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PERDIDA - Parte II
Series & Trilogias Literarias
15
Outra Aphrodite
Aphrodite aumentou o seu nível de arrogância como escudo contra o seu nervosismo. Ela não precisou dizer nada, simplesmente alterou a sua expressão de perversidade de repousada para ativa, e então os soldados, os Guerreiros e até as Sacerdotisas começaram a abrir caminho para ela passar como se tivesse uma doença contagiosa.
Eu tenho uma coisa pior – o desprezo de Neferet. E todos sabem disso.
Aphrodite tinha decidido rapidamente que a sua performance iria se desenrolar melhor no meio do auditório cheio. Então, em vez de ir para o palco para servir como um atraente cenário para qualquer drama que Neferet tinha preparado para os seus subordinados, ou de se juntar às outras Sacerdotisas amontoadas sentadas no local reservado a elas no fundo, no seu jeito típico de cordeirinhos, Aphrodite foi até o centro do auditório, encontrou o assento que ela queria na fileira da frente perto do corredor e fuzilou com os olhos o ocupante da cadeira, que apressadamente se retirou dali.
Ela não agradeceu a ele, apenas se sentou, e então ficou se preocupando. Aphrodite nunca tinha feito nada como aquilo que estava planejando. Ela não iria realmente fazer – não até Stark, aquele babaca arrogante, fazer aquela piadinha sobre ela se juntar ao Exército Vermelho. Então, de verdade, o que ela estava prestes a fazer não era exatamente culpa dela. Era culpa de Neferet. E, provavelmente, de Stark também. Mas definitivamente, definitivamente, não era culpa de Aphrodite.
Ela nunca teve a intenção de contar o resto da sua visão para Neferet. Aphrodite não tinha contado todos os detalhes de nenhuma de suas visões para Neferet desde que o Exército Vermelho havia massacrado Lenobia e Travis, e também os cavalos. Aphrodite odiava pensar nos cavalos morrendo. Ouvir os seus gritos em seus pesadelos já era ruim o bastante.
Culpa minha. Aquilo foi culpa minha. Eu deveria saber! Ela juntou as mãos com força sobre o colo e se empertigou na cadeira. Qualquer um que olhasse para ela – e um monte de gente estava sempre olhando para ela – veria apenas a linda, jovem e indiferente Profetisa parecendo confiante e calma. Ninguém veria suas mãos tremendo. Ninguém veria sua alma estremecendo. Ninguém veria as suas dúvidas e medos. Essa era uma coisa positiva que a louca da sua mãe tinha ensinado a ela – mostrar apenas um rosto em público, e esse rosto deveria ser perfeito e estar sob controle o tempo todo, independentemente de ela realmente estar se sentindo perfeita ou sob controle.
Aphrodite ficou sentada imóvel, respirando devagar e em um ritmo estável, enquanto se preparava para o que estava por vir, mas, em meio à sua respiração lenta, ela sentiu uma brisa de morte e podridão. Incomodada com aquele cheiro nojento, ela levantou o pescoço e olhou em volta, farejando discretamente, e, é claro, sentado duas fileiras atrás dela, em um assento do corredor como o dela, estava aquele jovem vampiro vermelho que Stark estava pajeando. Aphrodite lançou um olhar de irritação para o Cara do Arco. Vampiros vermelhos não tinham permissão para ficar nos assentos da frente do auditório para não empestear o ambiente. Somente oficiais do Exército Vermelho podiam comparecer às reuniões de briefing, e mesmo assim eles tinham que ficar no mezanino. No entanto, ali estava Stark, todo cheio de si com seu uniforme preto de general, quebrando as regras. De novo. E deixando um garoto vampiro vermelho fedido sentar bem ali do lado dele.
Aphrodite jurou a si mesma que, quando ela caísse nas graças de Neferet de novo, ia fazer tudo que podia para minar a influência de Stark sobre a Grande Sacerdotisa. Não porque ele era particularmente perigoso, mas sim porque ele era particularmente irritante.
– Atenção! Sen...tido! – comandou Artus, o Mestre da Espada da Morada da Noite de Tulsa.
Assim que todos se levantaram, Aphrodite desviou os olhos de Artus. O Mestre da Espada de Neferet não era apenas feio, velho e cheio de cicatrizes. Havia algo de podre em relação a ele – algo que deixava Aphrodite desconfortável em um nível visceral.
E então Neferet subiu ao palco, atraindo a atenção de todos no auditório lotado. Ela estava usando um vestido de seda longo e aderente da cor de sangue fresco. Sobre o seu seio esquerdo, em um bordado prateado requintado, estava a imagem de Nyx envolvendo a lua crescente com as mãos. A única joia que ela usava era um diadema de diamantes e rubis. Um dos rubis pendia da delicada coroa como uma lágrima grossa para tocar o topo da lua crescente safira tatuada no meio de sua testa.
Aphrodite precisava reconhecer – Neferet sabia como manter a atenção de um bando de machos. Ela parecia uma deusa do cinema em carne e osso, o que era mais uma prova de uma das maiores decepções da vida de Aphrodite: nem tudo que parecia cheio de beleza e luz do lado de fora era realmente cheio de beleza e luz por dentro.
– Podem se sentar – Neferet disse depois de chegar à sua tribuna de vidro.
Aphrodite sentou e tentou não revirar os olhos. Cada instante do briefing de Neferet havia sido roteirizado por ela – desde o que ela estava vestindo até o tempo em que fez os soldados ficarem em pé, incluindo a tribuna translúcida, que dava à sua audiência uma visão desimpedida do seu corpo perfeito.
Não que Aphrodite pudesse culpá-la por isso. Neferet era bonita e, como outra pessoa muito bela, Aphrodite sabia como era fácil manipular os machos. O jeito é usar o que a gente tem!
Então Neferet começou o seu discurso, e Aphrodite não tinha mais energia para desperdiçar em nada, exceto decidir quando a sua própria performance deveria começar.
– Eu venho diante de vocês hoje com notícias muito perturbadoras. Acredito que a maré da guerra está virando.
Houve sons de concordância alegre entre a multidão de oficiais e soldados presentes.
– Vejo que os meus exércitos me entenderam mal, o que eu acho ofensivo. A maré não está virando a nosso favor! Nenhum dos meus oficiais entende isso? – A sua voz repleta de raiva ecoou pelas paredes, eletrificando o ambiente com uma carga de poder e não deixando nenhuma dúvida sobre o nível de irritação de Neferet. A sua única resposta foi o ruído de corpos ansiosos.
E então um dos seus generais se levantou. Aphrodite abafou uma bufada sarcástica. É claro que Loren Blake ia sentir a necessidade de dizer alguma coisa. Deusa, será que esse vampiro puxa-saco vai parar de falar algum dia?
– Grande Sacerdotisa, permissão para falar?
– É claro, General Blake. Estou sempre disposta a refletir sobre os sábios conselhos de meus oficiais.
O sorriso de Blake era íntimo demais para a ocasião, mas todo mundo sabia que os generais de Neferet também eram frequentemente seus amantes – e praticamente todos os machos na sala desejavam ser amantes dela. Então, tanto fazia.
– Grande Sacerdotisa, você sabe que não quero ser desrespeitoso. Sou seu servo leal, mas talvez os seus oficiais não entendam simplesmente porque o que observamos no campo de batalha é o oposto do que está dizendo. As milícias dos nossos estados vizinhos pararam de atravessar para o nosso território. Não tem havido revoltas importantes de humanos dentro da área sob nosso controle há meses. O único problema real que ainda temos é com a maldita Resistência, e nós estamos trabalhando duro para rastrear cada um dos seus membros e exterminá-los. Na verdade, se a maré virou, parece que foi a nosso favor.
– Pode se sentar, general Blake – Neferet disse com um falso sorriso afetuoso. – O que você diz pode parecer verdadeiro para alguém com a sua limitada conexão com Nyx, razão pela qual a nossa sociedade nunca será governada por homens. Eles não podem ser tão íntimos da Deusa como as suas Sacerdotisas. Principalmente a sua única e exclusiva Grande Sacerdotisa: eu. Sabe, Nyx tem me mostrado outra coisa. Os nossos estados vizinhos e os humanos que os infestam desistiram, de fato, de suas tentativas de entrar no nosso território e tomar o que é nosso. Mas eles não desistiram em paz. Eles estão tramando juntos para nos derrubar! – Neferet abriu os braços dramaticamente, fazendo com que seus seios perfeitos fossem pressionados contra a seda do seu vestido e os mamilos ficassem totalmente delineados e visíveis.
Aphrodite achou que aquela pose foi um toque excelente, já que conseguiu atrair todos os olhares masculinos da sala para os peitos dela. E ainda fez com que todas as mentes masculinas da sala ficassem confusas quando o sangue nos cérebros deles desceu correndo para o órgão que de fato os controlava.
Houve um movimento atrás dela, e Aphrodite virou a cabeça a tempo de ver Stark se levantar.
– Grande Sacerdotisa, posso ter permissão para falar?
– Merry meet, General Stark. Vou ouvir o que você tem a dizer.
– Eu também tenho sentido que algo está errado. Tenho tentado descobrir o que é, e hoje eu recebi informações de uma fonte improvável. Acredito que isso se alinha ao que Nyx tem mostrado a você.
Neferet deu aquele sorriso que Aphrodite gostava de chamar de meio meloso, meio vadia, e a Profetisa segurou outra bufada. Pelo visto, o Cara do Arco ia se dar bem esta noite.
– Eu sabia que podia contar com você, General Stark. Por favor, compartilhe as suas informações conosco.
Então Stark chocou Aphrodite e o auditório inteiro ao gesticular para que o garoto vampiro vermelho fedido que estava largado ao lado dele se levantasse.
O garoto deu um pulo de surpresa e então se levantou desajeitadamente, ficando em posição de sentido totalmente imóvel.
– General Stark, por que um jovem soldado vampiro vermelho está aqui na parte da frente do meu auditório? – A voz de Neferet soava pensativa, e ela pareceu mais curiosa do que incomodada.
– Porque ele é a minha fonte de informações, e ele não é um soldado. Ele é um tenente. Tenente Heffer, da unidade do General Dominick.
Os sussurros dos soldados ao redor fizeram Aphrodite lembrar de velhas mulheres fofoqueiras, e ela se perguntou quem diabos eram esse garoto e esse general e por que eles provocaram tamanha reação da multidão.
– General Dominick? O meu general do Exército Vermelho que está desaparecido? – Neferet perguntou.
Aphrodite piscou os olhos, surpresa. Ela não tinha ouvido falar em nenhum general desaparecido, mas raramente prestava atenção ao que estava rolando com os animais que compunham o nojento Exército Vermelho de Neferet. Eles eram todos um tédio. E fedorentos.
– Sim, Grande Sacerdotisa. O General Dominick desapareceu com um pelotão inteiro de soldados, e eles ainda não foram encontrados. Exceto este tenente, e eu acredito que ele pode saber o que aconteceu com a unidade dele. – Stark assentiu encorajando o tenente, que estava em posição de sentido tão imóvel que Aphrodite praticamente podia ver uma vara enfiada no meio do traseiro dele. – Gostaria de pedir sua permissão para que o Tenente Heffer relate as informações a você.
Os olhos cor de esmeralda de Neferet analisaram o garoto vampiro vermelho que estava parado feito pedra ao lado de Stark.
– Você disse que o nome dele é Tenente Heffer?
– Sim, Grande Sacerdotisa – Stark confirmou.
– Ele parece estranhamente familiar. General Stark, você já usou esse vampiro vermelho como informante antes?
Aphrodite teve vontade de se levantar e dizer que era mentira. Não existia qualquer possibilidade de Neferet distinguir esse vampiro vermelho ou qualquer outro. Aphrodite já tinha ouvido a Grande Sacerdotisa comentar várias vezes como o Exército Vermelho era um mal fétido e nojento, mas necessário – com o qual ela queria ter o mínimo de contato possível. Ela não reconheceria nenhum soldado nem se ele passasse por ela no corredor todos os dias durante um ano todo.
– Não, Grande Sacerdotisa, não usei, mas acredito que você deva ouvir o que ele tem a dizer.
– Hum. A familiaridade é estranha. – Neferet encolheu seus belos ombros. – Muito bem, por que não? O tenente pode falar.
Como o garoto não disse nada, Stark o incentivou.
– Prossiga. Conte à Grande Sacerdotisa aonde o seu general estava indo e o que ele disse antes de ir embora.
Aphrodite viu que o garoto engoliu em seco – uma, duas, três vezes. Quando começou a falar, ele usou frases curtas e entrecortadas em virtude do nervosismo e ficou olhando fixamente para a frente.
E, enquanto ele falava, Aphrodite arregalou os olhos de choque.
– Grande Sacerdotisa Neferet, o meu general tinha informações de que a milícia do estado do Novo México estava em movimento. Ele ouviu dizer que planejavam atravessar o Texas e entrar em Oklahoma usando o Rio Vermelho. O general estava a caminho de Elmer, em Oklahoma, para preparar uma emboscada para eles. Essa é toda a informação que eu tenho, Grande Sacerdotisa. Minha patente não era significante para eu saber do resto.
Aphrodite mal escutou a resposta satisfeita de Neferet. Ela estava ocupada demais encarando o garoto que tinha acabado de falar – o tenente vampiro vermelho cuja voz ela reconheceu como a do mesmo cara que estava no jardim de meditação na noite anterior!
Exceto que aquele garoto tinha conversado normalmente, como um vampiro de verdade, e não como uma máquina de comer vermelha e fedorenta.
E então outra coisa a pegou de surpresa.
Na noite passada, ele não estava fedendo. Eu sei que ele não estava. Sou muito sensível ao jeito que essas coisas fedem e eu teria percebido.
Alguma coisa completamente bizarra estava rolando, o que parecia um momento excelente para Aphrodite começar a sua encenação. Ela olhou de novo para o palco. Neferet ainda estava tagarelando efusivamente sobre Stark ter confirmado a sua estranha neurose. Então, quando Aphrodite se levantou com dificuldade, a Grande Sacerdotisa foi pega totalmente desprevenida e parou de falar no meio da frase.
Aphrodite entrou cambaleando no corredor. Ela colocou uma mão na testa, como se estivesse tentando evitar que a sua cabeça explodisse. A outra mão ela estendeu na direção de Neferet de modo suplicante.
– Neferet! – Aphrodite ofegou e cambaleou como se o chão estivesse ondulando sob seus pés. – Eu estou vendo... estou vendo...
Ao redor, os homens começaram a falar de modo nervoso.
– Silêncio! A minha Profetisa está tendo uma visão! – Neferet saiu de trás da tribuna e foi até a beira do palco, bem na frente de Aphrodite. – Fale, minha Profetisa! A sua Grande Sacerdotisa está aqui e vai ouvir!
Aphrodite gemeu e então conteve um grito. Segurando a cabeça com força, ela colocou toda a energia na sua voz para que ela chegasse até os cantos mais remotos do auditório.
– Estou vendo um campo. Nele, o trigo de inverno foi cortado em enormes fardos redondos. Há vampiros azuis lá. Eles estão escavando os fardos e colocando novatos, vampiros e humanos dentro deles para tirá-los de lá clandestinamente. Eles são a Resistência!
– Onde, Aphrodite, minha querida? Olhe em volta... onde você está?
– O Exército Vermelho está lá! Eles estão atacando! Eles estão nos matando! Eles estão nos comendo! – Aphrodite choramingou, soluçando.
– Sei que é difícil, mas concentre-se! Foco! Você é os olhos e os ouvidos da Deusa. Diga onde você está!
– Sapulpa! Não! Não, não, não, não! Afaste-os de nós! Eles estão nos matando! – Aphrodite cambaleou e soluçou.
A voz de Neferet cortou o choro de Aphrodite.
– Profetisa! Em nome de Nyx, concentre-se! Onde você está em Sapulpa?
– Estou vendo uma placa! Ela diz Lone Star Road! Estamos em um campo em Sapulpa ao lado da Lone Star Road, e nós estamos sendo mortos!
Então Aphrodite respirou fundo e gritou com toda a força antes de fechar os olhos e fingir um desmaio espetacular.
Outro Kevin
Kevin se mexeu por instinto. Ele se atirou para a frente, estendeu o braço e segurou Aphrodite antes que ela atingisse o chão. Ao redor dele, o auditório explodiu em comoção, mas, enquanto envolvia Aphrodite em seus braços, parecia que eles estavam suspensos em uma pequena bolha de silêncio.
Os belos olhos da Profetisa piscaram e se abriram. E então se arregalaram em choque. Ela virou a cabeça na direção de Kevin para que ninguém mais a ouvisse e sussurrou baixinho para ele.
– Era você! Na noite passada no jardim. Era você!
– Shhh, relaxe. Estou aqui – Kevin a tranquilizou.
– Afaste-se de mim! – ela sussurrou. – Hoje você está fedendo, mas com certeza não estava na noite passada. E que merda, você está puxando o meu cabelo!
O olhar dele encontrou o dela. Aphrodite não estava machucada – isso era óbvio. E ela definitivamente não estava agindo como se tivesse acabado de desmaiar. Então Kevin entendeu a verdade.
– Você não teve uma visão! – ele sussurrou.
– Tive sim! – Ela manteve a cabeça virada, quase encostada no peito dele, cuidando para que ninguém mais a ouvisse. – Só que não hoje. Quem é você para julgar? Você nem é um vampiro vermelho de verdade!
– Sou sim! Só não sou do tipo com quem você está acostumada.
– Aham, sei. Neferet sabe o que você está tramando?
Em vez de responder, Kevin disparou a mesma pergunta para ela.
– Neferet sabe o que você está tramando? Que você está escondendo visões dela?
– Prove, então. Se você acha que alguém vai acreditar mais em um vampiro vermelho do que em uma Profetisa de Nyx, você é tão burro quanto o resto da sua espécie fedorenta. – Aphrodite se virou nos braços de Kevin e gritou em pânico enquanto se debatia para se livrar dele. – Aaaaah! Não me coma! Tire suas mãos de mim! Socorro!
– Deixe ela comigo, Tenente. – Stark estava ali, empurrando Kevin para o lado e ajudando Aphrodite a se levantar.
No entanto, ela se afastou de Stark, recusando a sua ajuda e cambaleando na direção do palco e de Neferet.
– E-eu falei algo valioso, Grande Sacerdotisa? – a voz de Aphrodite ainda ecoou por todo o auditório, principalmente porque a multidão tinha calado a boca e estava olhando embasbacada para ela.
Neferet foi apressada até a beira do palco e se abaixou para pegar as mãos de Aphrodite.
– Sim! Você foi muito bem, querida! Eu sabia que Nyx me enviaria um sinal, e sou realmente abençoada por ela ter me enviado dois sinais em um só dia. – A Grande Sacerdotisa soltou uma das mãos de Aphrodite, mas continuou segurando a outra ao encarar o auditório, fazendo parecer que ela estava levantando o braço da Profetisa em uma saudação de vitória. – Nós sabemos que precisamos enviar nossos soldados para um campo em Sapulpa ao lado da Lone Star Road. – Ela dirigiu seu sorriso brilhante para Aphrodite. – Você pode dizer quando a batalha vai acontecer?
– Não, Neferet. É impossível dizer, a menos que haja um relógio na minha visão ou que eu veja a lua de relance, mas as minhas visões normalmente conseguem prever eventos que acontecem dentro de apenas alguns dias. Eu também não sei dizer exatamente qual campo na Lone Star Road é o campo específico em que a Resistência estará escondendo novatos em fardos de feno. As minhas visões são caóticas demais. Grande Sacerdotisa, sinto muito por não poder ser mais precisa – Aphrodite disse, e Kevin a viu fazer graciosamente uma reverência para Neferet, com a cabeça abaixada. Ela realmente parecia sentida e muito, muito bela.
Kevin sabia que o que ele estava assistindo era uma encenação completa – pelo menos da parte de Aphrodite. A capacidade de atuação dela é impressionante. Ela poderia ser uma estrela até maior do que Erik Night.
– Você fez o seu papel maravilhosamente. E isso é fácil de consertar. – O sorriso de Neferet abarcou o auditório repleto de soldados. – Hoje o General Stark vai levar soldados e oficiais do Exército Vermelho até Sapulpa, onde eles vão localizar a infestação da Resistência e acabar com os traidores. Minha Profetisa abençoada pela Deusa, a adorável Aphrodite, vai se juntar ao General Stark e ao Exército Vermelho nessa missão de combate. – Neferet abaixou os olhos para Aphrodite fazendo cara de santa. – Com certeza você vai reconhecer o campo certo quando vê-lo, não vai, minha querida?
Kevin viu o rosto de Aphrodite empalidecer para um branco de náusea, e ele também sentiu nojo junto com ela. Aphrodite havia encenado a sua visão para que Neferet não cumprisse a ameaça que havia feito na noite passada, a de forçá-la a se juntar ao Exército Vermelho, e mesmo assim a Grande Sacerdotisa deu um jeito de apunhalar sua Profetisa pelas costas. Aphrodite abriu e fechou a boca. Kevin podia ver que era difícil para ela responder e ele compreendeu perfeitamente – ele entendia o que se passava na cabeça dela. Se dissesse que não podia ajudar, Aphrodite iria decepcionar Neferet em público – e ninguém fazia isso sem sofrer sérias consequências. Neferet já havia decidido enviar Aphrodite para o Exército Vermelho. Ela apenas usou a visão de Aphrodite para fazer isso parecer lógico em vez de uma crueldade.
– Vou fazer o meu melhor, Neferet – Aphrodite disse sem expressão.
E eu vou fazer o meu melhor para garantir que você fique protegida, Kevin acrescentou silenciosamente.
– É claro que vai! – Neferet soltou a mão de Aphrodite e abriu amplamente os braços, projetando-os na direção do nível do mezanino e dos oficiais do Exército Vermelho reunidos ali. – Oficiais do Exército Vermelho, vocês estão satisfeitos que a minha jovem e adorável Profetisa vai se juntar a vocês?
– Sim! – a resposta deles foi mais um urro do que uma resposta.
Os olhos de todos se levantaram para contemplar, a maioria em desgosto, a horda ruidosa e fedorenta, mas Kevin manteve o olhar fixo em Aphrodite. Ela parecia completamente aterrorizada.
Como se sentisse que era observada por Kevin, os olhos de Aphrodite encontraram os dele.
Está tudo bem. Eu te protejo. Kevin pronunciou as palavras para ela só com a boca, sem emitir som.
Aphrodite se espantou levemente quando entendeu o que ele disse. Então ela revirou os olhos para ele e fixou de novo no rosto a sua bela máscara de indiferença, enquanto Neferet continuava a falar.
– Vejam, eu sabia que a minha Profetisa iria levantar o moral. Oficiais dos meus Exércitos Vermelho e Azul, vocês vão fazer o seu melhor para me servir porque, fazendo isso, vocês servem a nossa benevolente Deusa da Noite, Nyx. E agora, General Stark, por favor, reúna os seus soldados. Preparem-se. E então vão até Sapulpa e acabem com esses traidores!
– Sim, Grande Sacerdotisa! – Stark respondeu, e o auditório vibrou em concordância.
Neferet levantou uma mão, e a sala ficou em silêncio.
– E quanto ao restante dos meus generais, quero que vocês me encontrem na Sala de Conselho para discutirmos a fundo o que Stark e eu suspeitamos, e como eu pretendo que nós derrotemos essa nova onda de inimigos. Não vamos ficar sentados de braços cruzados esperando que nos queimem enquanto dormimos. Nós vamos encontrá-los e derrotá-los. Todos eles. Não hoje. Não amanhã. Mas eu prometo a vocês que, quando nós lutarmos contra essa nova onda de inimigos, será com mais poder do que qualquer exército de vampiros já exerceu na história. Seremos vitoriosos!
O auditório comemorou ruidosamente, e Kevin achou que iria vomitar. Era mentira! Tudo que ele tinha dito sobre o Novo México e a sua milícia era mentira! Ele só queria fazer o exército desviar a sua atenção do quartel-general da Resistência, mas mesmo assim eles estavam indo para Sapulpa e para os campos logo abaixo da sua montanha.
E o poder do qual Neferet estava falando – Kevin sabia o que era. Ela ia munir os seus vampiros com armamentos humanos.
Neferet tinha que ser impedida.
Neferet levantou a mão graciosamente, e a sala ficou em silêncio.
– Tenho outro anúncio que sei que vai deixar meus oficiais muito entusiasmados. No próximo final de semana, está marcado o jogo de futebol americano entre a Universidade Estadual de Oklahoma e a Universidade de Oklahoma para o grande clássico dos Cowboys contra os Sooners. Bom, eu detesto esperar, não é? – A multidão fez barulhos de concordância. Neferet sorriu. – Sim, eu sabia que vocês entenderiam! Foi por isso que eu insisti para que o jogo acontecesse neste final de semana em Tulsa, bem aqui perto, no Estádio Skelly, da Universidade de Tulsa, no dia do Ano-Novo. Não será uma celebração incrível? A Universidade Estadual de Oklahoma e a Universidade de Oklahoma certamente acham que sim. – Ela fez uma pausa, e o seu sorriso se encheu de malícia. – Ou pelo menos eles acharam depois que fiz a eles uma oferta que não conseguiram recusar, e a Universidade de Tulsa, é claro, ficou muito satisfeita em acomodar o meu pequeno pedido deste feriado.
Mais uma vez, o auditório irrompeu em urros efusivos, mas desta vez alguns soltaram o grito de guerra “Boomer Sooner”6 e outros ficaram fazendo aquele gesto louco da mão de arminha disparando, típico dos torcedores da Universidade Estadual de Oklahoma.
Eu tinha esquecido totalmente que é quase Ano-Novo, Kevin pensou. E ele podia imaginar facilmente a “oferta que eles não conseguiram recusar”. Atletas universitários – e as líderes de torcida, a banda e os torcedores que iam junto com eles – eram protegidos da fome do Exército Vermelho desde que pudessem entreter os vampiros em geral e Neferet em particular. Ela não tinha feito uma oferta. Ela tinha feito uma ameaça mortal, e as universidades responderam do único jeito que conseguiam para proteger os seus estudantes.
– Merry meet, merry part e merry meet again,7 minhas leais Sacerdotisas, Guerreiros e soldados, e que as bênçãos de Nyx estejam com todos vocês! – Neferet encerrou o briefing sob um alvoroço de aclamação.
Kevin viu Aphrodite sair apressada até as escadas que levavam ao palco e seguir Neferet, embora a Profetisa devesse ter raciocinado melhor. Uma vez que Neferet dava uma ordem, ela sempre seguia até o final – não importavam as consequências. Todos os oficiais em ambos os exércitos sabiam que a única coisa maior do que o ego de Neferet era o seu orgulho.
– Tenente, você pode vir comigo também, já que não tem mais uma unidade.
Kevin se virou e viu o General Stark analisando-o com uma expressão indecifrável no rosto.
Ele ficou em posição de sentido imediatamente.
– Sim, senhor! É uma honra, senhor!
– Não fique aí parado só de queixo caído para Aphrodite. Siga-me.
Kevin seguiu Stark enquanto ele abria caminho para sair do auditório lotado. Quando eles chegaram ao corredor, o Tenente Dallas estava lá, esperando.
– E aí, General. Isso que você acabou de fazer aí dentro foi uma loucura do cacete, hein?
– Dallas, tente não falar por um tempo. Eu preciso pensar. E, enquanto estou pensando, reúna um pelotão de vampiros vermelhos e os seus oficiais. Vou requisitar caminhões suficientes para um comboio até Sapulpa. Diga aos oficiais que nós vamos sair às 2200 horas8 pontualmente – Stark deu uma olhada para Kevin. – Ah, e ele vai com a gente também.
– Você quer dizer que ele vai se juntar ao pelotão de vampiros vermelhos que vai partir hoje?
– Não, eu estou dizendo que ele vai com a gente. Comigo. No meu veículo.
– Pelas tetas de Nyx, General! Ele até consegue formar algumas frases, mas ainda é apenas uma máquina de comer. Tem certeza de que vai levar ele junto com a gente? Ele vai deixar o Hummer todo fedido.
Desta vez, Kevin não teve vontade de dar um soco em Dallas. Não porque ele gostasse do garoto, porque ele definitivamente não gostava, mas porque Stark havia acabado de dar a ele mais esperança do que tinha tido desde que Vovó Redbird o deixou na noite anterior.
– Tenente, você está questionando a minha ordem?
Dallas voltou atrás rapidamente.
– Claro que não, senhor. Só estava checando se ouvi direito.
– Você ouviu direito. Ah, e, aparentemente, Aphrodite vai se juntar a nós também. Então, certifique-se de pegar como nosso veículo líder aquele Hummer que tem problema de aquecimento. – Stark piscou para Dallas.
– Aaah, agora entendi! – Dallas riu. – Você quer irritar Aphrodite. Imagino que eu saiba do lado de quem ela vai sentar, certo?
– Tenente Dallas, eu pedi para você imaginar qualquer coisa? – Stark perguntou.
– Não, senhor, não pediu.
– Então siga as minhas ordens. Agora.
– Sem problemas. Como quiser, general. – Dallas deu um olhar de desdém para Kevin. – Você pode vir comigo. Só não fique contra o vento.
– Hum, perdão, General Stark, senhor – Kevin começou.
– Sim, o que é?
– Senhor, perdão, mas eu preciso me alimentar antes de partirmos – ele falou rapidamente.
– Claro que precisa. Que pé-no-saco – Dallas resmungou.
Stark olhou feio para Dallas, mas se virou para responder.
– Você tem algum tempo. Faça o que precisa fazer e depois junte-se ao comando do comboio às 2200 horas.
– Sim, senhor!
Kevin saiu apressado – seguindo na direção da sala pequena e suja que a Morada da Noite chamava de Cantina Vermelha. Na verdade, era apenas um velho depósito caindo aos pedaços que havia sido convertido em um lugar onde humanos drogados esperavam para serem utilizados como refeições. Assim que Kevin saiu do campo de visão de Stark e de Dallas, no entanto, ele mudou de direção, puxando o capuz sobre a cabeça e saindo rapidamente para fora pela porta mais próxima.
Ele não fez nenhuma pausa. Ele caminhou rápido – como se soubesse exatamente para onde estava indo. E ele sabia. Ele sabia o que precisava fazer. Debaixo do capuz, ele ergueu os olhos para o céu.
– Venha! Venha! Pássaro, onde você está? Facilite aí, pode ser? E não me obrigue a fazer isso.
Kevin continuou caminhando na direção leste pelos jardins da escola. Ele evitou as partes mais iluminadas da grande área de gramado e tentou ficar visível enquanto ia de árvore em árvore, mantendo o olhar voltado para o alto.
Quando ele chegou ao muro leste e ao alçapão escondido, misturou-se às sombras ao lado dele. O seu olhar varreu o jardim da escola. Havia vampiros e novatos visíveis, mas estavam todos bem distantes e apressados – sem dúvida, preparando-se para massacrar alegremente algumas pessoas inocentes. Ele olhou de novo para o céu. Nada. Nenhum maldito pássaro.
– Merda!
Sentindo-se pesado com um mau pressentimento, Kevin pressionou o fecho escondido no muro e então saiu furtivamente.
6 Grito de guerra do time da Universidade de Oklahoma. (N.T.)
7 Merry meet, merry part e merry meet again é uma saudação pagã que significa “feliz encontro, feliz partida e feliz reencontro”. (N.T.)
8 No horário militar, 22 horas. (N.T.)
16
Outro Kevin
Assim que estava do lado de fora do muro, Kevin procurou se acalmar.
– Ok, pense um pouco. Primeiro, confira o céu de novo. – Kevin procurou pelo céu da noite, mas, se o corvo estava em algum lugar lá em cima, era impossível vê-lo contra a escuridão. Kevin lembrou que Anastasia disse que Tatsuwa tinha uma excelente visão, então ele se afastou um pouco do muro e balançou os braços sobre a cabeça.
Nenhum sinal daquele maldito pássaro.
– Certo. Plano B. Que diabos eu ainda tenho que as criaturas possam querer? – Ele procurou dentro da bolsa quase vazia. Todo o sangue tinha acabado, mas ainda haviam sobrado dois cookies. Havia também o vidro daquela gosma de sangue nojenta. – Bom, espero que eles queiram uma dessas duas coisas. – Ele se aproximou mais do muro para se esconder nas sombras e então fez o chamado. – Espíritos do ar da Magia Antiga, eu sou Kevin Redbird e, com o poder do meu sangue e o poder que Nyx me concedeu, eu chamo vocês para mim! De novo!
Com pequenos barulhinhos de estouro, os espíritos de ar se materializaram ao redor dele.
– Garoto Redbird! Qual pagamento você traz para nós? Qual tarefa gostaria que realizássemos?
Kevin achou que estava falando com o mesmo espírito que havia aparecido quando ele fez a invocação na noite anterior, mas não tinha certeza. Ele sorriu e tentou parecer mais entusiasmado do que nervoso.
– E aí? Obrigado por virem de novo. Fico muito grato mesmo.
– Qual é a tarefa e qual é o nosso pagamento?
– Ok, bom, eu não tenho muito tempo para conversa fiada de qualquer jeito. O que eu preciso é que vocês encontrem um corvo chamado Tatsuwa. Ele pertence à Sacerdotisa vampira da montanha onde vocês vieram até mim pela primeira vez. Podem fazer isso?
“Há muito que podemos fazer
Se o pagamento formos receber.”
Kevin relaxou um pouco quando a voz do espírito começou o ritmo musical que marcava o começo de um acordo.
– Ok, bom, eu posso dar um pouco do meu sangue a vocês. Ou eu tenho mais dois cookies daqueles que vocês gostaram tanto ontem.
“Se você quer a tarefa realizar
O seu pagamento não pode nos entediar
Deve fazer todo o coração cantar!”
– Belezinha. – Ele enfiou a mão na bolsa e pegou o vidro de gosma de sangue fedida. – Que tal isto? É sangue de vampiro vermelho.
A reação do espírito foi instantânea. Ela aumentou de tamanho. Os seus olhos se arregalaram e ela mostrou os dentes, expondo presas terrivelmente afiadas.
– Isso é uma abominação, não um pagamento!
Kevin rapidamente colocou o vidro de volta na bolsa.
– Ei, ok, ok, eu entendi. Eu também acho isso nojento. Desculpe. Eu simplesmente não sei muito sobre espíritos de ar. Hum, por que você não me diz o que gostaria como pagamento?
Isso acalmou o espírito, e ela voltou a ter mais ou menos o tamanho de um beija-flor e a aparência de um cruzamento entre um inseto grande e uma mulher alada muito pequena. Os outros espíritos fizeram um círculo ao redor dela, sussurrando naquela linguagem estranha que usavam, quase parecida com a do gorjeio de pássaros. Quando terminaram de falar, o grupo inteiro se aproximou, pairando e apontando.
Kevin baixou os olhos para si mesmo, tentando descobrir o que estavam apontando.
“Nós vamos ficar com aqueles fios de ouro
e esse pagamento será duradouro.”
Confuso, Kevin olhou de novo para si mesmo.
– Fios de ouro? Sinto muito, mas não sei do que vocês estão falando.
O espírito que liderava o bando voou até ele, estendeu uma mão delicada com dedos impossivelmente longos e gentilmente tocou uma mecha de cabelo comprido que estava grudada na blusa dele.
– O cabelo de Aphrodite! Caramba, eu estava mesmo puxando o cabelo dela. Não foi à toa que ela gritou comigo. – Quando ele soube o que estava procurando, rapidamente encontrou outros três longos fios. Ele os tirou da blusa e os ergueu. Mesmo na escuridão, os fios brilharam. – Tem razão. Eles se parecem mesmo com ouro, mas você deve saber que não são de verdade. São apenas fios de cabelo loiro.
“De uma Profetisa cheia de poder.”
Ela lambeu os lábios e Kevin viu de relance novamente os dentes afiados feito agulhas.
“Deliciosos para se comer.
Com esse pagamento você concorda?
Ou podemos voar e ir-se embora?”
– Hum, não! Quero dizer, sim. Sim, vocês podem ficar com o cabelo. Não é como se Aphrodite ainda estivesse usando isso. – Ele estendeu as quatro mechas, segurando-as entre o polegar e o indicador, e as ofereceu para o espírito.
“Com esse pagamento nós concordamos
Oferecido por ti e aceito por mim
O nosso acordo está selado – que assim seja!”
O espírito pegou as mechas de cabelo da mão de Kevin. Ela as atirou no ar, onde ficaram suspensas, flutuando imóveis, mas esticadas como finas linhas de seda esperando para serem passadas pelo buraco de uma agulha. Então os espíritos partiram para cima delas, um espírito para cada ponta de mecha, e as sugaram para dentro de suas bocas estranhas, finalmente juntando-se todos no centro como uma versão totalmente bizarra da cena do spaghetti de A Dama e o Vagabundo. Então eles saíram voando, desaparecendo no céu.
– Isso foi bem louco. Sério. Queria que Zo estivesse aqui para ver isso também. Aposto que ela ia morrer de rir com os espíritos comendo o cabelo de Aphrodite. – Ele estava rindo consigo mesmo quando um grasnido alto fez com que ele franzisse os olhos para a escuridão do céu, que se moveu, alterando-se, e finalmente se transformou em um corvo, voando em círculos até aterrissar no gramado marrom do inverno ao lado dele.
– Tatsuwa! Cara, estou feliz de te ver!
– Garoto Redbird! – o corvo respondeu.
– Sim, sou eu. Ok, você tem que levar uma mensagem para Dragon. Tipo, agora mesmo. – Kevin se agachou ao lado do corvo. Ele ficou aliviado ao ver que Tatsuwa tinha uma tira de couro em volta do pescoço e que dela pendia um pequeno recipiente de plástico, como os usados para guardar sal. Ele tirou o objeto do pescoço do pássaro e o abriu. Dentro havia um pedaço de papel dobrado e um pequeno lápis.
Usando sua mochila como apoio, ele sentou no chão e escreveu um recado rapidamente.
Neferet tem um esconderijo de armas modernas no porão da Morada da Noite. Dez caixas de lançadores de granadas. Dez caixas de M-16s. Munição para tudo. Ela planeja atacar o sul em breve. Ainda não sei quando.
Kevin pausou, mordendo a ponta do lápis. Ele tinha que contar a eles sobre a visão de Aphrodite e o perigo que a Resistência corria, mas não queria que ela se tornasse um alvo. Decidindo rápido, ele continuou a escrever.
Neferet tem informações de que a Resistência está escondendo pessoas em fardos redondos. O Exército Vermelho está a caminho da Lone Star Road e das plantações de feno hoje à noite. Se vocês estão transportando fugitivos levando pessoas para fora desse jeito, vocês só têm uma hora para tirá-los daí. Eu estarei com o exército.
Ele fez uma pausa de novo e então acrescentou:
Tive que usar Magia Antiga para chamar o pássaro. Precisamos descobrir um jeito melhor... K.
Ele releu o bilhete e então, satisfeito, dobrou o papel e o colocou de volta no recipiente com o lápis. O corvo grasnou e deu uns pulinhos até o seu lado, levantando a cabeça para que ficasse fácil para Kevin colocar de volta a tira de couro ao redor do pescoço.
– Ei, não sei se você consegue me entender ou não, mas, se consegue, você precisa ficar mais de olho em mim. Não me sinto bem de usar Magia Antiga assim, a torto e a direito. Além disso, estou ficando sem coisas para pagar os espíritos. Hum, espere aí. Você se importa se eu pegar uma pena sua emprestada?
O grande pássaro inclinou a cabeça para o lado, analisando Kevin.
– Garoto Pássaro! – ele disse e então se virou, obviamente oferecendo a Kevin uma pena da sua cauda.
– Cara, você é bem legal para um pás... quero dizer, corvo. – Com um puxão rápido, Kevin arrancou uma das longas penas negras da cauda de Tatsuwa.
O grasnido de protesto do corvo ecoou pelo muro de pedra enquanto o pássaro levantava voo. Ele voou em círculos sobre Kevin, caprichosamente soltando uma gota quente de cocô de pássaro na cabeça dele.
– Ei, muito obrigado! – Kevin gritou para ele, tentando tirar a sujeira do seu cabelo. – Bom, pelo menos não fede tanto quanto o perfume de sangue.
Zoey
– Ok, então, vamos relembrar o que aconteceu. Quem pode me dizer por que Thanatos morreu quando Neferet quebrou o feitiço protetor que havia jogado sobre o Edifício Mayo? – eu perguntei e fiz uma pausa, satisfeita ao ver várias mãos se levantando.
Dar aulas é sempre uma incógnita. Alguns dias tudo corre tranquilamente e os alunos fazem o seu dever de casa e agem corretamente. Outras vezes é como se todos os seus neurônios tivessem sido desligados – a menos que você mencione peitos ou fale um palavrão sem querer. Eu me surpreendi ao descobrir que gostava de ensinar porque, bom, adolescentes são tão imprevisíveis quanto os gatos e muitas vezes têm ainda menos noção do que eles.
(Sim, eu tenho dezoito anos, então, tecnicamente, ainda sou uma adolescente. Só que eu também sou a Grande Sacerdotisa e, às vezes, a professora – então tenho certeza de que o fato de ser uma adolescente não conta. A menos que eu faça besteira. Aí todo mundo se lembra de como eu sou jovem. Isso é um saco.)
Eu me sacudi mentalmente e assenti para uma mão erguida muito entusiasmada.
– Samantha, qual é a sua resposta?
A garota era uma quarta-formanda ou, como a chamaríamos em sua escola humana, uma aluna de segundo ano do ensino médio. Era fácil de perceber isso pelas asas de Eros bordadas no bolso sobre o seio do seu suéter da escola.
– Senhora, Thanatos morreu porque colocou demais de si mesma no feitiço, então, quando Neferet quebrou o feitiço, ela também quebrou Thanatos.
Internamente me contorcendo porque a garota tinha usado a palavra senhora para se referir a mim, eu consegui forçar um sorriso.
– Sim, certo. Então, você acha que Thanatos deveria ter se protegido mais, colocando menos de si no feitiço?
– Não – Samantha respondeu direto, sem levantar a mão. – Se ela tivesse feito isso, Neferet teria se libertado do Mayo antes do sacrifício de Kalona, e antes que você e o seu círculo descobrissem como detê-la, e todos nós teríamos morrido ou virado escravos dela. Thanatos é uma heroína. Eu a admiro.
– Há muito para se admirar em Thanatos. Quem pode me dizer qual a afinidade que Nyx concedeu a ela?
Eu estava me preparando para chamar outro garoto quando, em vez disso, eu ofeguei. Um calor brotou na parte superior do meu corpo, como se alguém estivesse apontando um secador de cabelos no nível máximo diretamente para o meu peito nu – apenas para fins de esclarecimento, eu não estava lecionando pelada. Nós somos diferentes aqui na Morada da Noite, mas não tão diferentes.
– Está tudo bem, senhora? – Samantha perguntou.
– Sim. Estou bem. Eu, ahn, preciso sair por um segundo. Samantha, você é a responsável até eu voltar. Continue a discussão sobre Thanatos, por favor.
Então aproveitei para sair rapidamente pela porta da sala de aula, com a mão pressionada sobre a queimação no meio do meu peito.
Mal consegui sair e já vomitei até as tripas em uma lata de lixo reciclável no corredor.
E então o calor foi embora, deixando-me de corpo mole e ofegante.
– Zoey! – Stark dobrou a esquina do corredor correndo e chegou deslizando até mim. – Minha Deusa, desta vez foi foda! – Ele apalpou todo o meu peito, não de um jeito sexy, mas sim de um jeito caraca-será-que-eu-me-quebrei.
– Estou bem agora. Acabou – tentei soar normal, mas a minha voz estava tão trêmula quanto as minhas mãos. – Desculpe por ter tirado você da sua aula.
– Nunca peça desculpas. Você é a minha vida, Z. Se alguma coisa acontecesse com você...
– Ei. – Peguei a mão dele. – Não está acontecendo nada comigo. Está acontecendo alguma coisa com Kevin. Esse é o problema.
– Não, o problema é que Kevin não está aqui, então não posso dar porrada nele por ficar usando Magia Antiga sem pensar.
– Ele não sabe como isso é perigoso, Stark.
Stark suspirou.
– Eu sei, eu sei. Desculpe. Eu não ia dar porrada nele de verdade. Eu gosto dele.
– Sim, eu também.
– Acho que você vai ter que dar um jeito de dizer a ele para parar de usar Magia Antiga. A ironia é que provavelmente você vai ter que usar Magia Antiga para fazer isso – Stark disse.
Eu evitei fazer contato visual com ele.
– Sim, isso é um saco, mas estou tentando descobrir como fazer isso.
– Isso é uma boa e uma má notícia. Olha só, Z, eu sei que isso está realmente te desgastando, e que você está super preocupada com o seu irmão, mas quero que você me prometa que não vai sair sozinha e mexer com Magia Antiga sem supervisão.
Coloquei meus braços ao redor dele e descansei no seu abraço.
– Prometo. Eu já aprendi a minha lição. Não vou sair escondida sozinha e usar Magia Antiga.
Pude sentir Stark relaxar, o que só aumentou minha culpa. Quando ele tentou me beijar, eu me inclinei para trás, cobrindo a boca. Por trás da minha mão, eu disse:
– Você não quer fazer isso. Acabei de vomitar.
– Ah, Z, sinto muito. O que eu posso fazer?
– Nada. Eu realmente estou bem agora. Vou terminar a aula mais cedo e mandar os alunos para a sala de estudos, e aí vou até o nosso quarto escovar os dentes. Hálito de vômito é muito nojento.
– Ok, já está quase na hora do almoço. Você vai conseguir comer?
– Com certeza! Encontro você no refeitório. E pare de se preocupar. Eu estou bem.
Stark me deu um beijo na testa.
– Eu te amo, minha Rainha.
– Eu também te amo, meu Guerreiro – eu disse. Então eu o observei indo embora com o meu coração apertando no peito. Quando ele desapareceu, tirei o celular do bolso e digitei, procurando o contato certo.
– Qual é, Z?
– Kramisha, preciso que você faça uma coisa pra mim.
– O seu desejo é uma ordem.
– Você ainda tem uma cópia daquele velho poema profético? Aquele sobre como fazer Kalona se erguer?
– Tenho. Está no meu arquivo com a etiqueta “Merdas com as quais ninguém deveria mexer”.
– Ótimo. Eu preciso dele. Você me manda uma cópia por e-mail?
– Você vai mexer com ele?
– Kramisha, Kalona já se ergueu em uma explosão. Isso não pode acontecer duas vezes.
Pelo menos não neste mundo, eu acrescentei silenciosamente para mim mesma.
– Isso é verdade. Te mando o e-mail.
– Obrigada, tchau.
Voltei para a minha sala de aula e coloquei a cabeça para dentro da porta.
– Pessoal, vou encurtar a aula hoje. No resto do tempo, vocês podem ir até o Centro de Mídia para estudar.
Então eu fechei a porta para as comemorações deles e fui em direção ao estacionamento.
O meu Guerreiro estava cem por cento correto. Kevin precisava ser avisado sobre como era perigoso lidar com Magia Antiga e ele tinha que entender como controlar o impulso de usá-la sem parar.
Eu vou dizer isso a ele.
Eu vou ensiná-lo.
Pessoalmente.
Mas primeiro eu precisava pensar – raciocinar realmente sobre os como, os quando e os com quem – sozinha. Sem ficar ansiosa olhando para alguém me encarando fixamente como um projeto de química prestes a explodir ou, pior, alguém me perguntando sem parar se eu estava bem.
Decidi ir em direção ao meu lugar preferido para ficar sozinha...
17
Stark
Assim que o sinal soou para liberar os alunos para o almoço, Stark saiu apressado do Ginásio para o Refeitório dos Professores. Ele não deu a mínima em estar atraindo a atenção de cada novato, vampiro e humano que passou por ele. Stark tinha um pressentimento. Um maldito mau pressentimento. E esse pressentimento tinha alguma coisa a ver com Zoey.
Claro que ela não estava no refeitório.
Ele sentou-se na mesa grande onde ele, Z e seus amigos normalmente comiam e esperou.
E esperou.
E esperou.
Depois de se passarem trinta minutos, ele acenou para uma garçonete.
– O que eu posso trazer para você, Stark?
– Não quero nada. Estou só esperando a Zoey, mas talvez a gente tenha se desencontrado. Ela já comeu?
– Não, eu não encontrei com ela hoje. Quer que eu anote o seu pedido?
– Não, acho que vou esperar mais um pouco, mas obrigado – ele respondeu e ela saiu. Então Stark conferiu o seu telefone. De novo. Nada de Z. Ele mandou uma mensagem de texto para ela. De novo.
Você ainda não está aqui. Será que eu confundi o lugar?
Ele apertou o botão de ENVIAR e depois digitou de novo rapidamente.
Estou começando a ficar preocupado. Me liga.
– E aí, Stark? O que parece mais apetitoso para o almoço hoje? – Damien perguntou enquanto sentou ao lado de Stark, deslizando em um dos bancos com encostos altos que formavam uma cabine.
– Ah, oi, Damien. Não sei. Estou esperando a Z.
– Ah, tudo bem, eu estou esperando o Jack. Ele está ficando um tempo a mais no Centro de Mídia, tentando recuperar o que não aprendeu lá naquele Outro Mundo deplorável. – Damien sorriu para a garçonete que tinha voltado até a mesa deles. – Quero pedir tacos para Jack e para mim. Mas dê uns dez minutos antes de soltar o pedido. Ele é Outro Jack, mas é quase tão atrasado quanto o Jack original era. – Então Damien voltou sua atenção de novo para Stark. – Você disse que estava esperando Z?
– Sim. Ela também está atrasada.
– É porque ela não está aqui. Eu vi o Fusca dela sair do estacionamento meia hora atrás, e eu ainda não a vi voltar.
– Merda! Você está brincando?
– Não. Stark, está tudo bem? – Damien perguntou.
– Não. Não está tudo bem. Desculpe, Damien. Tenho que ir. – Stark teve que se esforçar muito para não bater a porta com força quando saiu do refeitório.
Ela simplesmente saiu dirigindo e não me falou nada? De novo.
Essa era a terceira vez nos últimos dias em que Z tinha falado para ele que ia estar em algum lugar – ou encontrá-lo para fazer algo – e ou ela não aparecia, ou se atrasava. Bastante.
Claro, ela sempre tinha uma desculpa, como ter que conferir a tumba de Neferet para ter certeza de que não estava acontecendo nada de estranho por lá. Ele entendia isso. Ele também entendia que Zoey poderia enviar outra pessoa para fazer isso se ela quisesse. Alguém como ele. Ou Darius. Ou Rephaim. Ou qualquer um entre as dúzias de outros Guerreiros Filhos de Erebus que iriam fazer um relatório com tudo para Zoey e manter suas bocas fechadas se descobrissem alguma coisa fora do normal.
E, claro, ela dizia que continuava indo ao Restaurante da Estação para ajudar com a reforma, mas entre Damien, Outro Jack e Stevie Rae, já tinha um monte de gente para ajudar.
Pior ainda, sempre que Stark tentava ir atrás de Z – quando tentava ver por que ela estava demorando tanto –, ela nunca estava realmente ali no instante em que prometera estar.
Stark foi primeiro para os aposentos que ele dividia com Zoey. Ela não estava lá. Então ele desceu correndo as escadas e saiu pela porta de madeira em arco que sempre o fazia lembrar um castelo. Ele fez uma pausa, enquanto os seus olhos varriam os jardins da escola. Havia estudantes novatos e humanos por toda parte. Alguns estavam sentados em pequenos grupos embaixo dos lampiões a gás bruxuleantes, compartilhando o almoço. Outros estavam andando apressados em direção aos dormitórios. Outros estavam brincando de um pega-pega estranho que a atual turma dos alunos do último ano tinha criado e que envolvia gatos de alguma forma.
O olhar dele foi atraído para a estátua de Nyx que ficava no centro do jardim principal. Quando ele reconheceu uma das Grandes Sacerdotisas no pequeno grupo aos pés da Deusa, sentiu uma enorme onda de alívio e atravessou correndo o gramado marrom do inverno. Lá está ela! Espero que ela saiba de algo.
– Stevie Rae! Ei, a gente precisa conversar – Stark disse ao se juntar a ela perto da estátua. Ao lado de Stevie Rae estavam dois jovens novatos que tinham acabado de acender a miríade de velas votivas que tremeluziam alegremente ao redor do pé da Deusa. Eles fizeram uma reverência nervosa, porém respeitosa, para cumprimentar Stark. – Oi, e aí? Bom trabalho com essas velas aí. Ok, hora de vocês irem almoçar. Ou de irem para a próxima aula. Basicamente, hora de vocês vazarem! – Stark gesticulou com a mão, enxotando-os dali.
Stevie Rae observou os dois novatos saírem apressados na direção da entrada dos fundos da escola. Ela olhou feio para Stark.
– Ótimo. Você acabou de assustar os dois. Você não lembra como é a sensação quando a gente acaba de ser Marcado? Aqueles novatos só estão aqui há uma semana. Eles ainda estão chorando no travesseiro à noite chamando a mamãe.
– Eles vão ficar bem, assim como nós ficamos. Quem não está bem é Zoey.
– De que diabos você está falando?
– Você tem visto Zoey ultimamente? – Stark disparou a pergunta para ela.
– Sim. Não. Eu só a vi rapidinho pouco tempo atrás, faz uma meia hora. Ela disse que estava indo até a estação para ver se Kramisha precisava de ajuda para fazer as malas. Você sabe que Kramisha está indo pra Chicago amanhã, né?
– Sim, sim, eu sei que Kramisha vai embora. E Z disse que ela estava indo para a estação? Tem certeza?
– Claro que tenho. Não faz tanto tempo.
– Ok, aguenta aí. – Stark tirou o telefone do bolso e ligou para Kramisha, colocando no viva-voz para que Stevie Rae pudesse ouvir também.
Kramisha, ao contrário de Zoey, atendeu no primeiro toque.
– O que você quer, Stark? Estou ocupada aqui fazendo as malas.
– Desculpe te atrapalhar. Z está com você?
– Não.
– Você a viu hoje?
– Não.
– Ok, obrigado.
– Ei, está tu...
Stark desligou e lançou um olhar penetrante para Stevie Rae antes de falar:
– Zoey mentiu pra você. Ela mentiu pra mim, ela tem feito isso ultimamente. Ela conversou com você pelo menos?
Stevie Rae hesitou antes de responder.
– Eu ia dizer “Claro! Z conversa comigo todo dia”, mas, quando pensei mesmo sobre isso, na verdade ela não tem falado muito.
– Pois é, desde que ela começou a sentir o Outro Kevin usando a Magia Antiga.
– Eu sei que ela está preocupada. Afe, Stark, eu também estou preocupada com Kev.
– O problema é que eu tenho certeza de que não é só com o Outro Kevin.
– Você vai ter que me contar mais do que isso. Desde que Z disse para Rephaim e para mim que a gente poderia ficar em Tulsa, ando super louca e atarefada me instalando aqui e decifrando planos de aula de Sociologia Vampírica, que eu fui tonta o bastante para me voluntariar para ser a professora. Afe, quem podia imaginar que dar aula era tão difícil?
– Todo professor no mundo sabe disso, mas esse não é o ponto. Stevie Rae, você precisa me ouvir: eu acho que Zoey não está bem.
Stevie Rae fez um gesto para que Stark se juntasse a ela em um banco de ferro cheio de ornamentos esculpidos, perfeitamente situado perto da estátua da Deusa.
– Agora, me conta o que está entalado aí dentro em relação a Z.
Stark soltou um longo suspiro ao se sentar ao lado dela.
– Ela está indo ao túmulo dele. Todo dia. E está mentindo sobre isso.
Stevie Rae mexeu os ombros.
– Isso não é tão ruim. Quer dizer, Z sente falta de Heath. Todo mundo sabe disso, e talvez ela não esteja dizendo a verdade porque não quer que você se sinta mal. Ei, se ela está mentindo, como você sabe pra onde ela vai?
– Eu a segui. E, antes que você comece a me passar sermão, preciso dizer que só fiz isso porque estava preocupado. Muito preocupado.
Stevie Rae levantou as mãos em sinal de rendição.
– Ei, não estou julgando, mas você tem a minha atenção total agora. Continue.
Stark passou os dedos pelo seu cabelo grosso e suspirou de novo.
– Então, eu a segui – ele repetiu. – E a observei. Ela fica sentada lá. No túmulo dele. E conversa com ele. Muito.
– Ela conversa com a lápide dele?
Stark balançou a cabeça.
– Não. Ela se se recosta na lápide dele, mas fica olhando para o lado, como se ele estivesse sentado ali, ao lado dela, em algum lugar perto. E perto mesmo, não no Bosque de Nyx.
– Bom, ok, então isso é estranho e triste, mas talvez seja o jeito de Z lidar com o luto dela. Você sabe que levou muito tempo para ela conseguir ir até o túmulo dele. Ela nunca nem me deixou ir com ela. Uma vez Z me disse que isso era algo que ela precisava fazer sozinha e que eu devia deixá-la em paz. Ela disse que gostava de pensar lá porque é bem silencioso. Talvez seja só isso. Z precisa de um tempo sozinha. O que você acha? – Stevie Rae balançou a cabeça, fazendo os seus cachinhos loiros sacudirem ao redor do seu rosto. – Parte disso é culpa minha. Sinto muito que eu estive tão enlouquecida que nem percebi que ela estava depressiva ou algo assim.
Stark fez um gesto recusando as desculpas dela.
– Isso não é culpa sua. É de todos nós. Acho que a gente deixou ela sozinha demais desde que Kevin voltou para o Outro Mundo.
– Mas a gente está dando espaço pra ela. Ei, eu sei que ela tem falado com o irmão dela. O Kevin deste mundo. O que não é um vampiro vermelho. Acho que isso está ajudando um pouco a lidar com o fato de o Outro Kevin não estar aqui. – Stevie Rae suspirou e passou os dedos pelo cabelo. – Eu não perguntei quase nada sobre como ela estava se sentindo, principalmente depois de ela ficar dizendo para a gente como estava bem, mesmo com aquela maldita Magia Antiga mexendo com ela e Outro Kevin. Como Kramisha sempre diz, não é legal ficar se metendo nos assuntos de Z.
– Sim, bom, o tempo de dar espaço acabou. Desde que ela começou a “conversar” – ele fez aspas no ar com os dedos – com Heath, ela parou de conversar de verdade comigo. E, obviamente, com você.
– Z não tem conversado com Damien nem Aphrodite também? – Stevie Rae perguntou.
– Ah, claro. Z conversa com Damien, com Aphrodite, com você e comigo. Mas ela nunca diz como está se sentindo, só diz que está bem. Stevie Rae, ela está se afastando de mim. E de você, de Aphrodite e de Damien. Ela só está conversando de verdade com o Heath, que já morreu.
– Você não acha mesmo que Z só está lidando com o luto dela?
– Não, porque essa coisa de conversar com o Heath morto só começou depois que Kevin veio do Outro Mundo e...
– E contou a ela que Heath estava vivo do lado de lá – Stevie Rae terminou a frase por ele enquanto arregalava os olhos ao compreender.
– Exatamente – Stark disse.
– E então ela sentiu Kevin usando Magia Antiga.
– Sim. O que aconteceu hoje de novo. Um pouco antes de ela ir embora no Fusca, apesar de ter me dito que a gente ia se encontrar para almoçar.
– Aiminhadeusa, Z está indo para o Outro Mundo! – Stevie Rae concluiu.
– Sim, estou começando a pensar isso também – Stark falou.
– Ah, que inferno! – Stevie Rae exclamou.
Zoey
Olhei as horas no celular quando saí com o meu Fusca da Rua Setenta e Um e entrei na Aspen, pegando a primeira à esquerda para atravessar o portão sombrio do Cemitério Floral Haven. Eu tinha certeza de que ia conseguir voltar para a Morada da Noite sem me atrasar muito para encontrar Stark no almoço.
– Eu devia apenas contar a ele que gosto de vir aqui – murmurei para mim mesma. – Ele entenderia. Certo?
Hum. Não. Eu já tinha contado isso a ele outra vez. Faz quase um ano. E ele fez um milhão de perguntas e disse que eu deveria falar com alguém. Alguém tipo um psiquiatra. Sobre o meu luto.
– Tentei explicar que é tipo isso que eu faço quando visito o túmulo. Eu falo. Claro, não é com um psiquiatra, mas falar é falar, certo?
Aparentemente, não para Stark. Não que eu o culpasse por isso. Perder Heath tinha sido horrível. Pior até mesmo do que perder a minha mãe, porque a verdade é que eu era muito mais próxima de Heath do que de qualquer um na minha família, exceto de Vovó Redbird.
Como se soubesse o caminho sem que eu tivesse que manobrar a direção, o meu Fusquinha azul-claro serpenteou pelas curvas até o que tinha se tornado uma parte familiar do cemitério. Parei no lugar de sempre – perto do cedro que marcava o começo da trilha que eu havia percorrido incontáveis vezes no último ano.
Eu sempre ficava triste logo que chegava ali. O Floral Haven não teria sido a primeira opção de Heath. Não porque fosse um cemitério ruim nem nada desse tipo. Eu simplesmente sabia que Heath iria gostar de algum lugar mais... bem... colorido. Heath gostava de coisas loucas, e o Floral Haven era imaculado, bem estruturado, bem organizado e bem regulado. Era exatamente o oposto de louco.
Enquanto eu andava pela trilha que levava à sepultura da família Luck, a minha tristeza se evaporou um pouco – e depois mais do que “um pouco” quando eu avistei a minha contribuição à vizinhança da área dos Luck. Fui até a lápide modesta, adequada e entediante de Heath e sentei bem em cima do seu túmulo, o que eu sei que ele teria apreciado. Eu me recostei na pedra cinza e fria, que dizia em letras grandes HEATH REGINALD LUCK – FILHO AMADO, e então olhei para o lado na direção da área mais próxima à dos Lucks, onde havia apenas uma lápide – a que eu havia encomendado imediatamente depois de comprar a área de sepultamento familiar vizinha. Era o contrário de entediante, esticando ao máximo o que as regras muito específicas do cemitério permitiam. Eu havia mandado fazer uma lápide de mármore azul polido, da cor exata de um buraco de pesca perfeito. Em cima dela, eu havia pedido para o artista esculpir uma cena de Heath sentado em uma pequena plataforma de madeira atirando a linha de pesca da sua vara na água. Eu tinha feito com que Heath estivesse olhando direto para mim, sorrindo como ele sempre fazia quando ia pescar.
– E aí, beleza? – perguntei para o Heath esculpido. – Sim, hoje foi um daqueles dias incríveis de inverno em Oklahoma, em que não está tão frio para ficar do lado de fora, mas também não quente o bastante para despertar as três ameaças típicas daqui: carrapatos, pólen de ambrósia e cobras. Aposto que você diria que estaria um clima bom para pescar, mas na verdade você achava que todo dia tinha um clima bom para pescar.
Ok, deixe-me ser sincera. Eu não tinha perdido a cabeça – pelo menos não totalmente. Eu não estava sob nenhuma ilusão de que Heath estivesse de fato ali me escutando. Eu sabia onde ele estava, ou pelo menos uma versão dele. Eu tinha estado com ele lá – no Bosque da Deusa – depois que ele morreu e que a minha alma se despedaçou de tristeza. Ele provavelmente está pescando em algum lugar lá em cima agora.
Mas eu gostava de fingir que estava falando com ele.
Eu precisava fingir que estava falando com ele.
Principalmente agora.
– Então, lembra que outro dia eu te contei sobre aquela queimação estranha no meu peito? Bom, surpresa! Não era um ataque do coração. Era uma coisa pior. Era o Outro Kevin, lá naquele Outro Mundo, usando Magia Antiga – fiz uma pausa e recostei minha cabeça na lápide dele. – É, isso é ruim. Bem ruim mesmo. E ele está mexendo muito com isso – suspirei. – Né? Eu sei que ele vai se meter em alguma grande caca. Por que os irmãos mais novos são sempre um pé no saquinho?
– Zoey? É realmente você! Achei que tinha visto o seu Fusca entrar aqui.
Dei um salto ao ouvir a voz e girei sentada para ver o meu irmão, Kevin, andando na minha direção.
– Afe, você quase me mata de susto, Kevin. Tipo, faça mais barulho da próxima vez.
– Que tal você me dizer quando vai visitar o túmulo de Heath da próxima vez e eu encontro você aqui? Por sorte eu estava passando quando você entrou. – Kevin olhou para mim e sorriu. – Foi sorte!9 Entendeu?
Eu sorri para ele.
– Entendi. – Então dei umas batidinhas no lugar ao meu lado, e Kevin sentou no local indicado.
Nós não falamos nada. Apenas ficamos sentados. Desde que o Outro Kevin tinha partido, eu gostava de conversar com este Kevin – bastante. Principalmente pelo telefone, no entanto. Primeiro, porque ele tinha um calendário escolar super ocupado e era difícil para ele escapar, especialmente sem o padrastotário, o marido péssimo da minha mãe, sabendo que Kevin e eu tínhamos nos reaproximado.
A segunda razão era mais difícil. Ver Kevin, do jeito que estava fazendo agora, fazia com que eu sentisse falta do Outro Kevin. Quer dizer, eu gostava de conversar com este Kevin. Ele tinha crescido e virado um cara bacana, havia trocado a sua obsessão por videogame por uma obsessão por luta livre e tinha entrado para a seleção da Broken Arrow este ano, o que era legal. Mas ele não era um vampiro. Ele não conseguia me entender como o Outro Kevin me entendia. Não era culpa dele, mas isso não fazia com que fosse menos verdade.
– Ei, você nunca acha isso meio sinistro? – Kevin interrompeu meus pensamentos com um encontrão de ombro.
– O quê? Sentar no túmulo dele? Que nada, Heath iria adorar – eu disse.
– Bom, isso e aquilo – ele apontou para o Heath pescador esculpido.
– Heath iria adorar aquilo também – eu respondi. – Você não lembra que ele tinha senso de humor?
– Claro. E você não lembra que ele está morto?
Eu dei um pulo abruptamente, como se Kevin tivesse me dado um tapa.
– É claro que eu lembro. Eu estava lá. Perder Heath quase me matou. Por que diabos você me perguntaria isso?
– Por causa do que o Outro Kevin te contou.
Eu não falei nada. Eu não conseguiria dizer nada. Para este Kevin – este meu irmão humano –, seria impossível entender a Magia Antiga. Ele também não entenderia o sonho que eu tive, o qual eu tinha certeza de que não era um sonho, mas uma mensagem da minha versão morta do outro mundo. Ele iria pensar que eu só estava dando desculpas se contasse a ele o que eu tinha decidido – o que eu sabia que tinha que fazer.
Eu não estou dando desculpas.
O meu irmão – o meu outro irmão – precisava de ajuda com Magia Antiga e de ajuda para se livrar de Neferet. Nenhuma dessas coisas tinha nada a ver com o Outro Heath Luck.
– Zoey, eu vou com você. Você só precisa pedir – Kevin disse em meio ao silêncio que tinha se instalado entre nós.
Os meus olhos faiscaram na direção dele.
– Você não pode! Eu não estou viva naquele mundo, então posso me safar passando despercebida por lá, mas você está. E você é um vampiro vermelho traidor que se tornou aliado da Resistência contra Neferet e os seus exércitos. Não é seguro para você.
– Z, de acordo com o que você me contou, não é seguro para ninguém lá.
Desviei o olhar de Kevin e encontrei a imagem de Heath sorrindo de novo.
– Eu sei disso – eu disse.
– Mesmo? – o meu irmão perguntou enquanto estalava as juntas e alongava os dedos, um sinal claro de que ele estava estressado.
– Você sabe que eu vou, né? – respondi à pergunta do meu irmão formulando outra pergunta.
– Sim, eu sei. E, Z, se eu sei, os seus amigos também sabem.
Senti um terrível calafrio de mau agouro.
– Não! Eu não disse nem uma palavra para nenhum deles.
– Você também não disse nem uma palavra para mim. Eu só juntei as peças.
– O que significa que eles também vão juntar.
– Ah, sim. Com certeza.
– Bom, não é como se eu fosse fugir escondida sozinha – eu falei. – Já aprendi a minha lição sobre pensar que posso lidar com uma crise grave completamente sozinha. Isso é burrice.
– Isso faz com que eu me sinta melhor, mas só um pouco. Z, você tem certeza de que precisa ir?
Desviei a atenção da imagem de Heath e encontrei o olhar do meu irmão.
– Outra versão de você está em uma grande encrenca. Eu posso ajudá-lo. Se você fosse ele, o que gostaria que eu fizesse?
Ele abriu o sorriso, e de repente eu o vi como um menino, com cerca de sete anos, com um cabelo horrível cortado a máquina e um buraco no lugar onde deveriam estar os dentes da frente, e o meu coração se apertou.
– Z, eu não vou mentir. Com certeza eu ia querer que você viesse salvar a minha pele.
Isso vai deixar Stark arrasado, eu pensei, mas tudo que eu disse foi:
– Sim, e é exatamente isso o que eu vou fazer.
9 Sorte em inglês é “luck”, como o sobrenome do personagem Heath. (N.T.)
18
Outra Aphrodite
Aphrodite fechou o zíper da sua elegante jaqueta de couro de aviador e empinou o queixo quando saiu pela porta da frente da escola e foi em direção ao primeiro veículo do comboio militar. Aphrodite podia sentir os olhares que a acompanhavam, mas isso não era nada de novo. Homens sempre a olharam desde antes de os seus peitos crescerem. Claro que havia uma diferença entre homens normais e machos que eram máquinas de comer vorazes e fedorentas, mas, como diria Neferet, nem tanta diferença assim.
Ela balançou a cabeça para afastar aquele pensamento. Se estou citando Neferet, está realmente na hora de pensar na minha vida. Eu consigo fazer isso. Eu posso ir com o exército até aquele campo idiota nos arredores daquela cidade idiota de Sapulpa, e depois posso voltar para casa. Neferet vai estar mais calma. Vou cair de novo nas suas graças e tudo pode voltar ao normal. O problema era que aquele pensamento não trouxe muito conforto para Aphrodite. O normal na Morada da Noite tinha se tornado quase insuportável. Pela milionésima vez desde que Neferet tinha começado a sua guerra horrenda, Aphrodite desejou ter escapado – ter fugido para a Itália e a Ilha de São Clemente antes de toda essa maldita coisa ter começado. Ela era uma Profetisa. Com certeza o Conselho Supremo teria concedido santuário a ela e não a teria colocado no próximo voo de volta para Tulsa quando Neferet exigisse sua volta.
Neferet obviamente exigiria isso. Ela só tinha uma Profetisa. Pela primeira vez na vida, Aphrodite lamentou ter recebido tantos malditos dons de Nyx e não poder ser apenas uma Sacerdotisa comum.
– Quem eu quero enganar? Eu nunca seria uma pessoa comum.
– Tenho que concordar com você, gata!
Aphrodite olhou para o seu lado direito. Havia um jovem tenente vampiro azul encostado no veículo líder, sorrindo para ela cheio de malícia.
– O que você disse? – ela perguntou com uma falsa voz doce.
– Que eu concordo. Você é gata demais para ser considerada comum. – Ele piscou para ela.
Ela olhou intensamente nos olhos dele.
– Eu pedi a sua opinião?
– Não, mas eu...
– Mas o quê? – ela falou com a voz cortante o bastante para fuzilá-lo. – Você não tem educação? Não tem noção?
– Ei, olhe...
Ela cortou as palavras dele de novo.
– Não, olhe aqui você. Quer saber quando você vai morrer?
– Não!
– Quer saber como você vai morrer?
– De jeito nenhum!
– Então me trate com o respeito que uma Profetisa de Nyx merece, ou eu posso sentir a necessidade de esclarecer as coisas. A Deusa sabe que um pouco de esclarecimento seria bom para você.
– Ahn, tá bom. Ok.
– Deixe-me corrigi-lo. A forma correta de você responder é: Perdão, Profetisa. Isso não vai se repetir, Profetisa. Deixe que eu abro a porta para você, Profetisa. – Aphrodite fez uma pausa enquanto aquele babaca irritante apenas ficou ali parado, com a boca abrindo e fechando como uma carpa com cara de furão. Ela suspirou e colocou as mãos no quadril. – Essa coisa é o carro do General Stark?
– Sim, é o Hummer dele. Ahn, quero dizer, sim, é o carro dele, Profetisa.
– Veja só, você é capaz de aprender. Então abra a maldita porta para mim.
– Algum problema, Tenente Dallas? – Stark apareceu por trás dela e caminhou a passos firmes até o lado do banco do passageiro na frente do veículo. Ele não estava sozinho, mas Aphrodite não precisava olhar para ver quem estava com ele. Ela podia sentir o cheiro.
– Não, senhor! – O tenente imbecil abriu imediatamente a porta do Hummer para Stark.
– Bom saber. Vamos zarpar – Stark deu uma olhada para Aphrodite e Kevin, que tinha parado ao lado dela. – O que vocês estão esperando, um convite por escrito? Entrem aí no banco de trás. – Stark balançou a cabeça, murmurando algo indecifrável, e o Tenente Dallas fechou a porta com uma batida forte.
Kevin foi até a porta do banco traseiro ao lado deles no veículo e a abriu.
– Depois de você, Profetisa – ele disse.
– O único com o mínimo de educação fede. Fantástico. – Ela passou por Kevin e entrou.
Kevin deu uma corridinha até o outro lado do Hummer e se sentou ao lado dela.
– Tudo certo aí atrás, Profetisa? – Dallas perguntou com apenas um toque de ironia ao sorrir olhando pelo espelho retrovisor.
– Apenas dirija – Stark disse rispidamente para ele. Enquanto eles guiavam o comboio para fora da Morada da Noite, Stark se virou no seu assento. – Agora, é bom você contar o que você não falou para Neferet sobre a sua visão.
Aphrodite ergueu uma sobrancelha para ele.
– Não tenho a menor ideia do que você está falando. – Ela enfiou a mão na sua bolsa extragrande Louis Vuitton e tirou de lá de dentro uma das três garrafas de Veuve Clicquot, satisfeita ao ver que havia tirado o rosé primeiro. Sem olhar para Kevin, ela entregou a garrafa para ele. – Abra. Não derrame. É melhor você não deixar seu fedor na garrafa também.
Stark balançou a cabeça.
– Você trouxe champanhe para uma batalha?
– Não, eu trouxe um bom champanhe para uma pré-batalha. É tipo dirigir colado no carro da frente, só que menos esportivo e mais mortal. Quer uma taça? – Aphrodite levantou uma bela taça que ela tinha guardado no bolso lateral junto com o seu Xanax de emergência.
– Não, mas eu quero uma resposta para a minha pergunta.
Kevin estourou a rolha e Aphrodite estendeu a taça para que ele a enchesse.
– Eu já respondi.
– Uma resposta de verdade.
Aphrodite deu uma olhada em Kevin.
– Cubra o topo da garrafa com o papel metálico para que ainda fique um pouco frisante. Você não sabe nada sobre champanhe?
– Não. Nunca experimentei. O meu padrastotário, ahn, é assim que minhas irmãs e eu chamamos o meu padrasto, é religioso demais para...
– Que chatice! – Aphrodite olhou para Stark. – Eu não sabia que eles podiam conversar.
– Você quer dizer os vampiros vermelhos? – Stark perguntou, dando um olhar divertido para Kevin.
– Sim, é claro que foi isso o que eu quis dizer.
– Aphrodite, Kevin é um oficial. Todos eles falam. Você acabou de ouvi-lo conversando com Neferet no briefing.
– Aquilo não foi uma conversa. Ele estava relatando informações. Tanto faz. – Ela deu um gole no seu champanhe e olhou para fora da janela enquanto eles pegavam a estrada em direção a Sapulpa.
– Ainda estou esperando você responder minha pergunta – Stark disse.
– Desculpe. Qual era mesmo?
Stark suspirou pesadamente, e Aphrodite percebeu que o Tenente Dallas estava sorrindo como se ela fosse o seu próprio entretenimento pessoal.
– Tenente Dickless,10 você sempre se diverte às custas do seu general?
O sorriso instantaneamente sumiu do rosto de Dallas, e ele voltou os olhos para a estrada.
– Ótimo. O único tenente que fala também fede. E respondendo à sua pergunta, General Cara do Arco, eu contei tudo para Neferet. Bom, exceto uns detalhes sobre como os soldados do Exército Vermelho perderam o que possa ter sobrado das suas mentes e não se contentaram apenas com o massacre dos humanos que encontraram nos fardos. Eles também devoraram os novatos... novatos azuis que poderiam ter crescido e se tornado caras grandes como você. Ah, e eles comeram vampiros azuis adultos também. Basicamente, o seu Exército Vermelho asqueroso massacrou todo mundo. Que tal?
– Por que você não contou isso para Neferet? – Kevin perguntou.
– Porque ela não ia se importar. Não mudaria nada. Ela ainda iria enviar o seu Exército Vermelho. Todo mundo ainda seria massacrado. Ponto final. – Ela esvaziou o resto da taça e a estendeu para que Kevin a enchesse. E eu vou ter que assistir isso acontecer. De novo.
– Neferet pode não se importar, mas eu me importo. Nós precisamos dessas pessoas vivas. Principalmente os vampiros azuis. Eles podem nos dar informações sobre a Resistência – Stark disse.
– Ah, que ótimo. Então, em vez de serem esquartejados e devorados, eles vão ser torturados.
– Eu não disse nada sobre tortura!
– Você vai pedir gentilmente que entreguem o seu povo e o seu quartel-general, e quando eles disserem não, obrigado, você vai fazer o quê? Dar um tapinha nas costas deles e deixar que vão embora?
– De que lado você está, Aphrodite? – O olhar de Stark tinha ficado sombrio e nervoso.
– Do lado de Nyx, é claro.
– Então estamos do mesmo lado – Stark afirmou.
Aphrodite bufou, mas não falou mais nada. O Cara do Arco podia correr para Neferet e dizer que ela tinha sido insuportável nessa pequena incursão. Até aí, tudo bem. Na verdade, isso seria ótimo. A chance de Neferet enviá-la junto com eles de novo seria bem menor. O que ele não podia fazer era correr para a Grande Sacerdotisa e dizer que Aphrodite simpatizava com a Resistência. Isso não seria “tudo bem”. Seria fatal.
O que diabos vampiros como Stark e os Guerreiros Filhos de Erebus pensam que aconteceu com todas aquelas Grandes Sacerdotisas que Neferet rebaixou e mandou que calassem a boca? Que elas apenas sumiram em alguma Morada da Noite fajuta do interior para rezar pelo resto da vida em isolamento?
Aphrodite sabia bem o que acontecia. Ela testemunhou o que Neferet tinha feito com elas. Nyx enviou essa visão. E essa era uma visão que Aphrodite não havia compartilhado com ninguém.
– Você quer mais champanhe?
Aphrodite automaticamente estendeu sua taça para ser enchida de novo. Então ela olhou para o garoto fedido ao seu lado. Ela ficou surpresa ao reparar que ele obviamente era de origem indígena. Ela não tinha percebido isso antes. Se ele trocasse aquelas roupas horríveis que vestiam mal e tomasse alguns cuidados pessoais – ele realmente precisava de um corte de cabelo... e tirar aquele fedor –, podia até ficar bonitinho. Mesmo. Ela também não tinha percebido isso antes. Bom, para ser justa, depois de sentir aquele cheiro, ela mal tinha olhado para ele.
Só que ele não tinha aquele cheiro quando conversou com ela no jardim na outra noite.
– Quantos anos você tem? – ela perguntou a Kevin.
Ele pareceu surpreso com a pergunta.
– Dezesseis.
– Não é jovem demais para ser tenente?
Ele assentiu.
– Sim. Eu sou o tenente mais jovem do exército.
– Quando você se Transformou? – ela questionou.
– Quase um ano atrás. – Ele fez uma pausa e então continuou: – Quando você se Transformou?
– Quando eu tinha mais do que dezesseis anos – ela respondeu. Aphrodite queria perguntar o porquê de ele não estar fedendo como a morte na noite anterior, mas de jeito nenhum ela ia deixar o Dickless e o Cara do Arco ouvirem isso. De jeito nenhum ela queria aqueles dois mais metidos nos assuntos dela do que eles já estavam. – Você é uma criança. Não é de se admirar que nunca tenha provado champanhe.
Ela virou a cabeça com arrogância para olhar para fora da janela, desejando que estivesse em qualquer outro lugar.
Outro Kevin
A conversa morreu depois que Aphrodite disse que ele era apenas uma criança. Ela não olhou mais para ele. Ela não se endereçou mais a ele. Ela continuou, é claro, estendendo a sua taça de tempos em tempos para que ele a enchesse de champanhe.
Cara, ela bebe champanhe rápido!
Tudo o que Kevin podia fazer era ficar ali sentado observando com um pavor crescente enquanto o Hummer percorria mais quilômetros e se aproximava cada vez mais daquilo que muito provavelmente seria uma horrível tragédia.
E se aquele pássaro não chegou até Dragon?
Não, ele não se permitiria pensar isso. Ele estava fazendo tudo o que podia. Ele tinha enviado informações. Ele estava junto com os soldados porque talvez houvesse algo que ele pudesse fazer no meio da batalha para ajudar as pessoas a escapar do Exército Vermelho. A essa altura, Kevin não dava a mínima se seria descoberto ou não. Ele não ficaria parado vendo inocentes serem massacrados por monstros.
– Ei, abra mais uma garrafa.
Aphrodite empurrou mais uma garrafa de champanhe na direção dele. Kevin não tinha nem percebido que ela já tinha matado a primeira. Enquanto tirava a rolha, ele olhou de relance para Aphrodite. Ela parecia mal.
Bom, isso não era totalmente verdade. Ela era linda. Isso não havia mudado. Mas ela estava tão magra e pálida! Olheiras escuras estavam aparecendo mesmo que ela tentasse cobri-las e, quando ela não estava bebendo champanhe, a boca dela virava uma linha rígida.
– Quanto falta para a Lone Star Road? – Aphrodite perguntou enquanto ele enchia a taça dela.
Stark apontou para o semáforo a cerca de um quarteirão na frente deles.
– Vamos virar ali, na Hickory. Daí uns dois quilômetros e meio depois a gente entra à direita na Lone Star. Nessa hora vou precisar que você esteja acordada e alerta. – Stark olhou por sobre o seu ombro para ela e franziu a testa. – Então, pegue leve aí com esse champanhe.
– Ah, relaxe, Vovô. Eu sou uma vampira, lembra? Não consigo ficar bêbada. Não consigo nem ficar exaltada. Bom, a menos que eu misture um pouco de Xanax com esta bebida... o que me lembra de algo. – Ela enfiou a mão dentro da bolsa gigante que estava no assento entre eles, pegou um pequeno pote de comprimidos e o sacudiu para tirar algumas pequenas pílulas ovais, que engoliu junto com champanhe. – E eu sou uma profissional.
– É bom que seja. Neferet conta com isso – Stark disse.
– Tá, tá, tá. Eu vou reconhecer o maldito campo. Preocupe-se com o seu exército de zumbis, não comigo.
Stark virou para a frente de novo e esfregou a testa.
Kevin continuou observando Aphrodite até que ela encontrou os seus olhos. Então, com uma voz baixa o bastante para não ser ouvido no banco da frente, ele falou:
– Você sabe como isso vai ser ruim. Não a julgo por beber e tomar isso aí. – Ele apontou um dedo para o pote de comprimidos que estava aparecendo para fora da bolsa dela.
Ele achou que ela faria outro comentário sarcástico, mas então o rosto dela mudou. Os seus ombros desabaram e ela assentiu com tristeza, sussurrando:
– Vai ser bem pior do que só ruim.
– Eu não vou deixar que você se machuque – ele disse baixinho.
Ela o encarou com seus olhos azuis grandes, lindos e assombrados.
– Eles são crianças. Mais novos do que você. Eu sei. Eu vi tudo. E agora vou ter que ver de novo. – Ela balançou a cabeça e enxugou uma única lágrima nervosamente.
Ele sustentou o olhar dela e disse muito claramente, mas com a voz bem baixa:
– Não se eu puder impedir isso.
Uma surpresa faiscou nos olhos dela, e então Stark interrompeu:
– Ok, esta é a Lone Star Road. Hora de você fazer o seu trabalho.
– Eu já fiz o meu trabalho. Eu profetizei. Isto aqui não tem nada a ver com o meu trabalho. Tem a ver com Neferet querer me punir, mas que seja. Já sou bem grandinha. Diga ao Tenente Dickless para ir devagar para que eu possa conferir essas plantações. A que eu estou procurando é grande. Lembro de um bosque de nogueiras-pecãs do outro lado da rua. Ah, e tem árvores na beirada do campo, apesar de uma grande parte da lateral da estrada ser aberta, então nós devemos conseguir ver a maioria da plantação.
– De que lado da estrada fica a plantação? – Stark perguntou.
Aphrodite pensou um pouco e então respondeu:
– À nossa esquerda. – Eles dirigiram por apenas mais um quilômetro pela estrada vazia e Aphrodite apontou um local. – É ali! Eu reconheço aquele monte de árvores.
Kevin deu um pequeno suspiro de alívio. O campo ainda estava a alguns quilômetros de distância da montanha onde a Resistência estava se escondendo. Aquela era uma pequena coisa boa em um amontoado gigante de coisas ruins.
Aphrodite estava olhando para fora da janela à sua direita.
– E ali está o bosque de nogueiras-pecãs. Ok, continue só mais um pouco. Deve ter um... sim, ali está o portão. Vire aqui.
Dallas dirigiu o Hummer através de um portão aberto e entrou em um grande campo de feno recém-cortado. E, claro, estacionado logo do lado de dentro estava o reboque de um caminhão, cheio de enormes fardos arredondados.
– Pare! – Stark falou rispidamente. – Faça com que o comboio bloqueie o portão para que eles não possam sair por ali. – Ele começou a abrir a sua porta antes de o Hummer parar completamente, gritando ordens. – Dallas, saia com esses soldados do comboio e faça com que eles cerquem o reboque. Tenente Heffer, fique neste veículo com Aphrodite. O seu trabalho... o seu único trabalho é cuidar para que ela não seja devorada acidentalmente hoje. Você consegue fazer isso?
– Sim, senhor!
Sem nem mais um olhar, Stark e Dallas saíram do Hummer. Kevin podia ouvir Dallas gritando ordens para o comboio. Stark tinha pegado o seu arco e estava com uma flecha encaixada nele, apontada para o fardo arredondado.
– Ele não erra. Você sabia? – A voz de Aphrodite cortou o silêncio no interior do veículo quase vazio.
– O General Stark?
– Sim, o Cara do Arco.
– Aham, eu sei. O exército inteiro sabe. Ele é uma lenda.
– Na cabeça dele – Aphrodite disse. – Dizem que ele matou o próprio mentor.
– Não sabia disso.
– Sim. É por isso que ele é tão mal-humorado. A maioria das mulheres acha isso atraente. Eu acho um tédio. Mas ele não faz o meu tipo de todo jeito.
Kevin não conseguiu se conter.
– Qual é o seu tipo?
– Alguém menos mal-humorado e com mais coração. E músculos. Eu gosto de músculos. Encha a taça, Kev. Estou finalmente começando a sentir a onda.
– Você acha mesmo que é uma boa ideia?
– Sinceramente?
– Sim. Eu gosto de sinceridade.
– Ok, vou ser sincera. Não importa se eu beber ou não. Isso não vai mudar o que vai acontecer e não vai me fazer esquecer que eu vou ter que assistir isso acontecer de novo. E já que estamos sendo sinceros... ninguém liga a mínima se fico bêbada ou não, exceto eu mesma, e já que eu tenho que assistir a crianças sendo devoradas por monstros, prefiro estar bêbada.
– Esse é um bom ponto – Kevin encheu a taça dela. – Mas eu me importo se você fica bêbada.
Ela encontrou o olhar dele.
– Por quê?
– Nós ainda estamos sendo sinceros?
– Que tal isto: enquanto a gente estiver sozinho, vamos ser sinceros. Feito?
– Feito – Kevin concordou, e o seu coração deu uma palpitação estranha quando o olhar dela não desviou do seu, e pela primeira vez ela se pareceu exatamente com a sua Aphrodite. Aquela que o havia beijado no mundo de Zo e tinha dito a ele para encontrá-la neste mundo.
– Então, por que você se importa se eu estou bêbada ou não?
– Porque eu sei que você é melhor do que isso.
Ela bufou.
– Isso é uma coisa louca de se dizer.
– Por quê?
Ela abriu a boca para responder, mas foi interrompida por uma torrente de vampiros passando correndo pelo veículo para cercar o reboque.
– Merda. Começou. Não consigo olhar. – Ela abaixou a cabeça, olhando fixamente para os seus pés. – Fale quando tudo estiver terminado.
– Ok, mas eu vou ficar te contando o que está acontecendo. Era assim que a minha irmã assistia a filmes de terror comigo quando a gente era pequeno.
Os olhos dela encontraram os dele.
– Do que você está falando?
– Bom, eu adorava filmes de terror. Minha irmã odiava, mas ela não me deixava assistir sozinho, senão eu tinha pesadelos e ia pra cama dela. Então, ela se sentava comigo, mas tampava os olhos com as mãos, e me pedia para descrever o que estava acontecendo porque ela falava que era menos assustador quando eu contava a história para ela.
– Ok, acho que vou experimentar. Se você continuar enchendo a minha taça.
– Pode deixar. – Kevin encheu a taça dela e começou a fazer os seus comentários: – Eles cercaram os fardos redondos. Stark está com o arco apontado para o primeiro, e Dallas... – Kevin fez uma pausa e sorriu para Aphrodite. – Ei, apesar de eu não poder rir alto quando você falou aquilo na frente de Stark, quero que saiba que rachei de rir com o apelido que você deu para ele.
– Ah, você quer dizer o Tenente Dickless. Não considero isso um apelido. É um fato.
Kevin deu uma gargalhada e depois voltou a descrever o que acontecia.
– Então, o Tenente Dickless está com uma espada longa, se aproximando do primeiro fardo. Ah, merda. Ele vai enfiar a espada dentro...! – Kevin ofegou de susto.
– O quê? O que aconteceu?
– Ele enfiou a espada dentro do fardo e nada aconteceu. Agora, ele está golpeando o fardo sem parar. É só um fardo de feno. Não tem ninguém dentro! – Ele pensou que Aphrodite ficaria feliz, mas ela continuou bebendo e olhando para as botas na altura do joelho que estava usando. – Hum, você me ouviu?
– Sim, ouvi. Continue assistindo. Nem todos os fardos têm pessoas dentro. A Resistência não ia encher tanto o saco de Neferet se eles fossem assim burros.
– Ah, bem pensado. Ok. Estou vendo tudo. Eles estão indo para o próximo fardo. – Kevin prendeu a respiração e então soltou o ar em um suspiro. – É só feno também. Agora eles estão indo para um fardo no fundo.
– Isso não é uma notícia boa. Eu sei. Eu estava escondida nesse fardo.
– Você?
– Não literalmente. Quando tenho uma visão, eu sempre vejo tudo pelo ponto de vista de quem está morrendo, normalmente de um jeito horrível. É por isso que para mim é difícil dar detalhes específicos, pois eu sinto tudo que essa pessoa que está morrendo sente.
O estômago de Kevin se revirou.
– Deve ser horrível.
– É pior do que isso.
Ele continuou assistindo.
– Droga. Eles estão no próximo fardo. Ok, ele está perfurando o fardo e... merda. Ele atingiu alguma coisa.
– Mas não é uma pessoa.
– Não, ele atingiu alguma coisa dura, e só a ponta da espada desapareceu dentro do fardo.
– Isso é porque não é um fardo de verdade. O interior é oco e tipo uma roda. Há uma porta do lado para entrar e sair. De algum jeito, eles colocam feno do lado de fora da roda. Do lado de dentro tem espaço para, hum, umas quatro pessoas grandes, ou dois adultos e três ou quatro crianças. Ei, eu vou fechar os olhos e tampar os ouvidos quando eles começarem a gritar.
– Eles encontraram um trinco e estão abrindo. – Kevin engoliu a vontade de vomitar. Ele também queria tampar os olhos. E então um alívio o invadiu. – Está vazio!
– Sério?
– Sim, olhe!
– Não. Não vou olhar até eles checarem todos. Pelo menos metade dos fardos nesse reboque e no outro estão cheios de gente.
– O outro?
– Sim, há dois reboques.
– Hoje não tem. Só tem um. Aphrodite, olhe. Eles estão abrindo os outros. Estão todos vazios! – Kevin não tentou esconder a alegria e o alívio que estava sentindo.
– Por que você está feliz?
Ele desviou o olhar dos fardos vazios e virou-se para Aphrodite, que estava olhando para ele e não para a cena se desenrolando com zero de violência na frente deles. Ele encontrou os olhos dela. E decidiu dizer a verdade.
– Porque eu não quero que ninguém mais morra.
– Mas você é um vampiro vermelho. Você só se interessa em comer e matar.
– É realmente assim que você me vê? – Kevin perguntou.
– Por que você não estava fedendo ontem?
– Porque eu...
Toc-toc-toc! Kevin e Aphrodite deram um salto quando Stark bateu no vidro.
– Vocês dois podem sair. Parece que chegamos cedo demais – Stark gritou através da janela antes de voltar para o grupo de soldados que estava tentando remontar os fardos esburacados.
Aphrodite suspirou.
– Traga a garrafa.
– Ei, por que você não fica aqui dentro? Eu vou lá fora e digo que você não está se sentindo bem.
– E deixar o Cara do Arco me entregar para Neferet, dizendo que eu fiquei escondida no Hummer mesmo quando não tinha nenhuma batalha acontecendo? Isso seria uma desculpa perfeita para ela me enviar junto com o Exército Vermelho de novo. Não, é melhor eu sair.
Kevin desceu apressado do Hummer e deu uma corridinha até o lado dela, abrindo a porta para Aphrodite.
– Obrigada. Eu gosto de boas maneiras. Alguém criou você direito.
– Obrigado. Foi principalmente a minha irmã.
– Essa irmã de novo. Talvez algum dia eu a conheça – Aphrodite disse ao estender a mão.
Kevin pegou a mão de Aphrodite e a segurou cuidadosamente enquanto a ajudava a descer do veículo.
– Tenho um pressentimento de que vocês duas iam se dar muito bem.
Aphrodite bufou.
– Então ela deve ser um pé-no-saco.
– Ah, você não sabe o quanto – Kevin disse.
10 Sem pênis, em inglês. (N.T.)
19
Outra Aphrodite
– Tem certeza de que este é o campo certo? – Stark perguntou a Aphrodite.
– Positivo.
– E este foi o único reboque que você viu com fardos de feno?
– Este foi o reboque que eu vi durante a minha visão. Eu estava no meio daquele fardo ali. – Ela apontou. – Não sei o que mais dizer a você. Não sei por que não tem ninguém dentro. A gente deve ter chegado cedo demais. – Aphrodite escolheu suas palavras com cuidado. Ao contrário do que Neferet, Stark e o resto podiam pensar, ela detestava mentirosos. Ela havia sido criada por uma e, desde cedo, tinha jurado que pelo menos uma coisa iria fazer: ao contrário da sua mãe, ela ia tentar falar a verdade sempre. E era isso que ela estava fazendo. Tecnicamente, falando a verdade. Claro, ela estava contando algumas coisas, mas Stark teria que ser bem mais específico com as suas perguntas para que ela revelasse tudo.
– Então está bem. Tenente Dallas, primeiro faça com que os veículos e os homens se escondam naquele bosque de nogueiras-pecãs do outro lado da pista. Mantenha cada maldito soldado do Exército Vermelho dentro daqueles veículos. Não queremos que a Resistência sinta o cheiro de nenhum antes de chegar. E nada de luzes e de barulho. Nada. Lembre a esses soldados que a única maneira de eles se alimentarem hoje é se a Resistência cair na nossa emboscada. Depois volte aqui com alguns oficiais e arrumem esses fardos de novo. Pelo menos o suficiente para que a Resistência não perceba que foram remexidos até que seja tarde demais. Vamos esperar lá fora e capturá-los quando finalmente aparecerem. – Ele voltou seu olhar para Aphrodite. – Você consegue dizer que horas o ataque aconteceu?
– Não. Desculpe. Eu estava ocupada demais sendo devorada para olhar para o relógio.
Stark franziu o cenho para ela e então continuou falando com Dallas.
– Ok, vamos esperar o máximo que der, mas o Exército Vermelho precisa voltar para os túneis antes do amanhecer. E lembre a esses soldados que eles podem comer só os humanos. Novatos azuis e vampiros azuis devem ser capturados vivos.
– Sim. Vou dizer a eles, senhor. Mas eles são burros, então não espere muita coisa. – Dallas bateu uma continência desleixada e começou a berrar ordens.
Aphrodite achou difícil parar de olhar para os soldados do Exército Vermelho. Ela nunca havia estado perto de tantos deles antes. Ela sentia quase tanta pena quanto nojo. Eles estavam vagando ao redor do reboque e dos fardos de feno vazios, parecendo agitados e confusos. Ela achou que vários deles estavam babando.
– Aphrodite, pode entrar no nosso veículo líder com o Tenente Heffer. Heffer, você sabe dirigir, certo?
– Claro – o garoto respondeu.
– Então, dirija o veículo até o outro lado da pista e espere lá.
– Na verdade, eu preciso de um pouco de ar puro antes – Aphrodite falou. – Eu vou dar uma volta.
– Não é uma boa ideia – Stark disse. – Se a Resistência estiver por aqui, você não estará segura.
Ela levantou as sobrancelhas para ele.
– Não estou segura? Há uma horda inteira de vampiros vermelhos vorazes a um grito de distância. Além do mais, você está aqui. Com o seu arco infalível. Tenho certeza de que vou ficar bem.
O suspiro de Stark foi cheio de irritação.
– Heffer, siga a Profetisa. Aphrodite, não demore muito. A Resistência pode aparecer a qualquer minuto, e juro que você não vai querer estar aqui fora quando a briga começar.
– Ah, por favor. Eu já estive aqui quando a briga começou. Foi por isso que tive que me juntar a vocês nesta bagunça de merda, lembra?
Ela deu as costas para Stark, Dallas e aquela horda de coisas vermelhas e começou a caminhar com cuidado através da plantação até a fileira de árvores no lado mais distante do terreno. Ela não precisou olhar para trás. Ela estava certa de que Kevin estava seguindo atrás dela. Ela não se importava. Uma sensação de alívio que a deixou tonta havia inundado o seu corpo desde que ela viu apenas um reboque sem nenhum membro da Resistência escondido dentro dele.
Havia dois reboques na minha visão. Eu estava em um deles, mas tinha outro. Ainda mais cheio de novatos e jovens humanos. Mas ele se foi! Deusa, por favor, permita que eles tenham conseguido fugir. Por favor, não deixe que eles voltem hoje à noite. Por favor, por favor, por favor.
Ela escutou o barulho de água corrente quando se aproximou da fileira de árvores. A vegetação se alterou do feno caprichosamente cortado para o gramado alto do inverno e o que pareciam arbustos de amoras. Aphrodite abriu caminho contornando um aglomerado de plantas adormecidas e uma muralha de cedros perenes para olhar para baixo para um pequeno riacho.
E então a mente dela não entendeu o que ela estava vendo.
Tem pessoas ali embaixo?
Na água? Logo abaixo de mim?
Que diabos é isso?
Ela deve ter feito algum barulho. Deve ter ofegado de choque, pois a última pessoa da fila que estava andando no riacho com água na altura do quadril virou a cabeça e levantou os olhos para ela.
A lua refletiu na água, intensificando a sua luz tênue de modo a tornar claramente visível a tatuagem safira ornamentada com dragões cuspindo fogo em um crescente no meio da testa do vampiro.
Aiminhadeusa! É Dragon Lankford! O olhar de Aphrodite percorreu a fila silenciosa de pessoas e ela reconheceu vários deles da sua visão. É a Resistência! Eles foram avisados! Eles não foram massacrados!
Ela não teve tempo para pensar demais no assunto. Aphrodite agiu por instinto. Ela desceu apressada alguns passos para chegar mais perto do barranco na margem do riacho. Encarando Dragon, ela pronunciou com a boca sem emitir som, fazendo gestos com a mão para indicar o mesmo: Vão embora! Fujam!
E então tudo aconteceu muito rápido.
Dragon Lankford saiu do riacho e saltou para cima do barranco. Ela tentou retroceder com dificuldade. Tentou fugir, mas o salto de uma de suas botas Jimmy Choo afundou em um buraco e quebrou. Aphrodite caiu de bunda no chão com força, derrubando a sua garrafa de champanhe quando ela perdeu o fôlego.
Dragon a alcançou facilmente. Ele a agarrou, levantando-a para que ficasse em pé e tampando a boca dela com a mão. Ele pressionou uma adaga contra o pescoço dela e sussurrou diretamente no seu ouvido.
– Se você fizer um barulho, corto o seu pescoço. Você vem comigo. – Ele se virou para que a fila de novatos, vampiros e jovens humanos em retirada pudesse vê-lo. Dragon fez o mesmo gesto para que eles seguissem em frente e falou em voz baixa em direção à água: – Vão indo! Até o local seguro!
Ele começou a arrastá-la até o riacho.
E então Kevin estava lá. Ele surgiu depois de atravessar a fileira de cedros olhando em volta, obviamente procurando por ela. O coração de Aphrodite bateu forte no seu peito, enchendo a sua corrente sanguínea de adrenalina e pânico. Eu tentei ajudá-los! E agora eles vão matar Kevin e provavelmente atrair a atenção de Stark e a ira do Exército Vermelho sobre eles! Todos vão ser massacrados como foram na minha visão!
Só que não foi isso o que aconteceu. Foi algo muito mais estranho.
Kevin olhou para baixo. Aphrodite percebeu o instante em que ele a viu com Dragon e a fila de novatos, humanos e vampiros fugitivos caminhando com dificuldade pela água. Kevin não pegou nenhuma arma. Kevin não gritou para Stark. Em vez disso, ele desceu a margem correndo até eles.
– Dragon! Não! Não a machuque! – Kevin sussurrou freneticamente quando chegou mais perto deles.
– Eu não a estou machucando. Estou sequestrando.
– Por quê? – Kevin perguntou.
– Sem essa, Kevin. Você sabe por quê. Se eu não fizer isso, ela vai nos entregar para o Exército Vermelho. E ela é uma Profetisa de Nyx. Ela tem visões. Mesmo se ela não quiser compartilhar as visões conosco, nós podemos usá-la. Neferet vai fazer praticamente tudo para ter a sua Profetisa de volta.
Aphrodite bateu na parte de trás da mão de Dragon que estava cobrindo a sua boca.
– Hum, acho que ela quer que você tire a mão da boca dela – Kevin disse. – E seria legal se você abaixasse essa adaga também.
– Imagino que o Exército Vermelho está lá em cima. – Dragon apontou o queixo na direção do campo de feno.
Aphrodite assentiu tão vigorosamente quanto pôde com uma lâmina contra o seu pescoço, e então ela tentou dizer “Eu estava dizendo para vocês irem embora daqui!”, mas, é claro, as palavras saíram como um resmungo confuso e nervoso por trás da mão de Dragon.
– Sim. Stark está lá em cima com cerca de cinquenta soldados vermelhos e vários oficiais vermelhos e azuis. – O olhar de Kevin se voltou para o riacho e para a fila de pessoas que continuavam a retroceder na direção da montanha e da segurança. – Você recebeu a minha mensagem.
– Sim. E agora eu tenho esta Profetisa também. Vou levá-la para o quartel-general. Junte-se a nós quando puder.
– Dragon, sério, se você sequestrar Aphrodite, como é que você vai ser diferente de Neferet?
– Como você pode me perguntar isso? Se nós fôssemos iguais a Neferet, eu já teria cortado o pescoço dela. E, de qualquer modo, eu não posso soltá-la. Agora ela sabe que você está trabalhando conosco, o que coloca todos nós em risco.
Kevin encontrou o olhar de Aphrodite.
– Você nos dá a sua palavra de que não vai gritar nem fazer qualquer coisa para atrair a atenção de Stark se Dragon tirar a mão da sua boca?
Aphrodite assentiu.
– Eu confio nela – Kevin afirmou. – Se ela diz que não vai gritar, não vai. Aphrodite diz a verdade. Certo?
Aphrodite assentiu de novo.
– Não é sábio confiar nela – Dragon disse.
Kevin abriu o sorriso.
– Foi a mesma coisa que você disse sobre mim.
O Guerreiro suspirou.
– Certo, escute bem. Vou tirar a mão da sua boca – Dragon falou no ouvido de Aphrodite –, mas não vou tirar a minha adaga do seu pescoço. Se você fizer qualquer coisa para trazer soldados até nós, vai ser a primeira a morrer. Entendido?
Aphrodite assentiu mais uma vez. Lentamente, Dragon tirou a mão da boca dela.
– Seu idiota! – Aphrodite sussurrou para ele. – Você me viu dizendo para vocês fugirem. Você sabia que eu não ia chamar o exército. Você agiu como um babaca de merda indo até lá em cima e me arrastando! – Ela voltou sua atenção para Kevin. – Eu sabia que você era diferente. Que diabos está acontecendo aqui?
– É uma longa história, mas eu prometo que vou te contar tudo. Primeiro, Dragon e o resto do seu povo precisam escapar – Kevin respondeu.
– E ela ainda precisa vir com a gente – Dragon disse.
– Eu não vou com vocês merda nenhuma. – Aphrodite o fuzilou com os olhos. – É melhor você cortar o meu pescoço agora.
– E, se você fizer isso, vai ser igual a eles – Kevin acrescentou. – Além do mais, aposto que Anastasia vai ficar super irritada com você.
– Isso sem falar no que vai acontecer se eu não voltar lá para cima logo. Stark vai vir para cá procurando por mim. E o que diabos você acha que ele vai fazer se não me encontrar? Simplesmente deixar você e o seu grupo nadarem de volta para casa?
Dragon franziu o cenho para Aphrodite, mas tirou a adaga do pescoço dela.
– E agora? – Dragon perguntou.
– Agora vocês têm que sair daqui. Rápido. Stark vai...
– Aphrodite! Heffer! Que inferno, onde vocês estão? – a voz irritada de Stark lá no alto chegou até eles.
Aphrodite não hesitou. Ela colocou as mãos ao redor da boca para amplificar o som e gritou para o alto do barranco.
– Vá embora! Estou fazendo xixi! Como se já não fosse ruim o bastante ter um vampiro vermelho fedorento me seguindo por aí e eu ter quebrado o maldito salto da minha bota Jimmy Choo aqui neste mato idiota. Posso ter um pouquinho de privacidade?
– Ela está bem, General! – Kevin acrescentou. – Ela está logo atrás de um monte de arbustos. Eu quase consigo vê-la e...
– Não se atreva a olhar! – Aphrodite berrou, fazendo toda a fila de pessoas em retirada congelar e olhar para ela. – Eu juro pela Deusa, se vocês dois me fizerem perder a paciência, vou contar para Neferet que vocês me trataram como merda, com zero respeito. Não importa o quanto ela possa estar irritada comigo, ela definitivamente não vai tolerar que a Profetisa dela seja desrespeitada!
Houve uma pausa em que os três prenderam a respiração, então a voz de Stark – que continuava irritada – finalmente respondeu.
– Só ande logo! Isto não é um maldito piquenique.
– Eu não vou andar logo! Vou levar o tempo que precisar fazendo xixi! E você pode levar esse tenente fedido de volta com você! – Aphrodite gritou e então sussurrou para Kevin. – Suba lá rápido e cuide para que ele não venha para cá.
– Entendido. – Antes de sair, ele olhou para Dragon. – Você vai deixar que ela volte, certo?
– Sim. Eu vou deixar – ele disse com óbvia relutância.
Então Kevin subiu o barranco e passou correndo pelos cedros. Aphrodite e Dragon permaneceram totalmente imóveis até ouvirem os sons de dois homens se afastando do riacho.
Aphrodite deu um longo suspiro de alívio e então percebeu que Dragon a estava encarando.
– O que é? – ela disse rispidamente.
– Por que você fez isso?
– Porque eu não quero mais ninguém sendo massacrado por esses malditos vampiros vermelhos.
– Você não está do lado de Neferet? – Dragon perguntou.
– Não. Eu estou do meu próprio lado.
– Então como posso confiar que você não vai nos trair?
Ela encolheu os ombros.
– Não faço ideia. Você só vai ter que dar um salto de fé. Meu palpite é que é o mesmo tipo de salto que você deu para confiar em Kevin.
– Ele se provou digno de confiança.
– Não foi isso o que eu acabei de provar?
Eles ficaram se encarando até que finalmente Dragon desviou o olhar.
– Eu vou embora agora. Com o meu povo.
– Certo. Eu vou esperar o máximo que posso e então voltar para a plantação. Ah, o Exército Vermelho está escondido no bosque de nogueiras-pecãs do outro lado da pista, então não voltem.
– Não vamos voltar.
– Vocês tiraram um caminhão daqui antes de os soldados aparecerem? – ela perguntou.
Ele hesitou, mas respondeu.
– Sim.
– Ótimo. Era o que eu esperava quando vi apenas um reboque lá em cima.
– Você disse a eles que havia outro?
– Ah, que merda, claro que não. Como eu já disse, estou cansada de ver pessoas sendo massacradas pelo Exército Vermelho – Aphrodite respondeu.
– Mas você ainda está contando suas visões para Neferet – Dragon observou.
– Eu estou fazendo o que tenho que fazer para sobreviver. Assim como você. – Aphrodite fez uma pausa e então teve que perguntar: – Anastasia está bem?
– Sim. Ela está segura.
– Diga a ela que fico feliz por isso.
Ele continuou olhando para ela antes de dizer:
– Você pode se juntar a nós, sabe. Depois do que você fez aqui hoje, nós a aceitaremos.
Aphrodite ignorou a palpitação de esperança que sentiu. Como seria fazer parte de algo nobre como a Resistência? Ter amigos? Não se sentir tão sozinha o tempo todo?
Mas eles não iriam querê-la. Não se eles soubessem da verdade.
– Vou manter isso em mente. E, ahn, obrigada pelo convite.
Ele assentiu com um grunhido antes de se virar e voltar para o riacho. Ele gesticulou para que a fila continuasse a se mover de novo, e Aphrodite os observou desaparecendo assim que o curso de água virou para a direita. Então ela espanou terra, folhas e sabe a Deusa o que mais do seu traseiro, subiu o barranco e voltou mancando para o campo de feno.
Stark e Kevin estavam parados na frente do Hummer líder. O resto havia desaparecido – ela presumia que estavam dentro do bosque do outro lado da pista.
Sem hesitação, Aphrodite marchou na direção de Stark.
– Estou indo embora.
– Sinto muito. Não vai dar. Esta noite está apenas começando – Stark disse.
– Oh, você me entendeu mal. Eu não pedi a sua permissão. Eu não preciso da sua permissão. Eu sou uma Sacerdotisa e uma Profetisa de Nyx. A nossa sociedade ainda é matriarcal, certo?
Stark pareceu surpreso com a pergunta.
– Sim, claro que é.
– Exatamente. Então, eu sou superior a você. Na verdade, eu sou superior a todos vocês, exceto Neferet. Então deixe-me repetir. Estou indo embora. Ah, e esse garoto fedido vai me levar para casa. Estou finalmente sentindo o efeito do Xanax e da bebida... melhor não dirigir.
– Veja bem, Aphrodite, Neferet disse que você deveria... – Stark começou, mas Aphrodite calou a boca dele com um gesto abrupto.
– Eu sei exatamente o que Neferet disse. Eu deveria me juntar a vocês nesta missão. Eu fiz isso. Eu deveria localizar a plantação correta e indicá-la para você e as suas criaturas vermelhas. Fiz isso também. E agora chega. Eu não vim aqui para acampar. Eu não vim aqui para ficar sentada cantando canções de guerra com um monte de soldados. E eu acabei de quebrar o salto de uma bota que custou quase dois mil dólares fazendo uma caminhada por aí na natureza. Deusa! Eu simplesmente não posso mais aguentar isso. Estou indo embora. E você, General Cara do Arco, pode ir direto para o inferno. – Ela olhou para Kevin. – Bora, Fedido.
Kevin olhou para Stark, que passou a mão pelo seu cabelo grosso e suspirou. De novo.
– Tudo bem. Podem ir. Mas eu vou contar para Neferet que eu aconselhei você a ficar.
– Tanto faz. Você acha que Neferet ficaria aqui fora a noite inteira se não tivesse nenhuma coisa acontecendo? – Ela deu as costas a eles e foi até o lado do passageiro do Hummer, onde ficou, batendo o pé freneticamente, esperando que Kevin abrisse a porta para ela, o que ele fez antes de dar uma corridinha contornando o carro para assumir a direção.
Ela deixou que ele manobrasse para fora do campo e entrasse na Lone Star Road para começar a falar.
– Pode contar tudo o que sabe. Agora.
20
Outro Kevin
Kevin contou tudo a Aphrodite. Ele começou pelo fato de que já era diferente desde que foi Marcado – que tinha conseguido reter parte da sua humanidade mesmo depois de ter se Transformado no vampiro vermelho mais jovem da história. Ele contou que foi transportado para um mundo alternativo onde havia outra Morada da Noite e o que aconteceu com os outros vampiros e novatos vermelhos que também estavam lá.
E então Kevin contou sobre a gêmea dela no Outro Mundo – ou pelo menos o máximo que sabia sobre aquela Aphrodite. Contou que havia sido o sacrifício dela que salvou os novatos vermelhos do seu mundo e que foi o dom que ela recebeu de Nyx que o tinha salvado, além dos vampiros vermelhos que continuavam vivos no mundo de Zo.
Kevin também contou a ela sobre Neferet – como ela havia se tornado imortal e quase destruído primeiro Tulsa e depois o mundo inteiro. E como Zoey e o seu grupo tinham sido mais inteligentes do que ela e a aprisionado. Para sempre.
Então o silêncio preencheu o interior do veículo. Ele deu uma olhada para Aphrodite. Ela não estava bebendo. Ela estava encarando Kevin com uma expressão de olhos arregalados, mas indecifrável.
Finalmente, ela falou:
– Então, a Zoey, que é sua irmã lá, ela e eu trabalhamos juntas na Morada da Noite de Tulsa?
– Bem, sim, mas é mais do que isso. Vocês duas são amigas. Grandes amigas.
Ela continuou encarando Kevin. Quando ele tirou os olhos da estrada e se virou para ela rapidamente, viu um instante de dor no rosto dela. Então, com voz bem baixa, Aphrodite falou:
– Por isso que Neferet achou que você parecia familiar. E, agora que estou observando... eu vejo a semelhança também. Você é irmão de Zoey Redbird. A Zoey Redbird que foi assassinada há mais de um ano.
– Sim, é isso que estou dizendo a você. Só que ela está viva naquele Outro Mundo. Então, você conhecia a minha irmã antes da morte dela?
– Não. Na verdade, não.
– Mas você disse que nós somos parecidos... e Neferet meio que me reconheceu também. Zo deve ter sido marcante para você.
– Sim. Ela me marcou, sim. Ou pelo menos a morte dela marcou. – Então Aphrodite apontou para a Quick Trip na esquina da Rua Cinco com a Denver. – Pare naquele estacionamento. Preciso contar uma coisa e não quero que você surte e cause um acidente.
– Ei, você não precisa se preocupar comigo. Eu não surto facilmente.
– Só faz o que mandei – ela disse.
Ele entrou no estacionamento.
Quando ele parou o veículo, Aphrodite se virou no seu assento para poder olhar para o rosto dele.
– Ok, eu não queria contar isso para você, mas provavelmente iria descobrir de qualquer jeito. Tenho certeza de que Anastasia sabe. – Aphrodite encolheu os ombros, parecendo derrotada. – E eu detesto mentir. Eu nem gosto de omitir. Então, aí vai. Eu não conhecia a sua irmã. Neferet dissolveu a organização das Filhas das Trevas antes de Zoey chegar na Morada da Noite. Eu não tinha nenhum motivo para conhecê-la, porque, depois que as Filhas das Trevas se foram, não havia mais motivos para novatos me encherem o saco. Então eu fiz a Transformação e não tinha mais motivo para andar com novatos de qualquer modo. Mas eu lembro do rosto da sua irmã porque tive uma visão com ela. E Neferet se lembra do rosto dela porque eu contei a ela sobre a visão. – Aphrodite fez uma pausa, como se ela estivesse tendo dificuldade para escolher as palavras. Então ela soltou de uma vez: – Na visão, eu era Neferet. E eu vi uma novata, que não era nem uma vampira ainda, ser a responsável pela morte de Neferet.
Kevin se sentiu enjoado.
– Essa novata era a minha irmã?
– Sim.
– Então, Z estava certa quando me disse que tinha certeza de que a Neferet do nosso mundo a assassinou e fez parecer que os humanos do Povo da Fé tinham feito isso como um crime de ódio.
Ele não havia formulado a frase como uma pergunta, mas Aphrodite ainda assim respondeu.
– Sim. Neferet matou Zoey por causa da minha visão.
Kevin não sabia o que dizer. Ele desviou o olhar de Aphrodite, focando no fluxo constante de veículos, principalmente caminhões, que entravam e saíam da Quick Trip.
– Você gostava de mim do lado de lá?
A pergunta de Aphrodite surpreendeu Kevin, que deu uma resposta automática.
– Sim. Mais do que isso.
– Imagino que eu gostava de você também?
– Você me deu um beijo de despedida e me disse para encontrar você aqui.
– Ok, olhe só, o que você está me contando deve ser verdade pelo menos em parte. Você obviamente é diferente do resto dos vampiros vermelhos. E você não estava fedido na noite passada, então deve estar falando a verdade em relação a isso. – Ela encolheu os ombros delicadamente. – E essa porcaria nojenta de sangue que você usa como perfume. Mas você tem só dezesseis anos. Você é uma criança.
– Vou fazer dezessete em agosto – ele acrescentou rapidamente.
– Que seja. Você ainda é uma criança. E está me dizendo que a sua irmã e eu somos amigas do lado de lá e que você e eu temos um lance. Isso simplesmente não se parece com algo que eu faria. Com nenhuma versão de mim. Sem ofensas.
– Eu não sou uma criança. Eu sou um tenente do Exército Vermelho, que já viu mais mortes até do que você, só que comigo foram mortes reais, acontecendo na minha frente. Deixei de ser criança há muito tempo. E você precisa definir um lance. A gente não se pegou nem nada assim, mas a gente realmente tinha uma conexão, e juro que aquele beijo foi mais do que um selinho na bochecha. Ah, e lá você não é só amiga da minha irmã. Você é respeitada e amada por um monte de gente. Você é amiga de todo mundo.
– Você tem certeza absoluta disso? Eu não faço amigos com muita facilidade. Principalmente porque a maioria das pessoas é plebeia.
Kevin ficou surpreso ao se ouvir dando risada.
– Eu não sei a história inteira sobre como tudo aconteceu lá. Não tive tempo para perguntar isso pra Zo, mas você definitivamente faz parte do grupo dela, e é um grupo bem grande. Na verdade, você fez amizade com todas as Grandes Sacerdotisas que eu conheci.
– Espere aí, o quê? Pensei que você tinha dito que a sua irmã era a Grande Sacerdotisa.
– Ela é, mas tem várias Grandes Sacerdotisas na Morada da Noite dela: Stevie Rae, Shaylin, Shaunee, Kramisha, Lenobia...
– Lenobia? A professora de equitação? Ela está viva por lá?
– Está. Assim como Travis e todos os cavalos deles.
Aphrodite passou uma mão trêmula pelo seu rosto.
– Fico feliz que eles estão vivos em algum lugar.
Kevin a observou.
– Ah, entendi. Ninguém da Resistência vazou a localização de Keystone. Você teve outra visão. Você contou para Neferet, e Neferet enviou o Exército Vermelho para acabar com eles.
– Sim. Você quer dar meia-volta e me levar para Dragon de novo para se vingar?
Ela falou sem se alterar – até soou meio arrogante, mas Kevin viu como o rosto dela ficou pálido e como as mãos dela tremiam tanto que ela teve que juntá-las em seu colo.
Ele não respondeu à pergunta dela. Em vez disso, fez outra.
– Na verdade, eu acho que você não gosta de toda essa matança. Então, por que você fez isso?
– Eu contei a ela sobre Zoey porque antigamente eu ainda acreditava que Neferet estava a serviço de Nyx. Quer dizer, abater alguns humanos parecia bom. Quem não está farto daquela coisa idiota de racismo e misoginia deles? Pelo amor da Deusa. Essa merda tem que ficar tão extinta quanto os dinossauros.
– O que isso tem a ver com você falar para Neferet matar a minha irmã?
– Essa é a questão! Eu ainda acreditava que Neferet era boa. E eu não sabia que ela iria matar a sua irmã.
– Mas você sabia que ela iria matar Lenobia e Travis. Você deve ter visto isso na sua visão.
– Eu vi. Eu também tive aquela maldita visão horrível quando estava conversando com Neferet. E-eu era Lenobia. Eu falava como Lenobia. Eu morri como Lenobia. Eu experimentei tudo com ela. A morte do seu companheiro. A morte dos seus cavalos. A morte dos seus amigos. Foi algo muito além de horrível. Eu nem percebi que estava descrevendo tudo para Neferet até depois que já tinha passado... depois que eu me recuperei da visão e ela já tinha enviado o Exército Vermelho para acabar com eles. – Aphrodite respirou fundo e enxugou as lágrimas que estavam escorrendo pelo seu rosto pálido. – Mas você está certo. Eu sou responsável pela morte deles. Eu sou responsável por todas essas mortes.
– Eu não entendo. Se você sabe como Neferet é horrível, por que você continua contando a ela sobre suas visões?
– Eu tento não contar! E quando não posso esconder que tive uma visão, tento deixar de fora qualquer detalhe que possa levar aquele maldito exército de monstros até as pessoas que eu os vejo massacrando... mas eu também quero sobreviver! Eu detestei contar a ela sobre a Resistência escondendo pessoas naqueles fardos de feno, mas eu sabia que já tinha chegado ao meu limite com Neferet. Ela ia me fazer viver nos túneis com aquelas criaturas. Eu não posso fazer isso. Simplesmente não posso.
Kevin não conseguiu dizer nada. Ele queria dizer que ela poderia se levantar contra Neferet. Que ela poderia ser forte. Ele conhecia uma Aphrodite que era forte, mas, enquanto a observava, ele percebeu que ela não era aquela Aphrodite. Ainda.
Ele colocou o Hummer em movimento e saiu do estacionamento, virando em direção ao norte para o centro da cidade.
– Você não vai me levar para Dragon?
– Não.
– Para onde você está indo?
– Para a estação. Você pode dirigir o Hummer de lá para a Morada da Noite – ele disse.
– Você não vai mesmo me entregar para a Resistência?
– Não vou.
– Por que não? – ela perguntou.
– Porque eu não sou um monstro – ele respondeu. – Eu tenho a capacidade de amar e de perdoar. Eu perdoo você. Você fez o que achou que tinha que fazer para sobreviver. Você ainda está fazendo isso. Acho que todos nós estamos.
– É assim tão ruim lá nos túneis quanto eu acho que é?
– Pior – Kevin falou.
– Eles não vão conseguir ver que você não é igual aos outros?
Kevin suspirou.
– Espero que não.
– Mas, se eles descobrirem isso, provavelmente vão te matar. Ou te devorar. – Ela estremeceu. – Ou alguma outra coisa medonha e horrível.
– Bom, eu tenho aquela gosma de sangue e estou acostumado a esconder o que realmente sinto quando estou perto de outros vampiros vermelhos. Você disse que eu estou fedendo, certo?
– Sim. Com certeza. Você não sente o cheiro?
– Tento não sentir.
Aphrodite riu alto e, quando Kevin estava se preparando para virar na rua que ia levá-los até a estação, ela disse:
– Não vire aí.
– Mas é o caminho mais rápido até a estação.
– Eu sei, mas vire à direita.
– Esse não é o caminho para a estação.
– Sim. Eu sei. Vá para a Saks.
– Ahn? – Ele estava olhando para ela sem entender e quase subiu na guia.
– Ah, que merda! Olhe por onde anda e feche a boca – ela disse.
– Por que você quer que eu a leve até a Saks?
– Shhh. Estou pensando. Apenas dirija.
Kevin fez o que ela pediu, indo até a Utica Square e a Saks Fifth Avenue, que era a loja-âncora do centro de compras ao ar livre.
– Estacione ali nas sombras na lateral, não na frente – Aphrodite o orientou.
Ele entrou em uma vaga escura e estacionou o Hummer.
– Então, imagino que devo esperar aqui fora enquanto você vai fazer compras e depois vou dirigir até a estação?
– Não. – Aphrodite enfiou a mão na sua bolsa gigante, fazendo a garrafa de champanhe intocada que sobrou tilintar contra uma das taças flûte de cristal. – Achei... venha com a Mamãe – ela murmurou enquanto pegava um cartão de crédito platinum, que entregou para Kevin. – Pegue isto aqui. Compre roupas novas para você. Roupas que não estejam fedidas e que vistam bem. E nada dessas calças jeans skinny também. Esse look hipster é ridículo. Pegue algumas camisetas também. Nada berrante. Só uma coisa simples e, repito, que não vistam mal. – Ela deu um olhar de reprovação para as roupas dele, emprestadas de Dragon, que era decididamente mais baixo e mais musculoso do que Kevin. – Pegue o suficiente para encher quatro ou cinco sacolas grandes. Ah, e não se esqueça de pegar um pijama masculino. Mantenha isto em mente quando for escolher o pijama: eu não quero ver a sua salsicha caída através dele, então pegue algo com forro.
– Estou tão confuso. – Kevin encarou o cartão de crédito. – Por que você está me dando isso?
– Você tem dinheiro suficiente para comprar quatro ou cinco sacolas de roupas da Saks?
– Claro que não.
– É por isso que estou te dando o meu cartão.
– Aphrodite, eu agradeço muito, mas o que eu estou usando está mais do que bom para os túneis.
– Sim, eu concordo. Mas não está bom o suficiente para andar comigo – ela disse.
– Quê?
Ela suspirou dramaticamente.
– Eu. Tenho. Um. Plano. Agora entre aí, faça o que eu disse e me deixe pensar em tudo.
– E se eles notarem que eu não sou Aphrodite LaFont?
Ela revirou os olhos para o alto.
– Use aquela coisa de controle mental de vampiro vermelho nessa gente simplória.
– Ah, sim. Tinha esquecido disso. Ok. – Ele começou a abrir a porta e fez uma pausa. – Hum, você precisa de alguma coisa de lá?
Ela estremeceu.
– Não. Não é a Nordstrom. Eu prefiro a Miss Jackson’s.
Ele sorriu maliciosamente para ela.
– Ei, no mundo de Zo a Miss Jackson’s fechou.
Aphrodite ergueu a mão para impedi-lo de falar mais.
– Não cometa uma blasfêmia dessas. Agora suma. E vá logo. Eu só tenho mais essa garrafa de champanhe.
– Sim, senhora. – Ele prestou uma continência para Aphrodite e então fez exatamente o que ela tinha mandado.
21
Zoey
Horda Nerd e nossos Guerreiros e companheiros!
Encontrem-me na árvore quebrada. Tragam velas de círculo
& sálvia. Muita sálvia. Estarei lá em 10 min.
Não me dei tempo para pensar melhor. Apertei o botão de ENVIAR no grupo e então voltei minha atenção para a mesa do Centro de Mídia na minha frente e para o velho livro aberto com cheiro de mofo com o título simples de Magia Antiga. Voltei folheando algumas páginas e reli o final do capítulo anterior.
Lembre-se, quando pedir o auxílio de seres de Magia Antiga, principalmente espíritos elementais, sempre há um preço. Com frequência eles se satisfazem com sangue, mas os Antigos ficam entediados facilmente e gostam de excentricidades. Eles tendem a valorizar pagamentos incomuns e difíceis de obter. Garanta que o método de pagamento é específico e garanta ainda mais que o pagamento seja feito imediatamente. Não cometa o erro de acreditar que pode escapar da dívida que fez com os Antigos. Você não irá escapar – mesmo se o pagamento requerido for a sua vida. Você irá morrer. Disso não há a menor dúvida.
