, deixando atrás de si o peso da exaustão. Os últimos vestígios do choque mantiveram-se como novocaína, deixando a primeira punhalada de sofrimento afastada. Tentou concentrar as ideias nas tarefas mundanas de voltar para a cidade e descobrir um hotel para ficar, procurando esquecer a sensação das mãos de J. D. Rafferty sobre si, do grande corpo masculino encostado às suas costas e da voz que lhe segredara propostas indecentes. Mas tudo isso continuava bem agarrado a si, perturbadoramente, acrescentando uma vaga e suja película de culpa às complexas camadas de emoções. Sentindo necessidade de se lavar tanto física como psicologicamente, resolveu procurar uma casa de banho, acabando por encontrar uma no primeiro andar.
Não tivera melhor sorte do que o resto da casa. A tampa do autoclismo fora espatifada, e parecia que alguém atacara a cabina do duche à martelada, partindo em seguida os mosaicos do chão. As torneiras ainda funcionavam, de maneira que encheu o lavatório de água fria, curvando-se para lavar a cara. Tirou a camisola para fora das calças e limpou-se à fralda, ficando depois a olhar para o espelho de moldura doirada, rachado.
A mulher que olhava para ela estava pálida e com olheiras de dor. Parecia uma sobrevivente dum furacão, devastada pelo vento e pelos elementos numa fúria tão para além do seu controlo que se sentia insignificante e impotente como um insecto. Deixara por completo a sua vida e correra para ali, para junto duma amiga morta havia mais duma semana. Lucy teria visto um amargo e irónico humor na situação.
Pensou na amiga, no que ela diria sobre a maneira como as coisas se tinham passado, e os olhos encheram-se-lhe de lágrimas que lhe escorreram pela cara.
Começou com um daqueles dias em que o cabelo está horrível, e depois só piorou.
Observou-a através da objectiva da espingarda. Não era a adequada para aquela hora da noite, mas era a que trazia consigo. Ia ali todas as noites, não porque estivesse à espera de ver a loira, mas porque queria tirá-la da sua montanha. A rapariga continuava lá, uma pálida aparição entre as árvores escuras, um fantasma transportado nas asas dos mochos. Perseguia-o. Demasiados acontecimentos o perseguiam.
Não dormia de noite. Os mortos apareciam-lhe sempre e nada podia fazer para o evitar, a não ser ficar acordado e vigilante, desejando que se fossem embora. Era uma vigília fatigante, jamais recompensada.
Viu-a atravessar o pátio em direcção a um pequeno carro estrangeiro, e sentiu o coração a galopar, como uma dúzia de martelos a baterem-lhe de encontro à placa na cabeça. As linhas da objectiva atravessavam o peito da rapariga. Ele tinha a cara encostada à espingarda Remington 700. Reteve uma curta respiração nos pulmões e as batidas do coração abrandaram, numa reacção condicionada. Manteve o dedo imóvel de encontro ao gatilho.
No entanto, era impossível matar um fantasma, sabia-o melhor do que ninguém. Só podia rezar para que ele se fosse embora e não voltasse à sua montanha.
Se ao menos houvesse um Deus que o ouvisse...
«Anda lá com a tua grande alavanca de mudanças, estupor! Ah! Ah! Ah!»
Mari deitou um olhar exasperado e exausto à parede da cabeceira da sua cama alugada. Um quadro do tipo pintor esfomeado representando um alce numa paisagem de montanha pendia acima da cabeceira de estilo mediterrânico em imitação de mogno e saltava de encontro ao fino tabique ao ritmo dos solavancos no quarto ao lado.
«Monta-me, Luanne! Ha! Hah! Monta-me! Monta-me! Com um caraças!»
O comentário verbal desintegrou-se em grunhidos animalescos e em gemidelas que foram aumentando até atingir um crescendo ordinário. Seguiu-se um silêncio abençoado. Mari olhou em direcção ao céu.
- Por favor, que tenham morrido! - implorou.
Com um suspiro, baixou a cabeça e apertou o nariz com os dedos. Estava ali, de encontro à cómoda de mogno de imitação, meio sentada meio encostada, ainda com as calças de ganga, a camisola de algodão e o colete. Não tinha coragem para tirar sequer os sapatos e atravessar o encardido tapete, e muito menos para se despir e meter entre os lençóis.
Apagara o único candeeiro de sessenta velas na mesa-de-cabeceira, mas o quarto ainda tinha claridade suficiente para poder ver todos os pormenores demasiado deprimentes. A impiedosa luz branca da iluminação fluorescente do parque de estacionamento atravessava os finos cortinados que se recusavam a fechar totalmente. A completar o ambiente, havia um clarão avermelhado do antigo anúncio luminoso que atraía os viajantes cansados ao Motel Paraíso.
Ali, porém, nada fazia sequer lembrar o paraíso. Uma sombra de sorriso cínico fez Mari torcer a boca, ao pensar que Luanne e Bob-Ray e a sua espantosa alavanca de mudanças de aço provavelmente não eram da mesma opinião. Era tudo uma questão de perspectiva, e a dela era desoladora. Observou o quarto, com a sua decoração de mau gosto e o tapete peludo bastante puído, sentindo um peso no peito. Não pensara passar a primeira noite no montana numa paragem de fodas para camionistas.
A situação seria divertida se Lucy estivesse ali com ela para partilhar a diversão e a embalagem de seis cervejas sem álcool que transportara desde Sacramento. Mas não estava.
Levou a lata aos lábios e bebeu um gole, sem se importar que estivesse morna e sem gás. Tinha encontrado meio maço de cigarros no porta-luvas do carro e fumara-os todos seguidos até ficar com a garganta a arder e a boca a saber a merda. Tinha os olhos vermelhos do fumo e das lágrimas que tentara conter toda a noite. A cabeça latejava-lhe, da pressão e do efeito da cerveja no estômago vazio.
Ficara demasiado chocada para chorar diante de J. D. Rafferty, e ainda bem. Duvidava que ele lhe tivesse demonstrado a mais pequena simpatia. Nem sequer tivera a decência de fingir que lamentava a morte de Lucy.
-Bolas - murmurou, abanando a cabeça e afastando-se da cómoda. - Agora quero que um homem me minta! Esta é nova. Onde é que andas quando preciso de ti, Bradford?
Em Sacramento, com a mulher por quem a trocara, o estafermo.
Depois de dois anos dum «compromisso sério», como ele lhe chamava, Bradford Enright largara-a como uma batata quente. Já morava com a Dona Sócia mais Nova antes de se incomodar a comunicar-lhe a despromoção. A relação séria ficou de repente sem efeito perante oportunidades mais vantajosas. A Dona Sócia mais Nova tinha mais a ver com ele, segundo afirmara. A Dona Sócia mais Nova compartilhava os seus objectivos e filosofias.
A discussão final vinha-lhe constantemente à ideia como se fosse uma cassete a passar e a repassar durante as duas últimas semanas.
«- Que filosofias são essas, Brad? Lixar toda a gente e cobrar-lhes o dobro das horas?
- Credo, Marilee, que coisa tão desagradável!
-Ai, desculpa! Levar com os pés tem este efeito, sabes? Fico embirrenta.
-Não estava a correr bem, Mari, e tu sabes que não. Há seis meses que as coisas não corriam bem entre nós. -Por coincidência, desde que a dama de ferro entrou para a tua firma.
-Não metas a Pauline no assunto.
-É difícil, já que vocês dois têm andado a brincar às fusões de empresas ao serão. Há quanto tempo?
-Isso não interessa. -Interessa-me a mim!
-Eu contigo não recebia grande coisa, Marilee. Estás sempre demasiado cansada ou tensa ou...
- Tu! Tu tens a lata de te queixares a mim sobre a tua vida sexual?
- Que é que queres dizer com isso? Que eu não te satisfazia?
-quero dizer que já tive orgasmos melhores sozinha! Optimo, usa essa linguagem ordinária. No fundo, nós não temos futuro juntos, Marilee. Não queremos as mesmas coisas profissional ou socialmente, portanto não vale a pena continuar.
-No fundo? Queres falar no fundo? Então, aqui tens: no fundo, deves-me mais ou menos três mil dólares por serviços prestados profissionalmente, Bradford. Importas-te de os pagar antes de guardar a escova dos dentes, ou preferes que mande a conta à firma?»
Nunca ia ver um tostão daquele dinheiro, o que não a incomodava por aí além. A ideia é que a chateava de verdade. Sentia-se usada e achava que ele se tinha aproveitado da relação enquanto lutava para conseguir um lugar seguro na firma. Não tenho uma secretária só para mim, Marilee. Não me escreves isto à máquina, se.fazes favor? Só esta vez. (Duas, três, oitenta e cinco vezes.) Não queres que eu faça boa figura? Não podes dar-me uma ajudinha com estes transcritos? Dava boa imagem, se pudesse apresentar isto feito... Tratara-a como se ela fosse a sua secretária particular grátis e, quando começou a subir de categoria, deixou de precisar de poupar tostões indo para a cama com uma estenógrafa judicial sem lhe pagar.
Sentia-se idiota. Em primeiro lugar, como é que se tinha ido apaixonar por um advogado é que não compreendia. Não, era mentira. No fundo, soubera perfeitamente o que fazia com o ambicioso Bradford Enright, e era tão freudiano que chegava a ser deprimente. A família dela aprovara-o. Talvez vissem a carreira dela como um gigantesco passo na direcção oposta das expectativas que tinham, mas Brad era um belo prémio de consolação. Olhavam para ele e mantinham alguma esperança de que ela se conformasse com a vida de agradável afectação a que todos se mantinham habituados.
Estava a ser hipócrita. No fundo do coração, sabia que nunca amara realmente Brad. Ele tinha razão, porque não queriam as mesmas coisas - incluindo um ao outro. Agira mecanicamente, fingindo paixão e mentindo a si própria e a ele sempre que dizia ser feliz, quando a verdade era que um sócio da Hawkins e Briggs não se aproximava sequer da lista de coisas que pretendia da vida. E chegara a altura de o admitir.
Passara demasiado tempo da sua vida como uma peça quadrada a tentar caber num orifício redondo. Demasiado tempo a tentar encaixar no estilo de vida que a família considerava normal. Ela não era Annallese nem Lisbeth. Era Mari, «a desajustada». Passara demasiado tempo a tentar expiar a falta, mas isso acabara.
Vendera todo o seu material de estenógrafa judicial, subalugara o apartamento para o Verão, enfiara a roupa e a guitarra no Honda e partira para o montana. Não fizera planos Para além do Verão, para além de gozar a libertação. Finalmente, ia poder ser ela própria. Renascia aos vinte e oito anos.
Apesar disso, toda a auto-revelação das últimas duas semanas não apagara completamente a traição de Brad. Lucy teria compreendido, por ter perdido, ganhado e dado com os Pés num espantoso número de homens. Deviam estar as duas naquele momento sentadas na cama de Lucy, de camisa de noite, a comer porcarias e a dizer mal dos homens em geral até desatarem a rir até às lágrimas.
Bolas, Lucy!
Sentiu-se invadir pela culpa e afastou o ressentimento. Queria que a amiga estivesse ali por ela. Era impossível ser-se mais egoísta. Sofria de orgulho ferido e nervoso miudinho por ter conseguido arranjar coragem para ser ela própria, mas a amiga estava morta, morta para sempre.
Sentindo-se fraquejar, Mari deixou-se cair sobre a beira da cama. Às cegas, estendeu a mão para a guitarra que encostara a uma cadeira e puxou-a para os braços, como uma criança, abraçando-a. Tinha-a numa posição em que apoiava a cara ao braço do instrumento. O cheiro da madeira era familiar e agradável, uma constante numa vida que tantas vezes lhe parecera estranha. Aquela velha guitarra fora a sua companhia numa data de anos solitários. Nunca lhe encontrara defeitos, nunca a julgara, nunca a abandonara. E sabia tudo o que lhe ia no coração.
Os dedos percorreram as cordas quase involuntariamente, com as pontas calejadas da mão esquerda a premir os trastos e as da direita a dedilhar suavemente uma melodia vinda dum poço de sofrimento muito fundo. As emoções que se enfrentavam dentro dela com ursos lutadores cristalizaram simplesmente na música. Em meia dúzia de notas, exprimiu os sentimentos com mais eloquência do que por palavras. As notas suaves e tristes, dolorosas como o chamado do pombo-selvagem, encheram o ar viciado do quarto e penetraram-lhe na pele como minúsculos punhais.
As lágrimas correram com dificuldade, como se ela não quisesse deixá-las sair sem ter a prova de que a amiga não ia entrar pela porta com um sorriso trocista na cara. Seria mesmo uma coisa da Lucy, para quem a vida não passava duma enorme partida pregada à raça humana por deuses aborrecidos e cínicos.
Desta vez, pregaram-te a partida a ti, Luce.
Um soluço seco e entrecortado rasgou a garganta de Mari, deixando-a esgotada e exausta, tão seca como o depósito do Honda. Poisou a guitarra e atirou-se para cima da cama, olhando para as manchas de humidade do tecto. O silêncio da noite fazia-lhe tinir os ouvidos e a solidão enchia-lhe o peito como um balão. Por cima dela, o alce do quadro pintado por um artista esfomeado mirava-a com olhos melancólicos.
Nunca se sentira tão só.
Sonhou com uma mistura de caras, lugares e sons, tudo sublinhado por um leve tom de tensão e pela sinistra sensação de queda num abismo negro. A expressão granítica de LD. Rafferty pairava sobre ela, semiescondida pela aba do chapéu. Sentiu as grandes mãos endurecidas pelo trabalho a percorrer-lhe o corpo, tocando-lhe nos seios, expostos porque - para sua angústia - se esquecera de vestir alguma coisa para além dum velho par de calções e umas botas.
Lucy, na sombra, observava a cena com um ar divertido e perverso.
-Monta-o, vaqueira! Ele deixa-te ficar por cima. Rafferty ignorou-a. Continuou a massajar os seios de Mari, murmurando num tom baixo e grosseiro:
- Bolas, Luanne, tens as maiores mamas que alguma vez vi!
Estremeceu, o cérebro confuso com o nome. Ele tirou o revólver do coldre da anca e disparou-o por cima da cabeça. Pum! Pum! Pum! Pum!
Mari acordou sobressaltada, a tempo de ver o alce a cair. Deu um grito e levantou os braços para se defender do embate, atirando o quadro para o chão. As pancadas que interpretara como tiros no sonho continuavam, ininterruptas.
Luanne e Bob-Ray lá estavam novamente naquilo. Tentou retirar as pernas pelo lado da cama, descobrindo que, no seu sono espasmódico, se afundara nos vales do colchão.
-Acho que vi esta cama num filme de ficção - resMungou, tentando sentar-se. As pessoas passavam por ela Para um universo paralelo.
Desejando por um momento ter continuado com as aulas de aeróbica em que se inscrevera várias vezes nos últimos três anos, acabou por conseguir içar-se, caindo no chão. Nesse momento, um gemido vibrou no quarto, quando o aparelho de ar condicionado passou a funcionar no máximo, expelindo ar glacial e cheiro a mofo. O botão desaparecera e tinha um aspecto tal que nem um electricista profissional lhe tocaria sem desligar primeiro a corrente naquela zona da cidade.
Esfregando as mãos geladas nos braços nus, espreitou pela abertura dos cortinados, observando as primeiras pinceladas rosadas da madrugada por detrás dos montes coroados de neve. No fim do parque de estacionamento, o reclamo luminoso do Motel Paraíso zumbia e piscava. Ninguém se movia... excepto Bob-Ray e a Pequena Chiadora, a Espantosa Salsicha Humana.
«Caramba, Luanne! Eras capaz de chupar o branco dos bagos de arroz!»
Mari gemeu e esfregou a cara com as mãos. «Nunca me farto de ti, Bob-Ray.»
- Uma triste verdade que ficou bem clara durante as últimas cinco horas - disse Mari entre dentes.
«Então, anda cá para cima, querida, que eu dou-te tudo o que quiseres.»
Luanne guinchou como uma égua com o cio e as marteladas - sonoras e físicas - recomeçaram.
Com a paciência totalmente esgotada, Mari agarrou na Bíblia da mesa-de-cabeceira e bateu com ela na parede.
- ó Martelo Pneumático, vê lá se páras com isso um bocado! - gritou ela.
Houve um momento de silêncio, e depois os culpados desataram às gargalhadinhas e as molas da cama voltaram a ranger.
Desistindo completamente de descansar, Mari dirigiu-se à casa de banho.
A caminho da casa de Lucy, vira apenas de relance a cidade, e depois do encontro com Rafferty não tinha ido para além do motel a uma ponta da cidade. Resolveu avançar lentamente pela larga rua principal, olhando para as ornamentadas frentes dos edifícios de tijolo que provavelmente haviam sido testemunhas da passagem de manadas de gado e de tiroteios um século antes. Misturavam-se com fachadas de lojas e um outro baixo edifício «moderno» construido nos anos sessenta, quando os arquitectos tinham ficado com uma total falta de gosto.
New Eden tinha um aspecto desmazelado e poeirento. Confortável. Sossegado. Uma curiosa mistura de desalinho e orgulho, Algumas das lojas estavam fechadas e em mau estado, com as montras a olharem cegamente para a rua. Outras encontravam-se no meio de operações de renovamento, com andaimes como gigantescas construções infantis. Entre o comércio normal das cidades pequenas, Mari contou quatro galerias de arte, três lojas de material de pesca e meia dúzia de sítios que anunciavam café de máquina.
Na manhã cinzenta, um trio de cães trotou pelo passeio e atravessou a rua em frente do carro de Marí, olhando para ela mas não parecendo preocupado se ela abrandava ou não para os deixar passar. Deu uma risadinha, ao vê-los dirigirem-se directamente para um café chamado Arco-íris. Confiando no gosto deles, estacionou o pequeno Ronda num lugar entre grandes camiões esmurrados e desligou o motor.
De acordo com o nome, a frente do café tinha sido pintada com riscas de cinco cores. A tabuleta de madeira que baloiçava num braço de ferro enferrujado era escrita à mão com uma letra que lhe lembrava as garatujas duma criança
- ingenuamente artísticas. Prometia boas e abundantes refeições. Sentiu o estômago reclamar.
Uma empregada baixinha de cabelo escuro segurava a porta aberta com uma mão, deixando sair o cheiro do pequeno-almoço e o som de George Strait da máquina de discos. A outra mão apoiava-se numas ancas largas, com um pano pendente dos dedos. A sua atenção dirigia-se para o trio de cães sentados no degrau, olhando para ela com o ar miserável e esperançado que todos os cães sabem instintivamente fazer efeito nas pessoas. A mulher franziu a testa e disse, irritada, com os cantos da boca voltados para baixo:
- Vão de volta. Não os quero a roubar os bifes aos clientes enquanto atravessam a sala.
O chefe do grupo, um collier preto e branco com um olho azul e o outro castanho, inclinou a cabeça para um lado, com as orelhas espetadas, e emitiu um som que devia ser a versão canina de por Jávor. A empregada olhou fixamente para ele, sem se comover. Um minuto depois, o cão cedeu e conduziu os companheiros pelo beco entre os edifícios.
- Pedinchão - resmungou a mulher, com um sorriso. Alguém devia tê-la filmado, pensou Mari, registando a imagem com o seu olho de artista. A mulher, cuja placa no peito identificava como Nora, tinha cerca de quarenta anos, com todos os dias deles marcados, em rugas, no rosto. Mas isso não a impedia de ser bela, duma maneira rude e verdadeira. Debaixo da pintura barata, a cara irradiava carácter, corações despedaçados e trabalho árduo e honesto. Era em forma de coração, com as maçãs salientes, nariz fino e direito, um tanto ossudo, como se a gordura sob a pele se tivesse derretido no calor da cozinha. O farto cabelo escuro era frisado como um esfregão de palha de aço e ela usava-o preso num travessão prateado. O uniforme rosa e branco era uma relíquia dos anos setenta, abotoado sobre seios não existentes, apertado numa cintura estreita e envolvendo umas ancas que pareciam ter sido especificamente criadas para um homem se agarrar durante o acto sexual.
- Este deve ser o melhor restaurante da terra - comentou Mari, segurando uma braçada de guias turísticos sobre o montana de encontro ao seu blusão de ganga.
- Pode acreditar, amiga - respondeu a empregada, com um rasgado sorriso. - Quando há uma fila de camiões lá fora e cães a pedir à porta, é evidente que se come uma bela refeição. Aqui não há forretices e o café está sempre quente e forte.
- Estou convencida.
Nora deitou uma olhadela discreta ao vestido castanho com pintas brancas que esvoaçava à volta das pernas de Mari e às botas e peúgas grossas, mas o seu olhar não exprimiu desaprovação. Mari gostou imediatamente dela.
- Adoro o seu cabelo - disse a empregada. - A cor é mesmo sua?
- É - respondeu Mari, sorridente.
Seguiu a mulher até ao interior e instalou-se numa mesa com vista pela grande montra da frente.
Poisou os guias na mesa de fórmica e não pensou mais neles, tentando absorver o que podia da sua primeira experiência no Arco-íris. Tinha lido todas as publicações turísticas e de viagens possíveis, e uma das promessas que fizera a si própria, ao decidir-se por vida nova, fora a de não a deixar passar por si por estar demasiado ocupada em adaptar-se. Já tinha gasto demasiado tempo a trabalhar que nem uma moira, com o mundo e as pessoas a girar à sua volta num borrão indistinto. Quando resolvera ir para o montana, procurara na biblioteca tudo o que havia sobre o estado, mergulhando em relatos sobre barões do gado, do cobre e capitalistas enriquecidos duvidosamente, em descrições de cordilheiras de montanhas, vales e planaltos. Mas o Arco-íris era a realidade, e não queria perder pitada.
Dentro do restaurante estava um calor húmido, aromatizado com os ricos cheiros de toucinho entremeado e salsichas e com o doce perfume do xarope das panquecas. Por detrás de tudo aquilo, sentia-se o forte aroma de café e de homens, e sobre todos esses cheiros pairava uma enorme nuvem de fumo de cigarros. As mesas eram baratas, as cadeiras cromadas e de plástico vermelho, provavelmente as mesmas nas últimas três ou quatro décadas. Mari pensou se alguém teria consciência de que aquela decoração seria considerada a última moda do kitsch nos restaurantes do Norte da Califórnia,,mas achou que as pessoas que frequentavam o Café Arco-íris em New Eden, montana, deviam estar-se nas tintas para isso, o que a fez sorrir.
Um rápido reconhecimento dos clientes disse-lhe que era a única mulher que não usava um uniforme cor-de-rosa. Quanto aos homens, fosse qual fosse a sua compleição, tinham todos ar de quem trabalhava ao ar livre e ganhava a vida com as mãos - caras enrugadas e encortiçadas, olhos seMicerrados que se viravam para ela a direito, com firmeza, e depois se desviavam quase envergonhados.
. Mandou vir toda a gordura e o colesterol da ementa, sem paciência para contar calorias. Não comia uma refeição Como devia ser havia semanas, e tinha um longo dia pela frente. O melhor era enfrentá-lo com o estômago cheio. Enquanto esperava que Nora lhe levasse a comida, foi observando a parte da cidade que via pela montra.
Em frente, ficava uma loja de ferragens à moda antiga, cOM uma entrada larga e uma velha porta de rede verde. Encostados à fachada de madeira pintada de branco queimada pelo sol, viu brilhantes pás e ancinhos. Um cartaz na montra anunciava preços especiais em carrinhos de mão. Ao lado da loja de ferragens, uma drogaria ostentava uma tabuleta com 1892 como sua data de abertura, em ornamentadas letras doiradas. A seguir, fatos de tecido extensível em cores garridas e luminosas pendiam, quais peças de arte moderna, na montra da Loja de Bicicletas de Montanha e Atletismo,
O aspecto da loja de bicicletas era dissonante, mas não tanto como o aparecimento dum Ferrari verde a descer a rua. Incongruências.
- Veio comprar algum terreno? - perguntou a empregada, poisando diante dela um prato cheio de panquecas doiradas e outro atulhado de toucinho entremeado e uma omeleta.
- Não, eu... - Não lhe pareceu correcto dizer que estava de férias a seguir à morte de Lucy. - É mais uma pausa numa encruzilhada da vida.
A mulher levantou uma sobrancelha fina e aceitou a definição com um aceno de aprovação.
-Acho que também já encontrei alguns.
Mari cortou um pedaço de toucinho e meteu-o na boca.
- Vinha visitar uma amiga durante uns tempos, mas afinal não pode ser.
-Problemas com algum homem, não? - perguntou Nora, com um resmungo compreensivo.
-Não. Ela... hum... morreu.
-Credo! - exclamou a empregada, abrindo muito os olhos de surpresa. Depois, deitou mão ao seu sentido prático, como quem endireita uma saia agitada pelo vento, e comentou: - Bem, realmente, isso transforma a situação.
- Pois é - retorquiu Mari, mastigando pensativamente uma garfada de omeleta e deixando passar um momento de silêncio em homenagem a Lucy. - Talvez a conhecesse disse por fim. - Lucy MacAdam! Vivia cá há cerca de um ano.
Outros clientes olharam na sua direcção ao ouvir o nome de Lucy, mas ela só prestava atenção à empregada. Já a considerava honesta e digna de confiança, uma mulher que saberia o que se passava onde quer que vivesse.
-Não... - Nora semicerrou os grandes olhos castanhos, concentrando-se, e abanou a cabeça como quem tenta fazer com que a memória faça a ligação ao nome. - Não... ah, espere aí! Não foi ela que mataram a tiro na cordilheira RaffertY?
Rafferty. O nome sobressaltou Mari como se tivesse apanhado um choque eléctrico.
- Ai, querida, desculpe - disse Nora delicadamente, dando-lhe um toque maternal num ombro. - Eu não a conhecia. O grupo com quem ela andava não vem cá muito. -Que grupo?
-Os Esquisitos de Hollywood. O Bryce e os outros todos. Não os conhece?
- Não, nunca conheci os amigos que a Lucy tinha aqui. - ouvira alguma coisa sobre eles, pormenores que Lucy incluía extravagantemente nas suas poucas cartas e conversas telefónicas, como coloridas pedras preciosas destinadas a impressionar. Celebridades. Gente importante. Pessoas sempre em movimento, que tinham ido para New Eden seguindo a moda da comunhão com a Natureza. O género de grupo por que Lucy se sentiria atraída pela excitação, a novidade, a notoriedade. Sempre adorara estar no olho do furacão.
- Cá por mim, isso é um ponto a seu favor - comentou Nora, em tom seco. - Dão grandes gorjetas, mas não aprecio as atitudes deles. Não sou um cão de circo para virem aqui gozar. Podem pegar no dinheiro e ir brincar noutro lado qualquer.
- Então, Nora! - exclamou uma voz masculina da mesa atrás de Mari. Esta voltou a cabeça na sua direcção e viu um vaqueiro levantar-se e abraçar a empregada. Era elegante e atlético, com um cabelo escuro e sedoso a cair-lhe para a testa e olhos dum azul-celeste cheios de malícia. Fez um Sorriso de envergonhar o Tom Cruise. - Queres dizer que não queres um papel no próximo grande western do Clint EastWood?
Nora corou contra vontade e respondeu com uma exPressão irritada:
-Quero dizer é que tires as mãos de cima de mim, Will Rafferty!
Ele ignorou a ordem e abanou-a suavemente ao compasso da canção de Vince Gill na máquina de discos. Encostou a cara à dela e fechou os olhos, com ar sonhador.
- Ele havia de gostar de ti, sabes? És cinco vezes mais gira do que a Samantha Locke. Fazia de ti uma estrela, Nora Davis.
- E eu faço-te ver estrelas - resmungou Nora, tirando do bolso do avental o bloco e dando-lhe com ele na testa.
- Ai! - exclamou Will,dando um passo para trás e esfregando a testa.
- Tu és casado, Romeu, para o caso de teres esquecido!
- advertiu Nora, com um olhar expressivo. Pegou no recipiente do café e afastou-se, virando-se para trás a três mesas de distância, com um sorriso atrevido nos lábios pintados.
- E sou dez vezes mais gira do que a Samantha Locke com aquele cabelo de rato, o nariz encarnado e sem pestanas!
Will Rafferty deitou a cabeça para trás e deu uma gargalhada, encantado.
-És uma maravilha, Nora!
-Não te esqueças disso, miúdo! - disse ela, afastando-se na direcção da cozinha a menear as largas ancas, Por entre as pestanas, Marí observava o homem de pé a seu lado. Rafferty. Tinha de ser da família. Era muito parecido no queixo quadrado e na testa direita, mas mais novo do que o homem que conhecera na véspera - provavelmente da idade dela - e de compleição menos atlética, menos imponente. Tinha mais o aspecto dum bailarino, mas a maior diferença residia em não ter dificuldade em sorrir.
Voltou a força do brilhante sorriso para ela, com os olhos azuis a luzir e uma covinha na face. O sorriso era irresistivelmente incorrigível e Mari quase esperou ver penas de canário a aparecer-lhe entre os dentes. Era o género de sorriso que fazia com que mulheres sensatas tomassem atitudes levianas. Sentiu os joelhos a tremer, mas a fraqueza não lhe chegou à cabeça. Considerava-se temporariamente imune a homens encantadores, uma das poucas vantagens de se levar com os pés.
- Will Rafferty - apresentou-se ele, com uma vistosa vénia, estendendo-lhe a mão. - Bem-vinda ao Jardim do Paraíso.
- Marilee Jennings. Você é o Adão ou a serpente? perguntou ela com um sorriso mordaz, apertando-lhe a mão.
- Caim - disse ele, sentando-se defronte de Mari e agitando as sobrancelhas para cima e para baixo. - Sou mais do género de agitar as coisas.
-E a sua mulher acha isso engraçado?
-Estamos separados - respondeu ele, com o sorriso um pouco contraído e afastando o olhar.
Mari não fez comentários e espetou o garfo num pedaço de panqueca.
-Então era amiga da Lucy?
-Dávamo-nos quando ela vivia em Sacramento. Conhecia-a?
-Conhecia, pois. - Roubou uma tira de toucinho do prato dela e deu-lhe uma dentada, de novo com os olhos azuis brilhantes como uma lâmpada fluorescente fixos nela.
- Ela era qualquer coisa!
Mas não especificou, e Mari pensou para consigo se o LD. seria o único Rafferty a conhecer Lucy no sentido bíblico. A amiga não se teria importado com o facto de Will ser casado, tendo em conta o seu aspecto giro como o pecado e a maneira como enchia as calças de ganga. Lucy dizia que não lhe competia ser a consciência dos homens, e a sua atitude perante a infidelidade sempre incomodara Mari. Aliás, a sua atitude para com o sexo em geral sempre fora demasiado liberal para o gosto de Mari. Lucy chamava-lhe puritana, mas não era; só não gostava da ideia de precisar dum ficheiro para não se enganar nos nomes dos amantes.
-A Nora disse que a Lucy... que o acidente foi num sítio chamado cordilheira Rafferty - disse ela. - Você é esse Rafferty?
- Um deles - respondeu o rapaz, roubando um triângulo de torrada que estava debaixo da omeleta. - Come sempre tanto?
- E você, rouba sempre comida dos pratos de desconhecidos?
- Só quando tenho fome - disse ele, com um grande sorriso.
Mari deu-lhe uma pancada com o garfo nas costas da mão que se preparava para roubar outra tira de toucinho.
- O Rancho dos Confederados fica na colina, não muito longe da casa da Lucy. É terra dos Raffertys, como aliás a maior parte da cordilheira. Há uns terrenos dos Serviços Florestais e...
- Então, deve ser da família do J. D. Rafferty.
- Sou, pelo menos foi o que a minha mãe sempre disse - retorquiu ele com um sorriso endiabrado. - É o meu irmão mais velho. Eu nunca tive voto na matéria! Já o conhece?
-Mais ou menos - resmungou Mari.
Prendeu uma madeixa rebelde de cabelo atrás da orelha e acabou de beber o seu segundo café. Nora apareceu e voltou a encher-lhe a chávena, deitando um olhar a Will. Este atirou-lhe um beijo e deu uma gargalhadinha bem-humorada quando ela revirou os olhos.
- Pregou-me um grande cagaço. Disse-me de caras que a minha amiga tinha morrido e mostrou perfeitamente que não lamentava sequer o facto.
- É - comentou Will,recostando-se e estendendo os braços em frente para aliviar um ombro. - Isso é mesmo do J. D. É o mais delicado da família.
Mari fungou e espetou o último pedaço de toucinho entremeado com o garfo no momento em que as pontas dos dedos do rapaz quase lhe tocavam.
-Deve ser um defeito genético - observou ela em tom cáustico. - Sem ofensa, o seu irmão é o maior alarve que eu alguma vez encontrei.
- Não me ofende - disse ele, com uma expressão de total divertimento. - Ele consegue ser um filho da mãe bastante desagradável.
-Podia dar lições às pedras.
O ruído de alguém a levantar-se na mesa atrás de Mari soou-lhe como um trovão e o estômago contraiu-se-lhe sobre a quantidade de comida pesada que acabava de ingerir, ao avistar J. D. Rafferty. Ficou de pé junto da mesa, como um carvalho, sem se dignar olhar para ela. Pôs lentamente na cabeça um chapéu cinzento-claro e puxou a aba para baixo, sempre a olhar para o irmão.
- Já acabaste de dar à língua? - perguntou calmamente, provocando vibrações dentro de Mari. - Temos que fazer.
- É isso que eu aprecio em ti, mano - disse Will,com um ligeiro tom cortante, levantando-se. - És realmente um tipo danado para a brincadeira!
- Brincadeira? Que é isso? - perguntou J. D. com um trejeito depreciativo.
O ar entre os dois irmãos e à volta deles ficou de repente carregado de electricidade suficiente para pôr cabelos em pé. Mari observou-os, fascinada, vendo a comunicação silenciosa passar entre os seus olhos. Will foi o primeiro a quebrar o contacto, voltando-se para a porta sem uma palavra.
Rafferty olhou-a nos olhos, curvando os lábios numa expressão de arrogância masculina.
-Não precisa de gostar de mim, Mary Lee - murmurou ele.
Era bem claro o que queria dizer. Mari olhou-o fixamente, desejando não estarem em público para poder responder-lhe à letra com a opinião que tinha dele. Mas não podia deixá-lo safar-se incólume. Com uma expressão enojada, moveu os lábios sem som, pronunciando as palavras: «Vá-se foder.»
Os olhos cinzentos escureceram e o sorriso ficou mais feroz.
-Quando quiser, menina da cidade! - No dia de São Nunca!
Ele,baixou-se, com os olhos sempre fixos nos dela. - É melhor abotoar-se, querida. Vem aí frio - disse ele, agarrando-lhe as frentes do velho blusão de ganga e juntando-as.
Mari afastou-lhe as grandes mãos.
-Chama-se a isto rejeição, Chico Esperto - disse ela entre dentes. - Peça à professora da escola que lhe explíque o significado.
J.D. recuou, rindo com o atrevimento dela. Inclinou ligeiramente o chapéu, admitindo a derrota na batalha mas na guerra.
- Miss Jennings - cumprimentou ele.
Mari não respondeu. Sentia-se usada e estava furiosa. Will Rafferty pregara-lhe uma partida, espicaçando-a para irritar o irmão. E J. D... Decidiu que as iniciais eram de Javardo Deluxo.
Nora apareceu junto da mesa para limpar as migalhas feitas por Will.
-Aqueles Raffertys chegam para fazer uma rapariga ter uma paragem cardíaca - disse ela, em tom natural. Já não fazem homens como aqueles.
- Pois não. Pensava que tinham destruido o molde a seguir à Idade da Pedra - respondeu Mari, carrancuda, olhando para J. D. Rafferty pela montra. Viu-o entrar numa velha carrinha azul e cinzenta com Rancho dos Confederados pintado de lado.
-Foi uma brincadeira. Descontrai-te!
Era preciso fortalecer, com mentalidade de cerco. Bom, por Deus, se não estavam em guerra, não sabia o que chamar-lhe.
E naquela guerra, Miss Marilee Jennings estava do outro lado.
-Ela é amiga da Lucy McAdam - exclamou sucintamente, pronunciando o nome macadame, como o pavimento das ruas. Tinha sido igualmente dura e abrasiva. Até na cama fora dura.
Tirou a carrinha em marcha-atrás e dirigiu-se para norte pela rua principal, deitando automaticamente uma olhadela Para o retrovisor, verificando os sacos de ração. Zip, o cão Preto e branco, seguia com as patas dianteiras sobre um monte de sacos cheios e observava a paisagem com um enorme sorriso no focinho. Atrás deles, um Jaguar castanho-escuro parecia impacientar-se. J. D. aliviou o acelerador.
-É amiga da Lucy. E depois? - retorquiu Will,irritado.
O sol atravessava as nuvens naquele momento, incomodando-lhe os olhos e reanimando a ressaca que tinha tentado combater com grandes doses de cafeína e comida. Tirou uns óculos de sol espelhados do bolso da camisa e pô-los. -É mais uma, portanto.
- Jesus! A rapariga veio visitar uma amiga que, afinal, está morta. Tem paciência!
- Porquê? Porque é bonita? Porque é mulher? - disse J. D. com uma expressão trocista. - Já sei que tudo o que usa soutien pode pôr-te uma trela e lá vais tu, contente que nem um burro a comer cardos.
- Oh, Jesus! Deixas-me em paz? - explodiu Will,sentindo a cabeça a latejar com o volume da sua própria voz, Não esfregou as têmporas, para não exibir qualquer sinal de fraqueza diante do irmão, e perguntou: - Sabes qual é o teu problema?
-Tenho a certeza de que me vais dizer qual é. -Vives como um estupor dum monge. Se saísses de vez em quando e fizesses o gosto ao dedo, talvez não levasses a mal o que os outros fazem!
- Eu tenho o que quero; só não ando por aí a gabar-me. Por detrás dos óculos, o olhar de Will aguçou-se.
- Ou talvez a queiras para ti? É isso, J. D.? - perguntou ele, encolhendo-se quando o riso lhe espetou facas no cérebro. - É isso! Ah! Ela não parece ser o teu tipo. É mais o meu. É claro que praticamente todos os tipos são o meu.
- O melhor que tens a fazer é ficares quietinho e com as calças abotoadas. És casado, não te esqueças.
As palavras, além de lembrete, eram acusação. Will não estava interessado na censura nem na culpa que sentiu. Sabia perfeitamente que era casado, e esse conhecimento era como um jugo no pescoço. Talvez não se lembrasse da cerimónia e mesmo a viagem até Reno estava esfumada - fora a consequência duma grande festança. Mas tinha plena consciência de ter voltado de lá casado. Quase um ano depois, a ideia ainda lhe pregava um grande susto. Casado. Comprometido. Não o desejava, não sabia lidar com a situação, não estava preparado para ela. As desculpas sufocavam-no.
Num cantinho meigo e desprotegido do seu coração, pensou momentaneamente como passaria Samantha sem ele. _Merda - resmungou em voz baixa.
Recostou-se, tirou um velho boné de basebol, da Universidade do Montana, da armação das armas atrás de si e enfiou-o na cabeça, com a aba encostada aos óculos escuros. Como se estivesse disfarçado. Como se pudesse esconder do irmão os seus defeitos com uma máscara. Will Rafferty íncógnito, mascarado de homem comum. Como se J. D. não o topasse à légua! Ele, que via através das tretas como o Superman via através do aço. Pensou se faltaria muito tempo para que descobrisse que perdera seis mil e quinhentos dólares ao pôquer na véspera, no Pequeno Purgatório. Calculou que tinha possivelmente um dia e meio de vida.
Muito cedo percebera como ela era - uma rapariga da cidade mal-educada, que se apaixonara pela ideia de amar UM vaqueiro, mas depressa deixara de amar as realidades da vida numa herdade. Vingara-se no marido, castigando-o pelas suas próprias faltas e infelicidades e punindo o filho mais velho por ele ver para além da bela fachada doirada. Will era demasiado novo para perceber o que se passava, mas J. D. nunca fora assim tão novo.
Afastou as recordações, conseguindo desfazer-se de tudo menos dum sabor amargo, que transferia facilmente para os estranhos tais como os ricos ocupantes do interior opulento do castanho-escuro que passava por eles a toda a velocidade, brilhante e cheio de cromados, com janelas de vidros escuros.
Havia mais dum século que o Rancho dos Confederados era dos Raffertys. Era uma herança de que se orgulhava desde que nascera e que defenderia lutando até à morte. Como fazendeiro, tinha diversos inimigos - o tempo caprichoso, os mercados inconstantes e o governo cabeçudo. Mas, para ele, nada era pior do que a perspectiva de pessoas de fora comprarem o montana.
Tinham bolsos sem fundo e contas bancárias cheias por salários obscenos de trabalho que parecia de paródia. Pagavam fortunas por terras de que não precisavam e faziam subir astronomicamente o valor das propriedades bem como os impostos, deixando de rastos o valor da produção. Metade das herdades em redor de New Eden tinha sido vendida por não haver outro remédio, vendida a pessoas que queriam o seu próprio paraíso particular e não se importavam de pisar fosse quem fosse para o conseguir. Pessoas que não respeitavam a tradição nem o trabalhador honesto. Gente de fora.
Lucy MacAdam fora uma dessas pessoas de fora, instalada mesmo à beira das terras dos Raffertys como um abutre. E Marilee Jennings era a mesma coisa. Trazia sarilhos. Estava decidido a não gostar dela.
Ela achava-o um idiota.
Não precisa de gostar de mim, Mary Lee.
Lucy achava que as emoções atrapalhavam as boas relações sexuais, atitude que J. D. compartilhara com agrado. Estava disposto a deitar-se com Marilee Jennings, se tivesse oportunidade, mas diabos o levassem se ia gostar dela. Era a última coisa a fazer-lhe falta na vida. Ela era de fora.
- Não é cá destes lados, pois não? - perguntou o xerífe Dan Quinn, tentando parecer desinteressado, mas sem conseguir evitar as sobrancelhas ligeiramente erguidas perante Marilee Jenmings. Apresentava demasiadas contradições - o blusão de ganga desbotada dois tamanhos acima do necessário, o feminino vestido sedoso, as botifarras e as meias grossas. Pendurados das orelhas, trazia dois triângulos de metal salpicados de pedacinhos irregulares de vidro colorido. o cabelo era um emaranhado loiro com raizes quase pretas. Naquele. momento, desviava da cara uma madeixa que mais parecia uma corda e prendia-a atrás da orelha. -Não, sou da Califórnia.
o xerife fez um som cantarolado que dizia praticamente «bem me parecia», embora tentando não deixar transparecer o que pensava. Ultimamente, tinha de lidar com muita gente de fora e parte do seu trabalho era a diplomacia. Com alguns dos figurões que por ali apareciam, isso era mais difícil do que escolher as palavras certas para falar com a sogra. olhando para Marilee Jenmings, perguntava a si próprio se seria alguma pessoa famosa que não conseguia reconhecer. Parecia poder ter saído da MTV
- Em que posso ajudá-la, Miss Jennings?
- Eu era amiga da Lucy MacAdam - disse Mari, olhando para cima para a cara enrugada do homem. Tanto podia ser um pugilista como ter levado um coice dum cavalo na cara. O nariz exibia uma violenta curva para o lado e o lábio superior estava repuxado por várias pequenas cicatrizes, o mesmo acontecendo ao canto do olho direito. Outra cicatriz formava uma linha vermelha de três centímetros a meio da face esquerda. Só não era feio por ter um par de amáveis e calorosos olhos verdes e um sorriso agarotado e tímido.
Estava de pé no meio da esquadra, de mãos nas ancas. À sua volta, no pequeno mar de secretárias metálicas, alguns ajudantes continuavam a trabalhar, matraqueando em máquinas de escrever manuais e falando ao telefone. De vez em quando, deitavam um olhar ao chefe e à visita.
O acidente - disse ele, acenando com a cabeça, quando reconheceu o nome. - Alguém lho comunicou? Temos estado a tentar ligar para a senhora, desde que aconteceu. O seu nome estava na agenda dela.
Tinham tentado falar com ela através dum telefone que mandara desligar para substituir a sua vida de Sacramento Por uma coisa mais verdadeira. Mari esfregou os olhos com a mão e os ombros descaíram-lhe com um vago sentimento de culpa.
- Não, só descobri o que aconteceu à Lucy quando cheguei cá - disse ela, numa voz sumida.
- Lamento. Deve ter sido um choque terrível - observou Quinn com uma expressão condoída.
Dois telefones começaram a tocar ao mesmo tempo; depois, um homem corpulento com uma cara que parecia uma peça de carne e vistosas tatuagens dos ombros aos pulsos entrou na sala aos tropeções. Tinha ar de motoqueiro, com umas calças de ganga a caírem-lhe do rabo e um colete de cabedal preto sem camisa por baixo emoldurando um peito e uma barriga de cerveja cobertos de denso pêlo preto encaracolado. Trazia as mãos algemadas atrás das costas e arrastava atrás de si um ajudante afogueado e furioso.
Foram de encontro a uma das secretárias, entornando uma chávena de café por cima duma pilha de relatórios e atirando com o homem sentado à secretária de pernas ao ar. Soaram pragas de três fontes diferentes. Quinn franziu a testa, a olhar para aquele espectáculo, e agarrou Mari por um braço, pronto a afastá-la do perigo. Mas o motoqueiro acabou por ser dominado por dois homens e sentado à força numa cadeira, e a excitação começou a diminuir.
Satisfeito por já ter passado o pior, Quinn voltou-se de novo para Mari.
-Vamos ali para o meu gabinete - convidou ele. Sempre a segurar-lhe o braço solicitamente, conduziu-a para um cubículo com uma janela e fechou a porta atrás de ambos. Mari sentou-se numa cadeira de plástico de assento quadrado que não fora criada nem pela estética nem para o conforto, e observou as paredes brancas cobertas de diplomas, certificados e fotografias de rodeos. Numa, via-se Quinn a deitar por terra um enorme toiro, agarrando-o pelos cornos, o que explicava a sua aparência.
O xerife instalou-se na cadeira estofada atrás da secretária e adoptou o ar mais oficial que conseguiu, apesar do cabelo amarelo impossível de pentear e cortado quase à escovinha.
- Não conseguimos encontrar qualquer pessoa de família - disse ele, retomando a conversa como se não tivessem sido interrompidos.
- A Lucy não tinha família. Foi criada em lares de adopção.
O xerife pareceu contrariado, mas não comentou o facto. Depois, continuou:
-Bom, o caso está encerrado, se é que isso lhe dá alguma tranquilidade. Foi uma coisa bem clara. Ela estava a andar a cavalo nos montes e devem tê-la confundido com um alce. Simples.
- Desculpe, eu não percebo muito disso, mas sempre pensei que a época de caça para a maior parte das espécies é no outono, e estamos em Junho - salientou Mari.
Quinn acenou com a cabeça, distraído momentaneamente com a algazarra do outro lado da divisória envidraçada, onde o motoqueiro berrava qualquer coisa sobre os seus direitos na cara do ajudante Stack.
O fulano era um convidado do Evan Bryce. A propriedade do Bryce, pelo menos a maior parte, fica ao lado das terras dos Raffertys e das de Miss MacAdam. O Bryce tem manadas de alces e búfalos que ele próprio cria e, portanto, os animais são considerados gado, não se lhes aplicando as leis da caça. Ele deixa as visitas matar uns quantos de vez em quando, como desporto.
-E desta vez tiraram uma vida humana - comentou Mari, em tom amargo.
O xerife voltou a olhar para ela e encolheu ligeiramente os ombros musculosos, esticando a camisa de caqui.
- De vez em quando, acontece. E provavelmente vai passar a acontecer com mais frequência com o aumento do turismo e com as pessoas a virem passar temporadas nas suas casas de campo. A maior parte desta gente não percebe patavina de armas de fogo. Aperaltam-se todos com casacos de safari de marca, põem uma grande espingarda de elefantes ao ombro e já está... O fulano que matou a sua amiga era desses. Não sabia que a tinha atingido. Nem sequer a viu. O corpo dela só foi encontrado dois dias depois.
- Quem era ele? - perguntou Mari, entorpecida, sentindo necessidade de ter um nome, uma cara a quem pudesse atirar as culpas. Nem sequer dera por isso. Lucy morrera lá em cima completamente sozinha, tinha ficado ali deitada durante dias, enquanto o anormal que a matara continuava as férias como se nada fosse.
- O doutor J. Grafton Sheffield - disse Quinn, rodando a cadeira para um ficheiro que ocupava toda a parede por detrás da secretária. - É esse o nome dele - continuou o xerife, folheando o processo com os dedos grossos, até encontrar o que queria. - Cirurgião plástico de Beverly Hills. Quando se soube o que tinha acontecido, veio cá confessar que andara a caçar lá em cima. Mostrou-se muito incomodado, mesmo muito! Fartou-se de chorar no tribunal e cooperou em tudo o que foi preciso.
- O exame balístico foi concludente, portanto? - perguntou Mari.
As sobrancelhas do xerife ergueram-se.
- Fui estenógrafa judicial durante seis anos, xerife explicou Mari. - Sei como as coisas se passam.
O homem esfregou o canto da boca com o indicador, observando-a e matutando. Por fim, acenou com a cabeça, escolheu um fino maço de folhas dactilografadas de dentro da pasta e passou-lho por cima da secretária. Mari deu uma vista de olhos pelo relatório inicial, com as suas palavras e frases familiares.
-Não se encontrou a bala que a atingiu - esclareceu Quinn. - Atravessou-lhe o corpo e atingiu um rochedo. Ficou de tal maneira que não pudemos aproveitá-la para a comparação. Mas as cápsulas espalhadas pela zona condiziam com o que o homem tinha usado... uma Remington de sete milímetros. Ele confessou ter estado lá, sem saber que saíra das terras do Bryce. Não contestou.
- Quer dizer que já acabou tudo? - perguntou Mari, espantada. - Como é que isso pode ser?
Quinn tornou a encolher os ombros.
- As rodas da justiça movem-se com bastante velocidade, cá por estas bandas. Os nossos médicos legistas não têm tanto trabalho como os vossos na Califórnia E também ajudou o facto de o médico ser amigo do Bryce, que tem bastante peso na região.
- O Sheffield está preso, então? - perguntou Mari, esperançada, mas sabendo que não havia motivo para o estar. Cirurgiões plásticos de Beverly Hills não iam para a cadeia por acidentes de que se consideravam imediatamente culpados.
- Não, minha senhora - respondeu Quinn, de novo com a atenção desviada para a sala ao lado. O motoqueiro encontrava-se de pé, com a cadeira a que estava algemado espetada atrás das costas. O xerife começou a levantar-se. _ Confessou-se culpado dum delito ligeiro de negligência. Apanhou um ano de pena suspensa e uma multa de mil dólares. com licença, minha senhora.
Ia já porta fora, em direcção ao burburinho, antes de Mari poder reagir. Ela ficou a olhar para a cena durante um instante, o xerife e os ajudantes a lutar contra o mamute peludo como se fosse um jogo de râguebi. Depois, baixou os olhos para o processo que tinha no colo. Tudo aquilo era surrealista; sim, esse o termo para qualificar as suas férias até ao momento.
Deu uma vista de olhos aos apontamentos do homem destacado para o caso e depois aos comentários do xerife. O relatório do médico legista era incrivelmente curto. Causa da morte, ferimento de arma de fogo. Meia dúzia de notas quanto a ferimentos de entrada e saída, contusões e abrasões. Nariz partido, lacerações na face, provavelmente provocadas pela queda do cavalo. Parecia lamentável que o fim duma vida pudesse ser resumido naquelas palavras: ferimento de arma de fogo.
A luta continuava na sala da esquadra, com o motoqueiro a partir chávenas, cafeteiras e vidros de computadores com a cadeira presa ao rabo. Felizmente, Quinn tinha experiência de derrubar animais peludos.
Em cima da secretária encontrava-se a pasta que ainda continha os poucos comentários sobre a morte de Lucy, que Quinn não planeara dar-lhe a conhecer. Mari mordeu o lábio e travou uma breve luta com a sua consciência. O que tinha nas mãos parecia-lhe tão pouco... A amiga estava morta...
Um rugido semelhante ao dum alce enraivecido soou do Outro lado da porta. Os homens caíram num monte de braÇos e Pernas entrelaçados. Mari levantou-se rapidamente da cadeira e deu a volta à secretária para abrir a pasta. O coraÇão ficou-lhe preso na garganta, sem bater, mesmo à frente do pequeno-almoço que ainda digeria.
As únicas coisas dentro da pasta eram as fotografias da cena do crime, tiradas com uma Polaroid. O corpo de Lucy. Sem vida. Grotesco. Ficara ali deitada à beira do prado durante dois dias. Nada no cadáver tinha qualquer semelhança com a mulher vibrante que Mari conhecera. O cabelo dum loiro-escuro era uma massa emaranhada e suja. As unhas das mãos sempre meticulosamente arranjadas e pintadas estavam sujas e partidas, as feições irreconhecíveis e o corpo inchado e disforme como um balão. A bala atingira-a no meio das costas, saindo pelo peito e deixando uma enorme destruição.
Pavorosa. Meu Deus, ela está pavorosa. Havia de detestar morrer daquela maneira.
Sozinha. Destroçada. Deixada à mercê dos animais que se alimentam de carne putrefacta.
As lágrimas saltaram-lhe dos olhos e sentiu arrepios da cabeça aos pés. A tremer, deixou cair os relatórios em cima das fotografias e saiu do gabinete a correr, sufocada com a vontade de vomitar e com falta de ar. O motoqueiro estava a ser arrastado para uma cela. Quinn sacudia as calças com as mãos e levantou os olhos quando Mari apareceu na sala, esfregando os olhos numa tentativa infrutífera de apagar os vestígios das lágrimas. Engoliu um trago de ar impregnado de suor masculino e gás duma instalação defeituosa, e o estômago deu-lhe um salto como um salmão na areia.
- Eu... eu... obrigada pela sua ajuda, xerife Quinn disse ela a custo. - Eu... eu tenho de me ir embora. -Lamento muito o que aconteceu à sua amiga, Miss Jennings - proferiu o xerife, com uma expressão de compreensão nos olhos que quase a fez fraquejar.
As imagens das poloróides estavam-lhe gravadas no cérebro. A bílis subiu-lhe numa onda. Conseguiu acenar com a cabeça e repetir:
- Eu... eu tenho de me ir embora.
- Apareça para falar com o Miller Daggrepont - sugeriu o xerife enquanto ela se apressava em direcção à porta. O nome entrou-lhe por um lado e saiu-lhe pelo outro.
O único «aparecimento» que lhe interessava de momento era o do lavabo das senhoras. Tinha a boca cheia de saliva. Lucy. Ai, meu Deus, Lucy! Mas parou à porta da sala sentindo ser imprescindível fazer a pergunta que lhe escapara, Apoiou a mão na ombreira, para ficar direita, e olhou para o xerífe.
