Biblio "SEBO"
Existe uma lenda acerca de um pássaro que só canta uma vez na vida, com mais suavidade que qualquer outra criatura sobre a terra. A partir do momento em que deixa o ninho, começa a procurar um espinheiro-alvar e só descansa quando o encontra. Depois, cantando entre os galhos selvagens, empala-se no acúleo mais agudo e mais comprido. E, morrendo, sublima a própria agonia e despede um canto mais belo que o da cotovia e o do rouxinol. Um canto superlativo, cujo preço é a existência. Mas o mundo inteiro pára para ouvi-lo, e Deus sorri no céu. Pois o melhor só se adquire à custa de um grande sofrimento... Pelo menos é o que diz a lenda.
1915 -1917 — MEGGIE
No dia 8 de dezembro de 1915, Meggie Cleary completou seu quarto ano de vida. Depois de tirar os pratos do desjejum, a mãe, sem dizer uma palavra, enfiou um embrulho de papel pardo debaixo do braço dela e mandou-a sair. Meggie foi acocorar-se atrás da moita de tojos que viçava ao pé do portão da frente e começou a puxar o papel com impaciência. Mas seus dedos eram desajeitados e o embrulho era grosso; o cheiro dele, muito leve, lembrava o cheiro da loja de Wahine, donde concluiu que o que se achava dentro do pacote, fosse lá o que fosse, tinha sido milagrosamente comprado e não fora feito em casa nem doado.
Alguma coisa linda e vagamente dourada principiou a aparecer num canto; ela atacou o papel mais depressa, descascando o embrulho como se descasca uma fruta, em tiras compridas e irregulares.
— Agnes! Oh, Agnes! — exclamou com amor, pestanejando para a boneca deitada num ninho de trapos.
Um milagre, realmente. Só uma vez em toda a sua vida Meggie estivera em Wahine; em maio, havia muito tempo, por ter sido uma menina boazinha. Encarapitada na charrete, ao lado da mãe, muito comportadinha, sentira-se tão emocionada que não vira quase nada e se lembrava de menos ainda. Exceto Agnes, a linda boneca sentada no balcão da loja, que vestia uma saia-balão de cetim cor-de-rosa, com babados de renda cor de creme. Ali mesmo, naquele momento, batizara-a com o nome de Agnes, o único que conhecia suficientemente elegante para uma criatura sem-par como aquela. Entretanto, nos meses que se seguiram, o seu desejo de Agnes não continha esperança alguma; Meggie não possuía bonecas e não sabia que as menininhas e as bonecas tinham sido feitas umas para as outras. Brincava, feliz, com os apitos, estilingues e soldados estropiados que os irmãos jogavam fora, sujava as mãos e enlameava as botinas.
Nunca lhe ocorrera que Agnes fora feita para brincar. Passando a mão sobre as pregas róseas e brilhantes do vestido, mais bonito que qualquer outro que já vira em alguma mulher de carne e osso, pegou em Agnes com ternura. Como os braços e as pernas da boneca fossem articulados, podiam ser movidos em qualquer direção; até o pescoço e a cinturinha fina e graciosa eram articulados. Os cabelos cor de ouro estavam primorosamente arrumados num alto penteado à Pompadour, salpicados de pérolas, e o pálido regaço deixava-se entrever, apesar do xalezinho de rendas cor de creme, preso com um alfinete de pérola. O lindo rosto de porcelana, muito bem pintado, não fora polido para dar à tez delicadamente colorida uma contextura mate natural. Olhos azuis, parecidíssimos com olhos de verdade, brilhavam entre cílios feitos de pêlos verdadeiros, com as íris estriadas e circundadas de um azul mais forte; fascinada, Meggie descobriu que, reclinada bem para trás, Agnes cerrava as pálpebras. Numa das faces levemente coroadas havia um sinal de beleza, e a boca, ligeiramente entreaberta, mostrava uma fileira de dentinhos brancos. Meggie colocou a boneca no colo com toda a delicadeza, cruzou os pés confortavelmente debaixo do corpo e ficou sentada, a olhar. Ela continuava sentada atrás da moita de tojos quando Jack e Hughie se aproximaram pela grama alta, onde esta ficava tão perto da cerca que não se lhe podia chegar a foice. Os cabelos da menina eram típicos dos Clearys, pois todas as crianças da família, exceto Frank, tinham-nos marcados por um tom de vermelho; Jack cutucou o irmão e apontou, animado. Os dois se separaram, sorrindo um para o outro, e fingiram ser cavalarianos atrás de um renegado maori. Meggie não os teria ouvido chegar, de qualquer maneira, tão absorta se achava na contemplação de Agnes, cantarolando baixinho para si mesma.
— O que foi que você ganhou, Meggie? — gritou Jack, saltando sobre ela. — Mostre-nos!
— Sim, mostre-nos! — repetiu Hughie, reprimindo o riso e flanqueando-a. Ela aconchegou a boneca no peito e abanou a cabeça.
— Não, é minha! Ganhei de presente de aniversário!
— Mostre-nos, vamos! Só queremos dar uma olhada.
O orgulho e a alegria levaram a melhor. Ela suspendeu a boneca de modo que os irmãos pudessem vê-la.
— Vejam? não é linda? Chama-se Agnes.
— Agnes? Agnes? — Jack repetiu, simulando ânsias de vômito. — Que nome mais besta! Por que não a chama de Margaret ou Betty?
— Porque ela é Agnes!
Hughie notou a articulação no punho da boneca e assobiou.
— Puxa, Jack, olhe só! Ela é capaz de mover a mão!
— Onde? Deixe-me ver
— Não! — Meggie tornou a estreitar a boneca contra o peito, ao mesmo tempo que seus olhos se enchiam de lágrimas. — Não, vocês vão quebrá-la! Oh, Jack, não a tire de mim... você vai quebrá-la.
Deixe disso!
As mãos escuras e sujas dele fecharam-se em torno dos pulsos dela, apertando-os com força.
Você quer ficar marcada? E não fique chorando desse jeito, que eu conto a Bob.
Ele apertou-lhe a pele em direções opostas até deixá-la esbranquiçada, enquanto Hughie agarrava as saias da boneca e puxava-as.
— Dê-me a boneca, senão a aperto de verdade!
— Não! Não faça isso, Jack, por favor, não faça isso! Você vai quebrá-la, eu sei que vai! Por favor, deixe a boneca em paz! Não a pegue, por favor!
Apesar do aperto cruel nos pulsos, Meggie continuava agarrada à boneca, soluçando e distribuindo pontapés.
— Peguei-a! — bradou Hughie, quando a boneca escorregou por entre os braços cruzados de Meggie.
Jack e Hughie acharam-na tão fascinante quanto a achara a própria Meggie; foram arrancando o vestido, as anáguas e as calças de baixo, compridas e cheias de babados, Agnes agora estava nua, e os meninos a puxavam e empurravam, forçando um pé a passar por trás do pescoço, obrigando-a a olhar para a própria espinha, impondo-lhe todas as contorções possíveis que lhes ocorriam. Não deram atenção a Meggie, que continuava chorando e nem pensou em buscar auxílio, pois na família Cleary quem não soubesse ou não pudesse sustentar suas próprias batalhas merecia dos outros escassa ajuda ou simpatia, e isso se aplicava também a meninas.
Os cabelos dourados da boneca desmoronaram, as pérolas voaram, tremeluzentes, e sumiram no meio da grama alta. Uma bota suja pisou, sem querer, o vestido abandonado, besuntando o cetim com graxa da ferraria. Meggie caiu de joelhos, escarafunchando freneticamente o chão na ânsia de recolher as miniaturas de roupas antes que viessem a sofrer maiores danos e, depois, pôs-se a afastar umas das outras as hastes de relva, onde supunha que as pérolas haviam caído. As lágrimas cegavam-na, e a dor que sentia no coração era nova, pois nunca possuíra até então coisa alguma por que valesse a pena chorar
Frank atirou a ferradura sibilante na água fria e endireitou as costas; já não lhe doíam naqueles dias e, portanto, era possível que se tivesse afeito ao ofício de ferreiro. Já não era sem tempo, teria dito o pai, depois de seis meses de prática. Mas Frank sabia muito bem quanto tempo havia que fora apresentado à forja e à bigorna; medira-o com o estalão do ódio e do ressentimento. Jogando o malho na caixa, afastou da testa com mão trêmula a mecha de cabelos pretos e escorridos e desatou o velho avental de couro amarrado à volta do pescoço. Sua camisa jazia sobre um monte de palha no canto; caminhou lentamente até lá e ficou, por um momento, a mirar a parede escalavrada do celeiro como se ela não existisse, com os olhos negros arregalados e fixos.
Ele era muito pequeno, não media mais que um metro e sessenta e era magro como são magros os rapazinhos nessa idade, mas os músculos dos ombros e dos braços nus já começavam a aparecer em virtude do serviço com o malho, e a pele pálida e perfeita brilhava de suor. Havia um ressaibo estrangeiro no negrume dos cabelos e dos olhos, a boca de lábios cheios e o largo cavalete do nariz não tinham a forma comum na família, mas corria sangue maori nas veias de sua mãe, e esse sangue transparecia nele. Frank tinha quase dezesseis anos de idade, enquanto Bob mal completara onze, Jack dez, Hughie nove, Stuart cinco e a pequenina Meggie três. Lembrou-lhe, então, que aquele era o dia do quarto aniversário de Meggie: 8 de dezembro. Vestiu a camisa e saiu do celeiro.
A casa se erguia no topo de um outeirozinho e ficava, quando muito, uns trinta metros acima do celeiro e dos estábulos. De madeira como todas as casas da Nova Zelândia, era térrea e esparramava-se por ampla área, na suposição de que, se houvesse um terremoto, parte dela talvez continuasse de pé. Em toda a volta crescia o tojo, naquela época do ano inteiramente coberto de ricas flores amarelas; verde e luxuriante, como toda a relva da Nova Zelândia, nem mesmo em pleno inverno, quando a geada persiste, às vezes, sem derreter o dia todo na sombra, a relva se acastanhava, e o verão longo e moderado só a coloria de um verde ainda mais rico. As chuvas caíam mansamente, sem machucar a tenra suavidade das coisas que cresciam, não havia neve e o sol tinha apenas a força necessária para alimentar, nunca para esgotar. Os flagelos da Nova Zelândia subiam, trovejantes, das entranhas da terra, raro desciam do céu. Havia sempre uma sensação sufocada de espera, um estremecer e um espancar intangíveis, que, de fato, se transmitia pelos pés. Pois debaixo do solo jazia o poder medonho, o poder de tamanha magnitude que trinta anos antes uma montanha inteira, a cavaleiro da planície, desaparecera; o vapijí jorrava, ululante, de fendas nas encostas de colinas inocentes, vulcões arremessavam fumaça para o céu e os regatos alpinos corriam quentes. Imensos lagos de lama fervilhavam, oleosos, os mares atiravam-se a rochedos que talvez não estivessem ali para saudar a preamar seguinte, e havia lugares em que a crosta da terra não tinha mais de duzentos e setenta metros de espessura.
Apesar disso, era uma terra graciosa e agradável. Além da casa estendia-se uma planície ondulada, tão verde quanto a esmeralda que fulgia no anel de noivado de Fiona Cleary, salpicada de milhares de pequenos vultos cor de creme que a gente, chegando mais perto, via serem carneiros. No ponto em que os morros curvos recortavam a fímbria do céu azul-claro, o Monte Egmont subia três mil metros de altura, enfiando a cabeça entre as nuvens, as vertentes ainda alvas de neve, com uma simetria tão perfeita que até os que o viam todos os dias, como Frank, nunca deixavam de maravilhar-se.
Era uma boa subida do celeiro até a casa, mas Frank se apressou, consciente de que não devia estar fazendo aquilo, as ordens do pai eram categóricas Depois, quando rodeou o canto da casa, deu com o grupinho ao pé da moita de tojos.
Frank levara sua mãe de charrete a Wahme para comprar a boneca de Meggie, e ainda estava perguntando a si mesmo o que a induzira a fazê-lo. Ela não costumava dar presentes pouco práticos de aniversário, não havia dinheiro para tanto, e ela nunca dera um brinquedo a ninguém. Todos ganhavam roupas, os aniversários e os Natais reabasteciam os poucos armários. Aparentemente, porém, Meggie vira a boneca em seu primeiro e único passeio à cidade, e Fiona não se esquecera. Quando Frank a interrogou, ela murmurou qualquer coisa sobre meninas precisarem de bonecas, e logo mudou de assunto.
Jack e Hughie entretinham-se com a boneca no caminho que se estendia à frente da casa, manipulando-lhe as juntas sem dó nem piedade. A única coisa que Frank pôde ver de Meggie foram as costas, enquanto ela, em pé, assistia à profanação de Agnes. As meias brancas e limpas tinham-lhe escorregado pelas pernas e caíam-lhe agora, em dobras, sobre as botinas pretas e deixavam ver uns dez centímetros de pernas cor-de-rosa debaixo da barra do vestido dos domingos, de veludo marrom. Pelas costas abaixo cascateava a vasta cabeleira cuidadosamente anelada, cintilando ao sol, nem vermelha nem ouro, mas de um matiz intermediário. A fita branca de tafetá, que segurava os cachos da frente, pendia-lhe suja e inerte da cabeça, o vestido estava manchado de terra. Ela apertava as roupas da boneca numa das mãos e estendia a outra, em vão, para Hughie.
— Seus cachorrinhos miseráveis!
Jack e Hughie levantaram-se de um salto, esquecidos da boneca, quando Frank xingava, era de boa política correr.
— Se eu os pegar, seus canalhinhas, tocando nessa boneca outra vez, juro que marco com ferro em brasa suas bundinhas sujas de merda! — gritou Frank para os dois em plena disparada
Inclinou-se e pegou com as mãos os ombros de Meggie, sacudindo-a com meiguice.
— Ei, ei, ei, que é isso? Não precisa chorar! Vamos, eles foram embora e nunca mais tocarão na sua bonequinha, eu lhe prometo. Como é, você não vai me dar um sorriso pelo seu aniversário?
O rosto dela estava inchado, os olhos lacrimavam, a menina fixou em Frank dois olhos cinzentos tão grandes e tão cheios de tragédia que ele sentiu apertar-se-lhe a garganta. Tirando um trapo sujo do bolso das calças, esfregou-o, desajeitado, no rosto dela. depois prendeu-lhe o nariz entre as dobras do pano.
— Assoe.
Fez o que a mandavam fazer, soluçando ruidosamente enquanto as lágrimas secavam.
— Oh, Fru-Fru-Frank, eles ti-ti-tiraram Agnes de mim! — Meggie fungou. — O ca-ca-cabelo dela per-per-perdeu todas as lindas pe-pe-perolinhas que vinham nele! Caíram na gra-gra-grama e não consigo encontrá-las!
As lágrimas voltaram a correr, caindo na mão de Frank; ele olhou por um momento para a pele molhada e lambeu-a.
— Pois, então, teremos de encontrá-las, não é assim? Mas você não encontrará coisa alguma se ficar aí chorando. E que negócio é esse de falar feito bebezinho? Ei, nada disso! Assoe de novo o nariz e depois pegue a pobre... Agnes? Se não a vestir logo, ela ficará toda queimada do sol.
Fê-la sentar-se à beira do caminho e deu-lhe gentilmente a boneca, depois, arrastando-se por ali, pôs-se a esquadrinhar a relva, até que deu um grito de entusiasmo e mostrou uma pérola.
— Pronto! Aqui está a primeira! Nós acharemos todas elas, você vai ver. Meggie ficou observando o irmão mais velho com um semblante de adoração, enquanto ele revolvia a grama, erguendo cada pérola à medida que as ia encontrando; lembrou-se, então, de que a pele de Agnes, muito delicada, devia queimar-se com grande facilidade, e dedicou toda a sua atenção a vestir a boneca. Não parecia ter havido nenhum ferimento sério. O cabelo ficara embaraçado e solto, as pernas e os braços estavam sujos onde os meninos os tinham puxado e torcido, mas tudo continuava funcionando. Havia um pente de tartaruga aninhado acima de cada uma das orelhas de Meggie; ela puxou um deles com força até arrancá-lo do lugar e pôs-se a pentear a cabeleira de Agnes, feita de cabelos humanos mesmo, habilidosamente amarrados e presos a uma base de cola e gaze e descorados até assumirem a cor da palha dourada.
Ela estava puxando canhestramente um grande nó quando a coisa horrível aconteceu. Lá se foi o cabelo todo, que ficou pendendo numa maçaroca desgrenhada dos dentes do pente. Acima da testa lisa e ampla de Agnes não havia mais nada; nem cabeça, nem a tampa do crânio. Só um buraco medonho, escancarado. Trêmula, aterrada, Meggie inclinou-se para a frente a fim de espiar o interior do crânio da boneca. Os contornos invertidos das faces e do queixo apareciam vagamente, a luz brilhante entre os lábios separados e os dentes formavam uma silhueta preta, animal. O pior de tudo, porém, eram os olhos de Agnes, duas horríveis bolas apertadas, traspassadas por um pedaço de arame que lhe furava cruelmente a cabeça.
O grito de Meggie foi agudo e fino, e não parecia um grito de criança; ela jogou Agnes para longe e continuou a gritar, cobrindo o rosto com as mãos, tremendo, horrorizada. Depois sentiu que Frank a puxava pelos dedos e a tomava nos braços, empurrando-lhe o rosto contra o pescoço dele. Enlaçando-o com os braços, ela se foi, aos poucos, sentindo melhor até que a proximidade dele a acalmou o suficiente para que ela reparasse no cheiro gostoso que ele exalava, um cheiro de cavalos, suor e ferro!
Quando ela se aquietou, Frank fê-la contar o que acontecera; apanhou a boneca e olhou para a cabeça vazia, sem compreender, procurando lembrar se o seu universo de criança fora assim freqüentado por terrores estranhos. Mas seus fantasmas desagradáveis eram feitos de pessoas, de sussurros e de olhares frios. Do rosto fino, macilento e contraído de sua mãe, da mão dela que tremia quando segurava a sua, da inclinação dos seus ombros.
Que vira Meggie para ficar daquele jeito? Ele imaginou que ela não se teria perturbado tanto se a pobre Agnes houvesse apenas sangrado ao perder o cabelo. A hemorragia era um fato: alguém na família Cleary sangrava copiosamente pelo menos uma vez por semana.
— Os olhos dela, os olhos dela! — murmurou Meggie, recusando-se a olhar para a boneca.
— Ela é maravilhosa, Meggie! — murmurou ele, mergulhando o rosto no cabelo da irmã. Como era bonito, como era rico e cheio de cor!
Foi-lhe preciso mimá-la durante meia hora para obrigá-la a não desviar os olhos da boneca e outra meia hora se passou antes que ele a persuadisse a espiar pelo buraco escalpelado. Mostrou-lhe como funcionavam os olhos, como haviam sido cuidadosamente alinhados a fim de ajustar-se da maneira mais natural possível aos movimentos que deles se esperavam.
— Agora vamos, já é hora de entrar — disse ele, erguendo-a nos braços e enfiando a boneca entre o peito dele e o dela. — Vamos pedir a mamãe que a arrume, não é? Lavaremos e passaremos a ferro a roupa dela e tornaremos a colar-lhe o cabelo. Farei também uns alfinetes melhores com essas pérolas, para que não caiam e você possa pentear-lhe o cabelo do jeito que quiser.
Fiona Cleary estava na cozinha descascando batatas. Era uma mulher muito bonita, muito loira e miúda, de altura inferior à média, mas de rosto duro e severo; tinha um corpo excelente e uma cintura fininha, que não engrossara apesar dos seis bebês que carregara debaixo dela. O vestido era de morim cinzento e as saias varriam o chão imaculado, enquanto toda a parte da frente contava com a proteção de um enorme avental branco engomado, que dava a volta em torno do pescoço e se amarrava à altura dos rins num laço firme, perfeito. Desde que se levantava até que se deitava vivia na cozinha e no quintal e suas botas pretas e rijas já tinham traçado um caminho circular do fogão à lavanderia, da lavanderia à horta, da horta aos varais e dos varais de volta ao fogão.
Ela depôs a faca na mesa e parou a vista em Frank e Meggie, enquanto lhe descaíam os cantos da boca bem-feita.
— Meggie, deixei-a pôr hoje cedo o vestido dos domingos com a condição de que Você não se sujasse. E veja só como está! Você é mesmo uma pequena desmazelada!
— Mamãe, a culpa não foi dela — acudiu Frank. —Jack e Hughie tiraram-lhe a boneca para descobrir como funcionam os braços e as pernas. Prometi a ela que a deixaríamos como nova. Podemos fazê-lo, não podemos?
— Deixe-me ver.
Fee estendeu a mão para receber a boneca.
Era uma mulher calada, desafeita à conversação espontânea. Ninguém nunca soube o que ela pensava, nem mesmo o marido; deixava-o encarregar-se do disciplinamento das crianças e fazia tudo o que ele mandava sem comentários nem queixas, a não ser que as circunstâncias fossem demasiado insólitas. Meggie ouvira os meninos murmurarem que a mãe tinha tanto medo do pai quanto eles, mas, se isso era verdade, ela o escondia debaixo de uma camada de calma impenetrável e levemente torva. Nunca se ria e nunca se irritava.
Concluída a inspeção, Fee colocou Agnes sobre o aparador perto do fogão e olhou para Meggie.
— Lavarei as roupas amanhã cedo e darei um jeito no cabelo. Acho que Frank poderá colar o cabelo hoje à noite, depois do chá, e dar um banho nela.
As palavras foram ditas num tom mais objetivo do que consolador. Meggie fez que sim com a cabeça, sorrindo com insegurança; sentia, às vezes, uma grande vontade de ouvir a mãe rir, mas a mãe nunca ria. Sabia que ambas compartilhavam de alguma coisa especial, não comum ao pai nem aos meninos, mas não conseguia chegar além daquelas costas rígidas, daqueles pés que nunca paravam. Sua mãe concordava com um gesto ausente de cabeça e movia com sacudidelas bruscas e hábeis as saias volumosas entre O fogão e a mesa, enquanto continuava a trabalhar, trabalhar, trabalhar.
O que nenhum dos filhos, a não ser Frank, compreendia era que Fee se sentia permanente e incuravelmente cansada. Havia tanta coisa para fazer, tão pouco dinheiro, tão pouco tempo e apenas um par de mãos para fazê-lo! Ela ansiava por ver chegar o dia em que Meggie tivesse idade bastante para ajudar; a criança já executava algumas tarefas simples, mas seus escassos quatro anos não lhe permitiriam aliviar a carga. Seis filhos e apenas um deles, o último, o mais moço, do sexo feminino. Todas as suas conhecidas demonstravam, ao mesmo tempo, compreensão e inveja, mas isso também não dava conta do serviço. Em sua cesta de costura erguia-se uma montanha de meias ainda não cerzidas, em suas agulhas de tricô havia outro par ainda não terminado, Hughie já não cabia dentro do próprio suéter e Jack ainda não estava pronto para legar-lhe o seu.
Padraic Cleary voltou para casa na semana do aniversário de Meggie por mero acaso. Ainda faltava muito para começar a temporada da tosquia, e ele tinha trabalho para fazer no lugar, arando e plantando. Era, por profissão, tosquiador de carneiros, ocupação sazonal que durava dos meados do verão ao fim do inverno, logo seguida da época da parição. Geralmente conseguia arranjar muito trabalho para toda a primavera e o primeiro mês do verão; ajudando na parição, na aração ou substituindo um fazendeiro local nas duas intermináveis ordenhas diárias. Onde havia trabalho lá estava ele, deixando a família no velho casarão a arranjar-se como pudesse; atitude, aliás, menos impiedosa do que parecia. A menos que alguém tivesse a sorte de possuir uma nesga de terra, era exatamente isso o que deveria fazer.
Quando ele entrou, pouco depois do pôr-do-sol, as lâmpadas estavam acesas e as sombras dançavam, trêmulas, no teto alto. Reunidos na varanda dos fundos, os meninos brincavam com um sapo, exceto Frank; Padraic soube onde ele estava, pois ouvia o firme bater de um machado vindo da direção da pilha de lenha. Deteve-se na varanda apenas o tempo suficiente para chutar o traseiro de Jack e puxar as orelhas de Bob.
— Vão ajudar Frank com a lenha, seus tratantezinhos vagabundos. E é melhor que acabem tudo antes de sua mãe botar o chá na mesa, pois, do contrário, haverá peles e cabelos voando por aí.
com uma inclinação da cabeça cumprimentou Fiona, atarefada ao pé do fogão; não a beijava nem abraçava, pois entendia que as demonstrações de afeto entre marido e mulher só ficavam bem num quarto de dormir. Enquanto ele manejava a descalçadeira para livrar-se das botas enlameadas, Meggie, saltitando, trouxe-lhe os chinelos, e o pai sorriu para a menininha com a curiosa sensação de pasmo que a vista dela sempre lhe despertava. Era tão bonitinha, possuía cabelos tão lindos! Pegou num cacho e puxou-o, alisando-o, depois o soltou, só para vê-lo sacudir-se e saltar ao retomar a feição de sempre. Erguendo a filha do chão, foi sentar-se na única poltrona confortável que havia na cozinha, uma poltrona Windsor com uma almofada presa ao assento, à beira do fogo. Suspirando, sentou-se, tirou o cachimbo do bolso e bateu-o de leve no chão, sem reparar no que fazia, para sacar do fornilho a crosta de cinza do fumo já queimado. Meggie aninhou-se-lhe no colo e passou os braços à roda do seu pescoço, com o rostinho erguido para ele, enquanto se entregava à distração de todas as noites: observar a luz que se coava através da barba dourada.
Como vai você, Fee? — perguntou Padraic Cleary à esposa.
-- Muito bem, Paddy. Conseguiu terminar hoje o potreiro de baixo?
-- Consegui, está tudo pronto. Amanhã cedinho poderei começar a trabalhar no de cima. Puxa vida, como estou cansado!
Pudera! MacPherson lhe deu outra vez aquela velha égua maluca?
-- O que você acha? Que ele seria capaz de ficar com o animal para si e me deixar o Ruão?
-- Sinto os braços como se me tivessem sido arrancados dos ombros. Juro que aquela égua tem a boca mais dura de toda a Nova Zelândia.
— Não se incomode. Os cavalos do velho Robertson são bons, e você logo estará lá.
— Não vejo chegar a hora.
Encheu o cachimbo de fumo ordinário e tirou um pavio encerado de um jarro grande que havia perto do fogão. Bastou-lhe um movimento rápido à porta do fornilho para acendê-lo; em seguida, inclinou-se para trás e tragou tão profundamente que o cachimbo chegou a resfolegar.
— Como se sente fazendo quatro anos, Meggie? — perguntou à filha.
— Muito bem, papai.
— Mamãe já lhe deu o seu presente?
— Oh, papai, como foi que você e mamãe adivinharam que eu queria Agnes?
— Agnes? — Ele olhou depressa para Fee, sorrindo e interrogando-a com as sobrancelhas. — Agnes é o nome dela?
— E. E é linda, papai. Quero ficar olhando para ela o dia inteiro.
— Sorte sua por ainda ter alguma coisa para olhar — interveio Fee, carrancuda. — Jack e Hughie tomaram conta da boneca antes que a pobre Meggie tivesse uma oportunidade de examiná-la direito.
— É, meninos são meninos. O estrago foi muito grande?
— Nada que não se possa consertar. Frank os pegou antes que eles fossem longe demais.
— Frank? O que é que ele estava fazendo aqui? Tinha ordens para ficar na forja o dia todo. Hunter está querendo os portões.
— Ele esteve na forja o dia todo. Só veio aqui procurar uma ferramenta ou coisa que o valha — replicou Fee depressa; Padraic era muito duro com Frank.
— Oh, papai, Frank é o melhor dos irmãos! Ele salvou minha Agnes da morte, e vai colar de novo o cabelo dela, para mim, depois do chá.
— Que bom! — disse o pai com voz sonolenta, inclinando a cabeça para trás e fechando os olhos.
Fazia calor diante do fogão, mas ele não pareceu notá-lo; gotas de suor surgiram-lhe na testa, rebrilhando. Colocou os braços atrás da cabeça e adormeceu.
Fora Padraic Cleary quem legara aos filhos seus vários matizes de cabelo cheio, ondulado e vermelho, se bem que nenhum deles herdasse uma cabeça tão agressivamente vermelha quanto a dele. Era um homem pequeno, todo construído de aço e molas, as pernas arqueadas por haver passado uma existência inteira no meio de cavalos, os braços compridos depois de tantos anos tosquiando carneiros; cobria-lhe o peito e os braços densa penugem dourada, que seria feia se fosse escura. Os olhos, de um azul brilhante, viviam contraídos numa vesgueira permanente, como os de um marinheiro, de tanto olhar para a distância, e o rosto, agradável, parecia estar sempre pronto para sorrir, o que fazia os outros homens gostarem dele à primeira vista. O nariz era magnífico, verdadeiro, nariz romano que deve ter maravilhado seus colegas irlandeses, mas a Irlanda sempre foi uma costa de náufragos. Ele ainda falava com a pronúncia suave, rápida e pouco inteligível dos irlandeses de Galway, pronunciando o t final das palavras como se fosse um th, mas quase 20 anos nos Antípodas* haviam imposto curiosa sobrecarga à sua maneira de falar, de modo que os aa lhe soavam como ais, e a velocidade da fala diminuíra um pouco, como um velho relógio muito necessitado de corda. Homem feliz conseguira suportar sua existência dura e extenuante melhor do que muita gente e, embora fosse um rígido disciplinador, cuja bota levava sempre um impulso pesado, todos os filhos, menos um, o adoravam. Quando não havia pão suficiente para todos, ele ficava sem pão, quando se tratava de escolher entre roupas novas para ele e roupas novas para uma das crianças, era ele quem ficava sem as roupas novas. À sua maneira, essa prova de amor valia mais que um milhão de beijos dados a esmo. Tinha um gênio danado e, certa vez, matara um homem. Mas tivera sorte, o homem era inglês e havia um navio no porto de Dun Laoghaire que zarparia para a Nova Zelândia com a maré.
Fiona dirigiu-se à porta dos fundos e gritou:
— Venham tomar chá!
Os meninos foram entrando aos poucos, um depois do outro, e Frank entrou por último com uma braçada de lenha, que despejou na caixa grande, ao lado do fogão. Padraic pôs Meggie no chão e encaminhou-se para a cabeceira da mesa de jantar na extremidade oposta da cozinha, ao passo que os meninos se sentavam em torno dela e Meggie se empoleirava no caixote de madeira colocado pelo pai na cadeira que lhe ficava mais próxima.
Fee serviu a comida diretamente nos pratos em sua mesa de trabalho, com maior rapidez e eficiência do que um garçom, e levava-os, de dois em dois, à família, primeiro a Paddy, depois a Frank, e assim até Meggie, ficando ela por derradeiro.
Os pratos, grandes, estavam literalmente repletos de comida: batatas cozidas, ensopado de carneiro e feijão colhido naquela manhã, servidos em porções imensas. Apesar dos resmungos e sons de repugnância abafados, todos acabaram limpando o prato com miolo de pão, do qual comeram ainda várias fatias, cobertas de grossas camadas de manteiga e geléia de groselha nativa. Fee sentou-se, engoliu sem mastigar a comida, levantou-se depressa e voltou correndo para a mesa de trabalho, onde repartiu, em grandes pratos fundos, vastas quantidades de biscoito feitos com muito açúcar e misturados com geléia. Em seguida, deitou um rio de creme quente e fumegante sobre cada um deles e voltou a arrastar-se até a mesa de jantar, levando dois de cada vez. Finalmente, sentou-se com um suspiro, agora, sim, poderia comer sem pressa.
* Antípodas No Reino Unido, expressão empregada em referência a Austrália e à Nova Zelândia (N T )
— Oh, que bom! Rocambole com geléia! — exclamou Meggie, enfiando a colher no creme e retirando-a depois até a geléia aparecer, formando listas cor-de-rosa no amarelo.
— Está vendo, Meggie? Por ser seu aniversário, mamãe fez hoje o seu pudim favorito — disse o pai, sorrindo.
Não se ouviram queixas dessa vez; fosse do que fosse o pudim, foi consumido com prazer. Todos os Clearys gostavam de doces.
Entretanto, apesar da vasta quantidade de comida à base de amido, nenhum deles tinha um quilo sequer de carne supérflua. Gastavam tudo o que comiam trabalhando ou brincando. Comiam verduras e frutas porque estas fazem bem à saúde, mas eram o pão, as batatas, a carne e os pudins farinhentos e quentes que afugentavam a exaustão.
Depois de Fee haver servido a todos uma xícara de chá do seu gigantesco jarro, eles ali continuaram, conversando, bebendo ou lendo por uma hora ou mais; Paddy fumava seu cachimbo com a cabeça enfiada num livro da biblioteca, Fee enchia xícaras sem parar, Bob estava imerso em outro livro da biblioteca e os menores faziam planos para o dia seguinte. A escola mandara embora os alunos para as longas férias de verão; os meninos, de pândega, ansiavam por começar as tarefas que lhes cabiam na casa e no jardim. Bob fora encarregado de retocar a pintura externa onde fosse necessária, Jack e Hughie teriam de tratar da lenha, dos anexos e da ordenha, Stuart ficara incumbido da horta; tudo brincadeira, comparado aos horrores da escola. De tempos a tempos, Paddy erguia a cabeça do livro para ajuntar outra tarefa à lista, mas Fee não dizia nada, e Frank, derreado, bebericava xícara após xícara de chá.
Finalmente, Fee fez sinal a Meggie para sentar-se num tamborete alto, arrumoulhe o cabelo nos seus trapos noturnos e mandou-a para a cama com Stu e Hughie; Jack e Bob pediram licença e saíram a fim de alimentar os cachorros. Frank levou a boneca de Meggie para a mesa de trabalho e principiou a colar-lhe de novo o cabelo. Espreguiçando-se, Padraic fechou o livro e colocou o cachimbo na imensa casca iridescente de uma orelha-de-são-pedro que lhe servia de cinzeiro.
— Bem, mamãe, eu vou para a cama.
— Boa-noite, Paddy.
Fee tirou os pratos da mesa de jantar e desenganchou uma tina grande de ferro galvanizado da parede em que estava pendurada. Colocou-a na extremidade da mesa de trabalho oposta àquela em que se achava Frank e, erguendo do fogão a maciça chaleira de ferro forjado, encheu-a de água quente. A água fria tirada de uma lata velha de querosene serviu para esfriar o banho fumegante; fazendo passar através dela um sabão guardado numa cesta de arame, pôs-se a lavar e enxaguar os pratos, empilhando-os de encontro a uma xícara.
Frank trabalhou na boneca sem levantar a cabeça, mas, quando a pilha de pratos começou a crescer, ergueu-se em silêncio para ir buscar uma toalha e principiou a enxugá-los. Movendo-se entre a mesa de trabalho e o aparador, fazia o serviço com o desembaraço de uma longa familiaridade. Era um jogo furtivo e medroso que ele e a mãe faziam, pois a regra mais severa no domínio de Paddy referia-se à apropriada delegação de obrigações. A casa era trabalho de mulher, e pronto. Nenhum membro masculino da família devia pôr a mão numa tarefa feminina. Mas todas as noites, depois que Paddy se recolhia, Frank ajudava sua mãe, e Fee se acumpliciava com ele retardando a lavagem de pratos até ouvirem o baque dos chinelos de Paddy caindo ao chão. Depois de tirar os chinelos, Paddy nunca voltava à cozinha. Fee olhou com ternura para Frank.
Não sei o que eu faria sem você, Frank. Mas você não devia fazer isso. Estará tão cansado amanhã cedo!...
— Está tudo bem, mãe. Não vou morrer por enxugar alguns pratos. É muito pouco para facilitar-lhe a vida.
— É minha obrigação, Frank. Não me importo.
— Eu só queria que ficássemos ricos um dia desses para você poder ter uma empregada.
— Você está sonhando muito alto!
Ela enxugou as mãos vermelhas e cheias de sabão no pano de pratos e, em seguida, levou-as à cintura, suspirando. Ao descansar no rosto do filho, seus olhos pareceram vagamente preocupados, sentindo o amargo descontentamento dele, maior que a reclamação normal do trabalhador contra a sua sorte.
— Frank, não alimente idéias de grandeza. Elas só trazem complicações. Somos gente da classe operária, o que quer dizer que nunca seremos ricos e nunca teremos empregadas. Contente-se com o que é e com o que tem. Quando diz essas coisas, você está insultando papai, e ele não merece. Você sabe disso. Ele não bebe, não joga e trabalha como um condenado por nós. Nem um centavo do que ganha vai para o seu bolso. É tudo para nós.
Os ombros musculosos arquearam-se de impaciência, e o rosto moreno tornou-se duro e sombrio.
Mas por que há de ser tão mau assim querer da vida um pouco mais que a escravidão? Não vejo mal nenhum em desejar que você tenha uma empregada.
— É mau porque não pode ser! Você sabe que não há dinheiro para mantê-lo na escola e, se não pode continuar na escola, como poderá ser mais que um trabalhador braçal? Seu sotaque, suas roupas e suas mãos mostram que você ganha a vida trabalhando como operário. Mas não é nenhuma vergonha ter calos nas mãos. Como diz seu Pai: quando um homem tem calos nas mãos, sabemos que é honesto.
Frank deu de ombros e não retrucou. Guardados todos os pratos, Fee foi buscar o cesto de costuras e sentou-se na cadeira de Paddy ao pé do fogo, enquanto Frank tornava à boneca.
— Pobrezinha da Meggie! — disse ele de repente.
— Por quê?
— Hoje, quando aqueles desgraçadinhos lhe puxavam a boneca de um lado para outro, ela ficou ali chorando, apenas chorando, como se o seu mundo tivesse desmoronado. — Abaixou os olhos para a boneca, que recuperara o cabelo. —Agnes! Onde será que ela foi achar esse nome?
— com certeza me ouviu falando a respeito de Agnes Fortescue-Smythe.
— Quando lhe devolvi a boneca, ela olhou para dentro da cabeça e quase morreu de susto. Qualquer coisa nos olhos a amedrontou; não sei o que foi.
— Meggie está sempre vendo coisas que não existem.
— É uma pena que não haja dinheiro para manter os pequenos na escola. São tão inteligentes!
— Oh, Frank! Se os desejos fossem cavalos, os mendigos fariam equitação — disse a mãe em tom cansado. Passou a mão pelos olhos, tremendo um pouco, e espetou a agulha de cerzir numa bola de lã de cor cinza. — Não posso fazer mais nada. Estou tão cansada que já não enxergo direito.
— Vá para a cama, mãe. Eu apagarei os candeeiros.
— Assim que eu tiver atiçado o fogo.
— Deixe que eu faço isso.
Ele levantou-se da mesa e colocou a delicada boneca de porcelana, com todo o cuidado, atrás de uma lata de biscoitos no aparador, onde estaria a salvo de qualquer dano. Não o preocupava a possibilidade de que os meninos tentassem uma nova rapina; eles tinham mais medo da vingança dele que da do pai, pois Frank era rancoroso. Quando estava com a mãe ou com a irmã, essa característica sua não aparecia, mas todos os meninos já tinham sofrido por causa dela.
Fee observava-o com o coração apertado; havia em Frank algo selvagem e desesperado, uma aura de angústia. Se ao menos ele e Paddy se dessem melhor! Mas os dois nunca viam as coisas pelo mesmo prisma e brigavam constantemente. Ele talvez estivesse preocupado demais com ela, talvez fosse meio filhinho de mamãe. A ser isso verdade, a culpa seria dela. No entanto, era mais uma prova do seu coração amoroso, da sua bondade. Ele só queria tornar-lhe a vida um pouco mais fácil. E Fee voltou a surpreender-se ansiando pelo dia em que Meggie tivesse idade suficiente para tirar esse fardo dos ombros de Frank.
Pegou uma lamparina que estava sobre a mesa, recolocou-a no lugar e caminhou para onde Frank, de cócoras diante do fogão, botava lenha na grande fornalha e brincava com o registro. Viu-lhe o braço alvo encordoado de veias salientes, as mãos bemfeitas tão manchadas que nunca mais se poderiam limpar. A mão dela estendeu-se, tímida, e, muito de leve, afastou-lhe dos olhos a mecha de cabelo preto e liso; era o máximo que ela seria capaz de fazer em matéria de carícias.
-- Boa-noite, Frank, e muito obrigada.
As sombras giravam e corriam diante da luz que avançava, enquanto Fee transpunha em silêncio a porta que abria para a parte fronteira da casa.
Frank e Bob dividiam o primeiro quarto de dormir; ela descerrou a porta sem fazer barulho e segurou a lâmpada bem alto, de modo que a luz inundou a cama dupla, no canto. Deitado de costas, com a boca arqueada e aberta, Bob tremia e se contorcia como um cão; ela foi até a cama e o fez virar-se sobre o lado direito antes que ele mergulhasse num pesadelo, depois ficou a contemplá-lo por um momento. Como se parecia com Paddy!
No quarto pegado, Jack e Hughie estavam quase entrelaçados. Que tremendos tratantes, aqueles! Sempre metidos em travessuras, embora sem maldade. Fee tentou em vão separá-los e restituir um pouco de ordem às roupas de cama, mas as duas cabeças ruivas e encaracoladas não quiseram separar-se. com um suspiro manso, desistiu. Como conseguiam sentir-se revigorados depois de passar uma noite daquele jeito, eis o que não lhe entrava na cabeça, mas eles pareciam vicejar assim mesmo.
O quarto em que Meggie e Stuart dormiam era uma peça escura e sem alegria para duas crianças pequenas; paredes pintadas de um pardo monótono, chão recoberto de um linóleo pardo também, nenhum quadro em parte alguma. Exatamente igual aos outros quartos de dormir.
Stuart virara de cabeça para baixo e estaria quase invisível, não fosse o traseirinho devidamente encamisolado, mas saindo das cobertas no lugar em que deveria estar a cabeça; Fee encontrou-a encostada nos joelhos e, como sempre, admirou-se de que ele não tivesse morrido sufocado. Enfiou a mão com extremo cuidado por baixo do lençol e estremeceu. Molhado outra vez! Bem, isso teria de esperar até a manhã seguinte, quando, sem dúvida, o travesseiro estaria molhado também. Ele sempre fazia isso, depois invertia a posição e tornava a urinar. Mas, afinal, pensando bem, um mijão entre cinco garotos não era tão ruim assim.
Meggie, enroscada, formava uma bolinha, com o polegar na boca e o cabelo enfeitado de trapos esparramado à sua volta. A única menina. Fee não lhe dirigiu mais que um olhar de passagem antes de sair do quarto; não havia mistério para Meggie, uma mulher. Fee sabia qual seria a sua sorte, e não tinha inveja nem pena dela. Os meninos eram diferentes; eram milagres, homens formados por artes de alquimia em seu corpo de mulher. Era duro não ter ninguém para ajudar em casa, mas valia a pena. Entre os seus pares, os filhos varões de Paddy representavam a melhor recomendação de caráter que ele possuía. O homem que gera filhos varões é um homem de verdade.
Ela fechou de mansinho a porta do próprio quarto e depôs a lamparina sobre a escrivaninha. Seus dedos ágeis desabotoaram as dúzias de minúsculos botõezinhos que havia entre a gola alta e os quadris do vestido; em seguida, desvencilhou os braços das mangas. Livrou também os braços do corpete de baixo e, segurando-o com sumo cuidado de encontro ao peito, enfiou-se numa comprida camisola de flanela. Só então, decentemente coberta, se desfez do corpete, das calças que lhe chegavam aos tornozelos e do espartilho, já frouxo. Logo veio abaixo o cabelo de ouro que estivera muito bem preso, e todos os grampos e alfinetes foram colocados na casca de uma orelha-de-são-pedro, sobre a escrivaninha. Mas, nem assim, belo como era, cheio, brilhante e liso, lhe seria permitida alguma liberdade; Fee ergueu os cotovelos acima da cabeça e as mãos atrás do pescoço, e começou a entrelaçá-lo de corrida. Voltou-se, então, para a cama, suspendendo inconscientemente a respiração; mas Paddy estava dormindo e ela soltou um suspiro ruidoso de alívio. Não que lhe desagradasse quando Paddy estava disposto, pois era um amante tímido, terno e cheio de atenções. Mas, enquanto Meggie não tivesse mais dois ou três anos, seria muito duro ter outros filhos.
Aos domingos, quando os Clearys iam à igreja, Meggie tinha de ficar em casa com um dos meninos mais velhos, ansiando pelo dia em que também tivesse idade bastante para ir. Na opinião de Padraic Cleary, só havia um lugar em que podiam estar as crianças pequenas — a sua casa — e essa regra se aplicava até à Casa de Deus. Quando Meggie começasse a freqüentar a escola e aprendesse a ficar sentada quietinha, poderia ir à igreja. Antes, não. Por isso mesmo, todos os domingos de manhã ela ficava ao pé da moita de tojos, junto ao portão da frente, desolada, enquanto a família se empilhava no velho calhambeque e o irmão incumbido de ficar com ela tentava fingir que fora uma sorte escapar da missa. O único Cleary que gostava de separar-se do resto era Frank.
A religião de Paddy formava uma parte intrínseca de sua vida. Quando desposara Fee, fizera-o com a relutante aprovação católica, pois Fee pertencia à Igreja Anglicana; e, embora ela renunciasse à sua fé por amor de Paddy, recusou-se a adotar a dele em seu lugar. É difícil dizer por quê, se não que os Armstrongs constituíam uma velha estirpe de pioneiros de impecável extração anglicana, ao passo que Paddy era um imigrante sem eira nem beira, que viera do lado errado do Pale. Já havia Armstrongs na Nova Zelândia muito antes de chegarem os primeiros colonos ”oficiais”, o que representava um passaporte para a aristocracia colonial. Do ponto de vista dos Armstrongs, portanto, só se podia dizer que Fee contraíra uma chocante mésalhance.
Roderick Armstrong fundara o clã da Nova Zelândia de modo um tanto curioso.
Começara com um acontecimento que teria muitas repercussões imprevistas na Inglaterra do século XVIII: a Guerra Americana da Independência. Até 1776, mais de um milhar de criminosos sem importância era enviado, todos os anos, para a Virgínia e para as Carolinas, presos a um contrato de serviços pouco melhor que a escravidão. Impiedosa e inflexível, a justiça britânica daquele tempo punia com a força o assassíno, o incêndio premeditado, o crime misterioso de ”fazer-se passar por egípcio” e o furto de importâncias superiores a um xelim. Os crimes menores significavam o desterro para as Américas pelo tempo que durasse a vida natural do criminoso.
Mas quando, em 1776, as Américas se fecharam, a Inglaterra viu-se com uma população de condenados que aumentava assustadoramente, sem ter onde alojá-la. com as prisões abarrotadas, o excedente foi colocado, como sardinhas em lata, nos navios-prisões que apodreciam atracados nos estuários do rio. Alguma coisa precisava ser feita e, por isso, alguma coisa se fez. com muita relutância, porque a medida supunha o gasto de alguns milhares de libras, ordenou-se ao Capitão Arthur Phillip que se fizesse à vela para a Grande Terra do Sul. O ano era 1787. Sua frota de onze navios levava mais de mil sentenciados, fora os marinheiros, oficiais de marinha e um contingente de fuzileiros navais. Não era esta nenhuma odisséia gloriosa em busca de liberdade. No fim de janeiro de 1788, oito meses depois de zarpar da Inglaterra, a frota chegou a Botany Bay. Sua Majestade Louca Jorge III encontrara um novo terreno baldio para despejar seus condenados, a colônia de Nova Gales.
Em 1801, quando mal completara vinte anos de idade, Roderick Armstrong foi sentenciado ao degredo pelo resto de sua vida natural. Gerações subseqüentes insistiram em que ele provinha de gente de boa família de Somerset, que perdera o que tinha por haver abraçado a Revolução Americana, e que seu crime nunca existira, mas nenhuma se esforçara jamais por descobrir os antecedentes do ilustre antepassado. Compraziam-se apenas em sua glória refletida e improvisavam alguma coisa.
Fossem quais fossem suas origens e seu status na Inglaterra, o jovem Roderick Armstrong era uma fera. Durante todos os indizíveis oito meses de viagem para a Nova Gales mostrou ser um prisioneiro obstinado e difícil, granjeando ainda mais a estima dos oficiais do seu navio por recusar-se a morrer. Quando chegou a Sydney em 1803, seu comportamento piorou, de modo que o embarcaram para a ilha de Norfolk e para a prisão dos intratáveis. Nada melhorou sua conduta. Fizeram-no passar fome; encarceraram-no em uma cela tão pequena que ele não podia ficar sentado, nem de pé, nem deitado; açoitaram-no até deixar-lhe o corpo feito geléia; acorrentaram-no a uma rocha no mar e ali o deixaram, meio afogado. E ele ria-se deles, esquelético conjunto de ossos envolto numa lona imunda, sem um dente na boca, sem um centímetro de pele limpo de cicatrizes, mas inflamado por dentro de um fogo de amargura e rebeldia que nada conseguia apagar. No princípio de cada dia determinava-se a não morrer e, ao fim de cada dia, ria-se, triunfante, ao ver-se ainda vivo.
Em 1810 foi mandado para a Terra de Van Diemen*, acorrentado a uma leva de forçados incumbida de abrir uma estrada através da duríssima região de arenito atrás de Hobart. Na primeira oportunidade, utilizou a picareta para abrir um buraco no peito do soldado da polícia montada que comandava a expedição; ele e mais dez condenados chacinaram mais cinco soldados da polícia montada, raspando-lhes a carne dos ossos centímetro por centímetro, até vê-los morrer berrando de dor. Pois tanto ele quanto os guardas eram animais selvagens, criaturas elementares cujas emoções, atrofiadas, não ultrapassavam o plano subumano. Roderick Armstrong não poderia ter fugido deixando incólumes os seus atormentadores nem poderia deixá-los morrer depressa, assim como não poderia conformar-se com o fato de ser um galé.
com o rum, o pão e a carne de sol tirada dos soldados, os onze homens abriram caminho através de quilômetros de frias florestas tropicais e foram sair na estação de pesca de baleias de Hobart, onde roubaram uma chalupa e nela cruzaram o Mar de Tasman sem comida, sem água e sem velas. Quando a chalupa arribou à selvagem costa ocidental da Ilha do Sul da Nova Zelândia, Roderick Armstrong e dois outros homens ainda estavam vivos. Ele nunca aludiu a essa viagem incrível, mas dizia-se, à boca pequena, que os três tinham conseguido sobreviver matando e comendo os companheiros mais fracos.
Isso aconteceu exatamente nove anos depois de haver sido ele deportado da Inglaterra. Se bem que ainda fosse moço, parecia ter sessenta anos. Quando os primeiros colonos oficialmente autorizados chegaram à Nova Zelândia, em 1840, ele desbravara terras para si no rico distrito de Canterbury da Ilha do Sul, ”casara” com uma mulher maori e procriara treze belos filhos semipolinésios. E, por volta de 1860, os Armstrongs eram aristocratas coloniais, mandavam os filhos varões estudar em escolas grã-finas da Inglaterra, e provavam à sociedade, por sua astúcia e ganância, que eram, de fato, autênticos descendentes de um homem notável, formidável. Em 1880, James, neto de Roderick, gerara Fiona, única filha num total de quinze filhos.
Se Fee sentia saudade dos austeros ritos protestantes de sua infância, nunca o disse. Tolerava as convicções religiosas de Paddy e ia à missa com ele, além de zelar para que seus filhos adorassem um Deus exclusivamente católico. Mas porque nunca se convertera, faltavam na vida deles pequenos toques, como a ação de graças antes das refeições e as orações antes de deitar-se, a santificação de todos os dias.
Tirante um passeio a Wahine dezoito meses antes, Meggie nunca saíra de casa para ir além do celeiro e da ferraria, lá embaixo. Na manhã do seu primeiro dia de escola sentiu-se tão nervosa que vomitou o desjejum e teve de ser levada de volta, entrouxada, para o quarto, a fim de a lavarem e trocarem. Lá se foi o lindo traje novo azul-marinho com a grande gola branca de marinheiro, e lá voltou o vestido grosso e horrível, com botões até o alto do pescoço, que sempre lhe dava a impressão de a estar sufocando.
E pelo amor de Deus, Meggie, da próxima vez que você se sentir enjoada, grite-me! Não fique aí sentada feito boba até ser tarde demais e até eu ter essa porcaria toda para limpar, fora o resto! E agora terá de se apressar, porque, se chegar atrasada para o toque do sino, Irmã Agatha com certeza lhe dará umas boas varadas. Comporte-se e obedeça a seus irmãos.
Bob, Jack Hughie e Stu estavam pulando para cima e para baixo diante do portão quando Fee, afinal, empurrou Meggie pela porta afora com o lanche de sanduíches de geléia arrumado numa sacola velha.
— Venha, Meggie, nós vamos chegar atrasados! — gritou Bob, saindo para a estrada.
Meggie seguiu correndo as formas cada vez menores dos irmãos.
Passava um pouco das sete da manhã, e fazia várias horas que o sol, ameno, já nascera; o orvalho secara sobre a relva, a não ser nos lugares de sombra mais profunda. A estrada de Wahine era um caminho de terra, com duas rodeiras de carro e duas fitas de um vermelho-escuro separadas por ampla faixa de capim verde brilhante. Alvos copos-de-leite e capuchinhas cor de laranja floresciam em profusão de cada lado do caminho, no meio da relva alta, onde as cercas bem-feitas de madeira das propriedades limítrofes advertiam que era proibida a invasão de propriedade.
Bob seguia sempre para a escola costeando as cercas da mão direita e balançando a sacola de couro sobre a cabeça, em vez de levá-la à maneira de um bornal. As cercas da mão esquerda pertenciam a Jack, o que permitia aos três Clearys mais moços ficarem com o domínio da estrada. Chegando ao topo da longa e íngreme colina que tinham de galgar desde a depressão em que ficava a ferraria até o ponto em que a estrada de Robertson se juntava à estrada de Wahine, pararam por um momento, ofegantes, as cinco cabeças brilhantes aureoladas de encontro ao céu de nuvens fofas. Vinha agora a melhor parte, a descida do morro; deram-se as mãos e galoparam até o fim da borda relvosa, que terminava num emaranhado de flores, desejando ter tempo para passar por baixo da cerca do Sr. Chapman e rolar pela encosta abaixo como se fossem pedras.
A casa dos Clearys ficava a oito quilômetros de Wahine e, quando Meggie viu os primeiros postes telegráficos ao longe, as pernas lhe tremiam e suas meias estavam caindo. com os ouvidos à espera do toque do sino, Bob a fitava, impaciente, enquanto ela avançava a custo pela estrada, puxando as calças de baixo e arquejando, de vez em quando, de exaustão. Debaixo da massa de cabelos, o rosto era róseo e, no entanto, curiosamente pálido. Suspirando, Bob entregou sua sacola a Jack e correu as mãos pelos calções.
— Vamos, Meggie, eu a levarei de cavalinho o resto do caminho — disse, fazendo cara feia para os irmãos, a fim de que estes não o julgassem erroneamente capaz de amolecer.
Meggie trepou nas costas dele, alçou-se o suficiente para enlaçar-lhe a cintura com as pernas e ajeitou a cabeça, com uma sensação de bem-aventurança, sobre o ombro magro do irmão. Agora poderia contemplar Wahine com todo o conforto.
Não havia muita coisa para ver. Pouco mais que uma grande aldeia, Wahine crescia desordenadamente dos dois lados de uma rua pavimentada no centro. O maior edifício era o hotel local, de dois andares, com um toldo que protegia a calçada do sol e postes que sustentavam o toldo ao longo da sarjeta. Segundo edifício em tamanho, o armazém também se gabava de ter um toldo protetor e dois compridos bancos de madeira, debaixo das janelas abarrotadas de mercadorias, onde os transeuntes podiam descansar. Havia um mastro diante da loja maçônica, em cujo topo uma bandeira do Reino Unido drapejava, desbotada, ao perpassar da brisa forte. A cidade ainda não possuía uma oficina para automóveis, pois o número de veículos de tração mecânica era muito pequeno, mas havia uma oficina de ferreiro perto da loja maçônica, um estábulo logo atrás e uma bomba de gasolina à beira de um cocho para cavalos. O único edifício em todo o povoado que realmente chamava a atenção era uma loja pintada de um azul brilhante especial, muito pouco britânico; todos os outros prédios exibiam a mesma sóbria tonalidade pardacenta. A escola pública e a igreja anglicana se achavam lado a lado, bem defronte da Igreja do Sagrado Coração e da escola paroquial.
Quando os Clearys passaram apressados pelo armazém, soou o sino católico, seguido do badalar mais pesado do sino grande no poste que fronteava a escola pública. Bob pôs-se a trotar, e eles entraram no pátio coberto de cascalho, onde umas cinqüenta crianças se alinhavam diante de uma freirinha que segurava uma vara flexível, maior do que ela. Sem precisar que lhe dissessem, Bob dirigiu a irmã para um lado, separado das fileiras de crianças, e ali ficou com os olhos cravados na vara.
O convento do Sagrado Coração era uma construção de dois andares, mas, por estar bem apartado da rua, atrás de uma grade, o fato passava despercebido. As três freiras da Ordem das Irmãs da Misericórdia, que constituíam todo o seu pessoal, viviam no segundo andar em companhia de uma quarta freira, que exercia as funções de zeladora e nunca era vista; no andar térreo havia três salas grandes em que se ministravam as aulas. Circundava todo o edifício retangular ampla e sombreada varanda, onde, nos dias de chuva, se permitia às crianças permanecer decorosamente sentadas = durante os intervalos do recreio e do lanche, e onde, nos dias de sol, nenhuma tinha licença para pôr os pés. Várias figueiras de grande porte ensombravam parte do espaçoso terreno dentro do qual se erguia o convento e, atrás da escola, o chão declivava um pouco até chegar a um círculo relvoso eufemicamente batizado com o nome de ”campo de críquete”, em virtude da principal atividade que ali se realizava.
Sem dar atenção às risadinhas espremidas e abafadas que partiam das crianças enfileiradas, Bob e sua irmã ficaram imóveis enquanto os alunos marchavam para o interior do prédio ao som do pianinho da escola, em que Irmã Catherine esgoelava ”A Fé de Nossos Pais”. Só depois que desapareceu a última criança é que Irmã Agatha desfez sua rígida postura; jogando o cascalho imperiosamente para os lados com as pesadas saias de sarja, dirigiu-se aos Clearys, que esperavam.
Meggie olhou embasbacada para ela, pois nunca tinha visto uma freira. O espetáculo era realmente extraordinário; três salpicos de pessoa, a saber, o rosto e as mãos de Irmã Agatha, a touca e o peitilho, brancos e engomados, destacavam-se das camadas do preto mais preto, ao passo que a corda maciça de contas de madeira do rosário pendia de um anel de ferro, em que se juntavam as pontas do cinto de couro que cingia a robusta cintura de Irmã Agatha. A pele da religiosa era permanentemente vermelha, em virtude do excesso de asseio e da pressão das bordas da touca, afiadas como facas, que lhe encaixilhavam o centro dianteiro da cabeça numa coisa tão separada do corpo que não se poderia chamar de rosto; pelinhos brotavam em tufos por todo o queixo, que a touca, impiedosa, dividia em dois. Os lábios eram quase invisíveis, comprimidos numa única linha de concentração sobre a árdua tarefa de ser a Noiva de Cristo num atrasado povoado colonial, em que as estações andavam de pernas para o ar, depois de ter feito seus votos na mansa suavidade de um abadia de Killarney, cinqüenta e tantos anos antes. Duas pequeninas marcas vermelhas, de cada lado do nariz, falavam do aperto implacável dos óculos de aros redondos de aço, atrás dos quais seus olhos, de um azul desmaiado, espiavam, suspeitosos e amargos.
— E então, Robert Cleary, por que está atrasado? — perguntou, áspera, Irmã Agatha com sua voz seca, que já fora irlandesa.
— Sinto muito, Irmã — replicou Bob em tom inexpressivo, mas sem tirar os olhos azul-esverdeados da ponta da vara, que vibrava enquanto oscilava de um lado para o outro.
— Por que está atrasado? — repetiu ela.
— Sinto muito, Irmã.
— Este é o primeiro dia do novo ano escolar, Robert Cleary, e eu teria imaginado que nesta manhã, se não nas outras, você poderia ter feito um esforço para chegar na hora.
Meggie sentiu um calafrio, mas criou coragem.
— A culpa foi minha, Irmã! — guinchou ela.
Os olhos de um azul desmaiado desviaram-se de Bob e pareceram traspassar a própria alma de Meggie, que ali se achava de olhos erguidos em total inocência, sem perceber que estava infringindo a primeira norma de conduta no duelo mortal que se travava entre professores e alunos ad infinitum: nunca se disponha a prestar uma informação. Bob deu-lhe um rápido pontapé na perna e Meggie enviesou os olhos para ele, perplexa.
— Por que foi sua culpa? — perguntou a freira no tom mais frio que Meggie já ouvira.
Bem, eu vomitei na mesa e aquilo foi direto para minhas calças, de modo que mamãe teve de me lavar e trocar minha roupa, e assim fiz com que todos se atrasassem-- explicou Meggie, sem nenhum artifício.
Os traços de Irmã Agatha não se alteraram, mas sua boca apertou-se ainda mais, como mola excessivamente enrolada, e a ponta da vara abaixou-se alguns centímetros.
Quem é isto? — perguntou, desabrida, dirigindo-se a Bob, como se o objeto da sua indagação fosse uma espécie nova e particularmente antipática de inseto.
— É minha irmã Meghann, Irmã.
— Nesse caso, no futuro, você a fará compreender que existem assuntos que nunca mencionamos, Robert, se formos damas e cavalheiros de verdade. Em hipótese alguma, entendeu?, em hipótese alguma aludimos, pelo nome, a uma peça das nossas roupas de baixo, como os filhos de qualquer família decente deveriam saber automaticamente. Estendam as mãos, vocês todos.
— Mas a culpa foi minha, Irmã! — gemeu Meggie, enquanto estendia as mãos com as palmas viradas para cima, pois vira os irmãos fazê-lo em casa mil vezes em pantomimas.
— Silêncio! — silvou Irmã Agatha, voltando-se para ela. — Não me importa conhecer o responsável. Isso me é indiferente. Todos estão atrasados e, portanto, todos serão castigados. Seis chibatadas.
Ela pronunciou a sentença com monótono prazer.
Aterrorizada, Meggie observou as mãos firmes de Bob, viu a chibata descer assobiando, quase mais depressa do que a vista podia acompanhá-la, e estalar no centro das palmas dele, onde a pele era mole e tenra. Um vergão purpurino apareceu incontinenti; a lambada seguinte pegou na junção dos dedos com a palma, mais sensível ainda, e a última, na ponta dos dedos, onde o cérebro acumula mais sensações do que em qualquer outro lugar, exceto os lábios. A pontaria de Irmã Agatha era perfeita. Seguiram-se mais três varadas desferidas na outra mão de Bob antes que ela desviasse sua atenção para Jack, o seguinte da fila. O rosto de Bob estava pálido, mas ele não gritou nem fez movimento algum, e o mesmo aconteceu com seus irmãos ao chegar a vez de cada um; até o quieto e meigo Stu.
Quando acompanharam a ascensão da vara acima de suas próprias mãos, os olhos de Meggie se fecharam sem querer, de modo que ela não a viu descer. Mas a dor foi como que uma vasta explosão, uma invasão causticante e cauterizante de sua carne, que lhe chegava ao osso; a dor ainda não se acabara de espalhar, num formigamento, pelo antebraço, quando veio a varada seguinte e quando esta já lhe atingia o ombro, a lambada final, que lhe pegara a ponta dos dedos, seguia, gritando, o mesmo caminho, até o coração. Ela aplicou os dentes ao lábio inferior e mordeu-o, envergonhada e orgulhosa demais para chorar, e tão colérica e indignada com aquela injustiça que não se atrevia a abrir os olhos e fixá-los na Irmã Agatha; a lição estava penetrando, embora o seu ponto crucial não fosse o que Irmã Agatha tencionava ensinar.
Chegada a hora do lanche, a dor não lhe desaparecera de todo das mãos. Meggie passara a manhã num ofuscamento mental provocado pelo medo e pelo assombro, sem compreender coisa alguma do que se disse e se fez. Empurrada para uma carteira dupla na última fila da classe dos menores, só veio a notar sua colega de banco depois de uma lamentável hora de lanche, que passou encolhida atrás de Bob e de Jack, num canto isolado do recreio. Só a ordem severa de Bob persuadiu-a a comer os sanduíches de geléia de groselha que Fee lhe preparara.
Quando o sino anunciou o início das aulas da tarde e Meggie encontrou lugar na fila, sentiu os olhos afinal bastante claros para se dar conta do que estava acontecendo ao seu redor. A vergonha das chibatadas continuava a mortificá-la como antes, mas ela conservou a cabeça erguida e fingiu não notar as cutucadas e murmúrios das menininhas ao seu lado.
Irmã Agatha estava em pé, na frente, com a sua vara; Irmã Declan rondava de um lado para outro, atrás das filas; Irmã Catherine sentou-se ao piano, perto da porta da sala dos menores, e principiou a tocar ”Para a Frente, Soldados Cristãos”, dando ênfase ao tempo da música. Era, a bem dizer, um hino protestante, mas a guerra o tornara comum a todas as congregações. As queridas crianças marchavam ao som do hino como se fossem pequeninos soldados, pensou com orgulho Irmã Catherine.
Das três freiras, Irmã Declan era uma réplica de Irmã Agatha com quinze anos menos, ao passo que Irmã Catherine ainda parecia remotamente humana. Tinha trinta e poucos anos, nascera na Irlanda, naturalmente, e o fogo do seu entusiasmo não se dissipara de todo; ainda encontrava alegria no ensinar, ainda via a imagem imperecível de Cristo nos rostinhos erguidos para o séu em atitude adorativa. Mas ensinava os maiores, que Irmã Agatha julgava ter surrado o suficiente para se comportarem direito, apesar da mocidade e da brandura da supervisora. A própria Irmã Agatha se encarregava dos menores, a fim de formar mentes e corações do barro infantil, deixando os médios para Irmã Declan.
Seguramente escondida na última fila de carteiras, Meggie atreveu-se a olhar para a menininha sentada junto dela. Seu olhar assustado deu com um sorriso banguela e dois imensos olhos negros que a contemplavam francamente do alto de um rosto escuro e luzidio. Habituada à alvura e às sardas, pois até Frank, com seus olhos e cabelos escuros, tinha a pele alva, Meggie sentia-se fascinada e acabou achando sua colega de carteira a mais bela criatura que já vira.
— Como é que você se chama? — perguntou a beldade morena, murmurando as palavras com o canto da boca, enquanto mascava a ponta do lápis e cuspia os pedacinhos mastigados no buraco vazio do tinteiro.
Meggie Cleary — respondeu ela com outro murmúrio.
— Você aí! — disse uma voz seca e áspera, vinda da frente da sala.
Meggie deu um pulo, olhando atônita à sua volta. Ouviu-se um barulho surdo quando vinte crianças, ao mesmo tempo, descansaram os lápis nas carteiras e um ruge-ruge abafado quando empurraram para o lado preciosas folhas de papel a fim de poder colocar os cotovelos sub-repticiamente sobre a tampa da escrivaninha. com um coração que lhe parecia estar despencando, Meggie percebeu que todos olhavam para ela. Irmã Agatha aproximava-se depressa pelo corredor entre as carteiras; tão agudo era o terror da menina, que ela teria fugido para salvar a pele, se houvesse para onde fugir. Mas atrás dela se erguia a parede que separava a sua sala da sala dos médios, de ambos os lados havia as mesas dos alunos e, à sua frente, estava Irmã Agatha. Os olhos quase que lhe tomaram todo o rostinho agoniado ao encarar a freira com um medo sufocado, ao passo que as mãos se apertavam e desapertavam sobre a tampa da carteira.
— Você falou, Meghann Cleary.
— Sim, Irmã.
— E o que foi que você disse?
— Meu nome, Irmã.
— O seu nome! — Irmã Agatha sorriu com expressão escarninha e olhou para as outras crianças ao redor, como se elas devessem partilhar também do seu desprezo. — E então, crianças, quanta honra para nós! Outro Cleary em nossa escola, que não pode sequer esperar para apregoar o seu nome! — Voltou-se para Meggie. — Levante-se quando lhe dirijo a palavra, sua selvagenzinha ignorante! E estenda as mãos, por favor.
Meggie levantou-se da carteira com a ajuda das mãos, enquanto os longos cachos lhe balançavam diante do rosto e depois retornavam aos seus lugares. Juntando as mãos, ela torceu-as em desespero, porém Irmã Agatha não se moveu. Só esperava, esperava, esperava... Depois, de um modo ou de outro, Meggie conseguiu apresentarlhe as mãos, mas, quando a vara desceu, retirou-as, arfando de terror. Irmã Agatha fechou os dedos em torno do coque que encimava a cabeça da menina e puxou-a para perto de si, de modo que o rosto dela ficou apenas a alguns centímetros de distância daqueles óculos temíveis.
— Estenda as mãos, Meghann Cleary.
As palavras eram ditas em tom cortês, frio e implacável.
Meggie abriu a boca, e uma golfada de vômito inundou a frente do hábito de Irmã Agatha. Todas as crianças que estavam na sala suspenderam, horrorizadas, a respiração, enquanto a freira permanecia em pé, com a matéria nauseante a escorrer-lhe pelas dobras negras do hábito, o rosto escarlate de raiva e de espanto. Em seguida, a vara desceu, atingindo o corpo de Meggie onde acontecia de cair, enquanto esta erguia os braços para proteger o rosto e se encolhia, ainda engulhada, no canto. Quando o braço de Irmã Agatha, cansado, se recusou a erguer novamente a vara, ela apontou para a porta.
— Agora vá para casa, sua repugnante filisteiazinha — ordenou, girando sobre os calcanhares e rumando para a sala de aulas de Irmã Declan.
O olhar desvairado de Meggie encontrou Stu; ele fez-lhe um sinal com a cabeça, como a dizer-lhe que fizesse o que lhe ordenavam, os meigos olhos azul-esverdeados cheios de piedade e compreensão. Enxugando a boca com o lenço, ela transpôs, aos tropeções, a soleira da porta e chegou ao recreio. Ainda faltavam duas horas para o encerramento das aulas do dia; arrastou-se pela rua sem interesse, sabendo que não poderia ser alcançada pelos irmãos e assustada demais para procurar um lugar onde pudesse esperar por eles. Teria de voltar sozinha para casa, confessar tudo sozinha a sua mãe.
Fee quase caiu ao sair, cambaleante, pela porta dos fundos com a cesta cheia de roupa ainda molhada. Meggie estava sentada no degrau mais alto da varanda dos fundos, a cabeça baixa, as pontas dos cachos meladas e a frente do vestido manchada. Pondo no chão o peso esmagador da cesta, Fee suspirou e afastou dos olhos uma mecha teimosa de cabelo.
— E então, que aconteceu? — perguntou, em tom cansado.
— Vomitei em cima de Irmã Agatha.
— Oh, Senhor! — exclamou a mãe, com as mãos nas cadeiras.
— E fui surrada também — murmurou Meggie, com as lágrimas não derramadas a dançar-lhe nos olhos.
— Bonita embrulhada, sim, senhora. — Fee tornou a erguer a cesta, oscilando até conseguir equilibrá-la. — Positivamente, Meggie, não sei o que fazer com você. Teremos de esperar e ouvir o que diz o papai.
E afastou-se pelo quintal, na direção dos varais trapeantes e já cheios pela metade.
Esfregando as mãos no rosto com ar de cansaço, Meggie acompanhou com a vista, por um momento, a mãe que se afastava. Depois levantou-se e enveredou pelo caminho que conduzia à forja.
Frank acabara de ferrar a égua baia do Sr. Robertson e a estava conduzindo à cocheira quando Meggie assomou à porta. Virou-se, viu-a e as lembranças do seu próprio sofrimento na escola voltaram-lhe, torrenciais. Ela era pequenina, um bebezinho ainda, inocente e meiga, mas a luz dos olhos fora brutalmente apagada e neles se escondia agora uma expressão que o fez desejar matar Irmã Agatha. Matá-la, matá-la mesmo, pegar o queixo duplo e apertar... Desfez-se à pressa das ferramentas, desfezse do avental e caminhou para junto dela.
— Que aconteceu, meu bem? — perguntou, inclinando-se, até que o rosto dela ficou no mesmo nível do dele. O cheiro de vômito subia dela como um miasma, mas ele controlou o impulso de virar-se para o outro lado.
Oh, Fru-Fru-Frank! — gemeu ela, enquanto o rosto se contraía e ela deixava correr, afinal, as lágrimas represadas. Meggie atirou os braços ao pescoço do irmão e abraçou-o com força, chorando ao jeito curiosamente silencioso e doloroso de todas as crianças da família Cleary depois que emergiam da infância. Era algo horrível de observar, que nem palavras suaves nem beijos conseguiam curar.
Quando ela tornou a acalmar-se, ele ergueu-a nos braços e levou-a para uma pilha cheirosa de feno bem perto da égua do Sr. Robertson; ali se sentaram juntos os dois e deixaram que o animal tocasse com os lábios as bordas da sua cama de palha, perdidos para o mundo. A cabeça de Meggie aninhara-se no peito liso e nu de Frank, e anéis do seu cabelo esvoaçavam quando a égua fungava forte sobre o feno, resfolegando com prazer.
— Por que foi que ela nos surrou a todos, Frank? — indagou Meggie. — Eu lhe disse que a culpa era minha.
Frank já se acostumara com o cheiro dela, que, agora, deixara de incomodá-lo; estendeu a mão e, num gesto distraído, passou-a pelo focinho da égua, empurrando-o quando este se mostrava demasiado inquisitivo.
— Somos pobres, Meggie, essa é a razão principal. As freiras sempre odeiam os alunos pobres. Depois que você tiver passado alguns dias na velha e bolorenta escola da Irmã Ag, verá que não são apenas os Clearys que ela persegue, mas os Marshalls e os MacDonalds também. Somos todos pobres. Se fôssemos ricos e chegássemos à escola numa carruagem, como os O’Briens, o caso mudaria de figura. Acontece, porém, que não podemos doar órgãos à igreja, nem vestes de ouro à sacristia, nem uma charrete e um cavalo novos às freiras. Por isso não temos importância alguma. Por isso elas podem nos fazer o que bem entenderem.
”Lembro-me de um dia em que Irmã Ag ficou tão louca da vida comigo que não parava de gritar, “Chore, pelo amor de Deus! Faça um barulho qualquer, Francis Cleary! Se você me desse a satisfação de ouvi-lo berrar, eu não o surraria com tanta força, nem com tanta freqüência!”
”Essa é outra razão por que ela nos odeia: porque nisso somos melhores do que os Marshalls e os MacDonalds. Ela não consegue nos fazer chorar. Imagina que devíamos lamber-lhe as botas. Pois muito bem, eu disse aos rapazes o que faria ao Cleary que chegasse a lamentar-se por apanhar, e isso vale para você também, Meggie, Por mais que ela a surre, nem um pio, entendeu? Hoje você chorou?”
— Não, Frank — replicou ela, bocejando, enquanto as pálpebras se cerravam e o polegar lhe passeava às cegas pelo rosto à procura da boca. Frank deitou-a sobre o monte de feno e voltou ao trabalho, cantarolando e sorrindo.
Meggie ainda estava dormindo quando Paddy entrou. Trazia os braços sujos por haver feito uma boa limpeza na vacaria do Sr. Jarman, e o chapelão de abas largas caído sobre os olhos. Viu, num relance, Frank modelando um eixo na bigorna, enquanto fagulhas lhe dançavam em torno da cabeça e, logo, seus olhos foram dar com a filha encolhida sobre o feno, enquanto a égua do Sr. Robertson olhava para o rostinho adormecido.
— Imaginei que ela estivesse aqui — disse Paddy, deixando cair o chicotinho de montar e conduzindo o velho ruão para o estábulo, na extremidade do celeiro.
Frank fez um breve sinal com a cabeça, dirigindo ao pai o sombrio olhar de suspeita e incerteza que Paddy achava tão irritante, e depois voltou para o eixo aquecido ao branco, enquanto o suor lhe fazia brilhar o torso nu.
Desarreando o ruão, Paddy levou-o para uma baia, encheu o compartimento de água e, em seguida, misturou farelo e aveia com um pouco de água para dar-lhe de comer. O animal rosnou afetuosamente quando ele despejou a forragem na manjedoura, e seguiu-o com os olhos ao vê-lo rumar para o grande cocho fora da forja e despir a camisa. Paddy lavou os braços, o rosto e o torso, ensopando as calças e o cabelo. Enquanto se enxugava num saco velho, olhou com expressão irônica para o filho.
— Mamãe me disse que Meggie foi mandada para casa de castigo. Você sabe exatamente o que aconteceu?
Frank largou o eixo assim que o calor da peça principiou a morrer.
— A coitadinha vomitou sobre Irmã Agatha.
Disfarçando o sorriso que ameaçava contrair-lhe o rosto, Paddy fixou os olhos na parede distante enquanto se recompunha. Depois voltou-se na direção de Meggie.
— Ela, com certeza, ficou muito excitada por ir à escola?
— Não sei. Sei que vomitou antes de saírem hoje cedo, isso retardou a partida e acabaram chegando atrasados para o toque do sino. Todos levaram seis lambadas, mas Meggie ficou totalmente transtornada, pois achava que devia ser a única punida. Depois do lanche, Irmã Ag caiu sobre ela outra vez e a nossa Meggie vomitou todo o pão e toda a geléia no hábito preto e limão de Irmã Ag.
— Que aconteceu então?
— Irmã Ag deu-lhe uma surra em regra e mandou-a para casa de castigo.
— Bem, eu diria que ela já foi bastante castigada. Tenho muito respeito às freiras e sei que não nos cabe duvidar do que elas fazem, mas gostaria que tivessem menos entusiasmo pela vara. Sei que elas têm de enfiar muita coisa em nossas burras cabeças irlandesas, mas, afinal, era o primeiro dia de escola da Meggiezinha.
Frank olhava assombrado para o pai. Até aquele momento, Paddy nunca tivera com o filho mais velho uma conversa de homem para homem. Deixando, por efeito do choque, o eterno ressentimento, Frank compreendeu que, apesar de seu orgulho, Paddy queria mais a Meggie do que aos filhos homens. Surpreendeu-se quase a gostar do pai e, por isso mesmo, sorriu sem desconfiança.
— Ela é uma coisinha muito especial, não é? — perguntou.
Paddy fez que sim com a cabeça, num gesto distraído, absorto em observá-la. A égua soprou os beiços para dentro e para fora, ruidosamente, Meggie mexeu-se, rolou sobre si mesma e abriu os olhos. Quando viu o pai em pé ao lado de Frank, sentou-se, num pulo, enquanto o medo lhe tirava o sangue da pele.
— Como é, mocinha, parece que teve hoje um dia cheio, não teve? — Paddy aproximou-se dela e ergueu-a do monte de feno, respirando com dificuldade ao sentir, de repente, o cheiro que dela se exalava. Mas logo deu de ombros e apertou-a com força de encontro ao peito
— Levei uma surra, papai — confessou ela
— Bem, conhecendo Irmã Agatha como conheço, sei que não foi a última — disse ele, a rir, encarapitando-a no ombro. — É melhor você ver se sua mãe tem um pouco de água quente no tacho para lhe dar um banho. Você está fedendo mais que a vacaria de Jarman.
Frank foi até a porta e contemplou as duas cabeças cor de fogo que seguiam, bamboleantes, pelo caminho acima, depois voltou-se para encontrar os mansos olhos da égua postos nele.
— Pronto, sua cavalona velha. Eu a levarei para casa — prometeu, encabrestando-a.
O vômito de Maggie acabou por se revelar uma bênção. Irmã Agatha ainda a vergastava regularmente, mas sempre a uma distância prudente, a fim de poder escapar às conseqüências, o que lhe diminuía a força do braço e lhe estragava a pontaria.
A menina trigueira que se sentava a seu lado era a filha mais moça de um italiano, dono do café azul-brilhante de Wahine. Chamava-se Teresa Annunzio, e era suficientemente estúpida para escapar à atenção de Irmã Agatha, mas não tão estúpida que se transformasse em alvo da freira. Quando lhe cresceram os dentes, ficou muito bonita, e Meggie a adorava. Nos intervalos entre as aulas, no recreio, passeavam as duas com o braço na cintura uma da outra, sinal evidente de que eram ”amigas íntimas” e não podiam ser requisitadas por mais ninguém. E falavam, falavam, falavam.
Certa vez, à hora do lanche, Teresa levou-a ao café para apresentar-lhe a mãe, o pai, as irmãs e os irmãos mais velhos. Estes ficaram tão encantados com o seu brilho de ouro quanto Meggie se encantara com a beleza morena deles, comparando-a a um anjo quando ela fixava neles os grandes olhos cor de cinza. Da mãe herdara ela um ar indefinível de boa educação, que todas sentiam de pronto, o mesmo sentiu a família Annunzio. Tão ansiosos quanto Teresa por cortejá-la, deram-lhe grandes e gordas lascas de batatas, fritas em caldeirões que chiavam onde caíam os pingos de gordura do carneiro que estava assando, e um pedaço de peixe de sabor delicioso, envolto em massa de farinha e frito no caldeirão fumegante de gordura líquida juntamente com as lascas de batatas, mas numa cesta de arame separada. Meggie jamais provara comida tão deliciosa e desejou poder lanchar mais vezes no café. Aquela, porém, fora uma verdadeira festa, que exigira licença especial de sua mãe e das religiosas.
Sua conversação em casa era toda entremeada de ”Teresa diz” e ”Vocês sabem o que Teresa fez?”, até que Paddy, um belo dia, rugiu, dizendo que estava farto de ouvir falar em Teresa.
— Não sei se é uma boa idéia essa de andar sempre metida com carcamanos — murmurou ele, compartindo da instintiva desconfiança da comunidade britânica contra todos os povos morenos ou mediterrâneos. — Os carcamanos são sujos, Meggiezinha, não gostam de se lavar — explicou ele de modo pouco convincente, encolhendo-se debaixo do olhar de magoada censura que Meggie lhe dirigiu.
Terrivelmente ciumento, Frank concordou com o pai. Por isso, Meggie passou a falar com menos freqüência de sua amiga quando estava em casa. Mas a desaprovação doméstica não poderia interferir no seu relacionamento, limitado, pela distância, aos dias e às horas da escola; Bob e os rapazes exultaram ao vê-la tão interessada por Teresa. Isso lhes permitia correr feito loucos pelo recreio como se a irmã não existisse.
As coisas ininteligíveis que Irmã Agatha vivia escrevendo no quadro-negro começaram a fazer sentido, e Meggie aprendeu que um ” + ” significava que a gente contava todos os números até chegar ao total, ao passo que um ”—” significava que a gente tirava os números de baixo dos números de cima e chegava ao fim com menos do que tinha no começo. Criança inteligente, teria sido aluna excelente, se não brilhante, se fosse capaz de vencer o medo que lhe inspirava Irmã Agatha. Mas, a partir do momento em que os olhos de verruma viravam para o seu lado e a voz velha e seca lhe fazia uma breve e ríspida pergunta, ela gaguejava e não conseguia pensar. Achava fácil a aritmética, mas, quando chamada a demonstrar verbalmente sua habilidade, não conseguia lembrar-se de quanto eram dois mais dois! A leitura representava para ela o ingresso num mundo tão fascinante que nunca parecia se esgotar, mas, quando a Irmã Agatha a fazia levantar-se para ler algum trecho em voz alta, mal conseguia pronunciar ”gato” e muito menos ”miau”. Tinha a impressão de estar sempre tremendo sob os comentários sarcásticos de Irmã Agatha ou ficando vermelha como um pimentão porque o resto da classe se ria dela. Pois era sempre a sua lousa que Irmã Agatha erguia para achincalhar, eram sempre as suas folhas de papel laboriosamente escritas que Irmã Agatha utilizava para mostrar o quanto repugnava um trabalho desmazelado. Algumas crianças mais ricas tinham a sorte de possuir borrachas, mas o único apagador de Meggie era a ponta do dedo, que ela molhava na língua e esfregava sobre os seus erros nervosos até borrar toda a escrita e fazer no papel uma porção de rasuras. Isso esburacava a folha e era rigorosamente proibido, mas ela estava tão desesperada que faria qualquer coisa para evitar as censuras de Irmã Agatha.
Até o advento de Meggie, Stuart fora o alvo principal da vara e do veneno da religiosa. A menina, todavia, era um alvo muito melhor, pois a tranqüilidade atenta e o quase santo alheamento de Stuart faziam dele um osso duro de roer, até para Irmã Agatha. Por outro lado, Meggie tremia e ficava vermelha como um pimentão, por mais que tentasse seguir a linha de comportamento dos Clearys, como a definira Frank. Stuart tinha muita pena de Meggie e tentava facilitar-lhe as coisas desviando de propósito para a própria cabeça a cólera da freira. Mas esta enxergava logo através dos estratagemas dele e voltava a enfurecer-se ao ver tão em evidência na menina quanto sempre estivera nos meninos o sentido de clã. Se alguém lhe tivesse perguntado a verdadeira razão da sua má vontade contra os Clearys, não teria sabido responder. Mas, para uma velha freira como Irmã Agatha, amargurada pelo curso tomado por sua vida, uma família orgulhosa e sensível como a dos Clearys não era fácil de engolir.
O pior pecado de Meggie consistia em ser canhota. Quando ela pegou, com o máximo cuidado, no lápis de ardósia para aventurar-se à primeira lição de escrita, Irmã Agatha caiu sobre ela como César sobre os gauleses.
— Meghann Cleary, ponha este lápis na carteira — trovejou ela.
Assim começou uma esplêndida batalha. Meggie era irremediavelmente canhota. Quando Irmã Aghata lhe dobrou, à força, os dedos da mão direita em torno do lápis e colocou-a na ardósia, Meggie ficou ali sentada, com a cabeça girando e sem nenhuma idéia no mundo sobre como obrigar o membro aflito a fazer aquilo de que a Irmã o afirmava capaz. Sentia-se mentalmente surda, muda e cega; o apêndice inútil que era a sua mão direita estava tão ligado aos seus processos mentais quanto os dedos dos seus pés. Traçou uma linha completamente fora da borda da ardósia, porque não conseguia dobrá-la; deixou cair o lápis como se estivesse paralisada; nada que Irmã Agatha fizesse conseguiria que a mão direita de Meggie formasse um A. Depois, despistadamente, a menina transferia o lápis para a mão esquerda e, com o braço abrangendo canhestramente três lados da ardósia, desenhava uma fieira de bonitos e nítidos aa.
Irmã Agatha venceu a batalha. Numa bela manhã, quando Meggie ocupou o seu lugar na fila, antes de entrar, amarrou-lhe o braço esquerdo ao corpo com uma corda e só a desatou depois que soou o sino de saída, às três da tarde. Até na hora do lanche Meggie teve de comer, andar e brincar com o lado esquerdo imobilizado. Isso levou três meses, mas, afinal, ela aprendeu a escrever direito, de acordo com os dogmas de Irmã Agatha, embora a formação das suas letras nunca chegasse a ser grande coisa. Para certificar-se de que a menina jamais voltaria a usá-lo para escrever, o braço esquerdo permaneceu amarrado ao corpo por mais dois meses; feito isso, Irmã Agatha reuniu todos os alunos da escola para rezarem um terço de agradecimento a Deus Todo-Poderoso por Sua Sabedoria em fazer com que Meggie percebesse o erro dos seus hábitos. Os filhos de Deus eram todos manidestros; os canhotos eram produto do Demônio, sobretudo quando tinham o cabelo vermelho.
Nesse primeiro ano de escola, Meggie perdeu a rechonchudez de bebê e ficou muito magrinha, embora crescesse pouco. Começou a roer as unhas até o sabugo, e teve de obedecer à ordem da Irmã Agatha, que a fazia passar por toda a escola, de carteira em carteira, mostrando as mãos, a fim de que todos vissem como são feias as unhas roídas. E isso quando a metade, ou quase, das crianças entre cinco e quinze anos de idade roía tanto as unhas quanto Meggie.
Fee desencantou a garrafa de aloés e pintou as pontas dos dedos da filha com aquele suco horrível. Todos os membros da família ficaram encarregados de impedir que ela tivesse a oportunidade de lavar os dedos e, quando as outras meninas na escola notaram as manchas pardas reveladoras, Meggie sentiu-se mortificada. Se pusesse os dedos na boca, o gosto era amargo, indescritível, asqueroso e escuro, como o do banho desinfetante para carneiros; desesperada, cuspia no lenço e com ele esfregava os dedos até deixá-los esfolados, mas sem a parte pior das manchas. Paddy foi buscar seu chicotinho, instrumento muito mais delicado que a vara de Irmã Agatha, e obrigou a menina a andar aos saltos pela cozinha. Ele não aceitava a idéia de bater nas mãos, no rosto ou na bunda dos filhos, só nas pernas, que doíam tanto quanto qualquer outra parte do corpo e não se podiam machucar. Entretanto, apesar do aloés, do ridículo, de Irmã Agatha e do chicotinho de Paddy, Meggie continuou roendo as unhas.
Sua amizade com Teresa Annunzio era a alegria de sua vida, a única coisa que tornava a escola suportável. Ela passava sentada o período das lições ansiando pela hora do recreio, em que pudesse sentar-se enlaçando com o braço a cintura de Teresa e tendo o braço de Teresa em torno da sua cintura, debaixo da grande figueira, falando, falando. Corriam histórias sobre a extraordinária família estrangeira de Teresa, suas inúmeras bonecas e seu autêntico aparelho de chá decorado com ramos de salgueiro, imitando as porcelanas chinesas.
Quando Meggie viu o aparelho de chá, ficou extasiada. Eram 108 peças, entre xícaras, pires e pratos, um bule, um jarro de leite e um jarro de creme em miniatura, e minúsculas colheres, facas e garfos, do tamanho certo para bonecas usarem. Teresa possuía um sem-número de brinquedos; além de ser muito mais moça do que a irmã que a precedia; pertencia a uma família italiana, o que significava que era amada com paixão e com franqueza, e satisfeita em todas as suas vontades até o limite dos recursos paternos. As duas crianças se encaravam com respeito, medo e inveja, embora Teresa nunca invejasse a educação calvinística e estóica de Meggie. Ao invés disso, sentia pena dela. Não poder atirar-se aos braços de sua mãe para abraçá-la e beijá-la? Pobre Meggie!