– Que inferno! – eu disse para o livro e para a Grande Sacerdotisa vampira morta há muito tempo que o tinha escrito séculos atrás. – Inferno, inferno, inferno. Eu detesto isso.
Mas não havia nada que eu pudesse fazer em relação a isso. Eu já tinha tomado a minha decisão. Eu inclusive acreditava que era uma decisão inteligente. Bom, eu esperava que fosse uma decisão inteligente. Independente de ser inteligente ou não, eu acreditava que era a decisão certa.
– Stark vai ficar tão irritado – eu murmurei para mim mesma.
– Por que eu vou ficar irritado?
Eu dei um pulo e me virei na minha cadeira.
– Deusa! Você me assustou.
– Eu te assustei porque você está se escondendo aqui e achou que ninguém fosse te encontrar? – Ele se sentou ao meu lado e olhou com desconfiança para o livro aberto.
– Eu não estou me escondendo. Estou pesquisando. Sozinha.
– Desculpe. Não quis te atrapalhar.
Ele começou a se levantar e eu segurei a mão dele.
– Não vá. Desculpe. Falei de um jeito rude, não foi o que eu quis dizer. – Respirei fundo para me acalmar. Eu não queria ter aquela conversa com Stark. Nunca. Só que já estava na hora de parar de ficar fugindo feito criança. Eu tinha tomado a minha decisão, então precisava contar a verdade para ele. – Eu preciso conversar com você.
Ele virou a sua cadeira para me encarar.
– Finalmente!
O olhar de alívio dele me deu um aperto no estômago.
Stark tocou o meu rosto de um jeito doce e íntimo que sempre me dava um frio na barriga e abriu aquele sorriso metidinho dele que eu amava desde que o conheci.
– Ei, seja o que for, a gente pode lidar com isso. Juntos. Só me conte o que está errado e então vamos descobrir como resolver o problema.
Eu me inclinei para a frente e o beijei – de leve e devagar. Ele me puxou para os seus braços e retribuiu o beijo, e naquele momento eu deixei que o meu mundo fosse preenchido pelo meu Guerreiro, meu amante, meu Guardião e meu amigo.
Quando finalmente nos separamos, o seu sorriso ficou metidinho de novo.
– Se o problema for que você precisa ser beijada assim com mais frequência, eu tenho a solução. É um trabalho difícil, mas você pode definitivamente contar comigo, minha Rainha.
Eu dei um soco de brincadeira no ombro dele.
– Um trabalho difícil?
– É, mas alguém tem que fazê-lo.
Eu balancei a cabeça para ele e então fiquei séria. Chega de procrastinar! Simplesmente conte para ele.
– Eu vou para o Outro Mundo atrás de Kevin – eu disse.
– É, bom, eu já imaginava. Quando partimos?
Eu peguei a mão dele com as minhas.
– Eu vou hoje à noite. Você vai ficar aqui.
Ele não disse nada por vários segundos. Então, lentamente, ele puxou a sua mão que estava entre as minhas.
– Por quê? – a voz dele soou sem alterações, mas os seus olhos se encheram de dor.
– Bom, Neferet tem que ser detida e não posso deixar Kevin destruir a si mesmo com Magia Antiga, coisa na qual está bem encaminhado. Ele está usando Magia Antiga. Você pode sentir a frequência com que ele está fazendo isso. Ele deve acreditar que precisa. Sei que eu mesma acreditei. Todos nós sabemos disso. Neferet é um pesadelo, mas Kevin não entende nada sobre Magia Antiga nem sobre Neferet, e isso vai...
– Não perguntei por que você está indo para lá – Stark me interrompeu. – Eu já tinha entendido isso. Por que eu não vou?
– Ah. Desculpe. Porque você não pode.
– Se você pode atravessar para um Outro Mundo, por que diabos eu não posso?
– Não quis dizer que você não pode fisicamente. Eu quis dizer que você não pode porque já tem um James Stark no Outro Mundo. Ele é um general no exército de Neferet. Kevin disse que ele inclusive é amante de Neferet. – Fiz uma careta. – O que é tão nojento que não suporto nem pensar, e pode acreditar... eu vou fazer o possível para dar um jeito nisso. Deusa, você consegue imaginar como...
– Eu não ligo pra isso. Aquele não sou eu. Eu me importo com você. Essa Zoey aqui... minha Rainha, a quem eu sou Juramentado como seu Guerreiro e a quem eu protejo como o seu Guardião concedido pela Deusa. Z, eu entendo por que você tem que ir. Sei que você tem pensado sobre isso, que está preocupada com o Outro Kevin, eu até esperava mesmo que você fosse. Mas eu tenho que ir com você.
Eu balancei a cabeça.
– Sinto muito. Queria que você pudesse ir, mas não faz o menor sentido. Você já está lá. E não dá pra disfarçar sua presença. Eu preciso circular por lá discretamente, dizer para Kevin parar de usar Magia Antiga, ajudá-lo a derrotar Neferet, o que acho que eu já descobri como fazer, e então voltar para cá. – Encontrei o olhar angustiado dele e disse o que eu precisava dizer. Disse o que ele não queria escutar, mas precisava. – Stark, você não ia me ajudar se fosse para lá. Você iria dificultar ainda mais o que já vai ser difícil. Sinto muito – eu repeti. – Mas já decidi. Eu vou e você não.
A dor se transformou em raiva.
– Pensa que eu não sei o real motivo para você não querer que eu vá? É porque você vai encontrar Heath e não quer que eu fique segurando vela!
Eu já esperava que ele dissesse isso. Eu já esperava a sua mágoa e a sua raiva, mas isso não tornava a situação nem um pouco mais fácil.
– Não, Stark. Não é por isso que você não pode vir comigo. Se você fosse pego, o que seria fácil porque o seu equivalente lá é um general poderoso que todo mundo conhece, você seria morto. Ou torturado. Ou coisa pior. E eu não conseguiria aguentar isso. Na verdade, vai além de eu poder aguentar isso ou não. Tem a ver com mais coisas do que o que você pode ou não aguentar. Se eles o pegassem, isso seria ruim para Kevin e para o mundo dele com certeza, mas ruim para o nosso mundo também. Stark, pense. O que aconteceria se Neferet descobrisse que há um mundo inteiro aqui em que ela não está no comando? E pense no que ela faria se... ou melhor, quando o Outro Kevin e a sua Resistência virarem o jogo e começarem de fato a derrotá-la. O que Neferet faria?
– Não sei, porra!
– Você sabe, sim. Todos nós sabemos. Ela iria fugir. E ela iria fugir para este mundo. – Peguei a mão dele de novo. – Stark, eu te amo. Eu detesto te magoar. E eu não vou para lá só para ver Heath. Mas isso não tem a ver com nós dois. Tem a ver com dois mundos inteiros e garantir que as Trevas não vençam nunca.
– Você escutou o que disse? Você não vai para lá só para ver Heath! “Só”! – Ele fez aspas no ar com os dedos. – Mas você vai encontrá-lo, não vai?
– Não sei. Kevin me disse que ele está na Universidade de Oklahoma. Eu não vou para lá. Eu vou para Tulsa.
– Eu não acredito em você.
– Por favor, não faz isso comigo. Não tenha ciúme de alguém que nem está vivo – eu disse.
– Mas esse é o problema, né? Ele está vivo naquele mundo para onde você está morrendo de vontade de ir.
Desta vez eu soltei a mão dele por vontade própria.
– Você acha mesmo que eu quero ir? Que eu quero lutar com Neferet de novo? Que eu quero deixar a minha casa, os meus amigos e você? – Balancei a cabeça. – Você está com ciúme e está errado. – Eu me levantei. – Marquei um encontro na árvore quebrada. Tenho que ir.
– Sim, eu sei. Eu recebi a sua mensagem no grupo. Foi super íntima. – Ele se virou na cadeira e ficou olhando o livro em vez de me olhar. – Era assim que você ia me contar?
– Por mensagem? Claro que não!
– Não foi isso que eu pensei. Perguntei se você ia me contar que ia para lá e que eu ia ficar aqui na frente de todo mundo.
Mordi a parte interna da bochecha. Na verdade, eu tinha planejado contar para todo mundo junto que eu estava indo – e quem ia e quem não ia comigo. Bom trabalho, Z. Stark agora pensa que você queria insultá-lo e constrangê-lo, além de trocá-lo por Heath.
– E-eu não queria ferir os seus sentimentos. Só sei que eu tenho que ir e que tenho que contar isso para todo mundo. Não pensei que você ficaria louco se eu contasse para todos ao mesmo tempo – eu falei pateticamente.
Então ele levantou os olhos para mim.
– Eu não estou louco porque você ia contar para mim ao mesmo tempo que para os outros. Estou triste. Triste por ser só isso que eu significo para você.
– Stark! Você significa tudo pra mim!
– Isso é papo furado.
Eu fui até o lado dele e coloquei a mão no seu ombro. Quis tocar o cabelo dele, o seu rosto, beijá-lo e nunca mais soltá-lo, mas ele se esquivou da minha mão e voltou o seu olhar triste e nervoso para o velho livro aberto na frente dele.
– Eu te amo. Isso não é papo furado. Você sabe disso. Você só precisa sentir... sentir a nossa ligação.
– Você acha que eu vou conseguir sentir quando você estiver lá? – ele perguntou sem expressão.
– Não sei – eu disse. – Espero que sim. Acho que posso sentir a minha ligação com você em qualquer mundo.
– Eu espero que não.
Aquelas quatro palavras me cortaram fundo, penetraram através da minha pele, músculos e ossos e me deixaram sem voz e muito, muito triste. Peguei a minha mochila e a joguei por cima do ombro. Então dei as costas para o meu Guerreiro e saí do Centro de Mídia.
Estavam todos lá. O meu círculo: Aphrodite, Damien, Shaunee, Shaylin e Stevie Rae. E também os seus Guerreiros e amantes: Darius, Jack, Erik, Nicole e Rephaim.
Só que nenhum sinal de Stark. Ele não tinha me seguido quando saí do Centro de Mídia. Engoli a minha tristeza e me aproximei da árvore quebrada e escura, pisando sem fazer barulho para poder observar os meus amigos antes que eles percebessem que eu estava ali.
Aphrodite estava obviamente no comando. Ela estava apontando para alguns lugares em volta da árvore arruinada, e Outro Jack, super fofo com uma camiseta violeta clara por dentro de uma adorável calça jeans rasgada, estava levando as velas ritualísticas para os pontos que ela tinha escolhido. Era fácil ver o que Aphrodite estava fazendo, e eu me enchi de gratidão por ela. Ela estava estabelecendo uma circunferência ao redor da árvore, preparando tudo para o traçado do círculo.
Stevie Rae estava segurando uma pilha grande de bastões de defumação de sálvia, os quais ela foi entregando para Damien, Shaunee e Shaylin.
Ótimo. Essa vai ser a parte fácil. Espero que eles estejam preparados para o que vai acontecer em seguida.
– Ei, Z! Aí está você! – Stevie Rae sorriu com covinhas para mim. – Eu trouxe a sálvia.
– E eu trouxe as velas – Outro Jack disse, abrindo um sorriso luminoso e doce para mim.
– Imagino que você vá fazer a limpeza desta árvore horrorosa – Aphrodite disse.
– Vou sim – eu disse. – Vamos começar com isso, só que primeiro preciso falar com todos vocês.
Os meus amigos se aproximaram, formando uma meia-lua atenta diante de mim. Eu analisei os rostos deles, pensando em todas as coisas pelas quais havíamos passado e como isso tinha nos deixado próximos. Eu não queria partir. Eu não queria encarar Trevas que já tínhamos derrotado. Eu me senti triste, com medo e muito sozinha.
– Está tudo bem, Z – Stevie Rae afirmou. – Seja o que for, estamos aqui com você.
– Só conte o que você precisa – Damien falou. – Vamos resolver.
– A sua aura está forte. Seja o que for, você está em paz com essa resolução – Shaylin observou.
– Lembre-se de que você não está sozinha – Shaunee disse. – A gente está aqui pra te proteger.
– Assim como Nyx – Aphrodite acrescentou. – A Deusa está com você também. Sempre, Z.
O resto dos meus amigos assentiu concordando.
Pisquei bem rápido, determinada a não deixar as minhas lágrimas caírem.
– Obrigada. Isso significa muito para mim, e eu realmente precisava ouvir que tenho o apoio de vocês. Espero continuar com ele quando contar o que está rolando.
– Você sempre vai ter – Stevie Rae afirmou. – Você é a nossa Grande Sacerdotisa. Nós confiamos em você, Z.
Quando senti que poderia falar sem explodir em lágrimas, eu comecei.
– Primeiro, nós vamos purificar esta árvore. Não vamos fazer nada muito louco, só um trabalho básico de defumação e limpeza, apesar de que eu vou pedir para todo mundo participar e ajudar a defumar. Ela precisa de muita limpeza.
– Você quer que a gente fique dentro ou fora do círculo? – Erik perguntou.
– Boa pergunta – eu disse, sorrindo para ele, que estava ao lado de Shaunee, com um braço em um gesto íntimo colocado sobre os ombros da minha amiga, que se recostava nele. – Quero vocês com a gente dentro do círculo, como estariam se fosse um ritual para toda a escola. Então, Jack, você pode, por favor, mexer as velas dos elementos mais para fora, para que o nosso círculo fique um pouco maior?
– Com certeza! – Jack imediatamente saiu correndo em volta do círculo, reposicionando as grandes velas votivas de modo a incluir todo mundo.
– Eu vou invocar os elementos e traçar o círculo. Aqueles que representam os quatro elementos, por favor acendam os bastões de sálvia nas suas velas elementais. Os outros podem acender os seus bastões na minha vela do espírito. – Uma ideia me ocorreu, e eu decidi que era um acréscimo perfeito a uma defumação simples. – Mas eu quero fazer disso mais do que uma simples defumação. Esta árvore... este lugar tem tanta tristeza e Trevas ligadas a ele que nós precisamos fazer algo a mais com a defumação. Precisamos trazer a alegria de volta para cá. E se a gente fizer a defumação acompanhados de uma música?
– Eu apoio totalmente! – Stevie Rae exclamou. – Que tal usar...
– Ah, que merda, não! – Aphrodite a interrompeu. – Nada de músicas do Kenny Chesney.
Stevie Rae franziu as sobrancelhas para ela.
– Você está cortando o meu coração.
– Tem que ser uma música super alegre – eu disse. – Uma que todo mundo conheça e que alguém tenha no celular.
– “When the Sun Goes Down” do Kenny Chesney é super alegre – Stevie Rae sugeriu.
Aphrodite bufou.
– Bom, segundo um grupo de pesquisadores da Universidade do Missouri, “Don’t Stop me Now” do Queen, com o seu sempre fabuloso Freddie Mercury, é cientificamente a canção mais alegre do mundo – Damien afirmou.
Todo mundo se virou para ele.
– Como diabos você sabe disse? – Aphrodite perguntou.
– Eu sou inteligente e leio bastante – Damien respondeu.
– Quando ele pratica esgrima, ouve essa música. Muitas vezes – Jack lembrou, correndo de volta para o lado de Damien. – E vocês sabem como o meu Damien é um espadachim incrível!
– Isso é verdade – eu concordei. – Então, você tem essa música na sua playlist?
– Tenho – Damien disse.
Antes que eu pudesse perguntar se todo mundo conhecia a música, Jack levantou a mão como um menininho na escola encarnado.
– Sim, Jack?
– Hum, eu acabei de pensar em uma música. Uma muito, muito alegre que eu tenho certeza que todo mundo conhece. E está na minha playlist. – Ele se inclinou para Damien. – Desculpe, Damien. Espero que você não se importe.
– Eu não me importo. Qual é a música? – Damien perguntou.
Jack respondeu cantando.
– “Gota de chuva, bigode de gato...”
Stevie Rae continuou o próximo verso da canção.
– “Laço de fita, cordão de sapato!”
– “Flor na janela e botão no capim” – Shaunee cantou.
– “Coisas que eu amo e são tudo pra mim!” – Aphrodite me surpreendeu totalmente ao se juntar ao coro. – O que foi? – Ela franziu o cenho quando todo mundo a encarou. – Quem não gosta de Noviça Rebelde?
– O que você acha, Damien? – eu perguntei.
– Acho que eu amo bolas de neve e botão de pijama! Não é científico, mas eu voto em “Coisas que eu amo”.
– Por mim parece ótimo. Hum, todo mundo conhece, certo? – perguntei para o grupo, e todos, exceto Rephaim, assentiram.
– Eu vou tentar acompanhar vocês – Rephaim disse.
– Tudo bem, amor – Stevie Rae o apoiou. – Eu sei a letra inteira. Vou te ajudar.
– Ok, perfeito. Então, quando a música acabar, a gente vai terminar a defumação fazendo uma pequena pira ali, no meio do círculo, bem na frente da árvore. – Eu apontei para um lugar à frente do centro do carvalho escuro e retorcido. – Eu vou dar a volta no círculo e pegar os bastões de defumação de Damien, Shaunee, Shaylin e Stevie Rae, e então vou juntá-los ao resto dos bastões. Shaunee, depois disso vou pedir a você para acrescentar um pouco de fogo à pilha para que ela queime direito.
– Facinho – Shaunee falou.
– Isso significa que você vai deixar o círculo aberto depois da defumação – Aphrodite observou. – Então, o que vem depois?
Eu encontrei o olhar dela.
– Depois eu invoco Oak, o espírito da árvore de Magia Antiga que respondeu às minhas perguntas.
– Por que você vai mexer com Magia Antiga de novo? – Aphrodite perguntou.
– Porque vou pedir que ela me guie até o Outro Mundo, onde o meu irmão precisa da minha ajuda – respondi rápido e senti uma onda de alívio instantânea por finalmente ter contado para todo mundo.
– Isso é loucura total – Aphrodite disse.
– Não! – Os olhos de Outro Jack estavam arregalados. Ele parecia completamente aterrorizado. – Não vá, Zoey! Aquele mundo é horrível. – Ele tremia, com os braços envolvendo o seu próprio corpo. – Eu sei que o seu irmão contou algumas coisas sobre aquele lugar pra você, mas não é possível que você realmente compreenda o que acontece. Simplesmente não dá. Não vá! – Ele começou a chorar baixinho, e Damien o abraçou.
– Por que você acha que precisa ir para lá? – Darius me perguntou.
– Por várias razões – eu respondi. – Kevin tem usado Magia Antiga. Muito. E ele não tem a menor ideia de como isso é perigoso ou o que pode fazer com ele. Tenho que contar a ele antes que isso o transforme.
– Ele está usando porque é a única maneira de derrotar Neferet – Aphrodite argumentou.
– Não, não é – eu rebati. – Era a única maneira de derrotar a nossa Neferet, porque ela havia se tornado imortal.
– Bom, será que não faz sentido pensar que do lado de lá, ela já está no caminho de se tornar imortal, assim como foi aqui? – Shaunee questionou.
– Sim. E essa é outra razão pela qual eu tenho que ir para lá. Neste momento, Neferet é apenas uma vampira. Como saber o que vai acontecer se eu esperar mais? Além disso, eu tenho um plano para jogar o Exército Azul contra ela.
– Como? – Aphrodite quis saber.
– Jack, corrija-me se eu estiver errada, mas, pelo que o meu irmão me contou, os Guerreiros acreditam que Neferet ainda está a serviço de Nyx, certo?
Jack fungou e assentiu vigorosamente.
– Ah, sim. Neferet é a única Grande Sacerdotisa deles. Eles contam com ela para saber a vontade de Nyx.
– E o que aconteceria se houvesse uma prova irrefutável de que Neferet não está mais seguindo a vontade de Nyx? – eu perguntei.
– Os Guerreiros não a seguiriam mais. Bom, pode ser que alguns continuassem a segui-la. Tipo, alguns dos seus amantes. E ela tem muitos. Mas a maioria iria parar de lutar por ela, e isso inclui uma boa parte do Exército Azul – Jack respondeu.
– Esse é o meu plano – eu concluí. – Vou mostrar para todos na Morada da Noite de Tulsa no Outro Mundo que Neferet é uma fraude. Que ela está usando os seus poderes para as Trevas e não está mais seguindo Nyx.
– Bom plano, Z, mas como você vai fazer isso? – Stevie Rae questionou.
Eu sorri para a minha melhor amiga e para o seu companheiro.
– Bom, para isso eu vou precisar da ajuda de Rephaim.
– Minha ajuda? Claro que eu ajudo você – Rephaim falou sem hesitar. Então ele piscou e eu vi a compreensão brotando no seu rosto. – Você vai libertar o meu pai naquele mundo!
– Sim, isso é parte do meu plano. Quer uma maneira melhor de mostrar que Neferet não está seguindo Nyx do que ter o seu Consorte alado a denunciando na frente da Morada da Noite inteira?
– Mas Kalona era um verdadeiro idiota logo que ele foi libertado desse lado. Que diabos você vai fazer em relação a isso? – Aphrodite quis saber.
– Eu vou contar com o filho de Kalona para se conectar a ele – eu respondi. – E comigo também. Lembre-se de que eu ainda tenho um pedaço de A-ya dentro da minha alma. Rephaim e eu, juntos, devemos ser capazes de influenciar Kalona, principalmente porque a gente sabe que lá no fundo ele ainda ama Nyx, e só era tão terrível porque pensava que a Deusa nunca iria perdoá-lo.
– E nós vamos convencer o meu pai de que ele está errado em relação a isso – Rephaim completou.
– Espero que bem mais rápido do que ele foi convencido por aqui – Aphrodite resmungou.
– Então, você quer que Rephaim vá para o Outro Mundo com você – Stevie Rae disse.
– Sim, eu quero.
– Mas, mesmo se isso funcionar, ainda vai ser preciso lidar com o Exército Vermelho – a voz de Jack soou trêmula. – E eles são monstros. Eles não ligam para quem Neferet segue. Eles não ligam para Trevas e Luz. Eles só se importam em saciar a sua fome.
– E é por isso que o meu plano tem uma segunda parte. Stevie Rae, desculpe, mas eu preciso pedir que você venha comigo também, por favor.
O olhar de alívio dela me deu um aperto no coração.
– Ah, Z! É claro que eu vou com você!
– Se eu estou entendendo esse seu plano, você vai precisar de mim também – Aphrodite falou.
– Sim, mas não essa versão de você. A Outra Aphrodite – eu respondi.
– Ok, olhe só, seria muito mais fácil se eu fosse com você – Aphrodite insistiu.
– Você não pode. Você já está lá, e você é uma Profetisa, mas também é uma vampira azul completamente Transformada. Não a primeira vampira azul e vermelha da história – eu a relembrei.
– E daí? Erik pode me dar um pouco daquela porcaria que eles usam nos atores para cobrir as suas Marcas para que os humanos consigam esquecer que estão vendo vampiros atuarem – Aphrodite argumentou.
– É, posso sim. Tem bastante disso na sala de Teatro – Erik disse.
– Apesar de o meu homem não usar esse tipo de coisa – Shaunee observou. – Porque se aqueles humanos intolerantes e idiotas não conseguem ter empatia suficiente para se identificar com alguém que parece diferente, isso é problema deles e eles podem parar de assistir aos seus filmes.
– Mas todos querem assistir aos seus filmes – Jack soou adoravelmente deslumbrado.
Erik deu para Jack aquele sorriso de estrela de cinema iluminado por vários megawatts.
– Então acho que eles vão ter que aceitar quem eu realmente sou, ou, que pena, eles terão que ficar sem filmes.
Jack deu uma risadinha.
Cara, Erik cresceu! Pensei. Que bom para ele.
– Erik, você pode ir buscar essa maquiagem para mim?
– Estou indo. Volto em um segundo. – Erik saiu correndo.
– Viu? Eu posso cobrir a parte vermelha da minha Marca e ir para lá com você. A gente faz a nossa coisa juntas, e os novatos e vampiros vermelhos vão ter sua humanidade de volta. Nada de mais – Aphrodite disse.
– E o que a gente faz com a Outra Aphrodite? – Eu me virei para encarar minha amiga, detestando ter de provocar dor nela com o que eu precisava dizer. – O que o fato de você a substituir vai causar nela? Significa que ela nunca vai crescer? Nunca vai aprender a se importar com outras pessoas além dela mesma? Nunca vai aprender a ter empatia ou que às vezes amor significa fazer um sacrifício? Nunca vai aprender a parar de se automedicar e enfrentar a sua mãe?
Aphrodite me encarou, o seu rosto ficando pálido.
– E se ela não for capaz de aprender? Eu perguntei a Outro Jack sobre ela. Definitivamente, ela não está trabalhando com a Resistência. Ela é aliada de Neferet. E se a eu do Outro Mundo já estiver perdida para as Trevas e você não conseguir sensibilizá-la como fez comigo porque Neferet matou você lá cedo demais?
– Nos seus corações, nas suas almas, vocês são a mesma pessoa. Eu conheço esse coração, e ele não é feito de Trevas. Você tem mais Luz em você do que qualquer um de nós. Nyx nos mostrou isso pelos dons que concedeu a você. Eu posso sensibilizar a Outra Aphrodite.
– Eu não apostaria a minha vida nisso – Aphrodite disse.
Sem nenhuma hesitação, eu respondi:
– Eu aposto. Quantas vezes eu precisar.
– Eu também – Darius falou, colocando o braço ao redor de Aphrodite.
– Eu também – Stevie Rae concordou. – Mesmo que você e eu discordemos totalmente no gosto musical.
– E no seu estilo de moda – Aphrodite acrescentou.
– Eu também acredito em você, Profetisa – Rephaim reforçou.
– Todos nós acreditamos – Shaunee enfatizou.
– Z vai sensibilizá-la porque você não é a única de nós que recebeu grandes dons de Nyx – Shaylin explicou. – Zoey também recebeu.
Eu observei Aphrodite enxugar as lágrimas antes de perguntar:
– Se não é para mim, por que Erik foi buscar aquela porcaria de maquiagem?
– É para Stevie Rae! – Jack respondeu como se uma lâmpada tivesse acabado de se acender sobre a sua cabeça. – Você tem que cobrir a Marca dela porque não existem vampiras vermelhas mulheres no meu mundo.
– Exatamente, Jack. – Dei umas palmadinhas na mochila que ainda estava pendurada no meu ombro. – Por isso que eu tenho um lápis de maquiagem safira aqui. Stevie Rae, está pronta para ser uma novata azul de novo?
– Claro! Mas espero que desta vez tudo corra melhor do que antes.
– Pode apostar nisso – eu disse. – Porque eu vou me juntar a você. E desta vez como uma novata azul normal.
– Sério? – Shaunee disse.
Em vez de respondê-la, fiz outra pergunta.
– Jack, tem outras Grandes Sacerdotisas no seu mundo?
– Não. Não mais. Neferet é a única Grande Sacerdotisa de lá – ele respondeu.
– E o meu palpite é que Neferet fica de olho nas Sacerdotisas remanescentes... para o caso de alguma delas começar a se desenvolver como uma Grande Sacerdotisa. Estou certa?
– Bom, não é como se eu fosse próximo a ela nem nada do tipo, mas todo mundo sabe que Neferet não permite que nenhuma outra Sacerdotisa conduza os rituais da escola. Ela tem que liderar tudo, mas ela não deixa que os novatos e os vampiros vermelhos participem dos rituais de qualquer jeito.
Balancei a cabeça.
– Ela deve ter feito alguma coisa terrível com as Grandes Sacerdotisas para conseguir calar a boca delas e deixá-las de lado.
– Eu não sei muito sobre isso, mas há rumores... Coisas sussurradas nos túneis onde Neferet nunca vai. Dizem que ela as matou.
– Deusa, não pode ser! – Shaylin ofegou, e Nicole pegou a mão dela para reconfortá-la. – Isso é horrível! O coração de Nyx deve estar partido!
– E essa é a terceira razão pela qual nós temos que ir para lá. Nyx precisa de nós. Todos nós sabemos que a Deusa não manipula a ação dos mortais, mas conhecemos a vontade dela. Stevie Rae, Rephaim e eu. E nós vamos acabar com as atrocidades que Neferet tem cometido em nome de Nyx.
O meu círculo assentiu, concordando sobriamente, enquanto Erik chegou correndo. Ele me entregou uma sacola cheia de esponjas e um pote grande de maquiagem.
– Tudo que você precisa está aí dentro. Eu trouxe o tipo que é à prova de água. É um inferno para tirar, mas vocês não vão ter que se preocupar com nenhuma Marca aparecendo por baixo, nem se pegarem chuva ou neve.
– Obrigada, Erik.
– Merda11 para você lá. Eu acredito em você – ele disse.
Eu enfiei a sacola na minha mochila e tive que limpar a garganta antes de falar, mas finalmente consegui dizer:
– Ok, acho que isso é tudo. Estão todos prontos?
Perguntei para o grupo, mas só observei Stevie Rae e Rephaim. Eles foram os primeiros a responder.
– Sim. Estou pronto – Rephaim disse.
– Eu também, feito um porco pronto para chafurdar na lama! – Stevie Rae falou, e todo mundo (menos Aphrodite) riu e assentiu.
– Cadê o Stark? – Aphrodite perguntou, calando a boca de todo mundo.
– A última vez que eu o vi, ele estava no Centro de Mídia – eu respondi.
– E por que o seu Guerreiro não está aqui ao seu lado? – Darius questionou.
– Porque eu não deixei ele vir comigo.
– Ele não pode! – Jack exclamou. – Todo mundo conhece o General Stark. Mesmo com a Marca vermelha dele coberta, qualquer um que o visse perceberia em um segundo que ele é parecido com o general e iriam pegá-lo.
– Eu sei, e foi isso que eu disse a Stark, mas ele não consegue suportar a ideia de que estou indo enfrentar o perigo sem ele. – Respirei fundo e contei o resto da verdade. – E ele acha que eu estou indo lá para ver Heath, o que o chateia. Muito. – Eu hesitei e então fiz um pedido. – Pessoal, depois que eu for, vocês podem ficar de olho no Stark, por favor? Ajudá-lo a passar por isso? Eu vou voltar, e quando eu estiver de volta vou fazer as pazes com ele. Vou fazê-lo entender, mas até lá eu só... – Então perdi as palavras quando uma sensação de perda e tristeza tomou conta de mim. E se Stark nunca me perdoar por isso?
– Nós vamos ajudá-lo – Damien prometeu. – Não se preocupe com isso. Se concentre no que você tem que fazer do outro lado para voltar para cá. Eu vou conversar com Stark.
Fui até Damien e o abracei forte.
– Obrigada – sussurrei. – Diga a ele que eu o amo muito.
– Vou dizer, mas ele já sabe, Z – Damien sussurrou de volta.
Eu saí do abraço reconfortante de Damien.
– Pessoal, vejam se todos pegaram o seu bastão de defumação e vão para os seus lugares. Vamos acabar logo com isso!
11 Maneira de atores desejarem boa sorte antes de entrarem no palco. Em inglês, a expressão usada é “break a leg” (quebre uma perna). (N.T.)
22
Zoey
Foi legal ter os meus amigos se juntando a mim dentro do círculo, e eu percebi como fazia tempo desde a última vez que havia conduzido um ritual importante. Vou ter que melhorar isso quando voltar, prometi a mim mesma. Porque eu iria voltar, assim como Stevie Rae e Rephaim.
Damien, Shaunee, Shaylin e Stevie Rae assumiram as suas posições em cada um dos quatro quadrantes do círculo, segurando as suas velas rituais. Os Guerreiros e amantes também se espalharam, preenchendo o círculo. Fui para o centro, onde Jack havia colocado a minha vela roxa do espírito e uma caixa de fósforos longos. Fiz uma pausa por tempo suficiente para respirar profundamente várias vezes para me purificar. Então abri a minha mochila e facilmente encontrei o sino que eu tinha colocado no bolso da frente. Segurando-o com cuidado para que não começasse a soar, peguei os fósforos e fui até a borda leste do círculo, onde Damien estava parado, cheio de expectativa, com a sua vela amarela do ar em uma mão e o seu bastão de defumação na outra.
– O ar nos dá a respiração e muito mais. Sem ele, nós não seríamos capazes de gritar, rir, chorar ou gritar. É o primeiro elemento que conhecemos quando nascemos, então nós sempre começamos o círculo com sua invocação. Ar, por favor, venha e ajude a soprar para longe as Trevas que macularam esta árvore. Eu dou as boas-vindas a você no nosso círculo! – Acendi a vela de Damien e um sopro de uma brisa quente levantou o meu cabelo. Assim que senti o ar, segurei o sino no alto e o toquei com força e ele soou claro três vezes.
Então eu fui no sentido horário, ficando diante de Shaunee ao sul.
– O fogo nos aquece. Ele nos nutre cozinhando a nossa comida e nos limpa queimando aquilo que não é mais útil. Fogo, por favor, venha e ajude esta sálvia a queimar e dissipar as Trevas que macularam esta árvore! – Não precisei tocar o meu fósforo na vela vermelha de Shaunee. Ela pegou fogo e produziu uma chama alegre instantaneamente.
– Queime, baby, queime – Shaunee sussurrou.
Eu sorri e levantei o meu sino, tocando-o vigorosamente mais três vezes. Então andei no sentido horário para o oeste até Shaylin, que esperava ali com expectativa segurando a vela azul.
– A água somos nós, assim como nós somos água. Sem ela, nós viramos pó e morremos. Ela sacia a nossa sede e nos purifica. Água, por favor, venha e ajude a lavar as Trevas que macularam esta árvore! – Acendi a vela de Shaylin e o aroma do oceano preencheu o ar ao nosso redor. Levantei o sino de novo e o toquei três vezes antes de continuar a minha jornada ao redor do círculo até Stevie Rae ao norte.
– E aí, Z? – Ela sorriu com covinhas para mim.
– Oi, terra. – Eu sorri de volta para ela. – A terra é a nossa casa. Ela nos sustenta. Ela nos alimenta e nos envolve, e é para a terra que os nossos corpos finalmente voltam para o descanso final. Terra, por favor, venha e nos fortaleça para que as Trevas nunca mais maculem esta árvore! – A vela verde de Stevie Rae pegou fogo e nós fomos cercadas pelo cheiro delicioso de damas-da-noite. Inspirei profundamente ao levantar o meu sino e tocá-lo mais três vezes.
Então, fui para o centro do círculo e levantei a minha vela roxa.
– Espírito, você é quem nós somos quando somos mais puros. Você é quem permanece quando os nossos corpos não podem mais viver. Você nos preenche de forma única e estabelece nossas personalidades, nossos amores, nossos ódios e nossos desejos. Espírito, por favor, venha e preencha este lugar que foi violado pelas Trevas para que a Luz possa brilhar aqui de novo! – Toquei o meu sino em três badaladas pela última vez e, enquanto o seu claro eco se extinguia, coloquei-o no chão e peguei o grosso bastão de defumação de sálvia branca perfumada.
Encarei o meu círculo, amando o fio prateado de luz que nos conectava. Ele era tão brilhante que iluminou a árvore, fazendo parecer que as Trevas já tinham começado a ser extinguidas.
– Ok, elementais, acendam os seus bastões de defumação. Os outros acendam os seus bastões nos dos elementais, fechando o círculo. Jack, você está pronto com algumas das nossas coisas favoritas?
– Estou! Só me diga quando for para apertar o play!
Esperei alguns instantes até a sálvia de todo mundo estar acesa e uma fumaça acinzentada e esbranquiçada começar a se formar e se levantar devagar ao redor da árvore.
– Ok, quando a música começar, todo mundo canta junto. Dancem e desenhem formas no ar com os seus bastões de defumação. Sejam alegres. Não pensem em nada além de coisas boas. Só tomem cuidado para não pisar fora do círculo – eu disse.
– E não se preocupem, todos nós amamos Julie Andrews. Não importa quem você é... cante, cante, cante! – Jack falou alegremente.
– Isso mesmo! – Eu sorri para ele. – Aperte o play, Jack!
Assim que “Coisas que eu amo” começou a tocar, o meu círculo e os meus amigos cantaram junto. No começo estávamos meio inseguros, mas na hora que chegamos ao verso “Se a tristeza, se a saudade”, todos estavam cantando, rindo e dançando ao redor do círculo.
– Aiminhadeusa, vejam! – Stevie Rae apontou para a fumaça se levantando em redemoinhos e espirais acima de nós, e todos ofegamos juntos.
Entrando e saindo da fumaça, espíritos parecidos com vaga-lumes voavam tão velozes quanto diamantes vivos, brilhando e reluzindo – e transformando a fumaça em formas sobre as quais estávamos cantando. Eu vi gatinhos com bigodes, laços de fita, gotas de chuva e algo que eu tinha certeza de que era uma banda passando enquanto soava o clarim.
Foi um dos momentos mais mágicos da minha vida, e desejei com todas as minhas forças que Stark estivesse ali, rindo, cantando e dançando ao meu lado.
– Z! Olhe para a árvore! – Jack gritou.
Eu olhei – e tive que segurar a minha boca para ela não ficar de queixo caído. Um enxame de espíritos vaga-lumes se aglomerou ao redor da árvore. Começando por sua base quebrada, eles voavam em compasso com a nossa música, girando e subindo. E, enquanto eles se moviam, a escuridão feito piche que a havia manchado ia sendo lavada, até que tudo o que sobrou foi uma árvore estranha, fragmentada e inclinada para o lado, onde começaram a surgir minúsculos brotos ao longo dos seus galhos antes arruinados.
– Ela vai ter folhas de novo! – Stevie Rae berrou alegremente mais alto que a música.
Rodopiando e rindo, nós cantamos os últimos versos com Maria e a família Von Trapp.
– “Eu lembro das coisas que eu amo e, então, de novo eu me sinto bem!”
Com a respiração ofegante e sorrindo, eu disse:
– Jack, você pode pegar todos os bastões de defumação e colocá-los aqui no meio do círculo perto da árvore?
– Eu?
Eu assenti.
– Aiminhadeusa, é claro!
Jack correu ao redor do círculo, coletando os bastões de sálvia e colocando-os, junto com o meu, em uma pilha fumegante.
– Shaunee, quando você estiver pronta – falei.
– Tranquilo. Queime, baby, queime! – Shaunee fez um gesto com o seu pulso na direção da pilha e ela instantaneamente ardeu com a luz das chamas e o aroma da sálvia.
– Perfeito! Obrigada – agradeci. Então eu fiquei séria, e o meu olhar se voltou para Stevie Rae, ainda ao norte, com Rephaim ao lado dela. – Vocês estão prontos?
Rephaim assentiu nervosamente.
– O máximo que dá pra estar – Stevie Rae disse.
– Nós vamos ter que oferecer um pagamento para o espírito – eu expliquei. – Tenho uma ideia, mas vocês dois precisam concordar com isso. Vou precisar de um pouco de sangue de cada um de vocês.
Stevie Rae e Rephaim se olharam.
– Belezinha, Z. A gente está de boa com isso – Stevie Rae concordou.
– Obrigada – eu falei com sinceridade antes de enfiar a mão na minha mochila de novo e pegar o athame12 afiado. Cercada pela fumaça magicamente purificadora da sálvia e pelo apoio do meu círculo, eu fiz o chamado. – Oak, espírito ancestral de Magia Antiga, com o poder do meu sangue e os dons concedidos a mim pela Deusa Nyx, eu a invoco para o nosso círculo. Oak, por favor, apareça!
E então prendi a respiração.
Ela não me fez esperar muito. Em segundos, o centro da árvore recém-purificada começou a brilhar e, com o som de um suspiro, Oak emergiu do tronco quebrado.
O espírito não veio até mim. Ela não deu atenção a nenhum dos meus amigos ou eu. Primeiro, ela se virou para a árvore. Ela colocou as suas mãos delicadas sobre ela e, devagar, de modo íntimo, inclinou-se para a frente até encostar a testa nela. Pude ouvir que ela estava falando, mas não consegui compreender a sua língua. Quando ela finalmente terminou, deu um beijo suavemente na casca nodosa, com doçura, antes de finalmente se virar e voar até mim.
– Garota Redbird, fico feliz que você concluiu o seu pagamento. – Os seus belos olhos escuros e amendoados se voltaram para o nosso círculo intacto, abarcando cada um dos vampiros dentro dele. – A força do seu círculo me agrada. Ele emana sentimentos de amor, alegria, amizade e sacrifício. Eu aprovo.
– Obrigada. E agradeço por responder ao meu chamado.
Ela abaixou levemente a cabeça em reconhecimento.
– Acho que começo a apreciar esse despertar incomum. Entre você e o Garoto Redbird, os dias e as noites têm ficado mais interessantes. O que deseja de mim agora?
Eu não hesitei.
– Quero que você me leve junto com dois amigos para o Outro Mundo, onde vive o meu irmão, aquele que você chama de Garoto Redbird. E quero que você nos traga de volta também. Quando estivermos prontos para partir.
Em um movimento como o de um pássaro, o espírito extraordinário virou a cabeça de lado e me observou. Por momentos longos e desconfortáveis demais, ela não disse nada. Quando ela finalmente se pronunciou, senti como se eu estivesse esperando a hora de descongelar.
– Posso fazer o que me pede, mas o pagamento vai ser grande.
– Que tal o sangue de três espécies de seres diferentes?
Ela ergueu suas sobrancelhas de musgo na direção da raiz dos seus cabelos de hera.
– Que tipo de seres?
– Um deles sou eu, uma vampira azul e Grande Sacerdotisa que tem afinidade com todos os cinco elementos. O segundo é Stevie Rae, uma vampira vermelha e Grande Sacerdotisa cuja afinidade é também a sua: a terra. E o terceiro é Rephaim, companheiro de Stevie Rae, um ser que...
– Foi criado por Magia Antiga – ela terminou por mim, girando a cabeça feito uma coruja para examinar Rephaim e Stevie Rae. – Vocês dois fazem essa oferenda livremente?
– Sim, senhora, eu faço – Stevie Rae respondeu.
– Sim. Dou a minha palavra – Rephaim disse.
O olhar de Oak se voltou para mim.
– Esse pagamento é interessante. Ele vai levá-los até o Outro Mundo. Mas não vai trazê-los de volta.
“Para isso um novo pagamento precisa existir
E qual vai ser nós vamos decidir
Nós vamos definir...”
Senti um aperto no estômago, apesar de o ritmo musical na sua voz indicar que ela faria um acordo comigo. Só que isso era exatamente o que os velhos livros alertavam. Eu precisava acertar ambos os pagamentos ou Stevie Rae, Rephaim e eu poderíamos ficar em uma grande meleca quando tentássemos voltar para casa.
– Vamos acertar o pagamento da volta agora. As coisas vão ficar mais fáceis assim. Quer dizer, e se a gente precisar voltar com muita pressa? – eu disse.
“Isso é problema seu, não me trate como passatempo
Aceite minhas regras ou pare de desperdiçar o meu tempo.”
– Isso não é nada bom – Aphrodite falou. Ela estava ao lado de Damien durante o ritual, e Oak se virou para o leste e concentrou o seu olhar na minha amiga. – O pagamento não deve ser deixado indeterminado. Isso é pedir encrenca.
“A Profetisa fala a verdade
Apesar da sua pouca idade.”
Oak fez uma pausa, farejando o ar como um cão de caça.
“O aroma do seu sangue é único de perceber.
Prometa o seu sangue como a cobrança,
e a volta dos seus amigos pode não ser
assim tão sem esperança.”
– Está bem!
– Não!
Aphrodite e eu falamos ao mesmo tempo. O olhar de Oak encontrou o meu de novo.
“O pagamento de sangue de uma Profetisa poderosa é uma solução
A menos que desejem ficar no Outro Mundo sem salvação.”
– Eles não vão ficar por lá. Eu prometo o meu sangue como pagamento para que você os traga de volta – Aphrodite falou rápido para que eu não conseguisse interrompê-la. – Mas eu não irei para o outro lado. Então, como vou saber quando devo pagar a você?
“Profetisa poderosa, não há nada que você precise fazer
Quando o pagamento for requerido, eu vou lhe dizer.”
– Aphrodite, eu não estou gostando disso – eu disse. – Não faça essa promessa. Stevie Rae, Rephaim, Kevin e eu vamos pensar em um pagamento que Oak aceite.
“Vai arriscar a sua vida nisso?
Parece algo tolo e omisso.”
– Tolo ou não, é a minha escolha.
– Na verdade, não. É o meu sangue. Meu corpo. Minha escolha – Aphrodite insistiu. – Oak, eu dou a minha palavra. Quando for a hora de Zoey, Rephaim e Stevie Rae voltarem, eu vou pagar o preço de sangue por eles.
“Eu aceito o seu preço excitante
Um pagamento de uma promessa, forte e brilhante
Eu fecho este acordo com vocês, perseverante.”
O olhar de Oak capturou cada um de nós quatro enquanto ela terminava a ligação.
“E tenho dito – que assim seja.”
O meu estômago estava tão revirado que tive vontade de vomitar. Aquilo parecia errado – perigosamente errado, mas já estava feito.
Olhei para Aphrodite. Ela estava firme, forte e orgulhosa, mas pude ver o medo nos olhos dela. Então prometi a mim mesma que faria tudo que estava ao meu alcance para que ela não se arrependesse de dar o seu sangue para nos levar de volta para casa.
– Obrigada, minha amiga – eu disse a ela. – Eu te amo.
Os lábios de Aphrodite se mexeram, mas ela não riu com sarcasmo. Em vez disso, ela colocou o punho sobre o coração e se curvou respeitosamente para mim.
– De nada, Grande sacerdotisa. Eu também te amo.
Piscando para limpar as lágrimas da minha visão, eu me virei para Oak.
– Você pode nos levar para qualquer lugar naquele mundo?
– A Rainha Sgiach não gosta de intrusos na sua ilha, e com razão. Então vocês não teriam uma recepção agradável por lá – Oak disse.
– Ah, não. Eu não preciso ir para Skye. Quero ir para um lugar mais perto daqui. É uma fazenda de lavandas, e a proprietária é...
– Oh, eu conheço esse lugar do qual você fala. A mulher que cuida da terra é deliciosa – Oak sorriu, mostrando muitos dentes brancos e afiados demais.
Eu sorri de qualquer jeito, sem me intimidar.
– Deliciosa – eu repeti. Olhei para Aphrodite. – Diga adeus a ela por mim, ok? Fale para ela não se preocupar – fiz uma pausa e continuei –, e conte a ela que o espírito a chamou de deliciosa. Ela vai adorar ouvir isso.
– Talvez ela se preocupe menos quando souber que você foi até ela primeiro – Aphrodite disse.
– “Talvez ela se preocupe” é melhor do que “com certeza ela vai se preocupar”. Cuide-se. Você é a Grande Sacerdotisa até eu voltar.
Eu vi a surpresa nos olhos de Aphrodite antes de ela abaixar a cabeça e colocar o punho sobre o coração outra vez.
– Vai ser como diz, Grande Sacerdotisa – ela falou solenemente.
Os meus olhos capturaram um movimento no círculo, e vi que cada um dos meus amigos havia imitado Aphrodite. Estavam todos se curvando para mim, com o punho sobre o coração.
– Obrigada – eu agradeci a eles. – Eu volto logo. – O meu olhar encontrou Damien. – Diga a Stark que eu o amo.
– Pode contar comigo, Grande Sacerdotisa.
– Stevie Rae, não apague a sua vela. Aphrodite, feche o círculo depois que nós partirmos.
– Vou fechar.
– Estamos prontos – eu disse para Oak.
– Então deem as mãos, vocês três, e me sigam!
Stevie Rae colocou a sua vela verde no chão. Ela estendeu uma mão para mim – a outra já estava entrelaçada à de Rephaim. Eu a peguei e, quando nos viramos para seguir com o espírito em direção à arvore, que havia começado a brilhar, um grito ecoou atrás de mim.
– Zoey Redbird! Tome cuidado. Fique firme. E volte para mim!
Virei rapidamente a cabeça por sobre o meu ombro e vi Stark. Ele estava parado do lado de fora do círculo incandescente. Os nossos olhos se encontraram.
– Eu te amo, meu Guerreiro, meu Guardião. Sempre vou te amar.
– E eu te amo, minha Rainha, minha Grande sacerdotisa, meu coração. Lembre-se, nós estamos ligados por sangue e por amor... sempre o amor.
Então o brilho se expandiu e eu segui o puxão na minha mão. Entrei pelo meio da abertura resplandecente e o mundo ao meu redor explodiu em luz.
12 Adaga cerimonial. (N.T.)
23
Outro Kevin
– Que tal isto aqui? – Kevin abriu a porta do motorista do Hummer e ergueu quatro sacolas grandes cheias de roupas embrulhadas em papel de seda.
Aphrodite deu uma olhada para as sacolas.
– Nada mal para um iniciante. Entre.
Kevin jogou as sacolas no banco traseiro e sentou atrás da direção.
– Para onde vamos agora?
– Para casa. – Aphrodite fez uma cena segurando o nariz quando ele entrou no veículo.
– Casa?
– A nossa casa, a Morada da Noite. Afe. Prometa que esse cheiro sai com água.
– Sim, eu prometo. Quer ver a gosma de sangue morto que eu tenho que passar em mim para ficar com esse cheiro?
– Não faço nenhuma questão.
– Então, vou te deixar lá?
– Não. Você vem comigo.
– Para onde?
– Ah, que merda... para casa.
– Mas e os túneis?
– Você quer ir para os túneis?
– Não. De jeito nenhum. Eles são péssimos. – Ele deu a partida no Hummer. – Mas o que mais eu posso fazer?
– Bom, eu andei pensando sobre isso. O seu general já era, certo?
– Sim, já disse. Ele morreu no mundo de Zoey.
– E também todo o seu esquadrão, grupo, batalhão... ou qualquer que seja o nome, certo?
– Quase certo. Três ainda estão vivos, mas eles ficaram no mundo de Zo.
– Então, você não está ligado a nenhum general, exceto Stark.
– Acho que dá pra dizer que sim.
– E ele designou você para ser meu protetor.
– Acho que dá pra dizer isso também.
– Ótimo. Então agora você pode se considerar o meu soldado pessoal.
– O que significa isso exatamente? – ele perguntou.
– Bom, pra começar, significa que você não vai voltar para os túneis e que precisa se vestir melhor. Você acha que lavanda iria ajudar a encobrir esse fedor horroroso? – ela questionou.
– Não sei. Provavelmente ajudaria, e eu posso espalhar menos gosma de sangue em mim pra ficar melhor. Você está dizendo que eu vou ficar na Morada da Noite?
– Estou.
– Espere aí, eu não vou ter que viver nos túneis?
– Não enquanto você for o meu soldado pessoal.
Kevin sentiu que o seu coração ia explodir de gratidão.
– Aphrodite, obrigado! Muito obrigado!
Ela fez um gesto dispensando o agradecimento dele.
– O que eu posso dizer? Adoro conceder favores aos pobres. Além disso, eu quero saber mais sobre esse mundo diferente e sobre a sua irmã, e não posso fazer isso se você estiver enfiado no meio de uma horda de monstros fedorentos. – Eles haviam terminado o curto trajeto da Utica Square até a Morada da Noite, e Aphrodite apontou para uma vaga de estacionamento na frente, bem-iluminada. – Pare ali.
– Ok, mas sem chance de a gente conseguir entrar escondido no campus se estacionarmos aqui.
– Nós não vamos entrar escondidos – ela afirmou.
– Mas todo mundo vai saber que eu estou aqui.
– Todo mundo definitivamente vai saber, e eles vão se acostumar a ver você por perto. Isso vai ajudar você e a Resistência, não?
– Sim! Com certeza.
– Ótimo. Talvez isso ajude também a compensar um pouco do mal que eu fiz contando as minhas visões para Neferet.
– É um começo, certamente – Kevin disse. Ele estacionou e olhou para ela. – E agora?
– Agora vem a parte fácil. Eu vou cuidar de tudo. Você só precisa me seguir. Literalmente. Ande atrás de mim e preste atenção em ficar vários passos para trás. Pareça subserviente e não muito inteligente. E quando a gente for parado, e eu garanto que vamos ser, eu explico. Você nem levanta os olhos. Finja que é um vampiro vermelho sem noção, mas não selvagem demais. Você consegue fazer isso?
– Eu tenho feito isso há quase um ano – ele disse.
– Então você já tem bastante prática. – Aphrodite ficou sentada olhando para ele e, como ele apenas a encarou de volta, ela revirou os olhos. – Kev, você deveria estar pegando todas as “minhas” sacolas. – Ela fez aspas com os dedos. – E depois abrir a porta para mim. Lembre-se, você é o meu soldado pessoal. Eu nunca devo tocar em uma porta, carregar qualquer coisa, abrir uma garrafa de champanhe e blá-blá-blá quando você estiver por perto.
– Ah, desculpe. Ok, entendi! – Ele saiu do Hummer e pegou as quatro sacolas, balançando-as desajeitadamente enquanto dava a volta no carro rapidamente para abrir a porta para ela.
Ela colocou suas pernas longas para fora e então franziu o cenho para as suas botas Jimmy Choo na altura do joelho.
– Merda! Esqueci que tinha quebrado o salto. Bom, vou usar isso para ajudar na minha atuação. Aqui. – Ela o surpreendeu ao estender a mão, que ele pegou, ajudando-a a descer do Hummer. Então ela limpou a mão no seu jeans skinny. – Você vai ter que melhorar muito na sua higiene pessoal.
– Na verdade, eu sou um cara limpo e arrumado. Eu tinha que fingir que não me importava com a lama, sujeira, sangue seco e outras coisas nojentas quando eu morava nos túneis.
– Você não mora mais nos túneis. É bom tomar um banho – ela resmungou ao começar a mancar na direção da calçada curva que atravessava o pequeno pátio lateral, onde a água de uma fonte jorrava musicalmente, onde finalmente se abria para o jardim principal da escola.
– Pode deixar – ele disse, apressando o passo para alcançá-la.
Ela deu um olhar irritado para ele.
– Você deve ficar atrás de mim, parecendo subserviente.
– Ah, certo. Esqueci. Não vai acontecer de novo, Profetisa. – Ele fez várias reverências e se afastou para trás.
– Isso foi bom. Pode continuar com essa coisa de se curvar.
– Você quer que eu a chame de Senhora ou Profetisa está bom?
– Não seja ridículo. Profetisa está bom. Senhora parece velha demais. Agora cale a boca e pareça patético.
Com Kevin a seguindo, Aphrodite atravessou o pátio mancando e entrou nos jardins da escola. Acabara de passar a hora do jantar. Os novatos estavam espalhados pelo terreno da escola. Os lampiões a gás de cobre estilo art déco projetavam sombras dançantes pelas calçadas largas e pelo gramado do inverno. Gatos corriam por ali, alguns caçando ratos, outros seguindo os seus novatos ou vampiros escolhidos. Estudantes acendiam velas aos pés da estátua de Nyx e rezavam para a Deusa. Um grupo de novatas estava tendo uma aula de esgrima com um vampiro que Kevin não reconheceu.
Tudo parecia normal, mas a diferença entre essa Morada da Noite altamente controlada e segregada e a escola de Zoey era gritante. Todo mundo aqui parecia subjugado, preocupado, assustado ou desesperado, e Kevin sentiu uma pontada no coração de saudade de um lugar que ele mal conheceu, mas que parecia tão perfeito.
Aphrodite virou à direita, indo na direção do grupo de edifícios parecidos com castelos que compunham os aposentos dos professores. Ela seguiu a curva suave da calçada, aproximando-se de duas novatas que haviam estendido tapetes de yoga no gramado e estavam no meio de uma graciosa sequência de exercícios.
Quando Aphrodite chegou mais perto das novatas, elas viraram a cabeça na direção dela. Ambas reconheceram Aphrodite – isso ficou bem claro – e juntaram as suas cabeças enquanto a encaravam.
Então elas viram Kevin e os seus olhos se arregalaram. Uma delas era uma garota negra incrivelmente linda que ele reconheceu na hora como Shaunee, e a outra era uma loira sexy que estava usando uma legging nude e um top minúsculo vermelho brilhante – ambos não deixavam nada para a imaginação. Caramba! Essa deve ser Erin, a novata de quem a Zoey me falou. A água para o fogo de Shaunee! As duas ficaram olhando fixamente para ele enquanto Aphrodite passava por elas, sussurrando e dando risadinhas. Quando Kevin se aproximou mais, ouviu claramente o que elas estavam dizendo – o que significava que Aphrodite também ouviu.
– Ei, Gêmea, olhe só – Erin falou.
– O que foi, Gêmea?
– O novo amante de Aphrodite! – a loira concluiu, apontando para Kevin. Então as duas caíram na gargalhada, maldosas.
Aphrodite parou. Ela se virou, mal olhando para Kevin quando passou mancando por ele.
– Só um minuto.
Kevin quis gritar para ela “Não! Não as mate com a sua visão de laser! Eu posso precisar delas depois para um círculo!”, mas ele teve que ficar de boca fechada. Ele tinha que fazer o seu papel, então abaixou a cabeça e discretamente assistiu enquanto Aphrodite caminhou direto até as duas novatas, que automaticamente deram alguns passos desajeitados para trás.
– Falem isso na minha cara e não para as minhas costas maravilhosas – a voz da Profetisa estava gélida.
– Ei, a gente não quis dizer nada – Shaunee disse.
– É, a gente só estava brincando – Erin falou.
– Vocês são as duas que se chamam de Gêmeas, não são? – Aphrodite questionou.
– Sim – elas responderam juntas.
– Eu vou chamá-las de Sócias de Cérebro. E, já que vocês compartilham só um pequeno cérebro entre vocês, vou deixar essa história pra lá. Mas, da próxima vez que vocês insultarem a mim ou ao meu soldado pessoal e servo, vou oferecer vocês duas para fazerem o serviço de jantar nos túneis.
– Serviço de jantar? – Erin perguntou.
– O que significa isso? – Shaunee completou.
Aphrodite deu um passo para a frente, entrando no espaço pessoal delas.
– Significa que vocês vão dar um tempo para os alimentadores humanos e oferecer o seu próprio sangue para os oficiais vermelhos. Em pessoa. Sangue dos seus lindos pescocinhos. Se bem que eu ouvi dizer que a veia que passa na coxa também é um lugar muito escolhido para alimentação. – As duas novatas pareceram horrorizadas, então Aphrodite fez um gesto para aliviar a preocupação delas. – Ah, não sejam tão dramáticas. Eles não vão ter permissão para drenar vocês completamente. Só quase completamente.
– Ne-neferet não deixaria isso acontecer! – Erin gaguejou.
– Quer apostar o seu sangue nisso, Coisa Um?
Erin rapidamente balançou a cabeça.
– E você, Coisa Dois?
– Não, obrigada.
– “Não, obrigada, Profetisa”, é o que vocês, Sócias de Cérebro, devem dizer.
– Não, obrigada, Profetisa – elas repetiram juntas, nervosas.
– Melhor. Bem melhor. Agora, acho bom vocês nunca mais falarem comigo de novo.
– Ei, a gente não quis dizer nada. Mesmo – Shaunee disse.
– Papo furado – Aphrodite rebateu. – Menininhas covardes como vocês sempre dão sorrisinhos falsos e falam que não queriam dizer nada com isso quando são pegas sendo escrotas. Cresçam. Vocês não estão mais no ensino médio. Isto aqui é vida real, não a internet, onde você pode dizer merdas estúpidas e odiosas sem nenhuma consequência. E, que merda, façam um favor ao mundo e saiam logo do armário como lésbicas, já estão grandes pra palhaçada.
Erin enrubesceu e Shaunee ficou de queixo caído, em choque.
– Hum. Deixa pra lá. Parece que só uma de vocês cola com isso. Ou, quer dizer, só uma de vocês cola alguma coisa. – Aphrodite riu alegremente, atirando o longo cabelo para trás, e se virou para sair andando, mesmo com um salto quebrado. Quando passou por Kevin, falou alto o bastante para as Gêmeas escutarem. – Venha, Fedido. Termine de arrastar minhas coisas pra cima. E depois você precisa ir correndo buscar mais champanhe pra mim. Tragicamente, acho que estou sem, e lidar com as Sócias de Cérebro me deixou com sede.
– Sim, Profetisa. Claro, Profetisa! – Kevin abaixou a cabeça e esperou que ela ficasse alguns metros à frente dele antes de começar a andar de novo, pensando “Parece que vou ter que encontrar outro fogo e água... Ah, que inferno...”.
E, enquanto ele a seguia para dentro do prédio dos professores, ouviu um grasnido acima da sua cabeça e levantou os olhos a tempo de ver um corvo gigante voando em círculos. Ele abriu a pesada porta de madeira e fez uma pausa. Como esperado, o corvo aterrissou na calçada, inclinando a cabeça de lado ao olhar para ele.
– Garoto Redbird! – ele grasnou.
– Venha cá! Rápido! – Kevin gesticulou para o pássaro, que deu alguns pulinhos e entrou no pequeno saguão com ele.
– Kevin, por que diabos você está demorando tanto? – Aphrodite gritou lá do alto da escada caracol.
– Desculpe, chego aí em um instante! – Ele abriu o tubo do corvo e pegou o pequeno lápis e o papel, rabiscando apressadamente: ESTOU COM APHRODITE NA MORADA DA NOITE. FICAREI AQUI DURANTE O DIA. MAIS INFORMAÇÕES EM BREVE. Então ele enfiou o papel e o lápis de volta no tubo e abriu a porta para o corvo, que decolou rumo ao céu.
– Quer que eu vá buscar o champanhe pra você agora? – Kevin estava parado desconfortavelmente ao lado da porta fechada dos aposentos suntuosos de Aphrodite.
– Claro que não. Eu tenho um monte de champanhe. Não sou uma caipira. – Ela indicou com a cabeça a pequena cozinha ao lado da sala de estar requintada, decorada com um sofá de veludo cor de ametista e um par de poltronas bordadas com fio prateado representando uma lua tríplice. – Bom. Não fique aí parado. Entre no chuveiro e tire esse fedor nojento. Vista o pijama novo. Depois disso a gente conversa.
– Mas. Hum. Vai amanhecer em... – ele fez uma pausa, conectando-se ao seu relógio interno. – Menos de duas horas. Eu preciso ir para algum lugar seguro para dormir.
Ela deu um suspiro.
– Eu disse que você é meu soldado agora. Você vai ficar aqui.
– Aqui, aqui? – Como se os seus olhos tivessem vida própria, eles se voltaram para a enorme cama de dossel claramente visível através das portas de vidro abertas.
– Sério? Você acha que vai dormir na minha cama? – Aphrodite revirou os olhos.
– Não! De jeito nenhum. Jamais suporia isso. Mas onde eu vou dormir?
– Eu tenho um closet super luxuoso. Não tem nenhuma janela lá dentro. Ou você pode dormir na minha banheira. Pode escolher qual você prefere.
– Que tal o sofá?
– Tem janelas aqui.
O olhar dele se voltou para elas.
– Essas cortinas de veludo roxo não são blackout?
Ela suspirou.
– Está bem. Ok. Você pode dormir no sofá se você realmente não estiver fedido e se não roncar. Não suporto gente que ronca.
– Prometo que eu não estarei fedido e acho que não ronco, mas eu nunca dormi com ninguém, então não tenho como prometer isso.
Os olhos azuis cor de safira de Aphrodite encontraram os dele.
– Então você é virgem.
As bochechas de Kevin arderam de calor.
– Bom, sim. Sou.
– Hum. Interessante. Entre no chuveiro.
Ela o empurrou na direção de uma porta fechada, através da qual ele felizmente escapou e se viu em um banheiro de mármore tão branco e limpo que não queria tocar em nada.
– Você quer algo para comer? Eu vou ligar para a cozinha – Aphrodite gritou do outro lado da porta.
– Hum, sim. Eu comeria qualquer coisa. E, ahn, você poderia pedir uma garrafa de...
– Sangue. Já imaginava. Ah, e coloque essas roupas horríveis que você está usando em um saco de lavanderia embaixo da pia. Feche bem e lembre de jogar isso fora amanhã. Nojento.
– Sim, ok. Sem problemas. – Kevin não sabia mais o que dizer, então tirou a roupa. Em seguida, encontrou facilmente um saco vazio e puxou a cordinha dele com força para fechar bem.
Então ele entrou no paraíso.
O chuveiro dela ficava dentro de um box de vidro circular e era daquele tipo panelão gigante e redondo que fazia Kevin se sentir como se estivesse debaixo de uma tempestade fantástica. Também havia duchas que saíam das paredes e, quando ele apertou um botão, fluxos de água quente jorraram sobre ele, atingindo todo o seu corpo. Aphrodite, claro, tinha um sabonete com textura de seda e cheiro de amêndoas e mel.
Kevin queria ficar lá por horas, mas quase podia sentir a impaciência de Aphrodite, então se esforçou para se apressar, ensaboando-se várias vezes, até que o último rastro de gosma de sangue fedorenta tivesse saído da sua pele.
Ele se enxugou com uma toalha violeta tão grande e felpuda que podia usá-la como cobertor. Então ele vestiu sua calça de moletom nova e uma camiseta e colocou a cabeça úmida para fora da porta de modo hesitante.
Na mesa de vidro na frente do sofá, Aphrodite havia colocado uma bandeja cheia que continha um sanduíche grande, batata chips e um copo alto de sangue quente e vermelho que deixou sua boca salivando.
– Pode vir. Estou sozinha. Nunca deixo nenhum dos serviçais entrar aqui enquanto estou no quarto. Eles limpam e fazem suas coisas só quando estou fora. E eu faço com que eles deixem as minhas entregas de comida do lado de fora da porta em uma mesinha de serviço de prata. – Ela encolheu os ombros. – Sim, eu sei. Eu gosto da opulência. Não estou me desculpando por isso.
Usando meias, Kevin andou suavemente até a sala de estar e encontrou Aphrodite com uma legging confortável e uma camiseta branca com a frase FEMINISTA SELVAGEM resplandecendo sobre o seu peito. Ela estava encolhida em uma das poltronas bordadas de veludo, bebendo champanhe e beliscando uma torradinha com pequenas bolinhas pretas em cima.
Ele farejou o ar na direção dela.
– Isso tem cheiro de peixe. O que é?
Ela deu um olhar resignado para ele.
– Caviar, seu plebeu. A sua criação deixa muito a desejar.
– Concordo. – Kevin sentou e bebeu todo o sangue de uma vez. Ele abaixou o copo e viu Aphrodite o encarando. – Eu estava com sede – ele disse pateticamente.
– Diga a verdade. Você está com a sua fome sob controle?
– Completamente. Não tem diferença entre a minha fome agora e a necessidade de um vampiro azul. Eu só estava realmente com sede porque fui ferido umas noites atrás e ainda estou me recuperando.
Isso sem mencionar que o meu nível de estresse foi além do esperado, ele pensou.
– Você me dá a sua palavra?
– Sim, Profetisa. Dou a minha palavra de que a minha humanidade voltou completamente e que a minha fome está sob controle.
Ela o analisou por vários minutos antes de voltar para o seu caviar e champanhe.
– Você precisa de mais sangue?
– Não, mas eu realmente preciso desta comida. Obrigado.
– Sem problemas. Apesar de que eu deixei o pessoal da cozinha bastante confuso. Não costumo comer muitos sanduíches.
– Você não parece comer muito de nada – Kevin disse ao dar uma grande mordida.
Ela franziu o cenho.
– Estou comendo agora.
Ele bufou.
– Preocupe-se só com você. Eu estou bem. Estou sempre bem – ela falou.
– Não acredito em você – ele murmurou.
– Eu escutei isso. Ok, em primeiro lugar, estou feliz que você não está mais fedendo.
– Eu também. Odeio o cheiro daquela coisa. E o seu chuveiro é incrível.
– Sim, eu sei. Segundo, quero que você me conte o que aconteceu com a Aphrodite daquele mundo da sua irmã quando ela sacrificou parte de sua humanidade para salvar os novatos vermelhos de lá. Eu sei que ela não morreu, mas o que aconteceu com ela, exatamente?
A pergunta o surpreendeu, mas, depois de um instante de reflexão, Kevin percebeu que não deveria ter se sentido assim. Ele também tinha ficado curioso sobre o que a outra versão dele fazia no mundo de Zo, e aquela versão dele não era uma Profetisa nem uma ferramenta de Nyx. Então, em meio a mordidas no sanduíche, ele contou para Aphrodite o que Zoey tinha explicado para ele, concluindo assim:
– Quando Stevie Rae e o resto dos vampiros vermelhos de lá recuperaram a sua humanidade, você perdeu a sua Marca, mas não o seu dom profético. Até os vampiros e novatos vermelhos daqui serem atraídos para lá junto comigo, acho que ninguém sabia exatamente o que você era.
Aphrodite pareceu perplexa.
– Mas por quê? Por que eu iria me sacrificar espontaneamente assim? Eu poderia ter morrido ou perdido tudo... todos os meus dons. Não faz sentido nenhum. A minha versão de lá é uma idiota.
– Aquela idiota salvou uma raça inteira de vampiros.
– Por quê?
– Por amor, claro. A outra você é cercada de pessoas que ela ama. Ela até age como uma malvada insensível às vezes, mas apenas parte disso é verdade, o que é legal porque acontece que eu gosto de meninas malvadas.
Ela revirou os olhos.
– E você disse que lá eu sou uma vampira estranha híbrida azul e vermelha, além de uma Profetisa?
– Sim.
– Como isso aconteceu?
– Não sei ao certo. Tinha muita coisa rolando por lá e eu não tive muito tempo para fazer perguntas. O que eu sei é que Nyx concedeu a você a capacidade de dar às pessoas, sejam humanos ou vampiros, uma segunda chance depois de eles terem feito tudo errado, tipo, feito tudo tragicamente errado de verdade.
Aphrodite bufou.
– Isso provavelmente porque eu entendo muito sobre como fazer tudo tragicamente errado.
Ele sorriu.
– Pode ser. A Marca daquela Aphrodite é igual à sua, só que maior, e metade dela é vermelha. Nyx disse que, a cada vez que você usar o seu dom e der uma segunda chance a alguém, parte da sua Marca vai desaparecer até que ela suma totalmente, e então você vai ser humana e viver o tempo de vida normal dos humanos.
– Isso parece bizarro. Não sei se eu ia gostar disso.
– Tenho certeza de que a Aphrodite de lá se sentiu assim também quando isso aconteceu, mas depois de ver a diferença que ela fez em mim, no Outro Jack e nos outros vampiros... tenho cem por cento de certeza de que ela decidiu que estava grata por esse dom.
– Então aquela Aphrodite é boa. De verdade – ela disse.
– Sim, completamente – ele concordou.
– Você parece bem apaixonado por aquela Aphrodite.
Kevin encontrou o olhar dela.
– Eu diria que Aphrodite é espetacular... em qualquer mundo.
Aphrodite bufou e então ficou em silêncio por um tempo, bebendo champanhe e beliscando caviar com torradas. Kevin terminou o seu sanduíche e estava devorando a montanha de batatas quando ela falou de novo.
– Deve ser muito diferente por lá. – Ela tinha acendido a lareira e estava olhando para o fogo como se pudesse enxergar aquele outro mundo dentro das labaredas.
– É sim. E também não é. Aquele mundo parece diferente porque é muito menos assustador. Neferet foi derrotada. Zo e os seus amigos comandam o Novo Conselho Supremo dos Vampiros da América do Norte, o que significa que eles são responsáveis pelas Moradas da Noite nos Estados Unidos e que eles iniciaram esses programas incríveis onde humanos podem ter aulas junto com novatos.
Ela olhou para Kevin como se ele estivesse completamente louco.
– Adolescentes humanos. Na Morada da Noite de Tulsa. Tendo aulas. – Ela sacudiu a cabeça. – É difícil imaginar.
– Não está acontecendo só em Tulsa. Humanos e vampiros estão estudando juntos em um monte de escolas. É bem legal.
Aphrodite voltou a ficar em silêncio. Kevin já ia pedir um travesseiro e um cobertor quando ela falou de novo.
– Nós estamos todos tão isolados aqui, mas o mundo da sua irmã não parece nem um pouco solitário.
– Não é assim mesmo, mas nem todos nós estamos isolados desse lado também. Dragon, Anastasia, minha avó não estão. Na verdade, nenhum dos combatentes da Resistência está. Eles são amigos, mas mais do que isso.
– Gente de coração mole – ela disse.
– Amigos com uma causa – ele a corrigiu. Então ele encontrou o olhar dela de novo. – Você não precisa ficar sozinha. Nem mesmo aqui. Você não está sozinha no mundo de Zo.
– Este aqui não é o mundo da sua irmã.
– Não, não é. É o meu mundo. E eu vou mudar as coisas.
– Você?
– Eu.
– Sozinho?
– Bom, não. – Ele sorriu. – Eu não estou sozinho. Você está me ajudando.
– Eu acho que você é um idealista – ela falou.
– Provavelmente.
– Idealistas sempre acabam mortos.
– Às vezes, mas, enquanto vivem, eles vivem de forma grandiosa. Junte-se a mim. Junte-se à Resistência. Você também pode, você meio que já fez isso. Você salvou Dragon e todas aquelas pessoas hoje.
– Mas fui eu quem os colocou em perigo – ela o lembrou.
– Você quis fazer isso? Você queria ser a causa de o Exército Vermelho matá-los?
– Não! Eu odeio toda essa matança. E eu detesto que Neferet me use como uma arma.
– Então me ajude a descobrir um jeito de mudar as coisas para melhor neste mundo.
Em vez de me responder, ela se levantou e desapareceu dentro do quarto, voltando logo depois com o braço cheio de cobertores e um travesseiro macio de penas de ganso, os quais ela largou ao lado dele no sofá.
– Ei, obrigado. Isso é muito gentil da sua parte. Eu vou lavar a louça antes de dormir – Kevin disse.
– Não seja ridículo. Você é meu soldado, não minha camareira. Há um carrinho do lado de fora da porta. Coloque os pratos sujos lá fora. Os serviçais vão cuidar deles. – Então ela hesitou e estendeu a mão por um momento, como se fosse tocar o cabelo dele. – Antes de você dormir, talvez queira secar melhor o cabelo. Durma com o cabelo molhado e ele vai ficar...
– Com lambida de vaca – ele terminou por ela. – Eu sei, eu sei. Zo costumava dizer isso pra mim toda hora.
– Sim, bom, o seu cabelo está perturbadoramente desgrenhado, bagunçado e até meio... – ela perdeu as palavras e sacudiu a cabeça, como se quisesse afastar o seu último pensamento.
Ele não conseguiu evitar. Ele olhou nos olhos maravilhosos dela e disse:
– Você ia dizer meio sexy?
– Já deve estar quase amanhecendo, já que você está delirando.
– Aquela Aphrodite gosta de mim, você sabe – ele sorriu provocativamente.
– Aquela Aphrodite tem problemas. Muitos problemas.
– Mas um ótimo gosto – ele disse. – Ela teria feito o que você fez hoje. Ela iria garantir que Dragon e o resto daquelas pessoas escapasse.
– Boa noite, Kevin. Amanhã vamos pensar em uma solução de quarto mais permanente para você – foi tudo o que ela disse antes de desaparecer dentro do seu quarto.
– Boa noite, Aphrodite – ele falou para a porta fechada.
Kevin colocou os pratos do lado de fora da porta no carrinho que estava ali, apagou a lareira e fez a sua cama no sofá. Então, exausto e se sentindo seguro pela primeira vez neste mundo desde que havia sido Marcado, Kevin dormiu.
– Kevin, anda! Você precisa acordar!
Kevin saiu das profundezas de um belo sonho que o tinha levado de volta ao mundo de Zo, em que estava rindo com ela enquanto segurava a mão de Aphrodite e ela aceitava o pedido dele para ser sua companheira.
– Ahn? O quê? Você aceita? – ele disse, sonolento, procurando a mão de Aphrodite.
Ela de fato deixou que ele pegasse sua mão e então o puxou, fazendo com que ele se sentasse.
– Acorda!
Kevin piscou várias vezes e esfregou a mão no rosto.
– Estou acordado. Mais ou menos. O que foi?
– Tem um pássaro negro enorme dando bicadas na minha janela. Eu ia jogar alguma coisa nele, mas ele disse “Garoto Redbird”. Hum, posso presumir que é você?
– Sim! Ele ainda está lá? Deixe ele entrar! – Kevin tinha tirado a camiseta para dormir, então ele a vestiu apressadamente e correu atrás de Aphrodite na direção do quarto dela.
A mão espalmada de Aphrodite o deteve.
– Fique aí. Minhas cortinas estão totalmente abertas e o sol já está alto.
Kevin só teve um instante para andar de um lado para o outro, e então o grande corvo voou para dentro da sala de estar, aterrissando em cima da mesa de centro de vidro.
– Garoto Redbird!
– Você me encontrou! Bom trabalho. Ok, ok, vou ler isso.
Aphrodite observou o que estava acontecendo por cima do ombro de Kevin.
– O que é aquela coisa em volta do pescoço dele?
– Tem bilhetes dentro. – Kevin puxou o cordão de couro sobre a cabeça do pássaro e abriu o pequeno tubo, tirando o papel lá de dentro.
– Aiminhadeusa! Foi assim que você avisou a Resistência sobre os fardos de feno.
– Sim.
– O que diz o bilhete?
Ele se virou e olhou para ela.
– É Zoey! Ela está aqui!
C O N T I N U A
15
Outra Aphrodite
Aphrodite aumentou o seu nível de arrogância como escudo contra o seu nervosismo. Ela não precisou dizer nada, simplesmente alterou a sua expressão de perversidade de repousada para ativa, e então os soldados, os Guerreiros e até as Sacerdotisas começaram a abrir caminho para ela passar como se tivesse uma doença contagiosa.
Eu tenho uma coisa pior – o desprezo de Neferet. E todos sabem disso.
Aphrodite tinha decidido rapidamente que a sua performance iria se desenrolar melhor no meio do auditório cheio. Então, em vez de ir para o palco para servir como um atraente cenário para qualquer drama que Neferet tinha preparado para os seus subordinados, ou de se juntar às outras Sacerdotisas amontoadas sentadas no local reservado a elas no fundo, no seu jeito típico de cordeirinhos, Aphrodite foi até o centro do auditório, encontrou o assento que ela queria na fileira da frente perto do corredor e fuzilou com os olhos o ocupante da cadeira, que apressadamente se retirou dali.
Ela não agradeceu a ele, apenas se sentou, e então ficou se preocupando. Aphrodite nunca tinha feito nada como aquilo que estava planejando. Ela não iria realmente fazer – não até Stark, aquele babaca arrogante, fazer aquela piadinha sobre ela se juntar ao Exército Vermelho. Então, de verdade, o que ela estava prestes a fazer não era exatamente culpa dela. Era culpa de Neferet. E, provavelmente, de Stark também. Mas definitivamente, definitivamente, não era culpa de Aphrodite.
Ela nunca teve a intenção de contar o resto da sua visão para Neferet. Aphrodite não tinha contado todos os detalhes de nenhuma de suas visões para Neferet desde que o Exército Vermelho havia massacrado Lenobia e Travis, e também os cavalos. Aphrodite odiava pensar nos cavalos morrendo. Ouvir os seus gritos em seus pesadelos já era ruim o bastante.
Culpa minha. Aquilo foi culpa minha. Eu deveria saber! Ela juntou as mãos com força sobre o colo e se empertigou na cadeira. Qualquer um que olhasse para ela – e um monte de gente estava sempre olhando para ela – veria apenas a linda, jovem e indiferente Profetisa parecendo confiante e calma. Ninguém veria suas mãos tremendo. Ninguém veria sua alma estremecendo. Ninguém veria as suas dúvidas e medos. Essa era uma coisa positiva que a louca da sua mãe tinha ensinado a ela – mostrar apenas um rosto em público, e esse rosto deveria ser perfeito e estar sob controle o tempo todo, independentemente de ela realmente estar se sentindo perfeita ou sob controle.
Aphrodite ficou sentada imóvel, respirando devagar e em um ritmo estável, enquanto se preparava para o que estava por vir, mas, em meio à sua respiração lenta, ela sentiu uma brisa de morte e podridão. Incomodada com aquele cheiro nojento, ela levantou o pescoço e olhou em volta, farejando discretamente, e, é claro, sentado duas fileiras atrás dela, em um assento do corredor como o dela, estava aquele jovem vampiro vermelho que Stark estava pajeando. Aphrodite lançou um olhar de irritação para o Cara do Arco. Vampiros vermelhos não tinham permissão para ficar nos assentos da frente do auditório para não empestear o ambiente. Somente oficiais do Exército Vermelho podiam comparecer às reuniões de briefing, e mesmo assim eles tinham que ficar no mezanino. No entanto, ali estava Stark, todo cheio de si com seu uniforme preto de general, quebrando as regras. De novo. E deixando um garoto vampiro vermelho fedido sentar bem ali do lado dele.
Aphrodite jurou a si mesma que, quando ela caísse nas graças de Neferet de novo, ia fazer tudo que podia para minar a influência de Stark sobre a Grande Sacerdotisa. Não porque ele era particularmente perigoso, mas sim porque ele era particularmente irritante.
– Atenção! Sen...tido! – comandou Artus, o Mestre da Espada da Morada da Noite de Tulsa.
Assim que todos se levantaram, Aphrodite desviou os olhos de Artus. O Mestre da Espada de Neferet não era apenas feio, velho e cheio de cicatrizes. Havia algo de podre em relação a ele – algo que deixava Aphrodite desconfortável em um nível visceral.
E então Neferet subiu ao palco, atraindo a atenção de todos no auditório lotado. Ela estava usando um vestido de seda longo e aderente da cor de sangue fresco. Sobre o seu seio esquerdo, em um bordado prateado requintado, estava a imagem de Nyx envolvendo a lua crescente com as mãos. A única joia que ela usava era um diadema de diamantes e rubis. Um dos rubis pendia da delicada coroa como uma lágrima grossa para tocar o topo da lua crescente safira tatuada no meio de sua testa.
Aphrodite precisava reconhecer – Neferet sabia como manter a atenção de um bando de machos. Ela parecia uma deusa do cinema em carne e osso, o que era mais uma prova de uma das maiores decepções da vida de Aphrodite: nem tudo que parecia cheio de beleza e luz do lado de fora era realmente cheio de beleza e luz por dentro.
– Podem se sentar – Neferet disse depois de chegar à sua tribuna de vidro.
Aphrodite sentou e tentou não revirar os olhos. Cada instante do briefing de Neferet havia sido roteirizado por ela – desde o que ela estava vestindo até o tempo em que fez os soldados ficarem em pé, incluindo a tribuna translúcida, que dava à sua audiência uma visão desimpedida do seu corpo perfeito.
Não que Aphrodite pudesse culpá-la por isso. Neferet era bonita e, como outra pessoa muito bela, Aphrodite sabia como era fácil manipular os machos. O jeito é usar o que a gente tem!
Então Neferet começou o seu discurso, e Aphrodite não tinha mais energia para desperdiçar em nada, exceto decidir quando a sua própria performance deveria começar.
– Eu venho diante de vocês hoje com notícias muito perturbadoras. Acredito que a maré da guerra está virando.
Houve sons de concordância alegre entre a multidão de oficiais e soldados presentes.
– Vejo que os meus exércitos me entenderam mal, o que eu acho ofensivo. A maré não está virando a nosso favor! Nenhum dos meus oficiais entende isso? – A sua voz repleta de raiva ecoou pelas paredes, eletrificando o ambiente com uma carga de poder e não deixando nenhuma dúvida sobre o nível de irritação de Neferet. A sua única resposta foi o ruído de corpos ansiosos.
E então um dos seus generais se levantou. Aphrodite abafou uma bufada sarcástica. É claro que Loren Blake ia sentir a necessidade de dizer alguma coisa. Deusa, será que esse vampiro puxa-saco vai parar de falar algum dia?
– Grande Sacerdotisa, permissão para falar?
– É claro, General Blake. Estou sempre disposta a refletir sobre os sábios conselhos de meus oficiais.
O sorriso de Blake era íntimo demais para a ocasião, mas todo mundo sabia que os generais de Neferet também eram frequentemente seus amantes – e praticamente todos os machos na sala desejavam ser amantes dela. Então, tanto fazia.
– Grande Sacerdotisa, você sabe que não quero ser desrespeitoso. Sou seu servo leal, mas talvez os seus oficiais não entendam simplesmente porque o que observamos no campo de batalha é o oposto do que está dizendo. As milícias dos nossos estados vizinhos pararam de atravessar para o nosso território. Não tem havido revoltas importantes de humanos dentro da área sob nosso controle há meses. O único problema real que ainda temos é com a maldita Resistência, e nós estamos trabalhando duro para rastrear cada um dos seus membros e exterminá-los. Na verdade, se a maré virou, parece que foi a nosso favor.
– Pode se sentar, general Blake – Neferet disse com um falso sorriso afetuoso. – O que você diz pode parecer verdadeiro para alguém com a sua limitada conexão com Nyx, razão pela qual a nossa sociedade nunca será governada por homens. Eles não podem ser tão íntimos da Deusa como as suas Sacerdotisas. Principalmente a sua única e exclusiva Grande Sacerdotisa: eu. Sabe, Nyx tem me mostrado outra coisa. Os nossos estados vizinhos e os humanos que os infestam desistiram, de fato, de suas tentativas de entrar no nosso território e tomar o que é nosso. Mas eles não desistiram em paz. Eles estão tramando juntos para nos derrubar! – Neferet abriu os braços dramaticamente, fazendo com que seus seios perfeitos fossem pressionados contra a seda do seu vestido e os mamilos ficassem totalmente delineados e visíveis.
Aphrodite achou que aquela pose foi um toque excelente, já que conseguiu atrair todos os olhares masculinos da sala para os peitos dela. E ainda fez com que todas as mentes masculinas da sala ficassem confusas quando o sangue nos cérebros deles desceu correndo para o órgão que de fato os controlava.
Houve um movimento atrás dela, e Aphrodite virou a cabeça a tempo de ver Stark se levantar.
– Grande Sacerdotisa, posso ter permissão para falar?
– Merry meet, General Stark. Vou ouvir o que você tem a dizer.
– Eu também tenho sentido que algo está errado. Tenho tentado descobrir o que é, e hoje eu recebi informações de uma fonte improvável. Acredito que isso se alinha ao que Nyx tem mostrado a você.
Neferet deu aquele sorriso que Aphrodite gostava de chamar de meio meloso, meio vadia, e a Profetisa segurou outra bufada. Pelo visto, o Cara do Arco ia se dar bem esta noite.
– Eu sabia que podia contar com você, General Stark. Por favor, compartilhe as suas informações conosco.
Então Stark chocou Aphrodite e o auditório inteiro ao gesticular para que o garoto vampiro vermelho fedido que estava largado ao lado dele se levantasse.
O garoto deu um pulo de surpresa e então se levantou desajeitadamente, ficando em posição de sentido totalmente imóvel.
– General Stark, por que um jovem soldado vampiro vermelho está aqui na parte da frente do meu auditório? – A voz de Neferet soava pensativa, e ela pareceu mais curiosa do que incomodada.
– Porque ele é a minha fonte de informações, e ele não é um soldado. Ele é um tenente. Tenente Heffer, da unidade do General Dominick.
Os sussurros dos soldados ao redor fizeram Aphrodite lembrar de velhas mulheres fofoqueiras, e ela se perguntou quem diabos eram esse garoto e esse general e por que eles provocaram tamanha reação da multidão.
– General Dominick? O meu general do Exército Vermelho que está desaparecido? – Neferet perguntou.
Aphrodite piscou os olhos, surpresa. Ela não tinha ouvido falar em nenhum general desaparecido, mas raramente prestava atenção ao que estava rolando com os animais que compunham o nojento Exército Vermelho de Neferet. Eles eram todos um tédio. E fedorentos.
– Sim, Grande Sacerdotisa. O General Dominick desapareceu com um pelotão inteiro de soldados, e eles ainda não foram encontrados. Exceto este tenente, e eu acredito que ele pode saber o que aconteceu com a unidade dele. – Stark assentiu encorajando o tenente, que estava em posição de sentido tão imóvel que Aphrodite praticamente podia ver uma vara enfiada no meio do traseiro dele. – Gostaria de pedir sua permissão para que o Tenente Heffer relate as informações a você.
Os olhos cor de esmeralda de Neferet analisaram o garoto vampiro vermelho que estava parado feito pedra ao lado de Stark.
– Você disse que o nome dele é Tenente Heffer?
– Sim, Grande Sacerdotisa – Stark confirmou.
– Ele parece estranhamente familiar. General Stark, você já usou esse vampiro vermelho como informante antes?
Aphrodite teve vontade de se levantar e dizer que era mentira. Não existia qualquer possibilidade de Neferet distinguir esse vampiro vermelho ou qualquer outro. Aphrodite já tinha ouvido a Grande Sacerdotisa comentar várias vezes como o Exército Vermelho era um mal fétido e nojento, mas necessário – com o qual ela queria ter o mínimo de contato possível. Ela não reconheceria nenhum soldado nem se ele passasse por ela no corredor todos os dias durante um ano todo.
– Não, Grande Sacerdotisa, não usei, mas acredito que você deva ouvir o que ele tem a dizer.
– Hum. A familiaridade é estranha. – Neferet encolheu seus belos ombros. – Muito bem, por que não? O tenente pode falar.
Como o garoto não disse nada, Stark o incentivou.
– Prossiga. Conte à Grande Sacerdotisa aonde o seu general estava indo e o que ele disse antes de ir embora.
Aphrodite viu que o garoto engoliu em seco – uma, duas, três vezes. Quando começou a falar, ele usou frases curtas e entrecortadas em virtude do nervosismo e ficou olhando fixamente para a frente.
E, enquanto ele falava, Aphrodite arregalou os olhos de choque.
– Grande Sacerdotisa Neferet, o meu general tinha informações de que a milícia do estado do Novo México estava em movimento. Ele ouviu dizer que planejavam atravessar o Texas e entrar em Oklahoma usando o Rio Vermelho. O general estava a caminho de Elmer, em Oklahoma, para preparar uma emboscada para eles. Essa é toda a informação que eu tenho, Grande Sacerdotisa. Minha patente não era significante para eu saber do resto.
Aphrodite mal escutou a resposta satisfeita de Neferet. Ela estava ocupada demais encarando o garoto que tinha acabado de falar – o tenente vampiro vermelho cuja voz ela reconheceu como a do mesmo cara que estava no jardim de meditação na noite anterior!
Exceto que aquele garoto tinha conversado normalmente, como um vampiro de verdade, e não como uma máquina de comer vermelha e fedorenta.
E então outra coisa a pegou de surpresa.
Na noite passada, ele não estava fedendo. Eu sei que ele não estava. Sou muito sensível ao jeito que essas coisas fedem e eu teria percebido.
Alguma coisa completamente bizarra estava rolando, o que parecia um momento excelente para Aphrodite começar a sua encenação. Ela olhou de novo para o palco. Neferet ainda estava tagarelando efusivamente sobre Stark ter confirmado a sua estranha neurose. Então, quando Aphrodite se levantou com dificuldade, a Grande Sacerdotisa foi pega totalmente desprevenida e parou de falar no meio da frase.
Aphrodite entrou cambaleando no corredor. Ela colocou uma mão na testa, como se estivesse tentando evitar que a sua cabeça explodisse. A outra mão ela estendeu na direção de Neferet de modo suplicante.
– Neferet! – Aphrodite ofegou e cambaleou como se o chão estivesse ondulando sob seus pés. – Eu estou vendo... estou vendo...
Ao redor, os homens começaram a falar de modo nervoso.
– Silêncio! A minha Profetisa está tendo uma visão! – Neferet saiu de trás da tribuna e foi até a beira do palco, bem na frente de Aphrodite. – Fale, minha Profetisa! A sua Grande Sacerdotisa está aqui e vai ouvir!
Aphrodite gemeu e então conteve um grito. Segurando a cabeça com força, ela colocou toda a energia na sua voz para que ela chegasse até os cantos mais remotos do auditório.
– Estou vendo um campo. Nele, o trigo de inverno foi cortado em enormes fardos redondos. Há vampiros azuis lá. Eles estão escavando os fardos e colocando novatos, vampiros e humanos dentro deles para tirá-los de lá clandestinamente. Eles são a Resistência!
– Onde, Aphrodite, minha querida? Olhe em volta... onde você está?
– O Exército Vermelho está lá! Eles estão atacando! Eles estão nos matando! Eles estão nos comendo! – Aphrodite choramingou, soluçando.
– Sei que é difícil, mas concentre-se! Foco! Você é os olhos e os ouvidos da Deusa. Diga onde você está!
– Sapulpa! Não! Não, não, não, não! Afaste-os de nós! Eles estão nos matando! – Aphrodite cambaleou e soluçou.
A voz de Neferet cortou o choro de Aphrodite.
– Profetisa! Em nome de Nyx, concentre-se! Onde você está em Sapulpa?
– Estou vendo uma placa! Ela diz Lone Star Road! Estamos em um campo em Sapulpa ao lado da Lone Star Road, e nós estamos sendo mortos!
Então Aphrodite respirou fundo e gritou com toda a força antes de fechar os olhos e fingir um desmaio espetacular.
Outro Kevin
Kevin se mexeu por instinto. Ele se atirou para a frente, estendeu o braço e segurou Aphrodite antes que ela atingisse o chão. Ao redor dele, o auditório explodiu em comoção, mas, enquanto envolvia Aphrodite em seus braços, parecia que eles estavam suspensos em uma pequena bolha de silêncio.
Os belos olhos da Profetisa piscaram e se abriram. E então se arregalaram em choque. Ela virou a cabeça na direção de Kevin para que ninguém mais a ouvisse e sussurrou baixinho para ele.
– Era você! Na noite passada no jardim. Era você!
– Shhh, relaxe. Estou aqui – Kevin a tranquilizou.
– Afaste-se de mim! – ela sussurrou. – Hoje você está fedendo, mas com certeza não estava na noite passada. E que merda, você está puxando o meu cabelo!
O olhar dele encontrou o dela. Aphrodite não estava machucada – isso era óbvio. E ela definitivamente não estava agindo como se tivesse acabado de desmaiar. Então Kevin entendeu a verdade.
– Você não teve uma visão! – ele sussurrou.
– Tive sim! – Ela manteve a cabeça virada, quase encostada no peito dele, cuidando para que ninguém mais a ouvisse. – Só que não hoje. Quem é você para julgar? Você nem é um vampiro vermelho de verdade!
– Sou sim! Só não sou do tipo com quem você está acostumada.
– Aham, sei. Neferet sabe o que você está tramando?
Em vez de responder, Kevin disparou a mesma pergunta para ela.
– Neferet sabe o que você está tramando? Que você está escondendo visões dela?
– Prove, então. Se você acha que alguém vai acreditar mais em um vampiro vermelho do que em uma Profetisa de Nyx, você é tão burro quanto o resto da sua espécie fedorenta. – Aphrodite se virou nos braços de Kevin e gritou em pânico enquanto se debatia para se livrar dele. – Aaaaah! Não me coma! Tire suas mãos de mim! Socorro!
– Deixe ela comigo, Tenente. – Stark estava ali, empurrando Kevin para o lado e ajudando Aphrodite a se levantar.
No entanto, ela se afastou de Stark, recusando a sua ajuda e cambaleando na direção do palco e de Neferet.
– E-eu falei algo valioso, Grande Sacerdotisa? – a voz de Aphrodite ainda ecoou por todo o auditório, principalmente porque a multidão tinha calado a boca e estava olhando embasbacada para ela.
Neferet foi apressada até a beira do palco e se abaixou para pegar as mãos de Aphrodite.
– Sim! Você foi muito bem, querida! Eu sabia que Nyx me enviaria um sinal, e sou realmente abençoada por ela ter me enviado dois sinais em um só dia. – A Grande Sacerdotisa soltou uma das mãos de Aphrodite, mas continuou segurando a outra ao encarar o auditório, fazendo parecer que ela estava levantando o braço da Profetisa em uma saudação de vitória. – Nós sabemos que precisamos enviar nossos soldados para um campo em Sapulpa ao lado da Lone Star Road. – Ela dirigiu seu sorriso brilhante para Aphrodite. – Você pode dizer quando a batalha vai acontecer?
– Não, Neferet. É impossível dizer, a menos que haja um relógio na minha visão ou que eu veja a lua de relance, mas as minhas visões normalmente conseguem prever eventos que acontecem dentro de apenas alguns dias. Eu também não sei dizer exatamente qual campo na Lone Star Road é o campo específico em que a Resistência estará escondendo novatos em fardos de feno. As minhas visões são caóticas demais. Grande Sacerdotisa, sinto muito por não poder ser mais precisa – Aphrodite disse, e Kevin a viu fazer graciosamente uma reverência para Neferet, com a cabeça abaixada. Ela realmente parecia sentida e muito, muito bela.
Kevin sabia que o que ele estava assistindo era uma encenação completa – pelo menos da parte de Aphrodite. A capacidade de atuação dela é impressionante. Ela poderia ser uma estrela até maior do que Erik Night.
– Você fez o seu papel maravilhosamente. E isso é fácil de consertar. – O sorriso de Neferet abarcou o auditório repleto de soldados. – Hoje o General Stark vai levar soldados e oficiais do Exército Vermelho até Sapulpa, onde eles vão localizar a infestação da Resistência e acabar com os traidores. Minha Profetisa abençoada pela Deusa, a adorável Aphrodite, vai se juntar ao General Stark e ao Exército Vermelho nessa missão de combate. – Neferet abaixou os olhos para Aphrodite fazendo cara de santa. – Com certeza você vai reconhecer o campo certo quando vê-lo, não vai, minha querida?
Kevin viu o rosto de Aphrodite empalidecer para um branco de náusea, e ele também sentiu nojo junto com ela. Aphrodite havia encenado a sua visão para que Neferet não cumprisse a ameaça que havia feito na noite passada, a de forçá-la a se juntar ao Exército Vermelho, e mesmo assim a Grande Sacerdotisa deu um jeito de apunhalar sua Profetisa pelas costas. Aphrodite abriu e fechou a boca. Kevin podia ver que era difícil para ela responder e ele compreendeu perfeitamente – ele entendia o que se passava na cabeça dela. Se dissesse que não podia ajudar, Aphrodite iria decepcionar Neferet em público – e ninguém fazia isso sem sofrer sérias consequências. Neferet já havia decidido enviar Aphrodite para o Exército Vermelho. Ela apenas usou a visão de Aphrodite para fazer isso parecer lógico em vez de uma crueldade.
– Vou fazer o meu melhor, Neferet – Aphrodite disse sem expressão.
E eu vou fazer o meu melhor para garantir que você fique protegida, Kevin acrescentou silenciosamente.
– É claro que vai! – Neferet soltou a mão de Aphrodite e abriu amplamente os braços, projetando-os na direção do nível do mezanino e dos oficiais do Exército Vermelho reunidos ali. – Oficiais do Exército Vermelho, vocês estão satisfeitos que a minha jovem e adorável Profetisa vai se juntar a vocês?
– Sim! – a resposta deles foi mais um urro do que uma resposta.
Os olhos de todos se levantaram para contemplar, a maioria em desgosto, a horda ruidosa e fedorenta, mas Kevin manteve o olhar fixo em Aphrodite. Ela parecia completamente aterrorizada.
Como se sentisse que era observada por Kevin, os olhos de Aphrodite encontraram os dele.
Está tudo bem. Eu te protejo. Kevin pronunciou as palavras para ela só com a boca, sem emitir som.
Aphrodite se espantou levemente quando entendeu o que ele disse. Então ela revirou os olhos para ele e fixou de novo no rosto a sua bela máscara de indiferença, enquanto Neferet continuava a falar.
– Vejam, eu sabia que a minha Profetisa iria levantar o moral. Oficiais dos meus Exércitos Vermelho e Azul, vocês vão fazer o seu melhor para me servir porque, fazendo isso, vocês servem a nossa benevolente Deusa da Noite, Nyx. E agora, General Stark, por favor, reúna os seus soldados. Preparem-se. E então vão até Sapulpa e acabem com esses traidores!
– Sim, Grande Sacerdotisa! – Stark respondeu, e o auditório vibrou em concordância.
Neferet levantou uma mão, e a sala ficou em silêncio.
– E quanto ao restante dos meus generais, quero que vocês me encontrem na Sala de Conselho para discutirmos a fundo o que Stark e eu suspeitamos, e como eu pretendo que nós derrotemos essa nova onda de inimigos. Não vamos ficar sentados de braços cruzados esperando que nos queimem enquanto dormimos. Nós vamos encontrá-los e derrotá-los. Todos eles. Não hoje. Não amanhã. Mas eu prometo a vocês que, quando nós lutarmos contra essa nova onda de inimigos, será com mais poder do que qualquer exército de vampiros já exerceu na história. Seremos vitoriosos!
O auditório comemorou ruidosamente, e Kevin achou que iria vomitar. Era mentira! Tudo que ele tinha dito sobre o Novo México e a sua milícia era mentira! Ele só queria fazer o exército desviar a sua atenção do quartel-general da Resistência, mas mesmo assim eles estavam indo para Sapulpa e para os campos logo abaixo da sua montanha.
E o poder do qual Neferet estava falando – Kevin sabia o que era. Ela ia munir os seus vampiros com armamentos humanos.
Neferet tinha que ser impedida.
Neferet levantou a mão graciosamente, e a sala ficou em silêncio.
– Tenho outro anúncio que sei que vai deixar meus oficiais muito entusiasmados. No próximo final de semana, está marcado o jogo de futebol americano entre a Universidade Estadual de Oklahoma e a Universidade de Oklahoma para o grande clássico dos Cowboys contra os Sooners. Bom, eu detesto esperar, não é? – A multidão fez barulhos de concordância. Neferet sorriu. – Sim, eu sabia que vocês entenderiam! Foi por isso que eu insisti para que o jogo acontecesse neste final de semana em Tulsa, bem aqui perto, no Estádio Skelly, da Universidade de Tulsa, no dia do Ano-Novo. Não será uma celebração incrível? A Universidade Estadual de Oklahoma e a Universidade de Oklahoma certamente acham que sim. – Ela fez uma pausa, e o seu sorriso se encheu de malícia. – Ou pelo menos eles acharam depois que fiz a eles uma oferta que não conseguiram recusar, e a Universidade de Tulsa, é claro, ficou muito satisfeita em acomodar o meu pequeno pedido deste feriado.
Mais uma vez, o auditório irrompeu em urros efusivos, mas desta vez alguns soltaram o grito de guerra “Boomer Sooner”6 e outros ficaram fazendo aquele gesto louco da mão de arminha disparando, típico dos torcedores da Universidade Estadual de Oklahoma.
Eu tinha esquecido totalmente que é quase Ano-Novo, Kevin pensou. E ele podia imaginar facilmente a “oferta que eles não conseguiram recusar”. Atletas universitários – e as líderes de torcida, a banda e os torcedores que iam junto com eles – eram protegidos da fome do Exército Vermelho desde que pudessem entreter os vampiros em geral e Neferet em particular. Ela não tinha feito uma oferta. Ela tinha feito uma ameaça mortal, e as universidades responderam do único jeito que conseguiam para proteger os seus estudantes.
– Merry meet, merry part e merry meet again,7 minhas leais Sacerdotisas, Guerreiros e soldados, e que as bênçãos de Nyx estejam com todos vocês! – Neferet encerrou o briefing sob um alvoroço de aclamação.
Kevin viu Aphrodite sair apressada até as escadas que levavam ao palco e seguir Neferet, embora a Profetisa devesse ter raciocinado melhor. Uma vez que Neferet dava uma ordem, ela sempre seguia até o final – não importavam as consequências. Todos os oficiais em ambos os exércitos sabiam que a única coisa maior do que o ego de Neferet era o seu orgulho.
– Tenente, você pode vir comigo também, já que não tem mais uma unidade.
Kevin se virou e viu o General Stark analisando-o com uma expressão indecifrável no rosto.
Ele ficou em posição de sentido imediatamente.
– Sim, senhor! É uma honra, senhor!
– Não fique aí parado só de queixo caído para Aphrodite. Siga-me.
Kevin seguiu Stark enquanto ele abria caminho para sair do auditório lotado. Quando eles chegaram ao corredor, o Tenente Dallas estava lá, esperando.
– E aí, General. Isso que você acabou de fazer aí dentro foi uma loucura do cacete, hein?
– Dallas, tente não falar por um tempo. Eu preciso pensar. E, enquanto estou pensando, reúna um pelotão de vampiros vermelhos e os seus oficiais. Vou requisitar caminhões suficientes para um comboio até Sapulpa. Diga aos oficiais que nós vamos sair às 2200 horas8 pontualmente – Stark deu uma olhada para Kevin. – Ah, e ele vai com a gente também.
– Você quer dizer que ele vai se juntar ao pelotão de vampiros vermelhos que vai partir hoje?
– Não, eu estou dizendo que ele vai com a gente. Comigo. No meu veículo.
– Pelas tetas de Nyx, General! Ele até consegue formar algumas frases, mas ainda é apenas uma máquina de comer. Tem certeza de que vai levar ele junto com a gente? Ele vai deixar o Hummer todo fedido.
Desta vez, Kevin não teve vontade de dar um soco em Dallas. Não porque ele gostasse do garoto, porque ele definitivamente não gostava, mas porque Stark havia acabado de dar a ele mais esperança do que tinha tido desde que Vovó Redbird o deixou na noite anterior.
– Tenente, você está questionando a minha ordem?
Dallas voltou atrás rapidamente.
– Claro que não, senhor. Só estava checando se ouvi direito.
– Você ouviu direito. Ah, e, aparentemente, Aphrodite vai se juntar a nós também. Então, certifique-se de pegar como nosso veículo líder aquele Hummer que tem problema de aquecimento. – Stark piscou para Dallas.
– Aaah, agora entendi! – Dallas riu. – Você quer irritar Aphrodite. Imagino que eu saiba do lado de quem ela vai sentar, certo?
– Tenente Dallas, eu pedi para você imaginar qualquer coisa? – Stark perguntou.
– Não, senhor, não pediu.
– Então siga as minhas ordens. Agora.
– Sem problemas. Como quiser, general. – Dallas deu um olhar de desdém para Kevin. – Você pode vir comigo. Só não fique contra o vento.
– Hum, perdão, General Stark, senhor – Kevin começou.
– Sim, o que é?
– Senhor, perdão, mas eu preciso me alimentar antes de partirmos – ele falou rapidamente.
– Claro que precisa. Que pé-no-saco – Dallas resmungou.
Stark olhou feio para Dallas, mas se virou para responder.
– Você tem algum tempo. Faça o que precisa fazer e depois junte-se ao comando do comboio às 2200 horas.
– Sim, senhor!
Kevin saiu apressado – seguindo na direção da sala pequena e suja que a Morada da Noite chamava de Cantina Vermelha. Na verdade, era apenas um velho depósito caindo aos pedaços que havia sido convertido em um lugar onde humanos drogados esperavam para serem utilizados como refeições. Assim que Kevin saiu do campo de visão de Stark e de Dallas, no entanto, ele mudou de direção, puxando o capuz sobre a cabeça e saindo rapidamente para fora pela porta mais próxima.
Ele não fez nenhuma pausa. Ele caminhou rápido – como se soubesse exatamente para onde estava indo. E ele sabia. Ele sabia o que precisava fazer. Debaixo do capuz, ele ergueu os olhos para o céu.
– Venha! Venha! Pássaro, onde você está? Facilite aí, pode ser? E não me obrigue a fazer isso.
Kevin continuou caminhando na direção leste pelos jardins da escola. Ele evitou as partes mais iluminadas da grande área de gramado e tentou ficar visível enquanto ia de árvore em árvore, mantendo o olhar voltado para o alto.
Quando ele chegou ao muro leste e ao alçapão escondido, misturou-se às sombras ao lado dele. O seu olhar varreu o jardim da escola. Havia vampiros e novatos visíveis, mas estavam todos bem distantes e apressados – sem dúvida, preparando-se para massacrar alegremente algumas pessoas inocentes. Ele olhou de novo para o céu. Nada. Nenhum maldito pássaro.
– Merda!
Sentindo-se pesado com um mau pressentimento, Kevin pressionou o fecho escondido no muro e então saiu furtivamente.
6 Grito de guerra do time da Universidade de Oklahoma. (N.T.)
7 Merry meet, merry part e merry meet again é uma saudação pagã que significa “feliz encontro, feliz partida e feliz reencontro”. (N.T.)
8 No horário militar, 22 horas. (N.T.)
16
Outro Kevin
Assim que estava do lado de fora do muro, Kevin procurou se acalmar.
– Ok, pense um pouco. Primeiro, confira o céu de novo. – Kevin procurou pelo céu da noite, mas, se o corvo estava em algum lugar lá em cima, era impossível vê-lo contra a escuridão. Kevin lembrou que Anastasia disse que Tatsuwa tinha uma excelente visão, então ele se afastou um pouco do muro e balançou os braços sobre a cabeça.
Nenhum sinal daquele maldito pássaro.
– Certo. Plano B. Que diabos eu ainda tenho que as criaturas possam querer? – Ele procurou dentro da bolsa quase vazia. Todo o sangue tinha acabado, mas ainda haviam sobrado dois cookies. Havia também o vidro daquela gosma de sangue nojenta. – Bom, espero que eles queiram uma dessas duas coisas. – Ele se aproximou mais do muro para se esconder nas sombras e então fez o chamado. – Espíritos do ar da Magia Antiga, eu sou Kevin Redbird e, com o poder do meu sangue e o poder que Nyx me concedeu, eu chamo vocês para mim! De novo!
Com pequenos barulhinhos de estouro, os espíritos de ar se materializaram ao redor dele.
– Garoto Redbird! Qual pagamento você traz para nós? Qual tarefa gostaria que realizássemos?
Kevin achou que estava falando com o mesmo espírito que havia aparecido quando ele fez a invocação na noite anterior, mas não tinha certeza. Ele sorriu e tentou parecer mais entusiasmado do que nervoso.
– E aí? Obrigado por virem de novo. Fico muito grato mesmo.
– Qual é a tarefa e qual é o nosso pagamento?
– Ok, bom, eu não tenho muito tempo para conversa fiada de qualquer jeito. O que eu preciso é que vocês encontrem um corvo chamado Tatsuwa. Ele pertence à Sacerdotisa vampira da montanha onde vocês vieram até mim pela primeira vez. Podem fazer isso?
“Há muito que podemos fazer
Se o pagamento formos receber.”
Kevin relaxou um pouco quando a voz do espírito começou o ritmo musical que marcava o começo de um acordo.
– Ok, bom, eu posso dar um pouco do meu sangue a vocês. Ou eu tenho mais dois cookies daqueles que vocês gostaram tanto ontem.
“Se você quer a tarefa realizar
O seu pagamento não pode nos entediar
Deve fazer todo o coração cantar!”
– Belezinha. – Ele enfiou a mão na bolsa e pegou o vidro de gosma de sangue fedida. – Que tal isto? É sangue de vampiro vermelho.
A reação do espírito foi instantânea. Ela aumentou de tamanho. Os seus olhos se arregalaram e ela mostrou os dentes, expondo presas terrivelmente afiadas.
– Isso é uma abominação, não um pagamento!
Kevin rapidamente colocou o vidro de volta na bolsa.
– Ei, ok, ok, eu entendi. Eu também acho isso nojento. Desculpe. Eu simplesmente não sei muito sobre espíritos de ar. Hum, por que você não me diz o que gostaria como pagamento?
Isso acalmou o espírito, e ela voltou a ter mais ou menos o tamanho de um beija-flor e a aparência de um cruzamento entre um inseto grande e uma mulher alada muito pequena. Os outros espíritos fizeram um círculo ao redor dela, sussurrando naquela linguagem estranha que usavam, quase parecida com a do gorjeio de pássaros. Quando terminaram de falar, o grupo inteiro se aproximou, pairando e apontando.
Kevin baixou os olhos para si mesmo, tentando descobrir o que estavam apontando.
“Nós vamos ficar com aqueles fios de ouro
e esse pagamento será duradouro.”
Confuso, Kevin olhou de novo para si mesmo.
– Fios de ouro? Sinto muito, mas não sei do que vocês estão falando.
O espírito que liderava o bando voou até ele, estendeu uma mão delicada com dedos impossivelmente longos e gentilmente tocou uma mecha de cabelo comprido que estava grudada na blusa dele.
– O cabelo de Aphrodite! Caramba, eu estava mesmo puxando o cabelo dela. Não foi à toa que ela gritou comigo. – Quando ele soube o que estava procurando, rapidamente encontrou outros três longos fios. Ele os tirou da blusa e os ergueu. Mesmo na escuridão, os fios brilharam. – Tem razão. Eles se parecem mesmo com ouro, mas você deve saber que não são de verdade. São apenas fios de cabelo loiro.
“De uma Profetisa cheia de poder.”
Ela lambeu os lábios e Kevin viu de relance novamente os dentes afiados feito agulhas.
“Deliciosos para se comer.
Com esse pagamento você concorda?
Ou podemos voar e ir-se embora?”
– Hum, não! Quero dizer, sim. Sim, vocês podem ficar com o cabelo. Não é como se Aphrodite ainda estivesse usando isso. – Ele estendeu as quatro mechas, segurando-as entre o polegar e o indicador, e as ofereceu para o espírito.
“Com esse pagamento nós concordamos
Oferecido por ti e aceito por mim
O nosso acordo está selado – que assim seja!”
O espírito pegou as mechas de cabelo da mão de Kevin. Ela as atirou no ar, onde ficaram suspensas, flutuando imóveis, mas esticadas como finas linhas de seda esperando para serem passadas pelo buraco de uma agulha. Então os espíritos partiram para cima delas, um espírito para cada ponta de mecha, e as sugaram para dentro de suas bocas estranhas, finalmente juntando-se todos no centro como uma versão totalmente bizarra da cena do spaghetti de A Dama e o Vagabundo. Então eles saíram voando, desaparecendo no céu.
– Isso foi bem louco. Sério. Queria que Zo estivesse aqui para ver isso também. Aposto que ela ia morrer de rir com os espíritos comendo o cabelo de Aphrodite. – Ele estava rindo consigo mesmo quando um grasnido alto fez com que ele franzisse os olhos para a escuridão do céu, que se moveu, alterando-se, e finalmente se transformou em um corvo, voando em círculos até aterrissar no gramado marrom do inverno ao lado dele.
– Tatsuwa! Cara, estou feliz de te ver!
– Garoto Redbird! – o corvo respondeu.
– Sim, sou eu. Ok, você tem que levar uma mensagem para Dragon. Tipo, agora mesmo. – Kevin se agachou ao lado do corvo. Ele ficou aliviado ao ver que Tatsuwa tinha uma tira de couro em volta do pescoço e que dela pendia um pequeno recipiente de plástico, como os usados para guardar sal. Ele tirou o objeto do pescoço do pássaro e o abriu. Dentro havia um pedaço de papel dobrado e um pequeno lápis.
Usando sua mochila como apoio, ele sentou no chão e escreveu um recado rapidamente.
Neferet tem um esconderijo de armas modernas no porão da Morada da Noite. Dez caixas de lançadores de granadas. Dez caixas de M-16s. Munição para tudo. Ela planeja atacar o sul em breve. Ainda não sei quando.
Kevin pausou, mordendo a ponta do lápis. Ele tinha que contar a eles sobre a visão de Aphrodite e o perigo que a Resistência corria, mas não queria que ela se tornasse um alvo. Decidindo rápido, ele continuou a escrever.
Neferet tem informações de que a Resistência está escondendo pessoas em fardos redondos. O Exército Vermelho está a caminho da Lone Star Road e das plantações de feno hoje à noite. Se vocês estão transportando fugitivos levando pessoas para fora desse jeito, vocês só têm uma hora para tirá-los daí. Eu estarei com o exército.
Ele fez uma pausa de novo e então acrescentou:
Tive que usar Magia Antiga para chamar o pássaro. Precisamos descobrir um jeito melhor... K.
Ele releu o bilhete e então, satisfeito, dobrou o papel e o colocou de volta no recipiente com o lápis. O corvo grasnou e deu uns pulinhos até o seu lado, levantando a cabeça para que ficasse fácil para Kevin colocar de volta a tira de couro ao redor do pescoço.
– Ei, não sei se você consegue me entender ou não, mas, se consegue, você precisa ficar mais de olho em mim. Não me sinto bem de usar Magia Antiga assim, a torto e a direito. Além disso, estou ficando sem coisas para pagar os espíritos. Hum, espere aí. Você se importa se eu pegar uma pena sua emprestada?
O grande pássaro inclinou a cabeça para o lado, analisando Kevin.
– Garoto Pássaro! – ele disse e então se virou, obviamente oferecendo a Kevin uma pena da sua cauda.
– Cara, você é bem legal para um pás... quero dizer, corvo. – Com um puxão rápido, Kevin arrancou uma das longas penas negras da cauda de Tatsuwa.
O grasnido de protesto do corvo ecoou pelo muro de pedra enquanto o pássaro levantava voo. Ele voou em círculos sobre Kevin, caprichosamente soltando uma gota quente de cocô de pássaro na cabeça dele.
– Ei, muito obrigado! – Kevin gritou para ele, tentando tirar a sujeira do seu cabelo. – Bom, pelo menos não fede tanto quanto o perfume de sangue.
Zoey
– Ok, então, vamos relembrar o que aconteceu. Quem pode me dizer por que Thanatos morreu quando Neferet quebrou o feitiço protetor que havia jogado sobre o Edifício Mayo? – eu perguntei e fiz uma pausa, satisfeita ao ver várias mãos se levantando.
Dar aulas é sempre uma incógnita. Alguns dias tudo corre tranquilamente e os alunos fazem o seu dever de casa e agem corretamente. Outras vezes é como se todos os seus neurônios tivessem sido desligados – a menos que você mencione peitos ou fale um palavrão sem querer. Eu me surpreendi ao descobrir que gostava de ensinar porque, bom, adolescentes são tão imprevisíveis quanto os gatos e muitas vezes têm ainda menos noção do que eles.
(Sim, eu tenho dezoito anos, então, tecnicamente, ainda sou uma adolescente. Só que eu também sou a Grande Sacerdotisa e, às vezes, a professora – então tenho certeza de que o fato de ser uma adolescente não conta. A menos que eu faça besteira. Aí todo mundo se lembra de como eu sou jovem. Isso é um saco.)
Eu me sacudi mentalmente e assenti para uma mão erguida muito entusiasmada.
– Samantha, qual é a sua resposta?
A garota era uma quarta-formanda ou, como a chamaríamos em sua escola humana, uma aluna de segundo ano do ensino médio. Era fácil de perceber isso pelas asas de Eros bordadas no bolso sobre o seio do seu suéter da escola.
– Senhora, Thanatos morreu porque colocou demais de si mesma no feitiço, então, quando Neferet quebrou o feitiço, ela também quebrou Thanatos.
Internamente me contorcendo porque a garota tinha usado a palavra senhora para se referir a mim, eu consegui forçar um sorriso.
– Sim, certo. Então, você acha que Thanatos deveria ter se protegido mais, colocando menos de si no feitiço?
– Não – Samantha respondeu direto, sem levantar a mão. – Se ela tivesse feito isso, Neferet teria se libertado do Mayo antes do sacrifício de Kalona, e antes que você e o seu círculo descobrissem como detê-la, e todos nós teríamos morrido ou virado escravos dela. Thanatos é uma heroína. Eu a admiro.
– Há muito para se admirar em Thanatos. Quem pode me dizer qual a afinidade que Nyx concedeu a ela?
Eu estava me preparando para chamar outro garoto quando, em vez disso, eu ofeguei. Um calor brotou na parte superior do meu corpo, como se alguém estivesse apontando um secador de cabelos no nível máximo diretamente para o meu peito nu – apenas para fins de esclarecimento, eu não estava lecionando pelada. Nós somos diferentes aqui na Morada da Noite, mas não tão diferentes.
– Está tudo bem, senhora? – Samantha perguntou.
– Sim. Estou bem. Eu, ahn, preciso sair por um segundo. Samantha, você é a responsável até eu voltar. Continue a discussão sobre Thanatos, por favor.
Então aproveitei para sair rapidamente pela porta da sala de aula, com a mão pressionada sobre a queimação no meio do meu peito.
Mal consegui sair e já vomitei até as tripas em uma lata de lixo reciclável no corredor.
E então o calor foi embora, deixando-me de corpo mole e ofegante.
– Zoey! – Stark dobrou a esquina do corredor correndo e chegou deslizando até mim. – Minha Deusa, desta vez foi foda! – Ele apalpou todo o meu peito, não de um jeito sexy, mas sim de um jeito caraca-será-que-eu-me-quebrei.
– Estou bem agora. Acabou – tentei soar normal, mas a minha voz estava tão trêmula quanto as minhas mãos. – Desculpe por ter tirado você da sua aula.
– Nunca peça desculpas. Você é a minha vida, Z. Se alguma coisa acontecesse com você...
– Ei. – Peguei a mão dele. – Não está acontecendo nada comigo. Está acontecendo alguma coisa com Kevin. Esse é o problema.
– Não, o problema é que Kevin não está aqui, então não posso dar porrada nele por ficar usando Magia Antiga sem pensar.
– Ele não sabe como isso é perigoso, Stark.
Stark suspirou.
– Eu sei, eu sei. Desculpe. Eu não ia dar porrada nele de verdade. Eu gosto dele.
– Sim, eu também.
– Acho que você vai ter que dar um jeito de dizer a ele para parar de usar Magia Antiga. A ironia é que provavelmente você vai ter que usar Magia Antiga para fazer isso – Stark disse.
Eu evitei fazer contato visual com ele.
– Sim, isso é um saco, mas estou tentando descobrir como fazer isso.
– Isso é uma boa e uma má notícia. Olha só, Z, eu sei que isso está realmente te desgastando, e que você está super preocupada com o seu irmão, mas quero que você me prometa que não vai sair sozinha e mexer com Magia Antiga sem supervisão.
Coloquei meus braços ao redor dele e descansei no seu abraço.
– Prometo. Eu já aprendi a minha lição. Não vou sair escondida sozinha e usar Magia Antiga.
Pude sentir Stark relaxar, o que só aumentou minha culpa. Quando ele tentou me beijar, eu me inclinei para trás, cobrindo a boca. Por trás da minha mão, eu disse:
– Você não quer fazer isso. Acabei de vomitar.
– Ah, Z, sinto muito. O que eu posso fazer?
– Nada. Eu realmente estou bem agora. Vou terminar a aula mais cedo e mandar os alunos para a sala de estudos, e aí vou até o nosso quarto escovar os dentes. Hálito de vômito é muito nojento.
– Ok, já está quase na hora do almoço. Você vai conseguir comer?
– Com certeza! Encontro você no refeitório. E pare de se preocupar. Eu estou bem.
Stark me deu um beijo na testa.
– Eu te amo, minha Rainha.
– Eu também te amo, meu Guerreiro – eu disse. Então eu o observei indo embora com o meu coração apertando no peito. Quando ele desapareceu, tirei o celular do bolso e digitei, procurando o contato certo.
– Qual é, Z?
– Kramisha, preciso que você faça uma coisa pra mim.
– O seu desejo é uma ordem.
– Você ainda tem uma cópia daquele velho poema profético? Aquele sobre como fazer Kalona se erguer?
– Tenho. Está no meu arquivo com a etiqueta “Merdas com as quais ninguém deveria mexer”.
– Ótimo. Eu preciso dele. Você me manda uma cópia por e-mail?
– Você vai mexer com ele?
– Kramisha, Kalona já se ergueu em uma explosão. Isso não pode acontecer duas vezes.
Pelo menos não neste mundo, eu acrescentei silenciosamente para mim mesma.
– Isso é verdade. Te mando o e-mail.
– Obrigada, tchau.
Voltei para a minha sala de aula e coloquei a cabeça para dentro da porta.
– Pessoal, vou encurtar a aula hoje. No resto do tempo, vocês podem ir até o Centro de Mídia para estudar.
Então eu fechei a porta para as comemorações deles e fui em direção ao estacionamento.
O meu Guerreiro estava cem por cento correto. Kevin precisava ser avisado sobre como era perigoso lidar com Magia Antiga e ele tinha que entender como controlar o impulso de usá-la sem parar.
Eu vou dizer isso a ele.
Eu vou ensiná-lo.
Pessoalmente.
Mas primeiro eu precisava pensar – raciocinar realmente sobre os como, os quando e os com quem – sozinha. Sem ficar ansiosa olhando para alguém me encarando fixamente como um projeto de química prestes a explodir ou, pior, alguém me perguntando sem parar se eu estava bem.
Decidi ir em direção ao meu lugar preferido para ficar sozinha...
17
Stark
Assim que o sinal soou para liberar os alunos para o almoço, Stark saiu apressado do Ginásio para o Refeitório dos Professores. Ele não deu a mínima em estar atraindo a atenção de cada novato, vampiro e humano que passou por ele. Stark tinha um pressentimento. Um maldito mau pressentimento. E esse pressentimento tinha alguma coisa a ver com Zoey.
Claro que ela não estava no refeitório.
Ele sentou-se na mesa grande onde ele, Z e seus amigos normalmente comiam e esperou.
E esperou.
E esperou.
Depois de se passarem trinta minutos, ele acenou para uma garçonete.
– O que eu posso trazer para você, Stark?
– Não quero nada. Estou só esperando a Zoey, mas talvez a gente tenha se desencontrado. Ela já comeu?
– Não, eu não encontrei com ela hoje. Quer que eu anote o seu pedido?
– Não, acho que vou esperar mais um pouco, mas obrigado – ele respondeu e ela saiu. Então Stark conferiu o seu telefone. De novo. Nada de Z. Ele mandou uma mensagem de texto para ela. De novo.
Você ainda não está aqui. Será que eu confundi o lugar?
Ele apertou o botão de ENVIAR e depois digitou de novo rapidamente.
Estou começando a ficar preocupado. Me liga.
– E aí, Stark? O que parece mais apetitoso para o almoço hoje? – Damien perguntou enquanto sentou ao lado de Stark, deslizando em um dos bancos com encostos altos que formavam uma cabine.
– Ah, oi, Damien. Não sei. Estou esperando a Z.
– Ah, tudo bem, eu estou esperando o Jack. Ele está ficando um tempo a mais no Centro de Mídia, tentando recuperar o que não aprendeu lá naquele Outro Mundo deplorável. – Damien sorriu para a garçonete que tinha voltado até a mesa deles. – Quero pedir tacos para Jack e para mim. Mas dê uns dez minutos antes de soltar o pedido. Ele é Outro Jack, mas é quase tão atrasado quanto o Jack original era. – Então Damien voltou sua atenção de novo para Stark. – Você disse que estava esperando Z?
– Sim. Ela também está atrasada.
– É porque ela não está aqui. Eu vi o Fusca dela sair do estacionamento meia hora atrás, e eu ainda não a vi voltar.
– Merda! Você está brincando?
– Não. Stark, está tudo bem? – Damien perguntou.
– Não. Não está tudo bem. Desculpe, Damien. Tenho que ir. – Stark teve que se esforçar muito para não bater a porta com força quando saiu do refeitório.
Ela simplesmente saiu dirigindo e não me falou nada? De novo.
Essa era a terceira vez nos últimos dias em que Z tinha falado para ele que ia estar em algum lugar – ou encontrá-lo para fazer algo – e ou ela não aparecia, ou se atrasava. Bastante.
Claro, ela sempre tinha uma desculpa, como ter que conferir a tumba de Neferet para ter certeza de que não estava acontecendo nada de estranho por lá. Ele entendia isso. Ele também entendia que Zoey poderia enviar outra pessoa para fazer isso se ela quisesse. Alguém como ele. Ou Darius. Ou Rephaim. Ou qualquer um entre as dúzias de outros Guerreiros Filhos de Erebus que iriam fazer um relatório com tudo para Zoey e manter suas bocas fechadas se descobrissem alguma coisa fora do normal.
E, claro, ela dizia que continuava indo ao Restaurante da Estação para ajudar com a reforma, mas entre Damien, Outro Jack e Stevie Rae, já tinha um monte de gente para ajudar.
Pior ainda, sempre que Stark tentava ir atrás de Z – quando tentava ver por que ela estava demorando tanto –, ela nunca estava realmente ali no instante em que prometera estar.