-Quem é que encontrou o corpo dela”
- Foi o Del - respondeu ele, acenando com a cabeça. O Del Rafferty.
O Alce Alegórico fora o melhor bar, hotel e casa de má reputação da zona durante os tempos dos barões do gado, É claro que não se chamava Alce Alegórico nessa altura, mas sim Águia d’Oiro- tanto pelas aves majestosas que viviam nos montes em redor de New Eden como pelo modelo doirado enviado ao primeiro proprietário do hotel por Jay Gould para celebrar a grande inauguração.
Madame Belle Beauchamp Construíra o edifício com a considerável fortuna amealhada de costas debaixo dos mais ricos ganadeiros e donos de fortunas duvidosas e de joelhos a espreitar por buracos de fechaduras enquanto esses mesmos cavalheiros faziam os seus negócios tanto por cima como por baixo das mesas. Madame Belle conhecera todos os grandes homens daépoca e conseguira uma enorme fortuna na bolsa. Apesar das suas muitas viagens, fizera de New Eden a sua terra até à morte, por amar a terra, os montes e as pessoas na sua maioria honestas, trabalhadoras e tementes a Deus que lá se tinham estabelecido.
Nenhuma despesa fora regateada na construção do hotel. Todos os quartos eram vistosos e imponentes. Os lustres do salão principal tinham vindo da cidade de Nova Iorque de combóio. O espelho de moldura doirada com seis metros atrás do bar viera dum castelo na Europa, segundo se dizia como oferta dum apaixonado duque. Montana nunca vira coisa mais extravagante do que a «Pensão e prostíbulo, como alguns lhe chamavam.
Infelizmente, a popularidade de Madame Belle murchou com a sua beleza, e a fortuna foi desaparecendo em investimentos e piores amantes. Apesar de toda a sua espectacularidade, o Águia D’Oiro ficava demasiado afastado dos itinerários principais para receber mais do que as visitas de alguns curiosos. O hotel começou a ficar desleixado. Madamne Belle morreu de uma queda da galeria do primeiro andar, vítima do caruncho na balaustrada. E assim acabou o voo do Águia .
D’Oiro.
Mari, de pé na varanda da renovada estalagem, leu a história cuidadosamente escrita à mão sobre pergaminho amarelado e esteticamente exibida numa moldura na parede junto às portas da entrada. Os pormenores nem uma marca deixaram no seu cérebro e nem sequer tinha a certeza de como tinha chegado à porta do Alce Alegórico.
Depois de sair do gabinete do xerife, limitara-se a andar, para tentar afastar da memória as terríveis cenas - o corpo de Lucy de longe, o corpo de Lucy de perto, ferida de entrada, ferida de saída. A cabeça latejava-lhe com o esforço para apagar as pavorosas imagens de sangue, morte e podridão. Percorrera a rua principal até ao Motel Paraíso, passara para o outro lado e voltara para trás, sem reparar no que acontecia à sua volta.
As contradições da terra só lhe chegavam da maneira mais abstracta - as camionetas de caixa aberta que pareciam ter sido atacadas com manivelas de pneus e os carros de luxo que custavam mais do que a maior parte das casas; as lojas falidas fechadas com taipais e as montras exibindo joalharia de prata e botas de vaqueiro feitas de encomenda com pele de tubarão; os vaqueiros de rosto avermelhado vindos à cidade para fazer compras e as caras das pessoas nas capas da revista People. Tudo aquilo parecia mais un Sonho do que realidade.
Caminhou durante horas, sem reparar no que a rodeava, nem nos olhares curiosos e pensativos que lhe deitavam os habitantes; preocupada com pensamentos de morte, destino, justiça, injustiça, coimcídências, raffertys. Fragmentos de pensamentos atropelavam-se-lhe no espírito como estelhaços aguçados e dolorosos. Havia demasiados pedaços, pedacinhos que ela não estava a conseguir agarrá-los o tempo sufiCiente Para que fizessem sentido. Cafeína, desgosto e exaustão interferiam na sua sanidade e abalavam-lhe os nervos até que só lhe apetecia agarrar-se aos cabelos com ambas as mãos e desatar a gritar.
Precisava de se sentar num sítio sossegado e escuro, de tomar alguma coisa que lhe acalmasse os sentidos, de fumar um cigarro para ter alguma coisa vulgar em que se concentrar.
A porta dupla do Alce abriu-se e uma mulher alta e interessante com um casaco comprido de ganga e botas de camurça de aspecto caro saiu, com uma expressão determinada no rosto, de queixo espetado, olhando para Mari através das lentes duns grandes óculos de aros azul e violeta. Tinha uma cara oval com feições fortes e lábios finos sem pintura, emoldurada por uma farta juba de cabelo loiro-avermelhado que lhe chegava aos ombros.
Mari começou a desviar-se, murmurando desculpas, mas a mulher agarrou-lhe os ombros com as suas mãos cheias de anéis e olhou-a bem de frente.
- Minha filha, tem uma aura muito despedaçada! exclamou ela em tom dramático e perfeitamente sério. Mari ficou de boca aberta, incapaz de falar. A mulher
trazia uma quantidade de cristais de quartzo pendurados em fios de prata ao pescoço. Das orelhas, pendiam-lhe opalas do tamanho e feitio de ovos de pardal.
-D... desculpe... acho eu - murmurou Mari, sentindo-se cada vez mais como a Alice do outro lado do espelho. A mulher deu um passo para trás e levou uma longa mão à testa.
- «Não chores por mim nem por todos os pedaços do meu coração destroçado» - disse ela em voz alta, num ton] que destilava repentinamente o mel do Sul. - «Retini-los-ei, e seguirei em frente, com valentia e sem medo.» - Endireitou-se e soltou um suspiro libertador, ao mesmo tempo que as suas feições retomavam a expressão orgulhosa e eficiente de momentos antes. - De Lila Rose, do Baxter Brady. Saiu de cena depois de três semanas no St. James, embora não por culpa minha. Garanto-lhe que fui brilhante.
Mari limitou-se a piscar os olhos.
A mulher tirou uma pequena pedra preta muito polida do bolso do casaco e colocou-a na mão de Mari, exercendo pressão de encontro à palma e dobrando-lhe os dedos para ela não a deixar cair.
- Tome. Isto vai ajudá-la.
Sem outra palavra, afastou-se, com as botas a bater nos degraus de madeira e depois dirigiu-se para o parque de estacionamento ao lado do edifício. Mari ficou a olhar para ela, obrigando um casal vestido como quem vai para um rodeo a desviar-se dela para entrar na estalagem. As portas, ao fecharem-se, fizeram-lhe chegar os aromas de pão acabado de fazer e de especiarias a cozinhar. O nariz de Mari agarrou-os como o dum sabujo. Comida. A comida fazia sempre sentido. Desperta, entrou, disposta a procurá-la.
O bar do Alce Alegórico era magnífico. Em vez de recriar a exagerada opulência do Águia D’oiro de Madame Belle, os novos donos tinham optado pelo chique rústico. Paredes estucadas irregularmente de branco e madeiramento em mogno escuro trabalhado. Versões enormes do lustre de armação de alce de Lucy pendiam das grossas vigas expostas do alto tecto. A parede do fundo era dominada por uma série de altas janelas de muitas vidraças e de portas envidraçadas que davam para um vasto terraço com uma magnífica vista dos montes. A peça central da parede à direita era uma imensa lareira de pedra, por cima da qual reinava uma cabeça de alce. O animal olhava de frente para um belo balcão que brilhava à suave luz da tarde com a rica pátina do tempo e dos cuidados que lhe eram dispensados. Atrás dele, ainda estava oespelho de moldura doirada de Madame Belle, seis metros de homenagem a um caso amoroso duma época passada.
Para aquela hora da tarde, havia um razoável número de clientes. Alguns deitaram olhares curiosos a Mari enquanto ela se dirigia para uma mesa junto da lareira e se instalava numa grande e confortável cadeira. Colocou a pedra em Cima da mesa e ficou a olhar distraidamente para ela.
-Não me leve a mal, minha querida, mas está com um ar Positivamente esgotado.
O educado tom britânico fê-la levantar a cabeça e acrescentou outra camada de confusão ao nevoeiro que lhe envolvia o cérebro.
- Perdão?
- Eu disse que parece completamente exausta - repetiu o homem, com um sorriso amável nos lábios. Parecia andar pelos quarenta e era atraente, com cabelo ruivo-escuro ondulado, um nariz pronunciado e um brilho bondoso nos olhos. Uma sombra de barba feita de manhã aparecia numas faces magras, mas não prejudicava o seu aspecto geral de estilo e qualidade ajudado por uma camisa larga de seda em tom de marfim e umas calças cor de chocolate. O homem debruçou-se sobre a mesa e colocou um guardanapo ao lado da pedra.
-Aconteceu alguma coisa?
-Bom, para começar, tenho uma aura despedaçada.
- Ah, já conhece a M. E. - Perante o seu ar pasmado, acrescentou: - M. E. Fralick, artista da Broadway e protectora de tudo o que é da New Age.
O nome soou-lhe vagamente familiar, mas não conseguiu ultrapasar o latejar das fontes.
-Que tal um café? - sugeriu o homem.
- Estava mais inclinada para um G e T... com G grande... e um grande prato de qualquer coisa comestível.
- Uma mulher como eu gosto. A propósito, chamo-me Andrew van Dellen e, além de fazer ocasionalmente de criado de mesa, sou um dos felizes proprietários do Alce Alegórico.
- Marilee Jennings - apresentou-se ela, tentando sorrir. O homem endireitou-se ligeiramente e ficou a olhar para ela, de sobrolho franzido. Emitindo uma nota com os lábios fechados, batia com o indicador na boca.
- Marilee, Marilee Jennings. - Fez-se luz. - Ai, meu Deus, você é a amiga da Lucy!
Do outro lado da sala, no bar, Samantha Rafferty pegou na bandeja e quase entornou a cerveja importada e água mineral. O empregado atrás do bar lançou-lhe um olhar e ela ficou instantaneamente com os olhos marejados de lágrimas. Estava-se nas tintas quanto às bebidas, pois tinha coisas mais importantes em que pensar. Aquilo não passava dun emprego para o qual não tinha grande jeito e que pouco importava quando toda a sua vida era um grande sarilho, grande e complicado.
Se, ao menos, tivesse tido o bom senso de ir logo para casa na véspera à noite. Mas não. Danada para atrair problemas, não podia deixar de dar umas voltas ao Inferninho no seu velho e enferrujado Camero até Will sair de lá aos tombos com um braço em volta duma loira peituda.
As lágrimas começaram a toldar-lhe a visão. Apertou os maxilares e susteve a respiração enquanto poisava as bebidas na mesa, sem se lembrar de quem tinha pedido o quê. De que tinham eles de se queixar? Eram ricos, estrelas de cinema, não seriam obrigados a andar por aí de noite num carro com quinze anos, à procura dum marido infiel. Raios te partam, Will.
Raios me partam por te amar
A visão enevoou-se-lhe numa mistura de cores aguadas. Ao curvar-se para poisar a última bebida, calculou mal a distância e largou demasiado cedo uma grande caneca de cerveja. A caneca bateu na mesa com um estrondo e a cerveja saltou para todos os lados, encharcando o tampo. Várias mulheres à mesa soltaram gritinhos. O homem para quem era a bebida deu um salto para trás, levantando-se da cadeira quando a cerveja começou a escorrer para o chão. Samantha ficou a olhar para aquilo, horrorizada. A confusão era de tal maneira simbólica da sua vida que desatou a chorar.
- Não, não, querida, não chore! - disse Evan Bryce, colocando-lhe uma mão paternal no ombro. - Foi um acidente. Não tem importância.
- Desculpe, Mister Bryce! Peço muita desculpa! murmurou Samantha por detrás das mãos que lhe escondiam a cara.
O homem abraçou-a e deu-lhe um ligeiro aperto de conforto.
- Olhe, várias mulheres bonitas já me fizeram muito pior! - exclamou com humor.
A corte sentada à sua mesa riu indulgentemente. Samhantha desejava que o chão se abrisse a seus pés e a engolisse. Evan Bryce era a pessoa mais poderosa da recente elite de New Eden. Era uma espécie de celebridade, produtor Ou coisa parecida. Samantha vira-o na televisão, num programa chamado Vidas dos Ricos e Famosos e noutro ainda, espectáculos. Aparecia sempre nas entregas de prémios ou DO júri do concurso de Miss América. As pessoas que o visitaVam na propriedade dos arredores da cidade eram uma espécie de «Quem é Quem de Hollywood e da política da Califórnia. E ela conseguira despejar-lhe uma caneca de cerveja praticamente no colo.
- Vá lá, então! - continuou Bryce, conduzindo-a até à cadeira que desocupara de imediato. - É evidente que anda a trabalhar de mais, Samantha. Sente-se. Veja que ninguém ficou aborrecido.
O facto de ele saber o nome dela sobressaltou-a por momentos, até se lembrar que o trazia ao peito. Estúpida. A palavra atingiu-a como um chicote. Estúpida miúda. Ouvira aquilo ao pai vezes suficientes enquanto crescia para agora, apesar de estar longe da família havia mais dum ano, lhe vir à memória e desfazer as ruínas da sua autoconfiança em pedaços ainda mais pequenos.
- Não, não posso - murmurou, afastando-se dele. Sentia os olhares dos outros focados sobre ela e imaginava saber o que pensavam. Pensavam que era uma simplória, uma estúpida e idiota mestiça que nem sequer era capaz de servir meia dúzia de bebidas. - Tenho que fazer.
-Não me parece que o Drew não a dispense por cinco minutos como minha convidada - disse Bryce, fazendo uma careta.
-Não sei, Bryce, pode ter ciúmes - avançou um dos amigos, com ar irónico. - Acho que ele anda com o olho em ti.
Os outros riram-se. Samantha viu as caras deles de relance: mais bonitas do que era normal nos humanos, os dentes demasiado brancos e direitos, os olhos a brilhar com emoções vivas que desconhecia totalmente.
-Tenho de ir - exclamou. Depois, deu meia volta e correu para a porta de serviço ao lado do balcão, ouvindo os risos, com a sua longa trança preta a bater-lhe nas costas enquanto corria.
Nas traseiras do edifício, havia uma longa passagem alcatifada de vermelho, donde partiam portas para a cozinha e para os gabinetes de Van Dellen e Bronson. Samantha passou por elas e empurrou a barra metálica da porta da rua. O terraço empedrado a quase todo o comprimento do hotel tinha daquele lado uma divisória de treliça que permitia aos empregados sair nos intervalos do trabalho.
Samantha agradeceu a Deus não estar lá alguém naquele momento. Nunca fora de chorar diante dos outros. Nem de Wili. Mesmo na noite em que ele se fora embora, conseguira suster as lágrimas até a porta se fechar.
Raios te partam, Will.
Não se lembrava dum tempo em que não amasse Will Rafferty. Já nos primeiros anos do liceu suspirava secretamente por ele, quando era uma miúda e ele um dos rapazes com mais pinta entre os crescidos. Will Rafferty, com o seu sorriso diabólico e olhos azuis de morrer. Praticamente todas as raparigas no liceu estavam apaixonadas por ele. Era um rebelde, um tratante, e uma pequena estrela dos rodeos. E durante algum tempo fora todo dela.
A ideia de que esse tempo havia acabado, talvez para sempre, fazia-a tremer por dentro. Inclinou-se no gradeamento, curvando-se com o sofrimento emocional e com as lágrimas a acumularem-se-lhe na garganta como pedras pontiagudas. Não era justo. Ela amava-o. Ele era a única coisa que alguma vez pedira na sua vida miserável. Porque não podia ele amá-la da mesma maneira?
Sabia que casara com ela por capricho. Ganhara um dinheiro nas corridas de cavalo indomado com sela num rodeo em Gardiner. Ela ganhara também algumas corridas de barrica. Tinham acabado os dois na mesma festa de celebraÇão. Will,sempre cheio de si mesmo, entusiasmado com a vitória e desinibido por inúmeros copitos de uísque, declarara-lhe o seu amor. Três dias mais tarde, tinham ido até ao Nevada na nova Carrinha encarnada e branca dele para dar o nó.
Lá bem no fundo, Samantha suspeitara que ele não estava a ser sério quanto a casar, mas tinha agarrado a oportunidade com ambas as mãos e não a largara. Agora, vivia sozinha na pequena vivenda que haviam alugado na Rua Jackson. Estava livre da família, tinha uma aliança no dedo e absolutamente mais nada.
A solidão apertava-lhe o coração como uma garra. -Será assim tão mau como isso?
Samantha sobressaltou-se ao som da voz suave, mas daquela vez não podia fugir. Já fizera figura de idiota o suficiente. Evan Bryce colocou-se ao seu lado junto à vedação. Quando lhe estendeu um lenço de linho com monograma bordado, aceitou-o e limpou os olhos. Ele não olhou para ela, dirigindo o olhar para os montes, dando-lhe uma espécie de privacidade, um momento para se recompor. Aproveitou-o para o observar.
Calculou que tivesse a mesma idade que o pai, embora as semelhanças ficassem por aí. O pai era um enorme brutamontes, rude e moreno. Bryce era pequeno. Com ar de felino, pensou; esguio, rijo e elegante. Tinha uma testa muito alta e desanuviada e uns olhos azuis dum tom incrivelmente claro, boca larga de lábios finos e queixo pequeno. Usava o cabelo loiro com madeixas do sol penteado para trás, acentuando a testa alta.
Já o vira muitas vezes no Alce. Vinha com a sua corte. As pessoas que trazia consigo tratavam-no como se ele fosse de sangue real. Às vezes, aparecia com o aspecto de quem tinha saído duma revista. A maior parte do tempo, como estava naquele momento - com calças de ganga desbotada que lhe assentava que nem uma luva e uma camisa de cambraia de linho azul-claro com as mangas bem enroladas e muito aberta à frente, expondo o pêlo preto do peito. Era a sua versão de trajo de vaqueiro, supunha ela, embora quem alguma vez tivesse conhecido um vaqueiro nunca o tomasse por um.
Voltou-se para ela e apanhou-a a observá-lo. Samantha estendeu-lhe o lenço e virou-se para os montes. Sentiu o olhar dele muito tempo antes de o ouvir dizer:
- Lamento se algum dos meus amigos a incomodou, Samantha. Não foi com intenção.
-Não foram eles.
- Então, o que foi? - perguntou ele em voz baixa. Uma rapariga tão encantadora como você não devia chorar dessa maneira.
Samantha fungou e sentiu os lábios carnudos erguerem-se nos cantos. Nunca pensava em si como encantadora. Era alta e esguia, quase com ancas de rapaz e praticamente seM seios - coisa que jamais a incomodara nos seus dias de maria-rapaz, mas que a incomodava muito quando pensava no marido com a loira peituda a sair do Inferninho. Quanto à cara, sempre a achara uma estranha mistura de branca e índia, uma confusão de feições demasiado grandes que não condiziam propriamente umas com as outras.
-Problema de namorado? - arriscou Bryce. olhando para ele pelo canto do olho, pesou a sensatez de confiar naquele homem. Não conseguia imaginar por que razão havia ele de se preocupar com o que lhe acontecia na vida. Não passava duma criada de mesa sem importância. Mas a bondade e o interesse que viu naquele rosto bronzeado tocou-a em alguma parte muito vulnerável dentro de si.
Não tinha outra pessoa para quem se voltar. Os pais não eram um exemplo brilhante de felicidade conjugal. O pai, quando não estava bêbedo, não parava em casa. A mãe tinha seis crianças para criar e nenhuma energia ou entusiasmo para a tarefa. Samantha não possuía muitos amigos que não fossem primeiro amigos do marido. E, além disso, sempre fora demasiado reticente para ter uma amiga a quem se conta tudo. Talvez pudesse procurar conforto junto do irmão de Will,porque confiava nele, mas nunca achara que ele aprovasse o casamento. Sentira sempre que ele sabia exactamente o que se passava entre ela e o marido, que ele via desde o princípio para além da fachada de felicidade de recém-casados.
No entanto, ali estava aquele homem bondoso, interessando-se, oferecendo-lhe uma oportunidade de desabafar um pouco.
- É o meu marido - disse ela em voz sumida, olhando para o chão, para umas flores cor-de-rosa que cresciam no jardim rochoso. - Estamos com uns problemas... Ele saiu de casa.
- Então é um idiota, não é? - perguntou Bryce, fazendo um ruído de compreensão e passando-lhe um braço pelos ombros.
Will era uma data de coisas. Samantha não tinha coragem Para mencionar uma única. Sentia a garganta fechada de sofrimento e as lágrimas começaram a correr-lhe dos olhos cerrados com toda a força. Como precisava sobretudo dum ombro sobre o qual chorar, voltou-se e encostou o rosto ao que lhe ofereciam.
Beberam à memória de Lucy.
Andrew van Dellen e o seu sócio Kevin Bronson juntaram-se a Mari à mesa. Kevin era alto e magro, com um ar de menino fino. Ainda não chegara aos trinta. Tinha os olhos cheios de lágrimas ao erguer o copo à memória de Lucy.
-Foi tão sem sentido - comentou ele.
- A morte é muitas vezes assim - anuiu Drew em tom impaciente, trocando com ele um olhar que dizia já terem falado naquilo pelo menos uma vez. - Não vale a pena pensar no assunto. As pessoas vivem as suas vidas até que o destino intervém, e é tudo.
-Não digas que não podia ter sido evitado, Drew insistiu Kevin, com uma expressão decidida no seu belo rosto. - Porque havia o Sheffield de estar lá em cima com uma arma, em primeiro lugar? A Lucy morreu porque ele teve de ir andar pelos bosques armado em Rambo para provar que era macho, matando um pobre animal qualquer. -Não estava a fazer uma coisa ilegal.
- Isso não quer dizer que não fosse imoral ou evitável, Se o Bryce...
Drew interrompeu-o com um dedo no ar e um gesto de cabeça.
-Não digas mal dos clientes, meu filho. Não fica bem. Kevin recostou-se na cadeira e ficou a olhar para a cabeça de alce por cima da lareira, tentando visivelmente conter o mau génio .Drew inclinou-se para Mari, que seguira a troca de palavras com ávido interesse enquanto comia. Já tinha devorado metade duma sanduíche de galinha e a maior parte das batatas fritas que a acompanhavam. A comida estava a rejuvenescê-la, enviando-lhe combustível para um cérebro que trabalhara sem ele. A bebida suavizava-lhe os nervos. Kevin e Drew davam-lhe uma coisa sólida e real em que se concentrar.
- O Kevin acha que a civilização como nós a conhecemos está em vias de extinção - afirmou Drew com algum humor, enquanto o sócio franzia a testa. -- A verdade é que o Bryce tinha todo o direito de oferecer os alces para uma caçada. A caça é um desporto de sempre e, se quisermos ser terrivelmente profundos, somos, afinal, uma espécie de caçadores. É uma coisa que dura há muitas eras.
- Os homens costumavam bater na cabeça das mulheres com ossos de mastodonte e puxá-las pelos cabelos, mas nós já não o fazemos.
-Há quem faça. -isto não tem graça.
os olhares dos dois homens cruzaram-se por um frágil momento, e depois Drew poisou a mão no ombro do sócio. -Não vamos discutir por causa disso - murmurou ele, em tom fatigado. - Pelo menos, não diante duma cliente. -Desculpe, Mari. Todo este assunto me põe doido observou Kevin, olhando para ela.
-Eu também não gosto lá muito da ideia de a minha amiga ser morta em vez dum alce - disse ela, pondo de lado o resto da sanduíche. Prendeu uma madeixa de cabelo atrás da orelha e brincou com o brinco desse lado.
O que me põe furioso é a hipocrisia - continuou Kevin, falando baixo para a voz não chegar a ouvidos errados. - O Bryce promete dinheiro e terras à Conservação da Natureza e depois anda por aí a matar tudo o que existe no planeta.
-Não é invulgar os caçadores apoiarem esforços de conservação - argumentou Drew. -- O objectivo deles é o desporto e não a aniquilação.
-Não consigo ver como é que alguém tem prazer em negar a vida a outra criatura viva.
- Ai, que grande chatice, lá vamos nós outra vez!
- Não, lá vou eu outra vez! - exclamou Kevin, afastando a cadeira da mesa e erguendo-se. Drew revirou os olhos e encostou a cabeça à mão, mas ele ignorou-o e voltou-se para Mari: - Lamento não nos termos conhecido em melhores circunstâncias.
Deitou uma olhadela ao homem loiro que se aproximava da mesa, apertou os lábios e virou as costas, dirigindo-se à entrada.
- Estou a ver que o Kevin ainda está chateado comentou Bryce em tom suave,
Drew levantou-se, com ar de quem fazia um grande esforço.
-Desculpe-o, Mister Bryce. Para ele, é mais fácil culpar alguém do que acreditar que a vida pode ser tão absurda.
- Ele está a esquecer que a Lucy era tanto amiga minha como dele.
-Pois é, sabe, o Kevin é novo. Tem tendência para pensar em absurdos.
A atenção de Bryce já se desviara de Kevin Bronson para Mari. Esta enfrentou o olhar do homem, achando o azul nórdico dos olhos dele quase gelado, porém o sorriso era caloroso quando lhe estendeu a mão. Limpou um bocadinho de mostarda no blusão e aceitou-a.
- Evan Bryce.
- Marilee Jennings. Também era amiga da Lucy, de quando ela vivia em Sacramento. Na verdade, vim cá para passar uns tempos com ela na quinta.
Ele ofereceu-lhe a quantidade certa de comiseração, com os cantos dos lábios descaídos e uma ruga de preocupação numa pequena linha entre as sobrancelhas.
-A Lucy era demasiado jovem para morrer. E tão vibrante, tão cheia de vida! Eu e toda a gente sentimos muito a falta dela. Espero que não me culpe da morte dela, como algumas pessoas.
-Não sei quem culpar - disse Mari, encolhendo os ombros e empurrando as mangas do blusão para cima, para ficar com as mãos à mostra.
- Foi um acidente e não há ninguém a culpar - declarou o homem, para acabar com o assunto, pelo menos na sua ideia.
Mari sabia que seriam precisos dias, semanas e meses antes de conseguir resignar-se daquela maneira. Talvez fosse mais fácil se não tivesse entrado a meio da história, se estivesse lá e vivesse as circunstâncias da morte da amiga.
- Vai ficar muito tempo em New Eden? - perguntou Bryce.
- Não sei. Estou demasiado chocada para pensar nisso, por enquanto. Descobri agora mesmo o... acidente da Lucy... ontem à noite.
- Espero que consiga aproveitar alguma coisa da sua visita. É uma região linda. É mais do que bem-vinda na minha propriedade. Não fica longe da da sua amiga. Já lá esteve? - perguntou Bryce, acariciando o pequeno queixo acenando compreensivamente.
-Ontem à noite.
-Xanadu, o meu rancho, fica a alguns quilometros
para norte. Qualquer amigo da Lucy é bem-vindo na minha casa.
- Obrigada. Não me esqueço.
Aceito .O homem despediu-se e deixou-os. Mari viu-o voltar à mesa junto da janela. Os outros saudaram-no como a um monarca de. regresso. Reconheceu duas actrizes e um supermodelo entre os belos rostos. Eram a espécie de pessoas junto das quais Lucy teria gravitado. Lindas, ricas, importantes ou considerando-se importantes, segundo o ponto de vista. Na cadeira directamente à direita de Bryce, sentava-se uma loira escultural com feições fortes quase masculinas e sobrancelhas arqueadas. A mulher enfrentou o seu olhar, ergueu o copo de vinho numa saudação subtil e inclinou a cabeça. Depois, voltou-se casualmente para o companheiro de mesa e o contacto interrompeu-se, deixando Mari sem saber se teria imaginado todo o episódio.
-Bom, querida - disse Drew, chamando de novo a sua atenção. - Detesto ir-me embora a correr, mas tenho de ver se as coisas estão bem na cozinha antes que chegue a multidão do jantar. - Levantou-lhe a mão poisada na mesa e apertou-lha entre as suas, com uma expressão de sinceras desculpas. - Perdoe estas situações desagradáveis.
-Acho que me sentia pior se toda a gente fingisse que nada se passara - respondeu Mari. - Já é suficientemente parecido com ficção científica.
-É verdade.
-Obrigada pela bebida e pela refeição.
- Com os nossos cumprimentos. E fica cá, é evidente. -Bom, eu...
- Onde é que ficou a noite passada? - perguntou ele, com as sobrancelhas franzidas, ao pensar no assunto.
- No Paraíso.
-Meu Deus! O Parasita! Espero em Deus que não se tenha sentado na casa de banho.
-Nem sequer me deitei entre os lençóis.
- Menina esperta! Então, nada de discussões. Fica cá como nossa convidada, minha e do Kevin. À saída, vou dizer ao Raoul, na recepção.
- Obrigada.
- No Parasita! - resmungou ele, estremecendo. Quem foi o filisteu que a mandou para lá?
Dos lados da cozinha, ouviu-se um estrondo seguido duma súbita torrente de espanhol que parecia tão irada como os disparos duma metralhadora. Drew resmungou um sentido «Que chatice!» e saiu a toda a pressa.
Metendo uma última batata frita na boca, Mari afastou a cadeira da mesa e dirigiu-se à porta da entrada. Tinha de procurar o carro. Depois, ia a recepção buscar a chave do quarto e enfiava-se na cama. A ideia de dormir sem ser interrompida pelas acrobacias para adultos de Bob-Ray e Luanne fez-lhe aparecer um sorriso nos lábios. Acabadas as noites no Motel Paraíso. Ao sair do Alce, contudo, o pensamento foi desviado para o «filisteu» que a tinha mandado para lá.
Rafferty. Disse para consigo que a sensação desconfortável se devia a demasiados encontros com o nome Rafferty num período de vinte e quatro horas. O seu embate inicial com J. D., a cena embaraçosa com o irmão dele no Café Arco-íris, a menção da descoberta do corpo de Lucy por um Rafferty. Havia ali qualquer coisa que lhe parecia mau presságio.
Enfiou as mãos nos bolsos do blusão, e os dedos encontraram a pedra preta que M. E. Fralick lhe tinha dado. Começou a esfregá-la. A imagem de J. D. não lhe saía do espírito: um grande e sólido bloco de gritante sexualidade masculina com olhos da cor de nuvens de trovoada. O coração acelerou-se-lhe ligeiramente com a recordação dos dedos dele a roçarem-lhe os seios.
Não soubera se ele era amigo ou inimigo. Um tremor percorreu-lhe as costas.
Ainda não sabe, Marilee.
- Achas que ela sabe alguma coisa?
- É difícil saber - respondeu Bryce, brincando com o fio do telefone em volta do indicador, aborrecido com a conversa.
Estava recostado numa espreguiçadeira vitoriana estofada de veludo malva. Detestava tudo o que era daquela época, mas os aposentos que mantinha no pavilhão encontravam-se assim mobilados e não estava para se incomodar com o assunto. Só passava lá algum tempo quando não lhe apetecia guiar até Xanadu depois duma noitada ou quando queria afastar-se do seu ambiente.
Tinha a atenção fixa na mulher do outro lado da sala, Sharon RusselI, sua prima. Tinha meias brancas transparentes e corpete de virginal renda branca que contrastava drasticamente com a sua pele bronzeada. Era uma imagem capaz de fazer ferver o sangue a um homem, com o corpo longo e anguloso de grandes seios cónicos e salientes bicos no centro como dedinhos, como pequenos pênis. O corpo francamente feminino contrastava quase perversamente com as feições fortemente masculinas do rosto. O contraste excitava-o ainda mais.
Bebeu um golinho de Campari e voltou à conversa telefónica.
- Ela não deu qualquer indicação de saber alguma coisa, mas eram amigas íntimas. E já lá esteve na quinta.
- Temos de a vigiar.
- Hum...
- Tens a certeza de que não encontraste alguma coisa?
- Claro que tenho a certeza. Não há coisa alguma para encontrar. A casa foi completamenta revistada.
A voz na outra ponta da linha tomou um tom truculento mas a tremer de medo sob a superficie:
- Raios te partam, Bryce, ouve bem o que eu digo! Não me gozes e deixa-te de truques!
Bryce revirou os olhos para o telefone em cima da mesa, irritado com o homem no outro lado da linha. Um fraco. Não tinha verdadeiro poder e sabia-o. Bastava ele, Bryce, dar um estalinho com os dedos que o outro se mijava. Sem grande esforço, podia esmagá-lo, arruiná-lo. Deixou o peso dessa verdade pairar no ar enquanto deixava a linha em silêncio.
-Não sejas maçador - disse por fim, num tom cortante como uma lâmina de tungsténio. Sem esperar resposta, poisou o auscultador e dedicou toda a sua atenção novamente à prima.
Sharon era a única pessoa das que o rodeavam que não mostrava o mais pequeno receio dele, atitude que recompensava considerando-a sua igual em muitas coisas. Eram ambos ambiciosos, impiedosos, esfomeados nos seus desejos, sem medo de agarrar fosse o que fosse ou de fazer experiências. Não tinham medo de coisa alguma.
Ela avançou na sua direcção, com os saltos finos a enterrarem-se na alcatifa clara e os olhos brilhantes de luxúria. Bryce recostou-se e sorriu quando ela se escarranchou no seu corpo nu.
-Está com medo da tal Jennings? - perguntou ela, arranhando-o ao de leve no peito.
-Ele tem medo da própria sombra.
- Bom, confesso que não gostei que ela aparecesse por cá - disse Sharon, em tom calmo. - Não temos maneira de saber o que a Lucy lhe contou ou se suspeita de alguma coisa.
Bryce suspirou e arqueou o corpo ao toque dela.
- Pois não, mas depressa vamos saber.
- Qual é o teu jogo com a empregada do bar? - perguntou ela. Tinha uma voz quase tão masculina como as feições, um tom grave, velado e caloroso. Punha-lhe os nervos em franja.
-Estou só a ver em que param as modas - garantiu Bryce, estendendo as mãos para as encher com os seios dela. O plano ainda estava demasiado fresco para poder partilhá-lo. Queria saboreá-lo primeiro um pouco. - Não te preocupes.
Num movimento rápido e experiente, Sharon enrolou uma faixa de seda preta à volta dos pulsos dele, apertando-a mais do que seria necessário. Depois, empurrou-lhe as mãos acima da cabeça e prendeu a faixa a uma saliência decorativa da espreguiçadeira.
-Não - disse ela, com um sorriso maquiavélico, colocando-se por cima da erecção dele. - Não te preocupes tu. Só comigo. Só com isto.
- Sim - suspirou ele, ansioso, pensando que ia explodir. Então, ela empalou-se nele e ele deixou por completo de pensar.
Também ela entendia perfeitamente a sua linguagem corporal. J. D. sabia que noventa por cento da comunicação dum cavalo era visual, um dos grandes mistérios de lidar com um animal como aquele. Nunca conseguira entender como alguém em contacto com cavalos não via isso em cinco minutos. Era estupidamente simples.
Fez um som de beijo quando a atenção da égua começou a desviar-se, e o animal espetou logo as orelhas e olhou para ele. Deu um passo e estendeu a mão para ela soprar.
- Linda menina - murmurou, esfregando-lhe o pescoço - Muito bem, assim é que é.
Quando lhe voltou as costas, o animal baixou a cabeça e começou a segui-lo. J. D. virou-se e enxotou-a para junto da vedação, a trote. Aquele era um dos grandes mistérios marcar a sua posição. O domínio nada tinha a ver com a força e tudo com um comportamento que o cavalo pudesse compreender. Ele ali era o patrão, e ela tinha de se mover quando ele queria, dar a volta quando e como ele queria. Descansava quando ele lho permitia. Aprendia a voltar-se de frente para ele, a manter-se atenta, porque, se não o fizesse obrigava-a a correr mais e ela já estava cansada, com calor e a respiração acelerada.
Fê-la descrever um oito com pouco mais do que uma mudança de posição e um sinal com a mão. Era uma égua bonita, pequena, forte - um animal à antiga, próprio para lidar com o gado. A pelagem era dum doirado-escuro, naquele momento suja de suor e terra. A crina e a cauda eram platinadas - tipo maritacaca, achava ele - uma mistura de pêlo prateado, branco e preto. O topete caía-lhe para os olhos, o que a obrigava a sacudir a cabeça num gesto gracioso para o atirar para trás. Pertencia ao farmacêutico de New Eden, que a queria domada e segura para ser montada pela filha de doze anos. Era um dos quatro animais que J. D. treinava naquele momento. Gostava do trabalho, e ele dava-lhe um dinheiro extra, coisa que nunca tinham em quantidade que chegasse, da maneira como estavam as coisas.
- Linda menina, boa menina - murmurou ele, deixando o animal descansar novamente.
Menina... Mary... Marilee. Começou a divagar enquanto acariciava o pescoço da égua com a mão enluvada. Marilee. Que diabo de nome peneirento era aquele? Coisa da Califórnia. Pois não ia usá-lo!
Também não havia motivo para pensar que alguma vez ia ter oportunidade para isso. Ela tinha vindo visitar uma pessoa que morrera. Ficava lá um dia ou dois, até o choque passar, e depois ia-se embora.
Contraiu os maxilares contra a sensação despertada por esse pensamento. O irmão tinha razão, por muito que lhe custasse admitir. Precisava duma mulher. Já estivera demasiado tempo sem uma e começava a sentir-se nervoso e perturbado.
Em pensamento, via Lucy de pé à porta da sua aperaltada casa de madeira, vestindo apenas umas cuecas pretas cavadas e uma blusa transparente. Encostada à ombreira, completamente descontraída, com os olhos a brilhar divertidos, e o cabelo amarelo caído sobre um ombro numa onda sedosa.
Que tal, vaqueiro? Apetece-te montar esta noite? Não gostava dela, não a respeitava e achava-a uma safada egoísta e mesquinha. Por sua vez, Lucy tinha em relação a ele uma série semelhante de nomes e sentimentos; porém, não haviam deixado que isso se intrometesse no caminho do que ambos queriam. Não passara duma brincadeira para Lucy, que sabia que ele queria as terras dela. Agitara isso diante dele, numa brilhante e oca promessa que nunca fizera tenÇões de cumprir. Safada. E agora desaparecera para sempre e as terras continuavam a fugir-lhe.
Uma olhadela para o Sol que ia descendo em direcção à cordilheira Gallatin disse-lhe que eram horas de acabar. Precisava de tomar um duche, fazer a barba e meter-se no carro para descer o monte.
Perda de tempo desnecessária, comissões de moradores. Juntavam-se para implicar e discutir como um bando de gansos, e nunca resolviam fosse o que fosse. Podiam fazer o barulho que quisessem, mas no fim falava sempre o dinheiro e estava tudo dito. O que os homens vulgares tinham a dizer não contava. Eram esmagados pelas ideias de progresso dum tipo qualquer de fora.
Mas não os Raffertys... Essa convicção afastava-lhe todos os outros pensamentos.
Não os Raffertys, por Deus. O Rancho dos Confederados não cairia. Ele não deixava. Era o seu legado de três anteriores gerações de Rafferty - protegê-la, mantê-la na família. Era um dever que levava muito a peito, mais uma vOcaÇão do que um dever. Mais um sentimento de servir a terra, de tradição, do que de a possuir. Tinham-lhe confiado uma história, a vida da herdade e de tudo e todos os que lá viviam. Nada era mais forte do que esse sentimento de resPOnsabilidade pessoal pelo que lhe fora confiado.
. Esquecendo a égua, encaminhou-se para o outro lado do Picadeiro e encostou os braços à vedação. Dali via tudo pela encosta do monte até ao largo vale atapetado de verde. Os Pinheiros encostados uns aos outros formavam filas que pareciam marchar pelas encostas. Com a brisa, as folhas verde-claro dos álamos tremiam como lantejoulas. Não sabia se os tons de verde dali eram comparáveis aos da terra natal dos seus antepassados irlandeses; nunca tinha ido para além de Dallas. Mas conhecia cada tom de cor, cada árvore, cada folha de erva. A ideia de que alguém de fora acreditasse ter mais direito a tudo aquilo era como um murro no estomago,
A égua tinha parado junto dele e empurrou-o, esfregando-lhe a cabeça no ombro, na tentativa de chegar ao outro lado e agitar o pesado lábio superior contra o bolso da camisa. J. D. franziu a testa na sua direcção.
- Está quieta! - resmungou, em tom de aviso. O animal recuou um passo, sacudiu a cabeça, com os olhos brilhantes, e não se mostrou intimidado com o aborrecimento dele. J. D. riu-se, tirou uma luva e procurou um rebuçado no bolso.
- Não consigo enganar-te, pois não, eguazinha? - resmungou, dando-lhe a guloseima.
- Achas que consegues pôr a comissão de moradores a comer-te da mão dessa maneira?
Era um dos dois empregados do Rancho dos Confederados, tanto por lealdade como por necessidade. O outro, Chaske Sage, afirmava ser descendente dos míticos Sioux, o que podia ser verdade ou não. Era um velhote astuto, provavelmente tão velho como Tucker, mas que mantivera o reumatismo à distância, ao contrário deste. Atribuía a resistência ao sexo e a uma misteriosa mistura de cinza, salva e pele de cascavel em pó que tomava todos os dias.
- Ná! - respondeu J. D. - Todos juntos não têm O bom-senso que Deus deu aos cavalos. - E aplicou uma palmadinha na égua, encaminhando-a para a saída. O animal seguiu-o como se fosse um cão. - Alguns por acaso até sãO parecidos com o traseiro deles.
Tucker cuspiu um jacto de suco castanho para o chãO exibiu o seu tímido sorriso que mal deixava ver os dentes escurecidos.
- Realmente, filho. Nunca vi maior grupo de bestas. Abriu a cancela e passou à frente de J. D. para prender uma correia ao cabresto da égua. - Eu arrefeço-a. É melhor despachares-te, se queres ir à reunião. O Will já foi para casa.
- pois. Mas esse fica uma hora em frente do espelho. Se passasse tanto tempo com a mulher como a escolher a roupa que vai vestir...
- Já arranjei a vedação lá em cima ao pé da rocha azul. Tucker mudou de assunto com toda a subtileza, mas J. D. notou a manobra. Tucker estava na quinta havia imensos anos. Tinha sido companheiro do velho Tom, ficando ali fielmente e trabalhando que nem um cão durante todos os anos em que Samantha lhes fizera a vida num inferno. Substituíra o pai para J. D. enquanto Tom era apanhado pelo sofrimento dum coração despedaçado, e fora o seu mentor depois dele morrer deixando a quinta aos dois rapazes, quando J D. tinha apenas vinte anos. Actualmente, o seu papel era muitas vezes o de diplomata. Não gostava de discussões e fazia o possível por apaziguar as coisas entre os dois irmãos.
-Encontraste a velha Dinah? - perguntou J. D., enquanto caminhavam pelo pátio, com as botas gastas a levantar pequenas nuvens de poeira.
- Encontrei - respondeu o velhote com uma risadinha.
- Para trás do sol-posto, com um belo vitelo ao lado. É uma vaca que sabe muito bem o que quer, como todas as féneas que tenho conhecido.
A eguazita relinchou, como se estivesse ofendida, cusPindo para as costas da camisa do velhote. Este fez-lhe cara de POUCOS amigos, mas continuou a andar, resmungando: -Por amor de Deus...
- É por isso que és solteiro - brincou J. D., dirigindo-se a casa.
-Pois é, e qual é a tua desculpa, espertalhão? SOU muito esperto, precisamente.
- Demasiado, se queres que te diga.
O seu plano nada tinha de romântico. Enquanto crescia, vira de perto a loucura do romance. O pai perdera o coração duas vezes, primeiro pela mãe dele, Ana, que morrera de cancro quando ele tinha apenas três anos. Não se lembrava dela, só de sensações - conforto e segurança, suavidade. Mas recordava nitidamente a sua morte e o modo como ela destroçara o pai. Depois, aparecera Samantha Remick. Cedo de mais, demasiado bonita, demasiado mimada. E Tom Rafferty tinha perdido de novo o coração por uma mulher. Completamente. Inteiramente. Para além de todo o orgulho ou bom senso.
No fim, quase perdera tudo. Samantha acabara por deixá-lo por um homem mais excitante. Por causa das infidelidades dela, Tom tivera grandes hipóteses de ganhar a custódia do seu adorado Wil]. Foi essa a única coisa que a impediu de pedir o divórcio e de ficar com metade de tudo o que ele possuía incluindo a propriedade. Tiveram amargas discussões por causa da recusa dele em a libertar do casamento, mas ele não cedera. Não lhe fizera a vontade. A sua obsessão era demasiado profunda. Em retrospectiva, J. D. pensava que o pai provavelmente não era capaz de a libertar, mesmo que quisesse.
Tinham ficado ali parados, J. D. e o pai, a olhar para os velhos edifícios da propriedade, os currais, os cavalos, o vale e os montes do outro lado. A cara de Tom Rafferty sulcada de rugas de tensão e os olhos sem esperança dava-lhe 1 aspecto de quem estava apenas à espera da morte.
- Nunca ames uma mulher, filho - resmungara ele, como se recordasse palavras que alguém lhe dissera muito tempo antes. - Nunca ames uma mulher. Ama a terra.
Os cidadãos do vale do Eden reuniam-se geralmente no centro comunitário - um amável eufemismo para uma sala ao lado da garagem do quartel dos bombeiros cheia de cadeiras de armar desengonçadas e mesas de jogo das que as pessoas iam dando. O facto de fazerem a reunião na estalagem do Alce Alegórico era mau sinal para J. D. o inimigo convidava-os para o seu campo. Alguns viam aquilo como uma tentativa de amizade, um convite para trabalhar em cooperação com os recém-chegados. J. D. não estava tão optimista.
A sala de reunião era clara e estava impecável, alcatifada de vermelho e com vigas rústicas no tecto. Cheirava agradavelmente a café acabado de fazer, em vez de a motores a gasóleo como no centro comunitário. As mesas cobertas de panos verdes estavam rodeadas por cadeiras novas. J. D. decidiu instalar-se ao fundo.
Os assistentes eram mais ou menos uns cem, em grupos, trocando comentários sobre a possível agenda da reunião. A maioria era gente que sempre vivera em New Eden, homens e mulheres com negócios na comunidade, fazendeiros que, tal como J. D., tinham deixado o trabalho horas mais cedo para se lavar e vestir camisas acabadas de engomar, calças de domingo e botas decentes. Espalhadas entre as pessoas normais, havia caras novas - tipos de Hollywood, artistas, activistas ambientais e Evan Bryce.
Bryce preocupava-se era com o poder. Isso parecera gritantemennte aparente aos olhos de J. D. assim que se tinham conhecido - pela maneira como distribuía dinheiro à sua volta e se rodeava de gente que o julgava importante. J. D. recusara-se a ficar impressionado, afronta que marcara o tOM das suas relações. Bryce queria ser o rei da montanha ao longo da encosta sul da cordilheira dos Absarokas, mas - não estava disposto a colaborar. Nenhum Rafferty se vergara perante um rei - verdadeiro ou não. E nenhum Rafrerty o faria.
E como se sentisse os olhos de J. D. poisados nele, Bryce a cabeça e os olhares de ambos cruzaram-se durante um momento escaldante. Um lento sorriso pairou nos lábios de Bryce e os olhos pálidos brilharam-lhe, divertidos A sua expressão dizia claramente: Tenho as chaves do rqf bem à mão de semear. Rafferty, não podes fazer seja o que for para me impedir de as agarrar. Depois, afastou-se continuando a dar um beijo aqui e um aperto de mão acolá: -Olá, J. D. - exclamou Red Grusin, estendendo a mão e dando-lhe uma palmada nas costas com a outra. Ultimamente quase não te vejo.
Como dono do Inferninho, Red nunca o vira muito, porque J. D. tinha coisas melhores para fazer do que ficar sentado numa espelunca a beber cerveja.
- O Will passa tempo suficiente com vocês todos por nós dois - respondeu com um meio sorriso. O mais certo era o irmão estar precisamente lá naquele momento. Na sala de reuniões ainda não aparecera.
Grusin soltou uma gargalhadinha. Era um homem grande com pernas fininhas e peitaça e barriga que o faziam parecer almofadado debaixo da camisa. Tinha as faces e a ponta do nariz bulboso perpetuamente encarnadas.
- É verdade. Olha, ainda ontem à noite acertou em cheio nas corridas de ratos. Claro que isso não compensou o que já tinha perdido ao pôquer - disse o homem, baixando a voz em tom de conspiração, com os olhos azuis a brilhar. Uma pequena brincadeira entre amigos: Will e a sua tendência para apostar. - Mas lavando sai tudo, como costumava dizer a minha mãe.
O Will esteve no Purgatório ontem à noite? -- perguntou J. D., com a voz calma como o ar antes duma tempestade.
A queixada de Grusin descaiu ligeiramente e ele engoliu em seco ao aperceber-se de que tinha metido a pata na poça. -Quanto é que ele perdeu?
Grusin fez uma careta, desviando os olhos para a sala, como se receasse os ouvidos do xerife e que ele lhe lembrasse de repente o jogo ilegal que se realizava na cave do ’ inferninho havia duas décadas.
- Não te preocupes, J. D. Ele recupera. Tem andado com pouca sorte e está metido num buraco, mas...
-Quanto? - perguntou em voz baixa.
o outro moveu os lábios como se estivesse a mastigar giz.- Seis mil e quinhentos - murmurou. - Mas não te preocupes, J. D. - O seu olhar percorreu freneticamente a sala, à procura de alguém que pudesse salvá-lo, até que avistou Harry Rex Monroc. O alívio alegrou-lhe a expressão como quem tem uma visão.
-Olá, Harry Rex!
-Ouvi falar duma estação de esqui no pico do Irlandês...
-... Um empresário qualquer parece que vai construir condomínios perto da cidade.
- E transformam aquilo noutra porcaria como Aspen com bares a vender cafezinhos e chalés amaricados com rendas tão altas que as pessoas de cá não podem lá chegar.
Conversas daqui e dali iam penetrando o nevoeiro, e J. D. fez um esforço para prestar atenção. Fora ali por um motivo. De Will tratava depois.
Seis mil e quinhentos dólares. Sentia-se indisposto, mas diabos o levassem se o deixasse transparecer.
Lyle Watkins, um dos seus vizinhos, olhava para a chávena de café que tinha na mão. Parecia magro e infeliz, como se as preocupações o tivessem desgastado.
- É bom, mas não podemos alimentar os miúdos com Orgulho e paisagem - explodiu ele de repente, interromPendo a conversa contra a construção de condomínios.
- Não os podemos alimentar e ponto final, se estes malditos actores trouxerem para cá manadas de búfalos e alces infectados com brucelose e tuberculose - contrapôs J. D. calmamente.
Lyle evitou-lhe o olhar, esfregando a chávena com as Pontas dos dedos como se fosse uma pedra com poderes mágicos.
- Ainda ninguém provou que as manadas do Bryce estejam infectadas - disse ele.
- E eu não quero que a prova seja os meus animais caírem para o lado. Tu queres, Lyle?
Watkins apertou os lábios e não respondeu. O silêncio nada pressagiava de bom e pesava no peito de J. D., que disse entre dentes:
- Vais vender.
As palavras pouco mais foram que um sussurro, mas Lyle encolheu-se como se tivesse apanhado uma martelada, -Ainda não fiz negócio - disse, olhando para as biqueiras das botas, como se a vergonha lhe fizesse pendera cabeça.
Fora um dos primeiros a protestar vivamente contra a compra das propriedades por pessoas que queriam a terra para seus campos de jogos particulares, e agora cedia, traindo o vizinho.
-Não posso fazer outra coisa, J. D. - disse ele, com ar infeliz. - Sabes como as coisas estão, e eu tenho de pensar na Debbie e nos miúdos.
- Meu Deus, Lyle, há quanto tempo é que a tua família está cá? Setenta... oitenta anos? - perguntou J. D., com o desespero a atravessá-lo como uma espada. Parecia-lhe estar de pé num estreito parapeito que se ia desfazendo debaixo das botas.
-Há bastante.
- Quem?
Walkins abanou a cabeça e começou a dirigir-se con o resto das pessoas para as cadeiras quando Jim Ed Wilcox soprou para o microfone no pódio. J. D. agarrou-o brutalmente por um braço, ignorando os olhares na sua direcção,
- Bolas, Lyle, eu perguntei-te quem! - exigiu ele entre dentes.
O facto de ele não querer responder foi resposta suficiente. J. D. sentiu-se como se ficasse sem respiração. Olhou fixamente para aquele homem que conhecera toda a vida, o vizinho com quem trabalhara lado a lado em terras e recolhas, sentindo-se como se um membro da sua própria família se tivesse voltado contra ele.
- O Bryce - resmungou J. D., repugnado.
Lyle Watkins levantou os olhos cansados e murmurou com ar de quem pede desculpa:
- Lamento, J. D., mas ele tem mais dinheiro do que Deus, e eu não tenho um tostão - proferiu Watkins, olhando para ele com uma expressão de desculpas nos olhos cansados. Depois, baixou a voz mais um bocadinho, olhando para todos os lados, para ter a certeza de que ninguém ouvia a sua confissão: - ou lhe vendo a ele, ou o banco fica com tudo. Mais nada.
-Mais nada, uma ova!
Watkins libertou o braço e dirigiu-se para uma cadeira, sem olhar para trás. J. D. ficou de olhos fixos nas costas dele, furioso, atordoado, frustrado. Nem sequer ouviu as frases iniciais do Presidente da mesa. Deixou-se ficar ali atrás da última fila de cadeiras, com a mente num torvelinho e o olhar em Evan Bryce, instalado à mesa principal com todos os Índignatários», como costumava chamar-lhes. Se Lyle Watkins vendesse as suas terras, Bryce ficava com tudo desde o pico do Irlandês até aos limites do Parque Yellowstone
- tudo, excepto o Rancho dos Confederados e a pequena propriedade que pertencera a Lucy MacAdam.
Bryce estava ali sentado com a sua camisa de ganga desbotada e as mangas arregaçadas para mostrar os braços bronzeados. Deus, o homem provavelmente nunca fizera um dia de trabalho honesto em toda a sua vida! Ninguém tinha sequer a certeza da procedência de todo aquele dinheiro. Ou dele próprio, já agora. Hollywood era tudo o que constava, e Deus sabia que as fortunas lá não se faziam com o suor do rosto de alguém.
Ele tem mais dinheiro do que Deus. Deus era precisamente o papel que Bryce queria desempenhar ali, pensou J. D. com amargura. Ia responder às perguntas com todo o à-Vontade e toda a benevolência paternal dum ser supremo, dizendo-lhes que tudo ia ser uma maravilha, que as suas finanças iam melhorar duma maneira espantosa e que aquilo seria um autêntico paraíso.