De seu lado, Meggie não chegava a pôr em paralelo a radiante e robusta mãe de Teresa e sua própria mãe, severa e magra, e por isso nunca pensava: Quem me dera que mamãe me abraçasse e beijasse. Mas pensava: Quem me dera que a mãe de Teresa me abraçasse e beijasse. Embora as imagens de abraços e beijos fossem muito menos freqüentes em seu espírito do que as imagens do aparelho de chá decorado com ramos de salgueiro. Tão delicado, tão fino, tão bonito! Oh, quem lhe dera possuir um aparelho de chá decorado com ramos de salgueiro e poder servir o chá da tarde de Agnes numa xícara azul e branca e num pires azul e branco!
Durante a Bênção de sexta-feira na velha igreja com suas lindas e grotescas obras de talha maoris e a pintura maori do forro, Meggie, de joelhos, rezava para ganhar também um aparelho de chá decorado com ramos de salgueiro. Quando o Padre Hayes erguia o ostensório, a Hóstia entremostrava-se através do vidro, entre raios incrustados de pedras preciosas, e abençoava as cabeças inclinadas da congregação. Isto é, todas menos a de Meggie, que nem sequer via a hóstia, ocupada como estava tentando lembrar-se do número exato de pratos que havia no aparelho de chá de Teresa decorado com ramos de salgueiro. E, quando os maoris na galeria do órgão prorrompiam num cântico glorioso, a cabeça de Meggie girava num aturdimento azul, muito distante do catolicismo ou da Polinésia.
O ano escolar aproximava-se do fim, e a aproximação de dezembro e do seu aniversário começava a anunciar o verão, quando Meggie aprendeu como custa caro a realização dos nossos maiores desejos. Estava sentada num tamborete alto, perto do fogão, e Fee a penteava, como sempre, para ir à escola; era um processo complicado. O cabelo de Meggie tinha uma tendência natural para encaracolar, o que a mãe considerava uma sorte muito grande. As meninas de cabelo liso viam-se em desvantagem mais tarde, quando cresciam e tentavam produzir, com fios finos e lisos, massas gloriosas de cabelo ondulado. À noite, Meggie dormia com os cachos, que lhe chegavam quase até os joelhos, penosamente enrolados em pedaços de um velho lençol branco rasgado em longas tiras e, todas as manhãs, trepava no tamborete para que Fee lhe desatasse os trapos e rematasse os cachos.
Usando uma escova de cabelo Mason Pearson, Fee pegava um longo e desgrenhado cacho na mão esquerda e escovava-o destramente em torno do dedo indicador até transformá-lo num brilhante e grosso caracol; em seguida, retirava com cuidado o dedo do centro do rolo e sacudia-o, convertendo-o num cacho comprido, invejavelmente grosso. Repetida a manobra umas doze vezes, os cachos da frente eram depois reunidos no alto da cabeça de Meggie com uma fita branca de tafetá recém-passada a ferro, e ela estava pronta para o dia. Todas as outras meninas iam à escola com o cabelo trançado, reservando os cachos para ocasiões especiais, mas, nesse ponto, Fee era inflexível; Meggie teria cachos o tempo todo, por mais difícil que fosse arranjar, cada manhã, os minutos necessários para penteá-la. Se soubesse das coisas, Fee perceberia que a sua boa vontade era mal orientada, pois a filha possuía, sem sombra de dúvida, o cabelo mais bonito de toda a escola. Insistir nesses cachos, todos os dias, só servia para atrair para Meggie muita inveja e antipatia.
O processo era doloroso, mas Meggie já estava tão acostumada que nem o notava, e não se lembrava de um dia sequer em que ele tivesse sido omitido. O braço musculoso de Fee passava a escova aos puxões, com vontade, pelos nós e embaraços, até que os olhos de Meggie se marejavam e ela precisava agarrar-se com ambas as mãos ao tamborete para não cair. Na segunda-feira da última semana de escola, quando faltavam apenas dois dias para o seu aniversário, agarrada ao tamborete, Meggie sonhava com o aparelho de chá decorado com ramos de salgueiro, embora soubesse que isso nunca passaria de sonho. Havia um no armazém de Wahine, e ela já sabia o suficiente a respeito de preços para entender que o seu custo o colocava muito acima das magras posses de seu pai.
De repente, Fee emitiu um som tão estranho que arrancou Meggie de seu devaneio e fez com que os homens, ainda sentados à mesa do desjejum, virassem, curiosos, a cabeça.
— Santo Deus! — disse Fee.
Paddy saltou em pé, com a estupefação estampada no rosto; nunca a ouvira pronunciar o santo nome de Deus em vão. Ela segurava um cacho de Meggie na mão, a escova suspensa, os traços contraídos numa expressão de horror e repugnância. Paddy e os meninos acotovelaram-se em torno dela; Meggie tentou ver o que estava acontecendo e levou uma pancada de revés, com o lado peludo da escova, que lhe encheu os olhos de lágrimas.
— Olhe! — murmurou Fee, segurando o cacho sob um raio de luz, para que Paddy pudesse ver.
O cabelo era uma massa de ouro que brilhava e rebrilhava ao sol e, a princípio, Paddy não viu coisa alguma. Logo percebeu que uma criatura caminhava sobre o dorso da mão de Fee. Pegou em outro cacho e, na claridade, distinguiu outras criaturas, atarefadas em suas idas e vindas. Viu umas coisinhas brancas presas em blocos ao longo dos fios separados e viu que as criaturas produziam, com energia, novas quantidades de blocos de coisinhas brancas. O cabelo de Meggie era uma colméia ativíssima.
— Ela está com piolhos! — disse Paddy.
Bob, Jack, Hughie e Stu deram uma olhada e, como o pai, recuaram para uma distância segura; somente Frank e Fee ficaram a olhar para o cabelo de Meggie, hipnotizados, enquanto Meggie permanecia sentada, encurvada, perguntando a si mesma o que teria feito. Paddy sentou-se pesadamente em sua cadeira Windsor, com os olhos postos no fogo, piscando sem parar.
Foi aquela maldita carcamaninha! — disse, afinal, e voltou-se para fitar a mulher com expressão feroz. — Malditos bastardos, bando imundo de porcos do diabo!
— Paddy! — gritou Fee, escandalizada.
— Desculpe-me os palavrões, mamãe, mas, quando penso naquela carcamaninha desgraçada passando os seus piolhos para Meggie, dá vontade de ir a Wahine agora mesmo e arrebentar aquele café sebento e imundo! — explodiu ele, batendo selvagemente com o punho sobre o joelho.
— Que foi, mamãe? — Meggie, finalmente, conseguiu perguntar.
— Veja, sua porquinha relaxada! — retrucou a mãe, colocando a mão diante dos olhos de Meggie. — Você está com todo o cabelo cheio dessas coisas que pegou daquela italianinha com quem anda agora tão agarrada. Que é que vou fazer com você?
Meggie olhou, embasbacada, para a minúscula coisinha que vagava às cegas pela pele nua de Fee à procura de um território mais hirsuto, e desatou a chorar.
Sem que fosse preciso mandá-lo, Frank botou o tacho de cobre no fogo, enquanto Paddy percorria a cozinha de um lado para outro, vociferando, a raiva a crescer dentro dele todas as vezes que olhava para Meggie. Por fim, dirigiu-se à fieira de cabides presos à face interna da porta dos fundos, enfiou o chapéu na cabeça e tirou o longo chicote do seu prego.
— vou a Wahine, Fee, e direi àquele maldito carcamano o que pode fazer com suas lascas e seus peixes sujos! Depois verei Irmã Agatha e lhe direi o que penso dela por permitir crianças piolhentas na sua escola!
— Tenha cuidado, Paddy! — suplicou Fee. — E se não tiver sido a italianinha? Mesmo que esteja com piolhos, é possível que ela e Meggie os tenham pegado de outra pessoa qualquer.
— Besteira! — disse Paddy, desdenhoso.
Desceu a escada dos fundos e, dali a poucos minutos, a mulher e os filhos ouviram o tropel dos cascos do ruão na estrada. Fee suspirou, olhando para Frank com expressão desolada.
— Tomara que ele não acabe na cadeia. Frank, acho melhor trazer os meninos para dentro de casa. Hoje não haverá escola.
Um por um, Fee examinou o cabelo dos filhos minuciosamente, depois verificou a cabeça de Frank e o obrigou a fazer o mesmo com a dela. Não havia indícios de que alguém tivesse contraído o mal da pobre Meggie, mas Fee não pretendia arriscar-se. Quando a água no imenso tacho de cobre de lavar roupa começou a ferver, Frank tirou do prego em que estava pendurada a tina de lavar pratos e encheu metade com água quente e metade com água fria. Depois foi buscar no barracão uma lata fechada de cinco galões de querosene, tirou uma barra de sabão de lixívia da lavanderia e começou o trabalho com Bob. Cada cabeça foi rapidamente mergulhada na tina, várias xícaras de querosene bruto foram despejadas sobre ela e cobriu-se a maçaroca enxovalhada e gordurosa de espuma de sabão. O querosene e a lixívia queimavam; os meninos urravam e esfregavam os olhos como doidos, coçando o couro cabeludo avermelhado e formigante e jurando vingar-se sombriamente de todos os carcamanos.
Fee dirigiu-se aonde estava a caixa de costura e dela tirou a tesoura grande. Voltou para junto de Meggie, que não se atrevera a descer do tamborete, apesar de já se haver passado uma hora e tanto, e ficou com a tesoura na mão, olhando para a formosa massa de cabelos. Depois principiou a cortá-los — plec! plec! — até que todos os cachos se empilharam em montes brilhantes no chão e a pele branca de Meggie principiou a aparecer, em áreas irregulares, por toda a cabeça. com a dúvida nos olhos, voltou-se para Frank.
— Raspo tudo? — perguntou, com os lábios apertados.
Frank estendeu a mão, revoltado.
— Oh, mamãe, não! É claro que não! Creio que um bom banho de querosene será mais do que suficiente! Por favor, não faça isso!
Assim, Meggie foi levada para a mesa de trabalho e ali segura sobre a tina, enquanto eles lhe derramavam xícara após xícara de querosene sobre a cabeça e esfregavam sabão corrosivo no que sobrara do cabelo. Quando se deram, afinal, por satisfeitos, ela estava quase cega de tanto esfregar os olhos para tirar o ardor do cáustico, e fileirinhas de bolhas lhe cobriam o rosto e o couro cabeludo. Frank reuniu os cachos cortados numa folha de papel e atirou-os ao fogo, depois pegou a vassoura e colocou-a num recipiente de querosene. Ele e Fee lavaram os cabelos, suspendendo a respiração quando a lixívia lhes queimou a pele, depois Frank foi buscar um balde e esfregou o chão da cozinha com desinfetante para carneiros.
Quando a cozinha ficou tão esterilizada quanto um hospital, eles foram vistoriar os quartos, tiraram todos os lençóis e cobertores das camas, e passaram o resto do dia fervendo, torcendo e estendendo ao sol a roupa da família. Os colchões e travesseiros foram colocados sobre a cerca dos fundos e encharcados de querosene, e os tapetinhos da sala de visitas foram batidos quase a ponto de se desintegrarem. Convocaram-se todos os garotos para ajudar, e só Meggie foi dispensada do serviço por estar de castigo. Ela arrastou-se para trás do celeiro e chorou. A cabeça latejava de dor em virtude da esfregação, das queimaduras e das bolhas; e ela se sentia tão envergonhada que não quis olhar para Frank quando este foi buscá-la, nem se deixou persuadir a entrar.
Por fim, o irmão precisou arrastá-la à força para dentro de casa, bracejando e esperneando, e ela se enfiara num canto quando Paddy voltou, à noitinha, de Wahine. Ele olhou para a cabeça pelada de Meggie e começou a chorar, balançando-se na cadeira Windsor em que se sentara e cobrindo o rosto com as mãos, enquanto a família, não sabendo o que fazer, mudava a todo momento de posição, desejando estar em qualquer outro lugar, menos ali. Fee preparou um bule de chá e serviu uma xícara a Paddy quando este principiou a recuperar-se.
Que aconteceu em Wahine? — perguntou ela. — Você esteve fora muito tempo.
— Em primeiro lugar, fui de chicote à casa do maldito carcamano e atirei-o no bebedouro dos cavalos. Depois, vendo MacLeod em pé, à porta da loja, olhando, contei-lhe o que acontecera. MacLeod reuniu alguns rapazes no botequim e nós jogamos toda a turma de carcamanos no bebedouro dos cavalos, as mulheres também, e derramamos sobre eles alguns galões de desinfetante para carneiros. Depois fui à escola e falei com Irmã Agatha, que me jurou de pés juntos não haver notado nada. Mas arrancou a carcamaninha da carteira a fim de examinar-lhe o cabelo e, naturalmente, encontrou piolhos à beça. Por isso mandou a menina para casa e proibiu-a de voltar à escola enquanto não tivesse acabado com eles. Deixei-a examinando, em companhia de Irmã Declan e Irmã Catherine, todas as cabeleiras da escola, e elas acabaram achando uma porção de cabeças piolhentas. Até as freiras se cocavam como loucas quando supunham que ninguém estava olhando. — Sorriu ao lembrar-se disso, mas tornou a ver a cabeça de Meggie e conteve-se. Olhou para ela de cara feia. — Quanto a você, senhorita, acabaram-se os carcamanos e todos os outros, exceto seus irmãos. Se eles não servirem, paciência. Bob, estou lhe dizendo que Meggie não pode falar com ninguém, a não ser com você e seus irmãos enquanto estiver na escola, entendeu?
Bob assentiu com a cabeça.
— Entendi, sim, senhor.
Na manhã seguinte, Meggie descobriu, horrorizada, que esperavam que ela fosse à escola como de costume.
— Não, não, eu não posso ir! — gemeu, com as mãos na cabeça. — Mamãe, mamãe, não posso ir à escola desse jeito, Irmã Agatha está lá!
— Pode, sim senhora — replicou a mãe, sem dar atenção aos olhares súplices de Frank. — Isso lhe ensinará uma lição.
Assim foi Meggie para a escola, arrastando os pés e com a cabeça envolta numa bandana castanha. Irmã Agatha não lhe deu a menor atenção, mas, à hora do recreio, as outras meninas, agarrando-a, arrancaram-lhe o lenço da cabeça para ver como ficara. O rosto não estava muito desfigurado, mas a cabeça descoberta, cheia de bolhas e inflamada, era um espetáculo pouco recomendável. Assim que viu o que estava acontecendo, Bob aproximou-se e levou a irmã para um canto afastado do campo de críquete.
— Não dê importância a elas, Meggie — disse ele asperamente, amarrando o lenço, muito sem jeito, ao redor da cabeça dela e dando-lhe uma palmadinha nos ombros retesados. — Gatas maldosas! Bem que eu queria ter pegado alguns daqueles troços que havia na sua cabeça; tenho a certeza de que não morreriam. E, quando todo o mundo os tivesse esquecido, eu jogaria alguns em certas cabeças.
Os outros garotos da família Cleary juntaram-se aos dois e ficaram guardando Meggie até o toque do sino.
Teresa Annunzio apareceu na escola por um momento com a cabeça raspada. Tentou atacar Meggie, mas os meninos a seguraram com facilidade. Enquanto se afastava, atirou o braço direito para o ar, com o punho fechado, e bateu com a mão esquerda no bíceps do braço estendido, num gesto fascinante e misterioso, que ninguém compreendeu, mas que os meninos guardaram avidamente para emprego futuro.
— Eu a odeio! — gritou Teresa. — Meu pai terá de sair daqui por causa do que seu pai fez a ele!
Em seguida virou-se e saiu correndo do pátio, uivando.
Meggie continuou de cabeça erguida e olhos enxutos. Estava aprendendo. Não importava o que outras pessoas pensavam, fossem quem fossem! As outras meninas a evitavam, em parte por medo de Bob e Jack, em parte porque a notícia chegara aos ouvidos dos pais e estes lhes haviam recomendado que se afastassem dela; muita amizade com os Clearys geralmente acabava em encrenca. Por isso Meggie passou os últimos dias da escola ”em Conventry”, segundo a expressão deles, o que queria dizer ”no mais completo ostracismo”. Até Irmã Agatha respeitava a nova política e despejava suas cóleras em Stuart, em vez de despejá-las em Meggie.
Como acontecia com todos os aniversários dos pequenos que caíam num dia de aula, a comemoração do natalício de Meggie foi adiada para sábado, quando ela recebeu o tão desejado aparelho de chá decorado com ramos de salgueiro, arrumado numa bela mesa azul-marinho de boneca, com duas minúsculas cadeiras da mesma cor, todas feitas no tempo de folga inexistente de Frank; e Agnes, sentada numa das duas cadeirinhas, usava um vestido novo, também azul, feito nas horas vagas inexistentes de Fee. Meggie olhou, sem entusiasmo, para os desenhos azuis e brancos que enfeitavam cada uma das pecinhas; para as árvores fantásticas com suas engraçadas flores rechonchudas, para os vistosos pagodezinhos, para o par estranhamente silencioso de pássaros e para as minúsculas figuras que não paravam de passar pela ponte retorcida. Tudo aquilo perdera o seu encantamento. Vagamente, porém, compreendeu por que a família se desfizera do último xelim para dar-lhe o que ela, na opinião dos pais e dos irmãos, mais desejava na vida. E assim, submissa, fez chá para Agnes no pequeno bule quadrado e executou todo o ritual, fingindo-se encantada. E continuou, teimosa, a usá-lo por anos e anos a fio, sem jamais quebrar ou mesmo lascar uma única peça. A ninguém ocorreu, em momento algum, que ela detestava o aparelho de chá decorado com ramos de salgueiro, a mesa e cadeiras azuis e o vestido azul de Agnes.
Dois dias antes daquele Natal de 1917, Paddy trouxe para casa seu jornal semanário e uma nova pilha de livros de biblioteca. Pela primeira vez, no entanto, o jornal teve precedência aos livros. Seus redatores tinham concebido uma idéia nova, baseada nas grandes revistas norte-americanas que, de longe em longe, conseguiam chegar à Nova Zelândia; toda a seção central era uma reportagem sobre a guerra. Havia fotografias desfocadas dos soldados do exército australiano-neozelandês escalando os rochedos impiedosos de Galípoli, longos artigos que exaltavam a bravura dos soldados dos Antípodas, reportagens sobre todos os australianos e neozelandeses que tinham ganho a Victoria Cross* desde a sua instituição, e um magnífico desenho de página inteira de um soldado australiano de cavalaria montado em seu cavalo de batalha, o sabre pronto para ser usado e longas plumas sedosas a enfeitar-lhe um dos lados do chapéu desabado.
Na primeira oportunidade, Frank apoderou-se do jornal e leu a reportagem com avidez, absorvendo-lhe a prosa patrioteira, ao passo que seus olhos brilhavam estranhamente.
— Papai, eu quero ir! — exclamou, colocando o papel sobre a mesa com gesto reverente.
A cabeça de Fee virou-se de um golpe, enquanto ela derramava o cozido sobre o fogão e Paddy se enrijecia em sua cadeira Windsor, esquecido do livro.
— Você é muito moço, Frank — disse ele.
— Não, não sou! Tenho dezessete anos, Papai, sou um homem! Por que haverão os hunos e os turcos de matar nossos homens como porcos enquanto eu fico aqui sentado, na maior segurança? Já é tempo de um Cleary fazer a sua parte.
— Você é menor de idade, Frank, eles não o aceitarão.
— Aceitarão se o senhor não fizer objeção — apressou-se Frank em dizer com os olhos escuros fixos no rosto paterno.
— Mas eu faço objeção. Você é o único que está trabalhando agora e nós precisamos do dinheiro que traz para casa, você sabe disso.
— Mas eles me pagarão no exército! Paddy soltou uma gargalhada.
— O xelim** do soldado”**? Pois olhe, garanto-lhe que ganhará muito mais como ferreiro em Wahine do que como soldado na Europa.
— Indo para lá, eu talvez tenha a oportunidade de ser algo mais que um simples ferreiro! E a única maneira que tenho de melhorar, papai.
Victoria Cross: No Reino Unido, a mais alta condecoração militar. (N.T.)
** O xelini do soldado: Referência à antiga prática das Forças Armadas britânicas de pagar um xelim simbólico ao recruta no ato do alistamento. (N.T.)
— Que bobagem! Francamente, rapaz, você não sabe o que está falando. A guerra é terrível. Venho de um país que há mil anos está em guerra, por isso sei o que digo. Você não ouviu os caras da Guerra dos Bôeres conversando? Pois ouça. Quando for a Wahine da próxima vez, preste atenção. E, de qualquer maneira, tenho a impressão de que os malditos ingleses usam os soldados australianos e neozelandeses como carne para os canhões inimigos, colocando-os em lugares onde não querem desperdiçar seus preciosos soldados. Veja como aquele batucador de sabre, Churchill, mandou nossos homens tomarem uma coisa tão inútil quanto Galípoli! Dez mil mortos em cinqüenta mil! Isso é dizimar em dobro.
”E, afinal, por que participaria você das guerras da Mãe Inglaterra? Que foi o que ela já fez por você, além de explorar suas colônias até a última gota de sangue? Se fosse para a Inglaterra, você lá seria desprezado, por ser colono. A Nova Zelândia não corre perigo nenhum. Nem a Austrália. Talvez fosse um grande benefício para a Mãe Inglaterra ser derrotada; já é tempo de alguém fazer a ela o que ela tem feito à Irlanda. Olhe, juro que eu não derramaria uma única lágrima se o Kaiser entrasse marchando com suas tropas do Strand.”
— Mas, papai, eu quero me alistar!
— Você pode querer o que quiser, Frank, mas não vai se alistar, por isso é melhor esquecer a idéia. Você ainda não tem tamanho para ser soldado.
Frank ruborizou-se, seus lábios se juntaram; a estatura pequena sempre constituíra um dos seus pontos mais sensíveis. Na escola, sempre fora o menor dos garotos da classe, e brigava duas vezes mais do que qualquer outra pessoa por causa disso. Ultimamente, uma dúvida terrível principiara a invadir-lhe o ser, pois aos dezessete anos de idade media os mesmos um metro e cinqüenta e oito que media aos catorze; talvez tivesse parado de crescer. Só ele conhecia os sofrimentos a que submetia o corpo e o espírito, estiramento, os exercícios, a esperança inútil.
O trabalho de ferreiro, porém, dera-lhe uma força totalmente desproporcional à altura; se Paddy tivesse escolhido de caso pensado uma profissão para alguém com o temperamento de Frank, não poderia ter escolhido melhor. Aos dezessete anos de idade, Frank era uma pequena estrutura de força pura, que nunca fora derrotado numa briga e cuja fama já se espalhara por toda a península de Taranaki. Sua cólera, sua frustração e seu complexo de inferioridade iam para a luta com ele e, aliados a um corpo em soberbas condições físicas, a um cérebro excelente, ao rancor e a uma vontade indômita, representavam um adversário imbatível, até para os rapazes locais de porte mais avantajado e maior força física.
Quanto maiores e mais rijos fossem, tanto mais queria Frank vê-los beijar o pó. Seus pares davam uma grande volta para manter-se a distância, pois lhe conheciam a agressividade. Ultimamente, ele se afastara dos jovens na busca de desafios, e os homens do lugar ainda se lembravam do dia em que surrara Jim Collins, de modo que o transformara numa pasta, se bem que Jim Collins tivesse vinte e dois anos de idade, medisse 1 e 90 m de altura e fosse capaz de erguer um cavalo. com o braço esquerdo quebrado e costelas partidas, Frank continuara brigando até ver Jim Collins convertido numa massa de carne inerte e ensangüentada a seus pés, e fora preciso empregar a força para impedi-lo de chutar o rosto indefeso. Assim que o braço sarou e as costelas se livraram das tiras de esparadrapo, Frank foi à cidade e levantou um cavalo, só para mostrar que Jim não era o único homem capaz de fazê-lo, e que a proeza não dependia do tamanho.
Como causa do fenômeno, Paddy conhecia muito bem a reputação de Frank e compreendia-lhe a batalha para conquistar respeito, mas isso não o impedia de zangarse quando a briga interferia no trabalho da forja. Sendo ele mesmo um homem pequeno, Paddy tivera seu quinhão de brigas para provar a própria coragem, mas na sua parte da Irlanda ele não era tão pequeno assim em confronto com os outros e, quando chegara à Nova Zelândia, onde os homens são mais altos, já era homem feito. Desse modo, a altura nunca representara para o pai a obsessão que representava para o filho.
Agora observava atentamente o rapaz, procurando compreendê-lo e não o conseguindo; aquele sempre fora o mais afastado do seu coração, por mais que ele lutasse por não fazer discriminação entre os filhos. Sabia que isso mortificava a mulher, que ela se preocupava com o mudo antagonismo entre eles, mas nem o amor que sentia por Fee superava a exasperação que Frank lhe provocava.
As mãos curtas e bem torneadas de Frank estavam estendidas sobre o jornal aberto em atitude defensiva, e nos olhos cravados no rosto de Paddy via-se uma curiosa mistura de súplica e orgulho, mas um orgulho demasiado teimoso para suplicar. Como era estranho aquele rosto! Nada tinha de Cleary e nada tinha de Armstrong, exceto talvez uma ligeira semelhança com Fee ao redor dos olhos, se os olhos de Fee fossem escuros e fuzilassem e chispassem, como os de Frank, à menor provocação. De uma coisa não carecia o rapaz, e essa coisa era coragem.
O assunto terminou de maneira abrupta com a observação de Paddy acerca da altura de Frank; a família comeu cozido de coelho num silêncio incomum, e até Hughie e Jack travaram, cautelosos, uma tímida conversa a meia voz, pontilhada de gargalhadas escandalosas. Meggie recusou-se a comer, olhos fixos no irmão, como se este devesse desaparecer de sua vista a qualquer momento. Frank comeu do que havia no prato por algum tempo e, assim que lhe foi possível, pediu desculpas e levantou-se da mesa. Um minuto depois, todos ouviram os golpes surdos do machado, vindos do depósito de lenha; Frank atacava os troncos de madeira de lei que Paddy trouxera com a intenção de guardá-los para os demorados lumes do inverno.
Quando todo mundo a supunha na cama, Meggie esgueirou-se para fora do quarto, pela janela, e desceu até o depósito de lenha. Era uma área importantíssima na existência cotidiana da casa; cerca de noventa metros quadrados de chão recoberto de uma grossa camada de lascas de madeira e cascas de árvores, com grandes e altas pilhas de um lado, esperando para ser cortadas e, do outro, paredes que se diriam mosaicos de lenha muito bem talhada, do tamanho certo para caber na fornalha do fogão. No espaço livre, três cepos de árvores ainda enraizados eram utilizados para rachar a lenha a alturas diferentes.
Frank não estava em nenhum dos cepos; entretinha-se em cortar um tronco maciço de eucalipto com a intenção de reduzi-lo a um tamanho que lhe permitisse colocálo no cepo mais baixo e mais largo. O tronco de sessenta centímetros de diâmetro jazia sobre a terra, com as extremidades imobilizadas por grampos de ferro, e Frank, de pé em cima dele, dividia-o em dois pedaços, golpeando-o entre as pernas abertas. O machado movia-se tão depressa que assobiava, e o cabo produzia um silvo separado, ao ir e vir entre as palmas escorregadias de suas mãos. E subia-lhe, reluzente, acima da cabeça, para descer logo depois num opaco borrão prateado, talhando um bom pedaço de madeira dura em forma de cunha, com a mesma facilidade com que cortaria um pinheiro ou uma árvore decídua. Lascas de madeira voavam em todas as direções, o suor escorria do peito e das costas nuas de Frank, e ele amarrara o lenço ao nível das sobrancelhas para que o suor não o cegasse. O trabalho naquelas condições era perigoso, pois lhe bastava calcular mal o tempo do golpe ou enganar-se na direção para ficar sem um pé. Enrolara nos pulsos os braceletes de couro destinados a absorver o suor dos braços, mas as mãos delicadas, sem luvas, seguravam com leveza o cabo do machado e brandiam-no com habilidade e precisão.
Meggie acocorou-se ao lado da camisa e da camiseta que ele despira e ficou a observá-lo, presa de um temor reverente. Três machados de reserva jaziam ali perto, pois a madeira do eucalipto embotava o mais afiado dos gumes numa volta de mão. Ela pegou um deles pelo cabo e arrastou-o até colocá-lo sobre os joelhos, desejando poder rachar lenha como Frank. O instrumento era tão pesado que a menina mal conseguia levantá-lo. Os machados coloniais tinham uma lâmina só, tão afiada que até podia cortar um fio de cabelo, pois os machados de duas lâminas eram demasiado leves para o eucalipto. A parte posterior da cabeça, com quase três centímetros de grossura, ainda levava lastro, e o cabo que passava através dela ficava bem preso no lugar por meio de cunhas de madeira. Se houvesse folga entre o cabo e a cabeça, esta poderia desprender-se daquele em pleno golpe e, voando pelo ar com a violência e a rapidez de uma bala de canhão, matar alguém.
Frank trabalhava quase instintivamente à luz cada vez mais fraca; Meggie esquivava-se das lascas com a facilidade da longa prática e esperava, paciente, que ele a visse. O tronco estava quase decepado. Frank deu meia-volta, ofegando, atirou de novo o machado para o alto e começou a cortar do outro lado. Fizera um talho profundo e estreito, para não desperdiçar madeira e apressar o processo; à medida que se aproximava do centro do tronco, a cabeça do machado desaparecia completamente no interior do talho, e as grandes cunhas de madeira lhe voavam cada vez mais próximas do corpo. Sem fazer caso delas, Frank cortava ainda mais depressa. O tronco partiu-se ao meio de repente e ele saltou de lado ao mesmo tempo, sentindo que a madeira se partia antes até da última mordida do machado. E, enquanto o tronco se dividia em dois pedaços, ele punha os pés no chão, sorrindo; mas não era um sorriso feliz.
Ele voltou-se para apanhar outro machado e viu a irmã pacientemente sentada, envolta em sua bela camisola abotoada de alto a baixo. Ainda lhe causava uma estranha impressão o cabelo enfeixado numa porção de aneizinhos curtos em vez de estar arrumado nos trapos costumeiros, mas Frank chegou à conclusão de que o estilo infantil lhe ficava bem, e desejou que ele pudesse permanecer assim. Aproximando-se dela, agachou-se com o machado entre os joelhos.
— Como foi que você saiu, sua malandrinha?
— Trepei na janela depois que Stu pegou no sono e pulei.
— Se não tomar cuidado, você acabará virando uma machonazinha.
— Não faz mal. Acho melhor brincar com os meninos do que brincar sozinha.
— Também acho. — Ele sentou-se com as costas apoiadas num tronco e, com uma expressão de cansaço, virou a cabeça para ela. — Que aconteceu, Meggie?
— Frank, você não vai mesmo embora, vai? — Ela pôs as mãos com as unhas estropiadas na coxa dele e ergueu os olhos, ansiosa, para o irmão, com a boca aberta porque o nariz, entupido de lágrimas contra as quais lutava, não a deixava respirar direito.
— Pode ser que sim, Meggie — respondeu ele com brandura.
— Oh, Frank, não pode! Mamãe e eu precisamos de você. Francamente, não sei o que faremos sem você!
Ele sorriu apesar do seu sofrimento, ouvindo-a imitar inconscientemente o modo de falar de Fee.
— As coisas, Meggie, nem sempre acontecem como a gente gostaria que acontecessem. Você já devia saber disso. Nós, os Clearys, fomos ensinados a trabalhar juntos pelo bem de todos e a nunca pensar em nós mesmos primeiro. Mas não concordo com isso; acho que devíamos poder pensar primeiro em nós. Quero ir embora porque tenho dezessete anos e já é hora de eu dar um jeito na vida. Mas papai diz que não, que sou necessário em casa pelo bem da família em geral. E porque ainda não fiz vinte e um anos, tenho de fazer o que papai diz.
Meggie assentiu vigorosamente com a cabeça, tentando desenredar os fios da explicação de Frank.
— Bem, Meggie, pensei muito em tudo isso. E está decidido: vou-me embora, e pronto. Sei que você e mamãe terão saudade de mim, mas Bob está crescendo depressa, e papai e os meninos não sentirão minha falta. É só o dinheiro que trago para casa que interessa a papai.
— Você não gosta mais de nós, Frank?
Ele voltou-se para estreitá-la nos braços, abraçando-a e acariciando-a com um prazer torturado, feito em sua maior parte de mágoa, sofrimento e angústia.
— Oh, Meggie! Eu gosto de você e de mamãe mais do que de todos os outros juntos! Meu Deus, por que você não é um pouquinho mais velha, para podermos conversar? Não, talvez seja melhor assim, você tão pequenininha, talvez seja melhor...
Ele largou-a de súbito, lutando por recobrar o domínio de si mesmo, rolando de um lado para outro a cabeça encostada ao tronco, enquanto a garganta e a boca trabalhavam. Depois olhou para ela.
— Quando for mais velha, Meggie, você compreenderá melhor.
— Por favor, Frank, não vá embora — repetiu a menina. Ele riu, e seu riso era quase um soluço.
— Oh, Meggie! Você não ouviu nada do que eu disse? Bem, de qualquer maneira isso não tem muita importância. O principal é não dizer a ninguém que me viu aqui esta noite, entendeu? Não quero que pensem que você está metida nisso.
— Ouvi, sim, Frank, ouvi tudo — disse Meggie. — E prometo não dizer nada a ninguém. Mas como eu gostaria que você não precisasse ir embora!
Ela era tão pequena que não saberia explicar ao irmão o que não passava de um impulso irracional de seu coração; quem mais haveria ali, se Frank se fosse? Ele era o único que lhe dava uma afeição franca, o único que a punha no colo e abraçava. Quando ela era menorzinha, o pai a pegava muito, mas, desde que ela começara a freqüentar a escola, ele já não a deixava sentar-se nos seus joelhos nem enlaçar-lhe o pescoço com os braços. E dizia: ”Você agora está crescidinha, Meggie.” E sua mãe vivia sempre tão ocupada, tão cansada, tão absorta nos meninos e na casa! Era Frank quem estava mais perto do seu coração, era Frank quem avultava como um astro no seu limitado firmamento. O único que parecia gostar de sentar-se para conversar com ela, e explicava as coisas de um modo que ela compreendia. Desde o dia em que Agnes perdera o cabelo Frank estivera lá e, apesar dos seus dolorosos contratempos, nada, a partir de então, conseguira penetrar-lhe o coração. Nem as varadas, nem Irmã Agatha, nem os piolhos, porque Frank estava lá para a consolar e confortar.
A menina, porém, levantou-se e conseguiu sorrir.
— Mas se você precisa mesmo ir, Frank, está bem — rematou.
— Meggie, você devia estar na cama, e acho melhor voltar para lá antes da inspeção da mamãe. Vamos, corra, depressa!
A lembrança espantou tudo o mais de sua cabeça; ela olhou para o chão à procura da barra da camisola, enfiou-a entre as pernas, segurou-a como uma cauda ao lado e pôs-se a correr, enquanto os pés nus atiravam para os lados estilhaços e lascas afiadas de madeira.
De manhã, Frank se fora. Quando Fee apareceu para tirar Meggie da cama, sua expressão era sombria e distante; Meggie saltou da cama como um gato escaldado e vestiu-se sem pedir a ajuda de ninguém, apesar de todos os botõezinhos.
Na cozinha, os meninos se haviam sentado, tristonhos, em torno da mesa, e a cadeira de Paddy estava vazia. Vazia também estava a de Frank. Meggie esgueirou-se até o seu lugar e ali se deixou ficar, com os dentes batendo de medo.
Concluído o desjejum, Fee calçou-os no quintal com expressão sombria e, atrás do celeiro, Bob transmitiu a notícia a Meggie.
Frank fugiu — murmurou ele.
Talvez tenha ido apenas a Wahine — sugeriu Meggie.
Não, boba! Ele foi se alistar no exército. Oh, como eu gostaria de ter idade bastante para ir com ele! Sujeito de sorte!
— Pois eu gostaria que ele ainda estivesse em casa. Bob encolheu os ombros.
— Você não passa de uma menina, e eu não esperaria ouvir outra coisa de uma menina.
A observação, normalmente explosiva, não foi contestada; Meggie entrou em casa à procura da mãe, a fim de saber o que poderia fazer.
— Onde está papai? — perguntou a Fee, depois que esta a incumbiu de passar os lenços a ferro.
— Foi a Wahine.
— Ele trará Frank de volta? Fee respondeu com aspereza:
— É impossível tentar guardar um segredo nesta família. Não, ele não pegará Frank em Wahine, e você sabe disso. Mas vai telegrafar à polícia e ao exército em Wanganui, e eles o trarão de volta.
— Oh, mamãe, espero que o encontrem! Não quero que Frank vá embora!
Fee atirou o conteúdo da batedeira de manteiga sobre a mesa e atacou o monte amarelo e aquoso com duas pás de madeira.
— Nenhum de nós quer que Frank vá embora. É por isso que seu pai foi ver se o trazem de volta. — Os lábios lhe tremeram por um momento e ela bateu a manteiga com mais força. — Pobre Frank! — suspirou, não para Meggie mas para si mesma. — Não sei por que os filhos hão de pagar pelos nossos pecados. Meu pobre Frank, tão fora da realidade...
Notando, então, que Meggie parara de passar os lenços, cerrou os lábios e não disse mais nada.
Três dias depois, a polícia trouxe Frank de volta. Ele lutara como um leão, contou a Paddy o sargento da escolta que vinha de Wanganui.
— Puxa! Que belo lutador o senhor tem aí! Quando percebeu que os rapazes do exército não estavam para brincadeiras, partiu como um raio, desceu a escada de um salto e saiu em desabalada carreira pela rua com dois soldados atrás dele. Se não tivesse tido o azar de topar com um policial de serviço, acredito que teria conseguido fugir. Mas lutou como um doido; foram precisos cinco para botar-lhe as algemas.
Assim falando, tirou as correntes pesadas de Frank e empurrou-o com brutalidade pelo portão adentro; o rapaz acabou dando, sem querer, um encontrão no pai e recuou, como se tivesse levado uma ferroada.
Escondidas ao lado da casa, alguns metros além dos adultos, as crianças observavam e aguardavam. Bob, Jack e Hughie mantinham-se tensos, esperando que Frank travasse outra luta; Stuart limitava-se a olhar, tranqüilo, da janela de sua alma compassiva e pacífica; Meggie mantinha as mãos nas faces, esticando-as e massageando-as, apavorada com a idéia de que alguém pudesse machucar Frank.
Ele voltou-se a fim de olhar primeiro para a mãe, os olhos negros penetrando os olhos de cor cinza, numa escura e amarga comunhão que nunca fora expressa e nunca o seria. Desdenhoso e causticante, o olhar azul e feroz de Paddy intimidou-o, como se fosse o que ele já esperava, e as pálpebras abaixadas de Frank reconheceram-lhe o direito de estar zangado. A partir desse dia, Paddy nunca mais dirigiu ao filho palavras que não fossem da mais estrita civilidade. Entretanto, não foi ele, mas as crianças que Frank achou mais difíceis de encarar, envergonhado e desconcertado, pássaro rebelde trazido de volta para casa sem ter explorado e conhecido o céu, as asas cortadas rente e o canto afogado no silêncio.
Meggie esperou que Fee tivesse feito a ronda de todas as noites para insinuar-se pela janela aberta e transpor, num pulo, a distância que a separava do quintal. Sabia onde Frank estaria, no meio do feno no celeiro, a salvo de olhos espreitantes e de seu pai.
— Frank, Frank, onde é que você está? — perguntou num cochicho audível ao introduzir-se no silencioso negrume do celeiro, enquanto explorava, com os dedos dos pés, sensível como um animal, o terreno desconhecido à sua frente.
— Aqui, Meggie — chegou-lhe a voz cansada do irmão, que nem parecia a voz de Frank, tão sem vida e sem paixão.
Seguindo o som, ela foi dar com ele estendido sobre o feno, e aconchegou-se ao irmão, envolvendo-lhe o peito com os braços até onde estes podiam chegar.
— Oh, Frank, sinto-me tão feliz por você estar de volta — disse ela.
Ele gemeu, escorregou pelo feno até ficar mais baixo do que ela, e descansou a cabeça no corpo da irmã. Meggie agarrou-se-lhe ao cabelo espesso e liso, cantarolando. Estava tão escuro que ele não podia vê-la, e a substância invisível da solidariedade dela desmanchou-o. Frank desatou a chorar, sacudindo o corpo de Maggie, enquanto suas lágrimas ensopavam a camisola da menina. Meggie não chorou. Alguma coisa em sua alma era bastante velha e bastante feminina para sentir a alegria irresistível e pungente de ser necessária; ficou sentada, balançando a cabeça dele para a frente e para trás, para a frente e para trás, até que a mágoa dele se consumiu no vazio.
1921-1928 — RALPH
A estrada de Drogheda não lhe trazia lembranças da juventude, pensou o Padre Ralph de Bricassart, os olhos semicerrados para resguardar-se da luz ofuscante, enquanto o seu novo Daimler pulava nos rodeiros do caminho que se estendia pela comprida relva prateada. Aquilo não era, positivamente, a linda, brumosa e verde Irlanda. E Drogheda? Nem campo de batalha, nem alta sede de poder. Seria isso rigorosamente exato? Mais disciplinado nesses dias, mas agudo como sempre, o seu senso de humor invocou mentalmente uma imagem da cromwelliana Mary Carson distribuindo sua marca particular de malevolência imperialista. Tampouco se tratava de uma comparação exagerada; a dama sem dúvida detinha tanto poder e controlava tantos indivíduos quanto qualquer déspota de antanho.
A última porteira surgiu depois de uma touça de buxos e de um eucaliptal; o automóvel estacou, vibrando. Pondo na cabeça um inadequado chapéu cinzento de abas largas, a fim de precaver-se contra o sol, Padre Ralph apeou do carro, arrastou-se até o ferrolho de aço sobre o mourão de madeira, puxou-o para trás e abriu a porteira com cansada impaciência. Havia vinte e sete porteiras entre o presbitério de Gillanbone e a residência de Drogheda, e cada uma delas significava que ele precisava parar, descer do carro, abrir a porteira, entrar no carro, conduzi-lo até o outro lado, parar, descer e voltar para fechar a porteira, retornar ao carro e continuar até a porteira seguinte. Muitas e muitas vezes ansiara por dispensar ao menos a metade do ritual e disparar pelo caminho deixando as porteiras abertas como uma série de bocas espantadas atrás de si; mas nem mesmo a aura da sua profissão, que inspirava um respeitoso temor, impediria os donos das porteiras de recriminá-lo por isso. Ele gostaria que os cavalos fossem tão rápidos e eficientes quanto os automóveis, porque o cavaleiro não precisava desmontar para abrir e fechar porteiras.
— Não há nada que não tenha sua desvantagem — disse ele, dando uma palmadinha no painel de instrumentos do novo Daimler e partindo para o último quilômetro e meio de distância relvosa e sem árvores do Home Paddock*, deixando a porteira aferrolhada atrás de si.
Até para um irlandês acostumado a castelos e mansões, a residência australiana era imponente. Sendo a mais velha e a maior propriedade do distrito, Drogheda fora dotada pelo seu último e afeiçoadíssimo proprietário de uma residência condigna. Feita de blocos de arenito amarelo-manteiga, talhados à mão em pedreiras situadas a oitocentos quilômetros a leste, a casa tinha dois pavimentos, e sua construção obedecera a um desenho austeramente georgiano, com grandes janelas de muitas vidraças e ampla varanda com pilares de ferro à volta de todo o pavimento inferior. Adornando os lados de cada janela havia venezianas pretas de madeira, tão ornamentais quanto úteis, pois no calor do verão eram fechadas para manter fresco o interior da casa.
Embora fosse outono e a esguia trepadeira estivesse verde, a glicínia plantada no dia em que se concluiu a construção da casa, cinqüenta anos atrás, era uma sólida massa de plumas lilases amotinadas pelas paredes externas e pelo teto da varanda. Vários acres de gramado meticulosamente cortado rodeavam a casa, juncados de jardins formais, ainda coloridos graças às rosas, aos goivos, às dálias e aos cravos-de-defunto. Uma plantação de magníficos eucaliptos de pálidos troncos brancos e pequenas folhas amontoadas a vinte e tantos metros acima do solo protegiam a casa do sol impiedoso, com os galhos engrinaldados de magenta brilhante onde neles se entrelaçavam as buganvílias. Até as indispensáveis monstruosidades do interior, os tanques de água, espessamente vestidos de robustas trepadeiras nativas, rosas e glicínias, conseguiam parecer mais decorativas que funcionais. Graças a sua paixão pela residência de Drogheda, o finado Michael Carson fora pródigo em matéria de tanques de água; segundo os boatos que corriam, Drogheda poderia dar-se ao luxo de manter seus relvados verdejantes e seus canteiros floridos ainda que não chovesse durante dez anos.
Quando a gente se aproximava do Home Paddock a casa da sede e seus eucaliptos eram o que primeiro chamava a atenção, mas, logo, o visitante notava as muitas outras casas térreas de arenito amarelo atrás e dos lados dela, ligadas à estrutura principal por rampas cobertas e disfarçadas por trepadeiras. Amplo caminho de cascalho substituía o caminho de rodeiros do Home Paddock e conduzia, depois de uma curva, a uma área circular de estacionamento ao lado da casa-grande, continuando para além dela até o centro da verdadeira atividade de Drogheda: os currais, o barracão da tosquia, os celeiros. Pessoalmente, o Padre Ralph preferia as gigantescas aroeiras-moles que davam sombra a todos esses edifícios e aos eucaliptos da casa principal. As aroeiras-moles possuíam densas frondes verdes, estuantes de vida com o zumbido das abelhas, exatamente a espécie preguiçosa de folhagem que se apropriava com precisão a uma fazenda.
* Home Paddock: Na Austrália, área circular e cercada, ao ar livre, com vários quilômetros de diâmetro. (N.T.)
Enquanto Padre Ralph estacionava o automóvel e atravessava o gramado, a criada esperava na varanda da frente, com o rosto sardento desmanchado em sorrisos.
Bom-dia, Minnie — disse ele.
Oh, Padre, como é bom vê-lo nesta manhã tão bonita — disse ela no seu forte sotaque irlandês, segurando a porta aberta com uma das mãos e estendendo a outra para receber-lhe o chapéu surrado e tão pouco clerical.
No vestíbulo escuro, com os ladrilhos de mármore e a grande escada de corrimão de bronze, ele esperou que Minnie lhe fizesse um sinal com a cabeça para entrar na sala.
Sentada em sua bergère ao pé de uma janela aberta, que se erguia por quatro metros e meio entre o soalho e o teto, Mary Carson parecia indiferente ao ar frio que invadia a sala. Seu cabelo vermelho era quase tão brilhante quanto o fora na juventude; e, embora a pele áspera e sardenta houvesse ganho mais algumas manchas com a idade, as rugas eram poucas para uma mulher de sessenta e cinco anos e antes se diriam uma fina rede de minúsculos coxins em forma de diamantes, que lembrava um acolchoado ornamental. As únicas indicações da sua natureza intratável residiam nos dois vincos profundos que desciam de cada lado do nariz romano para terminar nos cantos da boca, puxando-os para baixo, e no olhar pétreo dos olhos azul-pálidos.
Padre Ralph cruzou em silêncio o tapete Aubusson e beijou-lhe as mãos; o gesto apropriava-se bem a um homem alto e gracioso como ele, especialmente por usar uma simples batina preta que lhe dava, até certo ponto, um ar cortesão. com o olhar sem expressão repentinamente coquete e brilhante, Mary Carson quase sorria.
— Toma chá, Padre? — perguntou.
— Depende da senhora. Se quiser ouvir missa... — respondeu ele, sentando-se na cadeira defronte dela, cruzando as pernas e erguendo um pouco a batina, o suficiente para mostrar que, debaixo dela, usava calças e botas de cano longo, até os joelhos, numa concessão à colonização da sua paróquia. — Eu lhe trouxe a comunhão, mas, se quiser ouvir missa, estarei pronto para rezá-la em poucos minutos. Não me importa jejuar por mais algum tempo.
— O senhor é bom demais comigo, Padre — disse ela, jovial, sabendo muito bem que ele, como toda a gente, não prestava homenagem a ela, mas ao seu dinheiro. — Tome chá, por favor — prosseguiu. — Basta-me a comunhão.
Ele não deixou que o ressentimento lhe transparecesse no rosto; aquela paróquia fora excelente para o seu domínio de si mesmo. Se alguma vez lhe fosse oferecido o ensejo de sair da obscuridade em que o lançara o seu temperamento, não tornaria a cometer o mesmo erro. E, se jogasse bem as cartas, aquela velha talvez fosse a resposta às suas preces.
— Devo confessar, Padre, que o ano passado foi muito agradável — disse ela. — O senhor é um pastor muito mais satisfatório do que o velho Padre Kelly, que Deus lhe apodreça a alma.
Ao pronunciar a última frase, a voz lhe soou desarmoniosa e vingativa. Os olhos dele ergueram-se para o rosto dela, piscando.
— Minha querida Sra. Carson! Eis aí um sentimento não muito católico.
— Mas é a verdade. Ele era um velho bêbado, embrutecido pelo álcool, e tenho absoluta certeza de que Deus lhe apodrecerá a alma como a bebida lhe apodreceu o corpo. — Inclinou o corpo para a frente. — Agora já o conheço muito bem; creio que posso fazer-lhe algumas perguntas, não lhe parece? Afinal de contas, o senhor tem plena liberdade para utilizar Drogheda como seu recreio particular, aprendendo a ser pastor de ovelhas, aperfeiçoando sua equitação, fugindo às vicissitudes da vida em Gilly. Tudo a convite meu, é claro, mas, ainda assim, acho que mereço algumas respostas, não acha também?
Ele não gostava que o lembrassem de que precisava ser grato, mas já estava à espera do dia em que ela pensaria ter sobre ele direitos suficientes para começar a fazer exigências.
— É evidente que merece, Sra. Carson. Nunca lhe agradecerei o bastante por me permitir livre acesso a Drogheda e por todos os seus presentes... meus cavalos, meu carro.
— Que idade tem? — perguntou ela, sem mais preâmbulos.
— Vinte e oito anos.
— É mais moço do que eu supunha. Mesmo assim, eles não mandam padres como o senhor para sítios como Gilly. Que foi que fez para que eles o enviassem a um lugar como este, onde Judas perdeu as batas?
— Insultei o bispo — disse o Padre, calmamente, sorrindo.
— Não havia de ser outra coisa! Mas não posso imaginar um sacerdote com os seus talentos especiais sentindo-se feliz num lugar como Gillanbone.
— É a vontade de Deus.
— Não diga disparates! O senhor está aqui em virtude de falhas humanas... suas e do bispo. Só o Papa é infalível. Está totalmente fora do seu elemento natural em Gilly, todos sabemos disso, embora nos sintamos gratos por ter alguém assim, para variar, em lugar dos vadios tonsurados que costumam nos mandar. Mas o seu elemento natural está em algum corredor do palácio eclesiástico, e não aqui, entre cavalos e carneiros. Ficaria magnífico com a púrpura cardinalícia.
— Receio que não haja nenhuma possibilidade disso. Imagino que Gillanbane não seja exatamente o epicentro do mapa de Sua Excelência o Legado Papal. E olhe que poderia ser pior. Aqui tenho a senhora e tenho Drogheda.
Ela aceitou o elogio rasgado com o espírito que a ditara, saboreando a beleza, a polidez e o espírito farpado e sutil do interlocutor; este daria verdadeiramente um magnífico cardeal. Em toda a sua vida não se lembrava de ter visto homem mais belo, nem que usasse a beleza daquela maneira. Ele não podia deixar de ter consciência da própria aparência: a altura e as perfeitas proporções do corpo, os traços finos e aristocráticos, o modo com que tinham sido reunidos todos os elementos físicos com um zelo pelo aspecto do produto final que Deus não prodigalizava a todas as suas criações. Desde os anéis pretos e soltos do cabelo e o azul impressionante dos olhos até as mãos e os pés pequenos e graciosos, era perfeito. Sim, devia ter consciência da própria pessoa. E, no entanto, havia nele um alheamento, um modo todo seu de fazê-la sentir que a beleza nunca o escravizara e nunca o escravizaria. Utilizá-la-ia sem escrúpulo para conseguir o que desejava, se ela o ajudasse, mas não como seu amante; antes como se julgasse abaixo da crítica as pessoas que se deixavam influenciar por ela. E Mary Carson daria muita coisa para saber o que, em sua vida pregressa, o fizera assim.
Era curiosa a quantidade de padres que tinham a beleza de Adônis e o magnetismo sexual de Don Juan. Esposariam eles o celibato como refúgio contra as conseqüências?
— Por que tolera Gillanbone? — perguntou ela. — Não seria preferível renunciar ao sacerdócio a suportar isto aqui? O senhor seria rico e poderoso numa série de campos com os seus talentos, e não me diga que a idéia do poder pelo menos não o seduz.
A sobrancelha esquerda dele ergueu-se.
— A senhora é católica, minha querida Sra. Carson. Sabe que meus votos são sagrados. Serei padre até morrer. Não posso negá-lo.
Ela riu-se, desdenhosa.
— Ora, deixe disso! Acredita realmente que, se renunciasse aos seus votos, seria perseguido pelos quatro cantos da terra com raios, trovões, sabujos e espingardas de caça?
— Está claro que não. Nem a suponho tão estúpida que pense que é o medo do castigo que me mantém encerrado no aprisco sacerdotal.
— Oh! Como é suscetível, Padre de Bricassart! Nesse caso, o que o segura? O que o impele a suportar a poeira, o calor e as moscas de Gilly? Pelo que lhe é dado saber, a sentença pode ser até de prisão perpétua.
Uma sombra anuviou momentaneamente os olhos azuis, mas ele sorriu, com pena dela.
— A senhora é um grande consolo, não é mesmo? — Seus lábios se separaram, o sacerdote ergueu a vista para o forro e suspirou. — Fui educado desde o berço para ser padre, mas é muito mais do que isso. Como poderei explicá-lo a uma mulher? Sou um vaso, Sra. Carson, e, às vezes, estou cheio de Deus. Se fosse um padre melhor, não haveria períodos de vacuidade. E a plenitude, ou seja, a unicidade com Deus, não é uma questão de lugar. Ocorrerá se eu estiver em Gillanbone ou no palácio do bispo. Mas é difícil defini-la, pois até para os padres é um grande mistério. Uma posse divina, que outros homens jamais conhecerão. Talvez seja por isso. Abandoná-lo? Eu não poderia.
— com que, então, é um poder, não é? Nesse caso, por que seria dado aos padres? Que é que o faz pensar que o simples besuntar da crisma durante uma cerimônia exaustivamente longa é capaz de dá-lo a algum homem?
O religioso sacudiu a cabeça.
— Ouça, são anos de vida, antes até de chegar ao ponto da ordenação. O cuidadoso desenvolvimento de um estado de espírito que abre o vaso para Deus. É algo que se adquire! Que se adquire todos os dias. Sabe quais são os propósitos dos votos? Que nenhuma coisa mundana se interponha entre o padre e o seu estado de espírito... nem o amor de uma mulher, nem o amor ao dinheiro, nem a relutância em obedecer às ordens de outros homens. A pobreza não é novidade para mim; não venho de família rica. Aceito a castidade sem que me pareça difícil mantê-la. E a obediência? No meu caso, é a mais dura das três. Mas obedeço, porque, se eu me considerar mais importante do que minha função como receptáculo de Deus, estarei perdido. Obedeço. E, se for preciso, estarei disposto a aceitar Gillanbone como uma sentença de prisão perpétua.
— Então, o senhor é um tolo — disse ela. — Também acho que há coisas mais importantes do que amantes, mas o fato de ser um receptáculo de Deus não é uma delas. Estranho. Nunca o supus capaz de acreditar em Deus com tamanho ardor. Imaginei que talvez fosse um homem capaz de duvidar.
— Eu duvido. Qual é o homem que pensa e não duvida? É por isso que, às vezes, estou vazio. — Olhou para além dela, para alguma coisa que ela não podia ver. — Sabe que eu abriria mão de todas as ambições, de todos os desejos que existem em mim, pela oportunidade de ser um padre perfeito?
— A perfeição em qualquer coisa — disse Mary Carson — é insuportavelmente enfadonha. Prefiro um toque de imperfeição.
Ele riu-se, encarando-a com uma admiração em que havia uma ponta de inveja. Era uma mulher notável.
A viuvez dela tinha trinta e três anos de idade e seu único filho, um menino, morrera na infância. Por causa do seu status peculiar na comunidade de Gillanbone, não aceitara nenhuma das propostas que lhe haviam feito os homens mais ambiciosos do seu círculo de amizades; como viúva de Michael Carson, era indiscutivelmente uma rainha, mas, como esposa de outro homem, teria de transferir para esse homem o controle de tudo o que possuía. E não era esse o tipo de vida que Mary Carson ambicionava: ser o segundo violino. Por isso abjurara a carne, preferindo manipular o poder; seria inconcebível que arranjasse um amante porque, em se tratando de mexericos, Gillanbone era tão receptiva quanto o fio de uma corrente elétrica. Mostrar-se humana e fraca não fazia parte da sua obsessão.
Mas agora chegara a uma idade que a deixava oficialmente imune aos impulsos do corpo. Se o novo e jovem padre cumprisse com assiduidade suas obrigações para com ela e ela o recompensasse com presentinhos, como um automóvel, não haveria nisso inconveniente algum. Robusto pilar da Igreja durante toda a vida, sustentara a paróquia e o seu chefe espiritual de maneira apropriada, até quando o Padre Kelly entrecortava de soluços as orações da missa. Não era só ela que se sentia caridosamente inclinada em relação ao sucessor do Padre Kelly; o Padre Ralph de Bricassart tornara-se merecidamente popular entre todos os membros do seu rebanho, ricos ou pobres. Quando os paroquianos mais distantes não podiam ir a Gilly para vê-lo, ele ia procurálos, e até ganhar o automóvel de Mary Carson sempre viajara a cavalo. Sua paciência e sua bondade lhe haviam granjeado a afeição de todos e o amor sincero de alguns; Martin King, de Bugela, remobiliara o presbitério gastando um dinheirão, Dominic O’Rourke, de Dibban-Dibban, pagava-lhe o ordenado de uma boa governanta.
Nessas condições, do alto do pedestal da sua idade e da sua posição, Mary Carson acreditava poder comprazer-se com segurança no Padre Ralph; gostava de medir seu espírito com um cérebro tão inteligente quanto o dela, gostava de prever-lhe as reações porque nunca tinha a certeza de que realmente as previa.
— Voltando ao que disse acerca de Gilly não ser o epicentro do mapa de Sua Excelência o Legado Papal — voltou ela, repoltreando-se na bergère —, qual seria, na sua opinião, o fato capaz de abalar tanto esse reverendo cavalheiro, que Gilly passaria a ser o pivô do seu mundo?
O padre sorriu com expressão melancólica.
— É impossível dizer. Um golpe qualquer? A súbita salvação de um milhar de almas, uma repentina capacidade de curar coxos e cegos... Acontece, porém, que a era dos milagres já passou.
— Pois olhe, duvido muito! Ele apenas alterou a sua técnica, e nos dias de hoje usa dinheiro.
— Quanto cinismo! Talvez seja por isso que eu a aprecio tanto, Sra. Carson.
— Meu nome é Mary. Por favor, chame-me de Mary.
Minnie entrou empurrando o carrinho de chá, ao mesmo tempo que o Padre de Bricassart dizia:
— Obrigado, Mary.
Diante dos pães frescos de farinha de cevada e torradas com anchovas, Mary Carson suspirou.
— Meu caro Padre, quero que reze por mim, hoje mais do que nunca.
— Chame-me Ralph — disse ele. E continuou, malicioso:
— Duvido que me seja possível rezar mais por você do que faço todos os dias, mas tentarei.
— Você é um sedutor! Ou essa observação foi uma indireta? Por via de regra não ligo para o óbvio, mas, em se tratando de você, nunca sei com certeza se o óbvio, verdade, não esconde algo mais profundo. Como uma cenoura defronte de um burro. O que pensa mesmo de mim, Padre de Bricassart? Nunca o saberei, porque vc nunca terá a falta de tato de revelar, não é mesmo? Fascinante, fascinante... Mas precisa rezar por mim. Estou velha e pequei muito.
— A velhice chega para todos e eu também tenho pecados. Ela não pôde deixar de rir por entre os dentes.
— Eu daria muita coisa para saber como foi que você pecou! Juro que daria. — Calou-se por um momento e depois mudou de assunto. — Neste momento estou sem o chefe dos meus pastores.
— Outra vez?
— Cinco no ano passado. Está ficando difícil encontrar um homem decente.
— Correm rumores de que você não é exatamente uma patroa generosa nem cheia de atenções para com os empregados.
— Que atrevimento! — disse ela, rindo-se. — Quem foi que lhe comprou um Daimler novinho em folha para que você não precisasse viajar a cavalo?
— Ah, mas veja também o quanto rezo por você!
— Se Michael tivesse tido a metade do seu espírito e do seu caráter, eu talvez O tivesse amado — acudiu ela, de repente. Sua expressão alterou-se, tornou-se rancorosa. — Você está pensando que não tenho nenhum parente neste mundo e que terei de deixar meu dinheiro e minhas terras à Santa Madre Igreja, não é isso?
— Não tenho a menor idéia — tornou ele, pachorrento, servindo-se de mais chá.
— Na verdade, tenho um irmão com uma grande e florescente recua de filhos.
— Que bom para você — disse o padre, circunspecto.
— Quando casei, eu não tinha nada de meu. Sabia que jamais casaria bem na Irlanda, onde uma mulher precisa ter educação e vir de família afidalgada para apanhar um marido rico. Por isso trabalhei feito uma condenada a fim de poupar o dinheiro da passagem para um país em que os homens ricos não fossem tão exigentes. Tudo o que eu tinha quando cheguei aqui eram um rosto, um corpo e uma cabeça melhor do que a que se atribui às mulheres, e eles foram suficientes para pegar Michael Carson, que era um idiota rico. Ele foi louco por mim até o dia em que morreu.
— E seu irmão? — lembrou o padre, imaginando que ela pretendesse fugir pela tangente.
Meu irmão é onze anos mais moço do que eu e deve ter agora, portanto, cinqüenta e quatro. Somos os dois únicos sobreviventes. Mal o conheço; era um garotinho quando saí de Galway. Agora está morando na Nova Zelândia, mas, se emigrou para fazer fortuna, não foi bem-sucedido.
”Ontem à noite, quando o homem da estação me trouxe a notícia de que Arthur Teviot arrumara a trouxa e partira, pensei de repente em Padraic. Aqui estou eu, envelhecendo à medida que passam os anos, sem ninguém da família à minha volta. Ocorreu-me, então, que Paddy é um lavrador experimentado, embora sem recursos para possuir a sua terra. Por que não lhe escrevo, pensei, e não o convido a vir para cá e trazer os filhos? Quando eu morrer, ele herdará mesmo Drogheda e a Michar Limitada, pois é o meu único parente vivo, fora alguns primos desconhecidos que ainda moram na Irlanda.”
Ela sorriu.
— Parece tolice esperar, não parece? Já que ele terá de vir mais tarde, que venha agora, que se acostume a criar carneiros nas planícies de solo negro, o que é muito diferente, com certeza, de criar carneiros na Nova Zelândia. Depois, quando eu me for, ele ficará no meu lugar sem dar pela coisa.
com a cabeça baixa, ela observou Padre Ralph.
— Não sei por que não pensou nisso antes — disse ele.
— Pensei, sim. Mas até há pouco tempo eu supunha que a última coisa que eu desejava era ter um bando de abutres à minha volta esperando, ansiosos, que eu exalasse meu último suspiro. Ultimamente, porém, o dia de minha morte me tem parecido muito mais próximo, e sinto... não sei, que talvez fosse bom ver-me cercada de pessoas de meu sangue.
— Que aconteceu, acha que está doente? — apressou-se ele a perguntar, com uma preocupação sincera estampada nos olhos. Ela encolheu os ombros.
— Estou perfeitamente bem. No entanto, há qualquer coisa de presságio em completar sessenta e cinco anos. De repente, a velhice deixa de ser um fenômeno que vai ocorrer; já ocorreu.
— Percebo o que quer dizer, e acho que tem razão. Será muito agradável para você ouvir vozes jovens pela casa.
— Eles não vão viver aqui — disse ela. — Poderão viver na casa do chefe dos pastores, perto do riacho, bem longe de mim. Não gosto de crianças nem das suas vozes.
— Não será esse um jeito meio esquisito de tratar seu único irmão, Mary? Ainda que as idades dos dois sejam tão diferentes?
— Ele vai herdar... deixe-o merecê-lo — disse ela, cruelmente.
Fiona Cleary deu à luz outro menino seis dias antes de Meggie completar nove anos, considerando-se muito feliz por nada haver acontecido no intervalo além de um par de abortos. Aos nove anos, Meggie tinha idade bastante para ajudar de verdade. Fee acabara de completar quarenta anos e já estava demasiado velha para ter filhos sem que muita dor lhe solapasse as forças. A criança, batizada com o nome de Harold, era um bebê de saúde frágil; pela primeira vez, de acordo com as mais remotas lembranças, o médico fazia visitas regulares à casa.
E como acontece com os dissabores, os dos Clearys se multiplicaram. O resultado da guerra não foi um período de prosperidade, mas um período de depressão rural. O trabalho se tornava cada vez mais difícil de conseguir.
Um dia, no momento em que acabavam de tomar chá, o velho Angus MacWhirter entregou-lhes um telegrama, que Paddy abriu com mãos trêmulas; os telegramas nunca traziam boas notícias. Os meninos agruparam-se em torno, com exceção de Frank, que pegou na sua xícara de chá e levantou-se da mesa. Os olhos de Fee seguiram-no, depois voltaram ao ponto de partida quando Paddy gemeu.
— Que foi? — perguntou.
Paddy olhava para o pedaço de papel como se este trouxesse a notícia de uma morte.
— Archibald não nos quer.
Bob deu um murro violento na mesa; ele não via a hora de acompanhar o pai como aprendiz de tosquiador, e o redil de Archibald seria o seu primeiro.
— Por que haveria ele de fazer uma sujeira dessas conosco, papai? Devíamos começar amanhã.
— Ele não diz por quê, Bob. Imagino que algum empreiteiro sem-vergonha se ofereceu para fazer o serviço mais barato!
— Oh, Paddy! — suspirou Fee.
Hal, o bebê, começou a chorar no fundo do berço de vime colocado à beira do fogão, mas, antes que Fee esboçasse um movimento, Meggie levantou-se; Frank voltara à cozinha e, com a xícara de chá na mão, observava atentamente o pai.
— Bem, acho que terei de falar com Archibald — disse Paddy, afinal. — Agora já é tarde demais para procurar outro barracão que substitua o dele, mas entendo que ele me deve uma explicação melhor do que essa. Só nos restará a esperança de encontrar trabalho de ordenha até o barracão de Willoughby começar em julho.
Meggie puxou um quadrado de toalha branca da imensa pilha que se aquecia ao pé do fogão e estendeu-o com cuidado sobre a mesa de trabalho, depois tirou a criança que chorava do bercinho de vime. O cabelo dos Clearys brilhava, aqui e ali, pelo seu craniozinho enquanto Meggie lhe trocava a fralda com a rapidez e a eficiência com que sua mãe o teria feito.
Mamãezinha Meggie — disse Frank para mexer com ela.
Não sou! — respondeu ela, indignada. — Só estou ajudando mamãe.
Eu sei — tornou ele, com brandura. — Você é uma boa menina, Meggiezinha.
E puxou-lhe a fita branca de tafetá atrás da cabeça até vê-la pender, torta, para um lado.
E, mais uma vez, os grandes olhos de cor cinza pousaram no rosto dele com expressão adorativa; acima da cabeça inclinada do bebê, ela poderia ter a sua idade, ou ser mais velha. Frank sentiu apertar-se-lhe o coração ao pensar que isso acontecia a ela numa idade em que o único bebê de que ela devia estar cuidando era Agnes, ora relegada, esquecida, ao quarto de dormir. Não fosse por Meggie e por Fee e ele já teria partido há muito tempo. Olhou acidamente para o pai, a causa da nova vida que estava criando tamanho caos na casa. Bem feito para ele, se lhe tinham tomado o barracão.
De certo modo, os outros meninos e a própria Meggie nunca lhe haviam invadido os pensamentos como Hal; mas, quando a linha da cintura de Fee começou a engrossar dessa vez, ele já tinha idade suficiente para estar casado e ser pai. Todos, exceto Meggie, tinham ficado constrangidos por causa disso, sobretudo a mãe. Os olhares furtivos dos meninos faziam-na encolher-se como um coelho; ela não conseguia enfrentar os olhos de Frank nem apagar a vergonha que havia nos seus. Não se devia permitir que mulher alguma passasse por isso, disse Frank a si mesmo pela milésima vez, lembrando-se dos gemidos e gritos aterradores que tinham saído do quarto dela na noite em que Hal nascera; maior de idade agora, ele não fora mandado para longe, como os outros. Bem feito se o pai perdera o barracão. Um homem decente a teria deixado em paz.
A cabeça de sua mãe sob os raios da luz elétrica recém-instalada era feita de ouro desfiado, e o perfil concentrado em Paddy, do outro lado da mesa comprida, possuía uma beleza indizível. Como pudera uma criatura tão linda e requintada casar com um tosquiador itinerante, vindo dos charcos de Galway? Consumindo-se e consumindo sua porcelana Spode, seu serviço de jantar de damasco e seus tapetes persas na sala de visitas que nunca ninguém via porque ela não se dava com as mulheres dos colegas de Paddy. Ela lhes ressaltava demasiado as vozes altas e vulgares e o seu assombro quando se viam às voltas com mais de um garfo.
As vezes, aos domingos, Fee entrava na solitária sala de visitas, sentava-se à espineta debaixo da janela e tocava, embora houvesse perdido o toque havia muito tempo por falta de prática e só pudesse executar agora as peças mais simples. Ele sentava-se ao pé da janela, entre os lilases e os lírios, e fechava os olhos para ouvir. Nessas ocasiões, uma visão surgia diante dele e Frank via sua mãe trajando um longo vestido de saia rodada, feito de rendas cor-de-rosa pálida, sentada à espineta num imenso salão de marfim, cercada por todos os lados de grandes braços de candelabros. Isso lhe dava vontade de chorar, mas ele já não chorava; desde a noite no celeiro em que a polícia o trouxera de volta para casa.
Meggie recolocara Hal no berço e fora postar-se ao lado da mãe. Lá estava outra que iria pelo mesmo caminho. O mesmo perfil orgulhoso e sensível; alguma coisa de Fiona nas mãos, no corpo de criança. Seria muito parecida com a mãe quando também fosse mulher. E quem a desposaria? Outro estúpido tosquiador irlandês, ou algum caipira boçal de alguma fazenda de criar de Wahine? Ela valia mais, mas não nascera para mais. Não havia outra saída, dizia todo mundo, e cada ano que ela vivia mais parecia confirmá-lo.
Subitamente cônscias do seu olhar fixo, Fee e Meggie voltaram-se ao mesmo tempo, sorrindo para ele com a ternura especial que as mulheres reservam para o homem mais amado de suas vidas. Frank colocou a xícara sobre a mesa e saiu para dar comida aos cachorros, desejando poder chorar ou matar alguém. Qualquer coisa capaz de eliminar a dor.
Três dias depois de Paddy perder o barracão de Archibald, chegou a carta de Mary Carson. Ele a abrira na própria agência do correio de Wahine assim que recebera a correspondência e voltara para casa pulando como criança.
— Vamos para a Austrália! — berrou, agitando as páginas caras de papel debaixo dos narizes assombrados da família.
Fez-se silêncio e todos os olhares se cravaram nele. Os olhos de Fee mostraram-se assustados, como assustados estavam os de Meggie, mas todos os outros brilharam de alegria. Os de Frank chamejavam.
— Mas, Paddy, por que haveria ela de pensar em você tão de repente, depois de tantos anos? — perguntou Fee após haver lido a carta. — O dinheiro que ela tem não é novo para ela, como tampouco é novo o seu isolamento. Não me lembro de ela ter, algum dia, se oferecido para nos ajudar.
— Parece que está com medo de morrer sozinha — disse ele, querendo tranqüilizar-se tanto quanto desejava tranqüilizar a mulher. — Viu o que ela escreveu: ”Não sou moça e você e seus meninos são meus herdeiros. Creio que devemos ver-nos antes da minha morte e já é tempo de você aprender a gerir sua herança. Tenciono fazê-lo chefe dos meus pastores — será um excelente treinamento, e os seus meninos que já tiverem idade para trabalhar também poderão empregar-se como pastores. Drogheda passará a ser a empresa de uma família, sem a participação de estranhos.”
— Ela não fala em mandar-nos o dinheiro da viagem? — perguntou Fee. As costas de Paddy enrijeceram-se.
-- Jamais sonharia em molestá-la por uma coisa dessas! — retrucou, brusco.
Podemos ir para a Austrália sem nada mendigar dela; tenho guardado o suficiente.
-- Pois acho que ela devia pagar nossa viagem — teimou Fee, para a assustada surpresa de todos, visto que ela não expressava com freqüência suas opiniões. — Por que há você de desistir da vida aqui e ir trabalhar para ela só por uma promessa feita numa carta? Até agora, sua irmã nunca levantou um dedo para nos ajudar, e não confio nela. A única coisa que me lembra ter-lhe ouvido a seu respeito é que era a mulher mais sovina que você já conheceu. E, afinal de contas, Paddy, você nem a conhece direito; há uma grande diferença de idade entre os dois, e ela embarcou para a Austrália antes de você ter idade para ir à escola.
— Não vejo como isso altere as coisas agora e, se ela é avarenta, melhor, herdaremos mais. Não, Fee, iremos para a Austrália e pagaremos nossa viagem.
Fee não disse mais nada. Era impossível saber, pela expressão do seu rosto, se ficara ressentida ou não por se ver tão sumariamente dispensada.
— Hurra! Vamos para a Austrália! — gritou Bob, agarrando o ombro do pai. Jack, Hughie e Stu pulavam e dançavam, e Frank sorria, os olhos postos em algo muito longe da sala. Somente Fee e Meggie estavam perplexas e assustadas, esperando dolorosamente que tudo aquilo desse em nada, pois suas vidas não seriam mais fáceis na Austrália, onde as coisas não mudariam e só as condições seriam estranhas.
— Onde fica Gillanbone? — perguntou Stuart.
O velho atlas apareceu; embora os Clearys fossem pobres, havia várias prateleiras de livros atrás da mesa de jantar da cozinha. Os meninos examinaram atentamente as páginas que amareleciam até encontrar a Nova Gales do Sul. Acostumados às pequenas distâncias da Nova Zelândia, não lhes ocorreu a idéia de consultar a escala de quilômetros no canto esquerdo inferior da página. Presumiram apenas que Nova Gales do Sul fosse do mesmo tamanho da Ilha do Norte da Nova Zelândia. E lá estava Gillanbone, na direção do canto esquerdo superior; parecendo distar de Sydney mais ou menos o mesmo que Wanganui distava de Auckland, embora os pontos que indicavam as cidades fossem muito menos numerosos do que no mapa da Ilha do Norte.
— Esse atlas é velho — disse Paddy. — A Austrália é como a América, cresce aos saltos e aos arrancos. Tenho a certeza de que existem muito mais cidades hoje em dia.
Eles teriam de viajar de terceira classe, mas, como a travessia duraria apenas três dias, não seria tão mau assim. Pelo menos não era como a viagem de semanas e semanas entre a Inglaterra e os Antípodas. As únicas coisas que poderiam dar-se ao luxo de levar consistiam em roupas pessoais, louça, talheres, roupas de cama e mesa, utensílios de cozinha e os preciosos livros; a mobília teria de ser vendida para cobrir o custo da remessa da meia dúzia de peças de Fee que estavam na sala de visitas, a espineta, os tapetes e as cadeiras.
— Não quero que você deixe essas coisas — disse Paddy a Fee com firmeza.
— Tem certeza de que estamos em condições de levá-las?
— Absoluta. Quanto à outra mobília, Mary diz que está arrumando a casa do chefe dos pastores e que lá há de tudo o que é preciso. O que me alegra é não termos de morar com Mary na mesma casa.
— A mim também — disse Fee.
Paddy foi para Wanganui a fim de reservar uma cabina de terceira classe com oito beliches no Wahine; era estranho que o navio e a cidade mais próxima tivessem o mesmo nome. Embarcariam no fim de agosto, de modo que, no princípio desse mês, todos começaram a compreender que a grande aventura iria realmente acontecer. Seria preciso dar os cachorros, vender os cavalos e a charrete, amontoar os móveis na carroça de Angus MacWhirter e levá-los para Wanganui a fim de leiloá-los, engradar as poucas peças de Fee juntamente com a louça, a roupa de mesa, os livros e os apetrechos de cozinha.
Frank encontrou a mãe em pé, ao lado da bela e velha espineta, passando a mão sobre o estofamento listrado, levemente róseo, e olhando vagamente para a poeira dourada que lhe ficara na ponta dos dedos.
— Ela sempre foi sua, mamãe? — perguntou ele.
— Sempre. O que era realmente meu não puderam me tomar quando casei. A espineta, os tapetes persas, o sofá e as cadeiras Luís XV, a escrivaninha Regência. Pouca coisa, mas tudo meu, muito meu.
Os olhos cinzentos e sôfregos fitaram-se, além do ombro dele, no quadro a óleo pendurado na parede, um pouco obscurecido pelo tempo, mas que ainda mostrava claramente a mulher de cabelos de ouro com o pálido vestido de rendas cor-de-rosa, guarnecido de cento e sete folhos.
— Quem era ela? — perguntou Frank curioso, virando a cabeça. — Eu sempre quis saber.
— Uma grande dama.
— Devia ser sua parenta; é parecida com você.
— Ela? Parenta minha? — Os olhos deixaram a contemplação do quadro e pousaram, irônicos, no rosto do filho. — Pareço, por acaso, alguém que tivesse uma parenta como ela?
— Parece.
— Você tem teias de aranha na cabeça; é melhor varrê-las.
— Eu gostaria que você me contasse, mamãe.
Ela suspirou e fechou a espineta, limpando o ouro da ponta dos dedos.
— Não há nada para contar, absolutamente nada. Vamos, ajude-me a levar essas coisas para o meio da sala, onde papai as possa acondicionar.
A viagem foi um pesadelo. Antes que o Wahine saísse do porto de Wellington, estavam todos mareados e assim continuaram pelo trajeto de mil e duzentas milhas através de mares invernosos, açulados por ventos fortes. Paddy levou os meninos para o convés e lá os conservou, a despeito do vento cortante e dos borrifos das ondas, só descendo para ir ver suas mulheres e o bebê quando alguma alma bondosa se oferecia para tomar conta dos quatro garotos nauseados e agoniados. Embora suspirasse por ar fresco, Frank decidira permanecer embaixo, tomando conta das mulheres. A cabina era minúscula, abafada e tresandava a óleo, pois ficava abaixo da linha d’água e na direção da proa, onde os movimentos do navio eram mais violentos.
Algumas horas depois de saírem de Wellington, Frank e Meggie se convenceram de que a mãe ia morrer; o médico, chamado na primeira classe por um camareiro preocupadíssimo, examinou-a e abanou a cabeça com expressão pessimista.
— Ainda bem que a viagem é curta — disse ele, ordenando à enfermeira que arranjasse leite para o bebê.
Entre acessos de ânsias, Frank e Meggie conseguiram dar a mamadeira a Hal, que não a aceitou bem. Fee desistira de tentar vomitar e caíra numa espécie de coma, do qual os filhos não conseguiam despertá-la. O camaroteiro ajudou Frank a colocá-la no beliche superior, onde o ar era um pouco menos viciado e, segurando uma toalha à altura da boca, para conter a bile aquosa que ainda vomitava, Frank empoleirou-se na borda da tarimba, ao lado dela, afastando delicadamente com a mão o cabelo louro e emaranhado que lhe caía sobre a testa. Hora após hora ele se manteve em seu posto, apesar das próprias náuseas; todas as vezes que Paddy entrava, encontrava-o ao lado da mãe, acariciando-lhe o cabelo, enquanto Meggie, encolhida num beliche inferior, junto de Hal, segurava também uma toalha diante da boca.
Quando faltavam três horas para chegar a Sydney, o mar se aquietou numa calma vítrea e o nevoeiro aproximou-se aos poucos, vindo da distante Antártida, e envolveu o velho barco. Revivendo um pouco, Meggie imaginou-o bramindo regularmente de dor, terminada a luta terrível. O navio moveu-se lentamente através do pegajoso luscofusco, tão furtivamente quanto uma coisa caçada, até que tornou a soar o berro profundo e monótono vindo de algum lugar da superestrutura, um ruído perdido e só, de uma tristeza indescritível. Depois, em torno, todo o ar se encheu de bramidos lamentosos enquanto ele se esgueirava, pela água fantasmagórica e fumegante, para o interior do porto. Meggie nunca se esqueceria do som das buzinas de cerração, seu primeiro contato com a Austrália.
Paddy carregou Fee nos braços para fora do Wahine, seguido de Frank com o bebezinho, de Meggie com uma caixa e de cada um dos meninos tropeçando, cansados, sob o peso de um fardo qualquer. Tinham chegado a Pyrmont, nome sem sentido para eles, numa manhã nevoenta de inverno, no fim de agosto de 1921. Enorme fila de táxis ( esperava fora do galpão de ferro no cais; Meggie, embasbacada, esbugalhava os olhos, pois nunca vira tantos carros no mesmo lugar ao mesmo tempo. De um modo ou de outro, Paddy acomodou todos eles num carro de aluguel, cujo motorista se prontificou a levá-los ao Palácio do Povo.
— É o melhor lugar para vocês, companheiro — disse a Paddy. — Um hotel para o trabalhador dirigido pelo Exército da Salvação.
As ruas estavam apinhadas de automóveis que pareciam correr em todas as direções; havia pouquíssimos cavalos. Eles puseram-se a olhar, enlevados, pelas janelas do táxi para os altos edifícios de tijolos, as ruas sinuosas, a rapidez com que multidões de pessoas pareciam fundir-se e dissolver-se em algum estranho ritual urbano. Wellington os amedrontara, mas Sydney fazia Wellington parecer uma cidadezinha do interior.
Enquanto Fee descansava num dos inumeráveis quartos do tugúrio que o Exército da Salvação chamava carinhosamente de Palácio do Povo, Paddy dirigiu-se à Central Railway Station a fim de saber quando poderiam tomar um trem para Gillanbone. Totalmente refeitos, os meninos gritaram que queriam ir com ele, pois tinham sabido que a estação não ficava muito longe, e que o caminho era só de lojas, entre as quais uma que vendia doces de albarrã. Invejando-lhes a mocidade, Paddy cedeu, pois não sabia até onde o levariam as suas pernas depois de três dias de enjôo de mar. Frank e Meggie ficaram com Fee e o bebê, desejando ir também, porém mais preocupados com o estado de saúde da mãe. Na realidade, ela parecia recobrar forças rapidamente logo depois de sair do navio, tomara uma tigela de sopa e mordiscara uma torrada que lhe trouxera um voluntário da instituição.
— Se não partirmos hoje à noite, Fee, o próximo trem só sairá daqui a uma semana — disse Paddy ao voltar. — Você se julga capaz de viajar esta noite?
Fee sentou-se, tiritando.
— Darei um jeito.
— Acho que devíamos esperar — acudiu Frank, corajoso. — Não creio que mamãe esteja suficientemente boa para viajar.
— O que você não parece compreender, Frank, é que, se perdermos o trem de hoje à noite, teremos de esperar uma semana inteira, e acontece que não tenho dinheiro para nos manter por uma semana em Sydney. Este é um grande país, e o lugar para onde vamos não tem trem todos os dias. Poderíamos ir a Dubbo num dos três comboios que partem amanhã, mas, nesse caso, teríamos de aguardar uma conexão local, e me disseram que, desse jeito, a viagem será muito mais comprida do que se fizermos um esforço para tomar o expresso desta noite.
Darei um jeito, Paddy — repetiu Fee. — Tenho Frank e Meggie; ficarei bem.
E olhava para Frank, suplicando-lhe que se calasse.
Nesse caso, vou telegrafar para Mary, dizendo-lhe que nos espere amanhã à noite.
A Central Station era maior do que qualquer outro edifício em que os Clearys já haviam entrado. Vasto cilindro de vidro, parecia ecoar e absorver simultaneamente a algazarra de milhares de pessoas que esperavam ao lado de malas velhas e surradas e tinham os olhos fixos num imenso quadro indicador, alterado à mão por homens munidos de grandes varas. Quando deram pela coisa, na escuridão da noite que se adensava, eles faziam parte da multidão, e não tiravam os olhos dos portões de aço da plataforma número cinco, que, embora fechados, ostentavam uma grande tabuleta pintada à mão: TREM DE Gillanbone. Na plataforma número um e na plataforma número dois, uma tremenda atividade anunciava a partida iminente dos expressos noturnos de Brisbane e Melbourne, e os passageiros se aglomeravam junto às cancelas. Logo chegou a vez deles, e, quando se escancararam os portões da plataforma número cinco, a multidão avançou, apressada.
Paddy encontrou para eles um compartimento vazio de segunda classe, pôs os meninos mais velhos perto das janelas e Fee, Meggie e o bebê junto das portas corrediças que abriam para o longo corredor através do qual se fazia a conexão entre os compartimentos. Rostos apareciam espiando, esperançosos, à procura de algum lugar vazio, mas logo desapareciam horrorizados à vista de tantas crianças pequenas. Às vezes era vantajoso ser uma grande família.
A noite estava tão fria que justificava o apelo às grandes mantas de viagem de tecido axadrezado que todas as malas traziam presas do lado de fora; embora o carro não fosse aquecido, caixas de aço cheias de cinzas quentes, dispostas ao longo do chão, irradiavam calor. De qualquer maneira, aliás, ninguém esperaria aquecimento, visto que nada era aquecido na Austrália ou na Nova Zelândia.
— Fica muito longe, papai? — perguntou Meggie quando o trem partiu, estrepitando e balançando suavemente sobre uma infinidade de pontos.
— Fica bem mais longe do que parecia em nosso atlas, Meggie. Novecentos e setenta e seis quilômetros. Lá estaremos amanhã de noite.
Os meninos olhavam boquiabertos para o pai, mas logo se esqueceram disso diante das luzes feéricas do país encantado que ficava lá fora; todos se apinharam às janelas e observaram a passagem dos primeiros quilômetros sem que o número das casas diminuísse. A velocidade aumentou, as luzes foram rareando e por fim se apagaram, substituídas pelo revolutear constante das fagulhas, que ondeavam tangidas pelo vento ululante. Quando Paddy tirou os meninos do compartimento a fim de que Fee desse de mamar a Hal, Meggie acompanhou-os com olhos compridos. Naqueles dias, ao que tudo indicava, ela não seria incluída entre os meninos, pelo menos desde que o bebezinho lhe transtornara a vida acorrentando-a à casa com tanta firmeza quanto sua mãe estava acorrentada. Não que lhe importasse muito, disse lealmente a si mesma. Ele era tão engraçadinho, o principal encanto de sua vida, e era gostoso ver sua mãe tratá-la como gente grande, Não tinha idéia do que fazia ela para produzir bebês, mas o resultado era lindo. Meggie deu Hal a Fee; o trem parou logo depois, rangendo e guinchando, e pareceu ficar horas ofegando, até recuperar o fôlego. A menina estava louca de vontade de abrir a janela e olhar para fora, mas o compartimento já esfriara muito, apesar das cinzas quentes do chão.
Paddy entrou, vindo do corredor, com uma xícara fumegante de chá para Fee, que tornou a colocar Hal no assento, saciado e sonolento.
— Onde estamos?
— Num lugar chamado Valley Heights. Vamos pegar outra locomotiva para subir até Lithgow. Foi o que disse a moça da sala dos refrescos.
— Quanto tempo tenho para tomar isto aqui?
— Quinze minutos. Frank está arrumando sanduíches para vocês e eu darei de comer aos meninos. Depois daqui, só pararemos para comer qualquer coisa em Blayney, mas já de madrugada.
Meggie partilhou da xícara de chá quente e açucarado, sentindo-se de repente insuportavelmente excitada, e engoliu com voracidade o sanduíche que Frank lhe trouxera. Este acomodou-a no longo banco debaixo de Hal, prendeu com firmeza uma das mantas em torno dela, e depois fez o mesmo com Fee, que esticara o corpo no banco fronteiro. Stuart e Hughie foram postos para dormir no chão, entre os dois bancos, mas Paddy disse a Fee que levaria Bob, Frank e Jack vários compartimentos mais adiante para conversar com alguns tosquiadores, e ali passaria a noite. O trem era muito mais gostoso que o navio, estalejando pelo caminho ao ruído característico e rítmico das duas locomotivas, enquanto o vento salmodiava nos fios do telégrafo, e as rodas de aço, de vez em quando, tinham acessos furiosos ao patinar sobre os trilhos nos aclives, buscando freneticamente a tração; Meggie adormeceu.
De manhã, os Clearys contemplaram, entre atemorizados e consternados, uma paisagem tão estranha que nunca haviam imaginado pudesse existir no mesmo planeta em que existia a Nova Zelândia. As colinas ondulantes lá estavam, sem dúvida, mas nada mais lhes recordava a terra que haviam deixado. Tudo pardo e cinzento, até as árvores! O trigo do inverno já fora convertido em prata acastanhada pelo sol ofuscante, e eram quilômetros de trigo, que se arrepiavam e inclinavam ao vento, interrompidos apenas por bosquetes de árvores altas e esguias, de folhas azuis, e moitas poeirentas de cansados arbustos cinzentos. Os olhos estóicos de Fee contemplaram a cena sem mudar de expressão, mas os da pobre Meggie encheram-se de lágrimas. Era horrível, aberto e vasto, sem um traço de verde.
A noite gelada transformou-se em dia escaldante à proporção que o sol subia para o zênite e o trem estrondejava pelos campos afora, parando de vez em quando em alguma cidade cheia de bicicletas e de veículos puxados por cavalos, e onde os automóveis pareciam escassos. Paddy abriu bem as duas janelas, a despeito da fuligem que entrava remoinhando e se instalava sobre tudo; o calor era tanto que eles arfavam, e as pesadas roupas neo-zelandesas de inverno, aderindo-lhes ao corpo, comichavam. Não parecia possível que algum lugar fora do inferno fosse tão quente no inverno.