Stark foi primeiro para os aposentos que ele dividia com Zoey. Ela não estava lá. Então ele desceu correndo as escadas e saiu pela porta de madeira em arco que sempre o fazia lembrar um castelo. Ele fez uma pausa, enquanto os seus olhos varriam os jardins da escola. Havia estudantes novatos e humanos por toda parte. Alguns estavam sentados em pequenos grupos embaixo dos lampiões a gás bruxuleantes, compartilhando o almoço. Outros estavam andando apressados em direção aos dormitórios. Outros estavam brincando de um pega-pega estranho que a atual turma dos alunos do último ano tinha criado e que envolvia gatos de alguma forma.
O olhar dele foi atraído para a estátua de Nyx que ficava no centro do jardim principal. Quando ele reconheceu uma das Grandes Sacerdotisas no pequeno grupo aos pés da Deusa, sentiu uma enorme onda de alívio e atravessou correndo o gramado marrom do inverno. Lá está ela! Espero que ela saiba de algo.
– Stevie Rae! Ei, a gente precisa conversar – Stark disse ao se juntar a ela perto da estátua. Ao lado de Stevie Rae estavam dois jovens novatos que tinham acabado de acender a miríade de velas votivas que tremeluziam alegremente ao redor do pé da Deusa. Eles fizeram uma reverência nervosa, porém respeitosa, para cumprimentar Stark. – Oi, e aí? Bom trabalho com essas velas aí. Ok, hora de vocês irem almoçar. Ou de irem para a próxima aula. Basicamente, hora de vocês vazarem! – Stark gesticulou com a mão, enxotando-os dali.
Stevie Rae observou os dois novatos saírem apressados na direção da entrada dos fundos da escola. Ela olhou feio para Stark.
– Ótimo. Você acabou de assustar os dois. Você não lembra como é a sensação quando a gente acaba de ser Marcado? Aqueles novatos só estão aqui há uma semana. Eles ainda estão chorando no travesseiro à noite chamando a mamãe.
– Eles vão ficar bem, assim como nós ficamos. Quem não está bem é Zoey.
– De que diabos você está falando?
– Você tem visto Zoey ultimamente? – Stark disparou a pergunta para ela.
– Sim. Não. Eu só a vi rapidinho pouco tempo atrás, faz uma meia hora. Ela disse que estava indo até a estação para ver se Kramisha precisava de ajuda para fazer as malas. Você sabe que Kramisha está indo pra Chicago amanhã, né?
– Sim, sim, eu sei que Kramisha vai embora. E Z disse que ela estava indo para a estação? Tem certeza?
– Claro que tenho. Não faz tanto tempo.
– Ok, aguenta aí. – Stark tirou o telefone do bolso e ligou para Kramisha, colocando no viva-voz para que Stevie Rae pudesse ouvir também.
Kramisha, ao contrário de Zoey, atendeu no primeiro toque.
– O que você quer, Stark? Estou ocupada aqui fazendo as malas.
– Desculpe te atrapalhar. Z está com você?
– Não.
– Você a viu hoje?
– Não.
– Ok, obrigado.
– Ei, está tu...
Stark desligou e lançou um olhar penetrante para Stevie Rae antes de falar:
– Zoey mentiu pra você. Ela mentiu pra mim, ela tem feito isso ultimamente. Ela conversou com você pelo menos?
Stevie Rae hesitou antes de responder.
– Eu ia dizer “Claro! Z conversa comigo todo dia”, mas, quando pensei mesmo sobre isso, na verdade ela não tem falado muito.
– Pois é, desde que ela começou a sentir o Outro Kevin usando a Magia Antiga.
– Eu sei que ela está preocupada. Afe, Stark, eu também estou preocupada com Kev.
– O problema é que eu tenho certeza de que não é só com o Outro Kevin.
– Você vai ter que me contar mais do que isso. Desde que Z disse para Rephaim e para mim que a gente poderia ficar em Tulsa, ando super louca e atarefada me instalando aqui e decifrando planos de aula de Sociologia Vampírica, que eu fui tonta o bastante para me voluntariar para ser a professora. Afe, quem podia imaginar que dar aula era tão difícil?
– Todo professor no mundo sabe disso, mas esse não é o ponto. Stevie Rae, você precisa me ouvir: eu acho que Zoey não está bem.
Stevie Rae fez um gesto para que Stark se juntasse a ela em um banco de ferro cheio de ornamentos esculpidos, perfeitamente situado perto da estátua da Deusa.
– Agora, me conta o que está entalado aí dentro em relação a Z.
Stark soltou um longo suspiro ao se sentar ao lado dela.
– Ela está indo ao túmulo dele. Todo dia. E está mentindo sobre isso.
Stevie Rae mexeu os ombros.
– Isso não é tão ruim. Quer dizer, Z sente falta de Heath. Todo mundo sabe disso, e talvez ela não esteja dizendo a verdade porque não quer que você se sinta mal. Ei, se ela está mentindo, como você sabe pra onde ela vai?
– Eu a segui. E, antes que você comece a me passar sermão, preciso dizer que só fiz isso porque estava preocupado. Muito preocupado.
Stevie Rae levantou as mãos em sinal de rendição.
– Ei, não estou julgando, mas você tem a minha atenção total agora. Continue.
Stark passou os dedos pelo seu cabelo grosso e suspirou de novo.
– Então, eu a segui – ele repetiu. – E a observei. Ela fica sentada lá. No túmulo dele. E conversa com ele. Muito.
– Ela conversa com a lápide dele?
Stark balançou a cabeça.
– Não. Ela se se recosta na lápide dele, mas fica olhando para o lado, como se ele estivesse sentado ali, ao lado dela, em algum lugar perto. E perto mesmo, não no Bosque de Nyx.
– Bom, ok, então isso é estranho e triste, mas talvez seja o jeito de Z lidar com o luto dela. Você sabe que levou muito tempo para ela conseguir ir até o túmulo dele. Ela nunca nem me deixou ir com ela. Uma vez Z me disse que isso era algo que ela precisava fazer sozinha e que eu devia deixá-la em paz. Ela disse que gostava de pensar lá porque é bem silencioso. Talvez seja só isso. Z precisa de um tempo sozinha. O que você acha? – Stevie Rae balançou a cabeça, fazendo os seus cachinhos loiros sacudirem ao redor do seu rosto. – Parte disso é culpa minha. Sinto muito que eu estive tão enlouquecida que nem percebi que ela estava depressiva ou algo assim.
Stark fez um gesto recusando as desculpas dela.
– Isso não é culpa sua. É de todos nós. Acho que a gente deixou ela sozinha demais desde que Kevin voltou para o Outro Mundo.
– Mas a gente está dando espaço pra ela. Ei, eu sei que ela tem falado com o irmão dela. O Kevin deste mundo. O que não é um vampiro vermelho. Acho que isso está ajudando um pouco a lidar com o fato de o Outro Kevin não estar aqui. – Stevie Rae suspirou e passou os dedos pelo cabelo. – Eu não perguntei quase nada sobre como ela estava se sentindo, principalmente depois de ela ficar dizendo para a gente como estava bem, mesmo com aquela maldita Magia Antiga mexendo com ela e Outro Kevin. Como Kramisha sempre diz, não é legal ficar se metendo nos assuntos de Z.
– Sim, bom, o tempo de dar espaço acabou. Desde que ela começou a “conversar” – ele fez aspas no ar com os dedos – com Heath, ela parou de conversar de verdade comigo. E, obviamente, com você.
– Z não tem conversado com Damien nem Aphrodite também? – Stevie Rae perguntou.
– Ah, claro. Z conversa com Damien, com Aphrodite, com você e comigo. Mas ela nunca diz como está se sentindo, só diz que está bem. Stevie Rae, ela está se afastando de mim. E de você, de Aphrodite e de Damien. Ela só está conversando de verdade com o Heath, que já morreu.
– Você não acha mesmo que Z só está lidando com o luto dela?
– Não, porque essa coisa de conversar com o Heath morto só começou depois que Kevin veio do Outro Mundo e...
– E contou a ela que Heath estava vivo do lado de lá – Stevie Rae terminou a frase por ele enquanto arregalava os olhos ao compreender.
– Exatamente – Stark disse.
– E então ela sentiu Kevin usando Magia Antiga.
– Sim. O que aconteceu hoje de novo. Um pouco antes de ela ir embora no Fusca, apesar de ter me dito que a gente ia se encontrar para almoçar.
– Aiminhadeusa, Z está indo para o Outro Mundo! – Stevie Rae concluiu.
– Sim, estou começando a pensar isso também – Stark falou.
– Ah, que inferno! – Stevie Rae exclamou.
Zoey
Olhei as horas no celular quando saí com o meu Fusca da Rua Setenta e Um e entrei na Aspen, pegando a primeira à esquerda para atravessar o portão sombrio do Cemitério Floral Haven. Eu tinha certeza de que ia conseguir voltar para a Morada da Noite sem me atrasar muito para encontrar Stark no almoço.
– Eu devia apenas contar a ele que gosto de vir aqui – murmurei para mim mesma. – Ele entenderia. Certo?
Hum. Não. Eu já tinha contado isso a ele outra vez. Faz quase um ano. E ele fez um milhão de perguntas e disse que eu deveria falar com alguém. Alguém tipo um psiquiatra. Sobre o meu luto.
– Tentei explicar que é tipo isso que eu faço quando visito o túmulo. Eu falo. Claro, não é com um psiquiatra, mas falar é falar, certo?
Aparentemente, não para Stark. Não que eu o culpasse por isso. Perder Heath tinha sido horrível. Pior até mesmo do que perder a minha mãe, porque a verdade é que eu era muito mais próxima de Heath do que de qualquer um na minha família, exceto de Vovó Redbird.
Como se soubesse o caminho sem que eu tivesse que manobrar a direção, o meu Fusquinha azul-claro serpenteou pelas curvas até o que tinha se tornado uma parte familiar do cemitério. Parei no lugar de sempre – perto do cedro que marcava o começo da trilha que eu havia percorrido incontáveis vezes no último ano.
Eu sempre ficava triste logo que chegava ali. O Floral Haven não teria sido a primeira opção de Heath. Não porque fosse um cemitério ruim nem nada desse tipo. Eu simplesmente sabia que Heath iria gostar de algum lugar mais... bem... colorido. Heath gostava de coisas loucas, e o Floral Haven era imaculado, bem estruturado, bem organizado e bem regulado. Era exatamente o oposto de louco.
Enquanto eu andava pela trilha que levava à sepultura da família Luck, a minha tristeza se evaporou um pouco – e depois mais do que “um pouco” quando eu avistei a minha contribuição à vizinhança da área dos Luck. Fui até a lápide modesta, adequada e entediante de Heath e sentei bem em cima do seu túmulo, o que eu sei que ele teria apreciado. Eu me recostei na pedra cinza e fria, que dizia em letras grandes HEATH REGINALD LUCK – FILHO AMADO, e então olhei para o lado na direção da área mais próxima à dos Lucks, onde havia apenas uma lápide – a que eu havia encomendado imediatamente depois de comprar a área de sepultamento familiar vizinha. Era o contrário de entediante, esticando ao máximo o que as regras muito específicas do cemitério permitiam. Eu havia mandado fazer uma lápide de mármore azul polido, da cor exata de um buraco de pesca perfeito. Em cima dela, eu havia pedido para o artista esculpir uma cena de Heath sentado em uma pequena plataforma de madeira atirando a linha de pesca da sua vara na água. Eu tinha feito com que Heath estivesse olhando direto para mim, sorrindo como ele sempre fazia quando ia pescar.
– E aí, beleza? – perguntei para o Heath esculpido. – Sim, hoje foi um daqueles dias incríveis de inverno em Oklahoma, em que não está tão frio para ficar do lado de fora, mas também não quente o bastante para despertar as três ameaças típicas daqui: carrapatos, pólen de ambrósia e cobras. Aposto que você diria que estaria um clima bom para pescar, mas na verdade você achava que todo dia tinha um clima bom para pescar.
Ok, deixe-me ser sincera. Eu não tinha perdido a cabeça – pelo menos não totalmente. Eu não estava sob nenhuma ilusão de que Heath estivesse de fato ali me escutando. Eu sabia onde ele estava, ou pelo menos uma versão dele. Eu tinha estado com ele lá – no Bosque da Deusa – depois que ele morreu e que a minha alma se despedaçou de tristeza. Ele provavelmente está pescando em algum lugar lá em cima agora.
Mas eu gostava de fingir que estava falando com ele.
Eu precisava fingir que estava falando com ele.
Principalmente agora.
– Então, lembra que outro dia eu te contei sobre aquela queimação estranha no meu peito? Bom, surpresa! Não era um ataque do coração. Era uma coisa pior. Era o Outro Kevin, lá naquele Outro Mundo, usando Magia Antiga – fiz uma pausa e recostei minha cabeça na lápide dele. – É, isso é ruim. Bem ruim mesmo. E ele está mexendo muito com isso – suspirei. – Né? Eu sei que ele vai se meter em alguma grande caca. Por que os irmãos mais novos são sempre um pé no saquinho?
– Zoey? É realmente você! Achei que tinha visto o seu Fusca entrar aqui.
Dei um salto ao ouvir a voz e girei sentada para ver o meu irmão, Kevin, andando na minha direção.
– Afe, você quase me mata de susto, Kevin. Tipo, faça mais barulho da próxima vez.
– Que tal você me dizer quando vai visitar o túmulo de Heath da próxima vez e eu encontro você aqui? Por sorte eu estava passando quando você entrou. – Kevin olhou para mim e sorriu. – Foi sorte!9 Entendeu?
Eu sorri para ele.
– Entendi. – Então dei umas batidinhas no lugar ao meu lado, e Kevin sentou no local indicado.
Nós não falamos nada. Apenas ficamos sentados. Desde que o Outro Kevin tinha partido, eu gostava de conversar com este Kevin – bastante. Principalmente pelo telefone, no entanto. Primeiro, porque ele tinha um calendário escolar super ocupado e era difícil para ele escapar, especialmente sem o padrastotário, o marido péssimo da minha mãe, sabendo que Kevin e eu tínhamos nos reaproximado.
A segunda razão era mais difícil. Ver Kevin, do jeito que estava fazendo agora, fazia com que eu sentisse falta do Outro Kevin. Quer dizer, eu gostava de conversar com este Kevin. Ele tinha crescido e virado um cara bacana, havia trocado a sua obsessão por videogame por uma obsessão por luta livre e tinha entrado para a seleção da Broken Arrow este ano, o que era legal. Mas ele não era um vampiro. Ele não conseguia me entender como o Outro Kevin me entendia. Não era culpa dele, mas isso não fazia com que fosse menos verdade.
– Ei, você nunca acha isso meio sinistro? – Kevin interrompeu meus pensamentos com um encontrão de ombro.
– O quê? Sentar no túmulo dele? Que nada, Heath iria adorar – eu disse.
– Bom, isso e aquilo – ele apontou para o Heath pescador esculpido.
– Heath iria adorar aquilo também – eu respondi. – Você não lembra que ele tinha senso de humor?
– Claro. E você não lembra que ele está morto?
Eu dei um pulo abruptamente, como se Kevin tivesse me dado um tapa.
– É claro que eu lembro. Eu estava lá. Perder Heath quase me matou. Por que diabos você me perguntaria isso?
– Por causa do que o Outro Kevin te contou.
Eu não falei nada. Eu não conseguiria dizer nada. Para este Kevin – este meu irmão humano –, seria impossível entender a Magia Antiga. Ele também não entenderia o sonho que eu tive, o qual eu tinha certeza de que não era um sonho, mas uma mensagem da minha versão morta do outro mundo. Ele iria pensar que eu só estava dando desculpas se contasse a ele o que eu tinha decidido – o que eu sabia que tinha que fazer.
Eu não estou dando desculpas.
O meu irmão – o meu outro irmão – precisava de ajuda com Magia Antiga e de ajuda para se livrar de Neferet. Nenhuma dessas coisas tinha nada a ver com o Outro Heath Luck.
– Zoey, eu vou com você. Você só precisa pedir – Kevin disse em meio ao silêncio que tinha se instalado entre nós.
Os meus olhos faiscaram na direção dele.
– Você não pode! Eu não estou viva naquele mundo, então posso me safar passando despercebida por lá, mas você está. E você é um vampiro vermelho traidor que se tornou aliado da Resistência contra Neferet e os seus exércitos. Não é seguro para você.
– Z, de acordo com o que você me contou, não é seguro para ninguém lá.
Desviei o olhar de Kevin e encontrei a imagem de Heath sorrindo de novo.
– Eu sei disso – eu disse.
– Mesmo? – o meu irmão perguntou enquanto estalava as juntas e alongava os dedos, um sinal claro de que ele estava estressado.
– Você sabe que eu vou, né? – respondi à pergunta do meu irmão formulando outra pergunta.
– Sim, eu sei. E, Z, se eu sei, os seus amigos também sabem.
Senti um terrível calafrio de mau agouro.
– Não! Eu não disse nem uma palavra para nenhum deles.
– Você também não disse nem uma palavra para mim. Eu só juntei as peças.
– O que significa que eles também vão juntar.
– Ah, sim. Com certeza.
– Bom, não é como se eu fosse fugir escondida sozinha – eu falei. – Já aprendi a minha lição sobre pensar que posso lidar com uma crise grave completamente sozinha. Isso é burrice.
– Isso faz com que eu me sinta melhor, mas só um pouco. Z, você tem certeza de que precisa ir?
Desviei a atenção da imagem de Heath e encontrei o olhar do meu irmão.
– Outra versão de você está em uma grande encrenca. Eu posso ajudá-lo. Se você fosse ele, o que gostaria que eu fizesse?
Ele abriu o sorriso, e de repente eu o vi como um menino, com cerca de sete anos, com um cabelo horrível cortado a máquina e um buraco no lugar onde deveriam estar os dentes da frente, e o meu coração se apertou.
– Z, eu não vou mentir. Com certeza eu ia querer que você viesse salvar a minha pele.
Isso vai deixar Stark arrasado, eu pensei, mas tudo que eu disse foi:
– Sim, e é exatamente isso o que eu vou fazer.
9 Sorte em inglês é “luck”, como o sobrenome do personagem Heath. (N.T.)
18
Outra Aphrodite
Aphrodite fechou o zíper da sua elegante jaqueta de couro de aviador e empinou o queixo quando saiu pela porta da frente da escola e foi em direção ao primeiro veículo do comboio militar. Aphrodite podia sentir os olhares que a acompanhavam, mas isso não era nada de novo. Homens sempre a olharam desde antes de os seus peitos crescerem. Claro que havia uma diferença entre homens normais e machos que eram máquinas de comer vorazes e fedorentas, mas, como diria Neferet, nem tanta diferença assim.
Ela balançou a cabeça para afastar aquele pensamento. Se estou citando Neferet, está realmente na hora de pensar na minha vida. Eu consigo fazer isso. Eu posso ir com o exército até aquele campo idiota nos arredores daquela cidade idiota de Sapulpa, e depois posso voltar para casa. Neferet vai estar mais calma. Vou cair de novo nas suas graças e tudo pode voltar ao normal. O problema era que aquele pensamento não trouxe muito conforto para Aphrodite. O normal na Morada da Noite tinha se tornado quase insuportável. Pela milionésima vez desde que Neferet tinha começado a sua guerra horrenda, Aphrodite desejou ter escapado – ter fugido para a Itália e a Ilha de São Clemente antes de toda essa maldita coisa ter começado. Ela era uma Profetisa. Com certeza o Conselho Supremo teria concedido santuário a ela e não a teria colocado no próximo voo de volta para Tulsa quando Neferet exigisse sua volta.
Neferet obviamente exigiria isso. Ela só tinha uma Profetisa. Pela primeira vez na vida, Aphrodite lamentou ter recebido tantos malditos dons de Nyx e não poder ser apenas uma Sacerdotisa comum.
– Quem eu quero enganar? Eu nunca seria uma pessoa comum.
– Tenho que concordar com você, gata!
Aphrodite olhou para o seu lado direito. Havia um jovem tenente vampiro azul encostado no veículo líder, sorrindo para ela cheio de malícia.
– O que você disse? – ela perguntou com uma falsa voz doce.
– Que eu concordo. Você é gata demais para ser considerada comum. – Ele piscou para ela.
Ela olhou intensamente nos olhos dele.
– Eu pedi a sua opinião?
– Não, mas eu...
– Mas o quê? – ela falou com a voz cortante o bastante para fuzilá-lo. – Você não tem educação? Não tem noção?
– Ei, olhe...
Ela cortou as palavras dele de novo.
– Não, olhe aqui você. Quer saber quando você vai morrer?
– Não!
– Quer saber como você vai morrer?
– De jeito nenhum!
– Então me trate com o respeito que uma Profetisa de Nyx merece, ou eu posso sentir a necessidade de esclarecer as coisas. A Deusa sabe que um pouco de esclarecimento seria bom para você.
– Ahn, tá bom. Ok.
– Deixe-me corrigi-lo. A forma correta de você responder é: Perdão, Profetisa. Isso não vai se repetir, Profetisa. Deixe que eu abro a porta para você, Profetisa. – Aphrodite fez uma pausa enquanto aquele babaca irritante apenas ficou ali parado, com a boca abrindo e fechando como uma carpa com cara de furão. Ela suspirou e colocou as mãos no quadril. – Essa coisa é o carro do General Stark?
– Sim, é o Hummer dele. Ahn, quero dizer, sim, é o carro dele, Profetisa.
– Veja só, você é capaz de aprender. Então abra a maldita porta para mim.
– Algum problema, Tenente Dallas? – Stark apareceu por trás dela e caminhou a passos firmes até o lado do banco do passageiro na frente do veículo. Ele não estava sozinho, mas Aphrodite não precisava olhar para ver quem estava com ele. Ela podia sentir o cheiro.
– Não, senhor! – O tenente imbecil abriu imediatamente a porta do Hummer para Stark.
– Bom saber. Vamos zarpar – Stark deu uma olhada para Aphrodite e Kevin, que tinha parado ao lado dela. – O que vocês estão esperando, um convite por escrito? Entrem aí no banco de trás. – Stark balançou a cabeça, murmurando algo indecifrável, e o Tenente Dallas fechou a porta com uma batida forte.
Kevin foi até a porta do banco traseiro ao lado deles no veículo e a abriu.
– Depois de você, Profetisa – ele disse.
– O único com o mínimo de educação fede. Fantástico. – Ela passou por Kevin e entrou.
Kevin deu uma corridinha até o outro lado do Hummer e se sentou ao lado dela.
– Tudo certo aí atrás, Profetisa? – Dallas perguntou com apenas um toque de ironia ao sorrir olhando pelo espelho retrovisor.
– Apenas dirija – Stark disse rispidamente para ele. Enquanto eles guiavam o comboio para fora da Morada da Noite, Stark se virou no seu assento. – Agora, é bom você contar o que você não falou para Neferet sobre a sua visão.
Aphrodite ergueu uma sobrancelha para ele.
– Não tenho a menor ideia do que você está falando. – Ela enfiou a mão na sua bolsa extragrande Louis Vuitton e tirou de lá de dentro uma das três garrafas de Veuve Clicquot, satisfeita ao ver que havia tirado o rosé primeiro. Sem olhar para Kevin, ela entregou a garrafa para ele. – Abra. Não derrame. É melhor você não deixar seu fedor na garrafa também.
Stark balançou a cabeça.
– Você trouxe champanhe para uma batalha?
– Não, eu trouxe um bom champanhe para uma pré-batalha. É tipo dirigir colado no carro da frente, só que menos esportivo e mais mortal. Quer uma taça? – Aphrodite levantou uma bela taça que ela tinha guardado no bolso lateral junto com o seu Xanax de emergência.
– Não, mas eu quero uma resposta para a minha pergunta.
Kevin estourou a rolha e Aphrodite estendeu a taça para que ele a enchesse.
– Eu já respondi.
– Uma resposta de verdade.
Aphrodite deu uma olhada em Kevin.
– Cubra o topo da garrafa com o papel metálico para que ainda fique um pouco frisante. Você não sabe nada sobre champanhe?
– Não. Nunca experimentei. O meu padrastotário, ahn, é assim que minhas irmãs e eu chamamos o meu padrasto, é religioso demais para...
– Que chatice! – Aphrodite olhou para Stark. – Eu não sabia que eles podiam conversar.
– Você quer dizer os vampiros vermelhos? – Stark perguntou, dando um olhar divertido para Kevin.
– Sim, é claro que foi isso o que eu quis dizer.
– Aphrodite, Kevin é um oficial. Todos eles falam. Você acabou de ouvi-lo conversando com Neferet no briefing.
– Aquilo não foi uma conversa. Ele estava relatando informações. Tanto faz. – Ela deu um gole no seu champanhe e olhou para fora da janela enquanto eles pegavam a estrada em direção a Sapulpa.
– Ainda estou esperando você responder minha pergunta – Stark disse.
– Desculpe. Qual era mesmo?
Stark suspirou pesadamente, e Aphrodite percebeu que o Tenente Dallas estava sorrindo como se ela fosse o seu próprio entretenimento pessoal.
– Tenente Dickless,10 você sempre se diverte às custas do seu general?
O sorriso instantaneamente sumiu do rosto de Dallas, e ele voltou os olhos para a estrada.
– Ótimo. O único tenente que fala também fede. E respondendo à sua pergunta, General Cara do Arco, eu contei tudo para Neferet. Bom, exceto uns detalhes sobre como os soldados do Exército Vermelho perderam o que possa ter sobrado das suas mentes e não se contentaram apenas com o massacre dos humanos que encontraram nos fardos. Eles também devoraram os novatos... novatos azuis que poderiam ter crescido e se tornado caras grandes como você. Ah, e eles comeram vampiros azuis adultos também. Basicamente, o seu Exército Vermelho asqueroso massacrou todo mundo. Que tal?
– Por que você não contou isso para Neferet? – Kevin perguntou.
– Porque ela não ia se importar. Não mudaria nada. Ela ainda iria enviar o seu Exército Vermelho. Todo mundo ainda seria massacrado. Ponto final. – Ela esvaziou o resto da taça e a estendeu para que Kevin a enchesse. E eu vou ter que assistir isso acontecer. De novo.
– Neferet pode não se importar, mas eu me importo. Nós precisamos dessas pessoas vivas. Principalmente os vampiros azuis. Eles podem nos dar informações sobre a Resistência – Stark disse.
– Ah, que ótimo. Então, em vez de serem esquartejados e devorados, eles vão ser torturados.
– Eu não disse nada sobre tortura!
– Você vai pedir gentilmente que entreguem o seu povo e o seu quartel-general, e quando eles disserem não, obrigado, você vai fazer o quê? Dar um tapinha nas costas deles e deixar que vão embora?
– De que lado você está, Aphrodite? – O olhar de Stark tinha ficado sombrio e nervoso.
– Do lado de Nyx, é claro.
– Então estamos do mesmo lado – Stark afirmou.
Aphrodite bufou, mas não falou mais nada. O Cara do Arco podia correr para Neferet e dizer que ela tinha sido insuportável nessa pequena incursão. Até aí, tudo bem. Na verdade, isso seria ótimo. A chance de Neferet enviá-la junto com eles de novo seria bem menor. O que ele não podia fazer era correr para a Grande Sacerdotisa e dizer que Aphrodite simpatizava com a Resistência. Isso não seria “tudo bem”. Seria fatal.
O que diabos vampiros como Stark e os Guerreiros Filhos de Erebus pensam que aconteceu com todas aquelas Grandes Sacerdotisas que Neferet rebaixou e mandou que calassem a boca? Que elas apenas sumiram em alguma Morada da Noite fajuta do interior para rezar pelo resto da vida em isolamento?
Aphrodite sabia bem o que acontecia. Ela testemunhou o que Neferet tinha feito com elas. Nyx enviou essa visão. E essa era uma visão que Aphrodite não havia compartilhado com ninguém.
– Você quer mais champanhe?
Aphrodite automaticamente estendeu sua taça para ser enchida de novo. Então ela olhou para o garoto fedido ao seu lado. Ela ficou surpresa ao reparar que ele obviamente era de origem indígena. Ela não tinha percebido isso antes. Se ele trocasse aquelas roupas horríveis que vestiam mal e tomasse alguns cuidados pessoais – ele realmente precisava de um corte de cabelo... e tirar aquele fedor –, podia até ficar bonitinho. Mesmo. Ela também não tinha percebido isso antes. Bom, para ser justa, depois de sentir aquele cheiro, ela mal tinha olhado para ele.
Só que ele não tinha aquele cheiro quando conversou com ela no jardim na outra noite.
– Quantos anos você tem? – ela perguntou a Kevin.
Ele pareceu surpreso com a pergunta.
– Dezesseis.
– Não é jovem demais para ser tenente?
Ele assentiu.
– Sim. Eu sou o tenente mais jovem do exército.
– Quando você se Transformou? – ela questionou.
– Quase um ano atrás. – Ele fez uma pausa e então continuou: – Quando você se Transformou?
– Quando eu tinha mais do que dezesseis anos – ela respondeu. Aphrodite queria perguntar o porquê de ele não estar fedendo como a morte na noite anterior, mas de jeito nenhum ela ia deixar o Dickless e o Cara do Arco ouvirem isso. De jeito nenhum ela queria aqueles dois mais metidos nos assuntos dela do que eles já estavam. – Você é uma criança. Não é de se admirar que nunca tenha provado champanhe.
Ela virou a cabeça com arrogância para olhar para fora da janela, desejando que estivesse em qualquer outro lugar.
Outro Kevin
A conversa morreu depois que Aphrodite disse que ele era apenas uma criança. Ela não olhou mais para ele. Ela não se endereçou mais a ele. Ela continuou, é claro, estendendo a sua taça de tempos em tempos para que ele a enchesse de champanhe.
Cara, ela bebe champanhe rápido!
Tudo o que Kevin podia fazer era ficar ali sentado observando com um pavor crescente enquanto o Hummer percorria mais quilômetros e se aproximava cada vez mais daquilo que muito provavelmente seria uma horrível tragédia.
E se aquele pássaro não chegou até Dragon?
Não, ele não se permitiria pensar isso. Ele estava fazendo tudo o que podia. Ele tinha enviado informações. Ele estava junto com os soldados porque talvez houvesse algo que ele pudesse fazer no meio da batalha para ajudar as pessoas a escapar do Exército Vermelho. A essa altura, Kevin não dava a mínima se seria descoberto ou não. Ele não ficaria parado vendo inocentes serem massacrados por monstros.
– Ei, abra mais uma garrafa.
Aphrodite empurrou mais uma garrafa de champanhe na direção dele. Kevin não tinha nem percebido que ela já tinha matado a primeira. Enquanto tirava a rolha, ele olhou de relance para Aphrodite. Ela parecia mal.
Bom, isso não era totalmente verdade. Ela era linda. Isso não havia mudado. Mas ela estava tão magra e pálida! Olheiras escuras estavam aparecendo mesmo que ela tentasse cobri-las e, quando ela não estava bebendo champanhe, a boca dela virava uma linha rígida.
– Quanto falta para a Lone Star Road? – Aphrodite perguntou enquanto ele enchia a taça dela.
Stark apontou para o semáforo a cerca de um quarteirão na frente deles.
– Vamos virar ali, na Hickory. Daí uns dois quilômetros e meio depois a gente entra à direita na Lone Star. Nessa hora vou precisar que você esteja acordada e alerta. – Stark olhou por sobre o seu ombro para ela e franziu a testa. – Então, pegue leve aí com esse champanhe.
– Ah, relaxe, Vovô. Eu sou uma vampira, lembra? Não consigo ficar bêbada. Não consigo nem ficar exaltada. Bom, a menos que eu misture um pouco de Xanax com esta bebida... o que me lembra de algo. – Ela enfiou a mão dentro da bolsa gigante que estava no assento entre eles, pegou um pequeno pote de comprimidos e o sacudiu para tirar algumas pequenas pílulas ovais, que engoliu junto com champanhe. – E eu sou uma profissional.
– É bom que seja. Neferet conta com isso – Stark disse.
– Tá, tá, tá. Eu vou reconhecer o maldito campo. Preocupe-se com o seu exército de zumbis, não comigo.
Stark virou para a frente de novo e esfregou a testa.
Kevin continuou observando Aphrodite até que ela encontrou os seus olhos. Então, com uma voz baixa o bastante para não ser ouvido no banco da frente, ele falou:
– Você sabe como isso vai ser ruim. Não a julgo por beber e tomar isso aí. – Ele apontou um dedo para o pote de comprimidos que estava aparecendo para fora da bolsa dela.
Ele achou que ela faria outro comentário sarcástico, mas então o rosto dela mudou. Os seus ombros desabaram e ela assentiu com tristeza, sussurrando:
– Vai ser bem pior do que só ruim.
– Eu não vou deixar que você se machuque – ele disse baixinho.
Ela o encarou com seus olhos azuis grandes, lindos e assombrados.
– Eles são crianças. Mais novos do que você. Eu sei. Eu vi tudo. E agora vou ter que ver de novo. – Ela balançou a cabeça e enxugou uma única lágrima nervosamente.
Ele sustentou o olhar dela e disse muito claramente, mas com a voz bem baixa:
– Não se eu puder impedir isso.
Uma surpresa faiscou nos olhos dela, e então Stark interrompeu:
– Ok, esta é a Lone Star Road. Hora de você fazer o seu trabalho.
– Eu já fiz o meu trabalho. Eu profetizei. Isto aqui não tem nada a ver com o meu trabalho. Tem a ver com Neferet querer me punir, mas que seja. Já sou bem grandinha. Diga ao Tenente Dickless para ir devagar para que eu possa conferir essas plantações. A que eu estou procurando é grande. Lembro de um bosque de nogueiras-pecãs do outro lado da rua. Ah, e tem árvores na beirada do campo, apesar de uma grande parte da lateral da estrada ser aberta, então nós devemos conseguir ver a maioria da plantação.
– De que lado da estrada fica a plantação? – Stark perguntou.
Aphrodite pensou um pouco e então respondeu:
– À nossa esquerda. – Eles dirigiram por apenas mais um quilômetro pela estrada vazia e Aphrodite apontou um local. – É ali! Eu reconheço aquele monte de árvores.
Kevin deu um pequeno suspiro de alívio. O campo ainda estava a alguns quilômetros de distância da montanha onde a Resistência estava se escondendo. Aquela era uma pequena coisa boa em um amontoado gigante de coisas ruins.
Aphrodite estava olhando para fora da janela à sua direita.
– E ali está o bosque de nogueiras-pecãs. Ok, continue só mais um pouco. Deve ter um... sim, ali está o portão. Vire aqui.
Dallas dirigiu o Hummer através de um portão aberto e entrou em um grande campo de feno recém-cortado. E, claro, estacionado logo do lado de dentro estava o reboque de um caminhão, cheio de enormes fardos arredondados.
– Pare! – Stark falou rispidamente. – Faça com que o comboio bloqueie o portão para que eles não possam sair por ali. – Ele começou a abrir a sua porta antes de o Hummer parar completamente, gritando ordens. – Dallas, saia com esses soldados do comboio e faça com que eles cerquem o reboque. Tenente Heffer, fique neste veículo com Aphrodite. O seu trabalho... o seu único trabalho é cuidar para que ela não seja devorada acidentalmente hoje. Você consegue fazer isso?
– Sim, senhor!
Sem nem mais um olhar, Stark e Dallas saíram do Hummer. Kevin podia ouvir Dallas gritando ordens para o comboio. Stark tinha pegado o seu arco e estava com uma flecha encaixada nele, apontada para o fardo arredondado.
– Ele não erra. Você sabia? – A voz de Aphrodite cortou o silêncio no interior do veículo quase vazio.
– O General Stark?
– Sim, o Cara do Arco.
– Aham, eu sei. O exército inteiro sabe. Ele é uma lenda.
– Na cabeça dele – Aphrodite disse. – Dizem que ele matou o próprio mentor.
– Não sabia disso.
– Sim. É por isso que ele é tão mal-humorado. A maioria das mulheres acha isso atraente. Eu acho um tédio. Mas ele não faz o meu tipo de todo jeito.
Kevin não conseguiu se conter.
– Qual é o seu tipo?
– Alguém menos mal-humorado e com mais coração. E músculos. Eu gosto de músculos. Encha a taça, Kev. Estou finalmente começando a sentir a onda.
– Você acha mesmo que é uma boa ideia?
– Sinceramente?
– Sim. Eu gosto de sinceridade.
– Ok, vou ser sincera. Não importa se eu beber ou não. Isso não vai mudar o que vai acontecer e não vai me fazer esquecer que eu vou ter que assistir isso acontecer de novo. E já que estamos sendo sinceros... ninguém liga a mínima se fico bêbada ou não, exceto eu mesma, e já que eu tenho que assistir a crianças sendo devoradas por monstros, prefiro estar bêbada.
– Esse é um bom ponto – Kevin encheu a taça dela. – Mas eu me importo se você fica bêbada.
Ela encontrou o olhar dele.
– Por quê?
– Nós ainda estamos sendo sinceros?
– Que tal isto: enquanto a gente estiver sozinho, vamos ser sinceros. Feito?
– Feito – Kevin concordou, e o seu coração deu uma palpitação estranha quando o olhar dela não desviou do seu, e pela primeira vez ela se pareceu exatamente com a sua Aphrodite. Aquela que o havia beijado no mundo de Zo e tinha dito a ele para encontrá-la neste mundo.
– Então, por que você se importa se eu estou bêbada ou não?
– Porque eu sei que você é melhor do que isso.
Ela bufou.
– Isso é uma coisa louca de se dizer.
– Por quê?
Ela abriu a boca para responder, mas foi interrompida por uma torrente de vampiros passando correndo pelo veículo para cercar o reboque.
– Merda. Começou. Não consigo olhar. – Ela abaixou a cabeça, olhando fixamente para os seus pés. – Fale quando tudo estiver terminado.
– Ok, mas eu vou ficar te contando o que está acontecendo. Era assim que a minha irmã assistia a filmes de terror comigo quando a gente era pequeno.
Os olhos dela encontraram os dele.
– Do que você está falando?
– Bom, eu adorava filmes de terror. Minha irmã odiava, mas ela não me deixava assistir sozinho, senão eu tinha pesadelos e ia pra cama dela. Então, ela se sentava comigo, mas tampava os olhos com as mãos, e me pedia para descrever o que estava acontecendo porque ela falava que era menos assustador quando eu contava a história para ela.
– Ok, acho que vou experimentar. Se você continuar enchendo a minha taça.
– Pode deixar. – Kevin encheu a taça dela e começou a fazer os seus comentários: – Eles cercaram os fardos redondos. Stark está com o arco apontado para o primeiro, e Dallas... – Kevin fez uma pausa e sorriu para Aphrodite. – Ei, apesar de eu não poder rir alto quando você falou aquilo na frente de Stark, quero que saiba que rachei de rir com o apelido que você deu para ele.
– Ah, você quer dizer o Tenente Dickless. Não considero isso um apelido. É um fato.
Kevin deu uma gargalhada e depois voltou a descrever o que acontecia.
– Então, o Tenente Dickless está com uma espada longa, se aproximando do primeiro fardo. Ah, merda. Ele vai enfiar a espada dentro...! – Kevin ofegou de susto.
– O quê? O que aconteceu?
– Ele enfiou a espada dentro do fardo e nada aconteceu. Agora, ele está golpeando o fardo sem parar. É só um fardo de feno. Não tem ninguém dentro! – Ele pensou que Aphrodite ficaria feliz, mas ela continuou bebendo e olhando para as botas na altura do joelho que estava usando. – Hum, você me ouviu?
– Sim, ouvi. Continue assistindo. Nem todos os fardos têm pessoas dentro. A Resistência não ia encher tanto o saco de Neferet se eles fossem assim burros.
– Ah, bem pensado. Ok. Estou vendo tudo. Eles estão indo para o próximo fardo. – Kevin prendeu a respiração e então soltou o ar em um suspiro. – É só feno também. Agora eles estão indo para um fardo no fundo.
– Isso não é uma notícia boa. Eu sei. Eu estava escondida nesse fardo.
– Você?
– Não literalmente. Quando tenho uma visão, eu sempre vejo tudo pelo ponto de vista de quem está morrendo, normalmente de um jeito horrível. É por isso que para mim é difícil dar detalhes específicos, pois eu sinto tudo que essa pessoa que está morrendo sente.
O estômago de Kevin se revirou.
– Deve ser horrível.
– É pior do que isso.
Ele continuou assistindo.
– Droga. Eles estão no próximo fardo. Ok, ele está perfurando o fardo e... merda. Ele atingiu alguma coisa.
– Mas não é uma pessoa.
– Não, ele atingiu alguma coisa dura, e só a ponta da espada desapareceu dentro do fardo.
– Isso é porque não é um fardo de verdade. O interior é oco e tipo uma roda. Há uma porta do lado para entrar e sair. De algum jeito, eles colocam feno do lado de fora da roda. Do lado de dentro tem espaço para, hum, umas quatro pessoas grandes, ou dois adultos e três ou quatro crianças. Ei, eu vou fechar os olhos e tampar os ouvidos quando eles começarem a gritar.
– Eles encontraram um trinco e estão abrindo. – Kevin engoliu a vontade de vomitar. Ele também queria tampar os olhos. E então um alívio o invadiu. – Está vazio!
– Sério?
– Sim, olhe!
– Não. Não vou olhar até eles checarem todos. Pelo menos metade dos fardos nesse reboque e no outro estão cheios de gente.
– O outro?
– Sim, há dois reboques.
– Hoje não tem. Só tem um. Aphrodite, olhe. Eles estão abrindo os outros. Estão todos vazios! – Kevin não tentou esconder a alegria e o alívio que estava sentindo.
– Por que você está feliz?
Ele desviou o olhar dos fardos vazios e virou-se para Aphrodite, que estava olhando para ele e não para a cena se desenrolando com zero de violência na frente deles. Ele encontrou os olhos dela. E decidiu dizer a verdade.
– Porque eu não quero que ninguém mais morra.
– Mas você é um vampiro vermelho. Você só se interessa em comer e matar.
– É realmente assim que você me vê? – Kevin perguntou.
– Por que você não estava fedendo ontem?
– Porque eu...
Toc-toc-toc! Kevin e Aphrodite deram um salto quando Stark bateu no vidro.
– Vocês dois podem sair. Parece que chegamos cedo demais – Stark gritou através da janela antes de voltar para o grupo de soldados que estava tentando remontar os fardos esburacados.
Aphrodite suspirou.
– Traga a garrafa.
– Ei, por que você não fica aqui dentro? Eu vou lá fora e digo que você não está se sentindo bem.
– E deixar o Cara do Arco me entregar para Neferet, dizendo que eu fiquei escondida no Hummer mesmo quando não tinha nenhuma batalha acontecendo? Isso seria uma desculpa perfeita para ela me enviar junto com o Exército Vermelho de novo. Não, é melhor eu sair.
Kevin desceu apressado do Hummer e deu uma corridinha até o lado dela, abrindo a porta para Aphrodite.
– Obrigada. Eu gosto de boas maneiras. Alguém criou você direito.
– Obrigado. Foi principalmente a minha irmã.
– Essa irmã de novo. Talvez algum dia eu a conheça – Aphrodite disse ao estender a mão.
Kevin pegou a mão de Aphrodite e a segurou cuidadosamente enquanto a ajudava a descer do veículo.
– Tenho um pressentimento de que vocês duas iam se dar muito bem.
Aphrodite bufou.
– Então ela deve ser um pé-no-saco.
– Ah, você não sabe o quanto – Kevin disse.
10 Sem pênis, em inglês. (N.T.)
19
Outra Aphrodite
– Tem certeza de que este é o campo certo? – Stark perguntou a Aphrodite.
– Positivo.
– E este foi o único reboque que você viu com fardos de feno?
– Este foi o reboque que eu vi durante a minha visão. Eu estava no meio daquele fardo ali. – Ela apontou. – Não sei o que mais dizer a você. Não sei por que não tem ninguém dentro. A gente deve ter chegado cedo demais. – Aphrodite escolheu suas palavras com cuidado. Ao contrário do que Neferet, Stark e o resto podiam pensar, ela detestava mentirosos. Ela havia sido criada por uma e, desde cedo, tinha jurado que pelo menos uma coisa iria fazer: ao contrário da sua mãe, ela ia tentar falar a verdade sempre. E era isso que ela estava fazendo. Tecnicamente, falando a verdade. Claro, ela estava contando algumas coisas, mas Stark teria que ser bem mais específico com as suas perguntas para que ela revelasse tudo.
– Então está bem. Tenente Dallas, primeiro faça com que os veículos e os homens se escondam naquele bosque de nogueiras-pecãs do outro lado da pista. Mantenha cada maldito soldado do Exército Vermelho dentro daqueles veículos. Não queremos que a Resistência sinta o cheiro de nenhum antes de chegar. E nada de luzes e de barulho. Nada. Lembre a esses soldados que a única maneira de eles se alimentarem hoje é se a Resistência cair na nossa emboscada. Depois volte aqui com alguns oficiais e arrumem esses fardos de novo. Pelo menos o suficiente para que a Resistência não perceba que foram remexidos até que seja tarde demais. Vamos esperar lá fora e capturá-los quando finalmente aparecerem. – Ele voltou seu olhar para Aphrodite. – Você consegue dizer que horas o ataque aconteceu?
– Não. Desculpe. Eu estava ocupada demais sendo devorada para olhar para o relógio.
Stark franziu o cenho para ela e então continuou falando com Dallas.
– Ok, vamos esperar o máximo que der, mas o Exército Vermelho precisa voltar para os túneis antes do amanhecer. E lembre a esses soldados que eles podem comer só os humanos. Novatos azuis e vampiros azuis devem ser capturados vivos.
– Sim. Vou dizer a eles, senhor. Mas eles são burros, então não espere muita coisa. – Dallas bateu uma continência desleixada e começou a berrar ordens.
Aphrodite achou difícil parar de olhar para os soldados do Exército Vermelho. Ela nunca havia estado perto de tantos deles antes. Ela sentia quase tanta pena quanto nojo. Eles estavam vagando ao redor do reboque e dos fardos de feno vazios, parecendo agitados e confusos. Ela achou que vários deles estavam babando.
– Aphrodite, pode entrar no nosso veículo líder com o Tenente Heffer. Heffer, você sabe dirigir, certo?
– Claro – o garoto respondeu.
– Então, dirija o veículo até o outro lado da pista e espere lá.
– Na verdade, eu preciso de um pouco de ar puro antes – Aphrodite falou. – Eu vou dar uma volta.
– Não é uma boa ideia – Stark disse. – Se a Resistência estiver por aqui, você não estará segura.
Ela levantou as sobrancelhas para ele.
– Não estou segura? Há uma horda inteira de vampiros vermelhos vorazes a um grito de distância. Além do mais, você está aqui. Com o seu arco infalível. Tenho certeza de que vou ficar bem.
O suspiro de Stark foi cheio de irritação.
– Heffer, siga a Profetisa. Aphrodite, não demore muito. A Resistência pode aparecer a qualquer minuto, e juro que você não vai querer estar aqui fora quando a briga começar.
– Ah, por favor. Eu já estive aqui quando a briga começou. Foi por isso que tive que me juntar a vocês nesta bagunça de merda, lembra?
Ela deu as costas para Stark, Dallas e aquela horda de coisas vermelhas e começou a caminhar com cuidado através da plantação até a fileira de árvores no lado mais distante do terreno. Ela não precisou olhar para trás. Ela estava certa de que Kevin estava seguindo atrás dela. Ela não se importava. Uma sensação de alívio que a deixou tonta havia inundado o seu corpo desde que ela viu apenas um reboque sem nenhum membro da Resistência escondido dentro dele.
Havia dois reboques na minha visão. Eu estava em um deles, mas tinha outro. Ainda mais cheio de novatos e jovens humanos. Mas ele se foi! Deusa, por favor, permita que eles tenham conseguido fugir. Por favor, não deixe que eles voltem hoje à noite. Por favor, por favor, por favor.
Ela escutou o barulho de água corrente quando se aproximou da fileira de árvores. A vegetação se alterou do feno caprichosamente cortado para o gramado alto do inverno e o que pareciam arbustos de amoras. Aphrodite abriu caminho contornando um aglomerado de plantas adormecidas e uma muralha de cedros perenes para olhar para baixo para um pequeno riacho.
E então a mente dela não entendeu o que ela estava vendo.
Tem pessoas ali embaixo?
Na água? Logo abaixo de mim?
Que diabos é isso?
Ela deve ter feito algum barulho. Deve ter ofegado de choque, pois a última pessoa da fila que estava andando no riacho com água na altura do quadril virou a cabeça e levantou os olhos para ela.
A lua refletiu na água, intensificando a sua luz tênue de modo a tornar claramente visível a tatuagem safira ornamentada com dragões cuspindo fogo em um crescente no meio da testa do vampiro.
Aiminhadeusa! É Dragon Lankford! O olhar de Aphrodite percorreu a fila silenciosa de pessoas e ela reconheceu vários deles da sua visão. É a Resistência! Eles foram avisados! Eles não foram massacrados!
Ela não teve tempo para pensar demais no assunto. Aphrodite agiu por instinto. Ela desceu apressada alguns passos para chegar mais perto do barranco na margem do riacho. Encarando Dragon, ela pronunciou com a boca sem emitir som, fazendo gestos com a mão para indicar o mesmo: Vão embora! Fujam!
E então tudo aconteceu muito rápido.
Dragon Lankford saiu do riacho e saltou para cima do barranco. Ela tentou retroceder com dificuldade. Tentou fugir, mas o salto de uma de suas botas Jimmy Choo afundou em um buraco e quebrou. Aphrodite caiu de bunda no chão com força, derrubando a sua garrafa de champanhe quando ela perdeu o fôlego.
Dragon a alcançou facilmente. Ele a agarrou, levantando-a para que ficasse em pé e tampando a boca dela com a mão. Ele pressionou uma adaga contra o pescoço dela e sussurrou diretamente no seu ouvido.
– Se você fizer um barulho, corto o seu pescoço. Você vem comigo. – Ele se virou para que a fila de novatos, vampiros e jovens humanos em retirada pudesse vê-lo. Dragon fez o mesmo gesto para que eles seguissem em frente e falou em voz baixa em direção à água: – Vão indo! Até o local seguro!
Ele começou a arrastá-la até o riacho.
E então Kevin estava lá. Ele surgiu depois de atravessar a fileira de cedros olhando em volta, obviamente procurando por ela. O coração de Aphrodite bateu forte no seu peito, enchendo a sua corrente sanguínea de adrenalina e pânico. Eu tentei ajudá-los! E agora eles vão matar Kevin e provavelmente atrair a atenção de Stark e a ira do Exército Vermelho sobre eles! Todos vão ser massacrados como foram na minha visão!
Só que não foi isso o que aconteceu. Foi algo muito mais estranho.
Kevin olhou para baixo. Aphrodite percebeu o instante em que ele a viu com Dragon e a fila de novatos, humanos e vampiros fugitivos caminhando com dificuldade pela água. Kevin não pegou nenhuma arma. Kevin não gritou para Stark. Em vez disso, ele desceu a margem correndo até eles.
– Dragon! Não! Não a machuque! – Kevin sussurrou freneticamente quando chegou mais perto deles.
– Eu não a estou machucando. Estou sequestrando.
– Por quê? – Kevin perguntou.
– Sem essa, Kevin. Você sabe por quê. Se eu não fizer isso, ela vai nos entregar para o Exército Vermelho. E ela é uma Profetisa de Nyx. Ela tem visões. Mesmo se ela não quiser compartilhar as visões conosco, nós podemos usá-la. Neferet vai fazer praticamente tudo para ter a sua Profetisa de volta.
Aphrodite bateu na parte de trás da mão de Dragon que estava cobrindo a sua boca.
– Hum, acho que ela quer que você tire a mão da boca dela – Kevin disse. – E seria legal se você abaixasse essa adaga também.
– Imagino que o Exército Vermelho está lá em cima. – Dragon apontou o queixo na direção do campo de feno.
Aphrodite assentiu tão vigorosamente quanto pôde com uma lâmina contra o seu pescoço, e então ela tentou dizer “Eu estava dizendo para vocês irem embora daqui!”, mas, é claro, as palavras saíram como um resmungo confuso e nervoso por trás da mão de Dragon.
– Sim. Stark está lá em cima com cerca de cinquenta soldados vermelhos e vários oficiais vermelhos e azuis. – O olhar de Kevin se voltou para o riacho e para a fila de pessoas que continuavam a retroceder na direção da montanha e da segurança. – Você recebeu a minha mensagem.
– Sim. E agora eu tenho esta Profetisa também. Vou levá-la para o quartel-general. Junte-se a nós quando puder.
– Dragon, sério, se você sequestrar Aphrodite, como é que você vai ser diferente de Neferet?
– Como você pode me perguntar isso? Se nós fôssemos iguais a Neferet, eu já teria cortado o pescoço dela. E, de qualquer modo, eu não posso soltá-la. Agora ela sabe que você está trabalhando conosco, o que coloca todos nós em risco.
Kevin encontrou o olhar de Aphrodite.
– Você nos dá a sua palavra de que não vai gritar nem fazer qualquer coisa para atrair a atenção de Stark se Dragon tirar a mão da sua boca?
Aphrodite assentiu.
– Eu confio nela – Kevin afirmou. – Se ela diz que não vai gritar, não vai. Aphrodite diz a verdade. Certo?
Aphrodite assentiu de novo.
– Não é sábio confiar nela – Dragon disse.
Kevin abriu o sorriso.
– Foi a mesma coisa que você disse sobre mim.
O Guerreiro suspirou.
– Certo, escute bem. Vou tirar a mão da sua boca – Dragon falou no ouvido de Aphrodite –, mas não vou tirar a minha adaga do seu pescoço. Se você fizer qualquer coisa para trazer soldados até nós, vai ser a primeira a morrer. Entendido?
Aphrodite assentiu mais uma vez. Lentamente, Dragon tirou a mão da boca dela.
– Seu idiota! – Aphrodite sussurrou para ele. – Você me viu dizendo para vocês fugirem. Você sabia que eu não ia chamar o exército. Você agiu como um babaca de merda indo até lá em cima e me arrastando! – Ela voltou sua atenção para Kevin. – Eu sabia que você era diferente. Que diabos está acontecendo aqui?
– É uma longa história, mas eu prometo que vou te contar tudo. Primeiro, Dragon e o resto do seu povo precisam escapar – Kevin respondeu.
– E ela ainda precisa vir com a gente – Dragon disse.
– Eu não vou com vocês merda nenhuma. – Aphrodite o fuzilou com os olhos. – É melhor você cortar o meu pescoço agora.
– E, se você fizer isso, vai ser igual a eles – Kevin acrescentou. – Além do mais, aposto que Anastasia vai ficar super irritada com você.
– Isso sem falar no que vai acontecer se eu não voltar lá para cima logo. Stark vai vir para cá procurando por mim. E o que diabos você acha que ele vai fazer se não me encontrar? Simplesmente deixar você e o seu grupo nadarem de volta para casa?
Dragon franziu o cenho para Aphrodite, mas tirou a adaga do pescoço dela.
– E agora? – Dragon perguntou.
– Agora vocês têm que sair daqui. Rápido. Stark vai...
– Aphrodite! Heffer! Que inferno, onde vocês estão? – a voz irritada de Stark lá no alto chegou até eles.
Aphrodite não hesitou. Ela colocou as mãos ao redor da boca para amplificar o som e gritou para o alto do barranco.
– Vá embora! Estou fazendo xixi! Como se já não fosse ruim o bastante ter um vampiro vermelho fedorento me seguindo por aí e eu ter quebrado o maldito salto da minha bota Jimmy Choo aqui neste mato idiota. Posso ter um pouquinho de privacidade?
– Ela está bem, General! – Kevin acrescentou. – Ela está logo atrás de um monte de arbustos. Eu quase consigo vê-la e...
– Não se atreva a olhar! – Aphrodite berrou, fazendo toda a fila de pessoas em retirada congelar e olhar para ela. – Eu juro pela Deusa, se vocês dois me fizerem perder a paciência, vou contar para Neferet que vocês me trataram como merda, com zero respeito. Não importa o quanto ela possa estar irritada comigo, ela definitivamente não vai tolerar que a Profetisa dela seja desrespeitada!
Houve uma pausa em que os três prenderam a respiração, então a voz de Stark – que continuava irritada – finalmente respondeu.
– Só ande logo! Isto não é um maldito piquenique.
– Eu não vou andar logo! Vou levar o tempo que precisar fazendo xixi! E você pode levar esse tenente fedido de volta com você! – Aphrodite gritou e então sussurrou para Kevin. – Suba lá rápido e cuide para que ele não venha para cá.
– Entendido. – Antes de sair, ele olhou para Dragon. – Você vai deixar que ela volte, certo?
– Sim. Eu vou deixar – ele disse com óbvia relutância.
Então Kevin subiu o barranco e passou correndo pelos cedros. Aphrodite e Dragon permaneceram totalmente imóveis até ouvirem os sons de dois homens se afastando do riacho.
Aphrodite deu um longo suspiro de alívio e então percebeu que Dragon a estava encarando.
– O que é? – ela disse rispidamente.
– Por que você fez isso?
– Porque eu não quero mais ninguém sendo massacrado por esses malditos vampiros vermelhos.
– Você não está do lado de Neferet? – Dragon perguntou.
– Não. Eu estou do meu próprio lado.
– Então como posso confiar que você não vai nos trair?
Ela encolheu os ombros.
– Não faço ideia. Você só vai ter que dar um salto de fé. Meu palpite é que é o mesmo tipo de salto que você deu para confiar em Kevin.
– Ele se provou digno de confiança.
– Não foi isso o que eu acabei de provar?
Eles ficaram se encarando até que finalmente Dragon desviou o olhar.
– Eu vou embora agora. Com o meu povo.
– Certo. Eu vou esperar o máximo que posso e então voltar para a plantação. Ah, o Exército Vermelho está escondido no bosque de nogueiras-pecãs do outro lado da pista, então não voltem.
– Não vamos voltar.
– Vocês tiraram um caminhão daqui antes de os soldados aparecerem? – ela perguntou.
Ele hesitou, mas respondeu.
– Sim.
– Ótimo. Era o que eu esperava quando vi apenas um reboque lá em cima.
– Você disse a eles que havia outro?
– Ah, que merda, claro que não. Como eu já disse, estou cansada de ver pessoas sendo massacradas pelo Exército Vermelho – Aphrodite respondeu.
– Mas você ainda está contando suas visões para Neferet – Dragon observou.
– Eu estou fazendo o que tenho que fazer para sobreviver. Assim como você. – Aphrodite fez uma pausa e então teve que perguntar: – Anastasia está bem?
– Sim. Ela está segura.
– Diga a ela que fico feliz por isso.
Ele continuou olhando para ela antes de dizer:
– Você pode se juntar a nós, sabe. Depois do que você fez aqui hoje, nós a aceitaremos.
Aphrodite ignorou a palpitação de esperança que sentiu. Como seria fazer parte de algo nobre como a Resistência? Ter amigos? Não se sentir tão sozinha o tempo todo?
Mas eles não iriam querê-la. Não se eles soubessem da verdade.
– Vou manter isso em mente. E, ahn, obrigada pelo convite.
Ele assentiu com um grunhido antes de se virar e voltar para o riacho. Ele gesticulou para que a fila continuasse a se mover de novo, e Aphrodite os observou desaparecendo assim que o curso de água virou para a direita. Então ela espanou terra, folhas e sabe a Deusa o que mais do seu traseiro, subiu o barranco e voltou mancando para o campo de feno.
Stark e Kevin estavam parados na frente do Hummer líder. O resto havia desaparecido – ela presumia que estavam dentro do bosque do outro lado da pista.
Sem hesitação, Aphrodite marchou na direção de Stark.
– Estou indo embora.
– Sinto muito. Não vai dar. Esta noite está apenas começando – Stark disse.
– Oh, você me entendeu mal. Eu não pedi a sua permissão. Eu não preciso da sua permissão. Eu sou uma Sacerdotisa e uma Profetisa de Nyx. A nossa sociedade ainda é matriarcal, certo?
Stark pareceu surpreso com a pergunta.
– Sim, claro que é.
– Exatamente. Então, eu sou superior a você. Na verdade, eu sou superior a todos vocês, exceto Neferet. Então deixe-me repetir. Estou indo embora. Ah, e esse garoto fedido vai me levar para casa. Estou finalmente sentindo o efeito do Xanax e da bebida... melhor não dirigir.
– Veja bem, Aphrodite, Neferet disse que você deveria... – Stark começou, mas Aphrodite calou a boca dele com um gesto abrupto.
– Eu sei exatamente o que Neferet disse. Eu deveria me juntar a vocês nesta missão. Eu fiz isso. Eu deveria localizar a plantação correta e indicá-la para você e as suas criaturas vermelhas. Fiz isso também. E agora chega. Eu não vim aqui para acampar. Eu não vim aqui para ficar sentada cantando canções de guerra com um monte de soldados. E eu acabei de quebrar o salto de uma bota que custou quase dois mil dólares fazendo uma caminhada por aí na natureza. Deusa! Eu simplesmente não posso mais aguentar isso. Estou indo embora. E você, General Cara do Arco, pode ir direto para o inferno. – Ela olhou para Kevin. – Bora, Fedido.
Kevin olhou para Stark, que passou a mão pelo seu cabelo grosso e suspirou. De novo.
– Tudo bem. Podem ir. Mas eu vou contar para Neferet que eu aconselhei você a ficar.
– Tanto faz. Você acha que Neferet ficaria aqui fora a noite inteira se não tivesse nenhuma coisa acontecendo? – Ela deu as costas a eles e foi até o lado do passageiro do Hummer, onde ficou, batendo o pé freneticamente, esperando que Kevin abrisse a porta para ela, o que ele fez antes de dar uma corridinha contornando o carro para assumir a direção.
Ela deixou que ele manobrasse para fora do campo e entrasse na Lone Star Road para começar a falar.
– Pode contar tudo o que sabe. Agora.
20
Outro Kevin
Kevin contou tudo a Aphrodite. Ele começou pelo fato de que já era diferente desde que foi Marcado – que tinha conseguido reter parte da sua humanidade mesmo depois de ter se Transformado no vampiro vermelho mais jovem da história. Ele contou que foi transportado para um mundo alternativo onde havia outra Morada da Noite e o que aconteceu com os outros vampiros e novatos vermelhos que também estavam lá.
E então Kevin contou sobre a gêmea dela no Outro Mundo – ou pelo menos o máximo que sabia sobre aquela Aphrodite. Contou que havia sido o sacrifício dela que salvou os novatos vermelhos do seu mundo e que foi o dom que ela recebeu de Nyx que o tinha salvado, além dos vampiros vermelhos que continuavam vivos no mundo de Zo.
Kevin também contou a ela sobre Neferet – como ela havia se tornado imortal e quase destruído primeiro Tulsa e depois o mundo inteiro. E como Zoey e o seu grupo tinham sido mais inteligentes do que ela e a aprisionado. Para sempre.
Então o silêncio preencheu o interior do veículo. Ele deu uma olhada para Aphrodite. Ela não estava bebendo. Ela estava encarando Kevin com uma expressão de olhos arregalados, mas indecifrável.
Finalmente, ela falou:
– Então, a Zoey, que é sua irmã lá, ela e eu trabalhamos juntas na Morada da Noite de Tulsa?
– Bem, sim, mas é mais do que isso. Vocês duas são amigas. Grandes amigas.
Ela continuou encarando Kevin. Quando ele tirou os olhos da estrada e se virou para ela rapidamente, viu um instante de dor no rosto dela. Então, com voz bem baixa, Aphrodite falou:
– Por isso que Neferet achou que você parecia familiar. E, agora que estou observando... eu vejo a semelhança também. Você é irmão de Zoey Redbird. A Zoey Redbird que foi assassinada há mais de um ano.
– Sim, é isso que estou dizendo a você. Só que ela está viva naquele Outro Mundo. Então, você conhecia a minha irmã antes da morte dela?
– Não. Na verdade, não.
– Mas você disse que nós somos parecidos... e Neferet meio que me reconheceu também. Zo deve ter sido marcante para você.
– Sim. Ela me marcou, sim. Ou pelo menos a morte dela marcou. – Então Aphrodite apontou para a Quick Trip na esquina da Rua Cinco com a Denver. – Pare naquele estacionamento. Preciso contar uma coisa e não quero que você surte e cause um acidente.
– Ei, você não precisa se preocupar comigo. Eu não surto facilmente.
– Só faz o que mandei – ela disse.
Ele entrou no estacionamento.
Quando ele parou o veículo, Aphrodite se virou no seu assento para poder olhar para o rosto dele.
– Ok, eu não queria contar isso para você, mas provavelmente iria descobrir de qualquer jeito. Tenho certeza de que Anastasia sabe. – Aphrodite encolheu os ombros, parecendo derrotada. – E eu detesto mentir. Eu nem gosto de omitir. Então, aí vai. Eu não conhecia a sua irmã. Neferet dissolveu a organização das Filhas das Trevas antes de Zoey chegar na Morada da Noite. Eu não tinha nenhum motivo para conhecê-la, porque, depois que as Filhas das Trevas se foram, não havia mais motivos para novatos me encherem o saco. Então eu fiz a Transformação e não tinha mais motivo para andar com novatos de qualquer modo. Mas eu lembro do rosto da sua irmã porque tive uma visão com ela. E Neferet se lembra do rosto dela porque eu contei a ela sobre a visão. – Aphrodite fez uma pausa, como se ela estivesse tendo dificuldade para escolher as palavras. Então ela soltou de uma vez: – Na visão, eu era Neferet. E eu vi uma novata, que não era nem uma vampira ainda, ser a responsável pela morte de Neferet.
Kevin se sentiu enjoado.
– Essa novata era a minha irmã?
– Sim.
– Então, Z estava certa quando me disse que tinha certeza de que a Neferet do nosso mundo a assassinou e fez parecer que os humanos do Povo da Fé tinham feito isso como um crime de ódio.
Ele não havia formulado a frase como uma pergunta, mas Aphrodite ainda assim respondeu.
– Sim. Neferet matou Zoey por causa da minha visão.
Kevin não sabia o que dizer. Ele desviou o olhar de Aphrodite, focando no fluxo constante de veículos, principalmente caminhões, que entravam e saíam da Quick Trip.
– Você gostava de mim do lado de lá?
A pergunta de Aphrodite surpreendeu Kevin, que deu uma resposta automática.
– Sim. Mais do que isso.
– Imagino que eu gostava de você também?
– Você me deu um beijo de despedida e me disse para encontrar você aqui.
– Ok, olhe só, o que você está me contando deve ser verdade pelo menos em parte. Você obviamente é diferente do resto dos vampiros vermelhos. E você não estava fedido na noite passada, então deve estar falando a verdade em relação a isso. – Ela encolheu os ombros delicadamente. – E essa porcaria nojenta de sangue que você usa como perfume. Mas você tem só dezesseis anos. Você é uma criança.
– Vou fazer dezessete em agosto – ele acrescentou rapidamente.
– Que seja. Você ainda é uma criança. E está me dizendo que a sua irmã e eu somos amigas do lado de lá e que você e eu temos um lance. Isso simplesmente não se parece com algo que eu faria. Com nenhuma versão de mim. Sem ofensas.
– Eu não sou uma criança. Eu sou um tenente do Exército Vermelho, que já viu mais mortes até do que você, só que comigo foram mortes reais, acontecendo na minha frente. Deixei de ser criança há muito tempo. E você precisa definir um lance. A gente não se pegou nem nada assim, mas a gente realmente tinha uma conexão, e juro que aquele beijo foi mais do que um selinho na bochecha. Ah, e lá você não é só amiga da minha irmã. Você é respeitada e amada por um monte de gente. Você é amiga de todo mundo.
– Você tem certeza absoluta disso? Eu não faço amigos com muita facilidade. Principalmente porque a maioria das pessoas é plebeia.
Kevin ficou surpreso ao se ouvir dando risada.
– Eu não sei a história inteira sobre como tudo aconteceu lá. Não tive tempo para perguntar isso pra Zo, mas você definitivamente faz parte do grupo dela, e é um grupo bem grande. Na verdade, você fez amizade com todas as Grandes Sacerdotisas que eu conheci.
– Espere aí, o quê? Pensei que você tinha dito que a sua irmã era a Grande Sacerdotisa.
– Ela é, mas tem várias Grandes Sacerdotisas na Morada da Noite dela: Stevie Rae, Shaylin, Shaunee, Kramisha, Lenobia...
– Lenobia? A professora de equitação? Ela está viva por lá?
– Está. Assim como Travis e todos os cavalos deles.
Aphrodite passou uma mão trêmula pelo seu rosto.
– Fico feliz que eles estão vivos em algum lugar.
Kevin a observou.
– Ah, entendi. Ninguém da Resistência vazou a localização de Keystone. Você teve outra visão. Você contou para Neferet, e Neferet enviou o Exército Vermelho para acabar com eles.
– Sim. Você quer dar meia-volta e me levar para Dragon de novo para se vingar?
Ela falou sem se alterar – até soou meio arrogante, mas Kevin viu como o rosto dela ficou pálido e como as mãos dela tremiam tanto que ela teve que juntá-las em seu colo.
Ele não respondeu à pergunta dela. Em vez disso, fez outra.
– Na verdade, eu acho que você não gosta de toda essa matança. Então, por que você fez isso?
– Eu contei a ela sobre Zoey porque antigamente eu ainda acreditava que Neferet estava a serviço de Nyx. Quer dizer, abater alguns humanos parecia bom. Quem não está farto daquela coisa idiota de racismo e misoginia deles? Pelo amor da Deusa. Essa merda tem que ficar tão extinta quanto os dinossauros.
– O que isso tem a ver com você falar para Neferet matar a minha irmã?
– Essa é a questão! Eu ainda acreditava que Neferet era boa. E eu não sabia que ela iria matar a sua irmã.
– Mas você sabia que ela iria matar Lenobia e Travis. Você deve ter visto isso na sua visão.
– Eu vi. Eu também tive aquela maldita visão horrível quando estava conversando com Neferet. E-eu era Lenobia. Eu falava como Lenobia. Eu morri como Lenobia. Eu experimentei tudo com ela. A morte do seu companheiro. A morte dos seus cavalos. A morte dos seus amigos. Foi algo muito além de horrível. Eu nem percebi que estava descrevendo tudo para Neferet até depois que já tinha passado... depois que eu me recuperei da visão e ela já tinha enviado o Exército Vermelho para acabar com eles. – Aphrodite respirou fundo e enxugou as lágrimas que estavam escorrendo pelo seu rosto pálido. – Mas você está certo. Eu sou responsável pela morte deles. Eu sou responsável por todas essas mortes.
– Eu não entendo. Se você sabe como Neferet é horrível, por que você continua contando a ela sobre suas visões?
– Eu tento não contar! E quando não posso esconder que tive uma visão, tento deixar de fora qualquer detalhe que possa levar aquele maldito exército de monstros até as pessoas que eu os vejo massacrando... mas eu também quero sobreviver! Eu detestei contar a ela sobre a Resistência escondendo pessoas naqueles fardos de feno, mas eu sabia que já tinha chegado ao meu limite com Neferet. Ela ia me fazer viver nos túneis com aquelas criaturas. Eu não posso fazer isso. Simplesmente não posso.
Kevin não conseguiu dizer nada. Ele queria dizer que ela poderia se levantar contra Neferet. Que ela poderia ser forte. Ele conhecia uma Aphrodite que era forte, mas, enquanto a observava, ele percebeu que ela não era aquela Aphrodite. Ainda.
Ele colocou o Hummer em movimento e saiu do estacionamento, virando em direção ao norte para o centro da cidade.
– Você não vai me levar para Dragon?
– Não.
– Para onde você está indo?
– Para a estação. Você pode dirigir o Hummer de lá para a Morada da Noite – ele disse.
– Você não vai mesmo me entregar para a Resistência?
– Não vou.
– Por que não? – ela perguntou.
– Porque eu não sou um monstro – ele respondeu. – Eu tenho a capacidade de amar e de perdoar. Eu perdoo você. Você fez o que achou que tinha que fazer para sobreviver. Você ainda está fazendo isso. Acho que todos nós estamos.
– É assim tão ruim lá nos túneis quanto eu acho que é?
– Pior – Kevin falou.
– Eles não vão conseguir ver que você não é igual aos outros?
Kevin suspirou.
– Espero que não.
– Mas, se eles descobrirem isso, provavelmente vão te matar. Ou te devorar. – Ela estremeceu. – Ou alguma outra coisa medonha e horrível.
– Bom, eu tenho aquela gosma de sangue e estou acostumado a esconder o que realmente sinto quando estou perto de outros vampiros vermelhos. Você disse que eu estou fedendo, certo?
– Sim. Com certeza. Você não sente o cheiro?
– Tento não sentir.
Aphrodite riu alto e, quando Kevin estava se preparando para virar na rua que ia levá-los até a estação, ela disse:
– Não vire aí.
– Mas é o caminho mais rápido até a estação.
– Eu sei, mas vire à direita.
– Esse não é o caminho para a estação.
– Sim. Eu sei. Vá para a Saks.
– Ahn? – Ele estava olhando para ela sem entender e quase subiu na guia.
– Ah, que merda! Olhe por onde anda e feche a boca – ela disse.
– Por que você quer que eu a leve até a Saks?
– Shhh. Estou pensando. Apenas dirija.
Kevin fez o que ela pediu, indo até a Utica Square e a Saks Fifth Avenue, que era a loja-âncora do centro de compras ao ar livre.
– Estacione ali nas sombras na lateral, não na frente – Aphrodite o orientou.
Ele entrou em uma vaga escura e estacionou o Hummer.
– Então, imagino que devo esperar aqui fora enquanto você vai fazer compras e depois vou dirigir até a estação?
– Não. – Aphrodite enfiou a mão na sua bolsa gigante, fazendo a garrafa de champanhe intocada que sobrou tilintar contra uma das taças flûte de cristal. – Achei... venha com a Mamãe – ela murmurou enquanto pegava um cartão de crédito platinum, que entregou para Kevin. – Pegue isto aqui. Compre roupas novas para você. Roupas que não estejam fedidas e que vistam bem. E nada dessas calças jeans skinny também. Esse look hipster é ridículo. Pegue algumas camisetas também. Nada berrante. Só uma coisa simples e, repito, que não vistam mal. – Ela deu um olhar de reprovação para as roupas dele, emprestadas de Dragon, que era decididamente mais baixo e mais musculoso do que Kevin. – Pegue o suficiente para encher quatro ou cinco sacolas grandes. Ah, e não se esqueça de pegar um pijama masculino. Mantenha isto em mente quando for escolher o pijama: eu não quero ver a sua salsicha caída através dele, então pegue algo com forro.
– Estou tão confuso. – Kevin encarou o cartão de crédito. – Por que você está me dando isso?
– Você tem dinheiro suficiente para comprar quatro ou cinco sacolas de roupas da Saks?
– Claro que não.
– É por isso que estou te dando o meu cartão.
– Aphrodite, eu agradeço muito, mas o que eu estou usando está mais do que bom para os túneis.
– Sim, eu concordo. Mas não está bom o suficiente para andar comigo – ela disse.
– Quê?
Ela suspirou dramaticamente.
– Eu. Tenho. Um. Plano. Agora entre aí, faça o que eu disse e me deixe pensar em tudo.
– E se eles notarem que eu não sou Aphrodite LaFont?
Ela revirou os olhos para o alto.
– Use aquela coisa de controle mental de vampiro vermelho nessa gente simplória.
– Ah, sim. Tinha esquecido disso. Ok. – Ele começou a abrir a porta e fez uma pausa. – Hum, você precisa de alguma coisa de lá?
Ela estremeceu.
– Não. Não é a Nordstrom. Eu prefiro a Miss Jackson’s.
Ele sorriu maliciosamente para ela.
– Ei, no mundo de Zo a Miss Jackson’s fechou.
Aphrodite ergueu a mão para impedi-lo de falar mais.
– Não cometa uma blasfêmia dessas. Agora suma. E vá logo. Eu só tenho mais essa garrafa de champanhe.
– Sim, senhora. – Ele prestou uma continência para Aphrodite e então fez exatamente o que ela tinha mandado.
21
Zoey
Horda Nerd e nossos Guerreiros e companheiros!
Encontrem-me na árvore quebrada. Tragam velas de círculo
& sálvia. Muita sálvia. Estarei lá em 10 min.
Não me dei tempo para pensar melhor. Apertei o botão de ENVIAR no grupo e então voltei minha atenção para a mesa do Centro de Mídia na minha frente e para o velho livro aberto com cheiro de mofo com o título simples de Magia Antiga. Voltei folheando algumas páginas e reli o final do capítulo anterior.
Lembre-se, quando pedir o auxílio de seres de Magia Antiga, principalmente espíritos elementais, sempre há um preço. Com frequência eles se satisfazem com sangue, mas os Antigos ficam entediados facilmente e gostam de excentricidades. Eles tendem a valorizar pagamentos incomuns e difíceis de obter. Garanta que o método de pagamento é específico e garanta ainda mais que o pagamento seja feito imediatamente. Não cometa o erro de acreditar que pode escapar da dívida que fez com os Antigos. Você não irá escapar – mesmo se o pagamento requerido for a sua vida. Você irá morrer. Disso não há a menor dúvida.
– Que inferno! – eu disse para o livro e para a Grande Sacerdotisa vampira morta há muito tempo que o tinha escrito séculos atrás. – Inferno, inferno, inferno. Eu detesto isso.
Mas não havia nada que eu pudesse fazer em relação a isso. Eu já tinha tomado a minha decisão. Eu inclusive acreditava que era uma decisão inteligente. Bom, eu esperava que fosse uma decisão inteligente. Independente de ser inteligente ou não, eu acreditava que era a decisão certa.
– Stark vai ficar tão irritado – eu murmurei para mim mesma.
– Por que eu vou ficar irritado?
Eu dei um pulo e me virei na minha cadeira.
– Deusa! Você me assustou.
– Eu te assustei porque você está se escondendo aqui e achou que ninguém fosse te encontrar? – Ele se sentou ao meu lado e olhou com desconfiança para o livro aberto.
– Eu não estou me escondendo. Estou pesquisando. Sozinha.
– Desculpe. Não quis te atrapalhar.
Ele começou a se levantar e eu segurei a mão dele.
– Não vá. Desculpe. Falei de um jeito rude, não foi o que eu quis dizer. – Respirei fundo para me acalmar. Eu não queria ter aquela conversa com Stark. Nunca. Só que já estava na hora de parar de ficar fugindo feito criança. Eu tinha tomado a minha decisão, então precisava contar a verdade para ele. – Eu preciso conversar com você.
Ele virou a sua cadeira para me encarar.
– Finalmente!
O olhar de alívio dele me deu um aperto no estômago.
Stark tocou o meu rosto de um jeito doce e íntimo que sempre me dava um frio na barriga e abriu aquele sorriso metidinho dele que eu amava desde que o conheci.
– Ei, seja o que for, a gente pode lidar com isso. Juntos. Só me conte o que está errado e então vamos descobrir como resolver o problema.
Eu me inclinei para a frente e o beijei – de leve e devagar. Ele me puxou para os seus braços e retribuiu o beijo, e naquele momento eu deixei que o meu mundo fosse preenchido pelo meu Guerreiro, meu amante, meu Guardião e meu amigo.
Quando finalmente nos separamos, o seu sorriso ficou metidinho de novo.
– Se o problema for que você precisa ser beijada assim com mais frequência, eu tenho a solução. É um trabalho difícil, mas você pode definitivamente contar comigo, minha Rainha.
Eu dei um soco de brincadeira no ombro dele.
– Um trabalho difícil?
– É, mas alguém tem que fazê-lo.
Eu balancei a cabeça para ele e então fiquei séria. Chega de procrastinar! Simplesmente conte para ele.
– Eu vou para o Outro Mundo atrás de Kevin – eu disse.
– É, bom, eu já imaginava. Quando partimos?
Eu peguei a mão dele com as minhas.
– Eu vou hoje à noite. Você vai ficar aqui.
Ele não disse nada por vários segundos. Então, lentamente, ele puxou a sua mão que estava entre as minhas.
– Por quê? – a voz dele soou sem alterações, mas os seus olhos se encheram de dor.
– Bom, Neferet tem que ser detida e não posso deixar Kevin destruir a si mesmo com Magia Antiga, coisa na qual está bem encaminhado. Ele está usando Magia Antiga. Você pode sentir a frequência com que ele está fazendo isso. Ele deve acreditar que precisa. Sei que eu mesma acreditei. Todos nós sabemos disso. Neferet é um pesadelo, mas Kevin não entende nada sobre Magia Antiga nem sobre Neferet, e isso vai...
– Não perguntei por que você está indo para lá – Stark me interrompeu. – Eu já tinha entendido isso. Por que eu não vou?
– Ah. Desculpe. Porque você não pode.
– Se você pode atravessar para um Outro Mundo, por que diabos eu não posso?
– Não quis dizer que você não pode fisicamente. Eu quis dizer que você não pode porque já tem um James Stark no Outro Mundo. Ele é um general no exército de Neferet. Kevin disse que ele inclusive é amante de Neferet. – Fiz uma careta. – O que é tão nojento que não suporto nem pensar, e pode acreditar... eu vou fazer o possível para dar um jeito nisso. Deusa, você consegue imaginar como...
– Eu não ligo pra isso. Aquele não sou eu. Eu me importo com você. Essa Zoey aqui... minha Rainha, a quem eu sou Juramentado como seu Guerreiro e a quem eu protejo como o seu Guardião concedido pela Deusa. Z, eu entendo por que você tem que ir. Sei que você tem pensado sobre isso, que está preocupada com o Outro Kevin, eu até esperava mesmo que você fosse. Mas eu tenho que ir com você.
Eu balancei a cabeça.
– Sinto muito. Queria que você pudesse ir, mas não faz o menor sentido. Você já está lá. E não dá pra disfarçar sua presença. Eu preciso circular por lá discretamente, dizer para Kevin parar de usar Magia Antiga, ajudá-lo a derrotar Neferet, o que acho que eu já descobri como fazer, e então voltar para cá. – Encontrei o olhar angustiado dele e disse o que eu precisava dizer. Disse o que ele não queria escutar, mas precisava. – Stark, você não ia me ajudar se fosse para lá. Você iria dificultar ainda mais o que já vai ser difícil. Sinto muito – eu repeti. – Mas já decidi. Eu vou e você não.
A dor se transformou em raiva.
– Pensa que eu não sei o real motivo para você não querer que eu vá? É porque você vai encontrar Heath e não quer que eu fique segurando vela!
Eu já esperava que ele dissesse isso. Eu já esperava a sua mágoa e a sua raiva, mas isso não tornava a situação nem um pouco mais fácil.
– Não, Stark. Não é por isso que você não pode vir comigo. Se você fosse pego, o que seria fácil porque o seu equivalente lá é um general poderoso que todo mundo conhece, você seria morto. Ou torturado. Ou coisa pior. E eu não conseguiria aguentar isso. Na verdade, vai além de eu poder aguentar isso ou não. Tem a ver com mais coisas do que o que você pode ou não aguentar. Se eles o pegassem, isso seria ruim para Kevin e para o mundo dele com certeza, mas ruim para o nosso mundo também. Stark, pense. O que aconteceria se Neferet descobrisse que há um mundo inteiro aqui em que ela não está no comando? E pense no que ela faria se... ou melhor, quando o Outro Kevin e a sua Resistência virarem o jogo e começarem de fato a derrotá-la. O que Neferet faria?
– Não sei, porra!
– Você sabe, sim. Todos nós sabemos. Ela iria fugir. E ela iria fugir para este mundo. – Peguei a mão dele de novo. – Stark, eu te amo. Eu detesto te magoar. E eu não vou para lá só para ver Heath. Mas isso não tem a ver com nós dois. Tem a ver com dois mundos inteiros e garantir que as Trevas não vençam nunca.
– Você escutou o que disse? Você não vai para lá só para ver Heath! “Só”! – Ele fez aspas no ar com os dedos. – Mas você vai encontrá-lo, não vai?
– Não sei. Kevin me disse que ele está na Universidade de Oklahoma. Eu não vou para lá. Eu vou para Tulsa.
– Eu não acredito em você.
– Por favor, não faz isso comigo. Não tenha ciúme de alguém que nem está vivo – eu disse.
– Mas esse é o problema, né? Ele está vivo naquele mundo para onde você está morrendo de vontade de ir.
Desta vez eu soltei a mão dele por vontade própria.
– Você acha mesmo que eu quero ir? Que eu quero lutar com Neferet de novo? Que eu quero deixar a minha casa, os meus amigos e você? – Balancei a cabeça. – Você está com ciúme e está errado. – Eu me levantei. – Marquei um encontro na árvore quebrada. Tenho que ir.
– Sim, eu sei. Eu recebi a sua mensagem no grupo. Foi super íntima. – Ele se virou na cadeira e ficou olhando o livro em vez de me olhar. – Era assim que você ia me contar?
– Por mensagem? Claro que não!
– Não foi isso que eu pensei. Perguntei se você ia me contar que ia para lá e que eu ia ficar aqui na frente de todo mundo.
Mordi a parte interna da bochecha. Na verdade, eu tinha planejado contar para todo mundo junto que eu estava indo – e quem ia e quem não ia comigo. Bom trabalho, Z. Stark agora pensa que você queria insultá-lo e constrangê-lo, além de trocá-lo por Heath.
– E-eu não queria ferir os seus sentimentos. Só sei que eu tenho que ir e que tenho que contar isso para todo mundo. Não pensei que você ficaria louco se eu contasse para todos ao mesmo tempo – eu falei pateticamente.
Então ele levantou os olhos para mim.
– Eu não estou louco porque você ia contar para mim ao mesmo tempo que para os outros. Estou triste. Triste por ser só isso que eu significo para você.
– Stark! Você significa tudo pra mim!
– Isso é papo furado.
Eu fui até o lado dele e coloquei a mão no seu ombro. Quis tocar o cabelo dele, o seu rosto, beijá-lo e nunca mais soltá-lo, mas ele se esquivou da minha mão e voltou o seu olhar triste e nervoso para o velho livro aberto na frente dele.
– Eu te amo. Isso não é papo furado. Você sabe disso. Você só precisa sentir... sentir a nossa ligação.
– Você acha que eu vou conseguir sentir quando você estiver lá? – ele perguntou sem expressão.
– Não sei – eu disse. – Espero que sim. Acho que posso sentir a minha ligação com você em qualquer mundo.
– Eu espero que não.
Aquelas quatro palavras me cortaram fundo, penetraram através da minha pele, músculos e ossos e me deixaram sem voz e muito, muito triste. Peguei a minha mochila e a joguei por cima do ombro. Então dei as costas para o meu Guerreiro e saí do Centro de Mídia.
Estavam todos lá. O meu círculo: Aphrodite, Damien, Shaunee, Shaylin e Stevie Rae. E também os seus Guerreiros e amantes: Darius, Jack, Erik, Nicole e Rephaim.
Só que nenhum sinal de Stark. Ele não tinha me seguido quando saí do Centro de Mídia. Engoli a minha tristeza e me aproximei da árvore quebrada e escura, pisando sem fazer barulho para poder observar os meus amigos antes que eles percebessem que eu estava ali.
Aphrodite estava obviamente no comando. Ela estava apontando para alguns lugares em volta da árvore arruinada, e Outro Jack, super fofo com uma camiseta violeta clara por dentro de uma adorável calça jeans rasgada, estava levando as velas ritualísticas para os pontos que ela tinha escolhido. Era fácil ver o que Aphrodite estava fazendo, e eu me enchi de gratidão por ela. Ela estava estabelecendo uma circunferência ao redor da árvore, preparando tudo para o traçado do círculo.
Stevie Rae estava segurando uma pilha grande de bastões de defumação de sálvia, os quais ela foi entregando para Damien, Shaunee e Shaylin.
Ótimo. Essa vai ser a parte fácil. Espero que eles estejam preparados para o que vai acontecer em seguida.
– Ei, Z! Aí está você! – Stevie Rae sorriu com covinhas para mim. – Eu trouxe a sálvia.
– E eu trouxe as velas – Outro Jack disse, abrindo um sorriso luminoso e doce para mim.
– Imagino que você vá fazer a limpeza desta árvore horrorosa – Aphrodite disse.
– Vou sim – eu disse. – Vamos começar com isso, só que primeiro preciso falar com todos vocês.
Os meus amigos se aproximaram, formando uma meia-lua atenta diante de mim. Eu analisei os rostos deles, pensando em todas as coisas pelas quais havíamos passado e como isso tinha nos deixado próximos. Eu não queria partir. Eu não queria encarar Trevas que já tínhamos derrotado. Eu me senti triste, com medo e muito sozinha.
– Está tudo bem, Z – Stevie Rae afirmou. – Seja o que for, estamos aqui com você.
– Só conte o que você precisa – Damien falou. – Vamos resolver.
– A sua aura está forte. Seja o que for, você está em paz com essa resolução – Shaylin observou.
– Lembre-se de que você não está sozinha – Shaunee disse. – A gente está aqui pra te proteger.
– Assim como Nyx – Aphrodite acrescentou. – A Deusa está com você também. Sempre, Z.
O resto dos meus amigos assentiu concordando.
Pisquei bem rápido, determinada a não deixar as minhas lágrimas caírem.
– Obrigada. Isso significa muito para mim, e eu realmente precisava ouvir que tenho o apoio de vocês. Espero continuar com ele quando contar o que está rolando.
– Você sempre vai ter – Stevie Rae afirmou. – Você é a nossa Grande Sacerdotisa. Nós confiamos em você, Z.
Quando senti que poderia falar sem explodir em lágrimas, eu comecei.
– Primeiro, nós vamos purificar esta árvore. Não vamos fazer nada muito louco, só um trabalho básico de defumação e limpeza, apesar de que eu vou pedir para todo mundo participar e ajudar a defumar. Ela precisa de muita limpeza.
– Você quer que a gente fique dentro ou fora do círculo? – Erik perguntou.
– Boa pergunta – eu disse, sorrindo para ele, que estava ao lado de Shaunee, com um braço em um gesto íntimo colocado sobre os ombros da minha amiga, que se recostava nele. – Quero vocês com a gente dentro do círculo, como estariam se fosse um ritual para toda a escola. Então, Jack, você pode, por favor, mexer as velas dos elementos mais para fora, para que o nosso círculo fique um pouco maior?
– Com certeza! – Jack imediatamente saiu correndo em volta do círculo, reposicionando as grandes velas votivas de modo a incluir todo mundo.
– Eu vou invocar os elementos e traçar o círculo. Aqueles que representam os quatro elementos, por favor acendam os bastões de sálvia nas suas velas elementais. Os outros podem acender os seus bastões na minha vela do espírito. – Uma ideia me ocorreu, e eu decidi que era um acréscimo perfeito a uma defumação simples. – Mas eu quero fazer disso mais do que uma simples defumação. Esta árvore... este lugar tem tanta tristeza e Trevas ligadas a ele que nós precisamos fazer algo a mais com a defumação. Precisamos trazer a alegria de volta para cá. E se a gente fizer a defumação acompanhados de uma música?
– Eu apoio totalmente! – Stevie Rae exclamou. – Que tal usar...
– Ah, que merda, não! – Aphrodite a interrompeu. – Nada de músicas do Kenny Chesney.
Stevie Rae franziu as sobrancelhas para ela.
– Você está cortando o meu coração.
– Tem que ser uma música super alegre – eu disse. – Uma que todo mundo conheça e que alguém tenha no celular.
– “When the Sun Goes Down” do Kenny Chesney é super alegre – Stevie Rae sugeriu.
Aphrodite bufou.
– Bom, segundo um grupo de pesquisadores da Universidade do Missouri, “Don’t Stop me Now” do Queen, com o seu sempre fabuloso Freddie Mercury, é cientificamente a canção mais alegre do mundo – Damien afirmou.
Todo mundo se virou para ele.
– Como diabos você sabe disse? – Aphrodite perguntou.
– Eu sou inteligente e leio bastante – Damien respondeu.
– Quando ele pratica esgrima, ouve essa música. Muitas vezes – Jack lembrou, correndo de volta para o lado de Damien. – E vocês sabem como o meu Damien é um espadachim incrível!
– Isso é verdade – eu concordei. – Então, você tem essa música na sua playlist?
– Tenho – Damien disse.
Antes que eu pudesse perguntar se todo mundo conhecia a música, Jack levantou a mão como um menininho na escola encarnado.
– Sim, Jack?
– Hum, eu acabei de pensar em uma música. Uma muito, muito alegre que eu tenho certeza que todo mundo conhece. E está na minha playlist. – Ele se inclinou para Damien. – Desculpe, Damien. Espero que você não se importe.
– Eu não me importo. Qual é a música? – Damien perguntou.
Jack respondeu cantando.
– “Gota de chuva, bigode de gato...”
Stevie Rae continuou o próximo verso da canção.
– “Laço de fita, cordão de sapato!”
– “Flor na janela e botão no capim” – Shaunee cantou.
– “Coisas que eu amo e são tudo pra mim!” – Aphrodite me surpreendeu totalmente ao se juntar ao coro. – O que foi? – Ela franziu o cenho quando todo mundo a encarou. – Quem não gosta de Noviça Rebelde?
– O que você acha, Damien? – eu perguntei.
– Acho que eu amo bolas de neve e botão de pijama! Não é científico, mas eu voto em “Coisas que eu amo”.
– Por mim parece ótimo. Hum, todo mundo conhece, certo? – perguntei para o grupo, e todos, exceto Rephaim, assentiram.
– Eu vou tentar acompanhar vocês – Rephaim disse.
– Tudo bem, amor – Stevie Rae o apoiou. – Eu sei a letra inteira. Vou te ajudar.
– Ok, perfeito. Então, quando a música acabar, a gente vai terminar a defumação fazendo uma pequena pira ali, no meio do círculo, bem na frente da árvore. – Eu apontei para um lugar à frente do centro do carvalho escuro e retorcido. – Eu vou dar a volta no círculo e pegar os bastões de defumação de Damien, Shaunee, Shaylin e Stevie Rae, e então vou juntá-los ao resto dos bastões. Shaunee, depois disso vou pedir a você para acrescentar um pouco de fogo à pilha para que ela queime direito.
– Facinho – Shaunee falou.
– Isso significa que você vai deixar o círculo aberto depois da defumação – Aphrodite observou. – Então, o que vem depois?
Eu encontrei o olhar dela.
– Depois eu invoco Oak, o espírito da árvore de Magia Antiga que respondeu às minhas perguntas.
– Por que você vai mexer com Magia Antiga de novo? – Aphrodite perguntou.
– Porque vou pedir que ela me guie até o Outro Mundo, onde o meu irmão precisa da minha ajuda – respondi rápido e senti uma onda de alívio instantânea por finalmente ter contado para todo mundo.
– Isso é loucura total – Aphrodite disse.
– Não! – Os olhos de Outro Jack estavam arregalados. Ele parecia completamente aterrorizado. – Não vá, Zoey! Aquele mundo é horrível. – Ele tremia, com os braços envolvendo o seu próprio corpo. – Eu sei que o seu irmão contou algumas coisas sobre aquele lugar pra você, mas não é possível que você realmente compreenda o que acontece. Simplesmente não dá. Não vá! – Ele começou a chorar baixinho, e Damien o abraçou.
– Por que você acha que precisa ir para lá? – Darius me perguntou.
– Por várias razões – eu respondi. – Kevin tem usado Magia Antiga. Muito. E ele não tem a menor ideia de como isso é perigoso ou o que pode fazer com ele. Tenho que contar a ele antes que isso o transforme.
– Ele está usando porque é a única maneira de derrotar Neferet – Aphrodite argumentou.
– Não, não é – eu rebati. – Era a única maneira de derrotar a nossa Neferet, porque ela havia se tornado imortal.
– Bom, será que não faz sentido pensar que do lado de lá, ela já está no caminho de se tornar imortal, assim como foi aqui? – Shaunee questionou.
– Sim. E essa é outra razão pela qual eu tenho que ir para lá. Neste momento, Neferet é apenas uma vampira. Como saber o que vai acontecer se eu esperar mais? Além disso, eu tenho um plano para jogar o Exército Azul contra ela.
– Como? – Aphrodite quis saber.
– Jack, corrija-me se eu estiver errada, mas, pelo que o meu irmão me contou, os Guerreiros acreditam que Neferet ainda está a serviço de Nyx, certo?
Jack fungou e assentiu vigorosamente.
– Ah, sim. Neferet é a única Grande Sacerdotisa deles. Eles contam com ela para saber a vontade de Nyx.
– E o que aconteceria se houvesse uma prova irrefutável de que Neferet não está mais seguindo a vontade de Nyx? – eu perguntei.
– Os Guerreiros não a seguiriam mais. Bom, pode ser que alguns continuassem a segui-la. Tipo, alguns dos seus amantes. E ela tem muitos. Mas a maioria iria parar de lutar por ela, e isso inclui uma boa parte do Exército Azul – Jack respondeu.
– Esse é o meu plano – eu concluí. – Vou mostrar para todos na Morada da Noite de Tulsa no Outro Mundo que Neferet é uma fraude. Que ela está usando os seus poderes para as Trevas e não está mais seguindo Nyx.
– Bom plano, Z, mas como você vai fazer isso? – Stevie Rae questionou.
Eu sorri para a minha melhor amiga e para o seu companheiro.
– Bom, para isso eu vou precisar da ajuda de Rephaim.
– Minha ajuda? Claro que eu ajudo você – Rephaim falou sem hesitar. Então ele piscou e eu vi a compreensão brotando no seu rosto. – Você vai libertar o meu pai naquele mundo!
– Sim, isso é parte do meu plano. Quer uma maneira melhor de mostrar que Neferet não está seguindo Nyx do que ter o seu Consorte alado a denunciando na frente da Morada da Noite inteira?
– Mas Kalona era um verdadeiro idiota logo que ele foi libertado desse lado. Que diabos você vai fazer em relação a isso? – Aphrodite quis saber.
– Eu vou contar com o filho de Kalona para se conectar a ele – eu respondi. – E comigo também. Lembre-se de que eu ainda tenho um pedaço de A-ya dentro da minha alma. Rephaim e eu, juntos, devemos ser capazes de influenciar Kalona, principalmente porque a gente sabe que lá no fundo ele ainda ama Nyx, e só era tão terrível porque pensava que a Deusa nunca iria perdoá-lo.
– E nós vamos convencer o meu pai de que ele está errado em relação a isso – Rephaim completou.
– Espero que bem mais rápido do que ele foi convencido por aqui – Aphrodite resmungou.
– Então, você quer que Rephaim vá para o Outro Mundo com você – Stevie Rae disse.
– Sim, eu quero.
– Mas, mesmo se isso funcionar, ainda vai ser preciso lidar com o Exército Vermelho – a voz de Jack soou trêmula. – E eles são monstros. Eles não ligam para quem Neferet segue. Eles não ligam para Trevas e Luz. Eles só se importam em saciar a sua fome.
– E é por isso que o meu plano tem uma segunda parte. Stevie Rae, desculpe, mas eu preciso pedir que você venha comigo também, por favor.
O olhar de alívio dela me deu um aperto no coração.
– Ah, Z! É claro que eu vou com você!
– Se eu estou entendendo esse seu plano, você vai precisar de mim também – Aphrodite falou.
– Sim, mas não essa versão de você. A Outra Aphrodite – eu respondi.
– Ok, olhe só, seria muito mais fácil se eu fosse com você – Aphrodite insistiu.
– Você não pode. Você já está lá, e você é uma Profetisa, mas também é uma vampira azul completamente Transformada. Não a primeira vampira azul e vermelha da história – eu a relembrei.
– E daí? Erik pode me dar um pouco daquela porcaria que eles usam nos atores para cobrir as suas Marcas para que os humanos consigam esquecer que estão vendo vampiros atuarem – Aphrodite argumentou.
– É, posso sim. Tem bastante disso na sala de Teatro – Erik disse.
– Apesar de o meu homem não usar esse tipo de coisa – Shaunee observou. – Porque se aqueles humanos intolerantes e idiotas não conseguem ter empatia suficiente para se identificar com alguém que parece diferente, isso é problema deles e eles podem parar de assistir aos seus filmes.
– Mas todos querem assistir aos seus filmes – Jack soou adoravelmente deslumbrado.
Erik deu para Jack aquele sorriso de estrela de cinema iluminado por vários megawatts.
– Então acho que eles vão ter que aceitar quem eu realmente sou, ou, que pena, eles terão que ficar sem filmes.
Jack deu uma risadinha.
Cara, Erik cresceu! Pensei. Que bom para ele.
– Erik, você pode ir buscar essa maquiagem para mim?
– Estou indo. Volto em um segundo. – Erik saiu correndo.
– Viu? Eu posso cobrir a parte vermelha da minha Marca e ir para lá com você. A gente faz a nossa coisa juntas, e os novatos e vampiros vermelhos vão ter sua humanidade de volta. Nada de mais – Aphrodite disse.
– E o que a gente faz com a Outra Aphrodite? – Eu me virei para encarar minha amiga, detestando ter de provocar dor nela com o que eu precisava dizer. – O que o fato de você a substituir vai causar nela? Significa que ela nunca vai crescer? Nunca vai aprender a se importar com outras pessoas além dela mesma? Nunca vai aprender a ter empatia ou que às vezes amor significa fazer um sacrifício? Nunca vai aprender a parar de se automedicar e enfrentar a sua mãe?
Aphrodite me encarou, o seu rosto ficando pálido.
– E se ela não for capaz de aprender? Eu perguntei a Outro Jack sobre ela. Definitivamente, ela não está trabalhando com a Resistência. Ela é aliada de Neferet. E se a eu do Outro Mundo já estiver perdida para as Trevas e você não conseguir sensibilizá-la como fez comigo porque Neferet matou você lá cedo demais?
– Nos seus corações, nas suas almas, vocês são a mesma pessoa. Eu conheço esse coração, e ele não é feito de Trevas. Você tem mais Luz em você do que qualquer um de nós. Nyx nos mostrou isso pelos dons que concedeu a você. Eu posso sensibilizar a Outra Aphrodite.
– Eu não apostaria a minha vida nisso – Aphrodite disse.
Sem nenhuma hesitação, eu respondi:
– Eu aposto. Quantas vezes eu precisar.
– Eu também – Darius falou, colocando o braço ao redor de Aphrodite.
– Eu também – Stevie Rae concordou. – Mesmo que você e eu discordemos totalmente no gosto musical.
– E no seu estilo de moda – Aphrodite acrescentou.
– Eu também acredito em você, Profetisa – Rephaim reforçou.
– Todos nós acreditamos – Shaunee enfatizou.
– Z vai sensibilizá-la porque você não é a única de nós que recebeu grandes dons de Nyx – Shaylin explicou. – Zoey também recebeu.
Eu observei Aphrodite enxugar as lágrimas antes de perguntar:
– Se não é para mim, por que Erik foi buscar aquela porcaria de maquiagem?
– É para Stevie Rae! – Jack respondeu como se uma lâmpada tivesse acabado de se acender sobre a sua cabeça. – Você tem que cobrir a Marca dela porque não existem vampiras vermelhas mulheres no meu mundo.
– Exatamente, Jack. – Dei umas palmadinhas na mochila que ainda estava pendurada no meu ombro. – Por isso que eu tenho um lápis de maquiagem safira aqui. Stevie Rae, está pronta para ser uma novata azul de novo?
– Claro! Mas espero que desta vez tudo corra melhor do que antes.
– Pode apostar nisso – eu disse. – Porque eu vou me juntar a você. E desta vez como uma novata azul normal.
– Sério? – Shaunee disse.
Em vez de respondê-la, fiz outra pergunta.
– Jack, tem outras Grandes Sacerdotisas no seu mundo?
– Não. Não mais. Neferet é a única Grande Sacerdotisa de lá – ele respondeu.
– E o meu palpite é que Neferet fica de olho nas Sacerdotisas remanescentes... para o caso de alguma delas começar a se desenvolver como uma Grande Sacerdotisa. Estou certa?
– Bom, não é como se eu fosse próximo a ela nem nada do tipo, mas todo mundo sabe que Neferet não permite que nenhuma outra Sacerdotisa conduza os rituais da escola. Ela tem que liderar tudo, mas ela não deixa que os novatos e os vampiros vermelhos participem dos rituais de qualquer jeito.
Balancei a cabeça.
– Ela deve ter feito alguma coisa terrível com as Grandes Sacerdotisas para conseguir calar a boca delas e deixá-las de lado.
– Eu não sei muito sobre isso, mas há rumores... Coisas sussurradas nos túneis onde Neferet nunca vai. Dizem que ela as matou.
– Deusa, não pode ser! – Shaylin ofegou, e Nicole pegou a mão dela para reconfortá-la. – Isso é horrível! O coração de Nyx deve estar partido!
– E essa é a terceira razão pela qual nós temos que ir para lá. Nyx precisa de nós. Todos nós sabemos que a Deusa não manipula a ação dos mortais, mas conhecemos a vontade dela. Stevie Rae, Rephaim e eu. E nós vamos acabar com as atrocidades que Neferet tem cometido em nome de Nyx.
O meu círculo assentiu, concordando sobriamente, enquanto Erik chegou correndo. Ele me entregou uma sacola cheia de esponjas e um pote grande de maquiagem.
– Tudo que você precisa está aí dentro. Eu trouxe o tipo que é à prova de água. É um inferno para tirar, mas vocês não vão ter que se preocupar com nenhuma Marca aparecendo por baixo, nem se pegarem chuva ou neve.
– Obrigada, Erik.
– Merda11 para você lá. Eu acredito em você – ele disse.
Eu enfiei a sacola na minha mochila e tive que limpar a garganta antes de falar, mas finalmente consegui dizer:
– Ok, acho que isso é tudo. Estão todos prontos?
Perguntei para o grupo, mas só observei Stevie Rae e Rephaim. Eles foram os primeiros a responder.
– Sim. Estou pronto – Rephaim disse.
– Eu também, feito um porco pronto para chafurdar na lama! – Stevie Rae falou, e todo mundo (menos Aphrodite) riu e assentiu.
– Cadê o Stark? – Aphrodite perguntou, calando a boca de todo mundo.
– A última vez que eu o vi, ele estava no Centro de Mídia – eu respondi.
– E por que o seu Guerreiro não está aqui ao seu lado? – Darius questionou.
– Porque eu não deixei ele vir comigo.
– Ele não pode! – Jack exclamou. – Todo mundo conhece o General Stark. Mesmo com a Marca vermelha dele coberta, qualquer um que o visse perceberia em um segundo que ele é parecido com o general e iriam pegá-lo.
– Eu sei, e foi isso que eu disse a Stark, mas ele não consegue suportar a ideia de que estou indo enfrentar o perigo sem ele. – Respirei fundo e contei o resto da verdade. – E ele acha que eu estou indo lá para ver Heath, o que o chateia. Muito. – Eu hesitei e então fiz um pedido. – Pessoal, depois que eu for, vocês podem ficar de olho no Stark, por favor? Ajudá-lo a passar por isso? Eu vou voltar, e quando eu estiver de volta vou fazer as pazes com ele. Vou fazê-lo entender, mas até lá eu só... – Então perdi as palavras quando uma sensação de perda e tristeza tomou conta de mim. E se Stark nunca me perdoar por isso?
– Nós vamos ajudá-lo – Damien prometeu. – Não se preocupe com isso. Se concentre no que você tem que fazer do outro lado para voltar para cá. Eu vou conversar com Stark.
Fui até Damien e o abracei forte.
– Obrigada – sussurrei. – Diga a ele que eu o amo muito.
– Vou dizer, mas ele já sabe, Z – Damien sussurrou de volta.
Eu saí do abraço reconfortante de Damien.
– Pessoal, vejam se todos pegaram o seu bastão de defumação e vão para os seus lugares. Vamos acabar logo com isso!
11 Maneira de atores desejarem boa sorte antes de entrarem no palco. Em inglês, a expressão usada é “break a leg” (quebre uma perna). (N.T.)
22
Zoey
Foi legal ter os meus amigos se juntando a mim dentro do círculo, e eu percebi como fazia tempo desde a última vez que havia conduzido um ritual importante. Vou ter que melhorar isso quando voltar, prometi a mim mesma. Porque eu iria voltar, assim como Stevie Rae e Rephaim.
Damien, Shaunee, Shaylin e Stevie Rae assumiram as suas posições em cada um dos quatro quadrantes do círculo, segurando as suas velas rituais. Os Guerreiros e amantes também se espalharam, preenchendo o círculo. Fui para o centro, onde Jack havia colocado a minha vela roxa do espírito e uma caixa de fósforos longos. Fiz uma pausa por tempo suficiente para respirar profundamente várias vezes para me purificar. Então abri a minha mochila e facilmente encontrei o sino que eu tinha colocado no bolso da frente. Segurando-o com cuidado para que não começasse a soar, peguei os fósforos e fui até a borda leste do círculo, onde Damien estava parado, cheio de expectativa, com a sua vela amarela do ar em uma mão e o seu bastão de defumação na outra.
– O ar nos dá a respiração e muito mais. Sem ele, nós não seríamos capazes de gritar, rir, chorar ou gritar. É o primeiro elemento que conhecemos quando nascemos, então nós sempre começamos o círculo com sua invocação. Ar, por favor, venha e ajude a soprar para longe as Trevas que macularam esta árvore. Eu dou as boas-vindas a você no nosso círculo! – Acendi a vela de Damien e um sopro de uma brisa quente levantou o meu cabelo. Assim que senti o ar, segurei o sino no alto e o toquei com força e ele soou claro três vezes.
Então eu fui no sentido horário, ficando diante de Shaunee ao sul.
– O fogo nos aquece. Ele nos nutre cozinhando a nossa comida e nos limpa queimando aquilo que não é mais útil. Fogo, por favor, venha e ajude esta sálvia a queimar e dissipar as Trevas que macularam esta árvore! – Não precisei tocar o meu fósforo na vela vermelha de Shaunee. Ela pegou fogo e produziu uma chama alegre instantaneamente.
– Queime, baby, queime – Shaunee sussurrou.
Eu sorri e levantei o meu sino, tocando-o vigorosamente mais três vezes. Então andei no sentido horário para o oeste até Shaylin, que esperava ali com expectativa segurando a vela azul.
– A água somos nós, assim como nós somos água. Sem ela, nós viramos pó e morremos. Ela sacia a nossa sede e nos purifica. Água, por favor, venha e ajude a lavar as Trevas que macularam esta árvore! – Acendi a vela de Shaylin e o aroma do oceano preencheu o ar ao nosso redor. Levantei o sino de novo e o toquei três vezes antes de continuar a minha jornada ao redor do círculo até Stevie Rae ao norte.
– E aí, Z? – Ela sorriu com covinhas para mim.
– Oi, terra. – Eu sorri de volta para ela. – A terra é a nossa casa. Ela nos sustenta. Ela nos alimenta e nos envolve, e é para a terra que os nossos corpos finalmente voltam para o descanso final. Terra, por favor, venha e nos fortaleça para que as Trevas nunca mais maculem esta árvore! – A vela verde de Stevie Rae pegou fogo e nós fomos cercadas pelo cheiro delicioso de damas-da-noite. Inspirei profundamente ao levantar o meu sino e tocá-lo mais três vezes.
Então, fui para o centro do círculo e levantei a minha vela roxa.
– Espírito, você é quem nós somos quando somos mais puros. Você é quem permanece quando os nossos corpos não podem mais viver. Você nos preenche de forma única e estabelece nossas personalidades, nossos amores, nossos ódios e nossos desejos. Espírito, por favor, venha e preencha este lugar que foi violado pelas Trevas para que a Luz possa brilhar aqui de novo! – Toquei o meu sino em três badaladas pela última vez e, enquanto o seu claro eco se extinguia, coloquei-o no chão e peguei o grosso bastão de defumação de sálvia branca perfumada.
Encarei o meu círculo, amando o fio prateado de luz que nos conectava. Ele era tão brilhante que iluminou a árvore, fazendo parecer que as Trevas já tinham começado a ser extinguidas.
– Ok, elementais, acendam os seus bastões de defumação. Os outros acendam os seus bastões nos dos elementais, fechando o círculo. Jack, você está pronto com algumas das nossas coisas favoritas?
– Estou! Só me diga quando for para apertar o play!
Esperei alguns instantes até a sálvia de todo mundo estar acesa e uma fumaça acinzentada e esbranquiçada começar a se formar e se levantar devagar ao redor da árvore.
– Ok, quando a música começar, todo mundo canta junto. Dancem e desenhem formas no ar com os seus bastões de defumação. Sejam alegres. Não pensem em nada além de coisas boas. Só tomem cuidado para não pisar fora do círculo – eu disse.
– E não se preocupem, todos nós amamos Julie Andrews. Não importa quem você é... cante, cante, cante! – Jack falou alegremente.
– Isso mesmo! – Eu sorri para ele. – Aperte o play, Jack!
Assim que “Coisas que eu amo” começou a tocar, o meu círculo e os meus amigos cantaram junto. No começo estávamos meio inseguros, mas na hora que chegamos ao verso “Se a tristeza, se a saudade”, todos estavam cantando, rindo e dançando ao redor do círculo.
– Aiminhadeusa, vejam! – Stevie Rae apontou para a fumaça se levantando em redemoinhos e espirais acima de nós, e todos ofegamos juntos.
Entrando e saindo da fumaça, espíritos parecidos com vaga-lumes voavam tão velozes quanto diamantes vivos, brilhando e reluzindo – e transformando a fumaça em formas sobre as quais estávamos cantando. Eu vi gatinhos com bigodes, laços de fita, gotas de chuva e algo que eu tinha certeza de que era uma banda passando enquanto soava o clarim.
Foi um dos momentos mais mágicos da minha vida, e desejei com todas as minhas forças que Stark estivesse ali, rindo, cantando e dançando ao meu lado.
– Z! Olhe para a árvore! – Jack gritou.
Eu olhei – e tive que segurar a minha boca para ela não ficar de queixo caído. Um enxame de espíritos vaga-lumes se aglomerou ao redor da árvore. Começando por sua base quebrada, eles voavam em compasso com a nossa música, girando e subindo. E, enquanto eles se moviam, a escuridão feito piche que a havia manchado ia sendo lavada, até que tudo o que sobrou foi uma árvore estranha, fragmentada e inclinada para o lado, onde começaram a surgir minúsculos brotos ao longo dos seus galhos antes arruinados.
– Ela vai ter folhas de novo! – Stevie Rae berrou alegremente mais alto que a música.
Rodopiando e rindo, nós cantamos os últimos versos com Maria e a família Von Trapp.
– “Eu lembro das coisas que eu amo e, então, de novo eu me sinto bem!”
Com a respiração ofegante e sorrindo, eu disse:
– Jack, você pode pegar todos os bastões de defumação e colocá-los aqui no meio do círculo perto da árvore?
– Eu?
Eu assenti.
– Aiminhadeusa, é claro!
Jack correu ao redor do círculo, coletando os bastões de sálvia e colocando-os, junto com o meu, em uma pilha fumegante.
– Shaunee, quando você estiver pronta – falei.
– Tranquilo. Queime, baby, queime! – Shaunee fez um gesto com o seu pulso na direção da pilha e ela instantaneamente ardeu com a luz das chamas e o aroma da sálvia.
– Perfeito! Obrigada – agradeci. Então eu fiquei séria, e o meu olhar se voltou para Stevie Rae, ainda ao norte, com Rephaim ao lado dela. – Vocês estão prontos?
Rephaim assentiu nervosamente.
– O máximo que dá pra estar – Stevie Rae disse.
– Nós vamos ter que oferecer um pagamento para o espírito – eu expliquei. – Tenho uma ideia, mas vocês dois precisam concordar com isso. Vou precisar de um pouco de sangue de cada um de vocês.
Stevie Rae e Rephaim se olharam.
– Belezinha, Z. A gente está de boa com isso – Stevie Rae concordou.
– Obrigada – eu falei com sinceridade antes de enfiar a mão na minha mochila de novo e pegar o athame12 afiado. Cercada pela fumaça magicamente purificadora da sálvia e pelo apoio do meu círculo, eu fiz o chamado. – Oak, espírito ancestral de Magia Antiga, com o poder do meu sangue e os dons concedidos a mim pela Deusa Nyx, eu a invoco para o nosso círculo. Oak, por favor, apareça!
E então prendi a respiração.
Ela não me fez esperar muito. Em segundos, o centro da árvore recém-purificada começou a brilhar e, com o som de um suspiro, Oak emergiu do tronco quebrado.
O espírito não veio até mim. Ela não deu atenção a nenhum dos meus amigos ou eu. Primeiro, ela se virou para a árvore. Ela colocou as suas mãos delicadas sobre ela e, devagar, de modo íntimo, inclinou-se para a frente até encostar a testa nela. Pude ouvir que ela estava falando, mas não consegui compreender a sua língua. Quando ela finalmente terminou, deu um beijo suavemente na casca nodosa, com doçura, antes de finalmente se virar e voar até mim.
– Garota Redbird, fico feliz que você concluiu o seu pagamento. – Os seus belos olhos escuros e amendoados se voltaram para o nosso círculo intacto, abarcando cada um dos vampiros dentro dele. – A força do seu círculo me agrada. Ele emana sentimentos de amor, alegria, amizade e sacrifício. Eu aprovo.
– Obrigada. E agradeço por responder ao meu chamado.
Ela abaixou levemente a cabeça em reconhecimento.
– Acho que começo a apreciar esse despertar incomum. Entre você e o Garoto Redbird, os dias e as noites têm ficado mais interessantes. O que deseja de mim agora?
Eu não hesitei.
– Quero que você me leve junto com dois amigos para o Outro Mundo, onde vive o meu irmão, aquele que você chama de Garoto Redbird. E quero que você nos traga de volta também. Quando estivermos prontos para partir.
Em um movimento como o de um pássaro, o espírito extraordinário virou a cabeça de lado e me observou. Por momentos longos e desconfortáveis demais, ela não disse nada. Quando ela finalmente se pronunciou, senti como se eu estivesse esperando a hora de descongelar.
– Posso fazer o que me pede, mas o pagamento vai ser grande.
– Que tal o sangue de três espécies de seres diferentes?
Ela ergueu suas sobrancelhas de musgo na direção da raiz dos seus cabelos de hera.
– Que tipo de seres?
– Um deles sou eu, uma vampira azul e Grande Sacerdotisa que tem afinidade com todos os cinco elementos. O segundo é Stevie Rae, uma vampira vermelha e Grande Sacerdotisa cuja afinidade é também a sua: a terra. E o terceiro é Rephaim, companheiro de Stevie Rae, um ser que...
– Foi criado por Magia Antiga – ela terminou por mim, girando a cabeça feito uma coruja para examinar Rephaim e Stevie Rae. – Vocês dois fazem essa oferenda livremente?
– Sim, senhora, eu faço – Stevie Rae respondeu.
– Sim. Dou a minha palavra – Rephaim disse.
O olhar de Oak se voltou para mim.
– Esse pagamento é interessante. Ele vai levá-los até o Outro Mundo. Mas não vai trazê-los de volta.
“Para isso um novo pagamento precisa existir
E qual vai ser nós vamos decidir
Nós vamos definir...”
Senti um aperto no estômago, apesar de o ritmo musical na sua voz indicar que ela faria um acordo comigo. Só que isso era exatamente o que os velhos livros alertavam. Eu precisava acertar ambos os pagamentos ou Stevie Rae, Rephaim e eu poderíamos ficar em uma grande meleca quando tentássemos voltar para casa.
– Vamos acertar o pagamento da volta agora. As coisas vão ficar mais fáceis assim. Quer dizer, e se a gente precisar voltar com muita pressa? – eu disse.
“Isso é problema seu, não me trate como passatempo
Aceite minhas regras ou pare de desperdiçar o meu tempo.”
– Isso não é nada bom – Aphrodite falou. Ela estava ao lado de Damien durante o ritual, e Oak se virou para o leste e concentrou o seu olhar na minha amiga. – O pagamento não deve ser deixado indeterminado. Isso é pedir encrenca.
“A Profetisa fala a verdade
Apesar da sua pouca idade.”
Oak fez uma pausa, farejando o ar como um cão de caça.
“O aroma do seu sangue é único de perceber.
Prometa o seu sangue como a cobrança,
e a volta dos seus amigos pode não ser
assim tão sem esperança.”
– Está bem!
– Não!
Aphrodite e eu falamos ao mesmo tempo. O olhar de Oak encontrou o meu de novo.
“O pagamento de sangue de uma Profetisa poderosa é uma solução
A menos que desejem ficar no Outro Mundo sem salvação.”
– Eles não vão ficar por lá. Eu prometo o meu sangue como pagamento para que você os traga de volta – Aphrodite falou rápido para que eu não conseguisse interrompê-la. – Mas eu não irei para o outro lado. Então, como vou saber quando devo pagar a você?
“Profetisa poderosa, não há nada que você precise fazer
Quando o pagamento for requerido, eu vou lhe dizer.”
– Aphrodite, eu não estou gostando disso – eu disse. – Não faça essa promessa. Stevie Rae, Rephaim, Kevin e eu vamos pensar em um pagamento que Oak aceite.
“Vai arriscar a sua vida nisso?
Parece algo tolo e omisso.”
– Tolo ou não, é a minha escolha.
– Na verdade, não. É o meu sangue. Meu corpo. Minha escolha – Aphrodite insistiu. – Oak, eu dou a minha palavra. Quando for a hora de Zoey, Rephaim e Stevie Rae voltarem, eu vou pagar o preço de sangue por eles.
“Eu aceito o seu preço excitante
Um pagamento de uma promessa, forte e brilhante
Eu fecho este acordo com vocês, perseverante.”
O olhar de Oak capturou cada um de nós quatro enquanto ela terminava a ligação.
“E tenho dito – que assim seja.”
O meu estômago estava tão revirado que tive vontade de vomitar. Aquilo parecia errado – perigosamente errado, mas já estava feito.
Olhei para Aphrodite. Ela estava firme, forte e orgulhosa, mas pude ver o medo nos olhos dela. Então prometi a mim mesma que faria tudo que estava ao meu alcance para que ela não se arrependesse de dar o seu sangue para nos levar de volta para casa.
– Obrigada, minha amiga – eu disse a ela. – Eu te amo.
Os lábios de Aphrodite se mexeram, mas ela não riu com sarcasmo. Em vez disso, ela colocou o punho sobre o coração e se curvou respeitosamente para mim.
– De nada, Grande sacerdotisa. Eu também te amo.
Piscando para limpar as lágrimas da minha visão, eu me virei para Oak.
– Você pode nos levar para qualquer lugar naquele mundo?
– A Rainha Sgiach não gosta de intrusos na sua ilha, e com razão. Então vocês não teriam uma recepção agradável por lá – Oak disse.
– Ah, não. Eu não preciso ir para Skye. Quero ir para um lugar mais perto daqui. É uma fazenda de lavandas, e a proprietária é...
– Oh, eu conheço esse lugar do qual você fala. A mulher que cuida da terra é deliciosa – Oak sorriu, mostrando muitos dentes brancos e afiados demais.
Eu sorri de qualquer jeito, sem me intimidar.
– Deliciosa – eu repeti. Olhei para Aphrodite. – Diga adeus a ela por mim, ok? Fale para ela não se preocupar – fiz uma pausa e continuei –, e conte a ela que o espírito a chamou de deliciosa. Ela vai adorar ouvir isso.
– Talvez ela se preocupe menos quando souber que você foi até ela primeiro – Aphrodite disse.
– “Talvez ela se preocupe” é melhor do que “com certeza ela vai se preocupar”. Cuide-se. Você é a Grande Sacerdotisa até eu voltar.
Eu vi a surpresa nos olhos de Aphrodite antes de ela abaixar a cabeça e colocar o punho sobre o coração outra vez.
– Vai ser como diz, Grande Sacerdotisa – ela falou solenemente.
Os meus olhos capturaram um movimento no círculo, e vi que cada um dos meus amigos havia imitado Aphrodite. Estavam todos se curvando para mim, com o punho sobre o coração.
– Obrigada – eu agradeci a eles. – Eu volto logo. – O meu olhar encontrou Damien. – Diga a Stark que eu o amo.
– Pode contar comigo, Grande Sacerdotisa.
– Stevie Rae, não apague a sua vela. Aphrodite, feche o círculo depois que nós partirmos.
– Vou fechar.
– Estamos prontos – eu disse para Oak.
– Então deem as mãos, vocês três, e me sigam!
Stevie Rae colocou a sua vela verde no chão. Ela estendeu uma mão para mim – a outra já estava entrelaçada à de Rephaim. Eu a peguei e, quando nos viramos para seguir com o espírito em direção à arvore, que havia começado a brilhar, um grito ecoou atrás de mim.
– Zoey Redbird! Tome cuidado. Fique firme. E volte para mim!
Virei rapidamente a cabeça por sobre o meu ombro e vi Stark. Ele estava parado do lado de fora do círculo incandescente. Os nossos olhos se encontraram.
– Eu te amo, meu Guerreiro, meu Guardião. Sempre vou te amar.
– E eu te amo, minha Rainha, minha Grande sacerdotisa, meu coração. Lembre-se, nós estamos ligados por sangue e por amor... sempre o amor.
Então o brilho se expandiu e eu segui o puxão na minha mão. Entrei pelo meio da abertura resplandecente e o mundo ao meu redor explodiu em luz.
12 Adaga cerimonial. (N.T.)
23
Outro Kevin
– Que tal isto aqui? – Kevin abriu a porta do motorista do Hummer e ergueu quatro sacolas grandes cheias de roupas embrulhadas em papel de seda.
Aphrodite deu uma olhada para as sacolas.
– Nada mal para um iniciante. Entre.
Kevin jogou as sacolas no banco traseiro e sentou atrás da direção.
– Para onde vamos agora?
– Para casa. – Aphrodite fez uma cena segurando o nariz quando ele entrou no veículo.
– Casa?
– A nossa casa, a Morada da Noite. Afe. Prometa que esse cheiro sai com água.
– Sim, eu prometo. Quer ver a gosma de sangue morto que eu tenho que passar em mim para ficar com esse cheiro?
– Não faço nenhuma questão.
– Então, vou te deixar lá?
– Não. Você vem comigo.
– Para onde?
– Ah, que merda... para casa.
– Mas e os túneis?
– Você quer ir para os túneis?
– Não. De jeito nenhum. Eles são péssimos. – Ele deu a partida no Hummer. – Mas o que mais eu posso fazer?
– Bom, eu andei pensando sobre isso. O seu general já era, certo?
– Sim, já disse. Ele morreu no mundo de Zoey.
– E também todo o seu esquadrão, grupo, batalhão... ou qualquer que seja o nome, certo?
– Quase certo. Três ainda estão vivos, mas eles ficaram no mundo de Zo.
– Então, você não está ligado a nenhum general, exceto Stark.
– Acho que dá pra dizer que sim.
– E ele designou você para ser meu protetor.
– Acho que dá pra dizer isso também.
– Ótimo. Então agora você pode se considerar o meu soldado pessoal.
– O que significa isso exatamente? – ele perguntou.
– Bom, pra começar, significa que você não vai voltar para os túneis e que precisa se vestir melhor. Você acha que lavanda iria ajudar a encobrir esse fedor horroroso? – ela questionou.
– Não sei. Provavelmente ajudaria, e eu posso espalhar menos gosma de sangue em mim pra ficar melhor. Você está dizendo que eu vou ficar na Morada da Noite?
– Estou.
– Espere aí, eu não vou ter que viver nos túneis?
– Não enquanto você for o meu soldado pessoal.
Kevin sentiu que o seu coração ia explodir de gratidão.
– Aphrodite, obrigado! Muito obrigado!
Ela fez um gesto dispensando o agradecimento dele.
– O que eu posso dizer? Adoro conceder favores aos pobres. Além disso, eu quero saber mais sobre esse mundo diferente e sobre a sua irmã, e não posso fazer isso se você estiver enfiado no meio de uma horda de monstros fedorentos. – Eles haviam terminado o curto trajeto da Utica Square até a Morada da Noite, e Aphrodite apontou para uma vaga de estacionamento na frente, bem-iluminada. – Pare ali.
– Ok, mas sem chance de a gente conseguir entrar escondido no campus se estacionarmos aqui.
– Nós não vamos entrar escondidos – ela afirmou.
– Mas todo mundo vai saber que eu estou aqui.
– Todo mundo definitivamente vai saber, e eles vão se acostumar a ver você por perto. Isso vai ajudar você e a Resistência, não?
– Sim! Com certeza.
– Ótimo. Talvez isso ajude também a compensar um pouco do mal que eu fiz contando as minhas visões para Neferet.