Para crédito dos cidadãos de New Eden, nem todos iam na Conversa. Levantavam-se para debater as questões. Quando uma Pessoa afirmou que o desenvolvimento na construção traria empregos para o vale, outra contrariou-a lembrando que seriam ocupações laborais com salários baixos, Quando uma criticou o influxo de turistas como perturbação do estilo de vida local, outra argumentou que a cidade morreria sem os dólares desses turistas. Ganadeiros protestaram energicamente contra a força política de ambientalistas radicais de esquerda que possuíam ali casas secundárias e lutavam para acabar com tudo desde pastar em terras federais até comer carne vermelha. Os ambientalistas contra-atacaram, afirmando que a indústria do gado destruía os pastos e o habitat dos animais selvagens.
Jim Ed Wilcox, presidente da mesa, interrompeu o debate quando este parecia querer transformar-se numa cena de pancadaria. Tornou a interromper quando rebentou uma discussão entre um lavrador mórmon de Bitter Creek e a dona de uma loja de pedras da New Age, ou lá que raio era, uma mulher alta de aspecto feroz chamada M. E., que era uma actriz qualquer da Broadway quando não andava por ali a brincar no montana. O lavrador acusou-a de praticar bruxaria e ela acusou-o de ter um campo de energia negativa e um espírito empedernido. Wilcox pregou-lhes um berro e, quando a ordem ficou restabelecida, deu a palavra a outra pessoa da mesa principal.
Colleen Beritsen era uma mulher atarracada com cabelos castanhos encaracolados e grandes óculos de aros de tartaruga. Trazia calças e uma túnica de seda azul, com um grande lenço de padrão garrido em volta dos ombros e preso com O que pareceu a J. D. um matacão de solda. Tomou lugar atrás do pódio enquanto dois homens transportavam um objectO tapado com um pano por uma porta lateral e o colocavam na mesa junto dela.
-Boa noite a todos - saudou ela num murmúrio, que obrigou Jim Ed a levantar-se e a dobrar o microfone para baixo, fazendo-o guinchar em protesto. A mulher corou, aclarou a garganta educadamente e começou de novo. Como muitos sabem, sou escultora. Vim para New Eden há dois anos e instalei-me cá permanentemente. Sinto que aquilo de que todos precisamos é de espírito de cooperaÇãOComo símbolo desse espírito, decidi doar à cidade uma escultura que personifica o tema da cooperação e mistura 82
harmoniosamente os elementos rudes da comunidade rural com o fluxo de qualidades sofisticadas e artísticas do exterior.
Destapou o modelo com um gesto rápido, arrancando o pano branco que o cobria. Metade da sala ofegou de espanto e a outra metade ficou a olhar para aquilo completamente estarrecida. J. D. pertencia ao segundo grupo. A única coisa que via era um grande bocado de metal liso e outro de metal rugoso entrelaçados, como alguma coisa que podia ter sido encontrada na estrada após um grande desastre de carro.
Ouviu-se uma salva de palmas entusiásticas para a peça que, segundo a escultora, ficaria num ponto central em frente do tribunal do condado. Começaria a trabalhar de seguida no projecto, criando a peça no local para as pessoas poderem observar o progresso.
- Acho que é um gesto simpático, Miss Bentsen afirmou J. D. em tom neutro, atraindo para si os olhares de toda a gente na sala. - Mas não vejo como é que um grande matacão de metal vai ajudar-me a pagar os impostos que subiram astronomicamente por causa da inflação nos preços dos terrenos. E um gesto não evita que os meus vizinhos vendam a nossa melhor terra a pessoas que acham que a comida é fabricada numa sala atrás do supermercado. O que interessa agora é fincarmos os pés e agarrarmo-nos ao que é nOSSO, ou daqui a cinco anos andamos todos a fazer de criados de gente rica. Não foi para isso que os meus antepassados vieram para esta região há cento e tal anos.
Enquanto a escultora ficava vermelha de embaraço, Brye levantou-se elegantemente da cadeira, unindo as mãos diante de si numa pose académica, com os olhos pálidos fiXos em J. D.
- Mister Rafferty, o senhor está a afirmar que só os naturais devem ter autorização para viver no montana? Que estas terras e a liberdade que o senhor tanto aprecia não devem ser oferecidas a alguém que nasceu noutro estado? J. D. semicerrou os olhos e, sem elevar a voz acima do Seu baixo resmungo habitual, respondeu, fazendo cada palavra soar COMO o estalo dum chicote.
- Não posso impedir as pessoas de virem para cá, mas elas Podem perfeitamente respeitar a minha maneira de ser e deixar-me em paz. Não me deixo comprar e não me deixo afastar daqui. E, com um raio, não vou ficar por aí todo sorridente enquanto especuladores transformam a terra numa espécie de parque de diversões elitista e peneirento.
Enfiou o chapéu na cabeça, indicando a todos que a discussão tinha terminado no que dizia respeito a J. D. Rafferty.
- Se eu quiser viver num parque de diversões, mudo-me para a Dísneylândia - disse ele em voz baixa, com firmeza.
Will estava sentado no bar, com um braço apoiado na sua superficie polida, acariciando distraidamente uma caneca de cerveja importada. Fez rodar o banco, para observar a sala. Era ligeiramente exagerada para o seu gosto. O lume crepitava na lareira de pedra, afastando o frio da noite de Primavera. Dos altifalantes escondidos, vinha a música suave duma guitarra, suficientemente calma para adormecer um homem.
Will preferia o Inferninho, com o seu barulho, truculência e corridas de ratos. A máquina de discos tocava música country alto como trovoada, e ninguém falava abaixo dum grito. As bebidas eram melhores no Alce mas, bolas, depois de duas ou três, que diferença fazia?
Cerca de metade das mesas estava ocupada por gente de fora recém-chegada e a passar férias, gente bonita com roupas caras. uma loira com ar exótico sozinha a uma mesa despertou-lhe a atenção e retribuiu-lhe o olhar abertamente mas Will desviou os olhos, Não tinha ido ali para se deixar engatar por uma cabra rica à procura dum vaqueiro para ir para a cama. Havia entrado porque a mulher dele andava por entre a clientela com uma bandeja na mão e um sorrisO mais suave do que seda e mais quente do que o Sol.
Bolas, mas era mesmo bonitinha. Não sabia por que motivo, mas só tinha percebido como era bonita depois de se terem separado. Nem sempre pensara em Sam como engraçada - se alguma vez pensara realmente nela. Uma miúda gira, uma maria-rapaz que tinha gostado dele. Agora, olhava para ela, vendo-a colocar um copo de vinho diante dum cliente, com as calças de ganga apertadas no rabiosque, O que o fez desejar nunca se terem casado. Teria adorado conseguir enfiar-se na cama dela naquela noite, mas isso estava fora de questão com as coisas como estavam.
Abanou a cabeça e bebeu a cerveja dum trago. Preferia mil vezes uma vida sem complicações.
Samantha sentiu os olhos dele sobre si no instante em que poisava a bandeja no balcão, e o coração deu-lhe um salto no peito. Tinham passado duas semanas desde que Will se mudara para a casa do rancho e ela não voltara a vê_lo de perto desde a última discussão entre os dois.
A lembrança da loira do Inferninho lutava com a imagem dele ali sentado no banco do bar, demasiado belo, com olhos demasiado azuis e um sorriso demasiado tentador. A pressão fê-la sentir o coração inchar e sufocá-la.
- Não me falas, Sam? - perguntou ele baixinho. Voltou a cabeça para o olhar de frente, desejando que ele visse uma fria indiferença nos seus olhos, mas sabendo que veria apenas sofrimento.
-Que estás aqui a fazer?
Boa pergunta. Mordeu o lábio por dentro e tentou pensar numa resposta inteligente, numa coisa que não soasse tão confusa como se sentia. Ele é que tinha querido sair do casamento; não podia muito bem dizer-lhe que tinha saudades dela.
- Estamos num país livre - disse por fim, quase se encolhendo, de tão coxa que era a resposta.
Samantha endureceu a expressão, desejando que o sofrimento não transparecesse. No fundo, tinha querido que ele dissesse que sentia a falta dela, que precisava dela, que queria voltar a tentar que o casamento resultasse. Constantemente o imaginara a vir ter com ela implorando o seu perdão, dizendo-lhe com lágrimas nos olhos que a queria acima de tudo, que queria ter um filho com ela. Isso era o que ela queria. E ficava danada consigo própria. Já não era uma garota sonhadora; era uma mulher cujo marido a enganava descaradamente.
- ]Bom, então és livre de ir até ao Inferninho - retorquiu Sam bruscamente. - Tenho a certeza de que estão lá Uma Ou duas manhosas à tua espera.
O protesto de Will ficou-lhe preso na garganta, enquanto ela dava meia volta e se afastava com a bandeja carregada. Suspirando, apoiou os cotovelos no bar e deixou cair a cabeça.
- Olha, Tony, dá-me aí um uísque, dás? - murmurou na direcção do empregado.
- Vamo-nos embora.
-Qual é o teu problema? - perguntou Will. - Além de ti?
-A reunião não pode ter acabado já. -Para mim, acabou.
- Ah, bom, então... Nesse caso, podemos ir todos para casa. Falou o São João - disse Will em tom sarcástico e abrindo os braços num gesto expansivo.
- Poupa as tuas gracinhas para alguém que as queira ouvir. Vamos embora.
Will abanou a cabeça, ligeiramente incrédulo perante a atitude do irmão.
- Ao contrário do que pareces julgar, mano, não mandas em mim. E tenho o meu próprio transporte, sabes?
- É. E uma noite destas talvez até estejas suficientemente sóbrio para o levares para casa.
- Vou levá-lo hoje - insistiu Will.
-Antes ou depois de perderes mais um milhar ou dois no Purgatório?
-Merda! - exclamou Will,fechando os olhos.
- Pois é - comentou J. D., olhando em volta para ter a certeza de que não havia alguém a escutá-los. Fez sinal ao empregado para encher de novo o copo e encostou-se pesadamente ao balcão. - Meu Deus, Will,como é que foste capaz? Seis mil e quinhentos!
- Tinha uma boa mão, J. D. - disse ele, colocando as mãos diante de si como se pudesse ver as cartas. - Tinha-a aqui mesmo e olhava para aquela massa toda e pensava: Por Judas, é o empréstimo sobre a minha carrinha, são três pagamentos da hipoteca, é a entrada para aquele campo do outro lado do vale...
- São seis mil e quinhentos dólares que podias igualmente ter deitado fora.
- Obrigado, J. D., por me fazeres sentir ainda pior. Eu estava a tentar ganhar - prosseguiu Will,irritado.
- Mas não ganhaste, Wil]. - Calou-se, enquanto o empregado o servia. Bebeu o uísque dum trago e poisou o copo. - Nunca ganhas.
Will estendeu a mão para a caneca de cerveja e J. D. desviou-a do seu alcance. Estava a ferver de irritação. Sentia que as coisas lhe fugiam do controlo, lhe escorregavam por entre os dedos como uma corda molhada.
- Temos gado para deslocar de manhã, lembra-te. Se não tiveres aparecido cá em baixo às quatro e meia, arranco-te da cama em que estiveres e ato-te em cima dum cavalo. Estás a ouvir?
- Perfeitamente.
- Talvez possas tentar lembrar-te de vez em quando que o Rancho dos Confederados também é responsabilidade tua. Responsabilidade e não um brinquedo, não uma coisa que possas apostar num jogo de póquer. Responsabilidade. Procura a palavra no dicionário, menino universitário.
Atirando umas notas amarrotadas para cima do balcão, Will deslizou do banco.
- Eu vou-me embora. Não tenho de ouvir esta merda. Dirigiu-se para a entrada, com o pensamento já no Inferninho, afogando as suas preocupações em bebida e nos encantos duma rapariga de rabiosque duro e moral frouxa.
Nenhum deles prestou a mínima atenção ao par de olhos que Observara todos os pormenores da discussão.
. Sharon Russel continuou a beberricar o seu uísque e sorriu para si própria. Desavenças nas fileiras dos Raffertys. BrYce ia ficar contente.
Lá fora, J. D. começou a respirar ligeiramente melhor. O uisque corria-lhe pelas veias e acalmou-o. Voltou as costas à estalagem remodelada e dirigiu o olhar para uma coisa que adorava desde rapaz: o céu de veludo azul-escuro, cravejado de diamantes. Uma fatia da Lua tocava no cimo dos Absarokas, espalhando a sua luz branca pelas encostas cobertas de árvores.
Ali de pé, a olhar para aquilo, a fúria que nos últimos tempos parecia fazer parte de si foi-se desfazendo e a tensão diminuindo. A loucura da vida desapareceu por um momento, deixando-o com uma coisa real e duradoira. Os montes estariam sempre ali. A Lua apareceria sempre. Sem querer pensar para além disso, desceu a escada e dirigiu-se para a carrinha no fundo do parque.
Não lhe apetecia pensar no irmão e no ressentimento que conseguia sempre transparecer nas suas conversas dum lado ou do outro. Não queria pensar nas palavras do menino universitário» que lhe tinham escapado. Não queria pensar na razão por que havia de sentir-se mal com aquilo, por ter mostrado fraqueza.
Will não tinha culpa de ele não ter podido acabar os estudos na Universidade do montana. A culpa era a morte do pai - por sua vez culpa de Samantha pelo desgosto que lhe dera. Como Will também não tinha culpa de ter os estudos pagos na Universidade de Missoula. Fora também obra de Samantha, que insistira em que o seu menino tivesse uma educação completa, com o dinheiro do amante. Pouca importância tinha o facto de Will se ter formado em festanças e um pouco menos em rodeos, deixando as notas pelas ruas da amargura.
As lembranças fizeram J. D. ranger os dentes. Desperdício. Deus Todo-Poderoso, como ele detestava o desperdício! O som de música despertou-lhe a atenção e fê-lo parar, olhando na direcção da estalagem. Viu as luzes acesas através das portas envidraçadas atrás do bar. Do outro extremo da rua ouvia-se o barulho do Inferninho. Mas aquela música era mais suave, vinha de mais perto. Continuou a andar, tentando ver o que o rodeava.
Um gradeamento marcava o fim do parque de estacionamento. Para lá dele ficavam as colinas que formavam o sopé da montanha, salpicadas de árvores e rochedos, visíveis ao luar. J. D. passou por entre os ferros do gradeamento e encaminhou-se para o prado, sentindo o aroma da erva e das flores silvestres, os sons duma voz quente e as suaves notas duma guitarra. Era uma voz de mulher, grave e ’ A canção que ela cantava era pungente e reflectiva, poética duma maneira que ultrapassava a simples rima. Era a canÇão duma mulher tentando seguir o seu caminho pela vida apesar dos obstáculos e da sua própria teimosia, apesar dos erros e das oportunidades perdidas.
A sua beleza e verdade fizeram-no não se aproximar. Ficou ali parado a ouvi-la cantar sobre a Lua de S. Cristóvão. E, quando acabou e os dedos dela tocaram as notas finais, quase recuou em sinal de respeito. Mas depois percebeu de repente quem era. Mary Lee Jennings.
Estava sentada numa pedra, com a guitarra no colo e uma garrafa ao lado. Não estava sozinha. Zip, o seu cão de trabalho, encontrava-se sentado junto à base da pedra, a olhar para ela, com as orelhas espetadas, atento. Foi o cão que reparou primeiro nele e desatou a correr na sua direcção com um latido de júbilo.
Mari seguiu o animal com os olhos, com o coração aos saltos assim que reconheceu o homem parado a curta distância. A aba do chapéu cinzento-claro deixava-lhe a cara na sombra, mas ela reconheceu quase instantaneamente o contorno daqueles ombros e a posição de mãos enfiadas no cós das calças de ganga. Pareceu-lhe estranho reconhecê-lo por sinais tão subtis quando só o vira duas vezes.
-Errou a vocação, Rafferty. Tinha dado um excelente espião, pela maneira como se aproxima das pessoas sem elas darem por isso - disse ela, em tom cáustico.
J.D. ignorou o comentário. Aproximou-se um pouco mais pela erva, até quase conseguir ler o rótulo da garrafa Junto dela.
-Costuma cantar assim à Lua? -As outras pessoas não cantam?
-Não, minha senhora, não por estas bandas.
Ela encolheu os ombros e prendeu o cabelo emaranhado atrás duma orelha. Com um sorriso aos cantos da boca, disse:
-Bom, pelo menos, não estou nua.
A piada quase lhe escapou, de tal maneira a imagem lhe encheu a mente. Via-a facilmente sentada na pedra lisa apenas com a sua pele cremosa e a cabeleira iluminada pelo luar.
Sentiu a tensão nele como quem recebe uma comução com comprimento de onda instintivo, que não compreendia nem estava interessada em compreender naquele momento. Não naquela altura e com certeza não com aquele homem. Fingindo ignorância, levantou a garrafa que tinha ao lado e estendeu-lha.
-Champanhe? Com os cumprimentos do Alce Alegórico.
-Você está lá?
- Apesar do ambiente inegavelmente único do sítio para onde me mandou, prefiro não ouvir o camionista do quarto ao lado a ser lubrificado - disse Mari, olhando para ele.
- Oferece sempre de beber a homens que considera parvalhões?
Mari contraiu-se, mais por causa do que ia fazer do que por alguma coisa que tivesse dito antes. Precisava de informações de J. D. Rafferty, e pareceu-lhe conveniente não o antagonizar, mesmo que isso a fizesse sentir hipócrita, mesmo que ele merecesse ser antagonizado.
Deslizou da pedra, segurando a garrafa de champanhe e a guitarra com os braços estendidos; colocou cuidadosamente o instrumento no chão, encostado à pedra, e aproximou-se dele com a garrafa como oferta de paz.
- Olhe, eu sei que as coisas não principiaram bem... mas talvez possamos começar de novo, não?
- Porquê? Que é que você quer de mim?
- Boa educação - sugeriu Mari, engolindo a pergunta que trouxera na ponta da língua toda a tarde. Como ele continuou a olhar fixamente para ela, forçou uma gargalhada e abanou a cabeça. - Meu Deus, você é mesmo desconfiado!
- Tenho motivos para isso. Eu conhecia a sua amiga Lucy, lembra-se? E ela nunca oferecia uma coisa que não trouxesse contrapartidas. Porque hei-de pensar que você é diferente?
Mari inclinou a cabeça para o lado e fez um ruído como quem pensa num assunto, com o champanhe a suavizar-lhe o mau génio.
- Esta nunca me aconteceu. Nunca fui ameaça para ninguém, a não ser que os fiascos em sociedade contem. A minha família vive sempre no terror de me ver comer com o garfo errado diante de visitas... para não falar em comer com as mãos, o que me apetece sempre fazer. A minha mãe pensa que a minha falta de maneiras é um defeito de nascença e acho que lhe apetecia fazer uma campanha na televisão para ajudar as pessoas com o mesmo defeito, se não fosse a vergonha que sente.
Ele limitou-se a continuar a olhar para ela, fazendo-a pensar se teria usado uma linguagem incompreensível para ele. Corou de vergonha e de champanhe a mais e passou o peso do corpo dum pé para o outro. Por fim, J. D. perguntou:
- Você fala sempre tanto?
-Não. Sou capaz de longos e profundos silêncios, mas não depois de meia garrafa de champanhe - confessou Mari. - Tenho tendência para fazer versos e uivar à Lua.
Ele emitiu um resmungo que tanto podia ser de aborrecimento como dum ataque de sinusite, e começou a voltar-lhe as costas, fazendo sinal ao cão para o seguir.
- Espere! Preciso de lhe perguntar uma coisa! - pediu a rapariga, tentando segui-lo, mas tropeçando na erva, com as Pernas pesadas devido ao álcool.
Ele parou, mas não se voltou, obrigando-a a desviar-se Para ficar na sua frente. Tinha uma expressão inescrutável, mas percebia-se que estava tenso. Mari perguntou a si próPria se a desconfiança viria do seu relacionamento com LUCY. Ainda pensou em acobardar-se, mas forçou as palaVras a sair-lhe da boca:
- Quem é o Del Rafferty?
- Porquê?
É Porque foi ele quem encontrou o corpo da Lucy. seu Parente?
- E você pensou que era preciso encher-me de álcool Para saber isso - troçou J. D. dando largas ao mau génio ,O que lhe agradou. Aquele era o rosto da feminilidade que ele Conhecia: a falsidade.
Ela queria alguma coisa dele, pura e simplesmente, como todas as outras sanguessugas que tinham aparecido nos seus domínios, vindas do exterior. Queriam todas alguma coisa: um pedaço disto, um nico daquilo, uma fatia, uma pedra, uns hectares, um rancho. Insinuavam-se com sorrisos e banalidades, acariciando com uma mão enquanto roubavam com a outra. Insultavam-lhe a inteligência e troçavam da sua honestidade intrínseca, e de repente desejou com todas as forças que alguém pagasse por isso.
- Malditas cabras da cidade! - rosnou. - Não sabem fazer uma pergunta directa, pois não? Têm de embrulhar tudo em algum disfarce. Porque não perguntou logo.
- Mas foi o que eu acabei de fazer! - protestou Mari, sentindo-se injustamente acusada e justamente condenada ao mesmo tempo.
Ele olhou-a com desconfiança e avançou um passo para ela.
- «Desculpe, J. D., começámos mal. Podemos começar de novo? Quer champanhe?» - troçou ele, com um esgar de escárnio. Arrancou-lhe a garrafa da mão e atirou-a para um lado, com um prazer sádico ao ver a maneira como ela saltou para trás com os olhos muito abertos. Queria-a com medo dele. - Que mais quer saber, Mary Lee? Que mais? perguntou, fazendo-a recuar até uma árvore junto à beira do parque de estacionamento.
- N... nada - gaguejou ela, recuando aos tropeções.
- É como a sua amiga Lucy? Quer saber como se brinca com um vaqueiro?
- Não...
- Quer saber como se vai para a cama com um ’
- Não! Eu...
- Estou mais do que disposto a fazer-lhe a vontade. Ou a Lucy contou-lhe os pormenores? Há?
- Não, ela nunca...
- Nunca era uma palavra que não existia no vocabulário dela! - declarou J. D. com uma gargalhada sem qualquer humor.
Mari chocou com o tronco da árvore, batendo com a cabeça de tal maneira que os dentes se entrechocaram. A casca rugosa magoava-lhe as costas através da roupa fina, que J. D. a prendia de encontro a ela. Nenhuma parte do corpo dele era mais macia do que a árvore. As coxas eram como pilares de cada lado das dela, os dedos como tiras de aço enroladas nos seus braços. Ele aproximou a cabeça, até que Mari viu o brilho da fúria nos seus olhos. Sentiu a pulsação irregular no pescoço, como um pássaro apanhado numa armadilha.
- Quer saber como é, Mary Lee? - murmurou ele, com os olhos nos dela, a trespassá-la duma maneira perturbadoramente íntima.
O hálito quente e perfumado de uísque parecia entrar-lhe directamente na boca. Quis bater-lhe, mas ele agarrara-lhe os braços. Podia ter-lhe dado uma joelhada, se não estivesse tão perto. E depois, havia o facto de sentir o corpo sem um pingo de energia.
Conseguiu formar a palavra não com os lábios, mas ela saiu apenas num ligeiro sopro.
- Mentirosa! - rosnou ele.
Não a assaltou, não a atacou. Baixou a boca até à dela, lentamente, mas Mari nada fez para o travar. Ofegou ligeiramente ao primeiro toque de carne na carne, e ele aproveitou para lhe meter a língua na boca, lenta e profundamente. Estremeceu com o sentido carnal do gesto, mas continuou a nada fazer para o impedir. Sentia-se presa por um poderoso iman, incapaz de se afastar, incapaz de impedir o seu próPriO corpo de corresponder.
Isto é uma loucura, Marilee. Ele é um vaqueiro enorme efurioso e tu nem sequer gostas dele.
O monólogo interior desvaneceu-se quando ele mudou a Posição da boca na dela e aumentou a pressão do beijo esfomeado. Mari sentia-o, sólido e pesado de encontro a si, e impressionante e inegavelmente masculino.
Fome. Deus, como ele tinha fome daquilo. Estava esfomeado, doido pelo sabor dela. Esmagou-a de encontro à árvore, desejando afundar-se nela, puxá-la para o chão com ele para o esquecimento. Meteu uma mão entre os corpos e encontrou um seio pequeno e túrgido. Esfregou o polegar no bico duro e espetado no tecido fino da camisola. A necessidade nele ao lado da fúria e da frustração, incitado Pelo sabor dela e do champanhe.
Desejava-a. Muito. Quase para lá da razão. Outra mulher em que não confiava e que não respeitava. Outra de fora, Outro dos chacais que apareciam para se alimentar da sua vida.
O gosto do desejo tornou-se amargo.
Afastou-se um pouco dela, e Mari sentiu-se recuperar os sentidos como um vento gelado. Durante o seu curto relacionamento, J. D. Rafferty tinha-a assustado, ofendido, envergonhado... e agora aquilo. Aquilo era mais do que assalto, do que humilhação. Ele tinha-a invadido, roubando-lhe a sanidade e o bom senso.
Fechou as mãos que tinha enrolado na camisa dele e começou a bater-lhe no peito com toda a força. Era como bater num elefante com uma bola de ténis. Só conseguiu aborrecê-lo.
- Como se atreve! - gritou ela, ofegante.
-Não finja que não queria, Mary Lee. Não se pode dizer que tenha lutado - disse ele, com os olhos semicerrados.
Tinha razão, mas isso não lhe aliviou a indignação. em primeiro lugar, não precisava de lhe tocar.
- São essas as suas regras para estar com uma rapariga? Atirar-se a tudo o que não lhe der primeiro com um tijolo na cabeça? Na minha terra, isso chama-se violação. Estamos nos anos noventa, Rafferty. No mundo civilizado, os homens pedem licença.
- Então talvez fosse melhor você voltar para o mundo civilizado - respondeu ele em ar de troça. - Por mim, não a quero por cá. Volte para a Califórnia e fique fora da minha vida!
Mari ficou a olhar para ele, que se afastou para apanhar o chapéu que deixara cair na escaramuça. Expeliu o ar dos pulmões três vezes, com força, tentando falar.
-Eu...? Da sua... Ai, essa é muito boa! Como se lhe tivesse pedido que travasse conhecimento com as minhas amígdalas! Quem raio pensa você que é... - J. D. Rafferty - rosnou ele, enterrando o chapéu na cabeça e puxando pela aba numa saudação trocista. O Del Rafferty é meu tio. Não gosta de estranhos, não gosta de loiras e é capaz de acertar nos tomates dum rato a muitos metros de distância. Fique longe dele também.
-Pois, parece tão simpático como você. Serei capaz de me controlar? - gritou Mari, enquanto ele se afastava com o cão nos calcanhares.
Ele nem lhe deu a satisfação de olhar para trás. Trepou para a carrinha, ligou o motor e arrancou. O cão, na caixa aberta, olhou para ela até desaparecerem na rua principal. Mari ficou a vê-los afastar-se e depois continuou ali ao luar a tapar a boca com a mão.
Serei capaz de me controlar?
Baixou-se por entre as árvores, à espera. O luar iluminava o prado. Os coiotes pareciam cantar lugubremente, escondidos, e os seus gritos penetravam nos vales. A sombra prateada da morte cobriu tudo como uma neblina pegajosa. Ficou a ver, escondido entre as árvores da encosta, à espera. Os corpos iam materializar-se na neblina - a loira, os rapazes dos cães, os tigres. Iam tomar forma a dançar a sua horrível dança sob a luz difusa da Lua, atormentando-o, atraindo-o.
Sentado entre as filas de pinheiros e abetos, as mãos suadas na coronha da espingarda, continuou à espera.
«Eu digo-te como o Sol nasceu» - murmurou Mari, deixando sair as palavras quase sem dar por isso.
Estava sentada na mesma pedra que escolhera na noite anterior para ver a Lua aparecer por cima do monte. Naquele momento, a aurora riscava o céu por detrás do mesmo pico com tons claros e suaves como neblina e ao mesmo tempo suficientemente fortes para a fazer ficar sem fôlego. Era uma experiência nova, mas, apesar disso, sentia estranhamente que já tinha visto aquilo cem vezes em qualquer outra existência. Sentia-se como se tivesse estado sempre àespera de voltar a vê-lo. Aquela beleza renovou-a como as seis horas de sono inquieto não haviam conseguido. Uma parte essencial da sua alma absorveu-o como se fosse o elixir da vida e fez correr-lhe nas veias uma profunda sensaÇão de paz.
-«Eu digo-te como o Sol nasceu... » - murmurou.
- «Uma fita de cada vez» - continuou Drew, do Poema de Emily Dickinson, num tom suave para não quebrar O encanto do momento.
Mari voltou-se e viu-o junto da pedra, vestido para fazer exercício, com calções pretos justos e uma camisola de algodão de mangas compridas do clube de críquete de Oxford. Uma bicicleta de montanha estava encostada à sOa anca direita.
- Eu costumava gostar de dormir dentro de casa, mas depois vi este nascer do Sol e jurei não perder outro - disse ele.
Mari fechou o blusão de ganga para se proteger da frescura da manhã e voltou-se completamente para ele.
- Alguma vez sente a falta de Inglaterra?
- Algumas vezes - admitiu ele com um sorriso cândido. - Mas vou lá com bastante frequência. Haverá sempre uma Inglaterra, como diz a canção, mas a minha casa agora é aqui e gosto muito disto.
-Não é difícil ver por que motivo - concordou Mari, olhando em volta, absorvendo tudo aquilo. Sentiu um estremecimento de amor novo. Não sabia que era possível ter um sentimento daqueles por um sítio em vez duma pessoa. Tentou imaginar Lucy a sentir a mesma coisa, mas não estava a ver a amiga a apaixonar-se por uma coisa que soava tão pirosa. - Sempre tive curiosidade em saber o que atraiu a Lucy para cá - prosseguiu ela, percorrendo com o olhar o prado ao sol e prendendo uma madeixa de cabelo atrás da orelha. - Quer dizer, ela gostava de estar sempre no olho do vulcão. Tinha de acompanhar as últimas modas e de ser a primeira a saber os mexericos. Não estou a vê-la a mudar-se para os confins do mundo e a plantar hortaliças... enquanto via o Sol nascer. Quando a conheci, se via o Sol nascer era porque ainda não se tinha deitado.
E não era muito diferente aqui - disse Drew, accionando o descanso da bicicleta e aproximando-se para se encOstar à pedra, com o ombro a centímetros das botas dela.
- Não se deixe enganar por todo este esplendor natural. New Eden tem os seus segredos e os seus conflitos, e a Lucy estava sempre no meio de tudo, a criar ainda mais confusão.
- Com o grupo do Even Bryce?
Hum... Penso mesmo que é uma gente tão ousada e espalhafatosa como a do seu tempo em Sacramento. O Bryec é Um homem poderoso Anda sempre com uma data de celebridades dum género oU doutro atrás dele. Actores, realizadores, modelos, políticos, advogados. Muitos também têm casas de férias aqui.
Você está a dizer é que a Lucy não deixou o mundo Para trás e que, na realidade, aqui ficou ainda mais no centro das coisas?
O Montana está na moda, para desgosto dos fazendeiros locais. E é de se ter pena deles. O preço dos terrenos a aumentar. Os impostos ainda mais... - Suspirou, e os ombros descaíram-lhe, como se o peso do dilema moral exercess, pressão sobre eles. - Mas, afinal, o Kevin e eu também fazemos parte do problema, não fazemos? Podemos ter pena dos pobres diabos, mas não fazemos tenções de sair daqui.
-Qual era a posição da Lucy?
- Só pensava nela - respondeu Drew, com um olhar seguro e honesto.
Aquilo doeu-lhe, deixando nela o desgosto inútil de a amiga não ter sido uma pessoa melhor.
-Não se parece muito com ela, querida - observou ele amavelmente.
Um sorriso triste surgiu nos lábios de Mari, que deslizou da pedra.
-Não, não tínhamos grande coisa em comum... excepto sermos amigas. O que não faz muito sentido, pois não? Ele passou-lhe o braço pelos ombros, fraternal, apertando-a levemente de encontro a si.
-Faz tanto sentido como qualquer relação. Não posso dizer que achasse a Lucy uma pessoa fantástica, mas gostava dela. Tinha um sentido de humor raro e era capaz de lutar até ao fim por alguém que achasse digno da sua amizade.
- Ela era... Bom, era apenas a Lucy. E agora desapareceu.
Durante uns momentos, ficaram os dois lado a lado, en costados um ao outro como se tivessem sido sempre amigos, em vez de se conhecerem desde a véspera. A luz do Sol aparecera por cima dos Absarocas como oiro líquido. O vale começava a despertar. Um pássaro cantou e, a meio caminho da encosta, lá em cima, uma águia voou sobre Os abetos e os pinheiros, com as asas bem abertas para apanhar as correntes de ar.
Mari observou em silêncio, deixando a paz invadi-la e arrastar tudo o mais consigo. Inspirou uma lufada de ar fresco e limpo, perfumado de pinheiro e cedro e dos suaves aromas duma dúzia de flores silvestres, deixando que ele a acalmasse, tal como o verso do poema a acalmava. Eu conto-te como o Sol nasceu - uma fita de cada vez.
Estava a tomar o pequeno-almoço quando Miller grepont apareceu. Viu-o atravessar a sala de jantar e percebeu com uma sensação de fatalismo, que se dirigia a ela. Toda a gente parou de comer com os talheres no ar, quando ele passou, com expressões que iam do horror ao divertimento.
Era tão largo como alto, praticamente um cubo dum homem, com uma cara que parecia a dum buldogue e uma cabeleira cinzenta rala e espetada num estilo semelhante ao do organizador de combates de boxe Don King. Um colete preto e doirado apertava-lhe o físico rotundo por cima duma camisa branca, com um cordão preto a fazer de gravata sob as múltiplas dobras da sua barbela. Uma enorme fivela prateada cravejada de turquesas no centro da barriga fazia lembrar um enfeite na frente de um camião Mack. Trazia as pernas das calças pretas enfiadas num par de botas de pele de cobra, ridiculamente minúsculas sob aquele corpanzil.
Mari ficou hirta, com uma fatia de melancia a meio caminho da boca e o sumo a escorrer-lhe para a mão, vendo-o aproximar-se e parar mesmo diante de si. Tinha uma beata de charuto ao canto da boca e olhava para ela através de lentes semelhantes a fundos de garrafa, os olhos estranhamente aumentados por elas.
-Minha menina, você é a Marilee Jennings? - perguntou ele, num vozeirão que se ouviu em toda a sala. A sua vontade era dizer que não, na esperança de ele se ir embora envergonhar outra pessoa, mas fez que sim com a cabeça. És demasiado honesta, Marilee.
O homem estendeu-lhe uma mão semelhante a uma luva de borracha cheia de ar, agarrando a dela sem a deixar limPar O sumo da melancia.
Doutor Miller Daggrepont - anunciou ele numa voz Capaz de acordar o fantasma de Madame Belle. - AdvogadO e homem do Renascimento. Tenho uma surpresa para si, minha menina.
Não sei se o meu coração aguenta - respondeu meio a brincar.
-Venha lá daí - ordenou o homem, puxando por ela. Isto é IMPortante. Pode comer em qualquer altura. É especialista nisso. Com o estômago a protestar, Mari foi atrás dele, pensando que nem uma manada de elefantes conseguia provavelmente afastar Míller Daggrepont,, duma mesa. Levou-a atrás de si pela entrada do Alce para a rua, qual combóio de mercadorias. Seguiu depois Pela rua principal, atravessou para a Primeira Avenida e contínuou sem ligar aos olhares curiosos das pessoas.
Os edifícios ali, tal como na rua principal, eram uma mistura de estilos e épocas. As lojas, umas práticas, outras pretensiosas - um dentista, um armazém de material para expedições, um salão de cabeleireiro. Na Boutique Dente de Urso, via-se a última moda de marcas conhecidas, enquanto na porta ao lado, um velhote se sentava numa das ’ máquinas de cortar relva diante do Centro de Jardinagem Erikson.
Entraram num edifício de tijolo com uma grande janela onde se lia no vidro Gabinete de Avaliações do Vale do Eden em letras doiradas no estilo rebuscado do século anterior. Mas a placa de latão na porta dizia: DR. MILLER DAGGREPONT, ADVOGADO.
- É aqui que tenho as minhas colecções - declarou ele, mexendo numa enorme argola de chaves. - Colecciono tudo: tabuletas, brinquedos, equipamento agrícola, seja o que for. Nunca se sabe qual é a próxima mania. Ganhei uma fortuna com artefactos índios quando os tipos de Hollywood começaram a mudar-se para cá. Acham que se tornam nativos por pendurar uma velha manta de cavalo na parede, o que não faz mal. Não passam de idiotas, na maioria.
Abriu a porta e entrou, puxando por Mari como quem arrasta uma criança recalcitrante. As paredes estavam cobertas de prateleiras do chão ao tecto. No meio da sala, uma fila de vitrinas baixas ia da entrada até à parede do fundo. Do tecto, pendiam velhas tabuletas e placas de matrícula, O chão estava pejado de tralha e, ao fundo, duas vitrinas tinham sido viradas, deixando cair uma montanha de brinquedos, peças de vidro, latas, caixas de madeira e Deus sabia que mais.
- Tome cuidado - recomendou o homem, resmungando perante o desmazelo. - Um bêbedo qualquer entrou aqui ontem à noite e virou tudo de pernas para o ar. Infelizmente, estamos muito perto do Inferninho, e os vaqueiros vêm até à cidade e endoidecem. É como meter um cavalo bravo dentro de casa.
Marí foi andando com cuidado atrás dele, passando por cima duma figura de índio e dum chapéu de senhora decorado com grandes rosas de seda desbotadas.
Trabalhei com advogados durante seis anos e garanto_lhe que nunca vi um escritório parecido com este - disse ela. -Bom, minha menina, eu não sou um advogado vulgar. Como já lhe disse, sou um homem do Renascimento.
Fê-la atravessar um vestíbulo e entrar numa sala mais pequena, ainda mais desmazelada do que a anterior, No meio daquilo tudo, viu uma velha secretária. Em cima dela, algures por entre material de pesca e outras coisas, tocou um telefone. Daggrepont não fez caso. Largou Mari, para fazer girar o fecho de segredo dum cofre embutido na parede do fundo.
-Na década de míl oitocentos e sessenta, isto era o antigo Gabinete de Avaliações - explicou. - Descobriram oiro nos Absarokas e ficou tudo doido com a febre do oiro. A cidade prosperou, mas isso não durou muito. O filão não era suficientemente rico e estava num sítio de difícil acesso. Aqueles montes são uns filhos da mãe escarpados.
Marí lera aquilo tudo nos guias de viagens, mas não fez COMentários. O homem abriu o cofre e ela pôs-se em bicos de Pés Para tentar espreitar lá para dentro por cima do ombro dele.
- Olhe, doutor Daggrepont, seria de mais eu perguntar de que se trata?
O homem deitou-lhe um olhar aborrecido, rolando os Olhos Por detrás das lentes dos óculos.
- Lucy MacAdam. - Eu era o advogado dela e a senhora é sua herdeira - disse ele, com a beata de charuto a abanar para cima e para baixo, enquanto falava.
A notícia atingiu-a como se tivesse apanhado uma martelada na cabeça, Cambaleou e tropeçou para trás.
- herdeira dela? Não pode ser. Quer dizer, porquê... QQuê? e Daggrpont não fez caso da gaguez e continuou à procura ’ nas caixas dentro do cofre.
Graças a Deus por este cofre - resmungou, - Era um belo sarilho, se algum bêbedo mexesse nestes processos.
A Inez andava toda a vida e mais seis meses a pôr os papéis em ordem! Ah, cá está, Lucy MacAdam.
Tirou o processo e conduziu Mari de novo para o gabinete, onde desimpediu uma cadeira e a mandou sentar, Encostou o corpanzil à secretária e fez-lhe um resumo dos legados de Lucy.
- Ela não tinha parentes vivos, de maneira que lhe deixou tudo. A propriedade, a conta bancária e esta carta anunciou o advogado, estendendo-lhe um sobrescrito fechado, Mari pegou nele com os dedos sem força e segurou-o no colo.
- Tudo sujeito a imposto sucessório, despesas de funeral e os meus honorários, claro.
- Claro.
- Mas é tudo seu, assim que as coisas estiverem em ordem. Ah, e quase me esquecia...
Voltou ao cofre e trouxe-lhe uma lata com o feitio de Mr. Peanut, metendo-lha nas mãos. Mari ficou a olhar para o risonho amendoim e depois para o homem.
-Que é isto? - perguntou por fim.
- É a Lucy. Quis ser cremada.
Mari regressou à propriedade com a lata no banco a seu lado. Daggrepont tinha tentado persuadi-la a vender imediatamente a quinta, dizendo-lhe que o imposto ia ser astronómico devido ao aumento do valor dos terrenos. E para que queria ela uma quinta, afinal? Tinha a sua vida na Califórnia, não tinha?
Não, não tinha, mas não quis dizer isso ao homem nem ao seu amigalhaço agente imobiliário com ar de fuinha que aparecera lá por acaso. Como um abutre aparece assim que há uma morte na estrada. Estremeceu ao pensar no par de autênticas personagens de ficção. Posso tratar da venda da propriedade, minha menina. Eu vendo qualquer coisa, em qualquer altura e qualquer lugar. Quase entontecida, estivera prestes a perguntar-lhe se lhe pintava o carro duma cor qualquer por noventa e nove dólares e noventa e cinco. - Sempre tiveste um sentido de humor bizarro, LucY exclamou, olhando de lado para a lata do feitio dum amendoim gigante. - Mas isto é de mais.
O amendoim continuou a sorrir.
Precisava de se afastar, para pensar, para tentar desembrulhar aquilo tudo na sua mente. A quinta parecia-lhe o melhor sítio. De certa maneira, pensava que talvez lá encontrasse uma resposta. Mas, por outro lado, também sabia que ia ficar ainda com mais perguntas, o que lhe punha o estômago às voltas.
À luz do dia, aquilo a que Lucy chamara lar durante o último ano era mais pitoresco do que Mari podia ter imaginado. A casa de troncos ficava num alto sobre um largo vale com um ribeiro. As colinas encontravam-se cobertas de pinheiros e abetos e, para lá do ribeiro, o vale parecia salpicado de cavalos a pastar. Apaixonou-se no instante em que se apeou do carro. Tudo aquilo irradiava uma sensação de paz, de constância. Nada ao estilo de Lucy.
- Subiu os degraus da entrada e deu a volta à casa pela larga varanda que a rodeava, até ficar mesmo por cima do ribeiro. As cadeiras e a mesa de madeira tinham escapado aos vândalos. Poisou a lata em cima da mesa de tampo de vidro e deixou-se cair nas almofadas duma cadeira de costas altas, ficando a olhar para o panorama.
Era mesmo dela. A ideia, porém, não lhe entrava na cabeça. Não fazia sentido. Nunca visitara a amiga ali. Nunca Pensara sequer na sua amizade como uma coisa tão profunda. Tinham compartilhado risos e desgostos enquanto bebíam umas cervejas. Haviam sido companheiras de copos, camaradas de armas contra as terríveis hordens de advogados que nunca estavam dispostos a pagar-lhes e queriam sempre levá-las para a cama. A ideia de que aquela relação significara algo mais para Lucy deixava-a confusa e vagamente Culpada, como se sentira no liceu quando um dos marrões Confessara que estava apaixonado por ela.
. Esperando encontrar uma resposta ou pelo menos uma Pista, tirou do bolso do blusão o sobrescrito que o advogado lhe dera e abriu-o com uma uma de unhas que trazia na carrinha. Encontrou uma folha de papel verde dobrada ao meio, rasgada em ambas as extremidades. Apontamentos de hieróglifos que só outra estenógrafa judicial seria capaz de decifrar. Era mesmo dela ser dramática do túmulo.
Mari debruçou-se para a carta, com os cotovelos apoiados nos joelhos, e leu:
Querida Mari.
Se estás a ler isto, é porque fui receber a minha justa recompensa. Achas que consigo um advogado para negociar um além melhor para mim,? Provavelmente, não. Os filhos da mãe querem sempre o melhor para eles e o resto de nós que vá para o inferno. Ora Deus sabe que fui sempre mazinha, tenho a certeza Mas isso é entre o Grande Fulano e eu.
Agora, trata-se de ti. Precisas duma vida, companheira. Por isso, dou-te a minha. Tens de me prometer que deixas o artolas do Bradford. E também que te dedicas totalmente a irritar a tua família. Todos temos a nossa missão nesta vida e essa é a tua. A minha era ser um espinho cravado em patas abastadas. E fui a maior. Foi o que me levou até onde tu estás hoje. Ou até onde eu estou?
É igual, minha querida. Pega os toiros pelos cornos e deita-os ao chão. Não entras para o Anuário Martindale-Hubbelle, mas o meu nome perdurará na infâmia e tu sempre te divertes um bocado, para variar.
Deita uma lágrima ou duas por mim. Ninguém mais o fará. Bebe um copo em meu nome. Fica sabendo que és a única amiga que alguma vez tive. E, quando te deitares com o teu primeiro vaqueiro, pensa em mim com carinho antes de montar e depois cavalga-o, vaqueira.
Aproveita, querida. A vida é demasiado curta Para jogarmos segundo as regras dos outros, sou eu que to digo. Tua numa lata de amendoins,
Lucy
Leu aquilo duas vezes. Da segunda, não fez mais sentido do que da primeira. Só conseguiu aumentar a dor da perda, os sentimentos de abandono e culpa.
Meteu a carta debaixo dos pés de Mr. Peanut e enroscou-se na cadeira, com os olhos fixos sem ver a beleza à sua frente. E pensou em Lucy, tão espalhafatosa, tão dura, rodeada de pessoas importantes... sozinha no mundo, apenas com uma companheira de copos como amiga. Cheia de segredos e sofrimento oculto. A morrer sozinha. Deixada numa encosta de montanha, esquecida.
Péssimo era um termo simpático para o humor de J. D. Aquele era o género de dia que começara mal e tinha ido de mal a pior. De manhã, Will aparecera mesmo quando ele, Tucker e Chaske se preparavam para sair a cavalo, mostrando claramente que, se tinha passado algum tempo na cama, não dormira. os olhos encarnados que nem tomates e a palidez dum tom de cinzento geralmente reservado para os cadáveres diziam que não estava capaz de montar um cavalo. Então, evidentemente que o irmão o fizera sentar-se em cima dum e seguir atrás deles toda a manhã, a comer o pó de cento, e cinquenta vacas e dos seus ruidosos vitelos.
Will não pronunciara uma palavra de protesto, mas Tucker fizera-o por ele. «Tem paciência com o rapaz. Dá-lhe uma oportunidade. Ele está a atravessar uma fase difícil. Tem dó, J. D.»
Mas Will não precisava de desculpas, quanto a ele. Precisava era de tomar juizo, dum bom pontapé no rabo. Precisara disso toda a vida, mas o pai não se preocupara o suficiente para lho dar. Tinha deixado Will com Sondra e Sondra não deixara alguém tocar no seu bebé com um dedo. É claro que o que Sondra dizia nunca tivera qualquer sígnifiCado para J. D.
- Não podes bater-me, J. D. - desafiou Will, com o lábio inferior espetado e a tremer ligeiramente, apesar do brilho feroz dos olhos. E proferiu a única verdadeira ameaça que um garoto de oito anos podia utilizar para se proteger do irmão
mais velho: - Eu digo à mãe!
- Estás a dizer palavrões! Vais para o inferno!
- Tu chegas lá primeiro, peste!
Will começou a fugir, achando que a rapidez era a melhor defesa, mas J. D. foi mais rápido e agarrou-o pela nuca, atirando-o ao chão. Lutaram na terra como dois gatos, aos gritos, os braços e as pernas entrelaçados, aos murros e pontapés. Will lutava com toda a fúria selvagem de alguém que sabia estar em nítida desvantagem, atacando o irmão com os punhos, as botas e os cotovelos.
Contendo o emaranhado de sentimentos dentro de si, cuspiu na terra ao lado da cabeça do irmão e saiu de cima dele. Will pôs-se de pé com dificuldade, com os olhos muitO abertos e sulcos de lama feitos pelas lágrimas pela cara abaixo.
- Vai a correr fazer queixa à mamã, meu parvalhão!
- Parvalhão és tu! - gritou Will,correndo atrás dele, quando J. D. lhe virou as costas e se dirigiu ao curral.
- Pois sou, e também sou o que faz tudo aqui, o que tem de emendar as asneiras que tu fazes, o que vai atrás dos animais que tu deixas fugir!
O faz-tudo, era o que ele era. Will,o principezinhO, a menina dos olhos da mamã. E J. D. o escravo que fazia tudo o que o pai deixava por fazer. O erro de cálculos dum momento que Tom Rafferty tinha carpido profundamente, e depois esquecido.
Parou na cancela e desenrolou a cadeia com movimentos furiosos, esfolando a mão. Tinha os olhos a arder, e chupou a ferida, combatendo a dor que pouco tinha a ver com a lesão. Will olhou para ele de lado, com a fúria transformada em contrição, admitindo num fio de voz:
- Eu não fiz de propósito, J. D. E não quero que estejas sempre zangado comigo.
-Que te importa o que eu sinto, verme?
- Es o único irmão que tenho.
As mãos de J. D. pararam na cancela. Eram família e isso era mais importante do que tudo o mais. Eram Raffertys, e os Raffertys mantinham-se unidos e tomavam conta da sua gente, o que era importante, sobretudo numa altura como aquela. Ouvira a conversa dos pais altas horas da noite, em que Samantha dizia ao pai como se sentia infeliz na quinta, como queria ir-se embora, separá-los e levar Will com ela. Mas o pai respondera que eram uma família e que as famílias tinham de se manter unidas. Ninguém podia levar um Rafferty para fora do Rancho dos Confederados. Nada tinha mais importância do que a família... excepto a terra.
Olhou para Will,com uma emoção suspeita a fazer-lhe um nó na garganta.
- Pois é... e acho que isso também é verdade ao contrário - resmungou ele.
Afastou a recordação abanando a cabeça, aborrecido Consigo próprio. Deus sabia que tinha coisas mais importantes que fazer do que pensar na infância. O dia ia correndo e Passara metade dele a bater com a cabeça numa parede. MeXeu-se na sela e pôs o cavalo a trote, encurtando a distância até à cancela da pastagem.
Will foi atrás dele, com a cara de tal maneira coberta de terra que era impossível ver-lhe as feições. Tanto ele como o cavalo que montava pareciam andar naquilo havia muito tempo, sentindo-se igualmente gratos por voltar a andar a Passo.
- Já meti cá dentro os últimos - disse ele, fazendo o cavalo aproximar-se do do irmão. - O Tucker foi para casa COMeçar a fazer o jantar, e o Chaske está a tratar dos cavalos.
- Mais alguma coisa para hoje, patrão?
Will aguentou o olhar que J. D. lhe deitou com uma versão cansada do seu sorriso característico. Estava em cima do cavalo havia mais de dez horas, a correr atrás de animais demasiado estúpidos para viverem, e sentia-se como se cada um deles lhe tivesse passado por cima do corpo a caminho do cercado. Estava sujo e estafado. Irritar o irmão ia ser o único ponto alto do dia.
No papel, eram sócios iguais na quinta, mas na realidade J. D. era, sempre fora e sempre seria o patrão do Rancho dos Confederados, mesmo em vida do pai. Will sentira que a verdadeira força estava em J. D., adormecida mas forte, muito mais forte do que o pai alguma vez possuíra. Toda a energia do pai fora para o inútil esforço de tentar manter Samantha acorrentada a uma vida que ela odiava. O rancho, apesar de todo o apego tradicional, nunca ocupara o primeiro lugar nas suas prioridades. Mas era a amante de J. D., o seu primeiro amor, o seu único amor, tirando os cavalos que criava e treinava.
Will nunca sentira alguma coisa que se parecesse com o amor do irmão pela terra. Para ele, era uma âncora, uma coisa que o acorrentava por acidente de nascença. Nunca desafiara J. D. pelo controlo e sentira-se sempre mais vaqueiro do que proprietário. Fazia o seu trabalho e deixava com todo o prazer as preocupações e responsabilidades em cima das costas do irmão.
O peso parecia grande, naquele momento. J. D. tinha a boca contraída e um olhar amargo e perturbado. -Falaste com o Lyle? - perguntou Will.
- Serviu de muito! Prometeu que ia aguentar um pouco, mas está decidido. Vai vender. É só questão de saber a quem. Eu disse-lhe que ia ver o que podia fazer.
-Não consegues oferecer mais do que o Bryce. -Nem devia ter de oferecer.
- Não podes esperar que o Lyle te faça uma pechincha, quando o Bryce se oferece para fazer dele um homem rico, A lealdade tem limites.
- Ai sim? - exclamou J. D., com um olhar duro para O irmão, voltando-se depois para vigiar os animais, sem querer pensar até onde iria a lealdade dele.
Estavam ambos parados junto da cancela da pastagem com os cavalos lado a lado, as cabeças pendentes, a mordiscar-se um ao outro. No prado, o gado que tinham conduzido durante aquele longo dia pastava tranquilamente. Os vitelos dormiam enroscados junto das mães, ou brincavam em grupos, correndo uns atrás dos outros, aos pulos.
por um momento, J. D. permitiu-se apreciar a qualidade daqueles animais. Trabalhara arduamente para estabelecer un programa de criação que melhorasse o tamanho e a qualidade do gado da propriedade. As vacas eram da raça Angus, pretas, boas mães e resistentes, que davam bastante leite. os vitelos, que iam do quase preto ao quase branco, constituíam o resultado de cruzamentos com toiros charoleses da melhor categoria, cruzamentos que produziam grandes animais corpulentos que amadureciam cedo e acabavam abatidos para alimentação. Mas, para além do seu valor, J. D. gostava mesmo de olhar para eles, sabendo que tinham sido ali criados, que era responsável por eles e que o todo dum trabalho produzira uma coisa boa que valera a pena.
Pensou em Lyle Watkins e perguntou a si próprio que teria ele na ideia. Se vendesse - quando vendesse - tudo aquilo para que a família trabalhara na quinta, deixaria simpleSmente de existir.
-Não significa tanto assim para toda a gente, sabes disse Will em voz baixa, como se estivesse a blasfemar na igreja.
-Mas tem de significar! Se não, que diabo estamos aqui a fazer?
Apenas com a pressão das pernas e nova distribuição do peso do corpo, fez o cavalo dar meia volta e afastou-se.
A visão de chamas alaranjadas por entre as árvores afastou tudo o resto do seu espírito, despertando-lhe o pânico. Se o incêndio não fosse imediatamente contido, havia a probabilidade de atingir a floresta e o prado, queimando tudo à passagem. Firmou-se melhor na sela quando o grande animal começou a escorregar pelo trilho íngreme, com os ramos dos arbustos e dos pinheiros mais pequenos a baterem-lhe nas pernas e a prenderem-se-lhe na roupa. Quando atingiram terreno plano, o cavalo pareceu explodir sob o corpo do cavaleiro, atirando-se em direcção às terras de Lucy MacAdam com as orelhas para trás e o pescOÇO esticado.