Gillanbone chegou com o morrer do sol, estranha coleçãozinha de edifícios desconjuntados de madeira e ferro corrugado, dos dois lados de uma rua larga, empoeirada, cansada e sem árvores. O sol que tudo derretia passara uma pasta, de ouro sobre as coisas e dava à cidade uma transitória luminosidade dourada, que se dissipou enquanto eles permaneciam na plataforma observando. Tornou-se, mais uma vez, um típico povoado das fronteiras do Fim do Mundo, derradeiro pasto avançado numa região em que as chuvas diminuíam drasticamente; não muito longe dali, na direção do oeste, principiavam três mil e seiscentos quilômetros de terra do Nunca Mais, zonas desérticas onde não chovia.
Um reluzente carro preto estava parado no pátio da estação e, caminhando despreocupado, a passos largos, pelo chão forrado de vários centímetros de poeira, acercava-se um padre. A longa sotaina dava-lhe o aspecto de uma figura do passado, como se ele não se movesse sobre os pés, como os outros homens, mas se deixasse levar, como num sonho; a poeira se erguia e encapelava em torno dele, vermelha às últimas claridades do pôr-do-sol.
— Olá, sou o Padre de Bricassart — disse, estendendo a mão a Paddy. — Você deve ser o irmão de Mary; é a imagem viva dela.
Voltou-se para Fee e ergueu-lhe a mão flácida aos lábios, sorrindo com genuíno espanto; ninguém identificava uma dama com maior rapidez do que o Padre Ralph.
— A senhora é bonita! — disse, como se fosse a observação mais natural do mundo para um padre fazer e, em seguida, seus olhos passaram para os meninos, reunidos num grupo. Demoraram-se por um instante com intrigada perplexidade em Frank, que ficara encarregado do bebê, e conferiram, um por um, os garotos à medida que diminuíam de tamanho. Atrás dos irmãos, sozinha, Meggie olhava para ele de boca aberta, como se olhasse para Deus. Sem parecer dar-se conta de que a fina batina de sarja chafurdava na poeira, passou pelos meninos, agachou-se e segurou Meggie entre as mãos firmes; delicadas, bondosas.
— Muito bem! E quem é você? — perguntou-lhe, sorrindo.
— Meggie — disse ela.
— O nome é Meghann — acudiu Frank, franzindo o cenho e detestando aquele homem bonito e sua altura extraordinária.
— Meu nome favorito, Meghann. — Ele endireitou o corpo, mas continuou segurando a mão de Meggie na sua. — Será melhor vocês ficarem esta noite na casa paroquial — continuou, conduzindo Meggie para o carro. — Eu os levarei de automóvel a Drogheda amanhã cedo; é muito longe para quem acaba de vir de Sydney de trem.
Tirante o Hotel Imperial, a igreja católica, a escola, o convento e a casa paroquial eram os únicos edifícios de tijolos que havia em Gillanbone, e até a grande escola pública tinha de contentar-se com um arcabouço de madeira. Agora que escurecera, o ar se tornara incrivelmente frio; mas na sala de estar da casa paroquial ardia imenso fogo de troncos, e o cheiro de comida lhes chegava, tentador, de algum lugar do prédio. A governanta, velha escocesa murcha, dotada de surpreendente energia, azafamava-se pela casa, mostrando-lhes os seus quartos e falando o tempo todo com o sotaque carregado das Highlands ocidentais.
Acostumados à reserva cheia de não-me-toques dos padres de Wahine, os Clearys acharam difícil enfrentar a fácil e jovial bonomia do Padre Ralph. Somente Paddy descongelou, ainda lembrado do estilo amistoso dos religiosos da sua terra natal, a intimidade com que tratavam os pobrezinhos. O resto jantou em cuidadoso silêncio. Fei fugiu para os quartos assim que pôde, seguido com relutância por Paddy, para o qual a religião era cordialidade e consolação; para o resto da sua família, porém, era algo” enraigado no medo, uma compulsão do tipo ”faça-o ou você se danará”.
Quando se foram, Padre Ralph refestelou-se na poltrona favorita, olhos postos no lume, fumando um cigarro e sorrindo. com os olhos do espírito passou os Clearys em revista, como os vira pela primeira vez do pátio da estação. O homem tão parecido com Mary, mas encurvado pelo trabalho duro e, manifestamente, sem a disposição maldosa da irmã; a esposa cansada e bela, que parecia ter acabado de descer de um landolé puxado por cavalos brancos parelhos; o moreno e intratável Frank, de olhos negros, olhos negros; os filhos, quase todos parecidos com o pai, exceto o mais moço, Stuart, parecidíssimo com a mãe, e que viria a ser um belo homem quando crescesse; era impossível dizer em que se transformaria o bebê; e Meggie. A mais suave, a mais adorável menininha que ele já vira; o cabelo de uma cor que desafiava qualquer descrição, nem vermelho nem cor de ouro, mas uma perfeita fusão de ambos. E que erguia a vista para ele com olhos de um cinzento prateado de tão radiosa pureza que se diriam jóias fundidas. Dando de ombros, arremessou o toco do cigarro ao fogo e pôs-se em pé. Estava ficando velho e fantasioso; jóias fundidas, pois sim! Era até mais provável que os olhos dele se estivessem deteriorando, queimados pela areia.
Pela manhã, levou de automóvel a Drogheda os hóspedes da véspera, e tão habituado estava à paisagem que os comentários deles o divertiram. A última colina ficatrezentos e vinte quilômetros a leste; aquela era a terra das planícies de solo negro, -- explicou. Só pastagens imensas, planas como tábuas, aqui e ali salpicadas de grupos de árvores. O dia estava tão quente quanto fora o anterior, mas o Daimler era muitíssimo mais confortável para viajar do que o trem que os trouxera. E eles tinham saído cedo, em jejum, com os paramentos do Padre Ralph e o Santíssimo Sacramento cuidadosamente acondicionados numa caixa preta.
Os carneiros são sujos! — observou Meggie com expressão desconsolada,
olhando para as muitas centenas de pelotas vermelhas, mas de um vermelho tirante à ferrugem, com os focinhos indagativos voltados para o capim.
— Ah, vejo que eu deveria ter escolhido a Nova Zelândia — disse o padre. — Lá deve ser como a Irlanda, cheia de bonitos carneiros cor de creme.
— Sim, é como a Irlanda em muitos sentidos; tem o mesmo belo capim verde. Mas é mais selvagem, muito menos domesticada — acudiu Paddy, que gostava cada vez mais do Padre Ralph.
Nesse exato momento um bando de emas ergueu-se, cambaleante, e disparou a correr, ligeiro como o vento, com as pernas desajeitadas semelhantes a um borrão, os pescoços compridos esticados para a frente. As crianças prenderam a respiração a princípio e depois desataram a rir, encantadas ao ver pássaros gigantescos como aqueles correndo em vez de voar.
— Que prazer é a gente não precisar descer do carro para abrir essas miseráveis porteiras — disse o Padre Ralph quando a última delas se fechou e Bob, encarregado de abri-las e fechá-las para ele, trepou de novo no carro.
Depois dos choques que a Austrália lhes causara com assombrosa rapidez, a casagrande de Drogheda tinha para eles qualquer coisa do próprio lar, com sua graciosa fachada georgiana, suas glicínias trepadoras, que principiavam a lançar botões, e seus milhares de roseiras.
— É aqui que vamos morar? — guinchou Meggie.
— Não exatamente — apressou-se a dizer o padre. — A casa em que vocês vão morar fica a um quilômetro e meio daqui, lá embaixo, perto do córrego.
Mary Carson esperava-os na vasta sala de estar e não se levantou para cumprimentar o irmão. Ao invés disso, forçou-o a chegar até onde ela se achava, sentada em sua bergére.
— Muito bem, Paddy — disse, em tom satisfeito, olhando fixamente, atrás dele, para o Padre Ralph, que trazia Meggie nos braços, e tinha os bracinhos dela em volta do pescoço. Mary Carson levantou-se pesadamente, sem cumprimentar Fee nem as crianças.
— Vamos assistir à missa imediatamente — disse ela. — Estou certa de que o < Padre de Bricassart não vê a hora de terminar suas obrigações.
— De maneira nenhuma, minha querida Mary. — Ele riu-se, enquanto os olhos azuis cintilavam. — Rezarei a missa, comeremos todos um bom desjejum quente à sua mesa, e depois, como prometi, mostrarei a Meggie o lugar onde ela vai morar.
— Meggie? — repetiu Mary Carson.
— Sim, esta é Meggie. O que, pelo visto, nos faz iniciar as apresentações pelo fim, não é mesmo? Deixe-me começar pelo começo, Mary. Esta é Fiona.
Mary Carson fez um breve aceno com a cabeça e prestou pouca atenção aos nomes dos meninos recitados pelo Padre Ralph; estava demasiado ocupada observando o padre e Meggie.
A casa do chefe dos pastores erguia-se sobre estacas uns nove metros acima de estreita ravina orlada de altos e desgarrados eucaliptos e de uma infinidade de salgueiros. Depois do esplendor da casa-grande de Drogheda, parecia desguarnecida e utilitária, mas em sua divisão interna não era muito diferente da casa que haviam deixado na Nova Zelândia. Sólida mobília vitoriana abarrotava os aposentos, recoberta de uma poeira vermelha muito fina.
— Vocês aqui têm sorte, dispõem de um banheiro — disse o Padre Ralph ao conduzi-los pelos degraus de tábuas à varanda da frente; dir-se-ia uma escalada, pois as estacas sobre as quais repousava a casa tinham quase cinco metros de altura. — Caso o córrego transborde — explicou o Padre Ralph. — Vocês ficarão aqui bem em cima dele e já ouvi dizer que ele é capaz de subir dezesseis metros numa noite.
Dispunham, com efeito, de um banheiro; uma velha banheira de folha-de flandres e um velho aquecedor de água tinham sido colocados numa recâmara adaptada na extremidade da varanda dos fundos. Mas, como as mulheres descobriram com desagrado, a privada nada mais era que um buraco fedido feito na terra, a uns duzentos metros de distância da casa. Em confronto com a Nova Zelândia, primitivo.
— Quem quer que tenha morado aqui, não era muito limpo — disse Fee, passando o dedo pelo pó acumulado no aparador.
Padre Ralph riu-se.
— Você travará uma batalha já perdida ao tentar livrar-se disso — acudiu ele. — Isto é o interior, e há três coisas que jamais conseguirá derrotar: o calor, a poeira e as moscas. Faça o que fizer, eles estarão sempre ao seu lado.
Fee olhou para o padre.
— O senhor é muito bom para nós, Padre.
— E por que não seria? Vocês são os únicos parentes da minha boníssima amiga, Mary Carson.
Ela encolheu os ombros, não se deixando impressionar.
— Não estou acostumada a manter relações amistosas com padres. Na Nova Zelândia eles são muito fechados e dão pouca atenção às pessoas.
— Você não é católica, é?
— Não, Paddy é que é católico. As crianças, naturalmente, foram educadas como católicos, até a última delas, se é isso o que o preocupa.
— A mim, não. Nem pensei no assunto. Mas você, por acaso, não se sente mortificada?
— Na realidade, pouco me importa.
— Não se converteu?
— Não sou hipócrita, Padre de Bricassart. Perdi a fé em minha própria igreja e não sinto vontade alguma de abraçar outro credo igualmente sem sentido.
— Entendo. — Ele observou Meggie, que, na varanda da frente, acompanhava com a vista o caminho que conduzia à casa de sede de Drogheda. — Sua filha é tão linda! Gosto muito do louro veneziano, sabe? O cabelo dela faria Ticiano sair correndo em busca de pincéis e tintas. Até agora nunca vi ninguém com essa mesma cor de cabelo. É sua única filha?
— E. Os meninos são a regra na família de Paddy e na minha; as meninas são pouco comuns.
— Pobrezinha — disse ele, suspirando.
Depois que os engradados chegaram de Sydney e a casa assumiu um aspecto mais familiar com os livros, a louça, os enfeites, e os móveis de Fee encheram a sala de visitas, as coisas começaram a assentar. Paddy e os meninos mais velhos do que Stu passavam fora a maior parte do tempo em companhia dos dois empregados da fazenda que Mary Carson conservara para ensinar-lhes as diferenças que havia entre os carneiros do noroeste da Nova Gales do Sul e os carneiros da Nova Zelândia. Fee, Meggie e Stu descobriram as diferenças que havia entre dirigir uma casa na Nova Zelândia e morar na residência do chefe dos pastores em Drogheda; de acordo com um tácito entendimento, os Clearys nunca perturbariam Mary Carson pessoalmente, mas a governanta e as empregadas dela ansiavam tanto por ajudar as mulheres quanto os empregados da fazenda ansiavam por ajudar os homens.
Drogheda, como todos ficaram sabendo, era um mundo em si mesma, tão apartada da civilização que, passado algum tempo, Gillanbone tornou-se pouco mais que um nome que evocava lembranças remotas. Dentro dos limites do grande Home Paddock havia estábulos, uma ferraria, garagens, um sem-número de barracões em que se guardava tudo, desde alimentos até máquinas, canis e cercados para cães, uma confusão labiríntica de currais, um gigantesco barracão para a tosquia com o número inacreditável de vinte e seis estrados em seu interior, e outro dédalo de currais atrás dele. Havia galinheiros, chiqueiros, estábulos para vacas e uma vacaria, aposentos para os vinte e seis tosquiadores, choças para os biscateiros, duas casas como a deles, porém menores, para pastores, barracas para empregados inexperientes, um matadouro e lenheiros.
Tudo isso ficava exatamente no meio de um círculo sem árvores de cinco quilômetros de diâmetro: o Home Paddock. Só no ponto em que se erguia a casa do chefe dos pastores é que o conglomerado de prédios quase chegava à floresta. Havia, contudo muitas árvores em torno dos barracões, currais e encerras de animais para dar a sombra bem-vinda e necessária; sobretudo aroeiras-moles, enormes, vigorosas, densas e sonolentamente lindas. Mais adiante, no longo capim do Home Paddock, cavalos e vacas de leite pastavam, amodorrados.
No fundo da ravina que ladeava a casa do chefe dos pastores fluía um raso e lerdo curso de água barrenta. Ninguém deu crédito à história do Padre Ralph de que o córrego poderia subir dezoito metros da noite para o dia; não parecia possível. Sua água era bombeada à mão para servir ao banheiro e à cozinha, e as mulheres precisaram de muito tempo para acostumar-se à idéia de lavar-se e de lavar pratos e roupas numa água pardacenta e esverdeada. Seis tanques maciços de ferro corrugado colocados no alto de torres de madeira, que lembravam guindastes, colhiam a chuva do telhado e lhes proporcionavam água potável, que devia ser consumida com parcimônia e nunca usada para lavar o que quer que fosse, pois ninguém sabia quando as próximas chuvas tornariam a encher os tanques.
Os carneiros, as vacas e os cavalos bebiam água artesiana, não extraída de um lençol freático acessível, mas a verdadeira água artesiana, trazida de mais de novecentos metros abaixo da superfície do solo, que jorrava, no ponto de ebulição, de um cano na chamada cabeça de perfuração e, depois de percorrer minúsculos canais orlados de um capim venenosamente verde, chegava a cada cercado que havia na propriedade. Esses canais eram os drenos da perfuração e a sua água, muito sulfurosa, carregada de minerais, não se apropriava ao consumo humano.
A princípio, as distâncias os assombraram; Drogheda tinha duzentos e cinqüenta mil acres. Sua divisa mais comprida se estendia por cento e vinte e oito quilômetros. A casa da sede distava sessenta e quatro quilômetros e vinte e seis porteiras de Gillanbone, o único povoado mais próximo num raio de cento e sessenta e nove quilômetros. A estreita divisa oriental era formada pelo Rio Barwon, nome que a gente do lugar dava ao curso setentrional do Rio Darling, grande rio lodoso de mil e seiscentos quilômetros que se juntava ao Rio Murray para desaguar no oceano meridional, a dois mil e quatrocentos quilômetros de distância no sul da Austrália. O Ribeirão Gillan, que corria na ravina ao lado da casa do chefe dos pastores, desembocava no Barwon três quilômetros e pouco além do Home Paddock.
Paddy e os garotos adoraram aquilo. Passavam, às vezes, dias e dias na sela, a quilômetros da casa da sede, acampando à noite debaixo de um céu tão vasto e tão cheio de estrelas que tinham a impressão de ser uma parte de Deus.
A terra pardo-acinzentada fervilhava de vida. Milhares de cangurus passavam em bandos, céleres, aos saltos, por entre as árvores, transpondo cercas sem mudar de andadura, adoráveis em sua graça, liberdade e quantidade; emas construíam seus ninhos no meio da planície relvosa e passeavam altivas e majestosos como gigantes pelas suas fronteiras territoriais, assustando-se com tudo o que fosse estranho e correndo mais do que cavalos para longe dos seus ovos verde-escuros, do tamanho de bolas de futebol; cupins erguiam torres cor de ferrugem que pareciam arranha-céus em miniatura; formigas imensas, que tinham uma picada dolorosíssima, desapareciam como rios por buracos feitos em cômoros no chão.
A vida alada era tão rica e variada que as espécies novas pareciam não ter fim; seus representantes, entretanto, não viviam isolados nem aos pares, senão aos milhares; minúsculos passarinhos verdes e amarelos, que Fee costumava chamar de periquitos, mas que os do lugar chamavam de budgerigars; pequenos papagaios escarlates e azuis cognominados rosellas; grandes papagaios cinza-claros com o peito, a cabeça e parte das asas de cor púrpura, conhecidos pelo nome de galahs; e os grandes pássaros inteiramente brancos, as cacatuas de insolentes cristas amarelas. Lindos e minúsculos tentilhões chilriavam e revoluteavam, e o mesmo faziam pardais e estorninhos, e os robustos e pardos martins-pescadores, os kookaburras, riam-se e exultavam, alegres, ou mergulhavam à procura de cobras, seu alimento predileto. Eram quase humanos todos esses pássaros, e, completamente sem medo, pousados às centenas nas árvores, olhavam curiosos à sua volta com os olhinhos brilhantes e inteligentes, gritando, falando, rindo e imitando tudo o que produzia sons.
Temíveis lagartos de um metro e meio ou um metro e oitenta de comprimento avançavam pesadamente pelo chão ou trepavam, ágeis, aos altos galhos das árvores, tão à vontade fora da terra como sobre ela; eram goannas. E havia muitos outros, menores mas não menos assustadores, com o pescoço adornado de cristas córneas dinossáuricas, ou com línguas tumefatas, de um azul brilhante. A variedade de cobras era quase infinita, e os Clearys ficaram sabendo que as maiores e de aspecto mais perigoso nem sempre eram as mais daninhas, ao passo que uma criaturinha atarracada, de trinta centímetros de comprimento, poderia ser uma víbora mortal; pítons, mortíferas cobras-corais cor de cobre, cobras arborícolas, cobras-pretas de barriga vermelha, cobras-pardas.
E os insetos! Gafanhotos, cigarras, grilos, abelhas, moscas de todos os tamanhos e espécies, borrachudos, libélulas, mariposas gigantes e tantas borboletas! Aranhas medonhas, imensas e peludas, com pernas de vários centímetros de comprimento, ou enganosamente pequenas, mas pretas e mortais, escondidas na privada; algumas viviam em vastas teias gigantes, suspensas entre as árvores, outras se embalavam em densos berços de fios prateados, presos entre hastes de capim, outras ainda se enfiavam no chão em buraquinhos com tampas que se fechavam depois que elas passavam.
Também havia predadores: porcos bravos que não tinham medo de nada, selvagens e carnívoros, umas coisas pretas e peludas, grandes como vacas; dingos, os cães nativos selvagens que se movem às furtadelas, rentes ao solo, e se fundem com a relva; corvos, às centenas, desolados e aflitos, empoleirados nos brancos e murchos esqueletos de árvores mortas; gaviões e águias, pairando imóveis sobre as correntes de ar.
De alguns era preciso proteger os carneiros e o gado, sobretudo quando pariam. Os cangurus e os coelhos comiam o capim precioso; os porcos e os dingos devoravam cordeirinhos, bezerrinhos e bichos doentes; os corvos arrancavam os olhos dos animais com o bico. Os Clearys tiveram de aprender a atirar e carregavam fuzis quando saíam a cavalo, às vezes para acabar com o sofrimento de um animal condenado, às vezes para abater um porco bravo ou um dingo.
Isso, pensavam os meninos, exultantes, era vida. Nenhum tinha saudade da Nova Zelândia; quando as moscas se apinhavam como remela nos cantos dos seus olhos, lhes subiam pelo nariz, lhes entravam pela boca e pelas orelhas, eles aprenderam o truque australiano de prender cordões em toda a volta da aba do chapéu e amarrar uma rolha de cortiça na ponta de cada cordão. Para impedir que parasitas rastejantes lhes subissem pelas pernas, por baixo das calças largas, amarravam tiras de pele de canguru chamadas bowyangs abaixo dos joelhos. A Nova Zelândia era mansa comparada com isto aqui, mas isto era vida.
Presas à casa e às suas imediações, as mulheres achavam a existência muito menos interessante, pois não tinham tempo nem pretexto para montar a cavalo, nem o estímulo de atividades variadas. Era-lhes apenas mais duro fazer o que sempre fizeram as mulheres: cozinhar, limpar, lavar, passar a ferro, cuidar de nenezinhos. Lutavam contra o calor, a poeira, as moscas, os muitos degraus, a água barrenta, a quase permanente ausência de homens para cortar e carregar lenha, bombear a água, matar aves. O calor sobretudo era difícil de agüentar e, no entanto, ainda estavam no começo da primavera; mesmo assim, o termômetro colocado na varanda, onde havia sombra, marcava trinta e oito graus todos os dias. Na cozinha, com o fogão funcionando, a temperatura chegava a quarenta e nove graus.
As roupas que elas usavam, numerosas e justas, haviam sido feitas para a Nova Zelândia, onde o interior das casas era quase sempre frio. Mary Carson, que caminhara, à guisa de exercício, até a casa da cunhada, olhava com desdém para o vestido de algodão de Fee, fechado no pescoço e comprido até os pés. Ela mesma envergava, de acordo com a nova moda, um vestido de seda creme que não lhe passava da metade das pernas, de mangas largas, decote baixo e sem cintura.
— Não há dúvida, Fiona, você é irremediavelmente antiquada — disse ela, correndo a vista pela sala de visitas recém-pintada de creme, pelos tapetes persas e pelos móveis finos e valiosos.
— Não tenho tempo para ser outra coisa — redargüiu Fee, com excessivo laconismo para uma anfitriã.
— Você terá mais tempo agora que os homens se demoram longe de casa e há menos refeições para preparar. Suspenda as suas bainhas e deixe de usar anáguas e espartilhos, pois acabará morrendo quando chegar o verão. Sabe que o calor ainda pode aumentar de oito a onze graus? — Seus olhos se demoraram no retrato da bela mulher loura com a saia-balão à Imperatriz Eugênia. — Quem é aquela? — perguntou, apontando.
— Minha avó.
— É mesmo? E os móveis, os tapetes?
— Meus, herdados de minha avó.
— Não me diga! Pelo visto, minha querida Fiona, você desceu na escala social, não desceu?
Fee nunca perdia as estribeiras, de modo que não as perdeu tampouco nessa ocasião, mas seus lábios se afinaram.
— Pois eu não penso assim, Mary. Tenho um bom marido; você devia saber disso.
— Mas que não tem sequer um gato para puxar pelo rabo. Qual era o seu nome de solteira?
— Armstrong.
— Ah, sim? Mas não o mesmo Armstrong de Roderick Armstrong?
— É meu irmão mais velho. Ele recebeu o nome de meu avô
Mary Carson levantou-se, enxotando com o chapelão as moscas atrevidas, que não respeitavam nem as pessoas mais importantes.
— É, você é mais bem-nascida do que os Clearys, e sou eu quem o diz. Era tão grande assim o seu amor a Paddy que preferiu desistir de tudo isso?
— As razões para o que faço — voltou Fee, sem alterar o tom de voz — dizem respeito a mim, Mary, e não a você. Não discuto meu marido com ninguém, nem com a irmã dele.
As rugas de cada lado do nariz de Mary Carson se acentuaram, seus olhos tornaram-se um pouquinho mais protuberantes.
— Ora essa! — disse ela.
Mary Carson não voltou à casa de Fee, mas a Sra. Smith, sua governanta, veio com freqüência e repetiu-lhe o conselho a respeito das roupas.
— Ouça — disse ela —, no meu quarto há uma máquina de costura que nunca uso. Mandarei um par de biscateiros trazê-la para a senhora. E, se eu um dia precisar dela virei até aqui. — Seus olhos dirigiram-se para onde Hal, o bebezinho, rolava no chão feliz da vida. — Gosto de ouvir o barulho das crianças, Sra. Cleary.
De seis em seis semanas chegava a correspondência de Gillanbone num carroção puxado por cavalos; era esse seu único contato com o mundo exterior. Drogheda possuía um caminhão Ford comum, outro caminhão Ford construído especialmente com um tanque de água na carroçaria, um automóvel Ford modelo T e uma limusine RollsRoyce, mas ninguém parecia jamais utilizá-los para ir a Gilly, a não ser Mary Carson infreqüentemente. Sessenta e quatro quilômetros era longe como a lua.
Bluey Williams conseguira o contrato postal do distrito e levava seis semanas para cobrir seu território. Puxavam-lhe o carroção de teto plano com rodas de três metros, carregado de todas as coisas encomendadas pelas fazendas distantes, seis magníficas parelhas de cavalos de tiro. Assim como o Correio Real, ele transportava artigos de mercearia, gasolina em tambores de quarenta e quatro galões, querosene em latas quadradas de cinco galões, feno, sacos de milho, sacos de açúcar e farinha, caixas de chá, sacos de batatas, máquinas agrícolas, brinquedos e roupas pedidos pelo correio à casa de Anthony Horden em Sydney, e tudo o mais que devesse ser trazido de Gilly ou de Fora. Locomovendo-se à esplêndida velocidade de trinta e dois quilômetros por dia, recebiam-no muito bem onde quer que parasse, assediavam-no de perguntas sobre as notícias e o tempo de outros lugares, e entregavam-lhe os pedaços rabiscados de papel cuidadosamente enrolados em torno do dinheiro para as mercadorias que compraria em Gilly, e as cartas laboriosamente escritas, que iam parar no saco de lona onde se lia ”Correio Real GVR”.
A oeste de Gilly só havia duas fazendas no seu caminho, Drogheda, a mais próxima, e Bugela, a mais afastada; além de Bugela ficava o território que só recebia a correspondência de seis em seis meses. A carroça de Bluey descrevia um grande arco ziguezagueante ao percorrer todas as fazendas a sudoeste, a oeste e a noroeste, depois regressava a Gilly antes de partir, rumo ao leste, jornada mais curta porque a cidade de Booroo se responsabilizava por noventa e seis quilômetros a leste. Às vezes, trazia pessoas sentadas ao seu lado, no assento de couro da boléia descoberta, visitante ou gente a procura de trabalho; às vezes, levava pessoas, visitantes ou pastores, criadas ou biscateiros descontentes e, de raro em raro, uma governanta. Os criadores de carneiros possuíam condução própria, mas os que trabalhavam para os criadores de carneiros dependiam do Bluey para o seu transporte assim como dependiam dele para suas mercadorias e sua correspondência.
Depois que as peças de fazenda encomendadas por Fee chegaram pelo correio, ela sentou-se à máquina de costura que havia ganho e começou a fazer vestidos folgados para si e para Meggie, calças e macacões leves para os homens, camisolões para Hal e cortinas para as janelas, tudo de algodão. Não havia dúvida de que a gente não sentia tanto calor usando menos roupas e roupas mais folgadas.
A vida era solitária para Meggie, que dos irmãos só tinha Stuart para fazer-lhe companhia. Jack e Hughie saíam com o pai a fim de aprender o ofício de pastor de ovelhas —jackaroos, como se chamavam os jovens aprendizes. Stuart não era companhia para ela como o haviam sido Jack e Hughie. Vivia num mundo próprio. Menino sossegado, preferia ficar sentado horas a fio observando o comportamento de uma fíla de formigas a trepar em árvores, ao passo que Meggie adorava trepar em árvores e achava maravilhosos os eucaliptos australianos, de variedades infinitas. Não que lhes sobrasse muito tempo para trepar em árvores ou para observar formigas, pois Meggie e Stuart trabalhavam como gente grande. Rachavam e transportavam a lenha, abriam buracos para o lixo, cuidavam da horta e tratavam das aves e dos porcos.” Também aprenderam a matar cobras e aranhas, embora nunca deixassem de temê-las.
As chuvas haviam sido medianamente boas durante vários anos; o córrego baixara, mas os tanques estavam pela metade. Embora estivesse razoavelmente bom, o capim ficava muito aquém das suas épocas de maior viço.
— É provável que fique pior — disse Mary Carson em tom sombrio.
Mas eles conheceriam uma enchente antes de enfrentar a seca. Em meados de janeiro, a região apanhou a orla meridional das monções de noroeste. Extremamente insidiosos, os grandes ventos sopraram à vontade. Às vezes, apenas nas extremidades setentrionais mais afastadas do continente caíam as tempestades de verão, às vezes elas chegavam até as regiões mais remotas e menos povoadas e proporcionavam aos infelizes habitantes de Sydney um verão molhado. Naquele mês de janeiro as nuvens turbilhonaram, negras, pelo céu, rasgadas em frangalhos ensopados pelo vento, e começou a chover; não foi uma chuva fina, mas um dilúvio persistente e atroador, que parecia não acabar mais.
Eles tinham sido avisados; BlueyjWilliams aparecera de repente com o carroção carregado até o teto e doze cavalos de reserva atrás de si, pois pretendia terminar seus giros antes que as chuvas tornassem impossível novos fornecimentos às fazendas.
— As monções vêm vindo — disse ele, enrolando um cigarro e indicando pilhas de artigos suplementares de mercearia com o cabo do relho. — O Cooper, o Barcoo e o Diamantina transbordaram. Todo o interior de Queensland está mais de meio metro debaixo d’água e aqueles pobres-coitados estão tentando encontrar um morrinho qualquer para guardar os carneiros.
Súbito, instaurou-se uma espécie de pânico controlado; Paddy e os meninos trabalhavam como doidos, tirando os carneiros dos pastos mais baixos e levando-os para o mais longe possível do córrego e do Barwon. Padre Ralph apareceu, selou sua montaria e saiu com Frank e a melhor matilha de cães na direção de dois pastos ainda não evacuados ao longo do Barwon, enquanto Paddy e os dois pastores de ovelhas, cada um acompanhado de um garoto, seguiam em outras direções.
O próprio Padre Ralph era um excelente pastor. Montava uma égua castanha, puro-sangue, que Mary Carson lhe dera, e trajava calças de montaria amarelo-pálidas de corte perfeito, botas amarelas reluzentes que lhe chegavam aos joelhos, e uma camisa branca imaculada com as mangas arregaçadas sobre o braço musculoso e o pescoço descoberto deixando ver o peito moreno e liso. Vestindo velhas e largas calças cinzentas de sarja, presas abaixo do joelho com tiras de couro de canguru, e uma camiseta cinzenta de flanela, Frank sentia-se como um parente pobre. Exatamente o que ele era, pensou, seguindo o cavaleiro ereto sobre a égua bonita através de uma moita de buxos e de um pinhal, além do córrego. Ele próprio cavalgava um animal de lida, molhado, duro de boca, um diabo genioso e voluntarioso, que odiava, feroz, outros cavalos. Os cachorros latiam e pulavam, excitados, lutando entre si e rosnando até que os separava uma chicotada magistralmente aplicada pelo Padre Ralph. Dir-se-ia que não houvesse nada que o homem não soubesse fazer; familiarizado com os assobios convencionais para incitar os cães ao trabalho, ele manejava o chicote muito melhor do que Frank, que ainda estava aprendendo essa exótica arte australiana.
O grande cão de manto azul da raça Queensland, que dirigia a matilha, apegou-se ao padre e seguia-o servilmente, sem discutir, o que dava a Frank, decididamente, uma situação subalterna. Metade de Frank não se importava com isso; só ele, entre os filhos de Paddy, não gostava da vida em Drogheda. Seu maior desejo fora deixar a Nova Zelândia, mas não para isso. Detestava o incessante patrulhar dos pastos, o chão duro para dormir na maior parte das noites, os cães selvagens que não podiam ser tratados como animais domésticos e eram sacrificados quando descumpriam sua obrigação.
Mas a cavalgada sob as nuvens que se adensavam tinha em si um elemento de aventura; até as árvores que vergavam e estalavam pareciam dançar com bárbara alegria. Padre Ralph trabalhava como um homem dominado por uma obsessão, atiçando os cachorros no encalço de bandos distraídos de carneiros e fazendo as tolas bolotas de lã saltarem e balirem assustadas, até que as formas baixas que listavam a relva os ajuntavam e punham a correr. Somente a posse dos cães permitia a um punhado de homens operar uma propriedade do tamanho de Drogheda; educado para lidar com carneiros ou com o gado, o dingo inteligentíssimo necessitava de muito pouca direção.
Ao cair da noite, Padre Ralph e os cães ajudados por Frank, que procurava fazer o melhor que podia, e não fazia grande coisa, haviam retirado todos os carneiros de um pasto, serviço que, em épocas normais, levava vários dias. O padre desarreou a égua ao pé da porteira do segundo pasto, afirmando, otimista, que ainda tirariam os carneiros dali também antes de começar a chuva. Os cães estavam escarrapachados na grama, com a língua de fora, enquanto o grande Queensland sacudia a cauda, subserviente, aos pés do Padre Ralph. Frank arrancou do alforje um repugnante pedaço de carne de canguru e arremessou-o aos cachorros, que se atiraram a ele abocanhando-os e mordendo-se uns aos outros.
— Feras medonhas e sangüinárias — disse ele. — Não se comportam como cães, parecem chacais.
— Pois creio que estão, provavelmente, muito mais próximos do que Deus pretendia que fossem os cachorros — acudiu Padre Ralph com mansidão. — Alertas, inteligentes, agressivos e quase indomados. Pessoalmente, eu os prefiro à espécie dos animaizinhos de estimação. — Sorriu-se o padre. — Os gatos também. Não os observou em torno dos barracões? Selvagens e maus como panteras; não deixam nenhum ser humano aproximar-se deles. Porém magníficos caçadores, que a nenhum homem dão o título de amo ou provedor.
Extraiu um pedaço frio de carne de carneiro e um pacote de pão com manteiga do seu alforje, cortou um bom naco da carne e estendeu o resto a Frank. Colocando o pão com manteiga sobre um tronco entre ambos, enterrou os dentes brancos no guisado com evidente prazer. Mitigou a sede com o conteúdo de um cantil de lona e, a seguir, enrolou um cigarro.
— Este é o melhor lugar para dormir — disse ele, desencorreando o cobertor e pegando na sela.
Frank seguiu-o até a árvore, comumente tida pela mais bela nessa parte da Austrália. As folhas, quase perfeitamente arredondadas, tinham uma cor verde-pálida de lima e a folhagem, densa, crescia tão perto do solo que os carneiros a alcançavam com facilidade, de modo que o fundo de cada wilga era cortado tão direito quanto uma sebe topiária. Se a chuva começasse a cair, encontrariam melhor abrigo debaixo dela do que debaixo de qualquer outra, pois as árvores australianas, em geral, tinham uma folhagem menos espessa que as dos países mais chuvosos.
— Você não está feliz, Frank, está? — perguntou o Padre Ralph, deitando-se no chão com um suspiro e enrolando outro cigarro.
Da posição em que se encontrava, a pouco menos de um metro de distância, Frank voltou-se para mirá-lo, desconfiado.
— Quem é feliz?
— No momento, seu pai e seus irmãos. Mas nem você, nem sua mãe, nem sua irmã. Que é que há? Vocês não gostam da Austrália?
— Desta parte, não. Quero ir para Sydney. Eu talvez encontre ali a oportunidade de fazer alguma coisa.
— Sydney, é? Um antro de iniqüidades. Padre Ralph estava sorrindo.
Pouco me importa! Aqui estou tão atolado como na Nova Zelândia; não consigo me afastar dele.
-- Dele?
Mas Frank não tencionara dizer isso, e não quis falar mais nada. Continuou deitado, olhando para as folhas.
Quantos anos você tem, Frank?
— Vinte e dois.
Sei. Já esteve, algum dia, separado da família?
— Não.
Já foi a um baile, já teve uma namorada?
— Não.
— Nesse caso, ele não o segurará por muito tempo.
— Ele me segurará até eu morrer. Frank recusava-se a dar-lhe o seu título.
Padre Ralph bocejou e preparou-se para dormir.
— Boa-noite — disse.
De manhã, as nuvens estavam mais baixas, mas a chuva esperou o dia todo para cair, e eles conseguiram evacuar o segundo pasto. Uma pequena crista atravessava Drogheda de noroeste para sudoeste; em seus pastos se concentravam os rebanhos de carneiros, pois tinham ali um terreno mais alto para buscar se a água ultrapassasse as margens do regato e do Barwon.
A chuva começou quase ao cair da noite, quando Frank e o padre se apressavam, num trote ligeiro, na direção do vau do córrego, abaixo da casa do chefe dos pastores de ovelhas.
— Não adianta preocupar-se em não os esfalfar agora! —gritou o Padre Ralph. — Crave as esporas nele, rapaz, ou você morrerá afogado na lama!
Dali a segundos estavam os dois ensopados, como ensopado estava o solo crestado. A terra fina, não porosa, converteu-se em mar de lama, em que os cavalos, atolados até os jarretes, patinhavam. Enquanto houve relva, eles puderam continuar, mas, perto do riacho, onde a terra, pisada, estava nua, precisaram desmontar. Livres dos seus fardos, os cavalos não tiveram dificuldades, mas Frank percebeu que não conservaria o equilíbrio. Aquilo era pior que uma pista de patinação. Valendo-se das mãos e dos joelhos, arrastaram-se até o topo da margem do arroio e escorregaram por ela como projéteis. O leito de pedra, que costumava estar coberto por trinta centímetros de águas preguiçosas, achava-se agora debaixo de um metro e tanto de espuma impetuosa; Frank ouviu o padre rir. Instigados pelos gritos e golpes desferidos com chapéus empapados, os cavalos escalaram a margem oposta sem acidentes, mas Frank e o Padre Ralph não conseguiram imitá-los. Toda vez que o tentavam, escorregavam para trás. O padre acabara de sugerir que trepassem num salgueiro, quando Paddy, alertado pelo aparecimento dos cavalos sem cavaleiros, surgiu com uma corda e içou os dois.
Sorrindo e sacudindo a cabeça, Padre Ralph recusou o oferecimento de hospitalidade de Paddy.
— Estou sendo esperado na casa-grande — explicou.
Mary Carson ouviu-o chamar antes de qualquer outra pessoa da casa, pois ele decidira caminhar até a frente, julgando que assim lhe seria mais fácil chegar ao seu quarto.
— Você não vai entrar desse jeito — disse ela, em pé na varanda.
— Então seja boazinha e me dê umas toalhas e minha caixa.
Sem nenhum constrangimento, ela o viu despir a camisa, as botas e as calças, encostada ao peitoril da janela semi-aberta da sala de estar, enquanto ele tirava, com a toalha, o pior da lama.
— Você é o homem mais bonito que já vi, Ralph de Bricassart — disse ela. — Por que será que tantos padres são bonitos? Pelo fato de serem irlandeses? Os irlandeses são um povo bonito. Ou porque os homens bonitos encontram no sacerdócio um refúgio contra as conseqüências da sua beleza? Aposto que as moças de Gilly andam todas loucas de amor por você.
— Aprendi há muito tempo a não dar atenção às moças loucas de amor. — Ele riu. — Qualquer padre com menos de cinqüenta anos é um alvo para algumas delas, e um padre com menos de trinta e cinco costuma ser um alvo para todas. Mas são só as protestantes que tentam francamente me seduzir.
— Você nunca responde direito às minhas perguntas, não é mesmo? — Endireitando-se, ela colocou a palma da mão no peito dele e ali a deixou. — Você é um sibarita, Ralph, toma banhos de sol. Todo o seu corpo é assim queimado?
Sorrindo, ele inclinou a cabeça para a frente e riu com a boca no cabelo dela, enquanto as mãos desabotoavam as ceroulas de algodão; quando estas caíram ao chão, empurrou-as com os pés, e ali ficou, como uma estátua de Praxíteles, enquanto ela dava uma volta completa em torno dele, devagar, olhando.
Os últimos dois dias o haviam estimulado, como o estimulava a súbita consciência de que ela talvez fosse mais vulnerável do que ele imaginara; mas, conhecendo-a, sentiu-se perfeitamente seguro ao perguntar:
— Você quer que eu faça amor com você, Mary?
Ela contemplou-lhe o pênis flácido, rindo muito.
— Eu seria incapaz de exigir-lhe tamanho sacrifício! Você precisa de mulheres,Ralph?
A cabeça dele recuou, num gesto desdenhoso.
Não!
De homens?
São piores que as mulheres. Tampouco preciso deles.
E de si mesmo?
Menos ainda.
Interessante. — Abrindo toda a janela, ela entrou na sala de estar. — Ralph,
Cardeal de Bricassart! — anunciou, em tom escarninho.
Quando, porém, se viu longe dos olhos perspicazes dele, deixou-se cair na bergère e cerrou os punhos, gesto de vitupério contra as incoerências do destino.
Nu, Padre Ralph desceu da varanda para ficar no gramado bem-aparado com os braços erguidos acima da cabeça, os olhos fechados; deixou que a chuva caísse sobre si, em duchas quentes, penetrantes, vigorosas, deliciosa sensação na pele nua. Estava muito escuro. Mas ele continuava flácido.
O córrego transbordou e a água subiu ainda mais pelas estacas da casa de Paddy, estendendo-se até o Home Paddock na direção da própria casa da sede.
— Ele descerá amanhã — disse Mary Carson quando Paddy foi informá-la do fato, preocupado.
Como sempre, ela estava certa; na outra semana a água refluiu e, finalmente, voltou aos canais normais. O sol apareceu, a temperatura subiu a quarenta e seis graus à sombra, e o capim parecia querer alcançar o céu, da altura da coxa de um homem, tão limpo, brilhante e dourado que machucava a vista. Lavadas e espanejadas, as árvores reluziam e as hordas de papagaios voltaram de onde se haviam refugiado enquanto a chuva caía para ostentar seus corpos de arco-íris no meio das árvores, mais loquazes do que nunca.
Padre Ralph regressara em auxílio dos seus paroquianos desamparados, sereno por saber que não seria censurado; debaixo da imaculada camisa branca, junto ao coração, trazia um cheque de mil libras. O Bispo ficaria extasiado.
Os carneiros foram levados de volta aos pastos normais e os Clearys viram-se obrigados a aprender o hábito interiorano da sesta. Levantavam-se às cinco da manhã, faziam tudo o que tinham de fazer antes do meio-dia, depois caíam, prostrados, como sacos, exaustos e suados até às cinco da tarde. Isto tanto se aplicava às mulheres em casa quanto aos homens nos pastos. As tarefas não executadas cedo eram-no depois das cinco, e fazia-se a refeição da noite após o ocaso, à mesa colocada na varanda. As camas também tinham sido levadas para fora, pois o calor persistia durante a noite. Dir-se-ia que nas últimas semanas a coluna de mercúrio não descera abaixo da marca dos quarenta, quer de dia, quer de noite. A carne de vaca era uma lembrança esquecida, e só havia para comer um carneiro suficientemente pequeno para durar sem se estragar até ser todo deglutido. Seus paladares ansiavam por uma mudança da eterna rotina de costeletas assadas de carneiro, cozido de carneiro, torta de carne de carneiro bem picada, carne de carneiro temperada com caril, pernil assado de carneiro, carne de carneiro cozida e conservada em vinagre, carne de carneiro cozida e servida em panela de barro.
No começo de fevereiro, porém, a vida mudou de repente para Meggie e Stuart, que foram mandados, como internos, para o convento de Gillanbone, pois não havia esccola mais próxima. Hal, disse Paddy, faria o curso por correspondência da Escola dos Dominicanos em Sydney quando tivesse idade para isso, mas, nesse meio tempo, como Meggie e Stuart estivessem acostumados a professoras, Mary Carson se oferecera, generosa, para pagar-lhes a pensão e o ensino no convento de Santa Cruz. Além disso, Fee andava tão ocupada com Hal que não poderia vigiar também as aulas por correspondência. Ficara tacitamente entendido, desde o começo, que Jack e Hughie não prosseguiriam em seus estudos; Drogheda precisava deles na terra, e a terra era o que eles queriam.
Meggie e Stuart encontraram uma existência estranha e pacífica em Santa Cruz depois de sua vida em Drogheda, mas, sobretudo, depois do Sagrado Coração eu Wahine. Padre Ralph dera a entender sutilmente às freiras que, além de serem as duas crianças suas protegidas, a tia delas era a mulher mais rica da Nova Gales do Sul. Assim sendo, a timidez de Meggie passou de vício a virtude, e o estranho isolamento de Stuart, o seu hábito de ficar olhando durante horas para distâncias incomensuráveis valeu-lhe o epíteto de ”santo”.
Era verdadeiramente muito pacífico, pois havia pouquíssimos internos; os moradores do distrito que tinham dinheiro bastante para internar os filhos num colégio sempre preferiam Sydney. O convento cheirava a verniz e a flores, e seus altos e escuros corredores emanavam quietude e uma tangível santidade. As vozes eram abafadas, a vida prosseguia por trás de um véu negro e fino. Ninguém os açoitava, ninguém gritava com eles, e havia sempre o Padre Ralph.
Este vinha vê-los com freqüência e os hospedava na casa paroquial com tanta regularidade que decidiu pintar o quarto usado por Meggie de um delicado verde-maçã e comprar cortinas novas para as janelas e uma nova colcha para a cama. Stuart continuou a dormir num quarto que continuava marrom e creme apesar de duas redecorações; o fato é que nunca ocorria ao Padre Ralph perguntar a si mesmo se Stuart se sentia feliz. Ele era convidado de última hora que, para não se ofender ninguém, também precisava ser incluído na lista.
Padre Ralph não sabia exatamente por que gostava tanto de Meggie e, aliás, não perdia muito tempo pensando nisso. O sentimento começara pela piedade, naquele dia no pátio empoeirado da estação da estrada de ferro, quando a notara atrás dos outros separada do resto da família em virtude do sexo, conjeturara ele com sagacidade.
Entretanto, pouco se lhe dava de saber por que Frank também se movia num perímetro externo nem se sentia inclinado a ter pena de Frank. Havia neste qualquer coisa que matava as emoções ternas: um coração negro, um espírito carente de luz interior. Mas Meggie? Meggie o comovera insuportavelmente, e ele não sabia por quê. Havia a cor do seu cabelo, que lhe agradava; a cor e a forma dos olhos, parecidos com os da mãe e, portanto, belos, porém muito mais doces e expressivos; e o seu caráter, que ele via como o perfeito caráter feminino, passivo mas enormemente forte. Meggie não era uma rebelde; ao contrário. Obedeceria durante toda a vida e mover-se-ia dentro das fronteiras do seu destino feminino.
Entretanto, a soma de todos esses elementos não dava o total procurado. É possível que, se tivesse olhado mais profundamente para dentro de si mesmo, ele tivesse visto que o que sentia por ela era o curioso resultado do tempo, do lugar e da pessoa. Ninguém a julgava importante, o que significava que havia um espaço em sua vida em que ele poderia encaixar-se e ter a certeza do seu amor; ela era uma criança e, portanto, não representava perigo para o seu estilo de vida nem para a sua reputação sacerdotal; ela era bela, e ele apreciava a beleza; e, o que ele menos admitia, Meggie enchia um espaço vazio em sua vida que o seu Deus não poderia encher, pois possuía calor e solidez humana. Para não constranger a família dela dando-lhe presentes, ele lhe dava o máximo possível da sua companhia, e gastava tempo e idéias na redecoração do quarto da menina na casa paroquial; não tanto para ver-lhe o prazer como para criar um engaste apropriado à sua jóia.
Nada de bijuteria para Meggie.
No princípio de maio, os tosquiadores chegaram a Drogheda. Mary Carson tinha plena consciência do modo com que tudo se fazia em Drogheda, desde a distribuição dos carneiros até o estalar de um chicote; mandou chamar Paddy na casa-grande alguns dias antes da chegada dos tosquiadores e, sem sair de sua bergère, disse-lhe precisamente o que ele teria de fazer até o último pormenor. Acostumado à tosquia na Nova Zelândia, Paddy ficara abismado com o tamanho do barracão e os seus vinte e seis estrados; agora, depois da entrevista com a irmã, os fatos e os números começaram a lutar dentro da sua cabeça. Não somente os carneiros de Drogheda seriam tosquiados em Drogheda, mas também os de Bugela, de Dibban-Dibban e de Beel-Beel. Isso significava uma quantidade extenuante de trabalho para todas as pessoas do lugar, homens e mulheres. O costume era a tosquia comunal, e as fazendas que se valiam das instalações de Drogheda também arregaçariam as mangas, mas o impacto do trabalho posterior recairia sobre os ombros da gente de Drogheda.
Os tosquiadores trariam seu próprio cozinheiro e comprariam a comida no armazém da fazenda, mas cumpria encontrar as vastas quantidades de alimentos; cumpria lavar, limpar e equipar de colchões e cobertores as choças decrépitas, providas de cozinha e de um banheiro primitivo. Nem todas as fazendas eram tão generosas com tosquiadores quanto Drogheda, que se orgulhava da sua hospitalidade e da sua reputação de ”barracão supimpa”. Pois sendo esta a única atividade de que participava, Mary Carson não fazia economias. Não somente era aquele um dos maiores barracões em toda a Nova Gales do Sul, mas também requeria o trabalho dos melhores homens homens do calibre de Jackie Howe; mais de trezentos mil carneiros seriam ali tosquiados antes que os tosquiadores jogassem suas trouxas no velho caminhão Ford de empreiteiro e desaparecessem no caminho, rumo ao barracão seguinte.
Fazia duas semanas que Frank não aparecia em casa. com o velho Beerbarrel Pete, o pastor de ovelhas, uma matilha de cães, dois cavalos de lida e um carro leve atrelado a um pangaré relutante para transportar-lhes as modestas necessidades, ele partira em direção aos pastos mais ocidentais no intuito de trazer de lá os carneiros para os juntar cada vez mais, apartar e escolher. Trabalho lento e tedioso que não se podia comparar com o ajustamento realizado antes da cheia. Cada pasto tinha os próprios currais, onde se faria parte do trabalho de classificação e marcação e onde os rebanhos ficariam detidos até chegar a sua vez. Os currais de tosquia do barracão só comportavam dez mil carneiros, de modo que a vida não seria fácil enquanto os tosquiadores lá estivessem, num constante vaivém de rebanhos que se trocavam, os já tosquiados pelos ainda não tosquiados.
Quando Frank entrou na cozinha de sua mãe, encontrou-a em pé à beira da pia, entretida numa tarefa que nunca tinha fim, descascando batatas.
— Mamãe, cheguei! — disse ele, com alegria na voz.
Quando ela se virou para vêlo mostrou a barriga, e as duas semanas que ele passara fora lhe permitiram a percepção.
— Meu Deus! — murmurou.
Os olhos dela perderam o prazer que a chegada do filho lhes causara, enquanto a vergonha lhe corava o rosto; ela estendeu as mãos sobre o avental bojudo, como se elas pudessem esconder o que as roupas não conseguiam.
Frank estava tremendo.
— O velho bode sujo!
— Frank, não posso permitir que você diga essas coisas. Você agora é um homem, devia compreender. Isto não é diferente da maneira com que você mesmo veio ao mundo, e merece o mesmo respeito. Não é sujo. Quando você insulta seu pai, está me insultando também.
— Ele não tinha o direito! Ele devia tê-la deixado em paz! — sibilou Frank, enxugando uma gota de saliva que lhe ficara no canto da boca trêmula.
— Não é sujo — repetiu ela em tom cansado, e o fitou com os olhos claros e fatigados, como se tivesse decidido, subitamente, deixar a vergonha de vez para trás. — Não é sujo, Frank, como não é sujo o ato que o criou.
Desta vez o rosto dele ficou vermelho. Não podendo continuar a sustentar o olhar dela virou-se, saiu da cozinha e foi enfiar-se no quarto que partilhava com Bob, Jack e Hughie. Suas paredes nuas e suas caminhas de solteiro caçoaram dele, do seu aspecto inútil e banal, da falta de uma presença para aquecê-lo, de um propósito para santificálo E o rosto dela, o belo e cansado rosto dela com seu halo formalista de cabelo dourado, se iluminava todo por causa do que ela e aquele peludo bode velho tinham feito no calor terrível do verão.
Ele não podia livrar-se disso, não podia livrar-se dela, dos pensamentos que ficavam no fundo da sua mente, das fomes naturais da sua idade e da sua virilidade. Na maior parte das vezes, conseguia empurrar tudo aquilo para debaixo da consciência, mas quando ela lhe exibia uma prova palpável da sua sensualidade, quando expunha diante dele sua misteriosa atividade com aquela besta lúbrica... Como poderia ele pensar nisso, como poderia consentir nisso, com poderia sofrê-lo? Ele desejava poder imaginá-la totalmente santa, pura e imaculada como a Mãe Santíssima, um ser que se elevava acima dessas coisas, embora suas irmãs no mundo inteiro as praticassem. Vêla provar o que ele concebia como o erro dela era o caminho para a loucura. Tornarase necessário à sanidade dele supor que ela se deitava com aquele velho feio em perfeita castidade, para ter onde dormir, mas que, durante a noite, eles nunca se voltavam um para o outro, nem se tocavam! Oh, Deus!
Um som metálico e áspero fê-lo olhar para baixo e, ao fazê-lo, verificou que torcera o pé da cama, transformando-o num S.
— Por que você não é papai? — perguntou ao pé da cama.
— Frank — disse a mãe da soleira da porta.
Ele ergueu os olhos, olhos negros cintilantes e molhados como pedaços de carvão sobre os quais houvesse chovido.
— Ainda o acabarei matando — disse.
— Se fizer isso, você me matará — volveu Fee, aproximando-se para sentar na cama.
— Não, eu a libertarei — retrucou ele num tom selvagem, cheio de esperança.
— Frank, nunca poderei ser livre, e não quero ser livre. Quisera saber de onde vem a sua cegueira, mas não sei. Não vem de mim, e tampouco de seu pai. Sei que você não é feliz, mas precisa acaso nos culpar disso, a mim e a ele? Por que insiste em tornar as coisas tão difíceis? Por quê? — Ela abaixou os olhos para as próprias mãos e, em seguida, tornou a erguê-los para ele. — Eu não queria dizer isto, mas preciso dizê-lo. Já é tempo de você arranjar uma moça, Frank, desposá-la e constituir família. Há espaço em Drogheda. Nunca me preocupei com os outros meninos nesse sentido; eles não parecem, de modo algum, ter a sua natureza. Mas você precisa de uma esposa, Frank. Se você tivesse uma mulher, não teria tempo para pensar em mim.
Ele voltara as costas para ela e não quis virar-se. Durante uns cinco minutos, talvez, ela ficou sentada na cama à espera de que ele dissesse qualquer coisa. Depois suspirou, levantou-se e saiu.
Depois que se foram os tosquiadores e o distrito caiu na semi-inércia do inverno, veio a festa anual da Exposição de Gillanbone e das Corridas do Piquenique. Era o acontecimento mais importante do calendário social, e durava dois dias. Como Fee não se sentisse muito bem para ir, Paddy levou Mary Carson à cidade em seu Rolls-Royce sem a esposa para apoiá-lo ou para conservar em silêncio a língua de Mary. Ele notara que, por alguma razão misteriosa, a própria presença de Fee reprimia sua irmã, colocava-a em situação de inferioridade.
Os outros iriam todos. Ameaçados de morte se não se comportassem direito, os meninos foram de caminhão em companhia de Beerbarrel Pete, Jim, tom, a Sra. Smith e as crianças, mas Frank foi mais cedo, sozinho, no Ford modelo T. Os adultos do grupo ficariam na cidade para assistir às corridas do dia seguinte; por motivos que só ela conhecia, Mary Carson recusou o oferecimento do Padre Ralph de acomodá-la na casa paroquial, mas insistiu com Paddy para que o aceitasse para si e para Frank. Ninguém ficou sabendo onde pararam os dois pastores e tom, o aprendiz de jardineiro, mas a Sra. Smith, Minnie e Cat tinham amigos em Gilly que as hospedaram.
Eram dez horas da manhã quando Paddy instalou a irmã no melhor quarto que o Hotel Imperial tinha para oferecer; de lá, dirigiu-se ao bar, onde encontrou Frank com uma caneca de cerveja na mão.
— Deixe-me pagar a próxima, meu velho — disse Paddy jovialmente ao filho. — Tenho de levar Tia Mary ao almoço das Corridas do Piquenique, e preciso de apoio moral para poder agüentar o sacrifício sem a presença de sua mãe.
O hábito e o respeito são mais difíceis de superar do que as pessoas supõem, até que tentam realmente modificar o procedimento de anos; Frank descobriu que não poderia fazer o que desejava, não poderia atirar o conteúdo da caneca no rosto do pai, pelo menos diante da multidão que estava no bar. Por isso, emborcou de uma vez o resto da cerveja, sorriu amarelo e disse:
— Desculpe, papai, mas acontece que prometi me encontrar com alguns sujeitos no recinto da exposição.
— Então vá até lá. Olhe, pegue isto e gaste-o com você mesmo. Divirta-se e, se ficar de pileque, não deixe sua mãe perceber.
Frank parou os olhos na nota azul e amarfanhada de cinco libras sentindo uma vontade quase insuportável de rasgá-la em pedacinhos e atirá-los ao rosto de Paddy, mas o costume venceu outra vez; dobrou-a, enfiou-a no bolsinho do relógio e agradeceu ao pai. E saiu do bar o mais depressa que pôde.
Ostentando o seu melhor terno azul, colete abotoado, o relógio de ouro seguro por uma corrente de ouro e um peso feito de uma pepita procedente dos campos auríferos de Lawrence, Paddy puxou com força o colarinho de celulóide e correu a vista pelo bar à procura de um rosto conhecido. Não estivera muitas vezes em Gilly desde que chegara a Drogheda, nove meses atrás, mas sua posição como irmão de Mary Carson e seu herdeiro aparente fizera com que o tratassem muito hospitaleiramente todas as vezes que ele fora à cidade e com que todos se lembrassem do seu rosto. Vários homens cumprimentaram-no sorridentes, vozes se ofereceram para pagar-lhe uma cerveja e ele logo se viu cercado de uma simpática multidãozinha; Frank estava esquecido.
O cabelo de Meggie, naquele tempo, era trançado, pois nenhuma freira se mostrava disposta (apesar do dinheiro de Mary Carson) a cuidar-lhe dos cachos, e ele estava preso em duas grossas tranças por cima dos ombros, amarradas com fitas azulmarinho. Vestindo o sóbrio uniforme azul-marinho de aluna de Santa Cruz, ela atravessou o gramado que separava o convento da casa paroquial, escoltada por uma freira, e foi entregue à governanta do Padre Ralph, que a adorava.
— Oh, é o bonito cabelo escocês da garotinha — explicou ela, certa vez, ao padre que a interrogava, divertido; Annie não era dada a gostar de menininhas e já deplorara a proximidade entre a casa paroquial e a escola.
— Ora essa, Annie! O cabelo é inanimado; você não pode gostar de uma pessoa só por causa da cor do seu cabelo — disse ele, para mexer com ela.
— Bem, ela é uma pobre garotinha... um salmãozinho, o senhor sabe como é. Ele não sabia, mas tampouco lhe perguntou o que significava ”salmãozinho”. As vezes era melhor não saber o que Annie queria dizer, nem incentivá-la dando muita atenção às suas palavras; de acordo com a sua própria linguagem, ela era meio vidente e, se tinha pena da menina, ele não queria ouvir dela que a pena se referia ao futuro e não ao passado.
Frank chegou, trêmulo ainda do encontro com o pai no bar, e sem ter o que fazer.
— Venha comigo, Meggie, vou levá-la à feira — disse ele, estendendo a mão.
— E por que não posso levar os dois? — acudiu o Padre Ralph, estendendo a sua.
Ladeada pelos dois homens que adorava, e dando a mão a ambos, Meggie sentia-se no sétimo céu.
O recinto da feira de Gillanbone fora instalado numa das margens do Rio Barwon, ao lado da pista de corrida. Embora já fizesse seis meses que a inundação ocorrera, a lama ainda não secara de todo, e os pés ansiosos dos primeiros a chegar já a haviam convertido em atoleiro. Depois das baias em que ficavam os carneiros, as vacas, os touros, os porcos, as cabras e os bodes, o gado excelente e perfeito que competia pelos prêmios a serem conferidos, erguiam-se tendas cheias de peças de artesanato e guloseimas. Eles admiraram o gado, os bolos, os xales de crochê, as roupinhas de tricô, as toalhas de mesa bordadas, os gatos, os cães e os canários.
Na extremidade mais afastada de tudo isso ficava a pista de equitação, onde jovens ginetes e amazonas passavam com seus cavalos a meio galope diante dos juizes que pareciam, como se afigurou à risonha Meggie, tão cavalares quanto os animais que desfilavam diante deles. Viam-se amazonas com magníficos trajes de montar encarapitadas em silhões no alto de cavalos enormes, com suas cartolinhas envoltas em sedutores véus. Como poderia uma pessoa montada e enchapelada de modo tão precário manter-se imperturbável em cima de um cavalo que andasse mais depressa do que a passo era coisa que Meggie não conseguia entender, até que viu uma esplêndida criatura obrigar o seu animal a empinar, gracioso, e depois dar uma série de saltos difíceis, terminando de forma tão impecável quanto começara. Em seguida, a dama esporeou a montaria com gesto impaciente e, partindo a meio galope pelo solo encharcado, fêla parar diante de Meggie, Frank e o Padre Ralph para atalhar-lhes o avanço. Endireitando a perna, que descrevia uma curva em torno do silhão, a dama sentou-se de lado na sela, com destreza, suas mãos enluvadas estendidas num gesto imperioso.
— Padre! Tenha a bondade de me ajudar a apear!
Ele colocou as mãos na cintura dela, ela pôs as mãos nos ombros dele e pulou do cavalo; mas, assim que os saltos dela tocaram o solo, ele a deixou, pegou nas rédeas do cavalo e saiu andando, enquanto que a dama, ao seu lado, lhe acompanhava sem esforço as largas passadas.
— Pretende vencer a Caçada, Srta. Carmichael? — perguntou ele em tom de total indiferença.
Ela se aborreceu; era jovem e muito bonita, e o tom curioso e impessoal dele irritou-a.
— Espero vencer, mas não posso ter certeza. A Srta. Hopeton e a Sra. Anthony King também vão competir. Entretanto, vencerei a Exibição e, por isso, se não vencer a Caçada, não me zangarei.
Ela falava arredondando as vogais e com a fraseologia estranhamente afetada de uma senhorita educada com tanto esmero que já nenhum indício de calor ou de dialeto lhe coloria a voz. Ao dirigir-se a ela, até a fala do Padre Ralph se tornava mais requintada, e perdia o seu sedutor e tênue sotaque irlandês; como se ela lhe evocasse um tempo em que ele também fora assim. Meggie franziu o cenho, intrigada e impressionada pelas palavras ligeiras mas cautelosas que eles diziam, sem saber que espécie de mudança se operara no Padre Ralph, mas sabendo apenas que ocorrera uma mudança e que ela não era do seu agrado. Soltou a mão de Frank, pois se tornara difícil para eles continuarem caminhando lado a lado.
Quando chegaram a uma grande poça d’água, Frank ficara para trás. Os olhos do Padre Ralph inspecionaram a água, que era quase um poço raso; voltou-se para a criança cuja mão continuara segurando com firmeza, e inclinou-se para ela com uma ternura especial que a dama não poderia deixar de notar, pois faltara de todo nas suas trocas de civilidades com ela.
— Não uso capa, querida Meggie, e, por isso, não posso ser o seu Sir Walter Raleigh. Estou certo de que me perdoará, minha cara Srta. Carmichael — prosseguiu, entregando as rédeas à jovem —, mas não posso permitir que minha garota predileta suje de lama os seus sapatos, posso?
Ele levantou Meggie e apertou-a de encontro ao quadril, deixando que a Srta. Carmichael arregaçasse as saias roçagantes com uma das mãos, pegasse as rédeas com a outra e atravessasse a poça d’água sem ajuda de ninguém. O som da risada de Frank, logo atrás deles, não contribuiu para melhorar-lhe o humor; chegados ao extremo oposto do charco, deixou-os abruptamente.
— Acredito que ela o mataria, se pudesse — disse Frank, enquanto o Padre Ralph punha Meggie no chão. Sentia-se fascinado por aquele embate e pela crueldade deliberada do religioso. Ela parecera a Frank tão bela e tão soberba que nenhum homem poderia contrariá-la, nem mesmo um padre; não obstante, o Padre Ralph, caprichosamente, se propusera abalar-lhe a confiança em si mesma, naquela impetuosa feminilidade que ela manejava como uma arma. Como se a odiasse e odiasse o que ela representava, pensou Frank, o mundo das mulheres e seu requintado mistério, que ele nunca tivera a oportunidade de perscrutar. Espicaçado pelas palavras de sua mãe, quisera que a Srta. Carmichael o notasse, o filho mais velho do herdeiro de Mary Carson, mas ela não se dignara sequer admitir-lhe a existência. Toda a sua atenção estivera concentrada no padre, um ser sem sexo e desvirilizado. Embora alto, moreno e bonito.
— Não se preocupe, ela tentará de novo — respondeu o Padre Ralph com cinismo. — É rica e, portanto, no próximo domingo, deixará cair uma nota de dez libras no prato da coleta, com muita ostentação. — Ele riu-se ao ver a expressão de Frank. — Não sou muito mais velho do que você, meu filho, mas, apesar da minha profissão, sou um homem do mundo. Não me censure por isso; ponha-o simplesmente na conta da experiência.
Eles haviam deixado para trás a pista de equitação e entrado no recinto reservado à diversões. Tanto para Meggie quanto para Frank, tudo aquilo era um verdadeiro encantamento. O Padre Ralph dera a Meggie cinco xelins e Frank tinha suas cinco libras; era maravilhoso ter dinheiro para pagar a entrada de todas aquelas barracas sedutoras. Multidões ali se apinhavam, crianças corriam por toda parte contemplando de olhos esbugalhados as sinistras legendas pintadas com letras grosseiras à frente das barracas em franca decadência: A Mulher Mais Gorda do Mundo; A Princesa Huri, a Dançarina da Serpente (Veja-a Atiçar as Chamas de Fúria de uma Cobra!); O Homem de Borracha Hindu; Golias, o Homem Mais Forte do Mundo; Tétis, a Sereia. Em cada uma eles deixaram os seus pence e viram tudo, extasiados, sem reparar nas escamas tristemente desluzidas de Tétis nem no sorriso desdentado da cobra.
Na extremidade oposta, tão grande que ocupava um lado inteiro, havia um barracão gigantesco com uma alta passarela de tábuas à sua frente e um friso que se estendia por todo o seu comprimento, cheio de figuras pintadas ameaçando a multidão. Um homem com um megafone na mão gritava para o povo reunido.
— Aqui está, cavalheiros, a famosa companhia de pugilistas de Jimmy Sharman! Oito dos maiores boxeadores do mundo, e uma bolsa para ser arrecadada por qualquer camarada que tenha a coragem de experimentar!
Mulheres e moças iam saindo do meio da turba com a mesma rapidez com que homens e rapazes iam chegando de todas as direções, engrossando-a, apinhando-se debaixo da passarela. com a solenidade de gladiadores que desfilassem no Circus Maximus, oito homens subiram em fila à passarela e ali ficaram, com as mãos enfaixadas na cintura, as pernas separadas, olhando com arrogância para a multidão admirativa. Meggie supôs que eles estivessem de ceroulas, pois vestiam camisetas pretas e calções cinzentos bem apertados, que iam da cintura ao meio das coxas. No peito de cada um, grandes letras maiúsculas brancas diziam COMPANHIA DE JIMMY SHARMAN. Não havia dois do mesmo tamanho, pois alguns eram grandes, outros pequenos, outros medianos, mas todos exibiam um corpo particularmente bem desenvolvido. Conversando e rindo com a maior naturalidade do mundo, como se aquela fosse uma ocorrência cotidiana, flexionavam seus músculos e tentavam fingir que não estavam gostando daquilo.
— Vamos, rapazes, quem vai calçar as luvas? — berrava o camelô. — Quem quer experimentar? Calce as luvas, ganhe cinco libras! — continuava ele a berrar entre as batidas de um bumbo.
— Eu quero! — gritou Frank. — Eu quero, eu quero! — e desvencilhou-se da mão do Padre Ralph, que o retinha quando as pessoas mais próximas da multidão, que podiam ver-lhe o tamanho pequeno, começaram a rir e, condescendentes, o empurraram para a frente.
Mas o camelô falou muito sério quando um membro da companhia estendeu a mão amistosa e puxou Frank escada acima a fim de colocá-lo ao lado dos oito que já estavam na passarela.
— Não se riam, cavalheiros. Ele não é muito grande, mas é o primeiro a apresentar-se como voluntário! Vocês sabem que o tamanho do cachorro na briga não tem importância, o que importa é o tamanho da briga do cachorro! Vamos ver, aqui está o pequeno corajoso que vai experimentar... Onde estão os grandes corajosos? Hein? Que tal? Calce as luvas e ganhe uma nota de cinco libras, enfrente um dos membros da companhia de Jimmy Sharman!
Pouco a pouco, as fileiras dos voluntários foram aumentando. Os rapazes, tímidos, de chapéu na mão, olhavam para os profissionais que lá estavam, como um bando de seres de elite, ao lado deles. Embora estivesse louco para ficar e ver o que aconteceria, Padre Ralph decidiu, com relutância, que já era tempo de afastar Meggie de lá. Levantou-a do chão e girou nos calcanhares para partir. Meggie começou a gritar e, quanto mais ele se afastava, mais alto gritava ela; as pessoas estavam começando a olhar para eles, e o fato de ser o padre muito conhecido tornava aquilo embaraçoso, para não dizer inconveniente.
— Deixe disso, Meggie, não posso levá-la para lá. Seu pai me esfolaria vivo e teria toda a razão!
— Quero ficar com Frank, quero ficar com Frank! — uivava ela o mais alto que podia desferindo pontapés e tentando morder.
— Merda! — disse o Padre Ralph.
Cedendo ante o inevitável, enfiou a mão no bolso à procura das moedas necessárias e aproximou-se do guichê do barracão, esguelhando um olho à procura de algum dos Clearys; mas, não conseguindo divisar nenhum, presumiu que estivessem tentando a sorte com as ferraduras ou se empanturrando de pastéis de carne e de sorvetes.
— O senhor não pode entrar aí com ela, Padre! — disse o homem que vendias entradas, escandalizado.
Padre Ralph ergueu os olhos para o céu.
— Se me disser como poderemos afastá-la daqui sem que toda a força policial da Gilly nos prenda por molestar uma criança, terei muito prazer em fazê-lo! Mas o irmão se ofereceu para boxear e ela não está disposta a deixá-lo sem uma luta que fará os seus rapazes parecerem amadores!
O bilheteiro deu de ombros.
— Bem, Padre, não posso discutir com o senhor, posso? Entre, se quiser, mas... mas... pelo amor de Deus, mantenha-a fora do caminho. Não, não, Padre, guarde o seu dinheiro. Jimmy não gostaria de recebê-lo.
A tenda estava cheia de homens e rapazes, que se espremiam em torno de um ringue central; Padre Ralph encontrou um lugar atrás da multidão, rente à parede de lona, e ali ficou agarrado a Meggie com todas as forças. O ar estava enevoado de fumaça de cigarro e de charuto e cheirava à serragem atirada ao chão para absorver a lama. Frank, já com as mãos enluvadas, era o primeiro desafiante do dia.
Embora fosse inusitado, não era inédito um homem saído da multidão enfrentar com êxito um boxeador profissional. Os pugilistas de Jimmy Sharman não seriam, evidentemente, os melhores do mundo, mas eram os melhores da Austrália. Colocado diante de um peso-mosca por causa do seu tamanho, Frank nocauteou-o com o terceiro golpe que desferiu, e ofereceu-se para lutar com outro. Quando chegou ao seu terceiro profissional, a notícia já circulara pela feira e a tenda ficou tão cheia de gente que não cabia mais ninguém.
Ele mal fora tocado pelas luvas adversárias, e os poucos golpes que recebera só tinham servido para exacerbar-lhe a fúria, que não cessava de arder. com os olhos esgazeados, quase crepitantes de paixão, pois cada um dos seus oponentes subia ao ringue com a cara de Paddy, ouvia os gritos e aplausos da multidão, que lhe martelavam na cabeça como uma vasta e única voz a ordenar Vai! Vai! Vai! Como ele ansiara pela oportunidade de lutar, que lhe fora negada desde que chegara a Drogheda! Pois só lutando conseguia livrar-se da cólera e da dor e, quando desferia o golpe demolidor, parecia-lhe que a grande voz rouca do povo lhe dizia Mata! Mata! Mata!
Depois, colocaram-no para lutar com um dos verdadeiros campeões, um peso leve que recebera instruções para mantê-lo a distância e verificar se ele boxeava tão bem quanto batia. Os olhos de Jimmy Sharman estavam brilhando. Vivia à procura de campeões, e esses pequenos espetáculos do interior já lhe haviam fornecido mais de um. O peso leve fez o que lhe haviam ordenado, apertado de rijo apesar da sua maior categoria, ao passo que Frank, dominado pela sanha assassina, não via mais nada e perseguia sem cessar a figura saltitante e esquiva. Sendo uma dessas pessoas estranhas que, mesmo no meio de uma fúria titânica, são capazes de pensar, ele aprendia com cada clinch e com cada saraivada de golpes. E agüentou o tranco, apesar do castigo que lhe infligiram os punhos experimentados; tinha um olho inchado, a sobrancelha e o lábio cortados. Mas ganhara vinte libras e o respeito de todos os homens presentes.
Meggie escapou, num repelão, do aperto de mão já menos firme do Padre Ralph e saiu correndo da tenda antes que ele pudesse segurá-la. Quando o padre a encontrou lá fora, ela vomitara e estava tentando limpar os sapatos salpicados com um lenço minúsculo. Em silêncio, ele deu-lhe o seu, acariciando-lhe a cabeça ruiva e soluçante. atmosfera lá dentro também não lhe fizera bem ao estômago, e ele desejou que a dignidade da sua profissão lhe permitisse o alívio de esvaziá-lo em público.
— Você quer esperar por Frank ou prefere ir para casa? — vou esperar por Frank — murmurou ela, encostando-se nele, imensamente grata por sua calma e simpatia.
— Por que será que você puxa com tanta força o meu inexistente coração? — perguntou ele, julgando-a demasiado nauseada e infeliz para prestar-lhe atenção, mas precisando expressar seus pensamentos em voz alta, como o fazem tantas pessoas que levam uma vida solitária. — Você não me lembra minha mãe e nunca tive irmã, mas eu gostaria de saber o que há com você e com a sua desgraçada família... Sua vida tem sido difícil, minha Meggiezinha?
Frank saiu da tenda com um pedaço de esparadrapo acima do olho, mexendo de leve no lábio machucado. Pela primeira vez desde que o Padre Ralph o conhecera, parecia feliz; como parece feliz a maioria dos homens depois de passar uma boa noite na cama com uma mulher, pensou o padre.
— O que Meggie está fazendo aqui? — rosnou ele, ainda não de todo dissipada a exaltação do ringue.
— Sem amarrar-lhe as mãos e os pés e sem amordaçá-la, eu não teria conseguido mantê-la fora daqui — disse o Padre Ralph, mordaz, irritado por precisar justificar-se, mas sem muita certeza de que Frank não estaria querendo medir-se com ele também. Embora não tivesse medo de Frank, tinha medo de fazer uma cena em público. — Ela estava preocupada por sua causa, Frank; queria ficar perto de você para ver com os próprios olhos se você estava bem. Não a recrimine, ela já está bem transtornada.
— Não deixe papai saber que você esteve a menos de um quilômetro deste lugar — disse Frank a Meggie.
— Vocês não se incomodam se desistirmos do resto do passeio? — perguntou o padre. — Creio que nos faria bem a todos um pequeno descanso e uma xícara de chá na casa paroquial. — E ajuntou, beliscando a ponta do nariz de Meggie. — E a você, mocinha, uma boa limpeza não faria mal.
Paddy teve um dia atormentado com a irmã, ao colocar-se à disposição dela como nunca se colocara à disposição de Fee, ajudando-a a escolher o seu caminho, malhumorada e rabugenta, através da lama de Gilly, com os seus sapatos importados de renda, sorrindo e dirigindo-se às pessoas que ela cumprimentava como uma rainha, ficando em pé ao seu lado quando ela fez a entrega do bracelete de esmeraldas ao vencedor da corrida principal, o Troféu de Gillanbone. Por que haveriam eles de gastar todo o dinheiro do prêmio numa bugiganga de mulher em vez de entregar uma taça folheada a ouro e um bonito maço de notas ao vencedor era uma coisa que ele não entendia, pois não entendia a natureza profundamente amadora das corridas, já que as pessoas que inscreviam seus cavalos não precisavam de dinheiro e, na realidade, poderiam dar, indiferentes, à esposa o que tivessem ganho. Horry Hopeton, cujo cavalo baio, King Edward, conquistara o bracelete de esmeraldas, já possuía um de rubis, outro de brilhantes e outro de safiras, ganhos nos anos anteriores; tinha mulher e cinco filhas e declarou que não poderia parar enquanto não tivesse ganho cinco braceletes.
A camisa engomada e o colarinho de celulóide de Paddy estavam-no esfolando, o terno azul era demasiado quente e os exóticos frutos do mar de Sydney, servidos ao almoço com champanha, não tinham chegado a um acordo com sua digestão acostumada à carne de carneiro. E ele se sentira um tolo. Embora fosse o melhor, seu terno cheirava a alfaiate barato e a um bucólico desconhecimento da moda. Não eram da sua espécie de gente aqueles rudes fazendeiros vestidos de tweed, aquelas matronas arrogantes, aquelas jovens dentuças e hípicas, a nata do que o Bulletin denominava ”a posseirocracia”. Pois eles faziam o que podiam para esquecer o período no século passado em que, chegando àquela área, haviam tomado posse de vastas extensões de terras devolutas, que foram depois tacitamente reconhecidas por suas com o advento da federação e da autonomia política. Tinham-se tornado, assim, o grupo de pessoas mais invejado do continente, fundado o seu próprio partido político, mandado os filhos para escolas exclusivas de Sydney e conversado amistosamente com o Príncipe de Gales quando este visitara a Nova Gales do Sul. Ele, o simples Paddy Cleary, era um trabalhador. Não tinha absolutamente nada em comum com aqueles aristocratas coloniais, que lhe recordavam desconfortavelmente a família da esposa.
Assim, quando chegou à sala de estar da casa paroquial e encontrou Frank, Meggie e o Padre Ralph relaxados à volta da lareira, como se tivessem passado um dia maravilhoso e tranqüilo, irritou-se. O apoio bem-educado de Fee lhe fizera uma falta insuportável e ele continuava antipatizando com a irmã como antipatizara com ela em sua primeira infância na Irlanda. Nisso, notou o esparadrapo acima do olho de Frank, o rosto inchado; era um pretexto caído do céu.
— Como é que você acha que vai enfrentar sua mãe com essa cara? — gritou. — Basta-lhe ficar menos de um dia fora da minha vista para se meter a brigar com qualquer um que olhar atravessado para você!
Assustado, Padre Ralph pôs-se em pé de um salto, esboçando uma palavra apaziguante; mas Frank foi mais rápido.
— Eu ganhei dinheiro com isto! — disse ele, em voz baixa, apontando para o esparadrapo. — Vinte libras por um trabalho de poucos minutos, mais do que tia Mary nos paga a você e a mim juntos num mês! Pus a nocaute três bons pugilistas e ainda agüentei um assalto com um campeão peso leve na tenda de Jimmy Sharman ”Oje à tarde. E ganhei vinte libras. Eu talvez não me adapte às suas idéias do que devo fazer, mas hoje conquistei o respeito de todos os homens que estavam presentes!
— Uns poucos sujeitos cansados, sonados e fracassados num espetáculo mambembe do interior, e você está todo entusiasmado? Ora, cresça e apareça, Frank! Sei que você não pode crescer mais no corpo, mas poderia fazer um esforço, por amor de sua mãe, e crescer um pouco mais no espírito!
O rosto de Frank ficou branco como cera. Como um rosto de ossos alvejados. Era o insulto mais terrível que um homem poderia dirigir-lhe, e o homem que o insultara era seu pai; ele não poderia revidar. A respiração começou a vir-lhe do fundo do peito com o esforço que fazia para conservar as mãos na cintura.
— Não são fracassados, papai. Você conhece Jimmy Sharman tão bem quanto eu. E o próprio Jimmy Sharman me disse que tenho um futuro tremendo como boxeador; ele quer que eu entre para a sua companhia e quer treinar-me. E quer me pagar! Pode ser que eu não fique maior do que sou, mas já sou grande bastante para surrar qualquer homem já nascido... e isso vale também para você, seu velho bode fedorento!
A insinuação por trás do epíteto não escapou a Paddy, que ficou tão branco quanto o filho.
— Não se atreva a me chamar disso!
— E que mais é você? Você é nojento, é pior que um carneiro no cio! Não foi capaz de deixá-la em paz, não foi capaz de manter as mãos longe dela?
— Não, não, não! — gritou Meggie. As mãos do Padre Ralph firmaram-se nos ombros dela como garras e conservaram-na a custo junto dele. As lágrimas lhe escorriam pelo rosto, ela contorcia-se, desesperada, para libertar-se, mas em vão. — Não, papai, não! Oh, Frank, por favor! Por favor, por favor! — suplicava em tom agudo.
Mas o único que a ouviu foi o Padre Ralph. Frank e Paddy estavam defronte um do outro, admitindo afinal a aversão e o medo recíprocos. O dique do amor mútuo a Fee rompera-se por fim e a amarga rivalidade fora reconhecida.
— Sou marido dela. E, pela graça de Deus, fomos abençoados com nossos filhos, — disse Paddy mais calmo, lutando por dominar-se.
— Você não é melhor que um velho cachorro de merda atrás de qualquer cadela em que possa enfiar a sua coisa!
— E você não é melhor que o velho cachorro de merda que o gerou, seja lá quem for! Graças a Deus nunca tive participação nisso! — berrou Paddy, e deteve-se. — Oh, meu Jesus! — A cólera deixou-o como um vento ululante, ele cambaleou, murchou e as mãos lhe bateram na boca, como se quisessem arrancar a língua que pronunciara o impronunciável. — Eu não quis dizer isso! Eu não quis dizer isso! Eu não quis dizer isso!
Assim que as palavras foram proferidas, Padre Ralph soltou Meggie e agarrou Frank. Torcera-lhe o braço direito nas costas, enquanto passava o seu braço esquerdo pelo pescoço do rapaz, sufocando-o. Ele era forte, e o aperto, paralisante. Frank lutou para libertar-se, mas, de repente, como sua resistência diminuísse, sacudiu a cabeça num gesto de submissão. Meggie caíra ao chão e ali se ajoelhara, chorando, enquanto alternava os olhos entre o pai e o irmão, numa agonia, impotente e súplice. Não compreendia o que acontecera, mas sabia que, doravante, não poderia conservar os dois ao seu redor.
— Você quis dizer, sim, senhor — rosnou Frank. — Creio que eu sabia desde o princípio! Creio que eu sabia desde o princípio. — Tentou virar a cabeça para o Padre Ralph. — Solte-me, Padre. Juro por Deus que não tocarei nele.
—Jura por Deus? Pois Deus há de apodrecer a alma dos dois! Se vocês causaram algum mal irremediável a essa menina, eu os matarei! — rugiu o padre, o único agora que estava com raiva. — Compreendem que tive de segurá-la aqui para ouvir o que vocês disseram, com medo de que, se eu a levasse embora, os dois pudessem matar-se na minha ausência? E era o que eu devia tê-los deixado fazer, seus cretinos miseráveis e egoístas!
— Está bem, eu vou-me embora — disse Frank com voz estranha e vazia. — vou me juntar à companhia de Jimmy Sharman e não voltarei!
— Você tem de voltar! — murmurou Paddy. — Que direi a sua mãe? Você é mais importante para ela do que todos nós reunidos. Ela nunca me perdoará.
— Diga-lhe que me juntei a Jimmy Sharman porque desejo ser alguém. É a verdade.
— O que eu disse... não era verdade, Frank.
Os olhos negros e estranhos de Frank fuzilaram, desdenhosos, os olhos que haviam intrigado o padre quando este os vira pela primeira vez; o que Fee, de olhos cinzentos, e Paddy, de olhos azuis, faziam com um filho de olhos negros? Padre Ralph conhecia as leis de Mendel e achava que nem o cinza dos olhos de Fee tornaria possível a terceira cor.
Frank apanhou o chapéu e o paletó.
— Era verdade! Creio que eu sabia desde o começo. As lembranças de mamãe tocando a sua espineta numa sala que você nunca poderia possuir! A sensação de que você não estivera sempre ali, de que veio depois de mim. De que ela foi minha primeiro! -- Ele soltou uma risada sem som. — E pensar que em todos esses anos censurei você por havê-la destruído, e quem fez isso fui eu. Fui eu!
— Não foi ninguém, Frank, ninguém! — bradou o padre, tentando segurá-lo. — Isso é parte do grande plano imperscrutável de Deus; pense nisso desse jeito.
Frank livrou-se da mão que procurava detê-lo e dirigiu-se à porta com o seu jeito leve e intenso de andar na ponta dos pés. Ele nascera para ser pugilista, pensou Padre Ralph num canto destacado do seu cérebro, aquele cérebro de cardeal.
— O grande plano imperscrutável de Deus! — zombou a voz do rapaz já da porta. — O senhor não é melhor do que um papagaio quando faz o papel de sacerdote, Padre de Bricassart! Peço a Deus que o proteja porque, de todos nós aqui, é a única pessoa que não faz idéia do que ele realmente é!
Sentado numa cadeira, abatido, Paddy pôs os olhos horrorizados em Meggie, que, ajoelhada e encolhida ao pé do fogo, chorava e se balançava para a frente e para trás. Levantou-se para ir ter com ela, mas o Padre Ralph afastou-o com rudeza.
— Deixe-a em paz. Você já fez o suficiente. Há uísque no aparador; tome um pouco. vou pôr a criança na cama, mas voltarei para conversarmos, por isso não se vá. Está me ouvindo, homem?
— Estarei aqui, Padre. Ponha-a na cama.
Em cima, no encantador quarto de dormir verde-maçã, o padre desabotoou o vestido e a camisa da menina e fê-la sentar-se na beira da cama para poder tirar-lhe os sapatos e as meias. Sua camisola estava sobre o travesseiro, onde Annie a deixara; ele enfiou-a por cima da cabeça dela e cobriu-lhe o corpo decentemente antes de puxarlhe as calças. Enquanto isso, falava com ela sobre nada, histórias tolas a respeito de botões que se recusavam a sair de suas casas, de sapatos que teimavam em não se desamarrar, de fitas que nunca se desatavam. Era impossível dizer se ela o ouvia; com suas histórias não narradas de tragédias infantis, desgraças e sofrimentos superiores à sua idade, os olhos olhavam, tristonhos, para além do ombro dele.
— Agora deite-se, minha menina querida, e procure dormir. Voltarei daqui a pouco para vê-la, por isso não se preocupe, ouviu? Então falaremos sobre isso.
— Ela está bem? — perguntou Paddy quando ele voltou à sala de estar.
O Padre Ralph estendeu a mão para pegar a garrafa de uísque colocada sobre o aparador e serviu-se de meio copo.
— Sinceramente, não sei. Por Deus que está no Céu, Paddy, eu gostaria de saber qual é a maior maldição de um irlandês, se a bebida ou o gênio. O que foi que deu em você para dizer aquilo? Não, não precisa nem responder! Já sei, foi o gênio. E é verdade, naturalmente. Percebi que ele não era seu desde que o vi pela primeira vez,
— Poucas coisas lhe escapam, não é verdade?
— Acho que sim. Entretanto, não são necessários poderes extraordinários de observação para perceber quando os vários membros da minha paróquia estão perturbados ou sofrendo. E, tendo-o percebido, é meu dever fazer o que posso para ajudar.
— O senhor é muito querido em Gilly, Padre.
— O que, sem dúvida, devo agradecer ao meu rosto e ao meu físico — disse o padre com amargura, incapaz de fazer com que a observação soasse tão leve quanto pretendera.
— É isso o que pensa? Pois eu não concordo consigo, Padre. Nós o apreciamos porque o senhor é um bom pastor.
— Seja como for, parece que estou inteiramente enredado em suas dificuldades — disse o Padre Ralph sem entusiasmo. — É melhor você se abrir comigo, homem.
Paddy olhou para o fogo que ele alimentara até dar-lhe as proporções de uma fornalha, enquanto o padre punha Meggie na cama, num excesso de remorso e desesperado por fazer alguma coisa. O copo vazio tremeu-lhe na mão numa série de rápidos movimentos convulsivos; o Padre Ralph levantou-se para pegar a garrafa de uísque e tornou a enchê-lo. Depois de um longo gole, Paddy suspirou, enxugando as lágrimas esquecidas no rosto.
— Não sei quem é o pai de Frank. Isso aconteceu antes de eu conhecer Fee. Do ponto de vista social, a gente dela, praticamente, é a primeira família da Nova Zelândia, e o pai possuía uma grande propriedade em que plantava trigo e criava carneiros perto de Ashburton, na Ilha do Sul. O dinheiro não era a finalidade deles, e Fee era a única filha. Pelo que pude depreender, o pai já tinha planejado a vida dela — uma viagem à Inglaterra, a estréia na corte, o marido certo. Ela, naturalmente, nunca precisara mexer um dedo dentro de casa. Eles tinham criadas, mordomos, cavalos e grandes carruagens; viviam como fidalgos.
”Eu era o leiteiro e, às vezes, via Fee a distância, caminhando com um menininho de um ano e meio, mais ou menos. Depois disso, o velho James Armstrong veio falar comigo. Sua filha, disse ele, desonrara a família: não era casada e tinha um filho. Tudo fora abafado, é claro, mas, quando tentaram mandá-la embora, a avó provocara tamanho estardalhaço que não puderam fazer outra coisa senão mantê-la ali, apesar da inconveniência. Agora, porém, a avó estava morrendo e não havia mais nada que os impedisse de livrar-se de Fee e do filho. Eu era um homem solteiro, disse James; se casasse com ela e me comprometesse a tirá-la da Ilha do Sul, eles pagariam nossas despesas de viagem e nos dariam mais quinhentas libras.