– É um começo, certamente – Kevin disse. Ele estacionou e olhou para ela. – E agora?
– Agora vem a parte fácil. Eu vou cuidar de tudo. Você só precisa me seguir. Literalmente. Ande atrás de mim e preste atenção em ficar vários passos para trás. Pareça subserviente e não muito inteligente. E quando a gente for parado, e eu garanto que vamos ser, eu explico. Você nem levanta os olhos. Finja que é um vampiro vermelho sem noção, mas não selvagem demais. Você consegue fazer isso?
– Eu tenho feito isso há quase um ano – ele disse.
– Então você já tem bastante prática. – Aphrodite ficou sentada olhando para ele e, como ele apenas a encarou de volta, ela revirou os olhos. – Kev, você deveria estar pegando todas as “minhas” sacolas. – Ela fez aspas com os dedos. – E depois abrir a porta para mim. Lembre-se, você é o meu soldado pessoal. Eu nunca devo tocar em uma porta, carregar qualquer coisa, abrir uma garrafa de champanhe e blá-blá-blá quando você estiver por perto.
– Ah, desculpe. Ok, entendi! – Ele saiu do Hummer e pegou as quatro sacolas, balançando-as desajeitadamente enquanto dava a volta no carro rapidamente para abrir a porta para ela.
Ela colocou suas pernas longas para fora e então franziu o cenho para as suas botas Jimmy Choo na altura do joelho.
– Merda! Esqueci que tinha quebrado o salto. Bom, vou usar isso para ajudar na minha atuação. Aqui. – Ela o surpreendeu ao estender a mão, que ele pegou, ajudando-a a descer do Hummer. Então ela limpou a mão no seu jeans skinny. – Você vai ter que melhorar muito na sua higiene pessoal.
– Na verdade, eu sou um cara limpo e arrumado. Eu tinha que fingir que não me importava com a lama, sujeira, sangue seco e outras coisas nojentas quando eu morava nos túneis.
– Você não mora mais nos túneis. É bom tomar um banho – ela resmungou ao começar a mancar na direção da calçada curva que atravessava o pequeno pátio lateral, onde a água de uma fonte jorrava musicalmente, onde finalmente se abria para o jardim principal da escola.
– Pode deixar – ele disse, apressando o passo para alcançá-la.
Ela deu um olhar irritado para ele.
– Você deve ficar atrás de mim, parecendo subserviente.
– Ah, certo. Esqueci. Não vai acontecer de novo, Profetisa. – Ele fez várias reverências e se afastou para trás.
– Isso foi bom. Pode continuar com essa coisa de se curvar.
– Você quer que eu a chame de Senhora ou Profetisa está bom?
– Não seja ridículo. Profetisa está bom. Senhora parece velha demais. Agora cale a boca e pareça patético.
Com Kevin a seguindo, Aphrodite atravessou o pátio mancando e entrou nos jardins da escola. Acabara de passar a hora do jantar. Os novatos estavam espalhados pelo terreno da escola. Os lampiões a gás de cobre estilo art déco projetavam sombras dançantes pelas calçadas largas e pelo gramado do inverno. Gatos corriam por ali, alguns caçando ratos, outros seguindo os seus novatos ou vampiros escolhidos. Estudantes acendiam velas aos pés da estátua de Nyx e rezavam para a Deusa. Um grupo de novatas estava tendo uma aula de esgrima com um vampiro que Kevin não reconheceu.
Tudo parecia normal, mas a diferença entre essa Morada da Noite altamente controlada e segregada e a escola de Zoey era gritante. Todo mundo aqui parecia subjugado, preocupado, assustado ou desesperado, e Kevin sentiu uma pontada no coração de saudade de um lugar que ele mal conheceu, mas que parecia tão perfeito.
Aphrodite virou à direita, indo na direção do grupo de edifícios parecidos com castelos que compunham os aposentos dos professores. Ela seguiu a curva suave da calçada, aproximando-se de duas novatas que haviam estendido tapetes de yoga no gramado e estavam no meio de uma graciosa sequência de exercícios.
Quando Aphrodite chegou mais perto das novatas, elas viraram a cabeça na direção dela. Ambas reconheceram Aphrodite – isso ficou bem claro – e juntaram as suas cabeças enquanto a encaravam.
Então elas viram Kevin e os seus olhos se arregalaram. Uma delas era uma garota negra incrivelmente linda que ele reconheceu na hora como Shaunee, e a outra era uma loira sexy que estava usando uma legging nude e um top minúsculo vermelho brilhante – ambos não deixavam nada para a imaginação. Caramba! Essa deve ser Erin, a novata de quem a Zoey me falou. A água para o fogo de Shaunee! As duas ficaram olhando fixamente para ele enquanto Aphrodite passava por elas, sussurrando e dando risadinhas. Quando Kevin se aproximou mais, ouviu claramente o que elas estavam dizendo – o que significava que Aphrodite também ouviu.
– Ei, Gêmea, olhe só – Erin falou.
– O que foi, Gêmea?
– O novo amante de Aphrodite! – a loira concluiu, apontando para Kevin. Então as duas caíram na gargalhada, maldosas.
Aphrodite parou. Ela se virou, mal olhando para Kevin quando passou mancando por ele.
– Só um minuto.
Kevin quis gritar para ela “Não! Não as mate com a sua visão de laser! Eu posso precisar delas depois para um círculo!”, mas ele teve que ficar de boca fechada. Ele tinha que fazer o seu papel, então abaixou a cabeça e discretamente assistiu enquanto Aphrodite caminhou direto até as duas novatas, que automaticamente deram alguns passos desajeitados para trás.
– Falem isso na minha cara e não para as minhas costas maravilhosas – a voz da Profetisa estava gélida.
– Ei, a gente não quis dizer nada – Shaunee disse.
– É, a gente só estava brincando – Erin falou.
– Vocês são as duas que se chamam de Gêmeas, não são? – Aphrodite questionou.
– Sim – elas responderam juntas.
– Eu vou chamá-las de Sócias de Cérebro. E, já que vocês compartilham só um pequeno cérebro entre vocês, vou deixar essa história pra lá. Mas, da próxima vez que vocês insultarem a mim ou ao meu soldado pessoal e servo, vou oferecer vocês duas para fazerem o serviço de jantar nos túneis.
– Serviço de jantar? – Erin perguntou.
– O que significa isso? – Shaunee completou.
Aphrodite deu um passo para a frente, entrando no espaço pessoal delas.
– Significa que vocês vão dar um tempo para os alimentadores humanos e oferecer o seu próprio sangue para os oficiais vermelhos. Em pessoa. Sangue dos seus lindos pescocinhos. Se bem que eu ouvi dizer que a veia que passa na coxa também é um lugar muito escolhido para alimentação. – As duas novatas pareceram horrorizadas, então Aphrodite fez um gesto para aliviar a preocupação delas. – Ah, não sejam tão dramáticas. Eles não vão ter permissão para drenar vocês completamente. Só quase completamente.
– Ne-neferet não deixaria isso acontecer! – Erin gaguejou.
– Quer apostar o seu sangue nisso, Coisa Um?
Erin rapidamente balançou a cabeça.
– E você, Coisa Dois?
– Não, obrigada.
– “Não, obrigada, Profetisa”, é o que vocês, Sócias de Cérebro, devem dizer.
– Não, obrigada, Profetisa – elas repetiram juntas, nervosas.
– Melhor. Bem melhor. Agora, acho bom vocês nunca mais falarem comigo de novo.
– Ei, a gente não quis dizer nada. Mesmo – Shaunee disse.
– Papo furado – Aphrodite rebateu. – Menininhas covardes como vocês sempre dão sorrisinhos falsos e falam que não queriam dizer nada com isso quando são pegas sendo escrotas. Cresçam. Vocês não estão mais no ensino médio. Isto aqui é vida real, não a internet, onde você pode dizer merdas estúpidas e odiosas sem nenhuma consequência. E, que merda, façam um favor ao mundo e saiam logo do armário como lésbicas, já estão grandes pra palhaçada.
Erin enrubesceu e Shaunee ficou de queixo caído, em choque.
– Hum. Deixa pra lá. Parece que só uma de vocês cola com isso. Ou, quer dizer, só uma de vocês cola alguma coisa. – Aphrodite riu alegremente, atirando o longo cabelo para trás, e se virou para sair andando, mesmo com um salto quebrado. Quando passou por Kevin, falou alto o bastante para as Gêmeas escutarem. – Venha, Fedido. Termine de arrastar minhas coisas pra cima. E depois você precisa ir correndo buscar mais champanhe pra mim. Tragicamente, acho que estou sem, e lidar com as Sócias de Cérebro me deixou com sede.
– Sim, Profetisa. Claro, Profetisa! – Kevin abaixou a cabeça e esperou que ela ficasse alguns metros à frente dele antes de começar a andar de novo, pensando “Parece que vou ter que encontrar outro fogo e água... Ah, que inferno...”.
E, enquanto ele a seguia para dentro do prédio dos professores, ouviu um grasnido acima da sua cabeça e levantou os olhos a tempo de ver um corvo gigante voando em círculos. Ele abriu a pesada porta de madeira e fez uma pausa. Como esperado, o corvo aterrissou na calçada, inclinando a cabeça de lado ao olhar para ele.
– Garoto Redbird! – ele grasnou.
– Venha cá! Rápido! – Kevin gesticulou para o pássaro, que deu alguns pulinhos e entrou no pequeno saguão com ele.
– Kevin, por que diabos você está demorando tanto? – Aphrodite gritou lá do alto da escada caracol.
– Desculpe, chego aí em um instante! – Ele abriu o tubo do corvo e pegou o pequeno lápis e o papel, rabiscando apressadamente: ESTOU COM APHRODITE NA MORADA DA NOITE. FICAREI AQUI DURANTE O DIA. MAIS INFORMAÇÕES EM BREVE. Então ele enfiou o papel e o lápis de volta no tubo e abriu a porta para o corvo, que decolou rumo ao céu.
– Quer que eu vá buscar o champanhe pra você agora? – Kevin estava parado desconfortavelmente ao lado da porta fechada dos aposentos suntuosos de Aphrodite.
– Claro que não. Eu tenho um monte de champanhe. Não sou uma caipira. – Ela indicou com a cabeça a pequena cozinha ao lado da sala de estar requintada, decorada com um sofá de veludo cor de ametista e um par de poltronas bordadas com fio prateado representando uma lua tríplice. – Bom. Não fique aí parado. Entre no chuveiro e tire esse fedor nojento. Vista o pijama novo. Depois disso a gente conversa.
– Mas. Hum. Vai amanhecer em... – ele fez uma pausa, conectando-se ao seu relógio interno. – Menos de duas horas. Eu preciso ir para algum lugar seguro para dormir.
Ela deu um suspiro.
– Eu disse que você é meu soldado agora. Você vai ficar aqui.
– Aqui, aqui? – Como se os seus olhos tivessem vida própria, eles se voltaram para a enorme cama de dossel claramente visível através das portas de vidro abertas.
– Sério? Você acha que vai dormir na minha cama? – Aphrodite revirou os olhos.
– Não! De jeito nenhum. Jamais suporia isso. Mas onde eu vou dormir?
– Eu tenho um closet super luxuoso. Não tem nenhuma janela lá dentro. Ou você pode dormir na minha banheira. Pode escolher qual você prefere.
– Que tal o sofá?
– Tem janelas aqui.
O olhar dele se voltou para elas.
– Essas cortinas de veludo roxo não são blackout?
Ela suspirou.
– Está bem. Ok. Você pode dormir no sofá se você realmente não estiver fedido e se não roncar. Não suporto gente que ronca.
– Prometo que eu não estarei fedido e acho que não ronco, mas eu nunca dormi com ninguém, então não tenho como prometer isso.
Os olhos azuis cor de safira de Aphrodite encontraram os dele.
– Então você é virgem.
As bochechas de Kevin arderam de calor.
– Bom, sim. Sou.
– Hum. Interessante. Entre no chuveiro.
Ela o empurrou na direção de uma porta fechada, através da qual ele felizmente escapou e se viu em um banheiro de mármore tão branco e limpo que não queria tocar em nada.
– Você quer algo para comer? Eu vou ligar para a cozinha – Aphrodite gritou do outro lado da porta.
– Hum, sim. Eu comeria qualquer coisa. E, ahn, você poderia pedir uma garrafa de...
– Sangue. Já imaginava. Ah, e coloque essas roupas horríveis que você está usando em um saco de lavanderia embaixo da pia. Feche bem e lembre de jogar isso fora amanhã. Nojento.
– Sim, ok. Sem problemas. – Kevin não sabia mais o que dizer, então tirou a roupa. Em seguida, encontrou facilmente um saco vazio e puxou a cordinha dele com força para fechar bem.
Então ele entrou no paraíso.
O chuveiro dela ficava dentro de um box de vidro circular e era daquele tipo panelão gigante e redondo que fazia Kevin se sentir como se estivesse debaixo de uma tempestade fantástica. Também havia duchas que saíam das paredes e, quando ele apertou um botão, fluxos de água quente jorraram sobre ele, atingindo todo o seu corpo. Aphrodite, claro, tinha um sabonete com textura de seda e cheiro de amêndoas e mel.
Kevin queria ficar lá por horas, mas quase podia sentir a impaciência de Aphrodite, então se esforçou para se apressar, ensaboando-se várias vezes, até que o último rastro de gosma de sangue fedorenta tivesse saído da sua pele.
Ele se enxugou com uma toalha violeta tão grande e felpuda que podia usá-la como cobertor. Então ele vestiu sua calça de moletom nova e uma camiseta e colocou a cabeça úmida para fora da porta de modo hesitante.
Na mesa de vidro na frente do sofá, Aphrodite havia colocado uma bandeja cheia que continha um sanduíche grande, batata chips e um copo alto de sangue quente e vermelho que deixou sua boca salivando.
– Pode vir. Estou sozinha. Nunca deixo nenhum dos serviçais entrar aqui enquanto estou no quarto. Eles limpam e fazem suas coisas só quando estou fora. E eu faço com que eles deixem as minhas entregas de comida do lado de fora da porta em uma mesinha de serviço de prata. – Ela encolheu os ombros. – Sim, eu sei. Eu gosto da opulência. Não estou me desculpando por isso.
Usando meias, Kevin andou suavemente até a sala de estar e encontrou Aphrodite com uma legging confortável e uma camiseta branca com a frase FEMINISTA SELVAGEM resplandecendo sobre o seu peito. Ela estava encolhida em uma das poltronas bordadas de veludo, bebendo champanhe e beliscando uma torradinha com pequenas bolinhas pretas em cima.
Ele farejou o ar na direção dela.
– Isso tem cheiro de peixe. O que é?
Ela deu um olhar resignado para ele.
– Caviar, seu plebeu. A sua criação deixa muito a desejar.
– Concordo. – Kevin sentou e bebeu todo o sangue de uma vez. Ele abaixou o copo e viu Aphrodite o encarando. – Eu estava com sede – ele disse pateticamente.
– Diga a verdade. Você está com a sua fome sob controle?
– Completamente. Não tem diferença entre a minha fome agora e a necessidade de um vampiro azul. Eu só estava realmente com sede porque fui ferido umas noites atrás e ainda estou me recuperando.
Isso sem mencionar que o meu nível de estresse foi além do esperado, ele pensou.
– Você me dá a sua palavra?
– Sim, Profetisa. Dou a minha palavra de que a minha humanidade voltou completamente e que a minha fome está sob controle.
Ela o analisou por vários minutos antes de voltar para o seu caviar e champanhe.
– Você precisa de mais sangue?
– Não, mas eu realmente preciso desta comida. Obrigado.
– Sem problemas. Apesar de que eu deixei o pessoal da cozinha bastante confuso. Não costumo comer muitos sanduíches.
– Você não parece comer muito de nada – Kevin disse ao dar uma grande mordida.
Ela franziu o cenho.
– Estou comendo agora.
Ele bufou.
– Preocupe-se só com você. Eu estou bem. Estou sempre bem – ela falou.
– Não acredito em você – ele murmurou.
– Eu escutei isso. Ok, em primeiro lugar, estou feliz que você não está mais fedendo.
– Eu também. Odeio o cheiro daquela coisa. E o seu chuveiro é incrível.
– Sim, eu sei. Segundo, quero que você me conte o que aconteceu com a Aphrodite daquele mundo da sua irmã quando ela sacrificou parte de sua humanidade para salvar os novatos vermelhos de lá. Eu sei que ela não morreu, mas o que aconteceu com ela, exatamente?
A pergunta o surpreendeu, mas, depois de um instante de reflexão, Kevin percebeu que não deveria ter se sentido assim. Ele também tinha ficado curioso sobre o que a outra versão dele fazia no mundo de Zo, e aquela versão dele não era uma Profetisa nem uma ferramenta de Nyx. Então, em meio a mordidas no sanduíche, ele contou para Aphrodite o que Zoey tinha explicado para ele, concluindo assim:
– Quando Stevie Rae e o resto dos vampiros vermelhos de lá recuperaram a sua humanidade, você perdeu a sua Marca, mas não o seu dom profético. Até os vampiros e novatos vermelhos daqui serem atraídos para lá junto comigo, acho que ninguém sabia exatamente o que você era.
Aphrodite pareceu perplexa.
– Mas por quê? Por que eu iria me sacrificar espontaneamente assim? Eu poderia ter morrido ou perdido tudo... todos os meus dons. Não faz sentido nenhum. A minha versão de lá é uma idiota.
– Aquela idiota salvou uma raça inteira de vampiros.
– Por quê?
– Por amor, claro. A outra você é cercada de pessoas que ela ama. Ela até age como uma malvada insensível às vezes, mas apenas parte disso é verdade, o que é legal porque acontece que eu gosto de meninas malvadas.
Ela revirou os olhos.
– E você disse que lá eu sou uma vampira estranha híbrida azul e vermelha, além de uma Profetisa?
– Sim.
– Como isso aconteceu?
– Não sei ao certo. Tinha muita coisa rolando por lá e eu não tive muito tempo para fazer perguntas. O que eu sei é que Nyx concedeu a você a capacidade de dar às pessoas, sejam humanos ou vampiros, uma segunda chance depois de eles terem feito tudo errado, tipo, feito tudo tragicamente errado de verdade.
Aphrodite bufou.
– Isso provavelmente porque eu entendo muito sobre como fazer tudo tragicamente errado.
Ele sorriu.
– Pode ser. A Marca daquela Aphrodite é igual à sua, só que maior, e metade dela é vermelha. Nyx disse que, a cada vez que você usar o seu dom e der uma segunda chance a alguém, parte da sua Marca vai desaparecer até que ela suma totalmente, e então você vai ser humana e viver o tempo de vida normal dos humanos.
– Isso parece bizarro. Não sei se eu ia gostar disso.
– Tenho certeza de que a Aphrodite de lá se sentiu assim também quando isso aconteceu, mas depois de ver a diferença que ela fez em mim, no Outro Jack e nos outros vampiros... tenho cem por cento de certeza de que ela decidiu que estava grata por esse dom.
– Então aquela Aphrodite é boa. De verdade – ela disse.
– Sim, completamente – ele concordou.
– Você parece bem apaixonado por aquela Aphrodite.
Kevin encontrou o olhar dela.
– Eu diria que Aphrodite é espetacular... em qualquer mundo.
Aphrodite bufou e então ficou em silêncio por um tempo, bebendo champanhe e beliscando caviar com torradas. Kevin terminou o seu sanduíche e estava devorando a montanha de batatas quando ela falou de novo.
– Deve ser muito diferente por lá. – Ela tinha acendido a lareira e estava olhando para o fogo como se pudesse enxergar aquele outro mundo dentro das labaredas.
– É sim. E também não é. Aquele mundo parece diferente porque é muito menos assustador. Neferet foi derrotada. Zo e os seus amigos comandam o Novo Conselho Supremo dos Vampiros da América do Norte, o que significa que eles são responsáveis pelas Moradas da Noite nos Estados Unidos e que eles iniciaram esses programas incríveis onde humanos podem ter aulas junto com novatos.
Ela olhou para Kevin como se ele estivesse completamente louco.
– Adolescentes humanos. Na Morada da Noite de Tulsa. Tendo aulas. – Ela sacudiu a cabeça. – É difícil imaginar.
– Não está acontecendo só em Tulsa. Humanos e vampiros estão estudando juntos em um monte de escolas. É bem legal.
Aphrodite voltou a ficar em silêncio. Kevin já ia pedir um travesseiro e um cobertor quando ela falou de novo.
– Nós estamos todos tão isolados aqui, mas o mundo da sua irmã não parece nem um pouco solitário.
– Não é assim mesmo, mas nem todos nós estamos isolados desse lado também. Dragon, Anastasia, minha avó não estão. Na verdade, nenhum dos combatentes da Resistência está. Eles são amigos, mas mais do que isso.
– Gente de coração mole – ela disse.
– Amigos com uma causa – ele a corrigiu. Então ele encontrou o olhar dela de novo. – Você não precisa ficar sozinha. Nem mesmo aqui. Você não está sozinha no mundo de Zo.
– Este aqui não é o mundo da sua irmã.
– Não, não é. É o meu mundo. E eu vou mudar as coisas.
– Você?
– Eu.
– Sozinho?
– Bom, não. – Ele sorriu. – Eu não estou sozinho. Você está me ajudando.
– Eu acho que você é um idealista – ela falou.
– Provavelmente.
– Idealistas sempre acabam mortos.
– Às vezes, mas, enquanto vivem, eles vivem de forma grandiosa. Junte-se a mim. Junte-se à Resistência. Você também pode, você meio que já fez isso. Você salvou Dragon e todas aquelas pessoas hoje.
– Mas fui eu quem os colocou em perigo – ela o lembrou.
– Você quis fazer isso? Você queria ser a causa de o Exército Vermelho matá-los?
– Não! Eu odeio toda essa matança. E eu detesto que Neferet me use como uma arma.
– Então me ajude a descobrir um jeito de mudar as coisas para melhor neste mundo.
Em vez de me responder, ela se levantou e desapareceu dentro do quarto, voltando logo depois com o braço cheio de cobertores e um travesseiro macio de penas de ganso, os quais ela largou ao lado dele no sofá.
– Ei, obrigado. Isso é muito gentil da sua parte. Eu vou lavar a louça antes de dormir – Kevin disse.
– Não seja ridículo. Você é meu soldado, não minha camareira. Há um carrinho do lado de fora da porta. Coloque os pratos sujos lá fora. Os serviçais vão cuidar deles. – Então ela hesitou e estendeu a mão por um momento, como se fosse tocar o cabelo dele. – Antes de você dormir, talvez queira secar melhor o cabelo. Durma com o cabelo molhado e ele vai ficar...
– Com lambida de vaca – ele terminou por ela. – Eu sei, eu sei. Zo costumava dizer isso pra mim toda hora.
– Sim, bom, o seu cabelo está perturbadoramente desgrenhado, bagunçado e até meio... – ela perdeu as palavras e sacudiu a cabeça, como se quisesse afastar o seu último pensamento.
Ele não conseguiu evitar. Ele olhou nos olhos maravilhosos dela e disse:
– Você ia dizer meio sexy?
– Já deve estar quase amanhecendo, já que você está delirando.
– Aquela Aphrodite gosta de mim, você sabe – ele sorriu provocativamente.
– Aquela Aphrodite tem problemas. Muitos problemas.
– Mas um ótimo gosto – ele disse. – Ela teria feito o que você fez hoje. Ela iria garantir que Dragon e o resto daquelas pessoas escapasse.
– Boa noite, Kevin. Amanhã vamos pensar em uma solução de quarto mais permanente para você – foi tudo o que ela disse antes de desaparecer dentro do seu quarto.
– Boa noite, Aphrodite – ele falou para a porta fechada.
Kevin colocou os pratos do lado de fora da porta no carrinho que estava ali, apagou a lareira e fez a sua cama no sofá. Então, exausto e se sentindo seguro pela primeira vez neste mundo desde que havia sido Marcado, Kevin dormiu.
– Kevin, anda! Você precisa acordar!
Kevin saiu das profundezas de um belo sonho que o tinha levado de volta ao mundo de Zo, em que estava rindo com ela enquanto segurava a mão de Aphrodite e ela aceitava o pedido dele para ser sua companheira.
– Ahn? O quê? Você aceita? – ele disse, sonolento, procurando a mão de Aphrodite.
Ela de fato deixou que ele pegasse sua mão e então o puxou, fazendo com que ele se sentasse.
– Acorda!
Kevin piscou várias vezes e esfregou a mão no rosto.
– Estou acordado. Mais ou menos. O que foi?
– Tem um pássaro negro enorme dando bicadas na minha janela. Eu ia jogar alguma coisa nele, mas ele disse “Garoto Redbird”. Hum, posso presumir que é você?
– Sim! Ele ainda está lá? Deixe ele entrar! – Kevin tinha tirado a camiseta para dormir, então ele a vestiu apressadamente e correu atrás de Aphrodite na direção do quarto dela.
A mão espalmada de Aphrodite o deteve.
– Fique aí. Minhas cortinas estão totalmente abertas e o sol já está alto.
Kevin só teve um instante para andar de um lado para o outro, e então o grande corvo voou para dentro da sala de estar, aterrissando em cima da mesa de centro de vidro.
– Garoto Redbird!
– Você me encontrou! Bom trabalho. Ok, ok, vou ler isso.
Aphrodite observou o que estava acontecendo por cima do ombro de Kevin.
– O que é aquela coisa em volta do pescoço dele?
– Tem bilhetes dentro. – Kevin puxou o cordão de couro sobre a cabeça do pássaro e abriu o pequeno tubo, tirando o papel lá de dentro.
– Aiminhadeusa! Foi assim que você avisou a Resistência sobre os fardos de feno.
– Sim.
– O que diz o bilhete?
Ele se virou e olhou para ela.
– É Zoey! Ela está aqui!
C O N T I N U A
15
Outra Aphrodite
Aphrodite aumentou o seu nível de arrogância como escudo contra o seu nervosismo. Ela não precisou dizer nada, simplesmente alterou a sua expressão de perversidade de repousada para ativa, e então os soldados, os Guerreiros e até as Sacerdotisas começaram a abrir caminho para ela passar como se tivesse uma doença contagiosa.
Eu tenho uma coisa pior – o desprezo de Neferet. E todos sabem disso.
Aphrodite tinha decidido rapidamente que a sua performance iria se desenrolar melhor no meio do auditório cheio. Então, em vez de ir para o palco para servir como um atraente cenário para qualquer drama que Neferet tinha preparado para os seus subordinados, ou de se juntar às outras Sacerdotisas amontoadas sentadas no local reservado a elas no fundo, no seu jeito típico de cordeirinhos, Aphrodite foi até o centro do auditório, encontrou o assento que ela queria na fileira da frente perto do corredor e fuzilou com os olhos o ocupante da cadeira, que apressadamente se retirou dali.
Ela não agradeceu a ele, apenas se sentou, e então ficou se preocupando. Aphrodite nunca tinha feito nada como aquilo que estava planejando. Ela não iria realmente fazer – não até Stark, aquele babaca arrogante, fazer aquela piadinha sobre ela se juntar ao Exército Vermelho. Então, de verdade, o que ela estava prestes a fazer não era exatamente culpa dela. Era culpa de Neferet. E, provavelmente, de Stark também. Mas definitivamente, definitivamente, não era culpa de Aphrodite.
Ela nunca teve a intenção de contar o resto da sua visão para Neferet. Aphrodite não tinha contado todos os detalhes de nenhuma de suas visões para Neferet desde que o Exército Vermelho havia massacrado Lenobia e Travis, e também os cavalos. Aphrodite odiava pensar nos cavalos morrendo. Ouvir os seus gritos em seus pesadelos já era ruim o bastante.
Culpa minha. Aquilo foi culpa minha. Eu deveria saber! Ela juntou as mãos com força sobre o colo e se empertigou na cadeira. Qualquer um que olhasse para ela – e um monte de gente estava sempre olhando para ela – veria apenas a linda, jovem e indiferente Profetisa parecendo confiante e calma. Ninguém veria suas mãos tremendo. Ninguém veria sua alma estremecendo. Ninguém veria as suas dúvidas e medos. Essa era uma coisa positiva que a louca da sua mãe tinha ensinado a ela – mostrar apenas um rosto em público, e esse rosto deveria ser perfeito e estar sob controle o tempo todo, independentemente de ela realmente estar se sentindo perfeita ou sob controle.
Aphrodite ficou sentada imóvel, respirando devagar e em um ritmo estável, enquanto se preparava para o que estava por vir, mas, em meio à sua respiração lenta, ela sentiu uma brisa de morte e podridão. Incomodada com aquele cheiro nojento, ela levantou o pescoço e olhou em volta, farejando discretamente, e, é claro, sentado duas fileiras atrás dela, em um assento do corredor como o dela, estava aquele jovem vampiro vermelho que Stark estava pajeando. Aphrodite lançou um olhar de irritação para o Cara do Arco. Vampiros vermelhos não tinham permissão para ficar nos assentos da frente do auditório para não empestear o ambiente. Somente oficiais do Exército Vermelho podiam comparecer às reuniões de briefing, e mesmo assim eles tinham que ficar no mezanino. No entanto, ali estava Stark, todo cheio de si com seu uniforme preto de general, quebrando as regras. De novo. E deixando um garoto vampiro vermelho fedido sentar bem ali do lado dele.
Aphrodite jurou a si mesma que, quando ela caísse nas graças de Neferet de novo, ia fazer tudo que podia para minar a influência de Stark sobre a Grande Sacerdotisa. Não porque ele era particularmente perigoso, mas sim porque ele era particularmente irritante.
– Atenção! Sen...tido! – comandou Artus, o Mestre da Espada da Morada da Noite de Tulsa.
Assim que todos se levantaram, Aphrodite desviou os olhos de Artus. O Mestre da Espada de Neferet não era apenas feio, velho e cheio de cicatrizes. Havia algo de podre em relação a ele – algo que deixava Aphrodite desconfortável em um nível visceral.
E então Neferet subiu ao palco, atraindo a atenção de todos no auditório lotado. Ela estava usando um vestido de seda longo e aderente da cor de sangue fresco. Sobre o seu seio esquerdo, em um bordado prateado requintado, estava a imagem de Nyx envolvendo a lua crescente com as mãos. A única joia que ela usava era um diadema de diamantes e rubis. Um dos rubis pendia da delicada coroa como uma lágrima grossa para tocar o topo da lua crescente safira tatuada no meio de sua testa.
Aphrodite precisava reconhecer – Neferet sabia como manter a atenção de um bando de machos. Ela parecia uma deusa do cinema em carne e osso, o que era mais uma prova de uma das maiores decepções da vida de Aphrodite: nem tudo que parecia cheio de beleza e luz do lado de fora era realmente cheio de beleza e luz por dentro.
– Podem se sentar – Neferet disse depois de chegar à sua tribuna de vidro.
Aphrodite sentou e tentou não revirar os olhos. Cada instante do briefing de Neferet havia sido roteirizado por ela – desde o que ela estava vestindo até o tempo em que fez os soldados ficarem em pé, incluindo a tribuna translúcida, que dava à sua audiência uma visão desimpedida do seu corpo perfeito.
Não que Aphrodite pudesse culpá-la por isso. Neferet era bonita e, como outra pessoa muito bela, Aphrodite sabia como era fácil manipular os machos. O jeito é usar o que a gente tem!
Então Neferet começou o seu discurso, e Aphrodite não tinha mais energia para desperdiçar em nada, exceto decidir quando a sua própria performance deveria começar.
– Eu venho diante de vocês hoje com notícias muito perturbadoras. Acredito que a maré da guerra está virando.
Houve sons de concordância alegre entre a multidão de oficiais e soldados presentes.
– Vejo que os meus exércitos me entenderam mal, o que eu acho ofensivo. A maré não está virando a nosso favor! Nenhum dos meus oficiais entende isso? – A sua voz repleta de raiva ecoou pelas paredes, eletrificando o ambiente com uma carga de poder e não deixando nenhuma dúvida sobre o nível de irritação de Neferet. A sua única resposta foi o ruído de corpos ansiosos.
E então um dos seus generais se levantou. Aphrodite abafou uma bufada sarcástica. É claro que Loren Blake ia sentir a necessidade de dizer alguma coisa. Deusa, será que esse vampiro puxa-saco vai parar de falar algum dia?
– Grande Sacerdotisa, permissão para falar?
– É claro, General Blake. Estou sempre disposta a refletir sobre os sábios conselhos de meus oficiais.
O sorriso de Blake era íntimo demais para a ocasião, mas todo mundo sabia que os generais de Neferet também eram frequentemente seus amantes – e praticamente todos os machos na sala desejavam ser amantes dela. Então, tanto fazia.
– Grande Sacerdotisa, você sabe que não quero ser desrespeitoso. Sou seu servo leal, mas talvez os seus oficiais não entendam simplesmente porque o que observamos no campo de batalha é o oposto do que está dizendo. As milícias dos nossos estados vizinhos pararam de atravessar para o nosso território. Não tem havido revoltas importantes de humanos dentro da área sob nosso controle há meses. O único problema real que ainda temos é com a maldita Resistência, e nós estamos trabalhando duro para rastrear cada um dos seus membros e exterminá-los. Na verdade, se a maré virou, parece que foi a nosso favor.
– Pode se sentar, general Blake – Neferet disse com um falso sorriso afetuoso. – O que você diz pode parecer verdadeiro para alguém com a sua limitada conexão com Nyx, razão pela qual a nossa sociedade nunca será governada por homens. Eles não podem ser tão íntimos da Deusa como as suas Sacerdotisas. Principalmente a sua única e exclusiva Grande Sacerdotisa: eu. Sabe, Nyx tem me mostrado outra coisa. Os nossos estados vizinhos e os humanos que os infestam desistiram, de fato, de suas tentativas de entrar no nosso território e tomar o que é nosso. Mas eles não desistiram em paz. Eles estão tramando juntos para nos derrubar! – Neferet abriu os braços dramaticamente, fazendo com que seus seios perfeitos fossem pressionados contra a seda do seu vestido e os mamilos ficassem totalmente delineados e visíveis.
Aphrodite achou que aquela pose foi um toque excelente, já que conseguiu atrair todos os olhares masculinos da sala para os peitos dela. E ainda fez com que todas as mentes masculinas da sala ficassem confusas quando o sangue nos cérebros deles desceu correndo para o órgão que de fato os controlava.
Houve um movimento atrás dela, e Aphrodite virou a cabeça a tempo de ver Stark se levantar.
– Grande Sacerdotisa, posso ter permissão para falar?
– Merry meet, General Stark. Vou ouvir o que você tem a dizer.
– Eu também tenho sentido que algo está errado. Tenho tentado descobrir o que é, e hoje eu recebi informações de uma fonte improvável. Acredito que isso se alinha ao que Nyx tem mostrado a você.
Neferet deu aquele sorriso que Aphrodite gostava de chamar de meio meloso, meio vadia, e a Profetisa segurou outra bufada. Pelo visto, o Cara do Arco ia se dar bem esta noite.
– Eu sabia que podia contar com você, General Stark. Por favor, compartilhe as suas informações conosco.
Então Stark chocou Aphrodite e o auditório inteiro ao gesticular para que o garoto vampiro vermelho fedido que estava largado ao lado dele se levantasse.
O garoto deu um pulo de surpresa e então se levantou desajeitadamente, ficando em posição de sentido totalmente imóvel.
– General Stark, por que um jovem soldado vampiro vermelho está aqui na parte da frente do meu auditório? – A voz de Neferet soava pensativa, e ela pareceu mais curiosa do que incomodada.
– Porque ele é a minha fonte de informações, e ele não é um soldado. Ele é um tenente. Tenente Heffer, da unidade do General Dominick.
Os sussurros dos soldados ao redor fizeram Aphrodite lembrar de velhas mulheres fofoqueiras, e ela se perguntou quem diabos eram esse garoto e esse general e por que eles provocaram tamanha reação da multidão.
– General Dominick? O meu general do Exército Vermelho que está desaparecido? – Neferet perguntou.
Aphrodite piscou os olhos, surpresa. Ela não tinha ouvido falar em nenhum general desaparecido, mas raramente prestava atenção ao que estava rolando com os animais que compunham o nojento Exército Vermelho de Neferet. Eles eram todos um tédio. E fedorentos.
– Sim, Grande Sacerdotisa. O General Dominick desapareceu com um pelotão inteiro de soldados, e eles ainda não foram encontrados. Exceto este tenente, e eu acredito que ele pode saber o que aconteceu com a unidade dele. – Stark assentiu encorajando o tenente, que estava em posição de sentido tão imóvel que Aphrodite praticamente podia ver uma vara enfiada no meio do traseiro dele. – Gostaria de pedir sua permissão para que o Tenente Heffer relate as informações a você.
Os olhos cor de esmeralda de Neferet analisaram o garoto vampiro vermelho que estava parado feito pedra ao lado de Stark.
– Você disse que o nome dele é Tenente Heffer?
– Sim, Grande Sacerdotisa – Stark confirmou.
– Ele parece estranhamente familiar. General Stark, você já usou esse vampiro vermelho como informante antes?
Aphrodite teve vontade de se levantar e dizer que era mentira. Não existia qualquer possibilidade de Neferet distinguir esse vampiro vermelho ou qualquer outro. Aphrodite já tinha ouvido a Grande Sacerdotisa comentar várias vezes como o Exército Vermelho era um mal fétido e nojento, mas necessário – com o qual ela queria ter o mínimo de contato possível. Ela não reconheceria nenhum soldado nem se ele passasse por ela no corredor todos os dias durante um ano todo.
– Não, Grande Sacerdotisa, não usei, mas acredito que você deva ouvir o que ele tem a dizer.
– Hum. A familiaridade é estranha. – Neferet encolheu seus belos ombros. – Muito bem, por que não? O tenente pode falar.
Como o garoto não disse nada, Stark o incentivou.
– Prossiga. Conte à Grande Sacerdotisa aonde o seu general estava indo e o que ele disse antes de ir embora.
Aphrodite viu que o garoto engoliu em seco – uma, duas, três vezes. Quando começou a falar, ele usou frases curtas e entrecortadas em virtude do nervosismo e ficou olhando fixamente para a frente.
E, enquanto ele falava, Aphrodite arregalou os olhos de choque.
– Grande Sacerdotisa Neferet, o meu general tinha informações de que a milícia do estado do Novo México estava em movimento. Ele ouviu dizer que planejavam atravessar o Texas e entrar em Oklahoma usando o Rio Vermelho. O general estava a caminho de Elmer, em Oklahoma, para preparar uma emboscada para eles. Essa é toda a informação que eu tenho, Grande Sacerdotisa. Minha patente não era significante para eu saber do resto.
Aphrodite mal escutou a resposta satisfeita de Neferet. Ela estava ocupada demais encarando o garoto que tinha acabado de falar – o tenente vampiro vermelho cuja voz ela reconheceu como a do mesmo cara que estava no jardim de meditação na noite anterior!
Exceto que aquele garoto tinha conversado normalmente, como um vampiro de verdade, e não como uma máquina de comer vermelha e fedorenta.
E então outra coisa a pegou de surpresa.
Na noite passada, ele não estava fedendo. Eu sei que ele não estava. Sou muito sensível ao jeito que essas coisas fedem e eu teria percebido.
Alguma coisa completamente bizarra estava rolando, o que parecia um momento excelente para Aphrodite começar a sua encenação. Ela olhou de novo para o palco. Neferet ainda estava tagarelando efusivamente sobre Stark ter confirmado a sua estranha neurose. Então, quando Aphrodite se levantou com dificuldade, a Grande Sacerdotisa foi pega totalmente desprevenida e parou de falar no meio da frase.
Aphrodite entrou cambaleando no corredor. Ela colocou uma mão na testa, como se estivesse tentando evitar que a sua cabeça explodisse. A outra mão ela estendeu na direção de Neferet de modo suplicante.
– Neferet! – Aphrodite ofegou e cambaleou como se o chão estivesse ondulando sob seus pés. – Eu estou vendo... estou vendo...
Ao redor, os homens começaram a falar de modo nervoso.
– Silêncio! A minha Profetisa está tendo uma visão! – Neferet saiu de trás da tribuna e foi até a beira do palco, bem na frente de Aphrodite. – Fale, minha Profetisa! A sua Grande Sacerdotisa está aqui e vai ouvir!
Aphrodite gemeu e então conteve um grito. Segurando a cabeça com força, ela colocou toda a energia na sua voz para que ela chegasse até os cantos mais remotos do auditório.
– Estou vendo um campo. Nele, o trigo de inverno foi cortado em enormes fardos redondos. Há vampiros azuis lá. Eles estão escavando os fardos e colocando novatos, vampiros e humanos dentro deles para tirá-los de lá clandestinamente. Eles são a Resistência!
– Onde, Aphrodite, minha querida? Olhe em volta... onde você está?
– O Exército Vermelho está lá! Eles estão atacando! Eles estão nos matando! Eles estão nos comendo! – Aphrodite choramingou, soluçando.
– Sei que é difícil, mas concentre-se! Foco! Você é os olhos e os ouvidos da Deusa. Diga onde você está!
– Sapulpa! Não! Não, não, não, não! Afaste-os de nós! Eles estão nos matando! – Aphrodite cambaleou e soluçou.
A voz de Neferet cortou o choro de Aphrodite.
– Profetisa! Em nome de Nyx, concentre-se! Onde você está em Sapulpa?
– Estou vendo uma placa! Ela diz Lone Star Road! Estamos em um campo em Sapulpa ao lado da Lone Star Road, e nós estamos sendo mortos!
Então Aphrodite respirou fundo e gritou com toda a força antes de fechar os olhos e fingir um desmaio espetacular.
Outro Kevin
Kevin se mexeu por instinto. Ele se atirou para a frente, estendeu o braço e segurou Aphrodite antes que ela atingisse o chão. Ao redor dele, o auditório explodiu em comoção, mas, enquanto envolvia Aphrodite em seus braços, parecia que eles estavam suspensos em uma pequena bolha de silêncio.
Os belos olhos da Profetisa piscaram e se abriram. E então se arregalaram em choque. Ela virou a cabeça na direção de Kevin para que ninguém mais a ouvisse e sussurrou baixinho para ele.
– Era você! Na noite passada no jardim. Era você!
– Shhh, relaxe. Estou aqui – Kevin a tranquilizou.
– Afaste-se de mim! – ela sussurrou. – Hoje você está fedendo, mas com certeza não estava na noite passada. E que merda, você está puxando o meu cabelo!
O olhar dele encontrou o dela. Aphrodite não estava machucada – isso era óbvio. E ela definitivamente não estava agindo como se tivesse acabado de desmaiar. Então Kevin entendeu a verdade.
– Você não teve uma visão! – ele sussurrou.
– Tive sim! – Ela manteve a cabeça virada, quase encostada no peito dele, cuidando para que ninguém mais a ouvisse. – Só que não hoje. Quem é você para julgar? Você nem é um vampiro vermelho de verdade!
– Sou sim! Só não sou do tipo com quem você está acostumada.
– Aham, sei. Neferet sabe o que você está tramando?
Em vez de responder, Kevin disparou a mesma pergunta para ela.
– Neferet sabe o que você está tramando? Que você está escondendo visões dela?
– Prove, então. Se você acha que alguém vai acreditar mais em um vampiro vermelho do que em uma Profetisa de Nyx, você é tão burro quanto o resto da sua espécie fedorenta. – Aphrodite se virou nos braços de Kevin e gritou em pânico enquanto se debatia para se livrar dele. – Aaaaah! Não me coma! Tire suas mãos de mim! Socorro!
– Deixe ela comigo, Tenente. – Stark estava ali, empurrando Kevin para o lado e ajudando Aphrodite a se levantar.
No entanto, ela se afastou de Stark, recusando a sua ajuda e cambaleando na direção do palco e de Neferet.
– E-eu falei algo valioso, Grande Sacerdotisa? – a voz de Aphrodite ainda ecoou por todo o auditório, principalmente porque a multidão tinha calado a boca e estava olhando embasbacada para ela.
Neferet foi apressada até a beira do palco e se abaixou para pegar as mãos de Aphrodite.
– Sim! Você foi muito bem, querida! Eu sabia que Nyx me enviaria um sinal, e sou realmente abençoada por ela ter me enviado dois sinais em um só dia. – A Grande Sacerdotisa soltou uma das mãos de Aphrodite, mas continuou segurando a outra ao encarar o auditório, fazendo parecer que ela estava levantando o braço da Profetisa em uma saudação de vitória. – Nós sabemos que precisamos enviar nossos soldados para um campo em Sapulpa ao lado da Lone Star Road. – Ela dirigiu seu sorriso brilhante para Aphrodite. – Você pode dizer quando a batalha vai acontecer?
– Não, Neferet. É impossível dizer, a menos que haja um relógio na minha visão ou que eu veja a lua de relance, mas as minhas visões normalmente conseguem prever eventos que acontecem dentro de apenas alguns dias. Eu também não sei dizer exatamente qual campo na Lone Star Road é o campo específico em que a Resistência estará escondendo novatos em fardos de feno. As minhas visões são caóticas demais. Grande Sacerdotisa, sinto muito por não poder ser mais precisa – Aphrodite disse, e Kevin a viu fazer graciosamente uma reverência para Neferet, com a cabeça abaixada. Ela realmente parecia sentida e muito, muito bela.
Kevin sabia que o que ele estava assistindo era uma encenação completa – pelo menos da parte de Aphrodite. A capacidade de atuação dela é impressionante. Ela poderia ser uma estrela até maior do que Erik Night.
– Você fez o seu papel maravilhosamente. E isso é fácil de consertar. – O sorriso de Neferet abarcou o auditório repleto de soldados. – Hoje o General Stark vai levar soldados e oficiais do Exército Vermelho até Sapulpa, onde eles vão localizar a infestação da Resistência e acabar com os traidores. Minha Profetisa abençoada pela Deusa, a adorável Aphrodite, vai se juntar ao General Stark e ao Exército Vermelho nessa missão de combate. – Neferet abaixou os olhos para Aphrodite fazendo cara de santa. – Com certeza você vai reconhecer o campo certo quando vê-lo, não vai, minha querida?
Kevin viu o rosto de Aphrodite empalidecer para um branco de náusea, e ele também sentiu nojo junto com ela. Aphrodite havia encenado a sua visão para que Neferet não cumprisse a ameaça que havia feito na noite passada, a de forçá-la a se juntar ao Exército Vermelho, e mesmo assim a Grande Sacerdotisa deu um jeito de apunhalar sua Profetisa pelas costas. Aphrodite abriu e fechou a boca. Kevin podia ver que era difícil para ela responder e ele compreendeu perfeitamente – ele entendia o que se passava na cabeça dela. Se dissesse que não podia ajudar, Aphrodite iria decepcionar Neferet em público – e ninguém fazia isso sem sofrer sérias consequências. Neferet já havia decidido enviar Aphrodite para o Exército Vermelho. Ela apenas usou a visão de Aphrodite para fazer isso parecer lógico em vez de uma crueldade.
– Vou fazer o meu melhor, Neferet – Aphrodite disse sem expressão.
E eu vou fazer o meu melhor para garantir que você fique protegida, Kevin acrescentou silenciosamente.
– É claro que vai! – Neferet soltou a mão de Aphrodite e abriu amplamente os braços, projetando-os na direção do nível do mezanino e dos oficiais do Exército Vermelho reunidos ali. – Oficiais do Exército Vermelho, vocês estão satisfeitos que a minha jovem e adorável Profetisa vai se juntar a vocês?
– Sim! – a resposta deles foi mais um urro do que uma resposta.
Os olhos de todos se levantaram para contemplar, a maioria em desgosto, a horda ruidosa e fedorenta, mas Kevin manteve o olhar fixo em Aphrodite. Ela parecia completamente aterrorizada.
Como se sentisse que era observada por Kevin, os olhos de Aphrodite encontraram os dele.
Está tudo bem. Eu te protejo. Kevin pronunciou as palavras para ela só com a boca, sem emitir som.
Aphrodite se espantou levemente quando entendeu o que ele disse. Então ela revirou os olhos para ele e fixou de novo no rosto a sua bela máscara de indiferença, enquanto Neferet continuava a falar.
– Vejam, eu sabia que a minha Profetisa iria levantar o moral. Oficiais dos meus Exércitos Vermelho e Azul, vocês vão fazer o seu melhor para me servir porque, fazendo isso, vocês servem a nossa benevolente Deusa da Noite, Nyx. E agora, General Stark, por favor, reúna os seus soldados. Preparem-se. E então vão até Sapulpa e acabem com esses traidores!
– Sim, Grande Sacerdotisa! – Stark respondeu, e o auditório vibrou em concordância.
Neferet levantou uma mão, e a sala ficou em silêncio.
– E quanto ao restante dos meus generais, quero que vocês me encontrem na Sala de Conselho para discutirmos a fundo o que Stark e eu suspeitamos, e como eu pretendo que nós derrotemos essa nova onda de inimigos. Não vamos ficar sentados de braços cruzados esperando que nos queimem enquanto dormimos. Nós vamos encontrá-los e derrotá-los. Todos eles. Não hoje. Não amanhã. Mas eu prometo a vocês que, quando nós lutarmos contra essa nova onda de inimigos, será com mais poder do que qualquer exército de vampiros já exerceu na história. Seremos vitoriosos!
O auditório comemorou ruidosamente, e Kevin achou que iria vomitar. Era mentira! Tudo que ele tinha dito sobre o Novo México e a sua milícia era mentira! Ele só queria fazer o exército desviar a sua atenção do quartel-general da Resistência, mas mesmo assim eles estavam indo para Sapulpa e para os campos logo abaixo da sua montanha.
E o poder do qual Neferet estava falando – Kevin sabia o que era. Ela ia munir os seus vampiros com armamentos humanos.
Neferet tinha que ser impedida.
Neferet levantou a mão graciosamente, e a sala ficou em silêncio.
– Tenho outro anúncio que sei que vai deixar meus oficiais muito entusiasmados. No próximo final de semana, está marcado o jogo de futebol americano entre a Universidade Estadual de Oklahoma e a Universidade de Oklahoma para o grande clássico dos Cowboys contra os Sooners. Bom, eu detesto esperar, não é? – A multidão fez barulhos de concordância. Neferet sorriu. – Sim, eu sabia que vocês entenderiam! Foi por isso que eu insisti para que o jogo acontecesse neste final de semana em Tulsa, bem aqui perto, no Estádio Skelly, da Universidade de Tulsa, no dia do Ano-Novo. Não será uma celebração incrível? A Universidade Estadual de Oklahoma e a Universidade de Oklahoma certamente acham que sim. – Ela fez uma pausa, e o seu sorriso se encheu de malícia. – Ou pelo menos eles acharam depois que fiz a eles uma oferta que não conseguiram recusar, e a Universidade de Tulsa, é claro, ficou muito satisfeita em acomodar o meu pequeno pedido deste feriado.
Mais uma vez, o auditório irrompeu em urros efusivos, mas desta vez alguns soltaram o grito de guerra “Boomer Sooner”6 e outros ficaram fazendo aquele gesto louco da mão de arminha disparando, típico dos torcedores da Universidade Estadual de Oklahoma.
Eu tinha esquecido totalmente que é quase Ano-Novo, Kevin pensou. E ele podia imaginar facilmente a “oferta que eles não conseguiram recusar”. Atletas universitários – e as líderes de torcida, a banda e os torcedores que iam junto com eles – eram protegidos da fome do Exército Vermelho desde que pudessem entreter os vampiros em geral e Neferet em particular. Ela não tinha feito uma oferta. Ela tinha feito uma ameaça mortal, e as universidades responderam do único jeito que conseguiam para proteger os seus estudantes.
– Merry meet, merry part e merry meet again,7 minhas leais Sacerdotisas, Guerreiros e soldados, e que as bênçãos de Nyx estejam com todos vocês! – Neferet encerrou o briefing sob um alvoroço de aclamação.
Kevin viu Aphrodite sair apressada até as escadas que levavam ao palco e seguir Neferet, embora a Profetisa devesse ter raciocinado melhor. Uma vez que Neferet dava uma ordem, ela sempre seguia até o final – não importavam as consequências. Todos os oficiais em ambos os exércitos sabiam que a única coisa maior do que o ego de Neferet era o seu orgulho.
– Tenente, você pode vir comigo também, já que não tem mais uma unidade.
Kevin se virou e viu o General Stark analisando-o com uma expressão indecifrável no rosto.
Ele ficou em posição de sentido imediatamente.
– Sim, senhor! É uma honra, senhor!
– Não fique aí parado só de queixo caído para Aphrodite. Siga-me.
Kevin seguiu Stark enquanto ele abria caminho para sair do auditório lotado. Quando eles chegaram ao corredor, o Tenente Dallas estava lá, esperando.
– E aí, General. Isso que você acabou de fazer aí dentro foi uma loucura do cacete, hein?
– Dallas, tente não falar por um tempo. Eu preciso pensar. E, enquanto estou pensando, reúna um pelotão de vampiros vermelhos e os seus oficiais. Vou requisitar caminhões suficientes para um comboio até Sapulpa. Diga aos oficiais que nós vamos sair às 2200 horas8 pontualmente – Stark deu uma olhada para Kevin. – Ah, e ele vai com a gente também.
– Você quer dizer que ele vai se juntar ao pelotão de vampiros vermelhos que vai partir hoje?
– Não, eu estou dizendo que ele vai com a gente. Comigo. No meu veículo.
– Pelas tetas de Nyx, General! Ele até consegue formar algumas frases, mas ainda é apenas uma máquina de comer. Tem certeza de que vai levar ele junto com a gente? Ele vai deixar o Hummer todo fedido.
Desta vez, Kevin não teve vontade de dar um soco em Dallas. Não porque ele gostasse do garoto, porque ele definitivamente não gostava, mas porque Stark havia acabado de dar a ele mais esperança do que tinha tido desde que Vovó Redbird o deixou na noite anterior.
– Tenente, você está questionando a minha ordem?
Dallas voltou atrás rapidamente.
– Claro que não, senhor. Só estava checando se ouvi direito.
– Você ouviu direito. Ah, e, aparentemente, Aphrodite vai se juntar a nós também. Então, certifique-se de pegar como nosso veículo líder aquele Hummer que tem problema de aquecimento. – Stark piscou para Dallas.
– Aaah, agora entendi! – Dallas riu. – Você quer irritar Aphrodite. Imagino que eu saiba do lado de quem ela vai sentar, certo?
– Tenente Dallas, eu pedi para você imaginar qualquer coisa? – Stark perguntou.
– Não, senhor, não pediu.
– Então siga as minhas ordens. Agora.
– Sem problemas. Como quiser, general. – Dallas deu um olhar de desdém para Kevin. – Você pode vir comigo. Só não fique contra o vento.
– Hum, perdão, General Stark, senhor – Kevin começou.
– Sim, o que é?
– Senhor, perdão, mas eu preciso me alimentar antes de partirmos – ele falou rapidamente.
– Claro que precisa. Que pé-no-saco – Dallas resmungou.
Stark olhou feio para Dallas, mas se virou para responder.
– Você tem algum tempo. Faça o que precisa fazer e depois junte-se ao comando do comboio às 2200 horas.
– Sim, senhor!
Kevin saiu apressado – seguindo na direção da sala pequena e suja que a Morada da Noite chamava de Cantina Vermelha. Na verdade, era apenas um velho depósito caindo aos pedaços que havia sido convertido em um lugar onde humanos drogados esperavam para serem utilizados como refeições. Assim que Kevin saiu do campo de visão de Stark e de Dallas, no entanto, ele mudou de direção, puxando o capuz sobre a cabeça e saindo rapidamente para fora pela porta mais próxima.
Ele não fez nenhuma pausa. Ele caminhou rápido – como se soubesse exatamente para onde estava indo. E ele sabia. Ele sabia o que precisava fazer. Debaixo do capuz, ele ergueu os olhos para o céu.
– Venha! Venha! Pássaro, onde você está? Facilite aí, pode ser? E não me obrigue a fazer isso.
Kevin continuou caminhando na direção leste pelos jardins da escola. Ele evitou as partes mais iluminadas da grande área de gramado e tentou ficar visível enquanto ia de árvore em árvore, mantendo o olhar voltado para o alto.
Quando ele chegou ao muro leste e ao alçapão escondido, misturou-se às sombras ao lado dele. O seu olhar varreu o jardim da escola. Havia vampiros e novatos visíveis, mas estavam todos bem distantes e apressados – sem dúvida, preparando-se para massacrar alegremente algumas pessoas inocentes. Ele olhou de novo para o céu. Nada. Nenhum maldito pássaro.
– Merda!
Sentindo-se pesado com um mau pressentimento, Kevin pressionou o fecho escondido no muro e então saiu furtivamente.
6 Grito de guerra do time da Universidade de Oklahoma. (N.T.)
7 Merry meet, merry part e merry meet again é uma saudação pagã que significa “feliz encontro, feliz partida e feliz reencontro”. (N.T.)
8 No horário militar, 22 horas. (N.T.)
16
Outro Kevin
Assim que estava do lado de fora do muro, Kevin procurou se acalmar.
– Ok, pense um pouco. Primeiro, confira o céu de novo. – Kevin procurou pelo céu da noite, mas, se o corvo estava em algum lugar lá em cima, era impossível vê-lo contra a escuridão. Kevin lembrou que Anastasia disse que Tatsuwa tinha uma excelente visão, então ele se afastou um pouco do muro e balançou os braços sobre a cabeça.
Nenhum sinal daquele maldito pássaro.
– Certo. Plano B. Que diabos eu ainda tenho que as criaturas possam querer? – Ele procurou dentro da bolsa quase vazia. Todo o sangue tinha acabado, mas ainda haviam sobrado dois cookies. Havia também o vidro daquela gosma de sangue nojenta. – Bom, espero que eles queiram uma dessas duas coisas. – Ele se aproximou mais do muro para se esconder nas sombras e então fez o chamado. – Espíritos do ar da Magia Antiga, eu sou Kevin Redbird e, com o poder do meu sangue e o poder que Nyx me concedeu, eu chamo vocês para mim! De novo!
Com pequenos barulhinhos de estouro, os espíritos de ar se materializaram ao redor dele.
– Garoto Redbird! Qual pagamento você traz para nós? Qual tarefa gostaria que realizássemos?
Kevin achou que estava falando com o mesmo espírito que havia aparecido quando ele fez a invocação na noite anterior, mas não tinha certeza. Ele sorriu e tentou parecer mais entusiasmado do que nervoso.
– E aí? Obrigado por virem de novo. Fico muito grato mesmo.
– Qual é a tarefa e qual é o nosso pagamento?
– Ok, bom, eu não tenho muito tempo para conversa fiada de qualquer jeito. O que eu preciso é que vocês encontrem um corvo chamado Tatsuwa. Ele pertence à Sacerdotisa vampira da montanha onde vocês vieram até mim pela primeira vez. Podem fazer isso?
“Há muito que podemos fazer
Se o pagamento formos receber.”
Kevin relaxou um pouco quando a voz do espírito começou o ritmo musical que marcava o começo de um acordo.
– Ok, bom, eu posso dar um pouco do meu sangue a vocês. Ou eu tenho mais dois cookies daqueles que vocês gostaram tanto ontem.
“Se você quer a tarefa realizar
O seu pagamento não pode nos entediar
Deve fazer todo o coração cantar!”
– Belezinha. – Ele enfiou a mão na bolsa e pegou o vidro de gosma de sangue fedida. – Que tal isto? É sangue de vampiro vermelho.
A reação do espírito foi instantânea. Ela aumentou de tamanho. Os seus olhos se arregalaram e ela mostrou os dentes, expondo presas terrivelmente afiadas.
– Isso é uma abominação, não um pagamento!
Kevin rapidamente colocou o vidro de volta na bolsa.
– Ei, ok, ok, eu entendi. Eu também acho isso nojento. Desculpe. Eu simplesmente não sei muito sobre espíritos de ar. Hum, por que você não me diz o que gostaria como pagamento?
Isso acalmou o espírito, e ela voltou a ter mais ou menos o tamanho de um beija-flor e a aparência de um cruzamento entre um inseto grande e uma mulher alada muito pequena. Os outros espíritos fizeram um círculo ao redor dela, sussurrando naquela linguagem estranha que usavam, quase parecida com a do gorjeio de pássaros. Quando terminaram de falar, o grupo inteiro se aproximou, pairando e apontando.
Kevin baixou os olhos para si mesmo, tentando descobrir o que estavam apontando.
“Nós vamos ficar com aqueles fios de ouro
e esse pagamento será duradouro.”
Confuso, Kevin olhou de novo para si mesmo.
– Fios de ouro? Sinto muito, mas não sei do que vocês estão falando.
O espírito que liderava o bando voou até ele, estendeu uma mão delicada com dedos impossivelmente longos e gentilmente tocou uma mecha de cabelo comprido que estava grudada na blusa dele.
– O cabelo de Aphrodite! Caramba, eu estava mesmo puxando o cabelo dela. Não foi à toa que ela gritou comigo. – Quando ele soube o que estava procurando, rapidamente encontrou outros três longos fios. Ele os tirou da blusa e os ergueu. Mesmo na escuridão, os fios brilharam. – Tem razão. Eles se parecem mesmo com ouro, mas você deve saber que não são de verdade. São apenas fios de cabelo loiro.
“De uma Profetisa cheia de poder.”
Ela lambeu os lábios e Kevin viu de relance novamente os dentes afiados feito agulhas.
“Deliciosos para se comer.
Com esse pagamento você concorda?
Ou podemos voar e ir-se embora?”
– Hum, não! Quero dizer, sim. Sim, vocês podem ficar com o cabelo. Não é como se Aphrodite ainda estivesse usando isso. – Ele estendeu as quatro mechas, segurando-as entre o polegar e o indicador, e as ofereceu para o espírito.
“Com esse pagamento nós concordamos
Oferecido por ti e aceito por mim
O nosso acordo está selado – que assim seja!”
O espírito pegou as mechas de cabelo da mão de Kevin. Ela as atirou no ar, onde ficaram suspensas, flutuando imóveis, mas esticadas como finas linhas de seda esperando para serem passadas pelo buraco de uma agulha. Então os espíritos partiram para cima delas, um espírito para cada ponta de mecha, e as sugaram para dentro de suas bocas estranhas, finalmente juntando-se todos no centro como uma versão totalmente bizarra da cena do spaghetti de A Dama e o Vagabundo. Então eles saíram voando, desaparecendo no céu.
– Isso foi bem louco. Sério. Queria que Zo estivesse aqui para ver isso também. Aposto que ela ia morrer de rir com os espíritos comendo o cabelo de Aphrodite. – Ele estava rindo consigo mesmo quando um grasnido alto fez com que ele franzisse os olhos para a escuridão do céu, que se moveu, alterando-se, e finalmente se transformou em um corvo, voando em círculos até aterrissar no gramado marrom do inverno ao lado dele.
– Tatsuwa! Cara, estou feliz de te ver!
– Garoto Redbird! – o corvo respondeu.
– Sim, sou eu. Ok, você tem que levar uma mensagem para Dragon. Tipo, agora mesmo. – Kevin se agachou ao lado do corvo. Ele ficou aliviado ao ver que Tatsuwa tinha uma tira de couro em volta do pescoço e que dela pendia um pequeno recipiente de plástico, como os usados para guardar sal. Ele tirou o objeto do pescoço do pássaro e o abriu. Dentro havia um pedaço de papel dobrado e um pequeno lápis.
Usando sua mochila como apoio, ele sentou no chão e escreveu um recado rapidamente.
Neferet tem um esconderijo de armas modernas no porão da Morada da Noite. Dez caixas de lançadores de granadas. Dez caixas de M-16s. Munição para tudo. Ela planeja atacar o sul em breve. Ainda não sei quando.
Kevin pausou, mordendo a ponta do lápis. Ele tinha que contar a eles sobre a visão de Aphrodite e o perigo que a Resistência corria, mas não queria que ela se tornasse um alvo. Decidindo rápido, ele continuou a escrever.
Neferet tem informações de que a Resistência está escondendo pessoas em fardos redondos. O Exército Vermelho está a caminho da Lone Star Road e das plantações de feno hoje à noite. Se vocês estão transportando fugitivos levando pessoas para fora desse jeito, vocês só têm uma hora para tirá-los daí. Eu estarei com o exército.
Ele fez uma pausa de novo e então acrescentou:
Tive que usar Magia Antiga para chamar o pássaro. Precisamos descobrir um jeito melhor... K.
Ele releu o bilhete e então, satisfeito, dobrou o papel e o colocou de volta no recipiente com o lápis. O corvo grasnou e deu uns pulinhos até o seu lado, levantando a cabeça para que ficasse fácil para Kevin colocar de volta a tira de couro ao redor do pescoço.
– Ei, não sei se você consegue me entender ou não, mas, se consegue, você precisa ficar mais de olho em mim. Não me sinto bem de usar Magia Antiga assim, a torto e a direito. Além disso, estou ficando sem coisas para pagar os espíritos. Hum, espere aí. Você se importa se eu pegar uma pena sua emprestada?
O grande pássaro inclinou a cabeça para o lado, analisando Kevin.
– Garoto Pássaro! – ele disse e então se virou, obviamente oferecendo a Kevin uma pena da sua cauda.
– Cara, você é bem legal para um pás... quero dizer, corvo. – Com um puxão rápido, Kevin arrancou uma das longas penas negras da cauda de Tatsuwa.
O grasnido de protesto do corvo ecoou pelo muro de pedra enquanto o pássaro levantava voo. Ele voou em círculos sobre Kevin, caprichosamente soltando uma gota quente de cocô de pássaro na cabeça dele.
– Ei, muito obrigado! – Kevin gritou para ele, tentando tirar a sujeira do seu cabelo. – Bom, pelo menos não fede tanto quanto o perfume de sangue.
Zoey
– Ok, então, vamos relembrar o que aconteceu. Quem pode me dizer por que Thanatos morreu quando Neferet quebrou o feitiço protetor que havia jogado sobre o Edifício Mayo? – eu perguntei e fiz uma pausa, satisfeita ao ver várias mãos se levantando.
Dar aulas é sempre uma incógnita. Alguns dias tudo corre tranquilamente e os alunos fazem o seu dever de casa e agem corretamente. Outras vezes é como se todos os seus neurônios tivessem sido desligados – a menos que você mencione peitos ou fale um palavrão sem querer. Eu me surpreendi ao descobrir que gostava de ensinar porque, bom, adolescentes são tão imprevisíveis quanto os gatos e muitas vezes têm ainda menos noção do que eles.
(Sim, eu tenho dezoito anos, então, tecnicamente, ainda sou uma adolescente. Só que eu também sou a Grande Sacerdotisa e, às vezes, a professora – então tenho certeza de que o fato de ser uma adolescente não conta. A menos que eu faça besteira. Aí todo mundo se lembra de como eu sou jovem. Isso é um saco.)
Eu me sacudi mentalmente e assenti para uma mão erguida muito entusiasmada.
– Samantha, qual é a sua resposta?
A garota era uma quarta-formanda ou, como a chamaríamos em sua escola humana, uma aluna de segundo ano do ensino médio. Era fácil de perceber isso pelas asas de Eros bordadas no bolso sobre o seio do seu suéter da escola.
– Senhora, Thanatos morreu porque colocou demais de si mesma no feitiço, então, quando Neferet quebrou o feitiço, ela também quebrou Thanatos.
Internamente me contorcendo porque a garota tinha usado a palavra senhora para se referir a mim, eu consegui forçar um sorriso.
– Sim, certo. Então, você acha que Thanatos deveria ter se protegido mais, colocando menos de si no feitiço?
– Não – Samantha respondeu direto, sem levantar a mão. – Se ela tivesse feito isso, Neferet teria se libertado do Mayo antes do sacrifício de Kalona, e antes que você e o seu círculo descobrissem como detê-la, e todos nós teríamos morrido ou virado escravos dela. Thanatos é uma heroína. Eu a admiro.
– Há muito para se admirar em Thanatos. Quem pode me dizer qual a afinidade que Nyx concedeu a ela?
Eu estava me preparando para chamar outro garoto quando, em vez disso, eu ofeguei. Um calor brotou na parte superior do meu corpo, como se alguém estivesse apontando um secador de cabelos no nível máximo diretamente para o meu peito nu – apenas para fins de esclarecimento, eu não estava lecionando pelada. Nós somos diferentes aqui na Morada da Noite, mas não tão diferentes.
– Está tudo bem, senhora? – Samantha perguntou.
– Sim. Estou bem. Eu, ahn, preciso sair por um segundo. Samantha, você é a responsável até eu voltar. Continue a discussão sobre Thanatos, por favor.
Então aproveitei para sair rapidamente pela porta da sala de aula, com a mão pressionada sobre a queimação no meio do meu peito.
Mal consegui sair e já vomitei até as tripas em uma lata de lixo reciclável no corredor.
E então o calor foi embora, deixando-me de corpo mole e ofegante.
– Zoey! – Stark dobrou a esquina do corredor correndo e chegou deslizando até mim. – Minha Deusa, desta vez foi foda! – Ele apalpou todo o meu peito, não de um jeito sexy, mas sim de um jeito caraca-será-que-eu-me-quebrei.
– Estou bem agora. Acabou – tentei soar normal, mas a minha voz estava tão trêmula quanto as minhas mãos. – Desculpe por ter tirado você da sua aula.
– Nunca peça desculpas. Você é a minha vida, Z. Se alguma coisa acontecesse com você...
– Ei. – Peguei a mão dele. – Não está acontecendo nada comigo. Está acontecendo alguma coisa com Kevin. Esse é o problema.
– Não, o problema é que Kevin não está aqui, então não posso dar porrada nele por ficar usando Magia Antiga sem pensar.
– Ele não sabe como isso é perigoso, Stark.
Stark suspirou.
– Eu sei, eu sei. Desculpe. Eu não ia dar porrada nele de verdade. Eu gosto dele.
– Sim, eu também.
– Acho que você vai ter que dar um jeito de dizer a ele para parar de usar Magia Antiga. A ironia é que provavelmente você vai ter que usar Magia Antiga para fazer isso – Stark disse.
Eu evitei fazer contato visual com ele.
– Sim, isso é um saco, mas estou tentando descobrir como fazer isso.
– Isso é uma boa e uma má notícia. Olha só, Z, eu sei que isso está realmente te desgastando, e que você está super preocupada com o seu irmão, mas quero que você me prometa que não vai sair sozinha e mexer com Magia Antiga sem supervisão.
Coloquei meus braços ao redor dele e descansei no seu abraço.
– Prometo. Eu já aprendi a minha lição. Não vou sair escondida sozinha e usar Magia Antiga.
Pude sentir Stark relaxar, o que só aumentou minha culpa. Quando ele tentou me beijar, eu me inclinei para trás, cobrindo a boca. Por trás da minha mão, eu disse:
– Você não quer fazer isso. Acabei de vomitar.
– Ah, Z, sinto muito. O que eu posso fazer?
– Nada. Eu realmente estou bem agora. Vou terminar a aula mais cedo e mandar os alunos para a sala de estudos, e aí vou até o nosso quarto escovar os dentes. Hálito de vômito é muito nojento.
– Ok, já está quase na hora do almoço. Você vai conseguir comer?
– Com certeza! Encontro você no refeitório. E pare de se preocupar. Eu estou bem.
Stark me deu um beijo na testa.
– Eu te amo, minha Rainha.
– Eu também te amo, meu Guerreiro – eu disse. Então eu o observei indo embora com o meu coração apertando no peito. Quando ele desapareceu, tirei o celular do bolso e digitei, procurando o contato certo.
– Qual é, Z?
– Kramisha, preciso que você faça uma coisa pra mim.
– O seu desejo é uma ordem.
– Você ainda tem uma cópia daquele velho poema profético? Aquele sobre como fazer Kalona se erguer?
– Tenho. Está no meu arquivo com a etiqueta “Merdas com as quais ninguém deveria mexer”.
– Ótimo. Eu preciso dele. Você me manda uma cópia por e-mail?
– Você vai mexer com ele?
– Kramisha, Kalona já se ergueu em uma explosão. Isso não pode acontecer duas vezes.
Pelo menos não neste mundo, eu acrescentei silenciosamente para mim mesma.
– Isso é verdade. Te mando o e-mail.
– Obrigada, tchau.
Voltei para a minha sala de aula e coloquei a cabeça para dentro da porta.
– Pessoal, vou encurtar a aula hoje. No resto do tempo, vocês podem ir até o Centro de Mídia para estudar.
Então eu fechei a porta para as comemorações deles e fui em direção ao estacionamento.
O meu Guerreiro estava cem por cento correto. Kevin precisava ser avisado sobre como era perigoso lidar com Magia Antiga e ele tinha que entender como controlar o impulso de usá-la sem parar.
Eu vou dizer isso a ele.
Eu vou ensiná-lo.
Pessoalmente.
Mas primeiro eu precisava pensar – raciocinar realmente sobre os como, os quando e os com quem – sozinha. Sem ficar ansiosa olhando para alguém me encarando fixamente como um projeto de química prestes a explodir ou, pior, alguém me perguntando sem parar se eu estava bem.
Decidi ir em direção ao meu lugar preferido para ficar sozinha...
17
Stark
Assim que o sinal soou para liberar os alunos para o almoço, Stark saiu apressado do Ginásio para o Refeitório dos Professores. Ele não deu a mínima em estar atraindo a atenção de cada novato, vampiro e humano que passou por ele. Stark tinha um pressentimento. Um maldito mau pressentimento. E esse pressentimento tinha alguma coisa a ver com Zoey.
Claro que ela não estava no refeitório.
Ele sentou-se na mesa grande onde ele, Z e seus amigos normalmente comiam e esperou.
E esperou.
E esperou.
Depois de se passarem trinta minutos, ele acenou para uma garçonete.
– O que eu posso trazer para você, Stark?
– Não quero nada. Estou só esperando a Zoey, mas talvez a gente tenha se desencontrado. Ela já comeu?
– Não, eu não encontrei com ela hoje. Quer que eu anote o seu pedido?
– Não, acho que vou esperar mais um pouco, mas obrigado – ele respondeu e ela saiu. Então Stark conferiu o seu telefone. De novo. Nada de Z. Ele mandou uma mensagem de texto para ela. De novo.
Você ainda não está aqui. Será que eu confundi o lugar?
Ele apertou o botão de ENVIAR e depois digitou de novo rapidamente.
Estou começando a ficar preocupado. Me liga.
– E aí, Stark? O que parece mais apetitoso para o almoço hoje? – Damien perguntou enquanto sentou ao lado de Stark, deslizando em um dos bancos com encostos altos que formavam uma cabine.
– Ah, oi, Damien. Não sei. Estou esperando a Z.
– Ah, tudo bem, eu estou esperando o Jack. Ele está ficando um tempo a mais no Centro de Mídia, tentando recuperar o que não aprendeu lá naquele Outro Mundo deplorável. – Damien sorriu para a garçonete que tinha voltado até a mesa deles. – Quero pedir tacos para Jack e para mim. Mas dê uns dez minutos antes de soltar o pedido. Ele é Outro Jack, mas é quase tão atrasado quanto o Jack original era. – Então Damien voltou sua atenção de novo para Stark. – Você disse que estava esperando Z?
– Sim. Ela também está atrasada.
– É porque ela não está aqui. Eu vi o Fusca dela sair do estacionamento meia hora atrás, e eu ainda não a vi voltar.
– Merda! Você está brincando?
– Não. Stark, está tudo bem? – Damien perguntou.
– Não. Não está tudo bem. Desculpe, Damien. Tenho que ir. – Stark teve que se esforçar muito para não bater a porta com força quando saiu do refeitório.
Ela simplesmente saiu dirigindo e não me falou nada? De novo.
Essa era a terceira vez nos últimos dias em que Z tinha falado para ele que ia estar em algum lugar – ou encontrá-lo para fazer algo – e ou ela não aparecia, ou se atrasava. Bastante.
Claro, ela sempre tinha uma desculpa, como ter que conferir a tumba de Neferet para ter certeza de que não estava acontecendo nada de estranho por lá. Ele entendia isso. Ele também entendia que Zoey poderia enviar outra pessoa para fazer isso se ela quisesse. Alguém como ele. Ou Darius. Ou Rephaim. Ou qualquer um entre as dúzias de outros Guerreiros Filhos de Erebus que iriam fazer um relatório com tudo para Zoey e manter suas bocas fechadas se descobrissem alguma coisa fora do normal.
E, claro, ela dizia que continuava indo ao Restaurante da Estação para ajudar com a reforma, mas entre Damien, Outro Jack e Stevie Rae, já tinha um monte de gente para ajudar.
Pior ainda, sempre que Stark tentava ir atrás de Z – quando tentava ver por que ela estava demorando tanto –, ela nunca estava realmente ali no instante em que prometera estar.
Stark foi primeiro para os aposentos que ele dividia com Zoey. Ela não estava lá. Então ele desceu correndo as escadas e saiu pela porta de madeira em arco que sempre o fazia lembrar um castelo. Ele fez uma pausa, enquanto os seus olhos varriam os jardins da escola. Havia estudantes novatos e humanos por toda parte. Alguns estavam sentados em pequenos grupos embaixo dos lampiões a gás bruxuleantes, compartilhando o almoço. Outros estavam andando apressados em direção aos dormitórios. Outros estavam brincando de um pega-pega estranho que a atual turma dos alunos do último ano tinha criado e que envolvia gatos de alguma forma.
O olhar dele foi atraído para a estátua de Nyx que ficava no centro do jardim principal. Quando ele reconheceu uma das Grandes Sacerdotisas no pequeno grupo aos pés da Deusa, sentiu uma enorme onda de alívio e atravessou correndo o gramado marrom do inverno. Lá está ela! Espero que ela saiba de algo.
– Stevie Rae! Ei, a gente precisa conversar – Stark disse ao se juntar a ela perto da estátua. Ao lado de Stevie Rae estavam dois jovens novatos que tinham acabado de acender a miríade de velas votivas que tremeluziam alegremente ao redor do pé da Deusa. Eles fizeram uma reverência nervosa, porém respeitosa, para cumprimentar Stark. – Oi, e aí? Bom trabalho com essas velas aí. Ok, hora de vocês irem almoçar. Ou de irem para a próxima aula. Basicamente, hora de vocês vazarem! – Stark gesticulou com a mão, enxotando-os dali.
Stevie Rae observou os dois novatos saírem apressados na direção da entrada dos fundos da escola. Ela olhou feio para Stark.
– Ótimo. Você acabou de assustar os dois. Você não lembra como é a sensação quando a gente acaba de ser Marcado? Aqueles novatos só estão aqui há uma semana. Eles ainda estão chorando no travesseiro à noite chamando a mamãe.
– Eles vão ficar bem, assim como nós ficamos. Quem não está bem é Zoey.
– De que diabos você está falando?
– Você tem visto Zoey ultimamente? – Stark disparou a pergunta para ela.
– Sim. Não. Eu só a vi rapidinho pouco tempo atrás, faz uma meia hora. Ela disse que estava indo até a estação para ver se Kramisha precisava de ajuda para fazer as malas. Você sabe que Kramisha está indo pra Chicago amanhã, né?
– Sim, sim, eu sei que Kramisha vai embora. E Z disse que ela estava indo para a estação? Tem certeza?
– Claro que tenho. Não faz tanto tempo.
– Ok, aguenta aí. – Stark tirou o telefone do bolso e ligou para Kramisha, colocando no viva-voz para que Stevie Rae pudesse ouvir também.
Kramisha, ao contrário de Zoey, atendeu no primeiro toque.
– O que você quer, Stark? Estou ocupada aqui fazendo as malas.
– Desculpe te atrapalhar. Z está com você?
– Não.
– Você a viu hoje?
– Não.
– Ok, obrigado.
– Ei, está tu...
Stark desligou e lançou um olhar penetrante para Stevie Rae antes de falar:
– Zoey mentiu pra você. Ela mentiu pra mim, ela tem feito isso ultimamente. Ela conversou com você pelo menos?
Stevie Rae hesitou antes de responder.
– Eu ia dizer “Claro! Z conversa comigo todo dia”, mas, quando pensei mesmo sobre isso, na verdade ela não tem falado muito.
– Pois é, desde que ela começou a sentir o Outro Kevin usando a Magia Antiga.
– Eu sei que ela está preocupada. Afe, Stark, eu também estou preocupada com Kev.
– O problema é que eu tenho certeza de que não é só com o Outro Kevin.
– Você vai ter que me contar mais do que isso. Desde que Z disse para Rephaim e para mim que a gente poderia ficar em Tulsa, ando super louca e atarefada me instalando aqui e decifrando planos de aula de Sociologia Vampírica, que eu fui tonta o bastante para me voluntariar para ser a professora. Afe, quem podia imaginar que dar aula era tão difícil?
– Todo professor no mundo sabe disso, mas esse não é o ponto. Stevie Rae, você precisa me ouvir: eu acho que Zoey não está bem.
Stevie Rae fez um gesto para que Stark se juntasse a ela em um banco de ferro cheio de ornamentos esculpidos, perfeitamente situado perto da estátua da Deusa.
– Agora, me conta o que está entalado aí dentro em relação a Z.
Stark soltou um longo suspiro ao se sentar ao lado dela.
– Ela está indo ao túmulo dele. Todo dia. E está mentindo sobre isso.
Stevie Rae mexeu os ombros.
– Isso não é tão ruim. Quer dizer, Z sente falta de Heath. Todo mundo sabe disso, e talvez ela não esteja dizendo a verdade porque não quer que você se sinta mal. Ei, se ela está mentindo, como você sabe pra onde ela vai?
– Eu a segui. E, antes que você comece a me passar sermão, preciso dizer que só fiz isso porque estava preocupado. Muito preocupado.
Stevie Rae levantou as mãos em sinal de rendição.
– Ei, não estou julgando, mas você tem a minha atenção total agora. Continue.
Stark passou os dedos pelo seu cabelo grosso e suspirou de novo.
– Então, eu a segui – ele repetiu. – E a observei. Ela fica sentada lá. No túmulo dele. E conversa com ele. Muito.
– Ela conversa com a lápide dele?
Stark balançou a cabeça.
– Não. Ela se se recosta na lápide dele, mas fica olhando para o lado, como se ele estivesse sentado ali, ao lado dela, em algum lugar perto. E perto mesmo, não no Bosque de Nyx.
– Bom, ok, então isso é estranho e triste, mas talvez seja o jeito de Z lidar com o luto dela. Você sabe que levou muito tempo para ela conseguir ir até o túmulo dele. Ela nunca nem me deixou ir com ela. Uma vez Z me disse que isso era algo que ela precisava fazer sozinha e que eu devia deixá-la em paz. Ela disse que gostava de pensar lá porque é bem silencioso. Talvez seja só isso. Z precisa de um tempo sozinha. O que você acha? – Stevie Rae balançou a cabeça, fazendo os seus cachinhos loiros sacudirem ao redor do seu rosto. – Parte disso é culpa minha. Sinto muito que eu estive tão enlouquecida que nem percebi que ela estava depressiva ou algo assim.
Stark fez um gesto recusando as desculpas dela.
– Isso não é culpa sua. É de todos nós. Acho que a gente deixou ela sozinha demais desde que Kevin voltou para o Outro Mundo.
– Mas a gente está dando espaço pra ela. Ei, eu sei que ela tem falado com o irmão dela. O Kevin deste mundo. O que não é um vampiro vermelho. Acho que isso está ajudando um pouco a lidar com o fato de o Outro Kevin não estar aqui. – Stevie Rae suspirou e passou os dedos pelo cabelo. – Eu não perguntei quase nada sobre como ela estava se sentindo, principalmente depois de ela ficar dizendo para a gente como estava bem, mesmo com aquela maldita Magia Antiga mexendo com ela e Outro Kevin. Como Kramisha sempre diz, não é legal ficar se metendo nos assuntos de Z.
– Sim, bom, o tempo de dar espaço acabou. Desde que ela começou a “conversar” – ele fez aspas no ar com os dedos – com Heath, ela parou de conversar de verdade comigo. E, obviamente, com você.
– Z não tem conversado com Damien nem Aphrodite também? – Stevie Rae perguntou.
– Ah, claro. Z conversa com Damien, com Aphrodite, com você e comigo. Mas ela nunca diz como está se sentindo, só diz que está bem. Stevie Rae, ela está se afastando de mim. E de você, de Aphrodite e de Damien. Ela só está conversando de verdade com o Heath, que já morreu.
– Você não acha mesmo que Z só está lidando com o luto dela?
– Não, porque essa coisa de conversar com o Heath morto só começou depois que Kevin veio do Outro Mundo e...
– E contou a ela que Heath estava vivo do lado de lá – Stevie Rae terminou a frase por ele enquanto arregalava os olhos ao compreender.
– Exatamente – Stark disse.
– E então ela sentiu Kevin usando Magia Antiga.
– Sim. O que aconteceu hoje de novo. Um pouco antes de ela ir embora no Fusca, apesar de ter me dito que a gente ia se encontrar para almoçar.
– Aiminhadeusa, Z está indo para o Outro Mundo! – Stevie Rae concluiu.
– Sim, estou começando a pensar isso também – Stark falou.
– Ah, que inferno! – Stevie Rae exclamou.
Zoey
Olhei as horas no celular quando saí com o meu Fusca da Rua Setenta e Um e entrei na Aspen, pegando a primeira à esquerda para atravessar o portão sombrio do Cemitério Floral Haven. Eu tinha certeza de que ia conseguir voltar para a Morada da Noite sem me atrasar muito para encontrar Stark no almoço.
– Eu devia apenas contar a ele que gosto de vir aqui – murmurei para mim mesma. – Ele entenderia. Certo?
Hum. Não. Eu já tinha contado isso a ele outra vez. Faz quase um ano. E ele fez um milhão de perguntas e disse que eu deveria falar com alguém. Alguém tipo um psiquiatra. Sobre o meu luto.
– Tentei explicar que é tipo isso que eu faço quando visito o túmulo. Eu falo. Claro, não é com um psiquiatra, mas falar é falar, certo?
Aparentemente, não para Stark. Não que eu o culpasse por isso. Perder Heath tinha sido horrível. Pior até mesmo do que perder a minha mãe, porque a verdade é que eu era muito mais próxima de Heath do que de qualquer um na minha família, exceto de Vovó Redbird.
Como se soubesse o caminho sem que eu tivesse que manobrar a direção, o meu Fusquinha azul-claro serpenteou pelas curvas até o que tinha se tornado uma parte familiar do cemitério. Parei no lugar de sempre – perto do cedro que marcava o começo da trilha que eu havia percorrido incontáveis vezes no último ano.
Eu sempre ficava triste logo que chegava ali. O Floral Haven não teria sido a primeira opção de Heath. Não porque fosse um cemitério ruim nem nada desse tipo. Eu simplesmente sabia que Heath iria gostar de algum lugar mais... bem... colorido. Heath gostava de coisas loucas, e o Floral Haven era imaculado, bem estruturado, bem organizado e bem regulado. Era exatamente o oposto de louco.
Enquanto eu andava pela trilha que levava à sepultura da família Luck, a minha tristeza se evaporou um pouco – e depois mais do que “um pouco” quando eu avistei a minha contribuição à vizinhança da área dos Luck. Fui até a lápide modesta, adequada e entediante de Heath e sentei bem em cima do seu túmulo, o que eu sei que ele teria apreciado. Eu me recostei na pedra cinza e fria, que dizia em letras grandes HEATH REGINALD LUCK – FILHO AMADO, e então olhei para o lado na direção da área mais próxima à dos Lucks, onde havia apenas uma lápide – a que eu havia encomendado imediatamente depois de comprar a área de sepultamento familiar vizinha. Era o contrário de entediante, esticando ao máximo o que as regras muito específicas do cemitério permitiam. Eu havia mandado fazer uma lápide de mármore azul polido, da cor exata de um buraco de pesca perfeito. Em cima dela, eu havia pedido para o artista esculpir uma cena de Heath sentado em uma pequena plataforma de madeira atirando a linha de pesca da sua vara na água. Eu tinha feito com que Heath estivesse olhando direto para mim, sorrindo como ele sempre fazia quando ia pescar.
– E aí, beleza? – perguntei para o Heath esculpido. – Sim, hoje foi um daqueles dias incríveis de inverno em Oklahoma, em que não está tão frio para ficar do lado de fora, mas também não quente o bastante para despertar as três ameaças típicas daqui: carrapatos, pólen de ambrósia e cobras. Aposto que você diria que estaria um clima bom para pescar, mas na verdade você achava que todo dia tinha um clima bom para pescar.
Ok, deixe-me ser sincera. Eu não tinha perdido a cabeça – pelo menos não totalmente. Eu não estava sob nenhuma ilusão de que Heath estivesse de fato ali me escutando. Eu sabia onde ele estava, ou pelo menos uma versão dele. Eu tinha estado com ele lá – no Bosque da Deusa – depois que ele morreu e que a minha alma se despedaçou de tristeza. Ele provavelmente está pescando em algum lugar lá em cima agora.
Mas eu gostava de fingir que estava falando com ele.
Eu precisava fingir que estava falando com ele.
Principalmente agora.
– Então, lembra que outro dia eu te contei sobre aquela queimação estranha no meu peito? Bom, surpresa! Não era um ataque do coração. Era uma coisa pior. Era o Outro Kevin, lá naquele Outro Mundo, usando Magia Antiga – fiz uma pausa e recostei minha cabeça na lápide dele. – É, isso é ruim. Bem ruim mesmo. E ele está mexendo muito com isso – suspirei. – Né? Eu sei que ele vai se meter em alguma grande caca. Por que os irmãos mais novos são sempre um pé no saquinho?
– Zoey? É realmente você! Achei que tinha visto o seu Fusca entrar aqui.
Dei um salto ao ouvir a voz e girei sentada para ver o meu irmão, Kevin, andando na minha direção.
– Afe, você quase me mata de susto, Kevin. Tipo, faça mais barulho da próxima vez.
– Que tal você me dizer quando vai visitar o túmulo de Heath da próxima vez e eu encontro você aqui? Por sorte eu estava passando quando você entrou. – Kevin olhou para mim e sorriu. – Foi sorte!9 Entendeu?
Eu sorri para ele.
– Entendi. – Então dei umas batidinhas no lugar ao meu lado, e Kevin sentou no local indicado.
Nós não falamos nada. Apenas ficamos sentados. Desde que o Outro Kevin tinha partido, eu gostava de conversar com este Kevin – bastante. Principalmente pelo telefone, no entanto. Primeiro, porque ele tinha um calendário escolar super ocupado e era difícil para ele escapar, especialmente sem o padrastotário, o marido péssimo da minha mãe, sabendo que Kevin e eu tínhamos nos reaproximado.
A segunda razão era mais difícil. Ver Kevin, do jeito que estava fazendo agora, fazia com que eu sentisse falta do Outro Kevin. Quer dizer, eu gostava de conversar com este Kevin. Ele tinha crescido e virado um cara bacana, havia trocado a sua obsessão por videogame por uma obsessão por luta livre e tinha entrado para a seleção da Broken Arrow este ano, o que era legal. Mas ele não era um vampiro. Ele não conseguia me entender como o Outro Kevin me entendia. Não era culpa dele, mas isso não fazia com que fosse menos verdade.
– Ei, você nunca acha isso meio sinistro? – Kevin interrompeu meus pensamentos com um encontrão de ombro.
– O quê? Sentar no túmulo dele? Que nada, Heath iria adorar – eu disse.
– Bom, isso e aquilo – ele apontou para o Heath pescador esculpido.
– Heath iria adorar aquilo também – eu respondi. – Você não lembra que ele tinha senso de humor?
– Claro. E você não lembra que ele está morto?
Eu dei um pulo abruptamente, como se Kevin tivesse me dado um tapa.
– É claro que eu lembro. Eu estava lá. Perder Heath quase me matou. Por que diabos você me perguntaria isso?
– Por causa do que o Outro Kevin te contou.
Eu não falei nada. Eu não conseguiria dizer nada. Para este Kevin – este meu irmão humano –, seria impossível entender a Magia Antiga. Ele também não entenderia o sonho que eu tive, o qual eu tinha certeza de que não era um sonho, mas uma mensagem da minha versão morta do outro mundo. Ele iria pensar que eu só estava dando desculpas se contasse a ele o que eu tinha decidido – o que eu sabia que tinha que fazer.
Eu não estou dando desculpas.
O meu irmão – o meu outro irmão – precisava de ajuda com Magia Antiga e de ajuda para se livrar de Neferet. Nenhuma dessas coisas tinha nada a ver com o Outro Heath Luck.
– Zoey, eu vou com você. Você só precisa pedir – Kevin disse em meio ao silêncio que tinha se instalado entre nós.
Os meus olhos faiscaram na direção dele.
– Você não pode! Eu não estou viva naquele mundo, então posso me safar passando despercebida por lá, mas você está. E você é um vampiro vermelho traidor que se tornou aliado da Resistência contra Neferet e os seus exércitos. Não é seguro para você.
– Z, de acordo com o que você me contou, não é seguro para ninguém lá.
Desviei o olhar de Kevin e encontrei a imagem de Heath sorrindo de novo.
– Eu sei disso – eu disse.
– Mesmo? – o meu irmão perguntou enquanto estalava as juntas e alongava os dedos, um sinal claro de que ele estava estressado.
– Você sabe que eu vou, né? – respondi à pergunta do meu irmão formulando outra pergunta.
– Sim, eu sei. E, Z, se eu sei, os seus amigos também sabem.
Senti um terrível calafrio de mau agouro.
– Não! Eu não disse nem uma palavra para nenhum deles.
– Você também não disse nem uma palavra para mim. Eu só juntei as peças.
– O que significa que eles também vão juntar.
– Ah, sim. Com certeza.
– Bom, não é como se eu fosse fugir escondida sozinha – eu falei. – Já aprendi a minha lição sobre pensar que posso lidar com uma crise grave completamente sozinha. Isso é burrice.
– Isso faz com que eu me sinta melhor, mas só um pouco. Z, você tem certeza de que precisa ir?
Desviei a atenção da imagem de Heath e encontrei o olhar do meu irmão.
– Outra versão de você está em uma grande encrenca. Eu posso ajudá-lo. Se você fosse ele, o que gostaria que eu fizesse?
Ele abriu o sorriso, e de repente eu o vi como um menino, com cerca de sete anos, com um cabelo horrível cortado a máquina e um buraco no lugar onde deveriam estar os dentes da frente, e o meu coração se apertou.
– Z, eu não vou mentir. Com certeza eu ia querer que você viesse salvar a minha pele.
Isso vai deixar Stark arrasado, eu pensei, mas tudo que eu disse foi:
– Sim, e é exatamente isso o que eu vou fazer.
9 Sorte em inglês é “luck”, como o sobrenome do personagem Heath. (N.T.)
18
Outra Aphrodite
Aphrodite fechou o zíper da sua elegante jaqueta de couro de aviador e empinou o queixo quando saiu pela porta da frente da escola e foi em direção ao primeiro veículo do comboio militar. Aphrodite podia sentir os olhares que a acompanhavam, mas isso não era nada de novo. Homens sempre a olharam desde antes de os seus peitos crescerem. Claro que havia uma diferença entre homens normais e machos que eram máquinas de comer vorazes e fedorentas, mas, como diria Neferet, nem tanta diferença assim.
Ela balançou a cabeça para afastar aquele pensamento. Se estou citando Neferet, está realmente na hora de pensar na minha vida. Eu consigo fazer isso. Eu posso ir com o exército até aquele campo idiota nos arredores daquela cidade idiota de Sapulpa, e depois posso voltar para casa. Neferet vai estar mais calma. Vou cair de novo nas suas graças e tudo pode voltar ao normal. O problema era que aquele pensamento não trouxe muito conforto para Aphrodite. O normal na Morada da Noite tinha se tornado quase insuportável. Pela milionésima vez desde que Neferet tinha começado a sua guerra horrenda, Aphrodite desejou ter escapado – ter fugido para a Itália e a Ilha de São Clemente antes de toda essa maldita coisa ter começado. Ela era uma Profetisa. Com certeza o Conselho Supremo teria concedido santuário a ela e não a teria colocado no próximo voo de volta para Tulsa quando Neferet exigisse sua volta.
Neferet obviamente exigiria isso. Ela só tinha uma Profetisa. Pela primeira vez na vida, Aphrodite lamentou ter recebido tantos malditos dons de Nyx e não poder ser apenas uma Sacerdotisa comum.
– Quem eu quero enganar? Eu nunca seria uma pessoa comum.
– Tenho que concordar com você, gata!
Aphrodite olhou para o seu lado direito. Havia um jovem tenente vampiro azul encostado no veículo líder, sorrindo para ela cheio de malícia.
– O que você disse? – ela perguntou com uma falsa voz doce.
– Que eu concordo. Você é gata demais para ser considerada comum. – Ele piscou para ela.
Ela olhou intensamente nos olhos dele.
– Eu pedi a sua opinião?
– Não, mas eu...
– Mas o quê? – ela falou com a voz cortante o bastante para fuzilá-lo. – Você não tem educação? Não tem noção?
– Ei, olhe...
Ela cortou as palavras dele de novo.
– Não, olhe aqui você. Quer saber quando você vai morrer?
– Não!
– Quer saber como você vai morrer?
– De jeito nenhum!
– Então me trate com o respeito que uma Profetisa de Nyx merece, ou eu posso sentir a necessidade de esclarecer as coisas. A Deusa sabe que um pouco de esclarecimento seria bom para você.
– Ahn, tá bom. Ok.
– Deixe-me corrigi-lo. A forma correta de você responder é: Perdão, Profetisa. Isso não vai se repetir, Profetisa. Deixe que eu abro a porta para você, Profetisa. – Aphrodite fez uma pausa enquanto aquele babaca irritante apenas ficou ali parado, com a boca abrindo e fechando como uma carpa com cara de furão. Ela suspirou e colocou as mãos no quadril. – Essa coisa é o carro do General Stark?
– Sim, é o Hummer dele. Ahn, quero dizer, sim, é o carro dele, Profetisa.
– Veja só, você é capaz de aprender. Então abra a maldita porta para mim.
– Algum problema, Tenente Dallas? – Stark apareceu por trás dela e caminhou a passos firmes até o lado do banco do passageiro na frente do veículo. Ele não estava sozinho, mas Aphrodite não precisava olhar para ver quem estava com ele. Ela podia sentir o cheiro.
– Não, senhor! – O tenente imbecil abriu imediatamente a porta do Hummer para Stark.
– Bom saber. Vamos zarpar – Stark deu uma olhada para Aphrodite e Kevin, que tinha parado ao lado dela. – O que vocês estão esperando, um convite por escrito? Entrem aí no banco de trás. – Stark balançou a cabeça, murmurando algo indecifrável, e o Tenente Dallas fechou a porta com uma batida forte.
Kevin foi até a porta do banco traseiro ao lado deles no veículo e a abriu.
– Depois de você, Profetisa – ele disse.
– O único com o mínimo de educação fede. Fantástico. – Ela passou por Kevin e entrou.
Kevin deu uma corridinha até o outro lado do Hummer e se sentou ao lado dela.
– Tudo certo aí atrás, Profetisa? – Dallas perguntou com apenas um toque de ironia ao sorrir olhando pelo espelho retrovisor.
– Apenas dirija – Stark disse rispidamente para ele. Enquanto eles guiavam o comboio para fora da Morada da Noite, Stark se virou no seu assento. – Agora, é bom você contar o que você não falou para Neferet sobre a sua visão.
Aphrodite ergueu uma sobrancelha para ele.
– Não tenho a menor ideia do que você está falando. – Ela enfiou a mão na sua bolsa extragrande Louis Vuitton e tirou de lá de dentro uma das três garrafas de Veuve Clicquot, satisfeita ao ver que havia tirado o rosé primeiro. Sem olhar para Kevin, ela entregou a garrafa para ele. – Abra. Não derrame. É melhor você não deixar seu fedor na garrafa também.
Stark balançou a cabeça.
– Você trouxe champanhe para uma batalha?
– Não, eu trouxe um bom champanhe para uma pré-batalha. É tipo dirigir colado no carro da frente, só que menos esportivo e mais mortal. Quer uma taça? – Aphrodite levantou uma bela taça que ela tinha guardado no bolso lateral junto com o seu Xanax de emergência.
– Não, mas eu quero uma resposta para a minha pergunta.
Kevin estourou a rolha e Aphrodite estendeu a taça para que ele a enchesse.
– Eu já respondi.
– Uma resposta de verdade.
Aphrodite deu uma olhada em Kevin.
– Cubra o topo da garrafa com o papel metálico para que ainda fique um pouco frisante. Você não sabe nada sobre champanhe?
– Não. Nunca experimentei. O meu padrastotário, ahn, é assim que minhas irmãs e eu chamamos o meu padrasto, é religioso demais para...
– Que chatice! – Aphrodite olhou para Stark. – Eu não sabia que eles podiam conversar.
– Você quer dizer os vampiros vermelhos? – Stark perguntou, dando um olhar divertido para Kevin.
– Sim, é claro que foi isso o que eu quis dizer.
– Aphrodite, Kevin é um oficial. Todos eles falam. Você acabou de ouvi-lo conversando com Neferet no briefing.
– Aquilo não foi uma conversa. Ele estava relatando informações. Tanto faz. – Ela deu um gole no seu champanhe e olhou para fora da janela enquanto eles pegavam a estrada em direção a Sapulpa.
– Ainda estou esperando você responder minha pergunta – Stark disse.
– Desculpe. Qual era mesmo?
Stark suspirou pesadamente, e Aphrodite percebeu que o Tenente Dallas estava sorrindo como se ela fosse o seu próprio entretenimento pessoal.
– Tenente Dickless,10 você sempre se diverte às custas do seu general?
O sorriso instantaneamente sumiu do rosto de Dallas, e ele voltou os olhos para a estrada.
– Ótimo. O único tenente que fala também fede. E respondendo à sua pergunta, General Cara do Arco, eu contei tudo para Neferet. Bom, exceto uns detalhes sobre como os soldados do Exército Vermelho perderam o que possa ter sobrado das suas mentes e não se contentaram apenas com o massacre dos humanos que encontraram nos fardos. Eles também devoraram os novatos... novatos azuis que poderiam ter crescido e se tornado caras grandes como você. Ah, e eles comeram vampiros azuis adultos também. Basicamente, o seu Exército Vermelho asqueroso massacrou todo mundo. Que tal?
– Por que você não contou isso para Neferet? – Kevin perguntou.
– Porque ela não ia se importar. Não mudaria nada. Ela ainda iria enviar o seu Exército Vermelho. Todo mundo ainda seria massacrado. Ponto final. – Ela esvaziou o resto da taça e a estendeu para que Kevin a enchesse. E eu vou ter que assistir isso acontecer. De novo.
– Neferet pode não se importar, mas eu me importo. Nós precisamos dessas pessoas vivas. Principalmente os vampiros azuis. Eles podem nos dar informações sobre a Resistência – Stark disse.
– Ah, que ótimo. Então, em vez de serem esquartejados e devorados, eles vão ser torturados.
– Eu não disse nada sobre tortura!
– Você vai pedir gentilmente que entreguem o seu povo e o seu quartel-general, e quando eles disserem não, obrigado, você vai fazer o quê? Dar um tapinha nas costas deles e deixar que vão embora?
– De que lado você está, Aphrodite? – O olhar de Stark tinha ficado sombrio e nervoso.
– Do lado de Nyx, é claro.
– Então estamos do mesmo lado – Stark afirmou.
Aphrodite bufou, mas não falou mais nada. O Cara do Arco podia correr para Neferet e dizer que ela tinha sido insuportável nessa pequena incursão. Até aí, tudo bem. Na verdade, isso seria ótimo. A chance de Neferet enviá-la junto com eles de novo seria bem menor. O que ele não podia fazer era correr para a Grande Sacerdotisa e dizer que Aphrodite simpatizava com a Resistência. Isso não seria “tudo bem”. Seria fatal.
O que diabos vampiros como Stark e os Guerreiros Filhos de Erebus pensam que aconteceu com todas aquelas Grandes Sacerdotisas que Neferet rebaixou e mandou que calassem a boca? Que elas apenas sumiram em alguma Morada da Noite fajuta do interior para rezar pelo resto da vida em isolamento?
Aphrodite sabia bem o que acontecia. Ela testemunhou o que Neferet tinha feito com elas. Nyx enviou essa visão. E essa era uma visão que Aphrodite não havia compartilhado com ninguém.
– Você quer mais champanhe?
Aphrodite automaticamente estendeu sua taça para ser enchida de novo. Então ela olhou para o garoto fedido ao seu lado. Ela ficou surpresa ao reparar que ele obviamente era de origem indígena. Ela não tinha percebido isso antes. Se ele trocasse aquelas roupas horríveis que vestiam mal e tomasse alguns cuidados pessoais – ele realmente precisava de um corte de cabelo... e tirar aquele fedor –, podia até ficar bonitinho. Mesmo. Ela também não tinha percebido isso antes. Bom, para ser justa, depois de sentir aquele cheiro, ela mal tinha olhado para ele.
Só que ele não tinha aquele cheiro quando conversou com ela no jardim na outra noite.
– Quantos anos você tem? – ela perguntou a Kevin.
Ele pareceu surpreso com a pergunta.
– Dezesseis.
– Não é jovem demais para ser tenente?
Ele assentiu.
– Sim. Eu sou o tenente mais jovem do exército.
– Quando você se Transformou? – ela questionou.
– Quase um ano atrás. – Ele fez uma pausa e então continuou: – Quando você se Transformou?
– Quando eu tinha mais do que dezesseis anos – ela respondeu. Aphrodite queria perguntar o porquê de ele não estar fedendo como a morte na noite anterior, mas de jeito nenhum ela ia deixar o Dickless e o Cara do Arco ouvirem isso. De jeito nenhum ela queria aqueles dois mais metidos nos assuntos dela do que eles já estavam. – Você é uma criança. Não é de se admirar que nunca tenha provado champanhe.
Ela virou a cabeça com arrogância para olhar para fora da janela, desejando que estivesse em qualquer outro lugar.
Outro Kevin
A conversa morreu depois que Aphrodite disse que ele era apenas uma criança. Ela não olhou mais para ele. Ela não se endereçou mais a ele. Ela continuou, é claro, estendendo a sua taça de tempos em tempos para que ele a enchesse de champanhe.
Cara, ela bebe champanhe rápido!
Tudo o que Kevin podia fazer era ficar ali sentado observando com um pavor crescente enquanto o Hummer percorria mais quilômetros e se aproximava cada vez mais daquilo que muito provavelmente seria uma horrível tragédia.
E se aquele pássaro não chegou até Dragon?
Não, ele não se permitiria pensar isso. Ele estava fazendo tudo o que podia. Ele tinha enviado informações. Ele estava junto com os soldados porque talvez houvesse algo que ele pudesse fazer no meio da batalha para ajudar as pessoas a escapar do Exército Vermelho. A essa altura, Kevin não dava a mínima se seria descoberto ou não. Ele não ficaria parado vendo inocentes serem massacrados por monstros.
– Ei, abra mais uma garrafa.
Aphrodite empurrou mais uma garrafa de champanhe na direção dele. Kevin não tinha nem percebido que ela já tinha matado a primeira. Enquanto tirava a rolha, ele olhou de relance para Aphrodite. Ela parecia mal.
Bom, isso não era totalmente verdade. Ela era linda. Isso não havia mudado. Mas ela estava tão magra e pálida! Olheiras escuras estavam aparecendo mesmo que ela tentasse cobri-las e, quando ela não estava bebendo champanhe, a boca dela virava uma linha rígida.
– Quanto falta para a Lone Star Road? – Aphrodite perguntou enquanto ele enchia a taça dela.
Stark apontou para o semáforo a cerca de um quarteirão na frente deles.
– Vamos virar ali, na Hickory. Daí uns dois quilômetros e meio depois a gente entra à direita na Lone Star. Nessa hora vou precisar que você esteja acordada e alerta. – Stark olhou por sobre o seu ombro para ela e franziu a testa. – Então, pegue leve aí com esse champanhe.
– Ah, relaxe, Vovô. Eu sou uma vampira, lembra? Não consigo ficar bêbada. Não consigo nem ficar exaltada. Bom, a menos que eu misture um pouco de Xanax com esta bebida... o que me lembra de algo. – Ela enfiou a mão dentro da bolsa gigante que estava no assento entre eles, pegou um pequeno pote de comprimidos e o sacudiu para tirar algumas pequenas pílulas ovais, que engoliu junto com champanhe. – E eu sou uma profissional.
– É bom que seja. Neferet conta com isso – Stark disse.
– Tá, tá, tá. Eu vou reconhecer o maldito campo. Preocupe-se com o seu exército de zumbis, não comigo.
Stark virou para a frente de novo e esfregou a testa.
Kevin continuou observando Aphrodite até que ela encontrou os seus olhos. Então, com uma voz baixa o bastante para não ser ouvido no banco da frente, ele falou:
– Você sabe como isso vai ser ruim. Não a julgo por beber e tomar isso aí. – Ele apontou um dedo para o pote de comprimidos que estava aparecendo para fora da bolsa dela.
Ele achou que ela faria outro comentário sarcástico, mas então o rosto dela mudou. Os seus ombros desabaram e ela assentiu com tristeza, sussurrando:
– Vai ser bem pior do que só ruim.
– Eu não vou deixar que você se machuque – ele disse baixinho.
Ela o encarou com seus olhos azuis grandes, lindos e assombrados.
– Eles são crianças. Mais novos do que você. Eu sei. Eu vi tudo. E agora vou ter que ver de novo. – Ela balançou a cabeça e enxugou uma única lágrima nervosamente.
Ele sustentou o olhar dela e disse muito claramente, mas com a voz bem baixa:
– Não se eu puder impedir isso.
Uma surpresa faiscou nos olhos dela, e então Stark interrompeu:
– Ok, esta é a Lone Star Road. Hora de você fazer o seu trabalho.
– Eu já fiz o meu trabalho. Eu profetizei. Isto aqui não tem nada a ver com o meu trabalho. Tem a ver com Neferet querer me punir, mas que seja. Já sou bem grandinha. Diga ao Tenente Dickless para ir devagar para que eu possa conferir essas plantações. A que eu estou procurando é grande. Lembro de um bosque de nogueiras-pecãs do outro lado da rua. Ah, e tem árvores na beirada do campo, apesar de uma grande parte da lateral da estrada ser aberta, então nós devemos conseguir ver a maioria da plantação.
– De que lado da estrada fica a plantação? – Stark perguntou.
Aphrodite pensou um pouco e então respondeu:
– À nossa esquerda. – Eles dirigiram por apenas mais um quilômetro pela estrada vazia e Aphrodite apontou um local. – É ali! Eu reconheço aquele monte de árvores.
Kevin deu um pequeno suspiro de alívio. O campo ainda estava a alguns quilômetros de distância da montanha onde a Resistência estava se escondendo. Aquela era uma pequena coisa boa em um amontoado gigante de coisas ruins.
Aphrodite estava olhando para fora da janela à sua direita.
– E ali está o bosque de nogueiras-pecãs. Ok, continue só mais um pouco. Deve ter um... sim, ali está o portão. Vire aqui.
Dallas dirigiu o Hummer através de um portão aberto e entrou em um grande campo de feno recém-cortado. E, claro, estacionado logo do lado de dentro estava o reboque de um caminhão, cheio de enormes fardos arredondados.
– Pare! – Stark falou rispidamente. – Faça com que o comboio bloqueie o portão para que eles não possam sair por ali. – Ele começou a abrir a sua porta antes de o Hummer parar completamente, gritando ordens. – Dallas, saia com esses soldados do comboio e faça com que eles cerquem o reboque. Tenente Heffer, fique neste veículo com Aphrodite. O seu trabalho... o seu único trabalho é cuidar para que ela não seja devorada acidentalmente hoje. Você consegue fazer isso?
– Sim, senhor!
Sem nem mais um olhar, Stark e Dallas saíram do Hummer. Kevin podia ouvir Dallas gritando ordens para o comboio. Stark tinha pegado o seu arco e estava com uma flecha encaixada nele, apontada para o fardo arredondado.
– Ele não erra. Você sabia? – A voz de Aphrodite cortou o silêncio no interior do veículo quase vazio.
– O General Stark?
– Sim, o Cara do Arco.
– Aham, eu sei. O exército inteiro sabe. Ele é uma lenda.
– Na cabeça dele – Aphrodite disse. – Dizem que ele matou o próprio mentor.
– Não sabia disso.
– Sim. É por isso que ele é tão mal-humorado. A maioria das mulheres acha isso atraente. Eu acho um tédio. Mas ele não faz o meu tipo de todo jeito.
Kevin não conseguiu se conter.
– Qual é o seu tipo?
– Alguém menos mal-humorado e com mais coração. E músculos. Eu gosto de músculos. Encha a taça, Kev. Estou finalmente começando a sentir a onda.
– Você acha mesmo que é uma boa ideia?
– Sinceramente?
– Sim. Eu gosto de sinceridade.
– Ok, vou ser sincera. Não importa se eu beber ou não. Isso não vai mudar o que vai acontecer e não vai me fazer esquecer que eu vou ter que assistir isso acontecer de novo. E já que estamos sendo sinceros... ninguém liga a mínima se fico bêbada ou não, exceto eu mesma, e já que eu tenho que assistir a crianças sendo devoradas por monstros, prefiro estar bêbada.
– Esse é um bom ponto – Kevin encheu a taça dela. – Mas eu me importo se você fica bêbada.
Ela encontrou o olhar dele.
– Por quê?
– Nós ainda estamos sendo sinceros?
– Que tal isto: enquanto a gente estiver sozinho, vamos ser sinceros. Feito?
– Feito – Kevin concordou, e o seu coração deu uma palpitação estranha quando o olhar dela não desviou do seu, e pela primeira vez ela se pareceu exatamente com a sua Aphrodite. Aquela que o havia beijado no mundo de Zo e tinha dito a ele para encontrá-la neste mundo.
– Então, por que você se importa se eu estou bêbada ou não?
– Porque eu sei que você é melhor do que isso.
Ela bufou.
– Isso é uma coisa louca de se dizer.
– Por quê?
Ela abriu a boca para responder, mas foi interrompida por uma torrente de vampiros passando correndo pelo veículo para cercar o reboque.
– Merda. Começou. Não consigo olhar. – Ela abaixou a cabeça, olhando fixamente para os seus pés. – Fale quando tudo estiver terminado.
– Ok, mas eu vou ficar te contando o que está acontecendo. Era assim que a minha irmã assistia a filmes de terror comigo quando a gente era pequeno.
Os olhos dela encontraram os dele.
– Do que você está falando?
– Bom, eu adorava filmes de terror. Minha irmã odiava, mas ela não me deixava assistir sozinho, senão eu tinha pesadelos e ia pra cama dela. Então, ela se sentava comigo, mas tampava os olhos com as mãos, e me pedia para descrever o que estava acontecendo porque ela falava que era menos assustador quando eu contava a história para ela.
– Ok, acho que vou experimentar. Se você continuar enchendo a minha taça.
– Pode deixar. – Kevin encheu a taça dela e começou a fazer os seus comentários: – Eles cercaram os fardos redondos. Stark está com o arco apontado para o primeiro, e Dallas... – Kevin fez uma pausa e sorriu para Aphrodite. – Ei, apesar de eu não poder rir alto quando você falou aquilo na frente de Stark, quero que saiba que rachei de rir com o apelido que você deu para ele.
– Ah, você quer dizer o Tenente Dickless. Não considero isso um apelido. É um fato.
Kevin deu uma gargalhada e depois voltou a descrever o que acontecia.
– Então, o Tenente Dickless está com uma espada longa, se aproximando do primeiro fardo. Ah, merda. Ele vai enfiar a espada dentro...! – Kevin ofegou de susto.
– O quê? O que aconteceu?
– Ele enfiou a espada dentro do fardo e nada aconteceu. Agora, ele está golpeando o fardo sem parar. É só um fardo de feno. Não tem ninguém dentro! – Ele pensou que Aphrodite ficaria feliz, mas ela continuou bebendo e olhando para as botas na altura do joelho que estava usando. – Hum, você me ouviu?
– Sim, ouvi. Continue assistindo. Nem todos os fardos têm pessoas dentro. A Resistência não ia encher tanto o saco de Neferet se eles fossem assim burros.
– Ah, bem pensado. Ok. Estou vendo tudo. Eles estão indo para o próximo fardo. – Kevin prendeu a respiração e então soltou o ar em um suspiro. – É só feno também. Agora eles estão indo para um fardo no fundo.
– Isso não é uma notícia boa. Eu sei. Eu estava escondida nesse fardo.
– Você?
– Não literalmente. Quando tenho uma visão, eu sempre vejo tudo pelo ponto de vista de quem está morrendo, normalmente de um jeito horrível. É por isso que para mim é difícil dar detalhes específicos, pois eu sinto tudo que essa pessoa que está morrendo sente.
O estômago de Kevin se revirou.
– Deve ser horrível.
– É pior do que isso.
Ele continuou assistindo.
– Droga. Eles estão no próximo fardo. Ok, ele está perfurando o fardo e... merda. Ele atingiu alguma coisa.
– Mas não é uma pessoa.
– Não, ele atingiu alguma coisa dura, e só a ponta da espada desapareceu dentro do fardo.
– Isso é porque não é um fardo de verdade. O interior é oco e tipo uma roda. Há uma porta do lado para entrar e sair. De algum jeito, eles colocam feno do lado de fora da roda. Do lado de dentro tem espaço para, hum, umas quatro pessoas grandes, ou dois adultos e três ou quatro crianças. Ei, eu vou fechar os olhos e tampar os ouvidos quando eles começarem a gritar.
– Eles encontraram um trinco e estão abrindo. – Kevin engoliu a vontade de vomitar. Ele também queria tampar os olhos. E então um alívio o invadiu. – Está vazio!
– Sério?
– Sim, olhe!
– Não. Não vou olhar até eles checarem todos. Pelo menos metade dos fardos nesse reboque e no outro estão cheios de gente.
– O outro?
– Sim, há dois reboques.
– Hoje não tem. Só tem um. Aphrodite, olhe. Eles estão abrindo os outros. Estão todos vazios! – Kevin não tentou esconder a alegria e o alívio que estava sentindo.
– Por que você está feliz?
Ele desviou o olhar dos fardos vazios e virou-se para Aphrodite, que estava olhando para ele e não para a cena se desenrolando com zero de violência na frente deles. Ele encontrou os olhos dela. E decidiu dizer a verdade.
– Porque eu não quero que ninguém mais morra.
– Mas você é um vampiro vermelho. Você só se interessa em comer e matar.
– É realmente assim que você me vê? – Kevin perguntou.
– Por que você não estava fedendo ontem?
– Porque eu...
Toc-toc-toc! Kevin e Aphrodite deram um salto quando Stark bateu no vidro.
– Vocês dois podem sair. Parece que chegamos cedo demais – Stark gritou através da janela antes de voltar para o grupo de soldados que estava tentando remontar os fardos esburacados.
Aphrodite suspirou.
– Traga a garrafa.
– Ei, por que você não fica aqui dentro? Eu vou lá fora e digo que você não está se sentindo bem.
– E deixar o Cara do Arco me entregar para Neferet, dizendo que eu fiquei escondida no Hummer mesmo quando não tinha nenhuma batalha acontecendo? Isso seria uma desculpa perfeita para ela me enviar junto com o Exército Vermelho de novo. Não, é melhor eu sair.
Kevin desceu apressado do Hummer e deu uma corridinha até o lado dela, abrindo a porta para Aphrodite.
– Obrigada. Eu gosto de boas maneiras. Alguém criou você direito.
– Obrigado. Foi principalmente a minha irmã.
– Essa irmã de novo. Talvez algum dia eu a conheça – Aphrodite disse ao estender a mão.
Kevin pegou a mão de Aphrodite e a segurou cuidadosamente enquanto a ajudava a descer do veículo.
– Tenho um pressentimento de que vocês duas iam se dar muito bem.
Aphrodite bufou.
– Então ela deve ser um pé-no-saco.
– Ah, você não sabe o quanto – Kevin disse.
10 Sem pênis, em inglês. (N.T.)
19
Outra Aphrodite
– Tem certeza de que este é o campo certo? – Stark perguntou a Aphrodite.
– Positivo.
– E este foi o único reboque que você viu com fardos de feno?
– Este foi o reboque que eu vi durante a minha visão. Eu estava no meio daquele fardo ali. – Ela apontou. – Não sei o que mais dizer a você. Não sei por que não tem ninguém dentro. A gente deve ter chegado cedo demais. – Aphrodite escolheu suas palavras com cuidado. Ao contrário do que Neferet, Stark e o resto podiam pensar, ela detestava mentirosos. Ela havia sido criada por uma e, desde cedo, tinha jurado que pelo menos uma coisa iria fazer: ao contrário da sua mãe, ela ia tentar falar a verdade sempre. E era isso que ela estava fazendo. Tecnicamente, falando a verdade. Claro, ela estava contando algumas coisas, mas Stark teria que ser bem mais específico com as suas perguntas para que ela revelasse tudo.
– Então está bem. Tenente Dallas, primeiro faça com que os veículos e os homens se escondam naquele bosque de nogueiras-pecãs do outro lado da pista. Mantenha cada maldito soldado do Exército Vermelho dentro daqueles veículos. Não queremos que a Resistência sinta o cheiro de nenhum antes de chegar. E nada de luzes e de barulho. Nada. Lembre a esses soldados que a única maneira de eles se alimentarem hoje é se a Resistência cair na nossa emboscada. Depois volte aqui com alguns oficiais e arrumem esses fardos de novo. Pelo menos o suficiente para que a Resistência não perceba que foram remexidos até que seja tarde demais. Vamos esperar lá fora e capturá-los quando finalmente aparecerem. – Ele voltou seu olhar para Aphrodite. – Você consegue dizer que horas o ataque aconteceu?
– Não. Desculpe. Eu estava ocupada demais sendo devorada para olhar para o relógio.
Stark franziu o cenho para ela e então continuou falando com Dallas.
– Ok, vamos esperar o máximo que der, mas o Exército Vermelho precisa voltar para os túneis antes do amanhecer. E lembre a esses soldados que eles podem comer só os humanos. Novatos azuis e vampiros azuis devem ser capturados vivos.
– Sim. Vou dizer a eles, senhor. Mas eles são burros, então não espere muita coisa. – Dallas bateu uma continência desleixada e começou a berrar ordens.
Aphrodite achou difícil parar de olhar para os soldados do Exército Vermelho. Ela nunca havia estado perto de tantos deles antes. Ela sentia quase tanta pena quanto nojo. Eles estavam vagando ao redor do reboque e dos fardos de feno vazios, parecendo agitados e confusos. Ela achou que vários deles estavam babando.
– Aphrodite, pode entrar no nosso veículo líder com o Tenente Heffer. Heffer, você sabe dirigir, certo?
– Claro – o garoto respondeu.
– Então, dirija o veículo até o outro lado da pista e espere lá.
– Na verdade, eu preciso de um pouco de ar puro antes – Aphrodite falou. – Eu vou dar uma volta.
– Não é uma boa ideia – Stark disse. – Se a Resistência estiver por aqui, você não estará segura.
Ela levantou as sobrancelhas para ele.
– Não estou segura? Há uma horda inteira de vampiros vermelhos vorazes a um grito de distância. Além do mais, você está aqui. Com o seu arco infalível. Tenho certeza de que vou ficar bem.
O suspiro de Stark foi cheio de irritação.
– Heffer, siga a Profetisa. Aphrodite, não demore muito. A Resistência pode aparecer a qualquer minuto, e juro que você não vai querer estar aqui fora quando a briga começar.
– Ah, por favor. Eu já estive aqui quando a briga começou. Foi por isso que tive que me juntar a vocês nesta bagunça de merda, lembra?
Ela deu as costas para Stark, Dallas e aquela horda de coisas vermelhas e começou a caminhar com cuidado através da plantação até a fileira de árvores no lado mais distante do terreno. Ela não precisou olhar para trás. Ela estava certa de que Kevin estava seguindo atrás dela. Ela não se importava. Uma sensação de alívio que a deixou tonta havia inundado o seu corpo desde que ela viu apenas um reboque sem nenhum membro da Resistência escondido dentro dele.
Havia dois reboques na minha visão. Eu estava em um deles, mas tinha outro. Ainda mais cheio de novatos e jovens humanos. Mas ele se foi! Deusa, por favor, permita que eles tenham conseguido fugir. Por favor, não deixe que eles voltem hoje à noite. Por favor, por favor, por favor.
Ela escutou o barulho de água corrente quando se aproximou da fileira de árvores. A vegetação se alterou do feno caprichosamente cortado para o gramado alto do inverno e o que pareciam arbustos de amoras. Aphrodite abriu caminho contornando um aglomerado de plantas adormecidas e uma muralha de cedros perenes para olhar para baixo para um pequeno riacho.
E então a mente dela não entendeu o que ela estava vendo.
Tem pessoas ali embaixo?
Na água? Logo abaixo de mim?
Que diabos é isso?
Ela deve ter feito algum barulho. Deve ter ofegado de choque, pois a última pessoa da fila que estava andando no riacho com água na altura do quadril virou a cabeça e levantou os olhos para ela.
A lua refletiu na água, intensificando a sua luz tênue de modo a tornar claramente visível a tatuagem safira ornamentada com dragões cuspindo fogo em um crescente no meio da testa do vampiro.
Aiminhadeusa! É Dragon Lankford! O olhar de Aphrodite percorreu a fila silenciosa de pessoas e ela reconheceu vários deles da sua visão. É a Resistência! Eles foram avisados! Eles não foram massacrados!
Ela não teve tempo para pensar demais no assunto. Aphrodite agiu por instinto. Ela desceu apressada alguns passos para chegar mais perto do barranco na margem do riacho. Encarando Dragon, ela pronunciou com a boca sem emitir som, fazendo gestos com a mão para indicar o mesmo: Vão embora! Fujam!
E então tudo aconteceu muito rápido.
Dragon Lankford saiu do riacho e saltou para cima do barranco. Ela tentou retroceder com dificuldade. Tentou fugir, mas o salto de uma de suas botas Jimmy Choo afundou em um buraco e quebrou. Aphrodite caiu de bunda no chão com força, derrubando a sua garrafa de champanhe quando ela perdeu o fôlego.
Dragon a alcançou facilmente. Ele a agarrou, levantando-a para que ficasse em pé e tampando a boca dela com a mão. Ele pressionou uma adaga contra o pescoço dela e sussurrou diretamente no seu ouvido.
– Se você fizer um barulho, corto o seu pescoço. Você vem comigo. – Ele se virou para que a fila de novatos, vampiros e jovens humanos em retirada pudesse vê-lo. Dragon fez o mesmo gesto para que eles seguissem em frente e falou em voz baixa em direção à água: – Vão indo! Até o local seguro!
Ele começou a arrastá-la até o riacho.
E então Kevin estava lá. Ele surgiu depois de atravessar a fileira de cedros olhando em volta, obviamente procurando por ela. O coração de Aphrodite bateu forte no seu peito, enchendo a sua corrente sanguínea de adrenalina e pânico. Eu tentei ajudá-los! E agora eles vão matar Kevin e provavelmente atrair a atenção de Stark e a ira do Exército Vermelho sobre eles! Todos vão ser massacrados como foram na minha visão!
Só que não foi isso o que aconteceu. Foi algo muito mais estranho.
Kevin olhou para baixo. Aphrodite percebeu o instante em que ele a viu com Dragon e a fila de novatos, humanos e vampiros fugitivos caminhando com dificuldade pela água. Kevin não pegou nenhuma arma. Kevin não gritou para Stark. Em vez disso, ele desceu a margem correndo até eles.
– Dragon! Não! Não a machuque! – Kevin sussurrou freneticamente quando chegou mais perto deles.
– Eu não a estou machucando. Estou sequestrando.
– Por quê? – Kevin perguntou.
– Sem essa, Kevin. Você sabe por quê. Se eu não fizer isso, ela vai nos entregar para o Exército Vermelho. E ela é uma Profetisa de Nyx. Ela tem visões. Mesmo se ela não quiser compartilhar as visões conosco, nós podemos usá-la. Neferet vai fazer praticamente tudo para ter a sua Profetisa de volta.
Aphrodite bateu na parte de trás da mão de Dragon que estava cobrindo a sua boca.