Mari estava no curral, a ver as chamas subirem no ar, sentindo certa solenidade pela cerimónia e alguma excitação proveniente da exaustão e do conhaque. Tinha utilizado a bebida para ajudar a atiçar o incêndio, afastando-se depois para um gole em honra dos últimos desejos da amiga. O líquido desceu-lhe pela garganta como oiro derretido, queimou-lhe o estômago e espalhou-se-lhe pelo corpo, adormecendo os sentimentos e dando certo brilho romântico ao acto. Atirou a garrafa para o fogo e fez a continência, mas depois teve de dar um salto para trás com um grito quando o vidro estalou e o resto do álcool se incendiou numa coluna ascendente.
Contrita, olhou para a lata de Mr. Peanut, em cima da cancela, como quem observa o incêndio duma distância segura, de chapéu alto inclinado para um lado. Através da ondulação do calor, parecia mover-se, a gingar como uma dançarina havaiana.
Lucy teria aprovado as festividades de todo o coração. Na realidade, Mari tinha planeado ter a amiga ao seu lado para a cerimónia da queima da sua roupa profissional, numa fogueira que assinalasse a sua mudança de direcção naquela encruzilhada da vida. Para um lado, ficava a vida que a família a obrigara a seguir, um caminho direito e estreito de cimento e sem Paisagem, com uma série de portagens que lhe roubavam qualquer coisa de essencial a cada posto. Para o outro, o grande desconhecido, todos os mistérios da vida, todas as possibilidades por que a sua alma ansiara. Era irregular e cheio de encostas serpenteando por território virgem, talvez um pouco assustador, mas que prometia nunca ser aborrecido. Na estrada menOs Concorrida, não havia perspectivas nem limites nem encargos - excepto a sua própria hesitação.
Imaginou as suas fraquezas a vaporizarem-se nas chamas. A pira funerária dos fatos de saia e casaco era um símbolo da sua decisão. E ninguém usava meia-calça na estrada menos Concorrida.
Mr. Peanut parecia piscar-lhe um olho do outro lado das ondas de calor.
De repente, surgiu da encosta arborizada para além da cancela um cavalo enorme e avermelhado, com as orelhas para trás e os olhos espantados, a boca aberta ao mudar duma correria para uma paragem derrapada. A cabeça foi pu xada para cima e as patas do animal fizeram levantar uma enorme nuvem de poeira. Mari ficou a olhar, boquiaberta, vendo o cavaleiro desmontar com o animal ainda em andamento, aproximando-se a correr e deixando o chapéu para trás.
Rafferty. Aproximou-se dela com uma expressão furiosa e, quase sem abrandar, agarrou num balde, mergulhou-o no bebedoiro junto à cancela e continuou a correr direito à pira.
- Não! - gritou Mari, desatando a correr para ele com os braços estendidos para tentar desviar o balde. Chocaram a pouca distância da fogueira e Mari foi projectada para trás ao embater no corpo dele, como uma boneca de trapos atirada de encontro a um autocarro em movimento. Com um grito, tropeçou e caiu de gatas na terra, vendo horrorizada como ele atacava o seu tributo.
A água atingiu o centro da fogueira, cobrindo as magníficas chamas como um cobertor. Rafferty tapou depois as cinzas com terra, utilizando as mãos e as botas, sufocando as chamas periféricas e provocando cogumelos de fumo preto e pó.
A animação de Mari desapareceu com as chamas. Sentou-se nos calcanhares, com os olhos cheios de lágrimas, vendo-o correr para o tanque e voltar com o balde novamente cheio de água. O fogo extinguiu-se num derradeiro sopro agonizante. A sua fogueira, o símbolo da morte da sua antiga vida, o seu tributo e a despedida da sua velha amiga. Apagada, da mesma maneira que a sua antiga vida tentara apagar o fogo dentro dela, apagada como Lucy tinha sido apagada. A fúria, a frustração e o conhaque agitaram-se dentro dela, subindo como uma maré.
- Seu estúpido filho da mãe! Seu estúpido miolos de merda! Isso era meu! - gritou, atirando-se a ele, que se afastara dos detritos do seu gesto grandioso.
Atingiu-o nas costas com toda a força, fazendo-o Perder o equilíbrio, aos murros com os seus pequenos punhos. J. D. Ddeixou cair o balde e voltou-se para ela, apanhando um Soco na boca. Praguejando, tropeçou para o lado, tentando evitar os punhos e defendendo-se com as mãos e os braços. Mari atacava-o como um gato-selvagem, de dentes à mostra, olhos semicerrados e o cabelo a cair-lhe para a cara.
- Pare com isso! - berrou ele, cambaleando para trás. Mari atacou-o novamente, dum salto, esbracejando à doida, contra qualquer vestígio de pensamento racional toldado pela fúria. Apanhou-o inclinado para trás e caíram ambos, a tossir e a praguejar, engasgados com o pó e meio cegos.
-Aquilo era meu! Meu! - gritou ela de novo. O seu primeiro acto de libertação, a sua homenagem à amiga, e ele tinha estragado tudo. Atacou-o, retaliando como podia, ao murro e. ao pontapé.
-Ai! Você magoou-me! - gritou J. D., indignado e espantado com a fúria dela.
Quando um joelho da rapariga se lhe aproximou perigosamente dos testículos, ficou também enfurecido e, gemendo e resmungando, rolou até conseguir prender-lhe o corpo debaixo do seu. Rangeu os dentes e tentou agarrar-lhe as mãos, enquanto ela o desancava na cabeça e nos ombros sempre com os punhos fechados. Por fim, agarrou um e depois o outro e prendeu-os no chão ao lado da cabeça.
-Bolas, já disse que pare com isso!
A voz dele soou como um trovão nos ouvidos de Mari. Tentou libertar-se, mas sem êxito. J. D. Rafferty pesava bastante mais do que ela e cada grama a mais era de músculo, COmprimido sobre ela, imobilizando-a contra vontade.
Mari olhava para ele, indignada, demasiado consciente da sua ineficácia. Debaixo dele. A respiração ofegante do homem misturava-se com a sua, e as bocas estavam apenas a centímetros uma da outra. Mesmo através da força estática da fúria, lembrou-se do beijo dele: carnal, possessivo... insultante, insolente.
-Isto é mesmo seu, Rafferty! Em que escola de boas maneiras é que andou? Na Federação Mundial de Luta?
A única resposta foi um rugido, enquanto se levantava.
ergueu-se, tentando sacudir a terra da roupa. Tinha-lhe entrado para as calças, atingindo sítios íntimos. O cabelo e a boca também estavam cheios de terra.
- Que diabo pensou que estava a fazer? - perguntou J. D., gesticulando em direcção aos restos da fogueira. -Não é da sua conta!
Passou por ele em passo acelerado, sentindo necessidade de ficar entre ele e os restos. Fora uma cerimónia pessoal para a qual não planeara testemunhas ou objectores de consciência. A ideia de Rafferty a vasculhar fazia-a sentir-se exposta e vulnerável. E vulnerável não parecia ser das coisas mais inteligentes para se mostrar diante dum homem como ele. Era demasiado duro e autoritário para manifestar compreensão ou compaixão. Tivera conhecimento directo disso.
É claro que era impossível esconder as provas, ali espalhadas atrás dela, numa mancha negra e fumegante. Não podia evitar que ele visse. J. D. colocou-se do outro lado, a olhar para as cinzas com ar carrancudo.
- Que raio... Com a biqueira da bota, puxou uma manga carmesim para fora das cinzas. Pegou nela cuidadosamente por uma ponta que não tinha sido atingida pelo fogo e olhou para o objecto com uma careta, como se ainda contivesse um braço.
- Era um fato, bem? - explodiu Mari, arrancando-lhe a manga da mão e atirando-a de novo para as cinzas.
- Você estava a queimar roupa? - perguntou ele, percorrendo com um olhar céptico as suas velhas calças de ganga e a grande camisa roxa que trazia aberta por cima duma antiga camisola de algodão de mangas curtas.
Mari rangeu os dentes e tentou explicar:
- Estava a cremar o meu passado. Era uma coisa simbólica.
Ficou a olhar para ela, como se Mari acabasse de dizer que era da Lua.
- Homens! Não reconhecem o simbolismo nem que dêem de caras com ele! Cheguei a uma encruzilhada e precisei de fazer um gesto grandioso.
- Ah, pois, queimar metade do Montana era ’ um grande gesto - resmungou J. D.
-Eu só queimei o que me pertencia.
-E se o celeiro se tivesse incendiado? Ou a casa? Ou... -Que tem você com isso? - desafiou Mari, de queixo estendido, a olhar para ele. - São meus, por isso...
- São quê? - J. D. sentiu-se como se tivesse chocado de repente com um muro. Deu mesmo um passo atrás, com a força do choque.
um vestígio de culpa diminuiu a truculência de Mari. Sentiu-se indigna. Já nem se lembrava da última vez que telefonara à amiga. Pareceu encolher, com a vontade de discutir a sumir-se com um suspiro. Puxou o cabelo para trás e desviou o olhar de Rafferty para a bela casa de madeira.
-É meu. A Lucy deixou-me tudo - disse ela em voz baixa.
- Porreiro! - resmungou.
- Obrigada pelos seus amáveis pêsames. É bom saber que as pessoas sentem alguma coisa - retorquiu Mari, com OS olhos a despedir faíscas.
- Não vou fingir que gostava dela - rosnou J. D.
- óptimo. E eu não vou fingir que gosto de si! ComeÇou a afastar-se dele, mas uma mão apanhou-a pelo braço. Furiosa, voltou-se e ficou a olhar para ele.
- Tire a mão de cima de mim, Rafferty. Estou farta de ser agarrada por você e estou farta dos seus comentários sobre a Lucy Estou-me nas tintas para o que ela lhe fez. Era amiga minha. Nem sempre gostava dela e nem sempre concordava com ela, mas era minha amiga e diabos me levem se vou aturar as suas piadinhas de chico esperto. Se não Consegue ter as boas maneiras normais, pelo menos tenha algum respeito!
Aquilo assentou-lhe tão bem como uma pedra no fígado.
O seu código pessoal não continha motivos secundários. um homem comportava-se como um homem, fossem quais fossem as circunstâncias; era uma questão de honra. Bom, pensou ele entristecido, Lucy sempre despertara o que havia de pior nele. E parecia que continuava, manípulando-o de outra dimensão.
Expeliu o ar com força e enfiou as mãos no cós das calças de ganga. Mulheres. Davam mais trabalho do que mereciam, isso era certo como o diabo. Fez um esgar, olhando fixamente para as costas de Mary Lee Jennings. Ia a chorar, percebeu pelos movimentos sacudidos dos ombros da rapariga. E a tentar corajosamente não chorar, viu pela sua respiração entrecortada. Começou a sentir pânico. Não sabia o que fazer com mulheres que choravam. Aúnica coisa que sabia fazer com tais criaturas era evitá-las ou ir para a cama com elas. Nenhuma das opções era válida.
Sentindo-se desajeitado e demasiado grande, foi atrás dela, debatendo a questão de lhe tocar ou não. Tinha um pedido de desculpa entalado na garganta como um osso de galinha e desejava ardentemente que o mundo o deixasse em paz para tratar das suas terras e treinar os seus cavalos. E que gente como Mary Lee Jennings, Lucy MacAdam e Evan Bryce ficassem lá pela Califórmia, que era onde estavam bem -Eu... eu... peço desculpa.
Praticamente, cuspiu as palavras. Mari teria dado uma gargalhada, se não se sentisse tão infeliz. Desconfiava de que palavras daquele género não eram fáceis para um homem como Rafferty. Não precisava dum vocabulário emocional para lidar com gado e cavalos.
Apertando a lata em forma de amendoim ao peito, fungou e tentou engolir as lágrimas, envergonhada por chorar diante dum homem que ficava envergonhado de as ver. Mas elas tiveram mais força e acabaram por lhe saltar dos olhos. A LucY morreu. A Lucy morreu. A Lucy morreu. As palavras surgiam na mente, com uma espécie de eco que a fazia sentir-se egoísta e assustada. Estou completamente sozinha. Estou completamente sozinha.
O ombro sobre o qual podia ter chorado estava reduzido a cinzas. Sentia-se bombardeada - pelas decisões que fizera quanto à sua vida durante a última semana e pelos choques que recebera desde a sua chegada ao montana. Tinha os circuitos mentais todos sobrecarregados, e rebentou.
Soluçando, voltou-se e caiu de encontro a Rafferty, Qualquer porto numa tempestade... Pouco importava que ele fosse uma besta. Era uma coisa grande, sólida e quente a que podia encostar-se. E ele estava em dívida para com ela, com os diabos! Depois de todos os seus insultos, o mínimo que podia fazer era abraçá-la enquanto chorava.
Enterrou a cara no ombro dele, com a lata entre os dois, sem se importar com as arestas. Durante um momento, J. D. ficou imóvel e estarrecido, sentindo-se invadir pelo pânico. Depois, quase por si próprias, as mãos subiram para os ombros sacudidos da rapariga.
Era pequena e frágil. Frágil. A palavra ecoava enquanto a ouvia chorar. Não conseguia imaginar Lucy a chorar por alguma coisa; fora demasiado dura, demasiado cínica. Mas a pequena Mary Lee estava a chorar como se o mundo estiVeSSe prestes a acabar. Porque ele a magoara. Por ter perdido uma amiga.
-Pronto - sussurrou J. D., acariciando o cabelo fino de criança na nuca dela. o suave e fresco aroma da rapariga atingiu-lhe o nariz e atraiu-lhe a cabeça para baixo. Schh... Desculpe. Não chore. Por favor, não chore.
A lata de amendoins enfiava-se-lhe no estômago, mas J. D. ignorou-a. Instintos adormecidos despertavam dentro de si: o desejo de proteger, a necessidade de confortar. Atravessaram o seu muro defensivo num ponto enfraquecido pelas lágrimas daquela mulher, Ela chorava como se tivesse Perdido tudo no mundo, e J. D. disse para consigo que um homem tinha de ser de pedra para não sentir pena.
Mari virou a cara e respirou, ofegante, e ele baixou ainda mais a cabeça, até ficar com a face encostada à dela.
Schh, pronto - sussurrou de novo, com os lábios de encontro à pele dela, macia como a dum pêssego. E quente. Húmida e salgada de lágrimas. Os dedos penetraram mais na cabeleira emaranhada, agarrando-lhe a cabeça e
inclinando-a para trás. - Pronto.
Mari olhou para ele, para aqueles olhos dum quente cinzento de estanho antigo, de pupilas dilatadas e presas na boca dela. Parecia respirar com dificuldade. Ambos, aliás, E tinha os lábios ligeiramente entreabertos. Lembrou-se do gosto dele, da sensação daqueles lábios. Ele queria beijá-la naquele momento. A mensagem vibrava no ar entre os dois. E ela queria retribuir o beijo.
Iria culpá-la depois?
Deu um passo para trás quando J. D. começou a aproximar a boca da sua. Ele não gostava dela. Ficou danada consigo mesma por querer beijar um homem que a tratara tão mal. Podia ter feito uma quantidade de coisas erradas na vida, mas apaixonar-se por homens das cavernas não estava entre os seus erros.
-Preciso de me assoar. Tem um lenço de papel? perguntou ela.
Mari assoou-se e tentou ignorar a onda de vergonha adolescente perante as funções corporais.
- Nunca consegui aprender a chorar delicadamente disse ela, dobrando o lenço e enfiando-o no bolso. - As minhas irmãs conseguem. Estou plenamente convencida de que não têm seios nasais.
Limpou as últimas lágrimas com a manga da camisa e deitou um olhar embaraçado a Rafferty.
- Obrigada por me deixar chorar em cima de si.
Ele encolheu os ombros, sentindo-se desajeitado e detestando o facto. Quando falou, fê-lo com ar carrancudo: -Não me deu muito por onde escolher.
- Meu Deus, como você é gentil!
o grande cavalo em que ele surgira a galope e depois abandonara avançou na sua direcção, com os grandes olhos líquidos cheios do que parecia uma mistura de preocupação e curiosidade. Era um belo animal, com uma pelagem brilhante cor de cobre e uma grande estrela branca entre os olhos. Aproximou-se aos poucos, com as rédeas a varrer a terra. Lentamente, estendeu a cabeça e soprou, chegando-se depois um pouco mais e esfregando o focinho na cara dela. o gesto pareceu meigo e reconfortante a Mari, fazendo subir dentro de si nova vaga de lágrimas juntamente com uma gargalhada fraca.
O seu cavalo tem melhores maneiras do que você.
- Acho que sim, realmente - respondeu J. D. em tom suave. Sorja apercebeu-se do seu subtil sinal com a mão e recuou, afastando-se de Mari e acenando entusiasticamente com a cabeça. A rapariga deu uma gargalhada, e J. D. ignorou o facto de aquele som lhe agradar. Não tinha feito a habilidade para a impressionar, mas apenas para a impedir de voltar a chorar.
-Como é que ele se chama?
- Sorja.
Deu-lhe a informação quase contrariado, como se admitir que tinha dado um nome ao animal mostrasse alguma espécie de fraqueza oculta. Mari tentou disfarçar um sorriso. -É lindo - disse.
Com um braço ainda a segurar a lata de amendoins, estendeu a outra mão e fez uma festa no focinho do animal, provocando-lhe depois cócegas nas orelhas. Ele fechou os olhos e produziu um ruído de satisfação.
-É um bom cavalo.
As palavras não deixavam transparecer demasiado sentinento, mas Mari reparou no tom cuidado e o seu olhar apanhou a palmadinha aparentemente distraída que ele deu ao cavalo quando pegou nas rédeas e prendeu uma à cancela. o cavalo também não se deixou enganar. Deitou um olhar de esguelha ao dono e estendeu os beiços para a pestana do bolso da camisa. Resmungando, Rafferty tirou de lá um rebuçado e entregou-lho.
«Grande durão», pensou Mari, tentando não ceder à insidiosa sensação que se lhe aninhava no coração. Lá porque o cavalo gosta dele, não quer dizer que não seja uma besta.
- Então... e que anda por aqui a fazer, Rafferty? Para além de estragar o meu divertimento.
- Vim ver os animais. Ninguém me disse que não viesse - respondeu J. D., olhando para ela de lado, enquanto afrouxava o arreio do cavalo.
Os animais. Tinha-se esquecido de que havia ali animais, sem um «único pensamento para o facto de ser também dona deles. Não tinha passado do curral, na sua exploração da propriedade. A queima da sua roupa profissional tinha-lhe ocupado totalmente a atenção. Não seria capaz de pensar sequer em aceitar o legado de Lucy até ter rompido simbolicamente os laços com o passado. Agora, a ideia dos animais encheu-a de pânico.
Animais? Que espécie de animais? -- perguntou, começando a andar ao lado de Rafferty em direcção ao velho celeiro. - Não tenho a certeza de estar pronta a lidar com aquilo a que se possa chamar «animais». Para falar verdade, também não vejo a Lucy a tratar de «animais». Meu Deus, ela nem sequer abria as latas de cerveja, com medo de partir uma unha!
Mas na verdade havia uma data de coisas sobre Lucy que de repente não faziam qualquer sentido. Mari mordeu o lábio e olhou para a lata de amendoins que tinha ao colo.
-Que é essa coisa?
Mari corou ligeiramente. Quase se habituara à ideia de Mr. Peanut, mas, pensando bem, era demasiado bizarra para compartilhar.
-Você não quer saber. Acredite em mim.
- Sabe montar? - perguntou J. D., sem ligar importância ao outro assunto.
Entrou à frente no celeiro escuro. o cheiro do pó e o aroma adocicado do feno encheram-lhe o nariz. Sentiu também o cheiro de animais e dos seus excrementos, não exactamente um aroma, mas real e natural. J. D. levantou a tampa duma caixa de ração e encheu uma lata de café com a mistura que continha. Mari meteu a mão na ração e deixou os grãos escorrerem-lhe por entre os dedos, fascinada com as estranhas formas e texturas. Conseguiu identificar grãos de milho e de cevada, mas o resto era um mistério.
Sei, sei montar - respondeu ela, em tom distraído. A minha mãe achava que soava bem dizer às pessoas que eu tinha lições de equitação. Até que eu mostrei interesse por aprender a montar cavalos de circo em pé em cima deles. Na realidade, o que eu queria era vestir uma malha brilhante, mas ela também não deixou.
-Ai, pobre criança - troçou J. D. Mari deitou-lhe um olhar irritado.
-Os sonhos não têm de ser práticos. E todos provocam sofrimento ao ser desfeitos.
Limpando a mão, pegou na lata de café que ele lhe estendia. J. D. foi até à caixa seguinte, levantou a tampa e começou a deitar pequenas bolinhas castanhas em vários baldes cada um de seu tamanho. Quando ficaram cheios, pegou neles e saiu por uma porta lateral, com Mari atrás dele.
-Aqui tem a sua montada, se lhe apetecer - indicou ele, sentindo-se mal por troçar da fantasia infantil da rapariga. - Pode arranjar um fato todo brilhante e dar tudo por tudo.
- Um macho? - exclamou Mari, parando de repente e olhando para o animal no recinto.
Não teria ficado admirada perante um elegante puro-sangue ou um belo cavalo quartão. Lucy adorava tudo o que fosse belo e caro. Mas um macho? o animal espetou as longas orelhas e saiu da sombra duma baia quando Rafferty pegou na lata do grão e a despejou num grande recipiente de borracha preta. Forte e brilhante com a pelagem acastanhada, era bonito para macho, supôs Mari, mas a enorme cabeça e as compridas orelhas dificeis de ultrapassar esteticamente.
- Uma actriz qualquer que vive na baía de Livingstone comprou um no Verão passado e agora é a grande moda declarou J. D. secamente, revirando os olhos. Fora educado a considerar os animais úteis e necessários e não como uma coisa de moda. Observou rápida e profissionalmente o macho, procurando de imediato sinais de doença ou ferimento.
Mari passou por entre as barras da vedação e deu a volta ao macho, lentamente. A criatura continuou com o nariz enfiado na ração, mas seguiu-a com o olhar. Quando ela se agachou junto à comida, levantou a cabeça uns centímetros e deixou de mastigar, deitando-lhe um olhar vagamente irritadO Pelo canto dos olhos.
-Então, Clyde, que tal vai isso”
o macho deu um pequeno relincho, comeu mais um bocadinho e continuou a olhar para ela. Mari sorriu e estendeu a mão para ele cheirar. Clyde aproximou o focinho e fingiu que ia mordê-la, mas depois tornou a meter o nariz na ração.
-Clyde? Porquê Clyde? - perguntou J.D. em tom céptico.
- Porque não? Tem ar de Clyde. Que é que você acha? -Acho que é um macho.
- Mas que imaginação! Deve ser uma autêntica luta não se deixar levar por ela...
Deixaram Clyde com a sua ração, continuando pela pequena pastagem até outra cancela. Na área de alimentação, estavam cerca de vinte lamas, com a comprida pelagem indo do branco ao preto, liso ou com malhas. Esperavam junto ao comedoiro, com os magníficos e pestanudos olhos castanhos fixos em J. D. e Mari.
- Aqui tem os seus animais - disse ele, com bastante sarcasmo.
- Lamas! É o máximo! - exclamou ela, muito quieta enquanto um peludo bebé branco lhe mordiscava a fralda da camisa, maravilhado. - A Lucy nunca falou em lamas.
Pois é. Bom, ela era uma pessoa cheia de surpresas, não era? - resmungou J. D.
Ficou a olhar para ela, vendo-a travar conhecimento com as peculiares criaturas e tentando não se deixar encantar pelo óbvio prazer que a rapariga demonstrava. Teria sido melhor para ele que ela tivesse desatado a fugir dali aos gritos de medo. Nunca gostara duma pessoa que não amasse os animais. Quase sempre demonstrava não ser digna de confiança. Mas não queria gostar de Mary Lee. Não conseguia associar alguém do mundo de Lucy à confiança.
Mari ignorou-o, totalmente absorvida pelos curiosos animais que a inspeccionavam. Esticavam os longos pescoços, cheiravam, mordiscavam e pareciam cantarolar baixinho. Umas vezes, olhavam a direito, outras com timidez, sempre com uma espécie de sabedoria secreta nos límpidos olhos castanhos.
Nunca tinha estado perto dum lama. Agora, queria saber tudo sobre eles de repente - se o pêlo era macio, o que diziam quando emitiam aquele ruído musical, o que comiam, o que pensavam. Com a lata de amendoins sempre protegida por um braço, ia-lhes fazendo festas e deixou que um lhe tocasse com o lábio superior na palma da mão. Falou com eles como se fossem pessoas, apresentando-se e explicando a sua ligação com Lucy.
Um deles tocou na lata de amendoins com o nariz e Mari deu uma gargalhada e recuou ligeiramente apreensiva quando os animais a seguiram em massa.
-Explique-me lá isto, Rafferty - pediu ela, fazendo uma careta quando um dos lamas tentou lamber-lhe a cara. o cheiro deles encheu-lhe o nariz como o de camisolas de lã molhadas a secar em cima dum calorífero.
- Que é que os lamas fazem? Quer dizer, não são perigosos ou coisa assim, pois não?
- Cospem, quando não gostam duma pessoa.
- Ah, grandes, peludos, malcheirosos e cospem. É como voltar ao liceu - comentou Mari secamente, firmando o olhar no animal que agarrara firmemente no seu punho da camisa. - Realmente, este é igualzinho ao que ficava atrás de mim na aula de Ciências. Reconheço-lhe as orelhas.
Inclinou-se para o animal e retirou delicadamente a manga da camisa dos seus dentes.
- Por acaso, não te chamavas Malcheiroso noutra vida? - perguntou.
o lama recuou e olhou para ela com ar ofendido. Mari levantou uma sobrancelha.
- Que é que a Lucy fazia com eles? - perguntou, observando J. D. a deitar a comida em diversas bacias. Os lamas trocaram-na pela comida, que apanhavam em porções delicadas e mastigavam calmamente, sempre a seguir Mari e J. D. com os olhos.
-Dinheiro, calculo - respondeu J. D., com um trejeito- - Eu crio um boi que alimenta uma família de quatro Pessoas durante um ano e recebo pouco mais do que nada Por ele. Mas alguém cria um lama... que serve exactamente Para isso: nada... e toda a gente quer ver a raridade.
- Nem tudo tem de ser comestível para valer a pena retorquiu Mari, olhando para ele, enquanto saíam.
Ele limitou-se a resmungar e dirigiu-se de novo para o celeiro, percorrendo o caminho com as longas e poderosas pernas a uma velocidade que quase obrigou Mari a correr para o acompanhar.
- Isto é tudo um bocado assustador - observou ela, prendendo o cabelo atrás duma orelha. - Não consigo imaginar a Lucy a dar-lhes de comer e a limpar o estrume.
- Não precisava. Tinha um empregado.
A notícia fez Mari parar de repente. A propriedade, os lamas, um empregado, os amigos saídos das Vidas dos Ricos e Famosos. Deus, quanto teria Lucy herdado que lhe permitira mudar-se para ali? Tudo aquilo devia ter custado uma fortuna. Verifica o extracto de conta, herdeira.
-Quem? Onde é que ele está?
Os largos ombros de J. D. Rafferty subiram e desceram.
- Um tipo qualquer. Andam por aí, trabalham uns tempos num sítio e depois vão-se embora. Calculo que tenha partido a seguir ao acidente. Deve ter calculado que a morta não podia continuar a pagar.
A notícia que ele lhe dava com tanta facilidade deixou uma sensação desagradável à rapariga. A amiga tinha sido morta a tiro e o empregado desaparecera logo a seguir. Agarrou o braço de J. D. quando iam a chegar à porta do celeiro.
- o xerife chegou a interrogar o tipo?
-Não havia motivo. o dentista ou que raio era o homem confessou.
-Mas disse que nunca tinha visto a Lucy.
- o idiota dispara sobre uma mulher em vez dum alce. Não me admira que afirme que não a viu.
Abriu a porta para ela passar e fechou-a depois de entrarem. Os baldes bateram uns nos outros, quando os poisou junto das caixas.
- E o seu tio? - perguntou Mari, continuando atrás dele, que deitava comida de gato em meia dúzia de pratos, o que atraiu felinos de todos os géneros, vindos de vários esconderijos do celeiro. - o que encontrou o corpo dela. Ele viu alguma coisa?
Rafferty voltou-se abruptamente, de repente demasiado perto e demasiado corpulento, com uma expressão zangada e rugas exageradas pelas sombras do celeiro.
- Eu disse-lhe ontem à noite que o deixasse em paz! proferiu ele num rosnido contido, tocando-lhe no peito com o indicador espetado, em movimentos repetidos, fazendo-a piscar os olhos. - E estava a falar a sério!
-Porquê? - perguntou Mari, espantada com a sua própria coragem. - Que é que ele tem para esconder? Se não foi ele...
-Não foi - rosnou J. D. por entre dentes. - Deixe-o em paz. Já passou por bastante.
Mari engoliu em seco e ele deu meia volta e saiu do celeiro. A rapariga esfregou o sítio magoado no peito, vagamente consciente de que tinha o coração a bater com toda a força. Uma dúzia de perguntas passava-lhe pela cabeça quanto ao misterioso Del Rafferty e ao empregado desaparecido tão convenientemente. Engoliu-as todas. o mau génio de Rafferty parecia estar prestes a explodir, à espera dum pretexto para ser descarregado sobre ela. Realmente, não lhe apetecia dar-lho.
O Sol desaparecia por detrás dos montes, projectando longas sombras e altas silhuetas no pátio da quinta. J. D. estava junto do cavalo, a apertar os arreios, preparando-se para partir. Pela mente de Mari, passavam pensamentos de vagabundos e homens sem rosto armados de revólveres como negras serpentes oleosas. A sensação de abandono que tivera na primeira noite ali começou de novo a acompanhá-la COM as sombras.
- Espere, Rafferty! - chamou, afastando-se do celeiro. Ele virou-se, já na sela, com as mãos apoiadas à frente, à espera.
-Olhe, eu não sei tratar dos lamas... Só sei que são muito... espirituais. Não sei o que hei-de fazer com estas terras nem com eles. Tudo isto aconteceu tão depressa que nem sequer tenho a certeza de ser real.
Ele não pronunciou uma palavra, limitando-se a ficar ali sentado, a olhar para ela por baixo da aba do chapéu.
- O que eu estou a dizer é que preciso de ajuda.
O que ela não dizia era que queria que ele respondesse às suas perguntas. Precisava de respostas. Precisava de con_ seguir encontrar um fecho adequado à súbita partida da amiga do tempo presente. o que não dizia, nem a si própria, era que a ideia de o ver de novo tinha certo atractivo. Apesar de ser uma besta, não era difícil olhar para ele. E as pequenas falhas na sua armadura intrigavam-na: o afecto Pelos animais e a relutância em deixá-la aperceber-se disso, a forma gentil como a abraçara enquanto ela chorava... Além disso, era um elo entre ela e a amiga, convinha não esquecer.
- Se não se importasse... Era só por uma ou duas semanas. Eu pago-lhe... - foi dizendo, insegura quanto à etiqueta local e desejando que pegasse simplesmente nos fios da conversa e acabasse ele próprio o pensamento, como qualquer pessoa da sua vida anterior teria feito.
- Não quero o seu dinheiro - declarou ele imediatamente, ofendido. - Não aceito dinheiro dos vizinhos. Uma parte dele estava muito tentada a recusar. Não gostava dos sentimentos que ela libertava dentro dele, não gostava donde ela vinha nem dos seus amigos. Mas era agora a dona daquelas terras e ele queria-as. Se não a ajudasse, ela procurava ajuda noutro lado.
Mari continuava a olhar para cima, com as sobrancelhas escuras quase a tocar-se, numa expressão consternada.
- Mas...
- Eu trato dos animais, mas não aceito dinheiro - disse ele, puxando a aba do chapéu para baixo. Depois, levantou as rédeas, e Sorja ergueu instantaneamente a cabeça, pronto para nova ordem.
Mari encolheu os ombros, sem perceber, sentindo-se de novo de visita a uma terra desconhecida.
- Como queira.
-Pois é, minha senhora, é como costumo fazer murmurou ele acenando com a cabeça.
Ficou a vê-lo afastar-se, frustrada e cansada, o que lhe aumentava a má disposição. Qualquer coisa mais existia por debaixo dos seus sentimentos, qualquer coisa para a qual não tinha paciência. Não tinha paciência para lidar com a atracção por um homem que a fazia ter vontade de gritar e arrancar o cabelo. Homens como aquele, atracções como aquela, só serviam para uma coisa: sexo selvagem e louco.
Não fora até ali para conseguir sexo selvagem e louco, fora a procura de amizade e dum novo começo. Porém, ao dirigir-se para casa com a lata de Mr. Peanut debaixo do braço, o pensamento voou-lhe para uma frase da carta de Lucy e corou da cabeça aos pés. Monta-o, vaqueira...
Subiu os degraus da entrada e sentou-se num banco com as costas de encontro à parede de toros, os olhos perdidos na colina onde Rafferty desaparecera por entre as árvores.
Tinha coisas mais importantes em que pensar, tais como saber o que fazer com a propriedade e os lamas e como resolver os sentimentos que pareciam nós sempre que pensava na morte da amiga.
O Sol foi descendo por detrás dos montes e as sombras surgiam de todos os lados. Os nós apertaram-se dentro dela. Um assassino que nunca vira a sua vítima. Um vagabundo que desaparecera. Um homem perto do qual Rafferty não a queria. Um estilo de vida que custava a Lua. Uma última carta que não fazia sentido.
- Tens muitas explicações a dar-me, Luce - resmungou Mari, com o braço à volta da lata de amendoins e os olhos na encosta que, de repente, pareceu devolver-lhe o olhar.
Ele observava a mulher através do visor da arma, ajustado até obter uma imagem perfeita. Com a arma bem adaptada ao ombro, encostado ao tronco dum abeto, silencioso e imóvel, confundia-se com o que o rodeava, como se fosse uma pedra ou uma árvore, qualidade que lhe possibilitara viver tanto tempo.
Não que isso fosse grande coisa.
Automaticamente, calculou o alcance e a trajectória da bala. Aprendera a tabuada da balística não muito tempo depois, a tabuada de multiplicar, e sabia-a melhor. Era um bom exercício para a mente, para conservar as engrenagens oleadas e em movimento. Dissera a si próprio que devia manter-se longe daquele sítio,longe da loira. Mas ela assombrara-o nas duas últimas noites, e acabara por decidir que precisava de ver se tinha voltado para a casa.
Não era a mulher que esperava. Era loira, como a outra, mas diferente, muito diferente. Percebia-o não só pela maneira de vestir como pelo modo de andar, de se sentar. Sentiu o alívio percorrer-lhe o corpo, enfraquecendo-lhe os membros. A arma tremeu-lhe nas mãos, subitamente pesada, Não era ela.
A mulher soltou uma gargalhada, com um som rouco e saudável que flutuou pela encosta e lhe chegou aos ouvidos como uma doce melodia. Não era como a outra. o riso dela tinha qualquer coisa de amargo. o eco desse riso trouxe-lhe lampejos de memória, como se tivesse uma luz estroboscópica dentro da cabeça. Escuridão. Cães. o estrondo duma arma. Sangue. Cheiro de morte.
Poisou a arma e apertou os olhos com as palmas das mãos, como se a pressão pudesse apagar as cenas. Sentiu-se encher de pânico, a garganta a fechar-se-lhe, sufocando-o, fazendo-o tremer. As imagens dentro da cabeça eram uma confusão do passado distante, do passado recente, do presente. Sons da guerra, sons de risos, gritos dos feridos e moribundos, ordens, tiros, explosões, o cheiro de morte, de podridão, de pântano. o coração batia-lhe como um punho enraivecido contra o esterno, o suor ensopava-lhe a roupa, roubando-lhe o calor do corpo à medida que o ar fresco da noite o envolvia.
Inspirando todo o ar que os pulmões doridos lhe permitiam, conteve a respiração e concentrou-se em expulsar todos os pensamentos do espírito. Quando ficou abençoadamente em branco, expirou com lentidão, contando os segundos, concentrando-se em diminuir as batidas do coração.
Cada momento da sua vida era como dar um tiro - tinha de se manter concentrado, em controlo, rígido dentro de si próprio. Concentrar-se, apontar, inspirar, exalar metade, acariciar o gatilho, começar de novo. Era assim que ele fazia. Um tiro de cada vez. Sem distracções.
Sem loiras bonitas com vozes roucas.
Pegou na arma e levantou-se da sua posição agachada, começando a trepar o monte e deixando a escuridão engoli-lo como um fantasma.
Samantha acabou o trabalho às quatro pela primeira vez numa semana. Tinha a noite por sua conta. o pensamento fez-lhe contrair o estômago. Detestava a ideia de passar tempo sozinha na pequena casa que partilhara com Will. Ficava tão vazia sem ele e o silêncio oprimia-a até que não aguentava mais.
Não conseguia entrar na minúscula cozinha sem o ver ali de pé rodeado de pratos, tachos e panelas sujos, com um sorriso exuberante, a cozinhar esparguete. Fazia sempre uma quantidade que chegava para um batalhão. o congelador do velho frigorífico era virtualmente uma parede gelada de esparguete em sacos de plástico. Não podia entrar no quarto sem o ver estendido na cama, nu, de testa franzida, a dorMir, ou com aqueles diabólicos olhos azuis presos nela, estendendo-lhe a mão, convidando-a a fazer amor com ele.
As saudades, tão desesperadas como a necessidade de respirar, apertaram-lhe o coração e despedaçaram-no mais uma vez. A dor correu-lhe através do corpo como sangue quente, o que é que falhou, Will? Seria por eu precisar demasiado de ti? Ou eras tu que precisavas de mais alguma coisa Pensou em como tinha reagido quando ele lhe propusera casamento. Na sua memória, fora a pergunta mais casual. Pedira-lho com a mesma preocupação com que a convidaria Para sair com ele. E na sua memória, ela dera um salto, agarrando-o com as mãos tão ávidas que quase o asfixiara.
Fosse como fosse que analisasse a situação, sentia-se invariavelmente cul ada. Tinha sido demasiado exigente, demasiado peganhenta, demasiado obsessiva. Não era suficientemente bonita... nem suficientemente mulher... nem suficientemente experiente na cama. Embora zangada com ele por se ter ido embora magoada com as suas traições, culpava-se sempre a si própria.
Mas a verdade fê-la pensar na mãe, a andar em volta do pai como um cão espancado, de olhos baixos, sempre a pedir perdão por pecados imaginados. Odiava a ideia da comparação com a mãe fosse no que fosse; sempre tinha detestado pensar sequer que era parente de alguma das pessoas naquela casa desleixada, com o pátio cheio de ervas daninhas e crianças de cara suja. A culpa provocada por esse pensamento era tão incómoda como o facto de os Neill serem a sua família.
Olhou em volta, no bar, enquanto tirava o avental, o dobrava e guardava. As pessoas estavam a começar a chegar para a «hora feliz». Sorridentes, belas, ricas. Concentrou-se nas mulheres, que pareciam todas possuir alguma secreta sabedoria no olhar que ela nem sonhava sequer o que fosse. Tinham tudo. Tinham os maridos e os seus belos carros e casas maravilhosas e roupas lindas. Imaginava que, quando olhavam para ela, sabiam que nada tinha e não era ninguém. Tudo o que a esperava em casa era o Maroto, o cachorrinho que Will lhe dera no dia dos anos, duas semanas antes de a deixar.
Sente-se bem, Samantha, minha querida?
Mr. Van Dellen inclinou-se para ela, com a testa franzida numa interrogação. Lutou contra o nó na garganta e murmurou uma resposta que esperou que o satisfizesse.
Tem a certeza? Porque se precisar de desabafar ou...
Não, palavra, Mister Van Dellen. Estou bem. Só um bocadinho cansada.
Ele apertou os lábios, o que a fez pensar que reprimia uma dúvida quanto à sua afirmação. Tentou sorrir para afastar a preocupação dele. Embora não parecesse convencido, o patrão não insistiu.
Está bem - assentiu ele, com um sorriso, afastando-se para atender um cliente.
Samantha sentiu a tensão abandoná-la como o ar que sai dum balão, Não era capaz de falar dos seus problemas com ele. Era simpático e isso tudo, mas toda a gente sabia que ele e Mr. Bronson eram... bem... maricas.
Não gostava do som da palavra mesmo na sua cabeça. parecia-lhe dura e maldosa, quando ambos eram muito bons para ela. Mas não conseguia ultrapassar a maneira como fora criada. A ideia de dois homens juntos... Estremeceu de repulsa. Não, não podia falar com Mr. Van Dellen sobre Wili. Ele não podia entender, o problema era que não conhecia vivalma que fôsse capaz de entender. Não sendo a primeira vez na vida, desejou ter uma amiga verdadeira e a coragem necessária para fazer parte desse género de amizade.
Com o coração tão pesado como a carteira que pôs ao ombro, dirigiu-se à saída lateral e deu de caras com Evan Bryce.
- Samantha!
O sorriso na cara do homem era o dum velho amigo e atrapalhou-a ainda mais do que o quase choque.
- Desculpe, Mister Bryce. Não vi para onde ia - murmurou.
- Não peça desculpa - ordenou ele, a fingir-se zangado, poisando-lhe a mão no ombro. - E trate-me por Bryce. Todos os meus amigos tratam. - Começou a protestar, mas ele apertou-lhe ligeiramente o ombro, com os olhos claros a brilhar. - Vá lá! Somos amigos, não somos? - perguntou o homem com um grande sorriso. - Não costumo emprestar os meus lenços a qualquer pessoa, sabe?
Samantha baixou a cabeça, corando ao lembrar-se de ter chorado no ombro dele. Por Deus, ele era Evan Bryce e ela era apenas a Sam Neill da zona má da cidade, um zero à esquerda. Era tão impossível fazer parte do grupo de Bryce COMO um rafeiro competir com galgos.
Bryce estudou a reacção dela por entre as pestanas. -Venha para o pé de nós - sugeriu ele, dirigindo-se Para a mesa.
-Não, não posso.
-Porque não? Está de folga. Não há motivo para não tomar qualquer coisa connosco, pois não?
Havia todos os motivos. Não era daquele meio. Não se enquadrava. Era casada. Precisava de ir para casa. Mas... para quê? Os pensamentos atropelavam-se-lhe na cabeça, claramente visíveis nos seus olhos escuros.
-Merece uma distracção, acho eu - insistiu ele em voz suave, o segredo compartilhado, caloroso e benévolo no olhar, ao inclinar-lhe o queixo com a ponta do dedo. Não merece?
Samantha ficou a olhar para ele durante um momento, sentindo necessidade de atenção como uma planta sequiosa precisava de água. A solidão cresceu dentro dela. A ideia de ir para aquela casa vazia quase lhe encheu os olhos de lágrimas.
- Venha fazer novos amigos - murmurou ele. Olhou para as pessoas na mesa habitual, junto à parede do fundo. Pessoas sorridentes, belas, ricas. Arir. Felizes.
Podia fazer parte delas durante algum tempo. Pensou em Will,sentindo vagamente que o traía. Mas depois pensou nele com a loira do Inferninho... e na casa vazia e na vida vazia. Merecia coisa melhor, não merecia? Uma bebida, um amigo, algum tempo longe da dolorosa solidão.
- Tá... Gostava muito - disse ela, acenando com a cabeça.
- Linda menina! - apoiou Bryce, fazendo brilhar novamente o seu sorriso à Robert RedfÓrd e conduzindo-a para a mesa.
Mari dirigiu-se ao Alce Alegórico com as mãos enfiadas nos bolsos do blusão de ganga. Não conseguira aceitar a ideia de jantar na elegante sala da estalagem. Mesmo depois dum duche para retirar o cheiro do fumo e a poeira, continuava a sentir qualquer coisa da propriedade agarrada a si, qualquer coisa que a fazia desejar um ambiente mais simples e música popular numa máquina de discos. Jantar no Café Arco-íris tinha-lhe parecido perfeito. Peito de frango frito com molho. Lyle Lovett e a sua Grande Orquestra, como extra. Nora Davis com o uniforme cor-de-rosa e o seU ar de sabedoria mundana.
Satisfeita, foi andando pelo passeio, deixando que a cidade lhe entrasse nos sentidos e que as tensões do dia a abandonassem. Arua principal estava bastante concorrida.
Havia uma fila de grandes carrinhas diante do Inferninho, alinhadas como cavalos. A mais dum quarteirão de distância já ouvia a voz de Garth Brooks a cantar e o choque das bolas de bilhar.
Pensou se J. D. costumaria parar por ali, mas depois achou que tanto fazia.
As lojas frequentadas pelas pessoas vulgares estavam escuras e silenciosas, mas as lojas da moda ainda se encontravam iluminadas e tinham as portas abertas com potes de gerânios. Não entrava uma alma numa daquelas boutiques que não tivesse ar de forasteiro.
Pareceu-lhe estranho ser capaz de os reconhecer. Afinal, também ela era forasteira. Mas qualquer coisa dentro de si protestava contra o rótulo. Sentia-se tão confortável a andar por aquelas ruas como se tivesse sido ali criada. Mais ainda. As lojas de categoria preferidas pela mãe e pelas irmãs em Sacramento sempre lhe tinham parecido estranhas.
Parou diante do edifício dos correios e estudou a sua imagem no vidro escuro da janela. o cabelo estava um horror. Deixara-o secar à vontade depois de tomar duche, e agora tinha uma nuvem selvagem de ondas e emaranhados em volta da cabeça, com espessas madeixas penduradas para a cara. Prendeu-as atrás das orelhas, com as pequenas mãos surgindo de dentro das mangas demasiado compridas e desaparecendo novamente quando deixou cair os braços.
Não achava que parecesse uma forasteira. Na verdade, não se assemelhava às pessoas que entravam e saíam da Boutique Laço. Até as que usavam calças de ganga tinham um aspecto requintado e uma aparência polida. Polida não era termo que alguém usasse para a descrever, a ela.
- Marilee... - A mãe parecia morder-lhe o nome com as belas capas dos dentes. E agitava as mãos de cada lado do seu fato Mark Eisen num gesto de fútilidade, - Não és capaz de fazer ao menos um esforço para teres bom aspectO? o teu cabelo é impossível e vestes-te como se a roupa viesse dum armazém.
-Mas eu compro a roupa num armazém. É o melhor sítio para arranjar calças de ganga.
Abigail Falkner Jennings dava um suspiro de supremo desgosto maternal e abanava a cabeça. O seu perfeito cabelo loiro cor de champanhe abanava apenas o suficiente e depois voltava ao impecável penteado.
Não te percebo, Marilee. Porque não és mais parecida com as tuas irmãs?
Porque eu sou eu, mãe, pensava para si própria, desolada. Mari, «a Inadaptada».
Durante vinte e oito anos, lutara por ser uma menina Jennings como Lisbeth e Annaliese. Em vez disso, fora sempre conhecida por «aquela rapariga, a Jennings. A que dava nas vistas como um dedo grande com um calo a sair duma meia de vidro.
Toda a vida se sentira de fora, mas isso ali não acontecia, de pé diante do edifício dos correios de New Eden, montana.
Rafferty considerava-a forasteira.
Raio de fulanas da cidade... Você é como a sua amiga Lucy? Quer saber o que acontece quando se metem com um vaqueiro?»
Não - pronunciou baixinho, sem querer recordar a sensação do corpo dele contra o seu ou o gosto do beijo dele. Sem querer pensar no que teria a Lucy feito com ele.
Continuou pela rua abaixo e, num impulso, entrou numa loja de estilo New Age, apenas pela distracção das pessoas e das luzes. A loja era minúscula, um tosco cubículo de cedro com prateleiras de livros e cristais, velas e cestos de pedras polidas. o aroma do incenso enchia o ar com um espesso perfume. Dos altifalantes dum leitor de cassetes, vinham sons de passarinhos, água a correr e vento nas árvores: a Natureza dentro duma caixa. Os lábios de Mari tremeram divertida com a ideia. Quem viria para aquela terra paradisíaca para depois se contentar com os seus sons em alguns centímetros de fita?
-A obsidiana está a dar resultado?
Desviou o olhar dum arranjo de raminhos numa jarra feita de casca de árvore para enfrentar o rosto intenso de M. E. Fralick. Trazia outro dos seus casacos, este dum azul-forte, sobre uma camisola de algodão cor de salmão. UM camaféu numa fita de veludo azul rodeava-lhe o pescoço gracioso.
Perdão?
Atrás das grandes lentes dos óculos, M. E. revirou os olhos numa atitude dramática própria da sua profissão, colocando uma mão na anca e gesticulando com a outra em direcção ao céu, invocando a atenção sabia-se lá de que deuses.
- Não está centrada - disse a actriz com impaciente contrariedade. Voltando a atenção de novo para Mari, explicou, como se estivesse a falar com a criança mais atrasada:
- A pedra que eu lhe dei ontem. Obsidiana. A obsidiana faz maravilhas ao bloquear vibrações perturbadoras.
- Ah, bom... Provavelmente, preciso de uma coisa mais do tamanho duma bola de básquete. Mas aprecio a ideia. obrigada - proferiu Mari, encolhendo os ombros como quem pede desculpa, Tirou a pedrita do bolso do blusão e ergueu-a para a luz.
A actriz abanou a cabeça, de testa franzida e com ar grave.
- Tem de se centrar.. ! Fale com o Damien, querida disse ela, indicando com a cabeça o homem enorme atrás do balcão. - Ele é mestre zen.
Mari olhou para ele na dúvida. Parecia uma versão careca do chefe Paul Prudhomme. o corpanzil ocupava todo o espaço atrás do balcão. Não pôde deixar de pensar que, se ficasse bem centrado, pequenas luas andariam em órbita à sua volta.
Um novo grupo de clientes entrou na loja, atraindo a atenção de M. E., e Mari conseguiu escapar da actriz e da loja sem ter o prazer de conhecer o mestre zen.
Voltou para o Alce quando a Lua começava a aparecer por cima dos Absarokas, e foi ao quarto buscar a guitarra. Apesar de Rafferty, tinha gostado do tempo que passara nas traseiras da estalagem na véspera à noite. A Lua, os montes e a sua música. A perspectiva era mais calmante do que um saco cheio de obsidianas.
Kevin Bronson estava no átrio quando ela saiu do elevador. Levantou os olhos dum monte de relatórios e dirigiu-lhe um agradável sorriso.
- Ena, a Lucy disse-nos que você tocava - comentou, apontando para a guitarra com o molho de papéis na mão.
- Disse?
- Pois, disse que você era fantástica. Que estava a perder tempo nos escritórios dos advogados e que devia estar em L. A. ou Nasliville ou coisa parecida, a fazer justiça ao seu talento.
-A Lucy disse isso?
Parecia-lhe inconcebível. A amiga ouvira-a tocar em algumas ocasiões durante sessões improvisadas em bares locais. Às vezes, durante os seus serões de cerveja e conversa em casa de Mari, quando a tagarelice se esgotava, ela pegava na guitarra e brincava com ela, cantando umas estrofes de alguma coisa que trazia na cabeça, distraída, casualmente. E Lucy ouvia e continuava a beberricar a cerveja, com um comentário de gozo no fim. Devias ser uma estrela, Marilee. Conversa fiada. Apenas uma coisa para preencher o silêncio depois da última nota.
Kevin pareceu admirado com a sua surpresa, mas era demasiado bem-educado para dizer qualquer coisa. Com as suas calças azul-escuras de vinco perfeito e um pólo de algodão branco, era a imagem do estudante de Yale, desde o corte de cabelo até às pontas dos sapatos de marca.
- Ia mesmo a caminho do bar para tomar café com o Drew. Quer juntar-se a nós? - perguntou ele, sorrindo de novo, deixando ver os dentes brancos na cara magra. - Talvez sejamos capazes de a convencer a tocar alguma coisa para nós.
Mari deu uma gargalhada e começou a andar a seu lado.
- Não se preocupe em convencer-me. Não tenho sombra de vergonha.
Sentaram-se numa mesa perto da lareira e conversaram enquanto bebiam o café com natas. Mari contou-lhes a sua aventura com Miller Daggrepont e ambos abanaram a cabeça e soltaram risadinhas com a escolha de Lucy quanto a lugar de repouso final.
- Isso é positivamente macabro! - comentou Drew, dando um gole no café. - É mesmo dela.
- Não posso acreditar que me tenha deixado tudo -- disse Mari de repente, no meio dum silêncio, experimentando a necessidade de o dizer, apesar de se sentir como quem confessa um crime.
Drew e Kevin trocaram um olhar, mas sem exclamações de choque ou negação. Drew enrolou os dedos no braço da guitarra que ela encostara à mesa e balançou-a suavemente. -Fica por cá?
-Não sei. Não sei que pensar - disse ela, mas recordou a vista da varanda da casa de madeira, a sensação de paz que.absorvia dos montes, o sentimento de pertença por que ansiara futilmente toda a vida. Pensou em Rafferty a prendê-la debaixo dele na terra do curral, a abraçá-la desajeitadamente enquanto chorava, e sentiu um calor dentro de si que pouco tinha a ver com o lume que ardia na lareira.
Fez um esforço para pensar em Lucy, e as perguntas vieram à superficie como azeite em água.
- Quem era o empregado que ela tinha lá na quinta? perguntou. - Ouvi dizer que desapareceu depois do acidente.
- o Kendall Morton? - Kevin fez uma careta. - Nojento. Sempre achei que era um porco. Tatuagens, dentes podres, cheiro a suor.
Drew bebeu outro gole de café e acenou com a cabeça.
- Tipo estranho. Nunca dizia grande coisa. Sempre de burro amarrado, em segundo plano.
-É um tipo assim estranho e ninguém pensou em interrogá-lo depois da morte da Lucy? - perguntou Mari, com os olhos muito abertos, sem poder acreditar.
-Não havia motivo para isso - explicou Drew. o Sheffield apresentou-se e ficou tudo dito. Além de que o Morton não tinha razão para a matar.
- Desde quando é que as pessoas precisam duma razão?
- Motivo, móbil - emendou ele com um encolher de ombros elegante. - Móbil, provas... Você deve estar familiarizada com o procedimento. o Morton não tinha motivo...
- Mas teve oportunidade, provavelmente meios e certamente comportamento suspeito. Faz alguma ideia de para onde ele foi?
- Porque está a tentar transformar isto numa coisa que é? Foi um acidente. Acontece... - disse ele, com uma expressão mais confusa do que curiosa.
Mari sentiu o olhar sobre si durante uns momentos, inquiridor, enquanto ela própria olhava para o café. Pensou sentir perguntas nesse olhar, nele, mas o homem limitou-se a repetir:
- Foi um acidente, querida. Deixe isso. - Pouco depois, pediu: - Toque qualquer coisa para nós, quer? - Inclinou a guitarra na sua direcção, vendo-se obrigado a agarrá-la para não a deixar cair. - A Lucy disse-nos que tem uma voz extraordinária.