”Bem, Padre, isso era uma fortuna para mim, e eu já estava cansado da vida de solteiro. Mas sempre fui tão tímido que nunca tive sorte com garotas. A idéia me pareceu boa e, sinceramente, não me incomodei com a criança. A avó ficou sabendo da história e mandou me chamar, embora estivesse passando muito mal. Ela deve ter sido uma pessoa intratável no seu tempo, mas era uma verdadeira dama. Contou-me alguma coisa sobre Fee, mas não disse quem era o pai, nem eu senti vontade de perguntar. De qualquer maneira, fez-me prometer que eu seria bom para a neta dela — sabia que a expulsariam de casa assim que ela fechasse os olhos, e por isso sugerira a James que lhe encontrasse um marido. Senti pena da pobre velha; ela adorava Fee.
”O senhor acreditaria, Padre, se eu lhe dissesse que só cheguei suficientemente perto de Fee para dizer-lhe olá no dia em que casei com ela?”
— É claro que acredito — disse o padre a meia voz. Olhou para o líquido no copo, bebeu-o de um sorvo e, em seguida, estendeu a mão para pegar a garrafa e tornar a encher os dois copos. — Isso quer dizer que você desposou uma dama que estava muito acima de você, Paddy.
— Sim. A princípio, eu tinha um medo danado dela. Ela era tão bonita naqueles dias, Padre, e tão... fora de tudo, se sabe o que quero dizer. Como se nem estivesse ali, como se tudo aquilo estivesse acontecendo a outra pessoa.
— Ela ainda é bonita, Paddy — disse o Padre Ralph com brandura. — Posso ver em Meggie como deve ter sido Fiona antes de começar a envelhecer.
— A vida não tem sido fácil para ela, Padre, mas não sei que outra coisa eu poderia ter feito. Comigo, pelo menos, ela estava segura e não era maltratada. Levei dois anos para criar coragem e ser... bem, um marido de verdade para ela. Tive de ensinála a cozinhar, a varrer o chão, a lavar e a passar roupa. Ela não sabia fazer nada disso.
”E nem uma vez em todos os anos que estivemos casados, Padre, ela se queixou, riu, ou chorou. Só na parte mais íntima de nossa vida em comum é que ela manifesta, alguma vez, um sentimento, e mesmo então não fala. Espero que fale e, no entanto, não quero que o faça, porque sempre tenho a impressão de que, se o fizer, ela dirá o nome dele. Não quero dizer que ela não goste de mim nem dos nossos filhos. Mas eu a amo demais, e me parece que ela já não tem dentro de si esse tipo de sentimento. A não ser por Frank. Eu sempre soube que ela amava Frank mais do que a todos nós juntos. Deve ter amado muito o pai dele. Mas não sei nada a respeito do homem, quem era e por que não puderam casar.”
Padre Ralph olhou para suas mãos, piscando.
— Oh, Paddy, que inferno é a gente estar vivo! Graças a Deus não tenho a coragem de experimentar mais que um pedacinho da periferia da vida.
Paddy levantou-se, sem muita firmeza.
— Bem, Padre, agora está tudo acabado, não está? Mandei Frank embora e Fee nunca me perdoará.
— Você não pode contar isso a ela. Não deve contar, nunca. Diga-lhe apenas que Frank fugiu com os boxeadores e deixe as coisas assim. Ela sabe o quanto Frank tem andado irrequieto; acreditará em você.
— Eu não poderia fazer uma coisa dessas, Padre! — Paddy estava assombrado.
— É preciso, Paddy. Não acha que ela já teve bastantes sofrimentos e aflições? Não amontoe novas dores sobre a cabeça dela.
E consigo mesmo pensava: Quem sabe? Quem sabe ela não aprende afinal a dar a você o amor que tem por Frank, a você e àquela coisinha que está lá em cima?
— Pensa mesmo assim, Padre?
— Penso. O que aconteceu hoje à noite não deve transpirar.
— E que me diz de Meggie? Ela ouviu tudo.
— Não se preocupe com Meggie, eu me encarregarei dela. Não creio que tenha compreendido, de tudo o que aconteceu, senão que houve uma briga entre você e Frank. Eu a farei ver que, agora que Frank se foi, falar à mãe a respeito da briga seria apenas proporcionar-lhe mais um motivo de sofrimento. Além disso, algo me diz que Meggie, para começar, não conta muita coisa a sua mãe. — Ele levantou-se. — Vá para a cama, Paddy. Você terá de parecer normal e estar à disposição de Mary amanhã, lembra-se?
Meggie não estava dormindo; estava deitada, de olhos arregalados, na penumbra produzida pela lampadazinha à beira da cama. O padre sentou-se ao lado dela e notoulhe o cabelo ainda entrançado. com todo o cuidado, desatou as fitas azul-marinho e puxou com delicadeza o cabelo até que ele se espalhou, ondulado e fulvo, sobre o travesseiro.
— Frank foi-se embora, Meggie — disse ele.
— Eu sei, Padre.
— E sabe por que, meu bem?
— Ele teve uma briga com Papai.
— E o que você vai fazer?
— Vou-me embora com Frank. Ele precisa de mim.
— Você não pode, minha Meggie.
— Posso, sim. Eu ia procurá-lo hoje à noite, mas minhas pernas não me seguravam em pé e também não gosto do escuro. Mas amanhã de manhã irei procurá-lo.
— Não, Meggie, você não deve fazer isso. Veja bem, Frank precisa viver sua própria vida, e já está na hora de ele partir. Sei que você não quer que ele vá, mas faz muito tempo que ele está querendo ir. Não seja egoísta; deixe-o viver sua própria vida. — A monotonia da repetição, pensava o padre, continue martelando. — Quando crescemos, é natural e direito que desejemos uma vida fora do lar em que crescemos, e Frank já cresceu. Ele agora deve ter o seu lar, a sua esposa, os seus filhos. Compreende, Meggie? A briga entre seu pai e seu irmão foi apenas um sinal do desejo de Frank de sair de casa. Não aconteceu porque eles não gostam um do outro. Aconteceu porque é assim que muitos rapazes saem de casa, uma espécie de motivo. A briga foi um motivo para Frank fazer o que está querendo fazer há muito tempo, um motivo para ir embora. Você compreende, minha Meggie?
Os olhos dela transferiram-se para o rosto dele e ali ficaram. Estavam tão cansados, tão cheios de sofrimento, tão velhos!
— Eu sei — disse ela. — Eu sei. Frank queria sair de casa quando eu era pequena, e não saiu. Papai o trouxe de volta e o obrigou a ficar conosco.
— Mas desta vez seu pai não vai trazê-lo de volta, porque não pode mais obrigálo a ficar. Frank foi embora para sempre, Meggie. Não vai voltar.
— E nunca mais tornarei a vê-lo?
— Não sei — retrucou o padre, sincero. — Eu gostaria de dizer que sim, que é claro que você tornará a vê-lo, mas ninguém pode predizer o futuro, Meggie, nem mesmo os padres. — Respirou fundo. — E outra coisa: não conte à mamãe que houve uma briga, Meggie, está-me ouvindo? Isso a deixaria muito nervosa, e ela não está passando bem.
— Por que vai ter outro bebê?
— O que você sabe sobre isso?
— Mamãe gosta de fazer bebês; ela já fez muitos. E faz uns bebês tão bonitinhos, padre, mesmo quando não está passando bem. Eu também vou fazer um como Hal e, então, não sentirei tanta falta de Frank, não é mesmo?
— Partenogênese — disse ele. — Boa sorte, Meggie. E se você não conseguir fazer um bebê?
— Ainda tenho Hal — disse ela sonolenta, ajeitando-se na cama. Depois perguntou: — Padre, o senhor também irá embora? Também?
— Um dia, Meggie. Mas não será tão cedo, não se preocupe. Tenho a impressão de que ainda ficarei atolado em Gilly por muito, muito tempo — respondeu o Padre Ralph com os olhos amargos.
Não havia outro jeito, Meggie teve de voltar para casa. Fee não podia arranjar-se sem ela e, assim que o deixaram sozinho no convento de Gilly, Stuart começou a fazer greve de fome. E também voltou para Drogheda.
Era agosto e fazia muito frio. Havia um ano que eles tinham chegado à Austrália; mas este inverno era mais frio que o anterior. Não chovia e o ar, de tão gelado, feria os pulmões. Nos topos da Great Divide, a quase quinhentos quilômetros a leste, a neve se espessara mais do que em muitos anos, mas não chovera a oeste de Barren Junction desde a cheia provocada pelas monções do verão anterior. As pessoas em Gilly estavam falando em outra seca: ela estava atrasada, teria de vir, talvez já tivesse começado.
Quando Meggie viu sua mãe, sentiu como que um peso terrível caindo sobre o seu ser; talvez uma despedida da infância, um pressentimento do que significava ser mulher. Exteriormente não se via mudança alguma, excetuando-se a barriga enorme; interiormente, porém, Fee diminuiria o ritmo, como um velho relógio cansado, que andasse cada vez mais devagar, até parar para sempre. A vivacidade que Meggie sempre lhe notara desaparecera. Fee erguia os pés e tornava a pô-los no chão como se já não tivesse certeza do modo certo de fazê-lo. Uma espécie de hesitação espiritual instalara-se em seu modo de andar; e não havia alegria nela pela vinda do nenê, que se anunciava, nem mesmo o contentamento rigidamente controlado que mostrara em relação a Hal.
O sujeitinho de cabelos vermelhos andava aos trambolhões pela casa, tropeçando constantemente em tudo, mas Fee não fez a menor tentativa para discipliná-lo, nem mesmo para vigiar-lhe as atividades, entretida no círculo autoperpetuador formado pelo fogão, pela mesa de trabalho e pela pia da cozinha, como se nada mais existisse. Meggie, portanto, não teve escolha; encheu simplesmente o vazio que havia na vida da criança e passou a ser sua mãe. O que não era nenhum sacrifício para ela, pois lhe queria muito e via no pequerrucho o alvo indefeso e respectivo de todo o amor que já estava querendo dispensar a uma criatura humana. Ele chorava chamando-a, falou o nome dela primeiro que qualquer outro, erguia os braços para que ela o pegasse no colo. E isso a enchia de tamanho contentamento que, apesar do trabalho pesado, do tricô, dos remendos, da costura, da lavagem de roupa e da passagem a ferro, das galinhas, de todas as outras tarefas de que estava sobrecarregada, Meggie achava sua vida muito agradável.
Ninguém falava em Frank, mas, de seis em seis semanas, Fee erguia a cabeça ao ouvir o grito do carteiro e, por algum tempo, se mostrava animada. Depois, a Sra. Smith lhes trazia o que acabara de chegar para eles e, quando não vinha carta de Frank, o breve e doloroso repente de interesse desaparecia.
Havia agora duas vidas novas na casa. Fee deu à luz gêmeos, mais dois minúsculos Clearys de cabelo vermelho, batizados com os nomes de James e Patrick. Possuindo o gênio alegre do pai e a sua natural amabilidade, os sujeitinhos, assim que nasceram, passaram a ser propriedade comum, pois, além de amamentá-los, Fee não demonstrava nenhum interesse por eles. Logo depois seus nomes foram abreviados para Jims e Patsy; eles eram os queridinhos das mulheres da casa-grande, as duas criadas solteironas e a governanta viúva e sem filhos, que sentiam imensa falta das delícias de um bebê. Tornou-se magicamente fácil para Fee esquecê-los — eles tinham três mães amorosíssimas — e, à medida que os dias se escoavam, foi-se admitindo que eles passassem a maior parte das suas horas de vigília na casa-grande. Meggie não tinha tempo para tomá-los sob a sua proteção e tratar de Hal ao mesmo tempo, que era muito possessivo e ao qual não interessavam as carícias desajeitadas e inexperientes da Sra. Smith, de Minnie e de Cat. Meggie era o centro afetivo do seu mundo; ele não queria saber de i ninguém a não ser de Meggie, não queria ter ninguém a não ser Meggie.
Bluey Williams negociou seus formosos cavalos de tiro e sua carroça maciça, trocando-os por um caminhão, e a correspondência passou a chegar de quatro em quatro semanas, em vez de chegar de seis em seis, mas ainda sem notícias de Frank, cuja lembrança foi-se esvaindo aos poucos, como fazem as lembranças, até as que vêm envoltas em muito amor; é como se existisse um processo curativo inconsciente em nossa mente, que nos reergue, apesar da nossa desesperada determinação de nunca esquecer. Para Meggie, foi um gradativo e doloroso desvanecimento da aparência de Frank, um anuviamento dos traços queridos, transformados numa imagem imprecisa, como de santo, tão relacionada com o verdadeiro Frank quanto as imagens convencionais do Cristo hão de relacionar-se com o que deve ter sido o Homem. E para Fee, das profundezas silenciosas em que ela calara a evolução da sua alma, foi uma substituição.
Aquilo aconteceu tão discretamente que ninguém notou. Pois Fee se mantinha recolhida em quietude e numa falta absoluta de exteriorização; a substituição foi uma coisa interior, que ninguém teve tempo de ver, exceto o novo objeto do seu amor, que não fez nenhum sinal externo. Uma coisa oculta, não expressa, entre eles, para amortecer-lhes a solidão.
Talvez fosse inevitável, pois de todos os seus filhos era Stuart o único que se parecia com ela. Aos catorze anos ele representava um mistério tão grande para o pai e para os irmãos quanto representara Frank, mas, à diferença deste, ele não provocava hostilidade nem irritação. Fazia o que lhe ordenavam sem se queixar, trabalhava tanto quanto os outros e não criava encrespamentos no lago da vida dos Clearys. Embora tivesse o cabelo vermelho, era o mais moreno de todos os meninos, tirante ao mogno, e seus olhos, claros como a água pálida na sombra, pareciam ter remontado ao começo do tempo e visto tudo como tudo realmente era. Era também o único filho de Paddy que prometia ser bonito ao atingir a idade adulta, se bem que Meggie, em particular, julgasse que Hal lhe faria sombra quando chegasse a sua vez de crescer. Ninguém sabia jamais o que Stuart estava pensando; como Fee, ele falava pouco e nunca exprimia uma opinião. E tinha um jeito curioso de manter-se totalmente imóvel, tão imóvel por dentro quanto por fora, e para Meggie, a mais próxima dele na idade, Stuart parecia capaz de ir a lugares a que ninguém jamais conseguiria segui-lo. O Padre Ralph expressou-o de outro modo:
— Esse garoto não é humano! — exclamou no dia em que descarregou em Drogheda um Stuart que iniciara uma greve de fome ao ver-se sozinho no convento sem Meggie. — Ele disse, porventura, que queria voltar para casa? Disse que sentia falta de Meggie? Não! Apenas parou de comer e esperou, paciente, que a razão penetrasse nossos crânios espessos. Nem uma vez abriu a boca para queixar-se e, quando me acerquei dele e perguntei-lhe, gritando, se queria voltar para casa, simplesmente sorriu para mim e fez que sim com a cabeça!
À medida, porém, que se passava o tempo, decidiu-se tacitamente que Stuart não iria para os pastos trabalhar com Paddy e os outros meninos, ainda que a idade lho permitisse fazer. Ficaria guardando a casa, cortando a lenha, cuidando da horta, ordenhando — desincumbindo-se do imenso número de tarefas que as mulheres não tinham tempo de executar com três criancinhas dentro de casa. Era prudente ter sempre um homem por perto, ainda que fosse um homem não de todo crescido; seria uma prova da presença de outros homens por ali. Pois havia visitantes — o passo pesado de botas estranhas subindo a escada de tábuas da varanda dos fundos e uma voz estranha perguntando:
— Bom-dia, dona, tem um pouco de comida para um homem?
Eles enxameavam o interior, os andantes que carregavam suas trouxas de uma fazenda a outra, de Queensland para baixo e de Victoria para cima, homens que tinham perdido a sorte ou não queriam saber de empregos regulares e preferiam percorrer, a pé, milhares de quilômetros à cata só eles sabiam do quê. Sujeitos decentes quase todos, apareciam, comiam uma lauta refeição, enfiavam na trouxa um pouco de chá, açúcar e farinha que ganhavam, e desapareciam no caminho que conduzia a Barcoola ou a Narrengang, a gamela a saltar-lhes nas costas, cães esquálidos a trotar atrás deles. Os itinerantes australianos raro andavam a cavalo ou de carro; caminhavam.
De vez em quando aparecia um malfeitor, à espreita de mulheres cujos homens estivessem ausentes; não pensando em estupro, mas em roubo. Por isso Fee guardava uma espingarda carregada num canto da cozinha, onde os pequeninos não pudessem alcançá-la, e certificava-se de que estava mais próxima dela do que o seu visitante, até que sua vista experimentada lhe avaliasse o caráter. Depois que a casa foi oficialmente declarada domínio de Stuart, Fee passou-lhe a espingarda, prazerosa.
Nem todos os visitantes eram andarilhos, embora estes constituíssem a maioria; havia, por exemplo, o homem da Watkins e o seu velho modelo T, em que ele carregava tudo, desde linimento para cavalos até sabonete cheiroso, tão diferente do troço, duro como pedra, que Fee fazia no tacho de cobre da lavanderia, com sebo e soda cáustica; água-de-lavanda e água-de-colônia, pós e cremes para rostos ressecados pelo sol. Havia coisas que ninguém sonhava em comprar senão do homem da Watkins; como o seu ungüento, muito melhor do que qualquer ungüento de farmácia ou aviado, capaz de curar tudo, desde o talho na ilharga de um cachorro de lida até a ferida numa canela humana. As mulheres se amontoavam em todas as cozinhas que ele visitava, esperando ansiosas vê-lo abrir sua grande mala de mercadorias.
E havia outros vendedores, patrulheiros menos regulares das regiões interioranas do que o homem da Watkins, mas igualmente bem recebidos, que mascateavam tudo, desde cigarros feitos sob encomenda e cachimbos vistosos até peças inteiras de tecido e, às vezes, roupas de baixo escandalosamente sedutoras e espartilhos cobertos de fitas. Pois tinham muita fome de coisas essas mulheres do interior, limitadas, não raro, a uma ou duas viagens por ano à cidade mais próxima, longe das lojas brilhantes de Sydney, longe das modas e dos enfeites.
A vida parecia feita principalmente de poeira e de moscas. Fazia um tempão que não chovia, nem mesmo um chuvisco para assentar a poeira e afogar as moscas; e, quanto menos chuva, tanto mais moscas e mais poeira.
Cada teto era festonado de longas e preguiçosas espirais revoluteantes de papel pega-moscas, que ficavam pretas de corpos um dia depois de haverem sido pregadas. Não se podia deixar nada descoberto nem por um instante sem que o objeto em apreço se transmudasse numa orgia ou num cemitério de moscas, e minúsculos pontinhos de excrementos enchiam os móveis, as paredes, a folhinha do Armazém Geral de Gillanbone.
E a poeira! Não havia como fugir desse pó fininho e pardo que se introduzia até nos recipientes mais bem fechados, tirava o brilho do cabelo recém-lavado, deixava a pele áspera, enfiava-se nas dobras das roupas e das cortinas, revestia as mesas polidas de uma película que voltava a formar-se assim que era removida. Os pisos viviam grossos de poeira, vinda das botas limpadas sem cuidado e do vento quente e seco que entrava pelas portas e janelas abertas. Fee viu-se obrigada a enrolar os seus tapetes persas na sala de visitas e mandou Stuart pregar o linóleo que comprara sem ver na loja de Gilly.
O soalho da cozinha, que recebia a maior parte do tráfego vindo de fora, era feito de tábuas de teca que já tinham a cor de ossos velhos de tanto ser esfregadas com uma escova de arame e sabão de lixívia. Fee e Meggie cobriam o soalho de serragem, recolhida com cuidado por Stuart no lenheiro, borrifavam a serragem com preciosas partículas de água e varriam a mixórdia úmida e de cheiro acre para a varanda, e da varanda para a horta, a fim de que lá se decompusesse e transformasse em humo.
Nada, porém, conseguia deter a poeira por muito tempo e, passados alguns dias, o arroio secou e dele sobraram apenas umas cacimbas, de modo que já não se lhe podia bombear a água para a cozinha e para o banheiro. Stuart levava o caminhãotanque para o poço e trazia-o cheio. Despejava-o depois num dos tanques vazios de água de chuva e as mulheres tinham de acostumar-se a uma espécie diferente de água horrível nos pratos, nas roupas e nos corpos, pior do que a água barrenta do riacho. O líquido rançoso, com cheiro de enxofre, tinha de ser eliminado escrupulosamente dos pratos e tornava o cabelo opaco e grosso, como palha. A pouca água de chuva que ainda restava era estritamente usada para beber e cozinhar.
Padre Ralph observava Meggie com ternura. Ela estava escovando a cabeça ruiva e encaracolada de Patsy, enquanto Jims, em pé, esperava, obediente mas um tanto cambaleante, a sua vez, e dois pares de brilhantes olhos azuis se erguiam adorativamente para ela. Era o que ela parecia, uma minúscula mãezinha. Teria de ser alguma coisa nascida com elas, ponderou ele, essa peculiar obsessão das mulheres pelas crianças pequenas, pois, do contrário, na sua idade, ela o teria considerado muito mais como obrigação do que como prazer puro, e já teria partido em busca de algo mais atraente para fazer. Ao invés disso, prolongava deliberadamente o processo, anelando o cabelo de Patsy entre os dedos a fim de converter em ondulações aquela rebeldia toda. Durante algum tempo o padre se encantou com a atividade dela, depois bateu com o chicote no lado da bota empoeirada e ficou olhando, melancólico, da varanda para a casa da sede, escondida pelos eucaliptos e trepadeiras, pela profusão de prédios da fazenda e pelas pimenteiras que se erguiam entre o seu isolamento e o fulcro da vida da propriedade, a residência do chefe dos pastores. Que trama estaria tecendo a aranha lá em cima, no centro da sua vasta teia?
— Padre, o senhor não está prestando atenção! — acusou-o Meggie.
— Desculpe-me, Meggie. Eu estava pensando. — Voltou-se para ela no momento em que a menina concluía o trabalho na cabeça de Jims; os três ficaram a observálo em atitude expectante, até que ele se inclinou e ergueu os gêmeos, colocando um em cada quadril. — Que tal se fôssemos ver sua tia Mary, hein?
Meggie seguiu-o pelo caminho acima carregando-lhe o chicote e conduzindo a égua castanha; ele levava nos braços os pequerruchos com fácil familiaridade e parecia não ligar para aquilo, embora o arroio distasse um quilômetro e meio da casa-grande. Chegados à cozinha, entregou os gêmeos à encantada Sra. Smith e enveredou pelo caminho que conduzia à casa-grande, tendo Meggie ao seu lado.
Mary Carson estava sentada em sua bergère, de onde mal se levantava nesses dias; já não tinha necessidade de fazê-lo, agora que Paddy era tão capaz de superintender as coisas. Quando o Padre Ralph entrou segurando a mão de Meggie, o seu olhar malévolo fez a criança abaixar o dela; Padre Ralph sentiu que se aceleravam as batidas do pulso de Meggie e apertou-o, solidário com ela. A pequena fez à tia uma canhestra cortesia, murmurando uma saudação inaudível.
— Vá para a cozinha, menina, vá tomar chá com a Sra. Smith — disse Mary Carson, lacônica.
— Por que você não gosta dela? — perguntou o Padre Ralph, deixando-se cair na cadeira que já passara a considerar sua.
— Porque você gosta.
— Ora, deixe disso! — Uma vez, pelo menos, ela o fazia sentir-se perplexo. — É apenas uma criança desamparada, Mary.
— Mas não é isso o que você vê nela, e bem o sabe.
Os belos olhos azuis pousaram em Mary Carson, irônicos; já se sentia mais à vontade.
— E você me acha capaz de me meter com crianças? Afinal de contas, sou um padre!
— Em primeiro lugar, você é um homem, Ralph de Bricassart! O fato de ser padre o faz sentir-se seguro, mais nada.
Chocado, ele riu. Fosse lá como fosse, não poderia esgrimir com ela naquele dia; dir-se-ia que Mary tivesse encontrado««»Brecha na sua armadura e por ela se houvesse esgueirado com o seu veneno de aranha. E ele estava mudando, ficando mais velho, talvez, reconciliando-se com a obscuridade de Gillanbone. Os fogos estavam morrendo; ou arderia ele, agora, por outras coisas?
— Não sou um homem — disse. — Sou um padre...É o calor, talvez, a poeira, as moscas... Mas não sou um homem, Mary. Sou um padre.
— Oh, Ralph, como você mudou! — zombou ela. — Será realmente o Cardeal de Bricassart que estou ouvindo?
— Isso não é possível — disse ele, com uma sombra passageira de tristeza nos olhos. — Creio que já não me interessa.
Ela principiou a rir-se, balançando-se para a frente e para trás na bergère, observando-o.
— Será mesmo que não quer, Ralph? Não quer? Pois bem, eu o deixarei cozinhar por mais algum tempo, mas o seu dia de juízo está chegando, não tenha dúvida. Não agora, talvez não nos próximos dois ou três anos, mas chegará. Serei como o Demônio e lhe oferecerei... Não digo mais nada! Mas não duvide de que o farei. Você é o homem mais fascinante que já conheci. Atira a sua beleza ao nosso rosto, desdenhoso da nossa insensatez. Mas eu o encostarei na parede, vítima da sua própria fraqueza; fá-lo-ei vender-se como qualquer prostituta. Você duvida?
Ele inclinou-se para trás, sorrindo.
— Não duvido de que você tente. Mas não creio que me conheça tão bem quanto julga me conhecer.
— Acha que não? O tempo dirá, Ralph, e só o tempo. Estou velha; o tempo é a única coisa que me resta.
— E a mim, o que você acha que resta? — perguntou ele. — O tempo, Mary, nada mais que o tempo. O tempo, a poeira e as moscas.
As nuvens amontoaram-se no céu, e Paddy começou a acalentar esperanças de chuva.
— Tempestades secas — prenunciou Mary Carson. — Essas nuvens não nos trarão chuva. Não teremos chuva por muito tempo.
Se os Clearys supunham ter visto o pior que a Austrália poderia oferecer-lhes em matéria de rigor climático, era porque ainda não haviam experimentado as tempestades secas das planícies assoladas pela estiagem. Despojada da umidade confortante, a secura da terra e a do ar esfregavam-se uma na outra, ásperas e crepitantes, num atrito irritante que aumentava, aumentava, aumentava, até poder terminar numa dissipação desenfreada de energia acumulada. O céu caía e ficava tão escuro que Fee se via obrigada a acender as luzes dentro de casa; fora, nas cocheiras, os cavalos estremeciam e saltavam ao menor ruído; as galinhas procuravam seus poleiros e escondiam a cabeça em peitos apreensivos; os cães brigavam e rosnavam; os porcos mansos que fossavam o lixo do chiqueiro da fazenda enfiavam os focinhos na poeira e espiavam através dela com olhos brilhantes e assustadiços. Forças sombrias encerradas nos céus punham medo nos ossos de todos os seres vivos, enquanto vastas nuvens profundas engoliam o sol e preparavam-se para vomitar o fogo solar sobre a terra.
O trovão veio marchando de muito longe em passo cada vez mais rápido, minúsculos lampejos no horizonte davam nítido relevo a imensas ondas que se elevavam, com cristas de surpreendente alvura, espumantes e encrespadas, sobre profundezas azul-escuras. Depois, com um vento que rugia e aspirava a poeira para arremessá-la, urticante, aos olhos, aos ouvidos e às bocas, veio o cataclisma. Eles já não precisavam tentar imaginar a cólera bíblica de Deus; viviam-na. Homem nenhum teria deixado de pular quando o trovão estalou — explodiu com o fragor e a fúria de um mundo que se desintegrasse — mas, transcorrido algum tempo, a família reunida se habituou de tal modo a ele que saíram todos para a varanda e de lá fitaram a vista, do outro lado do córrego, nas pastagens distantes. Grandes relâmpagos zebravam o céu com veias de fogo, cada qual composto de dúzias de raios, que não cessavam; clarões de nafta, em cadeia, riscavam as nuvens, saindo das ondas e voltando a elas, como se brincassem de pique. Árvores crestadas sozinhas no meio do capim fumegavam, e eles compreenderam afinal por que tinham morrido essas solitárias sentinelas dos pastos.
Um brilho fantástico, sobrenatural, tomou conta do ar, um ar que já não era invisível, mas ardia por dentro, lançando fluorescências róseas, lilases e amarelas e exalando um perfume obsessivamente doce e esquivo, inteiramente irreconhecível. As árvores tremeluziam, o cabelo vermelho dos Clearys era aureolado de línguas de fogo, os pêlos dos seus braços se arrepiavam. E durante toda a tarde aquilo continuou, só se desvanecendo pouco a pouco no leste, e só os livrou do seu medonho fascínio ao pôr-do-sol. Todos estavam excitados, nervosos, irrequietos. Nem um pingo de chuva caíra. Mas ter sobrevivido incólume ao furor atmosférico era como ter morrido e ressuscitado outra vez; e durante uma semana não puderam falar em outra coisa.
— Ainda teremos muitas mais — disse Mary Carson, aborrecida.
E tiveram muitas mais. O segundo inverno seco veio mais frio do que haviam imaginado possível sem neve; a geada depositava-se no chão, à noite, com vários centímetros de espessura, e os cães se encolhiam, trêmulos nos canis, empanturrando-se de carne de canguru e de montes de gordura do gado abatido na fazenda para aquecerse. O mau tempo significava, pelo menos, que se podia comer carne de vaca e carne de porco em vez da eterna carne de carneiro. Dentro de casa se faziam grandes fogueiras crepitantes, e os homens voltavam para casa sempre que podiam, pois à noite nos pastos morriam de frio. Mas os tosquiadores pareciam chegar contentes; poderiam fazer o serviço mais depressa e suando menos. No espaço destinado a cada homem no grande barracão, formara-se no soalho um círculo de cor muito mais clara do que o resto. Era o lugar onde os tosquiadores, durante cinqüenta anos, tinham deixado cair seu suor alvejante sobre as tábuas do piso.
Ainda havia capim nascido da cheia há muito tempo, mas este rareava pressagamente. Dia após dia os céus se nublavam e a luz se amortecia, mas não chovia. O vento cortava os pastos, uivando, lúgubre, fazia girar turbilhonantes e pardos lençóis de poeira à sua frente como chuva, atormentando a mente com imagens de água, tão parecidos com chuva eram aqueles farrapos de poeira soprados pelo vento.
As crianças ficaram com frieiras nos dedos, tentavam não sorrir com os lábios rachados, tinham de tirar com muito cuidado as meias para não transformar numa ferida só os calcanhares e as canelas, que sangravam. Era de todo impossível permanecer aquecido
diante do vento áspero e forte, sobretudo por terem sido as casas construídas para atrair cada sopro desgarrado de ar, e não para impedi-lo de entrar. Deitavam-se em quartos gelados, levantavam-se em quartos gelados, esperavam, pacientes, que a mãe poupasse um pouco de água quente da chaleira grande, ao pé do fogão, a fim de que o banho não fosse uma experiência dolorosa, que fazia baterem os dentes.
Um dia, o pequenino Hal começou a tossir e a respirar com dificuldade, com uma forte chiadeira no peito. Fee preparou uma cataplasma grudenta e quente de carvão vegetal e aplicou-a sobre o peitinho dolorido, mas o remédio não pareceu aliviá-lo. A princípio, a mãe não ficou indevidamente preocupada, mas, à proporção que o dia foi passando, ele começou a piorar tão depressa que ela já não tinha idéia do que fazer e Meggie, sentada ao seu lado, torcia e retorcia as mãos, rezando uma série de padrenossos e ave-marias sem palavras. Quando Paddy chegou, às seis da tarde, a respiração da criança ouvia-se da varanda, e seus lábios estavam azuis.
Paddy partiu no ato para a casa-grande e para o telefone, mas o médico se achava a sessenta e tantos quilômetros de distância, ocupado com outro caso. Eles aqueceram uma panela de enxofre e seguraram o menino em cima dela, na tentativa de fazê-lo tossir e expelir a membrana que se instalara em sua garganta e que o ia, pouco a pouco, sufocando, mas ele não conseguia contrair o tórax com força suficiente para tirar a membrana do lugar. Sua cor ia ficando de um azul cada vez mais escuro, sua respiração era convulsiva. Meggie, sentada, segurava-o nos braços e rezava, com o coração apertado como uma cunha de dor, ao ver o esforço que o coitadinho precisava fazer cada vez que respirava. Ela queria a Hal como não queria a nenhuma das crianças; ela era sua mãe. Nunca até então desejara tão desesperadamente ser uma mãe adulta, pois, se fosse uma mulher como Fee, teria, de um jeito ou de outro, o poder de curá-lo. Fee não podia curá-lo porque não era sua mãe. Confusa e aterrorizada, Meggie aconchegava a si o corpinho arquejante, tentando ajudá-lo a respirar.
Não lhe ocorreu que ele poderia morrer, nem quando Fee e Paddy, ajoelhados à beira da cama, começaram a rezar, sem saber o que mais poderiam fazer. À meia-noite, Paddy tirou a criança imóvel dos braços de Meggie, que a enlaçavam, e os pais deitaram-na ternamente sobre a pilha de travesseiros.
Os olhos de Meggie se abriram; ela adormecera, embalada porque Hal cessara de lutar.
— Oh, papai, ele está melhor! — disse ela.
Paddy sacudiu a cabeça; parecia enrugado e velho, ao que a lâmpada lhe captava fios encanecidos do cabelo e da barba de uma semana.
— Não, Meggie, ele não está melhor como você imagina, mas está em paz. Ele se foi para Deus, não sofre mais.
— Papai quer dizer que ele está morto — interveio Fee com uma voz sem tom.
— Oh, papai, não! Ele não pode estar morto!
Mas a criaturinha no ninho de cobertores estava morta. Meggie percebeu-o assim que olhou para ela, embora nunca tivesse visto a morte. Parecia um boneco, não uma criança. Ela levantou-se e foi procurar os meninos, sentados cabisbaixos numa vigília apreensiva, em torno do fogo da cozinha, ao passo que a Sra. Smith, numa cadeira dura ao lado deles, não tirava os olhos dos minúsculos gêmeos, cujo berço havia sido levado para a cozinha, por causa do calor.
— Hal acaba de morrer — disse Meggie.
Stuart ergueu os olhos, voltando de um devaneio distante.
— Foi melhor assim — disse ele. — Pense na paz.
Ergueu-se em pé quando Fee saiu do corredor e dirigiu-se a ela, sem tocá-la.
— Você deve estar cansada, mamãe. Venha deitar-se. Eu acenderei um fogo para você em seu quarto. Saia daí, vá deitar-se.
Fee voltou-se e seguiu-o sem dizer uma palavra. Bob levantou-se e saiu para a varanda. Os outros rapazes ficaram esfregando os pés no chão por algum tempo e depois lhe saíram no encalço. Paddy não aparecera. Sem pronunciar uma palavra, a Sra. Smith pegou o carrinho de bebê do seu canto da varanda e, com muito cuidado, ajeitou nele Jims e Patsy adormecidos. Olhou para Meggie, enquanto as lágrimas lhe corriam pelo rosto.
— Meggie, vou voltar à casa-grande e vou levar Jims e Patsy comigo. Voltarei amanhã cedo, mas será melhor que os bebezinhos fiquem com Minnie, com Cat e comigo por algum tempo. Diga isso a sua mãe.
Meggie sentou-se numa cadeira vazia e dobrou as mãos sobre o colo. Ele era dela e estava morto! O pequenino Hal, de quem ela cuidara, que ela amara e protegera. O espaço em sua mente que ele ocupara ainda não se esvaziara; ela ainda sentia o peso quente dele de encontro ao peito. Era terrível saber que aquele peso nunca mais descansaria ali, onde ela o sentira durante quatro longos anos. Não, não era uma coisa pela qual se devesse chorar; as lágrimas destinava-as a Agnes, às feridas na frágil redoma do amor-próprio, à infância que deixara para sempre para trás. Este era um fardo que ela teria de carregar até o fim dos seus dias, e continuar vivendo apesar dele. A vontade de sobreviver é muito forte em alguns, menos forte em outros. Em Meggie era tão requintada e poderosa quanto um cabo de aço.
Foi assim que o Padre Ralph a encontrou ao chegar com o médico. Ela indicou em silêncio o corredor, mas não fez nenhum esforço para acompanhá-los. E só muito tempo depois pôde fazer o padre, finalmente, o que desejara fazer desde que Mary Carson telefonara para a casa paroquial; ir ter com Meggie, ficar com ela, dar à pobre mulherzinha algo dele mesmo para o mais íntimo dela. Duvidava que mais alguém tivesse sequer percebido o que Hal significava para ela.
Mas levou muito tempo. Havia que atender às últimas cerimônias, pois era possível que a alma ainda não tivesse abandonado o corpo; e urgia ver Fee, urgia ver Paddy, urgia dar conselhos. O médico se fora, abatido mas acostumado havia muito tempo às tragédias que a extensão da sua clínica tornava inevitáveis. Do que ele disse se depreendia que, de qualquer maneira, pouca coisa se poderia ter feito tão longe do seu hospital e do seu pessoal experimentado. Essa gente se arriscava, enfrentava os seus demônios e esperava. A certidão de óbito diria apenas ”Difteria”. Era uma moléstia conveniente.
Finalmente já não havia mais nada que o Padre Ralph precisasse ver. Paddy fora procurar Fee, Bob e os rapazes tinham ido à carpintaria fazer o caixãozinho. No chão do quarto de Fee, o perfil de Stuart, tão parecido com o dela, destacava-se do céu noturno entrevisto pela janela do lugar em que estava, com a cabeça no travesseiro e a mão apertando a mão de Paddy. Fee não tirava os olhos da sombra escura encolhida no chão frio do quarto. Eram cinco horas da manhã e os galos já se mexiam, sonolentos, mas a escuridão perduraria por muito tempo ainda.
com a estola de púrpura em torno do pescoço, porque se esquecera de que a estava usando, Padre Ralph inclinou-se diante do fogo da cozinha e, atiçando as brasas já dormidas, transformou-as num fogaréu, apagou a lâmpada na mesa de trás e sentou-se num banco de madeira defronte de Meggie a fim de observá-la. Ela crescera, calçara botas de sete léguas que ameaçavam deixá-lo para trás, superado; observando-a, ele sentiu mais profundamente a sua inadequação do que a sentira durante toda a vida, em que o corroera e obsedara uma dúvida sobre a própria coragem. Afinal, de que tinha medo? Que era o que supunha não poder enfrentar se um dia lhe surgisse pela frente? Ele podia ser forte pelos outros, não tinha medo de outras pessoas; mas dentro de si, esperando que essa coisa sem nome lhe chegasse, sorrateira, à consciência quando menos esperasse, conhecia o medo. Ao passo que Meggie, nascida dezoito anos depois dele, estava crescendo e, crescendo, superava-o.
Não que ela fosse uma santa, ou mesmo algo mais que a maioria das pessoas. Só que nunca se queixava, possuía o dom — ou seria a maldição? — da aceitação. Fosse o que fosse que tivesse acontecido ou pudesse acontecer, ela o enfrentava e aceitava, guardava-o para alimentar a fornalha do seu ser. Quem ou o que lhe ensinara isso? E seria isso algo que se pudesse ensinar? Ou seria a idéia que ele fazia dela uma invenção das suas fantasias? Teria isso, de fato, algum valor? Que era mais importante, o que ela verdadeiramente era ou o que ele supunha que ela fosse?
— Oh, Meggie — disse o padre, num gesto de impotência.
Ela voltou os olhos para ele e deu-lhe um sorriso extraído do seu sofrimento, um sorriso de amor absoluto e transbordante, sem reservas, visto que os tabus e inibições da sua feminilidade ainda não faziam parte do seu mundo. O fato de ser amado assim abalou-o, fê-lo desejar perante o Deus de cuja existência às vezes duvidava, ser qualquer outra pessoa no universo, menos Ralph de Bricassart. Seria isto, a coisa desconhecida? Oh, Senhor, por que haveria ele de amá-la assim? Mas, como sempre, ninguém lhe respondeu; e Meggie continuava sentada, sorrindo para ele.
Ao amanhecer, Fee levantou-se para preparar o desjejum, com a ajuda de Stuart. Pouco depois a Sra. Smith voltou com Minnie e Cat, e as quatro mulheres ficaram juntas, à beira do fogão, conversando com voz monótona e abafada, presas a alguma liga de sofrimento que nem Meggie nem o padre compreendiam. Concluída a refeição, Meggie foi forrar a caixinha de madeira que os meninos tinham feito, alisado e envernizado. Sem dizer uma palavra, Fee lhe dera um vestido de baile de cetim branco que assumira, havia muito tempo, com a idade, a coloração do marfim, e ela cortou pedaços da fazenda para ajustar aos duros contornos do interior da caixa. Enquanto o Padre Ralph a forrava com uma toalha à guisa de forro, ela dava forma aos pedaços de cetim na máquina de costura e, em seguida, juntos, os dois fixaram o forro no lugar com a ajuda de percevejos. Feito isso, Fee vestiu o seu bebê com a melhor roupa de veludo, penteou-lhe o cabelo e deitou-o no ninho macio que cheirava a ela, mas não cheirava a Meggie, que fora sua mãe. Paddy fechou a tampa do caixãozinho chorando; aquele era o primeiro filho que perdia.
Durante anos, a sala de visitas de Drogheda fora usada como capela; erguera-se um altar numa das extremidades, e sobre ele se estendera um pano dourado, bordado pelas monjas de Santa Maria d’Urso, a quem Mary Carson pagara mil libras pelo serviço. A Sra. Smith enfeitara a sala e o altar com flores de inverno dos jardins de Drogheda, goivos amarelos, prematuros goivos vermelhos rajados de branco e rosas tardias, massas de flores semelhantes a pinturas cor-de-rosa e ferrugentas, encontrando magicamente a dimensão da fragrância. Ostentando alva branca, sem rendas, e casula preta, sem adornos, Padre Ralph celebrou o ofício dos mortos.
Como acontecia na maior parte das grandes fazendas do interior, Drogheda enterrava seus mortos em sua própria terra. O cemitério ficava além dos jardins, às margens do córrego ornadas de salgueiros, e era cercado por uma grade de ferro fundido pintada de branco, que continuava verde até durante a seca, pois era regada com a água dos tanques da sede da fazenda. Michael Carson e seu filho pequeno estavam ali sepultados numa imponente abóbada mortuária de mármore sobre cujo frontão triangular se erguia a estátua de um anjo em tamanho natural com a espada desembainhada para guardar-lhes o repouso. Mas uma dúzia talvez de túmulos menos pretensiosos cercava o mausoléu, marcados apenas por singelas cruzes brancas de madeira e arcos brancos de croquê, que lhes definiam às divisas exatas, alguns até mesmo sem nome: um tosquiador sem parentes conhecidos, morto numa briga nos alojamentos; dois ou três andantes cujo último local de atividade na terra fora Drogheda; alguns ossos assexuados e anônimos encontrados numa das pastagens; o cozinheiro chinês de Michael Carson, sobre cujos restos mortais se via um curioso guarda-chuva vermelho, cheio de sininhos tristes, que pareciam repicar perpetuamente o nome de Hee Sing, Hee Sing, Hee Sing; um tropeiro cuja cruz dizia apenas TANKSTAND CHARLIE ERA UM bom SUJEITO; e outros mais, ao lado, alguns dos quais mulheres. Mas essa simplicidade não era para Hal, sobrinho da proprietária; enfiaram-lhe o caixão feito em casa numa prateleira no interior da abóbada mortuária e fecharam sobre ela trabalhadas portas de bronze.
Passado algum tempo, toda a gente deixou de falar em Hal, a não ser de passagem. Meggie guardou sua tristeza exclusivamente para si; seu sofrimento tinha a desolação irracional peculiar às crianças, aumentada e misteriosa, embora a própria juventude a soterrasse sob acontecimentos de todos os dias e lhe diminuísse a importância. Os meninos não sentiram muito, exceto Bob, que tinha idade suficiente para afeiçoar-se ao irmão caçula. Paddy sofreu profundamente, mas ninguém ficou sabendo se Fee chegou a sofrer. Ela parecia afastar-se cada vez mais do marido e dos filhos, de todos os sentimentos. Por causa disso, Paddy se sentiu muito grato a Stu pelo modo com que este se ocupava da mãe, a grave ternura com que a tratava. Só Paddy sabia como ficara Fee no dia em que ele voltara de Gilly sem Frank. Não se lhe notara o menor indício de emoção nos mansos olhos cinzentos, nem endurecimento, nem acusação, nem ódio, nem tristeza. Como se ela estivesse simplesmente à espera do golpe que seria desferido, como o cachorro condenado espera a bala que o matará, conhecendo o próprio destino e sem forças para fugir-lhe.
— Eu sabia que ele não voltaria — disse ela.
— Talvez volte, Fee, se você lhe escrever depressa — disse Paddy.
Ela sacudiu a cabeça, mas, sendo Fee, não deu explicações. Era melhor que Frank construísse uma vida nova para si, longe de Drogheda e dela. Conhecia suficientemente o filho para saber que uma palavra sua o traria de volta, de modo que não devia pronunciar essa palavra, nunca. Se os dias eram longos e amargos e traziam uma sensação de fracasso, cumpria-lhe suportá-los em silêncio. Paddy não fora o homem de sua escolha, mas nunca existira um homem melhor do que Paddy. Ela era uma dessas pessoas cujos sentimentos são tão intensos que se tornam intoleráveis, de convivência impossível, e a lição que a vida lhe reservara fora dura. Durante quase vinte e cinco anos ela se ocupara em esmagar a emoção, arrancando-a da existência, e estava convencida de que, no fim, a persistência venceria.
A vida prosseguiu no ciclo rítmico, interminável, da terra; no verão seguinte vieram as chuvas, não trazidas pelas monções, mas como subproduto delas, enchendo o arroio e os tanques, socorrendo as raízes sedentas do capim, aplacando a poeira furtiva. Quase chorando de alegria, os homens lançaram-se ao trabalho das estações padronizadas, sabendo que não precisariam alimentar os cordeiros com mamadeiras. O capim durara o tempo suficiente, remediado com a poda das árvores mais sumarentas; mas não era assim em todas as fazendas de Gilly. A quantidade de cabeças que havia numa fazenda dependia inteiramente do criador que a dirigia. Para o seu grande tamanho Drogheda tinha menos cabeças do que as que podia comportar, de modo que o seu capim durava proporcionalmente mais.
O período de parição e as semanas febris que a ele se seguiam eram os mais atarefados de todo o calendário ovino. Todo carneirinho nascido tinha de ser pego; enrolava-se um anel na cauda de cada um, marcava-se-lhe a orelha e, se fosse macho e não se destinasse à reprodução, castrava-se. Trabalho asqueroso e abominável, que os empapava de sangue até a pele, pois só havia um jeito de dar cabo do serviço em milhares e milhares de carneiros machos no curto espaço de tempo de que dispunham. Projetavam-se os testículos entre os dedos, cortavam-se com os dentes e cuspiam-se no chão. Rodeados de tiras de metal que não lhes permitia expansão alguma, as caudas dos cordeirinhos, machos e fêmeas, iam perdendo aos poucos o suprimento vital de sangue, inchavam, secavam e caíam.
Aqueles eram os melhores rebanhos lanígeros do mundo, criados numa escala de que nunca se ouvira falar em qualquer outro país, e com pouca mão-de-obra. Tudo funcionava para a perfeita produção de lã perfeita. Havia o corte das entrepernas; em torno da extremidade posterior do carneiro a lã ficava suja de excrementos e lêndeas de moscas, que formavam fracos pendentes a que se dava o nome de cardinas. Essa área tinha de ser bem raspada ou cortada. Embora fosse um trabalho de tosquia secundário, muito menos agradável, fedido e empestado de moscas, rendia mais dinheiro aos tosquiadores. Depois havia o banho: milhares e milhares de criaturas, que baliam e saltavam, eram conduzidas, com a ajuda de cães, a um dédalo de cercados, onde entravam e saíam dos banhos de fenilo, que os livravam de carrapatos, pragas e parasites. E havia os remédios: a administração de preparados por meio de imensas seringas enfiadas pela garganta abaixo, a fim de livrar o carneiro de parasites intestinais.
Em suma, o trabalho com os carneiros nunca terminava; assim que acabava um serviço, já era tempo de encetar outro. Reuniam-se e classificavam-se os animais, levavam-se de um pasto para outro, enxertavam-se ou não as fêmeas, tosquiavam-se, banhavam-se, medicavam-se, abatiam-se e embarcavam-se para serem vendidos. Drogheda tinha também cerca de mil cabeças de gado bovino de corte de primeira qualidade, além dos carneiros, mas como estes últimos fossem muito mais lucrativos, Drogheda, nos bons tempos, abrigava, em média, três carneiros por alqueire, o que dava um total aproximado de cento e vinte e cinco mil cabeças. Sendo merinos, não eram vendidos para corte; ao cabo dos anos de produção de lã de um merino, despachavam-no para os curtumes e matadouros, onde o transformavam em peles, lanolina, sebo e cola.
Foi assim que os clássicos da literatura do interior da Austrália adquiriram significado. A leitura tornara-se mais importante do que nunca para os Clearys, isolados do mundo em Drogheda; seu único contato com ele se fazia através da mágica palavra escrita. Mas não havia biblioteca que emprestasse livros nas proximidades, como havia em Wahine, não se faziam excursões semanais à cidade para ir buscar a correspondência, os jornais e uma nova pilha de livros, como se faziam em Wahine. O Padre Ralph preencheu a lacuna saqueando a biblioteca de Gillanbone, a sua e as estantes do convento, e descobriu, espantado, que antes de dar pela coisa, organizara toda uma biblioteca itinerante do interior através de Bluey Williams e do caminhão postal, que agora vivia carregado de livros — livros gastos, manuseados, que percorriam os caminhos sulcados de rodeiras entre Drogheda e Bugela, Dibban-Dibban e Braich y Pwll, Cunnamutta e Each-Uisge, e dos quais se apossavam mentes sequiosas de sustento e fuga. As histórias muito apreciadas eram sempre devolvidas com grande relutância, mas o Padre Ralph e as freiras mantinham cuidadoso registro dos livros que ficavam fora da biblioteca por mais tempo e do seu paradeiro. Em seguida, o Padre Ralph encomendava novos exemplares por intermédio da banca de jornais e revistas de Gilly e punha-os gentilmente na conta de Mary Carson, como donativos para a Sociedade Bibliófila de Santa Cruz dos Campos.
Esses eram os tempos em que um livro tinha sorte quando continha um beijo casto, quando os sentidos não eram excitados por passagens eróticas, de modo que se traçava com menos rigor a linha de demarcação entre as obras destinadas aos adultos e as destinadas às crianças de mais idade, e não era vergonhoso para um homem da idade de Paddy preferir os livros que seus filhos também adoravam: Dot and the Kangaroo, a série Billabong a respeito de Jim, Norah e Wally, o imortal We ofthe NeverNever da Sra. Aeneas Gunn. Na cozinha, à noite, eles se revezavam para ler em voz alta os poemas de Banjo Paterson e C. J. Dennis, emocionando-se com a cavalgada de ”O Homem do Rio Nevado”, ou rindo-se com ”O Sujeito Sentimental” e sua Doreen, ou enxugando lágrimas furtivas à leitura de ”Risonha Mary”, de John O’Hara.
”Eu lhe havia escrito uma carta, que, por falta de maior Conhecimento, mandara para onde o conheci no Lachlan há anos; Ele estava tosquiando quando o conheci, de modo que lhe mandei a carta,
Só para experimentar, com este endereço, ”Clancy, do
Overflow.”
E veio uma resposta redigida numa escrita inesperada (E acho que a mesma foi escrita com uma unha embebida em alcatrão);
Foi o seu companheiro de tosquia quem a escreveu, e vou citá-la — verbatim:
”Clancy foi para Queensland tropeando e não sabemos onde está.” Em minha fantasia errática e selvagem me acudiram visões de Clancy Tropeando ”pelo Cooper abaixo”, para onde vão os tropeiros do oeste; Enquanto o gado segue devagar Clancy cavalga atrás dele cantando,
Pois a vida do peão tem prazeres que a gente da cidade
desconhece. E o sertão tem amigos para encontrá-lo e suas vozes bondosas o saúdam
No murmúrio das brisas e do rio em seus baixios, E ele vê a esplêndida visão das intérminas planícies ensolaradas, E, à noite, a beleza sem par das estrelas sempiternas.”
”Clancy do Overflow” era o favorito de todos e ”o Banjo”, o poeta predileto. Versos de pé meio quebrado, talvez, mas os poemas não se destinavam aos olhos sapientes de intelectuais sofisticados; eram para o povo, e havia mais australianos naquele tempo que os sabiam de cor do que os que conheciam as obras clássicas, aprendidas na escola, de Tennyson e Wordsworth, pois a sua marca de poesias de pé quebrado fora escrita sob a inspiração da Inglaterra. Multidões de narcisos e campos de asfódelos nada significavam para os Clearys, que viviam num clima onde eles não poderiam existir.
Os Clearys compreendiam os poetas da região melhor do que muita gente, visto que o Overflow era o seu quintal, os rebanhos de carneiros em viagem uma realidade na estrada destinada ao gado, pois havia uma estrada oficial para o transporte do gado que passava perto do Rio Barwon, faixa de terra da coroa reservada para a transferência de mercadoria viva de um ponto a outro da metade oriental do continente. Antigamente os tropeiros e suas tropas famintas, que acabavam com o capim, não eram bem-vindos, e odiavam-se os boiadeiros, principalmente quando enfiavam suas juntas mamúticas de vinte a oitenta bois pelo meio das melhores pastarias dos posseiros. Agora, com estradas oficiais para os tropeiros e tendo os boiadeiros desaparecido na lenda, as coisas andavam mais amistosas entre errabundos e sedentários.
Os tropeiros ocasionais eram acolhidos com alegria e convidados a tomar uma cerveja, a bater um papo, a provar uma comida caseira. Vinham, às vezes, em companhia de mulheres, que dirigiam velhas carroças em pandarecos, com pilecas esfoladas, que já tinham sido animais de lida, entre os varais, enquanto potes, bules e garrafas retiniam ao redor. Eram as mulheres mais joviais ou as mais taciturnas do interior, que viajavam de Kynuna ao Paroo, de Goondiwindi a Gundagai, do Katherine ao Curry. Mulheres estranhas; não sabiam o que era ter um teto sobre a cabeça nem conheciam a maciez de um colchão de paina debaixo das suas espinhas duras como ferro. Nenhum homem as sobrepujava; eram tão rijas e resistentes quanto o país que se estendia debaixo dos seus pés inquietos. Selvagens como os pássaros nas árvores encharcadas de sol, seus filhos se esgueiravam, tímidos, para trás das rodas da carroça ou saíam disparados em busca da proteção do lenheiro, enquanto seus pais loroteavam diante de xícaras de chá, trocavam histórias incríveis e livros, prometiam transmitir mensagens vagas a Hoopiron Collins ou a Brumby Waters, e narravam a fantástica aventura do colono novato de Pommy em Gnarlunga. E, de um modo ou de outro, podia-se ter a certeza de que esses nômades sem raízes haviam aberto uma cova e enterrado um filho, uma esposa ou um companheiro debaixo de algum coolibah, que nunca seria esquecido, num trecho da estrada que só parecia o mesmo aos que não sabiam como podem os corações distinguir uma árvore no meio de uma floresta.
Meggie desconhecia até o significado de uma expressão tão antiga quanto ”os fatos da vida”, pois as circunstâncias haviam conspirado para bloquear todas as avenidas por meio das quais lhe poderia ter chegado o conhecimento. Seu pai traçara uma linha rígida entre os homens e as mulheres da família; assuntos como procriação ou acasalamento nunca se discutiam em presença das mulheres, e os homens só apareciam diante delas completamente vestidos. A espécie de livros que teria podido dar-lhe uma pista nunca apareceu em Drogheda, e ela não tinha amigas da mesma idade capazes de contribuir para a sua educação. Sua vida era toda ela utilizada nas necessidades da casa, e ao redor da casa não havia atividades sexuais de espécie alguma. As criaturas do Home Paddock eram quase que literalmente estéreis. Mary Carson não criava cavalos, comprava-os de Martin King, de Bugela, que os criava; e, a menos que se criem cavalos, os garanhões são uma fonte de aborrecimento, de modo que Drogheda não tinha nenhum. Possuía um touro, um animal selvagem e feroz, cuja cocheira ficava rigorosamente fora dos limites da sede, e Meggie tinha tanto medo dele que nunca se aproximava dos seus domínios. O acasalamento dos cães, mantidos no canil e acorrentados, era um exercício científico e supervisado, levado a efeito sob os olhos de águia de Paddy ou de Bob e, portanto, também fora dos limites da sede. Nem havia tempo para observar os porcos, que Meggie detestava e não gostava de precisar alimentar. Na verdade, não lhe sobrava tempo para observar quem quer que fosse além dos minúsculos irmãozinhos. E ignorância gera ignorância; um corpo e um espírito não despertados dormem através de acontecimentos que o conhecimento cataloga automaticamente.
Pouco antes do décimo quinto aniversário de Meggie, quando o calor do verão principiava a subir, rumo ao seu máximo estupeficante, ela notou manchas pardas, irregulares, nas calças. Um ou dois dias depois as manchas desapareceram, mas, seis semanas mais tarde, voltaram, e a vergonha mudou-se em terror. Da primeira vez julgara-as sinais de um traseiro sujo, e daí a sua mortificação, mas, da segunda, viu que se tratava inegavelmente de sangue. Não tinha a menor idéia da sua procedência, mas presumiu que viesse do traseiro, mesmo. A lenta hemorragia desapareceu três dias depois e não voltou por mais de dois meses; a lavagem furtiva das calças passara despercebida, pois era ela mesma que lavava quase toda a roupa. O ataque seguinte lhe trouxe dor, as primeiras cólicas não hepáticas de sua vida. E a sangria foi pior, muito pior. Ela furtou algumas fraldas dos gêmeos, que tinham sido postas fora de uso, e tentou amarrá-las por baixo das calças, horrorizada pela perspectiva de que o sangue pudesse transpassá-las.
A morte que levara Hal havia sido como uma visita tempestuosa de algo fantasmagórico; mas essa cessação do próprio ser era aterradora. Como poderia ela procurar Fee ou Paddy para dar-lhes notícia de que estava morrendo de alguma doença indecorosa e proibida do traseiro? Somente a Frank teria ela podido contar suas dificuldades, mas Frank estava tão longe que não sabia onde encontrá-lo. Ela ouvira as mulheres falarem, à mesa do chá, em tumores e cânceres, mortes lentas e horripilantes que suas amigas, suas mães ou suas irmãs haviam sofrido, e aquilo lhe parecia, sem dúvida, uma espécie qualquer de tumor que lhe comia as entranhas, roendo-as em silêncio na direção do coração assustado. E ela não queria morrer!
Suas idéias sobre a morte eram vagas; como era vaga a idéia que fazia do seu futuro status naquele incompreensível outro mundo. Para Meggie, a religião era muito mais um conjunto de leis que uma experiência espiritual, e não poderia ajudá-la de maneira alguma. Palavras e frases acotovelavam-se, aos pedaços, em sua consciência tomada de pânico, proferidas pelos pais, pelas amigas, pelas freiras, pelos padres nos sermões, pelos vilões nos livros quando ameaçavam vingar-se. Não havia maneira com que pudesse chegar a um acordo com a morte; deixava-se ficar, noite após noite, presa de um terror confuso, procurando imaginar se a morte era uma noite perpétua, um abismo de chamas que ela teria de transpor num salto para chegar aos campos dourados do lado oposto, ou uma esfera, como o interior de um balão gigantesco, cheio de coros que se alteavam e luzes atenuadas por janelas sem fim de vidros pintados.
Ela assumiu uma atitude de extrema introversão, mas totalmente diversa do isolamento pacífico e sonhador de Stuart; o seu era a paralisia hipnotizada de um animal preso ao olhar de uma serpente. Quando lhe dirigiam a palavra de repente, ela dava um pulo, quando os pequerruchos choravam, chamando-a, ela os enchia de atenções exageradas, querendo expiar assim o seu descaso. E sempre que tinha um raro momento de folga fugia para o cemitério e para Hal, a única pessoa morta que conhecia.
Todos notaram a mudança que nela se operara, mas aceitaram-na como conseqüência natural do seu crescimento, sem jamais perguntar a si mesmos o que acarretava esse crescimento para Meggie; ela escondia com perfeição suas aflições. As velhas lições tinham sido bem aprendidas; o seu domínio de si mesma era fenomenal e o seu orgulho, formidável. Ninguém deveria saber jamais o que estava acontecendo dentro dela, a fachada continuaria impecável até o fim; de Fee e Frank e a Stuart os exemplos lá estavam e, sendo ela do mesmo sangue, isso fazia parte de sua natureza e da sua herança.
Mas como o Padre Ralph visitasse Drogheda com freqüência e a mudança em Meggie se aprofundasse, passando de uma bonita metamorfose feminina para uma extinção de toda a sua vitalidade, sua solicitude por ela cresceu e transformou-se em preocupação e depois em medo. Estava ocorrendo, debaixo do seu nariz, um depauperamento físico e espiritual, ela lhes fugia e ele não suportava a idéia de vê-la convertida em outra Fee. O rostinho comprido era todo olhos arregalados e fixos em alguma perspectiva medonha, e a pele leitosa e opaca, que nunca ficava bronzeada nem sardenta, tornava-se cada vez mais translúcida. Se o processo continuasse, pensou, ela desapareceria um dia no interior dos próprios olhos como a cobra que engole a cauda, até vogar à deriva pelo universo como uma coluna quase invisível de vítrea luz cinzenta, vista apenas do canto da visão onde se emboscam sombras e coisas pretas descem, rastejantes, por uma parede branca.
Mas ele acabaria descobrindo o que havia, nem que tivesse de empregar a força. Mary Carson estava em sua fase de maiores exigências naqueles dias, com ciúme de todos os momentos que ele passava em casa do chefe dos pastores; só a paciência infinita de um homem sutil e tortuoso não o deixava perceber a rebelião dele contra o temperamento possessivo dela. Nem mesmo a preocupação que Meggie lhe causava lhe suplantaria sempre a sabedoria política, o ronronante contentamento que lhe advinha de observar a ação do seu charme sobre uma criatura obstinada e refratária como Mary Carson. E, enquanto o cuidado, há tanto tempo adormecido, pelo bem-estar de outra pessoa mordia o freio e batia o pé, andando de um lado para outro da sua mente, ele reconhecia a existência de outra entidade que morava ao lado da primeira: a fria crueldade felina de sobrepujar uma mulher presunçosa e dominadora, de zombar dela. Sempre gostara de fazer isso! A velha aranha nunca o venceria.
Finalmente, conseguiu livrar-se de Mary Carson e saiu atrás de Meggie. Foi alcançá-la no cemiteriozinho, à sombra do pálido e tão pouco belicoso anjo vingador. Ela estava olhando para o enjoativamente plácido rosto do anjo com o próprio rosto contraído de medo, contraste admirável entre o sensível e o insensível, pensou. Mas que estava ele fazendo ali, correndo atrás dela como uma velha galinha cacarejante quando, na verdade, aquilo não lhe dizia respeito, quando cabia à mãe dela, ou ao pai, descobrir o que estava acontecendo? Eles, entretanto, nada tinham visto de errado, pois ela não era importante para eles do jeito que era importante para ele. E a ele, como padre, cumpria-lhe confortar os solitários e os desesperados. Era-lhe insuportável vê-la infeliz e, no entanto, assustava-o o modo com que se estava ligando a ela por uma série de eventos. Ele a estava transformando num arsenal de acontecimentos e lembranças, e sentia medo. Seu amor a ela e seu instinto sacerdotal de oferecer-se em qualquer capacidade espiritual necessária entravam em guerra com um horror obsessivo de tornar-se imprescindível a um ser humano e de fazer que um ser humano se lhe tornasse imprescindível.
Quando ela o ouviu caminhar pela grama, voltou-se para enfrentá-lo, cruzando as mãos no colo e abaixando os olhos para os próprios pés. Ele sentou-se ao lado dela, com os braços em torno dos joelhos, a batina em dobras, tão graciosa em todo o seu comprimento quanto o corpo que a habitava. Não se justificavam rodeios naquele momento; se pudesse, ela lhe escaparia.
— Que aconteceu, Meggie?
— Nada, Padre.
— Não acredito.
— Por favor, Padre, por favor! Eu não posso lhe contar!
— Ora, Meggie! Criatura de pouca fé! Você pode me contar tudo, tudo que acontece debaixo do sol. É para isso que estou aqui, é para isso que sou padre. Sou o representante escolhido de Nosso Senhor na terra, ouço as pessoas em nome d’Ele e posso até perdoar em nome d’Ele. E, Meggiezinha, não há nada no universo de Deus que Ele e eu não possamos encontrar motivos em nossos corações para perdoar. Você precisa me contar o que há, meu bem, porque, se alguém pode ajudá-la, esse alguém sou eu. Enquanto eu viver, tentarei ajudá-la, protegê-la. Se você quiser, serei uma espécie de anjo da guarda, muito melhor do que esse pedaço de mármore que está acima de sua cabeça. — Ele fez uma pausa para regrar e inclinou-se para a frente. — Meggie, se você gosta de mim, me conte.
Ela entrelaçou os dedos.
— Padre, estou morrendo! Estou com câncer!
Primeiro lhe veio um desejo violento de rir-se, uma grande vaga de ruidoso anticlímax; depois olhou para a pele fina e azulada, os bracinhos magros, e acudiu-lhe um desejo horrível de chorar, de gritar a injustiça daquilo perante os céus. Não, Meggie não teria tirado do nada uma coisa dessas; era preciso que houvesse uma razão válida.
— Como é que você sabe, minha querida?
Ela levou muito tempo para dizê-lo e, quando o fez, ele precisou inclinar a cabeça até deixá-la ao nível dos lábios da menina, num arremedo inconsciente da pose confessional, a mão escondendo o rosto dos olhos dela, enquanto apresentava à imundície do mundo a orelha finamente modelada.
— Faz seis meses, Padre, que começou. Tive umas dores horríveis na barriga, mas não como cólicas de fígado, não, e... oh, padre!... uma porção de sangue saiu do meu traseiro!
Ele atirou a cabeça para trás, o que nunca fizera no interior do confessionário; em seguida abaixou a vista para a cabeça inclinada e envergonhada da menina, assaltado por tantas emoções que não conseguia controlar os próprios pensamentos. Um absurdo, um delicioso alívio; uma raiva tão grande de Fee que sentia vontade de matá-la; uma admiração mesclada de respeito por aquela coisinha, que suportara tanta coisa tão bem; e um dilema horrível, que tudo penetrava.
Ele era tão prisioneiro dos tempos quanto ela. As jovens vulgares de todas as cidades que conhecera, de Dublin e Gillanbone, procuravam de propósito o confessionário para murmurar-lhe suas fantasias como se fossem realidade, preocupadas com a única faceta dele que lhes interessava, a sua virilidade, sem querer admitir que não tinham o poder de despertá-la. Falavam em homens que violavam todos os orifícios, de jogos ilícitos com outras moças, de luxúria e adultério, e uma ou duas dotadas de maior imaginação, chegavam a minuciar as relações sexuais que teriam tido com um padre. E ele as ouvia sem o menor vestígio de comoção, a não ser um desprezo nauseado, pois passara pelos rigores do seminário e para um homem do seu tipo era fácil pôr em prática essa lição. Mas as jovens nunca, nunca mencionavam a secreta atividade que as colocava à parte, que as degradava.
Por mais que o tentasse, não conseguiu impedir que a onda abrasadora se lhe difundisse por baixo da pele; o Padre Ralph de Bricassart continuou sentado, com o rosto voltado para outro lado, escondido pela mão, e sentiu a humilhação do primeiro rubor.
Mas isso não estava ajudando a sua Meggie. Quando se certificou de que a vermelhidão passara, levantou-se, ergueu-a de onde a encontrara sentada e colocou-a sobre um pedestal de mármore, de modo que o rosto dela e o dele ficassem no mesmo nível.
— Meggie, olhe para mim. Não, olhe para mim!
Ela ergueu os olhos acuados e viu que ele estava sorrindo; um contentamento incomensurável inundou-lhe a alma. Ele não sorriria assim se ela estivesse morrendo; sabia perfeitamente o quanto significava para ele, que nunca fizera segredo disso.
— Meggie, você não está morrendo nem está com câncer. Não cabe a mim lhe dizer o que está acontecendo, mas creio que o terei de fazer. Sua mãe já devia tê-lo contado, há anos, a você, e confesso que não atino com a razão por que não o fez.
Ele ergueu os olhos para o inescrutável anjo de mármore que se erguia acima dele e soltou uma risada peculiar, meio abafada.
— Meu Jesus! Que coisa Tu me dás para fazer. — Logo, dirigindo-se à expectante Meggie: — No futuro, quando você ficar mais velha e souber mais a respeito das coisas do mundo, poderá sentir-se tentada a recordar o dia de hoje com embaraço e até com vergonha. Mas não recorde assim o dia de hoje, Meggie. Não há nisso absolutamente nada de vergonhoso nem de embaraçoso. Nisto, como em tudo o que faço, sou apenas o instrumento de Nosso Senhor. É minha única função na terra; nem devo aceitar nenhuma outra. Você estava muito assustada, precisava de ajuda e Nosso Senhor lhe mandou essa ajuda através de minha pessoa. Só se lembre disso, Meggie. Sou o padre de Nosso Senhor e falo em Seu nome.
”Você só está fazendo o que fazem todas as mulheres, Meggie. Uma vez por mês, durante vários dias, perderá sangue. Isso costuma começar por volta dos doze ou treze anos de idade... a propósito, quantos anos você tem?”
— Tenho quinze, Padre.
— Quinze? Você? — Ele sacudiu a cabeça, quase não acreditando. — Bem, se é você quem diz, terei de aceitar sua palavra. Nesse caso, está mais atrasada do que a maioria das jovens. Mas isso continuará todos os meses, até por volta dos cinqüenta anos. Em algumas mulheres o aparecimento do sangue é tão regular quanto as fases da lua, em outras já é menos predizível. Em algumas mulheres a perda de sangue não acarreta dor nenhuma, em outras é um processo muito doloroso. Ninguém sabe por que difere tanto uma mulher de outra. Mas a perda de sangue todos os meses é um sinal de que você está madura. Sabe o que quer dizer ”madura”?
— É claro, Padre! Eu leio! Quer dizer crescida.
— Está bem, isso já serve. Enquanto persistir a sangria, você poderá ter filhos. A sangria é uma parte do ciclo da procriação. Diz-se que, antes da Queda, Eva não ficava menstruada. Pois o nome certo disso é menstruação, ficar menstruada. Mas quando Adão e Eva caíram, Deus puniu mais a mulher do que o homem, porque foi realmente por culpa dela que eles caíram. Foi ela quem tentou o homem. Você se lembra das palavras em sua história bíblica? ”Tu parirás teus filhos em dor.” O que Deus quis dizer foi que, para a mulher, tudo o que se refere aos filhos envolve dor. Grande alegria, mas também grande dor. É a sua sina, Meggie, e você terá de aceitá-la.
Ela não o sabia, mas era assim mesmo que ele teria oferecido conforto e ajuda a qualquer um dos seus paroquianos, embora com um envolvimento pessoal menos intenso; com a mesma bondade, mas sem se identificar com a dificuldade. E, talvez, não tão curiosamente, desse modo o conforto e a ajuda que ele oferecia eram ainda maiores. Como se, tendo ele superado tais problemas, provasse com isso que eram superáveis. Nem era nele uma coisa consciente; ninguém que já o procurara em busca de auxílio se sentira menosprezado ou censurado por sua fraqueza. Muitos padres deixavam seus confessados sentir-se culpados, indignos ou bestiais, mas ele nunca. Pois dava aos outros a impressão de que também tinha suas tristezas e suas lutas; tristezas estranhas e lutas incompreensíveis, talvez, mas não menos reais. Ele nunca soube, nem o poderia saber, que a maior parte do fascínio e da atração que exercia não residia em sua pessoa, se não nesse algo alheio, quase divino e, no entanto, muito humano de sua alma.
No tocante a Meggie, ele lhe falava como Frank lhe falara: como seu igual. Mas ele era mais velho, mais sábio e muito mais instruído que Frank, um confidente mais satisfatório. E como era bonita a sua voz, com o seu leve sotaque irlandês e o seu acentuado sotaque britânico. Uma voz que levava embora todo o medo e toda a angústia. Entretanto, ela era jovem, cheia de curiosidade, ansiava agora por saber tudo o que havia para saber, e nem um pouco perturbada pelas desconcertantes filosofias dos que põem em dúvida constantemente não o quem de si mesmos, mas o por quê. Ele era amigo dela, era o ídolo querido do seu coração, o novo sol do seu firmamento.
— Por que o senhor não deveria me contar, Padre? O que me disse que deveria ter sido dito por mamãe?
— Trata-se de um assunto que as mulheres costumam guardar para si mesmas. Falar em menstruação ou em regras femininas diante de homens ou de rapazes é coisa que simplesmente não se faz, Meggie. É coisa estritamente para mulheres.
— Por quê?
Ele sacudiu a cabeça e riu-se.
— Para ser inteiramente sincero, confesso que também não sei. Mas você precisa acreditar em mim quando digo que é assim. Nunca, ouviu bem?, nunca fale nisso a ninguém a não ser a sua mãe, e nem diga a ela que discutiu o caso comigo.
— Está bem, Padre, não direi.
Era terrivelmente difícil esse negócio de ser mãe; havia tantas considerações práticas que cumpria não esquecer!
— Meggie, você precisa ir para casa, contar a sua mãe que andou perdendo sangue, e perguntar a ela o que deve fazer para arranjar-se nesses momentos.
— Mamãe também faz isso?
— Todas as mulheres sadias fazem isso. Só quando estão esperando bebê param de perder sangue até o nascimento da criança. É assim que as mulheres sabem que estão esperando bebê.
— Por que param de perder sangue quando estão esperando bebê?
— Isso não sei. É verdade, não sei mesmo. Desculpe-me, Meggie.
— Por que o sangue sai do meu traseiro, Padre?
Ele lançou um olhar penetrante ao anjo, que o devolveu serenamente, imperturbado pelas perturbações das mulheres. As coisas estavam ficando muito complicadas para o Padre Ralph. Era incrível que ela insistisse quando sempre se mostrava tão reticente! Compreendendo, todavia, que ele se transformara na fonte dos seus conhecimentos a respeito de tudo o que ela não encontrava nos livros, ele sabia que não devia aparentar diante dela o menor constrangimento ou desconforto. Se o fizesse, ela fugiria para dentro de si mesma e nunca mais lhe perguntaria coisa alguma. Por isso respondeu, paciente:
— O sangue não vem do traseiro, Meggie. Existe uma passagem oculta na frente do traseiro, e essa é a passagem que se relaciona com filhos.
— Oh!, o senhor quer dizer que é por aí que eles saem, não é? — acudiu ela. — Eu sempre quis saber como é que eles saíam.
Ele sorriu e desceu-a do pedestal.
— Pois agora você sabe. E sabe o que é que faz bebês, Meggie?
— Ah, isso eu sei — respondeu ela com importância, contente por saber ao menos alguma coisa. — A gente os faz, Padre.
— E como se começa a fazê-los?
— Desejando-os.
— Quem lhe disse isso?
— Ninguém. Eu mesma descobri.
Padre Ralph cerrou os olhos e pensou que ninguém poderia tachá-lo de covarde por deixar as coisas no pé em que estavam. Ele podia ter pena dela, mas não poderia ajudá-la mais do que isso. Já era o bastante.
Mary Carson ia completar setenta e dois anos de idade e estava planejando a maior festa que já se realizara em Drogheda nos últimos cinqüenta anos. Sua data natalícia caía no princípio de novembro, quando já fazia calor, mas um calor ainda suportável — pelo menos para os nativos de Gilly.
— Tome nota disso, Sra. Smith! — sussurrou Minnie. — Tome nota disso! Foi no dia três de novembro que ela nasceu!
— O que você está pretendendo agora, Min? — perguntou a governanta. O céltico pendor de Minnie para o mistério mexia com os seus bons e sólidos nervos ingleses.
— Ué, isso significa que ela é uma mulher de Escorpião, não significa? Uma mulher de Escorpião, nossa!
— Não tenho a menor idéia do que você está falando, Min!
— Esse é o pior signo em que uma mulher nasce, minha querida Sra. Smith. Puxa, elas são filhas do Capeta, sem tirar nem pôr! — acudiu Cat, de olhos arregalados, persignando-se.
— Francamente, Minnie, você e Cat são o máximo — disse a Sra. Smith, que não se deixara impressionar.
A comoção, porém, já era grande e seria maior ainda. A velha aranha na sua bergère, no centro exato da sua teia, emitiu uma torrente infindável de ordens; isto tinha de ser feito, aquilo tinha de ser feito, tais e tais coisas deviam ser tiradas do depósito ou colocadas no depósito. As duas criadas irlandesas passavam os dias polindo a prataria, lavando as melhores porcelanas de Haviland, retransformando a capela em sala de visitas e aprontando as salas de jantar adjacentes.
Mais atrapalhados do que ajudados pelos pequenos Clearys, Stuart e um grupo de biscateiros cortavam e aparavam a grama, carpiam os canteiros de flores, espalhavam serragem molhada nas varandas para tirar a poeira que ficava entre os ladrilhos espanhóis e giz seco no soalho da sala de visitas a fim de prepará-lo para as danças. A banda de Clarence OToole viria de Sydney, juntamente com ostras e pitus, caranguejos e lagostas; várias mulheres de Gilly tinham sido contratadas como ajudantes temporárias. Todo o distrito de Rudna Hunish e Inishmurray, a Bugela e a Narrengang se achava em plena fermentação.
Enquanto nos corredores de mármore ecoavam sons não habituais de objetos mudados de lugar e de pessoas que gritavam, Mary Carson transferiu-se da bergère para a escrivaninha, pegou numa folha de papel de pergaminho, molhou a pena no tinteiro e começou a escrever, sem nenhuma hesitação, sem uma pausa sequer para pensar na posição de uma vírgula. No correr dos últimos cinco anos ela estudara mentalmente todas as frases intricadas, até torná-las perfeitas. Não levou muito tempo para terminar; duas folhas de papel, a segunda com uma quarta parte pelo menos, em branco. Mas por ora, concluída a última sentença, acomodou-se na cadeira. A escrivaninha de tampa de correr ficava ao lado de uma das grandes janelas, de modo que lhe bastava virar a cabeça para enxergar os gramados. Um riso vindo de fora fê-la olhar, a princípio ociosamente, depois com uma raiva que lhe retesou os músculos. Malditos fossem ele e a sua obsessão!
O Padre Ralph ensinara Meggie a montar; filha de uma família do campo, ela nunca cavalgara montada como um homem no cavalo, até que o padre remediou a deficiência. Pois, por mais estranho que parecesse, as filhas de famílias pobres do campo não cavalgavam com muita freqüência. A equitação era um passatempo para as moças ricas do campo e da cidade. As moças com a experiência de Meggie poderiam dirigir carros, carroças e parelhas de animais pesados, até tratores e às vezes automóveis, mas raro montavam a cavalo. Custava muito dinheiro ensinar uma filha a montar.
Padre Ralph trouxera botinas de elástico e culotes de sarja de Gilly e deixou-os cair pesada e ruidosamente sobre a mesa da cozinha dos Clearys. Paddy erguera os olhos do livro que costumava ler depois do o jantar, levemente surpreso.
— O que o senhor tem aí, Padre? — perguntou.
— Roupas de montar para Meggie.
— Quê? — mugiu a voz de Paddy.
— Quê? — guinchou a voz de Meggie.
— Roupas de montar para Meggie. Francamente, Paddy, você é um idiota de primeira classe! Herdeiro da maior e mais rica fazenda da Nova Gales do Sul, nunca deixou sua única filha montar a cavalo! Como acha você que ela ocupará o lugar a que tem direito ao lado da Srta. Carmichael, da Srta. Hoperton e da Srta. Anthony King, todas exímias amazonas? Meggie precisa aprender a montar, tanto em silhão quanto em sela comum, ouviu? Compreendo que você tenha muita coisa que fazer, por isso eu mesmo a ensinarei, e pouco me importa que você goste ou desgoste disso. Se as aulas de equitação interferirem nas suas obrigações dentro de casa, paciência. Durante algumas horas por semana Fee terá de arrumar-se sem Meggie, e pronto.
Uma coisa que Paddy não faria era discutir com um padre; Meggie aprendeu a montar num instante. Durante anos ansiara pela oportunidade e, certa vez, aventurara-se a pedir ao pai, timidamente, que a deixasse aprender, mas ele se esquecera do pedido logo depois, e ela nunca mais o repetira, supondo ser aquela a sua maneira de dizer não. Aprender sob a égide do Padre Ralph deixou-a numa alegria que ela não demonstrou, pois, a essa altura, a sua adoração pelo Padre Ralph se transformara em paixonite aguda, muito infantil. Sabendo ser uma coisa totalmente impossível, dava-se ao luxo de sonhar com ele, de pensar em como se sentiria nos braços dele, recebendo-lhe o beijo. Seus sonhos não poderiam ir além disso, visto que ela não tinha idéia do que vinha depois, nem mesmo de que viesse depois alguma coisa. E se soubesse que era errado sonhar assim com um padre, não parecia haver modo nenhum com que pudesse disciplinar-se e deixar de fazê-lo. O máximo que conseguia era certificar-se de que ele não tinha a menor idéia do rumo que haviam tomado os seus pensamentos.
Enquanto Mary Carson observava pela janela da sala de estar, Padre Ralph e Meggie vinham caminhando das cocheiras, que ficavam na extremidade mais afastada da casa-grande, do lado da residência do chefe dos pastores. Os homens da fazenda montavam ossudos animais de lida que nunca tinham visto o interior de uma cocheira em toda a sua vida, e só entravam nos cercados quando eram destacados para o trabalho e pinoteavam pelo capim de Home Paddock quando eram revezados. Mas havia cocheiras em Drogheda, onde Mary Carson mantinha dois cavalos de raça para uso exclusivo do Padre Ralph. Quando este lhe perguntou se Meggie poderia usar também suas montarias, ela não encontrou jeito de objetar. A menina era sua sobrinha, e ele tinha razão. Ela precisava saber montar decentemente.
Com toda a amargura que cabia em seu velho corpo inchado, Mary Carson desejara ter sido capaz de recusar ou, então, de cavalgar com eles. Mas não poderia ter feito uma coisa nem outra. E mortificava-a vê-los agora, atravessando juntos o relvado, ele com suas calças de montar, suas botas, que lhe chegavam aos joelhos, e a camisa branca, gracioso como um bailarino, ela com seus culotes, esguia e puerilmente linda. Ambos irradiavam uma amizade natural; pela milionésima vez Mary Carson perguntou a si mesma por que ninguém, além dela, lhes deplorava o estreito e quase íntimo relacionamento. Paddy achava-o maravilhoso, Fee — uma palerma! — nada dizia, como sempre, ao passo que os meninos os tratavam como irmãos. Seria porque ela mesma amava Ralph de Bricassart que via o que ninguém mais via? Ou estaria apenas imaginando coisas, e não havia em tudo aquilo nada mais que a amizade de um homem de trinta e tantos anos por uma menina que nem sequer chegara à plenitude da sua feminilidade? Tolice. Nenhum homem que tivesse mais de trinta anos, nem mesmo Ralph de Bricassart, poderia deixar de ver a rosa que desabrochava. Nem mesmo Ralph de Bricassart? Ah! Principalmente Ralph de Bricassart! Nada escapava àquele homem.
Tremiam-lhe as mãos; a pena salpicou de manchas azul-escuro no fundo do papel. O dedo nodoso tirou outra folha de um escaninho, tornou a mergulhar a pena no tinteiro, e reescreveu as palavras com a mesma segurança da primeira vez. Em seguida, ergueu-se, ofegante, e dirigiu-se para a porta.
— Minnie! Minnie! — chamou.
— Valha-nos Deus, é ela! — disse claramente a criada da sala de visitas fronteira. Seu rosto sem idade, cheio de sardas, surgiu à porta. — O que posso ir buscar para a senhora, querida Sra. Carson? — perguntou, indagando a si mesma por que a velha não tocara a campainha chamando a Sra. Smith, como costumava fazer.
— Vá-me procurar o cerqueiro e tom. Mande-os falar comigo imediatamente.
— Devo primeiro informar a Sra. Smith?
— Não! Faça apenas o que estou mandando, garota!
tom, o faz-tudo do jardim, era um velho encarquilhado, que, dezessete anos antes, passara pela fazenda com sua trouxa de andante e seu bule, e aceitara trabalho por uns dias; mas apaixonara-se pelos jardins de Drogheda e agora não suportava a idéia de deixá-los. O cerqueiro, andarilho como todos os da sua raça, fora tirado da tarefa interminável de esticar fios de arame entre mourões nos cercados a fim de consertar as estacas brancas da sede para a festa. Aterrados pelo chamado, apareceram poucos minutos depois e ali ficaram com as calças de trabalho, os suspensórios e as camisas de flanela, torcendo nervosamente o chapéu entre as mãos.
— Vocês sabem escrever? — indagou a Sra. Carson. Os dois assentiram com a cabeça, engolindo em seco.
— Bem. Quero que me vejam assinar este pedaço de papel e depois escrevam seus nomes e endereços logo abaixo da minha assinatura. Entenderam?
Eles fizeram que sim com a cabeça.
— Tomem o cuidado de assinar como sempre assinam, e escrevam seus endereços permanentes com bastante clareza. Não me importa que seja a posta-restante do correio. O que importa é vocês poderem receber correspondência através desse endereço.
Os dois homens viram-na escrever o seu nome; foi a única vez em que ela não escreveu apertando as letras. tom adiantou-se e fez estalar a pena sobre o papel com dificuldade; depois o consertador de cercas escreveu ”Chás. Hawkins” em letras grandes e redondas, e um endereço em Sydney. Mary Carson observou-os com atenção; quando terminaram, deu a cada um uma nota vermelha de dez libras e dispensou-os com instruções categóricas para não abrirem a boca sobre aquilo.
Meggie e o padre tinham desaparecido havia muito tempo. Mary Carson tornou a sentar-se pesadamente à secretária, puxou outra folha de papel para junto de si e recomeçou a escrever. Mas não rematou essa comunicação com a facilidade e a fluência da anterior. Muitas e muitas vezes parou para pensar e logo, com os lábios contraídos num sorriso sem alegria, continuava. Dir-se-ia que tivesse muita coisa para dizer, pois suas palavras eram apertadas, suas linhas muito juntas uma da outra e, mesmo assim, precisou de uma segunda folha de papel. No fim, releu o que escrevera, juntou todas as folhas, dobrou-as e enfiou-as num envelope, cujo dorso selou com cera vermelha.
Só Paddy, Fee, Bob, Jack e Meggie iriam à festa; Hughie e Stuart foram incumbidos de cuidar dos pequenos, para secreto alívio de ambos. Pois uma vez, ao menos, em sua vida Mary Carson abrira a carteira o suficiente para deixar sair algumas notas, e todos tinham ganho roupas novas, as melhores que Gilly poderia proporcionar.
Paddy, Bob e Jack viam-se imobilizados atrás de peitos engomados de camisas, colarinhos altos, gravatas-borboleta brancas, casaca preta, calças pretas e colete branco. Seria uma festa muito formal, casaca e gravata branca para os homens, vestidos compridos para as mulheres.
O vestido de crepe de Fee, de um matiz azul-cinzento particularmente rico, assentava-lhe muito bem, chegando até o chão em pregas suaves; tinha o decote baixo, as mangas apertadas nos pulsos e era generosamente bordado de contas, ao estilo da Rainha Mary. Como aquela imperiosa dama, Fee trazia o cabelo alto com rolos caídos para trás, e a loja de Gilly lhe fornecera uma gargantilha e brincos de imitações de pérolas, que só seriam reconhecidas mediante rigorosa inspeção. Magnífico leque de penas de avestruz, tingidas da mesma cor do vestido, completava o conjunto, menos ostentoso do que parecia à primeira vista; a temperatura estava inusitadamente elevada e, às sete horas da noite, o termômetro ainda marcava mais de 38 graus.
Quando Fee e Paddy saíram do quarto, os meninos ficaram embasbacados, pois nunca tinham visto os pais tão suntuosamente belos, tão estranhos. Paddy aparentava, com efeito, os seus sessenta e um anos, mas com tanta distinção que poderia passar por estadista. Fee parecia ter perdido, de repente, dez dos seus quarenta e oito anos, bela, vital, magicamente sorridente. Jims e Patsy abriram um berreiro, recusando-se a olhar para Mamãe e Papai, até que estes voltaram ao normal e, no corre-corre para atender aos filhos, a etiqueta foi esquecida; Mamãe e Papai comportaram-se como sempre o faziam e, dali a pouco, os gêmeos também estavam radiantes de admiração.
Mas foi para Meggie que todos olharam por mais tempo. Recordando-se talvez da própria infância e despeitada porque todas as outras jovens convidadas tinham encomendado seus vestidos em Sydney, a costureira de Gilly fizera com o coração o vestido de Meggie. Um vestido sem mangas e decotado; a princípio, Fee se mostrara em dúvida, mas diante das súplicas de Meggie e tendo-lhe assegurado a costureira que todas as moças estariam usando a mesma espécie de coisa — quereria ela que a filha fosse chamada de caipira e malvestida? Fee acabara cedendo. De crepegeorgette, levemente cinturado, o vestido tinha uma faixa do mesmo tecido em torno das cadeiras. Era de um cinzento tirante à palha, cor-de-rosa pálido, da cor a que davam, naquele tempo, o nome de cinzas de rosas; entre ambas, a costureira e Meggie haviam bordado todo ele com minúsculos e róseos botões de rosa. E Meggie mandou cortar o cabelo da maneira mais parecida possível com o corte das moças de Gilly, rente ao pescoço, ”à la garçonne”. Se bem fosse muito encaracolado para ajustar-se inteiramente à moda, ficavalhe melhor curto do que comprido.
Paddy abriu a boca para berrar que ela assim já não era a sua Meggiezinha, mas tornou a fechá-la, sem pronunciar uma palavra; a cena com Frank na casa paroquial, tantos anos atrás, ensinara-lhe muita coisa. Não, ele não poderia conservá-la como uma menininha para sempre; ela já era uma jovem mulher e uma jovem mulher intimidada diante da assombrosa transformação que o espelho lhe mostrara. Por que tornar as coisas ainda mais difíceis para a pobrezinha?
Ele estendeu-lhe a mão, sorrindo com ternura.