– Hum, acho que ela quer que você tire a mão da boca dela – Kevin disse. – E seria legal se você abaixasse essa adaga também.
– Imagino que o Exército Vermelho está lá em cima. – Dragon apontou o queixo na direção do campo de feno.
Aphrodite assentiu tão vigorosamente quanto pôde com uma lâmina contra o seu pescoço, e então ela tentou dizer “Eu estava dizendo para vocês irem embora daqui!”, mas, é claro, as palavras saíram como um resmungo confuso e nervoso por trás da mão de Dragon.
– Sim. Stark está lá em cima com cerca de cinquenta soldados vermelhos e vários oficiais vermelhos e azuis. – O olhar de Kevin se voltou para o riacho e para a fila de pessoas que continuavam a retroceder na direção da montanha e da segurança. – Você recebeu a minha mensagem.
– Sim. E agora eu tenho esta Profetisa também. Vou levá-la para o quartel-general. Junte-se a nós quando puder.
– Dragon, sério, se você sequestrar Aphrodite, como é que você vai ser diferente de Neferet?
– Como você pode me perguntar isso? Se nós fôssemos iguais a Neferet, eu já teria cortado o pescoço dela. E, de qualquer modo, eu não posso soltá-la. Agora ela sabe que você está trabalhando conosco, o que coloca todos nós em risco.
Kevin encontrou o olhar de Aphrodite.
– Você nos dá a sua palavra de que não vai gritar nem fazer qualquer coisa para atrair a atenção de Stark se Dragon tirar a mão da sua boca?
Aphrodite assentiu.
– Eu confio nela – Kevin afirmou. – Se ela diz que não vai gritar, não vai. Aphrodite diz a verdade. Certo?
Aphrodite assentiu de novo.
– Não é sábio confiar nela – Dragon disse.
Kevin abriu o sorriso.
– Foi a mesma coisa que você disse sobre mim.
O Guerreiro suspirou.
– Certo, escute bem. Vou tirar a mão da sua boca – Dragon falou no ouvido de Aphrodite –, mas não vou tirar a minha adaga do seu pescoço. Se você fizer qualquer coisa para trazer soldados até nós, vai ser a primeira a morrer. Entendido?
Aphrodite assentiu mais uma vez. Lentamente, Dragon tirou a mão da boca dela.
– Seu idiota! – Aphrodite sussurrou para ele. – Você me viu dizendo para vocês fugirem. Você sabia que eu não ia chamar o exército. Você agiu como um babaca de merda indo até lá em cima e me arrastando! – Ela voltou sua atenção para Kevin. – Eu sabia que você era diferente. Que diabos está acontecendo aqui?
– É uma longa história, mas eu prometo que vou te contar tudo. Primeiro, Dragon e o resto do seu povo precisam escapar – Kevin respondeu.
– E ela ainda precisa vir com a gente – Dragon disse.
– Eu não vou com vocês merda nenhuma. – Aphrodite o fuzilou com os olhos. – É melhor você cortar o meu pescoço agora.
– E, se você fizer isso, vai ser igual a eles – Kevin acrescentou. – Além do mais, aposto que Anastasia vai ficar super irritada com você.
– Isso sem falar no que vai acontecer se eu não voltar lá para cima logo. Stark vai vir para cá procurando por mim. E o que diabos você acha que ele vai fazer se não me encontrar? Simplesmente deixar você e o seu grupo nadarem de volta para casa?
Dragon franziu o cenho para Aphrodite, mas tirou a adaga do pescoço dela.
– E agora? – Dragon perguntou.
– Agora vocês têm que sair daqui. Rápido. Stark vai...
– Aphrodite! Heffer! Que inferno, onde vocês estão? – a voz irritada de Stark lá no alto chegou até eles.
Aphrodite não hesitou. Ela colocou as mãos ao redor da boca para amplificar o som e gritou para o alto do barranco.
– Vá embora! Estou fazendo xixi! Como se já não fosse ruim o bastante ter um vampiro vermelho fedorento me seguindo por aí e eu ter quebrado o maldito salto da minha bota Jimmy Choo aqui neste mato idiota. Posso ter um pouquinho de privacidade?
– Ela está bem, General! – Kevin acrescentou. – Ela está logo atrás de um monte de arbustos. Eu quase consigo vê-la e...
– Não se atreva a olhar! – Aphrodite berrou, fazendo toda a fila de pessoas em retirada congelar e olhar para ela. – Eu juro pela Deusa, se vocês dois me fizerem perder a paciência, vou contar para Neferet que vocês me trataram como merda, com zero respeito. Não importa o quanto ela possa estar irritada comigo, ela definitivamente não vai tolerar que a Profetisa dela seja desrespeitada!
Houve uma pausa em que os três prenderam a respiração, então a voz de Stark – que continuava irritada – finalmente respondeu.
– Só ande logo! Isto não é um maldito piquenique.
– Eu não vou andar logo! Vou levar o tempo que precisar fazendo xixi! E você pode levar esse tenente fedido de volta com você! – Aphrodite gritou e então sussurrou para Kevin. – Suba lá rápido e cuide para que ele não venha para cá.
– Entendido. – Antes de sair, ele olhou para Dragon. – Você vai deixar que ela volte, certo?
– Sim. Eu vou deixar – ele disse com óbvia relutância.
Então Kevin subiu o barranco e passou correndo pelos cedros. Aphrodite e Dragon permaneceram totalmente imóveis até ouvirem os sons de dois homens se afastando do riacho.
Aphrodite deu um longo suspiro de alívio e então percebeu que Dragon a estava encarando.
– O que é? – ela disse rispidamente.
– Por que você fez isso?
– Porque eu não quero mais ninguém sendo massacrado por esses malditos vampiros vermelhos.
– Você não está do lado de Neferet? – Dragon perguntou.
– Não. Eu estou do meu próprio lado.
– Então como posso confiar que você não vai nos trair?
Ela encolheu os ombros.
– Não faço ideia. Você só vai ter que dar um salto de fé. Meu palpite é que é o mesmo tipo de salto que você deu para confiar em Kevin.
– Ele se provou digno de confiança.
– Não foi isso o que eu acabei de provar?
Eles ficaram se encarando até que finalmente Dragon desviou o olhar.
– Eu vou embora agora. Com o meu povo.
– Certo. Eu vou esperar o máximo que posso e então voltar para a plantação. Ah, o Exército Vermelho está escondido no bosque de nogueiras-pecãs do outro lado da pista, então não voltem.
– Não vamos voltar.
– Vocês tiraram um caminhão daqui antes de os soldados aparecerem? – ela perguntou.
Ele hesitou, mas respondeu.
– Sim.
– Ótimo. Era o que eu esperava quando vi apenas um reboque lá em cima.
– Você disse a eles que havia outro?
– Ah, que merda, claro que não. Como eu já disse, estou cansada de ver pessoas sendo massacradas pelo Exército Vermelho – Aphrodite respondeu.
– Mas você ainda está contando suas visões para Neferet – Dragon observou.
– Eu estou fazendo o que tenho que fazer para sobreviver. Assim como você. – Aphrodite fez uma pausa e então teve que perguntar: – Anastasia está bem?
– Sim. Ela está segura.
– Diga a ela que fico feliz por isso.
Ele continuou olhando para ela antes de dizer:
– Você pode se juntar a nós, sabe. Depois do que você fez aqui hoje, nós a aceitaremos.
Aphrodite ignorou a palpitação de esperança que sentiu. Como seria fazer parte de algo nobre como a Resistência? Ter amigos? Não se sentir tão sozinha o tempo todo?
Mas eles não iriam querê-la. Não se eles soubessem da verdade.
– Vou manter isso em mente. E, ahn, obrigada pelo convite.
Ele assentiu com um grunhido antes de se virar e voltar para o riacho. Ele gesticulou para que a fila continuasse a se mover de novo, e Aphrodite os observou desaparecendo assim que o curso de água virou para a direita. Então ela espanou terra, folhas e sabe a Deusa o que mais do seu traseiro, subiu o barranco e voltou mancando para o campo de feno.
Stark e Kevin estavam parados na frente do Hummer líder. O resto havia desaparecido – ela presumia que estavam dentro do bosque do outro lado da pista.
Sem hesitação, Aphrodite marchou na direção de Stark.
– Estou indo embora.
– Sinto muito. Não vai dar. Esta noite está apenas começando – Stark disse.
– Oh, você me entendeu mal. Eu não pedi a sua permissão. Eu não preciso da sua permissão. Eu sou uma Sacerdotisa e uma Profetisa de Nyx. A nossa sociedade ainda é matriarcal, certo?
Stark pareceu surpreso com a pergunta.
– Sim, claro que é.
– Exatamente. Então, eu sou superior a você. Na verdade, eu sou superior a todos vocês, exceto Neferet. Então deixe-me repetir. Estou indo embora. Ah, e esse garoto fedido vai me levar para casa. Estou finalmente sentindo o efeito do Xanax e da bebida... melhor não dirigir.
– Veja bem, Aphrodite, Neferet disse que você deveria... – Stark começou, mas Aphrodite calou a boca dele com um gesto abrupto.
– Eu sei exatamente o que Neferet disse. Eu deveria me juntar a vocês nesta missão. Eu fiz isso. Eu deveria localizar a plantação correta e indicá-la para você e as suas criaturas vermelhas. Fiz isso também. E agora chega. Eu não vim aqui para acampar. Eu não vim aqui para ficar sentada cantando canções de guerra com um monte de soldados. E eu acabei de quebrar o salto de uma bota que custou quase dois mil dólares fazendo uma caminhada por aí na natureza. Deusa! Eu simplesmente não posso mais aguentar isso. Estou indo embora. E você, General Cara do Arco, pode ir direto para o inferno. – Ela olhou para Kevin. – Bora, Fedido.
Kevin olhou para Stark, que passou a mão pelo seu cabelo grosso e suspirou. De novo.
– Tudo bem. Podem ir. Mas eu vou contar para Neferet que eu aconselhei você a ficar.
– Tanto faz. Você acha que Neferet ficaria aqui fora a noite inteira se não tivesse nenhuma coisa acontecendo? – Ela deu as costas a eles e foi até o lado do passageiro do Hummer, onde ficou, batendo o pé freneticamente, esperando que Kevin abrisse a porta para ela, o que ele fez antes de dar uma corridinha contornando o carro para assumir a direção.
Ela deixou que ele manobrasse para fora do campo e entrasse na Lone Star Road para começar a falar.
– Pode contar tudo o que sabe. Agora.
20
Outro Kevin
Kevin contou tudo a Aphrodite. Ele começou pelo fato de que já era diferente desde que foi Marcado – que tinha conseguido reter parte da sua humanidade mesmo depois de ter se Transformado no vampiro vermelho mais jovem da história. Ele contou que foi transportado para um mundo alternativo onde havia outra Morada da Noite e o que aconteceu com os outros vampiros e novatos vermelhos que também estavam lá.
E então Kevin contou sobre a gêmea dela no Outro Mundo – ou pelo menos o máximo que sabia sobre aquela Aphrodite. Contou que havia sido o sacrifício dela que salvou os novatos vermelhos do seu mundo e que foi o dom que ela recebeu de Nyx que o tinha salvado, além dos vampiros vermelhos que continuavam vivos no mundo de Zo.
Kevin também contou a ela sobre Neferet – como ela havia se tornado imortal e quase destruído primeiro Tulsa e depois o mundo inteiro. E como Zoey e o seu grupo tinham sido mais inteligentes do que ela e a aprisionado. Para sempre.
Então o silêncio preencheu o interior do veículo. Ele deu uma olhada para Aphrodite. Ela não estava bebendo. Ela estava encarando Kevin com uma expressão de olhos arregalados, mas indecifrável.
Finalmente, ela falou:
– Então, a Zoey, que é sua irmã lá, ela e eu trabalhamos juntas na Morada da Noite de Tulsa?
– Bem, sim, mas é mais do que isso. Vocês duas são amigas. Grandes amigas.
Ela continuou encarando Kevin. Quando ele tirou os olhos da estrada e se virou para ela rapidamente, viu um instante de dor no rosto dela. Então, com voz bem baixa, Aphrodite falou:
– Por isso que Neferet achou que você parecia familiar. E, agora que estou observando... eu vejo a semelhança também. Você é irmão de Zoey Redbird. A Zoey Redbird que foi assassinada há mais de um ano.
– Sim, é isso que estou dizendo a você. Só que ela está viva naquele Outro Mundo. Então, você conhecia a minha irmã antes da morte dela?
– Não. Na verdade, não.
– Mas você disse que nós somos parecidos... e Neferet meio que me reconheceu também. Zo deve ter sido marcante para você.
– Sim. Ela me marcou, sim. Ou pelo menos a morte dela marcou. – Então Aphrodite apontou para a Quick Trip na esquina da Rua Cinco com a Denver. – Pare naquele estacionamento. Preciso contar uma coisa e não quero que você surte e cause um acidente.
– Ei, você não precisa se preocupar comigo. Eu não surto facilmente.
– Só faz o que mandei – ela disse.
Ele entrou no estacionamento.
Quando ele parou o veículo, Aphrodite se virou no seu assento para poder olhar para o rosto dele.
– Ok, eu não queria contar isso para você, mas provavelmente iria descobrir de qualquer jeito. Tenho certeza de que Anastasia sabe. – Aphrodite encolheu os ombros, parecendo derrotada. – E eu detesto mentir. Eu nem gosto de omitir. Então, aí vai. Eu não conhecia a sua irmã. Neferet dissolveu a organização das Filhas das Trevas antes de Zoey chegar na Morada da Noite. Eu não tinha nenhum motivo para conhecê-la, porque, depois que as Filhas das Trevas se foram, não havia mais motivos para novatos me encherem o saco. Então eu fiz a Transformação e não tinha mais motivo para andar com novatos de qualquer modo. Mas eu lembro do rosto da sua irmã porque tive uma visão com ela. E Neferet se lembra do rosto dela porque eu contei a ela sobre a visão. – Aphrodite fez uma pausa, como se ela estivesse tendo dificuldade para escolher as palavras. Então ela soltou de uma vez: – Na visão, eu era Neferet. E eu vi uma novata, que não era nem uma vampira ainda, ser a responsável pela morte de Neferet.
Kevin se sentiu enjoado.
– Essa novata era a minha irmã?
– Sim.
– Então, Z estava certa quando me disse que tinha certeza de que a Neferet do nosso mundo a assassinou e fez parecer que os humanos do Povo da Fé tinham feito isso como um crime de ódio.
Ele não havia formulado a frase como uma pergunta, mas Aphrodite ainda assim respondeu.
– Sim. Neferet matou Zoey por causa da minha visão.
Kevin não sabia o que dizer. Ele desviou o olhar de Aphrodite, focando no fluxo constante de veículos, principalmente caminhões, que entravam e saíam da Quick Trip.
– Você gostava de mim do lado de lá?
A pergunta de Aphrodite surpreendeu Kevin, que deu uma resposta automática.
– Sim. Mais do que isso.
– Imagino que eu gostava de você também?
– Você me deu um beijo de despedida e me disse para encontrar você aqui.
– Ok, olhe só, o que você está me contando deve ser verdade pelo menos em parte. Você obviamente é diferente do resto dos vampiros vermelhos. E você não estava fedido na noite passada, então deve estar falando a verdade em relação a isso. – Ela encolheu os ombros delicadamente. – E essa porcaria nojenta de sangue que você usa como perfume. Mas você tem só dezesseis anos. Você é uma criança.
– Vou fazer dezessete em agosto – ele acrescentou rapidamente.
– Que seja. Você ainda é uma criança. E está me dizendo que a sua irmã e eu somos amigas do lado de lá e que você e eu temos um lance. Isso simplesmente não se parece com algo que eu faria. Com nenhuma versão de mim. Sem ofensas.
– Eu não sou uma criança. Eu sou um tenente do Exército Vermelho, que já viu mais mortes até do que você, só que comigo foram mortes reais, acontecendo na minha frente. Deixei de ser criança há muito tempo. E você precisa definir um lance. A gente não se pegou nem nada assim, mas a gente realmente tinha uma conexão, e juro que aquele beijo foi mais do que um selinho na bochecha. Ah, e lá você não é só amiga da minha irmã. Você é respeitada e amada por um monte de gente. Você é amiga de todo mundo.
– Você tem certeza absoluta disso? Eu não faço amigos com muita facilidade. Principalmente porque a maioria das pessoas é plebeia.
Kevin ficou surpreso ao se ouvir dando risada.
– Eu não sei a história inteira sobre como tudo aconteceu lá. Não tive tempo para perguntar isso pra Zo, mas você definitivamente faz parte do grupo dela, e é um grupo bem grande. Na verdade, você fez amizade com todas as Grandes Sacerdotisas que eu conheci.
– Espere aí, o quê? Pensei que você tinha dito que a sua irmã era a Grande Sacerdotisa.
– Ela é, mas tem várias Grandes Sacerdotisas na Morada da Noite dela: Stevie Rae, Shaylin, Shaunee, Kramisha, Lenobia...
– Lenobia? A professora de equitação? Ela está viva por lá?
– Está. Assim como Travis e todos os cavalos deles.
Aphrodite passou uma mão trêmula pelo seu rosto.
– Fico feliz que eles estão vivos em algum lugar.
Kevin a observou.
– Ah, entendi. Ninguém da Resistência vazou a localização de Keystone. Você teve outra visão. Você contou para Neferet, e Neferet enviou o Exército Vermelho para acabar com eles.
– Sim. Você quer dar meia-volta e me levar para Dragon de novo para se vingar?
Ela falou sem se alterar – até soou meio arrogante, mas Kevin viu como o rosto dela ficou pálido e como as mãos dela tremiam tanto que ela teve que juntá-las em seu colo.
Ele não respondeu à pergunta dela. Em vez disso, fez outra.
– Na verdade, eu acho que você não gosta de toda essa matança. Então, por que você fez isso?
– Eu contei a ela sobre Zoey porque antigamente eu ainda acreditava que Neferet estava a serviço de Nyx. Quer dizer, abater alguns humanos parecia bom. Quem não está farto daquela coisa idiota de racismo e misoginia deles? Pelo amor da Deusa. Essa merda tem que ficar tão extinta quanto os dinossauros.
– O que isso tem a ver com você falar para Neferet matar a minha irmã?
– Essa é a questão! Eu ainda acreditava que Neferet era boa. E eu não sabia que ela iria matar a sua irmã.
– Mas você sabia que ela iria matar Lenobia e Travis. Você deve ter visto isso na sua visão.
– Eu vi. Eu também tive aquela maldita visão horrível quando estava conversando com Neferet. E-eu era Lenobia. Eu falava como Lenobia. Eu morri como Lenobia. Eu experimentei tudo com ela. A morte do seu companheiro. A morte dos seus cavalos. A morte dos seus amigos. Foi algo muito além de horrível. Eu nem percebi que estava descrevendo tudo para Neferet até depois que já tinha passado... depois que eu me recuperei da visão e ela já tinha enviado o Exército Vermelho para acabar com eles. – Aphrodite respirou fundo e enxugou as lágrimas que estavam escorrendo pelo seu rosto pálido. – Mas você está certo. Eu sou responsável pela morte deles. Eu sou responsável por todas essas mortes.
– Eu não entendo. Se você sabe como Neferet é horrível, por que você continua contando a ela sobre suas visões?
– Eu tento não contar! E quando não posso esconder que tive uma visão, tento deixar de fora qualquer detalhe que possa levar aquele maldito exército de monstros até as pessoas que eu os vejo massacrando... mas eu também quero sobreviver! Eu detestei contar a ela sobre a Resistência escondendo pessoas naqueles fardos de feno, mas eu sabia que já tinha chegado ao meu limite com Neferet. Ela ia me fazer viver nos túneis com aquelas criaturas. Eu não posso fazer isso. Simplesmente não posso.
Kevin não conseguiu dizer nada. Ele queria dizer que ela poderia se levantar contra Neferet. Que ela poderia ser forte. Ele conhecia uma Aphrodite que era forte, mas, enquanto a observava, ele percebeu que ela não era aquela Aphrodite. Ainda.
Ele colocou o Hummer em movimento e saiu do estacionamento, virando em direção ao norte para o centro da cidade.
– Você não vai me levar para Dragon?
– Não.
– Para onde você está indo?
– Para a estação. Você pode dirigir o Hummer de lá para a Morada da Noite – ele disse.
– Você não vai mesmo me entregar para a Resistência?
– Não vou.
– Por que não? – ela perguntou.
– Porque eu não sou um monstro – ele respondeu. – Eu tenho a capacidade de amar e de perdoar. Eu perdoo você. Você fez o que achou que tinha que fazer para sobreviver. Você ainda está fazendo isso. Acho que todos nós estamos.
– É assim tão ruim lá nos túneis quanto eu acho que é?
– Pior – Kevin falou.
– Eles não vão conseguir ver que você não é igual aos outros?
Kevin suspirou.
– Espero que não.
– Mas, se eles descobrirem isso, provavelmente vão te matar. Ou te devorar. – Ela estremeceu. – Ou alguma outra coisa medonha e horrível.
– Bom, eu tenho aquela gosma de sangue e estou acostumado a esconder o que realmente sinto quando estou perto de outros vampiros vermelhos. Você disse que eu estou fedendo, certo?
– Sim. Com certeza. Você não sente o cheiro?
– Tento não sentir.
Aphrodite riu alto e, quando Kevin estava se preparando para virar na rua que ia levá-los até a estação, ela disse:
– Não vire aí.
– Mas é o caminho mais rápido até a estação.
– Eu sei, mas vire à direita.
– Esse não é o caminho para a estação.
– Sim. Eu sei. Vá para a Saks.
– Ahn? – Ele estava olhando para ela sem entender e quase subiu na guia.
– Ah, que merda! Olhe por onde anda e feche a boca – ela disse.
– Por que você quer que eu a leve até a Saks?
– Shhh. Estou pensando. Apenas dirija.
Kevin fez o que ela pediu, indo até a Utica Square e a Saks Fifth Avenue, que era a loja-âncora do centro de compras ao ar livre.
– Estacione ali nas sombras na lateral, não na frente – Aphrodite o orientou.
Ele entrou em uma vaga escura e estacionou o Hummer.
– Então, imagino que devo esperar aqui fora enquanto você vai fazer compras e depois vou dirigir até a estação?
– Não. – Aphrodite enfiou a mão na sua bolsa gigante, fazendo a garrafa de champanhe intocada que sobrou tilintar contra uma das taças flûte de cristal. – Achei... venha com a Mamãe – ela murmurou enquanto pegava um cartão de crédito platinum, que entregou para Kevin. – Pegue isto aqui. Compre roupas novas para você. Roupas que não estejam fedidas e que vistam bem. E nada dessas calças jeans skinny também. Esse look hipster é ridículo. Pegue algumas camisetas também. Nada berrante. Só uma coisa simples e, repito, que não vistam mal. – Ela deu um olhar de reprovação para as roupas dele, emprestadas de Dragon, que era decididamente mais baixo e mais musculoso do que Kevin. – Pegue o suficiente para encher quatro ou cinco sacolas grandes. Ah, e não se esqueça de pegar um pijama masculino. Mantenha isto em mente quando for escolher o pijama: eu não quero ver a sua salsicha caída através dele, então pegue algo com forro.
– Estou tão confuso. – Kevin encarou o cartão de crédito. – Por que você está me dando isso?
– Você tem dinheiro suficiente para comprar quatro ou cinco sacolas de roupas da Saks?
– Claro que não.
– É por isso que estou te dando o meu cartão.
– Aphrodite, eu agradeço muito, mas o que eu estou usando está mais do que bom para os túneis.
– Sim, eu concordo. Mas não está bom o suficiente para andar comigo – ela disse.
– Quê?
Ela suspirou dramaticamente.
– Eu. Tenho. Um. Plano. Agora entre aí, faça o que eu disse e me deixe pensar em tudo.
– E se eles notarem que eu não sou Aphrodite LaFont?
Ela revirou os olhos para o alto.
– Use aquela coisa de controle mental de vampiro vermelho nessa gente simplória.
– Ah, sim. Tinha esquecido disso. Ok. – Ele começou a abrir a porta e fez uma pausa. – Hum, você precisa de alguma coisa de lá?
Ela estremeceu.
– Não. Não é a Nordstrom. Eu prefiro a Miss Jackson’s.
Ele sorriu maliciosamente para ela.
– Ei, no mundo de Zo a Miss Jackson’s fechou.
Aphrodite ergueu a mão para impedi-lo de falar mais.
– Não cometa uma blasfêmia dessas. Agora suma. E vá logo. Eu só tenho mais essa garrafa de champanhe.
– Sim, senhora. – Ele prestou uma continência para Aphrodite e então fez exatamente o que ela tinha mandado.
21
Zoey
Horda Nerd e nossos Guerreiros e companheiros!
Encontrem-me na árvore quebrada. Tragam velas de círculo
& sálvia. Muita sálvia. Estarei lá em 10 min.
Não me dei tempo para pensar melhor. Apertei o botão de ENVIAR no grupo e então voltei minha atenção para a mesa do Centro de Mídia na minha frente e para o velho livro aberto com cheiro de mofo com o título simples de Magia Antiga. Voltei folheando algumas páginas e reli o final do capítulo anterior.
Lembre-se, quando pedir o auxílio de seres de Magia Antiga, principalmente espíritos elementais, sempre há um preço. Com frequência eles se satisfazem com sangue, mas os Antigos ficam entediados facilmente e gostam de excentricidades. Eles tendem a valorizar pagamentos incomuns e difíceis de obter. Garanta que o método de pagamento é específico e garanta ainda mais que o pagamento seja feito imediatamente. Não cometa o erro de acreditar que pode escapar da dívida que fez com os Antigos. Você não irá escapar – mesmo se o pagamento requerido for a sua vida. Você irá morrer. Disso não há a menor dúvida.
– Que inferno! – eu disse para o livro e para a Grande Sacerdotisa vampira morta há muito tempo que o tinha escrito séculos atrás. – Inferno, inferno, inferno. Eu detesto isso.
Mas não havia nada que eu pudesse fazer em relação a isso. Eu já tinha tomado a minha decisão. Eu inclusive acreditava que era uma decisão inteligente. Bom, eu esperava que fosse uma decisão inteligente. Independente de ser inteligente ou não, eu acreditava que era a decisão certa.
– Stark vai ficar tão irritado – eu murmurei para mim mesma.
– Por que eu vou ficar irritado?
Eu dei um pulo e me virei na minha cadeira.
– Deusa! Você me assustou.
– Eu te assustei porque você está se escondendo aqui e achou que ninguém fosse te encontrar? – Ele se sentou ao meu lado e olhou com desconfiança para o livro aberto.
– Eu não estou me escondendo. Estou pesquisando. Sozinha.
– Desculpe. Não quis te atrapalhar.
Ele começou a se levantar e eu segurei a mão dele.
– Não vá. Desculpe. Falei de um jeito rude, não foi o que eu quis dizer. – Respirei fundo para me acalmar. Eu não queria ter aquela conversa com Stark. Nunca. Só que já estava na hora de parar de ficar fugindo feito criança. Eu tinha tomado a minha decisão, então precisava contar a verdade para ele. – Eu preciso conversar com você.
Ele virou a sua cadeira para me encarar.
– Finalmente!
O olhar de alívio dele me deu um aperto no estômago.
Stark tocou o meu rosto de um jeito doce e íntimo que sempre me dava um frio na barriga e abriu aquele sorriso metidinho dele que eu amava desde que o conheci.
– Ei, seja o que for, a gente pode lidar com isso. Juntos. Só me conte o que está errado e então vamos descobrir como resolver o problema.
Eu me inclinei para a frente e o beijei – de leve e devagar. Ele me puxou para os seus braços e retribuiu o beijo, e naquele momento eu deixei que o meu mundo fosse preenchido pelo meu Guerreiro, meu amante, meu Guardião e meu amigo.
Quando finalmente nos separamos, o seu sorriso ficou metidinho de novo.
– Se o problema for que você precisa ser beijada assim com mais frequência, eu tenho a solução. É um trabalho difícil, mas você pode definitivamente contar comigo, minha Rainha.
Eu dei um soco de brincadeira no ombro dele.
– Um trabalho difícil?
– É, mas alguém tem que fazê-lo.
Eu balancei a cabeça para ele e então fiquei séria. Chega de procrastinar! Simplesmente conte para ele.
– Eu vou para o Outro Mundo atrás de Kevin – eu disse.
– É, bom, eu já imaginava. Quando partimos?
Eu peguei a mão dele com as minhas.
– Eu vou hoje à noite. Você vai ficar aqui.
Ele não disse nada por vários segundos. Então, lentamente, ele puxou a sua mão que estava entre as minhas.
– Por quê? – a voz dele soou sem alterações, mas os seus olhos se encheram de dor.
– Bom, Neferet tem que ser detida e não posso deixar Kevin destruir a si mesmo com Magia Antiga, coisa na qual está bem encaminhado. Ele está usando Magia Antiga. Você pode sentir a frequência com que ele está fazendo isso. Ele deve acreditar que precisa. Sei que eu mesma acreditei. Todos nós sabemos disso. Neferet é um pesadelo, mas Kevin não entende nada sobre Magia Antiga nem sobre Neferet, e isso vai...
– Não perguntei por que você está indo para lá – Stark me interrompeu. – Eu já tinha entendido isso. Por que eu não vou?
– Ah. Desculpe. Porque você não pode.
– Se você pode atravessar para um Outro Mundo, por que diabos eu não posso?
– Não quis dizer que você não pode fisicamente. Eu quis dizer que você não pode porque já tem um James Stark no Outro Mundo. Ele é um general no exército de Neferet. Kevin disse que ele inclusive é amante de Neferet. – Fiz uma careta. – O que é tão nojento que não suporto nem pensar, e pode acreditar... eu vou fazer o possível para dar um jeito nisso. Deusa, você consegue imaginar como...
– Eu não ligo pra isso. Aquele não sou eu. Eu me importo com você. Essa Zoey aqui... minha Rainha, a quem eu sou Juramentado como seu Guerreiro e a quem eu protejo como o seu Guardião concedido pela Deusa. Z, eu entendo por que você tem que ir. Sei que você tem pensado sobre isso, que está preocupada com o Outro Kevin, eu até esperava mesmo que você fosse. Mas eu tenho que ir com você.
Eu balancei a cabeça.
– Sinto muito. Queria que você pudesse ir, mas não faz o menor sentido. Você já está lá. E não dá pra disfarçar sua presença. Eu preciso circular por lá discretamente, dizer para Kevin parar de usar Magia Antiga, ajudá-lo a derrotar Neferet, o que acho que eu já descobri como fazer, e então voltar para cá. – Encontrei o olhar angustiado dele e disse o que eu precisava dizer. Disse o que ele não queria escutar, mas precisava. – Stark, você não ia me ajudar se fosse para lá. Você iria dificultar ainda mais o que já vai ser difícil. Sinto muito – eu repeti. – Mas já decidi. Eu vou e você não.
A dor se transformou em raiva.
– Pensa que eu não sei o real motivo para você não querer que eu vá? É porque você vai encontrar Heath e não quer que eu fique segurando vela!
Eu já esperava que ele dissesse isso. Eu já esperava a sua mágoa e a sua raiva, mas isso não tornava a situação nem um pouco mais fácil.
– Não, Stark. Não é por isso que você não pode vir comigo. Se você fosse pego, o que seria fácil porque o seu equivalente lá é um general poderoso que todo mundo conhece, você seria morto. Ou torturado. Ou coisa pior. E eu não conseguiria aguentar isso. Na verdade, vai além de eu poder aguentar isso ou não. Tem a ver com mais coisas do que o que você pode ou não aguentar. Se eles o pegassem, isso seria ruim para Kevin e para o mundo dele com certeza, mas ruim para o nosso mundo também. Stark, pense. O que aconteceria se Neferet descobrisse que há um mundo inteiro aqui em que ela não está no comando? E pense no que ela faria se... ou melhor, quando o Outro Kevin e a sua Resistência virarem o jogo e começarem de fato a derrotá-la. O que Neferet faria?
– Não sei, porra!
– Você sabe, sim. Todos nós sabemos. Ela iria fugir. E ela iria fugir para este mundo. – Peguei a mão dele de novo. – Stark, eu te amo. Eu detesto te magoar. E eu não vou para lá só para ver Heath. Mas isso não tem a ver com nós dois. Tem a ver com dois mundos inteiros e garantir que as Trevas não vençam nunca.
– Você escutou o que disse? Você não vai para lá só para ver Heath! “Só”! – Ele fez aspas no ar com os dedos. – Mas você vai encontrá-lo, não vai?
– Não sei. Kevin me disse que ele está na Universidade de Oklahoma. Eu não vou para lá. Eu vou para Tulsa.
– Eu não acredito em você.
– Por favor, não faz isso comigo. Não tenha ciúme de alguém que nem está vivo – eu disse.
– Mas esse é o problema, né? Ele está vivo naquele mundo para onde você está morrendo de vontade de ir.
Desta vez eu soltei a mão dele por vontade própria.
– Você acha mesmo que eu quero ir? Que eu quero lutar com Neferet de novo? Que eu quero deixar a minha casa, os meus amigos e você? – Balancei a cabeça. – Você está com ciúme e está errado. – Eu me levantei. – Marquei um encontro na árvore quebrada. Tenho que ir.
– Sim, eu sei. Eu recebi a sua mensagem no grupo. Foi super íntima. – Ele se virou na cadeira e ficou olhando o livro em vez de me olhar. – Era assim que você ia me contar?
– Por mensagem? Claro que não!
– Não foi isso que eu pensei. Perguntei se você ia me contar que ia para lá e que eu ia ficar aqui na frente de todo mundo.
Mordi a parte interna da bochecha. Na verdade, eu tinha planejado contar para todo mundo junto que eu estava indo – e quem ia e quem não ia comigo. Bom trabalho, Z. Stark agora pensa que você queria insultá-lo e constrangê-lo, além de trocá-lo por Heath.
– E-eu não queria ferir os seus sentimentos. Só sei que eu tenho que ir e que tenho que contar isso para todo mundo. Não pensei que você ficaria louco se eu contasse para todos ao mesmo tempo – eu falei pateticamente.
Então ele levantou os olhos para mim.
– Eu não estou louco porque você ia contar para mim ao mesmo tempo que para os outros. Estou triste. Triste por ser só isso que eu significo para você.
– Stark! Você significa tudo pra mim!
– Isso é papo furado.
Eu fui até o lado dele e coloquei a mão no seu ombro. Quis tocar o cabelo dele, o seu rosto, beijá-lo e nunca mais soltá-lo, mas ele se esquivou da minha mão e voltou o seu olhar triste e nervoso para o velho livro aberto na frente dele.
– Eu te amo. Isso não é papo furado. Você sabe disso. Você só precisa sentir... sentir a nossa ligação.
– Você acha que eu vou conseguir sentir quando você estiver lá? – ele perguntou sem expressão.
– Não sei – eu disse. – Espero que sim. Acho que posso sentir a minha ligação com você em qualquer mundo.
– Eu espero que não.
Aquelas quatro palavras me cortaram fundo, penetraram através da minha pele, músculos e ossos e me deixaram sem voz e muito, muito triste. Peguei a minha mochila e a joguei por cima do ombro. Então dei as costas para o meu Guerreiro e saí do Centro de Mídia.
Estavam todos lá. O meu círculo: Aphrodite, Damien, Shaunee, Shaylin e Stevie Rae. E também os seus Guerreiros e amantes: Darius, Jack, Erik, Nicole e Rephaim.
Só que nenhum sinal de Stark. Ele não tinha me seguido quando saí do Centro de Mídia. Engoli a minha tristeza e me aproximei da árvore quebrada e escura, pisando sem fazer barulho para poder observar os meus amigos antes que eles percebessem que eu estava ali.
Aphrodite estava obviamente no comando. Ela estava apontando para alguns lugares em volta da árvore arruinada, e Outro Jack, super fofo com uma camiseta violeta clara por dentro de uma adorável calça jeans rasgada, estava levando as velas ritualísticas para os pontos que ela tinha escolhido. Era fácil ver o que Aphrodite estava fazendo, e eu me enchi de gratidão por ela. Ela estava estabelecendo uma circunferência ao redor da árvore, preparando tudo para o traçado do círculo.
Stevie Rae estava segurando uma pilha grande de bastões de defumação de sálvia, os quais ela foi entregando para Damien, Shaunee e Shaylin.
Ótimo. Essa vai ser a parte fácil. Espero que eles estejam preparados para o que vai acontecer em seguida.
– Ei, Z! Aí está você! – Stevie Rae sorriu com covinhas para mim. – Eu trouxe a sálvia.
– E eu trouxe as velas – Outro Jack disse, abrindo um sorriso luminoso e doce para mim.
– Imagino que você vá fazer a limpeza desta árvore horrorosa – Aphrodite disse.
– Vou sim – eu disse. – Vamos começar com isso, só que primeiro preciso falar com todos vocês.
Os meus amigos se aproximaram, formando uma meia-lua atenta diante de mim. Eu analisei os rostos deles, pensando em todas as coisas pelas quais havíamos passado e como isso tinha nos deixado próximos. Eu não queria partir. Eu não queria encarar Trevas que já tínhamos derrotado. Eu me senti triste, com medo e muito sozinha.
– Está tudo bem, Z – Stevie Rae afirmou. – Seja o que for, estamos aqui com você.
– Só conte o que você precisa – Damien falou. – Vamos resolver.
– A sua aura está forte. Seja o que for, você está em paz com essa resolução – Shaylin observou.
– Lembre-se de que você não está sozinha – Shaunee disse. – A gente está aqui pra te proteger.
– Assim como Nyx – Aphrodite acrescentou. – A Deusa está com você também. Sempre, Z.
O resto dos meus amigos assentiu concordando.
Pisquei bem rápido, determinada a não deixar as minhas lágrimas caírem.
– Obrigada. Isso significa muito para mim, e eu realmente precisava ouvir que tenho o apoio de vocês. Espero continuar com ele quando contar o que está rolando.
– Você sempre vai ter – Stevie Rae afirmou. – Você é a nossa Grande Sacerdotisa. Nós confiamos em você, Z.
Quando senti que poderia falar sem explodir em lágrimas, eu comecei.
– Primeiro, nós vamos purificar esta árvore. Não vamos fazer nada muito louco, só um trabalho básico de defumação e limpeza, apesar de que eu vou pedir para todo mundo participar e ajudar a defumar. Ela precisa de muita limpeza.
– Você quer que a gente fique dentro ou fora do círculo? – Erik perguntou.
– Boa pergunta – eu disse, sorrindo para ele, que estava ao lado de Shaunee, com um braço em um gesto íntimo colocado sobre os ombros da minha amiga, que se recostava nele. – Quero vocês com a gente dentro do círculo, como estariam se fosse um ritual para toda a escola. Então, Jack, você pode, por favor, mexer as velas dos elementos mais para fora, para que o nosso círculo fique um pouco maior?
– Com certeza! – Jack imediatamente saiu correndo em volta do círculo, reposicionando as grandes velas votivas de modo a incluir todo mundo.
– Eu vou invocar os elementos e traçar o círculo. Aqueles que representam os quatro elementos, por favor acendam os bastões de sálvia nas suas velas elementais. Os outros podem acender os seus bastões na minha vela do espírito. – Uma ideia me ocorreu, e eu decidi que era um acréscimo perfeito a uma defumação simples. – Mas eu quero fazer disso mais do que uma simples defumação. Esta árvore... este lugar tem tanta tristeza e Trevas ligadas a ele que nós precisamos fazer algo a mais com a defumação. Precisamos trazer a alegria de volta para cá. E se a gente fizer a defumação acompanhados de uma música?
– Eu apoio totalmente! – Stevie Rae exclamou. – Que tal usar...
– Ah, que merda, não! – Aphrodite a interrompeu. – Nada de músicas do Kenny Chesney.
Stevie Rae franziu as sobrancelhas para ela.
– Você está cortando o meu coração.
– Tem que ser uma música super alegre – eu disse. – Uma que todo mundo conheça e que alguém tenha no celular.
– “When the Sun Goes Down” do Kenny Chesney é super alegre – Stevie Rae sugeriu.
Aphrodite bufou.
– Bom, segundo um grupo de pesquisadores da Universidade do Missouri, “Don’t Stop me Now” do Queen, com o seu sempre fabuloso Freddie Mercury, é cientificamente a canção mais alegre do mundo – Damien afirmou.
Todo mundo se virou para ele.
– Como diabos você sabe disse? – Aphrodite perguntou.
– Eu sou inteligente e leio bastante – Damien respondeu.
– Quando ele pratica esgrima, ouve essa música. Muitas vezes – Jack lembrou, correndo de volta para o lado de Damien. – E vocês sabem como o meu Damien é um espadachim incrível!
– Isso é verdade – eu concordei. – Então, você tem essa música na sua playlist?
– Tenho – Damien disse.
Antes que eu pudesse perguntar se todo mundo conhecia a música, Jack levantou a mão como um menininho na escola encarnado.
– Sim, Jack?
– Hum, eu acabei de pensar em uma música. Uma muito, muito alegre que eu tenho certeza que todo mundo conhece. E está na minha playlist. – Ele se inclinou para Damien. – Desculpe, Damien. Espero que você não se importe.
– Eu não me importo. Qual é a música? – Damien perguntou.
Jack respondeu cantando.
– “Gota de chuva, bigode de gato...”
Stevie Rae continuou o próximo verso da canção.
– “Laço de fita, cordão de sapato!”
– “Flor na janela e botão no capim” – Shaunee cantou.
– “Coisas que eu amo e são tudo pra mim!” – Aphrodite me surpreendeu totalmente ao se juntar ao coro. – O que foi? – Ela franziu o cenho quando todo mundo a encarou. – Quem não gosta de Noviça Rebelde?
– O que você acha, Damien? – eu perguntei.
– Acho que eu amo bolas de neve e botão de pijama! Não é científico, mas eu voto em “Coisas que eu amo”.
– Por mim parece ótimo. Hum, todo mundo conhece, certo? – perguntei para o grupo, e todos, exceto Rephaim, assentiram.
– Eu vou tentar acompanhar vocês – Rephaim disse.
– Tudo bem, amor – Stevie Rae o apoiou. – Eu sei a letra inteira. Vou te ajudar.
– Ok, perfeito. Então, quando a música acabar, a gente vai terminar a defumação fazendo uma pequena pira ali, no meio do círculo, bem na frente da árvore. – Eu apontei para um lugar à frente do centro do carvalho escuro e retorcido. – Eu vou dar a volta no círculo e pegar os bastões de defumação de Damien, Shaunee, Shaylin e Stevie Rae, e então vou juntá-los ao resto dos bastões. Shaunee, depois disso vou pedir a você para acrescentar um pouco de fogo à pilha para que ela queime direito.
– Facinho – Shaunee falou.
– Isso significa que você vai deixar o círculo aberto depois da defumação – Aphrodite observou. – Então, o que vem depois?
Eu encontrei o olhar dela.
– Depois eu invoco Oak, o espírito da árvore de Magia Antiga que respondeu às minhas perguntas.
– Por que você vai mexer com Magia Antiga de novo? – Aphrodite perguntou.
– Porque vou pedir que ela me guie até o Outro Mundo, onde o meu irmão precisa da minha ajuda – respondi rápido e senti uma onda de alívio instantânea por finalmente ter contado para todo mundo.
– Isso é loucura total – Aphrodite disse.
– Não! – Os olhos de Outro Jack estavam arregalados. Ele parecia completamente aterrorizado. – Não vá, Zoey! Aquele mundo é horrível. – Ele tremia, com os braços envolvendo o seu próprio corpo. – Eu sei que o seu irmão contou algumas coisas sobre aquele lugar pra você, mas não é possível que você realmente compreenda o que acontece. Simplesmente não dá. Não vá! – Ele começou a chorar baixinho, e Damien o abraçou.
– Por que você acha que precisa ir para lá? – Darius me perguntou.
– Por várias razões – eu respondi. – Kevin tem usado Magia Antiga. Muito. E ele não tem a menor ideia de como isso é perigoso ou o que pode fazer com ele. Tenho que contar a ele antes que isso o transforme.
– Ele está usando porque é a única maneira de derrotar Neferet – Aphrodite argumentou.
– Não, não é – eu rebati. – Era a única maneira de derrotar a nossa Neferet, porque ela havia se tornado imortal.
– Bom, será que não faz sentido pensar que do lado de lá, ela já está no caminho de se tornar imortal, assim como foi aqui? – Shaunee questionou.
– Sim. E essa é outra razão pela qual eu tenho que ir para lá. Neste momento, Neferet é apenas uma vampira. Como saber o que vai acontecer se eu esperar mais? Além disso, eu tenho um plano para jogar o Exército Azul contra ela.
– Como? – Aphrodite quis saber.
– Jack, corrija-me se eu estiver errada, mas, pelo que o meu irmão me contou, os Guerreiros acreditam que Neferet ainda está a serviço de Nyx, certo?
Jack fungou e assentiu vigorosamente.
– Ah, sim. Neferet é a única Grande Sacerdotisa deles. Eles contam com ela para saber a vontade de Nyx.
– E o que aconteceria se houvesse uma prova irrefutável de que Neferet não está mais seguindo a vontade de Nyx? – eu perguntei.
– Os Guerreiros não a seguiriam mais. Bom, pode ser que alguns continuassem a segui-la. Tipo, alguns dos seus amantes. E ela tem muitos. Mas a maioria iria parar de lutar por ela, e isso inclui uma boa parte do Exército Azul – Jack respondeu.
– Esse é o meu plano – eu concluí. – Vou mostrar para todos na Morada da Noite de Tulsa no Outro Mundo que Neferet é uma fraude. Que ela está usando os seus poderes para as Trevas e não está mais seguindo Nyx.
– Bom plano, Z, mas como você vai fazer isso? – Stevie Rae questionou.
Eu sorri para a minha melhor amiga e para o seu companheiro.
– Bom, para isso eu vou precisar da ajuda de Rephaim.
– Minha ajuda? Claro que eu ajudo você – Rephaim falou sem hesitar. Então ele piscou e eu vi a compreensão brotando no seu rosto. – Você vai libertar o meu pai naquele mundo!
– Sim, isso é parte do meu plano. Quer uma maneira melhor de mostrar que Neferet não está seguindo Nyx do que ter o seu Consorte alado a denunciando na frente da Morada da Noite inteira?
– Mas Kalona era um verdadeiro idiota logo que ele foi libertado desse lado. Que diabos você vai fazer em relação a isso? – Aphrodite quis saber.
– Eu vou contar com o filho de Kalona para se conectar a ele – eu respondi. – E comigo também. Lembre-se de que eu ainda tenho um pedaço de A-ya dentro da minha alma. Rephaim e eu, juntos, devemos ser capazes de influenciar Kalona, principalmente porque a gente sabe que lá no fundo ele ainda ama Nyx, e só era tão terrível porque pensava que a Deusa nunca iria perdoá-lo.
– E nós vamos convencer o meu pai de que ele está errado em relação a isso – Rephaim completou.
– Espero que bem mais rápido do que ele foi convencido por aqui – Aphrodite resmungou.
– Então, você quer que Rephaim vá para o Outro Mundo com você – Stevie Rae disse.
– Sim, eu quero.
– Mas, mesmo se isso funcionar, ainda vai ser preciso lidar com o Exército Vermelho – a voz de Jack soou trêmula. – E eles são monstros. Eles não ligam para quem Neferet segue. Eles não ligam para Trevas e Luz. Eles só se importam em saciar a sua fome.
– E é por isso que o meu plano tem uma segunda parte. Stevie Rae, desculpe, mas eu preciso pedir que você venha comigo também, por favor.
O olhar de alívio dela me deu um aperto no coração.
– Ah, Z! É claro que eu vou com você!
– Se eu estou entendendo esse seu plano, você vai precisar de mim também – Aphrodite falou.
– Sim, mas não essa versão de você. A Outra Aphrodite – eu respondi.
– Ok, olhe só, seria muito mais fácil se eu fosse com você – Aphrodite insistiu.
– Você não pode. Você já está lá, e você é uma Profetisa, mas também é uma vampira azul completamente Transformada. Não a primeira vampira azul e vermelha da história – eu a relembrei.
– E daí? Erik pode me dar um pouco daquela porcaria que eles usam nos atores para cobrir as suas Marcas para que os humanos consigam esquecer que estão vendo vampiros atuarem – Aphrodite argumentou.
– É, posso sim. Tem bastante disso na sala de Teatro – Erik disse.
– Apesar de o meu homem não usar esse tipo de coisa – Shaunee observou. – Porque se aqueles humanos intolerantes e idiotas não conseguem ter empatia suficiente para se identificar com alguém que parece diferente, isso é problema deles e eles podem parar de assistir aos seus filmes.
– Mas todos querem assistir aos seus filmes – Jack soou adoravelmente deslumbrado.
Erik deu para Jack aquele sorriso de estrela de cinema iluminado por vários megawatts.
– Então acho que eles vão ter que aceitar quem eu realmente sou, ou, que pena, eles terão que ficar sem filmes.
Jack deu uma risadinha.
Cara, Erik cresceu! Pensei. Que bom para ele.
– Erik, você pode ir buscar essa maquiagem para mim?
– Estou indo. Volto em um segundo. – Erik saiu correndo.
– Viu? Eu posso cobrir a parte vermelha da minha Marca e ir para lá com você. A gente faz a nossa coisa juntas, e os novatos e vampiros vermelhos vão ter sua humanidade de volta. Nada de mais – Aphrodite disse.
– E o que a gente faz com a Outra Aphrodite? – Eu me virei para encarar minha amiga, detestando ter de provocar dor nela com o que eu precisava dizer. – O que o fato de você a substituir vai causar nela? Significa que ela nunca vai crescer? Nunca vai aprender a se importar com outras pessoas além dela mesma? Nunca vai aprender a ter empatia ou que às vezes amor significa fazer um sacrifício? Nunca vai aprender a parar de se automedicar e enfrentar a sua mãe?
Aphrodite me encarou, o seu rosto ficando pálido.
– E se ela não for capaz de aprender? Eu perguntei a Outro Jack sobre ela. Definitivamente, ela não está trabalhando com a Resistência. Ela é aliada de Neferet. E se a eu do Outro Mundo já estiver perdida para as Trevas e você não conseguir sensibilizá-la como fez comigo porque Neferet matou você lá cedo demais?
– Nos seus corações, nas suas almas, vocês são a mesma pessoa. Eu conheço esse coração, e ele não é feito de Trevas. Você tem mais Luz em você do que qualquer um de nós. Nyx nos mostrou isso pelos dons que concedeu a você. Eu posso sensibilizar a Outra Aphrodite.
– Eu não apostaria a minha vida nisso – Aphrodite disse.
Sem nenhuma hesitação, eu respondi:
– Eu aposto. Quantas vezes eu precisar.
– Eu também – Darius falou, colocando o braço ao redor de Aphrodite.
– Eu também – Stevie Rae concordou. – Mesmo que você e eu discordemos totalmente no gosto musical.
– E no seu estilo de moda – Aphrodite acrescentou.
– Eu também acredito em você, Profetisa – Rephaim reforçou.
– Todos nós acreditamos – Shaunee enfatizou.
– Z vai sensibilizá-la porque você não é a única de nós que recebeu grandes dons de Nyx – Shaylin explicou. – Zoey também recebeu.
Eu observei Aphrodite enxugar as lágrimas antes de perguntar:
– Se não é para mim, por que Erik foi buscar aquela porcaria de maquiagem?
– É para Stevie Rae! – Jack respondeu como se uma lâmpada tivesse acabado de se acender sobre a sua cabeça. – Você tem que cobrir a Marca dela porque não existem vampiras vermelhas mulheres no meu mundo.
– Exatamente, Jack. – Dei umas palmadinhas na mochila que ainda estava pendurada no meu ombro. – Por isso que eu tenho um lápis de maquiagem safira aqui. Stevie Rae, está pronta para ser uma novata azul de novo?
– Claro! Mas espero que desta vez tudo corra melhor do que antes.
– Pode apostar nisso – eu disse. – Porque eu vou me juntar a você. E desta vez como uma novata azul normal.
– Sério? – Shaunee disse.
Em vez de respondê-la, fiz outra pergunta.
– Jack, tem outras Grandes Sacerdotisas no seu mundo?
– Não. Não mais. Neferet é a única Grande Sacerdotisa de lá – ele respondeu.
– E o meu palpite é que Neferet fica de olho nas Sacerdotisas remanescentes... para o caso de alguma delas começar a se desenvolver como uma Grande Sacerdotisa. Estou certa?
– Bom, não é como se eu fosse próximo a ela nem nada do tipo, mas todo mundo sabe que Neferet não permite que nenhuma outra Sacerdotisa conduza os rituais da escola. Ela tem que liderar tudo, mas ela não deixa que os novatos e os vampiros vermelhos participem dos rituais de qualquer jeito.
Balancei a cabeça.
– Ela deve ter feito alguma coisa terrível com as Grandes Sacerdotisas para conseguir calar a boca delas e deixá-las de lado.
– Eu não sei muito sobre isso, mas há rumores... Coisas sussurradas nos túneis onde Neferet nunca vai. Dizem que ela as matou.
– Deusa, não pode ser! – Shaylin ofegou, e Nicole pegou a mão dela para reconfortá-la. – Isso é horrível! O coração de Nyx deve estar partido!
– E essa é a terceira razão pela qual nós temos que ir para lá. Nyx precisa de nós. Todos nós sabemos que a Deusa não manipula a ação dos mortais, mas conhecemos a vontade dela. Stevie Rae, Rephaim e eu. E nós vamos acabar com as atrocidades que Neferet tem cometido em nome de Nyx.
O meu círculo assentiu, concordando sobriamente, enquanto Erik chegou correndo. Ele me entregou uma sacola cheia de esponjas e um pote grande de maquiagem.
– Tudo que você precisa está aí dentro. Eu trouxe o tipo que é à prova de água. É um inferno para tirar, mas vocês não vão ter que se preocupar com nenhuma Marca aparecendo por baixo, nem se pegarem chuva ou neve.
– Obrigada, Erik.
– Merda11 para você lá. Eu acredito em você – ele disse.
Eu enfiei a sacola na minha mochila e tive que limpar a garganta antes de falar, mas finalmente consegui dizer:
– Ok, acho que isso é tudo. Estão todos prontos?
Perguntei para o grupo, mas só observei Stevie Rae e Rephaim. Eles foram os primeiros a responder.
– Sim. Estou pronto – Rephaim disse.
– Eu também, feito um porco pronto para chafurdar na lama! – Stevie Rae falou, e todo mundo (menos Aphrodite) riu e assentiu.
– Cadê o Stark? – Aphrodite perguntou, calando a boca de todo mundo.
– A última vez que eu o vi, ele estava no Centro de Mídia – eu respondi.
– E por que o seu Guerreiro não está aqui ao seu lado? – Darius questionou.
– Porque eu não deixei ele vir comigo.
– Ele não pode! – Jack exclamou. – Todo mundo conhece o General Stark. Mesmo com a Marca vermelha dele coberta, qualquer um que o visse perceberia em um segundo que ele é parecido com o general e iriam pegá-lo.
– Eu sei, e foi isso que eu disse a Stark, mas ele não consegue suportar a ideia de que estou indo enfrentar o perigo sem ele. – Respirei fundo e contei o resto da verdade. – E ele acha que eu estou indo lá para ver Heath, o que o chateia. Muito. – Eu hesitei e então fiz um pedido. – Pessoal, depois que eu for, vocês podem ficar de olho no Stark, por favor? Ajudá-lo a passar por isso? Eu vou voltar, e quando eu estiver de volta vou fazer as pazes com ele. Vou fazê-lo entender, mas até lá eu só... – Então perdi as palavras quando uma sensação de perda e tristeza tomou conta de mim. E se Stark nunca me perdoar por isso?
– Nós vamos ajudá-lo – Damien prometeu. – Não se preocupe com isso. Se concentre no que você tem que fazer do outro lado para voltar para cá. Eu vou conversar com Stark.
Fui até Damien e o abracei forte.
– Obrigada – sussurrei. – Diga a ele que eu o amo muito.
– Vou dizer, mas ele já sabe, Z – Damien sussurrou de volta.
Eu saí do abraço reconfortante de Damien.
– Pessoal, vejam se todos pegaram o seu bastão de defumação e vão para os seus lugares. Vamos acabar logo com isso!
11 Maneira de atores desejarem boa sorte antes de entrarem no palco. Em inglês, a expressão usada é “break a leg” (quebre uma perna). (N.T.)
22
Zoey
Foi legal ter os meus amigos se juntando a mim dentro do círculo, e eu percebi como fazia tempo desde a última vez que havia conduzido um ritual importante. Vou ter que melhorar isso quando voltar, prometi a mim mesma. Porque eu iria voltar, assim como Stevie Rae e Rephaim.
Damien, Shaunee, Shaylin e Stevie Rae assumiram as suas posições em cada um dos quatro quadrantes do círculo, segurando as suas velas rituais. Os Guerreiros e amantes também se espalharam, preenchendo o círculo. Fui para o centro, onde Jack havia colocado a minha vela roxa do espírito e uma caixa de fósforos longos. Fiz uma pausa por tempo suficiente para respirar profundamente várias vezes para me purificar. Então abri a minha mochila e facilmente encontrei o sino que eu tinha colocado no bolso da frente. Segurando-o com cuidado para que não começasse a soar, peguei os fósforos e fui até a borda leste do círculo, onde Damien estava parado, cheio de expectativa, com a sua vela amarela do ar em uma mão e o seu bastão de defumação na outra.
– O ar nos dá a respiração e muito mais. Sem ele, nós não seríamos capazes de gritar, rir, chorar ou gritar. É o primeiro elemento que conhecemos quando nascemos, então nós sempre começamos o círculo com sua invocação. Ar, por favor, venha e ajude a soprar para longe as Trevas que macularam esta árvore. Eu dou as boas-vindas a você no nosso círculo! – Acendi a vela de Damien e um sopro de uma brisa quente levantou o meu cabelo. Assim que senti o ar, segurei o sino no alto e o toquei com força e ele soou claro três vezes.
Então eu fui no sentido horário, ficando diante de Shaunee ao sul.
– O fogo nos aquece. Ele nos nutre cozinhando a nossa comida e nos limpa queimando aquilo que não é mais útil. Fogo, por favor, venha e ajude esta sálvia a queimar e dissipar as Trevas que macularam esta árvore! – Não precisei tocar o meu fósforo na vela vermelha de Shaunee. Ela pegou fogo e produziu uma chama alegre instantaneamente.
– Queime, baby, queime – Shaunee sussurrou.
Eu sorri e levantei o meu sino, tocando-o vigorosamente mais três vezes. Então andei no sentido horário para o oeste até Shaylin, que esperava ali com expectativa segurando a vela azul.
– A água somos nós, assim como nós somos água. Sem ela, nós viramos pó e morremos. Ela sacia a nossa sede e nos purifica. Água, por favor, venha e ajude a lavar as Trevas que macularam esta árvore! – Acendi a vela de Shaylin e o aroma do oceano preencheu o ar ao nosso redor. Levantei o sino de novo e o toquei três vezes antes de continuar a minha jornada ao redor do círculo até Stevie Rae ao norte.
– E aí, Z? – Ela sorriu com covinhas para mim.
– Oi, terra. – Eu sorri de volta para ela. – A terra é a nossa casa. Ela nos sustenta. Ela nos alimenta e nos envolve, e é para a terra que os nossos corpos finalmente voltam para o descanso final. Terra, por favor, venha e nos fortaleça para que as Trevas nunca mais maculem esta árvore! – A vela verde de Stevie Rae pegou fogo e nós fomos cercadas pelo cheiro delicioso de damas-da-noite. Inspirei profundamente ao levantar o meu sino e tocá-lo mais três vezes.
Então, fui para o centro do círculo e levantei a minha vela roxa.
– Espírito, você é quem nós somos quando somos mais puros. Você é quem permanece quando os nossos corpos não podem mais viver. Você nos preenche de forma única e estabelece nossas personalidades, nossos amores, nossos ódios e nossos desejos. Espírito, por favor, venha e preencha este lugar que foi violado pelas Trevas para que a Luz possa brilhar aqui de novo! – Toquei o meu sino em três badaladas pela última vez e, enquanto o seu claro eco se extinguia, coloquei-o no chão e peguei o grosso bastão de defumação de sálvia branca perfumada.
Encarei o meu círculo, amando o fio prateado de luz que nos conectava. Ele era tão brilhante que iluminou a árvore, fazendo parecer que as Trevas já tinham começado a ser extinguidas.
– Ok, elementais, acendam os seus bastões de defumação. Os outros acendam os seus bastões nos dos elementais, fechando o círculo. Jack, você está pronto com algumas das nossas coisas favoritas?
– Estou! Só me diga quando for para apertar o play!
Esperei alguns instantes até a sálvia de todo mundo estar acesa e uma fumaça acinzentada e esbranquiçada começar a se formar e se levantar devagar ao redor da árvore.
– Ok, quando a música começar, todo mundo canta junto. Dancem e desenhem formas no ar com os seus bastões de defumação. Sejam alegres. Não pensem em nada além de coisas boas. Só tomem cuidado para não pisar fora do círculo – eu disse.
– E não se preocupem, todos nós amamos Julie Andrews. Não importa quem você é... cante, cante, cante! – Jack falou alegremente.
– Isso mesmo! – Eu sorri para ele. – Aperte o play, Jack!
Assim que “Coisas que eu amo” começou a tocar, o meu círculo e os meus amigos cantaram junto. No começo estávamos meio inseguros, mas na hora que chegamos ao verso “Se a tristeza, se a saudade”, todos estavam cantando, rindo e dançando ao redor do círculo.
– Aiminhadeusa, vejam! – Stevie Rae apontou para a fumaça se levantando em redemoinhos e espirais acima de nós, e todos ofegamos juntos.
Entrando e saindo da fumaça, espíritos parecidos com vaga-lumes voavam tão velozes quanto diamantes vivos, brilhando e reluzindo – e transformando a fumaça em formas sobre as quais estávamos cantando. Eu vi gatinhos com bigodes, laços de fita, gotas de chuva e algo que eu tinha certeza de que era uma banda passando enquanto soava o clarim.
Foi um dos momentos mais mágicos da minha vida, e desejei com todas as minhas forças que Stark estivesse ali, rindo, cantando e dançando ao meu lado.
– Z! Olhe para a árvore! – Jack gritou.
Eu olhei – e tive que segurar a minha boca para ela não ficar de queixo caído. Um enxame de espíritos vaga-lumes se aglomerou ao redor da árvore. Começando por sua base quebrada, eles voavam em compasso com a nossa música, girando e subindo. E, enquanto eles se moviam, a escuridão feito piche que a havia manchado ia sendo lavada, até que tudo o que sobrou foi uma árvore estranha, fragmentada e inclinada para o lado, onde começaram a surgir minúsculos brotos ao longo dos seus galhos antes arruinados.
– Ela vai ter folhas de novo! – Stevie Rae berrou alegremente mais alto que a música.
Rodopiando e rindo, nós cantamos os últimos versos com Maria e a família Von Trapp.
– “Eu lembro das coisas que eu amo e, então, de novo eu me sinto bem!”
Com a respiração ofegante e sorrindo, eu disse:
– Jack, você pode pegar todos os bastões de defumação e colocá-los aqui no meio do círculo perto da árvore?
– Eu?
Eu assenti.
– Aiminhadeusa, é claro!
Jack correu ao redor do círculo, coletando os bastões de sálvia e colocando-os, junto com o meu, em uma pilha fumegante.
– Shaunee, quando você estiver pronta – falei.
– Tranquilo. Queime, baby, queime! – Shaunee fez um gesto com o seu pulso na direção da pilha e ela instantaneamente ardeu com a luz das chamas e o aroma da sálvia.
– Perfeito! Obrigada – agradeci. Então eu fiquei séria, e o meu olhar se voltou para Stevie Rae, ainda ao norte, com Rephaim ao lado dela. – Vocês estão prontos?
Rephaim assentiu nervosamente.
– O máximo que dá pra estar – Stevie Rae disse.
– Nós vamos ter que oferecer um pagamento para o espírito – eu expliquei. – Tenho uma ideia, mas vocês dois precisam concordar com isso. Vou precisar de um pouco de sangue de cada um de vocês.
Stevie Rae e Rephaim se olharam.
– Belezinha, Z. A gente está de boa com isso – Stevie Rae concordou.
– Obrigada – eu falei com sinceridade antes de enfiar a mão na minha mochila de novo e pegar o athame12 afiado. Cercada pela fumaça magicamente purificadora da sálvia e pelo apoio do meu círculo, eu fiz o chamado. – Oak, espírito ancestral de Magia Antiga, com o poder do meu sangue e os dons concedidos a mim pela Deusa Nyx, eu a invoco para o nosso círculo. Oak, por favor, apareça!
E então prendi a respiração.
Ela não me fez esperar muito. Em segundos, o centro da árvore recém-purificada começou a brilhar e, com o som de um suspiro, Oak emergiu do tronco quebrado.
O espírito não veio até mim. Ela não deu atenção a nenhum dos meus amigos ou eu. Primeiro, ela se virou para a árvore. Ela colocou as suas mãos delicadas sobre ela e, devagar, de modo íntimo, inclinou-se para a frente até encostar a testa nela. Pude ouvir que ela estava falando, mas não consegui compreender a sua língua. Quando ela finalmente terminou, deu um beijo suavemente na casca nodosa, com doçura, antes de finalmente se virar e voar até mim.
– Garota Redbird, fico feliz que você concluiu o seu pagamento. – Os seus belos olhos escuros e amendoados se voltaram para o nosso círculo intacto, abarcando cada um dos vampiros dentro dele. – A força do seu círculo me agrada. Ele emana sentimentos de amor, alegria, amizade e sacrifício. Eu aprovo.
– Obrigada. E agradeço por responder ao meu chamado.
Ela abaixou levemente a cabeça em reconhecimento.
– Acho que começo a apreciar esse despertar incomum. Entre você e o Garoto Redbird, os dias e as noites têm ficado mais interessantes. O que deseja de mim agora?
Eu não hesitei.
– Quero que você me leve junto com dois amigos para o Outro Mundo, onde vive o meu irmão, aquele que você chama de Garoto Redbird. E quero que você nos traga de volta também. Quando estivermos prontos para partir.
Em um movimento como o de um pássaro, o espírito extraordinário virou a cabeça de lado e me observou. Por momentos longos e desconfortáveis demais, ela não disse nada. Quando ela finalmente se pronunciou, senti como se eu estivesse esperando a hora de descongelar.
– Posso fazer o que me pede, mas o pagamento vai ser grande.
– Que tal o sangue de três espécies de seres diferentes?
Ela ergueu suas sobrancelhas de musgo na direção da raiz dos seus cabelos de hera.
– Que tipo de seres?
– Um deles sou eu, uma vampira azul e Grande Sacerdotisa que tem afinidade com todos os cinco elementos. O segundo é Stevie Rae, uma vampira vermelha e Grande Sacerdotisa cuja afinidade é também a sua: a terra. E o terceiro é Rephaim, companheiro de Stevie Rae, um ser que...
– Foi criado por Magia Antiga – ela terminou por mim, girando a cabeça feito uma coruja para examinar Rephaim e Stevie Rae. – Vocês dois fazem essa oferenda livremente?
– Sim, senhora, eu faço – Stevie Rae respondeu.
– Sim. Dou a minha palavra – Rephaim disse.
O olhar de Oak se voltou para mim.
– Esse pagamento é interessante. Ele vai levá-los até o Outro Mundo. Mas não vai trazê-los de volta.
“Para isso um novo pagamento precisa existir
E qual vai ser nós vamos decidir
Nós vamos definir...”
Senti um aperto no estômago, apesar de o ritmo musical na sua voz indicar que ela faria um acordo comigo. Só que isso era exatamente o que os velhos livros alertavam. Eu precisava acertar ambos os pagamentos ou Stevie Rae, Rephaim e eu poderíamos ficar em uma grande meleca quando tentássemos voltar para casa.
– Vamos acertar o pagamento da volta agora. As coisas vão ficar mais fáceis assim. Quer dizer, e se a gente precisar voltar com muita pressa? – eu disse.
“Isso é problema seu, não me trate como passatempo
Aceite minhas regras ou pare de desperdiçar o meu tempo.”
– Isso não é nada bom – Aphrodite falou. Ela estava ao lado de Damien durante o ritual, e Oak se virou para o leste e concentrou o seu olhar na minha amiga. – O pagamento não deve ser deixado indeterminado. Isso é pedir encrenca.
“A Profetisa fala a verdade
Apesar da sua pouca idade.”
Oak fez uma pausa, farejando o ar como um cão de caça.
“O aroma do seu sangue é único de perceber.
Prometa o seu sangue como a cobrança,
e a volta dos seus amigos pode não ser
assim tão sem esperança.”
– Está bem!
– Não!
Aphrodite e eu falamos ao mesmo tempo. O olhar de Oak encontrou o meu de novo.
“O pagamento de sangue de uma Profetisa poderosa é uma solução
A menos que desejem ficar no Outro Mundo sem salvação.”
– Eles não vão ficar por lá. Eu prometo o meu sangue como pagamento para que você os traga de volta – Aphrodite falou rápido para que eu não conseguisse interrompê-la. – Mas eu não irei para o outro lado. Então, como vou saber quando devo pagar a você?
“Profetisa poderosa, não há nada que você precise fazer
Quando o pagamento for requerido, eu vou lhe dizer.”
– Aphrodite, eu não estou gostando disso – eu disse. – Não faça essa promessa. Stevie Rae, Rephaim, Kevin e eu vamos pensar em um pagamento que Oak aceite.
“Vai arriscar a sua vida nisso?
Parece algo tolo e omisso.”
– Tolo ou não, é a minha escolha.
– Na verdade, não. É o meu sangue. Meu corpo. Minha escolha – Aphrodite insistiu. – Oak, eu dou a minha palavra. Quando for a hora de Zoey, Rephaim e Stevie Rae voltarem, eu vou pagar o preço de sangue por eles.
“Eu aceito o seu preço excitante
Um pagamento de uma promessa, forte e brilhante
Eu fecho este acordo com vocês, perseverante.”
O olhar de Oak capturou cada um de nós quatro enquanto ela terminava a ligação.
“E tenho dito – que assim seja.”
O meu estômago estava tão revirado que tive vontade de vomitar. Aquilo parecia errado – perigosamente errado, mas já estava feito.
Olhei para Aphrodite. Ela estava firme, forte e orgulhosa, mas pude ver o medo nos olhos dela. Então prometi a mim mesma que faria tudo que estava ao meu alcance para que ela não se arrependesse de dar o seu sangue para nos levar de volta para casa.
– Obrigada, minha amiga – eu disse a ela. – Eu te amo.
Os lábios de Aphrodite se mexeram, mas ela não riu com sarcasmo. Em vez disso, ela colocou o punho sobre o coração e se curvou respeitosamente para mim.
– De nada, Grande sacerdotisa. Eu também te amo.
Piscando para limpar as lágrimas da minha visão, eu me virei para Oak.
– Você pode nos levar para qualquer lugar naquele mundo?
– A Rainha Sgiach não gosta de intrusos na sua ilha, e com razão. Então vocês não teriam uma recepção agradável por lá – Oak disse.
– Ah, não. Eu não preciso ir para Skye. Quero ir para um lugar mais perto daqui. É uma fazenda de lavandas, e a proprietária é...
– Oh, eu conheço esse lugar do qual você fala. A mulher que cuida da terra é deliciosa – Oak sorriu, mostrando muitos dentes brancos e afiados demais.
Eu sorri de qualquer jeito, sem me intimidar.
– Deliciosa – eu repeti. Olhei para Aphrodite. – Diga adeus a ela por mim, ok? Fale para ela não se preocupar – fiz uma pausa e continuei –, e conte a ela que o espírito a chamou de deliciosa. Ela vai adorar ouvir isso.
– Talvez ela se preocupe menos quando souber que você foi até ela primeiro – Aphrodite disse.
– “Talvez ela se preocupe” é melhor do que “com certeza ela vai se preocupar”. Cuide-se. Você é a Grande Sacerdotisa até eu voltar.
Eu vi a surpresa nos olhos de Aphrodite antes de ela abaixar a cabeça e colocar o punho sobre o coração outra vez.
– Vai ser como diz, Grande Sacerdotisa – ela falou solenemente.
Os meus olhos capturaram um movimento no círculo, e vi que cada um dos meus amigos havia imitado Aphrodite. Estavam todos se curvando para mim, com o punho sobre o coração.
– Obrigada – eu agradeci a eles. – Eu volto logo. – O meu olhar encontrou Damien. – Diga a Stark que eu o amo.
– Pode contar comigo, Grande Sacerdotisa.
– Stevie Rae, não apague a sua vela. Aphrodite, feche o círculo depois que nós partirmos.
– Vou fechar.
– Estamos prontos – eu disse para Oak.
– Então deem as mãos, vocês três, e me sigam!
Stevie Rae colocou a sua vela verde no chão. Ela estendeu uma mão para mim – a outra já estava entrelaçada à de Rephaim. Eu a peguei e, quando nos viramos para seguir com o espírito em direção à arvore, que havia começado a brilhar, um grito ecoou atrás de mim.
– Zoey Redbird! Tome cuidado. Fique firme. E volte para mim!
Virei rapidamente a cabeça por sobre o meu ombro e vi Stark. Ele estava parado do lado de fora do círculo incandescente. Os nossos olhos se encontraram.
– Eu te amo, meu Guerreiro, meu Guardião. Sempre vou te amar.
– E eu te amo, minha Rainha, minha Grande sacerdotisa, meu coração. Lembre-se, nós estamos ligados por sangue e por amor... sempre o amor.
Então o brilho se expandiu e eu segui o puxão na minha mão. Entrei pelo meio da abertura resplandecente e o mundo ao meu redor explodiu em luz.
12 Adaga cerimonial. (N.T.)
23
Outro Kevin
– Que tal isto aqui? – Kevin abriu a porta do motorista do Hummer e ergueu quatro sacolas grandes cheias de roupas embrulhadas em papel de seda.
Aphrodite deu uma olhada para as sacolas.
– Nada mal para um iniciante. Entre.
Kevin jogou as sacolas no banco traseiro e sentou atrás da direção.
– Para onde vamos agora?
– Para casa. – Aphrodite fez uma cena segurando o nariz quando ele entrou no veículo.
– Casa?
– A nossa casa, a Morada da Noite. Afe. Prometa que esse cheiro sai com água.
– Sim, eu prometo. Quer ver a gosma de sangue morto que eu tenho que passar em mim para ficar com esse cheiro?
– Não faço nenhuma questão.
– Então, vou te deixar lá?
– Não. Você vem comigo.
– Para onde?
– Ah, que merda... para casa.
– Mas e os túneis?
– Você quer ir para os túneis?
– Não. De jeito nenhum. Eles são péssimos. – Ele deu a partida no Hummer. – Mas o que mais eu posso fazer?
– Bom, eu andei pensando sobre isso. O seu general já era, certo?
– Sim, já disse. Ele morreu no mundo de Zoey.
– E também todo o seu esquadrão, grupo, batalhão... ou qualquer que seja o nome, certo?
– Quase certo. Três ainda estão vivos, mas eles ficaram no mundo de Zo.
– Então, você não está ligado a nenhum general, exceto Stark.
– Acho que dá pra dizer que sim.
– E ele designou você para ser meu protetor.
– Acho que dá pra dizer isso também.
– Ótimo. Então agora você pode se considerar o meu soldado pessoal.
– O que significa isso exatamente? – ele perguntou.
– Bom, pra começar, significa que você não vai voltar para os túneis e que precisa se vestir melhor. Você acha que lavanda iria ajudar a encobrir esse fedor horroroso? – ela questionou.
– Não sei. Provavelmente ajudaria, e eu posso espalhar menos gosma de sangue em mim pra ficar melhor. Você está dizendo que eu vou ficar na Morada da Noite?
– Estou.
– Espere aí, eu não vou ter que viver nos túneis?
– Não enquanto você for o meu soldado pessoal.
Kevin sentiu que o seu coração ia explodir de gratidão.
– Aphrodite, obrigado! Muito obrigado!
Ela fez um gesto dispensando o agradecimento dele.
– O que eu posso dizer? Adoro conceder favores aos pobres. Além disso, eu quero saber mais sobre esse mundo diferente e sobre a sua irmã, e não posso fazer isso se você estiver enfiado no meio de uma horda de monstros fedorentos. – Eles haviam terminado o curto trajeto da Utica Square até a Morada da Noite, e Aphrodite apontou para uma vaga de estacionamento na frente, bem-iluminada. – Pare ali.
– Ok, mas sem chance de a gente conseguir entrar escondido no campus se estacionarmos aqui.
– Nós não vamos entrar escondidos – ela afirmou.
– Mas todo mundo vai saber que eu estou aqui.
– Todo mundo definitivamente vai saber, e eles vão se acostumar a ver você por perto. Isso vai ajudar você e a Resistência, não?
– Sim! Com certeza.
– Ótimo. Talvez isso ajude também a compensar um pouco do mal que eu fiz contando as minhas visões para Neferet.
– É um começo, certamente – Kevin disse. Ele estacionou e olhou para ela. – E agora?
– Agora vem a parte fácil. Eu vou cuidar de tudo. Você só precisa me seguir. Literalmente. Ande atrás de mim e preste atenção em ficar vários passos para trás. Pareça subserviente e não muito inteligente. E quando a gente for parado, e eu garanto que vamos ser, eu explico. Você nem levanta os olhos. Finja que é um vampiro vermelho sem noção, mas não selvagem demais. Você consegue fazer isso?
– Eu tenho feito isso há quase um ano – ele disse.
– Então você já tem bastante prática. – Aphrodite ficou sentada olhando para ele e, como ele apenas a encarou de volta, ela revirou os olhos. – Kev, você deveria estar pegando todas as “minhas” sacolas. – Ela fez aspas com os dedos. – E depois abrir a porta para mim. Lembre-se, você é o meu soldado pessoal. Eu nunca devo tocar em uma porta, carregar qualquer coisa, abrir uma garrafa de champanhe e blá-blá-blá quando você estiver por perto.
– Ah, desculpe. Ok, entendi! – Ele saiu do Hummer e pegou as quatro sacolas, balançando-as desajeitadamente enquanto dava a volta no carro rapidamente para abrir a porta para ela.
Ela colocou suas pernas longas para fora e então franziu o cenho para as suas botas Jimmy Choo na altura do joelho.
– Merda! Esqueci que tinha quebrado o salto. Bom, vou usar isso para ajudar na minha atuação. Aqui. – Ela o surpreendeu ao estender a mão, que ele pegou, ajudando-a a descer do Hummer. Então ela limpou a mão no seu jeans skinny. – Você vai ter que melhorar muito na sua higiene pessoal.
– Na verdade, eu sou um cara limpo e arrumado. Eu tinha que fingir que não me importava com a lama, sujeira, sangue seco e outras coisas nojentas quando eu morava nos túneis.
– Você não mora mais nos túneis. É bom tomar um banho – ela resmungou ao começar a mancar na direção da calçada curva que atravessava o pequeno pátio lateral, onde a água de uma fonte jorrava musicalmente, onde finalmente se abria para o jardim principal da escola.
– Pode deixar – ele disse, apressando o passo para alcançá-la.
Ela deu um olhar irritado para ele.
– Você deve ficar atrás de mim, parecendo subserviente.
– Ah, certo. Esqueci. Não vai acontecer de novo, Profetisa. – Ele fez várias reverências e se afastou para trás.
– Isso foi bom. Pode continuar com essa coisa de se curvar.
– Você quer que eu a chame de Senhora ou Profetisa está bom?
– Não seja ridículo. Profetisa está bom. Senhora parece velha demais. Agora cale a boca e pareça patético.
Com Kevin a seguindo, Aphrodite atravessou o pátio mancando e entrou nos jardins da escola. Acabara de passar a hora do jantar. Os novatos estavam espalhados pelo terreno da escola. Os lampiões a gás de cobre estilo art déco projetavam sombras dançantes pelas calçadas largas e pelo gramado do inverno. Gatos corriam por ali, alguns caçando ratos, outros seguindo os seus novatos ou vampiros escolhidos. Estudantes acendiam velas aos pés da estátua de Nyx e rezavam para a Deusa. Um grupo de novatas estava tendo uma aula de esgrima com um vampiro que Kevin não reconheceu.
Tudo parecia normal, mas a diferença entre essa Morada da Noite altamente controlada e segregada e a escola de Zoey era gritante. Todo mundo aqui parecia subjugado, preocupado, assustado ou desesperado, e Kevin sentiu uma pontada no coração de saudade de um lugar que ele mal conheceu, mas que parecia tão perfeito.
Aphrodite virou à direita, indo na direção do grupo de edifícios parecidos com castelos que compunham os aposentos dos professores. Ela seguiu a curva suave da calçada, aproximando-se de duas novatas que haviam estendido tapetes de yoga no gramado e estavam no meio de uma graciosa sequência de exercícios.
Quando Aphrodite chegou mais perto das novatas, elas viraram a cabeça na direção dela. Ambas reconheceram Aphrodite – isso ficou bem claro – e juntaram as suas cabeças enquanto a encaravam.
Então elas viram Kevin e os seus olhos se arregalaram. Uma delas era uma garota negra incrivelmente linda que ele reconheceu na hora como Shaunee, e a outra era uma loira sexy que estava usando uma legging nude e um top minúsculo vermelho brilhante – ambos não deixavam nada para a imaginação. Caramba! Essa deve ser Erin, a novata de quem a Zoey me falou. A água para o fogo de Shaunee! As duas ficaram olhando fixamente para ele enquanto Aphrodite passava por elas, sussurrando e dando risadinhas. Quando Kevin se aproximou mais, ouviu claramente o que elas estavam dizendo – o que significava que Aphrodite também ouviu.
– Ei, Gêmea, olhe só – Erin falou.
– O que foi, Gêmea?
– O novo amante de Aphrodite! – a loira concluiu, apontando para Kevin. Então as duas caíram na gargalhada, maldosas.
Aphrodite parou. Ela se virou, mal olhando para Kevin quando passou mancando por ele.
– Só um minuto.
Kevin quis gritar para ela “Não! Não as mate com a sua visão de laser! Eu posso precisar delas depois para um círculo!”, mas ele teve que ficar de boca fechada. Ele tinha que fazer o seu papel, então abaixou a cabeça e discretamente assistiu enquanto Aphrodite caminhou direto até as duas novatas, que automaticamente deram alguns passos desajeitados para trás.
– Falem isso na minha cara e não para as minhas costas maravilhosas – a voz da Profetisa estava gélida.
– Ei, a gente não quis dizer nada – Shaunee disse.
– É, a gente só estava brincando – Erin falou.
– Vocês são as duas que se chamam de Gêmeas, não são? – Aphrodite questionou.
– Sim – elas responderam juntas.
– Eu vou chamá-las de Sócias de Cérebro. E, já que vocês compartilham só um pequeno cérebro entre vocês, vou deixar essa história pra lá. Mas, da próxima vez que vocês insultarem a mim ou ao meu soldado pessoal e servo, vou oferecer vocês duas para fazerem o serviço de jantar nos túneis.
– Serviço de jantar? – Erin perguntou.
– O que significa isso? – Shaunee completou.
Aphrodite deu um passo para a frente, entrando no espaço pessoal delas.
– Significa que vocês vão dar um tempo para os alimentadores humanos e oferecer o seu próprio sangue para os oficiais vermelhos. Em pessoa. Sangue dos seus lindos pescocinhos. Se bem que eu ouvi dizer que a veia que passa na coxa também é um lugar muito escolhido para alimentação. – As duas novatas pareceram horrorizadas, então Aphrodite fez um gesto para aliviar a preocupação delas. – Ah, não sejam tão dramáticas. Eles não vão ter permissão para drenar vocês completamente. Só quase completamente.
– Ne-neferet não deixaria isso acontecer! – Erin gaguejou.
– Quer apostar o seu sangue nisso, Coisa Um?
Erin rapidamente balançou a cabeça.
– E você, Coisa Dois?
– Não, obrigada.
– “Não, obrigada, Profetisa”, é o que vocês, Sócias de Cérebro, devem dizer.
– Não, obrigada, Profetisa – elas repetiram juntas, nervosas.
– Melhor. Bem melhor. Agora, acho bom vocês nunca mais falarem comigo de novo.
– Ei, a gente não quis dizer nada. Mesmo – Shaunee disse.
– Papo furado – Aphrodite rebateu. – Menininhas covardes como vocês sempre dão sorrisinhos falsos e falam que não queriam dizer nada com isso quando são pegas sendo escrotas. Cresçam. Vocês não estão mais no ensino médio. Isto aqui é vida real, não a internet, onde você pode dizer merdas estúpidas e odiosas sem nenhuma consequência. E, que merda, façam um favor ao mundo e saiam logo do armário como lésbicas, já estão grandes pra palhaçada.
Erin enrubesceu e Shaunee ficou de queixo caído, em choque.
– Hum. Deixa pra lá. Parece que só uma de vocês cola com isso. Ou, quer dizer, só uma de vocês cola alguma coisa. – Aphrodite riu alegremente, atirando o longo cabelo para trás, e se virou para sair andando, mesmo com um salto quebrado. Quando passou por Kevin, falou alto o bastante para as Gêmeas escutarem. – Venha, Fedido. Termine de arrastar minhas coisas pra cima. E depois você precisa ir correndo buscar mais champanhe pra mim. Tragicamente, acho que estou sem, e lidar com as Sócias de Cérebro me deixou com sede.
– Sim, Profetisa. Claro, Profetisa! – Kevin abaixou a cabeça e esperou que ela ficasse alguns metros à frente dele antes de começar a andar de novo, pensando “Parece que vou ter que encontrar outro fogo e água... Ah, que inferno...”.
E, enquanto ele a seguia para dentro do prédio dos professores, ouviu um grasnido acima da sua cabeça e levantou os olhos a tempo de ver um corvo gigante voando em círculos. Ele abriu a pesada porta de madeira e fez uma pausa. Como esperado, o corvo aterrissou na calçada, inclinando a cabeça de lado ao olhar para ele.
– Garoto Redbird! – ele grasnou.
– Venha cá! Rápido! – Kevin gesticulou para o pássaro, que deu alguns pulinhos e entrou no pequeno saguão com ele.
– Kevin, por que diabos você está demorando tanto? – Aphrodite gritou lá do alto da escada caracol.
– Desculpe, chego aí em um instante! – Ele abriu o tubo do corvo e pegou o pequeno lápis e o papel, rabiscando apressadamente: ESTOU COM APHRODITE NA MORADA DA NOITE. FICAREI AQUI DURANTE O DIA. MAIS INFORMAÇÕES EM BREVE. Então ele enfiou o papel e o lápis de volta no tubo e abriu a porta para o corvo, que decolou rumo ao céu.
– Quer que eu vá buscar o champanhe pra você agora? – Kevin estava parado desconfortavelmente ao lado da porta fechada dos aposentos suntuosos de Aphrodite.
– Claro que não. Eu tenho um monte de champanhe. Não sou uma caipira. – Ela indicou com a cabeça a pequena cozinha ao lado da sala de estar requintada, decorada com um sofá de veludo cor de ametista e um par de poltronas bordadas com fio prateado representando uma lua tríplice. – Bom. Não fique aí parado. Entre no chuveiro e tire esse fedor nojento. Vista o pijama novo. Depois disso a gente conversa.
– Mas. Hum. Vai amanhecer em... – ele fez uma pausa, conectando-se ao seu relógio interno. – Menos de duas horas. Eu preciso ir para algum lugar seguro para dormir.
Ela deu um suspiro.
– Eu disse que você é meu soldado agora. Você vai ficar aqui.
– Aqui, aqui? – Como se os seus olhos tivessem vida própria, eles se voltaram para a enorme cama de dossel claramente visível através das portas de vidro abertas.
– Sério? Você acha que vai dormir na minha cama? – Aphrodite revirou os olhos.
– Não! De jeito nenhum. Jamais suporia isso. Mas onde eu vou dormir?
– Eu tenho um closet super luxuoso. Não tem nenhuma janela lá dentro. Ou você pode dormir na minha banheira. Pode escolher qual você prefere.
– Que tal o sofá?
– Tem janelas aqui.
O olhar dele se voltou para elas.
– Essas cortinas de veludo roxo não são blackout?
Ela suspirou.
– Está bem. Ok. Você pode dormir no sofá se você realmente não estiver fedido e se não roncar. Não suporto gente que ronca.
– Prometo que eu não estarei fedido e acho que não ronco, mas eu nunca dormi com ninguém, então não tenho como prometer isso.
Os olhos azuis cor de safira de Aphrodite encontraram os dele.
– Então você é virgem.
As bochechas de Kevin arderam de calor.
– Bom, sim. Sou.
– Hum. Interessante. Entre no chuveiro.
Ela o empurrou na direção de uma porta fechada, através da qual ele felizmente escapou e se viu em um banheiro de mármore tão branco e limpo que não queria tocar em nada.
– Você quer algo para comer? Eu vou ligar para a cozinha – Aphrodite gritou do outro lado da porta.
– Hum, sim. Eu comeria qualquer coisa. E, ahn, você poderia pedir uma garrafa de...
– Sangue. Já imaginava. Ah, e coloque essas roupas horríveis que você está usando em um saco de lavanderia embaixo da pia. Feche bem e lembre de jogar isso fora amanhã. Nojento.
– Sim, ok. Sem problemas. – Kevin não sabia mais o que dizer, então tirou a roupa. Em seguida, encontrou facilmente um saco vazio e puxou a cordinha dele com força para fechar bem.
Então ele entrou no paraíso.
O chuveiro dela ficava dentro de um box de vidro circular e era daquele tipo panelão gigante e redondo que fazia Kevin se sentir como se estivesse debaixo de uma tempestade fantástica. Também havia duchas que saíam das paredes e, quando ele apertou um botão, fluxos de água quente jorraram sobre ele, atingindo todo o seu corpo. Aphrodite, claro, tinha um sabonete com textura de seda e cheiro de amêndoas e mel.
Kevin queria ficar lá por horas, mas quase podia sentir a impaciência de Aphrodite, então se esforçou para se apressar, ensaboando-se várias vezes, até que o último rastro de gosma de sangue fedorenta tivesse saído da sua pele.
Ele se enxugou com uma toalha violeta tão grande e felpuda que podia usá-la como cobertor. Então ele vestiu sua calça de moletom nova e uma camiseta e colocou a cabeça úmida para fora da porta de modo hesitante.
Na mesa de vidro na frente do sofá, Aphrodite havia colocado uma bandeja cheia que continha um sanduíche grande, batata chips e um copo alto de sangue quente e vermelho que deixou sua boca salivando.
– Pode vir. Estou sozinha. Nunca deixo nenhum dos serviçais entrar aqui enquanto estou no quarto. Eles limpam e fazem suas coisas só quando estou fora. E eu faço com que eles deixem as minhas entregas de comida do lado de fora da porta em uma mesinha de serviço de prata. – Ela encolheu os ombros. – Sim, eu sei. Eu gosto da opulência. Não estou me desculpando por isso.
Usando meias, Kevin andou suavemente até a sala de estar e encontrou Aphrodite com uma legging confortável e uma camiseta branca com a frase FEMINISTA SELVAGEM resplandecendo sobre o seu peito. Ela estava encolhida em uma das poltronas bordadas de veludo, bebendo champanhe e beliscando uma torradinha com pequenas bolinhas pretas em cima.
Ele farejou o ar na direção dela.
– Isso tem cheiro de peixe. O que é?
Ela deu um olhar resignado para ele.
– Caviar, seu plebeu. A sua criação deixa muito a desejar.
– Concordo. – Kevin sentou e bebeu todo o sangue de uma vez. Ele abaixou o copo e viu Aphrodite o encarando. – Eu estava com sede – ele disse pateticamente.
– Diga a verdade. Você está com a sua fome sob controle?
– Completamente. Não tem diferença entre a minha fome agora e a necessidade de um vampiro azul. Eu só estava realmente com sede porque fui ferido umas noites atrás e ainda estou me recuperando.
Isso sem mencionar que o meu nível de estresse foi além do esperado, ele pensou.
– Você me dá a sua palavra?
– Sim, Profetisa. Dou a minha palavra de que a minha humanidade voltou completamente e que a minha fome está sob controle.
Ela o analisou por vários minutos antes de voltar para o seu caviar e champanhe.
– Você precisa de mais sangue?
– Não, mas eu realmente preciso desta comida. Obrigado.
– Sem problemas. Apesar de que eu deixei o pessoal da cozinha bastante confuso. Não costumo comer muitos sanduíches.
– Você não parece comer muito de nada – Kevin disse ao dar uma grande mordida.
Ela franziu o cenho.
– Estou comendo agora.
Ele bufou.
– Preocupe-se só com você. Eu estou bem. Estou sempre bem – ela falou.
– Não acredito em você – ele murmurou.
– Eu escutei isso. Ok, em primeiro lugar, estou feliz que você não está mais fedendo.
– Eu também. Odeio o cheiro daquela coisa. E o seu chuveiro é incrível.
– Sim, eu sei. Segundo, quero que você me conte o que aconteceu com a Aphrodite daquele mundo da sua irmã quando ela sacrificou parte de sua humanidade para salvar os novatos vermelhos de lá. Eu sei que ela não morreu, mas o que aconteceu com ela, exatamente?
A pergunta o surpreendeu, mas, depois de um instante de reflexão, Kevin percebeu que não deveria ter se sentido assim. Ele também tinha ficado curioso sobre o que a outra versão dele fazia no mundo de Zo, e aquela versão dele não era uma Profetisa nem uma ferramenta de Nyx. Então, em meio a mordidas no sanduíche, ele contou para Aphrodite o que Zoey tinha explicado para ele, concluindo assim:
– Quando Stevie Rae e o resto dos vampiros vermelhos de lá recuperaram a sua humanidade, você perdeu a sua Marca, mas não o seu dom profético. Até os vampiros e novatos vermelhos daqui serem atraídos para lá junto comigo, acho que ninguém sabia exatamente o que você era.
Aphrodite pareceu perplexa.
– Mas por quê? Por que eu iria me sacrificar espontaneamente assim? Eu poderia ter morrido ou perdido tudo... todos os meus dons. Não faz sentido nenhum. A minha versão de lá é uma idiota.
– Aquela idiota salvou uma raça inteira de vampiros.
– Por quê?
– Por amor, claro. A outra você é cercada de pessoas que ela ama. Ela até age como uma malvada insensível às vezes, mas apenas parte disso é verdade, o que é legal porque acontece que eu gosto de meninas malvadas.
Ela revirou os olhos.
– E você disse que lá eu sou uma vampira estranha híbrida azul e vermelha, além de uma Profetisa?
– Sim.
– Como isso aconteceu?
– Não sei ao certo. Tinha muita coisa rolando por lá e eu não tive muito tempo para fazer perguntas. O que eu sei é que Nyx concedeu a você a capacidade de dar às pessoas, sejam humanos ou vampiros, uma segunda chance depois de eles terem feito tudo errado, tipo, feito tudo tragicamente errado de verdade.
Aphrodite bufou.
– Isso provavelmente porque eu entendo muito sobre como fazer tudo tragicamente errado.
Ele sorriu.
– Pode ser. A Marca daquela Aphrodite é igual à sua, só que maior, e metade dela é vermelha. Nyx disse que, a cada vez que você usar o seu dom e der uma segunda chance a alguém, parte da sua Marca vai desaparecer até que ela suma totalmente, e então você vai ser humana e viver o tempo de vida normal dos humanos.
– Isso parece bizarro. Não sei se eu ia gostar disso.
– Tenho certeza de que a Aphrodite de lá se sentiu assim também quando isso aconteceu, mas depois de ver a diferença que ela fez em mim, no Outro Jack e nos outros vampiros... tenho cem por cento de certeza de que ela decidiu que estava grata por esse dom.
– Então aquela Aphrodite é boa. De verdade – ela disse.
– Sim, completamente – ele concordou.
– Você parece bem apaixonado por aquela Aphrodite.
Kevin encontrou o olhar dela.
– Eu diria que Aphrodite é espetacular... em qualquer mundo.
Aphrodite bufou e então ficou em silêncio por um tempo, bebendo champanhe e beliscando caviar com torradas. Kevin terminou o seu sanduíche e estava devorando a montanha de batatas quando ela falou de novo.
– Deve ser muito diferente por lá. – Ela tinha acendido a lareira e estava olhando para o fogo como se pudesse enxergar aquele outro mundo dentro das labaredas.
– É sim. E também não é. Aquele mundo parece diferente porque é muito menos assustador. Neferet foi derrotada. Zo e os seus amigos comandam o Novo Conselho Supremo dos Vampiros da América do Norte, o que significa que eles são responsáveis pelas Moradas da Noite nos Estados Unidos e que eles iniciaram esses programas incríveis onde humanos podem ter aulas junto com novatos.
Ela olhou para Kevin como se ele estivesse completamente louco.
– Adolescentes humanos. Na Morada da Noite de Tulsa. Tendo aulas. – Ela sacudiu a cabeça. – É difícil imaginar.
– Não está acontecendo só em Tulsa. Humanos e vampiros estão estudando juntos em um monte de escolas. É bem legal.
Aphrodite voltou a ficar em silêncio. Kevin já ia pedir um travesseiro e um cobertor quando ela falou de novo.
– Nós estamos todos tão isolados aqui, mas o mundo da sua irmã não parece nem um pouco solitário.
– Não é assim mesmo, mas nem todos nós estamos isolados desse lado também. Dragon, Anastasia, minha avó não estão. Na verdade, nenhum dos combatentes da Resistência está. Eles são amigos, mas mais do que isso.
– Gente de coração mole – ela disse.
– Amigos com uma causa – ele a corrigiu. Então ele encontrou o olhar dela de novo. – Você não precisa ficar sozinha. Nem mesmo aqui. Você não está sozinha no mundo de Zo.
– Este aqui não é o mundo da sua irmã.
– Não, não é. É o meu mundo. E eu vou mudar as coisas.
– Você?
– Eu.
– Sozinho?
– Bom, não. – Ele sorriu. – Eu não estou sozinho. Você está me ajudando.
– Eu acho que você é um idealista – ela falou.
– Provavelmente.
– Idealistas sempre acabam mortos.
– Às vezes, mas, enquanto vivem, eles vivem de forma grandiosa. Junte-se a mim. Junte-se à Resistência. Você também pode, você meio que já fez isso. Você salvou Dragon e todas aquelas pessoas hoje.
– Mas fui eu quem os colocou em perigo – ela o lembrou.
– Você quis fazer isso? Você queria ser a causa de o Exército Vermelho matá-los?
– Não! Eu odeio toda essa matança. E eu detesto que Neferet me use como uma arma.
– Então me ajude a descobrir um jeito de mudar as coisas para melhor neste mundo.
Em vez de me responder, ela se levantou e desapareceu dentro do quarto, voltando logo depois com o braço cheio de cobertores e um travesseiro macio de penas de ganso, os quais ela largou ao lado dele no sofá.
– Ei, obrigado. Isso é muito gentil da sua parte. Eu vou lavar a louça antes de dormir – Kevin disse.
– Não seja ridículo. Você é meu soldado, não minha camareira. Há um carrinho do lado de fora da porta. Coloque os pratos sujos lá fora. Os serviçais vão cuidar deles. – Então ela hesitou e estendeu a mão por um momento, como se fosse tocar o cabelo dele. – Antes de você dormir, talvez queira secar melhor o cabelo. Durma com o cabelo molhado e ele vai ficar...
– Com lambida de vaca – ele terminou por ela. – Eu sei, eu sei. Zo costumava dizer isso pra mim toda hora.
– Sim, bom, o seu cabelo está perturbadoramente desgrenhado, bagunçado e até meio... – ela perdeu as palavras e sacudiu a cabeça, como se quisesse afastar o seu último pensamento.
Ele não conseguiu evitar. Ele olhou nos olhos maravilhosos dela e disse:
– Você ia dizer meio sexy?
– Já deve estar quase amanhecendo, já que você está delirando.
– Aquela Aphrodite gosta de mim, você sabe – ele sorriu provocativamente.
– Aquela Aphrodite tem problemas. Muitos problemas.
– Mas um ótimo gosto – ele disse. – Ela teria feito o que você fez hoje. Ela iria garantir que Dragon e o resto daquelas pessoas escapasse.
– Boa noite, Kevin. Amanhã vamos pensar em uma solução de quarto mais permanente para você – foi tudo o que ela disse antes de desaparecer dentro do seu quarto.
– Boa noite, Aphrodite – ele falou para a porta fechada.
Kevin colocou os pratos do lado de fora da porta no carrinho que estava ali, apagou a lareira e fez a sua cama no sofá. Então, exausto e se sentindo seguro pela primeira vez neste mundo desde que havia sido Marcado, Kevin dormiu.
– Kevin, anda! Você precisa acordar!
Kevin saiu das profundezas de um belo sonho que o tinha levado de volta ao mundo de Zo, em que estava rindo com ela enquanto segurava a mão de Aphrodite e ela aceitava o pedido dele para ser sua companheira.
– Ahn? O quê? Você aceita? – ele disse, sonolento, procurando a mão de Aphrodite.
Ela de fato deixou que ele pegasse sua mão e então o puxou, fazendo com que ele se sentasse.
– Acorda!
Kevin piscou várias vezes e esfregou a mão no rosto.
– Estou acordado. Mais ou menos. O que foi?
– Tem um pássaro negro enorme dando bicadas na minha janela. Eu ia jogar alguma coisa nele, mas ele disse “Garoto Redbird”. Hum, posso presumir que é você?
– Sim! Ele ainda está lá? Deixe ele entrar! – Kevin tinha tirado a camiseta para dormir, então ele a vestiu apressadamente e correu atrás de Aphrodite na direção do quarto dela.
A mão espalmada de Aphrodite o deteve.
– Fique aí. Minhas cortinas estão totalmente abertas e o sol já está alto.
Kevin só teve um instante para andar de um lado para o outro, e então o grande corvo voou para dentro da sala de estar, aterrissando em cima da mesa de centro de vidro.
– Garoto Redbird!
– Você me encontrou! Bom trabalho. Ok, ok, vou ler isso.
Aphrodite observou o que estava acontecendo por cima do ombro de Kevin.
– O que é aquela coisa em volta do pescoço dele?
– Tem bilhetes dentro. – Kevin puxou o cordão de couro sobre a cabeça do pássaro e abriu o pequeno tubo, tirando o papel lá de dentro.
– Aiminhadeusa! Foi assim que você avisou a Resistência sobre os fardos de feno.
– Sim.
– O que diz o bilhete?
Ele se virou e olhou para ela.
– É Zoey! Ela está aqui!
C O N T I N U A
15
Outra Aphrodite
Aphrodite aumentou o seu nível de arrogância como escudo contra o seu nervosismo. Ela não precisou dizer nada, simplesmente alterou a sua expressão de perversidade de repousada para ativa, e então os soldados, os Guerreiros e até as Sacerdotisas começaram a abrir caminho para ela passar como se tivesse uma doença contagiosa.
Eu tenho uma coisa pior – o desprezo de Neferet. E todos sabem disso.
Aphrodite tinha decidido rapidamente que a sua performance iria se desenrolar melhor no meio do auditório cheio. Então, em vez de ir para o palco para servir como um atraente cenário para qualquer drama que Neferet tinha preparado para os seus subordinados, ou de se juntar às outras Sacerdotisas amontoadas sentadas no local reservado a elas no fundo, no seu jeito típico de cordeirinhos, Aphrodite foi até o centro do auditório, encontrou o assento que ela queria na fileira da frente perto do corredor e fuzilou com os olhos o ocupante da cadeira, que apressadamente se retirou dali.
Ela não agradeceu a ele, apenas se sentou, e então ficou se preocupando. Aphrodite nunca tinha feito nada como aquilo que estava planejando. Ela não iria realmente fazer – não até Stark, aquele babaca arrogante, fazer aquela piadinha sobre ela se juntar ao Exército Vermelho. Então, de verdade, o que ela estava prestes a fazer não era exatamente culpa dela. Era culpa de Neferet. E, provavelmente, de Stark também. Mas definitivamente, definitivamente, não era culpa de Aphrodite.
Ela nunca teve a intenção de contar o resto da sua visão para Neferet. Aphrodite não tinha contado todos os detalhes de nenhuma de suas visões para Neferet desde que o Exército Vermelho havia massacrado Lenobia e Travis, e também os cavalos. Aphrodite odiava pensar nos cavalos morrendo. Ouvir os seus gritos em seus pesadelos já era ruim o bastante.
Culpa minha. Aquilo foi culpa minha. Eu deveria saber! Ela juntou as mãos com força sobre o colo e se empertigou na cadeira. Qualquer um que olhasse para ela – e um monte de gente estava sempre olhando para ela – veria apenas a linda, jovem e indiferente Profetisa parecendo confiante e calma. Ninguém veria suas mãos tremendo. Ninguém veria sua alma estremecendo. Ninguém veria as suas dúvidas e medos. Essa era uma coisa positiva que a louca da sua mãe tinha ensinado a ela – mostrar apenas um rosto em público, e esse rosto deveria ser perfeito e estar sob controle o tempo todo, independentemente de ela realmente estar se sentindo perfeita ou sob controle.
Aphrodite ficou sentada imóvel, respirando devagar e em um ritmo estável, enquanto se preparava para o que estava por vir, mas, em meio à sua respiração lenta, ela sentiu uma brisa de morte e podridão. Incomodada com aquele cheiro nojento, ela levantou o pescoço e olhou em volta, farejando discretamente, e, é claro, sentado duas fileiras atrás dela, em um assento do corredor como o dela, estava aquele jovem vampiro vermelho que Stark estava pajeando. Aphrodite lançou um olhar de irritação para o Cara do Arco. Vampiros vermelhos não tinham permissão para ficar nos assentos da frente do auditório para não empestear o ambiente. Somente oficiais do Exército Vermelho podiam comparecer às reuniões de briefing, e mesmo assim eles tinham que ficar no mezanino. No entanto, ali estava Stark, todo cheio de si com seu uniforme preto de general, quebrando as regras. De novo. E deixando um garoto vampiro vermelho fedido sentar bem ali do lado dele.
Aphrodite jurou a si mesma que, quando ela caísse nas graças de Neferet de novo, ia fazer tudo que podia para minar a influência de Stark sobre a Grande Sacerdotisa. Não porque ele era particularmente perigoso, mas sim porque ele era particularmente irritante.
– Atenção! Sen...tido! – comandou Artus, o Mestre da Espada da Morada da Noite de Tulsa.
Assim que todos se levantaram, Aphrodite desviou os olhos de Artus. O Mestre da Espada de Neferet não era apenas feio, velho e cheio de cicatrizes. Havia algo de podre em relação a ele – algo que deixava Aphrodite desconfortável em um nível visceral.
E então Neferet subiu ao palco, atraindo a atenção de todos no auditório lotado. Ela estava usando um vestido de seda longo e aderente da cor de sangue fresco. Sobre o seu seio esquerdo, em um bordado prateado requintado, estava a imagem de Nyx envolvendo a lua crescente com as mãos. A única joia que ela usava era um diadema de diamantes e rubis. Um dos rubis pendia da delicada coroa como uma lágrima grossa para tocar o topo da lua crescente safira tatuada no meio de sua testa.
Aphrodite precisava reconhecer – Neferet sabia como manter a atenção de um bando de machos. Ela parecia uma deusa do cinema em carne e osso, o que era mais uma prova de uma das maiores decepções da vida de Aphrodite: nem tudo que parecia cheio de beleza e luz do lado de fora era realmente cheio de beleza e luz por dentro.
– Podem se sentar – Neferet disse depois de chegar à sua tribuna de vidro.
Aphrodite sentou e tentou não revirar os olhos. Cada instante do briefing de Neferet havia sido roteirizado por ela – desde o que ela estava vestindo até o tempo em que fez os soldados ficarem em pé, incluindo a tribuna translúcida, que dava à sua audiência uma visão desimpedida do seu corpo perfeito.
Não que Aphrodite pudesse culpá-la por isso. Neferet era bonita e, como outra pessoa muito bela, Aphrodite sabia como era fácil manipular os machos. O jeito é usar o que a gente tem!
Então Neferet começou o seu discurso, e Aphrodite não tinha mais energia para desperdiçar em nada, exceto decidir quando a sua própria performance deveria começar.
– Eu venho diante de vocês hoje com notícias muito perturbadoras. Acredito que a maré da guerra está virando.
Houve sons de concordância alegre entre a multidão de oficiais e soldados presentes.
– Vejo que os meus exércitos me entenderam mal, o que eu acho ofensivo. A maré não está virando a nosso favor! Nenhum dos meus oficiais entende isso? – A sua voz repleta de raiva ecoou pelas paredes, eletrificando o ambiente com uma carga de poder e não deixando nenhuma dúvida sobre o nível de irritação de Neferet. A sua única resposta foi o ruído de corpos ansiosos.
E então um dos seus generais se levantou. Aphrodite abafou uma bufada sarcástica. É claro que Loren Blake ia sentir a necessidade de dizer alguma coisa. Deusa, será que esse vampiro puxa-saco vai parar de falar algum dia?
– Grande Sacerdotisa, permissão para falar?
– É claro, General Blake. Estou sempre disposta a refletir sobre os sábios conselhos de meus oficiais.
O sorriso de Blake era íntimo demais para a ocasião, mas todo mundo sabia que os generais de Neferet também eram frequentemente seus amantes – e praticamente todos os machos na sala desejavam ser amantes dela. Então, tanto fazia.
– Grande Sacerdotisa, você sabe que não quero ser desrespeitoso. Sou seu servo leal, mas talvez os seus oficiais não entendam simplesmente porque o que observamos no campo de batalha é o oposto do que está dizendo. As milícias dos nossos estados vizinhos pararam de atravessar para o nosso território. Não tem havido revoltas importantes de humanos dentro da área sob nosso controle há meses. O único problema real que ainda temos é com a maldita Resistência, e nós estamos trabalhando duro para rastrear cada um dos seus membros e exterminá-los. Na verdade, se a maré virou, parece que foi a nosso favor.
– Pode se sentar, general Blake – Neferet disse com um falso sorriso afetuoso. – O que você diz pode parecer verdadeiro para alguém com a sua limitada conexão com Nyx, razão pela qual a nossa sociedade nunca será governada por homens. Eles não podem ser tão íntimos da Deusa como as suas Sacerdotisas. Principalmente a sua única e exclusiva Grande Sacerdotisa: eu. Sabe, Nyx tem me mostrado outra coisa. Os nossos estados vizinhos e os humanos que os infestam desistiram, de fato, de suas tentativas de entrar no nosso território e tomar o que é nosso. Mas eles não desistiram em paz. Eles estão tramando juntos para nos derrubar! – Neferet abriu os braços dramaticamente, fazendo com que seus seios perfeitos fossem pressionados contra a seda do seu vestido e os mamilos ficassem totalmente delineados e visíveis.
Aphrodite achou que aquela pose foi um toque excelente, já que conseguiu atrair todos os olhares masculinos da sala para os peitos dela. E ainda fez com que todas as mentes masculinas da sala ficassem confusas quando o sangue nos cérebros deles desceu correndo para o órgão que de fato os controlava.
Houve um movimento atrás dela, e Aphrodite virou a cabeça a tempo de ver Stark se levantar.
– Grande Sacerdotisa, posso ter permissão para falar?
– Merry meet, General Stark. Vou ouvir o que você tem a dizer.
– Eu também tenho sentido que algo está errado. Tenho tentado descobrir o que é, e hoje eu recebi informações de uma fonte improvável. Acredito que isso se alinha ao que Nyx tem mostrado a você.
Neferet deu aquele sorriso que Aphrodite gostava de chamar de meio meloso, meio vadia, e a Profetisa segurou outra bufada. Pelo visto, o Cara do Arco ia se dar bem esta noite.
– Eu sabia que podia contar com você, General Stark. Por favor, compartilhe as suas informações conosco.
Então Stark chocou Aphrodite e o auditório inteiro ao gesticular para que o garoto vampiro vermelho fedido que estava largado ao lado dele se levantasse.
O garoto deu um pulo de surpresa e então se levantou desajeitadamente, ficando em posição de sentido totalmente imóvel.
– General Stark, por que um jovem soldado vampiro vermelho está aqui na parte da frente do meu auditório? – A voz de Neferet soava pensativa, e ela pareceu mais curiosa do que incomodada.
– Porque ele é a minha fonte de informações, e ele não é um soldado. Ele é um tenente. Tenente Heffer, da unidade do General Dominick.
Os sussurros dos soldados ao redor fizeram Aphrodite lembrar de velhas mulheres fofoqueiras, e ela se perguntou quem diabos eram esse garoto e esse general e por que eles provocaram tamanha reação da multidão.
– General Dominick? O meu general do Exército Vermelho que está desaparecido? – Neferet perguntou.
Aphrodite piscou os olhos, surpresa. Ela não tinha ouvido falar em nenhum general desaparecido, mas raramente prestava atenção ao que estava rolando com os animais que compunham o nojento Exército Vermelho de Neferet. Eles eram todos um tédio. E fedorentos.
– Sim, Grande Sacerdotisa. O General Dominick desapareceu com um pelotão inteiro de soldados, e eles ainda não foram encontrados. Exceto este tenente, e eu acredito que ele pode saber o que aconteceu com a unidade dele. – Stark assentiu encorajando o tenente, que estava em posição de sentido tão imóvel que Aphrodite praticamente podia ver uma vara enfiada no meio do traseiro dele. – Gostaria de pedir sua permissão para que o Tenente Heffer relate as informações a você.
Os olhos cor de esmeralda de Neferet analisaram o garoto vampiro vermelho que estava parado feito pedra ao lado de Stark.
– Você disse que o nome dele é Tenente Heffer?
– Sim, Grande Sacerdotisa – Stark confirmou.
– Ele parece estranhamente familiar. General Stark, você já usou esse vampiro vermelho como informante antes?
Aphrodite teve vontade de se levantar e dizer que era mentira. Não existia qualquer possibilidade de Neferet distinguir esse vampiro vermelho ou qualquer outro. Aphrodite já tinha ouvido a Grande Sacerdotisa comentar várias vezes como o Exército Vermelho era um mal fétido e nojento, mas necessário – com o qual ela queria ter o mínimo de contato possível. Ela não reconheceria nenhum soldado nem se ele passasse por ela no corredor todos os dias durante um ano todo.
– Não, Grande Sacerdotisa, não usei, mas acredito que você deva ouvir o que ele tem a dizer.
– Hum. A familiaridade é estranha. – Neferet encolheu seus belos ombros. – Muito bem, por que não? O tenente pode falar.
Como o garoto não disse nada, Stark o incentivou.
– Prossiga. Conte à Grande Sacerdotisa aonde o seu general estava indo e o que ele disse antes de ir embora.
Aphrodite viu que o garoto engoliu em seco – uma, duas, três vezes. Quando começou a falar, ele usou frases curtas e entrecortadas em virtude do nervosismo e ficou olhando fixamente para a frente.
E, enquanto ele falava, Aphrodite arregalou os olhos de choque.
– Grande Sacerdotisa Neferet, o meu general tinha informações de que a milícia do estado do Novo México estava em movimento. Ele ouviu dizer que planejavam atravessar o Texas e entrar em Oklahoma usando o Rio Vermelho. O general estava a caminho de Elmer, em Oklahoma, para preparar uma emboscada para eles. Essa é toda a informação que eu tenho, Grande Sacerdotisa. Minha patente não era significante para eu saber do resto.
Aphrodite mal escutou a resposta satisfeita de Neferet. Ela estava ocupada demais encarando o garoto que tinha acabado de falar – o tenente vampiro vermelho cuja voz ela reconheceu como a do mesmo cara que estava no jardim de meditação na noite anterior!
Exceto que aquele garoto tinha conversado normalmente, como um vampiro de verdade, e não como uma máquina de comer vermelha e fedorenta.
E então outra coisa a pegou de surpresa.
Na noite passada, ele não estava fedendo. Eu sei que ele não estava. Sou muito sensível ao jeito que essas coisas fedem e eu teria percebido.
Alguma coisa completamente bizarra estava rolando, o que parecia um momento excelente para Aphrodite começar a sua encenação. Ela olhou de novo para o palco. Neferet ainda estava tagarelando efusivamente sobre Stark ter confirmado a sua estranha neurose. Então, quando Aphrodite se levantou com dificuldade, a Grande Sacerdotisa foi pega totalmente desprevenida e parou de falar no meio da frase.
Aphrodite entrou cambaleando no corredor. Ela colocou uma mão na testa, como se estivesse tentando evitar que a sua cabeça explodisse. A outra mão ela estendeu na direção de Neferet de modo suplicante.
– Neferet! – Aphrodite ofegou e cambaleou como se o chão estivesse ondulando sob seus pés. – Eu estou vendo... estou vendo...
Ao redor, os homens começaram a falar de modo nervoso.
– Silêncio! A minha Profetisa está tendo uma visão! – Neferet saiu de trás da tribuna e foi até a beira do palco, bem na frente de Aphrodite. – Fale, minha Profetisa! A sua Grande Sacerdotisa está aqui e vai ouvir!
Aphrodite gemeu e então conteve um grito. Segurando a cabeça com força, ela colocou toda a energia na sua voz para que ela chegasse até os cantos mais remotos do auditório.
– Estou vendo um campo. Nele, o trigo de inverno foi cortado em enormes fardos redondos. Há vampiros azuis lá. Eles estão escavando os fardos e colocando novatos, vampiros e humanos dentro deles para tirá-los de lá clandestinamente. Eles são a Resistência!
– Onde, Aphrodite, minha querida? Olhe em volta... onde você está?
– O Exército Vermelho está lá! Eles estão atacando! Eles estão nos matando! Eles estão nos comendo! – Aphrodite choramingou, soluçando.
– Sei que é difícil, mas concentre-se! Foco! Você é os olhos e os ouvidos da Deusa. Diga onde você está!
– Sapulpa! Não! Não, não, não, não! Afaste-os de nós! Eles estão nos matando! – Aphrodite cambaleou e soluçou.
A voz de Neferet cortou o choro de Aphrodite.
– Profetisa! Em nome de Nyx, concentre-se! Onde você está em Sapulpa?
– Estou vendo uma placa! Ela diz Lone Star Road! Estamos em um campo em Sapulpa ao lado da Lone Star Road, e nós estamos sendo mortos!
Então Aphrodite respirou fundo e gritou com toda a força antes de fechar os olhos e fingir um desmaio espetacular.
Outro Kevin
Kevin se mexeu por instinto. Ele se atirou para a frente, estendeu o braço e segurou Aphrodite antes que ela atingisse o chão. Ao redor dele, o auditório explodiu em comoção, mas, enquanto envolvia Aphrodite em seus braços, parecia que eles estavam suspensos em uma pequena bolha de silêncio.
Os belos olhos da Profetisa piscaram e se abriram. E então se arregalaram em choque. Ela virou a cabeça na direção de Kevin para que ninguém mais a ouvisse e sussurrou baixinho para ele.
– Era você! Na noite passada no jardim. Era você!
– Shhh, relaxe. Estou aqui – Kevin a tranquilizou.
– Afaste-se de mim! – ela sussurrou. – Hoje você está fedendo, mas com certeza não estava na noite passada. E que merda, você está puxando o meu cabelo!
O olhar dele encontrou o dela. Aphrodite não estava machucada – isso era óbvio. E ela definitivamente não estava agindo como se tivesse acabado de desmaiar. Então Kevin entendeu a verdade.
– Você não teve uma visão! – ele sussurrou.
– Tive sim! – Ela manteve a cabeça virada, quase encostada no peito dele, cuidando para que ninguém mais a ouvisse. – Só que não hoje. Quem é você para julgar? Você nem é um vampiro vermelho de verdade!
– Sou sim! Só não sou do tipo com quem você está acostumada.
– Aham, sei. Neferet sabe o que você está tramando?
Em vez de responder, Kevin disparou a mesma pergunta para ela.
– Neferet sabe o que você está tramando? Que você está escondendo visões dela?
– Prove, então. Se você acha que alguém vai acreditar mais em um vampiro vermelho do que em uma Profetisa de Nyx, você é tão burro quanto o resto da sua espécie fedorenta. – Aphrodite se virou nos braços de Kevin e gritou em pânico enquanto se debatia para se livrar dele. – Aaaaah! Não me coma! Tire suas mãos de mim! Socorro!
– Deixe ela comigo, Tenente. – Stark estava ali, empurrando Kevin para o lado e ajudando Aphrodite a se levantar.
No entanto, ela se afastou de Stark, recusando a sua ajuda e cambaleando na direção do palco e de Neferet.
– E-eu falei algo valioso, Grande Sacerdotisa? – a voz de Aphrodite ainda ecoou por todo o auditório, principalmente porque a multidão tinha calado a boca e estava olhando embasbacada para ela.
Neferet foi apressada até a beira do palco e se abaixou para pegar as mãos de Aphrodite.
– Sim! Você foi muito bem, querida! Eu sabia que Nyx me enviaria um sinal, e sou realmente abençoada por ela ter me enviado dois sinais em um só dia. – A Grande Sacerdotisa soltou uma das mãos de Aphrodite, mas continuou segurando a outra ao encarar o auditório, fazendo parecer que ela estava levantando o braço da Profetisa em uma saudação de vitória. – Nós sabemos que precisamos enviar nossos soldados para um campo em Sapulpa ao lado da Lone Star Road. – Ela dirigiu seu sorriso brilhante para Aphrodite. – Você pode dizer quando a batalha vai acontecer?
– Não, Neferet. É impossível dizer, a menos que haja um relógio na minha visão ou que eu veja a lua de relance, mas as minhas visões normalmente conseguem prever eventos que acontecem dentro de apenas alguns dias. Eu também não sei dizer exatamente qual campo na Lone Star Road é o campo específico em que a Resistência estará escondendo novatos em fardos de feno. As minhas visões são caóticas demais. Grande Sacerdotisa, sinto muito por não poder ser mais precisa – Aphrodite disse, e Kevin a viu fazer graciosamente uma reverência para Neferet, com a cabeça abaixada. Ela realmente parecia sentida e muito, muito bela.
Kevin sabia que o que ele estava assistindo era uma encenação completa – pelo menos da parte de Aphrodite. A capacidade de atuação dela é impressionante. Ela poderia ser uma estrela até maior do que Erik Night.
– Você fez o seu papel maravilhosamente. E isso é fácil de consertar. – O sorriso de Neferet abarcou o auditório repleto de soldados. – Hoje o General Stark vai levar soldados e oficiais do Exército Vermelho até Sapulpa, onde eles vão localizar a infestação da Resistência e acabar com os traidores. Minha Profetisa abençoada pela Deusa, a adorável Aphrodite, vai se juntar ao General Stark e ao Exército Vermelho nessa missão de combate. – Neferet abaixou os olhos para Aphrodite fazendo cara de santa. – Com certeza você vai reconhecer o campo certo quando vê-lo, não vai, minha querida?
Kevin viu o rosto de Aphrodite empalidecer para um branco de náusea, e ele também sentiu nojo junto com ela. Aphrodite havia encenado a sua visão para que Neferet não cumprisse a ameaça que havia feito na noite passada, a de forçá-la a se juntar ao Exército Vermelho, e mesmo assim a Grande Sacerdotisa deu um jeito de apunhalar sua Profetisa pelas costas. Aphrodite abriu e fechou a boca. Kevin podia ver que era difícil para ela responder e ele compreendeu perfeitamente – ele entendia o que se passava na cabeça dela. Se dissesse que não podia ajudar, Aphrodite iria decepcionar Neferet em público – e ninguém fazia isso sem sofrer sérias consequências. Neferet já havia decidido enviar Aphrodite para o Exército Vermelho. Ela apenas usou a visão de Aphrodite para fazer isso parecer lógico em vez de uma crueldade.
– Vou fazer o meu melhor, Neferet – Aphrodite disse sem expressão.
E eu vou fazer o meu melhor para garantir que você fique protegida, Kevin acrescentou silenciosamente.
– É claro que vai! – Neferet soltou a mão de Aphrodite e abriu amplamente os braços, projetando-os na direção do nível do mezanino e dos oficiais do Exército Vermelho reunidos ali. – Oficiais do Exército Vermelho, vocês estão satisfeitos que a minha jovem e adorável Profetisa vai se juntar a vocês?
– Sim! – a resposta deles foi mais um urro do que uma resposta.
Os olhos de todos se levantaram para contemplar, a maioria em desgosto, a horda ruidosa e fedorenta, mas Kevin manteve o olhar fixo em Aphrodite. Ela parecia completamente aterrorizada.
Como se sentisse que era observada por Kevin, os olhos de Aphrodite encontraram os dele.
Está tudo bem. Eu te protejo. Kevin pronunciou as palavras para ela só com a boca, sem emitir som.
Aphrodite se espantou levemente quando entendeu o que ele disse. Então ela revirou os olhos para ele e fixou de novo no rosto a sua bela máscara de indiferença, enquanto Neferet continuava a falar.
– Vejam, eu sabia que a minha Profetisa iria levantar o moral. Oficiais dos meus Exércitos Vermelho e Azul, vocês vão fazer o seu melhor para me servir porque, fazendo isso, vocês servem a nossa benevolente Deusa da Noite, Nyx. E agora, General Stark, por favor, reúna os seus soldados. Preparem-se. E então vão até Sapulpa e acabem com esses traidores!
– Sim, Grande Sacerdotisa! – Stark respondeu, e o auditório vibrou em concordância.
Neferet levantou uma mão, e a sala ficou em silêncio.
– E quanto ao restante dos meus generais, quero que vocês me encontrem na Sala de Conselho para discutirmos a fundo o que Stark e eu suspeitamos, e como eu pretendo que nós derrotemos essa nova onda de inimigos. Não vamos ficar sentados de braços cruzados esperando que nos queimem enquanto dormimos. Nós vamos encontrá-los e derrotá-los. Todos eles. Não hoje. Não amanhã. Mas eu prometo a vocês que, quando nós lutarmos contra essa nova onda de inimigos, será com mais poder do que qualquer exército de vampiros já exerceu na história. Seremos vitoriosos!
O auditório comemorou ruidosamente, e Kevin achou que iria vomitar. Era mentira! Tudo que ele tinha dito sobre o Novo México e a sua milícia era mentira! Ele só queria fazer o exército desviar a sua atenção do quartel-general da Resistência, mas mesmo assim eles estavam indo para Sapulpa e para os campos logo abaixo da sua montanha.
E o poder do qual Neferet estava falando – Kevin sabia o que era. Ela ia munir os seus vampiros com armamentos humanos.
Neferet tinha que ser impedida.
Neferet levantou a mão graciosamente, e a sala ficou em silêncio.
– Tenho outro anúncio que sei que vai deixar meus oficiais muito entusiasmados. No próximo final de semana, está marcado o jogo de futebol americano entre a Universidade Estadual de Oklahoma e a Universidade de Oklahoma para o grande clássico dos Cowboys contra os Sooners. Bom, eu detesto esperar, não é? – A multidão fez barulhos de concordância. Neferet sorriu. – Sim, eu sabia que vocês entenderiam! Foi por isso que eu insisti para que o jogo acontecesse neste final de semana em Tulsa, bem aqui perto, no Estádio Skelly, da Universidade de Tulsa, no dia do Ano-Novo. Não será uma celebração incrível? A Universidade Estadual de Oklahoma e a Universidade de Oklahoma certamente acham que sim. – Ela fez uma pausa, e o seu sorriso se encheu de malícia. – Ou pelo menos eles acharam depois que fiz a eles uma oferta que não conseguiram recusar, e a Universidade de Tulsa, é claro, ficou muito satisfeita em acomodar o meu pequeno pedido deste feriado.
Mais uma vez, o auditório irrompeu em urros efusivos, mas desta vez alguns soltaram o grito de guerra “Boomer Sooner”6 e outros ficaram fazendo aquele gesto louco da mão de arminha disparando, típico dos torcedores da Universidade Estadual de Oklahoma.
Eu tinha esquecido totalmente que é quase Ano-Novo, Kevin pensou. E ele podia imaginar facilmente a “oferta que eles não conseguiram recusar”. Atletas universitários – e as líderes de torcida, a banda e os torcedores que iam junto com eles – eram protegidos da fome do Exército Vermelho desde que pudessem entreter os vampiros em geral e Neferet em particular. Ela não tinha feito uma oferta. Ela tinha feito uma ameaça mortal, e as universidades responderam do único jeito que conseguiam para proteger os seus estudantes.