Aliviada por afastar o assunto, Mari empurrou a cadeira para trás e pegou na velha guitarra, experimentando as cordas e afinando-a.
- Em princípio, eu devia ter aprendido a tocar violoncelo - disse ela. - A minha irmã Lisbeth toca violino e a Annaliese flauta. A mãe achava que os amigos iam ficar impressionados se nós tocássemos num trio em coisas de caridade.
- E então? - perguntou Kevin.
Mari sentiu os lábios tremerem numa mistura de sorriso e lamento.
- o meu professor disse que o meu arco lhe fazia lembrar uma serra a cortar metal. Passei a faltar às lições e comecei a andar à volta dum velho hippie que tinha uma loja de alimentos macrobióticos. Ele costumava tocar de improviso com os Grateful Dead. - Levantou uma sobrancelha, colocando os dedos nas cordas. - A mãe não gostou quando descobriu, mas... bom, cá vai...
Tocou um acorde, apreciando como sempre a ressonância perfeita da velha guitarra; depois começou a tocar uiu ritmo suave e familiar, a que se juntou a melodia da sua voz grave e cheia. A canção era sobre a chuva e o fim duma relação, uma mulher a analisar o que perdera e a seguir a sua vida; uma canção sobre o ritmo da tristeza. Nem sequer pensou em como ela reflectia a sua própria vida. Limitou-se a cantá-la, com as emoções misturadas dentro de si, deixando-as sair numa voz tão forte e doce como o café que tinham bebido.
Quando acabou, ficou imóvel durante uns momentos, absorta, sem notar o silêncio que se fizera na sala. Os aplausos despertaram-na e, com uma expressão um tanto envergonhada, levantou a mão em agradecimento, tentando fazer com que as pessoas do bar retomassem as suas conversas.
Kevin parecia espantado e muito satisfeito com ela, o que Mari calculou ser uma expressão normal nele. Tinha um ar de cachorrinho excitado, qualquer coisa duma inocência juvenil que nada tinha a ver com a idade. o escrutínio de Drew era mais pesado, e ela tentou não lhe dar importância estendendo a mão para a chávena de café e desejando um cigarro.
- A Lucy tinha razão! Você estava a perder tempo com os advogados - declarou Kevin.
- É... Bom, e não sabem vocês metade... - respondeu ela secamente, bebendo um golinho.
- Merece ter público - disse Drew. - Adorávamos que tocasse aqui enquanto estivesse por cá. Temos um trio que toca aos fins-de-semana. Por favor, venha tocar também.
- Eu não me meto com outros músicos, mas talvez fale com eles - prometeu Mari, fazendo uma careta.
Já falou! - respondeu ele, com os olhos verdes a brilhar. - o pianista sou eu.
Riram, e Mari ficou encantada por se sentir tão bem com aqueles novos amigos. Sacramento, Brad Enright e a sua própria família pareceram-lhe de repente coisas do passado, a meio mundo de distância.
- Espero que não seja a última vez que a ouvimos, Marilee.
Evan Bryce sorria-lhe como um amigo de longa data. Mari fez-lhe um delicado sorriso social e murmurou umas palavras adequadamente humildes. Tinha-o detestado de imediato, em parte por causa da sua ligação com a morte da amiga. o resto era intangível, mas também não lhe interessava analisá-lo. Os seus anos de trabalho judicial haviam-lhe apurado os instintos quanto à natureza humana e raramente Perdia tempo a questioná-los. Qualquer coisa naquela atitude de «sou o seu melhor amigo» soava a falso.
o aspecto do homem era praticamente o mesmo da primeira vez que o vira - botas com saltos, calças de ganga muito apertadas e que anunciavam o seu género em termos claros, o mesmo cinto caro de cabedal e osso feito à mão, que Parecia tirado dos enfeites dum guerreiro índio. Trocara a camisa de ganga por uma de linho estilo poeta, com mangas tufadas, e trazia metade dos botões desabotoados, numa imagem propositadamente descuidada. Mari teve a impressão de que o peito à mostra e as calças justas eram uma espécie de compensação - provavelmente da sua pouca altura.
- Ouvi dizer que se tornou de repente proprietária no nosso pequeno paraíso - disse ele, enfiando um polegar no bolso das calças, com uma gargalhadinha perante o espanto dela. - É a praga das terras pequenas, acho eu. As notícias correm com uma velocidade alarmante. É claro que eu estou sempre à escuta, por assim dizer. A propriedade da Lucy fica ao lado da minha.
-É, eu sei. - Por isso é que ela morreu. Engolia as palavras, demasiado consciente do comportamento socialmente aceitável para falar com tanta franqueza. Além do que, para ser justa, o idiota com a arma não tinha sido ele.
- Isso quer dizer que vai fazer parte da nossa comunidade? - perguntou ele, com ar demasiado esperançado para ser sincero. - Ou vai vender?
-É demasiado cedo.
- Claro - murmurou ele, concordando com a cabeça.
- Bom, se quiser conhecer a propriedade ou a região, é só pedir. Terei todo o prazer em a acompanhar.
- Obrigada.
- É uma propriedade linda. A Lucy estava ali instalada com todo o conforto. Ela alguma vez lhe contou como a comprou?
o olhar do homem possuía uma agudeza estranha, e Mari não percebeu se se tratava duma pergunta inócua ou se estava a ver se ela passava numa espécie de exame. Respondeu da única maneira possível.
- Ela disse-me que a vira enquanto estava aqui de férias e depois herdou um dinheiro e resolveu comprá-la. Se havia mais alguma coisa naquela história - e Mari
tinha a certeza disso - não sabia o que era. Pensou para consigo se ele saberia.
A expressão do homem não o deixou transparecer. A claridade da lareira reflectia-se-lhe na testa.
-Ela teve muita sorte... e era muito esperta - observou ele com os olhos semicerrados.
Pareceu instalar-se alguma tensão, até que Bryce voltou a sorrir.
- Espero que tenhamos oportunidade de a ouvir cantar outra vez, Mari. Tem imenso talento.
- Obrigada.
Despediu-se e voltou para a sua mesa, Kevin ficou de olhos fixos no café diante de si, com os maxilares apertados. Drew esfregou o lábio inferior com um dedo, com as pálpebras descidas. Depois, olhou para ela com uma expressão quase sinistra à luz bruxuleante da lareira.
- Ele adorava possuir aquelas terras - disse baixinho.
- E o J. D. Rafferty também. Não que fizessem grande diferença na propriedade do Bryce. Dizem que tem mais de trinta e dois mil hectares.
-Meu Deus!
- Pois é. - Olhou para o outro lado da sala. Bryce ria, e um dos seus convidados levantava o copo numa saúde. À sua direita, encontrava-se Samantha Rafferty, na cadeira geralmente ocupada pela prima de Bryce, Sharon Russel. Samantha também se riu, embora estivesse de cabeça baixa, como se não quisesse que alguém visse que percebera a piada. Drew franziu a testa. - Ele colecciona terras como algumas pessoas coleccionam selos. - Tinha as suas suspeitas de que não coleccionava só terras, mas ficou calado e tomou nota mentalmente para ter uma conversa em particular com Samantha quando ela entrasse de serviço.
-Homem interessante - comentou Mari.
-Com licença - resmungou Kevin, levantando-se e empurrando a cadeira para trás, de cabeça baixa. - Tenho que fazer. - Reuniu desajeitadamente os papéis que trouxera consigo e afastou-se.
Drew suspirou e esfregou a testa.
Mari sentiu de repente que estava a intrometer-se em qualquer coisa muito particular. Pegou na guitarra e levantou-se.
- Obrigada pelo café. Acho que me vou deitar. Quero levantar-me cedo. Não quero perder o nascer do Sol. Drew forçou um sorriso, que desapareceu quando lhe segurou um pulso.
- Tenha cuidado com o Bryce, querida - murmurou.
- A Lucy adorava brincar com cobras, mas ela também tinha o seu veneno. Não gostava que você se magoasse.
- Magoasse como? Literalmente?
- Tenha cuidado.
Levantou-se também e saiu pela mesma porta que Kevin, deixando Mari de pé junto à lareira, com os olhos postos em Evan Bryce, vendo-o encantar facilmente a rapariga a seu lado e pensando na serpente do Jardim do Paraíso.
- Divertiu-se esta noite, Samantha?
A rapariga sorriu timidamente para o homem que caminhava a seu lado pelo passeio rachado em direcção à sua casa vazia. Ele tinha insistido em acompanhá-la para ter a certeza de que ficava bem. A sua linda prima estava à espera no Mercedes descapotável estacionado atrás do velho Camero de Samantha.
- Claro - respondeu, encolhendo os ombros, como se quisesse dar pouca importância ao assunto. - Foi muito divertido.
- Toda a gente gostou de si. Você é uma lufada de ar fresco, tão... tão pouco marcada por este mundo.
- Ingénua, quer dizer.
- Não como insulto. É jovem e linda e cheia de potencialidades, com tudo à sua frente.
Como mais uma noite numa cama vazia. Como um futuro cheio de dias a servir à mesa no Alce. As perspectivas pesavam-lhe que nem pedras, ao subir os degraus da entrada.
Bryce pegou-lhe nas mãos e voltou-a para si quando ela ia a tocar no puxador da porta. Tinha uma expressão sincera e paternal - ou o que ela sempre imaginara ser paternal. Com certeza que o pai nunca lhe mostrara aquela espécie de interesse. Nunca manifestara interesse em qualquer dos filhos e sempre os tratara como se não passassem de meia dúzia de cães vadios que pareciam estar sempre a meter-se-lhe debaixo dos pés.
- Não deixe esse desgosto amoroso isolá-la, querida aconselhou ele. - o seu marido é um idiota. Se ele saísse deste mundo amanhã, a terra continuava a girar, e você ainda tinha a sua vida, provavelmente uma vida bem melhor.
Tem tanta coisa dentro de si ainda por descobrir e explorar, tanto potencial! Não o deixe adormecido.
Os olhos de Samantha encheram-se de lágrimas. Porque não era o marido a dizer-lhe que ela era maravilhosa? Porque, evidentemente, ele não via nela o que Bryce via. Se visse, não tinha ido à procura de mais nas outras mulheres.
- Então, nada de lágrimas - murmurou Bryce, limpando-lhe a cara com a mão. - Já chorou o suficiente. Quando é que está de folga outra vez?
-Depois de amanhã.
- Perfeito - disse ele, sorridente. - Vai passar o dia lá no rancho. Vai nadar, andar a cavalo, estar com pessoas que a apreciam.
Começou a protestar, mas ele não fez caso. Apertou-lhe as mãos e inclinou-se para a frente para lhe dar um leve beijo paternal.
- Eu mesmo venho cá buscá-la. Esteja pronta às nove. Vamos dar um passeio a cavalo e fazemos um piquenique. Vai ser óptimo!
E afastou-se, deslizando da entrada descuidada da casa e encaminhando-se elegantemente para o impecável Mercedes.
Samantha entrou em casa às escuras, sem se preocupar em acender uma luz. A claridade do candeeiro da esquina que entrava pelas janelas era suficiente. Como sempre, alimentara a esperança secreta de ter o marido à espera, uma esperança que nunca admitia até ficar desapontada.
Não estava lá. Encontrava-se provavelmente no Inferninho, a rir e a beber, com um braço à volta de alguma rapariga de calças justas e grandes mamas. E provavelmente não pensava na mulher, não queria saber se ela se sentia solitária, nem sabia que tinha passado a noite com pessoas com carros desportivos e que bebiam champanhe. Importar-se-ia?
A pergunta penetrou-lhe no coração como uma faca. Agora que ninguém as via, ninguém que as impedia, as lágrimas começaram a cair. Deixou-se tombar no chão de madeira riscada da sala, dobrada, enrolando-se numa bola, com a Comprida trança por cima do ombro e estendida no chão como uma corda.
o Maroto apareceu vindo da cozinha, todo patas, orelhas e rabo a abanar. Era uma mistura de cão de caça com sabia-se lá o quê, grande e desastrado e transbordante de amor. Ladrou-lhe, com rosnidos e latidos, tentando decidir o que fazer com ela. Por fim, Samantha endireitou-se e estendeu-lhe os braços. o animal saltou-lhe para o colo, feliz por poder dar-lhe uma coisa para abraçar e lamber-lhe as lágrimas da cara.
Agarrou-se ao cachorrito e soluçou com toda a força que o coração aguentou, esmagada pela ideia de que o cão que o marido lhe dera se preocupava mais com ela do que ele.
- O que é que achas? A tal Jennings sabe em que é que a Lucy estava metida?
Bryce virou-se e admirou a prima. Estava um espanto, ao luar.
- Ainda não sei. Não deu qualquer indicação.
Sharon levou a mão à cabeça e soltou a cabeleira loira do seu apanhado perfeito, sacudindo-a.
-Não consigo imaginar que lhe tenha deixado tudo sem incluir no pacote os seus segredinhos.
-Tanto faz. Não me preocupo com isso - disse ele, pensando noutras complicações.
Na realidade, não estava preocupado. Aquilo para ele era um jogo, um jogo que não podia perder. A aposta era enorme para alguns, mas ele tinha quase todas as cartas na mão. Era essa a beleza do poder e duma mente brilhante.
Lucy havia compreendido. Podia eventualmente ter sido uma rival à sua altura, ou mesmo uma sócia. Tinha-lhe apreciado devidamente os encantos na cama e fora dela, ao ponto de considerar as possibilidades.
Pena ter morrido.
A primeira tarefa de Mari na manhã seguinte - depois de admirar o erguer do Sol - foi uma viagem até à drogaria para comprar produtos de limpeza. Escolheu esponjas e detergentes, um balde, uma esfregona e uma vassoura, pouco disposta a acreditar que a amiga possuísse tais coisas. Deu à língua com Marcia, a empregada do balcão, começando com um amigável debate sobre dois detergentes e passando para uma leve discussão da política local e dos prós e contras das permanentes caseiras.
Da drogaria foi até ao Arco-íris, onde bebeu um café e comeu uma fatia de tarte de limão com merengue na companhia de Nora. Esta indicou-lhe a Biblioteca Carnegie, onde Mari procurou livros sobre lamas, encontrando apenas um na secção infantil do velho e apinhado edifício. Nada encontrou quanto ao cuidado e compreensão de machos, mas como eram parentes próximos dos cavalos, desencantou dois sobre equitação, a fim de fazer uma revisão dos seus conhecimentos.
Meteu conversa com o velho Hal Linderman, que ensinara Matemática no liceu de New Eden durante quarenta anos antes de se reformar e passar a ser o bibliotecário da terra. uma hora depois, tinha um cartão provisório da biblioteca e UM convite para se filiar na Igreja Presbiteriana.
Satisfeita, dirigiu-se ao Honda. Ia passar pela estação de serviço para comprar comida rápida, antes de voltar para a quinta para um dia de limpezas, leitura e meditação. Atravessou a praça e parou a ver a escultora que trabalhava diante do edifício do tribunal. A empregada da drogaria mostrara-se duvidosa quanto ao projecto e não via qual seria a vantagem, mas Mari parou junto à corda que isolava a área e estudou o modelo, acabando por achá-lo interessante,
- Simboliza o conflito do antigo e do moderno, unidos numa coisa forte e bela - declarou Colleen Bentsen. Estava vestida para soldar, desde a máscara inclinada para trás na cabeça até ao maçarico que tinha na mão. o fato-macaco ’ parcialmente desapertado, revelava uma camisola de algodão da Universidade de Hamline. Dos altifalantes do outro lado da sua plataforma cheia de tralha, vinha a voz de Hal Ketchum, e uma boa colecção de ferramentas e pilhas do que parecia ferro-velho cobria uma longa mesa.
- Parece-me boa ideia - respondeu Mari, inclinando a cabeça e inspeccionando minuciosamente as linhas do monumento. - Gosto dos elementos... o áspero e o liso juntos num braço que será mais forte do que os componentes individuais.
- Exactamente - exclamou a artista, encantada. Aquela espécie de sociedade entre as facções antiga e moderna de New Eden parecia pouco provável, mas Mari seria a última pessoa a depreciar o idealismo. Os sonhos eram importantes e, na sua maneira de pensar, até os objectivos inatingíveis eram de tentar alcançar.
Pensou nos seus próprios objectivos enquanto conduzia o carro para fora da cidade. Tempo houvera em que sonhara com o êxito como cantora e autora de canções, mas os pais tinham insistido na universidade e numa carreira de Direito. Surgira a luta, contra eles e dentro dela mesma, a jovem independente contra a criança insegura. As facções chegaram a um compromisso. Os seus sonhos perderam e ninguém viveu feliz daí em diante.
Qual é o mal em ser estenógrafa judicial? Queriam que eu fosse para Direito. Isto é um trabalho relacionado COM Direito.
Tu querias ser advogada, Marilee. És tão inteligente, tens tanto potencial! Podias ser o que quisesses.
óptimo. Quero ser estenógrafa judicial.
Não era que quisesse ter aquela profissão. Não queria era ser advogada. A sua escolha parecia-lhe ser um compromisso razoável. Ainda via os pais a abanar a cabeça com tristeza, perguntando a si próprios o que teriam feito de errado e por que teria o gene mau dos Jennings aparecido na sua progenitura. Ainda sentia a decepção deles a pesar-lhe no coração como uma pedra. Ainda lamentava por vezes os sonhos de que prescindira na sua vã tentativa de lhes agradar.
O passado é o passado, Marilee - disse ela em voz alta, sobrepondo-se ao piano de Bruce HorDsby. Acelerou em direcção à quinta, com as janelas do carro abertas e o vento a despentear-lhe o cabelo. - Sonha de novo. Sonha ein grande.
No entanto, tinha demasiadas pontas soltas no presente para se concentrar no futuro, e a única coisa grande que lhe vinha à ideia era J. D. Rafferty.
Passou o resto do dia em limpezas. Os seus hábitos de dona de casa sempre tinham sido do género de exagero cíclico. Deixava acumular tralha, sem lhe ligar durante semanas, até que dava por ela de repente, como quem sai dum transe, e deitava mãos à tarefa de limpar com dedicação e entusiasmo até a casa brilhar. A desarrumação em casa de Lucy não podia ser ignorada, nem a necessidade de se ver livre da confusão. A destruição dos vândalos era um insulto demasiado grande à memória da amiga e possuía demasiadas reminiscências duma violência gratuita. Pairava no ar, e ela abriu as janelas todas numa tentativa de o dispersar.
Começou pela cozinha, raspando o lixo do chão, lavando os azulejos mexicanos e o frigorífico. No fim do dia, tinha chegado ao fim da sala. A planta murcha fora arrastada Para fora, as gravuras nas paredes endireitadas e o tapete berbere aspirado. Nada podia fazer quanto ao rasgão no sofá de cabedal encarnado, excepto escondê-lo com um pano Inulticolorido que encontrou junto à caixa da lenha. Aproveitou todas as almofadas que pôde e deitou fora as outras. Os bocados de madeira que haviam consistido numa cadeira de baloiço e numa mesa auxiliar foram levados para fora.
Mr- Peanut observou a actividade do seu poleiro na cornija da lareira de pedra. Mari imaginou o espírito de Lucy a Pairar por detrás dos olhos pintados, troçando enquanto ela se estafava a trabalhar. o jeito de Lucy para evitar o trabalho físico - para conseguir que os outros o fizessem por si - fora fenomenal.
Quem devia ter nascido na tua família era eu e não ttu, Marilee!
Deus sabia que teria encaixado no clã Jennings que nem uma luva, em muitos aspectos. o lema da família era: viver bem, vestir bem e arranjar criados.» Mari consolara sempre Lucy com a impossibilidade de a mãe tolerar a promiscuidade da amiga. Dado o gosto de Lucy por uma vida desbragada, era melhor não ter uma mãe a espreitar-lhe por cima do ombro.
Deu consigo a lamentar essas palavras, quando pensava na amiga a morrer sozinha. Deita uma lágrima ou duas por mim. Ninguém mais o fará.
Com a sala pronta, Mari olhou através do que restava duma porta envidraçada e gemeu com o que viu. Havia papéis e livros por todo o lado, estátuas partidas e mais plantas mutiladas. Uma escultura de bronze duma águia com as asas abertas fora utilizada como marreta na elegante secretária de nogueira, partindo o tampo. Não fazia ideia de como remediar aquilo. Em vez disso, tirou as duas últimas latas de cerveja sem álcool do frigorífico e saiu de casa.
o Sol já começara a sua descida por detrás dos montes, deixando o vale num quente banho de âmbar e sombras. Ficou de pé na varanda durante um bom bocado, a olhar para o riacho, percebendo que os animais que vira a pastar junto à margem não eram cavalos, afinal, mas sim lamas.
Pensar nos seus olhos meigos e postura real fê-la sorrir. Apetecia-lhe ir para junto deles e ouvir o seu agradável zunido, sentar-se na cerca e deixá-los esfregar os narizes nas pernas, falar para eles e tentar absorver o seu ar de sabedoria. Quando quisessem jantar, dir-lhes-ia que esperassem por Rafferty.
Não tinha a certeza se ele apareceria nesse dia. o livro que lera durante o curto intervalo para almoçar trazia poucos pormenores sobre a dieta dos lamas. Havia erva e água inesgotáveis. Talvez comessem ração só como suplementO uma ou duas vezes por semana. Fosse como fosse, Rafferty tinha provavelmente mais que fazer do que ir até ali para desempenhar uma tarefa que qualquer garoto de dez anos podia aprender. Deus sabia que ele nem sequer gostava dela. Dera-lhe um beijo de fúria e prendera-lhe o corpo junto ao dele porque o tinha atacado.
E abraçou-te enquanto choravas; por que motivo, Mari? porque não teve por onde escolher.
Fez uma expressão carrancuda, ao lembrar-se. Apesar de tudo, tinha concordado em ajudá-la com os animais, por ser sua vizinha.
isso fazia parte do código do Oeste, desconfiava ela. parte do código pessoal de Rafferty. Sentira-se tocada num ponto do coração que não sabia ser vulnerável. Tinha passado demasiado tempo a trabalhar num mundo onde cada um se safava por si.
Sentindo-se inquieta, deu a volta até à frente da casa e atravessou o pátio em direcção às arrecadações, à procura dos lamas. A relva precisava imenso de ser cortada. Mais uma coisa a juntar à lista do dia seguinte: arranjar um corta-relva ou levar um lama para ali. Tentou pensar no que Lucy teria feito. Nada, evidentemente. Devia ter arranjado alguém que tratasse do assunto em vez dela. o tal Kendall Morton, empregado vindo do espaço.
Queria fazer uma ou duas perguntas ao xerife sobre Morton. Se estivessem na Califórnia, podia telefonar a qualquer um da meia dúzia de amigos polícias e pedir-lhe que procurasse algum mandado de captura ou o cadastro do hoMem. Mas aquilo não era a Califórnia
Um empregado, pensou ela. Uma quinta num sítio onde a terra valia o seu peso em oiro. Uma manada de animais exóticos. Um Range Rover novo na garagem ao lado do Afiata encarnado de Lucy. Donde raio tinha vindo todo aquele dinheiro?
Uma sorte inesperada, dissera ela, uma herança dum parente afastado. Mas quem podia ter-lhe deixado tanto dinheiro, quando ninguém se preocupara o suficiente para a livrar da série infindável de lares de adopção temporária que tivera de suportar enquanto crescia?
As perguntas provocaram-lhe um mal-estar semelhante a uma comichão subcutânea. Estúpida, Marilee, isso já não tem importância. Ela morreu e o assassino,foi castigado.
Castigado... Fungou, aborrecida. Uma pena suspensa e uma multa de mil dólares. A vida era barata, quando se tratava dum cirurgião plástico de Beverly Hills com amigos influentes. Tentou imaginar o homem a chorar durante a breve sessão judicial, dizendo que não tivera intenção de disparar sobre Lucy. Não sabia que ela estava ali. Tinha-se afastado e deixara-a a apodrecer.
Fosse como fosse que pensasse no assunto, não conseguia sentir grande simpatia pelo homem. Chegava sempre à mesma conclusão: tinha-se comportado de maneira irresponsável, o preço fora uma vida humana, e as consequências das suas acções nem sequer lhe tinham afectado a carteira. Sabia perfeitamente que, se o atirador tivesse sido um vaqueiro desempregado, estaria a passar os seus dias à custa do estado durante um ano ou mais. A justiça podia ser cega, mas Mari sentia o cheiro do dinheiro a um quilómetro de distância, com a balança a pender para esse lado.
E se o tal Sheffield não tivesse atingido Lucy, afinal? Parando junto ao curral, Mari prendeu um sapato de ténis na trave inferior da cerca e apoiou os braços na de cima, com as latas de cerveja nas mãos pendentes. Desejou fervorosamente um cigarro, mas negou o prazer a si própria. Umas horas antes, tinha-se rebaixado ao ponto de procurar cigarros caídos debaixo dos bancos do carro, encontrando três. Dois ainda estavam no bolso do blusão.
Tinha jurado começar vida nova. Nada de carreiras sem perspectivas. Nada de continuar a viver à sombra das esperanças dos pais. Fim às relações sem significado. Deitar fora os cigarros fora um acto simbólico. Começara por fumar para compensar a tensão e o tédio do emprego. Abandonara o emprego, portanto deitara fora os cigarros. New Eden parecera-lhe o sítio perfeito para começar uma nova vida. um ano sabático no paraíso, sem fumo e sem tensões.
Mas tinha a cabeça a latejar e sentia-se em baixo, com os nervos a tinir como um mobile metálico num cicloneMexeu na pala do bolso. Só um...
Rafferty escolheu esse momento para aparecer, a cavalo, descendo a colina arborizada, montado no seu grande cavalo alazão. A aba do grande chapéu preto escondia-lhe os olhos, tinha a boca apertada num esgar amargo, e a sua postura era a de alguém com dores em todo o corpo mas que nunca teria a fraqueza de deixar cair os ombros. Alguma coisa naquilo tocou Mari, que fez o possível para afastar o sentimento. Nunca tivera paciência para pessoas de cabeça dura que punham o orgulho à frente do senso comum. E não devia haver qualquer atractivo naquele.
- Está a pensar em pegar fogo a isto outra vez? - perguntou J. D. em voz arrastada, acenando com a cabeça na direcção das plantas secas e dos móveis partidos que coroavam os restos calcinados de roupa.
- É, queria ter outra oportunidade de ser agarrada à força por você - disse ela, com um olhar indignado. - Tenho três ou quatro costelas que se esqueceu de me partir ontem.
Ele desmontou, engolindo o gemido que ameaçava sair. Andava em cima duma sela desde a madrugada. Tinha havido uma época em que o corpo não protestava perante aquela espécie de maus tratos, mas esse tempo passara alguns aniversários antes. Semicerrou os olhos na direcção da mulher diante dele.
- Se bem me lembro, você é que atacou!
- Bom, detesto desapontá-lo, mas não fique à espera de que aconteça esta noite - resmungou ela, encolhendo os ombros. - Estou estafada.
Parecia mais despenteada do que habitualmente, com o cabelo bravio a fugir do rabo-de-cavalo em ondas contínuas. Tinha o queixo mascarrado e os olhos pareciam mais profundos e maiores, dominando um rosto com uma expressão delicada e tensa ao mesmo tempo.
- Pois é, tenho ouvido dizer que as férias, às vezes, são o diabo - disse ele em tom seco.
-Deixei de lhes chamar férias quando descobri que a minha amiga tinha morrido - respondeu Mari de imediato. E, para sua informação, tenho estado todo o dia a trabalhar, a tentar pôr a casa em ordem. Estou certa de que isso
não se compara com marcar vacas ou lá o que você faz, mas Para mim é trabalho pesado.
Ele resmungou qualquer coisa e dirigiu-se ao celeiro, COM Mari a desejar instantaneamente que voltasse. Não ele em particular, garantiu a si própria. Mas precisava de comPanhia. Não estava habituada a tanta solidão, e até uma companhia Rafferty lhe parecia preferível ao emaranhado de pensamentos e sentimentos que andavam dentro dela desde manhã.
- Espere! - gritou, dando uma corridinha para o apanhar. - Quer uma cerveja?
- Porquê? - perguntou ele, voltando-se. - Está outra vez a tentar encher-me de álcool, Mary Lee?
E fez o seu sorriso lento e sardónico, com um brilho de macho predador no olhar.
-Já lhe disse que não é preciso - continuou ele, provocando em Mari uma sensação de lixa nos nervos. - Basta pedir, Esta noite apetecia-me bem montar qualquer coisa mais macia do que um cavalo.
- Está a sonhar, Rafferty - respondeu Mari, dando um passinho para trás e tentando parecer aborrecida. - Ofereci-lhe uma cerveja, não o meu corpo.
-Está com a pulsação muito acelerada, Mary Lee murmurou ele. - Fica sempre assim agitada por causa duma cerveja sem álcool?
- Só quando estou a pensar em dar com ela na cabeça dum homem obnóxio. Quer ou não quer a cerveja? -Quero. É capaz de ser melhor desarmá-la – disse ele, sentindo a garganta seca como cascalho e a boca com um gosto a poeira e cavalos.
Mari revirou os olhos e dirigiu-se a um velho banco de madeira no fundo do celeiro. Sentou-se, atirou-lhe a lata de cerveja e abriu a dela.
Rafferty olhou para o espaço a seu lado, mas decidiu ficar de pé, encostado à parede. Parecia exausto. Tinha a camísa manchada de suor e terra e as calças de ganga amarrOtadas. Era evidente que havia molhado a cara antes de se dirigir ali; via-se a linha no pescoço, onde acabava o limpO e começava o sujo. A sombra das faces magras dizia-lhe que não se barbeava havia algum tempo.
-Tréguas, está bem? - sugeriu ela, erguendo a lata numa saúde. - Não me parece que algum de nós aguentasse um combate hoje.
Ele inclinou ligeiramente a cabeça, como quem concOrda, abriu a lata da cerveja e bebeu metade duma vez. O olhar de Mari ficou preso à maneira como funcionavam OS músculos da garganta dele.
-Muito trabalho? - perguntou, mais para se distrair do que por outro motivo.
- o costume - disse ele, encolhendo os ombros. -E que é o costume?
- Acabei de juntar a manada reprodutora para ser marcada e vacinada. Os poldros precisavam de ser montados e os bois de ser mudados de zona.
Mari teve a sensação de que as tarefas eram muito mais do que as poucas palavras com que ele as resumia. Aquele Rafferty tinha um talento especial para resumir as coisas. Comprimia a conversa ao essencial do pensamento, deixando de fora todas as palavras que não lhe parecessem absolutamente necessárias. Era uma coisa simultaneamente ternurenta e irritante. Mari estava habituada aos esclarecidos profissionais dos anos noventa que, assim que aprendiam que estava certo abrirem-se, nunca se calavam. Brad fora sempre uma virtual fonte de informações sobre ele próprio, os seus sentimentos, os seus interesses, a sua carreira.
- Marcada como nos filmes? Apanhar os animais com o laço, deitá-los ao chão e espetar-lhes um ferro em brasa de lado?
-Há uma razão para tudo isso - esclareceu ele, endireitando-se quase imperceptivelmente e contraindo o maxilar, ofendido com a sugestão de que pudesse fazer mal a um animal sem necessidade. - Você é vegetariana ou quê?
- Não, só curiosa. Acredite que raras vezes sou contra qualquer coisa comestível... excepto fígado. Não gosto de fígado. E não como coisas que as pessoas dizem que «sabe mesmo a galinha». Isso quase sempre se refere a um animal que não comíamos se soubéssemos o que era.
- Cascavel - disse J. D., com a boca ligeiramente torcída num sorriso relutante. - Sabe mesmo a galinha.
Ela fez uma careta e levantou as mãos como para afastar a ideia, estremecendo visivelmente dentro do gigantesco blusão.
- Não, obrigada. Aprendi tudo sobre os grupos de alimentos na quarta classe, e Mistress Kaplan nunca disse uma Palavra sobre a necessidade diária de répteis.
Deu uma gargalhada, um som enferrujado por falta de uso, e Mari recompensou-o com um sorriso. Fixou o lugar vazio ao lado dela no banco, lutando consigo próprio. Não queria ser divertido ou encantado por ela. Queria levá-la para a cama. Queria comprar-lhe as terras. Eram coisas simples, directas, seguras. As outras ficavam em território perigoso. Afastou-se do celeiro, dizendo para si que devia recuar, mas parecia ter os pés presos ao chão.
-Há tarefas a fazer.
- E continuam a precisar de ser feitas daqui a dez minutos. Descontraia-se um bocadinho, Rafferty.
- Quem se descontrai muito não tem futuro nesta região - declarou ele, desviando o olhar para a casa e sentando-se na outra extremidade do banco. Os olhos ficaram com uma expressão de cansaço desiludido e os ombros largos baixaram um pouco, derrotados. - Pelo menos, costumava ser assim.
- Há quanto tempo está aqui a sua família? - perguntou Mari em voz baixa, fascinada com as emoções que via naqueles olhos cinzentos. Era capaz de apostar um dólar em como ele nunca as denunciaria, pelo menos a ela. A única coisa que queria mostrar-lhe era a sua agressão sexual... o que o tornava fácil de detestar... ou devia tornar. A ideia de que a atitude machista fosse um escudo a proteger alguma coisa muito mais complexa, ou mesmo vulnerável, pareceu-lhe tão perigosa como o próprio homem, mas não era capaz de deixar de tentar dar uma espreitadela.
- Quatro gerações - respondeu ele, com um orgulho perceptível na sua voz grave e macia. Continuou a olhar para a casa, embora lhe parecesse que não estava a vê-la. o perfil dele era rude e belo na derradeira luz ambarina do dia, o rosto dum homem que vivia uma vida dura e ficava mais forte por isso. - Desde a guerra - acrescentou.
Disse aquilo como se tivesse havido apenas uma nos últimos cento e cinquenta anos, como se aquele canto do montana tivesse de alguma maneira existido fora do tempo do resto do mundo moderno. Ali sentada no pátio da quinta, com o campo selvagem a toda a volta e nenhum sinal de civilização à vista, Mari quase se sentia tentada a acreditar que isso fosse verdade.
-A guerra civil - esclareceu ela. -Sim, minha senhora.
- E os Raffertys eram sulistas?
- Sim, minha senhora. Da Jeórgia.
A resposta dele fê-la pensar nas suas maneiras. Quando se decidia a exibir algumas, eram estranhamente formais, as maneiras palacianas do velho Sul, um cavalheirismo polido que se endurecera ligeiramente ali naquela região selvagem. A ideia de que aqueles costumes tinham sobrevivido durante quatro gerações sugeria que haviam sido cuidadosamente legados, como preciosas heranças, caso do orgulho nas terras e da feroz desconfiança de forasteiros.
Virou-se de lado no banco e encostou um ombro à parede do celeiro.
- Você tem muita sorte em possuir esse sentido de quem é e onde pertence - murmurou. - Eu venho dum sítio onde quase ninguém é nativo, onde a tradição é uma coisa que se tira dum manual de boas maneiras.
-E aqui, vai ser assim daqui a pouco tempo. -Só se todos os nativos se forem embora.
-Muitos já foram. A maior parte não tem posses para não ir.
- Por causa das pessoas como a Lucy que compram as terras?
- Nada é sagrado para quem tem dinheiro.
- Diz isso como se fossem más. Talvez gostem tanto disto aqui como você. Acredite que pertencer a um sítio nada tem a ver com o nascimento - disse Mari em tom seco.
Ele lançou-lhe uma olhadela de lado e achou-a pensativa, perdida, com o carnudo lábio inferior preso entre os dentes, enquanto brincava distraidamente com os fios dum rasgão na perna das calças. Madeixas de cabelo loiro caíam-lhe na cara. Teve de admitir que não se parecia muito com qualquer dos outros recém-chegados. Não se vestia com roupa do Oeste, roupa de marca para impressionar, nem usava pintura na cara. Não tinha realmente grande semelhança com Lucy e as suas roupas caras e longas unhas envernizadas. Não pairava uma nuvem sufocante de perfume por cima dela. Mudou de posição e respirou fundo, detectando um leve aroma a limão.
- Trabalhou em casa todo o dia? - perguntou, esforçando-se por soar desinteressado.
- Hum... hum...
- Porquê?
- Porquê? Porque era preciso.
- Está a pensar em instalar-se aqui, Mary lee? -Não, eu...
Soltou um suspiro e olhou para a casa do outro lado do pátio e para o vale. Eram dela. Ainda não conseguia meter a ideia na cabeça. Aquilo era dela e não podia aceitá-lo, mas tinha abandonado a vida que levava antes de ir para ali. Onde é que isso a deixava?
No limbo. Que sítio curioso para estar. Um nevoeiro, onde o contacto com o passado fora cortado e o futuro ficava para além da espessa neblina branca. Que podia ela fazer a não ser flutuar nele e deixá-lo levá-la para qualquer sítio? As suas férias no montana deviam ter sido exactamente isso: afastar-se de tudo por uns tempos, viver o momento.
- Não sei. Não vim cá com intenção de ficar. Só queria um tempo para descomprimir. Abandonei a minha carreira, e depois havia uma pessoa... - Interrompeu-se, deitando-lhe um olhar arrependido. - Bom, isso é outra história. Seja como for, até consegui que uma pobre inocente comprasse todo o meu equipamento de estenógrafa. Vinha para cá para celebrar. A Lucy ia adorar... o máximo do desafio às convenções e essa coisa toda... Pode crer que não contava com isto.
Estremeceu e embrulhou-se melhor no blusão, reparando no estado miserável das unhas. As que não roera tinham-se partido durante a maratona de limpeza. Os dedos estavam gretados e vermelhos de inúmeros ciclos de molhados e secos. Lucy tê-la-ia levado de urgência a uma manicura.
- Devia ter usado luvas - murmurou J. D., pegando-lhe na mão e estudando-lhe a palma e os calos nas pontas dos dedos. Esfregou-lhe as almofadinhas de carne rija e recordou o som da guitarra e da voz dela, grave e um pouco rouca, a doçura e a pungência da música feita por aquelas mãos de ossos delicados.
Mari começou a sentir dificuldade em respirar, com ele a examinar-lhe e a explorar-lhe a mão. Correntes de qualquer coisa quente e intoxicante começaram a subir-lhe pelo braço e a espalhar-se-lhe em ondas pelo corpo. Ficou a olhar para ele, sem saber exactamente o que era e perguntando a si própria se ele sentiria o mesmo. A mão dele era quente, dura e enorme, engolindo a dela como se fosse a duma criança. A sua força latente provocou-lhe um tremor na base do pescoço.
- Vai acabar com mãos de fazendeiro - disse ele. Instantaneamente, Mari pensou nas dele - a tocar-lhe, pele escura contra clara, calos a acariciarem-lhe os pontos mais macios - e sentiu-se percorrer por um relâmpago de fogo. Isto é esquisito, Marilee. Química - era a explicação. Pena ela não saber mais de química naquele momento do que soubera no liceu.
É só sexo, garantiu a si próprio. Nada mais complicado do que um problema de hormonas.
Inclinou-se e colocou a boca sobre a dela. Mari abriu-se-lhe imediatamente, num gesto simbólico que disparou um calor derretido no interior do ventre de J. D. Fez deslizar a língua para dentro da boca dela, completando o símbolo e levando ambos através da passagem para o nível seguinte do jogo eterno.
Beijou-a profunda e possessivamente, metendo a mão livre por entre o emaranhado dos cabelos para lhe agarrar a nuca e segurá-la no ângulo que preferia. Tinha ainda a outra mão agarrada à dela entre os corpos de ambos. Quando o desejo começou a latejar-lhe entre as pernas, puxou a mão dela para baixo e dobrou-lhe os pequenos dedos em volta da erecção, gemendo com a perturbadora mistura de prazer e dor.
- É assim que eu te quero, Mary Lee - murmurou ele em voz rouca, arrastando a boca dos lábios dela para o pescoço e depois para a concha da orelha. Puxou-lhe o lóbulo com os dentes, mordendo-o ligeiramente e depois chupando-o.
-E isso diz muito... - Mari sentia o cérebro envolto em algodão, a lógica presa entre camadas de necessidade insensata, dominada pela masculinidade e sexualidade de Rafferty.
- Quero estar dentro de ti. Quero sentir-te à minha volta. - E meteu-lhe uma mão entre as pernas, esfregando-a através das calças de ganga.
Um gemido foi a única resposta que conseguiu dar, o calor era incrível. Sentia-se a derreter. Acariciou-o com a palma da mão e imaginou facilmente a sensação dele a entrar nela, e enchê-la.
Voltou a beijá-la, num beijo selvagem, enquanto os dedos lhe procuravam o fecho das calças.
- Deixa - murmurou ele, mordiscando-lhe o pescoço e depois beijando o sítio da mordidela. - Deixa-me foder-te, Mary Lee.
A linguagem directa fê-la sentir-se ainda mais excitada. Ao mesmo tempo, tocou-lhe num nervo. Aquilo não significaria mais do que a satisfação duma necessidade. Tinha sido bem claro desde o princípio; não precisava de sentir amor, nem sequer de gostar dela.
Não era puritana. Já fora para a cama com homens sem os amar. Mas existira sempre respeito mútuo e amizade, mesmo que fosse só isso. Ali, nada mais existia.
Apesar disso, continuava a desejá-lo.
o conflito de emoções era um torvelinho dentro da cabeça dela, deixando-a tonta, sentindo-se a cair.
Então, bateu com o traseiro no chão com tanta força que os dentes se entrechocaram e os olhos se lhe abriram de repente. Tinha conseguido cair do banco.
-Ai! - Levantou-se a custo, com os joelhos a tremer, e sacudiu a parte de trás das calças. - Já ouvi falar de beijos que fazem cair de rabo, mas nunca lhe dei uma interpretação literal.
o embaraço fazia-lhe arder as faces; voltou-se ligeiramente de costas para ele, esfregando a sensação com as pontas dos dedos, como se pudesse apagar algum vestígio.
Tinha as mãos a tremer. Por Deus, todo o corpo lhe tremia. Espantoso. Quando fora a última vez que um homem a fizera tremer com a força dum beijo? Nunca. E quando fora a última vez que um homem a fizera desejar com tanta força que o cérebro deixasse de funcionar e os instintos primitivos tomassem posse? Nunca.
Estás metida num grande sarilho, Marilee.
- Vamos para dentro de casa acabar isto na cama. Mari afastou-se dele, abanando a cabeça. Tinha o cabelo caído para a cara, escondendo-a parcialmente.
- Não.
-Não? - repetiu ele, incrédulo. - Não te ouvi dizer não quando tinhas a mão à volta da minha pila.
- Lamento, mas não posso - murmurou ela, quase sufocada com a tensão dentro de si.
-Não podes, um raio, Mary Lee! - rosnou J. D. Tiras as cuecas, abres as pernas e fazes-nos felizes aos dois. Étão simples como isso.
- Não para mim. Eu não tenho relações com um homem só porque estou à mão quando ele precisa.
-A Lucy tinha - afirmou ele com crueldade.
-Eu não sou a Lucy - respondeu Mari, erguendo o queixo e olhando para ele por entre uma fina cortina de lágrimas, sentindo-se percorrer pelo sofrimento.
o orgulho dela atingiu-o em pleno peito. Não estava a fazer-se cara nem com joguinhos. Estava a enfrentá-lo. Mais uma vez. E diabos a levassem se não estava linda, ali de pé com aqueles enormes olhos azuis, a olhar para ele por entre lágrimas e cabelo loiro emaranhado.
o duro latejar da necessidade diminuiu ligeiramente. J. D. meteu a mão no bolso e tirou um lenço. Carrancudo, limpou-lhe as lágrimas das pestanas, deixando-as secas e escuras. Depois, entregou-lhe o lenço e disse-lhe que se assoasse. Então, alisou-lhe o cabelo para trás com os dedos e inclinou-lhe a cabeça.
- Isto ainda não acabou, Mary Lee - disse, numa voz calina e com expressão severa. - Nem por sombras. Talvez não aconteça esta noite ou amanhã, mas tenho a certeza de que acontecerá. Prometo!
Soava mais a uma ameaça, mas Mari ficou calada, enquanto ele dava meia volta e entrava no celeiro.
o crepúsculo desaparecia rapidamente. A noite descia pelos montes com longos e frios dedos negros que transportavam o aroma dos pinheiros e da terra húmida. Algures no vale, um alce chamava o seu harém num grito agudo e sibilante que se transformou num toque de trombeta. Estranho e belo.
o cavalo de Rafferty continuava pacientemente à espera dele, preso junto do curral, com uma das pernas traseiras encolhida, os olhos semicerrados e o lábio inferior pendurado. Um casal de esquilos inspeccionava a pilha de destroços, correndo dum lado para outro e chilreando sem cessar.
Mari ficou ali parada, a tremer, com a promessa de Rafferty a ecoar-lhe nos ouvidos. Tinham de acabar os dois na cama.
Vive o momento, Marilee.
E se o momento incluísse Rafferty?
Onde é que isso os levaria? o que era assustador na estrada menos percorrida é que nem sempre se via bem para lá da curva.
As dobradiças da porta do celeiro rangeram em protesto. Mari voltou-se rapidamente e piscou os olhos na escuridão, sem saber quanto tempo ficara ali a pensar na possibilidade de ter uma ligação com um homem que mal conhecia.
Ele aproximou-se lenta e deliberadamente, sem despregar os olhos dos dela. E chegou perto de mais, como sempre, fazendo-a estremecer.
- Quando é que vai ser, Mary Lee? - perguntou em tom calmo, com os olhos cinzentos de veludo na luz fraca. Esta noite... é a noite?
- Não estou pronta - respondeu ela, rígida, com medo de acenar com a cabeça se se mexesse.
Ele baixou a cabeça e beijou-a lenta, profunda e intímamente. Os lábios deles ficaram colados quando ele se afastou.
- Fique pronta - murmurou ele.
Dirigiu-se para o cavalo, apertou-lhe a cilha e montou, apontando o grande animal na direcção do caminho do Rancho dos Confederados.
- Olhe, Rafferty, importa-se que apareça amanhã para ver marcar os animais? - perguntou Mari, dando uns passos e colocando-se a par dele.
Um impulso fizera-a dizer aquilo. Mordeu o lábio e esperou pela resposta com as mãos enfiadas nos bolsos do blusão, como quem enfrenta uma ventania.
Ele olhou para baixo, o rosto apenas uma silhueta na luz ténue.
-Faça como quiser
- Geralmente, faço - respondeu Mari com um sorriso torcido.
Ficou a vê-lo afastar-se num trote lento, sentindo-se ligeiramente tonta, idiota, satisfeita por ele a deixar ir espreitar o seu trabalho.
- Com os diabos, Marilee, vive o momento! - exclamou ela, voltando-se para a casa e começando a dirigir-se para lá com as pernas a tremer.
Meia-noite. Noite cerrada. Hora de fantasmas e caçadores.
Nem sempre distinguia a diferença. As imagens passavam juntas e umas através das outras. Os cães, os cadáveres, os rapazes dos cães e os tigres. Atravessavam o arvoredo com um ruído que só ele ouvia. Tão alto como a explosão dum M- 16 dentro da sua cabeça, ressoando de encontro à placa de metal, com uma luz à frente e atrás dos olhos.
A loira estava lá. Tinha a certeza. Ouvia-lhe o riso e os gritos. A cabeça girou-lhe e latejou com os sons e as imagens. Fechou os olhos com força, mas continuavam lá... entrando-lhe pelas orelhas e pelas pontas dos dedos. Sentiu
o tigre a rasgar-lhe o peito. o sangue correu para dentro em vez de para fora e as visões subiram-lhe com a maré até à garganta, sufocando-o.
Encolheu-se atrás do tronco retorcido dum pinheiro, agarrado à espingarda, a chorar como uma mulher. Não conSeguia mover-se, nem respirar, nem pensar, nem fugir de qualquer maneira. Chorava com tanta força que não era caPaz de disparar. Soluçava silenciosamente, com a boca aberta como quem vai dar um grito, mas sem som. Ficou tudo dentro dele. A raiva, o medo, a loucura. Apertou a arma e ficou assim. Era a sua única ligação com o mundo real. A sua única amiga na noite.
A loira soltou uma gargalhada. o tigre gritou. Os rapazes dos cães fizeram as suas perversidades.
Apertou a arma e rezou a um céu vazio. Por favor, por favor que fique tudo preto. Que fique tudo preto...
o macho olhou para ela, abertamente duvidoso.
- Achas que não sou capaz, não é? - perguntou Mari, com a sela nos braços. Pesava uma tonelada. Quando a mãe a mandara às lições de equitação no picadeiro de Baywind, fora com calções de montar, botas e um pequeno toque de veludo debaixo do braço. A sela que apertava na sua montada de aluguer era pequena e leve e a montada, por sua vez, era também pequena, com uma delicada cabecinha e olhos meigos.
Clyde avaliou-a e quase desatou a rir. Tinha uns olhos límpidos e inteligentes, duma vivacidade cínica que nada de bom pressagiava. Atirou uma das longas orelhas para trás e sacudiu a grande cabeça sem graça, fazendo tinir as peças metálicas da cabeçada.
Mari ajustou a sela e encheu-se de coragem.
- Pensa melhor, orelhas de coelho: se a Lucy era capaz, eu também sou!
Ocorreu-lhe que talvez a amiga não tivesse feito aquilo. Era bem possível que mandasse o empregado selar o animal. Tanto fazia. A única ajuda que tinha era o par de mãos nas extremidades dos seus próprios braços.
Empoleirada num velho caixote, colocou a sela no dorso do macho e ajustou o cobertor. Lutou com as correias, tentando lembrar o que Rafferty fazia nas poucas vezes em que o vira soltar e apertar a sela no seu grande alazão. Esteve quase para desistir, pronta a montar em pêlo, mas a ideia do caminho a subir para o rancho dele e o facto de ter passado uma década desde a última vez que montara fizeram-na relevar os esforços para selar o animal.
Assim que o conseguiu, conduziu a sua nobre montada para o sol da manhã e montou com alguma dificuldade e pouca graça. Levou algum tempo a instalar-se, tentando recordar sem grande êxito como era sentir-se confortável em cima dum animal em movimento. Depois, dirigiu o macho para o caminho e começaram a andar a passo.
Os nervos ficaram para trás assim que começaram a trepar o caminho pela encosta arborizada. Mari ficou fascinada por tudo o que a rodeava, quase ao ponto de esquecer o macho. As impressões bombardeavam-lhe os sentidos - o cheiro da terra e dos pinheiros, a forma delicada e o movimento das folhas dos choupos, as cores das flores silvestres, as canções dos pássaros, as manchas de azul que brilhavam através do dossel dos ramos como pedaços de vitrais, Absorveu tudo aquilo, tomando apontamentos mentais e arquivando-os automaticamente através do lado criativo do cérebro. Fragmentos de letras de canções flutuavam-lhe na cabeça em melodias fantasmagóricas.
Clyde lá foi andando, ignorando o processo criativo, mas bem consciente da distracção da sua cavaleira. Aproveitou a desatenção de Mari para mordiscar folhas de alguns arbustos enquanto avançava. Quando chegaram a uma clareira, parou completamente e meteu o focinho na erva fresca. Mari começou a puxar por ele, mas a vista deslumbrou-a de tal maneira que esqueceu tudo o mais.
Era espectacular, simplesmente espectacular. o rancho ficava ali por baixo e, mais abaixo ainda, o vale, luxuriante e verde, como uma colcha de veludo amarrotado. Era atravessado pelo riacho, uma fita de bordado brilhante, brilhante como prata sob o sol primaveril. E ao longe, para lá do vale, erguia-se a cordilheira Gallatin, modelo de força, enorme, silenciosa, com os seus picos brilhantes de neve.
Do topo duma árvore um pouco acima donde estavam, uma águia levantou voo, com um grito agudo que atravessou a manhã como uma navalha a cortar pano. A ave deslizou em direcção ao vale, uma mancha escura no céu azul.
Mari susteve a respiração. Crescera numa cidade, viajara por alguns dos lugares mais belos que a civilização tinha para oferecer, mas nenhum deles a cativara como aquele. Ficou ali sentada, com um tremor a percorrer-lhe o corPO, até ao âmago, sentíndo-se como um instrumento no qual alguém_ houvesse tocado uma nota perfeita. Vibrou-lhe no coração, comovendo-a e fazendo-lhe vir lágrimas aos olhos, percebendo que se tratava dum momento verdadeiramente raro, Sentiu-se como se tivesse estado sempre à espera daquilo, à espera daquele sentimento de pertencer, de finalmente se encaixar num lugar depois de tantos anos de inadaptação.
Assustou-a um pouco aquele momento. Não fazia a mais pequena ideia de quanto tempo ia durar nem se devia agarrá-lo com as mãos ou deixá-lo passar. Pensou em Rafferty e na sua aversão por forasteiros. Ela não era dali, tinha lá chegado apenas num hiato do resto da sua vida, estava de passagem, apenas por algum tempo. Mas o tempo estava absolutamente imóvel enquanto ela olhava por cima do vale para as montanhas do outro lado.
Podia ter ficado ali para sempre, suspensa no momento. Mas algures no caminho, o gado estava a ser marcado e havia gente a trabalhar. Mari levantou a cabeça de Clyde com um puxão nas rédeas e obrigou-o a dirigir-se para o Rancho dos Confederados.
Ouviu o barulho antes de ver o que se passava. Os gritos de vacas e bezerros enchiam o ar, uma frenética cacofonia que traduzia a confusão e a energia do acontecimento. o macho espetou as compridas orelhas para a frente e acelerou o passo, contagiado pela excitação a quatrocentos metros de distância. Mari fixou o olhar na nuvem de poeira que pairava sobre os currais e pôs o animal a trote.
Ao aproximar-se das cercas, tentou abarcar toda a cena duma vez. - o labirinto de cercas de madeira, o movimento dos grupos de animais, os homens empoleirados acima das rampas, desempenhando tarefas que ela apenas podia adivinhar. o ar estava cheio dos odores de poeira e fumo, estrume fresco e coiro queimado. Era uma cena tirada direitinha dum filme do John Wayne, com o brilho do colorido e o som estereofónico.
O melhor é fechar a boca, minha senhora, ou ainda prova alguma coisa que não lhe agrada!
Mari desviou o olhar do espectáculo e dirigiu-o para outra figura móvel e falante do folclore do Oeste. o velho vaqueiro a seu lado era engelhado como um figo seco, com a pele castanha e os sinais da idade aumentados por muitos anos ao sol. Tinha a postura dum homem que passara demasiados quilómetros numa sela, ligeiramente curvado e torcido. As pernas eram tortas e fininhas, apesar da considerável barriga que lhe saía do cinto. Olhava para ela com os olhos semicerrados por debaixo dum velho chapéu cinzento, uns olhos azuis divertidos, e um sorriso a repuxar-lhe timidamente o canto da boca.