— Como você está linda, Meggie! Eu mesmo lhe darei o braço, e Bob e Jack levarão sua mãe.
Faltava exatamente um mês para ela completar dezessete anos e, pela primeira vez na vida, Paddy se sentiu velho. Mas ela era o tesouro do seu coração, e nada haveria de estragar-lhe a primeira festa de mocinha.
Caminharam devagar até a sede da fazenda, muito cedo para os primeiros convidados; mas eles jantariam com Mary Carson e deveriam estar preparados para ajudá-la a receber os que fossem chegando. Ninguém queria sujar os sapatos, mas um quilômetro e meio pela poeira de Drogheda significava uma pausa na cozinha para lustrá-los, sacudir a poeira da barra das calças e da bainha dos vestidos que se arrastavam pelo chão.
Padre Ralph estava de batina, como sempre: nenhuma moda masculina para a noite lhe cairia tão bem quanto aquela túnica severamente cortada, que se alargava levemente de cima para baixo, os inúmeros botõezinhos de fazenda preta que a fechavam da bainha até o pescoço, e a faixa de monsenhor de bordas purpurinas.
Mary Carson decidira usar cetim branco, rendas brancas e penas brancas de avestruz. Fee olhava aparvalhada para ela, arrancada à sua indiferença habitual. Aquilo era tão incongruentemente nupcial, tão grosseiramente inadequado — por que cargas d’água se empetecara daquele jeito, como uma velha solteirona pintada que estivesse brincando de casar? Ela engordara muito ultimamente, e isso não melhorava as coisas.
Paddy, contudo, não parecia ver nada de errado; adiantou-se, radiante, e tomou as mãos da irmã. Que sujeito amável era ele, pensou o Padre Ralph enquanto observava a cenazinha, entre divertido e alheado.
— Ora, viva, Mary! Você está linda! Parece uma mocinha!
Na verdade ela parecia uma cópia quase exata da famosa fotografia da Rainha Victoria tirada não muito antes da sua morte. Lá estavam as duas rugas pesadas de cada lado do nariz dominador, a boca obstinada feita de traços indômitos, os olhos glaciais e levemente salientes fixos sem piscar em Meggie. Os belos olhos do Padre Ralph passaram da sobrinha à tia e voltaram à sobrinha.
Mary Carson sorriu para Paddy e pôs a mão no braço dele.
— Pode me levar para jantar, Padraic. O Padre de Bricassart dará o braço a Fiona e os meninos terão de arranjar-se com Meggie entre eles. — Ela voltou a vista para Meggie por cima dos ombros. — Vai dançar esta noite, Meghann?
— Ela é muito novinha ainda, Mary, não completou dezessete anos — apressou-se em dizer Paddy, lembrando-se de mais uma deficiência paterna: nenhum dos seus filhos aprendera a dançar.
— Que pena — disse Mary Carson.
Foi uma festa esplêndida, suntuosa, brilhante, gloriosa; foram esses, pelo menos, os objetivos mais empregados para descrevê-la. Royal O’Mara lá estava, vindo de Inishmurray, a trezentos e sessenta quilômetros de distância; fora ele quem viera de mais longe, em companhia da esposa, dos filhos e da única filha, embora não se avantajasse demasiado aos outros nesse particular. A gente de Gilly não achava grande coisa viajar trezentos e sessenta quilômetros para assistir a uma partida de críquete, quanto mais ir para uma festa. Duncan Gordon viera de Each-Uisge; ninguém jamais lograra persuadi-lo a explicar por que dera à sua fazenda, tão longe do oceano, o nome escocês do cavalo-marinho. Martin King, a esposa, o filho Anthony e a Sra. Anthony; era o posseiro mais velho de Gilly, já que Mary Carson não poderia chamar-se assim por ser mulher. Evan Pugh, de Braich y Pwll, que o distrito pronunciava Brakeypull. Dominic O’Rourke de Dibban-Dibban, Horry Hopeton de Beel-Beel; e dúzias de outros.
Quase todas as famílias presentes eram católicas e poucas ostentavam nomes anglo-saxões; havia, praticamente, uma distribuição igual de irlandeses, escoceses e galeses. Não, eles não poderiam esperar pela autonomia na pátria-mãe, nem poderiam, se fossem católicos na Escócia ou no País de Gales, esperar muita simpatia dos indígenas protestantes. Mas aqui, nos milhares de quilômetros quadrados em torno de Gillanbone, donos de tudo o que a vista alcançava, podiam fazer fiau para os senhores ingleses; Drogheda, a maior propriedade, possuía uma área superior à de vários principados europeus. Principezinhos monegascos, duques liechtensteinianos, cuidado! Mary Carson era maior do que vocês. Por isso mesmo rodopiavam ao som das valsas executadas pela suave orquestra de Sydney e recuavam, indulgentes, para ver os filhos dançar o charleston, comiam bolinhos de lagosta e ostras cruas geladas, bebiam o champanha francês de quinze anos de idade e o uísque escocês de doze. Para dizer a verdade, teriam preferido comer uma perna assada de carneiro ou um bom naco de carne de vaca preservada em salmoura, e teriam gostado muito mais de beber um rum barato, muito forte, de Bundaberg ou o bitter de Grafton tirado do barril. Mas era bom saber que as melhores coisas da vida estavam ao alcance das suas mãos.
Sim, havia anos magros, muitos deles. O dinheiro ganho com a lã era cuidadosamente guardado nos anos bons para valer-lhes contra as depredações dos anos maus, pois ninguém poderia prever se haveria chuvas ou não. Mas aquele era um bom período, forao durante algum tempo, e havia pouca coisa em que gastar em Gilly. Para quem nascera nas planícies de solo negro do Grande Noroeste, não existira na terra outro lugar como aquele. Não faziam nostálgicas peregrinações à velha terrinha, que nada fizera por eles senão persegui-los por suas convicções religiosas, ao passo que a Austrália era um país católico demais para abrigar perseguições. E o Grande Noroeste era o lar eles.
De mais a mais, Mary Carson pagava as despesas naquela noite. E ela bem poderia dar-se a esse luxo. Dizia-se dela à boca pequena que tinha dinheiro suficiente para comprar e vender o Rei da Inglaterra. Possuía dinheiro em aço, dinheiro em prata, chumbo, zinco, dinheiro em cobre e ouro, dinheiro numa centena de coisas diferentes, mas coisas que literal e metaforicamente davam dinheiro. Fazia muito tempo que Drogheda deixara de ser sua principal fonte de rendas; a fazenda não era mais que um hobby lucrativo.
Padre Ralph não dirigiu a palavra diretamente a Meggie durante o jantar, nem depois dele; durante toda a noite, de caso pensado, não tomou conhecimento dela. Magoada, os olhos da jovem o procuravam onde quer que ele estivesse na sala de visitas. Cônscio disso, ele ardia por aproximar-se e explicar-lhe que seria desastroso para a reputação dela (e para a dele) dar-lhe maior atenção do que a que dava, digamos, à Srta. Carmichael, à Srta. Gordon ou à Srta. O’Mara. Como Meggie, ele não dançava e, como em Meggie, nele estavam postos inúmeros olhares; pois os dois, sem sombra de dúvida, eram as duas pessoas mais bonitas da sala.
Metade dele detestava a aparência de Meggie naquela noite, o cabelo curto, o lindo vestido, as delicadas sandálias de seda cinzas de rosas, com os saltos de cinco centímetros; ela estava crescendo e seu corpo assumia contornos muito femininos. E a outra metade dele se ocupava em constatar, terrivelmente orgulhoso, que ela punha no chinelo todas as outras jovens. A Srta. Carmichael tinha feições patrícias, mas carecia da beleza especial daquele cabelo entre ruivo e dourado; a Srta. King possuía deliciosas tranças loiras, mas faltava-lhe o corpo elástico; a Srta. Mackail era assombrosa de corpo, mas, de rosto, parecia um cavalo comendo maçã através de um alambrado. Sua reação global, no entanto, foi de decepção no mesmo tempo que sentia um desejo angustiado de fazer recuar a folhinha. Ele não queria que Meggie crescesse, queria a menininha que pudesse tratar como o seu querido bebê. Vislumbrou no rosto de Paddy uma expressão que lhe espelhava os próprios pensamentos, e sorriu debilmente. Que felicidade seria a sua se, pelo menos uma vez na vida, pudesse mostrar seus sentimentos! Mas o hábito, o adestramento e a discrição estavam nele demasiado entranhados.
À proporção que a noite se adiantava, as danças se tornavam cada vez mais desinibidas, a bebida mudou do champanha e do uísque para o rum e a cerveja, e quase todos passaram a proceder como se estivessem num baile eminentemente popular. Às duas da manhã, só a ausência total de trabalhadores rurais e empregadas domésticas poderia distingui-lo dos costumeiros entretenimentos democráticos organizados no distrito de Gilly Paddy e Fee ainda estavam de serviço, mas, à meia-noite, Bob e Jack saíram com Meggie. Nem Fee nem Paddy se deram conta disso, estavam se divertindo. Se os filhos não sabiam dançar, eles sabiam e dançavam, quase sempre juntos, pareceram de repente ao observador Padre Ralph muito mais afinados entre si, talvez por serem raras as ocasiões que se lhes ofereciam de relaxar e apreciar a companhia um do outro. Ele não se lembrava de tê-los visto alguma vez sem que estivesse pelo menos um filho por perto, e ponderou que devia ser duro para os pais de famílias numerosas não poderem ter um momento a sós fora do quarto, onde seria perfeitamente desculpável que tivessem em mente outras coisas que não a conversação. Paddy mostrava-se, como sempre, jovial e agradável, mas Fee, naquela noite, brilhava quase literalmente e, quando Paddy ia tirar para dançar, por simples obrigação, a esposa de um posseiro, não lhe faltavam pares ansiosos, havia muitas mulheres bem mais jovens, sentadas pela sala toda, que não eram tão procuradas.
Entretanto, os momentos que teve o Padre Ralph para observar o casal Cleary foram limitados. Sentindo-se dez anos mais moço assim que viu Meggie sair da sala, mostrou-se mais animado e deixou estupefatas as Srtas Hopeton, Mackail, Gordon e O’Mara, dançando — e dançando muito bem — o black bottom com a Srta. Carmichael. Depois disso, foi a vez de cada uma das moças descomprometidas da sala e até da pobre feia Srta Pugh, e como, a essa altura, todo mundo estava completamente relaxado e de boa vontade, ninguém condenou o padre, cujo zelo e cuja bondade, foram, com efeito, muito admirados e comentados. Ninguém poderia dizer que sua filha não tivera a oportunidade de dançar com o Padre de Bricassart. Claro está que, se não fosse uma festa particular, ele não teria podido fazer um movimento sequer na direção da pista de dança, mas era tão bom ver um homem tão extraordinário divertirse de verdade ao menos uma vez na vida!
Às três horas da madrugada Mary Carson pôs-se em pé e bocejou:
— Não, não parem a festa! Se eu estiver cansada, e é o que estou, posso ir para a cama, e é o que vou fazer Mas há ainda muita comida e muita bebida, a orquestra foi contratada para tocar enquanto houver alguém com vontade de dançar, e um pouquinho de barulho só poderá me ajudar a sonhar mais depressa. Padre, quer me ajudar a subir a escada, por favor?
Assim que saiu da sala de visitas, ela não se voltou para a majestosa escadaria, mas, acompanhada do padre, guiou-o para a sala de estar, pesadamente apoiada no braço dele. A porta estava fechada; Mary esperou enquanto ele usava a chave que ela lhe entregara, depois precedeu-o na sala.
— Foi uma boa festa, Mary — disse ele.
— Minha última festa.
— Não diga isso, querida.
— Por que não? Estou cansada de viver, Ralph, e vou parar. — Seus olhos duros zombavam. — Duvida do que digo? Por mais de setenta anos fiz precisamente o que desejei fazer e quando desejei fazê-lo. Por isso, se a morte imagina que ela é quem vai escolher o momento da minha partida, está muitíssimo enganada. Morrerei quando eu tiver escolhido a hora, e olhe que não pretendo suicidar-me. É a vontade de viver que nos mantém vivos, Ralph; não é difícil parar quando realmente o desejamos. Estou cansada e quero parar. É muito simples.
Ele também estava cansado; não exatamente de viver, mas da fachada, do clima, da ausência de amigos com interesses comuns, de si mesmo. A sala estava apenas debilmente iluminada por um alto lampião de querosene, que projetava, através do envoltório de rubi, sombras vermelhas sobre o rosto de Mary Carson, cujos ossos intratáveis ele logo associou com algo mais diabólico. Doíam-lhe os pés e as costas; fazia muito tempo que ele não dançava tanto, embora se orgulhasse de acompanhar sempre a última moda, fosse ela qual fosse. Trinta e cinco anos de idade, um monsenhor de província, e como força da Igreja? Terminara antes de haver começado. Oh, os sonhos da juventude! E a imprudência da língua da juventude, a violência do gênio da juventude. Ele não fora suficientemente forte para enfrentar a prova. Mas nunca tornaria a cometer o mesmo erro. Nunca, nunca...
Mexeu-se, inquieto, e suspirou; de que adiantava? A oportunidade nunca mais voltaria. Já era tempo de enfrentar o fato com coragem e realismo; já era tempo de renunciar aos sonhos e esperanças.
— Você se lembra de eu lhe haver dito, Ralph, que o enganaria, que faria com que o tiro lhe saísse pela culatra?
A voz seca e velha arrancou-o ao devaneio a que o cansaço o induzira. Ele olhou para Mary Carson e sorriu.
— Querida Mary, nunca me esqueço de nada que você diz. Francamente, não sei o que teria feito sem você nos últimos sete anos. Seu espírito, sua malignidade, sua percepção...
— Se fosse mais moça, eu o teria conseguido de um modo diferente, Ralph. Você nunca saberá o quanto desejei atirar pela janela trinta anos de minha vida. Se o Diabo me tivesse procurado e se tivesse oferecido para comprar minha alma em troca da oportunidade de ser jovem outra vez, eu a teria vendido num segundo, e nunca teria lamentado estupidamente a barganha, como fez o velho idiota do Fausto. Mas não há Diabo. Você sabe que não consigo persuadir-me a acreditar em Deus ou no Diabo. Ainda não encontrei o menor pedacinho de prova de que eles existem. Você já encontrou?
— Não. Mas a crença não repousa em provas da existência, Mary. Repousa na fé, e a fé é a pedra de toque da Igreja. Sem fé, não há nada.
— Eis aí um dogma muito efêmero.
— Talvez. Creio que a fé nasce com o homem ou com a mulher. Reconheço que para mim é uma luta constante, mas não desistirei.
— Eu gostaria de destruí-lo.
Os olhos azuis dele riram-se, assumindo uma coloração cinzenta.
— Eu sei disso, minha querida Mary.
— E sabe por quê?
Uma ternura aterradora invadiu-o sorrateiramente, instalou-se quase dentro dele, mas o padre lutou desesperadamente contra ela.
— Eu sei por quê, Mary, e acredite, lamento muito.
— Além de sua mãe, quantas mulheres o amaram?
— Não sei se minha mãe me amou. De qualquer maneira, acabou por me odiar. É o que acontece à maioria das mulheres. Eu deveria ter sido batizado com o nome de Hipólito.
— Oooohhh! Isso é extremamente revelador!
— Quanto a outras mulheres, só penso em Meggie... Mas ela é uma menina. Eu talvez não exagere dizendo que centenas de mulheres me desejaram, mas será que amaram? Duvido muito.
— Eu o amei — disse ela, patética.
— Não, não amou. Eu sou o estímulo da sua velhice, nada mais. Quando você olha para mim, eu lhe recordo o que você já não pode fazer, por causa da idade.
— Engano seu. Eu o amei. E só Deus sabe quanto! Pensa, por acaso, que os meus anos impossibilitam automaticamente o amor? Pois bem, Padre de Bricassart, deixe-me dizer-lhe uma coisa. Dentro deste corpo estúpido ainda sou moça... ainda sinto, ainda desejo, ainda sonho, ainda me divirto a valer e me impaciento com restrições como o meu corpo. A velhice é a mais amarga vingança que o nosso vingativo Deus nos inflige. Por que não envelhece Ele nossos espíritos também? — Encostou-se no espaldar da poltrona e fechou os olhos, enquanto que entremostrava irritadamente os dentes. — Irei para o inferno, é claro. Mas, antes de ir, espero ter a oportunidade de dizer a Deus que Ele não passa de um mesquinho, rancoroso e deplorável arremedo de divindade!
Ela calou-se por um momento, enquanto suas mãos agarravam com força os braços da poltrona; depois começou a descontrair-se e abriu os olhos. Estes cintilaram com tonalidades vermelhas à luz do lampião, porém sem lágrimas; mas com algo mais duro, mais brilhante. Ele prendeu a respiração, com medo. Ela parecia uma aranha.
— Ralph, há um envelope sobre a minha mesa. Quer fazer-me o favor de trazê-lo para mim?
Dolorido e amedrontado, ele ergueu-se, foi até a secretária dela, sopesou a carta, olhou-a com curiosidade. O anverso do envelope estava em branco, mas o reverso fora convenientemente lacrado e selado com o seu selo, em que se via uma cabeça de carneiro e um D grande. Levou-o até onde ela estava e estendeu-lho, mas Mary fez-lhe sinal que se sentasse, sem pegar na carta.
— É sua — disse ela, e soltou uma risada nervosa. — O instrumento do seu destino, Ralph, eis aí o que é. Meu golpe derradeiro e o mais revelador em nossa longa batalha. Infelizmente não estarei aqui para ver o que acontece. Mas sei o que vai acontecer, porque o conheço, conheço-o muito melhor do que você imagina. Presunção insuportável! Dentro do envelope encontra-se o destino da sua vida e da sua alma. Terei de perdê-lo para Meggie, mas mexi meus pauzinhos para que ela também não fique com você.
— Por que a odeia tanto?
— Eu já lhe disse uma vez. Porque você a ama.
— Mas não desse jeito! Ela é a filha que nunca poderei ter, a rosa da minha vida. Meggie é uma idéia, Mary, uma idéia!
A velha, porém, contraiu os lábios num sorriso zombeteiro.
— Não me interessa falar sobre a sua querida Meggie! Não tornarei a vê-lo, de modo que não quero perder o tempo que tenho com você falando sobre ela. A carta... Quero que você jure pelos seus votos de religioso que não a abrirá enquanto não vir com os seus próprios olhos meu corpo morto; nesse momento, porém, a abrirá sem demora, antes de me enterrar. Jure!
— Não há necessidade de jurar, Mary. Farei o que você me pede.
— Jure ou eu a tiro de você!
Ele deu de ombros.
— Está bem. Juro-o pelos meus votos de sacerdote. Não abrirei a carta enquanto não a vir morta, e depois a abrirei antes do seu enterro.
— Bom, bom!
— Mary, por favor não se preocupe. Isso não passa de uma fantasia sua. Amanhã cedo você rirá de tudo.
— Não verei o amanhã. Morrerei esta noite; não sou tão fraca que espere só para ter o prazer de revê-lo. Que anticlímax! vou para a cama agora. Quer me levar até o alto da escada, por favor?
Ele não acreditava nela, mas pôde perceber que não adiantaria discutir e ela não parecia disposta a ouvir-lhe as brincadeiras nesse sentido. Só Deus estabelecia a hora da morte de uma pessoa, a menos que, valendo-se do livre-arbítrio que Ele lhe dera, essa pessoa desse cabo da própria vida. E ela dissera que não faria isso. Portanto, ajudou-a a subir, resfolegante, a escada e, chegando ao patamar, tomou-lhe as mãos nas suas e inclinou-se para beijá-las. Ela afastou-as de si.
— Não, esta noite, não. Na minha boca, Ralph! Beije-me na boca como se fôssemos amantes!
À luz brilhante do candelabro, aceso para a festa com quatrocentas velas de cera, ela viu a repugnância no rosto dele, o recuo instintivo; e quis morrer nesse momento, quis tanto morrer que a espera se lhe tornou intolerável.
— Mary, sou um padre! Não posso! Ela riu-se. Um riso agudo, sobrenatural.
— Ora, Ralph, que grandessíssima impostura é você! Impostura como homem, impostura como padre! E pensar que você já teve a temeridade de oferecer-se para fazer amor comigo! Tinha tanta certeza assim de que eu recusaria? Como eu quisera não ter recusado! Eu daria minha alma para vê-lo esquivar-se do compromisso, se pudéssemos ter de volta aquela noite! Impostor, impostor, impostor! Isso é o que você é, Ralph! Um impostor impotente e inútil! Homem impotente e padre impotente! Não creio que conseguisse levantá-lo e mantê-lo levantado, nem mesmo para a Santíssima Virgem! Já conseguiu levantá-lo alguma vez, Padre de Bricassart? Impostor!
Lá fora ainda não despontara a aurora nem a claridade que a precede. A relva pairava macia, densa e muito quente sobre Drogheda. Os convidados estavam-se tornando extremamente barulhentos; se a sede da fazenda possuísse vizinhos próximos, havia muito tempo que a polícia teria sido chamada. Alguém vomitava copiosa e repulsivamente na varanda e, debaixo de uma cavalinha, duas formas indistintas estavam agarradas uma na outra. Padre Ralph evitou o vomitador e os amantes, caminhando em silêncio sobre o flexível relvado recém-aparado, com tamanha tormenta a agitar-se-lhe na mente que não sabia nem queria saber aonde ia. Só queria estar longe dela, da medonha aranha velha convencida de que teceria o casulo da sua morte naquela noite maravilhosa. O calor ainda não era extenuante; havia um tênue agitar-se do ar e um esgueirar-se de lânguidos perfumes de boronias e rosas, a quietude celestial que só as latitudes tropicais e subtropicais podem conhecer. Oh, Deus, estar vivo, estar realmente vivo! Abraçar a noite e viver, e ser livre!
Deteve-se na extremidade mais distante do gramado e elevou os olhos para o céu, numa instintiva busca aérea de Deus. Sim, lá em cima em algum lugar, entre os pontos tremeluzentes de luz tão pura e celestial; que era mesmo aquilo acerca do céu noturno? Que estando erguida a pálpebra azul do dia, o homem permitia lampejos de eternidade? Só a contemplação da paisagem das estrelas poderia convencê-lo de que o infinito e Deus existiam.
Ela tem razão, naturalmente. Um impostor total. Nem padre, nem homem. Apenas alguém que desejaria saber como ser uma coisa ou outra. Não! Uma coisa ou outra, não! O padre e o homem não podem coexistir — ser homem é não ser padre. Por que haveria eu de enredar meus pés na teia dela? O seu veneno é forte, mais forte talvez do que suponho. O que há na carta? Era muito próprio de Mary atormentar-me com provocações! Quanto saberá ela, quanto apenas imagina? O que é que há para saber ou imaginar? Apenas futilidade e solidão. Dúvida, dor. Sempre dor. Entretanto, você está enganada, Mary. Eu posso levantá-lo. Acontece que não quero fazê-lo, que passei anos provando a mim mesmo que ele pode ser controlado, dominado, subjugado. Pois fazê-lo levantar-se é atividade de homem, e eu sou padre.
Alguém estava chorando no cemitério. Meggie, naturalmente. Ninguém mais pensaria numa coisa dessas. Ele arregaçou as fraldas da batina e passou por cima do gradil de ferro forjado, sentindo a inevitabilidade do encontro com Meggie naquela noite. Tendo enfrentado uma das mulheres de sua vida, tinha também de enfrentar a outra. Seu divertido alheamento estava voltando; ela não poderia afugentá-lo por muito tempo, a velha aranha. A velha aranha má. Deus a apodreça, Deus a apodreça!
— Querida Meggie, não chore — disse ele, sentando-se na grama molhada de orvalho, ao lado dela. — Pronto. Aposto que você não tem um lenço decente. As mulheres nunca têm. Pegue o meu e enxugue os olhos como uma boa menina.
Ela pegou-o e fez o que lhe mandavam.
— Você ainda não trocou sua roupa de festa. Está aqui sentada desde a meianoite?
— Estou.
— Bob e Jack sabem onde você está?
— Eu lhes disse que ia para a cama.
— Que aconteceu, Meggie?
— O senhor não falou comigo esta noite!
— Eu imaginava que talvez fosse isso mesmo. Vamos, Meggie, olhe para mim! Lá longe, no oriente, via-se um brilho perolado, uma fuga da escuridão total, e os galos de Drogheda já gritavam precoces boas-vindas à aurora. E ele pôde ver assim que nem o choro prolongado lhe atenuara a beleza dos olhos.
— Meggie, você era, sem comparação, a moça mais bonita da festa, e todo mundo sabe que eu venho a Drogheda mais vezes do que preciso. Sou um padre e, portanto, devo estar acima de qualquer suspeita... mais ou menos como a mulher de César... mas receio que as pessoas não pensem com a mesma pureza. Como padre, sou jovem e não sou feio. — Fez uma pausa para pensar em como Mary Carson teria reagido àquela atenuação da verdade e riu-se por dentro. — Se eu lhe desse a menor das atenções, a notícia se teria propagado por todo o distrito de Gilly num tempo recorde. Todas as linhas telefônicas do distrito estariam zumbindo com as novidades. Sabe o que quero dizer?
Ela sacudiu negativamente a cabeça; os cachos tosados ficavam cada vez mais brilhantes à luz que avançava.
— Bem, você é jovem ainda para ter conhecimento das coisas do mundo, mas tem de aprender, e parece ser função minha ensinar-lhe, não parece? Quero dizer que as pessoas falariam que eu estava interessado em você como homem, não como padre.
— Padre!
— Horrível, não é? — Ele sorriu. — Mas eu lhe garanto que as pessoas não falariam outra coisa. Veja bem, Meggie, você já não é uma menininha, é uma moça. Mas ainda não aprendeu a esconder a afeição que sente por mim, de modo que, se eu parasse de falar com você enquanto todo mundo estivesse olhando, você olharia para mim de um jeito que poderia ser mal interpretado.
Ela o estava observando de um modo estranho, com uma súbita inescrutabilidade a nublar-lhe o olhar; depois, de surpresa, virou a cabeça e ficou de perfil.
— Sim, compreendo. Foi tolice minha não ter pensado nisso.
— E agora você não acha que já está na hora de voltar para casa? É claro que todo mundo lá deve estar dormindo, mas, se alguém acordar à hora de costume, você estará em maus lençóis. E não poderá dizer que esteve comigo, Meggie, nem mesmo para o seu pessoal.
Ela pôs-se em pé e ficou olhando para ele.
— vou indo, Padre. Mas gostaria que o conhecessem melhor, para que nunca pensassem essas coisas a seu respeito. O senhor não sente nada disso, sente?
Por uma razão qualquer, a pergunta lhe doeu, doeu-lhe bem no fundo da alma, como as ironias cruéis de Mary não tinham doído.
— Não, Meggie, você tem razão. Não sinto. — Ele ergueu-se de um salto, com um sorriso forçado. — Você julgaria estranho se eu dissesse que desejaria sentir? — Levou a mão à cabeça. — Não, não desejo nada disso! Vá para casa, Meggie, vá para casa!
O rosto dela estava triste.
— Boa-noite, Padre.
Ele tomou-lhe as mãos nas suas, inclinou-se e beijou-as.
— Boa-noite, Meggie.
Viu-a caminhar por entre os túmulos, passar por cima do gradil; envolta no vestido de botões de rosa, a forma que se retirava era graciosa, feminina e um tanto ou quanto irreal. Cinzas de rosas.
— Muito apropriado — disse ele ao anjo.
Os carros estavam deixando Drogheda no meio do estardalhaço dos motores enquanto ele percorria o relvado em sentido contrário; a festa finalmente se acabara. Dentro da casa, os músicos guardavam seus instrumentos, cambaleando por efeito do rum e do cansaço, e as criadas e ajudantes temporárias, exaustas, tentavam pôr um pouco de ordem na desordem. O Padre Ralph cumprimentou a Sra. Smith com uma inclinação de cabeça.
— Mande todo mundo para a cama, minha cara. É muito mais fácil lidar com esse tipo de coisas quando se está com a cabeça fresca. Não deixarei que a Sra. Carson se zangue.
— Gostaria de comer alguma coisa, Padre?
— Não, pelo amor de Deus! Eu vou é para a cama.
À tardinha, uma mão tocou-lhe o ombro. Ele estendeu a sua para agarrar a mão que o tocara, sem forças para abrir os olhos, e tentou aproximá-la do rosto.
— Meggie — murmurou.
— Padre, Padre! Acorde, por favor!
Ouvindo o tom da voz da Sra. Smith, seus olhos tornaram-se, de súbito, bem despertos.
— Que foi, Sra. Smith?
— É a Sra. Carson, Padre. Ela está morta.
O seu relógio informou-o de que eram seis horas da tarde; aturdido e trôpego em conseqüência do torpor que o terrível calor do dia lhe produzira, lutou para livrar-se dos pijamas e vestir as roupas de sacerdote, passou uma estreita estola de púrpura ao redor do pescoço e pegou dos óleos da extrema-unção, da água benta, da grande cruz de prata, do rosário de contas de ouro. Não lhe ocorreu sequer por um momento perguntar a si mesmo se a Sra. Smith falara a verdade; sabia que a aranha estava morta. Teria ela tomado alguma coisa, afinal? Prouvesse a Deus que, se o tivesse feito, isso não estivesse obviamente presente no quarto, nem fosse óbvio para um médico. Não chegava a atinar com a possível utilidade da administração da extrema-unção naquele caso. Mas era uma coisa que precisava ser feita. Se ele a recusasse, haveria autópsias e toda a sorte de complicações. Sua dúvida, no entanto, não tinha relação alguma com a oculta suspeita de suicídio; simplesmente, no seu entender, era obsceno colocar coisas sagradas sobre o corpo de Mary Carson.
Ela estava morta e remorta. Deveria ter morrido alguns minutos depois de recolher-se, umas quinze horas atrás, pelo menos. As janelas continuavam bem fechadas e o quarto úmido, graças às grandes bacias de água que ela insistia em deixar em todos os cantos escondidos do quarto a fim de manter-lhe a pele juvenil. Havia um ruído peculiar no ar; depois de um estúpido momento de pasmo, ele compreendeu que estava ouvindo moscas, hordas de moscas que zumbiam e faziam um barulho ensurdecedor quando se regalavam com ela, quando copulavam sobre ela, quando botavam seus ovos em cima dela.
— Pelo amor de Deus, Sra. Smith, abra as janelas!— arquejou ele, abeirando-se da cama com o rosto muito pálido. Ela já passara pela fase do rigor monis e estava novamente flácida, repugnantemente flácida. Tinha os olhos abertos sarapintados e os lábios finos, pretos; em toda parte havia moscas sobre ela. Ele teve de pedir à Sra. Smith que as enxotasse enquanto fazia o seu ofício, murmurando as antigas exortações latinas. Que farsa! E ela em danação. E o cheiro dela! Oh, Deus! Pior que o de qualquer cavalo morto no meio do pasto. Esquivou-se de tocá-la na morte, como se esquivara de tocá-la em vida, sobretudo os lábios negros de moscas. Ela seria uma massa de vermes dali a algumas horas.
Afinal, chegou ao fim. Endireitou-se.
— Vá à casa do Sr. Cleary imediatamente, Sra. Smith, e, pelo amor de Deus, diga-lhe que mande os meninos preparar um caixão sem demora. Não há tempo para mandar buscar um caixão em Gilly; ela está apodrecendo diante dos nossos olhos. Santo Deus! Estou-me sentindo mal. vou tomar um banho e deixarei minhas roupas do lado de fora da porta do meu quarto. Queime-as. Nunca conseguirei limpá-las do cheiro dela.
De volta ao quarto e já vestindo culote e camisa — pois não pusera duas batinas na maleta de viagem —, lembrou-se da carta e da promessa. Haviam soado sete horas; chegaram aos seus ouvidos os sons de um caos reprimido quando as criadas e ajudantes temporárias voaram para limpar a confusão da festa, transformar de novo a sala de visita em capela, aprontar a casa para o funeral do dia seguinte. Não haveria outro jeito, ele teria de ir a Gilly naquela noite em busca de outra sotaina e dos paramentos do ofício fúnebre. Ao deixar a casa paroquial em direção a alguma fazenda afastada, levava sempre consigo certas coisas, cuidadosamente guardadas em compartimentos na caixinha preta, os sacramentos para o nascimento, a morte, a bênção, o culto e os paramentos apropriados à missa em qualquer época do ano. Mas, como bom irlandês, achava que andar para baixo e para cima com as vestes negras de uma missa de defunto era tentar o destino. Ouviu a voz de Paddy a distância, mas não poderia enfrentá-lo naquele momento; a Sra. Smith faria tudo que tivesse de ser feito.
Sentado ao pé da janela, que se abria para uma vista de Drogheda ao pôr-do-sol, com os eucaliptos dourados e a massa de rosas vermelhas, róseas e brancas todas empurpuradas, tirou da caixa a carta de Mary Carson e segurou-a entre as mãos. Mas ela insistira em que ele a lesse antes do enterro e, em algum lugar de sua mente, uma vozinha lhe dizia que devia lê-la agora, não depois de avistar-se com Paddy e Meggie, mas agora, antes de ter visto outra pessoa além de Mary Carson.
O envelope continha quatro folhas de papel; separou-as e entendeu na hora que as duas últimas constituíam o testamento dela. As duas primeiras eram dirigidas a ele, em forma de carta.
”Meu queridíssimo Ralph,
”Você já deve ter visto que o segundo documento neste envelope é meu testamento. Já tenho um testamento perfeitamente em ordem, assinado e selado, no escritório de Harry Gough, em Gilly; o testamento incluso neste envelope é muito mais recente e, naturalmente, anula o que está em poder de Harry.
”Na realidade, eu o fiz no outro dia, e mandei que o assinassem como testemunhas tom e o cerqueiro, pois, segundo me consta, não é permitido que nenhum beneficiário assine o testamento como testemunha. Apesar de não ter sido redigido por Harry, é perfeitamente legal e eu lhe asseguro que nenhum tribunal deste país lhe contestará a validade.
”Por que não pedi a Harry que redigisse também este testamento, se eu queria alterar a disposição dos meus bens? É muito simples, meu caro Ralph. Eu fazia questão fechada de que ninguém soubesse da existência desse testamento além de nós dois. Essa é a única cópia, e você ficará com ela. Ninguém sabe que ela está com você. E isso representa uma parte muito importante do meu plano.
”Lembra-se do trecho do Evangelho em que Satanás levou Nosso Senhor Jesus Cristo para o alto de uma montanha e tentou-O com o mundo todo? Como é agradável saber que eu tenho um pouco do poder de Satanás, e posso tentar aquele que amo (você duvida de que Satanás amasse Cristo? Eu não duvido) com o mundo inteiro. A contemplação do seu dilema avivou consideravelmente meus pensamentos nos últimos anos e, quanto mais perto chego da morte, tanto mais deleitosas se tornam minhas visões.
”Depois que tiver lido o testamento, você compreenderá o que quero dizer. Enquanto eu estiver ardendo no inferno além das fronteiras desta vida que agora conheço, você ainda estará nessa vida, porém ardendo num inferno de chamas ainda mais aterradoras do que as que qualquer Deus poderia manufaturar. Oh, meu Ralph, eu o avaliei com a máxima precisão! Ainda que nunca soubesse fazer outra coisa, eu sempre soube fazer sofrer as pessoas que amo. E você é um jogo muito melhor do que o que foi algum dia o meu querido e finado Michael.
”Quando o conheci, você queria Drogheda e o meu dinheiro, não é verdade, Ralph? Via-os como um modo de comprar de volta seu métier natural. Mas depois veio Meggie, e você pôs de lado o seu propósito original de cultivar-me, não pôs? Passei a ser um pretexto para suas visitas a Drogheda, a fim de que você pudesse estar com Meggie. Mas não sei se você seria capaz de virar a casaca com tanta facilidade se soubesse quanto valho realmente. Você sabe, Ralph? Não creio que tenha sequer uma vaga idéia. Creio que não fica bem a uma dama mencionar a soma exata de seus bens no próprio testamento, por isso será melhor eu dizer-lhe aqui, para certificar-me de que você terá todas as informações necessárias ao alcance das mãos quando chegar o momento da decisão. Com uma pequena diferença de umas poucas centenas de milhares, para mais ou para menos, minha fortuna orça por uns treze milhões de libras.
”Estou chegando ao fim da segunda página, e não posso me dar ao trabalho de transformar isto aqui numa tese. Leia meu testamento, Ralph e, depois de o ter lido, decida o que vai fazer com ele. Você o apresentará a Harry Gough para homologá-lo ou o queimará e nunca dirá a ninguém que ele existiu? Eis aí a decisão que terá de tomar. Devo acrescentar que o testamento que se encontra no escritório de Harry foi o que fiz um ano depois da chegada de Paddy, e nele deixo tudo o que tenho para ele. De modo que agora você sabe o que está na balança.
”Eu o amo, Ralph, eu o amo tanto que o teria matado por você não me querer, com a diferença de que esta é uma forma muito melhor de represália. Não pertenço à espécie nobre; eu o amo, mas quero que você grite de dor. Procure, veja bem, eu sei qual será sua decisão. Sei-o com a mesma certeza que teria se pudesse estar por perto, observando. Você gritará, Ralph, você saberá o que é sofrimento. Por isso, continue a ler, meu belo, meu ambicioso padre! Leia o meu testamento e decida o seu destino.”
Não estava assinado nem continha quaisquer iniciais. Ele sentiu o suor na testa, sentiu-o escorrendo da cabeça para a nuca. E teve ímpetos de levantar-se naquele mesmo instante para queimar os dois documentos, sem ler o que continha o segundo. Mas a velha aranha avaliara muito bem a sua presa. É claro que ele continuaria a ler; era demasiado curioso para resistir. Deus! Que havia feito ele para ela querer fazer-lhe uma coisa dessas? Por que as mulheres o faziam sofrer dessa maneira? Por que não teria ele nascido pequeno, torto, feio? Se fosse assim, poderia ter sido feliz.
As duas últimas folhas estavam cobertas com a mesma letrinha miúda e precisa. Tão sovina e rancorosa quanto a alma dela.
”Eu, Mary Elizabeth Carson, no gozo de todas as minhas faculdades físicas e mentais, declaro por meio deste instrumento ser esta minha última vontade e meu testamento, tornando nulos e sem valor, por esse modo, quaisquer testamentos anteriores feitos por mim.
”com a única exceção das doações testamentárias enumeradas abaixo, lego todos os meus bens materiais, dinheiro e propriedades à Santa Igreja Católica Apostólica Romana, respeitadas as seguintes condições:
”Primeiro, que a mencionada Santa Igreja Católica Apostólica Romana, doravante denominada apenas a Igreja, conheça a estima e o afeto que consagro a seu sacerdote, o Padre Ralph de Bricassart. É unicamente graças à sua bondade, à sua orientação espiritual e ao seu apoio inquebrantável que assim disponho dos meus bens.
”Segundo, que o legado só continuará beneficiando a Igreja enquanto ela tiver o devido apreço pelo valor e a capacidade do citado Padre Ralph de Bricassart.
”Terceiro, que o citado Padre Ralph de Bricassart será responsável pela administração e pela canalização dos meus mencionados bens materiais, dinheiro e propriedades, como autoridade máxima encarregada do meu espólio.
”Quarto, que, por morte do citado Padre Ralph de Bricassart, a subseqüente administração do meu espólio dependerá unicamente do que dispuser a última vontade e testamento do citado Padre Ralph de Bricassart. Isto é, a Igreja continuará na plena posse dele, mas o Padre Ralph de Bricassart será o único responsável pela nomeação do seu sucessor na administração; não sendo ele obrigado a escolher para seu sucessor um eclesiástico ou um membro leigo da Igreja.
”Quinto, que a fazenda Drogheda nunca poderá ser vendida nem subdividida.
”Sexto, que meu irmão, Padraic Cleary, será mantido como gerente da fazenda Drogheda com o direito de morar em minha casa, e que lhe será pago um salário à discrição do Padre Ralph de Bricassart e de mais ninguém.
”Sétimo, que, no caso da morte de meu irmão, o mencionado Padraic Cleary, sua viúva e seus filhos terão permissão para permanecer na fazenda Drogheda e que o cargo de gerente passará consecutivamente a cada um de seus filhos, Robert, John, Hughie, Stuart, James e Patrick, excluindo-se Francis.
”Oitavo, que, por morte de Patrick ou de qualquer outro filho, excluindo-se Francis, que seja o último filho vivo, serão os mesmos direitos transmitidos aos netos do mencionado Padraic Cleary.
”Legados especiais:
”A Padraic Cleary, tudo o que se contém nas minhas casas na fazenda Drogheda.
”A Eunice Smith, minha governanta, que continuará como tal, percebendo um bom salário, enquanto assim o desejar, a soma de cinco mil libras que lhe será entregue imediatamente, sendo-lhe ainda concedida, quando se aposentar, uma pensão justa.
”A Minerva O’Brien e a Catherine Donnelly, que continuarão trabalhando, mediante um bom salário, durante o tempo que quiserem, a soma de mil libras a cada uma, que lhes será entregue imediatamente, sendo-lhes ainda concedida, quando se aposentarem, uma pensão justa.
”Ao Padre Ralph de Bricassart a soma de dez mil libras, que lhe será paga anualmente, enquanto viver, para seu uso particular e incontestado.”
O testamento estava devidamente assinado, datado e testemunhado.
Seu quarto dava para oeste. O sol se punha naquele momento. O manto de poeira, que vinha com o verão, enchia o ar silencioso, e o sol varava as partículas de pó, de modo que o mundo inteiro parecia haver-se transmudado em ouro e púrpura. Nuvens raiadas, orladas de um fogo brilhante, emanavam raios de prata, iluminados pelo grande disco de sangue suspenso logo acima das árvores nos pastos distantes.
— Bravo! — disse ele. — Reconheço, Mary, que você me venceu. Um golpe de mestre. O tolo fui eu, não você.
Ele não podia ver as páginas em suas mãos através das lágrimas, e afastou-as de si antes de borrá-las. Treze milhões de libras. Treze milhões de libras! Fora isso realmente que estivera planejando abiscoitar antes do advento de Meggie. E quando ela chegara, abrira mão dos seus planos, pois não poderia levar adiante, a sangue-frio, uma campanha destinada a fraudá-la da sua herança. Mas como teria agido se soubesse o quanto valia a velha aranha? Como teria agido? Ele não supusera sequer que o total orçasse pela décima parte daquela soma. Treze milhões de libras!
Durante sete anos Paddy e sua família tinham vivido na casa do chefe dos pastores e trabalhado como condenados para Mary Carson. A troco do quê? Dos salários miseráveis que ela pagava? Nunca chegara ao conhecimento de Padre Ralph que Paddy se houvesse queixado de ser tratado com mesquinhez, pensando, sem dúvida, que, por morte da irmã, seria amplamente compensado do tempo que gerira a propriedade recebendo a paga de um pastor comum, enquanto seus filhos faziam o trabalho de pastores recebendo o salário de biscateiros. Ele conseguira arranjar-se e acabara amando Drogheda como se fosse sua, presumindo com razão que o seria.
— Bravo, Mary! — disse de novo o Padre Ralph, ao que aquelas lágrimas, as primeiras que derramava desde a infância, lhe caíam sobre o dorso das mãos, mas não sobre o papel.
Treze milhões de libras e a possibilidade de ainda vir a ser Cardeal de Bricassart. Contra Paddy Cleary, sua esposa, seus filhos — e Meggie. com que diabólica saga ela soubera lê-lo! Se ela tivesse despojado Paddy de tudo, sua obrigação teria sido claríssima: teria levado o testamento até o fogão da cozinha e o teria enfiado na fornalha sem pestanejar. Mas ela dispusera as coisas de modo que Paddy não passaria necessidades, que depois da sua morte ele viveria melhor em Drogheda que durante a sua vida, e que Drogheda não lhe poderia ser totalmente arrebatada. Os lucros e o título, sim, mas a terra propriamente dita, não. Paddy não seria o dono dos fabulosos treze milhões de libras, mas seria respeitado e teria com que viver confortavelmente. Meggie não passaria fome, nem seria jogada no olho da rua. Mas tampouco seria a Srta. Cleary, capaz de ombrear com a Srta. Carmichael e com as outras senhoritas do mesmo nível. Respeitável, sem dúvida, socialmente admissível, mas não pertenceria à nata. Nunca pertenceria à nata.
Treze milhões de libras. A oportunidade de sair de Gillanbone e da perpétua obscuridade, a oportunidade de ocupar seu lugar dentro da hierarquia da administração da Igreja, a garantia da boa vontade de seus pares e superiores. E tudo isso numa idade em que ainda poderia recuperar o terreno que perdera. Mary Carson fizera de Gillanbone, violentamente, o epicentro do mapa do Legado Papal; e os tremores chegariam ao próprio Vaticano. Embora a Igreja fosse riquíssima, treze milhões de libras eram treze milhões de libras. Não se tratava de uma importância desprezível, nem para a Igreja. E seria sua mão que a levaria ao redil, sua mão reconhecida com tinta azul do próprio punho de Mary Carson. Ele sabia que Paddy jamais impugnaria o testamento; como também o soubera Mary Carson, que Deus a apodrecesse. Sim, era evidente que Paddy ficaria furioso, não quereria vê-lo nunca mais, nem quereria nunca mais falar com ele, mas a sua fúria não chegaria ao litígio judicial.
Haveria, acaso, uma decisão para ser tomada? Ele, porventura, já não sabia, não o soubera desde o momento em que lera o testamento, o que iria fazer? As lágrimas tinham secado. com a graça habitual, Padre Ralph levantou-se, certificou-se de que a camisa estava toda enfiada no culote, e dirigiu-se à porta. Precisava ir a Gilly buscar uma batina e os paramentos. Mas primeiro queria ver Mary Carson outra vez.
Apesar das janelas abertas, o mau cheiro empestara a sala; nem uma sugestão de brisa agitava as cortinas frouxas. com passo firme, dirigiu-se à cama e ali ficou olhando para baixo. Os ovos de moscas estavam começando a produzir vermes em todas as partes úmidas do rosto, gases em expansão enchiam-lhe as mãos e os braços roliços de bolhas esverdeadas, a pele começava a romper-se. Oh, Deus. A repugnante aranha velha. Você venceu, mas que vitória! O triunfo de uma caricatura podre da humanidade sobre outra. Mas você não pode derrotar minha Meggie, nem pode tirar-lhe o que nunca foi seu. Eu talvez arda no inferno ao seu lado, mas conheço o inferno que eles planejaram para você: ver minha indiferença por você persistir enquanto apodrecemos juntos por toda a eternidade...
Paddy estava à sua espera na sala, ao pé da escada, parecendo nauseado e atônito.)
— Oh, Padre! — exclamou ele, adiantando-se. — Não é horrível? Que choque! Nunca imaginei que ela se fosse desse jeito; estava tão bem ontem à noite! Santo Deus, o que é que vou fazer?
— Você a viu?
— Valha-me Deus, vi, sim!
— Nesse caso, sabe o que tem de ser feito. Nunca vi um cadáver decompor-se com tanta rapidez. Se você não conseguir colocá-la decentemente em alguma espécie de recipiente nas próximas horas, terá de jogá-la mais tarde num tambor de gasolina. Teremos de enterrá-la amanhã bem cedo. Não perca tempo enfeitando-lhe o caixão; cubra-o com rosas do jardim, ou qualquer coisa assim. Mas mexa-se, homem! vou a Gilly buscar os paramentos.
— Volte o mais cedo que puder, Padre! — suplicou Paddy.
Padre Ralph, todavia, demorou-se mais do que demandaria uma simples visita à casa paroquial. Antes de virar o automóvel nessa direção, tomou por uma das ruas laterais mais prósperas de Gillanbone e parou diante de uma casa pretensiosa, cercada por um jardim muito bem tratado.
Harry Gough estava acabando de sentar-se à mesa do jantar, mas levantou-se e foi para a sala de visitas quando a criada lhe contou quem era o visitante.
— Padre! Quer jantar conosco? Carne de vaca conservada em salmoura, repolho, batatas cozidas e molho de salsa. E, pela primeira vez, a carne não está muito salgada.
— Não, Harry, não posso ficar. Só vim lhe contar que Mary Carson faleceu hoje cedo.
— Santo Deus! Pois se ainda ontem à noite estive lá! Ela me pareceu tão bem, padre!
— Eu sei. Ela estava perfeitamente bem quando a ajudei a subir a escada, por volta das três horas da manhã, mas deve ter morrido praticamente no momento em que se recolheu. A Sra. Smith encontrou-a às seis da tarde. A essa hora, ela já estava morta havia tanto tempo que tinha um aspecto medonho; o quarto ficara fechado como uma incubadora durante todo o calor do dia. Misericórdia, eu rezo para esquecer o espetáculo que ela oferecia! Uma coisa pavorosa, Harry, terrível.
— O enterro será amanhã?
— Terá de ser.
— Que horas são? Dez? com este calor precisamos jantar tão tarde quanto os espanhóis, mas não temos de nos preocupar com o adiantado da hora para avisar as pessoas pelo telefone. Quer que eu faça isso pelo senhor, Padre?
— Muito obrigado, seria muita bondade de sua parte. Só vim a Gilly à procura dos paramentos. Eu não esperava ter de dizer uma missa fúnebre quando saí daqui hoje cedo. Preciso voltar a Drogheda tão depressa quanto vim; eles lá precisam de mim. A missa será às nove da manhã.
— Diga a Paddy que levarei o testamento dela, de modo que assim poderei liquidar o assunto logo depois do enterro. E como o senhor também é um dos beneficiários, Padre, eu gostaria que ficasse para a leitura.
— Receio que tenhamos aqui um probleminha, Harry. Acontece que Mary fez outro testamento. Ontem à noite, depois que deixou a festa, entregou-me um envelope selado e me fez prometer que eu o abriria no momento em que lhe visse o corpo morto com os meus próprios olhos. Quando o abri, verifiquei que ele continha um novo testamento.
— Mary fez um novo testamento? Sem mim?
— É o que parece. Se não me engano, é qualquer coisa que ela andava tramando há muito tempo, mas não sei por que fez questão de ser tão reservada a esse respeito.
— O senhor tem o testamento aí, Padre?
— Tenho.
O padre enfiou a mão por dentro da camisa e passou-lhe as folhas de papel, muito bem dobradas.
O advogado não teve escrúpulos de lê-las ali mesmo. Concluída a leitura, ergueu a vista e Padre Ralph viu nos olhos dele uma porção de coisas que preferiria não ter visto. Admiração, raiva e um certo desprezo.
— Muito bem, Padre, meus parabéns! O senhor, afinal, conseguiu pôr a mão na massa.
Ele podia dizer isso, pois não era católico.
— Acredite-me, Harry, a surpresa foi maior para mim do que está sendo para você.
— Esta é a única via?
— Pelo que sei, é.
— E ela lhe entregou ontem à noite?
— Isso mesmo.
— Então, por que não a destruiu, para ter a certeza de que o pobre Paddy receberia o que por direito lhe pertence? A Igreja não tem nenhum direito às propriedades e aos bens de Mary Carson.
Os belos olhos do religioso tinham uma expressão de meiguice.
— Mas não teria sido correto, Harry, não lhe parece? Afinal de contas, as propriedades eram de Mary, que poderia dispor delas como bem entendesse.
— Aconselharei Paddy a impugnar.
— Pois acho que deve fazer isso mesmo.
Separaram-se depois dessa troca de palavras. Quando de manhã chegaram os amigos para assistir ao sepultamento de Mary Carson, toda Gillanbone e todos os pontos da bússola ao redor da cidade já sabiaam para onde iria o dinheiro. Os dados tinham sido lançados, agora não havia volta.
Eram quatro horas da manhã quando o Padre Ralph transpôs a última porteira e entrou no Home Paddock, pois não se apressara na viagem de regresso. Durante todo o seu transcorrer, obrigara a própria mente a permanecer em branco; não queria pensar. Nem em Paddy, nem em Fee, nem em Meggie, nem naquela coisa gorda e fedida que eles haviam (contava devotamente com isso) enfiado no caixão. Mas abria os olhos e o espírito para a noite, para a prata fantasmagórica das árvores mortas que se erguiam, solitárias, no meio da relva brilhante, para as sombras do coração das trevas projetadas pelas florestas, para a lua cheia que percorria o céu como uma bolha etérea. Uma ocasião, parara o carro e descera, caminhando até uma cerca de arame e inclinou-se sobre o fio esticado, enquanto aspirava o aroma dos eucaliptos e a fragrância inebriante das flores-do-campo. A terra era tão bela, tão pura, tão indiferente aos destinos das criaturas que supunham governá-la. Elas podiam pôr a mão nela, mas, no rol das contas, era ela quem as governava. Enquanto os homens não pudessem controlar o clima e chamar as chuvas, a terra estaria por cima.
Estacionou o carro a alguma distância dos fundos da casa e caminhou lentamente para ela. Todas as janelas estavam inundadas de luz; dos aposentos da governanta vinha-lhe o som discreto do terço rezado pelas duas criadas irlandesas sob a direção da Sra. Smith. Uma sombra moveu-se na escuridão das glicínias; ele estacou de um golpe, sentindo que os pêlos do seu corpo se eriçavam. A velha aranha o pegara já de muitas maneiras. Mas era apenas Meggie, que esperava, paciente, pelo seu regresso. Envergava culote e botas e estava bem desperta.
— Você me pregou um susto — disse ele.
— Desculpe, Padre, não tive essa intenção. Mas eu não queria ficar lá dentro da casa com papai e os meninos, e mamãe ainda está em nossa casa com os bebês. Eu talvez devesse estar rezando com a Sra. Smith, Minnie e Cat, mas confesso que não sinto vontade de rezar por ela. Isso é pecado, não é?
Ele não estava disposto a paparicar a memória de Mary Carson.
— Não acho que seja pecado, Meggie, mas a hipocrisia, sim, é pecado. Também não sinto vontade de rezar por ela. Ela não era... uma pessoa muito boa. — Seu sorriso iluminou-se. — Portanto, se você pecou ao dizer isso, eu também pequei, e mais seriamente do que você. Pois tenho obrigação de amar todo mundo, e esse fardo não lhe foi imposto.
— O senhor está bem, Padre?
— Estou, estou bem. — Ele ergueu os olhos para a casa e suspirou. — Só não quero ficar lá dentro, nada mais. Não quero ficar onde ela está enquanto não houver luz e os demônios da treva não tiverem sido expulsos. Se eu arrear os cavalos, você cavalgará comigo até o amanhecer?
A mão dela tocou-lhe a manga preta e caiu.
— Também não quero entrar.
— Espere um minuto enquanto coloco a batina no carro.
— Eu vou indo para as cocheiras.
Pela primeira vez ela tentava encontrá-lo no terreno dele, no terreno adulto; ele sentia-lhe a diferença tão seguramente quanto sentia o perfume das rosas nos belos jardins de Mary Carson. Rosas. Cinzas de rosas. Rosas, rosas, em toda parte. Pétalas na grama. Rosas de verão, vermelhas, brancas e amarelas. Perfume de rosas, pesado e doce na noite. Rosas cor-de-rosa, alvejadas pela lua até se transformarem em cinzas. Cinzas de rosas, cinzas de rosas. Minha Meggie, eu a desertei. Mas você não percebe que se transformou numa ameaça? Por isso a esmaguei sob o peso da minha ambição; para mim, você não tem mais substância do que uma rosa ferida na relva. O cheiro das rosas. O cheiro de Mary Carson. Rosas e cinzas, cinzas de rosas.
— Cinzas de rosas — disse ele, montando. — Vamos para tão longe do cheiro das rosas quanto a lua. Amanhã a casa estará cheia delas.
Ele cutucou com o calcanhar a égua castanha e saiu a meio galope à frente de Meggie pelo caminho que conduzia ao regato, desejando chorar; pois enquanto não tivesse cheirado os futuros adornos do caixão de Mary Carson, este não lhe invadiria realmente o cérebro como um fato iminente. Ele partiria logo. Pensamentos em demasia, emoções em excesso, todos ingovernáveis. Não o deixariam ficar em Gilly nem mais um dia assim que se inteirassem dos termos do testamento incrível; chamá-lo-iam imediatamente a Sydney. Imediatamente. Ele fugia da sua dor, pois jamais a conhecera, mas ela lhe acompanhava os passos sem nenhum esforço. Não se tratava de alguma coisa num vago amanhã; aquilo ia acontecer logo. E quase via o rosto de Paddy, a repulsa, as costas voltadas para ele. Depois disso já não seria bem-vindo em Drogheda,! e nunca mais veria Meggie.
A aceitação começou então, fincada a poder de cascos, num impulso de fuga. Era melhor assim, melhor assim, melhor assim. Galopando sempre. A dor, então, doeria menos, quando estivesse escondido com segurança em alguma cela do palácio de um bispo, doeria cada vez menos, até que, afinal, desapareceria da consciência. Tinha de ser melhor assim. Melhor do que ficar em Gilly e vê-la converter-se numa criatura que ele não queria, para depois casá-la, um dia, com algum desconhecido. Longe dos olhos, longe do coração.
Mas, então, o que ele estava fazendo com ela agora, cavalgando por entre as moitas de buxos e coohbah do outro lado do arroio? Dir-se-ia que não pudesse atinar con a razão, apenas sentir a dor. Não a dor da traição; não havia lugar para isso. Apenas a dor de deixá-la.
— Padre! Padre! Não consigo acompanhá-lo! Vá um pouco mais devagar, Padre! por favor!
Era o chamado do dever e da realidade. Como um homem em câmara lenta puxou súbita e violentamente as rédeas da égua, que deu meia-volta, e esperou que o animal serenasse e que Meggie o alcançasse. Eis aí a dificuldade. Meggie o alcançava.
Perto deles se ouvia o rugido do poço, o grande poço fumegante com cheiro de enxofre, com um cano parecido com o ventilador de um navio, que lhe arremessava água fervente nas profundezas. Em toda a volta do perímetro do lagozinho elevado como raios saídos do cubo de uma roda, os drenos do poço rasgavam a planície eriçada de uma relva inesperadamente verde. As margens do lago eram de um lodo cinzento resvaladio, e os lagostins de água doce chamados yabbies viviam no meio da lama.
Padre Ralph desatou a rir.
— Isto tem cheiro de inferno, não tem, Meggie? Enxofre. Flor-de-enxofre. Aqui, bem aqui, na propriedade dela, no quintal dela. Ela deverá reconhecer o cheiro quando chegar lá toda coberta de rosas, não deve? Oh, Meggie...
Os cavalos estavam treinados para ficar parados com as rédeas soltas; não havia cercas ali por perto, e as árvores mais próximas ficavam a pouco menos de um quilômetro. Mas havia um tronco deitado do outro lado do poço, onde a água era mais fria, assento preparado para os banhistas de inverno, enquanto deixavam secar os pés e as pernas.
Padre Ralph sentou-se e Meggie sentou-se a pequena distância, virando-se para poder observá-lo melhor.
— Que aconteceu, Padre?
Parecia estranha aquela pergunta, feita tantas vezes por ele, e que ela agora lhe dirigia. Padre Ralph sorriu.
— Eu a vendi, minha Meggie, eu a vendi por treze milhões de moedas de prata.
— Vendeu-me?
— Um modo de dizer. Não tem importância. Vamos, sente-se mais perto de mim. Pode ser que não tenhamos outra oportunidade de conversar assim.
— Enquanto estivermos de luto por titia, o senhor quer dizer? — Ela foi-se aproximando até chegar perto dele. — Que diferença faz o fato de estarmos de luto?
— Não me refiro a isso, Meggie.
— O senhor quer dizer que é porque estou crescendo e as pessoas poderão falar de nós?
— Não exatamente. Quero dizer que vou embora.
Pronto: o enfrentamento do problema de cara, a aceitação de outro fardo. Sem gritos, sem choros, sem nenhuma tempestade de protestos. Apenas uma leve contração, como se o fardo, colocado de través, relutasse em distribuir-se de modo que ela pudesse suportá-lo convenientemente. E uma respiração presa, que não chegava a ser um suspiro.
— Quando?
— Uma questão de dias.
— Oh, Padre! Será mais duro do que Frank.
— E para mim será mais duro do que qualquer outra coisa em minha vida. Eu não tenho consolação. Você, pelo menos, tem sua família.
— O senhor tem seu Deus.
— Bem lembrado, Meggie! Você está crescendo mesmo!
Mas, mulher tenaz, seu espírito voltara à pergunta que ela cavalgara cinco quilômetros sem ter a oportunidade de formular. Ele ia embora, seria muito difícil viver sem ele, mas a pergunta também tinha importância.
— Padre, na cocheira o senhor falou em ”cinzas de rosas”. Referia-se à cor do meu vestido?
— De certo modo, talvez. Mas creio que eu realmente queria dizer outra coisa.
— O quê?
— Nada que você pudesse compreender, minha Meggie. A morte de uma idéia que não tinha o direito de nascer, e muito menos de ser alimentada.
— Não há nada que não tenha o direito de nascer, nem mesmo uma idéia. Ele virou a cabeça para observá-la.
— Você sabe do que estou falando, não sabe?
— Creio que sim.
— Nem tudo o que nasce é bom, Meggie.
— Não. Mas se chegou a nascer é porque deve existir.
— Você argumenta como um jesuíta. Que idade tem?
— vou fazer dezessete anos daqui a um mês, Padre.
— E trabalhou como gente grande em todos esses dezessete anos. Muito bem, o trabalho pesado nos envelhece mais depressa do que os anos. Em que é que você pensa, Meggie, quando arranja um tempinho para pensar?
— Penso em Jims e em Patsy e no resto dos meninos; penso em papai e em mamãe; penso em Hal e em tia Mary. Às vezes penso em ter filhos. Eu gostaria muito de tê-los. E penso em andar a cavalo, e nos carneiros. Em todas as coisas sobre as quais os homens falam. Penso no tempo, na chuva, na horta, nas galinhas, no que terei de fazer no dia seguinte.
— Você não pensa em ter um marido?
— Não, embora eu imagine que terei de ter um, se quiser ter filhos. Não é bom para uma criança nascer sem pai.
Apesar do seu sofrimento, ele sorria; ela era uma mistura tão singular de ignorância e moral! Nisso, virando-se de lado, pegou-lhe no queixo com a mão e abaixou a vista para ela. Como fazer o que tinha de ser feito?
— Meggie, não faz muito tempo compreendi uma coisa que eu devia ter visto mais cedo. Você não foi muito sincera quando me contou tudo em que pensava, foi?
— Eu... — começou ela, e calou-se.
— Você não disse que pensava em mim, disse? Se não havia culpa nisso, teria mencionado o meu nome ao lado do nome de seu pai. Creio que talvez seja uma boa coisa eu ir embora, você também não acha? Você já está meio grandinha para ter paixonites de menina, mas também não é muito velha com os seus quase dezessete anos, é? Gosto da sua inexperiência do mundo, mas sei o quanto são penosas as paixonites das garotas; eu mesmo sofri muito por causa delas.
Ela fez menção de falar, mas as pálpebras lhe caíram sobre os olhos brilhantes de lágrimas, e ela sacudiu a cabeça.
— Ouça, Meggie, é simplesmente uma fase, um marco na estrada de sua vida de mulher. Quando se tornar uma mulher, você conhecerá o homem destinado a ser seu marido e estará tão ocupada em viver que nem pensará em mim, a não ser como um velho amigo que a ajudou em alguns dos momentos difíceis do crescimento. O que você não deve fazer é adquirir o hábito de sonhar comigo de modo romântico. Nunca poderei vê-la como um marido a verá. Não penso em você desse jeito, está-me entendendo, Meggie? Quando digo que a amo, não quero dizer que a amo como homem. Sou padre, não sou homem. Por isso, não encha sua cabeça com sonhos a meu respeito. Vou-me embora e duvido muito que eu tenha tempo, algum dia, de voltar, nem que seja para uma visita.
Embora tivesse os ombros curvados, como se o fardo fosse muito pesado, ela ergueu a cabeça para encará-lo.
— Não encherei minha cabeça de sonhos a seu respeito, não se preocupe. Sei que o senhor é padre.
— E não estou convencido de que errei ao escolher minha profissão. Ela satisfaz em mim uma necessidade que nenhuma criatura humana poderia satisfazer, nem mesmo você.
— Eu sei. Vejo-o quando o senhor reza a missa. Vejo a sua força. Tenho a impressão de que o senhor deve sentir-se como Nosso Senhor.
— Posso sentir cada respiração suspensa na igreja, Meggie! Morro a cada dia que passa e, a cada manhã, ao dizer a missa, renasço. Mas isso acontece porque sou um padre escolhido de Deus ou porque ouço essas respirações respeitosas e conheço o poder que tenho sobre cada uma das almas presentes?
— Isso tem importância? Basta que seja assim.
— Talvez nunca tivesse para você, mas tem para mim. Eu duvido, eu duvido. Ela desviou a conversa para o assunto que lhe interessava.
— Não sei como conseguirei viver sem o senhor, Padre. Primeiro Frank, agora o senhor. com Hal, de certo modo, a coisa é diferente; sei que está morto e nunca poderá voltar. Mas o senhor e Frank estão vivos! Estarei sempre pensando em como vai o senhor, no que estará fazendo, se está bem, se não haveria alguma coisa que eu pudesse fazer para ajudá-lo. Terei até de perguntar a mim mesma se o senhor ainda está vivo, não é verdade?
— Estarei sentindo a mesma coisa, Meggie, e tenho certeza de que Frank também estará.
— Não. Frank nos esqueceu... E o senhor também nos esquecerá.
— Nunca poderei esquecê-la, Meggie, enquanto for vivo. E, para meu castigo, terei de viver por muito, muito tempo. — Ele levantou-se e levantou-a também. Em seguida pôs os braços em torno dela, frouxa e afetuosamente. — Creio que isto é um adeus, Meggie. Não voltaremos a ficar sozinhos.
— Se o senhor não fosse padre, casaria comigo? O título feriu os seus ouvidos.
— Não me chame de padre o tempo todo! Tenho um nome e meu nome é Ralph. O que não respondia à pergunta de Meggie.
Embora continuasse a segurá-la, ele não tinha intenção alguma de beijá-la. O rosto erguido para o seu era quase invisível, pois a lua se pusera e estava muito escuro. Ele sentiu-lhe os seios pequeninos, pontudos, no peito; uma sensação curiosa, perturbadora. Ainda mais perturbador era o fato de que os braços dela lhe haviam envolvido o pescoço e se enlaçavam apertada e naturalmente, como se ela estivesse acostumada a aninhar-se todos os dias nos braços de um homem.
Ele jamais beijara ninguém como amante, nem queria fazê-lo agora; Meggie tampouco haveria de querê-lo, pensou ele. No máximo, um beijo quente no rosto, um rápido abraço, como os que ela daria ao pai se este devesse partir. Sensível e orgulhosa, ela devera ter-se sentido profundamente magoada quando ele descobrira os seus queridos sonhos para esmiuçá-los friamente. Ela devia estar tão ansiosa quanto ele por acabar com a despedida. Ser-lhe-ia, acaso, um conforto saber que o sofrimento dele era muito pior que o dela? Quando ele inclinou a cabeça para alcançar-lhe o rosto, ela ergueu-se na ponta dos pés e mais por sorte do que ousadia tocou-lhe os lábios com os seus. Ele recuou de um golpe, como se tivesse provado o veneno da aranha e, logo, inclinou a cabeça para a frente antes de perdê-la, tentou dizer qualquer coisa junto dos lábios cerrados dela e, ao tentar responder, ela os abriu. Meggie sentiu que seu corpo parecia perder todos os ossos, tornava-se fluido, uma quente escuridão que se derretia; um dos braços dele envolvia-lhe a cintura, o outro, envolvendo-lhe as costas, segurava-lhe o crânio, os cabelos, e erguia-lhe o rosto, como se tivesse medo de que ela lhe fugisse, antes que ele pudesse captar e catalogar essa presença inacreditável que era Meggie. Meggie e não Meggie, demasiado estranha para ser familiar, pois essa Meggie não era uma mulher, não sentia como uma mulher, nunca seria uma mulher para ele. Exatamente como ele nunca seria um homem para ela.
O pensamento dominou-lhe os sentidos que principiavam a submergir; arrancou os braços dela, com violência, do pescoço, empurrou-a para trás e tentou ver-lhe o rosto no escuro. Mas ela abaixara a cabeça, não queria olhar para ele.
— Já é hora de irmos, Meggie — disse o padre.
Sem uma palavra, ela voltou-se para o seu cavalo, montou e ficou esperando por ele; habitualmente era ele quem ficava esperando por ela.
O Padre Ralph tivera razão. Naquela época do ano Drogheda estava inundada de rosas, de modo que a casa ficou abarrotada delas. Por volta das oito horas da manhã já não restava uma única flor no jardim. Os primeiros acompanhadores de enterro começaram a chegar pouco depois que a última rosa foi arrancada da roseira; um leve desjejum de café e pãezinhos recém-feitos, com manteiga, fora servido na pequena sala de jantar. Depois que Mary Carson fosse depositada na abóbada oferecer-se-ia um repasto mais substancial na sala de jantar grande, a fim de fortificar os pranteadores para as suas longas jornadas de volta. A notícia se espalhara; não se podia duvidar da eficiência da fonte de informações confidenciais de Gilly, o circuito telefônico. Enquanto os lábios modelavam frases convencionais, os olhos e as mentes atrás deles especulavam, deduziam, sorriam, maliciosos.
— Ouvi dizer que vamos perdê-lo, Padre — disse a Srta. Carmichael, maldosa. Ele nunca parecera tão remoto, tão destituído de sentimentos humanos como naquela manhã ao envergar a alva sem rendas e a casula preta e sem brilho com a cruz de prata. Dir-se-ia que só estivesse presente o corpo, enquanto o espírito errava muito longe dali. Mas ele abaixou os olhos para a Srta. Carmichael com expressão ausente, pareceu recompor-se e sorriu com genuína jovialidade.
— Deus age de maneiras estranhas, Srta. Carmichael — disse, e foi falar com outra pessoa.
Ninguém teria adivinhado o que lhe passava pela cabeça; era o iminente confronto com Paddy a respeito do testamento, e seu medo de ver a fúria de Paddy, sua necessidade da fúria e do desprezo de Paddy.
Antes de iniciar o ofício de corpo presente, voltou-se para enfrentar a sua congregação; a sala estava lotada e recendia tanto a rosas que as janelas não conseguiam dissipar-lhes o perfume pesado.
— Não pretendo fazer um longo panegírico — disse ele com sua dicção clara, quase inglesa e seu leve sotaque irlandês. — Mary Carson era conhecida de todos vocês. Um pilar da comunidade, um pilar da Igreja que ela amava mais do que a qualquer outro ser vivo.
Nesse ponto havia os que juravam que seus olhos eram irônicos, mas também os que sustentavam, com o mesmo vigor, que os nublava um pesar verdadeiro e permanente.
— Um pilar da Igreja que ela amava mais do que a qualquer outro ser vivo — repetiu, com maior clareza ainda. — Em sua hora derradeira ela estava só e, no entanto, não estava só. Pois, na hora de nossa morte, Nosso Senhor Jesus Cristo está conosco, suportando o fardo da nossa agonia. Nem o maior nem o mais humilde dos seres morre só, e a morte é suave. Estamos aqui reunidos para rezar por sua alma imortal, para que ela, que amamos em vida, desfrute de sua justa e eterna recompensa. Oremos.
O ataúde feito à pressa estava tão coberto de rosas que não podia ser visto, e repousava sobre uma carreta com rodas que os meninos tinham construído com várias peças de equipamentos agrícolas. Mesmo assim, com as janelas escancaradas e o perfume avassalador das rosas, sentia-se-lhe o cheiro. O médico também andara falando.
— Quando cheguei a Drogheda ela já estava tão podre que não consegui segurar o estômago — disse ele ao telefone a Martin King. — Nunca tive tanta pena de alguém quanto de Paddy Cltary nesse momento, não só por lhe tirarem Drogheda, mas por precisar colocar aquele monte de carne putrefata num caixão.
— Nesse caso, não me oferecerei para carregar o caixão — disse Martin, tão baixo por causa do excesso de extensões ocupadas do mesmo circuito naquele momento, que o doutor teve de fazê-lo repetir a declaração três vezes antes de compreendê-la.
Daí a carreta; ninguém estava disposto a carregar nos ombros os restos mortais de Mary Carson e atravessar com ele todo o relvado até a abóbada. E ninguém ficou triste quando as portas da câmara mortuária se fecharam sobre ela e a respiração normalizou-se por fim.
Enquanto os acompanhantes do enterro se apinhavam na grande sala de jantar, comendo ou fingindo comer, Harry Gough levou Paddy, sua família, Padre Ralph, a Sra. Smith e as duas criadas à sala de estar. Nenhum dos acompanhantes tinha a menor intenção de voltar para casa, e por isso simulavam estar comendo; queriam estar lá para ver a cara de Paddy quando este saísse da sala após a leitura do testamento. Ele e sua família, justiça seja feita, não se haviam comportado durante o enterro como se tivessem consciência do seu elevado status. Simplório como sempre, Paddy chorara a morte da irmã, e Fee tinha a expressão que sempre tivera, como se pouco lhe importasse o que pudesse acontecer-lhe.
— Paddy, quero que você impugne o testamento — disse Harry Gough depois de haver lido o surpreendente documento até o fim, com voz dura e indignada.
— Velha cadela malvada! — resmungou a Sra. Smith; embora gostasse do padre, gostava muito mais dos Clearys, que tinham trazido bebês e crianças à sua vida.
Paddy, porém, abanou a cabeça.
— Não, Harry! Eu não poderia fazer uma coisa dessas. A propriedade era dela, não era? Ela tinha todo o direito de fazer o que bem entendesse com o que era seu. Se queria doá-la à Igreja, queria doá-la à Igreja, e pronto. Não nego que fiquei um pouco decepcionado, mas acontece que sou um sujeito perfeitamente comum, por isso talvez seja melhor assim. Não creio que me agradasse a responsabilidade de possuir uma propriedade do tamanho de Drogheda.
— Você não compreende, Paddy — disse o advogado em voz lenta e clara, como se estivesse dando uma explicação a uma criança. — Não estou falando apenas em Drogheda. Drogheda era a menor parte do que sua irmã tinha para deixar, acredite-me. Ela é uma das principais acionistas de uma centena de grandes companhias, possui fábricas de aço e minas de ouro, ela é a Michar Limited, com um prédio de escritórios de dez andares, todo seu, em Sydney. Ela era mais rica do que qualquer outra pessoa na Austrália! Engraçado, Mary me pediu que me entendesse com os diretores da Michar Limited em Sydney há menos de quatro semanas, para saber a soma exata dos seus bens. Quando morreu, possuía qualquer coisa acima de treze milhões de libras.
— Treze milhões de libras?! — Paddy pronunciou a soma como quem diz a distância da terra ao sol, qualquer coisa totalmente incompreensível. — Isso resolve a questão, Harry. Não quero saber da responsabilidade por essa espécie de dinheiro.
— Não é nenhuma responsabilidade, Paddy! Você ainda não compreendeu? Um dinheiro desse tamanho cuida de si mesmo! Você não teria necessidade alguma de cultivá-lo e colhê-lo; existem centenas de pessoas empregadas cuja única função é tomar conta dele por você. Impugne o testamento, Paddy, porfavorl Eu lhe arranjarei os melhores advogados do país e lutarei por você, nem que seja preciso apelar para o Conselho Privado.
Compreendendo, de repente, que sua família tinha tanto interesse quanto ele, Paddy voltou-se para Bob e Jack, que ouviam, perplexos, sentados num banco de mármore florentino.
— O que é que vocês dizem, rapazes? Querem reivindicar os treze milhões de libras esterlinas da tia Mary? Se quiserem, eu impugnarei, mas, se não, não.
— Nós poderemos viver em Drogheda de qualquer maneira, não é isso o que diz o testamento? — perguntou Bob.
Foi Harry quem respondeu:
— Ninguém poderá expulsá-los de Drogheda enquanto viver pelo menos um neto de seu pai.
— Viveremos aqui na casa-grande, teremos a Sra. Smith e as meninas para cuidar de nós, ganhando um bom ordenado — acudiu Paddy, como se o mais difícil para ele fosse acreditar na sua boa fortuna e não na má.
— Nesse caso, que mais haveremos de querer, Jack? — perguntou Bob ao irmão. — Não está de acordo comigo?
— De pleno acordo — respondeu Jack.
Padre Ralph mexeu-se, intranqüilo. Ele nem sequer trocara as vestes que usara para celebrar a missa de réquiem, nem se sentara para ouvir a leitura do testamento; como um sombrio e belo feiticeiro, permanecia meio oculto na sombra, no fundo da sala, isolado, as mãos debaixo da casula preta, o rosto impassível e, no fundo dos distantes olhos azuis, um ressentimento horrorizado, assombrado. Não receberia sequer a punição tão desejada de fúria ou de desprezo; Paddy lhe entregaria tudo de bandeja e ainda lhe agradeceria por livrar os Clearys de um fardo.
— E quanto a Fee e a Meggie? — perguntou o padre em tom áspero. — Você faz tão pouco caso de suas mulheres que não se dá ao trabalho de consultá-las?
— Fee? — perguntou Paddy, com ansiedade.
— O que você decidir, Paddy. Não me importo.
— Meggie?
— Não quero os treze milhões de moedas de prata dela — disse Meggie com os olhos fixos no Padre Ralph.
Paddy voltou-se para o advogado.
— Então está decidido, Harry. Não queremos impugnar o testamento. A Igreja que fique com o dinheiro de Mary e que faça bom proveito.
Harry juntou as mãos.
— com seiscentos diabos! Eu detesto vê-lo tapeado!
— Pois eu sou muito grato a Mary — disse Paddy suavemente. — Se não fosse por ela, ainda estaria tentando não morrer de fome na Nova Zelândia.
Quando saíam da sala de estar, Paddy deteve o Padre Ralph e estendeu-lhe a mão, diante de todos os acompanhantes do enterro, aglomerados à porta da sala de jantar.
— Padre, não pense que existe algum ressentimento de nossa parte. Mary nunca se deixou influenciar por outro ser humano em toda a sua vida, padre, irmão ou marido. Ouça o que lhe digo, ela fez o que queria fazer. O senhor foi boníssimo para ela e tem sido boníssimo para nós. Nunca o esqueceremos.
A culpa. O fardo. O Padre Ralph quase não se moveu para pegar a mão nodosa e manchada, mas o cérebro do cardeal venceu; apertou-a febrilmente e sorriu, agoniado.
— Obrigado, Paddy. Fique descansado, que zelarei para que nunca lhes falte coisa alguma.
No meio da semana ele se foi, mas não voltou a Drogheda. Passou os poucos dias que lhe restavam em Gilly acondicionando seus poucos pertences e visitando cada fazenda do distrito em que havia famílias católicas, exceto Drogheda.
O Padre Watkin Thomas, procedente do País de Gales, chegou para assumir as funções de pároco do distrito de Gillanbone, enquanto que o Padre Ralph de Bricassart passava a exercer as funções de secretário particular do Arcebispo Cluny Dark. Mas o seu trabalho era leve; ele tinha dois subsecretários. E levava a maior parte do tempo investigando no que e no quanto consistia exatamente o espólio de Mary Carson e investindo-se na posse dele em nome da Igreja.
1929-1932 — PADDY
O ano-novo chegou com a festa anual de Hogmanay em Rudna Hunish, dada por Angus McQueen, e a mudança para a casa-grande ainda não se realizara. Não era coisa que se pudesse fazer da noite para o dia, entre acondicionar mais de sete anos de badulaques acumulados diariamente e a declaração de Fee de que só se mudaria depois que a sala de estar da casa-grande estivesse pronta. Ninguém tinha a menor pressa, embora todos antegozassem a mudança. Em alguns sentidos, a casa-grande não se revelaria diferente: não tinha eletricidade e as moscas a povoavam com a mesma intensidade. No verão, todavia, a temperatura dentro de casa era cerca de oito graus mais baixa do que fora, graças à espessura das paredes de pedra e dos eucaliptos que lhe sombreavam o telhado. Além disso, o banheiro era um verdadeiro luxo e tinha água quente durante o inverno todo, vinda de canos instalados atrás do vasto fogão da cozinha, ao lado, e cada gota que passava pelos canos era de água da chuva. Embora os banhos de imersão e de chuveiro tivessem de ser tomados nessa grande estrutura com seus dez cubículos separados, a casa-grande e todas as casas menores eram liberalmente dotadas de privadas, um grau inédito de opulência que os habitantes invejosos de Gilly haviam sido surpreendidos chamando de sibaritismo. Tirando o Hotel Imperial, duas hospedarias, a casa paroquial católica e o convento, o distrito de Gillanbone só conhecia privadas fora de casa. Excetuando-se, é claro, a sede de Drogheda, graças ao enorme número de tanques e telhados para captar a água da chuva. As regras eram estritas: nada de descargas desnecessárias e muito desinfetante de carneiro. Mas depois dos buracos feitos no chão, aquilo era o paraíso.
Padre Ralph mandara a Paddy um cheque de cinco mil libras no começo do mês de dezembro, para que ele se fosse arranjando, dizia a carta; Paddy passou-o a Fee com uma exclamação de deslumbramento.
— Duvido que eu tenha conseguido ganhar todo esse dinheiro em todos os dias que trabalhei em minha vida — disse ele.
— O que é que vou fazer com isso? — perguntou Fee, alternando os olhos cintilantes entre o cheque e o marido. — É dinheiro, Paddy! Dinheiro afinal, você compreende? Não faço caso dos treze milhões de libras da tia Mary... não há nada real em tanto dinheiro assim. Mas isto é real! O que é que vou fazer com ele?
— Gaste-o — disse Paddy simplesmente. — Que tal umas roupas novas para as crianças e para você? E talvez haja coisas que você queira comprar para a casa-grande. Sei lá! Não consigo imaginar mais nada de que precisemos.
— Nem eu, não é gozado? — Fee levantou-se da mesa do desjejum, chamando Meggie com um gesto imperioso. — Vamos indo, mocinha, vamos dar uma espiada na casa-grande.
Embora já se tivessem passado três semanas depois dos dias de terrível excitação que se seguiram à morte de Mary Carson, nenhum dos Clearys havia chegado perto da casa-grande. Mas agora a visita de Fee compensou-os de sobra da relutância anterior. Ela passou de uma sala a outra em companhia de Meggie, da Sra. Smith, de Minnie e de Cat, animada como a atônita Meggie nunca a vira. Falava consigo mesma, em murmúrios, o tempo todo; isto era medonho, aquilo era um pavor, Mary devia ser daltônica ou, então, nunca tivera uma pitada de bom gosto.
Na sala de estar, Fee demorou-se por mais tempo, inspecionando-a peritamente. Só a sala de recepções a excedia em tamanho, pois media doze metros de comprimentos por nove de largura e quatro e meio de altura. Reunia uma mistura do melhor e do pior em sua decoração, e a pintura creme uniforme, já amarelada, não concorria para realçar os magníficos frisos do teto nem os painéis esculpidos nas paredes. As janelas enormes, que iam do soalho ao teto e que se sucediam, ininterruptas, ao longo dos doze metros que davam para a varanda, tinham cortinas pesadas de veludo marrom, que projetavam uma sombra densa sobre as encardidas poltronas marrons, dois belíssimos bancos de malaquita e dois bancos igualmente belos de mármore florentino, e uma lareira maciça de mármore creme com veios cor-de-rosa. No soalho polido de tábuas de teca, três tapetes Aubusson tinham sido dispostos com geométrica precisão e um lustre de cristal de quase dois metros de comprimento tocava o teto, com a corrente enrolada à sua volta.
— A senhora está de parabéns, Sra. Smith — declarou Fee. — Isto aqui é positivamente horroroso, mas está imaculadamente limpo. Eu lhe darei alguma coisa de que valha a pena cuidar. Estes bancos inestimáveis sem nada para destacá-los! É uma vergonha! Desde que vi esta sala pela primeira vez, desejei transformá-la em algo tão bonito que despertasse a admiração dos que entrassem e, ao mesmo tempo, tão confortável que os que entrassem desejassem ficar.
A escrivaninha de Mary Carson era um estrupício vitoriano; Fee encaminhou-se para o telefone sobre ela, batendo de leve e com desprezo na madeira escura do móvel.
— Minha secretária ficará linda aqui — disse ela. — Começarei com esta sala e, quando a tiver terminado, vou me mudar lá de baixo, antes disso, não Teremos então, afinal, um lugar onde poderemos reunir-nos sem nos sentirmos deprimidos
Sentou-se e tirou o receptor do gancho
Enquanto a filha e as criadas formavam, extáticas, um pequeno grupo aturdido, ela pôs Harry Gough em ação. À Mark Foys mandariam amostras de tecidos pela mala noturna, à Nock & Kirbys mandariam amostras de tintas, à Grace Brothers mandariam amostras de papéis de parede, essas e outras lojas de Sydney mandariam catálogos especialmente compilados para ela, descrevendo os artigos que podiam fornecer. Com voz de riso, Harry garantiu que arranjaria um tapeceiro competente e um grupo de pintores capazes de realizar o trabalho meticuloso exigido por Fee. Bravos para a Sra Cleary! Ela varreria da casa os últimos vestígios de Mary Carson
Concluído o telefonema, todas receberam instruções para arrancar imediatamente as cortinas de veludo marrom das janelas em que estavam penduradas E lá foram para o monte de lixo numa orgia de desperdício, que a própria Fee supervisou, fazendo questão de chegar-lhes pessoalmente a tocha redentora
— Não precisamos delas — disse — e não as infligirei aos pobres de Gillanbone
— Sim, mamãe — concordou Meggie, paralisada
— Não teremos aqui cortina nenhuma — anunciou Fee, sem se preocupar com essa quebra flagrante dos costumes decorativos da época — A varanda é tão larga que não deixa o sol entrar diretamente, de modo que não precisaremos de cortinas. Quero que esta sala seja vista.
Os materiais chegaram, como também chegaram os pintores e o tapeceiro, Meggie e Cat foram mandadas para o alto de uma escada a fim de lavar e lustrar os vidros superiores das janelas, ao passo que a Sra Smith e Mmme se haviam com os inferiores e Fee, andando de um lado para outro, inspecionava tudo com olhos de águia
Na segunda semana de janeiro estava tudo pronto e, de um jeito ou de outro, naturalmente, a notícia vazou pelo circuito telefônico. A Sra Cleary transformara a sala de estar de Drogheda num palácio, e a Sra Hopeton não faria mais que um ato de cortesia acompanhando a Sra Kmg e a Sra O’Rourke numa visita à Sra Cleary a fim de desejar-lhe felicidades na nova residência
Ninguém negou que os esforços de Fee redundaram em beleza pura. Os tapetes creme Aubusson, com seus ramalhetes desbotados de rosas vermelhas e róseas e folhas verdes, tinham sido colocados mais ou menos ao acaso pelo chão, que brilhava como um espelho. Uma nova pintura creme cobria as paredes e o teto, e cada friso e entalhe fora cuidadosamente pintado de dourado, mas os imensos espaços ovalados e lisos dos painéis tinham sido empapelados com seda preta descorada, que ostentava os mesmos ramalhetes de rosas desenhados nos tapetes, como pinturas japonesas postas sobre andas e cercadas de creme e ouro. Abaixara-se o lustre de cristal até que o seu fundo suspenso do teto bimbalhasse a apenas dois metros do soalho, e polira-se cada um dos seus milhares de prismas até arrancar-lhes fúlgidos arco-íris. A grande corrente de bronze estava presa à parede em vez de enrolar-se no teto. Sobre mesas altas e esguias, creme e ouro, viam-se lampiões, cinzeiros e vasos de cristal, estes últimos cheios de rosas creme e róseas; todas as grandes poltronas confortáveis tinham sido recobertas de seda creme achamalotada e colocadas de modo a formar pequenos grupos aconchegantes com grandes escabelos convidativos; num canto ensolarado, encimava a antiga e delicada espineta, enorme vaso de rosas creme e róseas. Acima da lareira pendia o retrato da avó de Fee em sua pálida saia-balão cor-de-rosa e, olhando para ela, no extremo oposto da sala, o retrato ainda maior de uma jovem e ruiva Mary Carson, com o rosto parecido com o da jovem Rainha Victoria, num vestido preto engomado e com anquinhas, segundo a moda do tempo.
— Muito bem — disse Fee — agora podemos mudar-nos lá de baixo. Arrumarei as outras salas devagar. Não é gostoso ter dinheiro e uma casa decente onde gastá-lo?
Uns três dias antes da mudança, tão cedo que o sol ainda nem nascera, os galos no galinheiro cantavam alegremente.
— Patifes miseráveis — disse Fee, embrulhando a louça em jornais velhos. — Não sei o que eles imaginam que fizeram para cantar desse jeito. Nem um ovo na casa para o desjejum, e todos os homens em casa até terminar a mudança. Meggie, você terá de ir ao galinheiro por mim; tenho muito que fazer. — Ela correu os olhos por uma página amarelada do Sydney Morning Herald, rindo-se às gargalhadas de um anúncio de espartilhos que deixavam a cintura fina como cintura de vespa. — Não sei por que Paddy insiste em recebermos todos o jornais; ninguém tem tempo para lê-los. E eles vão-se empilhando depressa demais para poderem ser queimados no fogão. Vejamos este aqui! É de antes de virmos para esta casa. Bem, pelo menos servem para empacotar as coisas.
Era bom ver sua mãe tão alegre -- pensou Meggie ao descer correndo a escada dos fundos e ao atravessar o pátio empoeirado. Embora todo mundo aguardasse com natural interesse o dia da mudança para a casa-grande, sua mãe parecia ansiar por isso, como se pudesse lembrar-se de como era a vida numa casa-grande. E quanta inteligência e quanto bom gosto revelara ela! Coisas de que ninguém se dera conta, mesmo porque, até então, não houvera tempo nem dinheiro para que pudessem manifestar-se. Meggie felicitava-se, comovida; seu pai fora procurar o joalheiro de Gilly e utilizara parte das cinco mil libras para comprar uma gargantilha e um par de brincos de pérolas verdadeiras para sua mãe, só que no meio das pérolas havia uns brilhantezinhos também. Ele pretendia dar-lhe as jóias no seu primeiro jantar na casa-grande. Agora que ela vira o rosto de sua mãe liberto da sombria expressão costumeira, mal conseguia esperar para ver-lhe o semblante quando recebesse as pérolas. Desde Bob até os gêmeos, os filhos aguardavam com ansiedade esse momento, pois o pai lhes mostrara o grande estojo achatado de couro e abrira-o para revelar as leitosas contas opalescentes sobre o leito de veludo negro. A felicidade de sua mãe, que desabrochava, exercera profunda influência neles; era como presenciar o início de uma boa chuva revigorante. Até então não tinham compreendido perfeitamente o quanto ela devera ter sido infeliz nos anos todos em que eles a haviam conhecido.