– Merry meet, merry part e merry meet again,7 minhas leais Sacerdotisas, Guerreiros e soldados, e que as bênçãos de Nyx estejam com todos vocês! – Neferet encerrou o briefing sob um alvoroço de aclamação.
Kevin viu Aphrodite sair apressada até as escadas que levavam ao palco e seguir Neferet, embora a Profetisa devesse ter raciocinado melhor. Uma vez que Neferet dava uma ordem, ela sempre seguia até o final – não importavam as consequências. Todos os oficiais em ambos os exércitos sabiam que a única coisa maior do que o ego de Neferet era o seu orgulho.
– Tenente, você pode vir comigo também, já que não tem mais uma unidade.
Kevin se virou e viu o General Stark analisando-o com uma expressão indecifrável no rosto.
Ele ficou em posição de sentido imediatamente.
– Sim, senhor! É uma honra, senhor!
– Não fique aí parado só de queixo caído para Aphrodite. Siga-me.
Kevin seguiu Stark enquanto ele abria caminho para sair do auditório lotado. Quando eles chegaram ao corredor, o Tenente Dallas estava lá, esperando.
– E aí, General. Isso que você acabou de fazer aí dentro foi uma loucura do cacete, hein?
– Dallas, tente não falar por um tempo. Eu preciso pensar. E, enquanto estou pensando, reúna um pelotão de vampiros vermelhos e os seus oficiais. Vou requisitar caminhões suficientes para um comboio até Sapulpa. Diga aos oficiais que nós vamos sair às 2200 horas8 pontualmente – Stark deu uma olhada para Kevin. – Ah, e ele vai com a gente também.
– Você quer dizer que ele vai se juntar ao pelotão de vampiros vermelhos que vai partir hoje?
– Não, eu estou dizendo que ele vai com a gente. Comigo. No meu veículo.
– Pelas tetas de Nyx, General! Ele até consegue formar algumas frases, mas ainda é apenas uma máquina de comer. Tem certeza de que vai levar ele junto com a gente? Ele vai deixar o Hummer todo fedido.
Desta vez, Kevin não teve vontade de dar um soco em Dallas. Não porque ele gostasse do garoto, porque ele definitivamente não gostava, mas porque Stark havia acabado de dar a ele mais esperança do que tinha tido desde que Vovó Redbird o deixou na noite anterior.
– Tenente, você está questionando a minha ordem?
Dallas voltou atrás rapidamente.
– Claro que não, senhor. Só estava checando se ouvi direito.
– Você ouviu direito. Ah, e, aparentemente, Aphrodite vai se juntar a nós também. Então, certifique-se de pegar como nosso veículo líder aquele Hummer que tem problema de aquecimento. – Stark piscou para Dallas.
– Aaah, agora entendi! – Dallas riu. – Você quer irritar Aphrodite. Imagino que eu saiba do lado de quem ela vai sentar, certo?
– Tenente Dallas, eu pedi para você imaginar qualquer coisa? – Stark perguntou.
– Não, senhor, não pediu.
– Então siga as minhas ordens. Agora.
– Sem problemas. Como quiser, general. – Dallas deu um olhar de desdém para Kevin. – Você pode vir comigo. Só não fique contra o vento.
– Hum, perdão, General Stark, senhor – Kevin começou.
– Sim, o que é?
– Senhor, perdão, mas eu preciso me alimentar antes de partirmos – ele falou rapidamente.
– Claro que precisa. Que pé-no-saco – Dallas resmungou.
Stark olhou feio para Dallas, mas se virou para responder.
– Você tem algum tempo. Faça o que precisa fazer e depois junte-se ao comando do comboio às 2200 horas.
– Sim, senhor!
Kevin saiu apressado – seguindo na direção da sala pequena e suja que a Morada da Noite chamava de Cantina Vermelha. Na verdade, era apenas um velho depósito caindo aos pedaços que havia sido convertido em um lugar onde humanos drogados esperavam para serem utilizados como refeições. Assim que Kevin saiu do campo de visão de Stark e de Dallas, no entanto, ele mudou de direção, puxando o capuz sobre a cabeça e saindo rapidamente para fora pela porta mais próxima.
Ele não fez nenhuma pausa. Ele caminhou rápido – como se soubesse exatamente para onde estava indo. E ele sabia. Ele sabia o que precisava fazer. Debaixo do capuz, ele ergueu os olhos para o céu.
– Venha! Venha! Pássaro, onde você está? Facilite aí, pode ser? E não me obrigue a fazer isso.
Kevin continuou caminhando na direção leste pelos jardins da escola. Ele evitou as partes mais iluminadas da grande área de gramado e tentou ficar visível enquanto ia de árvore em árvore, mantendo o olhar voltado para o alto.
Quando ele chegou ao muro leste e ao alçapão escondido, misturou-se às sombras ao lado dele. O seu olhar varreu o jardim da escola. Havia vampiros e novatos visíveis, mas estavam todos bem distantes e apressados – sem dúvida, preparando-se para massacrar alegremente algumas pessoas inocentes. Ele olhou de novo para o céu. Nada. Nenhum maldito pássaro.
– Merda!
Sentindo-se pesado com um mau pressentimento, Kevin pressionou o fecho escondido no muro e então saiu furtivamente.
6 Grito de guerra do time da Universidade de Oklahoma. (N.T.)
7 Merry meet, merry part e merry meet again é uma saudação pagã que significa “feliz encontro, feliz partida e feliz reencontro”. (N.T.)
8 No horário militar, 22 horas. (N.T.)
16
Outro Kevin
Assim que estava do lado de fora do muro, Kevin procurou se acalmar.
– Ok, pense um pouco. Primeiro, confira o céu de novo. – Kevin procurou pelo céu da noite, mas, se o corvo estava em algum lugar lá em cima, era impossível vê-lo contra a escuridão. Kevin lembrou que Anastasia disse que Tatsuwa tinha uma excelente visão, então ele se afastou um pouco do muro e balançou os braços sobre a cabeça.
Nenhum sinal daquele maldito pássaro.
– Certo. Plano B. Que diabos eu ainda tenho que as criaturas possam querer? – Ele procurou dentro da bolsa quase vazia. Todo o sangue tinha acabado, mas ainda haviam sobrado dois cookies. Havia também o vidro daquela gosma de sangue nojenta. – Bom, espero que eles queiram uma dessas duas coisas. – Ele se aproximou mais do muro para se esconder nas sombras e então fez o chamado. – Espíritos do ar da Magia Antiga, eu sou Kevin Redbird e, com o poder do meu sangue e o poder que Nyx me concedeu, eu chamo vocês para mim! De novo!
Com pequenos barulhinhos de estouro, os espíritos de ar se materializaram ao redor dele.
– Garoto Redbird! Qual pagamento você traz para nós? Qual tarefa gostaria que realizássemos?
Kevin achou que estava falando com o mesmo espírito que havia aparecido quando ele fez a invocação na noite anterior, mas não tinha certeza. Ele sorriu e tentou parecer mais entusiasmado do que nervoso.
– E aí? Obrigado por virem de novo. Fico muito grato mesmo.
– Qual é a tarefa e qual é o nosso pagamento?
– Ok, bom, eu não tenho muito tempo para conversa fiada de qualquer jeito. O que eu preciso é que vocês encontrem um corvo chamado Tatsuwa. Ele pertence à Sacerdotisa vampira da montanha onde vocês vieram até mim pela primeira vez. Podem fazer isso?
“Há muito que podemos fazer
Se o pagamento formos receber.”
Kevin relaxou um pouco quando a voz do espírito começou o ritmo musical que marcava o começo de um acordo.
– Ok, bom, eu posso dar um pouco do meu sangue a vocês. Ou eu tenho mais dois cookies daqueles que vocês gostaram tanto ontem.
“Se você quer a tarefa realizar
O seu pagamento não pode nos entediar
Deve fazer todo o coração cantar!”
– Belezinha. – Ele enfiou a mão na bolsa e pegou o vidro de gosma de sangue fedida. – Que tal isto? É sangue de vampiro vermelho.
A reação do espírito foi instantânea. Ela aumentou de tamanho. Os seus olhos se arregalaram e ela mostrou os dentes, expondo presas terrivelmente afiadas.
– Isso é uma abominação, não um pagamento!
Kevin rapidamente colocou o vidro de volta na bolsa.
– Ei, ok, ok, eu entendi. Eu também acho isso nojento. Desculpe. Eu simplesmente não sei muito sobre espíritos de ar. Hum, por que você não me diz o que gostaria como pagamento?
Isso acalmou o espírito, e ela voltou a ter mais ou menos o tamanho de um beija-flor e a aparência de um cruzamento entre um inseto grande e uma mulher alada muito pequena. Os outros espíritos fizeram um círculo ao redor dela, sussurrando naquela linguagem estranha que usavam, quase parecida com a do gorjeio de pássaros. Quando terminaram de falar, o grupo inteiro se aproximou, pairando e apontando.
Kevin baixou os olhos para si mesmo, tentando descobrir o que estavam apontando.
“Nós vamos ficar com aqueles fios de ouro
e esse pagamento será duradouro.”
Confuso, Kevin olhou de novo para si mesmo.
– Fios de ouro? Sinto muito, mas não sei do que vocês estão falando.
O espírito que liderava o bando voou até ele, estendeu uma mão delicada com dedos impossivelmente longos e gentilmente tocou uma mecha de cabelo comprido que estava grudada na blusa dele.
– O cabelo de Aphrodite! Caramba, eu estava mesmo puxando o cabelo dela. Não foi à toa que ela gritou comigo. – Quando ele soube o que estava procurando, rapidamente encontrou outros três longos fios. Ele os tirou da blusa e os ergueu. Mesmo na escuridão, os fios brilharam. – Tem razão. Eles se parecem mesmo com ouro, mas você deve saber que não são de verdade. São apenas fios de cabelo loiro.
“De uma Profetisa cheia de poder.”
Ela lambeu os lábios e Kevin viu de relance novamente os dentes afiados feito agulhas.
“Deliciosos para se comer.
Com esse pagamento você concorda?
Ou podemos voar e ir-se embora?”
– Hum, não! Quero dizer, sim. Sim, vocês podem ficar com o cabelo. Não é como se Aphrodite ainda estivesse usando isso. – Ele estendeu as quatro mechas, segurando-as entre o polegar e o indicador, e as ofereceu para o espírito.
“Com esse pagamento nós concordamos
Oferecido por ti e aceito por mim
O nosso acordo está selado – que assim seja!”
O espírito pegou as mechas de cabelo da mão de Kevin. Ela as atirou no ar, onde ficaram suspensas, flutuando imóveis, mas esticadas como finas linhas de seda esperando para serem passadas pelo buraco de uma agulha. Então os espíritos partiram para cima delas, um espírito para cada ponta de mecha, e as sugaram para dentro de suas bocas estranhas, finalmente juntando-se todos no centro como uma versão totalmente bizarra da cena do spaghetti de A Dama e o Vagabundo. Então eles saíram voando, desaparecendo no céu.
– Isso foi bem louco. Sério. Queria que Zo estivesse aqui para ver isso também. Aposto que ela ia morrer de rir com os espíritos comendo o cabelo de Aphrodite. – Ele estava rindo consigo mesmo quando um grasnido alto fez com que ele franzisse os olhos para a escuridão do céu, que se moveu, alterando-se, e finalmente se transformou em um corvo, voando em círculos até aterrissar no gramado marrom do inverno ao lado dele.
– Tatsuwa! Cara, estou feliz de te ver!
– Garoto Redbird! – o corvo respondeu.
– Sim, sou eu. Ok, você tem que levar uma mensagem para Dragon. Tipo, agora mesmo. – Kevin se agachou ao lado do corvo. Ele ficou aliviado ao ver que Tatsuwa tinha uma tira de couro em volta do pescoço e que dela pendia um pequeno recipiente de plástico, como os usados para guardar sal. Ele tirou o objeto do pescoço do pássaro e o abriu. Dentro havia um pedaço de papel dobrado e um pequeno lápis.
Usando sua mochila como apoio, ele sentou no chão e escreveu um recado rapidamente.
Neferet tem um esconderijo de armas modernas no porão da Morada da Noite. Dez caixas de lançadores de granadas. Dez caixas de M-16s. Munição para tudo. Ela planeja atacar o sul em breve. Ainda não sei quando.
Kevin pausou, mordendo a ponta do lápis. Ele tinha que contar a eles sobre a visão de Aphrodite e o perigo que a Resistência corria, mas não queria que ela se tornasse um alvo. Decidindo rápido, ele continuou a escrever.
Neferet tem informações de que a Resistência está escondendo pessoas em fardos redondos. O Exército Vermelho está a caminho da Lone Star Road e das plantações de feno hoje à noite. Se vocês estão transportando fugitivos levando pessoas para fora desse jeito, vocês só têm uma hora para tirá-los daí. Eu estarei com o exército.
Ele fez uma pausa de novo e então acrescentou:
Tive que usar Magia Antiga para chamar o pássaro. Precisamos descobrir um jeito melhor... K.
Ele releu o bilhete e então, satisfeito, dobrou o papel e o colocou de volta no recipiente com o lápis. O corvo grasnou e deu uns pulinhos até o seu lado, levantando a cabeça para que ficasse fácil para Kevin colocar de volta a tira de couro ao redor do pescoço.
– Ei, não sei se você consegue me entender ou não, mas, se consegue, você precisa ficar mais de olho em mim. Não me sinto bem de usar Magia Antiga assim, a torto e a direito. Além disso, estou ficando sem coisas para pagar os espíritos. Hum, espere aí. Você se importa se eu pegar uma pena sua emprestada?
O grande pássaro inclinou a cabeça para o lado, analisando Kevin.
– Garoto Pássaro! – ele disse e então se virou, obviamente oferecendo a Kevin uma pena da sua cauda.
– Cara, você é bem legal para um pás... quero dizer, corvo. – Com um puxão rápido, Kevin arrancou uma das longas penas negras da cauda de Tatsuwa.
O grasnido de protesto do corvo ecoou pelo muro de pedra enquanto o pássaro levantava voo. Ele voou em círculos sobre Kevin, caprichosamente soltando uma gota quente de cocô de pássaro na cabeça dele.
– Ei, muito obrigado! – Kevin gritou para ele, tentando tirar a sujeira do seu cabelo. – Bom, pelo menos não fede tanto quanto o perfume de sangue.
Zoey
– Ok, então, vamos relembrar o que aconteceu. Quem pode me dizer por que Thanatos morreu quando Neferet quebrou o feitiço protetor que havia jogado sobre o Edifício Mayo? – eu perguntei e fiz uma pausa, satisfeita ao ver várias mãos se levantando.
Dar aulas é sempre uma incógnita. Alguns dias tudo corre tranquilamente e os alunos fazem o seu dever de casa e agem corretamente. Outras vezes é como se todos os seus neurônios tivessem sido desligados – a menos que você mencione peitos ou fale um palavrão sem querer. Eu me surpreendi ao descobrir que gostava de ensinar porque, bom, adolescentes são tão imprevisíveis quanto os gatos e muitas vezes têm ainda menos noção do que eles.
(Sim, eu tenho dezoito anos, então, tecnicamente, ainda sou uma adolescente. Só que eu também sou a Grande Sacerdotisa e, às vezes, a professora – então tenho certeza de que o fato de ser uma adolescente não conta. A menos que eu faça besteira. Aí todo mundo se lembra de como eu sou jovem. Isso é um saco.)
Eu me sacudi mentalmente e assenti para uma mão erguida muito entusiasmada.
– Samantha, qual é a sua resposta?
A garota era uma quarta-formanda ou, como a chamaríamos em sua escola humana, uma aluna de segundo ano do ensino médio. Era fácil de perceber isso pelas asas de Eros bordadas no bolso sobre o seio do seu suéter da escola.
– Senhora, Thanatos morreu porque colocou demais de si mesma no feitiço, então, quando Neferet quebrou o feitiço, ela também quebrou Thanatos.
Internamente me contorcendo porque a garota tinha usado a palavra senhora para se referir a mim, eu consegui forçar um sorriso.
– Sim, certo. Então, você acha que Thanatos deveria ter se protegido mais, colocando menos de si no feitiço?
– Não – Samantha respondeu direto, sem levantar a mão. – Se ela tivesse feito isso, Neferet teria se libertado do Mayo antes do sacrifício de Kalona, e antes que você e o seu círculo descobrissem como detê-la, e todos nós teríamos morrido ou virado escravos dela. Thanatos é uma heroína. Eu a admiro.
– Há muito para se admirar em Thanatos. Quem pode me dizer qual a afinidade que Nyx concedeu a ela?
Eu estava me preparando para chamar outro garoto quando, em vez disso, eu ofeguei. Um calor brotou na parte superior do meu corpo, como se alguém estivesse apontando um secador de cabelos no nível máximo diretamente para o meu peito nu – apenas para fins de esclarecimento, eu não estava lecionando pelada. Nós somos diferentes aqui na Morada da Noite, mas não tão diferentes.
– Está tudo bem, senhora? – Samantha perguntou.
– Sim. Estou bem. Eu, ahn, preciso sair por um segundo. Samantha, você é a responsável até eu voltar. Continue a discussão sobre Thanatos, por favor.
Então aproveitei para sair rapidamente pela porta da sala de aula, com a mão pressionada sobre a queimação no meio do meu peito.
Mal consegui sair e já vomitei até as tripas em uma lata de lixo reciclável no corredor.
E então o calor foi embora, deixando-me de corpo mole e ofegante.
– Zoey! – Stark dobrou a esquina do corredor correndo e chegou deslizando até mim. – Minha Deusa, desta vez foi foda! – Ele apalpou todo o meu peito, não de um jeito sexy, mas sim de um jeito caraca-será-que-eu-me-quebrei.
– Estou bem agora. Acabou – tentei soar normal, mas a minha voz estava tão trêmula quanto as minhas mãos. – Desculpe por ter tirado você da sua aula.
– Nunca peça desculpas. Você é a minha vida, Z. Se alguma coisa acontecesse com você...
– Ei. – Peguei a mão dele. – Não está acontecendo nada comigo. Está acontecendo alguma coisa com Kevin. Esse é o problema.
– Não, o problema é que Kevin não está aqui, então não posso dar porrada nele por ficar usando Magia Antiga sem pensar.
– Ele não sabe como isso é perigoso, Stark.
Stark suspirou.
– Eu sei, eu sei. Desculpe. Eu não ia dar porrada nele de verdade. Eu gosto dele.
– Sim, eu também.
– Acho que você vai ter que dar um jeito de dizer a ele para parar de usar Magia Antiga. A ironia é que provavelmente você vai ter que usar Magia Antiga para fazer isso – Stark disse.
Eu evitei fazer contato visual com ele.
– Sim, isso é um saco, mas estou tentando descobrir como fazer isso.
– Isso é uma boa e uma má notícia. Olha só, Z, eu sei que isso está realmente te desgastando, e que você está super preocupada com o seu irmão, mas quero que você me prometa que não vai sair sozinha e mexer com Magia Antiga sem supervisão.
Coloquei meus braços ao redor dele e descansei no seu abraço.
– Prometo. Eu já aprendi a minha lição. Não vou sair escondida sozinha e usar Magia Antiga.
Pude sentir Stark relaxar, o que só aumentou minha culpa. Quando ele tentou me beijar, eu me inclinei para trás, cobrindo a boca. Por trás da minha mão, eu disse:
– Você não quer fazer isso. Acabei de vomitar.
– Ah, Z, sinto muito. O que eu posso fazer?
– Nada. Eu realmente estou bem agora. Vou terminar a aula mais cedo e mandar os alunos para a sala de estudos, e aí vou até o nosso quarto escovar os dentes. Hálito de vômito é muito nojento.
– Ok, já está quase na hora do almoço. Você vai conseguir comer?
– Com certeza! Encontro você no refeitório. E pare de se preocupar. Eu estou bem.
Stark me deu um beijo na testa.
– Eu te amo, minha Rainha.
– Eu também te amo, meu Guerreiro – eu disse. Então eu o observei indo embora com o meu coração apertando no peito. Quando ele desapareceu, tirei o celular do bolso e digitei, procurando o contato certo.
– Qual é, Z?
– Kramisha, preciso que você faça uma coisa pra mim.
– O seu desejo é uma ordem.
– Você ainda tem uma cópia daquele velho poema profético? Aquele sobre como fazer Kalona se erguer?
– Tenho. Está no meu arquivo com a etiqueta “Merdas com as quais ninguém deveria mexer”.
– Ótimo. Eu preciso dele. Você me manda uma cópia por e-mail?
– Você vai mexer com ele?
– Kramisha, Kalona já se ergueu em uma explosão. Isso não pode acontecer duas vezes.
Pelo menos não neste mundo, eu acrescentei silenciosamente para mim mesma.
– Isso é verdade. Te mando o e-mail.
– Obrigada, tchau.
Voltei para a minha sala de aula e coloquei a cabeça para dentro da porta.
– Pessoal, vou encurtar a aula hoje. No resto do tempo, vocês podem ir até o Centro de Mídia para estudar.
Então eu fechei a porta para as comemorações deles e fui em direção ao estacionamento.
O meu Guerreiro estava cem por cento correto. Kevin precisava ser avisado sobre como era perigoso lidar com Magia Antiga e ele tinha que entender como controlar o impulso de usá-la sem parar.
Eu vou dizer isso a ele.
Eu vou ensiná-lo.
Pessoalmente.
Mas primeiro eu precisava pensar – raciocinar realmente sobre os como, os quando e os com quem – sozinha. Sem ficar ansiosa olhando para alguém me encarando fixamente como um projeto de química prestes a explodir ou, pior, alguém me perguntando sem parar se eu estava bem.
Decidi ir em direção ao meu lugar preferido para ficar sozinha...
17
Stark
Assim que o sinal soou para liberar os alunos para o almoço, Stark saiu apressado do Ginásio para o Refeitório dos Professores. Ele não deu a mínima em estar atraindo a atenção de cada novato, vampiro e humano que passou por ele. Stark tinha um pressentimento. Um maldito mau pressentimento. E esse pressentimento tinha alguma coisa a ver com Zoey.
Claro que ela não estava no refeitório.
Ele sentou-se na mesa grande onde ele, Z e seus amigos normalmente comiam e esperou.
E esperou.
E esperou.
Depois de se passarem trinta minutos, ele acenou para uma garçonete.
– O que eu posso trazer para você, Stark?
– Não quero nada. Estou só esperando a Zoey, mas talvez a gente tenha se desencontrado. Ela já comeu?
– Não, eu não encontrei com ela hoje. Quer que eu anote o seu pedido?
– Não, acho que vou esperar mais um pouco, mas obrigado – ele respondeu e ela saiu. Então Stark conferiu o seu telefone. De novo. Nada de Z. Ele mandou uma mensagem de texto para ela. De novo.
Você ainda não está aqui. Será que eu confundi o lugar?
Ele apertou o botão de ENVIAR e depois digitou de novo rapidamente.
Estou começando a ficar preocupado. Me liga.
– E aí, Stark? O que parece mais apetitoso para o almoço hoje? – Damien perguntou enquanto sentou ao lado de Stark, deslizando em um dos bancos com encostos altos que formavam uma cabine.
– Ah, oi, Damien. Não sei. Estou esperando a Z.
– Ah, tudo bem, eu estou esperando o Jack. Ele está ficando um tempo a mais no Centro de Mídia, tentando recuperar o que não aprendeu lá naquele Outro Mundo deplorável. – Damien sorriu para a garçonete que tinha voltado até a mesa deles. – Quero pedir tacos para Jack e para mim. Mas dê uns dez minutos antes de soltar o pedido. Ele é Outro Jack, mas é quase tão atrasado quanto o Jack original era. – Então Damien voltou sua atenção de novo para Stark. – Você disse que estava esperando Z?
– Sim. Ela também está atrasada.
– É porque ela não está aqui. Eu vi o Fusca dela sair do estacionamento meia hora atrás, e eu ainda não a vi voltar.
– Merda! Você está brincando?
– Não. Stark, está tudo bem? – Damien perguntou.
– Não. Não está tudo bem. Desculpe, Damien. Tenho que ir. – Stark teve que se esforçar muito para não bater a porta com força quando saiu do refeitório.
Ela simplesmente saiu dirigindo e não me falou nada? De novo.
Essa era a terceira vez nos últimos dias em que Z tinha falado para ele que ia estar em algum lugar – ou encontrá-lo para fazer algo – e ou ela não aparecia, ou se atrasava. Bastante.
Claro, ela sempre tinha uma desculpa, como ter que conferir a tumba de Neferet para ter certeza de que não estava acontecendo nada de estranho por lá. Ele entendia isso. Ele também entendia que Zoey poderia enviar outra pessoa para fazer isso se ela quisesse. Alguém como ele. Ou Darius. Ou Rephaim. Ou qualquer um entre as dúzias de outros Guerreiros Filhos de Erebus que iriam fazer um relatório com tudo para Zoey e manter suas bocas fechadas se descobrissem alguma coisa fora do normal.
E, claro, ela dizia que continuava indo ao Restaurante da Estação para ajudar com a reforma, mas entre Damien, Outro Jack e Stevie Rae, já tinha um monte de gente para ajudar.
Pior ainda, sempre que Stark tentava ir atrás de Z – quando tentava ver por que ela estava demorando tanto –, ela nunca estava realmente ali no instante em que prometera estar.
Stark foi primeiro para os aposentos que ele dividia com Zoey. Ela não estava lá. Então ele desceu correndo as escadas e saiu pela porta de madeira em arco que sempre o fazia lembrar um castelo. Ele fez uma pausa, enquanto os seus olhos varriam os jardins da escola. Havia estudantes novatos e humanos por toda parte. Alguns estavam sentados em pequenos grupos embaixo dos lampiões a gás bruxuleantes, compartilhando o almoço. Outros estavam andando apressados em direção aos dormitórios. Outros estavam brincando de um pega-pega estranho que a atual turma dos alunos do último ano tinha criado e que envolvia gatos de alguma forma.
O olhar dele foi atraído para a estátua de Nyx que ficava no centro do jardim principal. Quando ele reconheceu uma das Grandes Sacerdotisas no pequeno grupo aos pés da Deusa, sentiu uma enorme onda de alívio e atravessou correndo o gramado marrom do inverno. Lá está ela! Espero que ela saiba de algo.
– Stevie Rae! Ei, a gente precisa conversar – Stark disse ao se juntar a ela perto da estátua. Ao lado de Stevie Rae estavam dois jovens novatos que tinham acabado de acender a miríade de velas votivas que tremeluziam alegremente ao redor do pé da Deusa. Eles fizeram uma reverência nervosa, porém respeitosa, para cumprimentar Stark. – Oi, e aí? Bom trabalho com essas velas aí. Ok, hora de vocês irem almoçar. Ou de irem para a próxima aula. Basicamente, hora de vocês vazarem! – Stark gesticulou com a mão, enxotando-os dali.
Stevie Rae observou os dois novatos saírem apressados na direção da entrada dos fundos da escola. Ela olhou feio para Stark.
– Ótimo. Você acabou de assustar os dois. Você não lembra como é a sensação quando a gente acaba de ser Marcado? Aqueles novatos só estão aqui há uma semana. Eles ainda estão chorando no travesseiro à noite chamando a mamãe.
– Eles vão ficar bem, assim como nós ficamos. Quem não está bem é Zoey.
– De que diabos você está falando?
– Você tem visto Zoey ultimamente? – Stark disparou a pergunta para ela.
– Sim. Não. Eu só a vi rapidinho pouco tempo atrás, faz uma meia hora. Ela disse que estava indo até a estação para ver se Kramisha precisava de ajuda para fazer as malas. Você sabe que Kramisha está indo pra Chicago amanhã, né?
– Sim, sim, eu sei que Kramisha vai embora. E Z disse que ela estava indo para a estação? Tem certeza?
– Claro que tenho. Não faz tanto tempo.
– Ok, aguenta aí. – Stark tirou o telefone do bolso e ligou para Kramisha, colocando no viva-voz para que Stevie Rae pudesse ouvir também.
Kramisha, ao contrário de Zoey, atendeu no primeiro toque.
– O que você quer, Stark? Estou ocupada aqui fazendo as malas.
– Desculpe te atrapalhar. Z está com você?
– Não.
– Você a viu hoje?
– Não.
– Ok, obrigado.
– Ei, está tu...
Stark desligou e lançou um olhar penetrante para Stevie Rae antes de falar:
– Zoey mentiu pra você. Ela mentiu pra mim, ela tem feito isso ultimamente. Ela conversou com você pelo menos?
Stevie Rae hesitou antes de responder.
– Eu ia dizer “Claro! Z conversa comigo todo dia”, mas, quando pensei mesmo sobre isso, na verdade ela não tem falado muito.
– Pois é, desde que ela começou a sentir o Outro Kevin usando a Magia Antiga.
– Eu sei que ela está preocupada. Afe, Stark, eu também estou preocupada com Kev.
– O problema é que eu tenho certeza de que não é só com o Outro Kevin.
– Você vai ter que me contar mais do que isso. Desde que Z disse para Rephaim e para mim que a gente poderia ficar em Tulsa, ando super louca e atarefada me instalando aqui e decifrando planos de aula de Sociologia Vampírica, que eu fui tonta o bastante para me voluntariar para ser a professora. Afe, quem podia imaginar que dar aula era tão difícil?
– Todo professor no mundo sabe disso, mas esse não é o ponto. Stevie Rae, você precisa me ouvir: eu acho que Zoey não está bem.
Stevie Rae fez um gesto para que Stark se juntasse a ela em um banco de ferro cheio de ornamentos esculpidos, perfeitamente situado perto da estátua da Deusa.
– Agora, me conta o que está entalado aí dentro em relação a Z.
Stark soltou um longo suspiro ao se sentar ao lado dela.
– Ela está indo ao túmulo dele. Todo dia. E está mentindo sobre isso.
Stevie Rae mexeu os ombros.
– Isso não é tão ruim. Quer dizer, Z sente falta de Heath. Todo mundo sabe disso, e talvez ela não esteja dizendo a verdade porque não quer que você se sinta mal. Ei, se ela está mentindo, como você sabe pra onde ela vai?
– Eu a segui. E, antes que você comece a me passar sermão, preciso dizer que só fiz isso porque estava preocupado. Muito preocupado.
Stevie Rae levantou as mãos em sinal de rendição.
– Ei, não estou julgando, mas você tem a minha atenção total agora. Continue.
Stark passou os dedos pelo seu cabelo grosso e suspirou de novo.
– Então, eu a segui – ele repetiu. – E a observei. Ela fica sentada lá. No túmulo dele. E conversa com ele. Muito.
– Ela conversa com a lápide dele?
Stark balançou a cabeça.
– Não. Ela se se recosta na lápide dele, mas fica olhando para o lado, como se ele estivesse sentado ali, ao lado dela, em algum lugar perto. E perto mesmo, não no Bosque de Nyx.
– Bom, ok, então isso é estranho e triste, mas talvez seja o jeito de Z lidar com o luto dela. Você sabe que levou muito tempo para ela conseguir ir até o túmulo dele. Ela nunca nem me deixou ir com ela. Uma vez Z me disse que isso era algo que ela precisava fazer sozinha e que eu devia deixá-la em paz. Ela disse que gostava de pensar lá porque é bem silencioso. Talvez seja só isso. Z precisa de um tempo sozinha. O que você acha? – Stevie Rae balançou a cabeça, fazendo os seus cachinhos loiros sacudirem ao redor do seu rosto. – Parte disso é culpa minha. Sinto muito que eu estive tão enlouquecida que nem percebi que ela estava depressiva ou algo assim.
Stark fez um gesto recusando as desculpas dela.
– Isso não é culpa sua. É de todos nós. Acho que a gente deixou ela sozinha demais desde que Kevin voltou para o Outro Mundo.
– Mas a gente está dando espaço pra ela. Ei, eu sei que ela tem falado com o irmão dela. O Kevin deste mundo. O que não é um vampiro vermelho. Acho que isso está ajudando um pouco a lidar com o fato de o Outro Kevin não estar aqui. – Stevie Rae suspirou e passou os dedos pelo cabelo. – Eu não perguntei quase nada sobre como ela estava se sentindo, principalmente depois de ela ficar dizendo para a gente como estava bem, mesmo com aquela maldita Magia Antiga mexendo com ela e Outro Kevin. Como Kramisha sempre diz, não é legal ficar se metendo nos assuntos de Z.
– Sim, bom, o tempo de dar espaço acabou. Desde que ela começou a “conversar” – ele fez aspas no ar com os dedos – com Heath, ela parou de conversar de verdade comigo. E, obviamente, com você.
– Z não tem conversado com Damien nem Aphrodite também? – Stevie Rae perguntou.
– Ah, claro. Z conversa com Damien, com Aphrodite, com você e comigo. Mas ela nunca diz como está se sentindo, só diz que está bem. Stevie Rae, ela está se afastando de mim. E de você, de Aphrodite e de Damien. Ela só está conversando de verdade com o Heath, que já morreu.
– Você não acha mesmo que Z só está lidando com o luto dela?
– Não, porque essa coisa de conversar com o Heath morto só começou depois que Kevin veio do Outro Mundo e...
– E contou a ela que Heath estava vivo do lado de lá – Stevie Rae terminou a frase por ele enquanto arregalava os olhos ao compreender.
– Exatamente – Stark disse.
– E então ela sentiu Kevin usando Magia Antiga.
– Sim. O que aconteceu hoje de novo. Um pouco antes de ela ir embora no Fusca, apesar de ter me dito que a gente ia se encontrar para almoçar.
– Aiminhadeusa, Z está indo para o Outro Mundo! – Stevie Rae concluiu.
– Sim, estou começando a pensar isso também – Stark falou.
– Ah, que inferno! – Stevie Rae exclamou.
Zoey
Olhei as horas no celular quando saí com o meu Fusca da Rua Setenta e Um e entrei na Aspen, pegando a primeira à esquerda para atravessar o portão sombrio do Cemitério Floral Haven. Eu tinha certeza de que ia conseguir voltar para a Morada da Noite sem me atrasar muito para encontrar Stark no almoço.
– Eu devia apenas contar a ele que gosto de vir aqui – murmurei para mim mesma. – Ele entenderia. Certo?
Hum. Não. Eu já tinha contado isso a ele outra vez. Faz quase um ano. E ele fez um milhão de perguntas e disse que eu deveria falar com alguém. Alguém tipo um psiquiatra. Sobre o meu luto.
– Tentei explicar que é tipo isso que eu faço quando visito o túmulo. Eu falo. Claro, não é com um psiquiatra, mas falar é falar, certo?
Aparentemente, não para Stark. Não que eu o culpasse por isso. Perder Heath tinha sido horrível. Pior até mesmo do que perder a minha mãe, porque a verdade é que eu era muito mais próxima de Heath do que de qualquer um na minha família, exceto de Vovó Redbird.
Como se soubesse o caminho sem que eu tivesse que manobrar a direção, o meu Fusquinha azul-claro serpenteou pelas curvas até o que tinha se tornado uma parte familiar do cemitério. Parei no lugar de sempre – perto do cedro que marcava o começo da trilha que eu havia percorrido incontáveis vezes no último ano.
Eu sempre ficava triste logo que chegava ali. O Floral Haven não teria sido a primeira opção de Heath. Não porque fosse um cemitério ruim nem nada desse tipo. Eu simplesmente sabia que Heath iria gostar de algum lugar mais... bem... colorido. Heath gostava de coisas loucas, e o Floral Haven era imaculado, bem estruturado, bem organizado e bem regulado. Era exatamente o oposto de louco.
Enquanto eu andava pela trilha que levava à sepultura da família Luck, a minha tristeza se evaporou um pouco – e depois mais do que “um pouco” quando eu avistei a minha contribuição à vizinhança da área dos Luck. Fui até a lápide modesta, adequada e entediante de Heath e sentei bem em cima do seu túmulo, o que eu sei que ele teria apreciado. Eu me recostei na pedra cinza e fria, que dizia em letras grandes HEATH REGINALD LUCK – FILHO AMADO, e então olhei para o lado na direção da área mais próxima à dos Lucks, onde havia apenas uma lápide – a que eu havia encomendado imediatamente depois de comprar a área de sepultamento familiar vizinha. Era o contrário de entediante, esticando ao máximo o que as regras muito específicas do cemitério permitiam. Eu havia mandado fazer uma lápide de mármore azul polido, da cor exata de um buraco de pesca perfeito. Em cima dela, eu havia pedido para o artista esculpir uma cena de Heath sentado em uma pequena plataforma de madeira atirando a linha de pesca da sua vara na água. Eu tinha feito com que Heath estivesse olhando direto para mim, sorrindo como ele sempre fazia quando ia pescar.
– E aí, beleza? – perguntei para o Heath esculpido. – Sim, hoje foi um daqueles dias incríveis de inverno em Oklahoma, em que não está tão frio para ficar do lado de fora, mas também não quente o bastante para despertar as três ameaças típicas daqui: carrapatos, pólen de ambrósia e cobras. Aposto que você diria que estaria um clima bom para pescar, mas na verdade você achava que todo dia tinha um clima bom para pescar.
Ok, deixe-me ser sincera. Eu não tinha perdido a cabeça – pelo menos não totalmente. Eu não estava sob nenhuma ilusão de que Heath estivesse de fato ali me escutando. Eu sabia onde ele estava, ou pelo menos uma versão dele. Eu tinha estado com ele lá – no Bosque da Deusa – depois que ele morreu e que a minha alma se despedaçou de tristeza. Ele provavelmente está pescando em algum lugar lá em cima agora.
Mas eu gostava de fingir que estava falando com ele.
Eu precisava fingir que estava falando com ele.
Principalmente agora.
– Então, lembra que outro dia eu te contei sobre aquela queimação estranha no meu peito? Bom, surpresa! Não era um ataque do coração. Era uma coisa pior. Era o Outro Kevin, lá naquele Outro Mundo, usando Magia Antiga – fiz uma pausa e recostei minha cabeça na lápide dele. – É, isso é ruim. Bem ruim mesmo. E ele está mexendo muito com isso – suspirei. – Né? Eu sei que ele vai se meter em alguma grande caca. Por que os irmãos mais novos são sempre um pé no saquinho?
– Zoey? É realmente você! Achei que tinha visto o seu Fusca entrar aqui.
Dei um salto ao ouvir a voz e girei sentada para ver o meu irmão, Kevin, andando na minha direção.
– Afe, você quase me mata de susto, Kevin. Tipo, faça mais barulho da próxima vez.
– Que tal você me dizer quando vai visitar o túmulo de Heath da próxima vez e eu encontro você aqui? Por sorte eu estava passando quando você entrou. – Kevin olhou para mim e sorriu. – Foi sorte!9 Entendeu?
Eu sorri para ele.
– Entendi. – Então dei umas batidinhas no lugar ao meu lado, e Kevin sentou no local indicado.
Nós não falamos nada. Apenas ficamos sentados. Desde que o Outro Kevin tinha partido, eu gostava de conversar com este Kevin – bastante. Principalmente pelo telefone, no entanto. Primeiro, porque ele tinha um calendário escolar super ocupado e era difícil para ele escapar, especialmente sem o padrastotário, o marido péssimo da minha mãe, sabendo que Kevin e eu tínhamos nos reaproximado.
A segunda razão era mais difícil. Ver Kevin, do jeito que estava fazendo agora, fazia com que eu sentisse falta do Outro Kevin. Quer dizer, eu gostava de conversar com este Kevin. Ele tinha crescido e virado um cara bacana, havia trocado a sua obsessão por videogame por uma obsessão por luta livre e tinha entrado para a seleção da Broken Arrow este ano, o que era legal. Mas ele não era um vampiro. Ele não conseguia me entender como o Outro Kevin me entendia. Não era culpa dele, mas isso não fazia com que fosse menos verdade.
– Ei, você nunca acha isso meio sinistro? – Kevin interrompeu meus pensamentos com um encontrão de ombro.
– O quê? Sentar no túmulo dele? Que nada, Heath iria adorar – eu disse.
– Bom, isso e aquilo – ele apontou para o Heath pescador esculpido.
– Heath iria adorar aquilo também – eu respondi. – Você não lembra que ele tinha senso de humor?
– Claro. E você não lembra que ele está morto?
Eu dei um pulo abruptamente, como se Kevin tivesse me dado um tapa.
– É claro que eu lembro. Eu estava lá. Perder Heath quase me matou. Por que diabos você me perguntaria isso?
– Por causa do que o Outro Kevin te contou.
Eu não falei nada. Eu não conseguiria dizer nada. Para este Kevin – este meu irmão humano –, seria impossível entender a Magia Antiga. Ele também não entenderia o sonho que eu tive, o qual eu tinha certeza de que não era um sonho, mas uma mensagem da minha versão morta do outro mundo. Ele iria pensar que eu só estava dando desculpas se contasse a ele o que eu tinha decidido – o que eu sabia que tinha que fazer.
Eu não estou dando desculpas.
O meu irmão – o meu outro irmão – precisava de ajuda com Magia Antiga e de ajuda para se livrar de Neferet. Nenhuma dessas coisas tinha nada a ver com o Outro Heath Luck.
– Zoey, eu vou com você. Você só precisa pedir – Kevin disse em meio ao silêncio que tinha se instalado entre nós.
Os meus olhos faiscaram na direção dele.
– Você não pode! Eu não estou viva naquele mundo, então posso me safar passando despercebida por lá, mas você está. E você é um vampiro vermelho traidor que se tornou aliado da Resistência contra Neferet e os seus exércitos. Não é seguro para você.
– Z, de acordo com o que você me contou, não é seguro para ninguém lá.
Desviei o olhar de Kevin e encontrei a imagem de Heath sorrindo de novo.
– Eu sei disso – eu disse.
– Mesmo? – o meu irmão perguntou enquanto estalava as juntas e alongava os dedos, um sinal claro de que ele estava estressado.
– Você sabe que eu vou, né? – respondi à pergunta do meu irmão formulando outra pergunta.
– Sim, eu sei. E, Z, se eu sei, os seus amigos também sabem.
Senti um terrível calafrio de mau agouro.
– Não! Eu não disse nem uma palavra para nenhum deles.
– Você também não disse nem uma palavra para mim. Eu só juntei as peças.
– O que significa que eles também vão juntar.
– Ah, sim. Com certeza.
– Bom, não é como se eu fosse fugir escondida sozinha – eu falei. – Já aprendi a minha lição sobre pensar que posso lidar com uma crise grave completamente sozinha. Isso é burrice.
– Isso faz com que eu me sinta melhor, mas só um pouco. Z, você tem certeza de que precisa ir?
Desviei a atenção da imagem de Heath e encontrei o olhar do meu irmão.
– Outra versão de você está em uma grande encrenca. Eu posso ajudá-lo. Se você fosse ele, o que gostaria que eu fizesse?
Ele abriu o sorriso, e de repente eu o vi como um menino, com cerca de sete anos, com um cabelo horrível cortado a máquina e um buraco no lugar onde deveriam estar os dentes da frente, e o meu coração se apertou.
– Z, eu não vou mentir. Com certeza eu ia querer que você viesse salvar a minha pele.
Isso vai deixar Stark arrasado, eu pensei, mas tudo que eu disse foi:
– Sim, e é exatamente isso o que eu vou fazer.
9 Sorte em inglês é “luck”, como o sobrenome do personagem Heath. (N.T.)
18
Outra Aphrodite
Aphrodite fechou o zíper da sua elegante jaqueta de couro de aviador e empinou o queixo quando saiu pela porta da frente da escola e foi em direção ao primeiro veículo do comboio militar. Aphrodite podia sentir os olhares que a acompanhavam, mas isso não era nada de novo. Homens sempre a olharam desde antes de os seus peitos crescerem. Claro que havia uma diferença entre homens normais e machos que eram máquinas de comer vorazes e fedorentas, mas, como diria Neferet, nem tanta diferença assim.
Ela balançou a cabeça para afastar aquele pensamento. Se estou citando Neferet, está realmente na hora de pensar na minha vida. Eu consigo fazer isso. Eu posso ir com o exército até aquele campo idiota nos arredores daquela cidade idiota de Sapulpa, e depois posso voltar para casa. Neferet vai estar mais calma. Vou cair de novo nas suas graças e tudo pode voltar ao normal. O problema era que aquele pensamento não trouxe muito conforto para Aphrodite. O normal na Morada da Noite tinha se tornado quase insuportável. Pela milionésima vez desde que Neferet tinha começado a sua guerra horrenda, Aphrodite desejou ter escapado – ter fugido para a Itália e a Ilha de São Clemente antes de toda essa maldita coisa ter começado. Ela era uma Profetisa. Com certeza o Conselho Supremo teria concedido santuário a ela e não a teria colocado no próximo voo de volta para Tulsa quando Neferet exigisse sua volta.
Neferet obviamente exigiria isso. Ela só tinha uma Profetisa. Pela primeira vez na vida, Aphrodite lamentou ter recebido tantos malditos dons de Nyx e não poder ser apenas uma Sacerdotisa comum.
– Quem eu quero enganar? Eu nunca seria uma pessoa comum.
– Tenho que concordar com você, gata!
Aphrodite olhou para o seu lado direito. Havia um jovem tenente vampiro azul encostado no veículo líder, sorrindo para ela cheio de malícia.
– O que você disse? – ela perguntou com uma falsa voz doce.
– Que eu concordo. Você é gata demais para ser considerada comum. – Ele piscou para ela.
Ela olhou intensamente nos olhos dele.
– Eu pedi a sua opinião?
– Não, mas eu...
– Mas o quê? – ela falou com a voz cortante o bastante para fuzilá-lo. – Você não tem educação? Não tem noção?
– Ei, olhe...
Ela cortou as palavras dele de novo.
– Não, olhe aqui você. Quer saber quando você vai morrer?
– Não!
– Quer saber como você vai morrer?
– De jeito nenhum!
– Então me trate com o respeito que uma Profetisa de Nyx merece, ou eu posso sentir a necessidade de esclarecer as coisas. A Deusa sabe que um pouco de esclarecimento seria bom para você.
– Ahn, tá bom. Ok.
– Deixe-me corrigi-lo. A forma correta de você responder é: Perdão, Profetisa. Isso não vai se repetir, Profetisa. Deixe que eu abro a porta para você, Profetisa. – Aphrodite fez uma pausa enquanto aquele babaca irritante apenas ficou ali parado, com a boca abrindo e fechando como uma carpa com cara de furão. Ela suspirou e colocou as mãos no quadril. – Essa coisa é o carro do General Stark?
– Sim, é o Hummer dele. Ahn, quero dizer, sim, é o carro dele, Profetisa.
– Veja só, você é capaz de aprender. Então abra a maldita porta para mim.
– Algum problema, Tenente Dallas? – Stark apareceu por trás dela e caminhou a passos firmes até o lado do banco do passageiro na frente do veículo. Ele não estava sozinho, mas Aphrodite não precisava olhar para ver quem estava com ele. Ela podia sentir o cheiro.
– Não, senhor! – O tenente imbecil abriu imediatamente a porta do Hummer para Stark.
– Bom saber. Vamos zarpar – Stark deu uma olhada para Aphrodite e Kevin, que tinha parado ao lado dela. – O que vocês estão esperando, um convite por escrito? Entrem aí no banco de trás. – Stark balançou a cabeça, murmurando algo indecifrável, e o Tenente Dallas fechou a porta com uma batida forte.
Kevin foi até a porta do banco traseiro ao lado deles no veículo e a abriu.
– Depois de você, Profetisa – ele disse.
– O único com o mínimo de educação fede. Fantástico. – Ela passou por Kevin e entrou.
Kevin deu uma corridinha até o outro lado do Hummer e se sentou ao lado dela.
– Tudo certo aí atrás, Profetisa? – Dallas perguntou com apenas um toque de ironia ao sorrir olhando pelo espelho retrovisor.
– Apenas dirija – Stark disse rispidamente para ele. Enquanto eles guiavam o comboio para fora da Morada da Noite, Stark se virou no seu assento. – Agora, é bom você contar o que você não falou para Neferet sobre a sua visão.
Aphrodite ergueu uma sobrancelha para ele.
– Não tenho a menor ideia do que você está falando. – Ela enfiou a mão na sua bolsa extragrande Louis Vuitton e tirou de lá de dentro uma das três garrafas de Veuve Clicquot, satisfeita ao ver que havia tirado o rosé primeiro. Sem olhar para Kevin, ela entregou a garrafa para ele. – Abra. Não derrame. É melhor você não deixar seu fedor na garrafa também.
Stark balançou a cabeça.
– Você trouxe champanhe para uma batalha?
– Não, eu trouxe um bom champanhe para uma pré-batalha. É tipo dirigir colado no carro da frente, só que menos esportivo e mais mortal. Quer uma taça? – Aphrodite levantou uma bela taça que ela tinha guardado no bolso lateral junto com o seu Xanax de emergência.
– Não, mas eu quero uma resposta para a minha pergunta.
Kevin estourou a rolha e Aphrodite estendeu a taça para que ele a enchesse.
– Eu já respondi.
– Uma resposta de verdade.
Aphrodite deu uma olhada em Kevin.
– Cubra o topo da garrafa com o papel metálico para que ainda fique um pouco frisante. Você não sabe nada sobre champanhe?
– Não. Nunca experimentei. O meu padrastotário, ahn, é assim que minhas irmãs e eu chamamos o meu padrasto, é religioso demais para...
– Que chatice! – Aphrodite olhou para Stark. – Eu não sabia que eles podiam conversar.
– Você quer dizer os vampiros vermelhos? – Stark perguntou, dando um olhar divertido para Kevin.
– Sim, é claro que foi isso o que eu quis dizer.
– Aphrodite, Kevin é um oficial. Todos eles falam. Você acabou de ouvi-lo conversando com Neferet no briefing.
– Aquilo não foi uma conversa. Ele estava relatando informações. Tanto faz. – Ela deu um gole no seu champanhe e olhou para fora da janela enquanto eles pegavam a estrada em direção a Sapulpa.
– Ainda estou esperando você responder minha pergunta – Stark disse.
– Desculpe. Qual era mesmo?
Stark suspirou pesadamente, e Aphrodite percebeu que o Tenente Dallas estava sorrindo como se ela fosse o seu próprio entretenimento pessoal.
– Tenente Dickless,10 você sempre se diverte às custas do seu general?
O sorriso instantaneamente sumiu do rosto de Dallas, e ele voltou os olhos para a estrada.
– Ótimo. O único tenente que fala também fede. E respondendo à sua pergunta, General Cara do Arco, eu contei tudo para Neferet. Bom, exceto uns detalhes sobre como os soldados do Exército Vermelho perderam o que possa ter sobrado das suas mentes e não se contentaram apenas com o massacre dos humanos que encontraram nos fardos. Eles também devoraram os novatos... novatos azuis que poderiam ter crescido e se tornado caras grandes como você. Ah, e eles comeram vampiros azuis adultos também. Basicamente, o seu Exército Vermelho asqueroso massacrou todo mundo. Que tal?
– Por que você não contou isso para Neferet? – Kevin perguntou.
– Porque ela não ia se importar. Não mudaria nada. Ela ainda iria enviar o seu Exército Vermelho. Todo mundo ainda seria massacrado. Ponto final. – Ela esvaziou o resto da taça e a estendeu para que Kevin a enchesse. E eu vou ter que assistir isso acontecer. De novo.
– Neferet pode não se importar, mas eu me importo. Nós precisamos dessas pessoas vivas. Principalmente os vampiros azuis. Eles podem nos dar informações sobre a Resistência – Stark disse.
– Ah, que ótimo. Então, em vez de serem esquartejados e devorados, eles vão ser torturados.
– Eu não disse nada sobre tortura!
– Você vai pedir gentilmente que entreguem o seu povo e o seu quartel-general, e quando eles disserem não, obrigado, você vai fazer o quê? Dar um tapinha nas costas deles e deixar que vão embora?
– De que lado você está, Aphrodite? – O olhar de Stark tinha ficado sombrio e nervoso.
– Do lado de Nyx, é claro.
– Então estamos do mesmo lado – Stark afirmou.
Aphrodite bufou, mas não falou mais nada. O Cara do Arco podia correr para Neferet e dizer que ela tinha sido insuportável nessa pequena incursão. Até aí, tudo bem. Na verdade, isso seria ótimo. A chance de Neferet enviá-la junto com eles de novo seria bem menor. O que ele não podia fazer era correr para a Grande Sacerdotisa e dizer que Aphrodite simpatizava com a Resistência. Isso não seria “tudo bem”. Seria fatal.
O que diabos vampiros como Stark e os Guerreiros Filhos de Erebus pensam que aconteceu com todas aquelas Grandes Sacerdotisas que Neferet rebaixou e mandou que calassem a boca? Que elas apenas sumiram em alguma Morada da Noite fajuta do interior para rezar pelo resto da vida em isolamento?
Aphrodite sabia bem o que acontecia. Ela testemunhou o que Neferet tinha feito com elas. Nyx enviou essa visão. E essa era uma visão que Aphrodite não havia compartilhado com ninguém.
– Você quer mais champanhe?
Aphrodite automaticamente estendeu sua taça para ser enchida de novo. Então ela olhou para o garoto fedido ao seu lado. Ela ficou surpresa ao reparar que ele obviamente era de origem indígena. Ela não tinha percebido isso antes. Se ele trocasse aquelas roupas horríveis que vestiam mal e tomasse alguns cuidados pessoais – ele realmente precisava de um corte de cabelo... e tirar aquele fedor –, podia até ficar bonitinho. Mesmo. Ela também não tinha percebido isso antes. Bom, para ser justa, depois de sentir aquele cheiro, ela mal tinha olhado para ele.
Só que ele não tinha aquele cheiro quando conversou com ela no jardim na outra noite.
– Quantos anos você tem? – ela perguntou a Kevin.
Ele pareceu surpreso com a pergunta.
– Dezesseis.
– Não é jovem demais para ser tenente?
Ele assentiu.
– Sim. Eu sou o tenente mais jovem do exército.
– Quando você se Transformou? – ela questionou.
– Quase um ano atrás. – Ele fez uma pausa e então continuou: – Quando você se Transformou?
– Quando eu tinha mais do que dezesseis anos – ela respondeu. Aphrodite queria perguntar o porquê de ele não estar fedendo como a morte na noite anterior, mas de jeito nenhum ela ia deixar o Dickless e o Cara do Arco ouvirem isso. De jeito nenhum ela queria aqueles dois mais metidos nos assuntos dela do que eles já estavam. – Você é uma criança. Não é de se admirar que nunca tenha provado champanhe.
Ela virou a cabeça com arrogância para olhar para fora da janela, desejando que estivesse em qualquer outro lugar.
Outro Kevin
A conversa morreu depois que Aphrodite disse que ele era apenas uma criança. Ela não olhou mais para ele. Ela não se endereçou mais a ele. Ela continuou, é claro, estendendo a sua taça de tempos em tempos para que ele a enchesse de champanhe.
Cara, ela bebe champanhe rápido!
Tudo o que Kevin podia fazer era ficar ali sentado observando com um pavor crescente enquanto o Hummer percorria mais quilômetros e se aproximava cada vez mais daquilo que muito provavelmente seria uma horrível tragédia.
E se aquele pássaro não chegou até Dragon?
Não, ele não se permitiria pensar isso. Ele estava fazendo tudo o que podia. Ele tinha enviado informações. Ele estava junto com os soldados porque talvez houvesse algo que ele pudesse fazer no meio da batalha para ajudar as pessoas a escapar do Exército Vermelho. A essa altura, Kevin não dava a mínima se seria descoberto ou não. Ele não ficaria parado vendo inocentes serem massacrados por monstros.
– Ei, abra mais uma garrafa.
Aphrodite empurrou mais uma garrafa de champanhe na direção dele. Kevin não tinha nem percebido que ela já tinha matado a primeira. Enquanto tirava a rolha, ele olhou de relance para Aphrodite. Ela parecia mal.
Bom, isso não era totalmente verdade. Ela era linda. Isso não havia mudado. Mas ela estava tão magra e pálida! Olheiras escuras estavam aparecendo mesmo que ela tentasse cobri-las e, quando ela não estava bebendo champanhe, a boca dela virava uma linha rígida.
– Quanto falta para a Lone Star Road? – Aphrodite perguntou enquanto ele enchia a taça dela.
Stark apontou para o semáforo a cerca de um quarteirão na frente deles.
– Vamos virar ali, na Hickory. Daí uns dois quilômetros e meio depois a gente entra à direita na Lone Star. Nessa hora vou precisar que você esteja acordada e alerta. – Stark olhou por sobre o seu ombro para ela e franziu a testa. – Então, pegue leve aí com esse champanhe.
– Ah, relaxe, Vovô. Eu sou uma vampira, lembra? Não consigo ficar bêbada. Não consigo nem ficar exaltada. Bom, a menos que eu misture um pouco de Xanax com esta bebida... o que me lembra de algo. – Ela enfiou a mão dentro da bolsa gigante que estava no assento entre eles, pegou um pequeno pote de comprimidos e o sacudiu para tirar algumas pequenas pílulas ovais, que engoliu junto com champanhe. – E eu sou uma profissional.
– É bom que seja. Neferet conta com isso – Stark disse.
– Tá, tá, tá. Eu vou reconhecer o maldito campo. Preocupe-se com o seu exército de zumbis, não comigo.
Stark virou para a frente de novo e esfregou a testa.
Kevin continuou observando Aphrodite até que ela encontrou os seus olhos. Então, com uma voz baixa o bastante para não ser ouvido no banco da frente, ele falou:
– Você sabe como isso vai ser ruim. Não a julgo por beber e tomar isso aí. – Ele apontou um dedo para o pote de comprimidos que estava aparecendo para fora da bolsa dela.
Ele achou que ela faria outro comentário sarcástico, mas então o rosto dela mudou. Os seus ombros desabaram e ela assentiu com tristeza, sussurrando:
– Vai ser bem pior do que só ruim.
– Eu não vou deixar que você se machuque – ele disse baixinho.
Ela o encarou com seus olhos azuis grandes, lindos e assombrados.
– Eles são crianças. Mais novos do que você. Eu sei. Eu vi tudo. E agora vou ter que ver de novo. – Ela balançou a cabeça e enxugou uma única lágrima nervosamente.
Ele sustentou o olhar dela e disse muito claramente, mas com a voz bem baixa:
– Não se eu puder impedir isso.
Uma surpresa faiscou nos olhos dela, e então Stark interrompeu:
– Ok, esta é a Lone Star Road. Hora de você fazer o seu trabalho.
– Eu já fiz o meu trabalho. Eu profetizei. Isto aqui não tem nada a ver com o meu trabalho. Tem a ver com Neferet querer me punir, mas que seja. Já sou bem grandinha. Diga ao Tenente Dickless para ir devagar para que eu possa conferir essas plantações. A que eu estou procurando é grande. Lembro de um bosque de nogueiras-pecãs do outro lado da rua. Ah, e tem árvores na beirada do campo, apesar de uma grande parte da lateral da estrada ser aberta, então nós devemos conseguir ver a maioria da plantação.
– De que lado da estrada fica a plantação? – Stark perguntou.
Aphrodite pensou um pouco e então respondeu:
– À nossa esquerda. – Eles dirigiram por apenas mais um quilômetro pela estrada vazia e Aphrodite apontou um local. – É ali! Eu reconheço aquele monte de árvores.
Kevin deu um pequeno suspiro de alívio. O campo ainda estava a alguns quilômetros de distância da montanha onde a Resistência estava se escondendo. Aquela era uma pequena coisa boa em um amontoado gigante de coisas ruins.
Aphrodite estava olhando para fora da janela à sua direita.
– E ali está o bosque de nogueiras-pecãs. Ok, continue só mais um pouco. Deve ter um... sim, ali está o portão. Vire aqui.
Dallas dirigiu o Hummer através de um portão aberto e entrou em um grande campo de feno recém-cortado. E, claro, estacionado logo do lado de dentro estava o reboque de um caminhão, cheio de enormes fardos arredondados.
– Pare! – Stark falou rispidamente. – Faça com que o comboio bloqueie o portão para que eles não possam sair por ali. – Ele começou a abrir a sua porta antes de o Hummer parar completamente, gritando ordens. – Dallas, saia com esses soldados do comboio e faça com que eles cerquem o reboque. Tenente Heffer, fique neste veículo com Aphrodite. O seu trabalho... o seu único trabalho é cuidar para que ela não seja devorada acidentalmente hoje. Você consegue fazer isso?
– Sim, senhor!
Sem nem mais um olhar, Stark e Dallas saíram do Hummer. Kevin podia ouvir Dallas gritando ordens para o comboio. Stark tinha pegado o seu arco e estava com uma flecha encaixada nele, apontada para o fardo arredondado.
– Ele não erra. Você sabia? – A voz de Aphrodite cortou o silêncio no interior do veículo quase vazio.
– O General Stark?
– Sim, o Cara do Arco.
– Aham, eu sei. O exército inteiro sabe. Ele é uma lenda.
– Na cabeça dele – Aphrodite disse. – Dizem que ele matou o próprio mentor.
– Não sabia disso.
– Sim. É por isso que ele é tão mal-humorado. A maioria das mulheres acha isso atraente. Eu acho um tédio. Mas ele não faz o meu tipo de todo jeito.
Kevin não conseguiu se conter.
– Qual é o seu tipo?
– Alguém menos mal-humorado e com mais coração. E músculos. Eu gosto de músculos. Encha a taça, Kev. Estou finalmente começando a sentir a onda.
– Você acha mesmo que é uma boa ideia?
– Sinceramente?
– Sim. Eu gosto de sinceridade.
– Ok, vou ser sincera. Não importa se eu beber ou não. Isso não vai mudar o que vai acontecer e não vai me fazer esquecer que eu vou ter que assistir isso acontecer de novo. E já que estamos sendo sinceros... ninguém liga a mínima se fico bêbada ou não, exceto eu mesma, e já que eu tenho que assistir a crianças sendo devoradas por monstros, prefiro estar bêbada.
– Esse é um bom ponto – Kevin encheu a taça dela. – Mas eu me importo se você fica bêbada.
Ela encontrou o olhar dele.
– Por quê?
– Nós ainda estamos sendo sinceros?
– Que tal isto: enquanto a gente estiver sozinho, vamos ser sinceros. Feito?
– Feito – Kevin concordou, e o seu coração deu uma palpitação estranha quando o olhar dela não desviou do seu, e pela primeira vez ela se pareceu exatamente com a sua Aphrodite. Aquela que o havia beijado no mundo de Zo e tinha dito a ele para encontrá-la neste mundo.
– Então, por que você se importa se eu estou bêbada ou não?
– Porque eu sei que você é melhor do que isso.
Ela bufou.
– Isso é uma coisa louca de se dizer.
– Por quê?
Ela abriu a boca para responder, mas foi interrompida por uma torrente de vampiros passando correndo pelo veículo para cercar o reboque.
– Merda. Começou. Não consigo olhar. – Ela abaixou a cabeça, olhando fixamente para os seus pés. – Fale quando tudo estiver terminado.
– Ok, mas eu vou ficar te contando o que está acontecendo. Era assim que a minha irmã assistia a filmes de terror comigo quando a gente era pequeno.
Os olhos dela encontraram os dele.
– Do que você está falando?
– Bom, eu adorava filmes de terror. Minha irmã odiava, mas ela não me deixava assistir sozinho, senão eu tinha pesadelos e ia pra cama dela. Então, ela se sentava comigo, mas tampava os olhos com as mãos, e me pedia para descrever o que estava acontecendo porque ela falava que era menos assustador quando eu contava a história para ela.
– Ok, acho que vou experimentar. Se você continuar enchendo a minha taça.
– Pode deixar. – Kevin encheu a taça dela e começou a fazer os seus comentários: – Eles cercaram os fardos redondos. Stark está com o arco apontado para o primeiro, e Dallas... – Kevin fez uma pausa e sorriu para Aphrodite. – Ei, apesar de eu não poder rir alto quando você falou aquilo na frente de Stark, quero que saiba que rachei de rir com o apelido que você deu para ele.
– Ah, você quer dizer o Tenente Dickless. Não considero isso um apelido. É um fato.
Kevin deu uma gargalhada e depois voltou a descrever o que acontecia.
– Então, o Tenente Dickless está com uma espada longa, se aproximando do primeiro fardo. Ah, merda. Ele vai enfiar a espada dentro...! – Kevin ofegou de susto.
– O quê? O que aconteceu?
– Ele enfiou a espada dentro do fardo e nada aconteceu. Agora, ele está golpeando o fardo sem parar. É só um fardo de feno. Não tem ninguém dentro! – Ele pensou que Aphrodite ficaria feliz, mas ela continuou bebendo e olhando para as botas na altura do joelho que estava usando. – Hum, você me ouviu?
– Sim, ouvi. Continue assistindo. Nem todos os fardos têm pessoas dentro. A Resistência não ia encher tanto o saco de Neferet se eles fossem assim burros.
– Ah, bem pensado. Ok. Estou vendo tudo. Eles estão indo para o próximo fardo. – Kevin prendeu a respiração e então soltou o ar em um suspiro. – É só feno também. Agora eles estão indo para um fardo no fundo.
– Isso não é uma notícia boa. Eu sei. Eu estava escondida nesse fardo.
– Você?
– Não literalmente. Quando tenho uma visão, eu sempre vejo tudo pelo ponto de vista de quem está morrendo, normalmente de um jeito horrível. É por isso que para mim é difícil dar detalhes específicos, pois eu sinto tudo que essa pessoa que está morrendo sente.
O estômago de Kevin se revirou.
– Deve ser horrível.
– É pior do que isso.
Ele continuou assistindo.
– Droga. Eles estão no próximo fardo. Ok, ele está perfurando o fardo e... merda. Ele atingiu alguma coisa.
– Mas não é uma pessoa.
– Não, ele atingiu alguma coisa dura, e só a ponta da espada desapareceu dentro do fardo.
– Isso é porque não é um fardo de verdade. O interior é oco e tipo uma roda. Há uma porta do lado para entrar e sair. De algum jeito, eles colocam feno do lado de fora da roda. Do lado de dentro tem espaço para, hum, umas quatro pessoas grandes, ou dois adultos e três ou quatro crianças. Ei, eu vou fechar os olhos e tampar os ouvidos quando eles começarem a gritar.
– Eles encontraram um trinco e estão abrindo. – Kevin engoliu a vontade de vomitar. Ele também queria tampar os olhos. E então um alívio o invadiu. – Está vazio!
– Sério?
– Sim, olhe!
– Não. Não vou olhar até eles checarem todos. Pelo menos metade dos fardos nesse reboque e no outro estão cheios de gente.
– O outro?
– Sim, há dois reboques.
– Hoje não tem. Só tem um. Aphrodite, olhe. Eles estão abrindo os outros. Estão todos vazios! – Kevin não tentou esconder a alegria e o alívio que estava sentindo.
– Por que você está feliz?
Ele desviou o olhar dos fardos vazios e virou-se para Aphrodite, que estava olhando para ele e não para a cena se desenrolando com zero de violência na frente deles. Ele encontrou os olhos dela. E decidiu dizer a verdade.
– Porque eu não quero que ninguém mais morra.
– Mas você é um vampiro vermelho. Você só se interessa em comer e matar.
– É realmente assim que você me vê? – Kevin perguntou.
– Por que você não estava fedendo ontem?
– Porque eu...
Toc-toc-toc! Kevin e Aphrodite deram um salto quando Stark bateu no vidro.
– Vocês dois podem sair. Parece que chegamos cedo demais – Stark gritou através da janela antes de voltar para o grupo de soldados que estava tentando remontar os fardos esburacados.
Aphrodite suspirou.
– Traga a garrafa.
– Ei, por que você não fica aqui dentro? Eu vou lá fora e digo que você não está se sentindo bem.
– E deixar o Cara do Arco me entregar para Neferet, dizendo que eu fiquei escondida no Hummer mesmo quando não tinha nenhuma batalha acontecendo? Isso seria uma desculpa perfeita para ela me enviar junto com o Exército Vermelho de novo. Não, é melhor eu sair.
Kevin desceu apressado do Hummer e deu uma corridinha até o lado dela, abrindo a porta para Aphrodite.
– Obrigada. Eu gosto de boas maneiras. Alguém criou você direito.
– Obrigado. Foi principalmente a minha irmã.
– Essa irmã de novo. Talvez algum dia eu a conheça – Aphrodite disse ao estender a mão.
Kevin pegou a mão de Aphrodite e a segurou cuidadosamente enquanto a ajudava a descer do veículo.
– Tenho um pressentimento de que vocês duas iam se dar muito bem.
Aphrodite bufou.
– Então ela deve ser um pé-no-saco.
– Ah, você não sabe o quanto – Kevin disse.
10 Sem pênis, em inglês. (N.T.)
19
Outra Aphrodite
– Tem certeza de que este é o campo certo? – Stark perguntou a Aphrodite.
– Positivo.
– E este foi o único reboque que você viu com fardos de feno?
– Este foi o reboque que eu vi durante a minha visão. Eu estava no meio daquele fardo ali. – Ela apontou. – Não sei o que mais dizer a você. Não sei por que não tem ninguém dentro. A gente deve ter chegado cedo demais. – Aphrodite escolheu suas palavras com cuidado. Ao contrário do que Neferet, Stark e o resto podiam pensar, ela detestava mentirosos. Ela havia sido criada por uma e, desde cedo, tinha jurado que pelo menos uma coisa iria fazer: ao contrário da sua mãe, ela ia tentar falar a verdade sempre. E era isso que ela estava fazendo. Tecnicamente, falando a verdade. Claro, ela estava contando algumas coisas, mas Stark teria que ser bem mais específico com as suas perguntas para que ela revelasse tudo.
– Então está bem. Tenente Dallas, primeiro faça com que os veículos e os homens se escondam naquele bosque de nogueiras-pecãs do outro lado da pista. Mantenha cada maldito soldado do Exército Vermelho dentro daqueles veículos. Não queremos que a Resistência sinta o cheiro de nenhum antes de chegar. E nada de luzes e de barulho. Nada. Lembre a esses soldados que a única maneira de eles se alimentarem hoje é se a Resistência cair na nossa emboscada. Depois volte aqui com alguns oficiais e arrumem esses fardos de novo. Pelo menos o suficiente para que a Resistência não perceba que foram remexidos até que seja tarde demais. Vamos esperar lá fora e capturá-los quando finalmente aparecerem. – Ele voltou seu olhar para Aphrodite. – Você consegue dizer que horas o ataque aconteceu?
– Não. Desculpe. Eu estava ocupada demais sendo devorada para olhar para o relógio.
Stark franziu o cenho para ela e então continuou falando com Dallas.
– Ok, vamos esperar o máximo que der, mas o Exército Vermelho precisa voltar para os túneis antes do amanhecer. E lembre a esses soldados que eles podem comer só os humanos. Novatos azuis e vampiros azuis devem ser capturados vivos.
– Sim. Vou dizer a eles, senhor. Mas eles são burros, então não espere muita coisa. – Dallas bateu uma continência desleixada e começou a berrar ordens.
Aphrodite achou difícil parar de olhar para os soldados do Exército Vermelho. Ela nunca havia estado perto de tantos deles antes. Ela sentia quase tanta pena quanto nojo. Eles estavam vagando ao redor do reboque e dos fardos de feno vazios, parecendo agitados e confusos. Ela achou que vários deles estavam babando.
– Aphrodite, pode entrar no nosso veículo líder com o Tenente Heffer. Heffer, você sabe dirigir, certo?
– Claro – o garoto respondeu.
– Então, dirija o veículo até o outro lado da pista e espere lá.
– Na verdade, eu preciso de um pouco de ar puro antes – Aphrodite falou. – Eu vou dar uma volta.
– Não é uma boa ideia – Stark disse. – Se a Resistência estiver por aqui, você não estará segura.
Ela levantou as sobrancelhas para ele.
– Não estou segura? Há uma horda inteira de vampiros vermelhos vorazes a um grito de distância. Além do mais, você está aqui. Com o seu arco infalível. Tenho certeza de que vou ficar bem.
O suspiro de Stark foi cheio de irritação.
– Heffer, siga a Profetisa. Aphrodite, não demore muito. A Resistência pode aparecer a qualquer minuto, e juro que você não vai querer estar aqui fora quando a briga começar.
– Ah, por favor. Eu já estive aqui quando a briga começou. Foi por isso que tive que me juntar a vocês nesta bagunça de merda, lembra?
Ela deu as costas para Stark, Dallas e aquela horda de coisas vermelhas e começou a caminhar com cuidado através da plantação até a fileira de árvores no lado mais distante do terreno. Ela não precisou olhar para trás. Ela estava certa de que Kevin estava seguindo atrás dela. Ela não se importava. Uma sensação de alívio que a deixou tonta havia inundado o seu corpo desde que ela viu apenas um reboque sem nenhum membro da Resistência escondido dentro dele.
Havia dois reboques na minha visão. Eu estava em um deles, mas tinha outro. Ainda mais cheio de novatos e jovens humanos. Mas ele se foi! Deusa, por favor, permita que eles tenham conseguido fugir. Por favor, não deixe que eles voltem hoje à noite. Por favor, por favor, por favor.
Ela escutou o barulho de água corrente quando se aproximou da fileira de árvores. A vegetação se alterou do feno caprichosamente cortado para o gramado alto do inverno e o que pareciam arbustos de amoras. Aphrodite abriu caminho contornando um aglomerado de plantas adormecidas e uma muralha de cedros perenes para olhar para baixo para um pequeno riacho.
E então a mente dela não entendeu o que ela estava vendo.
Tem pessoas ali embaixo?
Na água? Logo abaixo de mim?
Que diabos é isso?
Ela deve ter feito algum barulho. Deve ter ofegado de choque, pois a última pessoa da fila que estava andando no riacho com água na altura do quadril virou a cabeça e levantou os olhos para ela.
A lua refletiu na água, intensificando a sua luz tênue de modo a tornar claramente visível a tatuagem safira ornamentada com dragões cuspindo fogo em um crescente no meio da testa do vampiro.
Aiminhadeusa! É Dragon Lankford! O olhar de Aphrodite percorreu a fila silenciosa de pessoas e ela reconheceu vários deles da sua visão. É a Resistência! Eles foram avisados! Eles não foram massacrados!
Ela não teve tempo para pensar demais no assunto. Aphrodite agiu por instinto. Ela desceu apressada alguns passos para chegar mais perto do barranco na margem do riacho. Encarando Dragon, ela pronunciou com a boca sem emitir som, fazendo gestos com a mão para indicar o mesmo: Vão embora! Fujam!
E então tudo aconteceu muito rápido.
Dragon Lankford saiu do riacho e saltou para cima do barranco. Ela tentou retroceder com dificuldade. Tentou fugir, mas o salto de uma de suas botas Jimmy Choo afundou em um buraco e quebrou. Aphrodite caiu de bunda no chão com força, derrubando a sua garrafa de champanhe quando ela perdeu o fôlego.
Dragon a alcançou facilmente. Ele a agarrou, levantando-a para que ficasse em pé e tampando a boca dela com a mão. Ele pressionou uma adaga contra o pescoço dela e sussurrou diretamente no seu ouvido.
– Se você fizer um barulho, corto o seu pescoço. Você vem comigo. – Ele se virou para que a fila de novatos, vampiros e jovens humanos em retirada pudesse vê-lo. Dragon fez o mesmo gesto para que eles seguissem em frente e falou em voz baixa em direção à água: – Vão indo! Até o local seguro!
Ele começou a arrastá-la até o riacho.
E então Kevin estava lá. Ele surgiu depois de atravessar a fileira de cedros olhando em volta, obviamente procurando por ela. O coração de Aphrodite bateu forte no seu peito, enchendo a sua corrente sanguínea de adrenalina e pânico. Eu tentei ajudá-los! E agora eles vão matar Kevin e provavelmente atrair a atenção de Stark e a ira do Exército Vermelho sobre eles! Todos vão ser massacrados como foram na minha visão!
Só que não foi isso o que aconteceu. Foi algo muito mais estranho.
Kevin olhou para baixo. Aphrodite percebeu o instante em que ele a viu com Dragon e a fila de novatos, humanos e vampiros fugitivos caminhando com dificuldade pela água. Kevin não pegou nenhuma arma. Kevin não gritou para Stark. Em vez disso, ele desceu a margem correndo até eles.
– Dragon! Não! Não a machuque! – Kevin sussurrou freneticamente quando chegou mais perto deles.
– Eu não a estou machucando. Estou sequestrando.
– Por quê? – Kevin perguntou.
– Sem essa, Kevin. Você sabe por quê. Se eu não fizer isso, ela vai nos entregar para o Exército Vermelho. E ela é uma Profetisa de Nyx. Ela tem visões. Mesmo se ela não quiser compartilhar as visões conosco, nós podemos usá-la. Neferet vai fazer praticamente tudo para ter a sua Profetisa de volta.
Aphrodite bateu na parte de trás da mão de Dragon que estava cobrindo a sua boca.
– Hum, acho que ela quer que você tire a mão da boca dela – Kevin disse. – E seria legal se você abaixasse essa adaga também.
– Imagino que o Exército Vermelho está lá em cima. – Dragon apontou o queixo na direção do campo de feno.
Aphrodite assentiu tão vigorosamente quanto pôde com uma lâmina contra o seu pescoço, e então ela tentou dizer “Eu estava dizendo para vocês irem embora daqui!”, mas, é claro, as palavras saíram como um resmungo confuso e nervoso por trás da mão de Dragon.
– Sim. Stark está lá em cima com cerca de cinquenta soldados vermelhos e vários oficiais vermelhos e azuis. – O olhar de Kevin se voltou para o riacho e para a fila de pessoas que continuavam a retroceder na direção da montanha e da segurança. – Você recebeu a minha mensagem.
– Sim. E agora eu tenho esta Profetisa também. Vou levá-la para o quartel-general. Junte-se a nós quando puder.
– Dragon, sério, se você sequestrar Aphrodite, como é que você vai ser diferente de Neferet?
– Como você pode me perguntar isso? Se nós fôssemos iguais a Neferet, eu já teria cortado o pescoço dela. E, de qualquer modo, eu não posso soltá-la. Agora ela sabe que você está trabalhando conosco, o que coloca todos nós em risco.
Kevin encontrou o olhar de Aphrodite.
– Você nos dá a sua palavra de que não vai gritar nem fazer qualquer coisa para atrair a atenção de Stark se Dragon tirar a mão da sua boca?
Aphrodite assentiu.
– Eu confio nela – Kevin afirmou. – Se ela diz que não vai gritar, não vai. Aphrodite diz a verdade. Certo?
Aphrodite assentiu de novo.
– Não é sábio confiar nela – Dragon disse.
Kevin abriu o sorriso.
– Foi a mesma coisa que você disse sobre mim.
O Guerreiro suspirou.
– Certo, escute bem. Vou tirar a mão da sua boca – Dragon falou no ouvido de Aphrodite –, mas não vou tirar a minha adaga do seu pescoço. Se você fizer qualquer coisa para trazer soldados até nós, vai ser a primeira a morrer. Entendido?
Aphrodite assentiu mais uma vez. Lentamente, Dragon tirou a mão da boca dela.
– Seu idiota! – Aphrodite sussurrou para ele. – Você me viu dizendo para vocês fugirem. Você sabia que eu não ia chamar o exército. Você agiu como um babaca de merda indo até lá em cima e me arrastando! – Ela voltou sua atenção para Kevin. – Eu sabia que você era diferente. Que diabos está acontecendo aqui?
– É uma longa história, mas eu prometo que vou te contar tudo. Primeiro, Dragon e o resto do seu povo precisam escapar – Kevin respondeu.
– E ela ainda precisa vir com a gente – Dragon disse.
– Eu não vou com vocês merda nenhuma. – Aphrodite o fuzilou com os olhos. – É melhor você cortar o meu pescoço agora.
– E, se você fizer isso, vai ser igual a eles – Kevin acrescentou. – Além do mais, aposto que Anastasia vai ficar super irritada com você.
– Isso sem falar no que vai acontecer se eu não voltar lá para cima logo. Stark vai vir para cá procurando por mim. E o que diabos você acha que ele vai fazer se não me encontrar? Simplesmente deixar você e o seu grupo nadarem de volta para casa?
Dragon franziu o cenho para Aphrodite, mas tirou a adaga do pescoço dela.
– E agora? – Dragon perguntou.
– Agora vocês têm que sair daqui. Rápido. Stark vai...
– Aphrodite! Heffer! Que inferno, onde vocês estão? – a voz irritada de Stark lá no alto chegou até eles.
Aphrodite não hesitou. Ela colocou as mãos ao redor da boca para amplificar o som e gritou para o alto do barranco.
– Vá embora! Estou fazendo xixi! Como se já não fosse ruim o bastante ter um vampiro vermelho fedorento me seguindo por aí e eu ter quebrado o maldito salto da minha bota Jimmy Choo aqui neste mato idiota. Posso ter um pouquinho de privacidade?
– Ela está bem, General! – Kevin acrescentou. – Ela está logo atrás de um monte de arbustos. Eu quase consigo vê-la e...
– Não se atreva a olhar! – Aphrodite berrou, fazendo toda a fila de pessoas em retirada congelar e olhar para ela. – Eu juro pela Deusa, se vocês dois me fizerem perder a paciência, vou contar para Neferet que vocês me trataram como merda, com zero respeito. Não importa o quanto ela possa estar irritada comigo, ela definitivamente não vai tolerar que a Profetisa dela seja desrespeitada!
Houve uma pausa em que os três prenderam a respiração, então a voz de Stark – que continuava irritada – finalmente respondeu.
– Só ande logo! Isto não é um maldito piquenique.
– Eu não vou andar logo! Vou levar o tempo que precisar fazendo xixi! E você pode levar esse tenente fedido de volta com você! – Aphrodite gritou e então sussurrou para Kevin. – Suba lá rápido e cuide para que ele não venha para cá.
– Entendido. – Antes de sair, ele olhou para Dragon. – Você vai deixar que ela volte, certo?
– Sim. Eu vou deixar – ele disse com óbvia relutância.
Então Kevin subiu o barranco e passou correndo pelos cedros. Aphrodite e Dragon permaneceram totalmente imóveis até ouvirem os sons de dois homens se afastando do riacho.
Aphrodite deu um longo suspiro de alívio e então percebeu que Dragon a estava encarando.
– O que é? – ela disse rispidamente.
– Por que você fez isso?
– Porque eu não quero mais ninguém sendo massacrado por esses malditos vampiros vermelhos.
– Você não está do lado de Neferet? – Dragon perguntou.
– Não. Eu estou do meu próprio lado.
– Então como posso confiar que você não vai nos trair?
Ela encolheu os ombros.
– Não faço ideia. Você só vai ter que dar um salto de fé. Meu palpite é que é o mesmo tipo de salto que você deu para confiar em Kevin.
– Ele se provou digno de confiança.
– Não foi isso o que eu acabei de provar?
Eles ficaram se encarando até que finalmente Dragon desviou o olhar.
– Eu vou embora agora. Com o meu povo.
– Certo. Eu vou esperar o máximo que posso e então voltar para a plantação. Ah, o Exército Vermelho está escondido no bosque de nogueiras-pecãs do outro lado da pista, então não voltem.
– Não vamos voltar.
– Vocês tiraram um caminhão daqui antes de os soldados aparecerem? – ela perguntou.
Ele hesitou, mas respondeu.
– Sim.
– Ótimo. Era o que eu esperava quando vi apenas um reboque lá em cima.
– Você disse a eles que havia outro?
– Ah, que merda, claro que não. Como eu já disse, estou cansada de ver pessoas sendo massacradas pelo Exército Vermelho – Aphrodite respondeu.
– Mas você ainda está contando suas visões para Neferet – Dragon observou.
– Eu estou fazendo o que tenho que fazer para sobreviver. Assim como você. – Aphrodite fez uma pausa e então teve que perguntar: – Anastasia está bem?
– Sim. Ela está segura.
– Diga a ela que fico feliz por isso.
Ele continuou olhando para ela antes de dizer:
– Você pode se juntar a nós, sabe. Depois do que você fez aqui hoje, nós a aceitaremos.
Aphrodite ignorou a palpitação de esperança que sentiu. Como seria fazer parte de algo nobre como a Resistência? Ter amigos? Não se sentir tão sozinha o tempo todo?
Mas eles não iriam querê-la. Não se eles soubessem da verdade.
– Vou manter isso em mente. E, ahn, obrigada pelo convite.
Ele assentiu com um grunhido antes de se virar e voltar para o riacho. Ele gesticulou para que a fila continuasse a se mover de novo, e Aphrodite os observou desaparecendo assim que o curso de água virou para a direita. Então ela espanou terra, folhas e sabe a Deusa o que mais do seu traseiro, subiu o barranco e voltou mancando para o campo de feno.
Stark e Kevin estavam parados na frente do Hummer líder. O resto havia desaparecido – ela presumia que estavam dentro do bosque do outro lado da pista.
Sem hesitação, Aphrodite marchou na direção de Stark.
– Estou indo embora.
– Sinto muito. Não vai dar. Esta noite está apenas começando – Stark disse.
– Oh, você me entendeu mal. Eu não pedi a sua permissão. Eu não preciso da sua permissão. Eu sou uma Sacerdotisa e uma Profetisa de Nyx. A nossa sociedade ainda é matriarcal, certo?
Stark pareceu surpreso com a pergunta.
– Sim, claro que é.
– Exatamente. Então, eu sou superior a você. Na verdade, eu sou superior a todos vocês, exceto Neferet. Então deixe-me repetir. Estou indo embora. Ah, e esse garoto fedido vai me levar para casa. Estou finalmente sentindo o efeito do Xanax e da bebida... melhor não dirigir.
– Veja bem, Aphrodite, Neferet disse que você deveria... – Stark começou, mas Aphrodite calou a boca dele com um gesto abrupto.
– Eu sei exatamente o que Neferet disse. Eu deveria me juntar a vocês nesta missão. Eu fiz isso. Eu deveria localizar a plantação correta e indicá-la para você e as suas criaturas vermelhas. Fiz isso também. E agora chega. Eu não vim aqui para acampar. Eu não vim aqui para ficar sentada cantando canções de guerra com um monte de soldados. E eu acabei de quebrar o salto de uma bota que custou quase dois mil dólares fazendo uma caminhada por aí na natureza. Deusa! Eu simplesmente não posso mais aguentar isso. Estou indo embora. E você, General Cara do Arco, pode ir direto para o inferno. – Ela olhou para Kevin. – Bora, Fedido.
Kevin olhou para Stark, que passou a mão pelo seu cabelo grosso e suspirou. De novo.
– Tudo bem. Podem ir. Mas eu vou contar para Neferet que eu aconselhei você a ficar.
– Tanto faz. Você acha que Neferet ficaria aqui fora a noite inteira se não tivesse nenhuma coisa acontecendo? – Ela deu as costas a eles e foi até o lado do passageiro do Hummer, onde ficou, batendo o pé freneticamente, esperando que Kevin abrisse a porta para ela, o que ele fez antes de dar uma corridinha contornando o carro para assumir a direção.
Ela deixou que ele manobrasse para fora do campo e entrasse na Lone Star Road para começar a falar.
– Pode contar tudo o que sabe. Agora.
20
Outro Kevin
Kevin contou tudo a Aphrodite. Ele começou pelo fato de que já era diferente desde que foi Marcado – que tinha conseguido reter parte da sua humanidade mesmo depois de ter se Transformado no vampiro vermelho mais jovem da história. Ele contou que foi transportado para um mundo alternativo onde havia outra Morada da Noite e o que aconteceu com os outros vampiros e novatos vermelhos que também estavam lá.
E então Kevin contou sobre a gêmea dela no Outro Mundo – ou pelo menos o máximo que sabia sobre aquela Aphrodite. Contou que havia sido o sacrifício dela que salvou os novatos vermelhos do seu mundo e que foi o dom que ela recebeu de Nyx que o tinha salvado, além dos vampiros vermelhos que continuavam vivos no mundo de Zo.
Kevin também contou a ela sobre Neferet – como ela havia se tornado imortal e quase destruído primeiro Tulsa e depois o mundo inteiro. E como Zoey e o seu grupo tinham sido mais inteligentes do que ela e a aprisionado. Para sempre.
Então o silêncio preencheu o interior do veículo. Ele deu uma olhada para Aphrodite. Ela não estava bebendo. Ela estava encarando Kevin com uma expressão de olhos arregalados, mas indecifrável.
Finalmente, ela falou:
– Então, a Zoey, que é sua irmã lá, ela e eu trabalhamos juntas na Morada da Noite de Tulsa?
– Bem, sim, mas é mais do que isso. Vocês duas são amigas. Grandes amigas.
Ela continuou encarando Kevin. Quando ele tirou os olhos da estrada e se virou para ela rapidamente, viu um instante de dor no rosto dela. Então, com voz bem baixa, Aphrodite falou:
– Por isso que Neferet achou que você parecia familiar. E, agora que estou observando... eu vejo a semelhança também. Você é irmão de Zoey Redbird. A Zoey Redbird que foi assassinada há mais de um ano.
– Sim, é isso que estou dizendo a você. Só que ela está viva naquele Outro Mundo. Então, você conhecia a minha irmã antes da morte dela?
– Não. Na verdade, não.
– Mas você disse que nós somos parecidos... e Neferet meio que me reconheceu também. Zo deve ter sido marcante para você.
– Sim. Ela me marcou, sim. Ou pelo menos a morte dela marcou. – Então Aphrodite apontou para a Quick Trip na esquina da Rua Cinco com a Denver. – Pare naquele estacionamento. Preciso contar uma coisa e não quero que você surte e cause um acidente.
– Ei, você não precisa se preocupar comigo. Eu não surto facilmente.
– Só faz o que mandei – ela disse.
Ele entrou no estacionamento.
Quando ele parou o veículo, Aphrodite se virou no seu assento para poder olhar para o rosto dele.
– Ok, eu não queria contar isso para você, mas provavelmente iria descobrir de qualquer jeito. Tenho certeza de que Anastasia sabe. – Aphrodite encolheu os ombros, parecendo derrotada. – E eu detesto mentir. Eu nem gosto de omitir. Então, aí vai. Eu não conhecia a sua irmã. Neferet dissolveu a organização das Filhas das Trevas antes de Zoey chegar na Morada da Noite. Eu não tinha nenhum motivo para conhecê-la, porque, depois que as Filhas das Trevas se foram, não havia mais motivos para novatos me encherem o saco. Então eu fiz a Transformação e não tinha mais motivo para andar com novatos de qualquer modo. Mas eu lembro do rosto da sua irmã porque tive uma visão com ela. E Neferet se lembra do rosto dela porque eu contei a ela sobre a visão. – Aphrodite fez uma pausa, como se ela estivesse tendo dificuldade para escolher as palavras. Então ela soltou de uma vez: – Na visão, eu era Neferet. E eu vi uma novata, que não era nem uma vampira ainda, ser a responsável pela morte de Neferet.
Kevin se sentiu enjoado.
– Essa novata era a minha irmã?
– Sim.
– Então, Z estava certa quando me disse que tinha certeza de que a Neferet do nosso mundo a assassinou e fez parecer que os humanos do Povo da Fé tinham feito isso como um crime de ódio.
Ele não havia formulado a frase como uma pergunta, mas Aphrodite ainda assim respondeu.
– Sim. Neferet matou Zoey por causa da minha visão.
Kevin não sabia o que dizer. Ele desviou o olhar de Aphrodite, focando no fluxo constante de veículos, principalmente caminhões, que entravam e saíam da Quick Trip.
– Você gostava de mim do lado de lá?
A pergunta de Aphrodite surpreendeu Kevin, que deu uma resposta automática.
– Sim. Mais do que isso.
– Imagino que eu gostava de você também?
– Você me deu um beijo de despedida e me disse para encontrar você aqui.
– Ok, olhe só, o que você está me contando deve ser verdade pelo menos em parte. Você obviamente é diferente do resto dos vampiros vermelhos. E você não estava fedido na noite passada, então deve estar falando a verdade em relação a isso. – Ela encolheu os ombros delicadamente. – E essa porcaria nojenta de sangue que você usa como perfume. Mas você tem só dezesseis anos. Você é uma criança.
– Vou fazer dezessete em agosto – ele acrescentou rapidamente.
– Que seja. Você ainda é uma criança. E está me dizendo que a sua irmã e eu somos amigas do lado de lá e que você e eu temos um lance. Isso simplesmente não se parece com algo que eu faria. Com nenhuma versão de mim. Sem ofensas.
– Eu não sou uma criança. Eu sou um tenente do Exército Vermelho, que já viu mais mortes até do que você, só que comigo foram mortes reais, acontecendo na minha frente. Deixei de ser criança há muito tempo. E você precisa definir um lance. A gente não se pegou nem nada assim, mas a gente realmente tinha uma conexão, e juro que aquele beijo foi mais do que um selinho na bochecha. Ah, e lá você não é só amiga da minha irmã. Você é respeitada e amada por um monte de gente. Você é amiga de todo mundo.
– Você tem certeza absoluta disso? Eu não faço amigos com muita facilidade. Principalmente porque a maioria das pessoas é plebeia.
Kevin ficou surpreso ao se ouvir dando risada.
– Eu não sei a história inteira sobre como tudo aconteceu lá. Não tive tempo para perguntar isso pra Zo, mas você definitivamente faz parte do grupo dela, e é um grupo bem grande. Na verdade, você fez amizade com todas as Grandes Sacerdotisas que eu conheci.
– Espere aí, o quê? Pensei que você tinha dito que a sua irmã era a Grande Sacerdotisa.
– Ela é, mas tem várias Grandes Sacerdotisas na Morada da Noite dela: Stevie Rae, Shaylin, Shaunee, Kramisha, Lenobia...
– Lenobia? A professora de equitação? Ela está viva por lá?
– Está. Assim como Travis e todos os cavalos deles.
Aphrodite passou uma mão trêmula pelo seu rosto.
– Fico feliz que eles estão vivos em algum lugar.
Kevin a observou.
– Ah, entendi. Ninguém da Resistência vazou a localização de Keystone. Você teve outra visão. Você contou para Neferet, e Neferet enviou o Exército Vermelho para acabar com eles.
– Sim. Você quer dar meia-volta e me levar para Dragon de novo para se vingar?
Ela falou sem se alterar – até soou meio arrogante, mas Kevin viu como o rosto dela ficou pálido e como as mãos dela tremiam tanto que ela teve que juntá-las em seu colo.
Ele não respondeu à pergunta dela. Em vez disso, fez outra.
– Na verdade, eu acho que você não gosta de toda essa matança. Então, por que você fez isso?
– Eu contei a ela sobre Zoey porque antigamente eu ainda acreditava que Neferet estava a serviço de Nyx. Quer dizer, abater alguns humanos parecia bom. Quem não está farto daquela coisa idiota de racismo e misoginia deles? Pelo amor da Deusa. Essa merda tem que ficar tão extinta quanto os dinossauros.
– O que isso tem a ver com você falar para Neferet matar a minha irmã?
– Essa é a questão! Eu ainda acreditava que Neferet era boa. E eu não sabia que ela iria matar a sua irmã.
– Mas você sabia que ela iria matar Lenobia e Travis. Você deve ter visto isso na sua visão.
– Eu vi. Eu também tive aquela maldita visão horrível quando estava conversando com Neferet. E-eu era Lenobia. Eu falava como Lenobia. Eu morri como Lenobia. Eu experimentei tudo com ela. A morte do seu companheiro. A morte dos seus cavalos. A morte dos seus amigos. Foi algo muito além de horrível. Eu nem percebi que estava descrevendo tudo para Neferet até depois que já tinha passado... depois que eu me recuperei da visão e ela já tinha enviado o Exército Vermelho para acabar com eles. – Aphrodite respirou fundo e enxugou as lágrimas que estavam escorrendo pelo seu rosto pálido. – Mas você está certo. Eu sou responsável pela morte deles. Eu sou responsável por todas essas mortes.
– Eu não entendo. Se você sabe como Neferet é horrível, por que você continua contando a ela sobre suas visões?
– Eu tento não contar! E quando não posso esconder que tive uma visão, tento deixar de fora qualquer detalhe que possa levar aquele maldito exército de monstros até as pessoas que eu os vejo massacrando... mas eu também quero sobreviver! Eu detestei contar a ela sobre a Resistência escondendo pessoas naqueles fardos de feno, mas eu sabia que já tinha chegado ao meu limite com Neferet. Ela ia me fazer viver nos túneis com aquelas criaturas. Eu não posso fazer isso. Simplesmente não posso.
Kevin não conseguiu dizer nada. Ele queria dizer que ela poderia se levantar contra Neferet. Que ela poderia ser forte. Ele conhecia uma Aphrodite que era forte, mas, enquanto a observava, ele percebeu que ela não era aquela Aphrodite. Ainda.
Ele colocou o Hummer em movimento e saiu do estacionamento, virando em direção ao norte para o centro da cidade.
– Você não vai me levar para Dragon?
– Não.
– Para onde você está indo?
– Para a estação. Você pode dirigir o Hummer de lá para a Morada da Noite – ele disse.
– Você não vai mesmo me entregar para a Resistência?
– Não vou.
– Por que não? – ela perguntou.
– Porque eu não sou um monstro – ele respondeu. – Eu tenho a capacidade de amar e de perdoar. Eu perdoo você. Você fez o que achou que tinha que fazer para sobreviver. Você ainda está fazendo isso. Acho que todos nós estamos.
– É assim tão ruim lá nos túneis quanto eu acho que é?
– Pior – Kevin falou.
– Eles não vão conseguir ver que você não é igual aos outros?
Kevin suspirou.
– Espero que não.
– Mas, se eles descobrirem isso, provavelmente vão te matar. Ou te devorar. – Ela estremeceu. – Ou alguma outra coisa medonha e horrível.
– Bom, eu tenho aquela gosma de sangue e estou acostumado a esconder o que realmente sinto quando estou perto de outros vampiros vermelhos. Você disse que eu estou fedendo, certo?
– Sim. Com certeza. Você não sente o cheiro?
– Tento não sentir.
Aphrodite riu alto e, quando Kevin estava se preparando para virar na rua que ia levá-los até a estação, ela disse:
– Não vire aí.
– Mas é o caminho mais rápido até a estação.
– Eu sei, mas vire à direita.
– Esse não é o caminho para a estação.
– Sim. Eu sei. Vá para a Saks.
– Ahn? – Ele estava olhando para ela sem entender e quase subiu na guia.
– Ah, que merda! Olhe por onde anda e feche a boca – ela disse.
– Por que você quer que eu a leve até a Saks?
– Shhh. Estou pensando. Apenas dirija.
Kevin fez o que ela pediu, indo até a Utica Square e a Saks Fifth Avenue, que era a loja-âncora do centro de compras ao ar livre.
– Estacione ali nas sombras na lateral, não na frente – Aphrodite o orientou.
Ele entrou em uma vaga escura e estacionou o Hummer.
– Então, imagino que devo esperar aqui fora enquanto você vai fazer compras e depois vou dirigir até a estação?
– Não. – Aphrodite enfiou a mão na sua bolsa gigante, fazendo a garrafa de champanhe intocada que sobrou tilintar contra uma das taças flûte de cristal. – Achei... venha com a Mamãe – ela murmurou enquanto pegava um cartão de crédito platinum, que entregou para Kevin. – Pegue isto aqui. Compre roupas novas para você. Roupas que não estejam fedidas e que vistam bem. E nada dessas calças jeans skinny também. Esse look hipster é ridículo. Pegue algumas camisetas também. Nada berrante. Só uma coisa simples e, repito, que não vistam mal. – Ela deu um olhar de reprovação para as roupas dele, emprestadas de Dragon, que era decididamente mais baixo e mais musculoso do que Kevin. – Pegue o suficiente para encher quatro ou cinco sacolas grandes. Ah, e não se esqueça de pegar um pijama masculino. Mantenha isto em mente quando for escolher o pijama: eu não quero ver a sua salsicha caída através dele, então pegue algo com forro.
– Estou tão confuso. – Kevin encarou o cartão de crédito. – Por que você está me dando isso?
– Você tem dinheiro suficiente para comprar quatro ou cinco sacolas de roupas da Saks?
– Claro que não.
– É por isso que estou te dando o meu cartão.
– Aphrodite, eu agradeço muito, mas o que eu estou usando está mais do que bom para os túneis.
– Sim, eu concordo. Mas não está bom o suficiente para andar comigo – ela disse.
– Quê?
Ela suspirou dramaticamente.
– Eu. Tenho. Um. Plano. Agora entre aí, faça o que eu disse e me deixe pensar em tudo.
– E se eles notarem que eu não sou Aphrodite LaFont?
Ela revirou os olhos para o alto.
– Use aquela coisa de controle mental de vampiro vermelho nessa gente simplória.
– Ah, sim. Tinha esquecido disso. Ok. – Ele começou a abrir a porta e fez uma pausa. – Hum, você precisa de alguma coisa de lá?
Ela estremeceu.
– Não. Não é a Nordstrom. Eu prefiro a Miss Jackson’s.
Ele sorriu maliciosamente para ela.
– Ei, no mundo de Zo a Miss Jackson’s fechou.
Aphrodite ergueu a mão para impedi-lo de falar mais.
– Não cometa uma blasfêmia dessas. Agora suma. E vá logo. Eu só tenho mais essa garrafa de champanhe.
– Sim, senhora. – Ele prestou uma continência para Aphrodite e então fez exatamente o que ela tinha mandado.
21
Zoey
Horda Nerd e nossos Guerreiros e companheiros!
Encontrem-me na árvore quebrada. Tragam velas de círculo
& sálvia. Muita sálvia. Estarei lá em 10 min.
Não me dei tempo para pensar melhor. Apertei o botão de ENVIAR no grupo e então voltei minha atenção para a mesa do Centro de Mídia na minha frente e para o velho livro aberto com cheiro de mofo com o título simples de Magia Antiga. Voltei folheando algumas páginas e reli o final do capítulo anterior.
Lembre-se, quando pedir o auxílio de seres de Magia Antiga, principalmente espíritos elementais, sempre há um preço. Com frequência eles se satisfazem com sangue, mas os Antigos ficam entediados facilmente e gostam de excentricidades. Eles tendem a valorizar pagamentos incomuns e difíceis de obter. Garanta que o método de pagamento é específico e garanta ainda mais que o pagamento seja feito imediatamente. Não cometa o erro de acreditar que pode escapar da dívida que fez com os Antigos. Você não irá escapar – mesmo se o pagamento requerido for a sua vida. Você irá morrer. Disso não há a menor dúvida.
– Que inferno! – eu disse para o livro e para a Grande Sacerdotisa vampira morta há muito tempo que o tinha escrito séculos atrás. – Inferno, inferno, inferno. Eu detesto isso.
Mas não havia nada que eu pudesse fazer em relação a isso. Eu já tinha tomado a minha decisão. Eu inclusive acreditava que era uma decisão inteligente. Bom, eu esperava que fosse uma decisão inteligente. Independente de ser inteligente ou não, eu acreditava que era a decisão certa.
– Stark vai ficar tão irritado – eu murmurei para mim mesma.
– Por que eu vou ficar irritado?
Eu dei um pulo e me virei na minha cadeira.
– Deusa! Você me assustou.
– Eu te assustei porque você está se escondendo aqui e achou que ninguém fosse te encontrar? – Ele se sentou ao meu lado e olhou com desconfiança para o livro aberto.
– Eu não estou me escondendo. Estou pesquisando. Sozinha.
– Desculpe. Não quis te atrapalhar.
Ele começou a se levantar e eu segurei a mão dele.
– Não vá. Desculpe. Falei de um jeito rude, não foi o que eu quis dizer. – Respirei fundo para me acalmar. Eu não queria ter aquela conversa com Stark. Nunca. Só que já estava na hora de parar de ficar fugindo feito criança. Eu tinha tomado a minha decisão, então precisava contar a verdade para ele. – Eu preciso conversar com você.
Ele virou a sua cadeira para me encarar.
– Finalmente!
O olhar de alívio dele me deu um aperto no estômago.
Stark tocou o meu rosto de um jeito doce e íntimo que sempre me dava um frio na barriga e abriu aquele sorriso metidinho dele que eu amava desde que o conheci.
– Ei, seja o que for, a gente pode lidar com isso. Juntos. Só me conte o que está errado e então vamos descobrir como resolver o problema.
Eu me inclinei para a frente e o beijei – de leve e devagar. Ele me puxou para os seus braços e retribuiu o beijo, e naquele momento eu deixei que o meu mundo fosse preenchido pelo meu Guerreiro, meu amante, meu Guardião e meu amigo.
Quando finalmente nos separamos, o seu sorriso ficou metidinho de novo.
– Se o problema for que você precisa ser beijada assim com mais frequência, eu tenho a solução. É um trabalho difícil, mas você pode definitivamente contar comigo, minha Rainha.
Eu dei um soco de brincadeira no ombro dele.
– Um trabalho difícil?
– É, mas alguém tem que fazê-lo.
Eu balancei a cabeça para ele e então fiquei séria. Chega de procrastinar! Simplesmente conte para ele.
– Eu vou para o Outro Mundo atrás de Kevin – eu disse.
– É, bom, eu já imaginava. Quando partimos?
Eu peguei a mão dele com as minhas.
– Eu vou hoje à noite. Você vai ficar aqui.
Ele não disse nada por vários segundos. Então, lentamente, ele puxou a sua mão que estava entre as minhas.
– Por quê? – a voz dele soou sem alterações, mas os seus olhos se encheram de dor.
– Bom, Neferet tem que ser detida e não posso deixar Kevin destruir a si mesmo com Magia Antiga, coisa na qual está bem encaminhado. Ele está usando Magia Antiga. Você pode sentir a frequência com que ele está fazendo isso. Ele deve acreditar que precisa. Sei que eu mesma acreditei. Todos nós sabemos disso. Neferet é um pesadelo, mas Kevin não entende nada sobre Magia Antiga nem sobre Neferet, e isso vai...
– Não perguntei por que você está indo para lá – Stark me interrompeu. – Eu já tinha entendido isso. Por que eu não vou?
– Ah. Desculpe. Porque você não pode.
– Se você pode atravessar para um Outro Mundo, por que diabos eu não posso?
– Não quis dizer que você não pode fisicamente. Eu quis dizer que você não pode porque já tem um James Stark no Outro Mundo. Ele é um general no exército de Neferet. Kevin disse que ele inclusive é amante de Neferet. – Fiz uma careta. – O que é tão nojento que não suporto nem pensar, e pode acreditar... eu vou fazer o possível para dar um jeito nisso. Deusa, você consegue imaginar como...
– Eu não ligo pra isso. Aquele não sou eu. Eu me importo com você. Essa Zoey aqui... minha Rainha, a quem eu sou Juramentado como seu Guerreiro e a quem eu protejo como o seu Guardião concedido pela Deusa. Z, eu entendo por que você tem que ir. Sei que você tem pensado sobre isso, que está preocupada com o Outro Kevin, eu até esperava mesmo que você fosse. Mas eu tenho que ir com você.
Eu balancei a cabeça.
– Sinto muito. Queria que você pudesse ir, mas não faz o menor sentido. Você já está lá. E não dá pra disfarçar sua presença. Eu preciso circular por lá discretamente, dizer para Kevin parar de usar Magia Antiga, ajudá-lo a derrotar Neferet, o que acho que eu já descobri como fazer, e então voltar para cá. – Encontrei o olhar angustiado dele e disse o que eu precisava dizer. Disse o que ele não queria escutar, mas precisava. – Stark, você não ia me ajudar se fosse para lá. Você iria dificultar ainda mais o que já vai ser difícil. Sinto muito – eu repeti. – Mas já decidi. Eu vou e você não.
A dor se transformou em raiva.
– Pensa que eu não sei o real motivo para você não querer que eu vá? É porque você vai encontrar Heath e não quer que eu fique segurando vela!
Eu já esperava que ele dissesse isso. Eu já esperava a sua mágoa e a sua raiva, mas isso não tornava a situação nem um pouco mais fácil.
– Não, Stark. Não é por isso que você não pode vir comigo. Se você fosse pego, o que seria fácil porque o seu equivalente lá é um general poderoso que todo mundo conhece, você seria morto. Ou torturado. Ou coisa pior. E eu não conseguiria aguentar isso. Na verdade, vai além de eu poder aguentar isso ou não. Tem a ver com mais coisas do que o que você pode ou não aguentar. Se eles o pegassem, isso seria ruim para Kevin e para o mundo dele com certeza, mas ruim para o nosso mundo também. Stark, pense. O que aconteceria se Neferet descobrisse que há um mundo inteiro aqui em que ela não está no comando? E pense no que ela faria se... ou melhor, quando o Outro Kevin e a sua Resistência virarem o jogo e começarem de fato a derrotá-la. O que Neferet faria?
– Não sei, porra!
– Você sabe, sim. Todos nós sabemos. Ela iria fugir. E ela iria fugir para este mundo. – Peguei a mão dele de novo. – Stark, eu te amo. Eu detesto te magoar. E eu não vou para lá só para ver Heath. Mas isso não tem a ver com nós dois. Tem a ver com dois mundos inteiros e garantir que as Trevas não vençam nunca.
– Você escutou o que disse? Você não vai para lá só para ver Heath! “Só”! – Ele fez aspas no ar com os dedos. – Mas você vai encontrá-lo, não vai?
– Não sei. Kevin me disse que ele está na Universidade de Oklahoma. Eu não vou para lá. Eu vou para Tulsa.
– Eu não acredito em você.
– Por favor, não faz isso comigo. Não tenha ciúme de alguém que nem está vivo – eu disse.
– Mas esse é o problema, né? Ele está vivo naquele mundo para onde você está morrendo de vontade de ir.
Desta vez eu soltei a mão dele por vontade própria.
– Você acha mesmo que eu quero ir? Que eu quero lutar com Neferet de novo? Que eu quero deixar a minha casa, os meus amigos e você? – Balancei a cabeça. – Você está com ciúme e está errado. – Eu me levantei. – Marquei um encontro na árvore quebrada. Tenho que ir.
– Sim, eu sei. Eu recebi a sua mensagem no grupo. Foi super íntima. – Ele se virou na cadeira e ficou olhando o livro em vez de me olhar. – Era assim que você ia me contar?
– Por mensagem? Claro que não!
– Não foi isso que eu pensei. Perguntei se você ia me contar que ia para lá e que eu ia ficar aqui na frente de todo mundo.
Mordi a parte interna da bochecha. Na verdade, eu tinha planejado contar para todo mundo junto que eu estava indo – e quem ia e quem não ia comigo. Bom trabalho, Z. Stark agora pensa que você queria insultá-lo e constrangê-lo, além de trocá-lo por Heath.
– E-eu não queria ferir os seus sentimentos. Só sei que eu tenho que ir e que tenho que contar isso para todo mundo. Não pensei que você ficaria louco se eu contasse para todos ao mesmo tempo – eu falei pateticamente.
Então ele levantou os olhos para mim.
– Eu não estou louco porque você ia contar para mim ao mesmo tempo que para os outros. Estou triste. Triste por ser só isso que eu significo para você.
– Stark! Você significa tudo pra mim!
– Isso é papo furado.
Eu fui até o lado dele e coloquei a mão no seu ombro. Quis tocar o cabelo dele, o seu rosto, beijá-lo e nunca mais soltá-lo, mas ele se esquivou da minha mão e voltou o seu olhar triste e nervoso para o velho livro aberto na frente dele.
– Eu te amo. Isso não é papo furado. Você sabe disso. Você só precisa sentir... sentir a nossa ligação.
– Você acha que eu vou conseguir sentir quando você estiver lá? – ele perguntou sem expressão.
– Não sei – eu disse. – Espero que sim. Acho que posso sentir a minha ligação com você em qualquer mundo.
– Eu espero que não.
Aquelas quatro palavras me cortaram fundo, penetraram através da minha pele, músculos e ossos e me deixaram sem voz e muito, muito triste. Peguei a minha mochila e a joguei por cima do ombro. Então dei as costas para o meu Guerreiro e saí do Centro de Mídia.
Estavam todos lá. O meu círculo: Aphrodite, Damien, Shaunee, Shaylin e Stevie Rae. E também os seus Guerreiros e amantes: Darius, Jack, Erik, Nicole e Rephaim.
Só que nenhum sinal de Stark. Ele não tinha me seguido quando saí do Centro de Mídia. Engoli a minha tristeza e me aproximei da árvore quebrada e escura, pisando sem fazer barulho para poder observar os meus amigos antes que eles percebessem que eu estava ali.
Aphrodite estava obviamente no comando. Ela estava apontando para alguns lugares em volta da árvore arruinada, e Outro Jack, super fofo com uma camiseta violeta clara por dentro de uma adorável calça jeans rasgada, estava levando as velas ritualísticas para os pontos que ela tinha escolhido. Era fácil ver o que Aphrodite estava fazendo, e eu me enchi de gratidão por ela. Ela estava estabelecendo uma circunferência ao redor da árvore, preparando tudo para o traçado do círculo.
Stevie Rae estava segurando uma pilha grande de bastões de defumação de sálvia, os quais ela foi entregando para Damien, Shaunee e Shaylin.
Ótimo. Essa vai ser a parte fácil. Espero que eles estejam preparados para o que vai acontecer em seguida.
– Ei, Z! Aí está você! – Stevie Rae sorriu com covinhas para mim. – Eu trouxe a sálvia.
– E eu trouxe as velas – Outro Jack disse, abrindo um sorriso luminoso e doce para mim.
– Imagino que você vá fazer a limpeza desta árvore horrorosa – Aphrodite disse.
– Vou sim – eu disse. – Vamos começar com isso, só que primeiro preciso falar com todos vocês.
Os meus amigos se aproximaram, formando uma meia-lua atenta diante de mim. Eu analisei os rostos deles, pensando em todas as coisas pelas quais havíamos passado e como isso tinha nos deixado próximos. Eu não queria partir. Eu não queria encarar Trevas que já tínhamos derrotado. Eu me senti triste, com medo e muito sozinha.
– Está tudo bem, Z – Stevie Rae afirmou. – Seja o que for, estamos aqui com você.
– Só conte o que você precisa – Damien falou. – Vamos resolver.
– A sua aura está forte. Seja o que for, você está em paz com essa resolução – Shaylin observou.
– Lembre-se de que você não está sozinha – Shaunee disse. – A gente está aqui pra te proteger.
– Assim como Nyx – Aphrodite acrescentou. – A Deusa está com você também. Sempre, Z.
O resto dos meus amigos assentiu concordando.
Pisquei bem rápido, determinada a não deixar as minhas lágrimas caírem.
– Obrigada. Isso significa muito para mim, e eu realmente precisava ouvir que tenho o apoio de vocês. Espero continuar com ele quando contar o que está rolando.
– Você sempre vai ter – Stevie Rae afirmou. – Você é a nossa Grande Sacerdotisa. Nós confiamos em você, Z.
Quando senti que poderia falar sem explodir em lágrimas, eu comecei.
– Primeiro, nós vamos purificar esta árvore. Não vamos fazer nada muito louco, só um trabalho básico de defumação e limpeza, apesar de que eu vou pedir para todo mundo participar e ajudar a defumar. Ela precisa de muita limpeza.
– Você quer que a gente fique dentro ou fora do círculo? – Erik perguntou.
– Boa pergunta – eu disse, sorrindo para ele, que estava ao lado de Shaunee, com um braço em um gesto íntimo colocado sobre os ombros da minha amiga, que se recostava nele. – Quero vocês com a gente dentro do círculo, como estariam se fosse um ritual para toda a escola. Então, Jack, você pode, por favor, mexer as velas dos elementos mais para fora, para que o nosso círculo fique um pouco maior?
– Com certeza! – Jack imediatamente saiu correndo em volta do círculo, reposicionando as grandes velas votivas de modo a incluir todo mundo.
– Eu vou invocar os elementos e traçar o círculo. Aqueles que representam os quatro elementos, por favor acendam os bastões de sálvia nas suas velas elementais. Os outros podem acender os seus bastões na minha vela do espírito. – Uma ideia me ocorreu, e eu decidi que era um acréscimo perfeito a uma defumação simples. – Mas eu quero fazer disso mais do que uma simples defumação. Esta árvore... este lugar tem tanta tristeza e Trevas ligadas a ele que nós precisamos fazer algo a mais com a defumação. Precisamos trazer a alegria de volta para cá. E se a gente fizer a defumação acompanhados de uma música?
– Eu apoio totalmente! – Stevie Rae exclamou. – Que tal usar...
– Ah, que merda, não! – Aphrodite a interrompeu. – Nada de músicas do Kenny Chesney.
Stevie Rae franziu as sobrancelhas para ela.
– Você está cortando o meu coração.
– Tem que ser uma música super alegre – eu disse. – Uma que todo mundo conheça e que alguém tenha no celular.
– “When the Sun Goes Down” do Kenny Chesney é super alegre – Stevie Rae sugeriu.
Aphrodite bufou.
– Bom, segundo um grupo de pesquisadores da Universidade do Missouri, “Don’t Stop me Now” do Queen, com o seu sempre fabuloso Freddie Mercury, é cientificamente a canção mais alegre do mundo – Damien afirmou.
Todo mundo se virou para ele.
– Como diabos você sabe disse? – Aphrodite perguntou.
– Eu sou inteligente e leio bastante – Damien respondeu.
– Quando ele pratica esgrima, ouve essa música. Muitas vezes – Jack lembrou, correndo de volta para o lado de Damien. – E vocês sabem como o meu Damien é um espadachim incrível!
– Isso é verdade – eu concordei. – Então, você tem essa música na sua playlist?
– Tenho – Damien disse.
Antes que eu pudesse perguntar se todo mundo conhecia a música, Jack levantou a mão como um menininho na escola encarnado.
– Sim, Jack?
– Hum, eu acabei de pensar em uma música. Uma muito, muito alegre que eu tenho certeza que todo mundo conhece. E está na minha playlist. – Ele se inclinou para Damien. – Desculpe, Damien. Espero que você não se importe.
– Eu não me importo. Qual é a música? – Damien perguntou.
Jack respondeu cantando.
– “Gota de chuva, bigode de gato...”
Stevie Rae continuou o próximo verso da canção.
– “Laço de fita, cordão de sapato!”
– “Flor na janela e botão no capim” – Shaunee cantou.
– “Coisas que eu amo e são tudo pra mim!” – Aphrodite me surpreendeu totalmente ao se juntar ao coro. – O que foi? – Ela franziu o cenho quando todo mundo a encarou. – Quem não gosta de Noviça Rebelde?
– O que você acha, Damien? – eu perguntei.
– Acho que eu amo bolas de neve e botão de pijama! Não é científico, mas eu voto em “Coisas que eu amo”.
– Por mim parece ótimo. Hum, todo mundo conhece, certo? – perguntei para o grupo, e todos, exceto Rephaim, assentiram.
– Eu vou tentar acompanhar vocês – Rephaim disse.
– Tudo bem, amor – Stevie Rae o apoiou. – Eu sei a letra inteira. Vou te ajudar.
– Ok, perfeito. Então, quando a música acabar, a gente vai terminar a defumação fazendo uma pequena pira ali, no meio do círculo, bem na frente da árvore. – Eu apontei para um lugar à frente do centro do carvalho escuro e retorcido. – Eu vou dar a volta no círculo e pegar os bastões de defumação de Damien, Shaunee, Shaylin e Stevie Rae, e então vou juntá-los ao resto dos bastões. Shaunee, depois disso vou pedir a você para acrescentar um pouco de fogo à pilha para que ela queime direito.
– Facinho – Shaunee falou.
– Isso significa que você vai deixar o círculo aberto depois da defumação – Aphrodite observou. – Então, o que vem depois?
Eu encontrei o olhar dela.
– Depois eu invoco Oak, o espírito da árvore de Magia Antiga que respondeu às minhas perguntas.
– Por que você vai mexer com Magia Antiga de novo? – Aphrodite perguntou.
– Porque vou pedir que ela me guie até o Outro Mundo, onde o meu irmão precisa da minha ajuda – respondi rápido e senti uma onda de alívio instantânea por finalmente ter contado para todo mundo.
– Isso é loucura total – Aphrodite disse.
– Não! – Os olhos de Outro Jack estavam arregalados. Ele parecia completamente aterrorizado. – Não vá, Zoey! Aquele mundo é horrível. – Ele tremia, com os braços envolvendo o seu próprio corpo. – Eu sei que o seu irmão contou algumas coisas sobre aquele lugar pra você, mas não é possível que você realmente compreenda o que acontece. Simplesmente não dá. Não vá! – Ele começou a chorar baixinho, e Damien o abraçou.
– Por que você acha que precisa ir para lá? – Darius me perguntou.
– Por várias razões – eu respondi. – Kevin tem usado Magia Antiga. Muito. E ele não tem a menor ideia de como isso é perigoso ou o que pode fazer com ele. Tenho que contar a ele antes que isso o transforme.
– Ele está usando porque é a única maneira de derrotar Neferet – Aphrodite argumentou.
– Não, não é – eu rebati. – Era a única maneira de derrotar a nossa Neferet, porque ela havia se tornado imortal.
– Bom, será que não faz sentido pensar que do lado de lá, ela já está no caminho de se tornar imortal, assim como foi aqui? – Shaunee questionou.
– Sim. E essa é outra razão pela qual eu tenho que ir para lá. Neste momento, Neferet é apenas uma vampira. Como saber o que vai acontecer se eu esperar mais? Além disso, eu tenho um plano para jogar o Exército Azul contra ela.
– Como? – Aphrodite quis saber.
– Jack, corrija-me se eu estiver errada, mas, pelo que o meu irmão me contou, os Guerreiros acreditam que Neferet ainda está a serviço de Nyx, certo?
Jack fungou e assentiu vigorosamente.
– Ah, sim. Neferet é a única Grande Sacerdotisa deles. Eles contam com ela para saber a vontade de Nyx.
– E o que aconteceria se houvesse uma prova irrefutável de que Neferet não está mais seguindo a vontade de Nyx? – eu perguntei.
– Os Guerreiros não a seguiriam mais. Bom, pode ser que alguns continuassem a segui-la. Tipo, alguns dos seus amantes. E ela tem muitos. Mas a maioria iria parar de lutar por ela, e isso inclui uma boa parte do Exército Azul – Jack respondeu.
– Esse é o meu plano – eu concluí. – Vou mostrar para todos na Morada da Noite de Tulsa no Outro Mundo que Neferet é uma fraude. Que ela está usando os seus poderes para as Trevas e não está mais seguindo Nyx.
– Bom plano, Z, mas como você vai fazer isso? – Stevie Rae questionou.
Eu sorri para a minha melhor amiga e para o seu companheiro.
– Bom, para isso eu vou precisar da ajuda de Rephaim.
– Minha ajuda? Claro que eu ajudo você – Rephaim falou sem hesitar. Então ele piscou e eu vi a compreensão brotando no seu rosto. – Você vai libertar o meu pai naquele mundo!
– Sim, isso é parte do meu plano. Quer uma maneira melhor de mostrar que Neferet não está seguindo Nyx do que ter o seu Consorte alado a denunciando na frente da Morada da Noite inteira?
– Mas Kalona era um verdadeiro idiota logo que ele foi libertado desse lado. Que diabos você vai fazer em relação a isso? – Aphrodite quis saber.
– Eu vou contar com o filho de Kalona para se conectar a ele – eu respondi. – E comigo também. Lembre-se de que eu ainda tenho um pedaço de A-ya dentro da minha alma. Rephaim e eu, juntos, devemos ser capazes de influenciar Kalona, principalmente porque a gente sabe que lá no fundo ele ainda ama Nyx, e só era tão terrível porque pensava que a Deusa nunca iria perdoá-lo.
– E nós vamos convencer o meu pai de que ele está errado em relação a isso – Rephaim completou.
– Espero que bem mais rápido do que ele foi convencido por aqui – Aphrodite resmungou.
– Então, você quer que Rephaim vá para o Outro Mundo com você – Stevie Rae disse.
– Sim, eu quero.
– Mas, mesmo se isso funcionar, ainda vai ser preciso lidar com o Exército Vermelho – a voz de Jack soou trêmula. – E eles são monstros. Eles não ligam para quem Neferet segue. Eles não ligam para Trevas e Luz. Eles só se importam em saciar a sua fome.
– E é por isso que o meu plano tem uma segunda parte. Stevie Rae, desculpe, mas eu preciso pedir que você venha comigo também, por favor.
O olhar de alívio dela me deu um aperto no coração.
– Ah, Z! É claro que eu vou com você!
– Se eu estou entendendo esse seu plano, você vai precisar de mim também – Aphrodite falou.
– Sim, mas não essa versão de você. A Outra Aphrodite – eu respondi.
– Ok, olhe só, seria muito mais fácil se eu fosse com você – Aphrodite insistiu.
– Você não pode. Você já está lá, e você é uma Profetisa, mas também é uma vampira azul completamente Transformada. Não a primeira vampira azul e vermelha da história – eu a relembrei.
– E daí? Erik pode me dar um pouco daquela porcaria que eles usam nos atores para cobrir as suas Marcas para que os humanos consigam esquecer que estão vendo vampiros atuarem – Aphrodite argumentou.
– É, posso sim. Tem bastante disso na sala de Teatro – Erik disse.
– Apesar de o meu homem não usar esse tipo de coisa – Shaunee observou. – Porque se aqueles humanos intolerantes e idiotas não conseguem ter empatia suficiente para se identificar com alguém que parece diferente, isso é problema deles e eles podem parar de assistir aos seus filmes.
– Mas todos querem assistir aos seus filmes – Jack soou adoravelmente deslumbrado.
Erik deu para Jack aquele sorriso de estrela de cinema iluminado por vários megawatts.
– Então acho que eles vão ter que aceitar quem eu realmente sou, ou, que pena, eles terão que ficar sem filmes.
Jack deu uma risadinha.
Cara, Erik cresceu! Pensei. Que bom para ele.
– Erik, você pode ir buscar essa maquiagem para mim?
– Estou indo. Volto em um segundo. – Erik saiu correndo.
– Viu? Eu posso cobrir a parte vermelha da minha Marca e ir para lá com você. A gente faz a nossa coisa juntas, e os novatos e vampiros vermelhos vão ter sua humanidade de volta. Nada de mais – Aphrodite disse.
– E o que a gente faz com a Outra Aphrodite? – Eu me virei para encarar minha amiga, detestando ter de provocar dor nela com o que eu precisava dizer. – O que o fato de você a substituir vai causar nela? Significa que ela nunca vai crescer? Nunca vai aprender a se importar com outras pessoas além dela mesma? Nunca vai aprender a ter empatia ou que às vezes amor significa fazer um sacrifício? Nunca vai aprender a parar de se automedicar e enfrentar a sua mãe?
Aphrodite me encarou, o seu rosto ficando pálido.
– E se ela não for capaz de aprender? Eu perguntei a Outro Jack sobre ela. Definitivamente, ela não está trabalhando com a Resistência. Ela é aliada de Neferet. E se a eu do Outro Mundo já estiver perdida para as Trevas e você não conseguir sensibilizá-la como fez comigo porque Neferet matou você lá cedo demais?
– Nos seus corações, nas suas almas, vocês são a mesma pessoa. Eu conheço esse coração, e ele não é feito de Trevas. Você tem mais Luz em você do que qualquer um de nós. Nyx nos mostrou isso pelos dons que concedeu a você. Eu posso sensibilizar a Outra Aphrodite.
– Eu não apostaria a minha vida nisso – Aphrodite disse.
Sem nenhuma hesitação, eu respondi:
– Eu aposto. Quantas vezes eu precisar.
– Eu também – Darius falou, colocando o braço ao redor de Aphrodite.
– Eu também – Stevie Rae concordou. – Mesmo que você e eu discordemos totalmente no gosto musical.
– E no seu estilo de moda – Aphrodite acrescentou.
– Eu também acredito em você, Profetisa – Rephaim reforçou.
– Todos nós acreditamos – Shaunee enfatizou.
– Z vai sensibilizá-la porque você não é a única de nós que recebeu grandes dons de Nyx – Shaylin explicou. – Zoey também recebeu.
Eu observei Aphrodite enxugar as lágrimas antes de perguntar:
– Se não é para mim, por que Erik foi buscar aquela porcaria de maquiagem?