- Tucker Cahill, ao seu serviço, minha senhora anunciou, inclinando cuidadosamente a cabeça para o lado e cuspindo um jacto de suco de tabaco para a terra. Olhou de novo para ela: - Está perdida?
- Se isto é o Rancho dos Confederados, não. -É, pois.
- Marilee Jennings. o J. D. disse-me que podia vir ver a ferra, se eu quisesse.
o homem quase engoliu o tabaco que tinha na boca e as sobrancelhas treparam-lhe pela testa até quase desaparecerem debaixo do chapéu.
-Disse? Bom, eu seja cão... - murmurou ele.
- Perdão?
o velhote sacudiu-se como um cão, tentando recuperar do choque da declaração dela. Não conseguia lembrar-se da última vez que J. D. tinha convidado uma mulher para o rancho - pelo menos uma mulher que não era veterinária ou negociante de gado ou coisa do gênero. Apostava que aquela loirita de cabeleira encrespada não era nem uma coisa nem outra.
Fez o seu sorrizinho contraído, divertido com a perspectiva de J. D. mostrar alguma coisa sem ser desprezo por uma fêmea.
- Bom, porque é que não desce aí dessa criatura orelhuda, e eu arranjo-lhe um lugar na primeira fila, Miss Jennings.
- Gostava muito.
Mari passou a perna por cima do macho e saltou para o chão, fazendo uma careta com a dor que sentiu dos dedOs dos pés até às raizes do cabelo. Apesar de ter achado o passeio agradável, sentia-se feliz por poder juntar de novo os joelhos - embora isso não lhe parecesse de todo possível. Sentia as pernas tão tortas como as do velhote.
Adiando os primeiros passos, estendeu a mão a Tucker Call. o vaqueiro agarrou-lhe os dedos com uma mão enluvada tão forte como um torno e apertou-lha.
- Pode tratar-me por Mari - disse ela, com um grande sorriso. - Alguma vez lhe disseram que é parecido com o Ben Johnson, o actor?
- De vez em quando - respondeu ele, rindo, encantado. - Trepe ali para aquela cerca, Mari, e vai ver como é que se ferra. Eu trato aqui do seu macho.
-Não tem de fazer isso.
- Trato, pois. A senhora é uma convidada. Não recebemos muitas visitas mas tratamo-las bem.
Mari agradeceu-lhe e viu-o afastar-se com Clyde pelas rédeas, em direcção a um comprido celeiro cinzento. Cerrando os dentes, obrigou as pernas cansadas a moverem-se, sentindo-se tão pouco graciosa como se caminhasse sobre andas. Aproximou-se do curral e trepou para a cerca. o caos organizado lá em baixo era fascinante. Uns minutos mais tarde, Tucker trepava para junto dela, mas ficou de pé numa das traves inferiores e apoiou os braços na de cima.
- Não fazia ideia de que os fazendeiros ainda ferrassem o gado - disse ela, quase aos gritos para ser ouvida acima do barulho. - Julgava que isso tinha acabado, como as anquinhas e as máquinas a vapor.
- Os costumes antigos às vezes são os melhores. Ainda ninguém inventou uma maneira melhor de lidar com as vacas do que de cima dum bom cavalo e ninguém inventou UM sistema melhor de marcar o gado do que com o ferro. Há muito território descampado cá por estes lados e os animais afastam-se e misturam-se com outras manadas.
Indicou-lhe J. D., num cavalo claro, por entre a manada na cerca mais afastada, dizendo-lhe não com pouco orgulho que não havia um homem nos duzentos quilómetros ali à Volta que soubesse mais acerca de como obter mais rendiMentos dum cavalo do que ele.
-Conhece o negócio do gado por dentro e por fora. Sabe todas as últimas novidades: redes electrónicas de vendas, programas de computador para o progresso das manadas, coisas de que um velhadas como eu não percebe patavina. Esteve dois anos na faculdade antes de o pai morrer,
Sim, senhora, o J. D. é um excelente fazendeiro, óptimo vaqueiro e um bom homem da cabeça aos pés. E ninguém aqui nas redondezas lhe diz o contrário - observou Tucker, acenando com a cabeça.
Aqueles encómios soavam suspeitosamente a publicidade, mas Mari achou a atitude simpática e esforçou-se por não mostrar que estava divertida.
Dirige o rancho desde garoto - continuou o velhote, de olhos fixos no homem em que J. D. se transformara desde então. - E dirige mesmo. o Tom, o pai dele... Deus tenha a sua alma em descanso... nunca se dedicou completamente. Interessava-se mais por mulheres, e foi provavelmente isso que o matou, depois de a mãe do Will se ter ido embora.
Mari observou o perfil gasto do velhote, com um milhão de perguntas na cabeça. Mas provavelmente o melhor seria nada saber do passado de Rafferty. Se não soubesse o que o tornava tão difícil, tão desconfiado, tão incrivelmente insuportável, talvez o seu coração de manteiga não sentisse compaixão nem a incitasse a tentar curar-lhe as feridas antigas ou a fazer uma dúzia de coisas idiotas que se calhar acabaria mesmo por fazer. Mas não podia impedir-se de sentir curiosidade ou mostrar-se abertamente sentimental ou estupidamente romântica. Nunca hás-de mudar Marilee... Por isso, saiu-lhe a pergunta:
Que aconteceu à mãe dele?
Morreu quando ele era um garotinho. Com cancro, que Deus a tenha. Era uma bela mulher. o pobre Tom ficou perdido sem ela... pelo menos até a mãe do Will aparecer em cena. Então é que ficou mesmo perdido.
E o J. D. perdido na dança. Tucker Callfil não disse isso, mas Mari juntou as peças que ele lhe dera e ficou com o quadro: J. D., um garotinho, a arcar com responsabilidades muito para além da sua idade, enquanto o pai andava por ali
num nevoeiro romântico. Se o quadro estava certo, explicava bastante.
No que constituía provavelmente uma tentativa fútil de autO conservação, desviou o velhote para uma explicação do processo de escolher os animais nas cercas e os conduzir pelas rampas.
os homens empoleirados por cima das rampas controlavam as cancelas que determinavam o recinto para onde devia ser conduzido cada animal segundo a idade e sexo. No curral da ferra, os vitelos desciam por uma rampa que se inclinava para um lado, formando uma mesa. Will Rafferty e um velhote com uma comprida trança grisalha trabalhavam aí, vacinando, marcando orelhas, castrando os machos e marcando todos os animais com o ferro do Rancho dos Confederados. o processo todo levava pouco mais de um minuto por animal.
Viu-os tratar de meia dúzia, até que Will olhou para aquele lado e a avistou. Um enorme sorriso rasgou-lhe a cara suja, e abandonou o posto sem olhar para trás.
- Olá, Mary Lee! - exclamou, atravessando o curral com a agilidade do Gene Kelly, de braços estendidos em sinal de boas-vindas. - Que tal vai isso?
- Ia indo, com aquela subida - respondeu ela em tom seco.
Ele deu uma gargalhada, saltou para cima da cerca e voltou a aba do boné de basebol para a frente, aparentemente num único movimento. Instalou-se ligeiramente perto de mais, o suficiente para Mari sentir o cheiro do suor dele e dos animais pegado a ele, o suficiente para poder ver que tinha os olhos azuis raiados de sangue duma ressaca. Franziu a testa na sua direcção, incapaz de se desviar, por ter Tucker do outro lado.
o velho vaqueiro inclinou-se para a frente e deitou um olhar duro a Will.
-Se o J. D. te apanha a fazer ronha, meu rapaz, dá cabo de ti - disse ele.
Por detrás das camadas de suor e sujidade, a boca de Will contraiu-se.
- É. Bom, eu quero que ele vá para o inferno. Estou a trabalhar que nem um cão desde o nascer do Sol e decidi fazer um intervalo. Não é todos os dias que temos aqui a comPanhia duma bela dama, neste fim do mundo.
-Não, são tão raras como os dentes duma galinha admitiu o velhote, passando por cima da cerca para dentro do curral. Enfiou as mãos na cintura descida das calças de ganga e deitou um olhar expressivo ao rapaz. - Sobretudo convidadas do teu irmão.
Will fez uma careta de choque exagerado, com os olhos muito abertos no rosto magro e ficou a olhar para Marilee.
- o J. D. convidou-a? o meu irmão J. D. convidou-a?
- Não propriamente - resmungou Mari, de sobrancelhas franzidas na direcção de Tucker, que ia ocupar o lugar abandonado por Will. - Convidei-me a mim própria e ele não disse que não.
- Bom, isso já é alguma coisa, deixe que lhe diga. Ele dirige isto como um raio dum mosteiro. Não quer que alguma mulher diabólica nos desvie a atenção do trabalho.
Pensou imediatamente em Lucy, mas mordeu a língua. -Então e a sua mulher?
- Que é que tem?
- Também é considerada «mulher diabólica»?
-A Sam? Credo, não! É boa miúda. - Meiga, confiante, com necessidade de alguém que a ame. A descrição passou-lhe pela cabeça e pelo coração como uma flecha, enquanto observava a monótona rotina do curral da ferra. Sempre que pensava na mulher, sentia-se como quem apanha uma pancada na cabeça, ligeiramente tonto. Por isso, fazia o possível por não pensar nela desde a noite em que a vira no Alce.
-Miúda? Casou com alguma garota?
-Não, tem vinte e três anos - disse ele, depenicando na trave superior da cerca. - Conheço-a de toda a vida, de maneira que é difícil pensar nela senão como numa írmã mais nova.
o que talvez explicasse o motivo de não estar a viver com ela, pensou Mari. Se tivesse um marido que a tratasse como a uma irmã mais nova e andasse atrás de toda a burra com saias, também lhe dava com os pés.
- Então, que faz você por cá, Mary Lee? - perguntOu Will,dando-lhe uma palmada na perna. - Anda à procura de sarilhos? Esse é um dos meus nomes! - acrescentou, agitando as sobrancelhas para baixo e para cima, com um grande sorriso.
- já calculava - respondeu Mari, tirando-lhe a mão da perna e afastando-se, olhando para ele. - Vim ver como funciona um rancho.
- Eu digo-lhe como funciona - retorquiu Will, em tom amargo. - De dia e de noite, semana atrás de semana, mês atrás de mês e ano atrás de ano, até à morte ou à falência.
- Se não gosta, por que não desiste?
Ele soltou uma gargalhada e desviou os olhos, sem perceber se o que achava tão engraçado era a própria resposta ou a sugestão dela. Parte de si não desejava outra coisa para além de se ver livre do Rancho dos Confederados desde miúdo. Mas essa parte estava ligada para sempre ao garoto que admirava o irmão mais velho. E a parte de si que não queria falhar estava constantemente a tropeçar na parte que ansiava por mandar o irmão para o diabo. o ciclo continuava, como uma pedra a cair por uma encosta sem fim.
-Ninguém deixa o Rancho dos Confederados, beleza
- resmungou, com o olhar fixo na cerca mais afastada, onde J. D. escolhia os animais. - Sobretudo quando uma pessoa se chama Rafferty.
J.D. trabalhava montado numa égua sem grande aspecto. Era apenas o seu segundo ano junto do gado, mas tinha um talento inato. Mantinha a cabeça baixa e as orelhas para trás, dançando graciosamente dum lado para o outro, separando as vitelas das mães, fazendo-as seguir para as rampas e escolhendo os touros jovens, que dirigia para outra cerca. A égua fintava o gado, ajustando a sua velocidade conforme o necessário, com as rédeas frouxas e os movimentos guiados Pela intuição e os toques subtis de J. D. nos flancos.
Praguejou por deixar uma mulher desviar-lhe o pensamento do trabalho. Não precisava da distracção de pensar nela nem de a ver do lado de fora da cerca. Se quisesse uma distracção, bastava-lhe pensar no que faria daí a um ano, quando Lyle Watkins e os seus rapazes já não estivessem ali para o ajudar a manobrar as rampas. o Tucker e o Chaske teriam mais um ano, demasiado velhos para um dia inteiro de trabalho como aquele. Quanto ao irmão, só Deus sabia onde estaria. E o seu único vizinho seria Bryce.
Bryce nunca se ofereceria para uma troca de tarefas. Aliás, duvidava que ele soubesse o que era verdadeiro trabalho. Não conhecia nem se importava com o código que sempre existira entre vizinhos naquela região. Como o resto da sua espécie, trouxera para ali os seus próprios valores e prioridades, todos eles estranhos a J. D.
A eguazita endireitou-se e soprou com força, chamando a atenção de J. D. para o trabalho. o grupo que estava a escolher ficara devidamente separado. Tinham de marcar e vacinar aqueles animais, depois faziam um intervalo para comer, e a seguir retomavam o trabalho.
Entregava a égua a Tucker para a arrefecer e para o velhote descansar também. Ele não gostava de admitir a idade que tinha, mas J. D. via-a avançar todos os dias, curvando-lhe um pouco mais as costas e endurecendo-lhe as articulações já com muitos anos de esforços. Noutro trabalho qualquer, Tucker Calhil já teria sido obrigado a reformar-se, mas reforma era coisa que não existia para um vaqueiro. Vaqueiro era quem, e não o que, um homem era. Tucker Cahill reformava-se no dia em que deixasse de ter olhos azuis e uma pichota torta.
Além disso, o Rancho dos Confederados era tanto o SeU lar como se fosse um Rafferty, pensou J. D. Passara os melhores anos da sua vida e mais alguns a trabalhar naquele rancho por uma tuta e meia, e ali ficaria até que os cangalheiros o levassem com os pés para a frente. Competia-lhe a ele, J. D., tornar isso possível. Era sua responsabilidade tomar conta do velhote, velar por que tivesse sempre um tecto e comida e um objectivo na vida, tal como Tucker fizera de seu pai quando Tom Rafferty estava demasiado obcecado para cumprir a sua obrigação.
o peso dessa e de todas as outras responsabilidades caiu-lhe sobre os ombros por um instante, apenas um instante. Não deixou que fosse mais, não podia perder tempo. Matutar não lhe fazia o trabalho.
Voltou a égua para a saída e foi apanhado de surpresa com a presença de Mary Lee empoleirada na cerca do curral da ferra, a rir de qualquer coisa que Will lhe dizia, gesticulando e sorrindo para o seu público de uma pessoa.
os ciúmes passaram por J. D. como um toiro a correr. Nunca os reconheceria como tal, mas cada coisa tem o seu nome. WílI fora sempre o centro das atenções, o íman que atraía todos os holofotes, desde o dia em que Samantha e Tom o haviam trazido do hospital. Toda a gente se ria para ele e
ficava encantado. Ninguém parecia importar-se que não tivesse aspirações ou que jogasse dois meses de pagamentos ao banco duma vez ou que inspirasse tanta confiança como um gato vadio.
Saindo da cerca sem desmontar, J. D. dirigiu a égua por fora e parou quando chegou junto do par empoleirado. Deitou um olhar agudo a Mary Lee, extinguindo-lhe o sorriso esboçado e depois, sem lhe prestar atenção, voltou-se para o irmão:
-Estás aqui de rabo em cima da cerca enquanto um homem com quase setenta anos faz o teu trabalho? Que raio é a tua?
- A minha é que não tive dois minutos de descanso desde que me levantei esta manhã - retorquiu Will,com uma expressão dura, praticamente igual à do irmão. A minha é que achei que talvez fosse delicado cumprimentar a nossa convidada...
- Ah, pois - troçou J. D. - Como uma raposa a cumPrimentar um frango...
-Bolas, J. D., se estás com ciúmes, talvez fosse melhor..
Com um toque das esporas, J. D. fez a égua dar um salto de lado que lhe entalou a perna de encontro à cerca. Sem fazer caso da dor, deu um safanão nos rins do irmão, atirando com ele ao chão.
- Estou é danado! - explodiu. - Levanta esse cu preguiÇoso uma vez na vida e faz o teu trabalho, em vez de deixares um velhote no teu lugar.
Will olhava para ele, furioso, por entre as traves da cerca, sem o boné que caíra para um lado e com o cabelo todo Para a testa, a cara quase tão encarnada como a camisola de algodão que trazia vestida, envergonhado e furioso.
- Vai-te foder, J. D. - gritou. - Trabalho que nem um cão...
-Quando não estás a brincar em algum rodeo ou te metes no Inferninho!
-Não que receba grande coisa em troca... -Não, merda, perdes tudo ao pôquer!
-Não és meu patrão nem meu tutor, e se me apetece fazer uma porcaria dum intervalo de cinco minutos para falar com alguém, faço mesmo!
Mari assistiu à discussão da desconfortável posição de espectadora, com a sensação distinta de que a fúria dos dois homens tinha origem em qualquer coisa mais profunda do que a sua capacidade de distrair o mais novo das suas tarefas. Sabia tudo acerca de rivalidades e ressentimentos entre irmãos. Enquanto crescera, diferente delas, entre as Jennings, sentira tudo isso em relação a Lisbeth e Annaliese. Certamente que os irmãos Rafferty tinham a sua versão da mesma história. Will,o encantador tratante, e J. D., tão severo, tão rígido - não era difícil imaginá-los em choque. Mas não estava particularmente interessada em ser testemunha duma crise ou a faísca que a provocava.
-Olhem lá, eu não vim cá para arranjar sarilhos protestou ela, empoleirada na cerca, levantando as mãos num gesto de paz.
- Pois olhe que conseguiu, não conseguiu? - exclamou J. D., com um olhar feroz.
-Não deites as culpas à Mary Lee. Tu é que és um filho da mãe - disse Will.
- Pois é, e ela também não tem culpa de tu pensares com o que tens entre as pernas em vez de com o que tens entre as orelhas!
- Se é problema eu estar aqui, vou-me embora - PrOpôs Mari.
-Você estar no Montana já é problema - resmungou J. D. entre dentes.
A observação magoou-a. Ficou rígida, para não ceder à vontade de se encolher. Não queria dar-lhe essa satisfaÇão. Levantou ligeiramente o queixo e olhou para ele de nariz empinado.
- Bom, sabe, quando você for rei, pode mandar-me para o exílio, a mim e a todas as pessoas como eu.
Era aquilo que acontecia quando uma mulher aparecia; os homens perdiam a cabeça.
Então, rapazes - exclamou Tucker, diplomaticamente, afastando-se da rampa vazia. Agarrou Will por um ombro, fê-lo voltar a cabeça e cuspiu um jacto de suco de tabaco
- Talvez estejamos todos a precisar duma boa refeição quente e de nos sentarmos. Tenho um panelão da minha famosa lasanha no forno e já deve estar pronta. Porque é que não vamos até casa? J. D. tinha pouco apetite de comida ou companhia. Ia pedir aos outros que fossem sem ele quando a égua levantou a cabeça e ficou a olhar para longe, com as orelhas espetadas. Depois, relinchou com força, obtendo resposta de diversas esquinas.
Dos pinheiros e abetos, surgiu um grupo de cavaleiros. ^ seis, ao todo, e atrás vinha uma mula carregada. Mesmo àquela distância, J. D. distinguiu Bryce à frente do grupo.
O sol fazia-lhe brilhar o cabelo claro e comprido e o rasgado sorriso branco. Vinha montado num belo cavalo que parecia dançar debaixo dele, impaciente com o passo vagaroso do resto dos cavaleiros.
Precisaram de alguns minutos para percorrer a distância, ninguém pronunciou uma palavra enquanto esperavam. Ao menos, até estarem suficientemente perto para serem conhecidos.
Will reteve a respiração, ao reconhecer Sam num appaya de pernas altas. Os olhos dela prenderam-se nos dele , um segundo, mas depois afastaram-se, e ela puxou o cabelo para trás, escondendo-se atrás dum homem de cabelo
ruivo num cavalo baio.
Olá, vizinho! - exclamou Bryce, aproximando-se com um sorriso cheio de bonomia.
- Olá, Bryce - respondeu J. D., sem se incomodar sequer a tocar no chapéu para as senhoras, embora olhasse para todas as caras, uma de cada vez.
A loira de feições fortes que andava muitas vezes com Bryce vinha ao lado dele e olhava para J. D. com um ar divertido. Atrás dela, vinha uma ruiva magrinha com uma camisa de homem que não se preocupara em abotoar, apenas atada na barriga. Dava risadinhas e inclinou-se na sela para segredar qualquer coisa a um homem de cabelo escuro com a palavra «cidade» escrita e escarrapachada em todo ele apesar duma camisa à vaqueiro. No fim do grupo, junto da mula carregada com cestos de piquenique, vinha Orvis Siokum, que trabalhara algum tempo no Rancho dos Confederados, antes de se dedicar a roubar lojas de conveniência.
Bryce dera-lhe emprego logo à saída da cadeia e viu o nome no jornal pela sua grande humanidade.
Ao lado de Orvis e nitidamente a tentar ficar invisível, via-se Samantha, com a cabeça baixa, a olhar para a sela como se fosse a coisa mais fascinante deste mundo. Mas era impossível não reconhecer a maneira como montava ou a longa cortina de cabelo preto que lhe caía pelos ombros e escondia um dos lados da cara.
- Que se passa aqui? - perguntou Bryce, divertido com o espectáculo. - Uma grande recolha de gado ou quê?
- Trabalho - rosnou J. D., agarrando a parte da frente da sela. - Talvez já tenha ouvido a palavra uma ou duas vezes.
Bryce deu uma gargalhada, nada ofendido. -Concordo que o senhor sabe mais das coisas dum rancho do que eu, Mister Rafferty. Mas afinal eu sei mais sobre como ficar rico do que o senhor, não sei? Os meus amigos e eu viemos gozar os frutos dos meus trabalhos do passado, dando uma voltinha pela minha propriedade.
- Estão ligeiramente perdidos - replicou J. D., com um músculo a tremer-lhe no maxilar.
- Nem por isso - disse Bryce, com um sorriso feroz a levantar-lhe os cantos da boca e deixando passar um segundo. Depois, continuou, antes que J. D. tivesse oportunidade de abrir a boca. - Estamos só de passagem, a caminho da Voadora.
-Pensámos em fazer o que fazem os vizinhos e cumprimentá-lOs - disse ele.
O senhor não é dono da K Voadora - disse, calmamente.
- Por enquanto.
-Bom, podíamos ficar aqui o dia todo a falar de nada, mas eu prefiro comer merda de porco do que passar algum tempo com os da vossa laia. Portanto, se me dão licença, temos mais que fazer - disse J. D., com um longo suspiro, mostrando um aborrecimento que não sentia.
Esperou apenas o suficiente para ver Bryce corar debaixo do bronzeado, e começou a puxar as rédeas da égua.
- Devo depreender que não está interessado em ir à minha festa logo à noite, mister Rafferty?
- É.
-Que pena! - respondeu Bryce, com um sorriso que parecia de plástico. Depois, deitou um olhar a Mari, quando J. D. passou por ele e pelo grupo. - Espero que a opinião de Mister Rafferty não seja extensiva a você, Mari. Adorávamos que fosse. Leve a guitarra, se quiser, Vai lá estar gente da música e pode ser uma oportunidade para si.
Mari sentiu que estava empoleirada na cerca, metafórica e fisicamente, apanhada entre duas facções ou conhecimentos muito diferentes. Sentia uma dúzia de pares de olhos sobre ela, como se fossem focos. o par que não sentiu foi o de J. D., e essa falta era mais pesada do que todos os outros olhares juntos.
- Obrigada pelo convite. Adorava - respondeu ela numa voz que pouco mais era do que um murmúrio.
Ignorou a sensação de estar a atraiçoar J. D. Rafferty
Não lhe devia lealdade. Só devia alguma coisa a Lucy. Um Homem de cabelo escuro montado num cavalo baio tinha conhecido Lucy MacAdam muitíssimo bem. Ben Lucas, o rei da bosta dos advogados de Sacramento. o que ela não sabia era que diabo fazia ele com Evan Bryce.
-Então, lá a esperamos logo à noite - disse este, começando a voltar o cavalo, mas interrompendo o movimento, ao poisar o olhar em Will.
Hum... Bom, isto é um bocado embaraçoso. o Senhor também seria bem-vindo, Mister Rafferty, mas a sua ex-mulher vai estar lá e talvez não se sentisse muito bem.
Compreende... - prosseguiu, fingindo-se embaraçado. Will não respondeu, de olhos postos em Sam, como que a forçá-la a olhar para si. Mas ela voltou a cara para o outro lado. Ex-mulher, ex-mulher. A palavra surgiu-lhe na cabeça
como um reclamo luminoso. Não estavam divorciados... por enquanto. Era assim que a mulher pensava nele? Como ex-marido?
Orvis tinha nascido perdedor e não fizera outra coisa senão descer. Era magricela e tinha um ar encardido, com cara de fuinha, pouco cabelo e dentes estragados e, mesmo quando tinha boas intenções, acabava sempre por fazer a coisa errada, Nunca prestara como empregado do rancho e era um gatuno manhoso. Apesar disso, J. D. desejou que ele tivesse mais dignidade do que juntar-se a gente da laia de Bryce.
- É triste ver-te chegar a este ponto, Orvis - comentou J. D. com um suspiro, como se achasse que até a prisão era preferível.
Orvis continuou a puxar pelas rédeas emaranhadas enquanto o cavalo que montava se enervava por ver os outros a afastar-se. A mula que não gostou dos encontrões do cavalo deitou as orelhas para trás e tentou dar-lhe uma dentada, falhando por pouco a perna magricela de Orvis. Este dividia a atenção entre a mula irritada e o seu antigo patrão, sem saber bem de quem tinha mais medo.
- Lamento que pense assim, Mister Rafferty, mas o senhor Bryce paga muito bem - murmurou.
A mula tornou a deitar as orelhas para trás e esticou as patas traseiras. o cavalo saltava para cima e para baixo. Os olhos do homem pareciam querer sair-lhe das órbitas e a rédea com que puxava a mula enrolava-se-lhe no corpo como um tentáculo.
- Xó, mula! Xó!
Revirando os olhos, J. D. estendeu a mão e deu um puxão à rédea, soltando-a com um movimento do pulso.
- Há coisas mais importantes neste mundo do que o dinheiro, Orvis.
Atirou-lhe a rédea e a mula desatou a correr atrás dos seus companheiros. Orvis deu meia volta ao cavalo e quase caiu, mas depois afastou-se a galope, agarrando o chapéu com uma mão.
Will saiu do torpor e trepou a cerca. Voltou-se para a casa, mas não afastava os olhos da sua carrinha branca e encarnada. Queria sair dali, afastar-se, ir para um sítio onde a mulher não estivesse e o irmão também não e as pessoas não olhassem para ele com pena ou desprezo. o Inferninho veio-lhe à ideia.
Ia até ao Inferninho e daí a pouco nem se lembraria por que motivo a imagem da mulher ao lado de Evan Bryce e Companhia o fazia sentir como se tivesse caído de cabeça Para baixo de dez andares. Queria sair daquele casamento. E devia estar contente por a ver divertir-se. Precisava duns Copos para suavizar o choque e depois já ia ser novamente Capaz de pensar direito. Talvez fosse lá abaixo ao Purgatório Para um joguinho de pôquer, enquanto pensava no que fazer quanto aos últimos acontecimentos.
- Temos aqui um grande problema, irmãozinho - disse ele, num tom perigosamente suave.
Pára com isso, J. D. - Aquilo soou-lhe aos próprios ouvidos como se tivesse outra vez doze anos, uma ténue camada de fanfarroníce por cima de muita raiva e medo. Não levantou os olhos, nem os piscou. Sentia-os a arder. Apertou os punhos aos lados do corpo e desejou, como desejara nessa altura, ser capaz de dar uma tareia ao irmão, só pela sa tisfação. Mas ele sempre fora maior, mais forte, melhor, mais inteligente.
-Will... Pára, faz favor. - Sentiu-se esmagado ao acrescentar aquelas duas palavras, aumentando assim a sua humilhação, mas pronunciou-as. Rangeu os dentes e pôs-se à espera, sem respirar, até que J. D. fez o cavalo recuar e o deixou passar.
o Bryce é seu amigo? - perguntou cuidadosamente. - Não diria tanto. Mas conhecemo-nos.
-E vai beber o champanhe dele e conviver com os seus amigos famosos? -Tenho os meus motivos.
Os olhos cinzentos apertaram-se. Marí pensou que ele estava provavelmente a tentar parecer duro, imperturbável, desinteressado, mas deixando transparecer desapontamento, e aquilo significou mais para ela do que devia.
- Aconselho-a a dar-se com melhores perdedores, MarY Lee - disse ele, abanando a cabeça.
Depois, pegou nas rédeas e afastou-se em direcção ao celeiro, deixando-a ali na cerca. Ela ficou a olhar para ele furiosa por se importar com o que achava. Atrás dela. o gado mugia incessantemente, e o ruído não a deixava pensar direito. Pelo menos, foi essa a desculpa que escolheu, enquanto descia da cerca e se dirigia ao celeiro.
Piscou os olhos como um homem em profundo sofrimento físico, passou as mãos pela cara e pronunciou uma litania de pragas em voz baixa. Que raio podia fazer? Não podia impedir Lyle de vender as terras. Não podia impedir Samantha de se dar com quem quisesse. Não podia impedir o irmão de fugir, meio doido, para fazer sabia-se lá que idiotice mais. Não podia fazer uma única coisa. Os lobos apertavam o cerco e ele nada podia fazer para os travar. Essa consciência abalou-o profundamente.
Mari ficou na sombra, dentro do celeiro, retendo a respiraÇão, indecisa entre aproximar-se ou fugir. Não duvidava de que J. D. detestaria a sua intromissão naquele momento. Ele estava ali com as mãos apoiadas numa cerca, a olhar para o Prado, e a enorme vulnerabilidade da sua expressão atingiu-a Como uma pancada. Era como ver um super-herói sem a máscara e verificar que se tratava dum homem normal. Queria estender-lhe a mão, tocar-lhe, oferecer-lhe algum conforto, mas sabia instintivamente que ele não o aceitaria e isso fê-la sofrer. Ai, Marilee, em que é que estás a meter-te?
Num sarilho dos grandes.
Recuou em bicos de pés e depois tossiu e avançou, raspando o cimento com as solas. Quando chegou de novo ao extremo do celeiro, J. D. estava a tentar colocar a sua máscara de ferro. Pigarreou e deitou-lhe um olhar carrancudo. -Pensei que se ia embora.
- Não posso ir sem o Clyde - disse ela, dando consigo a utilizar uma entoação que dava ideia de sempre ter vivido ali,
- Quem? Ah, o macho, - Mas não fez menção de entrar no celeiro, limitando-se a ficar ali encostado à vedação, a fingir que estava tudo bem.
-Regra geral, não sou muito de festas. Não gosto de coisas que me obriguem a rapar as pernas - disse Mary, aproximando-se dele. Tentou copiar-lhe a atitude como uma imagem num espelho, mas teve de trepar para a vedação, apoiando os braços na trave superior, para ficar com os olhos ao nível dos dele.
-Então, não vá.
- Estou com curiosidade em relação a umas quantas coisas. Eu tinha perdido mais ou menos o contacto com a Lucy desde que ela se mudou para aqui. Quero ver como é o grupo com quem ela andava.
- Então vá - resmungou J. D. - Faça o que quiser.
- Não se trata do que eu quero. A Lucy deixou-me tudo o que tinha neste mundo e eu sinto certa obrigação.
- o Bryce já lhe perguntou se quer vender?
- Não propriamente.
- Mas vai perguntar. - Voltou-se e observou-a, com os olhos semicerrados. - Vai vender?
- Não sei.
- Ele é um filho da mãe impiedoso e obnóxio, que não se rala senão com o facto de obter o que quer,
- Podia dizer a mesma coisa sobre você... - disse Mari, levantando uma sobrancelha.
- Vende-mas a mim? - perguntou ele abruptamente. -Já lhe disse que ainda não decidi.
- Não brinque comigo, Mary Lee - preveniu ele. -Não estou interessada em brincadeiras - murmurou ela, com o coração a bater mais forte no peito.
Por um momento, J. D. olhou para aqueles grandes e profundos olhos azuis, à procura de mentiras, de razões para não confiar. Então, sentiu-se afundar neles, e as mentiras, Bryce e o resto desapareceram-lhe completamente da cabeça. Perder-se pareceu-lhe uma excelente opção de momento. Encostou os lábios aos dela e submergiu-se num olvido bem-aventurado.
Mari retribuiu-lhe o beijo, apoiando as mãos nos ombros dele. Pareciam de pedra sob o algodão húmido da camisa. Massajou-lhe os músculos com os dedos, movendo-os para cima e para baixo no forte pescoço. Durante todo o tempo, as línguas de ambos deslizaram de encontro uma à outra, com os lábios colados e a respiração misturada com o gosto de café forte e poeira.
Desejava-o. Queria confortá-lo e dar-lhe alguma coisa suave e terna...
Então, algures no último bastião de sanidade, imaginou que espécie de brincadeira seria a dele. Queria as terras dela, queria o corpo dela, e tinha a certeza absoluta de que não queria mais coisa alguma que ela tivesse para oferecer. Ela era de fora. Não pertencia àquele lugar.
Como se sentisse a súbita mudança, J. D. levantou a cabeça e olhou para ela, os olhos com a cor e a intensidade do carvão quente. Não encontrou a voz, e limitou-se a abanar a cabeça. A cara dele endureceu. Deu um passo para trás e ela desceu da vedação com os joelhos a fraquejar.
- Eu não entro em brincadeiras -- insistiu ela. Mas, ao afastar-se para o escuro interior do celeiro, teve a terrível sensação de já estar apanhada num jogo com regras que não Compreendia e apostas demasiado altas.
-Preferia que não tivesse feito aquilo com o Will -
disse Samantha em voz calma. Estava mesmo à porta do estábulo de Bryce. o resto da corte dele ia a caminho da casa. Tinha ficado para trás, sentindo-se mais em casa perto do celeiro do que na mansão. Lá dentro, mal iluminado, um empregado sujo e tatuado tirava o arreio do cavalo que ela tinha montado. o homem olhou para ela por cima do animal, com uma expressão que a fez arrepiar-se. Mirou-o carrancuda e víu-lhe a boca torcida num sorriso divertido que revelou dentes manchados.
Bryce esfregou o queixo com as pontas dos dedos, pensando vagamente em barbear-se antes da festa. Estudou Samantha ao mesmo tempo, de lado, fora da sua linha de visão, calma e especulativamente, avaliando o seu estado emocional. Parecia mais um empregado da quinta do que o seu género de convidado normal. As calças de ganga que trazia eram velhas e a blusa de algodão de má qualidade. Tinha-se penteado com a trança habitual, presa na ponta I com um elástico cor-de-rosa.
Ele estava a precisar dum encontrão, minha querida respondeu Bryce, com a dose perfeita de consolo e sabedoria paternal. - Agora, talvez acorde e veja o idiota que tem sido em não lhe ligar. Se não vir, é porque não a merece. - Pegou-lhe na ponta da trança, retirou o elástico e começou a libertar as madeixas com os dedos. - Pessoalmente, tenho quase a certeza de que não a merece - murmurou.
Qualquer homem sensato a iria adorar, animar e levar a desabrochar, em vez de a deixar murchar no ramo.
Levantou-lhe o cabelo e espalhou-lho pelos ombros. Quando a voltou de frente para si, tinha uma expressão de preocupação paternal.
O seu cabelo é lindo, Samantha. Devia usá-lo solto, mostrá-lo. Não esconda a sua beleza, minha querida. Glorifique-a.
Desconfortável com as lisonjas, Samantha tentou desviar o olhar, mas aqueles olhos claros pareciam enfeitiçá-la, obrigando-a a continuar a olhar para ele com olhadelas de cavalo nervoso. o homem devia considerá-la uma miúda estúpida e ingénua. Nunca fora a lado algum ou fizera fosse o que fosse. Não fazia a menor ideia de como se comportar com aquele género de gente. E, apesar disso, ele perdia tempo em ser simpático para com ela. Podia não gostar dos métodos, mas ele estava a ajudá-la com o Will,embora não tivesse grande opinião da escolha dela quanto a marido.
-Nunca pensei em mim como bonita - admitiu timidamente, sentindo que lhe devia ao menos honestidade e confiança. Ele estava só a ser seu amigo, e Deus sabia que não tinha muitos.
A confissão surpreendeu Bryce, que exibiu uma expressão de raro espanto. A rapariga tinha a estrutura óssea dum modelo e uma qualidade exótica com um potencial incrível. Como podia desconhecê-lo? Não sabia duma única mulher que não estivesse plenamente consciente de todas as armas do seu arsenal. Mas ela não estava a ser modesta ou à procura de cumprimentos. Via perfeitamente a incerteza no seu olhar, e aquilo tocou-o como muito poucas coisas o tocavam,
-Querida, podia ter o mundo a seus pés - disse ele com sinceridade, levantando-lhe a cara com um dedo sob o queixo. - Só precisa de alguém que lhe indique a direcção certa e a encoraje. Os seus pais não a encorajavam?
A gargalhada amarga foi automática, embora a mortificasse e ela desejasse imediatamente ter podido engoli-la. Não era capaz de falar da família com Bryce. Eram pobres e Sujos. Lixo. Era o que dizia toda a gente na cidade, o que ela sempre tinha ouvido enquanto crescia, segredado nas suas costas. Os NeilIs não passavam de lixo mestiço. A vergonha ainda se agarrava a ela, como uma película de sujidade que não conseguia lavar por mais que esfregasse.
- Eu devia ir para casa - disse ela baixinho, deitando uma olhadela ao enorme relógio barato que trazia no pulso com a correia a dar duas voltas. Era de Will. Perguntou a si própria se teria dado por falta dele mais do que dela. Tenho de dar de comer ao meu cão.
-Eu mando o Morton tratar disso -- disse Bryce. Não queria que ela fugisse, depois de estar com aquela disposição melancólica. Ainda decidia não voltar para a festa, e isso não podia ser.
-Não é preciso. Além disso, tenho de mudar de roupa - observou Samantha, fazendo um triste inventário mental do seu guarda-roupa. Não tinha uma única coisa suficientemente boa para uma festa daquele género. Porque ali não era o seu lugar, recordou. Não era a Gata Borralheira e não tinha uma fada madrinha. o seu príncipe encantado abandonara-a em troca de desaparecer no horizonte com heroínas de cabaré noite após noite.
Bryce esperou, deixando amadurecer o momento e avançando apenas quando surgiu o primeiro brilho de lágrimas. Segurando-a pela mão, fez-lhe uma versão discreta do sorriso à Redford.
- Espere aqui só um minuto, que eu tenho uma surpresa para si!
Entrou no estábulo e deu instruções ao empregado que escovava o appaloosa para ir à cidade tratar do cão. Quando saiu, pegou-lhe por um braço e conduziu-a até casa. Samantha achou-a quase tão grande como o Alce, toda de madeira cinzenta e pedra, janelas brilhantes e altos telhados. Ao passar por uma sala, avistou os vidros brilhantes duma janela que subia em bico no centro duma parede, o que a fez pensar numa catedral, juntamente com o alto tecto de vigas. Parecia-lhe espaço desperdiçado, mas era lindo. A vista incrível, como estar no céu a olhar para o paraíso. A casa dela cabia toda naquela sala.
Bryce conduziu-a por uma escada curva até ao primeiro andar e fê-la atravessar o corredor silencioso e elegante da ala dos convidados. Cinco dos dez quartos de hóspedes estavam ocupados, embora não se visse sinal dos convidados. Toda a gente se preparava para a festa.
A suíte onde Bryce a conduziu ultrapassava de longe tudo o que ela jamais encontrara em termos de luxo. Espessa alcatifa creme, móveis antigos, quadros verdadeiros nas paredes e um enorme ramo de flores frescas numa jarra chinesa em cima duma mesa na pequena sala. No quarto, via-se un roupeiro de pinho aberto junto da cama, com roupa em tons de pedras preciosas nos cabides.
- Escolha - convidou ele, passando a mão pelas mangas e fazendo os vestidos dançar. - Eu pedi à Sharon que fosse à Boutique Laço e trouxesse umas coisas do seu tamanho. As cores são perfeitas para si. E tudo o mais que precisar está ali na cómoda.
-Não posso aceitar isto - murmurou Samantha, demasiado espantada para falar mais alto... ou demasiado receosa de que ele concordasse. Uma blusa daquela loja bastava para lhe engolir o cheque do ordenado. E havia meia dúzia delas naquele roupeiro.
-É claro que pode - insistiu ele, sorridente. - Somos amigos.
-É, mas...
- Mas nada. Eu sou um homem generoso. Gosto de dar coisas aos meus amigos, especialmente aos que precisam de alguma coisinha especial nas suas vidas. - Suavizou a expressão e acariciou-lhe a face com os nós dos dedos. É
um presente para si, minha querida. Que lhe faça bom proveito. E divirta-se na festa logo à noite. A mim, basta-me vê-la sorrir e divertir-se.
Samantha recuou, com um sorriso a despontar-lhe nos lábios. o riso subia dentro dela, à medida que as emoções cresciam, e a excitação quase lhe fazia perder o equilíbrio. Deu meia volta, observando o quarto, as roupas e, através da porta parcialmente aberta, a casa de banho de mármore com torneiras doiradas.
- Isto parece demasiado bom para ser verdade! -Nada disso - murmurou Bryce, agarrando o puxador da porta. - É uma oportunidade, Samantha. As portas para o Mundo estão abertas para si e você só tem de se decidir a entrar.
E com essa tirada, deixou-a, satisfeito com o seu talento dramático, certo de que a rapariga o absorveria como uma esponja seca. Pobre miúda... Ele sabia o que era estar preso numa vida sem qualidade, financeira, cultural e socialmente falida. Era o tipo de vida a que Will Rafferty a prenderia. Ela precisava de entrever o mundo que podia pertencer-lhe se conseguisse libertar-se.
Deitou uma olhadela ao relógio que mandara alterar numa joalharia de Missoula - um Rolex de platina numa pulseira larga de prata do feitio duma águia de asas abertas à volta do pulso. Tinha duas horas para se preparar. Imenso tempo. Estava tudo sob controlo.
Excepto J. D. Rafferty. Bryce franziu a testa, ao lembrar-se dele. Maldito vaqueiro. Tão santinho, tão convencido, sempre a ostentar aquele ar de nobreza como quem veste o manto dum rei, quando afinal não passava dos trapos deixados por outro sujo vaqueiro. Achava que o seu humilde nascimento no montana o elevava moralmente, ideia que fazia Bryce ter vontade de vomitar.
- Hei-de pôr-te de rastos, Rafferty - rosnou ele entre dentes. - E hei-de ficar com o teu maldito rancho.
O facto de saber que já possuía a chave melhorou-lhe a disposição, e a fúria afastou-se como as nuvens duma tempestade. Quando chegou aos seus aposentos ia a sorrir, sorriso que se transformou ao entrar no quarto e ao descobrir Sharon recostada num monte de almofadas de camurça, nua, à excepção do seu fino cinto com ponta prateada e um par de botas de vaqueiro de pele de cobra.
- Como está a nossa pombinha? - perguntou ela, enquanto ele começava a despir-se aos pés da cama.
- No pombal. Aprovou o teu gosto quanto à roupa.
- Espero bem que sim! Gastaste uma pequena fortuna com ela - disse Sharon, com um sorriso irónico.
- É um investimento. - Tirou a camisa e atirou-a para cima duma cadeira de cabedal cor de caramelo. - Para ganhar dinheiro é preciso gastar dinheiro. E ela não vai custar um décimo do que eu vou ganhar.
- As terras dos Raffertys.
- Hum... hum... - o pensamento dirigiu-se-lhe para a beldade no outro quarto, incapaz de ver para além das suas imperfeições.
- Tocaste-lhe? - perguntou Sharon, tentando manter um tom neutro. Pôs-se de joelhos na cama e aproximou-se dele, com a longa ponta do cinto pendurada sobre os pêlos púbicos cuidadosamente aparados.
-Claro que não.
Rindo, ela chegou junto dele, estendeu a mão e agarrou-o pelos testículos, através das calças de ganga, apertando. A sua larga boca pintada levantou-se aos cantos e os olhos brilharam-lhe travessos.
-Jura! - exigiu, desafiando-o.
Bryce gemeu, com a dor a latejar-lhe pelo corpo. Agarrou uma mão-cheia do cabelo dela e puxou-lhe a cabeça para trás, de olhos pregados nas suas feições quase masculinas, sentindo a lascívia percorrer-lhe as veias.
-Juro. Porque havia de querer uma garota quando posso ter-te a ti?
Ela fez um sorriso sinistro e soltou-o, começando a tirar-lhe o cinto e a abrir-lhe o fecho das calças.
- E porque não? Ela é linda e inocente. Tenho a certeza de que eu ia gostar dela.
-Com certeza que sim - murmurou ele, acariciando-lhe a cabeça enquanto ela metia o pênis inchado na boca.
- Mas não pode ser, priminha. - Pelo menos, enquanto eu não tenho o que quero.
Mari apeou-se do Honda, verificando pela última vez o seu aspecto. Não ia deixar alguém de rastos com o seu sentido de moda, mas a verdade é que não ia ali com ideias de Chamar a atenção. Das poucas roupas que guardara, escolheu uma blusa de seda púrpura cortada a direito em baixo, que deixara por fora duma curta saia preta travada. Como tinha deitado fora todos os sapatos de salto alto antes de sair de Sacramento, calçara sabrinas pretas. De caminho, parara na estação de serviço para comprar uns collants, visto ter queimado todos os que possuía, mas algum homenzinho diabólico tinha feito aquilo de maneira que uma das pernas ficava permanentemente torcida. Franziu a testa e deitou uma Olhadela em volta, tentando ajustar a estúpida coisa com um Puxão, o estacionamento alcatroado junto à casa de Bryce enContrava-se repleto por um incongruente conjunto de carros europeus e carrões americanos. Um ritmo grave batucava no ar, vindo de algures por detrás da enorme casa de madeira.
- Meu Deus, o homem deve ter mandado cortar metade das árvores do Oregão para construir isto! - disse entre dentes, olhando espantada para a enorme casa. Parecia suficientemente grande para lá caber o Congresso. Numa das extremidades, tinha uma torre, que se erguia apontando para o céu do montana como um foguetão. o telhado era de ardósia e as fundações de pedra. A impressão geral era duma única coisa: força.
Mari sentiu um arrepio pelas costas abaixo, mas decidiu considerá-lo de frio e deu a volta à casa, à procura da origem da música e de algumas respostas.
Bryce recebeu-a à entrada do terraço, como se estivesse especialmente à espera dela. Com umas calças de seda azul-escuras e uma folgada camisa também de seda branca toda aberta à frente, era a imagem do homem moderno e elegante. Tinha o cabelo penteado para trás num cuidado rabicho, o que lhe realçava a testa alta. Dirigiu-lhe um sorriso radioso, quase iridescente na cara bronzeada.
- Ainda bem que veio, Marilee - disse ele, pegando-lhe nas duas mãos. - Estava com medo que o seu amigo Rafferty a convencesse a não vir.
- o Rafferty não manda em mim - respondeu ela, fugindo ao beijo que ele tentou dar-lhe na cara. Desviou-se e observou ostensivamente o terraço e a zona da piscina apinhados de grandes e pequenas celebridades.
- Belo sítio este, Mister Bryce!
-Ora, é apenas a minha casa - respondeu ele, com falsa modéstia. Um criado apareceu junto deles e Bryce pe gou em duas taças de champanhe, estendendo uma a Mari.
- Trate-me por Bryce, como todos os meus amigos fazem.
- A Lucy também? - perguntou ela descaradamente, olhando para ele por entre as pestanas, enquanto levava a taça aos lábios.
- Claro. Ela estava sempre aqui. - Fez uma expressão contristada e abanou a cabeça, dando um estalido com a lingua. - Tão espirituosa! Meu Deus, que pena termo-la perdido tão nova!
- Pois foi. E começo a sentir que mal a conhecia. -Não eram amigas íntimas? Ela falava bastante em si. Admira-me que não lhe tenha contado tudo sobre a vida aqui - prosseguiu ele, olhando para ela atentamente, dando um golinho no champanhe.
-Fomos colegas em tempos. E amigas. Mas não éramos muito de manter o contacto desde que ela se mudou para cá. É... Realmente quase me parece que não a conhecia mesmo.
Deixou o olhar vaguear pelo pequeno mar de rostos, cerca de trinta, a elite escolhida para aquela reunião no terraço de lages, a falar, a beber e a exibir a sua beleza. Reconheceu a ruiva que estivera no Rancho dos Confederados com Bryce, Uma Kimball, a última descoberta de Hollywood, descrita como uma mistura da fada do Peter Pan e Madona. Estava de pé junto do muro baixo do terraço, com uma roupa que parecia um saco de batatas com um cinto de ráfia. Uma -fortuna em diamantes pendia-lhe das orelhas. Atafulhava a cara magricela com canapés, enquanto uma espécie de gigolô com uma cabeleira doirada tentava impressioná-la com os músculos peitorais desnudos.
Junto à piscina, uma loira donzela de tipo germânico exibia o corpo num vestido justo de malha preta sem alças, desfazendo qualquer ideia de poder ser um rapaz. Os olhos dela pregaram-se nos de Mari como um par de raios laser, com uma expressão de frio divertimento.
-Por exemplo, o xerife disse-me que a Lucy andava a cavalo sozinha quando... quando teve o acidente. Nunca dei por ela ser do tipo solitário e, sinceramente, não consigo imaginá-la em comunhão com a natureza - disse Mari, Voltando-se de novo para Bryce.
- Bom, ela era cheia de surpresas. Deixe-me apresentar-lhe algumas pessoas - ofereceu-se Bryce, conduzindo-a pelo cotovelo directamente para a alta loira junto à piscina. Mesmo estando ele de botas com saltos, a mulher conseguia olhá-lo de cima, o que lhe fez brilhar os olhos com uma satisfaÇão maldosa. - A minha prima Sharon RusselI, Marilee. Sharon, esta é a amiga da Lucy, a Marilee Jenings.
O olhar de Sharon varreu Mari desde a cabeleira indoMável até às biqueiras das sabrinas baratas e de novo até ao cabelo.
- Ah, pois, a cantorazinha - observou ela, com a larga boca torcida num sorriso sarcástico.
-Prazer em conhecê-la - disse Mari num tom doce mas com um sorriso gelado. - É prima do Bryce? Ai, são tão parecidos que julguei que fossem irmãos... quero dizer, irmão e irmã.
- Não trouxe a sua guitarra? - perguntou Bryce, com um esgar desapontado.
- Queria que eu cantasse em troca de comida? -Claro que não! Mas estão cá umas pessoas da Columbia Records e pensei que podia ser uma oportunidade para si. Você tem um talento raro, Marilee.
Que ele apreciara exactamente uma única vez duma ponta duma sala apinhada de gente. Mari cruzou por momentos o seu olhar frio, tentando adivinhar o jogo dele. Seria realmente tão benevolente? Ou tratava-se de fazer de Deus, de manipular as pessoas, distribuindo benefícios, para depois usufruir da sua gratidão?
- Talvez noutra ocasião - retorquiu ela, avistando um cabelo escuro e umas belas feições de relance. Ben Lucas.
- Ainda estou demasiado chocada com tudo o que aconteceu à Lucy para pensar sequer no meu futuro. Vim só para conhecer pessoas e comer boa comida de graça.
- Por favor - exclamou Bryce, mostrando os dentes e fazendo um gesto em direcção ao grupo à sua volta. - Divirta-se.
Ela acenou-lhe com a cabeça, ignorou Sharon e afastou-se, tirando um cogumelo recheado da bandeja dum criado que passava.
Lucas estava ocupado a encantar a rapariga de cabelo preto do grupo que aparecera a cavalo no rancho dos Raffertys, junto à piscina. As luzes submersas reflectiam ondas nos corpos deles. Era um homem bem-parecido, facto que nem a ele próprio escapava. Como muitos dos importantes advogados que Mari tinha conhecido, era vaidoso e arrogante ao ponto da megalomania. Naquela noite, escolhera o seu público sem falhas. Ajovem bebia-lhe as palavras. Parecia ter uns vinte anos, demasiado inocente e pura para andar com aquela gente. Carne fresca. E Lucas farejava-a como um lobo esfomeado.
-... e os jornais tinham julgado, condenado e executado a Lana Broderick - dizia Lucas. - Depois, ficaram espantados com a absolvição.
-Mas ela estava mesmo inocente?
o homem olhou para a rapariga com a perfeita mistura sabedoria e compaixão que influenciara muitos jurados, deixando-a absorvê-la bem, antes de deixar cair as dramáticas palavras finais:
-Devia estar.
Mari revirou os olhos e tentou evitar engasgar-se com o cogumelo.
-Tenho a certeza de que a infeliz esposa do Dale Robards desejou que a sua cliente estivesse inocente - exclamou, em tom seco, formando um trio com o parzinho. - Se a Lana Broderick se tivesse mantido com o seu grupo de majorettes em vez de se decidir por actividades extracurriculares com Mister Robards, talvez Mistress Robards ainda estivesse viva.
Os músculos faciais de Lucas endureceram e os olhos apertaram-se-lhe ligeiramente, mas a resposta surgiu, suave, hábil:
- Exactamente! Se o Dale Robards não tivesse seduzido uma garota inocente de dezasseis anos, toda a tragédia podia ter-se evitado. Ele é que devia ter sido julgado por corrupção moral.
Mari despachou o cogumelo e dirigiu-lhe um sorriso, apreciando a luta verbal e a ideia de poder aproximar-se dum advogado sem se preocupar se ele lhe destruía ou não a Carreira.
-Não foi a corrupção moral do Dale que puxou o gatilho. A amorosa e querida Lana tratou disso sozinha. -Ainda bem que não fazia parte do júri, Miss... - Jenings, Marilee Jenings. Na realidade, já nos Conhecemos. Há dois anos, quando eu era estenógrafa judicial, fiz alguns trabalhos para um dos seus sócios. o estado da Califórnia contra Armand Uscavaro. Ele afirmava que UMas vozes do inferno o tinham feito assassinar os pais enquanto dormiam e depois fingir que se tratara dum assalto, de maneira a que ele pudesse herdar dois milhões de dólares. Pobre garoto! Afinal, tudo sucedera porque não o deixaram ouvir heavy metal. Se calhar, mereciam morrer.
Lucas ignorou a mordacidade. o sarcasmo dela escorregava por cima dele como óleo sobre teflon.
- O mundo é pequeno. Lamento não me lembrar de nos termos conhecido. Gosto de pensar que nunca esqueço uma cara bonita - observou ele com um sorriso radioso.
- Provavelmente, lembra-se melhor da minha amiga. Ela trabalhava bastante com a sua firma. Lucy MacAdam! o homem piscou os olhos à menção do nome, como se uma mão invisível lhe tivesse dado uma bofetada. Mari catalogou a reacção e voltou-se para a rapariga com um sorriso apologético.