O galinheiro, muito grande, abrigava quatro galos e mais de quarenta galinhas, que passavam a noite debaixo de um telheiro em ruínas, cujo chão, rigorosamente varrido, tinha, ao longo das bordas, cestos de laranja cheios de palha para a postura; mais atrás, viam-se os poleiros a várias alturas. Durante o dia, porém, as aves passeavam, cacarejando, por um grande cercado fechado de tela. Quando Meggie abriu o portão do cercado e esgueirou-se para dentro, as galinhas reuniram-se, ávidas, à sua volta, imaginando que seriam alimentadas, mas, como só lhes dava de comer à tardinha, Meggie riu-se das suas tolas momices e, passando por entre elas, entrou debaixo do telheiro.
— Francamente, que turma incorrigível de galinhas vocês são! — recriminou-as, severa, enquanto examinava os ninhos. — Quarenta galinhas e apenas quinze ovos! Não dão nem para o desjejum, quanto mais para um bolo. Pois vou lhes dizer uma coisa e é bom que prestem atenção: se vocês não se mexerem para melhorar a situação, irão todas para a panela, e isso tanto se aplica aos senhores do galinheiro quanto às suas excelentíssimas esposas. Portanto, não fiquem assim de rabo erguido e pescoço inchado como se eu não me referisse também aos senhores cavalheiros!
com os ovos cuidadosamente ajeitados no avental, Meggie voltou depressa para a cozinha, cantando.
Sentada na cadeira de Paddy, Fee tinha os olhos parados numa folha do Smith’s Weekly, o rosto branco, os lábios em movimento. Dentro da casa, Meggie ouvia os homens andando de um lado para outro e os sons de Jims e Patsy, de seis anos, rindo-se no berço; eles não podiam levantar-se enquanto os homens não tivessem saído.
— Que aconteceu, mamãe? — perguntou Meggie.
Fee não respondeu. Continuou sentada, olhando à sua frente, enquanto gotas de suor lhe corriam ao longo do lábio superior, os olhos imobilizados por uma dor desesperadamente racional, como se dentro de si mesma ela estivesse reunindo todos os recursos que possuía para não gritar.
— Papai, papai! —gritou Meggie, assustada.
O tom da sua voz trouxe-o depressa, ainda abotoando a camiseta de flanela, seguido de Bob, Jack, Hughie e Stu. Meggie apontou para a mãe sem dizer uma palavra.
O coração de Paddy pareceu bloquear-lhe a garganta. Ele inclinou-se sobre Fee e agarrou com a mão um pulso frouxo.
— Que foi, querida? — perguntou com uma ternura que nenhum dos filhos lhe conhecia; de um modo ou de outro, porém, compreenderam que era a ternura com que ele devia tratá-la quando as crianças não estavam por perto para ouvir.
Ela como que reconheceu o suficiente aquela voz especial para emergir do seu estado de choque. Os grandes olhos cinzentos fixaram-se no rosto dele, tão bom e tão cansado, já não moço.
— Aqui — murmurou, apontando para uma notícia sem muito destaque, quase no fundo da página.
Stuart colocara-se atrás da mãe, com a mão levemente pousada no ombro dela; antes de começar a ler o artigo, Paddy ergueu a vista para o filho, para os olhos tão parecidos com os de Fee, e fez um sinal com a cabeça. O que lhe despertara o ciúme em Frank nunca o faria em Stuart; como se o amor que ambos votavam a Fee os unisse ainda mais em vez de separá-los.
Paddy leu em voz alta, devagar, ao passo que o tom de sua voz se tornava cada vez mais triste. O pequeno cabeçalho dizia: PUGILISTA CONDENADO À PRISÃO PERPÉTUA.
Francis Armstrong Cleary, de 26 anos, pugilista profissional, foi julgado hoje no Tribunal Distrital de Gouldbourn pelo assassínio de Runald Albert Cumming, de 32 anos, operário, ocorrido no mês de julho passado. O júri chegou a sua decisão depois de apenas dez minutos de liberação, recomendando a punição mais severa que o tribunal pudesse aplicar. Era, disse o M. Juiz Fitz-Hugh-Cunneally, um caso simples e evidente, Cumming e Cleary tinham brigado violentamente no bar público do Harbor Hotel no dia 23 de julho. Mais tarde, na mesma noite, o Sargento tom Beardsmore, da polícia de Gouldbourn, acompanhado de policiais, foi chamado ao Harbor Hotel pelo seu proprietário, o Sr. James Ogilvie. Na alameda atrás do hotel a polícia descobriu Cleary esmurrando a cabeça de Cumming, sem sentidos. Em seus punhos ensangüentados viam-se tufos de cabelo de Cumming. Quando foi detido, Cleary estava bêbedo, mas lúcido. Foi acusado de agressão com a intenção de produzir ferimentos graves, mas essa acusação foi mudada para homicídio depois que Cumming morreu de lesões cerebrais no Hospital Distrital de Gouldbourn, no dia seguinte.
O advogado, Sr. Arthur Whyte, alegou, em defesa do réu, a atenuante de insanidade mental, mas quatro peritos médicos da Coroa afirmaram peremptoriamente que, de acordo com o que dispõem as regras de M’Naghten, Cleary não poderia ser declarado insano. Dirigindo-se ao jurados, o M. Juiz Fitz-Hugh-Cunneally disse-lhes que não se tratava de decidir se o réu era culpado ou inocente, pois a sua culpa era clara. Solicitava-lhes, porém, que pensassem bem antes de recomendar clemência ou severidade ao tribunal, pois este pautaria sua decisão pela opinião deles. Ao proferir a sentença contra Cleary, o M. Juiz Fitz-Hugh-Cunneally chamou o ato de ”selvageria subumana” e lamentou que a natureza do crime, não premeditado por ter sido cometido em estado de embriaguez, excluísse o enforcamento, pois, no seu entender, as mãos de Cleary eram uma arma tão mortal quanto um revólver ou uma faca. Cleary foi condenado a prisão perpétua com trabalhos forçados, devendo a sentença cumprir-se na cadeia de Gouldbourn, instituição destinada aos prisioneiros que revelam disposição para a violência. Perguntado se tinha alguma coisa para dizer, Cleary respondeu: ”Não contem à minha mãe”
Paddy olhou para o alto da página à procura da data 6 de dezembro de 1925.
— Isso aconteceu há mais de três anos — observou, perplexo
Ninguém lhe respondeu nem disse nada, pois ninguém sabia o que fazer, da frente da casa veio o riso alegre dos gêmeos, cujas vozes se elevavam numa interminável conversa fiada
— Não contem a minha mãe — disse Fee num murmúrio — E ninguém contou! Oh, meu Deus! Meu pobre, pobre Frank!
Paddy enxugou as lágrimas do rosto com as costas da mão livre, depois acocorou-se diante dela, batendo-lhe de leve no colo
— Fee querida, arrume suas coisas. Vamos vê-lo
Ela ergueu-se e tornou a cair, os olhos no rosto miúdo e branco brilhando como se estivessem mortos, as pupilas enormes revestidas de uma película dourada
— Não posso ir — disse ela, sem nenhuma sugestão de sofrimento, mas fazendo todos sentirem que o sofrimento lá estava — Ele morreria se me visse. Oh, Paddy, isso o mataria! Conheço-o tão bem! Seu orgulho, sua ambição, sua determinação de ser alguém importante. Deixe-o sofrer a vergonha sozinho, é o que ele quer. Você acabou de ler: ”Não contem a minha mãe ”. Precisamos ajudá-lo a guardar o seu segredo. Que bem lhe fará, ou nos fará, a nossa visita?
Paddy ainda estava chorando, mas não por Frank, chorava pela vida que se fora do rosto de Fee, pela morte que ha em seus olhos. Um pé-frio, era isso o que o rapaz sempre fora, o amargo portador da desgraça, erguendo-se para sempre entre Fee e ele como a razão pela qual ela abandonara seu coração e o coração de seus filhos. Todas as vezes que parecia haver alguma felicidade à espera de Fee, Frank a arrebatava. Mas o amor que Paddy votava a ela era tão profundo e tão impossível de ser erradicado quanto o amor que ela votava a Frank, ele nunca mais poderia usar o rapaz como o seu bode expiatório, depois daquela noite na casa paroquial
Por isso, disse
— Bem, Fee, se você acha que é melhor não tentarmos entrar em contato com ele, não tentaremos. Mas eu gostaria de saber se ele está bem, se tudo o que pode ser feito por ele está sendo feito. E se eu escrevesse ao Padre de Bricassart e lhe pedisse para olhar um pouco por Frank?
Os olhos não se animaram, mas um leve tom róseo lhe acudiu às faces.
— Sim, Paddy, faça isso. Só quero que você lhe recomende que não diga a Frank que nós sabemos o que aconteceu. Talvez até Frank se sentisse melhor tendo a certeza de que não sabemos de nada.
Poucos dias depois Fee recuperou quase toda a energia, e o interesse pela redecoração da casa-grande manteve-a ocupada. Mas o seu silêncio tornou-se melancólico outra vez, porém menos severo, envolto na redoma de uma calma inexpressiva. Dir-se-ia que lhe interessava mais o aspecto que teria afinal a casa-grande do que o bem-estar da família. Ela talvez julgasse os filhos capazes de cuidar de si mesmos espiritualmente, e a Sra. Smith e as criadas lá estavam para cuidar deles fisicamente.
Não obstante, a descoberta do destino de Frank comovera profundamente todos os membros da família. Os mais velhos afligiam-se intensamente por sua mãe e passavam noites sem dormir lembrando-se do rosto dela no momento terrível. Amavam-na, e a sua alegria nas poucas semanas anteriores dera-lhes uma visão dela que nunca mais os abandonaria e lhes inspiraria um desejo apaixonado de trazê-la de volta. Se o pai havia sido o fulcro em torno do qual tinham girado suas vidas até então, a partir desse instante a mãe foi colocada ao lado dele. Começaram a tratá-la com um zelo terno e absorto, que nenhum grau de indiferença da parte dela conseguia eliminar. De Paddy a Stu, os membros masculinos da família Cleary conspiraram para fazer da vida de Fee o que ela desejasse, e de todos exigiam fidelidade a esse propósito. Ninguém deveria jamais feri-la ou magoá-la outra vez. E, quando Paddy lhe deu as pérolas de presente e ela as aceitou com uma palavra breve e inexpressiva de agradecimento, sem nenhum prazer e nenhum interesse no exame das jóias, todos concluíram que sua reação seria muito diferente se não fosse por Frank.
Se a mudança para a casa-grande não tivesse ocorrido, a pobre Meggie teria sofrido muito mais do que sofreu, pois, embora não fosse admitida plenamente como membro da sociedade masculina de proteção à mãe (sentindo talvez que a sua participação era mais relutante do que a deles), o pai e os irmãos mais velhos esperavam que ela arcasse com todas as tarefas que a Fee obviamente repugnavam. Na realidade, a Sra. Smith e as criadas partilharam do fardo com Meggie. Repugnava particularmente a Fee o cuidado dos dois filhos menores, mas a Sra. Smith assumiu todo o encargo de Jims e Patsy com tamanho ardor que Meggie não poderia ter pena dela; ao invés disso, sentia-se de certo modo contente porque os dois poderiam, afinal, pertencer inteiramente à governanta. Meggie sofria também por sua mãe, mas não o fazia de modo tão completo quanto os rapazes, pois a lealdade deles estava sendo posta cruelmente à prova; a grande veia materna que havia nela sentia-se profundamente ofendida pela indiferença cada vez maior de Fee por Jims e Patsy. Quando eu tiver meus filhos, pensava no mais íntimo de si mesma, nunca amarei um deles mais do que os outros.
Viver na casa-grande, por certo, era muito diferente. A princípio estranharam o fato de ter um quarto só para si, e as mulheres, o de não precisar preocupar-se com nenhuma tarefa doméstica, dentro ou fora de casa. Minnie, Cat e a Sra. Smith davam conta de tudo sozinhas, desde lavar e passar a ferro até cozinhar e limpar, e ficavam horrorizadas com os oferecimentos de ajuda. Em troca de muita comida e minguados salários, uma procissão interminável de andarilhos registrava-se nos livros da fazenda como biscateiros, que rachavam lenha para os fogões e lareiras da sede, alimentavam as aves e os porcos, ordenhavam, ajudavam o velho tom a tomar conta dos belos jardins e faziam toda a limpeza pesada.
Paddy se andara comunicando com o Padre Ralph.
”A renda das propriedades de Mary totaliza aproximadamente quatro milhões de libras por ano, graças ao fato de ser a Michar Limited uma companhia de propriedade particular, com a maior parte do seu ativo empregado em aço, navios e mineração”, escreveu o Padre Ralph. ”Por isso, o que lhe destinei não passa de uma gota d’água no balde da fortuna Carson e não chega sequer a um décimo dos lucros da fazenda Drogheda num ano. Tampouco se preocupe com os anos maus. A conta-corrente da fazenda Drogheda tem um saldo positivo tão grande, que eu poderia pagá-lo sempre só com o dinheiro dos juros, se fosse necessário. Por conseguinte, o dinheiro que lhe chega às mãos não é senão o que você merece, e não abala a Michar Limited. Você está recebendo dinheiro da fazenda, e não dinheiro da companhia. Só lhe peço que mantenha atualizados e corretamente escriturados os livros da fazenda para os auditores.”
Foi depois de receber essa carta que Paddy celebrou uma conferência na bela sala de estar, uma noite em que estavam todos em casa. Sentou-se, com os meios-óculos de aros de metal empoleirados no nariz romano, numa grande poltrona creme, ajeitou confortavelmente os pés num escabelo da mesma cor e colocou o cachimbo num cinzeiro de cristal.
— Como isto é gostoso! — Sorriu, olhando à sua volta com prazer. — Creio que devemos aprovar um voto de agradecimento a mamãe, vocês não acham, rapazes?
Ouviram-se murmúrios de assentimento dos ”rapazes”; sentada no que havia sido a bergère de Mary Carson, recoberta agora de uma seda creme pálida, Fee inclinou a cabeça. Meggie enroscou os pés em torno do escabelo que lhe fazia as vezes de poltrona e obstinou-se em manter os olhos fixos na meia que estava cerzindo.
— Bem, o Padre de Bricassart organizou tudo e mostrou-se muito generoso — continuou Paddy. — Depositou sete mil libras no banco em meu nome, e abriu cadernetas de poupança com a importância inicial de duas mil libras para cada um de nós. Receberei quatro mil libras por ano como gerente da fazenda e Bob, três mil, como subgerente. Os rapazes que já estão trabalhando (Jack, Hughie e Stu) receberão duas mil, e os pequenos, mil libras anuais, até chegarem à idade de saber o que querem fazer.
Quando os pequenos crescerem, o espólio pagará a cada um uma renda anual igual à dos irmãos que estiverem trabalhando em Drogheda, mesmo que eles não queiram trabalhar na fazenda. Quando Jims e Patsy completarem doze anos, serão enviados ao Riverview College, em Sydney, como internos, e ali serão educados às expensas do espólio.
”Mamãe terá duas mil libras por ano para si, e o mesmo será dado a Meggie. Para custear as despesas da casa receberemos cinco mil libras, embora eu não saiba onde foi que o padre descobriu que precisamos de tanto dinheiro para dirigir a casa. Segundo ele, isso servirá para a hipótese de querermos fazer maiores alterações. Recebi suas instruções no tocante ao que deve ser pago à Sra. Smith, a Minnie, a Cat e a tom, e devo dizer que ele não foi mesquinho. Quanto aos outros salários, estes serão fixados por mim. Mas minha primeira decisão como gerente é contratar pelo menos mais seis pastores, para que Drogheda possa ser dirigida como deve sê-lo. A fazenda é grande demais para tão pouca gente.”
Isso foi o máximo que ele disse em toda a sua vida, à guisa de censura, sobre os métodos de sua irmã na gestão da propriedade.
Nunca passara pela cabeça de ninguém a idéia de ter tanto dinheiro; continuaram todos sentados, em silêncio, tentando assimilar a boa sorte que lhes caía do céu.
— Não chegaremos a gastar nem a metade disso, Paddy — disse Fee. — Ele não nos deixou nada em que gastar.
Paddy olhou carinhosamente para ela.
— Eu sei, mamãe. Mas não é bom pensar que nunca mais teremos de preocuparnos com dinheiro? — Ele limpou a garganta. — Agora tenho a impressão de que mamãe e Meggie ficarão um pouco sem ter o que fazer — prosseguiu. — Nunca fui muito bom com números, mas mamãe soma, diminui, divide e multiplica como uma professora de aritmética. Por isso ela será a guarda-livros de Drogheda, em substituição ao escritório de Harry Gough. Eu não sabia disso, mas Harry empregou um sujeito só para lidar com as contas de Drogheda e, de momento, ele está com falta de empregados, de modo que não se incomoda de passar-nos o serviço. Aliás, foi ele quem sugeriu que mamãe seria uma boa contabilista. E vai mandar uma pessoa de Gilly para ensiná-la a fazer tudo direitinho, mamãe. O negócio, aparentemente, é muito complicado. Você terá de escriturar os livros, razão, o livro caixa, os diários, registrar tudo no livro de registro e assim por diante. O bastante para mantê-la ocupada, embora não seja um trabalho tão duro quanto o do fogão e o do tanque de lavar roupa, creio eu.
Meggie por pouco não gritou: ”E eu? Eu lavei tanta roupa e cozinhei tanta comida quanto mamãe!”
Fee estava sorrindo, realmente sorrindo, pela primeira vez desde que tivera notícias de Frank.
— vou gostar do serviço, Paddy, vou gostar mesmo. Assim me sentirei parte de Drogheda.
— Bob vai ensiná-la a dirigir o novo Rolls, pois você terá a incumbência de fazer as viagens a Gilly para ir ao banco ver Harry. Além disso, será bom para você saber-se capaz de ir aonde quiser sem depender de que um de nós esteja por perto. Estamos muito isolados aqui. Sempre tive a intenção de ensinar vocês, meninas, a dirigir, mas até agora nunca tive tempo para isso. Está bem, Fee?
— Está bem, Paddy — retrucou ela com expressão feliz.
— Agora, Meggie, vamos tratar de você.
Meggie depôs a meia e a agulha e ergueu os olhos para o pai com uma expressão em que se mesclavam a indagação e o ressentimento, certa de saber o que ele diria: sua mãe estaria ocupada com os livros e, portanto, caberia a ela o serviço de supervisionar a casa e seus arredores.
— Eu detestaria vê-la transformar-se numa ociosa e esnobe senhorita, como algumas filhas de posseiros que conhecemos — disse Paddy com um sorriso que lhe tirou das palavras qualquer indício de desdém. — Por isso vou dar-lhe um serviço de tempo integral também, Meggiezinha. Você inspecionará as pastagens internas para nós: Borehead, Creek, Carson, Winnemurra e North Tank. Tomará conta do Home Paddock. Será responsável pelos cavalos de lida, e saberá quais são os que estão trabalhando e quais são os que estão sendo substituídos. Nas épocas de reunião dos carneiros e de parição, trabalharemos todos juntos, é claro, mas, nas épocas normais, você trabalhará sozinha, suponho eu. Jack poderá ensinar-lhe a manejar os cachorros e a usar o chicote. Você ainda é uma garota levada e, por isso, calculei que talvez gostasse mais de trabalhar nas pastagens do que ficar flanando aqui em casa — rematou, com um sorriso maior do que nunca.
O ressentimento e o descontentamento haviam fugido pela janela à proporção que ele, falando, voltava a ser o pai que a amava e pensava nela. Que acontecera com ela, para duvidar dele dessa maneira? Meggie sentiu tanta vergonha de si mesma que teve ímpetos de enfiar a grande agulha de cerzir na perna, mas estava tão feliz que não poderia pensar por muito tempo em nenhuma espécie de autopunição. De qualquer maneira, aquele era apenas um modo extravagante de expressar o seu remorso.
Seu rosto se iluminou.
— Oh, papai, adorarei fazer isso!
— E quanto a mim, papai? — perguntou Stuart.
— As meninas já não precisam de você aqui em casa, de modo que voltará para as pastagens, Stu.
— Está bem, papai.
Ele olhou com ternura para Fee, mas não disse uma palavra.
Fee e Meggie aprenderam a dirigir o novo Rolls-Royce que Mary Carson recebera uma semana antes de morrer, e Meggie aprendeu a manejar os cachorros enquanto Fee aprendia a escriturar os livros.
Não fora a continuada ausência de Padre Ralph e Meggie, pelo menos, se teria sentido inteiramente feliz. Era isto mesmo o que sempre ambicionara fazer: estar lá fora, nos pastos, montada num cavalo, executando o trabalho dos pastores. Entretanto, o desejo de ver o Padre Ralph continuou ali também, a lembrança do seu beijo era algo com que ela sonhava, que guardava como um tesouro, que ressentia um milhão de vezes. A lembrança, contudo, não se podia comparar com a realidade; por mais que tentasse, não conseguia evocar a verdadeira sensação, somente uma sombra dela, como uma nuvem fina e triste.
Quando ele escreveu para falar-lhes sobre Frank, suas esperanças de que Padre Ralph se valeria do assunto como pretexto para visitá-los foram repentinamente por água abaixo. A descrição que ele fez da viagem para ver Frank na cadeia de Gouldbourn foi cuidadosamente redigida, despojada da dor que engendrara e sem a menor alusão à psicose de Frank, que se agravava dia a dia. Ele tentara em vão internar o rapaz no asilo de Morisset para os criminosos portadores de perturbações mentais, mas ninguém lhe dera ouvidos. Por isso mesmo, limitou-se a transmitir a imagem idealista de um Frank resignado a pagar sua dívida para com a sociedade e, num trecho bem sublinhado, contou que Frank não tinha a menor idéia de que a família sabia o que lhe acontecera. A notícia chegara ao seu conhecimento, assegurara o padre a Frank, através dos jornais de Sydney, e ele cuidaria de manter os Clearys na ignorância de tudo. Depois de ouvir-lhe essa afirmação, disse ele, Frank ficou mais calmo e o assunto morreu aí.
Paddy falou em vender a égua castanha de Padre Ralph. Meggie utilizava o cavalo preto pernalteiro como animal de lida, mais leve de boca e de natureza mais dócil do que as éguas ariscas e os cavalos intratáveis dos cercados. Os animais de lida eram inteligentes e raramente mansos. Nem mesmo a total ausência de garanhões servia para torná-los muito amáveis.
— Oh, por favor, papai! Posso montar a égua castanha também? — pediu Meggie. — Pense em como seria horrível se, depois de todos os benefícios que nos fez, o Padre voltasse aqui para nos visitar e descobrisse que vendemos a sua égua!
Paddy a encarou com bondade.
— Meggie, não creio que o Padre volte aqui algum dia.
— Mas pode voltar! Nunca se sabe!
Os olhos, tão parecidos com os de Fee, desarmaram-no. Não poderia persuadirse a magoá-la mais do que já estava magoada, pobrezinha!
— Está bem, Meggie, ficaremos com a égua, mas não se esqueça de usar regularmente os dois, a égua e o cavalo, pois não quero saber de animais gordos em Drogheda, ouviu?
Até então não lhe agradara usar a montaria do Padre Ralph, mas, depois disso, ela passou a montar ora um, ora outro, para dar aos dois, na cocheira, a oportunidade de fazer jus à aveia que comiam.
E ainda bem que a Sra. Smith, Minnie e Cat eram loucas pelos gêmeos, pois estando Meggie lá fora nos pastos e Fee sentada horas e horas à sua secretária na sala de estar, os dois sujeitinhos se divertiam horrores. Estavam em toda parte, mas tão alegres e com um bom humor tão constante que ninguém poderia zangar com eles por muito tempo. À noite, em sua pequena casa, a Sra. Smith, que se convertera ao catolicismo havia muito tempo, punha-se de joelhos para dizer suas orações com uma gratidão tão profunda em seu coração que mal conseguia contê-la. Filhos, nunca os tivera para alegrá-la enquanto Rod fora vivo e, durante anos, a casa-grande vivera vazia de crianças e suas ocupantes tinham sido terminantemente proibidas de misturar-se com os habitantes das casas dos pastores lá embaixo, ao pé do arroio. Mas, quando os Clearys chegaram, parentes de Mary Carson, chegaram também as crianças. Ainda mais agora, que Jims e Patsy eram residentes permanentes da casa-grande.
O inverno fora seco e as chuvas de verão não apareceram. Viçoso e alto, batendo no joelho das pessoas, o capim fulvo secou de tal maneira ao sol implacável que o âmago de cada haste de relva se tostou. Para olhar por cima das pastagens era preciso entrefechar os olhos e manter o chapéu bem desabado sobre a testa; a relva assemelhava-se a um espelho de prata, e pequenos remoinhos de vento espiralados passavam atarefados por entre miragens azuis e tremeluzentes, transferindo folhas mortas e hastes partidas de um monte inquieto para outro.
E como tudo estava seco! Até as árvores estavam secas, e a casca lhes caía em fitas duras e estrepitosas. Ainda não havia perigo de que os carneiros morressem de fome — a relva duraria mais um ano pelo menos, talvez mais — mas ninguém gostava de ver tudo tão seco. Havia sempre uma boa probabilidade de que as chuvas não viessem no ano seguinte, nem no outro. Num ano bom, as precipitações atingiam duzentos e cinqüenta e três a trezentos e oitenta milímetros, num ano mau não chegavam a cento e vinte e seis milímetros e às vezes mal subiam acima de zero.
A despeito do calor e das moscas, Meggie amava a vida nos pastos, conduzindo a égua castanha atrás de um rebanho de carneiros que balia, enquanto os cães, estatelados no chão, com a língua de fora, pareciam desatentos. Bastava, porém, que uma ovelha se desgarrasse do rebanho compacto para que o cachorro mais próximo disparasse no seu encalço, como um raio de vingança, os dentes afiados ansiando por morder um casco infeliz.
Meggie cavalgou à frente do rebanho, bem-vindo alívio depois de haver respirado o pó que os carneiros tinham levantado durante vários quilômetros, e abriu a porteira do pasto. Esperou, paciente, que os cães, deliciando-se com essa oportunidade de mostrar-lhe o que sabiam fazer, mordendo e cercando, obrigassem os carneiros a passar pela porteira. Era mais difícil reunir e tocar o gado, que escoiceava e investia contra os cães, matando, não raro, um cachorro desavisado; nesse momento o pastor precisava estar preparado para entrar em ação e usar o chicote, mas os cães gostavam do sabor do perigo trabalhando com bois e vacas. Essa parte, porém, não se exigia dela; era o próprio Paddy quem lidava com o gado.
Os cachorros, contudo, nunca deixavam de fasciná-la; sua inteligência era fenomenal. A maioria dos cães de Drogheda pertencia à raça dos kelpies, de um rico pêlo castanho-amarelado e patas, peito e testa creme, mas havia também os blues de Queensland, maiores, de pêlo cinzento-azulado, malhado de preto e todas as variedades de cruza entre kelpies e blues. Quando as cadelas ficavam no cio, eram cientificamente acasaladas, emprenhadas e pariam; depois de desmamados e crescidos, experimentavam-se os filhotes nas pastagens; se fossem bons, guardavam-se ou vendiam-se, se não prestassem, matavam-se.
Assobiando para os cachorros a fim de chamá-los à ordem, Meggie fechou a porteira após a passagem do último carneiro e guiou a égua castanha na direção da casa. Ali perto havia um grupo grande de árvores, várias espécies de eucaliptos e buxos e uma ou outra wilga na periferia. Dirigiu-se, agradecida, a sua sombra e, tendo agora tempo para olhar em torno, correu os olhos com prazer. Os eucaliptos estavam cheios de periquitos que gritavam e assobiavam suas paródias de cantos; tentilhões pulavam de galho em galho; duas cacatuas de crista roxa,deitadas com a cabeça inclinada para o lado, observavam-lhe o progresso com olhos faiscantes; lavandiscas esquadrinhavam a terra à procura de formigas, com seus absurdos traseiros bamboleando; corvos crocitavam eterna e lamentosamente. O ruído que faziam era o mais detestável de todo o repertório musical do mato, sem alegria, desolado e de certo modo sinistro, a sugerir carne podre, carniça e moscas-varejeiras. Pensar num corvo cantando como uma araponga era impossível: o grito e a função ajustavam-se perfeitamente.
É evidente que havia moscas em toda a parte; Meggie usava um véu sobre o chapéu, mas os seus braços nus eram constantemente assediados, e a cauda da égua castanha não parava de zunir e sua carne não parava de tremer e arrepiar-se. Surpreendia Meggie que mesmo através do couro e do pêlo um cavalo pudesse sentir algo tão delicado e leve quanto uma mosca. Elas bebiam o suor, e por isso atormentavam cavalos e humanos, mas estes nunca se deixavam fazer o que lhes permitiam os carneiros, que elas utilizavam para um propósito mais íntimo, botando seus ovos em torno da lã do traseiro, ou onde quer que encontrassem lã úmida e suja
Enchia o ar o zumbido das abelhas e animavam-no as brilhantes e ligeiras libélulas, que procuravam os drenos do poço, ao lado de borboletas lindamente coloridas e mariposas diurnas. Com um casco, sua montaria virou do avesso um tronco podre, Meggie olhou para o lado do tronco que estivera colado à terra e sua pele se arrepiou toda. Havia larvas de mariposas, gordas, brancas e asquerosas, bichos-de-conta e lesmas, imensas centopéias e aranhas. De suas tocas, coelhos saltavam e se detinham, disparavam de novo para dentro da toca, esguichando jatos de pó branco no ar, depois voltavam para espiar, torcendo o focinho. Mais adiante uma equidna interrompeu sua busca de formigas, tomada de pânico ante a aproximação dela. Escavando a terra tão depressa que suas robustas patas providas de garras sumiram em poucos segundos, ela começou a desaparecer debaixo de um tronco imenso. Fazia trejeitos divertidos enquanto cavava, e os espinhos cruéis se lhe achatavam ao longo do corpo a fim de facilitar-lhe a entrada debaixo do solo, enquanto a terra voava de todos os lados.
Ela saiu do meio das árvores para o caminho principal que conduzia à sede da fazenda. Uma camada cinzenta malhada cobria a poeira de um trecho do caminho, eram cacatuas à cata de insetos ou vermes, ouvindo-a aproximar-se, alçaram vôo em massa. Meggie teve a impressão de ser avassalada por uma onda cor-de-rosa, peitos e asas ergueram-se acima de sua cabeça, o cinzento magicamente transformado em róseo. Se tivesse de deixar Drogheda amanhã, pensou ela, para nunca mais voltar, eu a veria em sonhos como uma aquarela de peitos cor-de-rosa de cacatuas. Mais adiante devia estar ficando muito seco, os cangurus chegavam em quantidades cada vez maiores.
Um grande rebanho de cangurus, de umas duas mil cabeças, interrompeu seu tranqüilo pastoreio, assustado pelas cacatuas e perdeu-se na distância em longos e graciosos saltos, que engoliam léguas mais depressa do que qualquer outro animal, com exceção da ema. Os cavalos não conseguiam acompanhá-los.
Entre um e outro momento prazeroso de estudo da natureza, ela pensava em Ralph, como sempre Em seu íntimo, Meggie jamais classificara o que sentia por ele como paixonite de menina, e simplesmente lhe chamava amor, como se fazia nos livros. Seus sintomas e sentimentos não diferiam dos de uma heroína de Ethel M Dell Nem lhe parecia justo que uma barreira tão artificial quanto o sacerdócio pudesse erguer-se entre ela e o que ela queria dele, isto é, tê-lo por marido. Viver com ele como seu pai vivia com sua mãe, em tão grande harmonia que ele a adoraria como Paddy adorava Fee. Sua mãe nunca fizera muita coisa para conquistar a adoração de seu pai, pensava Meggie, e, não obstante, ele a adorava. Dessa maneira, Ralph logo veria que viver com ela era muito melhor do que viver sozinho, pois ela ainda não se compenetrara de que o sacerdócio era alguma coisa a que Ralph não poderia renunciar em hipótese nenhuma. Sim, ela sabia que era proibido ter um padre por marido, ou por amante, mas adquirira o hábito de contornar a dificuldade despindo Ralph do seu ofício religioso. Sua educação católica formal nunca chegara à discussão da natureza dos votos religiosos, e como ela mesma não precisasse da religião, não a continuou voluntariamente. E visto que a oração não lhe proporcionava satisfação, Meggie obedecia às leis da Igreja simplesmente porque, se o não fizesse, arderia no inferno por toda a eternidade.
Em seu atual devaneio, comprazia-se na bem-aventurança de viver com ele e dormir com ele, como seu pai vivia e dormia com sua mãe. Depois, a idéia da proximidade dele a excitava, fazia-a mexer-se na sala, desassossegada; e ela traduzia o desassossego num dilúvio de beijos, pois carecia de outro critério. As cavalgadas pelos pastos não lhe tinham aprimorado a educação sexual, já que a simples fungadela de um cachorro ao longe expulsava todo e qualquer desejo de acasalamento da mente de qualquer animal e, como em todas as fazendas, o acasalamento indiscriminado não era permitido. Quando os carneiros eram levados para as ovelhas de determinado pasto, Meggie tomava outro rumo, e a vista de um cachorro trepado em outro era apenas o sinal para separar o par com o chicote e fazer os dois desistirem da ”brincadeira”.
Talvez nenhum ser humano esteja em condições de julgar o que é pior: se o desejo incipiente com a inquietude e a irritabilidade dele decorrentes ou o desejo específico com o seu impulso voluntário para satisfazê-lo. A pobre Meggie desejava, embora não soubesse bem o quê, mas o impulso básico lá estava, e arrastava-a inexoravelmente na direção de Ralph de Bricassart. E ela sonhava com ele, ansiava por ele, desejava-o; e deplorava que, apesar do amor que ele mesmo declarara, ela significasse tão pouco para ele que não o levasse sequer a visitá-la.
No meio dos seus sonhos, avistou Paddy, que também chegava à sede e seguia o mesmo caminho; sorrindo, ela freou a égua castanha e esperou que ele a alcançasse.
— Que boa surpresa — disse Paddy, emparelhando o velho ruão com a égua quase nova da filha.
— É mesmo — concordou ela. — Está muito seco daquele lado?
— Um pouco pior do que aqui, creio eu. Misericórdia, nunca vi tanto canguru! Deve estar tudo estorricado no caminho de Milparinka. Martin King andou falando numa grande matança, mas não vejo como um exército de metralhadoras poderia reduzir suficientemente o número dos cangurus para se notar a diferença.
Ele estava tão amável, tão atencioso, parecia tão disposto a perdoar e a amar; e era tão raro que ela tivesse o ensejo de estar com ele sem ter pelo menos um dos rapazes ao seu lado. Antes que pudesse mudar de idéia, Meggie fez a pergunta que lhe resumia todas as dúvidas, a pergunta que a atormentava e afligia, apesar de suas reafirmações.
— Papai, por que é que o Padre de Bricassart nunca vem nos visitar?
— Ele está ocupado, Meggie — respondeu Paddy, cuja voz se tornara cautelosa.
— Mas até os padres têm férias, não têm? Ele gostava tanto de Drogheda, que tenho a certeza de que gostaria de passar as férias aqui.
— De certo modo os padres têm férias, Meggie, mas, de outro, nunca estão de folga. Por exemplo, ele têm de rezar missa todos os dias de sua vida, nem que estejam inteiramente sós. Creio que o Padre de Bricassart é um homem muito sábio e não ignora que nunca se pode voltar a um estilo de vida que já passou. Para ele, Meggie, Drogheda é um pedaço do passado. Se voltasse aqui, esse estilo já não lhe daria o mesmo tipo de prazer a que está habituado.
— Você quer dizer que ele nos esqueceu — disse a jovem com voz apagada.
— Não, não verdadeiramente. Se nos tivesse esquecido, não nos escreveria com tanta freqüência, nem pediria notícias de cada um de nós. — Ele virou-se na sela e havia piedade em seus olhos azuis. — Como entendo que é melhor que ele não volte nunca mais, não o animo a pensar nisso convidando-o a vir aqui.
— Papai!
Mas Paddy estava decidido a ir ao fundo da questão.
— Ouça, Meggie, é errado você pensar num padre, e já é tempo de compreendêlo. Você guardou muito bem guardado o seu segredo, e creio que mais ninguém sabe o que você sente por ele, mas é a mim que se dirigem as suas perguntas, não é? Não muitas, mas o bastante. Pois ouça o que vou dizer-lhe: você precisa parar, entendeu? O Padre de Bricassart fez votos sagrados, que sei que ele não tem a menor intenção de quebrar, e você se enganou a respeito dos sentimentos dele por você. Ele já era um homem adulto quando a conheceu, e você, uma menininha. Pois muito bem, é desse jeito que ele pensa em você, Meggie, até o dia de hoje.
A jovem não respondeu, nem o seu rosto se alterou. Ela é bem filha de Fee, pensou ele, não há dúvida.
Volvido um momento, ela disse, tensa:
— Mas ele poderia deixar de ser padre. Acontece apenas que ainda não tivemos a oportunidade de conversar sobre isso.
O choque estampado no rosto de Paddy era tão autêntico que ela não poderia deixar de acreditar nele. E a expressão do pai lhe pareceu mais convincente do que as palavras, por veementes que fossem.
— Meggie! Oh, meu Deus, nisso é que dá morar no mato! Você devia estar na escola, minha filha, e se sua tia Mary tivesse morrido um pouco antes, eu a teria mandado para Sydney com tempo suficiente para dar-lhe, pelo menos, mais dois anos de estudos. Mas você agora está muito velha, não está? Eu não gostaria que as outras rissem de você por causa de sua idade, pobre Meggiezinha. — Ele prosseguiu mais suavemente, espaçando as palavras para imprimir-lhes uma crueldade incisiva e lúcida, embora não tivesse a intenção de ser cruel, mas apenas de varrer ilusões de uma vez por todas. — O Padre de Bricassart é um sacerdote, Meggie. Compreenda bem, ele nunca, nunca poderá deixar de sê-lo. Os votos que fez são sagrados, sagrados demais para quebrar. Depois que um homem se faz padre, não pode voltar atrás, e seus supervisores no seminário se certificaram de modo absoluto de que ele sabia o que estava jurando antes de jurá-lo. Um homem que faz esses votos sabe, sem qualquer sombra de dúvida, que, depois de feitos, não podem ser quebrados, nunca. O Padre de Bricassart os fez, e nunca os quebrará. — Ele suspirou. — Agora você sabe, não sabe, Meggie? A partir deste momento, não terá mais desculpas para sonhar com o Padre de Bricassart.
Eles tinham chegado pela frente da casa e, por isso, as cocheiras estavam mais próximas do que os cercados: sem dizer uma palavra, Meggie virou a égua castanha na direção das cocheiras, e deixou o pai continuando sozinho. Durante algum tempo ele ficou dando voltas para não a perder de vista, mas, depois que ela desapareceu do outro lado da cerca que rodeava as cocheiras, cutucou com os calcanhares as costelas do ruan e terminou a cavalgada com um meio galope, odiando-se e odiando a necessidade que tivera de dizer o que dissera. Maldita história a das relações entre o homem e a mulher! Parecia ter um conjunto de regras que discrepavam de todas as outras.
Embora muito fria, a voz do Padre Ralph de Bricassart era, assim mesmo, mais quente que os seus olhos, que nunca se desviavam do rosto lívido do jovem padre, enquanto pronunciava suas palavras duras e medidas.
— O senhor não se conduziu como Nosso Senhor Jesus Cristo exige que Seus padres se conduzam. Creio que o sabe melhor do que nós, que o censuramos, poderemos jamais sabê-lo, mas ainda assim preciso censurá-lo em nome do nosso arcebispo, que é para o senhor não apenas um colega de profissão, mas também seu superior hierárquico. O senhor lhe deve obediência perfeita e não lhe compete discutir as opiniões nem as decisões de Sua Excelência.
”Compreende realmente a vergonha que acarretou para si, para a sua paróquia e sobretudo para a Igreja que diz amar mais do que a qualquer ser humano? O seu voto de castidade foi solene e proibitivo como os demais, e quebrá-lo é pecar gravemente. Está claro que nunca mais verá a mulher, mas cumpre-nos assisti-lo em suas lutas para vencer a tentação. Por isso, determinamos que parta imediatamente a fim de servir na paróquia de Darwin, no Território do Norte. Embarcará para Brisbane esta noite no trem expresso e de lá seguirá, também de trem, até Longreach. Em Longreach tomará um avião da QANTAS para Darwin. Seus pertences estão sendo empacotados neste momento e estarão no expresso antes da sua partida, de modo que o senhor não tem necessidade de voltar à sua atual paróquia.
”Agora vá para a capela com o Padre John e reze. Ficará na capela até o momento de ir para a estação. A fim de confortá-lo e consolá-lo, o Padre John lhe fará companhia até Darwin. Está dispensado.”
Eram sábios e acautelados os padres encarregados da administração; não concederiam ao pecador nenhuma oportunidade de um novo contato com a jovem com quem ele se amasiara. Aquilo fora o escândalo da sua atual paróquia, e muito constrangedor. Quanto à moça — ela que esperasse, observasse e refletisse. Desde aquele momento até a sua chegada a Darwin ele seria vigiado pelo excelente Padre John, que tinha recebido instruções taxativas e, depois disso, todas as cartas que mandasse de Darwin seriam abertas, e não lhe seria permitido fazer nenhuma ligação interurbana. Ela nunca saberia para onde ele fora, e ele não poderia contar-lhe. Nem lhe seria dada outra oportunidade de se interessar por outra moça. Darwin era uma cidade de fronteira e as mulheres ali quase não existiam. Seus votos eram absolutos, ele jamais poderia ser dispensado deles; e se era tão fraco que não conseguia policiar-se, a Igreja o faria em seu lugar.
Depois de ver o jovem padre e o cão de guarda que lhe haviam impingido sair da sala, Padre Ralph levantou-se da sua mesa e passou a uma câmara interna. O Arcebispo Cluny Dark estava sentado na poltrona costumeira e, formando um ângulo reto com ele, outro homem de faixa e calota purpurinas, também sentado, permanecia em silêncio. O arcebispo era um homenzarrão, com uma bela cabeleira branca e olhos intensamente azuis; sujeito do tipo vigoroso, tinha um agudo senso de humor e amava os prazeres da boa mesa. Seu visitante era quase o oposto: pequeno e magro, uns poucos fiapos esparsos de cabelo preto em torno do solidéu e, debaixo deles, um rosto ascético, a tez pálida realçada pela sombra escura da barba e dois olhos grandes e escuros. Na aparência, poderia ter qualquer idade entre trinta e cinqüenta anos, mas, na realidade, tinha trinta e nove e era, portanto, três anos mais velho do que o Padre Ralph de Bricassart.
— Sente-se, Padre, tome uma xícara de chá — convidou o Arcebispo jovialmente. — Eu já estava começando a pensar que teríamos de mandar buscar um novo bule. Dispensou o rapaz com uma adequada admoestação para que se emende?
— Sim, Excelência — respondeu o Padre Ralph, e sentou-se na terceira cadeira ao lado da mesa do chá, cheia de sanduíches fininhos de pepino, bolos cobertos de um glacê róseo e branco, bolinhos assados na chapa, ainda quentes, besuntados de manteiga, pratos de cristal com geléia e nata batida, um serviço de chá de prata e xícaras de porcelana Aynsley com o interior primorosamente folheado a ouro.
— Tais incidentes são lamentáveis, meu caro Arcebispo, mas até nós, que fomos ordenados padres de Nosso Senhor, somos criaturas fracas, demasiado humanas. Sinto em meu coração profunda pena dele, e rezarei esta noite para que encontre mais força no futuro — disse o visitante.
O sotaque era manifestamente estrangeiro, a voz, suave, com uma sutil sibilância nos esses. De nacionalidade italiana, seu título e seu nome eram Sua Excelência e Legado Papal à Igreja Católica Australiana, Arcebispo Vittorio Scarbanza di ContiniVerchese. Incumbia-lhe o papel delicado de estabelecer um elo entre a hierarquia australiana e o centro nervoso do Vaticano; o que significava que era o sacerdote mais importante desta seção do mundo.
Antes de receber sua nomeação ele esperara, naturalmente, ser indicado para os Estados Unidos da América, mas depois, pensando bem, chegou à conclusão de que a Austrália também lhe serviria. Embora fosse um país muito menor em população, mas não em área, era também muito mais católico. À diferença do resto do mundo de fala inglesa, ser católico não representava na Austrália nenhum desmerecimento social, nem constituía desvantagem alguma para um candidato a político, a homem de negócios ou a juiz. E era um país rico, sustentava bem a Igreja. Não havia perigo de que Roma o esquecesse enquanto estivesse na Austrália.
O Legado Papal era também um homem sutilíssimo, e seus olhos, por cima da borda dourada da xícara de chá, não se fixavam no Arcebispo Cluny Dark, porém no Padre Ralph de Bricassart, que logo se tornaria seu próprio secretário. Que o Arcebispo Dark gostava enormemente do padre era um fato notório, mas o Legado Papal pensava no quanto ele haveria de gostar de um homem assim. Eram todos tão grandes aqueles padres irlandeses e australianos, bem mais altos do que ele; estava cansado de precisar enviesar a cabeça e erguer a vista para ver-lhes o rosto. A maneira com que o Padre Ralph de Bricassart tratava seu atual chefe era perfeita: leve, fácil, respeitosa, mas de homem para homem, cheia de humor. Como se ajustaria ele ao serviço de um chefe muito diferente? Era costume nomear para secretário do legado um padre tirado das fileiras da Igreja italiana, mas o Vaticano nutria especial interesse pelo Padre Ralph de Bricassart. Não somente possuía ele a curiosa distinção de ser pessoalmente rico (ao contrário do que supunha o povo, seus superiores não estavam autorizados a tirar seu dinheiro, nem ele o oferecera), mas também, sozinho carreara uma grande fortuna para a Igreja. Por isso decidira o Vaticano incumbir o Legado Papal de tomar por secretário o Padre Ralph de Bricassart, a fim de estudá-lo e descobrir exatamente como era ele.
Um dia o Santo Padre teria de recompensar a Igreja australiana com um barrete cardinalício, mas ainda não seria agora. Cumpria-lhe, pois, estudar os padres da faixa de idade do Padre de Bricassart, e destes era o Padre Ralph, evidentemente, o principal candidato. Muito bem. Que o Padre Bricassart experimentasse o seu vigor contra um italiano por algum tempo. Talvez fosse interessante. Mas por que não haveria de ser o homem um pouquinho menor?
Enquanto sorvia o seu chá, agradecido, Padre Ralph se mostrava inusitadamente quieto. O Legado Papal notou que ele comeu um pequeno sanduíche de formato triangular e se absteve dos outros salgadinhos e doces, mas tomou quatro xícaras de chá com sofreguidão, sem lhe deitar leite nem açúcar. Aliás, isso mesmo dizia o seu relatório: em seus hábitos pessoais de vida, o padre era notavelmente abstêmio, e sua única fraqueza era um carro bom (e veloz).
— Seu nome é francês, Padre — sobreveio o Legado Papal com suavidade —, mas, ao que me consta, o senhor é irlandês. Como se explica o fenômeno? Sua família era francesa?
Padre Ralph sacudiu a cabeça, sorrindo.
— O nome é normando, Excelência, muito antigo e honrado. Sou descendente direto de um certo Ranulf de Bricassart, que foi barão na corte de Guilherme, o Conquistador. Em 1066 ele invadiu a Inglaterra com Guilherme, e um de seus filhos apoderou-se de terras inglesas. A família prosperou sob os reis normandos da Inglaterra e, mais tarde, alguns dos seus membros cruzaram o Mar da Irlanda durante o reinado de Henrique IV e estabeleceram-se dentro do Pale. Quando Henrique VIII subtraiu a Igreja da Inglaterra à autoridade de Roma, nós mantivemos a fé de Guilherme, o que significava que continuamos leais primeiro a Roma e depois a Londres. Mas quando Cromwell fundou a República Inglesa de 1649, perdemos nossas terras e nossos títulos, que nunca mais nos foram restituídos. Carlos tinha favoritos ingleses para recompensar com terras irlandesas. E não é sem motivo, como sabe, o ódio irlandês aos ingleses.
”Entretanto, caímos numa relativa obscuridade, ainda leais à Igreja e a Roma. Meu irmão mais velho possui um próspero haras no Condado de Meath, e espera criar um campeão do Derby ou do Grand National. Sou o segundo filho, e sempre foi tradição de minha família que o segundogênito entrasse para a Igreja se se sentisse com vontade de fazê-lo. Tenho muito orgulho do meu nome e da minha linhagem. Durante mil e quinhentos anos tem havido Bricassarts.”
Ah, isso era bom! Um velho nome aristocrático e um perfeito registro de manutenção da fé através de emigrações e perseguições.
— E o Ralph?
— Uma contração de Ranulf, Excelência.
— Entendo.
— vou sentir muita falta do senhor, Padre — acudiu o Arcebispo Cluny Dark, empilhando geléia e nata batida sobre a metade de um bolinho quente e enfiando-o inteiro na boca.
O Padre Ralph sorriu para ele.
— Vossa Excelência me coloca num dilema! Aqui estou eu, sentado entre o meu antigo e o meu novo chefe e, se responder agradando a um, desagradarei ao outro. Serme-á, porém, permitido dizer que sentirei falta de Vossa Excelência, ao mesmo tempo que aguardo com ansiedade o momento de servir Vossa Excelência?
Resposta bem sacada, de diplomata. O Arcebispo di Contini-Verchese estava começando a crer que se daria bem com um secretário assim. Não obstante, ele era demasiado bonito, com seus belos traços, a impressionante coloração da pele, o corpo magnífico.
O Padre Ralph voltou ao silêncio anterior, olhando para a mesa do chá sem vê-la. Revia o jovem padre que acabara de disciplinar, a expressão dos olhos já atormentados ao compreender que não lhe permitiriam dizer adeus à sua garota. Santo Deus e se tivesse sido ele o padre, e a garota fosse Meggie? Um clérigo poderia levar adiante um caso desses por algum tempo se fosse discreto; para sempre, se limitasse o contato com mulheres às férias anuais longe da paróquia. Bastaria, porém, que um sentimento sério, despertado por uma mulher, entrasse em cena para ser inevitavelmente descoberto.
Momentos havia em que só se ajoelhando no chão de mármore da capela do palácio até que a dor física o deixasse entorpecido conseguia não tomar o próximo trem de volta para Gilly e para Drogheda. Ele dizia a si mesmo, pura e simplesmente, que era apenas vítima da solidão, que estava sentindo falta do afeto humano que conhecera em Drogheda. E que nada mudara quando cedera a uma fraqueza passageira e retribuíra o beijo de Meggie; que o seu amor a ela ainda vivia no reino da fantasia e do encantamento, não passara para um mundo diferente, que tinha uma inteireza enlouquecedora e perturbadora que os primeiros sonhos não tinham. Pois não podia admitir que alguma coisa tivesse mudado, e Meggie continuava a ser em seu espírito uma menininha, excluindo quaisquer visões capazes de contradizê-lo.
Ele se enganara. A dor não se dissipava. Parecia acentuar-se de um modo mais frio, mais sério. Antigamente, sua solidão fora uma coisa impessoal, ele nunca pudera dizer a si mesmo que a presença de algum ser humano em sua vida seria capaz de remediá-la. Agora, todavia, a solidão tinha um nome: Meggie. Meggie, Meggie, Meggie...
Padre Ralph saiu do seu devaneio e encontrou o Arcebispo di Contini-Verchese encarando-o sem pestanejar e percebeu que aqueles grandes olhos escuros eram muito mais perigosamente oniscientes do que as órbitas redondas e vividas do seu chefe atual. Inteligente demais para simular que nada o impelira à meditação profunda, Padre Ralph lançou ao futuro chefe um olhar tão penetrante quanto o dele; depois sorriu levemente e encolheu os ombros, como se dissesse: todo homem tem uma tristeza dentro de si, e não é pecado recordar um desgosto.
— Diga-me, Padre, o súbito colapso que se verificou no terreno econômico produziu algum efeito no espólio a seu cargo? — perguntou suavemente o prelado italiano.
— Por enquanto, não temos do que nos queixar, Excelência. A Michar Limited não sofre facilmente a influência das flutuações do mercado. Sou levado a crer que aqueles cujas fortunas foram investidas com menos cuidado que a da Sra. Carson são os que têm maiores probabilidades de perder. É evidente que a fazenda Drogheda não irá tão bem; o preço da lã está caindo. Entretanto, a Sra. Carson era tão inteligente que não investiu dinheiro em empreendimentos agrícolas; preferia a solidez do metal. Embora, a meu ver, seja esta uma época excelente para comprar terras, não só fazendas no interior, como também casas e prédios nas cidades principais. Os preços estão ridiculamente baixos, mas não permanecerão baixos para sempre. Não vejo como poderemos perder em imóveis nos anos vindouros se comprarmos agora. A Depressão acabará um dia.
— Naturalmente — concordou o Legado Papal.
com que, então, o Padre de Bricassart não tinha apenas o estofo de um diplomata, mas também o estofo de um homem de negócios! bom seria, verdadeiramente, que Roma ficasse de olho nele.
Corria o ano de 1930, e Drogheda sabia tudo acerca da Depressão. Haviam homens sem trabalho em toda a Austrália. Os que podiam, paravam de pagar aluguel e renunciavam à futilidade de procurar serviço quando não havia nenhum. Tendo de arranjar-se sozinhas, as esposas e os filhos aboletavam-se em choças erguidas em terras municipais e faziam filas para receber o subsídio governamental aos desempregados; pais e maridos tinham partido e andarilhavam em busca de algo melhor. Um homem arrumava seus poucos tarecos dentro do cobertor, amarrava-o com tiras de couro, jogava-o nas costas e metia o pé na estrada, esperando ao menos ofertas de comida das fazendas que atravessava, se não emprego. Carregando a trouxa nas costas pela trilha do Sertão, dormindo no Território de Sydney.
O preço dos alimentos estava baixo, e Paddy encheu até não caber mais as despensas e armazéns de Drogheda. Assim, os caminheiros teriam sempre a certeza de encher suas sacolas quando chegassem a Drogheda. O estranho era que o desfile de andejos mudava constantemente; assim que se viam com uma boa refeição quente no bucho e provisões no saco para o caminho, não faziam tentativa alguma de ficar, mas saíam vagueando à procura de alguma coisa que só eles sabiam o que era. Nem todos os lugares se mostravam hospitaleiros e generosos como Drogheda, o que apenas aumentava o espanto geral quando os viandeiros se recusavam a ficar. Talvez o cansaço e o sempropósito de não ter um lar, de não ter um lugar para ir os faziam continuar à deriva. A maioria conseguia sobreviver, alguns morriam e, quando eram encontrados, enterravam-se antes que os corvos e os porcos os reduzissem a um monte de ossos limpos. O interior da Austrália era uma área imensa e solitária.
Mas Stuart estava de novo em casa e a espingarda nunca ficava muito longe da porta da cozinha. Não era difícil aparecerem bons pastores, e Paddy tinha nove homens bons registrados em seus livros nas velhas barracas dos aprendizes, de modo que Stuart não precisava voltar aos pastos. Fee parou de deixar o dinheiro espalhado por ali e pediu ao filho que fizesse um armário camuflado para o cofre atrás do altar da capela. Poucos andarilhos eram maus. Estes homens maus preferiam ficar nas grandes cidades e nas cidades maiores do interior, pois a vida na estrada era dura demais, solitária demais e escassa de proveitos para malfeitores. Entretanto, ninguém censurava Paddy por não querer correr riscos com suas mulheres; Drogheda era um nome muito famoso e não seria inconcebível que atraísse os poucos indesejáveis que palmilhavam a estrada.
Aquele inverno trouxe tempestades violentas, algumas secas, outras não, e a primavera e o verão seguintes trouxeram uma chuva tão pesada que o capim de Drogheda cresceu mais viçoso e comprido do que nunca.
Jims e Patsy estudavam laboriosamente suas lições por correspondência à mesa da cozinha da Sra. Smith, e conversavam agora sobre como seria quando chegasse o momento de ir para Riverview, o seu internato. Mas a Sra. Smith ficava tão ríspida e azeda ao ouvir esse tipo de conversa, que eles aprenderam a não falar em sair de Drogheda quando ela estivesse por perto e pudesse ouvi-los.
O tempo seco voltou; o capim alto, que atingia o joelho das pessoas, secou de todo e esturrou-se, convertido em hastes de prata encrespadas num verão sem chuvas. Habituados, depois de viver dez anos nas planícies de solo negro, às oscilações entre a seca e a cheia, os homens davam de ombros e enfrentavam a tarefa de cada dia como se fosse a única coisa que realmente importava. O que era verdade; no caso deles, o essencial era sobreviver entre um ano bom e o seguinte, fosse ele como fosse. Ninguém poderia predizer a chuva. Em Brisbane, um homem chamado Inigo Jones costumava acertar predições do tempo a longo prazo, empregando um novo conceito da atividade das manchas do sol, mas lá nas planícies de solo preto ninguém dava muito crédito ao que ele tinha para dizer. As noivas de Sydney e de Melbourne que lhe solicitassem as prognoses; os homens das planícies de solo preto continuariam com aquela velha sensação nos ossos.
No inverno de 1932 voltaram as tempestades secas, junto com um frio intenso, mas o capim luxuriante manteve a poeira reduzida ao mínimo e a quantidade de moscas diminuiu. Mas não havia consolação para os carneiros recém-tosados, que tiritavam miseravelmente. A Sra. Dominic O’Rourke, que morava numa casa de madeira sem nenhuma distinção especial, adorava receber visitas de Sydney; um dos pontos altos do seu programa de excursões era uma parada na sede de Drogheda, a fim de mostrar aos seus convivas que até ali nas planícies de solo negro havia gente que sabia viver. E a conversa derivava invariavelmente para os carneiros magricelas, que mais pareciam ratos afogados, condenados a enfrentar o inverno sem os seus velos, que chegavam a ter doze ou quinze centímetros de comprimento quando rompia o calor do verão. Mas, como Paddy disse gravemente a um dos visitantes, isso melhorava a lã. E o importante era a lã, não o carneiro. Pouco depois de haver feito essa declaração, apareceu uma carta no Sydney Mornmg Herald que exigia ”pronta ação parlamentar”, para acabar com o que denominava ”crueldade dos criadores”. A pobre Sra. O’Rourke ficou horrorizada, mas Paddy riu até lhe doerem as ilhargas de tanto riso.
— Aposto que esse tonto nunca viu um tosquiador rasgar a barriga de um carneiro e costurá-la com uma agulha de saco — confortou ele a perturbada Sra. O’Rourke. — Não vale a pena aborrecer-se por causa disso, Sra. Dominic. Lá na cidade eles não sabem como vive a outra metade, e podem dar-se ao luxo de mimar seus animais como se fossem crianças. Aqui é diferente. A senhora nunca verá um homem, uma mulher ou uma criança precisados de ajuda que não encontrem quem lhes dê a mão; mas na cidade essa mesma gente que paparica seus bichinhos de estimação nem ouvirá o grito de socorro de um ser humano.
Fee ergueu os olhos.
— Ele tem razão, Sra. Dominic — disse ela. — Sempre tendemos a desprezar o que existe em grande quantidade: aqui os carneiros, na cidade as pessoas.
Só Paddy estava longe, no campo, quando estourou a grande tempestade. Apeou do cavalo, amarrou o animal bem amarrado a uma árvore e sentou-se debaixo de uma wilga para esperá-la passar. Tremendo de medo, seus cinco cachorros aglomeraram-se ao seu lado, ao passo que os carneiros que ele tencionava transferir para outro pasto se espalharam em grupinhos saltitantes que trotavam, sem rumo, em todas as direções. E foi uma tempestade terrível, que reservava o pior da sua fúria para quando o centro do redemoinho estivesse diretamente em cima dele. Paddy enfiou os dedos nos ouvidos, fechou os olhos e rezou.
Não longe do lugar em que ele estava sentado debaixo da wilga curvada para a terra e cujas folhas se entrebatiam, num desespero, à medida que o vento se tornava cada vez mais forte, havia uma pequena coleção de tocos e troncos mortos de árvores cercados de capim alto. No meio do monte branco, esquelético, erguia-se um maciço eucalipto já sem vida, cujo corpo nu se alteava doze metros na direção das nuvens negras como a noite, e se afinava no topo para formar uma ponta aguda e recortada.
Um fogo azul e florido tão brilhante que lhe feriu os olhos através das pálpebras cerradas pôs Paddy em pé num salto, só para ser derrubado como um boneco no deslocamento provocado por imensa explosão. Ele ergueu o rosto da terra para ver a glória final do raio, que punha halos trêmulos de azul e púrpura fulgurante em toda a extensão do eucalipto morto; depois, tão rapidamente que ele mal teve tempo de compreender o que estava acontecendo, tudo pegou fogo. Havia muito que a última gota de umidade se evaporara dos tecidos daquele conjunto de coisas em decomposição, e o capim em toda parte era comprido e seco como papel. Como resposta desafiadora da terra ao céu, a árvore gigantesca arremessou um pilar de chamas muito acima da sua ponta, os troncos e tocos ao redor ergueram-se no mesmo instante e, num círculo à roda do centro, grandes lençóis de fogo precipitaram-se, impetuosos, impulsionados pelo vento torvelinhante, num redemoinho dantesco. Paddy não teve tempo sequer de alcançar o cavalo
A wilga ressecada pegou fogo e a resina em seu tenro coração explodiu. Paredes sólidas de fogo erguiam-se em todas as direções para onde Paddy volvesse os olhos, as árvores ardiam furiosamente e a relva debaixo dos seus pés rugia à medida que se convertia em chamas. Ele ouviu os gritos do cavalo e quis acudir-lhe, não poderia deixar o pobre animal morrer amarrado e indefeso. Um cachorro uivou e o uivo mudou-se em grito quase humano de agonia. Chamejou e dançou por um momento, qual tocha viva, depois caiu sobre o capim ardente. Outros uivos se ouviram à medida que os outros cães, fugindo, eram envolvidos pelo fogo mais rápido que eles, mais rápido que qualquer coisa com pés ou asas. Um meteoro em chamas chamuscou-lhe o cabelo enquanto ele se detinha, por um milésimo de segundo, pensando na melhor maneira de acercar-se do cavalo, abaixou os olhos e viu uma grande cacatua assando a seus pés.
De repente, Paddy soube que aquele era o fim. Não havia saída do inferno para ele nem para o cavalo. No momento em que pensou nisso, um eucalipto dessecado, às suas costas, soltou chamas em todas as direções, quando explodiu a resina que havia dentro dele A pele dos braços de Paddy murchou e enegreceu, o cabelo de sua cabeça viu-se afinal ofuscado por algo mais brilhante. Morrer assim é indescritível, porque o fogo age de fora para dentro. As últimas coisas que se vão, cozinhadas até não poderem mais funcionar, são o cérebro e o coração. Com as roupas em chamas, Paddy dava cambalhotas, gritando e gritando durante todo o holocausto E cada um dos seus gritos medonhos era o nome de sua mulher.
Todos os outros homens voltaram para a sede de Drogheda antes da tempestade, deixaram as montanas no cercado e guiaram para a casa-grande ou para as barracas dos aprendizes. Na sala de estar de Fee, brilhantemente iluminada por um fogo de troncos que ardia na lareira de mármore creme e róseo, os Clearys estavam sentados, atentos à tempestade, sem vontade, naqueles dias, de sair para ir vê-la lá fora. O cheiro gostoso e penetrante da madeira de eucalipto que queimava na lareira e os bolos e sanduíches empilhados no carrinho do chá da tarde eram irresistíveis.
Por volta das quatro horas as nuvens rolaram para o leste e todos, inconscientemente, respiraram melhor, fosse como fosse, ninguém conseguia relaxar durante uma tempestade seca, muito embora todos os prédios de Drogheda fossem equipados de para-raios. Jack e Bob levantaram-se e saíram da sala para respirar um pouco de ar fresco, disseram, mas, na realidade, era para soltar a respiração contida.
— Olhe! — disse Bob, apontando para o oeste
Acima das árvores que rodeavam todo o Home Paddock, um grande manto brônzeo de fumaça crescia, com as margens desfeitas em bandeirolas esfarrapadas pelo vento.
— Jesus! Misericórdia! — gritou Jack, correndo para dentro de casa à procura do telefone.
— Fogo, fogo! — gritou no aparelho, enquanto os que ainda se achavam dentro da sala o miravam boquiabertos e depois saíam correndo para ver. — Incêndio em Drogheda, e dos grandes!
Em seguida, desligou; era tudo o que precisava dizer ao circuito telefônico de Gilly e ao pessoal que ficava ao longo da linha e costumava atender ao primeiro toque da campainha. Embora não tivesse havido um grande incêndio no distrito de Gilly desde a chegada dos Clearys a Drogheda, todo mundo conhecia a rotina.
Os rapazes espalharam-se para pegar os cavalos e os pastores saíram das barracas dos aprendizes, enquanto a Sra. Smith abria um dos armazéns e distribuía sacos de aniagem às dúzias. A fumaça estava no oeste e o vento soprava dessa direção, o que queria dizer que o fogo se dirigia para a sede. Fee despiu a sua longa saia e enfiou um par de calças de Paddy, depois correu com Meggie para as cocheiras; seriam necessárias todas as mãos capazes de segurar um saco.
Na cozinha, a Sra. Smith carregou a fornalha do fogão e as criadas começaram a descer imensas panelas dos seus ganchos presos no teto.
— Ainda bem que matamos um novilho ontem — disse a governanta. — Minnie,: aqui está a chave do armazém das bebidas. Você e Cat tragam toda a cerveja e todo o rum que tivermos, depois comecem a fazer pão sem fermento enquanto eu adianto o cozido. E depressa, depressa!
Desassossegados pela tempestade, os cavalos tinham sentido o cheiro da fumaça e estavam difíceis de selar; Fee e Meggie fizeram recuar os dois indóceis puros-sangues, que escarvavam o chão, e assim os tiraram da cocheira e os levaram para o cercado, onde era mais fácil lidar com eles. Enquanto Meggie lutava com a égua castanha, dois andarengos apareceram correndo pela trilha que saía da estrada de Gilly.
— Fogo, dona, fogo! Tem um par de cavalos de reserva? Dê-nos alguns sacos.
— Vão por aqui até os potreiros. Santo Deus! Espero que nenhum de vocês fique preso lá embaixo! — disse Meggie, que não sabia onde estava seu pai.
Os dois homens pegaram os sacos de aniagem e os cantis que a Sra. Smith lhes oferecia; fazia cinco minutos que Bob e os homens tinham partido. Os dois andarilhos saíram atrás e, por fim, Fee e Meggie dispararam a galope para o córrego, atravessaram-no e subiram o barranco do outro lado, na direção da fumaça.
Atrás deles, tom, o jardineiro, acabou de encher o grande caminhão-tanque, tirando água do poço com a bomba, depois fez funcionar o motor. É claro que nenhuma quantidade de água proveniente de chuvas caídas do céu ajudaria a apagar um incêndio daquele porte, mas ela seria necessária para manter molhados os sacos e as pessoas que os usavam. Quando engatou a primeira do caminhão para subir o aclive da outra margem, olhou para trás por um momento e viu a casa vazia do chefe dos pastores e as duas casas vagas além dela; lá estava o ponto fraco da sede, o único lugar em que coisas inflamáveis poderiam chegar suficientemente perto das árvores do lado de cá do córrego para pegar fogo. O velho tom olhou para oeste, abanou a cabeça numa súbita decisão e conseguiu fazer com que o caminhão, de marcha à ré, atravessasse de novo o rio e subisse a ribanceira. Eles nunca deteriam aquele incêndio lá nos pastos; teriam de voltar para casa. No alto do barranco, ao lado da casa do chefe dos pastores, onde estivera acampado, ligou a mangueira ao tanque e principiou a saturar de água o prédio; depois, passando para as duas habitações menores, regou-as também. Era ali que mais poderia ajudar, mantendo as três casas tão molhadas que não pudessem incendiar-se.
Enquanto Meggie cavalgava ao lado de Fee, crescia a nuvem pressaga no ocidente e, cada vez mais forte, empurrado pelo vento, vinha o cheiro da queimada. Escurecia; criaturas que fugiam do oeste atravessavam os pastos em grupos sempre mais densos, cangurus e porcos-bravos, carneiros e bois assustados, emas e lagartos, coelhos aos milhares. Bob estava deixando as porteiras abertas, ela observou ao passar de Borehead para Billa-Billa; cada pasto de Drogheda tinha um nome. Mas os carneiros eram tão estúpidos que empacavam diante de uma cerca, a um metro da porteira, e não a enxergavam.
O fogo cobrira dezesseis quilômetros quando elas o alcançaram e espalhava-se lateralmente também, ao longo de uma frente que se ampliava a cada segundo. À proporção que o capim longo e seco e o vento forte carregavam o fogo, rapidamente, de um grupo de árvores para outro. Elas detiveram os cavalos assustados e indóceis e olharam, impotentes, para o oeste. Não adiantava tentar pará-lo ali; um exército não alcançaria fazê-lo. Teriam de voltar para a sede e defendê-la, se pudessem. A frente já tinha oito quilômetros de extensão; se elas não tocassem as montarias cansadas, também seriam alcançadas e ultrapassadas. Era uma pena que acontecesse aos carneiros, mas não havia nada que se pudesse fazer.
O velho tom ainda estava regando as casas ao pé do arroio quando os cavalheiros transpuseram o tênue lençol de água do vau.
— Boa, tom! — gritou Bob. — Continue molhando até que a coisa esquente demais, mas não se demore muito, ouviu? Nada de heroísmos bobos; você é mais importante do que uns pedaços de madeira e vidro.
A sede enchera-se de carros e novos faróis vinham pulando e ofuscando pela estrada de Gilly; um grande grupo de homens estava à espera deles quando Bob entrou no potreiro.
— O fogo é muito grande, Bob? — perguntou Martin King.
— Grande demais para combater, acho eu — disse Bob, com desespero na voz. — Calculo uns oito quilômetros de largura e, com esse vento, viaja quase tão depressa quanto um cavalo a galope. Não sei se poderemos salvar a sede, mas creio que Horry deve se preparar para defender suas terras. Ele será o próximo, porque não vejo como segurar isso aí.
— Bem, o caso é que já devíamos ter tido uma queimada assim há muito tempo. O último grande incêndio foi em 1919. vou organizar um grupo para ir a Beel-Beel, mas ainda vem vindo muita gente para cá. Gilly pode mobilizar quase quinhentas pessoas para combater um incêndio. Alguns de nós ficaremos aqui para ajudar. Graças a Deus estou a oeste de Drogheda, é a única coisa que posso dizer.
Bob sorriu.
— Você é um grande consolo, Martin.
Martin olhou à sua volta.
— Onde está seu pai, Bob?
— A oeste do fogo, como Bugela. Estava em Wilga reunindo algumas ovelhas para a parição, e Wilga fica, pelo menos, a oito quilômetros a oeste do lugar onde o fogo começou, acho eu.
— E você não está preocupado com mais ninguém?
— Hoje, não, graças a Deus.
De certo modo era como estar numa guerra, pensou Meggie ao entrar em casa: a rapidez controlada, a preocupação com a comida e a bebida, o esforço para sustentar a força e a coragem. E a ameaça de desastre iminente. À medida que chegavam, outros homens vinham juntar-se aos que já estavam no Home Paddock, cortando as poucas árvores que tinham nascido perto da margem do córrego, e roçando o capim mais comprido que crescia no perímetro. Meggie lembrava-se de haver pensado, ao chegar a Drogheda pela primeira vez, que o Home Paddock poderia ter sido muito mais bonito, pois, comparado com a riqueza de árvores que havia por toda a volta, era nu e descampado. Agora compreendia por quê. O Home Paddock não passava de um gigantesco aceiro circular.
Todos falavam nos incêndios que Gilly presenciara nos seus setenta e tantos anos de existência. Por mais curioso que parecesse, as queimadas nunca representavam grande ameaça durante uma seca prolongada, pois, nesse caso, não havia capim suficiente para que o fogo se alastrasse. Fora em épocas como aquela, um ou dois anos depois que chuvas pesadas haviam feito a relva crescer tão alta e queimadiça, que Gilly vira suas grandes conflagrações, que às vezes ardiam, sem controle, por centenas de quilômetros.
Martin King assumira a chefia dos trezentos homens que tinham ficado para defender Drogheda. Sendo o cevador mais velho do distrito, combatera incêndios) durante cinqüenta anos.
— Tenho cento e cinqüenta mil acres em Bugela — disse ele — e em 1905 perdi toda a criação e todas as árvores que havia em minhas terras. Levei quinze anos para recompor-me e, durante algum tempo, pensei que não o conseguiria, porque a lã não estava dando muito naquele tempo, nem a carne.
O vento continuava a uivar; sentia-se em toda parte o cheiro de queimado. A noite caíra, mas o céu no ocaso resplandecia com um brilho perverso e a fumaça, cada vez mais baixa, fazia-os tossir. Não tardou muito para que vissem as primeiras chamas, vastas labaredas saltando e contorcendo-se por trinta e tantos metros de altura no meio da fumaça, e chegou-lhes aos ouvidos um rugido como de imensa multidão desvairada num jogo de futebol. As árvores do lado ocidental do bosquete que circundava o Home Paddock incendiaram-se e ergueram-se como um sólido lençol de fogo; enquanto assistia, petrificada, àquelas cenas da varanda da casa, Meggie via pequenas silhuetas de pigmeus, destacadas do clarão, pulando como almas penadas no Inferno.
— Meggie, quer fazer o favor de entrar e empilhar estes pratos no aparador, menina? Lembre-se de que não estamos num piquenique! — chegou-lhe a voz da mãe. Ela afastou-se, relutante.
Duas horas depois, a primeira turma de homens exaustos entrou cambaleando para comer e beber alguma coisa, recobrar as forças que já estavam no fim e continuar a luta. Para isso se haviam afadigado as mulheres da fazenda, providenciando o cozido, o pão sem fermento, o chá, o rum e a cerveja em quantidade suficiente até para trezentos homens. Num incêndio, cada qual fazia o que sabia fazer melhor, e isso significava que as mulheres cozinhavam para manter a força física superior dos homens. Caixas e caixas de bebida se esvaziavam, substituídas por novas; negros de fuligem e cambaleantes de cansaço, os homens, em pé, bebiam copiosamente e enfiavam imensos nacos de pão na boca, engoliam, vorazes, um prato cheio de cozido depois que este esfriava, entornavam um último copo de rum e voltavam à luta.
Entre as idas e vindas à cozinha, Meggie observava o fogo, incrédula e aterrada. À sua maneira, ele tinha uma beleza que excedia a beleza de quanto havia na terra, pois era uma coisa do céu, de sóis tão distantes que sua luz chegava fria, de Deus e do Diabo. A frente da conflagração galopara no rumo do nascente, cercando-os de todo, e Meggie percebeu minúcias que o indefinido holocausto da frente não lhe permitira enxergar. Entremeavam-se o preto, o alaranjado, o vermelho, o branco e o amarelo: a silhueta negra de uma árvore alta, cercada de uma casca alaranjada, que tremia e brilhava; as brasas vermelhas que flutuavam e piruetavam como fantasmas travessos no ar; as pulsações amarelas dos corações exaustos de árvores consumidas pelo fogo; o chuveiro de centelhas rubras e rodopiantes quando um eucalipto explodia; as súbitas lambidelas de chamas alaranjadas e brancas de alguma coisa que resistira até então e que finalmente entregava o corpo ao fogo. Oh, sim, era belo à noite; e ela guardaria a sua lembrança por toda a vida.
Um súbito aumento da velocidade do vento fez com que todas as mulheres subissem pelos ramos da glicínia até o teto prateado de ferro, envoltas em sacos, pois todos os homens estavam lá fora, no Home Paddock. Armadas de sacos molhados, chamuscando as mãos e os joelhos mesmo através dos sacos, abafavam as brasas sobre o teto que frigia, aterradas pela idéia de que o ferro, cedendo ao peso dos carvões, deixasse cair partes incendiadas sobre o vigamento de madeira embaixo. Mas o pior do fogo já estava a dezesseis quilômetros a leste, na direção de Beel-Beel.
A sede de Drogheda distava apenas cinco quilômetros das divisas orientais da propriedade, as mais próximas de Gilly. Beel-Beel confrontava com elas e, além, mais para leste, ficava Narrengang. Quando o vento passou de oitenta para cem quilômetros por hora, o distrito todo entendeu que só uma chuva impediria o fogo de arder por semanas a fio e assolar centenas de quilômetros quadrados de terras de primeira qualidade.
Durante a pior parte da queimada as casas ao pé do córrego haviam resistido e tom, como um possesso, enchia o caminhão-tanque, regava as casas, tornava a encher, tornava a regar. Mas, no instante em que o vento aumentou de intensidade, as casas explodiram e tom retirou-se para o caminhão, chorando.
— Vocês deviam ajoelhar-se e agradecer a Deus pela força do vento não ter aumentado enquanto a frente estava a oeste de nós — advertiu Martin King. — Se isso tivesse acontecido, não somente a sede teria ido embora, mas nós também. Santo Deus, espero que estejam todos bem em Beel-Beel!
Fee estendeu-lhe um copo grande de rum puro; ele já não era moço, mas lutara enquanto fora preciso lutar, e dirigira as operações com maestria.
— É uma bobagem — disse ela —, mas, quando tudo parecia perdido, eu só pensava nas coisas mais esquisitas, não pensei em morrer, nem nas crianças, nem nesta bonita casa em ruínas. As únicas coisas de que conseguia lembrar-me eram o meu cesto de costura, o meu tricô inacabado, a caixa de botões avulsos que venho guardando há anos e as minhas fôrmas de bolo, em forma de coração, que Frank me fez há tanto tempo. Como poderia eu sobreviver sem elas? Todas essas coisinhas, sabe?, que não podem ser substituídas, nem se compram em lojas.
— Sim, é assim mesmo que a maioria das mulheres costuma pensar. É gozado, não é, o jeito com que a mente reage? Lembro-me, em 1905, de minha mulher correndo de volta para casa, enquanto eu a chamava, gritando feito um louco, só para pegar um pano em que começara a bordar qualquer coisa. — Martin sorriu. — Mas conseguimos sair a tempo, embora perdêssemos a casa. Quando construímos a nova, a primeira coisa que ela fez foi terminar o trabalho. Um daqueles bordados antigos, que as meninas faziam nas escolas, você sabe o que quero dizer. E estava escrito nele ”Lar, Doce Lar”.
— Depôs na mesa o copo vazio, sacudindo a cabeça, num mudo comentário sobre a estranheza das mulheres. — Vou-me embora. Gareth Davier precisará de nós em Narrengang e, ou muito me engano, ou Angus em Rudna Hunish também.
Fee empalideceu.
— Oh, Martin! Tão longe assim?
— A notícia espalhou-se, Fee. Booroo e Bourke estão-se arregimentando.
Por mais três dias o fogo alvorotou-se na direção do oriente, numa frente que não cessava de dilatar-se. Depois caiu um aguaceiro repentino e pesado, que durou quase quatro dias e resfriou os últimos carvões. Mas ele percorrera mais de cento e sessenta quilômetros e deixara um rastro carbonizado e enegrecido de mais de trinta quilômetros de largura, que se estendia de Drogheda até a divisa da última propriedade na parte oriental do distrito de Gillanbone, Rudna Hunish.
Enquanto não começou a chover ninguém esperava ouvir notícias de Paddy, pois todos o criam em segurança do outro lado da zona calcinada, isolado pelo calor do solo escaldante e pelas árvores que ainda ardiam. Se a queimada não tivesse derrubado a linha telefônica, Bob imaginava que já teriam recebido um chamado de Martin King, pois era lógico que Paddy guiasse para o poente, à procura de abrigo na sede de Bugela. Mas seis horas depois que a chuva principiou a cair sem que soubessem dele, começaram a ficar preocupados. Tinha levado quase quatro dias tentando persuadir-se de que não havia motivos para sobressaltos e que ele, naturalmente, impossibilitado de comunicar-se com a sede, decidira esperar até poder voltar para casa em vez de ir a Bugela.
— A esta altura já devia ter chegado — disse Bob, andando de um lado para outro da sala de estar, enquanto os outros observavam; a nota irônica em tudo aquilo era que a chuva deixara um frio úmido no ar e, mais uma vez, um fogo brilhante ardia na lareira de mármore.
— Que é que você acha, Bob? — perguntou Jack.
— Acho que é mais do que hora de irmos procurá-lo. Ele pode estar ferido, ou a pé, tendo pela frente uma longa caminhada para chegar aqui. Seu cavalo pode ter-se assustado, derrubando-o, e ele talvez esteja deitado em algum lugar, incapaz de moverse. Levava comida para um pernoite, mas não tinha o suficiente para quatro dias, embora ainda não deva ter desmaiado de fome. É melhor não fazermos nenhum rebuliço agora, porque não quero chamar os homens de Narrengang. Mas, se não o encontrarmos até o cair da noite, irei a cavalo à casa de Dominic e poremos o distrito inteiro em movimento amanhã. Puxa! Como eu gostaria que esses caras do correio arrumassem logo as linhas telefônicas!
Fee tremia. Tinha os olhos febris, quase alucinados.
— Eu visto umas calças — disse ela. — Não agüento ficar aqui esperando.
— Fique em casa, mamãe! — pediu Bob.
— Se ele estiver machucado, poderá estar em qualquer lugar, Bob, e em quaisquer condições. Você mandou os pastores para Narrengang, e isso nos deixa com muito pouca gente para fazer uma busca. Se eu sair em companhia de Meggie, nós duas teremos força suficiente para enfrentar o que encontrarmos, mas se Meggie for sozinha, terá de ir em companhia de um de vocês, o que equivale a desperdiçá-la, sem falar em mim.
Bob cedeu.
— Está bem, então. Você irá no cavalo de Meggie; já o montou no primeiro dia do incêndio. Cada um pegue um rifle e muitos cartuchos.
Atravessaram o arroio e de lá passaram ao coração da paisagem crestada. Nem uma coisa verde ou marrom ficara em parte alguma, só uma vasta extensão de carvões pretos e encharcados, que ainda fumegavam incrivelmente depois de horas de chuva. Todas as folhas de todas as árvores tinham sido transformadas em cordõezinhos encolhidos e flácidos e, onde houvera capim, divisavam-se pequenos vultos pretos aqui e ali, carneiros surpreendidos pelo fogo, ou um volume um pouco maior de vez em quando, restos de um novilho ou de um porco. Suas lágrimas misturavam-se com a chuva em seus rostos.
Bob e Meggie encabeçavam a procissãozinha, Jack e Hughie iam no meio, Fee e Stuart formavam a retaguarda. Para Fee e Stuart era um progresso pacífico; confortava-os o simples fato de estarem juntos, sem falar, cada qual contente com a companhia do outro. Às vezes os cavalos se aproximavam ou se afastavam à vista de algum novo horror, mas isso não parecia impressionar o último par de cavaleiros. A lama retardava e dificultava a marcha, mas a relva torrada e entretecida estendia-se sobre o solo como um tapete de fibras de coco para dar apoio aos cavalos. A cada meia dúzia de jardas que transpunham esperavam ver Paddy aparecer no horizonte distante e plano, mas o tempo ia passando e ele não aparecia.
com o coração apertado, compreenderam que o fogo principiara mais longe ainda do que tinham imaginado a princípio, no pasto de Wilga. As nuvens da borrasca deviam ter disfarçado a fumaça enquanto o fogo percorria um bom caminho. A região fronteiriça era surpreendente. De um lado da linha traçada com absoluta clareza, tudo era preto e brilhante como o alcatrão, ao passo que, do outro, a terra continuava como sempre a haviam conhecido, marrom, azul e triste sob a chuva, mas viva. Bob parou e voltou-se para falar com os demais.
— Muito bem, é aqui que começamos. Daqui irei diretamente para oeste; é a direção mais provável e eu sou o mais forte. Todos têm bastante munição? bom. Quem descobrir alguma coisa dará três tiros para o ar, e os que ouvirem responderão com um tiro cada um. Depois esperem. Quem tiver dado os três tiros, dará mais três, cinco minutos depois, e continuará dando três tiros de cinco em cinco minutos. Os que ouvirem, um tiro só em resposta.
Jack, você irá para o sul, acompanhando a linha do fogo. Você, Hughie, para sudoeste. Eu irei para oeste. Mamãe e Meggie, para noroeste. Stu, acompanhe a linha do fogo diretamente para o norte. E vão todos devagar, por favor. com esta chuva não se pode ver muito longe, e ainda há muita madeira espalhada pelo chão. Chamem-no muitas vezes; ele talvez os ouça, mas sem poder vê-los. Mas, lembrem-se, nada de tiros enquanto não encontrarem alguma coisa, porque ele não está armado e, se ouvir um tiro e estiver muito longe para responder com um chamado, será terrível para ele.
Boa sorte, e Deus os abençoe.
Como peregrinos nas encruzilhadas finais, apartaram-se uns dos outros debaixo da chuva firme e cinzenta, distanciando-se cada vez mais, ficando cada vez menores, até que cada qual desapareceu ao longo do rumo indicado.
Stuart não chegara a percorrer um quilômetro quando notou, bem próximo da linha de demarcação do fogo, um grupo de árvores queimadas. Havia uma pequena wilga preta e encrespada como a gaforinha de um negrinho, e os restos de um grande toco bem perto da divisa calcinada. O que ele viu foi o cavalo de Paddy, estatelado e fundido com o tronco de um grande eucalipto, e dois cachorros de Paddy, coisinhas hirtas e pretas com as quatro patas esticadas para cima, como bengalas. Desceu do cavalo, as botas lhe afundaram até o tornozelo no barro, e tirou a espingarda do estojo amarrado à sela. Seus lábios se moviam, rezando, enquanto escolhia o caminho resvaladiço por entre os carvões pegajosos. Não fossem o cavalo e os cães e teria podido esperar que se tratasse de um andarilho ou de um viandante surpreendido pelo fogo. Mas Paddy estava a cavalo e levava cinco cachorros; e os andarilhos que percorriam a estrada andavam a pé e nunca tinham mais de um cachorro. Além disso, o lugar ficava tão dentro das terras de Drogheda que não se podia pensar num tropeiro ou num pastor de Bugela que tivesse chegado até lá. Um pouco adiante, mais três cães incinerados; cinco ao todo, cinco cães. Sabia que não encontraria um sexto, como não o encontrou.
E não muito longe do cavalo, oculto por um tronco, viu, ao aproximar-se, o que fora um homem. Não havia engano possível. Falseando e reluzente debaixo da chuva, a coisa preta estava de costas, e as costas estavam dobradas como um grande arco, de modo que ele tinha o corpo erguido no meio e só tocava o solo com os ombros e os quadris. Os braços, abertos e curvados à altura dos cotovelos, pareciam implorar misericórdia; os dedos, cuja carne se despegava para mostrar os ossos torrados, davam a impressão de agarrar e segurar qualquer coisa. As pernas também se haviam separado uma da outra, dobradas nos joelhos, e a caveira olhava, sem olhos, para o céu.
Por um momento, o olhar claro e lúcido de Stuart demorou-se no pai, e não viu a casca arruinada, mas o homem, como este fora em vida. Apontou a espingarda para o céu, deu um tiro, recarregou-a, deu o segundo, recarregou-a, deu o terceiro. Fracamente, a distância, ouviu a primeira resposta, depois, mais longe e mais fraca ainda, a segunda. Nesse momento, lembrou-se de que o tiro mais próximo deveria ter vindo da mãe e da irmã. Elas estavam a noroeste, ele estava ao norte. Sem aguardar os cinco minutos estipulados, pôs outro cartucho na espingarda, apontou diretamente para o sul e disparou. Uma pausa para recarregar, o segundo tiro, outra pausa, o terceiro. Colocou a arma no chão e ficou olhando para o sul, de cabeça erguida, prestando atenção. Desta vez, a primeira resposta veio do oeste. O tiro de Bob. O segundo de Jack, ou de Hughie, o terceiro de sua mãe. Suspirou, aliviado; não queria que as mulheres chegassem primeiro.
Por isso não viu o grande porco bravo sair do meio das árvores, ao norte; sentiu-o pelo cheiro. Grande como uma vaca, o corpanzil maciço gingava e fremia sobre as pernas curtas e robustas, enquanto ele abaixava a cabeça, farejando o solo queimado e molhado. Os tiros o haviam perturbado e ele estava ferido. Os ralos pêlos pretos de um lado do corpo tinham sido arrancados, a pele ficara em carne viva; o que Stuart sentiu enquanto olhava para o sul foi o cheiro bom de couro de porco assado, exatamente como fica um quarto de leitão recém-saído do forno. Surpreendido em sua tristeza estranhamente mansa, que sempre parecia ter conhecido, virou a cabeça, no momento exato em que dizia a si mesmo que já estivera ali, que aquele local preto e encharcado se lhe gravara em alguma parte do cérebro no dia do seu nascimento.
Inclinando-se, tateou o chão à procura da arma, lembrando-se de que estava descarregada. O javali continuava imóvel, os olhinhos avermelhados loucos de dor, as grandes presas amarelas afiadas e curvadas para cima, formando um meio círculo. O cavalo de Stuart relinchou, farejando o animal; a cabeçorra do porco virou-se para observá-lo e depois se abaixou para o ataque.
Enquanto a atenção do javali se concentrava no cavalo, Stuart viu sua única oportunidade, abaixou-se depressa para pegar a espingarda e abriu-lhe a culatra, ao mesmo tempo que a outra mão, no bolso do casaco, procurava um cartucho. Em toda a volta a chuva caía, abafando outros sons em seu tamborilar uniforme. Mas o porco ouviu o ferrolho deslizar para trás e, no derradeiro instante, mudou a direção da investida, do cavalo para Stuart. A fera já estava quase sobre ele quando conseguiu acertar-lhe o tiro bem no meio do peito, mas isso não diminuiu a fúria de seu ataque. As presas, viradas para cima e para o lado, furaram-lhe a virilha. Ele caiu, o sangue principiou a jorrar, como se uma torneira tivesse sido aberta, saturando-lhe as roupas e esguichando no chão.
Virando-se, desajeitado, quando começou a sentir o tiro, o porco voltou para ferilo outra vez, tropeçou, vacilou e desabou. O corpanzil de setecentos e tantos quilos caiu sobre o rapaz e comprimiu-lhe o rosto de encontro à lama enfarruscada. Por um momento suas mãos se enterraram no chão, de cada lado, num esforço frenético e inútil para libertar-se; era isso, então, o que sempre soubera, era por isso que nunca esperara, nunca sonhara, nunca fizera planos, deixando-se ficar sentado, a beber o que podia do mundo vivo tão profundamente que não tivera tempo para lamentar o destino que o esperava. E pensou: Mamãe, mamãe! Não posso ficar com você, mamãe!, no mesmo momento em que o coração rebentava dentro dele.