– É para Stevie Rae! – Jack respondeu como se uma lâmpada tivesse acabado de se acender sobre a sua cabeça. – Você tem que cobrir a Marca dela porque não existem vampiras vermelhas mulheres no meu mundo.
– Exatamente, Jack. – Dei umas palmadinhas na mochila que ainda estava pendurada no meu ombro. – Por isso que eu tenho um lápis de maquiagem safira aqui. Stevie Rae, está pronta para ser uma novata azul de novo?
– Claro! Mas espero que desta vez tudo corra melhor do que antes.
– Pode apostar nisso – eu disse. – Porque eu vou me juntar a você. E desta vez como uma novata azul normal.
– Sério? – Shaunee disse.
Em vez de respondê-la, fiz outra pergunta.
– Jack, tem outras Grandes Sacerdotisas no seu mundo?
– Não. Não mais. Neferet é a única Grande Sacerdotisa de lá – ele respondeu.
– E o meu palpite é que Neferet fica de olho nas Sacerdotisas remanescentes... para o caso de alguma delas começar a se desenvolver como uma Grande Sacerdotisa. Estou certa?
– Bom, não é como se eu fosse próximo a ela nem nada do tipo, mas todo mundo sabe que Neferet não permite que nenhuma outra Sacerdotisa conduza os rituais da escola. Ela tem que liderar tudo, mas ela não deixa que os novatos e os vampiros vermelhos participem dos rituais de qualquer jeito.
Balancei a cabeça.
– Ela deve ter feito alguma coisa terrível com as Grandes Sacerdotisas para conseguir calar a boca delas e deixá-las de lado.
– Eu não sei muito sobre isso, mas há rumores... Coisas sussurradas nos túneis onde Neferet nunca vai. Dizem que ela as matou.
– Deusa, não pode ser! – Shaylin ofegou, e Nicole pegou a mão dela para reconfortá-la. – Isso é horrível! O coração de Nyx deve estar partido!
– E essa é a terceira razão pela qual nós temos que ir para lá. Nyx precisa de nós. Todos nós sabemos que a Deusa não manipula a ação dos mortais, mas conhecemos a vontade dela. Stevie Rae, Rephaim e eu. E nós vamos acabar com as atrocidades que Neferet tem cometido em nome de Nyx.
O meu círculo assentiu, concordando sobriamente, enquanto Erik chegou correndo. Ele me entregou uma sacola cheia de esponjas e um pote grande de maquiagem.
– Tudo que você precisa está aí dentro. Eu trouxe o tipo que é à prova de água. É um inferno para tirar, mas vocês não vão ter que se preocupar com nenhuma Marca aparecendo por baixo, nem se pegarem chuva ou neve.
– Obrigada, Erik.
– Merda11 para você lá. Eu acredito em você – ele disse.
Eu enfiei a sacola na minha mochila e tive que limpar a garganta antes de falar, mas finalmente consegui dizer:
– Ok, acho que isso é tudo. Estão todos prontos?
Perguntei para o grupo, mas só observei Stevie Rae e Rephaim. Eles foram os primeiros a responder.
– Sim. Estou pronto – Rephaim disse.
– Eu também, feito um porco pronto para chafurdar na lama! – Stevie Rae falou, e todo mundo (menos Aphrodite) riu e assentiu.
– Cadê o Stark? – Aphrodite perguntou, calando a boca de todo mundo.
– A última vez que eu o vi, ele estava no Centro de Mídia – eu respondi.
– E por que o seu Guerreiro não está aqui ao seu lado? – Darius questionou.
– Porque eu não deixei ele vir comigo.
– Ele não pode! – Jack exclamou. – Todo mundo conhece o General Stark. Mesmo com a Marca vermelha dele coberta, qualquer um que o visse perceberia em um segundo que ele é parecido com o general e iriam pegá-lo.
– Eu sei, e foi isso que eu disse a Stark, mas ele não consegue suportar a ideia de que estou indo enfrentar o perigo sem ele. – Respirei fundo e contei o resto da verdade. – E ele acha que eu estou indo lá para ver Heath, o que o chateia. Muito. – Eu hesitei e então fiz um pedido. – Pessoal, depois que eu for, vocês podem ficar de olho no Stark, por favor? Ajudá-lo a passar por isso? Eu vou voltar, e quando eu estiver de volta vou fazer as pazes com ele. Vou fazê-lo entender, mas até lá eu só... – Então perdi as palavras quando uma sensação de perda e tristeza tomou conta de mim. E se Stark nunca me perdoar por isso?
– Nós vamos ajudá-lo – Damien prometeu. – Não se preocupe com isso. Se concentre no que você tem que fazer do outro lado para voltar para cá. Eu vou conversar com Stark.
Fui até Damien e o abracei forte.
– Obrigada – sussurrei. – Diga a ele que eu o amo muito.
– Vou dizer, mas ele já sabe, Z – Damien sussurrou de volta.
Eu saí do abraço reconfortante de Damien.
– Pessoal, vejam se todos pegaram o seu bastão de defumação e vão para os seus lugares. Vamos acabar logo com isso!
11 Maneira de atores desejarem boa sorte antes de entrarem no palco. Em inglês, a expressão usada é “break a leg” (quebre uma perna). (N.T.)
22
Zoey
Foi legal ter os meus amigos se juntando a mim dentro do círculo, e eu percebi como fazia tempo desde a última vez que havia conduzido um ritual importante. Vou ter que melhorar isso quando voltar, prometi a mim mesma. Porque eu iria voltar, assim como Stevie Rae e Rephaim.
Damien, Shaunee, Shaylin e Stevie Rae assumiram as suas posições em cada um dos quatro quadrantes do círculo, segurando as suas velas rituais. Os Guerreiros e amantes também se espalharam, preenchendo o círculo. Fui para o centro, onde Jack havia colocado a minha vela roxa do espírito e uma caixa de fósforos longos. Fiz uma pausa por tempo suficiente para respirar profundamente várias vezes para me purificar. Então abri a minha mochila e facilmente encontrei o sino que eu tinha colocado no bolso da frente. Segurando-o com cuidado para que não começasse a soar, peguei os fósforos e fui até a borda leste do círculo, onde Damien estava parado, cheio de expectativa, com a sua vela amarela do ar em uma mão e o seu bastão de defumação na outra.
– O ar nos dá a respiração e muito mais. Sem ele, nós não seríamos capazes de gritar, rir, chorar ou gritar. É o primeiro elemento que conhecemos quando nascemos, então nós sempre começamos o círculo com sua invocação. Ar, por favor, venha e ajude a soprar para longe as Trevas que macularam esta árvore. Eu dou as boas-vindas a você no nosso círculo! – Acendi a vela de Damien e um sopro de uma brisa quente levantou o meu cabelo. Assim que senti o ar, segurei o sino no alto e o toquei com força e ele soou claro três vezes.
Então eu fui no sentido horário, ficando diante de Shaunee ao sul.
– O fogo nos aquece. Ele nos nutre cozinhando a nossa comida e nos limpa queimando aquilo que não é mais útil. Fogo, por favor, venha e ajude esta sálvia a queimar e dissipar as Trevas que macularam esta árvore! – Não precisei tocar o meu fósforo na vela vermelha de Shaunee. Ela pegou fogo e produziu uma chama alegre instantaneamente.
– Queime, baby, queime – Shaunee sussurrou.
Eu sorri e levantei o meu sino, tocando-o vigorosamente mais três vezes. Então andei no sentido horário para o oeste até Shaylin, que esperava ali com expectativa segurando a vela azul.
– A água somos nós, assim como nós somos água. Sem ela, nós viramos pó e morremos. Ela sacia a nossa sede e nos purifica. Água, por favor, venha e ajude a lavar as Trevas que macularam esta árvore! – Acendi a vela de Shaylin e o aroma do oceano preencheu o ar ao nosso redor. Levantei o sino de novo e o toquei três vezes antes de continuar a minha jornada ao redor do círculo até Stevie Rae ao norte.
– E aí, Z? – Ela sorriu com covinhas para mim.
– Oi, terra. – Eu sorri de volta para ela. – A terra é a nossa casa. Ela nos sustenta. Ela nos alimenta e nos envolve, e é para a terra que os nossos corpos finalmente voltam para o descanso final. Terra, por favor, venha e nos fortaleça para que as Trevas nunca mais maculem esta árvore! – A vela verde de Stevie Rae pegou fogo e nós fomos cercadas pelo cheiro delicioso de damas-da-noite. Inspirei profundamente ao levantar o meu sino e tocá-lo mais três vezes.
Então, fui para o centro do círculo e levantei a minha vela roxa.
– Espírito, você é quem nós somos quando somos mais puros. Você é quem permanece quando os nossos corpos não podem mais viver. Você nos preenche de forma única e estabelece nossas personalidades, nossos amores, nossos ódios e nossos desejos. Espírito, por favor, venha e preencha este lugar que foi violado pelas Trevas para que a Luz possa brilhar aqui de novo! – Toquei o meu sino em três badaladas pela última vez e, enquanto o seu claro eco se extinguia, coloquei-o no chão e peguei o grosso bastão de defumação de sálvia branca perfumada.
Encarei o meu círculo, amando o fio prateado de luz que nos conectava. Ele era tão brilhante que iluminou a árvore, fazendo parecer que as Trevas já tinham começado a ser extinguidas.
– Ok, elementais, acendam os seus bastões de defumação. Os outros acendam os seus bastões nos dos elementais, fechando o círculo. Jack, você está pronto com algumas das nossas coisas favoritas?
– Estou! Só me diga quando for para apertar o play!
Esperei alguns instantes até a sálvia de todo mundo estar acesa e uma fumaça acinzentada e esbranquiçada começar a se formar e se levantar devagar ao redor da árvore.
– Ok, quando a música começar, todo mundo canta junto. Dancem e desenhem formas no ar com os seus bastões de defumação. Sejam alegres. Não pensem em nada além de coisas boas. Só tomem cuidado para não pisar fora do círculo – eu disse.
– E não se preocupem, todos nós amamos Julie Andrews. Não importa quem você é... cante, cante, cante! – Jack falou alegremente.
– Isso mesmo! – Eu sorri para ele. – Aperte o play, Jack!
Assim que “Coisas que eu amo” começou a tocar, o meu círculo e os meus amigos cantaram junto. No começo estávamos meio inseguros, mas na hora que chegamos ao verso “Se a tristeza, se a saudade”, todos estavam cantando, rindo e dançando ao redor do círculo.
– Aiminhadeusa, vejam! – Stevie Rae apontou para a fumaça se levantando em redemoinhos e espirais acima de nós, e todos ofegamos juntos.
Entrando e saindo da fumaça, espíritos parecidos com vaga-lumes voavam tão velozes quanto diamantes vivos, brilhando e reluzindo – e transformando a fumaça em formas sobre as quais estávamos cantando. Eu vi gatinhos com bigodes, laços de fita, gotas de chuva e algo que eu tinha certeza de que era uma banda passando enquanto soava o clarim.
Foi um dos momentos mais mágicos da minha vida, e desejei com todas as minhas forças que Stark estivesse ali, rindo, cantando e dançando ao meu lado.
– Z! Olhe para a árvore! – Jack gritou.
Eu olhei – e tive que segurar a minha boca para ela não ficar de queixo caído. Um enxame de espíritos vaga-lumes se aglomerou ao redor da árvore. Começando por sua base quebrada, eles voavam em compasso com a nossa música, girando e subindo. E, enquanto eles se moviam, a escuridão feito piche que a havia manchado ia sendo lavada, até que tudo o que sobrou foi uma árvore estranha, fragmentada e inclinada para o lado, onde começaram a surgir minúsculos brotos ao longo dos seus galhos antes arruinados.
– Ela vai ter folhas de novo! – Stevie Rae berrou alegremente mais alto que a música.
Rodopiando e rindo, nós cantamos os últimos versos com Maria e a família Von Trapp.
– “Eu lembro das coisas que eu amo e, então, de novo eu me sinto bem!”
Com a respiração ofegante e sorrindo, eu disse:
– Jack, você pode pegar todos os bastões de defumação e colocá-los aqui no meio do círculo perto da árvore?
– Eu?
Eu assenti.
– Aiminhadeusa, é claro!
Jack correu ao redor do círculo, coletando os bastões de sálvia e colocando-os, junto com o meu, em uma pilha fumegante.
– Shaunee, quando você estiver pronta – falei.
– Tranquilo. Queime, baby, queime! – Shaunee fez um gesto com o seu pulso na direção da pilha e ela instantaneamente ardeu com a luz das chamas e o aroma da sálvia.
– Perfeito! Obrigada – agradeci. Então eu fiquei séria, e o meu olhar se voltou para Stevie Rae, ainda ao norte, com Rephaim ao lado dela. – Vocês estão prontos?
Rephaim assentiu nervosamente.
– O máximo que dá pra estar – Stevie Rae disse.
– Nós vamos ter que oferecer um pagamento para o espírito – eu expliquei. – Tenho uma ideia, mas vocês dois precisam concordar com isso. Vou precisar de um pouco de sangue de cada um de vocês.
Stevie Rae e Rephaim se olharam.
– Belezinha, Z. A gente está de boa com isso – Stevie Rae concordou.
– Obrigada – eu falei com sinceridade antes de enfiar a mão na minha mochila de novo e pegar o athame12 afiado. Cercada pela fumaça magicamente purificadora da sálvia e pelo apoio do meu círculo, eu fiz o chamado. – Oak, espírito ancestral de Magia Antiga, com o poder do meu sangue e os dons concedidos a mim pela Deusa Nyx, eu a invoco para o nosso círculo. Oak, por favor, apareça!
E então prendi a respiração.
Ela não me fez esperar muito. Em segundos, o centro da árvore recém-purificada começou a brilhar e, com o som de um suspiro, Oak emergiu do tronco quebrado.
O espírito não veio até mim. Ela não deu atenção a nenhum dos meus amigos ou eu. Primeiro, ela se virou para a árvore. Ela colocou as suas mãos delicadas sobre ela e, devagar, de modo íntimo, inclinou-se para a frente até encostar a testa nela. Pude ouvir que ela estava falando, mas não consegui compreender a sua língua. Quando ela finalmente terminou, deu um beijo suavemente na casca nodosa, com doçura, antes de finalmente se virar e voar até mim.
– Garota Redbird, fico feliz que você concluiu o seu pagamento. – Os seus belos olhos escuros e amendoados se voltaram para o nosso círculo intacto, abarcando cada um dos vampiros dentro dele. – A força do seu círculo me agrada. Ele emana sentimentos de amor, alegria, amizade e sacrifício. Eu aprovo.
– Obrigada. E agradeço por responder ao meu chamado.
Ela abaixou levemente a cabeça em reconhecimento.
– Acho que começo a apreciar esse despertar incomum. Entre você e o Garoto Redbird, os dias e as noites têm ficado mais interessantes. O que deseja de mim agora?
Eu não hesitei.
– Quero que você me leve junto com dois amigos para o Outro Mundo, onde vive o meu irmão, aquele que você chama de Garoto Redbird. E quero que você nos traga de volta também. Quando estivermos prontos para partir.
Em um movimento como o de um pássaro, o espírito extraordinário virou a cabeça de lado e me observou. Por momentos longos e desconfortáveis demais, ela não disse nada. Quando ela finalmente se pronunciou, senti como se eu estivesse esperando a hora de descongelar.
– Posso fazer o que me pede, mas o pagamento vai ser grande.
– Que tal o sangue de três espécies de seres diferentes?
Ela ergueu suas sobrancelhas de musgo na direção da raiz dos seus cabelos de hera.
– Que tipo de seres?
– Um deles sou eu, uma vampira azul e Grande Sacerdotisa que tem afinidade com todos os cinco elementos. O segundo é Stevie Rae, uma vampira vermelha e Grande Sacerdotisa cuja afinidade é também a sua: a terra. E o terceiro é Rephaim, companheiro de Stevie Rae, um ser que...
– Foi criado por Magia Antiga – ela terminou por mim, girando a cabeça feito uma coruja para examinar Rephaim e Stevie Rae. – Vocês dois fazem essa oferenda livremente?
– Sim, senhora, eu faço – Stevie Rae respondeu.
– Sim. Dou a minha palavra – Rephaim disse.
O olhar de Oak se voltou para mim.
– Esse pagamento é interessante. Ele vai levá-los até o Outro Mundo. Mas não vai trazê-los de volta.
“Para isso um novo pagamento precisa existir
E qual vai ser nós vamos decidir
Nós vamos definir...”
Senti um aperto no estômago, apesar de o ritmo musical na sua voz indicar que ela faria um acordo comigo. Só que isso era exatamente o que os velhos livros alertavam. Eu precisava acertar ambos os pagamentos ou Stevie Rae, Rephaim e eu poderíamos ficar em uma grande meleca quando tentássemos voltar para casa.
– Vamos acertar o pagamento da volta agora. As coisas vão ficar mais fáceis assim. Quer dizer, e se a gente precisar voltar com muita pressa? – eu disse.
“Isso é problema seu, não me trate como passatempo
Aceite minhas regras ou pare de desperdiçar o meu tempo.”
– Isso não é nada bom – Aphrodite falou. Ela estava ao lado de Damien durante o ritual, e Oak se virou para o leste e concentrou o seu olhar na minha amiga. – O pagamento não deve ser deixado indeterminado. Isso é pedir encrenca.
“A Profetisa fala a verdade
Apesar da sua pouca idade.”
Oak fez uma pausa, farejando o ar como um cão de caça.
“O aroma do seu sangue é único de perceber.
Prometa o seu sangue como a cobrança,
e a volta dos seus amigos pode não ser
assim tão sem esperança.”
– Está bem!
– Não!
Aphrodite e eu falamos ao mesmo tempo. O olhar de Oak encontrou o meu de novo.
“O pagamento de sangue de uma Profetisa poderosa é uma solução
A menos que desejem ficar no Outro Mundo sem salvação.”
– Eles não vão ficar por lá. Eu prometo o meu sangue como pagamento para que você os traga de volta – Aphrodite falou rápido para que eu não conseguisse interrompê-la. – Mas eu não irei para o outro lado. Então, como vou saber quando devo pagar a você?
“Profetisa poderosa, não há nada que você precise fazer
Quando o pagamento for requerido, eu vou lhe dizer.”
– Aphrodite, eu não estou gostando disso – eu disse. – Não faça essa promessa. Stevie Rae, Rephaim, Kevin e eu vamos pensar em um pagamento que Oak aceite.
“Vai arriscar a sua vida nisso?
Parece algo tolo e omisso.”
– Tolo ou não, é a minha escolha.
– Na verdade, não. É o meu sangue. Meu corpo. Minha escolha – Aphrodite insistiu. – Oak, eu dou a minha palavra. Quando for a hora de Zoey, Rephaim e Stevie Rae voltarem, eu vou pagar o preço de sangue por eles.
“Eu aceito o seu preço excitante
Um pagamento de uma promessa, forte e brilhante
Eu fecho este acordo com vocês, perseverante.”
O olhar de Oak capturou cada um de nós quatro enquanto ela terminava a ligação.
“E tenho dito – que assim seja.”
O meu estômago estava tão revirado que tive vontade de vomitar. Aquilo parecia errado – perigosamente errado, mas já estava feito.
Olhei para Aphrodite. Ela estava firme, forte e orgulhosa, mas pude ver o medo nos olhos dela. Então prometi a mim mesma que faria tudo que estava ao meu alcance para que ela não se arrependesse de dar o seu sangue para nos levar de volta para casa.
– Obrigada, minha amiga – eu disse a ela. – Eu te amo.
Os lábios de Aphrodite se mexeram, mas ela não riu com sarcasmo. Em vez disso, ela colocou o punho sobre o coração e se curvou respeitosamente para mim.
– De nada, Grande sacerdotisa. Eu também te amo.
Piscando para limpar as lágrimas da minha visão, eu me virei para Oak.
– Você pode nos levar para qualquer lugar naquele mundo?
– A Rainha Sgiach não gosta de intrusos na sua ilha, e com razão. Então vocês não teriam uma recepção agradável por lá – Oak disse.
– Ah, não. Eu não preciso ir para Skye. Quero ir para um lugar mais perto daqui. É uma fazenda de lavandas, e a proprietária é...
– Oh, eu conheço esse lugar do qual você fala. A mulher que cuida da terra é deliciosa – Oak sorriu, mostrando muitos dentes brancos e afiados demais.
Eu sorri de qualquer jeito, sem me intimidar.
– Deliciosa – eu repeti. Olhei para Aphrodite. – Diga adeus a ela por mim, ok? Fale para ela não se preocupar – fiz uma pausa e continuei –, e conte a ela que o espírito a chamou de deliciosa. Ela vai adorar ouvir isso.
– Talvez ela se preocupe menos quando souber que você foi até ela primeiro – Aphrodite disse.
– “Talvez ela se preocupe” é melhor do que “com certeza ela vai se preocupar”. Cuide-se. Você é a Grande Sacerdotisa até eu voltar.
Eu vi a surpresa nos olhos de Aphrodite antes de ela abaixar a cabeça e colocar o punho sobre o coração outra vez.
– Vai ser como diz, Grande Sacerdotisa – ela falou solenemente.
Os meus olhos capturaram um movimento no círculo, e vi que cada um dos meus amigos havia imitado Aphrodite. Estavam todos se curvando para mim, com o punho sobre o coração.
– Obrigada – eu agradeci a eles. – Eu volto logo. – O meu olhar encontrou Damien. – Diga a Stark que eu o amo.
– Pode contar comigo, Grande Sacerdotisa.
– Stevie Rae, não apague a sua vela. Aphrodite, feche o círculo depois que nós partirmos.
– Vou fechar.
– Estamos prontos – eu disse para Oak.
– Então deem as mãos, vocês três, e me sigam!
Stevie Rae colocou a sua vela verde no chão. Ela estendeu uma mão para mim – a outra já estava entrelaçada à de Rephaim. Eu a peguei e, quando nos viramos para seguir com o espírito em direção à arvore, que havia começado a brilhar, um grito ecoou atrás de mim.
– Zoey Redbird! Tome cuidado. Fique firme. E volte para mim!
Virei rapidamente a cabeça por sobre o meu ombro e vi Stark. Ele estava parado do lado de fora do círculo incandescente. Os nossos olhos se encontraram.
– Eu te amo, meu Guerreiro, meu Guardião. Sempre vou te amar.
– E eu te amo, minha Rainha, minha Grande sacerdotisa, meu coração. Lembre-se, nós estamos ligados por sangue e por amor... sempre o amor.
Então o brilho se expandiu e eu segui o puxão na minha mão. Entrei pelo meio da abertura resplandecente e o mundo ao meu redor explodiu em luz.
12 Adaga cerimonial. (N.T.)
23
Outro Kevin
– Que tal isto aqui? – Kevin abriu a porta do motorista do Hummer e ergueu quatro sacolas grandes cheias de roupas embrulhadas em papel de seda.
Aphrodite deu uma olhada para as sacolas.
– Nada mal para um iniciante. Entre.
Kevin jogou as sacolas no banco traseiro e sentou atrás da direção.
– Para onde vamos agora?
– Para casa. – Aphrodite fez uma cena segurando o nariz quando ele entrou no veículo.
– Casa?
– A nossa casa, a Morada da Noite. Afe. Prometa que esse cheiro sai com água.
– Sim, eu prometo. Quer ver a gosma de sangue morto que eu tenho que passar em mim para ficar com esse cheiro?
– Não faço nenhuma questão.
– Então, vou te deixar lá?
– Não. Você vem comigo.
– Para onde?
– Ah, que merda... para casa.
– Mas e os túneis?
– Você quer ir para os túneis?
– Não. De jeito nenhum. Eles são péssimos. – Ele deu a partida no Hummer. – Mas o que mais eu posso fazer?
– Bom, eu andei pensando sobre isso. O seu general já era, certo?
– Sim, já disse. Ele morreu no mundo de Zoey.
– E também todo o seu esquadrão, grupo, batalhão... ou qualquer que seja o nome, certo?
– Quase certo. Três ainda estão vivos, mas eles ficaram no mundo de Zo.
– Então, você não está ligado a nenhum general, exceto Stark.
– Acho que dá pra dizer que sim.
– E ele designou você para ser meu protetor.
– Acho que dá pra dizer isso também.
– Ótimo. Então agora você pode se considerar o meu soldado pessoal.
– O que significa isso exatamente? – ele perguntou.
– Bom, pra começar, significa que você não vai voltar para os túneis e que precisa se vestir melhor. Você acha que lavanda iria ajudar a encobrir esse fedor horroroso? – ela questionou.
– Não sei. Provavelmente ajudaria, e eu posso espalhar menos gosma de sangue em mim pra ficar melhor. Você está dizendo que eu vou ficar na Morada da Noite?
– Estou.
– Espere aí, eu não vou ter que viver nos túneis?
– Não enquanto você for o meu soldado pessoal.
Kevin sentiu que o seu coração ia explodir de gratidão.
– Aphrodite, obrigado! Muito obrigado!
Ela fez um gesto dispensando o agradecimento dele.
– O que eu posso dizer? Adoro conceder favores aos pobres. Além disso, eu quero saber mais sobre esse mundo diferente e sobre a sua irmã, e não posso fazer isso se você estiver enfiado no meio de uma horda de monstros fedorentos. – Eles haviam terminado o curto trajeto da Utica Square até a Morada da Noite, e Aphrodite apontou para uma vaga de estacionamento na frente, bem-iluminada. – Pare ali.
– Ok, mas sem chance de a gente conseguir entrar escondido no campus se estacionarmos aqui.
– Nós não vamos entrar escondidos – ela afirmou.
– Mas todo mundo vai saber que eu estou aqui.
– Todo mundo definitivamente vai saber, e eles vão se acostumar a ver você por perto. Isso vai ajudar você e a Resistência, não?
– Sim! Com certeza.
– Ótimo. Talvez isso ajude também a compensar um pouco do mal que eu fiz contando as minhas visões para Neferet.
– É um começo, certamente – Kevin disse. Ele estacionou e olhou para ela. – E agora?
– Agora vem a parte fácil. Eu vou cuidar de tudo. Você só precisa me seguir. Literalmente. Ande atrás de mim e preste atenção em ficar vários passos para trás. Pareça subserviente e não muito inteligente. E quando a gente for parado, e eu garanto que vamos ser, eu explico. Você nem levanta os olhos. Finja que é um vampiro vermelho sem noção, mas não selvagem demais. Você consegue fazer isso?
– Eu tenho feito isso há quase um ano – ele disse.
– Então você já tem bastante prática. – Aphrodite ficou sentada olhando para ele e, como ele apenas a encarou de volta, ela revirou os olhos. – Kev, você deveria estar pegando todas as “minhas” sacolas. – Ela fez aspas com os dedos. – E depois abrir a porta para mim. Lembre-se, você é o meu soldado pessoal. Eu nunca devo tocar em uma porta, carregar qualquer coisa, abrir uma garrafa de champanhe e blá-blá-blá quando você estiver por perto.
– Ah, desculpe. Ok, entendi! – Ele saiu do Hummer e pegou as quatro sacolas, balançando-as desajeitadamente enquanto dava a volta no carro rapidamente para abrir a porta para ela.
Ela colocou suas pernas longas para fora e então franziu o cenho para as suas botas Jimmy Choo na altura do joelho.
– Merda! Esqueci que tinha quebrado o salto. Bom, vou usar isso para ajudar na minha atuação. Aqui. – Ela o surpreendeu ao estender a mão, que ele pegou, ajudando-a a descer do Hummer. Então ela limpou a mão no seu jeans skinny. – Você vai ter que melhorar muito na sua higiene pessoal.
– Na verdade, eu sou um cara limpo e arrumado. Eu tinha que fingir que não me importava com a lama, sujeira, sangue seco e outras coisas nojentas quando eu morava nos túneis.
– Você não mora mais nos túneis. É bom tomar um banho – ela resmungou ao começar a mancar na direção da calçada curva que atravessava o pequeno pátio lateral, onde a água de uma fonte jorrava musicalmente, onde finalmente se abria para o jardim principal da escola.
– Pode deixar – ele disse, apressando o passo para alcançá-la.
Ela deu um olhar irritado para ele.
– Você deve ficar atrás de mim, parecendo subserviente.
– Ah, certo. Esqueci. Não vai acontecer de novo, Profetisa. – Ele fez várias reverências e se afastou para trás.
– Isso foi bom. Pode continuar com essa coisa de se curvar.
– Você quer que eu a chame de Senhora ou Profetisa está bom?
– Não seja ridículo. Profetisa está bom. Senhora parece velha demais. Agora cale a boca e pareça patético.
Com Kevin a seguindo, Aphrodite atravessou o pátio mancando e entrou nos jardins da escola. Acabara de passar a hora do jantar. Os novatos estavam espalhados pelo terreno da escola. Os lampiões a gás de cobre estilo art déco projetavam sombras dançantes pelas calçadas largas e pelo gramado do inverno. Gatos corriam por ali, alguns caçando ratos, outros seguindo os seus novatos ou vampiros escolhidos. Estudantes acendiam velas aos pés da estátua de Nyx e rezavam para a Deusa. Um grupo de novatas estava tendo uma aula de esgrima com um vampiro que Kevin não reconheceu.
Tudo parecia normal, mas a diferença entre essa Morada da Noite altamente controlada e segregada e a escola de Zoey era gritante. Todo mundo aqui parecia subjugado, preocupado, assustado ou desesperado, e Kevin sentiu uma pontada no coração de saudade de um lugar que ele mal conheceu, mas que parecia tão perfeito.
Aphrodite virou à direita, indo na direção do grupo de edifícios parecidos com castelos que compunham os aposentos dos professores. Ela seguiu a curva suave da calçada, aproximando-se de duas novatas que haviam estendido tapetes de yoga no gramado e estavam no meio de uma graciosa sequência de exercícios.
Quando Aphrodite chegou mais perto das novatas, elas viraram a cabeça na direção dela. Ambas reconheceram Aphrodite – isso ficou bem claro – e juntaram as suas cabeças enquanto a encaravam.
Então elas viram Kevin e os seus olhos se arregalaram. Uma delas era uma garota negra incrivelmente linda que ele reconheceu na hora como Shaunee, e a outra era uma loira sexy que estava usando uma legging nude e um top minúsculo vermelho brilhante – ambos não deixavam nada para a imaginação. Caramba! Essa deve ser Erin, a novata de quem a Zoey me falou. A água para o fogo de Shaunee! As duas ficaram olhando fixamente para ele enquanto Aphrodite passava por elas, sussurrando e dando risadinhas. Quando Kevin se aproximou mais, ouviu claramente o que elas estavam dizendo – o que significava que Aphrodite também ouviu.
– Ei, Gêmea, olhe só – Erin falou.
– O que foi, Gêmea?
– O novo amante de Aphrodite! – a loira concluiu, apontando para Kevin. Então as duas caíram na gargalhada, maldosas.
Aphrodite parou. Ela se virou, mal olhando para Kevin quando passou mancando por ele.
– Só um minuto.
Kevin quis gritar para ela “Não! Não as mate com a sua visão de laser! Eu posso precisar delas depois para um círculo!”, mas ele teve que ficar de boca fechada. Ele tinha que fazer o seu papel, então abaixou a cabeça e discretamente assistiu enquanto Aphrodite caminhou direto até as duas novatas, que automaticamente deram alguns passos desajeitados para trás.
– Falem isso na minha cara e não para as minhas costas maravilhosas – a voz da Profetisa estava gélida.
– Ei, a gente não quis dizer nada – Shaunee disse.
– É, a gente só estava brincando – Erin falou.
– Vocês são as duas que se chamam de Gêmeas, não são? – Aphrodite questionou.
– Sim – elas responderam juntas.
– Eu vou chamá-las de Sócias de Cérebro. E, já que vocês compartilham só um pequeno cérebro entre vocês, vou deixar essa história pra lá. Mas, da próxima vez que vocês insultarem a mim ou ao meu soldado pessoal e servo, vou oferecer vocês duas para fazerem o serviço de jantar nos túneis.
– Serviço de jantar? – Erin perguntou.
– O que significa isso? – Shaunee completou.
Aphrodite deu um passo para a frente, entrando no espaço pessoal delas.
– Significa que vocês vão dar um tempo para os alimentadores humanos e oferecer o seu próprio sangue para os oficiais vermelhos. Em pessoa. Sangue dos seus lindos pescocinhos. Se bem que eu ouvi dizer que a veia que passa na coxa também é um lugar muito escolhido para alimentação. – As duas novatas pareceram horrorizadas, então Aphrodite fez um gesto para aliviar a preocupação delas. – Ah, não sejam tão dramáticas. Eles não vão ter permissão para drenar vocês completamente. Só quase completamente.
– Ne-neferet não deixaria isso acontecer! – Erin gaguejou.
– Quer apostar o seu sangue nisso, Coisa Um?
Erin rapidamente balançou a cabeça.
– E você, Coisa Dois?
– Não, obrigada.
– “Não, obrigada, Profetisa”, é o que vocês, Sócias de Cérebro, devem dizer.
– Não, obrigada, Profetisa – elas repetiram juntas, nervosas.
– Melhor. Bem melhor. Agora, acho bom vocês nunca mais falarem comigo de novo.
– Ei, a gente não quis dizer nada. Mesmo – Shaunee disse.
– Papo furado – Aphrodite rebateu. – Menininhas covardes como vocês sempre dão sorrisinhos falsos e falam que não queriam dizer nada com isso quando são pegas sendo escrotas. Cresçam. Vocês não estão mais no ensino médio. Isto aqui é vida real, não a internet, onde você pode dizer merdas estúpidas e odiosas sem nenhuma consequência. E, que merda, façam um favor ao mundo e saiam logo do armário como lésbicas, já estão grandes pra palhaçada.
Erin enrubesceu e Shaunee ficou de queixo caído, em choque.
– Hum. Deixa pra lá. Parece que só uma de vocês cola com isso. Ou, quer dizer, só uma de vocês cola alguma coisa. – Aphrodite riu alegremente, atirando o longo cabelo para trás, e se virou para sair andando, mesmo com um salto quebrado. Quando passou por Kevin, falou alto o bastante para as Gêmeas escutarem. – Venha, Fedido. Termine de arrastar minhas coisas pra cima. E depois você precisa ir correndo buscar mais champanhe pra mim. Tragicamente, acho que estou sem, e lidar com as Sócias de Cérebro me deixou com sede.
– Sim, Profetisa. Claro, Profetisa! – Kevin abaixou a cabeça e esperou que ela ficasse alguns metros à frente dele antes de começar a andar de novo, pensando “Parece que vou ter que encontrar outro fogo e água... Ah, que inferno...”.
E, enquanto ele a seguia para dentro do prédio dos professores, ouviu um grasnido acima da sua cabeça e levantou os olhos a tempo de ver um corvo gigante voando em círculos. Ele abriu a pesada porta de madeira e fez uma pausa. Como esperado, o corvo aterrissou na calçada, inclinando a cabeça de lado ao olhar para ele.
– Garoto Redbird! – ele grasnou.
– Venha cá! Rápido! – Kevin gesticulou para o pássaro, que deu alguns pulinhos e entrou no pequeno saguão com ele.
– Kevin, por que diabos você está demorando tanto? – Aphrodite gritou lá do alto da escada caracol.
– Desculpe, chego aí em um instante! – Ele abriu o tubo do corvo e pegou o pequeno lápis e o papel, rabiscando apressadamente: ESTOU COM APHRODITE NA MORADA DA NOITE. FICAREI AQUI DURANTE O DIA. MAIS INFORMAÇÕES EM BREVE. Então ele enfiou o papel e o lápis de volta no tubo e abriu a porta para o corvo, que decolou rumo ao céu.
– Quer que eu vá buscar o champanhe pra você agora? – Kevin estava parado desconfortavelmente ao lado da porta fechada dos aposentos suntuosos de Aphrodite.
– Claro que não. Eu tenho um monte de champanhe. Não sou uma caipira. – Ela indicou com a cabeça a pequena cozinha ao lado da sala de estar requintada, decorada com um sofá de veludo cor de ametista e um par de poltronas bordadas com fio prateado representando uma lua tríplice. – Bom. Não fique aí parado. Entre no chuveiro e tire esse fedor nojento. Vista o pijama novo. Depois disso a gente conversa.
– Mas. Hum. Vai amanhecer em... – ele fez uma pausa, conectando-se ao seu relógio interno. – Menos de duas horas. Eu preciso ir para algum lugar seguro para dormir.
Ela deu um suspiro.
– Eu disse que você é meu soldado agora. Você vai ficar aqui.
– Aqui, aqui? – Como se os seus olhos tivessem vida própria, eles se voltaram para a enorme cama de dossel claramente visível através das portas de vidro abertas.
– Sério? Você acha que vai dormir na minha cama? – Aphrodite revirou os olhos.
– Não! De jeito nenhum. Jamais suporia isso. Mas onde eu vou dormir?
– Eu tenho um closet super luxuoso. Não tem nenhuma janela lá dentro. Ou você pode dormir na minha banheira. Pode escolher qual você prefere.
– Que tal o sofá?
– Tem janelas aqui.
O olhar dele se voltou para elas.
– Essas cortinas de veludo roxo não são blackout?
Ela suspirou.
– Está bem. Ok. Você pode dormir no sofá se você realmente não estiver fedido e se não roncar. Não suporto gente que ronca.
– Prometo que eu não estarei fedido e acho que não ronco, mas eu nunca dormi com ninguém, então não tenho como prometer isso.
Os olhos azuis cor de safira de Aphrodite encontraram os dele.
– Então você é virgem.
As bochechas de Kevin arderam de calor.
– Bom, sim. Sou.
– Hum. Interessante. Entre no chuveiro.
Ela o empurrou na direção de uma porta fechada, através da qual ele felizmente escapou e se viu em um banheiro de mármore tão branco e limpo que não queria tocar em nada.
– Você quer algo para comer? Eu vou ligar para a cozinha – Aphrodite gritou do outro lado da porta.
– Hum, sim. Eu comeria qualquer coisa. E, ahn, você poderia pedir uma garrafa de...
– Sangue. Já imaginava. Ah, e coloque essas roupas horríveis que você está usando em um saco de lavanderia embaixo da pia. Feche bem e lembre de jogar isso fora amanhã. Nojento.
– Sim, ok. Sem problemas. – Kevin não sabia mais o que dizer, então tirou a roupa. Em seguida, encontrou facilmente um saco vazio e puxou a cordinha dele com força para fechar bem.
Então ele entrou no paraíso.
O chuveiro dela ficava dentro de um box de vidro circular e era daquele tipo panelão gigante e redondo que fazia Kevin se sentir como se estivesse debaixo de uma tempestade fantástica. Também havia duchas que saíam das paredes e, quando ele apertou um botão, fluxos de água quente jorraram sobre ele, atingindo todo o seu corpo. Aphrodite, claro, tinha um sabonete com textura de seda e cheiro de amêndoas e mel.
Kevin queria ficar lá por horas, mas quase podia sentir a impaciência de Aphrodite, então se esforçou para se apressar, ensaboando-se várias vezes, até que o último rastro de gosma de sangue fedorenta tivesse saído da sua pele.
Ele se enxugou com uma toalha violeta tão grande e felpuda que podia usá-la como cobertor. Então ele vestiu sua calça de moletom nova e uma camiseta e colocou a cabeça úmida para fora da porta de modo hesitante.
Na mesa de vidro na frente do sofá, Aphrodite havia colocado uma bandeja cheia que continha um sanduíche grande, batata chips e um copo alto de sangue quente e vermelho que deixou sua boca salivando.
– Pode vir. Estou sozinha. Nunca deixo nenhum dos serviçais entrar aqui enquanto estou no quarto. Eles limpam e fazem suas coisas só quando estou fora. E eu faço com que eles deixem as minhas entregas de comida do lado de fora da porta em uma mesinha de serviço de prata. – Ela encolheu os ombros. – Sim, eu sei. Eu gosto da opulência. Não estou me desculpando por isso.
Usando meias, Kevin andou suavemente até a sala de estar e encontrou Aphrodite com uma legging confortável e uma camiseta branca com a frase FEMINISTA SELVAGEM resplandecendo sobre o seu peito. Ela estava encolhida em uma das poltronas bordadas de veludo, bebendo champanhe e beliscando uma torradinha com pequenas bolinhas pretas em cima.
Ele farejou o ar na direção dela.
– Isso tem cheiro de peixe. O que é?
Ela deu um olhar resignado para ele.
– Caviar, seu plebeu. A sua criação deixa muito a desejar.
– Concordo. – Kevin sentou e bebeu todo o sangue de uma vez. Ele abaixou o copo e viu Aphrodite o encarando. – Eu estava com sede – ele disse pateticamente.
– Diga a verdade. Você está com a sua fome sob controle?
– Completamente. Não tem diferença entre a minha fome agora e a necessidade de um vampiro azul. Eu só estava realmente com sede porque fui ferido umas noites atrás e ainda estou me recuperando.
Isso sem mencionar que o meu nível de estresse foi além do esperado, ele pensou.
– Você me dá a sua palavra?
– Sim, Profetisa. Dou a minha palavra de que a minha humanidade voltou completamente e que a minha fome está sob controle.
Ela o analisou por vários minutos antes de voltar para o seu caviar e champanhe.
– Você precisa de mais sangue?
– Não, mas eu realmente preciso desta comida. Obrigado.
– Sem problemas. Apesar de que eu deixei o pessoal da cozinha bastante confuso. Não costumo comer muitos sanduíches.
– Você não parece comer muito de nada – Kevin disse ao dar uma grande mordida.
Ela franziu o cenho.
– Estou comendo agora.
Ele bufou.
– Preocupe-se só com você. Eu estou bem. Estou sempre bem – ela falou.
– Não acredito em você – ele murmurou.
– Eu escutei isso. Ok, em primeiro lugar, estou feliz que você não está mais fedendo.
– Eu também. Odeio o cheiro daquela coisa. E o seu chuveiro é incrível.
– Sim, eu sei. Segundo, quero que você me conte o que aconteceu com a Aphrodite daquele mundo da sua irmã quando ela sacrificou parte de sua humanidade para salvar os novatos vermelhos de lá. Eu sei que ela não morreu, mas o que aconteceu com ela, exatamente?
A pergunta o surpreendeu, mas, depois de um instante de reflexão, Kevin percebeu que não deveria ter se sentido assim. Ele também tinha ficado curioso sobre o que a outra versão dele fazia no mundo de Zo, e aquela versão dele não era uma Profetisa nem uma ferramenta de Nyx. Então, em meio a mordidas no sanduíche, ele contou para Aphrodite o que Zoey tinha explicado para ele, concluindo assim:
– Quando Stevie Rae e o resto dos vampiros vermelhos de lá recuperaram a sua humanidade, você perdeu a sua Marca, mas não o seu dom profético. Até os vampiros e novatos vermelhos daqui serem atraídos para lá junto comigo, acho que ninguém sabia exatamente o que você era.
Aphrodite pareceu perplexa.
– Mas por quê? Por que eu iria me sacrificar espontaneamente assim? Eu poderia ter morrido ou perdido tudo... todos os meus dons. Não faz sentido nenhum. A minha versão de lá é uma idiota.
– Aquela idiota salvou uma raça inteira de vampiros.
– Por quê?
– Por amor, claro. A outra você é cercada de pessoas que ela ama. Ela até age como uma malvada insensível às vezes, mas apenas parte disso é verdade, o que é legal porque acontece que eu gosto de meninas malvadas.
Ela revirou os olhos.
– E você disse que lá eu sou uma vampira estranha híbrida azul e vermelha, além de uma Profetisa?
– Sim.
– Como isso aconteceu?
– Não sei ao certo. Tinha muita coisa rolando por lá e eu não tive muito tempo para fazer perguntas. O que eu sei é que Nyx concedeu a você a capacidade de dar às pessoas, sejam humanos ou vampiros, uma segunda chance depois de eles terem feito tudo errado, tipo, feito tudo tragicamente errado de verdade.
Aphrodite bufou.
– Isso provavelmente porque eu entendo muito sobre como fazer tudo tragicamente errado.
Ele sorriu.
– Pode ser. A Marca daquela Aphrodite é igual à sua, só que maior, e metade dela é vermelha. Nyx disse que, a cada vez que você usar o seu dom e der uma segunda chance a alguém, parte da sua Marca vai desaparecer até que ela suma totalmente, e então você vai ser humana e viver o tempo de vida normal dos humanos.
– Isso parece bizarro. Não sei se eu ia gostar disso.
– Tenho certeza de que a Aphrodite de lá se sentiu assim também quando isso aconteceu, mas depois de ver a diferença que ela fez em mim, no Outro Jack e nos outros vampiros... tenho cem por cento de certeza de que ela decidiu que estava grata por esse dom.
– Então aquela Aphrodite é boa. De verdade – ela disse.
– Sim, completamente – ele concordou.
– Você parece bem apaixonado por aquela Aphrodite.
Kevin encontrou o olhar dela.
– Eu diria que Aphrodite é espetacular... em qualquer mundo.
Aphrodite bufou e então ficou em silêncio por um tempo, bebendo champanhe e beliscando caviar com torradas. Kevin terminou o seu sanduíche e estava devorando a montanha de batatas quando ela falou de novo.
– Deve ser muito diferente por lá. – Ela tinha acendido a lareira e estava olhando para o fogo como se pudesse enxergar aquele outro mundo dentro das labaredas.
– É sim. E também não é. Aquele mundo parece diferente porque é muito menos assustador. Neferet foi derrotada. Zo e os seus amigos comandam o Novo Conselho Supremo dos Vampiros da América do Norte, o que significa que eles são responsáveis pelas Moradas da Noite nos Estados Unidos e que eles iniciaram esses programas incríveis onde humanos podem ter aulas junto com novatos.
Ela olhou para Kevin como se ele estivesse completamente louco.
– Adolescentes humanos. Na Morada da Noite de Tulsa. Tendo aulas. – Ela sacudiu a cabeça. – É difícil imaginar.
– Não está acontecendo só em Tulsa. Humanos e vampiros estão estudando juntos em um monte de escolas. É bem legal.
Aphrodite voltou a ficar em silêncio. Kevin já ia pedir um travesseiro e um cobertor quando ela falou de novo.
– Nós estamos todos tão isolados aqui, mas o mundo da sua irmã não parece nem um pouco solitário.
– Não é assim mesmo, mas nem todos nós estamos isolados desse lado também. Dragon, Anastasia, minha avó não estão. Na verdade, nenhum dos combatentes da Resistência está. Eles são amigos, mas mais do que isso.
– Gente de coração mole – ela disse.
– Amigos com uma causa – ele a corrigiu. Então ele encontrou o olhar dela de novo. – Você não precisa ficar sozinha. Nem mesmo aqui. Você não está sozinha no mundo de Zo.
– Este aqui não é o mundo da sua irmã.
– Não, não é. É o meu mundo. E eu vou mudar as coisas.
– Você?
– Eu.
– Sozinho?
– Bom, não. – Ele sorriu. – Eu não estou sozinho. Você está me ajudando.
– Eu acho que você é um idealista – ela falou.
– Provavelmente.
– Idealistas sempre acabam mortos.
– Às vezes, mas, enquanto vivem, eles vivem de forma grandiosa. Junte-se a mim. Junte-se à Resistência. Você também pode, você meio que já fez isso. Você salvou Dragon e todas aquelas pessoas hoje.
– Mas fui eu quem os colocou em perigo – ela o lembrou.
– Você quis fazer isso? Você queria ser a causa de o Exército Vermelho matá-los?
– Não! Eu odeio toda essa matança. E eu detesto que Neferet me use como uma arma.
– Então me ajude a descobrir um jeito de mudar as coisas para melhor neste mundo.
Em vez de me responder, ela se levantou e desapareceu dentro do quarto, voltando logo depois com o braço cheio de cobertores e um travesseiro macio de penas de ganso, os quais ela largou ao lado dele no sofá.
– Ei, obrigado. Isso é muito gentil da sua parte. Eu vou lavar a louça antes de dormir – Kevin disse.
– Não seja ridículo. Você é meu soldado, não minha camareira. Há um carrinho do lado de fora da porta. Coloque os pratos sujos lá fora. Os serviçais vão cuidar deles. – Então ela hesitou e estendeu a mão por um momento, como se fosse tocar o cabelo dele. – Antes de você dormir, talvez queira secar melhor o cabelo. Durma com o cabelo molhado e ele vai ficar...
– Com lambida de vaca – ele terminou por ela. – Eu sei, eu sei. Zo costumava dizer isso pra mim toda hora.
– Sim, bom, o seu cabelo está perturbadoramente desgrenhado, bagunçado e até meio... – ela perdeu as palavras e sacudiu a cabeça, como se quisesse afastar o seu último pensamento.
Ele não conseguiu evitar. Ele olhou nos olhos maravilhosos dela e disse:
– Você ia dizer meio sexy?
– Já deve estar quase amanhecendo, já que você está delirando.
– Aquela Aphrodite gosta de mim, você sabe – ele sorriu provocativamente.
– Aquela Aphrodite tem problemas. Muitos problemas.
– Mas um ótimo gosto – ele disse. – Ela teria feito o que você fez hoje. Ela iria garantir que Dragon e o resto daquelas pessoas escapasse.
– Boa noite, Kevin. Amanhã vamos pensar em uma solução de quarto mais permanente para você – foi tudo o que ela disse antes de desaparecer dentro do seu quarto.
– Boa noite, Aphrodite – ele falou para a porta fechada.
Kevin colocou os pratos do lado de fora da porta no carrinho que estava ali, apagou a lareira e fez a sua cama no sofá. Então, exausto e se sentindo seguro pela primeira vez neste mundo desde que havia sido Marcado, Kevin dormiu.
– Kevin, anda! Você precisa acordar!
Kevin saiu das profundezas de um belo sonho que o tinha levado de volta ao mundo de Zo, em que estava rindo com ela enquanto segurava a mão de Aphrodite e ela aceitava o pedido dele para ser sua companheira.
– Ahn? O quê? Você aceita? – ele disse, sonolento, procurando a mão de Aphrodite.
Ela de fato deixou que ele pegasse sua mão e então o puxou, fazendo com que ele se sentasse.
– Acorda!
Kevin piscou várias vezes e esfregou a mão no rosto.
– Estou acordado. Mais ou menos. O que foi?
– Tem um pássaro negro enorme dando bicadas na minha janela. Eu ia jogar alguma coisa nele, mas ele disse “Garoto Redbird”. Hum, posso presumir que é você?
– Sim! Ele ainda está lá? Deixe ele entrar! – Kevin tinha tirado a camiseta para dormir, então ele a vestiu apressadamente e correu atrás de Aphrodite na direção do quarto dela.
A mão espalmada de Aphrodite o deteve.
– Fique aí. Minhas cortinas estão totalmente abertas e o sol já está alto.
Kevin só teve um instante para andar de um lado para o outro, e então o grande corvo voou para dentro da sala de estar, aterrissando em cima da mesa de centro de vidro.
– Garoto Redbird!
– Você me encontrou! Bom trabalho. Ok, ok, vou ler isso.
Aphrodite observou o que estava acontecendo por cima do ombro de Kevin.
– O que é aquela coisa em volta do pescoço dele?
– Tem bilhetes dentro. – Kevin puxou o cordão de couro sobre a cabeça do pássaro e abriu o pequeno tubo, tirando o papel lá de dentro.
– Aiminhadeusa! Foi assim que você avisou a Resistência sobre os fardos de feno.
– Sim.
– O que diz o bilhete?
Ele se virou e olhou para ela.
– É Zoey! Ela está aqui!
C O N T I N U A
15
Outra Aphrodite
Aphrodite aumentou o seu nível de arrogância como escudo contra o seu nervosismo. Ela não precisou dizer nada, simplesmente alterou a sua expressão de perversidade de repousada para ativa, e então os soldados, os Guerreiros e até as Sacerdotisas começaram a abrir caminho para ela passar como se tivesse uma doença contagiosa.
Eu tenho uma coisa pior – o desprezo de Neferet. E todos sabem disso.
Aphrodite tinha decidido rapidamente que a sua performance iria se desenrolar melhor no meio do auditório cheio. Então, em vez de ir para o palco para servir como um atraente cenário para qualquer drama que Neferet tinha preparado para os seus subordinados, ou de se juntar às outras Sacerdotisas amontoadas sentadas no local reservado a elas no fundo, no seu jeito típico de cordeirinhos, Aphrodite foi até o centro do auditório, encontrou o assento que ela queria na fileira da frente perto do corredor e fuzilou com os olhos o ocupante da cadeira, que apressadamente se retirou dali.
Ela não agradeceu a ele, apenas se sentou, e então ficou se preocupando. Aphrodite nunca tinha feito nada como aquilo que estava planejando. Ela não iria realmente fazer – não até Stark, aquele babaca arrogante, fazer aquela piadinha sobre ela se juntar ao Exército Vermelho. Então, de verdade, o que ela estava prestes a fazer não era exatamente culpa dela. Era culpa de Neferet. E, provavelmente, de Stark também. Mas definitivamente, definitivamente, não era culpa de Aphrodite.
Ela nunca teve a intenção de contar o resto da sua visão para Neferet. Aphrodite não tinha contado todos os detalhes de nenhuma de suas visões para Neferet desde que o Exército Vermelho havia massacrado Lenobia e Travis, e também os cavalos. Aphrodite odiava pensar nos cavalos morrendo. Ouvir os seus gritos em seus pesadelos já era ruim o bastante.
Culpa minha. Aquilo foi culpa minha. Eu deveria saber! Ela juntou as mãos com força sobre o colo e se empertigou na cadeira. Qualquer um que olhasse para ela – e um monte de gente estava sempre olhando para ela – veria apenas a linda, jovem e indiferente Profetisa parecendo confiante e calma. Ninguém veria suas mãos tremendo. Ninguém veria sua alma estremecendo. Ninguém veria as suas dúvidas e medos. Essa era uma coisa positiva que a louca da sua mãe tinha ensinado a ela – mostrar apenas um rosto em público, e esse rosto deveria ser perfeito e estar sob controle o tempo todo, independentemente de ela realmente estar se sentindo perfeita ou sob controle.
Aphrodite ficou sentada imóvel, respirando devagar e em um ritmo estável, enquanto se preparava para o que estava por vir, mas, em meio à sua respiração lenta, ela sentiu uma brisa de morte e podridão. Incomodada com aquele cheiro nojento, ela levantou o pescoço e olhou em volta, farejando discretamente, e, é claro, sentado duas fileiras atrás dela, em um assento do corredor como o dela, estava aquele jovem vampiro vermelho que Stark estava pajeando. Aphrodite lançou um olhar de irritação para o Cara do Arco. Vampiros vermelhos não tinham permissão para ficar nos assentos da frente do auditório para não empestear o ambiente. Somente oficiais do Exército Vermelho podiam comparecer às reuniões de briefing, e mesmo assim eles tinham que ficar no mezanino. No entanto, ali estava Stark, todo cheio de si com seu uniforme preto de general, quebrando as regras. De novo. E deixando um garoto vampiro vermelho fedido sentar bem ali do lado dele.
Aphrodite jurou a si mesma que, quando ela caísse nas graças de Neferet de novo, ia fazer tudo que podia para minar a influência de Stark sobre a Grande Sacerdotisa. Não porque ele era particularmente perigoso, mas sim porque ele era particularmente irritante.
– Atenção! Sen...tido! – comandou Artus, o Mestre da Espada da Morada da Noite de Tulsa.
Assim que todos se levantaram, Aphrodite desviou os olhos de Artus. O Mestre da Espada de Neferet não era apenas feio, velho e cheio de cicatrizes. Havia algo de podre em relação a ele – algo que deixava Aphrodite desconfortável em um nível visceral.
E então Neferet subiu ao palco, atraindo a atenção de todos no auditório lotado. Ela estava usando um vestido de seda longo e aderente da cor de sangue fresco. Sobre o seu seio esquerdo, em um bordado prateado requintado, estava a imagem de Nyx envolvendo a lua crescente com as mãos. A única joia que ela usava era um diadema de diamantes e rubis. Um dos rubis pendia da delicada coroa como uma lágrima grossa para tocar o topo da lua crescente safira tatuada no meio de sua testa.
Aphrodite precisava reconhecer – Neferet sabia como manter a atenção de um bando de machos. Ela parecia uma deusa do cinema em carne e osso, o que era mais uma prova de uma das maiores decepções da vida de Aphrodite: nem tudo que parecia cheio de beleza e luz do lado de fora era realmente cheio de beleza e luz por dentro.
– Podem se sentar – Neferet disse depois de chegar à sua tribuna de vidro.
Aphrodite sentou e tentou não revirar os olhos. Cada instante do briefing de Neferet havia sido roteirizado por ela – desde o que ela estava vestindo até o tempo em que fez os soldados ficarem em pé, incluindo a tribuna translúcida, que dava à sua audiência uma visão desimpedida do seu corpo perfeito.
Não que Aphrodite pudesse culpá-la por isso. Neferet era bonita e, como outra pessoa muito bela, Aphrodite sabia como era fácil manipular os machos. O jeito é usar o que a gente tem!
Então Neferet começou o seu discurso, e Aphrodite não tinha mais energia para desperdiçar em nada, exceto decidir quando a sua própria performance deveria começar.
– Eu venho diante de vocês hoje com notícias muito perturbadoras. Acredito que a maré da guerra está virando.
Houve sons de concordância alegre entre a multidão de oficiais e soldados presentes.
– Vejo que os meus exércitos me entenderam mal, o que eu acho ofensivo. A maré não está virando a nosso favor! Nenhum dos meus oficiais entende isso? – A sua voz repleta de raiva ecoou pelas paredes, eletrificando o ambiente com uma carga de poder e não deixando nenhuma dúvida sobre o nível de irritação de Neferet. A sua única resposta foi o ruído de corpos ansiosos.
E então um dos seus generais se levantou. Aphrodite abafou uma bufada sarcástica. É claro que Loren Blake ia sentir a necessidade de dizer alguma coisa. Deusa, será que esse vampiro puxa-saco vai parar de falar algum dia?
– Grande Sacerdotisa, permissão para falar?
– É claro, General Blake. Estou sempre disposta a refletir sobre os sábios conselhos de meus oficiais.
O sorriso de Blake era íntimo demais para a ocasião, mas todo mundo sabia que os generais de Neferet também eram frequentemente seus amantes – e praticamente todos os machos na sala desejavam ser amantes dela. Então, tanto fazia.
– Grande Sacerdotisa, você sabe que não quero ser desrespeitoso. Sou seu servo leal, mas talvez os seus oficiais não entendam simplesmente porque o que observamos no campo de batalha é o oposto do que está dizendo. As milícias dos nossos estados vizinhos pararam de atravessar para o nosso território. Não tem havido revoltas importantes de humanos dentro da área sob nosso controle há meses. O único problema real que ainda temos é com a maldita Resistência, e nós estamos trabalhando duro para rastrear cada um dos seus membros e exterminá-los. Na verdade, se a maré virou, parece que foi a nosso favor.
– Pode se sentar, general Blake – Neferet disse com um falso sorriso afetuoso. – O que você diz pode parecer verdadeiro para alguém com a sua limitada conexão com Nyx, razão pela qual a nossa sociedade nunca será governada por homens. Eles não podem ser tão íntimos da Deusa como as suas Sacerdotisas. Principalmente a sua única e exclusiva Grande Sacerdotisa: eu. Sabe, Nyx tem me mostrado outra coisa. Os nossos estados vizinhos e os humanos que os infestam desistiram, de fato, de suas tentativas de entrar no nosso território e tomar o que é nosso. Mas eles não desistiram em paz. Eles estão tramando juntos para nos derrubar! – Neferet abriu os braços dramaticamente, fazendo com que seus seios perfeitos fossem pressionados contra a seda do seu vestido e os mamilos ficassem totalmente delineados e visíveis.
Aphrodite achou que aquela pose foi um toque excelente, já que conseguiu atrair todos os olhares masculinos da sala para os peitos dela. E ainda fez com que todas as mentes masculinas da sala ficassem confusas quando o sangue nos cérebros deles desceu correndo para o órgão que de fato os controlava.
Houve um movimento atrás dela, e Aphrodite virou a cabeça a tempo de ver Stark se levantar.
– Grande Sacerdotisa, posso ter permissão para falar?
– Merry meet, General Stark. Vou ouvir o que você tem a dizer.
– Eu também tenho sentido que algo está errado. Tenho tentado descobrir o que é, e hoje eu recebi informações de uma fonte improvável. Acredito que isso se alinha ao que Nyx tem mostrado a você.
Neferet deu aquele sorriso que Aphrodite gostava de chamar de meio meloso, meio vadia, e a Profetisa segurou outra bufada. Pelo visto, o Cara do Arco ia se dar bem esta noite.
– Eu sabia que podia contar com você, General Stark. Por favor, compartilhe as suas informações conosco.
Então Stark chocou Aphrodite e o auditório inteiro ao gesticular para que o garoto vampiro vermelho fedido que estava largado ao lado dele se levantasse.
O garoto deu um pulo de surpresa e então se levantou desajeitadamente, ficando em posição de sentido totalmente imóvel.
– General Stark, por que um jovem soldado vampiro vermelho está aqui na parte da frente do meu auditório? – A voz de Neferet soava pensativa, e ela pareceu mais curiosa do que incomodada.
– Porque ele é a minha fonte de informações, e ele não é um soldado. Ele é um tenente. Tenente Heffer, da unidade do General Dominick.
Os sussurros dos soldados ao redor fizeram Aphrodite lembrar de velhas mulheres fofoqueiras, e ela se perguntou quem diabos eram esse garoto e esse general e por que eles provocaram tamanha reação da multidão.
– General Dominick? O meu general do Exército Vermelho que está desaparecido? – Neferet perguntou.
Aphrodite piscou os olhos, surpresa. Ela não tinha ouvido falar em nenhum general desaparecido, mas raramente prestava atenção ao que estava rolando com os animais que compunham o nojento Exército Vermelho de Neferet. Eles eram todos um tédio. E fedorentos.
– Sim, Grande Sacerdotisa. O General Dominick desapareceu com um pelotão inteiro de soldados, e eles ainda não foram encontrados. Exceto este tenente, e eu acredito que ele pode saber o que aconteceu com a unidade dele. – Stark assentiu encorajando o tenente, que estava em posição de sentido tão imóvel que Aphrodite praticamente podia ver uma vara enfiada no meio do traseiro dele. – Gostaria de pedir sua permissão para que o Tenente Heffer relate as informações a você.
Os olhos cor de esmeralda de Neferet analisaram o garoto vampiro vermelho que estava parado feito pedra ao lado de Stark.
– Você disse que o nome dele é Tenente Heffer?
– Sim, Grande Sacerdotisa – Stark confirmou.
– Ele parece estranhamente familiar. General Stark, você já usou esse vampiro vermelho como informante antes?
Aphrodite teve vontade de se levantar e dizer que era mentira. Não existia qualquer possibilidade de Neferet distinguir esse vampiro vermelho ou qualquer outro. Aphrodite já tinha ouvido a Grande Sacerdotisa comentar várias vezes como o Exército Vermelho era um mal fétido e nojento, mas necessário – com o qual ela queria ter o mínimo de contato possível. Ela não reconheceria nenhum soldado nem se ele passasse por ela no corredor todos os dias durante um ano todo.
– Não, Grande Sacerdotisa, não usei, mas acredito que você deva ouvir o que ele tem a dizer.
– Hum. A familiaridade é estranha. – Neferet encolheu seus belos ombros. – Muito bem, por que não? O tenente pode falar.
Como o garoto não disse nada, Stark o incentivou.
– Prossiga. Conte à Grande Sacerdotisa aonde o seu general estava indo e o que ele disse antes de ir embora.
Aphrodite viu que o garoto engoliu em seco – uma, duas, três vezes. Quando começou a falar, ele usou frases curtas e entrecortadas em virtude do nervosismo e ficou olhando fixamente para a frente.
E, enquanto ele falava, Aphrodite arregalou os olhos de choque.
– Grande Sacerdotisa Neferet, o meu general tinha informações de que a milícia do estado do Novo México estava em movimento. Ele ouviu dizer que planejavam atravessar o Texas e entrar em Oklahoma usando o Rio Vermelho. O general estava a caminho de Elmer, em Oklahoma, para preparar uma emboscada para eles. Essa é toda a informação que eu tenho, Grande Sacerdotisa. Minha patente não era significante para eu saber do resto.
Aphrodite mal escutou a resposta satisfeita de Neferet. Ela estava ocupada demais encarando o garoto que tinha acabado de falar – o tenente vampiro vermelho cuja voz ela reconheceu como a do mesmo cara que estava no jardim de meditação na noite anterior!
Exceto que aquele garoto tinha conversado normalmente, como um vampiro de verdade, e não como uma máquina de comer vermelha e fedorenta.
E então outra coisa a pegou de surpresa.
Na noite passada, ele não estava fedendo. Eu sei que ele não estava. Sou muito sensível ao jeito que essas coisas fedem e eu teria percebido.
Alguma coisa completamente bizarra estava rolando, o que parecia um momento excelente para Aphrodite começar a sua encenação. Ela olhou de novo para o palco. Neferet ainda estava tagarelando efusivamente sobre Stark ter confirmado a sua estranha neurose. Então, quando Aphrodite se levantou com dificuldade, a Grande Sacerdotisa foi pega totalmente desprevenida e parou de falar no meio da frase.
Aphrodite entrou cambaleando no corredor. Ela colocou uma mão na testa, como se estivesse tentando evitar que a sua cabeça explodisse. A outra mão ela estendeu na direção de Neferet de modo suplicante.
– Neferet! – Aphrodite ofegou e cambaleou como se o chão estivesse ondulando sob seus pés. – Eu estou vendo... estou vendo...
Ao redor, os homens começaram a falar de modo nervoso.
– Silêncio! A minha Profetisa está tendo uma visão! – Neferet saiu de trás da tribuna e foi até a beira do palco, bem na frente de Aphrodite. – Fale, minha Profetisa! A sua Grande Sacerdotisa está aqui e vai ouvir!
Aphrodite gemeu e então conteve um grito. Segurando a cabeça com força, ela colocou toda a energia na sua voz para que ela chegasse até os cantos mais remotos do auditório.
– Estou vendo um campo. Nele, o trigo de inverno foi cortado em enormes fardos redondos. Há vampiros azuis lá. Eles estão escavando os fardos e colocando novatos, vampiros e humanos dentro deles para tirá-los de lá clandestinamente. Eles são a Resistência!
– Onde, Aphrodite, minha querida? Olhe em volta... onde você está?
– O Exército Vermelho está lá! Eles estão atacando! Eles estão nos matando! Eles estão nos comendo! – Aphrodite choramingou, soluçando.
– Sei que é difícil, mas concentre-se! Foco! Você é os olhos e os ouvidos da Deusa. Diga onde você está!
– Sapulpa! Não! Não, não, não, não! Afaste-os de nós! Eles estão nos matando! – Aphrodite cambaleou e soluçou.
A voz de Neferet cortou o choro de Aphrodite.
– Profetisa! Em nome de Nyx, concentre-se! Onde você está em Sapulpa?
– Estou vendo uma placa! Ela diz Lone Star Road! Estamos em um campo em Sapulpa ao lado da Lone Star Road, e nós estamos sendo mortos!
Então Aphrodite respirou fundo e gritou com toda a força antes de fechar os olhos e fingir um desmaio espetacular.
Outro Kevin
Kevin se mexeu por instinto. Ele se atirou para a frente, estendeu o braço e segurou Aphrodite antes que ela atingisse o chão. Ao redor dele, o auditório explodiu em comoção, mas, enquanto envolvia Aphrodite em seus braços, parecia que eles estavam suspensos em uma pequena bolha de silêncio.
Os belos olhos da Profetisa piscaram e se abriram. E então se arregalaram em choque. Ela virou a cabeça na direção de Kevin para que ninguém mais a ouvisse e sussurrou baixinho para ele.
– Era você! Na noite passada no jardim. Era você!
– Shhh, relaxe. Estou aqui – Kevin a tranquilizou.
– Afaste-se de mim! – ela sussurrou. – Hoje você está fedendo, mas com certeza não estava na noite passada. E que merda, você está puxando o meu cabelo!
O olhar dele encontrou o dela. Aphrodite não estava machucada – isso era óbvio. E ela definitivamente não estava agindo como se tivesse acabado de desmaiar. Então Kevin entendeu a verdade.
– Você não teve uma visão! – ele sussurrou.
– Tive sim! – Ela manteve a cabeça virada, quase encostada no peito dele, cuidando para que ninguém mais a ouvisse. – Só que não hoje. Quem é você para julgar? Você nem é um vampiro vermelho de verdade!
– Sou sim! Só não sou do tipo com quem você está acostumada.
– Aham, sei. Neferet sabe o que você está tramando?
Em vez de responder, Kevin disparou a mesma pergunta para ela.
– Neferet sabe o que você está tramando? Que você está escondendo visões dela?
– Prove, então. Se você acha que alguém vai acreditar mais em um vampiro vermelho do que em uma Profetisa de Nyx, você é tão burro quanto o resto da sua espécie fedorenta. – Aphrodite se virou nos braços de Kevin e gritou em pânico enquanto se debatia para se livrar dele. – Aaaaah! Não me coma! Tire suas mãos de mim! Socorro!
– Deixe ela comigo, Tenente. – Stark estava ali, empurrando Kevin para o lado e ajudando Aphrodite a se levantar.
No entanto, ela se afastou de Stark, recusando a sua ajuda e cambaleando na direção do palco e de Neferet.
– E-eu falei algo valioso, Grande Sacerdotisa? – a voz de Aphrodite ainda ecoou por todo o auditório, principalmente porque a multidão tinha calado a boca e estava olhando embasbacada para ela.
Neferet foi apressada até a beira do palco e se abaixou para pegar as mãos de Aphrodite.
– Sim! Você foi muito bem, querida! Eu sabia que Nyx me enviaria um sinal, e sou realmente abençoada por ela ter me enviado dois sinais em um só dia. – A Grande Sacerdotisa soltou uma das mãos de Aphrodite, mas continuou segurando a outra ao encarar o auditório, fazendo parecer que ela estava levantando o braço da Profetisa em uma saudação de vitória. – Nós sabemos que precisamos enviar nossos soldados para um campo em Sapulpa ao lado da Lone Star Road. – Ela dirigiu seu sorriso brilhante para Aphrodite. – Você pode dizer quando a batalha vai acontecer?
– Não, Neferet. É impossível dizer, a menos que haja um relógio na minha visão ou que eu veja a lua de relance, mas as minhas visões normalmente conseguem prever eventos que acontecem dentro de apenas alguns dias. Eu também não sei dizer exatamente qual campo na Lone Star Road é o campo específico em que a Resistência estará escondendo novatos em fardos de feno. As minhas visões são caóticas demais. Grande Sacerdotisa, sinto muito por não poder ser mais precisa – Aphrodite disse, e Kevin a viu fazer graciosamente uma reverência para Neferet, com a cabeça abaixada. Ela realmente parecia sentida e muito, muito bela.
Kevin sabia que o que ele estava assistindo era uma encenação completa – pelo menos da parte de Aphrodite. A capacidade de atuação dela é impressionante. Ela poderia ser uma estrela até maior do que Erik Night.
– Você fez o seu papel maravilhosamente. E isso é fácil de consertar. – O sorriso de Neferet abarcou o auditório repleto de soldados. – Hoje o General Stark vai levar soldados e oficiais do Exército Vermelho até Sapulpa, onde eles vão localizar a infestação da Resistência e acabar com os traidores. Minha Profetisa abençoada pela Deusa, a adorável Aphrodite, vai se juntar ao General Stark e ao Exército Vermelho nessa missão de combate. – Neferet abaixou os olhos para Aphrodite fazendo cara de santa. – Com certeza você vai reconhecer o campo certo quando vê-lo, não vai, minha querida?
Kevin viu o rosto de Aphrodite empalidecer para um branco de náusea, e ele também sentiu nojo junto com ela. Aphrodite havia encenado a sua visão para que Neferet não cumprisse a ameaça que havia feito na noite passada, a de forçá-la a se juntar ao Exército Vermelho, e mesmo assim a Grande Sacerdotisa deu um jeito de apunhalar sua Profetisa pelas costas. Aphrodite abriu e fechou a boca. Kevin podia ver que era difícil para ela responder e ele compreendeu perfeitamente – ele entendia o que se passava na cabeça dela. Se dissesse que não podia ajudar, Aphrodite iria decepcionar Neferet em público – e ninguém fazia isso sem sofrer sérias consequências. Neferet já havia decidido enviar Aphrodite para o Exército Vermelho. Ela apenas usou a visão de Aphrodite para fazer isso parecer lógico em vez de uma crueldade.
– Vou fazer o meu melhor, Neferet – Aphrodite disse sem expressão.
E eu vou fazer o meu melhor para garantir que você fique protegida, Kevin acrescentou silenciosamente.
– É claro que vai! – Neferet soltou a mão de Aphrodite e abriu amplamente os braços, projetando-os na direção do nível do mezanino e dos oficiais do Exército Vermelho reunidos ali. – Oficiais do Exército Vermelho, vocês estão satisfeitos que a minha jovem e adorável Profetisa vai se juntar a vocês?
– Sim! – a resposta deles foi mais um urro do que uma resposta.
Os olhos de todos se levantaram para contemplar, a maioria em desgosto, a horda ruidosa e fedorenta, mas Kevin manteve o olhar fixo em Aphrodite. Ela parecia completamente aterrorizada.
Como se sentisse que era observada por Kevin, os olhos de Aphrodite encontraram os dele.
Está tudo bem. Eu te protejo. Kevin pronunciou as palavras para ela só com a boca, sem emitir som.
Aphrodite se espantou levemente quando entendeu o que ele disse. Então ela revirou os olhos para ele e fixou de novo no rosto a sua bela máscara de indiferença, enquanto Neferet continuava a falar.
– Vejam, eu sabia que a minha Profetisa iria levantar o moral. Oficiais dos meus Exércitos Vermelho e Azul, vocês vão fazer o seu melhor para me servir porque, fazendo isso, vocês servem a nossa benevolente Deusa da Noite, Nyx. E agora, General Stark, por favor, reúna os seus soldados. Preparem-se. E então vão até Sapulpa e acabem com esses traidores!
– Sim, Grande Sacerdotisa! – Stark respondeu, e o auditório vibrou em concordância.
Neferet levantou uma mão, e a sala ficou em silêncio.
– E quanto ao restante dos meus generais, quero que vocês me encontrem na Sala de Conselho para discutirmos a fundo o que Stark e eu suspeitamos, e como eu pretendo que nós derrotemos essa nova onda de inimigos. Não vamos ficar sentados de braços cruzados esperando que nos queimem enquanto dormimos. Nós vamos encontrá-los e derrotá-los. Todos eles. Não hoje. Não amanhã. Mas eu prometo a vocês que, quando nós lutarmos contra essa nova onda de inimigos, será com mais poder do que qualquer exército de vampiros já exerceu na história. Seremos vitoriosos!
O auditório comemorou ruidosamente, e Kevin achou que iria vomitar. Era mentira! Tudo que ele tinha dito sobre o Novo México e a sua milícia era mentira! Ele só queria fazer o exército desviar a sua atenção do quartel-general da Resistência, mas mesmo assim eles estavam indo para Sapulpa e para os campos logo abaixo da sua montanha.
E o poder do qual Neferet estava falando – Kevin sabia o que era. Ela ia munir os seus vampiros com armamentos humanos.
Neferet tinha que ser impedida.
Neferet levantou a mão graciosamente, e a sala ficou em silêncio.
– Tenho outro anúncio que sei que vai deixar meus oficiais muito entusiasmados. No próximo final de semana, está marcado o jogo de futebol americano entre a Universidade Estadual de Oklahoma e a Universidade de Oklahoma para o grande clássico dos Cowboys contra os Sooners. Bom, eu detesto esperar, não é? – A multidão fez barulhos de concordância. Neferet sorriu. – Sim, eu sabia que vocês entenderiam! Foi por isso que eu insisti para que o jogo acontecesse neste final de semana em Tulsa, bem aqui perto, no Estádio Skelly, da Universidade de Tulsa, no dia do Ano-Novo. Não será uma celebração incrível? A Universidade Estadual de Oklahoma e a Universidade de Oklahoma certamente acham que sim. – Ela fez uma pausa, e o seu sorriso se encheu de malícia. – Ou pelo menos eles acharam depois que fiz a eles uma oferta que não conseguiram recusar, e a Universidade de Tulsa, é claro, ficou muito satisfeita em acomodar o meu pequeno pedido deste feriado.
Mais uma vez, o auditório irrompeu em urros efusivos, mas desta vez alguns soltaram o grito de guerra “Boomer Sooner”6 e outros ficaram fazendo aquele gesto louco da mão de arminha disparando, típico dos torcedores da Universidade Estadual de Oklahoma.
Eu tinha esquecido totalmente que é quase Ano-Novo, Kevin pensou. E ele podia imaginar facilmente a “oferta que eles não conseguiram recusar”. Atletas universitários – e as líderes de torcida, a banda e os torcedores que iam junto com eles – eram protegidos da fome do Exército Vermelho desde que pudessem entreter os vampiros em geral e Neferet em particular. Ela não tinha feito uma oferta. Ela tinha feito uma ameaça mortal, e as universidades responderam do único jeito que conseguiam para proteger os seus estudantes.
– Merry meet, merry part e merry meet again,7 minhas leais Sacerdotisas, Guerreiros e soldados, e que as bênçãos de Nyx estejam com todos vocês! – Neferet encerrou o briefing sob um alvoroço de aclamação.
Kevin viu Aphrodite sair apressada até as escadas que levavam ao palco e seguir Neferet, embora a Profetisa devesse ter raciocinado melhor. Uma vez que Neferet dava uma ordem, ela sempre seguia até o final – não importavam as consequências. Todos os oficiais em ambos os exércitos sabiam que a única coisa maior do que o ego de Neferet era o seu orgulho.
– Tenente, você pode vir comigo também, já que não tem mais uma unidade.
Kevin se virou e viu o General Stark analisando-o com uma expressão indecifrável no rosto.
Ele ficou em posição de sentido imediatamente.
– Sim, senhor! É uma honra, senhor!
– Não fique aí parado só de queixo caído para Aphrodite. Siga-me.
Kevin seguiu Stark enquanto ele abria caminho para sair do auditório lotado. Quando eles chegaram ao corredor, o Tenente Dallas estava lá, esperando.
– E aí, General. Isso que você acabou de fazer aí dentro foi uma loucura do cacete, hein?
– Dallas, tente não falar por um tempo. Eu preciso pensar. E, enquanto estou pensando, reúna um pelotão de vampiros vermelhos e os seus oficiais. Vou requisitar caminhões suficientes para um comboio até Sapulpa. Diga aos oficiais que nós vamos sair às 2200 horas8 pontualmente – Stark deu uma olhada para Kevin. – Ah, e ele vai com a gente também.
– Você quer dizer que ele vai se juntar ao pelotão de vampiros vermelhos que vai partir hoje?
– Não, eu estou dizendo que ele vai com a gente. Comigo. No meu veículo.
– Pelas tetas de Nyx, General! Ele até consegue formar algumas frases, mas ainda é apenas uma máquina de comer. Tem certeza de que vai levar ele junto com a gente? Ele vai deixar o Hummer todo fedido.
Desta vez, Kevin não teve vontade de dar um soco em Dallas. Não porque ele gostasse do garoto, porque ele definitivamente não gostava, mas porque Stark havia acabado de dar a ele mais esperança do que tinha tido desde que Vovó Redbird o deixou na noite anterior.
– Tenente, você está questionando a minha ordem?
Dallas voltou atrás rapidamente.
– Claro que não, senhor. Só estava checando se ouvi direito.
– Você ouviu direito. Ah, e, aparentemente, Aphrodite vai se juntar a nós também. Então, certifique-se de pegar como nosso veículo líder aquele Hummer que tem problema de aquecimento. – Stark piscou para Dallas.
– Aaah, agora entendi! – Dallas riu. – Você quer irritar Aphrodite. Imagino que eu saiba do lado de quem ela vai sentar, certo?
– Tenente Dallas, eu pedi para você imaginar qualquer coisa? – Stark perguntou.
– Não, senhor, não pediu.
– Então siga as minhas ordens. Agora.
– Sem problemas. Como quiser, general. – Dallas deu um olhar de desdém para Kevin. – Você pode vir comigo. Só não fique contra o vento.
– Hum, perdão, General Stark, senhor – Kevin começou.
– Sim, o que é?
– Senhor, perdão, mas eu preciso me alimentar antes de partirmos – ele falou rapidamente.
– Claro que precisa. Que pé-no-saco – Dallas resmungou.
Stark olhou feio para Dallas, mas se virou para responder.
– Você tem algum tempo. Faça o que precisa fazer e depois junte-se ao comando do comboio às 2200 horas.
– Sim, senhor!
Kevin saiu apressado – seguindo na direção da sala pequena e suja que a Morada da Noite chamava de Cantina Vermelha. Na verdade, era apenas um velho depósito caindo aos pedaços que havia sido convertido em um lugar onde humanos drogados esperavam para serem utilizados como refeições. Assim que Kevin saiu do campo de visão de Stark e de Dallas, no entanto, ele mudou de direção, puxando o capuz sobre a cabeça e saindo rapidamente para fora pela porta mais próxima.
Ele não fez nenhuma pausa. Ele caminhou rápido – como se soubesse exatamente para onde estava indo. E ele sabia. Ele sabia o que precisava fazer. Debaixo do capuz, ele ergueu os olhos para o céu.
– Venha! Venha! Pássaro, onde você está? Facilite aí, pode ser? E não me obrigue a fazer isso.
Kevin continuou caminhando na direção leste pelos jardins da escola. Ele evitou as partes mais iluminadas da grande área de gramado e tentou ficar visível enquanto ia de árvore em árvore, mantendo o olhar voltado para o alto.
Quando ele chegou ao muro leste e ao alçapão escondido, misturou-se às sombras ao lado dele. O seu olhar varreu o jardim da escola. Havia vampiros e novatos visíveis, mas estavam todos bem distantes e apressados – sem dúvida, preparando-se para massacrar alegremente algumas pessoas inocentes. Ele olhou de novo para o céu. Nada. Nenhum maldito pássaro.
– Merda!
Sentindo-se pesado com um mau pressentimento, Kevin pressionou o fecho escondido no muro e então saiu furtivamente.
6 Grito de guerra do time da Universidade de Oklahoma. (N.T.)
7 Merry meet, merry part e merry meet again é uma saudação pagã que significa “feliz encontro, feliz partida e feliz reencontro”. (N.T.)
8 No horário militar, 22 horas. (N.T.)
16
Outro Kevin
Assim que estava do lado de fora do muro, Kevin procurou se acalmar.
– Ok, pense um pouco. Primeiro, confira o céu de novo. – Kevin procurou pelo céu da noite, mas, se o corvo estava em algum lugar lá em cima, era impossível vê-lo contra a escuridão. Kevin lembrou que Anastasia disse que Tatsuwa tinha uma excelente visão, então ele se afastou um pouco do muro e balançou os braços sobre a cabeça.
Nenhum sinal daquele maldito pássaro.
– Certo. Plano B. Que diabos eu ainda tenho que as criaturas possam querer? – Ele procurou dentro da bolsa quase vazia. Todo o sangue tinha acabado, mas ainda haviam sobrado dois cookies. Havia também o vidro daquela gosma de sangue nojenta. – Bom, espero que eles queiram uma dessas duas coisas. – Ele se aproximou mais do muro para se esconder nas sombras e então fez o chamado. – Espíritos do ar da Magia Antiga, eu sou Kevin Redbird e, com o poder do meu sangue e o poder que Nyx me concedeu, eu chamo vocês para mim! De novo!
Com pequenos barulhinhos de estouro, os espíritos de ar se materializaram ao redor dele.
– Garoto Redbird! Qual pagamento você traz para nós? Qual tarefa gostaria que realizássemos?
Kevin achou que estava falando com o mesmo espírito que havia aparecido quando ele fez a invocação na noite anterior, mas não tinha certeza. Ele sorriu e tentou parecer mais entusiasmado do que nervoso.
– E aí? Obrigado por virem de novo. Fico muito grato mesmo.
– Qual é a tarefa e qual é o nosso pagamento?
– Ok, bom, eu não tenho muito tempo para conversa fiada de qualquer jeito. O que eu preciso é que vocês encontrem um corvo chamado Tatsuwa. Ele pertence à Sacerdotisa vampira da montanha onde vocês vieram até mim pela primeira vez. Podem fazer isso?
“Há muito que podemos fazer
Se o pagamento formos receber.”
Kevin relaxou um pouco quando a voz do espírito começou o ritmo musical que marcava o começo de um acordo.
– Ok, bom, eu posso dar um pouco do meu sangue a vocês. Ou eu tenho mais dois cookies daqueles que vocês gostaram tanto ontem.
“Se você quer a tarefa realizar
O seu pagamento não pode nos entediar
Deve fazer todo o coração cantar!”
– Belezinha. – Ele enfiou a mão na bolsa e pegou o vidro de gosma de sangue fedida. – Que tal isto? É sangue de vampiro vermelho.
A reação do espírito foi instantânea. Ela aumentou de tamanho. Os seus olhos se arregalaram e ela mostrou os dentes, expondo presas terrivelmente afiadas.
– Isso é uma abominação, não um pagamento!
Kevin rapidamente colocou o vidro de volta na bolsa.
– Ei, ok, ok, eu entendi. Eu também acho isso nojento. Desculpe. Eu simplesmente não sei muito sobre espíritos de ar. Hum, por que você não me diz o que gostaria como pagamento?
Isso acalmou o espírito, e ela voltou a ter mais ou menos o tamanho de um beija-flor e a aparência de um cruzamento entre um inseto grande e uma mulher alada muito pequena. Os outros espíritos fizeram um círculo ao redor dela, sussurrando naquela linguagem estranha que usavam, quase parecida com a do gorjeio de pássaros. Quando terminaram de falar, o grupo inteiro se aproximou, pairando e apontando.
Kevin baixou os olhos para si mesmo, tentando descobrir o que estavam apontando.
“Nós vamos ficar com aqueles fios de ouro
e esse pagamento será duradouro.”
Confuso, Kevin olhou de novo para si mesmo.
– Fios de ouro? Sinto muito, mas não sei do que vocês estão falando.
O espírito que liderava o bando voou até ele, estendeu uma mão delicada com dedos impossivelmente longos e gentilmente tocou uma mecha de cabelo comprido que estava grudada na blusa dele.
– O cabelo de Aphrodite! Caramba, eu estava mesmo puxando o cabelo dela. Não foi à toa que ela gritou comigo. – Quando ele soube o que estava procurando, rapidamente encontrou outros três longos fios. Ele os tirou da blusa e os ergueu. Mesmo na escuridão, os fios brilharam. – Tem razão. Eles se parecem mesmo com ouro, mas você deve saber que não são de verdade. São apenas fios de cabelo loiro.
“De uma Profetisa cheia de poder.”
Ela lambeu os lábios e Kevin viu de relance novamente os dentes afiados feito agulhas.
“Deliciosos para se comer.
Com esse pagamento você concorda?
Ou podemos voar e ir-se embora?”
– Hum, não! Quero dizer, sim. Sim, vocês podem ficar com o cabelo. Não é como se Aphrodite ainda estivesse usando isso. – Ele estendeu as quatro mechas, segurando-as entre o polegar e o indicador, e as ofereceu para o espírito.
“Com esse pagamento nós concordamos
Oferecido por ti e aceito por mim
O nosso acordo está selado – que assim seja!”
O espírito pegou as mechas de cabelo da mão de Kevin. Ela as atirou no ar, onde ficaram suspensas, flutuando imóveis, mas esticadas como finas linhas de seda esperando para serem passadas pelo buraco de uma agulha. Então os espíritos partiram para cima delas, um espírito para cada ponta de mecha, e as sugaram para dentro de suas bocas estranhas, finalmente juntando-se todos no centro como uma versão totalmente bizarra da cena do spaghetti de A Dama e o Vagabundo. Então eles saíram voando, desaparecendo no céu.
– Isso foi bem louco. Sério. Queria que Zo estivesse aqui para ver isso também. Aposto que ela ia morrer de rir com os espíritos comendo o cabelo de Aphrodite. – Ele estava rindo consigo mesmo quando um grasnido alto fez com que ele franzisse os olhos para a escuridão do céu, que se moveu, alterando-se, e finalmente se transformou em um corvo, voando em círculos até aterrissar no gramado marrom do inverno ao lado dele.
– Tatsuwa! Cara, estou feliz de te ver!
– Garoto Redbird! – o corvo respondeu.
– Sim, sou eu. Ok, você tem que levar uma mensagem para Dragon. Tipo, agora mesmo. – Kevin se agachou ao lado do corvo. Ele ficou aliviado ao ver que Tatsuwa tinha uma tira de couro em volta do pescoço e que dela pendia um pequeno recipiente de plástico, como os usados para guardar sal. Ele tirou o objeto do pescoço do pássaro e o abriu. Dentro havia um pedaço de papel dobrado e um pequeno lápis.
Usando sua mochila como apoio, ele sentou no chão e escreveu um recado rapidamente.
Neferet tem um esconderijo de armas modernas no porão da Morada da Noite. Dez caixas de lançadores de granadas. Dez caixas de M-16s. Munição para tudo. Ela planeja atacar o sul em breve. Ainda não sei quando.
Kevin pausou, mordendo a ponta do lápis. Ele tinha que contar a eles sobre a visão de Aphrodite e o perigo que a Resistência corria, mas não queria que ela se tornasse um alvo. Decidindo rápido, ele continuou a escrever.
Neferet tem informações de que a Resistência está escondendo pessoas em fardos redondos. O Exército Vermelho está a caminho da Lone Star Road e das plantações de feno hoje à noite. Se vocês estão transportando fugitivos levando pessoas para fora desse jeito, vocês só têm uma hora para tirá-los daí. Eu estarei com o exército.
Ele fez uma pausa de novo e então acrescentou:
Tive que usar Magia Antiga para chamar o pássaro. Precisamos descobrir um jeito melhor... K.
Ele releu o bilhete e então, satisfeito, dobrou o papel e o colocou de volta no recipiente com o lápis. O corvo grasnou e deu uns pulinhos até o seu lado, levantando a cabeça para que ficasse fácil para Kevin colocar de volta a tira de couro ao redor do pescoço.
– Ei, não sei se você consegue me entender ou não, mas, se consegue, você precisa ficar mais de olho em mim. Não me sinto bem de usar Magia Antiga assim, a torto e a direito. Além disso, estou ficando sem coisas para pagar os espíritos. Hum, espere aí. Você se importa se eu pegar uma pena sua emprestada?
O grande pássaro inclinou a cabeça para o lado, analisando Kevin.
– Garoto Pássaro! – ele disse e então se virou, obviamente oferecendo a Kevin uma pena da sua cauda.
– Cara, você é bem legal para um pás... quero dizer, corvo. – Com um puxão rápido, Kevin arrancou uma das longas penas negras da cauda de Tatsuwa.
O grasnido de protesto do corvo ecoou pelo muro de pedra enquanto o pássaro levantava voo. Ele voou em círculos sobre Kevin, caprichosamente soltando uma gota quente de cocô de pássaro na cabeça dele.
– Ei, muito obrigado! – Kevin gritou para ele, tentando tirar a sujeira do seu cabelo. – Bom, pelo menos não fede tanto quanto o perfume de sangue.
Zoey
– Ok, então, vamos relembrar o que aconteceu. Quem pode me dizer por que Thanatos morreu quando Neferet quebrou o feitiço protetor que havia jogado sobre o Edifício Mayo? – eu perguntei e fiz uma pausa, satisfeita ao ver várias mãos se levantando.
Dar aulas é sempre uma incógnita. Alguns dias tudo corre tranquilamente e os alunos fazem o seu dever de casa e agem corretamente. Outras vezes é como se todos os seus neurônios tivessem sido desligados – a menos que você mencione peitos ou fale um palavrão sem querer. Eu me surpreendi ao descobrir que gostava de ensinar porque, bom, adolescentes são tão imprevisíveis quanto os gatos e muitas vezes têm ainda menos noção do que eles.
(Sim, eu tenho dezoito anos, então, tecnicamente, ainda sou uma adolescente. Só que eu também sou a Grande Sacerdotisa e, às vezes, a professora – então tenho certeza de que o fato de ser uma adolescente não conta. A menos que eu faça besteira. Aí todo mundo se lembra de como eu sou jovem. Isso é um saco.)
Eu me sacudi mentalmente e assenti para uma mão erguida muito entusiasmada.
– Samantha, qual é a sua resposta?
A garota era uma quarta-formanda ou, como a chamaríamos em sua escola humana, uma aluna de segundo ano do ensino médio. Era fácil de perceber isso pelas asas de Eros bordadas no bolso sobre o seio do seu suéter da escola.
– Senhora, Thanatos morreu porque colocou demais de si mesma no feitiço, então, quando Neferet quebrou o feitiço, ela também quebrou Thanatos.
Internamente me contorcendo porque a garota tinha usado a palavra senhora para se referir a mim, eu consegui forçar um sorriso.
– Sim, certo. Então, você acha que Thanatos deveria ter se protegido mais, colocando menos de si no feitiço?
– Não – Samantha respondeu direto, sem levantar a mão. – Se ela tivesse feito isso, Neferet teria se libertado do Mayo antes do sacrifício de Kalona, e antes que você e o seu círculo descobrissem como detê-la, e todos nós teríamos morrido ou virado escravos dela. Thanatos é uma heroína. Eu a admiro.
– Há muito para se admirar em Thanatos. Quem pode me dizer qual a afinidade que Nyx concedeu a ela?
Eu estava me preparando para chamar outro garoto quando, em vez disso, eu ofeguei. Um calor brotou na parte superior do meu corpo, como se alguém estivesse apontando um secador de cabelos no nível máximo diretamente para o meu peito nu – apenas para fins de esclarecimento, eu não estava lecionando pelada. Nós somos diferentes aqui na Morada da Noite, mas não tão diferentes.
– Está tudo bem, senhora? – Samantha perguntou.
– Sim. Estou bem. Eu, ahn, preciso sair por um segundo. Samantha, você é a responsável até eu voltar. Continue a discussão sobre Thanatos, por favor.
Então aproveitei para sair rapidamente pela porta da sala de aula, com a mão pressionada sobre a queimação no meio do meu peito.
Mal consegui sair e já vomitei até as tripas em uma lata de lixo reciclável no corredor.
E então o calor foi embora, deixando-me de corpo mole e ofegante.
– Zoey! – Stark dobrou a esquina do corredor correndo e chegou deslizando até mim. – Minha Deusa, desta vez foi foda! – Ele apalpou todo o meu peito, não de um jeito sexy, mas sim de um jeito caraca-será-que-eu-me-quebrei.
– Estou bem agora. Acabou – tentei soar normal, mas a minha voz estava tão trêmula quanto as minhas mãos. – Desculpe por ter tirado você da sua aula.
– Nunca peça desculpas. Você é a minha vida, Z. Se alguma coisa acontecesse com você...
– Ei. – Peguei a mão dele. – Não está acontecendo nada comigo. Está acontecendo alguma coisa com Kevin. Esse é o problema.
– Não, o problema é que Kevin não está aqui, então não posso dar porrada nele por ficar usando Magia Antiga sem pensar.
– Ele não sabe como isso é perigoso, Stark.
Stark suspirou.
– Eu sei, eu sei. Desculpe. Eu não ia dar porrada nele de verdade. Eu gosto dele.
– Sim, eu também.
– Acho que você vai ter que dar um jeito de dizer a ele para parar de usar Magia Antiga. A ironia é que provavelmente você vai ter que usar Magia Antiga para fazer isso – Stark disse.
Eu evitei fazer contato visual com ele.
– Sim, isso é um saco, mas estou tentando descobrir como fazer isso.
– Isso é uma boa e uma má notícia. Olha só, Z, eu sei que isso está realmente te desgastando, e que você está super preocupada com o seu irmão, mas quero que você me prometa que não vai sair sozinha e mexer com Magia Antiga sem supervisão.
Coloquei meus braços ao redor dele e descansei no seu abraço.
– Prometo. Eu já aprendi a minha lição. Não vou sair escondida sozinha e usar Magia Antiga.
Pude sentir Stark relaxar, o que só aumentou minha culpa. Quando ele tentou me beijar, eu me inclinei para trás, cobrindo a boca. Por trás da minha mão, eu disse:
– Você não quer fazer isso. Acabei de vomitar.
– Ah, Z, sinto muito. O que eu posso fazer?
– Nada. Eu realmente estou bem agora. Vou terminar a aula mais cedo e mandar os alunos para a sala de estudos, e aí vou até o nosso quarto escovar os dentes. Hálito de vômito é muito nojento.
– Ok, já está quase na hora do almoço. Você vai conseguir comer?
– Com certeza! Encontro você no refeitório. E pare de se preocupar. Eu estou bem.
Stark me deu um beijo na testa.
– Eu te amo, minha Rainha.
– Eu também te amo, meu Guerreiro – eu disse. Então eu o observei indo embora com o meu coração apertando no peito. Quando ele desapareceu, tirei o celular do bolso e digitei, procurando o contato certo.
– Qual é, Z?
– Kramisha, preciso que você faça uma coisa pra mim.
– O seu desejo é uma ordem.
– Você ainda tem uma cópia daquele velho poema profético? Aquele sobre como fazer Kalona se erguer?
– Tenho. Está no meu arquivo com a etiqueta “Merdas com as quais ninguém deveria mexer”.
– Ótimo. Eu preciso dele. Você me manda uma cópia por e-mail?
– Você vai mexer com ele?
– Kramisha, Kalona já se ergueu em uma explosão. Isso não pode acontecer duas vezes.
Pelo menos não neste mundo, eu acrescentei silenciosamente para mim mesma.
– Isso é verdade. Te mando o e-mail.
– Obrigada, tchau.
Voltei para a minha sala de aula e coloquei a cabeça para dentro da porta.
– Pessoal, vou encurtar a aula hoje. No resto do tempo, vocês podem ir até o Centro de Mídia para estudar.
Então eu fechei a porta para as comemorações deles e fui em direção ao estacionamento.
O meu Guerreiro estava cem por cento correto. Kevin precisava ser avisado sobre como era perigoso lidar com Magia Antiga e ele tinha que entender como controlar o impulso de usá-la sem parar.
Eu vou dizer isso a ele.
Eu vou ensiná-lo.
Pessoalmente.
Mas primeiro eu precisava pensar – raciocinar realmente sobre os como, os quando e os com quem – sozinha. Sem ficar ansiosa olhando para alguém me encarando fixamente como um projeto de química prestes a explodir ou, pior, alguém me perguntando sem parar se eu estava bem.
Decidi ir em direção ao meu lugar preferido para ficar sozinha...
17
Stark
Assim que o sinal soou para liberar os alunos para o almoço, Stark saiu apressado do Ginásio para o Refeitório dos Professores. Ele não deu a mínima em estar atraindo a atenção de cada novato, vampiro e humano que passou por ele. Stark tinha um pressentimento. Um maldito mau pressentimento. E esse pressentimento tinha alguma coisa a ver com Zoey.
Claro que ela não estava no refeitório.
Ele sentou-se na mesa grande onde ele, Z e seus amigos normalmente comiam e esperou.
E esperou.
E esperou.
Depois de se passarem trinta minutos, ele acenou para uma garçonete.
– O que eu posso trazer para você, Stark?
– Não quero nada. Estou só esperando a Zoey, mas talvez a gente tenha se desencontrado. Ela já comeu?
– Não, eu não encontrei com ela hoje. Quer que eu anote o seu pedido?
– Não, acho que vou esperar mais um pouco, mas obrigado – ele respondeu e ela saiu. Então Stark conferiu o seu telefone. De novo. Nada de Z. Ele mandou uma mensagem de texto para ela. De novo.
Você ainda não está aqui. Será que eu confundi o lugar?
Ele apertou o botão de ENVIAR e depois digitou de novo rapidamente.
Estou começando a ficar preocupado. Me liga.
– E aí, Stark? O que parece mais apetitoso para o almoço hoje? – Damien perguntou enquanto sentou ao lado de Stark, deslizando em um dos bancos com encostos altos que formavam uma cabine.
– Ah, oi, Damien. Não sei. Estou esperando a Z.
– Ah, tudo bem, eu estou esperando o Jack. Ele está ficando um tempo a mais no Centro de Mídia, tentando recuperar o que não aprendeu lá naquele Outro Mundo deplorável. – Damien sorriu para a garçonete que tinha voltado até a mesa deles. – Quero pedir tacos para Jack e para mim. Mas dê uns dez minutos antes de soltar o pedido. Ele é Outro Jack, mas é quase tão atrasado quanto o Jack original era. – Então Damien voltou sua atenção de novo para Stark. – Você disse que estava esperando Z?
– Sim. Ela também está atrasada.
– É porque ela não está aqui. Eu vi o Fusca dela sair do estacionamento meia hora atrás, e eu ainda não a vi voltar.
– Merda! Você está brincando?
– Não. Stark, está tudo bem? – Damien perguntou.
– Não. Não está tudo bem. Desculpe, Damien. Tenho que ir. – Stark teve que se esforçar muito para não bater a porta com força quando saiu do refeitório.
Ela simplesmente saiu dirigindo e não me falou nada? De novo.
Essa era a terceira vez nos últimos dias em que Z tinha falado para ele que ia estar em algum lugar – ou encontrá-lo para fazer algo – e ou ela não aparecia, ou se atrasava. Bastante.
Claro, ela sempre tinha uma desculpa, como ter que conferir a tumba de Neferet para ter certeza de que não estava acontecendo nada de estranho por lá. Ele entendia isso. Ele também entendia que Zoey poderia enviar outra pessoa para fazer isso se ela quisesse. Alguém como ele. Ou Darius. Ou Rephaim. Ou qualquer um entre as dúzias de outros Guerreiros Filhos de Erebus que iriam fazer um relatório com tudo para Zoey e manter suas bocas fechadas se descobrissem alguma coisa fora do normal.
E, claro, ela dizia que continuava indo ao Restaurante da Estação para ajudar com a reforma, mas entre Damien, Outro Jack e Stevie Rae, já tinha um monte de gente para ajudar.
Pior ainda, sempre que Stark tentava ir atrás de Z – quando tentava ver por que ela estava demorando tanto –, ela nunca estava realmente ali no instante em que prometera estar.
Stark foi primeiro para os aposentos que ele dividia com Zoey. Ela não estava lá. Então ele desceu correndo as escadas e saiu pela porta de madeira em arco que sempre o fazia lembrar um castelo. Ele fez uma pausa, enquanto os seus olhos varriam os jardins da escola. Havia estudantes novatos e humanos por toda parte. Alguns estavam sentados em pequenos grupos embaixo dos lampiões a gás bruxuleantes, compartilhando o almoço. Outros estavam andando apressados em direção aos dormitórios. Outros estavam brincando de um pega-pega estranho que a atual turma dos alunos do último ano tinha criado e que envolvia gatos de alguma forma.
O olhar dele foi atraído para a estátua de Nyx que ficava no centro do jardim principal. Quando ele reconheceu uma das Grandes Sacerdotisas no pequeno grupo aos pés da Deusa, sentiu uma enorme onda de alívio e atravessou correndo o gramado marrom do inverno. Lá está ela! Espero que ela saiba de algo.
– Stevie Rae! Ei, a gente precisa conversar – Stark disse ao se juntar a ela perto da estátua. Ao lado de Stevie Rae estavam dois jovens novatos que tinham acabado de acender a miríade de velas votivas que tremeluziam alegremente ao redor do pé da Deusa. Eles fizeram uma reverência nervosa, porém respeitosa, para cumprimentar Stark. – Oi, e aí? Bom trabalho com essas velas aí. Ok, hora de vocês irem almoçar. Ou de irem para a próxima aula. Basicamente, hora de vocês vazarem! – Stark gesticulou com a mão, enxotando-os dali.
Stevie Rae observou os dois novatos saírem apressados na direção da entrada dos fundos da escola. Ela olhou feio para Stark.
– Ótimo. Você acabou de assustar os dois. Você não lembra como é a sensação quando a gente acaba de ser Marcado? Aqueles novatos só estão aqui há uma semana. Eles ainda estão chorando no travesseiro à noite chamando a mamãe.
– Eles vão ficar bem, assim como nós ficamos. Quem não está bem é Zoey.
– De que diabos você está falando?
– Você tem visto Zoey ultimamente? – Stark disparou a pergunta para ela.
– Sim. Não. Eu só a vi rapidinho pouco tempo atrás, faz uma meia hora. Ela disse que estava indo até a estação para ver se Kramisha precisava de ajuda para fazer as malas. Você sabe que Kramisha está indo pra Chicago amanhã, né?
– Sim, sim, eu sei que Kramisha vai embora. E Z disse que ela estava indo para a estação? Tem certeza?
– Claro que tenho. Não faz tanto tempo.
– Ok, aguenta aí. – Stark tirou o telefone do bolso e ligou para Kramisha, colocando no viva-voz para que Stevie Rae pudesse ouvir também.
Kramisha, ao contrário de Zoey, atendeu no primeiro toque.
– O que você quer, Stark? Estou ocupada aqui fazendo as malas.
– Desculpe te atrapalhar. Z está com você?
– Não.
– Você a viu hoje?
– Não.
– Ok, obrigado.
– Ei, está tu...
Stark desligou e lançou um olhar penetrante para Stevie Rae antes de falar:
– Zoey mentiu pra você. Ela mentiu pra mim, ela tem feito isso ultimamente. Ela conversou com você pelo menos?
Stevie Rae hesitou antes de responder.
– Eu ia dizer “Claro! Z conversa comigo todo dia”, mas, quando pensei mesmo sobre isso, na verdade ela não tem falado muito.
– Pois é, desde que ela começou a sentir o Outro Kevin usando a Magia Antiga.
– Eu sei que ela está preocupada. Afe, Stark, eu também estou preocupada com Kev.
– O problema é que eu tenho certeza de que não é só com o Outro Kevin.
– Você vai ter que me contar mais do que isso. Desde que Z disse para Rephaim e para mim que a gente poderia ficar em Tulsa, ando super louca e atarefada me instalando aqui e decifrando planos de aula de Sociologia Vampírica, que eu fui tonta o bastante para me voluntariar para ser a professora. Afe, quem podia imaginar que dar aula era tão difícil?
– Todo professor no mundo sabe disso, mas esse não é o ponto. Stevie Rae, você precisa me ouvir: eu acho que Zoey não está bem.
Stevie Rae fez um gesto para que Stark se juntasse a ela em um banco de ferro cheio de ornamentos esculpidos, perfeitamente situado perto da estátua da Deusa.
– Agora, me conta o que está entalado aí dentro em relação a Z.
Stark soltou um longo suspiro ao se sentar ao lado dela.
– Ela está indo ao túmulo dele. Todo dia. E está mentindo sobre isso.
Stevie Rae mexeu os ombros.
– Isso não é tão ruim. Quer dizer, Z sente falta de Heath. Todo mundo sabe disso, e talvez ela não esteja dizendo a verdade porque não quer que você se sinta mal. Ei, se ela está mentindo, como você sabe pra onde ela vai?
– Eu a segui. E, antes que você comece a me passar sermão, preciso dizer que só fiz isso porque estava preocupado. Muito preocupado.
Stevie Rae levantou as mãos em sinal de rendição.
– Ei, não estou julgando, mas você tem a minha atenção total agora. Continue.
Stark passou os dedos pelo seu cabelo grosso e suspirou de novo.
– Então, eu a segui – ele repetiu. – E a observei. Ela fica sentada lá. No túmulo dele. E conversa com ele. Muito.
– Ela conversa com a lápide dele?
Stark balançou a cabeça.
– Não. Ela se se recosta na lápide dele, mas fica olhando para o lado, como se ele estivesse sentado ali, ao lado dela, em algum lugar perto. E perto mesmo, não no Bosque de Nyx.
– Bom, ok, então isso é estranho e triste, mas talvez seja o jeito de Z lidar com o luto dela. Você sabe que levou muito tempo para ela conseguir ir até o túmulo dele. Ela nunca nem me deixou ir com ela. Uma vez Z me disse que isso era algo que ela precisava fazer sozinha e que eu devia deixá-la em paz. Ela disse que gostava de pensar lá porque é bem silencioso. Talvez seja só isso. Z precisa de um tempo sozinha. O que você acha? – Stevie Rae balançou a cabeça, fazendo os seus cachinhos loiros sacudirem ao redor do seu rosto. – Parte disso é culpa minha. Sinto muito que eu estive tão enlouquecida que nem percebi que ela estava depressiva ou algo assim.
Stark fez um gesto recusando as desculpas dela.
– Isso não é culpa sua. É de todos nós. Acho que a gente deixou ela sozinha demais desde que Kevin voltou para o Outro Mundo.
– Mas a gente está dando espaço pra ela. Ei, eu sei que ela tem falado com o irmão dela. O Kevin deste mundo. O que não é um vampiro vermelho. Acho que isso está ajudando um pouco a lidar com o fato de o Outro Kevin não estar aqui. – Stevie Rae suspirou e passou os dedos pelo cabelo. – Eu não perguntei quase nada sobre como ela estava se sentindo, principalmente depois de ela ficar dizendo para a gente como estava bem, mesmo com aquela maldita Magia Antiga mexendo com ela e Outro Kevin. Como Kramisha sempre diz, não é legal ficar se metendo nos assuntos de Z.
– Sim, bom, o tempo de dar espaço acabou. Desde que ela começou a “conversar” – ele fez aspas no ar com os dedos – com Heath, ela parou de conversar de verdade comigo. E, obviamente, com você.
– Z não tem conversado com Damien nem Aphrodite também? – Stevie Rae perguntou.
– Ah, claro. Z conversa com Damien, com Aphrodite, com você e comigo. Mas ela nunca diz como está se sentindo, só diz que está bem. Stevie Rae, ela está se afastando de mim. E de você, de Aphrodite e de Damien. Ela só está conversando de verdade com o Heath, que já morreu.
– Você não acha mesmo que Z só está lidando com o luto dela?
– Não, porque essa coisa de conversar com o Heath morto só começou depois que Kevin veio do Outro Mundo e...
– E contou a ela que Heath estava vivo do lado de lá – Stevie Rae terminou a frase por ele enquanto arregalava os olhos ao compreender.
– Exatamente – Stark disse.
– E então ela sentiu Kevin usando Magia Antiga.
– Sim. O que aconteceu hoje de novo. Um pouco antes de ela ir embora no Fusca, apesar de ter me dito que a gente ia se encontrar para almoçar.
– Aiminhadeusa, Z está indo para o Outro Mundo! – Stevie Rae concluiu.
– Sim, estou começando a pensar isso também – Stark falou.
– Ah, que inferno! – Stevie Rae exclamou.
Zoey
Olhei as horas no celular quando saí com o meu Fusca da Rua Setenta e Um e entrei na Aspen, pegando a primeira à esquerda para atravessar o portão sombrio do Cemitério Floral Haven. Eu tinha certeza de que ia conseguir voltar para a Morada da Noite sem me atrasar muito para encontrar Stark no almoço.
– Eu devia apenas contar a ele que gosto de vir aqui – murmurei para mim mesma. – Ele entenderia. Certo?
Hum. Não. Eu já tinha contado isso a ele outra vez. Faz quase um ano. E ele fez um milhão de perguntas e disse que eu deveria falar com alguém. Alguém tipo um psiquiatra. Sobre o meu luto.
– Tentei explicar que é tipo isso que eu faço quando visito o túmulo. Eu falo. Claro, não é com um psiquiatra, mas falar é falar, certo?
Aparentemente, não para Stark. Não que eu o culpasse por isso. Perder Heath tinha sido horrível. Pior até mesmo do que perder a minha mãe, porque a verdade é que eu era muito mais próxima de Heath do que de qualquer um na minha família, exceto de Vovó Redbird.
Como se soubesse o caminho sem que eu tivesse que manobrar a direção, o meu Fusquinha azul-claro serpenteou pelas curvas até o que tinha se tornado uma parte familiar do cemitério. Parei no lugar de sempre – perto do cedro que marcava o começo da trilha que eu havia percorrido incontáveis vezes no último ano.
Eu sempre ficava triste logo que chegava ali. O Floral Haven não teria sido a primeira opção de Heath. Não porque fosse um cemitério ruim nem nada desse tipo. Eu simplesmente sabia que Heath iria gostar de algum lugar mais... bem... colorido. Heath gostava de coisas loucas, e o Floral Haven era imaculado, bem estruturado, bem organizado e bem regulado. Era exatamente o oposto de louco.
Enquanto eu andava pela trilha que levava à sepultura da família Luck, a minha tristeza se evaporou um pouco – e depois mais do que “um pouco” quando eu avistei a minha contribuição à vizinhança da área dos Luck. Fui até a lápide modesta, adequada e entediante de Heath e sentei bem em cima do seu túmulo, o que eu sei que ele teria apreciado. Eu me recostei na pedra cinza e fria, que dizia em letras grandes HEATH REGINALD LUCK – FILHO AMADO, e então olhei para o lado na direção da área mais próxima à dos Lucks, onde havia apenas uma lápide – a que eu havia encomendado imediatamente depois de comprar a área de sepultamento familiar vizinha. Era o contrário de entediante, esticando ao máximo o que as regras muito específicas do cemitério permitiam. Eu havia mandado fazer uma lápide de mármore azul polido, da cor exata de um buraco de pesca perfeito. Em cima dela, eu havia pedido para o artista esculpir uma cena de Heath sentado em uma pequena plataforma de madeira atirando a linha de pesca da sua vara na água. Eu tinha feito com que Heath estivesse olhando direto para mim, sorrindo como ele sempre fazia quando ia pescar.
– E aí, beleza? – perguntei para o Heath esculpido. – Sim, hoje foi um daqueles dias incríveis de inverno em Oklahoma, em que não está tão frio para ficar do lado de fora, mas também não quente o bastante para despertar as três ameaças típicas daqui: carrapatos, pólen de ambrósia e cobras. Aposto que você diria que estaria um clima bom para pescar, mas na verdade você achava que todo dia tinha um clima bom para pescar.
Ok, deixe-me ser sincera. Eu não tinha perdido a cabeça – pelo menos não totalmente. Eu não estava sob nenhuma ilusão de que Heath estivesse de fato ali me escutando. Eu sabia onde ele estava, ou pelo menos uma versão dele. Eu tinha estado com ele lá – no Bosque da Deusa – depois que ele morreu e que a minha alma se despedaçou de tristeza. Ele provavelmente está pescando em algum lugar lá em cima agora.
Mas eu gostava de fingir que estava falando com ele.
Eu precisava fingir que estava falando com ele.
Principalmente agora.
– Então, lembra que outro dia eu te contei sobre aquela queimação estranha no meu peito? Bom, surpresa! Não era um ataque do coração. Era uma coisa pior. Era o Outro Kevin, lá naquele Outro Mundo, usando Magia Antiga – fiz uma pausa e recostei minha cabeça na lápide dele. – É, isso é ruim. Bem ruim mesmo. E ele está mexendo muito com isso – suspirei. – Né? Eu sei que ele vai se meter em alguma grande caca. Por que os irmãos mais novos são sempre um pé no saquinho?
– Zoey? É realmente você! Achei que tinha visto o seu Fusca entrar aqui.
Dei um salto ao ouvir a voz e girei sentada para ver o meu irmão, Kevin, andando na minha direção.
– Afe, você quase me mata de susto, Kevin. Tipo, faça mais barulho da próxima vez.
– Que tal você me dizer quando vai visitar o túmulo de Heath da próxima vez e eu encontro você aqui? Por sorte eu estava passando quando você entrou. – Kevin olhou para mim e sorriu. – Foi sorte!9 Entendeu?
Eu sorri para ele.
– Entendi. – Então dei umas batidinhas no lugar ao meu lado, e Kevin sentou no local indicado.
Nós não falamos nada. Apenas ficamos sentados. Desde que o Outro Kevin tinha partido, eu gostava de conversar com este Kevin – bastante. Principalmente pelo telefone, no entanto. Primeiro, porque ele tinha um calendário escolar super ocupado e era difícil para ele escapar, especialmente sem o padrastotário, o marido péssimo da minha mãe, sabendo que Kevin e eu tínhamos nos reaproximado.
A segunda razão era mais difícil. Ver Kevin, do jeito que estava fazendo agora, fazia com que eu sentisse falta do Outro Kevin. Quer dizer, eu gostava de conversar com este Kevin. Ele tinha crescido e virado um cara bacana, havia trocado a sua obsessão por videogame por uma obsessão por luta livre e tinha entrado para a seleção da Broken Arrow este ano, o que era legal. Mas ele não era um vampiro. Ele não conseguia me entender como o Outro Kevin me entendia. Não era culpa dele, mas isso não fazia com que fosse menos verdade.
– Ei, você nunca acha isso meio sinistro? – Kevin interrompeu meus pensamentos com um encontrão de ombro.
– O quê? Sentar no túmulo dele? Que nada, Heath iria adorar – eu disse.
– Bom, isso e aquilo – ele apontou para o Heath pescador esculpido.
– Heath iria adorar aquilo também – eu respondi. – Você não lembra que ele tinha senso de humor?
– Claro. E você não lembra que ele está morto?
Eu dei um pulo abruptamente, como se Kevin tivesse me dado um tapa.
– É claro que eu lembro. Eu estava lá. Perder Heath quase me matou. Por que diabos você me perguntaria isso?
– Por causa do que o Outro Kevin te contou.
Eu não falei nada. Eu não conseguiria dizer nada. Para este Kevin – este meu irmão humano –, seria impossível entender a Magia Antiga. Ele também não entenderia o sonho que eu tive, o qual eu tinha certeza de que não era um sonho, mas uma mensagem da minha versão morta do outro mundo. Ele iria pensar que eu só estava dando desculpas se contasse a ele o que eu tinha decidido – o que eu sabia que tinha que fazer.
Eu não estou dando desculpas.
O meu irmão – o meu outro irmão – precisava de ajuda com Magia Antiga e de ajuda para se livrar de Neferet. Nenhuma dessas coisas tinha nada a ver com o Outro Heath Luck.
– Zoey, eu vou com você. Você só precisa pedir – Kevin disse em meio ao silêncio que tinha se instalado entre nós.
Os meus olhos faiscaram na direção dele.
– Você não pode! Eu não estou viva naquele mundo, então posso me safar passando despercebida por lá, mas você está. E você é um vampiro vermelho traidor que se tornou aliado da Resistência contra Neferet e os seus exércitos. Não é seguro para você.
– Z, de acordo com o que você me contou, não é seguro para ninguém lá.
Desviei o olhar de Kevin e encontrei a imagem de Heath sorrindo de novo.
– Eu sei disso – eu disse.
– Mesmo? – o meu irmão perguntou enquanto estalava as juntas e alongava os dedos, um sinal claro de que ele estava estressado.
– Você sabe que eu vou, né? – respondi à pergunta do meu irmão formulando outra pergunta.
– Sim, eu sei. E, Z, se eu sei, os seus amigos também sabem.
Senti um terrível calafrio de mau agouro.
– Não! Eu não disse nem uma palavra para nenhum deles.
– Você também não disse nem uma palavra para mim. Eu só juntei as peças.
– O que significa que eles também vão juntar.
– Ah, sim. Com certeza.
– Bom, não é como se eu fosse fugir escondida sozinha – eu falei. – Já aprendi a minha lição sobre pensar que posso lidar com uma crise grave completamente sozinha. Isso é burrice.
– Isso faz com que eu me sinta melhor, mas só um pouco. Z, você tem certeza de que precisa ir?
Desviei a atenção da imagem de Heath e encontrei o olhar do meu irmão.
– Outra versão de você está em uma grande encrenca. Eu posso ajudá-lo. Se você fosse ele, o que gostaria que eu fizesse?
Ele abriu o sorriso, e de repente eu o vi como um menino, com cerca de sete anos, com um cabelo horrível cortado a máquina e um buraco no lugar onde deveriam estar os dentes da frente, e o meu coração se apertou.
– Z, eu não vou mentir. Com certeza eu ia querer que você viesse salvar a minha pele.
Isso vai deixar Stark arrasado, eu pensei, mas tudo que eu disse foi:
– Sim, e é exatamente isso o que eu vou fazer.
9 Sorte em inglês é “luck”, como o sobrenome do personagem Heath. (N.T.)
18
Outra Aphrodite
Aphrodite fechou o zíper da sua elegante jaqueta de couro de aviador e empinou o queixo quando saiu pela porta da frente da escola e foi em direção ao primeiro veículo do comboio militar. Aphrodite podia sentir os olhares que a acompanhavam, mas isso não era nada de novo. Homens sempre a olharam desde antes de os seus peitos crescerem. Claro que havia uma diferença entre homens normais e machos que eram máquinas de comer vorazes e fedorentas, mas, como diria Neferet, nem tanta diferença assim.
Ela balançou a cabeça para afastar aquele pensamento. Se estou citando Neferet, está realmente na hora de pensar na minha vida. Eu consigo fazer isso. Eu posso ir com o exército até aquele campo idiota nos arredores daquela cidade idiota de Sapulpa, e depois posso voltar para casa. Neferet vai estar mais calma. Vou cair de novo nas suas graças e tudo pode voltar ao normal. O problema era que aquele pensamento não trouxe muito conforto para Aphrodite. O normal na Morada da Noite tinha se tornado quase insuportável. Pela milionésima vez desde que Neferet tinha começado a sua guerra horrenda, Aphrodite desejou ter escapado – ter fugido para a Itália e a Ilha de São Clemente antes de toda essa maldita coisa ter começado. Ela era uma Profetisa. Com certeza o Conselho Supremo teria concedido santuário a ela e não a teria colocado no próximo voo de volta para Tulsa quando Neferet exigisse sua volta.
Neferet obviamente exigiria isso. Ela só tinha uma Profetisa. Pela primeira vez na vida, Aphrodite lamentou ter recebido tantos malditos dons de Nyx e não poder ser apenas uma Sacerdotisa comum.
– Quem eu quero enganar? Eu nunca seria uma pessoa comum.
– Tenho que concordar com você, gata!
Aphrodite olhou para o seu lado direito. Havia um jovem tenente vampiro azul encostado no veículo líder, sorrindo para ela cheio de malícia.
– O que você disse? – ela perguntou com uma falsa voz doce.
– Que eu concordo. Você é gata demais para ser considerada comum. – Ele piscou para ela.
Ela olhou intensamente nos olhos dele.
– Eu pedi a sua opinião?
– Não, mas eu...
– Mas o quê? – ela falou com a voz cortante o bastante para fuzilá-lo. – Você não tem educação? Não tem noção?
– Ei, olhe...
Ela cortou as palavras dele de novo.
– Não, olhe aqui você. Quer saber quando você vai morrer?
– Não!
– Quer saber como você vai morrer?
– De jeito nenhum!
– Então me trate com o respeito que uma Profetisa de Nyx merece, ou eu posso sentir a necessidade de esclarecer as coisas. A Deusa sabe que um pouco de esclarecimento seria bom para você.
– Ahn, tá bom. Ok.
– Deixe-me corrigi-lo. A forma correta de você responder é: Perdão, Profetisa. Isso não vai se repetir, Profetisa. Deixe que eu abro a porta para você, Profetisa. – Aphrodite fez uma pausa enquanto aquele babaca irritante apenas ficou ali parado, com a boca abrindo e fechando como uma carpa com cara de furão. Ela suspirou e colocou as mãos no quadril. – Essa coisa é o carro do General Stark?
– Sim, é o Hummer dele. Ahn, quero dizer, sim, é o carro dele, Profetisa.
– Veja só, você é capaz de aprender. Então abra a maldita porta para mim.
– Algum problema, Tenente Dallas? – Stark apareceu por trás dela e caminhou a passos firmes até o lado do banco do passageiro na frente do veículo. Ele não estava sozinho, mas Aphrodite não precisava olhar para ver quem estava com ele. Ela podia sentir o cheiro.
– Não, senhor! – O tenente imbecil abriu imediatamente a porta do Hummer para Stark.
– Bom saber. Vamos zarpar – Stark deu uma olhada para Aphrodite e Kevin, que tinha parado ao lado dela. – O que vocês estão esperando, um convite por escrito? Entrem aí no banco de trás. – Stark balançou a cabeça, murmurando algo indecifrável, e o Tenente Dallas fechou a porta com uma batida forte.
Kevin foi até a porta do banco traseiro ao lado deles no veículo e a abriu.
– Depois de você, Profetisa – ele disse.
– O único com o mínimo de educação fede. Fantástico. – Ela passou por Kevin e entrou.
Kevin deu uma corridinha até o outro lado do Hummer e se sentou ao lado dela.
– Tudo certo aí atrás, Profetisa? – Dallas perguntou com apenas um toque de ironia ao sorrir olhando pelo espelho retrovisor.
– Apenas dirija – Stark disse rispidamente para ele. Enquanto eles guiavam o comboio para fora da Morada da Noite, Stark se virou no seu assento. – Agora, é bom você contar o que você não falou para Neferet sobre a sua visão.
Aphrodite ergueu uma sobrancelha para ele.
– Não tenho a menor ideia do que você está falando. – Ela enfiou a mão na sua bolsa extragrande Louis Vuitton e tirou de lá de dentro uma das três garrafas de Veuve Clicquot, satisfeita ao ver que havia tirado o rosé primeiro. Sem olhar para Kevin, ela entregou a garrafa para ele. – Abra. Não derrame. É melhor você não deixar seu fedor na garrafa também.
Stark balançou a cabeça.
– Você trouxe champanhe para uma batalha?
– Não, eu trouxe um bom champanhe para uma pré-batalha. É tipo dirigir colado no carro da frente, só que menos esportivo e mais mortal. Quer uma taça? – Aphrodite levantou uma bela taça que ela tinha guardado no bolso lateral junto com o seu Xanax de emergência.
– Não, mas eu quero uma resposta para a minha pergunta.
Kevin estourou a rolha e Aphrodite estendeu a taça para que ele a enchesse.
– Eu já respondi.
– Uma resposta de verdade.
Aphrodite deu uma olhada em Kevin.
– Cubra o topo da garrafa com o papel metálico para que ainda fique um pouco frisante. Você não sabe nada sobre champanhe?
– Não. Nunca experimentei. O meu padrastotário, ahn, é assim que minhas irmãs e eu chamamos o meu padrasto, é religioso demais para...
– Que chatice! – Aphrodite olhou para Stark. – Eu não sabia que eles podiam conversar.
– Você quer dizer os vampiros vermelhos? – Stark perguntou, dando um olhar divertido para Kevin.
– Sim, é claro que foi isso o que eu quis dizer.
– Aphrodite, Kevin é um oficial. Todos eles falam. Você acabou de ouvi-lo conversando com Neferet no briefing.
– Aquilo não foi uma conversa. Ele estava relatando informações. Tanto faz. – Ela deu um gole no seu champanhe e olhou para fora da janela enquanto eles pegavam a estrada em direção a Sapulpa.
– Ainda estou esperando você responder minha pergunta – Stark disse.
– Desculpe. Qual era mesmo?
Stark suspirou pesadamente, e Aphrodite percebeu que o Tenente Dallas estava sorrindo como se ela fosse o seu próprio entretenimento pessoal.
– Tenente Dickless,10 você sempre se diverte às custas do seu general?
O sorriso instantaneamente sumiu do rosto de Dallas, e ele voltou os olhos para a estrada.
– Ótimo. O único tenente que fala também fede. E respondendo à sua pergunta, General Cara do Arco, eu contei tudo para Neferet. Bom, exceto uns detalhes sobre como os soldados do Exército Vermelho perderam o que possa ter sobrado das suas mentes e não se contentaram apenas com o massacre dos humanos que encontraram nos fardos. Eles também devoraram os novatos... novatos azuis que poderiam ter crescido e se tornado caras grandes como você. Ah, e eles comeram vampiros azuis adultos também. Basicamente, o seu Exército Vermelho asqueroso massacrou todo mundo. Que tal?
– Por que você não contou isso para Neferet? – Kevin perguntou.
– Porque ela não ia se importar. Não mudaria nada. Ela ainda iria enviar o seu Exército Vermelho. Todo mundo ainda seria massacrado. Ponto final. – Ela esvaziou o resto da taça e a estendeu para que Kevin a enchesse. E eu vou ter que assistir isso acontecer. De novo.