-No meio de toda aquela confusão e machismo, nem cheguei a ouvir o seu nome.
Samantha olhou para a loira de voz rouca e corpo sinuoso, sentindo-se uma espécie de totem gigantesco, com feições exageradas, grande e desajeitada. A bela blusa e calças de seda que tinha escolhido pareceram-lhe de repente garridas e enormes, e a pintura apalhaçada. Desejou fervorosamente poder tornar-se invisível ou acordar e descobrir que tudo aquilo fora um sonho, que estava realmente na cama ao lado do marido e não de pé numa festa toda pinoca a falar com uma das amantes dele. Mas nem se tornou invisível nem acordou, e Marilee Jenings e Ben Lucas estavam a olhar para ela, à espera.
- Samantha, Samantha Rafferty - murmurou ela, apertando o pé do copo como se esperasse parti-lo e vê-lo cair com estrondo nos mosaicos azuis da borda da piscina. Foi a vez de Marilee piscar os olhos, admirada.
- Rafferty? é a mulher do Will Rafferty?
- Sou.
A resposta surgiu com um olhar duro que Mari não interpretou imediatamente, demasiado ocupada a juntar as peças do pequeno drama daquela tarde. Subitamente, a reacção de Will fazia algum sentido e as palavras de J. D. para o irmão soaram-lhe na cabeça: Temos aqui um grande problema, irmãozinho. A mulher desavinda de will em companhia de Evan Bryce, o homem que queria ser o rei do vale do Eden. Ena, pá!
Olhou para Bryce, no outro lado da piscina. Ria e beliscava os peitorais do gigolô enquanto Uma Kimball enfardava um folhado. Imaginou-o a levitar sobre a multidão, disparando relâmpagos com as pontas dos dedos. Tinha esse ar de feiticeiro que tirava vidas por desporto. Seria realmente tudo um jogo para ele... brincar com as vidas das pessoas? Seria por isso que levara o seu séquito ao Rancho dos Confederados... para ver desenrolarem-se diante dos seus olhos os dramas da vida humana? A ideia fê-la arrepiar-se.
A sensação do olhar petulante de Samantha sobre ela chamou novamente a sua atenção para o assunto. A origem daquele olhar sacudiu-a. Ciúmes. Meu Deus, a pobre garota pensava provavelmente que ela era uma das muitas conquistas do marido. Chamou-lhe mentalmente meia dúzia de nomes. o idiota já lhe tinha arranjado um sarilho.
O J. D. convidou-me para ver a ferra - mentiu.
Ele tem-me ajudado com os animais da Lucy, Meus, agora, acho eu. Ainda não consegui habituar-me à ideia. - Voltou-se de novo para Ben Lucas, que parecia tão composto como um quarteto de Mozart. - Suponho que ouviu falar do acidente de Lucy?
- Claro. Foi uma tragédia terrível para toda a gente. o Graf.. o doutor Sheffield... ficou fora de si, de desgosto.
- Foi pena não estar fora de si enquanto andava à caça.
Talvez visse que estava a disparar contra uma mulher. - As palavras saíram-lhe afiadas como facas, afiadas como o seu ressentimento. Mari sabia que devia tê-las temperado, mas Os sentimentos não estavam a suavizar-se com o tempo e Sim o contrário. o choque parecia uma neblina diante dum forte sol matinal, Todos os dias, a ironia e a estupidez ficavam um pouco mais nítidas, mais claras, mais dolorosas. Lucas franzia a testa na sua direcção.
- Conhece esse doutor, rei da pontaria? - perguntou Mari, dando um gole no champanhe, esperando em vão refrescar a língua, enquanto ansiava por um cigarro.
- Sou o advogado dele.
Ai, meu Deus, onde é que foste meter a pata desta vez, Marilee?
À sua volta, ouvia os sons da festa como se se tratasse dum enxame de abelhas. A música saía de altifalantes esCondidos, numa estática ruidosa e desafinada. A luz da pisCina cintilava e atravessava as belas feições de Ben Lucas em riscas de luz e escuridão como o luar através dum estore de lâminas. Via a boca dele mover-se, mas mal o ouvia por causa do latejar dentro da cabeça. Qualquer coisa sobre uma segunda casa no vale e estar registado como advogado no montana.
-Que conveniente! - comentou secamente. Lucy tinha trabalhado para Lucas, Lucas fora seu amante a certa altura. Lucas trabalhava para Sheffield. Todos conheciam Bryce, o titereiro. Não era tão prático? Todos os pedacinhos de informação rodopiavam dentro da cabeça de Mari como os vidrinhos coloridos dentro dum caleidoscópio. Deve estar muito orgulhoso, retribuindo o valor duma vida humana com um pequeno delito e uns trocos.
Os olhos escuros do advogado ficaram opacos. Como os dum tubarão, pensou ela. Mesmo a propósito.
- Foi um acidente, Miss Jenings.
- É, eu conheço o esquema: sem malícia, sem premeditação. Se não estava inocente, devia estar.
Deitou-lhe um olhar indignado, odiando-o a ele e às pessoas do seu género, Era do tipo de advogado que troçava do sistema, passando pelos tribunais como quem joga a Vamos Fazer Um Negócio. A única coisa que lhe interessava era o número de absolvições. Não a lei. Não a justiça. Não a inocência ou a culpa.
- Desculpe, mas estou até aqui com advogados - disse ela, passando a mão pelo pescoço.
Atirou a taça para a piscina e afastou-se em direcção à casa, ignorando os olhares curiosos que a seguiam.
Umas portas de vidro abertas conduziam a uma enorme sala na parte central da casa. Mari atravessou um mar de alcatifa cor de champanhe, avistando apenas perifericamente os sofás de cabedal branco, as almofadas com cores térreas e as peças americanas nativas em altas vitrinas iluminadas,
Subindo para uma área de mosaicos mexicanos, virou à esquerda e atravessou um largo corredor, à procura duma casa de banho. Precisava duns minutos a sós e tinha uma enorme necessidade de se lavar depois da conversa com o advogado. Debaixo do aspecto de modelo masculino, dentro do fato de mil e quinhentos dólares e dos sapatos Cole-Haan, era uma enguia, uma viscosa e feia enguia de olhos pequeninos. o género de homem que levava trezentos dólares à hora aos clientes com dias de trinta horas e não pagava à estenógrafa judicial até à última pancada do martelo do juiz num litígio que durara dezoito meses.
Abríu-se uma porta à sua frente, apanhando-a quase na cara, e Uma Kimball apareceu a cambalear, às gargalhadinhas e com o olhar vidrado, como uma louca dentro dum saco. Apele dela tinha uma qualidade translúcida, como se estivesse muito esticada por cima dos ossos pequenos. o cabelo ruivo, curto e escortinhado, parecia ter sido roído por ratos enquanto ela dormia. Limpou a boca engordada com colagénio com as costas da mão, borrando a pintura.
-Olá! - exclamou, excitada como uma chefe de claque, - Grande festa, hein? Já conhece o Fabian? Meu Deus, ele tem as maiores mamas que já vi alguma vez e são mesmo dele! Não é o máximo?
-A casa de banho é aí?
- Acho bem que seja! Deitei fora meio quilo de aperitivos. Comer até vomitar... é o meu lema - disse a actriz às gargalhadinhas, fazendo abanar as cascatas de diamantes penduradas das orelhas. Quase caiu de riso e agarrou-se a Mari para manter o equilíbrio. o hálito tresandava a pasta dos dentes,
- Ah, pois, isso é porreiro - disse Mari, desperdiçando o sarcasmo na mulher, que de repente se fixou no cabelo dela.
-Que radical! Onde é que arranjou essa cor? No José? - perguntou ela, acariciando uma madeixa.
- ADN.
- Onde é isso?
- Nos meus genes. É verdadeira. Nasci assim.
- As pessoas ainda fazem isso? - perguntou ela, confusa durante uns segundos, mas depois novamente divertida.
- Sou antiquada - respondeu Mari com um suspiro. Sentia a cabeça a latejar dos dois lados, como um par de polegares martelados. - Por acaso não tem um cigarro, não?
- Credo, não! Fumar faz mesmo mal. Mas peça ao Bryce, se precisa mesmo. Ele arranja-lhe tudo aquilo de que Precisar.
- É... aposto que sim.
- Sem merdas. Olhe que ele tem o melhor pó que já experimentei. Quer?
Mari pensou em dizer à sua recém-encontrada amiga que preferia ficar no planeta Terra, mas mordeu a língua no último segundo. Precisava de saber mais sobre Bryce e queria descobrir mais coisas sobre o grupo com quem Lucy andara antes de morrer. A certa altura, as respostas iam começar a fazer sentido, em vez de a levarem cada vez mais para o fundo da toca do coelho.
-Venha lá! - E Uma agarrou-lhe um braço e levou-a pelo corredor, com a cara magra e pálida brilhante de excitação e dos efeitos da cocaína. Viraram uma esquina e chegaram a uma porta dupla de madeira trabalhada. com um olhar de conspiração, exclamou: - É preciso saber a batida secreta.
Deu umas pancadas que faziam lembrar vagamente The Rain in Sain e deixou-se cair de encontro à porta com um ataque de riso. Mari olhava para ela, pensando que, se a rapariga se excitasse um bocadinho mais do que estava, ia entrar em curto-circuito. Sem esperar que alguém respondesse às batidas secretas, deu a volta ao puxador e entrou na sala aos tropeções.
- Presente ou partida! Há por aí docinho do nariz? Uma endireitou-se e foi direita a uma enorme mesa de bilhar com pernas de mogno trabalhadas. A única luz da sala provinha do candeeiro de latão por cima da mesa, formando três perfeitos cones sobre um longo espelho colocado no meio e iluminando uma dúzia de perfeitas linhas de cocaína, ali à espera de alguns narizes nervosos.
Mari estacou praticamente à entrada, ao reconhecer o homem inclinado sobre a mesa com uma nota de cem dólares enrolada sob uma narina. o coração batia-lhe de encontro ao esterno e às costelas.
MacDonald Townsend. o juiz distrital MacDonald Townsend.
o homem olhou para cima e cruzou a mirada com a dela com a força de dois comboios opostos.
- Vinha à procura de cigarros - murmurou Mari, voltando as costas à poça de luz em volta da mesa. Alguém estendeu-lhe um maço de Gauloises e, em vez de tirar um, Pegou naquilo tudo, balbuciou um agradecimento e saiu para o corredor fracamente iluminado.
MacDonald Townsend era um dos homens mais respeitados nos tribunais do Norte da Califórnia e falava-se nele para o Supremo Tribunal. Tinha acesso ao governador, uma mulher rica e, aparentemente, um apetite por neve da Colômbia.
E durante um longo e quente Verão, fora amante de...
As perguntas tornavam-se maiores e ressoavam mais alto com cada batida nas suas têmporas. Atravessou rapidamente um labirinto de corredores e encontrou uma porta para o exterior no preciso momento em que se julgava irremediavelmente perdida. Desesperada por ar fresco, saiu e parou para se orientar. Estava abaixo do estacionamento, mais perto dos estábulos do que dos carros. Ainda a tremer ligeiramente e com a cabeça a latejar, desceu um caminho empedrado em direcção a um pátio. o cheiro de estrume de cavalo e pinheiros pareceu-lhe uma grande melhoria sobre o fedor da ganância e que pairava como nevoeiro sobre o grupo de Bryce.
Caminhou ao longo do edifício onde uma grande porta de correr tinha ficado aberta. Encostou-lhe o ombro e olhou para os compartimentos. A música da festa chegava ali suficientemente diluída para ser agradável. Mais reconfortantes eram os sons dos cavalos a comer e a bater com os cascos para afugentar as moscas, mas nem isso conseguiu a tensão dos nervos.
Deus, que festa aquela! Advogados dum lado para o outro como tubarões dentro duma piscina. Um pilar da justiça a fungar cocaína. Sentia-se como a Alice dentro da toca do coelho a tomar LSD. A qualidade sinistra daquilo tudo subia por ela como um milhar de larvas. A pressão aumentou até Parecer ter tomado uma forma sólida e olhar para ela das Sombras do estábulo.
Mari endireitou-se e afastou-se do edifício, incapaz e relutante em parar de reagir daquela maneira. A única coisa que queria era sair dali. o País das Maravilhas tinha-lhe oferecido todas as revelações que conseguia aguentar por uma noite.
Apressou-se na direcção do estacionamento e do seu Honda, sem pensar sequer que a sensação de olhos nas suas Costas fosse real.
O juiz Townsend andava dum lado para o outro dentro do antro privado de Bryce. Tinha cinquenta e dois anos e era parecido com Charlton Heston, para melhor. Muita gente dizia que era um homem com um brilhante futuro pela frente. De momento e na sua imaginação, esse futuro desfazia-se em chamas. Tinha os nervos mais tensos do que cordas de piano.
-Bolas, Bryce, como é que pudeste convidá-la para aqui? Ela pode ser outra Lucy! Ou pior! - Parou de andar dum lado para o outro e ficou ao pé da janela que dava para o vale a olhar para a escuridão, com os lábios finos a tremer. Levou a mão à testa como se estivesse a ver se tinha febre. - Meu Deus, não acredito que isto esteja a acontecer.
Bryce observava-o empoleirado na ponta da secretária, com uma expressão calma e vagamente divertida, mas troçando dele no seu íntimo. o homem não tinha coragem para jogar com os grandes. Era fraco, fraco de mente, de espírito. Sucumbia constantemente à tentação: mulheres, cocaína, dinheiro. Sucumbia, não cedia. E a diferença era enorme. Talvez pudesse admirá-lo, se o homem mergulhasse nos seus vícios com alegria e vivacidade, mas o juiz era uma espécie de equilibrista a andar na corda com medo das alturas. De cada vez que escorregava da sua alta posição, gritava, suava e borrava-se. Bryce desprezava-o e gostava de o empurrar, abanando o arame e atraindo-o para a beira do precipício.
-Não sabemos o que a Lucy pode ter-lhe contado disse Townsend, - Nem que provas podem ter ficado. -Passámos revista à casa - respondeu Bryce calmamente. - Não havia vídeo. Ela estava a brincar contigo, recebia o teu dinheiro e ria-se de ti pelas costas.
- Aquela puta! - E o corpo tremia-lhe todo, enquanto apertava as mãos aos lados. - Nunca devia ter-lhe tocado.
- Pois não - comentou Bryce suavemente, deslizando da secretária e avançando para a janela, de mãos postas com os dedos a tocarem-se apenas nas pontas, como um padre. Sem fazer caso da vista, voltou-se para o juiz, com os olhos claros a brilhar de desprezo. - Não, meu amigo, nunca devias ter tocado na Lucy. Não tens coragem para joguilhOs como os dela. Apesar disso, tens muita sorte em me ter a mim para tratar do teu bem-estar.
-Tratas dessa Jennings?
-Estou a vigiá-la e vou tratar de tudo. Trato sempre! Dirigiu-se então para a porta, ansioso por voltar para a festa. Townsend era um chato. Queria dedicar-se a Samantha. A inocência dela era genuína, e a sua beleza refrescante. Queria ficar a seu lado e ver-lhe os olhos maravilharem-se-lhe por conhecer pessoas famosas e viver a boa vida pela primeira vez.
A voz do juiz sobressaltou-o mesmo a chegar à porta:
- Sabes quem matou a Lucy, Bryce?
- Claro. o Sheffield. Foi um acidente... Não foi? respondeu, com um olhar sombrio.
Mari estava sentada na varanda, enroscada numa cadeira e tapada com a manta do sofá. Com os olhos fixos no riacho iluminado pelo luar, deixou a mente vaguear, enquanto fumava os caros cigarros franceses uns a seguir aos outros, sem os apreciar, grata apenas pela nicotina. Ia mesmo deixar de fumar, mas não nessa noite. Ia mesmo recomeçar, se a sua antiga vida alguma vez a libertasse.
Deus, o Townsend a fungar coca e o Lucas a representar o homem que tinha matado a Lucy! Todos eles a deslizar pelo antro de víboras do Bryce. Tome cuidado com o Bryce, querida... A Lucy gostava de brincar com cobras, mas ela também tinha presas venenosas...
Cobras no Jardim do Paraíso. A imagem fê-la sentir arrepios pela espinha abaixo.
- Em que raio é que estavas metida, Lucy? - murmurou, olhando para a lata de Mr. Peanut por entre lágrimas. Tinha a carta que a amiga deixara apertada numa das mãos, mas não tentou lê-la, limitando-se a agarrá-la como se fosse um talismã, como se o facto de lhe tocar pudesse dar-lhe o poder de ver o passado da sua autora. Mas a única Coisa que sentia era uma espécie de pavor e confusão, e não sabia se queria ir mais longe do que isso.
o que queria era alguém com quem falar, um ombro a que se encostar. Sentia-se tão sozinha... Tinha-se libertado da família, de todas as pessoas que conhecia, mas agora aquilo só a fazia sentir-se pior quando pensava que ninguém dessa antiga vida teria compreendido ou a teria ajudado.
Estava mesmo a ouvir a voz da mãe, desaprovadora. Bom, Marilee, que é que esperavas? A gente com quem tu andas. Realmente, não é de espantar que uma dessas pessoas tenha morrido com um tiro. Devias ter feito caso do teu pai e de mim e ter ido para Direito... Se tivesses casado com aquele simpático rapaz, Enright... se fosses mais como as tuas irmãs...
No teatro particular da sua cabeça, via Lisbeth e Analiese sentadas afectadamente, com as pernas e os braços cruzados e um desprezo convencido a brilhar-lhes nos olhos, Era evidente que nenhum dos conhecidos delas fora alguma vez atingido a tiro, ou mantivera um caso amoroso com um juiz distrital casado, ou fodera um importante advogado em cima da sua secretária enquanto o cliente esperava na sala, Não seriam capazes de compreender nem de oferecer ajuda. Pensou em Brad e teve a certeza de que a sua maior preocupação seria a possibilidade de ela lhe apresentar Ben Lucas.
Depois, recordou as pessoas que conhecia ali. Drew ouvi-la-ia, mas o que podia ela contar-lhe? A única coisa que possuía eram fragmentos e palpites e sensações desagradáveis. E ainda havia a possibilidade de ele lhe dizer alguma coisa que não queria ouvir. o que desejava na realidade era um par de braços à sua volta, conforto e percepção de força. Alguém bem rodeado de bom senso. Alguém que a segurasse. Alguém a quem se agarrar.
Pensou em J. D. Rafferty. Não queria, mas ele surgiu, o que era mesmo dele. Tinha piada querer voltar-se para ele, pensou, tentando em vão chamar o sentido de humor. Mas ele não a queria na região.
Queria-a apenas na cama dele.
Sabia como eles se sentiam. Fisicamente, estava de rastos, cheio de dores no corpo e com os músculos a protestar contra cada movimento necessário. Mentalmente, sentia-se como se alguém lhe tivesse dado com um cano de chumbo no cérebro. E espiritualmente, tinha um pedregulho atado ao pescoço e estava a afogar-se em águas muito profundas.
o espectáculo da mulher do irmão com o grupo de Bryce deixara-o apavorado. Até ali, vinha-se enganando a si próprio, pensando que era capaz de enfrentar Evan Bryce, de fazer o joguinho dele e ganhar-lhe. Mas o homem andava apenas a brincar, a divertir-se até ali. Agora, subia a aposta e J. D. tinha cartas baixas,
Se Samantha se divorciasse do irmão - e Deus sabia que tinha motivos para isso - podia levá-lo a tribunal para lhe exigir parte da propriedade. Se ganhasse, Bryce ia estar mesmo ao lado dela, pronto a enfiar um pé na porta. E, assim que o fizesse, isso seria o fim. Quatro gerações de Raffertys acabariam e seria ele o culpado. o peso da culpa, a vergonha seriam seus. Se não tivesse o Rancho dos Confederados, nada teria,
Fixou de novo os cavalos, as colinas e as árvores para além delas, sentindo-se como um osso seco ao sol.
Não teria nada. Não teria ninguém.
Pensou em Mary Lee e não conseguiu endurecer completamente o coração contra o insidioso desejo de a puxar para si e ficar a abraçá-la.
Idiota. -Foste muito duro com o rapaz hoje.
- Não é um rapaz. É um homem - respondeu J. D. Já é tempo de proceder como tal.
-Ele está a passar por uma fase difícil, J. D. -Não estamos todos? A vida é difícil.
- E tu não a tornas mais fácil... para ti ou para os outros.
-Não quero ouvir isso, Tuck - disse J. D. em tom cansado. Deixou pender a cabeça e olhou para as mãos penduradas duma trave da cerca. Mãos de trabalhador, grossas, duras, cheias de calos. - Estou a agarrar-me pelas unhas. Como aqueles idiotas que vêm cá trepar às rochas ao fim-de-semana.
Tucker ficou calado, a mastigar e a pensar. Uma égua aproximou-se e cheirou-o, esfregando o focinho na sua barba por fazer. Empurrou-a suavemente.
- Não és o único, filho. Estamos todos contigo... eu, o Chaske, o Will...
- E se ele desiste, Tuck? - perguntou J. D., dando pela primeira vez voz ao receio por detrás dos pensamentos relativos ao rancho. o fio que os ligava como irmãos estivera sempre tenso, devido ao facto de os pais os puxarem em direcções opostas. E se rebentasse? Que sentiria ele? Alívio?
- Não desiste - declarou Tucker com mais convicção do que sentia. Afastou-se da vedação, cuspiu e limpou o queixo à manga da camisa. - Não desiste, É um Rafferty. Devias ir dormir, filho.
Afastou-se em direcção a casa, com o andar dolorido dum velho vaqueiro. J. D. ficou junto à vedação, sabendo que se sentia mais em paz com os cavalos do que na cama. Na cama, o pensamento iria para Mary Lee e perigosos desejos de coisas que nunca poderia ter.
Voltou-se para o lado da propriedade de Bryce, imaginando que conseguia ouvir a música no vento. Ela estava lá naquela noite, a beber o champanhe dele e a rir das suas piadas. Era um deles, o que significava muito simplesmente que, para si, nunca poderia ser mais do que uma tentação.
Pena. Em noites como aquela, seria agradável ter alguém que lhe fizesse uma massagem nos ombros e compartilhasse as suas preocupações, lhe aquecesse a cama e aliviasse as necessidades. E o gosto de Mary Lee Jenings continuava na sua boca, a sensação do seu corpo de encontro a ele. Em noites como aquela, quando a madrugada parecia muito longe, era incrivelmente difícil resistir à tentação.
WílI estava sentado nos degraus das traseiras da pequena casa que partilhara com a mulher. Ex-mulher. Ex mulher. o termo ainda lhe pulsava no cérebro. A Lua no céu iluminava o pátio e a vedação. o Maroto tinha andado a escavar e aquilo parecia o local duma caça ao tesouro. o cachorro estava deitado ao seu lado na escada, a grande cabeça sobre as patas desajeitadas, estremecendo com sonhos de cachorro.
A casa atrás deles mantinha-se às escuras e vazia. Sam abandonara-a, e Will pensou se ela alguma vez voltaria, depois de ter provado a vida no monte Olimpo.
- o que é que ela tem aqui que a faça voltar, rapaz? perguntou em voz alta, com o uísque a entaramelar-lhe a voz. A garrafa estava no degrau, entre os pés, vazia. Mas não estava bêbedo. Não conseguia embebedar-se naquela noite. o álcool não penetrava o medo, apenas fazia o tempo andar mais devagar, um truque desagradável. Não queria ter mais tempo para pensar. Os pensamentos andavam à roda constantemente, como um cão atrás da cauda.
Não queria ter mulher. o casamento era uma sentença de prisão. Tinha visto isso enquanto crescia. o pai condenara a mãe a uma vida de que ela se fartara, mas ficara agarrada a ela. o casamento era estúpido. Sempre pensara assim. As pessoas deviam ser livres para entrar e sair de relacionamentos conforme os ditames da atracção. Sem prisões, sem culpa, sem ressentimentos.
Então, porque é que casaste com a Sam, rapaz?
E porque seria que aquele termo parecia uma faca espetada no peito? Ex-mulher, ex-mulher, ex-mulher.
E porque estava ali sentado a sentir-se tão apavorado e tão sozinho, quando a Lua brilhava no céu e a noite cheirava ao perfume doutras mulheres?
Porque a amas, estúpido,
- Fizeste merda outra vez, rapaz - disse ele baixinho, com duas lágrimas a escorrerem-lhe pela cara.
Mari acordou na varanda quando os primeiros vestígios da manhã fizeram o céu ficar dum cinzento-pérola. Doía-lhe tudo por ter dormido ao frio ar da noite numa posição contrafeita. Conseguiu libertar-se da cadeira e andou pela varanda como o Quasímodo, tentando desempenar-se e estragando os pés das meias na madeira do chão. Tinha a cabeça a latejar por causa dos cigarros franceses e dos sonhos que lhe haviam arruinado o pouco sono que conseguira, com imagens a martelarem-lhe a cabeça, gritando para sair, sem nunca encontrarem a porta, sem se alinharem devidamente como ela queria para poder interpretar os indícios obscuros e as sensações sinistras.
Apoiou-se às costas da cadeira e gemeu, esfregando os olhos e afastando o cabelo da cara. Ainda apertada na mão, tinha a carta que Lucy deixara. Incapaz de a enfrentar antes de tomar um café, meteu-a debaixo da lata de amendoins coberta de orvalho e entrou em casa.
Enquanto aquecia a água para um café instantâneo, foi ao lavabo ao lado da cozinha e abreviou a rotina matinal, tentando não olhar para a sua imagem no espelho. Mas, tal como quem passa por um desastre de automóvel, a curiosidade mórbida ganhou e fê-la deitar uma olhadela, arfando horrorizada perante o espectáculo. Tinha os olhos vermelhos e com olheiras negras de rímel. Procurou no armário dos remédios e encontrou um frasco de colírio e um boião de creme, com os quais tentou reparar os estragos o melhor possível.
No quarto de Lucy, onde o resultado dos estragos feitos pelos vândalos ainda não fora reparado, procurou alguma roupa lavada que pudesse vestir. o colchão tinha sido tirado da cama e rasgado. Um candeeiro da mesa-de-cabeceira fora aparentemente atirado de encontro ao grande espelho pendurado por cima da cómoda, que tinha as gavetas abertas e roupa a sair delas e espalhadas pelo chão. Junto ao roupeiro, a mesma coisa: blusas e vestidos na alcatifa, com as mangas em posições estranhas, o que lhes dava o aspecto de cadáveres. o único pedaço de vidro intacto era um pequeno aquário redondo cheio de embalagens de preservativos.
Mari fingiu que não reinava ali a confusão. Ignorou os preservativos e o que aquilo dizia do estilo de vida da amiga, e procurou alguma coisa que pudesse vestir, encontrando roupa interior lavada, umas calças de ganga, uma camisola de algodão de Mazadan e uma camisola de mangas compridas cor de laranja com o contorno duns lábios de mulher a cor-de-rosa, na parte da frente.
Com o café na mão, voltou para a varanda e acendeu o último Gauloise. Quando o fumo adocicado começou a subir para o ar, pegou na carta e estudou-a de novo.
Todos temos a nossa missão nesta vida... A minha é ser um espinho cravado em patas abastadas... Foi o que me levou até onde tu estás hoje. Ou até onde eu estou?
Onde tu estás hoje: na quinta. Ou onde eu estou: morta. Mari mordeu os lábios enquanto avaliava as possibilidades, cada uma pior do que a anterior. Sentiu as batidas do coração. É a cafeína, disse para consigo. É a nicotina. Ou a hipótese de a Lucy ter previsto o seu próprio assassínio,
Assassínio. Não conseguia pensar naquela palavra sem ver sangue, sem ver as fotografias do processo no gabinete do xerife Quinn. o corpo sem vida de Lucy na erva, com um buraco no peito.
Lucy sabia coisas que não devia sobre pessoas poderosas, pessoas com dinheiro. No Verão em que dormira com o juiz Townsend, ele tinha-a levado até ali ao montana para Passar um fim-de-semana. Fora assim que Mari soubera da descoberta da pequena propriedade. Do esconderijo.
Os fora-da-lei é que tinham esconderijos. Os fora-da-lei é que eram mortos a tiro.
O Dr. Shetfield afirmava que não a tinha visto. E se tivesse? E se Lucy tivesse sabido alguma coisa que não devia sobre ele? E se as lágrimas que o homem deitara durante a audiência não tivessem sido de desgosto abjecto, mas sim de culpa abjecta?
Olhou para a lata de amendoins, plenamente consciente da valiosa casa de toros atrás de si e das terras de valor incalculável que se estendiam à sua frente, dos lamas e do Range Rover, das roupas caras espalhadas pelo chão do quarto e do estilo de vida.
Lucy sabia coisas que não devia sobre pessoas com dinheiro e poder. Lucy estava morta.
Mari dobrou o papel e bateu com ele nos lábios apertados. Tinha de ver onde ocorrera aquilo, de ver por si própria se podia ter sido um acidente. E tinha de falar com o homem que encontrara o corpo - Del Rafferty - quisesse ou não J. D.
Por volta do meio-dia, Mari e Oyde subiam o monte, com um mapa, se era que serviria de alguma coisa. o xerife Quinn tinha feito o mapa no papel duma embalagem do Burger King, rabiscando instruções do género «dirigir-se para a esquerda na pedra azul» e «para norte junto à vaca morta». Mari calculava que seria uma sorte não acabar no Canadá.
As palavras do xerife sobre Del Rafferty tinham sido menos do que encorajantes.
«Só o encontra se ele quiser, e ele não vai querer. Não gosta de desconhecidos.»
Mari tentava não pensar muito na afirmação de J. D. de que o tio conseguia acertar nos tomates dum rato a seiscentos metros.
Quanto mais alto subiam, mais nervosa se sentia. o terreno era irregular e o carreiro pouco claro. A paisagem talvez a tivesse deixado sem respiração, se não estivesse demasiado preocupada para reparar nela. o pinhal fragrante dava lugar a belos prados verdes e depois a mais bosque, tudo a subir em direcção ao céu do montana. Mari só conseguia pensar que a Lucy que havia conhecido nunca teria arranjado tempo para magoar o rabo numa sela em cima dum macho e trepar um monte. Nunca - a não ser que tirasse daí alguma coisa importante.
Talvez tivesse ido encontrar-se com Sheffield, por terem un caso. Mas por que motivo ali, quando tinham um milhão de sítios mais privados?
-É pena não saberes falar, Clyde - disse ela ao macho, acariciando-lhe o pescoço quente. - Podias dizer-me exactamente o que aconteceu. Talvez devêssemos ir ter com a M. E. Fralick, para nos ajudar. Ela podia pendurar uns cristais em ti e comunicar contigo num plano psíquico.
Clyde voltou a cabeça para trás e deitou-lhe um olhar cínico, com as compridas orelhas a sacudir as moscas que o incomodavam.
Pararam à beira duma clareira, para descansar. Mari deixou o macho beber no riacho que praticamente tinham seguido pelo monte acima e depois meter o focinho no trevo durante um momento, com as rédeas frouxas. Tinha imensa vontade de desmontar e esticar as pernas, mas já estava dolorida do passeio até ao Rancho dos Confederados na véspera e receava não conseguir voltar a montar, se descesse do animal.
Lá em cima, nuvens escuras passavam pelo céu como esponjas inchadas, a encobrir o Sol. Porreiro. A uma data de quilómetros de casa e agora ia começar a chover. Consultando o mapa, tentou descobrir onde estavam, ignorando os resmungos do estômago perante o aroma do cheeseburger que ficara agarrado ao papel.
Tinha mais ou menos a certeza de terem passado pela rocha azul, mas a vaca morta era outra história. Reparara nuns ossos espalhados, mas não era propriamente especialista em restos de animais.
- Podia ser uma vaca - resmungou. - Ou podemos estar completamente perdidos.
Clyde levantou subitamente a cabeça e deu um salto Para a frente, com o corpo musculoso pronto a desatar a Correr. o mapa saltou das mãos de Mari, enquanto tentava manter-se na sela e segurar as rédeas, mas o papel ainda assustou mais o animal, que deu novo pulo em frente. Do Outro lado da clareira, dois veados saltaram ao mesmo tempo e desapareceram por entre as árvores.
Mari fez o macho dar uma volta a galope, com o coraÇão na garganta e todos os músculos tensos. Agarra-te, agarra-te, agarra-te! As palavras vibravam dentro dela a cem quilómetros à hora, tentando controlar o animal. Se caísse e ele fugisse, era um raio duma longa caminhada de volta. Claro que, se partisse o pescoço, não precisava de se preocupar com a caminhada.
o macho acabou por parar, com a cabeça ainda levantada e o corpo a tremer como um carro de corridas na linha de partida. Deitou as orelhas para trás e bufou com força com as narinas muito abertas.
- Lindo menino, lindo menino - disse Mari, acariciando-lhe o pescoço com a mão a tremer. - Tem calma, está bem, Clyde?
A adrenalina foi baixando, deixando-a trémula e com a cabeça esvaída. o fresco ar perfumado entrava-lhe e saía-lhe dos pulmões com esforço. Mas, como Clyde não tornou a fazer menção de fugir, começou a descontrair-se. Pensou então no que o teria assustado. Provavelmente os veados. Ou outro companheiro de caça de Bryce?
- Olá, está aí alguém armado? - exclamou ela bem alto, fazendo o macho tremer debaixo de si. - Não sou um alce!
Silêncio. A brisa abanou as árvores. Para a esquerda, além dos outros montes, ribombou um trovão. Um esquilo palrou do seu poleiro num ramo caído. A sua chamada ficou sem resposta, mas o macho continuava a tremer debaixo dela.
Não ouviu o estalo do tiro senão na fracção de segundo antes de a bala atingir o ramo morto atrás de si. Depois, aconteceu tudo tão depressa que não conseguiu acompanhar a ordem dos acontecimentos. Estava a cair para trás. Clyde apresentava-lhe os quartos traseiros e os cascos no ar. Pensou vagamente se teria sido atingida. Depois, caiu no chão e ficou tudo negro.
Quando o mundo começou a ficar novamente nítido, não sabia se estava morta ou viva. Viva, suspeitou, contraindo-se. Os mortos não sentiam dores. A consciência do corpo voltou, dor por dor, e Mari abriu os olhos, sustendo a resPiração ao ver o rosto diante de si. Não era a cara de alguém que lhe tivessem dito que ia encontrar no céu, e contava ir para lá, apesar de não frequentar regularmente a igreja. Não, a cara que olhava para ela de cima era a dum vaqueiro, e qualquer coisa nos olhos dele lhe disse que talvez não tivesse vindo do inferno, mas que provavelmente já o vira.
Debaixo da aba do chapéu cinzento, sob as pesadas sobrancelhas, os olhos semicerrados, entre cinzento e azul, tinham qualquer coisa que a Mari pareceu loucura. Fúria, medo, uma frágil tensão que ameaçava rebentar. Tinha provavelmente uns cinquenta anos, uma cara magra e marcada pelos elementos, bronzeada e sulcada de rugas como um cinto trabalhado. Na face esquerda, havia uma cicatriz redonda do tamanho duma moeda, que lhe arrepanhava o canto da boca numa expressão grotesca e permanente. Nas grandes mãos vermelhas, segurava uma grande espingarda de aspecto muito mortífero.
-Não me mate - murmurou Mari, pensando o que poderia fazer para o evitar e se a morte não seria a alternativa mais agradável que lhe restava. Teve repentinamente plena consciência de como aquela região era remota. Passaram-lhe pela mente fragmentos dos seus guias turísticos quase quatrocentos mil hectares de terra selvagem, noventa por cento da qual sem estradas. Ele podia levá-la para qualquer sítio, fazer-lhe qualquer coisa, e tudo sem testemunhas excepto os animais selvagens e as plantas. o coração tremeu-lhe como uma avezinha moribunda.
- Se eu quisesse matá-la, a senhora já estava morta disse o homem em voz baixa e rouca.
Aquela voz. Piscou os olhos com força, como se isso pudesse desanuviar-lhe as ideias. Era a voz de J. D., mas mais grave, mais rouca. E a cara era uma versão mais rude e gasta da de J. D. Lentamente, conseguiu sentar-se, desviando os olhos da cara do homem para a espingarda na mão dele e de novo para a cara.
-Del Rafferty? - perguntou em voz fraca.
- Sim, minha senhora - respondeu o homem, apertando ainda mais os olhos.
-E o Quinn disse que eu nunca ia encontrá-lo...
Del caminhava à frente do cavalo, com a disposição tão azeda como o ácido que se lhe agitava no estômago. Não fizera tenções de ficar com a mulher loira às costas. Quisera apenas afugentá-la. A última coisa que queria era uma mulher em casa, sobretudo aquela mulher.
A mente tentava confundi-lo, como acontecia frequentemente, fazendo-o pensar que ela o seguira até ali acima, que o perseguira por ter sentido a sua presença, por saber. Tentava dizer-lhe que era a outra disfarçada, que voltara para o perseguir. Mas ele esmagou essas loucas divagações com a bota da realidade. Ela não era a outra. Era a nova e estava ali e pronto. Não tinha de gostar do facto. Bastava-lhe lidar com ele. Tolerá-la e depois ver-se livre dela.
o macho ia provavelmente a meio caminho de casa àquela hora. Era uma pena ela não ter conseguido ficar com o rabo em cima dele.
-Então você vive aqui em cima? - perguntou ela. Del lançou uma olhadela por cima do ombro, sem falar. A rapariga vinha montada no seu cavalo, com o cabelo loiro todo despenteado e uma nódoa negra na maçã do rosto do lado direito. Devia ser bonita, mas havia tanto tempo que desistira de pensar em mulheres de maneira sexual... Tentava mesmo nunca pensar nelas, tal como tentava nunca pensar no Vietname ou no período depois do regresso a casa, ao qual se referia como o período do buraco negro, quando tudo fora absorvido para o vazio negro da sua mente. Vivia a vida um segundo de cada vez, concentrando-se totalmente em cada momento, para passar dum para o seguinte.
- A minha amiga foi morta algures por aqui há umas duas semanas. Com um tiro num acidente de caça. o xerife disse-me que o senhor é que encontrou o corpo dela.
Del limitou-se a continuar a andar, tentando não a ouvir. Concentrou-se na respiração, em colocar um pé diante do outro, enquanto conduzia o cavalo pelo íngreme carreiro até ao campo de Verão das vacas. Se a ignorasse, talvez ela se tornasse invisível - ou ele para ela. Era uma ideia que lhe agradava muito. Se se tornasse invisível, talvez ela parasse de falar.
- Estava com esperança de que pudesse responder-me a algumas perguntas. Se não se importa, gostava de saber alguns pormenores. Sabe, preencher algumas lacunas na história.
Por outro lado, havia sempre a horrível perspectiva de ela nunca parar de falar. Quando a descobrira com a teleobjectiva da arma, estava a falar com o macho.
- o Quinn disse-me que encontrou o corpo só dois dias depois do acidente, mas gostava de saber se terá ouvido ou visto alguma coisa no dia em que ela foi morta.
As imagens perpassaram-lhe diante dos olhos - escuridão, luar, a mulher a correr. De repente, cego perante o que o rodeava, tropeçou e sacudiu-se, voltando ao presente, amaldiçoando-se mentalmente e amaldiçoando a mulher. ouvia a sua respiração ruidosa, ressoava-lhe nos ouvidos como se viesse por altifalantes. E ouvia os cães. o coração bateu-lhe com força no peito.
- Qualquer coisa pode ajudar. Só preciso de saber.. -Não sei! - gritou ele, voltando-se tão de repente que,, o cavalo. Este, de olhos muito abertos, deu um esticão nas rédeas. Del não fez caso. De olhos fixos na mulher loira, vendo na sela um cadáver com um grande buraco no peito, capaz de se poder ver através dele, a meio caminho dos picos do Espanhol. - Não quero saber o que lhe aconteceu! Não quero saber dos tigres! Deixe-me em paz! DeiXe-me em paz ou eu deixo-a aqui para os rapazes dos cães. Raios a partam!
Num piscar de olhos, o corpo desaparecera e a nova mulher olhava para ele com os olhos tão abertos como os do cavalo.
- L... Lucy - gaguejou ela em voz fraca. - Ela chaMava-se Lucy. Eu sou a Mari.
Del deu meia volta, envergonhado, e continuou a andar. Por isso é que ele ficava no pasto de Verão. Não podia estar com as pessoas, Interrompiam-lhe a concentração, faziam-na estalar como um fino elástico, e depois desfazia-se-lhe tudo na cabeça, e os fragmentos explodiam, claros e escuros e nsanguentados. Debaixo da placa metálica, o cérebro lateJava-lhe.
o céu ribombava lá em cima e começou a chover. Mari não pronunciou outra palavra durante o caminho até à cabana do homem. Del Rafferty começara por lhe dizer que chamaria alguém via rádio, mas depois daquela fuga da realidade só podia esperar que esse alguém não demorasse muito a chegar. Era óbvio que a cabeça do homem não funcionava nos cilindros todos. Teria sido bom que alguém a tivesse informado disso desde o princípio. É claro que o xerife nunca acreditara que ela o encontrasse, e J. D. avisara-a - duas vezes -, o que para ele devia ser suficiente, Provavelmente, não acreditava que alguém fizesse o contrário do que ele mandava.
o campo apareceu finalmente através dos ramos dos pinheiros. Uma pequena cabana, com uma latrina separada, um abrigo com três paredes e um curral com quatro cavalos. Um trio de cães saiu a correr para os cumprimentar, a ladrar, a uivar e aos saltos de excitação em volta do cavalo e do dono. Rafferty não fez caso deles. Atou o cavalo a um poste e entrou na cabana sem um olhar na direcção de Mari.
A chuva intensificou-se. Mari deixou-se escorregar para o chão e deu uma corrida para se abrigar na cabana antes de o homem lhe fechar a porta na cara. Ao deitar a mão à porta, voltou a cabeça para a esquerda por acaso e deu de caras com uma cascavel.
Saiu-lhe da garganta um grito, e ela atirou-se para trás, com as mãos no coração. A cascavel estava enroscada e pronta a atacar dentro duma caixa feita de madeira e duas camadas de rede de capoeira. A gaiola era um cubo com trinta centímetros de aresta, pregada à parede da cabana à altura da cabeça e a trinta centímetros da porta. o animal parecia suficientemente grande para se enrolar à volta da gaiola várias vezes e era tão grosso como o pulso dela, às pintas castanhas e pretas, com uns olhos elípticos, brilhantes e vivos como azeviche. Deitava-lhe a língua de fora, com a cauda a tremer.
Que espécie de louco tinha uma coisa daquelas pregada à entrada de casa?
A porta abriu-se de rompante e Del Rafferty olhou para ela.
Deixe a minha cobra em paz. Entre para aqui, para onde eu possa vê-la.
Agarrou-a pelo pulso e puxou-a para dentro da cabana, fazendo-a passar pela cobra tão depressa que ela nem teve.. tempo de se preocupar em ser ou não mordida.
A cabana era formada por um único compartimento.
Tinha uma zona de cozinha com um fogão a carvão, um minúsculo frigorífico, uma mesa tosca e duas cadeiras. Os artigos necessários estavam dispostos em prateleiras - comida enlatada, temperos, latas de açúcar e farinha e latas de Dr,Pepper. Havia um lava-loiça com uma torneira e bomba de água. o resto da cabana era ocupado por um velho divã, uma estreita cama de ferro muito bem feita e uma dúzia ou mais de espingardas, limpas, polidas e alinhadas em suportes ao longo da parede do fundo.
Mari ficou a olhar para o arsenal, de boca aberta. As armas eram enormes e com aspecto mortífero, algumas com teleobjectivas de tamanhos e formas exóticas. Del Rafferty tirou do ombro a que utilizara para disparar na direcção dela, descarregou-a e límpou-a, ignorando-a por completo enquanto tratava do assunto. Mari pensou no modo como ele disparara contra ela, sem uma palavra de desculpa depois. Pensou em Lucy a cavalo dirigindo-se para o mesmo sítio.
Sheffield garantia que não a tinha visto. E Del Rafferty? Recuou para longe dele, com os olhos postos na cicatriz que lhe desfigurava o maxilar. Tocou com a parte de trás dos joelhos numa cadeira da cozinha e sentou-se abruptamente, colocando as mãos em cima da mesa, o que a levou a atirar com uma faca de caça pelos ares.
Sentiu o estômago dar uma volta como um cão morto quando se voltou e viu pela primeira vez as facas alinhadas junto duma pedra de amolar e uma lata de óleo «três em um. Del aproxímou-se, apanhou a faca de lâmina larga e letal e colocou-a fora do alcance dela, como se receasse que lhe danificasse o fio só por lhe tocar. o coração de Mari deslizou-lhe das amígdalas para o fundo da garganta.
Ligou para o Rancho dos Confederados por um rádio metido entre os temperos em cima do pequeno balcão da cozinha. As suas únicas palavras, ao estabelecer contacto, foram:
-Vem cá acima. Há uma mulher. Quero-a daqui para fora.
Depois, foi tratar do cavalo, deixando Mari sozinha com a sua imaginação.
Os cães de Del apareceram aos saltos pelas poças de água, a ganir. Zip saltou da cabina com um ladrido de boas-vindas para os amigos. Os quatro cães trotaram à volta do camião, a farejar e a urinar nos pneus. A chuva dirigira-se para o outro lado dos Absarokas, em direcção à cordilheira do Dente de Urso, deixando tudo a pingar e a brilhar; o ar enchia-se do aroma da terra; um milhão de insectos esvoaçava no ar e os pássaros cantavam belas canções primaveris.
Del veio da sombra do abrigo da madeira, pálido e irritado. Rugas de tensão atravessavam-lhe a testa e a cicatriz no maxilar puxava-lhe o canto da boca para baixo.
-Não a quero aqui - disse ele, contraído.
- Já somos dois - resmungou J. D. -Nunca se cala.
- Ela diz que é capaz de ficar silenciosa, mas eu ainda não dei por isso.
Del agarrou-lhe um braço com toda a força, olhando para ele com os olhos vidrados.
- Às vezes, ela é a outra - explicou em tom desesperado. - Não quero que a outra volte. Não quero gente aqui. Isto aqui é meu.
- Eu sei - respondeu J. D. em tom conciliador, dominando o seu próprio génio e voltando-se para olhar para o tio.
o coração caiu-lhe que nem uma pedra. Del encontrava-se numa das suas plataformas mentais. Em tempos, J. D. tinha pensado que estava prestes a atirar-se para o grande abismo - literalmente - mas depois julgara isso ultrapassado. o velho combatente havia muito tempo que passava razoavelmente. Gostava de estar ali sozinho - e as coisas corriam tão bem como podia esperar-se, dado o facto de a guerra lhe ter danificado a mente por completo. Tratava do gado quando este ia para a pastagem de Verão e o resto do tempo era passado com as suas espingardas e os seus cães.
As pessoas da cidade chamariam àquilo loucura, mas para ele era uma existência razoavelmente racional, melhor do que a que tivera no hospital para veteranos, melhor do que a que encontrara em incontáveis garrafas de uísque depois de voltar da guerra. Conseguira algum equilíbrio, mas esse equilíbrio estava a começar a desaparecer - graças a Mary Lee Jenings.
- Eu levo-a, e ela nunca mais cá volta. Prometo - disse J. D.
Del estremeceu e ficou a olhar para o sobrinho, com vontade de chorar como uma criança. Era uma vergonha: fraco, louco, uma carga para a família. A vergonha enrolava-se dentro dele com os fios de velhas recordações, medos e coisas do passado, do Vietname. Tudo aquilo muito bem enrolado no seu cérebro, como cobras a retorcerem-se e a morderem umas nas outras, impossíveis de separar. Tentara acalmar-se, tirar todas aquelas coisas más da cabeça, mas já não conseguia. Chegara a um ponto em que o punho mental da autoprotecção se fechara completamente sobre a pequena Parte da sua mente onde havia razão, enquanto as cobras lutavam e se retorciam e o coração lhe batia freneticamente. -E a outra? Não quero que a outra volte.
-Ela não vai voltar, Del. Morreu - disse J. D. com um pesado suspiro.
Del abanou a cabeça e virou-lhe as costas, a esfregar o disco de pele dura e lisa no maxilar, retirando os dedos molhados de saliva. A bala vietnamita que lhe desfizera a cara e fizera um buraco no crânio cortara nervos pelo caminho. Agora, babava-se como um idiota. Limpou o rasto de cuspo com a manga da camisa. o sobrinho não sabia que Os mortos lhe apareciam com regularidade e que os via muitas vezes nas árvores à noite, a andar por entre os troncos escuros - os cadáveres dos homens com quem combatera, os corpos podres dos homens que matara a tiro. A loira. As pessoas diziam que os mortos morriam e pronto. Não sabiam o que estavam a dizer.
- Quer que lhe mande cá o Tucker? - perguntou J. D., tentando esconder a resignação e a tristeza da voz com um tom prático. - Para termos a certeza de que está tudo pronto para quando for preciso mudar o gado cá para cima?
- Não - resmungou Del, a esfregar a cicatriz e depois a sua companheira escondida debaixo do cabelo grisalho. As vezes, sonhava que o alto de pele cosida era um parafuso que podia desenroscar para abrir a parte de cima da cabeça e deixar sair as cobras que morreriam à luz do dia.
- Não. Só quero ficar sozinho. Deixem-me sozinho.
Quando se voltou para a cabana, avistou Mary Lee a esconder-se atrás da porta entreaberta, e sua fúria surgiu con] toda a força. Avançou e abriu a porta com um puxão. Ali estava ela, com os olhos muito abertos e as pequenas mãos apertadas junto a uma enorme boca cor-de-rosa na frente duma camisola laranja.
Estendeu a mão na direcção dela, mas depois retirou-a e voltou a segurar a porta.
- Entre na carrinha e não diga uma palavra - ordenou por entre dentes.
Mari obedeceu sem protestar. Queria afastar-se de Del Rafferty e tinha muito tempo para discutir com J. D. depois de deixar a cabana para trás. Correu porta fora, passando pela cobra, parou para enrolar as pernas das calças e caminhou pela lama até à carrinha. Subiu e descalçou os sapatos de ténis sujos, atirando-os para a parte de trás. Com um breve sinal de mão, J. D. mandou Zip subir também para as traseiras do veículo e trepou para o lugar do condutor. Só falou quando começaram a descer o monte e o campo já estava escondido pelas árvores.
-Eu disse-lhe que o deixasse em paz.
-Você não é meu pai! Não pode dar-me ordens. Nem ele podia, se quer saber - respondeu Mari bruscamente. Olhou para ela, como se a mera ideia da sua desobediência fosse incompreensível.
- Eu disse-lhe que o deixasse em paz. Era a sério. Pensou que estava a falar só por gostar do som da minha voz?
- É claro que não sei por que motivo o disse. Você não se incomodou em explicar. Parece não lhe ter ocorrido dizer: «Olhe, a propósito, Mary Lee, não se aproxime do meu tio porque ele é tão bizarro que devia estar internado.»
As mãos de J. D. apertaram mais o volante, enquanto a carrinha saltava no carreiro dos madeireiros, e ele cerrou os maxilares e piscou os olhos com força, como se a raiva lhe dificultasse a visão.
- Não tem a mais pequena ideia do que fez!
- Do que eu fiz? Desculpe, mas foi a mim que ele tentou dar um tiro!
- Ele não quis dar-lhe um tiro. Se quisesse, estava morta neste instante.
- Como a Lucy? - As palavras saíram-lhe da boca antes de ter hipótese de as travar.
- Que raio quer você dizer com isso? - perguntou ele, com um olhar irritado.
- Que é que lhe parece? - explodiu ela. - o seu tio é Um psicopata com armas suficientes para invadir Cuba sozinho...
- Não é um psicopata.
- Deu-me um tiro. Julgou que eu era um cadáver falante...
- Ele tem problemas - admitiu J. D. contra vontade, enquanto lutava para controlar o volante. A carrinha resmungou um protesto quando meteu uma mudança e deu pequenos toques no travão, curvando para uma descida íngreme. - Eu disse-lhe que o deixasse em paz. Se me tivesse ouvido...
- Se você se tivesse dignado explicar...
- Eu não tenho de lhe explicar seja o que for! - berrou ele, com as feições alteradas pela raiva e a frustração que o invadiam. Detestava estranhos a meterem-se na sua vida, nas suas terras, na sua família. E detestava especialmente aquela, porque uma parte de si, que parecia não conseguir controlar, a desejava com toda a força. - Não lhe devo coisa alguma, senhora, está a ouvir? Você não é de cá...
- Por amor de Deus! Pare lá com essa merda do rei da montanha! - exclamou Mari em tom trocista, apoiando uma mão à frente, devido aos solavancos da carrinha. Estamos num país livre, alteza. E eu estou aqui e estou-me nas tintas para o que você gosta ou não gosta. A minha amiga morreu e vou descobrir por que motivo. Não me importo...
- Foi um acidente! Deus, por que é que não se contenta com isso? Foi um acidente. Aconteceu. Acabou. E fez-se justiça.
- Nem de longe! Não acho que uma multa e uma repreensão sejam justiça. E, francamente, há qualquer coisa nessa história de acidente que cheira tão mal como um esgoto a céu aberto.
- o que é que quer dizer com isso? - perguntou ele, aliviando o pé do acelerador e olhando para Mari com Os olhos semicerrados.
Ela abriu a boca para lhe responder, mas fechou-a sem querer, quando a frente da carrinha se ínclínou para baixo e pararam de repente. Chocou de lado com o painel de instrmentos e caiu de joelhos no chão. J. D. bateu com a cabeça no pára-brisas e endireitou-se, a praguejar. Meteu a marcha-atrás e tentou tirar o veículo do buraco, espalhando lama para todos os lados, mas a carrinha continuou presa.
- Boa - explodiu, descendo da cabina e atirando com a porta.
Mari abriu a do seu lado e desceu como pôde, esquecendo-se de que estava descalça, aborrecida com a interrupção da discussão. Cambaleou e dirigiU-se para a frente da carrinha aos tropeções, esforçando-se por não cair na encosta íngreme. A lama e as folhas mortas esparrinhavam-lhe debaixo dos pés. o cão saltou das traseiras e desatou a correr para as árvores a procura de aventuras, com um enorme sorriso no focinho.
- Bela maneira de conduzir, Rafferty! - troçou Mari. -Não comece, Mary Lee! Já estou suficientemente - disse J. D., levantando um dedo, a avisá-la.
- Você está danado? Deram-me um tiro, fui raptada, fizeram-me mijar de medo e passei a última hora a pensar se aparecia alguém para me salvar antes que o Rambo decidisse esfolar-me com uma das suas muitas facas, para fazer candeeiros com a minha pele. Se alguém aqui tem direito a estar danado, sou eu!
- E eu disse-lhe que parasse de me dar ordens! - gritou Mari, em resposta, apoiando as duas mãos no peito dele e empurrando-o com toda a força que arranjou.