— Por que será que Stu não tornou a atirar? — perguntou Meggie a sua mãe, enquanto trotavam para o local de onde viera o som das duas descargas triplas, incapazes de avançar mais depressa, mas desesperadamente ansiosas.
— com certeza achou que já o tínhamos ouvido — disse Fee. Mas no fundo de sua mente lembrava-se do rosto do filho quando se haviam separado para procurar em direções diferentes, do modo com que a mão dele se estendera para apertar a sua, do jeito com que ele lhe sorrira. — Agora não podemos estar longe — disse ela, e obrigou a montaria a um meio galope desajeitado e perigoso.
Mas Jack chegara primeiro, como Bob, e eles afastaram as mulheres quando estas se aproximaram do lugar onde a queimada principiara.
— Não vá até lá, mamãe — disse Bob, quando ela desmontou. Jack aproximara-se de Meggie e segurava-lhe os braços.
Os dois pares de olhos cinzentos voltaram-se, menos assombrados ou temerosos do que sabedores, como se não fosse preciso dizer-lhes coisa alguma.
— Paddy? — perguntou Fee com uma voz que não era a dela.
— Sim. E Stu.
Nenhum dos filhos pôde olhar para ela.
— Stu? Stu? O que você quer dizer, Stu? Oh, meu Deus, mas que foi, que foi que aconteceu? Os dois, não... não!
— Papai ficou preso no incêndio; está morto. Stu deve ter perturbado um javali, que o atacou. Stu matou-o, mas o javali caiu em cima dele ao morrer e o sufocou. Ele também está morto, mamãe.
Meggie gritou e bracejou, tentando livrar-se de Jack, mas Fee permaneceu entre as mãos sujas e ensangüentadas de Bob, como alguém que tivesse virado pedra, os olhos tão vidrados quanto duas bolas de cristal.
— É demais — disse ela por fim, e ergueu a vista para Bob enquanto a chuva lhe escorria pelo rosto e pelo cabelo em madeixas dispersas em torno do pescoço, como rios de ouro. — Deixe-me ir até lá, Bob. Sou esposa de um e mãe de outro. Você não pode me manter afastada... não tem o direito de me manter afastada. Deixe-me ir até eles.
Meggie se aquietara e permanecia entre os braços de Jack, com a cabeça no ombro do irmão. Quando Fee começou a caminhar por entre as ruínas com o braço de Bob em torno da cintura, Meggie contemplou-os, mas não fez menção de segui-los. Hughie apareceu, saído da chuva que toldava tudo; com a cabeça, Jack mostrou-lhe a mãe e Bob.
— Vá atrás deles, Hughie, fique com eles. Meggie e eu vamos voltar a Drogheda para trazer a carroça. — Ele soltou Meggie e ajudou-a a montar a égua castanha. — Vamos, Meggie; está quase escuro. Não podemos deixá-los aqui a noite toda, e eles não sairão enquanto não voltarmos.
Era impossível pôr a carroça ou qualquer outra coisa com rodas naquele lodo; por fim, Jack e o velho tom atrelaram uma folha de ferro corrugado a dois cavalos de tiro. tom conduzia a parelha, montado num cavalo de lida, ao passo que Jack cavalgava à frente, empunhando o maior lampião que havia em Drogheda.
Meggie ficou em casa, sentada diante da lareira da sala de estar, enquanto a Sra. Smith tentava convencê-la a comer, enquanto as lágrimas lhe corriam pelo rosto ao ver o estado de choque em que ficara a jovem, imóvel e muda, sem chorar. Ao som da aldrava da porta da frente, virou-se e foi atender, perguntando a si mesma quem teria conseguido atravessar aquele lamaçal todo, e espantada como sempre com a rapidez com que as notícias transpunham os quilômetros solitários entre as sedes das fazendas, tão distantes uma da outra.
Padre Ralph estava em pé na varanda, molhado e sujo, vestindo roupas de montar e um impermeável.
— Posso entrar, Sra. Smith?
— Oh, Padre, Padre! — gritou ela, e atirou-se nos braços estarrecidos dele. — Como foi que soube?
— A Sra. Cleary me telegrafou, numa cortesia de gerente para proprietário que muito me sensibilizou. Obtive uma licença do Arcebispo di Contini-Verchese. Que nome comprido! A senhora acredita que sou obrigado a pronunciá-lo cem vezes por dia? Vim voando para cá. O avião atolou ao aterrar e espetou o nariz no chão, de modo que eu já sabia como estava o solo antes mesmo de tocá-lo com os pés. Querida e formosa Gilly! Deixei minha mala com o Padre Watty na casa paroquial e filei um cavalo do publicano imperial, que me julgou louco e apostou comigo uma garrafa de Johnnie Walker Rótulo Preto em como eu não chegaria até aqui. Oh, Sra. Smith, não chore assim! Minha cara, o mundo não acabou por causa de um incêndio, por maior e por pior que fosse! — ajuntou ele a sorrir e a bater-lhe nos ombros arquejantes. — Aqui estou eu fazendo o possível para não dar muita importância às coisas, e a senhora não está fazendo o possível para ajudar. Não chore assim, por favor.
— Quer dizer que o senhor não sabe — sussurrou ela.
— O quê? O que é que eu não sei? Que foi... que aconteceu?
— O Sr. Cleary e Stuart morreram.
O rosto dele perdeu a cor; suas mãos afastaram a governanta da sua frente.
— Onde está Meggie? — perguntou, em tom ríspido.
— Na sala de estar. A Sra Cleary ficou no pasto com os corpos. Jack e tom foram buscá-los. Oh, Padre, às vezes, apesar da minha fé, não posso deixar de pensar que Deus é demasiado cruel! Por que precisava Ele levar os dois?
Padre Ralph, no entanto, só ficara o tempo suficiente para saber onde estava Meggie, entrara na sala de estar, desvencilhando-se do impermeável pelo caminho e deixando um rastro de água barrenta atrás de si
— Meggie! — disse ele, aproximando-se dela e ajoelhando-se a um lado da cadeira, enquanto lhe tomava com firmeza as mãos frias entre as suas mãos molhadas
Ela escorregou da cadeira e aninhou-se nos braços dele, encostou a cabeça na camisa gotejante, tão feliz a despeito da sua dor e do seu luto que não queria que aquele momento se acabasse. Ele viera, era uma prova do poder dela sobre ele, ela não falhara.
— Estou molhado, Meggie querida, você ficará ensopada — murmurou ele com o rosto no cabelo dela
— Não faz. mal Você veio
— Sim, eu vim. Eu queria ter a certeza de que vocês estavam bem, pois tive a impressão de que precisavam de mim, e queria me certificar pessoalmente. Oh, Meggie, seu pai e Stu! Como foi que aconteceu?
— Papai ficou preso no meio do fogo e Stu o encontrou. Stu foi morto por um javali, que caiu em cima dele depois que ele o matou. Jack e tom foram buscá-los
O Padre Ralph não disse mais nada, mas ficou a segurá-la e a embalá-la como a um bebê, até que o calor do fogo lhe secou parcialmente a camisa e ele sentiu que Meggie perdia um pouco da sua rigidez. Em seguida, pôs a mão debaixo do queixo dela, puxou-lhe a cabeça para cima até que ela olhou para ele e, sem pensar, beijou-a. Foi um impulso confuso, sem raízes no desejo, apenas algo que ele instintivamente ofereceu quando viu o que havia nos olhos cinzentos dela. Algo à parte, uma espécie diferente de sacramento. Os braços dela deslizaram por baixo dos seus braços e foram juntar-se nas suas costas, ele não pôde deixar de encolher-se, suprimindo a exclamação de dor
Ela recuou um pouco
— Que aconteceu?
— Devo ter machucado as costelas quando meu avião desceu O aparelho enfiou o nariz na velha e boa lama de Gilly, de modo que a aterragem não foi nada calma. Acabei batendo no espaldar do assento à minha frente
— Deixe-me ver
com os dedos firmes, ela desabotoou a camisa úmida e tirou-a pelos braços, libertando-a do aperto das calças. Sob a superfície da pele morena e lisa uma mancha arroxeada estendia-se de um lado a outro, abaixo do tórax. Ela prendeu a respiração.
— Oh, Ralph! Você veio de Gilly até aqui com isso? Como deve ter doído! Está se sentindo bem? Nenhuma fraqueza? Você poderia ter quebrado qualquer coisa por dentro!
— Não, estou bem, e nem senti isso aí, palavra. Eu ansiava tanto por chegar aqui, certificar-me de que vocês iam bem, que devo ter simplesmente eliminado a dor da minha idéia. Se estivesse sangrando por dentro eu o saberia há muito tempo, imagino. Por Deus, Meggie, não faça isso!
Ela abaixara a cabeça e, delicadamente, tocava com os lábios o machucado, enquanto que as palmas de suas mãos subiam pelo peito dele até os ombros com uma sensualidade deliberada que o atordoou. Fascinado, aterrado, querendo libertar-se a qualquer preço, ele empurrou-lhe a cabeça; mas, fosse como fosse, a única coisa que conseguiu fazer foi tê-la de novo nos braços, serpente enrolada, apertada, em torno da sua vontade, estrangulando-a. Esqueceu-se da dor, esqueceu-se da Igreja, esqueceu-se de Deus. Encontrou-lhe a boca, forçou-a a abri-la, querendo mais e mais dela, sem poder mantê-la suficientemente aconchegada a si para minorar o impulso medonho que crescia dentro dele. Ela deu-lhe o seu pescoço, desnudou os ombros cuja pele era fria, mais macia e acetinada que o cetim; era como um afogar-se, um afundar cada vez mais, arquejante e impotente. A mortalidade desceu sobre ele, um grande peso comprimiu-lhe a alma, liberando o vinho escuro e amargo dos sentidos numa torrente súbita. Sentiu vontade de chorar; o resto do desejo escapou-se-lhe debaixo do fardo da sua mortalidade, e ele arrancou os braços dela do seu corpo lamentável, sentou-se nos calcanhares com a cabeça a pender para a frente, parecendo inteiramente absorto na contemplação das próprias mãos, que lhe tremiam sobre os joelhos.
-- Meggie, o que foi que você me fez, que é que você me faria se eu a deixasse fazer?
— Meggie, eu a amo, sempre a amarei. Mas sou um padre, não posso... Simplesmente não posso!
Ela ergueu-se de um ímpeto, repôs a blusa, ficou olhando para ele ainda acocorado, enquanto crispava os lábios num sorriso torto, que só serviu para dar maior realce à dor que havia em seus olhos.
— Está certo, Ralph. vou ver se a Sra. Smith pode arranjar-lhe alguma coisa para comer, depois lhe trarei o linimento de cavalo. É maravilhoso para curar machucados; acho que tira a dor muito melhor do que beijos.
— O telefone está funcionando? — conseguiu ele perguntar.
— Está. Esticaram uma linha temporária entre as árvores e há duas horas religaram o nosso.
Mas só alguns minutos depois que ela o deixou conseguiu o religioso recobrar-se o bastante para sentar-se à escrivaninha de Fee.
— Interurbano, por favor, telefonista. Aqui é o Padre de Bricassart em Drogheda quem está falando... Oh, é você, Doreen! Pelo que vejo, continua no telefone. Tive muito prazer também em ouvir sua voz. Nunca se sabe quem é a telefonista em Sydney; apenas uma voz entediada. Quero uma ligação urgente para Sua Excelência o Legado Papal em Sydney. O número dele é XX-2324. E enquanto espero a chamada de Sydney, ligue-me com Bugela, Doreen.
Mal tivera tempo de contar a Martin King o que havia acontecido quando se completou a ligação de Sydney, mas uma palavra transmitida a Bugela era mais do que suficiente. Gilly saberia de tudo por Martin e pelos escutadores espalhados ao longo da linha telefônica, e os que estivessem dispostos a enfrentar o lodeiro de Gilly acompanhariam o enterro.
— Excelência? Aqui é o Padre de Bricassart quem está falando... Sim, muito obrigado a Vossa Excelência, cheguei bem, mas o avião enterrou o nariz na lama, de modo que terei de voltar de trem... Lama, Excelência, la-ma, lama! Não, Excelência, tudo aqui fica intransitável quando chove. Tive de ir a cavalo de Gillanbone a Drogheda; é o único meio de transporte que se pode tentar em época de chuvas... É por isso que estou telefonando, Excelência. Ainda bem que vim. Devo ter tido uma espécie qualquer de premonição... Sim, as coisas estão más, muito más. Padraic Cleary e seu filho Stuart morreram, um queimado no incêndio, outro sufocado por um javali... Um javali, Excelência, um porco-bravo... Sim, Vossa Excelência tem razão, aqui se fala um inglês meio esquisito.
Por todo o correr da linha, ouvia os arquejos das escutas, e sorriu malgrado seu. Não poderia gritar ao telefone que todo mundo precisava sair da linha — aquele era o único entretenimento de massa que Gilly tinha para oferecer aos seus cidadãos famintos de contato humano — mas se todos saíssem da linha era provável que Sua Excelência o ouvisse melhor.
— com sua licença, Excelência, ficarei para dirigir os funerais e certificar-me de que a viúva e os outros filhos estão bem... Sim, Excelência, muito obrigado. Voltarei a Sydney assim que puder.
A telefonista ouvia também; ele acionou a alavanca e tornou a falar na hora.
— Doreen, ligue-me de novo com Bugela, por favor.
Conversou com Martin King por alguns minutos e decidiu, visto que estavam em agosto e fazia um frio de inverno, adiar o enterro para dois dias depois. Muita gente gostaria de estar presente, apesar da lama, mas precisava preparar-se para a viagem a cavalo, e este era um trabalho árduo e demorado.
Meggie voltou com o linimento, mas não se ofereceu para esfregá-lo, apenas estendeu-lhe a garrafa em silêncio. Informou-o com brusquidão de que a Sra. Smith estava preparando um jantar quente para ele na saleta de jantar, que seria servido dali a uma hora, de modo que ainda teria tempo de tomar um banho. Ralph sentia-se desagradavelmente cônscio de que, no entender de Meggie, ele lhe falhara, mas não sabia por que haveria ela de pensar assim, ou baseada em que o julgara. Ela sabia o que ele era; por que se zangava?
Na madrugada cinzenta a cavalgadazinha que escoltava os corpos chegou ao riacho e parou. Embora a água ainda estivesse contida dentro de suas margens, o Gillanl transformara-se em um rio caudaloso, rápido e profundo. O Padre Ralph fez a égua castanha cruzá-lo a nado para encontrar-se com eles, com a estola em torno do pescoço e os instrumentos da sua profissão num alforje. Enquanto Fee, Bob, Jack, Hughie e tom permaneciam em roda, ele tirou a lona que cobria os corpos e preparou-se para ungi-los. Depois de Mary Carson, nada mais poderia nauseá-lo; entretanto, nada em Paddyl e Stu lhe pareceu repugnante. Estavam ambos negros à sua maneira — Paddy por causa do fogo, Stu por efeito da sufocação —, mas o padre beijou-os com amor e respeito.
Num trajeto de vinte e quatro quilômetros a folha tosca de ferro estrugira e ressaltara sobre o solo atrás da parelha de cavalos de tiro, deixando no lodo fundas cicatrizes que ainda seriam visíveis anos depois, mesmo na relva de outras temporadas. Dir-se-ia, porém, que eles não podiam ir mais longe; o torvelinhante curso d’água os seguraria naquela margem, a pouco mais de um quilômetro e meio de Drogheda. Ficaram todos a olhar para os topos dos eucaliptos espectrais, claramente visíveis até na chuva.
— Tenho uma idéia — disse Bob, voltando-se para o Padre Ralph. — Padre, o senhor é o único que tem um cavalo descansado; terá de ser o senhor mesmo. Os nossos só atravessarão o rio a nado uma vez... já não têm força nenhuma depois de tanta lama e tanto frio. Volte, procure alguns tambores vazios de quarenta e quatro galões e feche-os de modo que não deixem entrar nem uma gota d’água em seu interior. Solde-os, se for necessário. Precisaremos de doze tambores, ou de dez se não for possível encontrar mais. Amarre-os e traga-os aqui. Nós os colocaremos debaixo da folha de ferro e os faremos flutuar de uma margem à outra como um batelão.
O Padre Ralph fez o que lhe pediram sem discutir; era uma idéia melhor do que qualquer outra que pudesse oferecer-lhes. Dominic O’Rourke de Dibban-Dibban chegara a cavalo com dois filhos; vizinho, a distância entre as sedes das duas propriedades era relativamente pequena. Quando o Padre Ralph explicou o que devia ser feito, puseram-se logo em campo, vasculhando os barracões à procura de tambores vazios, despejando o farelo ou a aveia que havia dentro deles, antigos tambores de gasolina que agora serviam para guardar mantimentos, procurando tampas e soldando-as nos tambores que não estavam enferrujados e pareciam capazes de agüentar os golpes que receberiam dentro d’água. A chuva continuava a cair. Só pararia dali a dois dias.
— Dominic, detesto precisar pedir-lhe uma coisa dessas, mas, quando aquela gente chegar, estará mais morta do que viva. Teremos de realizar o enterro amanhã e, mesmo que o cangalheiro pudesse fazer os caixões, jamais conseguiríamos transportá-los até aqui com essa lama toda. Que tal se um de vocês tentasse fazer dois caixões? Só preciso de um homem para transpor o ribeirão comigo.
Os filhos de O’Rourke assentiram com a cabeça; não queriam ver o que o fogo fizera a Paddy nem o que o javali fizera a Stuart.
— Nós os faremos, papai — prometeu Liam.
Arrastando os tambores atrás dos cavalos, Padre Ralph e Dominic O’Rourke desceram até o rio e atravessaram-no.
— Há uma coisa, Padre! —gritou Dominic. — Não teremos de abrir covas nesta maldita lama! Eu costumava pensar que a velha Mary estava querendo aparecer um pouco demais quando mandou construir uma catacumba de mármore para Michael, mas, neste exato momento, se ela estivesse aqui, eu lhe daria um beijo.
— Certíssimo! — gritou o Padre Ralph.
Amarraram os tambores debaixo da folha de ferro, seis de cada lado, prenderam com muita firmeza a mortalha de lona por baixo e fizeram os exaustos cavalos de tiro atravessar as águas a nado, com a corda que serviria afinal para puxar o batelão de tambores. tom e Dominic cavalgaram os grandes animais e, chegados ao alto da margem que ficava do lado da sede de Drogheda, estacaram, olhando para trás, enquanto os que tinham ficado na outra margem agarraram o batelão provisório, empurraram-no até à beira do ribeirão e atiraram-no dentro dele. Os cavalos de tiro começaram a caminhar e tom e Dominic soltaram um grito estridente de aviso quando o batelão se pós a flutuar. Este balançou e jogou violentamente, mas continuou flutuando o suficiente para ser retirado do rio na outra margem em perfeito estado; em vez de perder tempo desmanchando os caixões flutuantes, os dois postilhões improvisados instigaram os cavalos para a trilha que levava à casa-grande, ao passo que a folha de ferro deslizava sobre os tambores melhor do que deslizara sem eles.
Uma rampa conduzia aos grandes portões da seção de empacotamento do barracão de tosquia, de modo que colocaram o batelão e sua carga na imensa construção vazia, entre os cheiros misturados de suor, alcatrão, lanolina e estérco. Envoltas em impermeáveis, Minnie e Cat haviam descido da casa-grande para fazer a primeira vigília e ajoelharam-se, cada qual de um lado do esquife de ferro. As contas do rosário começaram a se roçar e as vozes a erguer-se e abaixar-se em cadências tão bem conhecidas que dispensavam o esforço da memória.
A casa principiara a encher-se. Duncan Gordon chegara de Each-Uisge, Gereth Davis de Narrengang, Horry Hopeton de Beel-Beel, Éden Carmichael de Barcoola. O velho Angus MacQueen fizera parar no meio do caminho um dos atrasados trens locais de carga e seguira viagem ao lado do maquinista até Gilly, onde tomara emprestado um cavalo de Harry Gough e fora a Drogheda em sua companhia. Percorrera, assim, mais de trezentos e vinte quilômetros de lama, nos dois sentidos.
— Estou liquidado, Padre — disse Horry, mais tarde, quando sete deles se sentaram na saleta de jantar para comer torta de carne e de rins. — O incêndio varreu minhas terras de ponta a ponta e quase não deixou um carneiro vivo nem uma árvore verde. A única coisa que posso dizer é que foi uma sorte os últimos anos terem sido bons. Estou em condições de substituir meu rebanho e, se a chuva continuar por mais algum tempo, o capim voltará depressa. Mas Deus nos livre de outro desastre igual a esse nos próximos dez anos, porque, nesse caso, não terei nada armazenado de lado para enfrentá-lo.
— Você é menor do que eu, Horry — acudiu Gareth Davies, enfrentando com manifesto prazer as massas folhadas da Sra. Smith, que derretiam na boca de tão leves. Nada em matéria de desastres estragaria por muito tempo o apetite de um habitante das planícies de solo negro; ele precisava do seu alimento para arrostá-los. — Calculo que perdi metade das minhas terras e talvez dois terços do meu rebanho de carneiros, infelizmente. Padre, precisamos das suas orações.
— É verdade — interveio o velho Angus. — Não fui tão atingido quanto o pequeno Horry, nem quanto Garry, Padre, mas, assim mesmo, a coisa foi feia. Perdi sessenta mil acres e a metade dos carneiros. São tempos como este, padre, que me fazem desejar que eu não tivesse deixado Skye quando era um rapazola.
O Padre Ralph sorriu.
— Esse é um desejo passageiro, Angus, e você sabe disso. Você saiu de Skye pela mesma razão por que eu saí de Clunamara. O lugar era pequeno demais para nós.
— Nisso o senhor tem razão. As urzes não fazem um fogo tão bonito quanto os eucaliptos, não é mesmo, Padre?
Estranho funeral, pensou o Padre Ralph, correndo os olhos pela sala; as únicas mulheres seriam as de Drogheda, pois todos os acompanhantes de fora eram homens. Levara uma grande dose de láudano a Fee depois que a Sra. Smith a despira, enxugara e colocara na cama enorme que ela partilhara com Paddy e, quando ela se recusara a bebê-lo, chorando histericamente, empurrara-lhe o remédio a muque pela garganta abaixo. Engraçado, não imaginara que Fee sucumbisse. O láudano surtira efeito depressa, pois fazia 24 horas que ela não comia. Sabendo-a profundamente adormecida, descansou mais sossegado. Quanto a Meggie, estava de olho nela; naquele momento, a jovem estava na cozinha, ajudando a Sra. Smith a preparar a comida. Os rapazes se haviam deitado, tão cansados que mal tinham conseguido tirar a roupa molhada antes de emborcar. Quando Minnie e Cat concluíram a sua parte da vigília indispensável, porque os corpos se achavam em lugar deserto e não abençoado, Gareth Davies e seu filho Enoch as substituíram; os outros distribuíram entre si os períodos restantes de uma hora enquanto falavam e comiam.
Nenhum dos moços se juntara aos mais velhos na sala de jantar. Estavam todos na cozinha aparentemente ajudando a Sra. Smith, mas, na verdade, vigiando Meggie.
Quando compreendeu esse fato, o Padre Ralph sentiu-se, ao mesmo tempo, agastado e aliviado. Afinal, era no meio deles que ela teria de escolher um marido, como o faria inevitavelmente. Enoch Davies, com vinte e nove anos, era um ”galés negro”, o que queria dizer que tinha cabelos pretos e olhos muito escuros, um belo homem; Liam O’Rourke, de vinte e seis, possuía o cabelo ruivo e olhos azuis, como seu irmão Rory, de vinte e cinco; mais velho do que a irmã, com trinta e dois anos, e parecidíssimo com ela, Connor Carmichael era, de fato, muito bem-apessoado, ainda que um pouco arrogante; mas a flor do grupo, na opinião do Padre Ralph, Alastair, o neto do velho Angus, e o mais próximo de Meggie no tocante à idade, pois mal completara vinte e quatro anos, era um moço agradável, com os belos olhos azuis escoceses do avô e o cabelo já grisalho, traço de família. Ela que se apaixone por um deles, case com ele e tenha os filhos que tanto queria. Oh, meu Deus, se fizerdes isso por mim, suportarei alegremente a dor de amá-la, alegremente...
Nenhuma flor encobria os caixões, e os vasos em toda a volta da capela estavam vazios. As flores que tinham sobrevivido ao terrível calor do ar das duas noites atrás haviam sucumbido à chuva, e jaziam prostradas na lama como borboletas mortas. Nem uma haste de cavalinha, nem uma rosa têmpora. E todos estavam cansados, tão cansados...! Os que tinham cavalgado os longos quilômetros no lodo para mostrar seu apreço a Paddy estavam cansados, os que tinham trazido os corpos estavam cansados, as que tinham mourejado como escravas para cozinhar e limpar estavam cansadas. O Padre Ralph estava tão cansado que se sentia num sonho, e os olhos lhe fugiam do rosto angustiado e desesperançado de Fee, da expressão de tristeza e cólera de Meggie, do sofrimento coletivo de Bob, Jack e Hughie...
Não fez o panegírico dos mortos; Martin King falou pouco, mas comoveu a todos, em nome dos que ali se achavam reunidos, e o padre passou sem demora para a missa de réquiem. Trouxera, naturalmente, seu cálice, seus sacramentos e uma estola, pois nenhum padre saía sem eles quando ia oferecer conforto ou ajuda, mas não trouxera vestimentas e a casa não possuía nenhuma. O velho Angus, porém, passara pela casa paroquial de Gilly a caminho de Drogheda e carregara os paramentos lutuosos da missa dos mortos num impermeável amarrado à sela. De modo que ele estava convenientemente trajado enquanto a chuva silvava de encontro às vidraças das janelas e tamborilava sobre o telhado de ferro, dois andares mais acima.
Depois saíram para a chuva impiedosa, atravessaram o relvado tostado e causticado pelo calor, na direção do cemiteriozinho gradeado de branco. Desta feita havia gente disposta a carregar nos ombros os caixões singelos e retangulares, escorregando e deslizando no barro, procurando enxergar o caminho através da chuva que lhes batia nos olhos. E os sininhos no túmulo do cozinheiro chinês tilintavam, monótonos:
Hee Sing, Hee Sing, Hee Sing. Concluída a cerimônia, os acompanhadores partiram em seus cavalos, as costas arqueadas debaixo dos impermeáveis, alguns pensando, acabrunhados, na perspectiva da ruína, outros agradecendo a Deus por haverem escapado à morte e ao fogo. E o Padre Ralph reuniu as poucas coisas que trouxera, sabendo que precisava partir antes que não pudesse fazê-lo.
Foi ter com Fee onde ela estava, sentada à sua mesa, com os olhos cravados nas mãos.
— Fee, você ficará bem? — perguntou, sentando-se onde pudesse vê-la.
Ela voltou-se para ele, tão calma e reprimida dentro de sua alma que ele ficou com medo, e fechou os olhos.
— Sim, Padre, ficarei bem. Tenho os livros para escriturar e cinco filhos que me sobraram... seis, se puder contar Frank, embora ache que não podemos contar com Frank, não é mesmo? A propósito, nunca poderei lhe dizer o quanto lhe sou grata por isso. É um consolo tão grande para mim saber que a sua gente está velando por ele, tornando-lhe a vida um pouco mais fácil. Oh, se eu pudesse vê-lo, ao menos uma vez!
Ela era como um farol, pensou ele; despedia lampejos de dor todas as vezes que o seu espírito chegava perto de emoções grandes demais para serem contidas. Um clarão imenso e, depois, um longo período de nada.
— Fee, quero que você pense numa coisa.
— Sim, que é? — Ela se apagara outra vez.
— Está prestando atenção? — perguntou ele, severo, preocupado, e ainda mais assustado do que antes.
Por um longo momento supôs que ela se houvesse recolhido tão dentro em si mesma que nem a severidade da voz dele a penetrara, mas o farol tornou a luzir e os lábios se separaram.
— Meu pobre Paddy! Meu pobre Stuart! Meu pobre Frank! — lamentou-se ela. Mas logo assumiu, mais uma vez, o controle de ferro, como se estivesse decidida a encompridar os períodos de escuridão até que a luz não voltasse a brilhar em sua vida.
Seus olhos erraram pela sala sem parecer reconhecê-la.
— Sim, Padre, estou prestando atenção — disse ela.
— Fee, que me diz de sua filha? Lembra-se alguma vez de que tem uma filha? Os olhos cinzentos ergueram-se para o rosto dele e nele pousaram, quase penalizados.
— E qual é a mulher que se lembra disso? Que é uma filha? Apenas um lembrete do sofrimento, uma versão mais moça de nós mesmas, que fará todas as coisas que nós fizemos, que chorará as mesmas lágrimas. Não, Padre. Procuro esquecer que tenho uma filha... e, quando penso nela, é como se fosse um dos meus filhos. É dos filhos que a mãe se lembra.
— Você verte lágrimas, Fee? Só as vi uma vez.
— E nunca mais as verá. Acabei com as lágrimas para sempre. — O corpo todo lhe tremia. — Sabe de uma coisa, Padre? Dois dias atrás descobri o quanto eu amava Paddy, mas foi como tudo em minha vida... tarde demais. Tarde demais para ele, tarde demais para mim. Se soubesse o quanto desejei a oportunidade de tomá-lo nos braços, dizer-lhe que o amava! Oh, Deus, espero que nenhum ser humano venha a sentir a minha dor!
Ele afastou os olhos daquele rosto subitamente devastado, para dar-lhe tempo de recuperar a calma, e para dar tempo a si mesmo de enfrentar com compreensão o enigma que era Fee. E disse:
— Ninguém mais poderá sentir a sua dor.
Um canto da boca ergueu-se-lhe num sorriso severo.
— De fato, isso é um consolo, não é? Pode não ser invejável, mas a minha dor é minha.
— Quer me prometer uma coisa, Fee?
— O que o senhor quiser.
— Olhe por Meggie, não a esqueça. Faça-a ir aos bailes da vizinhança, deixe-a conhecer alguns rapazes, anime-a a pensar em casamento e num lar. Todos os rapazes olhavam hoje para ela. Dê-lhe a oportunidade de encontrá-los de novo, porém em circunstâncias mais felizes do que estas.
— Farei o que o senhor quiser, Padre.
Suspirando, ele deixou-a entregue à contemplação das mãos alvas e finas.
Meggie caminhou com ele até às cocheiras, onde o cavalo baio do taverneiro se estivera fartando de feno e de farelo e morando numa espécie de paraíso eqüino durante dois dias. Atirou a sela maltratada do taverneiro sobre ele e inclinou-se para apertar a sobrecilha e a barrigueira, enquanto Meggie, encostada num fardo de palha, observava-o.
— Padre, veja o que achei — disse ela quando ele terminou e endireitou o corpo. Estendeu a mão, em que se via uma rosa pálida, quase cinzenta. — É a única. Encontrei-a numa touceira, debaixo das árvores à beira do tanque, nos fundos. com certeza não recebeu o calor do incêndio e ficou protegida da chuva. Por isso a colhi para você. Para que você se lembre de mim.
com mão pouco firme, ele pegou na flor semidesabrochada que a jovem lhe estendia, e ficou olhando para ela.
— Meggie, não preciso de nenhuma lembrança sua, nem agora, nem nunca. Levo-a dentro de mim, e você sabe disso. Eu não poderia, nem que quisesse, esconder isso de você, poderia?
— Mas, às vezes, há realidade numa lembrança — insistiu ela. — Você pode pegá-la, olhar para ela e recordar-se, ao vê-la, de todas as coisas que, de outro modo, esqueceria. Por favor, aceite-a, Padre.
— Meu nome é Ralph — disse ele.
Abriu a caixinha dos sacramentos e dela tirou o seu grande missal ricamente encadernado em madrepérola, presente de seu falecido pai no dia em que ele se ordenara, treze anos antes. As páginas abriram-se num trecho marcado com uma grossa fita branca; virou várias outras, colocou a rosa entre elas e fechou o livro sobre a flor.
— Você quer uma lembrança minha, Meggie, não é isso?
— Pois não lhe darei nenhuma. Quero que me esqueça, quero que procure em seu próprio mundo um homem correto e bom, que case com ele e tenha os filhos que você tanto deseja. Você nasceu para ser mãe. Não deve agarrar-se a mim, não é direito. Nunca poderei deixar a Igreja, e serei agora completamente sincero com você, para o seu próprio bem. Não quero deixar a Igreja, porque não a amo como um marido a amará, entende? Esqueça-me, Meggie!
— Não me dará um beijo de despedida?
Como única resposta, ele montou no baio do taverneiro e fê-lo andar até a porta antes de enfiar na cabeça o velho chapéu de feltro do dono do cavalo. Seus olhos azuis cintilaram por um momento, depois o animal saiu para a chuva e resvalou, relutante, pelo caminho que conduzia a Gilly. Ela não tentou segui-lo, mas permaneceu na escuridão da cocheira úmida, aspirando os odores de estérco e de feno; aquilo lhe recordava o celeiro da Nova Zelândia e Frank.
Trinta horas depois o Padre Ralph entrou na câmara do Legado Papal, atravessou a sala para beijar o anel de seu superior e deixou-se cair, exausto, numa cadeira. E só quando sentiu os belos olhos oniscientes fixos nele compreendeu que devia ter um aspecto muito estranho e por que tanta gente o fitara, espantada, desde que descera do trem na Central. Sem se lembrar da mala que dera ao Padre Watty Thomas para guardar na casa paroquial, tomara, dois minutos antes de partir, o trem postal noturno e viajara 960 quilômetros num vagão frio vestindo apenas camisa, calças e botas, molhado como um pinto, sem sentir o frio. Por isso mesmo examinou-se com um sorriso pesaroso, depois olhou para o Arcebispo.
— Peço-lhe que me desculpe, Excelência. Aconteceu tanta coisa que nem pensei no vexame que eu devia estar dando.
— Não se desculpe, Ralph. — À diferença do seu predecessor, ele preferia chamar o secretário pelo prenome. — Você me parece muito romântico e casquilho. Mas um pouquinho secular demais, não concorda comigo?
— Extremamente secular, sem dúvida. Quanto ao romântico e casquilho, é que Vossa Excelência não está acostumado a ver os trajes que se usam em Gillanbone.
— Meu caro Ralph, se você cismasse um dia de vestir hábitos fúnebres de penitência, ainda assim pareceria romântico e casquilho! Mas, de qualquer maneira, as roupas de montar lhe ficam muito bem. Quase tão bem quanto uma batina, e não desperdice energias tentando me convencer de que não sabe que esta lhe assenta melhor que o terno preto dos padres. Você tem um porte peculiar e muito atraente e, além disso, conservou a linha, creio, aliás, que sempre a conservará. Acho também que, quando for chamado de volta a Roma, eu o levarei comigo. Será muito divertido para mim observar o seu efeito sobre os nossos prelados italianos, gordos e atarracados. O belo gato insinuante entre os pombos roliços e assustados.
Roma! O Padre Ralph endireitou-se na cadeira
— Foi muito ruim, meu Ralph? — continuou o Arcebispo, passando a mão leitosa e cheia de anéis pelo dorso sedoso da sua ronronante gata abissínia
— Terrível, Excelência
— Você tem uma grande ternura por essa gente
— É verdade, Excelência
— E ama igualmente a todos, ou a alguns mais do que aos outros?
O Padre Ralph era, pelo menos, tão ladino quanto o seu superior e já estava com ele o tempo suficiente para saber como funcionava a sua mente. Por isso aparou a pergunta insinuante com ilusória franqueza, estratagema que, segundo descobrira, aquietava de pronto as suspeitas de Sua Excelência. Jamais ocorreu àquela mente sutil e tortuosa que uma demonstração de franqueza pudesse ser mais mentirosa do que qualquer evasão.
— Amo a todos, mas, como diz Vossa Excelência, amo a alguns mais do que a outros. É da moça Meggie que mais gosto. Sempre a considerei minha responsabilidade especial, porque a família está tão obcecada pelos filhos homens que se esquece de que ela existe.
— Que idade tem essa Meggie?
— Não estou bem certo, mas calculo uns vinte anos, mais ou menos. Entretanto, fiz a mãe prometer-me que erguerá o rosto dos seus livros de contabilidade o suficiente para fazê-la ir a uns bailes e conhecer alguns rapazes. Ela acabará desperdiçando toda a sua vida em Drogheda, e será uma pena.
Ele não falara mais que a verdade, o nariz inefavelmente sensível do Arcebispo farejou-o no ato. Se bem fosse apenas três anos mais velho que o secretário, sua carreira dentro da Igreja não sofrera os percalços que Ralph encontrara e ele se sentia, de muitas maneiras, infinitamente mais velho do que Ralph jamais se sentiria, o Vaticano extraía a essência vital das pessoas expostas muito cedo à sua influência, e Ralph possuía essa essência vital em abundância.
Relaxando um pouco a vigilância, continuou a observar o secretário e voltou ao seu jogo interessante de descobrir precisamente o que fazia palpitar o Padre Ralph de Bricassart. A princípio tivera a certeza de que seria uma fraqueza da carne, se não numa direção, pelo menos em outra. Aquela extraordinária beleza física devia ter feito dele o alvo de muitos desejos, incompatíveis com a preservação da inocência ou da inconscíência. E, com o passar do tempo, descobriu que acertara pela metade; a consciência lá estava, sem dúvida, mas principiou a convencer-se de que lá estava também uma autêntica inocência. Assim, fosse por que fosse que ardia o Padre Ralph, não era a carne. Ele atirara o padre no meio de habilidosíssimos homossexuais, irresistíveis para outro homossexual, sem resultado. Observara-o com as mulheres mais belas da terra, sem resultado. Nem uma chama de interesse ou de desejo, nem mesmo quando ele não poderia saber que estava sendo observado. Pois o Arcebispo não se encarregava sempre da própria vigilância e, quando empregava sabujos, não o fazia através de canais secretariais.
Começara a pensar que as fraquezas do Padre Ralph eram o orgulho de ser padre e a ambição; facetas ambas de personalidade que compreendia, pois também as possuía. A Igreja tinha lugares para homens ambiciosos, como todas as grandes instituições capazes de perpetuar-se indefinidamente. Dizia-se à boca pequena que o Padre Ralph lesara os Clearys, que ele dizia amar tanto, abiscoitando-lhes a herança que por direito lhes cabia. Se isso fosse verdade, não se devia perdê-lo de vista. E como haviam cintilado aqueles maravilhosos olhos azuis à simples menção de Roma! Talvez já estivesse na hora de tentar outro ardil. Moveu preguiçosamente um peão na conversa, mas os olhos debaixo das pálpebras descidas estavam muito alertas.
— Recebi notícias do Vaticano enquanto você esteve fora, Ralph — disse ele, mudando um pouco a posição da gata. — Minha Sheba, você é egoísta; adormeceu minhas pernas.
— Oh? — O Padre Ralph afundava cada vez mais na poltrona, e seus olhos encontravam uma dificuldade cada vez maior para manter-se abertos.
— Sim, você poderá ir para a cama, mas não sem primeiro ouvir minhas notícias. Há pouco tempo enviei uma comunicação pessoal e privada ao Santo Padre, e hoje me chegou uma resposta do meu amigo Cardeal Monteverdi... Às vezes fico a imaginar se não será descendente do músico da Renascença. Por que nunca me lembro de perguntar-lhe quando o vejo? Oh, Sheba, você precisa mesmo insistir em enterrar suas unhas em mim quando está feliz?
— Estou ouvindo, Excelência, ainda não adormeci — disse o Padre Ralph, sorrindo. — Não admira que goste tanto de gatos. Vossa Excelência mesmo é um gato, que brinca com sua presa para divertir-se. — Estalou os dedos. — Venha cá, Sheba, deixe-o e venha comigo! Ele é mau.
A gata saltou na mesma hora do colo de púrpura, cruzou o tapete e pulou com delicadeza para os joelhos do padre, onde ficou abanando o rabo e aspirando, extasiada, os estranhos cheiros de cavalo e barro. Os olhos azuis do Padre Ralph sorriram para os olhos castanhos do Arcebispo, ambos semicerrados, ambos alertas.
— Como é que você faz isso? — perguntou o arcebispo. — Um gato nunca vai com ninguém, mas Sheba vai com você como se você lhe desse caviar e valeriana. Animal ingrato.
— Estou esperando, Excelência.
— E você ainda me castiga, tirando-me a gata. Está bem, ganhou, admito. Aliás, será que você já perdeu alguma vez? Pergunta interessante. Preciso dar-lhe os parabéns, meu querido Ralph. Daqui a pouco estará usando a mitra e a capa de asperges, e será saudado como Sua Excelência, o Bispo de Bricassart.
Isso lhe escancarou os olhos!, notou com alegria. Por uma vez ao menos o Padre Ralph não tentou dissimular, nem esconder seus verdadeiros sentimentos. Apenas resplandeceu.
1933-1938 — LUKE
Era incrível a rapidez com que a terra se recuperava; numa semana, pequeninos brotos verdes de capim já saíam do charco viscoso e, dali a dois meses, as folhas começaram a repontar nas árvores torradas. Se as pessoas eram rijas e se recobravam depressa a razão era porque a terra não lhes dava ensejo de ser de outra maneira; os que tinham o coração frouxo ou careciam de um traço fanático de resistência não ficavam por muito tempo no Grande Noroeste. Mas só dali a anos desapareceriam as cicatrizes. Muitas camadas de córtex teriam de crescer e cair como farrapos eucaliptóides para que os troncos das árvores voltassem a ser brancos, vermelhos ou cinzentos outra vez, e certa percentagem de troncos nunca se regeneraria, mas continuaria morta e escura. E, durante anos, esqueletos em desintegração juncariam as planícies, depositando-se na esteira do tempo, pouco a pouco cobertos pela poeira e pelos cascozinhos em marcha. E, atravessando Drogheda no rumo do oeste, permaneceram os canais nítidos e fundos cortados na lama pelos cantos de um féretro provisório, apontados pelos viandantes que conheciam a história aos viandantes que não a conheciam, até que a narrativa se incorporou ao folclore das planícies de solo preto.
Drogheda perdeu talvez uma quinta parte da sua área no incêndio e vinte e cinco mil carneiros, simples bagatela para uma fazenda em que se haviam contado, nos últimos anos bons, perto de cento e vinte e cinco mil. Não adiantava imputar à malevolência do destino nem à cólera de Deus, ou ao que quer que os interessados quisessem atribuí-lo, um desastre natural. A única coisa que se podia fazer era virar a página e começar de novo. Em caso algum fora aquela a primeira vez e em nenhum caso presumia alguém que seria a última.
Mas doía ver os jardins da sede de Drogheda nus e escuros na primavera. Numa seca eles sobreviviam graças aos tanques de água de Michael Carson, mas, depois de um incêndio, nada sobrevivia. Nem a glicínia floresceu; quando as chamas chegaram, estavam-se formando justamente os tenros cachos de botões, que murcharam.
Encresparam-se as rosas, morreram os amores-perfeitos, os goivos se transformaram em palha de cor sépia, os brincos-de-princesa mirraram de tal modo que já não tinham possibilidade de recuperação, os muscaris morreram sufocados, as rendilhadas ervilhas-de-cheiro secaram e perderam o perfume. Mas, como a água tirada dos tanques durante a conflagração fora substituída pelas chuvas pesadas que se seguiram ao fogo, toda a gente em Drogheda sacrificou um tempo nebuloso de lazer para ajudar o velho tom a ressuscitar os jardins.
Bob decidiu continuar a política de Paddy de contratar gente nova para trabalhar em Drogheda, e admitiu mais três pastores; a política de Mary Carson fora excluir dos seus livros quem não pertencesse à família Cleary, preferindo contratar trabalhadores avulsos nas épocas de reunião dos carneiros, parição e tosquia, mas Paddy achava que os homens trabalhavam melhor quando sabiam que tinham empregos permanentes e, a longo prazo, a diferença não era muito grande. De qualquer maneira, porém, a maioria dos pastores sofria cronicamente de cócegas nos pés e nunca parava por muito tempo no mesmo lugar.
As novas casas, erguidas a maior distância do ribeirão, eram ocupadas por homens casados; o velho tom ganhara um chalezinho novo e bem-arrumado de três cômodos e ria-se com o júbilo do proprietário todas as vezes que entrava em casa. Meggie continuava a tomar conta de alguns pastos internos, e sua mãe, dos livros.
Fee assumira a tarefa de comunicar-se com o Bispo Ralph e, sendo Fee, não passava adiante nenhuma informação que não se referisse diretamente à gerência da fazenda. Meggie ansiava por arrebatar-lhe as cartas, lê-las com avidez, mas Fee não lhe dava chance de fazê-lo, fechando-as numa caixa de aço assim que lhes digeria o conteúdo. com a partida de Paddy e Stu não se podia chegar a Fee. Quanto a Meggie, assim que o Bispo Ralph se fora, Fee se esquecera de todo da promessa que lhe fizera. Meggie respondia aos convites de bailes e festas com polidas negativas; embora se desse conta disso, Fee nunca a censurou nem a aconselhou a aceitar os convites. Liam O’Rourke aproveitava todas as oportunidades para passar por Drogheda; Enoch Davies telefonava constantemente, e o mesmo faziam Connor Carmichael e Alastair MacQueen. Meggie, porém, era lacônica e indiferente com todos eles, a ponto de chegarem à conclusão de que não conseguiriam interessá-la.
O verão foi muito úmido, mas as cheias dos rios não duravam o tempo suficiente para provocar inundações; só o solo se mantinha perpetuamente barrento, e o Barwon-Darling percorria seus mil e seiscentos quilômetros fundo, largo e forte. Quando o inverno chegou, as chuvas esporádicas continuaram; os lençóis marrons voadores eram feitos agora de água e não de poeira. Nessas circunstâncias, a marcha dos que não tinham parada ao longo do caminho, provocada pela Depressão, foi diminuindo aos poucos, pois era o diabo percorrer as planícies de solo negro em época de chuva e, com o frio acrescentado à umidade, a pneumonia grassou furiosa entre os que não encontravam para dormir um abrigo quente.
Preocupado, Bob começou a falar em podridão dos cascos entre os carneiros se aquilo continuasse; os merinos não agüentariam o excesso de umidade do solo sem ficar com os cascos doentes. A tosquia fora quase impossível, pois os tosquiadores se negavam a tocar em lã molhada e, a não ser que a lama secasse antes da parição, muitos filhotes morreriam na terra empapada e fria.
O telefone tocou: dois toques longos e um curto. Era um chamado para Drogheda; Fee atendeu e voltou-se.
— Bob, telefone para você.
— Alô, Jimmy, aqui é Bob quem está falando... Sim, é isso mesmo... Oh, muito bem! As referências estão todas em ordem?... Certo, diga-lhe que venha me ver... Se for tão bom como você diz, pode dizer a ele que provavelmente conseguiu o emprego, mas ainda assim faço questão de vê-lo pessoalmente, não gosto de comprar nabos em sacos e não me fio em referências... Certo, obrigado.
Bob sentou-se outra vez.
— Vem aí um novo pastor, um bom sujeito, de acordo com Jimmy. Andou trabalhando nas planícies de West Queensland, perto de Longreach e Charleville. Foi tropeiro também. Boas referências. Tudo limpo. Monta tudo o que tem rabo e quatro patas e costumava amansar cavalos. Foi tosquiador antes disso, e parece que de primeira, diz Jimmy, mais de cinqüenta por dia. Isso é o que me deixa meio desconfiado. Por que um tosquiador tão bom assim trabalharia pelo ordenado de um pastor? Não é muito freqüente um bom tosquiador trocar a tesoura pela sela. Mas também pode nos dar uma boa mão nos pastos, não é?
Com o passar dos anos, o falar de Bob se tornava cada vez mais arrastado e o seu sotaque cada vez mais australiano, ao passo que suas frases se iam encurtando cada vez mais. Ele estava chegando perto dos trinta e, para decepção de Meggie, não dava sinais de gostar de nenhuma das moças casadouras que encontrava nas poucas festas a que a decência os obrigava a comparecer. Primeiro, era tímido ao extremo e, segundo, parecia totalmente concentrado na terra, preferindo amá-la com exclusividade. Jack e Hughie estavam ficando cada vez mais parecidos com ele; na verdade, poderiam passar por trigêmeos quando se sentavam juntos num dos bancos duros de mármore, a maior concessão ao conforto doméstico que eram capazes de fazer a si mesmos. Dir-se-ia realmente que preferissem acampar fora, nos pastos e, quando dormiam em casa, estendiam-se no chão de seus quartos, com medo de que as camas viessem a amolecêlos. O sol, o vento e o ar seco lhes haviam alterado a cor da pele clara e sardenta, convertendo-a numa espécie de mogno sarapintado, em que os olhos azuis brilhavam pálidos e tranqüilos, rodeados de rugas fundas, que falavam de olhares dirigidos a grandes distâncias e ao capim bege prateado. Era quase impossível dizer-lhes a idade, ou quem era o mais velho e o mais moço. Todos tinham o nariz romano e o rosto bondoso e feio de Paddy, embora seus corpos fossem melhores que o do pai, que acabara arqueado e com os braços mais compridos depois dos muitos anos de tosquia. Em vez disso, possuíam a beleza sóbria e tranqüila dos cavaleiros. Entretanto, não suspiravam por mulheres, nem por conforto, nem por prazer.
— Esse empregado novo é casado? — perguntou Fee, traçando linhas nítidas com uma régua e uma pena molhada em tinta vermelha.
— Não sei, não perguntei. Saberei amanhã quando ele chegar.
— E como virá até aqui?
—Jimmy vai trazê-lo de carro; agora preciso ir ver aqueles velhos carneiros capados em Tankstand.
— Esperemos que fique algum tempo. Se não for casado, estará dando o fora daqui a algumas semanas. Gente miserável, esses pastores — disse Fee.
Jims e Patsy, internos em Riverview, juravam que não ficariam na escola nem um minuto a mais depois de completar catorze anos de idade, quando poderiam deixá-la legalmente. Suspiravam pelo dia em que estariam lá fora, nos pastos, em companhia de Bob, Jack e Hughie, quando Drogheda fosse novamente administrada só pela família e os de fora pudessem chegar e partir quando quisessem, sem que isso tivesse a menor importância. Embora partilhassem da paixão da família pela leitura, isso não aumentava para eles os atrativos de Riverview; um livro poderia ser transportado num alforje ou num bolso do casaco e lido com muito maior prazer à sombra de uma wilga ao meio-dia do que na sala de um colégio de jesuítas. O internato lhes fora uma dura transição. As salas de aulas com seus janelões, os vastos e verdes campos de esporte, a riqueza de jardins e instalações nada significavam para eles, como nada significava Sydney com seus museus, suas salasAW concertos e suas galerias de arte. Eles fizeram amizade com os filhos de outros fazendeiros e passavam os momentos de lazer suspirando pela hora de voltar ao lar ou vangloriando-se do tamanho e do esplendor de Drogheda diante de ouvidos assombrados, mas crentes, pois todo o mundo a oeste de Burren Junction já ouvira falar na poderosa Drogheda.
Várias semanas se passaram antes de Meggie ver o novo pastor. O nome dele fora devidamente registrado nos livros, Luke O’Neill, e já era muito mais discutido na casagrande do que em geral se discutiam os nomes dos pastores. Primeiro, porque se recusara a dormir na barraca dos novatos, mas se instalara na última casa vazia ao pé do córrego. Segundo, porque se apresentara à Sra. Smith e conquistara as boas graças dessa senhora, que não costumava interessar-se por pastores. Meggie sentiu despertada a sua curiosidade por ele muito antes de conhecê-lo pessoalmente.
Como ela costumava recolher a égua castanha e o cavalo preto às cocheiras, em vez de deixá-los nos potreiros, e quase sempre saía para o trabalho mais tarde do que os homens, passava, às vezes, longos períodos de tempo sem topar com nenhum dos empregados. Mas conheceu, afinal, Luke O’Neill, num fim de tarde, quando o sol de verão brilhava acima das árvores e longas sombras se esgueiravam na direção do manso deserto da noite. Ela regressava de Borehead e rumava para o vau a fim de atravessar o ribeirão, e ele vinha do sudeste e também se encaminhava para o vau.
O sol batia nos olhos dele, de modo que ela o viu antes que ele a visse. Luke O’Neill montava um grande baio arisco, de crina, cauda e extremidades pretas; ela conhecia o animal porque lhe competia organizar o rodízio dos cavalos de lida, e já perguntara a si mesma por que o baio, ultimamente, não estava mais na berlinda. Nenhum dos homens gostava dele e só o montava se não pudesse evitá-lo. Aparentemente, o novo pastor não ligava para isso, sinal evidente de que sabia montar, pois o baio era notório por sua farta distribuição matinal de pinotes e coises, e tinha o hábito de morder a cabeça do cavaleiro depois que este apeava.
Era difícil calcular a altura de um homem a cavalo, pois os pastores australianos usavam pequenas selas inglesas sem a patilha e o arção dianteiro da sela norteamericana, e cavalgavam com os joelhos dobrados e o corpo ereto. O novo homem parecia alto, mas, às vezes, a altura estava toda no tronco, sendo as pernas desproporcionalmente curtas, de modo que Meggie adiou o julgamento definitivo. Entretanto, à diferença da maioria dos pastores, ele preferia uma camisa branca e calças brancas de fustão às roupas cinzentas de flanela ou de sarja; meio almofadinha, decidiu ela, divertida. Muito bom para ele, se não se incomodava com a trabalheira de tanto lavar e passar roupa.
— Bom-dia, dona! — cortejou ele, quando ambos convergiam na mesma direção, tirando o velho e castigado chapéu de feltro cinzento e recolocando-o com galhardia na cabeça, inclinado para trás.
Dois risonhos olhos azuis olharam para Meggie com admiração não disfarçada quando ela se emparelhou com ele.
— A senhora não é a dona, que eu sei, por isso há de ser a filha — disse ele. — Eu sou Luke O’Neill.
Meggie murmurou qualquer coisa, mas não quis olhar de novo para ele, tão confusa e irritada se sentia que não conseguia pensar num assunto apropriado de conversação. Não era justo! Como se atrevia outra pessoa qualquer a ter os olhos e o rosto do Padre Ralph! Não pelo modo com que a encarava: a alegria que brilhava em seu olhar era coisa sua e nele não havia amor; e, no entanto, desde o primeiro momento em que vira o Padre Ralph ajoelhado na poeira da estação de Gilly, Meggie distinguira o amor em seus olhos. Olhar para os olhos dele e não o ver! Era uma pilhéria cruel, um castigo.
Sem conhecer os pensamentos da companheira, Luke O’Neill manteve O baio arisco ao lado da égua recatada de Meggie ao passarem, esparrinhando água, pelo riacho que ainda corria com ímpeto depois de tanta chuva. Ela era linda, sem dúvida alguma! E que cabelo! Os simples cabelos ruivos dos Clearys do sexo masculino transformavam-se em outra coisa naquela mocinha. Se ela olhasse para cima e lhe desse uma oportunidade melhor de ver-lhe o rosto! Nesse momento ela olhou, mas com uma expressão que o fez juntar as sobrancelhas, perplexo; não exatamente como se o odiasse, mas como se estivesse tentando ver alguma coisa e não o conseguisse, ou como se visse alguma coisa que preferia não ter visto. Ou por outro motivo qualquer. Fosse o que fosse, aquilo parecia perturbá-la. Luke não estava acostumado a ser pesado numa balança feminina e achado insuficiente. Preso naturalmente numa deliciosa armadilha de cabelos de ouro e olhos doces, o seu interesse só serviu para alimentar o desprazer e o desapontamento dela, que ainda assim continuava a observá-lo, a boca cor-de-rosa ligeiramente aberta, um suave orvalho de suor acima do lábio superior e na testa, por causa do calor, as sobrancelhas de ouro avermelhado arqueadas numa fisionomia de admiração interrogativa.
Ele sorriu, mostrando os grandes dentes brancos do Padre Ralph; entretanto, não era o sorriso do Padre Ralph.
— Sabe que você se parece muito com um bebezinho, todo cheio de ohs! e ahs!? Ela desviou a vista.
— Desculpe. Eu não pretendia fixá-lo. Acontece que você me lembrou alguém, mais nada.
— Pode olhar quanto quiser. É melhor do que eu ficar olhando para o seu cocuruto, por mais bonito que seja. Quem foi que lhe lembrei?
— Ninguém importante. Mas é esquisito ver alguém familiar e, ao mesmo tempo, totalmente estranho.
— Como é o seu nome, pequena Srta. Cleary?
— Meggie.
— Meggie... Não tem dignidade suficiente, não lhe assenta nada bem. Seu nome devia ser qualquer coisa como Belinda ou Madeline, mas se Meggie é o melhor que tem a oferecer, paciência. E Meggie é apelido de quê? De Margaret?
— Não, de Meghann.
— Ah, está melhorando! Eu a chamarei de Meghann.
— Não, não chamará! — atalhou ela. — Detesto esse nome. Mas ele apenas riu.
— Você está muito mal acostumada a ter as coisas ao seu jeito, pequena Srta. Meghann. Se eu quiser, posso até chamá-la de Eustacia Sophronia Augusta, sabe?
Eles tinham chegado aos potreiros; ele apeou do baio, desferindo um murro na cabeça que tentava mordê-lo e sujeitando-a, e ali ficou, obviamente esperando que ela lhe oferecesse as mãos para que ele a ajudasse a apear. Mas ela tocou a égua castanha com os calcanhares e guiou-a na direção das cocheiras.
— Não vai pôr a distinta senhora com os velhos pastores vulgares? — gritou ele atrás dela.
— É claro que não! — respondeu a jovem, sem se voltar.
Não, não era justo! Até de pé ele era parecido com o Padre Ralph: a mesma altura, os mesmos ombros largos, os mesmos quadris estreitos e um pouco da mesma graça, embora empregada de maneira diferente. O Padre Ralph movia-se como um bailarino, Luke O’Neill como um atleta. O cabelo era igualmente preto, cheio e crespo, os olhos igualmente azuis, o nariz igualmente fino e reto, a boca igualmente bemfeita. E, no entanto, ele era tão parecido com o Padre Ralph quanto um eucalipto branco, alto, pálido e esplêndido, era parecido com um eucalipto azul, alto, pálido e esplêndido.
Depois do encontro ocasional, Meggie começou a prestar atenção ao que se dizia a respeito de Luke O’Neill. Bob e os meninos estavam satisfeitos com o seu trabalho e pareciam dar-se bem com ele; aparentemente, o homem não tinha um único osso preguiçoso em todo o corpo, no dizer de Bob. A própria Fee trouxe seu nome à baila uma noite, observando que era um belo tipo.
— Ele lhe recorda alguém? — perguntou Meggie com displicência, deitada de bruços no tapete, lendo um livro.
Fee pensou na pergunta por um momento.
— Acho que é meio parecido com o Padre de Bricassart. A mesma constituição, o mesmo tom de cabelo, a mesma cor dos olhos. Mas não é uma semelhança fora do comum; como homens, são muito diferentes.
Logo, porém, mudou de assunto:
— Meggie, eu gostaria que você se sentasse numa cadeira como uma dama, para ler! Só porque está de calças de montar não precisa esquecer completamente o recato.
— Ora! — disse Meggie. — Como se alguém reparasse!
E assim continuaram as coisas. Havia uma semelhança, mas os homens atrás dos rostos eram tão diferentes que só Meggie se atormentava com isso, pois estava apaixonada por um e irritava-a achar o outro atraente. Descobriu que ele, na cozinha, era o queridinho de todas e também descobriu por que podia dar-se ao luxo de entrar nos pastos vestindo camisa e calças brancas; a Sra. Smith as lavava e passava a ferro para ele, sucumbindo ao seu encanto.
— Que belo pedaço de irlandês! — suspirou Minnie, extática.
— Ele é australiano — disse Meggie, para provocá-la.
— Nascido aqui, talvez, minha querida Srta. Meggie, mas com um nome como O’Neill, é tão irlandês quanto os porcos de Paddy, sem querer faltar com o respeito ao seu santo pai, que Deus o tenha em sua glória. com aquele cabelo e aqueles olhos azuis, a senhora ainda tem a coragem de dizer que o Sr. Luke não é irlandês? Nos velhos tempos os O’Neill eram os reis da Irlanda.
— Pensei que fossem os O’Connors — tornou Meggie, maliciosa. Os olhinhos redondos de Minnie faiscaram.
— Que é que tem isso, Srta. Meggie? Era um país muito grande!
— Pois sim! Garanto que não era maior do que Drogheda! E, seja como for, O’Neill é nome de orangista; você não me engana.
— Eu sei que é. Mas é também um grande nome irlandês, que existia muito antes de alguém pensar em orangistas*. É um nome dos lados dos Ulsters, de modo que é lógico que houvesse orangistas entre eles, não é? Mas havia também o O’Neill de Clandeboy e havia o O’Neill Morback, minha querida Srta. Meggie.
Meggie desistiu da batalha; havia muito tempo que Minnie perdera as tendências fenianas* militantes que poderia ter possuído outrora, e já era capaz de pronunciar a palavra orange (laranja) sem ser vítima de um ataque.
Cerca de uma semana depois, voltou a encontrar-se com Luke O’Neill, à beira do riacho. Ela desconfiou de que ele ali estivera à sua espera, mas não saberia o que fazer se isso fosse verdade.
— Boa-tarde, Meghann.
— Boa-tarde — disse ela, olhando com firmeza por entre as orelhas da égua castanha.
— Haverá um baile no barracão de tosquia de Braich y Pwll, no sábado que vem, à noite. Quer ir comigo?
— Muito obrigada pelo convite, mas eu não sei dançar. Não teria propósito a minha ida.
— Pois eu a ensino a dançar enquanto o demo esfrega um olho, de modo que isso não é obstáculo. E já que vou levar a irmã do posseiro, acha que Bob me emprestaria o velho Rolls, se não quiser me emprestar o novo?
*Orangista: Membro de uma sociedade secreta irlandesa fundada no século XIX cujo objetivo era livrar a Irlanda do domínio britânico. (N. T.)
**Feniano: Membro de uma sociedade secreta da Irlanda do Norte fundada no século XVIII para a preservação da gente protestante. (N. T.)
— Eu disse que não iria — tornou ela, cerrando os dentes
— Você disse que não sabia dançar, e eu disse que lhe ensinaria. Você não disse que não iria se soubesse dançar, por isso presumi que era à dança que fazia objeção, não a mim. Vai se desdizer?
Exasperada, ela cravou nele dois olhos fuzilantes, mas ele limitou-se a rir
— Você é uma garota muito mimada, menina Meghann, já está na hora de ser um pouco contrariada
— Eu não sou mimada!
— Pois sim! Conta outra, que essa não cola! Única filha, com tantos irmãos para correr atrás de você, com todas essas terras e esse dinheiro, uma casa como essa, cheia de criadas? Eu sei que é tudo da Igreja Católica, mas acontece que os Clearys também não ficaram a ver navios.
Aquela era a grande diferença entre eles!, pensou ela, triunfante, a solução vinhalhe fugindo desde que o conhecera. O Padre Ralph nunca se teria deixado levar por ornamentos exteriores, mas esse homem não tinha a mesma sensibilidade, não possuía antenas embutidas que lhe dissessem o que havia debaixo da superfície. Passava pela vida sem uma idéia na cabeça acerca da sua complexidade ou da sua dor.
Estupefato, Bob estendeu-lhe as chaves do Rolls novo sem um murmúrio, ele cravara os olhos em Luke por um momento sem falar e depois sorriu.
— Nunca pensei em Meggie indo a um baile, mas leve-a, Luke, e felicidades! Garanto que ela vai gostar, coitadinha Não sai muito de casa. Devíamos pensar em levá-la de vez em quando, mas nunca a levamos.
— Por que você, Jack e Hughie não vêm também? — perguntou Luke, que não parecia avesso a companhia.
Bob sacudiu a cabeça, horrorizado.
— Não, obrigado. Não gostamos muito de dançar.
Meggie pôs o vestido de cinzas de rosas, pois não tinha mais nada para usar, não lhe ocorrera a idéia de utilizar algumas das libras acumuladas, que o Padre Ralph punha no banco em seu nome, mandando fazer vestidos para festas e bailes. Até então conseguira recusar os convites, pois homens como Enoch Davies e Alastair MacQueen eram fáceis de desanimar com um não firme. Não tinham o descaramento de Luke O’Neill
Mas, ao olhar para o seu reflexo no espelho, achou que poderia ir a Gilly na semana seguinte, quando a mãe fizesse a viagem costumeira, a fim de visitar a velha Gert e encomendar-lhe alguns vestidos novos.
Pois detestava usar aquele, se tivesse outro, ainda que remotamente apropriado, tê-lo-ia despido num segundo. Outros tempos, outro homem de cabelo preto, o vestido estava tão impregnado de amor e sonhos, de lágrimas e solidão, que vesti-lo para alguém como Luke O’Neill parecia-lhe uma profanação. Acostumara-se a esconder o que sentia, a parecer sempre calma e exteriormente feliz. O domínio de si mesma crescia em torno dela mais grosso do que a casca de uma árvore e, às vezes durante a noite, lembrando-se da mãe, estremecia.
Acabaria ela como sua mãe, isolada de todos os sentimentos? Fora assim que a coisa começara para Fee no tempo em que havia o pai de Frank? E que faria Fee, que diria ela se soubesse que Meggie se inteirara da verdade a respeito de Frank? Oh, a cena na casa paroquial! Parecia que fora ontem, o pai e o irmão em pé, um diante do outro, e Ralph a segurá-la com tanta força que até doía. Gritando aquelas coisas horríveis. Tudo se ajustara aos respectivos lugares. Quando soube, Meggie pensou que, no fundo, sempre soubera. Crescera o suficiente para compreender que era preciso mais para fazer bebês do que costumava pensar; uma espécie de contato físico terminantemente proibido entre pessoas que não fossem casadas. Quanta vergonha e quanta humilhação devera ter sentido a pobre Fee por causa de Frank. Não admirava que fosse como era. Se isso acontecesse a ela, Meggie, haveria de querer morrer. Nos livros, só as moças mais baixas, mais ordinárias, tinham filhos fora do casamento; e, no entanto, sua mãe não era ordinária, nunca poderia ter sido ordinária. Meggie desejou de todo coração que Fee pudesse falar-lhe sobre isso, ou que ela mesma tivesse a coragem de tocar no assunto. Talvez de algum jeito, ainda que modesto, ela pudesse ajudar. Mas sua mãe era o tipo de pessoa de que ninguém podia aproximar-se e muito menos se disporia ela mesma a abordar o assunto. Meggie suspirou para si mesma diante do espelho, e esperou que nada parecido lhe acontecesse algum dia.
E, contudo, era moça; em ocasiões como aquela, trajando o vestido de cinzas de rosas, desejava sentir, desejava que a emoção soprasse sobre ela como um vento quente e forte. Não queria afadigar-se como um automatozinho pelo resto da vida; desejava mudança, vitalidade, amor. Amor, um marido, filhos. De que lhe adiantava correr esfaimada atrás de um homem que nunca seria seu? Ele não a desejava, nunca a desejaria. Dizia que a amava, mas não como um marido a amaria. Porque estava casado com a Igreja. Todos os homens faziam o mesmo, isto é, amavam alguma coisa inanimada mais do que poderiam amar uma mulher? Não, seguramente nem todos. Os difíceis, talvez, os complexos, com seus mares de dúvidas, objeções e argumentos racionais. Mas devia haver homens mais simples, capazes de amar uma mulher acima de todas as outras coisas. Homens como Luke O’Neill, por exemplo.
— Acho que você é a moça mais bonita que já vi — disse Luke ao dar a partida no Rolls.
Meggie não estava habituada a elogios; dirigiu-lhe um espantado olhar de soslaio, mas não disse nada.
— Não é formidável? — continuou Luke, sem se impressionar, aparentemente, com a falta de entusiasmo dela — É só virar uma chave e apertar um botão no painel e o carro começa a funcionar. Nada de manivelas, nada de rezar para que o burro pegue antes que a gente morra de cansaço. Isto é que é vida, Meghann, não há dúvida alguma
— Não me deixe sozinha, sim? — pediu ela
— É claro que não! Você vai comigo, não vai? Isso quer dizer que será minha a noite inteira, e não pretendo dar uma oportunidade a ninguém.
— Quantos anos você tem, Luke?
— Trinta. E você?
— Quase vinte e três.
— Tanto assim? Parece um bebê.
— Não sou um bebê.
— Oho! E por acaso já esteve apaixonada?
— Uma vez.
— Só? com vinte e três anos? Misericórdia! Na sua idade eu já me havia apaixonado e desapaixonado uma dúzia de vezes.
— E é possível que isso também me acontecesse, mas conheço muito pouca gente em Drogheda pela qual possa me apaixonar. Que me lembre, você é o primeiro pastor que me disse algo mais que um tímido alô.
— Bem, se você não quer ir a bailes porque não sabe dançar, é como se estivesse de fora olhando para dentro, não é? Não se incomode, daremos um jeito nisso bem depressa. Quando acabar a noite, estará dançando e, daqui a algumas semanas, será uma verdadeira campeã. — Olhou rapidamente para ela. — Mas não vai me dizer que alguns donos de outras fazendas nunca tentaram levá-la a um baile? Os pastores eu compreendo, pois você está um degrau acima das suas aspirações normais, mas alguns petulantes criadores de carneiros devem ter-lhe arrastado a asa.
— Se estou um degrau acima dos pastores, por que você me convidou? — esgueirou-se ela, fugindo à pergunta
— Porque sou o sujeito mais cara-de-pau do mundo! — Ele sorriu. — Mas não mude de assunto. Deve haver alguns sujeitos ao redor de Gilly que já a convidaram.
— Alguns. — admitiu ela. — Na verdade, porém, nunca desejei ir. Foi você quem me empurrou.
— Então esses tais são mais tontos que uma cobra de estimação — disse ele — Conheço o que é bom assim que o vejo.
Ela não estava muito certa de gostar do seu jeito de falar, mas a dificuldade que havia com Luke é que ele era um homem difícil de pôr de lado.
Todos iam aos bailes que se realizavam nos barracões de tosquia, desde os filhos e filhas dos posseiros até os pastores e suas esposas, quando as tinham, as criadas, as governantas, os citadinos de todas as idades e de ambos os sexos. Essas, por exemplo, eram as ocasiões em que as professoras tinham a oportunidade de confraternizar-se com os auxiliares de gerentes das fazendas de gado, com os rapazes do banco e com os verdadeiros camponeses fora das fazendas.
Não se observavam os requintes reservados para as reuniões mais formais. O velho Mickey O’Brien vinha de Gilly tocar rabeca, e havia sempre alguém à mão para encarregar-se do acordeão ou da sanfona, revezando-se com seus acompanhantes, enquanto o velho rabequista, sentado num barril ou num fardo de lã, tocava horas a fio, sem descansar, com a baba a escorrer-lhe pelo lábio inferior, porque ele não tinha paciência para engoli-la; isso atrapalhava o seu ritmo.
Mas não era a espécie de dança que Meggie vira na festa de aniversário de Mary Carson, e sim uma dança enérgica de roda: jigas, polcas, quadrilhas, escocesas, mazurcas, em que apenas se tocavam de passagem as mãos do parceiro ou se rodopiava vertiginosamente entre braços rudes. Não havia nenhum sentido de intimidade, de enlevo. Todos pareciam encarar o processo, de um modo geral, como simples dissipação de frustrações; as intrigas românticas promoviam-se melhor lá fora, longe do barulho e do alvoroço.
Meggie logo descobriu que o seu par, grande e bonito, lhe acarretava a inveja de muita gente. Ele era o alvo de quase tantos olhares sedutores ou lânguidos quanto os que o Padre Ralph costumava atrair, e de modo ainda mais espalhafatoso. Como era terrível ter de pensar nele no mais remoto de todos os pretéritos.
Fiel à sua promessa, Luke só a deixou sozinha o tempo que levou para visitar o reservado dos cavalheiros, Enoch Davies e Liam O’Rourke estavam lá, ávidos por tomar-lhe o lugar ao lado dela. Mas ele não lhes deu a menor oportunidade, e a própria Meggie parecia tão aturdida que não compreendia que lhe era perfeitamente lícito aceitar convites de outros homens, além do seu acompanhante, para dançar. Embora ela não ouvisse os comentários, Luke os ouviu, e riu-se em segredo. Que maldito topete tinha o sujeito, um simples pastor, roubando-a debaixo dos seus narizes! A desaprovação nada significava para Luke. Eles tinham tido suas oportunidades e, se não tinham sabido aproveitá-las, azar deles.
A última dança era uma valsa. Luke pegou na mão de Meggie e envolveu-lhe a cintura com o braço, puxando-a para junto de si. Ele era um excelente dançarino. Surpresa, ela descobriu que não tinha realmente nada que fazer além de segui-lo aonde quer que ele a conduzisse. E produzia-lhe uma sensação extraordinária estar assim em contato com um homem, sentir-lhe os músculos do peito e das coxas, absorver-lhe o calor do corpo. Seus breves contatos com o Padre Ralph tinham sido tão intensos que ela não tivera tempo para perceber detalhes isolados, e pensara sinceramente que o que sentia nos braços dele nunca mais sentiria nos braços de ninguém. Embora aquilo fosse muito diferente, era excitante; as batidas do seu pulso se haviam acelerado, e ela soube que ele o percebera pelo jeito com que a fazia girar mais depressa, apertando-a ainda mais de encontro a si, encostando o rosto no cabelo dela.
Enquanto o Rolls ronronava de volta para casa, sem dar importância à estrada esburacada e, às vezes, aos trechos de terra, não falaram muito. Braich y Pwll ficava a 112 quilômetros de Drogheda, através de pastos em que não se via nenhuma habitação, nenhum lar, nenhuma invasão de humanidade. A série de morros que atravessava Drogheda não se erguia mais de trinta metros acima do resto da terra, mas lá, nas planícies de solo preto, chegar à crista desses morros era o mesmo que, para um suíço, escalar o topo de um dos Alpes. Luke parou o carro, desceu e deu a volta para abrir a porta do lado de Meggie, Ela desceu e ficou ao seu lado, tremendo um pouco; iria ele estragar tudo tentando beijá-la? Estava tudo tão quieto e era tão longe de todos!
Havia uma cerca de madeira inclinada e em ruínas, que se desviava para um lado e, segurando-lhe o cotovelo de leve, para que ela não tropeçasse com aqueles sapatos sofisticados, Luke ajudou-a a andar pelo solo acidentado, pelos buracos de coelhos. Segurando a cerca com força e olhando para as planícies, ela emudeceu; primeiro, de terror; depois, à medida que o pânico morria, pois ele não fazia menção de tocá-la, de assombro.
Quase tão claramente quanto o faria o sol, a luz ainda pálida da lua clareava vastas e majestosas extensões, em que a relva tremeluzia e se encrespava num suspiro agitado, prateada, branca e cinzenta. As folhas das árvores brilhavam de repente como pontas de fogo quando o vento lhes virava o lado lustroso para cima, e grandes abismos de sombras se abriam debaixo dos grupos de árvores, tão misteriosos quanto bocas do mundo subterrâneo. Levantando a cabeça, ela tentou em vão contar as estrelas; delicadas como gotas de orvalho sobre a teia girante de uma aranha, as pontas de alfinetes luziam, sumiam, luziam, sumiam, num ritmo tão eterno quanto Deus. Dir-se-ia que estivessem suspensas sobre ela como uma rede, tão belas, tão absolutamente silenciosas, tão vigilantes e escrutadoras da alma, como olhos de insetos iluminados por um holofote, cegos quanto à expressão, mas infinitos quanto à capacidade de ver. Os únicos sons eram o vento quente no capim, as árvores que sibilavam, um ruído ocasional do Rolls que esfriava, e um pássaro sonolento e próximo reclamando porque lhe haviam perturbado o repouso; o único cheiro era o aroma fragrante e indefinível do campo.
Luke voltou as costas para a noite, tirou do bolso a bolsa de fumo e o macinho de papéis de arroz e principiou a enrolar um cigarro.
— Você nasceu por aqui, Meghann? — perguntou, esfregando os pedaços de fumo desfiado na palma da mão, pachorrento.
— Não, nasci na Nova Zelândia. Viemos para Drogheda há treze anos.
Ele deixou cair os fiapos de fumo na folha de papel, enrolou-a com perícia entre o polegar e o indicador, lambeu-lhe as bordas, fechou-a, enfiou alguns fiapos para dentro do tubo com a ponta de um palito de fósforo, riscou o fósforo e acendeu-o.
— Você divertiu-se hoje à noite, não se divertiu?
— Oh, sim!
— Pois eu gostaria de levá-la a todos os bailes.
— Muito obrigada.
Ele voltou a calar-se, fumando calmamente e olhando, através do teto do Rolls, para o grupo de árvores onde o pássaro irado ainda gritava, rabugento. Quando só um pequeno remanescente do tubo lhe crepitava entre os dedos manchados, deixou-o cair no chão e esmagou-o com força sob o salto da bota até certificar-se de que se apagara. Ninguém apaga tão bem uma ponta de cigarro aceso quanto um caipira australiano.
Suspirando, Meggie desviou os olhos do espetáculo da lua, e Luke ajudou-a a subir no automóvel. Ele era esperto demais para beijá-la a essa altura, pois pretendia desposá-la, se fosse possível; ela que mostrasse primeiro o desejo de ser beijada.
Mas houve outros bailes, à proporção que o verão passava e culminava num esplendor sangrento e empoeirado; e, pouco a pouco, a sede da fazenda foi-se acostumando ao fato de que Meggie arranjara um namorado muito bonito. Os irmãos abstinham-se de arreliá-la, pois a amavam e gostavam dele. Luke O’Neill era o maior pé-de-boi que já tinham empregado; não existia melhor recomendação do que essa. Mais próximos, no íntimo, da classe operária que da classe dos proprietários, nunca lhes ocorrera a idéia de julgá-lo por sua falta de posses. Fee, que poderia tê-lo pesado numa balança mais exigente, não se interessou tanto pelo caso que se animasse a fazêlo. De qualquer maneira, a calma presunção de Luke de que era diferente dos pastores comuns deu resultado; por causa dela, tratavam-no mais como a um deles.
Adquiriu o costume de apresentar-se na casa-grande quando estava na sede à noite e não pernoitava nos pastos; depois de algum tempo, Bob declarou que era tolice sua comer sozinho quando havia tanta comida na mesa dos Clearys e, assim, Luke passou a comer com eles. Depois disso, parecia despropositado deixá-lo caminhar um quilômetro e tanto quando ele tinha a bondade de ficar conversando com Meggie até tarde, de modo que o convidaram a mudar-se para uma das pequenas casas de hóspedes que havia atrás da casa-grande.
A essa altura, Meggie já pensava muito nele, e menos depreciativamente do que no princípio, quando o comparava sempre ao Padre Ralph. A velha ferida estava sarando. Passado algum tempo, ela se esqueceu de que o Padre Ralph sorrira assim com a mesma boca, ao passo que Luke sorria assado, que os brilhantes olhos azuis do Padre Ralph tinham tido uma distante imobilidade, enquanto os de Luke brilhavam com agitada paixão. Ela era jovem e nunca chegara a saborear o amor, ainda que por um ou dois momentos o tivesse provado. Queria degustá-lo, sentir-lhe o aroma nos pulmões, fazêlo girar estonteantemente no cérebro. O Padre Ralph era o Bispo Ralph; nunca, nunca voltaria para ela. Vendera-a por treze milhões de moedas de prata, e isso doía. Se ele não tivesse usado essa frase naquela noite ao pé do poço, ela não teria pensado assim, mas ele a usara, e eram sem conta as noites, desde então, em que se deixara ficar, deitada, procurando descobrir o que ele poderia ter querido dizer.
E suas mãos comichavam ao sentir as costas de Luke quando ele a segurava junto de si numa dança; ele, o contato dele, a sua revigorante vitalidade excitavam-na. É claro que nunca sentiu por ele o sensual fogo líquido nos ossos, nunca pensou que, se não tornasse a vê-lo, murcharia e secaria, nunca se encolheu nem tremeu porque ele a fitava. Mas, à medida que se sucediam os bailes a que Luke a levava, viera a conhecer melhor homens como Enoch Davies, Liam O’Rourke, Alastair MacQueen, e nenhum a emocionava como Luke. Quando eram tão altos que a obrigavam a olhar para cima, constatava que não tinham os olhos de Luke e, quando tinham a mesma espécie de olhos, não tinham o seu cabelo. Sempre lhes faltava alguma coisa que não faltava a Luke, embora ela mesma não soubesse o que era. Isto é, além do fato de que ele lhe recordava o Padre Ralph, e ela recusava-se a admitir que sua atração não tivesse melhor fundamento que esse.
Conversavam muito, mas sempre a respeito de generalidades; a tosquia, a terra, os carneiros, o que ele queria da vida, os lugares que já vira, ou algum acontecimento político. Ele lia um livro de vez em quando, mas não era um leitor inveterado como Meggie, que, por mais que o tentasse, não conseguia persuadi-lo a ler este ou aquele livro simplesmente porque ela o achara interessante. Nem ele dirigia a conversa para profundezas intelectuais; e o mais interessante e irritante de tudo era que ele nunca revelava o menor interesse pela vida dela, nem lhe perguntava o que ela queria da vida. Às vezes, Meggie sentia necessidade de conversar sobre assuntos mais chegados a ela do que carneiros ou chuva, mas, quando dizia qualquer coisa nesse sentido, ele a conduzia com perícia para terrenos menos pessoais.
Luke O’Neill era esperto, presunçoso, muito trabalhador e muito ambicioso. Nascera numa choça de paredes de taipa exatamente sobre o Trópico de Capricórnio, nos arredores da cidade de Longreach, em Western Queensland. Seu pai era a ovelha negra de uma família irlandesa próspera mas implacável e sua mãe era a filha do açougueiro alemão de Winton; quando ela insistiu em juntar-se com o pai de Luke, também foi repudiada. Havia dez crianças naquela cabana, nenhuma das quais possuía um par de sapatos — embora os sapatos tivessem pouca importância na tórrida Longreach. O velho Luke, que exercia sua profissão de tosquiador quando se sentia disposto (embora, na maior parte das vezes, só se sentisse disposto a tomar rum. Morreu num incêndio no bar de Blackall quando o jovem Luke tinha doze anos. Nessas condições, assim que lhe foi possível, o menino ingressou no circuito da tosquia como ajudante, encarregado de passar pez derretido nos talhos produzidos por barbeiragem do tosquiador, quando este cortava a carne junto com a lã.
De uma coisa Luke nunca teve medo, e essa coisa era o trabalho pesado; vicejava no trabalho como certos homens vicejavam no seu oposto, ou porque seu pai fora freqüentador assíduo de bares e alvo das chacotas da cidade, ou porque herdara da mãe o amor à diligência; mas ninguém, até então, se preocupara em descobrir o motivo.
À proporção que foi ficando mais velho, deixou de ser o garoto do pez para ser auxiliar do barracão, incumbido de correr de um lado para outro a fim de apanhar os novelos, grandes e pesados, quando estes, fugindo das tesouras numa única peça, subiam feito papagaios, e levá-los à mesa em que se alisava a lã, para limpá-los. A partir daí ele aprendeu a limpar a lã, arrancando as bordas dos novelos incrustadas de sujeira e transferindo-os para as caixas, onde passavam pelo exame do classificador, que era o aristocrata do barracão: o homem que, à semelhança do provador de vinhos ou do avaliador de perfumes, só poderá ser treinado se tiver instinto para o trabalho. E Luke não tinha instinto de classificador; quando queria ganhar mais dinheiro, o que certamente acontecia, preferia lidar com a prensa ou com a tosquiadeira. Tinha força suficiente para manejar a prensa, calcando os novelos classificados até transformá-los em fardos maciços, mas um tosquiador ganhava mais.
Agora ele já era bem conhecido em Western Queensland como bom trabalhador, de modo que não lhe foi difícil conseguir para si um cercado de aprendiz. com graça, coordenação, força e resistência, todas necessárias e felizmente presentes em Luke, um homem poderia tornar-se bom tosquiador. Dali a pouco Luke estava tosquiando mais de duzentos carneiros por dia, seis dias por semana, ganhando uma libra esterlina por centena; e isso com uma tesoura estreita, que parecia um lagarto, donde o seu nome. As grandes tosquiadeiras da Nova Zelândia, com seus pentes e lâminas enormes e grosseiros, não se admitiam na Austrália, muito embora dobrassem a produção do tosquiador.
Era um trabalho extenuante: um homem da sua altura inclinado sobre o carneiro preso entre os joelhos, dando tesouradas no sentido do comprimento do corpo do animal para soltar a lã numa só peça e fazer o menor número possível de talhos, cortando rente o bastante a pele frouxa e retorcida para agradar ao dono do barracão, que, num segundo, estava em cima do tosquiador que não se conformasse com os seus padrões rigorosos. Ele não se incomodava com o calor, nem com o suor, nem com a sede que o forçava a beber mais de doze litros de água por dia, não se incomodava sequer com as hordas torturantes de moscas, pois nascera numa terra de moscas. Tampouco se incomodava com os carneiros, que eram o principal pesadelo de um tosquiador; carneiros manhosos, molhados, superdesenvolvidos, ariscos, com a lã suja de excrementos, com a pele infestada de larvas de moscas, que apareciam em todas as variedades, e eram todos merinos, o que queria dizer que tinham lã do focinho aos cascos e uma pele frágil e malhada, escorregadia como papel muito liso.
Não, não era o trabalho em si que o incomodava, pois, quanto mais duro trabalhava, melhor se sentia; o que o aborrecia era o barulho, o estar fechado ali dentro, a fedentina. Não havia nenhum lugar sobre a terra tão parecido com o inferno como um barracão de tosquia. De sorte que ele decidiu ser o patrão arrogante, o homem que andava de um lado para o outro, passando por entre os tosquiadores curvados, vendo os novelos, que eram seus, despidos por aquele movimento suave e sem falhas.
Na extremidade da eira, em sua cadeira de assento de rotim.
Está sentado o dono do barracão com os olhos em toda parte.
Era isso o que dizia a velha canção dos tosquiadores, e era isso o que Luke O’NeiIl decidira ser. O patrão arrogante, o dono do barracão, o criador de gado, o fazendeiro. Não o seduziam a inclinação perpétua e os braços encompridados dos que passam a vida tosquiando; queria para si o prazer de trabalhar ao ar livre enquanto assistia à entrada do dinheiro. Só a perspectiva de tornar-se um tosquiador especial o poderia ter mantido no interior de um barracão, um desses raros punhados de homens que conseguiam tosquiar mais de trezentos merinos por dia, todos muito bem tosquiados, usando tesouras estreitas. E ainda faziam fortunas em apostas. Infelizmente, porém, ele era um pouquinho alto demais, e os segundos adicionais que perdia curvando-se e abaixando-se representavam a diferença entre o tosquiador comum e o tosquiador especial.
Dentro das suas limitações, voltou-se-lhe o espírito para outro método de adquirir o que tanto ambicionava; mais ou menos nesse estágio da sua vida, descobriu que as mulheres o achavam atraente. Fizera sua primeira tentativa trabalhando como pastor em Gnarlunga, fazenda cujo herdeiro era uma mulher, jovem e bonita. E só por absoluta falta de sorte, no fim, ela preferira o imigrante inglês que ali trabalhava como novato e cujas galhardas proezas começavam a transformar-se em lenda do local. De Gnarlunga fora para Bingelly, e ali conseguira um emprego de domador de cavalos, com os olhos postos na sede, onde a herdeira, já velhusca e despida de atrativos, morava com o pai viúvo. Pobre Dot, por um triz ele não a conquistara; no fim, todavia, cedendo aos desejos do pai, ela casara com o lépido sexagenário que possuía a propriedade vizinha.
Essas duas tentativas lhe custaram mais de três anos de vida, e ele chegou à conclusão de que perder vinte meses com cada herdeira era demasiado longo e tedioso. Convir-lhe-ia mais, por ora, viajar para longe, estar sempre em movimento, até encontrar, dentro desse campo muito mais amplo, outra perspectiva provável. Divertindo-se enormemente, começou a tropear pelas estradas de Western Queensland, descendo o Cooper, o Diamantina, o Barcoo e o Bulloo Overflow, que se reduzia no canto superior da Nova Gales do Sul ocidental. Estava com trinta anos e já era tempo de encontrar a galinha que botasse pelo menos parte dos seus ovos de ouro.
Toda a gente ouvira falar em Drogheda, mas Luke ficou de orelha em pé quando descobriu que só havia uma filha. Não se poderia esperar que ela herdasse, mas talvez a dotassem com uma modesta propriedade de 100.000 acres perto de Kynuma ou de Winton. Embora fosse boa, a terra em torno de Gilly era apertada e arborizada demais para o seu gosto. Luke ansiava pela enormidade de Western Queensland, onde a relva se estendia até o infinito e as árvores eram algo de que o homem se lembrava como algo que ficava vagamente na direção do leste. Só o capim, por quilômetros e mais quilômetros, sem princípio nem fim, onde o homem tinha sorte quando apascentava um carneiro em cada pedaço de dez acres que possuía. Porque às vezes não havia capim, apenas um deserto liso de solo preto, rachado e palpitante. Capim, sol, calor e moscas; para cada homem a sua espécie de céu, e esse era o céu de Luke O’Neill.
Ele arrancara o resto da história de Drogheda de Jimmy Strong, o gerente da fazenda AML&F, que o levou até lá no primeiro dia, e fora-lhe um duro golpe descobrir que a Igreja Católica possuía Drogheda. Descobrira, todavia, como eram poucas as herdeiras das propriedades e o quanto andavam longe da sua herança; e quando Jimmy Strong lhe contou que a única filha era dona de uma bela quantia em dinheiro, só sua, e tinha muitos irmãos loucos por ela, decidiu levar avante os seus planos.
Mas, embora houvesse decidido que o objetivo de sua vida eram cem.mil acres nos arredores de Kynuna ou de Winton, e só trabalhasse para atingi-lo, a verdade era que, no íntimo, amava muito mais o dinheiro do que aquilo que o dinheiro poderia comprar-lhe; não a posse da terra, nem o seu poder inerente, mas a perspectiva de amontoar fileiras de algarismos bem-arrumados em sua conta bancária, em seu nome. Não fora Gnarlunga nem Bingelly que desejara com tanto desespero, mas o valor delas em moeda sonante. O homem que quisesse de fato ser o patrão arrogante nunca teria optado por uma Meggie Cleary sem propriedades. Nem teria amado o ato físico de trabalhar com afinco, como Luke O’Neill.