– Neferet pode não se importar, mas eu me importo. Nós precisamos dessas pessoas vivas. Principalmente os vampiros azuis. Eles podem nos dar informações sobre a Resistência – Stark disse.
– Ah, que ótimo. Então, em vez de serem esquartejados e devorados, eles vão ser torturados.
– Eu não disse nada sobre tortura!
– Você vai pedir gentilmente que entreguem o seu povo e o seu quartel-general, e quando eles disserem não, obrigado, você vai fazer o quê? Dar um tapinha nas costas deles e deixar que vão embora?
– De que lado você está, Aphrodite? – O olhar de Stark tinha ficado sombrio e nervoso.
– Do lado de Nyx, é claro.
– Então estamos do mesmo lado – Stark afirmou.
Aphrodite bufou, mas não falou mais nada. O Cara do Arco podia correr para Neferet e dizer que ela tinha sido insuportável nessa pequena incursão. Até aí, tudo bem. Na verdade, isso seria ótimo. A chance de Neferet enviá-la junto com eles de novo seria bem menor. O que ele não podia fazer era correr para a Grande Sacerdotisa e dizer que Aphrodite simpatizava com a Resistência. Isso não seria “tudo bem”. Seria fatal.
O que diabos vampiros como Stark e os Guerreiros Filhos de Erebus pensam que aconteceu com todas aquelas Grandes Sacerdotisas que Neferet rebaixou e mandou que calassem a boca? Que elas apenas sumiram em alguma Morada da Noite fajuta do interior para rezar pelo resto da vida em isolamento?
Aphrodite sabia bem o que acontecia. Ela testemunhou o que Neferet tinha feito com elas. Nyx enviou essa visão. E essa era uma visão que Aphrodite não havia compartilhado com ninguém.
– Você quer mais champanhe?
Aphrodite automaticamente estendeu sua taça para ser enchida de novo. Então ela olhou para o garoto fedido ao seu lado. Ela ficou surpresa ao reparar que ele obviamente era de origem indígena. Ela não tinha percebido isso antes. Se ele trocasse aquelas roupas horríveis que vestiam mal e tomasse alguns cuidados pessoais – ele realmente precisava de um corte de cabelo... e tirar aquele fedor –, podia até ficar bonitinho. Mesmo. Ela também não tinha percebido isso antes. Bom, para ser justa, depois de sentir aquele cheiro, ela mal tinha olhado para ele.
Só que ele não tinha aquele cheiro quando conversou com ela no jardim na outra noite.
– Quantos anos você tem? – ela perguntou a Kevin.
Ele pareceu surpreso com a pergunta.
– Dezesseis.
– Não é jovem demais para ser tenente?
Ele assentiu.
– Sim. Eu sou o tenente mais jovem do exército.
– Quando você se Transformou? – ela questionou.
– Quase um ano atrás. – Ele fez uma pausa e então continuou: – Quando você se Transformou?
– Quando eu tinha mais do que dezesseis anos – ela respondeu. Aphrodite queria perguntar o porquê de ele não estar fedendo como a morte na noite anterior, mas de jeito nenhum ela ia deixar o Dickless e o Cara do Arco ouvirem isso. De jeito nenhum ela queria aqueles dois mais metidos nos assuntos dela do que eles já estavam. – Você é uma criança. Não é de se admirar que nunca tenha provado champanhe.
Ela virou a cabeça com arrogância para olhar para fora da janela, desejando que estivesse em qualquer outro lugar.
Outro Kevin
A conversa morreu depois que Aphrodite disse que ele era apenas uma criança. Ela não olhou mais para ele. Ela não se endereçou mais a ele. Ela continuou, é claro, estendendo a sua taça de tempos em tempos para que ele a enchesse de champanhe.
Cara, ela bebe champanhe rápido!
Tudo o que Kevin podia fazer era ficar ali sentado observando com um pavor crescente enquanto o Hummer percorria mais quilômetros e se aproximava cada vez mais daquilo que muito provavelmente seria uma horrível tragédia.
E se aquele pássaro não chegou até Dragon?
Não, ele não se permitiria pensar isso. Ele estava fazendo tudo o que podia. Ele tinha enviado informações. Ele estava junto com os soldados porque talvez houvesse algo que ele pudesse fazer no meio da batalha para ajudar as pessoas a escapar do Exército Vermelho. A essa altura, Kevin não dava a mínima se seria descoberto ou não. Ele não ficaria parado vendo inocentes serem massacrados por monstros.
– Ei, abra mais uma garrafa.
Aphrodite empurrou mais uma garrafa de champanhe na direção dele. Kevin não tinha nem percebido que ela já tinha matado a primeira. Enquanto tirava a rolha, ele olhou de relance para Aphrodite. Ela parecia mal.
Bom, isso não era totalmente verdade. Ela era linda. Isso não havia mudado. Mas ela estava tão magra e pálida! Olheiras escuras estavam aparecendo mesmo que ela tentasse cobri-las e, quando ela não estava bebendo champanhe, a boca dela virava uma linha rígida.
– Quanto falta para a Lone Star Road? – Aphrodite perguntou enquanto ele enchia a taça dela.
Stark apontou para o semáforo a cerca de um quarteirão na frente deles.
– Vamos virar ali, na Hickory. Daí uns dois quilômetros e meio depois a gente entra à direita na Lone Star. Nessa hora vou precisar que você esteja acordada e alerta. – Stark olhou por sobre o seu ombro para ela e franziu a testa. – Então, pegue leve aí com esse champanhe.
– Ah, relaxe, Vovô. Eu sou uma vampira, lembra? Não consigo ficar bêbada. Não consigo nem ficar exaltada. Bom, a menos que eu misture um pouco de Xanax com esta bebida... o que me lembra de algo. – Ela enfiou a mão dentro da bolsa gigante que estava no assento entre eles, pegou um pequeno pote de comprimidos e o sacudiu para tirar algumas pequenas pílulas ovais, que engoliu junto com champanhe. – E eu sou uma profissional.
– É bom que seja. Neferet conta com isso – Stark disse.
– Tá, tá, tá. Eu vou reconhecer o maldito campo. Preocupe-se com o seu exército de zumbis, não comigo.
Stark virou para a frente de novo e esfregou a testa.
Kevin continuou observando Aphrodite até que ela encontrou os seus olhos. Então, com uma voz baixa o bastante para não ser ouvido no banco da frente, ele falou:
– Você sabe como isso vai ser ruim. Não a julgo por beber e tomar isso aí. – Ele apontou um dedo para o pote de comprimidos que estava aparecendo para fora da bolsa dela.
Ele achou que ela faria outro comentário sarcástico, mas então o rosto dela mudou. Os seus ombros desabaram e ela assentiu com tristeza, sussurrando:
– Vai ser bem pior do que só ruim.
– Eu não vou deixar que você se machuque – ele disse baixinho.
Ela o encarou com seus olhos azuis grandes, lindos e assombrados.
– Eles são crianças. Mais novos do que você. Eu sei. Eu vi tudo. E agora vou ter que ver de novo. – Ela balançou a cabeça e enxugou uma única lágrima nervosamente.
Ele sustentou o olhar dela e disse muito claramente, mas com a voz bem baixa:
– Não se eu puder impedir isso.
Uma surpresa faiscou nos olhos dela, e então Stark interrompeu:
– Ok, esta é a Lone Star Road. Hora de você fazer o seu trabalho.
– Eu já fiz o meu trabalho. Eu profetizei. Isto aqui não tem nada a ver com o meu trabalho. Tem a ver com Neferet querer me punir, mas que seja. Já sou bem grandinha. Diga ao Tenente Dickless para ir devagar para que eu possa conferir essas plantações. A que eu estou procurando é grande. Lembro de um bosque de nogueiras-pecãs do outro lado da rua. Ah, e tem árvores na beirada do campo, apesar de uma grande parte da lateral da estrada ser aberta, então nós devemos conseguir ver a maioria da plantação.
– De que lado da estrada fica a plantação? – Stark perguntou.
Aphrodite pensou um pouco e então respondeu:
– À nossa esquerda. – Eles dirigiram por apenas mais um quilômetro pela estrada vazia e Aphrodite apontou um local. – É ali! Eu reconheço aquele monte de árvores.
Kevin deu um pequeno suspiro de alívio. O campo ainda estava a alguns quilômetros de distância da montanha onde a Resistência estava se escondendo. Aquela era uma pequena coisa boa em um amontoado gigante de coisas ruins.
Aphrodite estava olhando para fora da janela à sua direita.
– E ali está o bosque de nogueiras-pecãs. Ok, continue só mais um pouco. Deve ter um... sim, ali está o portão. Vire aqui.
Dallas dirigiu o Hummer através de um portão aberto e entrou em um grande campo de feno recém-cortado. E, claro, estacionado logo do lado de dentro estava o reboque de um caminhão, cheio de enormes fardos arredondados.
– Pare! – Stark falou rispidamente. – Faça com que o comboio bloqueie o portão para que eles não possam sair por ali. – Ele começou a abrir a sua porta antes de o Hummer parar completamente, gritando ordens. – Dallas, saia com esses soldados do comboio e faça com que eles cerquem o reboque. Tenente Heffer, fique neste veículo com Aphrodite. O seu trabalho... o seu único trabalho é cuidar para que ela não seja devorada acidentalmente hoje. Você consegue fazer isso?
– Sim, senhor!
Sem nem mais um olhar, Stark e Dallas saíram do Hummer. Kevin podia ouvir Dallas gritando ordens para o comboio. Stark tinha pegado o seu arco e estava com uma flecha encaixada nele, apontada para o fardo arredondado.
– Ele não erra. Você sabia? – A voz de Aphrodite cortou o silêncio no interior do veículo quase vazio.
– O General Stark?
– Sim, o Cara do Arco.
– Aham, eu sei. O exército inteiro sabe. Ele é uma lenda.
– Na cabeça dele – Aphrodite disse. – Dizem que ele matou o próprio mentor.
– Não sabia disso.
– Sim. É por isso que ele é tão mal-humorado. A maioria das mulheres acha isso atraente. Eu acho um tédio. Mas ele não faz o meu tipo de todo jeito.
Kevin não conseguiu se conter.
– Qual é o seu tipo?
– Alguém menos mal-humorado e com mais coração. E músculos. Eu gosto de músculos. Encha a taça, Kev. Estou finalmente começando a sentir a onda.
– Você acha mesmo que é uma boa ideia?
– Sinceramente?
– Sim. Eu gosto de sinceridade.
– Ok, vou ser sincera. Não importa se eu beber ou não. Isso não vai mudar o que vai acontecer e não vai me fazer esquecer que eu vou ter que assistir isso acontecer de novo. E já que estamos sendo sinceros... ninguém liga a mínima se fico bêbada ou não, exceto eu mesma, e já que eu tenho que assistir a crianças sendo devoradas por monstros, prefiro estar bêbada.
– Esse é um bom ponto – Kevin encheu a taça dela. – Mas eu me importo se você fica bêbada.
Ela encontrou o olhar dele.
– Por quê?
– Nós ainda estamos sendo sinceros?
– Que tal isto: enquanto a gente estiver sozinho, vamos ser sinceros. Feito?
– Feito – Kevin concordou, e o seu coração deu uma palpitação estranha quando o olhar dela não desviou do seu, e pela primeira vez ela se pareceu exatamente com a sua Aphrodite. Aquela que o havia beijado no mundo de Zo e tinha dito a ele para encontrá-la neste mundo.
– Então, por que você se importa se eu estou bêbada ou não?
– Porque eu sei que você é melhor do que isso.
Ela bufou.
– Isso é uma coisa louca de se dizer.
– Por quê?
Ela abriu a boca para responder, mas foi interrompida por uma torrente de vampiros passando correndo pelo veículo para cercar o reboque.
– Merda. Começou. Não consigo olhar. – Ela abaixou a cabeça, olhando fixamente para os seus pés. – Fale quando tudo estiver terminado.
– Ok, mas eu vou ficar te contando o que está acontecendo. Era assim que a minha irmã assistia a filmes de terror comigo quando a gente era pequeno.
Os olhos dela encontraram os dele.
– Do que você está falando?
– Bom, eu adorava filmes de terror. Minha irmã odiava, mas ela não me deixava assistir sozinho, senão eu tinha pesadelos e ia pra cama dela. Então, ela se sentava comigo, mas tampava os olhos com as mãos, e me pedia para descrever o que estava acontecendo porque ela falava que era menos assustador quando eu contava a história para ela.
– Ok, acho que vou experimentar. Se você continuar enchendo a minha taça.
– Pode deixar. – Kevin encheu a taça dela e começou a fazer os seus comentários: – Eles cercaram os fardos redondos. Stark está com o arco apontado para o primeiro, e Dallas... – Kevin fez uma pausa e sorriu para Aphrodite. – Ei, apesar de eu não poder rir alto quando você falou aquilo na frente de Stark, quero que saiba que rachei de rir com o apelido que você deu para ele.
– Ah, você quer dizer o Tenente Dickless. Não considero isso um apelido. É um fato.
Kevin deu uma gargalhada e depois voltou a descrever o que acontecia.
– Então, o Tenente Dickless está com uma espada longa, se aproximando do primeiro fardo. Ah, merda. Ele vai enfiar a espada dentro...! – Kevin ofegou de susto.
– O quê? O que aconteceu?
– Ele enfiou a espada dentro do fardo e nada aconteceu. Agora, ele está golpeando o fardo sem parar. É só um fardo de feno. Não tem ninguém dentro! – Ele pensou que Aphrodite ficaria feliz, mas ela continuou bebendo e olhando para as botas na altura do joelho que estava usando. – Hum, você me ouviu?
– Sim, ouvi. Continue assistindo. Nem todos os fardos têm pessoas dentro. A Resistência não ia encher tanto o saco de Neferet se eles fossem assim burros.
– Ah, bem pensado. Ok. Estou vendo tudo. Eles estão indo para o próximo fardo. – Kevin prendeu a respiração e então soltou o ar em um suspiro. – É só feno também. Agora eles estão indo para um fardo no fundo.
– Isso não é uma notícia boa. Eu sei. Eu estava escondida nesse fardo.
– Você?
– Não literalmente. Quando tenho uma visão, eu sempre vejo tudo pelo ponto de vista de quem está morrendo, normalmente de um jeito horrível. É por isso que para mim é difícil dar detalhes específicos, pois eu sinto tudo que essa pessoa que está morrendo sente.
O estômago de Kevin se revirou.
– Deve ser horrível.
– É pior do que isso.
Ele continuou assistindo.
– Droga. Eles estão no próximo fardo. Ok, ele está perfurando o fardo e... merda. Ele atingiu alguma coisa.
– Mas não é uma pessoa.
– Não, ele atingiu alguma coisa dura, e só a ponta da espada desapareceu dentro do fardo.
– Isso é porque não é um fardo de verdade. O interior é oco e tipo uma roda. Há uma porta do lado para entrar e sair. De algum jeito, eles colocam feno do lado de fora da roda. Do lado de dentro tem espaço para, hum, umas quatro pessoas grandes, ou dois adultos e três ou quatro crianças. Ei, eu vou fechar os olhos e tampar os ouvidos quando eles começarem a gritar.
– Eles encontraram um trinco e estão abrindo. – Kevin engoliu a vontade de vomitar. Ele também queria tampar os olhos. E então um alívio o invadiu. – Está vazio!
– Sério?
– Sim, olhe!
– Não. Não vou olhar até eles checarem todos. Pelo menos metade dos fardos nesse reboque e no outro estão cheios de gente.
– O outro?
– Sim, há dois reboques.
– Hoje não tem. Só tem um. Aphrodite, olhe. Eles estão abrindo os outros. Estão todos vazios! – Kevin não tentou esconder a alegria e o alívio que estava sentindo.
– Por que você está feliz?
Ele desviou o olhar dos fardos vazios e virou-se para Aphrodite, que estava olhando para ele e não para a cena se desenrolando com zero de violência na frente deles. Ele encontrou os olhos dela. E decidiu dizer a verdade.
– Porque eu não quero que ninguém mais morra.
– Mas você é um vampiro vermelho. Você só se interessa em comer e matar.
– É realmente assim que você me vê? – Kevin perguntou.
– Por que você não estava fedendo ontem?
– Porque eu...
Toc-toc-toc! Kevin e Aphrodite deram um salto quando Stark bateu no vidro.
– Vocês dois podem sair. Parece que chegamos cedo demais – Stark gritou através da janela antes de voltar para o grupo de soldados que estava tentando remontar os fardos esburacados.
Aphrodite suspirou.
– Traga a garrafa.
– Ei, por que você não fica aqui dentro? Eu vou lá fora e digo que você não está se sentindo bem.
– E deixar o Cara do Arco me entregar para Neferet, dizendo que eu fiquei escondida no Hummer mesmo quando não tinha nenhuma batalha acontecendo? Isso seria uma desculpa perfeita para ela me enviar junto com o Exército Vermelho de novo. Não, é melhor eu sair.
Kevin desceu apressado do Hummer e deu uma corridinha até o lado dela, abrindo a porta para Aphrodite.
– Obrigada. Eu gosto de boas maneiras. Alguém criou você direito.
– Obrigado. Foi principalmente a minha irmã.
– Essa irmã de novo. Talvez algum dia eu a conheça – Aphrodite disse ao estender a mão.
Kevin pegou a mão de Aphrodite e a segurou cuidadosamente enquanto a ajudava a descer do veículo.
– Tenho um pressentimento de que vocês duas iam se dar muito bem.
Aphrodite bufou.
– Então ela deve ser um pé-no-saco.
– Ah, você não sabe o quanto – Kevin disse.
10 Sem pênis, em inglês. (N.T.)
19
Outra Aphrodite
– Tem certeza de que este é o campo certo? – Stark perguntou a Aphrodite.
– Positivo.
– E este foi o único reboque que você viu com fardos de feno?
– Este foi o reboque que eu vi durante a minha visão. Eu estava no meio daquele fardo ali. – Ela apontou. – Não sei o que mais dizer a você. Não sei por que não tem ninguém dentro. A gente deve ter chegado cedo demais. – Aphrodite escolheu suas palavras com cuidado. Ao contrário do que Neferet, Stark e o resto podiam pensar, ela detestava mentirosos. Ela havia sido criada por uma e, desde cedo, tinha jurado que pelo menos uma coisa iria fazer: ao contrário da sua mãe, ela ia tentar falar a verdade sempre. E era isso que ela estava fazendo. Tecnicamente, falando a verdade. Claro, ela estava contando algumas coisas, mas Stark teria que ser bem mais específico com as suas perguntas para que ela revelasse tudo.
– Então está bem. Tenente Dallas, primeiro faça com que os veículos e os homens se escondam naquele bosque de nogueiras-pecãs do outro lado da pista. Mantenha cada maldito soldado do Exército Vermelho dentro daqueles veículos. Não queremos que a Resistência sinta o cheiro de nenhum antes de chegar. E nada de luzes e de barulho. Nada. Lembre a esses soldados que a única maneira de eles se alimentarem hoje é se a Resistência cair na nossa emboscada. Depois volte aqui com alguns oficiais e arrumem esses fardos de novo. Pelo menos o suficiente para que a Resistência não perceba que foram remexidos até que seja tarde demais. Vamos esperar lá fora e capturá-los quando finalmente aparecerem. – Ele voltou seu olhar para Aphrodite. – Você consegue dizer que horas o ataque aconteceu?
– Não. Desculpe. Eu estava ocupada demais sendo devorada para olhar para o relógio.
Stark franziu o cenho para ela e então continuou falando com Dallas.
– Ok, vamos esperar o máximo que der, mas o Exército Vermelho precisa voltar para os túneis antes do amanhecer. E lembre a esses soldados que eles podem comer só os humanos. Novatos azuis e vampiros azuis devem ser capturados vivos.
– Sim. Vou dizer a eles, senhor. Mas eles são burros, então não espere muita coisa. – Dallas bateu uma continência desleixada e começou a berrar ordens.
Aphrodite achou difícil parar de olhar para os soldados do Exército Vermelho. Ela nunca havia estado perto de tantos deles antes. Ela sentia quase tanta pena quanto nojo. Eles estavam vagando ao redor do reboque e dos fardos de feno vazios, parecendo agitados e confusos. Ela achou que vários deles estavam babando.
– Aphrodite, pode entrar no nosso veículo líder com o Tenente Heffer. Heffer, você sabe dirigir, certo?
– Claro – o garoto respondeu.
– Então, dirija o veículo até o outro lado da pista e espere lá.
– Na verdade, eu preciso de um pouco de ar puro antes – Aphrodite falou. – Eu vou dar uma volta.
– Não é uma boa ideia – Stark disse. – Se a Resistência estiver por aqui, você não estará segura.
Ela levantou as sobrancelhas para ele.
– Não estou segura? Há uma horda inteira de vampiros vermelhos vorazes a um grito de distância. Além do mais, você está aqui. Com o seu arco infalível. Tenho certeza de que vou ficar bem.
O suspiro de Stark foi cheio de irritação.
– Heffer, siga a Profetisa. Aphrodite, não demore muito. A Resistência pode aparecer a qualquer minuto, e juro que você não vai querer estar aqui fora quando a briga começar.
– Ah, por favor. Eu já estive aqui quando a briga começou. Foi por isso que tive que me juntar a vocês nesta bagunça de merda, lembra?
Ela deu as costas para Stark, Dallas e aquela horda de coisas vermelhas e começou a caminhar com cuidado através da plantação até a fileira de árvores no lado mais distante do terreno. Ela não precisou olhar para trás. Ela estava certa de que Kevin estava seguindo atrás dela. Ela não se importava. Uma sensação de alívio que a deixou tonta havia inundado o seu corpo desde que ela viu apenas um reboque sem nenhum membro da Resistência escondido dentro dele.
Havia dois reboques na minha visão. Eu estava em um deles, mas tinha outro. Ainda mais cheio de novatos e jovens humanos. Mas ele se foi! Deusa, por favor, permita que eles tenham conseguido fugir. Por favor, não deixe que eles voltem hoje à noite. Por favor, por favor, por favor.
Ela escutou o barulho de água corrente quando se aproximou da fileira de árvores. A vegetação se alterou do feno caprichosamente cortado para o gramado alto do inverno e o que pareciam arbustos de amoras. Aphrodite abriu caminho contornando um aglomerado de plantas adormecidas e uma muralha de cedros perenes para olhar para baixo para um pequeno riacho.
E então a mente dela não entendeu o que ela estava vendo.
Tem pessoas ali embaixo?
Na água? Logo abaixo de mim?
Que diabos é isso?
Ela deve ter feito algum barulho. Deve ter ofegado de choque, pois a última pessoa da fila que estava andando no riacho com água na altura do quadril virou a cabeça e levantou os olhos para ela.
A lua refletiu na água, intensificando a sua luz tênue de modo a tornar claramente visível a tatuagem safira ornamentada com dragões cuspindo fogo em um crescente no meio da testa do vampiro.
Aiminhadeusa! É Dragon Lankford! O olhar de Aphrodite percorreu a fila silenciosa de pessoas e ela reconheceu vários deles da sua visão. É a Resistência! Eles foram avisados! Eles não foram massacrados!
Ela não teve tempo para pensar demais no assunto. Aphrodite agiu por instinto. Ela desceu apressada alguns passos para chegar mais perto do barranco na margem do riacho. Encarando Dragon, ela pronunciou com a boca sem emitir som, fazendo gestos com a mão para indicar o mesmo: Vão embora! Fujam!
E então tudo aconteceu muito rápido.
Dragon Lankford saiu do riacho e saltou para cima do barranco. Ela tentou retroceder com dificuldade. Tentou fugir, mas o salto de uma de suas botas Jimmy Choo afundou em um buraco e quebrou. Aphrodite caiu de bunda no chão com força, derrubando a sua garrafa de champanhe quando ela perdeu o fôlego.
Dragon a alcançou facilmente. Ele a agarrou, levantando-a para que ficasse em pé e tampando a boca dela com a mão. Ele pressionou uma adaga contra o pescoço dela e sussurrou diretamente no seu ouvido.
– Se você fizer um barulho, corto o seu pescoço. Você vem comigo. – Ele se virou para que a fila de novatos, vampiros e jovens humanos em retirada pudesse vê-lo. Dragon fez o mesmo gesto para que eles seguissem em frente e falou em voz baixa em direção à água: – Vão indo! Até o local seguro!
Ele começou a arrastá-la até o riacho.
E então Kevin estava lá. Ele surgiu depois de atravessar a fileira de cedros olhando em volta, obviamente procurando por ela. O coração de Aphrodite bateu forte no seu peito, enchendo a sua corrente sanguínea de adrenalina e pânico. Eu tentei ajudá-los! E agora eles vão matar Kevin e provavelmente atrair a atenção de Stark e a ira do Exército Vermelho sobre eles! Todos vão ser massacrados como foram na minha visão!
Só que não foi isso o que aconteceu. Foi algo muito mais estranho.
Kevin olhou para baixo. Aphrodite percebeu o instante em que ele a viu com Dragon e a fila de novatos, humanos e vampiros fugitivos caminhando com dificuldade pela água. Kevin não pegou nenhuma arma. Kevin não gritou para Stark. Em vez disso, ele desceu a margem correndo até eles.
– Dragon! Não! Não a machuque! – Kevin sussurrou freneticamente quando chegou mais perto deles.
– Eu não a estou machucando. Estou sequestrando.
– Por quê? – Kevin perguntou.
– Sem essa, Kevin. Você sabe por quê. Se eu não fizer isso, ela vai nos entregar para o Exército Vermelho. E ela é uma Profetisa de Nyx. Ela tem visões. Mesmo se ela não quiser compartilhar as visões conosco, nós podemos usá-la. Neferet vai fazer praticamente tudo para ter a sua Profetisa de volta.
Aphrodite bateu na parte de trás da mão de Dragon que estava cobrindo a sua boca.
– Hum, acho que ela quer que você tire a mão da boca dela – Kevin disse. – E seria legal se você abaixasse essa adaga também.
– Imagino que o Exército Vermelho está lá em cima. – Dragon apontou o queixo na direção do campo de feno.
Aphrodite assentiu tão vigorosamente quanto pôde com uma lâmina contra o seu pescoço, e então ela tentou dizer “Eu estava dizendo para vocês irem embora daqui!”, mas, é claro, as palavras saíram como um resmungo confuso e nervoso por trás da mão de Dragon.
– Sim. Stark está lá em cima com cerca de cinquenta soldados vermelhos e vários oficiais vermelhos e azuis. – O olhar de Kevin se voltou para o riacho e para a fila de pessoas que continuavam a retroceder na direção da montanha e da segurança. – Você recebeu a minha mensagem.
– Sim. E agora eu tenho esta Profetisa também. Vou levá-la para o quartel-general. Junte-se a nós quando puder.
– Dragon, sério, se você sequestrar Aphrodite, como é que você vai ser diferente de Neferet?
– Como você pode me perguntar isso? Se nós fôssemos iguais a Neferet, eu já teria cortado o pescoço dela. E, de qualquer modo, eu não posso soltá-la. Agora ela sabe que você está trabalhando conosco, o que coloca todos nós em risco.
Kevin encontrou o olhar de Aphrodite.
– Você nos dá a sua palavra de que não vai gritar nem fazer qualquer coisa para atrair a atenção de Stark se Dragon tirar a mão da sua boca?
Aphrodite assentiu.
– Eu confio nela – Kevin afirmou. – Se ela diz que não vai gritar, não vai. Aphrodite diz a verdade. Certo?
Aphrodite assentiu de novo.
– Não é sábio confiar nela – Dragon disse.
Kevin abriu o sorriso.
– Foi a mesma coisa que você disse sobre mim.
O Guerreiro suspirou.
– Certo, escute bem. Vou tirar a mão da sua boca – Dragon falou no ouvido de Aphrodite –, mas não vou tirar a minha adaga do seu pescoço. Se você fizer qualquer coisa para trazer soldados até nós, vai ser a primeira a morrer. Entendido?
Aphrodite assentiu mais uma vez. Lentamente, Dragon tirou a mão da boca dela.
– Seu idiota! – Aphrodite sussurrou para ele. – Você me viu dizendo para vocês fugirem. Você sabia que eu não ia chamar o exército. Você agiu como um babaca de merda indo até lá em cima e me arrastando! – Ela voltou sua atenção para Kevin. – Eu sabia que você era diferente. Que diabos está acontecendo aqui?
– É uma longa história, mas eu prometo que vou te contar tudo. Primeiro, Dragon e o resto do seu povo precisam escapar – Kevin respondeu.
– E ela ainda precisa vir com a gente – Dragon disse.
– Eu não vou com vocês merda nenhuma. – Aphrodite o fuzilou com os olhos. – É melhor você cortar o meu pescoço agora.
– E, se você fizer isso, vai ser igual a eles – Kevin acrescentou. – Além do mais, aposto que Anastasia vai ficar super irritada com você.
– Isso sem falar no que vai acontecer se eu não voltar lá para cima logo. Stark vai vir para cá procurando por mim. E o que diabos você acha que ele vai fazer se não me encontrar? Simplesmente deixar você e o seu grupo nadarem de volta para casa?
Dragon franziu o cenho para Aphrodite, mas tirou a adaga do pescoço dela.
– E agora? – Dragon perguntou.
– Agora vocês têm que sair daqui. Rápido. Stark vai...
– Aphrodite! Heffer! Que inferno, onde vocês estão? – a voz irritada de Stark lá no alto chegou até eles.
Aphrodite não hesitou. Ela colocou as mãos ao redor da boca para amplificar o som e gritou para o alto do barranco.
– Vá embora! Estou fazendo xixi! Como se já não fosse ruim o bastante ter um vampiro vermelho fedorento me seguindo por aí e eu ter quebrado o maldito salto da minha bota Jimmy Choo aqui neste mato idiota. Posso ter um pouquinho de privacidade?
– Ela está bem, General! – Kevin acrescentou. – Ela está logo atrás de um monte de arbustos. Eu quase consigo vê-la e...
– Não se atreva a olhar! – Aphrodite berrou, fazendo toda a fila de pessoas em retirada congelar e olhar para ela. – Eu juro pela Deusa, se vocês dois me fizerem perder a paciência, vou contar para Neferet que vocês me trataram como merda, com zero respeito. Não importa o quanto ela possa estar irritada comigo, ela definitivamente não vai tolerar que a Profetisa dela seja desrespeitada!
Houve uma pausa em que os três prenderam a respiração, então a voz de Stark – que continuava irritada – finalmente respondeu.
– Só ande logo! Isto não é um maldito piquenique.
– Eu não vou andar logo! Vou levar o tempo que precisar fazendo xixi! E você pode levar esse tenente fedido de volta com você! – Aphrodite gritou e então sussurrou para Kevin. – Suba lá rápido e cuide para que ele não venha para cá.
– Entendido. – Antes de sair, ele olhou para Dragon. – Você vai deixar que ela volte, certo?
– Sim. Eu vou deixar – ele disse com óbvia relutância.
Então Kevin subiu o barranco e passou correndo pelos cedros. Aphrodite e Dragon permaneceram totalmente imóveis até ouvirem os sons de dois homens se afastando do riacho.
Aphrodite deu um longo suspiro de alívio e então percebeu que Dragon a estava encarando.
– O que é? – ela disse rispidamente.
– Por que você fez isso?
– Porque eu não quero mais ninguém sendo massacrado por esses malditos vampiros vermelhos.
– Você não está do lado de Neferet? – Dragon perguntou.
– Não. Eu estou do meu próprio lado.
– Então como posso confiar que você não vai nos trair?
Ela encolheu os ombros.
– Não faço ideia. Você só vai ter que dar um salto de fé. Meu palpite é que é o mesmo tipo de salto que você deu para confiar em Kevin.
– Ele se provou digno de confiança.
– Não foi isso o que eu acabei de provar?
Eles ficaram se encarando até que finalmente Dragon desviou o olhar.
– Eu vou embora agora. Com o meu povo.
– Certo. Eu vou esperar o máximo que posso e então voltar para a plantação. Ah, o Exército Vermelho está escondido no bosque de nogueiras-pecãs do outro lado da pista, então não voltem.
– Não vamos voltar.
– Vocês tiraram um caminhão daqui antes de os soldados aparecerem? – ela perguntou.
Ele hesitou, mas respondeu.
– Sim.
– Ótimo. Era o que eu esperava quando vi apenas um reboque lá em cima.
– Você disse a eles que havia outro?
– Ah, que merda, claro que não. Como eu já disse, estou cansada de ver pessoas sendo massacradas pelo Exército Vermelho – Aphrodite respondeu.
– Mas você ainda está contando suas visões para Neferet – Dragon observou.
– Eu estou fazendo o que tenho que fazer para sobreviver. Assim como você. – Aphrodite fez uma pausa e então teve que perguntar: – Anastasia está bem?
– Sim. Ela está segura.
– Diga a ela que fico feliz por isso.
Ele continuou olhando para ela antes de dizer:
– Você pode se juntar a nós, sabe. Depois do que você fez aqui hoje, nós a aceitaremos.
Aphrodite ignorou a palpitação de esperança que sentiu. Como seria fazer parte de algo nobre como a Resistência? Ter amigos? Não se sentir tão sozinha o tempo todo?
Mas eles não iriam querê-la. Não se eles soubessem da verdade.
– Vou manter isso em mente. E, ahn, obrigada pelo convite.
Ele assentiu com um grunhido antes de se virar e voltar para o riacho. Ele gesticulou para que a fila continuasse a se mover de novo, e Aphrodite os observou desaparecendo assim que o curso de água virou para a direita. Então ela espanou terra, folhas e sabe a Deusa o que mais do seu traseiro, subiu o barranco e voltou mancando para o campo de feno.
Stark e Kevin estavam parados na frente do Hummer líder. O resto havia desaparecido – ela presumia que estavam dentro do bosque do outro lado da pista.
Sem hesitação, Aphrodite marchou na direção de Stark.
– Estou indo embora.
– Sinto muito. Não vai dar. Esta noite está apenas começando – Stark disse.
– Oh, você me entendeu mal. Eu não pedi a sua permissão. Eu não preciso da sua permissão. Eu sou uma Sacerdotisa e uma Profetisa de Nyx. A nossa sociedade ainda é matriarcal, certo?
Stark pareceu surpreso com a pergunta.
– Sim, claro que é.
– Exatamente. Então, eu sou superior a você. Na verdade, eu sou superior a todos vocês, exceto Neferet. Então deixe-me repetir. Estou indo embora. Ah, e esse garoto fedido vai me levar para casa. Estou finalmente sentindo o efeito do Xanax e da bebida... melhor não dirigir.
– Veja bem, Aphrodite, Neferet disse que você deveria... – Stark começou, mas Aphrodite calou a boca dele com um gesto abrupto.
– Eu sei exatamente o que Neferet disse. Eu deveria me juntar a vocês nesta missão. Eu fiz isso. Eu deveria localizar a plantação correta e indicá-la para você e as suas criaturas vermelhas. Fiz isso também. E agora chega. Eu não vim aqui para acampar. Eu não vim aqui para ficar sentada cantando canções de guerra com um monte de soldados. E eu acabei de quebrar o salto de uma bota que custou quase dois mil dólares fazendo uma caminhada por aí na natureza. Deusa! Eu simplesmente não posso mais aguentar isso. Estou indo embora. E você, General Cara do Arco, pode ir direto para o inferno. – Ela olhou para Kevin. – Bora, Fedido.
Kevin olhou para Stark, que passou a mão pelo seu cabelo grosso e suspirou. De novo.
– Tudo bem. Podem ir. Mas eu vou contar para Neferet que eu aconselhei você a ficar.
– Tanto faz. Você acha que Neferet ficaria aqui fora a noite inteira se não tivesse nenhuma coisa acontecendo? – Ela deu as costas a eles e foi até o lado do passageiro do Hummer, onde ficou, batendo o pé freneticamente, esperando que Kevin abrisse a porta para ela, o que ele fez antes de dar uma corridinha contornando o carro para assumir a direção.
Ela deixou que ele manobrasse para fora do campo e entrasse na Lone Star Road para começar a falar.
– Pode contar tudo o que sabe. Agora.
20
Outro Kevin
Kevin contou tudo a Aphrodite. Ele começou pelo fato de que já era diferente desde que foi Marcado – que tinha conseguido reter parte da sua humanidade mesmo depois de ter se Transformado no vampiro vermelho mais jovem da história. Ele contou que foi transportado para um mundo alternativo onde havia outra Morada da Noite e o que aconteceu com os outros vampiros e novatos vermelhos que também estavam lá.
E então Kevin contou sobre a gêmea dela no Outro Mundo – ou pelo menos o máximo que sabia sobre aquela Aphrodite. Contou que havia sido o sacrifício dela que salvou os novatos vermelhos do seu mundo e que foi o dom que ela recebeu de Nyx que o tinha salvado, além dos vampiros vermelhos que continuavam vivos no mundo de Zo.
Kevin também contou a ela sobre Neferet – como ela havia se tornado imortal e quase destruído primeiro Tulsa e depois o mundo inteiro. E como Zoey e o seu grupo tinham sido mais inteligentes do que ela e a aprisionado. Para sempre.
Então o silêncio preencheu o interior do veículo. Ele deu uma olhada para Aphrodite. Ela não estava bebendo. Ela estava encarando Kevin com uma expressão de olhos arregalados, mas indecifrável.
Finalmente, ela falou:
– Então, a Zoey, que é sua irmã lá, ela e eu trabalhamos juntas na Morada da Noite de Tulsa?
– Bem, sim, mas é mais do que isso. Vocês duas são amigas. Grandes amigas.
Ela continuou encarando Kevin. Quando ele tirou os olhos da estrada e se virou para ela rapidamente, viu um instante de dor no rosto dela. Então, com voz bem baixa, Aphrodite falou:
– Por isso que Neferet achou que você parecia familiar. E, agora que estou observando... eu vejo a semelhança também. Você é irmão de Zoey Redbird. A Zoey Redbird que foi assassinada há mais de um ano.
– Sim, é isso que estou dizendo a você. Só que ela está viva naquele Outro Mundo. Então, você conhecia a minha irmã antes da morte dela?
– Não. Na verdade, não.
– Mas você disse que nós somos parecidos... e Neferet meio que me reconheceu também. Zo deve ter sido marcante para você.
– Sim. Ela me marcou, sim. Ou pelo menos a morte dela marcou. – Então Aphrodite apontou para a Quick Trip na esquina da Rua Cinco com a Denver. – Pare naquele estacionamento. Preciso contar uma coisa e não quero que você surte e cause um acidente.
– Ei, você não precisa se preocupar comigo. Eu não surto facilmente.
– Só faz o que mandei – ela disse.
Ele entrou no estacionamento.
Quando ele parou o veículo, Aphrodite se virou no seu assento para poder olhar para o rosto dele.
– Ok, eu não queria contar isso para você, mas provavelmente iria descobrir de qualquer jeito. Tenho certeza de que Anastasia sabe. – Aphrodite encolheu os ombros, parecendo derrotada. – E eu detesto mentir. Eu nem gosto de omitir. Então, aí vai. Eu não conhecia a sua irmã. Neferet dissolveu a organização das Filhas das Trevas antes de Zoey chegar na Morada da Noite. Eu não tinha nenhum motivo para conhecê-la, porque, depois que as Filhas das Trevas se foram, não havia mais motivos para novatos me encherem o saco. Então eu fiz a Transformação e não tinha mais motivo para andar com novatos de qualquer modo. Mas eu lembro do rosto da sua irmã porque tive uma visão com ela. E Neferet se lembra do rosto dela porque eu contei a ela sobre a visão. – Aphrodite fez uma pausa, como se ela estivesse tendo dificuldade para escolher as palavras. Então ela soltou de uma vez: – Na visão, eu era Neferet. E eu vi uma novata, que não era nem uma vampira ainda, ser a responsável pela morte de Neferet.
Kevin se sentiu enjoado.
– Essa novata era a minha irmã?
– Sim.
– Então, Z estava certa quando me disse que tinha certeza de que a Neferet do nosso mundo a assassinou e fez parecer que os humanos do Povo da Fé tinham feito isso como um crime de ódio.
Ele não havia formulado a frase como uma pergunta, mas Aphrodite ainda assim respondeu.
– Sim. Neferet matou Zoey por causa da minha visão.
Kevin não sabia o que dizer. Ele desviou o olhar de Aphrodite, focando no fluxo constante de veículos, principalmente caminhões, que entravam e saíam da Quick Trip.
– Você gostava de mim do lado de lá?
A pergunta de Aphrodite surpreendeu Kevin, que deu uma resposta automática.
– Sim. Mais do que isso.
– Imagino que eu gostava de você também?
– Você me deu um beijo de despedida e me disse para encontrar você aqui.
– Ok, olhe só, o que você está me contando deve ser verdade pelo menos em parte. Você obviamente é diferente do resto dos vampiros vermelhos. E você não estava fedido na noite passada, então deve estar falando a verdade em relação a isso. – Ela encolheu os ombros delicadamente. – E essa porcaria nojenta de sangue que você usa como perfume. Mas você tem só dezesseis anos. Você é uma criança.
– Vou fazer dezessete em agosto – ele acrescentou rapidamente.
– Que seja. Você ainda é uma criança. E está me dizendo que a sua irmã e eu somos amigas do lado de lá e que você e eu temos um lance. Isso simplesmente não se parece com algo que eu faria. Com nenhuma versão de mim. Sem ofensas.
– Eu não sou uma criança. Eu sou um tenente do Exército Vermelho, que já viu mais mortes até do que você, só que comigo foram mortes reais, acontecendo na minha frente. Deixei de ser criança há muito tempo. E você precisa definir um lance. A gente não se pegou nem nada assim, mas a gente realmente tinha uma conexão, e juro que aquele beijo foi mais do que um selinho na bochecha. Ah, e lá você não é só amiga da minha irmã. Você é respeitada e amada por um monte de gente. Você é amiga de todo mundo.
– Você tem certeza absoluta disso? Eu não faço amigos com muita facilidade. Principalmente porque a maioria das pessoas é plebeia.
Kevin ficou surpreso ao se ouvir dando risada.
– Eu não sei a história inteira sobre como tudo aconteceu lá. Não tive tempo para perguntar isso pra Zo, mas você definitivamente faz parte do grupo dela, e é um grupo bem grande. Na verdade, você fez amizade com todas as Grandes Sacerdotisas que eu conheci.
– Espere aí, o quê? Pensei que você tinha dito que a sua irmã era a Grande Sacerdotisa.
– Ela é, mas tem várias Grandes Sacerdotisas na Morada da Noite dela: Stevie Rae, Shaylin, Shaunee, Kramisha, Lenobia...
– Lenobia? A professora de equitação? Ela está viva por lá?
– Está. Assim como Travis e todos os cavalos deles.
Aphrodite passou uma mão trêmula pelo seu rosto.
– Fico feliz que eles estão vivos em algum lugar.
Kevin a observou.
– Ah, entendi. Ninguém da Resistência vazou a localização de Keystone. Você teve outra visão. Você contou para Neferet, e Neferet enviou o Exército Vermelho para acabar com eles.
– Sim. Você quer dar meia-volta e me levar para Dragon de novo para se vingar?
Ela falou sem se alterar – até soou meio arrogante, mas Kevin viu como o rosto dela ficou pálido e como as mãos dela tremiam tanto que ela teve que juntá-las em seu colo.
Ele não respondeu à pergunta dela. Em vez disso, fez outra.
– Na verdade, eu acho que você não gosta de toda essa matança. Então, por que você fez isso?
– Eu contei a ela sobre Zoey porque antigamente eu ainda acreditava que Neferet estava a serviço de Nyx. Quer dizer, abater alguns humanos parecia bom. Quem não está farto daquela coisa idiota de racismo e misoginia deles? Pelo amor da Deusa. Essa merda tem que ficar tão extinta quanto os dinossauros.
– O que isso tem a ver com você falar para Neferet matar a minha irmã?
– Essa é a questão! Eu ainda acreditava que Neferet era boa. E eu não sabia que ela iria matar a sua irmã.
– Mas você sabia que ela iria matar Lenobia e Travis. Você deve ter visto isso na sua visão.
– Eu vi. Eu também tive aquela maldita visão horrível quando estava conversando com Neferet. E-eu era Lenobia. Eu falava como Lenobia. Eu morri como Lenobia. Eu experimentei tudo com ela. A morte do seu companheiro. A morte dos seus cavalos. A morte dos seus amigos. Foi algo muito além de horrível. Eu nem percebi que estava descrevendo tudo para Neferet até depois que já tinha passado... depois que eu me recuperei da visão e ela já tinha enviado o Exército Vermelho para acabar com eles. – Aphrodite respirou fundo e enxugou as lágrimas que estavam escorrendo pelo seu rosto pálido. – Mas você está certo. Eu sou responsável pela morte deles. Eu sou responsável por todas essas mortes.
– Eu não entendo. Se você sabe como Neferet é horrível, por que você continua contando a ela sobre suas visões?
– Eu tento não contar! E quando não posso esconder que tive uma visão, tento deixar de fora qualquer detalhe que possa levar aquele maldito exército de monstros até as pessoas que eu os vejo massacrando... mas eu também quero sobreviver! Eu detestei contar a ela sobre a Resistência escondendo pessoas naqueles fardos de feno, mas eu sabia que já tinha chegado ao meu limite com Neferet. Ela ia me fazer viver nos túneis com aquelas criaturas. Eu não posso fazer isso. Simplesmente não posso.
Kevin não conseguiu dizer nada. Ele queria dizer que ela poderia se levantar contra Neferet. Que ela poderia ser forte. Ele conhecia uma Aphrodite que era forte, mas, enquanto a observava, ele percebeu que ela não era aquela Aphrodite. Ainda.
Ele colocou o Hummer em movimento e saiu do estacionamento, virando em direção ao norte para o centro da cidade.
– Você não vai me levar para Dragon?
– Não.
– Para onde você está indo?
– Para a estação. Você pode dirigir o Hummer de lá para a Morada da Noite – ele disse.
– Você não vai mesmo me entregar para a Resistência?
– Não vou.
– Por que não? – ela perguntou.
– Porque eu não sou um monstro – ele respondeu. – Eu tenho a capacidade de amar e de perdoar. Eu perdoo você. Você fez o que achou que tinha que fazer para sobreviver. Você ainda está fazendo isso. Acho que todos nós estamos.
– É assim tão ruim lá nos túneis quanto eu acho que é?
– Pior – Kevin falou.
– Eles não vão conseguir ver que você não é igual aos outros?
Kevin suspirou.
– Espero que não.
– Mas, se eles descobrirem isso, provavelmente vão te matar. Ou te devorar. – Ela estremeceu. – Ou alguma outra coisa medonha e horrível.
– Bom, eu tenho aquela gosma de sangue e estou acostumado a esconder o que realmente sinto quando estou perto de outros vampiros vermelhos. Você disse que eu estou fedendo, certo?
– Sim. Com certeza. Você não sente o cheiro?
– Tento não sentir.
Aphrodite riu alto e, quando Kevin estava se preparando para virar na rua que ia levá-los até a estação, ela disse:
– Não vire aí.
– Mas é o caminho mais rápido até a estação.
– Eu sei, mas vire à direita.
– Esse não é o caminho para a estação.
– Sim. Eu sei. Vá para a Saks.
– Ahn? – Ele estava olhando para ela sem entender e quase subiu na guia.
– Ah, que merda! Olhe por onde anda e feche a boca – ela disse.
– Por que você quer que eu a leve até a Saks?
– Shhh. Estou pensando. Apenas dirija.
Kevin fez o que ela pediu, indo até a Utica Square e a Saks Fifth Avenue, que era a loja-âncora do centro de compras ao ar livre.
– Estacione ali nas sombras na lateral, não na frente – Aphrodite o orientou.
Ele entrou em uma vaga escura e estacionou o Hummer.
– Então, imagino que devo esperar aqui fora enquanto você vai fazer compras e depois vou dirigir até a estação?
– Não. – Aphrodite enfiou a mão na sua bolsa gigante, fazendo a garrafa de champanhe intocada que sobrou tilintar contra uma das taças flûte de cristal. – Achei... venha com a Mamãe – ela murmurou enquanto pegava um cartão de crédito platinum, que entregou para Kevin. – Pegue isto aqui. Compre roupas novas para você. Roupas que não estejam fedidas e que vistam bem. E nada dessas calças jeans skinny também. Esse look hipster é ridículo. Pegue algumas camisetas também. Nada berrante. Só uma coisa simples e, repito, que não vistam mal. – Ela deu um olhar de reprovação para as roupas dele, emprestadas de Dragon, que era decididamente mais baixo e mais musculoso do que Kevin. – Pegue o suficiente para encher quatro ou cinco sacolas grandes. Ah, e não se esqueça de pegar um pijama masculino. Mantenha isto em mente quando for escolher o pijama: eu não quero ver a sua salsicha caída através dele, então pegue algo com forro.
– Estou tão confuso. – Kevin encarou o cartão de crédito. – Por que você está me dando isso?
– Você tem dinheiro suficiente para comprar quatro ou cinco sacolas de roupas da Saks?
– Claro que não.
– É por isso que estou te dando o meu cartão.
– Aphrodite, eu agradeço muito, mas o que eu estou usando está mais do que bom para os túneis.
– Sim, eu concordo. Mas não está bom o suficiente para andar comigo – ela disse.
– Quê?
Ela suspirou dramaticamente.
– Eu. Tenho. Um. Plano. Agora entre aí, faça o que eu disse e me deixe pensar em tudo.
– E se eles notarem que eu não sou Aphrodite LaFont?
Ela revirou os olhos para o alto.
– Use aquela coisa de controle mental de vampiro vermelho nessa gente simplória.
– Ah, sim. Tinha esquecido disso. Ok. – Ele começou a abrir a porta e fez uma pausa. – Hum, você precisa de alguma coisa de lá?
Ela estremeceu.
– Não. Não é a Nordstrom. Eu prefiro a Miss Jackson’s.
Ele sorriu maliciosamente para ela.
– Ei, no mundo de Zo a Miss Jackson’s fechou.
Aphrodite ergueu a mão para impedi-lo de falar mais.
– Não cometa uma blasfêmia dessas. Agora suma. E vá logo. Eu só tenho mais essa garrafa de champanhe.
– Sim, senhora. – Ele prestou uma continência para Aphrodite e então fez exatamente o que ela tinha mandado.
21
Zoey
Horda Nerd e nossos Guerreiros e companheiros!
Encontrem-me na árvore quebrada. Tragam velas de círculo
& sálvia. Muita sálvia. Estarei lá em 10 min.
Não me dei tempo para pensar melhor. Apertei o botão de ENVIAR no grupo e então voltei minha atenção para a mesa do Centro de Mídia na minha frente e para o velho livro aberto com cheiro de mofo com o título simples de Magia Antiga. Voltei folheando algumas páginas e reli o final do capítulo anterior.
Lembre-se, quando pedir o auxílio de seres de Magia Antiga, principalmente espíritos elementais, sempre há um preço. Com frequência eles se satisfazem com sangue, mas os Antigos ficam entediados facilmente e gostam de excentricidades. Eles tendem a valorizar pagamentos incomuns e difíceis de obter. Garanta que o método de pagamento é específico e garanta ainda mais que o pagamento seja feito imediatamente. Não cometa o erro de acreditar que pode escapar da dívida que fez com os Antigos. Você não irá escapar – mesmo se o pagamento requerido for a sua vida. Você irá morrer. Disso não há a menor dúvida.
– Que inferno! – eu disse para o livro e para a Grande Sacerdotisa vampira morta há muito tempo que o tinha escrito séculos atrás. – Inferno, inferno, inferno. Eu detesto isso.
Mas não havia nada que eu pudesse fazer em relação a isso. Eu já tinha tomado a minha decisão. Eu inclusive acreditava que era uma decisão inteligente. Bom, eu esperava que fosse uma decisão inteligente. Independente de ser inteligente ou não, eu acreditava que era a decisão certa.
– Stark vai ficar tão irritado – eu murmurei para mim mesma.
– Por que eu vou ficar irritado?
Eu dei um pulo e me virei na minha cadeira.
– Deusa! Você me assustou.
– Eu te assustei porque você está se escondendo aqui e achou que ninguém fosse te encontrar? – Ele se sentou ao meu lado e olhou com desconfiança para o livro aberto.
– Eu não estou me escondendo. Estou pesquisando. Sozinha.
– Desculpe. Não quis te atrapalhar.
Ele começou a se levantar e eu segurei a mão dele.
– Não vá. Desculpe. Falei de um jeito rude, não foi o que eu quis dizer. – Respirei fundo para me acalmar. Eu não queria ter aquela conversa com Stark. Nunca. Só que já estava na hora de parar de ficar fugindo feito criança. Eu tinha tomado a minha decisão, então precisava contar a verdade para ele. – Eu preciso conversar com você.
Ele virou a sua cadeira para me encarar.
– Finalmente!
O olhar de alívio dele me deu um aperto no estômago.
Stark tocou o meu rosto de um jeito doce e íntimo que sempre me dava um frio na barriga e abriu aquele sorriso metidinho dele que eu amava desde que o conheci.
– Ei, seja o que for, a gente pode lidar com isso. Juntos. Só me conte o que está errado e então vamos descobrir como resolver o problema.
Eu me inclinei para a frente e o beijei – de leve e devagar. Ele me puxou para os seus braços e retribuiu o beijo, e naquele momento eu deixei que o meu mundo fosse preenchido pelo meu Guerreiro, meu amante, meu Guardião e meu amigo.
Quando finalmente nos separamos, o seu sorriso ficou metidinho de novo.
– Se o problema for que você precisa ser beijada assim com mais frequência, eu tenho a solução. É um trabalho difícil, mas você pode definitivamente contar comigo, minha Rainha.
Eu dei um soco de brincadeira no ombro dele.
– Um trabalho difícil?
– É, mas alguém tem que fazê-lo.
Eu balancei a cabeça para ele e então fiquei séria. Chega de procrastinar! Simplesmente conte para ele.
– Eu vou para o Outro Mundo atrás de Kevin – eu disse.
– É, bom, eu já imaginava. Quando partimos?
Eu peguei a mão dele com as minhas.
– Eu vou hoje à noite. Você vai ficar aqui.
Ele não disse nada por vários segundos. Então, lentamente, ele puxou a sua mão que estava entre as minhas.
– Por quê? – a voz dele soou sem alterações, mas os seus olhos se encheram de dor.
– Bom, Neferet tem que ser detida e não posso deixar Kevin destruir a si mesmo com Magia Antiga, coisa na qual está bem encaminhado. Ele está usando Magia Antiga. Você pode sentir a frequência com que ele está fazendo isso. Ele deve acreditar que precisa. Sei que eu mesma acreditei. Todos nós sabemos disso. Neferet é um pesadelo, mas Kevin não entende nada sobre Magia Antiga nem sobre Neferet, e isso vai...
– Não perguntei por que você está indo para lá – Stark me interrompeu. – Eu já tinha entendido isso. Por que eu não vou?
– Ah. Desculpe. Porque você não pode.
– Se você pode atravessar para um Outro Mundo, por que diabos eu não posso?
– Não quis dizer que você não pode fisicamente. Eu quis dizer que você não pode porque já tem um James Stark no Outro Mundo. Ele é um general no exército de Neferet. Kevin disse que ele inclusive é amante de Neferet. – Fiz uma careta. – O que é tão nojento que não suporto nem pensar, e pode acreditar... eu vou fazer o possível para dar um jeito nisso. Deusa, você consegue imaginar como...
– Eu não ligo pra isso. Aquele não sou eu. Eu me importo com você. Essa Zoey aqui... minha Rainha, a quem eu sou Juramentado como seu Guerreiro e a quem eu protejo como o seu Guardião concedido pela Deusa. Z, eu entendo por que você tem que ir. Sei que você tem pensado sobre isso, que está preocupada com o Outro Kevin, eu até esperava mesmo que você fosse. Mas eu tenho que ir com você.
Eu balancei a cabeça.
– Sinto muito. Queria que você pudesse ir, mas não faz o menor sentido. Você já está lá. E não dá pra disfarçar sua presença. Eu preciso circular por lá discretamente, dizer para Kevin parar de usar Magia Antiga, ajudá-lo a derrotar Neferet, o que acho que eu já descobri como fazer, e então voltar para cá. – Encontrei o olhar angustiado dele e disse o que eu precisava dizer. Disse o que ele não queria escutar, mas precisava. – Stark, você não ia me ajudar se fosse para lá. Você iria dificultar ainda mais o que já vai ser difícil. Sinto muito – eu repeti. – Mas já decidi. Eu vou e você não.
A dor se transformou em raiva.
– Pensa que eu não sei o real motivo para você não querer que eu vá? É porque você vai encontrar Heath e não quer que eu fique segurando vela!
Eu já esperava que ele dissesse isso. Eu já esperava a sua mágoa e a sua raiva, mas isso não tornava a situação nem um pouco mais fácil.
– Não, Stark. Não é por isso que você não pode vir comigo. Se você fosse pego, o que seria fácil porque o seu equivalente lá é um general poderoso que todo mundo conhece, você seria morto. Ou torturado. Ou coisa pior. E eu não conseguiria aguentar isso. Na verdade, vai além de eu poder aguentar isso ou não. Tem a ver com mais coisas do que o que você pode ou não aguentar. Se eles o pegassem, isso seria ruim para Kevin e para o mundo dele com certeza, mas ruim para o nosso mundo também. Stark, pense. O que aconteceria se Neferet descobrisse que há um mundo inteiro aqui em que ela não está no comando? E pense no que ela faria se... ou melhor, quando o Outro Kevin e a sua Resistência virarem o jogo e começarem de fato a derrotá-la. O que Neferet faria?
– Não sei, porra!
– Você sabe, sim. Todos nós sabemos. Ela iria fugir. E ela iria fugir para este mundo. – Peguei a mão dele de novo. – Stark, eu te amo. Eu detesto te magoar. E eu não vou para lá só para ver Heath. Mas isso não tem a ver com nós dois. Tem a ver com dois mundos inteiros e garantir que as Trevas não vençam nunca.
– Você escutou o que disse? Você não vai para lá só para ver Heath! “Só”! – Ele fez aspas no ar com os dedos. – Mas você vai encontrá-lo, não vai?
– Não sei. Kevin me disse que ele está na Universidade de Oklahoma. Eu não vou para lá. Eu vou para Tulsa.
– Eu não acredito em você.
– Por favor, não faz isso comigo. Não tenha ciúme de alguém que nem está vivo – eu disse.
– Mas esse é o problema, né? Ele está vivo naquele mundo para onde você está morrendo de vontade de ir.
Desta vez eu soltei a mão dele por vontade própria.
– Você acha mesmo que eu quero ir? Que eu quero lutar com Neferet de novo? Que eu quero deixar a minha casa, os meus amigos e você? – Balancei a cabeça. – Você está com ciúme e está errado. – Eu me levantei. – Marquei um encontro na árvore quebrada. Tenho que ir.
– Sim, eu sei. Eu recebi a sua mensagem no grupo. Foi super íntima. – Ele se virou na cadeira e ficou olhando o livro em vez de me olhar. – Era assim que você ia me contar?
– Por mensagem? Claro que não!
– Não foi isso que eu pensei. Perguntei se você ia me contar que ia para lá e que eu ia ficar aqui na frente de todo mundo.
Mordi a parte interna da bochecha. Na verdade, eu tinha planejado contar para todo mundo junto que eu estava indo – e quem ia e quem não ia comigo. Bom trabalho, Z. Stark agora pensa que você queria insultá-lo e constrangê-lo, além de trocá-lo por Heath.
– E-eu não queria ferir os seus sentimentos. Só sei que eu tenho que ir e que tenho que contar isso para todo mundo. Não pensei que você ficaria louco se eu contasse para todos ao mesmo tempo – eu falei pateticamente.
Então ele levantou os olhos para mim.
– Eu não estou louco porque você ia contar para mim ao mesmo tempo que para os outros. Estou triste. Triste por ser só isso que eu significo para você.
– Stark! Você significa tudo pra mim!
– Isso é papo furado.
Eu fui até o lado dele e coloquei a mão no seu ombro. Quis tocar o cabelo dele, o seu rosto, beijá-lo e nunca mais soltá-lo, mas ele se esquivou da minha mão e voltou o seu olhar triste e nervoso para o velho livro aberto na frente dele.
– Eu te amo. Isso não é papo furado. Você sabe disso. Você só precisa sentir... sentir a nossa ligação.
– Você acha que eu vou conseguir sentir quando você estiver lá? – ele perguntou sem expressão.
– Não sei – eu disse. – Espero que sim. Acho que posso sentir a minha ligação com você em qualquer mundo.
– Eu espero que não.
Aquelas quatro palavras me cortaram fundo, penetraram através da minha pele, músculos e ossos e me deixaram sem voz e muito, muito triste. Peguei a minha mochila e a joguei por cima do ombro. Então dei as costas para o meu Guerreiro e saí do Centro de Mídia.
Estavam todos lá. O meu círculo: Aphrodite, Damien, Shaunee, Shaylin e Stevie Rae. E também os seus Guerreiros e amantes: Darius, Jack, Erik, Nicole e Rephaim.
Só que nenhum sinal de Stark. Ele não tinha me seguido quando saí do Centro de Mídia. Engoli a minha tristeza e me aproximei da árvore quebrada e escura, pisando sem fazer barulho para poder observar os meus amigos antes que eles percebessem que eu estava ali.
Aphrodite estava obviamente no comando. Ela estava apontando para alguns lugares em volta da árvore arruinada, e Outro Jack, super fofo com uma camiseta violeta clara por dentro de uma adorável calça jeans rasgada, estava levando as velas ritualísticas para os pontos que ela tinha escolhido. Era fácil ver o que Aphrodite estava fazendo, e eu me enchi de gratidão por ela. Ela estava estabelecendo uma circunferência ao redor da árvore, preparando tudo para o traçado do círculo.
Stevie Rae estava segurando uma pilha grande de bastões de defumação de sálvia, os quais ela foi entregando para Damien, Shaunee e Shaylin.
Ótimo. Essa vai ser a parte fácil. Espero que eles estejam preparados para o que vai acontecer em seguida.
– Ei, Z! Aí está você! – Stevie Rae sorriu com covinhas para mim. – Eu trouxe a sálvia.
– E eu trouxe as velas – Outro Jack disse, abrindo um sorriso luminoso e doce para mim.
– Imagino que você vá fazer a limpeza desta árvore horrorosa – Aphrodite disse.
– Vou sim – eu disse. – Vamos começar com isso, só que primeiro preciso falar com todos vocês.
Os meus amigos se aproximaram, formando uma meia-lua atenta diante de mim. Eu analisei os rostos deles, pensando em todas as coisas pelas quais havíamos passado e como isso tinha nos deixado próximos. Eu não queria partir. Eu não queria encarar Trevas que já tínhamos derrotado. Eu me senti triste, com medo e muito sozinha.
– Está tudo bem, Z – Stevie Rae afirmou. – Seja o que for, estamos aqui com você.
– Só conte o que você precisa – Damien falou. – Vamos resolver.
– A sua aura está forte. Seja o que for, você está em paz com essa resolução – Shaylin observou.
– Lembre-se de que você não está sozinha – Shaunee disse. – A gente está aqui pra te proteger.
– Assim como Nyx – Aphrodite acrescentou. – A Deusa está com você também. Sempre, Z.
O resto dos meus amigos assentiu concordando.
Pisquei bem rápido, determinada a não deixar as minhas lágrimas caírem.
– Obrigada. Isso significa muito para mim, e eu realmente precisava ouvir que tenho o apoio de vocês. Espero continuar com ele quando contar o que está rolando.
– Você sempre vai ter – Stevie Rae afirmou. – Você é a nossa Grande Sacerdotisa. Nós confiamos em você, Z.
Quando senti que poderia falar sem explodir em lágrimas, eu comecei.
– Primeiro, nós vamos purificar esta árvore. Não vamos fazer nada muito louco, só um trabalho básico de defumação e limpeza, apesar de que eu vou pedir para todo mundo participar e ajudar a defumar. Ela precisa de muita limpeza.
– Você quer que a gente fique dentro ou fora do círculo? – Erik perguntou.
– Boa pergunta – eu disse, sorrindo para ele, que estava ao lado de Shaunee, com um braço em um gesto íntimo colocado sobre os ombros da minha amiga, que se recostava nele. – Quero vocês com a gente dentro do círculo, como estariam se fosse um ritual para toda a escola. Então, Jack, você pode, por favor, mexer as velas dos elementos mais para fora, para que o nosso círculo fique um pouco maior?
– Com certeza! – Jack imediatamente saiu correndo em volta do círculo, reposicionando as grandes velas votivas de modo a incluir todo mundo.
– Eu vou invocar os elementos e traçar o círculo. Aqueles que representam os quatro elementos, por favor acendam os bastões de sálvia nas suas velas elementais. Os outros podem acender os seus bastões na minha vela do espírito. – Uma ideia me ocorreu, e eu decidi que era um acréscimo perfeito a uma defumação simples. – Mas eu quero fazer disso mais do que uma simples defumação. Esta árvore... este lugar tem tanta tristeza e Trevas ligadas a ele que nós precisamos fazer algo a mais com a defumação. Precisamos trazer a alegria de volta para cá. E se a gente fizer a defumação acompanhados de uma música?
– Eu apoio totalmente! – Stevie Rae exclamou. – Que tal usar...
– Ah, que merda, não! – Aphrodite a interrompeu. – Nada de músicas do Kenny Chesney.
Stevie Rae franziu as sobrancelhas para ela.
– Você está cortando o meu coração.
– Tem que ser uma música super alegre – eu disse. – Uma que todo mundo conheça e que alguém tenha no celular.
– “When the Sun Goes Down” do Kenny Chesney é super alegre – Stevie Rae sugeriu.
Aphrodite bufou.
– Bom, segundo um grupo de pesquisadores da Universidade do Missouri, “Don’t Stop me Now” do Queen, com o seu sempre fabuloso Freddie Mercury, é cientificamente a canção mais alegre do mundo – Damien afirmou.
Todo mundo se virou para ele.
– Como diabos você sabe disse? – Aphrodite perguntou.
– Eu sou inteligente e leio bastante – Damien respondeu.
– Quando ele pratica esgrima, ouve essa música. Muitas vezes – Jack lembrou, correndo de volta para o lado de Damien. – E vocês sabem como o meu Damien é um espadachim incrível!
– Isso é verdade – eu concordei. – Então, você tem essa música na sua playlist?
– Tenho – Damien disse.
Antes que eu pudesse perguntar se todo mundo conhecia a música, Jack levantou a mão como um menininho na escola encarnado.
– Sim, Jack?
– Hum, eu acabei de pensar em uma música. Uma muito, muito alegre que eu tenho certeza que todo mundo conhece. E está na minha playlist. – Ele se inclinou para Damien. – Desculpe, Damien. Espero que você não se importe.
– Eu não me importo. Qual é a música? – Damien perguntou.
Jack respondeu cantando.
– “Gota de chuva, bigode de gato...”
Stevie Rae continuou o próximo verso da canção.
– “Laço de fita, cordão de sapato!”
– “Flor na janela e botão no capim” – Shaunee cantou.
– “Coisas que eu amo e são tudo pra mim!” – Aphrodite me surpreendeu totalmente ao se juntar ao coro. – O que foi? – Ela franziu o cenho quando todo mundo a encarou. – Quem não gosta de Noviça Rebelde?
– O que você acha, Damien? – eu perguntei.
– Acho que eu amo bolas de neve e botão de pijama! Não é científico, mas eu voto em “Coisas que eu amo”.
– Por mim parece ótimo. Hum, todo mundo conhece, certo? – perguntei para o grupo, e todos, exceto Rephaim, assentiram.
– Eu vou tentar acompanhar vocês – Rephaim disse.
– Tudo bem, amor – Stevie Rae o apoiou. – Eu sei a letra inteira. Vou te ajudar.
– Ok, perfeito. Então, quando a música acabar, a gente vai terminar a defumação fazendo uma pequena pira ali, no meio do círculo, bem na frente da árvore. – Eu apontei para um lugar à frente do centro do carvalho escuro e retorcido. – Eu vou dar a volta no círculo e pegar os bastões de defumação de Damien, Shaunee, Shaylin e Stevie Rae, e então vou juntá-los ao resto dos bastões. Shaunee, depois disso vou pedir a você para acrescentar um pouco de fogo à pilha para que ela queime direito.
– Facinho – Shaunee falou.
– Isso significa que você vai deixar o círculo aberto depois da defumação – Aphrodite observou. – Então, o que vem depois?
Eu encontrei o olhar dela.
– Depois eu invoco Oak, o espírito da árvore de Magia Antiga que respondeu às minhas perguntas.
– Por que você vai mexer com Magia Antiga de novo? – Aphrodite perguntou.
– Porque vou pedir que ela me guie até o Outro Mundo, onde o meu irmão precisa da minha ajuda – respondi rápido e senti uma onda de alívio instantânea por finalmente ter contado para todo mundo.
– Isso é loucura total – Aphrodite disse.
– Não! – Os olhos de Outro Jack estavam arregalados. Ele parecia completamente aterrorizado. – Não vá, Zoey! Aquele mundo é horrível. – Ele tremia, com os braços envolvendo o seu próprio corpo. – Eu sei que o seu irmão contou algumas coisas sobre aquele lugar pra você, mas não é possível que você realmente compreenda o que acontece. Simplesmente não dá. Não vá! – Ele começou a chorar baixinho, e Damien o abraçou.
– Por que você acha que precisa ir para lá? – Darius me perguntou.
– Por várias razões – eu respondi. – Kevin tem usado Magia Antiga. Muito. E ele não tem a menor ideia de como isso é perigoso ou o que pode fazer com ele. Tenho que contar a ele antes que isso o transforme.
– Ele está usando porque é a única maneira de derrotar Neferet – Aphrodite argumentou.
– Não, não é – eu rebati. – Era a única maneira de derrotar a nossa Neferet, porque ela havia se tornado imortal.
– Bom, será que não faz sentido pensar que do lado de lá, ela já está no caminho de se tornar imortal, assim como foi aqui? – Shaunee questionou.
– Sim. E essa é outra razão pela qual eu tenho que ir para lá. Neste momento, Neferet é apenas uma vampira. Como saber o que vai acontecer se eu esperar mais? Além disso, eu tenho um plano para jogar o Exército Azul contra ela.
– Como? – Aphrodite quis saber.
– Jack, corrija-me se eu estiver errada, mas, pelo que o meu irmão me contou, os Guerreiros acreditam que Neferet ainda está a serviço de Nyx, certo?
Jack fungou e assentiu vigorosamente.
– Ah, sim. Neferet é a única Grande Sacerdotisa deles. Eles contam com ela para saber a vontade de Nyx.
– E o que aconteceria se houvesse uma prova irrefutável de que Neferet não está mais seguindo a vontade de Nyx? – eu perguntei.
– Os Guerreiros não a seguiriam mais. Bom, pode ser que alguns continuassem a segui-la. Tipo, alguns dos seus amantes. E ela tem muitos. Mas a maioria iria parar de lutar por ela, e isso inclui uma boa parte do Exército Azul – Jack respondeu.
– Esse é o meu plano – eu concluí. – Vou mostrar para todos na Morada da Noite de Tulsa no Outro Mundo que Neferet é uma fraude. Que ela está usando os seus poderes para as Trevas e não está mais seguindo Nyx.
– Bom plano, Z, mas como você vai fazer isso? – Stevie Rae questionou.
Eu sorri para a minha melhor amiga e para o seu companheiro.
– Bom, para isso eu vou precisar da ajuda de Rephaim.
– Minha ajuda? Claro que eu ajudo você – Rephaim falou sem hesitar. Então ele piscou e eu vi a compreensão brotando no seu rosto. – Você vai libertar o meu pai naquele mundo!
– Sim, isso é parte do meu plano. Quer uma maneira melhor de mostrar que Neferet não está seguindo Nyx do que ter o seu Consorte alado a denunciando na frente da Morada da Noite inteira?
– Mas Kalona era um verdadeiro idiota logo que ele foi libertado desse lado. Que diabos você vai fazer em relação a isso? – Aphrodite quis saber.
– Eu vou contar com o filho de Kalona para se conectar a ele – eu respondi. – E comigo também. Lembre-se de que eu ainda tenho um pedaço de A-ya dentro da minha alma. Rephaim e eu, juntos, devemos ser capazes de influenciar Kalona, principalmente porque a gente sabe que lá no fundo ele ainda ama Nyx, e só era tão terrível porque pensava que a Deusa nunca iria perdoá-lo.
– E nós vamos convencer o meu pai de que ele está errado em relação a isso – Rephaim completou.
– Espero que bem mais rápido do que ele foi convencido por aqui – Aphrodite resmungou.
– Então, você quer que Rephaim vá para o Outro Mundo com você – Stevie Rae disse.
– Sim, eu quero.
– Mas, mesmo se isso funcionar, ainda vai ser preciso lidar com o Exército Vermelho – a voz de Jack soou trêmula. – E eles são monstros. Eles não ligam para quem Neferet segue. Eles não ligam para Trevas e Luz. Eles só se importam em saciar a sua fome.
– E é por isso que o meu plano tem uma segunda parte. Stevie Rae, desculpe, mas eu preciso pedir que você venha comigo também, por favor.
O olhar de alívio dela me deu um aperto no coração.
– Ah, Z! É claro que eu vou com você!
– Se eu estou entendendo esse seu plano, você vai precisar de mim também – Aphrodite falou.
– Sim, mas não essa versão de você. A Outra Aphrodite – eu respondi.
– Ok, olhe só, seria muito mais fácil se eu fosse com você – Aphrodite insistiu.
– Você não pode. Você já está lá, e você é uma Profetisa, mas também é uma vampira azul completamente Transformada. Não a primeira vampira azul e vermelha da história – eu a relembrei.
– E daí? Erik pode me dar um pouco daquela porcaria que eles usam nos atores para cobrir as suas Marcas para que os humanos consigam esquecer que estão vendo vampiros atuarem – Aphrodite argumentou.
– É, posso sim. Tem bastante disso na sala de Teatro – Erik disse.
– Apesar de o meu homem não usar esse tipo de coisa – Shaunee observou. – Porque se aqueles humanos intolerantes e idiotas não conseguem ter empatia suficiente para se identificar com alguém que parece diferente, isso é problema deles e eles podem parar de assistir aos seus filmes.
– Mas todos querem assistir aos seus filmes – Jack soou adoravelmente deslumbrado.
Erik deu para Jack aquele sorriso de estrela de cinema iluminado por vários megawatts.
– Então acho que eles vão ter que aceitar quem eu realmente sou, ou, que pena, eles terão que ficar sem filmes.
Jack deu uma risadinha.
Cara, Erik cresceu! Pensei. Que bom para ele.
– Erik, você pode ir buscar essa maquiagem para mim?
– Estou indo. Volto em um segundo. – Erik saiu correndo.
– Viu? Eu posso cobrir a parte vermelha da minha Marca e ir para lá com você. A gente faz a nossa coisa juntas, e os novatos e vampiros vermelhos vão ter sua humanidade de volta. Nada de mais – Aphrodite disse.
– E o que a gente faz com a Outra Aphrodite? – Eu me virei para encarar minha amiga, detestando ter de provocar dor nela com o que eu precisava dizer. – O que o fato de você a substituir vai causar nela? Significa que ela nunca vai crescer? Nunca vai aprender a se importar com outras pessoas além dela mesma? Nunca vai aprender a ter empatia ou que às vezes amor significa fazer um sacrifício? Nunca vai aprender a parar de se automedicar e enfrentar a sua mãe?
Aphrodite me encarou, o seu rosto ficando pálido.
– E se ela não for capaz de aprender? Eu perguntei a Outro Jack sobre ela. Definitivamente, ela não está trabalhando com a Resistência. Ela é aliada de Neferet. E se a eu do Outro Mundo já estiver perdida para as Trevas e você não conseguir sensibilizá-la como fez comigo porque Neferet matou você lá cedo demais?
– Nos seus corações, nas suas almas, vocês são a mesma pessoa. Eu conheço esse coração, e ele não é feito de Trevas. Você tem mais Luz em você do que qualquer um de nós. Nyx nos mostrou isso pelos dons que concedeu a você. Eu posso sensibilizar a Outra Aphrodite.
– Eu não apostaria a minha vida nisso – Aphrodite disse.
Sem nenhuma hesitação, eu respondi:
– Eu aposto. Quantas vezes eu precisar.
– Eu também – Darius falou, colocando o braço ao redor de Aphrodite.
– Eu também – Stevie Rae concordou. – Mesmo que você e eu discordemos totalmente no gosto musical.
– E no seu estilo de moda – Aphrodite acrescentou.
– Eu também acredito em você, Profetisa – Rephaim reforçou.
– Todos nós acreditamos – Shaunee enfatizou.
– Z vai sensibilizá-la porque você não é a única de nós que recebeu grandes dons de Nyx – Shaylin explicou. – Zoey também recebeu.
Eu observei Aphrodite enxugar as lágrimas antes de perguntar:
– Se não é para mim, por que Erik foi buscar aquela porcaria de maquiagem?
– É para Stevie Rae! – Jack respondeu como se uma lâmpada tivesse acabado de se acender sobre a sua cabeça. – Você tem que cobrir a Marca dela porque não existem vampiras vermelhas mulheres no meu mundo.
– Exatamente, Jack. – Dei umas palmadinhas na mochila que ainda estava pendurada no meu ombro. – Por isso que eu tenho um lápis de maquiagem safira aqui. Stevie Rae, está pronta para ser uma novata azul de novo?
– Claro! Mas espero que desta vez tudo corra melhor do que antes.
– Pode apostar nisso – eu disse. – Porque eu vou me juntar a você. E desta vez como uma novata azul normal.
– Sério? – Shaunee disse.
Em vez de respondê-la, fiz outra pergunta.
– Jack, tem outras Grandes Sacerdotisas no seu mundo?
– Não. Não mais. Neferet é a única Grande Sacerdotisa de lá – ele respondeu.
– E o meu palpite é que Neferet fica de olho nas Sacerdotisas remanescentes... para o caso de alguma delas começar a se desenvolver como uma Grande Sacerdotisa. Estou certa?
– Bom, não é como se eu fosse próximo a ela nem nada do tipo, mas todo mundo sabe que Neferet não permite que nenhuma outra Sacerdotisa conduza os rituais da escola. Ela tem que liderar tudo, mas ela não deixa que os novatos e os vampiros vermelhos participem dos rituais de qualquer jeito.
Balancei a cabeça.
– Ela deve ter feito alguma coisa terrível com as Grandes Sacerdotisas para conseguir calar a boca delas e deixá-las de lado.
– Eu não sei muito sobre isso, mas há rumores... Coisas sussurradas nos túneis onde Neferet nunca vai. Dizem que ela as matou.
– Deusa, não pode ser! – Shaylin ofegou, e Nicole pegou a mão dela para reconfortá-la. – Isso é horrível! O coração de Nyx deve estar partido!
– E essa é a terceira razão pela qual nós temos que ir para lá. Nyx precisa de nós. Todos nós sabemos que a Deusa não manipula a ação dos mortais, mas conhecemos a vontade dela. Stevie Rae, Rephaim e eu. E nós vamos acabar com as atrocidades que Neferet tem cometido em nome de Nyx.
O meu círculo assentiu, concordando sobriamente, enquanto Erik chegou correndo. Ele me entregou uma sacola cheia de esponjas e um pote grande de maquiagem.
– Tudo que você precisa está aí dentro. Eu trouxe o tipo que é à prova de água. É um inferno para tirar, mas vocês não vão ter que se preocupar com nenhuma Marca aparecendo por baixo, nem se pegarem chuva ou neve.
– Obrigada, Erik.
– Merda11 para você lá. Eu acredito em você – ele disse.
Eu enfiei a sacola na minha mochila e tive que limpar a garganta antes de falar, mas finalmente consegui dizer:
– Ok, acho que isso é tudo. Estão todos prontos?
Perguntei para o grupo, mas só observei Stevie Rae e Rephaim. Eles foram os primeiros a responder.
– Sim. Estou pronto – Rephaim disse.
– Eu também, feito um porco pronto para chafurdar na lama! – Stevie Rae falou, e todo mundo (menos Aphrodite) riu e assentiu.
– Cadê o Stark? – Aphrodite perguntou, calando a boca de todo mundo.
– A última vez que eu o vi, ele estava no Centro de Mídia – eu respondi.
– E por que o seu Guerreiro não está aqui ao seu lado? – Darius questionou.
– Porque eu não deixei ele vir comigo.
– Ele não pode! – Jack exclamou. – Todo mundo conhece o General Stark. Mesmo com a Marca vermelha dele coberta, qualquer um que o visse perceberia em um segundo que ele é parecido com o general e iriam pegá-lo.
– Eu sei, e foi isso que eu disse a Stark, mas ele não consegue suportar a ideia de que estou indo enfrentar o perigo sem ele. – Respirei fundo e contei o resto da verdade. – E ele acha que eu estou indo lá para ver Heath, o que o chateia. Muito. – Eu hesitei e então fiz um pedido. – Pessoal, depois que eu for, vocês podem ficar de olho no Stark, por favor? Ajudá-lo a passar por isso? Eu vou voltar, e quando eu estiver de volta vou fazer as pazes com ele. Vou fazê-lo entender, mas até lá eu só... – Então perdi as palavras quando uma sensação de perda e tristeza tomou conta de mim. E se Stark nunca me perdoar por isso?
– Nós vamos ajudá-lo – Damien prometeu. – Não se preocupe com isso. Se concentre no que você tem que fazer do outro lado para voltar para cá. Eu vou conversar com Stark.
Fui até Damien e o abracei forte.
– Obrigada – sussurrei. – Diga a ele que eu o amo muito.
– Vou dizer, mas ele já sabe, Z – Damien sussurrou de volta.
Eu saí do abraço reconfortante de Damien.
– Pessoal, vejam se todos pegaram o seu bastão de defumação e vão para os seus lugares. Vamos acabar logo com isso!
11 Maneira de atores desejarem boa sorte antes de entrarem no palco. Em inglês, a expressão usada é “break a leg” (quebre uma perna). (N.T.)
22
Zoey
Foi legal ter os meus amigos se juntando a mim dentro do círculo, e eu percebi como fazia tempo desde a última vez que havia conduzido um ritual importante. Vou ter que melhorar isso quando voltar, prometi a mim mesma. Porque eu iria voltar, assim como Stevie Rae e Rephaim.
Damien, Shaunee, Shaylin e Stevie Rae assumiram as suas posições em cada um dos quatro quadrantes do círculo, segurando as suas velas rituais. Os Guerreiros e amantes também se espalharam, preenchendo o círculo. Fui para o centro, onde Jack havia colocado a minha vela roxa do espírito e uma caixa de fósforos longos. Fiz uma pausa por tempo suficiente para respirar profundamente várias vezes para me purificar. Então abri a minha mochila e facilmente encontrei o sino que eu tinha colocado no bolso da frente. Segurando-o com cuidado para que não começasse a soar, peguei os fósforos e fui até a borda leste do círculo, onde Damien estava parado, cheio de expectativa, com a sua vela amarela do ar em uma mão e o seu bastão de defumação na outra.
– O ar nos dá a respiração e muito mais. Sem ele, nós não seríamos capazes de gritar, rir, chorar ou gritar. É o primeiro elemento que conhecemos quando nascemos, então nós sempre começamos o círculo com sua invocação. Ar, por favor, venha e ajude a soprar para longe as Trevas que macularam esta árvore. Eu dou as boas-vindas a você no nosso círculo! – Acendi a vela de Damien e um sopro de uma brisa quente levantou o meu cabelo. Assim que senti o ar, segurei o sino no alto e o toquei com força e ele soou claro três vezes.
Então eu fui no sentido horário, ficando diante de Shaunee ao sul.
– O fogo nos aquece. Ele nos nutre cozinhando a nossa comida e nos limpa queimando aquilo que não é mais útil. Fogo, por favor, venha e ajude esta sálvia a queimar e dissipar as Trevas que macularam esta árvore! – Não precisei tocar o meu fósforo na vela vermelha de Shaunee. Ela pegou fogo e produziu uma chama alegre instantaneamente.
– Queime, baby, queime – Shaunee sussurrou.
Eu sorri e levantei o meu sino, tocando-o vigorosamente mais três vezes. Então andei no sentido horário para o oeste até Shaylin, que esperava ali com expectativa segurando a vela azul.
– A água somos nós, assim como nós somos água. Sem ela, nós viramos pó e morremos. Ela sacia a nossa sede e nos purifica. Água, por favor, venha e ajude a lavar as Trevas que macularam esta árvore! – Acendi a vela de Shaylin e o aroma do oceano preencheu o ar ao nosso redor. Levantei o sino de novo e o toquei três vezes antes de continuar a minha jornada ao redor do círculo até Stevie Rae ao norte.
– E aí, Z? – Ela sorriu com covinhas para mim.
– Oi, terra. – Eu sorri de volta para ela. – A terra é a nossa casa. Ela nos sustenta. Ela nos alimenta e nos envolve, e é para a terra que os nossos corpos finalmente voltam para o descanso final. Terra, por favor, venha e nos fortaleça para que as Trevas nunca mais maculem esta árvore! – A vela verde de Stevie Rae pegou fogo e nós fomos cercadas pelo cheiro delicioso de damas-da-noite. Inspirei profundamente ao levantar o meu sino e tocá-lo mais três vezes.
Então, fui para o centro do círculo e levantei a minha vela roxa.
– Espírito, você é quem nós somos quando somos mais puros. Você é quem permanece quando os nossos corpos não podem mais viver. Você nos preenche de forma única e estabelece nossas personalidades, nossos amores, nossos ódios e nossos desejos. Espírito, por favor, venha e preencha este lugar que foi violado pelas Trevas para que a Luz possa brilhar aqui de novo! – Toquei o meu sino em três badaladas pela última vez e, enquanto o seu claro eco se extinguia, coloquei-o no chão e peguei o grosso bastão de defumação de sálvia branca perfumada.
Encarei o meu círculo, amando o fio prateado de luz que nos conectava. Ele era tão brilhante que iluminou a árvore, fazendo parecer que as Trevas já tinham começado a ser extinguidas.
– Ok, elementais, acendam os seus bastões de defumação. Os outros acendam os seus bastões nos dos elementais, fechando o círculo. Jack, você está pronto com algumas das nossas coisas favoritas?
– Estou! Só me diga quando for para apertar o play!
Esperei alguns instantes até a sálvia de todo mundo estar acesa e uma fumaça acinzentada e esbranquiçada começar a se formar e se levantar devagar ao redor da árvore.
– Ok, quando a música começar, todo mundo canta junto. Dancem e desenhem formas no ar com os seus bastões de defumação. Sejam alegres. Não pensem em nada além de coisas boas. Só tomem cuidado para não pisar fora do círculo – eu disse.
– E não se preocupem, todos nós amamos Julie Andrews. Não importa quem você é... cante, cante, cante! – Jack falou alegremente.
– Isso mesmo! – Eu sorri para ele. – Aperte o play, Jack!
Assim que “Coisas que eu amo” começou a tocar, o meu círculo e os meus amigos cantaram junto. No começo estávamos meio inseguros, mas na hora que chegamos ao verso “Se a tristeza, se a saudade”, todos estavam cantando, rindo e dançando ao redor do círculo.
– Aiminhadeusa, vejam! – Stevie Rae apontou para a fumaça se levantando em redemoinhos e espirais acima de nós, e todos ofegamos juntos.
Entrando e saindo da fumaça, espíritos parecidos com vaga-lumes voavam tão velozes quanto diamantes vivos, brilhando e reluzindo – e transformando a fumaça em formas sobre as quais estávamos cantando. Eu vi gatinhos com bigodes, laços de fita, gotas de chuva e algo que eu tinha certeza de que era uma banda passando enquanto soava o clarim.
Foi um dos momentos mais mágicos da minha vida, e desejei com todas as minhas forças que Stark estivesse ali, rindo, cantando e dançando ao meu lado.
– Z! Olhe para a árvore! – Jack gritou.
Eu olhei – e tive que segurar a minha boca para ela não ficar de queixo caído. Um enxame de espíritos vaga-lumes se aglomerou ao redor da árvore. Começando por sua base quebrada, eles voavam em compasso com a nossa música, girando e subindo. E, enquanto eles se moviam, a escuridão feito piche que a havia manchado ia sendo lavada, até que tudo o que sobrou foi uma árvore estranha, fragmentada e inclinada para o lado, onde começaram a surgir minúsculos brotos ao longo dos seus galhos antes arruinados.
– Ela vai ter folhas de novo! – Stevie Rae berrou alegremente mais alto que a música.
Rodopiando e rindo, nós cantamos os últimos versos com Maria e a família Von Trapp.
– “Eu lembro das coisas que eu amo e, então, de novo eu me sinto bem!”
Com a respiração ofegante e sorrindo, eu disse:
– Jack, você pode pegar todos os bastões de defumação e colocá-los aqui no meio do círculo perto da árvore?
– Eu?
Eu assenti.
– Aiminhadeusa, é claro!
Jack correu ao redor do círculo, coletando os bastões de sálvia e colocando-os, junto com o meu, em uma pilha fumegante.
– Shaunee, quando você estiver pronta – falei.
– Tranquilo. Queime, baby, queime! – Shaunee fez um gesto com o seu pulso na direção da pilha e ela instantaneamente ardeu com a luz das chamas e o aroma da sálvia.
– Perfeito! Obrigada – agradeci. Então eu fiquei séria, e o meu olhar se voltou para Stevie Rae, ainda ao norte, com Rephaim ao lado dela. – Vocês estão prontos?
Rephaim assentiu nervosamente.
– O máximo que dá pra estar – Stevie Rae disse.
– Nós vamos ter que oferecer um pagamento para o espírito – eu expliquei. – Tenho uma ideia, mas vocês dois precisam concordar com isso. Vou precisar de um pouco de sangue de cada um de vocês.
Stevie Rae e Rephaim se olharam.
– Belezinha, Z. A gente está de boa com isso – Stevie Rae concordou.
– Obrigada – eu falei com sinceridade antes de enfiar a mão na minha mochila de novo e pegar o athame12 afiado. Cercada pela fumaça magicamente purificadora da sálvia e pelo apoio do meu círculo, eu fiz o chamado. – Oak, espírito ancestral de Magia Antiga, com o poder do meu sangue e os dons concedidos a mim pela Deusa Nyx, eu a invoco para o nosso círculo. Oak, por favor, apareça!
E então prendi a respiração.
Ela não me fez esperar muito. Em segundos, o centro da árvore recém-purificada começou a brilhar e, com o som de um suspiro, Oak emergiu do tronco quebrado.
O espírito não veio até mim. Ela não deu atenção a nenhum dos meus amigos ou eu. Primeiro, ela se virou para a árvore. Ela colocou as suas mãos delicadas sobre ela e, devagar, de modo íntimo, inclinou-se para a frente até encostar a testa nela. Pude ouvir que ela estava falando, mas não consegui compreender a sua língua. Quando ela finalmente terminou, deu um beijo suavemente na casca nodosa, com doçura, antes de finalmente se virar e voar até mim.
– Garota Redbird, fico feliz que você concluiu o seu pagamento. – Os seus belos olhos escuros e amendoados se voltaram para o nosso círculo intacto, abarcando cada um dos vampiros dentro dele. – A força do seu círculo me agrada. Ele emana sentimentos de amor, alegria, amizade e sacrifício. Eu aprovo.
– Obrigada. E agradeço por responder ao meu chamado.
Ela abaixou levemente a cabeça em reconhecimento.
– Acho que começo a apreciar esse despertar incomum. Entre você e o Garoto Redbird, os dias e as noites têm ficado mais interessantes. O que deseja de mim agora?
Eu não hesitei.
– Quero que você me leve junto com dois amigos para o Outro Mundo, onde vive o meu irmão, aquele que você chama de Garoto Redbird. E quero que você nos traga de volta também. Quando estivermos prontos para partir.
Em um movimento como o de um pássaro, o espírito extraordinário virou a cabeça de lado e me observou. Por momentos longos e desconfortáveis demais, ela não disse nada. Quando ela finalmente se pronunciou, senti como se eu estivesse esperando a hora de descongelar.
– Posso fazer o que me pede, mas o pagamento vai ser grande.
– Que tal o sangue de três espécies de seres diferentes?
Ela ergueu suas sobrancelhas de musgo na direção da raiz dos seus cabelos de hera.
– Que tipo de seres?
– Um deles sou eu, uma vampira azul e Grande Sacerdotisa que tem afinidade com todos os cinco elementos. O segundo é Stevie Rae, uma vampira vermelha e Grande Sacerdotisa cuja afinidade é também a sua: a terra. E o terceiro é Rephaim, companheiro de Stevie Rae, um ser que...
– Foi criado por Magia Antiga – ela terminou por mim, girando a cabeça feito uma coruja para examinar Rephaim e Stevie Rae. – Vocês dois fazem essa oferenda livremente?
– Sim, senhora, eu faço – Stevie Rae respondeu.
– Sim. Dou a minha palavra – Rephaim disse.
O olhar de Oak se voltou para mim.
– Esse pagamento é interessante. Ele vai levá-los até o Outro Mundo. Mas não vai trazê-los de volta.
“Para isso um novo pagamento precisa existir
E qual vai ser nós vamos decidir
Nós vamos definir...”
Senti um aperto no estômago, apesar de o ritmo musical na sua voz indicar que ela faria um acordo comigo. Só que isso era exatamente o que os velhos livros alertavam. Eu precisava acertar ambos os pagamentos ou Stevie Rae, Rephaim e eu poderíamos ficar em uma grande meleca quando tentássemos voltar para casa.
– Vamos acertar o pagamento da volta agora. As coisas vão ficar mais fáceis assim. Quer dizer, e se a gente precisar voltar com muita pressa? – eu disse.
“Isso é problema seu, não me trate como passatempo
Aceite minhas regras ou pare de desperdiçar o meu tempo.”
– Isso não é nada bom – Aphrodite falou. Ela estava ao lado de Damien durante o ritual, e Oak se virou para o leste e concentrou o seu olhar na minha amiga. – O pagamento não deve ser deixado indeterminado. Isso é pedir encrenca.
“A Profetisa fala a verdade
Apesar da sua pouca idade.”
Oak fez uma pausa, farejando o ar como um cão de caça.
“O aroma do seu sangue é único de perceber.
Prometa o seu sangue como a cobrança,
e a volta dos seus amigos pode não ser
assim tão sem esperança.”
– Está bem!
– Não!
Aphrodite e eu falamos ao mesmo tempo. O olhar de Oak encontrou o meu de novo.
“O pagamento de sangue de uma Profetisa poderosa é uma solução
A menos que desejem ficar no Outro Mundo sem salvação.”
– Eles não vão ficar por lá. Eu prometo o meu sangue como pagamento para que você os traga de volta – Aphrodite falou rápido para que eu não conseguisse interrompê-la. – Mas eu não irei para o outro lado. Então, como vou saber quando devo pagar a você?
“Profetisa poderosa, não há nada que você precise fazer
Quando o pagamento for requerido, eu vou lhe dizer.”
– Aphrodite, eu não estou gostando disso – eu disse. – Não faça essa promessa. Stevie Rae, Rephaim, Kevin e eu vamos pensar em um pagamento que Oak aceite.
“Vai arriscar a sua vida nisso?
Parece algo tolo e omisso.”
– Tolo ou não, é a minha escolha.
– Na verdade, não. É o meu sangue. Meu corpo. Minha escolha – Aphrodite insistiu. – Oak, eu dou a minha palavra. Quando for a hora de Zoey, Rephaim e Stevie Rae voltarem, eu vou pagar o preço de sangue por eles.
“Eu aceito o seu preço excitante
Um pagamento de uma promessa, forte e brilhante
Eu fecho este acordo com vocês, perseverante.”
O olhar de Oak capturou cada um de nós quatro enquanto ela terminava a ligação.
“E tenho dito – que assim seja.”
O meu estômago estava tão revirado que tive vontade de vomitar. Aquilo parecia errado – perigosamente errado, mas já estava feito.
Olhei para Aphrodite. Ela estava firme, forte e orgulhosa, mas pude ver o medo nos olhos dela. Então prometi a mim mesma que faria tudo que estava ao meu alcance para que ela não se arrependesse de dar o seu sangue para nos levar de volta para casa.
– Obrigada, minha amiga – eu disse a ela. – Eu te amo.
Os lábios de Aphrodite se mexeram, mas ela não riu com sarcasmo. Em vez disso, ela colocou o punho sobre o coração e se curvou respeitosamente para mim.
– De nada, Grande sacerdotisa. Eu também te amo.
Piscando para limpar as lágrimas da minha visão, eu me virei para Oak.
– Você pode nos levar para qualquer lugar naquele mundo?
– A Rainha Sgiach não gosta de intrusos na sua ilha, e com razão. Então vocês não teriam uma recepção agradável por lá – Oak disse.
– Ah, não. Eu não preciso ir para Skye. Quero ir para um lugar mais perto daqui. É uma fazenda de lavandas, e a proprietária é...
– Oh, eu conheço esse lugar do qual você fala. A mulher que cuida da terra é deliciosa – Oak sorriu, mostrando muitos dentes brancos e afiados demais.
Eu sorri de qualquer jeito, sem me intimidar.
– Deliciosa – eu repeti. Olhei para Aphrodite. – Diga adeus a ela por mim, ok? Fale para ela não se preocupar – fiz uma pausa e continuei –, e conte a ela que o espírito a chamou de deliciosa. Ela vai adorar ouvir isso.
– Talvez ela se preocupe menos quando souber que você foi até ela primeiro – Aphrodite disse.
– “Talvez ela se preocupe” é melhor do que “com certeza ela vai se preocupar”. Cuide-se. Você é a Grande Sacerdotisa até eu voltar.
Eu vi a surpresa nos olhos de Aphrodite antes de ela abaixar a cabeça e colocar o punho sobre o coração outra vez.
– Vai ser como diz, Grande Sacerdotisa – ela falou solenemente.
Os meus olhos capturaram um movimento no círculo, e vi que cada um dos meus amigos havia imitado Aphrodite. Estavam todos se curvando para mim, com o punho sobre o coração.
– Obrigada – eu agradeci a eles. – Eu volto logo. – O meu olhar encontrou Damien. – Diga a Stark que eu o amo.
– Pode contar comigo, Grande Sacerdotisa.
– Stevie Rae, não apague a sua vela. Aphrodite, feche o círculo depois que nós partirmos.
– Vou fechar.
– Estamos prontos – eu disse para Oak.
– Então deem as mãos, vocês três, e me sigam!
Stevie Rae colocou a sua vela verde no chão. Ela estendeu uma mão para mim – a outra já estava entrelaçada à de Rephaim. Eu a peguei e, quando nos viramos para seguir com o espírito em direção à arvore, que havia começado a brilhar, um grito ecoou atrás de mim.
– Zoey Redbird! Tome cuidado. Fique firme. E volte para mim!
Virei rapidamente a cabeça por sobre o meu ombro e vi Stark. Ele estava parado do lado de fora do círculo incandescente. Os nossos olhos se encontraram.
– Eu te amo, meu Guerreiro, meu Guardião. Sempre vou te amar.
– E eu te amo, minha Rainha, minha Grande sacerdotisa, meu coração. Lembre-se, nós estamos ligados por sangue e por amor... sempre o amor.
Então o brilho se expandiu e eu segui o puxão na minha mão. Entrei pelo meio da abertura resplandecente e o mundo ao meu redor explodiu em luz.
12 Adaga cerimonial. (N.T.)
23
Outro Kevin
– Que tal isto aqui? – Kevin abriu a porta do motorista do Hummer e ergueu quatro sacolas grandes cheias de roupas embrulhadas em papel de seda.
Aphrodite deu uma olhada para as sacolas.
– Nada mal para um iniciante. Entre.
Kevin jogou as sacolas no banco traseiro e sentou atrás da direção.
– Para onde vamos agora?
– Para casa. – Aphrodite fez uma cena segurando o nariz quando ele entrou no veículo.
– Casa?
– A nossa casa, a Morada da Noite. Afe. Prometa que esse cheiro sai com água.
– Sim, eu prometo. Quer ver a gosma de sangue morto que eu tenho que passar em mim para ficar com esse cheiro?
– Não faço nenhuma questão.
– Então, vou te deixar lá?
– Não. Você vem comigo.
– Para onde?
– Ah, que merda... para casa.
– Mas e os túneis?
– Você quer ir para os túneis?
– Não. De jeito nenhum. Eles são péssimos. – Ele deu a partida no Hummer. – Mas o que mais eu posso fazer?
– Bom, eu andei pensando sobre isso. O seu general já era, certo?
– Sim, já disse. Ele morreu no mundo de Zoey.
– E também todo o seu esquadrão, grupo, batalhão... ou qualquer que seja o nome, certo?
– Quase certo. Três ainda estão vivos, mas eles ficaram no mundo de Zo.
– Então, você não está ligado a nenhum general, exceto Stark.
– Acho que dá pra dizer que sim.
– E ele designou você para ser meu protetor.
– Acho que dá pra dizer isso também.
– Ótimo. Então agora você pode se considerar o meu soldado pessoal.
– O que significa isso exatamente? – ele perguntou.
– Bom, pra começar, significa que você não vai voltar para os túneis e que precisa se vestir melhor. Você acha que lavanda iria ajudar a encobrir esse fedor horroroso? – ela questionou.
– Não sei. Provavelmente ajudaria, e eu posso espalhar menos gosma de sangue em mim pra ficar melhor. Você está dizendo que eu vou ficar na Morada da Noite?
– Estou.
– Espere aí, eu não vou ter que viver nos túneis?
– Não enquanto você for o meu soldado pessoal.
Kevin sentiu que o seu coração ia explodir de gratidão.
– Aphrodite, obrigado! Muito obrigado!
Ela fez um gesto dispensando o agradecimento dele.
– O que eu posso dizer? Adoro conceder favores aos pobres. Além disso, eu quero saber mais sobre esse mundo diferente e sobre a sua irmã, e não posso fazer isso se você estiver enfiado no meio de uma horda de monstros fedorentos. – Eles haviam terminado o curto trajeto da Utica Square até a Morada da Noite, e Aphrodite apontou para uma vaga de estacionamento na frente, bem-iluminada. – Pare ali.
– Ok, mas sem chance de a gente conseguir entrar escondido no campus se estacionarmos aqui.
– Nós não vamos entrar escondidos – ela afirmou.
– Mas todo mundo vai saber que eu estou aqui.
– Todo mundo definitivamente vai saber, e eles vão se acostumar a ver você por perto. Isso vai ajudar você e a Resistência, não?
– Sim! Com certeza.
– Ótimo. Talvez isso ajude também a compensar um pouco do mal que eu fiz contando as minhas visões para Neferet.
– É um começo, certamente – Kevin disse. Ele estacionou e olhou para ela. – E agora?
– Agora vem a parte fácil. Eu vou cuidar de tudo. Você só precisa me seguir. Literalmente. Ande atrás de mim e preste atenção em ficar vários passos para trás. Pareça subserviente e não muito inteligente. E quando a gente for parado, e eu garanto que vamos ser, eu explico. Você nem levanta os olhos. Finja que é um vampiro vermelho sem noção, mas não selvagem demais. Você consegue fazer isso?
– Eu tenho feito isso há quase um ano – ele disse.
– Então você já tem bastante prática. – Aphrodite ficou sentada olhando para ele e, como ele apenas a encarou de volta, ela revirou os olhos. – Kev, você deveria estar pegando todas as “minhas” sacolas. – Ela fez aspas com os dedos. – E depois abrir a porta para mim. Lembre-se, você é o meu soldado pessoal. Eu nunca devo tocar em uma porta, carregar qualquer coisa, abrir uma garrafa de champanhe e blá-blá-blá quando você estiver por perto.
– Ah, desculpe. Ok, entendi! – Ele saiu do Hummer e pegou as quatro sacolas, balançando-as desajeitadamente enquanto dava a volta no carro rapidamente para abrir a porta para ela.
Ela colocou suas pernas longas para fora e então franziu o cenho para as suas botas Jimmy Choo na altura do joelho.
– Merda! Esqueci que tinha quebrado o salto. Bom, vou usar isso para ajudar na minha atuação. Aqui. – Ela o surpreendeu ao estender a mão, que ele pegou, ajudando-a a descer do Hummer. Então ela limpou a mão no seu jeans skinny. – Você vai ter que melhorar muito na sua higiene pessoal.
– Na verdade, eu sou um cara limpo e arrumado. Eu tinha que fingir que não me importava com a lama, sujeira, sangue seco e outras coisas nojentas quando eu morava nos túneis.
– Você não mora mais nos túneis. É bom tomar um banho – ela resmungou ao começar a mancar na direção da calçada curva que atravessava o pequeno pátio lateral, onde a água de uma fonte jorrava musicalmente, onde finalmente se abria para o jardim principal da escola.
– Pode deixar – ele disse, apressando o passo para alcançá-la.
Ela deu um olhar irritado para ele.
– Você deve ficar atrás de mim, parecendo subserviente.
– Ah, certo. Esqueci. Não vai acontecer de novo, Profetisa. – Ele fez várias reverências e se afastou para trás.
– Isso foi bom. Pode continuar com essa coisa de se curvar.
– Você quer que eu a chame de Senhora ou Profetisa está bom?
– Não seja ridículo. Profetisa está bom. Senhora parece velha demais. Agora cale a boca e pareça patético.
Com Kevin a seguindo, Aphrodite atravessou o pátio mancando e entrou nos jardins da escola. Acabara de passar a hora do jantar. Os novatos estavam espalhados pelo terreno da escola. Os lampiões a gás de cobre estilo art déco projetavam sombras dançantes pelas calçadas largas e pelo gramado do inverno. Gatos corriam por ali, alguns caçando ratos, outros seguindo os seus novatos ou vampiros escolhidos. Estudantes acendiam velas aos pés da estátua de Nyx e rezavam para a Deusa. Um grupo de novatas estava tendo uma aula de esgrima com um vampiro que Kevin não reconheceu.
Tudo parecia normal, mas a diferença entre essa Morada da Noite altamente controlada e segregada e a escola de Zoey era gritante. Todo mundo aqui parecia subjugado, preocupado, assustado ou desesperado, e Kevin sentiu uma pontada no coração de saudade de um lugar que ele mal conheceu, mas que parecia tão perfeito.
Aphrodite virou à direita, indo na direção do grupo de edifícios parecidos com castelos que compunham os aposentos dos professores. Ela seguiu a curva suave da calçada, aproximando-se de duas novatas que haviam estendido tapetes de yoga no gramado e estavam no meio de uma graciosa sequência de exercícios.
Quando Aphrodite chegou mais perto das novatas, elas viraram a cabeça na direção dela. Ambas reconheceram Aphrodite – isso ficou bem claro – e juntaram as suas cabeças enquanto a encaravam.
Então elas viram Kevin e os seus olhos se arregalaram. Uma delas era uma garota negra incrivelmente linda que ele reconheceu na hora como Shaunee, e a outra era uma loira sexy que estava usando uma legging nude e um top minúsculo vermelho brilhante – ambos não deixavam nada para a imaginação. Caramba! Essa deve ser Erin, a novata de quem a Zoey me falou. A água para o fogo de Shaunee! As duas ficaram olhando fixamente para ele enquanto Aphrodite passava por elas, sussurrando e dando risadinhas. Quando Kevin se aproximou mais, ouviu claramente o que elas estavam dizendo – o que significava que Aphrodite também ouviu.
– Ei, Gêmea, olhe só – Erin falou.
– O que foi, Gêmea?
– O novo amante de Aphrodite! – a loira concluiu, apontando para Kevin. Então as duas caíram na gargalhada, maldosas.
Aphrodite parou. Ela se virou, mal olhando para Kevin quando passou mancando por ele.
– Só um minuto.
Kevin quis gritar para ela “Não! Não as mate com a sua visão de laser! Eu posso precisar delas depois para um círculo!”, mas ele teve que ficar de boca fechada. Ele tinha que fazer o seu papel, então abaixou a cabeça e discretamente assistiu enquanto Aphrodite caminhou direto até as duas novatas, que automaticamente deram alguns passos desajeitados para trás.
– Falem isso na minha cara e não para as minhas costas maravilhosas – a voz da Profetisa estava gélida.
– Ei, a gente não quis dizer nada – Shaunee disse.
– É, a gente só estava brincando – Erin falou.
– Vocês são as duas que se chamam de Gêmeas, não são? – Aphrodite questionou.
– Sim – elas responderam juntas.
– Eu vou chamá-las de Sócias de Cérebro. E, já que vocês compartilham só um pequeno cérebro entre vocês, vou deixar essa história pra lá. Mas, da próxima vez que vocês insultarem a mim ou ao meu soldado pessoal e servo, vou oferecer vocês duas para fazerem o serviço de jantar nos túneis.
– Serviço de jantar? – Erin perguntou.
– O que significa isso? – Shaunee completou.
Aphrodite deu um passo para a frente, entrando no espaço pessoal delas.
– Significa que vocês vão dar um tempo para os alimentadores humanos e oferecer o seu próprio sangue para os oficiais vermelhos. Em pessoa. Sangue dos seus lindos pescocinhos. Se bem que eu ouvi dizer que a veia que passa na coxa também é um lugar muito escolhido para alimentação. – As duas novatas pareceram horrorizadas, então Aphrodite fez um gesto para aliviar a preocupação delas. – Ah, não sejam tão dramáticas. Eles não vão ter permissão para drenar vocês completamente. Só quase completamente.
– Ne-neferet não deixaria isso acontecer! – Erin gaguejou.
– Quer apostar o seu sangue nisso, Coisa Um?
Erin rapidamente balançou a cabeça.
– E você, Coisa Dois?
– Não, obrigada.
– “Não, obrigada, Profetisa”, é o que vocês, Sócias de Cérebro, devem dizer.
– Não, obrigada, Profetisa – elas repetiram juntas, nervosas.
– Melhor. Bem melhor. Agora, acho bom vocês nunca mais falarem comigo de novo.
– Ei, a gente não quis dizer nada. Mesmo – Shaunee disse.
– Papo furado – Aphrodite rebateu. – Menininhas covardes como vocês sempre dão sorrisinhos falsos e falam que não queriam dizer nada com isso quando são pegas sendo escrotas. Cresçam. Vocês não estão mais no ensino médio. Isto aqui é vida real, não a internet, onde você pode dizer merdas estúpidas e odiosas sem nenhuma consequência. E, que merda, façam um favor ao mundo e saiam logo do armário como lésbicas, já estão grandes pra palhaçada.
Erin enrubesceu e Shaunee ficou de queixo caído, em choque.
– Hum. Deixa pra lá. Parece que só uma de vocês cola com isso. Ou, quer dizer, só uma de vocês cola alguma coisa. – Aphrodite riu alegremente, atirando o longo cabelo para trás, e se virou para sair andando, mesmo com um salto quebrado. Quando passou por Kevin, falou alto o bastante para as Gêmeas escutarem. – Venha, Fedido. Termine de arrastar minhas coisas pra cima. E depois você precisa ir correndo buscar mais champanhe pra mim. Tragicamente, acho que estou sem, e lidar com as Sócias de Cérebro me deixou com sede.
– Sim, Profetisa. Claro, Profetisa! – Kevin abaixou a cabeça e esperou que ela ficasse alguns metros à frente dele antes de começar a andar de novo, pensando “Parece que vou ter que encontrar outro fogo e água... Ah, que inferno...”.
E, enquanto ele a seguia para dentro do prédio dos professores, ouviu um grasnido acima da sua cabeça e levantou os olhos a tempo de ver um corvo gigante voando em círculos. Ele abriu a pesada porta de madeira e fez uma pausa. Como esperado, o corvo aterrissou na calçada, inclinando a cabeça de lado ao olhar para ele.
– Garoto Redbird! – ele grasnou.
– Venha cá! Rápido! – Kevin gesticulou para o pássaro, que deu alguns pulinhos e entrou no pequeno saguão com ele.
– Kevin, por que diabos você está demorando tanto? – Aphrodite gritou lá do alto da escada caracol.
– Desculpe, chego aí em um instante! – Ele abriu o tubo do corvo e pegou o pequeno lápis e o papel, rabiscando apressadamente: ESTOU COM APHRODITE NA MORADA DA NOITE. FICAREI AQUI DURANTE O DIA. MAIS INFORMAÇÕES EM BREVE. Então ele enfiou o papel e o lápis de volta no tubo e abriu a porta para o corvo, que decolou rumo ao céu.
– Quer que eu vá buscar o champanhe pra você agora? – Kevin estava parado desconfortavelmente ao lado da porta fechada dos aposentos suntuosos de Aphrodite.
– Claro que não. Eu tenho um monte de champanhe. Não sou uma caipira. – Ela indicou com a cabeça a pequena cozinha ao lado da sala de estar requintada, decorada com um sofá de veludo cor de ametista e um par de poltronas bordadas com fio prateado representando uma lua tríplice. – Bom. Não fique aí parado. Entre no chuveiro e tire esse fedor nojento. Vista o pijama novo. Depois disso a gente conversa.
– Mas. Hum. Vai amanhecer em... – ele fez uma pausa, conectando-se ao seu relógio interno. – Menos de duas horas. Eu preciso ir para algum lugar seguro para dormir.
Ela deu um suspiro.
– Eu disse que você é meu soldado agora. Você vai ficar aqui.
– Aqui, aqui? – Como se os seus olhos tivessem vida própria, eles se voltaram para a enorme cama de dossel claramente visível através das portas de vidro abertas.
– Sério? Você acha que vai dormir na minha cama? – Aphrodite revirou os olhos.
– Não! De jeito nenhum. Jamais suporia isso. Mas onde eu vou dormir?
– Eu tenho um closet super luxuoso. Não tem nenhuma janela lá dentro. Ou você pode dormir na minha banheira. Pode escolher qual você prefere.
– Que tal o sofá?
– Tem janelas aqui.
O olhar dele se voltou para elas.
– Essas cortinas de veludo roxo não são blackout?
Ela suspirou.
– Está bem. Ok. Você pode dormir no sofá se você realmente não estiver fedido e se não roncar. Não suporto gente que ronca.
– Prometo que eu não estarei fedido e acho que não ronco, mas eu nunca dormi com ninguém, então não tenho como prometer isso.
Os olhos azuis cor de safira de Aphrodite encontraram os dele.
– Então você é virgem.
As bochechas de Kevin arderam de calor.
– Bom, sim. Sou.
– Hum. Interessante. Entre no chuveiro.
Ela o empurrou na direção de uma porta fechada, através da qual ele felizmente escapou e se viu em um banheiro de mármore tão branco e limpo que não queria tocar em nada.
– Você quer algo para comer? Eu vou ligar para a cozinha – Aphrodite gritou do outro lado da porta.
– Hum, sim. Eu comeria qualquer coisa. E, ahn, você poderia pedir uma garrafa de...
– Sangue. Já imaginava. Ah, e coloque essas roupas horríveis que você está usando em um saco de lavanderia embaixo da pia. Feche bem e lembre de jogar isso fora amanhã. Nojento.
– Sim, ok. Sem problemas. – Kevin não sabia mais o que dizer, então tirou a roupa. Em seguida, encontrou facilmente um saco vazio e puxou a cordinha dele com força para fechar bem.
Então ele entrou no paraíso.
O chuveiro dela ficava dentro de um box de vidro circular e era daquele tipo panelão gigante e redondo que fazia Kevin se sentir como se estivesse debaixo de uma tempestade fantástica. Também havia duchas que saíam das paredes e, quando ele apertou um botão, fluxos de água quente jorraram sobre ele, atingindo todo o seu corpo. Aphrodite, claro, tinha um sabonete com textura de seda e cheiro de amêndoas e mel.
Kevin queria ficar lá por horas, mas quase podia sentir a impaciência de Aphrodite, então se esforçou para se apressar, ensaboando-se várias vezes, até que o último rastro de gosma de sangue fedorenta tivesse saído da sua pele.
Ele se enxugou com uma toalha violeta tão grande e felpuda que podia usá-la como cobertor. Então ele vestiu sua calça de moletom nova e uma camiseta e colocou a cabeça úmida para fora da porta de modo hesitante.
Na mesa de vidro na frente do sofá, Aphrodite havia colocado uma bandeja cheia que continha um sanduíche grande, batata chips e um copo alto de sangue quente e vermelho que deixou sua boca salivando.
– Pode vir. Estou sozinha. Nunca deixo nenhum dos serviçais entrar aqui enquanto estou no quarto. Eles limpam e fazem suas coisas só quando estou fora. E eu faço com que eles deixem as minhas entregas de comida do lado de fora da porta em uma mesinha de serviço de prata. – Ela encolheu os ombros. – Sim, eu sei. Eu gosto da opulência. Não estou me desculpando por isso.
Usando meias, Kevin andou suavemente até a sala de estar e encontrou Aphrodite com uma legging confortável e uma camiseta branca com a frase FEMINISTA SELVAGEM resplandecendo sobre o seu peito. Ela estava encolhida em uma das poltronas bordadas de veludo, bebendo champanhe e beliscando uma torradinha com pequenas bolinhas pretas em cima.
Ele farejou o ar na direção dela.
– Isso tem cheiro de peixe. O que é?
Ela deu um olhar resignado para ele.
– Caviar, seu plebeu. A sua criação deixa muito a desejar.
– Concordo. – Kevin sentou e bebeu todo o sangue de uma vez. Ele abaixou o copo e viu Aphrodite o encarando. – Eu estava com sede – ele disse pateticamente.
– Diga a verdade. Você está com a sua fome sob controle?
– Completamente. Não tem diferença entre a minha fome agora e a necessidade de um vampiro azul. Eu só estava realmente com sede porque fui ferido umas noites atrás e ainda estou me recuperando.
Isso sem mencionar que o meu nível de estresse foi além do esperado, ele pensou.
– Você me dá a sua palavra?
– Sim, Profetisa. Dou a minha palavra de que a minha humanidade voltou completamente e que a minha fome está sob controle.
Ela o analisou por vários minutos antes de voltar para o seu caviar e champanhe.
– Você precisa de mais sangue?
– Não, mas eu realmente preciso desta comida. Obrigado.
– Sem problemas. Apesar de que eu deixei o pessoal da cozinha bastante confuso. Não costumo comer muitos sanduíches.
– Você não parece comer muito de nada – Kevin disse ao dar uma grande mordida.
Ela franziu o cenho.
– Estou comendo agora.
Ele bufou.
– Preocupe-se só com você. Eu estou bem. Estou sempre bem – ela falou.
– Não acredito em você – ele murmurou.
– Eu escutei isso. Ok, em primeiro lugar, estou feliz que você não está mais fedendo.
– Eu também. Odeio o cheiro daquela coisa. E o seu chuveiro é incrível.
– Sim, eu sei. Segundo, quero que você me conte o que aconteceu com a Aphrodite daquele mundo da sua irmã quando ela sacrificou parte de sua humanidade para salvar os novatos vermelhos de lá. Eu sei que ela não morreu, mas o que aconteceu com ela, exatamente?
A pergunta o surpreendeu, mas, depois de um instante de reflexão, Kevin percebeu que não deveria ter se sentido assim. Ele também tinha ficado curioso sobre o que a outra versão dele fazia no mundo de Zo, e aquela versão dele não era uma Profetisa nem uma ferramenta de Nyx. Então, em meio a mordidas no sanduíche, ele contou para Aphrodite o que Zoey tinha explicado para ele, concluindo assim:
– Quando Stevie Rae e o resto dos vampiros vermelhos de lá recuperaram a sua humanidade, você perdeu a sua Marca, mas não o seu dom profético. Até os vampiros e novatos vermelhos daqui serem atraídos para lá junto comigo, acho que ninguém sabia exatamente o que você era.
Aphrodite pareceu perplexa.
– Mas por quê? Por que eu iria me sacrificar espontaneamente assim? Eu poderia ter morrido ou perdido tudo... todos os meus dons. Não faz sentido nenhum. A minha versão de lá é uma idiota.
– Aquela idiota salvou uma raça inteira de vampiros.
– Por quê?
– Por amor, claro. A outra você é cercada de pessoas que ela ama. Ela até age como uma malvada insensível às vezes, mas apenas parte disso é verdade, o que é legal porque acontece que eu gosto de meninas malvadas.
Ela revirou os olhos.
– E você disse que lá eu sou uma vampira estranha híbrida azul e vermelha, além de uma Profetisa?
– Sim.
– Como isso aconteceu?
– Não sei ao certo. Tinha muita coisa rolando por lá e eu não tive muito tempo para fazer perguntas. O que eu sei é que Nyx concedeu a você a capacidade de dar às pessoas, sejam humanos ou vampiros, uma segunda chance depois de eles terem feito tudo errado, tipo, feito tudo tragicamente errado de verdade.
Aphrodite bufou.
– Isso provavelmente porque eu entendo muito sobre como fazer tudo tragicamente errado.
Ele sorriu.
– Pode ser. A Marca daquela Aphrodite é igual à sua, só que maior, e metade dela é vermelha. Nyx disse que, a cada vez que você usar o seu dom e der uma segunda chance a alguém, parte da sua Marca vai desaparecer até que ela suma totalmente, e então você vai ser humana e viver o tempo de vida normal dos humanos.
– Isso parece bizarro. Não sei se eu ia gostar disso.
– Tenho certeza de que a Aphrodite de lá se sentiu assim também quando isso aconteceu, mas depois de ver a diferença que ela fez em mim, no Outro Jack e nos outros vampiros... tenho cem por cento de certeza de que ela decidiu que estava grata por esse dom.
– Então aquela Aphrodite é boa. De verdade – ela disse.
– Sim, completamente – ele concordou.
– Você parece bem apaixonado por aquela Aphrodite.
Kevin encontrou o olhar dela.
– Eu diria que Aphrodite é espetacular... em qualquer mundo.
Aphrodite bufou e então ficou em silêncio por um tempo, bebendo champanhe e beliscando caviar com torradas. Kevin terminou o seu sanduíche e estava devorando a montanha de batatas quando ela falou de novo.
– Deve ser muito diferente por lá. – Ela tinha acendido a lareira e estava olhando para o fogo como se pudesse enxergar aquele outro mundo dentro das labaredas.
– É sim. E também não é. Aquele mundo parece diferente porque é muito menos assustador. Neferet foi derrotada. Zo e os seus amigos comandam o Novo Conselho Supremo dos Vampiros da América do Norte, o que significa que eles são responsáveis pelas Moradas da Noite nos Estados Unidos e que eles iniciaram esses programas incríveis onde humanos podem ter aulas junto com novatos.
Ela olhou para Kevin como se ele estivesse completamente louco.
– Adolescentes humanos. Na Morada da Noite de Tulsa. Tendo aulas. – Ela sacudiu a cabeça. – É difícil imaginar.
– Não está acontecendo só em Tulsa. Humanos e vampiros estão estudando juntos em um monte de escolas. É bem legal.
Aphrodite voltou a ficar em silêncio. Kevin já ia pedir um travesseiro e um cobertor quando ela falou de novo.
– Nós estamos todos tão isolados aqui, mas o mundo da sua irmã não parece nem um pouco solitário.
– Não é assim mesmo, mas nem todos nós estamos isolados desse lado também. Dragon, Anastasia, minha avó não estão. Na verdade, nenhum dos combatentes da Resistência está. Eles são amigos, mas mais do que isso.
– Gente de coração mole – ela disse.
– Amigos com uma causa – ele a corrigiu. Então ele encontrou o olhar dela de novo. – Você não precisa ficar sozinha. Nem mesmo aqui. Você não está sozinha no mundo de Zo.
– Este aqui não é o mundo da sua irmã.
– Não, não é. É o meu mundo. E eu vou mudar as coisas.
– Você?
– Eu.
– Sozinho?
– Bom, não. – Ele sorriu. – Eu não estou sozinho. Você está me ajudando.
– Eu acho que você é um idealista – ela falou.
– Provavelmente.
– Idealistas sempre acabam mortos.
– Às vezes, mas, enquanto vivem, eles vivem de forma grandiosa. Junte-se a mim. Junte-se à Resistência. Você também pode, você meio que já fez isso. Você salvou Dragon e todas aquelas pessoas hoje.
– Mas fui eu quem os colocou em perigo – ela o lembrou.
– Você quis fazer isso? Você queria ser a causa de o Exército Vermelho matá-los?
– Não! Eu odeio toda essa matança. E eu detesto que Neferet me use como uma arma.
– Então me ajude a descobrir um jeito de mudar as coisas para melhor neste mundo.
Em vez de me responder, ela se levantou e desapareceu dentro do quarto, voltando logo depois com o braço cheio de cobertores e um travesseiro macio de penas de ganso, os quais ela largou ao lado dele no sofá.
– Ei, obrigado. Isso é muito gentil da sua parte. Eu vou lavar a louça antes de dormir – Kevin disse.
– Não seja ridículo. Você é meu soldado, não minha camareira. Há um carrinho do lado de fora da porta. Coloque os pratos sujos lá fora. Os serviçais vão cuidar deles. – Então ela hesitou e estendeu a mão por um momento, como se fosse tocar o cabelo dele. – Antes de você dormir, talvez queira secar melhor o cabelo. Durma com o cabelo molhado e ele vai ficar...
– Com lambida de vaca – ele terminou por ela. – Eu sei, eu sei. Zo costumava dizer isso pra mim toda hora.
– Sim, bom, o seu cabelo está perturbadoramente desgrenhado, bagunçado e até meio... – ela perdeu as palavras e sacudiu a cabeça, como se quisesse afastar o seu último pensamento.
Ele não conseguiu evitar. Ele olhou nos olhos maravilhosos dela e disse:
– Você ia dizer meio sexy?
– Já deve estar quase amanhecendo, já que você está delirando.
– Aquela Aphrodite gosta de mim, você sabe – ele sorriu provocativamente.
– Aquela Aphrodite tem problemas. Muitos problemas.
– Mas um ótimo gosto – ele disse. – Ela teria feito o que você fez hoje. Ela iria garantir que Dragon e o resto daquelas pessoas escapasse.
– Boa noite, Kevin. Amanhã vamos pensar em uma solução de quarto mais permanente para você – foi tudo o que ela disse antes de desaparecer dentro do seu quarto.
– Boa noite, Aphrodite – ele falou para a porta fechada.
Kevin colocou os pratos do lado de fora da porta no carrinho que estava ali, apagou a lareira e fez a sua cama no sofá. Então, exausto e se sentindo seguro pela primeira vez neste mundo desde que havia sido Marcado, Kevin dormiu.
– Kevin, anda! Você precisa acordar!
Kevin saiu das profundezas de um belo sonho que o tinha levado de volta ao mundo de Zo, em que estava rindo com ela enquanto segurava a mão de Aphrodite e ela aceitava o pedido dele para ser sua companheira.
– Ahn? O quê? Você aceita? – ele disse, sonolento, procurando a mão de Aphrodite.
Ela de fato deixou que ele pegasse sua mão e então o puxou, fazendo com que ele se sentasse.
– Acorda!
Kevin piscou várias vezes e esfregou a mão no rosto.
– Estou acordado. Mais ou menos. O que foi?
– Tem um pássaro negro enorme dando bicadas na minha janela. Eu ia jogar alguma coisa nele, mas ele disse “Garoto Redbird”. Hum, posso presumir que é você?
– Sim! Ele ainda está lá? Deixe ele entrar! – Kevin tinha tirado a camiseta para dormir, então ele a vestiu apressadamente e correu atrás de Aphrodite na direção do quarto dela.
A mão espalmada de Aphrodite o deteve.
– Fique aí. Minhas cortinas estão totalmente abertas e o sol já está alto.
Kevin só teve um instante para andar de um lado para o outro, e então o grande corvo voou para dentro da sala de estar, aterrissando em cima da mesa de centro de vidro.
– Garoto Redbird!
– Você me encontrou! Bom trabalho. Ok, ok, vou ler isso.
Aphrodite observou o que estava acontecendo por cima do ombro de Kevin.
– O que é aquela coisa em volta do pescoço dele?
– Tem bilhetes dentro. – Kevin puxou o cordão de couro sobre a cabeça do pássaro e abriu o pequeno tubo, tirando o papel lá de dentro.
– Aiminhadeusa! Foi assim que você avisou a Resistência sobre os fardos de feno.
– Sim.
– O que diz o bilhete?
Ele se virou e olhou para ela.
– É Zoey! Ela está aqui!