Acabaram por parar num sítio em que o terreno se tornava plano mesmo antes duma enorme rocha coberta de musgo. Mari ficou por baixo; J. D. ergueu-se acima dela, apoiado nas mãos dos dois lados da cabeça dela.
Mari olhou para cima, com os olhos azul-claros desfocados, até que os piscou com força. Tinha folhas e pequenos ramos metidos no cabelo e uma nódoa negra a aparecer na cara. Com os lábios entreabertos, respirava com força. o desejo que não largava J. D. havia vários dias apertou impiedosamente o cerco.
o ar em volta deles pareceu ficar mais quente, impregnado dos maduros odores da floresta. Os olhares de ambos cruzaram-se e ficaram presos. J. D. moveu-se ligeiramente de encontro a ela. Mari reteve a respiração, abriu mais os olhos, mas não fez menção de protestar.
- Você põe-me doido, Mary Lee... - murmurou ele. Doido de desejo por ela. Todas as outras emoções que tinha sentido por ela... fúria, frustração, e outros sentimentos mais amáveis que preferia não nomear.. pareceram canalizar-se para o desejo, alimentando-o. Não interessava que fosse a pessoa errada para ele. Nada interessava, excepto o desejo. Faz-me desejá-la - pronunciou em voz rouca.
Mari começou a negar a acusação, mas calou-se. Sentia a erecção dele de encontro a si e achou que não valia a pena dizer a si própria que não o queria. Queria. Queria-o com todas as fibras do seu ser. o desejo explodiu-lhe no corpo, espantando-a. Não era do género de viver pelas hormonas e não se enfiava na cama com qualquer homem. E aquele punha-a tão furiosa como quente. Era teimoso, arrogante, arbitrário e casmurro. Lembrava-se de ter pensado que a atracção que surgira entre os dois só servia para sexo selvagem e entorpecedor.
Naquele momento, não conseguia ver que diabo havia nisso de errado.
- Não a quero por ca - murmurou ele, apoiando o corpo no dela. Colocou um cotovelo no chão e, com a outra mão, tirou-lhe o cabelo embaraçado da cara. A respiração acelerou-se-lhe ao sentir os seios dela de encontro ao peito.
- Não a quero aqui, mas desejo-a tanto que não aguento. Agora mesmo. Vai tentar impedir-me desta vez, Mary Lee?
Não era um desafio, era a sua última oportunidade. o momento pairou entre eles, trémulo de tensão. J. D. olhou para os olhos dela, à espera. Ela sentia perfeitamente a excitação dele, como sentia a sua. A sensível pele entre as pernas parecia latejar de desejo, ansiosa por senti-lo, e ele estava mais do que pronto para a satisfazer. Porque havia de tentar impedi-lo? E quereria?
Lentamente, abanou a cabeça.
Arrancaram a roupa um do outro. As molas da camisa dele abriram-se e as pequenas mãos dela apoiaram-se-lhe no peito, com os dedos entre a espessa mata de pêlo escuro. Daí, passaram para os rígidos músculos do ventre e voltaram para cima. Ele arrancou-lhe as duas camisolas ao mesmo tempo, quase sem interromper o beijo, e atirou-as para um arbusto. Então, os seios dela ficaram nus encostados a ele, e qualquer vestígio de razão desapareceu.
Mari arfou, ao sentir o corpo dele no seu. Estava a ferver, como se tivesse febre. Todos os seus nervos vibravam, tremiam, ao mais pequeno contacto. Sentia cada pêlo do peito dele a tocar-lhe nos mamilos. Continuaram a beijar-se e a apalpar-se, rolando pela pequena plataforma, ignorando a lama, as folhas, os ramos, cegos a tudo menos a paixão.
Ergueram-se nos joelhos e J. D. curvou-a para trás e colocou-lhe a boca num seio, brincando com a língua no mamilo e depois chupando-o com força, fazendo-a dar gritos desvairados. Os dedos de ambos encontraram-se no cós das calças dela, de volta do botão e do fecho.
As calças e as cuecas foram afastadas, as pernas abriram-se e a grande mão dele encontrou a carne mais delicada de Mari. Quente. Húmida. Ansiosa pelo toque dele. Abriu-lhe as pregas macias com as pontas dos dedos calejados e ela arqueou-se de encontro a ele, convidando, implorando.
Mari torceu-se e moveu o corpo para baixo e para cima, louca de desejo, desesperada por senti-lo dentro de si. Meteu a mão entre os corpos e agarrou-o, puxando-o, esfregando-o através do tecido das calças gastas, arrancando-lhe um Profundo gemido das profundezas do peito.
Arrastando a boca para os seios dela, beijou-a e mordisCou-a enquanto desapertava o cinto e lutava por se libertar do resto da roupa. Mari empurrou-o para trás, ficando de joelhos na terra macia, beijando-lhe o peito. Ansiosa por lhe agradar e por o torturar como ele lhe fizera, encontrou o botão castanho do mamilo masculino e apanhou-o entre os dentes, esfregando a ponta da língua suavemente dum lado para o outro. Afastou as mãos dele e lutou com o fecho das calças. Depois, baixou-lhe rapidamente as cuecas de algodão branco e teve-o nas mãos, duro e liso como uma vara de aço, quente, pesado e a latejar de vida.
Põe as pernas à volta de mim, Mary Lee - ordenou, gemendo depois quando ela obedeceu, puxando-o ainda mais para dentro.
Mari fechou as coxas em volta das ancas dele e os braços em redor das costelas arfantes, encostando-lhe a cabeça ao ombro para a cavalgada. Já não conseguia identificar sensações individuais e não havia palavras para o lugar para onde ele a levava. o paraíso fora encontrado naquele primeiro momento de união, mas ele levava-a para lá do paraíso, para um território desconhecido, a uma velocidade que a deixava sem respiração. o calor envolvia-os. Sentia-se a arder de felicidade. Cada movimento tocava num ponto dentro de si que nenhum outro homem conseguira encontrar.
A segunda explosão foi ainda mais incrível do que a primeira. Por detrás das pálpebras, ficou tudo branco. Ouviu-O gemer e sentiu-o enterrar-se uma última vez e vIr-se num jacto quente. Depois, o espaço e o tempo deixaram de existir.
A consciência foi voltando mais tarde, uma fina camada de cada vez. Estava a respirar, tarefa que lhe ocupou a concentração durante vários momentos. Quando pensou que já a dominava, tratou de abrir os olhos. As pálpebras pareciam pesar-lhe trezentos gramas cada e precisaram de incrível força mental para erguer. Quando conseguiu, estava a olhar para uma orelha de J. D., que jazia em cima dela, imóvel.
-Ainda estamos vivos? - perguntou, admirada.
Ele ergueu-se lentamente, com o peito a ofegar. Tinha bocadinhos de folhas mortas presos aos pêlos do peito. Mari estendeu a mão e sacudiu-os suavemente, concentrando-se na tarefa, a adiar o inevitável.
Deus do Céu! Estavam no meio dos bosques, nus, deitados num tapete de folhas mortas. À volta deles, a vida dos montes continuava como habitualmente. Um gaio gritou da copa duma árvore por cima deles e uma outra ave cantou alegremente. Um esquilo vermelho passou por eles a correr Zip saltou de entre duas pequenas árvores e foi atrás deles saltando graciosamente por cima do corpo deitado do dono. J. D. sentiu-se invadir pelo embaraço. Nunca perdia o controlo com uma mulher. Nunca. Já em adolescente, conseguia dominar a lascívia com pulso de ferro. Era uma questão de honra, parte do juramento que fizera anos atrás. Incomodava-o pensar que pudesse esquecer as duras lições no tempo que demorava a desapertar as calças.
Mary Lee olhava para ele naquele momento, vigiando-o cuidadosamente. Mary Lee, a forasteira. Mary Lee, herdeira do trono de Lucy MacAdam.
Meu Deus, Raferty, em que é que estavas a pensar? Afastou-se dela, puxando as calças para cima e tentando desajeitadamente fechá-las. Mari observava-o com um frio e duro nó de pavor a formar-se-lhe no estômago. Ocorria-lhe, tarde de mais, que era aquilo que estava errado no sexo selvagem e entorpecedor. No fim, quando a novocaína da excitaÇão ia deixando de fazer efeito, ficava-se com as dores e Os problemas que já existiam. Rafferty não a queria na sua preciosa montanha. Não conseguia olhar para ela sem ver Lucy e Bryce e todos os outros que estavam a tentar roubar-lhe a terra natal.
Suspirou e estendeu a mão para a bola de várias cores que era a sua camisola. Pôs as mangas do direito e vestiu a camisola de algodão de mangas curtas e a de mangas compridas num só movimento. Depois, sacudiu o cabelo e tentou tirar as folhas e os ramos com os dedos.
-Bom, foi divertido enquanto durou - disse, em tom seco.
Os olhares dos dois cruzaram-se. Os olhos dela estavam límpidos e enormes, como pedras preciosas debaixo das sobrancelhas escuras, e a boca, num suave arco vulnerável, tinha os lábios inchados dos beijos dele. Um sentimento de posse invadiu-o e não foi capaz de o travar. Estendeu os braços e puxou-a para si, com o olhar preso no dela.
-Se achas que isto acabou, é melhor pensares outra vez, Mary Lee.
-Não acabámos? - perguntou ela, piscando os olhos, sufocada com as perspectivas abertas pelas palavras dele.
- Nem de longe! - J. D. baixou a cabeça e acariciou-lhe a cara com a boca, mordiscou-lhe o pescoço e a orelha. Deslizou a mão pelas costas dela até ao traseiro nu, com os dedos a agarrar e massajar uma nádega redonda. Puxou-a bem para si e gemeu baixinho quando sentiu a excitação de novo entre as pernas. - Que raio, só começámos a tratar do assunto...
o problema da carrinha foi resolvido. Ao regressarem à quinta de Lucy, Clyde, o macho traidor, foi tratado. Na banheira do quarto de hóspedes, tratou-se da lama. E depois trataram um do outro.
Mari sentia-se estranhamente envergonhada com ele, apesar de tudo. o tempo que passou ajudou as reservas a tomar raizes. Que significaria aquilo? Aonde os levaria? Não se permitiu uma resposta. Queria viver o momento. Queria pôr de lado a confusão de perguntas, dúvidas e receios, e existira apenas segundo os instintos por algum tempo.
A escorrer água, dirigiram-se ao quarto de hóspedes. Caíram em cima da cama, sem reparar nos rasgões no colchão e lençóis, ou em qualquer coisa que não fossem eles Próprios. A tarde apresentava-se cinzenta e o quarto envolto em sombras que suavizavam o caos deixado pelos vândalos. Lá fora, outra trovoada passara pelo vale acompanhada de chuva, vinda dos lados da Gallatin e deixando a chuva, que batia no telhado e na clarabóia por cima da cama.
Mari sentia-se mais selvagem do que o tempo, sem qualquer controlo sobre si própria, como se o corpo lhe tivesse adquirido uma vontade independente, a compensar todo o tempo que perdera curvando-se perante as expectativas dos outros. As sensações eram excitantes e assustadoras, sobrepondo-se a todo o pensamento. Entregou-se-lhes e entregou-se a J. D.
Ele beijou-lhe o corpo da cabeça aos pés, demorando-se na curva da cintura, na anca, no ponto mais sensível logo acima do monte de caracóis, nas suas virilhas. Mari gemeu com uma mistura de prazer e frustração, tentando conduzi-lo mais para baixo, mas J. D. tinha outras ideias. Deslizou o corpo para junto do dela numa longa e maravilhosa carícia, enterrando-lhe a cara na curva do pescoço e murmurando palavras quentes junto do ouvido.
A arder de desejo, Mari tomou a iniciativa, partindo para uma exploração do corpo dele. Tinha uma constituição poderosa, um corpo de homem que toda a vida fizera trabalho árduo. Belo era um adjectivo demasiado feminino e interessante demasiado civilizado. Masculino. Totalmente masculino. Com ombros suficientemente fortes para carregar o peso do seu mundo. Um peito largo e saliente coberto de pêlos pretos. Um ventre rígido de músculos. As coxas e barrigas das pernas dum cavaleiro.
Era forte, musculoso e com algumas cicatrizes. Mari beijou-as, desejando dar-lhe conforto e suavidade, sabendo que ele receberia só o que queria - o corpo dela.
Apenas sexo, dizia J. D. para si próprio, é apenas sexo. As palavras soavam-lhe na mente, uma e outra vez, numa garantia que não tornava a necessidade menor nem a urgência mais comedida. Nem sequer afrouxava a tensão no seu âmago.
Envolveu-a nos braços, gemendo ao sentir-lhe os seios, a seda da pele, espantado com a sensação de exactidão, de estar bem dentro dela. Algures no seu coração desconfiado. pensou vagamente que não devia permitir-se aqueles sentimentos. Mas, depois, os pensamentos foram ultrapassados pelas sensações e absorvidos pelo instinto.
Os olhares prenderam-se um no outro. Moviam-se em simultâneo.
Acima deles, ribombavam os trovões e a chuva batia na clarabóia. Nada disso tinha importância. Só aquele ritual velho como o tempo, Só ela a receber a essência do que o tornava masculino bem no fundo da sua parte mais feminina.
Para o precipício. Numa queda livre. E depois, a calma, dentro e à volta deles.
Mari abriu lentamente os olhos. Estava deitada ao lado dele, com a face comprimida de encontro ao seu ombro e uma perna entrelaçada na dele. J. D. tinha um braço à volta do seu corpo, sem a apertar. A claridade no quarto diminuíra até à textura granulosa duma fotografia a preto e branco insuficientemente exposta. A chuva continuava a deslizar pelas paredes de toros e a cair na clarabóia. Era o único som. Tranquilizador. Melancólico.
o dia aproximava-se da noite. Mari não fazia ideia das horas nem de quanto tempo teria passado. Não sabia se ele estava ou não acordado. A respiração era profunda e regular. Não pronunciava uma palavra. Flectiu os dedos da mão esquerda e mergulhou-os nos rijos pêlos escuros que cresciam no peito dele. As batidas do coração eram lentas e regulares.
Em que estaria ele a pensar? o que sentiria? o que significaria aquilo para ele?
Não lhe perguntava, por medo da resposta. Não queria ouvi-lo dizer, no mesmo tom impiedoso que usara na noite em que se haviam conhecido: Tínhamos sexo. A amizade não entrava nisso.
Seria só isso para ele? Uma libertação. Como satisfazer uma comichão.
E quereria ela que significasse mais?
Essa era a pergunta do milhão de dólares. Era suposto estar a viver o momento, sem olhar para um futuro com um homem que mal conhecia. Não eram exactamente um par feito no céu. Ele era teimoso e mulherengo, convencido de que ela nada tinha ali que fazer.
Sentiu-se invadir pelo sofrimento como se estivesse a lavar velhas feridas que não saravam com água salgada. A única coisa que sempre quisera tinha sido pertencer. A única coisa pela qual sempre ansiara tinha sido um sítio onde pertencesse. Ele não a deixava encaixar na sua vida, nem para lá daquilo. Ia deixá-la do lado de fora, a espreitar para dentro. Ia entrar e sair da vida dela quando quisesse, mas não a queria na dele.
Dissera a si própria que ia viver o momento, flutuando no estranho mas essa não era a sua natureza. No fundo do coração, queria mais, e sempre quisera mais.
Saiu-te o tiro pela culatra, Marilee.
A solidão que a invadia era gelada e atingia-a na alma.
- Tens frio? - A voz dele era profunda e suave como veludo.
Mari mordeu o lábio e acenou com a cabeça, sentindo-se à beira das lágrimas. Ridículo. Não tinha de que chorar. Engoliu com esforço o nó que sentia na garganta, quando J. D. puxou a colcha em farrapos para cima dela.
- Estás calada, demasiado calada - murmurou ele. Depois, meteu-lhe a mão debaixo do queixo e levantou-lhe a cara. Mari sentou-se e desviou-se, mas não sem que ele visse os seus enormes olhos luminosos com lágrimas. o espectáculo atingiu-o no estômago com toda a força dum coice.
- Mary Lee? o que foi? Fui bruto? Magoei-te? -Não. -Ainda não. Levantou-se, quando ele estendeu a mão para ela, e as pontas dos dedos de J. D. apenas lhe roçaram as costas nuas.
Aquele quarto já vira a sua quota de acção com os vândalos. As roupas que tinham ocupado o roupeiro estavam espalhadas pelo chão. Mari descobriu um roupão de turco junto aos pés da cama, apanhou-o e enfiou-o. Ficou completamente coberta, com as mangas muito além das pontas dos dedos. óptimo. Queria fechar-se num casulo, isolar-se. Prendeu o cabelo atrás da orelha e encaminhou-se para a janela, onde ficou a olhar lá para fora, para a encosta encharcada pela chuva e para a crescente escuridão. J. D. observava-a da cama. Sentiu o olhar dele, firme, poderoso, obrigando-a a voltar-se. Como não o fez, ele levantou-se e aproximou-se dela, completamente despreocupado com a sua nudez.
- Estava a pensar na Lucy. A pensar se tu alguma vez... se alguma vez tinham estado juntos neste quarto... disse ela, sentindo-se completamente desprotegida.
-A Lucy nada tem a ver connosco.
- Enganei-me. Esqueci-me de que não era uma coisa pessoal. Que era apenas sexo.
-Já te disse que não vou fingir que gostava dela.
- E de mim, J. D.? Vais fingir que gostas de mim? - perguntou Mari, olhando para ele, demasiado orgulhosa, demasiado magoada, de queixo estendido.
Ele praguejou baixinho.
- Que vem a ser isto, Mary Lee? Queres uma promessa minha? Queres palavras bonitas? Enganaste-te no vaqueiro. Ela abanou a cabeça e tornou a olhar pela janela. Não tinha o direito de pedir mais do que o que ele lhe dera. Era crescidinha e soubera desde o princípio o que ele queria. Fora bem claro e não tinha culpa de que o momento de auto-revelação dela tivesse chegado tarde de mais.
- Por amor de Deus, Rafferty! Foi uma semana difícil, sabes? - disse ela baixinho,
- Cansada? - perguntou, encostando-lhe os lábios à fronte.
As lágrimas ardiam-lhe nos olhos. Ele não fazia ideia de como estava cansada - cansada de ser a eterna inadaptada, cansada de se sentir confusa. Viera para o montana para descansar, para rejuvenescer, para passar uns tempos com uma amiga. Em vez disso, enfrentava testes de força e resistência. Sentia os nervos à flor da pele, expostos. A amiga tinha morrido e não sabia bem por que motivo. E não sabia se queria saber.
No entanto, as perguntas não iam desaparecer, porque não havia qualquer outra pessoa para descobrir as respostas, e mais ninguém se preocupava.
-Estas férias são o diabo para uma pessoa, sabes? As palavras pouco passaram dum murmúrio rouco através do nó de lágrimas na garganta dela.
- Anda cá - segredou J. D., voltando-a para si. Amparou-lhe a cabeça no peito, com os dedos emaranhados na cabeleira rebelde. Esfregou-lhe as costas e falou-lhe baixinho, sentindo o coração apertado com o som das lágrimas dela. Não interrogou a ternura que lhe fez doer o corpo como um vírus; ignorou-a. Não tinha qualquer significado. Era apenas um momento no tempo.
Um momento que não teria dado a Lucy MacAdam ou a qualquer mulher antes dela. Um momento que uma parte desconhecida dele queria que se prolongasse para sempre. -Apanhaste-me sem lenços - disse ele.
Mari fungou e deu uma gargalhada, espantada por ele se sair com um sentido de humor quando ela mais precisava dele.
-Não faz mal - respondeu, limpando o nariz à manga. - o roupão não é meu.
Ele pegou na ponta da manga e limpou-lhe suavemente as lágrimas da cara.
- Calculo que tenhas queimado o teu num gesto simbólico contra o pano turco.
-Outra piada! Cuidado, Rafferty, vais-te esgotar. Deitou-lhe um olhar cínico. - Estás a ser muito simpático. Qual é a tua?
- Acho que estou em dívida para contigo - respondeu ele, rodeando a verdade. - o meu tio disparou contra ti. Tu não devias ter ido lá, depois de eu ter dito que não fosses ` mas não me parece que merecesses apanhar um cagaço daqueles.
-A tua compaixão é esmagadora.
Ele não sorriu perante o sarcasmo. Estudou-lhe a expressão, levantando a mão para tocar na nódoa negra.
- Fizeste isto quando caíste do macho?
- Essa e mais umas quantas. Suponho que devo estar agradecida por não ter partido o pescoço.
Deves estar agradecida por o Del não ter querido matar-te. As palavras passaram-lhe pelo cérebro, mas J. D. não as pronunciou, assim como guardou para si a sensação de pavor que sentiu.
-Ele só quer que o deixem em paz - observou. A guerra deu cabo dele, destruiu-o mentalmente.
-Não devia estar num hospital?
- E esteve, durante uns anos. Mas o estar fechado quase o matou. Os médicos não foram capazes de o ajudar. Não lhe ligaram importância. Acabei por o trazer para casa. E família. o lugar dele é na quinta.
- Isso é assim? Uma data de gente não gostaria de o ter por perto. Ou da responsabilidade.
- Bom, pois é, isso é o que está mal neste país. As pessoas já não têm integridade nem sentido de responsabilidade.
Excepto J. D. Rafferty. o pensamento provocou uma onda de ternura em Mari. J.D. Rafferty, o último herói vaqueiro, o último homem honesto. Possuía um código de honra e um estilo de vida que tinha morrido em toda a parte excepto nos filmes do Clint Eastwood. Era um homem duro e não seria inteligente romantizá-lo. Mas depois pensou nele a tirar o tio dum inóspito hospital de veteranos de guerra. Não podia ser mais do que adolescente na altura e, no entanto, assumira a responsabilidade. Como assumira a responsabilidade pelo rancho. Pensou no que o velho Tucker lhe tinha contado, na criança que ele nunca fora, no homem que se tornara e na vulnerabilidade que não mostrava aos outros. Pensamentos perigosos. Tão perigosos para o seu coração como Del Rafferty fora para a sua saúde e bem-estar.
- Assustou-me, J. D. Não só quando disparou sobre mim. E se ele matou a Lucy? - perguntou suavemente. -Não matou.
-Como é que podes ter a certeza?
Não podia, realmente, mas mais depressa morria do que o confessava. Uma parte de si morrera só de pensar nisso. Del era família. Os Raffertys uniam-se contra tudo e contra todos. Lucy desaparecera e nada mudaria isso.
- Deixa isso. Foi um acidente, Mary Lee.
Todavia, ali parados a olhar para a chuva lá fora, cada um com os seus pensamentos, nenhum deles acreditava realmente naquilo.
Ainda embrulhada no roupão turco, Mari ficou na entrada a vê-lo afastar-se na carrinha para a escuridão. Um espesso nevoeiro cobria a terra, cinzento-claro, fantasmagórico. Rondava os troncos das árvores como fumo e atravessava o pátio da quinta. Mari embrulhou-se melhor no roupão demasiado grande e estremeceu. Podia parecer romântico enquanto ele estava ali. Sozinha, era simplesmente fantasmagórico.
Os pensamentos voltavam-se sempre para Del Rafferty, a viver sozinho na encosta do monte. Del e as suas espingardas. Del e as suas visões. Não gostava de loiras. Não gostava de desconhecidos. Olhando lá para cima para as árvores na encosta, pareceu-lhe sentir o olhar atormentado do homem poisado nela. Imaginava-o a fazer pontaria com a ajuda da teleobjectiva. Teria ele visto Lucy da mesma maneira?
Com o estômago a resmungar - de ansiedade e fome voltou para dentro de casa. Precisava de arranjar outra roupa e de ir até à cidade. Por mais sossegado que achasse aquele sítio durante o dia, não apreciava a ideia de ficar ali sozinha à noite com a cabeça cheia de pensamentos de loucos. Preferia o quarto na estalagem, não só pela segurança mas também porque ainda não aceitara o facto de a quinta lhe pertencer. Não conseguia aceitar o presente nem conseguia ver por que motivo o mereceria. Não via qual seria a segunda intenção da amiga.
Encontrou umas calças de ganga um tamanho abaixo do seu, uma camisola de mangas curtas três tamanhos acima e um par de Keds que lhe estava bom. Não era a última moda, mas ninguém no Burger King devia protestar. Desceu a escada e dirigiu-se à porta da frente com visões de cheeseburgers de bacon a dançar-lhe na cabeça. Mas, quando deu a volta no fundo da escada, olhou para a porta rebentada do escritório e outra confusão de perguntas lhe distraiu a atenção. Perguntas com nomes. MacDonald Townsend. Ben Lucas. Evan Bryce.
Passou por cima dos vidros partidos e acendeu um candeeiro de latão que tinha escapado aos vândalos. A secretária estava destruída, rebentada pela águia de bronze com que lhe haviam batido. Mais uma planta morrera lentamente, arrancada do vaso. A máquina de estenografar que Lucy tinha guardado como recordação estava direitinha numa coluna de carvalho perto da grande janela. Um monumento à sua vida anterior. o chão estava cheio de papéis arrancados dum arquivador. Coisas sem importância - garantias, títulos de propriedade, apontamentos sobre lamas e declarações de impostos.
Os livros tinham sido tirados das estantes da parede do fundo e estavam espalhados pelo chão de pinho. o olhar de Mari percorreu os títulos e os nomes dos autores distraídamente. o gosto de Lucy ia de histórias passadas em tribunais e novelas escaldantes a o Príncipe das Marés. Viu livros de Direito e livros para melhorar o desempenho sexual. Ao lado das Intimidades Compartilhadas, viu o Anuário Martindale-Hubbell de Advogados.
Martindale-Hubbell. Não entras para o Anuário Martindale-Hubbell, mas o meu nome perdurará na infâmia...
Aquela linha da carta de Lucy não lhe saía da cabeça. Apanhou o livro do chão e folheou-o. Terceiro volume, com os nomes dos advogados da Califórnia de P a Z. Na estante, viu outro volume, o nono, que incluía nomes de seis estados - montana e cinco que começavam por N. Nada de extraordinário em qualquer deles, Eram os volumes normais, encadernados em tecido cor de mostarda com os títulos em doirado. Por dentro, as habituais listas de perfis profissionais, biografias, serviços.
A obra toda seria formada por quinze volumes, mais os índices, mas Lucy não teria qualquer interesse nisso. E Mari nem tinha a certeza do motivo que a fazia possuir o volume referente ao estado do montana, uma vez que abandonara a profissão antes de se mudar para lá. Esperaria encontrar só os dois gordos volumes com os nomes dos milhares de advogados que infestavam a Califórnia.
Dois volumes.
Então onde está o de A-0?
Procurou debaixo dos móveis, nas cinzas frias da lareira, debaixo das gavetas da secretária que tinham sido tiradas e despejadas no chão. Não viu sinal do segundo volume do Martindale-Hubbell, Califórnia A-0.
Olhou em volta, para a total destruição, e começou a sentir um frio a formar-se-lhe no estômago. E se aquilo não tivesse sido vandalismo? Se não tivesse sido um bêbedo do Inferninho que tivesse arrombado a porta do escritório de Miller Daggrepont? Daggrepont era advogado de Lucy. De Lucy, que conhecera segredos de pessoas poderosas.
Todos temos a nossa missão nesta vida. A minha era ser um espinho cravado em patas abastadas...
Pensou na quinta, nos lamas, na fortuna, em roupas espalhadas no chão do quarto, nos carros na garagem. Dinheiro, Onde tinha ela arranjado tanto dinheiro?
Só uma resposta fazia algum sentido. Uma lógica terrível que permitia as peças do quebra-cabeças encaixarein no seu lugar.
Chantagem. Mentalmente, via a amiga com o seu secreto sorriso cínico e os olhos a brilhar de divertimento sardónico.
-Ai, meu Deus, Lucy, o que é que foste fazer?
Miller Daggrepont era um homem que sabia como e quando aproveitar uma oportunidade. Sabia o valor da paciência e as vantagens de não se ter remorsos. Era um homem de muitos talentos e esquemas, nenhum deles demasiado grande. Os talentos eram apenas os suficientes para lhe permitir navegar pelos pequenos labirintos dos esquemas. Os lucros não eram enormes, mas iam crescendo.
Durante anos, vinha-se apropriando de dinheiro de fidelcomissos e propriedades. Ninguém lhe fazia perguntas, Nunca tirava muito de cada conta. No seu coração desonesto, considerava os seus lucros ilícitos como «gratificações». Um advogado num sítio como New Eden no montana não ganhava muito mais. A maioria dos seus clientes fazia parte dum grupo de fazendeiros cuja riqueza estava presa à terra, ao gado e a máquinas agrícolas. A nova riqueza do vale do Eden viera equipada com os seus próprios advogados. Miller só tratava de divórcios e de um ou outro caso de herança suspeita. E tinha as suas «gratificações». E os seus esquemas.
Olhou para a mulher do outro lado da secretária coberta de papéis e sorriu-lhe. Ela já tinha metido uma razoável quantia no seu mealheiro, sem sequer suspeitar. o cérebro avarento do advogado zumbia com ideias do que mais ela Podia dar-lhe.
- Olá, minha menina! - exclamou ele, batendo com as Mãos gordas no pouco do tampo da secretária que aparecia através dos documentos a precisarem de ser arquivados e dos anzóis e carretos. - o que é que a traz cá numa noite como esta? Está um horror lá fora, não está? Já decidiu vender a propriedade?
Mari fez um sorriso forçado. Os olhos do homem por detrás das lentes de fundo de garrafa produziam um efeito especial nojento, mas não conseguiam esconder o brilho da ganância.
-Não, ainda não.
- Bom, olhe que basta uma palavra e eu tomo conta da trapalhada toda.
- Obrigada. o senhor é muito... - Oportunista, explorador. parecido com um abutre -... diligente. Daggrepont tomou aquilo como um cumprimento.
- Ainda estou em estado de choque, para dizer a verdade - continuou Mari. - Ainda não consigo pensar nas terras. Há tantas perguntas sem resposta... Eu ia a passar e vi que tinha a luz acesa, de maneira que pensei em entrar para ver se pode responder-me a algumas delas.
o homem franziu a testa e esfregou o terceiro queixo com os dedos semelhantes a salsichas.
- Que género de perguntas? Financeiras?
- Mais ou menos. - Procurou onde se sentar e acabou por instalar uma porção mínima do traseiro numa cadeira já ocupada por uma enorme pilha de revistas Life e uma caixa de sapatos cheia de antigas medalhas militares. Pôs a caixa no chão e encostou-se às revistas. - Pensei que talvez soubesse alguma coisa da herança que a Lucy recebeu antes de se mudar para cá.
- Lamento, mas não posso ajudá-la aí, minha menina. Não estava dentro desse assunto. Ela mandou-me preparar o testamento e nomeou-me seu executor, mais nada.
- E não disse o motivo? Quero dizer, era nova, saudável e nada o género de pessoa dada a planos desse tipO. -Possuía terras e animais. Tinha dinheiro no banco.
É a maneira certa de pensar! - exclamou o homem, olhando para o tecto. Depois, apertou os olhos e dirigiu-os para Mari. - Também devia pensar nisso. Teria todo o prazer em tratar do assunto. Tenho aqui o modelo...
-Neste momento, não - interrompeu Mari, fazendo parar a busca. - Mas obrigada.
Ele ficou a olhar fixamente para ela, com as mãos gordas cheias de linha de pesca e a mente a calcular quanto seriam os honorários.
-Bom, a senhora é que sabe... -Talvez mais tarde.
Suspirou e olhou em volta. Tinha sido um tiro no escuro, mas, como nada conseguira, percebeu que estava à espera que o homem fosse qualquer coisa que não cronicamente esquisito. Observou as prateleiras cheias de volumes legais, catálogos de preços para coleccionadores e catálogos de compras.
- Sabia alguma coisa sobre as finanças dela? - Que diabo esperas tu que o homem diga, Marilee? Se a Lucy era chantagista? Claro, minha menina, evidentemente que era!
- A que se refere? - perguntou Daggrepont, olhando-a de lado.
- Bom, ela parecia ter muito mais dinheiro do que quando eu me dava com ela. Gostava de saber como foi que isso aconteceu.
o rasgado sorriso que apareceu na cara do advogado deu-lhe um ar de buda em estilo vaqueiro, o buda com um cordão a fazer de gravata e cabelo à Don King. A imagem não perturbou Mari, o que a fez perceber como estava decidida a tudo.
-É a primeira cliente que alguma vez se preocupou com o facto de ficar com demasiado dinheiro! - E deu uma enorme gargalhada que fez tremer as teias de aranha do tecto.
-Não, é apenas curiosidade, mais nada. A Lucy e eu perdemos mais ou menos contacto durante o último ano.
- Que pena!
- E, bom... - Levantou-se e, nesse momento, reparou na colecção do Anuário Martindale-Hubbell. Parecia ter o nono volume desde o tempo de Moisés. E também os volumes que incluíam Idaho e Wyoming. Mas não o Califórnia A-0. - Olhe, doutor Daggrepont, a Lucy não deixou mais qualquer coisa para mim que o senhor tenha esquecido, pois não? Ela falou num livro na carta, mas não o encontro.
Daggrepont franziu a testa e levantou-se, com as molas da cadeira a gemer de alívio.
-Não, senhora, nenhum livro. Se tivesse deixado um livro, eu já lho teria dado. Não sou o género de advogado Sem escrúpulos que fica com coisas que não lhe pertencem.
Emprestou-lhe um guarda-chuva que devia ter uns trinta anos, para ir até ao carro. Mari lutava para fechar aquele objecto quando um velho Cadillac cor-de-rosa parou ao lado do seu Honda e Nora Davis abriu a janela e gritou para se fazer ouvir por cima da chuva.
-Olá, Mary Lee, vamos para os copos!
O guarda-chuva voltou-se. Parecia ser um sinal.
O Inferninho era um oásis de vida numa noite posta de lado devido ao tempo. Luzes ambarinas brilhavam dando as boas-vindas e um grupo folclórico cantava, sobrepondo-se ao ruído de fundo dos jogos de bilhar e das gargalhadas.
Nora esgueirou o carro por entre duas carrinhas não muito longe da entrada do bar.
-Não tem medo que lhe amolguem o carro? - perguntou Mari, sustendo a respiração para conseguir sair. Nora deu uma gargalhada, enquanto corriam para fugir à chuva.
- Querida, não há um vaqueiro que queira ficar com tinta cor-de-rosa na carrinha. É a vantagem de ter um velho carro, o Mary Kabile, como eu lhe chamo. A minha mãe ganhou aquele monstro a vender creme milagroso a velhotas em Bozeman. Chupa gasolina que se farta e gasta uma lata de óleo aos mil e quinhentos quilómetros, mas não há um macho no Montana capaz de o roubar ou de lhe fazer uma amolgadela!
-Você é uma maravilha, Nora - disse Mari.
- Não o esqueça, amiga - respondeu a rapariga, sacudindo o cabelo frisado e rindo.
A rir e com um braço por cima dos ombros uma da outra, entraram no bar.
A chuva tinha empurrado os vaqueiros cedo para a cidade, e a maioria ia já a caminho duma bela ressaca. Ficavam contentes por ver entrar mulheres desacompanhadas, e soaram gritos quando Nora e Mari entraram. Todos conheciam Nora, que apreciou o momento de glória, acenando aos amigos, gritando olás e graças, enquanto avançava por entre a multidão em direcção a uma mesa. Tinha trocado a sua farda de empregada de mesa por uma camisola de algodão de mangas curtas muito apertada com a cara de Garth Brooks no peito magro e calças de ganga ainda mais justas, que lhe, realçavam as amplas ancas e desapareciam dentro dos canos dumas botas de vaqueiro vermelhas de salto alto.
Pediram cervejas e Mari também um hambúrguer «com todos» e ainda com rodelas de cebola fritas.
Nora ergueu as sobrancelhas bem depiladas. -Está a comer por dois, querida?
- Ainda não comi desde o pequeno-almoço e agora estou cheia de fome.
- o que é que andou a fazer todo o dia? A montar cavalos bravos?
-Mais ou menos - disse Mari, afastando o olhar, na esperança de que o calor do bar explicasse o rubor da cara. Conhecia vários bares daquele género, não pela qualidade das bebidas ou pelos fulanos rudes, mas sim pela música. Tocava-se muita música boa em sítios como o Inferninho. Numa parede, um cartaz anunciava a vinda duma banda chamada Cheyerme para o fim-de-semana seguinte. Pensou se seria capaz de convencer J. D. a ir ali ouvi-la com ela, mas quase deu uma gargalhada. Convidá-lo para sair. Que faria ele se uma mulher o convidasse para sair? Seria coisa que se fizesse no montana? o código dos vaqueiros exigir-lhe-ia provavelmente que se suicidasse.
Nora começou a relatar quem era quem, apontando para um e outro vaqueiro, para o mecânico da oficina John Deere e para a melhor cabeleireira lá do sítio. Mari foi fixando as caras das pessoas, os seus sorrisos e as suas gargalhadas, tudo o que lhes dizia respeito, e guardou as imagens na cabeça para uso futuro. Absorveu o ambiente do bar, o cheiro da cerveja e dos cigarros, dos fortes corpos masculinos e do perfume.
Os Bravos jogavam basebol no aparelho de televisão enfiado numa prateleira por cima do bar, e a assistência apupava-os com entusiasmo. Ted Turner não era popular por aqueles sítios. Comprara a maior parte do vale vizinho e declarara imediatamente a terra vedada aos caçadores locais. Depois, vendera o gado e substituíra-o por búfalos, enfurecendo todos os criadores de gado da região, que receavam que os animais transmitissem doenças aos seus.
Pelos altifalantes, Alan Jackson gritava sobrepondo-se ao ruído da sala: «Não abanem a máquina de discos.» Meia dúzia de pares agitava-se pela pequena pista de dança, torcendo-se e rodopiando, tentando impressionar-se uns aos outros num ritual velho como o tempo.
Em volta duma velha mesa de pingue-pongue a um canto da sala, uma multidão apinhava-se junto de máquinas de jogos.
- Estão a preparar-se para começar as corridas de ratos! exclamou Nora, excitada. - Vamos!
Atravessaram a sala num instante, e Mari esgueirou-se entre os vaqueiros para ver melhor. As apostas choviam, enquanto os corredores eram exibidos por cima da multidão. Um rato chamado Pink Floyd era o favorito, mas Mari apostou no Rato da Guerra e gritou a plenos pulmões com o resto dos espectadores, quando as minúsculas portas da partida se abriram e os animaizinhos começaram a louca corrida para uma recompensa de manteiga de amendoim e queijo rançoso.
o Rato da Guerra ficou um nariz à frente do Godzilla. o Pink Floyd saltou a vedação e tentou fugir, escapando milagrosamente às pesadas botas dos seus perseguidores e acabando por desaparecer debaixo duma máquina de pôquer encostada à parede.
Mari recebeu os seus ganhos e voltou para a mesa precisamente quando a comida ia a chegar. Nora interceptou um vaqueiro que passava e arrastou-o para a pista de dança quando Hal Ketchum desatou a anunciar pelos altifalantes: «Os Corações Vão Rolar!»
o hambúrguer era delicioso. Mari enterrou os dentes na iguaria, fechou os olhos e gemeu apreciativamente. Duzentos e cinquenta gramas da melhor carne de vaca do Montana num fofo pãozinho que mal conseguia abarcar com as duas mãos e queijo derretido a escorrer-lhe pelos dedos.
-Nunca vi uma mulher comer como você, Mary Lee. Como é que mantém essa linda figura?
Will deslizou para o banco diante do dela e bateu com uma garrafa de cerveja no tampo da mesa. Pelo aspecto, não devia ser a primeira. Tinha um brilho enevoado nos olhos azuis e o sorriso incorrigível meio de banda. o cabelo escuro caía-lhe para a testa. Tirou uma argola gigante de cebola do prato dela e deu-lhe uma dentada, exibindo os seus belos dentes brancos.
-Faço exercício.
- Com o J. D.? - perguntou ele com ar superior.
- Um cavalheiro não faz uma pergunta dessas - respondeu Mari, sem pestanejar.
-Não há um único cavalheiro por aqui - disse Will,semicerrando os olhos e observando em volta. - Nem nas redondezas. Só nós, uns desgraçados atolados em merda, à espera dum dia de sorte ou de a ver passar.
Estava com pena de si próprio. Com pena de si próprio desde... raios, desde sempre. Havia pelo menos dois dias. Não tinham passado dois dias desde que vira a mulher? Ex-mulher, ex-mulher, ex-mulher. Dois dias em que... ora se atormentava com a ideia ora tentava afastá-la da memória.
- Conheci a sua mulher ontem à noite - disse Mari, baptizando o hambúrguer numa poça de ketchup.
Não desviou o olhar do dele enquanto mastigava, tentando interpretar-lhe a reacção e perguntando a si própria o que estaria no fundo dos problemas dele: A bebida? A mulher? Ou o irmão? Talvez fosse apenas um idiota, mas não queria acreditar nessa hipótese. o rapaz possuía um encanto, qualquer coisa de inocente nas suas graçolas, embora o julgasse provavelmente culpado de muitas coisas. Atraiçoava a mulher, o que era o bastante para o tornar desprezível, mas Mari não conseguia deixar de pensar que havia ali um motivo mais forte do que um desequilíbrio de testosterona.
Lucy teria feito troça dela.
o sorriso dele tornou-se forçado. Colocou a rodela de cebola novamente no prato.
-Ai sim? E estava a divertir-se muito lá com os ricaços?
Imaginava facilmente a cena, depois de se ter torturado com as possibilidades. A mulher, com o cabelo solto, toda aquela seda negra a baloiçar-lhe pelos ombros. Viu-a de saltos altos e um vestido reduzido, com uma taça de champanhe na mão, a rir, a sorrir, a deslumbrar os rapazes da cidade.
-Na realidade, não me pareceu muito à vontade respondeu Mari. - Achei-a demasiado simpática para andar COM aquele grupo.
- é, pois, mas também não a vê comigo.
- Isso talvez tenha a ver com o facto de você estar demasiado ocupado a andar atrás de tudo o que tenha dois cromossomas X. Vou dar-lhe uma pista, Will: a infidelidade não é uma característica que a maioria das mulheres aprecie no marido.
Ele tentou lembrar-se duma resposta inteligente, mas engasgou-se. Começou a raspar o rótulo da garrafa vazia. Era um perfeito idiota. Um patife. Um desgraçado, um falhado, Dizia a si próprio que queria livrar-se do casamento, mas até isso tinha estragado. Sentia-se como se se tivesse afogado num charco e estivesse com os pés presos em raizes debaixo de água, a ser puxado para baixo, a afogar-se na confusão. Não sabia como sair dela.
Fora ele quem afastara a mulher, e agora ela estava a afogar-se na corrente veloz da boa vida. Como podia sequer esperar recuperá-la? Porque havia ela de querer voltar? E para quê? Que diabo, ele teria agarrado a vida rica com as duas mãos, sem pensar duas vezes no que deixava para trás. E o que é que isso diz de ti, rapaz?
Rasgou uma tira no centro do rótulo.
- Olhe, eu nada tenho a ver com isso - começou Mari. - Deus sabe que tenho coisas suficientes em que pensar sem me meter na sua vida. Mas ela parece uma bela rapariga, sabe?
- E é - murmurou Will. Levantando os olhos, dirigiu-lhe um sorriso tão falso como uma nota de três dólares. Então, porque acha que ela se ligou a um idiota como eu?
- Talvez fosse melhor perguntar-lho, a ela.
- Talvez fosse por pensar que podia modificar-me, hein? - Levantou a garrafa vazia, como quem pousa para um anúncio. - Lamento, minhas senhoras, mas não tein cura. Nem depósito, nem devolução.
Uma empregada de mesa passou por eles com a bandeja cheia de bebidas para outra mesa. Will tirou-lhe uma garrafa de cerveja e substituiu-a pela vazia, com uma piscadela e um sorriso endiabrado quando ela devia dar-lhe uma descompostura.
Mari abanou a cabeça, espantada. Dava a impressão de que, para ele, a vida era apenas um jogo de azar, em que distribuía as cartas com o maior encanto e habilidade, Mas não fazendo a mínima ideia de qual das cartas era a rainha. O sorriso constituía um disfarce, tal como o encanto, para esconder o seu medo secreto. Não conseguia deixar de gostar dele.
- Mary Lee, alguma vez se sentiu como uma tesoura para canhotos num mundo de gente destra? - perguntou ele, em tom filosófico.
-Já, já senti - murmurou ela.
Nora voltou da pista de dança, corada e eufórica. Will deu-lhe um puxão no rabo-de-cavalo frisado e brincou com ela a propósito da sua escolha de parceiro de dança, tentando convencê-la a voltar para a pista com ele. Quando a rapariga negou, alegando estar esgotada, voltou-se para Mari.
- Venha lá desmoer esse hambúrguer!
-Não me parece que esteja suficientemente sóbrio para ficar de pé.
-Claro que não, mas posso dançar. É como os gagos conseguirem cantar. Sou o Fred Astaire cá do sítio.
Foi com ele contra o seu bom senso, mas Will provou ser melhor dançarino do que qualquer homem seu conhecido sóbrio. Era atlético, elegante, com um sentimento natural da música. Dançaram até Mari sentir que as barrigas das pernas estavam prestes a explodir, e depois dançaram ainda mais um pouco. Reflectiu que ele, enquanto dançava, não bebia - embora conseguisse esvaziar mais duas garrafas de cerveja -, e dançando com ela não corria o risco de outra o levar para a cama quando o bar fechasse.
A meia-noite, Nora declarou a noite encerrada. Precisava do seu sono de beleza antes do turno do pequeno-almoço. Will seguiu-as até à porta lateral, tentando convencê-las a ficar mais uma hora.
- Vá lá, Mary Lee - pediu, segurando-a pela mão e esforçando-se por puxá-la para dentro. - Mais uma dança. -Nada disso, vaqueiro. Já me chega, e a si também -
disse Mari, retirando a mão, o que o desequilibrou e fez dar um passo para o lado. - Talvez seja melhor arranjar algUém que o leve a casa.
-Eu posso guiar - afirmou ele, ofendido. -Pois, direitinho a uma árvore.
-A Mary Lee tem razão - disse Nora, estendendo a mão com a palma para cima. - Dá cá as chaves, Romeu.
- Credo, que é isto? Thelma e Louise? Não preciso de duas mulheres a dar-me ordens! - disse Will, descrevendo um passo para trás.
- Precisas é de alguém que tome conta de ti, é o que precisas.
- Ai, merda, é o fim do mundo - disse Will,ouvindo a voz do irmão e encolhendo-se teatralmente. Deitou-lhe um olhar e perguntou: - o que é que vais fazer? Pôr-me de castigo?
- Sou pela igualdade social - declarou ela, recusando o desafio. - E você, qual é a sua desculpa?
- Sede.
-Porque é que não vais ao Alce? - perguntou Will, irritado. - Podes encontrar o Bryce e chateá-lo a ele, em vez de me chateares a mim.
- Pois é, já estou um bocado farto de ti - disse J. D., avançando para o irmão.
- Então, porque é que não desistes?
- E tu, porque é que não tomas juizo?
Mari agarrou-lhe o braço, tentando desviar-lhe a atenção de Will, mas ele deitou-lhe um olhar feroz.
- Tem calma, J. D. Ele bebeu um bocadinho a mais disse ela suavemente.
- o Will bebe sempre um bocadinho a mais. É a única coisa que faz realmente bem. Isso e meter o pé na argola. É uma pequena maravilha nesse capítulo, não é verdade, ó puto?
- Cala-te! - gritou Will, sentindo-se com dez anos, farto de admirar o irmão mais velho e de nunca conseguir chegar-lhe aos calcanhares. Enfurecido, empurrou J. D. por um ombro. - Cala-te, meu estúpido. Estou farto de ti.
-Então já sabes como eu me sinto - rosnou J. D. Estava cansado e à beira dum ataque de fúria. A reunião dos criadores de gado só lhe dera dores de cabeça. Precisava tanto duma discussão com o irmão como duma dor de barriga, e a última coisa a calhar era Mary Lee a meter o narizinho no assunto. Fazia-lhe pensar em Samantha a meter-se entre eles quando eram garotos, sempre a tomar o partido de Will,protegendo-o, apesar do que pudesse ter feito.
-Estiveste outra vez no Inferninho? - perguntou ele ao irmão, sentindo um nó no estômago. - o que é que perdeste esta noite, espertalhão? A minha camisa?
- J. D., talvez fosse melhor... - começou Mari, tentando puxá-lo pelo braço.
- Talvez fosse melhor não te meteres, Mary Lee! vociferou ele, encarando-a. - Não sabes que raio se passa! Mari recuou, com as mãos erguidas.
- óptimo. Encham-se de pancada um ao outro. Acho que são horas de ir, Nora - disse ela, crispada.
Nora deitou um olhar a J. D. do género de reduzir homens menos valentes a pó.
-É. Vejo violência estúpida que me chegue na televisão. Vamos embora, querida.
Era quase uma da manhã quando Mari saiu do elevador no sexto andar da estalagem. Sentia-se exausta, magoada. Magoada, era uma estupidez. Se tivesse um grama de juizo, não deixava J. D. Rafferty magoá-la. o problema era que não tinha a certeza de possuir um grama de juizo. Estava vazia de muitas coisas, pelos vistos.
- Amanhã é outro dia, Marilee - murmurou, tirando a chave da carteira. - Não é uma agradável perspectiva? Acendeu o interruptor da entrada, mas a luz não surgiu.
Porreiro. Com um pesado suspiro, tirou os sapatos e deixou-os junto à porta que não fechou, para a luz do corredor lhe Permitir chegar a um candeeiro.
Sentiu sarilho um segundo antes de o avistar, e o cabelo da nuca pôs-se-lhe em pé. Voltou-se instintivamente para a cama e começou a gritar.
A grande forma escura chocou com ela com toda a força, atirando-a de encontro a uma mesa e deitando o telefone ao chão com estrondo. Com o coração a bater descompassadamente, Mari lutou com o seu assaltante, tentando manter-se em pé e respirando com esforço. Os braços e as pernas embrulharam-se uns nos outros e caíram os dois, Mari de costas, ficando completamente sem respiração e vendo cores diante dos olhos.
Luta! Luta!
A palavra soava-lhe na cabeça e parecía-lhe que estava a esbracejar para afastar o atacante, mas a queda deixara-a insensível. Pensou se sentiria alguma coisa se fosse violada e morta.
De repente, recuperou a respiração e a adrenalina subiu com toda a força. Sentiu o cheiro do suor e do medo, e bateu no assaltante com uma mão, enquanto procurava uma arma com a outra, acabando por encontrar o telefone. Agarrou-o freneticamente e brandiu-o com toda a força. A campainha vibrou quando o telefone atingiu o ombro do homem e o fez gemer de dor.
Luta! Luta!
Moveu os pés na alcatifa e tentou escapar ao atacante, continuando a bater-lhe com o telefone. o homem aparava os golpes com os braços, fugindo para trás e deixando de pesar tanto sobre Mari. Vendo uma possibilidade de fugir, ela torceu-se até ficar de barriga para baixo e arrastou-se para a porta.
Levanta-te! Corre!
Qualquer coisa grande e dura atingiu-a violentamente num lado da cabeça e ficou tudo negro.
o intruso correu para o corredor e para a liberdade. Mari ficou deitada na alcatifa, imóvel, com o telefone fora do alcance e a cabeça a flutuar no vazio.
Uma voz vinda do telefone soou agradavelmente preocupada:
- Recepção. Em que posso ajudar?
Drew mostrava-se preocupado com o ataque. Andava dum lado para o outro com o seu fato de treino Reebok preto, os sapatos desatados e o cabelo aos tufos espetados pelos quais passava constantemente os dedos como para se acalmar.
- Isto é terrível - declarou ele pela quarta vez. Nunca nos aconteceu uma coisa parecida.
Mari tentou não olhar para ele. Mover os olhos dum lado para o outro intensificava a dor que lhe martelava a cabeça. o xerife Quinn tinha sido arrancado da cama - por insistência de Drew. Estava encostado à cómoda, com ar sorumbático, enquanto um ajudante vasculhava o quarto. Raoul, o encarregado da noite, tentava não parecer supérfluo do lado de fora da porta.
- Meu Deus, sinto-me tão culpado! - exclamou Kevin, agarrando a mão de Mari e apertando-lha. Estava sentado ao lado dela na cama desfeita, com ar de reclamo do Calvin Klein para roupa de dormir. Um roupão curto de seda azul-marinho displicentemente atado na cintura, revelava no decote em V um peito liso e musculoso. Uns calções largos acabavam logo acima dos joelhos. Tinha os pés descalços. - Temos falado em substituir as fechaduras antigas por cartões. Talvez isto não tivesse acontecido, se o tivéssemos feito.
-Você não tem culpa, Kev - murmurou Mari, apertando-lhe a mão e dando-lhe mais conforto do que ele a ela.
- Não viu mesmo o tipo? - perguntou o xerife com um bocejo.
Mari começou a abanar a cabeça, mas parou.
- Estava escuro. Quis acender a luz quando entrei, mas a lâmpada estava fundida. Pelo menos, foi o que me pareceu. E depois aconteceu tudo demasiado depressa. Estava vestido de escuro e tinha uma máscara de esqui na cabeça. E é tudo o que posso dizer com certeza.
- Era alto, baixo, pequeno?
- Mais alto do que eu e mais forte do que eu. - Naquele momento, pensava que qualquer pessoa que não estivesse ligada a uma máquina era provavelmente mais forte do que ela. Sentia náuseas e a cabeça a andar à roda. o crânio parecia-lhe um ovo rachado. Tocou a medo no ponto mais dorido mesmo atrás da fonte direita e retirou os dedos com sangue coagulado.
- Vou buscar um saco de gelo - disse Kevin, empalidecendo e saindo do quarto de tal maneira que quase atirou Raoul ao chão.
- É capaz de dizer se falta alguma coisa? - perguntou o xerife, esfregando o nariz torto. o seu aspecto era de quem tinha estado a dormir com a camisa da farda e o cabelo parecia um campo de trigo cortado, varrido por ventos ciclónicos.
o primeiro receio instintivo de Mari fora pela guitarra, mas encontrava-se a um canto, incólume. o resto do quarto estava coberto de roupa espalhada e móveis de pernas para o ar, mas ela nada tinha que valesse a pena roubar, nenhumas jóias valiosas ou dinheiro ou cheques de viagem. o gatuno enganara-se ao escolher o quarto dela... se se tratara dum gatuno.
A cabeça ressoava-lhe com as possibilidades. -Nada, tanto quanto sei - disse ela, olhando de lado para o enorme xerife e pensando qual seria a reacção dele às suas teorias sobre Lucy. Nenhuma, decidiu. Parecia-lhe um homem simples, do género bife com batatas fritas, sábado à noite às escuras e...
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