O baile no salão de Santa Cruz em Gilly foi o décimo terceiro a que Luke a levara em outras tantas semanas. A ingenuidade de Meggie não lhe permitia adivinhar como ele descobria o local dos bailes e como cavava alguns convites, mas, todos os sábados, o rapaz pedia a Bob as chaves do Rolls e levava-a a um lugar qualquer num círculo de duzentos e quarenta quilômetros.
Naquela noite fazia frio enquanto ela contemplava, ao lado de uma cerca, a paisagem sem lua e, debaixo dos pés, sentia ranger a geada. O inverno estava chegando. O braço de Luke envolveu-a e puxou-a para junto de si.
— Você está com frio — disse ele. — Acho melhor levá-la para casa.
— Não, agora está tudo bem, estou-me aquecendo — replicou ela, ofegante. Ela sentiu uma mudança nele, uma mudança no braço que lhe passeava, frouxo e impessoal, pelas costas. Mas era gostoso apoiar-se nele, sentir o calor que se irradiava dele, a construção diferente do seu corpo. Mesmo através do seu colete de malha de lã, tinha consciência da mão dele, que agora se movia em pequenos círculos acariciantes, numa espécie de massagem preliminar, indagadora. Se, nesse ponto, ela anunciasse que estava com frio, ele teria parado, se ela não dissesse nada, ele interpretaria o silêncio como tácita permissão para prosseguir. Ela era jovem, ansiava por saborear devidamente o amor. Além de Ralph, aquele era o único homem que a interessava e, portanto, por que não descobrir como eram os seus beijos? Só queria que fossem diferentes! Que não fossem iguais aos beijos de Ralph!
Tomando-lhe o silêncio como aquiescência, Luke pôs a outra mão no ombro dela, virou-a para que ela o encarasse, e inclinou a cabeça. Era esse, realmente, o gosto de uma boca? Nada mais que uma espécie de pressão! O que se esperava que ela fizesse para indicar que estava gostando? Meggie moveu os lábios debaixo dos lábios dele e, logo em seguida, se arrependeu. A pressão aumentou, ele abriu a boca, separou os lábios dela com os dentes e a língua e, com esta, percorreu-lhe o interior da boca. Repugnante! Por que parecera tão diferente quando Ralph a beijara? Ela, então, não se dera conta do quanto aquilo tudo era molhado e meio nauseante, nem parecera pensar, apenas se abrira para ele como um porta-jóias se abre quando a mão familiar toca uma mola secreta. Mas, afinal, o que era que ele estava fazendo? Por que seu corpo vibrava desse jeito e colava-se ao dele quando seu espírito queria tanto afastar-se?
Luke encontrara o ponto sensível do lado dela, e ali mantinha os dedos, para fazêla contorcer-se. Até então ela não se mostrara particularmente entusiasmada. Interrompendo o beijo, ele comprimiu o pescoço dela com a boca. Ela pareceu gostar mais disso. Suas mãos envolveram-no enquanto ela arquejava, mas, quando os lábios dele lhe deslizaram pela garganta abaixo e ele tentou, com a mão, tirar-lhe o vestido do ombro, ela empurrou-o com força e afastou-se, rápida.
— Chega, Luke!
O episódio decepcionara-a e, de certo modo, lhe repugnara. Luke teve plena consciência disso quando a ajudou a subir no carro e enrolou um cigarro, muito necessitado no momento. Supunha-se um amante capaz, nenhuma das garotas ainda se queixara — mas acontece que elas não eram damas como Meggie A própria Dot MacPherson, a herdeira de Bingelly, muito mais rica do que Meggie, era grossa como o diabo, não estivera em nenhum internato de Sydney, nem nada disso. A despeito de sua aparência pessoal, Luke estava mais ou menos em igualdade de condições com o trabalhador rural comum em matéria de experiência sexual, pouco entendia da prática além do que lhe dava prazer, e desconhecia a teoria. As numerosas moças que namorara lhe asseguravam de bom grado que tinham gostado, mas isso significava que ele precisava confiar em certa quantidade de informações pessoais, nem sempre sinceras.
A jovem que iniciava um namoro na esperança de casar, quando o homem era atraente e trabalhador como Luke, não se envergonhava de mentir deslavadamente só para agradar-lhe. E nada agrada mais a um homem do que ouvir que ele é o tal. Luke nunca pensou na quantidade de homens, além dele, enganados com essa mentira.
Ainda pensando na velha Dot, que cedera e fizera a vontade do pai depois que este a mantivera fechada na barraca de tosquia durante uma semana em companhia de uma carcaça cheia de moscas-varejeiras, Luke encolheu mentalmente os ombros. Meggie seria um osso duro de roer, e ele não podia dar-se ao luxo de assustá-la ou chocá-la. O divertimento e as brincadeiras teriam de esperar. Ele a conquistaria como ela queria ser conquistada, com flores, atenções e sem muito jogo bruto.
Durante algum tempo reinou um silêncio constrangido, depois Meggie suspirou e afundou-se no assento do carro.
— Desculpe, Luke.
— Eu também lhe peço desculpas. Não pretendia ofendê-la.
— Não, você não me ofendeu, sério! O que acho é que não estou muito acostumada com... com isso. Fiquei assustada, mas não ofendida.
— Oh, Meghann! — Ele tirou uma das mãos do volante e colocou-a sobre as mãos dela. — Não se preocupe com isso. Você é uma garota e tanto e eu creio que me precipitei. Vamos esquecer tudo isso.
— Está bem, vamos — assentiu ela.
— Ele não a beijou? — perguntou Luke, curioso.
— Quem?
Haveria medo na voz dela? Mas por que haveria medo na voz dela?
— Você me contou que esteve apaixonada uma vez, por isso pensei que entendesse do riscado. Sinto muito, Meghann. Eu devia ter compreendido que, enfiada sempre aqui, no meio de uma família como a sua, o que você quis dizer foi que teve uma paixonite aguda de menina por algum sujeito que nem ligou para você.
Sim, sim, sim! Deixá-lo pensar isso mesmo!
— Você tem razão, Luke; o que tive mesmo foi uma paixonite de menina.
Fora de casa, ele tornou a puxá-la para si e deu-lhe um beijo delicado, demorado, mas sem boca aberta e sem língua. Ela não respondeu exatamente, mas era evidente que gostara; e ele desceu para a sua casa de hóspedes mais tranqüilo com a certeza de não haver comprometido suas possibilidades.
Meggie arrastou-se para a cama e parou a vista no suave halo circular que a lâmpada projetava no forro. Uma coisa, ao menos, ficara estabelecida: nada havia nos beijos de Luke que lhe lembrasse os beijos de Ralph. E uma ou duas vezes, mais para o fim da noite, ela sentira um arrepio de medrosa excitação, quando ele passara os dedos pelos seus quadris e quando lhe beijara o pescoço. Não adiantava comparar Luke com Ralph, e ela mesma já não tinha a certeza de querer fazer a comparação. Era melhor esquecer Ralph; ele não poderia ser seu marido. Luke, sim.
Na segunda vez em que Luke a beijou, Meggie procedeu de maneira muito diversa. Eles tinham ido a uma festa maravilhosa em Rudna Hunish, no limite extremo da área territorial que Bob demarcara para os seus passeios, e a noite transcorrera bem desde o começo. Luke estivera em sua melhor forma, fazendo tantas piadas pelo caminho que quase a matara de riso, e mostrando-se depois muito amoroso e atencioso durante toda a festa. E a Srta. Carmichael parecera tão decidida a tirá-lo dela! Metendo-se onde Alastair MacQueen e Enoch Davies receavam chegar, ela juntara-se a eles e flertara com Luke descaradamente, obrigando-o, por educação, a convidá-la a dançar. Era uma festa formal, num salão de baile, e a dança que Luke dançara com a Srta. Carmichael fora uma valsa lenta. Mas ele voltara imediatamente para junto de Meggie assim que a dança acabara e não dissera nada, mas o seu jeito de erguer os olhos para o teto não lhe deixara nenhuma dúvida de que a Srta. Carmichael, na sua opinião, era uma chata. E ela o amara por isso; desde o dia em que a dama se metera com ela na Exposição de Gilly, Meggie passara a vê-la com maus olhos. Nunca esquecera o jeito do Padre Ralph, que não tomara conhecimento da dama para ajudar uma garotinha a transpor uma poça d’água; esta noite, Luke fizera praticamente o mesmo. Bravo! Luke, você é esplêndido!
O trajeto de volta era longo e fazia muito frio. Luke obtivera do velho Angus MacQueen um pacote de sanduíches e uma garrafa de champanha e, depois de haverem percorrido um terço do percurso, ele parou o automóvel. Os aquecedores nos carros eram raríssimos na Austrália, então como agora, mas o Rolls possuía um aquecedor, que, naquela noite, foi muito bem-vindo, pois havia cinco centímetros de geada no chão.
— Não é gostoso ficar sentada sem casaco numa noite como esta? — Meggie sorriu, pegando a taça de champanha que Luke lhe estendia, e mordendo um sanduíche de presunto.
— É, sim. Você está tão bonita esta noite, Meghann.
Que novidade havia na cor dos olhos dela? O cinzento não era, normalmente, uma cor que o entusiasmasse, pois a achava demasiado anêmica, mas, olhando agora para os olhos cinzentos de Meggie, ele juraria que via neles todas as cores da extremidade azul do espectro, o roxo, o anil e o azul do céu num belo dia claro, um verdemusgo profundo e um toque de amarelo-tostado. E brilhavam como jóias suaves, semi-opacas, emolduradas pelos longos cílios ondulados, que faiscavam como se tivessem sido mergulhados em ouro. Ele estendeu a mão e, delicadamente, passou o dedo pelos cílios de um dos olhos; a seguir, olhou, solene, para a ponta do dedo.
— Que foi, Luke?
— Não pude resistir à tentação de verificar por mim mesmo se você não tem um pote de ouro em pó no toucador. Sabe que é a primeira garota que conheci com ouro de verdade nas pestanas?
— Oh! — Ela mesma os tocou, olhou para o dedo, riu. — Você tem razão! O ouro não sai de jeito nenhum.
O champanha lhe fazia cócegas no nariz e lhe efervescia no estômago; ela sentia-se maravilhosamente bem.
— E sobrancelhas de ouro, em forma de teto de igreja, e o mais belo cabelo de ouro... Tenho sempre a impressão de que deve ser duro como o metal e, no entanto, é fino e macio como cabelo de bebê... E não creio que você não empoe a pele com pó de ouro, de tanto que ela brilha... E a boca mais bonita, feita especialmente para o beijo...
Sentada, ela olhava para ele, com os lábios róseos e tenros ligeiramente entreabertos, como tinham estado no dia em que se haviam conhecido; ele estendeu a mão e tirou-lhe a taça vazia.
— Você precisa de um pouco mais de champanha — declarou ele, enchendo-a.
— Devo reconhecer que é gostoso parar e descansar um pouco dos solavancos do caminho. E muito obrigada por ter tido a idéia de pedir ao Sr. MacQueen os sanduíches e o vinho.
O grande motor do Rolls tiquetaqueava suavemente no silêncio, enquanto o ar quente entrava quase sem fazer ruído pelos respiradouros; duas espécies distintas de ruídos acalentadores. Luke desfez o nó da gravata, tirou-a, desabotoou o colarinho. Os paletós de ambos estavam no assento traseiro, quentes demais para a temperatura do carro.
— Que gostosura! Não sei quem inventou as gravatas e depois cismou que o homem só estava decentemente vestido quando trazia uma no pescoço, mas se eu o encontrar algum dia, hei de estrangulá-lo com sua própria invenção.
Ele virou-se de repente, abaixou o rosto para o dela e pareceu pegar a curva arredondada dos lábios dela exatamente nos seus, como duas peças de um quebra-cabeça; embora não a segurasse nem a tocasse em qualquer outro lugar; ela se sentiu aprisionada por ele e deixou que a cabeça lhe acompanhasse o movimento quando ele se inclinou para trás, puxando-a sobre o seu peito. As mãos dele subiram para segurarlhe a cabeça, para melhor trabalhar na boca entontecedora, surpreendentemente receptiva, esgotá-la. Suspirando, ele entregou-se todo àquela sensação, sentindo-se à vontade afinal com os lábios sedosos de criança, que finalmente se ajustavam aos seus. O braço dela procurou-lhe o pescoço, seus dedos, que tremiam, enfiaram-se-lhe no cabelo, a palma da sua outra mão descansou na pele macia e morena do peito dele. Desta vez Luke não se apressou, embora já estivesse ereto antes de dar-lhe a segunda taça de champanha, só de contemplá-la. Sem largar-lhe a cabeça, beijou-lhe as faces, os olhos cerrados, os ossos curvos das órbitas debaixo das sobrancelhas, voltou às faces porque eram tão acetinadas, voltou à boca porque sua forma infantil o deixava maluco, deixara-o maluco desde o dia em que a vira pela primeira vez.
E lá estava o colo dela, com a concavidadezinha na base, a pele do ombro tão delicada, tão fresca, tão enxuta... Incapaz de parar, morrendo de medo de que ela o mandasse parar, tirou uma das mãos da cabeça dela, libertou a longa fieira de botões nas costas do vestido, que fez deslizar pelos braços obedientes, e puxou as alças da combinação de cetim. com o rosto enterrado entre o pescoço e o ombro dela passou as pontas dos dedos pelas costas nuas, sentiu-lhe os arrepiozinhos assustados, os bicos dos seios subitamente endurecidos. Abaixou ainda mais a cabeça, na busca tátil, cega, cornpulsiva, de uma superfície cálida e arredondada, os lábios apartados, pressionando, até que se fecharam sobre a carne retesada e arrepiada. Sua língua ali se demorou por um minuto aturdido, depois suas mãos lhe apertaram as costas com um prazer agoniado e ele chupou, mordiscou, beijou, chupou... O velho impulso eterno, sua preferência particular, que nunca falhava. Era bom, bom, bom; boooom! Não gritou, apenas estremeceu por um momento de espasmo e alargamento, e engoliu nas profundezas da sua garganta.
Como criança de peito saciada, deixou que o bico do seio lhe saltasse da boca, afeiçoou um beijo de amor e gratidão do lado do seio, e permaneceu inteiramente imóvel a não ser pelo arfar da respiração. Sentia-lhe a boca no cabelo, a mão por dentro da camisa. De repente, pareceu refazer-se, abriu os olhos. Sentou-se depressa, recolocou no lugar as alças da combinação, depois o vestido e abotoou destramente os botões.
— É melhor você casar comigo, Meghann — disse, com os olhos ternos e risonhos. — Acho que seus irmãos não aprovariam nem um pouco o que acabamos de fazer.
— É, também acho melhor — concordou ela com as pálpebras descidas e um rubor delicado nas faces.
— Vamos lhes contar amanhã cedo.
— Por que não? Quando mais cedo, melhor.
— No sábado que vem a levarei a Gilly. Veremos o Padre Thomas... Acredito que você queira um casamento na igreja... Trataremos dos proclamas e compraremos um anel de noivado.
— Obrigada, Luke.
Estava tudo resolvido. Ela se comprometera, não poderia voltar atrás, em poucas semanas, ou assim que corressem os proclamas desposaria Luke O’Neill. Seria... a Sra. Luke O’Neill! Que coisa estranha! Por que dissera sim? Porque ele me disse que eu devia, porque ele me disse que eu haveria de fazê-lo. Mas por quê? Para afastar o perigo dele? Para proteger-se ou para proteger-me? Ralph de Bricassart, às vezes penso que o odeio...
O incidente no carro fora alarmante e perturbador. Nem um pouco parecido com a primeira vez. Tantas sensações belas, aterradoras! Oh, o toque das mãos dele! O puxar eletrizante do seu seio, a emitir vastos anéis que se iam alargando pelo corpo dela! E precisamente no instante em que sua consciência erguera a cabeça, dissera à coisa irracional em que ela parecia haver-se transformado que ele a estava despindo, que era preciso gritar, esbofeteá-lo, fugir. Não mais embalada e meio inconsciente por causa do champanha, do calor, da descoberta de que era delicioso ser beijada quando o beijo era dado com acerto, o primeiro movimento dele para pôr-lhe o seio na boca a transfixara, silenciara o bom senso, a consciência e toda e qualquer idéia de fuga. Seus ombros ficaram acima do peito dele, seus quadris pareciam abater-se sobre ele, suas coxas e aquela região sem nome situada acima delas, sob a pressão das mãos dele, comprimiam-se de encontro a uma aresta do corpo dele dura como pedra, e ela apenas desejara permanecer assim pelo resto dos seus dias, abalada até à alma e abrindo-se vazia, desejando... Desejando o quê? Não sabia. No momento em que ele a afastara, ela não quisera afastar-se, teria sido até capaz de atirar-se sobre ele como uma selvagem. Mas aquilo acabara selando de modo definitivo sua determinação, que se consolidava, de casar com Luke O’Neill. Sem falar que ela estava convencida de que ele lhe fizera a coisa em conseqüência da qual nasciam os bebês.
Ninguém ficou muito surpreendido com a notícia, e ninguém sonhou em fazer objeções. Só os surpreenderam a recusa terminante de Meggie em escrever ao Bispo Ralph para dar-lhe a notícia e a sua quase histérica rejeição da idéia aventada por Bob de convidá-lo a Drogheda e fazer um casamento pomposo em casa. Não, não, não!, gritara-lhes Meggie, que nunca levantara a voz. Estava zangada, aparentemente, porque ele jamais voltara para vê-los. Sustentava que o casamento só interessava a ela e que, se ele não tivera a decência de vir a Drogheda sem um motivo especial, ela não iria agora fornecer-lhe uma obrigação a que ele não pudesse esquivar-se.
Por isso Fee prometeu não lhe dizer uma palavra em suas cartas; aliás, tinha-se a impressão de que pouco lhe importava uma coisa ou a outra, como a própria escolha de marido feita por Meggie. A escrituração dos livros de Drogheda tomava-lhe todo o tempo. Os registros de Fee teriam proporcionado a um historiador perfeita descrição da vida de uma fazenda de criar carneiros, pois não se limitavam aos algarismos e aos livros de contabilidade. Todos os movimentos de todos os rebanhos eram rigidamente descritos, as mudanças das estações, o tempo que fizera cada dia, e até o que a Sra. Smith servira ao jantar. O registro no livro diário, por exemplo, referente ao domingo, 22 de julho de 1934, era deste teor: Céu claro, sem nuvens, temperatura de madrugada, 1graus. Não se rezou missa hoje. Bob está na sede, Jackfoi para Murrimbah com 2 pastores, Hughie foi para West Dam com 1 pastor, Beerbarrel está levando os carneiros castrados de 3 anos de Budjjin para Winnemurra. Temperatura às 3 horas da tarde, 29,4 graus. Barômetro firme, 30,6 polegadas. Vento direto do oeste. Cardápio do jantar, carne de vaca conservada em salmoura, batatas, cenouras e couve cozidas, depois pudim de ameixas. Meghann Cleary desposará o Sr. Luke O’Neill, pastor, no sábado, dia 25 de agosto, na igreja de Santa Cruz, em Gillanbone. Registro feito às 9 horas da noite, temperatura de 7,2 graus, último quarto da lua.
Luke comprou para Meggie um anel de noivado de brilhantes, modesto, mas bonito, com duas pedras de um quarto de quilate engastadas num par de corações de platina. O casamento foi marcado para o meio-dia do sábado, 25 de agosto, na igreja de Santa Cruz. A cerimônia seria seguida de um jantar de família no Hotel Imperial, a que a Sra. Smith, Minnie e Cat foram, naturalmente, convidadas, se bem que Jims e Patsy tivessem ficado em Sydney depois de Meggie haver dito com firmeza que não via motivo para fazê-los percorrer novecentos e sessenta quilômetros só para assistir a uma cerimônia que eles nem compreendiam direito. Ela recebera as cartas de congratulações de ambos; a de Jims, longa, digressiva, infantil, a de Patsy com três palavras, ”Montões de felicidades”. Eles conheciam Luke, naturalmente, pois haviam cavalgado com ele pelos pastos de Drogheda durante as férias.
A Sra. Smith lamentou a insistência de Meggie em ter a menor festa de casamento possível; ela esperara ver a única moça casada em Drogheda com bandeiras desfraldadas e címbalos soando, dias de comemoração. Meggie, no entanto, era tão avessa ao espalhafato que até se recusou a vestir trajes de noiva; fez questão de casar com um vestido comum e um chapéu comum, que seria, mais tarde, o seu traje de viagem.
— Querida, já decidi aonde levá-la em nossa lua-de-mel — anunciou Luke, deixando-se cair numa cadeira defronte dela, no domingo, depois de feitos os planos de casamento.
— Aonde?
— A North Queensland. Enquanto você estava na costureira, fiquei conversando com alguns rapazes no bar do Imperial, e eles me disseram que há muito dinheiro para ganhar na terra da cana. Basta que o homem seja forte e não tenha medo do trabalho pesado.
— Mas, Luke, você já tem um bom emprego aqui!
— Um homem não se sente bem engordando à custa de cunhados e sogros.
Quero arranjar dinheiro para comprar umas terras em Western Queensland, e quero consegui-lo antes de ficar velho demais para trabalhar. Para um homem sem estudos não é fácil encontrar um trabalho bem pago nesta Depressão, mas há falta de gente em North Queensland, e o dinheiro, pelo menos, é dez vezes o que ganho em Drogheda.
— Fazendo o quê?
— Cortando cana.
— Cortando cana? Mas isso é trabalho de cule!
— Não é, aí é que você se engana. Os cules não são suficientemente grandes para fazer tão bem esse trabalho quanto os cortadores brancos e, além disso, você sabe tão bem quanto eu que as leis australianas proíbem a importação de homens pretos ou amarelos para trabalhar como escravos ou por salários menores que os de um homem branco, e tirar o pão da boca de um australiano branco. Há falta de cortadores e há dinheiro em penca. Não são muitos os sujeitos tão grandes ou tão fortes como eu para cortar cana. E isso não dará cabo de mim!
— Quer dizer que você está pensando em fazer nosso lar em North Queensland, Luke?
— Estou.
Ela olhou, por cima do ombro dele, através da grande série de janelas, para Drogheda: os eucaliptos, o Home Paddock, a extensão de árvores além. Não viver em Drogheda! Estar em algum lugar onde o Bispo Ralph nunca poderia encontrá-la, viver sem jamais tornar a vê-lo, unir-se ao estranho sentado diante dela tão irrevogavelmente que não poderia voltar atrás... Os olhos cinzentos pousaram no rosto vivo e impaciente de Luke e tornaram-se mais belos, mas, sem dúvida, mais tristes. Ele apenas o suspeitou; ela não vertia lágrimas, suas pálpebras não descaíam, nem lhe descaíam os cantos da boca. Mas ele não se preocupava com as possíveis tristezas de Meggie, nem tinha a intenção de deixar que ela se tornasse tão importante para ele que pudesse levá-lo a preocupar-se com ela. Ela era, sem dúvida, como um prêmio para quem tentara casar com Dot MacPherson de Bingelly, mas seu poder de atração e sua natureza tratável só aumentavam a vigilância de Luke sobre o próprio coração. Mulher alguma, nem que fosse tão meiga e tão bela quanto Meggie Cleary, teria poder suficiente sobre ele para dizer-lhe o que devia ou não devia fazer.
Por isso, continuando fiel a si mesmo, mergulhou diretamente no assunto que trazia no espírito. Havia ocasiões em que a astúcia era necessária, mas, nessa questão, não lhe seria mais eficaz do que a rudeza.
— Meghann, sou um homem antiquado — disse ele. Ela encarou-o, intrigada.
— É mesmo? — perguntou, ao passo que o seu tom queria dizer: E isso importa?
— Sou — confirmou ele. — Acredito que quando um homem e uma mulher se casam, todas as propriedades de mulher devem passar para o homem Como acontecia antigamente com o dote. Sei que você tem algum dinheiro, e digo-lhe agora que, quando nos casarmos, você assinará um documento transferindo-o para mim. É justo que saiba o que estou querendo fazer enquanto ainda é solteira e pode decidir se quer ou não fazê-lo.
Nunca ocorrera a Meggie a idéia de ficar com o seu dinheiro, presumira simplesmente que, ao casar, o dinheiro passaria a ser de Luke, e não dela. Todas as mulheres australianas, excetuando-se apenas as mais cultas e sofisticadas, eram educadas para julgar-se, mais ou menos, bens móveis de seus homens, e isso era especialmente verdadeiro em relação a Meggie. Seu pai sempre governara Fee e os filhos e, a partir da sua morte, Fee passara a sujeitar-se às decisões de Bob, como sucessor dele. O homem possuía o dinheiro, a casa, a esposa e os filhos. Meggie nunca pusera em dúvida o direito de Luke nesse sentido.
— Eu não sabia que era preciso assinar alguma coisa, Luke — exclamou ela. — Pensei que o meu passasse automaticamente a ser seu quando nos casássemos.
— Costumava ser assim, mas aqueles noviços estúpidos de Canberra acabaram com isso quando deram o direito de voto às mulheres. Quero que tudo seja justo e direito entre nós, Meghann, de modo que lhe estou dizendo agora como serão as coisas.
Ela riu-se.
— Está bem, Luke, eu não me incomodo.
Ela tomava a coisa como uma boa esposa de outros tempos. Dot não teria cedido tão prontamente
— Quanto é que você tem? — perguntou ele
— Neste momento, catorze mil libras. Todos os anos ganho mais duas mil. Ele assobiou
— Catorze mil libras! Puxa! Isso é dinheiro pra burro, Meghann! É melhor que eu tome conta dele para você! Poderemos procurar o gerente do banco na semana que vem, e lembre-me de deixar acertado que tudo o que entrar no futuro seja posto em meu nome também! Não vou tocar num tostão, você sabe. É para comprar nossa fazenda mais tarde. Nos próximos anos nós dois vamos trabalhar bastante e poupar todo dinheiro que ganharmos! Certo?
Ela assentiu com a cabeça.
— Está certo, Luke!
Uma simples inadvertência da parte de Luke quase acabou com o casamento. Ele não era católico. Quando o Padre Watty o descobriu, ergueu as mãos, horrorizado.
— Misericórdia, Luke, por que não me disse isso antes? Agora serão necessárias todas as nossas energias para convertê-lo e batizá-lo antes do casamento!
Luke olhou espantado para o Padre Watty.
— Quem foi que falou em conversão, Padre? Sinto-me muito feliz sendo o nada que sou, mas, se isso o aborrece, pode me registrar como crente ou testemunha de Jeová, ou o que quiser. Mas como católico, não.
Em vão lhe suplicaram; Luke recusou-se terminantemente a pensar em conversão.
— Não tenho nada contra o catolicismo nem contra a Irlanda, e reconheço que os católicos do Ulster são muito maltratados. Mas acontece que sou orangista e não costumo virar a casaca. Se fosse católico e vocês quisessem me converter para o metodismo, eu reagiria do mesmo jeito. Não é ao fato de ser católico que faço objeção, mas ao fato de ser vira-casaca. Desista de contar comigo no seu rebanho, Padre, e pronto.
— Então você não pode casar!
— E por que não, ora essa? Se o senhor não quiser nos casar, não vejo por que o reverendo lá da Igreja Anglicana se recusaria a fazê-lo, ou mesmo Harry Gough, o juiz de paz.
Fee sorriu com acrimônia, lembrando-se do seu contratempo com Paddy e o padre; mas ela vencera aquele encontro.
— Eu preciso casar na igreja, Luke! — protestou Meggie, medrosa. — Se não casar na igreja, estarei vivendo em pecado.
— Pelo que me diz respeito, viver em pecado é muito melhor do que virar a casaca — rebateu Luke, que era, às vezes, curiosamente contraditório; por mais que quisesse o dinheiro de Meggie, a sua teimosia cega não o deixava voltar atrás.
— Ora, parem com essa bobagem! — interveio Fee, dirigindo-se, não a Luke, mas ao padre. — Façam o que Paddy e eu fizemos e acabem com a discussão! Se não quiser sujar a sua igreja, o Padre Thomas poderá casá-los na casa paroquial!
Todos arregalaram os olhos para ela, assombrados, mas a idéia deu certo; o Padre Watkin cedeu e concordou em casá-los na casa paroquial, embora se recusasse a abençoar o anel de noivado.
A sanção parcial da Igreja deixou Meggie com a impressão de estar pecando, mas não o bastante para merecer o Inferno, e a velha Annie, a governanta da casa paroquial, fez o possível para dar ao escritório do Padre Watty o aspecto mais eclesiástico possível, enchendo-o de grandes vasos de flores e muitos castiçais de latão. Mas foi uma cerimônia desagradável, em que o sacerdote, contrariado, fazia todo mundo sentir que ele só a realizava para evitar o constrangimento maior de um casamento secular realizado segundo os cânones de outra religião. Não houve missa nupcial, não houve bênçãos.
Entretanto, realizouu-se. Meggie era a Sra. Luke O’Neill a caminho de North Queensland e de uma lua-de-mel um tanto retardada pelo tempo que levariam para chegar lá. Luke recusou-se a passar a noite de sábado no Imperial, pois o trem que servia o ramal de Goondiwindi só partia uma vez por semana, sábado à noite, a fim de estabelecer conexão com o trem postal de Goondiwindi a Brisbane, no domingo. Estariam em Bris na segunda-feira, a tempo de pegar o expresso de Cairns.
O trem de Goondiwindi ia apinhado. Não puderam isolar-se dos outros e passaram a noite sentados, porque o trem não tinha carro-dormitório. Hora após hora rodou ele, errático, aos sacolejos, pelo caminho que levava ao nordeste, parando todas as vezes que o maquinista sentia vontade de preparar um bule de chá, ou para deixar um rebanho de carneiros atravessar a estrada, ou para conversar com um tropeiro.
— Por que será que pronunciam Goondiwindi como se fosse Cundiwindi, se não querem escrever a palavra desse jeito? — perguntou Meggie, por perguntar, enquanto esperavam no único lugar que se abria aos domingos em Goondiwindi, a horrível sala de espera com o seu verde institucional e seus bancos duros e pretos de madeira. A pobre Meggie estava nervosa e pouco à vontade.
— Como posso saber? — suspirou Luke, que não se sentia inclinado a falar e estava morrendo de fome ainda por cima. Por ser domingo, não lhes foi possível arranjar nem mesmo uma xícara de chá; só na segunda-feira de manhã, na parada para o café do trem postal de Brisbane, tiveram a oportunidade de encher os estômagos vazios e matar a sede. Depois veio Brisbane, a estação de South Bris, a travessia da cidade até a estação do expresso de Cairns em Roma Street, onde Meggie descobriu que Luke comprara para eles dois lugares de segunda classe, em que teriam de viajar sentados.
— Luke, nós não estamos sem dinheiro! — disse ela, cansada e exasperada. — Se você se esqueceu de ir ao banco, eu tenho cem libras, que Bob me deu, aqui na minha bolsa. Por que não comprou para nós uma cabina de primeira classe com dois leitos?
Ele a encarou, assombrado.
— Mas são apenas três noites e três dias até Dungloe! Por que gastar dinheiro em leitos se somos ambos jovens, sadios e fortes? Viajar sentada num trem por algum tempo não a matará, Meghann! Já está na hora de você se compenetrar de que casou com um simples operário, e não com um maldito posseiro!
Meggie deixou-se cair no banco ao lado da janela, que Luke lhe arranjara, e descansou o queixo trêmulo na mão a fim de olhar para fora, sem que Luke lhe notasse as lágrimas. Ele lhe falara como se fala com uma criança irresponsável, e ela ficou a imaginar se ele, de fato, não a via assim. A rebelião começou a agitar-se dentro dela, mas era ainda incipiente e o forte orgulho vedava-lhe a indignidade de brigar. Em lugar disso, disse a si mesma que estava casada com aquele homem, mas a coisa era tão nova que ele ainda não se habituara a ela. Dessem-lhe um pouco de tempo. Viveriam juntos, ela cozinharia a comida dele, consertaria suas roupas, cuidaria dele, teria seus filhos, seria uma boa esposa. Era só ver o quanto seu pai gostara de sua mãe, o quanto a adorara. Luke precisava de tempo.
Destinavam-se a uma cidade chamada Dungloe, que distava apenas oitenta quilômetros de Cairns, ponto final da linha que corria ao longo de toda a costa de Queensland na direção do norte. Mais de mil e seiscentos quilômetros de trilhos de bitola estreita, sacolejando para a frente e para trás, com todos os bancos do carro ocupados, sem possibilidade de deitar-se ou de esticar as pernas. Embora a região fosse muito mais densamente povoada do que Gilly e muito mais colorida, Meggie não conseguia interessar-se por ela.
Doía-lhe a cabeça, nenhum alimento lhe parava no estômago, e o calor era muito, mas muito pior do que qualquer coisa que já tivesse experimentado em Gilly. O lindo vestido de casamento de seda cor-de-rosa sujara-se com a fuligem que entrava pelas janelas, sentia a pele pegajosa com um suor que não se evaporava e, o que era pior do que qualquer desconforto físico, estava na iminência de odiar Luke. Aparentemente sem o menor cansaço ou a menor indisposição, sentado à vontade, ele batia papo com dois homens que iam para Cardwell. Nas únicas vezes em que olhava na sua direção, levantava-se, curvava-se sobre ela com tanta desatenção que ela se encolhia, e atirava um jornal enrolado pela janela a uma turma de homens maltrapilhos famintos de notícias, ao lado da linha, com malhos de aço nas mãos, que gritavam:
— Jornal! Jornal!
— São os homens que examinam os trilhos — explicou ao sentar-se de novo, quando isso aconteceu pela primeira vez.
E ele parecia acreditá-la tão feliz e confortável quanto ele, fascinada pela planície litorânea que voava a seu lado. Ao passo que ela a contemplava sem vê-la, detestando-a antes mesmo de pôr o pé naquele chão.
Em Cardwell os dois homens apearam, e Luke dirigiu-se à venda de peixes e petisqueiras, defronte da estação, do outro lado da estrada, e de lá voltou com qualquer coisa embrulhada em jornal.
— Dizem que o peixe de Cardwell tem de ser provado para ser acreditado, Meghann querida. O melhor peixe do mundo. Experimente um pouco. E o seu primeiro bocado de comida autêntica de Bananalândia. É o que lhe digo, não há lugar como Queensland.
Meggie olhou para os pedaços gordurosos de peixe mergulhados em molho, levou o lenço à boca e saiu ventando para o toalete. Ele estava esperando no corredor quando ela voltou algum tempo depois, branca e trêmula.
— Que aconteceu? Está-se sentindo mal?
— Estou-me sentindo mal desde que saímos de Goondiwindi.
— Misericórdia! E por que não me disse?
— Por que você não notou?
— Você me parecia muito bem.
— Quanto falta agora? — perguntou ela, desistindo.
— De três a seis horas, um pouco mais ou um pouco menos. Aqui não se obedece muito aos horários. Há bastante espaço agora que aqueles sujeitos desceram; deite-se e ponha os pezinhos no meu colo.
— Pare de falar comigo como se eu fosse uma criancinha! — atalhou ela, ácida. — Teria sido muito melhor se eles tivessem descido há dois dias em Bundaberg!
— Ora, Meghann, seja boazinha! Estamos quase chegando. Só faltam Tully e Innisfail, depois vem Dungloe.
Entardecia quando desceram do trem. Meggie agarrava-se, desesperada, ao braço de Luke, orgulhosa demais para admitir que não podia caminhar direito. Ele pediu ao chefe da estação que lhe indicasse um hotel de trabalhadores, apanhou as malas e saiu para a rua, seguido de Meggie, que cambaleava como se estivesse bêbeda.
— É só até o fim do quarteirão do outro lado da rua — disse ele, confortante. — Aquela espelunca de dois andares.
Embora o quarto deles fosse pequeno e atulhado de grandes peças de mobília vitoriana, pareceu o céu para Meggie, que desabou sobre a beira da cama de casal.
— Descanse um pouco até à hora do jantar, amor. vou sair para procurar meus pontos de referência — anunciou Luke, saindo calmamente do quarto com o aspecto viçoso e descansado que ostentara na manhã do dia do seu casamento. Ora, isso fora no sábado e já estavam na quinta-feira seguinte, à noitinha, depois de cinco dias sentados em trens abarrotados, sufocados pela fumaça de cigarros e pela fuligem.
A cama rodava monotonamente, ao ritmo das rodas de aço que passavam estalejando sobre junções de trilhos, mas Meggie virou a cabeça no travesseiro com um sentimento de gratidão, e dormiu, dormiu.
Alguém lhe tirara os sapatos e as meias, e cobrira-a com um lençol; Meggie estremeceu, abriu os olhos e correu-os à sua volta. Luke estava sentado no peitoril da janela com um joelho erguido, fumando. O movimento dela fê-lo voltar-se, olhar para ela e sorrir.
— Que bela noiva você me saiu! Eu aqui, esperando ansioso pela minha lua-de-mel, e minha esposa apaga durante quase dois dias! Fiquei um pouco preocupado quando não consegui despertá-la, mas diz o hoteleiro que isso acontece mesmo às mulheres, depois de uma viagem assim e por causa da umidade. Ele me aconselhou a deixá-la dormir. Como se sente agora?
Ela sentou-se na cama, cerimoniosa, e bocejou.
— Muito melhor, obrigada. Oh, Luke! Sei que sou moça e forte, mas também sou mulher! Não agüento esse castigo físico que você agüenta.
Ele foi sentar-se à beira da cama e começou a esfregar o braço dela, num gesto encantador de arrependimento.
— Sinto muito, Meghann, é verdade. Não pensei no fato de você ser mulher. Não estou acostumado a andar com uma esposa a tiracolo, é isso. Está com fome, querida?
— Estou morta de fome. Sabe que faz quase uma semana que não como?
— Então por que não toma um banho, não põe um vestido limpo e não sai comigo para conhecer a cidade?
Havia um café chinês ao lado do hotel, aonde Luke a levou para que Meggie provasse, pela primeira vez na vida, a comida oriental. Sua fome era tanta que qualquer coisa lhe teria cabido bem, mas aquilo estava soberbo. Nem se preocupou em verificar se fora feito de fato com caudas de ratos, nadadeiras de tubarões e tripas de aves, como se dizia em Gillanbone, que só possuía um café dirigido por gregos, onde se serviam bifes, batatas fritas e nada mais. Luke tirara duas garrafas de cerveja do hotel e insistiu com ela para que tomasse um copo apesar da sua aversão pela cerveja.
— Vá devagar com a água — recomendou ele. — A cerveja não lhe dará piriri. Depois tomou-lhe o braço e passeou com ela por Dungloe orgulhosamente, como se fosse o dono da cidade. Acontece que Luke nascera em Queensland. Que lugar! Muito diferente das cidades ocidentais. Em tamanho talvez fosse igual a Gilly, mas, em vez de prolongar-se indefinidamente por uma única rua principal, Dungloe fora construída em quarteirões quadrados e ordenados, com todas as lojas e casas pintadas de branco, e não de marrom. As janelas eram basculantes verticais de madeira, provavelmente para melhor captar a brisa e, sempre que possível, não havia tetos, como acontecia no cinema, que possuía uma tela, paredes cheias de bandeiras e filas de cadeiras de lona, das que se usam nas cobertas dos navios, mas sem teto.
Uma verdadeira selva cercava a cidade. Plantas rastejantes e trepadeiras espalhavam-se por toda parte — trepavam nos postes, subiam pelos telhados, estendiam-se ao longo dos muros. Árvores surgiam casualmente no meio da rua, ou tinham casas construídas à sua volta, ou talvez tivessem crescido por dentro das casas. Era impossível dizer quem chegara primeiro, se as árvores ou as habitações humanas, pois a impressão predominante era a de um crescimento descontrolado, febril, da vegetação. Coqueiros mais altos e mais retos do que os eucaliptos de Drogheda agitavam as frondes, que se destacavam do céu azul-escuro; para onde quer que dirigisse o olhar, Meggie topava com um esplendor de cores. Aquela não era uma terra marrom e cinzenta. Todas as espécies de árvores pareciam florir — rubras, alaranjadas, escarlates, cor-de-rosa, azuis, brancas.
Havia muitos chineses que vestiam calças pretas de seda, minúsculos sapatos pretos e brancos com meias brancas, camisas com colarinhos de mandarim, rabichos na cabeça. Homens e mulheres tão parecidos uns com os outros que Meggie encontrou dificuldade para diferençá-los. Quase todo o comércio parecia estar nas mãos de chineses; um grande magazine, muito mais opulento do que tudo o que havia em Gilly, tinha um nome chinês: AH WONG’S, dizia a tabuleta.
Todas as casas eram construídas sobre estacas muito altas, como a velha residência do chefe dos pastores em Drogheda. Esse tipo de construção tinha por finalidade obter a máxima circulação do ar, explicou Luke, e impedir que os cupins lhes provocassem a queda um ano depois da sua construção. No topo de cada estaca havia uma chapa fina com as pontas viradas para baixo; não podendo dobrar o corpo ao meio, os cupins não conseguiam chegar, rastejando pelo parapeito de lata, à madeira da própria casa. Era evidente que se regalavam com as estacas, mas, quando uma estaca apodrecia, substituíam-na por outra nova. Muito mais fácil e barato do que construir uma nova casa. A maioria dos jardins parecia um prolongamento da selva, em que sobressaíam bambuais e coqueirais, como se os seus habitantes houvessem desistido de impor ordem ao mundo vegetal.
Os homens e as mulheres impressionaram-na. Para ir jantar e sair a passeio com Luke, ela se vestira como exigia o costume, com sapatos de salto alto, meias de seda, combinação de cetim, vestido leve de seda com cinto e mangas até os cotovelos. Na cabeça trazia um grande chapéu de palha, as mãos calçavam luvas. E o que mais a irritava era a sensação desagradável, provocada pelo jeito com que todos a miravam, de ser ela a malvestida!
Os homens andavam de pé no chão, pernas de fora e a maioria com o peito nu, vestindo apenas shorts caqui de tecido grosso; os poucos que cobriam o peito faziam-no com camisetas de malha e não com camisas. As mulheres eram piores. Umas poucas exibiam parcos vestidos de algodão, manifestamente sem nada por baixo, sem meias, e calçavam sandálias sujas. A maioria, porém, usava shorts curtos, andava descalça e escondia os seios debaixo de indecentes camisetas sem mangas. Dungloe era uma cidade civilizada, não uma praia. Mas aqui estavam os seus habitantes brancos nativos passeando pelas ruas em trajes sumários e desavergonhados; os chineses vestiam-se melhor.
Havia bicicletas em toda parte, às centenas; alguns carros, nenhum cavalo. Sim, muito diferente de Gilly. E era quente, quente, quente. Passaram por um termômetro que marcava, incrivelmente, apenas trinta e dois graus; em Gilly, quando fazia quarenta e seis, o ar se diria mais frio. Meggie tinha a impressão de mover-se através de ar sólido, que seu corpo cortava como se fosse manteiga, como se seus pulmões estivessem cheios d’água.
— Luke, não agüento mais! Por favor, não podemos voltar?
— Se quiser, voltamos. O que você está sentindo é a umidade. Ela raramente desce a menos de noventa por cento, no inverno ou no verão, e a temperatura raramente desce a menos de vinte e nove e meio ou sobe a mais de trinta e cinco graus.
Não há muita variação sazonal, mas, no verão, com as monções, a umidade chega a cem por cento.
— Chove no verão e não chove no inverno?
— Chove o ano todo. As monções não falham e, quando não estão soprando, sopram os alísios, vindos do sudeste. E trazem muita chuva também. A média anual de precipitação atmosférica em Dungloe vai de dois metros e meio a sete metros e meio.
Sete metros e meio de chuva por ano! A pobre Gilly ficava extática quando conseguia 380 milímetros, ao passo que aqui, a pouco menos de quatro mil quilômetros de Gilly, caíam mais de sete metros.
— E não esfria à noite? — perguntou Meggie quando chegaram ao hotel; as noites quentes em Gilly eram suportáveis comparadas àquela sauna.
— Não muito. Você se acostumará. — Ele abriu a porta do quarto e afastou-se para ela passar. — Irei até o bar tomar uma cerveja, mas estarei de volta daqui a meia hora. Isso lhe dará tempo suficiente.
Os olhos dela voaram para o rosto dele, sobressaltados.
— Sim, Luke.
Dungloe ficava a dezessete graus ao sul do equador, de modo que a noite caía como um raio; num minuto se diria que o sol começara a se pôr e, no minuto seguinte, caía sobre as pessoas e as coisas uma escuridão de breu, grossa e quente como melaço. Quando Luke voltou, Meggie apagara a luz e estava deitada na cama com o lençol puxado até o queixo. Rindo, ele estendeu a mão, arrancou-o dela e atirou-o ao chão.
— Já está muito quente, amor. Não precisaremos do lençol.
Ela o ouviu andando de um lado para o outro, viu-lhe a sombra vaga deixando cair as roupas.
— Coloquei seus pijamas no toucador — murmurou ela.
— Pijamas? com esse calor? Sei que em Gilly teriam um ataque à simples idéia de um homem que não usasse pijamas, mas aqui é Dungloe! Você está de camisola?
— Estou.
— Então, tire-a. Esse troço, de qualquer maneira, só poderá nos atrapalhar. Muito desajeitada, Meggie conseguiu libertar-se da camisola de cambraia que a Sra. Smith bordara com tanto carinho para a sua noite de núpcias, agradecendo o fato de estar tão escuro que ele não podia vê-la. Mas Luke tinha razão; era muito mais fresco deitar-se inteiramente nua e deixar que a brisa que entrava pelos basculantes escancarados a acariciasse debilmente. Mas a idéia de outro corpo quente na cama ao seu lado deprimia-a.
As molas rangeram; Meggie sentiu uma pele úmida tocar-lhe o braço e deu um pulo. Ele virou-se de lado, aninhou-a entre os braços e beijou-a. A princípio, ela permaneceu passiva, tentando não pensar na boca escancarada e na língua exploradora e indecente, mas, depois, começou a lutar para libertar-se, não desejando ficar perto dele no calor, não desejando ser beijada, não desejando Luke. Não era nada parecido com a noite no Rolls, quando voltavam de Rudna Hunish. Meggie tinha a impressão de que ele nem estava pensando nela, enquanto uma parte qualquer dele lhe empurrava com insistência as coxas, e uma de suas mãos, de unhas afiadas, se metia entre suas nádegas. O medo dela transmudou-se em terror, ela sentiu-se esmagada em mais de um sentido físico pela força e determinação dele, pela ausência, que ele revelava, de percepção dela. De repente ele a largou, sentou-se e pareceu, com as mãos, estalar e esticar qualquer coisa.
— É melhor ir pelo seguro — ofegou ele. — Deite-se de costas, está na hora. Não, não, assim não! Abra as pernas, pelo amor de Deus! Você não sabe nada?
Não, não, Luke, eu não sei!, ela teve vontade de gritar. Isto é horrível, obsceno; seja o que for que você está fazendo comigo, não é possível que seja permitido pelas leis da Igreja ou dos homens! Ele, na verdade, se deitara em cima dela, erguera os quadris e tateava-a com uma das mãos, enquanto a outra lhe segurava com tanta firmeza o cabelo que ela não se atrevia a mexer-se. Contorcendo-se e pulando ao sentir a coisa estranha entre as pernas, ela tentou fazer como ele queria, abrindo-as ainda mais, mas ele era muito mais largo do que ela, e os músculos da sua virilha se contraíram, com cãibra, em razão do peso dele e da postura inusitada. Mesmo através das névoas do medo e do cansaço, que se adensavam, ela sentiu a concentração de uma força poderosa; e, quando ele a penetrou, seus lábios se abriram num grito alto e longo.
— Cale a boca! — gemeu Luke, tirando a mão do cabelo dela e tapando-lhe defensivamente a boca. — O que você está querendo? Fazer todo mundo nesta maldita espelunca pensar que a estou assassinando? Fique quieta, que isso não doerá mais que o necessário. Fique quieta, fique quieta!
Ela lutou como possessa para livrar-se da coisa medonha e dolorosa, mas o peso dele não a deixava mexer-se e a mão dele lhe abafava os gritos, e a agonia continuou. Inteiramente seca porque ele não a excitara, a camisinha ainda mais seca lhe arranhava e feria os tecidos, enquanto ele entrava e saía, cada vez mais depressa, e a respiração começava a silvar-lhe entre os dentes; depois, uma mudança qualquer o aquietou, fêlo estremecer, engolir com força. A dor entorpeceu-se, transformou-se em irritação da carne viva e ele, misericordiosamente, saiu de cima dela e, rolando, foi ficar de costas ao seu lado, arquejante.
— Será melhor para você da próxima vez — ele conseguiu dizer. — A primeira sempre machuca a mulher.
Então por que você não teve a decência de prevenir-me antes?, ela quis rosnar, faltou-lhe energia para pronunciar as palavras, ocupada como estava em querer morrer. Não só por causa da dor, mas também pela descoberta de que não possuíra identidade para ele, fora-lhe mero instrumento.
A segunda vez doeu do mesmo jeito, e a terceira também; exasperado, esperando que o desconforto dela (pois era assim que definia as coisas) desaparecesse magicamente depois da primeira vez e, portanto, não compreendendo a razão por que ela continuava a lutar e a gritar, Luke enfezou-se, virou-lhe as costas e ferrou no sono. As lágrimas que caíam dos olhos de Meggie escorriam-lhe até o cabelo; ela estava deitada de costas, desejando a morte ou, então, desejando voltar à antiga existência em Drogheda.
com que, então, fora a isso que se referira o Padre Ralph, anos atrás, quando lhe falara numa passagem oculta relacionada com o parto? Bonito modo de descobrir o que ele queria dizer. Não admira que tivesse preferido não explicar pessoalmente. Apesar de tudo, Luke apreciara tanto a atividade que a repetira duas vezes em rápida sucessão. Era evidente que isso não o machucava. E ela se surpreendeu a odiá-lo, a odiá-lo.
Exausta, tão machucada que qualquer movimento a fazia sofrer, Meggie, pouco a pouco, conseguiu virar-se de lado, com as costas voltadas para Luke, e chorou no travesseiro. O sono fugiu-lhe, embora Luke dormisse tão profundamente que os seus pequenos e tímidos movimentos não chegaram sequer a modificar-lhe o padrão da respiração. Ele dormia econômica e tranqüilamente, não roncava nem se debatia e, enquanto esperava a madrugada, ela pensou que se os dois ficassem apenas deitados lado a lado, ela talvez até gostasse de dormir com ele. E a aurora despontou tão rápida e melancólica quanto descera a escuridão; parecia-lhe estranho não ouvir os galos cantando e os outros sons de Drogheda ao despertar, com seus carneiros, cavalos, porcos e cães.
Luke acordou e rolou sobre si mesmo; ela sentiu-lhe o beijo no ombro, mas estava tão cansada e tão saudosa de casa que se esqueceu do recato e não se preocupou sequer em cobrir a própria nudez.
— Vamos, Meghann, vamos dar uma olhada em você — ordenou ele, com a mão no quadril dela. — Vire-se, vamos, como uma boa menina.
Nada importava naquela manhã; Meggie virou-se, estremecendo, e ficou olhando obtusamente para ele.
— Não gosto de Meghann — disse ela, utilizando a única forma de protesto que conseguiu encontrar. — Eu gostaria que você me chamasse de Meggie.
— Pois eu não gosto de Meggie. Mas se você tem realmente tanta aversão a Meghann, posso chamá-la de Meg. — O olhar dele passeou pelo corpo dela com expressão sonhadora. — Que belo corpo você tem! — Tocou num seio, de bico murcho e desexcitado. — Especialmente estes. — Fazendo uma pilha dos travesseiros, recostou-se neles e sorriu. — Vamos, Meg, beije-me. Agora é a sua vez de me namorar, e isso talvez lhe agrade mais, hein?
Nunca mais desejarei beijá-lo enquanto viver, pensou ela, olhando para o corpo longo e musculoso, a esteira de pêlos pretos do peito que descia para o ventre numa linha fina e depois se alargava numa pequena mata, da qual saía o rebento enganosamente pequeno e inocente, mas capaz de causar tanta dor. Como eram peludas as pernas dele! Meggie crescera com homens que nunca tiravam uma peça de roupa em presença de mulheres, mas as camisas abertas ao nível do pescoço mostravam peitos peludos no tempo do calor. Todos homens claros, que não lhe causavam repugnância; aquele homem moreno era estranho, repulsivo. A cabeça de Ralph tinha cabelos igualmente pretos, mas ela se lembrava muito bem do seu peito macio, liso e moreno.
— Faça o que estou mandando, Meg! Beije-me.
Inclinando-se, ela beijou-o; ele segurou-lhe os seios com as mãos em concha e fêla continuar beijando-o; depois, pegou numa das mãos dela e empurrou-a até a sua virilha. Assustada, ela afastou a boca relutante dos lábios dele a fim de olhar para o que estava debaixo da sua mão, mudando e crescendo.
— Oh, por favor, Luke, outra vez não! — chorou ela. — Por favor, outra vez não! Por favor, por favor!
Os olhos azuis examinaram-na atenta e especulativamente.
— Dói tanto assim? Muito bem, faremos uma coisa diferente. Mas, pelo amor de Deus, procure mostrar um pouco de entusiasmo!
Colocando-a sobre ele, separou as pernas dela, ergueu-lhe os ombros e aferrou-se aos seios dela, como o fizera no automóvel na noite em que ela se comprometera a desposá-lo. Presente apenas fisicamente, Meggie suportou-o; ele, pelo menos, não se enfiava dentro dela, de modo que não doía mais que o simples movimento. Estranhas criaturas aqueles homens, que se entregavam àquilo como se fosse a coisa mais deleitosa do mundo. Era repugnante, um arremedo de amor. Não fora a sua esperança de que tudo culminasse num filho, e Meggie se teria recusado terminantemente a repetir a dose.
— Arranjei um emprego para você — disse Luke, depois do desjejum, no refeitório do hotel.
— O quê? Antes de eu ter tido a oportunidade de enfeitar o nosso lar, Luke? Antes de termos um lar?
— Não vejo a vantagem de alugarmos uma casa, Meggie. Eu vou cortar cana; está tudo arranjado. Os melhores cortadores de Queensland são uma turma de suecos, poloneses e irlandeses chefiados por um sujeito chamado Arne Swenson. Durante o seu sono depois da viagem, fui procurá-lo. Ele está com falta de um homem e concordou em me experimentar. Isso quer dizer que vou viver num acampamento com eles. Cortamos seis dias por semana, desde que o sol nasce até que ele se põe. Além disso, subiremos e desceremos a costa, onde quer que o serviço nos leve. O quanto ganharei dependerá da cana que eu puder cortar e, se conseguir acompanhar a turma de Arne, embolsarei mais de vinte libras por semana. Já pensou? Vinte libras por semana! Você pode imaginar uma coisa dessas?
— Você está querendo me dizer que não viveremos juntos, Luke?
— Não podemos, Meg! Os homens não querem saber de mulheres no acampamento, e a troco de que você vai viver sozinha numa casa? Será melhor que trabalhe também; tudo é dinheiro para a nossa fazenda.
— Mas onde vou viver? Que espécie de trabalho posso fazer? Aqui não há gado para tropear.
— Não, mas não faz mal. Por isso lhe arranjei um emprego em que você pode morar, Meg. Terá cama e comida de graça, e não precisarei sustentá-la. É uma despesa a menos. Você trabalhará como criada em Himmelhoch, na casa de Ludwig Mueller, o maior plantador de cana do distrito. Sua esposa é inválida e não pode cuidar da casa sozinha. vou levá-la até lá amanhã cedo.
— E quando o verei, Luke?
— Aos domingos. Luddie sabe que você é casada e não se incomodará se você desaparecer aos domingos.
— Muito bem! Pelo visto, você arrumou as coisas a seu contento, não arrumou?
— Acho que sim. Oh, Meg, ficaremos ricos! Trabalharemos duro, economizaremos cada tostão e logo, logo, compraremos a melhor fazenda no oeste de Queensland. Há as catorze mil que tenho no banco de Gilly, as duas mil que virão todos os anos e as mil e trezentas, ou mais, que poderemos ganhar por ano com o nosso trabalho. Isso não vai demorar, amor, prometo. Sorria e agüente tudo por mim, sim? Por que contentar-se com uma casa alugada se quanto mais duro dermos agora, mais depressa você estará mexendo em sua própria cozinha?
— Se é isso o que você quer... — Ela abaixou os olhos para a bolsa. — Luke, você tirou minhas cem libras?
— Depositei-as no banco. Você não pode andar com dinheiro assim por aí, Meg.
— Mas você tirou tudo! Não tenho nem um tostão! E se eu precisar gastar algum dinheiro?
— Ué! Por que há de querer gastar dinheiro? Você estará em Himmelhoch amanhã cedo, e lá não poderá gastar coisa alguma. Eu me encarregarei da conta do hotel. Já é tempo de você compreender que casou com um operário, que não é a filha mimada do fazendeiro com dinheiro para jogar pela janela. Mueller depositará seus ordenados diretamente na minha conta no banco, onde ficarão com os meus. Nenhum de nós tocará no dinheiro, porque é o nosso futuro, a nossa fazenda.
— Sim, compreendo. Você é muito sensato, Luke. Mas que acontecerá se eu tiver um filho?
Por um momento ele se sentiu tentado a contar-lhe a verdade, que não haveria filho nenhum enquanto a fazenda não fosse uma realidade, mas alguma coisa no rosto dela fê-lo arrepiar carreira.
— Deixemos para atravessar essa ponte quando chegarmos a ela, sim? Eu preferia não ter filhos enquanto não tivéssemos a fazenda, por isso esperemos que não venham.
Sem lar, sem dinheiro, sem filhos. E, a propósito, sem marido. Meggie começou a rir. Luke acompanhou-a e ergueu a xícara de chá num brinde.
— Às camisinhas-de-vênus— disse ele.
De manhã foram para Himmelhoch no ônibus local, um velho Ford sem vidro nas janelas e lugar para doze pessoas. Meggie sentia-se melhor, pois Luke a deixava em paz quando ela lhe oferecia um seio, e parecia gostar tanto disso quanto daquela outra coisa horrível. Por mais que ela quisesse filhos, faltava-lhe coragem. No primeiro domingo em que não estivesse tão sensível, tentaria outra vez. Talvez já houvesse até um bebezinho a caminho, e ela não precisaria mais preocupar-se com isso de novo, a não ser que quisesse outros. com os olhos mais brilhantes, olhou, interessada, à sua volta enquanto o ônibus roncava pela estrada de terra vermelha.
Uma região emocionante, muito diferente de Gilly; cumpria-lhe admitir que havia aqui uma grandeza e uma beleza que Gilly não possuía. Logo se via que a água não devia escassear. O solo tinha a cor do sangue recém-derramado, de um vermelho brilhante, e a cana nos campos não alqueivados fazia um perfeito contraste com a terra: longas lâminas de um verde-vivo a agitar-se cinco a seis metros acima das hastes cor de vinho, grossas como o braço de Luke. Em parte alguma do mundo, dizia Luke com entusiasmo, a cana crescia tão alta nem tão rica em açúcar; sua produção era a mais elevada que se conhecia. Aquele solo vermelho-vivo, com mais de trinta metros de profundidade, possuía em tamanha quantidade os elementos nutritivos indispensáveis que a cana não podia deixar de ser perfeita, ainda mais se se considerasse a chuva. E em parte alguma do mundo ela era cortada por homens brancos, no ritmo impetuoso e ávido de dinheiro do homem branco.
— Você faria boa figura num palanque de comício, Luke — disse Meggie, irônica. Ele dirigiu-lhe um olhar de viés, desconfiado, mas absteve-se de fazer comentários porque o ônibus parara à beira da estrada para desembarcá-los.
Himmelhoch era uma casa grande e branca no topo de uma colina, cercada de coqueiros, bananeiras e belas palmeiras cujas folhas se desdobravam em grandes leques como caudas de pavões. Um bambual de doze metros de altura separava a casa do pior das monções de noroeste; e, apesar da altura da colina, a casa se erguia sobre estacas de cinco metros.
Luke carregava-lhe a mala; Meggie se cansava subindo a estrada vermelha ao lado dele, ofegante, ainda corretamente vestida e calçada de sapatos e meias, com o chapéu a girar-lhe em torno do rosto. O barão da cana não estava em casa, mas enquanto os dois subiam a escada, a esposa assomou à varanda, equilibrando-se entre duas bengalas. Sorriu; e, ao dar com o rosto amável e bondoso, Meggie logo se sentiu melhor.
— Entrem, entrem! — disse ela com um pesado sotaque australiano. Esperando uma voz alemã, Meggie sentiu-se imensamente animada. Luke depôs a mala no chão, apertou a mão da senhora quando esta desvencilhou a direita da respectiva muleta e desceu correndo a escada, na ânsia de pegar o ônibus em sua viagem de volta. Arne Swenson combinara apanhá-lo, à porta do bar, às dez horas.
— Qual é o seu primeiro nome, Sra. O’Neill?
— Meggie.
— Oh, que bom! O meu é Anne, e prefiro que me chame de Anne. Tem sido tão solitário aqui desde que a minha menina me deixou, há um mês, e é tão difícil conseguir gente boa para ajudar no serviço da casa! Tenho lutado sozinha. Somos só dois, Luddie e eu; não temos filhos. Espero que goste de viver conosco, Meggie.
— Estou certa de que gostarei, Sra. Mueller... Anne.
— Deixe-me mostrar-lhe o seu quarto. Pode levar a mala? Receio não ser muito boa para carregar coisas.
O quarto era austeramente mobiliado, como o resto da casa, mas dava para o único lado em que a vista não esbarrava em quebra-ventos, e abria para o mesmo trecho de varanda da sala de estar, que pareceu muito despojada a Meggie com sua mobília de vime e sua falta de cortinas.
— Aqui é quente demais para usarmos veludo ou chita — explicou Anne. — Vivemos com vime, e vestimos o mínimo que a decência nos permite. Terei de educála, ou você morrerá. Tem muita coisa inútil sobre o corpo.
Ela mesma trajava camiseta sem mangas, decotada, e short curto, de onde lhe saíam, inanes, as pobres pernas tortas. Num abrir e fechar de olhos, Meggie viu-se vestida do mesmo jeito, com roupas de Anne, que as emprestaria até que Luke se persuadisse a comprar-lhe roupas novas. Era humilhante ter de explicar que não podia dispor de dinheiro, mas, ao menos, isso servia para atenuar-lhe o constrangimento por vestir tão pouca coisa.
— Pois você, com certeza, enfeitará meus shorts muito mais do que eu — disse Anne, que prosseguiu em sua animada conversa. — Luddie lhe trará a lenha; você não precisará rachá-la nem carregá-la escada acima. Quem me dera que tivéssemos eletricidade, como os lugares mais próximos de Dunny, porém o governo é mais vagaroso que uma semana de chuva. Talvez a força chegue a Himmelhoch no ano que vem, mas, enquanto isso, receio que tenhamos de usar aquele velho e horrível fogão de lenha. Mas não se incomode, Meggie! Assim que tivermos força, teremos um fogão elétrico, luz elétrica e um refrigerador.
— Estou acostumada a passar sem eles.
— Sim, mas no lugar de onde você vem o calor é seco. Isto aqui é muito, muito pior. Receio que sua saúde venha a sofrer. É o que acontece a muitas mulheres que não nasceram nem foram criadas aqui; qualquer coisa relacionada com o sangue. Estamos na latitude sul como Bombaim e Rangum estão na latitude norte, o que quer dizer que isto não é lugar para gente nem bicho que não tenham nascido aqui. — Sorriu. — Oh, já sinto como é bom tê-la conosco! Você e eu vamos nos divertir à beça! Gosta de ler? Luddie e eu temos paixão pela leitura.
O rosto de Meggie iluminou-se.
— Oh, sim!
— Esplêndido! Você viverá tão contente que não sentirá falta do bonitão do seu marido.
Meggie não respondeu. Sentir falta de Luke? Ele era bonito? Se nunca mais tornasse a vê-lo, seria completamente feliz. Só que ele era seu marido e, segundo a lei, ela teria de viver com ele. Fora para o casamento com os olhos abertos; não podia culpar ninguém senão a si mesma. Talvez, quando entrasse o dinheiro e a fazenda em Western Queensland fosse uma realidade, houvesse tempo para Luke e ela viverem juntos, estabilizarem-se, conhecerem-se um ao outro, darem-se bem.
Ele não era mau, nem era um homem que não pudesse ser amado; mas vivera sozinho por tanto tempo que não sabia dar-se a outra pessoa. E era um homem simples, não atormentado, que perseguia, implacável, um único propósito. Desejava uma coisa concreta, ainda que fosse um sonho, uma recompensa positiva, que viria decerto em conseqüência do trabalho sem descanso, do sacrifício massacrante. Por isso merecia respeito. Nem por um momento supôs ela que o marido empregasse o dinheiro em luxos para si; ele falara a sério. O dinheiro ficaria no banco.
O diabo é que ele não tinha tempo ou não tinha sutileza para compreender a mulher, não parecia saber que ela era diferente, precisava de coisas de que ele não precisava, como ele precisava de coisas de que ela não precisava. Bem, poderia ter sido pior. Ele podia tê-la feito trabalhar para uma pessoa muito mais fria e menos atenciosa do que Anne Mueller. No topo daquele morro não lhe aconteceria mal algum. Mas era tão longe de Drogheda!
O último pensamento voltou-lhe depois que terminaram a visita da casa e, juntas na varanda da sala de estar, estenderam a vista além de Himmelhoch. Os grandes canaviais (podiam até chamar-se cercados, pois eram tão pequenos que se abarcavam com o olhar) balouçavam, luxuriantes, ao vento, com o seu verde vivo e cintilante e lavado da chuva, que descia em longo declive até às margens enflorestadas de um grande rio, muito mais largo que o Barwon. Do outro lado do rio as terras de cana erguiam-se de novo, retângulos de verde venenoso entremeados de sangrentos campos de pouso, até que as plantações terminavam ao pé de vasta montanha, e a mata tomava conta da paisagem. Atrás do cone da montanha, mais além, outros picos se erguiam e morriam, vermelhos, na distância. De um azul mais rico e mais denso que os céus de Gilly, com um mar de nuvens grandes como ondas, o céu e tudo o mais tinham um colorido vivo e intenso.
— Aquele é o Monte Bartle Frere — disse Anne, apontando para o pico isolado. — Cento e oitenta metros que se erguem acima da planície, situada ao nível do mar. Dizem que é todo formado de estanho, mas não há esperança de minera-lo por causa da mata.
O vento pesado e ocioso trazia um mau cheiro forte e enjoativo que Meggie vinha tentando afastar das narinas desde que descera do trem. Como a podridão, insuportavelmente doce, penetrante, presença tangível que nunca parecia diminuir, por mais forte que soprasse o vento.
— O que você está cheirando é melaço — disse Anne ao notar as narinas dilatadas de Meggie; e acendeu um cigarro Ardath, comprado pronto.
— É desagradável.
— Eu sei. É por isso que fumo. Mas, até certo ponto, a gente se habitua a ele, embora, à diferença da maioria dos cheiros, nunca desapareça. Entra dia, sai dia, o melaço está sempre aí.
— Que prédios são aqueles, à margem do rio, com as chaminés pretas?
— Aquela é a usina. Processa a cana até transformá-la em açúcar bruto. O que fica, isto é, os remanescentes secos da cana sem o conteúdo de açúcar, chama-se bagaço. Tanto o açúcar bruto quanto o bagaço são remetidos para o sul, para Sydney, e submetidos a um novo refino. Do açúcar bruto se extrai o melaço, o açúcar mascavo, o açúcar cristal, o açúcar refinado e a glicose líquida. O bagaço é transformado em tábuas fibrosas de construção, como a masonite. Nada se desperdiça, absolutamente nada. Por isso é que, mesmo numacrise como esta, plantar cana continua a ser um negócio muito rendoso.
! Arne Swenson media 1,87 m de altura, exatamente a altura de Luke, e era tão bem-apessoado quanto ele. O corpo nu tinha uma coloração cinza dourada, mais escura pela perpétua exposição ao sol, e o cabelo, de um amarelo brilhante, encrespava-se por toda a cabeça; os belos traços suecos eram tão parecidos com os de Luke que se via facilmente quanto sangue nórdico devia ter passado para as veias dos escoceses e irlandeses.
Luke renunciara ao fustão e à camisa branca em favor dos shorts. Subiu em companhia de Arne numa antiga e resfolegante camionete modelo T e rumou para onde a turma cortava cana ao pé do Goondi. A bicicleta de segunda mão que comprara ia atrás, com a mala, e ele ansiava por começar o trabalho.
Os outros homens estavam cortando desde o romper da manhã e não levantaram a cabeça quando Arne apareceu vindo da direção do acampamento, trazendo Luke a reboque. O uniforme dos cortadores consistia em shorts, botas com meias grossas de lã e chapéus de lona. Luke olhou para os trabalhadores, que tinham um aspecto singular. Uma sujeira preta como carvão cobria-os da cabeça aos pés, e o suor lhes desenhava brilhantes riscas cor-de-rosa no peito, nos braços, nas costas.
— Fuligem e lama da cana — explicou Arne. — Precisamos queimá-la para poder cortá-la.
Abaixou-se, pegou dois instrumentos, deu um a Luke e ficou com o outro.
— Este é um facão de cana — disse, levantando o seu. — com ele você corta a cana. Muito fácil, se souber manejá-lo.
Sorriu e passou à demonstração, fazendo a coisa parecer mais fácil do que provavelmente era.
Luke olhou para o objeto mortal que o outro empunhava, nada parecido com o machete usado nas índias Ocidentais. Alargava-se para formar um grande triângulo em vez de afilar-se até a ponta, e tinha um gancho terrível, como a espora de um galo, numa extremidade da lâmina.
— O machete é pequeno demais para a cana de North Queensland — disse Arne, concluída a demonstração. — Você verá que este é o verdadeiro brinquedo. Mantenha-o afiado, e boa sorte.
E lá se foi ele para a sua seção, deixando Luke parado, indeciso por um momento. Depois, encolhendo os ombros, este começou a trabalhar. Dali a minutos compreendeu por que destinavam aquele serviço a escravos e a raças ainda não tão sofisticadas que soubessem da existência de maneiras mais fáceis de ganhar a vida; como a tosquia, pensou, de mau humor. Inclinar-se, cortar, endireitar-se, segurar com firmeza o feixe desajeitado, difícil de manejar, percorrê-lo com as mãos em todo o comprimento, arrancar-lhe as folhas, deixá-lo cair numa pilha bem-arrumada, dirigir-se ao feixe mais próximo, inclinar-se, cortar, endireitar-se, cortar, acrescentá-lo à pilha...
O canavial fervilhava de pragas: camundongos, ratazanas, baratas, sapos, aranhas, cobras, vespas, moscas e abelhas. Tudo o que pudesse morder com maldade ou picar de forma insuportável estava ali bem representado. Por essa razão os cortadores queimavam a cana primeiro, preferindo a sujeira de trabalhar com plantas chamuscadas às depredações da cana verde, viva. Mesmo assim eram ferroados, mordidos, cortados. Não fossem as botas e os pés de Luke teriam ficado em pior estado do que as mãos, mas nenhum cortador usava luvas, que atrasavam o trabalho. E o tempo significava dinheiro nesse jogo. De mais a mais, luvas eram coisa de maricas.
Ao pôr-do-sol, Arne ordenou a paralisação do trabalho e foi ver como Luke se saíra.
— Ei, companheiro, nada mau! — gritou, batendo-lhe nas costas. — Cinco toneladas; nada mau para um primeiro dia!
Não era uma longa caminhada até o acampamento, mas a noite tropical caía tão de repente que chegaram no escuro. Antes de entrar, juntaram-se, nus, debaixo de um chuveiro comunitário, e depois, com toalhas enroladas na cintura, entraram no acampamento, onde o cortador incumbido de cozinhar naquele dia já colocara sobre a mesa montanhas do prato em que era especialista. Naquele dia havia bife com batatas, pão sem fermento e rocambole de geléia de frutas; os homens caíram sobre a comida e devoraram tudo, voracíssimos, até à última partícula.
Duas fileiras de camas de ferro se estendiam, uma diante da outra, de cada lado de uma sala comprida, de ferro corrugado; suspirando e maldizendo a cana com uma originalidade que faria inveja a um boiadeiro, os homens derrearam-se nus sobre lençóis não branqueados, tiraram os mosquiteiros das argolas e dali a momentos dormiam, como formas imprecisas debaixo de tendas de gaze.
Arne deteve Luke.
— Deixe-me ver suas mãos. — Inspecionou os talhos que sangravam, as bolhas, os ferrões. — Passe um desinfetante primeiro e depois use este ungüento. E, se quiser um conselho, esfregue-as todas as noites com óleo de coco. Você tem mãos grandes; portanto, se suas costas agüentarem, dará um bom cortador. Daqui a uma semana estará mais rijo e isso doerá menos.
Cada músculo do esplêndido corpo de Luke doía com uma dor separada; ele não tinha consciência de nada a não ser de uma dor imensa que o crucificava. com as mãos enroladas em panos e besuntadas de ungüento, estendeu-se na cama que lhe fora destinada, desceu o mosquiteiro e fechou os olhos sobre um mundo de pequenos buracos sufocantes. Se tivesse imaginado o que estava à sua espera, não teria desperdiçado sua energia com Meggie; ela passara a ser uma idéia murcha, indesejada e mal recebida no fundo de sua mente. Entendeu que não teria mais nada com ela enquanto cortasse cana.
Levou a semana inteira para enrijar e atingir o mínimo de oito toneladas diárias exigido por Arne dos membros da sua turma. Depois, decidiu ser melhor que Arne. Queria o maior quinhão do dinheiro, talvez uma sociedade. Mas queria principalmente ver dirigido a si o olhar que surpreendia em cada rosto à vista de Arne, uma espécie de deus para todos, por ser o melhor cortador de Queensland, o que significava, provavelmente, que era o melhor cortador do mundo. Quando iam para uma cidade no sábado à noite, os homens do lugar não se cansavam de oferecer a Arne copos de rum e cerveja, e as mulheres do lugar esvoaçavam em torno dele como se fossem beijaflores. Havia muitas semelhanças entre Arne e Luke. Vaidosos ambos, gostavam de provocar intensa admiração feminina, mas não passavam da admiração. Não tinham nada para dar às mulheres; davam tudo o que tinham à cana.
Para Luke o trabalho possuía uma beleza e uma dor que se diria que ele esperara toda a vida para sentir. Inclinar-se e endireitar-se e inclinar-se naquele ritmo ritual era participar de um mistério que transcendia a esfera dos homens comuns. Pois, como aprendera observando Arne, fazer soberbamente aquilo era ser membro importante do bando mais selecionado de trabalhadores do mundo; ele poderia caminhar orgulhoso, onde quer que estivesse, sabendo que quase todos os homens que conhecia não durariam um dia sequer num canavial. O Rei da Inglaterra não era melhor do que ele, e o Rei da Inglaterra o admiraria se o conhecesse. Podia olhar com piedade e desprezo para médicos, advogados, escrevinhadores, fazendeiros. Cortar cana ao jeito do homem branco ávido de dinheiro — esse, sim, era o feito maior.
Sentado na beira da cama, sentia inchar os músculos vigorosos e encordoados do braço, contemplava as palmas calejadas e cheias de cicatrizes das mãos, a extensão curtida das pernas belamente estruturadas, e sorria. Um homem capaz de fazer isso e não apenas sobreviver, mas gostar do que fazia, era um homem. E perguntava-se se o Rei da Inglaterra poderia dizer o mesmo.
Passaram-se quatro semanas sem que Meggie visse Luke. Todos os domingos, ela empoava o nariz oleoso, punha um bonito vestido de seda — embora desistisse do purgatório das combinações e das meias — e ficava esperando o marido, que nunca aparecia. Anne e Luddie Mueller não diziam nada, apenas observavam sua animação desaparecer à medida que cada domingo escurecia dramaticamente, como cortina que caísse sobre um palco vazio e bem-iluminado. Não que ela o desejasse; mas acontece que ele era dela, ou ela dele, ou fosse qual fosse a melhor maneira de definir o acordo. Imaginar que ele nem sequer pensava nela quando ela passava os dias ou as semanas esperando, pensando nele, era encher-se de raiva, frustração, amargura, humilhação, tristeza. Por mais que tivesse abominado as duas noites passadas no hotel de Dunny, ao menos então ela ocupara o primeiro lugar nos pensamentos dele; agora, surpreendia-se a desejar realmente que tivesse mordido a língua em vez de gritar de dor. com certeza era isso. O seu sofrimento cansara-o, arruinara-lhe o prazer. Da raiva que sentia por ele, por sua indiferença ao sofrimento dela, Meggie passou ao remorso e acabou atribuindo a si mesma toda a culpa.
No quarto domingo, não se preocupou em vestir-se. Ficou andando pela cozinha, descalça, de short e camiseta, preparando um desjejum quente para Luddie e Anne, que apreciavam essa extravagância uma vez por semana. Ao ouvir o som de passos na escada dos fundos, afastou os olhos do toicinho que chiava na frigideira; durante um momento, limitou-se a olhar para o homenzarrão peludo que assomara à porta. Luke? Aquele era Luke? Parecia feito de rocha, inumano. Mas a efígie atravessou a cozinha, deu-lhe um beijo sonoro e sentou-se à mesa. Ela quebrou alguns ovos na frigideira e acrescentou-lhes um pouco mais de toicinho.
Anne Mueller entrou, sorriu cortesmente, mas, por dentro, sentiu raiva. Sujeito desgraçado, que pretendia ele abandonando a mulher assim por tanto tempo?
— Alegro-me por ver que você se lembrou de que tem uma esposa — disse ela. — Venha para a varanda, venha sentar-se com Luddie e comigo e todos quebraremos o jejum. Luke, ajude Meggie a levar o toicinho e os ovos. Eu levo a travessa com torradas entre os dentes.
Ludwig Mueller nascera na Austrália, mas a ascendência alemã manifestava-se nele claramente: a compleição carnuda e vermelha, que não se dava bem com a combinação de cerveja e sol, a cabeça quadrada e grisalha, de olhos bálticos, de um azul-pálido. O casal gostava muito de Meggie e considerava-se afortunado por haver conseguido os seus serviços. Especialmente grato se mostrava Luddie, vendo Anne muito mais feliz depois que aquela cabecinha de ouro começara a brilhar pela casa.
— Como vai o corte de cana, Luke? — perguntou, enchendo o prato de ovos e toicinho.
— Acreditaria em mim se eu lhe dissesse que gosto disso? — riu-se Luke, enchendo o seu também.
Os olhos astutos de Luddie pousaram no rosto bonito e ele fez um aceno afirmativo de cabeça.
— Acredito. Você tem o temperamento certo e o corpo certo para isso. O trabalho o faz sentir-se melhor do que os outros homens, superior a eles.
Amarrado à sua herança de canaviais, longe da vida acadêmica e sem possibilidades de trocar uma pela outra, Luddie era um estudioso ardente da natureza humana; lia grandes tomos grossos, encadernados em marroquim, que ostentavam nomes nas lombadas como Freud e Jung, Huxley e Russell.
— Eu já estava começando a pensar que você nunca mais viria ver Meggie — disse Anne, espalhando manteiga de leite de búfala na torrada com uma espátula; só assim podiam ter manteiga por ali, mas era melhor do que nada.
— Arne e eu resolvemos trabalhar aos domingos também, durante algum tempo. Amanhã partiremos para Ingham.
— O que quer dizer que a pobre Meggie não o verá com muita freqüência.
— Ela compreende. Não serão mais que dois anos, e ainda teremos o período de inatividade do verão. Diz Arne que poderá conseguir trabalho para mim nas CSR de Sydney e, nesse caso, levarei Meg comigo.
— Por que precisa trabalhar tanto, Luke? — perguntou Anne.
— Quero juntar dinheiro para a minha propriedade no oeste, nos arredores de Kynuna. Meggie não lhe contou?
— Receio que a nossa Meggie não goste muito de falar sobre assuntos pessoais. Conte-nos você, Luke.
Os três, sentados, observavam o jogo de expressões no rosto curtido, forte, no brilho dos olhos tão azuis; desde que ele chegara, antes do desjejum, Meggie não dissera uma palavra a ninguém. E Luke falou, sem se cansar, do maravilhoso país que ficava Atrás do Além; do capim, dos grandes grous cinzentos, chamados brolgas, que andavam com passinhos miúdos, delicados, na poeira da única estrada de Kynuna, dos milhares e milhares de cangurus voadores, do sol quente e seco.
— E um dia destes, logo, logo, um naco de tudo isso será meu. Meg já juntou algum dinheiro e, no ritmo em que estamos trabalhando, não levará mais do que quatro ou cinco anos. Antes até, se eu me contentasse com um lugar mais pobre, mas, sabendo o que posso ganhar cortando cana, creio que cortarei um pouco mais e conseguirei um pedaço de terra realmente decente. — Inclinou-se para a frente, com as grandes mãos cobertas de cicatrizes em torno da xícara de chá. — Sabem que quase ultrapassei a marca de Arne no outro dia? Cortei onze toneladas num dia só!
O assobio de Luddie era genuinamente admirativo, e eles se empenharam numa discussão de marcas. Meggie sorveu o chá preto e forte, sem leite. Oh, Luke! Primeiro eram dois anos, agora já são quatro ou cinco, e quem sabe quantos serão na próxima vez em que ele mencionar um período de anos? Luke gostava daquilo, não havia dúvida possível. Teria ele a coragem de abandonar tudo quando chegasse a ocasião? Teria? E, a propósito, estaria ela disposta a esperar tanto tempo para averiguar? Os Mueller eram boníssimos e o seu serviço estava longe de ser excessivo, mas, para viver sem marido, Drogheda era o melhor lugar. Durante todo o primeiro mês de sua estada em Himmelhoch, não se sentira realmente bem nem um dia sequer; não queria comer, tinha crises dolorosas de diarréia, parecia dominada por uma letargia de que não conseguia livrar-se. Como só estivesse habituada a sentir-se muitíssimo bem, aquele vago mal-estar amedrontava-a.
Depois do desjejum, Luke ajudou-a a lavar os pratos, e, em seguida, levou-a para passear no canavial mais próximo, falando o tempo todo no açúcar e no corte de cana, na bela vida que se levava ao ar livre, no belo grupo de sujeitos que formavam a turma de Arne, no quanto aquilo era diferente da tosquia, e para muito melhor.
Deram meia-volta e tornaram a subir a colina; Luke conduzia-a à gruta deliciosamente fresca debaixo da casa, entre as estacas. Anne a transformara num viveiro de plantas, pusera em pé pedaços de canos de terracota de diferentes tamanhos e larguras, enchera-os de terra e neles plantara espécies rastejantes e pendentes: orquídeas de todas as variedades e cores, avencas, trepadeiras exóticas e arbustos. O solo fofo recendia a pó de serragem; grandes cestos de arame pendiam das pequenas vigas, em cima, cheios de orquídeas, samambaias ou tuberosas; fetos em xaxins de córtice cresciam nas estacas; magníficas begônias, em dúzias de cores brilhantes, floresciam ao redor das bases dos canos. Aquele era o retiro favorito de Meggie, a única coisa de Himmelhoch que ela preferia a tudo o que havia em Drogheda. Pois em Drogheda nunca se poderia plantar tanta coisa num espaço tão pequeno; não havia no ar a umidade suficiente.
— Não é lindo, Luke? Você acha que depois de uns dois anos aqui estaremos em condições de alugar uma casa em que eu possa viver? Morro de vontade de fazer alguma coisa como essa para mim.
— Por que diabo você quer viver sozinha numa casa? Isto não é Gilly, Meg; é o tipo de lugar em que uma mulher sozinha não está segura. Você ficará muito melhor onde está, acredite-me. Não é feliz aqui?
— Tão feliz quanto se pode ser feliz na casa dos outros.
— Ouça, Meg, você agora precisa contentar-se com o que tem até mudarmos para o oeste. Não podemos gastar dinheiro para alugar casas e você viver no bem-bom e ainda por cima economizar. Está-me ouvindo?
— Estou, Luke.
A sua perturbação era tanta que ele não fez o que pretendia quando a levou para baixo da casa, isto é, beijá-la. Em vez disso, pespegou-lhe uma palmada na bunda, que doeu um pouco demais para ser casual, e desceu pela estrada até onde deixara a bicicleta encostada numa árvore. Pedalara trinta e dois quilômetros para vê-la sem gastar dinheiro em passagem de trem e de ônibus, o que queria dizer que teria de pedalar mais trinta e dois na viagem de volta.
— Pobrezinha! — disse Anne a Luddie. — Eu seria capaz de matá-lo!
Janeiro chegou e se foi, o mês mais fraco do ano para os cortadores de cana. Mesmo assim, nem sinal de Luke. Ele falara em levar Meggie a Sydney, mas, ao invés disso, fora a Sydney com Arne e sem ela. Arne era solteiro e tinha uma tia que morava em Rozelle, a uma distância das CSR que se podia percorrer a pé (nada de passagens de bonde, era preciso poupar). No interior dos gigantescos muros de concreto das refinarias, como fortaleza sobre o morro, um cortador com boas relações poderia conseguir trabalho. Luke e Arne passavam o tempo empilhando sacos de açúcar e, nas horas de folga, nadando ou fazendo surfe.
Em Dungloe, com os Muellers, Meggie passou suando em bicas os meses da Chuva, como chamavam a estação das monções. A seca durava de março a setembro e, embora não houvesse exatamente seca nessa parte do continente, em confronto com a Chuva, era divina. Durante a Chuva os céus se abriam e vomitavam água, não o dia todo, mas em acessos e arrancadas; entre os dilúvios, a terra fumegava e grandes nuvens de vapor branco subiam da cana, do solo, da mata, das montanhas.
E à proporção que o tempo passava Meggie sentia uma saudade cada vez maior de casa. Sabia agora que North Queensland nunca seria um lar para ela. Em primeiro lugar, não se habituava ao clima, talvez por haver passado a maior parte da vida num clima seco. Em segundo lugar, odiava a solidão, a falta de amizade, a implacável sensação de letargia. Odiava a vida prolífica dos insetos e répteis que lhe convertiam todas as noites numa verdadeira provação com sapos gigantes, tarântulas, baratas, ratos; nada parecia mantê-los afastados da casa, e eles a aterravam, tão grandes, tão agressivos, tão esfomeados! Odiava sobretudo o dunny, que era não só o termo de gíria para indicar toalete, mas também o diminutivo de Dangloe, para grande e permanente gáudio do povo local, que vivia fazendo trocadilhos com a palavra. Mas um dunny de Dunny deixava qualquer um de estômago virado, pois, naquele clima em ebulição, os buracos na terra estavam fora de cogitação, por causa da febre tifóide e de outras febres entéricas. Em vez de ser um buraco no chão, o dunny de Dunny era uma lata fedorenta de estanho alcatroado e, à proporção que se enchia, começava a fervilhar de larvas e vermes barulhentos. Uma vez por semana substituía-se a lata cheia por outra vazia, mas uma vez por semana não era o bastante.
Todo o espírito de Meggie se rebelava contra a casual aceitação dessas coisas como normais; uma vida inteira que passasse em North Queensland não a reconciliaria com elas. Melancolicamente, no entanto, refletia que, com toda a probabilidade, ali passaria uma existência inteira ou, pelo menos, até que Luke, envelhecendo, já não pudesse cortar cana. Por mais que almejasse voltar a Drogheda e sonhasse com o seu regresso, o orgulho não lhe permitiria confessar à família que o marido pouco ligava para ela; a fazê-lo, preferiria cumprir uma sentença de prisão perpétua, dizia, feroz, a si mesma.
Passaram-se os meses, passou-se um ano e o tempo caminhava, lerdo, para o fim do segundo ano. Só a constante bondade dos Muellers conservava Meggie em Himmelhoch, tentando resolver o seu dilema. Se tivesse escrito pedindo dinheiro a Bob para a passagem de volta, ele o teria mandado no dia seguinte, por telegrama, mas Meggie não tinha coragem de contar à família que Luke a mantinha sem um tostão na bolsa. Só o contaria no dia em que o deixasse para sempre, e ainda não se decidira a dar esse passo. Tudo em sua educação conspirava para impedir que ela o fizesse: a natureza sagrada dos votos matrimoniais, a esperança de ter um filho um dia, a posição de Luke como marido e dono do seu destino. Além disso, havia coisas que vinham da sua própria natureza: o orgulho teimoso, a escrupulosa convicção de que ela era tão culpada quanto ele pela situação. Se não houvesse nada errado nela, Luke teria agido de modo diferente.
Vira-o seis vezes nos dezoito meses do seu exílio, e pensara com freqüência, embora desconhecesse de todo a existência da homossexualidade, que Luke deveria ter casado com Arne, já que vivia com ele e manifestava decidida preferência pela sua companhia. Eles agora eram sócios e andavam de um lado para outro dos dois mil e seiscentos quilômetros de costa, seguindo a colheita da cana e vivendo, ao que tudo indicava, exclusivamente para o trabalho. Quando Luke ia visitá-la, não tentava nenhuma espécie de intimidade. conversava uma ou duas horas com Luddie e Anne, levavaa para dar uma volta, dava-lhe um beijo amistoso e partia de novo.
Os três, Luddie, Anne e Meggie, passavam lendo todo o tempo livre. Himmelhoch possuía uma biblioteca bem maior que as poucas estantes de Drogheda, muito mais erudita e picante, e Meggie aprendeu muita coisa enquanto lia.
Num domingo de junho de 1936, Luke e Arne apareceram juntos, satisfeitíssimos consigo mesmos. Tinham vindo, diziam, proporcionar a Meggie um verdadeiro regalo, pois iam levá-la a um ceilidh
À diferença da tendência geral que tinham os grupos étnicos na Austrália de espalhar-se e australianizar-se, as várias nacionalidades da península de North Queensland — chineses, italianos, alemães, escoceses e irlandeses. Os quatro grupos que formavam o grosso da população —, tendiam a preservar com ferocidade suas tradições E quando os escoceses organizavam um ceihdh, todo escocês, por mais longe que morasse, fazia questão de estar presente
Para assombro de Meggie, Luke e Arne apareceram usando saiote escocês e estavam, pensou ela ao recobrar o raciocínio, positivamente magníficos. Nada é mais másculo num homem que um saiote, pois oscila, com passo largo e decidido, numa agitação de pregas atrás e permanece perfeitamente imóvel na frente, ao passo que a bolsa de pele protege as partes, e, abaixo da bainha que chega à metade do joelho, vêem-se as pernas fortes e bonitas realçadas por meias enxadrezadas e sapatos afivelados. Como estivesse muito quente, não usavam o manto nem o paletó, contentando-se com uma camisa branca aberta no peito, de mangas arregaçadas acima dos cotovelos...
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